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A história começa com a união de um casal de médicos jovens e talentosos dominados pela missão de curar, que se combinam tanto como companheiros de trabalho quanto como amantes. Desde o primeiro momento em que a patologista residente Cassandra Cassidy conhece, no centro médico em que trabalham, o brilhante cirurgião cardíaco Thomas Kingsley, ela sente que foram feitos um para o outro. Obrigada por um problema de visão a mudar da especialidade que escolhera para a psiquiatria, Cassandra necessita do apoio e da aprovação que o carismático médico lhe oferece tão apaixonadamente; e Thomas, privilegiado filho único de um industrial e banqueiro, encontra na moça linda e vulnerável a ilimitada devoção de que necessita tão desesperadamente. Mas, à medida que Thomas continua sua meteórica ascensão, o que deveria ser uma felicidade de conto de fadas começa a se desintegrar. Verdadeiro santo para o público que o adora, Thomas é muito diferente para a mulher que o ama — um estranho excêntrico cujas inexplicáveis crises de raiva e cujo comportamento insólito se tornam cada vez mais perturbadores.
Quando o casamento de Thomas e Cassandra começa a se desfazer, a segurança do mundo do hospital que os rodeia parece igualmente ameaçada: Cassandra está convencida de que alguém está matando os doentes em final de tratamento — alguém que tem o poder de vida e morte nas mãos e usa este poder como o anjo da morte.
Contra as furiosas objeções do marido, Cassandra resolve deter os assassinatos, ao mesmo tempo em que luta para salvar seu casamento. Depois de deparar-se com uma terrível descoberta, é obrigada a ver que seus sonhos se transformaram em pesadelos e que sua busca da verdade abriu as comportas de um horror inconcebível.
BRUCE WILKINSON acordou tão subitamente de um sono dos mais profundos que se sentiu dominado por uma sensação de medo, como uma criança que desperta de um pesadelo. Ele não fazia ideia do que o havia acordado, mas achava que fora algum ruído ou um movimento. Perguntou-se se alguma coisa o tocara. Ficou quieto, prendendo a respiração e olhando fixo para frente, escutando. De início ficou desorientado, mas à medida que a mente assumia seu limitado campo de visão, lembrou-se de que estava no Boston Memorial Hospital, no quarto 1.832, para ser exato. Quase no mesmo instante em que compreendeu onde estava, Bruce percebeu que se achava no meio da noite. O hospital estava envolto por uma pesada calma.
Em seu atual internamento, para uma cirurgia cardíaca de derivação, fazia mais de uma semana que Bruce estava no hospital. Contudo, cerca de um mês antes, durante três semanas, ele ficara vários andares abaixo, recuperando-se de inesperado ataque cardíaco. Em consequência, acostumara-se à rotina do hospital. Coisas como o chiado do carrinho de curativos da enfermeira, ao ser empurrado pelo corredor, ou os sons distantes de uma ambulância que chegava, ou mesmo o alto-falante do hospital convocando um médico, tinham-se tornado fenômenos tranquilizadores. Com efeito, muitas vezes, Bruce podia dizer, só de escutar esses sons familiares, que horas eram sem precisar olhar para o relógio. Todos eles significavam que o socorro para qualquer emergência médica estava à mão.
Bruce jamais ligara muito para sua saúde, embora fosse vítima de uma esclerose múltipla. O problema com sua visão, que o havia levado ao médico cinco anos antes, tinha-se esclarecido e ele fizera um esforço consciente para esquecer o diagnóstico, porque os hospitais e os médicos tendiam a assustá-lo. Então, de súbito, ocorreu o ataque cardíaco, com sua consequente hospitalização e a atual grande cirurgia. Os médicos lhe asseguraram que o problema cardíaco não tinha qualquer relação com a esclerose múltipla, mas o desmentido pouco concorrera para sustentar sua coragem abalada.
Agora, quando Bruce acordou no meio da noite e não ouviu qualquer dos sons habituais e tranquilizadores, o hospital parecia um lugar isolado e sinistro, evocando mais medo do que esperança. O silêncio intimidava e não fornecia qualquer explicação imediata para sua súbita insônia. Bruce achou-se inexplicavelmente paralisado por uma sensação de agudo terror.
À medida que os segundos passavam, sua boca tornou-se seca, tal como ficara após sua medicação pré-operatória, cinco dias antes. Ele atribuiu isto ao medo, enquanto persistia completamente imóvel, como um animal cauteloso, seus sentidos ansiando por uma perturbação qualquer. Ele agira tal qual um garoto que acordasse à noite, depois de ter maus sonhos. Se não se movesse, talvez os monstros não o vissem. Deitado de costas, não podia ver muita coisa do quarto, principalmente devido à única iluminação, que provinha de uma pequena lâmpada para a noite colocada ao nível do chão, por trás de sua cama. Tudo o que podia ver era a indistinta junção do teto com a parede. Formando uma silhueta contra esta estava a sombra do suporte que mantinha a injeção intravenosa, o frasco e o tubo. Parecia que o frasco oscilava levemente.
Tentando desfazer seus temores, Bruce começou a controlar as mensagens internas. A grande questão assomava em sua mente: Estou bem? Tendo sido rudemente traído por seu corpo pelo ataque cardíaco, ele imaginava se uma nova catástrofe não o teria acordado. Teriam seus pontos se rompido? Este havia sido um de seus medos logo depois da operação. Poderia a derivação, a ponte de safena, ter-se soltado?
Bruce podia sentir a pulsação em suas têmporas e, a despeito de certa umidade nas palmas das mãos e uma sensação um tanto desagradável na cabeça, que ele associava com a febre, ele se sentia bem. Pelo menos não havia dor, principalmente não aquela dor cruciante, aquela pressão pungente que havia surgido com o ataque cardíaco inicial.
Bruce tentou fazer uma inspiração forçada. Não houve dor penetrante, embora parecesse a ele ter de fazer um esforço extra para inflar os pulmões.
Na semiescuridão, uma tosse úmida reverberou pelos confins do quarto. Bruce foi invadido por nova onda de terror, mas logo percebeu que era apenas seu companheiro de quarto. Talvez houvesse sido o som da tosse do Sr. Hauptman que o tinha despertado, pensou Bruce, experimentando um pouco de alívio. O velho tornou a tossir e adormeceu outra vez.
Bruce pensou em chamar uma enfermeira para examinar o Sr. Hauptman, mais pela oportunidade de poder falar com alguém do que achar que se tratava de um problema real. A verdade era que o Sr. Hauptman tossia assim o tempo todo.
A desagradável sensação de febre intensificou-se e começou a se espalhar. Bruce podia senti-la no peito como um líquido quente. A preocupação com que algo de errado houvesse acontecido "por dentro" reafirmou-se.
Bruce tentou virar-se para localizar o botão da campainha que chamava a enfermeira, cujo fio estava enrolado nas grades do leito. Seus olhos se moveram, mas a cabeça sentia-se pesada. Pelo canto do olho ele viu um movimento rápido, em staccato. Olhando para cima ele podia enxergar o frasco de injeção endovenosa. O movimento que ele tinha visto provinha do rápido escorrer do líquido da injeção. As gotas caíam em rápida sucessão e o brilho da lâmpada noturna saía do líquido com uma cintilação explosiva.
Aquilo era estranho! Bruce sabia que sua injeção endovenosa era apenas mantida para emergências e, supostamente, devia correr o mais devagar possível. Não devia escorrer depressa. Bruce lembrava-se de tê-la verificado, conforme sempre fazia antes de apagar sua lâmpada de leitura.
Ele tentou estender a mão para alcançar o botão da campainha que chamava a enfermeira. Mas não pôde se mover. Era como se seu braço direito não houvesse recebido a ordem. Tentou de novo, com o mesmo resultado.
Bruce sentiu seu terror transformar-se em pânico. Agora tinha a certeza de que algo terrível lhe acontecia! Estava cercado dos melhores cuidados médicos, porém incapaz de alcançá-los. Ele tinha de pedir socorro imediatamente. Era como um pesadelo do qual não pudesse despertar.
Tirando com um puxão sua cabeça do travesseiro, Bruce gritou pela enfermeira. E surpreendeu-se com a fraqueza de sua voz. Ele pretendera gritar, mas, em vez disso, não passou de um murmúrio. Ao mesmo tempo, tomou consciência do quanto sua cabeça estava pesada, exigindo toda sua força para arrancá-la do travesseiro. O esforço provocou um tremor que sacudiu a cama.
Com um suspiro quase inaudível, Bruce caiu para trás sobre o travesseiro, consolidando seu pânico. Tentando chamar de novo, ele ouviu um silvo incompreensível, quase destituído de vocalização. O que quer que houvesse de errado com ele estava piorando rapidamente. Ele sentia como se um invisível cobertor de chumbo estivesse colocado sobre si, comprimindo-o e achatando-o sobre o leito. Suas tentativas para respirar eram deploráveis, descoordenados puxões de seu peito. Completamente aterrorizado, Bruce compreendeu que estava sendo sufocado.
De algum modo, ele organizou seus pensamentos o bastante para se lembrar de novo do botão para chamar a enfermeira. Com tremendo esforço, ergueu seu braço da cama e, de modo descoordenado, espástico, puxou-o através do peito. Era como se estivesse imerso num líquido viscoso. Seus dedos correram pelas grades do leito e ele procurou inutilmente pelo botão. Não estava lá. Com os últimos vestígios de força, içou-se sobre o lado esquerdo, virando-se e batendo contra a grade. Seu rosto pressionava fortemente o aço frio, obliterando a visão de seu olho direito, porém faltavam-lhe forças para se mexer. Com o olho esquerdo ele viu o botão de emergência. Estava no chão, com o fio enrolado sobre si mesmo, como uma cobra.
A consciência de Bruce enchia-se de pânico e desespero, mas o opressivo peso sobre seu corpo crescia, impedindo qualquer movimento. Em seu terror ele imaginava que algo tinha acontecido ao seu coração; será que todos os pontos tinham-se rompido? A sensação de estar sendo sufocado aumentava na medida em que o cérebro de Bruce gritava, pedindo o oxigênio vital. No entanto, Bruce se achava completamente paralisado, capaz apenas de gemer em agonia, enquanto tentava desesperadamente respirar. Entretanto, através de tudo isso, os sentidos de Bruce se mantinham aguçados, sua mente dolorosamente clara. Ele sabia que estava morrendo. Havia um tilintar em seus ouvidos, uma sensação de rodopio, de náusea. Depois a escuridão...
Há mais de um ano que Pamela Breckenridge vinha trabalhando das onze às sete. Não era um turno dos mais populares, porém gostava dele; achava que lhe dava mais liberdade. Durante o verão ela ia à praia de dia e dormia à tarde. No inverno, dormia de dia. Seu corpo não tinha problemas em se ajustar desde que dormisse pelo menos sete horas. E quanto ao seu serviço, ela preferia o turno da noite. Havia menos disputa. Às vezes os dias faziam com que uma enfermeira se sentisse como um guarda de trânsito, levando e trazendo os pacientes para os — e dos — vários gabinetes de raios X, de eletrocardiogramas, dos laboratórios de exames e salas de operações. Além disso, Pamela gostava da responsabilidade de ficar sozinha.
Esta noite, ao caminhar pelo corredor vazio e escurecido, tudo o que ouvia eram alguns murmúrios, o silvo de um respirador, e seus próprios passos. Eram 3h45. Não havia qualquer médico imediatamente disponível e, por isso, nem mesmo outras enfermeiras diplomadas. Pamela trabalhava com duas enfermeiras licenciadas, ambas hábeis veteranas da enfermaria. As três haviam aprendido a tratar com qualquer número de catástrofes em potencial.
Ao passar pelo quarto 1.832, Pamela parou. Durante o relatório daquela noite, a enfermeira encarregada que deixara o turno dissera ser provável que Bruce Wilkinson estivesse bastante fraco para se pensar em lhe aplicar um novo frasco de D5W endovenoso antes da manhã. Pamela hesitou. Era talvez uma tarefa que ela devia deixar para outra, mas como se achava bem na porta do quarto, e não havia quebra do protocolo, decidiu fazê-lo ela mesma.
Uma tosse úmida, encatarrada, chocalhou um cumprimento no quarto fracamente iluminado, fazendo com que Pamela limpasse a própria garganta. Em silêncio, ela deslizou ao longo do leito de Wilkinson. O nível do frasco estava baixo e ela começou a ver, admirada, o líquido se escoando muito rapidamente. Um frasco novo achava-se sobre a mesinha de cabeceira. Ao trocar o frasco da injeção endovenosa e ajustar a velocidade do débito, ela sentiu uma coisa dura sob seu pé. Olhou para baixo e viu o botão da campainha. Só quando se curvou para apanhá-lo foi que olhou para o paciente, notando seu rosto comprimido de encontro à grade lateral do leito. Algo estava errado. Delicadamente, pôs Bruce de costas. Em vez da resistência esperada, Bruce caiu como uma boneca de pano, sua mão direita assumindo uma posição totalmente anormal. Ela curvou-se mais para perto. O paciente não estava respirando!
Com eficiente experiência, Pamela apertou o botão da campainha, acendeu a luz ao lado da cama e afastou esta da parede. Sob a forte luz fluorescente, viu que a pele de Bruce estava de uma intensa cor azul-acinzentada, como a de uma porcelana chinesa, sugerindo que ele fora sufocado por alguma coisa e que se asfixiara. Imediatamente, Pamela inclinou-se, puxou o queixo de Bruce para trás com a mão esquerda, cobriu seu nariz com a mão direita e soprou com força em sua boca. Esperando encontrar obstrução das vias aéreas, Pamela se surpreendeu quando o tórax de Bruce se elevou sem qualquer esforço. Era óbvio que, se ele fora sufocado por alguma coisa, tal coisa não estava mais em sua traqueia.
Tomou o pulso de Bruce: nada. Tentou o pulso carotidiano: nada. Tirando o travesseiro de sob a cabeça de Bruce, ela golpeou-lhe o tórax com a palma da mão. Depois, inclinou-se e tornou a encher os pulmões.
As duas enfermeiras licenciadas entraram correndo no quarto ao mesmo tempo. Pamela disse uma palavra, "alto-falante", e elas entraram em ação como uma equipe num abrir e fechar de olhos. Rapidamente, Rose emitiu uma chamada de emergência pelo alto-falante, enquanto Trudy colocava o forte quadro de 60 X 90 cm por baixo do paciente durante a massagem cardíaca. Assim que Bruce foi posto no quadro, Rose subiu na cama e começou a comprimir seu peito. Após cada quatro compressões, Pamela reinflava os pulmões de Bruce. Entrementes, Trudy corria a buscar o carrinho de emergência e o aparelho de ECG (eletrocardiograma).
Quatro minutos mais tarde, quando o médico residente, Jerry Donovan, chegou, Pamela, Rose e Trudy haviam conectado e posto a trabalhar o aparelho de eletrocardiograma. Infelizmente, ele traçava uma linha horizontal, chata, monótona. Quanto ao aspecto positivo, devia-se considerar que a cor de Bruce havia melhorado um pouco de seu azul-acinzentado.
Jerry viu o ECG plano, contínuo, que indicava nenhuma atividade elétrica e, como Pamela, golpeou o paciente no tórax. Nenhuma resposta. Ele examinou as pupilas: intensamente dilatadas e fixas. Atrás de Jerry estava um interno chamado Peter Matheson, que trepou na cama e ajudou Trudy. Junto à porta achava-se um acadêmico, com os longos cabelos em desalinho.
— Há quanto tempo isso vem acontecendo? — perguntou Jerry.
— Há cinco minutos, desde que o encontrei — replicou Pamela. — Mas não faço ideia de quando ele parou. Ele não estava no monitor. Sua pele estava com um tom azul escuro.
Jerry assentiu com a cabeça. Por uma fração de segundo ele se debateu, prosseguindo na ressuscitação. Ele suspeitava que o paciente já estivesse com o cérebro morto. Mas ainda não tinha por que abandonar o tratamento. Era mais fácil seguir adiante.
— Quero duas ampolas de bicarbonato e um pouco de adrenalina — clamou Jerry, retirando um tubo endotraqueal do carrinho de curativos. Passando para trás da cama, ele deixou Pamela encher os pulmões do doente mais uma vez. Depois, inseriu o laringoscópio, um tubo endotraqueal, e fixou um saco autoinflável, que uniu ao bico de saída de oxigênio da parede. Aplicando o estetoscópio sobre o peito do paciente, e dizendo a Peter que o segurasse ali por um instante, ele apertou o saco inflável. O peito de Bruce ergueu-se imediatamente.
— Pelo menos seu conduto aéreo está livre — disse Jerry, mais para si mesmo do que para os outros.
O bicarbonato e a adrenalina foram aplicados.
— Vamos dar-lhe cloreto de cálcio — falou Jerry, observando o rosto de Bruce assumir lentamente um tom rosado normal.
— Quanto? — perguntou Trudy, pondo-se atrás do carro de curativos.
— Cinco centímetros cúbicos de uma solução a dez por cento. — E, virando-se para Pamela, perguntou:
— Qual o caso deste paciente?
— Ponte de safena — respondeu Pamela. Rose havia trazido a papeleta e Pamela abriu-a. — Tem quatro dias de pós-operatório. Está indo muito bem.
— Estava indo muito bem — corrigiu Jerry. A cor de Bruce parecia quase normal, porém as pupilas continuavam largamente dilatadas e o ECG prosseguia numa linha plana e nivelada.
— Deve ter tido um maciço ataque cardíaco — disse Jerry. — Talvez um êmbolo pulmonar. Você disse que ele estava azul quando o encontrou?
— Azul escuro — confirmou Pamela.
Jerry balançou a cabeça. Nenhum dos dois diagnósticos teria produzido uma cianose profunda. Seus pensamentos foram interrompidos pela chegada de um cirurgião residente, tonto de sono.
Jerry resumiu o que estava fazendo. Enquanto falava, segurava uma seringa de adrenalina voltada para cima, a fim de livrar o líquido das bolhas de ar, enfiando-a a seguir, perpendicularmente, no peito de Bruce. Ouviu-se um pequeno estalido, quando a agulha atravessou alguma fáscia. O único outro som era do eletrocardiógrafo expelindo o papel com o traçado retilíneo. Ao puxar o êmbolo da seringa, Jerry viu que entrava sangue na mesma. Confiante em que estava dentro do coração, Jerry injetou. E fez sinal para que Peter recomeçasse a comprimir o peito de Bruce e para que Rose tornasse a inflar os pulmões.
Ainda assim, não ocorreu qualquer atividade cardíaca. Ao abrir a parte externa do pacote esterilizado, contendo um eletrodo marca-passo transvenoso, ele desejou jamais ter começado a decifrar a charada. Intuitivamente, sabia que o paciente tinha ido longe demais. Mas agora que havia começado, precisava acabar.
— Vou precisar de um intercateter de calibre 14 — falou Jerry. Com uma esponja de algodão embebida em betedine, ele começou a preparar o sítio de entrada, ao lado esquerdo do pescoço de Bruce.
Quer que eu faça isso? — perguntou o cirurgião residente, falando pela primeira vez.
— Acho que o temos sob controle — disse Jerry, tentando projetar mais confiança do que sentia.
Pamela começou a ajudá-lo a calçar um par de luvas cirúrgicas. Eles estavam prestes a descobrir o paciente quando uma figura apareceu na porta, empurrando o acadêmico. A atenção de Jerry foi atraída pela reação do cirurgião residente: o puxa-saco fazia tudo, menos saudar. Até as enfermeiras haviam perceptivelmente se empertigado quando Thomas Kingsley, o mais renomado cirurgião cardíaco do hospital, entrou a passos largos no quarto.
Ele vestia roupas cirúrgicas e, evidentemente, vinha direto da sala de operações. Aproximou-se do leito e, delicadamente, pousou a mão no antebraço de Bruce, como se, através de um simples toque, pudesse adivinhar qual o problema.
— O que você está fazendo? — perguntou ele a Jerry.
— Estou introduzindo um marca-passo transvenoso — respondeu Jerry, abalado e impressionado pela presença do Dr. Kingsley. Em geral, os membros da equipe não atendiam a paradas cardíacas, em especial no meio da noite.
— Parece que a parada cardíaca é total — disse o Dr. Kingsley, passando uma volumosa quantidade da fita do ECG por suas mãos. — Não há qualquer evidência de bloqueio atrioventricular. A chance de um marca-passo transvenoso ter sucesso é infinitamente pequena. Acho que está perdendo o seu tempo. — Então, o Dr. Kingsley tomou a pulsação de Bruce na virilha. Olhando para Peter, que a esta altura estava suando, o Dr. Kingsley disse: — O pulso está forte. Você deve estar fazendo um bom trabalho. — E, virando-se para Pamela, concluiu: — Tamanho oito, por favor.
Pamela apresentou as luvas sem demora. O Dr. Kingsley calçou-as e pediu o bisturi do carro de curativos.
— Pode arrancar o curativo? — disse ele para Peter. Para Pamela falou que precisava de algumas tesouras de curativo bem esterilizadas.
Peter olhou de relance para Jerry, pedindo uma confirmação; então, fez uma pausa em sua massagem e arrancou o chumaço de esparadrapo e gaze que estava sobre o esterno do paciente. O Dr. Kingsley dirigiu-se para a cama e pegou o bisturi. Sem mais demora, mergulhou a ponta do instrumento no alto da ferida em cicatrização e, decisivamente, puxou-o para baixo, até a base. Ouviu-se um pequeno estalido quando ele cortou cada uma das translúcidas suturas azuis de nylon. Peter escorregou da cama para sair do caminho.
— Tesoura — disse o Dr. Kingsley calmamente, enquanto os observadores permaneciam em chocante silêncio. Era o tipo de cena sobre a qual haviam lido, mas que nunca tinham visto.
O Dr. Kingsley cortava através dos fios das suturas que mantinham juntas as duas metades do esterno, fendido. Depois, enfiou as mãos na ferida e, com força, afastou as duas metades do esterno, produzindo um ruído de rachadura. Jerry Donovan procurou olhar dentro do tórax de Bruce, porém o Dr. Kingsley havia impedido a visão. A única coisa que Jerry podia dizer era que não havia qualquer hemorragia.
O Dr. Kingsley moveu a mão com cuidado, enfiando primeiro os dedos no peito de Bruce, e empalmou a ponta do coração. Ritmicamente, começou a comprimi-lo, acenando com a cabeça para Rose quando ele devia encher os pulmões de ar.
— Verifique o pulso agora — disse o Dr. Kingsley.
Peter adiantou-se um passo.
— Forte — disse ele.
— Eu gostaria de um pouco de adrenalina, por favor — falou o Dr. Kingsley. — Mas não está me parecendo bom. Acho que este paciente teve a parada há já algum tempo.
Jerry Donovan pensou em dizer que ele alimentava a mesma impressão, mas decidiu ficar calado.
— Chame o laboratório de eletroencefalografia — disse o Dr. Kingsley, continuando a massagear o coração. — Vamos ver se há alguma atividade cerebral.
Trudy foi até o telefone.
O Dr. Kingsley injetou a adrenalina, mas pôde ver que não havia qualquer efeito sobre o ECG.
— De quem é este paciente? — indagou ele.
— Do Dr. Ballantine — disse Pamela.
Inclinando-se, o Dr. Kingsley perscrutou o interior da ferida. Jerry achou que ele estava avaliando o conserto cirúrgico. Era de conhecimento geral no hospital que, numa escala de um a dez, no que concernia à técnica operatória, Kingsley era um dez e Ballantine, a despeito de ser o chefe do departamento de cirurgia cardíaca, ficava na faixa de três.
De repente, o Dr. Kingsley ergueu o olhar e fixou-o no acadêmico como se o visse pela primeira vez.
— Como pode dizer neste momento que este não é um caso de um bloqueio atrioventricular, doutor?
A cor fugiu do rosto do estudante. Finalmente, ele respondeu:
— Não sei.
— Prudente resposta — sorriu o Dr. Kingsley. — Quem me dera que eu houvesse tido a coragem de admitir não saber algo quando era estudante de medicina. — E, virando-se para Jerry, perguntou: — Como vão as pupilas dele?
Jerry moveu-se e levantou as pálpebras de Bruce.
— Não se mexeram.
— Aplique uma outra ampola de bicarbonato — ordenou o Dr. Kingsley. — Espero que tenha dado um pouco de cálcio.
Jerry assentiu.
Seguiram-se alguns minutos de silêncio, enquanto o Dr. Kingsley massageava o coração. Depois, um técnico apareceu na porta com um antigo aparelho de encefalografia.
— Quero apenas saber se existe alguma atividade elétrica no cérebro — disse o Dr. Kingsley. O técnico adaptou os elétrodos no couro cabeludo e ligou o aparelho. Os traçados das ondas cerebrais estavam planos, justamente como o traçado do ECG.
— Infelizmente é isso — disse o Dr. Kingsley, enquanto retirava a mão do peito de Bruce e descalçava as luvas. — Acho melhor alguém chamar o Dr. Ballantine. Muito obrigado pela sua ajuda. — E saiu a passos largos do quarto.
Por um instante, ninguém falou ou se mexeu. E o técnico do EEG foi o primeiro. Constrangido, ele disse que seria melhor voltar ao laboratório. Ele desprendeu toda a sua parafernália e saiu.
— Nunca vi nada igual — disse Peter, olhando fixamente para o tórax aberto de Bruce.
— Nem eu — concordou Jerry. — É de se perder o fôlego.
Os dois homens se adiantaram até a cama e espiaram dentro da ferida.
Jerry pigarreou, limpando a garganta.
— Não sei o que você mais precisa, se competência ou autoconfiança, para cortar alguém assim.
— De ambas as coisas — disse Pamela, puxando a tomada do eletrocardiógrafo. — Que tal, rapazes, abrirem um pouco de espaço para que possamos colocar este lugar em ordem? A propósito, esqueci de mencionar uma coisa. Quando encontrei o Sr. Wilkinson, sua injeção intravenosa estava correndo rapidamente. Ela devia estar apenas ligeiramente aberta. — Pamela encolheu os ombros. — Não sei se isso é importante ou não, mas achei que deviam saber.
— Obrigado — disse Jerry, distraído. Ele não estava escutando. Afetadamente, ele enfiou seu dedo indicador na ferida e tocou o coração de Bruce. — O pessoal diz que o Dr. Kingsley é um arrogante filho da puta, mas de uma coisa tenho certeza. Se amanhã eu precisasse de uma ponte, era ele quem eu escolheria para me operar.
— Amém — disse Pamela, abrindo caminho entre Jerry e o leito a fim de começar a preparação do corpo.
— HOUVE UMA NOVA admissão na noite passada — disse Cassandra Kingsley, relanceando os olhos pelo seu relatório preliminar. Ela se sentia muito pouco à vontade, tendo sido jogada em evidência na equipe da manhã que se encontrava na enfermaria psiquiátrica, a Clarkson Dois. — Seu nome é Coronel William Bentworth. É um homem branco de 48 anos, três vezes divorciado, que foi admitido através da Emergência após ter uma altercação num bar gay. Estava muito embriagado e xingou o pessoal da Emergência.
— Meu Deus! — riu Jacob Levine, o chefe residente de psiquiatria.
Ele tirou seus óculos redondos de aro de metal e esfregou os olhos. — Sua primeira noite na Emergência de Psiquiatria e você se vê às voltas com Bentworth!
— Prova de fogo — disse Roxane Jefferson, a enfermeira- chefe negra da Clarkson Dois. — Ninguém pode dizer que a Psiquiatria no Boston Memorial constitua um rodízio tedioso.
— Ele não fazia minha ideia de um paciente perfeito — admitiu Cassi, com um débil sorriso. Os comentários de Jacob e Roxane faziam-na sentir-se um pouco mais relaxada, achando que, caso se mostrasse estúpida com sua atitude, todos a desculpariam. Bentworth não era um estranho à Clarkson Dois.
Há menos de uma semana que Cassi era residente na Psiquiatria. Novembro não era a ocasião habitual para se começar uma residência, mas Cassi só resolvera passar da Patologia para a Psiquiatria depois do início do ano médico, em julho, e só o conseguira porque um dos residentes do primeiro ano havia saído. Na ocasião, Cassi achara que tinha sido extraordinariamente feliz. Mas agora não estava tão certa disso. Começar uma residência sem outros colegas igualmente inexperientes era mais difícil do que havia julgado. Os outros residentes do primeiro ano tinham quase cinco meses adiante dela.
— Aposto que Bentworth escolheu algumas palavras especialmente para você, quando apareceu — disse, à guisa de conforto, Joan Widiker, uma residente do terceiro ano, que atualmente dirigia o serviço de consultas psiquiátricas e que se interessara imediatamente por Cassi.
— Eu não desejaria repeti-las — admitiu Cassi, assentindo com a cabeça para Joan. — De fato, ele se recusou a falar comigo, a não ser para me dizer o que pensava da psiquiatria e dos psiquiatras. Ele me pediu um cigarro, que eu lhe dei, achando que poderia relaxá-lo, mas, em vez de fumá-lo, começou a pressionar a extremidade acesa contra seus braços. Antes que eu pudesse conseguir ajuda, ele já se queimara em seis lugares.
— Ele é perfeitamente encantador — disse Jacob. — Cassi, você devia ter me chamado. A que horas ele entrou?
— Duas e trinta da manhã — respondeu Cassi.
— Sei — continuou Jacob. — Você fez o que devia fazer.
Todo mundo riu, inclusive Cassi. Desta vez não houve aquele substrato hostil de competição que marcara todos os seus anos de treinamento. E nenhum dos comentários meio respeitosos e meio ciumentos que tinham cercado seus relacionamentos no Boston Memorial desde seu casamento com Thomas Kingsley. Cassi esperava poder retribuir o apoio deles.
— De qualquer modo — disse ela, tentando organizar seus pensamentos — O Sr. Bentworth... ou devo dizer, Coronel Bentworth, do Exército dos Estados Unidos... apresentou-se com uma aguda crise etílica, um estado de ansiedade difusa alternando-se com um estado depressivo, raivoso, e com um estado de automutilação, mais uma papeleta de quase quatro quilos de peso de suas internações anteriores.
O grupo rompeu numa renovada risada.
— Um ponto a favor do Coronel Bentworth — disse Jacob — é que ele tem ajudado a treinar uma geração de psiquiatras.
— Eu tive esta sensação — admitiu Cassi. — Procurei ler as partes mais importantes da papeleta. Acho que tem quase o mesmo tamanho de Guerra e Paz. Pelo menos me impediu de me fazer de idiota e arriscar um diagnóstico. Ele tem sido classificado como portador de uma personalidade fronteiriça com ocasionais e breves estados psicóticos.
— Ao exame físico constataram-se contusões múltiplas em seu rosto e uma pequena laceração no lábio superior. O resto do exame físico foi normal, com exceção de suas recentes queimaduras autoinfligidas. Havia pequenas cicatrizes transversais em ambos os punhos. Ele se recusou a cooperar para um exame neurológico completo, mas estava orientado quanto ao tempo, espaço e personalidade. Uma vez que a atual admissão espelhava a última em termos da sintomatologia, e já que o amital sódico foi usado na admissão anterior com tanto sucesso, aplicou-se lentamente, na veia, meio grama.
Quase no mesmo instante em que Cassi terminava a explanação, seu nome saiu do sistema de alto-falantes do hospital. Automaticamente, começou a se levantar, mas Joan a reteve, dizendo que a encarregada da enfermaria iria atender.
— Você acha que o Coronel Bentworth corria o risco de se suicidar? — perguntou Jacob.
— Realmente não — disse Cassi, sabendo que estava tergiversando. Cassi sabia muito bem que sua capacidade para avaliar o risco de suicídio era aproximadamente a mesma que a do homem da rua. — Queimar-se com o cigarro é mais uma atitude de automutilação do que de autodestruição.
Jacob torceu um anel de seus cabelos encaracolados e olhou de relance para Roxane, que estava na Clarkson Dois há mais tempo que qualquer outra pessoa. Ela era reconhecida como uma autoridade em vários assuntos. Esta era outra razão pela qual Cassi gostava do serviço de psiquiatria. Não tinha a estrutura rígida que existia em toda parte no hospital, com os médicos implacavelmente no topo. Os médicos, enfermeiras, atendentes, todo mundo que fazia parte da equipe da Clarkson Dois era respeitado como tal.
— Tenho tentado ignorar a diferença — falou Roxane — mas suponho que existe alguma. Ainda assim, devemos ser cautelosos. Ele é um homem extremamente complexo.
— Esta é uma exposição bem abrandada — disse Jacob.
— O cara teve uma ascensão meteórica na vida militar, especialmente durante seus múltiplos turnos de serviço no Vietnam. Foi até condecorado várias vezes, mas quando olhei para sua folha de serviço no exército, sempre parecia que um desproporcionado número de seus próprios homens foi morto. Parece que seus problemas psiquiátricos só se revelaram depois que atingiu seu atual posto de coronel. Foi como o sucesso o houvesse destruído.
— Retornando à questão do risco de suicídio — disse Roxane, virando-se para Cassi — acho que o grau de depressão é o ponto mais importante.
— Não foi uma depressão típica — retrucou Cassi, sabendo que se aventurava num terreno precário. — Ele dizia que se sentia mais vazio do que triste. Um minuto mais tarde, agia depressivamente e, em seguida, irrompia raivoso e com uma linguagem de baixo calão. Ele era inconsistente.
— Aí tem você — disse Jacob. Era uma de suas frases favoritas e seu significado se relacionava ao modo pelo qual ele enfatizava as palavras. Neste caso ele estava satisfeito. — Se você tivesse de pegar uma palavra para caracterizar um paciente fronteiriço, acho que "inconsistência" seria a mais apropriada.
Cassi absorveu prazerosamente o elogio. Seu próprio ego tivera muito pouco com que se alimentar durante a semana anterior.
— Muito bem, então — disse Jacob. — Quais são os seus planos para o Coronel Bentworth?
A euforia de Cassi se extinguiu.
Então, um dos residentes falou:
— Acho que Cassi devia fazer com que ele deixasse de fumar.
Todo o grupo riu e a tensão de Cassi se evaporou.
— Meus planos para o Coronel Bentworth — disse ela — são... — fez uma pausa — ...que eu vou ter de ler um bocado no fim de semana.
— Bastante bom e justo — comentou Jacob. — Entrementes, eu recomendaria um pequeno curso sobre um forte tranquilizante. Os fronteiriços não se dão muito bem com medicação muito extensa, mas isso pode ajudá-los em passageiros estados psicóticos. E agora: o que mais aconteceu na noite passada?
Susan Cheaver, uma das enfermeiras psiquiátricas, tomou a palavra. Com sua habitual eficiência, resumiu todos os fatos significativos ocorridos desde o fim da tarde do dia anterior. O único acontecimento incomum foi um episódio de agressão física sofrido por uma paciente chamada Maureen Kavenaugh. Seu marido comparecera para uma de suas raras visitas. O encontro pareceu transcorrer muito bem durante algum tempo, mas então surgiram palavras iradas, seguidas por uma série de tapas aplicados pelo Sr. Kavenaugh. O episódio ocorreu no meio da sala de estar dos pacientes e assustou todos os outros que lá estavam. O Sr. Kavenaugh teve de ser subjugado e retirado sob escolta da enfermaria. Sua esposa recebera um sedativo.
— Tenho falado várias vezes com o marido — disse Roxane. — Ele é um motorista de caminhão com pouca ou nenhuma compreensão do estado de sua esposa.
— E que você sugere? — perguntou Jacob.
— Acho que o Sr. Kavenaugh devia ser encorajado a visitar sua mulher, mas somente quando alguém pudesse estar com eles. Não creio que Maureen seja capaz de manter uma remissão de seu estado, a não ser que prossiga com a terapia. E acho que vai ser difícil que ele coopere.
Cassi observava e escutava enquanto toda a equipe psiquiátrica participava. Quando Susan acabou, cada um dos residentes teve oportunidade de discutir seus pacientes. Então, o terapeuta ocupacional, seguido pelo assistente psicossocial, teve uma chance de falar. Por fim, o Dr. Levine perguntou se havia outros problemas. Ninguém se mexeu.
— Muito bem — disse o Dr. Levine — verei todos vocês durante as visitas da tarde.
Cassi não se levantou imediatamente. Fechou os olhos e tomou profunda inspiração. A ansiedade engendrada pela reunião da equipe ocultara seu cansaço, mas agora que a excitação passara ela a sentia como uma vingança. Ela só tivera três horas de sono. E, para Cassi, o repouso era importante. Oh, como seria bom se ela apenas deitasse a cabeça sobre seu braço direito, ali na mesa de conferências.
— Aposto que você está cansada — disse Joan Widiker, colocando a mão sobre o braço de Cassi. Era um gesto cordial, reconfortante.
Cassi ensaiou um sorriso. Joan interessava-se genuinamente pelas outras pessoas. Mais do que ninguém, ela havia tirado tempo para tornar a primeira semana de Cassi como residente em psiquiatria a mais suave possível.
— Eu me arranjarei — disse Cassi. E depois acrescentou: — Espero.
— Você vai se sair muito bem — assegurou Joan. — De fato, você procedeu maravilhosamente esta manhã.
— Acha mesmo? — perguntou Cassi. Seus olhos marrons-avermelhados brilharam.
— Completamente. Você chegou a arrancar um cumprimento de Jacob. Ele gostou de sua descrição do Coronel Bentworth como inconsistente.
— Não me lembre isso — disse Cassi, desesperançada. — A verdade é que eu não reconheceria um distúrbio de personalidade fronteiriça se encontrasse uma no jantar.
— Provavelmente você não reconheceria — aquiesceu Joan. — Conforme muitas outras pessoas, a menos que o paciente não estivesse fazendo um episódio psicótico. Os fronteiriços podem-se compensar muitíssimo bem. Veja Bentworth.
Ele é um coronel do exército.
— Isso me aborreceu. Nem assim ele me pareceu coerente.
— Bentworth pode confundir qualquer um — comentou Joan, apoiando Cassi com um aperto no braço. — Vamos. Vou-lhe pagar um café na lanchonete. Parece que você está precisando de um.
— Preciso, sim — concordou Cassi. — Mas não sei se devo tomar seu tempo.
— Ordens do médico — disse Joan, levantando-se. Enquanto caminhavam pelo corredor, ela acrescentou: — Eu conheci Bentworth quando era uma residente do primeiro ano e tive a mesma experiência que você. Por isso sei como se sente.
— Falando sério — disse Cassi, encorajada. — Eu não queria admitir na reunião, mas achei o coronel assustador.
Joan fez que sim com a cabeça.
— Olhe, Bentworth representa problema. Ele é mau e esperto. Seja como for, ele sabe muito bem como tratar as pessoas: sabe descobrir suas fraquezas. Este poder, combinado com sua raiva e hostilidade reprimidas, pode ser devastador.
— Ele me fez sentir completamente inútil — falou Cassi.
— Como uma psiquiatra — corrigiu Joan.
— Como uma psiquiatra — concordou Cassi. — Mas é isso que se espera que eu seja. Talvez, se eu pudesse achar alguns casos clínicos semelhantes para ler...
— A literatura é imensa — disse Joan. — Enorme. Mas é algo assim como aprender a andar de bicicleta. Você pode ler tudo sobre bicicletas durante anos e, quando finalmente tentar andar, não vai ser capaz. A psiquiatria é tanto um processo quanto conhecimento. Venha, vamos tomar o café.
Cassi hesitou.
— Talvez eu devesse ir trabalhar.
— Você não tem nenhuma reunião programada com os pacientes agora, tem?
— Não, mas...
— Então você vem. — Joan tomou-a pelo braço e elas recomeçaram a andar.
Cassi deixou-se ser levada. Ela queria passar um pouco de tempo com Joan. Era tanto instrutivo quanto encorajador.
Talvez Bentworth quisesse falar após uma noite de repouso.
— Deixe-me contar-lhe algo sobre Bentworth — disse Joan, como se estivesse lendo a mente de Cassi. — Todo mundo que conheço que tratou dele, inclusive eu, estava certo de que podia curá-lo. Mas os fronteiriços em geral, e o Coronel Bentworth em particular, não se curam. Eles podem ficar progressivamente mais bem-compensados, porém não curados.
Ao passarem pelo posto das enfermeiras, Cassi deixou a papeleta de Bentworth e inquiriu sobre sua chamada.
— Era o Dr. Robert Seibert — disse a ajudante. — Ele pediu que você o chamasse o mais breve possível.
— Quem é o Dr. Seibert? — perguntou Joan.
— É um residente na Patologia — respondeu Cassi.
— O mais breve possível parece dizer que você deve chamá-lo já — falou Joan.
— Você se importa?
Joan balançou a cabeça e Cassi contornou o balcão para usar o telefone próximo à estante das papeletas. Roxane aproximou-se de Joan.
— Ela é uma ótima garota — disse a enfermeira. — Acho que vai ser uma boa aquisição aqui.
Joan assentiu e ambas concordaram em que a insegurança e a ansiedade de Cassi derivavam de seu compromisso e de sua dedicação.
— Mas ela me preocupa um pouco — acrescentou Roxane. — Ela parece ter uma vulnerabilidade especial.
— Acho que ela se dará muito bem — disse Joan. — E não pode ser fraca demais, sendo casada com Thomas Kingsley.
Roxane deu um largo sorriso e caminhou pelo corredor. Ela era uma negra alta e elegante, que impunha respeito por sua inteligência e seu sentido de estilo. Usava o cabelo trançado em fileiras desde muito antes que se tornasse moda.
Quando Cassi desligou o telefone, Joan examinou-a cuidadosamente. Roxane tinha razão. Cassi parecia delicada. Talvez fosse sua pele pálida, quase translúcida. Ela era magra, porém graciosa, medindo um pouco mais de l,55m de altura. Seu cabelo era fino e de uma cor que variava de um castanho brilhante ao louro, dependendo do ângulo e da luz que sobre ele incidia. No trabalho, ela o usava frouxamente enrolado no alto da cabeça, mantido no lugar por pequenos pentes e grampos. Mas devido à sua contextura, tufos dele desciam por seu rosto em delicados cordões. Suas feições eram pequenas e miúdas e os olhos se viravam para cima, tão levemente nos cantos exteriores, que lhe davam uma suave aparência exótica. Ela usava pouca maquilagem, o que a fazia parecer mais jovem do que seus 28 anos. Suas roupas estavam sempre alinhadas, mesmo que tivesse passado de pé a maior parte da noite, e hoje ela vestia uma de suas muitas blusas brancas que iam até o pescoço. Para Joan, Cassi parecia uma jovenzinha de uma antiga fotografia vitoriana.
— Em vez de irmos tomar café — disse Cassi com entusiasmo — que tal vir comigo até a Patologia por alguns minutos?
— Patologia — retrucou Joan, com alguma relutância.
— Estou certa de que poderemos tomar café lá em cima — disse Cassi, como se aquela fosse a explicação da hesitação de Joan. — Vamos. Você pode achar interessante.
Joan deixou-se levar pelo corredor principal até a pesada porta de incêndio que dava para o hospital propriamente dito. Não havia portas trancadas na Clarkson Dois. Era uma enfermaria "aberta". Muitos dos pacientes não tinham permissão de deixar o andar, mas a eles competia obedecer. Eles sabiam que, se ignorassem as regras, arriscavam-se a ser enviados para o Hospital Estadual. Ali o ambiente era significativamente diferente e muito menos agradável.
Quando a porta se fechou atrás dela, Cassi experimentou uma sensação de alívio. Em nítido contraste com a enfermaria da Psiquiatria, aqui, no principal edifício do hospital, era fácil distinguir os médicos e as enfermeiras dos pacientes. Os médicos usavam jaquetas ou casacos brancos, as enfermeiras seus uniformes brancos e os pacientes suas roupas de hospital. Lá na Clarkson Dois todo mundo usava roupas de passeio.
Enquanto palmilhavam seu caminho para os elevadores centrais, Joan perguntou:
— Como era ser uma residente na Patologia? Você gostava?
— Eu adorava — respondeu Cassi.
— Espero que não tome isso como um insulto — riu Joan. — Mas você não se parece nada com qualquer patologista que eu conheça.
— É a história de minha vida. Primeiro ninguém acreditava que eu fosse uma estudante de medicina, depois disseram que eu era jovem demais para ser médica e, na noite passada, o Coronel Bentworth foi bondoso o bastante para me dizer que eu não parecia uma psiquiatra. Que é que você acha que eu pareço?
Joan não respondeu. A verdade era que Cassi parecia-se mais com uma dançarina ou modelo do que com uma médica.
Elas se juntaram à multidão em frente à fileira de elevadores que serviam ao Scherington, o principal edifício do hospital, que era um lamentável erro arquitetônico. Às vezes, tinha-se de esperar 10 minutos por um elevador e depois parar em cada andar.
— O que fez você mudar de residência? — perguntou Joan e se arrependeu assim que a pergunta saiu de seus lábios.
— Você não precisa responder. Não pretendo ser intrometida. Acho que é a psiquiatra que existe em mim.
— Não há nada de mais — disse Cassi tranquilamente.
— E, na verdade, é muito simples. Eu tenho diabetes juvenil. Ao escolher a minha especialidade médica, tive de manter aquela realidade em mente. Tentei ignorá-lo, mas é um handicap definitivo.
O constrangimento de Joan aumentou com a franqueza de Cassi. Contudo, por mais desconfortável que se sentisse, Joan achou que seria pior não responder à sinceridade de Cassi.
— Eu devia ter pensado que, sob as circunstâncias, a patologia teria sido uma escolha muito boa.
— No início eu também achei — disse Cassi. — Mas infelizmente, durante o ano passado, comecei a ter distúrbios com meus olhos. Para ser franca, no momento só posso distinguir o claro e o escuro com meu olho esquerdo. Tenho certeza de que você sabe tudo sobre a retinopatia diabética. Não sou uma derrotista, mas se o pior se tornasse pior, eu poderia praticar a psiquiatria, mesmo que me tornasse cega. O mesmo não se aplica à patologia. Vamos, vamos pegar o primeiro elevador.
Cassi e Joan entraram precipitadas no elevador. A porta fechou-se e elas começaram a subir.
Há muitos anos que Joan não se sentia tão desconfortável, mas achava que tinha de responder.
— Há quanto tempo você sofre de diabetes? — perguntou ela.
A simples questão fez Cassi retroceder no tempo, para quando estava com oito anos e sua vida começava a mudar. Até aquele ponto, Cassi sempre gostara da escola. Era uma criança impaciente, entusiasta, que parecia olhar para a frente em busca de novas experiências. Mas, no meio da terceira série, tudo mudou. Antes ela sempre estava pronta para a escola cedo; agora tinha de ser sacudida e adulada pela mãe. Sua concentração diminuía e por causa disso começaram a chegar os bilhetes da professora. Um dos principais pontos, algo que ninguém reconheceu, nem mesmo Cassi, era que tinha de usar o banheiro das moças com frequência cada vez maior. Depois de algum tempo, a professora, Srta. Rossi, começou a recusar os pedidos de Cassi, suspeitando de que ela usava desse estratagema para evitar os deveres. Quando isso ocorreu, Cassi experimentou o terrível medo de perder o controle da bexiga. Aos olhos de sua mente ela podia visualizar o que aconteceria se sofresse um "acidente" e a urina escorresse de seu assento e empoçasse sob sua carteira. O medo provocou a raiva e a raiva o ostracismo. Os garotos começariam a zombar dela.
Em casa, um episódio de micção noturna surpreendeu e chocou tanto Cassandra quanto sua mãe. A Sra. Cassidy exigiu uma explicação, porém Cassandra não tinha nenhuma e, com efeito, estava igualmente apavorada. Quando o Sr. Cassidy sugeriu que se consultasse o médico da família, a Sra. Cassidy ficou muito mortificada para fazê-lo, convencida que estava de que tudo não passava de um distúrbio de comportamento.
Os vários castigos não fizeram efeito. Serviram apenas para aumentar o problema. Cassi começou a ter acessos de mau humor, perdeu seus últimos amigos e passava a maior parte do tempo em seu quarto. Com relutância, a Sra. Cassidy começou a pensar sobre a necessidade de consultar um psicólogo infantil.
As coisas chegaram a um extremo no início da primavera. Cassi podia se lembrar vividamente do dia. Apenas meia hora depois de um recreio, ela começou a experimentar uma combinação de crescente pressão vesical e sede. Antecipando a reação da Srta. Rossi num período tão próximo do recreio anterior, Cassi tentou em vão esperar que terminasse a aula. Ela se contorcia em seu banco e apertava os punhos e as mãos. Sua boca estava tão seca que ela mal podia engolir e, apesar de todos os seus esforços, ela sentiu a eliminação de uma pequena quantidade de urina.
Aterrorizada, ela caminhou até a professora, com os pés voltados para dentro, e pediu para ser dispensada. A Srta. Rossi, sem sequer olhar para ela, disse-lhe que voltasse para o seu lugar. Cassi virou-se e se encaminhou deliberadamente para a porta. A Srta. Rossi ouviu e levantou o olhar.
Cassi correu para o banheiro das moças com a Srta. Rossi em seus calcanhares. Ela já havia baixado as calcinhas e arregaçara o vestido até os braços antes que a Srta. Rossi pudesse alcançá-la. Com alívio, a menina sentou-se na privada. A Srta. Rossi parou, pondo as mãos na cintura, e esperou com uma expressão que dizia: "É melhor você urinar, ou..."
Cassi urinou. Começou a fazê-lo e continuou pelo que parecia ser um tempo interminável. A expressão zangada da Srta. Rossi abrandou-se.
— Por que você não foi ao banheiro durante o recreio? — perguntou ela.
— Eu fui — retrucou Cassi queixosamente.
— Não acredito em você — disse a Srta. Rossi. — Não acredito. E esta tarde, depois das aulas, vamos até o gabinete do Sr. Jankowski.
De volta à classe, a Srta. Rossi fez Cassi sentar-se ao seu lado. Ela podia lembrar-se ainda da tontura que a acometeu.
Primeiro, não pôde ver o quadro-negro. Depois, experimentou uma sensação estranha que a envolvia e achou que ia vomitar. Mas não o fez. Em vez disso, desmaiou. A próxima coisa de que Cassi tomou conhecimento foi que estava no hospital. Sua mãe inclinava-se sobre ela. E dizia a Cassi que ela estava com diabetes.
Cassi voltou-se para Joan, trazendo sua mente para o presente.
— Fui hospitalizada quando tinha nove anos — disse Cassi apressadamente, esperando que Joan não houvesse notado o fato de que ela estivera sonhando acordada. — Então, foi feito o diagnóstico.
— Deve ter sido um tempo difícil para você — comentou Joan.
— Não foi tão ruim. Sob certos aspectos, foi um alívio saber que os sintomas que eu apresentava tinham uma base física. E, uma vez que os médicos estabeleceram minhas exigências de insulina, senti-me muito melhor. Quando cheguei à adolescência já estava habituada a aplicar-me as injeções duas vezes por dia. Ah, aqui estamos nós. — Cassi fez sinal para que elas saíssem do elevador.
— Estou impressionada — falou Joan com sinceridade. — Duvido que pudesse continuar meu treinamento médico se fosse diabética.
— Estou certa de que você seria — disse Cassi casualmente. — Todos nós somos mais adaptáveis do que achamos.
Joan não soube se concordava ou não, mas deixou correr a conversa.
— E quanto ao seu marido? Tenho conhecido vários cirurgiões em minha vida. Espero que ele seja compreensivo e lhe dê apoio.
— Oh, sim, ele é — disse Cassi, mas respondeu depressa demais para a mente analítica de Joan.
A Patologia era o seu próprio mundo, completamente separado do resto do hospital. Como residente da Psiquiatria Joan não visitava o andar nos dois anos em que estava no Boston Memorial. Ela se preparara para o ambiente escuro, do século XIX, do Departamento de Patologia em sua escola de medicina, com prateleiras fechadas de vidros sujos, cheias de frascos contendo espécimes horrorosos conservados em formol amarelado. Em vez disso, ela se viu num mundo futurista, branco, composto de azulejos, fórmica, aço inoxidável e vidro. Não havia espécimes desordenados e nada de odores repulsivos. Na entrada havia uma porção de secretárias com fones nos ouvidos, datilografando palavras que surgiam em telas de aparelhos de processamento. À esquerda havia escritórios e no centro uma longa mesa branca de fórmica, sobre a qual se achavam microscópios binoculares.
Cassi levou Joan ao primeiro gabinete, onde um jovem impecavelmente vestido levantou-se de sua mesa e recebeu Cassi com um abraço nada profissional. Depois, o homem afastou Cassi para poder contemplá-la.
— Deus, você está com uma ótima aparência — disse ele. — Mas espere. Você não tem colorido seu cabelo, tem?
— Eu sabia que você ia reparar — riu Cassi. — Ninguém mais reparou.
— Claro que eu iria notar. E esta blusa é nova. Lord e Taylor?
— Não, Saks.
— Está maravilhosa. — Ele pegou no tecido. — É algodão puro. Muito linda.
— Oh, desculpe! — disse Cassi, lembrando-se de Joan e apresentando-a. — Joan Widiker, Robert Seider, residente do segundo ano de patologia.
Joan pegou a mão que Robert lhe estendia. Ela gostou daquele sorriso envolvente e franco. Os olhos dele piscaram e Joan teve a sensação de que tinha sido instantaneamente inspecionada.
— Robert e eu frequentamos a mesma escola de medicina — explicou Cassi enquanto Robert tornava a passar o braço em torno dela. — E, por coincidência, ambos acabamos aqui no Boston Memorial, para fazermos o primeiro ano de patologia.
— Vocês dois se parecem como irmão e irmã — disse Joan.
— As pessoas têm dito isso — falou Robert, evidentemente satisfeito. — Tivemos uma imediata afinidade um pelo outro devido a uma série de razões, inclusive o fato de que ambos tivemos graves doenças na infância. Cassi tinha diabetes e eu tive febre reumática.
— E ambos tínhamos horror de cirurgia — disse Cassi, fazendo com que Robert e ela explodissem numa gargalhada.
Joan admitiu que se tratava de alguma espécie de piada particular.
— Atualmente não é tão engraçado — disse Cassi. — Em vez de nos encorajarmos mutuamente, acabamos tornando cada um mais assustado. Espera-se que Robert tenha de extrair seu dente do siso e eu devo acabar com a hemorragia no meu olho esquerdo.
— Vou tirar o meu dente logo — falou Robert, desafiadoramente. — Agora que deixei de me ocupar de você.
— Acreditarei quando isso acontecer — riu Cassi.
— Você verá — continuou Robert. — Mas, enquanto isso, vamos ao trabalho. Deixei para fazer a autópsia até você chegar aqui. Mas primeiro prometi chamar o médico residente que tentou ressuscitar o paciente.
Robert voltou até sua escrivaninha e pegou o telefone.
— Autópsia! — murmurou Joan, alarmada. — Não faço negócios com autópsias. Não sei se aguento ver uma.
— Pode valer a pena — disse Cassi inocentemente, como se observar uma autópsia fosse algo que se fizesse como diversão. — Durante meu tempo como residente na patologia, Robert e eu ficamos interessados numa série de casos que rotulamos de MSC, abreviatura de morte súbita cirúrgica. O que encontramos foi um grupo de pacientes cirúrgicos cardíacos que haviam morrido menos de uma semana após suas operações, mesmo que a maioria estivesse passando muito bem e que, na autópsia, não houvesse qualquer causa anatômica da morte. Umas poucas podiam ser compreensíveis, mas levando-se em conta os relatórios dos últimos dez anos, encontramos dezessete. O caso que Robert vai autopsiar agora pode perfazer dezoito.
Robert voltou do telefone, dizendo que Jerry Donovan chegaria logo, e lhes ofereceu café. Antes que tivessem uma oportunidade de bebê-lo, Jerry chegou disparado. A primeira coisa que fez foi abraçar Cassi. Joan ficou impressionada. Cassi parecia estar em termos de amizade com todo mundo. Depois, bateu no ombro de Robert e disse:
— Ei, cara, obrigado por me chamar.
Robert estremeceu ante o impacto da pancada e forçou um sorriso.
Para Joan, Jerry estava vestido como um funcionário comum da casa. Sua jaqueta branca, amarrotada e suja, pendia de viés devido ao peso de um livrinho de notas estofado, metido no bolso direito. Suas calças estavam enodoadas por uma linha de manchas de sangue, que corria através das coxas. Junto de Robert, Jerry parecia um varredor de chão de um açougue.
— Jerry frequentou a mesma escola médica que Robert e eu — explicou Cassi. — Só que ele era mais adiantado.
— Distinção que ainda é dolorosamente evidente — brincou Jerry.
— Vamos — falou Robert. — Só consegui uma das salas de autópsia para usar por bastante tempo.
Robert saiu primeiro, seguido de Joan. Jerry afastou-se de lado para deixar Cassi passar e, depois, tomou-a pelo braço.
— Você nem imagina quem tive o prazer de observar fazer isso à noite passada — disse Jerry, enquanto contornavam a mesa do microscópio.
— Nem pretendo tentar — retrucou Cassi, esperando alguma piada.
— Seu marido! O Dr. Thomas Kingsley.
— É mesmo? O que estava fazendo um clínico como você na sala de operações?
— Eu não estava. Estava no andar da Cirurgia, tentando ressuscitar o paciente que íamos autopsiar. Seu marido respondeu ao chamado. Fiquei impressionado. Não me lembro de ter visto uma tal decisão. Ele rasgou o peito deste cara e fez a massagem do coração a céu aberto, ali mesmo na cama. Fundiu minha cuca. Diga, seu marido é assim tão decisivo em casa?
Cassi lançou um olhar desagradável para Jerry. Se aquele comentário viesse de outra pessoa que não Jerry, provavelmente ela a teria esbofeteado. Mas Cassi esperava um pouco de humor e ali estava. Portanto, por que criar um caso? Ela resolveu deixar passar.
Ignorando a reação menos do que positiva de Cassi, Jerry prosseguiu:
— O que me impressionou não foi a abertura do peito do cara, mas sim a decisão de fazê-la em primeiro lugar. É tão terrivelmente irreversível. Foi uma decisão que não sei como alguém poderia tomá-la. Fico agoniado só de saber se devo colocar ou não um paciente sob antibióticos.
— Os cirurgiões estão habituados a este tipo de coisa — disse Cassi. — Este tipo de decisão acaba tornando-se um tônico. Em certo sentido, eles a apreciam.
— Apreciam? — disse Jerry, descrente. — Isso é muito difícil de acreditar, mas suponho que eles precisam, do contrário não teríamos cirurgiões. Talvez a maior diferença entre um clínico e um cirurgião seja a capacidade de tomar decisões irreversíveis.
Ao entrar na sala de autópsias, Robert envergou um avental negro de borracha e calçou luvas também de borracha. Os outros se reuniram em torno do cadáver pálido, cujo peito continuava aberto. As bordas da ferida tinham enegrecido e secado. A não ser por um tubo endotraqueal que saía ostensivamente de sua boca, o rosto do paciente parecia sereno. Os olhos tinham sido piedosamente fechados.
— Dez para um como foi uma embolia pulmonar — disse Jerry, confiantemente.
— Aposto um dólar nisso — disse Robert, colocando um microfone que pendia do teto a uma altura conveniente, operado por um pedal. — Você me disse que inicialmente o paciente tinha ficado muito cianótico. Não creio que vamos encontrar uma embolia. De fato, se minha suposição é certa, não vamos encontrar nada.
Quando Robert iniciou seu exame, começou a ditar para o microfone:
— Trata-se de um homem branco, bem desenvolvido e bem nutrido, pesando aproximadamente 74kg, com l,77m de altura, aparentando 42 anos de idade...
À medida que Robert prosseguia na descrição de outras evidências visíveis da cirurgia de Bruce Wilkinson, Joan olhava fixamente para Cassi que, placidamente, degustava seu café. Joan olhou para sua própria xícara. A ideia de beber fez seu estômago revoltar-se.
— Todos esses casos de MSC têm sido os mesmos? — indagou Joan, procurando não olhar para a mesa sobre a qual Robert estava dispondo os bisturis, tesouras e cortadores de ossos, preparando-se para abrir e eviscerar o cadáver.
Cassi abanou a cabeça.
— Não. Alguns se apresentaram cianóticos como este caso, alguns pareciam ter morrido de parada cardíaca, alguns de parada respiratória e alguns de convulsões.
Robert iniciou a habitual incisão para autópsia em Y, começando no alto do ombro e unindo-a com a incisão do peito aberto. Joan podia ouvir a lâmina passar arranhando através das estruturas ósseas subjacentes.
— E quanto ao tipo de cirurgia? — perguntou Joan. Ela ouviu as costelas se partirem e fechou os olhos.
— Todos eles se operaram do coração a céu aberto, mas não necessariamente pela mesma condição. Temos examinado a anestesia, a duração do bombeamento, se foi ou não usada a hipotermia. Não houve quaisquer correlações. Esta é a parte frustrante.
— Bem, por que você está tentando relacioná-las?
— Eis uma boa pergunta — disse Cassi. — Isso tem a ver com a mentalidade de um patologista. Após haver realizado uma autópsia, é muito desagradável não se ter chegado a uma definitiva causa da morte. E quando se tem uma série desses casos é desmoralizante. A solução do quebra-cabeças é o que torna a patologia recompensadora.
Involuntariamente, os olhos de Joan passaram de relance pela mesa. Parecia que Bruce Wilkinson havia sido aberto por meio de um zíper. A pele e os tecidos subcutâneos do peito e do tórax tinham sido dobrados para trás como as folhas de um livro gigantesco. Joan sentiu-se oscilar.
— O conhecimento é importante — continuou Cassi, ignorando as dificuldades de Joan. — Pode ter um benefício direto para os futuros pacientes caso se descubra alguma causa evitável. E, neste caso, notamos uma alarmante orientação. Os pacientes iniciais parecem ter sido mais velhos e muito mais doentes. De fato, a maioria se achava num estado de coma irreversível. Contudo, ultimamente, os pacientes têm menos de 50 anos e, em geral, são mais saudáveis, como o Sr. Wilkinson aqui. — Joan, que é que você tem? — Cassi havia-se virado e, finalmente, notou que sua amiga parecia que ia desmaiar.
— Vou esperar lá fora — disse Joan. Ela voltou-se e dirigiu-se para a porta, mas Cassi segurou-a pelo braço.
— Você está bem? — perguntou.
— Estou ótima — disse Joan. — Preciso apenas me sentar. — E saiu às pressas pela porta de aço.
Cassi estava prestes a segui-la quando Robert chamou-a para ver algo. Ele apontou para uma ferida contusa do tamanho de uma moeda de 20 cents na superfície do coração.
— O que acha disso? — perguntou Robert.
— É provavelmente resultado da tentativa de ressuscitação — disse Cassi.
— Pelo menos nisso nós concordamos — disse Robert, enquanto dirigia sua atenção para o sistema respiratório e para o laringe. Habilmente, abriu as passagens respiratórias.
— Nenhuma obstrução. Se tivesse havido uma, isso teria explicado a intensa cianose.
Jerry grunhiu qualquer coisa e disse:
— Vai ser uma embolia pulmonar. Estou certo disso.
— É uma aposta má — disse Robert, balançando a cabeça.
Desviando sua atenção para mais embaixo, Robert examinou os principais vasos pulmonares e o próprio coração.
— Esses são os vasos do bypass costurados em seu lugar. — E afastou-se para que Cassi e Jerry pudessem olhar.
Erguendo um bisturi, Robert disse:
— Muito bem, Dr. Donovan. É melhor colocar seu dinheiro sobre a mesa. — Robert inclinou-se e abriu as artérias pulmonares. Não havia coágulos. Em seguida, ele abriu a aurícula direita do coração. Novamente o sangue estava líquido. Por fim, ele voltou-se para a veia cava. Houve um pouco de tensão quando o bisturi mergulhou nos vasos, mas eles também estavam limpos. Não havia êmbolos.
— Bobagem! — exclamou Jerry, aborrecido.
— Aqueles dez dólares que você me deve — disse Robert, presunçosamente.
— O que terá causado a morte deste cara? — indagou Jerry.
— Acho que não vamos descobrir — falou Robert. — Acho que temos aqui o nosso número dezoito.
— Se vamos descobrir alguma coisa — disse Cassi — deverá ser dentro da cabeça.
— Por que diz isso? — perguntou Jerry.
— Se o paciente estava realmente cianótico — continuou Cassi — e se não encontramos um desvio circulatório da direita para a esquerda, então o problema tem de estar dentro do cérebro. O paciente parou de respirar, mas o coração continuou a bombear um sangue não oxigenado. Daí a cianose.
— Como é aquele velho ditado? — disse Jerry. — Os patologistas sabem tudo e fazem tudo, porém tarde demais.
— Você esqueceu a primeira parte — disse Cassi. — Os cirurgiões nada sabem, mas fazem tudo. Os clínicos sabem tudo, mas nada fazem. Então vem a parte referente aos patologistas.
— E quanto aos psiquiatras? — perguntou Robert.
— Isso é fácil — riu Jerry. — Os psiquiatras nada sabem e nada fazem!
Rapidamente, Robert terminou a autópsia. Num exame detalhado, o cérebro pareceu normal. Nenhum sinal de coágulo ou de outro traumatismo.
— Bem? — perguntou Jerry, fitando a brilhante circunvolução do cérebro de Bruce. Vocês dois têm algumas outras ideias brilhantes?
— Realmente não — disse Cassi. — Talvez Robert encontre uma evidência do ataque cardíaco.
— Mesmo que o encontre — disse Robert — isso não explicaria a cianose.
— Isso é verdade — concordou Jerry, enquanto coçava o lado da cabeça. — Talvez a enfermeira estivesse errada. Talvez o cara estivesse apenas acinzentado.
— As enfermeiras da cirurgia cardíaca são terrivelmente competentes — disse Cassi. — Se elas disseram que o paciente estava azul escuro, é porque ele estava mesmo azul escuro.
— Então eu desisto — disse Jerry, tirando uma nota de 10 dólares e enfiando-a no bolso da jaqueta branca de Robert.
— Você não tem nada que me pagar — disse Robert. — Eu estava apenas brincando.
— Merda — exclamou Jerry. — Se tivesse sido uma embolia pulmonar eu teria ficado com o seu dinheiro. — Jerry encaminhou-se até onde ele havia pendurado seu casaco branco.
— Parabéns, Robert — disse Cassi. — Parece que você conseguiu o caso número dezoito. Comparado com os casos de cirurgia cardíaca a céu aberto realizadas nos últimos dez anos, o fato está ficando estatisticamente significativo. Você ainda vai escrever um artigo sobre isso.
— Por que você diz "eu"? — perguntou Robert. — Você quer dizer "nós", não é?
Cassi abanou a cabeça.
— Não, Robert. Desde o início tudo isso foi ideia sua. Além do mais, agora que passei para a psiquiatria, não posso levar adiante o meu trabalho.
Robert mostrou-se mal-humorado.
— Anime-se — disse Cassi. — Quando o artigo sair você ficará satisfeito por não ter que dividir a autoria com uma psiquiatra.
— Eu esperava que esse estudo fizesse você vir aqui com frequência.
— Não seja bobo — disse Cassi. — Eu virei aqui, especialmente quando você encontrar novos casos de MSC.
— Cassi, vamos — chamou Jerry, impaciente. Ele conservou a porta aberta com seu pé. Cassi deu um beliscão na face de Robert e saiu correndo. Jerry deu-lhe um golpe de brincadeira quando ela passou pela porta. Ela não só se esquivou do golpe, mas conseguiu dar um forte puxão na gravata de Jerry enquanto passava.
— Onde está sua amiga? — perguntou Jerry quando atingiram a principal parte do departamento de patologia. Ele ainda lutava para arrumar a gravata.
— Provavelmente no gabinete de Robert — disse Cassi. — Ela disse que precisava sentar-se. Acho que a autópsia foi um pouco demais para ela.
Joan ficara repousando de olhos fechados. Ao ouvir a voz de Cassi, ela se levantou, vacilante.
— Bem, que foi que você aprendeu? — Ela tentou parecer casual.
— Não muita coisa — disse Cassi. — Joan, você está bem?
— Apenas mortalmente ferida em meu orgulho — disse Joan. — Eu devia ter feito coisa melhor do que assistir a uma autópsia.
— Sinto muito... — começou Cassi.
— Não seja boba — disse Joan. — Eu vim voluntariamente. Mas quero ir logo embora, se você já estiver pronta.
Elas andaram até os elevadores, onde Jerry decidiu usar as escadas, já que eram apenas quatro lanços até o andar da clínica. Ele acenou antes de desaparecer pela escadaria.
— Joan — disse Cassi, voltando-se para ela. — Realmente, lamento ter forçado você a vir até aqui em cima. Eu me habituei tanto às autópsias como uma residente da patologia que havia esquecido como pode ser terrível tornar-se uma delas. Espero que não a tenha perturbado muito.
— Você não me obrigou a vir até aqui em cima — disse Joan. — Além disso, o meu enjoo é problema meu, não seu. É muito constrangedor. Você deve ter pensado que, após quatro anos de escola de medicina, eu já havia superado isso. De qualquer modo, eu devia tê-lo admitido e esperado por você no gabinete de Robert. Em vez disso, agi como uma idiota. Não sei o que estava tentando provar.
— No início, as autópsias também me eram difíceis de suportar — disse Cassi — mas, aos poucos, foram se tornando cada vez mais fáceis. É espantoso como se pode habituar a uma coisa se você a pratica bastante, em especial quando se pode intelectualizá-la.
— Sem dúvida — disse Joan, impaciente por mudar de assunto. — A propósito, seus amigos correm toda a escala. Que história é essa com Jerry Donovan? Ele está disponível?
— Acho que sim — disse Cassi, apertando de novo o botão do elevador. — Ele foi casado na escola da medicina, mas depois se divorciou.
— Eu conheço a história — disse Joan.
— Não sei se ele está se encontrando com alguém em particular — disse Cassi — mas posso descobrir. Você está interessada?
— Eu não me incomodaria de convidá-lo para jantar — disse Joan, pensativamente. — Mas só se eu tivesse a certeza de que ele se desfizesse de seu primeiro encontro.
Levou um momento para que o comentário de Joan fosse bem compreendido, antes que Cassi explodisse numa gargalhada.
— Acho que você o fisgou bem fisgado — disse ela.
— O médico machão — disse Joan. — E quanto a Robert? — Joan baixou a voz quando entraram no elevador. — Ele é gay?
— Acho que sim — disse Cassi. — Mas jamais discutimos o assunto. Ele tem sido um amigo tão bom, que nós nunca nos importamos. Ele costumava analisar meus namorados na escola de medicina e eu costumava escutá-lo até que conheci meu marido, porque Robert estava sempre certo. Mas ele deve ter tido ciúmes de Thomas porque jamais gostou dele.
— Ele ainda alimenta os mesmos sentimentos? — perguntou Joan.
— Não sei dizer — disse Cassi. — É o único outro assunto sobre o qual jamais falamos.
— O PACIENTE ESTÁ PRONTO para você na Sala Três — disse uma das técnicas de raios X. Ela não entrou no gabinete, apenas enfiou a cabeça pela porta. Quando o Dr. Joseph Riggin voltou-se para tomar conhecimento da informação, a moça já havia desaparecido.
Com um suspiro, Joseph tirou os pés de sua escrivaninha, empurrou o jornal que estava lendo para a estante dos livros e tomou um último gole de café. De um cabide por trás da mesa ele tirou seu avental de chumbo e vestiu-o.
O corredor da radiologia às 10h30 da manhã recordava-lhe uma liquidação na Bloomingdale. Havia gente por toda parte esperando em cadeiras, em filas e em macas. Seus rostos tinham um olhar vago, expectante. Joseph experimentou uma desagradável sensação de aborrecimento. Há 14 anos que vinha fazendo radiologia e começava a admitir para si mesmo que a excitação desaparecera. Cada dia era igual a outro. Nada de interessante jamais acontecia. Se não fosse pela chegada, há alguns anos do CAT scanner (aparelho de tomografia axial computadorizada), Joseph achava que já teria desistido e ido embora. Ao entrar na Sala Três, tentou imaginar o que faria se deixasse a radiologia clínica. Infelizmente, ele não tinha ideias muito brilhantes.
