Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
MEIA NOITE ou O PRINCÍPIO DO MUNDO
Segunda Parte
Esther nasceu um ano depois, a sete de Março de 1815. Este parto foi ainda mais complicado e deixou sequelas em Francisca, que passou a sofrer de acessos de fúria e de melancolia. Durante quase dois meses, não quis saber se Esther vivia ou morria. Nem lhe podia confiar Graça, visto que já por duas vezes lhe tinha batido num ataque de fúria.
A amiga despreocupada e alegre com quem me casara fora substituída por uma Medeia suja. O cabelo sedoso estava todo emaranhado, como se tivesse sido queimado pelo calor da loucura que a consumia. Contratei uma ama de leite para amamentar Esther e, como me opunha a deixar que um médico purgasse Francisca ou lhe aplicasse as malditas sanguessugas, entreguei‑a aos cuidados de Benjamim. Aquele bom homem aparecia a todas as horas para me ajudar com Francisca e com as crianças. Nos momentos de lucidez da minha mulher, lágrimas de medo e arrependimento rolavam‑lhe pela cara, numa torrente interminável, e eu passava grande parte do meu tempo a tentar sossegá‑la.
‑ Não me abandones ‑ implorou‑me ela uma vez, cravando‑me as unhas com o desespero. ‑ Por favor, John, não conseguiria suportá‑lo!
‑ Nunca te poderia abandonar ‑ respondi‑lhe, mas os meus receios Pelo nosso futuro comprometiam essa promessa.
Pus‑lhe o xaile nos ombros e cantei‑lhe docemente até ela adormecer.
É desnecessário dizer que foi um período horrível para nós ‑ um teste terrível ao nosso amor. Durante um certo tempo, tenho vergonha de o admitir, o meu amor por ela foi substituído pela ansiedade e pelo ressentimento.
Estou certo de que os curativos calmantes de Benjamim acabaram por lhe salvar a vida e, nesse processo, também a sanidade. Pois ela voltou para mim tão rapidamente como tinha partido. Apercebi‑me da mudança na madrugada de uma noite fria de Maio, quando Francisca veio ao meu antigo quarto onde eu estava a tentar acalmar Esther, que chorava tanto que eu receava pela sua saúde.
Quando abri a porta, a minha mulher deu‑me um beijo na cara e estendeu os braços para o bebé. Hesitei, mas Francisca assegurou‑me:
‑ A tua amiga regressou e está tudo bem.
‑ És mesmo tu?
Agarrou‑me na mão e levou‑a aos lábios. Agora é estranho dizer isto, mas, quando nos abraçámos, consegui sentir nela o cheiro da mudança. Esfreguei a cabeça no pescoço dela e depois rebentei em lágrimas, depositando‑lhe Esther nos braços. Depois de termos conversado sobre o que se passara naquelas últimas semanas ‑ pois ela pouco se lembrava do que dissera e fizera ‑, voltei para a nossa cama no quarto dos meus pais e dormi umas boas doze horas.
Tendo passado por este período terrível, achámos que era melhor não termos mais filhos.
A Avó Rosa ainda estava furiosa por causa do casamento e não fez nenhuma tentativa para ver Graça depois de ela ter nascido, mas veio visitar‑nos a nossa casa depois de os problemas de Francisca terem passado para dar o seu primeiro beijo a Esther. Estava quase com oitenta anos de idade, mas mesmo assim insistia em afogar‑se no seu caro perfume francês.
Depois de ter pegado na criança, começou a chorar.
‑ John, não há nenhuma possibilidade de eu recomeçar tudo com as tuas filhas? ‑ sussurrou‑me ela.
Convencido de que os seus sentimentos eram genuínos, dei‑lhe licença para nos visitar sempre que quisesse, embora tivesse obrigado Francisca a jurar que nunca a deixaria sozinha com nenhuma das crianças até ela ter dado provas do seu afecto. Nós os dois iríamos ter oportunidade de observar a minha avó a brincar com as meninas em dúzias de ocasiões durante os anos que se seguiram. E, embora nunca tivesse demonstrado muita paciência ou compreensão, demonstrou‑lhes de facto uma certa ternura dura que Esther, em especial, aprendeu a adorar.
Quando um dia perguntei à minha avó por que é que ela tinha engolido o orgulho e tinha vindo ver Esther, fez girar os olhos como se, mais uma vez, eu a tivesse desapontado com uma pergunta estúpida e respondeu:
‑ Estou velha, John, e já não me resta muito tempo. Tu tens muito mais anos para viver do que eu; por isso, se quiseres, guarda o ressentimento por nós os dois.
Satisfeito por ela não ter perdido o seu humor mordaz, sorri‑lhe com admiração, mas ela limitou‑se a pigarrear e a voltar para junto das crianças.
Creio que nestes primeiros anos o nosso casamento foi bom, embora não sem as suas dificuldades. Eu era jovem e teimoso como uma mula e levei algum tempo a respeitar as opiniões de Francisca, considerando‑as iguais às minhas. Também trabalhava muito com Gilberto na nossa oficina e, de quando em quando, só voltava para casa muito depois de as crianças e de Francisca já estarem deitadas, fazendo com que ela passasse por crises de profunda solidão. Quando eu não era capaz de ler o que lhe ia na alma, ela sentava‑se sozinha, amuada, as mãos a moverem‑se com uma rapidez assustadora nos seus trabalhos de tricô. Eu tinha de lhe implorar por várias vezes até ela pousar o xaile ou o lenço que estava a fazer e dizer‑me o que a estava a perturbar.
Quanto mais arranjávamos coragem para vencer as nossas fragilidades, maior se tornava a nossa felicidade.
Como quem estiver casado há muito tempo pode confirmar, é essencial que uma pessoa se adapte às mudanças do ser amado de tantos em tantos anos e, se quiserem, concordar silenciosamente em voltar a casar com ele.
Uma descoberta bastante espantosa que fiz não muito tempo depois do casamento foi que o gosto de Francisca pelas mantilhas e por vestes da sua própria criação tinha‑a levado a experimentar ‑ sem o meu conhecimento ‑ fazer a sua própria roupa com tecidos de padrões arrojados. No segundo verão a seguir ao nascimento de Esther, altura em que já tinha recuperado a sua figura elegante e gentil, realizou este desejo até então reprimido fazendo dois vestidos com tecidos feitos em Marrocos e na colónia portuguesa de Goa.
Como já disse, eu não tinha conhecimento disso. De facto, Francisca ‑ demonstrando aquela inclinação para o secretismo que eu lhe tinha visto nos olhos mal a conheci ‑ cortava e cosia como uma louca durante as tardes, os tecidos estendidos no chão à sua frente, enquanto eu estava ocupado com a minha olaria e os meus azulejos. Quando, à noite, eu voltava para casa, para junto dela e das crianças, ela tinha já tudo muito arrumado e guardado, a inocência perfeita nos olhos que me davam as boas‑vindas.
Foi apenas por acaso que eu descobri o seu segredo numa sexta‑feira, ao cair da noite, enquanto rebuscava numa das cómodas da roupa dela à procura do xaile vermelho que lhe tinha oferecido quando a conhecera, uma vez que ‑ por um capricho ‑ queria que ela o usasse no nosso jantar de Sabbath com Luna Oliveira e Benjamim. Devia ter‑lhe pedido licença para vasculhar as coisas dela, mas, uma vez que ela já estava em casa de Luna com as meninas, eu estava num dos meus frenesins típicos.
Segurando a lanterna com uma mão, parecendo um assaltante de túmulos, levantei o primeiro vestido e estendi‑o em cima da nossa cama.
‑ O que é que temos aqui? ‑ perguntei para comigo num sussurro, encantado com o mistério.
Tinha mangas de balão e um grande decote redondo e era feito de lã tecida de forma muito apertada ‑ muito suave ao toque ‑, onde havia círculos cor‑de‑rosa e vermelhos entretecidos num fundo castanho. O segundo, um vestido império de mangas compridas, era amarelo‑canário, coberto de borboletas pretas feitas a partir de triângulos recortados a vermelho‑escuro e cor de laranja. De longe, as asas delas pareciam capturar três posições diferentes num único bater de asas. Era espantoso.
Corri até casa de Luna, ofegando como Fanny no último obstáculo das nossas corridas, e insisti que Francisca voltasse para casa comigo.
‑ O que é que se passa? ‑ exclamou a minha mulher, agarrando‑me o braço, muito aflita.
‑ Nada.
‑ Então porque é que temos de...
‑ Vem. Já verás quando lá chegarmos.
Como ela continuasse a protestar, arrastei‑a comigo, como uma criança a levar o pai para o cofre de um tesouro.
Olhando por cima do ombro, enquanto arrastava os pés atrás de mim, disse para Luna:
‑ Voltamos já ‑ pelo menos é o que eu muito sinceramente espero!
‑ Não tenhas medo, não venderei estas meninas a não ser que me ofereçam uma boa maquia ‑ brincou Luna com um sorriso.
Quando chegámos ao nosso quarto, Francisca viu‑se confrontada com a descoberta do seu segredo.
‑ Descobriste‑me ‑ exclamou ela.
Beijei‑lhe as mãos afastando‑lhas dos olhos que estavam fechados com toda a força.
‑ Como a geração espontânea de vestidos é um fenómeno extremamente raro ‑ disse eu ‑, calculo que tenhas sido tu que os fizeste.
Ri‑me com vontade, mas ela recusou‑se a sorrir sequer. Em vez disso, começou a chorar.
‑ Mas, Francisca, o que é que tem de mal?
Pelo meio das suas fungadelas, percebi que ela julgava que eu ia achar que as suas criações eram horrendas e que iria ficar zangado com uma expressão tão exuberante dos seus dotes.
‑ Oh, John ‑ gemeu ela ‑, fazer estes vestidos foi a maior loucura que alguma vez me permiti. Não consigo explicar o que é que me levou a fazê‑los.
Ela interpretou mal o meu espanto e prometeu que nunca iria usar nenhum deles se eu não quisesse.
‑ De facto, o que vou fazer é deitá‑los para a lareira.
‑ Não vais fazer nada disso! ‑ rugi eu.
Lembrando‑me do nosso namoro, tirei duas moedas de cem réis do bolso do colete e meti‑lhas na mão.
‑ Escuta, Francisca, pagar‑te‑ei para que me faças um colete em qualquer tecido que tu escolhas com a condição de ser um espanto para todos os que o virem!
Acariciei‑lhe a face, o que era a minha maneira de a convencer.
‑ São as coisas mais espantosas que já vi.
Pus‑me atrás dela e comecei a desapertar o laço do vestido simples que ela trazia.
‑ Isto só vai levar um minuto ‑ observei eu.
Ela esticou a mão para trás do ombro para me segurar a mão.
‑ Agora não... não temos tempo para isso. Mais tarde, prometo. Mas agora temos o nosso jantar do Sabbath e Benjamim está a chegar a casa de Luna.
Dei‑lhe uma palmada de brincadeira no rabo.
‑ Só quero que vistas um desses vestidos, minha peste. O das borboletas. Por favor, é tão bonito.
‑ Mas vou morrer de vergonha, John.
‑ Disparate. Só nos faz bem envergonharmo‑nos pelo menos uma vez por semana.
Ela refilou.
‑ John, garanto‑te que a filosofia não me ajuda nada neste momento. Morrerei de vergonha quando eles pousarem os olhos escandalizados naquilo que eu fiz.
Apertei‑a com força e depois mordi‑lhe o lóbulo da orelha, fazendo‑a gritar.
‑ Faz isso pelo teu marido ‑ sussurrei‑lhe ao ouvido ‑, que não sente senão ternura por ti.
‑ Não te sentes particularmente terno neste momento ‑ comentou ela.
‑ Isto é apenas a exteriorização das minhas emoções. Garanto‑te que todo o resto de mim é tão suave como uma rosa.
Apertei‑a com mais força e depois rosnei.
Quando Francisca estava vestida, levantei a lanterna quando ela se pôs à frente do espelho para a poder ver bem. Nunca a tinha visto mais encantadora. As borboletas das mangas pareciam prontas a levantar voo.
‑ Confessa ‑ disse‑lhe eu. ‑ Escolheste este padrão para mim. Francisca mordeu o lábio envergonhada e depois fez uma careta.
‑ O Sabbath é sagrado para Luna e Benjamim. Pode ser considerado uma afronta.
‑ Xiu! Achas mesmo que algum Deus que valha alguma coisa se iria ofender com uma mulher que se transformou numa paisagem de asas a esvoaçarem?
Empurrei‑a para a porta, e, como ela continuava a oferecer resistência, levantei‑a nos braços e corri com ela ao colo pelas escadas abaixo, chocando propositadamente com as paredes fazendo com que ela se risse e gritasse. Quando a depositei dentro de casa de Luna, Benjamim já tinha chegado.
O velho boticário inclinou‑se para a frente, com os óculos na ponta do nariz.
‑ Que Deus me abençoe, Francisca! Tu és a união do céu e da terra, minha querida menina.
Luna sobressaltou‑se como se estivesse a lembrar‑se de qualquer coisa há muito perdida.
‑ Foi a Francisca que o fez ‑ anunciei cheio de orgulho.
De repente, Luna rebentou em lágrimas e saiu a correr da sala.
‑ O que é que eu disse? ‑ perguntei.
‑ Sou eu ‑ gemeu Francisca, deixando cair os ombros. ‑ Vou a casa mudar de roupa. Ofendi a Luna.
‑ Não, não, não ‑ disse eu.
Agarrei num castiçal e os três seguimos o barulho dos soluços abafados até à parte de trás da casa. Encontrámos Luna na despensa onde ela guardava a cera para os seus frutos. Estava sentada no chão, com os joelhos encostados ao peito. Benjamim agachou‑se ao lado dela e deu‑lhe um beijo na cabeça.
‑ O que é que tem? ‑ perguntei‑lhe.
‑ É a minha irmã ‑ respondeu ela tristemente. Levei a mão dela aos lábios.
‑ Eu também sinto saudades de Graça ‑ sussurrei‑lhe. ‑ Todos os dias, quando estou a pintar os meus azulejos, penso em vós duas e de como transformaram a minha vida.
Luna apalpou a bainha do vestido de Francisca. ‑ A minha irmã nunca teve oportunidade para te conhecer, minha filha. Ela teria adorado ver‑te neste momento. ‑ Passou os dedos pelo desenho das borboletas. ‑ É tão injusto que ela não tenha chegado a ver‑vos casados. Como ela teria ficado aliviada e feliz por teres encontrado uma rapariga tão inteligente, John. A juventude é incomparavelmente bela, não é verdade, Benjamim? E eles não têm a menor noção disso. Benjamim sorriu sabiamente
Na manhã seguinte, aceitando o desafio que eu lhe fizera, Francisca fez‑me levantar da cama quando eu ainda não estava bem acordado para me tirar as medidas para o meu novo colete, dando‑me palmadas na cabeça sempre que eu bocejava.
No sábado seguinte, ao acordar, descobri o meu presente na almofada dela com um bilhete que dizia: Para o meu adorado John,
Era feito de damasco de um tom de alfazema cintilante. Na parte da frente, ela tinha cosido laboriosamente riscas horizontais de losangos minúsculos em amarelo e cor‑de‑rosa.
Graças a Luna, que apreciava um bom jogo de cartas, esta criação maravilhosa tornou‑se conhecida familiarmente como o meu colete do «Rei de Ouros»
*1. Trocadilho com os significados da palavra diamond que quer dizer, entre outras coisas, losango e, no plural, Ouros (do naipe de cartas). (N. da T.)
e, durante muitos anos, nunca deixei de o vestir no dia dos meus anos, sentindo‑me como se eu próprio fosse um presente quando o tinha vestido.
A partir desse dia, Francisca e eu andávamos constantemente à procura de tecidos invulgares. Depressa descobrimos uma loja em ruínas, nas traseiras de um escritório de uma agência de navegação na Rua dos Ingleses, onde podíamos adquirir tecidos de lã, algodões e sedas da índia, Turquia e Pérsia e até da costa ocidental de África.
Recordo‑me especialmente do vestido que Francisca fez para o baile de Natal na Factory House, o nosso clube britânico, em 1816. Devo acrescentar que ela e eu nos tínhamos abstido de ir a estas reuniões nos anos anteriores por causa das gravidezes dela e do trabalho interminável que envolvia tomar conta de crianças de tenra idade. Esta ocasião ia ser, em certo sentido, o nosso debut como casal ‑ pelo menos, para a comunidade britânica.
Como ela não desejava ofender os convidados mais conservadores, insistiu em escolher um tecido que não fosse demasiado garrido. Acabou por escolher um algodão sedoso de Marrocos, decorado com estrelas de doze pontas pretas, verde‑azeitona e amarelas sobre um fundo azul lá‑pis‑lazúli.
Francisca desenhou um decote fundo e mangas compridas que acabavam em folhos para o vestido, completando‑o com uma extravagante cauda comprida que eu segurava. Os botões pequeninos também eram pretos, tinham o formato de estrelas e tinham sido feitos de azeviche nas fábricas de Bolonha.
Quando ela vestiu este vestido pela primeira vez ‑ o cabelo preto preso no alto da cabeça e um colar de pérolas à volta do pescoço ‑, pediu, como era natural, a minha opinião. As crianças estavam a dormir no quarto delas e eu estava a ler a Edimburgh Revzew, vestindo apenas a minha camisa de noite de linho e as pantufas de lã de cordeiro. Quando me virei na cadeira para olhar para ela, o cachimbo caiu‑me da boca, bateu‑me na perna e caiu no chão. Não foi lá muito divertido por diversas razões, pois, para além de me ter queimado a parte de dentro da coxa, senti‑me totalmente indigno dela. Ali estava eu ‑ absurdamente vestido, quase nu ‑ e, à minha frente, perfilava‑se uma esfinge com cara de mulher e a incomparável plumagem de um pavão. Ela franziu o nariz e riu‑se, colocando as mãos na cintura num gesto muito menineiro de impaciência e eu percebi, num instante tranquilizador, que esta criatura radiosa iria ser sempre a minha Francisca... e a minha amiga mais querida.
Como é evidente, vesti o meu colete do Rei de Ouros para o Baile de Natal, debaixo de um casaco de lapelas largas cinzento‑escuro que a minha mãe me tinha feito anos antes. Talvez nós os dois parecêssemos de facto «indicados para um laguinho de ninfas e borboletas», como eu ouvi uma velha senhora ao pé da entrada comentar para o cavalheiro que a acompanhava, mas não me importei; o desdém que me tinham mostrado, a mim e à minha mãe, depois da morte do meu pai, tinha‑me libertado para sempre da preocupação com este tipo de desprezo. É um momento fantástico quando, finalmente, começamos a apreciar a nossa própria individualidade e agora eu já tinha confiança para o fazer.
Ficámos algum tempo sozinhos, a beber ponche e sentirmo‑nos como animais desprezados, mas apesar disso eu depressa insisti para que dançássemos. Felizmente, os poucos passos que eu sabia eram graciosos e seguros devido aos pacientes ensinamentos da minha mãe. Embora Francisca julgasse que seria capaz de desmaiar ‑ de facto até o podia ter desejado como forma de escapar ao mar de olhares escrutinadores ‑, conduzi‑a durante toda a dança sem que nenhum de nós desse um passo em falso. O primeiro de perto de uma dúzia de cavalheiros que a foram convidar para dançar apresentou‑se como o filho de um comerciante de Manchester de visita ao Porto. Apesar das recusas firmes de Francisca, ele não desistiu. Eu achei a esperança inabalável dos olhos castanhos dele tão comovedora que concordei em interceder em favor dele, dando uma série de beijos lisonjeiros na cara de Francisca. Para evitar mais vergonhas para ela e para mim, Francisca levantou‑se e afastou‑se com o jovem, parecendo levar toda a luz da sala na sua esteira. Todas as outras mulheres pareciam meras sombras ao lado dela. Não havia um único homem ou mulher na sala que conseguisse tirar os olhos dela, embora também seja verdade que muitos deles se mantiveram firmes no seu desprezo.
Não posso honestamente dizer que Francisca foi a mulher mais procurada nessa noite, pois continuámos a ser evitados pela maioria dos convidados e nunca mais voltámos a ser convidados para os bailes da Factory House. Mas não tenho a menor dúvida de que era evidente para toda a gente presente que ela tinha, de longe, o marido mais orgulhoso e admirador.
Benjamim, quando me preparou para o casamento, disse‑me uma vez que, para o amor durar, devíamos amar a pessoa que conhecíamos no presente assim como a que ele ou ela pudessem vir a tornar‑se no futuro. Eu não percebi o que ele queria dizer até ao princípio do Verão de 1819.
Foi um período muito complicado para mim, pois tinha começado a pensar constantemente sobre a injustiça da morte. As noites eram o pior. Deitado ao lado de Francisca, a gratidão que eu sentia por estar com ela levava‑me a pensar na hipótese de morrer sem a ver chegar à velhice e as meninas à idade adulta. Tremendo no escuro, com medo de me enroscar nela, não a fosse acordar, era frequente não conseguir dormir.
Talvez devido à exaustão causada pela insónia, os meus sentimentos começaram a mudar e eu comecei a acreditar que a minha obsessão com a morte era o resultado das imposições que me eram feitas pela minha família: a necessidade de ganhar a vida, de educar as crianças, de encorajar Francisca durante os seus momentos de dúvidas. Acabei por considerar isto como uma ameaça à minha própria vida e a razão do meu estado de espírito mórbido. Perturbado como estava, não conseguia conceber nenhum futuro para o rapaz e o homem que eu fora. Tinham desaparecido. Ou era o que eu pensava. Às vezes, parecia‑me estar a olhar através de uma janela para todas as coisas que nunca iria conseguir fazer nem ver.
Era frequente passar horas sentado na Torre de Vigia a observar as sucessivas fases da Lua, deixando que as pétalas resplandecentes, amarelas e vermelhas, que se infiltravam pelos vitrais restaurados da clarabóia me incidissem no corpo como se me estivessem a camuflar. Todavia, de baixo de toda aquela beleza, sentia‑me estéril ‑ sentia que a minha vida, tal como o luar colorido, não era nada senão uma bela ilusão. A minha sombra no chão parecia a de um homem de palha.
Tentei esconder os meus sentimentos de Francisca ‑ afinal, nenhuma mulher pode reagir bem quando lhe atribuem o papel de carcereira do marido ‑ o que criou um afastamento entre nós. Apesar da dor que isso lhe causava, ela nunca se referiu à minha falta de entusiasmo. Pobre do jovem marido que se esquece que a sua mulher pode não ser muito diferente dele...
Um domingo, depois de ter passado toda a manhã a sonhar acordado com uma vida na companhia dos boximanes nos desertos da África Austral, decidi que devíamos fazer um passeio de burro até às praias na foz do rio, como eu fizera algumas vezes quando era pequeno. Com isso, esperava compensar a minha recente falta de atenção em relação à minha mulher e às minhas filhas.
Como eu já esperava, Francisca mostrou‑se muito céptica logo de início. Com uma careta rabugenta, perguntou:
‑ Tens a certeza de que uma viagem de duas horas em cima de um animal malcheiroso é a forma como queres passar um dia de abençoado descanso? Não preferirias ficar sentado no jardim a ler? ‑ O teu marido está desejoso de aventura ‑ declarei. Agora vejo que uma parte de mim queria que ela falhasse neste teste para ter a prova de que ela me estava a prender. Para minha surpresa, ela concordou e enfiou o vestido mais velho que conseguiu encontrar. Toda de preto, ela parecia exactamente uma jovem viúva, o que não fez nada para melhorar a minha disposição.
‑ O preto não vai deixar ver as nódoas ‑ explicou‑me ela com um sorriso atrevido.
Aluguei os melhores animais que consegui encontrar nuns estábulos ao pé do Parque da Cordoaria. Metemo‑nos ao caminho sem problemas. As duas meninas iam montadas em Lídia, uma burra cor de areia, com uns grandes olhos em forma de amêndoa. Francisca segurava as rédeas de uma burra castanha chamada Filipa.
‑ Acho que estavas coberto de razão ‑ disse‑me ela. ‑ Vai ser um passeio muito agradável.
Afinal, eu não sou maluco, apeteceu‑me gritar‑lhe. Com o meu peso, teria considerado uma crueldade sentar‑me em cima de um daqueles pequenos animais; por isso segui a pé ao lado de Lídia enquanto Graça segurava as rédeas nas mãos pequeninas. Eu também levava a bola de croquete azul de que a menina se tinha tomado de amores ultimamente; recusava‑se a ir para qualquer sítio sem ela.
Infelizmente, o reino animal depressa se voltou contra nós. As moscas, atraídas pelos burros infinitamente pacientes, começaram a esvoaçar à volta das raparigas quando chegámos à margem do rio, onde estava tudo particularmente sujo. Apesar de todas as minhas tentativas para as afastar, Esther começou a protestar e a chorar. Desesperada, Francisca tapou a cara e o peito da menina com a sua mantilha. Graça, não querendo montar sozinha, exprimiu então o seu desacordo com uma chuva de gritos estridentes que teriam conseguido atrair uma tempestade de granizo e rãs se houvesse uma só nuvem no céu de Junho.
Enquanto Francisca confortava Esther, coloquei Graça na sela da mãe para poderem ir juntas. A pobre Filipa começou a acusar o esforço de tanto peso. Lídia olhava atentamente para a frente, com medo de se voltar para trás, não fosse eu mudar de ideias e exigir ocupar o meu lugar de direito às costas dela. E seguimos caminho, comigo a esbracejar para afastar as moscas e a praguejar e Francisca a ficar cada vez mais zangada a cada minuto que passava, um clarão vermelho a arder‑lhe nos olhos que dizia Eu bem te disse.
Ao fim de noventa minutos desta marcha para a perdição, chegámos à minha enseada favorita na foz do rio, onde eu e Francisca nos instalámos como soldados estafados a recuperar de uma batalha perdida. As meninas já estavam bastante satisfeitas nessa altura, visto que o mar estava magnífico e a brisa muito mais fresca, mas nada que eu fizesse conseguia arrancar um sorriso a Francisca. Construí castelos de areia com Esther, cujas mãozinhas rechonchudas abriam buracos e amassavam cheias de alegria e até consegui vencer o meu medo da água durante alguns minutos para levar Graça, que ria de satisfação, para dentro da espuma gelada do final da rebentação. Durante este tempo todo, Francisca recusou dirigir‑me a palavra. Depois de termos comido o nosso piquenique e termos começado a arrumar as nossas coisas, ela disse por fim:
‑ Recuso‑me a voltar a montar esses burros. Tenho o rabo cheio de nódoas negras.
‑ Não os podemos abandonar aqui.
Ela tirou o chapéu e, sacudindo a cabeça, soltou o comprido cabelo preto.
‑ John, fazes o favor de te explicares ‑ disse ela impacientemente.
‑ O que é que queres dizer? ‑ perguntei, fingindo ignorância. Aparentemente, os meus talentos teatrais não tinham melhorado
muito desde a infância. Franzindo o sobrolho, empurrou‑me com tanta força que quase me atirou ao chão.
‑ Diz‑me o que é que se passa contigo! ‑ gritou‑me. Fiquei mudo com o choque, mas depois gritei:
‑ Comigo?! Não se passa nada comigo. És tu ‑ tu é que tens estado a agir como se te tivessem cortado a língua. E agora olha para a forma como te estás a portar!
Odiava a maneira como estava a falar com ela, mas não conseguia controlar‑me.
‑ Podes ter a certeza de que há muito mais nisto do que qualquer silêncio meu ‑ contrapôs ela, uma certeza acusatória na voz.
‑ Pensei que podíamos passar um dia agradável, ter uma aventura, mais nada. Mas, ao que parece, já nada é possível para nós. Nada!
Eu não queria falar tão francamente, mas suponho que a verdade tem vontade própria.
‑ Nada é possível para nós...? ‑ Os grandes olhos escuros faiscaram perigosamente. ‑ O senhor foi longe de mais! Não sairei daqui enquanto não souber exactamente o que provocou o seu mau humor nestas últimas semanas.
Procurei o cachimbo no saco para ganhar tempo.
‑ Não tenhas medo de mim, John. Posso estar zangada, mas continuo a ser tua amiga ‑ disse ela vivamente. ‑ E nunca encontrarás uma amiga mais leal... nunca. Isso posso eu garantir‑te.
‑ Não é isso que ponho em causa ‑ repliquei, a falta de sinceridade a fazer com que a minha voz soasse a falso.
‑ Então o que é?
Vendo‑a vestida com o preto das viúvas, tive uma visão do futuro que eu mais temia.
‑ É o peso... o peso de ser pai, de ter uma família pela qual sou responsável. Há momentos em que simplesmente não consigo respirar. É terrível da minha parte, mas imagino‑me a fugir... para um lugar qualquer... para um sítio qualquer...
Sentia‑me como se tivesse estado a percorrer o deserto africano dos meus sonhos acordados destes últimos meses ‑ a atravessar léguas de areia e de mato só para chegar aqui, a esta pequena enseada com Francisca e as crianças. Estava tão confuso. Parecia‑me que estava em dois sítios ao mesmo tempo. Quando, por fim, a minha mulher olhou para mim, tinha os olhos húmidos.
‑ É só isso, John? O peso de ter uma família? De verdade que é só isso que te tem estado a perturbar todos estes meses?
‑ E já chega, acho eu. Um pai que duvida da sua capacidade para tomar conta da família, que não sabe onde está nem o que está a fazer, que receia que a morte possa chegar para ele a qualquer momento. Sinto‑me como se estivesse completamente perdido.
‑ Nada mais, tens a certeza?
‑ Que mais poderia haver, Francisca? Isto não te chega?
Passou os dedos pelo cabelo e suspirou de alívio, as lágrimas a rolarem‑lhe pela cara abaixo.
‑ Podia haver muito mais, John. Podias ter dado o teu coração a outra pessoa.
Percebi com uma clareza cortante o monstro silencioso que tinha sido. Não tinha pensado nunca no seu bem‑estar.
‑ Oh, meu Deus! Onde é que eu tenho estado? ‑ Beijei‑lhe a testa e as faces num pedido de desculpa. ‑ Francisca, desculpa. É só que eu não consigo compreender como é que um homem pode estar apaixonado e sentir ao mesmo tempo estas coisas que eu sinto. Nunca pensei. Podes perdoar‑me por ter sido tão idiota? Ainda há tantas coisas que eu não compreendo... principalmente, sobre mim.
Limpei‑lhe as lágrimas com os meus polegares, um gesto que despertou a recordação de Meia‑Noite a fazer‑me a mesma coisa. Senti a força dele dentro de mim, bem no fundo de mim, a ressoar na minha barriga.
Nenhum de nós falou durante um bocado. Francisca estudou‑me de perto e depois disse:
‑ Vimos‑te de longe e estamos cheios de fome.
‑ O quê... o que é que disseste? ‑ gaguejei espantado.
‑ Vimos‑te de longe, John, e estamos a morrer de fome.
‑ Por que é que dizes isso? Como é que sabias que eu estava a pensar nele?
‑ John ‑ explicou ela ‑, quando te estás a lembrar de Meia‑Noite, tens uma determinada expressão... como se estivesses a olhar para longe, para um horizonte a escurecer. Quando o vês lá, os teus olhos abrem‑se muito, talvez em resposta à grande luz que há nele e de que me tens falado sempre. Pensei que ouvires a saudação dele agora te poderia tranquilizar, provando‑te que não te quero mal. Queria fazer‑te lembrar que eu não sou assim tão diferente dele. O nosso afecto por ti faz com que sejamos, em certo sentido, quase irmão e irmã.
Percebi que eu e ela estávamos a ficar ainda mais próximos do que antes. Pareceu‑me então que era precisamente a essa proximidade de espírito que eu andava a resistir ultimamente, talvez com medo de que fosse uma traição a Meia‑Noite, Daniel e Violeta... a todo o meu passado.
‑ John ‑ disse‑me ela ‑, compreendo‑te melhor do que julgas. Estás a ver, partilho alguns dos teus sentimentos. O espírito de uma mulher não pode sofrer de tensão? Uma mãe não pode interrogar‑se sobre o valor da forma como passa os seus dias? Sou assim tão diferente de ti, John Stewart? ‑ Soltou uma gargalhada ao ver a minha surpresa. ‑ Também há alturas em que não consigo respirar, sabes, como se tu e elas ‑ apontou para as miúdas que estavam a desenhar na areia com uns pauzinhos ‑ fossem um espartilho cada vez mais apertado. ‑ Também sentes essas coisas?
Soltou um suspiro, visivelmente irritada por tal ideia nunca me ter ocorrido.
‑John, tenho duas crianças pequenas que precisam de mim a todos os instantes e um marido por quem o meu amor não conhece limites, mas que podia andar à procura de consolo nos braços de outra. E eu não podia dizer nada com medo de o afastar para sempre de mim. Pensa na ansiedade que senti.
Voltei a abraçá‑la e beijei‑a com uma intensidade desesperada. No nosso ardor renovado, reconhecia tudo o que lhe tinha estado a tirar, tudo o que eu não tinha feito por ela.
‑ Perdoa‑me ‑ disse‑lhe. ‑ Não sou tão forte como pensava e tenho medo de te faltar quando mais precisares de mim.
Era um medo em que nunca tinha pensado antes, mas agora compreendia que sempre existira em mim desde a morte do meu pai. Nestes anos mais recentes, tenho reflectido longamente sobre este período da minha vida e cheguei à conclusão de que o legado da infelicidade dos meus pais me tinha finalmente apanhado... e me aterrorizava.
Expliquei tudo a Francisca, procurando desesperadamente as palavras certas, sugerindo hesitantemente que podíamos acabar por sofrer o mesmo destino que o meu pai e a minha mãe. Afinal, eles tinham‑se amado como crianças felizes e tinham acabado como estranhos. De certeza que não eram diferentes de Francisca e de mim e, no entanto, a sua amizade tinha‑se desfeito em recriminações e desgostos.
‑ O que é que nos pode impedir de nos tornarmos como eles? ‑ perguntei‑lhe.
‑ John, não sei se o amor irá continuar connosco durante toda a nossa vida, embora espere e reze para que isso aconteça. Por isso, tudo o que eu posso esperar de ti e tu de mim é honestidade. Daquilo que me contaste dos teus queridos pais, parece que isso era uma qualidade que por vezes faltava no casamento deles. Desculpa‑me se te magoa ouvires isto.
‑ Francisca ‑ disse eu com um suspiro ‑, não é assim tão simples. Pode acontecer‑nos qualquer coisa, mesmo que sejamos honestos um com o outro. Não podemos saber que planos o mundo tem para nós.
‑ Sim, isso é verdade, John. Mas, uma vez que não podemos conhecer esses planos, só temos a nossa fé um no outro onde nos apoiar. John, aquilo que eu acho que precisas de saber é isto... ‑ Agarrou numa mão‑cheia de areia. ‑ Irei contigo para onde quer que queiras ir. E ajudar‑te‑ei a realizar o que quer que queiras. Ou ... ‑ Fez uma pausa. ‑ Ou ficarei para trás.
Enquanto me salpicava os dedos dos pés com a areia quente, repetiu uma coisa que eu lhe tinha escrito uma vez numa carta:
‑ Só te suplico que não subas tão alto que eu te perca de vista. Isto não é pedir demasiado, pois não?
‑ Não, é mais do que justo ‑ concordei eu, sorrindo o melhor que conseguia para esconder como me sentia comovido.
Naquela altura, as crianças, apercebendo‑se de que se estava a passar qualquer coisa, observavam‑nos desconfiadas. Quando vi a cara preocupada de Graça, tapei a cara com as mãos para que nenhuma das meninas visse as minhas lágrimas.
Francisca deu‑me um beijo na cara, dizendo a Graça e a Esther:
‑ Está tudo bem. O vosso pai e a vossa mãe estão bem. Estão apenas apaixonados e as pessoas que gostam muito uma da outra às vezes ficam um bocado malucas.
Com as raparigas a exigirem a nossa atenção, não nos podíamos embrenhar na manta e fazer amor como desejávamos. Mas talvez não fosse realmente disso que precisávamos naquele momento. De facto, foi muito tranquilizador e confortante para os quatro ficarmos sentados juntos a conversar do oceano e de outras coisas para além das nossas próprias vidas.
Fomos buscar água para Lídia e Filipa e atámo‑las a uma árvore ‑ mais tarde, eu iria pagar ao dono delas para as ir buscar. Quando nos dirigimos para casa, peguei em Graça ao colo. Ela adormeceu imediatamente, com a cabeça no meu ombro e a bola de croquete em segurança, dentro do meu saco. Francisca transportava Esther, que levava uma conchinha branca e estava disposta a fazer todas as perguntas a respeito dela de que se conseguisse lembrar.
Quando, por fim, chegámos a casa, completamente exaustos, Francisca disse‑me:
‑ John, fica a saber isto: se quiseres roubar todos os pintassilgos, gaios e carriças ainda presos no mercado dos pássaros do Porto, eu ajudo‑te. Planeia todas as escapadas que quiseres ‑ comigo ou sem mim. Amar‑te‑ei sempre, tornes‑te tu no que te tornares e sejam quais forem os milagres que possas fazer.
Gilberto e eu éramos agora sócios. Eu já perdera há muito a esperança de vender obras baseadas em desenhos de Goya ou nas minhas invenções fantasiosas. Os bons cidadãos do Porto queriam azulejos nos estilos antigos: representações de santos e paisagens idílicas. Provavelmente, os Portugueses ficarão sempre contentes por terem o Santo António ou uma vaca nas paredes, para eles tanto lhes faz.
Para Francisca, criei lambris de azulejos com desenhos da minha autoria e forrei a parede que levava ao jardim com cenas do Êxodo. Todos os papéis eram representados por animais, incluindo o de Moisés, que era um leão com olhos vitrificados em prata e negro. Estou convencido que Meia‑Noite teria admirado a minha obra, embora a maior parte das nossas visitas a considerassem completamente obscena.
Eu estava sempre a fazer experiências com cores e pincéis e nunca me cansava de pintar narrativas para a minha família baseadas nas histórias da Tora e nos contos de animais de Meia‑Noite.
No quarto das crianças, colei azulejos com quimeras, dragões e esfinges em todas as paredes. Quando elas eram pequeninas, fingiam que agarravam estas criaturas com as mãos, que as abanavam e depois, abrindo os dedos, que deixavam estes animais alados fugir. Ficavam tontas de tanto rirem.
As crianças mostraram ter personalidades muito diferentes. Esther, a mais nova, era como Daniel ‑ vivia sempre à beira do perigo e não queria que fosse de outra maneira. Quando corria, fazia‑o com um total abandono, o espesso cabelo castanho‑avermelhado a esvoaçar atrás dela. Era feita de coisas vivas ‑ de borboletas, rebentos, ramos e campainhas. O espírito dela era uma fuga. Conseguia deixar‑nos exaustos sentando‑se no nosso colo a pedir isto e aquilo. Não, não posso ler‑te esta história pela quinta vez esta noite... Não, já está escuro e não podemos dar um passeio a pé até ao rio... Poderíamos ser levados a pensar que era caprichosa, mas o tempo mostrou que ela mantinha muitos dos seus pensamentos secretos, tal como Francisca. E, como a minha mãe, era dotada Para a música, o que dava à sua vida interior um escape criativo.
Comprei‑lhe um violino e, com algumas lições de um professor da cidade, aos seis anos já conseguia tocar melodias simples do Livro de Canções de Anna Magdalena Bach.
Graça era reservada e pensativa. Abençoada com os olhos escuros e sábios da mãe, observava as pessoas com toda a atenção. Ficava frequentemente desapontada por a vida não ser como ela teria querido ‑ por o tesouro secreto que procurava lhe escapar. Ler‑lhe e consolá‑la eram, de facto, assuntos muito sérios. Por isso, uma das minhas maiores alegrias era fazê‑la rir. Muitas vezes, à luz de uma simples vela na mesinha‑de‑cabeceira, ela estudava os mapas que eu lhe descobria na livraria do Senhor David como se eles tivessem a solução para os mistérios da vida. Eu previa que a nossa cidade provinciana na ponta da Europa iria ser demasiado pequena para ela quando chegasse à idade adulta.
Às vezes, à noite, eu lia a Tora às duas meninas, o que enchia Graça de satisfação, mas fazia com que Esther adormecesse logo ‑ coisa que nem sempre era fácil e, por isso, esta leitura tinha uma finalidade dupla.
Depois da nossa conversa na praia, as coisas entre mim e Francisca tornaram‑se fáceis e calmas. Nós os quatro arrancávamos as ervas daninhas dos nossos canteiros, podávamos as roseiras, sentávamo‑nos de pernas cruzadas em cima da cama a jogar cartas e íamos até ao rio para vermos a chegada e a partida dos navios. Plantámos quatro árvores de fruto oferecidas pelo Avô Egídio em cada canto do nosso jardim, no sítio onde antes Meia‑Noite tivera as suas plantas medicinais: um pessegueiro, um limoeiro, uma laranjeira e um marmeleiro.
Francisca continuava a tricotar as suas criações espantosas, vendendo algumas das mais discretas numa loja de roupa na Rua das Flores. Também fazia vestidos e xailes para ela e para as raparigas e coletes e fatos para mim ‑ o que fazia que fôssemos o escândalo da vizinhança.
Eu falava sempre em inglês com as minhas filhas, pois queria dar‑lhes essa vantagem na vida. Tal como eu, quando tinham cinco ou seis anos, elas compreendiam as duas línguas sem dificuldade.
Uma vez, quando as raparigas tinham seis e sete anos respectivamente, levámo‑las a Londres durante quinze dias, entregámo‑las à minha mãe e à Tia Fiona e escapámo‑nos para Amesterdão, onde o meu pai tinha querido levar‑me e onde há muito eu queria ver a sinagoga. A harmonia da madeira e do vidro e o seu silêncio simples foram emocionantes para ambos e eu fiquei atónito por encontrar tantos homens e mulheres com quem podíamos falar português, embora as suas famílias não tivessem voltado à nossa pátria há mais de dois séculos!
A nossa família era uma família feliz, diria eu, mas, mais do que isso, eu entendia‑a como uma viagem metafórica feita por nós os quatro, com outros viajantes adicionais ‑ como a minha mãe, Benjamim, Luna, a Tia Beatriz e até a Avó Rosa ‑ que eram bem‑vindos sempre que nos queriam acompanhar. Como é evidente, continuava a pensar frequentemente em Daniel, Violeta e Meia‑Noite, por vezes com tristeza e culpa. Desafiando radiosamente a distância e a morte, também eles nos acompanhavam clandestinamente na nossa viagem ‑ talvez por tanto deles continuar a viver dentro de mim.
Durante os primeiros anos do meu casamento, não soube mais nada sobre a morte de Meia‑Noite e o desaparecimento do amor entre os meus pais. Curiosamente, uma dúvida permanente e estranha persistia dentro de mim em relação à morte do meu pai, uma vez que eu nunca tinha visto o seu corpo depois de morto. Em muitos sonhos, encontrava‑o no meio de multidões ‑ no mercado da Praça Nova do Porto, no Hyde Park de Londres, na sinagoga de Amesterdão. Estava vivo e tinha‑se afastado da nossa família por acreditar que já tinha causado sofrimento suficiente. Por vezes, quando acordava, a dor de ele não conhecer nem Francisca nem as minhas filhas apertava‑me de tal maneira o peito que tinha de saltar da cama para conseguir respirar.
De vez em quando, entregava‑me à esperança louca de que estes sonhos com ele podiam ser verdade ‑ que ele não tinha morrido no Porto, que o sargento Cunha o tinha identificado erradamente. Ou mentido. Nunca falei destas minhas dúvidas a ninguém, a não ser a Francisca.
‑ Para onde é que ele poderia ter ido? ‑ tinha‑me ela perguntado uma noite, sentando‑se na cama.
Eu não sabia responder. Mas tinha uma pergunta melhor:
‑ Irá ele voltar alguma vez?
Bastante cedo no nosso casamento, Francisca e eu arranjámos uma estratégia para enganar a fertilidade fazendo‑a olhar para outro lado quando nos sentíamos particularmente amorosos. Todavia, apesar das nossas muitas precauções, no princípio de Abril de 1822, uma futura criança fazia sentir intensamente a sua presença à minha mulher todas as manhãs.
Lembrando‑me de como ela tinha sofrido depois de Esther nascer, fiquei furioso comigo mesmo por ter permitido que isto acontecesse. No passado, eu tinha escarnecido dos casais que renegavam os prazeres da intimidade, preferindo a abstinência. Mas agora desejava imenso que tivéssemos dado ouvidos à razão.
‑ Muito bem, se calhar devíamos ter duas camas ‑ concordou ela quando eu lhe disse que era melhor passarmos a abster‑nos a partir daquela data.
‑ Tens toda a razão! ‑ declarei eu, sem me aperceber da sua armadilha.
‑ Mas é provável que às vezes me vá sentir muito só ‑ disse ela tristemente. ‑ Importar‑te‑ias se, de vez em quando, eu dormisse ao teu lado?
