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Medo Mortal / Robin Cook
Medo Mortal / Robin Cook

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Medo Mortal

                   

 

11 de Outubro, quarta-feira, à tarde

O SÚBITO APARECIMENTO das proteínas estranhas foi, no plano molecular, o equivalente da Peste Negra. Foi uma senten¬ça de morte, sem qualquer possibilidade de apelação, e Cedric Harring não tinha nenhuma noção do drama que estava para acontecer no seu íntimo.

Em nítido contraste, cada célula do organismo de Cedric Harring sabia exatamente quais as desastrosas conseqüências que estavam por vir. As misteriosas proteínas novas que se infiltravam no meio das células atravessaram-lhe as membra¬nas e tinham um poder avassalador; as pequenas quantidades de enzimas capazes de fazer frente às invasoras eram total¬mente inadequadas, insuficientes. No interior da hipófise de Cedric, as novas proteínas letais tinham condições de se ligar aos repressores que cobriam os genes do hormônio da morte. Desse momento em diante, estando os genes fatais expostos, o desfecho era inevitável. O hormônio da morte começou a ser sintetizado em quantidades sem precedentes. Penetrando na corrente sangüínea, espalhou-se pelo organismo de Cedric. Célula alguma estava imune. O fim era apenas uma questão de tempo. Cedric Harring estava por se desintegrar, retornando aos seus elementos estelares.

A DOR foi como a de uma facada, lancinante, começando em algum lugar do peito e irradiando-se rapidamente para cima, em paroxismos que cegavam, chegando a paralisar-lhe a man¬díbula e o braço esquerdo. Instantaneamente Cedric sentiu o terror do medo fatal da morte. Cedric Harring jamais havia sentido algo semelhante.

Num ato reflexo, agarrou com mais força o volante do carro e, respirando penosamente, conseguiu manter o controle do veículo, que já começava a se desgovernar. Vindo da Berkeley Street, terminou entrando na Storrow Drive, no centro de Boston, e acelerou rumando para oeste, misturando-se ao tráfego enlouquecedor da cidade. Diante dele, as imagens da rua flutuavam e depois recuavam, como que situadas ao fim de um longo túnel.

Com toda a sua força de vontade, Cedric resistiu à escu¬ridão que ameaçava engoli-lo. Gradualmente, o cenário cla¬reou. Cedric ainda estava vivo. Em vez de aumentar o esforço, assim lhe dizia o instinto, sua única possibilidade consistia em procurar um hospital o mais rápido possível. Por uma feliz coincidência, o hospital do Good Health Plan não ficava muito longe. Agüente, disse a si mesmo.

Junto com a dor veio um suor profuso, que começou na fronte, mas logo se espalhou pelo restante do corpo. O suor provocava-lhe ardência nos olhos, mas Cedric não ousava en-xugar o rosto, com medo de perder o controle do volante. Saiu da avenida principal e entrou em Fenway, complexo em for¬ma de parque dentro de Boston, quando a dor retornou, comprimindo-lhe o peito como se fora um arame de aço. Mais adiante os carros paravam por causa de um sinal de trânsito. Ele não pôde parar. Não houve tempo. Inclinando-se para a frente, apertou a buzina e meteu-se numa brecha. Os carros passavam por ele a centímetros de distância. Ainda deu para ver as caras espantadas e irritadas dos outros motoristas. Es-tava agora na esquina da Park Avenue com Back Bay Fens, e à sua esquerda havia jardins de plantas maltratadas. A dor agora era constante, intensa, insuportável. Ele mal conseguia respirar.

O hospital era adiante, à direita, onde antigamente se si¬tuava um edifício da Sears. Só um pouco mais. Vamos, por favor... aparecia já uma grande tabuleta branca com uma se¬ta vermelha e letras em vermelho que diziam EMERGÊNCIA.

Cedric conseguiu conduzir o carro diretamente até a pla¬taforma diante da sala de emergência, mas freou tarde demais, chocando-se contra o parapeito de concreto. Inclinando-se para diante, acionou a buzina do carro.

A primeira pessoa que se aproximou do carro foi o guar¬da de segurança. Abriu rapidamente a porta e, tendo dado uma olhada na palidez assustadora de Cedric, chamou por auxí¬lio. Cedric mal conseguiu murmurar, em meio à respiração difícil: "Dor no peito." A enfermeira-chefe, Hilary Barton, apareceu e pediu que trouxessem a maca. Depois que os en¬fermeiros e o guarda retiraram Cedric do automóvel, um dos residentes que trabalhavam na sala de emergência apareceu e ajudou a colocá-lo na maca. Seu nome era Emil Frank; tra¬balhava como residente havia apenas quatro meses. Alguns anos antes, teria sido chamado apenas de interno. Também ele notou a pele lívida e o suor abundante de Cedric.

— Sudorese — disse ele com ar importante. — Prova-velmente um infarto.

Hilary fez uma expressão de impaciência. Naturalmente que era um infarto. Levou rapidamente o paciente para den¬tro, ignorando o Dr. Frank, que acomodara o estetoscópio nos ouvidos e se preparava para auscultar o coração de Cedric.

Tão logo chegaram à sala de tratamento, Hilary mandou vir oxigênio, soro para aplicação endovenosa e monitorização eletrocardiográfica, instalando, ela própria, as três principais derivações do eletrocardiograma. Assim que Emil ter¬minou de instalar o soro, ela sugeriu-lhe que fornecesse 4mg de morfina, a serem administrados imediatamente.

Mal a dor diminuiu um pouco, a mente de Cedric cla-reou. Embora ninguém lhe tivesse dito, ele sabia que havia tido um infarto. Também sabia que tinha estado muito perto de morrer. E mesmo agora, vendo a máscara de oxigênio, o equipamento de soro e o eletrocardiógrafo desenrolando o pa-pel até o chão, Cedric sentia-se mais vulnerável do que em qual¬quer outra ocasião de sua vida.

— Vamos transferi-lo para a unidade de tratamento coronariano — disse Hilary, — Tudo vai dar certo. — Ela to¬cou na mão de Cedric. Ele esboçou um sorriso. — Telefonamos para sua esposa. Ela está a caminho.

A unidade de tratamento intensivo coronariano era se-melhante à sala de emergência, pelo que Cedric podia perce-ber — e era também um lugar assustador. Estava cheia de uma tecnologia eletrônica ultra moderna, complexa. Ele podia ou¬vir seus batimentos cardíacos sendo reproduzidos por um beep mecânico, e quando voltou a cabeça conseguiu ver um traça¬do luminoso numa tela redonda de TV.

Os aparelhos, ainda que assustadores, davam-lhe certa tranqüilidade. Mas uma tranqüilidade maior vinha do fato de que o seu médico particular, contactado por telefone logo após a admissão de Cedric, acabava de chegar à UTCI.

Cedric era paciente do Dr. Jason Howard fazia cinco anos. Começara a consultá-lo quando seu empregador, o Boston Na¬tional Bank, insistira em que os executivos seniores se subme¬tessem a exames médicos anuais. Quando o Dr. Howard inesperadamente vendera seu consultório particular, alguns anos antes, e passara a fazer parte do Good Health Plan (GHP), Cedric obrigatoriamente o acompanhara. A mudan¬ça efetuada exigira que se mudasse o seu plano de saúde da Blue Cross para a modalidade de pagamento prévio, mas o que atraíra Cedric fora o Dr. Howard, e não o GHP, e Cedric dissera isto ao Dr. Howard, em termos muito explícitos.

— Como está passando? — perguntou Jason, seguran-do no braço de Cedric, mas prestando mais atenção à tela do ECG.

— Não... bem — murmurou Cedric. Precisou respirar várias vezes para poder emitir as duas palavras.

—  Quero que você procure relaxar. Cedric fechou os olhos. Relaxar! Que piada!

—  Sente muita dor?

Cedric fez que sim com a cabeça. Lágrimas escorriam pelo seu rosto.

—  Mais uma dose de morfina — ordenou Jason. Dentro de alguns minutos depois da segunda dose, a dor tornou-se mais suportável. O Dr. Howard estava conversan¬do com o residente, assegurando-se de que tinham sido obti¬das as amostras de sangue necessárias aos diversos exames, e pediu um tipo de cateter. Cedric olhava o seu médico, tran-qüilizado por ver o Dr. Howard, com seu perfil elegante e aquilino, agir com competência e segurança. E o melhor de tudo era poder sentir a sua dedicação afetuosa.

—  Vamos ter que fazer uma pequena cirurgia — disse Jason. — Introduziremos um cateter de Swan-Ganz para po-dermos ver o que está acontecendo aí dentro. Usaremos anes-tesia local, de modo que não vai doer, está bem?

Cedric assentiu com a cabeça. Por ele, o Dr. Howard ti-nha carta branca para fazer tudo que achasse necessário. Ce-dric apreciava o jeito de ser do Dr. Howard. Ele nunca repreendia seus pacientes — nem mesmo quando, ao examiná-lo três semanas antes, alertara-o quanto à alimentação de al¬to teor de colesterol, ao hábito de fumar dois maços de cigar¬ros por dia e à falta de exercícios físicos. Ah, se eu tivesse escutado, pensou Cedric. Mas embora o Dr. Howard houves¬se considerado de modo tão sombrio os hábitos de vida de Ce¬dric, ainda assim admitira que os exames estavam bons. Seu colesterol não estava alto demais, e seu eletrocardiograma não revelara qualquer anormalidade. Tranqüilizado, Cedric adia¬ra os planos de parar de fumar e de começar a praticar exer¬cícios.

Então, menos de uma semana depois do exame médico, Cedric sentira como se estivesse para contrair gripe. Mas isso fora só o começo. Seu sistema digestivo começou a desarranjar-se, e ele passou a sofrer de terrível artrite. Até mesmo a visão pareceu piorar. Lembrou-se de ter falado à esposa de que se sentia como se tivesse envelhecido trinta anos. Estava com to¬dos os sintomas experimentados por seu pai nos seus meses finais de vida no asilo. Às vezes, quando inesperadamente se via no espelho, tinha a impressão de estar olhando para o fan¬tasma do falecido pai.

Apesar da morfina, Cedric sentiu uma súbita dor em punhalada, um esmagamento no peito. Sentiu-se como que de¬saparecendo dentro de um túnel, a mesma sensação que tivera ainda dentro do carro. Ainda conseguiu ver o Dr. Howard, mas o médico estava demasiado longe, e sua voz ia sumindo. Então o túnel começou a se encher de água. Cedric sentia-se asfixiado e tentava nadar até a superfície. Seus braços busca¬vam desesperadamente um ponto de apoio no ar.

Mais tarde, Cedric recuperou a consciência, por alguns momentos de agonia. Ao mesmo tempo que lutava para vol¬tar à lucidez, sentia uma pressão intermitente no tórax e algo colocado na garganta. Alguém estava ajoelhado ao seu lado, apertando-lhe o peito com as mãos. Cedric estava para emitir um grito, quando houve uma explosão no seu peito e sobre ele desceu uma escuridão como um manto de chumbo.

A morte sempre tinha sido o inimigo para o Dr. Jason Ho¬ward. Quando era residente no Massachusetts General Hos¬pital, acreditava, até as últimas conseqüências, estar engajado nesse combate contra a morte, e por isso nunca desistia de um caso de parada cardíaca, a menos que ordens superiores man¬dassem suspender os esforços de ressuscitação.

Agora, recusava-se a acreditar que esse homem de 56 anos, que ele examinara havia apenas três semanas e que fora con¬siderado, de modo geral, uma pessoa sadia, estivesse a um pas¬so da morte. Era um desafio pessoal.

Levantando os olhos para o monitor, que ainda mostra-va atividade eletrocardiográfica normal, Jason apalpou o pes-coço de Cedric. Não conseguiu sentir nenhuma pulsação.

—  Dêem-me uma agulha cardíaca — pediu. — E alguém veja a pressão sangüínea. — Uma grande agulha cardíaca foi posta na sua mão enquanto ele apalpava o tórax de Cedric para localizar a borda do esterno.

—  Não há pressão sangüínea — comunicou Philip Barnes, anestesiologista que atendera ao chamado em código, emi¬tido automaticamente quando Cedric sofrera parada cardía¬ca. Ele colocara um tubo endotraqueal na traquéia de Cedric e ventilava-o com oxigênio, comprimindo uma bolsa de Ambu. Para Jason, o diagnóstico era evidente: ruptura cardía¬ca. Com o ECG ainda sendo registrado, mas não havendo ação de bombeamento do coração, prevalecia uma situação de dis¬sociação eletromecânica. Só podia significar uma coisa. A parte do coração de Cedric que sofrera privação da irrigação san¬güínea acabou por se romper como um bago de uva espremi¬do. Para comprovar esse diagnóstico extremamente sombrio, Jason introduziu a agulha cardíaca no tórax de Cedric, per¬furando o envoltório pericárdico. Quando fez recuar o em¬bolo da seringa, esta encheu-se de sangue. Não havia dúvida. O coração de Cedric rompera-se dentro do tórax.

—  Vamos levá-lo ao centro cirúrgico — ordenou Jason em voz alta, agarrando a extremidade do leito. Philip fez uma cara de desalento para Judith Reinhart, a enfermeira-chefe da unidade coronariana. Ambos sabiam que era inútil. Quando muito, conseguiriam conectar Cedric à máquina coração-pulmão, mas, e daí?

Philip parou de ventilar o paciente. Mas, em vez de aju-dar a empurrar o leito, encaminhou-se para Jason e amavelmente colocou o braço sobre o seu ombro, apertando-o:

—  Foi mesmo ruptura cardíaca. Você sabe. Eu sei. Este nós perdemos, Jason.

Jason fez um movimento para protestar, mas Philip apertou-o mais. Jason olhou para o rosto de Cedric, que tinha a pali-dez do marfim. Sabia que Philip tinha razão. Por mais que odiasse ter de admitir isso, o paciente estava perdido.

—  Você tem razão — disse ele, e relutantemente permi¬tiu que Philip e Judith o levassem para fora da unidade, dei¬xando os outros enfermeiros encarregados de preparar o corpo.

Enquanto caminhavam em direção ao posto central, Jason confidenciou que Cedric era o terceiro paciente que morria de¬pois de apenas algumas semanas de um exame clínico bom. O primeiro tinha sido também um caso de ataque cardíaco, o outro sofrera um acidente vascular cerebral fulminante.

—  Talvez eu deva pensar em mudar de profissão — dis¬se Jason, meio a sério. — Até mesmo os meus pacientes hos¬pitalizados têm tido uma evolução ruim.

—  É só falta de sorte — disse Philip, dando um tapinha amistoso no ombro de Jason. — Todos nós temos nossas fa-ses ruins. Vai melhorar.

—  Sim, claro — disse Jason.

Philip saiu para voltar ao centro cirúrgico.

Jason encontrou uma poltrona disponível e aí deixou-se cair pesadamente. Sabia que tinha de estar pronto para en-frentar a esposa de Cedric; ela estaria chegando ao hospital a qualquer momento. Sentiu-se esgotado.

—  Você talvez achasse que agora fiquei um pouco mais acostumado com a morte — disse ele em voz alta.

—  O fato de você não ter se acostumado prova que con¬tinua sendo um bom médico — disse Judith, cuidando dos pa¬péis referentes a um caso de morte.

Jason aceitou o elogio, mas sabia que sua atitude diante da morte ia muito além da profissão. Fazia só dois anos que a morte destruíra tudo que Jason mais amava. Ainda podia lembrar-se da voz que ouvira ao telefone, quinze minutos de¬pois da meia-noite, numa escura noite de novembro. Ele ador¬mecera no quarto do plantonista quando ainda se esforçava por ler algo nas revistas médicas que tinha diante de si. Pen¬sara que o telefonema era de sua esposa, Danielle, chamando-o do Children's Hospital para avisar que ia se atrasar. Ela era pediatra e tinha sido chamada de volta ao hospital naquela noite para atender a um prematuro com problema respirató¬rio. Mas quem telefonava era a polícia rodoviária. Chama¬vam para dizer que um caminhão vindo de Albany com um carregamento de chapas de alumínio havia saltado o canteiro central e atingido em cheio o carro de sua esposa. Ela não ti¬vera nenhuma chance de escapar.

Jason ainda conseguiu lembrar a voz do patrulheiro ro-doviário, era como se tivesse sido ontem. Primeiro se senti¬ra chocado e sem poder acreditar, depois fora invadido por uma grande raiva. E mais tarde ainda, uma culpa terrível. Se pelo menos ele tivesse ido junto com ela, como às vezes fazia, para ficar lendo na biblioteca da Countway Medical.

Ou se tivesse insistido para que ela dormisse no hospital.

Poucos meses depois, ele vendera a casa, onde o que va¬lia era a presença de Danielle, a clínica particular e o consul¬tório que compartilhava com ela. Fora então que ele passara a fazer parte do Good Health Plan. Ele fizera tudo que lhe fora sugerido por Patrick Quillan, psiquiatra amigo seu. Mas a dor ele ainda sentia, e a raiva também.

—  Com licença, Dr. Howard?

Jason levantou os olhos e viu o rosto largo de Kay Ramn, a secretária da unidade.

— A Sra. Harring está na sala de espera — comunicou Kay. — Eu lhe disse que o senhor iria falar com ela.

— Oh, meu Deus! — disse Jason, esfregando os olhos. Falar com os parentes depois que um paciente morria era di-fícil para qualquer médico; mas desde a morte de Danielle, Jason sentia o sofrimento das famílias como se fosse o seu próprio.

Do outro lado da unidade de tratamento coronariano ha-via uma pequena sala de estar com revistas velhas, poltronas de vinil e plantas de plástico. A Sra. Harring estava olhando pela janela que dava para o Fenway Park e o Charles River. Era uma mulher magra e alta, cujo cabelo ela deixara ir se tornando grisalho naturalmente. Quando Jason entrou na sa¬la, ela se voltou e olhou para ele com olhos assustados e ver-melhos.

—  Eu sou o Dr. Howard — falou Jason fazendo um gesto para que ela sentasse. Ela sentou, mas bem na beirada da poltrona.

—  Más notícias, suponho... — começou ela a falar. A voz sumiu.

—  Lamento dizer que sim — disse Jason. — O seu mari¬do faleceu. Fizemos tudo que foi possível. Pelo menos ele não sofreu. — Jason sentiu ódio de si mesmo por estar ali dizen¬do aquelas mentiras que as pessoas queriam ouvir. Sabia que Cedric tinha sofrido. Tinha visto o medo mortal no rosto do homem. A morte era sempre uma luta, raramente era a sere¬na retirada da vida, como procuram fazer crer os filmes.

O rosto da Sra. Harring empalideceu, e por um momen-to Jason pensou que ela ia desmaiar. Por fim, ela disse:

—  Não posso acreditar nisso. Jason concordou:

—  Eu sei — e foi só o que disse.

—  Não é possível — disse ela. Olhava para Jason de um modo inquisitivo, suas faces avermelhando. — Quero dizer, há pouco tempo o senhor deu a ele um atestado de saúde, e tudo estava bem. Mandou que ele fizesse todos aqueles exa¬mes, e todos deram negativo! Por que não encontrou nada? O senhor podia ter evitado isso.

Jason pôde identificar nela a indignação que sentia, a in¬dignação que costuma preceder o pesar e a tristeza. Sentiu gran¬de compaixão por ela.

—  O que eu dei a ele não foi exatamente um atestado de que estava tudo bem — disse com amabilidade. — Os exa-mes de laboratório foram satisfatórios, mas eu o adverti, co¬mo sempre o fazia, em relação ao fumo e à alimentação. E lembrei-lhe o fato de que o pai morrera de ataque cardíaco. Todos esses fatores colocavam-no em um grupo de risco, apesar dos resultados de seus exames de laboratório.

—  Mas o pai dele estava com 74 anos quando morreu. Cedric tem apenas 56 anos! Que valor tem um exame médico, se apenas três semanas depois o meu marido morre?

—  Desculpe, Sra. Harring — falou Jason de um modo suave. — A nossa capacidade de prever é limitada. Isto nós sabemos. Só podemos fazer o melhor que nos é possível.

A Sra. Harring suspirou, soltando a respiração. Seus om¬bros estreitos inclinaram-se para diante. Jason podia notar que a raiva dela desaparecia. E no lugar da inconformidade sur¬gia uma tristeza esmagadora. Quando ela começou a falar, sua voz tremia:

— Eu sei que o senhor fez o melhor que pôde. Desculpe.

Jason inclinou-se para a frente e colocou a mão no om-bro dela. Ela parecia extremamente frágil sob o vestido de se-da fina.

—  Eu sei como isso é difícil para a senhora.

—  Eu posso vê-lo? — perguntou ela chorando.

—  Naturalmente. — Jason levantou-se e ofereceu a mão para apoiá-la.

—  Sabia que Cedric tinha marcado hora para se consultar com o senhor? — disse a Sra. Cedric enquanto passavam pelo corredor. Ela enxugou os olhos com um lenço que tirou da bolsa.

—  Não, eu não sabia — admitiu Jason.

—  Era para a próxima semana. A primeira hora dispo-nível. Ele não estava se sentindo bem.

Jason experimentou o desconforto de uma preocupação defensiva surgindo. Embora tivesse certeza de que não fora cometida nenhuma negligência ou imperícia no caso, mesmo assim não havia nenhuma garantia de estar livre de um pro¬cesso judicial.

— Ele se queixou de dor no peito quando telefonou? — perguntou Jason. Ele fez a Sra. Harring passar diante da por¬ta da unidade de tratamento coronariano.

— Não, não. Apenas uma série de sintomas que não ti-nham nada a ver com isso. Principalmente exaustão.

Jason deu um suspiro de alívio.

— As articulações dele doíam — continuou falando a Sra. Harring. — E os olhos dele estavam dando problemas. Ele vinha tendo dificuldade de dirigir à noite.

Dificuldade de dirigir à noite? Embora tal sintoma não tivesse relação com infarto, foi como se sua menção fizesse acender uma luz vermelha na mente de Jason.

— E a pele dele tornou-se muito seca. Ele também per-deu muito cabelo.

—  O cabelo naturalmente vai sendo substituído — disse Jason maquinalmente. Era evidente que essa série de sintomas inespecíficos não tinha qualquer relação com o ataque cardíaco fulminante daquele homem. Jason empurrou a pesada porta que dava acesso à unidade e fez um gesto para que a Sra. Har¬ring o acompanhasse. Conduziu-a até o recinto correspondente.

Cedric fora coberto com um lençol branco limpo. A Sra. Harring pôs a mão magra e ossuda sobre a cabeça do marido.

— A senhora gostaria de ver o rosto dele? — perguntou Jason.

A Sra. Harring fez que sim; lágrimas reapareceram e co¬meçaram a escorrer-lhe pelo rosto. Jason afastou o lençol e deu um passo atrás.

— Oh, meu Deus! — exclamou ela. — Ele está parecido com o pai antes de morrer. — Voltou-se e murmurou: — Eu não sabia que a morte envelhecia tanto uma pessoa.

Geralmente não envelhece tanto, foi o que pensou Jason. Agora que não estava concentrado no funcionamento do co¬ração de Cedric, o médico pôde constatar as mudanças no rosto do paciente morto. O cabelo se tornara mais fino. Os olhos evidentemente haviam afundado nas órbitas, dando um as¬pecto descarnado e encovado ao rosto do falecido, um aspec¬to muito diferente daquele que Cedric apresentara três semanas antes, quando comparecera ao exame médico, e Jason estava bem lembrado. Jason recolocou o lençol e levou a Sra. Har¬ring de volta à pequena sala de espera. Fez com que ela sen¬tasse e tomou lugar numa poltrona em frente à mulher.

—  Sei que isto não é um assunto agradável de falar, mas gostaríamos de ter autorização para examinar o corpo de seu marido. Talvez possamos aprender alguma coisa que venha a ser útil a alguém no futuro.

—  Acho que se puder ser útil a outros... — A Sra. Har-ring mordia o lábio. Era-lhe difícil pensar, e ainda mais difí¬cil tomar uma decisão.

—  Vai ser útil. E nós realmente reconhecemos a sua ge¬nerosidade. Se a senhora esperar aqui, mandarei alguém tra¬zer os formulários para a autorização.

—  Está bem — disse a Sra. Harring, resignada.

—  Lamento tudo isso — voltou a falar Jason. — E, por favor, telefone-me se houver algo em que eu possa ajudar.

Jason encontrou-se com Judith e disse-lhe que a Sra. Har¬ring tinha concordado com a autópsia.

— Telefonamos para o departamento médico-legal e fa-lamos com a Dra. Danforth. Ela disse que querem se encarre-gar do caso — disse Judith.

— Está bem, procure ter certeza de que nos mandarão os resultados. — Jason hesitava. — Notou alguma coisa de estranho no Sr. Harring? Quero dizer, ele tinha um aspecto de pessoa muito idosa para um homem de 56 anos?

— Não notei nada — disse Judith, afastando-se rapida-mente. Numa unidade com onze pacientes para atender, ela já estava envolvida com um outro problema.

Jason sabia que a emergência de Cedric estava atrasando seus horários, mas a sua morte inesperada continuava a perturbá-lo. Tomou a decisão de telefonar para a Dra. Danforth, que tinha uma voz grave e ressoante, e convenceu-a de deixar que a autópsia fosse feita no próprio hospital, dizendo-lhe que a morte se devia a uma longa história de doenças car¬díacas na família e que desejava comparar o exame anatomo-patológico do coração com os eletrocardiogramas de esforço que tinham sido feitos. A médica-legista gentilmente concor¬dou, liberando o caso.

Antes de sair da unidade de tratamento coronariano, Jason aproveitou para ver outro de seus pacientes que não estava passando bem.

Com 61 anos de idade, Brian Lennox era mais uma víti-ma de infarto do miocárdio. Fora internado três dias antes, e embora inicialmente estivesse bem, seu quadro clínico pas-sara a ter uma súbita mudança para pior. Nessa manhã, ao fazer uma visita aos leitos, Jason planejara transferir Lennox da unidade de tratamento coronariano, mas o paciente estava com os primeiros indícios de insuficiência cardíaca congestiva. Para Jason, isso fora um desapontamento profundo, pois Brian Lennox tivera de ser acrescentado à lista dos pacientes internados de Jason que recentemente haviam piorado. Em vez de transferir o paciente, Jason instituíra um tratamento agressivo para a insuficiência cardíaca.

Quando Jason viu o Sr. Lennox, compreendeu que era inútil esperar que ele pudesse retornar logo ao estado clínico anterior. O paciente estava sentado, apresentando uma respi-ração rápida e superficial, embora em máscara de oxigênio. Sua face tinha uma cor cinzenta maligna que Jason aprende¬ra a temer. Uma enfermeira que atendia ao paciente ergueu-se após ajustar o equipamento intravenoso.

— Como está passando? — perguntou Jason, forçando um sorriso. Mas nem precisava perguntar. Lennox levantou a mão debilmente. Não conseguia falar. Toda a sua atenção estava voltada para o seu esforço de respirar.

A enfermeira levou Jason para o meio do quarto um pou¬co longe do leito do paciente. No crachá de identificação da moça lia-se Srta. Levay.

—  Parece que nada funciona — disse ela, preocupada. — A pressão de encunhamento pulmonar subiu, apesar de tudo que foi feito. Ele tomou o diurético, a hidralazina e o nitroprussiato. Não sei o que fazer.

Jason ficou olhando por cima do ombro da Srta. Levay para o ambiente. A respiração de Lennox era ofegante, rui-dosa. Jason não tinha nenhuma idéia do que pudesse fazer, ex¬ceto um transplante, e isto naturalmente estava fora das possibilidades. O paciente era fumante inveterado e, sem dú-vida, tinha enfisema, como também problemas cardíacos. Mas devia ter reagido à medicação. A única coisa que Jason podia imaginar era que a área do coração atingida pelo infarto esta-va se ampliando.

—  Vamos pedir uma junta médica cardiológica — disse Jason. — Talvez os colegas tenham condições de verificar se as coronárias estão mais atingidas. É a única coisa em que pos¬so pensar. Talvez ele seja candidato a uma cirurgia de revascularização.

—  Bem, pelo menos é alguma coisa — disse a Srta. Le¬vay. Sem esperar mais, ela dirigiu-se ao posto central de en¬fermagem para telefonar.

Jason retornou ao leito de Brian Lennox para lhe dar al-guma atenção. Desejava poder fazer mais pelo paciente, mas pelo menos era de esperar que o diurético reduzisse a quanti-dade de líquidos enquanto a hidralazina e o nitroprussiato cer-tamente haveriam de reduzir a pré-carga e a pós-carga no coração. Tudo isso tinha por finalidade diminuir o esforço que o coração tinha de fazer para bombear o sangue. E permitiria que o coração cicatrizasse depois de haver sofrido a lesão do infarto do miocárdio. Mas as coisas não funcionavam. O es-tado de Lennox se agravava apesar de todas as tentativas e de toda a tecnologia. Seus olhos agora estavam encovados e tinham um aspecto vítreo.

Jason colocou a mão na testa de Brian e ajeitou-lhe o ca¬belo, afastando-o da fronte, onde suava muito. Para surpre-sa de Jason, uma certa quantidade de cabelos ficou em sua mão. Sentindo-se confuso durante uns minutos, Jason ficou olhando para os fios de cabelo, depois puxou cuidadosamen¬te alguns outros fios. Estes também se desprenderam quase que sem resistência. Verificando o travesseiro onde repousa¬va a cabeça de Brian, Jason notou ali mais fios de cabelo. Não uma quantidade enorme, porém mais do que era de se espe-rar. Ficou pensando se algum dos medicamentos que prescre-vera não teria como possível efeito colateral a perda de cabelos. Resolveu anotar mentalmente esse detalhe, para estudá-lo ao fim do dia. Evidentemente, perda de cabelos não era uma preocupação importante no momento. Mas levava-o a lembrar-se do comentário da Sra. Harring. Que coisa intrigante!

Depois de deixar aviso para que o chamassem tão logo a junta médica de cardiologia examinasse Brian Lennox, e de dar uma nova olhada, de masoquista, no corpo de Cedric Har-ring envolto no lençol, Jason saiu da unidade de tratamento coronariano e tomou o elevador, descendo ao segundo andar, que ligava o hospital ao prédio do ambulatório. O centro mé-dico do GHP era o imponente hospital central mantido pelo grande plano de saúde com pagamento prévio. Englobava um hospital de quatrocentos leitos com um centro cirúrgico ambulatorial, um departamento separado de pacientes ambulatoriais, uma pequena ala de pesquisas e um andar inteiro destinado aos escritórios da administração. O prédio princi¬pal, originalmente projetado como prédio dos escritórios da Sears, tinha elementos de art déco. Internamente fora refor-mado e remodelado para abrigar o hospital e seus escritórios de administração. O prédio dos ambulatórios e de pesquisas era novo, mas fora construído de modo a combinar com a es-trutura antiga, com os mesmos minuciosos detalhes. Erguia-se sobre pilotis, entre os quais havia um parque de estaciona-mento. O consultório de Jason ficava no terceiro andar, jun-tamente com os demais setores do departamento de medicina interna.

Havia dezesseis médicos no GHP Center. Em sua maio¬ria, eram especialistas, embora alguns, como Jason, exerces¬sem a clínica geral. Jason sempre fora de opinião que lhe interessava toda a gama de doenças do homem, e não apenas as peculiares a determinados órgãos ou sistemas específicos.

Os consultórios médicos estavam dispostos num círculo, em cujo centro se localizava uma escrivaninha circundada por uma área de espera com assentos confortáveis. Entre os consultórios situavam-se salas de exame. Numa extremidade, salas para pequenos tratamentos cirúrgicos. Havia numeroso pessoal de apoio, que devia revezar-se nos postos de trabalho, embora, na realidade, as enfermeiras e secretárias naturalmente preferis¬sem trabalhar com este ou aquele médico. Semelhante situação favorecia a eficiência, pois assim podia haver certo grau de adaptação às peculiaridades de cada médico. Uma enfermeira de nome Sally Baunan e uma secretária chamada Claudia Mockelberg preferiam trabalhar com o Dr. Jason. Ele se dava bem com ambas, porém mais especialmente com Claudia, que man-tinha um interesse quase maternal pelo bem-estar de Jason. Ela havia perdido o filho único no Vietnã e afirmava ser Ja¬son muito parecido com ele, apesar da diferença de idade. Ambas as mulheres viram Jason chegando e o acompa¬nharam até o seu consultório. Sally carregava nos braços uma série de papeletas de pacientes que aguardavam. Ela era do tipo obsessivo, e a demora de Jason perturbara a meticulosa rotina que planejara. Estava ansiosa por fazer o serviço co¬meçar a andar, mas Claudia barrou-lhe o intento e a fez sair do consultório.

—  O que houve para deixá-lo tão preocupado? — per-guntou Claudia.

—  Minha preocupação é tão visível assim? — falou Ja-son enquanto lavava as mãos na pia, no canto da sala.

Ela assentiu com a cabeça.

— Parece que foi atropelado por um trem de emoções.

—  Cedric Harring morreu — disse ele. — Lembra-se dele?

—  Vagamente — admitiu Claudia. — Depois que o se-nhor foi chamado à sala de emergência eu peguei a papeleta dele. Está na sua mesa.

Jason olhou para a mesa e viu a papeleta. A eficiência de Claudia às vezes era enervante.

—  Por que não senta e descansa por uns minutos? — su¬geriu Claudia. Mais do que ninguém no GHP, ela conhecia a reação de Jason diante da morte. Era uma dentre duas pes-soas no centro às quais Jason mencionara o acidente fatal de sua esposa.

—  Devemos estar mesmo bem atrasados — disse Jason. — Sally vai ficar de cara feia.

—  Ora, Sally que se dane. — Claudia deu a volta à es-crivaninha de Jason e empurrou-o amavelmente para a cadei-ra. — Sally pode esperar alguns minutos.

Jason sorriu, apesar de tudo que sentia. Inclinando-se para a frente, pegou a papeleta de Cedric Harring.

—  E você se lembra, no mês passado, dos dois outros que morreram logo depois de seus exames?

—  Briggs e Connoly — disse Claudia, sem hesitar.

—  Que tal trazer aqui as papeletas deles? Não estou gos¬tando do rumo dessas coisas.

—  Só se o senhor prometer que não vai se deixar — Clau¬dia fez uma pausa, tentando encontrar a palavra certa — abalar muito por causa desse problema. As pessoas morrem. Infeliz¬mente, acontece. É a natureza das coisas. O senhor compreen¬de? Por que não toma um cafezinho?

—  As papeletas — repetiu Jason.

—  Está bem, está bem — falou Claudia, saindo. Jason abriu a papeleta de Cedric Harring, percorrendo com os olhos a anamnese e o exame físico. Com exceção dos hábitos de vida pouco sadios do paciente, nada havia digno de nota. Voltando ao eletrocardiograma e ao ECG de esfor¬ço, Jason examinou atentamente o traçado do registro, pro¬curando por algum sinal de desastre iminente. Mesmo agora, armado de um olho crítico muito atento, não conseguiu en¬contrar nada.

Claudia voltou e abriu a porta sem bater. Jason pôde ouvir a voz lamentosa de Sally dizendo: "Claudia..." Mas Claudia fechou a porta atrás de si, ignorando Sally, e aproximou-se da mesa de Jason. Colocou diante dele os prontuários de Briggs e Connoly.

—  Os nativos estão ficando impacientes — disse ela, e voltou a sair.

Jason abriu as duas papeletas. Briggs morrera de um ata¬que cardíaco fulminante, provavelmente parecido com o de Harring. A autópsia revelara extensa oclusão de todos os va-sos coronarianos, embora nada de anormal tivesse sido detec-tado no seu exame médico realizado quatro semanas antes. A exemplo do que ocorrera com Harring, o ECG de esforço de Briggs tinha sido normal. Jason sacudiu a cabeça desalentado. Era de esperar que o ECG de esforço, com bem maio¬res possibilidades que o ECG simples, fosse capaz de detectar essas anomalias potencialmente fatais. Se isso não acontecia, tudo levava a crer que o exame médico executivo era uma ta¬refa inútil. Além de não estar conseguindo detectar esses pro¬blemas graves, ele dava aos pacientes uma falsa sensação de segurança. Com os resultados normais, os pacientes não se sen¬tiam motivados para mudar seus hábitos de vida malsãos. Briggs, assim como Harring, tinha 56 anos, fumava muito e nunca praticava exercícios.

O segundo paciente, Rupert Connoly, falecera de um aci¬dente vascular cerebral fulminante. Também neste caso, a mor¬te viera pouco tempo depois de um exame médico tipo executivo, que, a exemplo dos outros, não revelara nenhuma anormalidade alarmante. Além de levar uma vida de modo geral nada saudável, Connoly bebia muito, embora não fosse um alcoólatra. Jason estava para fechar a papeleta quando notou algo que não percebera antes. No relatório da autóp¬sia, o patologista registrava importante desenvolvimento de catarata. Achando que não se lembrava corretamente da ida-de do homem, Jason voltou à página onde estavam os dados da identificação do paciente. Connoly tinha apenas 58 anos. Claro, não constitui surpresa o surgimento de catarata numa pessoa de 58 anos de idade, mas, sem dúvida, é uma ocorrência rara. Voltando aos dados do exame clínico, Jason resolveu verificar se ele próprio havia notado a catarata. Constatou, embaraçado, que não incluíra essa anomalia, tendo diagnosticado olhos, ouvido, nariz e garganta como dentro dos limites normais. Jason chegou a especular se não estaria ficando esquecido na sua idade de "velho". Mas então percebeu que, quanto às retinas do paciente, havia-as descrito também co¬mo de aspecto normal. Para poder visualizá-las evidentemente Jason tinha que ter enxergado através da catarata. Sabia de suas limitações nesse aspecto, pois não era oftalmologista. Pôs-se a pensar se determinados tipos de catarata impediriam, mais que outros, a passagem da luz. Acrescentou esta pergunta à sua lista mental de coisas a investigar.

Empilhou as papeletas. Três homens evidentemente sa¬dios tinham morrido um mês depois de um checkup. Meu Deus, pensou ele. As pessoas tinham tanto medo de entrar num hospital. Do jeito que as coisas estavam indo, as pessoas tal¬vez viessem a fugir de qualquer checkup.

Recolhendo as três papeletas, Jason saiu de seu consul¬tório. Viu Sally levantar-se junto à mesa na área central e olhá-lo de um modo ansioso. Ele fez um sinal de "dois minutos" ao passar pelo recinto do salão de espera. Passou por vários pacientes seus conhecidos, dispensando-lhes um aceno de cabeça ou um sorriso. Entrou na sala que dava para o consultó¬rio de Roger Wanamaker. Roger era um clínico geral que se especializara em cardiologia; seus pareceres eram muito res¬peitados por Jason. Nesse momento ele saía de uma das salas de exame. Roger era um homem obeso, com uma cara que lembrava um sabujo velho, com barbelas e pele sobrando.

— Que tal uma consulta aqui mesmo? — perguntou Jason.

—  Eu topo — brincou Roger. — Qual é o problema? Jason seguiu o colega até seu consultório em desordem.

— Infelizmente, algumas provas muito embaraçosas. — Jason abriu os prontuários de seus três pacientes na parte dos eletrocardiogramas e colocou-os diante de Roger. — Eu te¬nho até vergonha de discutir isso, mas o fato é que três pa¬cientes meus, de meia-idade, morreram pouco tempo depois de terem sido submetidos a exames médicos que mostraram um estado de saúde bastante bom. Um morreu hoje. Ruptura cardíaca após um infarto maciço. Eu realizei seu exame há três semanas. É este aqui. Mesmo sabendo o que sei agora, não consigo encontrar o mais remoto sinal de que houvesse algum problema ou algum traçado anormal. O que você acha?

Houve uns momentos de silêncio enquanto Roger anali¬sava os eletrocardiogramas.

—  Bem-vindo ao clube — disse ele finalmente.

—  Clube?

— Estes eletrocardiogramas estão bons. — disse Roger. — Todos nós temos tido a mesma experiência. Tive quatro casos assim nestes últimos meses. Se fôssemos publicar o que se tem encontrado, cada um de nós teria pelo menos um ou dois casos.

— E por que não se publicam esses casos?

— Diga-me uma coisa — começou Roger, meio sem graça. — Você por acaso publicou a sua experiência? Esse é um assun¬to sujo. O melhor é não dar atenção a isso. Mas você está na função de chefe de serviço. Por que não convoca uma reunião?

Jason assentiu pensativamente. Sob a égide da adminis¬tração executada pela GHP, que tomava todas as principais decisões organizacionais, chefe de serviço não era um cargo desejável. Nele se revezavam todos os clínicos gerais, um ano cada um; e havia dois meses que essa responsabilidade caíra sobre os ombros de Jason.

— Acho que devo fazer isso — disse Jason, pegando suas papeletas de cima da mesa de Roger. — Se não for por outra coisa, pelo menos os outros médicos devem saber que não es¬tão sozinhos se tiverem tido a mesma experiência.

— Isso parece acertado — concordou Roger. E levantou-se com seu corpo enorme. — Mas não espere que todos sejam tão francos como você.

Jason dirigiu-se para a mesa central, fazendo um sinal a Sally para mandar entrar o primeiro paciente. Sally providen-ciou de imediato. Ele então dirigiu-se a Claudia.

— Claudia, preciso de um favor. Quero que você faça uma lista de todos os exames médicos que eu realizei de um ano para cá; traga todos os prontuários correspondentes e ve-rifique o estado de saúde dessas pessoas. Quero ter a certeza de que nenhum dos outros teve problemas graves. Aparente-mente alguns dos outros médicos têm experimentado situações parecidas. Acho que é algo que precisamos pesquisar.

—  Vai ser uma lista grande — avisou Claudia.

Jason sabia disso. No desejo de promover o que chama¬va medicina preventiva, o GHP vinha defendendo com gran¬de empenho a realização desses exames de saúde e checkup, e havia dinamizado o processo no sentido de angariar o maior número de clientes para isso. Jason sabia que realizava, por semana, em média, cinco a dez desses exames.

Nas horas que se seguiram, Jason dedicou-se a atender seus pacientes, que lhe apresentavam uma interminável série de problemas e queixas. Sally não parava, enchendo as salas de exame mal o paciente anterior saía. Deixando de almoçar, Jason realmente conseguiu recuperar tempo.

Pelo meio da tarde, quando Jason voltava de uma das salas de tratamento, onde fora fazer uma sigmoidoscopia num paciente portador de colite ulcerativa recorrente, Claudia cha-mou sua atenção e fez-lhe sinal para ir à mesa central. Clau-dia mostrava um sorriso matreiro quando Jason se aproximou. Ele concluiu que alguma coisa estava em ebulição.

— Uma ilustre visita para o senhor — falou Claudia, apertando os lábios.

— Quem? — perguntou Jason, de imediato perscrutan-do a sala de espera adjacente.

— Ele está no seu consultório — disse Claudia.

Jason olhou em direção ao seu consultório. A porta es-tava fechada. Não era hábito de Claudia instalar alguém des-sa maneira na sala de Jason. Tornou a olhar para sua secretária.

—  Claudia? — indagou, prolongando o nome dela co-mo se tivesse mais sílabas do que tinha. — Como é que você deixa alguém entrar no meu consultório?

—  Ele insistiu — disse Claudia —, e quem sou eu para impedir?

Evidentemente, fosse quem fosse, essa pessoa devia ter obrigado Claudia a ceder. Jason a conhecia bem nesse aspec¬to. E quem quer que fosse essa visita, devia ser alguém com certa autoridade dentro do Good Health Plan. Mas Jason es¬tava cansado para continuar essa brincadeira.

— E então, vai dizer quem é, ou será que devo mesmo ter uma surpresa?

— Dr. Alvin Hayes — disse Claudia. Ela piscou o olho e deu um sorriso brincalhão. Agnes, a secretária que traba¬lhava com Roger, conteve o riso.

Jason fez um sinal de contrariedade e dirigiu-se para sua sala. Uma visita do Dr. Alvin era um acontecimento fora do comum. Esse médico era um pesquisador famoso, contrata¬do pelo GHP para promover a imagem da organização. Sua situação era parecida com a da contratação do Dr. William DeVries, o famoso cirurgião que criara o coração artificial, e que trabalhava para a Humana Corporation. O Good Health Plan era uma organização de manutenção da saúde, e não apoiava a pesquisa em si, mas contratara o Dr. Alvin Hayes, mediante um salário fantástico, para expandir e melhorar a imagem da empresa, especialmente na comunidade científica de Boston. Afinal de contas, o Dr. Hayes era um cientista da área de biologia molecular, tinha renome internacional, e apa¬recera na capa da revista Time depois que desenvolvera um método para produzir o hormônio do crescimento do homem a partir da tecnologia do ADN recombinante. O hormônio do crescimento que ele conseguira produzir era exatamente igual à variedade humana desse hormônio. Tentativas anteriores ha¬viam resultado num hormônio que era semelhante, mas não exatamente o mesmo. Esse avanço havia sido considerado ex¬tremamente importante.

Jason chegou ao seu consultório e abriu a porta. Não con¬seguiu entender o motivo da visita do Dr. Hayes, que simples¬mente o ignorava desde o dia em que fora contratado, um ano antes, apesar de ambos terem sido colegas na mesma turma na Faculdade de Medicina de Harvard. Depois que se forma¬ram, cada um seguira seu próprio caminho, mas quando Al¬vin Hayes fora contratado pelo GHP, Jason procurara pessoalmente o colega e lhe dera as boas-vindas. Mas Hayes se mantivera distante, obviamente deslumbrado com seu pró¬prio status de celebridade e visivelmente depreciara a decisão de Jason de ficar fazendo clínica geral. Exceto quanto a al¬guns encontros casuais, um ignorava o outro. Na realidade, Hayes ignorava a todos no GHP, tornando-se cada vez mais o que as pessoas denominavam "cientista louco". Tinha mes¬mo chegado a uma extrema negligência com seu aspecto pes¬soal, usando roupas muito folgadas e amarrotadas e deixando o cabelo desgrenhado e comprido, como se fosse um retorno aos turbulentos anos 60. Embora as pessoas falassem e repa¬rassem, e ele tivesse poucos amigos, mesmo assim todos o res¬peitavam. Hayes trabalhava longas horas e produzia uma incrível quantidade de trabalhos e artigos científicos.

Alvin Hayes estava estirado numa das poltronas diante da antiquada mesa de Jason. Hayes tinha mais ou menos a mesma altura de Jason, um rosto rechonchudo de menino, e sua cabeleira desalinhada pendia dos lados do rosto, que pa-recia mais pálido que nunca. Ele sempre ostentava aquela par¬ticular palidez dos acadêmicos, característica dos cientistas que passam o tempo todo dentro de laboratórios. Mas o olho clí¬nico de Jason notou uma intensificação da cor amarelada e também flacidez que davam a Hayes um aspecto doentio de visível exaustão. Jason indagou-se se seria uma visita profis-sional.

—  Desculpe incomodá-lo — disse Hayes, fazendo um es¬forço para se pôr de pé. — Sei que deve estar ocupado.

—  Absolutamente — mentiu Jason, dando a volta à es-crivaninha e sentando-se. Tirou o estetoscópio que estava pen¬durado em volta do pescoço. — O que podemos fazer por você? — Hayes parecia nervoso e cansado, como se não ti-vesse dormido fazia vários dias.

— Preciso conversar com você — ele disse, baixando a voz e inclinando-se para a frente, com um jeito confidencial.

Jason recuou um pouco na sua cadeira. O hálito de Ha-yes era fétido, e seus olhos tinham uma aparência vítrea, des-focada, o que lhe dava um certo ar de pessoa louca. Seu avental branco, que usava em laboratório, estava amarfanhado e man¬chado; as mangas arregaçadas até acima dos cotovelos. O re¬lógio lhe ficava tão frouxo no pulso que Jason se perguntou como conseguia não perdê-lo.

—  Pois diga o que o está preocupando.

Hayes inclinou-se ainda mais para a frente, e seus dedos repousaram no mata-borrão de Jason. Murmurou:

— Aqui não. Quero conversar com você hoje à noite. Fo¬ra do GHP.

Por uns momentos, houve um silêncio tenso. O compor¬tamento de Hayes era visivelmente anormal, e Jason ficou ima¬ginando se devia tentar encaminhá-lo ao seu amigo Patrick Quillan, que, como psiquiatra, poderia ajudá-lo de forma mais efetiva. Se Hayes desejava conversar longe do hospital, essa conversa não devia ser a respeito de sua saúde.

— É importante — acrescentou Hayes, tamborilando com os dedos impacientemente na mesa de Jason.

—  Está bem — disse Jason em seguida, receoso de que Hayes pudesse ter um acesso de cólera caso hesitasse mais um pouco. — Que tal jantarmos juntos? — Ele desejava encontrar-se com Hayes num lugar público.

—  Está bem. Onde?

—  Qualquer lugar. — Jason encolheu os ombros. — Que tal o North End, onde há comida italiana?

—  Ótimo. Quando e onde?

Jason lembrou-se dos diversos restaurantes que conhecia no bairro de North End, em Boston, um conjunto de ruas tor¬tuosas que fazem a pessoa sentir-se misteriosamente transplan¬tada para a Itália meridional.

—  Que tal o Carbonara? — sugeriu ele. — É na Rachel Revere Square, em frente à Paul Revere House.

—  Eu conheço — disse Hayes. — A que horas?

—  Oito?

— Está muito bem. — Hayes levantou-se e saiu cami-nhando com passos um tanto inseguros em direção à porta. — E não convide ninguém mais. Quero conversar com você a sós. — Sem esperar por uma resposta, saiu, fechando a porta atrás de si.

Jason sacudiu a cabeça, surpreso, e retornou a seus pa¬cientes.

Dentro de alguns minutos, estava novamente absorto no seu trabalho, e sumiu-lhe no inconsciente o estranho encon¬tro com Hayes. A tarde transcorreu sem surpresas desagradá¬veis. Pelo menos os seus pacientes ambulatoriais pareciam estar passando bem e reagindo favoravelmente aos medicamentos que prescrevera. Isso deu-lhe um novo ânimo e confiança, de¬pois do revés representado pelo caso de Harring. Faltando aten¬der ainda mais dois pacientes, Jason cruzou pela sala de espera, depois de haver realizado uma pequena intervenção cirúrgica em uma das salas de tratamento. Justamente quando ia en¬trar em seu consultório para registrar a pequena cirurgia, no¬tou Shirley Montgomery inclinada sobre a mesa central e conversando com as secretárias. Dentro do ambiente do hos¬pital, Shirley se destacava como a Cinderela no baile. Con¬trastando com as demais mulheres, que vestiam saia e blusa brancas ou um terninho branco, Shirley usava um conserva¬dor vestido de seda, que tentava em vão esconder suas for¬mas atraentes. Embora fossem poucas as pessoas que pudessem prever quando iriam encontrá-la, Shirley era a funcionária exe¬cutiva chefe de toda a organização do Good Health Plan. Além de ser tão atraente quanto uma modelo, tinha diploma de doutorado em administração hospitalar pela Colúmbia e mestra¬do na Harvard Business School.

Com seus atributos físicos e psicológicos, Shirley pode-ria ser uma pessoa temível mas não era. Extrovertida e sensí-vel, dava-se bem com todos: pessoal da manutenção, secre-tárias, enfermeiras e até mesmo os cirurgiões. Shirley Montgomery tinha o mérito pessoal de ter contribuído em grande parte para o espírito de união existente no GHP, mantendo-o unido e fazendo-o funcionar em harmonia.

Quando ela viu Jason, pediu licença às secretárias e afastou-se, encaminhando-se na direção dele com a naturalidade e a graça de uma dançarina. Seu cabelo castanho e abundante es¬tava penteado para trás e também caía para o lado em espes¬sa madeixa. Sua maquiagem era tão bem-feita que ela nem parecia estar maquiada. Seus grandes olhos azuis tinham um brilho inteligente.

— Com licença, Dr. Howard — disse ela, de um modo formal. No canto de seus lábios pairava o leve sinal de um sorriso. Sem que a equipe do hospital soubesse, Shirley e Ja-son já se haviam encontrado várias vezes, nos últimos meses, em ocasiões sociais. Isso havia começado durante um dos en-contros semestrais da equipe hospitalar, quando se encontra-ram no coquetel. Assim que soube que o marido dela morrera recentemente de câncer, Jason sentiu formar-se um vínculo imediato.

Durante o jantar que se seguira, ela contara a Jason que, num dia de manhã, três anos atrás, o marido dela acordara com forte dor de cabeça. Dentro de poucos meses, ele morre¬ria de um tumor cerebral, resistente a qualquer tipo de trata¬mento. Naquela época, ambos trabalhavam na Humana Hospital Corporation. Depois, tal como Jason, ela também se vira compelida a mudar-se e viera para Boston. Quando con¬tara a Jason essa história, acabara impressionando-o tão pro¬fundamente que ele rompera seu próprio muro de silêncio. Nessa mesma noite conversaram sobre a angústia que ele ha¬via passado em decorrência do acidente e morte da esposa.

Passagens tão semelhantes em suas vidas concorreram pa¬ra aproximá-los; Jason e Shirley começaram um relacionamen¬to que de certo modo pairava entre a amizade e o namoro.

Um sabia que o outro se mantinha cauteloso em suas emo¬ções, num certo grau, e não iria se decidir muito rapidamente. Jason ficou surpreso. Ela nunca o havia procurado da ma¬neira como o fazia agora. Habitualmente, ele tinha apenas uma noção muito vaga do que se passava no interior da mente sem¬pre ativa de Shirley. Sob muitos aspectos, ela era a mulher mais complexa que ele já havia encontrado.

—  Posso ajudar em alguma coisa? — perguntou ele, pro¬curando captar algum indício do que ela pretendia.

—  Naturalmente você deve estar ocupado, mas fiquei pen¬sando se não estaria livre hoje à noite. — Ela baixou a voz, voltando as costas para o olhar insistente de Claudia. — Te¬rei um jantar, uma festa inesperada, com alguns conhecidos da Harvard Business School. Eu gostaria que você participas¬se. Que acha?

Imediatamente Jason lamentou haver feito planos para ir jantar com Alvin Hayes. Bem que podia ter combinado encontrar-se com Hayes só para uns drinques.

—  Sei que você precisa de tempo para pensar um pouco —  acrescentou Shirley percebendo a hesitação em Jason.

— Não é esse o problema. A dificuldade é que prometi sair para jantar com Alvin Hayes.

— O nosso Dr. Hayes? — perguntou Shirley, visivelmente surpresa.

— Ele mesmo. Sei que isso parece estranho, mas ele me pareceu muito perturbado. E embora não tivesse sido amisto¬so, fiquei com pena dele. O jantar foi sugestão minha.

—  Droga! — praguejou Shirley. — Você iria gostar do grupo. Bom, numa próxima vez...

—  O convite é bom, fica para uma oportunidade melhor — disse Jason. Ela estava para sair quando ele se lembrou da conversa que tivera com Roger Wanamaker. — Provavelmente terei de lhe dizer que vou convocar uma reunião de todo o pes¬soal. Alguns pacientes têm morrido de doença coronariana que os nossos exames não puderam detectar. Como atual chefe de serviço, parece-me que devo investigar isso. Uma pessoa fale¬ceu menos de um mês depois de um exame de saúde em que foi dada como sadia; isso é o tipo de coisa que pode nos com¬prometer.

— Por Deus! — exclamou Shirley. — Não vá espalhar um comentário desses por aí.

— Bom, não deixa de ser preocupante ver uma pessoa que examinamos com todos os recursos técnicos e declaramos essencialmente sadia de repente voltar ao hospital apresentando um estado clínico catastrófico e morrer. O objetivo do exame médico executivo é justamente evitar que isso aconteça. Pen¬so que deveríamos procurar aumentar a sensibilidade dos nos¬sos testes de esforço.

—  Excelente objetivo — concordou Shirley. — Só lhe pe¬ço que mantenha isso em sigilo. Nossos exames médicos exe¬cutivos têm um papel importante na campanha que estamos desenvolvendo para angariar clientes de algumas grandes em¬presas desta região. Vamos manter isso como assunto interno do hospital.

—  Sem dúvida — disse Jason. — Lamento não poder sair com você hoje à noite.

—  Eu também lamento — disse Shirley, baixando a voz. — Mas não sabia que o Dr. Hayes era dado a programas des¬se tipo. O que há com ele?

—  Isso é um mistério para mim — admitiu Jason —, mas depois eu lhe conto.

—  Eu lhe agradeço — disse Shirley. — Foi por minha causa principalmente que o GHP contratou o homem. Sinto-me com responsabilidade nisso. Espero que possa conversar com você em breve. — Ela afastou-se, sorrindo para o paciente que estava por perto.

Jason ficou olhando-a por um momento, e então perce-beu que Claudia o olhava. Com um jeito culpado, ela baixou os olhos para o seu trabalho. Jason se perguntou se o segredo não estava sendo divulgado. Com um movimento de ombros, voltou para atender os seus dois últimos pacientes.

O FIM DO OUTONO em Boston era uma época estimulante pa¬ra Jason, apesar do rigoroso inverno que prenunciava. Usan¬do um chapéu estilo Indiana Jones e vestindo uma capa impermeável Burberry bastante usada, ele estava adequada¬mente protegido da noite fria de outubro.

Rajadas de vento arrastavam folhas de olmo amareladas em torno dos pés de Jason à medida que ele subia com esfor¬ço a Mt. Vernon Street e cruzava pela passagem entre pilotis sob à State House. Atravessou a alameda do Government Center, contornou o Faneuil Hall Marketplace, com seus artistas performáticos de rua, e entrou em North End, onde ficava a Little Italy de Boston. Por toda parte havia gente. Homens parados nas esquinas conversando com gestos animados; mu¬lheres debruçadas nas janelas e conversando com suas amigas do outro lado da rua. O ar enchia-se dos cheiros de café moído e de comidas com sabor de amêndoa. Esse lugar era como a Itália, uma delícia para os sentidos.

Dois quarteirões além da Hanover Street, Jason dobrou à direita e logo se viu perto da modesta casa de madeira de Paul Revere. A praça pavimentada com pequenas pedras re-dondas era circundada por uma pesada corrente naval de cor preta, pendente entre pilares de ferro. Bem em frente da casa de Paul Revere localizava-se o Carbonara, um dos restauran-tes preferidos de Jason. Havia nessa praça dois outros restau-rantes, mas nenhum deles era tão bom quanto o Carbonara. Jason subiu os degraus que davam acesso à porta da frente e foi saudado pelo maitre, que o levou até sua mesa junto a uma das janelas da frente, que proporcionava uma vista da graciosa e velha praça. À semelhança de muitos outros locais de Boston, ali o cenário parecia um tanto irreal, como se fos¬se o local para uma filmagem.

Jason pediu uma garrafa de vinho branco Gavi e ficou beliscando uma ou outra coisa do couvert enquanto aguarda-va a chegada de Hayes. Dentro de dez minutos, um táxi se aproximou e parou, dele desembarcando Hayes. Por uns mo-mentos após o táxi ter ido embora, o homem permaneceu pa-rado na calçada e ficou olhando atentamente em direção à North Street, de onde viera. Jason olhava a cena, perguntando-se o que estaria o homem esperando. Este, por fim, voltou-se e entrou no restaurante.

Enquanto o maitre acompanhava Hayes até a mesa, Ja¬son observou como o seu colega parecia deslocado naquele am¬biente distinto e entre aqueles clientes elegantemente vestidos. Em lugar de seu manchado avental de laboratório, Hayes usava agora um paletó de tweed muito folgado e com uma cotoveleira meio descosida. Parecia ter dificuldade de caminhar, e Jason se perguntou se ele não teria bebido.

Sem dar importância à presença de Jason, Hayes deixou-se cair na cadeira vazia e ficou olhando fixamente através da ja¬nela, novamente perscrutando a North Street. Apareceu na rua um casal, andando de braço dado. Hayes ficou observan¬do o casal até que a dupla desaparecesse de vista na Prince Street. Seus olhos ainda conservavam um aspecto baço, e Ja¬son observou uma teia de novos capilares avermelhados que se ramificavam na superfície do nariz como uma aranha. Sua pele era pálida como o marfim, não muito diferente da pele de Harring quando Jason o examinara na unidade de trata¬mento coronariano. Tudo indicava que Hayes não estava bem.

Remexendo num dos bolsos volumosos de seu paletó de tweed, Hayes encontrou um maço amarrotado de cigarros Ca¬mel sem filtro. Acendeu um com mãos trêmulas e disse, com um brilho nos olhos, evidenciando alguma emoção intensa.

— Alguém está me seguindo. Jason sabia bem como reagir.

— Tem certeza?

— Não há dúvida — disse Hayes, puxando uma longa tragada do seu cigarro. Uma brasa acesa caiu sobre a toalha branca da mesa. — Um sujeito moreno, bem-apessoado e bem-vestido, um estrangeiro — acrescentou ele, com um tom si¬nistro.

— Isso o deixa preocupado? — perguntou Jason, ten-tando bancar o psiquiatra. Aparentemente, acima de qualquer outra coisa, Hayes apresentava uma paranóia aguda.

— Mas é claro que sim — exclamou Hayes em voz alta. Algumas cabeças já se voltavam, e Hayes baixou a voz. — Você não ficaria preocupado se alguém estivesse querendo matá-lo?

— Matá-lo? — Jason repetiu a pergunta, agora com a certeza de que Hayes enlouquecera.

— Certeza absoluta. E a meu filho também.

— Eu não sabia que você tinha um filho — disse Jason. Na verdade, não sabia nem mesmo se Hayes era casado. No hospital comentava-se que Hayes freqüentava discotecas nas poucas vezes em que saía para se distrair.

Hayes apagou o cigarro no cinzeiro, praguejou em voz baixa e acendeu outro, soprando a fumaça para longe em ba-foradas curtas e nervosas. Jason compreendeu que Hayes es-tava no ponto de ruptura e que era preciso ter uma conduta cautelosa. O homem estava prestes a descompensar.

— Desculpe-me se dou a impressão de não estar enten¬dendo — disse Jason —, mas eu gostaria de ajudar. Suponho que é por isso que você quer conversar comigo. Sinceramen¬te, Alvin, parece que você não está bem.

Hayes encostou o dorso do pulso direito na testa, manten¬do o cotovelo sobre a mesa. O cigarro aceso estava perigosamen¬te perto de sua cabeleira despenteada. Jason sentiu-se tentado a afastar ou o cigarro ou a cabeleira; não queria que o homem pegasse fogo como uma pira. Mas não fez nem uma coisa nem outra, receoso diante do estado de perturbação de Hayes.

— O que os senhores gostariam de pedir? — perguntou um garçom que se aproximara silenciosamente da mesa.

— Pelo amor de Deus! — rosnou Hayes, levantando a cabeça. — Não vê que estamos conversando?

— Desculpe-me, senhor — disse o garçom, inclinando-se e afastando-se.

Tendo respirado profundamente, Hayes tornou a voltar sua atenção para Jason.

— Então, parece que não estou bem?

— Isso mesmo. A sua cor não está boa, e parece que vo¬cê está exausto e também perturbado.

— Ah, o clínico clarividente! — falou Hayes num tom de sarcasmo. E depois acrescentou: — Desculpe, não preten¬do ser desagradável. Você tem razão. Não estou me sentindo bem. Na realidade, estou me sentindo terrivelmente mal.

— Qual é o problema?

— É tudo, simplesmente. Artrite, perturbações gastrintestinais, visão turva. Pele seca também. Meus tornozelos comicham tanto que estão me deixando louco. Meu corpo está literalmente se despedaçando.

— Talvez fosse melhor termos o encontro no meu con-sultório — disse Jason. — Pode ser que eu tenha de fazer um exame completo em você.

— Talvez mais tarde, mas não foi por isso que eu quis ter este encontro com você. Pode ser que seja muito tarde pa-ra mim, de qualquer modo, mas se eu pudesse salvar meu fi-lho... — Interrompeu-se, apontando para fora da janela. — Lá está ele!

Voltando-se na sua cadeira, Jason ainda pôde divisar uma pessoa desaparecendo na North Street. Virando-se para Ha¬yes, Jason perguntou:

—  Como é que você pôde ver que era ele?

—  Ele vem me seguindo desde o momento em que saí do GHP. Acho que ele planeja me matar.

Não tendo como distinguir entre o fato e o delírio, Jason pôs-se a estudar o seu colega. O homem estava agindo de ma¬neira estranha, para dizer o mínimo, mas também ecoou no cérebro de Jason o velho lembrete: "Até mesmo os paranóides têm inimigos." Talvez alguém estivesse realmente seguin¬do Hayes. Jason tirou do balde de gelo a garrafa de Gavi resfriada, serviu vinho no copo de Hayes e encheu o seu pró¬prio.

— Talvez fosse melhor você me contar toda a história direitinho.

Depois de beber o vinho de um só gole como se fosse um trago de aguardente, Hayes enxugou os lábios com o dorso da mão.

— É uma história tão esquisita... Que tal um pouco mais de vinho?

Jason tornou a encher o copo de Hayes enquanto este con¬tinuou a falar.

— Acho que você não sabe muita coisa sobre o meu in-teresse na pesquisa...

— Tenho alguma idéia.

— Crescimento e desenvolvimento — disse Hayes. — O modo como os genes são ativados e desativados. Por exem¬plo, a puberdade; o que é que ativa os genes correspondentes. A solução desse problema seria uma conquista importante. Não só nós potencialmente influenciaríamos o crescimento e o de¬senvolvimento, como também provavelmente seríamos capa¬zes de desativar ou "desligar" os cânceres, ou, após infartos do miocárdio, ativar a divisão celular para produzir músculo cardíaco novo. De qualquer modo, em termos simplificados, a ativação e a desativação dos genes do crescimento e do de¬senvolvimento têm sido o objeto de meu principal interesse. Mas como acontece tantas vezes em pesquisas, o inesperado também desempenhou seu papel. Há uns quatro meses, no de¬correr de minhas pesquisas, deparei com uma descoberta ines-perada, irônica mas assombrosa. Estou falando de uma importante descoberta científica. Acredite-me: é material pa¬ra um Nobel.

Jason estava propenso a suspender sua descrença, mas mesmo assim ficou imaginando se Hayes, com sua paranóia, não estaria apresentando sintomas de um delírio de grandeza.

— Qual foi a sua descoberta?

— Só um momento — disse Hayes. Colocou o cigarro no cinzeiro e apertou a mão direita contra o peito.

— Está tudo bem com você? — perguntou Jason. Pare-ceu que Hayes passava a apresentar uma cor um tanto mais cinzenta, e uma fileira de bagas de suor apareceu-lhe na linha de implantação dos cabelos.

—  Estou bem — tranqüilizou-o Hayes. Deixou a mão cair sobre a mesa. — Eu não publiquei essa descoberta porque com¬preendi que ela é o primeiro passo em direção a uma descoberta ainda maior. Estou falando de algo equivalente aos an¬tibióticos ou à estrutura helicoidal do ADN. Minha excitação é tão grande que tenho trabalhado ininterruptamente, 24 ho¬ras por dia. Mas aí verifiquei que minha descoberta original já não era mais um segredo. Que ela estava sendo utilizada. Quando suspeitei disso, eu... — Hayes parou no meio da fra¬se. Olhou fixamente para Jason, com uma expressão que ini¬cialmente foi de confusão mas que logo se transformou em medo.

— Alvin, qual é o problema? — perguntou Jason. Ha-yes não respondeu. Sua mão direita novamente estava aper-tada contra o peito. Um gemido escapou de seus lábios, depois ambas as mãos se estenderam e agarraram a toalha da mesa, puxando-a em sua direção. Os copos de vinho tombaram. Ha¬yes tentou pôr-se de pé, mas não conseguiu mais. Com uma violenta tosse e sufocação, vomitou um jato de sangue por so¬bre a mesa, até o outro lado, empapando a toalha e respingando Jason, que pulou para trás, derrubando a cadeira. O sangue não parou. Vinha em borbotões sucessivos, salpican¬do tudo ao redor, enquanto os fregueses nas mesas próximas começavam a gritar.

Como médico, Jason sabia o que estava acontecendo. O sangue era vermelho vivo e literalmente estava sendo bombeado para fora da boca de Hayes. Isso significava que vinha direta¬mente do coração. Nos segundos que se seguiram, Hayes per¬maneceu hirto na sua cadeira, enquanto em seus olhos a confu¬são e a dor tomavam o lugar do medo. Jason contornou a mesa e segurou-o pelos ombros. Infelizmente não havia como estan¬car o fluxo de sangue. Hayes ou ia ficar exangue ou morreria sufocado. Não havia nada que Jason pudesse fazer, exceto se¬gurar o homem à medida que a vida o abandonava.

Quando o corpo de Hayes se tornou flácido, Jason distendeu-o no chão. Embora o corpo humano contenha apro-ximadamente pouco mais de cinco litros de sangue, a quanti-dade que se via sobre a mesa e no chão parecia considera-velmente maior. Jason voltou-se para uma mesa próxima que tinha sido esvaziada e pegou um guardanapo para limpar as mãos.

Pela primeira vez desde o início da tragédia, Jason tomou consciência do ambiente. Os outros fregueses do restau¬rante tinham se afastado apressadamente de suas mesas, reunindo-se na outra extremidade do salão. Infelizmente, al¬gumas pessoas estavam se sentindo mal.