A Sala Três era a maior das cinco assim equipadas. Ela dispunha do equipamento mais novo, bem como de suas próprias telas visoras ali mesmo construídas. Quando entrou, Joseph viu que alguém mais tinha sido deixado para que outros o estudassem. Ele já dissera aos seus técnicos que queria o gabinete limpo das chapas anteriores antes que realizassem um estudo. Então, como se aquilo não fosse o bastante, Joseph notou que não havia nenhum técnico.
Joseph sentiu sua pressão arterial subir em disparada. Era uma regra fundamental que nenhum paciente devia ficar sem atendimento. "Maldito seja", rosnou Joseph retendo a respiração. O paciente estava deitado sobre a mesa de raios X, coberto com um fino lençol branco. Ele parecia ter cerca de 15 anos, com um rosto largo e cabelo cortado à escovinha. Seus olhos escuros miravam Joseph atentamente. Junto à mesa achava-se um frasco de injeção endovenosa e um tubo plástico que se enroscava por sob o lençol.
— Alô — disse Joseph, forçando um sorriso apesar de sua frustração.
O paciente não se mexeu. Ao retirar a papeleta, Joseph notou que o pescoço do rapaz era grosso e musculoso. Um outro olhar ao rosto do rapaz sugeriu que não se tratava de um paciente comum. Seus olhos estavam anormalmente inclinados e a língua, que se projetava parcialmente dos lábios, era enorme.
Bem, o que temos aqui?, perguntou-se Joseph com uma onda de mal-estar. Ele queria que o rapaz falasse alguma coisa ou que, pelo menos, olhasse para outro lado. Joseph abriu a papeleta e leu a nota de admissão.
— Sam Stevens, branco, musculoso, vinte e dois anos, desde os quatro anos com o diagnóstico de retardamento mental, admitido para definitiva correção de uma anormalidade cardíaca congênita, que se crê seja um defeito no septo...
A porta para a sala de raios X abriu-se e Sally Marcheson entrou carregando uma pilha de cassetes.
— Oi, Dr. Riggin — falou ela.
— Por que este paciente foi deixado sozinho?
Sally parou junto ao aparelho de raios X.
— Sozinho?
— Sozinho — repetiu Joseph, evidentemente zangado.
— Onde está Gloria? Ela devia estar...
— Pelo amor de Deus! — gritou Joseph. — Os pacientes jamais devem ser deixados sozinhos. Será que não entende isso?
Sally encolheu os ombros.
— Faz apenas quinze ou vinte minutos que saí.
— E todas essas radiografias? Por que estão de fora?
Sally olhou para os visores.
— Nada sei sobre elas. Não estavam aqui quando saí.
Rapidamente, Sally começou a puxar as radiografias e a enfiá-las no envelope que estava sobre o balcão. Era o angio-coronariograma de alguém e ela não fazia a menor ideia do motivo pelo qual as chapas estavam ali. Ainda resmungando, Joseph abriu um avental esterilizado e vestiu-o. Relanceando o olhar para trás, para o paciente, viu que o rapaz não tinha se mexido. Seus olhos continuavam a segui-lo por toda parte para onde ele se movesse.
Com terrível ruído, Sally conseguiu carregar o aparelho com os cassetes e depois voltou para puxar a cobertura esterilizada da bandeja dos cateteres.
Enquanto Joseph calçava as luvas de borracha, aproximou-se mais do rosto do paciente.
— Com está você, Sam? — Por alguma razão, sabendo que o rapaz era retardado, Joseph achou que devia falar mais alto que o comum. Mas Sam não respondeu.
— Está se sentindo bem, Sam? — indagou Joseph. — Vou ter que espetá-lo com uma pequena agulha, está bem?
Sam agiu como se esculpido em granito.
— Quero que fique bem quieto, tá? — insistiu Joseph.
Sam continuou imóvel. Joseph estava prestes a voltar sua atenção para a bandeja quando a língua de Sam chamou mais uma vez sua atenção. A porção exposta estava rachada e seca. Olhando mais de perto, pôde ver que os lábios de Sam não estavam muito melhores. O rapaz parecia que tinha andado num deserto.
— Está com um pouco de sede, Sam? — perguntou Joseph.
Joseph levantou os olhos para a endovenosa, notando que ela não estava correndo. Com um toque de seu pulso, ele ligou-a. Não havia sentido em botar o garoto desidratado.
Joseph adiantou-se para a bandeja e tirou a gaze das placas.
Um grito agudo, inumano, estilhaçou a tranquilidade da sala. Joseph girou sobre si mesmo, com o coração na boca.
Sam havia arrancado o lençol e cravara as unhas no braço que recebia a endovenosa. Seus pés começaram a bater sobre a mesa de raios X. Um grito estridente ainda saía de seus lábios.
Joseph recuperou-se o bastante para puxar o fluoroscópio para longe das pernas agitadas de Sam. Ele estendeu as mãos e colocou-as sobre os ombros de Sam, para tornar a pô-lo sobre a mesa. Em vez disso, Sam agarrou seu braço com tal força que chegou a gritar de dor. Incapaz de impedi-lo, Joseph observou com horror que Sam empurrava sua mão para dentro da boca e depois enterrava os dentes na base do polegar.
Agora foi a vez de Joseph gritar. Ele lutou para livrar o braço do aperto de Sam, mas o rapaz era muito mais forte. Em desespero, Joseph ergueu um pé até o lado da mesa de raios X e empurrou. Ele caiu para trás e trouxe consigo Sam, que ficou por cima dele.
Joseph sentiu que Sam soltava seu braço apenas para fechar as mãos em torno de sua garganta. A pressão aumentava dentro de sua cabeça, conforme o rapaz apertava. Desesperadamente, tentou afastar as mãos de Sam, mas elas pareciam de aço. O quarto começou a girar. Com uma última reserva de força, Joseph meteu seu joelho na virilha do rapaz.
Quase simultaneamente, o corpo de Sam se ergueu em súbita contração, logo seguida por outra e mais outra. Sam estava tendo uma crise de epilepsia e Joseph ficou pregado no chão, sob o pesado corpo tomado por convulsões.
Finalmente, Sally se recuperou do choque e ajudou Joseph a se livrar. Os olhos de Sam haviam desaparecido dentro de sua cabeça e o sangue se espalhava num círculo cada vez maior que vinha de sua língua lacerada.
— Vá buscar socorro — disse Joseph, ofegante, enquanto apertava o próprio pulso para deter o sangramento. Por dentro das marcas denteadas do ferimento, ele podia ver a superfície brilhante do osso exposto.
Antes de chegarem os socorros, os espasmos de Sam foram se reduzindo aos poucos até cessarem. Quando Joseph verificou que o rapaz não estava respirando, chegou a equipe de emergência médica. Trabalharam febrilmente, porém sem resultado. Depois de 15 minutos, o relutante Dr. Joseph Riggin foi afastado para ter sua mão suturada, enquanto Sally Marcheson removia as chapas de raios X dispostas fora do lugar.
Quando Thomas Kingsley escovou as mãos, sentiu uma onda de excitação que sempre o envolvia antes de uma cirurgia. Ele sabia que havia nascido para ser um cirurgião desde a primeira vez em que assistira a uma operação como interno — e não tinha sido muito tempo antes que sua capacidade fosse reconhecida por todo o hospital. Agora, como o mais importante cirurgião cardiovascular do Boston Memorial, ele conquistara reputação internacional.
Enxaguando o sabão, Thomas ergueu as mãos para impedir que a água escorresse pelos braços abaixo. Abriu a porta da sala de operações com o quadril. Ao fazê-lo, pôde ouvir a conversa na sala descer a um terrível silêncio. Ele aceitou uma toalha fornecida pela enfermeira da sala, Teresa Goldberg. Por um segundo, seus olhos se encontraram por cima das máscaras faciais. Thomas gostava de Teresa. Ela possuía um corpo maravilhoso, que nem o volumoso avental cirúrgico que usava podia esconder. Além do mais, podia gritar com ela, se necessário fosse, sabendo que ela não ia se desfazer em lágrimas. A moça era também esperta o bastante não só para reconhecer que Thomas era o melhor cirurgião do Memorial Hospital, mas para também dizê-lo.
Thomas, metodicamente, secou as mãos enquanto examinava os sinais vitais do paciente. Então, como um general passando revista nas tropas, ele se moveu em torno da sala, acenando com a cabeça para Phil Baxter, o encarregado da injeção, que estava atrás do aparelho de pulmão e coração artificiais. O aparelho estava silvando, pronto para assumir a tarefa de oxigenar o sangue do paciente e bombeá-lo através do corpo enquanto Thomas realizava seu trabalho.
A seguir, Thomas olhou para Terence Halainen, o anestesista.
— Tudo está estável — disse Terence, comprimindo alternativamente o saco respiratório.
— Bom — disse Thomas.
Desfazendo-se da toalha, Thomas enfiou-se no avental esterilizado, que Teresa segurava. Depois, enfiou as mãos nas luvas especiais de borracha marrom. Como se previsto, o Dr. Larry Owen, o cirurgião cardíaco mais antigo, ergueu os olhos do campo operatório.
— O Sr. Campbell está pronto para o senhor — disse Larry, abrindo caminho para que Thomas se aproximasse da mesa de operação. O paciente jazia com o peito aberto, preparado para que o famoso Dr. Kingsley procedesse ao bypass. Era costume no Boston Memorial que o assistente residente mais antigo abrisse e fechasse tais operações.
Thomas colocou-se em posição, à direita do paciente. Como sempre fazia, neste ponto, ele lentamente estendeu a mão para a ferida operatória e tocou o coração que batia. A superfície úmida de suas luvas de borracha não ofereceu resistência e ele pôde sentir os misteriosos movimentos do órgão pulsante.
O toque do coração pulsando levou Thomas de volta ao seu primeiro grande caso como residente na cirurgia cardíaca. Ele já havia participado de muitas cirurgias antes daquela, mas sempre como primeiro assistente, ou segundo assistente, ou como mais alguém abaixo da linha de autoridade. Então, um paciente chamado Walter Nazzaro foi admitido no hospital. Nazzaro tivera um enfarte cardíaco maciço e não se esperava que vivesse. Mas viveu. Não só sobreviveu ao ataque cardíaco, como sobreviveu à rigorosa avaliação pela qual a equipe dos médicos da casa o fez passar. Os resultados do trabalho foram impressivos. Todo mundo se impressionara e ficara a imaginar como Walter Nazzaro havia vivido tanto quanto vivera. Ele era portador de doença oclusiva em sua principal artéria coronária esquerda, que tinha sido a responsável por seu ataque cardíaco. Ele também tinha uma doença oclusiva em sua artéria coronária direita, com evidência de um antigo ataque cardíaco. Além disso, era portador de doença das válvulas mitral e aórtica. E, depois, como se não fosse o bastante, Walter tinha desenvolvido um aneurisma, ou um abaulamento da parede do ventrículo esquerdo do coração, como consequência do seu mais recente ataque cardíaco. Ele também apresentava um ritmo cardíaco irregular, hipertensão arterial e uma doença renal.
Sendo Walter um tal repositório de patologia, era apresentado em todas as reuniões, com cada qual dos presentes oferecendo várias opiniões. O único aspecto de seu caso com que todos concordavam era o fato de que Walter se constituía numa bomba de tempo ambulante. Ninguém queria operá-lo, exceto um residente chamado Thomas Kingsley, que argumentava que a cirurgia era a única chance de escapar à sentença de morte. Thomas continuava a discutir até que todos ficavam doentes de ouvi-lo. Finalmente, o residente-chefe concordou em permitir que Thomas se encarregasse do caso.
No dia da cirurgia, Thomas, que vinha trabalhando num método experimental de auxílio à função cardíaca, inseriu um balão pulsátil de hélio na aorta de Walter. Antecipando um distúrbio com o ventrículo esquerdo do paciente, Thomas queria estar preparado. Só depois que a operação começou foi que a realidade da situação se abriu para ele. A excitação cedera lugar à ansiedade quando Thomas começou a seguir o plano que delineara em sua mente. Ele jamais esqueceria a sensação experimentada quando pegou o coração de Walter, aquela massa tremulante de músculo doente em sua mão. Naquele momento, sabia que estava em seu poder restaurar a vida. Recusando-se a considerar a possibilidade de um fracasso, Thomas primeiro realizou um bypass, procedimento experimental naqueles dias. Então ele excisou a área abaulada do coração de Walter, recosturando o defeito com fileiras de seda forte. Finalmente, substituiu as válvulas mitral e aórtica.
No momento em que o conserto se completou, Thomas tentou desligar Walter do aparelho artificial cardiorrespiratório. Já então, sem que Thomas percebesse, havia-se reunido uma significativa audiência. Houve um murmúrio de tristeza e decepção quando se tornou evidente que o coração de Walter não tinha a força suficiente para bombear o sangue. Intrepidamente, Thomas pôs a trabalhar o aparelho de bombeamento artificial, que tinha posicionado antes da operação.
Ele sempre se lembrava de sua satisfação de euforia quando o coração de Walter reagiu. Não somente havia sido Walter desligado do aparelho cardiorrespiratório, mas três horas mais tarde, no quarto de recuperação, até mesmo a aplicação da contrapulsação não era mais necessária. Thomas sentiu-se como se houvesse criado a vida. A excitação era como um calmante. Meses depois, envolveu-se com a cirurgia a céu aberto. Alcançar o coração, desafiar a morte com suas duas mãos — era como imitar Deus. Logo descobriu que se tornava profundamente deprimido sem a excitação de várias dessas operações por semana. Quando ia operar, marcava uma, duas, três dessas operações por dia. Sua reputação era tão grande que havia uma infindável fila de pacientes. Enquanto o hospital lhe permitisse um tempo suficiente na sala de operações, Thomas ficava tremendamente feliz. Mas se um outro departamento ou os outros rapazes de tempo integral da medicina clínica tentavam reduzir suas horas de operações, Thomas ficava tão tenso e irado como um viciado a quem se houvesse privado de sua droga diária. Ele precisava operar a fim de sobreviver. Precisava se sentir como Deus para não se considerar um fracasso. Precisava da aprovação reverente das outras pessoas, da inquestionável aprovação que se via nos olhos de Larry Owens no momento em que ele perguntava:
— Você decidiu se vai fazer uma ponte dupla ou tripla?
A pergunta trouxe Thomas de volta ao presente.
— É uma boa exposição — disse Thomas, apreciando o trabalho de Larry. — Nós bem podíamos fazer três pontes, se você dispusesse de veia safena suficiente.
— Mais do que suficiente — disse Larry com entusiasmo. Antes de abrir o peito, Larry havia removido cuidadosamente uma boa extensão da veia da perna do Sr. Campbell.
— Muito bem — disse Thomas com autoridade. — Vamos tocar pra frente este show. A bomba já está pronta?
— Tudo pronto — disse Phil Baxter, examinando seus mostradores e medidores.
— Pinça e bisturi — disse Thomas.
Rapidamente, porém sem açodamento, Thomas começou a trabalhar. Em minutos, o paciente estava no aparelho cardiorrespiratório. A técnica operatória de Thomas era deliberada e sem movimentos inúteis. Seu conhecimento da anatomia era enciclopédico, bem como sua sensação pelo tecido. Ele manejava as suturas com precisa economia de movimentos, o que constituía um prazer para os aspirantes a cirurgião que o observavam. Cada ponto era perfeitamente colocado em seu lugar. Ele havia realizado tantas operações de pontes, que quase podia fazê-las como rotina, porém a excitação de trabalhar no coração jamais deixava de agitá-lo.
Quando terminou e se convenceu de que as pontes estavam sólidas e não havia excessiva hemorragia, Thomas afastou-se da mesa e arrancou suas luvas.
— Espero que seja capaz de reconstituir a parede do peito conforme a achou, Larry — disse Kingsley, voltando-se para sair. — Estarei à mão, se houver algum problema. — Ao sair, ele ouviu um murmúrio de apreciação dos residentes.
Do lado de fora da sala de operações, o corredor estava apinhado de gente. Naquela hora do dia, no meio da tarde, a maioria das 36 salas de operações continuavam ocupadas. Os pacientes que voltavam da cirurgia ou que iam para ela eram levados pelas macas de rodinhas, às vezes com um bando de gente assistindo-os. Thomas mexia-se por entre a multidão, eventualmente ouvindo murmurarem seu nome.
Ao passar pelo relógio que ficava do lado de fora do depósito central de suprimentos, ele verificou que operara o Sr. Campbell em menos de uma hora. Com efeito, naquele dia, ele havia operado três casos de pontes num tempo em que a maioria dos cirurgiões teria realizado um ou, na melhor das hipóteses, dois.
Thomas disse para si que poderia ter programado outra operação, embora reconhecesse que isso não era verdade. O motivo pelo qual programara apenas três casos era a aborrecida nova regra, segundo a qual todos os cirurgiões deviam comparecer à conferência de cirurgias cardíacas nas tardes de sexta-feira, uma relativamente recente criação do chefe do departamento, Dr. Norman Ballantine. Thomas foi não porque tivesse ordens de fazê-lo, mas porque se tornara imprescindível à comissão de admissão ao departamento de cirurgia cardíaca. Thomas se esforçava em não pensar na situação porque, sempre que o fazia, ficava furioso.
— Dr. Kingsley — chamou uma voz rouca, interrompendo os pensamentos de Thomas.
Priscilla Grenier, a autoritária diretora do Centro Cirúrgico acenava com uma caneta para ele. Thomas dava-lhe o crédito de ser uma árdua trabalhadora e durante várias longas horas. Não era um piquenique manter as 36 salas de operações do Boston Memorial funcionando suavemente. No entanto, não podia tolerar quando ela se insinuava em seus negócios, algo que Priscilla parecia impaciente por fazer. Ela sempre tinha uma ordem ou uma instrução.
— Dr. Kingsley — disse Priscilla. — A filha do Sr. Campbell está na sala de espera e o senhor deve ir vê-la antes de mudar de roupa. — E, sem esperar uma resposta, Priscilla voltou para sua escrivaninha.
Com dificuldade, Thomas conteve seu aborrecimento e continuou a andar pelo corredor, sem tomar conhecimento do comentário. Um pouco da euforia que sentira na sala de operações o abandonara. Mais tarde, encontrou prazer em cada sucesso cirúrgico crescentemente fugaz.
No início, achou que devia ignorar Priscilla, trocar de roupa e depois parar para ver a filha do Sr. Campbell. Contudo, persistia o fato de que ele se sentia obrigado a permanecer com suas roupas cirúrgicas até que o Sr. Campbell tivesse alcançado a sala de recuperação, para o caso de surgirem complicações imprevistas.
Abrindo violentamente a porta que dava para a sala cirúrgica, Thomas parou junto à estante dos casacos e procurou por um longo avental branco para pôr sobre suas vestes cirúrgicas. Ao puxá-lo, pensou nas desnecessárias frustrações que era obrigado a suportar. Definitivamente, a qualidade das enfermeiras tinha caído muito. E Priscilla Grenier! Parecia como se apenas ontem aquela gente conhecesse o seu lugar. E as conferências compulsórias das sextas-feiras... Meu Deus!
Distraidamente, Thomas desceu para a sala de espera. Era um adendo relativamente novo ao hospital, que havia sido construído de um velho depósito. À medida que crescia o número de operações de pontes de safena realizadas pelo departamento, ficara decidido que devia haver uma sala especial próxima, onde os membros da família permaneceriam até que as pessoas queridas saíssem do Centro Cirúrgico. Havia sido ideia de um dos administradores assistentes e transformou-se numa mina de ouro para as relações públicas.
Quando Thomas entrou na sala, elegantemente decorada com paredes azuis claras e brancas, sua atenção foi atraída por uma explosão emocional num dos cantos.
— Por quê? Por quê? — gritava, perplexa, uma mulherzinha.
— Vamos, vamos — dizia o Dr. George Sherman, tentando acalmar a mulher soluçante. — Estou certo de que eles fizeram tudo o que era possível para salvar Sam. Sabíamos que seu coração não estava normal. Poderia ter acontecido a qualquer momento.
— Mas ele estava feliz em casa. Nós devíamos ter deixado ele ficar lá. Por que foi que deixei o senhor me convencer trazê-lo para cá? O senhor me disse que ele correria um certo risco se fosse operado. O senhor nunca me disse que havia um risco durante o cateterismo. Oh, meu Deus!
As lágrimas da mulher a esmagavam. Ela começou a bambear e o Dr. Sherman estendeu a mão para segurar seu braço.
Thomas correu para junto de George e ajudou-o a sustentar a mulher. Ele trocou olhares com George, que revirava os olhos ante aquela explosão. Como membro da equipe cardíaca de tempo integral, Thomas não tinha uma alta consideração pelo Dr. George Sherman, mas sob aquelas circunstâncias sentia-se obrigado a ajudá-lo. Juntos, sentaram a mãe infortunada pela perda do filho. Ela enterrou o rosto nas mãos, curvou os ombros, tomada por convulsões, enquanto continuava a soluçar.
— Seu filho teve uma parada cardíaca durante um cateterismo — murmurou George. — Ele tinha um grande retardo mental e também problemas físicos.
Antes que Thomas pudesse responder, um sacerdote e um outro homem, aparentemente o marido da mulher, chegaram. Todos se abraçaram, o que pareceu dar novas forças à mulher. Juntos e apressadamente saíram do quarto.
George aprumou-se. Era evidente que a situação o deixara enervado. Thomas sentiu-se como que a repetir a pergunta da mulher sobre por que o filho tinha sido levado da instituição onde, aparentemente, fora feliz, mas não teve coragem.
— Que meio de ganhar a vida — disse George constrangido, ao sair do quarto.
Thomas perscrutou os rostos dos que haviam ficado. Eles o olhavam com uma mistura de empatia e medo. Todos tinham algum membro da família sendo submetido a cirurgias e esta era uma cena extremamente inquietante. Thomas olhava para a filha de Campbell. Ela estava sentada junto à janela, pálida e expectante, com os braços nos joelhos e as mãos fechadas. Thomas encaminhou-se até ela e baixou o olhar. Ele já a havia visto uma vez antes em seu consultório e sabia que seu nome era Laura. Ela era uma linda mulher, de provavelmente 30 anos, com um belo cabelo castanho puxado para trás desde a testa, formando um rabo-de-cavalo.
— O caso foi muito bem — disse ele delicadamente.
Em resposta, Laura ergueu-se de um pulo e atirou-se a Thomas, apertando-se contra ele e passando os braços em torno de seu pescoço.
— Muito obrigada — disse ela, desfazendo-se em lágrimas. — Muito obrigada.
Thomas continuava rígido, de pé, absorvendo a demonstração de toda aquela emoção. A explosão dela o havia tomado totalmente de surpresa. Ele percebeu que outras pessoas estavam observando e tentou livrar-se, porém Laura recusava-se a deixá-lo partir. Thomas lembrava-se de que, após sua primeira operação cardíaca a céu aberto, a família do Sr. Nazzaro se mostrara igualmente histérica em seus agradecimentos. Naquela ocasião Thomas havia repartido sua felicidade. Toda a família o havia abraçado e Thomas retribuíra os abraços. Ele podia experimentar o respeito e a gratidão que sentiam por ele. Havia sido uma experiência incrivelmente intensa e Thomas se lembrava do evento com forte nostalgia. Agora ele sabia que suas reações eram mais complicadas. Não raro ele operava de três a cinco casos por dia. Mais do que nunca, ele pouco ou nada sabia sobre seus pacientes a não ser o que dizia respeito aos dados pré-operatórios. O Sr. Campbell era um bom exemplo.
— Quem me dera eu pudesse fazer alguma coisa por você — murmurou Laura, os braços ainda envolvendo fortemente o pescoço de Thomas. — Qualquer coisa.
Thomas baixou o olhar para a curva de suas nádegas, acentuada pelo vestido de seda, que realçava suas formas. Perturbadoramente, ele podia sentir as coxas dela comprimidas de encontro às suas e sabia que tinha de se afastar.
Levantando as mãos, ele se desvencilhou dos braços que o envolviam.
— Será melhor você falar com seu pai pela manhã — disse Thomas.
Ela acenou que sim, subitamente embaraçada por seu procedimento.
Thomas deixou-a e saiu da sala de espera com um sentimento de ansiedade que não compreendia. Pôs-se a pensar se não seria a fadiga, embora antes não houvesse se sentido cansado mesmo durante uma boa porção da noite anterior numa operação de emergência. Recolocando o casaco branco na estante, tentou modificar sua disposição de espírito.
Antes de ir ao salão, Thomas fez uma visita à sala de recuperação. Seus dois casos anteriores, Victor Marlborough e Gwendolen Hasbruck, estavam estáveis e se comportando previsivelmente bem, mas quando ele olhou para seus rostos sentiu crescer sua ansiedade. Ele não os teria reconhecido numa multidão e, no entanto, mantivera seus corações bem nas mãos algumas horas antes.
Sentindo-se aturdido pela camaradagem forçada da sala de recuperação, Thomas retirou-se para o quarto onde os médicos se reuniam. Ele não ligava particularmente para o gosto do café, porém serviu-se de uma xícara e levou-a para uma das poltronas estofadas de couro num canto distante. A seção social do Boston Globe estava no chão, e ele apanhou-a, mais como uma defesa do que pelo que ela continha. Thomas não se sentia com vontade de ser apanhado na armadilha de uma conversa com ninguém do centro de cirurgia. Mas o truque não deu resultado.
— Muito obrigado pela ajuda na sala de espera.
Thomas baixou o jornal e olhou para o rosto largo de George Sherman. Ele tinha uma barba espessa e, naquela hora da manhã, parecia ter-se esquecido de se barbear. Ele era um homem atarracado, de aparência atlética, alguns centímetros mais baixo do que os l,80m de Thomas, mas seu cabelo espesso e encaracolado fazia-o parecer da mesma altura. Ele já vestira seu traje de passeio, que incluía um blusão azul amarrotado, que parecia jamais ter sentido a superfície plana de um ferro de passar, uma gravata listrada, um casaco de tecido aveludado um tanto gasto nos cotovelos.
George Sherman era um dos poucos cirurgiões solteiros. O que o colocava numa classe única era o fato de que, com a idade de 40 anos, ele jamais havia se casado. Os outros solteiros eram separados ou divorciados. E George era particularmente apreciado entre as enfermeiras mais jovens. Elas adoravam apoquentá-lo a respeito de sua errante vida de solteirão, oferecendo ajuda de vários modos. A inteligência e o humor de George em nada se perturbavam com isso e ele se aproveitava de tudo o que valia a pena. Thomas achava isso extremamente irritante.
— A pobre mulher estava realmente assustada — disse Thomas. Uma vez mais ele se forçou a reprimir algum comentário sobre a conveniência de trazer um desses casos para o hospital. Em vez disso, tornou a erguer o jornal.
— Foi uma complicação inesperada — disse George sem temor. — Vi que aquela franguinha bem-apanhada na sala de espera era a filha do seu paciente.
Lentamente, Thomas tornou a baixar o jornal.
— Não notei que ela fosse particularmente atraente — disse Thomas secamente.
— Então, que tal partilharmos o seu nome e o número de seu telefone? — falou George, rindo discretamente. Ao ver que Thomas não respondia, mudou de assunto com muito tato. — Você soube que um dos pacientes de Ballantine sofreu uma parada cardíaca e morreu durante a noite?
— Eu estava ciente disso.
— O tipo era um homossexual convicto.
— Isso eu não sabia — disse Thomas, desinteressado. — E também não sabia que a presença ou ausência da homossexualidade fosse parte do trabalho de uma rotina cirúrgica cardíaca.
— Devia ser — comentou George.
— E por que você pensa assim?
— Você vai descobrir — disse George, erguendo uma sobrancelha. — Amanhã na hora da Grande Assembleia.
— Não posso esperar — disse Thomas.
— Vejo você na conferência esta tarde, roupa esporte — disse George, dando um forte peteleco no ombro de Thomas.
Thomas ficou observando o outro afastar-se despreocupadamente. Aborrecia-o ser tocado e batido daquele jeito. Parecia uma infantilidade. Enquanto Thomas observava, George juntou-se a um grupo de residentes e enfermeiras da sala de operação, jogados sobre várias cadeiras próximo à janela. As risadas e as vozes altas ecoavam pela sala. A verdade era que Thomas não podia suportar George Sherman. Ele estava convencido de que George era um homem que vivia curvado a apanhar e a acumular os enfeites do sucesso para ocultar uma básica mediocridade na habilidade cirúrgica. Tudo isso era muito familiar a Thomas. Um dos aparentemente inadvertidos males do centro médico acadêmico eram os encontros, mais políticos do que tudo o mais. E George era político. Ele era vivo, um bom conversador, e facilmente sociável.
Mais importante ainda, vicejava dentro do burocrático sistema da política do hospital. Cedo ele havia aprendido que para se ter sucesso era mais importante estudar Maquiavel do que Halstead.
Thomas sabia que a raiz do problema era um antagonismo entre os médicos da equipe de ensino como ele próprio, que mantinham clínicas particulares e ganhavam a vida cobrando de seus pacientes, e os médicos como George Sherman, que eram empregados da escola de medicina em tempo integral e recebiam salários em vez de pagamento pelos seus serviços. Os médicos particulares tinham rendimentos substancialmente mais altos e mais liberdade. Não precisavam se submeter a uma autoridade mais alta. Os médicos de tempo integral possuíam títulos mais impressivos e horários mais fáceis, mas havia sempre alguém acima deles para lhes dizer o que deviam fazer.
O hospital ficava no meio. Ele apreciava e gostava do alto censo e do dinheiro que lhe era trazido pelos médicos particulares e, ao mesmo tempo, apreciava a credibilidade e o status de fazer parte da escola de medicina da universidade.
— O peito de Campbell está fechado — disse Larry, interrompendo os pensamentos de Thomas. — Os residentes estão suturando a pele. Todos os sinais permanecem estáveis e normais.
Empurrando o jornal para o lado, Thomas levantou-se da cadeira e seguiu Larry para o vestiário. Ao passarem por trás de George, Thomas pôde ouvi-lo falar sobre formar uma nova comissão de ensino. Aquilo jamais parava! Nem a pressão que George, como chefe do serviço, e Ballantine, como chefe do departamento, aplicavam a Thomas, procurando convencê-lo a abandonar sua clínica e juntar-se à equipe de tempo integral. Eles tentavam seduzi-lo com uma cátedra de professor e, embora houvesse tido um tempo em que aquilo podia ter interessado a Thomas, agora não lhe despertava qualquer atenção. Ele conservaria sua clínica, sua autonomia, sua renda e sua sanidade. Thomas sabia que, se passasse a trabalhar em tempo integral, seria apenas uma questão de tempo para que lhe dissessem quem ele podia e não podia operar.
Não demoraria muito para que lhe destinassem casos ridículos, como o do pobre retardado mental na sala dos catodos.
Tenso e irado, Thomas entrou no vestiário e abriu seu armário. Ao tirar o avental de operar e jogá-lo dentro do cesto, ele se lembrou do flexível e macio corpo de Laura Campbell apertado de encontro ao seu. Era uma imagem bem-vinda e agradável, que teve o efeito de suavizar seus nervos esfrangalhados. Desde que havia saído da sala de operação, seu prazer de operar tinha-se dissipado, deixando-o cada vez mais tenso.
— Como sempre, você fez um trabalho soberbo hoje — disse Larry, notando a face soturna de Thomas e esperando agradá-lo.
Thomas não respondeu. No passado, ele teria adorado um cumprimento desses, mas agora parecia não fazer qualquer diferença.
— É muito ruim que as pessoas não saibam apreciar os detalhes — disse Larry, abotoando a camisa. — Elas teriam uma ideia totalmente diferente da cirurgia, se a realizassem. E teriam também mais cuidado quanto a quem deixariam operá-las.
Thomas continuou mudo, embora acenasse afirmativamente com a cabeça para a verdade da afirmação. Enquanto vestia a camisa, ele pensava em Norman Ballantine, aquele velho médico de cabelos brancos, amigável, que todo mundo adorava e aplaudia. A questão era que Ballantine provavelmente não devia estar mais operando, embora ninguém tivesse a coragem de dizer-lhe. Era do conhecimento comum no departamento que uma das tarefas do residente-chefe da cirurgia torácica era designar-se para assistir todos os casos de Ballantine, de modo que pudesse socorrer o chefe quando ele cometesse algum erro. O mesmo devia acontecer na clínica médica, achava Thomas. Ballantine, graças aos residentes, conseguia resultados razoáveis e os pacientes e suas famílias o adoravam, apesar do que acontecia quando o paciente estava anestesiado.
Thomas tinha de concordar com o comentário de Larry. Ele também achava que seria infinitamente mais apropriado se ele, Dr. Thomas Kingsley, fosse o chefe. Afinal de contas, ele realizava a maior parte das cirurgias, graças a Deus. Era ele, mais do que qualquer outra pessoa, que tinha feito do Boston Memorial o lugar para se fazer qualquer cirurgia cardíaca. Até a revista Time o dissera.
Contudo, Thomas não sabia se ainda queria ser chefe. Houve um tempo em que era tudo o que desejava. Tinha sido uma de suas forças propulsoras, empurrando-o para que se dedicasse a maiores esforços e sacrifícios pessoais. Havia parecido parte de um progresso natural e os colegas começaram a falar a respeito quando ele ainda era um bolsista. Mas isso ocorrera alguns anos atrás, antes que toda a merda administrativa erguesse sua medonha cabeça e mostrasse o quanto podia interferir em sua clínica.
Thomas parou de se vestir e ficou com o olhar fixo, distante. Sentia um vazio dentro de si; saber que um de seus objetivos há muito perseguido não era mais potencialmente atraente deprimia, em especial quando o objetivo estava em suas mãos. Talvez não houvesse para onde ir... talvez ele houvesse atingido o seu apogeu. Meu Deus, que pensamento terrível!
— Estou terrivelmente triste ao saber de sua mulher — disse Larry, enquanto se sentava para calçar os sapatos. — É realmente uma vergonha.
— O que você quer dizer? — perguntou Thomas, pronunciando cada palavra com deliberada precisão. Ele considerou uma imediata ofensa que um subordinado como Larry se julgasse tão familiar.
Larry, ignorando a resposta de Thomas, inclinou-se para amarrar os sapatos.
— Estou me referindo ao diabetes e ao problema de visão. Ouvi dizer que ela vai ter que se submeter a uma vitrectomia. Isso é terrível.
— A cirurgia ainda não está definida — disse Thomas bruscamente.
Sentindo a raiva na voz de Thomas, Larry olhou para cima.
— Eu não queria dizer que seja definitivamente necessária — observou ele. — Lamento ter tocado no assunto. Deve ser difícil para o senhor. Só espero que ela se saia bem.
— Minha mulher está perfeitamente bem — disse Thomas, zangado. — Além do mais, não acho que a saúde dela seja de sua conta.
— Lamento.
Seguiu-se um silêncio desconfortável, enquanto Larry rapidamente acabava de atar os sapatos. Thomas deu o laço na gravata e espargiu água-de-colônia Yves St. Laurent com movimentos rápidos e irritados.
— Onde você ouviu falar disso? — perguntou Thomas.
— De um residente da patologia — retrucou Larry. — Robert Seibert.
Larry trancou seu armário e disse a Thomas que estaria na sala de recuperação, se fosse necessário.
Thomas passou um pente nos cabelos, tentando acalmar-se. Com efeito, aquele não era o seu dia. Todo mundo parecia querer perturbá-lo. A ideia de que a saúde precária de sua mulher era o tópico de mexericos entre os residentes se mostrava inexplicavelmente irritante. Era também humilhante.
Repondo o pente no armário, Thomas notou um pequeno recipiente de plástico. Sentindo crescente tensão interior e os sinais de uma dor de cabeça, ele abriu a tampa do vidro. Partindo um dos comprimidos amarelos em dois, ele jogou uma das metades em sua boca. Hesitou um pouco e, então, jogou a outra metade também. Afinal de contas, ele bem que merecia.
Os comprimidos tinham um gosto amargo e ele precisou de um gole do bebedouro para fazê-los descer pela garganta. Mas quase imediatamente experimentou um alívio de sua crescente ansiedade.
A conferência sobre cirurgia cardíaca na tarde de sexta-feira foi realizada no Salão de Ensino Turner, que ficava no hall, diagonalmente oposto à unidade de cuidados intensivos cirúrgicos. Ele havia sido doado pela mulher de um Sr. J. P. Turner, que morrera no final dos anos 30, e o ambiente possuía um toque de art deco. O salão oferecia 60 lugares, metade do tamanho das salas de aulas da escola de medicina em 1939. Na frente havia um pódio elevado, um quadro-negro empoeirado, uma estante com antigos mapas de anatomia e um esqueleto em pé.
Fora o Dr. Ballantine quem insistira para que as reuniões das sextas-feiras fossem realizadas no Salão Turner, porque ficava perto da enfermaria e, conforme ele dizia, "O paciente é tudo". Mas o pequeno grupo de mais ou menos 12 assistentes ficava perdido no meio do mar de assentos vazios e nitidamente desconfortável por trás das carteiras projetadas de um modo espartano.
— Acho que devemos começar a reunião — disse o Dr. Ballantine, sobrepondo-se ao zunzum das conversas.
A audiência tomou seus lugares. Presentes à reunião estavam seis dos oito cirurgiões cardíacos da equipe, inclusive Ballantine, Sherman e Kingsley, bem como vários outros médicos e administradores, e uma relativamente nova aquisição, Rodney Stoddard, um filósofo.
Thomas observou Rodney Stoddard sentar-se. O filósofo se parecia com ele ao final da casa dos 20 anos, apesar do fato de ser bastante calvo, com os cabelos restantes de uma cor tão clara que era difícil vê-los. Ele usava óculos de aros de metal muito finos e tinha um ar de constante presunção. Para Thomas era como se o homem estivesse dizendo: "Apresente-me o seu problema, porque sei a resposta."
Stoddard tinha sido admitido por insistência da universidade. Até então a tentativa de salvação de todos os pacientes era atribuída aos médicos. Mas agora, com o advento de processos tão caros e complicados como a cirurgia cardíaca a céu aberto, transplantes, e órgãos artificiais, os hospitais tinham de pegar e escolher a quem confiar essas operações salva-vidas. Por enquanto, tais técnicas eram limitadas pelos custos extraordinários e pelo espaço disponível nas unidades sofisticadas para os cuidados posteriores. Em geral, a equipe docente tendia a dar mais atenção aos pacientes com doenças multissistêmicas, enquanto os médicos particulares como Thomas se inclinavam pelos membros sadios e produtivos da sociedade.
Olhando para Rodney, Thomas esboçou um sorriso irônico. Ele pôs-se a imaginar como Rodney se sentiria se estivesse com o coração de um homem em suas mãos. Aquele momento seria um momento para decisão e não para discussão. No que tocava a Thomas, a presença de Rodney na reunião era mais uma indicação da sopa burocrática em que a medicina estava se afogando.
— Antes de começarmos — disse o Dr. Ballantine — estendendo os braços com as mãos espalmadas como se quisesse acalmar uma multidão — quero ter a certeza de que todos viram o artigo na revista Time desta semana, considerando o Boston Memorial como o centro da cirurgia cardíaca para as pontes de safena. Acho que o merecemos e desejo agradecer a cada um e a todos vocês por nos ajudarem a alcançar esta posição. — Ballantine aplaudiu, seguido por George e pelo pouco conhecimento de alguns outros.
Thomas, que se sentara perto da porta, para o caso de ser convocado ao quarto de recuperação, fechou a cara. Ballantine e os outros médicos estavam assumindo um crédito por algo que era grandemente devido a ele e um pouco menos a dois outros cirurgiões particulares que estavam ausentes. Quando ele entrara para a cirurgia, Thomas achou que ia evitar as patifarias que cercavam as outras profissões. Iam ser ele e o paciente contra a doença! Mas, ao perscrutar em torno do salão, verificou que quase todos os presentes à reunião podiam interferir com seu trabalho devido a um problema agravante — o limitado número de leitos para a cirurgia cardíaca associado com as horas dedicadas nas salas de operação. O Memorial tornara-se tão famoso que parecia que todos queriam realizar ali suas operações de pontes de safena. Literalmente, as pessoas tinham que aguardar na fila. Em especial na clínica de Thomas. Ele tinha direito a 19 casos por semana e trazia uma lista programada para mais de um mês.
— Enquanto George passa a programação para a próxima semana — disse o Dr. Ballantine, estendendo uma pilha de papéis grampeados para George — eu gostaria de recapitular esta semana.
Ele zumbiu qualquer coisa quando Thomas voltava sua atenção para o esquema. Seus próprios pacientes eram programados por sua enfermeira, que comparava as informações necessárias e colocava sobre a escrivaninha de Ballantine, que as datilografava. Continha uma resumida história clínica de cada paciente, uma lista de diagnósticos significativos e uma explicação do necessário para a cirurgia. O objetivo era o de que todos os presentes à reunião examinassem cada paciente e se certificassem de que a operação era necessária ou aconselhável. Mas, em realidade, isso raramente acontecia, exceto se a pessoa faltasse à reunião. Uma vez, quando Thomas esteve ausente, o departamento de anestesiologia havia cancelado vários de seus casos, resultando numa lista que ninguém provavelmente ia esquecer. Thomas continuava a rever as folhas até que Ballantine mencionou qualquer coisa sobre as mortes. Thomas ergueu os olhos.
— Infelizmente, houve duas mortes cirúrgicas esta semana — disse o Dr. Ballantine. — A primeira foi um caso do departamento de ensino, Albert Bigelow, um cavalheiro de 82 anos de idade que não pôde ser desligado da bomba após uma substituição duplo-valvular. Ele havia sido programado como uma emergência. Já chegou o relatório da autópsia, George?
— Ainda não — disse George. — Devo acentuar que o Sr. Bigelow era um cara muito doente. O alcoolismo havia afetado seriamente seu fígado. Sabíamos que ele estava assumindo um risco ao se entregar à cirurgia. Você ganha alguma coisa e perde outras.
Seguiu-se um momento de silêncio. Thomas comentou sarcasticamente para si mesmo que a inoportuna morte do Sr. Bigelow incitou uma discussão estimulante. O irritante é que era este tipo de paciente que mantinha os pacientes de Thomas esperando.
Ballantine relanceou o olhar; como ninguém falou, ele prosseguiu:
— A segunda morte foi a de um paciente meu, o Sr. Wilkinson. Ele morreu na noite passada. Foi autopsiado esta manhã.
Thomas viu Ballantine olhar de modo inquisitivo para George, que balançou a cabeça quase imperceptivelmente.
Ballantine limpou a garganta e disse que ambos os casos seriam discutidos na próxima conferência sobre morte.
Thomas ficou admirado com o silêncio da comunicação. Lembrou-se do estranho comentário que George fizera no vestiário. Thomas abanou a cabeça.
Algo estava ocorrendo entre Ballantine e George, e Thomas sentiu um toque de desconforto. Ballantine dispunha de uma posição ímpar no centro médico. Como chefe da cirurgia cardíaca, ele tinha uma cátedra na universidade e recebia um salário. Mas Ballantine também possuía uma clínica particular. Era um remanescente do passado, servindo de ponte entre os homens assalariados de tempo integral como George e a equipe particular, como Thomas. Recentemente Thomas começara a pensar que Ballantine, cuja habilidade estava obviamente em declínio, começava a favorecer o prestígio de ser professor sobre as recompensas da clínica particular. Se isso fosse verdade, poderia provocar problemas, perturbando o equilíbrio entre a equipe de tempo integral e os médicos particulares, que no passado sempre se inclinara para esses últimos.
— Agora, se cada um virar a última página deste comunicado que foi distribuído, eu gostaria de salientar que houve uma grande mudança na programação.
Ouviu-se um farfalhar generalizado e simultâneo na medida em que cada um virava as páginas. Thomas fez o mesmo, depositando os papéis no braço de sua cadeira. Ele não gostou daquela história de uma grande alteração no esquema.
A última passagem estava dividida verticalmente em quatro colunas, representando as quatro salas usadas para a cirurgia cardíaca a céu aberto. Horizontalmente, a página dividia-se nos cinco dias de trabalho por semana. Dentro de cada espaço demarcado pelas linhas estavam os nomes dos cirurgiões programados para aquele dia. A Sala de Operações Dezoito era a sala de Thomas. Sendo o cirurgião mais rápido e mais ocupado, eram-lhe destinados quatro casos por dia, exceto na sexta-feira, quando só tinha três, devido à reunião. A primeira coisa que Thomas verificou ao olhar a página foi Sala de Operações Dezoito. Seus olhos se arregalaram, incrédulos. O esquema sugeria que ele fosse reduzido a três casos por dia, de segunda a quinta-feira. Ele havia perdido quatro vagas!
— A universidade autorizou-nos a admitir um novo atendente de tempo integral para o serviço de ensino — prosseguia o Dr. Ballantine, orgulhosamente — e iniciamos a admissão por um cirurgião cardíaco pediatra. Naturalmente, isso representa um grande avanço para o departamento. Preparando-nos para esta nova situação, estamos expandindo o serviço de ensino, adicionando-lhe mais quatro casos por semana.
— Dr. Ballantine — começou Thomas cuidadosamente, tentando se controlar. — Pelo esquema, parece que todas as quatro vagas adicionais foram tiradas do tempo que me é destinado. Devo admitir que isso só vale para a próxima semana?
— Não — retrucou o Dr. Ballantine. — O programa que você está vendo se manterá até novas ordens.
Thomas respirou fundo, antes de falar:
— Devo protestar. Mal posso considerar justo que eu deva ser o único a abrir mão do tempo de operações que me é destinado.
— O fato é que você vem controlando cerca de quarenta por cento do tempo dedicado ao centro cirúrgico. E este é um hospital-escola.
— Eu participo do ensino — falou Thomas bruscamente.
— Entendemos isso — disse Ballantine. — Não estamos considerando o seu caso individualmente. Trata-se de uma distribuição mais justa do tempo da sala de operações.
— Já estou com mais de um mês de atraso na programação de meus pacientes — disse Thomas. — Este não é o tipo de necessidade para os casos de ensino. Não há pacientes bastantes para encher as atuais vagas de ensino.
— Não se preocupe — disse George. — Nós acharemos os casos.
Thomas sabia qual era o verdadeiro motivo. George, e a maioria dos outros, tinha ciúmes do número de casos que ele operava e de quanto ganhava. Teve vontade de se levantar e dar um soco bem na cara de George. Olhando em torno, notou que os outros médicos repentinamente se ocuparam com suas notas, jornais ou outros pertences. Não podia contar com nenhum deles para apoiá-lo.
— O que nós todos devemos compreender — disse o Dr. Ballantine — é que somos todos membros do sistema da universidade. E o ensino é o principal objetivo. Se vocês sentirem pressão por parte de alguns de seus clientes particulares, podem levá-los para outras instituições.
A raiva e a frustração de Thomas tornavam-lhe difícil pensar com clareza. Sabia, de fato todo mundo sabia, que ele não podia simplesmente pegar um paciente e ir para um outro hospital. A cirurgia cardíaca exigia uma equipe treinada e experimentada. Thomas ajudara a construir o sistema no Memorial e dependia de sua estrutura.
Priscilla Grenier falou, assinalando que eles talvez pudessem acrescentar um centro cirúrgico adicional, se conseguissem comprar um outro aparelho de coração e pulmões artificiais e um perfusionista para operá-lo.
— É uma ideia — respondeu o Dr. Ballantine. — Thomas, talvez você quisesse presidir uma comissão ad hoc para examinar a conveniência de uma expansão como essa.
Thomas agradeceu ao Dr. Ballantine, esforçando-se para manter seu sarcasmo no mínimo. Disse que com sua atual carga de trabalho não era possível aceitar a oferta de Ballantine imediatamente, mas que ia pensar no caso. No momento devia se preocupar com pacientes que corriam risco de vida mesmo antes que tivessem tempo de se operar. Pacientes com 99 por cento de uma chance de vida longa e produtiva, se não encontrassem a sua hora de se operar, sacrificados a algum bêbado e esclerosado com que o serviço de ensino desejava experimentar!
Com esta declaração, a reunião entrou em recesso.
Lutando para conservar seu humor sob controle, Thomas dirigiu-se a Ballantine. George, naturalmente, chegara antes dele no pódio, mas Thomas abordou Ballantine.
— Posso lhe falar um momento? — perguntou Thomas.
— Claro — replicou o Dr. Ballantine.
— A sós — disse Thomas sucintamente.
— De qualquer modo, eu estava indo à UTI — falou George amigavelmente. — Estarei em meu gabinete se você me quiser lá. — E George deu uma pancadinha no ombro de Thomas antes de se afastar.
Para Thomas, Ballantine era a imagem hollywoodiana do médico, com seu cabelo macio penteado para trás de um sulco profundo, mas com um rosto bonito e queimado de sol. O único senão que estragava um pouco o aspecto geral eram as orelhas. Pelo padrão de qualquer pessoa, elas eram grandes. Agora mesmo Thomas sentia vontade de agarrá-las e sacudi-las.
— Bem, Thomas — disse o Dr. Ballantine rapidamente. — Não quero que fique paranoico devido a tudo isso. Você precisa compreender que a universidade tem me pressionado para delegar mais horas de ensino ao centro cirúrgico, em especial depois do artigo da Time. Este tipo de publicidade tem operado maravilhas para o programa de dotações. E, conforme George salientou, você vem controlando uma desproporcional quantidade de horas. Lamento que tivesse de aprender sobre isso, mas...
— Mas o quê?
— Você está na clínica particular. Agora, se você concordar em passar para o tempo integral, posso garantir-lhe uma cátedra total e...
— Meu titulo de professor-assistente clínico é ótimo para mim — disse Thomas. De repente, ele compreendeu. O novo esquema era outra tentativa de pressioná-lo a abandonar a clínica particular.
— Thomas, você sabe que o chefe da cirurgia cardíaca que me segue terá de trabalhar em tempo integral.
— Então, devo considerar este corte nas minhas horas para cirurgia como um fato consumado — disse Thomas, ignorando as implicações de Ballantine.
— Receio que sim, Thomas. A não ser que arranje um outro centro cirúrgico. Mas, conforme sabe, isso leva tempo.
Abruptamente, Thomas voltou-se para ir embora.
— Você vai pensar em passar para o tempo integral, não vai?
— Vou considerar — retrucou Thomas, sabendo que estava mentindo.
Saiu da sala de ensino e começou a descer as escadas. No primeiro patamar ele parou. Agarrando com força o corrimão e apertando os olhos o mais que pôde, deixou seu corpo tremer de raiva. Foi apenas por um momento. Depois, ele se empertigou. Reassumira o controle. Afinal de contas, era um indivíduo racional e tinha lutado contra o absurdo burocrático por tempo suficiente para saber lidar com ele. Havia suspeitado que Ballantine e George estavam tramando alguma coisa. Agora ele sabia. Mas especulava se aquilo era tudo. Talvez houvesse mais do que a mudança do esquema do centro cirúrgico, pois ainda tinha a ansiosa sensação de que algo estava acontecendo e que ele precisava saber.
CASSI SEMPRE EXPERIMENTAVA certo grau de apreensão quando mergulhava a fita de teste em sua urina. Havia sempre a chance de que a cor da fita mudaria, indicando que ela estava perdendo açúcar. Não que um pouco de açúcar na urina fosse tão importante, principalmente se ocorria apenas de vez em quando. Era mais uma coisa emocional; se ela estava eliminando açúcar, então não estava em controle. O distúrbio era o aspecto psicológico.
A luz do toalete era fraca, obrigando Cassi a abrir um pouco a porta a fim de ver bem a fita. Ela não havia mudado de cor. Como dormira tão pouco na noite anterior e tendo se enganado naquela tarde com uma refeição ligeira de iogurte de frutas, ela não teria ficado muito surpresa de ver um pouco de açúcar. Cassi ficou satisfeita com o fato de que a quantidade de insulina que estava se aplicando e sua dieta estavam equilibradas. Seu médico clínico, o Dr. Malcolm Mclnery, falava ocasionalmente de passá-la para um dispositivo de infusão constante de insulina, mas Cassi havia se negado. Ela relutava em alterar um sistema que parecia estar funcionando. Ela não se importava em se aplicar duas injeções por dia, uma antes do desjejum e outra antes do jantar. Tinha-se tornado uma rotina que não lhe exigia mais nenhum esforço.
Fechando o olho direito, Cassi contemplou a fita de teste. Houve apenas uma vaga sensação de luz, como se ela estivesse olhando através de uma parede de vidro sem polimento. Esperava que não tivesse problema com seu olho, pois a ideia da cegueira a aterrorizava mais, sob alguns aspectos, do que a ideia da morte. A possibilidade da morte ela podia desaprovar, como todo mundo mais. Mas contestar a ideia da cegueira era difícil com seu olho esquerdo lembrando-a disso todos os dias. O problema surgira subitamente. Disseram-lhe que um vaso sanguíneo tinha-se rompido, fazendo com que o sangue penetrasse na cavidade vítrea.
Enquanto lavava as mãos, Cassi examinava-se ao espelho. Decidiu que o único foco de luz sobre o espelho era bondoso, conferindo à sua pele mais cor do que ela sabia que tinha. Olhou para o nariz. Era pequeno demais para o seu rosto. E seus olhos; eles se curvavam estranhamente para cima nos cantos externos, como se ela houvesse repuxado demais os cabelos para trás. Cassi tentou olhar-se sem se concentrar unicamente numa só feição. Era realmente tão atraente conforme as pessoas diziam? Ela jamais se achara bonita. Sempre achara que o diabetes estava indelevelmente estampado em letras garrafais através de sua testa. Convencera-se de que sua doença era um grande defeito que todo mundo podia ver.
Nem sempre tinha sido assim. No ginásio, Cassi tentara reduzi-lo a um pequeno aspecto de sua vida. Algo que podia isolar. E embora tivesse consciência de seu remédio e de sua dieta, ela não queria insistir nisso.
No entanto, esta atitude tornava seus pais — e principalmente sua mãe — compreensivelmente preocupados. Eles achavam que o único meio de Cassi ser capaz de manter a disciplina que a doença exigia era transformá-la em sua principal preocupação. Pelo menos essa era a maneira pela qual a Sra. Cassidy havia tratado com o problema.
O conflito atingiu seu ponto crítico na época de sua promoção.
Cassi veio da escola para casa com excitação e expectativa. A promoção seria comemorada num elegante country club local, seguida por um desjejum na escola. Então, toda a classe iria para a praia de Nova Jersey, onde passaria o resto da semana.
Inesperadamente, Cassi tinha sido convidada para sair por Tim Bartholomew, um dos rapazes mais populares da escola. Ele havia falado com Cassi em várias ocasiões após um curso de física a que ambos assistiam. No entanto, ele jamais tinha convidado Cassi para sair, de modo que o convite foi uma surpresa total. A excitação de sair com um rapaz agradável para o maior acontecimento social do ano era quase demais para Cassi suportar.
O pai de Cassi foi o primeiro a saber da boa nova. Como professor de geologia um tanto severo da Universidade de Columbia, ele não partilhava do mesmo entusiasmo de Cassi, mas ficou satisfeito por ela se sentir feliz.
A mãe de Cassi ficou menos entusiasmada. Vindo da cozinha, ela disse a Cassi que podia ir à comemoração, mas que devia voltar em casa para o desjejum.
— Nessas festas eles não cozinham para diabéticos — disse a Sra. Cassidy — e quanto a ir passar o fim de semana na praia, está completamente fora de questão.
Sem esperar esta resposta negativa, Cassi viu-se despreparada para tratar com ela. Em meio a lágrimas, ela protestou que havia demonstrado ser responsável no que tocava à sua medicação e dieta e que lhe deviam permitir que fosse.
A Sra. Cassidy foi inflexível, dizendo a Cassi que ela era a única a pensar no seu bem-estar. E concluiu dizendo que Cassi devia aceitar o fato de que não era uma pessoa normal.
Cassi berrou que era normal, tendo lutado emocionalmente com aquela situação durante toda a sua adolescência.
A Sra. Cassidy segurou Cassi pelos ombros e lhe disse que ela era portadora de uma doença crônica por toda sua vida e que, quanto mais cedo aceitasse o fato, melhor seria.
Cassandra correu para o seu quarto e trancou a porta. E recusou-se a falar com quem quer que fosse até o dia seguinte. Quando o fez, informou à mãe que havia ligado para Tim, comunicando-lhe que não podia ir à comemoração por estar doente. Disse à mãe que Tim ficara surpreso, porque ignorava que ela era diabética.
Olhando-se no espelho do hospital, Cassi voltou ao presente. Ela imaginava até que grau havia vencido sua doença intelectualmente. Oh, agora sabia muita coisa sobre a doença e podia citar todos os tipos de fatos e algarismos. Mas teria aquele conhecimento valido os sacrifícios? Ela não tinha uma resposta para essa pergunta — e talvez jamais a tivesse. Seus olhos ergueram-se vagamente para os cabelos, que estavam em desalinho.
Depois de tirar suas travessas e grampos, Cassi deu uma esfregadela na cabeça. Seu cabelo fino caiu por seu rosto numa verdadeira confusão. Com mãos práticas, ela cuidadosamente os colocou para trás e, ao sair do banheiro, sentiu-se revigorada.
As poucas coisas que ela trazia consigo para passar a noite no hospital ajustavam-se facilmente em sua bolsa de lona pendente do ombro, apesar do fato de ela já conter uma grande pasta de artigos médicos impressos. Ela possuía aquela bolsa desde o colégio e, embora estivesse suja e gasta em muitos lugares, era considerada uma velha amiga. Num dos lados havia um grande coração vermelho. Cassi ganhara uma pasta por ocasião de sua formatura na escola de medicina, mas preferia a bolsa de lona. A pasta parecia muito pretensiosa. Além disso, ela podia pôr mais coisas dentro da bolsa.
Cassi consultou o relógio. Eram cinco e meia. Ela sabia que Thomas estaria descendo pelo corredor àquela hora, depois de ter visto seus últimos pacientes no consultório. Ao guardar suas coisas, ela disse para si que a programação regular era outro benefício da psiquiatria. Como médica interna ou residente na patologia, jamais terminava o serviço muito antes das seis e meia ou sete horas, sendo que às vezes trabalhava até as oito ou oito e meia. Na psiquiatria ela podia contar como certo estar livre depois das quatro, cinco, ou da reunião da tarde, desde que não estivesse de serviço.
Entrando pelo corredor, Cassi inicialmente ficou surpresa de encontrá-lo vazio. Então, se lembrou que era hora do jantar dos pacientes e ao passar pelo refeitório comum pôde ver a maioria dos pacientes comendo de suas bandejas diante dos aparelhos de TV. Cassi entrou rapidamente em seu gabinete, que mais era um cubículo, e juntou as papeletas que estivera recolhendo. Ela só tinha quatro pacientes, inclusive o Coronel Bentworth, e passara uma parte da tarde examinando cuidadosamente suas papeletas e preparando cartões-índices de mais ou menos 7,5 x l0cm para cada caso.
Com a bolsa de lona no ombro e as papeletas nos braços, Cassi desceu para o posto das enfermeiras. Joel Hartman, que estava de serviço naquela noite, estava sentado no posto, conversando com as duas enfermeiras. Cassi depositou as papeletas em suas respectivas aberturas e disse boa-noite. Joel desejou-lhe um bom fim de semana e mandou-a relaxar, porque ele devia ter os pacientes dela na segunda-feira. Ele disse que sabia como lidar com Bentworth, pois havia servido no Corpo de Treinamento dos Oficiais da Reserva no Colégio.
Enquanto descia para o primeiro andar, Cassi podia sentir que estava começando a relaxar. Sua primeira semana na psiquiatria tinha sido um período extenuante e difícil, um período que ela não gostaria de reviver.
Cassi tomou a passagem transversal interior para pedestres que dava para o Edifício Profissional. O consultório de Thomas ficava no terceiro andar. Ela fez uma parada do lado de fora da porta de carvalho polido, olhando para as brilhantes letras de latão — THOMAS KINGSLEY, M.D., CIRURGIA CARDÍACA E TORÁCICA — e experimentou um estremecimento de orgulho.
A sala de espera era muito bem decorada, com reproduções Chippendale e um grande tapete de Tabriz. As paredes eram azuis e ornadas com arte original. A porta que dava para o consultório interno era guardada por uma mesa de mogno ocupada por Doris Stratford, enfermeira-recepcionista de Thomas. Quando Cassi entrou, Doris ergueu os olhos por um instante, voltando depois para sua máquina de escrever ao perceber de quem se tratava.
Cassi aproximou-se da mesa.
— Como vai Thomas?
— Ótimo — disse Doris, sem levantar os olhos do papel.
Doris jamais olhava Cassandra nos olhos. Mas, com o passar dos anos, Cassi tinha-se acostumado ao fato de que sua doença incomodava algumas pessoas. E, obviamente, Doris era uma delas.
— Quer dizer a ele que estou aqui? — pediu Cassi.
Cassi colheu um fugidio lampejo dos olhos castanhos de Doris. Havia uma aura de petulância em sua expressão. Não o bastante para Cassi se queixar, porém o suficiente para deixá-la perceber que Doris não apreciava a interrupção. Ela não respondeu a Cassi, mas comprimiu o botão do intercomunicador e anunciou que a Dra. Cassidy havia chegado. E retornou diretamente para a sua máquina.
Recusando-se permitir que Doris a irritasse, Cassi acomodou-se sobre o divã cor-de-rosa e tirou da bolsa os artigos que queria sobre a personalidade fronteiriça. Começou a ler, mas viu-se olhando por cima do papel para Doris.
Cassi imaginava por que Thomas conservava Doris. Sem dúvida, ela era eficiente, porém parecia mal-humorada e irritadiça, qualidades muito pouco agradáveis que alguém gostaria de encontrar no consultório de um médico. Embora bem-apessoada, não era muito atraente. Seu rosto e suas feições eram largos, os cabelos castanhos estavam puxados para trás e amarrados num coque. Ela possuía uma boa figura, Cassi tinha de admitir.
Deixando seus olhos descer para o artigo que estava lendo, Cassi obrigou-se a se concentrar.
Thomas olhou do outro lado da superfície polida de sua mesa para o último paciente do dia, um advogado de 52 anos de idade chamado Herbert Lowell. O consultório de Thomas era decorado como a sua sala de espera, exceto as paredes, que eram de um verde-mato. A outra diferença era no mobiliário, constituído de Chippendale autêntico. Só a escrivaninha valia uma pequena fortuna.
Thomas havia examinado o Sr. Lowell em várias ocasiões e revira os arteriogramas coronarianos feitos pelo Dr. Whiting, cardiologista do Sr. Lowell. Para Thomas a situação estava clara. O Sr. Lowell tinha uma dor anginosa no peito, uma história de um leve ataque cardíaco e a prova radiográfica de uma circulação arterial comprometida. O homem precisava de uma operação e Thomas dissera isso ao Sr. Lowell. Agora Thomas queria terminar a visita.
— É uma decisão totalmente irreversível — dizia o Sr. Lowell, nervosamente.
— E mais: uma decisão que deve ser levada a cabo — disse Thomas, levantando-se e fechando a pasta do Sr. Lowell. — Infelizmente, meu programa é muito apertado. Se o senhor tem mais perguntas, pode fazer.
Thomas partiu para a porta como um inteligente vendedor, indicando que o assunto estava além de qualquer outra negociação.
— E quanto à conveniência de uma segunda opinião? — perguntou o Sr. Lowell, hesitante.
— Sr. Lowell — disse Thomas — o senhor pode ouvir quantas opiniões quiser. Vou enviar um relatório completo para o Dr. Whiting e pode discutir o caso com ele. — Thomas abriu a porta que dava para a sala de espera. — Com efeito, Sr. Lowell, eu gostaria que o senhor consultasse um outro cirurgião porque, francamente, não me sinto bem trabalhando com gente que tem atitudes negativas. E, agora, com licença.
Thomas fechou a porta atrás do Sr. Lowell, confiante em que o homem programasse a operação exigida. Sentando-se, ele reuniu o material de que ia necessitar para a sua grande visita da manhã seguinte; depois começou a assinar as cartas de consulta que Doris tinha deixado para ele.
Quando Thomas tornou a aparecer com a correspondência assinada, não se surpreendeu de encontrar o Sr. Lowell na sala de espera. Thomas olhou de relance para Cassi, acenou-lhe um cumprimento com a cabeça e voltou-se para o paciente.
— Dr. Kingsley, decidi prosseguir com a operação.
— Muito bem — disse Thomas. — Telefone para a Srta. Stratford na semana que vem e ela marcará tudo.
O Sr. Lowell agradeceu a Thomas e saiu, fechando calmamente a porta atrás de si.
Segurando os relatórios à sua frente, como se os estivesse lendo, Cassi observava o marido resolver algumas notas com Doris. Ela verificara como seu marido havia lidado bem com o Sr. Lowell. Ele jamais pareceu hesitar. Sabia o que devia ser feito e o fez. Ela sempre admirara sua calma, uma qualidade de que ela sabia carecer. Cassi sorriu quando seus olhos traçaram o perfil afilado, o cabelo grisalho e o corpo atlético do marido. Ela o achava extraordinariamente atraente.
Depois das inseguranças do dia, com efeito de toda a semana, Cassi queria correr e atirar seus braços em torno dele. Mas ela sabia por instinto que ele não apreciaria aquele show emocional, em especial com Doris ali. E Cassi sabia que ele tinha razão. O consultório não era lugar para essas cenas. Em vez disso, ela repôs os artigos impressos na pasta e a pasta dentro da bolsa de lona.
Thomas acabou seu serviço com Doris, mas só depois que a porta do gabinete se fechou atrás deles foi que ele falou com Cassi.
— Tenho de ir à UTI — disse ele com voz inexpressiva. — Você pode vir ou aguardar no saguão. A escolha é sua. Não me demorarei muito.
— Eu irei — disse Cassi, já imaginando que Thomas não tivera um dia muito suave. Ela sabia que tinha de apressá-lo para mantê-lo com ela.
— Houve algum problema com sua cirurgia hoje? — perguntou ela.
— A cirurgia correu muito bem.
Cassi desistiu de fazer outras perguntas. Foi difícil falar enquanto eles se encaminhavam de volta para o Edifício Scherington. Além disso, ela aprendera, pela experiência, que em geral era melhor deixar que Thomas desse as informações quando ele estava muito perturbado.
No elevador, ela ficou observando enquanto conservava seus olhos pregados no indicador do andar. Ele parecia tenso e preocupado.
— Estou satisfeita de voltar para casa esta noite — disse Cassi. — Preciso de uma boa noite de sono.
— Os fantasmas mantiveram você ocupada na noite passada?
— Não deixemos que as opiniões de seus cirurgiões se manifestem sobre a psiquiatria — disse Cassi.
Thomas não respondeu, mas um sorriso irônico apareceu em seu rosto e ele pareceu relaxar um pouco.
As portas do elevador se abriram no 17º andar e eles saíram. Thomas caminhava rapidamente na frente. A despeito dos muitos anos que Cassi tinha passado em hospitais, sempre experimentava a mesma reação quando se achava no andar da cirurgia. Se não era medo, era quase isso. O aspecto da crise solapava a elaborada negativa que ela usava sobre as implicações de sua própria doença. O que intrigava Cassi sobre a reação era que ela não se sentia do mesmo modo no andar da clínica onde invariavelmente havia pacientes com complicações diabeticamente induzidas.
Quando Cassi e Thomas se aproximaram da UTI, vários parentes dos doentes que ali estavam aguardando reconheceram Thomas. Como um astro do cinema ou do rock, ele foi instantaneamente cercado. Uma senhora idosa queria tocá-lo como se ele fosse uma espécie de deus. Thomas continuava calmo, assegurando a todos que a cirurgia havia decorrido rotineiramente e que eles teriam de aguardar por novos boletins trazidos pelo pessoal da enfermagem. Finalmente, conseguiu se desvencilhar do pessoal e entrou na UTI, onde ninguém ousou segui-lo, exceto Cassi.
Com seus inúmeros aparelhos, máquinas, osciloscópios, telas e ataduras, a UTI intensificou todos os medos silenciosos de Cassi. E, de fato, os próprios pacientes pareciam todos esquecidos, como se estivessem perdidos no emaranhado do equipamento. As enfermeiras e os médicos pareciam cuidar dos aparelhos em primeiro lugar.
Thomas ia de cama em cama. Cada paciente na UTI tinha sua própria enfermeira especializada a quem Thomas falava, mal olhando para o doente, a não ser que a enfermeira chamasse sua atenção para alguma anormalidade. Ele verificava visualmente todos os sinais vitais que podiam ser vistos no equipamento de leitura. Ele relanceava o olhar pelos dados do equilíbrio dos fluidos, erguia as chapas de raios X até a altura da luz que ficava sobre as cabeças e observava os valores dos eletrólitos e gases do sangue. Cassi sabia o bastante para saber o quanto ela não sabia.
Conforme prometera Thomas, não demorou muito. Todos os seus pacientes estavam indo bem. Com Larry Owen no comando, a equipe residente podia lidar com todos os pequenos problemas que surgissem durante a noite. Quando Thomas e Cassi reapareceram, foram cercados de novo pelas famílias dos pacientes. Thomas disse que lamentava não dispor de mais tempo para conversar, mas que tudo estava indo muito bem.
— Deve ser extraordinariamente compensador receber esse reconhecimento das famílias — disse Cassi enquanto eles se encaminhavam para o elevador.
Thomas não respondeu imediatamente. O comentário de Cassi fazia-o lembrar-se do prazer que havia sentido anos antes, quando os Nazzaros o tinham cumprimentado. Sua gratidão havia representado algo. Então, ele se lembrou da filha do Sr. Campbell. E olhou rapidamente para trás, para o corredor, verificando que ele não a havia visto.
— Oh, é ótimo que os parentes sejam gratos — disse Thomas sem muita convicção. — Mas não é tão importante assim. Certamente, não é por isso que faço cirurgia.
— Claro que não — retrucou Cassi. — Eu não queria dizer isso.
— Para mim, o reconhecimento de meus professores e superiores sempre foi mais importante — falou Thomas.
O elevador chegou e eles entraram.
— O problema é — continuou Thomas — que eu agora sou o professor.
Cassi levantou o olhar. Para surpresa sua, a voz dele tinha um tom inesperado e indistinto de saudosismo. Enquanto ela o observava, pôde ver que ele olhava distraidamente, devaneando.
A mente de Thomas retornara para o tempo de sua residência torácica, uma época de incrível excitação e aventura. Ele se lembrava que, quando nada, vivera no hospital durante três anos, indo para casa, para seu monótono apartamento de dois quartos, apenas para se refazer com algumas horas de sono. A fim de se superar, tinha trabalhado mais duramente do que lhe era possível. E, no fim, fora indicado para residente-chefe. Em muitos aspectos, Thomas achou que aquele acontecimento havia sido o fato mais importante de sua vida. Ele fora escolhido e estava no topo de um grupo de pessoas bem-dotadas, tão empenhadas e competitivas quanto ele próprio. Thomas jamais esqueceria o momento em que cada um de seus auxiliares se congratulou com ele. Não havia dúvida, pensou, que a cirurgia e a vida em geral eram então mais recompensadoras e divertidas. Parentes agradecidos eram uma coisa muito boa, mas não substituíam o que ele sentira.
Quando Cassi e Thomas saíram do hospital, foram rudemente batidos por uma úmida noite bostoniana. Lufadas de vento açoitavam a chuva, formando círculos caóticos. Às 6h15 já estava escuro. A única iluminação vinha das luzes da cidade que se refletiam da camada de nuvens baixas e redemoinhantes. Cassi passou o braço pela cintura de Thomas e, juntos, correram para o estacionamento próximo.