‑ Não, isso seria aceitável... de vez em quando. Ela ajoelhou‑se ao meu lado.
‑ E virias ter comigo se te sentisses sozinho? Afinal de contas, somos amigos e eu odiaria pensar que estavas sozinho e infeliz.
‑ Sim, claro, eu iria em bicos dos pés para a tua cama.
‑ Ora, em qualquer desses casos ‑ acrescentou ela pensativamente ‑, podia acontecer que eu me encostasse a ti. Por acidente, claro. Sendo a cama tão pequena, estás a compreender? E se o teu pau de bandeira se levantasse ‑ por acidente, é evidente ‑, o que é que aconteceria?
‑ Nessa altura, terias de lutar comigo.
‑ E se eu me esforçasse por perder demasiado depressa... ficarias muito zangado comigo? ‑ perguntou rindo.
Abanando o dedo como a minha mãe, respondi‑lhe: ‑ Muito bem, podes estar satisfeita, mas eu não vou voltar a fazer de Jasão para a tua Medeia. Se essa harpia enfurecida se atrever a voltar a pôr os pés nesta casa, desta vez prendo‑a com uma corrente à nossa cama. Sorrindo, ela pousou a mão no ventre.
‑ Vamos ter outra criança saudável... Agora deixa‑te de conversas e vai buscar mais lenha para a lareira.
Ao longo das semanas seguintes, apesar das minhas reservas, acabei por me resignar a termos mais um bebé, principalmente porque as nossas duas filhas estavam muito entusiasmadas por irem ter um irmãozinho ou uma irmãzinha. As duas escrevinhavam listas de nomes e riam estrondosamente com as piores escolhas possíveis: Adalberto para rapaz e Urraca para rapariga. Vendo a sua alegria, cheguei à conclusão de que a gravidez de Francisca era afinal de contas uma coisa boa.
Foi então que Francisca teve uma hemorragia. Eu estava na oficina e Esther foi a correr buscar‑me. Quando chegámos a casa, Benjamim, a Tia Beatriz e uma parteira da vizinhança já se encontravam à cabeceira de Francisca. Ela tinha parado de sangrar, mas tínhamos perdido a criança.
‑ A culpa é minha ‑ gemeu ela quando lhe beijei as lágrimas para as secar.
‑ Ninguém tem culpa. O que importa é que te ponhas boa depressa. À noite, o seu estado piorou e ela perdeu os sentidos. Nem eu nem o pai dela a conseguíamos acordar. Esther foi outra vez buscar Benjamim. Graças ao seu auxílio, Francisca acordou por algum tempo, mas estava tão fraca que não conseguia manter os olhos abertos.
‑ Estou aqui ‑ disse‑lhe eu. ‑ O que é que te posso ir buscar? Estava muito pálida.
‑ Canta ‑ pediu‑me ela. ‑ Deixa‑me ouvir a tua voz. Não quero ficar aqui deitada no escuro sem a tua voz.
Por isso, cantei para ela; cantei todas as canções portuguesas e escocesas que sabia. Continuei até ao nascer do Sol, quando ela voltou a cair num sono profundo. Quando me faltou a voz, disse poemas de Robert ourns, que são canções mesmo quando recitadas.
A Avó Rosa sentou‑se ao pé de Francisca durante algum tempo, apertando‑lhe uma mão entre as dela como se quisesse voltar a incutir‑lhe força. Ela e o meu sogro tentaram afastar‑me de Francisca para poder comer ou dormir.
Prometeram ficar com ela, mas eu recusei‑me a abandoná‑la. Só pedi chá quente para poder continuar a cantar.
Eu estava convencido de que se me afastasse dela, nem que fosse só por um instante, a perderia para sempre. O meu sogro trouxe‑me o colete do Rei de Ouros, que vesti esperando atrair a vida para dentro dela com toda aquela beleza que ela me oferecera. Benjamim agarrou‑me na mão e murmurou umas orações durante algum tempo, escrevendo inscrições hebraicas secretas na testa dela para a proteger de qualquer mal. As raparigas fizeram turnos para me trazerem chá forte e amargo feito pela Avó Rosa, as caras inquiridoras e assustadas. Numa ocasião, Esther trepou para a cama e deitou‑se ao lado da mãe, sussurrando‑lhe ao ouvido.
‑ Tu és a minha grande e verdadeira amiga ‑ disse eu a Francisca ‑ e não me podes deixar.
Estava convencido de que a conseguiria trazer de novo para mim com a minha devoção.
Algum tempo depois do amanhecer, senti a mão dela estremecer. Tinha deixado de respirar. Ao tentar despertá‑la, descobri mais sangue nos lençóis. Gritei por Benjamim, mas era demasiado tarde.
Esta foi assim a última lição que Francisca me ensinou: que eu, John Zarco, não tinha qualquer poder mágico. Não havia canções de amor suficientemente poderosas para derrotar a morte. Todas as coisas mais importantes estavam fora do nosso controlo.
Ela também foi capaz de me ter ensinado outra coisa: Se existe um Deus, então ele era aquilo a que Benjamim se referia em hebraico como Ein Sof ‑ um Senhor de vastidão imensa, totalmente alheio às nossas preocupações, e, como tinha sido demonstrado, surdo às nossas orações.
Dor...
A minha dor tornou‑se um palácio envolto pela noite eterna, onde tinha à minha disposição cem quartos de desespero, todos eles povoados de visões daquilo que era e daquilo que poderia ter sido. Durante o Verão e o Outono de 1822", e também durante grande parte do ano seguinte, passeei pelos seus frios corredores de pedra, subi as suas escadarias compridas e poli as suas estátuas evocativas. Durante aquelas primeiras e mais terríveis semanas de perda, censurei‑me por a não ter amado o suficiente. Na minha loucura, discursei inflamadamente às minhas filhas sobre o egoísmo do pai, embora elas não fizessem a mínima ideia do que eu queria dizer.
Às vezes, sentava‑me segurando a carta de amor de Joaquim para Lúcia que tinha caído das Fábulas da Raposa quando eu tinha sete anos, desejando ter escrito a Francisca tudo o que sentia por ela.
O meu cabelo crescia sem cuidados e recusava‑me a fazer a barba. Ansiava por voltar a apertá‑la nos braços. Muitas vezes, olhava‑me no espelho e interrogava‑me como um homem tão vazio como eu poderia continuar a avançar sozinho para o futuro.
Lamentava não ter feito mais desenhos dela. Às vezes, já não me conseguia recordar dos seus olhos, nem do contorno das suas mãos esguias. Pensava que enlouqueceria por não poder enterrar o nariz no cabelo dela durante a noite.
Luna Oliveira, a Tia Beatriz e outros vizinhos vieram apresentar as suas condolências e trazer‑nos pão e sopa. A Avó Rosa e muitas outras mulheres, que eu nem sequer conhecia, sentaram‑se à lareira com as meninas e, em sussurros, falaram‑lhes da dor e angústia da maternidade, avisando‑as das obrigações do casamento e da duplicidade dos homens, lamentando que os partos lhes tivessem roubado as formas juvenis.
Estranhos limparam a nossa chaminé e arranjaram a Torre de Vigia.
Judeus clandestinos vieram visitar‑me à loja e falaram‑me do Monte das Oliveiras.
Durante quase um ano, fiz aquilo que devia fazer. Criei jarras, vasos e canecas em número suficiente para conter a água do Douro. Os meus azulejos eram misturados com o meu rancor por aqueles que eram felizes. Cuidei das minhas filhas o melhor que sabia e fi‑las continuar com as lições. Esther recusou‑se a tocar violino durante dois meses e ficou metida na cama até eu ter insistido severamente que se levantasse. Graça causava‑me uma preocupação sem limites com as suas terríveis insónias, doença que tinha, sem dúvida, herdado de mim. Havia alturas em que ela se metamorfoseava num relâmpago, ansiosa por descarregar em cima da irmã e de mim.
Fiz os possíveis para ser compreensivo e as consolar. Passava grande parte dos dias na companhia delas, mas, por vezes, receava estar a ser‑lhes de muito pouca ajuda. Comecei a compreender melhor por que é que a minha mãe se tinha distanciado de mim depois das mortes de Meia‑Noite e do meu pai. Éramos tão parecidos em tantos aspectos, ela e eu, e durante muito tempo eu simplesmente perdi todo o desejo de conversar, não conseguia pensar em nenhum assunto que merecesse a minha atenção, nem sequer ‑ lamento dizê‑lo ‑ a infelicidade das minhas filhas.
A minha mãe mandou‑me longas cartas de encorajamento três vezes por semana durante vários meses. Chegou mesmo a vencer o seu medo das recordações escondidas em todos os cantos da nossa casa para nos fazer uma visita prolongada. Uma vez, depois de meter as meninas na cama, chamou‑me de parte e disse‑me:
‑ Sei que de pouco te servirá dizer‑te isto agora, mas vou dizê‑lo mesmo assim. Tu foste o melhor dos maridos para Francisca e eu tenho a certeza de que ela morreu sem desgostos ‑ sem nada que tivesse ficado por dizer. Creio que não lhe poderias ter dado um presente de despedida melhor do que esse. Quando vos voltardes a encontrar, não terás de pedir perdão por nada. E isso, John, é uma bênção preciosa.
Evidentemente, muita coisa tinha acontecido para lá das fronteiras da nossa cidade provinciana desde o meu casamento com Francisca, incluindo a morte de Napoleão. Mas as vicissitudes da política poucas preocupações nos deram até quase um ano depois do funeral da minha mulher, quando o exército francês atravessou os Pirenéus para entrar na Ibéria e esmagar uma revolta espanhola a favor da reforma liberal.
Durante um período de pesadelos em que eu imaginava estas tropas a avançarem para ocidente e a entrarem no Porto para voltarem a silenciar a nossa cidade com os mosquetes e espadas, recebi uma carta de Nova Iorque. Quando a segurei nas minhas mãos, descobri que a tinta do passado não secara tão completamente como eu julgara. Fechando os olhos, vi uma rapariga solitária com uma touca preta a atirar pedrinhas à minha janela.
Os meus olhos encheram‑se de lágrimas quando vi a letra dela. Como se aquilo fosse um triunfo sobre todos os males, murmurei para comigo: Ela conseguiu chegar à América!
Na realidade, recebi duas cartas de Violeta, tendo a segunda chegado três dias depois, uma vez que me tinha sido enviada ao cuidado da Companhia do Douro e entregue por um dos seus mensageiros. Violeta explicou‑me que tivera o cuidado de me mandar duas, pois não sabia se eu continuava a viver na mesma morada. As cartas eram iguais, excepto numa frase.
Ela não explicava quase nada da forma como chegara a Nova Iorque, dizendo apenas que tinha vivido vários anos em Lisboa e Inglaterra e que depois tinha sido agarrada pela sorte e levada para a América. Estava a viver numa casa perto da ponta sul da ilha de Manhattan. Queria que eu soubesse que no seu pequeno jardim apareciam muitos pássaros coloridos. Um dos mais bonitos era azul e branco e tinha uma pequena crista. Gosto de pensar em ti, em mim e em Daniel a olhar para as mesmas estrelas ao mesmo tempo, as nossas mãos a tocarem o interior da luz delas, escrevia‑me. O endereço era: John Street, n.o 73. Ela dizia que viver numa rua com o meu nome a fazia sempre sorrir.
Quase no fim da carta, contava‑me que muitos anos antes tinha sonhado que Daniel lhe tinha suplicado que me escrevesse. Pedia desculpa por não ter acedido aos desejos dele, mas nessa altura não estava em posição de o poder fazer.
Esperava que eu estivesse bem, mas, como tinha sabido da morte do meu pai, receava que o seu sonho tivesse sido uma premonição desse terrível acontecimento. Desejava felicidades à minha mãe, de quem nunca se esqueceria pelas suas gentilezas para com ela.
Não dava qualquer explicação para o facto de ter sabido da morte do meu pai, nem como tinha descoberto que eu fazia azulejos, nem sequer dizia se sabia da morte de Francisca, mas concluía a carta com uma proposta surpreendente:
Um dia, se nos voltarmos a encontrar, gostaria que fizesses um pequeno painel para a minha casa de Nova Iorque. Talvez pudesse ser sobre as nossas vidas quando éramos crianças. Seria maravilhoso possuir alguma coisa do Porto e desse tempo já tão longínquo. Sempre tua, Violeta.
Na carta mandada para minha casa, acrescentara um pós‑escrito:
Fiquei contentíssima por saber que tens duas filhas e sentir‑me‑ei muito honrada em as conhecer um dia.
Não sabia o que pensar daquilo. Nova Iorque? Era ridículo. Mal me conseguia ver a fazer a viagem até Lisboa, a sessenta léguas para sul.
Como era evidente, estava contente por ela ter conseguido ter uma boa vida ‑ parecia uma bênção tão grande depois de todos os nossos infortúnios. Mas receber as cartas dela foi demasiado para os meus nervos desfeitos. Sozinho, atrás da porta fechada do meu quarto, com medo que as minhas filhas me vissem, solucei até de madrugada.
Em Maio, a luta em Portugal entre as forças a favor das recentes reformas constitucionais e aqueles que desejavam um regresso à monarquia absoluta tinha chegado quase ao ponto da guerra civil. Depois soubemos que tanto o nosso parlamento como a nossa Constituição tinham sido invalidados pelo rei D. João VI e seu filho D. Miguel, comandante‑em‑chefe do exército, tendo‑se seguido centenas de prisões dos seus opositores em todo o país. Estes infelizes prisioneiros eram a favor de D. Pedro, o irmão mais velho de D. Miguel, um reformador liberal.
Nós não sabíamos que agonias estes homens poderiam estar a sofrer, mas os mais velhos de entre nós começaram a cheirar o ar à procura do inesquecível cheiro a carne queimada de que se lembravam da juventude, quando os prisioneiros da Inquisição eram queimados vivos em Lisboa e noutras cidades.
Além disso, com o rei e os seus apoiantes a exigirem a soberania absoluta, muitos de nós estávamos convencidos de que seria inevitável uma invasão francesa, visto que as grandes forças em jogo nesse país iriam querer que a nossa monarquia, recentemente reforçada, tivesse uma atitude amistosa em relação aos seus interesses.
Literalmente de uma noite para a outra, começámos a ter medo de exprimir em público as nossas opiniões sobre qualquer assunto, por muito insignificante que fosse. Eu nunca deixava que uma única palavra inglesa me saísse da boca quando estava na rua. Luna, Benjamim e eu deixámos de celebrar o jantar do Sabbath juntos. Em vez disso, Esther e Graça, à vez, acendiam as velas e eu dizia as orações. Fechávamos as portadas e as cortinas à noite.
Também obriguei as meninas a porem de lado os lenços, xailes e vestidos que a mãe lhes tinha feito e a usarem apenas as roupas mais modestas que os padres preferiam. Como precaução adicional, andavam sempre com os seus terços e sussurravam uma Ave‑Maria mal tinham oportunidade, nem que fosse como resposta a um espirro.
Depois de ter sido avisado por alguns judeus que o meu nome tinha surgido numa conversa a respeito de Marranos que se pensava poderem vir a ser presos, também comecei a confessar‑me todas as semanas e, com uma mistura de desprezo e de divertimento juvenil, inventava histórias de aventuras envolvendo um frequentar destemperado de prostitutas. Um dos padres velhos em quem descarreguei os meus pecados interrogou‑me com grande interesse sobre os pormenores das minhas escapadas, visivelmente assombrado por eu conseguir servir tantas mulheres. Assegurei‑lhe que também não era normal em mim, mas que andava a sentir‑me muito inspirado pelos êxitos do nosso rei contra os reformadores e judeus ignóbeis que ameaçavam as nossas fundações morais!
Dois dias depois da declaração de nulidade da nossa Constituição, presenciei uma reunião tumultuosa de centenas de pessoas na Praça Nova, onde as cruzes e as efígies de santos eram transportadas ao alto como se fossem espadas e escudos. Tanto os liberais como os Marranos foram denegridos como inimigos da nação portuguesa e de Cristo. Eram calúnias que eu não ouvia desde a morte de Lourenço Reis, dezanove anos atrás. Devido a este clima de loucura e perseguição, Benjamim, em particular, vivia cheio de medo, pois era do conhecimento geral que dava lições da Tora a quem as quisesse. Na verdade, a oito de Junho, ele limitou‑se a desaparecer, embora tanto quanto se sabia, nem soldados nem meirinhos tivessem vindo buscá‑lo. Tentei descobrir se ele tinha sido preso, mas as minhas averiguações foram alvo de troça, tanto dos funcionários da prisão como dos da Câmara. Juntamente com outros vizinhos, ajudei a entaipar a casa e a loja dele.
Na noite do seu desaparecimento, sonhei que me transformava numa chama que depois se apagava, ficando reduzida a nada. Durante todo o dia seguinte, não parei de pensar que este pesadelo fora um presságio das coisas que estavam para vir e que as minhas filhas iriam ficar órfãs dentro de pouco tempo.
Três noites depois, quando lia a carta de Violeta, pela que devia ser pelo menos a décima segunda vez, bateram à porta.
‑ Quem é? ‑ perguntou Graça, que estava sentada ao pé de mim a estudar um mapa.
Como não houve resposta, levantei‑me e abri a porta. Era Benjamim, vestido de preto da cabeça aos pés.
As meninas precipitaram‑se para Benjamim, beijando‑o na cara. Ele fingiu que gemia por estar a ser atacado. Tinha os olhos cansados e o cabelo grisalho espetava‑se em todas as direcções. Uma barba branca de vários dias adornava‑lhe o queixo.
‑ Peço desculpa por não te ter podido avisar ‑ disse ele, tirando o estojo dos óculos da algibeira do colete.
‑ Onde é que esteve?
‑ É segredo. Quanto menos souberes, melhor. Examinou‑me atentamente por cima dos óculos. Eu devia estar a sorrir, pois ele perguntou:
‑ O que é que se passa, rapaz?
‑ É só que pensarei sempre em si desta maneira: dois olhos de vidro e dois de mocho!
Ele soltou uma gargalhada. Esther aproximou a cadeira da dele e agarrou‑lhe na mão. Quando Graça lhe perguntou se tinha estado na prisão, replicou:
‑ Felizmente, não. Tenho estado a ajudar a garantir a vitória de Ciro. Mas tenho de voltar dentro de pouco tempo para o meu esconderijo e é melhor não saberem onde estou ou o que é que tenho de fazer para conseguir o meu objectivo.
Ciro foi o antigo governante persa que, depois de conquistar a Babilónia, libertou o povo hebreu, permitindo‑lhe que regressasse à Palestina e reconstruísse o seu templo. Benjamim estava a referir‑se a D. Pedro, o filho mais velho do rei e o paladino das reformas democráticas. Benjamim acreditava que se D. Pedro conquistasse o trono ao seu irmão mais novo D. Miguel, iria iniciar uma Idade de Ouro para Portugal e para os judeus. Dezenas de milhares dos nossos irmãos exilados pela Inquisição, regressariam de Constantinopla, Amesterdão e outras cidades da diáspora.
Durante algum tempo, Benjamim esteve ali sentado a conversar de ninharias com as raparigas, que nos fizeram rabanadas. Quando enchemos os estômagos, elas deram as boas‑noites ao nosso visitante, pois tinha assuntos para tratar com Benjamim que preferia que elas não ouvissem. Antes de as mandar para a cama, ele pediu‑lhes que se sentassem muito quietinhas e depois carregou com as pontas dos dedos nos seus olhos fechados para que pudessem ver as cores interiores que aí residem sempre e, assim, ganharem coragem a partir do universo secreto a que cada uma delas tinha acesso. Pediu‑lhes para que lhe fizessem a mesma coisa. ‑ Agora as nossas paisagens interiores estão unidas ‑ disse‑lhes. Nem vós, nem o vosso pai poderão alguma vez fugir de mim!
E com estas palavras, arreganhou‑lhes os dentes e rosnou, como tinha aprendido com Meia‑Noite.
Quando elas já estavam aninhadas e resguardadas no primeiro andar, contei a Benjamim que tinha recebido uma carta de uma velha amiga.
‑ De quem, meu querido rapaz?
‑ De Violeta, a rapariga cujo tio... cujo tio a magoou tanto.
‑ Lembro‑me bem das orações que rezámos por ela. Onde é que está agora?
‑ Em Nova Iorque, imagine só. Escreveu‑me que também tinha estado em Londres.
‑ Não chores pela morta, nem te consumas com a sua perda. Chora antes por aquela que se foi embora, pois nunca mais voltará, nunca mais verá a terra onde nasceu.
Resolvi arriscar um palpite.
‑ Isaías?
‑ Jeremias ‑ respondeu ele, sacudindo a cabeça.
‑ Seja como for, não é necessário que Jeremias ou outra pessoa qualquer tenha pena de Violeta. Disse‑me que tinha tido sorte e convidou‑me a executar um painel para casa dela. Penso que herdou dinheiro.
‑ E vais?
Encolhi os ombros.
‑ É horrivelmente longe. ‑ Levantei‑me para ir buscar o cachimbo e a bolsa do tabaco à prateleira por cima da lareira. ‑ E revisitar o meu passado é com certeza uma má ideia.
‑ A Virgínia não pode ser muito longe de Nova Iorque, pois não? - perguntou Benjamim.
Envolto numa nuvem de fumo, ri‑me e disse:
‑ Receio ter despedido o Professor Raimundo muito antes de chegar à geografia americana.
Parecendo que estava a revisitar uma recordação distante, olhou para longe e acrescentou:
‑ Meu Deus, Meia‑Noite... ao fim de todos estes anos. ‑ Soltou um suspiro e sacudiu a cabeça. ‑ Isso seria de facto uma coisa espantosa, encontrá‑lo, não seria, meu rapaz?
Julgando que Benjamim estava demasiado cansado para saber o que dizia, respondi:
‑ O meu querido Meia‑Noite morreu há dezassete anos. O único sítio onde agora o poderemos encontrar é nos nossos sonhos.
‑ Morto? Talvez não, John... Mas... Mas o que é que eu disse? O boticário levantou‑se de um salto.
‑ Meu rapaz, perdoa a este velho os seus devaneios. É a minha cabeça. .. Vais ver quando chegares à minha idade. Nem sequer podemos confiar nos nossos próprios pensamentos. É como viver com um impostor.
O seu protesto dramático convenceu‑me de que estava a esconder qualquer coisa.
‑ Dá a ideia que os seus pensamentos não devanearam para um sítio qualquer, mas para alguma coisa que sabe e está a esconder de mim. Diga‑me a que é que se estava a referir ‑ disse eu, com veemência.
‑ Nada, nada, não me estava a referir a nada. Agarrando‑se ao Eclesiastes para se salvar, continuou:
‑ A língua de um tolo é a sua perdição.
‑ Benjamim, não é altura de fazer citações da Tora. É óbvio que não pode ficar aqui durante muito tempo. Ora, diga‑me lá o que é isso da Virginia e de Meia‑Noite. Vai dizer‑me ou não?
‑ John...
Afundou‑se na cadeira e segurou a cabeça com as mãos.
‑ Tenho umas cartas em casa que gostaria de depositar nas tuas mãos, meu rapaz. Perdoa‑me tê‑las escondido tanto tempo de ti, mas foi esse o desejo do teu pai ao morrer.
Levantei‑me de um salto.
‑ Estava com o meu pai quando ele morreu? Levantou os olhos tristemente.
‑ Estávamos todos com James quando ele morreu.
‑ Não percebo. Por favor, Benjamim, fale com clareza.
‑ Vamos buscar as cartas e tudo ficará esclarecido. Anda ‑ disse ele solenemente.
‑ Mas nós entaipámos a sua casa!
‑ Traz um martelo. E traz também uma vela. Isto não pode esperar. Como eu sabia que as raparigas ainda estavam acordadas, subi as escadas a correr para lhes dizer que Benjamim e eu íamos sair para tratar de um assunto rápido.
Quando chegámos a casa dele, arrancámos as tábuas que tapavam uma das janelas. Uma vez lá dentro, tirámos de um cofre de ferro que estava na cave oito cartas, todas elas dirigidas a James Stewart. Estavam atadas com uma fita branca que se tornara amarela com o tempo.
‑ Ao dar‑te estas cartas, estou a esvaziar as minhas algibeiras de pedras salpicadas de sangue ‑ disse‑me Benjamim. ‑ Têm sido um grande peso durante todos estes anos. Meu rapaz, o peso dos segredos ditos é grande e o dos escritos ainda maior.
Ao segurar as cartas que o meu adorado pai tinha lido, senti a sua presença como uma dor tão aguda e tão profunda que receei perder‑me se alguma vez deixasse de a sentir.
Disse a Benjamim que sempre tinha sentido que a morte de meu pai, mais do que qualquer outra, fora um erro do destino. Confessei que poderia ter sido um homem muito melhor se ele tivesse estado ao meu lado durante todos estes anos.
‑ James morreu ‑ replicou Benjamim ‑, mas o melhor dele continua a residir em ti. Só espero que não me odeies quando leres essas cartas. Deu‑me o braço enquanto voltávamos para casa. Li as cartas na sala, esperando que elas pudessem, finalmente, resolver o enigma do colapso repentino do casamento dos meus pais.
A primeira carta era datada de seis de Outubro de 1806, um mês antes daquela fatídica viagem a Londres do meu pai e de Meia‑Noite. Tinha sido enviada para o Papá de Bristol, Inglaterra, por um Capitão A. J. Morgan:
Caro senhor, agradeço a sua carta de quatro de Setembro, Creio que sei de um local de trabalho que corresponderá à maior parte, senão mesmo a todas as condições razoáveis que referiu. Há, em resumo, um bom e próspero cavalheiro que dá pelo nome de Miller e vive perto do porto de Alexandria, que tive o prazer de encontrar em diversas ocasiões e que ficará, creio eu, muito satisfeito por aceitar um ajudante cuidadoso e obediente. Se me puder dizer na sua próxima carta quando poderemos esperar a entrega da sua propriedade aqui, em Bristol, ou se assim o preferir, nos nossos escritórios em Londres, terei o maior prazer em executar o nosso plano como foi acordado previamente.
A carta seguinte, do mesmo Capitão Morgan, tinha a data de vinte e sete de Janeiro, 1807, dois meses depois da morte de Meia‑Noite:
De acordo com as suas instruções, entreguei a propriedade nas mãos de Mr. Miller, que ficou muitíssimo satisfeito por recebê‑la. Embora, presentemente, ela não fale, tenho a certeza que a propriedade em breve irá ceder na sua maldade teimosa e se irá mostrar muito útil. Devo acrescentar que Mr. Miller não está demasiado incomodado com este comportamento, por isso não se preocupe sem necessidade. Não é invulgar que estas transacções façam com que as mentes primitivas fiquem desorientadas e indisciplinadas. Contudo, sob o chicote, todas acabam por se mostrar úteis e dóceis, pode ter a certeza.
‑ Benjamim, que propriedade é esta de que o Capitão Morgan está a falar? ‑ perguntei eu, receoso de ouvir o que sabia agora ser a verdade.
‑ Por favor, John, continua a ler. Depois, falamos.
‑ Mas sabe do que é que se trata? Sabe?! ‑ gritei.
‑ Infelizmente, sei ‑ respondeu ele.
Ao que parecia, o meu pai tinha‑se arrependido de ter vendido a sua propriedade a Mr. Miller e, a onze de Maio de 1807, o Capitão escrevia:
Como é evidente, tentarei propor essa transacção a Mr. Miller quando regressar a Alexandria, mas não posso garantir que ele a aceite. O senhor sabia, sem dúvida, que, uma vez que a vendesse, deixava de ter quaisquer direitos sobre a propriedade em questão?
Depois, a 14 de Julho:
Lamento informá‑lo que a propriedade já não está com Mr. Miller. O boticário foi repentinamente chamado para junto de Deus no final de Maio, tendo estado doente uma semana com febre‑amarela. Os filhos, não tendo nenhuma utilidade a dar ao seu homem, venderam‑no a um comerciante da terra. Fiz algumas investigações para descobrir o seu paradeiro actual, mas não obtive resultados. Receio que tenhamos perdido definitivamente o seu rasto. Pode ter sido vendido mais para o sul. Os Estados Unidos são uma nação muito grande e há milhares de negros em todos os cantos, posso garantir‑lhe. Diferenciar um dos outros, mesmo um tão diminuto e com uma tonalidade tão amarelada como o seu, não irá ser fácil, uma vez que a maioria dos americanos não está habituada às diferenças tão subtis nos primitivos a que o senhor tão correctamente se refere.
‑ Benjamim, o meu pai... o meu pai...
Estava a sentir‑me tonto com o pânico, os meus pensamentos rodopiavam em direcção a um crime tão odioso que eu não conseguia acreditar que fosse possível.
‑ Em nome de Deus, o que é que o Papá fez? ‑ gritei.
‑ Prometo contar‑te tudo o que sei, meu rapaz. Mas tens de acabar aquilo que começaste e lê‑las todas.
‑ Os meus pais mentiram‑me durante anos, não mentiram? E Meia‑Noite... Oh, Deus, Meia‑Noite, o que é que lhe aconteceu? Onde é que ele está? Tem de me dizer onde é que ele está. Preciso de saber agora, Benjamim. Onde é que ele está?
‑ Não sei. Mas as últimas cartas falam de para onde é que ele pode ter ido. Vais ver.
Tinha as mãos geladas. Sentia‑me como se todo eu me tivesse transformado em gelo. Peguei na carta seguinte.
Pensa‑se que ele esteja numa das Carolinas, talvez na cidade de Charleston, visto que várias dúzias de negros foram levados para lá para serem vendidos pouco depois da morte inesperada de Mr. Miller, e a sua antiga propriedade podia ter estado entre eles.
A recompensa que oferece é muitíssimo generosa e, se eu conseguir descobrir mais informações sobre o paradeiro dele, pode ficar descansado que não hesitarei em o informar.
‑ Vendido? Mas como é que isso pode ser? Estas cartas ‑ disse eu, levantando‑me ‑, estas malditas cartas devem ser falsificações! É a única explicação possível!
Benjamim abanou a cabeça.
‑ Na América ainda há escravatura. As pessoas da cor de Meia‑Noite vivem na servidão no império de arroz e algodão do Faraó. Moisés deixou‑as ficar para trás.
‑ Mas Meia‑Noite não é um escravo. Ele vivia connosco como um homem livre. O Papá nunca faria... nunca faria uma coisa tão... tão...
Inspirando fundo, Benjamim, disse:
‑ Nunca consegui descobrir Alexandria num mapa, mas julgo que é uma cidade portuária perto de Washington. Foi para aí que o levaram.
‑ Não, não posso acreditar nisso. Tem de haver um terrível engano nisso tudo. Olhe, até eu sei que o comércio de escravos foi abolido em Inglaterra há muitos anos.
‑ Só há duas décadas. Em 1806, quando o teu pai completou esta transacção, o comércio de escravos ainda estava a produzir muita riqueza. Qualquer africano que estivesse a viver na Grã‑Bretanha sem papéis que provassem o seu estatuto de homem livre podia ser raptado, acorrentado e enviado para os mercados americanos.
‑ Não! Está a mentir‑me! O pai não podia ter feito isto! Por que é que me está a esconder a verdade? Houve algum acidente? Benjamim, aconteceu alguma coisa terrível a Meia‑Noite e ao meu pai em Inglaterra?
‑ John, por favor, baixa a voz. As cartas que tens nas mãos contam tudo o que precisas de saber. Elas são... elas são...
Desesperado, Benjamim fechou os olhos e começou a rezar uma oração em hebraico. Passado algum tempo, disse:
‑ Sei que te as devia ter dado há muitos anos, mas tive tanto medo. Tu, Francisca e as meninas eram tão felizes. Disse para comigo: Por que é que tenho de lhes arruinar a vida? Meia‑Noite desapareceu e eu mesmo tentarei encontrá‑lo. Durante vários anos continuei a escrever a várias pessoas em Inglaterra e na América, mas não tive mais sorte do que James. Chegaram mesmo a sugerir‑me que Meia‑Noite era capaz de estar morto. Os escravos africanos... Meu rapaz, a vida deles é breve na América.
A cabeça latejava‑me e uma voz dura estava a dizer‑me que os meus nove anos de felicidade com a minha mulher e as minhas filhas tinham sido uma falsidade. Durante todo esse tempo, Meia‑Noite tinha estado cativo.
‑ Mas o que é que pode ter levado o meu pai a fazer uma coisa dessas? ‑ perguntei. ‑ Não creio que haja alguma coisa que o pudesse ter levado a fazer algo tão mau.
‑ John, isto é muito difícil para mim. Não me compete...
‑ Não ficarei zangado consigo. Diga‑me.
‑ A tua mãe... a tua mãe e Meia‑Noite... A tua mãe...
‑ Desembuche, homem!
‑ John, perdoa‑me, mas parece que a tua mãe e Meia‑Noite... que eles... que eles dormiram na mesma cama como marido e mulher.
Benjamim ainda disse mais coisas, mas eu não ouvi nada. O tempo estava a passar exteriormente a mim. Fechei os olhos e consegui sentir o meu pai e Meia‑Noite ao meu lado.
A presença deles apertava‑me o peito, sufocando‑me. Depois vi Francisca no seu leito de morte ‑ pálida e definhada. Eu estava a cantar‑lhe: Na cidade escarlate, onde eu nasci... Meia‑Noite tinha estado cativo durante todo o tempo em que tínhamos estado a criar as nossas filhas ‑ durante todos os momentos de felicidade. Eu tinha‑o traído com a minha boa sorte.
Teria a minha mulher sido levada por Deus para castigar a minha iniquidade?
Um grito de dor elevou‑se do mais profundo de mim. Eu queria que ele estilhaçasse o telhado da Torre de Vigia, que chamasse os mortos das suas campas ‑ que rasgasse a minha vida em tantas tiras sangrentas que nunca mais fosse possível cosê‑las.
As minhas filhas precipitaram‑se pela escada abaixo, alertadas pelo meu grito medonho. Benjamim acalmou‑as dizendo‑lhes que eu tinha tido uma tontura ao pensar na mãe delas e tinha gritado com o susto.
O meu estômago, habitualmente de confiança, deu uma volta naquele momento, obrigando‑me a pedir uma bacia ‑ que me foi atirada por Graça mesmo a tempo.
Com as suas mãos rápidas, Benjamim escondeu habilmente as cartas debaixo do capote. Só voltei a ter oportunidade de as reler quando as raparigas foram outra vez mandadas para a cama. Quando acabei, tirei o relógio do meu pai do bolso do colete. Era uma e meia da manhã. Eu tinha acabado de passar um limiar invisível. Já não era a pessoa que tinha sido.
‑ Benjamim, imploro‑lhe ‑ disse eu muito calmamente ‑, a razão da traição do meu pai foi a que me disse?
‑ John, a tua mãe e Meia‑Noite... Tenho de voltar a dizer‑te o que o teu pai me contou?
Perscrutei‑lhe a cara à procura de um sinal de traição, mas em vão.
‑ Mas o que me está a dizer é um disparate!
‑ Contudo, foi o que James me contou.
‑ Eu teria sabido. Teria dado por isso.
‑ John, tu não passavas de um garoto. Não podias ver aquilo que te escondiam. ‑ Abanou a cabeça. ‑ Nenhuma criança compreende as atitudes de um coração adulto. Estas coisas não estavam ao teu alcance. E não foste só tu. Eu também não percebi.
‑ Durante quanto tempo é que se presume que eles foram... foram...
‑ O teu pai e eu não discutimos esse assunto.
‑ Não consigo imaginar a mãe a atraiçoar o pai dessa maneira. E Meia‑Noite nunca o teria traído.
‑ Talvez não... não sei. Só posso repetir o que me contaram. John, há mais uma coisa, pois tenho de me libertar de todos os segredos antes de me ir embora. E mais uma vez, rezo para que não me odeies. Deves lembrar‑te que a tua mãe saiu de casa durante vários dias, depois de o teu pai ter voltado de Inglaterra. Estava doente. Foi para casa da tua avó.
‑ Sim, lembro‑me muito bem.
Ele levantou‑se e aqueceu as mãos à lareira durante um bocado, claramente a reunir coragem para continuar.
‑ Foi nessa altura que ela perdeu... que ela perdeu a criança ‑ disse ele para as chamas.
‑ Qual criança? Fale claramente.
‑ John, o teu pai... ele disse que a tua mãe estava grávida de Meia‑Noite. Chegou uma altura em que ela começou a ter os incómodos que as mulheres têm... os enjoos de manhã. Saiu da vossa casa para ficar com a mãe dela. Foi nessa altura que perdeu a criança.
‑ O quê? Como é que isso pode ser? Isto é uma loucura, Benjamim!
‑ Só sei o que me contaram, meu rapaz.
‑ Que ela estava grávida... grávida de Meia‑Noite?
‑ Sim.
‑ Não consigo ver como é que isso... Ela perdeu‑a ou mataram‑na?
‑ Não sei.
Dirigi‑me para as escadas. Olhei para cima, pensando nas minhas filhas deitadas em segurança na cama. Que herança eu lhes tinha dado! Os meus pensamentos transportaram‑me para o passado ‑ para imediatamente a seguir ao regresso do meu pai de Londres. Parei do lado de fora da porta fechada à chave do quarto dos meus pais, onde a minha mãe se escondera ‑ para garantir que eu não me apercebia da sua gravidez. Naquele momento, desprezava Benjamim, tal como ele receara.
‑ A Mamã era muito nervosa ‑ disse eu, zangado. ‑ A doença dela era simplesmente uma perda de equilíbrio provocado por...
‑ John, diz o que quiseres. Eu só estou a repetir o que James me contou. Ele fez‑me jurar que guardaria silêncio. Tenho de te dizer isto. Estou a quebrar a minha promessa contando‑te.
Perguntei para comigo se a Avó Rosa teria sabido sobre a mãe. Duvidava, pois se tivesse sabido teria, de certeza absoluta, usado isso como uma arma contra nós. Benjamim estendeu‑me um copo de vinho.
‑ John, apesar da tua zanga comigo, e apesar dos erros de julgamento que um velho pode ter feito, achas que me podes deixar dar‑te um conselho?
Quando eu concordei, disse‑me:
‑ Se perguntares estas coisas à tua mãe, se eu fosse a ti, fá‑lo‑ia com cuidado.
Ameacei‑o com o punho fechado num acesso de raiva.
‑ Ela é que vai precisar de ter muito cuidado! Mentiram‑me durante todos estes anos!
‑ Mesmo assim, é muito provável que reaja mal por tu saberes. Ela não queria isso por nada deste mundo. Vai ficar tremendamente zangada comigo!
Atirei com o copo para as chamas.
‑ Raios a partam! O senhor fez o que estava certo. Raios partam todos!
‑ Acalma‑te! Olha as meninas.
‑ As minhas filhas ficaram privadas do avô pela perfídia egoísta dele próprio. E não foi apenas isso... elas podiam ter crescido com Meia‑Noite. Diabos me levem, não vê como o Papá nos prejudicou a todos... até a ele mesmo!
‑ John, eu também fui prejudicado, não te esqueças. Meia‑Noite e eu... ‑ a voz de Benjamim tremeu. ‑ Bem, digamos que perdi um valioso parceiro para o meu verdadeiro trabalho. Ele... ele era como um filho para mim.
Cheio de remorsos, pedi perdão pelas minhas palavras desrespeitosas. Agora via o que tinha de ser feito.
‑ Benjamim, tenho de ir a Londres falar com a minha mãe. Depois, meto‑me num barco para Nova Iorque. Violeta não se importará de me dar guarida durante uns dias. E depois irei a Alexandria e a Charleston. Se Meia‑Noite tem estado a viver como escravo durante estes dezassete anos...
De repente, o mundo pareceu escurecer e senti‑me muito fraco.
‑ Não consigo compreender nada disto ‑ não parava de repetir. No entanto, estava a começar a ver como cada elo do passado se unia
perfeitamente ao seu vizinho. Agora tinha a explicação para o colapso da minha família que durante tanto tempo tinha procurado. Que tolo tinha sido ao pensar que a resposta me iria trazer consolo!
Interroguei‑me se a minha mãe teria sabido da traição que o meu pai cometera contra Meia‑Noite. Se não sabia, e ela tivesse estado apaixonada pelo africano, então, muito provavelmente, acreditava que o pai o tinha assassinado.
‑ Benjamim, tem a certeza absoluta de que o meu pai sabia que a minha mãe e Meia‑Noite tinham... tinham estado juntos?
‑ Sim. Isso enlouqueceu‑o de raiva e dor e fê‑lo cair no mal. Mais tarde, como essas cartas indicam, ele ficou consumido pelos remorsos. John, o teu pai não conseguia viver com aquilo que fizera. Estava completamente perdido, meu filho.
Benjamim parecia arrasado. Deitei‑lhe vinho na chávena de chá vazia. Emborquei o meu directamente da garrafa, com a firme intenção de me embebedar.
‑ O teu pai não amava mais ninguém tanto como te amava a ti ‑ disse‑me ele. ‑ Acho que te deves lembrar disso.
Ri amargamente.
‑ Isso não significa nada comparado com semelhante traição.
‑ Estás enganado, John. Tens de te lembrar que ele te era muito devotado.
‑ Não tanto que o impedisse de vender Meia‑Noite.
‑ Isso foi o seu erro fatal. Mas não o impediu de desejar o melhor para ti.
Voltei a rir e bebi outro gole.
‑ Exactamente quando é que ele lhe contou tudo isso?
‑ Antes de ser morto.
‑ Foi nessa altura que lhe deu as cartas?
‑ Sim, tal como te deu a ti o cachimbo e o relógio. É o que os homens costumam fazer antes de acabarem com a própria vida. Oferecem aquilo que possuem.
‑ O que é que está a dizer? ‑ De repente estava outra vez a tremer de raiva.
‑ John, o teu pai... Às vezes, os homens perdidos procuram o Anjo da Morte. Ele esperava, julgo eu, que, sacrificando‑se, pudesse compensar o que tinha feito. E, por isso, ficou para trás e combateu numa batalha condenada. Foi por isso, meu caro rapaz, que ele te deu as suas coisas.
Isto fazia um sentido insuportável. Lembrei‑me da lição de moral da fábula «O Rato, A Rã e a Águia», o conto que eu lera na livraria do Senhor David quando tinha sete anos: Aquele que persegue o mal, persegui‑lo‑á atéà sua própria morte.
Depois de eu ter bebido mais uns saudáveis goles de vinho, Benjamim deu‑me uma palmadinha de brincadeira na mão e tirou‑me a garrafa, colocando‑a na prateleira da lareira. Não vendo mais nada nele a não ser a sua grande afeição por mim, percebi que sempre tencionara contar‑me estas coisas naquela noite, uma vez que precisava de se ausentar do Porto durante muito tempo. Ele tinha fingido uma revelação acidental ao ouvir que Violeta estava agora a viver em Nova Iorque e depois tinha exagerado a sua perturbação. Era até possível que tivesse considerado o facto de ela estar na América como um sinal.
Não lhe levava a mal o fingimento. Estava grato por ele me ter contado da única maneira de que fora capaz.
‑ Obrigado ‑ disse‑lhe eu.
‑ Porquê?
‑ Por tudo. Nunca me demonstrou senão amizade durante todos estes anos.
‑ Sou eu quem deve agradecer.
Fez‑me sinal para me sentar ao seu lado. Foi então que me contou como Meia‑Noite o tinha ajudado a livrar o mundo de Lourenço Reis, o pregador odioso. As minhas suspeitas de que Benjamim fora responsável pelo homicídio estavam finalmente confirmadas, embora ele não me contasse os pormenores. Não queria que eu alguma vez pudesse revelar a verdade se fosse feito preso pela Igreja ou pela Coroa.
Pensando neste segredo e nos relacionados com a minha família, perguntei‑lhe:
‑ Há muitos anos que me queria contar do meu pai e da minha mãe, não é verdade?
‑ Sim, mas quando era mais novo era mais forte e conseguia carregar estes segredos sozinho. Agora, estou velho, meu rapaz. Precisava de me livrar deles para poder continuar a ajudar Ciro. Mas ouve, John, os segredos não são mortais como os homens ‑ podem continuar perigosos durante vinte, cinquenta, e mesmo cem anos depois de terem sido concebidos. Por isso, tem cuidado. E perdoa‑me.
‑ Perdoo sim, Benjamim. Pode ter a certeza. E terei cuidado. Mesmo que não tenha aprendido mais nada durante estes últimos anos, isso aprendi. Sabe, o pai podia ter ido aos Estados Unidos procurar Meia‑Noite. Ao menos, podia ter tentado.
‑ Fizeram‑lhe crer que era inútil.
‑ E o senhor, o que é que pensa? Os ombros descaíram‑lhe.
‑ Passaram‑se tantos anos... quase duas décadas.
‑ Meia‑Noite não devia ter mais de trinta ou trinta e cinco anos quando o conheci. Teria quarenta e muitos ou cinquenta e poucos se estivesse vivo. ‑ Tentei em vão imaginá‑lo de cabelos grisalhos. ‑ Lembra‑se de quando ele me salvou da Hiena?