O maitre, ele próprio, estava com uma cor muito pálida e tentava tomar alguma providência.

— Eu chamei uma ambulância — foi o que ele conse-guiu dizer através de uma das mãos, com que tampava a boca para não vomitar.

Jason baixou os olhos para Hayes. Sem uma sala cirúr-gica imediatamente próxima, com máquina coração-pulmão, ajustada e pronta para funcionar, não havia nenhuma possi-bilidade de salvá-lo. A essa altura, uma ambulância era inú¬til. Mas pelo menos podia levar o corpo embora. Olhando mais uma vez para o corpo imóvel, Jason concluiu que o colega devia ter morrido de câncer de pulmão. Um tumor podia ter causado erosão na aorta, provocando o sangramento. Ironi-camente, o cigarro de Hayes ainda estava aceso na beirada do cinzeiro, agora inundado de sangue espumoso. Um fio de fu¬maça subia vagarosamente até o teto.

Jason ouviu, ao longe, o som alternante de uma ambu-lância que se aproximava. Mas antes que esta chegasse, um carro de patrulha da polícia, com uma luz intermitente azul, parou em frente ao restaurante, e dois policiais uniformiza¬dos entraram apressadamente no salão. Ambos pararam as¬sim que viram a cena de sangue. O mais jovem, Peter Carbo, um rapaz de cabelos louros, aparentando uns dezenove anos, imediatamente empalideceu. Seu companheiro, Jeff Mario, imediatamente lhe determinou que tomasse informações com os fregueses. Jeff Mario tinha a idade de Jason, dois anos a mais ou a menos.

— Mas o que foi que aconteceu? — perguntou ele, es-tarrecido com a quantidade de sangue.

— Eu sou médico — apresentou-se Jason. — O homem está morto. Esvaiu-se em sangue. Não se pôde fazer nada.

Depois de haver se inclinado sobre o corpo de Hayes, Jeff Mario cuidadosamente tomou-lhe o pulso. Certificando-se da morte, levantou-se e voltou sua atenção para Jason.

— Era amigo dele?

— Mais propriamente colega — falou Jason. — Ele e eu trabalhamos para o Good Health Plan.

— Ele era médico também? — perguntou Jeff Mario, apontando com o polegar em direção a Hayes.

Jason fez um gesto afirmativo.

— Ele estava doente?

— Não tenho certeza — disse Jason. — Mas se eu tives¬se que apontar uma doença, diria que era câncer. Mas não estou certo.

Jeff Mario tirou do bolso uma pequena caderneta e um lápis. Abriu a caderneta.

— Qual é o nome desse homem?

— Alvin Hayes.

— O Sr. Hayes tem família?

— Acho que sim — disse Jason. — Para dizer a verda-de, eu não sei muita coisa a respeito da vida particular dele. Ele mencionou que tinha um filho, por isso eu suponho que tenha família.

— O senhor sabe o endereço da casa dele?

— Infelizmente não.

O policial Mario ficou olhando Jason uns momentos mais, depois inclinou-se e examinou minuciosamente os bolsos de Hayes, encontrando uma carteira. Achou também cartões de crédito.

— Este camarada não tem carteira de motorista — disse Jeff Mario. Olhou para Jason em busca de confirmação.

— Isso eu não saberia dizer. — Jason sentiu que começa¬va a tremer. Agora o horror do episódio começava a afetá-lo.

O som da ambulância, que se tornava progressivamente mais forte, cessou do lado de fora das janelas. Havia agora uma luz intermitente vermelha ao lado da azul da polícia. Den¬tro de uns instantes dois funcionários uniformizados do pronto-socorro entraram no salão do restaurante, um deles carregan¬do uma espécie de maleta metálica parecida com uma caixa de ferramentas. Dirigiram-se diretamente ao corpo de Hayes.

— Este senhor é médico — disse Jeff Mario, apontando com o lápis para Jason. — Ele disse que o homem está mor¬to. E que teve sangramento em conseqüência de câncer.

— Não tenho certeza se foi câncer — falou Jason. Sua voz saiu mais aguda do que ele desejava. Agora tremia visi-velmente, e por isso juntou as mãos firmemente.

Os socorristas examinaram rapidamente Hayes, depois se ergueram. Aquele que portava a maleta disse ao outro que des¬cesse à ambulância e trouxesse a maca.

— Certo, aqui está o endereço — disse Jeff Mario, que tinha voltado a examinar a carteira de Hayes. Encontrou um cartão. — Ele mora perto do Boston City Hospital. — Co¬piou o endereço na sua caderneta. O policial mais jovem esta¬va tomando nota dos nomes e endereços dos circunstantes, inclusive Jason.

Quando estavam prontos para partir, Jason perguntou se podia ir junto com o corpo de Hayes. Sentia-se mal enviando Hayes completamente sozinho ao necrotério. Os policiais dis¬seram que, por eles, não haveria problema nisso. Quando saí¬ram para a praça, Jason pôde ver que ali já se formara uma considerável multidão. Notícias assim espalhavam-se rapida¬mente pelo North End, mas a multidão mantinha-se em silên¬cio, assustada com a presença da morte.

Os olhos de Jason surpreenderam um homem vestido com elegância e que pareceu tentar desaparecer ao longe na multi¬dão. Seu aspecto era o de um homem de negócios — mais latino-americano ou hispânico do que italiano, em especial suas roupas —, e por uns momentos Jason até se admirou de estar percebendo esse detalhe.

Então um dos socorristas chamou:

— O senhor vem com o seu amigo? — Jason fez que sim e embarcou na ambulância pela porta traseira. Acomodou-se num assento baixo, no lado oposto ao de Hayes, perto dos pés do morto. Um dos socorristas ia sentado num assento pa¬recido, mais perto da cabeça de Hayes. Com um solavanco brusco, a ambulância partiu. Pela janela traseira Jason viu o restaurante e a multidão desaparecerem. Quando entraram na Hanover Street, Jason teve de se segurar. A sirene ainda não fora ligada, mas a luz piscante ainda estava funcionando. Ja¬son podia vê-la refletida nos vidros das vitrines.

A viagem foi curta, uns cinco minutos. O socorrista ten-tou puxar conversa, mas Jason demonstrou estar preocupa¬do. Olhando demoradamente para o corpo encoberto de Hayes, tentou pôr em ordem suas idéias. Não conseguiu dei¬xar de pensar que a morte estava a rondá-lo. Isso fez com que se sentisse estranhamente responsável por Hayes, como se o colega ainda pudesse estar vivo se não tivesse tido a infelici-dade de se encontrar com ele. Jason sabia que, no plano ra-cional, tais idéias eram absurdas. Mas os sentimentos nem sempre têm por base a racionalidade.

Após um súbita curva para a esquerda, a ambulância deu marcha à ré, depois parou. A porta traseira se abriu, e então Jason reconheceu o lugar em que estavam. Tinham chegado ao pátio do Massachusetts General Hospital. Para Jason, es¬se era um lugar muito conhecido. Ali ele fizera, anos atrás, residência em medicina interna. Jason desembarcou da am¬bulância. Os dois socorristas retiraram eficientemente o cor¬po de Hayes e colocaram-no na maca, depois de terem baixado as rodas desta. Em silêncio, empurraram o corpo até a sala de emergência onde um enfermeiro da triagem os conduziu até uma sala vazia na traumatologia.

Apesar de ser médico, Jason não estava a par de todas as formalidades para lidar com uma situação como a da mor¬te de Hayes. Ficou um tanto surpreso por terem de passar por uma sala de emergência, pois já não havia o que fazer por Ha-yes. Mas, refletindo sobre o caso, compreendeu que era ne-cessário comprovar e atestar formalmente a morte do colega. Lembrou-se de que ele próprio, quando funcionário desse hos-pital, havia realizado esse procedimento.

A sala de traumatologia estava montada da maneira usual, com todos os tipos de equipamentos prontos para uso ime¬diato. Num canto havia uma pia com torneira. Jason lavou de suas mãos o sangue de Hayes. Num pequeno espelho aci-ma da pia pôde ver também no seu rosto uma grande quanti-dade de sangue já coagulado, que havia respingado. Depois de lavar o rosto, enxugou-se com toalhas de papel. Havia san-gue na sua capa, no peito da camisa e também nas calças, mas, quanto a isso, pouco podia ser feito. Quando estava termi¬nando de se lavar, um funcionário do hospital entrou às pres¬sas na sala com uma papeleta. Sem maior cerimônia, puxou para baixo o lençol que cobria Hayes; a seguir, pegou no estetoscópio que trazia em volta do pescoço. A face de Hayes parecia ter uma palidez lúgubre sob a dura luz fluorescente.

—  O senhor é parente? — perguntou o residente, com negligência, enquanto auscultava o peito de Hayes.

Quando o residente tirou o estetoscópio dos ouvidos, Ja¬son falou.

— Não, sou um colega. Trabalhávamos juntos no Good Health.

— Então é médico? — perguntou o residente, parecen-do usar de um pouco mais de deferência.

Jason fez que sim.

— O que aconteceu ao seu amigo? — Ele olhava dentro dos olhos de Hayes com uma pequena lanterna oftalmoscópica.

— Morreu de hemorragia na mesa de jantar — disse Ja-son, sendo deliberadamente duro por ter se sentido um tanto ofendido com a atitude insensível do residente.

— Não há dúvida, acabou-se. Está morto, não há dúvi-da. — E puxou o cobertor novamente para cobrir a cabeça de Hayes.

Foi preciso Jason usar de todo o seu autocontrole para não dizer ao residente o que pensava de sua insensibilidade; sabia que seria perda de tempo. Em vez disso, encaminhou-se para a entrada e ficou observando a intensa atividade da sala de emergência, lembrando-se dos seus tempos de residente. Pa¬recia que muito tempo já se havia passado, e nada mudara realmente.

Trinta minutos mais tarde, o corpo de Hayes foi nova-mente transportado em maca para a ambulância. Jason acom-panhou e observou a transferência do corpo.

— Você se importa se eu for junto? — perguntou, incer-to quanto aos seus motivos, sabendo apenas que certamente estava agindo em função do choque dos acontecimentos.

— Só estamos indo ao necrotério — disse o motorista —, mas venha, está convidado.

Quando saíam do pátio do hospital, Jason de repente se surpreendeu ao ver o que lhe pareceu ser o mesmo homem de ne¬gócios elegantemente vestido que havia visto do lado de fora do restaurante. Mas não acreditou muito. Provavelmente não pas¬sava de uma coincidência. De qualquer modo, achou estranho que o rosto do homem tivesse a mesma aparência hispânica.

Jason nunca tinha estado no instituto médico-legal da ci¬dade. Enquanto transportavam em maca o corpo de Hayes e passavam por portas desmanteladas e com a pintura descas-cada, para deixar o cadáver na sala de depósito de cadáveres, Jason desejava não ter vindo a tal lugar em tal ocasião. O am-biente era tão desagradável quanto sua imaginação poderia sugerir-lhe. A sala de depósito de cadáveres era grande; em ambos os lados alinhavam-se portas quadradas, como as de geladeiras, que em outras épocas tinham sido brancas. Os azu¬lejos das paredes e os ladrilhos do piso eram velhos, mancha¬dos, e muitos estavam rachados. Havia uma série de macas de rodas, algumas ocupadas com cadáveres cobertos com len¬çóis, alguns deles manchados de sangue. A sala toda tinha um cheiro nauseante de anti-séptico ou de peixe, um bafio que di¬ficultava a respiração de Jason. Um homem pesadão e rosa¬do, que usava avental e luvas de borracha, aproximou-se do corpo de Hayes e ajudou a transferir o cadáver para uma das velhas e enferrujadas macas do necrotério. Em seguida, to¬dos desapareceram numa outra sala para despachar a papela¬da necessária.

Por uns minutos Jason ficou de pé na sala dos cadáveres e pensou no brusco fim da vida de celebridade de Hayes. De¬pois, perseguido pela vivida imagem de sua viagem até o hos¬pital, por ocasião da morte de Danielle, seguiu atrás dos socorristas.

Na época em que o necrotério da cidade de Boston fora construído, meio século antes, sua concepção fora considera-da um marco artístico de seu tempo. Enquanto subia os lar¬gos degraus que levavam às salas do andar de cima, Jason pôde observar alguns detalhes arquitetônicos com motivos egípcios. Mas o prédio, com o passar dos anos, sofrera a ação do tem-po. Agora estava escuro, sujo e inadequado. Os horrores que ele presenciara, isto estava além da imaginação de Jason.

Numa sala precariamente instalada, Jason encontrou os dois socorristas e o rubicundo funcionário do necrotério. Ti-nham terminado de preencher a papelada e estavam rindo de alguma coisa, totalmente esquecidos do opressivo ambiente da morte.

Jason interrompeu a conversa dos homens para perguntar se algum dos médicos-legistas estava ali no momento.

— Sim — disse o funcionário. — A Dra. Danforth está terminando um caso de emergência na sala de autópsias.

— Há algum lugar em que eu possa ficar esperando por ela? — perguntou Jason. Ele não se sentia em condições de comparecer à sala de autópsias.

—  Há uma biblioteca, subindo a escada — falou o fun-cionário. — Logo à direita da sala da Dra. Danforth.

A biblioteca era um lugar escuro e com opressivo cheiro de coisas guardadas, com grandes volumes encadernados dos relatórios de autópsias, datando do século XVIII. No centro da sala havia uma grande mesa de carvalho com seis cadeiras de espaldar alto. E o mais importante: um telefone. Depois de alguma hesitação, Jason decidiu telefonar para Shirley. Ele sabia que ela devia estar envolvida com a festa, mas achou que desejaria saber o que se passava.

—  Jason! — exclamou ela. — Você está vindo para cá?

—  Infelizmente não. Houve alguns problemas.

—  Problemas?

— O que houve vai ser um choque para você — advertiu Jason. — Espero que esteja sentada.

—  Não brinque comigo — disse Shirley. Dava para no-tar na sua voz uma preocupação crescente.

—  Alvin Hayes morreu.

Houve uma pausa. Podia-se ouvir, ao fundo, ruído e ri-sadas, coisa inadequada para o momento.

—  O que aconteceu?

—  Não estou inteiramente certo — disse Jason, desejan¬do poupá-la dos detalhes horríveis. — Uma espécie de desas¬tre em medicina interna.

—  Assim como um infarto?

—  Mais ou menos — disse Jason, evasivo.

—  Meu Deus. Pobre Hayes!

— Você sabe alguma coisa sobre a família dele? Fui in-dagado a respeito e não soube dizer nada.

— Eu também não sei muita coisa. Ele é divorciado. Tem filhos, mas acho que é a esposa que tem a custódia. Mora em algum lugar perto de Manhattan, é só isso que eu sei. Hayes era muito reservado em relação à sua vida pessoal.

— Desculpe incomodá-la com esse assunto agora.

— Ora, não está incomodando não. Onde você está?

— No necrotério.

— Como foi que chegou aí?

— Eu vim na ambulância junto com o corpo de Hayes.

— Eu vou até aí e apanho você.

— Não é necessário — disse Jason. — Eu tomarei um táxi depois que conseguir falar com o médico-legista.

— Como está se sentindo? — perguntou Shirley. — De-ve ter sido uma experiência horrorosa.

— Sem dúvida — admitiu Jason. — Mas já estou melhor.

— Bem, está combinado. Passarei aí para apanhá-lo.

— Mas, e os seus convidados? — protestou Jason, meio indeciso. Sentiu-se culpado por estragar a festa dela, mas não o suficiente para recusar o seu oferecimento. Sabia que não estava em condições de ficar sozinho com as lembranças des¬sa noite.

— Eles sabem como cuidar de si mesmos — disse Shir¬ley. — Onde você está exatamente?

Jason deu-lhe o endereço e as informações necessárias, depois desligou. Deixou a cabeça pender entre as mãos e fe¬chou os olhos.

— Com licença — disse uma voz grave, atenuada por um ligeiro sotaque irlandês. — O senhor é o Dr. Jason Howard?

— Sim, sou — disse Jason, com um movimento de sur-presa, endireitando-se na cadeira.

Um personagem pesadão entrou na sala. O sujeito tinha um rosto largo e olhos empapuçados, nariz achatado e dentes quadrados. O cabelo era preto com reflexos avermelhados.

— Sou o detetive Michael Curran, do departamento de homicídios. — E estendeu sua mão larga e pesada.

Jason apertou-lhe a mão, perturbado com o súbito apa-recimento do detetive à paisana. Compreendeu que estava sen¬do estudado quando os olhos do detetive percorreram-no da cabeça aos pés e novamente dos pés à cabeça.

— O funcionário Mario relatou que o senhor estava com a vítima — disse o detetive Curran, puxando uma cadeira.

— O senhor está investigando a morte de Hayes?

— É só rotina — disse Curran. — Deve ter sido uma cena bastante dramática, de acordo com a descrição de Mario. Não quero que o meu chefe depois venha me perturbar com perguntas, no caso de haver problemas com este caso.

— Compreendo — disse Jason. Na verdade, o apareci-mento do detetive Curran fez com que Jason se lembrasse da insistência de Hayes dizendo que alguém estava tentando assassiná-lo. Embora a morte de Hayes parecesse mais uma catástrofe natural do que um assassinato, Jason compreen¬deu que, em parte, o medo manifestado por Hayes tinha sido o motivo de ter vindo ao necrotério para averiguar a causa da morte.

— Bem — disse o detetive Curran —, farei as perguntas de costume. Na sua opinião, a morte de Hayes era esperada? Quero dizer, ele estava doente?

— Não que eu soubesse — disse Jason —, embora, ao vê-lo hoje à tarde e novamente à noite, eu realmente tivesse a impressão de que ele não estava bem de saúde.

As pesadas pálpebras do detetive Curran ergueram-se li¬geiramente.

— O que o senhor quer dizer com isso?

— O aspecto dele era péssimo. E quando eu lhe mencio¬nei este fato, ele mesmo admitiu não estar se sentindo bem.

— Quais eram os sintomas? — perguntou o detetive. Ele tirou um pequeno bloco de anotações.

— Cansaço, perturbações digestivas, dor nas juntas. Pen¬sei que ele talvez estivesse com febre, mas disto eu não tenho certeza.

— O que o senhor achou desses sintomas?

— Fiquei preocupado — admitiu Jason. — Disse-lhe que talvez fosse melhor nós conversarmos no meu consultório, de maneira que eu pudesse mandar fazer uns exames. Mas ele in¬sistiu em que nos encontrássemos longe do hospital.

— E por que isso?

— Não tenho certeza. — Então Jason passou a descre-ver o que provavelmente era a paranóia de Hayes e falou so-bre a descoberta científica que ele afirmara ter feito.

Depois de ter anotado tudo isso, Curran levantou os olhos do seu bloco de anotações. Parecia estar mais alerta.

— Que é que o senhor quer dizer com "paranóia"?

— Ele disse que alguém o estava seguindo e que preten¬diam assassiná-lo e ao filho.

— Ele mencionou nomes?

— Não — falou Jason. — Para ser sincero, julguei que ele estava delirante. Seu comportamento era bastante esquisi-to. Achei que ele estava prestes a descompensar.

— Descompensar? — perguntou Curran.

— Colapso nervoso — disse Jason.

— Compreendo — disse Curran, voltando ao seu bloco de anotações. Jason observava o homem escrever. Ele tinha o curioso hábito de lamber a ponta do lápis de vez em quando.

Nesse momento um outro personagem surgiu no vão da porta. Contornando a mesa, veio colocar-se à direita de Ja-son. Este e o detetive puseram-se de pé. A recém-chegada era uma mulher baixinha e franzina que mal chegava a ter metro e meio de altura. Apresentou-se como Dra. Danforth. Con¬trastando com sua estatura reduzida, sua voz ressoou forte na pequena sala.

— Sentem-se — disse ela, sorrindo para Curran, que ela evidentemente conhecia.

Jason ficou a pensar que a mulher devia estar na casa dos trinta. Os traços de sua fisionomia eram delicados, suas so¬brancelhas eram levemente arqueadas, dando-lhe uma aparên¬cia de candura. Tinha o cabelo curto e muito encaracolado. Usava um vestido preto, de aspecto recatado, com gola fecha¬da. Para Jason, pareceu difícil associar a aparência pessoal dela com a posição funcional que ocupava, como médica-legista da cidade de Boston.

— Qual é o problema? — perguntou ela, indo diretamente ao assunto. Notavam-se círculos negros sob os olhos da mé¬dica, e Jason imaginou que ela devia ter estado trabalhando desde o início da manhã.

O detetive Curran tamborilou no encosto da cadeira que ocupava e falou com hesitação.

— Morte súbita de um médico num restaurante em North End. Aparentemente vomitou grande quantidade de sangue...

— Melhor  seria  dizer  que  ele  tossiu  o  sangue  — interrompeu-o Jason.

— Como  assim?   —  perguntou   o  detetive  Curran, inclinando-se bruscamente para diante. Lambeu a ponta do lápis para fazer uma correção.

— Vomitar significaria que o sangue teria vindo do apa-relho digestivo — disse Jason. — Mas aquele sangue obviamente veio dos pulmões. Era sangue vermelho vivo e espumoso.

— Espumoso! Gosto dessa palavra — falou Curran. Inclinou-se sobre suas anotações, fazendo uma correção.

— Suponho que era sangue arterial — disse a Dra. Dan¬forth.

— É o que eu penso — disse Jason.

— Que significa...? — perguntou Curran.

— Provavelmente ruptura da aorta — respondeu Dan-forth. Ela mantinha as mãos postas no regaço, como se esti-vesse num chá em sociedade. — A aorta é a artéria principal que sai do coração — acrescentou, para conhecimento de Cur¬ran. — Leva sangue oxigenado para o corpo.

— Obrigado — disse Curran.

— Parece ter sido ou câncer de pulmão ou aneurisma — acrescentou Danforth. — Aneurisma é uma dilatação anor-mal do vaso sangüíneo.

—  Obrigado, mais uma vez — disse Curran. — Fica fá-cil quando as pessoas sabem que ignoro essas coisas.

Jason teve uma recordação momentânea de Peter Falk fazendo o papel do detetive Columbo. Tinha um bom grau de certeza de que Curran era tudo, menos um ignorante.

— O senhor concordaria, doutor? — perguntou Dan-forth, olhando diretamente para Jason.

— Acho mais provável câncer de pulmão — falou Jason. — Hayes era um fumante inveterado.

— Isso reforça essa probabilidade.

— Alguma possibilidade de crime? — perguntou Curran, olhando por sob as pálpebras pesadas para a médica-legista.

A Dra. Danforth deu uma risada curta.

— Se o diagnóstico confirmar o que penso, o único cri-me em jogo no caso teria sido cometido pelo Criador, ou en¬tão pela indústria do fumo.

— Exatamente o que eu pensei — disse Curran, fechan¬do com um piparote o seu bloco de anotações e colocando o lápis no bolso.

— A senhora vai fazer a autópsia agora? — perguntou Jason.

—  Por amor de Deus, não — disse a Dra. Danforth. — Se houvesse algum motivo urgente, poderíamos fazer. Mas não há. De qualquer modo, vamos fazê-la amanhã cedo, na pri¬meira hora. Deveremos ter algumas respostas mais ou menos às dez e meia, se o senhor desejar telefonar para saber.

Curran pôs as mãos sobre a mesa, como se estivesse pronto para se levantar. Em vez disso, porém, disse:

—  O Dr. Howard mencionou que a vítima achava que alguém estava tentando matá-lo. Certo, doutor?

Jason concordou.

— Bem... — disse Curran —, a senhora poderia ter isso em mente quando fizer a autópsia?

— Sem dúvida — disse a Dra. Danforth. — Nós fica¬mos abertos a todas as possibilidades em qualquer exame que realizamos. Faz parte do nosso trabalho. Agora, se vocês me dão licença, eu gostaria de ir para casa. Ainda não tive nem tempo para jantar.

Jason sentiu uma ligeira onde de náusea. Ficou a imagi¬nar como poderia a Dra. Margareth Danforth sentir fome de¬pois de passar o dia retalhando cadáveres. E foi o que realmente Curran disse a Jason enquanto desciam ao primeiro andar. Ofereceu-lhe carona, mas Jason lhe disse que esperava um ami¬go. Nem bem ele terminara de falar isso, e já a porta que da¬va para a rua se abria e Shirley entrava.

— Uma amiga — murmurou Curran, dando uma pisca-dela e saindo.

Mais uma vez Shirley surgia como uma miragem. Ela trajava um vestido curto, de seda vermelha, justo, com um cinto preto de couro. Seu aspecto pessoal transmitia tão in-tensamente vida e vitalidade, que sua presença no necroté¬rio sujo era um choque de contrários. Jason sentiu o ímpe¬to súbito, uma necessidade fora do comum de tirá-la dali o mais rápido possível, para que não a tocasse alguma força maligna. Mas ela opôs resistência a tal ímpeto. Atirou seus braços em torno dele e apertou-lhe a cabeça contra a sua, nu¬ma verdadeira demonstração de carinho. Jason sentiu que se derretia. A reação dela surpreendeu-o. Teve dificuldade para conter as lágrimas, como um adolescente. Sentiu-se emba-raçado.

Ela afastou-se um pouco e olhou-o nos olhos. Ele esbo-çou um sorriso sem graça.

— Que dia — disse ele.

— Que dia! — concordou ela. — Algum motivo para vo-cê continuar aqui?

Jason sacudiu a cabeça negativamente.

— Venha, vou levá-lo para casa — disse ela, levando-o apressadamente para fora, para onde estava estacionado o seu BMW, numa área de estacionamento proibido. Entraram no carro; e logo partiram em direção à vida. — Você está bem? — perguntou Shirley assim que se dirigiram para a Massachusetts Avenue.

—  Estou muito melhor agora. — Jason olhou para o per¬fil de Shirley, iluminada por cintilações das luzes da cidade.

— Só estou arrasado com todas essas mortes. Como se eu de¬vesse cumprir melhor o meu dever.

— Você é duro demais para com você mesmo. Não po-de querer assumir responsabilidade por todos. Além do mais, Hayes não era seu paciente.

— Eu sei.

Durante algum tempo, mantiveram-se em silêncio. En-tão Shirley falou:

— É uma tragédia, esse caso de Hayes. Ele estava muito perto de ser um gênio, e não devia ter mais que 45 anos.

— Ele era da minha idade — disse Jason. — Era de mi-nha turma na Faculdade de Medicina.

— Eu não sabia disso — falou Shirley. — Ele parecia mui¬to mais velho.

— Especialmente nestes últimos tempos — disse Jason. Passaram pela Symphony Hall. Algum evento estava termi¬nando justamente naquele momento; homens de black-tie des¬ciam as escadarias da frente.

— O que o médico-legista tinha a dizer? — perguntou Shirley.

— Provavelmente câncer. Mas só irão fazer a autópsia amanhã de manhã.

— Autópsia? Quem deu a autorização?

— Não há necessidade de autorização se o médico-legista verifica que há dúvidas quanto à causa da morte.

— Mas que tipo de dúvidas? Você disse que o homem teve um ataque cardíaco.

— Eu não disse que foi ataque cardíaco. Eu disse que foi alguma coisa parecida. De qualquer modo, aparentemen¬te é rotina obrigatória fazer autópsia em todo caso de morte súbita. Um detetive chegou mesmo a me fazer perguntas.

— Isso tudo parece um desperdício do dinheiro dos con¬tribuintes — disse Shirley quando faziam uma curva à esquer¬da, na Beacon Street.

— Para onde estamos indo? — perguntou Jason de re-pente.

— Estou levando você para minha casa. Meus convida-dos ainda estarão lá. Vai ser bom para você.

— De modo algum — disse Jason. — Não estou em con¬dições de ir a uma reunião social.

— Você tem certeza? Não quero que fique por aí ruminando desgraças. Meus amigos vão compreender.

— Por favor — disse Jason. — Eu não estou com dispo-sição para mais discussões. Só preciso dormir. Além de tudo, olhe para mim, estou muito esmolambado.

— Está bem, já que você quer assim — disse Shirley. Fez uma curva para a esquerda no quarteirão seguinte, depois saiu novamente na Commonwealth Avenue, dirigindo-se para Bea¬con Hill. Depois de um tempo em silêncio, ela falou. — Re¬ceio que a morte de Hayes venha a ser um sério golpe para o GHP. Contávamos com ele para obter certos resultados de impacto. Seu falecimento será especialmente doloroso para mim, pois fui responsável pela sua contratação.

— Nesse caso, procure seguir o conselho que você mes¬ma estava dando há pouco — disse Jason. — Não pode julgar-se responsável pelo estado clínico dele.

— Eu sei. Mas vá dizer isso à diretoria.

— Bem, se é assim, parece-me que devo contar a você. Há ainda mais uma notícia ruim — disse Jason. — Aparente-mente Hayes acreditava ter feito uma descoberta científica mui¬to importante. Alguma coisa extraordinária. Você sabe algo sobre isso?

— Absolutamente nada — disse Shirley, espantada. — Ele contou a você o que era?

— Infelizmente não — falou Jason. — E eu não pude ter certeza se podia acreditar nele ou não. Ele estava tendo um comportamento bastante esquisito, para dizer o mínimo; afirmou que alguém queria assassiná-lo.

— Você acha que ele estava tendo um colapso nervoso?

— Cheguei a fazer essa suposição.

— Pobre homem. Se ele chegou mesmo a fazer algum tipo de descoberta, então o GHP vai ter uma dupla perda.

— Mas se ele fez alguma descoberta fundamental, você não teria condições de averiguar o que seria?

— É evidente que você não conhecia o Dr. Hayes — dis¬se Shirley. — Ele era um homem extraordinariamente reser¬vado, pessoal e profissionalmente. Metade do que ele sabia permanecia em segredo nos seus pensamentos.

Passaram junto ao Boston Garden, depois seguiram o tra¬jeto de contorno para chegar a Beacon Hill, um enclave resi¬dencial de casas com fachadas em tijolos no centro de Boston, cujas ruas de mão única tornavam um pesadelo a circulação de automóveis naquela área.

Depois de cruzarem a Charles Street, Shirley foi dirigin-do seu carro pela Vernon Street e dobrou para entrar na Louisburg Square, uma praça com calçamento de pedras. Quando decidira deixar de morar em bairro para tentar morar na área central da cidade, Jason tivera a grande sorte de encontrar um apartamento de um quarto com vista para a praça. Ficava num prédio cujo proprietário mantinha para si um dos apartamen¬tos, embora raramente o ocupasse. Era um local perfeito pa¬ra Jason, pois o apartamento vinha com uma verdadeira dádiva urbana: um local para estacionamento.

Jason saiu do carro e inclinou-se junto à janela do carro aberta.

—  Obrigado por ter ido me buscar. Foi muito importante. — Ele estendeu a mão para dentro do carro e apertou o om¬bro de Shirley, agarrando-o com firmeza.

Shirley subitamente estendeu os braços para fora e pu-xou Jason pela gravata. Deu-lhe um beijo rápido, ligou o car¬ro e partiu.

Jason ficou parado, de pé, junto ao meio-fio, num cír-culo de luz da lâmpada da rua, vendo Shirley desaparecer na Pinckney Street. Dirigindo-se para a porta de casa, ele reme-xeu nos bolsos em busca das chaves. Sentiu-se contente por Shirley ter aparecido em sua vida, e pela primeira vez pensou na possibilidade de um relacionamento de verdade.

NÃO FOI UMA noite boa. Cada vez que Jason fechava os olhos, via a expressão medonha de Hayes logo antes do de-sastre e tornava a experimentar o terrível sentimento de não poder fazer nada por Hayes enquanto este se esvaía em san-gue, que lhe jorrava pela boca.

De manhã, enquanto ia de carro para o trabalho, a cena ainda não saía de sua mente, e ele se lembrou de algo que es¬quecera de contar a Curran e a Shirley. Hayes dissera que sua descoberta já não era mais um segredo e que estava sendo uti¬lizada. Fosse qual fosse o significado disso, Jason planejou telefonar para o detetive quando chegasse ao GHP, mas, no momento em que entrou, chamaram-no para ir diretamente à unidade de tratamento coronariano.

Brian Lennox estava muito pior. Depois de um rápido exa¬me, Jason verificou que havia pouco a fazer. Até mesmo a consulta cardiológica, que ele havia solicitado no dia anterior, não era otimista, embora Harry Sarnoff tivesse marcado pa¬ra esta manhã um estudo coronariano de emergência. A úni¬ca esperança era que a cirurgia imediata pudesse ter algo a oferecer.

Do lado de fora do cubículo de Brian, a enfermeira per-guntou:

— Se houver parada cardíaca, o senhor vai ordenar ressuscitação? Até mesmo o rim parece estar com insuficiên-cia.

Jason odiava esse tipo de decisões, mas ordenou, com firmeza, que se fizesse ressuscitação no paciente pelo menos até que chegassem os resultados do estudo coronariano.

As demais visitas aos leitos foram igualmente deprimen¬tes para Jason. Seus casos de diabete, todos com comprome¬timento multissistêmico, apresentavam um quadro desanimador. Dois dos pacientes apresentavam insuficiência renal, e um terceiro caso ameaçava ir no mesmo rumo. O lado desalentador de tudo isso era o fato de que esses pacientes não ti¬nham sido internados no hospital por esse motivo. A insuficiência renal desenvolvera-se enquanto Jason os tratava por outros problemas.

Dois pacientes de leucemia também não estavam respon¬dendo ao tratamento conforme o esperado. Ambos haviam desenvolvido sérios problemas cardíacos, embora internados inicialmente por causa de afecções respiratórias. E seus dois pacientes de AIDS tiveram agravado seu estado. Os dois úni¬cos pacientes que evoluíam bem eram duas adolescentes com hepatite. O último paciente a ser visitado neste dia era um ho¬mem de 35 anos, internado para uma avaliação de suas vál¬vulas cardíacas. Tinha tido febre reumática quando criança. Felizmente seu quadro não sofrera alterações.

Chegando ao seu consultório, Jason teve de agir energi¬camente com Claudia. A notícia da morte de Hayes já se es¬palhara por todo o complexo do GHP, e Claudia não conseguia conter-se na sua curiosidade. Jason disse-lhe que não iria fa¬lar sobre isso. Ela insistia. Ele pediu que ela saísse do consul¬tório. Mais tarde, pediu desculpas e contou-lhe uma versão resumida do acontecido. Pelas dez e meia, ele recebeu um te¬lefonema de Henry Sarnoff com notícias desalentadoras. As artérias coronárias de Brian Lennox estavam muito piores, mas sem bloqueio focai. Em outras palavras, as artérias estavam sendo obstruídas uniformemente pela aterosclerose em rápi¬da evolução, e não havia qualquer possibilidade de cirurgia. Sarnoff disse nunca ter visto uma evolução tão rápida e pediu a Jason permissão para relatar o caso por escrito, visando pos¬terior comunicação científica. Jason disse que, por ele, não havia o que objetar.

Após o telefonema de Sarnoff, Jason manteve-se tranca¬do em seu consultório durante alguns minutos. Depois, ao sentir-se emocionalmente preparado, telefonou para a unida¬de de tratamento coronariano e pediu que chamassem a en¬fermeira que cuidava de Brian Lennox. Quando ela veio ao telefone, ele falou sobre os resultados da coronariografia. E então lhe disse que Brian Lennox não tinha indicação para me¬didas de ressuscitação. Sem esperanças, não havia razão para se prolongar o sofrimento desse homem. Ela concordou. De¬pois de desligar, Jason ficou olhando para o aparelho. Era em momentos assim que ele se sentia levado a especular sobre os motivos que o tinham levado à carreira médica.

Por ocasião do intervalo para almoço, Jason decidiu ave¬riguar pessoalmente os resultados da autópsia feita em Ha¬yes. À luz do dia, o necrotério não era um lugar tão fan-tasmagórico assim, era apenas mais um prédio velho, gas¬to pelo tempo e pelo uso, não muito limpo. E mesmo os de¬talhes arquitetônicos egípcios eram antes cômicos que im¬ponentes. Mas Jason evitou a sala onde ficavam as câmaras frias e eram guardados os cadáveres; foi diretamente à pro¬cura de Margaret Danforth, na estreita sala ao lado da bi¬blioteca. Ela estava curvada sobre sua escrivaninha, comen¬do algo que parecia ser um Big Mac. Fez um sinal para ele, sorrindo.

— Seja bem-vindo.

— Desculpe incomodá-la — disse Jason, sentando-se. Mais uma vez, admirou-se de como Margaret parecia muito delicada e feminina para o trabalho que fazia.

— Não incomoda em nada — disse ela. — Fiz a autóp-sia no Dr. Hayes agora de manhã. — Inclinou-se para trás na sua cadeira, que rangeu suavemente. — Fiquei um tanto surpresa. Não era câncer.

— O que era?

— Aneurisma. Aneurisma da aorta, que se rompeu para dentro da árvore traqueobrônquica. Esse homem nunca teve sífilis, não é mesmo?

Jason sacudiu a cabeça.

— Não, que eu saiba. Tive minhas dúvidas.

— Bem, pareceu estranho — disse Margaret. — Você se importa se eu continuar comendo? Tenho outra autópsia pa¬ra daqui a uns minutos.

— Absolutamente — disse Jason, indagando-se como é que ela conseguia. Seu próprio estômago não estava muito dó¬cil. O prédio todo exalava um cheiro de peixe. — O que foi que pareceu estranho?

Margaret mastigou, depois engoliu.

— A aorta tinha um aspecto caseoso, friável. A mesma coisa com a traquéia, nesse aspecto. Eu nunca tinha visto na-da parecido, com exceção daquele sujeito que tinha 114 anos. Você consegue acreditar? O caso saiu publicado em The Globe. O homem tinha 44 anos quando a Primeira Guerra Mun¬dial começou. Impressionante.

— Quando terá o relatório da microscopia? Margaret fez um gesto de embaraço.

— Duas semanas — disse ela. — Não temos verbas para ter pessoal de apoio suficiente. As lâminas saem um bocado caro.

— Se pudesse me dar algumas amostras do material, eu poderia mandar o nosso departamento de patologia realizar os exames e as lâminas.

— Nós mesmos é que temos de processá-los. Tenho cer¬teza que você entende.

— Não quero dizer que não os farão — falou Jason. — Apenas que também poderíamos fazê-los. Isso pouparia al-gum tempo.

— Não vejo por que não. — Levantando-se, Margaret mordeu mais uma grande porção de seu hambúrguer e fez um sinal para que Jason a acompanhasse. Usaram as escadas e subiram um andar até a sala de autópsia.

Era uma sala retangular comprida com quatro mesas de aço inoxidável colocadas perpendicularmente ao eixo princi¬pal. O cheiro de formol e de outros líquidos inomináveis era sufocante. Duas mesas se achavam ocupadas, e as duas ou¬tras estavam sendo limpas. Margaret, perfeitamente à vonta¬de no ambiente, ainda mastigava o último pedaço de seu lanche enquanto ia conduzindo Jason até a pia. Depois de haver exa¬minado uma grande quantidade de frascos com peças de ma¬terial de autópsia cobertas com plástico, separou do restante algumas delas. Então, pegando uma de cada vez, pescou para fora dos frascos as peças anatômicas, colocou-as sobre uma tábua e cortou uma fatia de cada uma, usando uma lâmina muito parecida com uma faca de cozinha. Depois pegou ou¬tros frascos, etiquetou-os, encheu-os de formol e colocou ne¬les as peças que havia cortado. Quando terminou essa parte, embrulhou os frascos e colocou-os numa sacola de papel par¬do que entregou a Jason. Tudo fora feito com notável efi¬ciência.

De volta ao GHP, Jason dirigiu-se ao departamento de anatomia patológica, onde encontrou o Dr. Jackson Madsen ao microscópio. O Dr. Madsen era um homem de elevada estatura, magro, que, aos sessenta anos de idade, ainda se orgulhava de correr maratonas. Assim que viu Jason, ex-pressou-lhe seu pesar por tudo que ele havia passado com Hayes.

— Não há muitos segredos por aqui — disse Jason, um pouco aborrecido.

— Certamente não — falou Jackson. — Socialmente, o centro médico é como uma dessas cidades pequenas. Falatório que não acaba mais. — Dando com os olhos na sacola de papel pardo, acrescentou: — Você tem alguma coisa para mim?

— De certa maneira, sim — disse Jason, e passou a ex-plicar quais eram as peças para exame, acrescentando que, co¬mo o laboratório municipal ia levar duas semanas para processar as lâminas, achara que talvez isso pudesse ser feito no laboratório do GHP.

— Com todo prazer — disse Jackson, pegando a sacola. — Por falar nisso, você está interessado em ver agora os re¬sultados do caso Harring?

Jason surpreendeu-se.

— Naturalmente.

— Ruptura cardíaca. O primeiro caso que eu vi em mui-tos anos. Rompeu-se o ventrículo esquerdo. Pelo aspecto, era como se praticamente todo o coração tivesse sido atingido no infarto, e quando eu o seccionei, tive a impressão de que to-dos os vasos coronarianos estavam comprometidos. Esse ho-mem teve a pior coronariopatia que já vi em toda a minha vida.

De que valem os nossos maravilhosos exames preventi¬vos, pensou Jason. Ainda se sentia muito na defensiva para explicar a Jackson que ele, Jason, havia revisado o prontuário dos exames de Harring e que mesmo assim não conseguira encontrar nenhuma evidência de algum problema iminente no eletrocardiograma de Harring, realizado menos de um mês an¬tes da sua morte.

— Talvez seja melhor você fazer uma verificação nos seus aparelhos de eletro — disse Jackson. — É como estou lhe di¬zendo, o coração desse homem estava em mau estado. As lâ¬minas para exame deverão estar prontas amanhã, se você estiver interessado.

Saindo do departamento de anatomia patológica, Jason ficou pensando no comentário de Jackson. A idéia de um de-feito no aparelho de eletrocardiograma não tinha lhe passado pela cabeça. Mas quando chegou ao seu consultório, descartou-a. Haveria muitas maneiras de saber se o eletrocardiógrafo não estava funcionando a contento. Além do mais, dois aparelhos diferentes estavam sendo utilizados, para o eletro em repouso e para o eletro de esforço. Ao pensar no assunto, porém, lem¬brou-se de algo. Da mesma forma como acontecera com ele pró¬prio, também Hayes, ao entrar para a equipe do GHP, devia ter passado por um exame clínico completo. Todos passavam.

Depois que Claudia transmitiu por telefone seus recados, Jason pediu-lhe que verificasse se o Dr. Alvin Hayes tinha um prontuário médico, e, em caso afirmativo, que o trouxesse. Enquanto aguardava resposta, evitou Sally e dirigiu-se à ra¬diologia. Com o auxílio de uma das secretárias do departa¬mento, localizou o envelope de Alvin Hayes. Conforme esperava, o envelope continha uma radiografia de tórax, de rotina, feita seis meses antes. Olhou-a por uns momentos. De¬pois, levando-a, procurou um dos quatro radiologistas da equi¬pe. Milton Perlman, médico radiologista, vinha saindo da sala de radioscopia quando Jason se acercou dele, descreveu a morte de Hayes e os resultados da autópsia, e passou-lhe às mãos a radiografia. Milton levou-a à sua sala de trabalho, colocou-a no negatoscópio e acendeu a luz. Esquadrinhou-a atenta¬mente durante pelo menos um minuto antes de virar-se para Jason.

— Aneurisma aqui não tem não — falou ele. Nascera na Virgínia Ocidental e costumava falar como se tivesse acabado de chegar de uma fazenda.

— A aorta está normal, não tem calcificação.

— Será possível? — perguntou Jason.

— Deve ser. — Milton tornou a verificar o nome e o nú-mero da chapa. — Acho que sempre há uma possibilidade de termos trocado os nomes, mas duvido. Se esse homem mor-reu de aneurisma, então deve ter desenvolvido essa anomalia neste último mês.

— Nunca ouvi dizer que tal coisa pudesse acontecer.

— O que é que eu posso dizer? — Milton estendeu as mãos com as palmas para cima.

Jason voltou ao seu consultório, refletindo sobre o pro-blema. Um aneurisma podia dilatar-se muito rapidamente, em especial se o paciente apresentava uma combinação de doen-ça vascular e hipertensão; mas quando Jason verificou os da-dos do exame de Hayes, viu que a pressão sangüínea e as bulhas cardíacas do homem eram, como ele suspeitava, normais. Não havendo sinais de patologia vascular, Jason compreendeu que pouca coisa poderia fazer, nesse aspecto; apenas devia aguar¬dar os cortes para a microscopia. Talvez Hayes tivesse con¬traído alguma estranha doença infecciosa que teria atacado seus vasos sangüíneos, inclusive a aorta. Pela primeira vez, Jason ficou se indagando se não estariam diante dos primei¬ros casos de uma doença nova e terrível.

Tendo trocado o paletó por um jaleco branco, Jason saiu do consultório, praticamente se chocando com Sally.

—  O senhor está atrasado! — repreendeu ela.

— Alguma outra novidade? — disse Jason, dirigindo-se para a sala de exames A.

Graças a uma combinação de muito trabalho e sorte, Ja¬son colocou seu trabalho em dia. A sorte era que não houve¬ra pacientes novos que precisassem de exames extensos ou pacientes antigos com problemas novos. Lá pelas três horas, pôde até fazer uma pausa no trabalho. Alguém pedira para cancelar uma consulta.

A tarde toda, Jason não conseguiu tirar de sua mente o caso Hayes. E tendo à sua disposição algum tempo de sobra, subiu ao sexto andar. Era ali que estava localizado o labora-tório do Dr. Alvin Hayes. Jason imaginou que talvez o assis-tente de Hayes tivesse algo a dizer e pudesse esclarecer se a grande descoberta mencionada por Hayes tinha alguma base em fatos.

Assim que saiu do elevador, Jason sentiu como se esti-vesse em outro mundo. Como parte dos incentivos para que Hayes pertencesse aos quadros do GHP, sua diretoria havia construído para o cientista um laboratório novo em folha, ocu-pando uma boa parte do sexto andar.

A área perto do elevador estava mobiliada com poltro-nas de couro confortáveis, forrada com carpetes macios, e pos¬suía até mesmo uma grande estante com portas de vidro em que se alinhavam publicações atualizadas sobre biologia mo¬lecular. Adiante dessa sala de recepção havia uma sala que ser¬via de vestiário, onde os visitantes deviam colocar aventais brancos compridos e pantufas protetoras sobre os sapatos. Ja¬son experimentou a porta. Estava aberta, por isso entrou.

Jason vestiu um avental comprido e pantufas e experi-mentou a porta de dentro. Conforme imaginara, estava chaveada. Perto da porta havia o botão de uma campainha. Apertou-o e esperou. Acima do lintel acendeu-se uma peque-na luz vermelha piscante numa câmera de TV em circuito fe-chado. Quando a fechadura elétrica da porta abriu, Jason entrou.

O laboratório era dividido em duas seções principais. A primeira era construída em fórmica branca e azulejos bran¬cos, compreendendo uma grande sala central com diversas saletas de um lado. Com as luzes fluorescentes no teto, o efeito era ofuscante. A sala estava cheia de equipamentos sofistica¬dos; a maioria deles, Jason não reconheceu. Uma porta de aço fechada a chave separava a primeira seção da segunda. Numa placa perto da porta lia-se: BIOTÉRIO E INCUBADORES DE BACTÉRIAS: ENTRADA PROIBIDA.

Sentada junto a uma das extensas bancadas do laborató¬rio, na primeira seção, estava uma mulher muito loura, que Jason, em algumas ocasiões, vira na cafeteria do GHP. Ti¬nha feições bem delineadas, nariz ligeiramente aquilino, e seu cabelo estava penteado todo para trás, terminando em um co¬que. Jason viu que os olhos dela estavam vermelhos, como se ela tivesse estado a chorar.

— Com licença, eu sou o Dr. Jason Howard — disse ele, estendendo a mão. Ela apertou a mão dele. A pele dela estava fria.

— Helene Brennquivist — falou ela, com um leve sota-que escandinavo.

— Você tem uns minutos para conversar?

Helene não respondeu. Em vez disso, fechou o caderno de anotações e afastou de si uma pilha de placas de Petri.

— Eu gostaria de fazer algumas perguntas — continuou Jason. Ele viu que ela possuía uma incomum capacidade de manter uma expressão facial absolutamente neutra. Este é, ou era, o laboratório do Dr. Hayes? — perguntou Jason fazendo com a mão um gesto que abrangia o ambiente.

Ela fez que sim com um movimento de cabeça.

— E suponho que você trabalhava com o Dr. Hayes. Ela repetiu o movimento de cabea, confirmando, mas de modo menos perceptível que na primeira vez. Jason teve a sensação de que já havia induzido um estado defensivo na mulher.

—  Suponho que ouviu falar da má notícia referente ao Dr. Hayes — disse Jason.

Desta vez ela piscou, e Jason pensou estar vendo nos olhos dela a cintilação de uma lágrima.

— Eu estava com o Dr. Hayes quando ele morreu — ex¬plicou Jason, observando atentamente Helene. Não fossem os olhos úmidos, a mulher parecia estranhamente destituída de emoção, e Jason ficou a ponderar se isto não seria nela uma forma de sentir o pesar da perda. - Pouco antes de morrer, ele me falou que havia feito uma descoberta cientifica impor¬tante...

Jason deixou seu comentário incompleto no ar, esperando que houvesse alguma resposta correspondente. Não houve. He¬lene simplesmente permanecia olhando fixamente para ele.

— Então, é verdade? - disse Jason, inchnando-se para

— Eu não sabia que você tinha terminado de falar - disse Helene. — Não foi uma pergunta, você sabe.

— É verdade - admitiu Jason. — Eu estava só esperan-do que você respondesse. Espero que saiba o que o Dr. Hayes pretendia dizer.

— Lamento, mas não sei. Outras pessoas da administra¬ção já subiram até aqui para me fazer a mesma pergunta. In¬felizmente, não tenho nenhuma idéia do que o Dr. Hayes poderia estar querendo dizer.

Jason imaginou que Shirley teria conversado com Hele-ne na primeira hora de trabalho desse dia.

— Você é a única pessoa, além do Dr. Hayes, que traba¬lha neste laboratório?

— Isso mesmo — disse Helene. — Nós tínhamos uma secretária, mas o Dr. Hayes a dispensou há uns três meses. Ele achava que ela falava demais.

— Falava demais de quê?

— De tudo, de todas as coisas. O Dr. Hayes era uma pes¬soa muitíssimo reservada. Especialmente em relação ao seu trabalho.

— Compreendo — disse Jason. Sua impressão inicial, de que Hayes se tornara paranóide, parecia agora mais funda-mentada. Mas Jason insistiu: — O que é exatamente que você faz, Srta. Brennquivist?

— Eu sou biologista molecular, como o Dr. Hayes. Mas não tenho absolutamente a capacidade dele. Uso técnicas de recombinação do ADN para modificar bactérias E. coli com o objetivo de produzir diversas proteínas nas quais o Dr. Ha¬yes estava interessado.

Jason fez um gesto afirmativo como se estivesse enten-dendo. Já ouvira falar em "ADN recombinante", mas só ti¬nha uma idéia muito vaga do que isso realmente significava. Nessa área da ciência, tinha havido uma verdadeira explosão de conhecimentos desde a época em que ele passara pela Fa¬culdade de Medicina. Mas havia uma coisa da qual ele se lem¬brava muito bem: o temor de que as pesquisas sobre o ADN recombinante pudessem produzir bactérias capazes de causar doenças novas e desconhecidas. Tendo em mente a morte sú¬bita de Hayes, Jason perguntou:

—  Você deparou com alguma cepa de bactéria nova e par¬ticularmente perigosa?

—  Não — disse Helene, sem hesitação.

— Como pode ter tanta certeza?

— Por duas razões. Antes de mais nada, fui eu que realizei todo o trabalho de recombinação em bactérias, não o Dr. Hayes. Depois, nós usamos uma cepa de bactérias E. coli que não consegue se desenvolver fora de laboratório.

— Ah — disse Jason, com um movimento de cabeça, encorajando-a.

— O Dr. Hayes estava interessado em crescimento e de¬senvolvimento. Ele dedicou a maior parte do seu tempo a iso¬lar os fatores do crescimento, provenientes   do eixo hipotálamo-hipófise, responsáveis pelo aparecimento da puberdade e pelo desenvolvimento sexual. Os fatores de cresci¬mento são proteínas. Tenho certeza que você conhece isto.

— Naturalmente — disse Jason. Que interessante esta mu¬lher, pensou. No começo, a conversação com ela tinha sido uma coisa muito árdua. Agora, quando ela estava em terreno científico, era extremamente falante.

— O Dr. Hayes me dava uma proteína e eu passava a produzi-la mediante técnicas de recombinação do ADN. É o que estou fazendo agora. — Ela virou-se para as pilhas de pla-cas de Petri e, levantando uma, retirou a tampa. Estendeu uma em direção a Jason. Na superfície havia numerosas manchas esbranquiçadas de colônias bacterianas.

Helene recolocou a placa na pilha correspondente.

— O Dr. Hayes era fascinado pela ativação e desativa-ção dos genes, o equilíbrio entre repressão e expressão, e es-tudou muito o papel das proteínas repressoras e o lugar onde elas se ligam ao ADN. Usou como protótipo o gene do hor-mônio do crescimento. Você gostaria de ver o último mapa que ele fez do cromossomo 17?

— Claro — disse Jason, forçando um sorriso.

Uma campainha soou no laboratório, sobrepondo-se mo¬mentaneamente ao débil zumbido dos equipamentos eletrôni¬cos. Uma tela diante de Helene acendeu, mostrando quatro pessoas e um cão na ante-sala. Jason reconheceu duas das pes¬soas imediatamente: Shirley Montgomery e o detetive Michael Curran. As outras duas estranhas.

— Oh, meu Deus! — disse Helene, enquanto acionava eletronicamente a abertura da porta.

Jason pôs-se de pé quando os recém-chegados entraram na sala. Shirley demonstrou momentânea surpresa ao ver Jason, mas calmamente apresentou a Helene o detetive Curran. Enquanto este começou a fazer perguntas a Helene, Shirley pegou Jason pelo braço e levou-a até a sala mais próxima, que Jason percebeu deve ter sido a sala de Hayes. Cobrindo as pa¬redes, havia fotografias, numa série progressiva, em close, de genitais humanos na sua evolução anatômica através da puberdade. Todas as fotos estavam colocadas em lindas moldu¬ras em aço inoxidável.

— Que decoração interessante — comentou Jason em tom jocoso e irônico.

Shirley agiu como se nem tivesse visto as fotos. Sua fi-sionomia, habitualmente tranqüila, tinha uma expressão de preocupação e irritação.

— Este caso está fugindo ao controle.

— O que você quer dizer? — perguntou Jason.

— Parece que na noite passada a polícia recebeu um te¬lefonema anônimo dizendo que o Dr. Alvin Hayes fazia trá-fico de drogas. Vasculharam o apartamento dele e encontraram significativa quantidade de heroína, cocaína e dinheiro. Ago¬ra vieram com um mandado de busca para revistar o labora¬tório.

— Meu Deus ! — Jason de repente entendeu por que ti-nham vindo com o cão.

— E como se isso não bastasse, descobriram que ele es¬tava vivendo com uma mulher chamada Carol Donner.

— Esse nome me parece familiar — disse Jason.

— Não devia ser! — falou Shirley com severidade. — Ca¬rol Donner é bailarina de strip-tease no Club Cabaret, na zo¬na do meretrício.

— Bem, nessa eu me dei mal — gracejou Jason.

— Jason! — interrompeu bruscamente Shirley. — O as-sunto não é para rir.

— Não estou rindo — protestou ele. — Só estou pasmo.

— Se você próprio está pasmo, o que haverão de dizer os diretores? E pensar que insisti na contratação de Hayes. Só a morte do homem já foi uma coisa ruim demais. Isso lo¬go vai se tornar um pesadelo para um relações-públicas.

— O que pretende fazer? — perguntou Jason.

— Não tenho a menor idéia — admitiu Shirley. — No momento, minha intuição me diz que quanto menos agirmos, melhor.

— E o que é que pensa da suposta descoberta de Hayes?

— Eu acho que ele andava fantasiando — disse Shirley. — Quero dizer, ele estava envolvido com drogas e com uma bailarina de strip-tease, veja só!

Irritada, ela retornou à parte principal do laboratório, on-de o detetive Curran ainda conversava atentamente. Os dois outros homens e o cão davam buscas meticulosas no labora-tório. Jason ficou olhando por alguns momentos, depois pe¬diu licença para sair, pois tinha de concluir seus trabalhos no consultório. Ainda tinha que atender alguns pacientes não só no consultório como no hospital.

A caminho de casa, embora mais do que nunca agora con¬vencido de que Hayes estivera à beira de um colapso nervoso, e não em vias de realizar uma grande descoberta científica, Jason passou na biblioteca e retirou um livro, um volume fi¬no, intitulado ADN Recombinante: Uma Introdução para o Não-Cientista.

O tráfego na hora do rush era tradicionalmente crítico em Boston, e quando Jason finalmente parou o carro no es-tacionamento em frente à sua casa, sentiu o habitual alívio de ter conseguido sobreviver ileso. Levou consigo sua valise e subiu até o seu apartamento, colocando-a sobre a escrivani-nha, no pequeno escritório que dava vista para a praça. Os olmos agora sem folhas eram como esqueletos aparecendo con¬tra o céu noturno. O sistema de economia diurna de luz já se achava desligado; na rua já estava escuro, embora fossem ape¬nas 6:45. Tendo trocado de roupa e vestido um abrigo de jog¬ging, Jason iniciou uma corrida passando pela Mt. Vernon Street, cruzou pela Storrow Drive junto à ponte Arthur Fiedler e depois seguiu pela Charles Street. Prosseguiu correndo até a Boston University Bridge, de onde retornou. Diferente¬mente do que acontecia no verão, agora havia poucas pessoas praticando jogging. Na volta, parou no supermercado De Luca, onde comprou anchova fresca, ingredientes para uma salada e uma garrafa de vinho Chardonnay, da Califórnia, resfriado.

Jason gostava de cozinhar; assim, depois de tomar um banho de chuveiro, preparou o peixe, assando-o temperado com alho e azeite puro. Preparou a salada e depois tirou o vinho do congelador, onde o colocara para que o resfriamen¬to apurasse o sabor. Pôs vinho num copo. Quando tudo fi¬cou pronto numa bandeja, levou-a ao seu pequeno escritório. Assim preparado, abriu o pequeno livro na parte que tratava da recombinação do ADN e ocupou-se com essa leitura até a hora de dormir.

A primeira parte do livro fazia uma revisão do assunto. Jason sabia muito bem que o ácido desoxirribonucléico, mais conhecido como ADN, é uma molécula, com a forma seme-lhante à de um cordão, torcido em hélice, de duplo filamen¬to. É formado de subunidades, que se repetem, chamadas bases, com a propriedade de se emparelharem umas com as outras segundo um padrão muito específico. Determinadas par¬tes do ADN recebem o nome de genes, e cada gene está asso¬ciado à produção de uma proteína específica.

Jason sentiu-se mais encorajado ao tomar um gole de seu vinho. O livro estava bem escrito e fazia com que o assunto parecesse claro. Gostou de conhecer pequenas curiosidades, como, por exemplo, o fato de que cada célula humana tem quatro bilhões de pares de bases. A parte seguinte do livro tra¬tava das bactérias e demonstrava a facilidade e rapidez com que elas se reproduzem. Em questão de dias, trilhões de célu¬las idênticas podem ser produzidas a partir de uma única cé¬lula inicial. Isto tem sua importância especial na engenharia genética, pois as bactérias servem como receptores de peque¬nos fragmentos de ADN. Este ADN "estranho" é incorpora¬do ao próprio ADN da bactéria; a partir daí, quando se divide, a célula fabrica os fragmentos originais. A variedade de bac¬téria com o ADN recentemente incorporado é chamada de recombinante, e a nova molécula de ADN, de ADN recombinante. Até aí tudo bem, dava para entender.

Jason comeu um pouco do peixe e da salada, saborean¬do mais vinho. O capítulo seguinte tornou-se um tanto mais complexo. Falava de como os genes na molécula de ADN pas¬sam a produzir suas respectivas proteínas. A primeira parte envolve a produção de uma cópia de segmento do ADN com uma molécula chamada ARN mensageiro. Daí em diante, es¬te dirige a produção da proteína, um processo chamado transcrição. Jason bebeu um pouco mais de vinho. A última parte do capítulo tornava-se especialmente interessante, pois expli¬cava os delicados mecanismos que regem a ativação e a desa¬tivação dos genes.

Levantando-se da sua escrivaninha, Jason atravessou a sala e foi até a cozinha. Tendo aberto o congelador, pôs mais vinho no copo. De volta ao escritório, olhou através da vi-draça, vendo as luzes do St. Margaret's Convent, no outro lado da praça. Sempre achara divertida a idéia de que havia um convento na praça residencial mais cobiçada de Boston. Abandone o mundo material, torne-se freira e mude-se para Louisburg! Jason sorriu, depois tornou a pôr os olhos no li¬vro que tratava do ADN recombinante. Sentando-se novamen¬te, releu a parte que explicava o timing da expressão dos genes. O assunto era complicado e fascinante. Aparentemente havia sido descoberta uma série de proteínas que servem de repressores do funcionamento dos genes. Essas proteínas ligam-se ao ADN ou fazem com que este se torne espiralado, para en¬cobrir os genes envolvidos.

Jason fechou o livro. Já era o bastante para uma noite. Além disso, o capítulo sobre o controle do funcionamento dos genes era o que ele inconscientemente andava procurando. Ao ler essa parte, voltou-lhe à mente o comentário de Hayes de que o seu interesse principal era "saber de que modo os genes são ativados e desativados". Helene dissera a mesma coisa, mas com palavras diferentes.

Jason bebeu um gole de vinho e pôs-se a andar pela sala. Olhando absorto para um castiçal sobre a lareira, deixou seus pensamentos considerarem as diversas possibilidades. O que estaria Hayes querendo dizer quando dissera ter feito uma im¬portante descoberta científica? Por agora, Jason descartava a idéia de que Hayes estaria sofrendo de delírios de grandeza. Afinal de contas, era um pesquisador mundialmente conheci¬do e trabalhava intensamente. Havia, portanto, a possibili¬dade de ter falado a verdade. Se ele tinha feito alguma descoberta, esta seria na área da ativação e desativação de ge¬nes, e provavelmente era algo que tinha a ver com crescimen¬to e desenvolvimento. A imagem das fotos com os genitais turvou a mente de Jason durante um momento.

Jason foi arrancado desses pensamentos pelo som do te¬lefone. Era a enfermeira-chefe falando da unidade de trata-mento coronariano.

— Brian Lennox acabou de morrer. Teve um episódio terminal de taquicardia ventricular que avançou até a assistolia.

— Já vou indo para aí — disse Jason. Desligou o telefo-ne e pensou no jargão científico utilizado pela enfermeira, re-conhecendo nesse modo de falar sua defesa contra emoções. Mais uma vez, como nuvem agourenta, a sombra da morte pairava sobre ele.

O RADIORRELÓGIO despertador tirou Jason da cama. Ele ha¬via aumentado o volume do aparelho, temendo passar da ho¬ra por excesso de sono. Passara boa parte da noite dando assistência à esposa de Brian Lennox. Tendo recolhido o jor-nal dos degraus da frente de sua porta, foi fazer a barba e to-mar banho de chuveiro enquanto a sua máquina de café realizava o costumeiro milagre matinal. Quando Jason termi-nou de se vestir, o apartamento se encheu do aroma gostoso de café passado na hora. Com a xícara na mão, afastou-se para o quarto, tirando o Boston Globe da capa protetora de plástico transparente.

Planejava ir diretamente à seção de esportes do jornal, mas deparou com a manchete da primeira página: MÉDICO, DROGAS E BAILARINA. Não era uma reportagem elogiosa so¬bre o Dr. Alvin Hayes. Trazia em detalhes a notícia da sua morte, associando-a, de um modo parcial, faccioso, às dro¬gas encontradas no seu apartamento; chegava mesmo a com¬parar o caso amoroso entre o médico e a bailarina com o do professor Tufts, da Faculdade de Medicina, que fora con-denado pelo assassinato de uma prostituta. Na matéria do jor-nal havia também duas fotos: a de Hayes, tal como apare¬cera na capa da revista Time, e a de uma mulher entrando no Club Cabaret, com a legenda "Carol Donner entrando no seu local de trabalho". Jason tentou ver na foto como era a fisionomia de Carol Donner, mas isto foi impossível. Ela estava com uma das mãos erguida na frente, ocultando o rosto. No fundo da foto via-se um letreiro: LINDAS COLEGIAIS DE TOPLESS. Quem diria, pensou Jason, com um sor¬riso.

Leu o restante da reportagem e sentiu pena de Shirley. A polícia informava que uma quantidade de heroína e cocaí¬na fora encontrada no apartamento, localizado no South End, que Hayes ocupava juntamente com Carol Donner.

Ao chegar ao hospital, Jason viu, na visita aos leitos, que seus pacientes estavam indo mal. Matthew Cowen, que no dia anterior se submetera a cateterismo cardíaco, estava com sin¬tomas estranhos, alarmantemente parecidos com os do fale¬cido Cedric Harring: artrite, constipação intestinal e pele seca. Normalmente, nenhum desses sintomas causaria muita preo¬cupação a Jason. Mas, tendo em vista os acontecimentos re¬centes, ele se sentiu inquieto. Novamente eles lembraram a inquietante possibilidade de alguma doença infecciosa nova, desconhecida, que ele não conseguiria controlar. Teve a im-pressão de que o quadro clínico de Matthew tendia a piorar.

Depois de pedir uma consulta dermatológica para Cowen, Jason, preocupado, desceu para o seu consultório. Claudia o cumprimentou com a informação de que reunira o exames médicos executivos até a letra P.

Havia telefonado para os pacientes e descobrira que so¬mente dois deles se queixavam de problemas de saúde.

Jason pegou os prontuários e abriu-os. O primeiro era de Holly Jennings, o outro, de Paul Klinger. Ambos tinham passado pelo exame médico do último mês.

— Peça-lhes que compareçam aqui assim que puderem, mas sem alarmá-los.

— Será difícil não deixá-los preocupados. Que devo dizer?

— Diga-lhes que queremos repetir alguns exames. Use a sua imaginação.

Mais tarde, Jason decidiu tentar obter mais algumas in-formações sobre Hayes junto à assistente de laboratório des¬te; mas quando viu Helene, compreendeu que ela não estava inclinada a conversar.

—  A polícia encontrou algo? — perguntou Jason, já sa-bendo que a resposta era não. Depois que a polícia fora em-bora,   Shirley  lhe  telefonara  e  lhe  contara  sobre  isso, dizendo-lhe: "Meu Deus, que alívio!"

Helene sacudiu a cabeça.

— Sei que está ocupada — disse Jason —, mas será que podia me conceder um minuto? Eu gostaria de lhe fazer mais algumas perguntas.

Afinal, ela interrompeu o trabalho e voltou-se para ele.

—  Obrigado — disse ele, e sorriu. A fisionomia dela não mudou. Não era antipática, apenas neutra. — Detesto voltar ao assunto — disse Jason —, mas continuo pensando sobre o que o Dr. Hayes falou, a respeito de uma descoberta im¬portante. Você tem certeza de que não tem nenhuma idéia do que poderia ser isso? Seria trágico se uma descoberta médica real viesse a se perder.

— Eu já lhe disse tudo que sabia — respondeu Helene.

— Eu poderia lhe mostrar o último mapa que ele fez do cro¬mossomo 17. Isso ajudaria em algo?

— Vamos ver.

Helene foi adiante, conduzindo-o até a sala de trabalho de Hayes. Ignorou as fotos que cobriam as paredes, mas Ja-son não pôde deixar de prestar atenção nelas. E imaginava que tipo de homem poderia trabalhar num tal ambiente. Helene apresentou uma grande folha de papel, toda ela escrita em le¬tra miúda, descrevendo a seqüência dos pares de bases da mo¬lécula de ADN que abrangiam uma parte do cromossomo 17. Havia um número impressionante de pares de bases: centenas e centenas de milhares.

—  A área do Dr. Hayes é esta. — Ela apontou para uma grande seção onde os pares estavam impressos em vermelho.

— Estes são os genes relacionados ao hormônio do crescimen¬to. É muito complexo.

—  Nisso você tem razão — disse Jason. Ele sabia que teria de ler muito mais para poder entender aquilo. — Há al-guma possibilidade de que este mapeamento possa ter levado a uma descoberta científica importante?

Helene pensou uns momentos, depois balançou negati-vamente a cabeça.

— Essa técnica é conhecida há algum tempo.

— E o que tem a dizer sobre câncer? — perguntou Ja-son, dando um tom de conjectura à sua idéia. — O Dr. Hayes poderia ter descoberto algo sobre câncer?

— Nós absolutamente não trabalhávamos com câncer — disse Helene.

— Mas se ele estava interessado em divisão e maturação celular, é possível que tivesse descoberto algo a respeito de cân¬cer. Especialmente com o interesse que ele tinha em ativação e desativação dos genes.