Uma vez abrigados, sacudiram a umidade dos pés e andaram mais devagar, subindo a rampa de concreto. O cimento úmido tinha um cheiro surpreendentemente acre. Thomas ainda não estava procedendo normalmente e Cassi tentava imaginar o que o estava aborrecendo. Experimentava a desagradável sensação de que era algo que ela havia feito. Mas não podia imaginar o quê. Eles não se viam desde a entrada no hospital, na quinta-feira de manhã, e naquela ocasião tudo parecia muito bem.
— Você ficou cansado do trabalho na noite passada? — perguntou Cassi.
— Sim, provavelmente fiquei. Não pensei muito nisso.
— E seus casos? Saiu tudo bem?
— Eu lhe disse que eles estavam ótimos. De fato eu poderia ter realizado mais uma ponte se eles me tivessem permitido programá-la. Operei três casos no tempo em que George Sherman levaria para realizar dois e Ballantine, nosso destemido chefe, apenas um.
— Parece que você devia estar satisfeito — disse Cassi.
Eles pararam diante de um Porsche de cor metálica. Thomas hesitou, olhando para Cassi por sobre o topo do carro.
— Mas eu não estou satisfeito. Como de hábito, houve uma série de pequenas coisas para me aborrecer, tornando meu trabalho mais difícil. Parece que as coisas estão piorando, não melhorando, aqui pelo Memorial. Realmente, estou cheio. Depois, para coroar tudo, na reunião sobre cirurgia cardíaca, fui informado de que quatro de minhas vagas operatórias semanais estavam sendo expropriadas, de modo que George Sherman pudesse programar maior número de seus malditos casos para ensino. Eles nem têm pacientes bastantes para encher as vagas que já possuem e ainda pegam na rede pacientes que não têm direito ao precioso espaço no hospital.
Thomas destrancou a porta, entrou no carro e estendeu a mão para abrir a porta do outro lado para Cassi.
— Além disso — disse Thomas, agarrando com força o volante — tenho a sensação de que algo está se passando no hospital. Algo entre George Sherman e Norman Ballantine. Meu Deus! Senti isso com toda aquela porcaria!
Thomas ligou o motor, a seguir recuou com o carro, depois avançou, com os pneus guinchando em protesto. Cassi amparou-se no painel para se manter ereta. Quando ele parou para introduzir seu cartão na fenda do portão automático, ela passou a mão pelo ombro dele, a fim de pegar o cinto de segurança. Ao colocá-lo no lugar e fechá-lo, ela disse:
— Thomas, acho que você devia colocar o seu também.
— Pelo amor de Deus! — gritou Thomas. — Pare de me apoquentar.
— Desculpe — retrucou Cassi rapidamente, certa agora de que, de algum modo, ela era em parte responsável pelo mau humor do marido.
Thomas entrou no tráfego e tornou a recuar, cortando a frente de irados motoristas. Cassi receou dizer alguma coisa que o tornasse ainda mais irado. Era como um Grand Prix livre para todos.
Uma vez chegados ao norte da cidade, o tráfego se reduziu. Apesar do fato de Thomas ir a mais de 100 por hora, Cassi começou a relaxar.
— Lamento que eu tenha parecido uma peste, principalmente depois de um dia irritante — disse ela por fim.
Thomas não respondeu, mas seu rosto ficou menos tenso e diminuiu a força com que segurava o volante. Várias vezes Cassi tentou perguntar se ela fora responsável por seu aborrecimento, mas não conseguiu encontrar as palavras certas. Durante algum tempo ela ficou observando a estrada molhada e escorregadia vindo em direção deles.
— Fiz alguma coisa que tenha aborrecido você? — disse ela por fim.
— Fez — respondeu Thomas bruscamente.
E continuaram a viajar em silêncio durante algum tempo. Cassi sabia que cedo ou tarde ele falaria o que fora.
— Parece que Larry Owen sabe de tudo sobre nossos assuntos médicos particulares — disse Thomas.
— Não é segredo que sou diabética.
— Não é segredo porque você vive a falar nisso — disse Thomas. — Eu acho que quanto menos você falar no assunto melhor. Não gosto de que sejamos motivo de mexericos.
Cassi não podia se lembrar de haver mencionado nada a Larry sobre seus problemas médicos, mas, naturalmente, a questão não era aquela. Ela estava bem consciente de que havia falado a várias pessoas sobre seu diabetes, inclusive a Joan Widiker, naquele mesmo dia. Thomas, como sua mãe, achava que a doença de Cassi não era assunto para ser partilhado, mesmo com os amigos íntimos.
Cassi olhou para Thomas. As faixas de luz e sombra dos carros que passavam moviam-se por seu rosto e obscureciam sua expressão.
— Acho que nunca pensei que discutir o meu diabetes nos afetasse — disse Cassi. — Lamento. Vou ter mais cuidado.
— Você sabe como é um mexerico num centro médico — disse Thomas. — É melhor não dar a ninguém qualquer motivo de falatório. Larry sabia mais do que apenas sobre seu diabetes. Ele sabia que você podia ter que se submeter a uma cirurgia ocular. Isso é muito específico. Ele disse que soube por seu amigo Robert Seibert.
Agora, aquilo fazia sentido para Cassi. Ela sabia que não tinha dito nada a Larry Owen.
— Eu falei com Robert — disse ela. — Pareceu-me tão natural. Nós nos conhecemos há tanto tempo. E ele me falou sobre sua cirurgia. Ele está tendo problemas com seus dentes do siso inclusos. Com sua história de febre reumática, ele teve de ser internado no hospital e tratado com antibióticos endovenosamente.
Dobraram ao norte da estrada 128, dirigindo-se para o oceano. Ali, várias condensações inesperadas de um pesado nevoeiro fizeram com que Thomas reduzisse a velocidade.
— Ainda não acho que comentar esses assuntos seja uma boa ideia — disse Thomas, olhando com dificuldade pelo para-brisa. — Especialmente para uma pessoa como Robert Seibert. Ainda não consigo compreender como você pode tolerar um homossexual tão escandaloso.
— Nós nunca falamos sobre as preferências sexuais de Robert — disse Cassi asperamente.
— Não compreendo como você possa evitar o assunto — disse Thomas.
— Robert é um ser humano inteligente e sensível e um patologista danado de bom.
— Fico satisfeito que ele tenha algumas qualidades compensadoras — disse Thomas, consciente de que atormentava sua mulher.
Cassi refreou sua resposta. Ela sabia que Thomas estava zangado e procurando provocá-la; sabia também que de nada adiantava perder a calma. Após breve silêncio, ela estendeu a mão por trás de Thomas e pôs-se a massagear seu pescoço. No início ele permaneceu rígido, mas, depois de alguns minutos, Cassi sentiu que ele correspondia.
— Lamento ter falado sobre o meu diabetes — disse ela — e lamento ter falado também sobre a situação de meu olho.
Persistindo com sua massagem, Cassi fitava distraidamente a janela. Um medo frio fazia-a imaginar se Thomas estaria ficando cansado da doença dela. Talvez ela estivesse se queixando demais, especialmente com toda a variação de residências. Pensando nisso, Cassi teve de admitir que Thomas vinha se distanciando dela nos últimos meses, agindo mais impulsivamente e com menos tolerância. Cassi prometeu-se falar menos sobre sua doença. Ela sabia, mais do que ninguém, quanta pressão Thomas tinha de suportar, e prometeu a si mesma que não tornaria as coisas piores.
Retirando a mão do pescoço do marido, Cassi achou que seria prudente mudar de assunto.
— Alguém falou alguma coisa sobre você realizar três pontes de safena enquanto os outros faziam uma ou duas?
— Não, ninguém diz nada porque é sempre a mesma coisa. Realmente não há ninguém para competir comigo.
— Que tal competir com o melhor de todos: você mesmo? — disse Cassi com um sorriso.
— Oh, não! — retrucou Thomas. — Não me venha com essa pseudopsicologia.
— A competição é tão importante assim? — indagou Cassi, pondo-se séria. — Não basta a satisfação de ajudar as pessoas a retomarem suas vidas ativas?
— É uma bela sensação. Mas não me ajuda a conseguir leitos ou tempo no centro cirúrgico, mesmo que os pacientes que eu apresente sejam os que mais precisam tanto do ponto de vista físico quanto sociológico. E, provavelmente, a gratidão deles não vai me fazer chefe, embora eu não esteja mais certo de que desejo esta posição. Para dizer a verdade, a emoção da cirurgia não mais dura como antigamente. Ultimamente experimento esta sensação de vazio.
A palavra "vazio" lembrou Cassi de alguma coisa. Teria sido um sonho? Ela relanceou o olhar pelo interior do carro, notando o cheiro característico do couro, o repetitivo estalido dos limpadores do para-brisa, deixando sua mente andar errante. Qual era a associação? Então ela se lembrou — "vazia" fora a palavra que o Coronel Bentworth usara para descrever sua vida nos últimos anos. Irada e vazia, ele dissera.
Saindo dos bosques desfolhados, eles correram através dos charcos salgados. Através da janela molhada de chuva, Cassi colheu vislumbres da paisagem desolada de novembro. O outono tinha ido embora, seus últimos farrapos de cores levados das árvores nuas pela chuva. O inverno estava chegando, sua aproximação anunciada pelo frio úmido da noite. Eles contornaram a última curva, atravessaram trovejantemente uma ponte de madeira e entraram no seu caminho de carro. À luz dos faróis oscilantes, Cassi pôde ver o contorno de sua casa. Ela havia sido construída originalmente, na virada do século, como a casa de verão de um homem rico, no peculiar estilo de cascalho da Nova Inglaterra. Por volta dos anos 40 tinha sido transformada numa casa de inverno. Seu aspecto esparramado e o contorno irregular do teto conferiam-lhe uma silhueta ímpar. Cassi gostava da casa, talvez mais no verão do que no inverno. A melhor parte era a localização. Ficava situada diretamente sobre um estreito braço de mar olhando para o norte, para o oceano. Embora ficasse a 45 minutos de viagem ao norte de Boston, Cassi achava que a viagem valia a pena.
Ao ultrapassarem a longa entrada de carros, Cassi retrocedeu seus pensamentos para quando ela havia marcado um encontro com Thomas pela primeira vez. Eles tinham-se conhecido quando ela foi enviada para o Memorial, para o seu rodízio de clínica médica no terceiro ano da escola de medicina. Ela vira o Dr. Thomas Kingsley um dia na enfermaria. Ele e um grupo de residentes, que o seguiam como cachorrinhos, estavam examinando uma vítima de ataque cardíaco em choque cardiogênico. Cassi havia observado o Dr. Kingsley com fascinação. Ela ouvira falar dele e estava perplexa de que parecesse tão jovem. Achou-o extremamente atraente, porém jamais imaginou que alguém tão elegante e impetuoso como Thomas lhe dedicasse um segundo olhar, exceto, talvez, para lhe fazer uma embaraçosa pergunta médica. Se Thomas a viu naquele primeiro dia, se a havia notado, não deu nenhuma indicação disso.
Uma vez dentro da comunidade hospitalar, Cassi verificou que ela não era tão aterrorizante conforme temia. Trabalhava muito duro e, para espanto seu, viu-se subitamente muito popular. Antes ela não tivera tempo para marcar um encontro, mas no Boston Memorial o trabalho e a vida social se misturavam. Cassi viu-se ativamente perseguida pela maioria da equipe da casa, que lhe ensinou todos os tipos de coisas frívolas e outras. Logo, alguns dos assistentes mais jovens começaram a competir, inclusive um lindo oftalmologista que não admitia receber um não por resposta. Cassi jamais havia conhecido alguém tão coerente e persistente, em especial em frente de sua lareira de Beacon Hill. Mas tudo havia sido muito divertido e nada sério até que George Sherman a solicitou, assediando-a. Sem que Cassandra o encorajasse muito, ele enviava-lhe flores, pequenos presentes; e então, subitamente, lhe propôs casamento.
Cassi não rejeitou George imediatamente. Ela gostava dele mesmo sem saber que ele a amava. Enquanto ela ainda pensava em como tratar melhor as coisas, ocorreu algo ainda mais inesperado. Thomas Kingsley cortejou-a, pediu-lhe para sair com ele.
Cassi lembrava-se da intensa excitação que experimentara em estar com Thomas. Ele possuía uma tal aura de autoconfiança que alguém podia rotulá-la de arrogância. Mas não Cassi. Ela achava que ele simplesmente sabia o que queria e tomava decisões com assustadora rapidez. Quando Cassi tentava falar sobre o seu diabetes no início do relacionamento, Thomas afastava o assunto como um problema do passado. Ele deu-lhe toda a confiança de que ela carecia desde a terceira série.
Havia sido difícil para Cassi encarar George e dizer-lhe que não mais queria casar-se com ele e que estava apaixonada por seu colega. George aceitou a notícia com aparente calma e disse que ainda gostaria de ser seu amigo. Depois disso, quando ela o via ocasionalmente no hospital, ele parecia mais preocupado com a felicidade de Cassi do que com o fato de haver sido rejeitado por ela.
Thomas era encantador, obsequioso e cavalheiro, muito diferente do que Cassi esperava. Ela sabia que ele era famoso pelos seus relacionamentos intensos, porém breves. Embora ele raramente confessasse seu amor, demonstrava-o de muitas maneiras. Ele a levava nas visitas discentes com os bolsistas e fazia-a vir à sala de operações para ver os casos especiais. No primeiro Natal que passaram juntos, ele comprou-lhe um antigo bracelete de brilhantes. Depois, na véspera do Ano-Novo, pediu a Cassandra que se casasse com ele.
Cassi jamais pretendera casar-se enquanto estivesse na escola de medicina. Mas Thomas Kingsley era o tipo de homem com quem ela nunca se permitira sonhar. Ela podia jamais ter encontrado alguém como ele e, uma vez que Thomas também estava na medicina, estava confiante em que ele não impediria seu trabalho. Cassi disse sim e Thomas ficou em êxtase.
Eles se casaram no pátio diante da casa de Thomas, com vista para o mar. A maioria da equipe do hospital estivera presente e depois disso se referia ao evento como o fato social do ano. Cassi podia se lembrar de cada momento daquele glorioso dia de primavera. O céu tinha estado de um azul sonhador, não diferente do dos olhos de Thomas. O mar estivera relativamente calmo, com pequenas orlas brancas lambidas pela brisa do ocidente.
A recepção estava suntuosamente fornida, o pátio pontilhado de tendas de aspecto medieval, do cimo das quais drapejavam ao vento bandeiras heráldicas. Cassi jamais havia sido tão feliz e Thomas parecia orgulhoso, atento aos mínimos detalhes. Depois que todo mundo se retirou, Thomas e Cassi caminharam pela praia, indiferentes às ondas geladas que vinham morrer nos seus tornozelos.
Cassi nunca se sentira tão feliz nem tão segura. Passaram a noite no Ritz-Carlton, em Boston, antes de partirem para a Europa.
Depois de voltarem da lua-de-mel, Cassi retornou aos estudos, mas sempre atenta ao seu poderoso mentor. Thomas a ajudava por todos os meios concebíveis. Ela sempre fora uma boa estudante, mas com a ajuda e o encorajamento de Thomas, foi além de suas mais intensas expectativas. Ele continuava a encorajá-la a frequentar o centro cirúrgico, para ver casos particularmente interessantes e, enquanto ela fazia rodízio na cirurgia, só podia sonhar com o fazer experiências com outros estudantes de clínica. Dois anos mais tarde, quando chegou aos estudos mais avançados, foi o departamento de patologia que recrutou Cassi e não vice-versa.
Talvez a lembrança que, mais do que qualquer outra, acalentava o coração de Cassi era a do fim de semana de sua diplomação da escola de medicina. Thomas agira dominado desde o momento em que tinham acordado naquela manhã, o que Cassi atribuíra a um complicado caso cirúrgico que ele estava esperando. Durante o jantar na noite anterior, ele falara a Cassi sobre um paciente que estava programado para ser trazido de avião de outro estado. Ele se desculpara por não poder levá-la ao jantar de comemoração na noite após a formatura e, embora ficasse desapontada, Cassi assegurara a Thomas que compreendia.
Durante a cerimônia, Thomas agira como um bobo e deixara Cassi constrangida ao segui-la até o pódio, tirando centenas de fotos com sua Pentax. Depois, quando Cassi esperava que Thomas desaparecesse subitamente, para ir realizar a cirurgia, ele a carregou através do pátio para uma limusine que ali aguardava. Confusa, Cassi entrou no longo Cadillac negro. Dentro havia duas taças e uma garrafa gelada de Dom Perignon.
Como numa fantasia, Cassi foi levada rapidamente para o Aeroporto Logan e enfiada às pressas num avião que ia para Nantucket. Ela protestou que não tinha trazido roupas e que não podia partir sem primeiro voltar à casa, mas Thomas assegurou-lhe que todos os detalhes tinham sido providenciados — e, de fato, tinham. Ele mostrou-lhe uma bolsa com toda a sua maquilagem e remédios, bem como com roupas novas, inclusive o mais sexy dos vestidos cor-de-rosa da etiqueta Ted Lapidus que Cassi já vira.
Eles só ficaram ali uma noite — mas que noite! Seus aposentos eram a suíte principal da mansão de um velho lobo-do-mar convertida numa estalagem campestre. A decoração era do início da era vitoriana, com enorme leito coberto por um dossel e com as paredes forradas de papel do mesmo período. Não havia televisão e, mais importante, nem telefone. Cassi experimentou a deliciosa sensação de total isolamento e total privacidade.
Jamais se sentira tão apaixonada, nem Thomas havia sido tão atencioso. Eles passaram a tarde andando de bicicleta pelos caminhos do campo e correndo dentro das ondas geladas que vinham quebrar-se na praia. O jantar foi num restaurante francês próximo. A mesa à luz de velas foi disposta no abrigo de uma água-furtada cuja janela olhava para o porto de Nantucket. As luzes dos veleiros ancorados piscavam através da água como centelhas de pedras preciosas. Coroando o jantar estava presente o capelo de diplomação de Cassi. Para seu completo espanto, cuidadosamente pendia de uma pequena caixa aveludada um colar de pérolas de três fios, o mais lindo que ela já vira. Ele era seguro por uma grande esmeralda cercada de diamantes. Ao colocá-lo em seu pescoço, Thomas explicou-lhe que o fecho era um bem de família trazido da Europa por sua avó.
Mais tarde naquela noite, eles descobriram que o imponente leito coberto pelo dossel em seu quarto tinha sido uma falha inesperada. Ele guinchava impiedosamente toda vez que se mexiam. Esta descoberta provocou crises incontroláveis de risadas, mas em nada reduziu seu prazer. Quando nada, deu a Cassi outra maravilhosa lembrança de seu fim de semana.
O sonho de Cassi foi interrompido pela brusca parada do Porsche diante da garagem. Thomas estendeu a mão e pressionou o botão da porta automática, que ficava dentro do porta-luvas.
A garagem, também protegida das intempéries por telhas de madeira e cascalho, era completamente separada da casa. Havia um apartamento no segundo andar, originalmente destinado aos empregados, onde residia a mãe viúva de Thomas, Patricia Kingsley. Ela se mudara da casa principal quando Cassi e Thomas se casaram.
O Porsche trovejou dentro da garagem e depois, com um estrondo final, desligou-se. Cassi saiu, com cuidado para que a porta não ofendesse seu Chevy estacionado ao lado. Thomas amava o Porsche tanto quanto seu braço direito. Ela também fechou a porta do carro dele sem batê-la com muita força. Ela se acostumara a bater as portas dos carros, algo que tinha sido uma necessidade com o velho Ford da família. Em várias ocasiões Thomas havia ficado lívido quando, apesar de suas leituras sobre os cuidados a serem dispensados ao Porsche, ela voltava aos seus velhos hábitos.
— Está quase na hora — disse Harriet Summer, a governanta, quando Thomas e Cassi entraram no hall. Para enfatizar o seu desprazer, ela certificou-se de que eles a tinham visto consultar o relógio de pulso. Harriet Summer trabalhava para os Kingsley desde que Thomas nascera. Ela era muito mais um bem de família e devia ser tratada como tal. Cassi tinha aprendido isso muito rapidamente.
— O jantar estará servido dentro de meia hora. Se vocês não estiverem lá, vai ficar frio. Esta noite é o meu programa favorito de TV, Thomas, portanto eu saio às oito e meia, haja o que houver.
— Vamos descer já — disse Thomas, retirando seu casaco.
— E pendure aquele casaco — disse Harriet. — Não vou ficar catando roupa a toda hora.
Thomas fez o que ela mandou.
— E mamãe? — perguntou Thomas.
— Está como sempre — retrucou Harriet. — Ela almoçou bem e está esperando a chamada para o jantar, portanto apressem-se.
Enquanto Thomas e Cassi subiam as escadas, ela se maravilhava com a mudança em seu marido. No hospital era tão agressivo e autoritário, mas no momento em que Harriet ou a mãe lhe pediam para fazer alguma coisa ele obedecia.
No alto da escadaria, Thomas entrou em seu estúdio do segundo andar, dizendo que veria Cassi em poucos instantes. Ele não esperou que ela respondesse. Cassi não ficou surpresa e continuou a descer para o hall na direção do seu quarto de dormir. Ela sabia que ele gostava de seu estúdio, que era como que uma imagem refletida num espelho de seu gabinete no hospital, exceto pelo fato da pitoresca garagem e da vista dos pântanos mais além. O problema era que, nos últimos meses, Thomas tinha começado a passar cada vez mais tempo ali, ocasionalmente até dormindo no divã. Cassi nada comentara, sabendo que ele sofria de insônia, mas como o número de noites que ele passava longe dela estava aumentando, isso começava a incomodá-la cada vez mais.
O principal quarto de dormir ficava na extremidade do corredor, ao lado nordeste da casa. Ele tinha portas envidraçadas que abriam para um balcão sobranceiro ao pátio que dava para o mar. Próximo à alcova ficava um quarto de camas separadas, que dava para leste. Nos dias bonitos o sol se filtrava pelas janelas. Entre os dois quartos havia um banheiro.
A única parte da casa que Cassi redecorara era o banheiro da suíte. Ela havia recuperado e consertado o mobiliário de vime que ela encontrara ignominiosamente abandonado na garagem. Tinha escolhido um tecido de chintz brilhante para combinar com o acolchoado, com as cortinas e com as almofadas dos assentos.
As paredes haviam sido forradas com papel estilo vitoriano, o quarto de vestir pintado de amarelo pálido. A combinação era luminosa e alegre, formando um nítido contraste com os tons escuros e pesados do resto da casa.
Cassi tinha essencialmente transformado o quarto de dormir em seu estúdio, já que Thomas não demonstrara desejo de partilhá-lo. Ela encontrara no porão uma escrivaninha antiga, de estilo campestre, que pintara de branco, e havia comprado estantes simples de pinho para livros, também pintadas de branco, para combinar. Uma das estantes tinha uma segunda utilidade; servia para esconder um pequeno refrigerador contendo os remédios de Cassi.
Depois de examinar de novo sua urina, Cassi foi até o refrigerador e retirou um pacote de insulina regular e um de Lente insulina. Usando a mesma seringa, ela aspirou l/2cc de insulina regular U100 e a seguir l/10cc da insulina U100 de ação retardada. Sabendo que havia injetado na coxa esquerda naquela manhã, ela escolheu um local na coxa direita. Todo o processo levou menos de cinco minutos.
Depois de rápida chuveirada, Cassi bateu na porta do estúdio de Thomas. Ao entrar, ela sentiu que Thomas estava mais relaxado. Ele acabara de abotoar uma camisa limpa e terminou com mais botões do que casas quando chegou em cima.
— Você deve ser um tipo especial de cirurgião — brincou ela, endireitando rapidamente o problema. — Conheci um médico residente que ficou impressionado com você na noite passada. Fico satisfeita por ele não tê-lo visto abotoando a camisa. — Cassi estava impaciente por um conversa leve.
— Quem foi? — perguntou Thomas.
— Você o ajudou numa tentativa de ressuscitação.
— Não foi uma impressão muito boa. O homem morreu.
— Eu sei. Assisti à autópsia esta manhã.
Thomas sentou-se numa seção do sofá, calçando seus mocassins.
— Por que foi você assistir a uma autópsia? — perguntou ele.
— Porque se tratava de um caso cirúrgico pós-cardíaco, no qual a causa da morte não era clara.
Thomas levantou-se e começou a escovar o cabelo molhado.
— Todo o departamento de psiquiatria foi lá para cima ver este evento? — perguntou Thomas.
— Claro que não — respondeu Cassi. — Robert me chamou e...
Cassi fez uma pausa. Só depois de haver mencionado o nome de Robert foi que se lembrou da conversa que tiveram no carro. Felizmente, Thomas continuava a escovar o cabelo.
— Ele disse que achava que era um outro caso para a série das MSC, morte súbita cirúrgica. Você se lembra? Já falei com você antes sobre isso.
— Morte súbita cirúrgica — disse Thomas como se estivesse recitando uma lição na escola.
— E ele estava certo — continuou Cassi. — Não havia causa evidente da morte. O homem tinha se submetido a uma operação de ponte de safena realizada pelo Dr. Ballantine...
— Eu diria que esta foi uma causa suficiente — interrompeu Thomas. — Com certeza o velho passou uma sutura pelo Feixe de His. Isso corta o sistema condutor do coração. Já aconteceu antes.
— Foi esta a sua impressão quando você tentou ressuscitá-lo? — perguntou Cassi.
— Já aconteceu comigo — disse Thomas. — Admiti que havia sido um tipo de arritmia aguda.
— As enfermeiras informaram que o paciente estava muito cianótico quando o encontraram — disse ela.
Thomas acabou com seu cabelo e indicou que estava pronto para o jantar. E fez um gesto para o saguão enquanto falava:
— Isso não me surpreende. Provavelmente o paciente aspirou.
Cassi precedeu Thomas para entrar no corredor. Pela autópsia ela já sabia que os pulmões e os brônquios do paciente estavam desimpedidos, significando que ele não havia aspirado nada. Mas não disse isso a Thomas. O tom dele sugeria que já se alongara no assunto.
— Eu devia ter imaginado que o início de uma nova residência manteria você ocupada — disse Thomas, começando a descer as escadas. — Mesmo em se tratando de uma residência na psiquiatria. Você não está arranjando trabalho demais para você?
— Mais do que o bastante — respondeu Cassi. — Nunca me senti tão incompetente. Mas Robert e eu há um ano que estamos seguindo esta série de MSC. Nós íamos, eventualmente, publicar nossos achados. Então, acabei deixando a patologia, porém acho que Robert está na pista de alguma coisa. De qualquer modo, quando ele me chamou esta manhã, tive tempo de me levantar e ir assistir à autópsia.
— A cirurgia é um assunto sério — falou Thomas. — Principalmente a cirurgia cardíaca.
— Eu sei — disse Cassi — mas Robert agora tem dezessete desses casos, talvez dezoito, se este novo combinar com os outros. Há dez anos parece que a MSC só ocorria em pacientes que estavam em coma. Ultimamente, porém, tem havido uma alteração. Pacientes que se submetem à cirurgia corados parece que estão morrendo no pós-operatório sem causa aparente.
— Quando se considera o número de casos cardíacos operados no Memorial, deve-se ver que é insignificante a porcentagem de que você está falando. A taxa de morte no Memorial não só está muito abaixo da média, como é igual à melhor.
— Também sei disso. Mas ainda assim é fascinante quando se considera a propensão.
Súbito, Thomas pegou o braço de Cassi.
— Escute, já foi muito ruim que você houvesse escolhido a psiquiatria como especialidade, mas não procure embaraçar o departamento cirúrgico com os nossos fracassos. Temos certeza de que cometemos erros. Eis por que realizamos conferências sobre os casos fatais.
— Nunca pretendi embaraçá-lo — disse Cassi. — Além disso, as MSC constituem um estudo do Robert. Eu lhe disse hoje que ele tinha de prosseguir sem mim. Apenas acho a questão fascinante.
— O clima competitivo da medicina sempre torna os enganos dos outros fascinantes — disse Thomas, impelindo delicadamente Cassi pelo portal da sala de jantar — se eles forem erros legítimos ou atos de Deus.
Cassi sentiu uma pontada de culpa ao pensar na verdade da afirmação de Thomas. Ela jamais considerara o fato assim, mas era verdade.
Ao entrarem na sala de jantar, Harriet lançou-lhes um olhar petulante e lhes disse que estavam atrasados.
A mãe de Thomas já se achava sentada à mesa.
— Já era hora de vocês aparecerem — falou ela com sua voz forte e áspera. — Já sou uma mulher velha. Não posso ficar esperando tanto tempo para jantar.
— Por que você não comeu mais cedo? — indagou Thomas, pegando sua cadeira.
— Eu tenho comido sozinha há dois dias — queixou-se Patricia. — Preciso de um pouco de contato humano.
— Então eu não sou humana, não é? — disse Harriet, aborrecida. — Finalmente a verdade apareceu.
— Você sabe o que quero dizer, Harriet — retrucou Patricia com um aceno de mão.
Harriet revirou os olhos e começou a servir a comida.
— Thomas, quando é que você vai cortar seu cabelo? — disse Patricia.
— Assim que eu tiver um tempo extra — retrucou Thomas.
— E quantas vezes eu tenho de lhe dizer para pôr seu guardanapo no colo? — continuou Patricia.
Thomas tirou o guardanapo do porta-guardanapo de prata e jogou-o no colo.
A Sra. Kingsley pôs um bocadinho de comida na boca e começou a mastigar. Seus brilhantes olhos azuis, semelhantes aos de Thomas, percorreram a mesa, acompanhando os deslocamentos de Harriet, esperando pelo menor deslize. Patricia era uma senhora de cabelos brancos, de boa aparência, com uma vontade de ferro. Havia fumado Lucky Strikes durante anos e tinha profundas rugas que saíam de sua boca como os raios de uma roda. Vivia obviamente isolada e continuamente Cassi se punha a imaginar por que a mulher não se mudava para um lugar onde tivesse amigos e amigas de sua própria idade. Cassi sabia que aquele pensamento era motivado por seus próprios interesses. Depois de jantar por quase mais de três anos com Patricia, Cassi ansiava por um fim de dia mais romântico. Apesar de seus fortes sentimentos nesse sentido, Cassi nunca disse nada. A verdade da questão é que Cassi sempre se intimidara com esta mulher e receava magoá-la, para não incorrer na raiva de Thomas.
Ainda assim, Cassi se dava muito bem com a Sra. Kingsley, pelo menos do ponto de vista de Cassi, e ela sentia pena da mulher, que vivia em parte nenhuma, no meio do nada, por cima da garagem de seu filho.
Após Harriet ter servido, o jantar prosseguiu em silêncio, quebrado apenas pelo tilintar dos talheres batendo de encontro aos pratos e dos murmúrios de Harriet, que tentava irritar todo mundo. Só depois de quase terminado o jantar, foi que Thomas quebrou o silêncio:
— Minhas operações correram bem hoje.
— Não quero ouvir falar em mortes e doenças — disse a Sra. Kingsley. Depois, voltou-se para Cassandra e falou: — Thomas é como o pai dele, sempre querendo discutir seus negócios. Nunca soube falar sobre alguma coisa importante ou cultural. Às vezes eu penso que teria ficado melhor se nunca me tivesse casado.
— A senhora não deve dizer isso — falou Cassi. — De outro modo não teria tido um filho tão extraordinário.
— Ah! — explodiu Patricia subitamente. Sua risada alta ecoou pela sala, fazendo vibrar o candelabro Waterford. — A única coisa verdadeiramente extraordinária sobre Thomas é o quanto ele se parece com o pai, mesmo tendo nascido com um pé torto.
Cassi deixou cair o garfo. Thomas nunca havia mencionado isso. A imagem dele como um bebezinho com pé torto desencadeou uma onda de simpatia em Cassi, mas ficou claro pela expressão de Thomas que estava furioso com a revelação da mãe.
— Ele foi um bebê maravilhoso — continuou Patricia, indiferente à raiva mal reprimida de seu filho. — E uma criança linda, linda mesmo. Pelo menos até a puberdade.
— Mamãe — falou Thomas numa voz lenta, inexpressiva. — Acho que você já falou demais.
— Disparate, conforme costumavam dizer — retrucou Patricia. — É a sua vez de calar. Há dois dias que vivo sozinha aqui, a não ser pela presença de Harriet, e devo ter a minha vez de falar.
Com um olhar final de exaspero, Thomas inclinou-se sobre sua comida.
— Thomas — disse Patricia depois de um breve silêncio.
— Por favor, tire os cotovelos de cima da mesa.
Thomas empurrou sua cadeira para trás e levantou-se. Seu rosto estava rubro. Sem mais uma palavra, ele tirou seu guardanapo e saiu da sala. Cassi ouviu-o subir as escadas pisando duro nos degraus. Depois, a porta de seu estúdio bateu forte. O candelabro Waterford tornou a tilintar delicadamente.
Apanhada no meio, como de hábito, Cassi hesitou, sem saber qual a melhor coisa a fazer. Após um momento de indecisão, ela também se levantou, planejando seguir Thomas.
— Cassandra! — falou Patricia, autoritária. Depois, com uma voz mais suave disse: — Sente-se, por favor. Deixe a criança se manifestar. Coma. Sei que os diabéticos devem comer.
Confusa, Cassi sentou-se.
Thomas andava de um lado para o outro em seu escritório, resmungando em voz alta que não era justo ele ter de aguentar um abuso daqueles em sua casa depois de um dia frustrante no hospital. Zangado, ele imaginava por que Cassi havia permanecido com sua mãe em vez de se juntar a ele. Por um momento, pensou em retornar ao hospital, conjeturando sobre a filha do Sr. Campbell e o respeito que ela estaria querendo demonstrar a ele. Ele se lembrou do comentário dela em fazer o que pudesse por ele.
Mas a chuva fria batendo na janela fez a ideia de voltar para a cidade parecer muito laboriosa. Em vez disso, apanhou o jornal do topo de uma enorme pilha de papéis e se esparramou na poltrona borgonhesa de couro próxima à lareira.
Tentando ler, Thomas viu que sua mente vagueava. Ele imaginava por que sua mãe ainda podia, depois de todos esses anos, irritá-lo com tanta facilidade. Então, pensou em Cassi e na série de MSC que vinha ajudando Robert Seibert a desvendar. Ele não tinha qualquer dúvida de que o tipo de publicidade que tal estudo criaria seria extraordinariamente prejudicial para o hospital. Sabia também que Robert só queria ver seu nome impresso. Pouco se lhe dava a quem o caso ia magoar.
Thomas atirou para o lado o jornal sem ler e entrou no banheiro que ficava do lado de fora do escritório. Fitando o espelho, olhou atentamente para seus olhos. Ele sempre achara que parecia jovem para sua idade, mas agora não tinha tanta certeza. Sob seus olhos havia círculos escuros, e as pálpebras pareciam vermelhas e inchadas.
Voltando ao gabinete, sentou-se à escrivaninha e abriu a segunda gaveta à direita, retirando um recipiente plástico. Jogou uma pílula amarela dentro de sua boca e, após breve hesitação, mais outra. No bar, serviu-se de uma dose de uísque e sentou-se na poltrona de couro que tinha sido de seu pai. Já estava experimentando uma redução em sua tensão. Estendendo a mão para a mesa ao lado, tornou a apanhar o jornal e tentou ler.
Mas não conseguiu concentrar-se. Ainda sentia muita raiva. A mente retrocedeu à sua primeira semana como chefe-residente da cirurgia cardíaca, quando se defrontara com uma unidade de tratamento intensivo e dois assistentes mais antigos que estavam solicitando espaço. Sem leitos vazios disponíveis, todo o programa cirúrgico parou.
Thomas lembrava-se de como ele fora à unidade de tratamento intensivo e examinado cuidadosamente cada paciente a fim de ver se algum deles podia ser removido. No fim, ele escolheu dois gorks, pacientes em coma irreversível. Era verdade que eles necessitavam um cuidado especial de enfermagem de 24 horas consecutivas que só podia ser dado na UTI, mas também era verdade que estavam além de qualquer esperança de recuperação. No entanto, quando Thomas ordenou que fossem transferidos, seus médicos ficaram lívidos e a equipe de enfermagem recusou-se a cumprir a ordem, Thomas podia lembrar-se ainda da humilhação que experimentou quando prevaleceu a opinião das enfermeiras e os pacientes já cerebralmente mortos continuaram na UTI. O problema não só permanecera sem solução, como Thomas ganhara inimigos adicionais. Era como se ninguém compreendesse que a cirurgia, aquele processo que dava a vida, tanto quanto a caríssima unidade de tratamento intensivo, se destinava a pacientes que podiam se recuperar, não a mortos-vivos.
De volta ao bar, Thomas fortaleceu seu drinque. O gelo tinha se diluído e embotado o sabor da bebida. Olhando para trás, para a poltrona borgonhesa de couro, Thomas recordou seu pai, o homem de negócios, e imaginou o que o velho teria pensado dele se estivesse vivo. Thomas não fazia ideia do motivo por que, como Patricia, o pai jamais o apreciara ou apoiara, sempre preferindo criticar do que louvar. Teria ele apreciado Cassi? Thomas achava que seu pai provavelmente não teria ligado muito para uma garota com diabetes.
Cassi sentiu-se ansiosa depois que Thomas se levantou da mesa. Como ele já estava de mau humor antes de descer para jantar, ela receava que ele estivesse furioso lá em cima. Desesperadamente, ela procurou conversar, mas só conseguiu arrancar alguns "sins" e "nãos" de Patricia, que procedia como se estivesse satisfeita por ter provocado a retirada de Thomas.
— Thomas teve um pé torto? — perguntou Cassi por fim, esperando quebrar o silêncio.
— Horrível. Como o pai, que foi aleijado a vida toda.
— Eu não fazia ideia. Jamais havia imaginado isso.
— Claro que não. Em contraste com o pai, ele se tratou.
— Graças a Deus — disse Cassi honestamente. Ela tentou imaginar Thomas mancando de um pé. Era difícil para Cassi até mesmo pensar em Thomas quando bebezinho.
— À noite tínhamos que prender o garoto com faixas — disse Patricia — o que era extenuante, porque ele berrava como se estivesse sendo torturado. — Ela limpou os lábios com o guardanapo.
Cassi imaginou Thomas criança, envolto em suas faixas constritoras. Não havia dúvida que tinha sido um tipo de tortura.
— Bem — começou Patricia, levantando-se abruptamente. — Por que você não sobe para vê-lo? É evidente que ele precisa de alguém. Apesar de seus modos agressivos, ele não é um rapaz tão forte. Eu iria, mas é óbvio que ele preferiria você. Os homens são todos iguais. Você lhes dá tudo e eles a abandonam. Boa noite, Cassandra.
Aturdida pela rude saída de Patricia, Cassi sentou-se por um momento. Ela ouvia Patricia falando com Harriet e em seguida a porta da frente bateu. A casa ficou calma, exceto pelo rangido da porta nos portais, oscilando para a frente e para trás com as lufadas de vento.
Ela levantou-se e começou a subir as escadas, sorrindo de repente ao pensar que ela e Thomas haviam partilhado de um ponto em comum enquanto cresciam; ambos tinham sofrido de doenças na infância. Ao bater na porta do estúdio, Cassi imaginava qual devia ser o estado de espírito de Thomas. Depois do modo pelo qual ele procedera no carro, combinado com a implicância de Patricia, ela esperava o pior. Mas assim que entrou no quarto, sentiu-se imediatamente aliviada. Thomas estava sentado atravessado de lado, com as pernas jogadas por cima de um dos braços da poltrona, um drinque numa das mãos e a revista médica na outra. Tinha o aspecto relaxado e uma bela aparência. E, mais importante, estava sorrindo.
— Espero que você e mamãe tenham-se mantido cordiais — disse ele, arqueando as sobrancelhas como se houvesse uma chance de ter ocorrido o oposto. — Desculpe a minha súbita saída, mas a velha estava a ponto de me pôr maluco. Eu não queria fazer uma cena. — E Thomas piscou os olhos.
— Você é tão previsivelmente imprevisível — disse Cassi, sorrindo. — Sua mãe e eu tivemos uma conversa das mais interessantes. Thomas, eu nunca soube do seu pé torto. Por que não me contou?
Ela sentou-se no braço da poltrona, obrigando-se a girar para assumir uma posição normal. Ele não respondeu, concentrando-se em seu drinque.
— Não é importante — disse Cassi — mas sou uma perita em doenças infantis. Acho reconfortante partilharmos essa experiência. Penso que nos dá um grau especial de compreensão.
— Não posso me lembrar de nada sobre um pé torto — disse Thomas. — Tanto quanto sei, nunca tive um. Toda essa história não passa de uma elaborada ilusão de minha mãe. Ela quer que se fique impressionado com o sofrimento que experimentou para me educar. Olhe para meus pés: eles parecem deformados?
Thomas descalçou os sapatos e ergueu os pés.
Baixando o olhar, Cassi teve de admitir que ambos pareciam inteiramente normais. Ela sabia que Thomas não tinha problemas para andar e que fora uma espécie de atleta no colégio. Mas ainda não tinha a certeza de quem falava a verdade.
— Parece inacreditável que sua mãe possa fazer uma coisa dessas. — Seu tom era mais o de uma pergunta do que o de uma afirmação, porém Thomas o tomou como este último.
Atirando a revista médica no chão, ele pulou sobre seus pés, quase jogando Cassi ao chão.
— Escute, a mim pouco se me dá em quem você acredita — disse. — Meus pés são ótimos, sempre o foram, e não quero ouvir mais nada sobre pés tortos.
— Muito bem, muito bem — disse Cassi, acalmando a situação. — Com um olhar profissional, ela observou o marido, notando que seu equilíbrio era ligeiramente instável quando se excedia em simples movimentos que requeriam sutis reajustamentos. E isso não era tudo. Sua pronúncia era quase imperceptivelmente indistinta também. Cassandra notara semelhantes episódios nos meses anteriores, porém os ignorara. Ele tinha todo o direito de beber de vez em quando e ela sabia que ele gostava de scotch. O que a surpreendeu foi o escasso tempo decorrido desde que ele se levantara da mesa de jantar. Thomas devia ter ingerido alguns drinques, um após outro.
Mais do que tudo, Cassi queria que Thomas relaxasse. Se uma discussão sobre um hipotético pé torto ia transtorná-lo, ela estava definitivamente resolvida a abandonar o assunto para sempre, se necessário. Escorregando da cadeira, ela estendeu o braço e passou-o em torno do ombro dele.
Thomas afastou-a, desafiadoramente, tomando um outro gole de scotch. Ele parecia irritado e com vontade de brigar. De perto, Cassi notou que suas pupilas estavam contraídas, simples pontos negros dentro de suas íris azuis brilhantes. Reprimindo a irritação por ter sido rejeitada, Cassi disse:
— Thomas, você deve estar exausto. Você precisa de uma boa noite de sono.
Ela tornou a estender o braço para ele e, desta vez, Thomas permitiu que ela o passasse em torno de seu pescoço.
— Vamos para a cama — falou ela suavemente.
Thomas suspirou, porém nada disse. Ele baixou o copo meio cheio e deixou que Cassi o levasse de volta pelo corredor, para o seu quarto de dormir. Ele começou a desabotoar a camisa, mas Cassi empurrou suas mãos e o fez para ele. Lentamente, ela o despiu, amontoando as roupas descuidadamente pelo chão. Assim que ele se meteu debaixo das cobertas, ela rapidamente se despiu e escorregou para junto dele. Era uma sensação deliciosa sentir a frescura dos lençóis recém-lavados, o peso confortador dos cobertores e o calor do corpo de Thomas. Lá fora, o vento de novembro uivava e sacudia os pingentes japoneses no balcão.
Cassi começou por esfregar o pescoço e os ombros dele. Depois, aos poucos, foi descendo pelo corpo. Por baixo de seus dedos ela podia senti-lo relaxar e responder às suas carícias. Ele excitou-se e envolveu-a num abraço. Ela beijou-o delicadamente e enfiou a mão entre suas pernas. Seu membro estava flácido.
No momento em que Thomas sentiu a mão de Cassi tocá-lo, ele sentou-se e empurrou-a para longe.
— Não acho justo você esperar que eu seja capaz de satisfazê-la esta noite.
— Eu estava interessada em seu prazer — disse Cassi suavemente — não no meu.
— Aposto que sim — disse Thomas perversamente. — Não tente nenhum de seus sujos truques psiquiátricos em mim.
— Thomas, não importa se vamos fazer amor ou não.
Atirando as pernas pelo lado da cama, Thomas apanhou as roupas espalhadas pelo chão com gestos bruscos, descoordenados.
— Acho difícil acreditar nisso.
Thomas foi para o corredor, batendo a porta com tal força atrás de si, que as janelas protetoras do mau tempo tremeram em suas molduras.
Cassi viu-se engolfada por uma isolada escuridão. O vento uivante, que momentos antes havia aumentado o seu senso de segurança, fazia agora o oposto. Ela foi assaltada pelo antigo medo de se ver abandonada. Apesar do calor dos cobertores, Cassi tremia. E se Thomas a deixasse? Desesperadamente, ela tentava afastar aquele pensamento, porque não podia suportar a possibilidade. Talvez ele estivesse bêbado. Ela se lembrava da falta de equilíbrio e da fala arrastada. Durante o breve tempo em que permanecera com Patricia, não parecia possível que Thomas houvesse bebido tanto para causar tal efeito, mas, ao pensar nisso, teve de admitir a ocorrência de vários desses episódios nos últimos três ou quatro meses.
Virando-se de costas, Cassi olhou atentamente para o teto, onde uma lâmpada do lado de fora, brilhando através de uma árvore sem folhas, criava uma figura como a de uma gigantesca teia de aranha. Assustada pela imagem, voltou-se de lado apenas para deparar com a mesma sombra aterradora na parede oposta. Estaria Thomas tomando alguma espécie de droga? Havendo admitido a possibilidade, reconheceu que há meses ela vinha negando os sinais. Era mais do que evidente que Thomas não se sentia feliz com ela, que a vida dos dois se alterara drasticamente e que ele havia mudado.
No banheiro fora do estúdio, Thomas olhava atentamente para seu corpo nu refletido no espelho. Embora odiasse ter que admiti-lo, ele parecia mais velho. E mais preocupante do que aquilo era o seu pênis enrugado. Ao seu próprio toque ele se mostrava quase entorpecido e a falta de sensação enchia-o de um medo agoniante. O que havia de errado com sua sexualidade? Quando Cassi o estivera massageando sentira que precisava daquilo para um relax sexual. Mas era evidente que seu pênis tinha outras ideias.
Devia ser culpa de Cassi, raciocinou ele, meio entusiasmado, enquanto voltava para o escritório e se metia em suas roupas. Pegando seu drinque, sentou-se junto à sua escrivaninha e abriu a segunda gaveta à direita. Lá no fundo, escondido por seu bloco de receitas, havia inúmeros vidros de plástico. Se ele ia dormir, precisava de mais uma pílula. Apenas uma! Habilmente, jogou uma das pequenas pílulas amarelas na boca e depois fê-la descer garganta abaixo com um gole de scotch. Era impressionante a rapidez com a qual ele sentia o efeito calmante.
NA MANHÃ SEGUINTE, Cassi injetou-se sua insulina e tomou o café sem qualquer sinal de Thomas. Por volta das oito horas, já estava preocupada. Em geral, o programa deles aos sábados era sair às 8h15, de modo que Thomas pudesse ver seus pacientes antes das Grandes Assembleias e Cassi pudesse se ocupar com seu próprio trabalho.
Baixando o artigo que vinha lendo em sua escrivaninha e apertando o cinto de seu robe, Cassi caminhou do quarto de vestir pelo corredor e ficou ouvindo na porta de Thomas. Não havia qualquer som. Ela bateu de leve e aguardou. Nada. Ela tentou a porta. Não estava trancada. Thomas dormia profundamente, com o despertador em sua mão. Era evidente que ele o havia desligado e voltara a dormir direto.
Cassi dirigiu-se até ele e sacudiu-o delicadamente. Não houve qualquer resposta. Ela sacudiu-o com mais força e suas pálpebras pesadas abriram-se, mas ele dava a impressão de que não a reconhecia.
— Lamento acordá-lo, mas já passa das oito. Você quer comparecer às Grandes Assembleias, não quer?
— Assembleias? — respondeu Thomas, confuso. Então, ele pareceu compreender. — Claro que quero ir. Em poucos minutos descerei para tomar um cafezinho. No máximo partiremos em vinte minutos.
— Eu hoje não vou ao hospital — disse Cassi, tão alegremente quanto pôde. — Não sou esperada hoje na psiquiatria e tenho uma porção de coisas para ler. Trouxe para casa uma bolsa cheia de impressos.
— Faça como quiser — disse Thomas, erguendo-se e sentando-se. — Estou de plantão esta noite, de modo que não tenho certeza de quando estarei em casa. Mais tarde eu lhe aviso.
Cassi desceu até a cozinha e preparou alguma coisa para Thomas comer no carro. Thomas sentou-se na beira da cama enquanto o quarto rodopiava à sua volta. Ele esperou até sua vista clarear, sentindo cada pulsação bater como uma martelada dentro de sua cabeça. Cambaleando, ele foi até a escrivaninha, onde apanhou um de seus recipientes plásticos. Depois, dirigiu-se para o banheiro.
Evitando olhar sua imagem no espelho, Thomas tentou tirar um dos pequenos tabletes triangulares e alaranjados do vidro. Não foi tarefa fácil e só depois de deixar cair vários foi que conseguiu colocar um na boca e engoli-lo. Somente então arriscou-se a contemplar seu rosto. Não parecia tão ruim quanto ele temia, nem tão ruim quanto ele sentia. Com um pouco mais de agilidade, ele tomou outro tablete, entrou no chuveiro e abriu a torneira no máximo.
Cassi, de pé junto à janela da sala de estar, ficou observando Thomas desaparecer na garagem. Mesmo através da vidraça, pôde ouvir o trovejar do motor do Porsche ao ser ligado. E ficou a imaginar o ruído que ele provocaria no apartamento de Patricia. O pensamento fê-la sentir que Thomas jamais visitara Patricia; nem uma vez durante os três anos em que Cassi vinha morando ali.
Ela ficou observando até o Porsche acelerar e sair pela passagem de carros e desaparecer no nevoeiro úmido da manhã que pendia sobre o pântano salgado. Mesmo depois de o carro haver sumido de vista, seu ruído de baixa frequência podia ser ouvido à medida que Thomas mudava as marchas. Finalmente, o ruído desapareceu e a calma da casa vazia envolveu Cassi.
Olhando para as palmas das mãos, Cassi notou que elas estavam úmidas. Sua primeira impressão foi a de que ela estava experimentando uma leve reação à insulina. E não viu que se tratava de nervosismo. Ela ia violar o estúdio de Thomas. Ela sempre achara que a confiança e a privacidade eram partes necessárias de um íntimo relacionamento, porém precisava simplesmente saber se Thomas estava tomando tranquilizantes ou quaisquer outras drogas. Há meses que ela vinha fechando seus olhos, na esperança de que o casamento melhorasse. Agora sabia que não podia continuar a esperar passivamente por mais tempo.
Ao abrir a porta do estúdio de Thomas, sentiu-se como uma ladra arrombadora: uma arrombadora vulgar. Cada pequeno ruído na casa provocava-lhe um sobressalto.
— Meu Deus! — exclamou em voz alta. — Você está sendo uma idiota!
Sua própria voz teve um efeito calmante. Como mulher de Thomas tinha o direito de entrar em cada quarto da casa. No entanto, em muitos sentidos, ela se sentia como uma visitante.
O estúdio achava-se numa desordem parcial. O sofá-cama continuava aberto. As cobertas estavam empilhadas num monte no chão. Cassi olhou para a escrivaninha, mas então viu a porta do banheiro aberta. Ela abriu o armário dos remédios. Dentro estavam o aparelho de barbear, o bando desordenado de medicamentos comuns, várias escovas de dentes velhas, e alguns antibióticos à base de tetraciclina com a data de validade já vencida. Ela remexeu nos pacotes e vidros. Não havia nada, por mais remoto que fosse, de suspeito.
Quando já ia saindo, seu olho colheu um lampejo colorido sobre o assoalho de ladrilhos brancos. Curvando-se, ela apanhou um pequeno tablete alaranjado marcado com SKF-E-19. Parecia-lhe familiar, porém ela não o identificou bem. De volta ao estúdio de Thomas, revolveu a estante de livros em busca de um índice terapêutico. Não encontrando um, ela retornou ao quarto de vestir e apanhou o seu próprio. Rapidamente foi à seção de identificação dos produtos. Era Dexedrina!
Segurando o tablete na mão, Cassi ficou mirando o mar. Acerca de um quarto de milha um veleiro isolado movia-se vagarosamente por entre as ondas. Observá-lo por um momento ajudou-a a organizar seus pensamentos. Ela experimentava uma estranha mistura de alívio e crescente ansiedade. A ansiedade provinha da confirmação de seu medo de que Thomas pudesse estar tomando drogas. O alívio nascia da natureza do tablete que ela havia encontrado — Dexedrina. Cassi podia facilmente imaginar um realizador como Thomas tomando ocasionalmente um "excitante" para suster seu desempenho quase sobrehumano. Cassi sabia a quantidade de operações que Thomas realizava. Ela podia compreender como ele era capaz de ser apanhado na armadilha de tomar um tablete para aguçar sua atenção quando se achava exausto. Para Cassi isso parecia estar em concordância com a personalidade dele. Contudo, por mais que procurasse se acalmar, ela ainda estava receosa.
Conhecia os perigos de se abusar da Dexedrina e imaginava o quanto devia recriminar Thomas pela necessidade da droga, e há quanto tempo ele a vinha tomando.
Ela depôs o inocente tablete sobre a escrivaninha e recolocou o índice terapêutico na estante. Por um instante, lamentou ter entrado no estúdio de Thomas e encontrado o tablete. Teria sido mais fácil ignorar a situação. Afinal de contas, era mais provavelmente um problema temporário e se dissesse alguma coisa a Thomas ele só poderia ficar zangado.
— Você tem que fazer alguma coisa — disse Cassi, procurando achar uma solução. Por mais ridículo que parecesse, a única pessoa que exercia uma espécie de autoridade sobre a vida de Thomas era Patricia. Embora Cassi relutasse discutir o assunto com alguém, pelo menos podia esperar que Patricia, no fundo, zelasse pelos melhores interesses de Thomas. Resumindo e pesando as vantagens e desvantagens, ela resolveu discutir a situação com a sogra. Se Thomas viesse abusando da Dexedrina há muito tempo alguém devia intervir.
Cassi decidiu que a primeira coisa que tinha a fazer era tornar-se apresentável. Tirando o robe e a camisola de dormir, ela se meteu no chuveiro.
Thomas gostava de apresentar os casos durante as Grandes Assembleias. Todos os departamentos de medicina clínica e de cirurgia, inclusive os residentes e os estudantes de medicina, assistiam. Naquele dia, o Anfiteatro Mac Pherson estava tão repleto que as pessoas eram obrigadas a se sentar nos degraus que levavam à plateia central. Thomas sempre reunia uma multidão mesmo quando, como hoje, dividia o programa com George.
Quando Thomas terminou sua preleção, cujo título tinha sido "Sequencia a Longo Prazo dos Pacientes que se Submetem a uma Ponte de Safena Coronária", todo o anfiteatro irrompeu em entusiásticos aplausos. O grande volume do trabalho de Thomas bastava para impressionar qualquer pessoa e, considerando-se os bons resultados, as estatísticas pareciam sobre-humanas.
Quando ele franqueou a palavra para perguntas, alguém berrou lá da última fila que gostaria de saber qual o tipo de dieta que ele fazia e que lhe dava tanta energia. A audiência riu com vontade, impaciente por um bocado de humor.
Quando as risadas cederam, Thomas concluiu dizendo:
— Creio, segundo as estatísticas que apresentei, não poder haver mais nenhuma dúvida quanto à eficácia da ponte de safena coronária.
E apanhou seus papéis, pegando uma cadeira junto à mesa atrás do pódio, junto ao Dr. George Sherman.
O título da apresentação de George era: "Um Interessante Caso Para Estudo".
Thomas grunhiu interiormente e olhou ansioso para a saída. Ele sofria de terrível dor de cabeça, que vinha se tornando cada vez mais intensa após sua chegada ao hospital. Que tópico ridículo, pensou Thomas. Ele olhava com crescente irritação na medida em que George se dirigia para o pódio e soprava no microfone para se certificar de que estava ligado.
Como se aquilo não fosse bastante, ele bateu-lhe com seu anel. Satisfeito, começou a falar.
O caso era o de um homem de 28 anos de idade, chamado Jeoffry Washington, que havia contraído febre reumática aguda aos 10 anos. Na época, tinha sido uma criança doente e se internara por um período muito longo. Quando a doença havia percorrido todo o seu curso, a criança ficara com um alto murmúrio cardíaco holossistólico, indicando que sua válvula mitral fora gravemente afetada. Com o passar dos anos, o problema piorou gradativamente, a ponto de ter sido necessária uma operação para substituir a válvula danificada.
Naquele ponto, Jeoffry Washington foi trazido numa maca de rodas e apresentado à plateia. Ele tinha uma aparência negra, com feições angulosas e precisas, olhos brilhantes e pele cor de carvalho. Mantinha a cabeça para trás e olhava atentamente para a multidão de rostos que o fitavam.
Quando Jeoffry foi retirado, por acaso seus olhos se cruzaram com os de Thomas. Jeoffry acenou com a cabeça e sorriu. Thomas retribuiu o gesto. Ele não podia deixar de lamentar o pobre jovem. Por mais trágica que fosse sua história, era também bastante comum. Thomas havia operado centenas de pacientes com histórias semelhantes.
Depois que Jeoffry foi embora, George retornou ao pódio.
— O Sr. Washington foi programado para se submeter a uma substituição da válvula mitral, mas durante a operação descobriu-se um fato interessante. O Sr. Washington teve um episódio de pneumonia pneumocística carini há um ano.
Um excitado murmúrio percorreu a plateia.
— Suponho — disse George por sobre o balbuciar das vozes — que não é necessário lembrar-lhes que essa doença sugeria a AIDS, ou Síndrome de Insuficiência Imunológica Adquirida, e que foi, com efeito, achada neste paciente. Acontece que as preferências sexuais de Jeoffry Washington o colocaram naquele grupo de homossexuais masculinos cujo estilo de vida aparentemente o levou à imunossupressão.
Thomas agora sabia o que George quisera dizer no vestiário cirúrgico na tarde anterior. Ele fechou os olhos e tentou controlar sua ira crescente. Evidentemente, Jeoffry Washington era um exemplo típico de casos que estavam ocupando as vagas do Centro Cirúrgico e os leitos de cirurgia cardíaca além dos pacientes de Thomas. Thomas não estava sozinho em suas reservas quanto a operar Jeoffry. Um dos clínicos levantou a mão e George o reconheceu.
— Eu questionaria seriamente a racionalidade de uma cirurgia cardíaca eletiva à luz do paciente sofrer de AIDS — falou o clínico.
Eis uma boa pergunta — disse George. — Posso dizer que o quadro imunológico do Sr. Washington não é muito anormal no presente. Sua operação está programada para a semana que vem, mas estaremos acompanhando suas populações de células auxiliadoras T e de células T-citotóxicas, para o caso de qualquer declínio súbito. Na opinião do Dr. Sorenson, do departamento de imunologia, a AIDS não é absolutamente uma contraindicação para a cirurgia neste momento.
Várias mãos se ergueram na plateia e George começou a ouvir os apartes. A discussão animada estendeu a conferência para além de seu tempo normal e mesmo depois que ela terminou oficialmente, as pessoas se uniam em grupos, continuando a falar sobre o assunto.
Thomas tentou sair imediatamente, porém Ballantine havia se levantado e bloqueou seu caminho.
— Boa conferência — disse ele, sorrindo radiante.
Thomas acenou afirmativamente com a cabeça. Tudo o que queria era ir embora. Sua cabeça parecia estar presa num torno.
George Sherman aproximou-se por trás de Thomas e bateu-lhe nas costas.
Você e eu realmente entretivemos a rapaziada esta manhã. Devíamos ter cobrado a entrada.
Thomas lentamente voltou-se para o rosto presumido e sorridente de George.
— Para falar a verdade, acho que a conferência foi uma maldita farsa.
Houve um silêncio desconfortável quando os dois homens se encararam no meio da multidão.
— Tudo bem — disse George, por fim. — Suponho que você está se atribuindo sua opinião.
— Diga-me. Aquele pobre tipo, Jeoffry Washington, que você fez desfilar por aqui como uma monstruosidade, está ocupando um leito cirúrgico cardíaco?
— Claro — retrucou George, com um crescendo em sua irritação. — Onde você acha que ele devia estar, na lanchonete?
— Ei, vocês dois aí — interrompeu Ballantine.
— Vou-lhe dizer onde ele devia estar — falou bruscamente Thomas, enquanto espetava o dedo indicador no peito de George. — Ele devia estar no andar da clínica geral para o caso de se precisar fazer alguma coisa quanto ao seu problema imunológico. Tendo já sofrido uma pneumonia pneumocística carini, há uma boa chance de que ele morra antes de entrar num estado cardíaco que ameace sua vida.
George afastou a mão de Thomas para o lado.
— Conforme eu disse, você se habilita à sua opinião. Acontece que eu acho que o Sr. Jeoffry Washington é um bom caso para ensino.
— Bom caso para ensino — zombou Thomas. — O homem está clinicamente doente. Ele não devia estar ocupando um dos poucos leitos cirúrgicos para cardiopatias. Este leito é necessário para outros. Você não é capaz de compreender isso? É devido a este tipo de absurdo que preciso manter meus pacientes esperando, pacientes sem qualquer problema clínico, pacientes que estariam prestando uma real contribuição para a sociedade.
George tornou a afastar a mão de Thomas.
— Não me toque assim — falou com aspereza.
— Cavalheiros — disse Ballantine interpondo-se entre os dois.
— Não tenho certeza se Thomas sabe o que significa esta palavra — disse George.
— Escute aqui, seu cabeça de merda — rosnou Thomas, passando o braço em volta de Ballantine e segurando a camisa de George. — Você está zombando de nosso programa com os casos que vem apresentando só para manter cheio o chamado programa de ensino.
— É melhor você largar minha camisa — advertiu George, ruborizado.
— Chega — gritou Ballantine, puxando a mão de Thomas.
— Nosso trabalho é salvar vidas — falou George entre dentes — não fazer julgamentos sobre quem vale mais. Isso quem decide é Deus.
— Isso mesmo — acrescentou Thomas. — Você é tão idiota que nem percebe que é você quem está fazendo julgamentos sobre quem deve viver. O problema é que seu julgamento fede. Toda vez que você me nega um espaço no Centro Cirúrgico outro paciente potencialmente saudável está condenado à morte.
Thomas girou sobre seus calcanhares e saiu da sala pisando forte.
George tomou uma inspiração profunda e ajustou a camisa em desalinho.
— Meu Deus! Como Kingsley é pretensioso.
— Ele é arrogante — concordou Ballantine. — Mas é um tremendo cirurgião. Você está bem?
— Estou ótimo — retrucou George. — Devo admitir que estive prestes a esmurrá-lo. Sabe, acho que ele vai ser um problema. Espero que ele não suspeite de nada.
— Neste sentido a arrogância dele vai ajudar bastante.
— Temos tido sorte. A propósito, você já notou o tremor de Thomas?
— Não — disse Ballantine com surpresa. — Que tremor?
— Vai e vem — disse George. — Notei há cerca de um mês, principalmente porque ele sempre foi tão firme. Notei hoje, quando ele fazia sua apresentação.
— Muita gente fica nervosa diante de multidões.
— Sim — disse George — mas aconteceu o mesmo quando eu estava falando com ele sobre a morte de Wilkinson.
— Eu preferia não falar sobre Wilkinson — disse Ballantine, relanceando o olhar pelo anfiteatro que se esvaziava lentamente. Sorriu para um conhecido. — Provavelmente Thomas está apenas tenso.
— Talvez — disse George, sem muita convicção. — Ainda acho que ele vai causar problemas.
Cassi vestiu-se para sua visita a Patricia como se fosse o primeiro encontro delas. Com muito cuidado, ela escolheu uma saia de lã azul escura, combinando com uma jaqueta para pôr sobre uma de suas blusas brancas de gola alta. Quando estava para sair, notou o terrível estado de suas unhas e, agradecendo a Deus, adiou a visita enquanto removia seu verniz antigo e aplicava nova camada. Quando esta ficou seca, ela achou que seu cabelo não estava bem e desmanchou-o para tornar a ajeitá-lo.
Por fim, havendo esgotado todas as razões para mais demora, ela atravessou o pátio entre a casa e a garagem. Do lado de fora o frio estava de gelar. Ao tocar a campainha de Patricia, pôde ver o seu hálito se condensando no ar frio. Não houve resposta. Pondo-se na ponta dos pés, olhou por uma pequena janela na porta, porém tudo o que pôde ver foi um lanço de escadas. Cassi tornou a tocar a campainha e, desta vez, viu a sogra descendo lentamente as escadas para espiar através da vidraça.
— Que é que há, Cassandra? — falou ela.
Não era de admirar que Patricia não abrisse a porta. Cassi ficou em silêncio por um minuto. Diante das circunstâncias, ela não se sentia com vontade de gritar a razão de sua visita. Afinal, falou:
— Quero falar-lhe sobre Thomas.
Mesmo com aquela explicação, decorreu um longo tempo para Cassi imaginar se Patricia a ouvira. Escutou então o estalido de vários trincos sendo puxados e a porta se abriu. Por um momento, as duas mulheres se encararam.
— Sim? — disse por fim Patricia.
— Desculpe aborrecê-la — começou Cassi, deixando a frase no ar.
— Você não está me aborrecendo — replicou Patricia.
— Posso entrar? — perguntou Cassi.
— Suponho que sim — disse Patricia, começando a subir as escadas. — Não se esqueça de fechar a porta.
Cassi ficou satisfeita de fechar a porta na manhã úmida e fria. Então subiu atrás de Patricia e achou-se num pequeno apartamento suntuosamente mobiliado com veludo vermelho e rendas brancas ao estilo vitoriano.
— Este quarto é lindo — disse Cassi.
— Obrigada — disse Patricia. — A cor favorita de Thomas é o vermelho.
— Oh? — murmurou Cassi, que sempre pensara que Thomas se inclinasse pelo azul.
— Passo um bocado de tempo aqui — comentou Patricia. — Eu o queria confortável e cálido.
— E é — admitiu Cassi, vendo pela primeira vez um cavalo de balanço, um carro de garoto e outros brinquedos.
Patricia, como se seguindo o olhar de Cassi, ia explicando:
— Aqueles são alguns dos antigos brinquedos de Thomas. São bastante decorativos, não acha?
— Acho — retrucou Cassi. Ela pensava que os brinquedos tinham uma certa atração, mas pareciam deslocados naquele ambiente luxuoso.
— Aceita um pouco de chá?
Subitamente, Cassi percebeu que Patricia se sentia tão constrangida quanto ela mesma.
— Um chá seria ótimo — disse Cassi, sentindo-se mais à vontade.
A cozinha de Patricia era utilitária, com armários de metal, uma velha geladeira e um pequeno fogão a gás. Patricia colocou a chaleira sobre ele e buscou duas xícaras de porcelana. Do alto da geladeira tirou uma bandeja de madeira.
— Leite ou limão? — perguntou Patricia.
— Leite.
Observando a sogra procurar um pote de nata, Cassi percebeu como eram raros os visitantes da velha. Com uma pontada de culpa, Cassi pôs-se a pensar por que elas não se haviam tornado melhores amigas. Tentou abordar o problema de Thomas, porém o abismo que sempre existia entre elas silenciou-a. Só depois que se sentaram na sala de estar, com as xícaras cheias, foi que Cassi encontrou coragem para começar.
— O motivo de eu ter vindo aqui esta manhã foi falar-lhe sobre Thomas.
— Isso é o que você diz — replicou Patricia agradavelmente. A velha havia exultado consideravelmente e parecia estar apreciando a visita.
Cassi suspirou e dispôs sua xícara de chá sobre a mesinha de café.
— Estou preocupada com Thomas. Acho que ele está se esforçando demais e...
— Ele é assim desde que começou a andar — interrompeu Patricia. — Aquele menino sempre foi hiperativo desde o dia em que nasceu. E lhe digo que era uma tarefa de 24 horas mantê-lo na linha. Mesmo antes de saber andar ele já era dono de si mesmo e tive tempo demais para poder discipliná-lo. De fato, desde o dia em que o trouxe do hospital para casa...
Ouvindo as histórias de Patricia, Cassi percebeu exatamente o quanto Thomas ainda era o centro do mundo da velha senhora. Finalmente, fazia sentido a ela por que Patricia insistia em morar onde morava, mesmo que fosse tão isolado. Observando sua sogra parar a fim de tomar um gole do seu chá, Cassi notou como Thomas se parecia tanto com Patricia. Seu rosto era mais fino e mais delicado, mas tinha a mesma aristocrática angulosidade.
Cassi sorriu e, quando Patricia baixou a xícara, disse:
— Parece que Thomas não mudou muito.
— Na minha opinião ele não mudou nada — disse Patricia, acrescentando com um sorriso: — Ele tem sido o mesmo garoto a vida toda. Thomas necessita de muita atenção.
— O que eu estava esperando — falou Cassi — é que a senhora podia ajudar Thomas agora.
— Oh?
Cassi pôde ver que a nova intimidade entre as duas revertia rapidamente para a antiga suspeita. Mas prosseguiu.
— Thomas escuta a senhora e...
— Claro que ele me escuta. Sou mãe dele. Cassandra, aonde você quer chegar exatamente?
— Tenho razões para suspeitar que Thomas pode estar tomando drogas. — Foi um alívio, finalmente, soltar aquela afirmação. — Há meses que eu suspeitava, mas esperava que o problema desaparecesse por si.
Os olhos azuis de Patricia tornaram-se frios.
— Thomas jamais tomou drogas — disse ela.
— Patricia, por favor, compreenda-me, não estou apenas criticando. Estou preocupada e acho que seria capaz de me ajudar. Ele faz o que a senhora lhe diz que faça.
— Se Thomas precisar de minha ajuda, então virá pedi-la a mim. Afinal de contas, ele preferiu você a mim.
Patricia levantou-se. No que lhe dizia respeito, o pequeno confronto estava terminado.
Era isso. Patricia ainda tinha ciúmes de que seu garotinho houvesse crescido o bastante para tomar uma esposa.
— Thomas não me preferiu, Patricia — disse Cassi calmamente. — Ele estava procurando um relacionamento diferente.
— Se é um relacionamento diferente, onde estão os filhos?
Cassi pôde sentir que suas forças se esgotavam. A questão dos filhos era um ponto sensível e emocional para ela, já que o diabetes juvenil não aconselhava o risco de uma gravidez. Ela baixou os olhos para sua xícara de chá, percebendo que jamais deveria ter tentado falar com a sogra.
— Não haverá filhos — disse Patricia, respondendo à sua própria pergunta. — E sei por que não. Devido à sua doença. Você sabe que é uma tragédia para Thomas não ter filhos. E ele tem me dito que, ultimamente, você tem dormido longe dele.
Cassi ergueu a cabeça, chocada com o fato de Thomas haver revelado seus assuntos íntimos.
— Sei que eu e Thomas temos nossos problemas — disse ela. — Mas a questão não é essa. Receio que ele esteja tomando uma droga chamada Dexedrina e que, provavelmente, já a vem tomando há algum tempo. Embora faça isso para poder trabalhar mais, pode ser perigoso tanto para ele quanto para os seus pacientes.
— Você está acusando meu filho de ser um viciado? — explodiu Patricia.
— Não — disse Cassi, incapaz de outra explicação.
— Bem, espero que não. Há muita gente que toma uma pílula de vez em quando. No que toca a Thomas é compreensível. Afinal de contas, ele tem sido afastado de sua própria cama. Acho que o principal problema é o relacionamento de vocês.
Cassi não teve forças para retrucar. Ficou sentada, pensando se Patricia estava certa.
— Além do mais, acho que você devia ir embora — disse Patricia, estendendo a mão e apanhando a xícara de Cassi no outro lado da mesa.