‑ Sei o que estás a pensar, meu rapaz ‑ Hesed.
Quando lhe perguntei o que é que aquilo queria dizer, replicou:
‑ É hebraico, John. É a ideia de que as boas acções exigem uma compensação.
Falei‑lhe então do sonho que tivera em que me vira reduzido a uma chama e depois a nada. Agora estava convencido de que fora uma maneira de me lembrar como eu estava perdido desde a morte de Meia‑Noite.
Benjamim sorriu.
‑ Pelo contrário, John. A não ser que eu esteja muito enganado, neste preciso momento tu consegues ver claramente a estrada à tua frente. Pois o grande mistério do teu sonho é este: tu próprio iluminarás o caminho. O coração do Senhor, que é o teu próprio coração, está onde reside a última de todas as chamas e iluminará o teu caminho.
Aquelas palavras de encorajamento só serviram para me irritar, uma vez que eu não queria falar por metáforas.
‑ O poente e o nascer do Sol, as fases da Lua ‑ são acontecimentos que também acontecem dentro de nós ‑ continuou ele.
Suspirei impaciente.
‑ Não, tens de ouvir isto, John. É importante. O nascer do Sol acontece dentro de cada um de nós, caso contrário nem sequer podíamos sonhar com ele. Isto, como já te disse muitas vezes, é a reciprocidade essencial do movimento, que marca a fronteira entre cada pessoa e o mundo. Tudo o que fazes na tua vida afecta tudo que é feito aqui na terra e em todas as outras esferas. É um dos maiores mistérios. Não, não te posso dizer se deves ir, mas dir‑te‑ei o seguinte: Se conseguires libertar Meia‑Noite, então não só libertarás um universo inteiro, como a Tora nos diz, como também, ao fazê‑lo, estarás a ajudar a reparar tudo o que foi quebrado desde o princípio dos tempos.
‑ Benjamim, mesmo que o encontre, posso não poder comprá‑lo outra vez.
O boticário riu‑se.
‑ Diz‑me onde é que na Tora se diz que Moisés pediu licença ao faraó para libertar os hebreus da escravatura! Em certas circunstâncias, John, o roubo pode ser o mais sagrado dos actos.
‑ Se ao menos Daniel estivesse aqui para me ajudar.
‑ Daniel? Não ouviste uma única palavra do que eu te disse? Embora ele tenha morrido há muito, vive dentro de ti. Vais chamá‑lo para o primeiro plano quando precisares dele. Tenho a certeza.
‑ E as minhas filhas... O que é que farei com elas na minha ausência?
‑ Deixa‑as com a tua mãe e com a tua Tia Fiona. Elas florescerão juntas. E vão amar‑te ainda mais por teres confiado nelas.
Abanei a cabeça, pois achava que não estava à altura da tarefa. Tinha medo que as minhas filhas se ressentissem da minha ausência. Eram demasiado novas para estarem sem ao menos um dos progenitores.
‑ John ‑ disse ele ‑, é muito natural que te sintas inseguro. Acabaste de descobrir todas estas coisas. Vai a Inglaterra falar com a tua mãe. Só nessa altura poderás decidir. Lembras‑te daquilo que Meia‑Noite dizia sempre, quando nos despedíamos?
‑ Vai devagar.
‑ Precisamente. Pode haver escorpiões escondidos por baixo de cada rocha. Não é crime nenhum esperares uns dias até decidires como queres proceder.
Citando um provérbio de Salomão, disse‑lhe:
‑ Um pássaro que cai do ninho é um homem longe de sua casa. Não sei nada sobre a América.
‑ Ah ‑ respondeu ele, rindo. ‑ Mas é aí que tens a vantagem de seres judeu. Levarás pão contigo no teu barco e farás de todo o mundo o teu eruv ‑ a tua casa simbólica.
‑ Isso é absurdo, Benjamim.
‑ Pois é. Mas um homem que deseje salvar um mundo recorre a estratagemas absurdos.
‑ Pode não haver tempo a perder. E se Meia‑Noite estiver em perigo? A expressão de Benjamim tornou‑se grave.
‑ Não te iludas, se Meia‑Noite estiver vivo, está de certeza em perigo. É essa a natureza da escravatura. Vou dizer‑te mais outra coisa: Enquanto houver um homem, ou uma mulher que continue escravo, o Messias não virá. Pois nós faremos o nosso próprio paraíso ou nunca o teremos.
Benjamim devia ter adivinhado que eu iria querer ir para a América depois de ler aquelas cartas, pois, naquele momento, tirou do bolso do capote a roca de bebé que Meia‑Noite usara para afugentar a Hiena. Segundo parecia, o pai tinha‑a guardado e dera‑lha.
‑ Dá isto a Meia‑Noite juntamente com a minha bênção. Diz‑lhe que continuei o nosso trabalho durante todos estes anos... e que o procurei. Ele nunca abandonou os meus pensamentos um dia que fosse.
Alguns minutos depois, envolveu‑se no capote, abraçou‑me e seguiu o seu caminho. Enquanto estava parado à porta da rua, o meu coração corria loucamente como se me quisesse impelir a pedir‑lhe que ficasse. Mas eu atribuí os meus pensamentos de morte e separação eterna a um sintoma de medo.
Como é que um homem bom faz o mal? A determinada altura, depois de terem batido as duas horas, dei‑me conta de que podia fazer esta pergunta não só em relação ao meu pai, mas também em relação a Meia‑Noite e à minha mãe ‑ se é que eles tinham sido de facto culpados de traição.
Achei que os três me tinham feito muito mal. As suas mentiras tinham feito levantar a minha âncora, mandando‑me para o mar; o seu segredo tinha feito de mim um náufrago. Tinham‑me sacrificado de propósito para poderem continuar com as suas vidas secretas.
Estava furioso com todos, mas era contra o meu pai que eu lançava as minhas pragas silenciosas. Era um homem sem escrúpulos e um cobarde. E eu desprezava‑o.
Acordei ao nascer do dia, sufocado, dominado pelo pânico: nunca desenterrara as recordações que tinha escondido antes da primeira invasão francesa ‑ incluindo a pena de Meia‑Noite. Tinha de me voltar a apossar delas antes de partir para Londres.
Precipitando‑me pela escada abaixo, enrolado apenas no cobertor, corri para o jardim. Agachando‑me no meio das silvas espinhosas, comecei a cavar freneticamente.
Cavei três buracos, todos eles por engano, até que finalmente consegui encontrar as duas covas de há tantos anos antes. Não foi preciso muito tempo para ter nos braços o amuleto e as máscaras de Daniel, o gaio que tínhamos esculpido, a aljava, as setas e a pena de Meia‑Noite e o azulejo com o tritão de Gilberto. Estava tudo coberto de terra, mas não se tinham estragado, apesar de terem estado tantos anos enterrados. Apertando aqueles objectos contra o peito nu, dancei uma jiga em palmilhas de meias. Depois larguei tudo no chão e caí de joelhos.
Mais tarde, nessa mesma manhã, senti‑me curiosamente impelido a voltar a enterrar a máscara da rã de Daniel, o nosso gaio, a aljava de Meia‑Noite e todas as suas setas, exceptuando uma, para deixar qualquer coisa minha e deles no Porto durante a minha viagem. Enquanto o fazia, soube, sem a menor dúvida, que iria viajar até Nova Iorque e procurar Meia‑Noite durante o tempo que fosse preciso para o encontrar. Não estava assustado, pois tinha o Louva‑a‑deus entre os dedos dos pés. E tinha encontrado aquilo que se perdera.
O Poder do Silêncio
Não VOU AINDA DIZER quem é que foi. Porque se o fizesse nem que fosse num murmúrio, os meus amigos em River Bend poderiam pagar pela minha falta de cuidado. Vi um homem bom morrer por minha causa e não estou disposta a pôr mais ninguém em perigo. Não, senhor. Não é demasiado tarde para a Mistress Anne dizer ao novo homem dela para atar uma corda à volta de qualquer pescoço velho que lhe desse na gana e enforcar mais um corpo emprestado no carvalho mais próximo. Eu digo emprestado porque as nossas orelhas, os nossos dedos das mãos e os nossos dedos dos pés não nos pertencem. Descobri isso com toda a certeza quando tinha doze anos e não é provável que alguma vez o esqueça.
O meu Papá disse‑me uma vez que o patrão até tenta possuir os nossos sonhos ‑ pôr as correntes dele à volta das nossas asas, como ele dizia. Tenho a certeza absoluta de que ele foi dono dos meus durante um tempo, porque, tão certo como haver inferno, eu nunca sonhava com voar ou bater as asas.
Lembro‑me do instante em que me apercebi que os meus sonhos se tinham soltado sem deixar qualquer rasto ‑ há alguns anos, em Dezembro. O que me apareceu na madrugada suave do meu quarto foi o que eu tinha estado a sonhar ‑ uma rapariga, eu, a passear por uma avenida maior do que qualquer uma aqui de Charleston, numa cidade de tijolos vermelhos, como uma fortaleza construída para durar para sempre. Eu estava a cantar, porque não havia ervas daninhas nem arroz em nenhum sítio. A neve que eu só conhecia dos livros cobria os candeeiros da rua e as carruagens e os telhados e era tão branca que as lágrimas me faziam arder os olhos. Depois, uma humidade picante começou a cair na minha cara vinda de cima e fez‑me calar. Olhei para cima e não vi mais nada a não ser um milhão de flocos dessa abençoada neve que enchia o céu todo, tão imparáveis e vivos como borboletas empurradas pela respiração poderosa de Deus de que Moisés fala na Bíblia. Eu estava a tremer, mas isso era bom, porque nessa altura soube que havia um lugar protegido por um frio tão poderoso que nada de River Bend ou da Carolina do Sul poderia alguma vez lá sobreviver.
Eu pensava nessa rapariga e nessa cidade todos os dias e a possibilidade de elas serem reais enfraquecia‑me de tal maneira que já não conseguia dizer não. Podes perder‑te se disseres não à noite dentro de ti demasiadas vezes, era o que o meu Papá me dizia sempre. Ele sabia o que era perder coisas, mais do que toda a gente.
Os brancos pensavam que o superintendente tinha cometido os assassinatos. Ou, pelo menos, era o que eles diziam nos jornais deles. Ninguém sabe o que é que eles realmente pensam, muito menos eu. Não sou assim tão inteligente. Se fosse, o Weaver ainda podia estar vivo.
Ainda não vou murmurar nada sobre quem foi. Eu quase não tenho nenhum poder de que valha a pena falar, mas tenho o meu silêncio.
Também não vou dizer por que é que os nossos patrões foram assassinados. Vão ter que descobrir sozinhos. E irá fazer sentido para vós ou não. Tal como o Louva‑a‑deus está ali fora na plantação ou não está. Não há talvez nem possivelmente a esse respeito.
Por isso, para já, não vos posso ajudar com o porquê. Ainda assim, vão ter de saber um bocado sobre o Grande Patrão Henry. Primeiro ele. Depois os outros patrões que vieram depois dele.
Vão ter de saber como ele era em vivo se quiserem compreender como foi importante ele estar morto e enterrado. Porque não há dúvida que queria dizer muitas coisas boas para nós quando metemos o caixão dele na terra naquele glorioso dia de sol em Setembro. Primeiro, queria dizer que o Louva‑a‑deus estava ali nas ervas selvagens que cresciam ao longo do Christmas Creek(1). Dentro de nós também, preparando‑nos, à espera, fora do alcance do nosso patrão, de uma oportunidade para nos levar para aquela fortaleza eterna nos nossos espíritos onde a neve está sempre a cair.
Assim, ali está o Grande Patrão Henry, de pé na varanda, com as mãos nas ancas como se fosse o dono do céu por cima de toda a Carolina. Grande, porque tem quase nove palmos, e largo, também, como uma carroça cheia de estrume de cavalo. Há pessoas que acham que ele é bonito,
*1. Creek ‑ ribeiro, riacho. (N. da T.)
mas não o viram com uma garrafa de whisky vazia apertada na mão, a cara toda inchada e os olhos a mexerem muito depressa como aranhas a imaginarem uma maneira de nos apanharem. N'há ninguém mais ruim qu'aquele homem, costumava murmurar a minha mãe. E se me perguntarem, ela tinha razão. Não que haja alguém interessado em perguntar‑me muita coisa. Embora eu tenha muito para dizer, porque tenho quinze anos de boca fechada atrás de mim. Por isso, agora sabem por que é que há um Grande no Grande Patrão Henry. Chamamos‑lhe sempre Patrão porque ele pode não ser o dono do céu, mas é o dono de todas as ervas, de todo o gado e de todos os Negros de Christmas Creek, a este, até Cooper River, a norte e a sul, e Marble Hill, a sul.
Sim, Patão. Eu sófazêo qu'o Patão diz. Às vezes, falo assim à frente dos brancos, uma vez que eles não apreciam muito que eu fale como se tivesse alguma educação. Mas o meu Papá conquistou a possibilidade de eu aprender a ler e a escrever quando eu mal tinha acabado de gatinhar. Não que eu seja muito diferente dos outros. As cicatrizes nas minhas costas que nunca vão sair, por mais que eu esfregue com toda a força, lembram‑me isso todos os dias. É por isso que, por vezes, estico a mão para trás só para as sentir antes de adormecer. A dor que nos torna igual às pessoas que amamos pode ser uma dor boa, acho eu.
Marble Hill costumava ser Marylebone Hill quando a Mamã veio de África, mas ela e os outros encurtaram o nome porque Marylebone não cabia bem nas bocas deles. Mas o Papá ainda lhe chamava isso, porque gostava do som. Ele costumava dizer as coisas mais esquisitas e mais bonitas, embora quase nunca escrevesse nada. Deixava a escrita comigo. A maior parte das pessoas chama‑me Morri, mas o meu nome verdadeiro não é esse. É Memória. Tentei mantê‑lo secreto porque, ao princípio, não estava muito contente com ele. Não, senhora. Mas agora não me importo de dizer a toda a gente. É uma palavra portuguesa. O meu Papá sabia um bocadinho dessa língua por ter vivido uns anos em Portugal. A Avó Alice era conhecida por Blue porque ela era tão preta como os de Cabinda, as pessoas diziam que ao luar ela tinha um brilho azul. Ela costumava chamar o Grande Patrão Henry pelo nome que ele tinha quando era pequeno: Hennie. Tinha sido ama de leite dele e eram‑lhe permitidas algumas liberdades que não estavam ao alcance do resto de nós. Nunca deves esquecer o teu lugar, fitcha(1), costumava ela dizer‑me. Esqueces o teu lugar, Morri,
*1. Fitcha ‑ Filha (pronúncia crioula). (N. da T.)
e podes morrer. Uma vez, quando andávamos curvadas nos campos, chamei ao Grande Patrão Henry uma hiena gorda e velha por estar a estragar a cercadura de plantas de arroz muito bem feita que tínhamos acabado de fazer. Falei tão alto que ele quase me ouviu. A Mamã levantou‑me e abanou‑me como se eu fosse uma boneca de trapos. Gritou‑me que eu tinha de manter os meus lábios tão quietos como o sono porque ela nunca, nunca iria ver‑me atada ao barril do chicote. Tive de a sentar ali mesmo na lama e confortá‑la a ela porque tinha ficado muito aflita por ter perdido a cabeça comigo. Mais tarde, aquilo fez‑nos rir, às duas, até as lágrimas nos correrem pela cara abaixo e eu tive de lhe pedir para parar com as caretas. A minha Mamã ria‑se melhor do que todas as outras pessoas, até mesmo o Papá. Ela era muito mais alta do que ele ‑ tão alta como a maior parte dos homens. Com malares altos e olhos tão pretos que reflectiam coisas que normalmente ninguém conseguia ver ‑ até o futuro, julgavam alguns. Ver os meus pais juntos fazia‑me sorrir porque eles pareciam tão diferentes, mas parecia que se completavam.
A Mamã andava sempre muito direita e quando ela estava furiosa e voltava aqueles olhos pretos para nós, fazia com que o nosso espírito se encolhesse de vergonha. Ou, se ela estivesse a sentir‑se satisfeita connosco, fazia com que nos sentíssemos os melhores porque ela estava a observar.
A Mamã morreu com as febres há sete anos, em Julho de 1817. O Papá foi o segundo a ir embora. Deixou‑me completamente sozinha passados três anos e meio. Depois disso, eu era a única que restava da nossa família. É por isso que tenho de escrever estas coisas. Caso contrário, ninguém saberia nada de nós e isso seria a mesma coisa do que sermos engolidos pela terra. Como se nunca cá tivéssemos estado.
Eram as botas grosseiras e os joanetes. E o luar. Era por isso que ele achava que o Grande Patrão Henry nunca tinha uma palavra amável para dizer. Ele costumava arrastar‑se furtivamente por todo o sítio ‑ «aparecendo‑te pelo lado como uma cascavel com o chocalho escondido», como Weaver costumava dizer. Weaver costumava ter licença para ir caçar com o Grande Patrão Henry. Ele era capaz de descobrir o focinho cor‑de‑rosa de uma toupeira a aparecer no meio da erva a quinhentos passos de distância, costumava dizer‑me o Papá. E também sabia exactamente o que a toupeira estava a pensar!
Weaver era um bom amigo dos meus pais. À medida que eu crescia, ele também foi ficando meu amigo. Eu gostei sempre de gente mais velha. Nunca tive muita sorte com as pessoas da minha idade. Costumavam dizer que eu tinha uma pele demasiado amarela, que era magríssima e que os meus olhos eram esquisitos. Provavelmente, algumas achavam que eu me dava ares de superioridade. Talvez eu achasse mesmo que era melhor do que os outros porque sabia ler e escrever. Até ser chicoteada. Depois disso, todos sabíamos que eu era igual a todas as outras pessoas.
Weaver tinha os dois filhos e a mulher, Martha, na Plantação Comingtee, que ficava do outro lado do Cooper River, para norte do River Bend. Ele tinha um passe para lá ir aos domingos. Era muitíssimo duro para ele não estar com a família durante a maior parte da semana, mas ele nem sempre se importava com isso, se querem saber a verdade. Porque ele gostava de se meter com algumas das raparigas novas daqui. Era um patife, se querem saber, com aqueles olhos castanho‑claros sempre a cintilar quando olhava para as formas das raparigas.
Agora está morto e em grande parte por minha causa. Isso pesa‑me muito quando estou deitada à noite a pensar na minha vida e no que correu bem e no que correu mal. Provavelmente, vai pesar sempre. Mas eu não quereria que um homem morresse com uma bala sem que eu pensasse em como eu própria tinha ajudado a metê‑la nele. Seria como afirmar que ele não era nada e que nunca tinha sido outra coisa senão nada.
O Grande Patrão Henry gostava de magoar cada pessoa de maneira diferente, da forma que causasse maiores danos. A minha vez chegou numa sexta‑feira à noite, em Julho de 1820. A noite estava húmida, o ar colava‑se de tal maneira à nossa cara que não conseguíamos dormir de verdade, era mais como se desmaiássemos. Eu tinha quase doze anos e trabalhava na Casa Grande. Dormia num barracão ao lado da cozinha e, uma noite, o Patrão mandou Crow, o seu escravo particular, buscar‑me à cama, dizendo que tinha mais pratas para limpar, o que era uma das minhas tarefas.
O Grande Patrão Henry agarrou‑me pelo braço quando entrei no quarto. Se calhar não limpei qualquer coisa bem, pensei eu. O meu coração começou a bater ferozmente. Mas ele deu‑me um beijo na testa, como se fosse um velho amigo.
‑ És suave, Morri ‑ disse‑me ele.
Depois ofereceu‑me um copo de vinho que já tinha enchido.
‑ Nunca bebeste, pois não? ‑ perguntou‑me. Os olhos eram bondosos e não parecia bêbado.
Quando eu abanei a cabeça, ele levou‑me o copo à boca. Era doce e xaroposo. Ele disse que a minha língua era muito cor‑de‑rosa. Gostaria de saber por que é que as raparigas negras tinham umas línguas tão cor‑de‑rosa. Depois soltou uma gargalhada e disse‑me para não lhe ligar, que estava apenas a ser curioso à sua maneira e que esperava não me ter ofendido.
Ajoelhou‑se, descalçou‑me os sapatos e esfregou‑me os pés.
‑ Morri, continua a beber e deixa‑me tratar do resto ‑ murmurou ele. Quando acabei de beber, levantou‑se e tirou‑me o copo. Lambeu a
borda com a língua, piscando‑me o olho, e pousou‑o em cima da mesinha‑de‑cabeceira. Quando o vi desabotoar as calças, percebi o motivo por que me tinham pedido para ser uma escrava de casa, e não tinha nada a ver com o bom trabalho que eu fazia a polir as pratas e a passar a ferro. Talvez só tenha pensado estas coisas depois de ele ter feito o que queria comigo. Não me consigo lembrar muito bem do que pensei na altura, porque estava muito assustada com a vergonha que o meu Papá iria sentir quando descobrisse.
‑ Por favor, não me magoe, Grande Patrão Henry ‑ supliquei‑lhe. Estava com medo que ele me fizesse marcas que toda a gente poderia ver.
‑ Não te vai magoar a não ser que tu queiras ‑ respondeu‑me ele. ‑ Agora já tens o teu sangue de mulher. Por isso, já devias estar à espera que isto acontecesse mais cedo ou mais tarde.
‑ Não estou pronta ‑ disse eu.
‑ Estás pronta e muito ‑ Riu‑se. ‑ Tenho estado a sentir como estás pronta e as minhas mãos não mentem.
Agarrou‑me na mão e levou‑a até ao sítio onde a queria.
‑ Estás a ver o que tenho para ti? ‑ perguntou ele sorrindo ao ver a rapidez com que a tirei. ‑ Agora podes ter medo, mas vais achar que é muito bom mal ele seja todo teu. Acredita em mim, eu sei do que é que vocês, raparigas, gostam.
Não demorou nada a pôr‑se em cima de mim, a empurrar e a grunhir, e eu conseguia sentir o perfume que ele usava, como se tivesse tomado banho nele.
‑ Por favor, Grande Patrão Henry! Não me faça isto!
‑ Daqui a poucos minutos vais perguntar por que é que me deste tanta luta. E vais saber para que é que Deus te pôs nesta boa e linda terra verde, minha pretinha.
Ele ter falado de Deus deve ter‑me feito lembrar do Velho Testamento encadernado a couro que eu guardava debaixo da minha almofada. O Papá dizia que tinha sido impresso em Londres havia cem anos; por isso, calculei que devia valer algum dinheiro. Disse ao Patrão que lho dava.
‑ Não sabes que a única escritura que eu quero está entre as tuas pernas? ‑ respondeu‑me ele.
Chega um momento em que uma pessoa sabe que não vale a pena lutar e eu soube‑o naquela altura. Por isso, fechei os olhos e tentei passar por morta. Mas não resultou. Parecia que ele me estava a enfiar um bocado de vidro partido. Por mais que eu suplicasse, ele continuava a empurrar. Eu não podia arriscar‑me a gritar por socorro. Se ia morrer, então morreria e não havia nada a fazer. Teria preferido a morte em qualquer ocasião a que alguém descobrisse.
Lembro‑me de ele me murmurar ao ouvido:
‑ Agora és minha, toda minha, até bem ao fundo da tua alma preta. Não, não sou, pensei eu. E comecei a murmurar um verso de Ezequiel como se ele me pudesse proteger: Nem os animais selvagens os devorarão... E estranho, mas isto é do que eu me lembro melhor sobre aquela primeira vez: de murmurar coisas loucas, tudo o que me consegui lembrar, como se o som da minha própria voz me pudesse salvar. No fim, ele disse‑me:
‑ És do pior que eu tenho tido, Morri. Não tens energia, não tens chama. Estás morta por dentro, minha pretinha.
Deu‑me uma palmada no rabo e mandou‑me para o meu quarto, mas eu fugi de casa e corri todo o caminho até Porters Woods. Queria tanto libertar‑me da minha pele suja que não conseguia parar de tremer. Eu sabia que tinha de pôr o que me tinha acontecido bem para trás das costas ou teria de contar ao meu pai. Eu não tinha controlo sobre o tempo, mas da distância tinha um bocadinho e isso era a única coisa que possuía para me ajudar a ficar calada. Quando já estava suficientemente longe das cabanas e da Casa Grande, comecei a berrar pela Mamã porque não queria dar a ninguém vivo o fardo da minha verdade. Caí de joelhos e mãos no chão como o animal destruído em que ele me tinha transformado e roguei‑lhe que me ajudasse. Era como se ele tivesse cortado a melhor parte de mim, e deixado apenas o sangue. Disse isso à Mamã. E disse‑lhe que o pior de tudo era que agora eu não sabia quem era.
Também lhe disse que me assustava não ser eu, e ele ter a minha alma. Ela não me respondeu. Embora eu saiba que o teria feito se pudesse.
Quando parei de chorar, meti a mão em concha no rio e trouxe a água para onde ele me tinha rasgado. Depois meti‑me dentro do rio e sentei‑me toda vestida. Se calhar estava só a tentar convencer‑me de que ainda estava viva e que conseguia sentir qualquer coisa, como estar com frio. Vai parecer estranho, mas quando voltei para a margem, agarrei numa mão‑cheia de musgo barba‑de‑pau que estava pendurado de um ramo baixo de um cipreste e encostei‑o lá também. Segurei‑o contra mim e murmurei, citando Ezequiel, que ele não me devoraria e tentei transformar‑me no vento que levava a minha voz e não ser mais nada, para nunca ter de voltar a sentir nada.
Uma rapariga de doze anos não está preparada para que lhe roubem quem ela é. Ninguém está.
Tive tantas vezes vontade de contar ao meu Papá o que o Patrão andava a fazer, mas nunca consegui arranjar coragem. Este meu segredo era talvez a parte pior. Fez‑me acreditar que eu não era nada.
O Patrão parecia cortar‑me coisas novas sempre que me tocava. A única coisa que eu sabia é que elas tinham desaparecido e que deviam ter sido elas que me tinham feito quem eu era. Todos os dias me estava a afastar cada vez mais da pessoa que tinha sido.
Todo aquele musgo ensanguentado que eu deixei ao pé do rio... Se calhar, o que eu queria era que alguém o encontrasse, era deixar qualquer vestígio daquilo que me tinham feito bem à vista de toda a gente.
Também lia o Velho Testamento à luz de uma vela: Trata‑nos com bondade, Senhor, pois já sofremos insultos suficientes...
Dormia com aquele bom livro aberto no Salmo Cento e Vinte e Três em cima do sítio exacto onde ele me estava a magoar, com a lombada para cima, como um escudo, rezando para não ter um filho dele. Também pensava que se ele me cortasse e arrancasse as coisas mais fundas dentro de mim, eu não poderia ter uma criança e que isso seria uma coisa boa. Por isso, às vezes, quando ele estava dentro de mim, confesso que pensava: Corta mais, corta tudo, não deixes nada que possa crescer...
A seguir àquela primeira vez, vi o Papá de manhã. Eu quase não tinha dormido e, por isso, não consegui deixar de chorar à frente dele. Mas menti e disse que estava com saudades da Mamã. Ele abraçou‑me com força e, quando eu estremeci, perguntou‑me:
‑ Não estás doente, pois não?
Disse‑lhe que as suas carícias ainda me faziam lembrar mais dela, o que era verdade, visto que o amor sempre me pareceu igual viesse ele de onde viesse.
Uma vez, Crow ouviu‑me gritar na mata. Disse‑lhe que quase tinha sido mordida por uma grande cascavel velha, e ele fez que sim com a cabeça como se acreditasse em mim. Mas ele sabia o que estava a acontecer. Porque ele ouvia tudo o que se passava na Casa Grande. E ele sabia tão bem como eu que nunca poderíamos dizer ao Papá, porque se ele alguma vez soubesse, tentaria matar o Grande Patrão Henry e acabaria linchado.
‑ A mata não é segura, Morri ‑ disse ele, agarrando‑me na mão. Fizemos quase todo o caminho de regresso a casa em silêncio, mas
perto da Casa Grande, ele estendeu‑me os braços.
‑ Deixa‑me abraçar‑te, rapariga, antes de chegarmos tão perto que eles nos possam ver ‑ disse‑me ele. ‑ Não tenhas medo de mim. Eu não sou como ele. Não te vou magoar nunca.
O Patrão estava a começar a ficar muito farto de eu estar quieta como a morte debaixo dele e era capaz de ter parado com a sua maldade por vontade própria, mas um dia teve um dos seus ataques de fraqueza muito forte e foi forçado a deixar‑me em paz. Depois, aquele gigante feio ficou tão doente que não se conseguia mexer. Estava para ali deitado a gemer.
Morre, pensei eu, porque ninguém vai ter pena, nem mesmo a tua mulher. Ao fim de uns dias de sofrimento, apanhou aquele tipo de febre escaldante que traz os demónios. Estava com a cabeça tão enevoada que começou a fazer perguntas que não tinham sentido nenhum. Quem éque está dentro da lanterna? Para onde é que o rio cavalga hoje? Isto de que estamos a falar foi em Setembro de 1820. Ele tinha sempre recuperado dos seus ataques, por isso não estávamos muito preocupados. Não que tivesse sido alguma vez o Dr. Lydell a arrancá‑lo à morte. Não, senhor. Tinha sido sempre o meu Papá e as suas artes de curar. Ele sabia quase tudo sobre ervas e poções. Era famoso por causa disso, até entre os índios, porque uma vez curou um curandeiro Mortalmente doente que veio com um grupo de guerreiros Creek para Kiver Bend quando eu tinha só cinco ou seis anos. Ele começou a ensinar‑me a maior parte do que sabia por volta dessa altura. Embora eu não tivesse nascido para isso, como ele.
Muitos anos antes, contou‑me o Papá, tinha estudado a arte de curar em Portugal. Tinha vivido lá com uma família e tinha trabalhado com um mágico judeu que tinha a sua própria botica. Tinha aprendido tudo sobre as plantas europeias que podiam ser usadas para curar a maior parte das coisas. Até tinha ido a Inglaterra para falar com um homem chamado Jenner que tinha descoberto uma maneira de prevenir a varíola.
Mistress Holly estava a contar com o Papá para lhe salvar o marido novamente. Embora, desta vez, ele estivesse pior do que nunca. Lembro‑me de ela dizer naquela sua voz aspirada: ‑ Estou a contar contigo, Samuel, e com mais ninguém.
Era esse o nome do meu pai: Samuel. Em África, chamavam‑lhe Tsamma, que é o nome de um melão que cresce lá. O dono que teve na Virgínia foi quem o mudou.
Com o Patrão fora do caminho, no seu quarto de doente, o ar da plantação tinha perdido a sua maldade. Quase acreditámos que não estávamos a ser vigiados, mas claro que estávamos, visto que o superintendente e os seus capatazes negros estavam sempre à espera de um pequeno sinal de cansaço para nos chamarem pretos preguiçosos e depois nos arrastarem para o barril do chicote. Mesmo assim, eu tinha começado a pensar que nada me voltaria a incomodar se o Patrão me deixasse em paz a partir dessa altura.
Na noite de vinte de Setembro, quando o relógio da sala do chá, deu as nove badaladas, bati à porta do Grande Patrão Henry, como era minha obrigação, para lhe levar o seu copo de limonada quente. A cozinheira Lily preparara‑lha todos os dias durante esta última década, tal como o meu Papá lhe dissera para fazer. Era feita com limões que cresciam ali mesmo, na plantação, ao pé de Christmas Creek, e com mel que o meu pai recolhia das suas colmeias em Porter's Woods e Wilson's Meadow. Ele tinha uma autorização especial para andar pela plantação toda a recolher o mel.
Uma vez, o Patrão contou‑me que os israelitas viviam de mel e limão no deserto e era por isso que ele o bebia. Supostamente, o Grande Patrão Henry devia saber estas coisas porque o pai dele tinha sido ministro em Charleston. Mas eu já tinha lido o Velho Testamento de uma ponta a outra quando tinha dez anos e nunca lá vi nada disso. Foi assim que eu fiquei a saber com toda a certeza que ele inventava a sua Bíblia conforme lhe apetecia. Quase todas as pessoas brancas fazem isso, mesmo quando conseguem fazer as citações correctamente.
‑ Podem lembrar‑se das palavras e não compreenderem o significado escondido por baixo delas ‑ costumava dizer‑me o Papá.
Por isso, depois de ter batido à porta e de me terem mandado entrar, pus o copo na mesinha‑de‑cabeceira sem olhar para ele porque não queria que ele voltasse a reparar em mim. Mas conseguia ouvi‑lo a arquejar. E depois escapuli‑me do quarto. Uma hora mais tarde, quando a mulher dele foi desejar‑lhe lindos sonhos, encontrou a porta fechada à chave. Chamou‑o, mas não teve resposta. Ele tinha uma das duas chaves do quarto na sua posse. A outra que restava estava na gaveta da mesa‑de‑cabeceira dela.
Assustada, foi a correr buscar a chave. Mas estava com muito medo de a usar. Não queria encontrá‑lo morto, com o seu fantasma a pairar sobre o corpo. Mistress Holly tinha um pavor tremendo do escuro ‑ porque a mãe dela uma vez tinha visto um fantasma levantar‑se do berço dela e sair a flutuar pela janela ‑ por isso gritou ao meu pai para sair da despensa e vir abrir a porta. Nessa altura, Mr. Johnson, o superintendente, já tinha sido avisado por Lily, a cozinheira, de que havia qualquer problema na Casa Grande.
O Papá levou muito tempo a chegar ao pé de Mistress Holly porque ele não conseguia andar muito bem. Desde que os tendões dos calcanhares lhe tinham sido cortados pelo Grande Patrão Henry no ano antes de eu nascer. Mas ela não estava disposta a confiar em mais ninguém.
No preciso momento em que ele ia abrir a porta do quarto do Patrão, Mr. Johnson entrou de rompante na Casa Grande e subiu as escadas a correr.
‑ Tira daí essas mãos esqueléticas de preto, Samuel! ‑ gritou‑lhe e arrancou a chave da mão do Papá.
O meu pai disse‑lhe obrigado, porque ele estava sempre a agradecer às pessoas nas ocasiões mais esquisitas.
Os escravos da casa, eu incluída, estavam todos reunidos ao fundo da escada a ouvir os guinchos de Mistress Holly. Lily e o neto, Backbend, que costumava servir o jantar, estavam a rezar para que não tivesse acontecido nada. Mas não se enganem: se eles estavam a rezar para o coração do Patrão ainda estar a bater, era só porque tinham medo, se ele morresse, de serem vendidos a alguém ainda mais maluco.
Quanto a mim, estava a desejar com muita força que ele estivesse tão morto como um peixe sem cabeça e estava a apertar as pálpebras com força que até podia ter feito sangue.
Quer os meus desejos tivessem alguma coisa a ver com isso, quer não, o Grande Patrão Henry estava mais do que morto. Uma vez que o copo dele estava vazio e tinha caído da mão grande e fria no chão, eu podia ter sido considerada como suspeita de o ter envenenado e muito provavelmente teria sido enforcada nessa mesma noite, mas também havia uma faca com cabo de madeira enterrada num dos lados do pescoço dele. Aquela lâmina salvou‑me de ser pendurada numa árvore, estou contente por o dizer. E a Lily também, visto que foi ela quem fez a limonada. Não que o tivéssemos envenenado. Lily acreditava no castigo de Deus e não se teria arriscado à sua vingança. Quanto a mim, confesso que o queria fazer. Na verdade, pensava nisso todas as vezes que ele enfiava o seu vidro partido dentro de mim.
Como é que o assassino tinha esfaqueado o Grande Patrão Henry e fugido através de uma porta fechada à chave era um mistério que todos queriam resolver. Era uma queda de uns vinte e quatro pés da janela do quarto do Grande Patrão Henry até ao chão, por isso ninguém podia ter trepado ou saltado sem usar uma escada.
Quanto às duas chaves do quarto, uma foi encontrada num bolso do casaco de cerimónia do Grande Patrão Henry, que estava dobrado em cima de uma cadeira no quarto. A outra tinha estado sempre na gaveta da mesa‑de‑cabeceira de Mistress Holly. Ela tinha passado duas horas a fazer paciências em cima da cama antes de encontrar o cadáver do marido. Se o assassino tinha levado a chave antes, então como é que ele, ou ela, a tinha voltado a meter na gaveta da mesa‑de‑cabeceira onde Mistress Holly a tinha achado?
A escada foi encontrada muito bem arrumada no Primeiro Celeiro. Não tinha manchas de sangue. E nenhum dos escravos dos campos tinha visto alguém a trepar pelo lado da casa. Por isso, Mr. Johnson mandou o capataz atar Crow ao barril das chicotadas. Depois, ergueu o chicote e deixou‑o cair, porque «aquele maldito preto preguiçoso» era o escravo particular do Patrão e devia tê‑lo protegido.
Crow chorou como um bebé enquanto apanhava as dez chicotadas, uma vez que a pele, que tinha sido vergastada e arrancada das suas costas anos atrás, tinha crescido por cima dos ossos com umas cicatrizes grossas que eram tão sensíveis como queimaduras. Mr. Johnson esteve sempre a cuspir os escarros do tabaco para as pernas do negro só para o humilhar.
No dia seguinte, Crow disse‑me:
‑ Sabes‑, Morri, tive tanta vergonha de m'ir abaixo daquela maneira, mas parecia que 'tava a ser cortado c'uma serra enferrujada.
Abracei‑o e disse‑lhe que todos nós estávamos muito orgulhosos dele. Prometi a mim própria que um dia ainda os veria todos a pagar por aquilo. Só ainda não sabia como.
Mantivemo‑nos todos de boca fechada durante o castigo, excepto para contar as chicotadas e rezar por Crow. A seguir, o superintendente foi buscar à nossa fila o neto de Lily, Backbend. Ele só tinha onze anos e a mãe tinha morrido. Tinha uns grandes olhos escuros e os lábios mais suaves de todas as pessoas em River Bend.
‑ Também vou dar dez chicotadas a este rapaz ‑ disse‑nos Mr. Johnson ‑, a não ser que vocês, pretos, me digam o que aconteceu ontem à noite. E vou continuar a ir buscar os vossos filhos até que um de vocês diga a verdade.
Lily deu um grito e caiu de joelhos, implorando‑lhe que fosse bom para o menino dela.
O mais certo é que qualquer um de nós teria acabado com o sofrimento dele gritando o nome do culpado se, na verdade, o tivéssemos visto.
‑ Vergonha, vergonha, vergonha! ‑ gritei eu. ‑ O senhor vai pagar a sua entrada no inferno neste preciso lugar, neste preciso momento, Mr. Johnson!
‑ E tu és a seguir, Morri! ‑ berrou‑me ele em resposta. ‑ Não estou para aturar essa tua boca desbocada. E vais apanhar vinte chicotadas! Vinte!
Eu estava demasiado zangada para sentir medo. E demasiado tonta da cabeça com o facto de o Patrão estar morto. Pensei que já me tinha acontecido o que havia de pior.
O meu papá disse então que não deixaria que ninguém me magoasse, mas Mr. Johnson disse:
‑ Cala‑te, preto, ou dou‑te trinta!
‑ Obrigado, Mr. Johnson ‑ disse o Papá, muito delicado. ‑ Mas se chicotear a minha filha, posso garantir‑lhe algumas consequências muito, muito sérias que não vai achar nada agradáveis ‑ rematou sorrindo.
‑ Ai podes?!
‑ Posso mesmo. Mistress Holly vai precisar de mim caso algum dos filhos fique doente. E eu vou precisar da Morri comigo. E com saúde. Tal como também preciso do Backbend inteiro!
‑ Cala essa tua boca grande, preto!
Mr. Johnson voltou‑se para o Backbend e levantou o chicote acima da cabeça.
Depois da terceira vergastada nas costas do rapaz, quando as lágrimas lhe corriam pela cara abaixo e ele já se tinha sujado todo, o Papá avançou a coxear e disse:
‑ Fui eu. Eu é que matei o Grande Patrão Henry.
‑ Como? ‑ perguntou Mr. Johnson.
‑ Fui buscar a escada e trepei muito, muito silenciosamente. O Grande Patrão Henry estava a dormir e dei‑lhe uma facada.
‑ Tu? Com esse teu coxear? Subir a escada deve ser quase impossível.
‑ Mas foi o que eu fiz, senhor.
‑ Por que é que o farias? ‑ perguntou Mr. Johnson, franzindo os olhos.
‑ Ele cortou‑me os tendões dos calcanhares, senhor.
‑ Isso já foi há mais de dez anos.
‑ Mesmo assim, foi essa a razão.
‑ Então, como é que o mataste sem ficares sujo de sangue?
‑ Usei luvas.
Mr. Johnson cuspiu para o chão.
‑ E onde é que estão as luvas agora?
‑ No Christmas Creek.
‑ E como é que tiraste a maldita da escada do celeiro?
Para isto, o Papá não tinha nenhuma resposta decente, visto que toda a gente sabia que só Mr. Johnson é que tinha a chave.
‑ Não quero ouvir nem mais uma palavra, Samuel! ‑ avisou ele ameaçadoramente.
Estava prestes a recomeçar a chicotear Backbend e depois ia ser a minha vez, mas Weaver deu um passo em frente e disse que tinha sido ele.
‑ E como é que tu tiraste a escada? ‑ perguntou Mr. Johnson, cuspindo duas vezes muito depressa, o que era sinal que estava a esgotar a paciência.
‑ Co' a su'chave, Mr. Johnson.
‑ A minha chave?
‑ Sim, siô.
‑ Mas eu tive a chave sempre comigo durante toda a noite. Tenho a certeza.
‑ Usei o meu saco das raízes ‑ confessou Weaver.
‑ Que saco é esse, preto?
‑ O saco da mágeca.
‑ Santo nome de Deus! Que raio é que estás para aí" a dizer?
‑ O saco das magias ‑ repetiu o Papá, porque às vezes Mr. Johnson fingia que não conseguia perceber nada daquilo que Weaver e alguns dos outros escravos diziam.
‑ Weaver ‑ disse o superintendente cuspindo ‑, mete esse teu coirão preto outra vez na fila!
O meu pai tornou a dar um passo em frente e disse: ‑ Ninguém sabe quem é que matou o Grande Patrão Henry, Mr. Johnson. Por isso, fique comigo em vez da Morri ou eu prometo que lhe enfio uma seta no coração.
Aquelas palavras puseram‑me a tremer. O Papá tinha pouco mais de sete palmos, com rolinhos apertados de cabelo grisalho que já estavam a ficar ralos no cimo da cabeça, mas ele era superior a Mr. Johnson e todos nós o sabíamos. Agora que o meu pai o tinha ameaçado, o superintendente estava a começar a perceber que estava a perder a sua contenda connosco. Porque se o meu pai estava disposto a arriscar‑se a ser linchado por falar como falou, ele podia estar cem por cento certo de que nós não estávamos a mentir e que ninguém sabia quem tinha sido o assassino. ‑ Vocês, seus pretos, voltem para o trabalho ‑ gritou ele. ‑Já aturei demasiadas mentiras para um só dia!
E depois, cortou as cordas de Backbend e o rapaz fugiu a correr.
O crime nunca foi resolvido, mas eu tinha quase a certeza que sabia quem o tinha cometido: o Pequeno Patrão Henry. Ele tinha estado fora numa festa, mas podia ter feito o percurso para casa e ter‑se esgueirado para dentro sem ninguém o ver. Ou talvez tivesse sido visto. E ouvido. Provavelmente nenhum escravo o teria admitido, mesmo que Backbend tivesse ficado com os ossos à mostra com o chicote. Acusar o herdeiro do trono de River Bend teria sido uma sentença de morte.
O Pequeno Patrão Henry tinha tudo a ganhar com a morte do pai. Com a lâmina de uma facazinha, herdava metade da plantação. A outra metade ia para Mistress Holly, claro.
Fosse como fosse, estávamos prestes a ter um patrão novo.
Duas semanas a seguir à morte do Grande Patrão Henry, numa tarde de domingo cheia de sol, o Papá pediu‑me para me sentar ao lado dele num banco no meio de um círculo de fúcsias que ele plantara.
Dúzias de flores em forma de campainhas cor‑de‑rosa, vermelhas e cor de púrpura oscilavam à nossa volta. O Papá dizia sempre que os brincos‑de‑princesa gostavam que as pessoas soubessem como eles eram bonitos e que ficavam ofendidos se desviássemos os olhos demasiado depressa. Eu sabia o que é que ele queria que eu lhe dissesse, mas o meu coração batia ruidosamente. Disse‑me:
‑ Não te vou obrigar a dizer nada. Podes contar‑me quando estiveres preparada.
Encostou a minha cabeça no ombro dele.
‑ Dorme. Encosta‑te a mim e dorme, Morri. Não te deixarei cair.
Depois de ter sabido, por Benjamim, da traição do meu pai, escrevi imediatamente uma carta à minha mãe e à Tia Fiona pedindo‑lhes que se preparassem para nos receber em casa delas dali a duas semanas.