— Suponho que seja possível — disse Helene, sem con¬vicção.

Jason teve certeza de que Helene não estava ajudando tan¬to quanto poderia. Como assistente de Hayes, ela devia ter uma idéia bem mais completa do trabalho de Hayes. Mas não havia maneira de Jason forçá-la a falar sobre o assunto.

— E que tal os livros de registro de laboratório do Dr. Hayes?

Helene voltou ao seu lugar na bancada. Abrindo a segunda gaveta da mesa, tirou de dentro um livro de registro.

— O que eu tenho é só isto — disse ela, e passou-o às mãos de Jason.

Três quartas partes do livro estavam preenchidas. Jason pôde ver que era apenas um livro de dados, sem os registros das experiências; sem tais registros, os dados careciam de sig¬nificado.

— Não há outros livros de registro do laboratório?

— Havia alguns — admitiu Helene —, mas o Dr. Hayes levava-os consigo, especialmente nestes últimos três meses. Em geral ele guardava tudo na cabeça. Tinha uma memória fabu¬losa, especialmente para números... — Por um breve instante Jason viu um brilho nos olhos de Helene e pensou que ela po¬dia abrir-se mais, mas tal esperança logo se desvaneceu.

Ela novamente se retraiu em silêncio. Retomou o livro das mãos de Jason e recolocou-o na gaveta.

— Deixe que eu lhe faça mais uma pergunta — falou Ja¬son, procurando achar as palavras certas. — Até onde você pôde saber, o Dr. Hayes estava tendo um comportamento nor-mal nestas últimas semanas? Ele parecia estar angustiado e ex¬tremamente cansado quando o vi. — Jason deliberadamente exagerou um pouco na descrição do estado de Hayes.

— Para mim, ele parecia estar normal — disse Helene, sem emoção.

Droga!, pensou Jason. Agora tinha certeza de que Hele-ne não estava sendo sincera com ele. Infelizmente nada podia fazer quanto a isso. Agradecendo e pedindo licença, retirou-se do laboratório de Hayes. Desceu pelo elevador, evitando ser visto por Sally, cruzou em direção ao edifício principal e subiu para o departamento de patologia.

Encontrou Jackson Madsen no laboratório de química, onde havia um problema com um dos aparelhos automáticos. Estavam ali dois representantes da empresa fabricante, e Jack¬son sentiu-se contente por poder voltar à sua sala de traba¬lho, junto com Jason, para mostrar-lhe as lâminas do coração de Hayes.

— Espere um momento até ver isto — disse ele, enquan¬to colocava uma lâmina no microscópio.

Jackson aproximou os olhos das oculares e, com o polegar e o indicador, ajustou habilmente a posição da lâmina, deixando que Jason olhasse ao microscópio.

— Vê essa artéria? — perguntou ele. Jason disse que sim. — A luz da artéria está quase totalmente obstruída. É um dos piores casos de aterosclerose que já vi. Essa massa rosada pa¬rece substância amilóide. É surpreendente, ainda mais se vo¬cê diz que o eletrocardiograma do homem estava normal. Mas deixe que eu lhe mostre mais uma coisa. — Jackson colocou no microscópio uma outra lâmina. — Veja agora.

Jason olhou novamente ao microscópio.

— Que é que eu devo ver?

— Observe como os núcleos estão edemaciados — disse Jackson. — E o material cor-de-rosa. Isso é amilóide, com certeza.

— O que significa isso?

— É como se o coração desse paciente estivesse sitiado. Observe as células inflamatórias.

Desacostumado de praticar microscopia com cortes histológicos, Jason não havia percebido tais células inicialmen¬te, mas agora elas lhe apareciam com toda a nitidez.

— O que acha disso? — perguntou ele.

— Não tenho certeza. Que idade você disse que esse ho¬mem tinha?

— Cinqüenta e seis — disse Jason, levantando-se. — Há alguma possibilidade, segundo a sua avaliação, de estarmos diante de alguma doença infecciosa nova?

Jackson pensou alguns momentos, depois sacudiu nega¬tivamente a cabeça.

— Acredito que não haja inflamação suficiente para is-so. Parece mais doença metabólica, mas é só o que posso di-zer. Ah, mas uma coisa — acrescentou ele, colocando no microscópio outra lâmina. Enquanto focalizava, falou: — is¬to aqui faz parte do núcleo rubro do cérebro. Diga-me, o que vê? — Recuou para deixar Jason olhar.

Jason olhou novamente ao microscópio. Identificou um neurônio. Dentro do neurônio havia um núcleo volumoso e também uma área granulosa corada de preto. Descreveu a Jackson o que estava vendo.

— Isto é lipofuscina — disse Jackson. Retirou o slide. Jason levantou-se.

— O que significa tudo isso?

— É o que eu desejaria saber — disse Jackson. — Tudo inespecífico, mas certamente uma indicação de que esse seu Sr. Harring estava mesmo mal de saúde. Essas lâminas pode¬riam ser do meu avô.

— Essa é a segunda vez que ouço dizerem algo parecido — disse Jason lentamente. — Você não pode me dar algo mais específico?

— Infelizmente não — disse Jackson. Gostaria de poder cooperar mais. Vou fazer alguns exames para me certificar de que esses depósitos no coração e em outros órgãos são real-mente substância amilóide. Darei notícias a você.

— Obrigado — disse Jason. — E o que me diz das lâmi¬nas de Hayes?

— Ainda não estão prontas — disse Jackson.

Jason voltou ao segundo andar e encaminhou-se para a área do ambulatório. Como médico, ele sempre se fazia per-guntas quanto à eficácia de certos exames, procedimentos e medicamentos. Mas, de um modo geral, nunca tivera moti¬vos para pôr em dúvida sua própria competência. Na realida¬de, na maioria das situações se considerava eficiente acima da média. Agora, porém, não tinha certeza disso. Essas dúvidas causaram-lhe certa perturbação, especialmente porque, desde a morte de Danielle, vinha se utilizando do trabalho como principal esteio de sua individualidade.

— Onde o senhor esteve? — perguntou Sally, aproxi-mando-se de Jason quando este procurava entrar no consul-tório sem ser notado. Em poucos instantes já sobrecarregava Jason com uma infinidade de pequenos problemas que feliz-mente absorveram a atenção do médico. Quando pôde respi-rar um tanto mais aliviado, passava um pouco do meio-dia. Atendeu o seu último paciente da agenda, que precisava de orientação clínica e injeções para uma viagem à Índia, depois ficou livre.

Claudia procurou convencê-lo a ir fazer um lanche junto com ela e outras secretárias, mas Jason declinou do convite. Retirou-se para seu consultório e ali permaneceu, pensativo. Para ele o pior era o sentimento de frustração. Sentia que ha-via algo de terrivelmente errado, mas não sabia o que era, nem o que haveria de fazer. Foi tomado de um sentimento de soli¬dão.

— Droga! — disse Jason, batendo com a palma da mão no tampo da escrivaninha com força suficiente para fazer voar folhas de papel soltas. Precisava evitar cair em depressão. Ti-nha de fazer alguma coisa. Trocando o jaleco branco pelo pa-letó, apanhou o beeper e desceu até o seu carro. Saiu dirigindo, contornou Fenway, passou em frente ao Gardner Museum e ao Museum of Fine Arts, à direita. Então, rumando para o sul, na Storrow Drive, saiu em Arlington. Seu destino era a Central de Polícia de Boston.

Na Central de Polícia, um policial conduziu-o ao quinto andar. Assim que saiu do elevador, viu o detetive vindo pelo saguão daquele andar, equilibrando na mão uma caneca de café bem cheia. Curran estava sem paletó, trazia a camisa desabotoada junto ao colarinho e a gravata afrouxada. Sob seu braço esquerdo pendia um coldre de couro gasto. Quando viu Jason, pareceu ficar perplexo, até que o médico o lembrou de que haviam se encontrado no necrotério e no GHP.

— Ah, sim — disse Curran, com seu leve acento irlan-dês. — O caso Alvin Hayes.

Convidou Jason a entrar na sua sala, que tinha apenas o essencial e utilitário, mobiliada com escrivaninha metálica e um arquivo de aço. Na parede havia um calendário com a programação de basquetebol do Celtics.

— Que tal um cafezinho? — sugeriu Curran, colocando sua caneca sobre a mesa.

— Não, obrigado — disse Jason.

— O senhor é esperto — disse Curran. — Todo mundo se queixa do café que servem nas repartições públicas, mas este aqui é letal. — Puxou uma cadeira metálica de perto da parede e fez um sinal para que Jason sentasse. — Então, que posso fazer pelo senhor, doutor?

— Não sei bem ao certo. Esse caso do Hayes me preocu¬pa. Lembra-se de que eu lhe contei que o Dr. Hayes acredita¬va ter feito uma importante descoberta? Pois bem, agora eu penso que há boas possibilidades de que ele estivesse certo. Afinal, o homem era um pesquisador mundialmente famoso, e trabalhava numa área de grandes potencialidades.

— Mas, um momento. O senhor também não me disse que achava que Hayes estava tendo um colapso nervoso?

— Na ocasião em que o vi, ele apresentava um compor¬tamento inadequado — disse Jason. — Achei que estava paranóide e delirante. Agora, não tenho certeza. E se ele realmente fez uma importante descoberta e não a revelou por¬que ainda pretendia aperfeiçoá-la? Alguém pode ter ficado sa¬bendo, e, por algum motivo, tentado impedi-lo.

— Mandando matá-lo — interrompeu Curran, de modo indulgente. — Doutor, o senhor esqueceu um fato importan¬te: Hayes morreu de causas naturais. Não houve crime, não houve ferimentos por arma de fogo na cabeça, não houve fa-cada pelas costas. E, acima de tudo, ele estava traficando dro-gas.   Encontramos   heroína,   cocaína  e  dinheiro  no  seu apartamento em South End. Não é de admirar que ele esti-vesse paranóide. O mundo das drogas é barra-pesada.

— E esse telefonema anônimo, não é um tanto estranho? — indagou Jason, com súbita curiosidade.

— Acontece toda hora. O cara faz uma sujeira, os ou-tros logo nos telefonam e o entregam para se desforrarem.

Jason olhou atentamente para o detetive. Considerou que a conexão com drogas não se encaixava no caso, mas não sa¬bia dizer por quê. Aí se lembrou de que Hayes estivera morando com uma bailarina de cabaré. Talvez, afinal de contas, tal conexão não fosse tão improvável assim.

Como se estivesse lendo os pensamentos de Jason, Cur¬ran falou:

— Escute, doutor, fico satisfeito por ter vindo até aqui, mas fatos são fatos. Não sei se esse sujeito fez uma descober-ta ou não, mas deixe-me dizer uma coisa. Se ele andava trafi-cando drogas, então também as tomava. Isso é o que se vê sempre. Eu pedi que o departamento de narcóticos checasse o nome dele nos computadores. Não encontraram nada, mas isso significa apenas que ele ainda não tinha sido apanhado. Sorte dele, morrer de causas naturais. De qualquer modo, o departamento de homicídios não pode perder tempo com es¬sa morte. Não há como justificar isso.

— Mesmo assim, penso que há mais coisa aí. Curran sacudiu a cabeça, com descrença.

— O Dr. Hayes tentou contar-me alguma coisa — insis-tiu Jason. — Acho que ele queria ajuda.

— Claro — falou Jason. — Provavelmente estava ten-tando atraí-lo para o seu círculo de drogas. Escute, doutor, siga o meu conselho. Esqueça esse assunto. — Levantou-se, indicando que a conversa estava terminada.

Descendo para a rua, Jason retirou o talão de estaciona¬mento do limpador do pára-brisa do seu carro. Sentando-se junto ao volante, pensou na sua conversa com o detetive. Cur¬ran havia sido cordial, mas evidentemente dera pouco crédito às suas idéias e intuições. Dando partida no carro, lembrou-se de algo mais que Hayes dissera em relação à sua descober¬ta. Tinha dito que era irônica. Ora, essa era uma forma es¬quisita de caracterizar uma importante descoberta científica, especialmente se alguém estivesse inventando uma história.

De volta ao GHP, Jason retomou a visita aos seus pa-cientes, indo de quarto em quarto, escutando, apalpando, de-monstrando atenção, dando orientação. Era disso que ele gostava na medicina. As pessoas se abriam para ele, no senti-do literal e figurado. Sentia-se necessário e privilegiado. A confiança retornou-lhe, em parte.

Eram quase quatro da tarde quando se aproximou da sa¬la C de exames e pegou o respectivo prontuário. Lembrava-se do nome. Era Paul Klinger, o homem cujo exame médico ele realizara. Antes de entrar no quarto, Jason revisou rapidamente os dados constantes do prontuário. O paciente parecia ser sa¬dio, com nível baixo de colesterol e triglicerídios, e eletrocardiograma normal. Jason entrou no quarto.

Klinger era um homem esbelto, com os cabelos ruivos alourados e a tranqüila atitude de segurança de um velho ian-que endinheirado.

— O que houve de errado com os meus exames? — per¬guntou ele preocupado.

— Nada, realmente.

— Mas a sua secretária me disse que o senhor queria re¬petir alguns deles. Que eu tinha de vir hoje.

— Desculpe, quanto a isso. Não havia necessidade de alarmar. Quando ela soube que o senhor não estava passan-do bem, pensou que era melhor darmos uma olhada.

— Estou saindo de uma gripe, é só o que eu tenho — disse Paul. — As crianças trouxeram a gripe do colégio pa¬ra casa. Agora estou bem melhor. O único problema é que a gripe me impediu de praticar exercícios durante uma se¬mana.

Gripe não era coisa que assustasse Jason. Pessoas sadias não morrem de gripe. Mesmo assim, examinou meticulosa¬mente Paul Klinger e repetiu várias provas cardíacas. Por fim, disse a Klinger que telefonaria se os exames de sangue reve¬lassem alguma anormalidade.

Tendo atendido mais dois pacientes, chegou a vez de Holly Jennings, 54 anos, executiva de uma das maiores empresas de publicidade de Boston. Ela não se sentia feliz e certamente não demonstrava muita timidez para expressar seus sentimentos. E embora houvesse letreiros proibindo expressamente o fu¬mo, ela permanecera fumando enquanto esperava.

— Mas, então, o que é que está acontecendo? — pergun¬tou ela com jeito autoritário assim que Jason entrou na sala. Seu exame médico, feito um mês antes, tinha dado resultados bons, embora Jason lhe tivesse recomendado abandonar o fu¬mo e perder os nove a treze quilos de peso que ela adquirira nos últimos cinco anos.

— Fiquei sabendo que a senhora não andou se sentindo

bem — disse Jason, com delicadeza. Notou que a paciente pa¬recia cansada e tinha olheiras.

— Só isso? — perguntou ela com impaciência. — A se-cretária me disse que o senhor queria repetir alguns exames. O que deu errado neles?

— Nada. Só queríamos fazer um acompanhamento. Conte-me como vai a sua saúde.

— Oh, meu Deus! Quer dizer que o senhor me faz vir até aqui, deixando-me tremendamente assustada, fazendo-me perder duas reuniões importantes, só para ter uma conversa? Isso não podia ser feito por telefone?

— Bom, já que a senhora está aqui, por que não me conta como vem se sentindo?

— Cansada.

— Alguma coisa mais?

— Apenas sono e preguiça, geralmente. Não tenho con¬seguido dormir. Tenho pouco apetite. Nada específico... bem, não é verdade. Meus olhos têm me incomodado. Tenho tido necessidade de usar óculos escuros, muitas vezes, até mesmo no escritório.

— Isso é tudo? — perguntou Jason, sentindo uma desa-gradável ponta de medo.

Holly fez um gesto de desalento.

— Por alguma razão infeliz, meu cabelo está se tornan-do mais fino.

Com todo o tato possível, Jason examinou a mulher. A freqüência do pulso e a pressão sangüínea estavam elevadas, se bem que isso pudesse dever-se a estresse. A pele estava se¬ca, especialmente nas extremidades. Quando Jason repetiu o eletrocardiograma, achou que poderia estar havendo algumas alterações muito discretas de ST, sugestivas de redução da oxigenação cardíaca. Ao sugerir à paciente uma outra prova de esforço, ela recusou.

— Posso vir num outro dia para isso?

— Eu preferiria que fosse agora — disse Jason. — Na verdade, o que acha de permanecer no hospital por alguns dias?

— O senhor está brincando? Eu não tenho tempo. Além do mais, não me sinto tão mal assim. Aliás, por que está su-gerindo isso?

— Só para ter certeza de que nada foi deixado de lado. Gostaria que tivesse consulta com um cardiologista e também com um oftalmologista.

— Na próxima semana. Segunda ou terça-feira. Porque tenho uns prazos que não posso prorrogar.

Com relutância, Jason deixou que Holly fosse embora, depois de colher uma amostra de seu sangue. Não havia ma-neira de poder obrigá-la a permanecer no hospital, até por¬que não tinha nada específico para convencê-la de que esta¬va com problemas. Ele tinha uma sensação: uma sensação ruim.

 

Seguindo a rotina usual depois de voltar para casa, Jason fez o seu jogging, parou no supermercado De Luca, onde com¬prou frango Perdue, pôs a refeição no forno, tomou banho e encaminhou-se para o quarto levando uma cerveja bem ge¬lada. Pondo-se à vontade, continuou a leitura sobre o ADN. Começou a compreender de que modo Hayes conseguia iso¬lar genes específicos. Isso provavelmente era o que Helene Brennquivist estivera fazendo naquela manhã. Depois de se encontrar uma colônia de bactérias adequada, estas eram co¬locadas em cultura até se reproduzirem aos trilhões. A seguir, empregando-se enzimas, o ADN das bactérias era separado, fragmentado, tornando-se então possível isolar e purificar o gene desejado. Mais tarde, esse gene podia ser introduzido no¬vamente, em diferentes bactérias, nas regiões do ADN que po¬diam ser "ligadas" ou ativadas pelo pesquisador. Dessa forma, as cepas de bactérias recombinantes atuavam como fábricas em miniatura capazes de produzir a proteína para a qual ti¬nham o código. Fora este o método que o Dr. Hayes usara para produzir o seu hormônio do crescimento humano. Ti¬nha começado com um fragmento de ADN humano, o gene que produzia o hormônio do crescimento, reproduzira-o clonalmente com auxílio de bactérias, depois introduzira-o no ADN de bactérias numa área controlada por um gene respon¬sável pela digestão da lactose. Acrescentando-se lactose à cul¬tura, as bactérias da cepa recombinante de Hayes tinham sido "ligadas" ou ativadas para produzir o hormônio do cresci¬mento humano.

Jason terminou de beber sua cerveja, foi à cozinha e abriu mais uma. Estava muito impressionado com o que acabara de ler. Não era de admirar que cientistas como Hayes fossem pessoas esquisitas. Sabiam que tinham o poder de manipular a vida. A apreensão desse aspecto empolgou Jason e, ao mes¬mo tempo, causou-lhe certa compreensão. A tecnologia do ADN tinha uma incrível possibilidade de fazer o bem ou o mal. O rumo a partir daí, pensou ele, era uma questão de cara ou coroa.

Munido dessa informação, Jason sentiu-se ainda mais in¬clinado a acreditar que Hayes, embora sob condições de es-tresse generalizado, havia dito a verdade — pelo menos quanto à descoberta científica. Jason não tinha muita certeza quanto à afirmação de Hayes de que alguém desejava matá-lo. Sen¬tiu vontade de ter passado mais tempo em companhia do cien¬tista nos últimos meses de sua vida. Desejou saber mais a seu respeito.

Abrindo o forno, Jason verificou como estava indo o pre¬paro do frango; a carne começava a adquirir uma bela cor dou¬rada e parecia deliciosa. Colocou água para ferver a fim de cozinhar o arroz, depois voltou ao escritório. Levantou as per-nas, colocando os pés sobre o tampo da escrivaninha, e incli-nou para trás a cadeira. E começou a ler o capítulo seguinte, relacionado a técnicas de laboratório de engenharia genética. A primeira parte tratava dos métodos pelos quais as molécu-las de ADN eram fragmentadas com enzimas chamadas endonucleases de restrição. Jason teve de ler esta parte várias vezes. A matéria era difícil.

O apito estridente do detector de fumaça fez Jason acor¬dar sobressaltado. Num pulo abandonou a escrivaninha, so¬bre a qual adormecera, e dirigiu-se apressadamente à cozinha. A água para o arroz tinha se evaporado completamente, e o revestimento de teflon estava provocando fumaça, enchendo a cozinha com vapores acres. Jason colocou rapidamente sob água corrente a panela, que respingou água e deu um chiado. Ligou o exaustor e abriu uma das janelas da sala de estar; len¬tamente a cozinha ficou livre da fumaça, e por fim o detector de fumaça voltou ao silêncio. Jason sentiu-se contente com o fato de o proprietário estar fora da cidade, como de hábito.

Quando, por fim, o jantar ficou pronto, sem arroz, Jason levou-o até sua escrivaninha, colocando para um lado os jornais e os livros. Ao começar a comer, viu-se de repente olhando a primeira página do jornal Boston Globe com a man-chete ''Médico, Drogas e Bailarina", estampada na primeira página. Pegando o jornal com a mão esquerda, olhou nova-mente para a foto de Carol Donner. A idéia de que Hayes po-dia ter vivido com essa mulher deixou-o confuso. Imaginou que Hayes talvez tivesse sido presa da velha fantasia masculi-na de redimir a prostituta que, a despeito do seu trabalho, tem um coração de ouro. Considerando que Hayes era colega e com antecedentes e origens parecidos com os seus, inclusive a mesma Faculdade de Medicina, Jason achou inverossímil a hipótese de o colega se encaixar nesse clichê. Mas, como ha-via dito Curran, fatos são fatos. Obviamente, Hayes tinha vi-vido com essa mulher. Jason atirou o jornal para o lado.

Depois de ler o que pôde com referência a pele seca, o que não era muito, Jason levou para a cozinha os pratos su¬jos e lavou-os. A imagem de Carol Donner com a mão na frente do rosto não lhe saía da mente. Olhou o relógio. Eram dez e meia da noite.

— Por que não? — disse ele em voz alta. Afinal, se Ha-yes vivera com essa mulher, talvez ela soubesse algo que pu-desse lhe dar uma pista sobre a descoberta feita por ele.

De qualquer modo, não tinha nada a perder. Tendo ves-tido uma suéter e um paletó de tweed, Jason saiu do aparta-mento.

Desde Beacon Hill até a zona do meretrício eram apenas quinze minutos a pé. Mas eram quinze minutos que significa¬vam para Jason uma distância social enorme. Beacon Hill era a síntese da prosperidade e da propriedade confortável, com suas ruas calçadas de pedras antigas e seus lampiões de rua. A zona do meretrício era o contrário. Para chegar lá, Jason contornou o Boston Common e, passando pela Boylston Street, chegou à Washington Street, com sua fileira de casas notur¬nas. Havia transeuntes perambulando e se misturando confusamente com grupos de estudantes ruidosos e operários de Dorchester, vestidos com jaquetas de couro. O Club Cabaret ficava no meio do quarteirão, entre um cinema pornô e uma loja de artigos eróticos que expunha em suas vitrines uma sé¬rie de artigos com fins supostamente sexuais. Luzes fluores¬centes destacavam o letreiro LINDAS COLEGIAIS DE TOPLESS.

Jason aproximou-se da porta e entrou. O bar consistia em um salão comprido e escuro, iluminado no centro para des¬tacar a pista de dança, que era de madeira. O bar propriamente possuía a forma de U e circundava a pista. Dos lados havia pequenas divisões com mesas e assentos estofados. Música de rock martelava o salão, despejada de grandes alto-falantes co¬locados dos lados de uma escadaria que dava do andar de ci¬ma para a pista de dança.

O ar estava empestado de fumaça de cigarro e desse chei¬ro característico de produtos químicos usados como desodorizantes baratos. O lugar se achava quase todo tomado por homens debruçados sobre seus copos de bebida no bar. Era difícil enxergar o que havia nos recantos laterais, mas, ao pas¬sar, Jason pôde divisar numerosas mulheres com minivestidos decotados. Encontrou um assento livre no bar. Uma garçonete, usando uma blusa branca e short preto apertado, veio atendê-lo quase de imediato.

Quando ele pegou a cerveja e um copo, uma dançarina seminua desceu pela escada e entrou rebolando na pista de dan¬ça. Jason olhou para ela, atraindo-lhe o olhar por uns instan¬tes. Ela parecia entediada, com o rosto pesadamente maquiado, e seus cabelos de loura artificial tinham a consistência de pa¬lha. Jason imaginou que ela devia ter mais de trinta anos de idade, certamente não era nenhuma colegial.

Prestando atenção ao ambiente, Jason notou a mesma expressão de tédio no rosto dos homens enquanto eles reflexamente acompanhavam com os olhos os movimentos da dan¬çarina indo e vindo na pista de dança. Jason tomou uns goles de cerveja diretamente da garrafa. Naquele lugar, ninguém con¬seguia reunir coragem para pôr a boca num copo.

Quando a música de rock terminou, a dançarina agiu co¬mo se estivesse tendo uma dificuldade momentânea. De um modo contrafeito, constrangido, ficou mudando de um pé para outro, em cima dos sapatos de salto alto de dez centímetros, enquanto aguardava o número seguinte. Jason notou na sua coxa direita um coração tatuado.

Anunciado com ruidoso rufar de tambores, começou o número seguinte, e a loura imediatamente reiniciou seus mo-vimentos. Enquanto se movia, foi tirando o minúsculo sutiã. Só tinha sobre o corpo um cordão e os sapatos. Mesmo as¬sim, os homens que bebiam no bar pareciam ter a indiferença das pedras. Os únicos movimentos que faziam eram aqueles necessários para levar os copos ou os cigarros aos lábios. Pe-lo menos até que a dançarina começasse a circular pela pista. Aí alguns lhe estendiam cédulas de dinheiro.

Jason ficou observando um pouco, depois perscrutou no¬vamente o salão. A uns dez metros de distância havia uma mesa ocupada por um homem de terno preto, com um charuto na boca e óculos escuros, lendo atentamente um livro razão. Ja¬son não pôde entender como esse homem conseguia enxergar algo, mas concluiu que era o gerente. Diversos sujeitos musculosos, parecendo halterofilistas, com pescoços de 45 centí¬metros de perímetro, usando camisetas brancas, mantinham-se de pé, de ambos os lados da mesa do gerente, com os braços musculosos cruzados e as cabeças constantemente se moven¬do para os lados, para vigiar o salão.

Assim que a música terminou, a strip-teaser apanhou suas coisas e, correndo, subiu os degraus da escada. Houve aplau¬sos esparsos. Quando a música iniciou novamente, uma nova dançarina desceu pela escada e rodopiou pela pista. Vestida em roupas de cigana, vistosas e volumosas, podia ser a irmã da primeira dançarina — a irmã mais velha, certamente.

Logo Jason entendeu como era o programa. Uma garota aparecia com roupagens exóticas, dançava e progressivamen¬te ia tirando suas roupas à medida que o número prosseguia. Passaram-se 45 minutos, e Jason se perguntava se Carol Donner estaria programada para aparecer nessa noite. Perguntou a uma das garçonetes.

— Ela deve ser a próxima. O senhor quer mais alguma bebida?

Jason sacudiu a cabeça negativamente. Decidira ficar com a sua primeira cerveja durante todo o tempo que permaneces¬se ali. Olhando em torno, notou que várias dançarinas haviam descido de volta ao andar térreo. Paravam junto ao homem de óculos escuros, conversavam com ele e depois circulavam pelo salão, conversando com os fregueses. Jason tentou ima¬ginar o famoso biologista molecular ali no bar. Por mais que se esforçasse, não conseguiu imaginar tal cena.

Houve uma pausa na música, as luzes da pista de dança di¬minuíram. O sistema de som entrou no ar, pela primeira vez, pa¬ra anunciar a artista a seguir: a famosa Carol Donner. Os entediados fregueses escorados no bar de repente pareceram acordar. Houve alguns assobios de animação. A música mudou para um rock mais suave e uma figura apareceu na pista. Quando as luzes aumentaram de intensidade, Jason ficou atônito. Para sua sur¬presa, Carol Donner era uma mulher jovem e linda. Sua pele ti¬nha um brilho sadio e seus olhos cintilavam. Estava vestida com um collant, usava testeira e polainas de malha, como se estivesse numa aula de ginástica. Tinha os pés descalços. Movimentava-se pela pista com graça e naturalidade, e Jason notou que o seu sorriso evidenciava um sentimento de genuína satisfação.

À medida que prosseguia com seu número, ela removeu as polainas, tirou uma faixa de seda que trazia em torno da cintura, e depois o collant. A fascinada platéia realmente vi¬brou quando ela, de topless, subiu os degraus da escada. As¬sim que ela desapareceu, os fregueses recaíram no torpor de antes. Jason ficou esperando Carol Donner aparecer no an¬dar térreo do salão, junto com as outras garotas, mas, depois de vinte minutos de espera, concluiu que ela certamente não desceria. Deixou a banqueta que ocupava e encaminhou-se na direção do homem de óculos escuros. Um dos atletas notou sua aproximação e descruzou os braços.

— Com licença — disse Jason ao homem com o livro. — Seria possível conversar com Carol Donner?

O homem tirou o charuto da boca.

— Mas quem é você? — Jason sentia relutância em di-zer o seu nome verdadeiro, e, enquanto hesitava, o homem de óculos escuros fez um gesto a um dos guarda-costas. Ja¬son sentiu mãos enormes agarrarem seu braço e levarem-no em direção à porta.

— Eu só quero... — Mas não conseguiu mais nada. Foi agarrado pelo paletó e levado às pressas ao longo do bar e pe¬la escuridão do ambiente, com os pés mal tocando o chão. Bastante humilhado, viu-se posto à força na rua.

TENDO SIDO DESPERTADO pelo radiorrelógio, Jason teve de permanecer sob o chuveiro vários minutos para se sentir em condições de enfrentar o dia. Na noite anterior, depois de re¬tornar da desagradável visita ao Club Cabaret, fora chamado ao hospital. Um dos seus pacientes, portador de AIDS, cha-mado Harvey Rachman, sofrera uma parada cardíaca. Quando Jason chegara, a equipe já estava tentando ressuscitação cardiopulmonar havia quinze minutos. Mantiveram esse esforço durante duas horas, até que se viram forçados a desistir e con¬siderar o paciente morto. O comentário da enfermeira-chefe, de que pelo menos ele deixaria de sofrer, não serviu de gran¬de consolo para Jason, já estressado. Parecia-lhe que a morte estava vencendo a competição.

O único lado positivo das suas visitas aos pacientes inter¬nados, na parte final da manhã desse dia, foi a alta que deu a um dos seus casos de hepatite. Ver a moça ir embora foi uma tristeza para Jason. Porque ele agora só tinha uma única paciente com quadro favorável.

Na unidade de tratamento coronariano, Matthew Cowen não estava nada melhor. Além das suas queixas, agora apre-sentava também problemas de visão. Esse sintoma deixou Ja-son preocupado. Harring e Lennox também haviam apre-sentado problemas de visão semanas antes de morrerem, e de novo passou pela mente de Jason a possibilidade de alguma doença multissistêmica nova. Pediu uma consulta oftalmológica. Terminada a visita aos leitos, dirigiu-se ao departamen¬to de anatomia patológica para ver se as lâminas de autópsia de Hayes estavam prontas. Talvez elas ajudassem a explicar por que tantas pessoas aparentemente sadias estavam tendo acidentes cardiovasculares.

Teve de esperar enquanto Jackson dava por telefone o resultado de uma lâmina à sala de cirurgia. Era uma biópsia de mama, o resultado era positivo.

— Isso sempre me faz mal — disse Jackson, pondo o te¬lefone no gancho. Depois, numa voz mais alegre, acrescen-tou: — Aposto como você vai querer ver as lâminas de Hayes.

Procurou em cima de sua escrivaninha até que encon-trou o envelope certo. Abrindo-o, retirou dele uma lâmina com corte histológico e focalizou-a no microscópio para Ja¬son.

— Procure ver isto. É a aorta de Alvin Hayes — expli-cou Jackson, enquanto Jason examinava a lâmina ao micros-cópio. A morte celular e a desorganização do tecido eram evidentes até mesmo para um observador menos experiente. — Não é de admirar que tenha se rompido — continuou Jack-son. — Uma deterioração assim eu nunca tinha visto numa pessoa com menos de setenta anos, a não ser nos casos de doen¬ça aórtica estabelecida. Mas deixe que eu lhe mostre uma ou¬tra coisa. — Substituiu a lâmina por uma outra. — Isto aqui é do coração de Hayes. Observe a artéria coronária. Está pa¬recida com a de Cedric Harring. Todas as artérias coronárias apresentam oclusão quase total. Se a aorta de Hayes não ti¬vesse se rompido, ele teria morrido de infarto. O homem era uma bomba-relógio ambulante. E não somente isto, ele apre¬sentava igualmente inflamação na tireóide, também como no caso de Harring. De fato, havia tantos aspectos paralelos, que eu voltei a examinar a aorta de Harring. E sabe o que desco¬bri? A aorta de Harring estava a ponto de se romper.

— O que é que você quer dizer exatamente com isso? — perguntou Jason.

Jackson estendeu as mãos.

— Não sei. Existem enormes semelhanças entre os dois casos. A inflamação generalizada. Mas não acho que seja de origem infecciosa. Tem mais a aparência de auto-imunidade, como se o sistema imunológico deles tivesse começado a ata¬car seus próprios órgãos.

— Como no caso do lupo?

— Sim, mais ou menos. De qualquer modo, Alvin Ha-yes estava em péssimo estado. Praticamente todos os seus ór¬gãos se achavam em estado de deterioração. Seu corpo estava se desfazendo em pedaços.

— Ele disse apenas que não se sentia muito bem — disse Jason.

— Ora — exclamou Jackson. — Isso é que se chama su¬bestimar a própria doença.

Jason saiu do departamento de anatomia patológica ten¬tando entender o que Jackson dissera. Novamente na possi¬bilidade de alguma doença infecciosa desconhecida, apesar das opiniões de Jackson. Afinal de contas, que tipo de doença auto-imune seria capaz de agir com tanta rapidez? O próprio Ja¬son respondeu à sua pergunta: nenhuma.

Antes de começar a atender os seus pacientes no consul¬tório, Jason decidiu dar uma chegada ao laboratório de Hayes. Não que esperasse receber alguma ajuda de Helene, mas imaginou que ela poderia estar interessada em saber que Ha-yes estivera tão doente nas suas últimas semanas de vida. Pa¬ra sua surpresa, notou que Helene tinha estado a chorar.

— O que é que há?

Helene sacudiu negativamente a cabeça.

— Nada.

— Você não está trabalhando?

— Já terminei — disse Helene.

De imediato Jason compreendeu que, sem Hayes ali para lhe dar instruções, a moça se achava desorientada. Aparente¬mente não estava informada do esquema global da pesquisa, fato que deixou Jason pessimista quanto à possibilidade de ela saber algo sobre a descoberta de Hayes, se é que esta ocor¬rera. A preferência de Hayes por manter segredo sobre o seu trabalho resultara em perda para a comunidade científica.

—  Você não se incomoda se eu conversar com você uns minutos? — perguntou Jason.

— Não — disse Helene, com seu jeito lacônico habitual. Ela fez um gesto para que fossem para a sala de Hayes. Jason acompanhou-a, impressionado, mais uma vez, pelas fotos de genitais expostas na parede.

— Eu acabo de vir da anatomia patológica — começou a falar Jason assim que se sentaram. — O Dr. Hayes era um homem visivelmente doente. Você está certa de que ele não disse que se sentia mal?

— Disse, sim — admitiu Helene, invertendo sua afirma-ção anterior. — Ele andou dizendo que se sentia fraco.

Jason olhou atentamente, de lado, a moça. Ela pareceu mais delicada, mais franca, e ele percebeu que, ao contrário das vezes anteriores em que a vira, seus cabelos agora esta-vam soltos, caindo até os ombros, em vez de austeramente ata¬dos atrás.

— Da última vez, você disse que o comportamento dele não tinha mudado.

— E não tinha mesmo. Ele só disse que se sentia in-disposto.

Frustrado com essa distinção semântica, Jason novamente se convenceu de que ela estava encobrindo alguma coisa. Perguntou-se por quê. Mas achou que não iria obter nada se a interrogasse mais minuciosamente.

— Srta. Brennquivist — disse Jason, falando com paciên¬cia. — Eu quero perguntar novamente. Tem absoluta certeza de que não faz idéia do que Hayes podia estar querendo dizer quando me revelou que havia realizado uma importante des¬coberta científica?

Ela sacudiu a cabeça.

— Eu realmente não sei. A verdade é que, no laborató-rio, as coisas não estavam indo bem. Há uns três meses, os ratos que recebiam fatores de liberação de hormônio de cres-cimento começaram a morrer misteriosamente.

— De onde vinham os fatores de liberação?

— O próprio Dr. Hayes os extraía dos cérebros de ra¬tos. Principalmente do hipotálamo. Depois eu os conduzia me-diante técnicas do ADN recombinante.

— Então os experimentos foram um fracasso?

— Um completo fracasso — disse Helene. — Mas, co-mo qualquer grande pesquisador, o Dr. Hayes não se deixou abater. Ao contrário, passou a trabalhar com mais afinco. Ten-tou usar proteínas diferentes, mas infelizmente chegou aos mes¬mos resultados fatais.

— Você acha que o Dr. Hayes estava mentindo quando me disse que havia feito uma descoberta?

— O Dr. Hayes nunca mentia — disse Helene, indigna-da.

— Bom, então como explica isso? — perguntou Jason. — De início, pensei que ele estava tendo um colapso nervoso. Agora, não tenho tanta certeza. O que você acha?

— Essa hipótese é absolutamente infundada — disse He¬lene, levantando-se para deixar claro que a conversa estava encerrada. Jason atingira um nervo exposto. Ela não estava disposta a ouvir calúnias contra o seu falecido chefe.

Contrariado, Jason desceu para o seu consultório, onde Sally já estava com dois pacientes esperando para fazer exa-mes médicos. Entre os dois exames, Jason escapou de Sally o tempo suficiente para verificar os exames de laboratório de Holly Jennings. A única alteração significativa em relação aos exames anteriores da publicitária foi uma elevação da gama-globulina, o que levou novamente Jason a considerar a possi-bilidade de uma epidemia não relacionada à AIDS e que envolvia o sistema auto-imune. Em vez de desativar o sistema auto-imune, como ocorre na AIDS, este problema novo pa-recia ativá-lo de uma forma destrutiva.

Pelo meio da manhã, Jason recebeu um telefonema de Margaret Danforth, que disse, sem maiores preâmbulos:

— Achei que você deveria saber que a urina do Dr. Ha-yes revelou níveis moderados de cocaína.

Então Curran tinha razão, deduziu Jason, desligando o telefone. Hayes andara usando drogas. Mas Jason não podia saber com certeza se isso estava relacionado com a afirmação do cientista de que realizara uma descoberta, com seu medo de ser atacado, ou mesmo com sua morte real.

Viu-se forçado a pôr de lado essas indagações, porque a enorme lista de pacientes a atender estava sobrecarregando sua agenda. A pressão aumentou quando recebeu um telefonema de Shirley, que aparentemente soubera da visita que ele fizera a Helene.

— Jason — disse ela, com uma ponta de irritação na voz —, por favor, não ponha lenha na fogueira. Deixe o caso de Hayes esfriar.

— Eu acho que Helene sabe mais do que está dizendo — ponderou Jason.

— Do lado de quem você está? — perguntou Shirley.

— Está bem, está bem — disse ele, interrompendo-a com rudeza ao ver diante de si Madaline Krammer, uma paciente idosa que tinha sido passada à frente dos outros como emer¬gência. Até então seu quadro cardiológico tinha sido estável. Subitamente ela passara a apresentar edema maleolar e estertores pulmonares. Apesar da medicação enérgica, a cardiopatia congestiva da paciente aumentara de gravidade, a ponto de Jason ter de insistir pela hospitalização.

— Neste fim de semana não — protestou Madaline. — Meu filho está chegando da Califórnia com a filhinha dele. Eu ainda não consegui ver a minha netinha. Por favor! — Ma-daline era uma mulher alegre, de sessenta e poucos anos, o cabelo cinza-prateado. Jason sempre tivera simpatia por ela, pois Madaline raramente se queixava e era extraordinariamente agradecida pelo seu trabalho.

— Sra. Madaline, desculpe-me. Eu não faria isso se não achasse necessário. Mas a única maneira de podermos ajustar a sua medicação é usando monitoração contínua.

Resmungando, porém resignada, Madaline concordou. Jason disse-lhe que a veria mais tarde, e entregou-a aos cui-dados competentes de Claudia. Pelas quatro da tarde, quase conseguira pôr em dia os compromissos de sua agenda. Ia sair do consultório, quando deu de cara com Wanamaker, que, com seu corpo enorme e volumoso, bloqueava por completo a estreita passagem para a sala.

— Agora é a minha vez — disse Roger. — Consegue um minuto para uma conversa?

— Claro — disse Jason, que nunca dizia não a um cole¬ga. E indicou o caminho de volta ao seu consultório. Roger cerimoniosamente colocou uma papeleta sobre a escrivaninha.

— Assim pelo menos não vai achar que é só com você que tais coisas acontecem — falou ele. — Essa papeleta é de um executivo de 53 anos, da Data General, que acabou de ser trazido para a sala de urgências morto, mais morto que uma pedra. Pois faz menos de três semanas que realizei nele um exame de saúde executivo completo.

Jason abriu o prontuário e olhou os resultados dos di-versos exames, inclusive eletrocardiograma e exames de labo¬ratório. O colesterol estava alto, mas não muito.

— Mais um infarto? — perguntou ele, passando ao re-sultado da radiografia de tórax. Era normal.

— Não — disse Roger. — Acidente vascular cerebral ma¬ciço. O sujeito teve uma convulsão em plena reunião de dire¬toria. A esposa dele enlouqueceu de desespero. Fez-me sentir horrivelmente mal. Disse que ele andava sentindo a saúde aba¬lada desde que fizera o exame conosco.

— Quais eram os sintomas dele?

— Nada específico — disse Roger. — Principalmente insônia e tensão, esse tipo de coisas de que os executivos vivem se queixando.

— Que diabos anda acontecendo? — perguntou Jason de um modo enfático.

— Sei lá — disse Roger. — Mas estou tendo uma sensa¬ção desagradável; como se estivéssemos no início de algum ti¬po de epidemia ou coisa parecida.

— Eu conversei com Madsen, na patologia. Perguntei-lhe se havia possibilidade de ser uma doença infecciosa des-conhecida. Ele disse que não. Que era coisa metabólica, tal-vez auto-imune.

— Penso que seria melhor fazermos alguma coisa. E aquela reunião que você sugeriu?

— Ainda não a convoquei — admitiu Jason. — Vou pe-dir a Claudia que reúna todos os exames médicos que realizei de um ano para cá e verifique como os pacientes estão de saú¬de. Talvez você deva fazer a mesma coisa.

— Boa idéia.

— E quanto à autópsia deste caso? — perguntou Jason, devolvendo a Roger o prontuário.

— Os resultados estão com o médico-legista.

— Então depois me ponha a par do que ele achou. Quando Roger saiu, Jason redigiu um aviso para que se convocasse uma reunião com os outros médicos no começo da semana seguinte. Ainda que não quisesse conhecer a ex-tensão do problema, Jason entendia que não podia permane-cer tranqüilamente sentado a olhar enquanto pacientes com exames de saúde aparentemente normais iam parar no necro-tério.

Quando se preparava para seu último paciente nesse dia, Jason viu-se novamente pensando em Carol Donner. Tendo subitamente uma idéia, contornou a mesa central e encontrou-se com Claudia. Pediu que ela descesse ao setor de pessoal e procurasse obter o endereço residencial de Hayes. Acredi¬tava que se houvesse alguém capaz para isso, esse alguém era Claudia.

Voltando a seguir na direção de seu consultório, para aten¬der o último paciente de ambulatório, Jason ficou a imaginar por que não havia pensado antes em obter o endereço de Ha¬yes. Se Carol Donner estivera vivendo com Hayes, seria mui¬to mais fácil conversar com ela no seu apartamento do que no Club Cabaret, onde evidentemente era de se esperar que a protegessem de estranhos. Talvez ela tivesse alguma idéia da descoberta feita por Hayes, ou pelo menos soubesse como andava a sua saúde. Quando Jason terminou de atender seu último paciente, Claudia veio trazer o endereço. Era no South End.

Depois de haver atendido todos os pacientes de ambula¬tório, Jason deixou registradas as anotações correspondentes e dirigiu-se ao elevador principal para iniciar as visitas aos lei¬tos. A primeira paciente foi Madaline Krammer.

Ela já estava passando melhor. Uma dose maior de diurético havia conseguido diminuir-lhe consideravelmente a inchação dos pés e das mãos, mas quando Jason tornou a vê-la, ficou preocupado ao verificar que as suas pupilas pareciam amplamente dilatadas e sem reação à luz. Fez uma anotação na papeleta dela e partiu para os outros casos.

Antes de examinar Matthew Cowen, pegou a sua papele¬ta para ver o que o oftalmologista havia registrado em rela¬ção aos olhos do paciente. Muito chocado, Jason leu: "Discreta formação de catarata em ambos os olhos. Realizar novo exa¬me em seis meses." Jason não conseguia acreditar no que es¬tava vendo. Catarata aos 35 anos? Lembrou-se de que a autópsia havia assinalado a presença de catarata nos olhos de Connoly. Lembrou-se também de que acabara de constatar dilatação pupilar em Madaline Krammer. Com que diabo de doença estavam lidando? Ficou ainda mais confuso quando examinou Matthew.

— O senhor está me prescrevendo algum remédio miste¬rioso? — quis saber o paciente tão logo viu Jason.

— Não. Por quê?

— Porque meu cabelo está caindo. — Para mostrar o que dizia, puxou algumas mechas de cabelo, que realmente se des¬prenderam. Espalhou tudo sobre o travesseiro.

Jason apanhou alguns fios, rolando-os entre o polegar e o indicador. Pareciam normais, exceto quanto a uma cor acinzentada na raiz. Jason examinou o couro cabeludo de Mat¬thew. Também este pareceu normal, sem nenhuma inflama¬ção ou solução de continuidade.

— Há quanto tempo isso vem acontecendo? — pergun-tou ele, lembrando-se de Brian Lennox, com extraordinária nitidez, e também do comentário da Sra. Harring de que o seu marido começara a apresentar queda de cabelo.

— Piorou muito hoje — disse Matthew. — Não quero dar a impressão de paranóide, mas parece que tudo acontece comigo.

— É apenas coincidência — disse Jason, procurando for¬talecer sua própria confiança tanto quanto a de Matthew. — Vou pedir um novo exame ao dermatologista. Vai ver, isso está associado ao seu problema de pele seca. Por falar nisso, houve alguma melhora nesse aspecto?

— Que nada. Ficou pior, se isso é possível. Eu não de-via ter vindo para o hospital.

Jason sentiu-se propenso a concordar, especialmente tendo em conta que muitos dos seus pacientes estavam tendo um qua¬dro desfavorável. Quando terminou as visitas aos pacientes internados, sentia-se exausto. Quase ia se esquecendo de que alguns amigos bem-intencionados tinham insistido com ele para que comparecesse a um jantar, à noite, de modo que pudes¬sem apresentá-lo a uma bonita advogada de 34 anos de idade chamada Penny Lambert. Tendo apenas uma hora disponí¬vel, Jason concluiu que não valia a pena ir para casa. Em vez disso, pegou o mapa da cidade de Boston, que trazia no car¬ro, e localizou a Springfield Street, onde estava situado o apar¬tamento de Hayes. Era um tanto longe da Washington Street.

Jason achou que era uma boa hora para conseguir encontrar Carol Donner, e por isso decidiu ir de carro diretamente para lá. Mas a execução foi mais difícil que o planejamento. Dirigindo-se para o sul, viu-se preso no trânsito engarrafado da Massachusetts Avenue. Com persistência, chegou à Was¬hington Street e dobrou à esquerda, depois novamente à es¬querda, já na Springfield Street. Localizou o edifício de Hayes, a seguir encontrou um estacionamento.

A vizinhança era uma mistura de prédios reformados e não reformados. O de Hayes fazia parte destes últimos. Na escadaria da frente havia pichações em spray. Jason entrou na portaria e notou que diversas das caixas de correspondên-cia estavam quebradas e que a porta interna da portaria se acha¬va aberta. Na realidade, a fechadura da porta apresentava sinais de ter sido arrombada havia muito tempo e de nunca ter sido recolocada. O apartamento de Hayes ficava no ter¬ceiro andar. Jason começou a subir a escadaria mal ilumina¬da. Havia um cheiro desagradável de mofo e umidade.

O edifício era grande, com apartamentos de solteiro em todos os andares. No terceiro andar, Jason tropeçou em di-versos números do Boston Globe ainda nos seus envoltórios plásticos. Não havia campainha, por isso Jason bateu na por¬ta com os nós dos dedos. Não ouviu resposta: bateu novamen¬te, com mais força. Com um rangido, a porta abriu uns poucos centímetros. Olhando para baixo, Jason viu que a porta ti¬nha sido forçada recentemente e que havia madeira lascada no marco. Jason abriu-a cautelosamente, empurrando-a com o dedo indicador. A porta rangeu de novo, como se sentisse dor. "Oi", chamou ele. Não houve resposta. Deu dois ou três passos para dentro do apartamento. "Oi", chamou de novo. Nenhum ruído, exceto o de água escorrendo no banheiro. Fe-chou a porta atrás de si e começou a atravessar uma sala es-cura em direção a uma porta parcialmente aberta.

Deu uma olhada e quase teve de sair às pressas. O lu-gar tinha sido revirado. Na sala, anteriormente decorada com peças antigas e reproduções de obras de arte, a desordem era geral. Todas as gavetas da escrivaninha e de uma estante ha-viam sido puxadas para fora e esvaziadas. As almofadas do sofá tinham sido cortadas e abertas e o conteúdo de uma grande estante estava espalhado desordenadamente pelo chão.

Pisando com cautela no meio de toda aquela desordem, Jason espiou para dentro de um pequeno quarto de dormir, que se encontrava nas mesmas condições da sala; depois, pas¬sou pela sala e chegou até um quarto maior, que supôs ser o principal do apartamento. Também ali a desarrumação era to¬tal. Todas as gavetas tinham sido removidas e esvaziadas; as roupas do closet tinham sido tiradas dos cabides e jogadas no chão. Jason pegou algumas peças de roupa, notando que eram todas de homem.

Subitamente, a porta principal do apartamento rangeu, fazendo com que Jason sentisse um frio na espinha. Ele dei-xou cair no chão as peças de roupa que segurava. Decidiu no-vamente chamar, esperando que fosse Carol Donner, mas, por uns momentos, sentiu-se apavorado demais para falar. Per¬maneceu absolutamente imóvel, com os ouvidos atentos, à pro¬cura de qualquer som. Quem sabe, uma corrente de ar teria empurrado a porta... Então ouviu um baque surdo, como o de um sapato se chocando contra um livro ou uma gaveta vi-rada. Não havia dúvida, alguém estava no apartamento, e Ja-son teve a sensação de que, fosse quem fosse, esse alguém sabia que ele estava ali. O suor começou a escorrer-lhe pela testa e ao longo do nariz. A advertência do detetive Curran de que o mundo das drogas era perigoso surgiu-lhe como um relâm¬pago na memória. Conjeturou se não haveria uma saída pa¬ra escapar dali. Então se deu conta de que se encontrava na extremidade de um longo corredor.

De súbito, um vulto enorme ocupou todo o vão da por¬ta. Mesmo com a escuridão reinante, Jason pôde notar que a pessoa enorme segurava uma arma.

O pânico dominou-o, seu coração disparou. Mesmo as-sim, porém, ele não se moveu. Uma segunda pessoa, de esta-tura menor, juntou-se à primeira, e ambas entraram no quarto. Então avançaram na direção de Jason, inexoravelmente, pas-so a passo. Pareceu uma eternidade. Jason quis gritar ou cor-rer.

NO INSTANTE SEGUINTE, Jason pensou que tinha morrido. Houve um clarão. Mas ele compreendeu que não era a arma, e sim a lâmpada bem acima de sua cabeça. Ainda estava vivo. Dois policiais uniformizados estavam postados diante dele. De tão aliviado, Jason sentiu vontade de abraçá-los.

— Que satisfação ver vocês — disse Jason.

— Vire — ordenou o policial mais encorpado, ignoran-do o comentário de Jason.

— Eu posso explicar... — começou a falar, mas disseram-lhe que calasse a boca e colocasse as mãos na parede, man¬tendo as pernas abertas.

O segundo policial revistou-o, retirando-lhe a carteira do bolso. Quando constataram que Jason estava desarmado, tiraram-lhe os braços da parede e algemaram-no pelos pulsos. Levaram-no através do apartamento, desceram com ele as es-cadas e conduziram-no até a rua. Alguns transeuntes pararam para ver Jason sendo colocado no assento de trás de um carro sem placa.

Os policiais permaneceram em silêncio durante o percur¬so até a delegacia de polícia, e Jason concluiu que não fazia sentido tentar explicar enquanto não chegassem. Agora que se sentia mais calmo, começou a pensar no que haveria de fa¬zer. Calculou que teria a possibilidade de dar um telefonema, e imaginou se devia telefonar para Shirley ou para o advoga¬do que lhe dera assessoria quando resolvera vender a casa e o consultório.

Mas quando chegaram à delegacia, os policiais simplesmente o conduziram até uma sala pequena e sem móveis, on¬de o deixaram.

Ao saírem, chavearam a porta, e aí Jason entendeu que estava preso.

Nunca antes fora posto na cadeia; a sensação não foi boa.

Enquanto os minutos passavam, Jason compreendeu a gravidade da situação. Lembrou-se do pedido de Shirley, de que não pusesse lenha na fogueira. Só Deus podia saber que efeito teria sua prisão sobre sua clientela se o caso viesse a pú¬blico.

Por fim, a porta da sala se abriu e o detetive Michael Curran entrou, acompanhado pelo policial menor. Jason sentiu-se contente ao ver Curran, mas imediatamente percebeu que o detetive não correspondeu a esta sua emoção. As rugas no seu rosto pareciam mais acentuadas do que nunca.

— Tire as algemas dele — disse Curran, sem sorrir. Jason ficou de pé enquanto o policial lhe soltava as mãos.

Olhou para o rosto de Curran, tentando sondar-lhe os pensa¬mentos, mas o detetive permanecia indecifrável.

— Quero conversar com ele a sós — disse ele ao poli-cial, que assentiu e deixou a sala. — Tome a sua maldita car-teira — disse Curran, pondo-a nas mãos de Jason. — Para o senhor é difícil seguir um conselho, não é mesmo? Que é que eu tenho de fazer para convencê-lo de que esse assunto de drogas é coisa séria?

— Eu só estava querendo falar com Carol Donner...

— Era só o que faltava. Quer dizer que de repente o se-nhor resolve se meter onde não foi chamado, querendo zonear o nosso serviço?

— Como assim? — perguntou Jason, começando a se sentir irritado.

— O departamento de narcóticos está vigiando o apar-tamento de Hayes desde que soubemos que ele foi revistado. Esperamos pegar alguém mais interessante do que o senhor.

— Desculpe.

Curran sacudiu a cabeça contrariado.

— Bom, a coisa podia ter sido pior. O senhor podia ter se machucado. Por favor, doutor, não é melhor voltar para o seu trabalho de médico?

— Estou livre, posso ir embora? — perguntou Jason, in-crédulo.

— Está sim — disse Curran, voltando-se em direção à porta. — Não vou registrar esta ocorrência. Seria absurdo per-dermos nosso tempo.

Jason saiu da delegacia de polícia e tomou um táxi para retornar à Springfield Street, onde retomou seu carro. Lan¬çou um olhar ao prédio de Hayes e sentiu um calafrio. Essa fora uma experiência apavorante.

Com a sensação, agora, de que tinha adrenalina suficiente no seu organismo para correr uma milha em quatro minutos, Jason sentiu-se contente por ter um programa para essa noite. Seus amigos, os Alics, tinham convidado um grupo animado de pessoas, e a comida e o vinho eram realmente bons. A mo¬ça que eles desejavam apresentar-lhe, Penny Lambert, impres¬sionou-o por ser uma jovem algo yuppie, com sua roupa con¬servadora, um terninho azul com uma volumosa gravata-borboleta de seda. Felizmente, ela era alegre e comunicativa, e haveria de compensar essa frustração que ele agora sentia por se ver incapaz de parar de pensar no apartamento de Hayes e na sua necessidade de falar com Carol Donner.

Depois de haver tomado o cafezinho e o licor, Jason teve uma idéia. Se se oferecesse para levar Penny para casa, talvez conseguisse persuadi-la a fazer uma parada no Club Cabaret. Evidentemente, Carol não estava mais morando no aparta¬mento de Hayes, e Jason calculou que poderia ter uma opor¬tunidade melhor de falar com Carol se estivesse acompanhado de outra mulher. Para seu contentamento, Penny aceitou seu oferecimento de uma carona. Quando estavam no carro, ele lhe perguntou se estava com disposição para alguma aventura.

— O que quer dizer com isso? — perguntou ela, cau-telosa.

— Achei que você poderia gostar de ver um outro lado de Boston.

— Algo como uma discoteca?

— Mais ou menos — disse Jason. De um modo levemente perverso, conjeturou que a experiência poderia ser boa para Penny. Ela era muito bonita, mas um tanto certinha e previ¬sível demais.

Ela relaxou sorrindo e conversando até chegarem diante do Club Cabaret.

— Tem certeza de que é uma boa idéia? — perguntou ela.

— Ora, não se preocupe — tranqüilizou-a Jason.

No caminho, ele a colocara ligeiramente a par das coi-sas, explicando que desejava ver a moça com quem o Dr. Hayes estivera envolvido. Penny lembrou-se da história que lera nos jornais, e isso não lhe aumentara a confiança; mas com um pouco de insistência, ele a persuadira a deixar que esta¬cionasse e a conduzisse até ali.

Sexta-feira era evidentemente uma noite especial. Segu¬rando a mão de Penny, Jason abriu caminho pelo salão, es¬perando poder evitar o homem de óculos escuros e seus dois hercúleos guarda-costas. Com a ajuda de uma nota de cinco dólares, conseguiu que uma das garçonetes lhe desse uma me¬sa localizada junto à parede lateral, diversos degraus acima do piso do salão. Dali podiam ver a pista de dança, ao mes¬mo tempo que permaneciam parcialmente ocultos dos dança¬rinos pelas espessas sombras das silhuetas dos homens que ficavam de pé, ao fundo, no bar.

Entraram no meio de dois números. Tinham acabado de pedir drinques quando os alto-falantes anunciaram o número seguinte. Os olhos de Jason já tinham-se adaptado à escuri¬dão, e mesmo assim ele mal conseguia enxergar o rosto de Penny. O que conseguia enxergar melhor era o branco dos olhos dela. Ela não piscava muito.

Uma strip-teaser apareceu no meio de um torvelinho de teci¬do crepe transparente. Houve alguns assobios de provocação. Penny permanecia em silêncio. Enquanto pagava à garçonete os drinques, Jason perguntou-lhe se Carol Donner iria dançar essa noite. A garçonete disse que o primeiro número de Carol era às onze horas. Jason sentiu um alívio — pelo menos ela não havia sido eliminada junto com a destruição do apartamento de Hayes.

Quando a garçonete se afastou, ele pôde perceber que a strip-teaser estava terminando a sua exibição e que Penny olha¬va com os lábios muito apertados.

— Isto é repugnante — falou ela com desdém.

— Não é propriamente a Sinfônica de Boston — concor¬dou Jason.

— Essa aí tem até celulite.

Jason olhou com mais atenção quando a dançarina su-biu as escadas, de volta aos camarins. A parte posterior das coxas da dançarina estava toda marcada de celulite. Jason sor¬riu. Era curioso como uma mulher percebia logo essas coisas.

— Será que esses homens realmente apreciam isso? — perguntou Penny, com aversão.

— Boa pergunta. Na verdade, não sei. A maioria deles parece que sente tédio.

Mas ninguém ficou entediado quando Carol apareceu. Tal como acontecera na noite anterior, os espectadores adqui-riram vida quando ela começou a apresentar o seu número.

— O que acha? — perguntou Jason.

— É uma bela dançarina, mas não posso acreditar que esse seu amigo estivesse envolvido com ela.

— Exatamente o que eu pensava — disse Jason. Agora ele não tinha tanta certeza. Carol Donner evidenciava uma per¬sonalidade muito diferente daquela que ele imaginava.

Depois que Carol terminou o seu número e novamente não apareceu entre os freqüentadores da casa, Jason achou que era a hora de ir. Penny estava ansiosa por sair, e Jason notou, a caminho de casa, que ela tinha pouco a falar. Achou que o Club Cabaret não tinha lhe causado uma boa impressão. Quando a deixou à porta de casa, nem mesmo se preocupou em dizer que lhe telefonaria. Sabia que os Alics ficariam desapontados, mas também considerou que eles deviam ter tido o bom senso de fa¬zer algo melhor do que apresentá-lo a uma gravata-borboleta.

De volta a seu apartamento, Jason tirou a roupa com que saíra e pegou no seu escritório o livro sobre ADN. Foi para a cama e começou a ler. Lembrando-se de como se sentira exausto de tarde, achou que adormeceria em seguida. Mas não foi isso que aconteceu. Continuou a ler sobre bacteriófagos, as partículas virulentas que infectam bactérias, e ficou saben¬do como eram utilizados em engenharia genética. Depois leu um capítulo sobre plasmídios, dos quais nunca ouvira falar antes de começar a ler sobre ADN. Ficou muito admirado ao saber que os plasmídios são pequenas moléculas circulares de ADN que existem nas bactérias e se reproduzem com inteira fidelidade quando da reprodução destas.

Também desempenham uma função de extrema impor¬tância como veículos para a introdução de segmentos de ADN nas bactérias.

Ainda plenamente desperto, Jason olhou a hora. Passa¬va das duas da madrugada, e sono era o que não tinha mes¬mo. Tendo se levantado, foi para a sala de estar e olhou para a Louisburg Square. Um carro parou. Era o inquilino que mo¬rava no térreo do prédio onde Jason ocupava um apartamen¬to. Também ele era médico, e embora mantivessem um trato amistoso um com o outro, Jason pouco sabia desse homem, a não ser que ele tinha encontros com grande número de mu¬lheres bonitas. Jason costumava se perguntar onde é que o su¬jeito encontrava tanta mulher bonita. Como sempre, também desta vez ele saiu do carro com uma loura atraente, e no meio de uma risada abafada desapareceram de vista, entrando no andar de baixo. Jason ouviu a porta principal do prédio se fechar. O silêncio retornou. Não conseguia tirar da mente a imagem de Carol Donner; desejava conversar com ela. Olhan¬do o relógio da sala, teve uma idéia. Às pressas, voltou ao quar¬to, tornou a se vestir e saiu em direção ao seu carro.

Com alguns pressentimentos e dúvidas a respeito das pos¬síveis conseqüências, voltou à zona do meretrício. Contraria¬mente ao que acontecia no restante da cidade, ali tudo ainda estava em grande atividade. Passou uma vez de carro em frente ao Club Cabaret, depois deu uma volta, engrenou marcha à ré numa rua lateral sem movimento e estacionou o carro. Des¬ligou o motor. Havia alguns tipos duvidosos e mal-encarados parados em vãos de portas e na ruazinha lateral, o que fez Ja¬son sentir-se desconfortável. Procurou certificar-se de que as portas do seu carro estavam efetivamente trancadas.

Fazia um quarto de hora que havia chegado quando viu surgir um grande grupo de pessoas que saíam do clube e se-guiam cada uma o seu caminho. Uns dez minutos depois, apa¬receu um grupo de dançarinas. Conversavam umas com as outras diante do clube, depois se separaram. Carol não esta¬va entre elas. Justamente quando Jason começou a sentir-se preocupado com a possibilidade de não ter percebido a pas¬sagem dela, Carol apareceu com um dos guarda-costas do clu¬be. Ele usava uma jaqueta de couro aberta sobre uma camisa

branca tipo T-shirt. Dobraram à direita, dirigindo-se ao File¬ne's, na Washington Street.

Jason deu partida no seu carro, não sabendo o que fa-zer. Felizmente havia muito tráfego, de carros e de pedestres. Para poder ficar de olho em Carol, Jason forçou a entrada na Washington Street trafegando perto da calçada. Um guar¬da de trânsito viu e fez sinal para que ele prosseguisse. Carol e o amigo dobraram à esquerda, na Boylston Street, encaminharam-se para um estacionamento aberto e entraram num enorme Cadillac preto.

Bom, pelo menos vai ser fácil mantê-los à vista, pensou Jason. Mas nunca tendo seguido alguém, descobriu que a coisa não era tão fácil como imaginava, especialmente se não qui¬sesse ser notado. O Cadillac contornou a frente do prédio da Common, prosseguiu para norte na Charles Street e depois dobrou à esquerda na Beacon Street, passando pela Hampshire House. Alguns quarteirões mais adiante, o carro parou no lado esquerdo da rua e ali estacionou em fila dupla. Essa era uma área da cidade chamada Back Bay, formada por edi¬fícios grandes e antigos, do início do século, a maioria deles transformados em prédios para aluguel ou condomínios. Ja¬son passou junto ao Cadillac no momento em que Carol de-sembarcava do carro. Diminuindo a marcha, observou pelo espelho retrovisor; pôde vê-la subir a escadaria dianteira de um prédio com uma grande frente envidraçada. Dobrou à es-querda em Exeter, a seguir novamente à esquerda em Marl-borough. Depois de esperar por uns cinco minutos, deu a volta no quarteirão. Ao chegar novamente à Beacon Street, procu-rou pelo Cadillac preto. O carro sumira.

Jason estacionou em frente a um hidrante de incêndio, a meia quadra do edifício de Carol. Às três horas da madrugada, Back Bay era um lugar sossegado — não havia transeuntes, e só ocasionalmente passava algum carro. Jason virou-se e ca¬minhou pela calçada que levava ao edifício de Carol. Percorreu com o olhar a fachada de seis andares e não viu luz acesa em nenhuma das janelas. Entrou no corredor de entrada do edi¬fício e leu com atenção os nomes dos moradores apostos nos botões das campainhas. Eram quatorze. Ficou desapontado ao verificar que não constava o nome de Donner.

Deu uns passos para voltar à rua e ficou pensando no que poderia fazer. Lembrou-se de que havia uma ruela que inter¬ligava as ruas Beacon e Marlborough; deu a volta no quartei¬rão, contando os prédios até localizar o de Carol. Havia uma luz acesa numa janela do quarto andar. Achou que devia ser o apartamento de Carol, pois era improvável que alguém mais estivesse acordado a essa hora.

Com a intenção de voltar à portaria e tocar a respectiva campainha, Jason voltou e encaminhou-se novamente para a frente do prédio. Avistou imediatamente um homem, sozinho, mas continuou andando, na esperança de que o sujeito sim-plesmente passasse. Como a distância entre eles diminuía, Ja¬son diminuiu o passo, depois parou. Para seu espanto, percebeu que era o halterofilista, com a jaqueta de motoci-clista aberta, mostrando uma camiseta branca justa por so¬bre uma musculatura poderosa. O mesmo indivíduo que o havia tirado à força do Club Cabaret na noite anterior.

O homem continuou andando em direção a Jason, com a mão fechada; era visível o que ele tencionava. Jason calcu-lou que ele deveria ter seus vinte e poucos anos e percebeu que tinha uma cara redonda, indicativa de que o sujeito tomava esteróides. Evidentemente tudo fazia prever que haveria pro¬blemas. E a esperança de Jason de que o sujeito não o reco¬nheceria logo se desfez, pois o leão-de-chácara rosnou:

—  Tá querendo o quê, seu babaca?

Jason não precisou ouvir mais nada. Deu meia-volta e dis¬parou em direção ao outro extremo da rua. Infelizmente seus mocassins leves de sola de couro não podiam competir com os tênis do halterofilista.

— Seu anormal de merda! — gritou ele, obrigando Ja-son a parar.

Jason abaixou-se para desviar-se de um murro violento e conseguiu agarrar a perna do brutamontes, tentando derrubá-lo. Infelizmente, era como agarrar a perna de um piano. Ja¬son é que foi levantado do chão. Para ele já se tornara evi¬dente que a luta era desigual, e por isso preferiu algum tipo de diálogo.

— Por que você não vai procurar alguém do seu tama-nho? — gritou ele exasperado.

— Porque não gosto de anormais — disse o halterofilis-ta, praticamente erguendo Jason no ar.

Girando para um lado, depois para outro, Jason conse-guiu desembaraçar-se do paletó e disparou rua fora, derru-bando, na arrancada, uma lata de lixo.