Sem mais uma palavra, Cassi levantou-se, desceu as escadas e foi embora.
Patricia juntou as xícaras de chá e levou-as para a cozinha. Ela havia tentado dizer a Thomas que seria um erro casar-se com aquela moça. Se ele a tivesse ouvido...
De volta à sala de estar, Patricia sentou-se ao telefone e ligou para Thomas. Deixou um recado para ele telefonar para sua mãe o mais cedo possível.
Os pacientes de Thomas achavam-se inconvenientemente dispersos por todos os três andares da cirurgia. Depois das Grandes Assembleias ele havia tomado o elevador até o 18º andar para descer em seguida. Normalmente, nos sábados, ele gostava de passar as visitas aos doentes antes da palestra e antes das horas de visitas de parentes e amigos. Mas hoje ele havia chegado tarde ao hospital e, em consequência, perdido um bocado de tempo confortando famílias nervosas. Elas o seguiam para fora dos quartos e ficavam a lhe fazer perguntas até que, em desespero, ele as despachava para examinar seu próximo paciente, apenas para ser atrasado pelos parentes desta nova pessoa.
Era um alívio chegar à UTI, onde raramente era permitida a entrada de visitantes. Ao empurrar e atravessar a porta, ele pôs-se a pensar no lamentável episódio com George Sherman. Como era de se esperar e compreender pelo tipo de suas reações, Thomas estava surpreso e decepcionado consigo mesmo.
Na UTI, Thomas examinou os três pacientes que havia operado no dia anterior. Todos estavam ótimos. Não estavam mais intubados e tinham tomado algum alimento pela boca. Os eletrocardiogramas, pressões arteriais e todos os outros sinais vitais mostravam-se estáveis e normais. O Sr. Campbell tivera breves episódios de arritmia cardíaca, mas isso havia sido controlado quando um especialista residente descobriu uma pequena dilatação gástrica. Thomas anotou o nome do rapaz. Queria cumprimentá-lo da próxima vez que se oferecesse uma oportunidade.
Thomas encaminhou-se para a cama do Sr. Campbell. O homem sorriu fracamente. Depois começou a falar.
Thomas curvou-se.
— Que foi que disse, Sr. Campbell?
— Quero urinar — falou baixinho o Sr. Campbell.
— O senhor está com uma sonda na bexiga — disse Thomas.
— Ainda assim, tenho de urinar.
Thomas desistiu, deixando que a equipe de enfermagem discutisse com o Sr. Campbell.
Ao virar-se para sair, ele relanceou o olhar para o triste caso do leito contíguo ao do Sr. Campbell. Era um dos desastres de Ballantine. O paciente sofrera uma embolia aérea cerebral durante a operação e agora nada mais era do que um vegetal vivo, totalmente dependente da máquina de respirar, mas, com a qualidade dos cuidados de enfermagem do Memorial, podia-se esperar que vivesse indefinidamente.
Thomas sentiu um braço sobre o ombro. Virou-se e ficou surpreso ao ver George Sherman.
— Thomas — começou George. — Acho saudável que tenhamos desentendimentos, quando nada porque pode nos forçar a examinarmos nossas próprias posições. Mas me assusta pensar que possa degenerar em animosidade.
— Fiquei constrangido com meu comportamento — disse Thomas. Foi o máximo que ele pôde dizer à guisa de uma desculpa.
— Eu também fiquei um bocado zangado — admitiu George. Ele desviou o olhar do rosto de Thomas, notando em qual dos leitos este parava. — Pobre Sr. Harwick. Falando sobre escassez de leitos, eis aqui um outro que poderíamos usar.
Thomas sorriu, apesar de si mesmo.
— O problema é — acrescentou George — que o Sr. Harwick vai ficar aqui por muito tempo, a menos que...
— A menos quê? — perguntou Thomas.
— A menos que nós viremos a mesa, conforme eles dizem. — E George sorriu.
Thomas tentou sair, mas George delicadamente o deteve.
Thomas imaginava por que o homem se sentia obrigado a tocá-lo a todo momento.
— Diga-me — perguntou George. — Você teria a coragem de virar a mesa?
— Não sem primeiro falar com Rodney Stoddard — disse Thomas sarcasticamente. — E você, George? Você parece querer fazer o máximo possível para arranjar mais leitos.
George riu e tirou o braço.
— Todos nós temos nossos segredos, não é? Jamais esperei que você dissesse que falaria com Rodney. Eis uma boa coisa.
George deu mais um de seus tapinhas em Thomas e afastou-se, acenando adeus para as enfermeiras da UTI.
Thomas observou-o e então relanceou o olhar para trás, para o paciente, pensando nos comentários de George. De quando em vez um paciente cerebralmente morto era desligado de seu sistema de apoio vital, mas nem os médicos ou as enfermeiras admitiam ou apreciavam o fato.
— Dr. Kingsley? — Thomas voltou-se para encarar um dos serventes da UTI. — Telefone do seu departamento.
Lançando ao paciente de Ballantine um último olhar, Thomas caminhou até a mesa central imaginando como podia ele ir até Ballantine para discutir seus casos difíceis. Thomas confiava em que essas tragédias "inevitáveis" não ocorreriam se fosse ele quem fizesse a operação.
Thomas atendeu com indisfarçável irritação. Invariavelmente, quando o telefone o procurava, isso significava más notícias. Desta vez, todavia, a telefonista disse apenas que ele devia telefonar para sua mãe assim que pudesse.
Perplexo, Thomas fez a chamada. Sua mãe jamais telefonava para ele durante o dia, a menos que se tratasse de algo importante.
— Desculpe se o incomodo, querido — disse Patricia.
— Que é que há? — perguntou Thomas.
— É sobre sua mulher.
Seguiu-se uma pausa. Thomas podia sentir que sua paciência estava se extinguindo.
— Mamãe, acontece que estou muito ocupado.
— Sua mulher me fez uma visita esta manhã.
Por uma fração de momento, Thomas pensou que ela houvesse mencionado sua impotência. Depois, achou que aquilo era um absurdo. Mas a afirmação seguinte de sua mãe foi ainda mais alarmante.
— Ela deu a entender que você é uma espécie de viciado. Dexedrina, acho que foi o que ela disse.
Thomas estava tão zangado que mal podia falar.
— Que... que mais ela disse? — gaguejou ele por fim.
— Acho que isso já é bastante, não é? Ela disse que você estava abusando de drogas. Bem que lhe avisei sobre esta moça, mas você não quis me ouvir. Oh, não. Você sabia melhor...
— Tenho que falar com você esta noite — disse Thomas, desligando o telefone com o dedo indicador.
Ainda segurando o receptor, Thomas lutava para controlar sua raiva. Claro que ele tomava um comprimido de vez em quando. Todo mundo o fazia. Como ousava Cassi traí-lo, fazendo uma tempestade do fato para sua mãe? Abusando de drogas! Meu Deus, um comprimido ocasional não significava que ele fosse um viciado.
Impulsivamente, discou para a casa de Doris. Ela atendeu à terceira chamada, ofegante.
— Que tal uma pequena companhia? — perguntou Thomas.
— Quando? — perguntou Doris, entusiasmada.
— Em poucos minutos. Estou no hospital.
— Eu adoraria — disse Doris. — Fiquei satisfeita que você tenha me encontrado. Eu estava prestes a subir.
Thomas desligou. Ele sentiu uma pontada de dor. E se a mesma coisa que acontecera com Cassi na noite passada acontecesse com Doris? Sabendo que era melhor não pensar no caso, Thomas apressou o resto de suas visitações aos pacientes.
Doris morava a apenas alguns quarteirões de distância do hospital, em Bay State Road. Enquanto Thomas se encaminhava para o apartamento dela, não parava de pensar no que Cassi tinha feito. Por que ela o provocaria daquele modo? Nada fazia sentido. Pensaria ela realmente que ele não se recuperaria? Talvez ela estivesse tentando se aproximar dele de um modo ilógico. Thomas suspirou. O casamento com Cassi não tinha sido o sonho que imaginara. Achara que ela ia ser um sucesso. Tanta gente tinha atraído por Cassi que ele ficara convicto de que se tratava de algo especial. Mesmo George tinha ficado louco por ela, querendo desposá-la depois de alguns encontros.
A voz de Doris mesclou-se com a estática do intercomunicador, cumprimentando-o quando ele apertou o botão da campainha. Ele começou a subir as escadas e ouviu-a abrir a porta.
— Que bela surpresa — falou ela quando ele girou pelo primeiro patamar. Ela estava vestida sumariamente, num traje esporte de corrida e uma camiseta sem mangas que mal cobria seu umbigo. Seu cabelo estava solto e parecia incrivelmente espesso e brilhante.
Enquanto ela o fazia entrar e fechava a porta, Thomas passou os olhos pelo apartamento. Há meses que ele não ia ali, mas as mudanças não tinham sido grandes. A sala de estar era pequenina, com um simples divã que dava para uma pequena lareira. No extremo da sala havia uma sacada que olhava para a rua. Na mesa de café havia uma garrafa e dois copos. Doris encaminhou-se para junto de Thomas, inclinou- se sobre ele e perguntou:
— Quer deitar um pouco? — brincou ela, correndo suas mãos por suas costas. Os temores de Thomas sobre sua potência se desvaneceram rapidamente.
— Não é cedo demais para brincarmos um pouco, é? — perguntou Doris, apertando-se contra Thomas e sentindo sua excitação.
— Por Deus, não — disse Thomas, deitando-a sobre o divã e arrancando as roupas dela num êxtase de excitação e alivio ante sua própria reação. Ao penetrá-la, ele se confortou com o pensamento de que o problema que ele havia experimentado na noite anterior era de Cassi e não dele. Nunca lhe ocorreu que ele ainda tinha de tomar um Percodan naquele dia.
As enfermeiras da UTI sabiam que os problemas, em particular os problemas sérios, tinham um meio misterioso de divulgação. A noite tinha começado mal com a trigésima primeira parada cardíaca de uma menina de 11 anos de idade, que fora operada naquele dia de uma ruptura do baço. Felizmente, as coisas tinham corrido bem e o coração da menina recomeçara a bater quase que imediatamente. As enfermeiras tinham ficado espantadas com o número de médicos que havia respondido ao chamado. Houve um momento em que eles eram tantos, que haviam tropeçado uns nos outros.
— Por que será que há tantos atendentes na casa? — perguntou Andréa Bryant, a supervisora da noite. — É a primeira vez que vejo o Dr. Sherman aqui num sábado à noite, desde que ele é um residente.
— Deve haver uma porção de casos de emergência no Centro Cirúrgico — comentou a outra enfermeira diplomada, Trudy Bodanowitz.
— Isso não pode ser — disse Andréa. — Eu falei na noite passada com a supervisora lá e ela disse que só havia dois: um caso de emergência cardíaca e um de fratura do quadril.
— Não posso compreender isso — disse Trudy, olhando para o seu relógio. — Foi logo depois da meia-noite. Você quer assumir a primeira folga esta noite?
As moças estavam sentadas na mesa central, terminando a papelada referente à parada cardíaca. Nenhuma delas era designada para um paciente específico, mas dirigiam o posto central e desempenhavam as necessárias funções administrativas.
— Não tenho certeza de que alguma de nós vá ter uma folga — disse Andréa, olhando ao redor da grande mesa em forma de U. — Este lugar está uma desordem. Não há nada como ter uma parada cardíaca logo após uma mudança de turno para estragar a rotina.
O posto das enfermeiras na UTI rivalizava com o convés de voo de um Boeing 747, pelo complicado equipamento eletrônico. Diante das mulheres havia bancas de telas de TV que proporcionavam constantes leituras sobre o estado de todos os pacientes internados na unidade. A maior parte se constituía de aparelhos graduados dentro de certos limites, de modo que os alarmes disparariam se os valores ficassem muito além do normal. Enquanto as enfermeiras falavam, o traçado de um dos ECG estava mudando. À medida que passavam minutos cruciais, o traçado anteriormente regular começou a se mostrar cada vez mais excêntrico. Finalmente, o alarme disparou.
— Merda — disse Trudy, olhando para os bips da tela do osciloscópio. Ela levantou-se e bateu no aparelho com a mão, esperando que um desarranjo elétrico fosse a causa do alarme. Ela via o padrão anormal do ECG e passou para outra posição, ainda na esperança de que o problema fosse mecânico.
— Quem é? — perguntou Andréa, buscando uma evidência da frenética atitude por parte da equipe de enfermagem.
— Harwick — disse Trudy.
Rapidamente, o olhar de Andrea passou para a cama do desastre cirúrgico do Dr. Ballantine. Não havia nenhuma enfermeira assistindo-o, o que não era incomum. Nas últimas semanas, o Sr. Harwick vinha se comportando excepcionalmente bem e estável.
— Chame o residente cirúrgico — disse Trudy. Mesmo enquanto o observava, o ECG do Sr. Harwick estava se alterando para pior. — Vejam isso. Ele vai ter uma parada cardíaca.
Ela apontava para a tela onde o ECG do Sr. Harwick estava revelando alterações típicas antes que parasse ou degenerasse numa fibrilação ventricular.
— Devo fazer uma chamada pelo alto-falante? — perguntou Andrea.
As duas mulheres se entreolharam.
— O Dr. Ballantine disse que "nada de chamadas" — falou Trudy.
— Eu sei — retrucou Andrea.
— Isto sempre me dá uma sensação horrível — disse Trudy, tornando a olhar para o ECG. — Eu bem que gostaria que não nos colocassem nesta posição. Isso não é justo.
Enquanto Trudy observava, o ECG foi-se aplainando com um ou outro bip ocasional. O Sr. Harwick tinha morrido.
— Chame o residente — falou Trudy, zangada.
Ela contornou a extremidade da mesa da UTI e se aproximou do leito do Sr. Harwick. A bolsa do respirador ainda estava enchendo e esvaziando seus pulmões, dando-lhe a aparência de vida.
— Certamente você não vai ficar excitada caso se precise fazer uma cirurgia — disse Andrea, desligando o telefone.
— Fico a imaginar o que saiu errado. Ele estava tão estável — comentou Trudy.
Trudy desligou o respirador. O silvo cessou. O peito do Sr. Harwick desceu e ficou parado.
Andrea estendeu a mão e desligou a intravenosa.
— Provavelmente está bem assim. Agora a família pode se ajustar e continuar com suas vidas.
DUAS SEMANAS SE HAVIAM PASSADO desde que Thomas soube da visita de Cassi à sua mãe. Embora suas brigas fossem apenas passageiras, a tensão se tornara insuportável. Até Thomas havia notado sua crescente dependência ao Percodan, mas ele precisava tomar alguma coisa para aliviar sua ansiedade.
Enquanto ele corria pelo corredor, atrasado para a conferência mensal da morte, tomou seu pulso.
A reunião já havia começado e o chefe da residência cirúrgica apresentava o primeiro caso, a vítima de um traumatismo que havia expirado pouco depois de ter sido admitida na Emergência. O residente e o interno não haviam notado os sinais de advertência: o saco que envolve o coração tinha sido danificado e estava se enchendo de sangue. Já que nenhum dos assistentes estava envolvido, os médicos ficaram felizes em repreender a equipe da casa.
Se o caso pertencesse a um médico de equipe particular, a discussão teria prosseguido de modo muito diferente. As mesmas observações teriam sido feitas, mas o médico seria informado de que o diagnóstico do hemopericárdio era difícil e que ele fizera o melhor possível.
Thomas cedo previra no jogo que a conferência mensal sobre morte servia mais para aliviar a culpa do que para punir, a menos que o culpado fosse um residente. Os leigos poderiam pensar que a conferência servia como uma espécie de vigilante, mas, infelizmente, este não era o caso, conforme Thomas cinicamente observava. E o próximo caso provou seu ponto de vista.
O Dr. Ballantine estava subindo ao pódio para apresentar Herbert Harwick. Quando ele acabou, um obeso residente da patologia rapidamente expôs os resultados da autópsia, incluindo slides do cérebro do indivíduo, do qual pouco restava.
Discutiu-se então a morte do Sr. Harwick, mas sem qualquer menção de que seu traumatismo no Centro Cirúrgico fosse o possível resultado da inepta cirurgia do Dr. Ballantine. A sensação geral entre a plateia era "E aí vou eu, apenas pela graça de Deus", o que era verdade até certo ponto. O que pôs Thomas doente foi o fato de ninguém se lembrar de que, seis meses antes, Ballantine apresentara um caso semelhante. A embolia gasosa era uma complicação temida e que às vezes ocorria por mais que se fizesse, mas o fato de acontecer tão comumente a Ballantine e numa frequência crescente, era sempre ignorado.
Igualmente espantoso, no que concernia a Thomas, era que nada tivesse sido dito sobre a atual morte de Harwick na UTI. Tanto quanto Thomas sabia, o paciente ficara estável por extenso período de tempo antes da súbita parada cardíaca. Thomas olhava para os presentes e ficou intrigado com o fato de permanecerem em silêncio. Isso reafirmava que a burocracia e seu método de tratar os problemas não era, de modo algum, a maneira de dirigir uma organização.
— Se ninguém tem nada a dizer — falou Ballantine — acho que podemos passar para o próximo caso. Infelizmente, ainda estou no banco dos réus. — Ele esboçou um pequeno sorriso. — O nome do paciente é Bruce Wilkinson. Um homem branco, de 42 anos de idade, que sofreu um ataque cardíaco e mostrou comprometimento focal da circulação coronária, sugerindo que era um bom candidato para realização de um tríplice bypass.
Thomas empertigou-se em sua cadeira. Ele se lembrava bem claramente de Wilkinson, particularmente da noite em que tentara ressuscitá-lo. Ele ainda podia ver a cena surrealista com os olhos de sua mente.
Ballantine zumbia, apresentando o caso com excesso de detalhes. O queixo do cirurgião sentado ao lado de Thomas caiu pesadamente sobre seu peito e sua respiração regular e profunda podia ser ouvida até no pódio. Finalmente, Ballantine concluiu e disse:
— O Sr. Wilkinson portou-se extremamente bem até a quarta noite do pós-operatório. Nesta ocasião, ele morreu.
Ballantine ergueu os olhos de seus papéis. Seu rosto, em contraste com sua expressão quando discutiam o caso anterior, havia assumido uma expressão de desafio como a dizer: "Tratem de arranjar um erro aqui."
Um residente da patologia, franzino e bem-vestido, levantou-se da primeira fila e pôs-se atrás do pódio. Ele ajustou nervosamente o pequeno microfone e inclinou-se, pensando que tinha de falar diretamente nele. Daí resultou um irritante som eletrônico muito agudo e ele recuou, com uma desculpa.
Thomas reconheceu o homem. Era Robert Seibert, o amigo de Cassi.
Assim que Robert começou sua apresentação da patologia, desapareceu toda evidência de seu nervosismo. Ele era um bom orador, especialmente se comparado a Ballantine, e havia organizado seu material de modo que só os pontos significativos fossem mencionados. Exibiu uma série de slides e mostrou que, embora o paciente houvesse sido descrito como em estado profundamente cianótico no momento da morte, não havia obstrução das vias aéreas. Em seguida, apresentou uma microfotografia que revelava não haver problema alveolar nos pulmões. Outra série de slides revelava que não havia embolia pulmonar. Outra série de microfotografias foi apresentada, mostrando que não havia provas de aumento de pressão na aurícula esquerda ou na direita antes da morte. A série final de figuras indicava que os bypasses estavam habilidosamente suturados no local e que não havia sinal de enfarto do miocárdio ou de ataque cardíaco recentes.
As luzes se reacenderam.
— Tudo isso mostra... — disse Robert, fazendo uma pausa como se para provocar efeito — que não houve causa mortis neste caso.
O auditório reagiu com surpresa. Tal declaração era completamente inesperada. Houve mesmo alguns risos, bem como um comentário de um dos ortopedistas, que perguntou se este tinha sido um daqueles casos que haviam acordado no necrotério. Isso causou ainda mais risadas. Robert sorriu.
— Deve ter sido um derrame cerebral — disse alguém atrás de Thomas.
— Eis uma boa sugestão — falou Robert. — Um derrame que fechou a respiração, enquanto o coração bombeava o sangue não oxigenado. Isso provocaria uma profunda cianose. Mas significaria uma lesão originária do cérebro. Examinamos o cérebro milímetro por milímetro e nada encontramos.
O auditório agora estava em silêncio.
Robert aguardou por mais comentários, mas não houve nenhum. Então, se inclinou para a frente e falou no microfone:
— Peço permissão para apresentar um outro slide.
Inteligentemente, ele prendera a imaginação do auditório.
Thomas teve uma ideia do que estava por vir.
Robert apagou as luzes e em seguida ligou o projetor. O slide mostrava uma compilação de 17 casos, contendo dados comparados quanto à idade, sexo e pontos da história médica.
— Há algum tempo que venho me interessando por casos como o do Sr. Wilkinson — disse Robert. — Este slide é para mostrar que não se trata de um caso isolado. Eu mesmo encontrei quatro casos semelhantes nos últimos dezoito meses. Quando consultei os arquivos, encontrei mais treze. Se vocês repararem, todos eles sofreram uma cirurgia cardíaca. Em cada circunstância, não foi achada qualquer causa específica de morte. Rotulei esta síndrome de morte súbita cirúrgica, ou MSC.
As luzes tornaram a se acender.
O rosto de Ballantine tinha ficado de um vermelho brilhante.
— O que você pensa que está fazendo? — cuspiu ele para Robert.
Sob diferentes circunstâncias, Thomas podia ter sentido pena de Robert. Sua apresentação inesperada não se encaixava no estreito protocolo de uma conferência de morte.
Relanceando o olhar pelo salão, Thomas viu muitos rostos zangados. Era uma velha história. Os médicos não gostavam de ter sua habilidade questionada. E tinham relutância em policiá-la.
— Esta é uma conferência sobre morte, não um turno das Grandes Assembleias — estava Ballantine dizendo. — Não estamos aqui para fazer uma palestra.
— Eu achei que a discussão do caso do Sr. Wilkinson poderia ser esclarecedora...
— Você achou — repetiu o Dr. Ballantine sarcasticamente. — Bem, para seu conhecimento, você está aqui como um consultor. Você tinha alguma coisa específica para dizer quando apresentou esta lista de supostas mortes súbitas cirúrgicas?
— Não — admitiu Robert.
Embora Thomas preferisse ficar em silêncio nas reuniões, teve de fazer uma pergunta:
— Desculpe-me, Robert — disse ele. — Todos os dezessete casos apresentaram cianose profunda?
Robert não podia estar mais impaciente para receber uma pergunta do auditório.
— Não — falou ele ao microfone. — Apenas cinco dos casos.
— Isso significa que a causa fisiológica da morte não foi a mesma em todos esses casos.
— Isso é verdade — disse Robert. — Seis apresentaram convulsões antes de morrerem.
— Provavelmente isso foi embolia gasosa — falou outro cirurgião.
— Não creio — observou Robert. — Antes de mais nada, as convulsões ocorreram três ou mais dias após a cirurgia. Seria difícil explicar essa demora. E também, quando os cérebros foram autopsiados, não se encontrou ar.
— Poderia ter sido absorvido — comentou alguém.
— Se tivesse havido ar bastante para causar convulsões súbitas e morte — retrucou Robert — então haveria o suficiente para ser visto.
— E quanto aos cirurgiões? — falou o homem atrás de Thomas. — Eram a maioria?
— Oito dos casos pertenciam ao Dr. George Sherman — disse Robert.
Um murmúrio de conversas irrompeu do fundo do salão. George levantou-se furiosamente, enquanto Ballantine cutucava Robert no pódio.
— Se ninguém mais quer falar... — disse Ballantine.
George falou:
— Acho o comentário do Dr. Kingsley bem convincente. Mostrando que houve diferentes mecanismos de morte nesses casos, ele indicou que não havia razão para tentar relatá-los. — E George olhou para Thomas.
— Exatamente — disse Thomas. Ele teria preferido deixar George afundar ou nadar, conforme quisesse, mas sentiu-se obrigado a responder. — Ocorreu-me que Robert havia correlatado os casos devido a uma certa semelhança que ele viu em suas mortes, mas não parece ser este o caso.
— A base da correlação — continuou Robert — foi que as mortes, em particular as dos últimos anos, ocorreram quando os pacientes estavam aparentemente passando bem e por não ter havido uma causa anatômica ou fisiológica.
— Corrija — disse George. — Nenhuma causa foi encontrada pelo departamento de patologia.
— É a mesma coisa — falou Robert.
— Não bem a mesma — prosseguiu George. — Talvez um outro departamento de patologia houvesse achado as causas. Penso que é mais uma questão de reflexão sua e de seus colegas do que qualquer outra coisa. E insinuar que há algo de irregular numa série de tragédias operatórias nesta base é irresponsabilidade.
— Apoiado, apoiado! — gritou um ortopedista, que começou a aplaudir.
Robert rapidamente desceu do pódio. Havia um ar de tensão na sala.
— A próxima conferência sobre os casos de morte será daqui a um mês, em 7 de janeiro — disse Ballantine, desligando o microfone e recolhendo seus papéis. Ele deixou o palco e se dirigiu para Thomas.
— Você parecia conhecer aquele rapaz. Quem é ele, afinal?
— Seu nome é Robert Seibert — respondeu Thomas. — É um residente do segundo ano da patologia.
— Vou conservar os colhões daquele menino em formol. Quem aquele monte de merda pensa que é? Vir para cá e bancar a vespa socrática para cima de nós?
Por sobre o ombro de Ballantine, Thomas pôde ver George abrindo caminho na direção deles. Ele estava tão irritado quanto Ballantine.
— Tomei o nome dele — disse George ameaçadoramente, como se estivesse revelando um segredo.
— Nós já o conhecemos — falou Ballantine. — Ele está apenas no segundo ano.
— Maravilhoso — disse George. — Não só temos que nos haver com os filósofos, mas também com os residentes da patologia metidos a espertos.
— Soube que houve uma morte este mês numa das salas de cateterização da radiologia — comentou Thomas. — Por que o caso não foi apresentado?
— Oh, você está se referindo a Sam Stevens — falou George nervosamente, observando Robert sair da sala. — Como a morte ocorreu durante uma cateterização, os rapazes da clínica médica queriam apresentá-lo em sua conferência sobre morte.
Enquanto observava a ira dos doutores Ballantine e George, Thomas imaginava o que não diriam eles se soubessem que Cassi estava envolvida com o estudo das chamadas mortes súbitas cirúrgicas. Para felicidade de todos, ele esperava que não descobrissem. Ele esperava, também, que Cassi tivesse o bom senso de não continuar sua associação com Robert. Tudo isso só poderia causar problemas.
Num quarto de exame totalmente escuro, Cassi estava deixada de costas e não podia se sentir mais desconfortável. Ela não experimentava dores, mas algo bem próximo disso, obrigada que era a manter o olho parado enquanto o Dr. Martin Obermeyer, chefe da oftalmologia, lançava um fortíssimo jato de luz intensamente brilhante em seu olho esquerdo. Pior do que o desconforto era seu medo do que diria o médico. Cassi sabia que ela havia sido menos do que responsável sobre o problema de seu olho. Desesperadamente, ela aguardava que o Dr. Obermeyer fizesse alguma observação confortadora enquanto a examinava. Mas ele se conservava sinistramente calado.
Sem dar uma palavra, ele desviou o feixe luminoso para o seu olho bom. O feixe luminoso provinha de um aparelho que o médico usava em torno da cabeça, semelhante a uma lâmpada de mineiro, porém mais complicada. Embora a luz parecesse brilhar no seu olho esquerdo, quando desviada para o olho bom a intensidade era tão grande que ficava difícil Cassi acreditar que ela não causasse danos por si mesma.
— Por favor, Cassi — disse o Dr. Obermeyer, levantando o feixe luminoso e espiando para ela por baixo das oculares dos instrumentos. — Por favor, fique quieta com o olho. — E fez uma pressão para baixo com um pequeno estilete de metal.
Brotaram lágrimas devido à irritação e Cassi pôde senti-las correr pelo lado do rosto. Ela ficou imaginando por mais quanto tempo poderia aguentar. Involuntariamente, agarrou o lençol que cobria a mesa de exame. Justo no momento em que ela achou que não podia mais ficar quieta, a luz desapareceu, mas mesmo depois que o Dr. Obermeyer acendeu as luzes do teto, ela não conseguiu ver bem. Sentado à sua mesa para escrever, o médico era, para ela, um borrão.
Ela estava preocupada com o fato de ele se achar tão reticente. Era óbvio que ele estava aborrecido com ela.
— Posso sentar-me? — perguntou Cassi, hesitantemente.
— Não sei por que você pede minha opinião — disse o Dr. Obermeyer — quando não segue nenhuma de minhas outras sugestões.
O oftalmologista não se importou em se voltar para falar. Cassi sentou-se e ficou com as pernas balançando na beira da mesa. Seu olho direito estava começando a se corrigir do trauma causado pela luz brilhante, mas sua visão continuava embotada pelas gotas usadas para dilatar suas pupilas. Por um momento ela observou o Dr. Obermeyer de costas, digerindo seu comentário. Já esperava que ele estivesse aborrecido por ela ter cancelado sua última visita, mas não pensou que o caso fosse tão ruim assim.
Só depois de acabar de escrever e fechar sua pasta foi que se virou para Cassi. Ele estava sentado num banquinho baixo, com rodas, e deslizou até ela para encará-la.
A linha de visão de Cassi de seu poleiro sobre a mesa de exame era bem uns 30cm mais alta do que a do médico. Ela podia ver a brilhante área no alto da cabeça dele onde o cabelo estava rareando. Ele não era o homem mais bem-apessoado do mundo, com suas feições largas e pesadas e uma profunda ruga no meio da testa. No entanto, o conjunto não era de todo sem atrativos. Seu rosto denotava inteligência e sinceridade, duas qualidades que Cassi achava atraentes.
— Acho que devo ser franco — começou ele. — Seu olho esquerdo não mostra sinais de estar mais limpo. De fato, parece que há uma nova quantidade de sangue.
Cassi tentou dissimular sua ansiedade. Ela assentiu, como se estivesse ouvindo acerca de outro paciente.
— Ainda não posso visualizar a retina — disse o Dr. Obermeyer. Em consequência, não sei de onde está vindo o sangue, ou se é uma lesão tratável.
— Mas o teste de ultrassom... — começou Cassi a falar.
— Provou que a retina não está descolada, pelo menos ainda não, mas não pode revelar de onde está vindo o sangramento.
— Talvez, se esperássemos um pouco mais...
— Se não limpou até agora, é extremamente improvável que ocorra. Enquanto isso, perderíamos a única chance que temos de tratamento. Cassi, tenho que ver a parte posterior de seu olho. Devemos fazer uma vitrectomia.
Cassi olhou para longe.
— Isso não pode aguardar mais ou menos um mês?
— Não. Cassi, você já me fez adiar isso mais do que eu queria. Depois cancelou sua última visita. Não estou certo de que entenda o perigo aqui.
— Eu compreendo. Só que o momento não é bom.
— Nunca o momento é bom para uma cirurgia — disse o Dr. Obermeyer — exceto para o cirurgião. Deixe-me programar isso e tocar para a frente.
— Tenho que discutir o assunto com Thomas — disse Cassi.
— Como? — Interrogou surpreso o Dr. Obermeyer. — Você não falou a ele sobre isso?
— Oh, sim — retrucou Cassi rapidamente. — Apenas não quanto à data.
— Quando você pode discutir a data com Thomas? — perguntou o Dr. Obermeyer com resignação.
— Breve. De fato, esta noite. Voltarei a vê-lo amanhã, prometo.
Ela saltou da cama e pôs-se de pé. Ficou aliviada de fugir ao oftalmologista. Bem lá no fundo ela sabia que ele estava certo; ela devia se submeter à vitrectomia. Mas ia ser difícil dizer a Thomas. Cassi parou no fim do corredor do quinto andar do Edifício Profissional, o mesmo edifício onde Thomas tinha seu consultório, e ficou contemplando por uma janela o panorama da cidade no início de dezembro, com suas ruas ladeadas de árvores sem folhas e densamente repletas de prédios de tijolos.
Uma ambulância gritava pela Commonwealth Avenue, com as luzes piscando. Cassi fechou o olho direito e a cena se desvaneceu para ser substituída por uma simples luz. Em pânico, reabriu o olho para deixar retornar o mundo. Ela precisava fazer alguma coisa. Ela precisava falar com Thomas, apesar das dificuldades nascidas entre eles desde que visitara Patricia.
Cassi desejou que jamais tivesse havido o sábado de duas semanas atrás. Se ao menos Patricia não tivesse telefonado para Thomas... Mas claro que isso seria pedir demais. Esperando que Thomas chegasse em casa zangado, Cassi ficou chocada quando ele nem veio. Às 10h30, Cassi finalmente ligou para o centro telefônico. Só então soube que Thomas havia tido uma operação de urgência. Deixou-lhe um recado para ligar para casa e esperou até as duas horas, acabando por adormecer com o livro na mão e as luzes acesas. Por fim, Thomas chegou em casa na tarde de domingo e, em vez de gritar com ela, simplesmente recusou-se a falar. Com calma deliberada, ele passou suas roupas para o quarto de hóspedes próximo ao seu estúdio.
Para Cassi, o "tratamento pelo silêncio" constituía uma tensão insuportável. Por menor que fosse a conversa que entabulavam, tudo eram coisas sem importância. No jantar era pior e várias vezes, pretextando dor de cabeça, Cassi levava uma bandeja para o seu quarto.
Depois de uma semana, Thomas finalmente explodiu com raiva. O agente desencadeador tinha sido insignificante; Cassi havia deixado cair um copo Waterford no chão aladrilhado da cozinha. Foi quando Thomas avançou contra ela e começou a gritar, acusando-a de traí-lo pelas costas. Como ousara Cassi ir até sua mãe e acusá-lo de abusar do uso de drogas?
— Claro que tenho tomado um ou outro comprimido ocasionalmente — disse, baixando finalmente a voz. — Ou para me ajudar a dormir ou para me manter acordado à noite, se for preciso ficar em vigília. Duvido que você me dê o nome de um único médico que nunca tenha tomado alguma de suas próprias drogas! — E ele apontou para ela de dedo em riste, como que para reforçar seu argumento.
Tendo tomado ela mesma um Valium ocasionalmente, Cassi não teve como contradizê-lo. Além disso, a intuição lhe disse para ficar calada e deixar que Thomas desabafasse sua raiva.
Num tom mais controlado, ele perguntou-lhe por que, em nome de Deus, ela fora falar com Patricia. Cassi, mais do que ninguém, sabia o quanto a mãe dele o apoquentava sem que ninguém lhe desse um motivo tão potencialmente assustador para fazê-lo.
Sentindo que Thomas se havia acalmado, tentou explicar-se. Disse que, tendo encontrado a Dexedrina, assustara-se e, erradamente, achou que Patricia seria a melhor pessoa para ajudar, se Thomas tivesse um problema.
— E eu nunca disse que você era um viciado — completou.
— Minha mãe falou que você disse — retrucou Thomas asperamente. — Em quem devo acreditar? — E ergueu os braços enojado.
Cassi não respondeu, embora estivesse tentada a dizer que, se Thomas não sabia a resposta depois de viver 42 anos com Patricia, jamais iria saber. Em vez disso, Cassi desculpou-se por haver chegado a conclusões após haver encontrado a Dexedrina e, pior ainda, por ter ido procurar sua mãe. Lacrimosa, disse-lhe o quanto o amava, silenciosamente admitindo que se sentia mais aterrorizada pelo fato de Thomas deixá-la do que por seu possível abuso de drogas. Ela queria que o relacionamento deles retornasse ao normal. Se a tensão começara com suas queixas sobre o diabetes, decidira esconder quaisquer outros de seus problemas de Thomas. Mas agora seu olho estava forçando o debate do assunto. A chegada de uma outra ambulância com a sirene ligada trouxe Cassi de volta ao presente. Por mais que ela não quisesse perturbar Thomas, sabia que não tinha escolha. Não podia internar-se no hospital e submeter-se a uma operação sem avisá-lo, mesmo que ela, de algum modo, encontrasse coragem para fazê-lo. Com terrível pressentimento, Cassi apertou o botão do elevador. Ela veria Thomas agora. Conhecendo-se, ela temia que, caso esperasse até chegarem em casa naquela noite, não seria capaz de abordar o assunto.
Tentando não pensar mais no caso, a não ser que mudasse de ideia, Cassi desceu para o consultório de Thomas e abriu a porta. Felizmente não havia pacientes na sala de espera. Como de hábito, Doris ergueu os olhos de sua máquina de escrever e tornou a baixá-los, sem tomar conhecimento da presença de Cassi.
— Thomas está? — perguntou Cassi.
— Sim — retrucou Doris, sem interromper sua escrita. — Está com o último paciente.
Cassi sentou-se no divã cor-de-rosa. Estava incapaz de ler, devido ao efeito embotador das gotas em seu olho, que ainda não havia passado. Uma vez que Doris não a olhava, Cassi não se sentia desconfortável observando-a. Ela reparou que a enfermeira havia mudado o corte de cabelo. Cassi achou que Doris ficava melhor sem a severidade de seu coque usual.
Em breve, um paciente saiu do consultório. Todo animado, ele sorriu para Doris.
— Estou muitíssimo satisfeito — falou ele. — O doutor disse que estou muito melhor. Posso fazer o que quiser. — Vestindo seu casaco, ele se dirigiu a Cassi. — O Dr. Kingsley é o maior. Não se preocupe com seja lá o que for, minha jovem senhora.
Depois, tornando a se voltar para Doris, agradeceu-lhe, soprou-lhe um beijo e saiu.
Cassi suspirou ao se levantar. Ela sabia que Thomas era um grande médico. Quisera ela poder arrancar de seus doentes aquele tipo de comentário.
Thomas estava ditando quando Cassi entrou no consultório: "Novamente muito obrigado, vírgula, Michael, vírgula, por esse caso interessante, vírgula, e se eu puder ser de algum auxílio em seu tratamento, vírgula, não hesite em me chamar. Ponto. Sinceramente seu, fim do ditado."
Desligando o gravador, Thomas voltou-se em sua cadeira. Olhou Cassi com indiferença calculada.
— E a que devo o prazer desta visita? — perguntou.
— Acabo de vir do oftalmologista — respondeu Cassi, tentando controlar a voz.
— Ótimo — disse Thomas.
— Preciso falar com você.
— É melhor que seja breve — disse, consultando seu relógio. Tenho que ver um paciente que se acha em choque cardiogênico.
Cassi sentiu que lhe faltava coragem. Ela precisava de um sinal de que Thomas não ficaria irritado se, mais uma vez, trouxesse à baila sua doença. Mas a atitude de Thomas apenas sugeria uma indiferença agressiva. Era como se ele a estivesse desafiando a cruzar uma linha arbitrária.
— Bem? — indagou Thomas.
— Ele teve de dilatar minhas pupilas — disse Cassi, aproximando-se do assunto. — Há um certo dano. Fiquei pensando se não podíamos ir para casa um pouco mais cedo.
— Receio que não — disse Thomas, levantando-se. — Estou quase certo de que o paciente que vou ver vai precisar de uma cirurgia de urgência. — Ele tirou o jaleco branco e pendurou-o no cabide da porta que dava para a sala de exame. — De fato, talvez tenha até que passar a noite aqui no hospital.
Ele nada falou sobre o olho dela. Cassi sabia que teria de abordar ela mesma sua cirurgia, mas não pôde. Em vez disso, falou:
— Você ficou a noite passada no hospital, Thomas, está trabalhando demais. Você precisa de repouso.
— Um de nós tem de trabalhar — disse Thomas. — Nem todos nós podemos fazer psiquiatria. — Ele vestiu o casaco e afastou-se para trás, a fim de tirar a fita do gravador.
— Não sei se posso dirigir com a visão deste olho embotada — disse Cassi. Ela sabia que isso era melhor do que responder à pejorativa referência de Thomas à psiquiatria.
— Você tem duas opções — continuou Thomas. — Ficar andando por aí até terminar o efeito das gotas, ou passar a noite no hospital. Escolha a que for melhor para você. — E se encaminhou para a porta.
— Espere — falou Cassi, com a boca seca. — Preciso falar com você. Acha que eu devo fazer uma vitrectomia?
Tinha saído. Olhando para baixo, Cassi viu que ela estava apertando as mãos. Constrangida, afastou-as e depois ficou sem saber o que fazer com elas.
— Surpreende-me que você ainda se importe com a minha opinião — falou bruscamente Thomas. Seu leve sorriso tinha desaparecido. — Infelizmente, não sou oftalmologista. Não faço a menor ideia se você deve se submeter a uma vitrectomia. Foi por isso que a enviei a Obermeyer.
Cassi podia sentir a raiva dele crescendo. Era justamente o que ela temia. Falar sobre o estado de seu olho era apenas tornar as coisas piores.
— Além disso — prosseguiu Thomas — não há outra hora melhor para falarmos disso? Estou com um paciente morrendo lá em cima. O problema do seu olho já vem há meses. Agora você aparece quando estou no meio de uma emergência e quer discuti-lo. Meu Deus, Cassi, pense nas outras pessoas de vez em quando, sim?
Arrogantemente, Thomas dirigiu-se para a porta, abriu-a com violência e saiu.
Em muitos sentidos Thomas tinha razão, pensou Cassi. Fora mais do que impróprio trazer o problema de seu olho no consultório de Thomas. Ela sabia que quando ele dizia que tinha um paciente "morrendo lá em cima", queria dizer isso mesmo.
Sua mandíbula se cerrou e Cassi saiu do consultório. Doris estava dando um show de datilografia, mas Cassi achava que ela estivera escutando. Descendo para os elevadores, Cassi decidiu voltar à Clarkson Dois. Faria com que ela não pensasse demais. Além disso, sabia que não poderia dirigir, pelo menos durante algum tempo.
Voltou para a enfermaria, onde a reunião da equipe da tarde ainda se achava em andamento.
Cassi havia arranjado para passar o resto do dia fora e não estava com vontade de se juntar ao grupo. Receava que, caso se encontrasse entre amigos, seu delicado controle se esfacelaria e ela explodiria em lágrimas.
Grata pela oportunidade de alcançar o consultório sem ser notada, esgueirou-se para dentro e rapidamente fechou a porta atrás de si. Contornando a escrivaninha de fórmica e metal que praticamente tomava toda a largura do cômodo, ela sentou-se na velha cadeira giratória da mesa. Cassi havia tentado alegrar o cubículo com várias reproduções impressas de pinturas impressionistas que comprara na cooperativa de Harvard. O esforço não dera muitos resultados. Com sua desagradável luz fluorescente no teto, o quarto ainda se parecia com uma cela para interrogatórios.
Repousando a cabeça entre as mãos, tentou pensar, mas tudo em que pôde se concentrar foi em seus problemas com Thomas. Ela quase sentiu alívio quando bateram forte na porta. E, antes que pudesse responder, William Bentworth entrou.
— Importa-se se eu me sentar, Dra. Cassidy? — perguntou Bentworth, com uma polidez incomum.
— Não — retrucou Cassi, surpresa ao ver o coronel entrar em seu consultório por vontade própria. Ele estava cuidadosamente vestido em slacks acastanhados e uma camisa recém-passada a ferro. Seus sapatos se mostravam muito bem polidos.
Ele sorriu.
— Importa-se se eu fumar?
— Não — disse Cassi. — Ela se importava, mas isso era um daqueles sacrifícios que achava que tinha de fazer. Algumas pessoas precisavam de todo o auxílio que pudessem obter a fim de se abrirem e falarem. No momento, o processo de acender um cigarro era um amparo importante. Bentworth inclinou-se para trás e sorriu. Pela primeira vez, seus brilhantes olhos azuis pareciam cordiais e amigáveis. Ele era um belo homem, com ombros largos, um espesso cabelo negro e feições angulosas e aristocráticas.
— A senhora está bem, doutora? — perguntou Bentworth, inclinando-se para diante de novo a fim de examinar o rosto de Cassi.
— Perfeitamente bem. Por que pergunta?
— A senhora parece um pouco distraída.
Cassi olhou para a gravura de Monet da menina e sua mãe no campo de papoulas. Ela tentava reunir seus pensamentos. Assustou-a um pouco o fato de um paciente ser tão perceptivo.
— Talvez se sinta culpada — prosseguiu Bentworth, em consideração, soprando a fumaça para longe de Cassi.
— E por que deveria eu me sentir culpada?
— Porque acho que a senhora vem deliberadamente me evitando.
Cassi lembrou-se do comentário de Jacob, sobre o fato das personalidades fronteiriças serem inconsistentes, e comparou o atual procedimento de Bentworth com sua recusa anterior em falar com ela.
— Sei por que a senhora está me evitando — continuou Bentworth. — Acho que eu a assusto. E lamento se este for o caso. Tendo passado tanto tempo no exército e me acostumado a dar ordens, suponho que às vezes possa ser arrogante e autoritário.
Pela primeira vez na curta carreira de Cassi como psiquiatra, algo que havia lido nos livros estava acontecendo espontaneamente entre ela e um de seus pacientes. Ela sabia, sem sombra de dúvida, que Bentworth estava procurando manipulá-la.
— Sr. Bentworth... — começou Cassi.
— Coronel Bentworth — corrigiu William com um sorriso. — Se eu a chamo de doutora, é apenas razoável que a senhora me chame de coronel. É um sinal de mútuo respeito.
— Muito justo — disse Cassi. — O fato é que o senhor tem procedido de uma maneira que torna impossível termos uma sessão juntos. Se o senhor se lembra, em inúmeras ocasiões tenho tentado programar um encontro, mas o senhor sempre declara ter um compromisso. Ora, deduzi que o senhor se dava melhor com uma sessão em grupo do que numa conversa particular, por isso não insisti ou forcei a situação. Se o senhor gosta de um encontro, vamos marcá-lo.
— Eu adoraria falar com a senhora. Que tal agora mesmo? Eu tenho tempo. E a senhora?
Cassi não estava querendo deixar-se enredar por Bentworth, achando que no fim isso teria um efeito negativo em seu relacionamento. Ela não estava preparada agora e Bentworth a assustava, apesar de seu charme recém-descoberto.
— Que tal amanhã de manhã? — disse Cassi. — Logo após a reunião da equipe?
O Coronel Bentworth levantou-se e amassou o cigarro no cinzeiro sobre a mesa de Cassi.
— Muito bem. Aguardarei com prazer. E espero que, seja o que for que a esteja perturbando, tudo se resolva pelo melhor.
Depois que ele se foi, Cassi respirou o ar enfumaçado, enquanto sua mente visualizava o Coronel Bentworth metido num uniforme. Ela podia imaginá-lo galante e elegante, impetuoso, seus problemas mentais parecendo fictícios. Conhecendo a profundidade de seu distúrbio, ela achou que o fato poderia ser facilmente uma perturbação camuflada.
Antes mesmo que pudesse ditar notas, sua porta tornou a abrir-se e Maureen Kavenaugh entrou e sentou-se. Maureen tinha sido internada um mês antes, devido a uma grande crise de depressão. Ela tivera uma séria recaída quando seu marido viera e a esbofeteara. Vê-la fora de seu quarto foi uma surpresa tão grande quanto ter William Bentworth fazendo-lhe voluntariamente uma visita. Cassi ficou a imaginar se alguma droga milagrosa não estaria sendo acrescentada secretamente à comida dos pacientes.
— Vi o coronel entrar em seu consultório — disse Maureen. — Pensei que disse que não estaria aqui esta tarde. — Sua voz era enfadonha e sem qualquer emoção.
— Eu não pretendia — retrucou Cassi.
— Bem, já que está aqui, posso falar-lhe por um momento? — perguntou Maureen timidamente.
— Naturalmente.
E ela viu Maureen avançar pela sala, fechar a porta e sentar-se.
— Ontem, quando falávamos... — Maureen hesitou e seus olhos se encheram de lágrimas.
Cassi empurrou a caixa de lenços para a mulher.
— Você... você me perguntou se eu gostaria de ver minha irmã. — A voz de Maureen era tão baixa que Cassi mal podia ouvi-la. Ela acenou com a cabeça rapidamente, imaginando o que Maureen estaria pensando. A mulher não havia demonstrado muito interesse em nada desde sua recaída, embora Cassi já houvesse começado a aplicar-lhe Elavil. Na reunião da equipe, várias pessoas haviam sugerido o choque elétrico, mas Cassi tinha sido contra, achando que o Elavil e sessões de apoio seriam adequados. O que admirava Cassi era a compreensão interior de Maureen quanto à dinâmica de seu estado. Mas, para Maureen, a compreensão de sua doença não lhe dava o poder de influenciá-la automaticamente.
Maureen reconhecia sua hostilidade para com a mãe, que havia abandonado tanto ela quanto sua linda irmã mais nova quando ainda eram pequenas, e uma reprimida inveja da irmã, que fugira para se casar, deixando-a viver por sua própria conta. Desesperada, ela acabara se casando com um homem inadequado.
— Você acha que minha irmã desejaria me ver? — perguntou finalmente Maureen, o rosto banhado em lágrimas.
— Acho que sim, mas não podemos saber, a menos que você lhe pergunte.
Maureen assoou o nariz. Seu cabelo estava grosso e emaranhado e precisando de uma boa lavagem. O rosto estava caído e, apesar da medicação, continuava a perder peso.
— Tenho medo de perguntar a ela — admitiu Maureen. — Não creio que ela venha. Por que viria? Eu não mereço isso. Não há esperança.
— Só o fato de pensar em falar com sua irmã é um sinal positivo — disse Cassi delicadamente.
Maureen soltou um longo suspiro.
— Não posso me decidir. Se eu pedir a ela e ela disser não, então tudo ficará pior. Eu queria que outra pessoa fizesse isso. Você seria capaz de telefonar para ela?
Cassi ficou ruborizada. Ficou pensando em sua indecisão em encarar Thomas. Os sentimentos de Maureen de dependência e impotência lhe pareciam muito familiares. Ela também queria que alguém mais tomasse suas decisões. Com muito esforço, Cassi tentou concentrar-se na mulher que estava sentada à sua frente.
— Não sei se me compete fazer contato com sua irmã — disse Cassi — mas é uma coisa que podemos discutir. Quanto a ver sua irmã, acho que é uma boa ideia. Por que não falamos mais sobre isso amanhã? Acho que você está marcada para uma sessão às duas horas.
Maureen concordou e, depois de usar mais outros lenços de papel, saiu, deixando a porta aberta.
Cassi permaneceu sentada ainda por algum tempo, olhando vagamente para a parede. Tinha a certeza de que o fato de se identificar com uma de suas pacientes era um sinal de sua inexperiência.
— Ei, como se explica que você não esteja na reunião da equipe? — disse Joan Widiker, passando pelo corredor e após lançar uma olhadela para Cassi.
Cassi retribuiu o olhar, mas não respondeu.
— Que é que está havendo? — perguntou Joan. — Você parece um pouco pior. — Ela entrou no consultório de Cassi e cheirou o ambiente. — E eu não sabia que você fumava.
— Eu não fumo. Quem fuma é o Coronel Bentworth.
— Ele veio vê-la? — E Joan alçou as sobrancelhas. — Você está se saindo melhor do que eu pensava. — Fez uma pausa e depois sentou-se.
— Eu achei que deveria ter dito a você que Jerry Donovan e eu saímos. Você falou com ele?
Cassi abanou a cabeça.
— A coisa não saiu muito bem. Tudo o que ele queria...
— Joan parou no meio da frase. — Cassi, o que há com você?
As lágrimas extravasaram dos olhos de Cassi e correram por suas faces.
Conforme ela temera, uma presença amiga destruiu seu autocontrole. Por fim, ela se abandonou e, enterrando o rosto nas mãos, chorou copiosamente.
— Jerry Donovan não foi tão ruim assim — disse Joan — esperando que um pouco de humor pudesse ajudar. — Além disso, eu não cedi. Ainda sou virgem.
O corpo de Cassi se sacudia com os soluços. Joan contornou a extremidade da mesa e passou o braço pelo ombro da amiga. Por alguns instantes, ela nada disse. Como psiquiatra residente, não tinha a habitual reação negativa às lágrimas como um leigo o faria. Pela força da emoção de Cassi, Joan calculou que ela precisava se desabafar.
— Desculpe-me — falou Cassi, estendendo a mão e apanhando um lenço de papel, tal como Maureen tinha feito. — Eu não queria fazer isso.
— Parece que estava precisando. Você quer conversar?
Cassi respirou fundo.
— Não sei. Tudo parece tão sem esperança. — Assim que falou essa palavra, Cassi lembrou-se de que Maureen dissera a mesma coisa.
— O que é tão sem esperança? — perguntou Joan.
— Tudo — disse Cassi.
— Dê-me um exemplo — prosseguiu Joan, desafiadora.
Cassi retirou as mãos de seu rosto molhado de lágrimas.
— Fui hoje ao oftalmologista. Ele quer me operar, mas não sei se devo.
— E seu marido, que é que diz? — indagou Joan.
— Isso é parte do problema. — Assim que falou, Cassi se arrependeu. Ela sabia que Joan, sendo ao mesmo tempo sensitiva e inteligente, reuniria peça por peça de todo o quadro. No fundo de sua mente, Cassi podia ouvir Thomas lhe dizendo para não discutir seus problemas médicos com ninguém.
Joan tirou sua mão de sobre o ombro de Cassi.
— Acho que você precisa de alguém com quem falar. Como consultora oficial do departamento, estou às ordens. Além disso, qualquer um pode pagar o meu preço.
Cassi tentou um fraco sorriso. Intuitivamente, sabia que podia confiar em Joan. Ela precisava da compreensão de alguém e, Deus sabe, não estava se saindo muito bem com a sua própria.
— Não sei se você faz ideia do programa de Thomas — começou Cassi. — Ele trabalha mais do que qualquer pessoa que eu conheça. Você diria que ele é um interno. Passou a noite de ontem no hospital. Esta noite vai ficar no hospital. Ele não tem muito tempo extra...
— Cassi — disse Joan polidamente. — Não gosto de interromper, mas por que não dispensar as desculpas? Você falou com seu marido sobre esta operação?
Cassi suspirou.
— Tentei fazê-lo há algumas horas, mas no lugar e na hora errados.
— Escute — disse Joan — raramente faço julgamentos, mas quando se trata de falar da operação de seu olho com seu marido, não há lugar ou hora errados.
Cassi assimilou este comentário. Não tinha certeza se concordava ou não.
— Que foi que ele disse? — perguntou Joan.
— Disse que não era um cirurgião de olhos.
— E ele quer delegar sua responsabilidade?
— Não — falou Cassi, com ênfase. — Thomas providenciou para que fosse ao melhor oftalmologista.
— Ainda me parece uma reação um tanto insensível.
Cassi baixou o olhar para suas mãos, achando que Joan era muito inteligente. Ela teve a distinta impressão de que Joan poderia levar esta conversa mais além do que Cassi gostaria.
— Cassi? Tudo vai bem entre você e Thomas?
Cassi pôde sentir seus olhos se enchendo de lágrimas novamente. Tentou detê-las, mas só parcialmente foi bem-sucedida.
— Esta é uma maneira de responder. Você quer falar sobre isso?
Cassi mordeu o lábio trêmulo.
— Se algo acontecer ao meu relacionamento com Thomas — continuou ela — não sei se eu poderia aguentar. Acho que minha vida se desfaria. Preciso desesperadamente dele.
— Posso sentir como você está. E acho também que você não quer mesmo falar sobre o problema. Certo?
Cassi acenou afirmativamente com a cabeça. Ela se sentia imprensada entre o medo de Thomas e sua culpa, rejeitando a oferta de amizade de Joan.
— Está bem — disse Joan — mas antes de eu ir embora acho que um conselho é útil. Talvez seja presunção de minha parte dizer isso, e certamente não profissional, mas tenho a impressão de que você devia tentar reduzir sua dependência de Thomas. Não acho que você se dê o crédito que merece. E esse tipo de dependência pode realmente magoar um relacionamento com o passar do tempo. Bem, é um conselho, embora não solicitado.
Joan abriu a porta do consultório de Cassi e parou.
— Você disse que Thomas ia passar a noite no hospital?
— Acho que ele tem uma cirurgia de urgência — respondeu Cassi, preocupada com o conceito de dependência. — Quando ele o faz, em geral dorme mais do que o rodízio de quarenta minutos.
— Ótimo! — exclamou Joan. — Por que você não vem para minha casa esta noite? Tenho um sofá-cama na sala de estar e uma geladeira bem sortida.
— E lá pela meia-noite você já sabe todos os meus segredos — disse Cassi, meio pilheriando.
— Prometo que não vou tentar — replicou Joan.
— De qualquer modo, não posso — falou Cassi. — Agradeço a oferta, porém há sempre a chance de Thomas não ter que fazer a operação e, neste caso, ele pode vir para casa. Diante das circunstâncias, quero estar lá. Talvez conversemos.
Joan sorriu com simpatia.
— Você é que sabe. Pode se arrepender. Bem, se mudar de ideia, telefone-me. Ainda vou ficar mais uma ou duas horas no hospital. — Ela tornou a abrir a porta e, desta vez, saiu mesmo.
Cassi fixou o Monet, tentando decidir se era seguro dirigir o carro. Foi reconfortante notar que a visão tinha melhorado bastante; as gotas estavam finalmente se dissipando.
Thomas achou que suas mãos tremiam quando abriu a porta de seu consultório e acendeu a luz. O relógio na mesa de Doris indicava que eram quase 6h30. Já estava escuro do lado de fora, tornando difícil lembrar que o dia ficava claro, nas noites de verão, até 9h30. Fechando a porta, ele estendeu o braço. Assustou-se ao ver que sua mão, normalmente firme, sacudia tão violentamente. Como podia Cassi viver a pressioná-lo quando ele já estava tão tenso?
Aproximando-se de sua mesa, ele abriu a segunda gaveta e tirou um de seus pequenos tubos de plástico. A combinação da tampa à prova de crianças e da sua agitação tornou impossível a abertura do pacote. Ele teve que se satisfazer com atirar a coisa no chão e esmagá-la com o calcanhar. Por fim, conseguiu retirar um dos comprimidos amarelos. Colocou-o na língua, apesar de gosto amargo, e entrou no pequeno lavatório que ainda recendia o perfume de Doris.
Desistindo de pegar uma xícara, Thomas curvou-se e bebeu diretamente da torneira. Voltando para o escritório, sentou-se à mesa. Sua ansiedade parecia estar aumentando. Tornando a abrir violentamente a segunda gaveta, ele a remexeu desajeitadamente à procura do mesmo tubo plástico.
Desta vez não teve sucesso com a tampa. Batendo com o tubo em cima da mesa, apenas conseguiu amassar sua superfície e machucar o dedo polegar.
Fechando os olhos, Thomas disse para si que tinha de se controlar. Quando os abriu, lembrou-se de que para abrir o tubo ele precisava alinhar as duas setas.
Mas não tomou outro comprimido. Em vez disso, sua mente conjurou a imagem de Laura Campbell. Não havia razão para ele estar sozinho. "Quem me dera eu pudesse fazer alguma coisa por você", dissera ela. "Qualquer coisa!" Thomas sabia que tinha o número do telefone dela na pasta do Sr. Campbell, ostensivamente para um caso de emergência. E não era uma emergência? Thomas sorriu. Além disso, havia muitos meios de disfarçar suas intenções se ele interpretasse mal os sinais dela.
Thomas encontrou a pasta do Sr. Campbell e rapidamente discou o número de Laura, esperando que estivesse em casa. Ela atendeu na segunda chamada.
— Quem fala aqui é o Dr. Kingsley. Desculpe por incomodá-la.
— Algo de errado? — perguntou Laura, preocupada.
— Não, não. — Assegurou-lhe Thomas. — Seu pai está ótimo. Lamento muito a sua icterícia. É uma dessas infelizes complicações. Eu quisera tê-la antecipado, mas logo ele ficará bom. De qualquer modo, a razão de minha chamada é que, sem dúvida, seu pai logo terá alta e pensei que talvez você gostasse de discutir o caso.
— Certamente — disse Laura. — É só me dizer quando.
Thomas destorceu o fio do telefone.
— Bem, é por isso que estou lhe telefonando. Tenho certeza de que você sabe como é o meu programa. Acontece, porém, que estou aguardando uma cirurgia e agora estou sozinho no meu consultório. Pensei que você talvez quisesse vir até aqui.
— Pode dar-me trinta minutos?
— Acho que sim — disse Thomas. Ele sabia que tinha tempo de sobra.
— Irei para aí — respondeu Laura.
— Outra coisa — acrescentou Thomas. — Para entrar no Edifício Profissional a esta hora você deve vir pelo hospital. As portas aqui se fecham às seis horas.
Thomas desligou. Ele se sentia muito melhor. A excitação tinha substituído a ansiedade. Abrindo a gaveta da mesa, jogou dentro dela o tubo dos comprimidos. Então, telefonou para o laboratório de cateterização cardíaca para examinar o choque cardiogênico em que se achava o paciente. Fosse qual fosse o resultado do processo usado, Thomas achava que ele teria bastante tempo. Conforme esperava, o paciente ainda estava aguardando a cateterização.
Thomas encontrou Laura na porta do escritório interno e fez sinal para que ela entrasse. Ficou satisfeito ao ver que estava usando novamente um fino vestido de seda bem justo. Era de um bege claro, quase da cor de sua pele. Thomas podia ver a linha de suas calcinhas.
Ficou calado por um instante, planejando sua abordagem, de modo que, se houvesse interpretado mal as intenções dela, não ocorresse qualquer constrangimento. Começou por assegurar-lhe outra vez que o pai dela teria alta em breve. Depois discutiu os cuidados a longo prazo e, a pretexto de discutir a limitação dos exercícios, Thomas trouxe à baila a questão do sexo.
— Seu pai me falou sobre isso antes da operação — disse ele, observando o rosto de Laura. — Sei que sua mãe faleceu há vários anos e se isso é um assunto desagradável para você...
— Em absoluto — retrucou Laura com um sorriso. — Eu sou adulta.
— Claro — disse Thomas, percorrendo com os olhos o vestido dela. — Isso é bem evidente.
Laura tornou a sorrir e amaciou o longo rabo-de-cavalo fora de seu ombro.
— Um homem como seu pai ainda tem necessidades sexuais — falou Thomas.
— Como médico, estou certa de que sabe disso melhor do que a maioria das pessoas — disse Laura. Ela descruzou as pernas e inclinou-se para a frente. Era claro que não estava usando sutiã por baixo do fino vestido de seda transparente.
Thomas levantou-se de sua cadeira e ficou diante da mesa. Tinha certeza de que Laura não viera para falar sobre seu pai.
— Entendo essas necessidades muito bem — disse ele — porque eu mesmo tenho uma mulher com uma doença crônica debilitante.
Laura sorriu.
— Conforme lhe disse, eu queria poder fazer alguma coisa por você. — Ela levantou-se e encostou-se em Thomas. — Você é capaz de pensar em alguma coisa?
Thomas conduziu-a para a sala de exames fracamente iluminada. Lentamente, ele ajudou-a a despir-se e depois tirou suas próprias roupas, dobrando-as cuidadosamente e depondo-as em cima de uma cadeira. Quando se voltou para encará-la, Thomas ficou contente ao ver que estava com uma ereção completa.
— Que é que você acha? — perguntou ele, com as palmas das mãos abertas para os lados.
— Eu adoro — retrucou Laura, estendendo as mãos impetuosamente para agarrá-lo.
Depois de haver dirigido o carro preocupada, Cassi ficou feliz por ter chegado em casa após uma viagem sem incidentes. A parte mais arriscada havia sido a caminhada da garagem para casa. Ela havia esquecido como anoitecia cedo agora em dezembro.
A própria casa estava sinistramente negra, principalmente as janelas, que brilhavam como pedaços de ônix polido. Lá dentro, Cassi encontrou um bilhete de Harriet, explicando como esquentar o jantar. Toda vez que sabia que Thomas não vinha para casa, Harriet saía cedo. Ao contrário de Harriet, Cassi preferiria não estar sozinha.
Ela andou pela casa, acendendo as luzes e esperando tornar o lugar um pouco mais animado. Achou a velha casa, com seus espaços cavernosos, particularmente fria, seu passos ecoando pelos vestíbulos vazios. Supostamente, a calefação devia estar ligada para mais ou menos 18 graus, porém Cassi podia ver seu hálito.
Em cima, o quarto de vestir estava consideravelmente mais quente, quase confortável. No banheiro principal havia um aquecedor suplementar, que ela ligou. Depois de medir o açúcar em seu sangue, Cassi tomou a dose habitual de insulina e, a seguir, um banho de chuveiro.
Ela procurava não pensar muito. Sua explosão emocional a deixara esgotada e não tinha resolvido nada. Ela sabia que Joan tinha razão quanto à sua dependência e isso fez Cassi se lembrar da identificação que fizera com Maureen Kavenaugh. Assim como sua paciente, Cassi sentia-se desesperançada, tímida e receosa. Imaginou se ela também carecia da capacidade de influenciar sua vida, mesmo compreendendo o problema. Então, num súbito lampejo de horror, Cassi tomou consciência da força de sua rejeição. Uma das razões pelas quais suspeitava que Thomas estivesse abusando de drogas eram as pupilas dele. Muitas vezes, ultimamente, elas tinham sido simples pontinhos, mas a Dexedrina dilatava as pupilas! Outras drogas reduziam-nas a pontos. Outras drogas em que Cassi nem queria pensar.
Cassi podia sentir o suor porejando nas palmas de suas mãos. Ela não sabia se isso se devia a um súbito terror ou à insulina. Rezando para que seus temores fossem infundados, forçou-se a descer para o estúdio de Thomas no hall.
Acendendo a luz, ela ficou ali em pé, seus olhos recordando todos os detalhes do aposento. A contragosto, recordou as consequências de sua visita anterior e lutou contra o impulso de fugir.
O armário dos remédios no banheiro estava exatamente conforme estivera duas semanas antes: uma bagunça. Nada continha de suspeito. Pondo-se de joelhos e apoiando-se nas mãos, Cassi procurou embaixo da pia. Nada. Então, dirigiu-se para o armário das toalhas. Novamente nada.
Experimentando um certo alívio, Cassi voltou para o próprio estúdio. Ao lado da mesa e da poltrona borgonhesa para ler, havia o sofá-cama, ladeado por duas mesinhas com abajures, uma almofada, toda uma parede de estantes de livros, um armário de bebidas, e uma cômoda antiga com pés em garra. O chão era coberto com um enorme tapete de Tabriz.
Cassi caminhou na direção da mesa. Era uma imponente peça de mobiliário, que ela sabia ter pertencido ao avô de Thomas. Ao alcançar e tocar sua superfície fria, teve a mesma sensação desagradável que experimentara, quando criança, de estar bisbilhotando o quarto de dormir de seus pais. Encolhendo os ombros, puxou a gaveta do centro. Um arquivo de plástico estava cheio até às bordas com elásticos, grampos para papel e outras quinquilharias. Cassi puxou a gaveta até seu limite e cuidadosamente levantou as camadas de papéis que iam até o fundo. Nada além do comum. Cassi estava prestes a fechá-la quando pensou ter ouvido uma porta bater. Espiando pela janela, pôde ver as luzes no apartamento de Patricia, em cima da garagem. Não ouvira o barulho do carro, mas isso não era muito de surpreender. Com as janelas para tempestade fechadas, os sons do exterior não penetravam na casa com muita facilidade. Ela pôde ver que a porta da garagem estava fechada. Teria sido ela quem a fechara? Cassi não podia se lembrar. Um momento mais tarde, ouviram-se passos no saguão. O pânico fez seu estômago se contorcer. Era evidente que Thomas havia chegado em casa. Se ele a apanhasse em seu estúdio depois do episódio com Patricia, ficaria furioso. Ela olhou ao redor apavorada, imaginando se poderia escapar pelo quarto de hóspedes. Mas antes que conseguisse se mexer, a porta abriu-se.
Era Patricia. Ela e Cassi se surpreenderam mutuamente ao se verem. Ambas se encararam, descrentes.
— O que está fazendo aqui? — falou Patricia finalmente.
— Eu ia lhe fazer a mesma pergunta — retrucou Cassi, de pé atrás da mesa.
— Vi a luz acender-se aqui. Naturalmente, pensei que Thomas tivesse decidido vir para casa. Como mãe dele, acho que tenho o direito de vê-lo.
Inconscientemente, Cassi acenou afirmativamente com a cabeça, como se concordasse. Na verdade, sempre fora uma fonte de constante irritação para ela o fato de Patricia possuir uma chave da casa e não ter o menor constrangimento de entrar toda vez que queria.
— Esta é a minha desculpa — disse Patricia. — Qual é a sua?
Cassi sabia que podia ter simplesmente replicado que a casa era dela e que ela podia entrar em qualquer quarto que quisesse. Mas não o fez. Seu sentimento de culpa impediu-o.
— Suponho que sei — disse Patricia desdenhosamente — mesmo que isso me admire. Bisbilhotando as coisas dele quando ele está no hospital salvando vidas! Que espécie de esposa é você?
A pergunta de Patricia ficou suspensa no ar como eletricidade estática. Cassi não tentou responder. Começou a imaginar, ela mesma, que espécie de esposa era.
— Acho que você devia deixar este quarto imediatamente — bradou Patricia, irritada.
Cassi não fez objeção. Passou pela sogra com a cabeça curvada. Patricia seguiu-a e fechou a porta. Sem olhar para trás, Cassi desceu as escadas e se encaminhou para a cozinha. Ouviu a porta da frente fechar-se e presumiu que Patricia tinha ido embora. A mulher contaria a Thomas que Cassi estivera em seu estúdio. Era inevitável.
Ela olhou com aversão para a comida que Harriet deixara sobre o fogão, mas sabia que, após ter tomado a dose normal de insulina, seu organismo exigia uma certa quantidade de calorias. Forçando a comida requentada a descer para o estômago, decidiu voltar ao estúdio e terminar sua busca. Já tendo sido apanhada, não temia mais nada, exceto o que encontrasse.
Havia ainda a possibilidade de Thomas aparecer, mas Cassi estava preparada para escutar os sons do Porsche. A fim de não ter que encarar Patricia de novo, desceu as pesadas cortinas das janelas e usou uma lanterna elétrica, como se fosse uma verdadeira ladra. Foi diretamente para a mesa e tentou as gavetas laterais, começando de cima para baixo. Não teve de ir muito longe. No fundo da segunda gaveta, dentro de uma caixa de blocos de receita, Cassi encontrou uma coleção de tubos de plástico para comprimidos. Alguns estavam vazios, mas a maioria se encontrava cheia. Todos tinham a mesma receita passada por um médico, um tal Dr. Allan Baxter. Todas as datas eram dos últimos três meses.
Além da Dexedrina, havia dois outros tipos de comprimidos e Cassi, com todo o cuidado, tirou um de cada. Recolocou os tubos na caixa e fechou a gaveta. Apagando a lanterna elétrica, reabriu as cortinas e voltou rapidamente para seu quarto. Quando pegou o Índice Terapêutico de Mesa e comparou os comprimidos com as gravuras de identificação, viu que sua suspeita estava certa.
— Oh, meu Deus! — disse em voz alta. — Dexedrina para exaustão é uma coisa. Percodan e Talwin são outra muito diferente.
Pela segunda vez naquele dia, Cassi debulhou-se em lágrimas. Desta vez ela nem tentou controlar seus soluços. Jogou-se sobre a cama e chorou copiosamente.
A despeito de seu interlúdio com Laura, Thomas decidiu manter a planejada visita a Doris. Ele ficou bastante decepcionado com o fato de o homem do cateterismo cardíaco ter sofrido um segundo ataque e não poder ser programado para uma cirurgia. Certamente, não ia arruinar ainda mais sua noite com a longa viagem de carro para casa.
Doris abriu-lhe a porta no instante em que ele tocou a campainha. Quando ele alcançou o segundo andar, viu-a espiando timidamente pela porta do apartamento. Quando ela a abriu, ele percebeu por que Doris havia ficado do lado de dentro. Ela vestia uma camisola negra curtinha e diáfana, amarrada na frente e presa entre as pernas. A camisola cobria mais ou menos a mesma área que um traje de banho de uma só peça.