Era evidente que a Avó Rosa queria que eu também a convidasse, quanto mais não fosse para poder permitir‑se a dignidade de uma recusa, mas a Mamã cortar‑me‑ia a cabeça se ela fosse connosco. As últimas palavras que a Avó Rosa me disse foram: ‑ John, foste sempre uma criança inteligente, mas nunca foste gentil. Muito parecido com a tua mãe nesse aspecto.
‑ Tenho muita pena, avó, muita pena mesmo. Teria preferido ter sido um neto melhor. Garanto‑lhe que se pudesse ficar em Portugal, ficava. Não é minha intenção ser cruel.
‑ Nunca é a nossa intenção, John.
Luna Oliveira não tinha nenhum parente vivo; por isso, fui a casa dela na Véspera de São João para lhe perguntar se não quereria pensar em juntar‑se a nós em Inglaterra, logo que estivéssemos instalados. A precária situação política de Portugal fazia com que eu achasse que seria melhor irmo‑nos todos embora, pelo menos durante o futuro próximo.
‑ Oh, John, é demasiado tarde para uma burra velha como eu ir Para qualquer outro lado ‑ disse ela, suspirando.
Insisti, mas ela teimava em dizer que era impossível. Agradeci‑lhe tudo o que ela e a irmã tinham feito por mim e que tinha sido muito. ‑ Salvou‑me a vida quando descobriu o Senhor Gilberto para me treinar ‑ disse‑lhe.
Fazendo‑me chorar, Luna disse‑me:
‑ Nós nunca tivemos filhos, mas tínhamos‑te a ti, John, e tanto Graça como eu ficámos eternamente gratas.
A bordo do nosso navio, instalou‑se‑me nas entranhas uma sensação de morte, fazendo com que o meu coração se amarfanhasse. A ideia louca de que o Papá podia ainda estar vivo algures, escondendo‑se de nós por vergonha, obrigava‑me a ficar em silêncio. Eu sabia que não podia ser verdade, mas não conseguia aceitar totalmente a sua morte, mesmo passados todos estes anos. Quando as minhas filhas vieram para junto de mim, demos as mãos e ficámos a ver a nossa terra a desaparecer.
Chegámos a Londres no dia três de Julho, à tarde. Encontrámos a Mamã e a Tia Fiona muito felizes, tão excitadas com a nossa chegada que saltitavam à nossa volta como se fossem meninas de escola e não paravam de nos fazer perguntas sem esperarem pelas respostas.
A nossa primeira conversa deu origem ao tom ligeiramente histérico e cómico dos nossos primeiros dias com elas, o que me agradou imenso pois servia para camuflar a minha preocupação.
Os olhos azuis de Fiona estavam radiantes.
‑ Não posso acreditar! ‑ não parava ela de dizer em tom exclamativo. ‑ Elas são mesmo umas bonnie' burdies(1). Ora vejam só, as penas doony desapareceram todas!
‑ O que é que quer dizer doony? ‑ perguntou Esther.
‑ Macio ‑ replicou a minha mãe.
‑ E burdies?
‑ Raparigas.
‑ Deixem‑me olhar bem para todos! ‑ disse Fiona, recuando para nos abarcar a todos quando nos sentámos no sofá.
‑ Estás a assustar as crianças a fixá‑las dessa maneira ‑ gracejou a minha mãe.
Fiona deu umas palmadinhas no carrapito grisalho. Os olhos encheram‑se de lágrimas enquanto ela murmurava para si própria bonnie burdies. Depois disse aquilo que eu e a Mamã tanto queríamos que ela não dissesse:
‑ Se ao menos James aqui estivesse para vos ver!
*1. Bonnie ‑ de «bonny» (escocês) ‑ bonito. (N. da T.)
A Mamã estava com um aspecto maravilhoso e tinha deixado que o cabelo brilhasse com o seu prateado natural. Naquele primeiro dia, trazia brincos de ametista e um colar de pérolas de que eu me lembrava muito bem da minha infância. Ela atribuía a sua confiança em si própria a Londres, onde se sentia completamente em casa e podia viver abertamente como judia.
Fiona concordava que a espantosa diversidade da cidade tinha de facto ajudado a minha mãe, mas atribuía maior importância às lições de piano. Muito considerada como professora, a sua fama tinha‑se espalhado e agora tinha alunos que vinham de tão longe como Camden Town. Um dos seus antigos alunos, um londrino de vinte e um anos, chamado ían Pitt, tinha acompanhado o conhecido tenor Renato Vecchia na sua recente digressão por França e Itália.
Quanto a mim, atribuía muito da sua mudança à própria Tia Fiona, que ligava muito pouca importância ao que as outras pessoas ‑ e, em particular, os homens ‑ pensavam dela. Vestia‑se como queria, dizia tudo o que pensava e se houvesse alguém que não gostasse, que se lixasse!
Uma última razão para a sensação de paz que a Mamã tinha conseguido pode ter sido o facto de, ao ir viver para Inglaterra, se ter distanciado centenas de léguas das críticas da sua própria mãe. Como é evidente, eu e ela conversámos sobre a Avó Rosa assim que cheguei. Quando alvitrei que ela podia considerar a hipótese de a convidar para uma estada prolongada, retorquiu‑me:
‑ John, a minha mãe só queria que tivesses pena dela. Ela e os meus irmãos andaram sempre em guerra comigo; por isso, agora deixa que se deliciem na companhia uns dos outros.
Foi nessa altura que, finalmente, a Mamã me contou o que tinha causado o desentendimento entre eles e me explicou como a sua grande afeição por Violeta, e até por Daniel, estava relacionada com o seu próprio passado.
Quando ela tinha apenas catorze anos, o professor de piano tinha‑lhe tocado de forma imprópria.
‑ Fiquei assustada e confusa ‑ contou‑me ela. ‑ Eu considerava‑o um... tocava tão bem. E sempre confiara nele. Ele ter‑me traído assim... daquela maneira tão horrível... fez‑me perder a fé em tantas coisas!
‑ O que é que a mãe fez?
‑ Eu achei que era melhor ficar calada, mas na lição seguinte ele voltou a fazer a mesma coisa. Por isso, depois de ele se ter ido embora, contei à minha mãe, mas ela acusou‑me de ser demasiado coquete com os adultos. Disse que se ele me tinha tocado de forma imprópria ‑ o que ela não estava disposta a acreditar só porque eu o estava a dizer ‑, era porque, com toda a certeza, eu o tinha andado a encorajar. Para me castigar, proibiu‑me de voltar a ter lições de piano com quem quer que fosse. John, tu sabes como eu adoro tocar piano. Fiquei com o coração despedaçado ‑ completamente perdida.
‑ E, como se isso não bastasse ‑ continuou a Mamã, pousando a mão no peito para controlar a respiração ‑, o meu antigo professor espalhou boatos maldosos a meu respeito, dizendo que eu era uma marrana perversa e que o tinha tentado seduzir.
Estremeceu quando me disse que os adultos da vizinhança se tinham referido a ela durante anos como «aquela puta judia e mentirosa».
‑ Então nunca mais tiveste lições? A Mamã sorriu maliciosamente.
‑ Conheces‑me melhor do que isso, John. Arranjei um professor e durante mais de dois anos estudei com ele em segredo. Chamava‑se João Vicente, que Deus abençoe a sua memória. Não me pediu qualquer pagamento. Disse‑me que quando eu fosse uma pianista famosa e rica, lhe poderia pagar. Mas então um dos meus queridos irmãos mais velhos seguiu‑me em segredo pela cidade e contou à minha mãe o que eu andava a fazer. Sabes o que é que a Avó Rosa fez? Bateu‑me nas palmas das mãos com uma pá, gritando a cada pancada que eu nunca mais voltaria a tocar piano e a humilhar a família. Foram precisas várias semanas até eu ser capaz de coser fosse o que fosse. Durante vários anos, senti‑me uma pária. O pior de tudo era estar proibida de fazer aquilo de que mais gostava. Só me comecei a sentir eu outra vez quando saí de casa e pude tocar piano sempre que queria.
Em certo sentido, foi o Papá que lhe salvou a vida, pois ele não ligou nenhuma aos boatos sobre o carácter dela e acreditava apenas no amor que tinham encontrado juntos.
‑ O primeiro presente que me deu depois de casarmos foi o piano‑forte que mandou vir de Londres... aquele que ainda tenho.
Os olhos da Mamã irradiavam amor por ele.
‑ Depois, quando tu nasceste, John ‑ disse‑me ela, dando‑me uma pancadinha brincalhona no nariz ‑, soube que tinha vencido todo o mal que me tinham feito. Tu eras a minha prova de que tudo iria correr bem na minha vida.
Para mim, claro, esta solidariedade forte e intuitiva entre os meus pais fazia com que a destruição do casamento deles fosse ainda mais terrível. A seguir, falámos da minha vida desde a morte de Francisca e ela ouviu‑me com toda a atenção. Eu não me apercebera de quanto ansiava ‑ e há quanto tempo ‑ por este simples acto de ouvir. Pelo seu lado, ela falou‑me no seu desejo de abrir uma escola de música, onde, com a ajuda de Fiona, poderia começar a aceitar alunos sem posses.
Rompeu em lágrimas quando soube que eu tinha recebido uma carta de Violeta, por quem ela rezara todas as noites durante muitos anos. Abstive‑me de lhe falar da minha intenção de a visitar em Nova Iorque. Ainda não conseguia decidir‑me a falar dos assuntos mais perturbadores que diziam directamente respeito à minha mãe.
Durante os dias seguintes, Esther e Graça divertiram‑se com visitas a St. Pauls e aos Kensington Gardens e ficaram muito encantadas com as perfumarias em Shire Lane e um espectáculo de fantoches em Oxford Street.
Secretamente, meti uma carta no correio para Violeta dizendo‑lhe que chegaria a Nova Iorque tão depressa quanto um barco me pudesse levar. Acrescentei que gostaria muito de fazer um painel para casa dela, mas que isso podia ter de esperar um mês ou dois enquanto eu tratava de um outro assunto que lhe explicaria logo que chegasse.
Pedi aos outros que me dessem um dia sozinho para descansar depois da viagem de mar. Dos olhares de soslaio que a minha mãe e a Tia Fiona me deitaram, tive a certeza de que elas julgavam que eu estava a pensar em ter uma tarde de deboche. Nada disso. Em Oxford Street, aluguei uma carruagem para me levar ao escritório de uma agência de navegaÇão na King William Street, onde comprei uma passagem a bordo do Jaxony, que, apenas uns meses depois, viria a afundar‑se tão famosamente numa tempestade. Eu iria partir de Portsmouth oito dias depois.
Estava a sentir‑me muito aliviado por ter a passagem na mão até ter perguntado ao agente quanto tempo iríamos estar no mar.
‑ No ano passado ‑ respondeu‑me ele jovialmente ‑, exactamente por esta altura, as velas dele apanharam todas as rajadas de vento e fizeram a travessia em vinte e oito dias.
Eu devia ter ficado calado, mas não resisti a perguntar:
‑ E se, porventura, ele não conseguir captar alguns desses ventos?
‑ Nesse caso ‑ respondeu ele com um grande sorriso ‑, eu diria que pode contar com uma viagem de três meses, pelo menos.
Nessa noite, as meninas foram com a minha tia ao Teatro de Covent Garden para assistirem a uma representação de Macbeth, com Charles Kemble no papel principal. Embora eu há muito esperasse uma oportunidade para assistir a uma das suas representações, esta era a última peça em todo o mundo que eu queria ver. A Mamã também não queria vê‑la e, por isso, ficámos os dois em casa.
Sabendo que não podia adiar mais a conversa sobre os meus planos de viagem, levei as cartas endereçadas ao meu pai pelo Capitão Morgan para a sala onde a Mamã estava a bordar.
‑ O que é que trazes aí, John? ‑ perguntou‑me ela.
‑ Cartas, Mamã.
‑ De quem? Inspirando fumo, repliquei:
‑ Já lhe digo.
‑ Mas que reservado estás esta noite ‑ comentou com um sorriso. Mas vendo a minha angústia, acrescentou: ‑ Mas o que é que se passa, filho?
‑ Mãe, peço‑lhe desculpa por lhe fazer uma pergunta difícil, mas o que é que sabe exactamente sobre a morte de Meia‑Noite?
‑ Só sei aquilo que tu sabes.
‑ Tem a certeza?
Ela passou para português.
‑ Agradeço‑te que não utilizes esse tom agressivo comigo. Largou o bordado e pousou‑o em cima da mesa de apoio.
‑ John, não estou com disposição para aturar nenhum disparate que estejas a planear à minha custa.
‑ Meia‑Noite foi mesmo morto quando estava a caçar sem licença? Ela cruzou os braços no peito, na defensiva.
‑ Foi o que me disseram.
‑ Não achou estranho que não houvesse nenhuma campa dele em Swanage?
‑ Claro. Mas o ministro que lá estava explicou... John, contei‑te isto tudo numa carta já há muitos anos. Estás a perder a memória ou é...?
‑ Alguma vez suspeitou do pai? ‑ inquiri.
‑ Suspeitei dele em relação a quê?
‑ De ter matado Meia‑Noite.
Ela suspirou, esfregou as têmporas e levantou‑se:
‑ John, receio estar cheia de sono. Vais ter de me desculpar, mas eu...
‑ Sente‑se! ‑ gritei‑lhe, surpreendido com a veemência na minha voz. ‑ Ainda não acabámos.
‑ Não podes falar comigo assim, meu jovem.
‑ Tenho trinta e dois anos. Falo como quiser.
‑ Estou a ver que nem a morte prematura de Francisca melhorou as tuas maneiras.
Achei que dizer aquilo tinha sido uma crueldade. No entanto, verdade seja dita, também me senti muito satisfeito por ela ter cometido um erro de táctica, pois magoar‑me desta maneira tornava‑nos iguais; ela já não podia obrigar‑me a continuar com cautelas delicadas.
‑ John, perdoa‑me ‑ disse ela, abanando a cabeça numa reprovação do seu próprio comportamento. ‑ Foi horrível da minha parte. Por favor, perdoa‑me.
‑ Perdoo, Mamã. Voltou a recostar‑se.
‑ Sim, suspeitei que o teu pai tinha causado a morte de Meia‑Noite. Quer por negligência quer por o ter encorajado voluntariamente naquela caçada em terrenos particulares. Mas já foi há tanto tempo. Não podemos deixá‑los descansar em paz?
Convencido que ela não sabia que o pai tinha vendido Meia‑Noite a um traficante de escravos, disse:
‑ Mamã, e se eu lhe dissesse que Meia‑Noite pode ainda estar vivo? Ela bufou desdenhosamente e, por isso, eu acrescentei:
‑ Estou a falar muito a sério. Inclinou‑se para mim:
‑ Estás a dizer‑me que viste o fantasma dele? O que é que viste? Agarrando nas cartas e estendendo‑lhas, respondi:
‑ Vi isto. Por favor, olhe para elas. Estão endereçadas ao Papá. Abriu a primeira como se fosse uma curiosidade.
‑ Não conheço nenhum Capitão Morgan. E devo dizer que ler cartas endereçadas ao teu pai me faz sentir um bocadinho como uma ladra. Acho melhor...
‑ Leia‑as, Mamã. Por favor. Faça‑o por mim...
Quando começou a ler, queixou‑se que a letra era ilegível, esperando sem dúvida poder ignorar o conteúdo das cartas com a mesma facilidade. Depois de ter lido a primeira carta, disse‑me: ‑ John, não tenho a certeza que isto queira dizer... que isto queira dizer o que penso que quer.
‑ Leia‑as todas, Mamã. Depois falamos. E depois desta noite nunca mais voltarei a falar delas, se for esse o seu desejo.
Assentiu com a cabeça. Para evitar a tentação de a observar enquanto lia, fui para a janela e puxei de uma cadeira. Estava a imaginar a Mamã a fazer chá para Violeta e Daniel. Como ela tinha sido bondosa para nós os três.
Quando voltei para junto dela, tinha o lábio de baixo a tremer e as faces coradas. Tirou os óculos e disse‑me:
‑ John, este inglês é demasiado difícil para mim... Explica‑me o que isto quer dizer.
‑ Acho que a senhora sabe.
‑ É possível. Mas o teu inglês é melhor do que o meu. Continua a ser uma língua estrangeira para mim. Quero ter a certeza de que percebo tudo.
‑ Quer dizer que o pai vendeu Meia‑Noite a um homem no estado americano da Virgínia, através do capitão de um barco chamado Morgan. .. A seguir, Meia‑Noite voltou a ser vendido e, provavelmente, foi levado para a Carolina do Sul. Isso é um estado que ainda... que ainda tem escravatura. Não foi possível localizá‑lo; pelo menos, em 1807. E Benjamim também não conseguiu nos anos seguintes. Em resumo, quer dizer que Meia‑Noite ainda pode estar vivo... acorrentado como um escravo na Carolina do Sul. Ou noutro lugar qualquer nos Estados Unidos.
‑ John, não podes estar à espera que eu acredite numa história dessas... que acredite que o teu pai fizesse uma coisa dessas!
‑ Todavia, foi o que ele fez.
‑ Mas porquê? Por que é que ele...
- A voz prendeu‑se‑lhe na verdade do seu próprio papel nesta tragédia.
‑ Eu não posso... não posso acreditar nisso ‑ gaguejou ela. ‑ Recuso‑me a acreditar no que quer que seja, John. É completamente impossível! ‑ Estendeu‑me as cartas. ‑ Pega nelas, não quero ler estas mentiras... estas malditas mentiras!
Atirou‑as para o chão.
‑ Mãe, durante quanto tempo é que a senhora e Meia‑Noite...? Não consegui acabar a pergunta.
Ela pegou no bordado, mas tinha as mãos a tremer e não conseguia trabalhar.
‑ Diabos levem a minha vista! ‑ exclamou bruscamente.
‑ Quanto tempo é que a senhora e Meia‑Noite...?
‑ John ‑ interrompeu‑me ela ‑, não te importas de me trazer outra vela? ‑ Olhou para cima franzindo os olhos, desafiando‑me a continuar a interrogá‑la. ‑ Esta minha vista... a velhice... Não perdoa mesmo.
‑ Eu vou buscar‑lhe uma vela, mãe, mas há segredos antigos que eu preciso de saber.
Voltou a concentrar‑se no bordado.
‑ Quando fores velho, John, espero que as tuas filhas não te sujeitem a um interrogatório como este.
‑ Quando for velho, espero seriamente que elas não tenham motivos para o fazer.
Deixei que o silêncio se prolongasse, esperando que o seu peso a enervasse e a incitasse a falar, mas ela não proferiu uma só palavra.
‑ Não me vai contar, pois não? ‑ perguntei. ‑ Mãe, eu não quero magoá‑la, mas preciso de saber estas coisas.
‑ Não vou falar delas.
‑ Podia ter em conta que tenho o direito de saber.
‑ Podia. Mas também, posso não achar.
‑ Vivo há vinte anos com estas mentiras. E Meia‑Noite pode ainda estar vivo. Não acha que seria melhor contar‑me a verdade?
‑ A verdade! ‑ gritou ela. ‑ Para ti é tão fácil dizer essa palavra. Se estas cartas mandadas ao teu pai dizem a verdade, então também não soube nada do que realmente aconteceu.
‑ Mamã, a senhora deixou de gostar de mim.
‑ Isso não é verdade ‑ respondeu‑me mais gentilmente.
‑ Deixou de me amar e só voltou a amar‑me de verdade quando veio para cá. Por favor, admita‑o ao fim destes anos todos.
Ela agarrou‑se ao silêncio como única defesa.
‑ Mas eu continuei a amá‑la, Mamã, e continuei a amar Meia‑Noite ‑ disse eu desesperadamente.
‑ E então? ‑ deitou‑me um olhar furioso. ‑ Foste só tu? É isso que julgas? Todos nós continuámos a amar Meia‑Noite, John.
Por fim, disse‑lhe:
‑ Vou perguntar outra vez, mãe. E se me responder com a verdade, nunca mais voltarei a mencionar nada disto.
‑ Estou a avisar‑te. Se disseres mais uma só palavra, pedir‑te‑ei que te vás embora e nunca mais te deixarei voltar a pôr os pés em minha casa.
O tempo pareceu parar enquanto nos olhávamos como dois inimigos. Eu não tinha mais nada a perder.
‑ A senhora e Meia‑Noite deitaram‑se juntos como marido e mulher? Ao ouvir aquilo, a minha mãe tentou sair da sala, mas eu agarrei‑a
pelo braço quando ela passou por mim e apertei‑lho com força.
‑ Tira a mão de cima de mim! ‑ gritou ela.
‑ Não! Enquanto não me disser a verdade, não! Tentou soltar‑se, mas eu não a larguei. ‑ John, desta vez foste longe de mais!
‑ Não fui longe de mais. Ainda não fui.
‑ Estás a magoar‑me. Larga‑me imediatamente!
‑ Só se finalmente me disser a verdade, diabos a levem! O que é que aconteceu entre a senhora e Meia‑Noite?
Levantou a mão livre para me dar uma bofetada, mas eu agarrei‑a a tempo.
‑ O que é que diria o teu pai sobre a forma como estás a tratar a tua mãe?
Abanei‑a selvaticamente, deixando‑a sem fala com o choque.
‑ Não me interessa o que ele diria! ‑ silvei eu. ‑ Ele está morto, Mamã!... morto! E eu não. Estou aqui consigo e preciso da verdade. Deve‑me isso por não me ter amado durante todos aqueles anos!
Quando ela desatou a chorar, soltei‑a relutantemente.
‑ Estou‑me nas tintas para o seu orgulho! ‑ gritei‑lhe quando ela correu para fora da sala. ‑ É da vida de Meia‑Noite que estamos a falar. Se alguma vez o amou, então tem de me dizer a verdade, tem de ma dizer, ou...
Bateu com a porta antes de eu ter acabado a minha súplica.
Fiquei na sala a fumar e a emborcar whisky para acalmar os nervos. Desejava poder girar os ponteiros do relógio da Tia Fiona para uma hora atrás. Não para poupar a Mamã. Não, para falar ainda com mais dureza. Desta vez, obrigá‑la‑ia a dizer‑me a verdade se tivesse que o fazer.
Quando ouvi o barulho de uma carruagem a parar à porta, fugi para o meu quarto, incapaz de enfrentar as minhas filhas. Caí num sono profundo, induzido pelo whisky, ao som das vozes da Tia Fiona e das raparigas a tagarelarem sobre a peça.
Quando acordei, a Mamã estava a tocar o primeiro andamento da «Moonlight Sonata». De roupão, entrei silenciosamente no quarto dela. Fiquei parado a voltar‑lhe as folhas. Nenhum de nós falou. Ela não fez nenhuma tentativa para olhar para mim.
O perdão invadiu‑me os pensamentos. Filtrando‑se nos arpeggios suaves, transformou‑se na melodia. Seria isso que Beethoven tinha composto, uma homenagem ao perdão?
A minha raiva tinha‑se dissipado com o sono. Sentia‑me grato por isso.
Quando ela parou de tocar, disse‑lhe:
‑ Meia‑Noite pode estar a viver como escravo, Mamã. Não consigo suportar isso. Está a matar‑me. Não voltarei a viver como o homem que fui até o encontrar. Mamã, vou tentar encontrá‑lo, diga‑me a senhora o que disser.
‑ Estás disposto a ir até à América?
‑ Sim. O meu barco parte daqui a uma semana, no dia dezassete, de Portsmouth. Tenho de sair de Londres na véspera.
Ela agarrou‑me na mão e levou‑a aos lábios, acariciando depois a sua face.
‑ Continuas a ter as mãos mais bonitas que já vi.
‑ Mamã, peço perdão por...
‑ Shhh. Tiveste razão. O que te fizemos foi terrível... terrível e injusto.
Levou‑me para o sofá. Brincou mais um bocado com os meus dedos e depois cheirou‑os para sentir o tabaco. Tenho a certeza que isso a fazia lembrar‑se da presença amada do meu pai, como acontecia sempre comigo. Beijou‑me as duas mãos e fechou‑mas, voltando a entregar‑mas.
‑ John, quando tu ias para o teu lago, eu ficava sempre doente de aflição. Nunca te disse porque não queria que ficasses a pensar em mim,
sentada em casa, preocupada com a tua segurança. Queria que te sentisses livre, o que eu nunca senti quando era criança. Sentia‑me vigiada. Posso ter falhado como mãe, mas quero que saibas que fiz o melhor que pude.
‑ Não falhou. Não é por isso que eu preciso de falar nestas coisas agora. Estar‑lhe‑ei sempre grato pela felicidade que tive na minha infância.
Levantei‑me e dirigi‑me para junto da lareira, começando a remexer os carvões e as cinzas.
‑ Mamã, se eu não voltar, tem de... tem de...
‑ Se eu não voltar? ‑ interrompeu‑me ela. ‑ O que é que queres dizer com isso?
‑ Não posso prever o que vai acontecer. Não sei em que circunstâncias é que Meia‑Noite é mantido cativo. Se não o puder comprar, roubo‑o. De uma forma ou de outra, vou libertá‑lo. Não consigo continuar com a minha vida de outra maneira.
‑ Mas vais conseguir comprá‑lo, não é verdade?
‑ E se o dono dele não o quiser vender?
‑ Nesse caso, ofereces‑lhe mais dinheiro. Eu dar‑te‑ei o que for preciso. Devo ter... devo ter trezentas ou quatrocentas libras que te posso dar. São para Meia‑Noite. E se precisares de mais, vendo as minhas jóias e tudo o que possuo para arranjar mais.
Sentei‑me ao lado dela.
‑ Mamã, se por qualquer motivo eu não puder voltar, terá de tomar conta das minhas filhas. Não posso ir se não for assim.
‑ John, isto é absurdo.
‑ Diga‑me que promete tomar conta das raparigas se eu não voltar.
‑ Muito bem ‑ disse ela com a voz a tremer ‑, juro que as criarei e protegerei.
Beijei‑a nos lábios pela primeira vez em muitos anos.
‑ Obrigado.
Ficámos sentados em silêncio durante um bocado e depois, cedendo ao cansaço, pus a cabeça no colo dela. A Mamã acariciou‑me o cabelo. Quando eu estava quase a dormir, murmurou‑me:
‑ Vou contar‑te o meu segredo, mas tens de prometer que nunca o contarás às meninas ou a Fiona. Não podes contar a ninguém.
Eu tinha os olhos fechados. Estava a deixar‑me ir.
‑ Tem a minha palavra ‑ sussurrei‑lhe.
‑ O teu pai ia muitas vezes para fora, como te deves lembrar. ‑ Pousou uma mão no meu peito. ‑ Numa dessas viagens, Meia‑Noite e eu... nós... nós...
‑ Apaixonaram‑se um pelo outro ‑ disse eu.
Continuei com os olhos bem fechados, sentindo que a minha cegueira a ajudaria a revelar‑me a verdade.
‑ Não, não. Não foi isso. Eu gostava imenso dele... isso é verdade. E ele gostava muito de mim. Mas não estávamos apaixonados um pelo outro ‑ não da maneira que queres dizer. Mas isso nem é importante, John. Eu continuava loucamente apaixonada pelo teu pai. Isso não tinha mudado. Garanto‑te que não. Mas, no entanto, eu precisava de tocar em Meia‑Noite. Eu era tonta e jovem e não conseguia suportar pensar que um dia morreria sem o conhecer dessa maneira. Parecia‑me de uma importância vital. Isto faz algum sentido?
‑ Sim.
‑ Ao fim de uma semana, concordámos em parar com o que andávamos a fazer e nunca mais falarmos disso. Não foi difícil. Acabámos por ficar mais ligados sem que os nossos desejos se voltassem a meter entre nós. Mas James... ele soube o que é que nós tínhamos feito.
Senti‑me tentado a falar na gravidez, mas não tive coragem para o fazer.
‑ James sentiu que qualquer coisa se tinha alterado entre nós ‑ entre o teu pai e eu, quero eu dizer. Confessei que tinha, embora não mencionasse Meia‑Noite. Então, para grande espanto do teu pai, disse‑lhe que o que tinha mudado era que eu estava mais feliz do que nunca por ter casado com ele! O que era verdade, visto que ter dormido com Meia‑Noite só me tinha provado quanto eu queria continuar a minha vida com o teu pai. Mas ele acusou‑me de esconder um namoro. Mencionou vários homens da vizinhança. O Senhor Samuel... até Benjamim.
Foi então que eu cometi o meu erro fatal: contei a verdade a James. Assegurei‑lhe que tinha acabado e que não tinha importância para o nosso casamento. Não é estranho, filho, que a verdade tenha destruído a minha vida? Se eu tivesse mentido de forma convincente, agora ainda estaria no Porto e o teu pai ainda estaria vivo. Meia‑Noite estaria, provavelmente, a viver em nossa casa e a trabalhar com Benjamim naquelas estranhas magias deles. Mas eu não podia continuar a mentir‑lhe. Adorava‑o ‑ tal como te adorava a ti. Mas James ficou furioso e ameaçou matar‑me. Eu contava com o seu afecto por mim para, a seu devido tempo, vencer o seu forte sentido de honra.
Passado uma ou duas semanas, julguei que a sua natureza mais nobre tinha de facto vencido. Quando ele partiu para Inglaterra com Meia‑Noite, ainda estava perturbado, mas também estava tranquilo. Foi bondoso e gentil comigo e contigo, como te deves lembrar.
Lembrei‑me de como o tinha encontrado a chorar na sua última noite no Porto.
‑ Em momento algum da nossa zanga ele acusou Meia‑Noite de ter agido de forma incorrecta ‑ acrescentou a Mamã. ‑ Ele considerava que eu era responsável pelo que acontecera... e, provavelmente, tinha razão. De repente, começou a arquejar. Sentei‑me.
‑ Oh, John, como fui tola! Agora percebo que ele deve ter passado semanas a planear trair Meia‑Noite. Foi isso que lhe deu uma certa tranquilidade. Não foi o seu amor por mim. Foi... foi...
Agarrou a cara com as mãos e fechou os olhos. Depois de ter recuperado a compostura, continuou:
‑ Quando James voltou sem Meia‑Noite, acusei‑o, é verdade. E vi que ele ainda não me tinha perdoado. Descobri isso quase imediatamente. Nunca mais voltámos a ser os mesmos ‑ como tu, melhor do que todas as outras pessoas, muito bem sabes. Vivíamos uma vida de recriminações. E ele foi‑se afastando de mim. E eu... eu fui egoísta, tão egoísta... recusei‑lhe o amor que ainda sentia por ele. Arrependo‑me mais do que alguma vez poderás saber. E até a esta noite, quando me mostraste essas cartas, acreditei que toda a nossa infelicidade podia ser, justificadamente, atribuída a Meia‑Noite e a mim. Mas agora... agora vejo que foi o que o teu pai fez que nos roubou a última oportunidade de sermos felizes. Como a sua vida lhe deve ter sido insuportável depois de ter vendido Meia‑Noite! Oh, James, todos os erros que nós cometemos... Começou a soluçar.
‑ Não podes imaginar o sentimento de culpa que tive durante todos estes anos ‑ gemeu ela. ‑ Perdoa‑me. Perdoa‑me, John. Por favor... Não posso continuar se tu não me perdoares. Endireitei‑me e dei‑lhe um beijo na cabeça.
‑ Agora é a minha vez de suplicar ‑ disse ela. ‑ Preciso de te ouvir dizer que me perdoas. Preciso de ouvir essas palavras.
‑ Perdoo‑lhe, Mamã. E amo‑a. O mau tempo já acabou... já se foi.
‑ Mas não acabou, John. Meia‑Noite é um prisioneiro! E enquanto ele continuar a sê‑lo, nunca acabará. Nem mesmo para o teu pai, embora ele já esteja no túmulo há quase quinze anos.
Seria de esperar que as confissões da minha mãe me tivessem trazido a sensação de estar tudo arrumado em relação ao passado, de finalmente ter compreendido por que razão a nossa família se tinha desmoronado. Em vez disso, deixaram‑me com uma sensação de fragilidade desesperada. Como consequência, insisti em passar com as minhas filhas todos os minutos dos dias seguintes. O que foi um erro tremendo; vivendo tão agarrados uns aos outros, discutíamos por causa de quase tudo: por elas quererem beber uns goles da minha cerveja, se a chuva fria exigia um gorro mais quente...
Três dias antes da minha viagem de carruagem para Portsmouth, esta ansiedade febril estoirou. Eu tinha mandado as raparigas sentarem‑se no sofá e perguntara‑lhes se havia algumas perguntas que elas quisessem ver respondidas sobre a mãe antes de eu me ir embora. Fiquei furioso com a reticência delas em se manifestarem, o que considerei como uma ofensa à memória de Francisca.
‑ Bem, nenhuma de vós tem nada a dizer?
Elas resmungaram, considerando‑me doido. Acalma‑te, ouvi Francisca dizer‑me. Por isso, sentei‑me com os olhos fechados. Passado um bocado, elas vieram abraçar‑se a mim.
Lembrar‑me de Graça nos braços da mãe, a pele toda engelhada, e depois ver esta mesma criança à minha frente... Pedi‑lhes desculpa por ter sido tão difícil para elas naqueles últimos dias. Cobri‑lhes as caras de beijos, o que as fez rir. Depois de uma conversa bem disposta sobre ninharias, sentimo‑nos todos muito melhor e eu incitei‑as a sair com a Tia Fiona, expulsando‑as de casa, às gargalhadas, com os meus rugidos.
Não tivemos mais discussões nos dias que se seguiram. Cada uma das kelpies vinha ter comigo à vez para eu lhes escovar o cabelo, uma tarefa de que a mãe se ocupara sempre.
Quando pedi desculpa à Mamã pela minha má disposição, ela respondeu‑me:
‑Julgas que eu não percebo que é a preocupação que te faz tão rabugento? John, eu estarei sempre aqui para ti, seja o que for que descubras na América. E as tuas filhas terão sempre um lar comigo em Londres.
Antes de eu partir, a Mamã entregou‑me um colete de riscas douradas e pretas que ela tinha feito em segredo, pedindo‑me para eu o vestir para ela ver se me servia.
‑ Cosi quinze soberanos de ouro dentro do forro ‑ disse‑me ela, piscando‑me o olho. ‑ Basta rasgá‑lo quando precisares.
Apalpei‑os.
‑ É muito simpática, Mamã, mas eu tenho dinheiro suficiente para a minha viagem.
‑ Não é para isso, filho. Já te disse: conto contigo para resgatares Meia‑Noite... custe o que custar.
Receio ter feito uma grande cena na carruagem que me levava para Portsmouth. A possibilidade de aquela ser a última vez que via a minha família deixava‑me inconsolável.
‑ Volta para casa depressa, filho ‑ disse‑me a Mamã, fazendo o possível por sorrir. ‑ E não te preocupes com as meninas. ‑ Encostou‑me as mãos à cara dela e depois beijou‑as. ‑ Vou fazer delas umas perfeitas senhoras inglesas.
‑ Meu Deus, espero bem que não ‑ repliquei eu, fazendo com que toda a gente se risse.
‑ Dá saudades a Violeta. Diz‑lhe que as minhas orações a acompanharam sempre, pobre rapariga!
‑ Dir‑lhe‑ei, pode estar descansada. Obrigado por tudo o que fez por mim.
Como eu percebia que o que ela mais desejava era participar no meu esforço para redimir o passado, acrescentei:
‑ As suas moedas de ouro irão libertar Meia‑Noite.
Olhámo‑nos nos olhos. Não sei o que é que ela viu, mas eu vi anos de história partilhada ‑ vi Daniel e Violeta, Fanny e Zebra, Francisca e as meninas. Vi Meia‑Noite. Mas, mais do que tudo, vi o meu pai.
‑ Pode dar‑me a sua bênção?
‑ Já não precisas disso. Agora és um homem.
‑ Mesmo assim...
‑John, claro que tens a minha bênção ‑ disse ela, beijando‑me. ‑ Tenho muito orgulho em ti... Sempre tive. A Tia Fiona apertou‑me nos braços, dizendo:
‑ Não te preocupes, as tuas filhas têm uns belos caracteres e não se estragarão em Londres.
Abracei‑a outra vez e depois aproximei‑me das minhas filhas.
‑ Tomem conta uma da outra ‑ pedi‑lhes.
‑ E o Papá tenha cuidado consigo ‑ soluçou Graça.
Ajoelhei‑me e agarrei cada uma delas com um braço, desejando recordar‑me da sensação maravilhosa de lhes tocar e do perfume delas durante todo o tempo que estivesse longe. Esther começou a chorar.
‑ Ouve ‑ disse‑lhe eu. ‑Voltarei o mais depressa que puder. Prometo.
‑ Eu sei ‑ respondeu‑me tristemente.
‑ E espero que estejas a tocar violino muito melhor quando voltar. Tens de praticar pelo menos duas horas por dia enquanto eu estiver fora. ‑ Murmurei‑lhe ao ouvido, como se fosse um segredo só nosso: ‑ A tua avó vai insistir em Mr. Beethoven, mas não te esqueças de Mr. Bach.
‑ E tu, Graça ‑ disse eu, enfrentando os olhos sombrios da minha filha mais velha ‑, por favor, não te preocupes comigo. Vai tudo correr bem.
A menina assentiu tristemente.
‑ Agora, isto é para as duas ‑ disse eu alegremente ‑, façam o favor de obedecer à vossa avó e à vossa Tia Fiona. Voltarei para casa antes de vocês terem tido tempo para terem saudades minhas; por isso, não estejam tristes.
E depois, zarpámos e eu fiquei sozinho a apertar com toda a força a flecha de Meia‑Noite, como se ela pudesse voar por vontade própria.
Meia‑Noite disse‑me uma vez que a Lua, quando está completamente cheia, é feminina. Mas quando é cortada pela noite na forma de um crescente, é masculina. Nessa altura, dá pelo nome de nui ma ze, que significa lua nova pequena. Também masculinas são as nuvens pesadas que nos falam com os seus trovões e que lançam relâmpagos e faíscas sobre a terra. Mas as suaves nuvens cinzentas que alimentam as plantas com a sua chuva dançante são femininas.
Tanto quanto me lembro, não encontrámos uma única nuvem feminina enquanto estivemos no mar. Em vez disso, oscilámos sempre entre tempestades violentas e um sol radioso. Comecei a pensar que o mundo era apenas governado por deuses masculinos. Daí que, quando chegámos à ponta sul da ilha de Manhattan, eu soubesse isto: que não tinha sido feito nem para fazer viagens pelo mar, nem para viver num mundo em que as forças naturais eram todas masculinas.
Entrando do oceano aberto, sob a grande cúpula do céu azul americano, a baía de Nova Iorque era uma visão esplendorosa. Fiz uma lista mental: Vou andar na terra. Cheirar as flores. Comer laranjas. Ver o pássaro azul com a crista de que Violeta me falou na carta. E esquecer a indiferença das ondas.
A cidade de Nova Iorque estendia‑se pela ponta sul da ilha, mas uma floresta densa cobria o norte. Depressa pudemos distinguir as casas de tijolo e até as carruagens. À nossa direita, numa península larga, havia outra população(*) chamada Brooklyn. Havia cerca de uma dúzia de pessoas em cima de uma falésia. Acenei‑lhes e três ou quatro retribuíram‑me o gesto.
O Saxony encostou a um cais que saía de uma artéria muito movimentada. Nós, os passageiros, aplaudimos entusiasticamente o nosso solavanco final.
*. O termo correcto deve ser povoação. (N. da D.)
A emoção era tanta, que alguns de nós ríamos pelo meio das lágrimas.
Pouco depois, a prancha de desembarque ficou colocada. Toquei no talismã de Daniel que trazia ao pescoço, apertei com força a flecha de Meia‑Noite, agarrei nas malas e corri para terra.
Cheguei à América e estou mais perto de Meia‑Noite! Não parava de repetir esta frase excitante para mim próprio, imaginando‑me num dos adorados mapas de Graça.
O cocheiro da minha carruagem de aluguer deu‑me o braço para me ajudar a subir, visto que o mundo ainda continuava a subir e a descer. Entreguei‑lhe um papel onde tinha escrito a morada de Violeta.
Passámos por praças frondosas e várias filas de casas muito arranjadas enquanto seguíamos o nosso caminho, parando e arrancando, pois havia muito trânsito àquela hora da manhã. O nosso caminho levou‑nos para norte, para o interior da ilha. Ao fim de vinte minutos, o cocheiro gritou «Ho» para os cavalos puxando‑lhes as rédeas. Tínhamos chegado ao número setenta e três da John Street. A casa de Violeta era de belos azulejos vermelho‑escuros. Os três andares terminavam num telhado de ardósia muito inclinado.
Pousei a bagagem no degrau do alpendre e inspirei fundo. Depois, agarrando no batente ‑ uma argola de latão na boca de um leão ‑, bati duas vezes. Olhei para cima a tempo de ver as cortinas de uma janela do primeiro andar a fecharem.
Destino de Preto
Os HOMENS JULGAVAM que o Pequeno Patrão Henry ia ser um diamante de compaixão comparado com o pai assassinado. Mas as mulheres e as crianças sabiam que não era assim, e ficou provado que nós é que tínhamos razão. Mal deitou as mãos a River Bend, o Pequeno Patrão Henry começou a beber como um louco e a chicotear tudo o que via. Foi uma janela aberta que o pôs no caminho do seu túmulo, na minha maneira de ver. Mistress Holly era de opinião que o vento gelado que o atingiu naquela noite tinha feito todo o caminho desde o Canadá. Era raro eu concordar com ela, mas este caso foi uma excepção. Lá em cima, no Canadá, era o sítio onde todos os negros eram livres e eu achava que eles tinham ventos vingativos para roubar as vidas daqueles que eram da mesma laia que o Pequeno Patrão Henry. Pelo menos, tão certo como haver inferno, eu esperava fervorosamente que tivessem.
Nesta noite em particular, a carruagem do Patrão atravessou a Grande Ponte umas horas depois da meia‑noite. Ele tinha estado numa festa na Plantação Comingtee dada por Mistress Nancy Bali. Nós chamávamos‑lhe Capitão Nancy por ela gostar tanto de chicotear os seus escravos com o seu chicote com a pega de marfim.
O Pequeno Henry estava tão bêbado que deve ter levantado a janela para que o ar dissipasse a nuvem de whisky dos seus pulmões. Ele não se lembrava de a ter aberto, mas isso não queria dizer nada, porque ele também não se lembrava de ter tropeçado nas escadas para a varanda, nem de vomitar no lavatório. Mas Crow viu estas duas coisas claramente e até despejou a bacia no poço de cal; por isso, nós sabemos que aconteceram. Além disso, nenhum dos brancos queria pensar sequer em quem mais é que poderia ter aberto a janela, porque isso teria querido dizer que havia alguém que tinha um plano.
Eu achava que não interessava muito quem é que tinha aberto aquela janela, pois, fosse como fosse que aquilo aconteceu, o vento precipitou‑se lá para dentro como se estivesse à espera há semanas. Depois curvou os dedos gelados à roda da garganta dele de forma que na manhã seguinte ele tinha uma tosse feia e febre. Nos dias que se seguiram, a febre foi ficando pior e o Pequeno Patrão ficou completamente doido. Era um ataque, igualzinho aos do pai.
Foi o meu pai que tomou conta do Pequeno Patrão Henry. Levava‑lhe aos lábios chávenas de infusão de bagas de abrunheiro para lhe diminuir os calafrios e fazia‑o respirar o vapor de folhas de pessegueiro fervidas para abrandar a febre. Ao fim de duas semanas, ele já se conseguia aguentar em pé sozinho. E mal conseguiu descer as escadas, começou outra vez a dar ordens, naquela sua voz aguda, como se nunca tivesse estado doente. E a primeira ordem que deu foi que não iria dar a liberdade nem a Samuel, nem à sua filha, nem a quaisquer outros pretos presunçosos com sonhos ianques nas cabeças, quer lhe tivessem salvado a vida quer não.
Estão a ver, o Papá tinha‑lhe pedido que nos libertasse ‑ em troca de o ter libertado dos braços da morte.
Uma semana depois de o Pequeno Patrão Henry nos ter negado a liberdade, voltou a adoecer gravemente. O Papá experimentou tudo naquele rapaz, todos os tipos de infusões e de poções que só ele e eu conhecíamos. Mas nada do que fazia tinha qualquer efeito.
Todas as noites, eu levava ao Patrão a sua limonada, tal como fizera com o pai dele. Por esta altura, ele já não conseguia aguentar dentro de si nem uma colher de papa de milho. Estava todo entupido. Se querem saber, a sua recusa de nos dar a liberdade é que foi a causa daquilo. E não havia nada em nenhum livro de curas que o pudesse libertar daquele mal.