— Eu vou te ensinar a ficar fuçando por perto de Carol; — gritou o gorila, chutando para o lado a lata de lixo, ao mes-mo tempo que saía em perseguição a Jason. Mas este, com seus anos de prática de jogging, levou vantagem. Embora o haterofilista, corpulento, fosse rápido em seus movimentos, na corrida ficou em desvantagem, e Jason conseguiu perce¬ber que a respiração do sujeito ficava cada vez mais ofegante. Jason estava quase no fim da pequena rua quando escorre-gou em cascalho solto, perdendo o equilíbrio por um instan¬te. Conseguiu aprumar-se novamente, quando uma pesada mão o agarrou pelo ombro e o fez girar sobre si mesmo.

— PARE AÍ! POLÍCIA! — Uma voz rompeu o silêncio da noi¬te de Boston. Jason ficou imóvel, e o mesmo fez o halterofilista. As portas de um carro da polícia, sem placas, estacionado perto da entrada da rua, subitamente se abriram, e três poli¬ciais à paisana saltaram para fora. Novamente Jason ouviu a ordem: — De pé contra a parede. De pernas abertas! — Ele obedeceu, mas o halterofilista ainda relutou por uns instan¬tes. Por fim, resmungou para Jason:

— Sorte a sua, seu filho da puta. — E então obedeceu à ordem dos policiais.

— Calem a boca! — ordenou um policial. Jason e seu per¬seguidor foram revistados rapidamente, depois tiveram de vi¬rar de frente e receberam ordem de pôr as mãos na nuca. Um tira pegou uma lanterna e verificou as identidades dos dois.

— Bruno DeMarco? — perguntou o policial, mirando a lanterna no rosto do halterofilista. Bruno sacudiu a cabeça afir-mativamente. Depois a luz enfocou o rosto de Jason. — Dr. Jason Howard?

— Isto mesmo.

— O que é que anda acontecendo aqui? — perguntou o policial.

— Esse merda estava querendo perturbar a minha namo¬rada — informou Bruno, com voz irada. — Tava seguindo ela.

O policial olhou para Bruno, depois para Jason, e nova-mente para Bruno; então caminhou até onde estava o carro, abriu a porta e apanhou alguma coisa no banco de trás. Quan-do voltou, devolveu a Bruno a sua carteira e disse-lhe que fosse para casa e tentasse dormir. Num primeiro momento, Bruno agiu como se não tivesse compreendido, mas depois pegou a sua carteira.

— Eu vou me lembrar de você, seu bundão! — gritou ele para Jason, enquanto desaparecia em direção à Beacon Street.

— O senhor — disse o policial, apontando para Jason.

— Ali no carro! Jason sentiu-se atordoado. Não conseguia acreditar que mandassem embora o brutamontes e não a ele. Ia começar a protestar quando o policial pegou-lhe o braço e o forçou a sentar-se no banco de trás do carro.

—  O senhor está começando a torrar o meu saco — dis¬se o detetive Curran. Ele estava sentado impassível, fuman¬do. — Eu devia ter deixado aquele cara enchê-lo de porrada.

Jason não sabia o que dizer.

— Espero que tenha alguma idéia — prosseguiu Curran — da imensa cagada que está fazendo. Primeiro, estamos vi¬giando o apartamento de Hayes, o senhor se intromete. De¬pois estamos de olho em Carol Donner, lá vem o senhor novamente. Podia ter estragado todo o nosso trabalho. Desse jeito não vamos poder saber nada dela. E, pombas!, onde es¬tá o seu carro? Suponho que veio de carro.

— Está ali perto da esquina — falou Jason, docilmente.

— Pois eu sugiro que pegue o seu carro e vá para casa — disse Curran, devagar. — Depois volte ao seu trabalho de médico e deixe esta investigação para nós. O senhor está tor-nando o nosso trabalho impossível.

— Desculpe — disse Jason. — Eu não sabia...

— Agora vá — disse Curran, com um gesto de aborre-cimento.

Jason desembarcou do carro dos policiais, sentindo-se muito aturdido. Naturalmente que eles estavam observando Carol. Se ela estivera morando com Hayes, provavelmente tam¬bém estava envolvida com drogas. Na realidade, tendo-se em conta o trabalho que ela fazia, isso era quase certo. Entrando no seu carro, Jason praguejou ao se lembrar de seu paletó. Dirigiu-se para casa.

Eram três e meia da madrugada quando ele subiu peno¬samente os degraus que levavam ao seu apartamento; primeiro teve o cuidado de telefonar para o hospital. Jason não ha¬via levado consigo o seu beeper quando saíra de casa para se¬guir Carol Donner, e esperava, agora, que não tivesse havido telefonemas para ele. Sentia-se cansado demais para atender alguma urgência. Do hospital não havia chamados, mas Shir¬ley tinha deixado um recado pedindo-lhe que telefonasse tão logo chegasse em casa, qualquer que fosse a hora. O telefo¬nista que dera o recado dissera que era urgente.

Meio aturdido, Jason discou. Shirley atendeu ao primei-ro toque do telefone.

— Mas, afinal, por onde você andava?

— Isso é uma história comprida.

— Preciso que você me faça um favor. Venha aqui ago-ra mesmo.

— São três e meia — suplicou Jason.

— Eu não pediria se não fosse importante.

Jason colocou um outro paletó, voltou ao carro e saiu dirigindo em direção a Brookline, imaginando por que essa emergência não podia ter esperado um pouco mais. Só tinha certeza de que a coisa tinha a ver com Hayes.

Shirley morava na Lee Street, uma rua que descreve uma curva em torno de Brookline Reservoir e se estende até uma área residencial de belas casas antigas. A residência dela era um casarão antigo de estilo rural, amplo, com telhado de duas águas quebradas e frontão duplo. Ao se aproximar pela en¬trada pavimentada de pedras, viu que a casa estava com to¬das as luzes acesas. Estacionou em frente, e quando desembarcou do carro, Shirley já abria a porta da frente.

— Obrigada por ter vindo — disse ela, dando-lhe um abraço. Ela vestia uma suéter de cashmere e jeans desbota-dos, e, pela primeira vez, dede que Jason a conhecera, pare-ceu extremamente angustiada.

Ela o levou para dentro, até uma sala de estar espaçosa, e apresentou-o a dois executivos do GHP, que também pare¬ciam visivelmente nervosos. Jason apertou a mão primeira¬mente de Bob Walthrow, um homem de baixa estatura e com uma calvície avançada, e depois cumprimentou, também com um aperto de mão, Fred Ingelnook, um sósia de Robert Redford.

— Que tal um drinque? — perguntou Shirley. — Parece que você precisa disso.

— Apenas um refrigerante — disse Jason. — Estou tão cansado que não me agüento em pé. O que é que está acon-tecendo?

— Mais problemas. Recebi um telefonema da seguran-ça: o laboratório de Hayes foi arrombado esta noite e prati-camente demolido.

— Vandalismo?

— Não temos certeza.

— É pouco provável — disse Bob Walthrow. — Deram buscas lá dentro.

— Levaram alguma coisa? — perguntou Jason.

— Ainda não sabemos — disse Shirley. — Mas esse não é o problema. Queremos manter o caso longe da imprensa. O Good Health não pode agüentar mais nenhuma publicida¬de negativa. Temos dois grandes clientes em vias de assinar contrato com o Plan. Eles poderão desistir se ficarem saben¬do que a polícia pensa que o laboratório de Hayes foi revista¬do por causa de drogas.

— É possível — disse Jason. — O médico-legista me fa¬lou que Hayes tinha cocaína na urina.

— Que merda! — disse Bob Walthrow. — Esperemos que os jornais não fiquem sabendo disso.

— Temos de limitar os prejuízos! — disse Shirley.

— E como vocês planejam fazer isso? — perguntou Ja-son, conjeturando por que razão o teriam chamado.

— A diretoria administrativa quer que mantenhamos em sigilo este último incidente.

— Isso pode ser difícil — disse Jason, tomando um gole do seu refrigerante. — Os jornais provavelmente ficarão sa-bendo pelos registros da polícia.

— É justamente esse o ponto — disse Shirley. — Decidi¬mos não dar parte à polícia. Mas queríamos ouvir a sua opinião.

— A minha? — perguntou Jason, surpreso.

— Bom — disse Shirley —, nós queremos ouvir a opi-nião da equipe médica. Você é chefe atualmente. Acho que poderia sigilosamente averiguar o que os outros pensam des-se caso.

— Acho que entendi — disse Jason, imaginando de que maneira conseguiria sondar os outros clínicos e ainda assim manter em sigilo esse episódio. — Mas se vocês querem a mi¬nha opinião pessoal, não acho que isso seja uma boa idéia, de maneira nenhuma. Além de tudo, vocês não conseguirão receber o seguro se não comunicarem o caso à polícia.

— Isso é verdade — disse Fred Ingelnook.

— Certo — disse Shirley —, mas esse ainda é um pro-blema menor em comparação com o problema de relações pú¬blicas. Por ora não comunicaremos nada. Mas vamos consultar a companhia de seguros e ouvir a opinião dos chefes de de¬partamento.

— Isso me parece acertado — disse Fred Ingelnook.

— Assim está bem — completou Bob Walthrow.

A conversa foi terminando aí, e Shirley despediu-se dos dois executivos, que foram para casa. Reteve Jason quando este pretendia sair junto com eles; sugeriu-lhe que a encon-trasse às oito da manhã.

— Eu pedi a Helene que chegasse cedo. Talvez possamos entender um pouco do que está acontecendo.

Jason concordou, ainda conjeturando por que Shirley não pudera dizer-lhe tudo por telefone. Mas sentia-se dema-siadamente cansado para se preocupar com isso. Tendo dado um rápido beijo no rosto dela, caminhou cambaleando até o seu carro, esperando poder ter duas ou três horas de sono.

MAL PASSAVA das oito horas daquela manhã de sábado quan¬do Jason, com os olhos turvos de sono, entrou na sala de tra¬balho de Shirley. A sala tinha as paredes revestidas de mogno escuro, o chão era forrado com tapete verde-escuro, os aces¬sórios em bronze. Parecia mais o escritório de um banqueiro do que a sala de trabalho da executiva-chefe de uma empresa de assistência médica. Shirley estava ao telefone, conversan¬do com um especialista em seguros; Jason sentou-se e espe¬rou. Depois que desligou o telefone, ela falou:

— Você tinha razão quanto ao seguro. Eles não preten-dem pagar indenização se não for comunicado o arrom-bamento.

— Então comunique.

— Primeiro vamos ver a extensão dos danos e o que está faltando.

Passaram por dentro do edifício dos ambulatórios e to-maram o elevador para o sexto andar. Um guarda de segu-rança esperava por eles e, com uma chave, abriu a porta interna. Dispensaram o uso das pantufas e dos aventais brancos.

Assim como acontecera com o apartamento de Hayes, também o laboratório estava em completa desordem. Todas as gavetas e compartimentos tinham sido esvaziados no chão, mas o equipamento de tecnologia avançada parecia estar in-tacto; assim, ficou evidente para ambos que ali tinha havido buscas, e não um arrombamento para destruir. Jason olhou para dentro da sala de Hayes; estava igualmente em grande desordem, com o conteúdo da escrivaninha e de diversas ga-vetas dos arquivos esvaziados no chão.

Helene Brennquivist apareceu no chão da porta que da-va para o laboratório; seu rosto estava pálido e tenso. Trazia novamente o cabelo penteado liso para trás, deixando todo o rosto descoberto; mas não usava seu costumeiro avental de laboratório, uma vestimenta informe; e Jason pôde ver que ela possuía um físico atraente.

— Você pode dizer se está faltando alguma coisa? — per¬guntou Shirley.

— Bem, não encontro os meus cadernos de anotações — disse Helene. — E algumas das culturas bacterianas de E. coli desapareceram. Mas o pior foi o que aconteceu com os animais.

— Que houve com eles? — perguntou Jason, observan-do que o rosto de Helene, habitualmente impassível, agora tre-mia de medo.

— Talvez você devesse olhar. Todos eles foram mortos! Jason passou por perto de Helene, transpôs uma porta de aço e entrou no biotério. Logo suas narinas foram invadidas por um mau cheiro intenso, penetrante, próprio de recinto on¬de vivem animais. Acendeu a luz. Era uma sala maior, com uns quinze metros de comprimento por dez de largura. As gaiolas dos animais estavam organizadas em fileiras e empilhadas umas em cima das outras, numa altura de até seis. Jason começou a olhar a fileira de baixo, mais próxima, cada gaiola de uma vez. Por trás dele a porta fechou-se com um clique audível. He¬lene não havia exagerado. Todos os animais que Jason viu es¬tavam mortos, impressionantemente contorcidos nas posições mais incríveis, muitos apresentando as línguas ensangüentadas, como se as tivessem mordido na fase final da agonia.

De repente Jason parou horrorizado. Olhando dentro de um conjunto de gaiolas grandes, enxergou algo que lhe em-brulhou o estômago: ratos de um tipo que ele nunca tinha visto. Eram enormes, quase do tamanho de porcos, e suas caudas glabras, como chicotes, tinham o diâmetro dos punhos de Ja¬son. Os dentes expostos tinham 10 centímetros de comprimen¬to. Passando adiante, Jason chegou às gaiolas dos coelhos, de tamanho igualmente avantajado, e às de camundongos bran¬cos, do tamanho de cachorrinhos.

Essa faceta da engenharia genética horrorizou Jason. Em¬bora receoso daquilo que poderia ver, uma curiosidade mór¬bida o impelia adiante. Devagar, olhou para o interior das outras gaiolas e caixas, e viu aberrações de animais conheci-dos, que lhe causaram mal-estar. A ciência enlouquecera: coe¬lhos com várias cabeças, camundongos com patas excedentes e conjuntos de olhos adicionais. Para Jason, uma coisa era a manipulação dos genes de bactérias primitivas; outra coisa muito diferente, a distorção provocada em mamíferos.

Retornou à parte central do laboratório, onde Shirley e Helene tinham verificado as culturas de cintilação.

— Você viu os animais? — perguntou Jason a Shirley sen¬tindo repugnância.

— Infelizmente. Quando Curran esteve aqui. Não me faça lembrar isso.

— O GHP tinha autorizado essas experiências? — per-guntou Jason.

— Não — respondeu Shirley. — Nunca fizemos pergun-tas a Hayes. Nunca achamos que fosse necessário.

— O poder da celebridade — disse Jason, com ironia.

— Os animais faziam parte do trabalho do Dr. Hayes com o hormônio do crescimento — disse Helene, na defensiva.

— Pouco importa — disse Jason. Ele não estava interes¬sado em discutir questões de ética com Helene naquele mo¬mento. — De qualquer modo, estão todos mortos.

— Todos? — interrompeu Shirley. — Que coisa esquisi-ta. O que vocês acham que aconteceu?

— Veneno — disse Jason, com expressão sombria. — Mas não posso entender por que alguém que procurasse dro-gas iria se preocupar em matar animais de laboratório.

— Você tem alguma explicação para tudo isto? — per-guntou Shirley com irritação, voltando-se para Helene.

A mulher mais jovem sacudiu a cabeça negativamente; seu olhar percorria nervosamente a sala.

Shirley continuou a olhar para Helene, que agora muda¬va de um pé para outro, sentindo-se pouco à vontade. Jason observava, intrigado com o inesperado comportamento agres¬sivo de Shirley.

— Seria melhor você cooperar — continuou ela falando —, ou terá sérios problemas. O Dr. Howard está convencido de que você está nos escondendo alguma coisa. Se isso for ver-dade e nós descobrirmos, sua carreira estará ameaçada. A angústia de Helene, por fim, tornou-se evidente.

— Eu apenas obedecia às ordens do Dr. Hayes — falou ela, com a voz trêmula.

— Que ordens? — perguntou Shirley, baixando a voz ameaçadoramente.

— Fizemos alguns trabalhos free-lance aqui...

— De que tipo?

— O Dr. Hayes trabalhava extraordinariamente à noite para uma empresa chamada Gene, Inc. Nós desenvolvemos uma espécie recombinante de E. coli com o objetivo de pro-duzir um hormônio para essa companhia.

— Você sabia que, pelo contrato do Dr. Hayes, era ex-pressamente proibido fazer trabalho por conta própria?

— Foi o que ele me disse — admitiu Helene. Shirley ficou olhando mais uns instantes para Helene. Por fim, falou:

— Eu não quero que fale disso a ninguém. Faça uma lis¬ta detalhada de todos os animais ou objetos que estejam fal¬tando ou foram danificados neste laboratório, e traga a lista pessoalmente para mim. Compreendeu?

Helene fez que sim com a cabeça.

Jason acompanhou Shirley na saída do laboratório. Ela evidentemente conseguira um êxito onde ele fracassara, rom-pendo a couraça aparente de Helene. Mas não tinha feito as perguntas certas.

— Por que não a interrogou a respeito da descoberta de Hayes? — falou Jason quando chegaram junto ao elevador. Shirley apertou repetidamente o botão de baixo, obviamente furiosa.

— Nem me ocorreu isso. Toda vez que penso ter o pro-blema Hayes sob controle, surge alguma coisa nova. Eu tinha exigido especialmente esta cláusula no contrato: proibir qual-quer trabalho extra por conta própria.

— Agora isso não importa muito — disse Jason, entrando no elevador, atrás de Shirley. — O homem está morto.

Ela suspirou.

— Você tem razão. Talvez a minha reação seja exagera¬da. Eu só queria que todo esse assunto estivesse encerrado.

— Eu continuo achando que Helene sabe mais do que revelou.

— Conversarei com ela novamente.

— Depois de ver todos aqueles animais, não acha que de¬via chamar a polícia?

— Junto com a polícia vêm os jornais — lembrou Shir-ley a Jason. — Com os jornais vêm os problemas. Afora os animais, não parece que algo de grande valor tenha sido da-nificado.

Jason conteve-se para não falar. Obviamente, comuni-car à polícia o arrombamento era uma decisão administrati¬va. Ele estava mais preocupado em saber qual fora a descoberta de Hayes, e tinha consciência de que a polícia e os jornais não ajudariam a descobrir isso. Perguntou a si mesmo se a desco¬berta científica não teria relação com os animais monstruo¬sos. Esse pensamento causou-lhe um calafrio.

Jason iniciou a visita nos leitos, começando por Matthew Cowen. Infelizmente, o quadro desse paciente apresentava as¬pectos novos. Além dos seus outros problemas, Matthew agora estava tendo um comportamento esquisito. Poucos minutos antes, o pessoal de enfermagem encontrara-o andando sem ru¬mo pelo corredor, murmurando para si mesmo coisas desco¬nexas. Quando Jason entrou no quarto, ele estava contido no leito, olhando para o médico como se olhasse para um estra¬nho. Matthew apresentava visíveis sinais de estar desorienta¬do quanto ao tempo, ao lugar e à própria pessoa. Pelo que Jason entendia do assunto, aquilo só podia significar uma coi¬sa. O paciente havia sofrido embolia cerebral, provavelmente devido a coágulos sangüíneos originários das válvulas cardía¬cas lesadas, e que foram alojar-se no seu cérebro. Em outras palavras, o paciente sofrera um acidente vascular cerebral, ou diversos desses acidentes.

Sem esperar mais, Jason solicitou que um neurologista examinasse o doente. Também mandou que solicitassem a pre¬sença do cirurgião cardíaco que havia examinado o caso. Em¬bora considerasse a conveniência de entrar imediatamente com terapia anticoagulante, decidiu aguardar a opinião do neurologista. Nesse meio tempo, começou o tratamento com aspi¬rina e Persantin, para reduzir a adesividade das plaquetas. Os acidentes vasculares cerebrais eram uma forma de evolução inquietante, um péssimo sinal.

Jason fez rapidamente o restante das suas visitas aos lei¬tos e estava pronto para retornar a casa e dormir, do que pre¬cisava muito, quando foi chamado pela sala de urgência para atender um de seus pacientes. Praguejando entre dentes, des¬ceu as escadas esperando que o problema, fosse qual fosse, pudesse ser resolvido com facilidade. Lamentavelmente, não foi isso que aconteceu.

Chegou, quase sem fôlego, na sala principal de tratamen¬to; aí encontrou um grupo de residentes aplicando ressuscitação cardiopulmonar numa paciente comatosa. Uma rápida olhada na tela do monitor foi o bastante para Jason saber que não havia absolutamente nenhuma atividade cardíaca.

Jason foi se informar com Judith Reinhart; esta lhe disse que a paciente fora encontrada já inconsciente pelo marido, quando este tentara acordá-la pela manhã.

— Os socorristas encontraram algum sinal de atividade cardíaca ou respiratória?

— Nenhum sinal — disse Judith. — Na realidade, para mim ela parece já estar fria.

Jason tocou na perna da mulher e concordou. O rosto da paciente estava voltado para o outro lado.

— Qual o nome dela? — perguntou Jason, intuitivamente se preparando para receber o golpe.

— Holly Jennings.

Jason sentiu como se tivesse levado um soco no estômago.

— Meu Deus! — murmurou ele.

— Algum problema com o senhor? — perguntou Judith. Jason acenou positivamente com a cabeça, mas insistiu em que a equipe de ressuscitação mantivesse os esforços até bem além de qualquer tempo razoável. Quando examinara essa paciente na quinta-feira, ele suspeitara que houvesse algum problema, mas não este. Não podia simplesmente aceitar o fato de que, como Cedric Harring, a Srta. Holly morreria menos de um mês após um exame clínico ter revelado que ela estava bem e dois dias depois de um novo exame.

Abalado, Jason pegou o telefone e chamou Margaret Danforth.

— Então mais uma vez não há antecedentes de cardiopatia? — perguntou Margaret.

— Isso mesmo.

— Mas, afinal, o que é vocês andam fazendo por aí? — indagou Margaret.

Jason não respondeu. Ele queria que Margaret liberasse o caso, de modo que eles pudessem fazer a autópsia no GHP, porém Margaret hesitava.

— Nós faremos esse caso hoje — disse Jason. — Vocês terão um relatório no início da próxima semana.

— Lamento — disse Margaret, tomando uma decisão. — É que há umas perguntas na minha mente, e penso que sou obrigada por lei a fazer a autópsia.

— Compreendo. Mas suponho que não se incomodaria de nos ceder algumas peças do material para que também pos¬samos realizar os exames aqui.

— Possivelmente — disse Margaret, sem nenhum entu-siasmo. — Para dizer a verdade, nem mesmo sei se isso é le-gal. Mas irei verificar. Preferiria não ter de esperar duas semanas para ter o resultado da microscopia.

Jason foi para casa e deitou-se. Dormiu quatro horas, e seu sono foi interrompido pelo telefonema do neurologista, a propósito do caso de Matthew. O colega pretendia usar anticoagulantes e submeter o paciente a uma tomografia com-putadorizada. Jason implorou ao colega que fizesse tudo que considerasse ser o melhor.

Jason tentou voltar a dormir, mas não conseguiu. Sentia-se incapaz de repousar, angustiado. Levantou-se. Era o en¬tardecer de um dia sombrio do final do outono, e uma garoa fina contribuía para tornar Boston desagradável. Lutando con-tra a depressão, ele ficou andando pelo apartamento, tentan¬do encontrar algo com que ocupar a mente. Compreendeu que não podia ficar ali; vestiu uma roupa informal e desceu para pegar o carro. Sabia que provavelmente ia em busca de pro-blemas, mas saiu dirigindo em direção à Beacon Street e esta-cionou em frente ao apartamento de Carol.

Dez minutos mais tarde, como se Deus finalmente houvesse decidido conceder a Jason uma trégua, Carol apareceu. Trajava jeans e um blusão de gola alta, trazia a espessa cabe¬leira castanha amarrada num rabo-de-cavalo; parecia ser a pró¬pria colegial que o Club Cabaret anunciava. Sentindo a garoa fina, ela abriu a sombrinha com desenhos de flores e saiu a caminhar pela calçada da rua, passando a apenas alguns pas¬sos de distâncias de Jason; este se encolheu no assento do car¬ro, com um temor irracional de ser reconhecido por ela.

Deixando que ela tomasse uma boa dianteira, saiu do car¬ro para segui-la a pé. Perdeu-a de vista na Dartmouth Street, mas tornou a vê-la na Commonwealth Avenue. Enquanto con¬tinuava a segui-la, ficava também de olho atento em tipos co¬mo Bruno ou Curran. Na esquina de Dartmouth com Boylston, Jason passou numa banca de revistas e folheou uma. Carol passou por ele, esperou o sinal abrir e então atravessou às pres¬sas a Boylston. Jason estudava atentamente as pessoas e os carros, tentando ver qualquer coisa suspeita. Mas não havia nenhuma indicação de que Carol não estivesse sozinha.

Agora ela estava passando diante da Biblioteca Pública de Boston, e Jason achou que ela se dirigia ao Copley Plaza Shopping Mall. Tendo comprado a revista, que casualmente era The New Yorker, Jason continuou a segui-la. Quando ela fechou a sombrinha e entrou no Copley Plaza, Jason apres¬sou o passo. Era um grande complexo arquitetônico dotado de shopping center e hotel. Jason sabia que ali ele facilmente podia perdê-la de vista.

Nos três quartos de hora que se seguiram, Jason manteve-se ocupado em simular que olhava atentamente as vitrines, ou fazer de conta que lia a sua New Yorker, ou que simplesmen¬te olhava as pessoas. Carol parecia feliz em ir de uma loja de Louis Vuitton para outra de Ralph Lauren ou para a de Vic-toria's Secret. Num certo momento, Jason pensou que ela es¬tava sendo acompanhada, mas viu que o homem, no caso, simplesmente tentava abordá-la. Ela aparentemente repeliu a tentativa do homem quando este finalmente se aproximou dela, porque ele desapareceu rapidamente.

Um pouco depois das três e meia, Carol apanhou suas sacolas e a sombrinha e fez uma pausa na sua caminhada, en¬trando na loja Au Bon Pain. Jason seguiu-a, postando-se a pouca distância dela enquanto aguardavam a vez de fazer os pedidos; e teve oportunidade de observar o rosto oval dela, sua pele lisa e azeitonada, os seus olhos de um negrume líqui¬do. Era uma mulher jovem e linda. Jason achou que devia ter mais ou menos 24 anos.

— Está uma tarde boa para um café — disse ele, espe-rando começar uma conversação.

— Eu prefiro chá.

Jason sorriu timidamente. Ele não era bom nessa coisa de abordar uma mulher e começar uma conversa.

— Chá também é bom — disse ele, receoso de estar fa-zendo papel de tolo.

Carol pediu sopa, chá e um croissant simples, depois car¬regou sua bandeja até uma das grandes mesas comuns.

Jason pediu um cappuccino; depois, hesitando como se não encontrasse lugar para sentar, aproximou-se da mesa dela.

— Com licença — falou ele, puxando uma cadeira. Várias das pessoas sentadas à mesa levantaram os olhos, inclusive Carol. Um homem fez lugar puxando para um lado alguns dos seus pacotes. Jason sentou-se, dando a todos um sorriso meio vacilante.

— Que coincidência — disse Jason a Carol. — Nós nos encontramos de novo.

Carol olhou-o por sobre a borda da xícara de chá. Não disse nada, nem precisava. A expressão do seu rosto refletia contrariedade.

De imediato Jason reconheceu que tudo que ele fizera po¬deria dar a impressão de que estava dando em cima dela, e que era bem possível que o mandasse passear.

— Você  me  desculpe  —  falou  ele  —,  não  quero importuná-la. Meu nome é Jason Howard. Eu fui colega do Dr. Alvin Hayes.Você é Carol Donner, e eu gostaria muito de conversar com você.

— Você trabalha no GHP? — perguntou Carol des-confiada.

— Eu sou o atual chefe da equipe médica. — Era a pri-meira vez que Jason usava o seu título. Num hospital univer-sitário de verdade, um título assim tinha grande importância, mas no GHP esse cargo era um emprego incômodo.

— Como posso ter certeza do que você diz? — pergun-tou Carol.

— Eu posso lhe mostrar minha identidade.

— Está bem.

Jason levou a mão ao bolso da calça para pegar a cartei¬ra, mas Carol segurou-lhe o braço.

— Não se preocupe — falou ela. — Acredito em você. Alvin costumava falar a seu respeito. Dizia que era o melhor clínico do hospital.

— Sinto-me elogiado — disse Jason. Ele estava surpre-so, tendo em conta os escassos contatos que tivera com Hayes.

— Desculpe a minha desconfiança — disse Carol — , mas andei me preocupando muito, especialmente nestes últimos dias. Sobre o que gostaria de falar?

— Sobre o Dr. Hayes — disse Jason. — Primeiro eu gos¬taria de dizer que a morte dele foi realmente uma perda para nós. Saiba que eu sinto muito.

Carol encolheu os ombros.

Jason não sabia exatamente o que pensar da resposta dela.

— Também não consigo acreditar que o Dr. Hayes esti-vesse envolvido com drogas. Você soube disso? — perguntou ele.

— Soube. Mas os jornais erraram. Alvin consumia bem pouca droga, geralmente maconha, só ocasionalmente cocaí-na. Heroína certamente que não.

— Não era traficante?

— Absolutamente não. Acredite em mim, eu teria sabido.

— Mas encontraram muita droga e dinheiro no aparta-mento dele.

— A única explicação que posso encontrar é que a polí-cia colocou tudo isso lá. Das duas coisas, Alvin sempre teve pouco. Quando ele por acaso tinha dinheiro sobrando, envia¬va para a família.

— Você quer dizer, para a ex-mulher dele?

— Sim. Ela tem a custódia dos filhos.

— Por que a polícia faria uma coisa dessas? — pergun-tou Jason, achando que o comentário dela correspondia à pa-ranóia de Hayes.

— Realmente não sei. Mas não consigo imaginar de que outra maneira as drogas poderiam ter ido parar lá. Posso ga¬rantir: ele não tinha drogas quando saí de lá às nove horas daquela noite.

Jason inclinou-se para diante, baixando a voz.

— Nessa noite, o Dr. Hayes me falou que havia feito uma importante descoberta. Ele lhe contou algo sobre isso?

— Ele mencionou qualquer coisa. Mas isso foi há três meses.

Por um momento Jason se permitiu sentir-se otimista. Aí Carol explicou que não sabia que descoberta era essa.

— Ele não confiava em você?

— Ultimamente não. Nós estávamos assim meio se-parados.

— Mas você estava vivendo com ele. Ou será que os jor¬nais noticiaram errado quanto a isso também?

— Nós estávamos vivendo juntos — admitiu Carol —, mas no final éramos só companheiros de apartamento. O nosso relacionamento tinha se deteriorado. Ele realmente mudara. Não era apenas um problema físico; toda a sua personalidade estava diferente. Ele parecia retraído, quase paranóide. Vivia dizendo que precisava conversar com você, e eu procurei encorajá-lo nesse sentido.

— Você realmente não tem nenhuma idéia sobre o teor da descoberta? — insistiu Jason.

— Lamentavelmente, não. — disse Carol, abrindo as mãos num gesto de quem pede desculpas. — Só me lembro de ele ter dito que a descoberta era uma espécie de ironia da ciência. Lembro-me disso porque me pareceu uma forma es-quisita de caracterizar o êxito.

— Ele me disse a mesma coisa.

— Pelo menos ele era coerente. Seu único comentário foi que, se tudo corresse bem, eu iria gostar da descoberta, por¬que era bonita. Foram essas exatamente as palavras dele.

— Ele não esclareceu mais nada?

— Foi só isso que ele disse.

Tomando um gole do cappuccino, Jason olhou mais demoradamente o rosto de Carol. De que maneira uma desco-berta que era uma ironia da ciência haveria de beneficiar uma moça bonita? Sua mente procurou conciliar essa afirmação com a impressão que tinha de que a descoberta de Hayes se relacionava com a cura do câncer. Mas nada se encaixava.

Terminando de tomar seu chá, Carol levantou-se.

— Foi um prazer encontrá-lo — disse ela, estendendo a mão.

Jason levantou-se, sem jeito, agarrando sua cadeira para evitar que ela tombasse. Estava surpreso com a súbita despe¬dida dela.

— Eu não pretendo ser rude — disse ela —, mas tenho um compromisso. Espero que solucione o mistério. Alvin tra-balhava com muito empenho. Seria uma tragédia se ele tives-se descoberto algo importante e isso se perdesse.

— É exatamente o que penso — falou Jason, inconfor-mado por ver que ela poderia desaparecer. — Podemos nos encontrar de novo? Ainda há tanta coisa que eu gostaria de discutir.

— Suponho que sim. Mas estou bastante ocupada. Quan¬do você acha que pode?

— Que tal amanhã? — sugeriu Jason, avidamente. — Al¬moço de domingo.

— Teria de ser tarde. Eu trabalho à noite, e sábado é o dia mais movimentado.

Isso Jason bem podia imaginar.

— Por favor — disse ele. — Pode ser importante.

— Está bem. Digamos, duas horas da tarde. Onde?

— Que tal na Hampshire House?

— De acordo — disse Carol, juntando suas sacolas e a sombrinha. Com um sorriso de despedida, ela saiu do café.

 

Olhando no seu relógio de pulso, apressou o passo. O impre¬visto encontro com Jason não figurava no seu apertado horá¬rio, e ela não queria chegar atrasada ao encontro com o orientador de PhD. Ficara até tarde desse dia e no início da manhã retocando o terceiro capítulo da tese que estava escre-vendo, e ansiava por ouvir a opinião do professor. Tomou a escada rolante que levava até ao andar térreo, enquanto pen-sava na conversa que tivera com Dr. Howard.

Fora uma surpresa encontrar o homem, depois de ter ou¬vido falar nele por tanto tempo. Alvin lhe contara que Jason perdera a esposa e reagira a essa tragédia modificando com-pletamente o seu ambiente e entregando-se totalmente ao tra-balho. Carol achara essa história fascinante, porque sua tese tinha a ver com a psicologia do luto. Parecia, assim, que o caso do Dr. Jason Howard, como um caso clínico, ilustrava sua tese.

O porteiro do Weston Hotel soprou o apito e produziu um silvo que feriu os ouvidos de Carol, fazendo-a encolher-se. Enquanto o táxi se aproximava roncando, ela admitiu que sua reação diante do Dr. Jason Howard fora um pouco além do puro interesse profissional. Achara que ele possuía uma atração incomum, e compreendeu que, conhecendo seus pon-tos vulneráveis, maior era a atração que ele exercia. Até mes-mo a sua falta de desenvoltura social tinha uma qualidade cativante.

— Harvard Square — disse Carol, assim que entrou no táxi. E se deu conta de que pensava no almoço do dia seguinte.

 

Ainda sentado diante da xícara de café que esfriava, Jason admitiu que fora pego inteiramente de surpresa diante da ines¬perada inteligência e encanto pessoal de Carol. Ele esperava encontrar uma moça de pouca instrução, vinda de alguma pe¬quena cidade, uma garota que de algum modo largara os es¬tudos seduzida pela perspectiva de ganhar dinheiro ou pelas drogas. Mas encontrara uma mulher madura e afável bastan¬te capaz de manter uma conversação. Que tragédia, uma pes¬soa assim, com suas evidentes aptidões, ter-se misturado ao mundo sórdido em que vivia...

O som insistente e estridente do seu beeper forçou-o a vol¬tar à realidade. Desligou o aparelhinho e olhou no pequeno mostrador. A palavra "urgente" piscou duas vezes, seguida de um número de telefone que Jason não identificou. Tendo visto a identidade médica apresentada por Jason, o gerente do Au Bon Pain permitiu que ele usasse o telefone localizado atrás da caixa registradora.

— Obrigada por ter telefonado, Dr. Howard. Aqui é a Sra. Farr. Meu marido, Gerald Farr, passou a sentir terríveis dores no peito e está com dificuldade de respirar.

— Chame uma ambulância — disse Jason. — Leve-o à emergência do GHP. O Sr. Farr é paciente meu? — Jason ti-nha a impressão de que esse nome lhe era conhecido, mas não conseguia lembrar a pessoa.

— Sim — disse a Sra. Farr. — O Sr. fez um exame de saúde nele há duas semanas. Ele é vice-presidente sênior da Boston Banking Company.

Oh, não!, pensou Jason enquanto recolocava o telefone no gancho. Está acontecendo de novo. Tendo-se decidido por deixar seu carro na Beacon Street até ter resolvido essa emer-gência, saiu apressadamente do café e dirigiu-se para o ponto de táxi junto ao hotel que fazia parte do conjunto Copley Pla-za, onde tomou um táxi.

Jason chegou à sala de emergência do GHP antes do ca¬sal Farr. Avisou Judith do que se tratava, e também o serviço de anestesia, ficando satisfeito ao saber que era Philip Barnes que estava de plantão.

Ao ver Gerald Farr, Jason percebeu imediatamente que seus piores receios se concretizavam. O homem estava com uma dor insuportável, tinha uma cor pálida de leite desnatado e visíveis bagas de suor na testa.

O eletrocardiograma, feito de imediato, mostrou que uma extensa área do seu coração havia sofrido lesão. Não ia ser um caso fácil. Morfina e oxigênio ajudaram a acalmar o pa-ciente; administraram-lhe também lidocaína para prevenir a ocorrência de extra-sístoles. Mas, apesar de tudo, ele não apre¬sentou melhoras. Estudando um outro eletrocardiograma, Ja¬son teve a impressão de que a área enfartada estava se expandindo.

Em desespero, experimentou de tudo. Mas nada deu cer¬to. Quando faltavam cinco minutos para as quatro da tar¬de, os olhos do paciente viraram para cima e seu coração parou.

Como de hábito, Jason não quis desistir de nenhuma pos¬sibilidade e por isso liderou ele mesmo as tentativas de ressuscitação. Estas fizeram com que o coração, recomeçasse a pulsar várias vezes, só que, sempre que eram suspensas, ele retorna¬va ao padrão de inatividade da morte.

Farr nunca mais recuperou a consciência. Às 6:30, Jason finalmente declarou o paciente morto.

— Merda! — disse Jason, com aversão a si mesmo e à vida em geral. Ele não tinha o costume de dizer palavrões, e por isso desta vez Judith Reinhart teve sua atenção voltada para a exclamação de Jason. Ela inclinou a cabeça no ombro de Jason e passou o braço em torno do seu pescoço.

— Jason, você fez tudo que foi possível — disse ela com delicadeza. — Fez o melhor que qualquer um poderia fazer. Mas os nossos poderes são limitados.

— Esse homem tinha só 58 anos — disse Jason, refrean¬do lágrimas de frustração.

Judith pediu que os residentes e enfermeiras saíssem da sa¬la. Voltando para perto de Jason, colocou a mão no seu ombro.

— Olhe para mim, Jason! — disse ela.

Com relutância, Jason voltou o rosto para a enfermeira. Uma única lágrima escorreu do canto do seu olho, ao longo do sulco paranasal. De um modo delicado, mas ao mesmo tem-po firme, ela falou a Jason que ele não podia enfrentar esses casos de uma forma tão pessoal.

— Sei que duas mortes num dia são uma carga terrível — acrescentou ela. — Mas não é falha sua.

Jason sabia, intelectualmente, que ela estava com a ra-zão; emocionalmente, porém, era uma outra história. Além disso, Judith não tinha nenhuma idéia da evolução ruim dos pacientes internados de Jason, especialmente de Matthew Cowen, e o médico achava embaraçoso ter de falar sobre isso. Pela primeira vez, pensou seriamente em abandonar a medi-cina. Infelizmente, não tinha nenhuma idéia de que outra coisa poderia fazer. Não estava preparado para nenhum outro tipo de atividade.

Depois de garantir a Judith que estava bem, saiu para en¬frentar a situação diante da Sra. Farr, procurando mostrar-se forte diante da sua possível inconformidade e irritação. Mas a Sra. Farr, no seu profundo sentimento de pesar, terminou por assumir a carga de culpa. Contou que o marido se quei¬xara de estar se sentindo mal durante uma semana, mas que ignorara suas queixas porque, sinceramente, ele sempre tinha sido um pouco hipocondríaco. Jason tentou consolar a mu¬lher assim como Judith procurara consolá-lo. O êxito que ob¬teve foi mais ou menos o mesmo.

Confiando em que o médico-legista se encarregaria do ca¬so, Jason não sobrecarregou a Sra. Farr com uma solicitação para que autorizasse a autópsia. Por lei, o médico-legista não necessitava de autorização para efetuar autópsia em casos de morte questionáveis. Mas, para ter certeza, Jason telefonou para Margaret Danforth. A resposta foi conforme esperava: ela realmente queria se encarregar do caso; enquanto falava com ele ao telefone, aproveitou para conversar a respeito de Holly Jennings.

— Eu retiro aquele comentário indevido que fiz hoje pe-la manhã — disse Margaret. — Vocês aí estão tendo simples-mente má sorte. Essa senhora Jennings estava num estado tão mau quanto Cedric Harring. Todos os seus vasos sangüíneos estavam com péssimo aspecto, e não só o coração.

— Isso não é grande consolo — falou Jason. — Eu ti-nha acabado de realizar um exame completo nela e constata-ra que tudo estava bem. Fiz um eletrocardiograma de acompanhamento na quinta-feira, mas ele acusava apenas al-terações mínimas.

— É mesmo? Pois então espere para ver os cortes histológicos. Pelo exame macroscópico, as artérias coronárias pa¬reciam apresentar uma oclusão de noventa por cento, e disseminada, não focai. A cirurgia não teria adiantado nada. Aliás, andei verificando e concluí que não há nenhum proble-ma em cedermos a vocês algumas amostras do material do caso Jennings. Mas vou precisar de uma solicitação por escrito.

— Não há problema — disse Jason. — A mesma coisa no caso de Farr?

— É claro.

Jason tomou um táxi para voltar ao local em que deixara o seu carro, e depois foi para casa. Apesar do nevoeiro e da chuva, quando chegou em casa, resolveu sair para praticar jogging. Ficar respingado de lama e empapado de água de chuva teve um leve efeito catártico. Depois de tomar um banho de chuveiro, sentiu-se um pouco mais aliviado de suas emoções penosas e dos sentimentos de depressão. Justamente quando começava a pensar em comida, Shirley telefonou e convidou-o para jantar. Sua primeira reação foi dizer não. Mas depois reconheceu que se sentia muito deprimido para ficar sozinho, e por isso aceitou. Tendo vestido uma roupa razoável, desceu para apanhar o carro e dirigiu-se para Brookline.

 

A aeronave do vôo 409 da Eastern, sem escalas, de Miami pa¬ra Boston, fez uma inclinação acentuada antes de alinhar pa¬ra a aproximação final. Tocou o solo às 7:37, quando então Juan Díaz fechou sua revista e olhou para fora, para a paisa¬gem de Boston envolta em nevoeiro. Esta era a segunda via¬gem que ele fazia a Boston, e não se sentia lá muito satisfeito. Ficou a pensar que motivo levaria alguém a resolver morar numa cidade assim, onde o mau tempo era tão freqüente. Tam¬bém havia chovido na sua viagem anterior, apenas alguns dias antes. Olhando para a pista pavimentada com asfalto, pôde perceber o vento e a chuva nas poças d'água, e, com nostal¬gia, lembrou-se de Miami, onde o final do outono põe um fim no calor escaldante do verão.

Puxou a bolsa que estava debaixo do assento em frente, e se pôs a conjeturar por quanto tempo haveria de permane¬cer em Boston. Lembrou-se de que, na viagem anterior, fica¬ra ali apenas dois dias, e não tivera nada a fazer. Imaginou se não teria agora a mesma boa sorte. Afinal de contas, não importava como, ele ganhara seus cinco mil dólares.

O avião taxiou em direção ao terminal. Juan olhou ao seu redor na cabine de passageiros, com um sentimento de or¬gulho. Desejava que sua família, que ficara em Cuba, pudes¬se vê-lo agora. Seus familiares ficariam admirados! Aí estava ele, voando na primeira classe. Depois de ter sido condenado à prisão perpétua pelo governo de Castro, fora libertado de¬pois de uma pena de somente oito meses e enviado primeira¬mente a Mariel e, depois, sua maior surpresa, para os Estados Unidos. Essa então era a sua punição por ter sido considera¬do culpado e condenado por diversos assassinatos e estupros — ser mandado para os Estados Unidos! Era bem mais fácil executar o seu tipo de trabalho nos Estados Unidos. Juan sentia que a pessoa que ele mais gostaria de cumprimentar com um aperto de mão era um certo ex-presidente, que, através de uma iniciativa supostamente humanitária, acolhera nos Estados Uni¬dos grande número de criminosos "exportados" de Cuba.

O avião deu uma freada final, e então parou completamente. Juan pôs-se de pé e espreguiçou-se. Pegou a sua bolsa de mão e dirigiu-se para o setor de recepção de bagagem. Tendo apanha¬do sua mala, tomou um táxi para o Royal Sonesta Hotel, onde se registrou como Carlos Hernández, de Los Angeles. Tinha até um cartão de crédito nesse nome, com um número legítimo. Sabia que o número era verdadeiro, pois o tirara de uma receita que havia encontrado no shopping center Bal Harbour em Miami. Depois de confortavelmente relaxado em seu quarto, com seu segundo terno pendurado no armário, sentou-se à escri-vaninha e deu um telefonema para um número que lhe havia sido dado em Miami. Quando a chamada foi atendida, ele disse à pessoa que precisava de uma arma, de preferência calibre 22. Depois de tomar essa providência, riscou do caderninho o nome e o endereço, e verificou a localização no mapa da cidade fornecido pelo hotel. Não era longe.

 

As horas da noite passadas com Shirley foram muito agradá¬veis. Jantaram frango assado, alcachofra e arroz. Depois, to¬maram Grand Marnier, diante da lareira na sala, e conversaram. Jason sabia que o pai de Shirley fora médico e que ela, em outra época, quando estudante, andara pensan¬do em seguir os passos do pai.

— Mas meu pai me dissuadiu disso — falou Shirley. — Disse que a medicina estava mudando.

— Tinha razão quanto a isso.

— Ele me dizia que a medicina ia ser dominada por gran¬des empresas e que todo aquele que se preocupasse em ter uma carreira profissional deveria entrar para a área de administra¬ção. Por isso eu mudei e resolvi fazer cursos de administra¬ção; acredito que fiz a escolha acertada.

— Tenho certeza que sim — concordou Jason, pensan-do na papelada que sempre tinha de preencher e nos proble-mas médicos de responsabilidade profissional. A medicina realmente havia mudado. O fato de que ele agora trabalhava por um salário para uma empresa constituía uma prova dessa mudança. Quando freqüentava a faculdade de medicina, sem-pre havia imaginado que iria trabalhar por conta própria. Is¬so fazia parte da atração que a medicina exercia sobre ele.

No fim da noite, houve um certo constrangimento. Jason disse que achava melhor ir embora, mas Shirley encorajou-o a ficar.

— Você acha que isso seria uma boa idéia? — pergun-tou Jason. Ela fez que sim.

Jason não tinha tanta certeza assim, e disse que tinha de acordar cedo para as visitas aos leitos no hospital e não gos¬taria de incomodá-la. Shirley insistiu, dizendo que costuma¬va acordar às sete e meia, inclusive aos domingos.

Permaneceram olhando um para o outro durante algum tempo; a chama da lareira fazia o rosto de Shirley ficar ilu-minado.

— Não há nenhuma obrigação — disse Shirley, com de¬licadeza. — Sei que ambos temos de ir devagar com isso. Va¬mos simplesmente ficar juntos. Temos estado sob tensão.

— Está bem — disse Jason, reconhecendo que não tinha forças para resistir. Além disso, sentia-se lisonjeado por Shir¬ley insistir dessa maneira. Estava se tornando mais permeável à idéia de que não só poderia dedicar-se a uma pessoa, como também essa pessoa poderia dedicar-se a ele.

Mas Jason não conseguiu dormir a noite toda. Às três e meia da madrugada, sentiu a mão dela no seu ombro; sentou-se na cama, por uns momentos sentindo-se confuso quanto ao lugar em que estava. Na penumbra, mal conseguia divisar o rosto de Shirley.

— Desculpe-me ter que incomodá-lo — disse ela com amabilidade —, mas me parece que o telefonema é para você. — Ela alcançou-lhe o receptor do telefone na mesinha-de-cabeceira.

Jason pegou o telefone e agradeceu. Ele não tinha sequer ouvido o telefone tocar. Escorou-se num dos cotovelos e co¬locou o fone no ouvido. Teve certeza de que vinha notícia ruim, e foi o que aconteceu. Matthew Cowen tinha sido encontrado morto no leito; aparentemente sofrera um acidente vascular cerebral fulminante, mortal.

—  A família foi notificada? — perguntou Jason.

— Sim — disse a enfermeira. — Moram em Minneapo-lis. Disseram que viriam de manhã.

— Obrigado — disse Jason, meio zonzo, devolvendo o telefone a Shirley.

— Algum problema? — perguntou Shirley. — Ela reco-locou o fone no gancho.

Jason sacudiu a cabeça afirmativamente. Problemas eram o que de mais tinha agora.

— Um paciente jovem morreu. Trinta e cinco anos, mais ou menos. Tinha cardiopatia reumática. Estava internado para avaliação com vistas a cirurgia.

— Era muito grave a cardiopatia? — perguntou Shirley.

— Sim — disse Jason, que ainda podia ver o rosto de Matthew; lembrava-se da ocasião em que ele fora internado no hospital. — Três das quatro válvulas cardíacas estavam afe-tadas. Seria necessário substituir todas.

— Então não havia nenhuma garantia — disse Shirley.

— Nenhuma — concordou Jason. — Substituir três vál-vulas podia ser coisa muito arriscada. Teve insuficiência car-díaca congestiva durante muito tempo, e isso, sem dúvida, afetou-lhe o coração, pulmões, rins e fígado. Teria havido pro-blemas, mas ele estava numa idade ainda favorável.

— Talvez tenha sido melhor assim — sugeriu Shirley. — Vai ver, ele foi poupado de muito sofrimento. É bem possível que tivesse de levar o resto da vida com internações em hospi¬tal de vez em quando.

— Quem sabe — disse Jason, sem convicção. Sabia o que Shirley estava tentando fazer: melhorar o seu ânimo.

Jason soube dar valor ao esforço dela. Tocou-lhe a co-xa, através da fina cobertura da camisola: — Obrigado pelo seu apoio.

A noite parecia terrivelmente fria quando Jason saiu às pressas para apanhar seu carro. Ainda chovia, e bem mais forte que antes. Ligando a calefação, Jason esfregou as mãos nas coxas para ativar a circulação. Pelo menos não havia tráfego. Às quatro horas da madrugada de domingo, as ruas da cidade estavam desertas. Shirley procurara convencê-lo a ficar, argu¬mentando que não havia nada a fazer se o paciente havia mor¬rido e a família ainda nem comparecera ao hospital. Embora is¬so fosse verdade, Jason sentia, em relação ao seu paciente, uma obrigação da qual não conseguia fugir. Além do mais, sabia que não conseguiria conciliar novamente o sono. Pelo menos não agora, quando mais uma morte lhe afligia a consciência.

O estacionamento do GHP estava quase totalmente va-zio. Jason pôde estacionar perto da portaria do hospital, em vez de sob o prédio dos ambulatórios, onde habitualmente es-tacionava. Ao sair do carro, preocupado com seus pensamentos em torno de Matthew Cowen, não percebeu um vulto envolto na sombra e agachado junto à porta do hospital. Contornan¬do a frente do carro, o vulto avançou rápido em direção a Ja¬son. Pego totalmente desprevenido, Jason deu um grito. Mas aí percebeu que o vulto era um dos bêbados de rua que fre¬qüentava a sala de emergência do GHP, e que pedia uns tro¬cados. Com as mãos ainda tremendo, Jason deu-lhe um dólar, esperando que o homem pelo menos fosse comprar um pou¬co de comida.

Shirley tinha razão. Não havia nada que Jason pudesse fazer, exceto escrever uma anotação final na papeleta de Mat-thew Cowen. Ele entrou e viu o corpo do morto. Pelo menos sua fisionomia parecia tranqüila, e, conforme observara Shir-ley, ele agora estava livre de sofrimentos. Em silêncio, Jason pediu desculpas ao homem morto.

Telefonou para o residente de plantão e deu-lhe instru-ções no sentido de obter da família autorização para a autóp-sia. Explicou que nas próximas horas não estaria disponível. Sentia-se mais inútil do que nunca, depois dessas noites; saiu do hospital e voltou ao seu apartamento. Ficou deitado por algum tempo, olhando para o teto, sem conseguir dormir. E imaginou se haveria algum tipo de atividade que pudesse de-sempenhar na indústria farmacêutica.

CEDRIC HARRING, Brian Lennox, Holly Jennings, Gerald Farr, e agora Matthew Cowen. Jason nunca perdera tantos pacientes num período de tempo tão curto. A noite toda, as fisionomias desses pacientes não pararam de interferir em seus sonhos. Quando acordou, pelas onze horas da manhã, estava tão exausto como se absolutamente não tivesse dormido. Te¬ve de se obrigar a fazer os seus dez quilômetros, um hábito dominical, depois tomou um banho de chuveiro e vestiu as roupas que escolhera com cuidado: camisa bege com colari¬nho branco e mangas compridas, calça marrom-escura e pa¬letó xadrez marrom-claro de linho e seda. Sentiu-se contente por ter esse encontro com Carol para distraí-lo.

A Hampshire House ficava na Beacon Street, em frente aos jardins do parque municipal de Boston. Num nítido con-traste com o dia anterior, que fora chuvoso, agora o céu bri-lhava com a luz do sol e havia nuvens esparsas impelidas pelo vento. A bandeira dos Estados Unidos, hasteada no alto da entrada da Hampshire, tremulava na brisa do fim de outono. Jason chegou cedo e pediu uma mesa no salão da frente, no primeiro andar. Uma lareira acesa crepitava, dando um cli¬ma acolhedor, e um pianista executava antigas músicas de su¬cesso.

Jason reparou nas pessoas em torno. Eram pessoas bem vestidas e distintas, conversando animadas; evidentemente ig¬noravam completamente alguma nova doença capaz de devas¬tar sua cidade... Aí Jason se deu conta de que não devia deixar sua imaginação correr solta, nem se deixar levar por essas impressões. Afinal, uma meia dúzia de mortes não significava uma epidemia. Além do mais, nem mesmo sabia se o proble¬ma era de natureza infecciosa. Mesmo assim, não conseguia afastar da mente esses óbitos recentes.

Carol chegou cinco minutos depois das duas. Jason levantou-se, fazendo um gesto para atrair a sua atenção. A moça usava umas roupas que lhe ficavam muito bem: uma blusa branca de seda e calça comprida de lã preta. Seu aspec¬to jovem, inocente e bem disposto, longe do clube, sempre im¬pressionava Jason. Ao notar sua presença, ela deu um largo sorriso e encaminhou-se diretamente para a mesa onde ele a esperava. Pareceu um pouco ofegante.

— Desculpe o meu atraso — falou ela, ajeitando suas coi¬sas, uma jaqueta de camurça, uma sacola de lona, cheia de material de estudo, e uma bolsa a tiracolo. Depois de tê-las colocado em ordem, ao lado, olhou diversas vezes para a en-trada do recinto.

— Você está esperando alguém? — perguntou Jason.

— Naturalmente que não. Mas tenho aquele patrão ma-luco, que insiste em ser superprotetor. Especialmente depois que Alvin morreu. Ele mantém alguém junto a mim a maior parte do tempo, supostamente para minha proteção. À noite, não me importo; mas, durante o dia, não gosto disso. O Sr. Músculos apareceu hoje pela manhã, mas eu o mandei embo-ra. Talvez ele tenha dado um jeito de me seguir.

Jason conjeturou se deveria mencionar aquele seu en-contro com Bruno, mas decidiu silenciar. Somente depois de terem sido servidos, e de não terem avistado o corpanzil de Bruno, foi que ambos começaram a se sentir um pouco mais à vontade.

— Eu provavelmente deveria ser mais agradecida ao meu patrão — disse Carol. — Ele tem sido muito bom para mim. Agora mesmo, estou morando em um dos apartamentos de¬le, na Beacon Street. Nem mesmo pago aluguel.

Jason não quis pensar em todos os motivos para o pa-trão de Carol querer que ela tivesse um bom apartamento. Um tanto perturbado com essas idéias, voltou a atenção para sua omelete.

— Então... — disse Carol, gesticulando com o garfo. — O que mais você queria me perguntar? — Ela tomou uma por-ção de seu assado.

— Você se lembra de algo mais a respeito da descoberta feita por Alvin Hayes?

— Não — disse Carol, engolindo. — Além disso, mes-mo quando ele costumava conversar comigo sobre o seu tra-balho, eu achava suas explicações incompreensíveis. Ele sempre esquecia que nem todo mundo é físico nuclear. — Carol riu, e seus olhos tinham uma cintilação atraente.

— Soube que Alvin fazia trabalho free-lance para uma outra empresa de bioengenharia — disse Jason. — Você sabe algo sobre isso?

— Acho que você está se referindo a Gene, Inc. — Ca-rol fez uma pausa, enquanto seu sorriso desaparecia. — Isso devia ser um grande segredo. — Ela inclinou a cabeça para um lado. — Mas agora que ele está morto, parece-me não ha-ver razão para isso. Ele trabalhou para eles durante mais ou menos um ano.

— Você sabe o que ele fez para essa empresa?

— Não, realmente não sei. Alguma coisa de hormônio do crescimento. Mas ultimamente tinham tido um desenten-dimento. Alguma coisa referente a dinheiro. Não sei dos de-talhes...

Jason compreendeu que, afinal de contas, estava certo. Helene havia sonegado alguma informação. Se Hayes tinha tido desentendimento com Gene, Inc., Helene devia ter conhe-cimento disso.

— O que você sabe a respeito de Helene Brennquivist?

— Ela é uma boa pessoa. — Carol depôs o seu garfo no prato. — Bom... isso não é totalmente sincero. Ela provavel-mente é uma boa pessoa, claro. Mas, para lhe dizer a verda¬de, foi por sua causa que Alvin e eu deixamos de ser amantes. Como eles trabalhavam juntos em tantas coisas, ela começou a vir até ao nosso apartamento. Depois descobri que estavam tendo um caso. Isso eu não pude agüentar. Incomodou-me que ela agisse assim, com tanto segredo, ainda mais debaixo do meu nariz, em minha casa.

Jason sentiu-se surpreso. Achava que Helene estava re¬tendo informações, mas nunca lhe passara pela cabeça a idéia de que a moça tinha tido um caso amoroso com Hayes. Ten¬tou perscrutar a fisionomia de Carol. Pôde perceber que a men¬ção do caso havia redespertado nela sentimentos desagradáveis. Ficou a imaginar se Carol sentira em relação a Hayes a mes¬ma irritação que sentia em relação a Helene.

— E quanto à família de Hayes? — perguntou ele, mu-dando, deliberadamente, de assunto.

— Não sei muito da família dele. Falei com sua ex-esposa, ao telefone, uma ou duas vezes, mas nunca pessoalmente. Eles estavam divorciados fazia cinco anos, mais ou menos.

— Hayes tinha filhos?

— Três. Dois meninos e uma menina.

— Sabe onde eles moram?

— Numa cidadezinha em Nova Jersey. Leonia, ou algo parecido. Lembro-me, porém, da rua — Park Avenue. Esse nome me pareceu muito pretensioso.

— Ele alguma vez disse algo sobre doença de um dos seus filhos?

Carol balançou a cabeça negativamente. Fazendo sinal para uma garçonete, indicou que desejava mais café. Come-ram em silêncio durante algum tempo, apreciando a comida e o ambiente.

De repente o beeper de Jason tocou, e ambos tiveram um leve sobressalto. Felizmente era apenas um chamado do hos¬pital, avisando que a família de Cowen finalmente chegara de Minneapolis e esperava poder encontrar Jason no hospital por volta de quatro da tarde.

Voltando do telefone, Jason sugeriu que aproveitassem o tempo bom e dessem uma caminhada no parque em frente. Depois que haviam cruzado pela Beacon Street, ela tomou seu braço. Ele se sentiu surpreso, e gostou do gesto dela. Apesar da profissão um tanto dúbia que ela exercia, Jason tinha de admitir que a sua companhia lhe agradava imensamente. Além de ter uma aparência pessoal saudável, ela possuía também uma vitalidade que se transmitia a ele.

Andando, contornaram a parte do lago onde ficavam os barquinhos de passeio, passaram junto à estátua eqüestre de Washington e depois atravessaram a ponte que transpõe um braço do lago. Os barquinhos tinham sido retirados porque já era a estação fria. Encontrando um banco vazio, debaixo de um salgueiro já sem folhas, ali se sentaram, e Jason recon-duziu a conversa para Hayes.

— Ele fez alguma coisa fora do habitual nestes últimos três meses? Alguma coisa inesperada... fora da rotina?

Carol pegou no chão uma pedrinha e atirou-a na água.

— Essa é uma pergunta difícil — falou ela. — Uma das coisas de que eu gostava em Alvin era a sua impulsividade. Fazíamos um bocado de coisas com base no impulso do mo-mento, como viajar, por exemplo.

— Ele viajou muito recentemente?

— Ah, sim — falou Carol, procurando no chão mais um seixo. — Ainda neste último mês de maio ele foi à Austrália.

— E você foi?

— Não. Ele não me levou. Disse que era uma viagem es¬tritamente de trabalho e que precisava que Helene o ajudasse com diversos testes. Na época, acreditei nele, de boba que eu era.

— Você alguma vez descobriu quais eram os negócios dele?

— Era algo que envolvia camundongos australianos. Lembro-me dele dizendo que esses camundongos tinham há-bitos peculiares. Mas foi só isto que eu soube. Ele tinha mui¬tos camundongos e ratos no seu laboratório.

— Eu sei — disse Jason, lembrando-se, com toda a niti-dez, dos animais mortos, todos contorcidos, Jason tinha per-guntado  se Hayes  andara tendo algum  comportamento estranho. Uma súbita viagem à Austrália podia ser conside-rada uma coisa esquisita; mas não se sabendo nada sobre seus estudos atuais, era difícil ter certeza. Jason teria de averiguar isso com Helene.

— Alguma outra viagem?

— Eu fui com ele a Seattle.

— Quando foi isso?

— Em meados de julho. Parece que a velha Helene não estava em condições de ir, e Alvin precisava de motorista.

— Motorista?

— Essa era uma outra coisa estranha em Alvin — disse Carol. — Ele não sabia dirigir. Dizia que nunca aprendera e nem iria aprender.

Jason lembrou-se de que, na noite em que Hayes morre¬ra, o policial comentara que ele não tinha consigo carteira de motorista.

— Que aconteceu em Seattle?

— Pouca coisa. Estivemos na cidade só uns dois dias. Vi¬sitamos, sim, a Universidade de Washington. Depois fomos até as Cascades. Certamente que é uma região bonita, mas se você acha que chove muito em Boston, então espere até visi¬tar a Costa Noroeste, no Pacífico. Já esteve lá?

— Não — disse Jason, distraído. Ele estava procurando adivinhar que tipo de descoberta exigiria viagens a Seattle e à Austrália.

— Quanto tempo você esteve em viagem?

— Em que ocasião?

— Quero dizer, viajou mais de uma vez?

— Duas vezes — disse Carol. — A primeira viagem foi de cinco dias. Visitamos a Universidade de Washington e os principais pontos turísticos da cidade. Na segunda, algumas semanas mais tarde, ficamos lá somente duas noites.

— Você fez as mesmas coisas nas duas vezes? Carol balançou a cabeça negativamente.

— Na segunda viagem nem paramos em Seattle, fomos diretamente às Cascades.

— Mas, afinal de contas, o que vocês fizeram?

— Eu simplesmente não fiz nada, apenas relaxei. Ocu-pamos uma cabana. Foi maravilhoso.

— E Alvin? O que fez ele?

— Mais ou menos a mesma coisa. Mas estava interessa¬do em ecologia, essas coisas. Você sabe, sempre o cientista.

— Então foi como umas férias — perguntou Jason, pro-fundamente perplexo.

— Acho que sim. — Ela jogou outra pedrinha na água.

— O que Alvin fez na Universidade de Washington? — perguntou Jason.

— Avistou-se com um velho amigo. Não consigo lem-brar o nome. Era alguém com quem se formara em Colúmbia.

— Um geneticista molecular, como ele?

— Acredito que sim. Mas não ficamos lá por muito tempo. Eu visitei o departamento de psicologia enquanto eles dois conversavam.

— Isso deve ter sido interessante. — Jason sorriu, imagi¬nando que o departamento de psicologia teria gostado de pôr suas mãos acadêmicas em algo parecido com Carol Donner.

— Droga! — exclamou ela de repente, olhando para o seu relógio de pulso. — Vou ter que correr. Tenho um outro compromisso.

Jason levantou-se, tomando a mão dela. Sentia-se impres¬sionado com a delicadeza com que ela se referia ao seu traba¬lho. "Um compromisso" soava muito profissional. Cami¬nharam até a orla do parque.

Carol recusou a carona que Jason lhe ofereceu. Despediu-se e foi andando pela Beacon Street. Jason ficou olhando a moça até o vulto desaparecer na distância. Ela parecia tão des¬preocupada e feliz. Que tragédia, pensou ele. O tempo, que parece ilimitado para a sua mente jovem, logo virá cobrar sua dívida. Que destino estranho: ganhar a vida dançando de to¬pless e tendo encontros com homens. Jason não gostou de pen¬sar nisso. Voltando-se para a direção oposta, foi a pé até o supermercado De Luca e comprou os ingredientes para um jan¬tar simples: frango assado e verduras para salada. Enquanto isso, repassava na memória a conversação que tivera com Ca¬rol. Tinha, agora, mais informações, só que estas suscitavam mais perguntas do que conclusões. Mesmo assim, agora tinha certeza de duas coisas. Primeira, Hayes efetivamente havia rea¬lizado uma descoberta; segunda, a chave era Helene Brenn¬quivist.

 

Em menos de 24 horas, Juan tinha todo o cenário planejado. Como este golpe certamente fugiria aos padrões tradicionais, a coisa exigia mais reflexão. A tática usual consistia em exe¬cutar a vítima no meio de uma multidão, encostar-lhe uma pistola de pequeno calibre na cabeça e pou!, tudo acabado. Esse tipo de operação exigia pouco planejamento, apenas as circunstâncias certas. O êxito da ação baseava-se na psicolo¬gia típica das multidões. Depois de um evento chocante, cada um se concentra tanto na vítima, que o autor da execução po¬de se misturar à multidão sem ser notado, até mesmo simular ser um dos circunstantes curiosos. Tudo que tinha a fazer era deixar cair a arma.

Mas as instruções na presente incumbência eram diferen¬tes. O serviço de agora devia ter a aparência de um estupro, a especialidade de Juan. Ele sorriu para si mesmo, surpreso por se ver pago por uma coisa que costumava fazer como uma diversão. Os Estados Unidos eram um lugar estranho e mara¬vilhoso, onde a lei, em muitos casos, dispensava mais consi¬deração ao criminoso do que à vítima.

Juan compreendeu que, desta vez, tinha de apanhar sua vítima sozinha. E esse era o desafio principal agora. E tam¬bém o que tornava a coisa mais divertida, porque, sem teste¬munhas, ele podia fazer o que bem lhe aprouvesse com a mulher, contanto que, ao abandoná-la, ela estivesse morta.

Juan decidiu seguir a vítima e abordá-la no hall de entra¬da do edifício onde morava. A ameaça de agressão física ime¬diata, feita num tom de voz baixo mas decidido, devia ser suficiente para persuadi-la a levá-lo consigo até seu aparta-mento. Uma vez ali, seria tudo uma enorme diversão, um jogo.

Ele seguiu o alvo numa curta caminhada para compras, na Harvard Square. Ela comprou uma revista numa banca na esquina, depois dirigiu-se a uma mercearia chamada Sages. Juan ficou no outro lado da rua, em frente, examinando a vitrine de uma livraria, surpreso por ver o estabelecimento aber¬to no domingo. O alvo saiu da mercearia com uma sacola de plástico de compras, atravessou a rua em diagonal e desapa¬receu numa padaria e café. Juan acompanhou-a — café era bom, ainda que do tipo americano. Ele preferia café cubano: espesso, doce, com aroma forte.

Enquanto bebericava seu café meio aguado, olhou demo¬radamente sua vítima. Estava encantado com a sua boa sor¬te. A mulher era linda. Calculou que devia ter vinte e poucos anos. Que coisa, pensou. Já podia sentir-se todo retesado. Não iria fraquejar.

Meia hora depois, o alvo terminou, pagou e saiu do ca-fé. Juan jogou uma nota de dez dólares sobre a mesa. Sentiu-se generoso. Afinal de contas, estaria cinco mil dólares mais rico quando voltasse a Miami.

Para sua satisfação, a mulher prosseguiu andando pela Brattle Street. Ele retardou o passo, contentando-se com sim-plesmente mantê-la à vista. Quando ela dobrou na Concord, ele apressou o passo, pois sabia que ela estava quase chegan¬do em casa. Quando ela alcançou o Conjunto Residencial Craigie Arms, Juan estava logo atrás dela. Uma rápida olhada para os dois lados da Concord Avenue indicou-lhe que o momento era perfeito. Agora a coisa dependia do que estava acontecendo no interior do edifício.

Juan fez uma pausa por um tempo suficiente para ter cer¬teza de que a porta interna tinha sido aberta. No tempo de uma fração de segundo ele estava dentro, na portaria, e colo-cou um pé sobre a soleira da porta interna. Foi então que falou.