— Glenlivet com Perrier — disse Doris, entregando um copo a Thomas e apertando-se de encontro a ele, antes que este pudesse tirar o casaco.
Thomas pegou o drinque com uma das mãos e pôs a outra nas nádegas de Doris. A única luz no quarto vinha de uma lâmpada a óleo de tipo escandinavo, que dava ao aposento tons dourados e quentes. A mesinha para café também estava posta para jantar, com uma garrafa de vinho desarrolhada perto dela.
Quando Doris se retirou para a cozinha, Thomas telefonou para o hospital e chamou pela encarregada do serviço de chamadas. Deu-lhe o número de Doris, juntamente com a advertência de que era apenas para o cirurgião torácico residente de plantão. Ela não devia dá-lo a mais ninguém e, se houvesse algo a perguntar, ela mesma podia chamá-lo.
— PRECISO IR — disse Clark Reardon. — Minha mulher me disse para eu não me atrasar. — Clark havia puxado uma cadeira de metal de junto do leito de Jeoffry Washington.
— Bem, foi ótimo vê-lo, cara — disse Jeoffry. — Obrigado por ter vindo. Realmente apreciei a visita.
— Não há problema — disse Clark, levantando-se. Ele ergueu a mão e, quando Jeoffry estendeu a sua, bateu nela afetuosamente.
— Então, quando é que você sai daqui? — perguntou Clark.
— Logo. Talvez dentro de alguns dias. Não tenho certeza. Ainda estou tomando essas injeções endovenosas. — E Jeoffry levantou seu braço esquerdo, indicando o tubo plástico enrolado. — Tive uma inflamação em minhas pernas logo após a operação. Pelo menos foi o que o Dr. Sherman me disse, de modo que eles começaram a me aplicar antibióticos. Foi duro por alguns dias, mas agora está melhor. A melhor coisa que me aconteceu foi quando eles retiraram o monitor cardíaco. Eu lhe digo, o bip me botava louco.
— Há quanto tempo você está aqui?
— Nove dias.
— Isso não é tão mau.
— Não agora, no fim. Mas, vou-lhe contar, fiquei muito assustado no início. Mas eu não tinha escolha. Eles me disseram que eu morreria se não me operasse. Assim, que se pode fazer?
— Nada! Vejo você amanhã à noite e trago aqueles livros que queria. Alguma coisa mais?
— Eu adoraria uma ervinha.
— Sem essa, cara.
— Estou apenas brincando.
Clark virou-se e acenou da porta antes de desaparecer pelo corredor.
Jeoffry examinou seu quarto. Estava feliz por ir embora tão breve. O outro leito no quarto semiparticular estava vazio. Seu companheiro de quarto tivera alta naquele dia e não chegara nenhum paciente. Jeoffry estava triste por ficar sozinho, especialmente agora que Clark tinha ido embora e ele nada tinha a fazer. Segundo a opinião de Jeoffry, um hospital não era lugar para se ficar sozinho. Havia muitos aparelhos e processos assustadores para se encarar sem um apoio.
Jeoffry ligou o aparelho de TV em miniatura conectado à cabeceira da cama. Pelo fim da segunda parte do programa, entrou a Srta. DeVries, uma valorosa enfermeira licenciada. Fingindo que ia dar alguma coisa gostosa para Jeoffry, ela insistiu com ele para que fechasse os olhos e abrisse a boca. Ao fazê-lo, Jeoffry teve uma boa ideia do que ia acontecer; e estava certo: era um termômetro.
Dez minutos mais tarde, ela voltou e trocou o termômetro por uma pílula para dormir. Jeoffry tomou a pílula com água que estava na mesa de cabeceira, enquanto a enfermeira verificava a temperatura.
— Tenho temperatura? — perguntou Jeoffry.
— Todo mundo tem uma temperatura — replicou a Srta. DeVries.
— Como pude esquecer? — disse Jeoffry. Eles já tinham abordado esse assunto antes. — O.K. Tenho febre?
Esta informação é confidencial — respondeu a Srta. DeVries.
Jeoffry nunca pôde entender por que as enfermeiras eram proibidas de lhe dizer se ele tinha temperatura; melhor dizendo, febre. Elas sempre diziam que isso competia ao médico, o que era uma loucura. O corpo era seu.
— E esta injeção endovenosa? — perguntou Jeoffry, enquanto a Srta. DeVries se dirigia para a porta. — Quando que vai acabar, para que eu possa tomar um banho de chuveiro de verdade?
— Sobre isso nada sei — respondeu ela, acenando com a mão antes de desaparecer.
Jeoffry virou a cabeça e olhou para o frasco. Por um momento, ficou observando a queda regular de cada gota na pequena câmara. Voltando à televisão e às notícias, ele suspirou. Seria um alívio quando fosse removido seu tubo da endovenosa. Lembrou-se de perguntar ao Dr. Sherman pela manhã.
Quando o telefone tocou pela primeira vez, Thomas sentou-se, confuso, sem saber ao certo onde estava. Na segunda chamada, Doris virou-se para encará-lo na penumbra de seu apartamento.
— Você atende ou quer que eu atenda? — a voz de Doris estava pastosa com o sono. Ela se ergueu, apoiando-se num dos cotovelos. Thomas olhou-a na semiescuridão. Sua aparência era grotesca, com o cabelo grosso se levantando de sua cabeça como se milhares de volts de eletricidade houvessem atravessado seu corpo. Em vez de olhos, ela apresentava dois buracos negros. Levou um momento para ele se lembrar de quem era ela.
— Eu atendo — disse Thomas, levantando-se. Sua cabeça sentia-se pesada.
— O telefone está no canto, perto da janela — disse Doris, tornando a cair sobre o travesseiro.
Às apalpadelas, Thomas avançou ao longo da parede até encontrar o portal do quarto de dormir. Na sala de estar, a janela que dava para a baía deixava entrar mais luz.
— Dr. Kingsley, aqui fala Peter Figman — disse o residente torácico quando Thomas pegou o receptor. — Espero que não se importe com a minha chamada, mas o senhor me pediu que lhe telefonasse se algum caso urgente acontecesse no Centro Cirúrgico. Temos um caso de uma punhalada no peito, ocorrido há uma hora.
Thomas encostou-se na pequena mesa do telefone. O frio no quarto ajudou-o a organizar sua mente.
— Que horas são?
— Pouco mais de uma da madrugada.
— Muito obrigado — disse Thomas. — Estarei aí num instante.
Ao sair do vestíbulo do edifício de apartamentos de Doris para a rua, o vento gelado de dezembro fez um calafrio atravessar todo seu corpo. Levantando e aconchegando mais as lapelas de seu casaco em torno do pescoço, ele partiu para o Memorial. De vez em quando, lufadas de vento rodopiavam pela rua, levantando uma linha de papéis e outros resíduos contra seus pés, obrigando-o a recuar alguns passos. Ele experimentou um alívio quando contornou a esquina e pôde ver o complexo de edifícios que formavam o Boston Memorial.
Aproximando-se da entrada principal, passou pela garagem do estacionamento à sua esquerda. Era uma estrutura de cimento, aberta aos elementos. Embora estivesse apinhada durante o dia, agora se achava quase deserta. Ao passar os olhos em derredor para admirar o seu Porsche, ele notou um outro carro que lhe era familiar. Era um Mercedes 300, turbodiesel de cor verde vômito. Só havia uma pessoa em todo o hospital cujo gosto era tão ruim. O carro pertencia a George Sherman.
Thomas estava praticamente na porta do hospital, ponderando sobre o absurdo de pintar um carro tão bom com uma cor tão horrível, quando começou a imaginar por que George estava ali. Ele virou-se para olhar de novo. Não havia dúvida de que era o carro dele. Não era possível confundi-lo com outro. Thomas consultou o relógio: 1h15 da manhã.
Dirigiu-se diretamente ao Centro Cirúrgico e, enquanto passava pela sala de trocar a roupa, viu uma das enfermeiras do centro, tricotando. Ele perguntou-lhe se George Sherman tinha um caso naquela noite.
— Não que eu saiba — disse a enfermeira. — De cirurgia torácica só o caso da punhalada que o senhor veio atender.
Do lado de fora do quarto 18 do Centro Cirúrgico, Thomas encontrou Peter Figman se esterilizando para operar. Era um tipo magro, com cara de bebê, parecendo ainda não ter-se barbeado. Thomas o tinha visto em várias ocasiões, porém jamais tivera a oportunidade de trabalhar com ele. O tipo possuía a reputação de ser esperto, dedicado e de ter boas mãos.
Assim que viu Thomas, Peter iniciou uma detalhada apresentação do caso. O paciente havia sido apunhalado durante um jogo de hóquei no Boston Garden, mas achava-se numa situação estável, embora tivesse havido algum problema com sua pressão arterial quando foi admitido na sala de emergência. Seu tipo de sangue tinha sido determinado, mas nenhum lhe fora aplicado ainda. A primeira impressão fora a de que a faca havia ferido um dos grandes vasos.
Enquanto Thomas ouvia a descrição, tirou uma máscara cirúrgica da caixa sobre a prateleira que ficava em cima da pia para esterilização dos braços e mãos. Ele preferia as máscaras de estilo antigo, que se amarravam atrás da cabeça e do pescoço, em contraposição com as máscaras moldadas, seguras por um simples elástico atrás da cabeça. Naquela noite, contudo, deixou escapar ora um ora outro dos cordões. Então, a máscara fugiu de suas mãos e caiu ao chão. Thomas soltou uma praga e apanhou outra. E ao estender a mão para pegar a caixa, Peter notou que a mão de Thomas apresentava um ligeiro tremor.
Peter interrompeu sua descrição do caso.
— O senhor está bem, Dr. Kingsley?
Com a mão dentro da caixa, Thomas girou lentamente a cabeça, olhando diretamente para Peter.
— Que é que há? Eu estou muito bem.
— Pensei que talvez o senhor não estivesse se sentindo muito bem — disse Peter timidamente.
Thomas arrancou com violência a máscara de dentro da caixa, vindo com uma outra extra, que caiu na pia.
— E o que lhe fez pensar que não estou me sentindo bem?
— Não sei, apenas um pressentimento — respondeu Peter, evasivamente. Ele agora preferia não ter dito nada.
— Para informação, eu me sinto perfeitamente bem — disse Thomas, não fazendo qualquer tentativa de esconder sua irritação. — Mas se há uma coisa que não tolero dos residentes é a insolência. Espero que tenha entendido.
— Eu entendo — retrucou Peter, ansioso para encerrar o assunto.
Deixando o residente terminar sua esterilização, Thomas passou pela porta do Centro Cirúrgico. "Pelo amor de Deus", pensou Thomas, "o garoto não está vendo que acabo de ser acordado de um sono profundo? Todo mundo tem um pequeno tremor até acordar completamente."
O Centro Cirúrgico zumbia de atividade. O paciente já estava completamente anestesiado e a equipe júnior da casa achava-se no processo de preparar o tórax do paciente. Thomas adiantou-se para rever as radiografias. Então, enquanto estava de costas para a sala, levantou a mão. O tremor era ligeiro. Ele já havia tido piores. "Esperemos apenas que aquele arrogante rapazinho faça o seu rodízio pela cirurgia cardíaca", pensou Thomas com certa satisfação.
Ele colocou-se no fundo da sala de operações e ficou observando com todo cuidado quando a cirurgia começou. Estava pronto para intervir se fosse necessário, mas para crédito de Peter, ele era um bom cirurgião. Thomas interrogou todos os residentes sobre a possibilidade de um hemopericárdio. Nenhum deles, inclusive Peter, havia pensado no diagnóstico, apesar do fato ter sido discutido na última conferência de morte. Quando Thomas se certificou de que o caso era de rotina e prosseguiria calmamente, levantou-se e esticou-se. E se dirigiu para a porta.
— Estarei disponível se algo sair errado. Vocês, rapazes, estão fazendo um trabalho muito bom.
Quando a porta da sala de operações se fechou atrás de Thomas, Peter Figman olhou ao redor e disse, murmurando:
— Acho que o Dr. Kingsley se esforçou demais esta noite.
— Acho que você tem razão — retrucou um residente júnior.
Thomas havia sentido uma súbita sonolência envolvê-lo quando se sentara na sala de operações. O medo de cabecear de sono foi o que o fez retirar-se. A caminho da sala dos médicos, tomou várias inspirações profundas. Ele não podia se lembrar de quantos uísques havia bebido com Doris. Para o futuro precisava ser mais cauteloso.
Infelizmente, a sala estava ocupada por duas enfermeiras em sua folga para o café. Ele planejara estender-se no divã, mas, em vez disso, decidiu usar uma das camas de lona no quarto privado. Ao passar pela janela, olhou para fora e reparou numa luz num dos escritórios do outro lado do caminho no Edifício Scherington. Contando as janelas a partir do fim, Thomas verificou que se tratava do consultório de Ballantine. Olhou para o relógio em cima da máquina de fazer café. Eram 2h00 da manhã! Será que o porteiro se esquecera de apagá-la?
— Desculpem-me — falou Thomas para as duas enfermeiras. — Se me chamarem da cirurgia, estarei no quarto privado. Se por acaso eu adormecer, uma de vocês duas poderia fazer-me o favor de entrar e me dar uma cutucada?
Quando Thomas passou pelas portas de vaivém para o quarto privado, pôs-se a pensar se a luz no consultório de Ballantine tinha alguma coisa a ver com o fato de o carro de George Sherman estar parado no estacionamento. Havia qualquer coisa de perturbador sobre esses dois fatos.
A alcova sem janelas, com duas camas de lona, não estava completamente às escuras. A luz da antessala cirúrgica filtrava-se pela porta do hall para o quarto privado. Como de hábito, as camas estavam vazias. Thomas suspeitou de que era a única pessoa a usá-las.
Procurando no bolso de sua blusa cirúrgica, encontrou o pequeno comprimido amarelo que havia colocado ali. Habilmente, ele partiu o comprimido ao meio. Uma das metades foi para sua boca, onde ele a dissolveu sobre a língua. A outra metade voltou para o bolso, para o caso de precisar dela mais tarde. Ao fechar os olhos, imaginou quanto tempo teria antes que o chamassem.
Às 2h45 da manhã, o poço das escadas parecia pertencer mais a um gigantesco mausoléu do que a um hospital. A longa abertura vertical funcionava como uma espécie de chaminé e havia um som lamentoso baixo, vindo de algum lugar das entranhas do edifício. Quando o vulto no poço das escadas abriu a porta no 18º andar, o ar silvou como se saído de um jarro a vácuo.
Com estranhas roupas hospitalares, o homem não receava ser visto, mas ainda assim preferia não sê-lo. O homem verificou cuidadosamente se o corredor estava deserto em toda a extensão, antes de deixar que a sua porta se fechasse atrás de si. Quando ela se fechou, ouviu-se o mesmo som rude de sucção.
Com uma das mãos enfiada no bolso do jaleco branco, o homem avançou silenciosamente através do corredor para o quarto de Jeoffry Washington. Ali, parou e esperou um momento. Não vinha qualquer som de atividades no posto das enfermeiras. Tudo o que podia ser ouvido eram sons abafados distantes dos monitores cardíacos e máquinas de respiração artificial.
Num piscar de olhos, o homem entrou no quarto, fechando lentamente a porta que dava para o corredor. A única luz vinha do banheiro, cuja porta apresentava uma fenda de alguns milímetros. Assim que seus olhos se adaptaram à obscuridade, ele tirou a mão do bolso, que agarrava uma seringa cheia. Removeu o protetor da agulha jogando-o no outro bolso e se dirigiu rapidamente para o lado da cama. Então ficou gelado.
A cama estava vazia!
Com um bocejo que abriu a boca até os seus limites e lhe arrancou lágrimas, Jeoffry Washington abanou a cabeça e atirou uma revista Time velha de três semanas sobre a mesinha baixa. Ele estava sentado na sala dos pacientes, do outro lado do quarto de curativos. Levantando-se, Jeoffry empurrou o suporte de sua injeção endovenosa adiante de si, saindo para a semiobscuridade do posto das enfermeiras. Ele achara que um passeio pelo corredor teria ajudado a acabar com sua insônia, mas não havia funcionado. Ele não se achava com mais sono do que quando estivera em sua cama.
Pamela Breckenridge observava-o progredir através da abertura sem porta da sala das papeletas. Ela já se acostumara aos seus aparecimentos nas duas últimas noites. Para economizar dinheiro, ela trazia seu lanche num saco marrom, em vez de usar a lanchonete do hospital, e Jeoffry aparecia quando ela estava pronta para comer.
— Posso tomar outro comprimido para dormir? — perguntou ele.
Pamela engoliu, disse-lhe que podia e mandou que a enfermeira licenciada desse outro comprimido de Dalmane a Jeoffry. O Dr. Sherman havia permitido, acrescentando em sua ordem original: "Repetir uma vez."
Como se estivesse de pé num bar, Jeoffry aceitou o comprimido e a pequena xícara d'água de papel que a enfermeira lhe estendia por sobre o balcão do posto. Jeoffry lançou o comprimido na boca e fê-lo descer garganta abaixo sem tomar a água. Deus, o que ele não daria por um baseado. Então, começou sua lenta viagem de volta pelo corredor.
O corredor ia escurecendo à medida que ele se afastava do posto das enfermeiras. E ele via sua sombra aparecer à sua frente no chão de vinil, crescendo enquanto ia caminhando. O suporte da injeção intravenosa fazia-o parecer-se com um profeta agarrado a um bordão. Para abrir a porta ele empurrou-a com o suporte de rodinhas. Lá dentro, ele prendeu a porta com o pé e fechou-a. Se houvesse alguma chance de adormecer, tinha que se esconder do barulho e das luzes do corredor.
Dispondo o suporte próximo da cama, ele virou-se e sentou-se, pretendendo levantar os pés e esticar-se. Em vez disso, abafou um grito.
Como um fantasma, um vulto vestido de branco saiu do banheiro.
— Meu Deus! — exclamou Jeoffry, soltando a respiração. — Você realmente me assustou!
— Deite-se, por favor.
Jeoffry obedeceu imediatamente.
— Eu jamais o esperaria a esta hora.
Jeoffry ficou observando enquanto o visitante tirava uma seringa e começava a injetar seu conteúdo no frasco da injeção endovenosa que estava no suporte. Ele parecia ter alguma dificuldade na escuridão, já que Jeoffry ouvia o frasco tilintar repetidamente de encontro ao suporte.
— Que remédio eu estou tomando? — perguntou Jeoffry, sem saber se devia dizer alguma coisa, mas suficientemente confuso quanto ao que estava acontecendo para superar sua hesitação.
— Vitaminas.
Para Jeoffry parecia uma hora um tanto estranha para tomar vitaminas, mas o hospital era um lugar estranho.
O visitante desistiu de enfiar a agulha na base do frasco da injeção, e mudou de local, passando a injetar no tubo de plástico, perto do pulso de Jeoffry. Ali foi mais fácil e imediatamente a agulha deslizou através do pequeno protetor de borracha. Jeoffry observava à medida que o êmbolo era rapidamente comprimido, fazendo com que o fluido retrocedesse pelo tubo, elevando o nível na câmara que ficava acima de sua cabeça. Ele experimentou uma pontinha de dor, mas admitiu que era apenas a elevação da pressão no frasco da injeção endovenosa.
Mas a dor não desapareceu. Pelo contrário, ficou pior. Muito pior.
— Meu Deus! — gritou Jeoffry. — Meu braço! Está me matando!
Jeoffry pôde experimentar uma sensação de queimadura que começou no local da injeção e subia pelo braço.
O visitante segurou a mão de Jeoffry para mantê-la quieta e abriu a injeção endovenosa, que começou a correr num fluxo contínuo.
A dor que Jeoffry achara insuportável piorou e se espalhou como lava fundida dentro de seu peito. Ele sacudiu a mão livre para agarrar o visitante.
— Não me toque, seu veado de merda!
A despeito da dor, Jeoffry largou-o. Para espanto seu, surgiu um medo... um medo terrível de que qualquer coisa horrível estava acontecendo. Desesperado, tentou livrar seu braço com a injeção da garra do intruso.
— Que é que você está fazendo? — disse Jeoffry, ofegante. E começou a gritar, porém a mão do outro fechou brutalmente sua boca.
Naquele momento o corpo de Jeoffry experimentou sua primeira convulsão, arqueando-se na cama. Seus olhos voltaram-se para cima e desapareceram dentro de sua cabeça. Em poucos segundos, os espasmos se acentuaram para se transformarem numa crise epiléptica, fazendo a cama balançar de trás para diante. O intruso deixou cair o braço de Jeoffry e afastou a cama da parede para reduzir o barulho. Depois, examinou o corredor e voltou correndo para o poço das escadas.
Jeoffry continuou a ter convulsões em silêncio até que seu coração, que havia começado a bater irregularmente, entrou em fibrilação por alguns segundos e depois parou. Em minutos, o cérebro de Jeoffry deixou de funcionar. Ele continuou a ter convulsões até que seus músculos exauriram suas reservas de oxigênio...
Thomas sentia-se como se houvesse acabado de fechar os olhos quando a enfermeira curvou-se sobre ele e sacudiu-o para acordá-lo. Ele rolou meio estonteado e olhou para o rosto sorridente da mulher.
— Estão precisando do senhor no Centro Cirúrgico, Dr. Kingsley.
— Estarei lá num instante — disse ele, com voz pastosa.
Thomas esperou que a enfermeira se retirasse, apressada, para então pôr os pés no chão. Ele parou por alguns minutos para clarear as ideias. Às vezes, pensou Thomas, dormir pouco tempo era pior do que não dormir nada. Ele empertigou-se na entrada e então tropeçou em seu armário.
Tirando uma Dexedrina, engoliu-a com água do bebedouro. Depois, mudou de roupa, vestindo um avental limpo, porém não antes de ter recuperado o meio comprimido que deixara no bolso da camisa da outra roupa suja.
Ao chegar no quarto nº 18 do Centro Cirúrgico, a Dexedrina já havia clareado sua cabeça. Ele pensou em se lavar e esterilizar imediatamente, mas decidiu que era melhor saber primeiro o que estava acontecendo.
Os residentes estavam de pé em torno do paciente anestesiado, suas luvas repousando sobre o campo esterilizado. A cena não parecia auspiciosa.
— Qual é o... — começou Thomas, a voz rouca. Ele não tinha falado desde que acordara, exceto pelas poucas palavras que dissera à enfermeira. Pigarreando para limpar a garganta, prosseguiu: — Qual é o problema?
— O senhor tinha razão quanto ao hemopericárdio — disse Peter, respeitosamente. — A faca penetrou o pericárdio e cortou a superfície do coração. Não há hemorragia, mas ficamos em dúvida se devíamos fechar a laceração.
Thomas pediu à enfermeira circulante que trouxesse um banquinho e o colocasse por trás de Peter. Daquele ponto vantajoso, ele podia ver o interior da incisão. Peter indicou a laceração e afastou-se para o lado.
Thomas ficou aliviado. A laceração era inconsequente, tendo poupado por pouco quaisquer vasos coronários.
— Basta deixar como está — disse Thomas. — Os efeitos secundários da sutura não valem os possíveis problemas que ela pode causar.
— Muito bem — falou Peter.
— Deixe o pericárdio aberto também — advertiu Thomas. — Isso reduzirá as chances de surgir um problema com o tamponamento no curso pós-operatório. E servirá como ponto de drenagem, se houver algum sangramento.
Uma hora mais tarde, Thomas atravessou do hospital para o Edifício Profissional. Ao entrar em seu consultório, ele se sentiu desagradavelmente excitado pela Dexedrina. Cada vez mais, ele se sentia intrigado com as presenças de Ballantine e Sherman no hospital naquela noite. Era óbvio que estavam mantendo uma espécie de reunião secreta e, como imaginava o que eles estavam tramando, sentiu sua ansiedade aumentar. Agora sabia que seria incapaz de dormir, a menos que tomasse alguma coisa.
Raramente ele obtinha um impulso tão grande de um simples comprimido de Dexedrina, mas decidiu que provavelmente o fato se devia ao seu estado de exaustão geral. Dirigindo-se à sua mesa, tomou às pressas um outro Percodan. Então, receando ter problemas para acordar de manhã, Thomas telefonou para Doris. Teve de deixar o aparelho tocar muito tempo. Mentalmente, retraçou o complicado caminho que era preciso fazer da cama dela para o telefone, pelo balcão. Ficou a imaginar por que ela não colocava uma extensão.
— Escute — disse Thomas quando ela atendeu. — Você tem de vir para o consultório às seis e trinta.
— Mas isso é apenas algumas horas a partir de agora — protestou Doris.
— Jesus Cristo! — gritou Thomas irritadamente. — Você não precisa me dizer que horas são! Pensa que não sei? Mas tenho três pontes de safena começando às sete e trinta. Quero você aqui para ter a certeza de que vou acordar. — Thomas bateu com o fone no gancho, excitado. — Diabo de puta egoísta — disse ele alto, enquanto arrumava o travesseiro.
CASSI ABRIU OS OLHOS, PISCANDO. Passava um pouco das cinco da manhã e ainda não havia luz do lado de fora. O despertador estava ligado para só dar o alarme dali a duas horas.
Por alguns instantes ela ficou quieta, escutando. Pensou que talvez algum ruído a houvesse acordado, mas, à medida que corriam os minutos, verificou que o distúrbio tinha vindo de dentro de sua cabeça. Era o sintoma clássico da depressão.
No princípio experimentou virar-se e cobrir a cabeça com as cobertas, mas logo viu que era inútil. Ela não pôde voltar a dormir. Saltou da cama, sabendo muito bem que ficaria exausta naquele dia, especialmente porque Thomas a fizera aceitar um convite para ir à casa dos Ballantines naquela noite.
A casa estava fria e ela tremia antes de pôr o roupão de banho. No banheiro, ligou o aquecedor de quartzo e a ducha do chuveiro.
Entrando debaixo d'água, Cassi relutou em permitir-se relembrar o motivo de sua depressão — a descoberta do Percodan e do Talwin na mesa de Thomas. E, sem dúvida, Patricia ia comunicar ao filho que Cassi voltara a remexer seu estúdio. Thomas imaginaria que ela estivera à procura de drogas.
Saindo do chuveiro, Cassi tentou decidir o que fazer. Devia ela admitir que havia encontrado drogas e ter um confronto com ele? Era a presença das drogas suficientemente incriminadora? Poderia haver outra explicação para a presença delas na mesa de Thomas? Cassi duvidava, considerando o fato adicional de Thomas estar frequentemente com as pupilas reduzidas a um pontinho. Embora Cassi não quisesse acreditar, o mais provável era que Thomas estava tomando Percodan e Talwin. Quanto? Cassi não tinha a menor ideia. Nem tinha ideia do quanto ela devia censurá-lo.
Cassi pensou que talvez ela devesse procurar ajuda. Mas para quem se voltar? Ela não fazia ideia. Evidentemente, Patricia não era a resposta e se ela fosse a qualquer autoridade, então a carreira de Thomas ficaria arruinada. Cassi sentiu-se deprimida demais para chorar. Era uma situação de derrota. Não importa o que ela fizesse ou não fizesse, ia causar problemas. Um bocado de problemas. Cassi tinha a certeza de que seu relacionamento com Thomas poderia muito bem correr perigo.
Foi preciso toda sua força para acabar de se aprontar para o trabalho e fazer a longa viagem até o hospital.
Cassi mal acabara de jogar sua bolsa de lona sobre a mesa quando a cabeça de Joan apareceu através da porta.
— Sentindo-se melhor? — perguntou Joan com vivacidade.
— Não — disse Cassi com voz cansada e inexpressiva.
Joan pôde sentir a depressão de sua amiga. Do ponto de vista profissional, ela sabia que Cassi estava pior do que na tarde anterior. Sem ser convidada, Joan entrou no consultório de Cassi e fechou a porta. À Cassi faltou energia para fazer qualquer objeção.
— Você conhece o velho aforismo sobre o médico doente — disse Joan. — "Aquele que insiste em cuidar de si mesmo aprende que tem um louco por paciente." Bem, isso se aplica também ao reino emocional. Seu argumento não parace tão bom para mim. Vim aqui para pedir-lhe desculpas por impingir-lhe minhas opiniões ontem, mas olhando agora para você, acho que era a coisa certa que eu tinha de fazer. Cassi, que é que está acontecendo com você?
Cassi estava imobilizada.
Bateram na porta.
Joan abriu-a e deparou com Maureen Kavenaugh desfeita em lágrimas.
— Desculpe, a Dra. Cassidy está ocupada — disse Joan. E fechou a porta na cara da mulher, antes que esta pudesse responder.
— Sente-se, Cassi — falou Joan com firmeza.
Cassi sentou-se. A ideia de uma direção forçada era atraente.
— O.K. — disse Joan. — Vamos ouvir o que está se passando. Eu sei que você só tem olhos para o seu problema. Mas existe algo mais do que isso.
Uma vez mais, Cassi reconheceu a sedutora pressão da entrevista psiquiátrica sobre a conversa do paciente. Joan inspirava confiança. Sobre isso não havia dúvida. E Cassi seguramente era discreta. E, em última análise, Cassi queria compartilhar desesperadamente sua carga com alguém. Ela precisava uma certa compreensão, se não meramente de um apoio.
— Acho que Thomas está tomando drogas — disse Cassi, numa voz tão baixa que Joan mal podia ouvi-la. Ela contemplou o rosto de Joan, esperando ver algum sinal de choque, mas não houve nenhum. A expressão de Joan não se alterou.
— Que tipo de drogas? — perguntou Joan.
— Dexedrina, Percodan e Talwin são as que eu sei.
— Talwin é muito comum entre os médicos — disse Joan. — Que quantidade está ele tomando?
— Não sei. Tanto quanto sei, sua cirurgia nada sofreu. Está trabalhando duro como nunca.
— Hum, hum — acenou Joan afirmativamente com a cabeça. — Thomas sabe que você sabe?
— Ele sabe que suspeito da Dexedrina. Não das outras. Pelo menos até agora. — Cassi ficou imaginando quando Patricia ia dizer a Thomas que ela estivera em seu estúdio.
— Existe um termo eufemístico para isso — disse Joan. — Chama-se o "médico estragado". Infelizmente não é nada raro. Talvez você devesse ler sobre o assunto; existe um bocado de material na literatura médica, embora haja médicos que odeiam encarar o problema. Vou lhe dar alguns artigos. Mas, diga-me, Thomas tem demonstrado algumas alterações de comportamento associadas, tais como dificuldade de relacionamento ou não obediência às prescrições médicas?
— Não — disse Cassi. — Conforme eu disse antes, Thomas está trabalhando mais do que nunca. Mas admite que está sentindo menos prazer no seu trabalho. E, ultimamente, ele parece estar com menos tolerância.
— Tolerância por quê?
— Por tudo. Por gente, por mim. Até por sua mãe, que vive conosco.
Joan revirou os olhos. Ela não podia ajudar.
— Não é tão ruim assim — disse Cassi.
— Aposto — disse cinicamente.
As duas mulheres estudaram-se em silêncio por alguns minutos.
Então Joan perguntou, a título de experiência.
— E quanto à sua vida de casada?
— O que você quer dizer? — indagou Cassi evasivamente.
Joan limpou a garganta.
— Muitas vezes os médicos que abusam de drogas sofrem crises de impotência e ativamente procuram casos extraconjugais.
— Thomas não tem tempo para casos extraconjugais — retrucou Cassi, com alguma hesitação.
Joan acenou com a cabeça, começando a achar que Thomas não parecia muito "incapaz".
— Sabe, seu comentário sobre o baixo nível de frustração de Thomas e o fato de que está tirando menos prazer de seu trabalho esses dias é sugestivo. Muitos cirurgiões são levemente narcisistas e partilham alguns dos efeitos colaterais desse distúrbio.
Cassi não respondeu, porém o conceito fazia sentido.
— Bem, isso dá no que pensar — disse Joan. — É uma ideia interessante a de que o sucesso de Thomas pudesse ser um problema. Os homens narcisistas precisam do tipo de estrutura e constante realimentação energética que se tem numa competitiva residência cirúrgica.
— Thomas observou que não há mais ninguém com quem competir — disse Cassi, acompanhando o curso do pensamento de Joan.
Nesse momento, o telefone de Cassi tocou. Ao observar a amiga pegar o fone, Joan ficou satisfeita. Cassi já estava agindo menos deprimida. De fato, ela conseguiu mesmo sorrir quando soube que era Robert Seibert. A conversa foi breve. Depois de desligar, ela disse a Joan que Robert estava no sétimo céu por ter arranjado mais um caso de MSC.
— Isso é uma maravilha — disse Joan sarcasticamente. — Se você está pretendendo me convidar para a autópsia, muito obrigada, mas a resposta é não.
Cassi riu.
— Não. De fato, eu mesma declinei do convite. Tenho pacientes programados para toda a manhã, mas disse a Robert que estaria no almoço para saber dos resultados. — Falar sobre o tempo fez com que Cassi consultasse o relógio.
— Oh, estou atrasada para a reunião da equipe.
A reunião correu bem. Não ocorreram catástrofes à noite nem novas admissões. Com efeito, o residente de plantão ficou satisfeito em poder informar que ele havia dormido nove horas sem ser perturbado, o que enciumou todo mundo. Cassi teve a oportunidade de discutir o caso da irmã de Maureen e o consenso geral foi de que Cassi devia encorajar Maureen a entrar em contato ela mesma. Houve um acordo geral de que valia a pena correr o risco de colocar a irmã, se possível, no processo de tratamento.
Cassi descreveu também a aparente melhora do Coronel Bentworth, bem como suas tentativas de manipulá-la. Jacob Levine achou isso muito interessante, mas advertiu Cassi quanto ao risco de conclusões precipitadas.
— Lembre-se de que os fronteiriços podem ser imprevisíveis — falou Jacob, tirando seus óculos e apontando-os enfaticamente para Cassi.
A reunião acabou cedo, uma vez que não havia novas admissões nem novos problemas. Cassi recusou um convite para tomar café, já que não queria chegar atrasada para o encontro com o Coronel Bentworth. Quando ela voltou para o consultório, ele já aguardava junto à porta.
— Bom dia — cumprimentou Cassi tão animada quanto possível, abrindo a porta do consultório e entrando.
O coronel ficou silencioso ao seguir Cassi, entrar com ela e sentar-se. Ela, embaraçada, tomou seu lugar atrás da mesa. Cassi não sabia o motivo, mas o coronel exacerbava suas inseguranças profissionais, principalmente quando a olhava fixamente com aqueles penetrantes olhos azuis que ela, por fim, verificou que a faziam lembrar-se dos de Thomas. Eles eram da mesma surpreendente cor azul-turquesa.
Mais uma vez, Bentworth não lembrava um paciente. Estava impecavelmente vestido e parecia haver readquirido totalmente o seu ar de comando. O único ponto visível que mostrava a Cassi ser ele a mesma pessoa que ela admitira várias semanas antes, eram as cicatrizes das queimaduras em seu braço.
— Não sei como começar — disse Bentworth.
— Talvez o senhor pudesse começar me contando por que mudou de ideia quanto a me ver. Até agora o senhor recusou as sessões particulares.
— A senhora quer prosseguir com elas?
— Este é sempre o melhor meio — disse Cassi.
— Bem, para falar a verdade, quero um passe para o fim de semana.
— Mas este tipo de decisão costuma ser tomado pelo grupo.
O grupo era o principal agente terapêutico de Bentworth no momento.
— Isso é verdade — disse o coronel — porém os malditos filhos da puta não me deixam ir. A senhora podia convencê-los. Eu sei disso.
— E por que eu iria convencer as pessoas que o conhecem melhor?
— Eles não me conhecem — gritou Bentworth, batendo com a mão sobre a mesa.
O súbito movimento assustou Cassi, mas ela falou com calma:
— Este tipo de procedimento não vai levá-lo a parte alguma.
— Meu Deus! — disse Bentworth. Ele levantou-se e ficou a passear pelo pequeno aposento. Ao ver que Cassi não reagia, voltou a jogar-se em sua cadeira. Cassi pôde ver um pequeno vaso pulsando em sua têmpora.
— Às vezes acho que seria mais fácil abandonar tudo — comentou Bentworth.
— Por que os membros do seu grupo não acham que o senhor deva ter um passe para o fim de semana? — indagou Cassi. A única coisa que havia preparado para o caso de Bentworth era o seu comportamento manipulador e não ia se deixar envolver por ele.
— Não sei — disse o coronel.
— O senhor deve fazer uma ideia.
— Eles não gostam de mim. Isto é suficiente? São todos um bando de idiotas. São todos empregados assalariados, pelo amor de Deus!
— Isso soa muito hostil.
— Sim. Bem, eu os odeio a todos.
— Acontece que eles são gente que, como o senhor, têm seus problemas.
Bentworth não respondeu imediatamente e Cassi procurou lembrar-se do que havia lido sobre como tratar as personalidades fronteiriças. A atuação da psiquiatria parecia mil vezes mais difícil do que a conceituação. Ela sabia que supostamente devia representar um papel de estruturação, mas não tinha certeza do que exatamente aquilo significava no contexto da presente sessão.
— A droga é que eu os odeio e, no entanto, preciso deles. — Bentworth abanou a cabeça como se estivesse confuso por sua própria afirmação. — Sei que isso pode parecer estranho, mas não gosto de ficar sozinho. A pior coisa para mim é ficar sozinho. Isso me faz beber e o álcool me põe maluco.
Não posso evitá-lo.
— O que acontece? — perguntou Cassi.
— Fico sempre numa situação difícil. Jamais falha. Um maricas me vê e pensa que eu sou um garanhão, vem até mim e começa a falar comigo. Eu acabo dando uma surra no cara. Foi uma coisa que o exército me ensinou. Como lutar com minhas mãos.
Cassi se lembrava de ter lido que tanto os fronteiriços quanto os narcisistas queriam se proteger de impulsos homossexuais. A homossexualidade podia ser um campo potencialmente fértil para futuras sessões, mas no momento ela não queria se intrometer em áreas por demais sensitivas.
— E quanto ao seu trabalho? — perguntou Cassi para mudar de assunto.
— Se quer saber a verdade, estou cansado de estar no exército. No início eu gostava da competição. Mas agora que sou um coronel, isso passou. Cheguei ao fim. E não vou fazer força para chegar a general, porque muita gente tem inveja de mim. Não há mais disputas. De cada vez que entro no consultório experimento esta sensação de vazio... como, de que adianta?
— Uma sensação de vazio? — ecoou Cassi.
— Sim, vazio. Sinto a mesma coisa depois de viver com uma mulher durante alguns meses. No princípio é intenso e excitante, mas sempre acaba irritando. Fica vazio. Não sei como explicar isso.
Cassi mordeu o lábio.
— O relacionamento ideal com uma mulher — disse Bentworth — deve ser de um mês. Depois... puf! ... ela deve desaparecer e outra tomar o seu lugar. Isto seria perfeito.
— Mas o senhor foi casado.
— Sim, fui casado. Mas só durante um ano. Estive a ponto de matar a puta. Tudo o que ela fez foi se queixar.
— O senhor vive com alguém agora?
— Não. E é por isso que eu estou aqui. Um dia antes de me pegarem, ela deu o fora. Eu só a conhecia há algumas semanas, porém ela conheceu um outro cara e foi embora. Eis por que quero passar o fim de semana fora daqui. Ela ainda tem a chave do meu apartamento. Receio que ela possa me fazer uma limpeza.
— Por que não chama um amigo e pede a ele para mudar a fechadura? — disse Cassi.
— Não há ninguém em que eu possa confiar — retrucou Bentworth, levantando-se. — Olhe, a senhora vai me dar um passe para o fim de semana ou todo esse papo é para nada?
— Vou levar o caso à equipe na próxima reunião, onde o discutiremos — disse Cassi.
Bentworth inclinou-se sobre a mesa.
— A única coisa que aprendi em toda a minha vida no hospital é que odeio os psiquiatras. Eles pensam que são espertos, mas não são. Eles são muito mais malucos do que eu.
Cassi retribuiu o olhar dele, reparando em como os olhos do coronel haviam ficado frios. Sua mente foi atravessada pelo pensamento de que o Coronel Bentworth devia ser recolhido. Depois se lembrou de que ele já estava.
Cassi bateu no batente do pequeno gabinete de Robert. Ao levantar os olhos de seu microscópio binocular, o rosto dele abriu-se num largo e contagiante sorriso. Ele levantou-se tão rapidamente para abraçar Cassi que sua cadeira saiu correndo para trás em suas rodinhas até a parede oposta.
— Você está abatida — disse Robert. — O que há de errado?
Cassi olhou vagamente para longe. Nas últimas horas ela havia falado demais.
— Apenas estou exausta. Pensei que a psiquiatria ia ser tão fácil.
— Então talvez você deva voltar a se transferir para a patologia — disse Robert, enquanto puxava uma cadeira para Cassi. Curvando-se para a frente, ele repousou as mãos nos joelhos dela. Se outro homem qualquer tivesse feito isso, Cassi teria se aborrecido, mas ficou confortada com o gesto de Robert.
— O que posso arranjar para você? Café? Suco de laranja? Alguma coisa?
Cassi abanou a cabeça.
— Eu desejaria que você pudesse me dar uma boa noite de sono. Estou exausta e tenho de ir a uma festinha esta noite na casa do Dr. Ballantine, em Manchester.
— Maravilhoso — murmurou amorosamente Robert. — Que é que você vai usar?
Ela revirou os olhos, descrente, dizendo que nem tinha pensado nisso, quando Robert, que tinha algum conhecimento do guarda-roupa de Cassi, fez várias sugestões. Cassi interrompeu-o para dizer que tinha ido ali para ouvir os fatos sobre a autópsia, não para se aconselhar sobre moda.
Robert fez uma expressão exagerada de quem está sendo magoado e disse:
— A única coisa pela qual você vem até aqui em cima é para negócios. Ainda me lembro do tempo em que costumávamos ser amigos.
Cassi estendeu o braço para dar um amigável aperto de mãos em Robert, mas ele fugiu ao cumprimento empurrando para trás sua cadeira, que deslizou suavemente pelo chão. Ambos riram. Cassi suspirou e viu que se sentia melhor do que tinha se sentido durante o dia todo. Robert era como um tônico.
— Seu marido lhe disse que ele me salvou na última conferência de morte cirúrgica?
— Não — retrucou Cassi, surpresa. Ela jamais mencionara a antipatia que Thomas tinha por Robert e que era por demais evidente nas poucas vezes em que eles se encontraram.
— Cometi um grave erro. Tive a noção maluca de que os cirurgiões cardíacos ficariam contentíssimos ao saberem da MSC e decidi fazer uma apresentação preliminar na conferência de ontem. Foi a pior coisa que eu podia ter feito. Suponho que eu devia ter percebido que seus egos são tão delicados que eles consideraram o estudo uma espécie de crítica. De qualquer modo, quando acabei de falar, Ballantine começou a me censurar até que Thomas interrompeu com uma inteligente pergunta. Aquilo levantou mais umas poucas perguntas e assim foi evitado o que poderia ter sido um desastre total. Tive uma verdadeira repreensão do chefe da patologia esta manhã. Parece que George Sherman havia-lhe pedido para me fazer calar no futuro.
Cassi ficou impressionada e grata pela intervenção de seu marido. E ficou a imaginar por que ele não lhe mencionara o fato até se lembrar de que ela não dera uma oportunidade a Thomas. Ela havia trazido à baila sua operação dos olhos no instante em que o vira.
— Talvez eu deva reconsiderar algumas das coisas feias que tenho dito sobre seu marido — acrescentou Robert.
Seguiu-se um silêncio constrangedor. Cassi não queria discutir os seus próprios sentimentos até então.
— Bem — disse Robert, esfregando as mãos com entusiasmo. — Ao trabalho! Conforme eu disse ao telefone, acho que encontrei um novo caso de MSC.
— Cianótico como o último? — perguntou Cassi, impaciente para mudar de assunto.
— Não. Vamos, quero que você veja.
Ele se levantou de um pulo e arrastou Cassi para fora de seu gabinete, levando-a para uma das salas de autópsia. Um jovem negro não muito escuro estava estendido sobre a mesa de aço inoxidável. A incisão padrão da autópsia em Y tinha sido fechada com suturas grosseiras e desajeitados pedaços de tecido.
— Pedi que deixassem o corpo aqui para que você pudesse ver alguma coisa — disse Robert, sua voz ecoando pela sala recoberta de azulejos.
Ele deixou Cassi entrar e inseriu o dedo polegar na boca de Jeoffry Washington, puxando a mandíbula para baixo.
— Olhe aqui.
Com as mãos atrás das costas, Cassi curvou-se e olhou dentro da boca do paciente. A língua era um retalho de carne.
— Completamente mastigada — disse Robert. — Evidentemente, teve uma terrível crise epiléptica.
Cassi empertigou-se, um pouco enjoada pelo que viu. Se este era um caso de MSC, era ainda o mais jovem.
— Acho que este morreu de arritmia — disse Robert — mas não saberei com certeza até o cérebro ser fixado. Sabe, a vista deste caso não ajuda minha ansiedade sobre minha própria cirurgia. — E Robert olhou para Cassi.
— Quando você vai se operar? — perguntou ela. A afirmação de Robert parecia definitiva.
Robert sorriu.
— Eu lhe disse, mas você não quis acreditar que eu ia mesmo me operar. Vou ser internado amanhã. E você?
Cassi abanou a cabeça.
— Ainda não está definida.
— Mocinha — falou Robert, com ar de superioridade. — Por que você não marca a sua para depois de amanhã também, de modo que possamos nos visitar na sala de recuperação?
Cassi não queria comentar com Robert as dificuldades de tratar do assunto com Thomas. Relutantemente, seus olhos voltaram para o cadáver.
— Que idade? — perguntou Cassi, apontando para Jeoffry Washington.
— Vinte e oito — respondeu Robert.
— Deus, como era jovem — disse Cassi. — E o último caso ocorreu há apenas duas semanas.
— É verdade.
— Você sabe, quanto mais penso nisso, mais perturbadores me parecem esses casos.
— Por que você acha que tenho persistido? — disse Robert.
— Com o número que você tem agora e o aparente aumento da frequência, está cada vez mais difícil atribuir as mortes ao acaso.
— Concordo — disse Robert. — Desde o último caso, tenho a aborrecida suspeita de que essas mortes estão mais intimamente relacionadas do que suspeitamos. O único problema com esta ideia é que ela sugere um agente específico e, conforme seu marido deixou claro, as mortes são fisiologicamente diferentes. Os fatos não se ajustam à teoria.
Cassi contornou a mesa para o lado direito de Jeoffry.
— Isso lhe parece inchado? — indagou ela, estendendo a mão e passando-a pelo antebraço do corpo.
Robert inclinou-se para ver.
— Não sei. Onde?
Cassi apontou.
— O paciente estava tomando uma injeção endovenosa?
— Acho que sim — disse Robert. — Acho que estava tomando antibióticos por causa de uma flebite.
Cassi levantou o braço esquerdo de Jeoffry e olhou o local da injeção endovenosa. Estava vermelho e intumescido.
— Apenas por curiosidade, que tal retirar algumas seções da veia onde estava a injeção endovenosa?
— Qualquer coisa, se isso a fizer vir aqui em cima visitar-me.
Cassi recolocou o braço de Jeoffry com tanto cuidado como se ele ainda estivesse sensível.
— Você sabe se todos os casos de MSC estavam sob a aplicação de injeções endovenosas? — perguntou Cassi.
— Não sei, mas posso verificar — respondeu Robert. — Tenho uma ideia sobre o que você está pensando e não me agrada.
— A outra sugestão que tenho é comparar os supostos mecanismos fisiológicos da morte e ver se existe algum padrão comum. Você sabe o que quero dizer.
— Sei o que você quer dizer — falou Robert. — É provável que eu possa fazer isso hoje. E posso tirar os pedaços da veia, mas você tem de prometer que virá aqui em cima para vê-los. De acordo?
— De acordo — disse Cassi.
Ao apertar o botão do elevador no corredor do lado de fora do departamento de patologia, ela estava certa da horrível sessão que teria com Maureen Kavenaugh. Sem dúvida, a depressão de Maureen exacerbava a própria depressão de Cassi. O fato de Cassi ter motivos para estar deprimida, conforme Joan havia demonstrado, não tornava mais fácil viver com seus sintomas.
O pavor de se encontrar com Maureen aborrecia Cassi, pois obrigava-a a admitir que, como psiquiatra, ela teria que tratar com seus próprios valores de julgamento. Em outras áreas da medicina, se alguém era forçado a se reunir com um paciente de quem não gostava, bastava concentrar-se na patologia e cortar o contato pessoal ao mínimo. Na psiquiatria isso não era possível.
Felizmente, quando ela entrou em seu consultório, ainda não estava à vista. Cassi sabia que ia ter dificuldade em se concentrar no que Maureen tinha a dizer, porque a decisão de Robert de se operar trouxera à baila a sua própria cirurgia. Ela sabia que Robert tinha razão. Depois de um momento de indecisão, discou para o consultório de Thomas.
Infelizmente, ele ainda estava na cirurgia.
— Não sei quando ele sairá — disse Doris — mas sei que será tarde, porque ele me telefonou e disse para cancelar todos os compromissos da tarde.
Cassi agradeceu e desligou. Vagamente, ela fixou o olhar em sua gravura de Monet. O comentário de Joan sobre o "médico incapaz" romper seu programa de compromissos flamejou em sua mente. Então, ela afastou o pensamento. Era evidente que Thomas havia cancelado suas horas de consulta porque estava preso na cirurgia.
Uma batida interrompeu seus pensamentos. O rosto apático de Maureen apareceu no portal.
— Entre — disse Cassi, tão animadamente quanto pôde. Ela suspeitava de que os próximos 50 minutos iam ser um bom exemplo do cego guiando outro cego.
Foi Doris, e não Thomas, quem telefonou para Cassi no meio da tarde, para dizer que o Dr. Kingsley a encontraria na entrada principal do hospital às seis horas em ponto. Ela insistiu com Cassi para que não se atrasasse devido à festa daquela noite. Cassi compareceu ao saguão prontamente, mas quando o relógio sobre a cabine telefônica indicou 6h20, ela se preocupou, achando que podia ter recebido a mensagem errada.
A porta do hospital estava apinhada com ondas de gente que entrava e saía. As pessoas que saíam eram principalmente empregados que conversavam e riam, satisfeitas de verem mais um dia de trabalho chegar ao fim. Os que chegavam eram na maior parte visitantes que pareciam dominados e intimidados ao se alinharem diante da cabine de informações para obterem informações de funcionários voluntários em seus aventais verdes.
Observar as multidões fez o tempo passar e quando Cassi tornou a olhar para o relógio, eram quase seis e meia. Por fim, resolveu telefonar para o consultório de Thomas, mas, ao se dirigir para o telefone, percebeu um lampejo da cabeça dele acima da multidão. Ele parecia tão cansado quanto Cassi. Seu rosto estava assombreado, devido a um crescimento irregular da barba, como se ele não tivesse se barbeado com cuidado naquela manhã. Ao chegar mais perto, Cassi pôde ver que os olhos dele estavam orlados de vermelho.
Incerta de como seria recebida, Cassi ficou calada. Ao perceber que Thomas não tencionava falar ou mesmo parar, ela enfiou seu braço no dele e foi levada rapidamente para a porta giratória.
Do lado de fora, Cassi se confrontou com uma mistura de chuva e neve, que se derretia no instante em que os flocos tocavam o chão. Erguendo a bolsa e colocando-a sobre o ombro, ela ocultou seu rosto e saiu aos tropeções atrás de Thomas, para a garagem do estacionamento.
Uma vez dentro da garagem, ele parou e, finalmente, virando-se para Cassi comentou:
— Tempo horrível.
— Estamos pagando pela beleza do outono — disse Cassi, encorajada pelo fato de Thomas não parecer estar de mau humor. Talvez Patricia não lhe houvesse contado da sua visita ao estúdio dele.
O motor do Porsche estrondeou como um trovão na garagem. Enquanto ele observava os mostradores e medidores, Cassi cuidadosamente colocou seu cinto de segurança. Foi preciso um grande esforço para ela não dizer a Thomas para colocar o seu, em especial dado o mau tempo, mas lembrando-se de sua resposta anterior, Cassi ficou em silêncio.
Toda vez que nevava, o tráfego em Boston se transformava num lento ir e vir totalmente confuso. Como Thomas e Cassi prosseguiam para leste na Storrow Drive, a maior parte do tempo ficavam parados, engarrafados. Embora Cassi quisesse falar, estava com medo de quebrar o silêncio.
— Você soube de Robert Seibert hoje? — perguntou finalmente Thomas.
Cassi girou a cabeça em derredor. Thomas ainda mantinha os olhos fixos na estrada, apesar de o carro estar imobilizado num mar de lanternas traseiras vermelhas. Ele parecia hipnotizado pelo rítmico click-clack dos limpadores do para-brisa.
— Falei com Robert hoje — admitiu Cassi, surpresa com a pergunta. — Como foi que você soube?
— Eu soube que um dos pacientes de George Sherman tinha morrido. Aparentemente, o acontecimento não era esperado e fiquei a imaginar se seu amigo Robert ainda estava interessado na série desses casos.
— Completamente — disse Cassi. — Fui até a sala de autópsias. E quando o fiz, Robert me contou como você o salvou na conferência. Acho que foi muito bonito de sua parte, Thomas.
— Eu não estava tentando ser bom — disse Thomas. — Estava interessado no que ele tinha para dizer. Mas ele foi um tolo em fazer o que fez e ainda acho que merecia um pontapé na bunda.
— Creio que ele recebeu o pontapé — observou Cassi.
Com um fraco sorriso, Thomas se aproveitou da melhora do tráfego e meteu seu carro na via rápida.
— Esta última morte foi mais uma das suspeitas? — perguntou ele ao acelerar o carro para 112km. Ele dirigia com ambas as mãos sobre o volante, piscando seus faróis alto e baixo na medida em que chegava atrás de alguém andando mais devagar.
— Robert acha que sim — disse Cassi, apertando involuntariamente as mãos. Ela sempre se apavorava quando Thomas dirigia. — Mas ele ainda não examinou o cérebro. Ele acha que o paciente entrou em convulsões antes de morrer.
— Então não foi como o último caso? — perguntou Thomas.
— Não — disse Cassi. — Mas Robert acha que as situações são correlatas. — Propositadamente, ela conservou em segredo o seu próprio papel na discussão.
— A maioria dos pacientes, em particular nos últimos anos, morreram após o período agudo pós-operatório ter passado. Um ponto que ocorreu a Robert hoje foi que todos os pacientes vinham tomando injeções endovenosas quando morreram. Agora ele está verificando isso. Pode ser significativo.
— Por quê? Robert acha que essas mortes podem ser suspeitas? — indagou Thomas, chocado.
— Acho que isso lhe ocorreu — disse Cassi. — Afinal de contas, houve um caso em Nova Jersey onde se aplicou curare ou algo semelhante a uma série de pacientes.
— Isso é verdade, mas todos eles morreram com os mesmos sintomas.
— Bem — continuou Cassi — creio que Robert acha que tem de considerar todas possibilidades. Sei que isso é horrível e que certamente acentua quaisquer inseguranças que Robert tenha sobre sua própria cirurgia iminente.
— A que espécie de cirurgia Robert vai se submeter?
— Ele vai finalmente extrair seu dente do siso. Como ele teve doença reumática quando criança, tem de ser tratado com antibióticos profiláticos.
— Ele seria um louco se não se operasse — concordou Thomas. — Se bem que ele deva ter tendências suicidas. É a única maneira pela qual posso explicar sua atitude na conferência. Cassi, quero que tenha a certeza de se afastar desse chamado estudo de MSC, principalmente se houver acusações ridículas. Com tudo o mais prosseguindo, não preciso deste tipo de desgosto.
Cassi observava os carros da frente enquanto o Porsche os vencia continuamente. O movimento monótono dos limpadores do para-brisa hipnotizavam-na na medida em que ela buscava coragem para frustrar sua própria operação. Ela havia se prometido que começaria a falar assim que ultrapassassem aquele carro amarelo. Mas o carro amarelo logo ficou para trás. Depois foi a vez do ônibus. Mas eles o ultrapassaram também e Cassi continuava em silêncio. Desesperada, ela desistiu, esperando que o próprio Thomas tocasse no assunto.
A tensão a exauria. A ideia da festinha na casa de Ballantine parecia cada vez menos atraente. Ela se perturbava em tentar compreender por que Thomas, entre todas as pessoas, queria prosseguir com o assunto. Ele odiava os casos hospitalares. Ocorreu a Cassi que ele poderia estar fazendo isso em benefício dela. Se este era o caso, ela achava ridículo. Tudo em que podia pensar era em lençóis limpos e sua cama confortável. Ela decidiu falar alguma coisa quando fizessem a próxima ultrapassagem.
— Você realmente quer ir a esta festa hoje à noite? — perguntou Cassi hesitante, ao se delinear uma nova ultrapassagem.
— Por que pergunta? — disse Thomas, puxando o carro todo para a direita e depois acelerando a fim de ultrapassar um carro que havia ignorado seus sinais com os faróis.
— Se você fosse por mim... — disse Cassi. — Estou exausta. Eu preferia muito mais ficar em casa.
— Diabos! — gritou Thomas, batendo violentamente no volante. — Você só pensa em si mesma! Há semanas que eu lhe disse que o conselho de diretores e os reitores da escola de medicina vão estar aqui. Algo de estranho está ocorrendo no hospital e acho que eles não estão me contando. Mas não creio que você ache isso importante.
Na medida em que Thomas ficava rubro de raiva, Cassi afundou-se em seu assento. Ela nutria a sensação de que, dissesse o que dissesse, só poderia tornar as coisas piores.
Thomas caiu num soturno silêncio. Ele dirigia ainda mais imprudentemente, levando o carro para 135km enquanto atravessavam os pântanos salgados. Apesar do cinto de segurança, Cassi via-se jogada de um lado para o outro quando o carro fazia curvas apertadas. E ficou aliviada quando ele reduziu a marcha e entrou no caminho para o carro em casa deles.
Quando chegaram na porta da frente, Cassi já estava resignada a respeito da festa. Ela desculpou-se por não compreender suas implicações e acrescentou delicadamente:
— Você mesmo parece cansado.
— Muito obrigado! Aprecio o seu voto de confiança — disse Thomas sarcasticamente. E partiu na direção das escadas.
— Thomas — chamou Cassi, desesperada. Ela podia dizer que ele havia interpretado sua preocupação como um insulto. — Tem de ser assim?
— Acho que é como você deseja.
Cassi tentou objetar.
— Por favor, não vamos fazer uma cena — gritou Thomas. E depois, com a voz mais controlada: — Sairemos dentro de uma hora. Você é quem está com um aspecto horrível. Seu cabelo está em desalinho. Espero que esteja planejando dar um jeito nele.
— Darei — disse Cassi. — Thomas, eu não quero que briguemos. Isso me aterroriza.
— Não vou me meter nesse tipo de discussão — retrucou bruscamente Thomas. — Não agora. Esteja pronta em uma hora.
Correndo para o seu estúdio, ele foi diretamente para o banheiro, murmurando coisas sobre o egoísmo de Cassi. Ele lhe havia falado muito especificamente sobre a festa e por que ela era importante, porém ela havia esquecido convenientemente porque estava cansada demais!
— Por que tenho de tolerar isso? — falou ele, passando a mão por sua barba:
Tirando seus apetrechos de barbear, Thomas ensaboou o rosto. Cassi estava se tornando mais do que uma fonte de irritação. Estava se tornando uma carga. Primeiro os problemas com seu olho, depois a preocupação com o fato de ele tomar uma droga ocasional e agora sua associação com o provocativo artigo de Seibert.
Thomas começou a se barbear, com golpes curtos e irritados. Estava começando a se sentir como se todo mundo estivesse contra ele, tanto em casa quanto no hospital. No trabalho o principal ofensor era George Sherman, que estava constantemente solapando-o com toda aquela suposta merda de ensino. Só de pensar nisso, Thomas ficou tão frustrado que atirou seu aparelho de barbear no boxe com toda a força que pôde reunir. Ele ricocheteou pelas paredes de azulejos, fazendo um grande ruído antes de parar junto ao ralo.
Deixando-o onde ficou, Thomas entrou no chuveiro. A água corrente sempre tendia a acalmá-lo e, após permanecer sob a ducha por alguns minutos, sentiu-se melhor. Enquanto se enxugava, ele ouviu a porta de seu estúdio abrir-se. Esperando que fosse Cassi, não se deu ao incômodo de olhar, mas quando passou para o banheiro já pronto, abriu a porta para encontrar Patricia sentada em sua poltrona.
— Você não me ouviu entrar? — perguntou ela.
— Não — disse Thomas. Era mais fácil mentir. E se dirigiu para o armário embaixo das estantes dos livros, onde vinha guardando algumas de suas roupas.
— Ainda me lembro de quando você costumava me levar a essas festas do hospital — falou Patricia, queixosa.
— Você será bem-vinda se vier — disse Thomas.
— Não. Se você realmente quisesse que eu fosse teria me convidado, em vez de me fazer pedir.
Thomas achou melhor não responder. Toda vez que Patricia estava com um desses "maus humores", era mais seguro não dizer nada.
— Na noite passada, vi a luz acender-se aqui no estúdio e pensei que você tivesse voltado para casa. Em vez disso, encontrei Cassandra aqui.
— Em meu estúdio? — perguntou Thomas.
— Ela estava ali bem atrás de sua mesa — apontou Patricia.
— Fazendo o quê?
— Não sei. Não perguntei a ela. — Patricia levantou-se com uma expressão de quem estava satisfeita consigo mesma. — Eu lhe disse que ela ia causar problemas. Mas, oh não! Você sabia melhor.
Ela saiu despreocupadamente do quarto e fechou a porta atrás de si.
Thomas atirou suas roupas limpas sobre o sofá e foi para sua mesa. Abrindo a gaveta com suas drogas, ficou aliviado ao ver os frascos de comprimidos exatamente conforme os havia deixado atrás de seus papéis.
Mesmo assim Cassi o estava pondo louco. Ele advertira-a para que ficasse longe de seus pertences. Thomas sentiu que estava começando a tremer. Instintivamente, pegou sua caixinha de comprimidos e tirou dois: um Percodan para a dor de cabeça que ele podia sentir por trás de seus olhos e uma Dexedrina para mantê-lo desperto. Se valia a pena ir àquela festa, pelo menos ele estaria alerta.
Cassi pôde sentir uma tremenda mudança para pior no humor de Thomas enquanto se dirigiam para Manchester. Ela ouvira Patricia entrar em casa e achou que tinha visitado Thomas. Não levou muito tempo para que imaginasse o que ela dissera a ele. Como Thomas já estava de mau humor, Patricia não poderia ter escolhido ocasião pior.
Cassi tinha feito um grande esforço para parecer o melhor possível. Depois de haver tomado sua insulina da noite, cuja dose ela aumentou devido ao índice de açúcar que sua urina revelara, Cassi tomou um banho e lavou seus cabelos. Depois, escolheu um dos vestidos que Robert havia sugerido. Era um vestido de veludo castanho escuro com mangas bufantes e um corpete que lhe dava uma charmosa aparência medieval.
Thomas não fez qualquer comentário sobre sua aparência. De fato, não falou nada. Ele tomou o mesmo caminho pelo qual tinha vindo do hospital, dirigindo depressa e com imprudência. Ela gostaria que ele tivesse um amigo íntimo a quem ela pudesse recorrer — alguém que realmente se preocupasse com ele, mas na verdade Thomas não tinha muitos amigos. Por um momento, ela se lembrou de seu último encontro com o Coronel Bentworth. Então, prendeu a respiração. Identificar-se com Maureen Kavenaugh era uma coisa, mas comparar seu marido a uma personalidade fronteiriça era ridículo. Cassi voltou sua atenção para a janela a fim de não pensar e tentava ver através da umidade aderida ao vidro. Era uma noite negra, proibida.
A casa dos Ballantines, dava para o oceano, tal como a de Thomas. Mas as semelhanças terminavam aí. O lar dos Ballantines era uma grande mansão de pedra e pertencia à família há cerca de 100 anos. O Dr. Ballantine tinha vendido um pedaço da terra a um corretor de imóveis, mas como o terreno original era tão grande, nenhuma outra casa podia ser vista do edifício principal. Dava a impressão de se estar no campo.
Ao saírem do carro, Cassi notou que Thomas estava com um ligeiro tremor. Sua coordenação parecia ligeiramente alterada quando ele subiu os degraus da frente. Oh, Deus, que teria ele tomado?
O comportamento de Thomas mudou assim que se juntou ao grupo na festa. Cassi observava admirada, embora soubesse como era fácil ele abandonar o mau humor e se tornar encantador e animado. Se ao menos ele dedicasse um pouco daquele charme a ela... Decidindo que era seguro deixá-lo, Cassi começou a procurar por comida. Tendo-se aplicado a insulina da noite, ela não devia esperar muito para comer. O salão de jantar ficava à direita, e ela se encaminhou para a entrada em arco.
Thomas estava satisfeito. Conforme ele esperara, a maioria dos membros do conselho administrativo e dos reitores da escola de medicina estava presente. Ele os tinha avistado por sobre os ombros do pequeno grupo de pessoas ao qual se juntara assim que chegara. Ele estava particularmente interessado em encontrar o presidente do conselho. Pegando um drinque fresco, ele começou a andar por entre a multidão na direção dos homens quando Ballantine se dirigiu a ele.
— Ah, aí está você, Thomas. — Ballantine havia bebido bastante e os círculos sob seus olhos eram pronunciados, dando-lhe ainda mais a aparência de um cão Basset do que comumente. — Fico satisfeito que você possa ter vindo.
— Maravilhosa festa — disse Thomas.
— É melhor acreditar — falou Ballantine com um piscar de olhos forçado. As coisas estão realmente ocorrendo no velho Boston Memorial. Deus, é excitante.
— Do que você está falando? — perguntou Thomas, recuando um passo. O Dr. Ballantine tinha o hábito de cuspir quando pronunciava os "tês" depois de tomar alguns drinques.
Ballantine aproximou-se mais.
— Eu gostaria de lhe dizer, mas não posso — murmurou ele. — Mas talvez, em breve, acho que você se juntará a nós. O que você resolveu quanto à minha oferta de exercer o professorado em tempo integral?
Thomas sentiu sua paciência se evaporar. Ele não queria saber de se juntar à equipe de tempo integral. Não fazia a menor ideia do que Ballantine estava se referindo quando dizia: "As coisas estão realmente ocorrendo." Mas Thomas não gostava do modo pelo qual aquilo soava. No que tocava a ele, qualquer mudança no status quo era desagradável. De repente, ele se lembrou de ter visto o escritório de Ballantine fulgurante de luz às 2h30 da madrugada.
— Que estava você fazendo em seu consultório tão tarde na noite passada?
O rosto feliz de Ballantine se enevoou.
— Por que pergunta?
— Apenas por curiosidade — disse Thomas.
— É uma estranha pergunta para ser feita assim de repente — retrucou Ballantine.
— Eu estava na cirurgia na noite passada. E lá da sala dos médicos vi a luz no seu gabinete.
— Devia ser o pessoal da limpeza. — E levantou seu copo, pondo-se a olhar para ele. — Parece que preciso reabastecer o copo.
— Vi também o carro de George Sherman na garagem — prosseguiu Thomas. — Pareceu-me uma estranha coincidência.
— Ah! — exclamou Ballantine, com um aceno de mão.
— Há cerca de um mês que George vem tendo problemas com aquele carro. Alguma coisa com o sistema elétrico. Aceita um outro drinque? Você está tão deprimido quanto eu.
— Por que não? — disse Thomas.
Ele estava certo de que Ballantine estava mentindo. No momento em que o chefe se encaminhou para o bar, Thomas recomeçou sua busca pelo presidente do conselho de administração. Era mais importante do que nunca descobrir o que estava se passando no Memorial.
Cassi ficou junto à mesa do bufê durante algum tempo, comendo e conversando com várias outras mulheres. Quando se certificou de que já havia absorvido bastantes calorias para equilibrar sua insulina, achou melhor ir procurar Thomas. Ela não tinha ideia da droga que ele havia tomado e estava nervosa. Acabava de se dirigir para a sala de estar quando George Sherman a deteve.
— Você está linda, como sempre — disse ele com um caloroso sorriso.
— Você também está muito bem, George — respondeu Cassi. — Gosto muito mais de você num smoking do que naquele velho casaco de belbutina.
George riu, constrangido.
— Tenho desejado lhe perguntar o que você acha da psiquiatria. Fiquei surpreso quando soube que você tinha trocado. Em muitos sentidos, eu a invejo.
— Não me diga que dá alguma credibilidade à psiquiatria. Não creio que nenhum cirurgião o faça.
— Minha mãe sofreu uma grave depressão pós-parto depois que nasceu meu irmão mais jovem. Estou convencido de que sua psiquiatra salvou-lhe a vida. Eu podia tê-la escolhido como especialidade se achasse que seria bem-sucedido. É necessário uma sensibilidade que não possuo.
— Absurdo — disse Cassi. — Você tem sensibilidade. Acho que seria a passividade que lhe traria problemas. Na psiquiatria, quem deve trabalhar é o paciente.
George ficou em silêncio por um momento e, enquanto Cassi observava seu rosto, subitamente pensou em juntá-lo a Joan. Eram ambos tão bons.
— Você está interessado em conhecer uma nova mulher muito atraente nesses dias?
— Estou sempre interessado em mulheres atraentes. Se bem que muito poucas cheguem a seus pés.
— Seu nome é Joan Widiker. É uma residente do terceiro ano em psiquiatria.
— Espere um instante — disse George. — Não tenho certeza de que possa lidar com uma psiquiatra. Com toda a certeza, ela vai me fazer todo o tipo de perguntas difíceis quando eu revelar meus chicotes e minhas correntes. Posso ficar muito constrangido. Pior do que quando estive com você.
Lembra-se daquele primeiro encontro?
Cassi riu. Como poderia esquecer? George tinha tocado tão desajeitadamente sua mão durante o jantar, que ela havia cuspido a comida em seu colo. Então, em sua impaciência para consertar as coisas, ele também derramara o Chianti no colo dela.
— Não quero parecer ingrato — disse George. — Aprecio o fato de você pensar em mim e vou telefonar para Joan. Mas Cassi, eu queria falar com você sobre algo mais sério.
Inconscientemente, Cassi se empertigou, incerta do que estava para vir.
— Como um colega, estou aborrecido com Thomas.
— Oh! — exclamou Cassi o mais casualmente que pôde.
— Ele está trabalhando demais. Uma coisa é ser dedicado, outra é ser obcecado. Já vi isso antes. Muitas vezes os médicos vão a 900 por hora durante anos e então, de repente, se queimam. O motivo de eu estar lhe dizendo isso é para pedir-lhe que você tente fazer com que Thomas reduza o passo, tire umas férias. Ele está se enrolando como uma bobina. Comenta-se por aí que ele tem tido sérias discussões com os residentes e as enfermeiras.
As palavras de George despertaram todas as lágrimas adormecidas de Cassi. Ela mordeu o lábio, mas se conservou calada.
— Se você pudesse fazer com que ele tirasse umas férias, eu seria muito feliz em substituí-lo em sua clínica, se necessário fosse.
George admirou-se de ver os olhos de Cassi se encherem de lágrimas. Ela virou-se, ocultando o rosto.
— Eu não quis assustar você — disse George. Estendendo a mão, ele colocou-a sobre o ombro dela.
— Está bem — falou Cassi, lutando para recobrar sua calma. — Eu estou bem. — Ela ergueu o olhar e esboçou um sorriso.
— O Dr. Ballantine e eu temos discutido a respeito de Thomas — disse George. — Nós gostaríamos de ajudar. Ambos concordamos que, quando alguém trabalha tanto quanto Thomas, tem de reconhecer que precisa pagar um preço emocional.