Uma noite, levei a limonada até à porta e encontrei‑a fechada à chave. Tive medo de o acordar se ele estivesse a passar pelas brasas. Por isso, em vez de bater, fiquei ali, como uma aranha na sua teia, durante um bocado, à espera e a pensar. Depois fui ao quarto de Mistress Holly ‑ Quando lhe disse que a porta do filho estava fechada à chave, ela tirou a chave dela da gaveta e gritou a Crow que fosse buscar o meu pai. Desta vez, ninguém correu à procura de Mr. Johnson porque ninguém podia acreditar que um homem tão novo como o Pequeno Patrão Henry pudesse estar morto. Afinal, ele só tinha vinte e quatro anos. E era um homem branco. O que eu quero dizer com isto é que ele tinha poderes sobre a vida e a morte que nós não tínhamos.
O Papá disse «Obrigado» por lhe darem a chave e depois abriu a porta. E, tal como três meses antes, descobrimos que o nosso patrão tinha uma faca espetada no pescoço, logo acima da clavícula.
O jovem morreu a vinte e dois de Novembro de 1820 ‑ mesmo a tempo do Thanksgiving(1), disseram alguns dos mais cruéis de entre nós. Acho que se pode dizer que nunca estamos preparados para que a morte venha buscar uma pessoa que nós conhecemos. Aprendi isso quando a Mamã ficou doente. Embora ela tivesse febre durante três semanas, nunca me permiti pensar, nem uma só vez, que ela estava prestes a deixar‑nos. O choque quase me fez perder o juízo. E ao Papá também. Ele esteve quatro meses sem dizer uma palavra depois disso.
Pode‑se dizer o que se quiser sobre Mistress Holly, mas ela gostava muito do filho. Acho que era a única pessoa que ela de facto amava. Por isso, pensávamos que ela ia começar a gritar e a chorar horrivelmente. Nenhum de nós esperava aquele terrível silêncio quando ela se aproximou do filho e pousou a cabeça no peito ensanguentado dele. Ele ainda tinha os olhos abertos, mas ela não estendeu a mão para os fechar. Não queria que ele estivesse morto para sempre.
Pela primeira vez na vida, senti‑me mal por causa de uma pessoa branca. Depois do Dr. Lydell ter vindo e se ter ido embora, fui em bicos de pés ao quarto de Mistress Holly e perguntei‑lhe muito delicadamente se queria que eu lhe trouxesse limonada e uns biscoitos de amêndoa que Lily tinha feito. Ela, deitada na cama, olhou para cima com uns olhos tão vermelhos que pensei que tinha esfregado o sangue do filho neles. Assustei‑me. Ela deitou‑me um olhar furioso como se eu me estivesse a rir dela. Na voz mais má que eu já lhe tinha ouvido, disse‑me:
‑ Tira essas patas do meu quarto, minha pretinha, ou mando‑te esfolar, cobrir de sal e esquartejar.
Quando o dono de uma plantação é assassinado na Carolina do Sul, todos os brancos começam a tremer como varas verdes, mesmo quando estão sentados às lareiras. Porque sabem que o homicídio pode ter sido obra de um negro que queria ser livre. Como Mr. Denmark Vesey. Ele era um pregador que foi enforcado por tentar começar uma revolta em Charleston em 1822. Uma vez, até veio a River Bend e a gente conseguiu Sentir aquela grande força nele. «Como relâmpagos negros», foi como o Papá o descreveu, com o que queria dizer muitas coisas, calculo eu.
*1. Thanksgiving ‑ Dia de Acção de Graças. (N. da T.)
Por isso, com uns cem mil negros a pensarem em vingança todas as noites, não era de espantar que os brancos não dormissem muito descansados. Eles achavam que, quando começássemos, só iríamos parar quando o último representante da raça deles estivesse estendido numa poça de sangue de uma rua de Charleston, a ser devorado por abutres. E, provavelmente, tinham razão.
Esta morte queria dizer mais outra coisa. Era a prova de que havia uma maldição sobre River Bend. Ninguém o disse mais alto do que a própria Mistress Holly. Ela deixou praticamente de se vestir. Passava a maior parte do tempo de roupão, sentada a fazer paciências e a consolar‑se com rum.
Acho que às vezes a vida emperra quando se repete. Desta vez, Mr. Johnson não se deu ao trabalho de medir a distância da janela até ao chão, visto que a Casa Grande não era feita de borracha e não podia ter ficado nem mais alta nem mais baixa. Quanto à escada, estava fechada no Primeiro Celeiro e só Mr. Johnson é que tinha a chave.
Vinte e quatro pés da janela até ao chão... O Pequeno Patrão Henry morto aos vinte e quatro anos... Lily, Weaver e alguns dos outros escravos achavam que esta coincidência era prova de que, finalmente, iríamos ter justiça divina na Carolina do Sul.
Mr. Johnson ficou furioso connosco por não sabermos quem tinha sido, mas não chicoteou ninguém. Estava à espera para ver quem ia ser o novo patrão antes de se entregar à cólera.
Fosse o que fosse que ele pensava, eu acho que ele começou logo a fazer planos para sair de River Bend com Mistress Holly. Crow ouviu‑o falar disso com ela ainda não tinham passado duas noites sobre a morte do filho dela.
Desta vez, contudo, a justiça da Carolina do Sul descobriu um culpado, embora só tivéssemos sabido três dias depois do facto consumado. Na história que ouvimos, um escravo fugitivo, chamado Hilton, tinha sido apanhado por uma patrulha quando estava a atravessar a vau o braço oriental do rio Cooper, ao pé do sítio onde ele se encontra com o French Quarter Creek.
Os cães podiam ter‑lhe perdido o cheiro, mas o sapato tinha‑lhe saltado na lama da margem do rio. Podíamos dizer que o destino dele ficou ali encalhado com ele. Destino de preto, como costumava dizer a minha mãe. ‑ Quero dizer, coisas como o sapato descalçar‑se no pior momento possível. Ela foi a única pessoa que conheci que era capaz de topar esse
destino de preto no momento que ele fixava os seus olhos de falcão num de nós.
Ouvimos o relato do que tinha acontecido do Crow, que o tinha ouvido da Tia Bessie. Hilton tinha sido arrastado para fora do rio, quase afogado, pela patrulha. Quando encontraram um relógio de prata no bolso dele, disseram que devia ter pertencido ao Pequeno Patrão Henry. Nenhum preto podia conseguir uma coisa tão bonita sem a roubar.
Depois de o terem linchado num grande carvalho, desceram‑no, enrolaram a corda em volta das pernas e arrastaram‑no preso a um cavalo todo o caminho até Cherry Hill. Percorreram quase duas léguas de estradas más, cheias de pedras; por isso, quando o largaram em frente da cabana da pobre da mãe dele, tinha quase todos os ossos da cara partidos. Acho que se pode dizer que a maternidade tem de ser a coisa mais corajosa de todas, uma vez que ela se ajoelhou ao lado do corpo e tentou recompô‑lo.
Não consigo lembrar‑me de nada mais cruel do que fazer aquilo a um homem e mostrá‑lo à mãe.
Ninguém da patrulha sabia ou se importava que o relógio de prata tivesse sido um presente do pai dele, o Papá Lucius.
O meu papá disse‑me que os homens como ele só davam ouvidos à Hiena e faziam o que ela queria. Às vezes, o meu papá falava assim. A maior parte da gente de River Bend não o compreendia, mas eu sim. Uns dias depois, choveu durante toda a noite e o Papá dançou lá fora, em frente da Casa Grande, até à alvorada. Ele ficou tão ensopado e cansado que julguei que ia cair ali mesmo no meio da lama. Fechou os olhos quando eu o segurei nos meus braços e murmurou:
‑ Tenho que garantir que eles não nos roubem também as danças. Todos nós sabíamos que não havia justiça na Carolina do Sul, mas eu continuava a pensar que devia haver. Acho que pensar assim foi a razão de todos os meus problemas.
Depois do funeral do Pequeno Patrão Henry, Mistress Holly mudou‑se para a casa da cidade em Charleston e nunca mais voltou a River Bend. Também não convidou Mr. Johnson para junto dela. Acho que ela gostou dele enquanto não houve mais ninguém por perto. As pessoas diziam que ela jogava às cartas todas as noites com outras viúvas e ganhava o Suficiente para poder comprar todo o rum que queria. Mistress Holly morreu cinco meses depois com malária, disseram os médicos.
Mas os boatos que corriam era que se tinha matado a beber. Acho que ninguém consegue viver durante tanto tempo com tanta infelicidade no coração.
Mr. Johnson descarregou a sua frustração em cima de nós. Durante os três meses seguintes, fomos chicoteados só por espirrarmos no momento errado. Ele também me arrancou a pele. Pela primeira vez. O Papá estava em Charleston a tratar das compras nesse dia.
Mr. Johnson deve ter achado que o meu pai estar na cidade era a sua oportunidade para descarregar todo o ódio que me tinha e que andava a recolher nos seus velhos bolsos há muitos anos. O que o fez perder a cabeça foi eu ter‑lhe dito que os escravos dos campos provavelmente trabalhariam melhor se as chaminés deles fossem feitas de tijolos em vez de barro.
‑ Que raio de estupidez de preto tás tu pr'aí a dizer? ‑ perguntou‑me ele.
‑ Se fossem feitas de tijolo, não derretiam sempre que chove e os escravos do campo poderiam manter as cabanas aquecidas quando a chuva caísse em catadupa. Talvez assim conseguissem dormir uma noite inteira.
O meu erro foi ter olhado de frente para ele e ter perguntado:
‑ Alguma vez tentou trabalhar de sol a sol depois de ter dormido só duas horas, Mr. Johnson?
Foi então que ele me agarrou pelo braço e mandou os dois capatazes negros arrastarem‑me para o barril das chicotadas.
Eu lutei, claro, e ainda acertei no queixo de um dos capatazes com o punho. Mas isso fez com que ele me atirasse ao chão e eu parti um dente. Cuspi‑lho para cima. O outro capataz deu‑me um pontapé no rabo por causa disso e disse‑me para ficar quieta ou matava‑me com as próprias mãos.
‑ Durante quanto tempo é que vais continuar a magoar a tua própria gente? ‑ perguntei‑lhe.
Voltou a dar‑me um pontapé. Apontou para a cabeça, mas acertou‑me no ombro. Ameacei‑o com a mão e gritei a Mr. Johnson:
‑ Vai pagar por isto!
Ele limitou‑se a rir e disse ao capataz para me atar. Gritei por socorro o mais alto que consegui. Queria que Lily, Weaver, Crow e os outros vissem o que é que me estavam a fazer.
‑ Morde com força, Morriii! ‑ gritou‑me Lily enquanto se aproximava a correr.
‑ Pensa qu'alque coisa bonita ‑ gritou Weaver de muito longe. Devia vir a correr dos campos. ‑ Tás sentada num jardim, Morrie. Tás rodeada por flores.
Eu imaginei aquilo que ele me estava a dizer, mas a segunda chicotada expulsou todas as rosas da minha mente. Não estava em nenhum outro sítio que não fosse aquele mesmo. As ferroadas nas minhas costas doíam como se me estivessem a arrancar a pele. ‑ Socorro! ‑ gritei. ‑ Ajudem‑me! Deus me ajude! Apertei as minhas tripas com toda a força, mas à sétima vez tinha‑me mijado toda. E estava a chorar como uma criança. Então comecei a murmurar um verso dos Salmos, repetindo‑o uma e outra vez. Como faço sempre quando estou metida num grande sarilho: Desde quando eu era nova os homens atacaram‑me, mas nunca conseguiram triunfar... desde quando eu era nova...
A última pancada de que me lembro apanhou‑me a parte de trás do pescoço. Foi uma prenda especial de Mr. Johnson, acho eu. Mas gosto de pensar que esta chicotada maldosa fez com que começassem os meus sonhos de procurar uma maneira de sair de River Bend. Porque foi logo a seguir a esse dia que comecei a ver a cidade do norte onde a neve está sempre a cair.
Quando o meu pai voltou da cidade, contei‑lhe logo que tinha sido chicoteada porque não havia nenhuma maneira de poder esconder as minhas feridas e o buraco onde estivera o meu dente. Mas disse‑lhe que não me importava. Fazia‑me mais igual aos outros e estava contente com isso. Ele andou às voltas pelo meu quarto enquanto eu falava e depois berrou tão alto por Lily que ela apareceu a correr. ‑ Toma conta da minha filha ‑ disse‑lhe.
Lily segurou‑me quando eu quis ir atrás dele, dizendo que eu só iria fazer com que as coisas ainda ficassem piores. Mais tarde, soube pelo Crow que o Papá se colocou à frente de Mr. Johnson na varanda, o ameaçou com o punho e disse que se ele voltasse a tocar em mim, o seu corpo estaria a alimentar os vermes dentro de uma semana.
‑ Eu não lhe vou bater nem dar‑lhe um tiro ‑ disse ele. ‑ Mas vai morrer com tantas dores que vai ser preciso amordaçá‑lo para o novo patrão, seja ele quem for, conseguir dormir.
Mr. Johnson riu‑se e mandou o Papá fechar aquela boca de preto, mas a verdade é que nunca mais se atreveu a voltar a chicotear‑me ‑ pelo menos, enquanto o meu pai continuou connosco em River Bend.
Exceptuando uma Coisa
Agora vou ter de vos contar como é que o meu pai acabou por vir parar à Carolina do Sul, uma vez que, na minha maneira de ver, isso é que pôs tudo a rolar em direcção ao futuro que veio a acontecer.
Em Dezembro de 1806, o Papá e o português que o tinha levado para a Europa estavam de visita em Inglaterra. Uma manhã, o homem, Mr. James Stewart, tinha um encontro a que não podia faltar e pediu para se encontrar com o meu papá às duas horas da tarde num sítio ao pé de um grande palácio. Quando o Papá chegou ao tal sítio, foi mandado entrar para uma sala pequena e quente por uma velha toda torta. Três homens brancos entraram de rompante logo a seguir e amarraram‑lhe os pulsos e os tornozelos; a seguir, enfiaram‑lhe um trapo sujo na boca e taparam‑lhe a cabeça com uma saca.
Quando Mr. Stewart chegou, devem ter‑lhe dito que o meu pai não tinha aparecido. O Papá nunca mais o voltou a ver.
Na manhã seguinte, levaram‑no para um quarto malcheiroso e ataram‑no a uma coluna de madeira. Tiraram‑lhe a saca da cabeça. Réstias de luz entravam por uma janela diminuta. O chão estava a oscilar e o tecto era muito, muito baixo. Por cima dele, havia homens a andar.
Acabou por perceber que estava num barco, por baixo do convés principal. Estava tanto frio, que os dentes dele começaram uma grande conversa.
Meteram ao pé dele duas cabras e uma vaca. Os marinheiros alimentavam‑no e aos animais apenas com biscoitos e feno. Ele implorou que o deixassem ver o Sol, visto que ninguém do Sul de África consegue estar um dia inteiro na escuridão, mas eles não o deixaram subir ao convés. Bebia a água da mesma tigela que os animais até que um marinheiro teve pena dele e lhe deu um cântaro. Dormia muito encostado aos seus companheiros para que eles o aquecessem.
Foi então que o Louva‑a‑deus apareceu ao meu papá num sonho. Rastejou até à orelha dele e, levantando a cabeça em forma de coração, sussurrou:
‑ Tsamma, eles vão querer saber os segredos dos boximanes. Não lhes digas nada.
E afastou‑se outra vez.
Foi por isso que o Papá resolveu que nunca diria uma palavra ao Capitão ou à tripulação.
Por que razão este deus‑insecto deixou o meu pai completamente sozinho é uma pergunta a que não sei responder. Talvez ele não quisesse ficar fechado na escuridão por baixo do convés, onde a Lua e as estrelas não eram visíveis.
Esta primeira viagem demorou duas ou três semanas ‑ o meu pai perdeu a noção do tempo. Durante as tempestades, o seu desejo de seguir os trovões e os relâmpagos era feroz. O papá deu puxões às grilhetas até os pulsos e os tornozelos começarem a sangrar. Uma das cabras lambeu‑lhe as feridas.
À noite, o papá cantava ‑ canções que tinha aprendido com a sua família de Portugal. Mas a infelicidade dominava‑o durante o dia. Imaginava as estrelas a perseguirem a sua dor. E embora elas a conseguissem encontrar, tinham perdido o seu propósito. As setas delas não lhe acertavam.
O tempo ia ficando cada vez mais quente. A vaca e as cabras foram mortas e esquartejadas para a tripulação poder comer carne fresca. '
Quando o barco chegou a terra, o Papá foi acorrentado a um mastro do convés. Viu um forte de pedra e muitas casas pequeninas. O Capitão disse‑lhe que o barco estava agora na costa ocidental de África. Se ele estava a pensar em fugir, era melhor mudar de ideias, visto que eles lhe cortariam os seus tomates de preto e lhos enfiariam pelo cu quando o apanhassem. Africanos acorrentados carregavam caixotes de rum, vinho, pólvora e tecidos de algodão do barco para o cais. O Papá veio a saber que estes caixotes iam ser oferecidos aos reis locais em troca de escravos.
Quando o Papá me contou isso, lembro‑me que a Mamã disse que ela tinha sido trocada por dez palmos de algodão tingido de azul‑indigo. Nessa noite, o Papá voltou a ser acorrentado no porão. Uns cinquenta ou sessenta escravos juntaram‑se‑lhe. Ele não conseguia perceber a língua deles. Não havia espaço para se mexerem. Depois voltaram a Partir. Desta vez, durante muitas semanas.
O Papá disse‑me que do que ele se lembrava mais era da sede. Era pior do que os três dias em que ele tinha andado no deserto do verão quando era rapaz para fugir às armas dos holandeses. Nessa altura, ele sabia onde procurar água, conseguia senti‑la por baixo dos pés, fresca e calma no coração da terra.
Mas, mesmo a bordo daquele barco, ele sabia que não ia morrer. Porque a morte não cavalgava as ondas. E não usava grilhetas. Qualquer morte que viesse buscar um boximane nunca lhe pediria para ficar dentro de uma barriga de madeira enquanto os relâmpagos pintavam o céu de branco‑marfim.
O Tempo da Hiena estava sobre o meu pai. Tinha visões do grande dilúvio que quase tinha custado a vida ao Louva‑a‑deus, quando ele fora salvo por uma abelha. Às vezes, falava com Noé, que lhe disse que desta vez não iriam chegar a terra seca e que todos os animais iriam desaparecer da terra. Só os peixes é que continuariam a existir. E eles não se iriam lembrar dos boximanes nem mesmo de África. Todas as histórias do Primeiro Povo seriam esquecidas.
Ele nunca me disse isso, mas eu penso que o Papá deve ter decidido nesta altura que se alguma vez tivesse um filho lhe chamaria Memória. Porque todas as noites ele rezava para que as pegadas do seu povo não fossem esquecidas. Ansiava por um pedregulho onde pudesse desenhar a sua infelicidade para que o Louva‑a‑deus soubesse onde é que ele estava.
Quando o barco do Papá ancorou, ele foi levado por um homem chamado Miller para uma loja numa terra de ruas poeirentas. Continuava com os tornozelos acorrentados. Bebeu três jarros de água e a barriga ficou tão grande que Miller e os três filhos desataram a rir dizendo que ele parecia que ia ter um bebé. Eu vi o meu pai beber assim depois da minha mãe ter morrido, por isso sei muito bem o aspecto que ele devia ter.
Se eu dissesse que o meu Papá era igual a todos os homens e diferente de todos, isso faria algum sentido? Era pequeno e castanho‑amarelado, com rolinhos apertados de cabelo grisalho e olhos estreitos ‑ olhos como os de um homem da China, diziam algumas pessoas. Contudo, havia qualquer coisa na cara e na forma que não era assim tão estranha ‑ como se ele fosse a forma interior que todos nós partilhamos.
A única coisa que eu preciso de fazer é pôr‑me em frente do espelho para o ver. Embora não tenha herdado muito da sua força. E de certeza que não os seus talentos para curar. Se eu tivesse herdado essas coisas todas, talvez Weaver ainda estivesse vivo hoje.
Mr. Miller percebeu logo que o meu pai se recusava a falar. Ou não conseguia. Ficou muitíssimo irritado por o capitão do navio que lhe tinha vendido aquele homem pequenino não lhe ter dito que ele era mudo.
O Papá não fazia ideia em que parte do mundo ficava esta Alexandria nem o que é que pretendiam dele. Fingiu que não percebia inglês. Fecharam‑no num quarto pequeno sem janelas. Mas Mr. Miller não lhe bateu. Talvez até tivesse pena dele.
Um dia, o meu pai fez compreender com gestos que queria um papel e uma caneta. Na sua caligrafia cuidadosa, escreveu o nome da família dele em Portugal e a morada. Durante uma hora, trabalhou numa carta, explicando como tinha sido capturado e metido num barco. Entregou o que escrevera a Mr. Miller, entregando‑lhe toda a sua esperança.
Mr. Miller ficou satisfeito por ver que, afinal, o seu pequeno negro era capaz de escrever e compreender inglês. Mas deve ter queimado a carta porque nunca veio ninguém de Portugal à procura do Papá.
Quando a filha de Mr. Miller, Abigail, ficou muito doente, o Papá escreveu um bilhete pedindo para o deixarem entrar na oficina onde o boticário fazia os seus remédios. Aí, preparou um chá para lhe baixar a febre. Mr. Miller obrigou o Papá a beber primeiro para ter a certeza de que não era veneno. Depois de ter ajudado Abigail a ficar melhor, o Papá começou a passar os dias na loja, dormindo no chão do quarto das traseiras, ajudando o seu novo amo e aprendendo o que é que as plantas, raízes e cascas de árvores americanas podiam fazer. A capacidade de poder fazer um trabalho útil libertou‑o a pouco e pouco da Hiena.
Ao fim de dois meses, foi recompensado ao ser‑lhe permitido sair sozinho nos domingos à tarde. Voltou a escrever à família Stewart e roubou um selo ao amo, mas nunca soube se eles tinham recebido a carta. Ninguém lhe escreveu de Portugal.
Nas suas saídas, o Papá costumava parar no porto e ficar a olhar para o mar. Pensava em fugir, mas sabia que tinha de esperar por ordens do Louva‑a‑deus, que lhe diria quando é que devia ir‑se embora.
A febre‑amarela atingiu Alexandria com grande força na Primavera de 1807 e Mr. Miller teve‑a e muito forte. Nada do que o Papá tentou conseguiu curá‑lo. Como era viúvo, o Papá foi herdado pelos filhos que eram ainda pequenos. O tutor deles, o irmão de Mr. Miller, vendeu o papá a um traficante de escravos muito cruel chamado Burton.
Juntamente com outros africanos, o Papá foi levado de barco para Charleston, onde foi leiloado no mercado. O seu comprador foi o Grande Patrão Henry, claro, que disse sempre que tinha oferecido cem dólares pelo pretinho porque só de olhar para ele tinha logo vontade de rir.
O Papá acabou por mostrar a toda a gente que afinal não era mudo quando viu a minha mãe pela primeira vez. Contou‑me que no instante em que teve um vislumbre da profundidade dos olhos negros dela e daquele comprido pescoço de avestruz, viu que o Louva‑a‑deus voltava para ele. Acho que ela foi o sinal de que ele estava à espera. Por isso, fez a corte à Mamã com lírios dos pântanos e outras flores que apanhava para ela aos domingos.
Com o passar do tempo, o Papá ganhou a confiança do Grande Patrão Henry e passou a poder ir a Cordesville e Charleston com o cocheiro, Wiggie, ou até mesmo sozinho. Ele apanhava sal e conchas de ostras das praias, comprava medicamentos e fazia compras para a propriedade. Nestas viagens, tinha imensas oportunidades para encontrar negros libertados que o podiam ter ajudado a fugir. Mas a razão por que ele não tentou fugir era eu e a minha mãe. Depois, quando ela morreu, era só eu.
Como já disse, o Grande Patrão Henry nunca, nem sequer uma vez, deixou que nós os três saíssemos juntos de River Bend. Às vezes, eu pensava que, mesmo assim, o Papá devia ter tentado fugir. Outras vezes, tinha tanto medo que ele me deixasse para trás que corria o mais depressa que conseguia atrás da carroça quando ela se dirigia ruidosamente para o portão.
Então, no domingo, vinte e um de Janeiro, 1821, ele desapareceu mesmo. Não houve nada estranho nesse dia e, exceptuando uma coisa, não tinha acontecido nada de invulgar durante toda a semana.
Essa única coisa foi a visita uns dias antes de um homem alto e castanho ‑ um mulato, achámos nós. Tinha cabelo preto curto, espetado e rijo como o de um porco‑espinho e uma argola de ouro na orelha. Eu nunca tinha visto um pirata antes. Imaginei que era isso que ele era. Ora, o que um pirata estaria a fazer em River Bend, eu não saberia dizer, mas esperava que ele estivesse à procura de ajudantes. Sei que o meu papá e eu teríamos ido com ele se nos tivesse convidado.
Nessa altura, o Pequeno Patrão Henry já estava há dois meses no túmulo e o primo, Edward Roberson, estava a tomar conta das coisas para Miss Anne, que tinha herdado a plantação quando a Mistress Holly se foi embora.
Nunca gostámos do primo Edward. Chamávamos‑lhe o Galaró, uma vez que ele era todo cheio de si, como na mais fiel tradição da família.
Para vos dar uma ideia da confusão mental de Edward, deixem‑me só contar‑vos que quando ele chegou estava convencido de que «os selvagens pretos» na sua posse trabalhariam mais sem os seus jardins. Não que ele tivesse a coragem de nos dizer ele mesmo que queria que destruíssemos os nossos jardins. Em vez disso, Mr. Johnson, pôs‑nos todos em fila uma manhã e disse‑nos para desenterrarmos as plantas, os arbustos e as ervas e cobri‑los de terra.
O meu pai pediu licença a Mr. Johnson e foi encontrar‑se a sós com o Patrão Edward na sala do chá, acabando rapidamente com os seus planos cruéis. Mais tarde, o Papá disse‑me que não lhe tinha dito muita coisa. Contara‑lhe simplesmente todas as doenças que tinham assolado River Bend nos últimos anos, culpando o clima do Low Country(1).
‑ Estamos à mercê de uma terra cujos limites vão até muito mais longe do que os nossos ‑ disse ele a Edward. ‑ E a vossa gente não sabe o que quer dizer andar devagar.
Depois falou da maldição de River Bend e das mortes prematuras dos antigos donos. Para acabar, disse:
‑ Bem, senhor eu posso concordar consigo que deixar‑nos cultivar os nossos frutos e as nossas plantas é pedir que nos faça um grande favor. Mas estou certo de que Mistress Kitty, Elisabeth e Mary ficarão melhor servidas com negros bem alimentados que gostam de cheirar rosas e juntar feijões ao arroz... Melhor servidas com eles do que com escravos com fome que nunca beneficiam da beleza. Embora eu próprio seja africano, seria capaz de compreender que o senhor não concorde comigo e não queira que eu tenha acesso às plantas e ervas de que vou precisar para tratar as doenças da sua família.
Depois dessa conversa, tivemos menos problemas com o Galaró, geralmente apenas quando ele resolvia provar a sua masculinidade a Miss Anne, a quem agora nós devíamos tratar por Mistress Anne. Ela vivia o ano todo em Charleston desde o seu casamento com John Wilson Poyas e vinha visitar‑nos uma vez por mês. Ele era médico e pertencia a uma das famílias mais ricas desta zona. Ainda não tínhamos percebido como é que ela o tinha caçado. Mas corria o boato que ela tinha arranjado maneira de ficar grávida e depois tinha‑lhe apontado a pistola à cabeça,
*1. Low Country ‑ planícies costeiras das Carolinas e da Georgia. (N. da T.)
dando‑lhe apenas uma outra opção. O pai dela tinha‑a ensinado a disparar, mais ou menos na mesma altura em que ela tinha aprendido a bordar ‑ para o caso de haver alguma insurreição. Nós calculávamos que, enquanto olhava para a boca da arma, o Dr. Poyas tinha compreendido a mensagem e feito o pedido de casamento.
Apesar do casamento dela, o primo Edward estava apaixonado pela Mistress Anne. Ela ainda era bonita, dizia toda a gente, com uns olhos azuis que o primo Edward descreveu a Crow como «verdadeiramente estonteantes». Os grandes olhos dele giravam como antenas sempre que ela andava por perto. Mas ela não lhe ligava grande coisa. Tinha dois filhos, uma rapariga loira, Elizabeth ‑ tal como a filha de Edward, mas com Z em vez de S ‑ e um rapaz chamado Douglas. Ele era a cara chapada do Pequeno Patrão Henry, com o flamejante cabelo ruivo e tudo. Ela só vinha a River Band para inspeccionar a sua propriedade e visitar os seus «queridos pretos», como ela nos chamava.
Acenávamos‑lhe de onde quer que estivéssemos a trabalhar quando ela passava na sua carruagem. Quando nos mandavam fazer uma fila à frente dela, cantávamos uma das velhas cantigas do meu pai, «Barbara Allen». Agíamos como se estivéssemos a transbordar de alegria com a chegada dela. Em duas ou três ocasiões, vieram‑lhe lágrimas aos olhos. Ela não devia ter nada dentro da cabeça a não ser estrume de excrementos humanos.
Bem, seja como for, no dia em que o mulato veio a River Bend, o meu papá estava em Charleston. Tinha ido buscar um tecido de algodão verde‑salgueiro que Mistress Kitty queria que eu e Lily transformássemos num vestido de baile. O visitante encontrou‑se com o Patrão Edward na sala de visitas. Crow ouviu berros e alguns deles tinham a ver com o Papá. Pelo que Crow conseguiu perceber, este homem tinha conhecido o meu pai décadas antes e queria voltar a vê‑lo. Ao que parecia, o Galaró não se tinha mostrado nada receptivo a esta ideia e tinha‑o mandado sair da sua propriedade a toda a velocidade: um, dois, três.
Fiquei toda excitada porque pensei que fosse John Stewart, o rapazinho que tinha sido amigo do meu pai em Portugal. Agora, já devia ser adulto. Finalmente, ele tinha vindo reclamar o meu pai e libertá‑lo!
Mas, mais tarde, nesse mesmo dia, quando descrevi o homem ao Papá, ele disse que não podia ter sido ele. Mesmo assim, fechou os olhos e inspirou fundo. E depois a barriga começou a batucar.
Nunca descobrimos quem era o mulato. A única coisa que o Patrão Edward nos quis dizer foi que ele era «um maldito de um desordeiro» da Georgia.
Na manhã seguinte, o Papá deu‑me uma carta num envelope selado. Era para John Stewart. Disse‑me que tinha escrito a maior parte dela muitos anos antes e que tinha estado à espera de um sinal para ma dar. Esse sinal, disse‑me ele, era o mulato que tinha vindo à procura dele em River Bend. Eu devia meter a carta num cântaro e enterrá‑lo em Porters Wood.
‑ Mas, Papá, vais poder dar‑lha tu se ele voltar cá ‑ disse‑lhe eu.
‑ Não, Morri, se eu não estiver na plantação, tens de ter a carta na tua posse. Não podemos correr o risco de ele não perceber que és minha filha.
No dia em que o meu pai desapareceu, Mistress Anne tinha vindo a River Bend para uma das suas visitas mensais. Lembro‑me disso porque, quando o Papá não voltou à cozinha para ajudar Lily com o jantar, ela veio ter comigo à copa onde eu estava a limpar as pratas. Por ordem dela, procurei‑o em todos os cantos da casa e também nos jardins. Corri para os campos, mas ninguém o vira. Para lhe dar tempo para fugir, se era isso que ele tinha feito, sentei‑me num tronco ao pé do Christmas Creek e fiquei a ver as rãs a saltar. Espero que afinal consigas correr, Papá, pensei eu. Porque as patrulhas vão estar esganadas por te apanharem.
Quando, por fim, disse a Mistress Anne que não tinha visto o Papá em lado nenhum, ela disse a Mr. Johnson para preparar os cães. Mandou Crow e o cocheiro Wiggie a todas as povoações da vizinhança para avisar que havia um fugitivo de River Bend.
Eu contei aquelas primeiras horas como se tivesse uma pistola apontada ao coração. Sentei‑me nos degraus da varanda a afugentar os mosquitos e a rezar fervorosamente para que o Louva‑a‑deus o ajudasse. As minhas mãos tremiam terrivelmente; por isso, poli todas as fendas da tigela em forma de vieira para o ponche que só usávamos na Véspera de Natal. Quando a madrugada nasceu, vermelha e cor de laranja, nunca tinha havido prata tão brilhante e eu estava a pensar que talvez tivéssemos sorte.
Crow, que tinha passado toda a noite a espalhar a notícia de que o papá tinha fugido, disse‑me que não havia sinais dele em lado nenhum. Com uma expressão sombria, agarrou‑me na mão e pediu‑me desculpa porque teria de levar a carruagem imediatamente para Charleston para pôr um anúncio no jornal.
Os dias foram passando sem que eu pensasse noutra coisa. Ao fim de uma semana de auroras e poentes, eu continuava a não me deixar pensar que ele tinha conseguido não se desse o caso de o trazerem de volta meio‑morto e preso com uma corda a um cavalo.
Passou‑se um mês, depois seis semanas, depois sete. A cada dia que passava, eu achava que era mais improvável que o conseguissem apanhar. Perguntava para comigo o que é que faria se eles o trouxessem de volta para o matarem à chicotada. Foi nessa altura que roubei uma faca da cozinha e a enterrei por baixo da varanda. Poderiam linchar‑me se quisessem, mas não ia ficar a ouvir o Papá a gritar sem transformar o Patrão Edward num fantasma.
Mas nunca tive de usar a faca porque o Papá nunca mais voltou. Talvez se tivesse afogado ou tivesse sido mordido por uma cobra‑d'água venenosa. Talvez tivesse morrido completamente sozinho.
Por vezes, deixava‑me sonhar: ele tinha escapado ao destino de preto e tinha conseguido chegar até àquela cidade do Norte onde a neve estava sempre a cair.
Crow, Lily e os outros diziam que, provavelmente, ele tinha‑se tornado invisível com uma daquelas poções que ele preparava. Imaginavam‑no a entrar em Charleston, caminhando como um lorde britânico, e a entrar para um barco que ia para a Europa, zarpando para a casa da família portuguesa que tinha deixado para trás. Mas eu sabia que se o meu papá tencionasse fugir, ter‑me‑ia levado com ele. Embora fosse possível que ele tivesse resolvido sair dali primeiro e depois voltar para me levar.
Um pouco antes de passarem três meses de ele ter desaparecido, foi precisamente essa a conclusão a que o Patrão Edward chegou. Por isso, uma noite, mandou uns homens brancos que eu nunca tinha visto entrarem de rompante no meu quarto e atarem‑me com cordas. Também me amordaçaram. Depois levaram‑me para uma carruagem. Pensei que ele me ia mandar para um bocadinho de açúcar em Charleston. Era assim que eles diziam porque a Cadeia tinha sido uma fábrica de açúcar e eles tinham lá umas máquinas mecânicas para ferirem e quebrar uma pessoa. Mas não era nada disso que ele estava a pensar. Não, ele tinha qualquer coisa ainda pior escondida por trás do sorriso.
Uma mulher alta e magra estava a olhar para mim, a leve surpresa a transformar‑se num medo de cara encovada e chupada. Tinha as pálpebras inchadas e vermelhas, os lábios secos e gretados. Com uma postura rígida, vestia um vestido lilás de decote subido e mangas de balão apertadas nos punhos. Uma touca branca escondia‑lhe o cabelo e um lenço triangular bege cobria‑lhe os ombros, que eram magros e curvados. Mas os olhos tinham a mesma cor de jade que sempre tinham tido.
‑ Bom dia ‑ disse eu, tirando o chapéu e sorrindo.
‑ Sim... sim, bom dia. ‑ Tinha uma voz frágil. ‑ Em... em que é que lhe posso ser útil?
‑ Violeta, sou eu.
‑ Conheço‑o, senhor? Como... como é que sabe o meu nome? Antes que eu conseguisse responder, ela deu um passo para trás e
levou as mãos à boca. Sorrindo outra vez, para suavizar o choque, disse‑lhe: ‑ Sim, sou eu... é o John. Cheguei de Portugal. Dei por mim a fazer a cara de tartaruga de Daniel, que ele fazia sempre que se estava a sentir pouco à vontade. Havia quinze anos que eu não imitava esta expressão.
‑ Sou eu... ‑ repeti, agora em português.
Estava à espera que ela corresse para os meus braços. Eu levantá‑la‑ia e dançaria com ela pela casa. Chocaríamos com a mobília e cairíamos juntos nas profundezas da nossa alegria.
Avancei para o degrau de cima para lhe poder chegar. Ela baralhou‑me os planos ao retroceder para as sombras na parte de dentro da casa.
‑ John, eu nunca esperei... Foi, meu Deus... Foi há uma eternidade. ‑ Ela falava em inglês. ‑John, estás tão... tão diferente.
Fiquei tão espantado pela apreensão que ela mostrava, que senti uns arrepios nervosos a percorrer‑me o corpo. Até parecia que tinha dez anos de idade.
‑ Sou apenas eu... só eu ‑ supliquei muito depressa, como se ela não tivesse percebido quem eu era. ‑ Não recebeste a minha carta?
‑ Uma carta, não, tenho a certeza que não.
‑ Eu mandei‑a... ora, deve ter sido há umas seis semanas. Se calhar, ainda está no mar.
Começava a desconfiar que tinha interpretado mal as palavras da carta dela. Que tolo fora! Ela tinha escrito a falar‑me do desejo de ter um painel de azulejos em casa apenas para ser bem‑educada.
Virei‑me para limpar as lágrimas que me traíam, tossindo para esconder a emoção.
‑ É evidente que vim em má altura. Volto esta noite e nessa altura... e nessa altura conversamos.
O seu olhar fixo era tão frio e a sua postura tão defensiva que acrescentei:
‑ Sim... sim, é isso... é o que vou fazer. Gostei muito de te ver, Violeta. Eu vou... eu...
Sem conseguir dizer um adeus final, pus o chapéu e agarrei na minha bagagem. Tive o cuidado de me conter e não descer demasiado depressa os degraus da escada, pois isso teria revelado a profundidade do meu desespero e eu queria evitar fazer com que ela se sentisse mal com o seu comportamento.
Resolvi arranjar um quarto numa estalagem perto e partir o mais rapidamente possível para Alexandria. Contei os meus passos, sem me importar com a direcção em que seguia, desde que me pudesse afastar dela. Quando cheguei aos vinte, certo de que não a voltaria a ver, estremeci.
Ouvi chamar pelo meu nome. Violeta estava a chamar‑me da porta.
‑ Por favor, John, vem cá. John, não te mexas. Espera aí... Desapareceu dentro de casa. Umas portas mais abaixo, uma mulher
estendeu um pequeno tapete persa para fora da janela e sacudiu‑o. Voaram umas folhas para a rua e eu apanhei uma, ficando a olhar para os veios em relevo.
Violeta voltou segurando um quadrado de papel amarelado e velho que me estendeu. Era um dos meus retratos de Fanny ‑ deitada de barriga no chão, as patas enroladas à volta de um osso, a cabeça inclinada para poder abocanhá‑lo com maior ferocidade.
Se ao menos eu pudesse ter apertado Fanny nos meus braços mais uma vez... Como o coração é estranho ‑ a esperança de que Violeta não me iria voltar a rejeitar foi mais uma vez ateada pela afeição que partilhávamos pela cadela e por ela ter guardado este meu desenho, sem uma única dobra, durante aqueles mais de vinte anos de separação.
‑ Lembras‑te dela? ‑ perguntei‑lhe. Os olhos dela tornaram‑se vítreos.
‑ Oh, John, ela viveu uma vida longa e feliz, espero. Contei‑lhe então como ela tinha desaparecido durante a ocupação francesa. A minha voz estava tensa com o meu desejo de controlar a emoção e falei apenas de factos e datas. Ela mordeu o lábio inferior e lutou contra as lágrimas. Quando lhe devolvi o desenho, os nossos olhos encontraram‑se.
Há memórias que são o próprio amor: o toque das mãos da minha mãe; o cheiro do cachimbo do Papá; o sorriso de Meia‑Noite. E os olhos de Violeta. Compreendi que para mim ela era ao mesmo tempo uma estranha e a maior das amigas.
Murmurei o nome dela duas vezes e isso pareceu‑me o mais secreto dos encantamentos. Queria falar‑lhe do nosso amigo morto, mas a torre de memórias dentro de mim erguia‑se demasiado alta para eu a conseguir subir naquele momento.
Ela olhou para os pés, e naquela expressão desesperada reconheci a rapariguinha que outrora estivera fechada num quarto sem portas nem janelas. Todavia, eu agora era um adulto e conseguia derrubar paredes demasiado fortes para a criança que eu tinha sido. Estendi‑lhe a mão, mas ela não a agarrou nem olhou para mim.
‑ Não vou tirar a mão ‑ declarei eu. ‑ Vou ficar aqui de pé esperando que a agarres, até à eternidade, se for preciso.
Não tenho a certeza do que é que me fez dizer as palavras peculiares que se seguiram. Só consigo pensar que foi todo o tempo que eu tinha passado na companhia de Benjamim e Meia‑Noite ‑ e os meus receios em relação ao boximane na sua situação de servidão.
‑ Violeta, podes julgar que o Sol e a Lua se puseram para sempre nos anos que partilhámos. ‑ Olhei para o horizonte e apontei para leste, na direcção de Jerusalém. ‑ Mas eles estão os dois ali. O Sol e a Lua, exactamente ao mesmo tempo, por cima do Monte das Oliveiras. É impossível, mas, no entanto, é verdade. Ambos temos medo de entrar nas águas do rio Jordão e tocar no reflexo deles. Mas o que tu não sabes é que já estamos lá dentro.
Para teres a certeza disso, tudo o que tens de fazer é agarrar a minha mão ‑ agarrá‑la agora.
Ela não disse nada. Fechou os olhos como se o fizesse para sempre.
‑ Podes querer que eu repita o passado, mas não o farei. Agora tenho algum poder para fazer o que quero. E nem eu, nem Daniel, que vive dentro de mim, te voltaremos as costas agora. Se temos de nos separar, então tens de voltar para a tua casa e trancar a porta. E, mesmo assim, podes contar que eu vá continuar a bater ‑ toda a noite, se for preciso. Agora sou um homem, já sofri muito, e sou capaz de esperar muito tempo, mais tempo até do que uma mulher que, no passado, não pôde fazer escolhas.
Quando ela me agarrou na mão, apertou‑ma como se estivesse em perigo de cair. O olhar que ela me deitou estava tão cheio de amor e admiração que eu murmurei:
‑ Podemos recomeçar? Podemos tentar compensar tudo aquilo que foi injustamente tirado a nós os dois... e a Daniel?
As lágrimas inundaram‑lhe os olhos. E os meus. Tomei‑a nos braços, levantei‑a do chão e comecei a andar com ela à roda.
‑ John, oh, meu Deus, John...
‑ Eu passei por muitas mortes ‑ disse‑lhe gentilmente. ‑ Sofremos ambos muito. Mas tu encontraste‑me. E eu encontrei‑te.
Ela apertou‑me com força, tremendo tão violentamente que tive medo por ela.
‑ Estou a segurar‑te ‑ disse‑lhe eu ‑ e, nos meus braços, vais poder finalmente descansar.
Deitou a cabeça no meu ombro. Respirámos juntos até os nossos limites se apagarem.
‑ Lembras‑te do dia em que nos conhecemos ‑ o Milagre dos Pássaros? ‑ perguntei‑lhe.
‑ Foste lindo ‑ sussurrou ela.
‑ Salvaste‑me a pele. Se não tivesses cuspido no vendedor de pássaros, ele ter‑me‑ia arrancado a cabeça!
Rimo‑nos, entontecidos com a excitação.
‑ Há bocadinho, à minha porta, fui horrorosamente mal‑educada. Desculpa.
Passei para português.
‑ Estavas apenas surpreendida. Não foi nada. Está tudo bem.
‑ John, é raro falar português. Sou capaz de dizer disparates. Inclinou‑se e agarrou numa das minhas malas.
‑ Anda, vamos para casa.
Nós tínhamos passado por muito juntos para mentirmos.
‑ Sim, gostaria de ficar contigo, mas só se tu de facto quiseres. Violeta, tenho a certeza que ficarei bem instalado em qualquer sítio aqui perto. Estou a ser sincero. Por tudo aquilo que já passámos juntos, não te ponhas com cerimónias comigo. Confesso que estou demasiado fraco da viagem e de todas estas emoções. Não o conseguiria suportar.
‑ Oh, John, sabes muito bem que não há mais nenhum outro sítio para ti nesta cidade.
Eu nunca tinha dado muito crédito à existência da vida depois da morte, mas, naquele momento, olhei para o céu e murmurei ao meu pai, que tinha expulsado o tio dela do Porto:
‑ Ela conseguiu chegar a Nova Iorque, Papá. Os teus esforços foram recompensados.