— Srta. Brennquivist?

Tomada imediatamente de surpresa e sobressalto, Hele¬ne olhou para o rosto hispânico bem-apessoado e moreno de Juan.

— Sim — disse ela com seu sotaque escandinavo, imagi¬nando que ele devia ser um inquilino do mesmo prédio.

— Eu estava morrendo de vontade de conhecer você. Meu nome é Carlos.

Helene fez uma pausa fatal, com as suas chaves ainda na mão.

— Você mora aqui? — perguntou ela.

— Claro que sim — falou Juan, com estudada naturali-dade. — Segundo andar. E você?

— Terceiro — disse Helene. E entrou pela porta inter¬na, Juan logo atrás dela.

— Prazer em conhecê-lo — acrescentou ela. Sentiu-se na dúvida, usar as escadas ou o elevador. A presença de Juan despertava nela um mal-estar.

— Eu estava esperando pela oportunidade de podermos conversar — disse Juan, andando ao lado dela. — Que tal você me convidar para um drinque?

— Eu acho que não... — Helene viu a arma e se sentiu engasgada.

— Por favor, não me deixe com raiva, senhorita — dis-se Juan, com uma voz macia. — Quando estou com raiva, faço coisas que lamento. — Ele calcou o botão do elevador. As portas abriram. Fez um gesto para Helene entrar e entrou atrás dela. Tudo estava funcionando com perfeição.

Quando o elevador fechou as portas e iniciou a subida, Juan sorriu amistosamente. Era melhor manter tudo tranqüilo.

Helene estava paralisada pelo pânico. Não sabendo o que fazer, nada fez. O homem a aterrorizava, embora parecesse razoável, e estivesse muito bem vestido. Tinha a aparência de um próspero homem de negócios. Talvez fosse alguém asso¬ciado à Gene Inc., incumbido de dar buscas no seu aparta¬mento. Por uns instantes pensou em gritar ou tentar correr, mas aí se lembrou da arma.

O elevador abriu no terceiro andar. Juan fez um gesto cortês para ela sair na frente. Com suas chaves nas mãos trê-mulas, Helene encaminhou-se para a porta de seu apartamento e abriu-a. Juan imediatamente colocou o pé na soleira, assim como fizera na portaria. Depois que ambos entraram, ele fe¬chou a porta e chaveou-a, usando as três trancas. Helene fi¬cou de pé, aturdida, no pequeno hall de entrada, incapaz de se mover.

— Por favor — disse Juan, educadamente, fazendo um gesto para que ela entrasse no living. Para sua surpresa, uma loura gorducha estava sentada no sofá. Haviam dito a Juan que Helene morava sozinha. Não se preocupe, pensou ele. — Como é mesmo que vocês costumam dizer? — murmurou ele. — Quando chove, chove pra valer. Esta festa vai ser duas ve¬zes melhor do que eu esperava.

Ele fez um gesto com a arma no ar, para que Helene sen¬tasse do outro lado da sala, em frente à companheira de apar¬tamento. As duas mulheres trocaram olhares angustiados. Aí, Juan, com um puxão, arrancou da parede os fios do telefone, deixando pender soltos no ar os três terminais de cores codifi¬cadas. Aproximou-se do aparelho estéreo de Helene e ligou o sintonizador. Uma música clássica começou a tocar. Mexen¬do nos controles digitais, mudou para uma estação que toca¬va hard rock e aumentou o volume.

— Como é que pode haver festa se não há música? — gritou ele, ao mesmo tempo que tirou do bolso uma corda fina.

10

JASON CHEGOU cedo ao hospital, na manhã da segunda-feira. Esteve bastante pensativo ao visitar os pacientes internados. Nenhum deles estava passando bem. Depois que foi para o consultório, começou a dar telefonemas para Helene sempre que estava livre. Ela nunca atendia. Pelo meio da manhã, che¬gou mesmo a subir apressadamente ao laboratório no sexto andar, mas encontrou-o às escuras e abandonado. De volta ao seu consultório, estava irritado. Sentia que, desde o come¬ço, Helene não colaborara, e agora, não deixando que a en¬contrassem, estava agravando o problema.

Jason pegou o telefone, comunicou-se com o departamen¬to de pessoal e obteve o endereço da residência de Helene e o número do seu telefone. Telefonou imediatamente. Depois de ter tocado umas dez vezes, Jason, contrariado, bateu com o fone no gancho. A seguir, telefonou para o departamento de pessoal e pediu para falar com a diretora, Jean Clarkson. Quando ela atendeu, Jason perguntou por Helene Brennqui-vist:

— Ela avisou se estava doente? Tenho procurado entrar em contato com ela a manhã toda.

— Estou surpresa — disse a Sra. Clarkson. — Nem tive¬mos notícias dela, e ela sempre tem sido pontual, de confiança. Acho que em um ano e meio não chegou a faltar um dia sequer.

— E se ela estivesse doente — perguntou Jason —, a se¬nhora acha que telefonaria?

— Com toda a certeza.

Jason  recolocou  o  fone  no  gancho.   Sua  irritação transformou-se em preocupação. Teve uma sensação ruim em relação à ausência de Helene.

A porta do seu consultório abriu-se, e Claudia enfiou a cabeça para dentro.

— Dra. Danforth na linha dois. O senhor quer falar com ela?

Jason fez um sinal afirmativo.

— Precisa de papeleta de alguém?

— Não, obrigado — disse Jason enquanto levantava o fone do gancho. A voz da Dra. Danforth ressoou no telefone:

— Eu diria que o Good Health faria melhor em exami-nar a fundo seus pacientes. Nunca vi cadáveres em tão mau estado. O de Gerald Farr está tão ruim como os demais. Não havia um único órgão nele que parecesse ter menos de cem anos de idade!

Jason não respondeu.

— Alô? — disse Margaret.

— Estou ouvindo — disse Jason. Mais uma vez ele se sen¬tia constrangido em dizer a Margaret que, apenas um mês atrás, havia feito um exame de saúde completo em Farr e não en¬contrara nenhum problema de saúde, apesar do tipo de vida pouco sadio que o paciente levava.

— Estou surpreso de ele não ter tido um acidente vascu¬lar cerebral há alguns anos — disse Margaret. — Todas as ar¬térias estavam ateromatosas. As carótidas, quase totalmente obstruídas.

— E que me diz do paciente de Roger Wanamaker? — perguntou Jason.

— Qual era seu nome?

— Não sei — admitiu Jason. — O homem morreu de um acidente vascular cerebral, na sexta-feira. Roger falou que você se encarregaria do caso.

— Ah, sim. Também esse apresentava uma degeneração quase total. Eu sempre achei que os planos de saúde tinham por finalidade proporcionar primordialmente medicina pre¬ventiva. Mas vocês não vão fazer muito dinheiro se continua¬rem apresentando tal estatística de casos tão graves. — Margaret riu. — Brincadeiras à parte, esse foi mais um caso de doença multissistêmica.

— E vocês, aí, fazem exame toxicológico de rotina? — perguntou Jason à queima-roupa.

— Claro que sim. Especialmente hoje em dia. Fazemos testes para cocaína, coisas assim.

— E que tal fazer exames toxicológicos em Gerald Farr? Seria possível isso?

— Acho que ainda temos sangue e urina — disse Margaret. — O que você quer que pesquisemos?

— Tudo, simplesmente. Estou tentando descobrir mas não tenho nenhuma idéia do que anda acontecendo aqui.

— Terei prazer em fazer uma bateria de testes — disse Margaret —, mas Gerald Farr não foi envenenado, isso eu pos-so dizer. Morreu de velho. Era como se ele fosse trinta anos mais velho. Sei que isso não parece uma afirmação muito cien¬tífica, mas é a verdade.

— Mas, mesmo assim, eu gostaria de ter os exames toxi¬cológicos.

— Pois terá — disse Margaret. — E mandaremos algu-mas amostras para vocês processarem o material. Lamento que levemos tanto tempo para fazer os exames microscópicos.

Jason desligou o telefone e retornou ao trabalho, vaci-lando entre dúvidas sobre si mesmo e a sensação desconcertante de que estava acontecendo algo além da sua compreensão. Sempre que tinha um momento de folga, discava o número do telefone do laboratório. Mas nunca havia resposta. Tele¬fonou novamente para Jean Clarkson, que se disse disposta a lhe telefonar se tivesse notícias da Srta. Brennquivist, pedindo-lhe, por favor, que não importunasse mais. E bateu com o telefone. Jason lembrou-se, com nostalgia, daqueles tempos em que era tratado com mais respeito por parte da equi¬pe hospitalar.

Depois de haver atendido o último paciente da manhã, Jason ficou sentado diante de sua escrivaninha, tamborilando nervosamente com os dedos. De repente, sentiu-se toma¬do por uma onda de convicção de que a ausência de Helene era não somente significativa mas também um fato grave. Tão grave, convenceu-se, que devia informar à polícia imediata-mente.

Jason trocou o avental branco por um paletó e saiu em direção ao carro. Concluiu que o melhor era ir procurar pes-soalmente o detetive Curran. Depois do último encontro que tinham tido, não achava que Curran pudesse levá-lo a sério por telefone.

Sem maior dificuldade, Jason lembrou-se do trajeto que poderia levar ao gabinete de trabalho de Curran. Dando uma olhada para dentro da sala escassamente mobiliada, viu o de-tetive trabalhando com um formulário colocado sobre sua es-crivaninha metálica, seu enorme punho agarrando o lápis como se este fosse um preso tentando escapar.

— Curran — disse Jason, esperando que o homem ago¬ra estivesse com um humor melhor do que aquele que apre¬sentara naquela noite.

Curran levantou os olhos.

— Ah, não! — exclamou ele, jogando o lápis sobre o for¬mulário ainda incompleto. — Meu médico predileto! — Ele fez uma expressão exagerada de irritação, depois gesticulou para Jason entrar na sala.

Jason puxou uma cadeira com encosto metálico para junto da mesa de Curran. O detetive olhava-o com evidente descon¬fiança.

— Houve um acontecimento novo — falou Jason. — Achei que o senhor devia saber.

— Pensei que tinha voltado à sua prática médica. Ignorando o ataque, Jason prosseguiu.

— Helene Brennquivist não compareceu ao trabalho hoje.

— Talvez esteja doente. Talvez esteja cansada. Talvez te¬nha adoecido e se cansado do senhor e de todas as suas per¬guntas.

Jason procurou manter a calma.

— O departamento de pessoal me disse que ela é pon-tual e não falta ao serviço. Nunca faltou um dia sem que tele-fonasse. E todas as vezes que telefonei para o apartamento dela, não houve resposta.

O detetive Curran olhou Jason com desdém.

— O senhor não pensou na possibilidade de que essa mu¬lher atraente tivesse passado um fim de semana prolongado com um namorado?

— Não. Depois daquela última vez que conversei com o senhor, fiquei sabendo que ela estava tendo um caso amo-roso com Hayes.

Curran endireitou-se na cadeira, e pela primeira vez pres¬tou muita atenção ao que Jason dizia.

— Sempre achei que ela estava encobrindo alguma coisa em favor da Hayes — continuou Jason a falar. — Agora eu sei por quê. E agora acredito que ela saiba sobre o trabalho dele muito mais do que diz, e isto porque os lugares em que ele vivia e trabalhava foram vasculhados. Acho que Hayes fez uma descoberta científica importante, e alguém anda queren-do pôr as mãos nas suas anotações.

— Se é que houve essa descoberta.

— Tenho certeza que houve — disse Jason. — E isso faz aumentarem as minhas suspeitas quanto à morte de Hayes. Essa morte interessava a alguém.

— O senhor está tirando conclusões apressadas.

— Hayes disse que alguém estava tentando matá-lo — falou Jason. — Eu penso que ele fez uma descoberta científi¬ca importante e foi assassinado por causa disso.

— Alto lá! — exclamou Curran em voz alta, batendo com o punho na mesa. — O médico-legista concluiu que o Dr. Al¬vin Hayes morreu de causas naturais.

— Aneurisma, para ser exato. Mas também estava sen-do seguido.

— Pensou que estava — corrigiu Curran, a voz alteando-se, irritada.

— Acho que ele estava mesmo sendo seguido — falou Jason com igual veemência. — Isso explicaria por que alguém revirou o seu apartamento e o seu...

— Nós sabemos por que o apartamento dele foi vascu-lhado e revirado — falou Curran, interrompendo. — Só que achamos primeiro as drogas e o dinheiro.

— Hayes pode ter feito uso de cocaína. — Jason agora falava alto. — Mas não era traficante. E eu sei que plantaram essas drogas lá, e... — Aí, Jason passou a relatar a conversa que tinha tido com Carol, depois parou de falar. Não sentia vontade de dizer a Curran que havia insistido em se encontrar com a bailarina. — De qualquer modo — falou ele, agora mais calmo —, creio que o motivo da destruição do laboratório foi que alguém estava em busca dos cadernos de laboratório de Hayes.

— Que história é essa de laboratório? — Os olhos semi¬cerrados com pesadas pálpebras se abriram muito e o rosto do detetive apresentava umas manchas avermelhadas.

Jason engoliu em seco.

— Pombas! — exclamou Curran, com a voz alterada. — Você quer dizer que o laboratório de Hayes foi arrombado e destruído, e isso não foi comunicado? Mas, afinal, o que vocês acham que estão fazendo?

— O hospital ficou preocupado com a repercussão ne-gativa através da imprensa — falou Jason, forçado a defen¬der a decisão que ele não aprovara.

— Quando aconteceu isso?

— Sexta-feira à noite.

— O que foi levado?

— Diversos livros de anotações de dados e algumas cul¬turas bacterianas. Mas não levaram nada de equipamento de mais valor. E não foi roubo — Jason observava o rosto cani¬no de Curran em busca de algum sinal de que sua preocupa¬ção por Helene era justificada.

— Algum dano, vandalismo? — foi só o que falou.

— Bom, viraram o lugar de pernas para o ar e esvazia-ram tudo no chão. De modo que o laboratório virou uma de-sordem total. Mas a única destruição deliberada foi a que atingiu aqueles animais horrorosos.

— Bem — disse Curran —, aqueles monstros precisavam ser destruídos. Eu próprio me senti mal. Como foram mortos?

— Provavelmente envenenados. O nosso departamento de anatomia patológica está esclarecendo isso.

O detetive Curran passou os dedos pelos seus cabelos outrora ruivos.

— Quer saber de uma coisa? — perguntou ele, com um tom retórico. — Com toda essa cooperação que recebi de vo-cês, seus trapalhões, estou mais do que satisfeito por ter pas-sado esse caso para o departamento de narcóticos. Eles é que lidam com isso. Que tal seguir por esse corredor e ir berrar e reclamar com o pessoal desse departamento? Talvez lá eles levem a sério esse negócio do seu cientista louco andar comendo a sua assistente de laboratório e também a bailarina de strip-tease...

— Hayes e a bailarina já não eram amantes.

— Não me diga! — ironizou Curran, dando uma risada curta e oca, que terminou num arroto. — Por que não vai ao departamento de narcóticos e me deixa em paz, doutor? Te-nho um monte de homicídios de verdade para investigar.

Curran pegou o lápis e voltou aos seus formulários. Irri-tado, Jason desceu ao andar térreo e devolveu o crachá de vi-sitante. Depois saiu para apanhar o carro. No seu trajeto de volta ao hospital, passou pela Storrow Drive; à sua direita, o Charles River se espraiava preguiçosamente, e pareceu que essa imagem finalmente o acalmou. Mesmo assim, continua-va convencido de que alguma coisa havia acontecido a Helene. Mas concluiu que se a polícia não estava preocupada com isso, ele pouco poderia fazer.

Deixou o carro no estacionamento do GHP e voltou ao seu consultório. Claudia e Sally ainda não tinham retornado do almoço. Alguns pacientes já estavam à espera. Jason tro-cou o paletó pelo jaleco branco e interfonou para saber da consulta cardiológica de Madaline Krammer. Harry Sarnoff concordou com a avaliação feita por Jason, e Madaline esta¬va se submetendo a uma angiografia.

Assim que Sally retornou, Jason começou a atender os seus pacientes com hora marcada. Estava atendendo o terceiro paciente dessa tarde, quando Claudia entrou na sala de exames.

— Uma visita para o senhor.

— Quem? — perguntou Jason, destacando uma receita.

— A nossa destemida chefe. E ela vem espumando pela boca. Achei melhor alertá-lo.

Jason entregou a receita ao paciente, colocou o estetoscópio em torno do pescoço e encaminhou-se, pelo corredor, até o seu consultório. Shirley estava de pé junto à janela. No momento em que ouviu Jason chegar, voltou o rosto na dire¬ção dele. Não havia dúvida, ela estava furiosa.

— Espero que você certamente tenha uma boa explica-ção, Dr. Howard — falou ela. — Acabei de receber um tele-fonema da polícia. Estão vindo para cá; querem que eu preste uma declaração explicando por que não dei parte do arrombamento do laboratório de Hayes. Disseram que ficaram sa¬bendo disso por seu intermédio. E ameaçam até abrir proces¬so por obstrução à justiça.

— Desculpe — disse Jason. — A coisa saiu acidentalmen¬te. Foi na central de polícia. Eu não tinha a intenção de men¬cionar isso.

— Mas, que diabo, o que você foi fazer na central de po-lícia?

— Eu  quis  conversar  com  Curran  —  disse  Jason, sentindo-se culpado.

— Por quê?

— Havia algumas informações que eu achei que seriam do seu interesse.

— Sobre o arrombamento?

— Não — disse Jason, deixando cair os braços. — Helene Brennquivist não apareceu para trabalhar hoje. Desco-bri que ela e Hayes estavam tendo um caso. Creio que consegui chegar a certas conclusões. E aí me escapou essa história do arrombamento.

— Acho que é melhor você ficar fazendo o seu trabalho de médico — disse Shirley, com a voz um pouco mais suave.

— Foi o que Curran me disse também — suspirou Jason.

— Bom — disse Shirley, abrindo os braços e tocando no braço de Jason —, pelo menos você não fez isso de propósi¬to. Porque houve momentos em que cheguei a me perguntar de que lado afinal você estava. Droga, esse caso Hayes parece que não termina nunca. Toda vez que eu penso que o proble¬ma está sob controle, surge um fato novo.

— Lamento muito — disse Jason com sinceridade. — Eu não tive a intenção de piorar as coisas.

— Está bem. Mas lembre-se: a morte de Hayes já está atingindo esta instituição. Não vamos complicar mais os nos-sos problemas. — Apertou com força a mão de Jason, depois saiu em direção à porta.

Jason voltou a atender seus pacientes, decidido a deixar a investigação com a polícia. Eram quase quatro da tarde quan¬do Claudia o interrompeu de novo.

— Um telefonema para o senhor — murmurou ela.

— Quem é? — perguntou Jason, nervoso. O procedimento usual era Claudia anotar os recados e depois, no fim do dia, Jason dar os telefonemas que fossem necessários. A me¬nos, naturalmente, que se tratasse de uma emergência. Mas , Claudia não costumava cochilar quando era uma emergência.

— Carol Donner — falou ela.

Jason hesitou um instante, depois disse que atenderia o telefonema no seu consultório. Claudia seguiu-o, ainda mur-murando.

— É essa a tal Carol Donner?

— Que Carol Donner?

— A bailarina que trabalha num cabaré na zona do me-retrício — disse Cláudia.

— Eu não sabia — disse Jason, entrando no seu consul¬tório. Fechou a porta, deixando Claudia de fora, e tomou o fone.

— Aqui é o Dr. Howard — disse ele.

— Jason, aqui é Carol Donner. Desculpe incomodá-lo.

— Não há do que se desculpar. — A voz dela trouxe a Jason a imagem agradável da moça sentada à sua frente, na mesa da Hampshire House. Ele ouviu um clique. — Só um momento, Carol. — Colocou o fone sobre a escrivaninha, abriu a porta e olhou para Claudia. Com expressão irritada, fez um sinal para que ela colocasse a extensão no gancho. — Desculpe — disse Jason quando voltou ao telefone.

— Eu não telefonaria se não achasse que poderia ser al¬go importante — disse Carol. — Mas é que encontrei um pa-cote no meu armário, lá onde trabalho. Aliás, eu queria dizer que sou bailarina no Club Cabaret...

— Ah — disse Jason vagamente.

— Tive de ir ao clube hoje e encontrei o pacote. Alvin havia me pedido que o colocasse no meu armário, há algumas semanas; eu até já tinha me esquecido completamente disso.

— O que havia nele?

— Livros de anotações de laboratório, papéis, trabalhos científicos e correspondência. Esse tipo de coisa. Não havia drogas, se era nisso que você estava pensando.

— Não — disse Jason —, não era nisso que eu estava pensando. Mas estou contente por você ter telefonado. Os li-vros podem ser importantes. Eu gostaria de vê-los.

— Está bem — disse Carol. — Estarei no clube hoje à noite. Vou estudar a melhor maneira de entregá-los a você. Meu patrão anda me causando muitos problemas com essa his¬tória de me dar proteção. Alguma coisa sinistra está aconte-cendo e ninguém me diz nada, mas eu estou mais aborrecida é com esse brutamontes que me segue por toda a parte. Não gostaria de envolver você nessas coisas.

— Que tal eu ir lá e apanhar essas coisas?

— Não, não me parece uma boa idéia. Eu lhe direi por quê. Se você me der o número do seu telefone, eu ligarei hoje à noite, quando chegar em casa.

Jason deu-lhe o número do seu telefone.

— Uma coisa mais — disse Carol. — Ontem à noite eu me dei conta de que havia mais uma coisa que não lhe conta-ra. Há um mês, Alvin disse que ia terminar seu caso com He-lene. Queria que ela se concentrasse no trabalho deles.

— Você acha que ele disse isso a ela?

— Não tenho a mínima idéia.

— Helene não apareceu para trabalhar hoje.

— Não brinque! — disse Carol. — Isso é estranho. Pe¬lo que ouvi dizer, ela era obsessiva com o trabalho. Talvez ela seja o motivo de meu patrão estar agindo de modo tão maluco.

— Como é que o seu patrão tinha conhecimento de He-lene Brennquivist?

— Ele possui uma grande rede de informações. Sabe do que se passa em toda a cidade.

Encerrado o telefonema, Jason ficou pensando na con-fusão gerada pelas incoerências que ele notava entre o traba-lho de Carol e a sua sofisticação intelectual. Rede de informações era um termo de tecnologia de computadores — um termo que não se esperaria ouvir na conversação de uma bailarina de strip-tease.

Retornando ao atendimento de seus pacientes, Jason evi¬tou, cautelosamente, os olhares inquiridores de Claudia. Ele sabia que ela estava com uma curiosidade incontrolável, mas decidiu não lhe dar nenhuma satisfação.

Já bem no fim da tarde, o Dr. Jerome Washington, um musculoso médico negro, que havia se especializado em doenças gastrintestinais, interrompeu Jason solicitando-lhe uma rá¬pida consulta.

— Naturalmente — disse Jason, levando-o até o seu con¬sultório.

— Roger Wanamaker sugeriu que eu conversasse com vo¬cê a respeito deste caso. — De debaixo do braço o médico ti¬rou uma volumosa pasta e colocou-a sobre a escrivaninha. — Se a coisa continuar desse jeito, acho melhor eu procurar ou¬tra atividade.

Jason abriu o prontuário. O paciente era um homem de sessenta anos de idade.

— Fiz um exame de saúde completo no Sr. Lamborn há 23 dias — disse Jerome. — O sujeito estava com um pouco de peso a mais, mas quem de nós não está? Afora isso, achei que ele estava bem, e foi isso que eu disse a ele. Aí, há uma semana, ele veio à consulta com um aspecto péssimo. Havia perdido uns dez quilos. Fiz com que se internasse, pois pensei que pudesse ter algum câncer que eu deixara de diagnosticar. Mandei fazer todos os exames possíveis. Nada. E então, há três dias, ele morreu. Pressionei muito a família para que fos-se feita uma autópsia. E o que é que a autópsia mostrou?

—  Nada de câncer.

— Certo — disse Jerome. — Nada de câncer, mas todos os órgãos do paciente apresentavam uma degeneração com¬pleta. Conversei com Roger, e ele me disse para procurá-lo, porque você haveria de compartilhar da minha preocupação.

— Bom, eu tive alguns problemas parecidos — disse Ja¬son. — E Roger também. Para dizer a verdade, estou preocu¬pado com a possibilidade de estarmos na iminência de alguma catástrofe desconhecida na medicina.

— O que faremos? — perguntou Jerome. — Não estou podendo suportar essa pressão emocional.

— Você tem razão. Com todas as mortes que tenho tido entre meus pacientes ultimamente, também eu ando pensan-do em mudar de profissão. E não compreendo como é que não conseguimos detectar sintomas nos nossos exames de saú¬de. Eu tinha dito a Roger que iria convocar uma reunião para a próxima semana, mas agora acho que não podemos nos per¬mitir esperar mais. — Passou pela mente de Jason aquele flash

da imagem de Hayes esguichando sangue pela boca em cima da mesa do jantar. — Vamos nos reunir amanhã à tarde. Man¬darei Claudia datilografar a convocação, e vou pedir que as secretárias organizem uma lista com todos os exames de saú¬de que fizemos no período de um ano para cá. Talvez possa¬mos descobrir o que aconteceu com os nossos pacientes.

— Parece-me uma boa medida — disse Jerome. — Ca-sos como este não ajudam em nada a autoconfiança de alguém.

Depois que Jerome se foi, Jason saiu do consultório e dirigiu-se ao balcão central para planejar a reunião da equipe médica. Sabia que algumas pessoas teriam de trabalhar mais que o habitual, e agradeceu a todos as providências para ob¬ter auxílio dos computadores. Houve alguns resmungos quando ele explicou o que era necessário fazer, inclusive remarcar to-dos os pacientes da tarde para outro dia, mas Claudia se en-carregou dessa tarefa. Jason sentiu-se confiante de poder tomar todas as providências que o tempo exíguo permitia.

Às 5:30 da tarde, depois de atender seu último paciente, Jason tentou dar um telefonema para a casa de Helene. Nin¬guém atendeu. Num impulso, decidiu fazer uma parada no caminho de casa para ir até o apartamento dela. Conferiu o endereço que havia obtido do departamento de pessoal e veri¬ficou que ela morava em Cambridge, na Concord Avenue. En¬tão identificou o local correspondente. Era o conjunto residencial Craigie Arms.

Que coincidência, pensou. Antes de conhecer Danielle, ele tinha tido encontros com uma garota no Craigie Arms.

Desceu, tomou seu carro e dirigiu-se para Cambridge. O trânsito estava horroroso, mas Jason, por estar familiarizado com aquela área, não teve dificuldade em localizar o endere-ço. Estacionou o carro e entrou na portaria do prédio, já sua conhecida. Procurou pelo nome no quadro do interfone, en-controu Brennquivist e apertou a campainha. Sempre havia a possibilidade alternativa de Helene não atender o telefone mas responder a uma chamada da portaria. Não houve res-posta. Jason percorreu a lista de moradores do edifício; o no-me de Lucy Hagen não constava. Afinal, já haviam se passado quinze anos.

Então, resolveu tocar a campainha do zelador e apertou-a.

Um pequeno alto-falante localizado acima dos botões dos apar¬tamentos foi ligado e emitiu um ruído, e a voz áspera do Sr. Gratz feriu o silêncio da portaria azulejada.

—  Não fizemos nenhum pedido.

Jason logo se identificou, admitindo que o Sr. Gratz po-deria não estar lembrado dele, passados tantos anos. E disse que estava preocupado com uma colega de trabalho, que mo-rava no prédio. O Sr. Gratz não disse nada, mas a porta se abriu a um comando eletrônico. Jason apressou-se a entrar. Dentro da portaria, sentiu o cheiro inconfundível do qual se lembrava desde quinze anos antes. Era o cheiro de cebola fri-ta. Uma porta metálica abriu-se nos fundos do hall azulejado, e o Sr. Gratz apareceu, vestido, como sempre, com camiseta e jeans sujo e surrado. Sua barba não era feita havia dois dias. Estudou a fisionomia de Jason, perguntou-lhe no¬vamente o nome, depois indagou:

—  O senhor não costumava ter encontros com a Hagen, a garota do 2-J?

Jason ficou impressionado. O homem certamente não ven¬ceria um concurso de beleza, mas evidentemente possuía uma memória muito precisa. E Jason chegara a conhecê-lo porque Lucy tinha problemas crônicos com suas torneiras, e Larry vi¬via entrando e saindo do apartamento dela para fazer os con¬sertos.

—  Em que posso servi-lo? — perguntou Larry.

Jason explicou que Helene Brennquivist não tinha apa-recido para trabalhar e não atendia o telefone. Jason disse que estava preocupado.

—  Não posso deixá-lo ir ao apartamento dela.

—  Eu compreendo — disse Jason —, mas só quero ter certeza de que tudo está bem.

Gratz olhou-o por mais uns instantes, deu um grunhido, depois encaminhou-se em direção ao elevador. Tirou do bol¬so um molho de chaves que parecia suficiente para abrir to¬das as portas do distrito de Cambridge. Subiram sem trocar palavras.

O apartamento de Helene ficava no fim de um longo cor¬redor. Antes mesmo de chegarem perto da porta, já podiam ouvir música de rock em alto volume.

—  Parece que está havendo uma festa aí — disse Gratz. Tocou a campainha por alguns instantes, mas não houve res¬posta. Chegou o ouvido à porta e tocou novamente a campai¬nha. — Com todo esse barulho, não admira que não ouçam a campainha da porta — disse ele. — Não sei como ainda não houve reclamação dos vizinhos.

Levantando a mão peluda, Gratz bateu à porta, com for-ça. Por fim, escolheu uma chave e girou-a na fechadura. As-sim que a porta se abriu, o volume da música aumentou des-medidamente.

—  Merda — disse Gratz. Depois gritou alto: — Olá! — Não houve resposta.

O apartamento tinha um pequeno vestíbulo com uma abertura em arco para a esquerda, mas, mesmo de onde esta-va, Jason identificou o inconfundível cheiro da morte. Quis começar a falar, mas Gratz o fez parar.

— É melhor o senhor esperar aqui — disse Gratz, alteando a voz acima da música ruidosa, ao mesmo tempo que avan¬çou em direção à sala de estar. — Meu Deus! — gritou ele um momento mais tarde. Seus olhos estavam arregalados, e o seu rosto, contorcido de horror. Jason olhou por entre o arco e o corpo de Larry. A sala era um pesadelo.

O zelador correu em direção à cozinha, a mão apertada contra a boca. Jason, mesmo com toda sua experiência de mé¬dico, sentiu o estômago revolto. Helene e uma outra mulher estavam lado a lado sobre o sofá, nuas, com as mãos amarra¬das atrás das costas. Os dois corpos se encontravam indescritivelmente mutilados. Uma grande faca de cozinha, enfer¬rujada, estava cravada na mesa de refeição.

Jason voltou-se e olhou para dentro da cozinha. Larry estava debruçado sobre a pia da cozinha, vomitando. Jason pensou em lhe prestar ajuda, mas decidiu-se por outra coisa. Dirigiu-se ao corredor e abriu a porta de entrada em busca de ar respirável. E já em seguida Larry passava por ele, cam-baleante.

—  Por que o senhor não vai chamar a polícia? — disse Jason, deixando que a porta se fechasse atrás dele. A calma relativa era reconfortante. Sua náusea diminuiu.

Aliviado por ter outra coisa para cuidar, Larry desceu apressadamente as escadas. Jason inclinou-se contra a parede e tentou não pensar. Estava trêmulo.

Dois policiais chegaram em pouco tempo. Eram jovens e ficaram pálidos ao olharem para o interior da sala de estar. Mas providenciaram o isolamento do local e interrogaram cui-dadosamente Jason e Gratz. Com cuidado para não pertur¬bar mais ninguém, por fim desligaram da tomada o aparelho de som. Chegaram mais policiais, inclusive detetives à paisa¬na. Jason aventou a hipótese de que talvez o detetive Curran pudesse estar interessado no caso, e alguém telefonou para ele. Um fotógrafo pertencente aos quadros da polícia chegou e co¬meçou a tirar fotos e mais fotos do apartamento devastado. Depois chegou o médico-legista da Cambridge.

Jason estava esperando no corredor quando Curran che¬gou e com seu andar pesado encaminhou-se para o apartamen¬to de Helene.

Ao ver Jason, parou apenas para dizer, alto:

—  Que diabos o senhor está fazendo aqui?

Jason absteve-se de falar, e Curran voltou-se para o po-licial postado junto à porta:

—  Onde está o detetive de plantão encarregado deste ca¬so? — e mostrou o seu distintivo brilhante. O policial apon-tou com o polegar na direção da sala de estar. Curran entrou, deixando Jason no corredor do andar.

O pessoal da imprensa apareceu com sua habitual para¬fernália de máquinas fotográficas e cadernos de notas. Ten¬taram entrar no apartamento de Helene, mas o policial uniformizado, postado à porta, manteve-os à distância. Isto fez com que se limitassem a entrevistar qualquer pessoa que estivesse no local, incluindo Jason. Ele disse que não sabia de nada, e por fim deixaram-no em paz.

Passado pouco tempo, Curran reapareceu. Até mesmo ele parecia um pouco pálido. Veio para perto de Jason. Tirou um cigarro de um maço todo amassado e teve dificuldades de achar fósforos. Por fim, olhou para Jason.

— Não venha me dizer "eu bem que lhe falei" — disse ele.

— Não foi só assassinato com estupro, não é mesmo? — disse Jason tranqüilamente.

— Isso não sou eu quem deve dizer. Claro, foi estupro. O que é que o levou a pensar que foi algo mais?

— A mutilação foi feita após a morte.

— Ah, é? Por que o senhor diz isto, doutor?

— Ausência de sangue. Se as mulheres ainda estivessem com vida, teria havido hemorragia.

— Estou impressionado — disse Curran. — E embora deteste admitir isso, não achamos que tenha sido esse seu lou¬co manjado. Há provas que não posso expor, mas parece que foi serviço de profissional. Foi usada uma arma de pequeno calibre.

— Então o senhor concorda em que a morte de Helene tem ligação com a de Hayes.

— Positivamente — disse Curran. — Disseram-me que foi o senhor quem descobriu os cadáveres.

— Com a ajuda do zelador.

— O que foi que o trouxe até aqui, doutor? Jason não respondeu imediatamente.

— Não tenho certeza — respondeu, por fim. — Confor-me lhe falei, tive uma sensação desconfortável quando Hele-ne não apareceu para trabalhar.

Curran coçou a cabeça, deixando sua atenção vagar pelo ambiente do corredor. Deu uma longa tragada no seu cigar¬ro, deixando a fumaça escapar pelo nariz. Havia uma multi¬dão de pessoas da polícia, repórteres e moradores curiosos. Duas macas estavam alinhadas ao longo da parede do corre¬dor, esperando para a remoção dos corpos.

— Talvez eu não passe este caso para o departamento de narcóticos — disse Curran, finalmente. E saiu andando sem rumo.

Jason aproximou-se do policial que montava guarda na porta do apartamento de Helene.

—  Eu estava pensando se já podia ir embora.

—  Rosati! — gritou o policial.

O detetive de plantão, um homem magro, de rosto encovado e cabeleira preta e desgrenhada, apareceu.

—  Ele quer ir embora — disse o policial, apontando pa-ra Jason.

—  Já temos o nome e endereço dele? — perguntou Rosati.

—  Nome, endereço, telefone, seguro social, carteira de motorista, tudo.

—  Acho que está tudo certo — disse Rosati. — Mante-remos contato.

Jason fez um sinal afirmativo e saiu pelo corredor, com as pernas bambas. Quando chegou no lado de fora do pré¬dio, na Concord Avenue, surpreendeu-se por ver que havia escurecido. O ar frio do anoitecer estava pesado de emana-ções dos escapamentos dos carros. Como aborrecimento fi-nal, Jason encontrou um tíquete de estacionamento a pagar colocado sob o limpador do pára-brisa do carro. Irritado, ar-rancou o papel, compreendendo que havia estacionado numa área que exigia adesivo de residente do distrito de Cambridge.

O percurso de retorno ao GHP foi muito mais demora¬do do que na vinda. O tráfego na Storrow Drive estava inver¬tido, saindo na Fenway, e por isso já eram quase sete e meia da noite quando, enfim, estacionou o carro e entrou no pré¬dio do GHP. Ao chegar ao seu consultório, encontrou sobre sua escrivaninha uma grande folha impressa de computador com uma lista de todos os pacientes do GHP que haviam se submetido a exames de saúde no último ano, juntamente com uma anotação sobre o estado de saúde atual de cada um. As secretárias fizeram um grande trabalho, pensou Jason, colo-cando a folha de papel na sua pasta.

Subiu ao outro andar para efetuar as visitas aos pacien-tes internados. Uma das enfermeiras deu-lhe os resultados da arteriografia de Madaline Krammer. Todos os vasos coronarianos apresentavam estreitamentos importantes, difusos, não focais. Comparando-se esses resultados com outros obtidos de um exame semelhante realizado seis meses antes, via-se uma deterioração significativa. Harry Sarnoff, o cardiologista con¬sultado, não achava que a paciente fosse candidata a cirur¬gia, e, dados os seus baixos níveis atuais de colesterol e ácidos graxos, tinha pouco a sugerir com relação ao tratamento de¬la. Para ter cem por cento de certeza, Jason solicitou uma con¬sulta em cirurgia cardíaca, e depois foi examinar a paciente.

Como de hábito, Madaline estava de excelente humor, minimizando seus sintomas. Jason lhe disse que havia pedido que um cirurgião viesse vê-la e prometeu encerrar os exames no dia seguinte. Ele tinha a sensação agourenta de que a mu-lher não iria durar muito tempo mais. Quando examinou-lhe os tornozelos, em busca de sinais de edema, notou a presença de algumas escoriações.

—  A senhora andou se coçando ultimamente? — pergun¬tou ele.

— Um pouco — teve de admitir Madaline, agarrando o lençol e puxando-o para cima, como se estivesse constrangida.

—  Sente coceira nos tornozelos?

—  Acho que é da calefação daqui. É muito seca, o se-nhor sabe.

Jason não sabia. Na realidade, o sistema de ar condicio¬nado do hospital mantinha a umidade num nível normal, cons¬tante.

Com uma horrível sensação de déjà vu, Jason retornou ao posto de enfermagem e solicitou uma consulta dermatoló-gica e também uma série de exames bioquímicos que abran-giam uns quarenta testes automatizados. Devia haver alguma coisa que ele até então não percebera.

As demais visitas aos leitos foram igualmente desalentadoras. Pareceu-lhe que todos os seus pacientes estavam pio¬rando. Ao sair do hospital, decidiu ir até a casa de Shirley. Estava ansioso por conversar, e ela, sem dúvida, demonstra¬ra que se sentia contente em vê-lo. Ele também achava que devia levar a Shirley a notícia do assassinato de Helene antes que ela soubesse do fato pela imprensa. Sabia que a notícia ia deixá-la arrasada.

Levou cerca de vinte minutos para chegar até a rua com calçamento de pedras onde ela morava. Ficou satisfeito ao ver luzes acesas.

—  Jason! Que agradável surpresa — disse Shirley, aten¬dendo à campainha. Ela vestia uma malha de ginástica ver¬melha e uma testeira branca. Eu estava justamente saindo para a minha sessão de ginástica.

—  Eu devia ter telefonado.

—  Mas que absurdo — disse Shirley, pegando a mão de¬le e puxando-o para dentro. — Eu sempre ando à procura de uma desculpa para não ir à ginástica. — Ela conduziu-o até a cozinha, onde verdadeira montanha de relatórios e memorandos cobria a mesa. Jason estava bem lembrado da enorme quantidade de trabalho que era necessária para fazer funcio¬nar uma organização como o GHP. Como sempre, ele se acha¬va impressionado com a capacidade de trabalho de Shirley. Depois que ela lhe trouxe um drinque, Jason lhe pergun¬tou se havia ouvido as notícias.

—  Não sei — disse Shirley, tirando a faixa que usava na cabeça e sacudindo a espessa cabeleira. — A respeito de quê?

—  Helene Brennquivist — disse Jason. E foi só o que disse.

—  Será essa um notícia que agrade? — perguntou Shir¬ley, pegando o copo de bebida dele.

—  Dificilmente, imagino — disse Jason. — Ela e a sua companheira de apartamento foram assassinadas.

Shirley deixou cair bebida no sofá e depois se ocupou maquinalmente em tentar enxugar o líquido que se esparramara.

— Que foi que aconteceu? — perguntou ela, depois de longo silêncio.

— Estupro e assassinato. Pelo menos foi o que se viu. — Jason sentia-se mal só de relembrar a cena.

— Que coisa terrível — disse Shirley, levando a mão ao peito.

—  Foi horroroso — concordou Jason.

—  É o pior pesadelo de qualquer mulher. Quando acon¬teceu?

—  A polícia acha que talvez tenha sido a noite passada. Shirley ficou olhando no vazio, pensativa.

—  Acho melhor eu telefonar para Bob Walthrow. Isso só vai agravar o nosso problema de relações públicas.

Com esforço, Shirley se pôs de pé e caminhou vacilante até junto do telefone. Jason pôde sentir a comoção na sua voz enquanto ela explicava o que havia acontecido.

—  Eu não invejo o seu trabalho — disse ele quando ela desligou o telefone. Ele pôde ver nos olhos dela um brilho de lágrimas contidas.

—  O mesmo digo eu em relação ao seu — falou ela. — Toda vez que o vejo depois que um paciente morre, sinto um alívio por não ter feito medicina.

Embora nem Shirley nem Jason estivessem com fome, prepararam um espaguete rápido para o jantar. Shirley pensou em tentar convencer Jason a passar a noite na sua casa, mas achou que ele já se sentia reconfortado por ter ido conversar com ela, ajudando-o a suportar o horror da morte de Helene, e ele sabia que não podia ficar. Tinha de estar em casa para aguardar o telefonema de Carol. Alegando ter muito traba¬lho para concluir, voltou ao seu apartamento.

Depois de ter praticado jogging um tanto mais tarde do que era seu hábito e de ter tomado um banho de chuveiro, Jason sentou-se e se pôs a ler as fichas de todos os pacientes que haviam se submetido a exame de saúde no GHP no últi-mo ano. Com os pés sobre a escrivaninha, repassou a lista cui¬dadosamente, observando que o número de exames realizados tinha sido dividido por igual entre todos os clínicos gerais. Co¬mo a lista fora impressa em ordem alfabética, e não em or¬dem cronológica, Jason levou algum tempo para compreender que os casos que tiveram má evolução eram muito mais fre¬qüentes nos últimos seis meses do que no começo do ano. Na realidade, mesmo sem ter um gráfico do material, ficou visí¬vel que tinha havido um acentuado aumento de casos de mor¬te inesperada no período correspondente aos últimos seis meses.

Jason pegou um lápis e copiou o número de ordem dos casos fatais recentes. Ficou chocado com o índice. Resolveu então telefonar para o principal operador de dados do GHP e pediu para que o colocasse em contato com o setor de regis-tros. Conseguiu contatar uma das secretárias de plantão nes-sa noite, deu-lhe a lista dos números anotados e perguntou se os prontuários dos pacientes de ambulatório podiam ser se-parados e colocados sobre a sua escrivaninha no consultório. A secretária lhe disse que não haveria absolutamente nenhum problema.

Jason recolocou a lista do computador na sua pasta e to¬mou nas mãos o Textbook of Endocrinology, de Williams; co¬meçou a ler na parte referente ao hormônio do crescimento. O assunto era como tantos outros; quanto mais lia, menos sabia do assunto. O hormônio do crescimento e sua relação com o crescimento e a maturação sexual era um tema extremamente complicado. Tão complicado, na verdade, que Jason adorme¬ceu com o pesado livro fazendo pressão sobre o seu abdome.

O telefone acordou-o num sobressalto — e tão abrupta-mente que ele derrubou o livro no assoalho. Agarrou o tele-fone, imaginando que era do hospital. Levou uns momentos até entender que era Carol Donner quem lhe telefonava. Olhou a hora — onze minutos para as três da madrugada.

— Espero que ainda não tenha adormecido — disse Carol.

—  Não, não — mentiu Jason. Suas pernas estavam en¬rijecidas de terem ficado tanto tempo apoiadas na mesa. — Eu estava esperando pelo seu telefonema. Onde está?

—  Estou em casa — disse Carol.

—  Posso ir buscar o pacote?

— Não está aqui — disse Carol. — Para evitar proble-mas, entreguei-o a uma amiga que trabalha comigo. O nome dela é Melody Andrews. Ela mora na Revere Street, 69, em Beacon Hill. — Carol deu a Jason o número do telefone da amiga. — Ela aguarda seu telefonema, e deve estar chegando em casa agora. Gostaria de saber o que você pensa do mate-rial, e se houver algum problema, ligue para mim. — Ela ditou-lhe o número do seu telefone.

— Obrigado — disse Jason, anotando tudo. Surpreendeu-se com o grande desapontamento que sentia por não ter ido vê-la.

—  Tome cuidado — disse Carol, desligando.

Jason permaneceu sentado à sua escrivaninha, tentando ainda despertar inteiramente. Quando se sentiu plenamente des¬perto, deu-se conta de que não mencionara a Carol a morte de Helene. Bom, pelo menos isso podia ser uma desculpa pa¬ra lhe telefonar de volta — refletiu ele, ao mesmo tempo que discava o número do telefone da amiga dela.

Melody Andrews, ao atender o telefone, falou com sota-que evidentemente da zona sul de Boston. Disse a Jason que estava com o pacote e que teria prazer em entregá-lo se Jason fosse buscá-lo. E disse também que estaria acordada ainda por mais ou menos meia hora.

Jason vestiu uma camisa e uma suéter, saiu de casa e foi andando pela Pinckney Street; passou por West Cedar e pros¬seguiu até a Revere. O prédio onde Melody morava estava lo¬calizado à esquerda. Jason tocou a campainha do seu apartamento e ela apareceu na porta, com rolos nos cabelos.

Jason não imaginava que alguém ainda usasse essas coisas. O rosto dela estava cansado e tenso.

Jason apresentou-se. Melody limitou-se a fazer um sinal afirmativo com a cabeça e entregou-lhe um pacote em papel pardo e amarrado com barbante. Pesava uns quatro quilos. Jason agradeceu, e a mulher apenas encolheu os ombros, di¬zendo: "Não há de quê."

Jason voltou para casa, tirando a suéter e a camisa com que saíra. Olhou o pacote, ansioso por abri-lo; na cozinha, apanhou a tesoura e cortou o barbante. Depois, levou o pa¬cote para o escritório e colocou-o sobre a escrivaninha. Den¬tro do pacote encontrou dois grossos livros razão de capa dura; as páginas estavam escritas a mão e continham instruções, dia¬gramas e dados de experimentação. Um dos livros indicava na capa: Propriedade de Gene, Inc. O outro, simplesmente: Anotações. Além disso, havia um grande envelope em papel manilha cheio de correspondência.

As primeiras cartas que Jason leu eram de Gene Inc., exi¬gindo que Hayes honrasse os acordos contratuais e devolves¬se o livro de registro do Somatomedin e a cepa de bactérias E. coli recombinantes que ele ilicitamente retirara do laboratório dessa empresa. À medida que ia lendo, Jason pôde per¬ceber que Hayes tinha uma significativa diferença de opinião no concernente à propriedade dos procedimentos experimen¬tais e da cepa bacteriana, e que estava empenhado em obter sua patente. Também encontrou uma série de cartas de um advogado, de nome Samuel Schwartz. Metade dessas cartas referia-se ao pedido de patente da cepa de E. coli produtora do Somatomedin, e as demais tinham a ver com a formação de uma empresa. Parecia que Alvin Hayes era dono de 51 por cento das ações, enquanto que seus filhos compartilhavam os outros 49 por cento juntamente com Samuel Schwartz.

Bom, isto é a correspondência, pensou Jason. Recolocou as cartas no envelope de papel manilha. A seguir, pegou os livros razão. O que trazia escrito na capa "Gene, Inc." pare¬cia ser o livro de registro que fora mencionado na correspon¬dência. À medida que ia folheando o livro, constatou que ali se detalhava a produção da cepa recombinante de bactérias capaz de produzir o Somatomedin. Pela leitura, entendeu que Somatomedin eram fatores do crescimento produzidos por cé¬lulas hepáticas em resposta à presença do hormônio do cres¬cimento.

Colocando de lado o primeiro dos livros pôs-se a ler o segundo. Os experimentos ali registrados estavam incomple-tos, mas diziam respeito à produção de um anticorpo monoclonal contra uma proteína específica. A proteína não tinha nome, mas Jason encontrou um diagrama da sua seqüência de aminoácidos. A maior parte do material desse livro estava além de sua compreensão; mas observando como parágrafos e tópicos inteiros tinham sido riscados, e lendo os rabiscos e notas nas margens, podia ver que o trabalho não ia progre¬dindo bem e que, na época da última anotação, Hayes evi¬dentemente não havia criado o anticorpo que desejara.

Jason levantou-se da escrivaninha e espreguiçou-se. Sentia-se desapontado. Esperava que o pacote cedido por Carol lhe proporcionasse um quadro mais compreensível da descoberta efetuada por Hayes, mas, a não ser pelos documentos da con¬trovérsia entre Hayes e Gene Inc., sabia agora pouco mais do que antes de abrir o pacote. Tinha realmente os registros re¬ferentes à produção da cepa de bactérias E. coli produtoras de Somatomedin, mas isso dificilmente poderia ser conside¬rado uma descoberta importante, e o outro livro de registro de laboratório era todo ele um fracasso.

Exausto, Jason apagou as luzes e foi dormir. O dia tinha sido longo, terrível.

PESADELOS em que apareciam variantes distorcidas do terrível cenário no apartamento de Helene tiraram Jason da cama antes que o sol clareasse o céu para os lados de leste. Pôs-se a pre¬parar o café, e enquanto esperava ele ser filtrado pela máqui¬na, apanhou o jornal, onde leu a notícia referente ao duplo assassinato. Não havia nada de novo. Conforme previa, o jor¬nal dava destaque ao estupro. Jason colocou em sua pasta o livro razão com o título Gene, Inc. e saiu rumo ao hospital.

Pelo menos não havia tráfego nessa hora em que se diri¬gia ao GHP e ele pôde escolher um bom lugar para estacio¬nar. Até mesmo os cirurgiões, que geralmente chegavam em horário tão incivilizado, ainda não estavam ali.

Ao chegar ao GHP, foi diretamente ao seu consultório. Em conformidade com o que havia pedido, sua mesa tinha pilhas de prontuários médicos. Tirou o paletó e começou a examiná-los. Tendo em mente que se tratava de pacientes que haviam morrido no curso de um mês após terem sido consi¬derados sadios em exames de saúde completos, os mais com¬pletos que o GHP podia oferecer, Jason procurou investigar o que havia de comum nos diferentes casos. Nada lhe desper¬tou atenção. Comparou os eletrocardiogramas e os níveis de colesterol, ácidos graxos, imunoglobulinas e hemogramas. Não havia um grupo comum de substâncias, elementos ou enzimas que variassem em relação ao normal, segundo um padrão pre¬visível. O único aspecto em comum era o fato de que a maio¬ria dos casos de morte ocorrera dentro de um mês após os exames de saúde. O mais inquietante, conforme constatou, era que, nos últimos meses, o número de mortes aumentara enormemente.

Quando lia a vigésima sexta papeleta, subitamente ocorreu-lhe uma correlação. Embora os pacientes não se ca-racterizassem por sintomas orgânicos comuns a todos, os pron¬tuários médicos mostravam que havia neles uma predominância de hábitos sociais de alto risco. Eram pessoas com excesso de peso, fumantes inveterados, tomavam medicamentos, bebiam exageradamente e não praticavam exercícios físicos, ou então combinavam algumas e todas essas práticas malsãs, eram ho¬mens e mulheres fadados a contrair enfermidades graves. O aspecto marcante era que essas pessoas sofriam uma deterio¬ração extremamente rápida. E por que o súbito aumento dos casos de morte? Esses pacientes não estavam levando uma vi¬da mais desregrada do que um ano antes. Bem, talvez hou¬vesse uma espécie de equalização estatística: antes a eles estavam tendo sorte, e agora estavam sendo atingidos pela fa¬talidade. Mas isso também não fazia muito sentido, pois o nú¬mero de mortes parecia demasiado alto. Jason não era um especialista em estatística, e por isto decidiu solicitar que um matemático melhor que ele examinasse os números.

Quando percebeu que já não era mais tão cedo e que não iria acordar os pacientes, saiu do seu consultório e iniciou as visitas aos pacientes internados. Nada havia mudado. De vol¬ta ao consultório e antes de atender o primeiro paciente com consulta marcada para esse dia, telefonou para o departamento de anatomia patológica e solicitou informações sobre os ani¬mais mortos do laboratório de Hayes; esperou vários minu¬tos até a técnica encontrar os resultados.

— Está aqui — disse a técnica do laboratório. — Todos morreram de envenenamento por estricnina.

Jason desligou. Depois telefonou para Margaret Danforth, do necrotério municipal. Quem atendeu foi uma técnica auxi¬liar, pois Margaret estava ocupada na realização de uma au¬tópsia. Jason perguntou se o exame toxicológico feito em Gerald Farr revelara alguma coisa interessante.

—  A toxicologia foi negativa — disse a técnica.

— Mais uma pergunta. Esse exame poderia detectar es¬tricnina?

—  Só um momento — disse ela.

Jason pôde ouvir, ao fundo, a mulher falando em voz alta com a médica-legista. Ela voltou ao telefone.

— A Dra. Danforth disse que sim, desde que estivesse presente.

—  Obrigado — disse Jason.

Desligou o telefone, depois levantou-se. Diante da jane-la, examinou a movimentação dessa manhã. Pôde ver o in-tenso movimento de veículos em Riverway. O céu estava claro, porém encoberto. Começava novembro. Não era um mês bom em Boston. Jason sentiu-se inquieto, angustiado e desconso¬lado. Pensou no pacote que recebera de Carol e ficou a conjeturar se passaria às mãos de Curran. Mas, com que finalidade? A polícia nem mesmo estava investigando Hayes, a não ser como consumidor de drogas.

Encaminhando-se de volta à sua escrivaninha, pegou a lista telefônica e procurou o número de Gene, Inc. Notou que a companhia situava-se na Pioneer Street, na parte leste de Cambridge, perto do campus do MIT. Cedendo a um impul¬so, sentou-se e discou o número. Do outro lado atendeu uma recepcionista que falava com sotaque inglês. Jason pergun¬tou pelo diretor da companhia.

— O senhor quer dizer o Dr. Leonard Dawen, o presi-dente?

—  Sim, certo, o Dr. Dawen — disse Jason. Ouviu o si-nal da extensão. Quem atendeu foi uma secretária.

—  Gabinete do Dr. Dawen.

—  Eu gostaria de falar com o Dr. Dawen.

—  E quem deseja falar com ele?

—  Dr. Jason Howard.

—  Posso dizer a ele do que é que se trata?

— É sobre um livro de anotações de laboratório que eu tenho. Diga ao Dr. Dawen que sou do Good Health Plan e que era amigo do falecido Alvin Hayes.

—  Só um momento, por favor — disse a secretária, nu-ma voz que soou como uma gravação.

Jason abriu a gaveta central de sua escrivaninha e reme¬xeu na sua coleção de lápis. Houve um clique no telefone, a seguir uma voz forte falou do outro lado.

—  Aqui é Leonard Dawen!

Jason explicou quem era e depois descreveu o livro de ano¬tações de laboratório.

— Posso lhe perguntar como é que esse livro chegou às suas mãos, senhor?

— Não creio que isso seja importante. O fato é que ele está comigo. — Jason não desejava envolver Carol nessa his-tória.

— O livro é propriedade nossa — disse o Dr. Dawen. Sua voz era tranqüila, mas tinha um quê de ordem e ameaça.

— Terei prazer em entregar o livro em troca de algumas informações sobre o Dr. Hayes. O senhor acha que podería-mos nos encontrar?

—  Quando?

— Tão logo seja possível — disse Jason. — Eu poderei ir aí um pouco antes do meio-dia.

—  Virá com o livro?

—  Sem dúvida, sim.

No restante da manhã, Jason teve dificuldade de se con¬centrar no atendimento contínuo de pacientes. Estava satis¬feito por Sally não ter marcado pacientes para a hora do meio-dia. Assim que terminou de realizar o último exame, saiu apressado em direção ao carro.

Ao chegar a Cambridge, Jason passou nas imediações do MIT e por entre os arranha-céus novos da empresa East Cam¬bridge, alguns construídos segundo uma arquitetura moder¬na notável, que estabeleciam marcante contraste com os prédios de tijolos, mais tradicionais e mais antigos, da Nova Inglater¬ra. Por fim, fazendo uma curva na Pioneer Street, Jason en¬controu Gene, Inc., organização que ocupava um edifício moderno e deslumbrante de granito preto polido. Diferente dos outros prédios vizinhos, o edifício tinha somente seis an¬dares. Suas janelas eram fendas estreitas que se alternavam com círculos de vidro fumê bronze espelhado. Tinha um as¬pecto sólido e poderoso, como um castelo de filme de ficção científica.

Jason saiu do carro levando a sua pasta e ficou contem¬plando uns instantes a impressionante fachada do edifício. De¬pois de ler tanto sobre ADN recombinante e de ter visto o bizarro biotério de Hayes, Jason temia estar por entrar numa casa de horrores. A entrada do edifício ocupava o centro de um círculo de onde saíam afilados raios de granito, dando a ilusão de um olho gigantesco, do qual a porta negra era a pu-pila. O corredor de entrada também era todo de granito ne¬gro: as paredes, o piso, até mesmo o teto. No centro da área de recepção havia uma escultura moderna, dramaticamente iluminada, representando a dupla hélice da molécula de ADN abrindo-se como um zíper.

Jason aproximou-se de uma atraente coreana, colocada por trás de uma parede de vidro, sentada diante de um painel de controle um tanto parecido com o da nave Enterprise. Ela usava um diminuto fone de ouvido, juntamente com um pe¬queno microfone, conectados atrás do pescoço. Cumprimen¬tou Jason chamando-o pelo nome e disse-lhe que ele estava sendo esperado na sala de reuniões no quarto andar. A voz da mulher tinha um som metálico quando ela falou ao micro¬fone.

Assim que a recepcionista parou de falar, uma das lâmi¬nas de granito da parede abriu-se, revelando a existência de um elevador. Jason agradeceu à recepcionista, e de repente teve a impressão de que ela era um robô vivo. Sorrindo, to¬mou o elevador e procurou o botão dos andares. A porta fechou-se atrás dele. Não havia painel seletor de andares, e o elevador começou a subir.

Quando as portas se abriram novamente, Jason viu-se nu¬ma ante-sala negra sem portas. Supôs que o prédio inteiro era controlado desde um posto central, talvez pela recepcionista no andar térreo. À sua esquerda, um painel corrediço de gra¬nito abriu-se. No vão da porta estava de pé um homem de fei¬ções toscas, vestido impecavelmente com um terno preto, de riscas, camisa branca e gravata vermelha listrada.

— Dr. Howard, eu sou o Dr. Leonard Dawen — falou o homem, fazendo um gesto para que Jason entrasse na sala. Não teve a iniciativa de um aperto de mão. Sua voz tinha o mesmo tom de uma ordem, conforme Jason pôde lembrar da conversa ao telefone. Em comparação com a austeridade tu-mular do restante do edifício, o salão de reuniões lembrava mais uma biblioteca de paredes revestidas de lambris de madeira, e parecia realmente acolhedor, pelo menos até se che¬gar a ver a parede dos fundos, que era de vidro. Dava para o que parecia ser um grande laboratório ultramoderno. Ha¬via na sala mais um outro homem, um oriental, que vestia uma jaqueta branca fechada com zíper. Dawen apresentou-o co¬mo sendo o Sr. Hong, engenheiro da Gene, Inc. Depois de se sentarem os três em torno de uma pequena mesa de reu¬nião, Dawen disse:

—  Suponho que tenha trazido o livro.

Jason abriu sua pasta e entregou o livro razão a Dawen, que o passou às mãos de Hong. O engenheiro começou a exa¬minar o livro, página por página. Instalou-se um pesado si-lêncio.

Jason olhou alternadamente para um e para outro. Es-perava que as coisas fossem um pouco mais cordiais. Afinal, fazia-lhes um favor.

Voltou-se e olhou através da parede de vidro. O soalho do salão era um andar abaixo. Grande parte da área estava cheia de barris de aço inoxidável, lembrando a Jason a visita que uma vez fizera a uma cervejaria. Imaginou que os reci-pientes eram incubadores para a cultura das bactérias recom-binantes. Havia uma grande quantidade de outros equipa-mentos e tubulações complicadas. Pessoas vestidas com rou-pas brancas e gorros igualmente brancos circulavam verificando mostradores, fazendo ajustes.

Hong fechou o livro de laboratório com um movimento de dedos.

—  Parece completo — disse ele.

— É uma bela surpresa — falou o Dr. Dawen. Voltando-se para Jason, disse: — Espero que o senhor compreenda que tudo que está neste livro é confidencial.

— Não se preocupe — disse Jason, forçando um sorri-so. — Muita coisa daí eu nem entendi. O que me interessa é o Dr. Hayes. Logo antes de morrer, ele disse que havia feito uma descoberta importante. Estou ansioso por saber se o que está escrito nessas páginas seria considerado como tal.

Dawen e Hong trocaram olhares.

— É mais propriamente uma descoberta para fins comer¬ciais — disse Hong. — Não há aqui nenhuma tecnologia nova.

— Foi isso que imaginei. Hayes se mostrava tão trans-tornado que eu não saberia dizer se estava em seu juízo per-feito. Mas se ele fez uma descoberta importante, eu lamentaria que a humanidade deixasse de se beneficiar com ela.

As feições toscas de Dawen abrandaram-se pela primeira vez desde que Jason havia chegado.

Jason continuou falando, voltando sua atenção para o engenheiro:

— Tem alguma idéia sobre o que Hayes poderia estar que¬rendo dizer?

—  Não, infelizmente. Hayes era mais propriamente uma pessoa com tendência ao sigilo. — Dawen ficou de mãos pos¬tas apoiadas sobre a mesa e olhou para Jason: — Estávamos com receio de que o senhor fosse praticar uma extorsão con¬tra nós, a propósito deste material. Que fosse exigir pagamento para obtermos esse livro de volta — disse ele, tocando na ca¬pa do livro. — O senhor há de compreender, o Dr. Hayes che¬gou a nos causar certas dificuldades.

— Qual era a função do Dr. Hayes aqui? — perguntou Jason.

—  Nós o contratamos para produzir uma cepa de bacté¬rias recombinantes — respondeu Dawen. — Queríamos pro¬duzir um certo fator de crescimento, em quantidades comer¬ciais.

Jason imaginou que se tratava do Somatomedin.

— Concordamos em pagar-lhe honorários fixos pelo pro¬jeto, e também deixar que ele utilizasse os recursos e instala¬ções de Gene, Inc. para efetuar suas próprias pesquisas. Nós temos alguns equipamentos muito específicos, únicos.

— E vocês têm alguma idéia sobre a natureza das pes-quisas que ele realizava? — perguntou Jason.

Hong manifestou-se.

— Ele passava a maior parte do tempo isolando proteí-nas do fator de crescimento. Algumas delas existem em quan-tidades tão ínfimas que seu isolamento exige um equipamento altamente sofisticado.

— E o isolamento de um desses fatores de crescimento poderia ser considerado uma descoberta científica importan-te? — perguntou Jason.

— Não consigo ver como — respondeu Hong. — Ainda que nunca se tenha conseguido isolar esses fatores, conhece-mos os seus efeitos.

Mais um beco sem saída, pensou Jason, desolado.

— Que eu me lembre, apenas uma coisa poderia ser im¬portante — disse Hong beliscando a ponta do nariz. — Há uns três meses, Hayes mostrou-se muito excitado ao consta¬tar um certo efeito colateral. Disse que era algo irônico.

Jason endireitou-se na cadeira. Aí estava essa palavra no¬vamente.

— Vocês têm alguma idéia do que teria causado nele es¬sa excitação? — perguntou.

Hong sacudiu a cabeça negativamente.

—  Não — disse —, mas depois disso não o vimos du-rante algum tempo. Quando tornamos a vê-lo, ele contou que tinha ido até a costa Oeste. A partir daí, deu início a um com-plexo processo de extração em um material que trouxera con-sigo. Não sei se a coisa funcionou, mas depois ele inespera-damente mudou para a tecnologia dos anticorpos monoclonais. Parece que nesse ponto seu entusiasmo arrefeceu.

As palavras "anticorpos monoclonais" fizeram com que Jason se lembrasse do segundo livro de laboratório, e ele se perguntou se afinal de contas deveria tê-lo trazido consigo. Talvez o Sr. Hong pudesse decifrá-lo melhor que ele.

— O Dr. Hayes deixou algum outro material de pesqui-sa aqui? — perguntou Jason.

—  Nada significativo — respondeu Leonard Dawen. — E nós verificamos tudo minuciosamente, pois ele havia saído levando consigo nosso livro de registro de laboratório e as cul-turas. Na realidade, estávamos acionando-o judicialmente. Nunca poderíamos prever que ele fosse reclamar para si a pro¬priedade das cepas de bactérias que estava obrigado a produ¬zir por contrato.

— E vocês obtiveram de volta as culturas de bactérias? — perguntou Jason.

— Obtivemos.

— Onde as encontraram?

— Digamos que fomos procurar no lugar certo — disse Dawen, evasivamente. — Mas embora tenhamos a cepa de bactérias, ainda assim gostaríamos de receber de volta o livro de registros. Em nome da companhia eu gostaria de lhe agrade¬cer. Espero que lhe tenhamos prestado uma ajuda, ainda que pequena.

— Talvez — disse Jason vagamente. E teve uma idéia de que, um tanto inesperadamente, acabara de descobir quem ha¬via efetuado buscas no laboratório e no apartamento de Ha-yes. Mas por que os cientistas de Gene, Inc. teriam tido a iniciativa de matar os animais? Levantou a hipótese de os enor¬mes animais terem sido tratados com o Somatomedin de Ge¬ne, Inc. — Admiro o trabalho de vocês — disse ele a Dawen. — Vocês têm instalações notáveis aqui.

— Obrigado. As coisas vão indo bem. Planejamos ter, em breve, cepas recombinantes de animais domésticos.

— Como porcos e vacas, por exemplo?

— Exato. Geneticamente podemos produzir porcos com menos banha, vacas com mais leite, frangos com mais proteí-na, para citar apenas alguns exemplos.

— Fascinante — disse Jason, sem entusiasmo. Quanto tempo levariam para submeter seres humanos à engenharia ge¬nética? Sentiu um calafrio, novamente, vendo os ratos e camundongos de tamanho descomunal de Hayes, especialmente aqueles dotados de olhos excedentes.

De volta ao assento de seu carro, Jason olhou o relógio de pulso. Ainda tinha uma hora antes de iniciar a reunião da equipe médica que iria reavaliar os casos de mortes recentes de pacientes; por isso, resolveu visitar Samuel Schwartz, ad-vogado de Hayes.

Tendo dado partida no carro, saiu do estacionamento de Gene, Inc. e entrou na Memorial Avenue. Cruzou o Charles River, parando depois no Philip's Drug Store, no Charles Circle. Estacionou em fila dupla, com as luzes de emergência pis¬cando, entrou às pressas na loja e procurou o endereço de Schwartz. Dez minutos mais tarde, encontrava-se na sala de espera do advogado, folheando as páginas de um número atra¬sado da Newsweek.

Samuel Schwartz era um homem enormemente obeso, com uma calva brilhante. Fez um sinal para que Jason entrasse, gesticulando como se estivesse dirigindo o trânsito. Acomodou-se na sua cadeira e ajeitou os óculos de aros dourados. Ficou olhando atentamente Jason, que se sentara diante da escriva¬ninha de mogno maciço.

—  Então o senhor é amigo do falecido Alvin Hayes.

—  Éramos mais colegas do que amigos.

— Como quer que seja — disse Schwartz, com outro ges¬to de sua mão roliça. — Então, o que posso fazer pelo senhor?

Jason tornou a contar a história de Hayes sobre uma su¬posta descoberta. Explicou que estava tentando compreender em que Hayes vinha trabalhando, e que havia encontrado cor¬respondência emitida por Samuel Schwartz.

—  Ele era um cliente. E daí?

—  Não precisa ficar na defensiva.

— Não estou na defensiva. Só estou aborrecido. Traba-lhei muito para esse camarada, e tudo em vão.

— Ele nunca pagou?

— Nunca. Eu caí na conversa dele, trabalhando em tro-ca de ações da nova companhia que criara.

— Ações?

Samuel Schwartz riu sem demonstrar humor.

— Infelizmente, agora que Hayes está morto, as ações não têm valor. Podiam não ter nenhum valor também se ele continuasse vivo. Acho que eu devia era mandar examinar a minha cabeça.

—  A empresa de Hayes venderia um serviço ou um pro¬duto? — perguntou Jason.