Cassi acenou afirmativamente com a cabeça, como se entendesse. E apertou a mão de George.
— Se você não se achar à vontade comigo, talvez fosse bom ver o Dr. Ballantine. Ele pensa como seu marido. Você gostaria de conversar com ele em sua extensão particular no hospital?
Cassi esquivou-se ao olhar quente de George. Concentrando-se em sua bolsa, ela tirou um livrinho de notas e um lápis. Quando George lhe deu o número, ela o escreveu. E, ao erguer o olhar, seu coração quase parou. Ela viu-se mirando diretamente o olhar fixo de Thomas. Com o conhecimento nascido da intimidade, ela soube instantaneamente que ele estava violentamente zangado. De súbito, a mão de George passou a pesar demais sobre seu ombro.
Rapidamente ela se desculpou, mas, quando se dirigia para a porta, Thomas já desaparecera.
Desde quando era calouro no colégio, quando um de seus companheiros de quarto marcou um encontro com sua namorada, que Thomas não se via tão irado. Não é de admirar que George viesse agindo tão estranhamente. Ele vinha renovando seu caso com Cassi e esta não teve mais bom senso do que demonstrar seu interesse diante de todos os colegas de Thomas. O nó frio de medo no fundo de seu estômago acentuou-se. Sua mão balançou tão violentamente que ele quase derramou o drinque. Jogando-o rapidamente fora, passou pelas portas envidraçadas para a varanda, recebendo com prazer a fresca brisa do oceano.
Freneticamente, buscou um comprimido nos bolsos. A noite vinha mal desde o início. Um dos membros do conselho administrativo, que já fizera várias viagens ao bar, havia parado de dar parabéns ao novo programa de ensino do hospital. Quando Thomas ficara olhando vagamente em resposta, o homem havia murmurado uma rápida desculpa e retornado para o salão. Thomas tinha estado à procura de Ballantine para pedir uma explicação, quando vira Cassi.
Meu Deus, que idiota ele havia sido! Agora que pensava sobre o fato, era óbvio que George e Cassi estavam tendo um caso. Não era de admirar que ela nunca se queixasse quando ele ficava tantas vezes no hospital. Impiedosamente, sua mente mortificava-o com a ideia de que eles se encontravam em sua própria casa. O pensamento de George em sua cama fez Thomas soltar um grito de raiva. Olhando por sobre o ombro, ele viu um casal junto ao portal e, subitamente, sentiu-se receoso de que eles soubessem do caso. Era evidente que estavam falando a seu respeito. Ele tomou outro comprimido e tornou a entrar no salão para tomar outro drinque.
Desvairada para encontrar Thomas, Cassi começou a abrir caminho pelo salão de estar, desculpando-se na medida em que passava se espremendo por entre os convidados.
Ela estava a caminho do bar quando deu de cara com o Dr. Obermeyer.
— Que coincidência — exclamou ele. — Minha paciente mais difícil!
Cassi sorriu nervosamente. Ela se lembrou de que havia faltado à promessa de vê-lo naquele dia.
— A menos que minha memória esteja falhando, você devia marcar sua operação hoje — disse o Dr. Obermeyer. Falou com Thomas sobre ela?
— Por que não vou ao seu consultório amanhã de manhã? — argumentou Cassi, evasiva.
— Talvez eu devesse falar com seu marido — disse o Dr. Obermeyer. — Ele está aqui?
— Não, quero dizer, está, mas não acho que o momento seja oportuno...
Um tremendo grito abalou o salão, fazendo cessar todas as conversas e interrompendo Cassi no meio da frase. Todo mundo ficou confuso; todo mundo menos Cassi. Ela reconheceu a voz. Era Thomas! Voltando às pressas para o salão de jantar, ela ouviu outro grito, seguido do barulho de vidros quebrados.
Forçando o caminho entre os outros convidados, Cassi viu Thomas de pé em frente ao bufê, o rosto vermelho de raiva, com uma porção de pratos quebrados a seus pés. Olhando para ele, horrivelmente surpreso, estava George Sherman, com um drinque numa das mãos e uma cenoura na outra.
Enquanto Cassi observava a cena, George estendeu a mão e bateu de leve com o pedaço de cenoura no ombro de Thomas, dizendo:
— Thomas, você está enganado.
Thomas afastou o braço de George com um violento golpe de seu punho.
— Não me toque! E jamais toque em minha mulher. Entendeu? — E apontou um dedo ameaçador na cara de George.
— Thomas? — falou George, desamparado.
Cassi interpôs-se entre os dois homens.
— Que é que há com você, Thomas? — disse ela, agarrando seu casaco. — Controle-se!
— Controlar-me? — repetiu ele, virando-se para ela. — Acho que isso se aplica mais a você do que a mim.
Com um desdenhoso sorriso de escárnio, ele livrou-se da mão de Cassi, que o agarrava, e se dirigiu para a porta da frente. Ballantine, que estivera na cozinha, seguiu-o, chamando por seu nome.
Cassi pediu rápidas desculpas a George e se encaminhou para a porta, a cabeça curvada para evitar os olhares curiosos.
Entrementes, Thomas havia encontrado seu casaco e estava dizendo iradamente a Ballantine:
— Lamento tremendamente tudo isso, mas é difícil de aguentar saber que um colega está tendo um caso com sua esposa.
— Não posso acreditar nisso — disse Ballantine.— Você está certo?
— Estou certo — retrucou Thomas, virando-se para abrir a porta e segurando o braço de Cassi, que passava correndo.
— Thomas, que é que você está fazendo? — disse ela, lutando com as lágrimas.
Thomas não respondeu. Abotoando seu casaco, ele voltou-se para ir embora.
— Thomas, fale comigo. Que foi que aconteceu?
Thomas arrancou o seu braço do de Cassi com tal força que ela quase caiu ao chão. A moça hesitou enquanto ele abria a porta e saía como um furacão.
Cassi pegou-o no fim dos degraus.
— Thomas, se você vai embora, então eu vou também. Deixe-me apanhar meu casaco.
Thomas estacou.
— Não quero você comigo. Por que não fica aqui e desfruta do seu caso?
Confusa, Cassi viu-o afastar-se.
— Meu caso? Este caso é seu. Bem que eu não queria vir aqui esta noite!
Thomas não respondeu. Cassi colheu a saia do seu vestido longo e correu atrás dele. Quando ele alcançou o Porsche ela estava tremendo violentamente, mas não sabia se de medo ou de frio.
— Por que você está agindo deste modo? — soluçou ela.
— Eu posso ser uma porção de coisas, mas não sou idiota — respondeu Thomas asperamente, batendo a porta do carro contra ela. O motor ligou com um estrondo.
— Thomas, Thomas — chamou Cassi, batendo com uma das mãos contra a janela e tentando abrir a porta com a outra. Thomas ignorou-a e recuou rapidamente. Se Cassi não houvesse recuado, afastando-se do carro, teria sido apanhada pelo mesmo. Olhando fixamente e sem dizer nada, ela viu o Porsche trovejar pelo caminho abaixo.
Mortificada, ela voltou para a casa. Talvez ela pudesse se esconder num dos quartos de cima até conseguir arranjar um táxi. Ao retornar para o saguão, sentiu-se aliviada ao ver que os convidados estavam novamente ocupados com seus drinques e rindo. Apenas George e o Dr. Ballantine estavam aguardando na porta.
— Lamento — disse Cassi, embaraçada.
— Não se desculpe — disse o Dr. Ballantine. — Sei que George teve uma conversa com você. Nós estamos preocupados com Thomas e acho que ele está com estafa, de tanto trabalhar. Temos planos que vão aliviar a carga de Thomas, mas ele tem estado tão transtornado ultimamente que não tivemos a oportunidade de discutir o assunto.
Ballantine e George entreolharam-se.
— É isso mesmo — concordou George. — Acho que o infeliz episódio desta noite só confirma o que estamos dizendo.
Cassi estava muito assustada e confusa para responder.
— George me disse também que lhe deu o número da minha extensão particular no hospital. Eu ficaria feliz em vê-la a qualquer hora que você quiser, Cassi. Por falar nisso, por que você não passa pelo meu consultório amanhã?
— Agora, você não gostaria de se reunir ao pessoal na festa? — perguntou Ballantine. — Ou prefere que um dos meus rapazes leve você até em casa?
— Eu gostaria de voltar para casa — respondeu Cassi, enxugando os olhos com o dorso da mão.
— Ótimo — disse Ballantine. — Espere um momento. — Em seguida, virou-se e subiu as escadas para o segundo andar.
— Desculpe — falou Cassi para George quando eles ficaram sozinhos. — Não sei o que deu em Thomas.
George abanou a cabeça.
— Cassi, se ele realmente soubesse o quanto me interesso por você, teria todos os motivos para ter ciúmes. Agora sorria. Eu estava apenas lhe retribuindo um cumprimento.
E ficou em pé, olhando amorosamente para ela, até que o filho de Ballantine trouxe o carro.
Cassi não sabia o que esperar quando girou a chave na porta da frente. Ficou surpresa ao ver uma luz na sala de estar. Se Thomas estava em casa e não no hospital, ela admitiu que ele estaria trancado em seu estúdio. Nervosamente, ela atravessou o saguão, endireitando seu cabelo o melhor que pôde.
Mas era sua sogra, e não Thomas, quem a estava aguardando.
Patricia estava sentada numa poltrona, o rosto perdido na semiobscuridade da luz de um único abajur de pé. Lá em cima, Cassi ouviu um fluxo de água no toalete.
Por um longo tempo, nenhuma das duas mulheres falou. Então, Patricia levantou-se tesa, os ombros curvados como se sob um grande peso. Seu rosto estava repuxado, acentuando as rugas em torno da boca. Caminhou na direção de Cassi e olhou em seus olhos.
Cassi manteve-se firme.
— Estou chocada — disse Patricia por fim. — Como você pôde fazer isso? Talvez, se ele não fosse meu filho único, não teria me magoado tanto.
— Sobre o que está falando? — perguntou Cassi.
— E pegar um dos colegas de Thomas — continuou Patricia, ignorando a jovem. — Um homem que vem continuamente tentando solapar sua posição. Se você estava querendo ter um caso, por que não procurar um estranho?
— Não estou tendo caso nenhum — disse Cassi, desesperada. — Isso é um absurdo. Oh Deus, Thomas não é o mesmo!
Ela observou a sogra em busca de um sinal de compreensão, porém Patricia continuava rigidamente a olhar para ela com uma mistura de tristeza e raiva.
Cassi estendeu os braços para a mulher.
— Por favor — implorou ela. — Thomas está com problemas. Não quer ajudá-lo?
Patricia continuava indiferente.
Deixando os braços penderem dos lados do corpo, Cassi contemplava Patricia caminhar vacilante na direção da porta. Ela parecia ter envelhecido 10 anos desde que Cassi a vira pela última vez. Se ela ao menos tivesse ouvido. Mas Cassi percebeu por fim que era mais fácil Patricia romper seu coração com uma mentira do que enfrentar a mais assustadora verdade quanto ao vício de Thomas. Ao mesmo tempo em que criticava Thomas, Cassi sabia que Patricia jamais conceberia a possibilidade de haver algo de significativo com seu filho.
Cassi permaneceu na semiobscuridade da sala de estar muito tempo depois de ter ouvido a porta da frente se fechar. Ela derramara mais lágrimas nas últimas 48 horas do que o fizera nos últimos 20 anos. Como era possível que Thomas acreditasse que ela estava tendo um caso? A ideia era insensata.
Finalmente, com passos pesados, subiu as escadas para ir ao encontro de Thomas. Não havia meios de poder ir para a cama. Ela precisava tentar falar com ele. Por um momento, ela hesitou do lado de fora do estúdio. Então, bateu de leve na porta.
Não houve resposta.
Tornou a bater, desta vez com mais força. Ainda assim, ninguém respondeu e ela tentou abrir a porta. Estava trancada. Determinada a falar com ele, Cassi se dirigiu ao quarto de hóspedes e entrou no estúdio através do banheiro que unia os dois.
Ele estava sentado, imóvel, em sua poltrona, olhando fixamente para a frente, os olhos vagos. Se ele escutou Cassi, sua expressão não mudou. Um leve sorriso erguia os cantos de sua boca. Mesmo depois que Cassi se ajoelhou e comprimiu a mão dele de encontro ao rosto dela, ele não se mexeu.
— Thomas — chamou ela baixinho.
Finalmente, Thomas baixou os olhos para ela.
— Thomas, eu jamais tive caso algum com George. Nunca mais olhei para ninguém desde que nos conhecemos. Eu o amo. Por favor, deixe-me ajudá-lo.
— Não acredito em você — disse Thomas, pronunciando as palavras indistintamente. Depois, seus olhos reviraram para cima e ele desmaiou, deixando Cassi ainda a segurar-lhe a mão. Ela abriu o sofá-cama e tentou fazer com que ele se mexesse, porém ele recusou. Ela sentou-se ao lado dele durante algum tempo antes de ir para o seu próprio quarto e tentar dormir.
DE MANHÃ, Cassi levantou-se e vestiu-se antes que o despertador silenciasse no estúdio. Ele ficou tocando, tocando. Preocupada, ela correu pelo corredor e abriu a porta. Thomas estava derreado sobre sua cadeira, exatamente como ela o havia deixado na noite anterior.
— Thomas — falou ela, sacudindo-o.
— O que... o que é? — murmurou ele.
— São quinze para as seis. Você não tem cirurgia esta manhã?
— Pensei que nós íamos à festa de Ballantine — sussurrou ele.
— Thomas, isso foi na noite passada. Oh, Deus, talvez você pudesse telefonar dizendo que está doente. Você nunca faltou um dia. Deixe-me telefonar para Doris e ver se ela pode adiar suas operações.
Thomas levantou-se com dificuldade. Oscilou e se apoiou contra o braço da poltrona.
—- Não, estou ótimo. — Sua voz continuava ligeiramente embotada. — E com o corte nas minhas horas de cirurgia, não vou poder reescalonar minhas operações por semanas. Alguns dos pacientes deste mês já esperaram demais.
— Então deixe alguém...
Thomas levantou a mão tão depressa que Cassi pensou que ele ia bater nela, mas, em vez disso, ele entrou às pressas no banheiro, batendo a porta. Alguns minutos mais tarde, ela ouviu-o ligar o chuveiro. Quando ele desceu, parecia estar em melhor forma. Provavelmente por que havia tomado um par de Dexedrinas, pensou Cassi.
Ele bebeu rapidamente um copo de suco e uma xícara de café, seguindo depois para a garagem.
— Mesmo que eu volte para casa esta noite, chegarei muito tarde, de modo que seria melhor você levar seu próprio carro — falou ele por sobre o ombro.
Cassi permaneceu sentada à mesa da cozinha por um longo tempo, antes que ela também começasse a longa viagem para o hospital. "Pela primeira vez", pensou ela, "não é Thomas que me preocupa. São seus pacientes. Não sei se ele está em condições para operar."
Ao chegar no Boston Memorial, Cassi decidiu fazer três coisas assim que a reunião com a equipe terminasse; marcaria uma consulta para resolver a operação de seu olho, arranjaria o necessário tempo de licença e veria o Dr. Ballantine para confiar-lhe seus receios quanto a Thomas. Afinal de contas, o problema tanto afetava o hospital quanto o seu casamento.
Joan notou a preocupação de Cassi, mas antes que tivesse a chance de lhe fazer algumas perguntas, no fim da reunião Cassi falou qualquer coisa sobre ver seu oftalmologista, saindo apressadamente do andar.
O Dr. Obermeyer interrompeu sua programação no momento em que viu Cassi aparecer. Ele saiu de seu gabinete interior ainda com a lâmpada de mineiro fixada no alto da cabeça.
— Espero que você tenha chegado à decisão certa — disse ele.
Cassi acenou afirmativamente com a cabeça.
— Eu gostaria de ser programada para operação o mais breve possível. Com efeito, quanto mais cedo melhor, antes que eu tenha uma chance de mudar de opinião.
— Eu esperava que você dissesse isso — comentou o Dr. Obermeyer. De fato, tomei a liberdade de programar você como uma semiemergência para depois de amanhã. Está bem para você?
A boca de Cassi ficou seca, porém ela aquiesceu obedientemente.
— Perfeito — disse o Dr. Obermeyer com um sorriso.
— Não se preocupe com nada. Trataremos de todos os arranjos. Você será internada no hospital amanhã. — E o Dr. Obermeyer chamou a secretária pela cigarra.
— Por quanto tempo ficarei impossibilitada de trabalhar? — perguntou Cassi calmamente. — Preciso conversar com o chefe da psiquiatria.
— Isso depende do que encontrarmos, mas acredito que de uma semana a dez dias.
— Tanto tempo assim? — Ela pôs-se a pensar no que aconteceria aos seus pacientes.
Caminhando vagarosamente para o Edifício Profissional, Cassi decidiu telefonar para o Dr. Ballantine, antes que lhe faltasse coragem. Ele próprio atendeu e assegurou-lhe que não tinha nenhuma operação e que poderia vê-la dentro de meia hora.
Depois de arranjar a licença por doença, Cassi resolveu matar o resto do tempo, antes de sua entrevista com Ballantine, visitando a patologia. Ela podia contar a Robert sobre sua cirurgia e só o fato de vê-lo lhe dava confiança. Mas o gabinete dele estava vazio. Uma das técnicas disse-lhe que Robert não era esperado tão cedo. Ele se internara cedo naquela tarde, para se submeter à sua cirurgia oral, e tinha saído para comer o que provavelmente seria sua última refeição por uma semana.
Cassi já havia voltado ao elevador quando se lembrou de Jeoffry Washington. Retornando ao laboratório, ela pediu os slides à técnica. A mulher localizou sem dificuldade a bandeja de Jeoffry Washington, mas explicou que só metade dos slides estava pronta. Disse que levava pelo menos dois dias para se preparar um caso e sugeriu que Cassi voltasse no dia seguinte, quando toda a série estaria pronta. Cassi disse que entendia, mas que só estava interessada nas montagens de parte da veia, que provavelmente já tinham sido feitas.
Os slides que Cassi queria estavam disponíveis e, de fato, foram os primeiros que ela viu ao abrir a bandeja. Havia seis ao todo, rotulados — VEIA BASÍLICA ESQUERDA, CORANTE FUCSINA E EOSINA — e seguidos do número da autópsia de Jeoffry Washington.
Cassi sentou-se junto do microscópio de Robert e, ajustando as oculares, focalizou o primeiro dos slides. Havia uma pequena estrutura anular dentro de uma mancha de tecido cor-de-rosa. Mesmo sob o pequeno aumento, Cassi viu algo estranho. Olhando mais de perto, ela identificou múltiplos pequenos precipitados brancos no interior da veia. Então, Cassi examinou as paredes da veia. Pareciam completamente normais. Não havia infiltração de células inflamatórias. Cassi imaginou se os pequenos flocos brancos não teriam sido introduzidos no processo da montagem. Não havia meios de dizer. Ela verificou a estante dos slides e achou o mesmo precipitado em todos, menos um.
Devolvendo-os ao laboratório, Cassi mostrou-os à técnica, que também ficou perplexa. Cassi decidiu contar a Robert no instante em que descobrisse o número de seu quarto. Consultando o relógio, viu que já era hora de ver Ballantine.
Ele estava comendo um sanduíche em sua mesa e perguntou a Cassi se queria que sua secretária lhe trouxesse alguma coisa da lanchonete. Ela abanou a cabeça. Considerando o que tinha a dizer, Cassi não estava certa de que quisesse tornar a comer.
Ela começou pedindo desculpas pela cena que Thomas havia causado, mas o Dr. Ballantine interrompeu-a, assegurando-lhe que a festa tinha sido um sucesso e que ele duvidava se alguém se lembrava do incidente. Cassi bem que gostaria de acreditar naquilo; infelizmente, sabia que era o tipo de cena escandalosa que permanecia na mente das pessoas.
— Falei com Thomas várias vezes esta manhã — disse o Dr. Ballantine. — Eu o vi antes da operação.
— Como estava ele? — indagou Cassi. Com os olhos de sua mente ela podia ver Thomas inconsciente na poltrona de couro, e depois cambaleando ao entrar no banheiro.
— Perfeitamente bem. Parecia estar de bom humor. Fiquei satisfeito que tudo houvesse voltado ao normal.
Para seu terror, os olhos de Cassi encheram-se de lágrimas. Ela havia prometido a si mesma que isso não ia acontecer.
— Vamos, vamos — acalmou-a o Dr. Ballantine. — Todo mundo de vez em quando cede e explode com o stress. Não dê muita importância ao incidente da noite passada. O modo pelo qual ele agiu é inteiramente compreensível. Talvez não perdoável, mas compreensível. A equipe da casa tem até comentado que ele está passando um número incomum de noites no hospital. Diga-me, querida, Thomas vem se comportando normalmente em casa?
— Não — disse Cassi, passando a olhar para as mãos que jaziam imóveis em seu colo. Uma vez que ela começou a falar, as palavras começaram a sair facilmente. Ela contou ao Dr. Ballantine a reação de Thomas à sua operação em perspectiva e confessou que seu relacionamento vinha se abalando há algum tempo, mas que ela não sabia se a causa era realmente sua doença. Antes de se casarem, Thomas já sabia que ela sofria de diabetes e, a não ser pela situação de seu olho, seu estado não havia mudado. Ela não achava que suas complicações médicas explicassem a raiva de Thomas.
Ela parou, começando a suar com ansiedade.
— Acho que o problema verdadeiro é que Thomas vem tomando muitos comprimidos. Quero dizer que muita gente toma um ocasional comprimido de Dexedrina ou um comprimido para dormir, mas Thomas pode estar se excedendo.
Ela tornou a fazer uma pausa, olhando para Ballantine.
— Ouvi falar uma ou duas coisas — disse Ballantine, pensativamente. — Um dos residentes fez referência a respeito de um tremor. Ele não percebeu que eu estava atrás dele no corredor. Que é exatamente que Thomas vem tomando?
— Dexedrina para se manter acordado e Percodan ou Talwin para se acalmar.
O Dr. Ballantine se encaminhou a passos largos para a janela e ficou olhando atentamente para a sala de estar dos médicos em frente. Voltando-se para Cassi, ele limpou a garganta. Sua voz nada tinha perdido de sua cordialidade.
— A disponibilidade das drogas pode ser uma grande tentação para um médico, principalmente se ele está mais do que sobrecarregado de trabalho, como Thomas. — Ballantine voltou para sua mesa e afundou-se em sua cadeira. — mas a disponibilidade é apenas uma parte da história. Muitos médicos têm também um sentimento de direito às drogas. Eles cuidam de gente o dia todo e acham que merecem uma pequena ajuda se precisarem dela. As drogas ou o álcool. É uma história muito comum. E já que foram treinados para serem autossuficientes, em vez de consultarem outro médico, medicam-se por si mesmos.
Cassi ficou grandemente aliviada pelo fato do Dr. Ballantine absorver as notícias sobre Thomas com tanta calma. Pela primeira vez em vários dias ela se sentia otimista.
— Acho que o mais importante é guardarmos isso para nós mesmos — disse o Dr. Ballantine. — Os mexericos poderiam ser prejudiciais tanto para seu marido quanto para o hospital. O que vou fazer é ter uma conversa diplomática com Thomas e ver se podemos cuidar do problema antes que ele nos fuja das mãos. Já tendo visto este tipo de coisa antes, posso assegurar-lhe, Cassi, que os problemas de Thomas são pequenos. Ele vem carregando sua habitual carga cirúrgica.
— O senhor não se preocupa com os pacientes dele? — perguntou Cassi. — Quero dizer, o senhor o tem visto operar recentemente?
— Não — admitiu o Dr. Ballantine. — Mas eu seria o primeiro a saber se algo estivesse saindo errado.
Cassi ficou pensativa.
— Há dezessete anos que conheço Thomas — disse Ballantine, confortador. — Eu saberia se houvesse algo de seriamente errado.
— Como o senhor vai tratar do assunto? — perguntou Cassi.
O Dr. Ballantine deu de ombros.
— Vou tocar de ouvido.
— O senhor não vai dizer a ele que falei com o senhor, vai?
— Absolutamente não — disse Ballantine.
Carregando um ramo de íris que havia comprado na loja de flores do hospital, Cassi desceu para o quarto 1.847 no 18º andar. A porta estava entreaberta. Ela deu uma pancada seca e espiou para dentro. Um vulto estava deitado na única cama existente, mantendo o lençol repuxado até os olhos. Ele estava tremendo, aparentemente apavorado.
— Robert! — riu Cassi. — Que diabo está fazendo aqui...
Robert saltou da cama, vestido em seu pijama e robe.
— Acontece que vi você vindo — respondeu ele. E, vendo as flores, perguntou: — São para mim?
Cassi entregou-lhe o pequeno buquê. Robert levou tempo para arranjar as flores em seu jarro d'água, antes de colocá-lo na mesinha de cabeceira.
Relanceando o olhar pelo quarto, Cassi pôde ver que ela não era a primeira. Havia uma dúzia de buquês florescendo por toda a parte.
— Parece até um enterro — disse Robert.
— Não gosto deste tipo de humor — disse Cassi, dando-lhe um abraço. — Não existe essa coisa de muitas flores. Isso quer dizer que você tem uma porção de amigas. — E sentou- se nos pés da cama.
— Nunca fui um doente de hospital — disse Robert, puxando uma cadeira como se fosse ele a visita. Não gosto. Sinto-me tão vulnerável.
— Você acaba se acostumando — replicou Cassi. — Acredite-me, sou uma profissional.
— O verdadeiro problema é que sei demais — disse Robert. — Posso até dizer que estou apavorado. Convenci o anestesista a dobrar a dose dos meus remédios para dormir. Do contrário, sei que passaria acordado a noite toda.
— Em alguns dias você vai se admirar por ter ficado tão nervoso.
— É fácil para você dizer isso vestida com suas roupas de passear. — Robert levantou a mão com uma plaqueta dê plástico presa em seu pulso. — Eu me tornei um número numa estatística.
— Talvez você se sinta melhor se souber que sua coragem me incitou a agir. Vou ser internada amanhã.
A expressão de Robert passou a ser de compaixão.
— Agora eu me sinto doido. Aqui estou eu, tremendamente preocupado com um par de dentes, enquanto você encara uma operação no olho.
— Anestesia é anestesia — disse Cassi.
— Acho que você está certa — disse Robert. — E tenho a impressão de que sua cirurgia vai ser cem por cento bem-sucedida.
— E quanto às suas chances? — troçou Cassi.
— Cerca de cinquenta por cento... — disse Robert, rindo. — Ei, tenho uma coisa para lhe mostrar.
Robert levantou-se e foi até a mesinha de cabeceira. Pegando uma pasta, voltou a juntar-se a Cassi na borda da cama.
— Com a ajuda do computador, comparei os dados que temos sobre os casos de MSC. E encontrei algumas coisas interessantes. Antes de mais nada, conforme você sugeriu, todos os pacientes estavam tomando injeções intravenosas. Além disso, nos últimos dois anos, o aumento do número de casos envolvia pacientes que se achavam em estáveis condições físicas. Em outras palavras, as mortes têm-se tornado o mais inesperado possível.
— Oh, Deus — disse Cassi. — Que mais?
— Fiquei brincando durante algum tempo com os dados, perfurando em todos os parâmetros para nosso estudo, exceto para cirurgia. O computador expeliu alguns outros casos, inclusive o de um paciente chamado Sam Stevens. Ele morreu inesperadamente durante um cateterismo cardíaco. Ele era retardado, mas em excelentes condições físicas.
— Estava sob a ação de alguma injeção intravenosa? — perguntou Cassi.
— Sim — retrucou Robert.
Durante alguns minutos, os dois se entreolharam.
— Finalmente — continuou Robert — o computador indicou que havia uma preponderância de machos. Por incrível que pareça, onde se dispunha de uma informação, o computador indicava um número estranhamente alto de homossexuais!
Cassi levantou os olhos dos papéis para o olhar amigável de Robert. O homossexualismo jamais havia sido mencionado entre eles e Cassi sentiu certa relutância em discutir o caso.
— Esta manhã fui até a patologia fazer-lhe uma visita — disse ela, mudando de assunto. — Você não estava lá, mas encontrei alguns dos slides de Jeoffry Washington. Quando olhei para as seções tiradas do local da injeção endovenosa, descobri uns precipitados longitudinais dentro da veia. No início pensei que se tratava de um artefato, porém eles estavam presentes em todas menos numa das seções. Acha que podem ter algum significado?
Robert mordeu os lábios.
— Não — disse ele por fim. — Não cante vitória. A única coisa que penso sobre isso é que quando o cálcio é inadvertidamente acrescentado a uma solução de bicarbonato, provoca uma precipitação, mas isso ocorreria no frasco do fluido da injeção endovenosa, não na veia. Suponho que o precipitado poderia correr para dentro da veia, porém seria tão evidente dentro do frasco que todo mundo o veria. Talvez eu tenha uma ideia quando vir o corte da veia no slide. Entrementes, já chega desse assunto mórbido. Conte-me sobre a festa da noite passada. Que foi que você usou?
Cassi não falou dos incidentes. Havia uma chance de que Robert viesse a saber pelos mexericos do hospital, mas ela não queria levantar o assunto. Em muitos sentidos, Cassi ficou surpresa com o fato de Robert não haver notado seus olhos vermelhos. Em geral ele era tão observador. Ela decidiu que compreensivelmente ele estava preocupado com seu internamento no hospital. Prometendo visitá-lo no dia seguinte, Cassi saiu antes que fosse tentada a sobrecarregá-lo com seus próprios problemas.
Larry Owen sentia-se como uma corda de piano esticada até o seu limite, pronta para saltar ao menor aumento de tensão. Naquela manhã, Thomas Kingsley havia chegado tarde e estava furioso com o fato de Larry ter esperado por ele para aparecer fisicamente antes de começar a abrir o peito do primeiro paciente. Embora Larry houvesse completado o processo com um tempo recorde, o mau humor de Thomas não tinha mudado. Nada agradava ao cirurgião. Não só Larry tinha feito um mau trabalho, como as enfermeiras da sala não lhe estavam passando os instrumentos adequadamente; os residentes não lhe estavam dando um campo de visão apropriado e o anestesista era um incompetente filho da puta. Por acaso Thomas recebeu um porta-agulhas defeituoso, que atirou de encontro à parede com tal força que o instrumento se partira em dois.
Contudo, Larry já havia passado por este tipo de tempestade antes. O que o estava pondo maluco era o desempenho operatório de Thomas. Era óbvio que, desde o momento em que começara a operar o seu primeiro paciente, que o cirurgião estava exausto. Sua coordenação habitualmente impecável estava alterada e seu julgamento falho. E, pior do que tudo, Thomas apresentava um tremor incontrolável. Larry quase teve um ataque cardíaco ao ver Thomas inclinar-se sobre o coração com uma agulha afiada como navalha e tentar dirigir o instrumento ao delicado pedaço de veia safena que ele estava tentando suturar ao diminuto vaso coronário.
Em vão Larry havia esperado que o tremor se reduzisse, à medida que a manhã prosseguia. Em vez disso, ele ficava cada vez pior.
Quer que eu suture este? — perguntara Larry em várias ocasiões. — Acho que, de onde estou, posso ver um pouco melhor.
— Se eu quiser sua ajuda, pedirei — foi a única resposta de Thomas.
De qualquer modo, eles terminaram os dois primeiros casos com as safenas suturadas razoavelmente no local e com os pacientes desligados da máquina cardíaco-pulmonar, do aparelho de coração e respiração artificial. Mas Larry não estava aguardando tão prazerosamente o terceiro caso, um homem casado de 38 anos com dois filhinhos. Larry tinha aberto o peito do paciente e aguardava que Thomas regressasse da sala dos médicos. O pulso do residente estava disparando e ele começara a suar copiosamente. Quando finalmente Thomas irrompeu pela porta da sala de operações, Larry sentiu o estômago contorcer-se de medo.
No início as coisas correram razoavelmente bem, embora o tremor de Thomas não estivesse melhor e seu nível de frustração parecesse estar ainda mais baixo. Mas a equipe do coração a céu aberto, cautelosa após os dois primeiros casos, receava atravessar no seu caminho. A parte mais árdua do trabalho coube a Larry, que tentava antecipar os movimentos erráticos de Thomas e fazer o máximo de trabalho que ele lhe permitia. O problema real não começou senão depois que iniciaram a sutura das pontes em seu lugar. Larry não pôde olhar e desviou a cabeça quando o pegador de agulhas de Thomas se aproximava do coração.
— Maldito seja! — gritou Thomas.
Larry sentiu o estômago se agitar quando viu Thomas puxar sua mão com uma sacudidela do local da operação, com a agulha enterrada em seu próprio dedo indicador. Inadvertidamente, Thomas também puxou um dos grandes cateteres que levavam o sangue do paciente para a máquina do coração e respiração artificial. Como se uma torneira tivesse sido aberta, a ferida operatória se encheu de sangue, que em segundos começou a empapar as toalhas estéreis, pingando no chão.
Desesperado, Larry mergulhou a mão na ferida e tateou às cegas em busca da pinça que comprimia a sutura em torno da veia cava. Felizmente, sua mão encontrou-a imediatamente. Com toda habilidade, ele puxou a fita para cima e o sangramento diminuiu.
— Se eu tivesse uma exposição decente do campo operatório, este tipo de problema não teria acontecido — falou Thomas, irado, arrancando a agulha de seu dedo e jogando-a no chão. Ele afastou-se da mesa, cuidando de sua mão ferida.
Larry tratou de sugar o sangue da ferida operatória. Ao reinserir o cateter da máquina do coração artificial, ele pensava no que devia fazer. Thomas não tinha mais condições de operar naquele dia, quanto mais não fosse para arriscar um suicídio profissional. No fim Larry decidiu que não podia mais sustentar a tensão. Quando tornou seguro o sítio da operação, ele recuou, afastando-se da mesa, e juntou-se a Thomas, que estava calçando uma nova luva que lhe era oferecida pela Srta. Goldberg.
— Desculpe-me, Dr. Kingsley — disse Larry, com toda a autoridade que pôde reunir. — Este tem sido um dia penoso para o senhor. Lamento que não tenhamos sido mais cuidadosos. A verdade é que o senhor está exausto. Eu prossigo com a operação daqui em diante. O senhor não precisa mais calçar outra luva. — Por um instante, Larry pensou que Thomas ia esmurrá-lo, mas teve a coragem de continuar: — O senhor já fez milhares dessas operações, Dr. Kingsley. Ninguém vai censurá-lo por estar cansado demais para terminar esta.
Thomas começou a tremer. Então, para perplexidade e alívio de Larry, arrancou suas luvas e saiu.
Larry suspirou e trocou olhares com a Srta. Goldberg.
— Voltarei logo — disse Larry para a equipe.
Com suas luvas e ainda de gorro, Larry saiu da sala de operações. Ele esperava que um dos outros cirurgiões cardíacos da equipe estivesse disponível e ficou aliviado quando viu o Dr. George Sherman, que saía da Sala de Operações Seis. Larry puxou-o para o lado e, calmamente, relatou o que havia acontecido.
— Vamos — disse George. — E não quero ouvir uma só palavra sobre isso fora da sala de operações, entendido? Isso poderia acontecer a qualquer um de nós e se o público soubesse sobre o incidente o fato seria desastroso, não apenas para o Dr. Kingsley, mas também para o hospital.
— Eu sei — disse Larry.
Thomas estava zangado como jamais o estivera antes. Como ousara Larry sugerir que ele estava por demais cansado para prosseguir com a operação? A cena tinha sido um pesadelo. Fora o assombroso medo de um tal desastre que o forçara a tomar um comprimido ocasional para dormir. Ele estivera perfeitamente capaz de terminar a operação e, certamente, se não estivesse tão irritado com a infidelidade de Cassi, sem dúvida não teria saído da sala. Furioso, ele entrou com passos pesados na sala dos médicos e usou o telefone junto à máquina de café. Telefonou para Doris, a fim de se certificar de que não havia emergências, e pediu-lhe que marcasse seus pacientes da tarde para um outro dia. Ele já estava atrasado e não se achava capaz de ver mais pacientes. Doris estava prestes a desligar quando se lembrou de que Ballantine telefonara, perguntando se Thomas podia passar por seu gabinete.
— O que ele queria? — perguntou Thomas.
— Ele não disse. Perguntei-lhe o que era, no caso de você precisar da pasta de algum paciente. Mas ele limitou-se a dizer que só queria vê-lo.
Thomas disse à enfermeira do balcão principal que ele estaria no gabinete do Dr. Ballantine no caso de haver uma chamada. Para se firmar e aliviar sua dor de cabeça, que tinha piorado muito, ele tomou mais um Percodan, que tirou de seu armário particular. Então, vestiu um casaco branco do laboratório e saiu da sala, imaginando sobre o que Ballantine queria falar-lhe. Ele não pensou que o chefe o chamaria para discutir a cena com George Sherman na festa e com certeza não podia ser nada relativo ao episódio com Larry Owen. Devia ser alguma coisa relacionada com o departamento em geral. Ele se lembrou do estranho comentário do membro do conselho na noite anterior e decidiu que finalmente Ballantine ia deixá-lo participar de seus planos. Havia sempre uma chance de que Ballantine estivesse pensando em se aposentar e quisesse discutir a passagem do departamento para Thomas.
— Obrigado por ter vindo me ver disse Ballantine assim que Thomas sentou-se em seu gabinete. Ele parecia um pouco constrangido e Thomas se virava em sua cadeira.
— Thomas — falou por fim Ballantine — acho que devemos falar francamente. Asseguro-lhe que o que dissermos não sairá deste gabinete.
Thomas colocou um dos tornozelos sobre o joelho, firmando-o com as mãos enquanto seu pé começava a bater ritmicamente.
— Chegou ao meu conhecimento que você talvez esteja abusando de drogas.
O pé de Thomas parou seu movimento nervoso. A pequena dor de cabeça transformou-se num latejar agoniante. Embora sua mente estivesse inundada de raiva, a expressão permanecia a mesma.
— Quero que você saiba — disse o Dr. Ballantine — que este não é um problema raro.
— Que tipo de drogas se supõe que eu esteja tomando? — perguntou Thomas, fazendo um grande esforço para dominar suas emoções.
— Dexedrina, Percodan e Talwin — disse o Dr. Ballantine. — Não são escolhas incomuns.
Com os olhos apertados, Thomas estudou o rosto do Dr. Ballantine. Ele odiava a expressão de protetor do médico mais velho. A ironia de ser julgado por aquele inepto bufão levou Thomas à beira do delírio. Era uma sorte que o Percodan que ele havia tomado na sala dos médicos estivesse começando a agir.
— Eu gostaria de saber quem trouxe essa ridícula mentira ao seu conhecimento — conseguiu ele perguntar, com toda a calma.
— Isso não importa. O que interessa...
— É importante para mim — falou Thomas. — Quando alguém começa a espalhar este tipo de boato perverso, deve ser responsabilizado. Deixe-me ver: George Sherman.
— Absolutamente não — disse o Dr. Ballantine — que eu me lembre. Falei com George sobre o lamentável incidente da noite passada. Ele ficou perplexo com sua acusação.
— Aposto — falou Thomas, violento. — É do conhecimento de todos que George tentou, sem sucesso, casar-se com Cassi antes de eu conhecê-la. E eu lhes dei a oportunidade, trabalhando durante tantas noites...
O Dr. Ballantine interrompeu.
— Isso não parece uma prova muito sólida, Thomas. Você não acha que pode estar exagerando suas reações?
— Claro que não — retrucou Thomas, descruzando as pernas e deixando o pé cair com barulho. — Você mesmo os viu juntos em sua festa.
— Tudo o que vi foi uma moça muito linda que parecia estar interessada apenas em seu marido. Você é um homem de sorte, Thomas. Espero que saiba disso. Cassi é uma pessoa especial.
Thomas ficou tentado a se levantar e ir embora, mas Ballantine ainda estava falando.
— Acho que você tem-se excedido no trabalho, Thomas. Está tentando fazer demais. Meu Deus, homem, o que está tentando provar? Eu nem consigo me lembrar da última vez que você tirou um dia de folga.
Thomas ia interromper, mas o Dr. Ballantine atalhou-o.
— Todo mundo precisa se desligar. Além disso, você deve certa responsabilidade à sua mulher. Sei que Cassi precisa se submeter a uma operação no olho. Não estaria ela tomando um pouco do seu tempo?
Thomas agora estava razoavelmente certo de que Ballantine havia falado com Cassi. Por mais incrível que parecesse, ela devia ter vindo procurá-lo com suas malucas histórias de viciado em drogas. Já não era o bastante, pensou Thomas com raiva, ter ela ido ver sua mãe. Tinha também que procurar o chefe do seu serviço. Thomas subitamente percebeu que Cassi poderia destruí-lo. Ela era capaz de arruinar a carreira que ele levara toda a vida para construir.
Felizmente para Thomas, seu senso de preservação era mais forte do que a raiva. Ele obrigou-se a pensar com uma lógica dura, fria, enquanto Ballantine terminava.
— Eu gostaria de lhe sugerir que tirasse umas boas férias.
Thomas sabia que o chefe adoraria tê-lo fora do hospital, enquanto a turma docente reduziria suas horas de cirurgia, mas conseguiu sorrir.
— Olhe, toda essa coisa está fugindo ao controle — falou Thomas calmamente. — Talvez eu tenha trabalhado demais, mas isso é porque tenho muito o que fazer. Quanto ao que se refere ao problema do olho de Cassandra, claro que estou planejando passar um tempo com ela quando estiver hospitalizada. Mas, realmente, compete a Obermeyer dizer a ela qual a melhor maneira de tratar seus problemas retinianos.
Ballantine ia começar a falar, porém Thomas o interrompeu.
— Eu escutei você, agora você me escuta — disse Thomas. — Quanto a esta ideia de que estou abusando de drogas. Você sabe que não bebo café, nunca me dei com ele. Assim, é verdade que tomo uma Dexedrina de vez em quando. Mas ela não faz mais efeito do que o café. Só que você não pode diluir a Dexedrina com leite ou creme. Admito que há diferentes implicações sociais, em especial se alguém a toma para fugir da vida, mas eu só a uso ocasionalmente, para trabalhar com mais eficiência. E quanto ao que se refere ao Percodan e ao Talwin, sim, tomo-os às vezes. Tenho propensão para enxaquecas desde que era jovem. Eu não as tenho com frequência agora, mas quando isso acontece, a única coisa que alivia é o Percodan ou o Talwin, às vezes um, às vezes o outro. E vou-lhe dizer uma coisa. Sentir-me-ei feliz se você ou outro qualquer fizer uma auditoria nos meus receituários. Você verá num instante a quantidade dessas drogas que eu receito e para quem.
Thomas recostou-se na cadeira e cruzou os braços. Ele ainda estava tremendo e não queria que Ballantine notasse.
— Bem — disse Ballantine, evidentemente aliviado. — Certamente isso parece razoável.
— Você sabe tanto quanto eu — prosseguiu Thomas — que todos nós tomamos um comprimido de vez em quando.
— É verdade — falou o Dr. Ballantine. — O problema surge quando um médico perde o controle do número que ele toma.
— Mas aí, então, eles estão abusando da droga — falou Thomas. — Nunca tomei mais de dois em vinte e quatro horas e assim mesmo somente quando estou com enxaqueca.
— Devo dizer-lhe que me sinto aliviado. Francamente, eu estava preocupado. Você trabalha demais. Ainda insisto no que lhe disse sobre você tirar umas férias.
Sei disso, pensou Thomas.
— E quero que você saiba — continuou Ballantine — que todo o departamento só quer o melhor para você. Mesmo que ocorram algumas modificações na rotina, você será sempre a chave principal de nosso serviço.
— Isso é confortador — disse Thomas. — Suponho que tenha sido Cassandra quem veio lhe falar a respeito dos comprimidos. — A voz de Thomas era uma afirmação.
— Na verdade, não importa quem me chamou a atenção para esse fato — disse Ballantine, levantando-se. — Especialmente agora que você desfez os meus receios.
Thomas agora estava mais do que certo de que tinha sido Cassi. Ela devia ter olhado em sua mesa e encontrado os vidros. Ele foi invadido por outra onda de raiva.
Ele levantou-se com os punhos levemente cerrados. Sabia que precisava passar algum tempo sozinho. Despedindo-se e obrigando-se a agradecer a Ballantine por sua preocupação, Thomas saiu apressadamente do gabinete.
Ballantine olhou-o atentamente por um momento. Ele se sentia melhor quanto a Thomas, mas não totalmente tranquilizado. A cena na festa o aborrecia e havia aqueles rumores persistentes que se espalhavam pelo pessoal da casa. Ele não queria problemas com Thomas. Não agora. Isso podia arruinar tudo.
Quando a porta da sala de espera se abriu, Doris deixou cair rapidamente na gaveta o romance que estava lendo e fechou-a com um movimento hábil e suave. Vendo Thomas, ela apanhou os recados telefônicos e saiu por detrás de sua mesa. Depois de passar sozinha a tarde inteira no consultório, ela ficou feliz em ver um outro ser humano.
Thomas se comportou como se ela fosse parte do mobiliário. Para sua surpresa, ele passou por ela sem tomar o menor conhecimento. Doris estendeu a mão para pegar o braço dele, sem alcançá-lo, e Thomas continuou para o seu gabinete como se fosse um sonâmbulo. Doris seguiu-o.
— Thomas, o Dr. Obermeyer telefonou e...
— Não quero saber de nada — explodiu ele, começando a fechar a porta.
Como se fosse um eficiente vendedor, Doris enfiou um pé na soleira. Ela estava decidida a entregar os recados a Thomas.
— Fora daqui — gritou Thomas. Doris recuou assustada, enquanto a porta batia em sua cara com um choque desagradável.
A fúria que ele havia suprimido durante a cruciante entrevista com Ballantine finalmente engolfou-o. Seus olhos buscaram algum objeto sobre o qual pudesse desabafar a raiva. Agarrou um vaso de plantas que Cassi lhe dera quando tinham ficado noivos e esmagou-o no chão. Olhando para os pedaços esmigalhados, ele sentiu-se um pouco melhor. Depois, foi até sua mesa, puxou a segunda gaveta e agarrou um vidro de Percodan, espalhando vários comprimidos sobre a mesa. Tirou um, repôs o restante no lugar e se dirigiu para o lavatório a fim de tomar um copo d'água.
Retornando à mesa, escondeu o tubo dos comprimidos e fechou a gaveta. Começava a se sentir mais controlado, mas ainda não podia deixar passar por alto a traição de Cassi. Será que ela não entendia que realmente tudo o que lhe importava era sua cirurgia? Como podia ela ser tão cruel a ponto de tentar pôr em perigo sua carreira? Primeiro indo falar com sua mãe, a única pessoa que realmente tinha o poder de assustá-lo, depois com George, e agora com o chefe do seu departamento. Ele não ia tolerar isso. Ele a tinha amado tanto logo que se casaram. Ela fora tão doce, tão delicada, tão devotada. Por que estava tentando destruí-lo? Ele não ia deixá-la fazer isso. Ele...
Subitamente, Thomas imaginou se Ballantine estava satisfeito com tudo aquilo. Por algum tempo, teve o desagradável sentimento de que algo estranho estava se passando com Ballantine e Sherman. Talvez fosse a elaboração de um plano para solapá-lo.
Thomas tornou a experimentar um calafrio de medo. Ele tinha de fazer alguma coisa... mas o quê?
Lentamente no início, e então mais rapidamente, as ideias começaram a se formar. Subitamente, ele soube o que poderia fazer. Soube o que tinha de fazer.
Ainda perturbado por seu encontro com Thomas, Ballantine decidiu ir até o Centro Cirúrgico ver se podia encontrar George. Sherman podia não ter o gênio de Thomas, porém era um consistente e excelente cirurgião e um administrador impassível e imparcial. A equipe da casa admirava-o e Ballantine estava cada vez mais considerando a possibilidade de colocar George como chefe quando ele próprio se retirasse. Durante muito tempo, os membros do conselho tinham tentado fazer com que Thomas trabalhasse em tempo integral, a fim de se tornar elegível para o posto, mas agora Ballantine tinha suas dúvidas, mesmo que Kingsley concordasse.
Infelizmente, George permanecia na Cirurgia. Ballantine ficou surpreso e esperou que não houvesse problemas. Ele sabia que George tinha apenas um caso às 7h30 daquela manhã. O fato de estar ainda na Sala de Operações no meio da tarde não era auspicioso.
Ballantine decidiu aproveitar o tempo para visitar Cassi na Clarkson Dois. Mesmo que não alimentasse uma esperança total sobre o futuro do marido dela, Ballantine queria oferecer a Cassi a esperança que pudesse. Apesar dos seus vários anos como membro da equipe do Boston Memorial, Ballantine jamais pusera os pés na Clarkson Dois e, quando atravessou a pesada porta da fornalha, sentiu-se como se houvesse entrado num outro mundo.
Em vários sentidos, a enfermaria em nada se parecia com um hospital. Dava mais a impressão de um hotel de segunda classe. Ao passar pelo saguão principal, pôde ouvir alguém martelando atonalmente num piano, bem como algum estúpido show de televisão. Não havia nenhum dos sons que ele tradicionalmente associava com o hospital, como os estalidos de um respirador artificial ou o característico tilintar dos frascos de injeção endovenosa. Talvez o que tornasse o ambiente mais desagradável fosse o fato de todo mundo estar vestido com roupas de passeio. O Dr. Ballantine não podia ter certeza de quem era paciente e de quem fazia parte da equipe médica. Ele queria encontrar Cassi, mas receava abordar a pessoa errada.
O único lugar onde se podia saber com certeza quem era quem, era o posto das enfermeiras. O Dr. Ballantine se encaminhou para o balcão.
— Em que posso servi-lo? — perguntou uma preta alta e elegante, cuja plaqueta de identificação dizia simplesmente: Roxane.
— Estou procurando pela Dra. Cassidy — disse o Dr. Ballantine, embaraçado.
Antes que Roxane pudesse responder, a cabeça de Cassi apareceu junto à porta da sala das papeletas.
— Dr. Ballantine? Que surpresa! — Cassi levantou-se.
Ballantine juntou-se a ela, admirando de novo sua frágil beleza. Thomas devia estar maluco para passar tantas noites no hospital, cismou ele.
— Posso falar-lhe um instante? — perguntou Ballantine.
— Claro. Gostaria de vir até meu consultório?
— Aqui está ótimo — retrucou Ballantine, indicando o salão vazio.
Cassi afastou algumas das papeletas.
— Estava escrevendo notas resumidas sobre meus pacientes para os outros médicos usarem enquanto eu estiver internada, devido à operação do meu olho.
Ballantine acenou afirmativamente com a cabeça.
— O que me fez vir até aqui foi dizer-lhe pessoalmente que já falei com Thomas. Batemos um bom papo. Sinto que Thomas tem trabalhado demais e ele admitiu que tem uma certa confiança na Dexedrina para mantê-lo desperto, mas ele me convenceu de que só toma analgésicos para suas enxaquecas.
Cassi não replicou. Ela estava certa de que Thomas não tivera uma enxaqueca desde a adolescência.
— Bem — disse Ballantine com uma jovialidade forçada — você vai ter seu olho cuidado e não deve se preocupar mais com seu marido. Ele até se ofereceu para fazermos uma verificação em seu receituário. — Então, levantou-se e bateu carinhosamente no ombro de Cassi.
Cassi queria desesperadamente partilhar do otimismo do Dr. Ballantine. Mas ele não tinha visto as pupilas de Thomas ou seu andar cambaleante. E o chefe não era quem recebia seus imprevisíveis modos de proceder.
— Espero que o senhor esteja certo — disse Cassi com um suspiro.
Claro que estou certo — disse o Dr. Ballantine, aborrecido pelo fato de sua conversa não haver levantado o moral da moça. E começou a sair.
— E o senhor não mencionou nossa conversa — disse Cassi, vendo que Ballantine se impacientava.
— Claro que não. De qualquer modo, o ciúme de Thomas torna evidente que ele a adora. E com boa razão — terminou Ballantine, sorrindo.
— Muito obrigada por ter vindo — disse Cassi.
— Não diga nada sobre isso — falou Ballantine, acenando com a mão e encaminhando-se para a porta, contente por deixar a Clarkson Dois. Ele jamais compreendera por que alguém fazia psiquiatria.
Tomando o elevador, Ballantine abanou a cabeça. Ele odiava imiscuir-se com problemas familiares. E aqui estava ele, tentando ajudar a ambos os Kingsleys. Ele tinha procurado Cassi a fim de aliviar sua mente. Mas parecia que ela não desejara escutar. Pela primeira vez ele começou a questionar a objetividade de Cassi.
Ele encontrou Sherman cercado pela equipe da casa no quarto de recuperação. Ao ver os olhos do chefe, George desculpou-se e seguiu Ballantine para o corredor.
— Tive uma conversa perturbadora com a mulher de Kingsley esta manhã — disse Ballantine, indo direto ao ponto. — Pensei que ela quisesse me ver para se desculpar do incidente da noite passada. Mas não era isso. Ela estava preocupada com o fato de Thomas poder estar abusando de drogas.
George abriu a boca para replicar, mas hesitou. Os residentes haviam acabado de descrever o comportamento de Kingsley na Sala Seis naquela manhã, antes de o próprio George ter assumido a situação. Se ele contasse ao chefe, aquilo significaria um sério problema para Kingsley. E era também sempre possível que Thomas houvesse bebido demais na noite anterior, irritado como evidentemente estava após a briga.
George resolveu guardar seus pensamentos para si mesmo, provisoriamente.
— Você acreditou em Cassi?
— Não tenho certeza. Falei com Thomas, que me deu algumas respostas muito boas, mas assim mesmo achei seus modos insolitamente esquisitos. — Ballantine suspirou. — Você sempre disse que não se importava em ser chefe do serviço, mas mesmo se Kingsley concordar em trabalhar em tempo integral, pode não ser a pessoa certa para o departamento, quando estamos fazendo a reorganização. Certamente ele se oporá aos novos pacientes que estamos programando para o serviço de ensino.
— Sim — disse George. — E não posso imaginar Thomas aceitando a ideia de livre cirurgia para os mentalmente retardados, a fim de treinar novas equipes de cirurgiões vasculares.
— Seu ponto de vista não está necessariamente errado. Esses novos processos muito caros devem ser disponíveis em primeiro lugar para os pacientes com as melhores chances de uma sobrevida a longo prazo. Mas, praticamente falando, os residentes raramente têm acesso a esses casos. E quanto ao fato de o hospital favorecer os pacientes mais valiosos para a sociedade, quem é que vai julgar? Conforme você disse, George, nós somos apenas médicos, não Deus.
— Talvez ele se acalme — disse George. — Se nossos planos chegarem até o fim, sem dúvida vamos precisar dele em nossa equipe de ensino.
— Esperemos — falou Ballantine. — Sugeri que ele tirasse umas férias com sua mulher. A propósito, acho que as acusações dele são pura paranoia no que concerne a você.
— Infelizmente sim. Mas eu lhe digo: se ela um dia me der uma chance, vou lutar por ela. Além daqueles admiráveis olhares, ela é uma das mulheres mais interessantes que já conheci.
— Não assuste ou irrite nosso gênio mais do que você tem de fazer — disse Ballantine, com uma gargalhada. — Entrementes, você acha que eu devia rever as receitas de Thomas?
— Que mal faz? Mas os médicos têm outros meios para arranjar drogas — disse George, pensando no colapso de Thomas na Sala Seis.
— Esperemos que ele tire suas férias logo e retorne com o seu antigo ego.
— Certo — retrucou George, embora ele, pessoalmente, não gostasse tanto de Thomas nos dias mais felizes.
CASSI ESTAVA NUM ESTADO de choque. Ela não podia acreditar na mudança que se operara em Thomas. Por volta das cinco horas, ele lhe telefonara dizendo que sua cirurgia para a noite havia sido cancelada e que ele estava livre. Então, ofereceu-se para levá-la para casa no Porsche, dizendo-lhe que deixasse o seu carro no hospital.
Pela primeira vez em meses, o jantar foi um acontecimento agradável. Thomas havia, de repente, retomado sua antiga atitude do homem encantador com quem Cassi se casara. Ele tolerou as habituais queixas de Patricia com bom humor e estava abertamente amoroso e afetuoso para com Cassi.
Cassi estava infinitamente satisfeita, se bem que um pouco confusa. Era difícil acreditar que Thomas tivesse esquecido os violentos acontecimentos da noite anterior. Espantada, ela o viu apressar-se em levar a mãe para o apartamento e na volta, solicitamente, servir-lhe uma bebida. Ele serviu-se de um conhaque. Depois, sentaram-se no divã oval diante da lareira.
— Recebi um telefonema do Dr. Obermeyer — disse ele, tomando seu drinque aos goles. — Mas quando telefonei para ele, já havia saído do hospital. O que está acontecendo com seu olho?
— Estive com ele hoje. Ele disse que, uma vez que minha visão não clareou, eu devo me operar.
— Quando? — A voz de Thomas era macia. Ele estava mexendo seu conhaque.
— O mais breve possível — disse Cassi, hesitante.
Thomas recebeu a notícia com aparente moderação e Cassi continuou:
— Acho que o Dr. Obermeyer queria falar com você porque ele me programou para ser operada depois de amanhã. A menos, é claro, que você faça alguma objeção.
— Objeção? Por que eu faria objeção? Sua visão é importante demais para se arriscar as chances.
Cassi soltou um suspiro de alívio. Ela ficara tão preocupada com a resposta de Thomas que nem reparou que estava prendendo a respiração.
— Mesmo sabendo que se trata de uma pequena cirurgia, estou com um medo terrível.
Thomas inclinou-se e passou o braço em torno dela.
— É natural que esteja apavorada. É uma reação natural. Mas Martin Obermeyer é o melhor. Você não poderia estar em melhores mãos.
— Eu sei — disse Cassi, com um fraco sorriso.
— E tomei uma decisão esta tarde — disse Thomas, puxando-a mais para si. — Assim que Obermeyer lhe der o sinal verde, vamos tirar umas férias. Em algum lugar assim como o Caribe. Ballantine me convenceu de que necessito de um período de folga e que tempo melhor para isso do que quando você estiver se recuperando? Que é que você diz?
— Digo que isso soa maravilhoso. — E virou o rosto para beijá-lo quando o telefone tocou.
Thomas levantou-se para atender, fazendo votos para que não fosse uma chamada do hospital.
— Seibert — falou Thomas no aparelho. — Que ótimo ouvir sua voz.
Cassi curvou-se para a frente e cuidadosamente dispôs seu copo sobre a mesinha. Robert jamais a procurara em casa.
Era o tipo de interrupção capaz de pôr Thomas furioso.
Mas ele estava falando calmamente.
— Ela está aqui, Robert. Não, não é tarde demais.
Com um sorriso, ele passou o telefone para Cassi.
— Espero que esteja tudo bem, embora eu a esteja chamando em casa, — disse Robert — mas consegui dar uma escapulida até a patologia e examinar as secções da veia de Jeoffry Washington. Depois que voltei para meu quarto, lembrei-me de onde eu vira esses precipitados antes. Eu estava fazendo a autópsia num homem morto num acidente industrial. Ele havia derramado fluoreto de sódio concentrado em seu colo. Mesmo que se lavasse e se enxaguasse bastante, uma boa quantidade da substância havia sido absorvida. O bastante para ser fatal. Ele tinha o mesmo tipo de precipitações em suas veias.
Cassi abaixou a voz, dando as costas para Thomas. Não queria que ele soubesse que ela continuava acompanhando o estudo do MSC.
— Mas o fluoreto de sódio não é usado como remédio.
— Nos dentes costuma ser — replicou Robert.
— Mas não é dado internamente — sussurrou Cassi. — E menos ainda em injeção endovenosa.
— Isso é verdade — continuou Robert. — Mas deixe-me contar como morreu a vítima deste acidente. Ela foi presa de crises epilépticas e finalmente de uma arritmia cardíaca aguda. Não lhe parece familiar?
Cassi sabia que seis pacientes da série das MSC haviam morrido com os mesmos sintomas, mas não disse nada. O fluoreto de sódio não era a única coisa capaz de causá-las e não havia sentido em chegar a conclusões.
— Assim que eu voltar ao laboratório — disse Robert — poderei analisar esses precipitados. Vou descobrir se eles são de fluoreto de sódio. Se são, você sabe o que isso significa, não sabe?
— Faço uma ideia — retrucou Cassi, relutantemente.
— Significa assassinato — finalizou Robert.
— Que história toda foi essa? — perguntou Thomas, depois que Cassi se juntou a ele no divã. — Robert está tendo alguma tempestade cerebral nova sobre essas MSC?
Para surpresa de Cassi, Thomas mostrou-se apenas curioso, não assustado. Ela decidiu que era seguro contar-lhe um pouco sobre os progressos que Robert estava fazendo.
— Ele ainda está trabalhando no caso — disse ela. — Ele havia começado a relacionar os dados justo antes de ter sido admitido no hospital. Ele conseguiu um computador impressor que revelou alguns resultados bastante interessantes.
— Como o quê? — perguntou Thomas.
— Oh, inúmeras possibilidades — respondeu Cassi, evasivamente. — Ele não pode desprezar nada. Quero dizer, todo tipo de coisa pode ocorrer nos hospitais. Lembra-se daquela pobre gente em Nova Jersey que recebeu curare? — Cassi riu nervosamente.
— Certamente ele não está suspeitando de assassinato? — indagou Thomas.
— Não, não — retrucou Cassi, lamentando ter falado demais. — Ele apenas notou um estranho precipitado na última autópsia que fez e que queria traçar através dos dados.
Thomas acenou com a cabeça e pareceu estar pensando. Esperando restaurar seu bom humor, Cassi acrescentou: — Robert realmente apreciou sua intervenção em favor dele.
— Eu sei — disse Thomas, sorrindo subitamente. — Não fiz aquilo em benefício dele, mas se ele insiste em ver as coisas deste modo, vai se haver comigo. Agora, acho que devíamos ir para a cama.
Enquanto ele a guiava e ajudava ternamente a subir as escadas, Cassi não tinha certeza do que estava lendo em seus extraordinários olhos azuis. Ela estremeceu, não inteiramente certa se era devido a uma agradável expectativa.
CASSI NÃO HAVIA ESTADO num hospital como paciente desde o tempo de colégio. Agora, formada em medicina e com a experiência do internato, era uma situação muito diferente, conforme Robert tinha sugerido. O conhecimento de tudo o que podia acontecer tornava o processo mais apavorante. Como ela havia ido para o hospital com Thomas, chegou cedo demais para ser feita a internação. De fato, tinham-lhe dito que teria de esperar até às 10 horas, quando os funcionários apropriados estivessem disponíveis. Quando Cassi protestou que se admitia gente durante toda a noite através do serviço de emergência, a secretária limitou-se a repetir que Cassi tinha de voltar às dez.
Depois de passar três improdutivas horas na biblioteca, nervosa demais para se concentrar em algo mais exigente do que a Psychology today, Cassi voltou para a seção de admissão. O pessoal havia mudado, embora suas atitudes não. Em vez de aplainar o caminho através do processo de admissão, eles pareciam tentar torná-lo o mais difícil possível, como se a passagem por ele fosse um ritual. Agora informaram a Cassi que ela não tinha cartão do hospital e que sem ele não podia se admitida. Por fim, um funcionário desinteressado disse-lhe que fosse ao serviço de identificação.
Trinta minutos mais tarde, armada com um novo cartão que se parecia suspeitosamente com um cartão de crédito, Cassi voltou ao setor de admissão. Ali ela se confrontou com outro problema aparentemente insuperável. Como no hospital ela usava seu nome de solteira, Cassidy, porque era o que constava de seu diploma médico, e porque Thomas havia tirado o seu seguro de saúde com o nome de Kingsley, a secretária exigiu sua certidão de casamento. Cassi não a tinha. Era algo que achava desnecessário para ser admitida no hospital e certamente eles podiam apenas chamar o consultório de Thomas e conseguir a informação de imediato. A funcionária insistiu em que o computador tinha de ter o certificado. Ela era apenas a operadora da máquina, assim o disse. O impasse foi finalmente resolvido pelo supervisor das admissões que, de algum modo, conseguiu que o computador aceitasse a informação. Finalmente, foi designado para Cassi um quarto no 17º andar e uma mulher agradável, vestida num avental verde, com uma plaqueta que dizia VOLUNTÁRIA DO MEMORIAL, escoltou Cassi para cima.
Mas não para o 17º andar. Primeiro Cassi foi levada para o segundo andar, a fim de fazer uma radiografia do tórax. Ela disse que havia feito uma há seis semanas, durante um exame clínico de rotina e não queria fazer outra. No departamento de raios X lhe disseram que o serviço de anestesia não anestesiaria ninguém que não tivesse sido radiografado e Cassi levou mais uma hora para conseguir que o chefe do setor telefonasse para o Dr. Obermeyer que, por sua vez, chamou Jackson, o chefe da radiologia. Depois de Jackson haver examinado a antiga chapa de Cassi, ele telefonou para Obermeyer, que telefonou de novo para o chefe da anestesia, que telefonou para o funcionário da radiologia para dizer que Cassi não precisava de outra radiografia do tórax.
O resto da admissão de Cassi foi mais suave, incluindo a visita ao laboratório para tipagem de seu sangue e exame de urina. Por fim, Cassi foi depositada num indescritível quarto de hospital azul claro, com dois leitos. Sua companheira de quarto tinha 61 anos e um curativo sobre o olho esquerdo.
— Meu nome é Mary Sullivan — disse a mulher depois que Cassi se apresentou. Ela parecia mais velha do que seus 61 anos porque não estava usando dentadura.
Cassi imaginou a que tipo de cirurgia a mulher se submetera.
— Descolamento da retina — disse Mary, como que notando o interesse de Cassi. — Eles tiveram que tirar meu olho fora e colá-lo de novo com um raio laser.
Cassi riu apesar de si mesma.
— Não creio que tenham tirado seu olho fora — disse ela.
— Claro que tiraram. De fato, quando tiraram o meu primeiro curativo eu via em dobro e achei que o tinham reposto na órbita.
Cassi não estava disposta a discutir. Desempacotou suas coisas, guardando cuidadosamente a insulina e seringas na gaveta da mesinha de cabeceira. Ela faria sua injeção normal naquela noite, mas depois disso não estaria em condições de se medicar por si mesma até que fosse autorizada a fazê-lo por seu clínico, o Dr. Mclnery.
Cassi vestiu seu pijama. Parecia uma tolice fazer isso àquela hora do dia, porém ela o sabia, por que era uma regra do hospital. Fazendo com que os pacientes usem roupas de dormir, isso os torna psicologicamente encorajados a se submeterem à rotina do hospital. A própria Cassi podia sentir a mudança. Ela era agora uma paciente.
Depois de todos os seus anos no hospital, ela se admirava de como se sentia desconfortável sem o status de seu casaco branco. Só o fato de sair do quarto que lhe foi designado a deixava pouco à vontade, como se estivesse talvez fazendo algo de errado. E quando apareceu no 18º andar para visitar Robert, Cassi sentiu-se como uma intrusa.
Não houve resposta quando ela bateu no quarto 1.847. Calmamente, ela empurrou e abriu a porta. Robert estava estendido de costas, ressonando suavemente. Num dos cantos de sua boca havia apenas uma gota de sangue parcialmente coagulado. Cassi foi até à cama e olhou-o por alguns instantes. Era óbvio que ele ainda estava sob a ação da anestesia. Como verdadeira profissional, Cassi verificou o frasco de injeção endovenosa. Estava gotejando suavemente. Cassi beijou a ponta do dedo e tocou a testa dele. A caminho da porta, ela notou uma pilha de impressos de computador. Caminhou até ela e relanceou o olhar pela primeira página. Como esperava, eram os dados do estudo de MSC. Por um momento, ela pensou em levá-los consigo, mas a possibilidade de Thomas encontrá-los em seu quarto fez com que hesitasse. Mais tarde, ela os leria com Robert.
Além disso, se ia levar a sério a nova teoria de seu amigo, aquilo não era o tipo de prova que ele devesse ter em seu quarto antes de uma operação.
Thomas abriu a porta de sua sala de espera e passou para o consultório interior. Ele acenou um cumprimento para os pacientes e mentalmente amaldiçoou o arquiteto por não haver providenciado uma entrada em separado. Ele preferia ser capaz de conservar seu consultório invisível. Doris sorriu quando Thomas se aproximou, mas não se levantou de seu assento. Após o episódio do dia anterior, ela se sentia um pouco envergonhada. Ela entregou-lhe os recados.
Dentro de seu gabinete, Thomas vestiu o casaco branco que gostava de usar quando via seus pacientes. Ele achava que o casaco infundia não apenas o respeito, mas também a obediência. Sentado à sua mesa, ele verificou rapidamente a quantidade de chamadas telefônicas até que chegou à de Cassi. Ele parou e ficou olhando atentamente para o bilhetinho cor-de-rosa. Quarto 1.740. Thomas franziu a testa; era um quarto semiparticular, diretamente do outro lado do posto das enfermeiras.
Tirando o fone do gancho, Thomas fez uma chamada para a diretora das admissões, Grace Peabody.
— Srta. Peabody — disse Thomas, irritado — acabo de saber que minha mulher foi admitida num quarto semiparticular. Realmente, quero que ela tenha seu próprio quarto.
— Compreendo, mas estamos um pouco congestionados agora, e ela foi classificada como uma semiemergência.
— Bem, tenho a certeza de que a senhorita será capaz de encontrar um quarto particular para ela, já que acho isso muito importante. Senão, terei muito prazer em chamar o diretor do hospital.
— Farei o melhor que eu puder, Dr. Kingsley — disse a Srta. Peabody com irritação.
— Faça isso — falou Thomas, batendo com o telefone.
Diabos! Ele odiava aqueles burocratas ineptos que atualmente dirigiam o hospital. Parecia que eles pretendiam criar o máximo de inconveniências. Era-lhe difícil imaginar como alguém podia ser tão míope para não dar à mulher do mais famoso cirurgião do Memorial um quarto particular.
Olhando para o esquema que Doris havia colocado sobre sua mesa, Thomas massageou suas têmporas. Sua cabeça tinha começado a latejar.
Hesitando apenas um breve segundo, com um puxão abriu a segunda gaveta. Depois de operar três pontes e com doze pacientes na agenda do consultório, ele merecia uma pequena ajuda. Ele pegou um dos comprimidos cor de pêssego e engoliu-o. Então, apertou o botão do intercomunicador e disse a Doris que fizesse entrar o primeiro paciente.
As horas no consultório transcorreram melhor do que Thomas previra.
Entre os 12 pacientes havia dois pós-operados que não exigiram mais de 10 minutos de exame cada um. Para os outros 10, Thomas marcou cinco casos de pontes de safena e um de substituição valvular. Os outros quatro não eram casos para operar e não deviam ter sido mandados para Thomas em primeiro lugar. Rapidamente, Thomas livrou-se deles.
Depois de assinar várias cartas, Thomas tornou a chamar a Srta. Peabody.
Que tal lhe parece o quarto 1.752? — perguntou a Srta. Peabody, arrogantemente.
O quarto 1.752 era um quarto particular de esquina, no fim do corredor. Suas janelas davam para o lado oeste e lado norte com uma bela vista para o Rio Charles. Era perfeito e Thomas assim o disse. A Srta. Peabody desligou sem se despedir.
Thomas voltou a vestir o casaco e, depois de dizer a Doris que a veria mais tarde, saiu para o Edifício Scherington. Fez uma breve parada na radiologia para ver algumas radiografias antes de ir visitar Cassi.
Quando chegou no 17º andar, ficou surpreso de encontrar sua mulher ainda no 1.740. Empurrou a porta sem bater.
— Por que não mudaram você? — perguntou ele.
— Mudaram? — perguntou Cassi, confusa. Ela estivera conversando com Mary Sullivan sobre ter filhos.
— Arranjei para você ter um quarto particular — disse Thomas, irritado.
— Não preciso de um quarto particular, Thomas. Estou gostando da companhia de Mary.