Violeta disse‑me que tinha tido muita pena quando soubera do falecimento do meu pai. Falei‑lhe dele enquanto nos encaminhávamos para a porta da casa dela. Tentei enquadrar os acontecimentos que rodearam a sua morte num contexto que fosse compreensível para ela, mas falhei miseravelmente.
‑John ‑ disse ela apertando‑me o braço ‑, és tudo aquilo que sempre me atrevi a sonhar que te tornarias. E mais. A tua querida mãe deve estar muito orgulhosa de ti. E as tuas filhas... diz‑me, és um grande amigo delas?
‑ Acho que elas gostam muito de mim, apesar das minhas peculiaridades. Mas a mãe delas, Francisca, morreu há um ano. Tem sido muito duro para elas. E agora, comigo aqui...
‑ Gostava de a ter conhecido. Ela amava‑te muito?
‑ Acho que sim. Fomos os melhores amigos durante muitos anos.
‑ Isso é uma coisa muito boa. E um alívio para mim, desculpa que te diga. Tive sempre receio de que nunca conseguisses que o teu afecto fosse completamente correspondido. ‑ Baixou os olhos, envergonhada. - Por causa do que aconteceu comigo e Daniel.
Estudámo‑nos um ao outro. A expressão pesada dos olhos dela perturbava‑me e tinha os lábios tão secos que parecia que tinham murchado por falta de amor.
Tapou‑me os lábios com as pontas dos dedos.
‑ Por favor, John, não digas nada ainda... Deu‑me o braço e subimos as escadas juntos.
No cimo das escadas, olhou para cima e para baixo da rua, a cabeça a oscilar como um pêndulo.
‑ Até parece que também estás à espera dele ‑ comentei eu. Ela assentiu e fez‑me uma festa na cara.
‑ Vivo sozinha há tanto tempo que sou capaz de não ser uma boa anfitriã. Sinto que devo pedir desculpa antecipadamente.
Tenho a certeza de que ela gostaria de ter continuado a falar. Mas, em vez disso, depois de ter deitado mais uma olhadela ao quarteirão, mordeu o lábio, com força, quase até fazer sangue.
Violeta vivia numa casa quase despida de mobília. Deu‑me um quarto no segundo andar, virado para o jardim das traseiras, que estava num estado deplorável. Eu tinha uma cama e um lavatório à minha disposição e nada mais. Nem sequer uma cómoda ou um guarda‑fato. Começava a desconfiar que ela tinha pouco dinheiro.
Violeta foi‑me buscar um jarro de água quente para eu poder lavar a cara. Quis saber da minha mãe e, enquanto ela me trazia toalhas e punha lençóis lavados na cama, falei‑lhe de Londres.
‑ Será que podias andar mais devagar? ‑ supliquei‑lhe.
‑ John, conversamos mais logo. Precisas de tempo para descansar. E tenho a certeza de que estás faminto. Vou arranjar o pequeno‑almoço.
‑ Ainda odeias cozinhar? ‑ perguntei‑lhe. Encolheu os ombros.
‑ Uma mulher acaba por se habituar a quase tudo.
Ainda tinha a touca posta. Quando lhe pedi que a tirasse para eu poder ver o seu glorioso cabelo, agitou‑me o dedo espetado.
‑ Isso também pode esperar até mais tarde, meu jovem.
Eu teria gostado de ter ido com ela para a cozinha, mas ela queria estar sozinha. Durante todo aquele primeiro dia, tive sempre a impressão que a minha presença a tinha desorientado tanto que ela não conseguia estar parada um só momento com o receio de cair ao chão.
Pousando o meu tinteiro e o papel no chão, acocorei‑me como Meia‑Noite me tinha ensinado e comecei a escrever uma carta para as minhas filhas, a minha mãe e Fiona, descrevendo os aspectos mais espantosos e divertidos da viagem por mar. Sobre Violeta, disse apenas que ela parecia bem e que a casa era confortável.
Enquanto escrevia, fui acrescentando caudas, focinhos e patas às minhas letras, tal como Meia‑Noite teria feito. Sentia que ele estava a espreitar por cima do meu ombro e a elogiar a minha caligrafia como sendo, finalmente, digna de um boximane.
Quando Violeta me chamou para descer, descobri que ela tinha posto a mesa oval da casa de jantar com uma linda louça de porcelana azul
‑ igual à da minha mãe, com um desenho de moinhos.
‑ Nunca esquecerei a bondade dela para comigo ‑ disse‑me Violeta. Agarrou‑me na mão e levou‑a aos lábios. ‑ isto é para a tua mãe quando voltares a estar com ela.
Dei‑lhe as saudades da Mamã e depois tratei rapidamente da tarte de galinha que ela, muito gentilmente, comprara para mim numa pastelaria próxima.
Estávamos sentados nas extremidades opostas da mesa, ao pé das janelas que davam para o jardim. As cortinas amarelas estavam completamente fechadas. Fez‑me perguntas sobre a minha viagem de barco numa voz estudadamente calma, tentando controlar a sua natureza nervosa.
Erguendo‑se, levantou um canto da cortina para olhar lá para fora. Quando voltou a virar‑se para mim, tinha uma expressão cansada e triste. Julgando que a devia ter ofendido com qualquer coisa que mencionara sobre a viagem, disse‑lhe:
‑ Violeta, vou parar de falar de insignificâncias. Por favor, desculpa‑me. O que acontece é que estou extremamente agitado. Quero saber tudo sobre a tua vinda para a América. Quero que me fales da tua vida. Brincou com o laço do lenço.
‑ Não, não ‑ disse ela franzindo o sobrolho, como se a própria ideia de falar dela fosse detestável. ‑ Tenho a certeza que te iria pôr a dormir.
‑ Ao contrário ‑ contrapus eu. ‑ Adorava ouvir a história das tuas viagens.
‑ John, por que é que não vamos dar um passeio? ‑ propôs‑me em português.
‑ Um passeio? Agora?
‑ Às vezes ajuda‑me. Embora tenha todo o direito de recusar. Provavelmente, está demasiado cansado.
Usou o tratamento mais cerimonioso quando se me dirigiu. Era desconcertante e eu não conseguia perceber as suas intenções.
‑ Não, estou óptimo ‑ garanti‑lhe ‑, e um passeio enérgico é capaz de ser o indicado. Sim, vamos ver um pouco da cidade!
Enquanto ela se arranjava, tirei partido do facto de estar sozinho para abrir as gavetas de um aparador da sala. Não sei o que é que esperava encontrar. Nas primeiras, descobri apenas linhas, retalhos e outras insignificâncias do mesmo género. Mas, depois, numa das gavetas de baixo, encontrei uma velha bola de couro, do tamanho do punho de um homem. Era uma das de Fanny ‑ ainda conseguia ver as marcas dos dentes, como se ela as tivesse acabado de fazer.
Violeta e eu descemos a John Street em silêncio, à sombra dos choupos e dos castanheiros‑da‑índia. Os raios quentes do Sol dançavam intermitentemente nos meus ombros.
‑ Há muitos africanos em Nova Iorque? ‑ perguntei a Violeta.
‑ Devem ser vários milhares.
‑ Não são escravos, espero.
‑ Segundo me disseram, todos os negros que nasceram em Nova Iorque depois de 1799 são considerados livres. Os que nasceram antes ainda são escravos. Embora a maioria, creio eu, tenha sido vendida para outros sítios. Confesso que não tenho a certeza, mas não devem existir muitos na cidade ‑ talvez umas centenas.
Na Broadway, virámos para norte. Observei os transeuntes debaixo das sombrinhas e as carruagens que andavam de um lado para o outro ‑ e também admirei os bonitos letreiros pintados das lojas.
‑ É maravilhoso, não é? ‑ perguntei sorrindo. Violeta tinha continuado a andar.
‑ Sim, é ‑ respondeu ela com indiferença, parando para esperar por mim.
Arriscando‑me a ser atropelado por uma carroça ou escoiceado por um cavalo, parei no centro da Broadway para olhar em direcção ao sul para a fortaleza de pedra na ponta da ilha e os mastros dos navios por trás dela. Depois voltei‑me para o outro lado e olhei para o horizonte de bosques bem a norte. Agora estou em Nova Iorque, murmurei para mim mesmo, mas também para Meia‑Noite. Fechando o punho dentro da algibeira, acrescentei: E nada me poderá impedir de ir ter contigo. Nem sequer a possibilidade de uma vida nova.
Durante o nosso passeio, Violeta não me fez perguntas e eu não me atrevi a questioná‑la mais. Fiquei sorumbático e calado. Quem estivesse a olhar para nós, pensaria que se tratava de um casamento infeliz. Quando chegámos a Grand Street, uma rua de lojas muito popular, perpendicular à Broadway, Violeta disse‑me:
‑ Gostava de continuar contigo, mas tenho coisas a tratar em casa. Encontramo‑nos à tarde para lancharmos. Às quatro, que me dizes?
Antes que eu pudesse dizer fosse o que fosse, afastou‑se rapidamente. Amaldiçoando a sua inescrutabilidade, continuei o meu passeio. Curiosamente, lembrei‑me de Lourenço Reis, o necromante. Suponho que, com a minha mente infantil, estava convencido que Violeta estava sob um feitiço malvado e que só eu é que a podia libertar.
Às três e meia, iniciei o caminho de regresso a casa. Durante a minha ausência, Violeta tinha cozido uma dúzia de scones e o cheiro era divinal. Observando com olhos encantados, disse‑me:
‑ Comes da mesma maneira que comias quando a tua mãe não estava presente. Migalhas por toda a parte.
‑ Isso é bom ou mau?
Ela riu‑se; era evidente que aquela nossa separação tinha reacendido a sua afeição por mim.
‑ Muito bom, mesmo, minha peste!
Voltei a perguntar‑lhe como é que tinha vindo para Nova Iorque.
‑ Agora não, só iria estragar a nossa alegria ‑ respondeu‑me ela. Em vez disso, conversámos sobre os acontecimentos em Portugal e
na Europa durante as duas últimas décadas. Por insistência dela, falámos em inglês. Por vezes, eu formulava as minhas respostas de modo a tentar descobrir se ela tinha mantido correspondência com a mãe ou com os irmãos. Mas ela era demasiado esperta para mim e não deixou transparecer nada.
Depois do lanche, subi para o meu quarto para acabar a carta para a minha família. Para minha grande surpresa, descobri um telhado cheio de mobília nova: uma cómoda com pegas de latão, um relógio de caixa alta com patas de leão, duas confortáveis poltronas em brocado verde‑junco e uma escrivaninha de mogno escuro em cima da qual Violeta tinha deixado uma nota: John, terás sempre um sítio em minha casa. E nunca te farei qualquer exigência em relação ao teu tempo enquanto cá estiveres. Basta‑me ver como tudo está tão bem contigo. Depois de tudo o que passei, depois de tanta coisa que não quero voltar a ver nunca mais, descobrir que alguém por quem não tenho mais nada senão uma grande afeição se tornou numa pessoa tão boa...
Bem, digamos apenas que a tua presença é uma dádiva que eu não tinha o direito de alguma vez esperar. De facto, se me desculpares a emoção, é a maior dádiva que eu alguma vez podia ter imaginado. Tem paciência comigo. Com muito carinho, Violeta.
Nessa noite, acordei às três da manhã. Aventurando‑me a descer as escadas, descobri Violeta profundamente adormecida na sua cadeira. Pensei em a acordar para a poder ajudar a subir as escadas. Em vez disso, dirigi‑me em bicos de pés, como um ladrão, para o quarto dela. Tencionava revistar‑lhe o guarda‑fatos e a secretária, procurar por baixo do colchão e das almofadas, mas fiquei apenas uns instantes; por cima da cama dela estava pendurado o tampo da mesa redonda que Daniel esculpira e lhe deixara como presente de despedida. A parecença com ela continuava a ser espantosa, mas, quando me aproximei, descobri que lhe tinham sido feitos golpes nas faces e nos olhos. Nenhuma das caras das outras crianças tinha sido minimamente estragada.
Na manhã seguinte, ao pequeno‑almoço, arranjei coragem para falar a Violeta de Meia‑Noite.
‑ Era aquele homem pequenino com quem te vi algumas vezes nos últimos meses antes de sair do Porto?
‑ Sim, ele tornou‑se meu amigo depois... depois da morte de Daniel. E depois de termos deixado de ser amigos. Se ele não me tivesse ajudado, tenho a certeza de que nunca teria chegado à idade adulta.
Contei‑lhe como eu e ele costumávamos observá‑la de longe na Praça Nova.
‑ Ele rezou aos Caçadores do Céu para te ajudarem a chegar à América ‑ disse‑lhe.
‑ Então já éramos dois a rezar pela mesma coisa ‑ murmurou. Naturalmente, tive de lhe falar da traição do meu pai e da ruína do casamento dos meus pais. Ela escutou atentamente tudo o que eu lhe disse, com o queixo apoiado no punho. O único movimento que fez foi dar‑me um aperto firme na mão quando lhe falei da minha certeza de que a Mamã tinha deixado de me amar durante anos.
Falar de Meia‑Noite deixou‑me num estado de desespero ansioso e percebi que não podia esperar mais para tratar da minha viagem para Alexandria.
Disse a Violeta que desejava marcar uma passagem imediatamente, ao que ela me respondeu com uma voz firme:
‑ Sim, seria errado da tua parte deixares que a nossa amizade renovada te atrasasse. Podemos falar durante muito mais tempo ‑ e com maior facilidade ‑ quando voltares e começares a desenhar o teu painel de azulejos.
Numa agência de navegação na Broadway, fiquei a saber que a viagem até Alexandria levaria apenas três ou quatro dias se fosse bafejada por ventos favoráveis. Comprei uma passagem no Exeter, uma fragata que partia no dia seguinte.
Nessa noite, depois do jantar, informei Violeta da minha partida iminente. Gostaria de ter falado de muitas coisas antes de ir ‑ principalmente de Francisca e das meninas. Também queria que fosse ela a contar‑me a vida dela, mas ela empalideceu quando ouviu a notícia de que eu ia partir tão depressa. Quando a fui confortar, disse‑me que a excitação de me ter lá em casa a tinha deixado sem dormir e que precisava de se ir deitar antes que desmaiasse de exaustão. Afastou‑me as mãos com brusquidão e depois pediu desculpa.
‑ Por favor, fala comigo ‑ supliquei‑lhe. ‑ Diz‑me o que estás a pensar.
‑ Não posso. ‑ Colocou as mãos na posição de prece. ‑ John, tem piedade de mim.
Soltou‑se da minha mão e correu para o quarto.
Acordei perto da uma da manhã, tendo sonhado com Meia‑Noite de pé à frente da minha cama, a falar em linguagem gestual, com movimentos muito rápidos das mãos. Não consegui perceber nada do que ele me queria dizer.
Passados uns instantes, ouvi Violeta a descer as escadas. Quando a ouvi abrir a porta das traseiras, fui à janela. À luz do luar, consegui vê‑la a abrir caminho pelo meio das ervas daninhas do jardim. Teria jurado que estava nua.
O ar da NOITE no jardim de Violeta envolveu‑me com o seu calor húmido mal me esgueirei lá para fora. Parecia que tinha entrado num sonho líquido. Avancei devagarinho, descalço e vestindo apenas a camisa de noite. Uns dez passos mais à frente, vi‑a, sentada num banco de madeira baixo, a olhar para o céu. A luz do luar cobria‑a de folhas de escuridão e luz. Ela podia ser uma deusa da noite.
O cabelo comprido brilhava, prata e negro, pelas costas abaixo. Soube naquele instante que tinha estado à espera que ela tirasse a touca não apenas desde o momento do nosso reencontro, mas desde os meus onze anos. Fiquei muito quieto, não querendo comprometer a sua modéstia, mas ela deve ter ouvido a minha respiração porque se sobressaltou, assustada.
‑ Sou eu ‑ apressei‑me a dizer. Avancei e levantei as mãos para me desculpar. ‑ Sou apenas eu.
‑ John, meu Deus, quase me fizeste gritar! ‑ Abanou a cabeça e deu uma palmadinha no banco ao lado dela. ‑ Depressa, senta‑te aqui para ninguém te poder ver.
Não fez nenhuma tentativa para esconder a nudez. Deixei‑me cair ao lado dela, tendo cuidado para não roçar por ela. Violeta apontou para o céu estrelado.
‑ Ali, ali mesmo, está o Arqueiro ‑ disse‑me ela. ‑ Ele consegue encontrar coisas, John ‑ mesmo os seres minúsculos como tu e eu. Por isso, sempre que não me sinto segura em relação a mim mesma, procuro‑o.
Estava a falar‑me em português usando o tu informal, como se tivéssemos voltado a ser amigos íntimos.
‑ Sim, Meia‑Noite dizia que todas as estrelas são caçadoras ‑ disse‑lhe eu.
Com a ponta do dedo, voltou a apresentar‑me as constelações. Depois, acariciando‑me a face com as costas da mão, disse com doçura:
‑ Se houver alguma coisa que eu possa fazer para te ajudar a encontrar Meia‑Noite, tens de me dizer ‑ seja o que for.
A suavidade sugestiva da pele dela fez‑me estremecer. À luz das estrelas, ela estava tão fiel à sua juventude ‑ tão franca e de tão bom coração ‑ que eu fiquei sem palavras. Sentia‑me confuso: como é que eu podia sofrer quase todas as noites com saudades da minha mulher e sentir‑me tão afortunado por estar perto de Violeta?
‑ Aqui fora é tudo muito calmo às primeiras horas da manhã ‑ murmurou ela. ‑ Quase podemos acreditar que estamos de novo no nosso lago no Porto.
Voltando‑se para mim, adivinhou a razão da minha vergonha e sorriu.
‑ John ‑ disse ela dando‑me uma palmada na coxa ‑, não sejas tão bebé. Não estou ofendida com o teu desejo. O único aliado que sempre tive entre os homens foi o desejo físico deles por mim. É a única coisa em que alguma vez pude confiar neles.
‑ Parece‑me que não compreendo nada do que me aconteceu na vida ‑ confessei eu. ‑ A razão da morte de Daniel, como é que eu cheguei a este preciso momento, por que é que eu e tu nos voltámos a encontrar. Ela olhou‑me com uma expressão grave. ‑ Não tenho respostas para ti. Nenhumas.
Brisas quentes agitavam‑se à nossa volta. O alívio de estar com a Violeta de antigamente fez‑me sorrir.
‑ Até parece que estamos a esconder‑nos dos nossos pais.
‑ A minha mãe nunca me encontrará aqui. ‑ Deitou um olhar furtivo para casa. ‑ As ervas estão demasiado altas para ela me conseguir ver.
‑ E a casa demasiado escura.
‑ A noite é boa para mim. Vejo menos. Deixemos que a noite exerça o seu domínio.
‑ Violeta, exceptuando agora, tu pareces estar onde eu não estou. Ela agarrou‑me na mão e levantou‑se.
‑ Canta ‑ pediu ela. ‑ Qualquer uma das canções antigas. Por favor, John, canta para mim.
Cantei o primeiro verso de «Ae Fond Kiss», a sua canção favorita de Robert Burns: Ae fond kiss, and then we sever, ae farewell, and then forever... Ela olhou longa e desoladamente para longe, para onde quer que a minha Melodia a estivesse a levar.
‑ John, tu gostarias que eu fosse a mesma, mas nunca o poderei ser ‑ disse‑me ela. ‑ É por isso que às vezes tenho estado tão silenciosa e difícil.
‑ Estás a interpretar mal os meus desejos. Só quero a tua felicidade. Baixou os olhos para olhar para mim com uma expressão dorida.
‑ John, nós vimos de mundos diferentes. A felicidade deixou de ser o meu objectivo há muitos anos. Agora apenas desejo ter a minha própria vida. Se isso quer dizer que, por vezes, eu tenho de me sentir sozinha, não é um preço demasiado alto. Se calhar, nem posso chamar a isso preço.
‑ Isso é verdade? É realmente suficiente teres a tua própria vida?
‑ Se fosses mulher, não precisarias de me fazer essa pergunta ‑ declarou ela.
‑ Não consigo acreditar que os homens e as mulheres sejam assim tão diferentes.
Ela suspirou.
‑ John, se fosses eu, também andarias sempre de touca ‑ só para evitar os olhos dos homens em cima de ti. Se eu te dissesse que há mulheres da minha idade que sonham que os maridos morram novos só para poderem ser elas próprias, só para poderem ter os seus próprios amigos e poderem ser donas das suas coisas, achar‑me‑ias louca?
‑ Isso é verdade, Violeta?
Respondendo‑me com um aceno solene, disse‑me:
‑ Anda... anda comigo e eu contar‑te‑ei aquilo que querias ouvir. É uma história que ninguém mais, para além de ti, alguma vez saberá.
Levou‑me para dentro e tirou uma coberta de croché às riscas verdes e douradas de cima do sofá, enrolando‑a em volta do corpo. Sentámo‑nos ao lado um do outro à mesa oval e, à luz de uma única vela, Violeta começou a contar‑me a sua vida desde que nos tínhamos separado. Primeiro, explicou‑me que tinha trabalhado para um fabricante de velas em Lisboa e vivido num quartinho por cima da oficina dele, onde tinha uma vista sobre o Largo da Graça.
‑ Estava tão feliz por estar livre da minha mãe e dos meus irmãos que até a minha solidão era uma bênção. Pertencia a mim mesma. E o meu cabelo ‑ puxou as madeixas para a frente e cheirou‑as ‑ voltou a crescer. Não deixei que ninguém o cortasse.
‑ Sabias quanto eu te amava nessa altura?
‑ Sabia. Mas tu eras apenas um rapazinho. E eu estava a transformar‑me numa mulher.
‑ Como eu queria que Daniel tivesse vivido. Ele podia ter modificado tudo.
Eu teria gostado de dizer muito mais, mas o assunto do passado parecia demasiado perigoso.
‑ Talvez os mortos possam ser generosos ‑ observei eu, hesitante.
‑ O Daniel pode estar contente por nos termos encontrado.
‑ Talvez. Mas os outros, John... os outros podem ser implacáveis. Deixa‑me continuar antes que perca a coragem... John, o fabricante de velas para quem eu trabalhava era um homem bom, muito esperto e bondoso. Então, um dia, vi o meu tio Tomás no Largo da Graça. Depois disso, só em raras ocasiões é que eu espreitava para fora do meu quarto ou da loja. Ele andava à minha procura para me levar para casa. Provavelmente, a mando da minha mãe. ‑ Estremeceu e apertou o cobertor em volta do pescoço. ‑ Umas semanas mais tarde fui abordada por um inglês que me prometeu trabalho numa fábrica de lanifícios ao pé de Londres. Fui‑me embora com ele. O Tio Herbert, como eu lhe chamava. Ele disse‑me que iria trabalhar com outras raparigas de Portugal e Espanha. Ao princípio, ele foi bom para mim.
‑ Mas quando chegaste a Inglaterra, descobriste que ele tinha mentido.
‑ Sim. Deram‑me roupas novas cheias de folhos e puseram‑me a trabalhar como prostituta em Hyde Park. Nessa altura, eu estava com dezasseis anos. Não consigo dizer‑te quantos homens me pediram para eu os tratar por Papá. ‑ Riu‑se. ‑ Aprendi a dizer tudo o que eles queriam ‑ papá, querido, amor... em inglês, francês, espanhol, até em alemão! Sim, aprendi coisas muito úteis ao longo desses anos.
Reclinou‑se para trás, parecendo resignada com o caminho que a sua vida tinha levado.
‑ Havia alguma hipótese de fugir?
‑ Eu pensava que sim. Secretamente, acreditava que era indomável, que ninguém me poderia prender para sempre. Tinha a certeza que, tal como tinha escapado ao meu tio e à minha mãe, agora iria recuperar a minha vida. Era tão ingénua e optimista. Isso é uma coisa que sempre tivemos em comum, tu e eu. Ao contrário de Daniel. Acho que ele nasceu sabendo já o que era estar condenado e que, se calhar, foi por isso que ele se apaixonou por mim.
Naquele momento, senti o impulso de confessar como o tinha traído. Sabia que era a minha oportunidade, mas quando tentei encontrar as palavras certas, não encontrei nenhuma.
‑ John, não precisamos de falar destas coisas ‑ disse ela, apercebendo‑se do meu desconforto.
‑ Não, eu quero fazê‑lo. Mais do que tudo. É o que mais quero fazer desde que cheguei.
‑ Tentei fugir duas vezes. Fui de tal forma espancada pelo meu chulo que não consegui andar durante uma semana de cada uma das vezes. Da segunda vez, ele atou‑me à minha cama e convidou vários homens para me usarem: limpa‑chaminés, homens do lixo... ‑ Torceu o nariz.
‑ Vou contar‑te um segredo, John: não me importei muito que eles estivessem a usar‑me, mas sim que me tivessem infestado de piolhos. Depois daquilo, deixei de acreditar na história que tinha contado a mim mesma, de que iria ganhar apesar de todas as dificuldades. Escrevi outra onde o triunfo estava no tirar o maior partido possível das circunstâncias. O destino fez de mim uma puta. Por isso, durante cinco anos, até chegar aos vinte e um, a única coisa que quis foi satisfazer os homens de Londres. Todos nós precisamos de um objectivo ao nosso alcance, acho eu. Sabes, uma vez um general inglês disse‑me que eu tinha uma atitude muito militar em relação ao meu trabalho. ‑ Soltou uma pequena gargalhada amarga. ‑John, ele estava a fazer‑me um cumprimento ‑ acrescentou, aborrecida por eu não ter achado graça. ‑John, meu pobre querido, sempre a tentar proteger Violeta. Por favor, não sofras por minha causa... eu era boa no meu trabalho. Sabes, ocorreu‑me agora que nunca, nem uma só vez, olhei para o céu à noite em todos esses anos em Inglaterra.
‑ Levantou‑se. A luz da vela projectava uma sombra ominosa na parede atrás dela, como se ela estivesse a ser seguida. ‑ Não, ser mulher não era aquilo que eu pensava que iria ser. Mas o que é que alguma vez é? E era melhor do que ser criança... muito melhor. Sabes, John, nem sequer sei dizer por que é que o matei. Parece‑me imperdoável. Uma assassina deve ter uma boa razão, não te parece?
‑ Mataste quem? Não estou a perceber...
‑ Preciso de whisky ‑ disse ela lambendo os lábios. ‑ Posso preparar‑te um?
Depois de ter enchido os nossos copos, sentou‑se enroscada sobre o seu, bebericando‑o como uma gata. Eu não disse nada, à espera que ela continuasse.
‑ Cinco anos depois de ter chegado a Inglaterra ‑ recomeçou ela ‑, acordei e descobri um homem deitado ao meu lado na minha cama.
‑ Olhou para o copo e remexeu o whisky com a ponta do dedo. ‑ Tinha uma pele branca como leite. E cabelos louros e finos nos braços. ‑ Lambeu o dedo. ‑ Muitos ingleses são assim. Mas quando acordei ao lado dele, não me consegui lembrar de nada a respeito dele ou de como é que ele lá tinha ido parar. Julguei que estava no Porto e que o meu tio se tinha enfiado no meu quarto. Agarrei na bengala dele. Bati‑lhe com ela enquanto ele estava a dormir. Bati‑lhe demasiadas vezes.
Levantou a arma imaginária acima da cabeça e desceu‑a com uma pancada da mão no tampo da mesa. Despejou o copo de uma só vez.
‑ O sangue começou a escorrer‑lhe da boca e eu continuei a bater‑lhe até que a mulher dele passou a viúva e os filhos a órfãos. Quando percebi que o tinha matado, não senti remorsos.
‑ Pensaste que era o teu tio Tomás e que ele...
‑ Não, não. Quando vi o sangue, percebi que ele não era o meu tio. Lembrei‑me que se chamava Frederick e que tinha mulher e dois filhos. Mas continuei a bater‑lhe. A sua morte deu‑me prazer.
Encostou‑se para trás e roeu a unha do polegar.
‑ O meu chulo levou‑me para Liverpool para escapar às investigações. Mudei de nome e trabalhei para outro durante mais dois anos... a maior parte do tempo, nas docas.
Levantou‑se de um salto para voltar a encher o copo dela e o meu.
‑ Como é que fugiste dele? ‑ perguntei. Voltando a sentar‑se, respondeu:
‑ Tem paciência, John. Já estou a chegar lá. Num dia chuvoso, uma mulher jovem e elegantemente vestida desembarcou de um navio e perguntou‑me onde é que podia alugar uma carruagem. Falava com um sotaque que reconheci e, por isso, respondi‑lhe em português. Rimo‑nos daquela coincidência e eu acabei por a acompanhar ao hotel. Chamava‑se Manuela Silveira Dias. Tinha exactamente a minha idade: vinte e três anos. O marido era inglês e tinham acabado de chegar da América. Ele já estava a viver em Newcastle‑upon‑Tyne com os dois filhos. Ela tinha sido obrigada a ficar mais algum tempo em Boston e agora andava à procura de uma preceptora. Nessa noite, antes de nos separarmos, ela perguntou‑me se eu queria o emprego, sem me ter perguntado sequer como é que eu ganhava a vida. ‑ Olhou incredulamente para mim.
- De uma irresponsabilidade imperdoável, não achas? O que é que sabia sobre a educação de crianças?
‑ Ela pressentiu qualquer coisa em ti... qualquer coisa boa e bem‑intencionada. É aquilo que todos sentimos.
Violeta comentou em tom de troça:
‑ Não, ela muito simplesmente acreditava na bondade das pessoas. Um pouco como tu, John. Também era judia, sabes? Os antepassados dela tinham fugido de Lourenço Reis e dos amigos dele.
‑ O que é que lhe disseste?
‑ Disse‑lhe que seria preceptora dela. Ela deu‑me a morada. Na noite seguinte, apanhei uma carruagem de Liverpool até Manchester. Aí, apanhei uma série de carruagens até chegar a Newcastle. Apenas com a roupa que trazia vestida, mudei‑me para casa de Manuela. O meu quarto era ao pé do das crianças. ‑ Os olhos encheram‑se‑lhe de lágrimas. ‑ Tinha a minha cama e os lençóis... Lembras-te de quando Daniel foi viver com a Tia Beatriz? «Os lençóis são suaves como musgo!», disse‑nos ele.
Estendi a mão para agarrar a dela, mas ela tirou‑a e sentou‑se muito hirta.
‑ Nem a polícia nem o meu chulo me conseguiram encontrar, embora eu estivesse sempre com medo que acabassem por descobrir onde me encontrava. John, diz‑me uma coisa: onde é que o remorso reside em ti?
Julguei que o que ela me estava a perguntar era qual era o meu maior remorso.
‑ Gostava de ter consolado o meu pai antes de ele ter partido para Inglaterra com Meia‑Noite. Podia ter mudado muita coisa.
‑ Não, onde dentro de ti? Onde, John?
Ao ver a minha expressão perplexa, acrescentou:
‑ O meu está nos meus olhos. Quando olho para um espelho, vejo todos os meus remorsos a devolverem‑me o olhar, como se eles fossem tudo aquilo de que sou feita. Digo‑te isto: o sangue inocente nunca seca. E vou dizer‑te uma coisa que poderás dizer a Meia‑Noite sobre a caça: o sentimento de culpa é o melhor caçador que há! Viver com Manuela e as crianças acabou por significar tudo para mim. Consegui desaparecer no mundo deles. E isso é o que eu sempre tentei fazer, de uma maneira ou de outra: misturar‑me e desaparecer na vida de outra pessoa.
‑ Ainda te correspondes com eles? Já te vieram visitar aqui?
‑ Eu escrevo‑lhes cartas, embora me tenham dito para não o fazer. Mas nunca recebi qualquer resposta. Manuela deve tê‑las queimado.
‑ Mas por que é que ela havia de fazer tal coisa? Violeta soltou um suspiro.
‑ Quando as crianças eram mais velhas, Manuela mandou‑as para um colégio interno. Eu podia ter continuado em casa deles, mas arrisquei‑me a confessar‑me a ela. Tínhamos sido como irmãs. Não lhe contei tudo o que te contei a ti, mas contei‑lhe como ganhava a vida e dei a entender que tinha feito outras coisas más. Quando acabei, ela disse‑me para fazer as malas e sair de casa dela imediatamente. Corri para o marido dela, pedindo‑lhe que me ajudasse, mas ele fechou‑me a porta na cara. Ajoelhei‑me e supliquei, mas ele não a abriu.
‑ Ele devia ser um homem duro... recusar ouvir‑te depois de todos os serviços que tinhas prestado à família.
‑ Duro? Ele só estava a proteger a família de uma prostituta e de uma assassina.
‑ Tu és muito mais do que isso.
‑ Sou? ‑ gritou ela. ‑ Sou mesmo?
‑ Para mim, és.
‑ Para ti! ‑ Cuspiu‑me as palavras. ‑ Tu vês‑me com olhos que estão enevoados por um passado que já desapareceu há muito. Já não existe, John. E a rapariga que eu era está morta! Vê isso claramente antes que seja demasiado tarde para ti.
Correu para a porta do jardim, depois voltou‑se, o corpo a tremer com a ansiedade.
‑ Não tentes confortar‑me! ‑ Ameaçou‑me com o punho fechado. ‑ Deixa‑me acabar, John, para eu nunca mais ter de voltar a falar destas coisas.
Passando a mão pelo cabelo, acalmou‑se um pouco. ‑ Dois meses depois, quando eu estava a trabalhar num bordel ao pé do rio em Newcastle, o marido de Manuela mandou‑me dizer que me tinha arranjado emprego como cozinheira e governanta de um velho viúvo americano chamado Lemoyne. Eu podia ficar com o emprego na condição de nunca tentar ver os filhos deles. Lemoyne tinha uma dúzia de propriedades com pomares de macieiras ao norte de Nova Iorque, ao longo do rio Hudson. ‑ Abarcou a casa com um movimento do braço. - Esta era a casa da cidade. Trabalhei para ele durante quatro anos, até ele morrer, há pouco mais de dois anos. No testamento, deixou as proPriedades aos filhos. A mim, deixou esta casa e uma pequena pensão.
‑ Deve ter dado grande valor à tua ajuda.
‑ Sim, à minha ajuda ‑ franziu o sobrolho. ‑ E a muitas outras coisas mais.
‑ Violeta, quando eu cheguei, parecias assustada. Porquê? Porque sou um homem?
‑ Não, John. Pensei que a polícia me tinha descoberto. ‑ Sacudiu a cabeça desconsoladamente. ‑ Uma parte de mim sempre teve esperança que me apanhassem e castigassem por todo o mal que fiz. Senti essa mesma esperança pulsar suavemente por trás do meu medo quando te vi.
‑ Violeta, tu mereces muito mais do que aquilo que tens. Levantei‑me e aproximei‑me dela, mas ela repeliu‑me.
‑ Foste obrigada a prostituir‑te ‑ insisti. ‑ Foste violada e brutalizada. Já te esqueceste de como eles te raparam o cabelo?
‑ Só porque eu contei. Se eu tivesse ficado calada... A culpa foi minha.
‑ Isso não é verdade! Não vou deixar que digas essas coisas acerca... Ela esticou‑se e deu‑me uma bofetada com toda a força que lhe restava.
‑ Vai‑te embora! ‑ gemeu ela. ‑ Antes que seja demasiado tarde, sai daqui! Não te quero aqui. Estás a ouvir‑me? Não tenho lugar para ti em minha casa!
Sabendo que eu não a deixaria, caiu nos meus braços a soluçar. Acompanhei‑a até ao quarto. Quando passámos a porta, ela perguntou‑me:
‑ Uma pessoa desprezível pode ganhar o direito de ser feliz... ou de encontrar a paz?
‑ Tu não és desprezível. Por favor, não digas isso.
Ela passou a ponta do dedo pela minha cara, pelo sítio onde me tinha batido.
‑ Só estou a dizer a verdade.
‑ O homem que mataste pode ser um dos mortos generosos, como Daniel. Não consegues acreditar que isso seja possível?
Abriu muito os olhos.
‑ John, ele tinha dois filhos. Tu perdoarias a uma mulher que te separasse das tuas duas meninas?
No quarto dela, aconcheguei‑lhe a roupa. Quando ela me voltou as costas, deitando‑se de lado, agarrei‑lhe no cabelo e comecei a entrançá‑lo.
‑ Não, não me toques. Conta‑me só uma história.
‑ Foi por isso que nos mandaste embora, a mim e ao Daniel, naquele dia na Praça Nova? Achavas que não merecias ser feliz?
Não me respondeu. Talvez por ela não estar a olhar para mim, arranjei coragem para, finalmente, confessar a minha traição.
‑ Então, também eu não a mereço. Porque traí Daniel. Eu... eu disse‑lhe que podias ir para a América sem ele. No dia em que te deixámos para sempre... o último dia da vida dele. Ele ficou inconsolável. E estava bêbado. Correu para o rio.
Violeta voltou‑se para olhar para mim.
‑ Tentei salvá‑lo ‑ gemi. ‑ Nunca tentei nada tão desesperadamente em toda a minha vida. Mas deixei‑o afogar‑se. Não fui suficientemente forte.
‑ É isso que tens andado a pensar todos estes anos? ‑ perguntou ela, sentando‑se.
‑ Sim.
‑ Oh, John, de todas as pessoas que amavam Daniel tu foste a que lhe fizeste menos mal. Na altura em que lhe disseste que eu ia para a América, eu já o tinha avisado. Ele sabia que eu tencionava ir um dia, com ele ou sem ele.
‑ Mas por que é que ele pareceu tão chocado quando eu lhe disse?
‑ Não vês? Ele não devia ter pensado que tu sabias. Deve ter achado que eu o tinha traído ao contar‑te. A culpa foi minha e não tua.
‑ Quer dizer que não fui eu que o empurrei para dentro do rio?
‑ Não, John. Daniel saltou. E não havia nada que tu pudesses fazer para o salvar. Só eu... só eu é que o poderia ter feito.
Fechei os olhos e estremeci, sentindo os anos de vergonha escondida a abandonarem‑me. O mundo mudara: Daniel não me desprezara antes de morrer.
A gratidão que senti fez com que me sentisse ainda mais determinado a aliviar Violeta dos seus remorsos.
‑ Todos nós merecíamos muito melhor ‑ murmurei‑lhe. ‑ Tu, eu, Daniel. Mas naquela altura, não tivemos possibilidade de escolha. Também não havia nada que tu pudesses ter feito... nada.
Beijou‑me nas duas faces e disse:
‑ És muito gentil, mas eu não posso continuar a falar do passado. Estou demasiado cansada. Desculpa.
O meu sono foi agitado e mergulhei num pesadelo escuro e assustador em que me encontrava fechado na Torre de Vigia durante uma terrível tempestade de chuva. Meia‑Noite não estava visível em lado nenhum, mas estava a falar na sua língua de estalidos dentro da minha cabeça, como se nos tivéssemos transformado numa única pessoa. Quando acordei, apercebi‑me de que ele estava a desaparecer progressivamente ‑ pelo menos, corporalmente ‑ até dos meus próprios sonhos.
Perto das cinco da manhã, voltei a ver Violeta no jardim, mas não desci para ir ter com ela. Não queria fazer com que a minha partida ainda se tornasse mais difícil para qualquer um de nós.
Ao pequeno‑almoço, descobri que não conseguia comer nada. Bebi chávena atrás de chávena de chá e mordisquei uma torrada com compota só para agradar a Violeta. Ela tentou conversar descontraidamente sobre o tempo e outros assuntos insignificantes. O meu barco partia às onze horas em ponto.
Às dez horas, a minha agitação era tão grande que só me apetecia partir todas as janelas da casa. Em vez disso, levantei‑me e despedi‑me.
‑ Mas eu vou acompanhar‑te até ao porto ‑ disse ela ansiosamente como se não houvesse a menor dúvida de que não iria ficar para trás.
Agora, até aquela maldita touca branca me era querida.
‑ Não conseguiria aguentar dizer‑te adeus do barco ‑ confessei. ‑ Por favor, vamos dizer adeus aqui.
Abracei‑a com força até ela conseguir sorrir quando lhe fiz cócegas no queixo. As últimas palavras que me disse foram:
‑ John, o meu carinho por ti é tão profundo que te salvarei de mim mesma. Não podes apaixonar‑te por mim. Se já o estiveres, então, suplico‑te que uses esta viagem para fazer com que o teu coração me esqueça.
Dizem que o sofrimento nos endurece em vida, mas naquele momento, ao olhar para os seus olhos cor de jade, senti que ambos tínhamos sido desfeitos por ele.
Fizemos uma viagem lenta e demorámos cinco dias a chegar a Alexandria. A cidade era mais rústica do que aquilo que eu estava à espera, embora se pudesse orgulhar de ter muitos escritórios e residências elegantes. Eu nunca tinha visto uma tão grande concentração de pessoas negras e, embora muitas vestissem roupas andrajosas enquanto trabalhavam como empregados de lojas e operários, vários indivíduos por quem passei estavam elegantemente vestidos. Achei que isso era um bom agouro para Meia‑Noite e fiquei satisfeito por ver estes sinais de prosperidade.
Arranjei alojamento na Harpers Boarding House(1), uma mansão de madeira na Fairfax Street, não muito longe do porto.
O meu primeiro destino, depois de ter largado a minha bagagem, foi a King Street, a muito movimentada rua principal que atravessava a cidade no sentido este‑oeste. Segundo as cartas do Capitão Morgan, era ali que o boticário, chamado Miller, que tinha comprado Meia‑Noite, tinha a sua loja antes de morrer de febre‑amarela. Eu tinha esperança que um filho, uma filha ou uma esposa me pudessem dar qualquer informação. Quando dei com a morada em questão, descobri que era agora uma agência mobiliária chamada Readings Estate Agency.
Sentei‑me ao lado da secretária de Mr. Reading e contei‑lhe a minha história. Na esperança de que qualquer informação que eu lhe pudesse dar me pudesse aproximar mais do meu objectivo, referi que o meu amigo podia ser conhecido em Alexandria como Tsamma, que tinha sido o seu nome original.
‑ Tsamma é uma espécie de melão que nasce no deserto ‑ observei eu. ‑ Durante as secas, as pessoas e animais de África bebem o seu sumo abundante.
*1. Boarding House ‑ Pensão. (N. da T.)
Mr. Reading acendeu o charuto. No meio de uma nuvem de fumo, ergueu as sobrancelhas espessas e perguntou:
‑ Uma espécie de melão?
‑ Sim, exactamente.
Ele tentou controlar o seu riso, mas, falhando no seu esforço hercúleo, deu uma gargalhada tão grande que quase caiu da cadeira.
Vendo que eu não tinha ficado satisfeito, Mr. Reading endireitou‑se e disse‑me com uma renovada seriedade:
‑ Peço muita desculpa, Mr. Stewart. É só que um melão... ‑ Aclarou a garganta. ‑ Ora bem, voltando à sua pergunta, devo dizer‑lhe que, quando os africanos chegam ao nosso mercado, recebem belos nomes cristãos. O seu Meia‑Noite pode chamar‑se agora Washington, Adams, Jefferson ou Jackson.
Quanto à família Miller, o agente imobiliário nunca os vira. Tinha havido um dono da casa no intervalo, um carpinteiro naval chamado Barrow, mas ele não fazia a mínima ideia onde Mr. Barrow vivia agora, nem se Mr. Miller tinha tido filhos ou mulher.
‑ Ora bem ‑ disse ele, atirando um funil de fumo para o tecto através dos lábios carnudos ‑, o seu nigger tinha algumas cicatrizes ou marcas?
Ele usou a palavra nigger ‑ preto ‑ com tanta facilidade que dei um pequeno salto.
‑ Nenhuma de que me lembre, exceptuando uma pequena incisão numa sobrancelha.
‑ O seu amo tinha‑o marcado com um ferro?
‑ Meu Deus, espero bem que não.
‑ Bem, é capaz de o descrever?
‑ Era um homem pequeno, à volta de sete palmos, uma linda pele cor de bronze e um nariz achatado e largo, com um ar muito digno e...
‑ Um nariz achatado e largo, diz o senhor?
Quando confirmei, ele sorriu. A sua falta de educação estava a acordar o escocês das Terras Altas que existia em mim.
‑ Mr. Reading, o que é que eu disse desta vez para o divertir tanto? ‑ rosnei‑lhe.
‑ Todos os pretos da água salgada têm narizes achatados.
‑ Água salgada?
‑ De África.
‑ Mr. Reading, eles são todos de África, presumo eu.
‑ Mas está completamente enganado, senhor. Alguns são criados localmente. A maior parte, para dizer a verdade, uma vez que o tráfico de escravos foi proibido por uma maldita lei do Congresso, há uns quinze anos. A maior parte dos nossos pretos nasceram aqui mesmo, nos Estados Unidos. E, lamento dizê‑lo, mas o senhor vai ter de me fornecer uma descrição melhor do seu, se quer que eu o ajude a fazê‑lo sair do seu buraco.