— Um produto. Hayes me contou que estava em vias de desenvolver o mais revolucionário produto para a saúde de todos os tempos. E eu acreditei nele. Acreditei que um cara que tinha sido capa da Time tinha que ter algo na cachola.

—  Tem alguma idéia de qual seria esse produto? — in-dagou Jason, tentando atenuar a excitação na voz.

—  Nem remotamente. Hayes não iria me dizer.

—  O senhor sabia se esse produto tinha a ver com anti-corpos monoclonais? — perguntou Jason, não querendo de-sistir.

Schwartz riu novamente.

— Eu não reconheria um anticorpo monoclonal se pas-sasse por um deles na rua.

— Células malignas? — Jason estava apenas arriscando, mas esperava poder ativar a memória do advogado. — O pro¬duto poderia ter relação com o tratamento do câncer?

O homem gordo encolheu os ombros.

— Não sei. Possivelmente.

— Hayes contou a uma pessoa que tal descoberta me-lhoraria a beleza dela. Isso faz algum sentido para o senhor?

— Ouça, Dr. Howard. Hayes não me falou nada sobre o produto. Eu estava apenas organizando a legalização da em-presa.

— O senhor também estava requerendo o registro de uma patente.

— A patente nada tinha a ver com a empresa. Ficaria em nome de Hayes.

O beeper de Jason causou um sobressalto nos dois ho-mens. O médico olhou na tela minúscula. A palavra "urgente" piscou duas vezes, seguida de um número no hospital do GHP.

—  Posso usar o seu telefone? — perguntou Jason. Schwartz empurrou o telefone para o lado de Jason.

—  Esteja à vontade, doutor.

O chamado era do andar em que estava internada Mada¬line Krammer. A paciente sofrera uma parada cardíaca, a equi¬pe estava aplicando ressuscitação cardiopulmonar. Jason avisou que logo estaria lá. Agradecendo a Samuel Schwartz, Jason saiu apressadamente do escritório do advogado e espe-rou, impaciente, o elevador.

Quando chegou ao quarto de Madaline, deparou com uma cena que lhe era muito familiar. A paciente não dava sinais de reação. Seu coração recusava-se a reagir a qualquer estímulo, inclusive ao marca-passo externo. Jason insistiu em que a equi¬pe continuasse com o apoio à vida, ao mesmo tempo que sua mente considerou a possibilidade de aplicar diferentes medica¬mentos e tratamentos. Entretanto, mesmo depois de uma hora de medidas intensivas, também ele se viu obrigado a desistir, e relutantemente ordenou a suspensão dos procedimentos.

Permaneceu à beira do leito de Madaline depois que to-dos os demais haviam saído. Ela havia sido uma boa amiga, desde velhos tempos, uma das primeiras pacientes que ele ha¬via tratado na sua clínica particular. Uma das enfermeiras cobrira o corpo da morta com um lençol. O nariz de Madaline fazia saliência na superfície do lençol, como uma montanha em miniatura coberta de neve. Delicadamente, Jason afastou o lençol. Ainda que a mulher mal tivesse entrado na casa dos sessenta anos, Jason não pôde precisar se a sua aparência cor¬respondia a essa idade. Desde que a paciente entrara no hos¬pital, notava-se que seu rosto havia perdido aquele vigor saudável e assumido a aparência esquelética dos que vão se aproximando da morte.

Jason sentiu que precisava de um tempo para si mesmo, e por isso retirou-se para seu consultório; evitou Claudia e Sally, que estavam atarefadas com inúmeras questões urgen¬tes, relacionadas com a reunião prestes a se realizar e com o problema de desmarcar e remarcar tantos pacientes. Jason fe¬chou a porta de sua sala a chave e sentou-se diante da escriva¬ninha. O falecimento de Madaline, uma de suas pacientes mais antigas, parecia cortar mais uma conexão com a vida que Ja¬son levara anteriormente. Ele sentiu uma solidão pungente, e angústia, embora também sentisse alívio por estar se esmae¬cendo a lembrança de Danielle.

O telefone tocou, mas o médico ignorou o chamado. Olhou sobre sua mesa, onde havia uma pilha de prontuários médicos de pacientes falecidos, inclusive o de Hayes. Como que independentemente de sua vontade, teve seus pensamen¬tos novamente voltados para o caso Hayes. Sentia-se frustra¬do com o fato de que o pacote recebido de Carol, que lhe despertara tanta esperança, viesse afinal acrescentar tão pou¬ca informação. Certamente robustecera um pouco a idéia de que Hayes fizera uma descoberta que pelo menos ele achava ser extraordinária. Jason amaldiçoou o hábito de Hayes de guardar segredo.

Inclinando-se para trás na sua cadeira, Jason pôs as mãos atrás da cabeça e ficou olhando para o teto. Sobre Hayes, não sabia mais o que pensar. Mas aí se lembrou do comentário do engenheiro oriental, de que Hayes trouxera algo da Costa Oeste, possivelmente de Seattle. Devia ter sido uma amostra, porque Hayes a submetera a um complicado processo de ex¬tração. Com base nos comentários de Hong, parecia a Jason que Hayes provavelmente estivera tentando isolar algum tipo de fator de crescimento que estimularia o crescimento, ou a di¬ferenciação, ou a maturação, ou as três coisas conjuntamente.

Jason inclinou-se bruscamente para a frente, batendo com a mão na mesa. Lembrou-se de que Carol havia contado que Hayes fizera uma visita a um colega na Universidade de Was¬hington, e veio-lhe a idéia de que Hayes teria obtido desse co¬lega algum tipo de amostra.

De imediato, Jason decidiu ir a Seattle, contanto que, na¬turalmente, Carol fosse junto. Ela poderia ir. Afinal, seria a chave que permitiria encontrar esse amigo. E depois, também, uns dias de folga seriam muito terapêuticos para ele. Tendo um pouco de tempo livre antes de começar a reunião da equi-pe médica, resolveu ir procurar Shirley para conversar com ela.

A secretária de Shirley, de início, insistiu em dizer que sua chefe estava muito ocupada para poder falar com Jason, mas este a convenceu no sentido de que pelo menos anuncias¬se a ela sua presença. Instantes depois ele já era conduzido à sala de Shirley. Ela estava falando ao telefone. Jason acomodou-se numa poltrona, pegando gradualmente o fio da conversa. Ela estava falando a um líder sindical, convencendo-o com impressionante habilidade. Distraída, ela passava os de¬dos pelos seus abundantes cabelos. Era um maravilhoso ges¬to de mulher, e Jason mais uma vez percebeu que, por baixo dessa superfície de profissional, havia nela uma mulher mui¬to atraente, complicada porém encantadora.

Shirley desligou o telefone e deu um sorriso.

— Hora do recreio, agora — disse ela. — De uns dias para cá, você está sempre trazendo surpresas, não é mesmo, Jason? Suponho que tenha vindo pedir desculpas por não ter ficado mais tempo comigo ontem à noite.

Jason riu. A franqueza de Shirley o desarmava.

— Talvez. Mas há uma outra coisa. Estou pensando em tirar uns dias de férias. Perdi mais uma paciente hoje de ma-nhã, e acho que preciso de uma folga.

Shirley estalou a língua, num gesto de simpatia.

— E isso estava previsto?

— Acho que sim. Pelo menos nestes últimos dias. Mas quando a internei, não tive nenhuma indicação de que isso fosse iminente.

Shirley suspirou.

— Não sei como é que você suporta esse tipo de coisa.

— Realmente não é fácil — concordou Jason. — Mas o que tem tornando as coisas especialmente difíceis ultima-mente é a freqüência com que vem acontecendo.

O telefone de Shirley tocou, mas ela acionou o botão pa¬ra a secretária receber o recado.

— De qualquer modo — disse Jason —, decidi tirar uns dias de folga.

— Acho que é uma boa idéia — disse Shirley. — Eu fa-ria a mesma coisa, se pudesse concluir as negociações com es¬ses malditos sindicatos. E você planeja ir para onde?

— Não sei ao certo — mentiu Jason. A viagem a Seattle era um lance tão ousado que ele tinha vergonha de mencioná-la.

— Tenho uns amigos que são donos de um lugar sosse¬gado nas Ilhas Virgens Britânicas. Eu poderia telefonar para eles — ofereceu Shirley.

— Não, obrigado. Não sou pessoa que goste de sol. E o que foi que aconteceu depois dessa tragédia com a Brennquivist? Muita repercussão?

— Nem me fale — disse Shirley. — Para dizer a verda-de, eu nem quis saber da coisa. Bob Walthrow é que está tra-tando do assunto.

— Tive pesadelos a noite toda — teve de admitir Jason.

— Não é para menos — disse Shirley.

— Bom, eu tenho uma reunião — disse Jason, levantando-se.

— Teria tempo para jantar esta noite? — perguntou Shir¬ley. — Talvez possamos dar mais ânimo um ao outro.

— Claro. A que horas?

— Digamos, por volta das oito.

— Oito, está bem — disse Jason, encaminhando-se para a porta. Quando ele ia saindo, Shirley ainda lhe disse:

—  Realmente sinto muito pela sua paciente.

 

O comparecimento à reunião da equipe médica do hospital foi maior do que Jason esperava, dada a exigüidade de tempo da convocação. Quatorze dos dezesseis clínicos gerais compare¬ceram, e diversos deles trouxeram para a reunião suas respectivas enfermeiras. Parecia evidente que todos reconheciam estar diante de um problema grave.

Jason começou apresentando a estatística que consegui¬ra obter da listagem do computador, na qual apareciam to¬dos os casos de óbitos de pacientes falecidos durante os trinta dias subseqüentes a um exame de saúde completo. Assinalou que o número de mortes tinha aumentado nos três últimos me¬ses, e disse que estava tentando verificar junto a todos os clien¬tes do GHP quais deles haviam se submetido a exames de saúde executivos nos últimos sessenta dias.

— Todos os casos de exames de saúde foram distribuí-dos por igual entre nós? — indagou Roger Wanamaker.

Jason confirmou.

Foram muitos os médicos que se manifestaram, deixan¬do claro que temiam a eclosão de uma epidemia em âmbito nacional. Nenhum deles conseguia entender a conexão com os exames de saúde, nem compreender por que razão não se conseguia prever os casos fatais. A chefe atual da cardiolo¬gia, Dra. Judith Rolander, procurou assumir grande parte de culpa, admitindo que, na maioria dos casos por ela revisados, o eletrocardiograma feito durante a realização dos exames de saúde não detectara a iminência desses problemas, ainda que ela estivesse prevenida de tal possibilidade.

As discussões então centraram-se nas possibilidades de o eletrocardiograma de esforço ser o recurso mais apto a detec¬tar eventos cardíacos catastróficos. Sobre essa questão, hou¬ve muitas opiniões; todas foram devidamente discutidas. Conforme recomendação dos presentes à reunião, foi consti-tuída uma comissão especial encarregada de estudar formas específicas de modificar as provas de esforço, na tentativa de melhorar a capacidade prognóstica desses exames.

Jerome Washington então tomou a palavra. Levantando-se com seu corpo pesadão, ele falou:

—  Penso que estamos subestimando a importância de há¬bitos de vida insalubres das pessoas. Esse é um fator comum a todos esses pacientes.

Houve algumas referências jocosas ao excesso de peso do próprio Jerome e ao seu apego ao cigarro.

— Está certo, pessoal — disse ele. — Vocês sabem, os pacientes devem fazer o que dizemos e não o que fazemos. — Todos riram. — É sério — continuou ele. — Todos nós sabemos dos perigos de uma alimentação incorreta, do exces-so de fumo, do excesso de álcool e da falta de atividade físi¬ca. Esses fatores sociais têm um valor prognóstico muito mais consistente do que alguma anormalidade branda encontrada no eletrocardiograma.

—  Jerome tem razão — disse Jason. — Esse perfil de fa¬tores de alto risco foi o único aspecto negativo que pude en-contrar como elemento comum nesses pacientes.

Por votação, decidiu-se formar uma segunda comissão para investigar a contribuição dos fatores de risco ao atual pro-blema e apresentar recomendações específicas.

Harry Sarnoff, cardiologista consultor no mês em curso, levantou a mão, e Jason o reconheceu. Quando se levantou, começou a falar sobre a sua observação de que houvera au-mento da morbidade e da mortalidade em seus pacientes. Ja-son interrompeu-o.

— Desculpe-me, Harry — disse Jason. — Posso imagi-nar que você esteja preocupado, e sinceramente lhe digo que tenho tido uma experiência aparentemente semelhante à sua. Entretanto, esta reunião se ocupa do problema dos exames de saúde executivos de pacientes de ambulatório. Podemos mar-car uma segunda reunião, se a equipe desejar discutir qual-quer possível problema de pacientes internados. É bem possível que haja alguma relação entre esses casos.

Harry abriu as mãos em desalento e relutantemente vol¬tou a sentar-se.

Jason então insistiu com os membros da equipe no senti¬do de assegurarem a realização de autópsia em todo paciente que tivesse óbito inesperado, caso o médico-legista não a fi¬zesse. E referiu aos colegas presentes à reunião que os resul¬tados do departamento médico-legal obtidos de autópsias de pacientes seus indicavam que essas pessoas estiveram sofren¬do de doença multissistêmica, que incluía a existência de pro¬blemas cardiovasculares extensos. Naturalmente, esse fato apenas atenuava a preocupação de que o problema de saúde dessas pessoas não tivesse sido detectado nos eletrocardiogra¬mas de repouso e de esforço. Jason acrescentou que o departamento de anatomia patológica acreditava haver algum com¬ponente de auto-imunidade.

Depois de encerrada a reunião, os médicos ficaram reu¬nidos em pequenos grupos para discutir o problema. Jason juntou suas folhas da lista de computador e procurou seu co-lega Roger Wanamaker. Ele estava conversando animadamente com Jerome.

—  Posso interromper? — perguntou Jason. Os dois mé¬dicos deram espaço para que Jason entrasse na conversa. — Vou me ausentar da cidade por alguns dias.

Roger e Jerome trocaram olhares. Roger falou:

— Parece que não é uma boa hora para se ausentar.

— Mas é absolutamente necessário — disse Jason, sem maiores rodeios. — Mas tenho cinco pacientes internados aqui. Algum de vocês dois poderia me dar cobertura? Já de saída posso dizer que o estado deles é bastante mau.

— Não se preocupe — disse Roger. — Tenho estado noite e dia por aqui, tentando manter com vida a minha meia dúzia de doentes. Terei prazer em cuidar dos seus casos.

Resolvido o problema, Jason foi até o seu consultório e telefonou para Carol Donner, imaginando que esse horário de fim de tarde era bom para encontrá-la em casa. O telefone tocou durante um longo tempo; Jason estava para desistir quando ela atendeu, com a respiração ofegante. Disse que estivera no banho.

—  Preciso falar com você esta noite — disse Jason.

— Ah — disse Carol, de modo cauteloso. Ela hesitava. — Talvez seja difícil. — Depois ela acrescentou, com irrita¬ção: — Por que não me falou do caso de Helene Brennquivist ontem à noite? Li no jornal que foi você quem encontrou os cadáveres.

— Desculpe — disse Jason, defensivamente. — Para ser totalmente franco, você me acordou a noite passada, e a úni¬ca coisa em que pude pensar foi o pacote.

— Você o recebeu? — perguntou Carol, com uma voz agora mais suave.

— Recebi — disse Jason. — Obrigado.

— E então?

— O material não era tão esclarecedor como eu esperava.

—  Isso me surpreende — disse Carol. — Os livros de-viam ter sido importantes, senão Alvin não teria me pedido para guardá-los. Mas isso é secundário. Que coisa horrível aquilo que aconteceu com Helene. Meu patrão está tão preo-cupado que não quer me deixar ir a nenhum lugar sem um dos seguranças da boate. Agora mesmo há um guarda-costas aqui do lado de fora do prédio.

—  É importante que eu converse com você sozinha — disse Jason.

—  Não sei se poderei. Esse brutamontes recebeu ordens do meu patrão, não de mim. E não quero que haja problemas.

— Bem, telefone-me no memento em que sair de casa — disse Jason. — Prometa. Precisamos conversar.

— Vou sair tarde novamente — adiantou Carol.

— Não importa. O assunto é importante.

— Está bem — concordou Carol antes de desligar. Jason deu mais um telefonema para a United Airlines, e solicitou informações sobre vôos de Boston para Seattle. Sou-be que havia um vôo diário, às quatro da tarde.

Pegando o estetoscópio, Jason saiu do consultório e dirigiu-se ao hospital para fazer suas visitas aos pacientes in-ternados. Sabia que, para a eventualidade de Roger lhe dar cobertura durante sua ausência, precisava atualizar, com to¬do cuidado, suas papeletas. Nenhum de seus pacientes estava passando muito bem, e Jason ficou acabrunhado ao verificar que mais um paciente seu havia desenvolvido catarata em grau avançado. Preocupado, solicitou exame oftalmológico. Des¬ta vez tinha certeza de que não constatara esse problema por ocasião da hospitalização do doente. Como podia a catarata haver progredido tanto em tão pouco tempo?

Depois de chegar em casa, pôs sua roupa de jogging; saiu e correu por bem uma hora, tentando pôr em ordem os pen¬samentos. Tomou um banho de chuveiro, vestiu-se e, de car¬ro, dirigiu-se à casa de Shirley, sentindo-se num estado de ânimo melhor.

Shirley superou-se a si mesma com o jantar, e Jason co¬meçou a achar que ela se classificaria na categoria Super-mulher. Ela conseguia trabalhar o dia todo, à frente de uma empresa de muitos milhões de dólares, e conduzir negociações

difíceis com sindicatos e associações de classe; e depois de tu¬do, ao chegar em casa, tinha competência para preparar um fabuloso jantar em que constavam pato assado com massa fres¬ca e alcachofra. E ainda por cima capaz de pôr um vestido chemisier de seda que seria compatível com uma noite na ópera. Jason até se sentiu constrangido, porque estava de jeans e ca¬misa de rugby sobre uma camiseta de gola redonda que vesti¬ra assim que saíra do banho.

—  Você vestiu o que quis, e eu fiz o mesmo — disse Shir¬ley dando uma risada. Serviu-lhe um Kir Royale e pediu-lhe que lavasse os legumes para a salada. Verificou o pato e disse que estava quase pronto. Para Jason, o pato assado no forno exalava um aroma divino.

Comeram na sala de jantar, sentados em extremidades opostas de uma mesa comprida com seis cadeiras vazias nos dois lados. Toda vez que Jason colocava mais vinho nos co-pos, tinha de levantar-se e dar vários passos. Shirley achou que era divertido.

Enquanto comiam, Jason descreveu como transcorrera a reunião da equipe médica e acrescentou que todos os médicos iriam aprimorar a qualidade de seus testes de esforço. Esta in¬formação foi útil a Shirley, e ela lembrou a Jason que os exa¬mes de saúde executivos constituíam um fator importante para incrementar a venda dos serviços do GHP aos clientes empresa¬riais. Ela contou a Jason que a companhia passaria a dar uma nova ênfase à medicina preventiva para clientes executivos.

Mais tarde, no café, ela disse:

—  Michael Curran esteve lá hoje à tarde.

—  É mesmo? — perguntou Jason. — Tenho certeza que isso foi desagradável. O que ele queria?

— Conhecer os antecedentes da Brennquivist mulher. Demos-lhe tudo que tínhamos. Ele até se entrevistou com a mulher do departamento de pessoal que a tinha contratado.

— Ele mencionou se a polícia tinha alguma suspeita?

— Não — disse Shirley. — Só espero que tudo esteja ter¬minado.

— Eu desejaria ter conseguido falar com Helene nova-mente. Continuo achando que ela estava acobertando algo em favor de Hayes.

— Você ainda acha que ele fez alguma descoberta?

— Com toda a certeza. — E Jason passou a descrever os livros de registros de laboratório e a visita que fez a Gene, Inc. e a Samuel Schwartz. Contou a Shirley que Schwartz ha-via encaminhado a constituição de uma empresa para Hayes, destinada a comercializar a nova descoberta, fosse qual fosse.

—  Ele não sabia que produto era?

— Não. Aparentemente Hayes não confiava em ninguém.

— Mas ele ia ter necessidade de capital inicial. Teria de ter confiança em alguém, se estava planejando fabricar e dis-tribuir.

— Talvez sim — admitiu Jason. — Mas não consigo en-contrar ninguém a quem ele tivesse revelado o assunto, pelo menos até agora. Infelizmente, Helene era com quem eu mais contava para esclarecer tudo.

—  Você ainda continua sua busca?

— Acho que sim — admitiu ele. — Será que isso parece tolice?

— Tolice não — disse Shirley —, só inquietante. Seria uma tragédia se uma descoberta importante se perdesse, mas eu realmente acho que é hora de deixar em paz esse caso Ha-yes. Espero que esteja tirando uns dias de folga para relaxar, não para continuar com esse empreendimento arriscado e in-frutífero.

— Mas por que você pensa assim? — perguntou Jason, surpreso com sua própria transparência.

— Porque você não desiste facilmente. — Ela se aproxi¬mou e colocou a mão sobre o ombro de Jason. — Por que não vai para o Caribe? Talvez eu possa sair no fim de sema¬na, e estarei com você...

Jason sentiu uma empolgação que não sentia desde a mor¬te de Danielle. Parecia-lhe magnífica essa idéia de sol quente e água límpida e fresca, especialmente se Shirley também esti¬vesse lá. Mas então hesitou. Não sabia se estava em condi¬ções de assumir o compromisso emocional que a situação exigia. E, o que era mais importante, prometera a si mesmo ir a Seattle.

— Eu quero viajar até a Costa Oeste — disse ele, por fim. — Gostaria de visitar um velho amigo meu que vive lá.

— Programa bem inocente mesmo. Mas o Caribe me pa¬rece melhor.

— Talvez, dentro de pouco tempo. — Ele apertou com ternura o braço direito de Shirley. — Que tal um conhaque?

Enquanto Shirley se afastava para ir buscar o Courvoisier, Jason olhou com atenção e crescente interesse a sua figura.

 

Quando Carol telefonou, às duas e meia da madrugada, Ja¬son estava plenamente desperto. Estivera tão preocupado com a possibilidade de ela esquecer, que não conseguira dormir.

—  Estou exausta, Jason — foi logo dizendo Carol.

— Desculpe, mas preciso conversar com você pessoalmen¬te — falou ele. — Posso estar aí dentro de dez minutos.

— Não acho que seja um boa idéia. Como lhe falei hoje à tarde, não estou sozinha. Há alguém ali do lado de fora vi-giando o meu edifício. Por que você tem que conversar comi-go pessoalmente ainda hoje? Talvez possamos acertar um encontro para amanhã.

Jason pensou em perguntar-lhe, por telefone, se queria viajar a Seattle, mas concluiu que teria melhores possibilida-des se fosse convencê-la pessoalmente. Era uma coisa meio fora do comum pedir a uma mulher que o acompanhasse até Seat¬tle depois de terem tido apenas dois encontros.

— É só esse guarda-costas?

— Sim, mas que diferença faz? O sujeito é forte como um touro.

— Há uma entrada de acesso pelos fundos do seu edifí-cio. Eu poderia subir pela escada de incêndio.

— Pela escada de incêndio! Que loucura! Mas afinal o que há de tão importante para você precisar se encontrar co-migo ainda hoje?

— Eu não precisaria ir até aí se pudesse falar por telefone.

— Bom, é que não gosto dessa idéia de trazer homens ao meu apartamento a esta hora da noite.

Ah, claro!, pensou Jason.

— Olhe — falou alto Jason —, vou lhe dizer só isto. Es-tive tentando esclarecer o que foi que Hayes descobriu, e vou até o fim nessa história. Preciso da sua ajuda.

— Isso é quase uma ordem, Dr. Jason Howard.

— Exatamente. Você é a única pessoa que pode me ajudar.

Carol riu.

— Se você coloca a coisa desse jeito, quem pode recu-sar? Está bem, venha. Mas por sua conta e risco. Tenho de adverti-lo, não tenho muito controle sobre esse brutamontes que está ali fora.

— Meu seguro contra invalidez já está pago.

— Eu moro na... — começou a dizer Carol.

— Eu sei onde você mora — interrompeu Jason. — Na verdade eu já tive um pega com Bruno, se é esse o cara char-moso que está de guarda na sua porta.

— Você já conheceu Bruno? — perguntou Carol, com incredulidade.

— Sujeito amável. Sabe conversar como ninguém.

— Deixe então que eu lhe avise — disse Carol. — Foi Bruno quem me acompanhou até a porta do meu edifício.

— Felizmente é fácil localizar onde está esse cara. Fique vigiando da janela dos fundos do seu apartamento. Não que¬ro ficar pegando sereno na sua escada de incêndio.

— Mas isso é mesmo uma loucura — falou Carol.

Jason trocou de roupa; vestiu calça preta e pulôver pre-to. Estaria muito visível na escada de incêndio, mesmo não usando roupas de cores claras. Calçou tênis de corrida e des-ceu para apanhar o carro. Passou pela Beacon Street, de olho atento para a possível presença de Bruno. Fez uma curva à esquerda na Gloucester Street e mais outra à esquerda em Com¬monwealth. Tendo cruzado Marlborough, diminuiu a marcha. Sabia que não havia possibilidade de encontrar um estaciona¬mento; por isso, decidiu parar o carro junto ao hidrante mais próximo. Deixou as portas do carro fechadas mas não chaveadas; em caso de necessidade, os bombeiros poderiam usar as mangueiras sem serem estorvados pelo carro.

Ao sair do automóvel, Jason perscrutou cuidadosamente o trecho da calçada entre as ruas Beacon e Marlborough. Lu¬zes intermitentes formavam áreas iluminadas. Havia muitas áreas escuras, árvores projetavam sombras semelhantes a teias de aranha. Jason ainda conseguia lembrar nitidamente sua re¬cente tentativa de fuga das mãos de Bruno nessa mesma rua.

Juntando coragem, começou a andar pela calçada, tenso como o corredor que aguarda o tiro de largada. Um súbito movimento à sua esquerda fez com que engolisse em seco. Era uma ratazana do tamanho de um gatinho. Jason sentiu que os cabelos na parte posterior de seu pescoço se eriçaram. Con¬tinuou a andar, contente por não encontrar sinal da presença de Bruno. O silêncio era tanto que conseguia ouvir sua pró¬pria respiração.

Chegou ao edifício de Carol. Antes de olhar com cuida-do para a escada de incêndio, notou acesa a luz conhecida na janela do quarto andar. A escada, infelizmente, tinha um desses segmentos que têm de ser baixados do primeiro andar. Jason olhou em busca de alguma coisa em cima da qual pudesse fi¬car de pé. A única coisa disponível era um latão de lixo, e isto significava que teria de emborcá-lo e esvaziá-lo. Mesmo sa¬bendo que isso causaria muito barulho, compreendeu que não tinha outra escolha. E pouco se importou quando o latão fez um pequeno estrondo contra o pavimento e latas de cerveja vazias se espalharam na rua.

Prendendo a respiração, olhou para cima. Não se acen-deram outras luzes. Satisfeito com isso, subiu no latão de lixo e agarrou-se no segmento mais baixo da escada, que estava erguido.

—  Ei! — gritou alguém. Jason voltou a cabeça e viu um vulto enorme, conhecido, correndo em sua direção na calça¬da balançando os braços e respirando forte como uma loco-motiva. Nessa hora, Bruno parecia um zagueiro dos Was-hington Redskins.

— Que merda! — exclamou Jason. Com toda a força, agarrou-se à extremidade da escada, um tanto temeroso de que ela pudesse despencar com seu peso. Felizmente não despen¬cou. Laboriosamente, ele conseguiu se erguer até poder colo¬car o pé no primeiro degrau e subir ao primeiro andar.

— Ei, seu anormal filho da puta! — gritou Bruno. — Está querendo criar problema por aqui?

Jason hesitou. Poderia rechaçar o sujeito pisando-lhe nos dedos das mãos, caso ele tentasse subir, mas isto o impediria de chegar até o apartamento de Carol. Decidiu tentar a sorte. Subiu apressadamente os dois lances seguintes da escada de incêndio, chegando então ao andar de Carol. Ela estava olhan¬do atenta e ergueu a janela de guilhotina no momento em que o viu. Antes que ela pudesse falar, Jason disse ofegante:

— Esse seu gorila vem subindo. Você acha que ele está armado? — Jason viu-se dentro de uma cozinha ampla.

— Não sei.

— Ele vai chegar a qualquer momento — disse Jason, baixando a janela de guilhotina e trancando-a. Tal manobra só poderia retardar em uns dez segundos a entrada de Bruno.

— Talvez eu devesse conversar com ele — sugeriu Carol.

— E ele a ouviria?

— Não sei. Ele é impulsivo e teimoso.

— É o que eu também acho — disse Jason. — Mas ele não me vê com bons olhos. Acho que vou precisar de algo co-mo um bastão de beisebol.

—  Você não pode machucá-lo, Jason.

—  Não quero machucá-lo, mas não parece que ele esteja disposto a sentar e conversar sobre este assunto. Preciso de al¬go com que possa ameaçá-lo, para mantê-lo afastado de mim.

—  Eu tenho um atiçador de fogo.

— Vá buscá-lo. — Jason apagou a luz da cozinha. Co-lando o nariz na vidraça, pôde ver Bruno se esforçando para atingir o primeiro lance da escada de incêndio. O rapaz era forte, mas também muito desajeitado. Carol voltou com o ati-çador de fogo. Jason agarrou-o. Com um pouco de sorte, ele teria a possibilidade de convencer o brutamontes a ouvi-lo.

— Eu sabia que isso ia dar problemas — falou Carol. Jason relanceou o olhar pela cozinha e notou que o chão era de linóleo de tipo antigo. Olhou para a porta que comuni¬cava a cozinha com o restante do apartamento. Era uma por¬ta espessa e sólida, com fechadura e chave. Em alguma época o ambiente tinha sido alguma outra coisa que não uma cozinha.

— Carol, você se importa se eu fizer um pouco de de-sordem? Quer dizer, terei prazer em pagar pela limpeza que tiver de ser feita.

—  Que está pretendendo fazer?

—  Você tem uma lata de óleo vegetal, das grandes?

—  Acho que sim.

—  Pode buscá-la?

Atônita, Carol abriu a porta da despensa e retirou de den¬tro uma lata de galão de azeite italiano importado.

—  Perfeito — falou Jason. Depois de fazer outra rápida verificação na janela, empurrou apressadamente as duas ca-deiras e a mesa para fora da cozinha.

Carol, cada vez entendendo menos, observava Jason.

—  Está bom; agora saia — ordenou Jason. Carol foi para o corredor.

Jason abriu a lata e começou a derramar o azeite no soa-lho, em movimentos oscilantes e amplos. Assim que fechou e chaveou a porta, ouviu pancadas na janela da cozinha e, lo¬go a seguir, vidro sendo estilhaçado.

Colocou a mesa atravessada como uma tranca entre a por¬ta e a parede oposta.

— Venha — disse ele, pegando a mão de Carol. Com a outra mão continuava segurando o atiçador de fogo. Levou Carol para a porta da frente do apartamento, que tinha segu-rança adequada, provida de trinco duplo e uma fechadura de haste metálica. Ouviram um barulho tremendo na cozinha. Bruno havia caído pela primeira vez.

— Isso foi muito engenhoso — riu-se Carol.

— Quando se tem só 72 quilos, é preciso alguma com-pensação. — O coração de Jason ainda batia acelerado. — De qualquer modo, não sei por quanto tempo ele vai estar ocu¬pado lá na cozinha, por isso temos de ser rápidos. Preciso de sua ajuda. A última chance que tenho de reconstituir a desco¬berta feita por Alvin Hayes é ir a Seattle e tentar averiguar o que ele fez lá. Aparentemente, ele...

Houve outro estrondo, seguido de palavrões, alguns deles naturalmente em italiano.

—  Ele está ficando de mau humor — disse Jason, ao mes¬mo tempo que destravava os trincos da porta principal.

—  Então você quer que eu vá a Seattle com você. É isso?

—  Eu sabia que você podia compreender. Hayes trouxe de lá uma amostra, que processou na Gene, Inc. Tenho de des¬cobrir que amostra era essa. A melhor pista é o homem que ele contatou na Universidade de Washington.

—  O homem cujo nome não consigo lembrar.

—  Mas você viu esse homem. Poderia reconhecê-lo?

—  Provavelmente.

—  Sei que é um tanto audacioso pedir-lhe que venha comi¬go — disse Jason. — Mas eu realmente acredito que Hayes fez algum tipo de descoberta. E considerando as suas realizações profissionais anteriores, tem de ser uma descoberta importante.

— E você realmente pensa que a ida a Seattle poderia so¬lucionar essa questão?

—  Não nego que seja uma hipótese audaciosa. Mas é a única provável.

A porta da cozinha começou a estremecer com vigorosas pancadas dos punhos de Bruno.

—  Acho que já abusei de sua hospitalidade — disse Ja¬son. — Bruno não vai machucá-la, não é mesmo?

—  Queira Deus que não. Meu patrão seria capaz de esfolá-lo vivo. É por isso que ele está tão furioso agora. Acha que estou correndo algum perigo.

— Carol, você pode ir comigo nessa viagem a Seattle? — pediu Jason, ao mesmo tempo que removia a tranca prin-cipal da porta da frente.

— Quando deseja ir? — perguntou Carol, vacilando.

— Hoje à tarde. Não permaneceríamos muito tempo lá. Seria possível você se ausentar do trabalho avisando em cima da hora?

—  Já fiz isso outras vezes. Vou dizer simplesmente que preciso ir à minha cidade natal. Além disso, depois do assas¬sinato de Helene, meu patrão até poderia sentir-se aliviado ao me ver fora desta cidade.

—  Então quer dizer que você vai? — perguntou Jason, animado.

—  Sim, vou. — Carol deu-lhe um sorriso afetuoso. — Por que não?

—  Há um vôo para Seattle às quatro da tarde de hoje. Podemos nos encontrar no portão de embarque. Vou com¬prar as passagens. O que acha disso?

—  Uma loucura — disse Carol. — Mas é divertido.

— Então encontro você lá. — Jason desceu apressada-mente as escadas e saiu em busca de seu carro, receoso de que Bruno pudesse ter invertido o rumo de sua perseguição e ti¬vesse saído pela janela.

JASON ACORDOU cedo e telefonou para Roger, pretendendo ficar a par do estado de seus pacientes. Hoje não iria ao hos¬pital. Havia uma outra viagem que queria fazer antes de se encontrar com Carol para o vôo das quatro da tarde para Seat¬tle. Fez as malas, às pressas, tendo o cuidado de levar roupas próprias para o tempo frio e chuvoso, e telefonou pedindo um táxi para levá-lo ao aeroporto; chegou ao aeroporto justamente a tempo de guardar sua mala num guarda-volumes automáti¬co e tomar a ponte aérea da Eastern das dez da manhã para o aeroporto La Guardia, em Nova York. Em La Guardia alu¬gou um carro e seguiu para Leonia, em Nova Jersey. As pos¬sibilidades eram provavelmente menores ali do que em Seattle, mas Jason tencionava encontrar-se com a ex-esposa de Ha¬yes. Não desejava deixar sem investigação nem mesmo a me¬nor pista do caso.

Leonia mostrou ser uma cidadezinha surpreendentemen¬te pacata, tendo-se em conta a sua proximidade com Nova York. A dez minutos de distância da ponte George Washing¬ton, Jason se viu entrando numa rua ampla com estabeleci¬mentos comerciais de um só andar, diante dos quais se podia estacionar em ângulo. Essa rua era como qualquer outra rua principal das cidadezinhas do interior, mas levava o pompo¬so nome de Broad Avenue. Havia um bazar, um loja de fer-ragens, uma padaria e até uma lanchonete. Parecia cenário para filme dos anos 50. Jason entrou na lanchonete, pediu um baunilha maltado e consultou a lista telefônica. Havia uma Louise Hayes, na Park Avenue. Enquanto bebia o seu refrigerante, Jason ficou a considerar qual a melhor alternativa, telefonar ou ir diretamente ao endereço. Optou pela segunda possibilidade.

A Park Avenue cortava a Broad Avenue e subia a encos¬ta que delimitava Leonia na direção leste. Depois do Pauline Boulevard, a avenida fazia uma curva para norte. Era lá que se encontrava a casa de Louise Hayes: uma casa modesta, marrom-escura, coberta com telhas de ardósia, muito preci¬sada de reparos. A grama no jardim da frente estava malcuidada e crescida.

Jason tocou a campainha. A porta foi aberta por uma mulher sorridente, de meia-idade, que usava um vestido ver-melho desbotado, de usar em casa. Tinha cabelos castanhos encaracolados; apareceu agarrada na sua saia uma menininha de cinco ou seis anos, com o dedo polegar na boca até a se¬gunda falange.

—  Sra. Hayes? — perguntou Jason. A mulher tinha uma aparência muito diferente da das outras duas namoradas de Hayes.

—  Sim.

—  Sou o Dr. Jason Howard, colega do seu falecido ma-rido. — Jason não tinha ensaiado o que dizer em seguida.

—  Sim? — repetiu a Sra. Hayes, reflexamente empur-rando a menininha para trás de si.

—  Eu gostaria de falar com a senhora, se tiver um pou-co de tempo. — Jason enfiou a mão no bolso e entregou à mulher a carteira de motorista com sua foto e o cartão de iden-tificação de médico do GHP. — Entrei para a Faculdade de Medicina junto com o seu marido — acrescentou ele, para fa-cilitar a conversação.

Louise olhou os documentos e devolveu-os.

—  O senhor gostaria de entrar?

—  Sim, obrigado.

O interior da casa também parecia necessitar de obras de restauração. Os móveis eram usados, o tapete estava gasto. Brinquedos de criança estavam espalhados pelo chão. Louise fez apressadamente um espaço livre no sofá e, com um gesto, indicou o lugar para Jason sentar.

—  Posso oferecer alguma coisa? Café, chá?

— Café seria bom — disse ele. A mulher parecia angus¬tiada, e ele achou que a atividade na cozinha poderia acalmá-la. Ela foi para a cozinha, de onde logo veio o ruído de água escorrendo. A menininha ficou para trás, olhando com seus grandes olhos castanhos. Quando ele lhe sorriu, ela fugiu pa¬ra dentro da cozinha.

Jason olhou o ambiente da sala. Era escura e triste, e nas paredes havia algumas gravuras tiradas de folhetos de propa¬ganda. Louise retornou com a menina a reboque. Deu a Ja¬son uma xícara de café e colocou o açúcar e o creme sobre a pequena mesa. Jason serviu-se de açúcar e creme.

Louise sentou-se do outro lado da mesa.

— Desculpe-me se eu não pareci hospitaleira no início — falou ela. — Não é comum eu ter visitas que venham per-guntar por Alvin.

— Compreendo — disse Jason. Ele olhou-a com mais atenção. Sob o exterior descuidado, ele observava traços de uma mulher bonita. Hayes tinha bom gosto, não havia dúvi¬da. — Lamento me meter nisso, mas Alvin me falou a seu res-peito. Como estava passando por aqui, pensei em dar uma chegada. — Ele achou que algumas inverdades podiam ajudar.

— Ele falou, então? — disse Louise, com indiferença. Jason decidiu ser cauteloso. Não estava ali para remexer em sentimentos dolorosos.

—  O motivo pelo qual eu quis conversar com a senhora — disse ele — é que o seu marido me falou que havia realiza-do uma descoberta científica importante.

Jason passou a explicar as circunstâncias da morte de Al¬vin Hayes e contou como tinha tomado, como ponto de hon-ra, a decisão de procurar descobrir se o marido dela realmente havia feito uma descoberta científica. Explicou que seria trá-gico se Alvin tivesse descoberto algo capaz de ajudar a huma-nidade e essa descoberta viesse a se perder. Louise meneou a cabeça afirmativamente, mas quando Jason lhe perguntou se tinha alguma idéia do que poderia ter sido essa descoberta, ela disse que nada sabia.

—  A senhora e Alvin não conversavam muito?

— Não. Só sobre as crianças e assuntos de dinheiro.

— Como estão seus filhos? — perguntou Jason, lembrando-se de que Hayes manifestara preocupação com o me¬nino.

—  Os dois estão bem, obrigado.

—  Dois?

—  Sim — disse Louise. — Esta aqui é Lucy — ela afa-gou a cabeça da menina —, e John está no colégio.

—  Eu pensei que vocês tinham três filhos.

Jason percebeu que os olhos da mulher ficaram mareja¬dos. Depois de um silêncio constrangido, ela disse:

— Bem... há mais um. Alvin Junior. Ele sofre de retar-damento mental grave. Vive numa escola em Boston.

—  Lamento muito.

— Está tudo bem. Naturalmente o senhor devia achar que a esta altura eu já estaria resignada mas acho que isso ja-mais acontecerá. Creio que foi esse o motivo de Alvin e eu termos nos divorciado; eu não pude suportar o problema.

— Onde é mesmo que ele está? — perguntou Jason, sa¬bendo que tocava num ponto doloroso.

— Na Hartford School.

— Como está passando? — Jason conhecia a Hartford School. Era uma instituição que passara ao controle do GHP quando este comprara um hospital associado, proprietário de uma unidade de tratamento para pacientes críticos. Jason tam-bém sabia que essa escola agora estava à venda, por dar mui-ta despesa e sobrecarregar as finanças do GHP.

—  Ele está bem, pelo que eu sei — disse Louise. — Acho que não o visito com muita freqüência. É uma coisa que me dói muito.

—  Compreendo — disse Jason, conjeturando se seria este o filho a que Hayes havia feito menção na noite em que morrera. — Seria possível darmos um telefonema e pergun¬tar como o menino está passando?

—  Acho que sim — disse Louise, não reagindo ao ines¬perado dessa pergunta. Colocou-se rigidamente de pé, sua filhinha sempre agarrada a ela, foi ao telefone e efetuou uma chamada para a escola. Pediu ligação para o pavilhão dos pré-adolescentes e, quando atenderam, conversou um pouco so¬bre o estado de saúde de seu filho. Ao desligar o telefone, fa¬lou: — Eles acham que está indo tão bem quanto se podia esperar. O único problema novo é uma certa artrite, que tem dificultado a fisioterapia.

—  Ele tem estado lá por muito tempo?

— Desde que Alvin foi trabalhar para o GHP. Conse¬guir colocar o menino na Hartford foi um dos motivos que o levou a aceitar o emprego.

— E o seu outro filho? A senhora diz que ele está bem.

— Não podia estar melhor — disse Louise, com eviden-te orgulho. — Está na terceira série e é considerado um dos mais brilhantes da classe.

— Isso é maravilhoso — disse Jason, tentando rememo¬rar a noite em que Hayes morrera. Alvin dissera que alguém queria matá-lo e ao filho. Que era muito tarde para ele, mas talvez não fosse para seu filho. O que isso queria dizer afi¬nal? Jason supusera que um dos filhos do colega tinha ti¬do alguma doença física, mas aparentemente não era esse o caso.

—  Mais café? — perguntou Louise.

— Não, obrigado — disse Jason. — Só mais uma per-gunta. Na época em que morreu, Alvin estava empenhado em fundar uma empresa. Seus filhos seriam acionistas. A senho¬ra soube alguma coisa a respeito disso?

—  Não, absolutamente nada.

—  Bem... — disse Jason. — Obrigado pelo café. Se hou¬ver alguma coisa que eu puder fazer pela senhora em Boston, como dar uma olhada em Alvin Junior, não tenha dúvida, pode telefonar. — Jason levantou-se, e a menininha escondeu a ca¬beça na saia da mãe.

—  Espero que Alvin não tenha sofrido — disse ela.

—  Não, não sofreu — respondeu Jason, mentindo. Ainda podia lembrar a expressão de horror no rosto de Alvin.

Estavam já na porta quando Louise de repente falou:

—  Ah, há uma coisa que eu não lhe disse. Alguns dias depois que Alvin morreu, alguém arrombou nossa casa. Fe-lizmente não havia ninguém aqui.

— Levaram alguma coisa? — perguntou Jason, conjeturando se não teria sido gente da Gene, Inc.

— Não — disse Louise. — Provavelmente viram esta ba¬gunça habitual e deram o fora correndo. — Ela sorriu. — Mas parece que vasculharam tudo. Até mesmo as maletas de esco¬la das crianças.

Enquanto se afastava de Leonia, Nova Jersey, e tomava o caminho de volta à ponte George Washington, Jason pôs-se a pensar no encontro que tivera com Louise Hayes. Devia estar mais desencorajado do que estava. Afinal de contas, não ficara sabendo nada de importante que justificasse a viagem. Mas percebia que tinha havido outras razões para desejar fa¬zer essa viagem. Sentia verdadeira curiosidade em relação à esposa de Hayes. Tendo-lhe sido arrebatada pela morte, de maneira tão cruel, sua própria esposa, Jason não podia com¬preender por que alguém como Hayes romperia voluntaria¬mente um casamento. Mas Jason nunca vivenciara o trauma de ter um filho retardado mental.

Ele conseguiu lugar no vôo da ponte aérea de 14:00 para vol¬tar a Boston. Tentou ler no avião, mas não conseguia se con¬centrar. Começou a se preocupar; talvez Carol não conseguisse se encontrar com ele no aeroporto de Boston, ou então, o que seria pior, aparecesse com Bruno.

Infelizmente, o vôo da ponte aérea de 14:00, que devia aterrissar em Boston às 14:40, ainda não tinha sequer decola-do de La Guardia até as 14:30. Quando Jason desembarcou em Boston, já eram 15:15. Apanhou sua bagagem no guarda-volumes e apressadamente deslocou-se do terminal da Eastern para o da United.

Havia uma longa fila diante do balcão de passagens, e Jason não conseguia imaginar o que faziam os funcionários da companhia aérea para tornar cada atendimento tão demo-rado. Já eram 15:40 e nenhum sinal de Carol Donner.

Chegou, por fim, a vez de Jason. Ele apresentou seu car¬tão do American Express e pediu duas passagens para Seat¬tle, ida e volta, para o vôo das quatro da tarde, com os retornos em aberto.

Pelo menos com Jason o funcionário foi eficiente. Em três minutos ele tinha os bilhetes das passagens e os cartões de embarque, e se dirigiu apressadamente para o Portão 19. O vôo já estava nas fases finais do embarque. Ao chegar ao Portão 19, Jason, sem fôlego, perguntou se alguém havia chamado por ele. Quando a moça do balcão disse que não, ele descreveu rapidamente como era Carol e perguntou se o fun¬cionário do embarque não a tinha visto.

— Ela é muito bonita — acrescentou ele.

— Tenho certeza que sim — sorriu a funcionária. — In-felizmente, não notei a presença dela. Mas se o senhor está com planos de ir para Seattle, seria melhor embarcar.

Jason olhou o ponteiro dos segundos percorrendo o mostrador do relógio de parede colocado atrás do balcão de re¬gistro de chegada. O funcionário estava ocupado em montar as fichas de embarque. Um outro funcionário fez a chamada final do embarque para Seattle. Faltavam dois minutos para as quatro horas.

Com sua bolsa de viagem pendurada ao ombro, Jason olhou novamente para o corredor que dava para o saguão de acesso. No momento em que estava a ponto de abandonar to-da a esperança, ele a viu. Ela vinha correndo na sua direção. Jason deveria ficar eufórico. O único problema, porém, era que, alguns passos atrás dela, vinha o impressionante corpanzil de Bruno. Um pouco mais além no corredor estava postado um policial, vigiando junto ao local em que os passageiros apa¬nhavam suas bagagens passadas pelo aparelho de raios X. Ja¬son traçou mentalmente o plano: essa haveria de ser a sua direção de fuga, caso surgisse tal necessidade.

Carregando sua própria bolsa de viagem pendurada no ombro, Carol estava tendo certa dificuldade de correr. Bruno não fazia nenhum esforço para ajudá-la. Carol aproximou-se diretamente de Jason. Jason viu no rosto de Bruno a expres-são passar do constrangimento para a confusão e a raiva.

—  Consegui chegar a tempo? — falou ela, ofegante. O funcionário agora estava na porta da passarela telescópica de acesso ao avião, destravando-a com o pé.

— Que diabos você está fazendo aqui, cara? — falou al¬to Bruno, olhando para o letreiro de destino do vôo. Voltou-se acusadoramente para Carol. — Você disse que ia para sua cidade natal, Carol.

— Venha — disse Carol, agarrando no braço de Jason e empurrando-o em direção ao embarque.

Jason foi andando de costas com os olhos postos no rosto rechonchudo de Bruno, que assumira uma ameaçadora cor avermelhada. Grossas veias ressaltavam em suas têmporas.

—  Só um momento — exclamou Carol em direção ao funcionário que controlava a porta. O homem fez um sinal afirmativo com a cabeça e gritou alguma coisa para dentro da passarela. Jason manteve os olhos em Bruno até o último segundo. Ainda pôde vê-lo afastando-se em direção a uma cabine telefônica.

—  Oi, pessoal, vocês gostam de chegar em cima da hora — disse o funcionário, destacando uma parte de cada um dos dois cartões de embarque. Jason finalmente voltou o rosto para a frente, afinal se convencendo de que Bruno decidira não criar um tumulto. Carol ainda puxava Jason pelo braço enquanto iam percorrendo o corredor da passarela. Ainda tiveram que esperar enquanto o operador da passarela batia com o punho na parte lateral do avião para pedir que o comissário de bor¬do abrisse, de dentro, a porta do avião já fechada e travada.

— Mais em cima da hora vocês não podiam estar — disse o funcionário, com ar de reprovação.

Uma vez sentados nas poltronas, Carol pediu desculpas pelo atraso.

— Estou furiosa — disse ela, acomodando sua bolsa de viagem debaixo do assento em frente. — Sou agradecida pela preocupação que Arthur tem pelo meu bem-estar, mas isso é ridículo.

— Quem é Arthur?

— É o meu patrão — disse Carol, aborrecida. — Ele disse que se eu me ausentasse agora, poderia perder o emprego. Acho que vou pedir demissão quando voltarmos.

—  Você teria condições de fazer isso? — perguntou Ja-son, conjeturando apenas em que poderia consistir o traba¬lho de Carol, além de dançar. No seu modo de entender, as mulheres como Carol perdiam o controle de suas vidas.

—  Eu já estava mesmo planejando parar com isso, mais dia menos dia — disse Carol.

O avião deu um leve solavanco, como se estivesse sendo empurrado para trás e afastado do portão de embarque.

— Você sabe que tipo de trabalho eu faço? — pergun-tou Carol.

—  Bem, mais ou menos — disse Jason, vago.

—  Você nunca mencionou nada sobre isso — disse Ca¬rol. — A maioria das pessoas comenta.

— Eu achei que isso era assunto seu — disse Jason. Quem era ele para julgar?

— Você é um pouco estranho — disse Carol —, simpá-tico, mas estranho.

—  Eu pensava que era bem normal — disse Jason.

—  Ah, não seja bobo — falou Carol, brincando.

Havia muito tráfego aéreo, e esperaram por mais de vin¬te minutos até haver condições para a decolagem. O avião to¬mou o rumo oeste.

— Cheguei a pensar que não fôssemos conseguir — fa-lou Jason, por fim, começando a relaxar.

— Desculpe — disse Carol novamente. — Tentei me li-vrar de Bruno, mas ele grudou em mim o tempo todo. Eu não queria que ele soubesse que eu não estava viajando para a mi¬nha terra, Indiana. Mas o que eu podia fazer?

— Não tem importância — disse Jason, embora sentisse preocupação ao pensar que alguém além de Shirley pudesse saber para onde ele estava viajando. Desejava que a viagem permanecesse em segredo. Ao mesmo tempo, não conseguia imaginar qual a diferença que isso fazia.

Tomando notas num caderninho amarelo, Jason come-çou a fazer perguntas a Carol a respeito do itinerário de Hayes em cada das suas duas viagens a Seattle. A primeira fora mais interessante. Ficaram hospedados no Mayfair Hotel e, entre outras coisas, foram a um clube noturno chamado To-tem, semelhante ao Cabaret, de Boston. Ele perguntou a Ca¬rol como era esse clube noturno.

— Era bom — disse Carol —, nada de especial. Mas não tinha a animação do Club Cabaret. Seattle parece um tanto conservadora.

Jason concordou, indagando-se por que Hayes haveria de gastar seu tempo num lugar como aquele, quando viajava com Carol.

— Alvin conversou com alguém por lá? — perguntou Jason.

—  Sim. Arthur tomou providências para que Alvin pu-desse falar com o proprietário.

—  Seu patrão providenciou? Alvin conhecia o seu patrão?

— Eles eram amigos. Foi dessa maneira que conheci Alvin.

Jason lembrou-se de ter ouvido falar que Alvin gostava de discotecas e coisas do gênero. Aparentemente esses rumo¬res eram verdadeiros. Mas a idéia de um biologista molecular mundialmente famoso ser amigo de um homem que manti¬nha uma casa noturna com bailarinas de topless, isso parecia absurdo.

— Você sabe o que Alvin conversou com esse homem?

— Não, não sei — disse Carol. — Eles não conversaram por muito tempo. Eu estava ocupada em observar as bailari¬nas. Elas dançavam bastante bem.

— E vocês visitaram a Universidade de Washington, certo?

— Sim, visitamos. Logo no primeiro dia.

— E você acha que você é capaz de encontrar o homem com quem Alvin conversou na universidade? — perguntou Ja¬son, só para ter certeza.

— Acho que sim. Era um sujeito alto, de boa aparência.

—  E depois, o que fizeram?

—  Viajamos para as montanhas.

—  E isso eram férias?

—  Penso que sim.

— Alvin encontrou-se com alguém nas montanhas?

— Ninguém em especial. Mas conversou com muitas pessoas.

Jason reclinou um pouco sua poltrona depois de lhe ter sido servido o coquetel. Ficou pensando nas coisas que Carol havia contado; considerou que o acontecimento mais decisi¬vo teria sido a visita à Universidade de Washington. Mas a ida ao clube noturno também era uma circunstância curiosa e merecia ser investigada.

— Há mais uma coisa — disse Carol. — Na segunda via¬gem ele levou algum tempo à procura de gelo-seco.

— Gelo-seco? Mas para quê?

— Eu não fiquei sabendo, e Alvin não me disse. Ele ti-nha uma caixa térmica e mandou enchê-la de gelo-seco.

Talvez para transportar a amostra, pensou Jason. Este dado parece promissor.

 

Quando aterrissaram em Seattle, tiveram o cuidado de acer¬tar seus relógios para o fuso horário da Costa do Pacífico. Jason olhou pela janela do avião para saber do tempo lá fo¬ra. Confirmando as expectativas, estava chovendo. Dava pa¬ra ver os pingos de chuva nas poças d'água escuras na pista do aeródromo. Logo em seguida, até mesmo os vidros das ja-nelas do avião estavam riscados de pingos de chuva.

Alugaram um carro; e assim que se livraram do tráfego das imediações do aeroporto, Jason falou:

— Se isto pode ajudar a sua memória, achei que deve-ríamos ficar no mesmo hotel em que vocês ficaram da última vez. Quartos separados, naturalmente.

Carol voltou o rosto para olhá-lo, na meia-luz do inte¬rior do carro. Jason queria deixar bem claro que a viagem era estritamente de trabalho.

 

Dois carros atrás de Jason e Carol, ia um Ford Taurus azul-escuro. Ao volante estava um homem de meia-idade, vestido com uma suéter de gola redonda, jaqueta de camurça e calça xadrez. Ele havia recebido um telefonema, apenas umas cin¬co horas antes, dando-lhe conta de que devia comparecer à chegada do vôo da United proveniente de Boston. Sua mis¬são era localizar um médico de 45 anos que estaria chegando acompanhado por uma bela jovem. Os nomes eram Howard e Donner, e ele devia mantê-los sob vigilância. A operação foi mais fácil do que ele imaginara. Pôde confirmar a identidade dos dois simplesmente seguindo-os de perto, no balcão da Avis. Agora bastava-lhe mantê-los à vista. Estava previsto que ele seria contatado por alguém que viria de Miami. Para isto é que lhe pagavam os seus usuais cinqüenta dólares por hora mais despesas. Ele ficou conjeturando se se tratava de algum problema de família.

 

O hotel era elegante. A julgar pela aparência de Hayes, usual¬mente descuidada, Jason não esperaria que o colega fosse da¬do a gostos tão dispendiosos. Ocuparam quartos separados, mas Carol insistiu em que abrissem a porta de comunicação entre os quartos.

—  Não sejamos puritanos — disse ela. Jason não soube o que responder a esse comentário.

Como mal havia tocado na comida servida a bordo, Ja-son sugeriu que jantassem antes de saírem para o Totem Club. Carol trocou de roupa, e quando entraram no salão de jantar do restaurante, Jason sentiu prazer em ver como ela eviden¬ciava um aspecto jovem e gracioso. O maitre até chegou a in¬dagar a idade dela quando Jason pediu uma garrafa de chardonnay da Califórnia. Esse episódio impressionou Carol, que se queixava de dar a impressão de estar começando a en¬velhecer aos 25 anos de idade.

Pelas dez da noite, uma da madrugada pela hora da Cos¬ta Leste, estavam prontos para sair para o Totem Club. Ja-son já começava a sentir sono, mas Carol sentia-se bem-disposta. Para evitar problemas, deixaram o carro alugado no estacionamento do hotel e tomaram um táxi. Carol deu a en-tender que, com Hayes, tivera alguma dificuldade de encon¬trar o clube.

O Totem Club situava-se fora da área central da cidade de Seattle, nas vizinhanças de uma agradável área residencial. Não havia ali nada do ambiente sórdido que se via na zona do meretrício de Boston. O clube noturno era circundado por uma extensa área de estacionamento asfaltada onde as vagas nem eram demarcadas, e não havia mendigos andando pela rua. Assemelhava-se a qualquer outro restaurante ou bar, ex¬ceto quanto a diversas réplicas de postes totêmicos que flanqueavam a entrada. Ao sair do táxi, Jason já podia ouvir o compasso da música de rock. Apressaram-se para fugir da chu¬va e chegaram à entrada.

Do lado de dentro, o estabelecimento parecia muito mais conservador do que o Cabaret. A primeira coisa que Jason notou foi que os freqüentadores eram quase todos casais, e não homens bebendo em demasia, como era comum ver jun¬to à pista de dança em Boston. A única semelhança era a con¬figuração do bar, que também tinha o formato de U, com uma pequena pista para dançarinos no centro.

— Aqui não há espetáculos de topless — murmurou Carol.

Ofereceram-lhes uma mesa no primeiro plano, longe do bar. Havia um outro plano por trás deles. Uma garçonete co-locou diante de cada um deles um cartão e perguntou o que desejavam beber.

Depois que foram servidos, Jason perguntou a Carol se ela já tinha avistado o proprietário do clube. De início, ela não conseguiu localizá-lo; mas passados uns quinze minutos, pegou no braço de Jason e se inclinou por sobre a mesa para falar baixo.

— Lá está ele. — Ela apontou na direção de um homem jovem, provavelmente nos seus trinta e poucos anos, vestido com um smoking e gravata vermelha e uma faixa na cintura. O homem tinha pele azeitonada e cabelo preto abundante.

— Você se recorda do nome dele? Ela sacudiu a cabeça negativamente.

Jason saiu da mesa que ocupava e caminhou em direção ao homem, que tinha uma fisionomia jovial e agradável. Quan¬do se aproximou, ele sorriu para um cavalheiro sentado junto ao bar e deu-lhe uns tapinhas nas costas.

—  Desculpe-me — disse Jason. — Eu sou o Dr. Jason Howard. De Boston. — O proprietário voltou-se. Tinha um sorriso neutro.

—  Sou Sebastion Frahn — disse ele. — Seja bem-vindo ao Totem.

—  Poderia falar com o senhor por um momento? O sorriso do homem desapareceu.

—  O que deseja?

—  Preciso de um ou dois minutos para explicar.

— Estou terrivelmente ocupado. Quem sabe, mais tarde.

Não estando preparado para um fora tão seco, Jason fi-cou observando Frahn por uns momentos, enquanto ele cir-culava entre os freqüentadores. O sorriso do homem logo havia voltado.

— Teve sorte? — perguntou Carol quando Jason voltou para a mesa e sentou-se.

— Que nada. O sujeito estava a léguas de distância, nem quis conversar comigo.

— As pessoas têm que ser cautelosas nesse negócio. Deixe-me fazer uma tentativa.

Sem esperar por uma resposta de Jason, ela se levantou e se afastou da mesa que ocupavam. Jason observou com que graça ela caminhava em direção ao proprietário do clube. Ela tocou no braço dele e falou-lhe, por breves instantes. Jason viu que o homem assentia com a cabeça depois olhou na sua direção. Assentiu novamente e afastou-se. Carol voltou à mesa.

— Ele estará aqui em um minuto.

— O que você disse?

— Ele se lembrava de mim — disse Carol simplesmente. Jason ficou se perguntando o que significava aquilo.

— Ele se lembrava de Hayes?

— Ah, sim — disse Carol. — Não há problema. Dentro de dez minutos Sebastion Frahn deu uma volta em torno do salão e parou junto à mesa deles.

— Desculpe-me por ter sido tão seco. Eu não sabia que vocês eram amigos.

— Tudo bem — disse Jason. Não sabia certamente o que o homem tinha em mente, mas ele parecia cordial.

—  O que posso fazer por vocês?

— Carol diz que você se lembra do Dr. Hayes. Sebastion voltou-se para Carol.

—  Era o homem com quem você estava, na última vez em que estiveram aqui? — indagou ele.

Carol confirmou com a cabeça.

— Naturalmente que me lembro. Ele era amigo de Arthur Koehler.

— Acha que seria capaz de lembrar o que vocês conver¬saram? Isso poderia ser importante.

— Jason trabalhava com Alvin — acrescentou Carol.

— Não tenho absolutamente nenhuma dificuldade de contar-lhe o que conversamos. Alvin queria pescar salmão.

— Pescar! — exclamou Jason.

— É. Ele disse que queria pegar uns salmões bem gran¬des, mas que o local de pesca não deveria ficar muito longe. Eu então lhe disse que fosse a Cedar Falls.

— Foi só isso? — perguntou Jason, sentindo-se invadi-do pelo desânimo.

— Conversamos sobre o time do Seattle Supersonics du¬rante uns minutos.

—  Muito obrigado — disse Jason. — Obrigado pela sua atenção.

— Não há de quê — disse Sebastion, com um sorriso. — Bom, eu vou andando. — Ele levantou-se, apertou as mãos de ambos e disse-lhes que voltassem sempre. E afastou-se.

— Não posso acreditar — disse Jason. — Toda vez que tenho uma pista, ela se transforma numa pilhéria. Pescar!

A pedido de Carol, permaneceram no clube ainda por mais meia hora, para apreciar o show; quando voltavam para o ho¬tel, Jason sentia-se completamente exausto. Pela hora da Costa Leste, eram já quatro da madrugada de quinta-feira. Jason deitou-se logo, sentindo-se aliviado ao abrigar-se entre os len¬çóis. Sentia-se desapontado com os resultados da visita ao To¬tem Club, mas ainda lhe restava a Universidade de Washington. Já estava para adormecer quando ouviu uma leve batida na porta de comunicação. Era Carol. Ela disse que estava mor¬rendo de fome e não conseguia dormir. Podiam pedir que trou¬xessem comida ao apartamento. Sentindo-se na obrigação de ser uma boa companhia, Jason concordou. Pediram meio champanhe e um prato de salmão defumado.

Carol sentou-se na beira da cama de Jason; usava um robe de veludo cotelê. Pôs-se a comer salmão e biscoitos, en-quanto contava sobre sua infância, vivida no interior de Bloomington, Indiana. Jason nunca tinha ouvido Carol falar tanto. Ela havia morado numa propriedade rural e, de ma¬nhã, antes de ir para a escola, tinha de ordenhar as vacas. Ja¬son até podia imaginá-la realizando esse serviço. Ela exalava todo esse frescor sugestivo de tal tipo de vida. Mas ele tinha dificuldade de conciliar mentalmente a vida que ela levava an-teriormente com o seu tipo de vida atual. Teve vontade de sa-ber como acontecera o desvio para a trilha errada, mas sentiu receio de perguntar. Além disso, a exaustão tomava-o por in-teiro; por mais que tentasse, não conseguia manter os olhos abertos. Acabou adormecendo e Carol, depois de cobri-lo com um cobertor, voltou para o seu próprio quarto.

JASON ACORDOU com um sobressalto. Olhou o relógio de pul¬so, que marcava cinco da manhã. Isto equivalia a oito da ma¬nhã em Boston, hora em que habitualmente saía de casa para ir ao hospital. Abriu as cortinas e viu lá fora o dia claro como cristal. Ao longe, um ferryboat fazia a travessia do canal de Puget em direção a Seattle, deixando uma esteira faiscante na superfície da água.

Depois de tomar um banho, Jason bateu à porta de co-municação dos quartos. Não houve resposta. Bateu novamente. Por fim, abriu a porta, apenas uma fresta, deixando um feixe de luz brilhante do sol entrar no quarto escuro e frio. Carol ainda dormia a sono solto, abraçada ao travesseiro. Jason olhou-a por uns momentos. Ela era de uma aparência angelicalmente adorável. Silenciosamente, ele fechou a porta, de mo¬do a não despertá-la.

Voltou para a cama, e pelo telefone interno pediu café da manhã no quarto: suco de laranja, café e croissants, para dois. A seguir, telefonou para o GHP e entrou em contato com Wanamaker.

—  Tudo bem por aí?

— Nem tudo — teve de admitir Roger. — Marge Todd teve uma embolia importante esta noite. Entrou em coma e morreu. Parada respiratória.

—  Oh, meu Deus — exclamou Jason.

—  Desculpe dar-lhe essa má notícia — disse Roger. — Procure aproveitar sua folga.

—  Eu voltarei a telefonar dentro de um dia mais ou me-nos — disse Jason.

Outra morte. Com exceção de uma jovem que tivera he-patite e recebera alta em boas condições, os outros pacientes de Jason, segundo lhe parecia, não conseguiriam sair do hos-pital, senão mortos. Considerou se deveria viajar de volta a Boston imediatamente. Mas Roger estava com a razão. Não havia nada que pudesse fazer, e poderia também continuar in-vestigando o caso Hayes, embora não se sentisse muito oti-mista quanto a isto.

Duas horas mais tarde, Carol bateu à porta e entrou, com os cabelos ainda molhados do banho de chuveiro.

—  Meu cordial bom-dia — falou ela, em tom alegre. Ja-son pediu café quente.

—  Acho que tivemos sorte — disse ele, apontando para a brilhante claridade da manhã lá fora.

—  Não tenha tanta certeza assim. Aqui o tempo é capaz de mudar muito depressa.

Enquanto Carol tomava o café da manhã, Jason servia-se de mais uma xícara de café.

— Espero que eu não tenha cansado os seus ouvidos on¬tem à noite — disse Carol.

—  Que nada. Desculpe eu ter adormecido.

— Que tal me falar de você, doutor? — disse Carol, pas¬sando geléia num croissant. — Não me falou muito de você. — Ela não mencionou que Hayes lhe havia contado muitas coisas sobre ele.

—  Não há muito que contar.

Carol levantou as sobrancelhas. Ao ver o sorriso dele, ela riu:

— Por um momento até pensei que você estava sério. Jason contou a Carol sobre a infância que vivera em Los Angeles, seus estudos em Berkeley e na Faculdade de Medici¬na de Harvard, a residência médica no Massachusetts Gene¬ral. Sem querer, viu-se descrevendo Danielle e a terrível noite de novembro em que ela fora morta. Ninguém, nem mesmo Patrick, o psiquiatra, conseguira fazer Jason falar desse jeito desde a morte de Danielle. Jason passou mesmo a falar de sua atual depressão por causa do aumento de mortalidade de seus pacientes e também da notícia que Roger dera nessa manhã, a respeito da morte de Marge Todd.

—  Sinto-me lisonjeada por me haver contado isso — disse Carol, com sinceridade. Ela não esperava por essa franqueza e confiança. — Você passou por muito sofrimento.

—  A vida pode ter dessas coisas — disse Jason, com um suspiro. — Não sei por que fui aborrecer você com tudo isso.

—  Não aborreceu não — disse Carol. — Acho que você conseguiu uma adaptação extraordinária. Deve ter sido difí¬cil mas também muito positivo, você mudar de trabalho e de ambiente de vida.

— Você acha? — perguntou Jason. Ele não se lembrava de ter dito isto. E não esperava ser assim tão pessoal com Ca¬rol, mas, agora que conseguira falar, sentia-se melhor.

Desfrutando o tempo juntos, já eram dez e meia da ma-nhã quando saíram dos seus respectivos quartos, trajando rou-pas próprias para o dia. Jason pediu que o porteiro mandasse trazer o carro deles até a entrada da frente, e tomaram o ele-vador para descer ao saguão do hotel. Confirmando as previ-sões de Carol, o céu escurecera; caía uma chuva forte quando saíam do hotel.

Com auxílio de um mapa da Avis e da memória de Ca-rol, saíram em direção à Faculdade de Medicina da Universi-dade de Washington. Carol indicou onde ficava o edifício de pesquisas que Hayes visitara. Ao chegarem à portaria princi-pal, logo foram barrados por um segurança uniformizado. Eles não possuíam cartões de identificação da Universidade de Was¬hington.