Cassi tentou apresentar Thomas, mas ele já estava apertando o botão da campainha de chamada.
— Minha esposa tem de ser tratada adequadamente — falou Thomas, olhando pelo corredor para ver onde se escondia a equipe de enfermagem. Quando algum desses administradores do hospital, supostamente indispensáveis, tem um membro de sua família neste hospital, sempre toma as providências para que seja internado num quarto particular.
Thomas conseguiu causar um tumulto, que embaraçou bastante sua mulher. Ela não queria aborrecer as enfermeiras, já que estava se sentindo bem, mas, por quase meia hora, toda a equipe ficou ocupada em passar Cassi para o seu novo quarto.
— Aqui — disse Thomas por fim. — Aqui é muito melhor.
Cassi teve de admitir que o quarto era muito mais agradável. De sua posição na cama ela podia ver o sol de inverno tocando o horizonte. Embora não tivesse gostado de toda aquela confusão, ficou sensibilizada pela aparente preocupação de Thomas.
— Agora tenho algumas notícias boas — disse ele, sentando-se na beira da cama. — Falei com Martin Obermeyer, e ele disse que você estará ótima com certeza dentro de uma semana. Assim, adiantei-me e reservei um quarto num pequeno hotel de praia na Martinica. Que tal lhe parece?
— Parece maravilhoso — disse Cassi. A ideia de umas férias com apenas os dois era algo para se antegozar, mesmo que, por alguma razão, o fato não se concretizasse.
Ouviu-se uma batida na porta parcialmente aberta e Joan Widiker espiou pela abertura.
— Entre — disse Cassi, apresentando-a a Thomas.
— Muito prazer em conhecê-lo — disse Joan. — Cassi tem falado muitas vezes do senhor.
— Joan é uma residente do terceiro ano na psiquiatria — explicou Cassi. — Tem-me ajudado bastante, principalmente em elevar o meu moral.
— É um prazer conhecê-la — falou Thomas, sentindo uma antipatia instantânea. Ele diria que ela era uma daquelas mulheres que usam sua feminilidade como um símbolo de privilégio.
— Lamento ter-me intrometido assim — disse Joan, sentindo que estava interrompendo. — Realmente, só passei por aqui para dizer a Cassi que todos os seus pacientes estão sendo muito bem cuidados. Todos lhe desejam o melhor, Cassi. Até o Coronel Bentworth. É a coisa mais estranha — riu Joan.
— O fato de você ter um problema médico parece ter exercido um efeito terapeuticamente benéfico em todos eles. Talvez todos os psiquiatras devessem se operar de vez em quando.
Cassi riu, observando o marido endireitar seu casaco.
— Voltarei em outra hora — disse ele. — Tenho que passar a visita nos doentes. — Virando-se para Cassi, deu-lhe um beijo. — Verei você de manhã, antes da operação. Tudo vai sair ótimo. Tenha uma boa noite de sono.
— Também não posso ficar — admitiu Joan depois que ele saiu. — Tenho uma outra consulta no andar da clínica médica. Espero que não tenha feito seu marido ir embora.
— Thomas está sendo maravilhoso — falou Cassi sorridente, impaciente por partilhar as boas novas. — Tem mostrado tanta consideração e me dado tanto apoio. Vamos até tirar umas férias. Acho que eu estava errada quanto à extensão do seu problema de tomar drogas.
Joan questionou a objetividade de Cassi, lembrando-se do seu grau de dependência de Thomas. Mas guardou seus pensamentos, limitando-se a dizer a Cassi que estava muito contente por ver que tudo estava saindo bem. Desejando-lhe o melhor, Joan partiu.
Por uns instantes, Cassi ficou na cama, apreciando o céu mudar de um alaranjado pálido para um violeta prateado. Não tinha certeza de por que Thomas estava sendo tão bom para ela. Mas, fosse qual fosse a razão, Cassi estava infinitamente grata.
Quando finalmente o céu escureceu, Cassi começou a imaginar como estaria passando Robert. Ela não quis telefonar, no caso de ele ainda estar dormindo. Em vez disso, achou que era melhor subir e ver por si mesma.
O poço da escadaria ficava convenientemente do outro lado do seu quarto e Cassi subiu rapidamente para o 18º andar. A porta do quarto de Robert estava fechada. Ela bateu devagarinho.
Uma voz sonolenta disse que entrasse.
Robert estava desperto, mas ainda zonzo.
Respondendo à pergunta de Cassi, ele assegurou-lhe que nunca havia se sentido melhor. Sua única queixa era a de que sua boca parecia como se houvessem jogado uma partida de hóquei dentro dela.
— Você comeu? — perguntou Cassi. Ela notou que o computador impressor tinha sido mudado para sua mesa de cabeceira.
— Você está brincando? — perguntou Robert. E levantou o braço com a injeção endovenosa. — Penicilina liquida é a dieta para este cara.
— Eu vou-me operar amanhã de manhã — disse Cassi.
— Você vai adorar — falou Robert, com as pálpebras resistindo às suas tentativas de mantê-las abertas.
Cassi sorriu, apertou a mão livre dele e saiu.
A dor foi tão intensa que Thomas quase gritou. Ele tropeçou no antigo baú que Doris conservava ao pé da cama. Ele estava procurando sua roupa de baixo. A luz estava mortiça. Resolvido a não se importar se ela acordaria ou não, acendeu o abajur. Não era de admirar que ele não tivesse sido capaz de achar suas cuecas. Ela havia atirado toda a roupa pelo quarto e as cuecas tinham-se prendido nos puxadores de sua cômoda.
Depois de encontrar as roupas, Thomas apagou a luz, foi para a sala de estar na ponta dos pés e vestiu-se rapidamente. Conservando-se o mais quieto possível, ele saiu. Quando chegou na rua, consultou seu relógio. Era quase uma hora da manhã.
Ele foi direto para seu quartinho na sala dos médicos, tirou as roupas que acabara de pôr e vestiu um conjunto cirúrgico completo. Andando pelo corredor, ele parou do lado de fora da única sala de operações que estava em uso. Amarrou uma máscara, empurrou a porta e entrou. O anestesista contou a Thomas que o paciente havia sofrido um aneurisma dissecante, consequente a uma tentativa de cateterização naquela tarde.
Um dos cirurgiões abdominais da equipe estava atendendo o caso. Thomas colocou-se atrás dele.
— Caso difícil? — perguntou, procurando ver dentro da incisão.
O médico voltou-se e reconheceu Thomas.
— Terrível. Não determinamos ainda até onde vai este aneurisma. Pode estender-se para o tórax. Se for este o caso, você é um enviado de Deus. Estará livre?
— Claro — disse Thomas. — É provável que eu tire uma soneca em meu quartinho. Chame-me se precisar de mim.
Ele saiu da sala de operações e voltou, pelo corredor, para a sala dos médicos. Três enfermeiras que vinham de terminar um caso estavam tirando uma folga ali. Thomas acenou para elas e continuou a caminho de seu quarto.
Cassi passou um entardecer bastante agradável. Havia-se aplicado sua insulina, comido um jantar sem sabor, tomado uma chuveirada, e assistido à televisão. Ela tentara ler sua revista de psiquiatria, mas por fim tinha desistido, vendo que não podia se concentrar. Às 10 horas havia tomado seu comprimido para dormir, porém uma hora mais tarde estava bem acordada, tentando analisar as consequências dos achados de Robert. Se havia realmente fluoreto de sódio nas veias de Jeoffry Washington, então alguém no hospital era um assassino. Considerando o fato de que ela estaria voltando da cirurgia na manhã seguinte, grogue e indefesa, não era de admirar que esse pensamento a impedisse de dormir.
Ela estava agitada, virando-se de um lado para o outro no escuro, quando ouviu um som. Não estava bem certa, mas achou que tinha sido a porta.
Cassi deitou-se de lado, prendendo a respiração. Não houve mais ruídos, mas ela sentia uma presença, como se não mais estivesse sozinha no quarto. Ela queria virar-se e olhar, mas sentia-se irracionalmente aterrorizada. Então ouviu um ruído bem definido. Era como o de um objeto de vidro tocando sua mesinha de cabeceira. Alguém estava em pé bem atrás dela.
Rompendo a paralisia causada por seu terror, Cassi reuniu cada grama de força mental que possuía. Mas forçou-se a virar na direção da porta.
Ela soltou um grito abafado de pavor quando se viu olhando para um vulto branco. Sua mão soltou-se e bateu em sua lâmpada de cabeceira.
— Meu Deus! Você me assustou! — disse George Sherman, levando a mão ao peito numa demonstração teatral de ansiedade. — Cassi, você acaba de tirar dez anos de minha vida.
Cassi viu um enorme buquê de rosas vermelhas num vaso sobre sua mesa de cabeceira. Preso ao lado estava um envelope branco escrito "Cassi".
— Desculpe. Acho que nos assustamos mutuamente — disse Cassi. — Eu tive problemas para dormir. Ouvi você entrar.
— Bem, eu preferia que você tivesse falado alguma coisa. Eu esperava que você estivesse dormindo e não queria acordá-la.
— Essas lindas rosas são para mim?
— Sim, pensei que estivesse livre muito mais cedo, mas fiquei preso na reunião até há poucos minutos. Eu tinha mandado pedir essas flores esta tarde e queria ter certeza de que você as receberia.
Cassi sorriu.
— Foi muita gentileza sua.
— Eu soube que você vai ser operada amanhã de manhã. Espero que tudo corra bem. — De repente, ele pareceu perceber que ela estava sentada de camisola. Ele ficou ruborizado, murmurou um rápido boa-noite e bateu numa apressada retirada.
Cassi sorriu. A visão de Sherman derramando o vinho no colo dela voltou. Ela destacou o envelope das rosas e tirou o cartão. "Tudo de melhor de um secreto admirador." Cassi riu. George sabia ser tão sentimental. Ao mesmo tempo, ela pôde entender a relutância dele em assinar seu nome, após a cena que Thomas havia criado na festa em casa de Ballantine.
Duas horas mais tarde, Cassi ainda estava bem acordada. Desesperada, ela atirou fora as cobertas e escorregou da cama. Seu robe estava dobrado sobre a cadeira e ela vestiu-o, pensando que talvez devesse ir ver se Robert estava acordado. Se falasse com ele, talvez se acalmasse o bastante para finalmente dormir.
Se Cassi havia se sentido deslocada andando pelo hospital, naquela tarde, vestida como uma paciente, agora se sentir positivamente uma delinquente. Os corredores estavam desertos e no poço da escadaria não havia um som. Cassi correu para o quarto de Robert, fazendo votos para que ninguém com autoridade a localizasse e a enviasse de volta ao 17.° andar.
Ela mergulhou na escuridão do quarto. A única luz vinha do banheiro, cuja porta estava ligeiramente aberta. Cassi não podia ver Robert, mas podia ouvir sua respiração regular. Movendo-se silenciosamente próximo do leito, ela vislumbrou um relance de seu rosto; ele ainda dormia profundamente.
Ela estava prestes a sair quando reparou de novo no computador impressor sobre a mesinha de cabeceira. Tão quietamente quanto possível, ela o pegou. Depois, passou a mão, às cegas, sobre a superfície da mesa em busca do lápis que havia visto naquela tarde. Seus dedos encontraram um copo d'água, depois um relógio de pulso e finalmente uma caneta.
Recolhendo-se ao banheiro, Cassi arrancou uma folha em branco do impressor. Firmando-a contra a borda da pia ela escreveu: "Não consigo dormir. Tomei emprestado o material de MSC. As estatísticas sempre me derrubam. Com amor, Cassi."
Ao sair do banheiro iluminado, Cassi sentiu ainda uma dificuldade maior para enxergar enquanto voltava à mesinha de cabeceira. Achando o caminho, ela apoiou seu bilhete no copo d'água e estava para sair quando a porta se abriu lentamente.
Reprimindo um grito de terror, Cassi quase colidiu com um vulto que entrava no quarto.
— Meu Deus, que é que você está fazendo aqui? — sussurrou ela. Algumas das folhas de papel do computador escorregaram de suas mãos.
Thomas, ainda segurando a porta, fez sinal para Cassi ficar quieta. A luz do corredor caiu sobre o rosto de Robert, mas ele não se mexeu. Convencido de que ele não ia acordar, Thomas curvou-se para ajudar Cassi a recolher os papéis.
Ao se levantarem, Cassi tornou a sussurrar:
— Que diabo está fazendo aqui?
Como resposta, Thomas guiou-a silenciosamente para o corredor, fechando a porta atrás deles.
— Por que você não está dormindo? — disse ele, interrogando-a. — Você vai se operar amanhã de manhã! Passei por seu quarto, para ver se tudo estava em ordem, apenas para encontrar uma cama vazia. Não foi difícil imaginar onde você podia estar.
— Estou lisonjeada pelo fato de você ter ido me ver — sussurrou Cassi com um sorriso.
— Isto não é assunto para brincadeiras — disse Thomas severamente. — Você devia estar dormindo. O que está fazendo aqui em cima às duas horas da madrugada?
Cassi levantou as folhas do computador.
— Eu não conseguia dormir e então pensei em ser diligente.
— Isso é ridículo — disse Thomas, pegando Cassi pelo braço e levando-a de volta para as escadas. — Há horas que você devia estar dormindo.
— O comprimido para dormir não agiu — explicou Cassi enquanto eles desciam.
—- Então você deve tomar outro. Palavra, Cassi. Você devia saber disso.
Fora do quarto, Cassi parou e olhou para Thomas.
— Desculpe. Você tem razão. Eu não estava pensando.
— O que está feito está feito — falou Thomas. — Vá para a cama. Vou-lhe arranjar um outro comprimido.
Por um momento, Cassi observou Thomas caminhar resolutamente pelo corredor em direção ao posto das enfermeiras. Então, voltou a entrar em seu quarto. Pondo os dados do MSC sobre sua mesa de cabeceira, ela jogou seu robe em cima de uma cadeira e tirou os chinelos. Aos cuidados de Thomas ela se sentia mais segura.
Quando ele voltou com o comprimido, ficou de pé ao lado da cama, vendo-a engoli-lo. Depois, como que para apoquentá-la, abriu-lhe a boca e fingiu procurar pelo comprimido, para ver se ele havia desaparecido.
— Isso é uma violação da privacidade —- disse Cassi, puxando seu rosto.
— As crianças devem ser tratadas como crianças — ele riu.
Ele apanhou o papel impresso, levou-o para a cômoda e meteu-o numa gaveta mais inferior.
— Esta noite, nada mais desse assunto. Você vai dormir.
Thomas puxou a cadeira para junto da cama, apagou a luz e ficou segurando a mão de Cassi.
Ele disse a Cassi que queria que ela relaxasse e pensasse nas próximas férias. Calmamente, descreveu as areias intocadas, a água cristalina, e o cálido sol dos trópicos.
Cassi escutava, desfrutando as imagens. Logo foi envolvida por uma sensação de paz. Com Thomas ali ela pôde relaxar. Conscientemente, pôde sentir que o comprimido para dormir começava a agir, e que o sono estava chegando.
Robert foi apanhado no outro mundo entre o sono e a consciência. Tivera um sonho terrível: estava preso entre duas paredes que implacavelmente se apertavam sobre ele. O espaço onde ele estava se tornava cada vez menor. Ele não podia mais respirar.
Desesperadamente, conseguiu acordar. A armadilha das paredes havia desaparecido. O sonho havia terminado, porém a horrível sensação de sufocação continuava presente. Era como se houvessem sugado todo o ar do quarto.
Em pânico, Robert tentou sentar-se, mas seu corpo não obedecia. Sacudindo os braços com terror, buscou desesperado o botão da campainha de chamada. Então, sua mão tocou em alguém que estava silenciosamente de pé no escuro. Ele tinha socorro!
— Graças a Deus — disse ele ofegante, reconhecendo seu visitante. — Algo está errado. Ajude-me. Preciso de ar! Ajude-me, estou sufocando!
O visitante de Robert empurrou-o para trás sobre o leito, com tanta brutalidade que a seringa vazia que tinha na mão quase caiu ao chão. Robert estendeu de novo sua mão, agarrando o casaco do homem. Suas pernas bateram de encontro às grades da cama, soltando um ruído metálico. Ele tentou gritar, mas sua voz saiu abafada e incoerente. Esperando silenciar Robert antes que alguém viesse investigar o que estava acontecendo, o homem inclinou-se para tapar sua boca. O joelho de Robert foi lançado para cima e pegou o homem no queixo, fazendo seus dentes morderem a ponta da língua.
Enraivecido com a dor, o homem deixou cair todo o peso do seu corpo sobre a mão que estava abafando o rosto de Robert, empurrando-o fundo no travesseiro. Por alguns minutos mais, as pernas de Robert ficaram se sacudindo e contorcendo. Então, ele ficou quieto. O homem endireitou-se, levantando-se e removendo sua mão devagar, como se esperasse que o rapaz tornasse a lutar. Mas Robert não respirava mais; seu rosto estava quase negro na obscuridade.
O homem sentiu-se esgotado. Tentando não pensar, entrou no banheiro e enxaguou o sangue de sua boca. Anteriormente, sempre que despachava um paciente sabia que o que estava fazendo era certo. Ele dava a vida; ele tirava a vida. Mas a morte era administrada apenas mais tarde, como um bem maior.
O homem lembrava-se da primeira vez que tinha sido responsável pela morte de um paciente. Ele jamais havia duvidado de que era a coisa certa a fazer. Tinha sido há muitos anos, quando ele era um residente júnior na cirurgia torácica. Uma crise tinha-se formado na unidade de tratamento intensivo.
Todos os pacientes haviam desenvolvido complicações. Nenhum estava em condições de ter alta e toda a cirurgia cardíaca eletiva no hospital tinha cessado. Todos os dias, durante as visitas, o Residente-Chefe Barney Kaufman ia de leito em leito para ver se alguém podia ser transferido, mas ninguém estava preparado para isso. E a cada dia eles paravam bastante tempo junto a um paciente que Barney tinha cognominado de Frank Gork. Uma chuva de êmbolos de uma válvula cardíaca calcificada tinha sido liberada durante a operação e Frank Gork, formalmente Frank Segelman, havia ficado com a metade esquerda do cérebro morta. Há mais de um mês que ele se achava na UTI. O fato de que ainda estivesse vivo, no sentido de que seu coração ainda batia e seus rins estivessem fabricando urina, era um tributo à equipe de enfermagem.
Uma tarde, Kaufman olhou para Frank. "Sr. Gork, todos nós o amamos, mas será que o senhor já pensou em deixar este hotel? Sei que não é a comida o que o está mantendo aqui."
Todo mundo riu, menos o homem que continuava a contemplar fixamente o rosto inexpressivo de Frank. Mais tarde, naquela noite, o homem havia entrado na unidade de tratamento intensivo e se encaminhara para Frank Gork com uma seringa cheia de cloreto de potássio. Em segundos, o regular ritmo cardíaco de Frank degenerou numa série de picos de ondas T e depois se aplainou. O próprio homem se encarregou de chamar pelo alto-falante, mas quando a equipe de socorro chegou fez apenas uma meia tentativa de proceder à ressuscitação.
Depois daquele acontecimento, todo mundo ficou satisfeito, desde a equipe de enfermagem até o cirurgião-assistente. O homem teve que se esforçar para reprimir o desejo de assumir o crédito do evento. Tinha sido tão simples, limpo, definitivo, e prático.
O homem teve que admitir que matar Robert Seibert não havia sido a mesma coisa. Não houvera a mesma sensação de euforia por fazer o que tinha de ser feito, mesmo sabendo que ele era o único com coragem de fazê-lo. No entanto, Robert Seibert tivera de morrer. A culpa fora sua, por reunir toda aquela série de chamados casos de MSC.
Retornando do banheiro, o homem rapidamente deu uma busca pelo quarto, à procura de quaisquer papéis relativos à pesquisa que Robert vinha fazendo. Nada encontrando, dirigiu-se para a porta e abriu uma fresta.
Uma das enfermeiras da noite vinha pelo corredor com uma bandeja de metal. Por um terrível momento, o homem pensou que ela vinha ver Robert. Mas ela entrou em outro quarto, deixando o corredor livre.
Com o coração aos saltos, o homem passou para o corredor. Seria um desastre se ele fosse visto naquele andar. Quando ele era um residente tinha motivos para andar pelos corredores, pelos quartos dos pacientes, ou até mesmo para entrar na UTI a qualquer hora da noite. Agora era diferente. Ele tinha de ser mais cauteloso.
Quando alcançou a segurança do poço das escadas, foi dominado pelo pânico. Ele desceu três andares sem parar para respirar e continuou sua frenética descida até passar pelo 12º andar. Só então começou a reduzir sua velocidade. No patamar do quinto andar, ele parou, encostando-se na parede de concreto nu, seu peito pesado com o esforço feito. Ele sabia que precisava se recompor.
Tomando uma inspiração profunda, o homem abriu a porta do poço das escadas. Em poucos minutos, ele se sentiu a salvo, porém sua mente não cessava de trabalhar. Ele continuava a pensar nos dados de MSC, achando que Robert talvez tivesse um manancial de informações em seu escritório, muito provavelmente um disquete. Com um suspiro, o homem decidiu que era melhor ele visitar o departamento de patologia imediatamente, antes que fosse conhecida a morte de Robert. Então o único problema seria Cassi. E ele imaginava o quanto, exatamente, Robert tinha contado a ela.
CASSI ACORDOU com um sobressalto, olhando para o rosto sorridente de uma técnica do laboratório que estava chamando "Dra. Cassidy" pela terceira vez.
— A senhora dorme profundamente — disse ela, vendo finalmente os olhos de Cassi se abrirem.
Cassi abanou a cabeça, imaginando por que se sentia drogada. Então, se lembrou de haver tomado o segundo comprimido para dormir.
— Preciso tirar um pouco de seu sangue — falou a técnica, como que se desculpando. — Há um pedido de coleta de sangue em jejum.
— Certo — disse Cassi calmamente. E deixou que a técnica pegasse seu braço esquerdo, lembrando-se de que, nos próximos dias, ela não estaria se aplicando sua própria insulina.
Minutos mais tarde, entrou uma enfermeira, que habilmente começou a aplicar uma injeção endovenosa no braço esquerdo de Cassi, pendurando um frasco de D5W com 10 unidades de insulina regular. Depois, deu a Cassi sua medicação pré-operatória.
— Isso vai mantê-la — disse a enfermeira. — Procure relaxar agora. Já estão vindo buscá-la.
Quando pegaram Cassi e a levaram de maca para o elevador, ela experimentou estranha sensação de desligamento, como se a experiência estivesse ocorrendo com outra pessoa. Quando chegou na área privativa do Centro Cirúrgico, só vagamente ela teve uma noção de uma profusão de macas, enfermeiras e médicos. Só reconheceu Thomas depois que ele se curvou e beijou-a, quando Cassi lhe disse que ele parecia um bobo na sua parafernália operatória. Pelo menos foi o que ela pensou que lhe disse.
— Tudo vai sair ótimo — disse Thomas, apertando sua mão. — Estou contente por você haver se decidido a levar avante sua operação. É o melhor.
O Dr. Obermeyer materializou-se ao lado esquerdo de Cassi. "Quero que cuide muito bem de minha esposa!", ouviu Thomas dizer. Então, devia ter adormecido. A próxima coisa de que teve consciência foi a de ser empurrada pelo corredor do Centro Cirúrgico para a sala de operações. Não se sentia nem um pouco assustada.
— Vou-lhe dar algo que vai torná-la sonolenta — disse o anestesista.
— Eu já estou sonolenta — murmurou ela, observando as gotas caírem na câmara do frasco da injeção endovenosa pendurado por sobre sua cabeça. No segundo que se seguiu, ela já dormia profundamente.
A equipe da sala de operações movia-se com rapidez. Por volta das 8h05, os músculos de seus olhos já estavam isolados e fitas haviam sido passadas em torno deles. Assim que conseguiu uma imobilização completa, o Dr. Obermeyer fez incisões na esclerótica e introduziu seus instrumentos de corte e sucção. Usando de um microscópio especial, ele avistou através da córnea e da pupila o humor vítreo manchado de sangue. Às 8h45, ele começou a ver a retina de Cassi. Mais ou menos às 9h15, ele encontrou a origem da hemorragia recorrente. Era uma curvatura aberrante de um novo vaso que vinha do disco óptico de Cassi. Com muito cuidado, o Dr. Obermeyer coagulou-o e obliterou-o. Ele sentiu-se encorajado. Não somente o problema estava resolvido, como não havia motivo para se esperar que ele voltasse. Cassi era uma mulher feliz.
Thomas havia terminado sua única ponte de safena coronária do dia. Ele cancelara as duas seguintes. Felizmente, o caso havia decorrido toleravelmente bem, embora ele tivesse tido outra vez problemas na hora de suturar as anastomoses. Ao contrário do dia anterior, ele foi capaz de ir até o fim, mas no momento em que Larry Owen começou a fechar a ferida operatória, Thomas vestiu sua roupa de passeio. Normalmente, ele aguardava até Larry haver trazido o paciente para a sala de recuperação, mas nesta manhã estava muito nervoso para ficar sentado por ali sem nada para fazer. Em vez disso, parou no Centro Cirúrgico para ver como estavam indo as coisas.
— Tudo ótimo — gritou Larry por sobre o ombro. — Estamos fechando a pele agora. O halotano já foi suspenso.
— Bom. Fui chamado para uma emergência.
— Aqui está tudo sob controle.
Thomas saiu do hospital, coisa que raramente fazia num dia de trabalho, entrou em seu Porsche. Ele vibrou ao ouvir o poderoso motor do carro quando o ligou. Após a frustração do hospital, o carro deu-lhe uma enorme sensação de liberdade. Nada na estrada poderia tocá-lo. Nada!
Dirigindo através de Boston, Thomas deixou o carro numa zona de estacionamento proibido, diretamente em frente de uma grande farmácia, confiante em que sua placa de licença com a indicação de médico o livrasse de uma multa.
Entrando na loja, ele foi diretamente para o balcão de receitas.
O farmacêutico, vestido na tradicional túnica de gola alta, surgiu detrás do balcão.
— Em que posso servi-lo?
— Eu lhe telefonei antes a respeito de umas drogas — disse Thomas.
— Perfeitamente. Está tudo aqui — disse o farmacêutico, segurando uma pequena caixa de papelão.
— Quer que eu faça uma receita para elas? — perguntou Thomas.
— Não. Deixe-me ver apenas sua licença de médico. Isso servirá.
Thomas abriu sua carteira e mostrou-a para o farmacêutico, que relanceou o olhar por ela e então perguntou:
— É só isso?
Thomas acenou afirmativamente com a cabeça e guardou a carteira.
— Não temos muitos pedidos para esta dosagem — disse o farmacêutico.
— Aposto que não — retrucou Thomas, pegando o pacote.
Cassandra despertou de sua anestesia, incerta do que era sonho e do que era realidade. Ela ouvia vozes, mas pareciam estar muito longe e ela não podia saber o que estavam dizendo. Finalmente, percebeu que chamavam seu nome. Ouvia que lhe diziam para acordar.
Cassi tentou abrir os olhos, mas verificou que não podia. Ela foi invadida por uma sensação de pânico e tentou sentar-se, mas foi imediatamente contida.
— Descontraia-se agora, tudo está bem — disse uma voz ao seu lado.
Mas nem tudo estava bem. Cassi não podia ver. O que tinha acontecido? De repente, ela se lembrou da anestesia e da operação.
— Meu Deus! Estou cega! — gritou Cassi, tentando tocar o seu rosto. Alguém segurou suas mãos.
— Agora acalme-se. Você está com curativos nos olhos.
— Mas por que vendas? — tornou a gritar Cassi.
— Fique quieta com seus olhos — disse a voz calmamente. — Elas só vão ficar aí por um ou dois dias. Sua operação correu muito bem. Seu médico disse que você é uma mulher de sorte. Ele coagulou um vaso que estava perturbando, mas não quer que ele torne a sangrar, de modo que você deve ficar quieta.
Cassi sentiu-se um pouco menos ansiosa, mas a escuridão era aterradora.
— Deixe que eu veja, só um instante — pediu Cassi.
— Não posso fazer isso. São ordens do doutor. Não devemos tocar em seus curativos. Mas posso dirigir uma luz diretamente para você. Estou certa de que você a verá. O.K.?
— Sim — disse Cassi, impaciente por uma confirmação. Por que não lhe disseram isso antes da operação? Ela se sentia como se houvesse sido abandonada.
— Já voltei — disse a voz. — Cassi ouviu um estalido e viu a luz imediatamente. Mais ainda, ela a percebia com ambos os olhos.
— Eu posso ver a luz — falou ela, excitada.
— Claro que pode — continuou a voz. — Você está indo muito bem. Está sentindo alguma dor?
— Não — retrucou Cassi. A luz foi apagada.
— Então relaxe. Estaremos aqui se precisar de nós. É só chamar.
Enquanto relaxava, Cassi ouvia as várias enfermeiras se movendo por entre seus pacientes. Ela percebeu que estava no quarto de recuperação e imaginou se Thomas viria vê-la.
Thomas terminou de ver seus pacientes no consultório cedo. Por volta das 2h10, ele tinha apenas um paciente marcado para as 2h30. Enquanto esperava, ele verificou no Centro Cirúrgico quem estava de plantão naquela noite no serviço de tórax. Sabendo que era o Dr. Burgess, Thomas deu-lhe um telefonema.
Thomas explicou-lhe que estava planejando dormir no hospital de qualquer modo para ficar perto de Cassi, e sugeriu que também podia se encarregar do plantão. O Dr. Burgess retribuiria o favor quando os Kingsleys fossem embora.
Thomas desligou e, vendo que ainda dispunha de 15 minutos, decidiu visitar Cassi. Ela acabava de ser trazida para o quarto e Thomas não podia dizer se estava dormindo ou não. A moça estava deitada calmamente, o rosto recoberto com os volumosos curativos oculares mantidos no lugar por uma espessa fita elástica. Uma injeção endovenosa corria lentamente para seu braço esquerdo.
Thomas ficou um silêncio ao lado de sua cama.
— Cassi — murmurou ele. — Você está acordada?
— Estou. É você, Thomas?
Thomas agarrou o braço de Cassi.
— Como está se sentindo, querida?
— Muito bem. A não ser esses curativos. Obermeyer devia ter-me falado a respeito deles.
— Eu falei com ele — disse Thomas. — Ele me telefonou logo depois da operação. Disse-me que tudo correu melhor do que ele esperava. Aparentemente, só um vaso estava implicado. Ele cuidou dele, mas era um vaso grande e isso o fez optar pelas vendas. Ele não esperava ter que usá-las.
— Isso não torna as coisas melhores — replicou Cassi.
— Posso imaginar — disse Thomas com simpatia.
Thomas permaneceu ali por mais 10 minutos e então disse que tinha de voltar para o consultório. Ele deu-lhe um aperto de mão e disse-lhe que dormisse o máximo possível.
Para sua surpresa, Cassi ficou ressonando e só foi acordar no fim da tarde.
— Cassi? — estava alguém chamando.
Cassi sobressaltou-se com inesperada voz tão perto dela.
— Sou eu, Joan. Desculpe-me se a acordei.
— Está tudo bem, Joan. Só que eu não a ouvi entrar.
— Eu soube que sua operação saiu muito bem — disse Joan, puxando uma cadeira.
— Assim me disseram — falou Cassi. — E vou me sentir muito melhor quando me tirarem estas vendas.
— Cassi — disse Joan. — Tenho novidades. Passei a tarde toda lutando comigo mesma se eu devia lhe contar ou não.
— O que é? — perguntou Cassi, ansiosa. Seu primeiro pensamento foi o de que um de seus pacientes tinha-se matado. O suicídio era uma preocupação constante na Clarkson Dois.
— São más notícias.
— Eu já imaginava pelo tom de sua voz.
— Você acha que está bem para saber? Ou devo esperar mais?
— Você tem que me dizer agora. Se não disser, vou ficar preocupada.
— Bem, é sobre Robert Seibert.
Joan fez uma pausa. Ela podia imaginar o efeito que a notícia ia ter sobre sua amiga.
— O que houve com Robert? — perguntou Cassi instantaneamente. — Droga, Joan, não me deixe em suspense.
No fundo de sua mente, ela sabia o que Joan ia falar.
— Robert morreu na noite passada — disse Joan, estendendo a mão e segurando a de Cassi.
Cassi ficou imóvel. Os minutos corriam: cinco, dez. Joan não tinha muita certeza. O único sinal de vida em Cassi era sua respiração superficial e a força com que ela agarrava a mão de Joan. Era como se Cassi estivesse segurando sua própria vida. Joan não sabia o que dizer.
— Cassi, você está bem? — sussurrou ela por fim.
Para Cassi, a notícia era como que o golpe final. Era certo que todo mundo se preocupava ao entrar no hospital, porém sem pensar com mais seriedade do que alguém que espera ganhar a loteria se comprar um bilhete. Havia uma chance, mas tão tremendamente pequena que não valia a pena pensar numa fatalidade.
— Cassi, você está bem? — repetiu Joan.
Cassi suspirou.
— Diga-me o que foi que aconteceu.
— Não se sabe com certeza — disse Joan, aliviada por ouvir Cassi falar. — E não conheço todos os detalhes. Aparentemente, ele morreu durante o sono. As enfermeiras me contaram que a autópsia revelou que ele sofria de um mal cardíaco mais grave do que alguém jamais suspeitara. Suponho que ele teve um ataque cardíaco, mas não tenho certeza.
— Oh Deus! — exclamou Cassi, lutando com as lágrimas.
— Lamento trazer notícias tão más para você. Achei que, se fosse de outro modo, eu gostaria de saber.
— Ele era um homem maravilhoso — disse Cassi. — E que bom amigo.
A notícia foi tão opressiva que, de repente, Cassi ficou sem qualquer emoção.
— Posso fazer qualquer coisa por você? — perguntou Joan, solícita.
— Não, muito obrigada.
Seguiu-se um silêncio que fez Joan sentir-se muito desconfortável.
— Você tem certeza de que está tudo bem? — perguntou ela.
— Eu estou ótima, Joan.
— Você quer falar sobre como está se sentindo? — perguntou Joan.
— Agora não. Agora eu não sinto nada.
Joan pôde sentir que Cassi havia-se recolhido. Ela questionou a conveniência de haver contado o fato a Cassi, mas o que estava feito estava feito. Ela ficou sentada durante algum tempo, segurando a mão de Cassi. Então saiu, voltando-se na porta para desejar uma boa noite à amiga.
No caminho para ir embora, ela parou no posto das enfermeiras e falou com a enfermeira-chefe. Disse-lhe que vira Cassi como amiga, não para consultá-la, mas que devia deixar claro que Cassi estava extremamente deprimida devido à morte de um amigo. Talvez as enfermeiras devessem vigiá-la bem.
Cassi permaneceu imóvel por um longo tempo. Ela não fez objeção quando Joan saiu, mas agora sentia-se muitíssimo só. Ficou a recordar o pesadelo que tinha quando criança, no qual sua mãe a enviava de volta ao hospital para trocá-la por uma criança sadia.
Em pânico, Cassi buscou o botão da campainha de chamada. Ela esperava que logo aparecesse alguém para ajudá-la.
— Que é, Dra. Cassidy? — perguntou uma enfermeira que entrou no quarto alguns minutos mais tarde.
— Estou em pânico — disse Cassi. — Não posso tirar as vendas dos olhos. Quero tirá-las.
— Sendo médica, a senhora sabe que não podemos fazer isso. É contra as ordens. Vou lhe dizer o que posso fazer — disse a enfermeira. — Vou chamar seu médico. Que tal a senhora acha disso?
— Pouco me importa o que você vai fazer. Não quero as vendas em meus olhos.
A enfermeira saiu e Cassi tornou a mergulhar na escuridão. O tempo se arrastava. Quando ela se permitiu escutar, ouviu sons confortadores de gente andando para cá e para lá no corredor.
Finalmente, a enfermeira voltou.
— Falei com o Dr. Obermeyer — disse ela, animada. — Ele mandou lhe dizer que em breve ele passará por aqui. Disse-me também que sua operação transcorreu muitíssimo bem, mas é imperativo que a senhora repouse. Mandou dar-lhe outro sedativo, de modo que, se a senhora apenas se virar, vou aplicá-lo.
— Não quero outro sedativo! Quero tirar essas vendas dos meus olhos!
— Vamos — exortou a enfermeira. E desceu as cobertas de Cassi.
Por um momento, Cassi ficou entre resistir e obedecer. Então, relutante, virou-se e tomou a injeção.
— Pronto — disse a enfermeira. — Isto vai fazê-la sentir-se um pouco mais calma.
— O que é isso? — perguntou Cassi.
— A senhora deve perguntar ao seu médico. Enquanto isso, deite-se de costas e desfrute de seu estado. Que tal sua televisão? Quer que a ligue? Sem esperar por uma resposta, ela ligou o aparelho e saiu.
Cassi achou a voz do locutor das notícias tranquilizante. Logo, o sedativo começou a agir e ela adormeceu. Pouco depois, acordou, quando o Dr. Obermeyer passou por seu quarto para lhe dizer pessoalmente como sua operação havia transcorrido bem. Ele disse que esperava que sua visão no olho esquerdo estivesse quase normal quando se tirasse o curativo, mas que os próximos dias seriam críticos e que ela devia procurar ser paciente. Disse-lhe também que havia deixado uma ordem permanente para a aplicação de sedativos e que ela devia pedir a medicação toda vez que se sentisse ansiosa.
Sentindo-se melhor, Cassi voltou a dormir. Ao acordar, algumas horas mais tarde, pôde ouvir vozes murmurando em seu quarto. Escutando, reconheceu uma delas.
— Thomas? — falou ela.
— Estou aqui, querida — respondeu ele, segurando sua mão.
— Estou com medo — disse ela, chocada por sentir as lágrimas correrem por baixo dos curativos.
— Cassi, por que você está chorando?
— Não sei — replicou Cassi, lembrando-se de que era devido à morte de Robert. Ela começou a dizer a Thomas, mas o choro era tanto que não a deixava falar.
— Você tem de se controlar. É importante para o seu olho.
— Eu me sinto tão só.
— Absurdo. Estou aqui com você. Você tem um bando de enfermeiras atenciosas e está no melhor dos hospitais. Agora procure apenas relaxar.
— Não posso.
— Acho que você precisa de mais sedativos — disse Thomas.
Cassi ouviu Thomas falar com uma outra pessoa no quarto.
— Eu não quero tomar outra injeção — disse ela.
— Mas eu sou o médico e você é a paciente — retrucou Thomas.
Depois, Cassi ficou contente por ele haver insistido. Ela se sentiu embalada por um sono piedoso enquanto Thomas lhe falava.
Thomas apertou o botão da campainha para chamar a enfermeira. Quando esta chegou, ele levantou-se da posição em que se achava, empoleirado na cama.
— Esta noite quero que você lhe dê dois comprimidos para dormir. Ontem à noite ela estava andando pelos corredores depois de tomar uma dose e certamente não queremos que isso se repita hoje.
A enfermeira saiu e Thomas aguardou um pouco mais para se certificar de que Cassi continuava a dormir. Dentro de minutos, sua boca abriu-se e ela começou a ressonar com um som gutural indistinto. Thomas caminhou até a porta, hesitou, depois voltou para a cômoda e abriu a gaveta de baixo. Conforme ele esperava, os dados sobre MSC não haviam sido tocados. Diante das circunstâncias, ele não queria que Cassi os pegasse tão logo seus curativos fossem retirados.
Rapidamente, ele apanhou os papéis impressos pelo computador e meteu-os debaixo do braço. Com um último olhar para Cassi, deixou o quarto e se dirigiu para o posto das enfermeiras. Ali, pediu para falar com a enfermeira-chefe, Srta. Bright.
— Receio que minha mulher não esteja suportando muito bem o stress — falou, se desculpando.
A Srta. Bright sorriu para o Dr. Kingsley. Ela o conhecia profissionalmente muito bem. Foi uma surpresa ouvi-lo admitir que alguém pudesse ter uma fraqueza humana. Pela primeira vez, ela sentiu pena dele. Obviamente, o fato de ter sua mulher internada no hospital causava-lhe também um stress.
— Nós cuidaremos bem de Cassi — disse ela.
— Não sou o médico dela e não quero interferir, mas, conforme disse para a outra enfermeira, acho que, por motivos psicológicos, ela devia ser mantida sob uma forte sedação.
Tratarei disso — disse a Srta. Bright. — E não se preocupe.
Cassi não podia se lembrar de haver jantado, embora a enfermeira que lhe trouxe os comprimidos para dormir lhe afirmasse que tinha.
— Não me lembro absolutamente — disse Cassi.
— Esta não é uma boa recomendação para a cozinha do hospital — observou a enfermeira. — Nem para mim. Eu mesma o dei à senhora.
— E o meu diabetes? — perguntou Cassi.
— A doutora está indo muito bem. Após sua refeição, nós lhe aplicamos uma insulina extra, mas está toda aqui. — A enfermeira bateu com os nós dos dedos no frasco da injeção endovenosa, para que Cassi pudesse ouvir. — E aqui estão seus remédios para dormir.
Obedientemente, Cassi estendeu sua mão direita. Sentiu dois comprimidos caírem em sua palma e colocou-os na boca. Depois, estendendo de novo a mão, sentiu o copo d'água.
— Acha que também precisa de um sedativo?
— Creio que não — disse Cassi. — Sinto-me como se tivesse dormido o dia todo.
— Isso é bom para a senhora. Agora, aqui está sua mesinha de cabeceira.
A enfermeira tirou o copo de Cassi e guiou sua mão por sobre a grade da cama, para que ela pudesse sentir o copo d’água, o jarro, o telefone e o botão da campainha.
— Deseja mais alguma coisa? — perguntou a enfermeira. — Está sentindo alguma dor?
— Não, obrigada — respondeu Cassi. Ela estava surpresa de sentir tão pouco desconforto da operação.
— Quer que desligue a televisão?
— Não — disse Cassi. Ela gostava de ouvir o som.
— Certo, mas aqui está o comutador. — A enfermeira guiou a mão de Cassi para o botão ao lado da cama. — Tenha uma boa noite de sono e, se quiser alguma coisa, é só chamar.
Depois que a enfermeira saiu, Cassi fez uma pequena exploração por sua própria conta. Estendendo a mão, tocou a mesinha ao lado. A enfermeira tinha-a afastado um pouco da parede, para que ficasse um pouco mais acessível. Com alguma dificuldade, ela puxou a gaveta de metal e procurou seu relógio. Fora um presente de Thomas e ela imaginou se não devia tê-lo posto no cofre do hospital. Não o encontrou imediatamente. Sua mão tocou seus vidros de insulina e uma porção de seringas. O relógio achava-se embaixo das seringas. Estava provavelmente bastante seguro.
Ela recolheu a mão para debaixo das cobertas. Quando o remédio começou a agir, percebeu por que havia gente tentada a abusar dele. Ele fazia a realidade retroceder. Os problemas continuavam ali, porém à distância. Ela podia pensar em Robert sem experimentar a dor de sua perda. Ela se lembrou de como ele dormia pacificamente na noite anterior. Fazia votos para que sua morte também tivesse sido calma assim.
Subitamente, Cassi arrancou-se do abismo do sono. Com um choque, compreendeu que devia ter sido uma das últimas pessoas a ver Robert vivo. Ficou a imaginar a que horas ele havia morrido. Se ela estivesse lá, talvez tivesse podido fazer alguma coisa. Thomas certamente poderia tê-lo salvo.
Cassi fixou o olhar na escuridão de suas pálpebras. A lembrança de Thomas entrando no quarto de Robert substituiu-se aos poucos em sua mente. Ela se lembrava do choque que tomou ao vê-lo. Thomas dissera que, não encontrando Cassi em seu quarto, admitira que ela estava visitando Robert. Aquilo a satisfizera na ocasião, mas agora Cassi imaginava por que Thomas tinha ido visitá-la no meio da noite.
Cassi tentou imaginar o que revelara a autópsia de Robert, pensando especificamente se fora encontrado um definido mecanismo da morte. Ela não queria pensar nessas coisas, mas viu-se preocupada se Robert apresentara cianose ou se tivera convulsões na hora de sua morte. Súbito, Cassi começou a temer que Robert podia ter sido um candidato para o seu próprio estudo. Ele poderia ter sido o caso número 20. E se a última pessoa a ter visto Robert vivo houvesse sido Thomas? E se Thomas tivesse voltado ao quarto de Robert após havê-la deixado? E se a súbita alteração de comportamento de Thomas não fosse tão inocente quanto parecia?
Cassi começou a tremer. Ela sabia que estava se comportando como uma paranoica e quantas ilusões podia imaginar. Ela compreendia o stress a que estava submetida e sabia da grande quantidade de drogas que estava tomando, inclusive a medicação para dormir que já podia estar enfraquecendo sua capacidade de pensar.
Mesmo assim, sua mente não desistia de seus horríveis pensamentos. Involuntariamente, ela se via reconhecendo que o primeiro caso de MSC ocorrera ao mesmo tempo da residência de Thomas. Cassi pôs-se a pensar se alguma das mortes coincidia com as noites que Thomas havia passado no hospital.
Subitamente, tomou consciência de sua enorme dependência e vulnerabilidade. Achava-se sozinha num quarto particular, tomando uma injeção endovenosa, com os olhos vendados e sedada. Não tinha meios nem de saber quando alguém entrasse no quarto. Não tinha meios de se defender.
Cassi queria gritar por socorro, mas estava paralisada pelo medo. Ela encolheu-se. Passaram-se segundos, depois os minutos. Por fim, Cassi lembrou-se do botão da campainha. Centímetro a centímetro, ela foi estendendo a mão na direção dele, meio esperando que seus dedos topassem com um inimigo desconhecido. Ao tocar o cilindro de plástico, ela apertou o botão com o polegar.
Ninguém apareceu. Era como se ela estivesse esperando uma eternidade. Ela tornou a apertar o botão várias vezes mais, rezando para que a enfermeira se apressasse. Ela esperava que a qualquer momento acontecesse algo de terrível.
— Que é? — perguntou a enfermeira rispidamente, tirando a mão de Cassi do botão da campainha. — A senhora só tem que tocar uma vez e nós viremos tão logo pudermos. É preciso lembrar-se de que há uma porção de pacientes neste andar e a maior parte em estado mais grave do que a senhora.
— Eu quero mudar de quarto — disse Cassi. — Quero voltar para um quarto semiparticular.
— Cassi — falou a enfermeira, exasperada. — Já é tarde da noite.
— Eu não quero ficar sozinha! — gritou Cassi.
— Muito bem, Cassi. Acalme-se. Assim que acabarmos de aplicar os medicamentos aos doentes, verei o que posso fazer.
— Quero falar com meu médico disse Cassi.
— Cassi, você não sabe que horas são, sabe?
— Não me interessa. Quero falar com meu médico.
— Muito bem. Vou dar um telefonema se você prometer ficar quieta.
Cassi permitiu que a enfermeira esticasse suas pernas.
— Assim deve se sentir melhor. Agora relaxe. Vou chamar o Dr. Obermeyer.
Quando a enfermeira saiu, o pânico de Cassi havia diminuído. Ela percebeu que estava se comportando irracionalmente. Estava agindo pior do que seus pacientes. Ao pensar na Clarkson Dois, ela se lembrou de Joan. Era a única pessoa que compreenderia e não se importaria de ser acordada. Às apalpadelas, encontrou o fone, que colocou sobre seu estômago. Com o receptor escorado entre seu ombro e o travesseiro, ela chamou a telefonista do hospital. Depois de haver explicado quem era, a telefonista fez uma ligação para a Dra. Widiker.
O telefone chamou uns momentos e Cassi começou a se preocupar com que Joan tivesse um encontro tardio. Estava para desligar quando Joan atendeu.
— Oh, graças a Deus — disse Cassi. — Estou tão contente por você estar em casa.
— Cassi, que é que há?
— Estou aterrorizada, Joan.
— Aterrorizada por quê?
Cassi fez uma pausa. Com Joan na linha, ela compreendeu exatamente como eram tolos os seus receios. Thomas era o mais respeitado dos cirurgiões cardíacos da cidade.
— Isso tem alguma coisa a ver com Robert? — perguntou Joan.
— Em parte, sim — admitiu Cassi.
— Cassi, escute-me — continuou Joan. — É natural que você esteja assustada. Seu melhor amigo acaba de morrer e você de ser operada. Seus olhos estão vendados. Você não deve deixar sua imaginação fazer um tumulto. Peça à enfermeira que lhe dê um comprimido para dormir.
— Já tomei um bocado de drogas — disse Cassi.
— Ou você tomou muito pouco, ou do tipo errado. Não procure bancar a heroína. Quer que eu chame o Dr. Obermeyer?
— Não.
— Há alguma coisa que eu possa fazer?
— Você sabe se Robert Seibert estava cianótico quando foi encontrado, ou se havia evidências de convulsões?
— Cassi, não sei! E este não é o tipo de coisa com que você deve estar se torturando. Ele está morto. Isso é mais do que o bastante para você tratar agora.
— Acho que você tem razão — disse Cassi. — Espere um minuto, Joan. Tem alguém aqui.
— É a Srta. Randall — disse a enfermeira. — O Dr. Obermeyer está tentando lhe falar.
Cassi agradeceu a Joan e desligou. Mal o fone estava de volta no gancho, o telefone tornou a tocar.
— Cassi — falou o Dr. Obermeyer — recebi um telefonema da equipe de enfermeiras, dizendo que você estava assustada. Não sei como convencê-la de que tudo está ótimo. Sua cirurgia transcorreu extremamente bem. Pensei que ia encontrar a habitual patologia diabética, mas não houve nada disso. Você deve sentir-se aliviada.
— Acho que são esses curativos, essas vendas em meus olhos — disse Cassi, desculpando-se. — Sinto-me apavorada por ficar sozinha. Eu gostaria de ser transferida para um quarto com outra doente. Agora.
— Acho que isso é pedir um pouco demais para a equipe de enfermagem, Cassi. Talvez amanhã possamos pensar em transferir você. No momento, estou mais interessado em ter você relaxada. Avisei às enfermeiras para lhe darem um outro sedativo.
— A enfermeira está aqui, agora mesmo — disse Cassi.
— Bom. Tome a injeção e vá dormir. Acho que devia ter esperado por isto. Os médicos e as mulheres dos médicos são sempre os piores pacientes. E você, Cassi, é ambas as coisas.
Cassi deixou que lhe aplicassem outra injeção. Ela sentiu que a Srta. Randall terminava dando-lhe uma pancadinha amável no ombro. Cassi estava sozinha de novo, mas não se importava. O sono induzido pela droga desceu sobre ela como uma avalanche.
Cassi acordou de um sonho violento, cheio de ruídos selvagens e cores fulgurantes. Apesar da intensa sedação, uma fraca dor latejante no olho esquerdo lembrou-a imediatamente de que estava no hospital.
Por um momento, ficou perfeitamente calma, os ouvidos atentos para pegarem o mais insignificante dos sons. Por trás das vendas, cores selvagens continuavam a dançar diante de seus olhos, presumivelmente devido à pressão dos curativos. Cassi nada ouvia a não ser o sons distantes e abafados do hospital adormecido. Então, achou que sentia alguma coisa. Ela esperou e tornou a sentir. Era o tubo de plástico de sua injeção endovenosa. Seu pulso acelerou. Seria sua imaginação?
— Quem está aí? — chamou Cassi, subitamente encontrando coragem para falar.
Não houve resposta.
Cassi ergueu a mão direita e passou-a sobre o lado esquerdo da cama. Ninguém estava ali. Baixando a mão, encontrou o adesivo que prendia a injeção endovenosa ao seu braço. Rapidamente, ela percorreu com o dedo o tubo de plástico, para cima, e puxou-o delicadamente. A sensação foi exatamente a que ela experimentara. Na escuridão alguém havia tocado no tubo de sua injeção endovenosa!
Tentando controlar o medo que crescia, Cassi apalpou a mesa de cabeceira em busca do botão da campainha. Ele não estava ali. Tocou o jarro, o telefone, o copo d'água, e nada mais. Ela tateou uma área maior, movendo a mão mais depressa, com a sensação de isolamento e vulnerabilidade crescendo. Não havia botão da campainha. Tinha desaparecido.
Cassandra ficou gelada pelo poder de sua própria imaginação. Alguém estava em seu quarto. Ela podia sentir uma presença. Então, sentiu um cheiro um tanto familiar. Colônia Yves de St. Laurent.
— Thomas? — chamou. Erguendo-se sobre o cotovelo direito, ela tornou a chamar. — Thomas!
Não houve resposta.
Cassi sentiu-se banhada num suor profuso. Em segundos, todo o seu corpo estava ensopado. Seu coração, que já vinha batendo rapidamente, começou a pular. Cassi soube instantaneamente o que estava acontecendo. Já tinha acontecido antes, porém nunca com uma rapidez tão grande. Ela estava tendo uma reação à insulina!
Desesperadamente, agarrou as vendas, tentando enfiar os dedos por baixo das bordas do esparadrapo. Sua mão esquerda, previamente imobilizada devido à injeção endovenosa, também puxava as vendas. Cassi tentou gritar, mas sua voz não tinha força. A cama começou a girar. Ela atirou-se para o lado, contra a grade levantada. Agitando-se de modo selvagem, tornou a procurar o botão da campainha. Em vez disso, inadvertidamente, tocou em cima da mesa de cabeceira, jogando o telefone, o jarro d'água gelada e o copo ao chão. Mas Cassi não ouviu. Seu corpo já era presa de grande convulsão epiléptica.
Carol Aronson, a enfermeira da noite encarregada do 17º andar, achava-se no quarto dos medicamentos, preparando um antibiótico, quando ouviu o distante tilintar de vidros quebrados. Hesitou por um momento e então enfiou a cabeça na área das papeletas, onde trocou um olhar inquisidor com Lenore, a enfermeira prática. Juntas, as duas deixaram o posto das enfermeiras para investigar. Ambas tinham a desconfortável sensação de que alguém havia caído da cama. Mal haviam avançado pelo corredor, quando ouviram o chocalhar das grades laterais da cama de Cassi.
As mulheres entraram correndo no quarto. Cassi estava ainda presa de ligeiras convulsões, os braços metidos por entre as grades do leito, agitando-se para a frente e para trás.
Carol, que sabia ser Cassi diabética, imediatamente percebeu o que estava acontecendo.
— Lenore! Dê um alarme e providencie uma ampola de 50 por cento de glicose, uma seringa de 50cc, e um frasco novo de D5W.
A enfermeira prática saiu correndo do quarto. Entrementes, Carol conseguia puxar os braços de Cassi de entre as grades da cama. Em seguida, tentou introduzir um abaixador de língua entre os dentes cerrados de Cassi, mas foi impossível. Em vez disso, ela deteve a injeção endovenosa que corria rapidamente e se concentrou em impedir que Cassi batesse com a cabeça contra a cabeceira da cama.
Lenore retornou e Carol pegou o D5W, trocando imediatamente o frasco da injeção endovenosa. Ela pôs o frasco antigo de lado, sabendo que o médico ia querer medir o nível da insulina. Então, abriu totalmente o curso da injeção endovenosa e passou a glicose a 50 por cento da ampola para a seringa grande. Quando acabou, ficou se debatendo com uma dúvida. Tecnicamente, deveria aguardar a chegada do médico, mas já passara bastante tempo na clínica médica para saber que, diante das circunstâncias, a glicose era a primeira coisa a tentar e que, certamente, não faria mal. Carol decidiu aplicá-la. A quantidade de suor no corpo de Cassi sugeria grave reação à insulina.
Carol enfiou a agulha no tubo da injeção endovenosa e comprimiu o êmbolo da seringa. Antes mesmo de injetar os poucos últimos cc, o resultado foi dramático. Cassi parou de se convulsionar e pareceu retomar a consciência. Seus lábios se abriram e parecia que ela estava tentando dizer alguma coisa.
Mas a melhora não durou muito tempo. Cassi voltou a cair na inconsciência e, embora não tivesse mais convulsões, os músculos continuaram a se contrair isoladamente.
Quando a turma de socorro chegou, Carol informou o que havia feito. O residente sênior examinou Cassi e começou a dar ordens.
— Quero que você tire sangue para dosagem dos eletrólitos, inclusive o cálcio, os gases do sangue arterial e açúcar sanguíneo — disse ele para o residente júnior. — E quero que você providencie um eletrocardiograma — disse para o estudante de medicina. — E, Srta. Aronson, que tal uma outra ampola de 50 por cento de glicose?
Enquanto a equipe se punha ao trabalho, Lenore levantou a mesinha de cabeceira, repondo o telefone no lugar. Com o pé, ela empurrou os cacos de vidro do jarro quebrado para um canto. A gaveta havia saído da mesa e Lenore recolocou-a. Foi quando descobriu vários frascos usados de insulina, Chocada, ela os entregou à Carol que, por sua vez, passou-os para o residente.
— Meu Deus! — exclamou ele. — Era para ela aplicar-se a insulina de olhos vendados?
— Claro que não — disse Carol. — A insulina era colocada no frasco de sua injeção endovenosa e era suplementada de acordo com a quantidade de açúcar em sua urina.
— Então, por que ela se aplicava insulina? — indagou o residente.
— Não sei — admitiu Carol. — Talvez estivesse confusa com todos os sedativos que tomou e aplicou-se a medicação por força de hábito. Diabo, não sei.
— Mas ela podia fazer isso de olhos vendados?
— Certamente. Lembre-se de que há vinte anos que ela vem se injetando duas vezes por dia. Não podia tirar a dose certa, mas podia aplicar-se a injeção. Além disso, há uma outra possibilidade.
— Qual é?
— Talvez ela o fizesse de propósito. A enfermeira de dia disse que ela estava deprimida e seu marido falou que ela vinha agindo de modo estranho. Acho que você sabe quem é o marido dela.
O residente assentiu com a cabeça. Ele não queria pensar no caso como sendo um gesto suicida porque odiava os casos psíquicos, especialmente às três horas da manhã.
Carol, que estivera enchendo uma outra seringa com a glicose passou-a ao residente, que a injetou imediatamente.
Como acontecera antes, Cassi melhorou por alguns minutos e depois tornou a perder a consciência.
— Quem é o médico dela? — perguntou o residente, pegando uma terceira seringa de glicose de Carol.
— O Dr. Obermeyer. Oftalmologia.
— Alguém deve chamá-lo — disse o residente. — Este caso não é para um funcionário do hospital ficar se fazendo de bobo.
O telefone tocou várias vezes antes que Thomas, meio zonzo, o pegasse. Ele havia tomado dois comprimidos de Percodan, antes de se esticar em seu consultório, e era-lhe difícil concentrar-se.
— O senhor é difícil de acordar — disse a telefonista do hospital. — O senhor teve um chamado do Dr. Obermeyer. Ele queria falar-lhe imediatamente, mas eu lhe disse que o senhor havia deixado ordens específicas. Quer o número do telefone dele?
— Sim! — exclamou Thomas, remexendo na mesa à procura de um lápis.
A telefonista deu o número a Thomas. Ele começou a discar e então parou. Reparando na hora, ele ficou preocupado. Era evidente que se tratava de Cassi. Indo para o banheiro, ele jogou água fria no rosto, tentando ficar mais desperto.
Ele aguardou antes de discar, até que um pouco da tontura induzida pela droga desaparecesse.
— Thomas, tivemos uma complicação esta noite — disse o Dr. Obermeyer.
— Uma complicação? — indagou Thomas, ansiosamente.
— Sim — continuou o Dr. Obermeyer. — Algo que não esperávamos. Cassi aplicou-se uma superdose de insulina.
— Ela está bem? — perguntou Thomas.
— Sim, ela parece estar ótima.
Thomas ficou pasmo.
— Sei que isto deve ser um choque para você — estava dizendo o Dr. Obermeyer. — Mas está bem. O Dr. Mclnery, seu clínico, acha-se aqui e agradece à rápida iniciativa da enfermeira encarregada. Ele diz que Cassi ficará ótima. Nós a transferimos para a UTI por enquanto, por precaução.
— Graças a Deus — disse Thomas, a mente rodopiando. — Estarei já aí.
Assim que chegou no hospital, Thomas correu para o lado da cama de Cassi. Ela parecia estar repousando calmamente. Ele reparou que o curativo do olho direito tinha desaparecido.
— Ela está dormindo, mas pode ser acordada — disse uma voz ao seu lado.
Thomas virou-se para dar de cara com o Dr. Obermeyer.
— Quer falar com ela? — perguntou este, estendendo a mão para sacudir o ombro de Cassi.
Thomas segurou seu braço.
— Não, muito obrigado. Deixe-a dormir.
— Eu sabia que ela estava assustada esta noite — disse o Dr. Obermeyer contritamente. — Mandei que lhe dessem sedativos extras. Jamais esperei que acontecesse uma coisa destas.
— Quando eu a vi — falou Thomas — ela estava em pânico. Um amigo dela morreu à noite passada e ela ficou muito assustada. Eu tinha resolvido nada lhe dizer, mas soube que uma das residentes da psiquiatria teve a infeliz ideia de lhe contar.
— Você acha que isso foi uma tentativa de suicídio? — perguntou o Dr. Obermeyer.
— Não sei — respondeu Thomas. — Ela podia apenas ter ficado confusa. Ela está acostumada a se aplicar insulina duas vezes ao dia.
— Que tal você acha de consultar um psiquiatra?
— Você é o médico. Eu não posso ser muito objetivo. Mas, se fosse você, eu esperaria. É evidente que aqui ela estará segura.
— Eu tirei a venda do olho direito — falou Obermeyer. — Receio que as vendas possam ter sido um grande fator na sua reação de ansiedade. Estou feliz em dizer a ela que seu olho esquerdo ainda está limpo. Considerando o fato de que ela foi presa de uma crise epiléptica, que foi talvez o teste mais severo para a minha coagulação daquele vaso, acho que não devemos nos preocupar muito com uma futura hemorragia.
— Qual é a sua glicemia? — perguntou Thomas.
— Perfeitamente normal agora, mas vão acompanhá-la de perto. Eles acham que ela se aplicou uma dose brutal de insulina.
— Bem, no passado às vezes ela foi descuidada — disse Thomas. — Ela sempre procurou minimizar sua doença. Mas isso está parecendo mais do que um descuido. E ainda é possível que ela não soubesse o que estava fazendo. — Thomas agradeceu a Obermeyer por seu belo trabalho e saiu lentamente da UTI.
As enfermeiras estavam à mesa quando ele passou. Elas jamais tinham visto o Dr. Kingsley tão deprimido e ansioso.
CASSI TOMOU CONSCIÊNCIA de seu ambiente por volta das cinco horas da manhã. Ela podia ver o grande relógio de parede por cima do posto das enfermeiras e pensou que estivesse no quarto de recuperação. Experimentava uma horrorosa dor de cabeça, que atribuía à operação no olho. Com efeito, ao tentar olhar de um para outro lado, sentiu uma dor aguda no olho esquerdo. Cautelosamente, ela apalpou a venda no local da operação.
— Bem, Dra. Cassidy! — exclamou uma voz à sua esquerda. Vagarosamente, ela virou a cabeça e olhou no rosto sorridente de uma das enfermeiras. — Que susto a senhora nos pregou.
Espantada, Cassi retribuiu o sorriso. Olhando atentamente para o nome inscrito na plaqueta da enfermeira, Srta. Stevens, UTI da Clínica Médica, Cassi ficou ainda mais confusa.
— Como está se sentindo? — perguntou a Srta. Stevens.
— Com fome — respondeu Cassi.
— Pode ser o seu açúcar sanguíneo, que tornou a baixar um pouco novamente. Ele está subindo e descendo como uma bola de borracha.
Cassi moveu-se ligeiramente e experimentou uma desagradável sensação de queimadura entre suas pernas. Percebeu que estava sondada.
— Houve algum problema com o meu diabetes durante a operação?
— Não durante a operação — disse a Srta. Stevens com um sorriso. — Na noite seguinte. Pelo que eu soube, a senhora se aplicou uma pequena dose extra de insulina.
— Eu apliquei? Que dia é hoje? — perguntou Cassi.
— Cinco horas da manhã de sexta-feira.
Cassi sentiu-se muito confusa. De qualquer modo, ela havia perdido um dia inteiro.
— Onde estou? Aqui não é quarto de recuperação?
— Não, aqui é a UTI. A senhora está aqui devido à sua reação à insulina. Não se lembra de nada de ontem?
— Acho que não — disse Cassi vagamente. Em algum lugar no fundo de sua mente, ela começou a se lembrar de uma sensação de terror.
— A senhora se operou ontem de manhã e foi mandada para o seu quarto. Aparentemente, estava indo muito bem. Não se lembra de nada disso?
— Não — respondeu Cassi, convicta. As imagens estavam começando a emergir de sua confusão mental. Ela podia lembrar-se da horrível sensação de estar enclausurada dentro de seu próprio mundo, sentindo-se intensamente vulnerável. Vulnerável e apavorada. Mas com pavor de quê?
— Escute — falou a Srta. Stevens. — Vou deixá-la tomar um pouco de leite. Depois, a senhora vai tentar voltar a dormir.
Da próxima vez que Cassi olhou para o relógio já passava das sete. Thomas estava de pé ao seu lado, seus olhos azuis inchados e congestionados.
— Ela acordou há cerca de duas horas — dizia a Srta. Stevens, de pé no outro lado. — Seu açúcar sanguíneo está levemente baixo, mas parece estável.
— Estou tão contente por ver que você está melhor — falou Thomas, notando que Cassi havia acordado. — Eu a visitei no meio da noite, mas você não estava completamente lúcida. Como está se sentindo?
— Muito bem — disse Cassi. A água-de-colônia de Thomas estava exercendo um efeito peculiar sobre ela. Era como se o cheiro do Yves St. Laurent houvesse participado de seu devastador pesadelo. Cassi sabia que todas as vezes em que tinha sido infeliz o bastante para sofrer de uma reação à insulina, ela sempre tinha sonhos horríveis. Mas desta vez experimentava a sensação de que o pesadelo não havia acabado.
O coração de Cassi bateu mais rápido, acentuando sua latejante dor de cabeça. Ela era incapaz de dizer a diferença entre o sonho e a realidade. Sentiu-se aliviada alguns minutos mais tarde, quando Thomas se retirou, dizendo:
— Tenho uma operação a fazer. Voltarei assim que houver terminado.
Por volta do meio-dia, Cassi havia recebido a visita do Dr. Obermeyer e de seu clínico e fora liberada da UTI. Foi então levada de volta ao seu quarto particular, no fim do corredor. Mas fez um tal tumulto por se achar sozinha, que finalmente a transferiram para uma unidade de muitos leitos, do outro lado do posto das enfermeiras. Ela estava com três companheiras de quarto. Duas haviam sofrido fraturas múltiplas e se achavam no aparelho de tração; a outra, uma montanha de mulher, havia sido operada da vesícula e não estava passando muito bem.
Cassi fez outro pedido insistente. Queria que lhe tirassem a injeção intravenosa. O Dr. Mclnery tentou raciocinar com ela, argumentando que ela tivera apenas uma severa reação à insulina. Ele lhe disse que se ela não houvesse tomado a injeção original e recebido o açúcar que recebeu quando passou mal, poderia ter entrado em coma irreversível. Cassi ouviu polidamente, mas se manteve irredutível. A injeção endovenosa foi removida.
No meio da tarde, Cassi sentia-se muito melhor. Sua dor de cabeça havia estacionado em um nível tolerável. Ela estava escutando suas companheiras de quarto descreverem seus sofrimentos quando Joan Widiker entrou.
— Acabo de saber o que aconteceu — disse ela, preocupada. — Como está você?
— Estou ótima — respondeu Cassi, feliz de ver Joan.
— Graças a Deus! Cassi, eu soube que você se aplicou uma superdose de insulina.
— Se apliquei, não posso me lembrar — retrucou Cassi.
— Tem certeza? — perguntou Joan. — Sei que você ficou muito agitada por causa de Robert... — E sua voz foi diminuindo.
— Que foi que houve com Robert? — perguntou Cassi ansiosamente. E antes que Joan pudesse responder, alguma coisa estalou na mente de Cassi. Era como se um bloco que estava faltando se encaixasse no lugar. Cassi lembrou-se de que Robert havia morrido na noite seguinte à sua operação.
— Você não se lembra? — perguntou Joan.
Cassi deixou o corpo relaxar, escorregando em sua cama.
— Agora me lembro. Robert morreu. — Cassi olhou para o rosto de Joan como que pedindo que aquilo não fosse verdade, que era parte do pesadelo induzido pela insulina.
— Robert morreu — concordou Joan, com voz solene. — Cassi, você tem estado a lutar com sua tristeza, tentando negar o fato?
— Acho que não, mas não sei. — Parecia-lhe duplamente cruel ter de saber dessa nova duas vezes. Poderia ela tê-la suprimido ou fora a reação à insulina que a removera de sua memória perturbada?
— Diga-me — falou Joan, aproximando a cadeira para que pudesse falar mais em particular. As outras três mulheres fingiam não estar escutando. — Se você mesma não aplicou a dose extra de insulina, como é que ela foi parar na sua corrente sanguínea?
Cassi sacudiu a cabeça.
— Eu não sou uma suicida, se é isso que você quer dizer.
— É importante que você me conte a verdade.
— Eu estou contando — falou Cassi com veemência. — Não creio que eu me tenha aplicado a insulina extra, mesmo em meu sono. Acho que ela me foi aplicada.
— Por acidente? Uma superdose acidental?
— Não. Acho que o foi deliberadamente.
Joan olhou para sua amiga com uma imparcialidade clínica. Pensar que alguém no hospital estava tentando fazer-lhe mal era uma ilusão que Joan já havia ouvido antes. Mas ela não esperava isso de Cassi.
— Você tem certeza? — perguntou finalmente Joan.
— Cassi abanou a cabeça.
— Depois de passar pelo que passei é difícil ter certeza de alguma coisa.
— Quem você acha que podia ter feito isso?
Colocando a mão em concha sobre a boca, Cassi murmurou:
— Acho que pode ter sido Thomas.
Joan recebeu um choque. Ela não era fã de Thomas, mas tal declaração cheirava a pura paranoia. Ela não estava certa de como reagir. Estava ficando evidente que Cassi precisava de uma ajuda profissional, não apenas do conselho de uma amiga.
— O que faz você pensar que foi Thomas? — perguntou Joan por fim.
— Eu acordei no meio da noite e senti o cheiro de sua água-de-colônia.
Se Joan houvesse tido a menor preocupação de que Cassi era esquizofrênica, não teria insistido. Mas ela sabia que Cassi era uma pessoa essencialmente normal, que havia sido colocada sob extrema tensão. Joan achou que não era aconselhável deixar que Cassi construísse pensamentos ilusórios.
— Cassi, acho que sentir o cheiro da colônia de Thomas no meio da noite é uma prova terrivelmente fraca.
Cassi tentou interromper, mas Joan lhe disse que acabasse com aquilo.
— Eu acho que, sob as circunstâncias, você está confundindo um estado de sonolência com a realidade.
— Joan, eu já considerei isso.
— Além do mais — continuou Joan, ignorando Cassi — as reações à insulina incluem pesadelos. Tenho a certeza de que você sabe disso melhor do que eu. Acho que você sofreu de uma psicose de ilusão aguda. Afinal de contas, você sofreu um enorme stress com sua própria operação e a infeliz morte de Robert. Acho que nesse estado é perfeitamente possível que você tenha mesmo se aplicado a injeção e então, depois, sofreu todos os tipos de pesadelos que você acha que podem ter sido a realidade.
Cassi escutava, esperançosa. No passado ela tivera dificuldades em separar a realidade dos sonhos induzidos pela insulina.
— Mas ainda me é muito difícil acreditar que eu tenha me aplicado uma superdose de insulina — disse ela.
— Pode não ter sido uma superdose. Você podia ter-se aplicado apenas sua dose habitual. Você pode ter pensado que era hora de tomar sua dose da noite.
Era uma explicação atraente. Certamente, uma explicação mais fácil de aceitar do que a de que Thomas queria que ela morresse.