Agoniado com a displicência e a grosseria com que Mr. Reading falava dos negros, agradeci‑lhe e saí. Passei o resto da manhã deitado no colchão com um buraco no meio do quarto do meu hotel a desenhar Meia‑Noite à luz nublada da costa da Virgínia. Foi mais difícil do que aquilo que eu estava à espera, sem dúvida devido ao calor sufocante que me obrigou a despir a roupa e a sentar‑me, a arfar, ao pé da janela para respirar os farrapinhos da brisa que soprava do oceano.
O meu desenho captou o seu lado travesso e foi por isso, julgo eu, que tantas das pessoas a quem o mostrei ainda nesse dia, me disseram: «Oh, que belo malandro o senhor tem aí, não é assim?»
Ao princípio, tomei aquilo por uma expressão afectuosa. Só quando várias pessoas franziram o sobrolho, desagradadas, é que eu comecei a compreender que eles queriam dizer uma coisa parecida com um preguiçoso inútil.
Fui forçado a concluir a partir disto que muitas pessoas em Alexandria tinham uma imaginação tão fraca que só conseguiam conceber um africano alegre e vivo como uma ameaça ou uma afronta.
Sem qualquer resultado, passei o resto da tarde a mostrar o meu desenho a mais de vinte lojistas ao longo da King Street e de Washington Street.
Por fim, um carpinteiro que falava muito depressa, chamado Friedlander, lembrou‑se que Mr. Miller tinha uma filha chamada Abigail. Meia hora depois da nossa conversa, descobriu‑me no Halls Dry Goods e disse‑me que se tinha lembrado que Mrs. Abigail Miller Munson vivia na Queen Street. De facto, ele até já tinha confirmado que ela estava em casa naquela altura. Apontei o endereço, agradeci e corri para lá.
A casa de madeira de Mrs. Munson estava pintada nuns tons agradáveis de creme e cor‑de‑rosa. Depois de ter respondido às minhas batidelas na porta, sorriu‑me com uma modéstia encantadora e fez‑me entrar para a sala, passando umas portas duplas, e ofereceu‑me o lugar de honra na ponta do sofá cor‑de‑rosa.
Abigail Munson devia ter uns trinta anos, calculei eu, embora as rugas de preocupação da testa me levassem a concluir que tinha tido uma vida dura. Os olhos eram límpidos e bondosos e os modos rápidos, mas cuidadosos, indicavam que, provavelmente, era mãe de crianças pequenas.
Nas paredes, estavam pendurados grandes mapas coloridos das colónias americanas em molduras douradas que eu admirei enquanto ela servia café em chávenas de porcelana vidrada a vermelho. Quando levantei a chávena para a ver melhor, ela disse preocupada:
‑ Espero que não haja nada de errado.
‑ Não, não... é só que eu faço azulejos e cerâmica. E a sua porcelana é linda.
‑ Como é simpático em dizer isso, Mr. Stewart, obrigada. O meu marido mandou‑me vir este serviço de França. Foi uma das minhas prendas de casamento.
Mrs. Munson bebeu um gole delicado e depois explicou‑me que Mr. Friedlander não tinha sido honesto comigo ao princípio, devido às minhas maneiras e à minha pronúncia ‑ que ele descrevera como extremamente irritantes e provocantes. Posteriormente, reflectindo melhor no juízo que fizera, mandara um empregado a casa dela para perguntar se podia dar o nome dela ao escocês. Ela concordara em me receber, uma vez que apreciava a oportunidade de conhecer um estrangeiro e não tinha nada a esconder.
‑ Ultimamente, nós, aqui no Sul, temos sido tão vilipendiados na imprensa do Norte que terá de nos desculpar se não formos muito hospitaleiros.
‑ Muito compreensível, dadas as circunstâncias. Expliquei‑lhe a finalidade da minha visita e voltei a agradecer‑lhe
por me receber. Ela estava ansiosa por ver o meu desenho. Quando o desenrolei, exclamou:
‑ Mas sim, lembro‑me dessa cara! Meia‑Noite, diz o senhor. Não me parece que o meu pai lhe chamasse isso. ‑ Olhou pela janela para o jardim. ‑ Mas não me consigo lembrar agora. Samuel... teria sido Samuel?
‑ Em África, chamavam‑lhe Tsamma. Talvez tenha sido transformado no nome europeu mais parecido foneticamente.
Ela inclinou‑se para mim, com os olhos radiantes.
‑ Agora, tenho a certeza que era Samuel. Mas já deve ter sido há uns bons quinze anos.
‑ Dezassete, creio eu.
‑ Eu era uma rapariga quando ele veio. O meu pai precisava de um ajudante. Um amigo sugeriu‑lhe este homem, Samuel. Lembro‑me de que ele era mudo. Foi um choque para todos nós.
‑ Mudo? Não, o homem que procuro falava muito bem. Pelo menos, quando...
Eu podia ter continuado, mas a possibilidade de as cordas vocais lhe terem sido cortadas pelos traficantes de escravos gelou‑me e emudeceu‑me.
‑ Estou a ver que isto é difícil para si. Quer mais café? ‑ perguntou ela.
‑ Não, obrigado. Mrs. Munson, quando o seu pai morreu, Samuel foi vendido. Pelo menos, foi o que me disseram. Sabe para onde é que o levaram?
‑ Lamento, mas não.
‑ Ou de quem é que o comprou?
‑ Não creio que alguma vez me tenham dito.
‑ Acha que haverá alguém que se possa lembrar?
‑ Tenho dois irmãos, senhor, mas são ambos consideravelmente mais novos. Eram apenas rapazes. Não me parece que algum deles saiba. Mas vou perguntar‑lhes.
‑ Ficar‑lhe‑ia muito agradecido.
Embora eu sorrisse, não consegui esconder a minha decepção.
‑ Mr. Stewart, tenho muita pena de não o ter podido ajudar ‑ disse ela com doçura. ‑ Gostaria de poder fazer qualquer coisa.
‑ Há mais alguém que a senhora conheça que possa ter‑se interessado por Samuel?
‑ Não creio. Ele trabalhava nas traseiras da loja do meu pai. Ninguém o via.
‑ E diria que ele estava bem disposto?
‑ Sim, acho que sim. Embora fosse muito reservado. Sabia escrever e era frequente fazê‑lo num livro de apontamentos. Lembro‑me perfeitamente. Uma vez escreveu‑me um poema. Mas não me consigo lembrar do que é que dizia. Era muito invulgar ver um negro a escrever, como Pode calcular.
‑ E o livro onde ele escrevia? Ainda o tem?
- Não, lamento voltar a desapontá‑lo. Não faço a mínima ideia de onde possa estar.
‑ Eu... eu ensinei‑o a escrever.
‑ Ensinou? ‑ sorriu radiosamente. ‑ Que inteligência da sua parte!
‑ Ele é que era o inteligente ‑ respondi, e tapei os olhos com a mão para esconder a minha emoção.
Ela aproximou‑se rapidamente de mim como se fosse confortar uma criança que tivesse caído. Num tom implorativo, disse‑me:
‑ Oh, Mr. Stewart, seja o que for que lhe disseram, seja o que for que possa ter lido, nem todos nós somos indiferentes no que respeita aos escravos. Eu própria tenho duas pessoas amigas da raça negra, mais valiosas do que qualquer outro bem que alguma vez possuí. Deram‑me uma ajuda incalculável na educação dos meus filhos. Mr. Stewart, suplico‑lhe que compreenda. Muitos de nós conseguem ver claramente que a escravatura é uma coisa errada não só para a raça negra, mas também para a branca. É uma maldade.
Quando ela limpou delicadamente o canto do olho com um lenço de renda que tirou da manga, ocorreu‑me que ela estava a representar
‑ e que o tinha estado a fazer desde o princípio.
‑ O tráfico de escravos é uma coisa terrível ‑ declarou ela. ‑ É o que eu penso com todo o meu coração. Mas é demasiado tarde para nós. ‑ Deixou cair a cabeça tristemente e inspirou fundo para se acalmar. ‑ A escravatura está connosco há dois séculos. Seria um suicídio acabar com esta tradição. No Norte, há a indústria e toda a riqueza que ela proporciona. Aqui, com as nossas plantações de tabaco e um pequeno porto, não poderíamos passar sem o trabalho dos negros. É isso que os editores dos jornais do Norte não conseguem compreender. ‑ Apertou as mãos como se estivesse a recitar uma oração fervorosa. ‑ Pereceríamos sem as nossas tradições e os nossos valores. Eles são a arca onde navegamos. Todavia, os nortistas desejariam ver‑nos afogados num mar de sangue. Não acredito que um escocês, uma raça que sofreu durante tanto tempo sob o domínio dos ingleses, possa achar que isso é justo.
Mrs. Munson prometeu que me mandaria recado à pensão se tivesse qualquer informação útil dada pelos irmãos. Saí de casa dela muito confuso e perguntando para comigo se alguma coisa do que tinha visto e ouvido seria genuína.
Nessa noite, a chuva caiu em lençóis negros e ameaçadores acompanhados por uma fanfarra de trovões e relâmpagos. Fechando os olhos e recordando aquela primeira vez que Meia‑Noite saiu da nossa casa no Porto para seguir a tempestade, senti‑me consumido pela preocupação. Passei a hora seguinte inclinado sobre a escrivaninha a escrever às minhas filhas. Disse‑lhes que Alexandria era uma cidade bonita com um porto encantador e que eu estava bem de saúde. Também voltei a pedir‑lhes perdão por as ter deixado, prometendo que regressaria o mais depressa que me fosse possível. Embrulhei dois pares de brincos em filigrana, que tinha comprado numa ourivesaria nessa manhã ‑ rosas para Esther e sinos para Graça ‑, e meti‑os com todo o cuidado no envelope.
Depois de as ter imaginado com as minhas prendas postas, comecei a escrever outra missiva, esta para a minha mulher:
Queridíssima Francisca, estou numa terra onde não conheço ninguém e sinto‑me inundado de dúvidas. Na sua maioria, os americanos ou me mentem ou me ridicularizam e, por vezes, não faço a mínima ideia de quais são as intenções deles. Nos meus pesadelos, não consigo compreender Meia‑Noite ‑ nem a mim mesmo. Uma vez disseste‑me que irias comigo para todos os sítios e gostaria que estivesses comigo agora. Mas somos tão impotentes para protegermos aqueles que amamos. Agora vejo isso mais claramente do que nunca e é o que mais me assusta quando acordo de manhã. Depois, sinto...
Ao mergulhar a caneta no tinteiro, pareceu‑me que não fazia sentido acrescentar mais linhas a uma carta que nunca iria ser enviada nem lida. Amarrotei o que tinha escrito, peguei‑lhe fogo e atirei‑a para a lareira, ficando a ver as chamas que, mais uma vez, me separavam de Francisca.
Na manhã seguinte, Mrs. Van Zandt, a proprietária da pensão, sugeriu‑me que levasse o meu desenho de Meia‑Noite à Penitenciária dos Escravos, de onde todos os anos milhares de pretos eram transportados para Charleston e outras cidades do Sul.
‑ Embora, se andar à procura de um preto para si ‑ confiou‑me ela ‑, seja melhor ir a um leilão particular ‑ os preços são muito mais razoáveis.
Estava à espera de uma prisão de proporções descomunais, mas era apenas um edifício de tijolo de três andares pintado de castanho‑sujo. Os pátios laterais estavam cercados por grandes muros caiados, coroados com fragmentos de vidro de aspecto perigoso. Embora não pudesse ver Para o outro lado, pois tinham uns bons quinze palmos de altura, conseguia ouvir as conversas em tons baixos dos negros que esperavam para serem embarcados e o retinir melancólico das correntes pesadas.
À porta do escritório estava um homem magro de cabelo grisalho e calças às riscas que cortava uma maçã dourada com uma faca pequena. Apresentei‑me e fiquei a saber o nome dele: Coleman. Generosamente, ofereceu‑me um bocado da sua peça de fruta, que eu aceitei. Inventei então uma história sobre Meia‑Noite com a finalidade de obter uma reacção mais favorável do que aquela que tinha recebido de Mr. Reading: eu andava à procura de um antigo criado que tinha acabado de herdar várias centenas de dólares do pai, um negro livre que tinha estado empregado na minha casa de Nova Iorque. O homem que eu queria encontrar tinha sido escravo em Alexandria, mas tinha sido vendido para outro sítio qualquer havia uns dezassete anos. Havia uma recompensa de cinquenta dólares de prata para quem me pudesse levar até ele. Perguntei a Mr. Coleman se lhe podia mostrar o meu desenho.
Ele apontou com a faca para um dos pátios laterais.
‑ Sabe quantos machos pretos eu vendi em Alexandria durante estes últimos dezassete anos? Eu diria que uns cinquenta mil ou mais. Por isso, Mr. Stewart ‑ e ele olhou para mim franzindo os olhos como se estivesse a olhar para um raio de luz ‑, o senhor não pensa de verdade que eu sou suficientemente parvo para me lembrar do seu Meia‑Noite, pois não?
sorriu maliciosamente.
‑ Tinha apenas esperança que o pudesse reconhecer...
‑ Isto aqui não é nenhum asilo, sabe?
‑ Se me fizesse o favor de deitar apenas uma olhadela ‑ disse‑lhe eu, desenrolando o desenho.
‑ Que patife mais feio ‑ disse Mr. Coleman, cortando outra fatia de maçã. Depois olhou para o céu, sem nenhuma pressa especial para tecer comentários. ‑ Não parece, mas hoje ainda vamos ter sol. É uma coisa boa. ‑ A malícia dançava‑lhe nos olhos quando voltou a olhar para mim.
‑ Sabe porquê?
Quando abanei a cabeça, ele continuou:
‑ Percebe alguma coisa de perus, Mr. Stewart?
‑ Quando eu era pequeno, uma vizinha tinha uma perua chamada Calêndula. Ela era... ‑ estava prestes a dizer uma coisa doce, mas percebi que ele iria fazer troça de mim.
‑ Era enorme ‑ conclui parvamente.
‑ Bem, Mr. Stewart, quando chove, a sua Calêndula e todos os amigos dela viram as cabeças para o céu e abrem os bicos.
São tão teimosos e tão estúpidos que chegam a morrer afogados. ‑ Apontou para o pátio.
‑ Os pretos não têm mais juízo do que os perus. Pode citar‑me. Ontem, com toda aquela chuva, um destes rapazecos pretos afogou‑se na lama. Não me pergunte como. É para ver como são estúpidos. Fez‑me perder seiscentos dólares ou mais. Por isso, Mr. Stewart, para o meu negócio, é melhor termos sol. E seria melhor para si, se esquecesse o seu Sino do Meio‑Dia. Ele já desapareceu há muito. Provavelmente, afogou‑se na lama num sítio qualquer.
O MEU ENCONTRO na Penitenciária dos Escravos aborreceu‑me de tal maneira que, enraivecido, me afastei a passos largos em direcção a umas árvores ao longe. Depressa cheguei a um bairro onde viviam famílias negras em pequenas casas baixas, separadas por terrenos cobertos de vegetação. Duas rapariguinhas ‑ não tinham mais de quatro e sete anos, calculei eu ‑ brincavam mais à frente, a mais velha a rolar um arco de metal enferrujado, a mais nova a saltar à corda. Ambas tinham lindas fitas vermelhas no cabelo cortado rente. Dei‑me conta, com um sobressalto, que não via uma pessoa branca há vários quarteirões. Além disso, estava a ser atentamente observado por vários negros sentados nas varandas e agora até pelas duas meninas.
Dirigi‑me às kelpies. Sorrindo, disse‑lhes num tom demasiado veemente:
‑ Meu Deus, mas que lindas meninas. São irmãs?
Olharam uma para a outra, espantadas, muito provavelmente, com a minha pronúncia. A mais pequena das duas deixou cair uma pedrinha lisa, cor de marfim, que tinha estado escondida na mão. Então, sem que nada o fizesse esperar, a rapariga maior gritou a plenos pulmões. Levantei as mãos para proteger os meus ouvidos enquanto ela agarrava na mão da irmã e desatava a correr. Fugiram para uma casa velha e inclinada para um dos lados, parcialmente escondida atrás de um grande e frondoso carvalho, cinquenta passos mais à frente. Mal chegaram à segurança da varanda, a mais velha encostou‑se ao parapeito e deitou‑me um olhar duro. A irmãzinha olhava‑me cheia de curiosidade a chuchar no polegar.
Instantes depois, uma mulher de ancas largas, com um lenço azul na cabeça, saiu a correr de dentro de casa. A rapariguinha mais velha apontou para mim como se eu fosse um bandido.
‑ Minha senhora ‑ gritei‑lhe ‑, eu só estava a perguntar às meninas se eram irmãs.
Ela fez‑me vários gestos furiosos com as mãos. Depois agarrou nas filhas e entrou em casa, batendo com a porta.
‑ Fez'uma inimiga da Carolyn Gold, por isso tá metido num grande sarilho.
Quando me voltei para esta voz, a minha boca abriu‑se de espanto; de pé, na varanda antiga e pouco segura de uma casa caiada de branco, estava uma mulher velha, de calças e colete de tecido grosseiro. Uma vez que não vestia nenhuma camisa por baixo do colete, os ombros e a barriga nus estavam completamente à vista. Eu ter‑lhe‑ia dado uns setenta anos de idade, porque tinha o cabelo grisalho e estava toda curvada; no entanto, os olhos pretos e cristalinos eram jovens e as faces tão suaves como veludo. Achei‑a espantosamente bela, mas também assustadora, como se fosse a materialização de um sonho há muito esquecido.
‑ Ela vai pôr‑lhe um feitiço muito fundo, fitchu ‑ tão fundo que vai ter de olhar para cima para olhar para baixo. Uma vez ela afundou um barco no porto e quatro homens não vão dizer‑nos o que sentiram porque as bocas deles nunca voltaram à superfície.
‑ Acho que tenho de lhe pedir desculpa.
‑ Desculpa? Àquele verme?
Franziu a testa e bateu com a mão numa orelha para sacudir uma mosca.
‑ Venha cá, fitchu ‑ disse ela com pena de mim. ‑ Vai precisar da 'nha juda.
Depois de me ter ajoelhado para apanhar a pedrinha polida deixada cair pela mais nova das duas raparigas, subi as escadas até à varanda. Ela assobiou e mirou‑me admirativamente.
‑ É úto, fitchu ‑ muito alto, caramba! Sou Mary Wright. Mas case toda'gente me chama Moon Mary. 'Xepto os meus filhos.
Disse‑lhe que o meu apelido era Stewart, mas pedi‑lhe para me tratar por John.
‑ Se nã s'importa, nã vou deixar q'o diabo me morda e vou chamar‑lhe Mr. Stewart.
Coloquei a pedrinha branca no parapeito da varanda e perguntei‑lhe se não se importava de a devolver à irmã mais nova, explicando‑lhe que ela a deixara cair.
Moon Mary agarrou‑a e cheirou‑a.
‑ Guardou isto p'ra ela? Porqu'é que se rala com o q'aquela rapariga deixa numa rua de pretos?
‑ As meninas pequeninas deixam cair coisas e querem sempre tê‑las de volta. Eu sei... tenho duas filhas.
‑ 'Tá em apuros, fitchu. Porq'eu nã preciso duma boa vista pra dizer a mim que 'tá muito longe de casa e tem aquele verme da Carolyn Gold a deitar magia em cima e ela nã gosta nada q'assustem as suas princesas. Ora, eu nã costumo meter‑me nas coisas dos'outros, mas visto que se meteu num sarilho e visto que devolveu aquela pedrinha... 'Spere aí onde 'tá, fitchu. ‑ Apontou‑me um dedo torto. ‑ E nã se vá pôr a assustar mais ninguém.
Entrou em casa, bamboleando‑se um bocadinho como uma pata, e voltou logo de seguida com um jarro castanho e branco que continha meio litro de um líquido verde.
‑ Beba isto ‑ disse ela, entregando‑me o jarro. Quando lhe perguntei o que era, respondeu bruscamente:
‑ Beba isso, mais nada. N'é veneno. Ou prefere ajudar a Carolyn Gold nã fazendo nada, porq'ela nã s'importa nada se fizer com c'o feitiço dela entre mais facilmente.
Levei o líquido aos lábios. Era ácido. Resfolegou perante as minhas reticências.
‑ A teimosia fez‑te prisineiro, fitchu. Isso é só limão e menta e mais umas coisas. Nã há feitiço que vença o meu remédio mal ele nos agarra.
Era açucarado e era capaz de também ter pimenta. Queimou‑me a garganta.
‑ Ora, nã foi assim tã mau, pois não, Mr. John?
‑ Não, não. De certa maneira, até era bom ‑ respondi eu roucamente para ser bem‑educado.
Quando lhe chamei a atenção para o facto de estar a usar o meu nome próprio, retorquiu bruscamente:
‑ Deixe lá isso!
Agarrando‑me na mão, fez‑me dar quatro voltas completas, enquanto resmungava qualquer coisa para si própria naquilo que devia ser uma língua africana. Finalmente, fez‑me dobrar em frente dela e espetou‑me um dedo na testa. Mais tarde, descobri aí uma pinta de cinza.
‑ Tá perdido, nã tá, Mr. John? ‑ perguntou ela franzindo os olhos. ‑ Porque, tã certo como haver inferno, parece perdido.
Contei‑lhe o que acontecera na Penitenciária dos Escravos, o que, por sua vez, me obrigou a explicar por que é que andava à procura de Meia‑Noite. Quando acabei, ela lambeu os lábios, como se estivesse a saborear qualquer coisa boa e disse‑me:
‑ Vai encontrar ele. Tenho a certeza. Quando lhe perguntei porquê, retorquiu:
‑ Porque tem um buraco dentro. Por isso, nã vai desistir.
‑ E se Meia‑Noite já tiver morrido há muito tempo?
‑ Vou dizer‑lhe isto, Mr. John, as pessoas encontram o que quer que há para elas encontrarem, se tá a perceber o qu'eu 'tou a dizer. É assim q'a vida é. ‑ Deu uma palmada na própria barriga e acrescentou: ‑ Se nã s'importa qu'eu lhe diga, tá a fazer tudo mal, fitchu: a perguntar na King Street e naquela Penitenciária horrível. Aqueles brancos nã sabem onde tá o sê amigo Meia‑Noite. Por isso, tem de perguntar aqui mesmo, onde a gente vive.
‑ Este seu bairro... Os vossos donos deixam‑vos viver aqui em troca de lhes tratarem das casas?
‑ Aqui somos livres. Isto é os Bottoms. Ao ver a minha surpresa, explicou:
‑ É simples, fitchu. Alguns de nós comprámos a nossa liberdade. Outros foram os patrões que deram.
‑ Compraram como?
‑ Com o trabalho que fazemos aos domingos.
‑ E esta casa? É sua?
‑ Comprei‑a aos Quakers. São eles que ajudam a gente aqui.
‑ E é totalmente livre?
‑ Bem, nã sê nada dessa coisa totalmente. Tenho os papéis, lá isso tenho, mas como é que posso ser totalmente livre quando nhãs bebés nã sã? Conhece alguma mãe negra que seja assim tã livre?
Disse‑me que dos seus três filhos, só o mais velho, William, tinha escapado à escravatura. Tinha fugido para Boston, onde trabalhava como tanoeiro. Já não o via há quarenta e três anos e não tinha notícias dele há quinze. Os filhos mais novos, uma rapariga e um bebé do sexo masculino, tinham sido vendidos a um traficante de escravos da terra que os levara para Charleston.
‑ Agora podem estar em qualquer sítio, até tão longe como N'Or‑leans.
‑ Se não os conseguiu encontrar, então que hipóteses terei eu de encontrar Meia‑Noite?
‑ Ouça, Mr. John. Um homem branco com uma memória... ‑ Soltou um assobio e abanou a cabeça. ‑ Um homem branco com uma memória é uma criatura pod'rosa. Agora vejo que o sinhô tem Meia‑Noite dentro de si. Ele tá aí. Tá a protegê‑lo dos da laia da Carolyn Gold e de tudo o resto. Tou a vê‑lo muito bem.
Pensei em Meia‑Noite a dar‑me o calor do seu corpo quando a Hiena me tinha feito adoecer.
Foi então que ela disse uma coisa que nunca esquecerei:
‑ Nã se pr'ocupe, Mr. John. Meia‑Noite deixou uma parte dele dentro de si. E o sinhô tá numa viagem sagrada para o encontrar. Tão certo como o sinhô ir a Jerusalém ver Jesus.
E foi assim que acabei por dar por mim a mostrar o meu desenho pelo bairro dos Bottoms. Os residentes com quem falei, foram amistosos, mas ninguém o reconheceu. Cheio de calor e coberto de suor, voltei para a pensão, onde me lavei da cabeça aos pés e fiz a barba.
Passei pelas brasas e acordei com as moscas a zumbirem, voando à volta da minha cabeça como se estivessem à procura de uma maneira de entrarem para dentro dos meus ouvidos. A luz do exterior estava nublada. O Sol estava a pôr‑se em tons dourados e rosa. Os sinos não tardaram a dar as oito horas. Perguntei para comigo se me iria sentir sempre tão sozinho na América. Depois bebi a água que ainda tinha no copo e saí para ir a uma taberna junto do porto, esperando que a brisa fresca que lá soprava me fizesse recuperar a energia. À frente de uma loja de roupa, em Prince Street, dois homens brancos dirigiram‑se a mim, o mais velho vestindo uma linda camisa de folhos. O mais novo era pálido e louro, com cintilantes olhos azuis. Era ainda um rapazote que não tinha mais de vinte anos.
‑ Deve ser o Stewart ‑ disse o mais velho muito seguro de si mesmo. Com grande alívio, percebi que deviam ter sido enviados por Abigail Munson com qualquer informação sobre Meia‑Noite. Sorrindo com gratidão, repliquei:
‑ De facto, sou, senhor. E o senhor deve ser um dos irmãos mais novos da simpática Mrs. Munson.
Estendi a mão, mas ele não a aceitou.
‑ Já fez planos para deixar Alexandria? ‑ perguntou grosseiramente.
‑ Não, senhor, não fiz. E se me der licença... ‑ tirei o chapéu. O homem mais velho estendeu a mão para me fazer parar.
‑ Jim, é melhor que lhe mostres como é ‑ disse ele para o rapaz. Ao ouvir aquilo, Jim enfiou‑me o punho na barriga. Com a respiração cortada, caí de joelhos. Uma pancada violenta na nuca fez‑me bater com a cara nas pedras da calçada. Não sei durante quanto tempo estive sem sentidos, mas lembro‑me que um amável cavalheiro branco veio em meu socorro e me ajudou a levantar. Os meus atacantes já tinham fugido há muito. Embora tivesse a cabeça a latejar, neguei ter qualquer problema, sentindo‑me grato por não ter havido nenhum dano mais grave. Apesar de me sentir ligeiramente tonto, arrastei‑me para uma taberna no porto, onde emborquei uma garrafa de Madeira de má qualidade. A seguir voltei a cambalear para a minha pensão, esperando que o sono me livrasse dos pensamentos de derrota que me assolavam.
De manhã, sentindo‑me ainda fraco, comi pão e tomei leite quente numa cafetaria das imediações. Quando voltei, Mrs. Van Zandt informou‑me de que tinha dois visitantes à minha espera no jardim.
‑ Um é um rapaz preto; por isso, vai ter de se encontrar com eles lá fora. Lamento, mas são as minhas regras.
Olhou‑me intensamente, claramente furiosa. No pátio de tijoleira nas traseiras da casa, estava um negro de ombros largos, com um lindo casaco de veludo verde. Falando com ele em voz baixa, estava um velho homem branco com camisa e calças de linho muito usadas. Sorriram quando eu me aproximei, como se estivessem profundamente aliviados por me verem. O homem negro não tinha o lóbulo de uma orelha e os olhos eram luas amarelas. Apresentou‑se como Hussar Morgan e tinha um aperto de mão forte. O homem branco chamava‑se John Comfort.
Já sabiam como é que eu me chamava.
‑ Convidava‑os para o meu quarto, mas Mrs. Van Zandt não o permite ‑ desculpei‑me eu.
‑ Nós estamos cientes das regras dela ‑ replicou Mr. Comfort. ‑ A paciência é uma virtude importante em Alexandria, como certamente vossa mercê já terá aprendido.
Vendo a minha surpresa por causa do seu vocabulário antiquado, explicou‑me que era quaker.
‑ Posso ver o seu desenho do Samuel? ‑ perguntou‑me Mr. Morgan. - É possível que o conheça.
Depois de ter ido buscar o desenho ao meu quarto, desenrolei‑o ansiosamente. Ele estudou‑o durante apenas uns segundos e depois disse com grande convicção:
‑ Sim, senhor, é mesmo o Samuel.
‑ Ele alguma vez lhe falou de mim? Do John?
‑ Não, lamento muito, mas o homem que eu conheci era mudo.
‑ É a segunda pessoa que me diz isso, senhor. Mas, a não ser que ele tivesse tido um terrível acidente, parece‑me impossível.
‑ Asseguro‑lhe, Mr. Stewart, que ele nunca disse uma palavra na minha presença.
‑ Acredito em si. É só que... Acha possível que um traficante de escravos lhe possa ter cortado as cordas vocais?
‑ Não, não me parece. Ele não tinha nenhuma cicatriz no pescoço.
‑ Graças a Deus por isso. Diga‑me, ele estava bem disposto?
‑ Não o conheci bem. Ele parecia‑me... como é que eu hei‑de dizer... parecia resignado. Não era triste, mas se eu fosse um homem religioso ‑ continuou ele, olhando para Mr. Comfort ‑, diria que lhe faltava um bocado da alma.
‑ E sabe o que é que lhe aconteceu?
‑ Depois de Mr. Miller ter falecido, o Samuel foi vendido a um traficante de escravos ‑ um homem aqui da terra, chamado Burton, que trabalhava para um comerciante de Baltimore chamado Woolfolk. Mr. Burton morreu... bem, já há mais de dez anos. Nessa altura, disseram‑me que o Samuel tinha sido obrigado a embarcar num navio que seguia para Charleston.
‑ Como é que o conheceu, Mr. Morgan? ‑ perguntei‑lhe.
‑ Nessa altura, eu era jardineiro de uma família rica. O Samuel ajudava‑me aos domingos. Ele gostava muitíssimo de flores e plantas. E depois, quando isto aconteceu ‑ deu um piparote com o dedo na orelha sem lóbulo ‑, ele tratou‑me a ferida.
‑ Teve um acidente, senhor?
Mr. Morgan soltou uma gargalhada e respondeu que era uma história insignificante que não valia a pena repetir. O seu amigo quaker comentou misteriosamente:
‑ Alexandria é uma terra de muitos acidentes. E não disse mais nada.
‑ E, se me perdoarem a curiosidade, como é que souberam da minha presença na vossa cidade?
‑ Foi Moon Mary ‑ replicou Mr. Comfort. ‑ Ela pediu‑me para vos ajudar. E Hussar é um velho amigo.
Mr. Morgan devolveu‑me o desenho.
‑ Se me permitir que lhe fale francamente, o senhor não está em segurança aqui. As pessoas andam a dizer que o senhor é um desordeiro inglês e um fervoroso opositor do tráfico de escravos.
Quando expliquei a minha ascendência, Mr. Comfort disse: ‑ Escocês ou não, tomei a liberdade de reservar a vossa mercê um beliche num barco que vai esta manhã mesmo para Charleston. E aconselho vossa mercê a pensar em partir quanto antes.
‑ Se Meia‑Noite não está cá, não há nada que me retenha aqui. Obrigado por velarem por mim.
Entreguei a Mr. Morgan e a Mr. Comfort cartões com a morada de Violeta.
‑ No caso de descobrirem mais alguma coisa a respeito de Samuel, por favor, mandem‑me uma carta ao cuidado desta minha amiga.
‑ Praza a Deus que encontreis Samuel em Charleston ‑ desejou Mr. Comfort simpaticamente.
Mr. Morgan secundou‑o, apertou‑me a mão e acrescentou: ‑ E que possa descobrir que ele já não é mudo.
Tás Morta Memo Quando Tás Viva
Depois de o meu Papá desaparecer e de o Patrão Edward Roberson me ter raptado de River Bend, mandou uns brancos levarem‑me para a infernal plantação de algodão do irmão. Ficava muito lá para cima, ao pé de Columbia, e eu trabalhei lá, até os meus dedos ficarem em sangue, durante os sete meses mais lentos da História. Aqueles dias e aquelas noites eram feitos de melaço quente. E ele tinha tudo o que havia de errado colado a ele, incluindo eu.
Trabalhei sem parar durante as três primeiras semanas do período da colheita, até ao princípio de Setembro. Durante a maior parte do tempo, cheirava tão mal como uma doninha fedorenta ‑ e estava igualmente desnorteada ‑ porque o Papá se tinha ido embora e a Mamã estava morta. E apanhar algodão é ainda pior para o espírito do que para as costas.
Foi nessa altura que aprendi que a tristeza pode tornar‑se tão poderosa que nos domina ainda mais do que o Patrão.
O Patrão Edward levou‑me lá para cima porque ele pensava que o meu papá era capaz de esperar um par de meses para os ânimos acalmarem e, depois, voltar às escondidas a River Bend para me libertar.
Eu não consegui perceber lá muito bem como é que levar‑me para aquela plantação iria frustrar os planos do meu pai para sempre. Partindo do princípio que ele ainda estava vivo e tinha alguns. Porque de certeza que ele descobria onde é que eu estava se se introduzisse à socapa em River Bend e perguntasse a qualquer escravo. Mas eu não tinha dado crédito suficiente à maldade de Edward. Com aquilo que fez quase se excedeu a si mesmo. Porque chamou todos os escravos de casa e dos campos e disse‑lhes numa voz muito solene que, naquela noite, eu tinha sido levada à pressa da Casa Grande para um hospital em Charleston, a tremer como um desgraçado de um grilinho. Depois, passados três dias, com a preocupação a franzir os sobrolhos de toda a gente e a Lily a apertar aquela cruz de latão que traz ao pescoço como se ela tivesse a minha vida lá dentro, o Patrão Edward fez a cara mais desolada que alguma vez fizera e disse a toda a gente que eu tinha morrido com as sezões.
Teria sido simpático ter um veludo suave no interior do meu caixão, mas tive de me contentar com um caixão de pinho. Os meus amigos enterraram‑me no cemitério dos escravos junto do Christmas Creek. Dentro do meu caixão, o Patrão Edward deve ter enfiado o meu peso em terra embrulhada num pano e, se calhar, também um bocado de queijo velho, porque, mais tarde, toda a gente me disse que eu cheirava tão mal que Crow e alguns dos outros tiveram de apertar os narizes. O Patrão Edward recusou‑se a abrir a tampa, que estava pregada com pregos, porque, disse ele, o meu corpo estava horrorosamente comido pela doença. Este plano funcionou tal como ele queria, porque, uns dois meses mais tarde, um mulato entrou às escondidas em River Bend, uma noite em que o Patrão Edward estava a jogar cartas em Charleston, e perguntou por mim. Dois escravos disseram‑lhe que eu tinha morrido de sezões e que já tinha sido enterrada.
O mulato entrou e saiu sorrateiramente e muito depressa, como uma sombra ao pôr do Sol.
Eu esperava que o meu papá ainda estivesse num sítio qualquer ali perto e que mandasse alguém buscar‑me, ou, se estivesse no Norte a ganhar salário, pagasse a alguém para me vir salvar.
O Patrão Edward trouxe‑me outra vez para River Bend no meio de Setembro. Ele achava que o meu pai, se estivesse escondido por ali, já teria sabido que eu tinha morrido. Era visível no brilho dos olhos dele o enorme prazer perverso que lhe dava pensar que tinha enganado toda a gente.
Umas semanas depois de eu ter voltado para River Bend, até me deixou voltar a ir a Charleston fazer as compras da casa e comprar plantas.
Deviam ter visto a cara de toda a gente quando voltei para River Bend e saí da carroça em frente da arcada. Lily saiu a correr da cozinha a guinchar.
‑ Morri! Morri!
Caiu de joelhos a murmurar umas rezas, agradecendo a Deus ter‑me libertado da morte. Depois envolveu‑me no seu grande e velho abraço, beijando alternadamente a cruz e a mim. Quando me largou, Weaver olhou para mim como se eu fosse um fantasma.
Agarrei‑lhe na mão e ele soltou uma das suas grandes gargalhadas, pondo‑me aos ombros como se eu fosse uma miúda que quisesse andar às cavalitas. Quando, finalmente, me pôs no chão e eu parei de rir, perguntou‑me como era o céu e se era bonito lá em cima.
‑ Céu? ‑ perguntei eu. ‑ O céu não tem nada a ver com o Middle Country da Carolina do Sul, tanto quanto sei. Se tiver, para a próxima vez prefiro ir para o inferno.
Mais tarde, quando estávamos sozinhos nas arcadas, Weaver disse‑me uma coisa que eu achei muito inteligente:
‑ Acho que quando os brancos dizem que tás morta, tás morta memo que tejas viva.
Creio que a verdade pode assim a modos que se ir enfiando dentro de nós muito devagarinho, tal como acontece com a tragédia. Porque foram precisos mais quatro meses depois de ter voltado a casa para eu ver que fugir de River Bend não era tudo o que eu queria. Não, minha senhora. Nem mesmo o Patrão Edward podia decidir que um de nós estava morto, quando muito bem lhe apetecesse.
As minhas ideias tornaram‑se mais ousadas quando comemorámos o sexagésimo quinto aniversário de Lily. Nessa tarde, o Galaró deu uma dentada na fatia que tínhamos guardado para ele e partiu um dente numa lasca de cerâmica. Com os berros que ele soltou e as patadas que deu no soalho, ficámos com a certeza de que ia cumprir as suas ameaças e arranjar outra cozinheira:
‑ Eu sempre disse que ela ia envenenar‑me, essa preta de cara de ameixa! ‑ não parava ele de gritar.
Ele teria mandado chicotear Lily, mas ela fugiu e escondeu‑se ao pé do Christmas Creek até ele acalmar.
No dia seguinte, quando a interroguei sobre a sua falta de cuidado, ela apontou para os olhos.
‑ Estão a ficar pior? ‑ perguntei eu.
‑ Morri, querida ‑ disse ela, mordendo ruidosamente as gengivas ‑, eu só vejo sombras com o esquerdo. Mas o direito ainda tá muito bom, acho eu. Vá, faz‑m'um teste.
Afastei‑me cinco passos e perguntei‑lhe quantos dedos é que eu estava a mostrar. Não estava a mostrar nenhum, reparem. Ela franziu os olhos durante um bocado e depois disse:
‑Tês.
‑ Parece que esse olho direito está a ver tudo, lá isso está ‑ disse‑lhe eu alegremente.
Por isso, não foi uma grande surpresa quando um dia apareceu a nova cozinheira. Chamava‑se Marybelle. Dei‑lhe uns vinte e cinco anos, era magra como uma folha de erva, com um grande sorriso que nos fazia formigueiros. Gostei logo dela. É verdade que ela falava demasiado, mas era uma boa observadora. Ela chegou à conclusão de que Lily precisava apenas de um par de óculos como devia ser para poder continuar a cozinhar mais uns dez anos, pelo menos. Marybelle tinha bom coração e aguentou todas as nossas maldades durante aquelas primeiras semanas sem uma única queixa. Tratámo‑la mal porque ela tinha vindo substituir Lily, estão a perceber?
Quando pensamos que ela já tinha tido dois filhos e que ambos tinham sido levados sabe Deus para onde, percebemos como esta rapariga tinha de ser forte para conseguir continuar a acordar todos os dias. Nunca lhe perguntámos onde o marido estava. Algo no rosto dela nos disse para não o fazermos.
Quando perguntei ao Patrão Edward se podia levar Lily a Charleston para comprar os óculos de que ela precisava para não nos matar com cacos de louça, ele deitou‑me um olhar furioso, como se eu tivesse perdido o juízo.
‑ Comprar uns óculos à Lily? Morri, eu não vou gastar nem mais um tostão com essa porca velha agora que temos cá a Marybelle. Nem pensar, depois de todo o dinheiro que acabei de gastar sem nenhuma garantia.
Sem nenhuma garantia de quê?, apeteceu‑me perguntar, mas ele estava zangado e eu calei a boca.
Crow e eu conseguimos montar a resposta a esta pergunta com os bocadinhos que ele ouviu na sala. E o que ficámos a saber foi que havia uma grande complicação com a compra de Marybelle. O Patrão Edward pagara quinhentos e cinquenta dólares por ela a um fazendeiro chamado Philip Fiore, mas Mr. Fiore tinha selado a venda sem aquilo a que o patrão Edward chamava «uma garantia da robustez dela». Isto era porque ele também a tinha comprado sem essa garantia. Não que ele pensasse que ela era uma mercadoria estragada. Não, senhor. Ele jurou que ela estava de perfeita saúde, exceptuando o reumatismo no ombro esquerdo. Mas ainda não tinham passado seis semanas desde que Marybelle tinha começado a trabalhar na cozinha, mais ou menos na altura em que deixámos de ser frios com ela por ter vindo substituir Lily, quando ela começou a queixar‑se de dores na barriga.
Tratei‑a com chás que ajudaram um bocado, mas não o suficiente. Lily pensou que ela podia estar de bebé, mas ela negou ter dormido com um homem nos últimos seis meses.
Olhei para Weaver quando ela nos disse isso, porque ele estava muito interessado nela. Ele abanou a cabeça muito depressa para dizer que não tinha estado com ela dessa maneira, embora eu pudesse ver que ele estava a pensar nisso. Era um patife nato, aquele.
Marybelle foi viver comigo, para o meu quartinho ao lado da cozinha, para eu poder cuidar dela. Ela sofria horrivelmente a maior parte do tempo e quase não dormia. Não sei como, mas continuou sempre a cozinhar para o Patrão Edward, Mistress Kitty e as crianças. Ela era muito mais forte do que aquilo que parecia, digo‑vos eu.
Por fim, o Patrão Edward achou que era melhor fazer qualquer coisa drástica se a queria salvar. Por isso, levou Marybelle ao Dr. Lydell em Charleston. Ele levou‑a a outro médico e depois a outro. Quando aqueles brancos acabaram de a examinar e picar, tinham passado dois dias de sofrimento atroz e ela estava a implorar para vir para casa para beber os meus chás. Finalmente, depois de mais puxões e apertões, aqueles médicos disseram a Edward que ela tinha dois tumores cirrosos nos ovários do tamanho de duas laranjas.
Ninguém sabia o que era um tumor cirroso, mas se aqueles eram tão grandes como laranjas, sabíamos que Marybelle não ia continuar connosco muito mais tempo.
O Dr. Lydell disse ao Patrão Edward que os tumores de Marybelle já deviam estar a crescer dentro dela há pelo menos um ano, a julgar pelo volume deles. O que aquilo queria dizer era que, quando ela tinha sido comprada a Philip Fiore, ela já os trazia na barriga há bastante tempo.
‑ Esse filho‑da‑mãe do Fiore! ‑ explodiu o Patrão Edward. ‑ Vou reaver o meu dinheiro, senão mato‑o!
Não, ele não estava disposto a deixar‑se ficar depois de ter pago quinhentos e cinquenta dólares por uma cozinheira preta com laranjas podres dentro dela.
Mas quando pediu o dinheiro de volta, Mr. Fiore teimou em levar a pobre Marybelle a mais dois médicos escolhidos por ele. Eles vieram a River Bend, depois de a terem examinado por fora e por dentro, para dizerem ao Patrão Edward o que tinham encontrado. Uma vez que Mr. Fiore era quem lhes pagava, ninguém ficou muito espantado por saber por Crow que eles tinham jurado que os tumores dela eram novinhos em folha.
Mesmo que não fosse esse o caso, eles insistiam que ninguém podia ter a certeza de há quanto tempo estavam dentro da Marybelle sem aquilo a que eles chamavam uma «dissecação patológica». E, por isso, o Patrão Edward não podia, em justiça, pedir que lhe devolvessem o dinheiro. A não ser...
‑ A não ser ‑ sugeriu o Galaró ‑ que metam mãos à obra e façam a vossa dissecação. Assim logo verão que tenho razão.
Nós ouvimos Crow contar‑nos a discussão acalorada que eles tinham tido depois e a decisão que tinham tomado. Iam resolver o assunto, abrindo a barriga da Marybelle e espreitando lá para dentro. Depois voltavam a cosê‑la e mandavam‑na à vida dela.
Talvez nós não fôssemos suficientemente maus para compreendermos. Porque o que veio a acontecer foi que eles não puderam deixar as laranjas dentro de Marybelle. Não, senhora, tiveram de as tirar para as inspeccionar.
Em vez de terem que operar com Marybelle aos berros e a fazer um grande estardalhaço, decidiram que seria muito melhor «acabar com o sofrimento da pobre preta».
Nós só soubemos o que eles tinham feito depois de eles terem assassinado Marybelle. Provavelmente, foi arsénico, uma vez que foi essa a palavra que Crow ouviu o Dr. Lydell usar, embora Crow lhe chamasse sénico, sem saber o que era.