— Eu sou médico, trabalho em Boston — disse Jason, tirando a carteira para mostrar sua identidade.

— Escute, não me importa de onde o senhor é. Sem car¬tão de identificação, não entra. É muito simples. Se quiser en¬trar, terá que ir à Administração Central.

Percebendo que era inútil discutir, dirigiram-se à Admi-nistração Central. No caminho, Jason perguntou de que ma-neira Hayes tinha lidado com o problema da segurança.

—  Ele telefonou antes para o amigo dele — disse Carol. — O homem veio encontrar-se conosco no estacionamento.

A funcionária que os atendeu na Administração Central foi amável e obsequiosa e até mostrou a Carol um livro anuário com as fotos dos docentes da faculdade para que ela ten¬tasse identificar o amigo de Hayes. Mas Carol não conseguiu identificá-lo. Porém, munidos agora de crachás fornecidos pela segurança, voltaram ao edifício de pesquisas.

Carol levou Jason ao quinto andar. O corredor estava cheio de equipamentos de reposição e as paredes precisavam de pintura nova. Havia um penetrante cheiro de produtos quí-micos, parecido com o de formaldeído.

— Aqui é o laboratório — disse Carol, parando junto ao vão de uma porta aberta. Os nomes assinalados à esquer¬da da porta: Duncan Sechler, MD, PhD; e Rhett Shannon, MD, PhD. Conforme Jason poderia imaginar, era o departa¬mento de genética molecular.

—  Qual é o nome? — perguntou Jason.

— Não sei — disse Carol, aproximando-se de um técni-co jovem e perguntando-lhe se um ou outro dos dois médicos estava.

—  Todos dois estão. No biotério. — Ele apontou por ci-ma dos seus ombros, e depois virou-se na direção de Carol quando ela passou por ele, de modo a poder vê-la por detrás. Jason ficou surpreso com a sem-cerimônia do rapaz.

A porta que dava para o biotério tinha um grande painel de vidro. Dentro estavam dois homens de avental branco, ocu-pados em tirar sangue de um macaco.

—  É aquele alto, de cabelo grisalho — disse Carol, apon¬tando. Jason chegou mais perto da vidraça. O homem que Ca¬rol  indicara  era  elegante,   tinha  um  aspecto  atlético  e aproximadamente a idade de Jason. O cabelo tinha uma cor prateada uniforme que lhe dava uma aparência especialmen¬te distinta. O outro homem, ao contrário, era quase calvo. O que lhe restava de cabelo estava penteado para o alto da ca¬beça, na vã tentativa de encobrir a calva.

—  Será que ele se lembra de você?

— Talvez. Só cheguei a vê-lo por uns momentos, por-que logo em seguida fui ao departamento de psicologia.

Esperaram até que os dois médicos terminaram a tarefa e saíram do biotério. O homem alto e de cabelos grisalhos vi¬nha trazendo o tubo com o sangue.

—  Por favor — disse Jason. — Poderia ocupar uns mi-nutos do seu tempo?

O homem olhou para o crachá de Jason.

—  O senhor é representante de laboratório?

—  Felizmente não. — Jason sorriu. — Sou o Dr. Jason Howard, e esta é a Srta. Carol Donner.

—  Em que posso ajudá-los?

—  Depois nós falamos, Duncan — disse o homem cal-vo, interrompendo.

—  Tudo bem — disse Duncan. — Vou processar o san-gue imediatamente. — Depois, voltando-se para Jason: — Desculpe.

—  Absolutamente! Eu precisava falar-lhe sobre um ve-lho conhecido nosso.

—  Ah, sim?

—  Alvin Hayes. Lembra-se de que ele veio visitá-lo aqui?

—  Naturalmente — disse Duncan, voltando-se para Ca¬rol. — E não era você que estava com ele?

Carol fez um sinal afirmativo com a cabeça.

—  Você tem boa memória.

— Fiquei chocado ao saber da morte dele. Que perda!

—  Carol disse que Hayes tinha vindo aqui lhe pedir algo importante — disse Jason. — Poderia me dizer de que se tratava?

Pareceu que Duncan se sentiu perturbado, porque olhou nervosamente em torno de si, para ver se não havia técnicos por perto.

— Não estou certo de querer falar sobre esse assunto.

— Lamento ouvir isso. Eram negócios, ou era um assunto pessoal?

— Talvez seja melhor vir ao meu gabinete.

Jason teve dificuldade de conter sua excitação. Parecia que finalmente havia topado com algo significativo.

Depois de entrarem no gabinete, Duncan fechou a por-ta. Havia duas cadeiras com encosto metálico. Removendo de cima delas umas pilhas de revistas científicas, fez um sinal para que Jason e Carol sentassem.

—  Respondendo à sua pergunta — começou ele —, Ha¬yes veio me procurar por motivos pessoais, não de negócios.

—  Viajamos mais de cinco mil quilômetros só para fa-lar com você — disse Jason. Não estava disposto a desistir com tanta facilidade, mas de fato a situação não parecia ani-madora.

—  Se vocês tivessem telefonado, eu poderia tê-los pou¬pado dessa viagem. Parte da amistosidade de Duncan desa¬parecera de sua voz.

—  Talvez eu deva lhe dizer por que estamos tão interes¬sados — disse Jason. Ele narrou o mistério da possível desco¬berta realizada por Hayes; falou também de suas inúteis tentativas de descobrir o que poderia ter sido.

—  Você pensa que Hayes me procurou para me pedir que o auxiliasse nas pesquisas dele? — perguntou Duncan.

—  Exatamente.

Duncan deu uma risada curta e desagradável. Olhou Ja¬son com o canto dos olhos.

—  Você não é do departamento de narcóticos, ou será que é?

Jason sentiu-se confuso.

—  Está bem, vou lhe dizer o que Hayes queria. Ele que¬ria comprar maconha. Disse que tinha pavor de carregar erva consigo na viagem de avião para cá, e por isso não trouxera nem um "baseado". Para lhe fazer um favor, coloquei-o em contato com um sujeito no campus daqui.

Jason sentiu-se aturdido. Sua excitação diminuiu, como ar vazando de um balão, deixando-o murcho.

—  Desculpe ter tomado o seu tempo.

—  Não há de quê.

Carol e Jason saíram do edifício de pesquisas, depois de entregarem seus crachás de visitantes ao guarda de seguran¬ça. Carol sorria de modo dissimulado.

—  Não é tão engraçado assim, você sabe disso — disse Jason assim que entraram no carro.

—  Está errado — disse Carol. — Você é que não conse¬guiu ver a coisa direito.

— Talvez fosse bom a gente voltar para casa — disse ele, num tom taciturno.

— Ah, não! Você me arrastou até aqui, agora não vamos embora sem que conheça as montanhas. É pouco tempo de viagem de carro.

— Deixe-me pensar — disse-lhe Jason, desalentado.

 

Carol venceu. Voltaram ao hotel e apanharam seus pertences; antes que Jason se apercebesse, estavam já numa freeway sain¬do da cidade. Ela insistiu em dirigir. Logo os subúrbios cede¬ram lugar à floresta verde e úmida, e os montes ondulados se transformaram em montanhas. A chuva parou, e Jason pôde ver, a distância, os picos cobertos de neve. O cenário era tão lindo que Jason se esqueceu de seu desapontamento.

—  Aqui é ainda mais lindo — disse Carol, quando dei-xavam a freeway, dirigindo-se a Cedar Falls. Ela agora se lem-brava da estrada e sentiu-se contente por poder mostrar a paisagem. Tomando uma estrada secundária, foi dirigindo o carro ao longo do Cedar River.

A natureza ali mais parecia cenário de um conto de fa-das, com florestas densas, penhascos imensos, montanhas dis¬tantes, rios impetuosos. Como já se aproximava o crepúsculo, Carol desviou-se da estrada e entrou num apertado caminho pavimentado com pedras, estacionando diante de uma pito¬resca pousada nas montanhas, construída como uma enorme cabana de troncos, de cinco andares. De uma enorme chami¬né de pedras brutas saía fumaça em preguiçosas espirais. Por sobre o portal de entrada havia um letreiro: SALMON INN.

—  Foi aqui que você e Alvin ficaram? — perguntou Ja-son, olhando pelo pára-brisa. Havia uma extensa varanda com móveis rústicos de pinho.

— Aqui mesmo. — Carol virou-se para apanhar sua bolsa de viagem no assento de trás.

Desembarcaram. O ar estava frio, e havia um cheiro pe-netrante de fumaça de lenha. Jason ouviu ao longe o ruído da água corrente.

— O rio está do outro lado da pousada — disse Carol, subindo os degraus da entrada. — Logo um pouco acima há uma cachoeira maravilhosa. Você vai vê-la amanhã.

Jason seguia Carol, e se indagou o que afinal estava fa-zendo. A viagem fora um equívoco; ele devia era voltar a Bos-ton para cuidar de seus pacientes tão gravemente enfermos.

E, no entanto, ali estava ele, nas Cascade Mountains, com uma garota que não podia deixar de admirar.

O interior da pousada era, em todos os detalhes, tão en-cantador como a parte externa. O salão central era grande e se distribuía em dois andares, onde sobressaía uma lareira gi-gantesca. Era mobiliado com móveis estofados, cabeças de ani¬mais, e no chão havia tapetes de peles de ursos. Havia vários hóspedes sentados diante da lareira, lendo, e uma família jo¬gava mexe-mexe. Alguns fregueses viraram-se para ver Jason e Carol quando estes se aproximaram do balcão de recepção.

— Vocês fizeram reserva? — perguntou o homem que atendia atrás do balcão.

Jason achou que o homem devia estar pilheriando. A pou¬sada era imensa, localizada em região bastante erma e remo¬ta, mal entrava o mês de novembro, e não era um fim de semana. Não dava para supor que a demanda fosse grande.

— Não fizemos reserva — disse Carol. — Algum pro-blema?

— Deixe ver — disse o homem, inclinado sobre o livro de registro de hóspedes.

— Quantos quartos há no hotel? — perguntou Jason, ain¬da incrédulo.

— Quarenta e dois quartos e seis suítes — disse o recep¬cionista, sem levantar os olhos.

— Está havendo alguma convenção por aqui? O homem riu.

— Está sempre cheio nesta época do ano. É a corrida do salmão.

Jason tinha ouvido falar no salmão do Pacífico e no mis¬terioso retorno desse peixe aos locais de água doce onde ocor¬rera a desova e a procriação. Mas pensava que esse fenômeno ocorria na primavera.

— Vocês estão com sorte — disse o recepcionista. — Te¬mos um quarto, mas poderão ter de liberá-lo amanhã à noite. Quantas noites planejam ficar?

Carol olhou para Jason. Jason sentiu-se invadido por uma grande angústia — só um quarto! Não sabia o que dizer. Co¬meçou a gaguejar.

—  Três — disse Carol.

— Muito bem. E como vão pagar? Fez-se uma pausa.

— Cartão de crédito — disse Jason, procurando sua car¬teira no bolso. Não conseguia acreditar no que estava acon¬tecendo.

Enquanto acompanhavam o camareiro no corredor do segundo andar, Jason ia conjeturando como se havia meti¬do nessa situação. Por mais que admirasse a boa aparência de Carol, não se sentia preparado para se envolver com uma bailarina de strip-tease que era capaz de sabe Deus que coisas.

—  Aqui vocês têm uma vista maravilhosa — disse o ca¬mareiro. Jason entrou no aposento. Mas seus olhos imediata¬mente passaram a examinar as camas, não as janelas. Sentiu alívio ao ver que eram separadas.

Depois que o rapaz saiu, Jason afinal aproximou-se da janela para admirar a paisagem fascinante. O Cedar River, que naquele ponto se alargava formando algo como um pe-queno lago, era margeado por altas coníferas envoltas na lu-minosidade púrpura-escura da luz do entardecer. Logo mais abaixo havia um relvado, que em declive se prolongava até as margens do rio. Avançando para dentro do rio havia um labirinto de molhes, utilizados para a amarração de vinte a trinta botes a remo. Sobre estaleiros, fora da água havia ca-noas. Quatro grandes botes de borracha com motores de po¬pa estavam amarrados na extremidade de um molhe. Jason concluiu que a correnteza do rio era forte, apesar da sua apa-rência plácida, pois todos os quatro botes de borracha esta-vam com popas voltadas para jusante e suas amarras retesadas.

— Bom, o que acha? — disse Carol batendo palmas. — Não é aconchegante?

Nas paredes do quarto havia papel de parede com moti¬vos florais. O soalho era de largas tábuas de pinho, com tape¬tes rústicos. As camas tinham cobertores de uma padronagem que semelhava colcha de retalhos.

—  É maravilhoso — disse Jason. Ele olhou dentro do ba¬nheiro, procurando ver se havia roupões de banho. — Você parece guia de turismo. E o que faremos a seguir?

— Sou a favor de um jantar, imediatamente. Estou morrendo de fome. E acho que o restaurante serve jantar só até as sete. Aqui as pessoas acordam cedo.

O restaurante tinha uma parede curva, envidraçada, com vista para o rio. No centro da parede havia portas duplas que davam para uma espaçosa varanda. Jason conjeturou que no verão usavam a varanda para jantar. Havia escadarias que da¬vam da varanda para o gramado. Nos molhes as luzes se acen¬deram, iluminando a água.

Mais ou menos metade das mesas do salão do restauran¬te se achavam ocupadas por hóspedes. A maioria das pessoas já estava no final da refeição. Jason teve a sensação de que todos pararam de falar no momento em que ele e Carol apa¬receram.

— Por que será que me parece estarmos em exposição? — murmurou Jason.

— Porque você está angustiado ao pensar que vai dor-mir no mesmo quarto com uma jovem mulher que mal co-nhece — sussurrou Carol. — Acho que se sente na defensiva e com um pouco de culpa e insegurança pelo que se espera de você.

Jason sentiu cair-lhe o queixo. Tentou olhar dentro dos olhos quentes de Carol para compreender o que neles se pas-sava. E sentiu que ficava ruborizado. Como, afinal de con¬tas, podia ser tão perspicaz uma garota que ganhava a vida dançando meio nua? Jason sempre se orgulhava de sua capa¬cidade de avaliar pessoas; era esse, em resumo, o seu ofício. Como médico, tinha de ter uma percepção da dinâmica inte¬rior de seus pacientes. E, no entanto, por que sentia que em relação a Carol havia algo que não se encaixava?

Olhando para o rosto ruborizado de Jason, Carol riu:

— Por que você simplesmente não relaxa e aproveita? Não precisa se apavorar, doutor, certamente não vou mordê-lo.

— Está bem — disse Jason. — Vou ficar sossegado.

Para o jantar havia salmão, que era oferecido em varie-dades muito tentadoras. Depois de muito escolherem pediram salmão assado ao forno em massa folhada. Para completar, pediram vinho chardonnay do estado de Washington, que Ja-son achou surpreendentemente bom. A certa altura ele se sur-preendeu rindo alto. Fazia muito tempo não se sentia tão livre.

Foi então que ambos se aperceberam de que eram os únicos hóspedes ainda no salão de jantar.

Mais tarde, já noite, deitado na cama, olhando para o teto às escuras, sentiu-se novamente confuso. Tinha sido mes¬mo uma comédia os dois tentando cobrir os corpos com toa¬lhas, tirando a sorte numa moeda para decidir quem usava primeiro o banheiro, e saindo da cama para apagar a luz. Jason não se lembrava de alguma vez na vida ter se sentido tão consciente do próprio corpo. Rolava na cama sem poder dor¬mir. No escuro dava para adivinhar os contornos do corpo de Carol. Ela estava deitada de lado. Jason podia ouvir-lhe o débil sussurro da respiração ritmada, contra o som de fun¬do da cachoeira distante. A moça evidentemente adormece¬ra. Jason invejou nela essa franca aceitação de si mesma e o sono tranqüilo. O que o deixava confuso, porém, não eram as incoerências de personalidade de Carol, e sim, mais pro-priamente, o fato de que ele estava gostando da situação. E era Carol quem fazia isso acontecer.

O TEMPO CONTINUAVA sendo-lhe favorável. Ao abrirem, pe¬la manhã, as cortinas do quarto, o rio resplandecia com o bri¬lho do sol em um milhão de pontos cintilantes. Assim que terminaram de tomar o café da manhã, Carol anunciou a sua decisão: iam sair para um passeio a pé.

Providos de lanches fornecidos pelo hotel, caminharam pela beira do Cedar River acima, por uma trilha bem demar-cada, viva com a presença de pássaros e bichos da floresta. Mas ou menos meio quilômetro acima da pousada encontra-ram a cachoeira que Carol mencionara. A queda-d'água pos-suía uma série de degraus, formados por lajes de pedras, cada um deles com cerca de metro e meio de altura. Encontraram diversos outros turistas sobre uma plataforma de madeira ali construída, e que observavam em silêncio respeitoso a água fluindo pela cascata. Logo abaixo do ponto onde estavam, um peixe magnífico, ostentando as cores do arco-íris, de uns oi¬tenta centímetros de comprimento, irrompeu da superfície re¬volta da água e, desafiando a gravidade, saltou por sobre a laje do primeiro degrau. Dentro de segundos, já dava outro salto, ultrapassando por larga margem a altura da segunda laje.

— Meu Deus! — exclamou Jason. Ele se lembrou de ha¬ver lido que os salmões são capazes de vencer as corredeiras e correntezas dos rios, mas não tinha idéia de que pudessem transpor cachoeiras tão altas. Jason e Carol permaneciam como que hipnotizados ao verem diversos salmões saltando e ven¬cendo as quedas-d'água. Era mesmo um espetáculo deslum¬brante ver o vigor físico dos peixes. A necessidade de procriar, determinada geneticamente, constituía uma força poderosa.

—  É inacreditável — falou ele, ao ver um salmão espe-cialmente grande que iniciava a corrida contra a correnteza num ponto mais estreito.

—  Alvin também ficou fascinado — disse Carol.

Jason bem podia imaginar que sim, especialmente por-que Hayes se interessava pelos hormônios do desenvolvimen¬to e do crescimento.

— Venha — falou Carol, pegando a mão de Jason. — Há mais coisas para ver.

Continuaram caminhando pela trilha, margem do rio aci¬ma, por mais meio quilômetro, passando por dentro de uma densa floresta. Quando a trilha foi dar na margem do rio no-vamente, o Cedar apresentava ali um amplo remanso, onde a água tinha a placidez de um pequeno lago, como aquele que se localizava diante do Salmon Inn. Tinha meio quilômetro de largura e um quilômetro de comprimento. Na superfície da água, pescadores, aqui e ali, tentavam a sorte.

Uma cabana muito semelhante a uma miniatura do Sal¬mon Inn fora construída sobre uma plataforma de grossos troncos de pinheiros. Em frente à cabana, à beira da água, havia um pequeno molhe com meia dúzia de botes a remo. Carol conduziu Jason pelo estreito caminho de lajes de pedra que dava acesso à porta da frente da cabana.

O local era uma concessão de pesca, administrada pelo hotel Salmon Inn. Havia, à direita, um longo balcão com frente envidraçada. Tomava conta do estabelecimento um homem barbudo de camisa vermelha de lã xadrez, suspensórios ver¬melhos, calças desbotadas e botas de borracha. Jason teve a impressão de que o homem devia ter já seus quase setenta anos, e sua imagem lembrava muito a de um Papai Noel. Por trás do homem idoso, ao longo da parede, havia um enorme esto¬que de varas de pescar. Carol apresentou Jason ao velho, cu¬jo nome era Stooky Griffiths, dizendo que Alvin gostara de conversar com Stooky enquanto pescava.

— Oi — disse de repente Carol. — Que tal você tentar a sorte pescando algum salmão?

— Eu não — disse Jason. Caçar e pescar nunca lhe des¬pertaram interesse.

— Acho que vou tentar. Venha, faça-me companhia.

— Vá você — insistiu Jason. — Eu me divirto por aqui mesmo.

— Está bem. — Ela voltou-se para Stooky e providen-ciou um caniço com anzol e iscas; depois novamente tentou convencer Jason a acompanhá-la, mas ele se negou:

— Foi aqui que você e Alvin vieram pescar? — pergun-tou ele, olhando pela janela em direção ao rio.

—  Não — disse Carol, juntando seus apetrechos de pes¬ca. — Alvin era como você. Não me acompanhou. Mas eu peguei um peixão. Bem perto do molhe.

—  Alvin não pescava mesmo? — perguntou Jason, surpreso.

—  Não — disse Carol. — Ele só ficava observando os peixes.

—  Mas me parece que Alvin tinha dito a Sebastion Frahn que queria pescar.

—  Que posso dizer? Depois que chegamos, Alvin se con¬tentou em andar por aqui e observar. Sabe como é, o cientista.

Jason balançou a cabeça, confuso.

— Estarei no molhe — disse Carol, alegre..— Se você mudar de idéia, vá até lá. É divertido!

Jason viu a moça descer pelo caminho de lajes de pedra, ao mesmo tempo que se perguntava por que razão Alvin ha¬veria de fazer indagações tão complexas sobre pescaria e de¬pois nunca se dispor nem mesmo a jogar um anzol. Era estranho.

Dois homens entraram na cabana e com Stooky conse-guiram caniços, anzóis e iscas, e também um bote. Jason fi-cou do lado de fora, na varanda. Havia ali várias cadeiras de balanço. Stooky pendurara no beirai do telhado um comedouro para pássaros, e dezenas de passarinhos voavam em torno. Ja¬son permaneceu olhando por certo tempo, depois saiu a ca¬minhar em direção ao lugar onde Carol estava. A água era de uma limpidez cristalina; dava para ver as pedras e as fo¬lhas no fundo. De repente, um enorme salmão disparou co¬mo uma flecha, saindo da água mais profunda, cor de esmeralda escura, e indo para dentro do molhe, em busca de uma área rasa e sombreada, uns vinte metros mais além.

Olhando com atenção a trajetória do peixe, Jason notou uma agitação na superfície da água. Levado pela curiosida¬de, caminhou ao longo da margem do rio. Ao chegar perto, viu um outro salmão grande, deitado de lado, em água rasa de meio metro, mal conseguindo mover a cauda. Com uma vara, Jason tentou empurrá-lo para águas mais profundas, mas de nada adiantou. O peixe, evidentemente, estava prestes a morrer. Poucos metros adiante, avistou outro salmão deita¬do imóvel, em água rasa, e, ainda mais perto da margem, um peixe morto sendo comido por um pássaro grande.

Jason voltou andando pelo caminho de lajes de pedra. Stooky havia saído da cabana e estava sentado numa das ca-deiras de balanço, com o cachimbo entre os dentes. Inclinando-se sobre a balaustrada da varanda, Jason perguntou sobre os peixes morrendo, imaginando se não haveria algum proble¬ma de poluição mais acima do rio.

— Não — disse Stooky. O homem soltou várias bafora-das de fumaça de seu cachimbo muito usado. — Aqui não tem poluição. Esses peixes acabaram de desovar, e agora é a hora de morrerem.

— Ah, sim — disse Jason, subitamente lembrado de ha¬ver lido sobre o ciclo vital do salmão. Esse peixe vai além do seu limite físico para conseguir retornar ao local em que foi procriado, mas depois que põe seus ovos e os fertiliza, morre. Ninguém sabia exatamente por quê. Havia teorias con-cernentes a problemas de passar da água salgada para a água doce, mas ninguém sabia ao certo. Era um dos mistérios da natureza.

Jason olhou em direção a Carol, lá embaixo. Ela estava ocupada em tentar arremessar a linha para longe do píer. Voltando-se para Stooky, Jason perguntou:

— O senhor por acaso se lembra de ter conversado com um médico chamado Alvin Hayes?

—  Não.

— Ele era mais ou menos da minha altura — continuou Jason. — Usava cabelo comprido. Pele clara.

—  Eu vejo tanta gente...

— Naturalmente que sim — disse Jason. — Mas esse ho¬mem de quem estou falando estava com aquela moça. — Ele apontou em direção a Carol. Jason achava que Stooky não devia ver muitas garotas como Carol Donner.

—  Aquela ali no píer?

—  Exato. Era ela quem estava com ele.

Da boca de Stooky saía fumaça em curtas baforadas. Suas pálpebras estavam quase fechadas.

— Esse camarada de quem você está falando, ele não vi¬nha de Boston?

Jason fez um sinal afirmativo.

—  Eu me lembro do sujeito — disse Stooky. — Mas ele não tinha jeito de doutor.

—  Ele fazia pesquisas.

—  Talvez isso explique. Ele era mesmo esquisito. E me pagou cem dólares para eu lhe conseguir 25 cabeças de salmão.

—  Só as cabeças?

— Sim. E me deu o número do telefone dele em Boston. Disse para eu fazer ligação a cobrar quando conseguisse as tais cabeças.

— Então ele voltou aqui para buscá-las? — perguntou Jason, lembrando-se de que Hayes e Carol tinham feito duas viagens.

—  Sim. Pediu que eu as limpasse bem e embalasse em gelo.

— Por que isso levou tanto tempo? — perguntou Jason. — Com tanto peixe disponível, devia dar para conseguir 25 cabeças de salmão numa única tarde.

— É que ele só queria determinados salmões — disse Stooky. — Eles tinham que ter acabado de desovar; e salmão na desova não morde a isca. É preciso apanhá-lo com rede. Aquelas pessoas que estão pescando lá adiante estão pegando trutas.

—  Esses salmões são alguma espécie particular?

—  Não. Ele só fazia questão que tivessem acabado de desovar.

—  E ele disse por que queria essas cabeças?

— Não, nem eu perguntei — disse Stooky. — Ele estava pagando e eu achei que isso era assunto dele.

— Quer dizer, só as cabeças dos peixes, nada mais.

— Só as cabeças dos peixes.

Frustrado e confuso, Jason saiu da varanda. Parecia absurda a idéia de que Hayes viajara cinco mil quilômetros em busca de cabeças de peixe e maconha.

Carol avistou Jason perto do píer e fez sinal para que ele fosse lhe fazer companhia.

— Você precisa experimentar, Jason — falou ela. — Qua¬se peguei um salmão.

— Salmões não mordem a isca por aqui — disse Jason.

— Deve ter sido uma truta.

Carol pareceu desapontada.

Jason contemplou o semblante dela, tão gracioso, com as maçãs do rosto salientes. Se a premissa inicial estava corre¬ta, as cabeças de salmão tinham de ter correlação com as tentativas de Hayes de produzir um anticorpo monoclonal. Mas de que modo isso poderia ser benéfico para a beleza de Carol, conforme Hayes havia dito a ela? Não fazia sentido.

—  Acho que não importa se é truta ou salmão — disse Carol, voltando sua atenção novamente para a sua pescaria.

—  Estou me divertindo.

Um gavião voando em círculo mergulhou em direção à área de água rasa e carregou em suas garras um dos salmões moribundos, mas o peixe era grande demais; a ave soltou-o e ruidosamente bateu asas ganhando altura. Jason ainda pô¬de ver o salmão parar de se debater na água e morrer.

—  Peguei um! — gritou Carol, vendo seu caniço se arquear.

A agitação da pescaria desanuviou a mente de Jason. Ele ajudou Carol a trazer para terra uma truta de bom tamanho — um lindo peixe com olhos pretos brilhantes. Jason sentiu pena do bicho. Depois de conseguir tirar o anzol da mandíbula do peixe, disse a Carol que o jogasse de volta à água. Ela o largou na água, e o peixe se foi como um relâmpago.

Para tomarem o lanche, caminharam ao longo da mar-gem do rio, que ali era mais largo, e chegaram a um promon-tório rochoso. Enquanto comiam, podiam ver não somente toda a extensão da superfície do rio, mas também os picos co-bertos de neve das Cascades. Era uma paisagem deslumbrante.

Já começava a entardecer quando iniciaram a caminha¬da de volta ao Salmon Inn. Quando passavam perto da cabana, viram outro salmão grande a debater-se em agonia. O peixe estava deitado de lado, deixando visível o abdome branco re¬luzente.

— Que tristeza — disse Carol, pegando com força no bra¬ço de Jason. — Por que eles têm que morrer?

Jason não tinha nenhuma resposta. O velho clichê de que a natureza é sábia passou-lhe pela mente, mas ele nada falou. Durante alguns tempos ficaram a contemplar o salmão, até pouco antes um animal magnífico; já agora se aproximavam dele alguns peixes menores, apressados em comer-lhe as car¬nes ainda vivas.

—  Ui — exclamou Carol, dando um puxão no braço de Jason. Continuaram a andar. Para mudar de assunto, Carol começou a falar de uma outra diversão que o hotel tinha a oferecer: descer as corredeiras em jangada. Mas Jason não ou¬via. A horrível imagem dos pequenos predadores a comer o corpo do peixe maior e moribundo desencadeara o surgimen-to de uma idéia na sua mente. De súbito, como uma revela-ção, teve a sensação de haver atinado com o que Hayes havia descoberto. Não era irônico — era terrificante.

A cor sumiu do rosto de Jason, ele parou de caminhar.

— O que é que há? — perguntou Carol.

Jason engoliu em seco. Seus olhos fitavam fixamente, sem piscar.

— Jason, o que é?

— Temos que voltar para Boston — disse ele apressada¬mente. Pôs-se a andar novamente, em passos rápidos, prati¬camente arrastando Carol consigo.

—  Do que você está falando? — protestou ela. Ele não respondeu.

— Jason! Que é que está acontecendo? — Ela puxou-o pelo braço para que parasse.

— Desculpe — falou ele, como que despertando de um transe. — De repente me veio a idéia de qual poderia ter sido a descoberta de Alvin. Temos que voltar.

—  Você quer dizer, voltar hoje à noite?

—  Agora mesmo, vamos embora.

— Ei, espere um minuto. Não haverá vôos para Boston hoje à noite. Lá são três horas mais tarde. Podemos ficar e partir amanhã cedo, se é o que deseja.

Jason não respondeu.

— Pelo menos podemos jantar — acrescentou Carol, ir-ritada.

Jason deixou que ela o acalmasse. Afinal de contas, quem sabe?, eu posso estar errado, pensou ele. Carol queria discutir a questão, mas Jason lhe disse que ela não compreenderia.

— Você e este seu jeito condescendente.

— Desculpe. Eu lhe contarei quando tiver certeza. Depois de já haver tomado banho e mudado de roupa,

Jason deu-se conta de que Carol tinha razão. Se tivesse ido de carro até Seattle, chegaria ao aeroporto por volta de meia-noite, pela hora de Boston. E não haveria nenhum vôo até de manhã.

Ao entrarem no salão do restaurante, foram conduzidos até uma mesa localizada diretamente diante das portas que da¬vam para a varanda. Jason ofereceu a Carol um lugar de frente para as portas, dizendo-lhe que ela merecia a vista. Ao come¬çarem a examinar o cardápio, ele lhe pediu desculpas por ter agido com tanta precipitação e reconheceu que ela tinha toda a razão em não querer partir imediatamente.

— Estou sensibilizada por você admitir isso — disse carol.

Para variar, pediram trutas em vez de salmão, e em lu-gar do vinho produzido no estado de Washington, pediram um chardonnay Napa Valley. Lá fora, o entardecer se trans-formava em noite, e se acenderam as luzes junto ao atraca-douro dos barcos.

Jason teve dificuldade de se concentrar no jantar. Come¬çava a compreender que, estando correta a sua teoria, Hayes tinha sido assassinado, e Helene, vítima de violência perpe¬trada não aleatoriamente. E se Hayes dissera a verdade e al¬guém estava se utilizando de sua descoberta acidental e terrificante, o resultado poderia ser muito pior do que qual¬quer epidemia.

Enquanto a mente de Jason fervilhava agitada, Carol ten¬tava conduzir uma conversação, logo percebendo no entanto que ele estava distante; por sobre a mesa, pegou no braço dele.

— Você não está comendo — falou ela.

Jason olhou com uma expressão ausente para a mão da moça no seu braço, depois para o prato e, afinal, para ela.

— Estou preocupado, desculpe.

— Não tem importância. Se você não está com fome, tal¬vez devêssemos ir embora e tentar conseguir um vôo para Bos¬ton pela manhã.

— Podemos esperar até você terminar de comer — disse Jason.

Carol pôs o seu guardanapo sobre a mesa.

— Já comi mais do que o suficiente, obrigada. Jason olhou em volta, à procura do garçom. Seus olhos percorreram o salão, e então pararam. Fixaram-se num ho¬mem que acabara de entrar no recinto e parara junto ao mai¬tre. O homem esquadrinhava com o olhar o ambiente todo, observando mesa por mesa. Vestia um terno azul-escuro e ca-misa branca com gola aberta. Mesmo a distância, Jason pôde perceber que o homem usava um pesado cordão de ouro no pescoço. Dava para ver no cordão de ouro os reflexos das lu-zes do salão.

Jason observou-o atentamente. Pareceu-lhe que o conhe¬cia, mas não saberia dizer de onde. Era hispânico, tinha ca¬belos pretos e pele morena escura. Tinha a aparência de um próspero homem de negócios. De súbito, Jason lembrou. Es¬se rosto, ele o vira naquela noite fatídica da morte de Hayes. Era esse o homem do lado de fora do restaurante e também do lado de fora da sala de urgências do Massachusetts Gene¬ral Hospital.

Foi bem nesse momento que o homem deu com os olhos em Jason, e este sentiu de repente um frio percorrer-lhe a es¬pinha. Era evidente que o homem reconhecera Jason, porque imediatamente encaminhou-se em direção à sua mesa, a mão direita descontraidamente enfiada no bolso do paletó. Como acabara de se lembrar do assassinato de Helene Brennquivist, Jason sentiu-se em pânico. A intuição lhe dizia o que estava para acontecer, mas ele não conseguia se mover. Tudo que conseguiu fazer foi olhar para Carol. Quis gritar e mandar que ela saísse correndo, mas não conseguiu. Sentiu-se paralisa¬do. Pelo canto do olho, viu o homem contornar a mesa vi¬zinha.

— Jason! — exclamou Carol, inclinando a cabeça para o lado.

O homem estava a apenas alguns passos de distância. Jason viu quando ele tirou a mão do bolso, e viu o brilho metá-lico quando a mão ainda tentou encobrir a arma. A visão da arma finalmente impeliu Jason à ação. Numa brusca explo¬são de atividade, arrancou a toalha da mesa, atirando ao chão os pratos, copos e talheres. Com um grito, Carol levantou-se.

Jason atacou o homem jogando-lhe sobre a cabeça a toa¬lha da mesa, e empurrou-o para trás atirando-o para cima de uma mesa próxima, onde o sujeito se estatelou em meio aos cacos dos copos e pratos. As pessoas na mesa atingida come¬çaram a gritar e tentaram fugir, mas diversas delas se emba¬raçaram nas cadeiras caídas no chão.

Em meio à confusão, Jason agarrou Carol pela mão e puxou-a através das portas até a varanda. Tendo conseguido romper com a paralisia provocada pelo medo, Jason era ago¬ra um ímpeto só. Ele sabia quem era esse homem de negócios com aspecto hispânico: o assassino que Hayes afirmara estar no seu encalço. Sabia que os próximos alvos do pistoleiro eram Carol e ele próprio, Jason.

Puxou Carol, obrigando-a a descer os degraus da varan¬da, com a intenção de contornar o hotel e chegar ao estacio¬namento. Mas aí percebeu que nunca iriam conseguir chegar lá. Sua possibilidade de escapar seria maior se corressem na direção de um dos botes amarrados ao píer.

— Jason! — gritou Carol quando ele mudou de direção e arrastou-a pelo declive do gramado. — Qual é o problema?

Através deles, Jason ouviu as portas do restaurante se abrindo com estrondo, e concluiu que o homem vinha em sua perseguição.

Ao chegarem ao píer, Carol tentou parar.

— Venha, que diabo! — gritou Jason entre dentes. Olhando para trás, em direção ao hotel, viu um vulto corren¬do para a balaustrada da varanda e depois escada abaixo.

Carol tentou soltar-se da mão de Jason, mas este segurou-lhe o pulso com mais força e impeliu-a para diante. Avançan¬do aos tropeções, chegaram correndo à extremidade do píer, passando pelos botes a remos. Jason gritou para que Carol o ajudasse a soltar as amarras de três dos botes de borracha e afastá-los para longe. Em instantes desatracaram os botes, que foram sendo levados pela correnteza do rio no instante em que o perseguidor chegava ao píer. Jason ajudou Carol a entrar no quarto bote e embarcou em seguida, impelindo-o com o pé para longe do atracadouro. Assim saíram levados pela correnteza da água rio abaixo, inicialmente devagar, mas depois ganhando mais velocidade. Jason forçou Carol a deitar-se no fundo do barco, cobrindo-a com o próprio corpo.

Um estampido de intensidade inocente seguiu-se de um impacto surdo em algum ponto do bote. Quase simultanea¬mente, ouviu-se o ruído de ar escapando. Jason gemeu. O su¬jeito tentava alvejá-los com uma pistola aparelhada com silenciador. Ouviu-se outro estampido, acompanhado de um zunido de bala ricocheteando no motor de popa, e um outro tiro provocou um som abafado ao atingir a superfície da água.

Para seu grande alívio, Jason descobriu que o bote era compartimentado. Embora uma bala esvaziasse uma seção, ele não afundaria. Houve mais alguns tiros e outros impactos de balas perto do bote, depois Jason ouviu um estrondo de madeira contra o atracadouro. Levantou a cabeça, cuidado-samente, e olhou para trás. O homem empurrava uma das ca-noas de cima do estaleiro para dentro da água.

Novamente Jason sentiu-se tomado pelo medo — o ho-mem podia remar com velocidade bem maior do que aquela simples deriva do bote de borracha em que estavam. A única chance de escaparem era dar partida no motor de popa de mo¬delo antigo, provido de corda, a qual tinha de ser puxada. Ja¬son mudou a alavanca para a posição "partida" e deu um puxão na corda. O motor nem mesmo girou. O pistoleiro já havia embarcado na canoa e vinha na direção deles. Jason pu¬xou a corda novamente: nada. Carol levantou a cabeça e fa-lou, nervosa:

— Ele está chegando mais perto.

Nos quinze segundos que se seguiram, Jason puxou freneticamente, inúmeras vezes, a corda de partida do motor. Já dava para ver a silhueta da canoa se aproximando silenciosa¬mente sobre a água. Jason tornou a verificar se a alavanca estava na posição de "partida", depois tentou novamente, sem conseguir nada. Seus olhos examinaram o tanque de gasoli¬na, e ele rogou aos céus que pelo menos estivesse cheio. Pareceu que a tampa de cor azul do tanque estava frouxa; apertou-a. Bem do lado da tampa havia um botão, que supôs destinar-se a aumentar a pressão do tanque. Pressionou-o uma dúzia de vezes, notando que realmente a pressão se tornava cada vez maior, dificultando progressivamente o acionamento do bo¬tão. Olhando de novo por cima do bote, viu a canoa quase a ponto de abordá-los.

Agarrando novamente a corda de partida do motor, Jason puxou-a com toda a força. O motor rugiu a toda potên-cia. Jason moveu a alavanca empurrando-a para "ré", pois até então o bote estava sendo levado de popa na correnteza do rio. Acionou o acelerador para a frente e jogou-se no fun¬do do bote, segurando Carol por debaixo de si mesmo. Con¬forme esperava, houve alguns disparos de pistola, dois deles atingindo o bote de borracha. Quando teve coragem de olhar novamente, viu que aumentava a distância da canoa. Na es-curidão, mal conseguia divisá-la.

— Fique deitada — ordenou ele a Carol, enquanto veri-ficava a extensão dos danos. Uma seção do lado direito da proa estava murcha, e o mesmo acontecia com um parte da borda esquerda. Quanto ao mais, o bote estava intacto.

Voltando ao motor de popa, Jason diminuiu o acelera-dor, passou o motor para "avante", angulou a cana de leme de modo que a popa ficasse voltada para jusante, e aproou o bote para o meio do rio. Seu único receio era bater contra alguma pedra.

— Agora está tudo bem. — falou ele para Carol. — Já se pode sentar.

Carol ergueu-se cautelosamente do fundo do bote e ten¬tou agarrar-se em algo.

— Não dá mesmo para acreditar. — Ela tentou falar mais alto que o ruído do motor. — Mas que diabos vamos fazer?

— Vamos rio abaixo, até vislumbrarmos luzes. Deve ha¬ver muito lugares aonde possamos chegar.

Com o bote impelido com segurança pelo motor, Jason conjeturou se seria prudente parar num outro píer. Afinal de contas, o perseguidor poderia ter tomado o carro e segui¬do por uma estrada ao longo do rio. Talvez haja uma luz no lado contrário, pensou ele.

Pelas silhuetas das árvores na margem do rio remansoso, Jason pôde avaliar a velocidade com que se deslocavam. Parecia que não era pouca. Ele teve também a impressão de que o rio, daí por diante, ia gradativamente se estreitando, especialmente quando experimentou a sensação de que a ve¬locidade do bote aumentava. Depois de meia hora, ainda não se viam luzes. Apenas uma floresta escura, e, acima, um céu sem lua recamado de estrelas.

—  Não consigo ver nada — gritou Carol.

—  Está tudo bem — tranqüilizou-a Jason.

Depois de terem navegado por mais uns quinze minutos, notaram que as árvores das margens como que fechavam de repente o rio, indicando que ali devia terminar a sua parte larga. Quando Jason viu que as árvores estavam mais próximas, com¬preendeu que avaliara mal a velocidade com que se desloca¬vam, na verdade muito maior do que pensava. Inclinando-se para trás, cortou o acelerador. O pequeno motor de popa si¬lenciou com um suspiro. Assim que o ruído do motor de po¬pa cessou, Jason passou a ouvir um outro ruído, este deveras sinistro. Era o rugido surdo de uma cachoeira.

— Deus do céu!  — Exclamou ele para si mesmo, lembrando-se das cachoeiras do rio, acima do Salmon Inn. Em¬purrou o pequeno motor de popa para o lado e aproou o bo¬te. Colocou o acelerador no máximo. Para sua surpresa e desalento, o bote diminuiu de velocidade, prosseguindo na tra-jetória rio abaixo. Jason tentou, então, aproar o barco em di-reção à margem. Lentamente, o bote moveu-se de lado. Mas aí o inferno se abriu a seus pés. O rio se estreitou numa gar-ganta rochosa, para dentro da qual Jason e Carol foram brus-camente sugados.

A borda do bote de borracha era provida de uma corda curta, fixada, a intervalos, por ilhoses. Jason agarrou-se à cor-da em ambos os lados, abarcando o bote com seus braços es-tendidos. Gritou para que Carol fizesse o mesmo. Ela não conseguiu ouvir, tamanho era o fragor das águas; mas quan¬do notou o que Jason estava fazendo, tentou fazer o mesmo. Infelizmente, não alcançava com os braços simultaneamente as bordas dos dois lados do bote. Segurou-se em um dos la-dos e enganchou uma perna debaixo de um dos assentos de madeira. Num instante, entraram numa verdadeira turbulên¬cia, e o bote foi atirado para cima como uma rolha de cortiça. Um verdadeiro lençol d'água inundou o barco e encharcou-os, cegando-os por uns instantes. Jason sufocava. A escuri¬dão e a água em seus olhos praticamente lhe impediram a vi¬são. Ele sentiu o corpo de Carol chocar-se contra o seu, e com a perna procurou firmar a moça no fundo do bote. Nesse mo-mento o bote chocou-se com um pedra e começou a rodopiar. Em meio a essa violenta agitação, Jason procurou não perder de vista a cachoeira, sabendo que a qualquer momento po-diam precipitar-se para a morte.

Completamente aterrorizados, Jason e Carol agarraram-se às cordas. Foram atirados de um lado para o outro e da proa para a popa, em giros estonteantes, completamente à mercê da água. Pareceu a Jason que a qualquer instante iam emborcar. Havia muita água dentro do barco, um água fria de enregelar.

Depois de um tempo que pareceu uma eternidade insu-portável, a água acalmou. O bote ainda girava e ia sendo le-vado à deriva rio abaixo, mas sem os solavancos bruscos e violentos. Jason olhou em torno. Conseguiu avistar, de am¬bos os lados, abruptos paredões de pedra. E soube que o in¬ferno ainda não terminara.

Com um tremendo impulso para cima, os solavancos vio¬lentos recomeçaram. Jason sentiu que seus dedos começavam a doer, era o efeito combinado da demorada contração mus¬cular e do frio. Agarrou-se com todas as forças às cordas, ten¬tando, com as pernas, segurar Carol com firmeza. A dor nas mãos tornou-se tão intensa que por instantes ele teve a sensa¬ção de que ia largar as cordas.

Mas aí, tão subitamente como tinha começado, o pesa-delo cessou. Ainda rodopiando, o bote deslizou por águas relativamente calmas. O barulho ensurdecedor da cachoeira diminuía. As margens do rio alargavam-se, deixando ver cla-ramente um céu estrelado. Dentro do bote havia uns quin¬ze centímetros de água gelada, mas Jason percebeu que o mo¬tor de popa continuava a roncar como se nada tivesse acon-tecido.

Com as mãos tremendo, Jason endireitou o bote e parou com o rodopio nauseante. Seus dedos tocaram num botão logo abaixo da borda. Experimentou apertá-lo; a água do bote escoou-se lentamente.

Jason prestou atenção às silhuetas das árvores nas mar¬gens. Mais adiante, o rio fazia uma curva fechada para a es¬querda; ao contornarem esse ponto, finalmente avistaram luzes. Jason aproou para a margem.

Ao se aproximarem, Jason viu diversos prédios bem ilu¬minados, molhes e uma série de botes de borracha semelhan¬tes ao que ocupavam. Ainda receava que o assassino pudesse ter seguido de carro pela estrada ao longo do rio, para inter¬ceptá-los, mas viu que tinham de desembarcar. Encostou o bote junto ao segundo píer e desligou o motor.

— Você realmente sabe entreter uma garota — falou Ca¬rol, batendo queixo.

—  Estou contente por ainda conservar seu senso de hu¬mor — disse Jason.

—  Mas não conte com ele por muito tempo. Eu só que-ria saber, pelo amor de Deus, o que é que está acontecendo.

Jason levantou-se rigidamente, segurando-se no píer. Aju¬dou Carol a sair do bote, depois saiu ele próprio, amarrando o cabo num cunho. De um dos prédios vinha um som de mú¬sica country.

—  Deve ser um bar — disse Jason. Ele pegou a mão de¬la. — Temos de nos aquecer, antes que peguemos uma pneu¬monia. — Jason seguiu na frente, pelo caminho de saibro, mas, em vez de entrar, dirigiu-se ao pátio de estacionamento e co¬meçou a olhar os carros estacionados.

—  Espera aí — disse Carol, com irritação. — O que está querendo fazer agora?

—  Estou à procura de chaves — disse Jason. — Precisa¬mos de um carro.

—  Não dá para acreditar — disse Carol, erguendo as mãos para o céu. — Pensei que íamos nos aquecer. O que vo-cê vai fazer eu não sei, mas eu vou entrar nesse restaurante. — E sem esperar resposta, encaminhou-se para a entrada.

Jason cortou-lhe a frente e segurou-a pelo braço.

—  Meu receio é que ele volte, o homem que estava ati-rando em nós.

—  Então chamemos a polícia — disse Carol. Ela desvencilhou-se da mão de Jason e entrou no restaurante.

O hispânico não estava no restaurante. Assim, seguindo a sugestão de Carol, chamaram a polícia, e quem atendeu foi o xerife da localidade. O proprietário do restaurante recusou-se a acreditar que Jason e Carol tivessem descido a Cachoeira do Diabo na escuridão da noite.

— Ninguém jamais conseguiu fazer isso! — disse ele. En¬controu camisas do chef enormes e calças xadrez branco e preto do cozinheiro, que lhes cedeu para que trocassem de roupa, e entregou-lhes um saco de plástico para guardarem suas rou¬pas molhadas. Também insistiu para que tomassem um grogue quente, o que finalmente acabou com os tremores de frio.

— Jason, você precisa me dizer o que é que anda acon¬tecendo — insistiu Carol, enquanto esperavam pelo xerife. Es¬tavam sentados a uma mesa, perto de uma vitrola automática Wurlitzer que tocava músicas dos anos 50.

— Não sei ao certo — disse Jason. — Mas o homem que atirou contra nós era o mesmo que estava do lado de fora do restaurante em que Alvin morreu. O que eu acho é que Alvin foi vítima de sua própria descoberta; se ele não tivesse morri¬do naquela noite, esse mesmo homem teria acabado por matá-lo, de qualquer maneira. Assim, Alvin dizia a verdade quan¬do falou que alguém queria matá-lo.

— Isto não parece real — disse Carol, tentando ajeitar o cabelo, que estava secando em anéis emaranhados.

— Eu sei. As conspirações geralmente não parecem ser reais.

—  O que me diz da descoberta de Hayes?

— Não sei ao certo, mas se minha teoria está correta, trata-se de algo por demais assustador para se pensar. É por isso que eu quero voltar para Boston.

Justamente nesse momento a porta se abriu, e o xerife, Marvin Arnold, entrou. Era um homem de estatura enorme; usava um uniforme caqui amarrotado, que ostentava fivelas e cintu¬rões numa quantidade que Jason até então não tinha visto. Mais importante para Jason era o Magnum 357 no coldre de Marvin.

Era o tipo de arma que Jason queria ter tido no Salmon Inn.

O xerife Marvin já tinha sido informado do tumulto ha-vido no Salmon Inn e fora para lá com a finalidade de averi-guar o que acontecera. Mas o que não ficara sabendo era que lá havia um homem portando uma arma, e nem ninguém ti¬nha ouvido disparos. Quando Jason contou o que tinha acon¬tecido, sua impressão era de que Marvin o olhava com grande dose de descrença. Mas Marvin ficou surpreso e impressiona¬do quando tomou conhecimento de que Jason e Carol tinham descido a Cachoeira do Diabo sozinhos, na escuridão da noite.

—  Muita gente não vai acreditar nisso — falou ele, ad-mirado, balançando a cabeça enorme.

Marvin levou Jason e Carol no seu carro de volta ao Sal¬mon Inn. Ali Jason ficou sabendo que haviam dado queixa contra ele, responsabilizando-o pelos danos no salão do res-taurante. Ninguém ali presente tinha visto qualquer arma. E o que era mais surpreendente, ninguém se lembrava da che-gada do homem moreno de terno azul-escuro. Mas, no final, a gerência do hotel decidiu dar o caso por encerrado, dizendo que iam se entender com a companhia de seguros quanto ao ressarcimento dos prejuízos. Com isto decidido, Marvin pe¬gou seu chapéu, preparando-se para sair.

—  O que me diz da proteção? — perguntou Jason.

— Proteção contra o quê? — indagou Marvin. — Não acha que é meio embaraçoso para o senhor que não haja nin-guém capaz de confirmar a história que contou? Escute, pa-rece que vocês já causaram problemas suficientes por esta noite. Acho que o melhor seria vocês subirem para seu quarto e dor¬mir para esquecer tudo isso.

— Precisamos de proteção — disse Jason. Ele tentou usar de autoridade. — O que faremos se o pistoleiro voltar?

—  Escute, amigo, eu não posso ficar sentado aqui a noi¬te toda segurando na sua mão. Estou sozinho neste turno da noite e tenho a joça deste condado inteiro para tomar conta. Tranque-se no quarto e procure dormir.

Com uma inclinação de cabeça na direção do gerente, Marvin encaminhou-se pesadamente para a porta da frente.

O gerente, por sua vez, deu um sorriso condescendente a Jason e entrou no seu escritório.

— É um absurdo — disse Jason, num misto de medo e irritação. — Não consigo acreditar que ninguém tenha nota¬do o hispânico. — Entrou na cabine do telefone público e pro-curou localizar agências de detetives particulares. Encontrou diversas em Seattle, mas, quando discou, só atendiam secre-tárias eletrônicas. Deixou seu nome e número do telefone do hotel, mas não tinha muita esperança de encontrar alguém nes¬sa noite.

Saindo da cabine telefônica, Jason disse a Carol que iriam embora imediatamente. Ela seguiu-o escada acima.

— São nove e meia da noite — protestou ela, entrando no quarto, atrás de Jason.

— Não me importa. Vamos embora o mais depressa que pudermos. Junte suas coisas.

— Não acha que eu devia opinar sobre esse assunto?

— Não. Foi sua a decisão de ficar esta noite, e foi sua a decisão de chamar a polícia local, que tanto ajuda. Agora é a minha vez de decidir. Vamos embora.

Por uns instantes, Carol permaneceu plantada no meio do quarto, olhando Jason juntar suas coisas; depois, concluiu que ele provavelmente estava com a razão. Dez minutos mais tarde, vestidos com suas próprias roupas, carregaram as ba-gagens até a recepção e acertaram a conta.

— Tenho de lhe cobrar a noite de hoje — informou o homem que os atendeu no balcão.

Jason não se preocupou em argumentar. Em vez de per¬der tempo com isso, pediu que o funcionário trouxesse seu car¬ro junto da entrada principal. Deu-lhe cinco dólares de gorjeta, e o funcionário ficou satisfeito por ajudá-lo.

Jason esperava que, uma vez instalado dentro do carro, pudesse sentir-se menos angustiado e menos vulnerável. Mas não foi isso que aconteceu. Assim que deixaram o pátio de es-tacionamento do hotel e entraram na estrada, imersa na escuri¬dão entre as montanhas, ele se deu conta de como agora esta¬vam isolados. Quinze minutos mais tarde, pelo espelho retrovi¬sor, viu surgir as luzes altas de um carro. No começo, procurou ignorá-las, mais depois ficou evidente que o carro se aproxi¬mava gradualmente, apesar de Jason acelerar o seu carro ca¬da vez mais. O terror que Jason havia sentido anteriormente agora voltava. Ele começou a suar nas palmas das mãos.

—  Alguém vem vindo atrás de nós — disse Jason.

Carol virou-se no assento dianteiro e olhou pelo vidro tra¬seiro. O carro deles estava numa curva e as luzes tinham de¬saparecido. Mas, na reta seguinte, reapareceram. E estavam mais perto. Carol voltou-se para diante.

—  Eu lhe disse que devíamos ter ficado.

—  E como ajuda, você falar isso! — disse Jason, com sarcasmo.

Ele pisou o acelerador quase até o fundo. Já estavam in¬do a bem mais de noventa na estrada sinuosa. Jason segurou com mais firmeza o volante, e voltou a olhar pelo retrovisor. O carro estava perto, com seus faróis como olhos de um mons¬tro. Jason procurou considerar o que poderia fazer, mas não conseguiu pensar em outra coisa senão tentar distanciar-se do carro que os seguia. Entraram em mais uma curva. Jason gi¬rou o volante com energia. Viu Carol abrir a boca e conter-se para não gritar. Pôde sentir que o carro começava a derrapar. Freou, e aí derrapou primeiro para um lado, depois para o outro. Carol agarrou-se ao painel para firmar-se. Jason apal¬pou o cinto de segurança e sentiu que estava firme.

Lutando com o carro, Jason conseguiu mantê-lo na es-trada. Atrás deles o carro perseguidor aproximava-se com bas-tante rapidez. Agora estava imediatamente atrás, com suas luzes altas inundando o carro de Jason de uma claridade pa-vorosa, espectral. Em pânico, Jason pisou o acelerador até o fundo, tirando o carro da derrapagem. Foi como mais um salto a frente, agora numa pequena descida. Mas o carro de trás acompanhava-o com a mesma velocidade, seguindo no seu en¬calço como um cão de caça disposto a tudo.

Então, para surpresa de Jason e Carol, seu carro foi inun¬dado de luzes vermelhas piscantes. Levou uns momentos pa¬ra que se dessem conta de que a luz vermelha vinha do teto do carro que os perseguia. Quando Jason reconheceu o que era, desacelerou, olhando pelo retrovisor. O carro de trás de-sacelerou na mesma proporção. Adiante, num retorno, Jason saiu para o acostamento e parou. O suor molhava-lhe a testa em pequenas gotas. Os braços lhe tremiam de tanto segurar, crispados, o volante. Atrás deles, o outro carro também pa¬rou, com suas luzes piscando e iluminando as árvores ao redor. Pelo espelho retrovisor, Jason viu a porta abrir-se, e Marvin Arnold desembarcou. Viu também que o xerife saltara a correia que prendia seu Magnun 357.

— Puxa, mas que idiota eu sou! — falou ele, iluminan-do com sua lanterna a cara embaraçada de Jason. — É o meu caro amigo.

Furioso, Jason exclamou:

— Por que cargas-d'água não ligou as suas luzes logo no começo?

— Então estava querendo fazer de mim um piloto de cor¬ridas? — falou Marvin, contendo o riso. — Não sabia que estava perseguindo o meu maluco de estimação.

Depois de verificar os documentos e de aplicar multa por direção perigosa, o xerife deixou Jason e Carol prosseguirem. Jason estava irritado demais pra falar, e foram em silêncio até chegarem à freeway. Então ele declarou:

— Acho que devíamos ir para Portland. Não sei o que pode estar à nossa espera no aeroporto de Seattle.

— Por mim, tudo bem — disse Carol, cansada demais para discutir.

Pararam para dormir umas horas em um hotel de beira de estrada, perto de Portland; à primeira luz da manhã, fo¬ram para o aeroporto. Embarcaram num vôo para Chicago. E de Chicago tomaram outro avião para Boston, onde ater¬rissaram pouco depois das 5:30 da tarde de sábado.

No táxi, quando chegaram diante do apartamento de Ca¬rol, Jason de repente se pôs a rir:

—  Eu nem saberia como lhe pedir desculpas pela confu¬são em que fiz você se meter.

Carol apanhou a sua bolsa de viagem:

— Bom, pelo menos não foi monótono esse seu progra-ma. Escute, Jason, eu não pretendo ser sarcástica, ou insis-tente, mas, por favor, diga-me o que é que anda acontecendo.

— Assim que eu tiver certeza, direi — falou Jason. — Prometo. Realmente. Agora, faça-me um favor. Não saia de casa hoje à noite. Espero que ninguém saiba que voltamos, mas poderá haver o diabo se e quando por acaso descobrirem.

—  Não tenho planos de sair para lugar nenhum, doutor — suspirou Carol. — Para mim, chega.

JASON NEM MESMO parou no seu apartamento. Assim que Ca¬rol desapareceu no interior do prédio onde morava, ele disse ao motorista do táxi que o deixasse junto ao seu carro, e daí foi diretamente ao GHP. Entrou imediatamente no edifício dos ambulatórios. Eram sete horas da noite e o grande salão de espera se encontrava vazio. Jason encaminhou-se direta-mente para seu consultório, tirou o paletó e sentou-se diante do seu terminal de computador. O GHP havia gastado uma fortuna nesse sistema de computação, do qual muito se orgu-lhava. Cada terminal tinha acesso ao programa principal, on¬de os dados de todos os pacientes eram armazenados.

Embora as papeletas de cada paciente individualmente fos¬sem ainda a melhor fonte de informações, a maior parte do material podia ser obtida do computador. E o mais vantajoso era que o sofisticado equipamento tinha condições de apre-sentar todos os dados básicos dos pacientes do GHP e mostrá-los graficamente na tela, analisados praticamente da maneira que se desejasse.

Jason quis conhecer primeiro as atuais curvas de sobrevida. O gráfico mostrado pelo computador tinha o formato de um perfil de montanha, uma ascendente íngreme começando alta, depois se arredondando, e por fim uma descendente ní¬tida. O gráfico também comparava o índice de sobrevida dos usuários do GHP por idade. Como era de prever, os clientes pertencentes ao extremo de idade mais avançada no gráfico apresentavam o mais baixo índice de sobrevida. No decurso dos últimos cinco anos, embora a média de idade da população do GHP tivesse aumentado gradualmente, as curvas de sobrevida permaneciam mais ou menos as mesmas.

A seguir, Jason solicitou do computador a execução de gráficos mês a mês para o último semestre. Tal como ele re-ceava, viu que os índices de mortalidade para pacientes entre 55 e 65 anos apresentavam uma elevação, especialmente no período referente aos últimos três meses.

Um ruído súbito fez com que ele se levantasse sobressaltado da cadeira, na qual voltou a sentar-se ao constatar que era apenas alguém do serviço de limpeza.

Com alívio, retornou ao computador. Teve vontade de separar os dados sobre os pacientes que se haviam submetido aos exames médicos executivos, mas não sabia como efetuar essa operação. Foi obrigado a se contentar com os índices ge¬rais de mortalidade. Esses gráficos comparavam as percentagens de mortes associadas à idade. Dessa vez a curva saiu de outra forma. Começava baixa, mas depois, à medida que a idade aumentava, subia. Foi então que Jason ordenou que o computador imprimisse uma série desses gráficos sobre os me¬ses precedentes, um a um. Os resultados foram surpreenden¬tes, em especial sobre os dois últimos meses. As curvas de casos de morte subiam nitidamente, começando na idade dos cin¬qüenta anos.

Jason permaneceu diante do terminal do computador por mais meia hora, tentando fazer com que o aparelho separasse os exames médicos executivos. O que esperava poder ver, se conseguisse, era um rápido aumento dos índices de mortali¬dade para pessoas com mais de cinqüenta anos de idade que apresentavam fatores de alto risco, tais como fumo, consu¬mo exagerado de álcool, alimentação inadequada e falta de atividade física. Mas esses dados não estavam disponíveis. Não tinha sido programada a sua obtenção em conjunto. Jason teria de tomar o nome de cada paciente individualmente, mas para isso não tinha tempo. Além do mais, as curvas dos índices ge¬rais de mortalidade já eram suficientes para corroborar suas suspeitas. Agora ele sabia que tinha razão. E havia mais um modo de provar isso. Com enorme angústia, saiu do seu con¬sultório e voltou ao carro.

Afastou-se da Riverway e tomou a direção de Roslindale.

Quanto mais se aproximava, mais nervoso se sentia. Não ti¬nha nenhuma noção do que iria encontrar, mas suspeitava de que não seria algo agradável. Seu destino era a Hartford School, a instituição para crianças retardadas mantida pelo GHP. Se Alvin Hayes estava certo quanto às suas próprias condições de saúde, então devia ter razão também quanto às de seu filho retardado mental.

A Hartford School situava-se junto ao Arnold Arboretum, um lugar encantador com graciosas colinas cobertas de bosques, campos e pequenos lagos. Jason entrou no pátio de estaciona¬mento, que estava praticamente deserto, e estacionou o carro a uns vinte metros da entrada. O harmonioso edifício em esti¬lo colonial tinha uma aparência enganosamente serena, pois ocultava as tragédias pessoais e familiares que abrigava em seu interior. Retardamento mental grave era um assunto difícil até mesmo para os profissionais da área. Jason lembrava-se niti¬damente de haver examinado algumas das crianças da escola, por ocasião de anteriores visitas. Muitas dessas crianças, do pon¬to de vista físico, tinham uma aparência perfeita, o que torna¬va ainda muito mais perturbadora a presença de Q.I. baixo.

A porta da frente estava fechada a chave, e por isso Ja-son tocou a campainha e esperou. Veio abri-la um guarda de segurança obeso e que usava um uniforme azul enxovalhado.

— Em que posso ajudá-lo? — falou ele, deixando claro que não tinha nenhuma vontade de ajudar.

— Eu sou médico — disse Jason. E tentou desviar-se do guarda, mas este deu um passo para trás, para barrar-lhe o caminho.

— Desculpe, visitas proibidas depois das 18:00, doutor.

— Mas eu não sou bem uma visita — disse Jason. Tirou a carteira e mostrou a identidade fornecida pelo GHP.

O guarda nem sequer olhou a identidade.

— Depois das 18:00 não há visitas — repetiu ele, acres-centando: — Sem exceções.

— Mas eu... — começou a falar Jason. Mas parou no meio da frase. Pela expressão do segurança, concluiu que era inútil qualquer discussão.

— Venha pela manhã, senhor — disse o guarda, baten-do a porta.

Jason afastou-se, descendo os degraus da frente, e olhou para a fachada do prédio de cinco andares. Era de tijolos apa¬rentes, com janelas em molduras de granito. Mas Jason esta¬va decidido a não desistir. Supondo que o guarda estava vigiando, voltou ao carro e saiu dirigindo pela alameda. Uns cem metros adiante, parou junto ao meio-fio. Saiu do carro e, com alguma dificuldade, passando por entre as árvores, re¬tornou ao prédio da escola.

Contornou o prédio, mantendo-se nas sombras. Havia es¬cadas de incêndio em todos os lados, menos na parte da fren¬te. E todas conduziam ao telhado. Infelizmente, tal como no edifício de Carol, nenhuma escada chegava até o nível do chão, e Jason não conseguiu encontrar nada sobre que se apoiar para chegar ao primeiro degrau.

No lado direito do prédio, localizou um lance de escada que descia até uma porta fechada. Tateando no escuro, des-cobriu que a porta possuía um postigo central com vidraça. Afastou-se e procurou pelo chão até encontrar um pedra do tamanho de uma laranja.

Segurando a respiração, voltou à porta e quebrou o vi-dro. No silêncio da noite, o barulho de vidro estilhaçado no chão parecia forte o bastante para acordar até os mortos. Ja-son refugiou-se nas sombras de árvores próximas, observan-do o prédio. Como ninguém apareceu, depois de quinze minutos, arriscou-se a sair das sombras e voltou à porta. Cau-telosamente, enfiou a mão na abertura do postigo e soltou a tranca. Não soou nenhum alarme.

Na meia hora que se seguiu, Jason tateou no escuro, an¬dando dentro de um grande salão, que achou ser um depósi¬to. Encontrou uma escada de mão e pensou em levá-la para fora, com a finalidade de alcançar um escada de incêndio, mas abandonou essa idéia e continuou apalpando cegamente no escuro em busca de luz. Suas mãos, por fim, tocaram num interruptor. Acionou-o.

Viu que se encontrava numa sala de manutenção, cheia de cortadores de grama, pás e outras ferramentas. Perto do interruptor de luz havia uma porta. Devagar, Jason abriu-a. A porta dava para uma sala de caldeiras, muito maior e mal iluminada.

Movimentando-se com rapidez, Jason atravessou a segun¬da sala e subiu por uma escada de aço muito íngreme, fixada à parede. Abriu a porta que havia no topo da escada e logo percebeu que estava no hall de entrada. Lembrando-se de suas visitas anteriores, sabia que a escada que levava às enferma¬rias situava-se à sua direita. À esquerda havia um escritório, onde uma mulher de meia-idade, com um uniforme branco apertado sobre o corpo volumoso, estava a ler, diante de uma escrivaninha. Olhando em direção à entrada principal, Jason pôde ver os pés do guarda esticados sobre uma cadeira. O rosto dele estava fora do seu ângulo de visão.

No maior silêncio possível, Jason deslizou pela porta do porão e cuidadosamente recolocou-a na posição anterior. Por uns momentos, esteve bem visível para a mulher sentada no escritório, mas ela não levantou os olhos do livro. Obrigando-se a movimentos lentos, ele atravessou silenciosamente o hall e enveredou pela escadaria. Teve um suspiro de alívio ao se ver fora do ângulo de visão do guarda e da mulher. Subindo os degraus dois a dois, na ponta dos pés, dirigiu-se ao terceiro andar, onde se localizava a enfermaria dos meninos de doze a quatorze anos.

A escadaria era de mármore, e, ainda que ele procurasse não fazer ruído, seus passos ecoavam no silêncio daquele es¬paço cavernoso. Acima, havia uma clarabóia, que naquele mo¬mento se assemelhava a um ônix preto incrustado no teto.

No terceiro andar, Jason abriu cautelosamente a porta que dava para a escadaria. Lembrou-se de que, à direita, na extremidade de um corredor comprido, havia um posto de en-fermagem envidraçado, e notou que, embora o corredor esti-vesse às escuras, o posto de enfermagem ainda estava com todas as luzes acesas. Um atendente estava ocupado em ler, como a mulher no andar térreo.

Olhando em diagonal para o outro lado do hall, Jason estudou como era a porta que dava para a enfermaria. Notou que ela possuía uma grande janela central provida de tela me-tálica. Depois de se certificar de que o atendente continuava a ler, atravessou o hall na ponta dos pés e entrou na sala mer-gulhada na escuridão. Imediatamente percebeu o cheiro de mo¬fo, o bafio que imperava no ambiente. Esperou uns momentos, para ter certeza de que o atendente não fora perturbado, de¬pois começou a procurar o interruptor de luz. A situação era do jeito que imaginara, teria de acender a luz, ainda que isso resultasse em ser apanhado.

A sala desoladora subitamente foi inundada com uma du¬ra luz fluorescente branca. A enfermaria tinha uns quinze me¬tros de comprimento, e de cada lado, junto às paredes, estavam alinhadas camas de ferro baixas, entre as quais sobrava espa¬ço para um estreito corredor. Havia janelas, mas eram altas, perto do teto. No extremo da sala havia banheiros, ladrilhados, com uma mangueira enrolada, para limpeza, e uma por¬ta fechada com ferrolho, que dava para a escada de incêndio. Jason caminhou pelo corredor entre as camas, olhando as pla¬cas dos nomes afixados às cabeceiras das camas. Harrison, Lyons, Gessner... As crianças, perturbadas com a luz acesa, começaram a sentar-se nas suas camas, olhando com seus olhos vazios, ausentes, incapazes de ver o intruso que as molestava.