— Minha preocupação real — continuou Joan — é saber se você está deprimida agora.
— Acho que um pouco, principalmente no que se refere à morte de Robert. Suponho que eu devia estar feliz com os resultados da operação, mas, diante das circunstâncias, é difícil. E posso assegurar-lhe que não me considero autodestruidora. De qualquer modo, eles levaram toda a minha insulina.
— Está tudo bem — disse Joan, levantando-se. Estava convencida de que Cassi não era uma suicida. — Infelizmente, tenho duas consultas a fazer. Preciso ir. Cuide-se e me chame se precisar de mim, promete?
— Prometo — disse Cassi. E sorriu para Joan. Ela era uma boa amiga e uma boa médica. Cassi confiava em suas opiniões.
— Aquela moça que esteve aqui é psiquiatra? perguntou uma das companheiras de quarto de Cassi, depois que Joan saiu.
— Sim — respondeu Cassi. — Ela é uma médica residente como eu, porém mais adiantada em seu treinamento. Pela primavera ela acabará seu período.
— Ela acha que você está maluca? — indagou a mulher.
Cassi ficou pensando na pergunta. Não era tão idiota quanto parecia. De certo modo, Joan achava que estava temporariamente louca.
— Ela achou que eu estava muito perturbada. — Os eufemismos pareciam mais fáceis. — Ela achou que eu podia machucar-me em meu sono. Se eu começar a me comportar de modo estranho, você chamará as enfermeiras, sim?
— Não se preocupe. Eu berrarei a plenos pulmões.
Cassi esperava que não houvesse assustado as três mulheres, mas, de um certo modo, aquilo fê-la sentir-se mais confortada, pois elas a estariam vigiando. Se fosse verdade que ela havia-se aplicado uma superdose sem o saber, ela podia ficar preocupada e um pouco nervosa.
Ela fechou os olhos e ficou imaginando quando seria o enterro de Robert. Esperava ter alta a tempo de assistir a ele. Então, pensou no projeto de MSC e no que aconteceria a ele. Lembrando-se dos impressos que havia retirado do quarto de Robert, resolveu ver se alguém poderia localizá-los para ela.
Ela tocou a campainha chamando a enfermeira, que prometeu examinar o quarto anterior de Cassi. Meia hora mais tarde, a enfermeira voltou e disse que as duas enfermeiras práticas que tinham ajudado a mudar Cassi não haviam visto o impresso do computador. A enfermeira acrescentou que ela própria examinara todas as gavetas sem sucesso.
Talvez os dados de MSC tivessem sido uma alucinação também, pensou Cassi. Ela parecia se recordar de ter ido ao quarto de Robert, de ter apanhado o material, e então haver topado com Thomas. Mas talvez tudo não tivesse passado de um sonho. Cassi imaginou de que modo podia verificar isso. O meio mais fácil seria perguntar a Thomas, porém não estava certa de que o quisesse fazer.
Olhando em torno do quarto, Cassi ficou satisfeita de ver suas três companheiras de quarto se preparando para jantar. Só o fato de tê-las ali fazia-a sentir-se segura.
Thomas parou bruscamente perto da ponte sobre o braço de mar que dava para o pântano. Desligou o motor e verificou o tráfego antes de abrir a porta. Saindo do carro, caminhou sobre a ponte arqueada, seus sapatos fazendo um barulho cavo sobre as tábuas velhas. A maré estava baixando e a correnteza passava por baixo da pequena ponte, formando frenéticos remoinhos em volta das estacas de sustentação.
Thomas precisava respirar um pouco. Os dois comprimidos de Talwin que tomara antes de sair do consultório haviam exercido um decepcionante pequeno efeito em seu humor. Ele jamais se sentira tão ansioso antes. A conferência da tarde de sexta-feira tinha sido um desastre. E, por cima de tudo isso, pululavam os problemas com Cassi.
Thomas ficou parado sobre a ponte deserta por quase meia hora, deixando a brisa úmida enregelá-lo até os ossos. O desconforto agia terapeuticamente, tornando-lhe possível pensar. Ele precisava fazer alguma coisa. Ballantine e sua coorte estavam tentando destruir tudo que Thomas havia construído com tanto cuidado. Ele agarrou um frasco de droga, tencionando atirá-lo n'água. Mas não o fez. Em vez disso, voltou com ele para o casaco.
Aos poucos, Thomas foi se sentindo melhor. Ele teve uma ideia que, tão logo tomou forma, fez com que começasse a sorrir. Depois riu mesmo, imaginando como é que não havia pensado nisso antes. Com uma nova onda de energia, retornou ao carro, onde aqueceu os dedos pondo-os sobre o respiradouro do descongelador.
Depois de colocar o carro na garagem, ele atravessou correndo o pátio para casa. Passou o vidrinho da droga para o bolso do terno quando tirou o casaco e, sentindo-se melhor do que se sentira o dia todo, foi cumprimentar sua mãe.
— Estou tão contente por você chegar na hora — disse ela. — Harriet está justamente pondo o jantar na mesa. — Ela tomou-o pelo braço e levou-o para a sala de jantar. Ele sabia que a mãe estava de bom humor porque o tinha só para ela, mas Patricia perguntou polidamente por Cassi, antes de se servir da travessa de assado.
Quando Harriet voltou para a cozinha, ela começou a perguntar sobre o dia de Thomas.
— As coisas estão indo melhor no hospital?
— Quase nada — retrucou Thomas, sem paciência para discutir a piora da situação no hospital.
— Você falou com George Sherman? — perguntou Patricia com enfado.
— Mãe, não quero falar sobre a política do hospital.
Comeram em silêncio por alguns minutos, mas Patricia não pôde se conter e tornou a falar.
— Você saberá o que fazer com o homem quando se tornar o chefe.
Thomas depôs o garfo.
— Mãe, não podemos falar sobre qualquer outra coisa?
— É difícil evitar o assunto quando vejo como ele está aborrecendo você.
Thomas procurou acalmar-se com uma série de inspirações profundas. Patricia pôde vê-lo tremer.
— Olhe-se, Thomas, você está como uma mola muito tensa. — E estendeu a mão para afagar o braço do filho, porém Thomas evitou o seu toque empurrando a cadeira para trás e levantando-se.
— A situação está me pondo louco — admitiu Thomas.
— Quando você acha que será chefe? — perguntou Patricia, observando seu filho começar a andar de um lado para o outro como se fosse um leão enjaulado.
— Deus, quem me dera que eu soubesse — disse Thomas através dos dentes cerrados. — Mas é melhor que seja logo. Senão, o departamento vai ficar em ruínas. Todo mundo parece estar saindo do seu caminho para destruir o programa cardiovascular que estabeleci. O Boston Memorial é famoso porque a minha equipe operatória o fez. No entanto, em vez de me deixarem expandir, estão constantemente reduzindo o meu tempo no Centro Cirúrgico. Hoje soube que ele vai ser reduzido de novo. E você sabe por quê? Porque Ballantine entrou em entendimentos para que o Serviço de Ensino do Memorial tenha livre acesso a uma grande instituição mental do estado, na parte ocidental. Sherman foi lá e disse que o lugar era uma mina de ouro cirúrgica. O que ele não disse foi que a idade mental média dos pacientes era menos do que dois anos. Alguns deles são, na verdade, monstros deformados. Isso me põe furioso!
— Bem, você não quer apoiar a equipe da casa nesses casos? — perguntou Patricia, tentando pensar no lado positivo da questão.
— Mãe, trata-se de casos pediátricos de deficientes mentais e Ballantine planeja recrutar um cirurgião cardíaco pediátrico em tempo integral.
— Então isso não vai afetá-lo.
— Mas claro que vai — gritou Thomas. — Vai fazer mais pressão sobre mim para que eu reduza o meu tempo de cirurgia. — Thomas sentiu sua cólera crescendo. — Meus doentes, ou terão perigosos adiamentos antes da operação ou terão que ir para outro lugar.
— Mas com certeza seus pacientes serão programados em primeiro lugar, querido.
— Mãe, você não compreende — disse Thomas, fazendo um esforço para falar calmamente. — O hospital não se importa que eu só trate de doentes que não apenas têm uma chance de salvação, mas também que valham a pena salvar. Para construir a reputação de um hospital-escola, Ballantine sacrificará um valioso tempo cirúrgico para atender a um bando de imbecis e deficientes. A menos que eu me torne chefe, não poderei detê-los.
— Bem, Thomas — continuou Patricia —, se eles não lhe derem a posição, você só terá que ir para um outro hospital. Por que você não se senta e acaba seu jantar?
— Não posso ir para outro hospital — gritou Thomas.
— Thomas, acalme-se.
— Uma equipe de cirurgia cardíaca requer tempo para se formar. Não entende isso? — E Thomas atirou seu guardanapo sobre seu prato meio cheio. — Você me irrita! — gritou ele, irracionalmente. — Venho para casa esperando apenas um pouco de paz e você me perturba! — E saiu da sala a passos largos, deixando a mãe a pensar no que, afinal de contas, ela havia feito.
Andando pelo corredor de cima, Thomas podia ouvir as ondas se quebrando na praia distante. Deviam ter de l,20m a l,80m de altura. Ele adorava o som. Lembrava-lhe sua infância.
Acendendo a luz no quarto de vestir, ele olhou em torno. O mobiliário branco tinha um aspecto frio, dissonante. Ele odiava o modo pelo qual Cassi insistira em redecorar o quarto. Havia algo de impudente no quarto, apesar das cortinas de renda e almofadas com flores.
Ele ali permaneceu apenas pouco tempo, antes de ir para seu escritório. Com as mãos trêmulas, ele encontrou o seu Percodan. Por algum tempo, ele se distraiu com a ideia de voltar à cidade para ver Doris. Mas logo o Percodan começou a fazer com que se sentisse mais calmo. Em vez de sair para a noite fria, ele se serviu de uma dose de scotch.
CASSI ESPERAVA que se acostumasse à luz do oftalmologista, mas, de cada vez que ele a examinava, a sensação era tão desagradável como da vez anterior. Já se haviam passado cinco dias desde sua operação e, exceto pela reação à insulina, o curso pós-operatório fora suave e sossegado. O Dr. Obermeyer vinha vê-la todos os dias para espiar dentro de seu olho por um momento, sempre dizendo que as coisas pareciam estar bem. Agora, no dia programado para sua alta, Cassi tinha sido escoltada ao consultório do Dr. Obermeyer para uma última "boa" espiadela, conforme ele dizia.
Para alívio dela, ele finalmente afastou a luz.
— Bem, Cassi, aquele vaso perturbador está em boa forma e não há mais sangramento. Mas eu não preciso dizer-lhe isso. Sua visão melhorou muito naquele olho. Eu quero acompanhá-la com estudos de fluoresceína e em algum ponto, no futuro, você talvez precise de tratamentos com laser, mas está definitivamente fora de perigo.
Cassi não sabia ao certo o que eram tratamentos com laser, porém isto não diminuiu seu entusiasmo por sair do hospital. Convencida de que seu medo de Thomas havia sido imaginário e que uma boa porção de seus problemas eram em parte sua própria culpa, ela estava ansiosa para chegar em casa e repor seu casamento nos trilhos.
Embora Cassi estivesse inteiramente capaz de andar, a voluntária de avental verde, que veio para levá-la de volta ao seu quarto no Edifício Scherington, insistiu para que fosse de cadeira de rodas. Cassi sentiu-se idiota. A voluntária tinha quase 70 anos e a cadeira um chiado perturbador, mas não desistiu e Cassi teve de permitir que a mulher a empurrasse de volta para o quarto.
Depois que se arrumou, Cassi sentou-se ao lado da cama e esperou por sua alta formal. Thomas havia cancelado suas consultas no consultório e ia levá-la de volta para casa, de carro, por volta das duas horas. Desde que ela fora internada, a amorosa atenção dele não tinha falhado. De algum modo, ele conseguia encontrar tempo para visitá-la quatro ou cinco vezes por dia, frequentemente jantando no quarto com as companheiras de Cassi, que Thomas havia encantado. Ele havia também completado os planos para suas férias e agora, com as bênçãos do Dr. Obermeyer, iam partir dentro de uma semana e meia.
Só o pensamento das férias foi o bastante para deixar Cassi muitíssimo feliz. Exceto pela sua lua-de-mel na Europa, durante a qual Thomas teve tempo para operar e fazer palestras na Alemanha, eles jamais tinham estado fora juntos mais do que um par de dias. Cassi ansiava pela viagem como uma criança de cinco anos espera pelo Natal.
Até o Dr. Ballantine havia visitado Cassi durante sua permanência no hospital. Sua superdose de insulina parecia tê-lo enervado particularmente e Cassi imaginava se ele se sentia responsável por causa de suas conversas. Quando ela tentava trazer à tona o assunto, ele se recusava a discuti-lo.
Mas o que realmente tornou o restante da hospitalização tão agradável foi Thomas. Ele tinha estado tão relaxado nos últimos cinco dias, que Cassi pudera até falar com ele sobre Robert. Ela havia perguntado a Thomas se realmente ela o encontrara no quarto de Robert, na noite em que este morrera, ou se tudo não passara de um sonho. Thomas riu e disse que, de fato, ele a encontrara ali no dia anterior à sua operação. Ela havia sido intensamente sedada e parecera não saber o que estava fazendo.
Cassi ficara aliviada por saber que todos os acontecimentos daquela noite não haviam sido alucinações e, embora ainda questionasse certas lembranças vagas, ela estava querendo atribuí-las à sua imaginação. Em especial depois que Joan fez Cassi compreender o poder de seu próprio subconsciente.
— Muito bem — disse a Srta. Stevens, entrando afobada pelo quarto para ver se Cassi já estava pronta. — Eis aqui seus remédios. Essas gotas são para uso diário. E esta pomada é para aplicar na hora de dormir. Trouxe também um punhado de curativos oculares. Alguma pergunta?
— Não — disse Cassi, levantando-se. Como já passava um pouco das onze, Cassi pegou sua maleta e deixou-a no saguão, com o pessoal da cabine de informações. Sabendo que Thomas estaria ocupado por, pelo menos, mais duas horas, Cassi subiu no elevador para o departamento de patologia. Uma das vagas lembranças que ela não quisera discutir com Thomas referia-se aos dados do estudo de MSC. Ela podia lembrar-se de alguma coisa sobre os dados, porém não estava muito clara, e a última coisa que ela queria fazer era indicar a Thomas que ela ainda estava interessada naquele estudo.
Alcançando o nono andar, Cassi foi diretamente para o gabinete de Robert. Só que não era mais de Robert. Havia um novo nome sobre a placa de aço inoxidável sobre a porta. Dizia: Dr. Percey Frazer. Cassi bateu. Ouviu alguém gritar que entrasse.
O aposento achava-se em agudo contraste com o modo pelo qual Robert o mantinha. Havia pilhas de livros, revistas médicas e lâminas de microscópio por toda a parte para a qual olhava. O chão estava literalmente cheio de folhas de papel amassadas. O Dr. Frazer combinava com o ambiente. Ele tinha cabelos crespos despenteados que mergulhavam numa barba sem qualquer linha de demarcação.
— Em que posso servi-la? — perguntou ele, notando a reação de surpresa de Cassi àquela confusão. Sua voz não era amigável nem hostil.
— Eu era uma amiga de Robert Seibert — disse Cassi.
— Ah, sim — disse Frazer, recostando-se na cadeira e pondo as mãos atrás da cabeça. — Que tragédia.
— Você sabe alguma coisa sobre os papéis dele? — perguntou Cassi. — Nós estávamos trabalhando juntos num projeto. Eu estava esperando apanhar o material.
— Não faço a menor ideia. Quando me ofereceram este gabinete, ele havia sido completamente limpo. Eu aconselharia você a falar com o chefe do departamento, Dr...
— Eu conheço o chefe — interrompeu Cassi. Já fui uma residente aqui.
— Lamento não poder ajudá-la — disse o Dr. Frazer, inclinando-se para a frente de novo em sua cadeira e voltando ao seu trabalho.
Cassi virou-se para ir embora, mas então lembrou-se de mais uma coisa.
— Você sabe o que revelou a autópsia de Robert?
— Ouvi dizer que o cara tinha uma grave doença valvular cardíaca.
— E quanto à causa da morte?
— Isso eu não sei. Estão esperando pelo exame do cérebro. Talvez ainda não o tenham terminado.
— Você sabe se ele estava cianótico?
— Acho que sim. Mas eu não sou a pessoa indicada para ser perguntada. Sou novo aqui. Por que você não fala com o chefe?
— Você tem razão. Obrigada pelo tempo que lhe roubei.
O Dr. Frazer acenou com a mão para Cassi, quando esta saiu do gabinete, fechando silenciosamente a porta atrás de si. Ela foi à procura do chefe, mas ele estava numa reunião na cidade. Triste, Cassi resolveu sentar-se na sala de espera de Thomas até que ele estivesse pronto para sair. A visão do antigo gabinete de Robert já ocupado trouxe-lhe à lembrança sua morte com uma desagradável finalidade. Tendo sido obrigada a faltar ao enterro, às vezes Cassi tinha dificuldade em se lembrar de que seu amigo tinha morrido. Agora ela não teria mais esse problema.
Quando Cassi chegou ao consultório de Thomas, encontrou a porta trancada. Consultando seu relógio, ela viu por quê. Passava um pouquinho das 12 horas e Doris estava em sua folga para o almoço. Cassi chamou um segurança para abrir a porta da sala de espera e sentou-se no sofá cor-de-rosa.
Ela tentou examinar uma coleção de revistas New Yorker já obsoletas, mas não conseguia se concentrar. Olhando em volta, notou que a porta do gabinete de Thomas estava entreaberta. A única coisa que Cassi vinha negando efetivamente desde a semana anterior era a ingestão de drogas por Thomas. Com a mudança no seu comportamento, ela queria acreditar que ele havia parado. Mas ali, sentada em seu consultório, a curiosidade foi mais forte. Cassi levantou-se, passou pela mesa de Doris e entrou no escritório interior.
Era uma das poucas vezes em que ela ia ali. Ela relanceou o olhar para as fotos de Thomas e outro conhecido cirurgião cardíaco de renome nacional, que estavam dispostas sobre a estante dos livros. Ela nem notou que não havia retratos de si mesma. Havia um de Patricia, mas com o pai de Thomas e o próprio Thomas quando ele estava no colégio.
Nervosamente, Cassi sentou-se atrás da mesa. Quase que automaticamente sua mão se dirigiu para a segunda gaveta da direita, a mesma em que ela havia encontrado as drogas em casa. Ao puxá-la, ela se sentia como se fosse uma traidora. Thomas vinha se comportando tão maravilhosamente na semana passada. Contudo, ali estava: uma farmácia em miniatura, com Percodan, Demerol, Valium, morfina, Talwin e Dexedrina. Logo adiante dos tubos de plástico estava uma pilha de formulários postais para uma firma de drogas fora do estado. O nome da firma era Generic Drugs. O médico que assinava as receitas era um Dr. Allan Baxter, o mesmo nome que havia nos tubos que encontrara em casa.
Subitamente, ela ouviu a porta da sala de espera fechar-se. Resistindo à tentação de bater a gaveta, ela rapidamente fechou-a com calma. Então, inspirando profundamente, saiu do escritório de Thomas.
— Meu Deus! — exclamou Doris com espanto. — Eu não fazia ideia de que você estivesse aqui.
— Eles me deixaram sair cedo — disse Cassi com um sorriso. — Uma boa maneira de proceder.
Depois de se recuperar de seu choque inicial, Doris sentiu-se compelida a informar Cassi de que ela havia passado toda a tarde anterior cancelando as consultas dos pacientes ambulatórios para que Thomas pudesse levá-la para casa. Entrementes, deu uma rápida olhadela no gabinete interior do consultório e depois fechou a porta.
— Quem é o Dr. Allan Baxter? — perguntou Cassi, ignorando a tentativa de Doris em fazê-la sentir-se como uma carga.
— O Dr. Baxter era um cardiologista que ocupava a suíte profissional pegada e que nós tomamos quando acrescentamos as salas para exames extras.
— Quando ele se mudou? — perguntou Cassi.
— Ele não se mudou. Ele morreu — disse Doris, sentando-se atrás de sua máquina de escrever e dirigindo a atenção para o material que estava em cima de sua mesa. Sem olhar para Cassi, ela acrescentou: — Se você quiser sentar-se, estou certa de que Thomas logo estará aqui.
E, colocando uma folha de papel em sua máquina, começou a escrever.
— Acho que prefiro aguardar no gabinete de Thomas.
Quando Cassi passou por trás de sua mesa, Doris levantou a cabeça.
— Thomas não gosta que ninguém entre em seu gabinete quando ele não está — protestou ela com autoridade.
— É compreensível — retrucou Cassi. — Mas eu não sou ninguém. Sou a mulher dele.
Cassi passou pela porta e fechou-a, na expectativa de que Doris a seguisse. Mas a porta não se abriu e ela pôde ouvir o som da máquina de escrever.
Voltando à mesa de Thomas, ela rapidamente apanhou um dos formulários postais, notando que ele não só trazia impresso o nome do Dr. Baxter, mas também o seu registro na Administração de Controle de Drogas. Usando uma linha direta para fora do hospital, Cassi fez uma chamada para aquela instituição. Atendeu uma secretária. Cassi apresentou-se e disse que tinha uma pergunta a fazer sobre um certo médico.
— Acho que seria melhor a doutora falar com um de nossos inspetores — disse a secretária.
Cassi ficou aguardando. Sua mão estava tremendo. Logo um dos inspetores entrou na linha. Cassi deu-lhe suas credenciais, mencionando que era uma médica da equipe do Boston Memorial. O inspetor foi muito cordial e perguntou-lhe em que lhe podia ser útil.
— Eu gostaria apenas de uma informação — disse Cassi. — Eu estava pensando se vocês verificam os hábitos de prescrições dos médicos individualmente.
— Sim, verificamos — respondeu o inspetor. — Nós mantemos registros no computador usando o Sistema de Informações de Drogas e Narcóticos. Mas se a doutora está procurando uma informação específica sobre um determinado médico, receio não poder atendê-la. É confidencial.
— Só vocês podem vê-la, é isso?
— Correto, doutora. É evidente que não examinamos os hábitos de receituários individuais, a não ser que recebamos uma informação pelo conselho examinador dos médicos ou do comitê de ética médica da sociedade, sugerindo a existência de uma irregularidade. Exceto, naturalmente, se os hábitos de receituário do médico mudam marcadamente num curto período de tempo. Então, automaticamente, o computador solta o seu nome.
— Sei — disse Cassi. — Não há meios de eu checar um médico em particular?
— Receio que não. Se a doutora tem alguma pergunta a fazer sobre algum, sugiro que se entenda com a sociedade médica. Estou certo de que a doutora compreende por que a informação é confidencial.
— Suponho que sim — disse Cassi. — Obrigada e desculpe por ter tomado seu tempo.
Cassi ia desligar quando o inspetor falou:
— Posso lhe dizer se um determinado médico está devidamente registrado e ativamente receitando. Não a quantidade. Isto serve?
— Claro que serve. — E deu o nome do Dr. Allan Baxter e seu número de registro.
— Aguarde — disse o inspetor. — Vou dar esses dados ao computador.
Enquanto Cassi esperava, ouviu a porta de fora fechar-se. Depois ouviu a voz de Thomas. Com uma onda de ansiedade, ela enfiou a receita da droga em seu bolso. Quando Thomas passou pela porta, o inspetor voltou à linha. Cassi sorriu, constrangida.
— O Dr. Baxter está em atividade e em dia com um número válido.
Cassi nada disse. Limitou-se a desligar o telefone.
Thomas estava falante e solícito enquanto dirigia o carro, levando Cassi para casa. Se ele ficara zangado com a presença dela em seu gabinete, havia ocultado o fato sob um excesso de perguntas que fazia sobre como Cassi estava se sentindo. E embora esta insistisse que se sentia ótima, Thomas fez com que ela esperasse na entrada do hospital para que ele pudesse correr e trazer o carro da garagem, contornando o edifício, até onde ela estava.
Cassi estava grata pela atenção e solicitude de Thomas, porém se achava tão assustada pelo que acabara de saber da Administração de Controle de Drogas que ficou silenciosa a maior parte do caminho para casa. Ela agora compreendia como Thomas conseguia obter suas drogas sem que se percebesse. Ele tinha um suprimento do registro de narcóticos de Allan Baxter. Tudo o que ele precisava fazer era preencher um formulário todos os anos e enviar cinco dólares. Com o número e uma ideia da quantidade de receitas que o Dr. Baxter vinha fornecendo antes de morrer, Thomas podia conseguir um bocado de drogas. Provavelmente mais do que podia consumir.
E o fato de que havia recorrido a tal fraude tornava claro que seu problema era mais extenso do que Cassi pensava. O comportamento dele naquela última semana tinha sido tão normal que ela acreditou que ele já começara a controlar o vício. Talvez eles pudessem tocar mais nesse assunto, mais adiante, quando estivessem fora.
— Tenho más novas — disse Thomas, interrompendo os pensamentos dela.
Cassi voltou-se. Ela viu os olhos dele piscarem para ela num breve instante, como que para se certificar de que ela estava atenta a ele.
— Hoje, antes de sair do Centro Cirúrgico, recebi um chamado de um hospital em Rhode Island. Eles estão trazendo um paciente para uma cirurgia de emergência esta noite. Tentei arranjar alguém para tratar do caso porque queria ficar com você, mas não havia ninguém disponível. Com efeito, depois de me certificar de que você está confortável, tenho de me pôr a caminho.
Cassi não respondeu. Ela estava quase contente por ele ficar no hospital. Isso lhe daria uma oportunidade para decidir o que fazer. Talvez ela pudesse determinar a quantidade de drogas que Thomas estava tomando. Havia, ainda, a chance de ele haver parado.
— Você compreende? — perguntou Thomas. — Eu não tinha escolha.
— Compreendo — respondeu Cassi.
Thomas dirigiu até a casa, insistindo em sair e abrir a porta do carro. Era uma coisa que ele não se importava de fazer desde seus primeiros encontros.
Assim que entraram, Thomas insistiu para que ela subisse diretamente para o quarto de vestir.
— Onde está Harriet? — perguntou Cassi quando Thomas a seguiu com um jarro de água gelada.
— Ela tirou a tarde para visitar uma tia — disse Thomas. — Mas não se preocupe. Estou certo de que ela fez alguma coisa para você comer.
Cassi não estava preocupada. Certamente, ela mesma podia fazer o seu jantar, mas parecia estranho não ter a Sra. Summer zanzando por ali.
— E Patricia?
— Eu tratarei de tudo — disse Thomas. — Quero que você relaxe.
Cassi reclinou-se em sua espreguiçadeira e deixou que Thomas colocasse um acolchoado em seu colo. Com a relação das leituras psiquiátricas ao alcance dos dedos, tinha muito o que fazer.
— Precisa de mais alguma coisa? — perguntou Thomas.
Cassi abanou a cabeça.
Thomas curvou-se e beijou-a na testa. Antes de sair, deixou um folheto de viagens em seu colo.
Cassi abriu-o e encontrou duas passagens da American Airlines.
— Alguma coisa para você olhar enquanto eu estiver fora. Entrementes, tenha uma boa noite de sono.
Cassi ergueu-se e passou os braços em torno do pescoço de Thomas. E apertou-o com quanta força tinha.
Thomas desapareceu no banheiro de comunicação, tendo o cuidado de fechar a porta calmamente. Cassi ouviu a descarga da privada. Quando ele reapareceu, tornou a beijá-la e lhe disse que telefonaria após a cirurgia, se não fosse muito tarde.
Depois de uma rápida parada no estúdio, bem como na sala de estar e na cozinha, Thomas ficou pronto para sair.
Com Cassi em casa, chegada do hospital, há muitos dias que Thomas não se sentia tão bem. Chegou a considerar a operação que ia fazer, esperando que fosse um caso desafiador. Mas antes de se pôr a caminho, ele tinha mais uma tarefa a cumprir: ver sua mãe.
Thomas tocou a campainha e esperou, enquanto Patricia descia as escadas. Ela ficou satisfeita de vê-lo até que ele lhe disse que estava voltando diretamente para o hospital.
— Trouxe Cassi para casa hoje — disse ele.
— Bem, você sabe que Harriet não está em casa. Espero que não pense que vou cuidar dela.
— Ela está ótima, mãe. Só quero que você a deixe sozinha. Não quero que você vá lá esta noite e a perturbe.
— Não se preocupe. Certamente não irei aonde não sou querida — retrucou Patricia, rabugenta até o fim.
Thomas afastou-se sem dizer mais nada. Minutos depois, ele entrou em seu carro e, após enxugar as mãos no trapo que trazia debaixo do assento da frente, ligou o motor. Ele antecipou a viagem até Boston, sabendo que haveria pouco tráfego. Cuidadosamente, trouxe o poderoso carro para o estimulante ar da tarde.
Chegando ao hospital, Thomas ficou satisfeito em encontrar uma vaga perto da cabine do atendente. Soltou um alto alô enquanto saltava do carro. Entrou no hospital e tomou o elevador diretamente para o departamento de cirurgia.
Ao se aproximar o entardecer, Cassi deixou que a pálida luz invernosa fosse se desvanecendo sem acender o abajur. Ela observava o mar varrido pelo vento passar de um azul pálido para o cinzento metálico. Ainda com as passagens de avião em seu colo, esperava que, assim que houvessem saído, ela e Thomas pudessem discutir sinceramente o problema do vício dele. Ela sabia que a consideração e o reconhecimento eram mais do que a metade do problema. Tentando assumir uma atitude positiva, Cassi fechou os olhos e conjurou visões de longas conversas na praia e o início de todo um novo relacionamento. Ainda cansada de suas provações no hospital, ela adormeceu.
Já estava completamente escuro quando Cassi acordou. Ela podia ouvir o vento fazendo chocalhar as janelas de tempestade e a firme batida da chuva no telhado. Fiel aos seus preceitos, o tempo na Nova Inglaterra fizera outra reviravolta. Ela estendeu a mão e acendeu o abajur que estava no chão. Por um instante, a luz pareceu intensamente brilhante e Cassi defendeu o olho para olhar o seu relógio. Ficou surpresa ao ver que eram quase oito horas. Irritada consigo mesma, ela atirou fora o acolchoado e levantou-se. Ela não gostava de se atrasar tanto com sua insulina.
No banheiro, Cassi notou pela medida da urina, que estava com duas vezes mais açúcar. Voltando ao quarto, foi à geladeira e apanhou seu remédio. Carregando tudo para sua mesa, ela meticulosamente preparou as quantidades certas, 50 unidades de insulina regular e 10 unidades de insulina de ação retardada. Com habilidade, ela injetou-se na coxa esquerda.
Cuidadosamente, ela tirou a agulha e jogou a seringa na cesta, recolocando os vidros de insulina na geladeira. Cassi conservava as insulinas regular e de ação retardada em diferentes prateleiras, para ter a certeza de que não ia confundi-las. Então, desempacotou a medicação para seu olho, removeu a venda ocular e começou a pingar as gotas no olho esquerdo. Estava a meio caminho da cozinha quando sentiu a primeira onda de tonteira.
Ela parou, achando que aquilo passaria rapidamente. Mas não passou. Cassi sentiu o suor porejar nas palmas das mãos. Confusa com o fato de as gotas oculares provocarem uma ação sistêmica tão rápida, ela voltou ao quarto e examinou o rótulo. Tratava-se de um antibiótico, conforme suspeitava. Depondo a medicação sobre a mesa, Cassi enxugou as mãos; estavam ensopadas. Então, todo o seu corpo começou a suar, ao mesmo tempo que ela sentia uma fome incrível.
Cassi sabia que isso não era devido às gotas para os olhos. Ela estava tendo uma outra reação à insulina. Seu primeiro pensamento foi o de que ela havia errado a calibragem na seringa, mas retirando-a da cesta de lixo viu que esta hipótese era falsa. Ela verificou os frascos de insulina, porém eles estavam como sempre tinham estado, U100. Cassi abanou a cabeça, imaginando como o seu equilíbrio diabético podia ter-se alterado tanto. Em qualquer caso, a causa da reação era menos importante do que seu imediato tratamento. Cassi sabia que era melhor comer qualquer coisa sem demora. A meio caminho do corredor para a cozinha, ela sentiu fios de suor correrem por seu corpo e o coração começar a bater desordenadamente. Tentou tomar o pulso, mas sua mão tremia demais. Não se tratava de uma reação leve! Era um outro episódio avassalador como o que ela experimentara no hospital.
Em pânico, Cassi partiu como um raio para o quarto e abriu o armário. A maleta de couro preta, de médico, que ela ganhara na escola de medicina devia estar em algum lugar ali. Ela precisava encontrá-la. Em desespero, afastou as roupas para um lado, buscando nas prateleiras do fundo. Ali estava a maleta!
Cassi puxou a maleta para baixo e levou-a para sua mesa. Abrindo o fecho, ela retirou seu conteúdo, que incluía um frasco de glicose diluída em água. Com as mãos trêmulas, ela retirou um pouco e injetou-se. O ato surtiu pouco ou nenhum efeito. O tremor estava piorando. Até sua visão estava se alterando.
Freneticamente, Cassi agarrou algumas ampolas de glicose a 50 por cento para injeção endovenosa. Com grande dificuldade, aplicou um torniquete em torno de seu braço esquerdo. Então, com a mão espástica, conseguiu enfiar uma agulha tipo borboleta numa das veias do dorso da mão esquerda. O sangue esguichou da extremidade aberta da agulha, porém ela não lhe deu atenção. Afrouxando o torniquete, adaptou o tubo da ampola endovenosa. Quando ela manteve a ampola acima de sua cabeça, o líquido claro correu e empurrou o sangue para trás, para dentro de sua mão, e começou a se escoar livremente.
Cassi esperou um momento. Com a glicose correndo, ela sentiu-se um pouco melhor e sua visão imediatamente voltou ao normal. Equilibrando a ampola entre a cabeça e o ombro, Cassi colocou algumas tiras de esparadrapo no local em que a agulha havia penetrado a pele. O esparadrapo não segurou muito bem por causa do sangue. Então, segurando a ampola endovenosa na mão direita, ela correu para o quarto de dormir, levantou o receptor do telefone e discou 911.
— Preciso de uma ambulância... — começou Cassi a dizer, mas a pessoa que estava na outra extremidade da linha interrompeu-a falando:
— Alô, alô!
— Está em ouvindo? — perguntou Cassi.
— Alô, alô!
— Está me ouvindo? — gritou Cassi, entrando novamente em pânico.
Cassi podia ouvir a pessoa na outra ponta da linha dizer alguma coisa a um colega. Depois a chamada foi desligada.
Cassi tentou de novo com o mesmo resultado. Então, discou para a telefonista. Foi o mesmo problema de enlouquecer. Ela podia ouvi-los, mas eles não a ouviam.
Segurando a segunda ampola de glicose com a mão esquerda, e carregando a que estava se escoando acima de sua cabeça, Cassi correu pelo corredor, com as pernas bambas, para o escritório de Thomas.
Para horror seu, o telefone dele também não funcionava. Ela continuava a ouvir a outra parte dizendo em vão alô, mas era óbvio que não a podiam ouvir. Desfazendo-se em lágrimas, ela bateu o telefone e pegou a segunda ampola de injeção endovenosa.
O pânico de Cassi crescia na medida em que lutava para descer as escadas sem cair. Ela experimentou os telefones da sala de estar e da cozinha sem sucesso.
Lutando contra uma poderosa sonolência, voltou correndo pelo corredor para o saguão. Suas chaves estavam na mesa do lado e ela pegou-as juntamente com a ampola de glicose não usada. Seu primeiro pensamento foi tentar dirigir o carro para o hospital local, que não era longe — no máximo 10 minutos. Com a ampola endovenosa correndo, a reação à insulina parecia estar controlada.
Para abrir a porta da frente, ela precisou de um esforço que exigiu baixar a ampola por um instante. O sangue voltou a entrar na ampola, mas o líquido tornou a clarear quando ela ergueu a ampola da injeção endovenosa, de novo, acima de sua cabeça.
A noite fria e chuvosa pareceu revivê-la quando ela correu para a garagem. Fazendo malabarismos com a ampola de injeção, ela conseguiu abrir a porta do carro e se esgueirar por trás do volante. Inclinando o espelho retrovisor, ela prendeu a ampola nele. E empurrou a chave da ignição.
O motor girou, girou, mas não pegou. Ela tirou a chave e fechou os olhos. Estava tremendo violentamente. Por que o carro não pegava? Ela tentou de novo, com o mesmo resultado. Olhando para a ampola de glicose, viu que estava quase vazia. Tremendo, ela removeu o protetor da segunda ampola. Mesmo durante os poucos minutos que levou para fazer a troca, ela pôde sentir o efeito. Não havia dúvida de que, quando a glicose acabasse, ela mais provavelmente perderia a consciência.
Cassi decidiu que, agora, sua única chance era o telefone de Patricia. Saindo da garagem para a chuva, Cassi contornou o prédio e correu para a porta de Patricia. Ainda segurando a ampola acima da cabeça, ela apertou o botão da cigarra.
Como em sua visita anterior, Cassi pôde ver Patricia descendo as escadas. Ela vinha devagar, cautelosamente olhando para a noite. Quando ela reconheceu Cassi e a viu com uma ampola de injeção endovenosa segura na mão, no alto, rapidamente mexeu na porta e a abriu.
— Meu Deus! — exclamou Patricia, reparando na palidez de Cassi e em seu rosto molhado de suor. — Que aconteceu?
— Reação à insulina — conseguiu dizer Cassi. — Tenho de chamar uma ambulância.
O rosto de Patricia mostrava preocupação, mas, aparentemente paralisada pelo choque, ela não saiu do caminho.
— Por que você não chamou lá da casa principal?
— Não posso. Os telefones estão enguiçados. Por favor.
Cassi avançou para a frente, empurrando e passando por Patricia. O movimento pegou Patricia de surpresa e ela cambaleou para trás. Cassi não tinha tempo para discutir. Queria um telefone.
Patricia ficou com raiva. Mesmo que Cassi não estivesse passando bem, não precisava ser grosseira. Mas Cassi não deu ouvidos às queixas de sua sogra e já estava discando 911 quando Patricia alcançou-a na sala de estar. Para alívio de Cassi, desta vez ela pôde ser ouvida pela telefonista da emergência. Tão calmamente quanto pôde, ela deu seu nome e endereço e disse que precisava de uma ambulância. O despachante do hospital assegurou-lhe que uma estaria lá imediatamente.
Cassi baixou o receptor com a mão trêmula. Ela olhou para Patricia, cujo rosto, mais do que qualquer outra coisa, refletia confusão. Exausta, Cassi deixou-se afundar no divã. Patricia fez o mesmo e as duas mulheres sentaram-se quietas até que ouviram as sirenes se aproximando pelo caminho. Os anos de mudo antagonismo tornavam a comunicação difícil, mas Patricia ajudou Cassi, que se achava quase inconsciente, a descer as escadas.
Enquanto Patricia atentava para o som agudo da ambulância que corria de volta através do pântano salgado, teve um momento de real simpatia por sua nora. Lentamente, ela tornou a subir as escadas e telefonou para o Boston Memorial. Ela achava que seu filho devia se juntar à mulher no hospital local. Mas Thomas estava na cirurgia. Patricia deixou recado para que ele lhe telefonasse o mais breve possível.
Thomas olhou para o relógio no painel de instrumentos. Eram 12:34 da noite. A enfermeira encarregada dera-lhe o recado de Patricia no momento em que ele saía da cirurgia, às 11:15. Quando ele falou com a mãe, ela estava muito assustada, contando-lhe o que havia acontecido. Ela repreendeu-o por ter deixado Cassi sozinha e instou com ele para que se dirigisse ao hospital local o mais depressa possível.
Thomas havia telefonado para o Essex General, mas a enfermeira não soubera dizer como Cassi estava passando. Disse apenas que ela havia sido admitida. Thomas não precisava que ninguém o apressasse. Ele estava desesperado para saber do estado de Cassi.
No sinal vermelho do quarteirão diante do hospital, Thomas reduziu a velocidade do carro, mas não parou. Quando alcançou o terreno do hospital, ele fez uma curva tão fechada que as rodas do carro guincharam em protesto.
A mesa da frente do hospital estava deserta. Um pequeno aviso dizia: PARA INFORMAÇÕES DIRIJA-SE À EMERGÊNCIA. Thomas disparou pelo hall. Havia uma pequena área de espera e um posto da enfermagem. Uma enfermeira estava tomando café e vendo um aparelho de TV em miniatura. Thomas bateu no vidro.
— Posso ajudá-lo? — perguntou ela com forte acento bostoniano.
— Estou procurando por minha mulher — disse Thomas nervosamente. — Ela foi trazida para cá de ambulância.
— O senhor se importaria de se sentar um momento?
— Ela está aqui? — perguntou Thomas.
— Se o senhor se sentar, eu vou buscar o médico. Acho que seria melhor falar com ele.
Oh, Deus, pensou Thomas, virando-se e sentando-se obedientemente. Ele não fazia ideia do que ia acontecer. Felizmente, não teve que esperar muito tempo. Apareceu um homem de feições orientais, vestido num avental amassado, piscando ante a brilhante luz fluorescente.
— Desculpe — disse ele, apresentando-se como Dr. Chang. — Sua mulher não está mais conosco.
Por um momento, Thomas pensou que o homem lhe dizia que Cassi estava morta, mas então o médico continuou explicando que Cassi, ela própria, se havia dado alta.
— Quê? — gritou Thomas.
— Ela mesma era médica — desculpou-se o Dr. Chang.
— O que o senhor está querendo dizer? — Thomas procurava abafar sua cólera.
— Ela chegou sofrendo da aplicação de uma superdose de insulina. Nós lhe demos açúcar e ela estabilizou. Então, ela quis ir embora.
— E o senhor permitiu.
— Eu não queria que ela saísse — prosseguiu o Dr. Chang. — Eu a adverti contra isso. Mas ela insistiu. Saiu contra o conselho médico.
Thomas agarrou o homem pelos braços.
— Como você deixou que ela saísse?! Ela estava em estado de choque. Provavelmente não estava raciocinando direito.
— Ela estava lúcida e assinou um formulário de alta. Não havia muita coisa que eu pudesse fazer. Ela disse que queria ir para o Boston Memorial. Eu sabia que ela teria um melhor tratamento ali. Não sou especialista em diabetes.
— Ela foi como? — perguntou Thomas.
— Ela chamou um táxi — respondeu o Dr. Chang.
Thomas saiu correndo de volta pelo corredor e passou pela porta da frente. Ele tinha de encontrá-la!
Thomas dirigia descuidadamente. Felizmente quase não havia tráfego. Após uma breve parada em casa, ele voltou para Boston. Quando entrou na garagem do estacionamento do Memorial passava pouco das 2h00 da manhã. Ele estacionou o carro e disparou para a emergência.
Em contraste com o Essex General, a Emergência estava apinhada de pacientes. Thomas foi direto ao gabinete de admissões.
— Sua mulher não passou pela Emergência — disse-lhe um dos funcionários.
O outro funcionário introduziu o nome de Cassi no computador.
— Ela também não foi admitida. Aqui mostra que teve alta esta manhã.
Thomas experimentou uma sensação de vazio no abdome. Onde poderia estar ela? Ele só tinha outra coisa a pensar. Talvez ela tivesse ido para a Clarkson Dois.
Embora jamais houvesse parado para especular o motivo, Thomas não gostava de ir ao andar da psiquiatria. O ambiente fazia-o sentir-se desconfortável. Ele nem gostava do som que a pesada porta contra fogo fazia quando se fechava atrás dele com sua vedação impermeável.
Ao andar pelo corredor, seus saltos do sapato ecoavam alto. Ele passou pela sala comum, onde a TV ainda estava ligada, embora não houvesse ninguém assistindo-a. Na mesa, uma das enfermeiras, que estava lendo uma revista médica, olhou para ele como se fosse um dos pacientes.
— Eu sou o Dr. Kingsley — disse Thomas.
A enfermeira assentiu com uma inclinação da cabeça.
— Estou procurando minha mulher, a Dra. Cassidy. Você a viu?
— Não, Dr. Kingsley. Pensei que ela estivesse de licença.
— Ela está, mas achei que ela podia ter vindo para cá.
— Não. Mas se eu a vir lhe direi que o senhor a está procurando.
Thomas agradeceu à mulher e decidiu ir para o seu escritório enquanto pensava no que fazer.
Assim que abriu a porta, ele foi até sua mesa e pegou vários comprimidos de Talwin.
Tomou-os com um gole de scotch e depois sentou-se. Pôs- se a pensar se não estaria criando uma úlcera. Ele sofria de uma dor aborrecida bem por baixo do esterno, que se refletia para as costas. Com a dor, porém, ele podia viver. Mas pior do que a dor era a penetrante ansiedade. Ele se sentia como se fosse dividir-se em um milhão de pedaços. Ele tinha de encontrar Cassi. Sua vida dependia disso.
Thomas foi para o telefone. Apesar da hora, chamou o Dr. Ballantine. Cassi havia falado com ele e havia uma possibilidade de que houvesse tornado a procurá-lo.
O Dr. Ballantine, zonzo de sono, atendeu da segunda vez que o telefone tocou. Thomas se desculpou e perguntou se ele tinha notícias de Cassi.
— Não — disse o Dr. Ballantine, limpando a garganta. — Há algum motivo pelo qual eu devia ter?
— Não sei — admitiu Thomas. — Ela teve alta hoje, mas depois que a levei para casa tive de voltar ao hospital para uma emergência. Quando saí da cirurgia havia um recado para eu telefonar para minha mãe. Ela me disse que, aparentemente, Cassi havia-se aplicado uma superdose de insulina. Uma ambulância levou-a para o hospital local, mas quando cheguei lá ela própria já havia se dado alta. Não faço qualquer ideia de onde ela está ou em que situação. Estou tremendamente preocupado.
— Thomas, lamento. Se ela chamar, entrarei em contato com você imediatamente. Onde estará?
— Basta telefonar para o hospital. Eles têm o meu número.
Quando o Dr. Ballantine repôs o fone, sua mulher virou-se e perguntou qual era o problema. Como chefe de serviço, Ballantine recebia poucos chamados de emergência à noite.
— Era Thomas Kingsley — disse Ballantine, fixando o olhar na escuridão. — Parece que a mulher dele está muito instável. Ele receia que ela possa ter tentado se matar.
— Coitado — disse a Sra. Ballantine, sentindo que seu marido atirava as cobertas fora e se levantava. — Aonde vai você, querido?
— A lugar nenhum. Volte a dormir.
O Dr. Ballantine vestiu seu roupão e saiu do quarto de dormir. Ele tinha uma terrível sensação de que as coisas não estavam saindo conforme havia planejado.
CASSI ACORDOU com a mesma intensa dor de cabeça que experimentara na unidade de tratamento intensivo. A diferença agora era que sua mente estava clara. Ela se lembrava de tudo o que havia acontecido na noite anterior. Depois de sair do Essex General ela se dirigiu para Boston, pensando que poderia chamar o Dr. Mclnery, mas ao chegar no hospital não mais precisava de cuidados de emergência. Mas antes de encarar seus medos sobre o que tinha acontecido, ela sabia que precisava dormir. Ela foi para o quarto do plantonista, vazio, da Clarkson Dois e se estendeu sobre a cama de lona.
Ao adormecer ela sabia que tinha de encontrar alguém com quem falar sobre Thomas. Teria ele alguma coisa que ver com sua segunda superdose de insulina? Cassi não sabia como, desde que ela própria havia injetado a dose regular de seu medicamento. Mas o fato de todos os telefones, exceto o de Patricia, estarem enguiçados era uma coincidência muito grande para provocar um acidente, acrescendo ainda o fato de seu carro jamais haver-se negado a pegar no passado. E se seus medos sobre Thomas estar em conexão com os casos de MSC fossem reais? E se ela não houvesse tido alucinações e ele fosse responsável pela morte de Robert?
Se isso fosse verdade, ele devia estar doente, mentalmente doente. Ele necessitava de socorro. O Dr. Ballantine dissera que faria qualquer coisa que pudesse se Thomas precisasse de conselhos. Cassi resolveu vê-lo de manhã. Por enquanto ela estava segura.
Examinando sua urina por uma última vez, ela decidiu que podia dormir. Felizmente Patricia não podia dar o alarme para Thomas até de manhã.
Quando ela acordou, bem antes da aurora, a enfermaria de psiquiatria achava-se deserta ainda. Cassi lavou-se o melhor que pôde e correu para o laboratório, onde persuadiu um sonolento técnico a retirar-lhe um pouco de sangue para dosar a glicose, e apenas para o supervisor noturno do laboratório recusar-se a fazê-lo, porque ela não trazia seu cartão do hospital.
Sem disposição para discutir, Cassi deixou a amostra de sangue, dizendo ao homem que fizesse como lhe ditava a consciência. Disse ainda que passaria mais tarde por ali. Depois, dirigiu-se para o escritório de Ballantine e postou-se no corredor oposto à sua porta.
Passou uma hora e meia antes que ele aparecesse. Ele viu Cassi assim que veio pelo corredor.
— Se o senhor dispusesse de um momento, eu gostaria de lhe falar — disse ela.
— Claro — retrucou o Dr. Ballantine, virando-se para destrancar sua porta. — Entre. — Ele procedia como se já a esperasse.
Cassi entrou no gabinete, olhando pela janela para evitar encontrar o olhar atento de Ballantine. Ela podia ver desde o Rio Charles até o edifício do MIT[1], diretamente do outro lado. Embora sem saber por que, Cassi achava que o Dr. Ballantine parecia, de algum modo, aborrecido por vê-la.
— Bem, que posso fazer por você? perguntou ele.
— Preciso de ajuda — disse Cassi, pondo-se em pé diante da mesa dele. Ballantine não estava fazendo com que ela se sentisse confortável, porém ela não sabia a quem mais procurar.
— E que tipo de ajuda você precisa? — perguntou ele, sem mandar que Cassi se sentasse.
— Não estou muito certa — disse Cassi lentamente. — Mas antes de abordar qualquer outro assunto preciso fazer com que Thomas se trate. Sei que ele está abusando de drogas.
— Cassi — disse o Dr. Ballantine com paciência — desde que falamos pela última vez, examinei os hábitos de prescrever de Thomas. Se ele erra, erra por excesso de cautela no que se refere aos narcóticos.
— Ele não consegue os comprimidos em seu nome — disse Cassi. — Mas as drogas são apenas parte da história. Acho que Thomas está doente. Mentalmente doente. Sei que não estou na psiquiatria há muito tempo, mas Thomas está definitivamente doente. Receio que ele me considere uma ameaça.
Ballantine não respondeu imediatamente. Ele olhou para Cassi com surpresa e, pela primeira vez desde que a havia visto, com preocupação. Sua expressão abrandou-se um pouco e ele passou um braço em torno dos ombros dela.
— Sei que você tem sofrido uma série de tensões. E acho que o problema vai além de minhas capacidades. O que eu gostaria que você fizesse era sentar-se e repousar por alguns minutos. Há alguém mais com quem eu penso que você deveria falar.
— Quem? — perguntou Cassi.
— Sente-se, por favor — continuou o Dr. Ballantine, suavemente. Ele mudou sua poltrona do canto para a frente da mesa, olhando para a janela. — Por favor — disse ele, pegando a mão de Cassi e gentilmente encorajando-a a sentar- se. — Quero que você fique confortável.
Este era o Dr. Ballantine de quem Cassi se lembrava. Ele cuidaria dela. Ele cuidaria de Thomas. Agradecida, ela afundou nas almofadas de couro macio.
— Posso oferecer-lhe alguma coisa? Café? Alguma coisa para comer?
— Eu comeria alguma coisa — respondeu Cassi. Ela estava com fome e achava que seu açúcar sanguíneo continuava baixo.
— Muito bem. Espere aqui. Estou certo de que tudo vai sair muito bem.
O Dr. Ballantine saiu do escritório, fechando a porta suavemente.
Cassi pôs-se a pensar em quem o Dr. Ballantine ia chamar. Tinha de ser alguém numa posição de autoridade e que tivesse alguma influência sobre Thomas. Do contrário, ele não escutaria. Cassi começou a repetir sua história mentalmente. Ela ouviu a porta abrir-se atrás de si e olhou em torno, esperando ver o Dr. Ballantine. Mas era Thomas.
Cassi ficou pasma. Ele fechou a porta com um empurrão de seu quadril.
Thomas trazia um prato de ovos mexidos e uma caixinha de papelão de leite. Ele adiantou-se e entregou-lhe a comida. Ele estava com a barba por fazer e seu rosto desfigurado e triste.
— O Dr. Ballantine disse que você precisava comer alguma coisa — falou ele cortesmente.
Cassi pegou o prato automaticamente. Ela estava com fome, porém chocada para comer.
— Onde está o Dr. Ballantine? — perguntou ela hesitante.
— Cassi, você me ama? — perguntou Thomas num tom de quem implora.
Cassi estava perplexa.
— Claro que eu o amo, Thomas. Mas...
Thomas adiantou-se e tocou seus lábios, interrompendo-a.
— Se você me ama, então deve compreender que estou com problemas; preciso de socorro, mas com seu amor sei que posso melhorar.
Cassi sentiu um aperto no coração. O que havia ela pensado? Estava claro que Thomas nada tinha a ver com os terríveis acontecimentos da noite anterior. A doença dele a estava pondo igualmente louca.
— Sei que você pode — disse Cassi, encorajando-o. Ela não havia pensado que Thomas fosse capaz de ter tal compreensão de seus próprios problemas.
— Eu tenho tomado drogas — prosseguiu Thomas — justo conforme você suspeitava. Na semana passada eu estive melhor, mas ainda é um problema, um grande problema. Tenho procurado enganar a mim mesmo, tentando negá-lo.
— Você realmente quer fazer alguma coisa sobre isso? — perguntou Cassi.
Thomas levantou a cabeça. As lágrimas corriam por suas faces.
— Desesperadamente, mas não posso fazê-lo sozinho. Cassi, preciso de você do meu lado, não contra mim.
De repente, Thomas parecia uma criança desamparada. Cassi pôs o prato de lado e pegou as mãos dele.
— Eu nunca pedi ajuda antes — disse Thomas. — Tenho sido por demais orgulhoso. Mas sei que tenho feito coisas terríveis. Uma coisa leva a outra. Cassi, você precisa me ajudar.
— Você precisa de cuidados psiquiátricos — falou Cassi, aguardando a resposta de Thomas.
— Eu sei — respondeu Thomas. — Eu nunca quis admiti-lo. Tenho tido tanto medo. E, em vez de admiti-lo, eu apenas tomo cada vez mais drogas.
Cassi olhou fixamente para o marido. Era como se ela jamais o houvesse conhecido. Ela lutava com o desejo de perguntar se ele havia sido o responsável por sua superdose de insulina, ou se ele tinha algo a ver com a morte de Robert, ou com a de alguns dos casos de MSC. Mas não pôde. Não naquele momento. Thomas estava muito abatido.
— Por favor — implorou ele. — Fique ao meu lado. Tem sido tão difícil admitir tudo isso.
— Você terá que ser hospitalizado disse Cassi.
— Sei disso, apenas que não pode ser aqui no Memorial.
Cassi ergueu-se e pôs as mãos nos ombros dele.
— Estou de acordo que o Memorial não seria uma boa ideia. O segredo é importante. Thomas, enquanto você concordar em se submeter aos cuidados de um profissional, ficarei ao seu lado pelo tempo que for necessário. Sou sua mulher.
Thomas abraçou Cassi com força, comprimindo seu rosto molhado contra o pescoço dela.
Cassi apertou-o de encontro a si, tranquiiizando-o.
— Existe um pequeno hospital particular em Weston chamado Vickers Psychiatric Institute. Penso que podíamos ir para lá.
Thomas concordou silenciosamente com um aceno de cabeça.
— De fato, acho que devíamos ir imediatamente. Esta manhã.
Cassi afastou Thomas, para poder ver seu rosto.
Thomas olhou diretamente para ela. Seus olhos azuis-turquesa pareciam embaçados de dor.
— Farei tudo o que você achar que eu devo, qualquer coisa para aliviar a ansiedade que sinto. Não posso aguentar isso por mais tempo.
O médico em Cassi dominou todas as outras reservas.
— Thomas, você tem se comportado de um modo tão difícil. Você queria tanto ser bem-sucedido que o processo de vencer tornou-se mais importante que o objetivo. Acho que isso é um problema comum aos médicos, particularmente cirurgiões. Você não deve pensar que está sozinho.
Thomas experimentou sorrir.
— Não estou certo de que tenha compreendido, mas enquanto você não me deixar, não importa.
— Quem me dera que você houvesse compreendido mais cedo.
Cassi tornou a puxar Thomas e abraçou-o. Apesar de tudo, ela sentia que tinha o marido de volta. Claro que ela ficaria ao lado dele. Ela, mais do que ninguém, sabia o que era estar doente.
— Tudo vai ficar bem — disse ela. — Arranjaremos os melhores médicos, os melhores psiquiatras. Tenho alguma leitura sobre médicos incapacitados. A taxa de reabilitação é de quase cem por cento. Tudo o que é preciso é determinação e desejo.
— Estou pronto — falou Thomas.
— Vamos — disse Cassi, tomando a mão dele.
Como dois amantes, Thomas e Cassi ignoraram a multidão da manhã, que entrava no Boston Memorial. Caminhando de braços dados para a garagem à luz da manhã, Cassandra mantinha um firme entusiasmo falando sobre o Vickers Psychiatric Institute. Ela chegou a dizer a Thomas que tinha um psiquiatra específico em mente, que possuía um bocado de experiência em tratar de outros médicos.
Depois de embarcarem no Porsche, Cassi perguntou a Thomas se ele se sentia bastante bem para dirigir. Thomas assegurou-lhe que estava ótimo. Cassi estendeu a mão e colocou o cinto de segurança. Como de hábito, ela instou com Thomas para que fizesse o mesmo, mas depois pensou melhor. Cassi tinha a sensação de que as emoções dele estavam tão voláteis, que ele explodiria à menor frustração.
Thomas ligou o motor e cautelosamente recuou do estacionamento. Após atravessarem o portão automático, Cassi perguntou como o Dr. Ballantine havia encontrado Thomas tão depressa.
— Eu telefonei para ele durante a noite, quando não pude encontrar você — disse Thomas, parando num sinal vermelho. — Eu tinha a impressão de que você podia procurá-lo. Pedi-lhe que me chamasse em meu consultório se soubesse notícias suas.
— Ele não achou um tanto estranho? O que foi exatamente que você lhe disse?
O sinal abriu e Thomas acelerou na direção de Storrow Drive.
— Disse-lhe apenas que você havia tido outra reação à insulina.
Cassi considerou seu próprio procedimento. Ela reconheceu que suas ações pareceriam irracionais, especialmente assinando sua alta de um hospital contra o conselho do médico, quando mal estava estabilizada. Depois, escondendo-se de todo mundo.
Como de hábito, Thomas dirigia descuidadamente e, quando alcançaram Storrow Drive, firmou-se contra a porta devido à fechada curva à esquerda que os levaria a Weston. Em vez disso, Thomas girou para a direita e Cassi teve de se agarrar ao painel para não cair em cima dele. Ele deve ter feito isso por hábito, pensou Cassi.
— Thomas — disse ela. — Nós estamos nos dirigindo para casa em vez de para o Vickers.
Thomas não respondeu.
Cassi voltou-se para olhá-lo. Ele parecia estar segurando o volante com uma força terrível, na medida em que o velocímetro ia avançando pouco a pouco. Estendendo o braço, Cassi colocou a mão no pescoço dele, massageando seus músculos tensos. Ela queria acalmá-lo, pois sentia que ele estava começando a se enraivecer.
— Thomas, que é que há? — perguntou Cassi, tentando controlar seu medo.
Thomas não respondeu, dirigindo o carro como se fosse um autômato. Eles subiram a rampa, inclinaram-se e entraram nas múltiplas pistas da Interestadual 93. Àquela hora da manhã não havia muito tráfego e Thomas deixava o carro seguir.
Cassi virou-se para ele o máximo que lhe permitia seu cinto de segurança. Deixou a mão correr pelo lado de Thomas, sem saber o que fazer. Seus dedos tocaram em algo agudo no bolso do jaleco de Thomas. Antes que ele pudesse reagir, Cassi enfiou a mão e tirou um pacote aberto de insulina de 500 unidades U500.
Thomas arrancou bruscamente o pacote da mão dela, tornando a pô-lo no bolso.
Cassi virou-se e viu a estrada que corria desconcertantemente em sua direção. Sua mente disparava quando ela começou a entender a causa de sua última reação à insulina. Havia apenas uma razão para que Thomas tivesse a insulina U500. Era uma droga raramente usada. Ele devia ter substituído sua insulina U100 por uma droga mais concentrada, obrigando-a a se injetar cinco vezes a dosagem normal. Teria sido bastante fácil de fazer, forçando uma seringa através da vedação do frasco, do mesmo modo como ela retirava sua dose regular. Se não fosse por sua solução de glicose, ela estaria em coma agora, ou talvez pior. E o episódio do hospital? Ela não estava sonhando quando sentira o cheiro da água-de-colônia Yves St. Laurent. Mas por quê? Porque ela, como Robert, estava analisando os dados das mortes súbitas. De repente, tornou-se claro que o comportamento de Thomas, antes de deixarem o hospital, tinha sido um truque. Com horror, ela percebeu que Ballantine devia ter pensado que era ela quem estava mentalmente perturbada e não Thomas.
Cassi experimentou o surgimento de uma nova emoção: a raiva. Por um momento, ela dirigiu sua atenção quase tanto para Thomas quanto para si mesma. Como pôde ela ser tão cega?
Virando-se, ela estudou o perfil afilado de Thomas, vendo-o numa luz diferente. Seus lábios pareciam cruéis e seus olhos fixos tresloucados. Era como se ela estivesse com um estranho... um homem a quem ela, intuitivamente, desprezava.
— Você tentou me matar — sibilou Cassi, fechando os punhos com força.
Thomas riu com tal aspereza que Cassi sobressaltou-se.
— Quanta clarividência! Estou impressionado. Você realmente achou que os telefones enguiçados e seu carro sem querer pegar foram coincidências!
Cassi olhou para a cena com a visão embotada. Desesperadamente, tentou controlar sua raiva. Ela precisava fazer qualquer coisa. A cidade estava ficando para trás.
— Claro que tentei matar você — retrucou bruscamente Thomas. — Assim como me livrei de Robert Seibert. Meu Deus! O que você achava que eu ia fazer? Ficar sentado e deixar que vocês dois destruíssem minha vida?
Cassi girou a cabeça em derredor.
— Olhe — gritou Thomas —, tudo o que quero fazer é cirurgia em gente que mereça viver, não num bando de deficientes mentais ou em gente que vai morrer de outras doenças. A medicina tem de entender que nossos recursos são limitados. Não podemos deixar que candidatos merecedores fiquem esperando enquanto gente com esclerose múltipla, ou gays com AIDS, ocupem valiosos leitos e as horas de cirurgia.
— Thomas — disse Cassi, tentando controlar sua fúria. — Quero que você volte com este carro imediatamente. Está entendendo?
Thomas olhou fixamente para Cassi com um ódio incontido. Ele sorriu cruelmente.
— Você realmente pensou que eu iria para algum hospital de curandeiros?
— É sua única esperança — disse Cassi enquanto procurava se convencer de que ele estava completamente louco. Mas tudo o que ela sentia era uma tremenda aversão.
— Cale-se! — gritou Thomas, com os olhos salientes, a pele congestionada pela raiva. — Os psiquiatras são cheios de merda e nenhum deles vai sentar-se para me julgar. Sou o melhor dos cirurgiões cardíacos deste país.
Cassi podia sentir o poder irracional da fúria narcisista de Thomas. Ela experimentava pouca dúvida quanto ao que estava reservado para ela, especialmente desde que todo mundo pensava que ela já se havia injetado duas superdoses de insulina.
Adiante Cassi podia ver a saída para Somerville, que se aproximava rapidamente. Ela sabia que tinha de fazer algo. Apesar da velocidade em que eles estavam viajando, ela atravessou-se no assento e agarrou o volante, puxando o carro violentamente para a direita, esperando obrigá-los a sair da estrada interestadual.
Thomas foi empurrado e bateu de lado na cabeça de Cassi, jogando-a para a frente com a força de seu golpe. Ela largou o volante para se proteger. Thomas, pensando que ela ainda estava segurando o volante, atirou-se para trás com toda a sua força e o carro, que já estava fora de controle, inclinou-se intensamente para a esquerda. Desesperadamente, Thomas girou o volante para a direita e o Porsche derrapou de lado e depois bateu na mureta de proteção de concreto, numa confusão de vidros quebrados, metais retorcidos e sangue.
CASSANDRA PODIA OUVIR alguém chamando por seu nome de muito longe. Tentou responder, mas não pôde. Com grande esforço, abriu os olhos. O rosto preocupado de Joan Widiker emergiu como que de um denso nevoeiro.
Cassi piscou os olhos. Olhando para cima, pôde ver uma confusão de ampolas de injeções endovenosas. A sua esquerda, ela ouvia o bip incessante de um monitor cardíaco. Ela tomou uma inspiração profunda e sentiu uma dor pungente.
— Não tente falar — disse Joan. — Pode não parecer, mas você está indo muito bem.
— Que aconteceu? — sussurrou Cassi, com grande dificuldade.
— Você sofreu um acidente de automóvel — respondeu Joan, alisando para trás o cabelo de Cassi que estava em sua testa. — Não fale.
Como que saindo de um sonho, Cassi recordou-se do pesadelo da corrida com Thomas. Ela podia se lembrar de sua raiva e de haver agarrado o volante. Lembrava-se vagamente de ter sido empurrada e de haver se apoiado no painel do carro. Mas, depois, era como se uma cortina houvesse descido sobre a cena. Tudo estava vazio.
— Onde está Thomas? — perguntou Cassi, lutando contra o medo.
— Ele também foi ferido — retrucou Joan, instando com ela para que ficasse quieta.
Subitamente, Cassi sentiu que Thomas estava morto.
— Thomas não estava com o cinto de segurança — falou Joan.
Cassi hesitou e, então, articulou a palavra em voz alta.
— Morto?
Joan assentiu com uma inclinação de cabeça.
Cassi deixou a cabeça tombar para o lado. Mas enquanto as lágrimas escorriam por suas faces, voltou a lembrança de sua última conversa com Thomas. Ela pensou em Robert e em todos os outros. Agarrando a mão de Joan, disse:
— Eu pensava que o amava, mas graças a Deus...
(seis meses mais tarde)
O DR. BALLANTINE EMPURROU E PASSOU PELA porta de vaivém para a sala de estar do Centro Cirúrgico. Ele havia terminado seu único caso do dia e não havia corrido muito bem. Talvez fosse realmente hora de maneirar as coisas. E, no entanto, ele adorava operar. Ele adorava a triunfal sensação que se experimentava ao fim de cada caso bem-sucedido.
Ao se servir de uma xícara de café fervente, ele sentiu que lhe batiam no ombro. Virando-se, deu de cara com o rosto sorridente de George Sherman.
— Você não é capaz de imaginar com quem jantei na noite passada — disse George.
O Dr. Ballantine examinou o rosto desgastado de George. Desde a morte de Thomas, a carga dos pacientes internados estava cobrando seu tributo a toda a equipe, mas George era, talvez, o mais sobrecarregado. Sob a pressão ele havia se aperfeiçoado. Embora ainda tivesse um sorriso pronto e uma anedota para seus colegas, ele parecia cada vez mais atencioso. Mas agora olhava para Ballantine com o antigo sorriso travesso.
— Então, com quem você jantou? — perguntou o chefe.
— Cassandra Kingsley.
— O Dr. Ballantine ergueu as sobrancelhas num gesto de admiração.
— Muito bem. Como está andando o romance unilateral?
— Acho que a oposição está enfraquecendo — sorriu George. — Eu a convenci a ir ao Caribe em janeiro que vem. Isso seria maravilhoso. Ela é uma pessoa fabulosa.
— Como vai indo o olho dela?
— Ótimo. E todos aqueles ossos cicatrizaram sem qualquer defeito. Ela é realmente corajosa, especialmente por voltar ao trabalho tão depressa. E parece que ela está fazendo nome na Clarkson Dois. Um dos atendentes me disse que ela tem todos os predicados para ser chefe dos residentes.
— Ela ainda fala em Thomas? — perguntou o Dr. Ballantine, mais sério.
— Ocasionalmente. Tenho a impressão de que isso faz parte daquela história que ninguém, a não ser Cassi, conhece. Ela ainda está confusa quanto ao que deve fazer, mas, pessoalmente, acho que vai deixar as coisas correrem.
O Dr. Ballantine suspirou aliviado.
— Deus, espero que sim. Em nosso último encontro achei que a convenci de que tornar pública a história de Thomas causaria mais danos do que benefícios. Mas eu não estava certo.
— Ela não quer desmoralizar o hospital — disse George. — Seu ponto principal é que remexer no assunto não adianta. Gente como Thomas tem permissão para se destruir e aos seus pacientes porque seus colegas não tomam uma providência.
— Eu sei. Pelo menos entrei em contato com a Administração de Drogas e sugeri que eles obrigassem a junta de licenciamento a comunicar-lhes toda vez que morre um médico. Deste modo, ninguém poderia abusar da licença de um médico morto.
— Eis uma boa ideia — observou George. — E eles aceitaram?
O Dr. Ballantine encolheu os ombros.
— Não sei. Para lhe dizer a verdade, nunca acompanhei o caso.
— Sabe — disse George — o fato sobre Thomas que mais me aborrece é que ele parecia tão normal. Mas ele devia vir tomando um bocado de comprimidos. Não sei como isso se descontrolou. Eu próprio tomo um Valium de vez em quando.
— Eu também — disse Ballantine. — Mas não todos os dias, como Thomas aparentemente fazia.
— Não, nem todos os dias — admitiu George, abanando a cabeça. — Você sabe que nunca pude entender por que ele não admitia o fato de todo o departamento entrar no regime de tempo integral. Talvez os comprimidos embotassem o seu senso da realidade. Depois daquela reunião altas horas da noite com os conselheiros, ele podia ter conseguido a posição que quisesse. Os homens do dinheiro estavam ansiosos para fazê-lo feliz. Mesmo que quisessem que ele abandonasse uma clínica independente.
— Um cirurgião tão bom quanto Thomas era — disse o Dr. Ballantine — tinha dificuldade em enxergar além do seu nariz. Ele era como o sujeito de todas aquelas anedotas. Você sabe, o médico que banca Deus.
George ficou em silêncio por um minuto, pensando que todos eles tomavam decisões que afetavam as vidas dos seus pacientes.
— Que tal sobre a tríplice substituição de válvula que você mencionou na semana passada? — indagou George, seguindo seu pensamento. — O que você decidiu fazer?
Ballantine tomou cuidadosamente um gole de seu café.
— Eu nem vou apresentar o caso. A mulher tinha rins discutíveis; tem mais de sessenta anos; e há anos que está na previdência social. Algumas das objeções levantadas por Thomas quanto aos nossos casos para ensino eram válidas e nem quero que a comissão tome conhecimento dela. Se aquele maldito filósofo souber desta mulher, provavelmente vai insistir que nós a operemos.
George assentiu ostensivamente, concordando. Mas em sua mente reconheceu que todos eles, até certo ponto, faziam papel de Deus; e ele sabia que esta era a real preocupação de Cassi. Ele lhe prometera que, quando se tornasse chefe, o que já estava garantido, ele deixaria essas decisões para a comissão, incluindo o filósofo.
George afastou-se de Ballantine e passou pelo saguão apinhado de gente para a sala de estar dos médicos. Parando em frente ao telefone, ele se sentiu cada vez menos confortável em relação à decisão de Ballantine sobre o caso da válvula tríplice. Abruptamente, pegou o telefone, chamou a telefonista e conclamou pelo alto-falante a presença de Rodney Stoddard.
Robin Cook
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