Jason parou, abalado por um sentimento terrível de re-pulsa que se transformou em terror. Era pior do que imagi¬nara. Lentamente, seus olhos passaram de um para outro daqueles rostos miseráveis de criaturas indesejadas. Em vez de parecerem as crianças que realmente eram, todas pareciam velhos em miniatura, velhos de mais de cem anos, com seus olhos sumidos nas órbitas, a pele seca e enrugada, o cabelo branco e ralo, o couro cabeludo coberto de áreas descarna-das. Jason localizou o nome Hayes. Como os demais, ele apa¬rentava um envelhecimento prematuro. Havia perdido a maior parte das sobrancelhas, e suas pálpebras inferiores estavam muito caídas. Em lugar das pupilas, havia o reflexo baço de vidro despolido, revelando que seus olhos estavam tomados por uma catarata avançada. A criança era cega, mal conse¬guindo perceber a luz.

Algumas das crianças começaram a sair de suas camas, equilibrando-se a muito custo nas pernas atrofiadas. E então, para horror de Jason, começavam a vir na sua direção. Uma delas começou a dizer, com uma voz sumida, a expressão "por favor", repetindo-a sem parar, num tom de voz agudo, rou¬fenho. Logo as demais crianças se juntaram num coro terrí¬vel, espectral.

Jason recuou, com medo de ser atacado. O filho de Ha-yes saiu da sua cama e começou a tatear na direção de Jason, com seus braços descarnados e miúdos, sem coordenação, fa¬zendo movimentos perdidos no ar.

O bando de crianças obrigou Jason a recuar até a porta da enfermaria e começou a puxá-lo pela roupa. Assustado e nauseado, Jason abriu a porta com um empurrão e refugiou-se no corredor. Depois que fechou a porta, as crianças fica¬ram a comprimir seus rostos de múmias contra o vidro, ainda repetindo baixinho "por favor".

— Ei, você! — Jason ouviu atrás de si uma voz áspera. Virando-se, viu o atendente, de pé, do lado de fora do

posto de enfermagem, com o livro na mão, atarantado.

— O que está acontecendo? — gritou o homem.

Jason saiu correndo pelo corredor em direção à escada¬ria; mal havia descido alguns degraus, uma outra voz interpe¬lou, do andar inferior:

— Kevin? O que está havendo aí?

Jason olhou por cima do corrimão e viu o guarda, em-baixo, no primeiro andar.

— Droga! Logo no meu serviço! — exclamou o guarda, que começou a correr desajeitadamente escada acima, com o cassetete na mão.

Jason mudou de direção e rumou para o terceiro andar. O atendente ainda se encontrava no vão da porta do posto de enfermagem, aparentemente perplexo demais para se me¬xer, quando Jason atravessou correndo o hall e voltou para a enfermaria. Algumas das crianças vagavam sem rumo pelo recinto; outras tinham voltado a cair na cama. Jason se pôs a chamá-las com acenos, freneticamente, juntando-as, e abriu a porta; quando o guarda e o atendente apareceram, foram imediatamente cercados pelo bando de meninos.

Tentaram abrir caminho no meio daquela confusão, mas as crianças se agarravam neles, gritando, em coro plangente e fantasmagórico "por favor."

Jason conseguiu chegar à porta da saída de emergência na outra extremidade da enfermaria. Baixou a alavanca, que, por motivos de segurança, estava colocada a l,80m do chão. Na primeira tentativa, a porta não se abriu. Era evidente que desde muitos anos não usavam essa porta. Jason viu que era a tinta usada em várias pinturas que emperrava a porta. Dan¬do com o ombro contra a porta, esta finalmente se soltou e abriu. Saindo para a escuridão da noite, Jason empurrou di¬versas das crianças de volta para dentro da enfermaria antes de fechar a pesada porta.

Sem perder tempo, desceu pela escada de incêndio. Ago¬ra não havia mais motivos para se preocupar em não fazer barulho. Estava no segundo andar quando acima dele se abriu a porta. De novo ouviu os guinchos das crianças. E aí sentiu a vibração de pesadas botas na escada de incêndio.

Puxou um pino e uma escada de mão desceu de imedia¬to, dando um baque ao atingir o asfalto do pátio do estacio¬namento. Antes mesmo que ela tocasse no chão, Jason já descia por ela. A pequena demora possibilitou que o guarda que o perseguia diminuísse a distância entre eles.

Mas, ao chegar no gramado, o preparo físico de corre-dor deu vantagem a Jason, que logo conseguiu distanciar-se do guarda corpulento; quando chegou ao carro, teve tempo suficiente para dar partida no motor, engrenar a marcha e sair em disparada. Pelo retrovisor ainda pôde ver o guarda che¬gar à beira da alameda e elevar o punho, sob a luz de um lâm-pada de rua.

 

Jason mal conseguia controlar o asco e a revolta que sentia com o que tinha visto. Dirigiu-se diretamente à central de po¬lícia de Boston e deixou propositalmente o carro numa área em que era proibido estacionar, diante do prédio.

—  Eu quero falar com o detetive Curran — disse Jason ao funcionário da portaria, e depois se identificou.

O policial olhou calmamente seu relógio de pulso, depois telefonou para o departamento de homicídios. Falou durante uns momentos, a seguir cobriu o telefone com a mão:

—  Não serve outro?

—  Não. Eu preciso falar com Curran. E agora, por fa-vor.

O policial falou ao telefone por mais algum tempo e en-tão desligou.

—  O detetive Curran não está disponível, senhor.

— Eu acho que ele virá falar comigo. Mesmo que esteja de folga.

—  Não é esse o problema — disse o policial. — O deteti¬ve Curran está em um duplo homicídio em Revere. Ele deve telefonar dentro de uma hora, mais ou menos. Se o senhor quiser, pode esperar, ou deixar o número de seu telefone. O senhor é que decide.

Jason pensou alguns instantes. Estivera acordado a maior parte da noite anterior, seus nervos estavam abalados, e mui¬to lhe agradou a idéia de tomar um banho, trocar de roupa e comer alguma coisa. Além disso, quando se encontrasse com Curran, iria ter com que se ocupar durante algum tempo. Dei¬xou o número do telefone de casa, pedindo que Curran ligas¬se tão logo fosse possível.

O vôo da United procedente de Seattle tinha atrasado consi¬deravelmente; e quando o avião pousou em Logan, Juan Díaz estava de mau humor. Desde aquela vez em que, em Nova York, atirara no homem errado, nunca mais se saíra tão mal em uma incumbência. Aquele fiasco ainda fora desculpável mas este de agora não. Estivera a poucos segundos de fulmi¬nar simultaneamente o médico e a puta do cabaré e então Ja¬son, um amador, conseguira ser mais esperto e mais rápido. Juan não tinha desculpas a apresentar, e foi isso que disse ao contato. Sabia que tinha que se reabilitar dessa, ou fazer al¬guma coisa, e evidentemente esperava encontrar ocasião para isso. Assim que saiu do avião, dirigiu-se a um telefone. No segundo toque já foi atendido.

Jason fez, de carro, o curto trajeto entre a central de polícia e Louisburg Square, tentando apagar da memória a horrível imagem das crianças prematuramente envelhecidas da escola. Nem mesmo queria pensar em Hayes e na descoberta do cien¬tista antes que estivesse em segurança na presença de Curran. Ao chegar ao prédio onde morava, deu a volta no quar¬teirão várias vezes, para ter certeza de que ninguém o observa¬va. Finalmente, convencido de que o guarda da escola não tinha visto sua carteira de identidade, não tendo portanto idéia de quem ele era, Jason estacionou o carro, levou a bagagem para o seu apartamento e acendeu as luzes. Para alívio seu, tudo no apartamento estava do jeito que havia deixado. Olhou pela vi¬draça; pareceu-lhe que a praça estava calma como sempre.

Estava para começar o banho de chuveiro quando se lem¬brou de outras pessoas com quem devia falar, além do deteti¬ve. Ligou para Shirley. Ela atendeu, finalmente, no oitavo toque. Jason ouviu, ao fundo, vozes animadas.

— Jason! — exclamou ela. — Quando voltou das férias?

— Estou acabando de chegar.

— O que é que há? — perguntou ela, percebendo o can¬saço e a preocupação na voz dele.

— Grandes problemas. Acho que decifrei não só a des-coberta de Hayes, mas também de que modo ela estava sendo mal utilizada. E isso envolve o GHP de um modo muito pior do que você poderia imaginar.

—  Conte-me.

—  Por telefone, não.

—  Então venha até aqui. Tenho visitas, mas posso me livrar delas.

—  Eu estou esperando um chamado do Curran, do de-partamento de homicídios.

—  Ah, sim... você já entrou em contato com ele?

— Ele saiu para atender um caso, mas deve telefonar em breve.

— Então, que tal eu ir ao seu apartamento? Você agora me deixou realmente aterrorizada.

— Seja bem-vinda — disse Jason, com um riso curto, amargo. — Estarei esperando. Você provavelmente deve es¬tar presente quando eu conversar com Curran.

—  Estou indo.

— Ah, mais uma coisa. Você lembra quem é o atual di-retor médico na Hartford School?

— O Dr. Peterson, creio — disse Shirley. — Posso sa-ber com certeza amanhã.

— O Dr. Peterson não tinha um envolvimento próximo com os estudos clínicos de Hayes? — perguntou Jason, de re-pente lembrando-se de que Peterson fora o médico que havia feito o exame médico em Hayes.

—  Acho que sim. Isso é importante?

— Não tenho certeza — disse Jason. — Mas se você está vindo para cá, ande depressa. Curran deve telefonar a qual¬quer momento.

Jason desligou novamente o telefone. Estava de novo para entrar no banho de chuveiro quando se deu conta de que Carol, esta noite, podia correr perigo. Pegou novamente o tele-fone e discou o número dela.

— Quero que permaneça dentro de casa, em qualquer hi¬pótese — disse ele assim que ela atendeu. — Não estou brin¬cando. Não atenda à porta. Não saia.

—  O que é desta vez?

—  A trama contra Hayes é pior do que tudo que eu po-deria imaginar.

—  Parece que você está nervoso, Jason.

Apesar de tudo, Jason sorriu. Em certos momentos, Ca-rol podia até se parecer com um psiquiatra.

—  Não estou nervoso. Estou assustado de verdade. Mas vou conseguir falar com a polícia dentro de pouco tempo.

—  E poderá me dizer o que está acontecendo?

— Prometo que sim. — Jason desligou, afinal entrando no banheiro e abrindo o chuveiro.

A CAMPAINHA SOOU, e Jason correu escada abaixo para aten¬der. Era Shirley, que lhe sorria do outro lado do painel de vi¬dro da porta de entrada. Jason deu um passo atrás para deixá-la entrar, admirando nela as roupas impecáveis, como sempre. Nessa noite ela usava uma minissaia de couro preta e uma ja¬queta de camurça vermelha, longa.

— Curran telefonou? — perguntou ela quando subiam a escada.

—  Ainda não — disse Jason, fechando a chave e com trinco a porta do apartamento.

—  Agora me conte tudo — disse Shirley, tirando a ja-queta. Por baixo ela usava um blusão de cashmere macio. Sentou-se na beirada do sofá de Jason, com as mãos entrela-çadas no colo, e esperou.

— É coisa de que você não vai gostar — falou Jason, mantendo-se perto dela.

—  Eu procurei me preparar para isso. Pode falar.

— Primeiro, deixe que eu lhe faça um breve histórico. Se você não está familiarizada com as atuais pesquisas sobre o envelhecimento , então o que eu vou lhe contar talvez não faça muito sentido.

"Nos últimos anos, cientistas como Hayes têm dedicado muito tempo a procurar retardar o processo de envelhecimento. A maior parte do trabalho desses cientistas concentrou-se em células de culturas de células embora uma parte desse traba¬lho tenha sido feita também com ratos e camundongos. Os pesquisadores, em sua maioria, chegaram à conclusão de que

o envelhecimento é um processo natural, de origem genética e regulado por fatores neuroendócrinos, imunológicos e humorais.

—  Você já me deixou confusa — teve de admitir Shir-ley, levantando as mãos em atitude de desânimo.

—  Que  tal  um  drinque,   então?   —  sugeriu  Jason, levantando-se.

—  O que você vai beber?

— Uma cerveja. Mas tenho vinho, e também bebidas for¬tes, você escolhe.

—  Uma cerveja viria bem.

Jason foi à cozinha, abriu o refrigerador e tirou duas Coors geladas.

— Vocês médicos são todos iguais — queixou-se Shir-ley, tomando um gole. — Dão um jeito de complicar tudo.

— Porque é complicado mesmo — disse Jason, voltan-do a sentar-se. — A genética molecular diz respeito à base fun¬damental da vida. As pesquisas nessa área são assustadoras, e não apenas porque cientistas poderiam reproduzir aciden¬talmente um vírus ou bactéria novos e mortíferos, mas tam¬bém porque, no caso de serem bem-sucedidos, estaríamos jogando com a própria vida. A tragédia de Hayes não foi que ele tivesse falhado, mas que tivesse êxito.

—  O que foi que ele descobriu?

— Um momento — disse Jason, tomando um demora-do gole de cerveja e limpando os lábios com o dorso da mão. — Vou lhe contar essa história de um outro modo. Todos nós atingimos a puberdade mais ou menos com a mesma idade, e se não sobrevém uma doença ou um acidente, envelhecemos e morremos mais ou menos no mesmo período de tempo vital.

Shirley fez um sinal afirmativo.

— Pois bem — disse Jason, inclinando-se em direção a Shirley —, isso acontece porque nossos corpos são genetica-mente programados para seguir um cronograma interno. À medida que nos desenvolvemos, diferentes genes são ativados, enquanto outros são desativados. Isso era o que fascinava Ha¬yes. Ele vinha estudando as formas como os sinais humorais emitidos pelo cérebro controlam o crescimento e a maturação sexual. Isolando, umas após outras, essas proteínas humorais, descobriu o que elas faziam aos tecidos periféricos. Ele espe¬rava descobrir o motivo que levava as células a iniciar ou in¬terromper o processo de divisão.

—  Até aí eu compreendo — disse Shirley. — Esse foi um dos motivos pelos quais contratamos Hayes. Nós esperáva¬mos que ele fizesse uma descoberta no tratamento do câncer.

—  Agora me permita uma pequena digressão — falou Jason. — Havia um outro pesquisador, de nome Denckla, que fazia experimentos sobre formas de retardar o processo de en-velhecimento. Ele retirou as hipófises de ratos, e depois de re-por os hormônios necessários, verificou que esses animais tinham uma duração de vida mais longa.

Jason parou e olhou, expectante, para Shirley.

—  É para eu dizer alguma coisa? — perguntou ela.

— O experimento de Denckla não sugere nada a você?

—  Por que não diz logo!

— Denckla deduziu que a hipófise não apenas secreta os hormônios do crescimento e da puberdade, como também o hormônio do envelhecimento. Denckla chamou-o de hormô-nio da morte.

Shirley teve um riso nervoso.

—  Isso parece animador.

— Bem, eu acredito que Hayes, ao pesquisar os fatores do crescimento, tomou conhecimento da hipótese de Denckla sobre o hormônio da morte — continuou Jason. — Era a isso que ele se referia quando mencionou que era uma descoberta irônica. Ao procurar os estimuladores do crescimento, encon-trou um hormônio que causa rápido envelhecimento e morte.

— O que aconteceria se esse hormônio fosse dado a uma pessoa? — perguntou Shirley.

— Se fosse dado isoladamente, talvez não causasse mui¬ta coisa. A pessoa poderia sentir alguns sintomas de envelhe¬cimento, mas o hormônio provavelmente seria metabolizado, e seus efeitos seriam limitados. Mas Hayes não estava estu¬dando isoladamente esse hormônio. Compreendeu que, assim como era desencadeada a secreção do hormônio sexual e do crescimento, certamente também existiria um fator de libera¬ção do hormônio da morte. Imediatamente sentiu-se atraído pelo estudo do ciclo vital do salmão, que morre horas depois de desovar. Acredito que Hayes tenha coletado cabeças de sal¬mão, e do cérebro deles isolado o fator de liberação do hor¬mônio da morte. Acho que foi esse o trabalho free-lance que ele realizou em Gene Inc. Depois de conseguir isolar o fator de liberação, deve ter feito com que Helene reproduzisse essa substância em maior quantidade, mediante técnicas de recom¬binação do ADN, no seu laboratório no GHP.

—  E por que ele quereria isso?

— Acho que ele esperava poder desenvolver um anticor¬po monoclonal que impedisse a secreção do hormônio da morte e detivesse o processo de envelhecimento. — De súbito, Ja¬son apercebeu-se do que Hayes queria dizer quando mencio¬nara que sua descoberta seria um auxílio à beleza, como um cosmético. A descoberta preservaria a boa aparência jovem, como a de Carol.

—  O que aconteceria se o fator de liberação fosse dado a uma pessoa?

—  Ativaria o gene da morte, liberando o hormônio do envelhecimento, da mesma forma como ocorre no salmão, com resultados muito semelhantes. A pessoa envelheceria e mor¬reria em três ou quatro semanas. E ninguém saberia por quê. E isso leva à pior constatação de todas. Acho que alguém ob¬teve esse hormônio criado artificialmente, e que vinha sendo produzido em nosso laboratório, e começou a dá-lo aos nos¬sos pacientes. Quem quer que seja esse alguém, só pode ser um louco. Isso é o que eu acho que aconteceu. Hayes deve ter descoberto — provavelmente quando visitou o filho —, e então lhe ministraram esse fator de envelhecimento. Se ele não tivesse morrido naquela noite, acho que teria sido morto de algum outro modo. — Jason encolheu os ombros.

— Como foi que você descobriu? — murmurou Shirley.

— Segui as diversas fases dos experimentos de Hayes. Quando Helene foi assassinada, achei que Hayes tinha dito a verdade ao falar de sua descoberta e dizer que alguém que¬ria matá-lo.

— Mas Helene foi estuprada por um desconhecido que invadiu a sua casa.

— Sem dúvida. Mas isso foi apenas para desorientar a polícia quanto ao motivo do seu assassinato. Eu sempre julguei que ela sabia mais do que revelara sobre o trabalho de Hayes. Quando soube que ela estava tendo um caso com ele, então tive certeza.

— Mas quem haveria de querer matar nossos pacientes? —  perguntou Shirley, em desespero.

— Um sociopata. O mesmo tipo de louco que põe cianeto no Tylenol. Ainda há pouco, na clínica do hospital, ob-tive do computador registros das curvas de sobrevida e de mortalidade. Os resultados foram incríveis. Houve um aumen-to significativo no índice de mortalidade no GHP para os pa-cientes com mais de cinqüenta anos portadores de doenças crônicas ou pertencentes ao grupo de alto risco pelo tipo de vida que levam. — Bruscamente Jason parou de falar. — Que diabo!

— O que é que há? — perguntou Shirley, olhando an-siosa, como se o perigo estivesse muito próximo.

— Esqueci uma coisa. Verifiquei as curvas mês a mês, mas não médico a médico.

— Você acredita que algum médico está por trás disso? —  perguntou Shirley, incrédula.

— Deve estar. Um médico ou talvez uma enfermeira. O fator de liberação seria uma proteína polipeptídica. Teria de ser injetado. Se fosse administrado por via oral, os sucos gás-tricos o degradariam.

—  Meu Deus! — Shirley deixou cair a cabeça entre as mãos. — E eu que pensava já termos problemas em demasia.

— Ela respirou fundo e levantou os olhos. — Não há alguma possibilidade de você estar enganado, Jason? Talvez o com¬putador tenha cometido um erro. Sabe lá, o processamento de dados entra em pane tão freqüentemente...

Jason pôs a mão no ombro de Shirley. Ele sabia que es¬tava para ruir todo aquele império dela, laboriosamente con-quistado.

—  Não estou enganado — falou ele com suavidade. — Esta noite, fiz também uma outra coisa. Fui ver o filho de Ha-yes na Hartford School.

—  E...?

— Um horror. Todos os meninos daquela enfermaria de¬vem ter recebido o fator de liberação. Aparentemente, a substância atua de modo mais lento nos indivíduos pré-escolares, por isso os meninos ainda estão vivos. Deve haver alguma es¬pécie de competição hormonal com o hormônio do crescimen¬to. Mas todos aqueles meninos parecem ter cem anos de idade. Shirley sacudiu os ombros.

—  Foi por isso que eu quis saber o nome do atual dire-tor médico.

—  Você acha que Peterson é responsável por isso?

—  Ele seria o principal suspeito.

—  Talvez devêssemos ir à clínica do hospital e fazer um duplo teste no computador. Poderíamos mesmo checar as cur¬vas médico a médico.

Antes que Jason pudesse responder, a campainha da porta do prédio rompeu o silêncio e fez com que ambos se sobressaltassem. Jason levantou-se, com o coração aos saltos.

Shirley colocou sua cerveja sobre a mesa.

—  Quem será?

— Não sei. — Jason havia dito a Carol que não saísse do apartamento, e Curran, se viesse, teria telefonado antes.

— Que devemos fazer? — perguntou Shirley, apressada.

—  Vou descer a escada e dar uma olhada.

—  Você acha isso uma boa idéia?

—  Tem alguma melhor?

Shirley sacudiu a cabeça negativamente.

—  Mas não abra a porta.

— Você acha que eu sou o quê, um maluco? Ah, uma coisa que eu ainda não lhe disse: alguém tentou me matar.

—  Não! Onde?

— Num lugar distante, numa pousada a leste de Seattle. Jason abriu a porta do apartamento.

— Talvez seja melhor você não descer — falou Shirley, apressada.

—  Preciso descobrir quem é. — Jason saiu para a área gradeada e olhou para baixo, em direção à porta de entrada do prédio. Através dos painéis de vidro da porta viu um vulto.

—  Tenha cuidado — disse Shirley.

Em silêncio, Jason começou a descer as escadas. Quanto mais perto chegava, maior se tornava o vulto do indivíduo. O homem estava de cara para os nomes dos moradores e to- cava a campainha raivosamente. Subitamente se virou e aper¬tou a cara contra o vidro. Durante uns momentos, o rosto de Jason e o rosto do estranho estiveram a meio palmo de dis¬tância. Não havia como se enganar com aquele rosto volumoso e aqueles olhos pequenos e próximos um do outro. O visitan¬te era Bruno, o halterofilista. Jason voltou-se e disparou es¬cada acima, enquanto o sujeito esmurrava furiosamente a porta, fazendo-a tremer.

—  Quem é?

—  Um brutamontes que eu conheço — falou Jason para Shirley, ao mesmo tempo que fechava a porta do apartamen¬to com chave e tranca. — E é a única pessoa que sabe que eu fui a Seattle. — Esse aspecto era o que acabava de acudir à sua mente, enchendo-o de terror. Jason correu para o escri¬tório e pegou o telefone. — Droga! — exclamou ele depois de uns instantes. Recolocou o fone no gancho e tentou o tele¬fone do quarto. Também ali o aparelho não dava sinal. — Os telefones estão mudos — disse ele, com desconfiança, pa¬ra Shirley, que o seguira, sentindo seu estado de pânico.

—  O que vamos fazer?

— Vamos sair. Não vou ficar aprisionado aqui. Jason vasculhou o armário do closet e encontrou a chave do portão que dava do seu prédio para a estreita passagem que ia terminar na West Cedar Street. Abriu a janela do quarto, subiu na escada de incêndio e ajudou Shirley a acompanhá-lo. Seguindo um atrás do outro, desceram até o pequeno jar¬dim, onde as bétulas sem folhas se destacavam na escuridão, parecendo fantasmas. Depois de chegarem à passagem, cor-reram até o portão, e então Jason procurou freneticamente acertar a chave na fechadura. Quando saíram na rua estreita, esta estava silenciosa e vazia, e a escuridão, a intervalos, ce-dia lugar às suaves luzes de neon de Beacon Hill.

—  Vamos! — falou Jason, e começou a caminhar por West Cedar Street até Charles Street.

—  Meu carro está em Louisburg Square — disse Shirley, ofegante, tentando acompanhar os passos apressados de Jason.

—  O meu também. Mas é claro que não podemos vol-tar. Tenho que tentar apanhar o carro de um amigo meu.

Na Charles Street havia alguns transeuntes diante do 7-Eleven. Jason pensou em ir ao drugstore e dali chamar a polícia, mas agora que estava fora do seu apartamento sentia-se menos aprisionado. Além do mais, queria checar novamente os dados do computador no GHP antes de falar com Curran. Passaram pela Chestnut Street, ladeada pelos seus anti¬gos edifícios do governo. Havia algumas pessoas passeando com seus cães, o que fez com que Jason se sentisse mais segu¬ro. Logo antes da Brimmer Street ele entrou numa garagem-estacionamento, deu ao vigia uma nota de dez dólares e pediu o carro pertencente a um amigo. Felizmente o vigia reconhe¬ceu Jason e trouxe do interior da garagem um BMW azul.

— Acho que seria uma boa idéia irmos à minha casa — disse Shirley, acomodando-se no assento dianteiro do carro. — De lá nós podemos telefonar para Curran e dizer-lhe onde você está.

—  Primeiro quero voltar à clínica.

Não havendo quase tráfego algum, chegaram ao hospi-tal em menos de dez minutos.

— Vou demorar só um minuto — disse Jason, estacio-nando o carro junto à entrada. — Quer entrar ou prefere es-perar aqui?

—  Não seja tolo — disse Shirley, abrindo a porta do carro no seu lado. — Quero ver pessoalmente esses gráficos.

Mostraram seus cartões de identificação ao guarda de se¬gurança e tomaram o elevador, embora tivessem que subir ape¬nas um andar.

O serviço de limpeza havia deixado as instalações nas suas condições de antes — revistas nas estantes, cestas de papéis vazias, e o soalho brilhando com cera nova. Jason foi direta¬mente à sua sala de trabalho, sentou à escrivaninha e conectou seu terminal de computador.

— Vou telefonar para Curran — disse Shirley, e saiu em direção à sala das secretárias.

Jason fez um gesto indicando que tinha ouvido o que Shir¬ley dissera. Já estava atento aos dados do computador. Pri¬meiro verificou os números de identificação dos diversos médicos da clínica. Estava interessado especialmente no de Peterson. Quando estava de posse de todos os números, instruiu o computador para que separasse por médicos a população de pacientes do GHP, e depois começou a extrair as curvas de mortalidade de cada grupo em relação ao período dos dois últimos meses, justamente aqueles que tinham apresentado as maiores alterações quando se obtinham as listas de todos os pacientes. Jason esperava encontrar nos pacientes de Peterson um índice de mortalidade maior ou menor, pois achava que um psicopata faria experimentos significativamente para mais ou para menos com seus próprios pacientes.

Shirley voltou à sala de Jason e observou-o introduzindo dados.

—  Seu amigo Curran ainda não voltou — disse ela. — Ele telefonou para a central de polícia e avisou que talvez de-morasse ainda algumas horas.

Jason sacudiu a cabeça afirmativamente. Ele estava mais interessado, agora, nas curvas que iam sendo delineadas nos gráficos. Levou uns quinze minutos para obter todos os grá¬ficos. Separou as folhas do formulário contínuo e empilhou-as.

— Parecem todas iguais — disse Shirley, inclinando-se sobre o ombro de Jason.

—  Tem razão — admitiu Jason. — Até mesmo a de Peterson. Isto não exclui o seu envolvimento, mas também não nos ajuda muito.

Jason continuou a olhar fixamente o computador, ten-tando pensar em algum outro dado que pudesse ser útil. Deu-lhe um branco.

—  Bem, são estas as idéias brilhantes por ora. A polícia terá que se encarregar a partir desse ponto.

—  Então vamos embora — disse Shirley. — Você pare¬ce exausto.

— Estou mesmo — teve de admitir Jason. Levantar-se da cadeira era realmente um esforço.

—  São estes os gráficos que você obteve antes? — Shirley indagou, apontando para a pilha de folhas junto ao terminal.

Jason assentiu com a cabeça.

— Que tal trazê-los junto com você? Gostaria que me des¬se explicações sobre eles.

Jason meteu as folhas de papel num envelope grande.

— Eu dei ao pessoal do Curran o número do telefone da minha casa — disse Shirley. — Acho que é o melhor lugar para esperar. Você teve oportunidade de comer alguma coisa?

— Comi um pouco daquela comida horrível do avião, mas é como se isso tivesse sido há vários dias.

— Eu tenho lá em casa um pouco de frango que sobrou.

—  Deve estar ótimo.

Quando chegaram ao carro, Jason perguntou a Shirley se ela não se importava de ir dirigindo, de maneira que ele pu-desse relaxar e pensar um pouco.

— Naturalmente que posso dirigir — disse ela, tomando as chaves dele.

Jason embarcou pelo lado do carona, jogando o envelo¬pe sobre o assento de trás. Apertou o cinto de segurança, reclinou-se no assento e fechou os olhos. Deixou que seus pen¬samentos vagassem soltos, tentando imaginar as diferentes ma¬neiras pelas quais o fator de liberação poderia ter sido administrado aos pacientes da clínica. Como a substância não podia ser dada por via oral, Jason especulou de que modo o criminoso poderia tê-la injetado nos pacientes que se subme¬teram a exames de saúde executivos. Era rotina extrair san¬gue dos pacientes para numerosos exames laboratoriais, mas os tubos a vácuo não ofereciam nenhuma possibilidade de se injetar neles uma substância. Para os pacientes internados, a coisa era diferente — estavam sempre recebendo injeções e soro intravenoso.

Ele não conseguia chegar a nenhuma conclusão plausí¬vel. Quando Shirley parou diante da sua casa, Jason sentia-se cambaleante e quase caiu ao sair do carro. O curto repouso teve o efeito de acentuar-lhe o cansaço. Apanhou no banco de trás o envelope.

—  Sinta-se como em sua casa — disse Shirley, levando-o para o living.

—  Primeiro quero saber se Curran telefonou.

— Vou cuidar da comida, é só um instante. Por que não prepara um drinque para você enquanto isso?

Cansado demais para discutir, Jason foi ao barzinho e serviu-se de uma dose de Dewar's e gelo, depois voltou ao so-fá. Enquanto esperava por Shirley, ficou a considerar nova-mente as diversas maneiras pelas quais alguém poderia ter administrado o fator de liberação. Não havia muitas possibilidades. Se a substância não era injetada, então teria de ser administrada por meio de supositórios, ou então mediante al¬guma outra forma de contato direto com uma membrana mu¬cosa. A maioria dos pacientes que se submetiam a um exame de saúde completo fazia também um enema de bário; Jason se indagou se não seria essa a resposta.

Ele começava a sorver o seu uísque quando Shirley che¬gou trazendo o frango assado e salada.

—  Posso fazer um drinque para você? — perguntou Jason.

Shirley depôs a bandeja sobre a mesinha ao lado do sofá.

— Por que não? — E acrescentou: — Não precisa se me¬xer, deixe que eu faço.

Jason observava Shirley acrescentar uma gota de vermu¬te à vodca, e foi nesse instante que ele pensou nas gotas ocu¬lares. Todos os pacientes que passavam pelos exames de saúde executivos eram submetidos a exames oftalmológicos comple¬tos, inclusive gotas oculares para dilatação das pupilas. Se al¬guém quisesse introduzir o fator de liberação do gene da morte, a membrana mucosa do olho poderia absorvê-lo perfeitamente. E o que era ainda mais favorável: como o fator de liberação podia ser introduzido secretamente na medicação ocular re¬gular, um médico ou um técnico, sem saber, podiam admi¬nistrar as gotas fatais.

Jason começou a sentir a cabeça latejar intensamente. Ao encontrar uma explicação plausível do que podia ter sido a chave de tudo, via que se tornava subitamente real a possibi-lidade de um psicopata executar um assassinato em massa. Shir¬ley voltou do bar agitando o seu drinque. Naquele momento, Jason decidiu poupá-la da sua mais recente revelação.

—  Algum recado de Curran? — perguntou ele.

—  Ainda não — falou Shirley, olhando-o de modo es-quisito. Por uns momentos ele se perguntou se ela seria capaz de ler-lhe a mente.

—  Eu tenho uma pergunta — disse ela, hesitando. — Esse suposto fator de liberação da morte não faz parte de um pro¬cesso natural?

—  Sim — disse Jason. — É por isso que os exames anatomopatológicos não puderam esclarecer muita coisa. Todas as vítimas, inclusive Hayes, morreram das chamadas causas naturais. O fator de liberação simplesmente desencadeia a ati¬vação do gene na puberdade, e o ativa a plena força.

—  Você quer dizer que começamos a envelhecer na pu¬berdade? — perguntou Shirley, num tom desolado.

— Esta é a teoria atual — disse Jason. — Mas evidente-mente isso é gradual, adquirindo velocidade somente em fa-ses mais avançadas da vida, quando declinam os níveis do hormônio do crescimento e dos hormônios sexuais. O fator de liberação aparentemente ativa o gene do hormônio da morte, plena e definitivamente, e, num adulto sem altos níveis de hor-mônio do crescimento para contrabalançá-lo, causa envelhe-cimento rápido, à semelhança do que ocorre com o salmão. Minha opinião é que esse período é de três semanas. Parece que o sistema cardiovascular é o fator limitante. É o que apa-rentemente sucumbe primeiro e causa a morte. Mas também poderia ser um outro sistema de órgãos.

—  Mas o envelhecimento é um processo natural — repe¬tiu ela.

— O envelhecimento faz parte da vida — concordou Ja-son. — Do ponto de vista da evolução, é tão importante quanto o crescimento. Sim, é um processo natural. — Jason teve um riso vazio. — Hayes decerto tinha razão quando classificou essa sua descoberta como irônica. Com todo o trabalho sen¬do feito para retardar o envelhecimento, sua descoberta so¬bre o crescimento resultou numa forma de acelerá-lo.

— Se o envelhecimento e a morte têm um valor evoluti-vo — insistiu Shirley —, talvez tenham também um valor social.

Jason olhou para Shirley, sentindo-se tomado de um cres¬cente sentimento de alarme. Ele só queria não estar tão can¬sado. Seu cérebro emitia sinais de perigo, mas ele se sentia demasiadamente exausto para decodificá-los. Tomando o seu silêncio como concordância, Shirley continuou:

—  Deixe que eu exponha a coisa de outra maneira. A me¬dicina em geral se vê diante do desafio de proporcionar assis¬tência de boa qualidade a custos reduzidos. Mas, por causa do aumento da duração da vida, os hospitais ficam lotados com uma população idosa que é mantida viva a um preço altíssimo exaurindo não somente seus recursos econômicos mas também as energias do corpo médico. Por exemplo, o GHP teve um desempenho muito bom no seu início, porque a maio¬ria dos mutuários do sistema eram jovens e sadios. Agora, vinte anos depois, todos eles estão mais idosos e exigem muito mais assistência médica. Se o envelhecimento fosse acelerado em certas circunstâncias, isso poderia ser o melhor para ambas as partes, pacientes e hospitais.

O ponto importante — enfatizou Shirley — é que os ido-sos e os doentes deveriam envelhecer e morrer rapidamente, para evitar sofrimento e também a utilização excessiva de uma assistência médica dispendiosa.

À medida que o seu cérebro entorpecido pelo cansaço co¬meçava a entender o raciocínio de Shirley, Jason sentia que ia sendo dominado e paralisado pelo horror. Embora quises¬se gritar e dizer que aquilo que ela expunha era o assassinato legalizado, o que lhe aconteceu foi se ver sentado, e com o ânimo embotado, na beirada do sofá, como um passarinho paralisado de medo diante de uma cobra venenosa.

—  Jason, você tem alguma noção dos enormes custos pa¬ra se manter vivas as pessoas durante os últimos meses de suas vidas, em um hospital? — falou Shirley, de novo tomando o silêncio dele, equivocadamente, como concordância. — Você tem noção disso? Se a medicina não gastasse tanto com o ato de morrer, poderia fazer muito mais para ajudar a viver. Se o GHP não estivesse abarrotado de pacientes de meia-idade fadados a adoecer por causa do tipo de vida malsã que levam, imagine o que poderíamos fazer pelos jovens. E os pacientes que não cuidam de sua própria saúde, como os fumantes in¬veterados e os que bebem intensivamente, ou as pessoas que usam drogas, não estarão todos eles acelerando voluntaria¬mente a morte? Seria tão errado apressar a morte dessa gen¬te, de modo que não sobrecarregassem o restante da sociedade?

Jason, afinal, abriu a boca para protestar, mas não con-seguia encontrar as palavras para refutar. Só o que pôde fa¬zer foi sacudir a cabeça num gesto de desacordo.

— Não posso acreditar que você aceite o fato de que a medicina não tem mais condições de sobreviver sob o peso es¬magador dos problemas de saúde crônicos das pessoas fisicamente debilitadas, aqueles mesmos pacientes que passaram trin¬ta ou quarenta anos maltratando o corpo que Deus lhes deu. Mas essa decisão não compete a mim, nem a você — excla¬mou Jason, afinal.

—  Mesmo quando o processo de envelhecimento é sim¬plesmente acelerado por uma substância natural?

— Isso é assassinato! — Jason levantou-se cambalean-do. Shirley também se levantou, colocando-se rapidamente jun¬to à porta que dava para a sala de jantar.

— Entre, Sr. Díaz — falou ela, abrindo a porta. — Eu fiz o que pude.

Jason sentiu a boca ficar seca ao voltar o rosto e dar de frente com o homem que tinha visto no Salmon Inn. O rosto bem proporcionado e moreno de Juan adquiria vivacidade, prelibando a ação. O hispânico tinha na mão uma pequena pistola automática de fabricação alemã, aparelhada com um silenciador do tamanho de um charuto.

Jason recuou aos trancos, até dar com as costas contra a parede. Seus olhos foram da arma para o rosto extraordi-nariamente bem proporcionado do assassino e daí para Shir-ley, que o olhava com a mesma calma com que o olharia numa reunião de diretoria.

—  Desta vez não há toalha de mesa — disse Díaz, com um sorriso de desdém que punha à mostra seus dentes bran¬cos e perfeitos de astro de cinema. Ele avançou na direção de Jason, colocando o silenciador da pistola a um palmo da sua cabeça. — Passe bem — falou ele, com um amistoso aceno de cabeça.

— SR. DÍAZ — falou Shirley.

—  Sim — respondeu Juan, sem desviar os olhos de Jason.

— Não atire, a não ser que ele o obrigue a isso. Será me¬lhor lidar com ele do jeito como lidamos com o Sr. Hayes. Amanhã eu lhe trago o material do hospital.

Jason soltou a respiração. Ele nem mesmo se apercebera de que estava com a respiração suspensa.

O sorriso desapareceu do rosto de Juan. Suas narinas se dilataram; ele estava desapontado e com raiva.

— Acho que seria muito mais seguro se eu o matasse ago¬ra mesmo, Srta. Montgomery.

—  Não importa o que você pensa, e sou eu quem paga a você. Agora vamos levá-lo para o porão. E nada de cenas de brutalidade. Eu sei o que estou fazendo.

Juan movimentou a pistola de maneira que o metal frio to¬cou a têmpora de Jason. O médico sabia que o hispânico estava só esperando conseguir o mais leve pretexto para atirar; por isso, permaneceu absolutamente imóvel, petrificado pelo medo.

—  Venha! — chamou Shirley do haII de entrada.

— Ande! — falou Juan, afastando a arma da cabeça de Jason.

Jason caminhou rígido, com os braços colados ao cor-po. Juan seguiu atrás, em certos momentos tocando as costas de Jason com a pistola.

Shirley abriu uma porta localizada sob a escada, do lado oposto da entrada principal da casa. Jason pôde ver um lance de escadas que descia para o subsolo.

Quando se aproximou, tentou olhar Shirley nos olhos, mas ela voltou o rosto. Ele cruzou o vão da porta e começou a descer os degraus, com Juan imediatamente atrás.

— Os médicos me surpreendem — disse Shirley, acen-dendo a luz do porão e fechando a porta atrás de si. — Pen-sam que a medicina é só uma questão de ajudar os doentes. A verdade é que, se não se fizer alguma coisa com os porta-dores de doenças crônicas, não haverá dinheiro nem recursos humanos para ajudar aqueles que realmente podem se re-cuperar.

Olhando para o rosto calmo e bonito de Shirley e para suas roupas perfeitas, Jason não conseguia acreditar que era a mesma mulher que ele sempre havia admirado.

Ela se interrompeu para conduzir Juan por um longo e estreito corredor que ia terminar numa pesada porta de car-valho. Passando apertada no estreito espaço junto a Juan e Jason, com a chave ela abriu a porta e acendeu a luz, ilumi-nando uma grande sala quadrada. Jason foi empurrado para dentro da sala; viu que havia uma porta à esquerda, uma ban-cada junto à parede, e uma outra porta de madeira maciça à direita. Então a luz foi apagada, a porta bateu com estron¬do, e Jason se viu cercado de total escuridão.

Por alguns instantes permaneceu de pé e imóvel, imobili¬zado pelo choque e pela falta de visão. Podia ouvir pequenos sons; água correndo por encanamentos, o sistema de aqueci¬mento funcionando, e passos acima de sua cabeça. A escuri¬dão permanecia absoluta. Ele não poderia nem mesmo dizer se seus olhos estavam abertos ou fechados.

Quando, afinal, conseguiu se movimentar, encaminhou-se de volta à porta pela qual entrara. Agarrou a maçaneta da porta e tentou girá-la. Puxou a porta. Não havia dúvida, ela era firme. Passando as mãos em torno do marco, tateou em busca de dobradiças. Mas abandonou essa tentativa ao se lem¬brar de que a porta se abria para o corredor.

Saiu de perto da porta e moveu-se para o lado, dando passos curtos e deslizando cautelosamente as mãos pela pare¬de. Chegou ao canto e então girou noventa graus. Continuou andando com passos curtos até conseguir tatear o vão da por¬ta aberta. Entrando com cuidado no outro compartimento, tentou localizar, com o tato, algum interruptor de luz na pa¬rede. Do lado esquerdo, mais ou menos na altura do peito, encontrou um. Acionou-o. Nada aconteceu.

Avançou para dentro da sala secundária e começou a apal¬par as paredes, tentando averiguar as dimensões. Seus dedos tocaram num objeto metálico localizado na parede e que ti¬nha uma parte dianteira de vidro. Apalpando mais para bai¬xo, na altura da cintura, pôde identificar uma pia. Mais para a direita havia um vaso sanitário. O recinto não devia medir mais que um metro e meio por dois.

Retornando à sala principal, Jason continuou sua lenta caminhada. Encontrou uma segunda sala pequena, com a porta fechada, e que se situava além do banheiro. Quando abriu a porta, pelo olfato percebeu que era um closet forrado de ce¬dro. Encontrou, dentro, diversos sacos de roupas, cheios de roupas.

De volta à sala principal, Jason chegou num outro canto e girou novamente. Depois de uma dúzia de passos curtos, chocou-se de leve contra a bancada, junto à parede, que so-bressaía mais ou menos um metro para dentro da sala. Jason apalpou os contornos da bancada, depois o que havia embai-xo, encontrando divisões com prateleiras. Pelo que calculou, a bancada devia ter três ou quatro metros de comprimento. Passando a bancada, reencontrou a parede, na qual notou uma prateleira com algo que, ao tato, pareciam latas de tinta. Mais além da prateleira ficava o outro canto da sala.

No meio da quarta parede, Jason encontrou outra pesa-da porta, esta hermeticamente fechada e trancada. Apalpan¬do, pôde notar que havia uma fechadura, mas faltava a chave. Não havia dobradiças. Continuando a andar, Jason chegou ao quarto canto. Em poucos instantes encontrou-se de novo na entrada.

Abaixou-se, ficando de joelhos, e passou a tatear o chão. Era de concreto. Levantando-se novamente, Jason tentou pen¬sar em algo mais que pudesse fazer. Não teve nenhuma idéia que lhe parecesse boa. De súbito, foi invadido por um avassalador sentimento de medo mortal, como se estivesse sendo afogado. Nunca havia sofrido de claustrofobia, mas essa sen¬sação o dominou com uma intensidade esmagadora.

— Socorro! — gritou ele, mas só chegou a seus ouvidos o eco da própria voz. Jason perdeu o controle, apalpou desesperadamente a porta de entrada e esmurrou-a. — Aqui, abram! — E continuou esmurrando a porta até sentir as mãos doendo. Parou abruptamente, com um estremecimento por todo o corpo, e apertou contra o peito as mãos machucadas. Inclinou-se para a frente, encostou a testa na porta. E então lhe vieram as lágrimas.

Jason não se lembrava de haver chorado desde os tem¬pos de criança. Nem mesmo depois da morte de Danielle. E todos aqueles anos em que tivera de negar essa emoção pare¬ceram voltar agora, quando estava humilhantemente agachado no porão da casa de Shirley. Perdeu completamente o controle de si e lentamente desabou no chão, onde se enrodilhou em frente à porta, como um cachorro acorrentado, sufocando-se com o choro.

Mas essa crueza da reação emocional surpreendeu ao pró¬prio Jason. E depois de soluçar uns dez minutos, ele começou a readquirir sua compostura. Sentiu-se envergonhado de si mes¬mo. Sempre tinha acreditado que possuía autocontrole. Por fim, sentou-se e ficou com as costas contra a porta. Na escu¬ridão, enxugou as lágrimas que escorriam pelo rosto molhado.

Em vez de se entregar ao desespero total, começou a pen¬sar a respeito da sala em que estava. Procurou avaliar as di¬mensões e esquematizar a localização das coisas que havia encontrado no seu trajeto exploratório. Começou a imaginar se não haveria outros interruptores de luz. Levantou-se e vol-tou, devagarinho, à segunda porta fechada a chave, situada à direita. Ao chegar ali, apalpou ao longo das paredes, de am-bos os lados da porta, mas não encontrou nenhum interrup¬tor de luz.

Andando às apalpadelas pela sala, retornou ao banhei-ro. Tentou o interruptor ali existente mais algumas vezes. Co-meçou então tatear em busca do soquete elétrico, imaginando que poderia trocar a lâmpada, desde que conseguisse locali-zar as luzes no teto da sala principal. Mas não havia instala-ção palpável, nem na prateleira do banheiro nem no teto. Desanimado, Jason retornou à sala principal.

— Ahhh! — gritou Jason, quando deu de frente com uma coluna dura, batendo com o nariz contra a superfície metáli¬ca de quinze centímetros de diâmetro. Por uns instantes desequilibrou-se e sentiu que o nariz começava a inchar. Apalpou-o e percebeu que havia uma saliência óssea no lado direito: tinha fraturado o nariz. Novamente seus olhos se en-cheram de lágrimas, só que desta vez eram uma reação refle-xa, não exprimiam tristeza. Quando se recuperou o suficiente para prosseguir andando, percebeu que havia se desorienta-do. Voltando a caminhar com passos curtos, movimentou-se até encontrar uma parede. Só então conseguiu encontrar a bancada.

Inclinando-se, começou abrir as portas das divisões sob a bancada, explorando meticulosamente cada uma delas com as mãos. Cada compartimento media aproximadamente um metro e vinte de largura e era provido de uma única prateleira removível. Ele encontrou mais latas de algo que lhe pareceu ser tinta, mas nenhuma ferramenta. Levantou-se e inclinou-se por cima da bancada, tentando apalpar o que se achava na parede acima. Havia algumas prateleiras estreitas, à direita, com pequenos jarros e caixas. Movimentando-se para a parte central, ele apalpou a parede novamente, esperando encon¬trar um suporte de ferramentas ou coisa parecida, com cha¬ves de fenda, martelos e formões. Em vez disso, suas mãos acharam um bujão de vidro fixado a uma caixa metálica. Ca¬nos entravam na caixa metálica. Jason entendeu que ali era o medidor de eletricidade.

Deslocando-se para a extremidade esquerda da bancada, apalpou novamente a parede. Havia ali mais prateleiras con¬tendo jarros de plástico e de cerâmica para flores, mas nada de ferramentas.

Desapontado, Jason pôs-se a considerar o que mais po¬deria fazer. Pensou em encontrar alguma coisa sobre a qual pudesse ficar de pé, de modo que tivesse condições de explo-rar as paredes perto do teto, onde talvez houvesse uma janela vedada. No meio desses pensamentos, acudiu-lhe à mente a descoberta do medidor de eletricidade. Subiu na bancada e, pelo tato, conseguiu localizar não só o medidor como tam¬bém o trajeto dos fios, que iam dar numa segunda caixa me¬tálica retangular. Apalpando a superfície, imediatamente achou um anel metálico articulado. Dando-lhe um leve puxão, abriu a caixa.

Dentro dela estava o painel de distribuição da fiação elé¬trica da casa. Devagar, explorou o interior com o dedo, espe¬rando não tocar num fio desencapado. Mas seus dedos conseguiram tatear uma fileira de disjuntores e fusíveis.

Nos cinco minutos que se seguiram, ficou a pensar num jeito de fazer uso de sua descoberta. Desceu então da banca¬da, abriu a porta do armário sob a bancada e removeu todo o seu conteúdo, guardando as latas nos dois armários do la¬do. Depois retirou a única prateleira, que, felizmente, não es-tava pregada, e entrou no compartimento. Encontrou ali espaço suficiente.

Saiu do armário, voltou a subir na bancada e desligou, um a um, todos os disjuntores. Depois fechou o painel, meteu-se dentro do armário, debaixo da bancada, fechou atrás de si a porta do armário e rezou. Se já tivessem ido dormir, a falta de luz não os incomodaria.

Passado algum tempo, que para ele pareceu equivaler a uns cinco minutos, Jason ouviu uma porta se abrir. A seguir, ouviu vozes, e, por uma fresta na porta do armário onde es¬tava escondido, viu um tênue feixe de luz tremeluzindo. De¬pois ouviu o ruído de uma chave na porta de entrada, a qual se abriu de repente. Com o olho na fresta da porta do armá¬rio, ele pôde ver nitidamente dois vultos. Um segurava uma lanterna de pilhas que lentamente esquadrinhou com a luz a sala toda.

—  Ele está escondido — disse Juan.

— Não precisa me dizer isso — falou Shirley, com ir-ritação.

—  Onde é a sua caixa de fusíveis? — perguntou Juan. A luz da lanterna deu buscas na parede acima da bancada.

— Você fique aqui — disse Juan. E dirigiu-se para o in-terior da sala, vindo colocar-se entre Jason e a luz da lanterna que Shirley devia estar segurando. Jason suspeitou que Juan estava com as mãos ocupadas em segurar a pistola.

Então inclinou-se contra o fundo do armário e levantou os pés. Assim que ouviu os disjuntores sendo religados, chu-tou as portas do armário com toda a força e impulso de suas pernas de corredor. As portas golpearam Juan Díaz inteira-mente de surpresa, atingindo-o nas virilhas. O hispânico arqueou-se ofegante de dor e cambaleou para trás, contra o closet de cedro.

Jason não perdeu tempo. Esgueirou-se para fora do ar-mário e atravessou a sala correndo, agarrando a porta antes que Shirley tivesse a possibilidade de fechá-la. Bateu-a com toda a força, avançando, na corrida, contra Shirley e atiran¬do a mulher no chão. Shirley soltou um grito ao bater com a cabeça no concreto do chão. A lanterna soltou-se de sua mão.

Num ímpeto só, Jason saiu correndo pelo corredor em direção à escada, dando graças aos céus por estar essa área da casa novamente com as luzes acesas. Agarrou-se ao corri-mão e usou-o para impulsionar melhor o corpo escada aci¬ma. Foi então que ouviu um disparo abafado. Simultanea¬mente, sentiu uma dor na coxa, e a perna direita afrouxou atrás de si. Procurando manter-se de pé, conseguiu, aos pulos, su¬bir o restantes da escada. Já estava quase na saleta de entrada da casa; não podia desistir.

Com a perna direita arrastando, lutou para chegar à porta da frente. Embaixo, ouviu alguém começando a subir a escada.

O trinco de dentro da porta abriu-se e Jason saiu camba¬leando para a noite inclemente de novembro. Sabia que tinha sido atingido por uma bala. Podia sentir o sangue que saía do ferimento e escorria pela perna até dentro do sapato.

Mal pôde chegar até o meio da rua; Juan agarrou-o e atirou-o contra as pedras do calçamento, mantendo-o sob a mira da pistola. Jason caiu sobre as mãos e os joelhos. Antes que pudesse levantar-se, Juan chutou-o, forçando-o a cair de costas. Mais uma vez, a pistola estava apontada para a cabe-ça de Jason.

Subitamente, os dois homens foram inundados por uma claridade intensa. Mantendo a arma apontada para Jason, Juan procurou proteger os olhos do ofuscamento de dois faróis de luz alta. Um segundo mais tarde, ouviu-se o ruído de portas de carro se abrindo, seguido do som sinistro de armas de grosso calibre sendo engatilhadas. Juan recuou alguns passos, como um animal encurralado.

— Calma aí, Díaz — falou uma voz, desconhecida para

Jason. Era uma voz rouca e tinha o sotaque da zona sul de Boston. — Não faça nenhuma bobagem. Não queremos pro¬blema com você ou com Miami. Queremos apenas que vá pa¬ra o seu carro, numa boa, com calma, e se mande. Combinado? Juan balançou a cabeça afirmativamente. Com a mão es¬querda ainda tentava inutilmente proteger seus olhos da luz.

—  Pois agora ande — ordenou a voz.

Depois de dar dois ou três passos vacilantes para trás, Juan virou-se e apressou-se em direção ao seu carro. Ligou o mo¬tor, engrenou a primeira e saiu rugindo pela alameda.

Jason rolou de borco, barriga para baixo. Assim que Juan desapareceu, Carol Donner saiu do círculo de luz e se pôs de joelhos diante de Jason.

— Meu Deus, você está ferido! — Havia uma grande mancha de sangue na coxa de Jason.

— Acho que sim — falou Jason vagamente. Tanta coisa tinha acontecido tão rapidamente. — Mas não dói demais — acrescentou ele.

Um outro vulto emergiu do clarão dos faróis; Bruno apa-receu segurando uma escopeta Winchester semi-automática.

— Oh, não! — exclamou Jason, tentando sentar-se.

— Não se preocupe — disse Carol. — Ele agora sabe que você é um amigo.

Nesse momento, Shirley apareceu junto à escada da sua casa. Tinha as roupas em desalinho e os cabelos desgrenhados como os de um roqueiro punk. Num segundo, ela avaliou o que se passava. Recuou para dentro e bateu com a porta. Ouviu-se o ruído de fechaduras sendo trancadas.

—  Temos que levá-lo a um hospital — disse Carol, apon¬tando para o médico.

Apareceu um segundo halterofilista. Agindo com caute-la, levantaram Jason.

—  Não dá para acreditar — falou ele.

Viu-se carregado para a parte de trás do clarão dos fa-róis. Verificou que o veículo era uma limusine Lincoln bran¬ca com uma antena de TV em forma de V na parte de trás. Os dois atletas ajeitaram-no cuidadosamente no banco trasei¬ro, onde aguardava um homem de óculos escuros, cabelos esmeradamente penteados para trás, um cigarro ainda apagado na boca. Era Arthur Koehler, o patrão de Carol. Carol en¬trou após Jason e apresentou-o a Arthur. Os dois homens musculosos instalaram-se nos assentos dianteiros, um deles ligando o motor da limusine.

— Também estou contente por encontrar vocês dois — disse Jason. — Mas, pelo amor de Deus, o que foi que os trouxe aqui? — Jason encolheu-se quando o carro deu um solavan¬co ao sair da alameda.

—  Foi a sua voz — explicou Carol. — Na última vez que você telefonou, percebi que estava em dificuldades novamente.

— Mas como soube que eu estava aqui em Brookline?

— Bruno o seguiu — disse Carol. — Depois que você te¬lefonou, liguei para este meu estimado patrão aqui. — Carol deu um tapinha na perna de Arthur. Ele protestou amisto-samente:

— Ora, pare com isso. — Fora esta a voz que havia ater¬rorizado Juan Díaz.

— Eu perguntei a Arthur se ele podia dar proteção a vo-cê, e ele disse que sim, com uma condição: que eu continuas-se dançando pelo menos mais dois meses ou até que ele encontrasse uma substituta.

—  Pois é, mas ela me fez diminuir o prazo para um mês — queixou-se Arthur.

— Estou agradecido — disse Jason. — Você vai mesmo parar de dançar, Carol?

—  Essa aí é uma pirralha tinhosa — falou Arthur.

—  Estou surpreso — disse Jason. — Não pensei que ga¬rotas como você pudessem parar quando bem entendessem.

—  O que está querendo dizer? — perguntou Carol, in-dignada.

— Eu sei o que é, querida, deixe-me explicar — disse Arthur, rindo, e inclinou-se para a frente, devolvendo a Ca¬rol o tapinha na perna. — Ele pensa que você é uma pira¬nha das brabas. — Arthur caiu num acesso de riso que ter¬minou por lhe provocar tosse. Carol teve de dar-lhe várias palmadas nas costas até que o espasmo fosse controlado. — Eu costumava ter acessos bem piores sempre que acendia es¬te troço — disse Arthur, exibindo o seu cigarro. Então ele olhou para Jason na meia-luz do carro. — Você pensa que eu a teria deixado ir a Seattle se ela fosse uma prostituta? Tenha juízo, homem.

—  Desculpe — disse Jason. — Eu só pensei...

— Você pensou que, por dançar na boate, eu era uma piranha! — disse Carol, um tanto menos indignada. — Bom, suponho que não seja algo inteiramente desapropriado. Vá-rias delas são mesmo. Mas a maioria não. Para mim, foi uma grande oportunidade. Meu nome de família não é Donner. É Kikonen. Somos finlandeses e sempre temos tido uma atitude mais sadia do que os norte-americanos em relação à nudez.

— E ela é filha da irmã de minha esposa — disse Arthur. — Por isso eu lhe dei emprego.

— Vocês são parentes? — perguntou Jason, surpreso.

— Não gostamos de admitir isso — disse Arthur, come-çando a rir novamente.

— Ora, deixe disso — falou Carol. Mas Arthur continuou, dizendo:

— Nós detestamos a idéia de que alguém da nossa gente possa ir para Harvard. Isto arranha a nossa reputação.

— Você vai para Harvard? — perguntou Jason, virando-se para Carol.

— Para fazer o meu doutorado. A dança pagará os meus estudos.

— É claro, eu devia saber que Alvin não iria nunca viver com uma simples bailarina de topless — disse Jason. — De qualquer modo, agradeço a vocês dois. Só Deus sabe o que teria acontecido se vocês não tivessem chegado. Sei que a po¬lícia vai tomar conta de Shirley Montgomery, mas eu preferi-ria que não tivessem deixado Juan ir embora.

— Não se preocupe — disse Arthur, fazendo um gesto com o cigarro. — Carol me contou o que aconteceu em Seat-tle. Ele não vai aparecer por muito tempo. Mas não quero pro-blemas com o meu pessoal em Miami. Vamos tratar do caso Juan através dos canais competentes, mas também posso lhe dar informações capazes de pôr a polícia de Miami no encal¬ço desse camarada. Eles terão contra ele provas suficientes para tirá-lo de circulação. Pode crer em mim.

Jason olhou para Carol.

—  Não sei como posso lhe retribuir.

—  Eu tenho algumas idéias — falou ela, num tom brin-calhão.

Arthur teve outro acesso de riso. Quando ele, por fim, conseguiu controlar-se, Bruno baixou o vidro do compartimento dianteiro.

— Você aí, cara — chamou ele, com um sorriso disfar-çado. — Para onde quer ser levado? Emergência do GHP?

— Pelo amor de Deus, não — disse Jason. — Por ora estou um pouco desanimado com essa história de planos de assistência médica. Levem-me ao Mass General.

Epílogo

JASON NUNCA TINHA TIDO problemas de saúde, como se diz, mas agora estava adorando tê-los. Após uma cirurgia por causa do ferimento na perna, ficou hospitalizado por três dias. A dor havia diminuído significativamente; a equipe de enferma¬gem do Mass General era de uma atenção e competência ex¬traordinárias. Algumas das enfermeiras ainda se lembravam de Jason como médico residente.

Mas o melhor da hospitalização era que Carol passava a maior parte de cada dia ao seu lado; lendo para ele em voz alta, deliciando-o com histórias engraçadas, ou simplesmente sentada, em silêncio, fazendo companhia.

— Quando você estiver melhor — disse ela, no segundo dia, enquanto arrumava as flores que tinham sido enviadas por Claudia e Sally —, acho que deveremos voltar a Salmon Inn.

— Mas, afinal de contas, para quê? — indagou Jason. Depois do que haviam passado, ele não podia imaginar-se com vontade de revisitar aquele lugar.

— Eu gostaria de experimentar de novo a Cachoeira do Diabo — disse Carol, animada. — Mas, desta vez, à luz do dia.

— Você está brincando!

— De verdade. Aposto como aquilo lá é um barato quan¬do há sol.

Uma tosse discreta fez com que ambos voltassem a cabe¬ça para a porta. O detetive Curran, com seu corpanzil desa¬jeitado, parecia estar visivelmente fora de lugar no hospital. Com as mãos enormes segurava um chapéu impermeável de cor cáqui, tão amarfanhado que parecia ter sido amassado por um caminhão.

— Espero não estar incomodando o senhor, Dr. Howard — falou ele, com uma polidez incaracterística.

Jason teve a impressão de que Curran estava tão intimi¬dado pelo hospital quanto ele próprio se sentira pela central de polícia.

— De maneira nenhuma — disse Jason, esforçando-se para sentar-se no leito. — Entre. Sente-se.

Carol puxou uma cadeira de perto da parede e colocou-a junto ao leito. Curran desabou o corpo enorme na cadeira, sempre segurando o chapéu.

—  Como vai a perna?

—  Bem — disse Jason. — O ferimento foi mais nos mús¬culos. Não vai ser um problema, de modo nenhum.

—  É bom saber.

— Um bombom? — perguntou Carol, estendendo-lhe uma caixa de chocolates que as secretárias do GHP haviam mandado.

Curran examinou-os cuidadosamente, escolheu um de ce¬reja coberto de chocolate, abriu-o e colocou-o inteiro na bo-ca. Ao engolir, falou:

—  Achei que o senhor gostaria de saber como está indo o caso.

—  Naturalmente, claro — disse Jason. Carol deu a vol-ta no leito, foi para o outro lado e sentou-se na beirada do colchão.

— Antes de mais nada, eles pegaram Juan em Miami. A ficha policial dele é coisa de mais de um quilômetro. Você sabe. Ele é um desses presentes de Castro para a América. Va¬mos tentar fazer com que extraditem esse camarada para Massachusetts, por causa dos assassinatos de Brennquivist e Lund, mas vai ser difícil. Parece que quatro ou cinco outros esta¬dos, inclusive a Flórida, estão procurando esse pilantra, por crimes parecidos.

— Não posso dizer que lamento muito por ele — disse Jason.

— Esse cara é um psicopata — concordou Curran.

— E o GHP? — perguntou Jason. — O senhor conseguiu provar que o fator de liberação do gene da morte foi in¬troduzido nas gotas oculares utilizadas pelo setor de oftalmologia?

— Sobre isso estamos trabalhando em estreita colabora¬ção com a Promotoria Pública — disse Curran. — Isso ainda vai dar o que falar.

— Em que medida o senhor acha que a coisa vai vir a público?

— Por agora, não sabemos com certeza. Alguma coisa vai aparecer. A Hartford School está fechada, e os pais da-quelas crianças não são cegos. Além disso, conforme a Pro-motoria Pública está mostrando, há muitas famílias locais entrando com processos judiciais de milhões de dólares con-tra o GHP. Shirley e a equipe dela estão com os dias contados.

— Shirley... — disse Jason, pensativo. — Sabe, houve um tempo, antes de Carol, em que eu quase me envolvi com essa mulher.

Carol, rindo, mostrou um punho fechado na direção de Jason.

— Acho que lhe devo um pedido de desculpas, doutor — falou Curran. — No começo, achei que o senhor não pas-sava de um chato. Mas agora sou obrigado a reconhecer que desbaratou a conspiração mais perigosa de que já ouvi falar.

— Foi principalmente sorte — disse Jason. — Se eu não tivesse estado com Hayes naquela noite em que ele morreu, nós, médicos, teríamos pensado que estávamos às voltas com uma nova epidemia.

— Esse camarada, o Hayes, deve ter sido muito inteli-gente — disse Curran.

—  Um gênio — disse Carol.

— Vocês sabem o que mais me deixa maluco no caso? — falou Curran. — Até o fim, Hayes pensava estar trabalhan¬do numa descoberta para ajudar a humanidade. Provavelmente sonhava em ser um herói, como Salk. Prêmio Nobel, essas coi¬sas todas. Salvar o mundo. Não sou cientista, mas me parece que toda essa área de pesquisa de Hayes é assustadora demais. Sabem o que estou querendo dizer?

—  Sei exatamente o que quer dizer — disse Jason. — A ciência médica sempre supôs que suas pesquisas haveriam de salvar vidas e diminuir o sofrimento. Mas agora ela tem um potencial terrível. As coisas podem ir tanto numa direção co¬mo noutra.

— Pelo que eu entendo — disse Curran —, Hayes desco¬briu uma substância que faz as pessoas envelhecerem e mor¬rerem em algumas poucas semanas, e ele nem estava procu¬rando esse efeito. Isso me faz pensar que vocês, os intelectuais cientistas, estão fora de controle. Estou enganado?

— Está certo — disse Jason. — Talvez estejamos fican-do espertos demais para nosso bem. É como comer do fruto proibido de novo.

— Sim, e vamos ser chutados do paraíso, aí é que está — acrescentou Curran. — Por falar nisso, o governo não tem como ficar de olho em sujeitos como Hayes?

— O governo não tem um controle muito bom desse ti-po de coisa — explicou Jason. — Muitos conflitos de interes-ses. Além do mais, os médicos, e os leigos igualmente, tendem a acreditar que toda pesquisa da medicina é inerentemente boa.

— Maravilha! — rosnou Curran. — É como um carro dis¬parado a 160 quilômetros por hora na estrada e sem motorista.

— Essa é a melhor analogia que eu já ouvi — disse Jason.

— Pois é isso. — O detetive encolheu seus enormes om¬bros. — Pelo menos com o GHP nós podemos lidar. Em bre¬ve serão apresentadas acusações formais. Naturalmente, a turma toda está em liberdade mediante fiança. A coisa está sendo toda investigada, e os cabeças do GHP estão agora apu¬nhalando uns aos outros pelas costas e tentando se confessar culpados para escapar de acusações mais graves. Parece que o nosso amigo Hayes inicialmente abordou um certo sujeito de nome Ingelbrook.

— Ingelnook. É um dos vice-presidentes do GHP — disse Jason. — Parece-me que ele trata das finanças.

— Deve ser — disse Curran. — Aparentemente Hayes tentava obter capital inicial para fundar uma empresa.

— Eu sei — disse Jason.

O detetive lançou um olhar duro para o médico.

— O senhor sabia, então? E como foi que ficou saben-do disso, Dr. Howard?

—  Isso não tem importância. Continue.

—  Seja como for — falou Curran —, Hayes deve ter con¬tado a Ingelnook que estava para desenvolver algum tipo de elixir da juventude.

— Esse tal elixir teria sido um anticorpo contra o fator de liberação do hormônio da morte — disse Jason.

— Espere um momento. — Talvez o senhor é que deves¬se estar me contando essa história, e não eu ao senhor.

— Desculpe — disse Jason. — Finalmente isso tudo faz sentido para mim. Por favor, continue.

—  Ingelnook deve ter gostado mais do hormônio da mor¬te do que do elixir da juventude — continuou Curran. — Du¬rante algum tempo, ele tentou dar tratos à bola para baixar os custos no GHP e mantê-los competitivos. Até agora, a cons¬piração envolve apenas seis pessoas, mas pode haver mais. Elas foram responsáveis pela eliminação de uma série de pacientes que supostamente usariam os serviços médicos numa cota su¬perior à que mereciam. Beleza, não?

— Então mataram esses pacientes — disse Carol, horro¬rizada.

— Bom, tudo era feito de modo a fazer crer que o pro-cesso de envelhecimento e morte era natural — disse Curran.

— Um pretexto para matar. Afinal, todos vamos mor¬rer mesmo — comentou Jason com amargura. E sentiu-se ator-mentado ao lembrar as fisionomias de alguns de seus pacientes recentemente falecidos.

— De qualquer modo, é o fim do GHP — disse Curran. — Sem contar as acusações por crime, as queixas de erro médico e má prática médica já se avolumam. O GHP não tem mais saí¬da. Por isso, acho que o senhor deve estar à procura de emprego.

— Mais ou menos. — Então, olhando para Carol, Ja¬son acrescentou: — Carol está terminando os estudos em psi-cologia clínica. Pensamos em abrir um consultório juntos. Acho que o que eu quero é voltar à clínica particular. Nada de empresas por algum tempo.

— Acho boa essa idéia — falou Curran. — Aí eu poderia mandar consertar minha cabeça e meu coração no mesmo lugar.

—  O senhor pode ser o nosso primeiro paciente.

                                                                                            Robin Cook

 

 

                      

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