Dissecaram‑na ainda ela estava quente, segundo o Dr. Lydell. Um cirurgião de cada uma das facções abriram‑lhe a barriga com as suas facas. Marybelle tinha de estar quente, compreendem, para eles poderem tirar os tumores em bom estado. Qualquer pessoa que soubesse alguma coisa de medicina sabia isso, disseram eles ao Patrão Edward.
No fim, os dois lados concordaram que os tumores tirados de dentro da Marybelle estavam demasiado bem formados e tinham criado muitas outras excrescências mais pequenas na barriga dela para só lá terem estado há alguns meses. Por isso, Mr. Fiore acabou por ter de devolver ao Patrão Edward os quinhentos e cinquenta dólares, embora tivesse sido autorizado a subtrair o dólar e meio que custou levar o corpo amortalhado dali para fora. Teve de ser enterrado num sítio especial porque, naquela altura, já estava cheio de arsénico.
O Patrão Edward ficou muito satisfeito consigo próprio e andou o dia todo a passear‑se por River Bend com um grande sorriso e a bater com as notas na mão.
Uma semana mais tarde, perguntei‑lhe outra vez se podia levar Lily a comprar óculos novos e, desta vez, ele concordou. Mas eu não queria ir lá só por isso. Agora já não. Porque, depois de termos descoberto que Marybelle tinha sido aberta ainda quente, tive aquilo a que o Papá costumava chamar um sonho com o Louva‑a‑deus. Nessa mesma noite. Nele, eu vi o que tinha de ser feito e por que é que toda a gente tinha de vir comigo.
Tal como a Mamã e o Papá
Eu AINDA NÃO SABIA como é que ia fazer o que ia fazer e a quem é que podia pedir ajuda. Se calhar, teria continuado a não fazer nada, mas na noite seguinte, na varanda, Weaver sentou‑se ao meu lado.
‑ O qu'eles fizeram à Marybelle foi muito mau, yíom,fitcha.
‑ Lá isso foi, Weaver.
Ficámos os dois em silêncio a pensar na justiça, calculo eu. Eu sempre me sentira confortável com Weaver, como se ele fosse um tio. Ele deu‑me uma palmadinha na coxa e disse:
‑ Sabes, menina, se eu tivesse uma pstola na mão neste momento, usava‑a. Juro ao céu lá em cima qu'a usava mesmo.
‑ Estou a ver que sim.
‑ Primeiro, metia o primo Edward debaixo d'terra. Quinze metros lá em baixo. Aos despois, ia dr'eito a Charleston e metia balas em todos aqueles médicos. Dizia‑lhes: «Isto é uma prenda da Marybelle.» Eu era capaz de fazê‑lo. O teu papá dizia‑te isso memo s'aqui tivesse. Ele sabia como sei disparar bem. Uma bala é tudo o que precisava p'ra cada um deles.
‑ Eu acredito em ti, Weaver.
Não acrescentei mais nada porque ele parecia que estava a ficar muito excitado. Ele deve ter pensado que eu estava apoquentada por causa daquela sua conversa cheia de raiva, porque se levantou e disse:
‑ Peço muita desculpa po tê atirado isto p'ra cima de ti, Morri, fitcha. Precisava de falar com alguém e tu foste sempre fácil pra eu falar. Squece o qu'eu disse.
Puxei‑o para baixo. Expliquei‑lhe que o que me estava a preocupar não era o que ele dizia, era saber que eu queria matá‑los tanto como ele e que éramos capazes de ter justificação. Também lhe disse que ele me parecia cansado e que, se ele quisesse, lhe fazia um chá especial.
As lágrimas dele começaram então a correr, como se tivessem estado contidas há meses, embora fosse mais provável que já o estivessem há anos. Eu nunca tinha visto Weaver chorar. Ninguém tinha. Eu sabia que ele gostava de Marybelle, mas não sabia quanto.
‑ Ela era uma rapariga boa e corajosa ‑ disse‑lhe. ‑ E muito forte. Aquilo só fez com que ele começasse a tremer. Ele era um homem de ombros largos, mas eu consegui pôr os meus braços à volta dele quase todo. Aquela grande força dele tinha‑se desfeito em desespero.
‑ 'Sculpa ‑ sussurrou ele, limpando os olhos.
‑ Não é preciso. Somos família. Chora se queres. Chora ao pé mim.
‑ Não, já chega.
Depois de ter limpo os olhos, fechou o punho ameaçadoramente e disse:
‑ Vou fazê. Desta vez vou fazê isso.
‑ Weaver, na outra noite sonhei que ia vir um grande dilúvio. Tudo em River Bend ia ficar coberto de água.
‑ Até a Casa Grande? ‑ perguntou ele.
‑ Até essa. Agora, que me dirias se eu pudesse arranjar umas armas para nós? E talvez até umas espadas? Achas que conseguíamos lutar e abrir caminho até Charleston e metermo‑nos num barco? Um do Norte. Ou de Inglaterra. Achas que podias ensinar alguns de nós a carregar e a disparar uma arma?
Weaver olhou para mim, mordendo o lábio, pensando ferozmente. Depois assentiu com a cabeça. E foi assim que começámos a fazer os nossos planos a sério.
Houve uma coisa que eu soube logo: se íamos lutar para chegar até Charleston e metermo‑nos ao mar, tinha de ser com a ajuda de um velho amigo chamado Beaufort. Por três razões: trabalhava num armazém nas docas da cidade e tinha de conhecer tripulantes de barcos e até capitães; era um mulato que nascera livre e podia deslocar‑se com mais facilidade do que qualquer negro; e gostava de mim quase como um pai. Eu conhecia‑o praticamente desde sempre, porque parte do que o Papá e eu costumávamos fazer nas nossas viagens ao mercado era ir buscar plantas novas e mantimentos guardados no armazém que Beaufort guardava.
Uma vez, Beaufort também me ensinou uma coisa importante. Um dia, quando me estava a fazer saltar no joelho, soltou um suspiro muito grande e disse:
‑ Morri, é mesmo uma pena seres uma escrava, porque és uma menina muito esperta e podias fazer qualquer coisa da tua vida.
Eu não tinha mais de seis anos de idade, mas aquilo que ele disse fez com que o coração me saltasse no peito. Porque eu não sabia que era uma escrava até àquele momento. Eu sabia que os meus pais eram escravos, mas nunca tinha pensado em mim dessa maneira. Eu era Morri e era uma escrava, tal como a mamã e o Papá.
Suponho que sentia que podia confiar nele porque, ao contrário do resto dos mulatos de Charleston, ele não se considerava quase branco. Dizia sempre que uma tareia de chicote que tinha apanhado do seu pai branco lhe tinha ensinado que ser quase branco era uma impossibilidade ‑ muito parecido com os negros de Maryland dizerem que viviam quase no Norte. Lily tinha ouvido isto uma vez quando tinha ido a Baltimore com o Grande Patrão Henry e era uma coisa que nos fazia rir sempre.
Por isso, aconteceu que eu trouxe Lily à cidade para escolher uns óculos, mas principalmente para eu falar com Beaufort. O cocheiro, Wiggie, não tinha de vir, visto que era o seu dia de folga, mas concordou em nos trazer. Weaver também veio porque eu disse ao Patrão Edward que ele precisava de comprar umas coisas para as galinhas. Normalmente, Edward não nos deixaria ir a todos, mas ultimamente ele parecia uma brisa calma por ter conseguido reaver o dinheiro pago por Marybelle e por ter enganado o meu papá.
A primeira paragem para nós os quatro em Charleston foi o médico dos olhos. Parecia que ia levar um bocado porque já estavam dois homens negros sentados na sala de espera colorida; por isso, eu dei a Wiggie os cinco dólares de prata que o Patrão Edward me tinha confiado e pedi‑lhe para ficar com Lily. Eu e Weaver fomos a pé até ao armazém de Beaufort. Charleston costumava pôr‑me tonta por haver sempre tanto movimento para onde quer que a gente olhasse. Mas, nesse dia, enquanto caminhávamos por aquelas ruas fervilhantes, os meus pensamentos estavam claros. Não era nada difícil imaginar o aspecto que todas aquelas mansões elegantes teriam quando fossem madeira queimada, tijolos desfeitos e cinzas.
Weaver inclinou‑se e colou a boca à minha orelha:
‑ Entã, onde 'stão todos os brancos?
‑ De que brancos é que estás a falar, Weaver?
‑ Eles todos ‑ disse ele. ‑ Nós ser mais qu'eles ‑ disse ele, erguendo os ombros, como se aquilo fosse estranho.
‑ Weaver, continua a andar ‑ disse eu, agarrando‑lhe o braço e puxando‑o. ‑ E ouve... Ora, cada casa que consegues ver nestes quinhentos passos à tua volta tem uma mão‑cheia de escravos para cozinhar, limpar e tudo o resto. Alguns têm vinte, trinta ou mais. Deve haver dez ou quinze mil negros em Charleston. Digo‑te uma coisa: os brancos estão a nadar num grande mar negro.
Ele ficou um bocado calado, a pensar naquilo. Depois disse:
‑ Morri, eles devem sabe que tão a fazê mal. Até memo aqueles homes que mataram a Marybelle devem sabe isso.
‑ Bem, se julgas isso, Weaver, então ainda precisas mais de óculos do que a Lily.
Encontrámos Beaufort sentado à frente do seu armazém, atrás de uma velha secretária de madeira. Agora já tinha o cabelo quase todo branco e vestia um lindo colete cor de pérola e uma gravata escarlate. Fez‑me um grande sorriso de boas‑vindas e abriu‑me os braços. Apresentei Beaufort e Weaver um ao outro e depois perguntei se alguma das minhas plantas ou sementes tinham chegado, o que serviu para Beaufort ter oportunidade de nos levar para as janelas das traseiras.
Agora, antes de vos contar o que disse a Beaufort, tenho de explicar uma última coisa. Meses atrás, tinha‑lhe perguntado se me podia descobrir se havia algum capitão britânico que pudesse ver com bons olhos que uma rapariga negra se escondesse no barco dele. E para me arranjar a data em que ele voltaria ao porto.
Duas semanas antes, ele dera‑me o nome desse capitão ‑ Timothy Ott. Habitualmente, vinha de Liverpool e trazia tecidos das fábricas britânicas para a América, levando fardos de algodão gigantescos para o outro lado do mar quando regressava. Beaufort tinha feito umas perguntas discretas e tinha ficado a saber quais as opiniões do inglês sobre a escravatura, que eram muitíssimo críticas. De facto, ele chamava a Charleston uma abominação, especialmente por ter de conservar a sua tripulação negra a bordo dos seus navios, porque a cidade tinha uma lei especial que dizia que eles tinham de ficar na prisão se viessem a terra.
O meu coração batia ruidosamente dentro dos meus ouvidos quando lhe perguntei num murmúrio:
‑ Alguma notícia de Liverpool sobre quando é que os preços do algodão podem voltar a subir?
Beaufort olhou duvidosamente para Weaver.
‑ Ele é da família ‑ disse eu.
‑ Ainda nã ouvi nada, Morri. Eu mando‑te dizer, de uma maneira ou de outra, não te preocupes. Pareces um bocadinho nervosa, hoje. Não 'tás doente?
‑ É porque tenho outra coisa para te pedir, Beaufort. Uma coisa maior.
‑ Vá, fala, Morri. Nã te vou morder.
‑ É isto ‑ disse eu muito baixinho. ‑ Beaufort, deves conhecer um bom número de negros livres aqui ‑ que têm carregamentos a chegar. Achas que algum deles poderá ser simpático para comigo?
Quando ele me deitou um olhar perplexo, acrescentei: ‑ Sabes, sobre os preços do algodão em Liverpool. E talvez para mandar para lá outras coisas também ‑ outras plantas.
Esperava que ele compreendesse o que é que eu queria dizer sem ter de falar mais claramente. Mas ele disse:
‑ De que é que 'tás a falar? Que outras coisas?
Lançou outro olhar duvidoso a Weaver e, por isso, foi ele que respondeu:
‑ 'Tamos a fala de manda mais qu'um.
Beaufort endireitou‑se de um salto com o choque. Eu disse‑lhe:
‑ A única coisa que te estou a pedir é o nome de um negro livre aqui em Charleston que nos possa ajudar a mandar umas plantas para o Norte ou para Inglaterra.
Perdi toda a força que tinha nas pernas e pensei que era capaz de fazer chichi pelas pernas abaixo ali mesmo. Agarrei‑me a Weaver para me equilibrar.
‑ Beaufort, tu és a única pessoa que me pode ajudar. Sabes que eu não te pedia se não fosse assim.
Ele estava a morder o lábio e a olhar para os pés. Era um conspirador muito óbvio, digo‑vos. O meu coração batia mais acelerado do que nunca e foi assim que eu soube que estava tudo a correr mal, mesmo antes de começar a correr bem.
‑ Não sei, Morri. Temos de ver isso.
Nem sequer me olhava nos olhos. Weaver pousou‑me uma mão nas costas.
‑ Anda, rapariga, vamos embora.
À porta, Beaufort deu‑me um beijo rápido na testa.
‑ Rollins... Henry Stansfiel Rollins ‑ murmurou‑me ele. ‑ Vive na Bull Street.
‑ Beaufort ‑ respondi‑lhe eu num murmúrio ‑, eu não conheço Charleston muito bem. Onde é...?
‑ Morri, Mr. Rollins pode ajudar‑te a mandares as tuas coisas para Inglaterra. Mas se ele não o fizer, não te posso ajudar com os teus outros planos ‑ disse ele bruscamente. ‑ Eu digo‑te os preços do algodão em Liverpool, isso digo, mas é só o que eu vou fazer.
Eu não queria parar para falar com nenhum negro na rua para perguntar o caminho para a Bull Street, não fosse dar‑se o caso de alguém me estar a vigiar. Por isso, resolvi perguntar no mais conhecido boticário da cidade, que se chamava Apothecaries Hall. Um dos donos, Dr. LaRosa tinha sido amigo do meu pai. Depois de o meu pai ter descoberto que ele era judeu ‑ isto foi por volta de 1814 ‑, ele costumava ir lá para aprender tudo o que podia sobre as plantas locais que ele podia dar às pessoas para a escarlatina, lombrigas e tudo o resto que nos enfraquece. Também costumavam sentar‑se no escritório do Dr. LaRosa e conversar sobre histórias da Tora. E, uma vez, o Papá até foi convidado para um jantar de Sabbath numa sexta‑feira à noite, embora ele não pudesse ir porque o Grande Patrão Henry não o deixava sair depois do pôr do Sol, especialmente com um judeu metediço que sabia tudo, como ele dizia.
A maior parte dos judeus de Charleston ‑ incluindo o Dr. LaRosa ‑ tinham antepassados de Portugal. Alguns até tinham vindo directamente da cidade do Porto, onde o Papá tinha vivido. Isso fazia sempre com que ele sentisse que ter vindo parar à Carolina do Sul não era assim tão estranho. Não é que alguns dos fregueses do boticário não se queixassem do Papá ser autorizado a entrar no escritório dele. Um homem chegou até a dizer‑lhe uma vez que nenhum preto devia pôr o pé num estabelecimento de brancos, «mesmo que ele soubesse citar o Génesis de trás para a frente».
Infelizmente, o Dr. LaRosa não estava quando eu e Weaver lá passámos. Mas um jovem empregado tratou‑nos com amabilidade e deu‑nos instruções enquanto apontava para pontos de referência no mapa da cidade pendurado na parede. Bull Street não ficava muito perto e eu estava a começar a ficar preocupada por termos deixado Lily e Wiggie há já muito tempo.
‑ Eu digo‑te como vamos fazê ‑ disse‑me Weaver quando chegámos à rua, pondo a sua mão velha e grande no meu ombro.
‑ Tu voltas p'ro pé de Lily e Wiggie enquanto eu vou falar com Mr. Rollins. Metes‑te na carroça e vais ter comigo lá e depois vamos todos para casa.
Ainda discuti um bocado, mas acabei por fazer o que ele disse. Não me devia ter preocupado tanto com Lily e Wiggie, porque eles ainda estavam à espera dos óculos quando eu cheguei.
Naquela altura, eu não pensei que Weaver podia ter qualquer razão secreta para querer falar com Mr. Rollins sozinho, mas agora pergunto‑me se ele não estaria a tentar ficar com alguns riscos só para ele. Provavelmente, ele achava que devia ao Papá tomar conta de mim. Nunca o saberei. A não ser que possamos fazer com que os mortos falem, claro.
Esperando que Meia‑Noite tivesse conseguido arranjar trabalho a vender medicamentos em Charleston ou algures nas imediações, ou que ainda estivesse a praticar esta profissão, decidi começar por perguntar por ele nas lojas dos boticários.
Naquela altura estava o mais enervado que era possível. Acreditava que o podia lobrigar a qualquer momento ‑ a guiar uma carruagem que virava a esquina, a comprar calças numa loja de roupa por onde estava a passar...
O que mais me espantou e agradou enquanto me precipitava para a King Street e a zona central das lojas foi descobrir que Charleston era uma cidade africana. Os negros desempenhavam todas as tarefas à minha volta que exigissem força física e energia ‑ desde o transporte de lixo em carrinhos de mão ao tocar os sinos da igreja. Por cada pessoa que eu vi de origem inglesa ou continental, calculei uns três negros. Alguns, e não tão poucos como isso, usavam roupas elegantes e jóias, sendo evidente que tinham conseguido a liberdade. A maioria, no entanto, vestia ou librés sujas ou roupas do tecido grosseiro de algodão e lã a que chamavam o tecido dos pretos. Muitos estavam descalços.
A dada altura, vi dois homens brancos já idosos montados a cavalo e armados com pistolas e espadas, o que me surpreendeu bastante; eu ainda não sabia que andava à procura de Meia‑Noite numa cidade que estava sitiada.
Naquela primeira manhã, mostrei a quase uma dúzia de empregados o meu desenho do boximane e, embora três deles se tivessem mostrado muito satisfeitos por poderem comentar desfavoravelmente aquilo a que mais uma vez chamaram a velhacaria dele, todos me garantiram que não havia negros a vender remédios na cidade deles.
‑ Só um idiota de um nortista com vontade de se encontrar com o seu criador é que aceitaria um pó ou um xarope misturado por um preto ‑ troçou um.
Quando os sinos bateram o meio‑dia, a minha esperança de conseguir qualquer informação útil dos residentes brancos tinha desaparecido por completo. Decidi seguir outra vez o conselho de Moon Mary e interpelar comerciantes e mercadores negros na rua. Para fazer isso, abordei‑os no lado dos passeios para os negros.
Embora a minha pronúncia escocesa criasse dificuldades, os primeiros negros a quem pedi ajuda conseguiram perceber‑me desde que eu falasse devagar, mas nenhum me pôde ajudar. Então abordei um cavalheiro bonito com um colete dourado e calças pretas que devia andar pelos quarenta anos de idade. Depois de lhe ter mostrado o meu desenho, ele informou‑me num inglês impecável que nunca tinha visto Meia‑Noite, mas acrescentou:
‑ O senhor encontra um boticário negro chamado Mobley na Queen Street. Caeser Mobley, é assim que ele se chama. Não é o proprietário, mas está lá empregado.
Depois de me ter indicado o caminho, deixou‑me completamente estupefacto ao acrescentar:
‑ Se posso ser completamente franco consigo, senhor, é evidente que é um estranho nesta terra. Só desejo dar‑lhe um pequeno conselho: É um bocadinho insultuoso para si andar pelo passeio do lado dos negros, uma vez que é, muito claramente, de raça branca.
Mr. Mobley era tão magro que parecia feito de arame. Pedindo‑lhe que tivesse paciência para me ouvir, expliquei‑lhe ao que vinha, acrescentando que havia uma recompensa de cinquenta dólares por qualquer ajuda que pudesse levar a Meia‑Noite.
Infelizmente, a entrevista acabou abruptamente, uma vez que ele tinha a certeza de que nunca o tinha visto nem ouvido falar dele. Nunca me ocorreu que ele pudesse estar a mentir. Nem sequer me passou pela cabeça que, do seu ponto de vista, eu ‑ um estrangeiro branco que se esforçava por mudar a voz de forma a ter uma pronúncia mais sulista e que andava à procura de um negro ‑ devia parecer uma ameaça. De facto, ninguém que pudesse ter sido leal a Meia‑Noite teria confiado em mim; eu podia ser um traficante de escravos ou uma autoridade que o queria prejudicar.
Eram cinco horas quando, suando como um soldado ao perder uma campanha, voltei para o hotel. Apesar da minha determinação em permanecer firme, o meu coração afundou‑se em profundidades novas quando passei por um rapaz negro que carregava caixotes pesados para dentro de uma carroça fechada. Não podia ter mais de vinte anos, mas tinha o nariz e os olhos tão cheios de feridas purulentas que as moscas se alimentavam impiedosamente nele. Vi piolhos não só no cabelo, como também nas sobrancelhas. Os nossos olhos cruzaram‑se por um instante e eu vi, no desespero dos dele, que ele sabia que estava a morrer.
Acelerando o passo, descobri um adro de uma igreja onde podia descansar durante um bocado. Sentado no meio das pedras tumulares, não conseguia compreender como é que nós tínhamos o direito de viver enquanto fosse permitido que existissem abominações como aquelas que eu tinha presenciado.
Tirei o talismã de Daniel e li‑o em voz alta para mim: Divino Filho da Virgem Maria, que nasceu em Belém, um Nazareno, e que foi crucificado para que nós pudéssemos viver, suplico‑te, ó Senhor, que o meu corpo não possa ser apanhado nem morto pelas mãos do destino...
Fechando os olhos, disse uma das duas orações protectoras que Benjamim me tinha ensinado, imaginando‑me reflectido nos olhos de prata de Moisés. O meu velho amigo tinha‑me dito que éramos ‑ todos nós ‑ pupilos dele e, por isso, também de prata na nossa essência.
Depois repeti ‑ dez vezes, devagarinho ‑ a outra oração que ele me ensinara. E murmurei uns versos que tinha lido recentemente em Ezequiel: Eu sou contra ti, Faraó, Rei do Egipto... e atirar‑te‑ei para o deserto.
Terminei com duas palavras em hebreu: Hesed, amor, e Din, julgamento.
Não sei dizer qual foi o propósito de tudo isto, mas era tudo o que eu tinha para me ajudar naqueles momentos sombrios. Nada do que disse ou fiz me acalmou muito ou me animou. Tinha a testa banhada em suor frio e sentia que estava a ser esvaziado de tudo aquilo que fazia de mim quem eu era.
Mas não creio que a intenção fosse o alívio imediato da minha angústia. Para isso, mal me consegui levantar, levei a minha desgrenhada pessoa para uma taberna onde emborquei vários cálices de um whisky razoável e fumei avidamente num cachimbo que tirei do seu prego na parede. Depois de me ter arrastado até ao hotel, lavei a cara, deixei‑me cair de barriga para baixo na cama e fingi que era um rapazinho no Porto, com Fanny ao meu lado. Respirando em conjunto, o meu braço à volta da barriga dela, deixámo‑nos cair no sono.
Acordei a meio da noite, encharcado em suor, mas não me atrevi a abrir a janela para deixar entrar a brisa marítima, não fossem os mosquitos entrarem também. Fiquei deitado, nu, a imaginar Meia‑Noite como ele devia ter chegado a Alexandria e depois a Charleston. De grilhetas e espancado, estava a gritar o meu nome. Ele não podia ter estado preparado para a estranheza deste mundo, onde eles não sabiam nada das Primeiras Pessoas nem dos caçadores que se elevavam nos céus como estrelas. A Hiena tinha tomado Charleston e tinha‑a feito sua.
Aqui na América, ele devia ter‑se agarrado ao silêncio como um náufrago à sua ilha. Recordei‑me de como, ao confidenciar‑me as suas histórias, tinha insistido para que eu guardasse segredo de algumas delas. Isto devera‑se à sua crença de que a sua própria saúde, assim como a do seu povo, ficaria em grave perigo se estas histórias caíssem nas mãos de pessoas de espíritos perversos.
O silêncio devia ter‑se tornado na sua única esperança e na sua única força. Tinha‑se transformado num mudo.
Na manhã seguinte, resolvi interrogar todos os boticários em Charleston e nas terras vizinhas na esperança de que Meia‑Noite tivesse sido autorizado pelo seu dono a fazer uma visita a um ou mais deles. Embora nenhuma das primeiras pessoas com quem falei me pudesse ajudar, vários empregados aconselharam‑me a ir à Apothecaries Hall, a loja mais conhecida da cidade. Não podia deixar de a ver, disseram‑me, porque tinha um enorme almofariz e respectiva mão pintados na fachada.
Cheguei lá por volta do meio‑dia e esperei cerca de uma hora para falar com o proprietário, um homem velho com uma cara e uma voz bondosas, chamado Jacon LaRosa, que me interrogou demoradamente. Para minha grande desilusão, disse‑me que nunca conhecera tal homem.
Ouvindo uma ligeira hesitação na voz dele, que tomei por um sinal de emoções contraditórias, supliquei‑lhe que fosse verdadeiro comigo, visto que esta era a missão mais importante da minha vida. Ele garantiu‑me que nunca tinha visto o negro cujo retrato eu lhe mostrara. Não acreditei nele, mas não podia fazer nada.
No meu terceiro dia na cidade, Mrs. Robichaux, que era a proprietária da pensão onde eu estava instalado, questionou‑me sobre a minha herança durante o pequeno‑almoço.
‑ Ora, não me surpreenderia nada que tivesse parentes em Charleston, senhor! ‑ exclamou ela.
‑ Perdão?
‑ Alguns dos judeus de Charleston sabem falar português. Disseram‑me que eles tinham vindo desse país.
Ela explicou‑me que havia centenas de judeus em Charleston e que a igreja deles, como lhe chamavam, ficava na Hassell Street.
Fiz quase todo o caminho até lá a correr e descobri que a sinagoga Beth Elohim era um edifício imponente no estilo georgiano, rodeado por uma cerca metálica com espigões e um portão de ferro forjado.
O portão estava aberto quando cheguei e um velho com ar enfraquecido, com um grande chapéu preto e um xaile para as orações, abriu‑me a porta. Chamava‑se Hartwig Rosenberg e era o hazan, responsável por cantar a liturgia. Mostrou‑se desconfiado dos meus motivos até eu mencionar que também era judeu.
Entregando‑me um chapéu de abas largas, levou‑me para a sinagoga propriamente dita. Os raios de luz, o pó cintilante e o eco dos nossos passos concederam‑me os primeiros momentos de paz que eu sentia desde a minha chegada a Charleston. Não me sentia sozinho; havia pessoas aqui que me compreenderiam ‑ e que iriam solidarizar‑se com a situação terrível de Meia‑Noite.
Em resposta às minhas perguntas, Mr. Rosenberg explicou que não havia ninguém chamado Zarco em Charleston, mas que havia pelo menos duzentos judeus de ascendência portuguesa. Quando me disse quais eram os nomes mais comuns, fiquei a saber que até existia um Pereira, que fora o nome de solteira da Avó Rosa. A família daqui escrevia‑o como Perrera.
Que sorte maravilhosa, pensei eu, como se tivesse entrado pela porta de uma irmandade que me estava vedada há muito. Todavia, quando expliquei a minha missão ao hazan, fiquei descoroçoado ao saber que havia muitos donos de escravos entre a congregação. Os mais velhos da comunidade ‑ ao respeitarem as leis e tradições da maioria cristã ‑, não viam nada de errado naquela prática, desde que os negros fossem tratados com respeito. Quanto ao que podia ser considerado respeito, perguntei se poderia ser a remoção de apenas quatro dedos dos pés de um velhaco em vez dos cinco. Ao que Mr. Rosenberg, deitando‑me um olhar furioso, respondeu:
‑ Não preciso de lições de moralidade de gente como o senhor. Para os judeus de Charleston, é uma questão de sobrevivência. Mantermo‑nos à parte seria um risco tremendo.
A sua atitude severa e condescendente enfureceu‑me.
‑ Então, não só desejam trair o espírito do Êxodo, senhor, como também pretendem tornar‑se cristãos honorários? É isso que me está a dizer?
‑ Muito inteligente da sua parte, Mr. Stewart, só que o senhor não vive aqui e, por isso, não conhece as pressões a que estamos sujeitos. Se me permite, deveria voltar a ler a Tora. Se o fizer, verá que a sobrevivência do nosso povo é o seu tema mais importante. Enquanto eu servir esta comunidade, não a trairei.
Embora tivesse gostado muitíssimo de continuar esta discussão, não disse mais nada sobre os meus sentimentos, uma vez que precisava da ajuda dele. Quase conseguia ouvir a Mamã a dizer‑me: John, ganhar esta discussão não significa nada; encontrar Meia‑Noite é a única coisa que interessa.
Até pedi desculpa pela minha dureza, embora deva confessar que me arrependi de o fazer mal acabei de falar.
O hazan, já pacificado, prometeu que iria perguntar à congregação naquela sexta‑feira à noite se alguém tinha visto ou ouvido falar do meu amigo.
‑ Talvez ‑ disse ele sorrindo‑me no desejo de aliviar a tensão entre nós os dois ‑ um deles até seja o dono dele. Não seria uma grande sorte?
‑ Sim, uma grande sorte, de facto ‑ repliquei eu, incapaz de esconder o meu desagrado.
Deixei Beth Elohim armado com a morada da casa de Mr. Perrera e do local do seu negócio diário. Ao que parecia, era dono de uma loja de roupa na Meeting Street, a menos de dois quarteirões de distância, e vivia logo à saída da cidade. Também ele era dono de escravos.
Ao sair da sinagoga, eu sabia que Meia‑Noite não teria podido apelar aos judeus para o ajudarem. Charleston devia‑lhe ter parecido um deserto do espírito. Se ainda estava vivo, onde poderia ter encontrado um lugar neste mundo onde pudesse ser ele próprio?
Quando cheguei à loja de ísaac Perrera, fui conduzido a um escritório nas traseiras, onde um homem moreno e de cabelo escuro, com cerca de trinta anos de idade, estava a trabalhar num livro‑razão. Pousando a pena no tinteiro, ergueu os olhos para mim e sorriu.
‑ Irei direito ao assunto, senhor, uma vez que não quero ocupar‑lhe o seu valioso tempo. Sou português e meio judeu. Estou sozinho em Charleston e muito necessitado de uma pessoa de confiança que me possa ajudar com um problema.
Num português desajeitado, replicou‑me:
‑ De onde é, senhor?
‑ Nasci no Porto, embora o meu pai seja escocês. O nome da minha avó é Pereira. Ela ainda vive no Porto, mas a maior parte da minha família está agora em Londres.
‑ Sim, ouvi dizer que há muitos Pereiras em Portugal ‑ disse ele secamente.
No seu olhar gelado, vi que ele queria ignorar qualquer ascendência comum que pudéssemos partilhar. À sua maneira, estava a dizer‑me que eu não tinha o direito de esperar que ele me ajudasse. Para confirmar esta intuição, disse‑lhe:
‑ De facto, há, senhor... milhares. E foi uma grande presunção da minha parte vir aqui vê‑lo baseado numa semelhança de nomes.
‑ Mas compreensível, senhor ‑ reconheceu ele.
‑ Peço‑lhe desculpa por o ter interrompido. Vou deixá‑lo entregue ao seu trabalho.
Fiz uma pausa para lhe dar tempo de dizer qualquer coisa. Como ele se limitou a assentir com a cabeça, acrescentei:
‑ Obrigado por me ter recebido. Foi muito amável. A humilhação obrigou‑me a fazer uma pequena vénia contrafeita. Era quinta‑feira, vinte e oito de Agosto, e, a cada novo dia na América, estava a tornar‑se ainda mais claro que eu nunca estivera destinado a ser um caçador.
Estávamos Entregues a Nós Próprios
Mr. Rollins disse a Weaver que sabia de um homem que nos podia arranjar mosquetes e pistolas. Vou chamar‑lhe Mr. Trevor, uma vez que ele ainda está em Charleston, segundo as informações que tenho. Passaram‑se mais seis semanas até eu voltar a ter autorização para ir à cidade fazer as compras e tentar falar com ele. O Patrão Edward recusou‑se a passar sem Weaver nesse dia, mas eu sabia como dominar os cavalos e fui sozinha.
A mulher de Mr. Trevor recebeu‑me na sua pequena casa e fez‑me sentar num escritório cheio de mais livros do que aquilo que eu já alguma vez vira. Disse‑me que o marido viria ter comigo imediatamente.
Mr. Trevor sempre me assustou, para vos dizer a verdade. Tinha pele clara e era alto e os olhos estavam sempre a arder de conhecimentos, como se ele conseguisse ler‑nos os pensamentos. A sua profissão, que não vou revelar, exigia muitos conhecimentos.
Naquele primeiro dia, contei‑lhe os meus sonhos de uma cidade onde estava sempre a nevar. Contei‑lhe que tinham cortado os tendões dos calcanhares ao meu Papá. Contei‑lhe que Marybelle tinha sido dissecada ainda quente.
‑ O que é que te leva a pensar que uma rapariga frágil e inculta vai conseguir ser bem sucedida nesta rebelião? ‑ perguntou‑me ele numa voz céptica. ‑ Porque, minha jovem senhora, não te enganes, aquilo de que estamos a falar é de uma rebelião de escravos, mesmo que seja apenas de alguns indivíduos.
Não sei o que é que me deu aquela força obstinada para lhe dizer aquilo que disse:
‑ O senhor é que não se deve enganar, Mr. Trevor, porque eu vou sair de River Bend de uma maneira ou de outra. E vou levar os meus amigos comigo. Juro sobre a campa da minha mãe. Pode ajudar‑me ou não, mas eu vou sair!
Não creio que tenha causado qualquer impressão nele. Olhou‑me com olhos divertidos.
‑ As borboletazinhas costumam voar direitas às chamas das velas ‑ disse‑me ele. ‑Julgam que estão a voar para uma luz eterna, mas apenas ardem ficando reduzidas a nada.
Se Weaver não tivesse ido à nossa segunda entrevista com Mr. Trevor, tenho a certeza de que ele não me teria dado ajuda alguma. Mas conseguir licença para ir a Charleston mostrou‑se uma batalha difícil e a única maneira que arranjei para a conseguir foi convencendo Mistress Anne de que ela precisava de um galinheiro para a casa da cidade.
Precisei de três meses sempre a insistir para vencer a resistência dela. Por isso, foi só em Junho de 1822 que eu consegui levar Weaver à cidade para lhe construir o galinheiro e se encontrar com Mr. Trevor em segredo. Desta vez, ele pediu que não entrássemos no seu escritório e, por isso, sentámo‑nos na sala a estudar os quadros emoldurados pendurados na parede, que eram todos de heróis negros. Ele até tinha um de um negro crucificado no cimo de uma colina deserta. Mrs. Trevor disse‑me que era Cristo.
‑Jesus era negro? ‑ perguntei eu. ‑Julgava que era judeu.
‑ Era um de nós em espírito ‑ replicou ela, o que ao princípio me deu vontade de rir, mas mais tarde senti qualquer coisa a fazer‑me cócegas nos dedos dos pés e das mãos quando pensei nisso ‑ quase como se tivesse sido o Papá a dizê‑lo.
Ao olhar para aquele quadro, soube que se a milícia branca da Cidadela alguma vez invadisse aquela casa, queimá‑lo‑iam, assim como tudo o resto, sem quererem saber do espírito de fosse quem fosse. Nunca deixariam que um Cristo negro fosse crucificado em Charleston. Não, senhor. Mr. Trevor deve ter ficado convencido com qualquer coisa que Weaver disse, porque lhe disse que nos podia arranjar algumas das armas e das munições que tinham sido armazenadas por Denmark Vesey e os seus amigos antes de terem sido presos e enforcados por terem tentado organizar uma revolta.
Weaver e eu não sabíamos como é que havíamos de levar tudo às escondidas para River Bend. Isso punha uma preocupação gelada nos nossos corações. E, pior ainda, nunca nos tinha ocorrido antes que teríamos de pagar pelos mosquetes e pelas pistolas, mas Mr. Trevor disse‑nos:
- As armas nunca são de graça para nenhum homem. ‑ Depois, rindo, piscou‑me o olho e acrescentou: ‑ Oh rapariga.
Durante todo aquele Verão, enquanto a família do Patrão Edward estava a viver na casa da cidade em Cordesville, tirei partido da ausência deles para roubar tudo de prata em que pudesse enrolar os meus dedinhos. E também durante o Outono e o Inverno. Mais ou menos de dois em dois meses, ia à cidade com tudo o que tinha roubado, todas aquelas bugigangas e talheres a gritarem‑me de dentro dos meus bolsos e do meu saco. Durante os primeiros meses de 1823, roubo, armas e a espera para fugir eram a única coisa em que eu conseguia pensar.
Não há dúvida de que é preciso uma eternidade para uma ondinha atingir as praias da escravatura na região do arroz da Carolina do Sul e, em Maio, depois de um ano inteiro de ter as mãos em carne viva de tanto roubar, Mr. Trevor disse que ainda só lhe tínhamos dado prata suficiente para cinco mosquetes, duas pistolas e três espadas. Embora ele também lhes fosse juntar um mosquete e uma espada com o seu próprio dinheiro.
Calculei que aquilo não ia chegar para os vinte ou mais escravos que eu esperava levar comigo. Estávamos a planear dar a toda a gente de River Bend a possibilidade de escolherem ir ou ficar na semana anterior à nossa partida. Weaver ia treinar uns quantos homens a usar um mosquete ou uma pistola. Combinámos que íamos fugir num domingo à noite, uma vez que era a única noite em que Martha, a mulher de Weaver, e os filhos podiam arranjar um passe para virem a River Bend, e íamos meter‑nos ao caminho em Julho, Agosto ou princípio de Setembro porque era nessa altura, durante a estação doentia, que o campo iria estar quase vazio de brancos e patrulhas.
Estávamos a planear sair de Petrie's Landing, um porto pouco usado no Cooper River para as pessoas que viviam na cidade de Belmont. Beaufort tinha sido mais corajoso do que aquilo que eu esperara e fora falar com o Capitão Ott. O inglês não só concordou em ajudar‑me e ao Weaver, e a quem quer que conseguisse chegar ao seu navio, mas também ia mandar a sua tripulação levar três barcos a remos para Petries Landing um dia ou dois antes da noite da nossa fuga. Nós iríamos nos barcos até ao navio dele, que estaria no porto. Ele ia estar a capitanear o Landmark com a bandeira britânica e uma pequena bandeira azul. Ele disse a Beaufort que iria iluminar essa bandeira da liberdade com uma grande lanterna durante toda a noite, se fosse preciso.
O Capitão Ott disse a Beaufort que, muito provavelmente, estaria de volta nos finais do mês de Agosto ou na primeira metade de Setembro. Mal ele atracasse, Beaufort alugaria uma carruagem para ir a River Bend. Ataria uma fita vermelha em volta de uma tábua do portão da frente e também deixaria uma planta qualquer logo da parte de dentro da vedação. Se alguém a visse, eu deveria dizer que era um presente para o meu jardim de um amigo de Charleston. Mas era o nosso sinal para nos dirigirmos para Petries Landing nesse domingo.
Às vezes, eu ficava com tanto medo que as coisas não corressem bem que tinha de correr até ao rio e sentar‑me com as pernas dentro da água fria só para evitar que o meu coração explodisse.
Não disse nada a Beaufort sobre as nossas armas. Quanto menos ele soubesse, menos perigo correria. Eu e Weaver prometemos que, se fôssemos feitos prisioneiros, nunca diríamos o nome dele. Mas eu tinha medo de, se eles me cortassem alguns dedos ou me pusessem brasas incandescentes nos olhos, dizer o nome de toda a gente que alguma vez conhecera e até de alguns que nunca conhecera, o Jesus negro incluído. Rezava para que eles se limitassem a enforcar‑me. Sim, senhor, esperava mesmo que eles me despachassem com a mesma rapidez da picada de uma lagarta do algodão.
No sábado, catorze de Junho, soubemos que podíamos ir buscar as armas e as espadas que tínhamos pago. Mr. Trevor tinha‑as deixado debaixo de um cobertor numa gruta escondida por uns caniços, mil passos para sul de Petries Landing, num sítio chamado Farmers Rock. A partir de então, não podíamos, em circunstância nenhuma, passar sequer perto da casa dele. Por isso, a partir desse momento, estávamos entregues a nós próprios.
Wiggie adoeceu exactamente nessa altura com umas dores de estômago que o mantiveram fora das suas carroças durante quase dois meses. Se eu lhes dissesse que fui eu que lhe provoquei estes problemas com uns chás que misturei com um bocadinho de folhas de datura, dizendo que eram para o reumatismo, achariam que eu sou má?
Se calhar foi uma maldade, mas eu precisava de conseguir autorização para ir sozinha a Charleston de quinze em quinze dias, porque tinha a certeza que Wiggie nunca aceitaria trazer as armas. Mantê‑lo agarrado à retrete a maior parte do tempo foi a única coisa de que me consegui lembrar.
Weaver e eu escondemos as armas num espaço debaixo da varanda ‑ todas menos uma. À socapa, levei uma pistola carregada para o meu quarto e guardei‑a debaixo da cama. Desde que o Grande Patrão Henry tinha metido a sua serpente dentro de mim, tinha estado à espera que o Galaró tentasse fazer a mesma coisa. Mas, desta vez, eu ia estar preparada.
Mr. Johnson, o nosso superintendente, era o nosso maior problema, mas esperávamos sempre até que ele estivesse longe da Casa Grande com os trabalhadores do campo para tirarmos as armas da carroça. Provavelmente, Crow ou algum dos outros escravos da casa devem ter adivinhado que se passava qualquer coisa esquisita, mas nenhum deles nos iria trair.
Foi então que, em finais de Agosto, aconteceu uma coisa que nos pregou um grande susto:
Um branco com uma pronúncia esquisita começou a fazer perguntas a quase toda a gente de Charleston a respeito do meu pai. Descobri isso através de Caeser Mobley, um boticário negro que o meu pai costumava visitar de vez em quando. Ele disse‑me o que tinha acontecido num recado que me mandou por um cocheiro negro. Embora ele não soubesse escrever muito bem, eu percebi a ideia geral. O estrangeiro curioso era alto e parecia obcecado. Caeser achava que ele era um traficante de escravos que tentava enganar o Papá fazendo‑o sair do seu esconderijo. Ou então era um polícia que andava à procura dele para ganhar uma grande recompensa do Patrão Edward. O homem tinha feito uma imitação bastante razoável da pronúncia das planícies do Sul, mas devia ser do Norte. Mr. Mobley negou saber quem era o meu pai.
Fosse ele quem fosse, não havia dúvida que ele andava a meter o nariz em coisas que não eram da sua conta e no pior momento possível. Por isso, eu rezava para que tivesse sido a última vez que ouvia falar dele.
Mas não foi isso que aconteceu, sabem? Não, senhor. Porque logo no dia seguinte, perto da hora do sino do meio‑dia, quem é que aparece na Casa Grande, com uma mulher negra toda elegante a conduzi‑lo, senão o estrangeiro abelhudo? Nessa altura, claro que eu não podia saber que era o mesmo homem que tinha andado a perguntar pelo Papá. Mas, mais tarde, depois de a mulher negra se ter ido embora, ele viu‑me e os olhos quase lhe saltaram das órbitas quando me reconheceu e eu fiquei a saber que tinha de ser ele.
Cerca de uma hora antes do pôr do Sol, quando ofegava sentado à secretária no calor infernal a escrever outra carta às minhas filhas e à minha mãe, bateram à porta. Enfiando as calças à pressa, abri‑a e deparei com Mr. Perrera.
‑ Mr. Stewart, Mrs. Robichaux deu‑me licença para vir direito ao seu quarto. Peço desculpa por o ter apanhado de surpresa.
‑ Não, não, faça favor de entrar. Tenho muito prazer em o ver. Afastei uma cadeira da secretária e coloquei‑a à frente da cama.
‑ Faça o favor de se sentar, Mr. Perrera. Oferecer‑lhe‑ia algo de beber, mas não tenho nada. Com este calor, sou incapaz de beber whisky ou mesmo vinho por ter medo de desmaiar e acordar num lugar ainda mais quente, governado pelo diabo.
Ambos estávamos cientes de que eu estava a tentar conquistá‑lo com o meu humor, mas ele não pareceu levar a mal esta minha estratégia e sorriu quando se sentou.
Agarrei na minha camisa e perguntei: ‑ A que devo o prazer da sua visita?
‑ Vim pedir‑lhe desculpa, senhor. Fui mal‑educado consigo hoje. Deixei‑me cair em cima da cama, à frente dele.
‑ Não, não, de modo nenhum. Um estrangeiro mal arranjado e suado a entrar‑lhe pelo escritório dentro a falar numa língua estrangeira... Devo ter sido uma visão assustadora.
‑ Não, não foi isso. Foi... como é que posso explicar? Eu sou muito reservado. Por isso, quando o senhor chegou, fiquei muito espantado, mais nada. E, se posso ser franco, acho que nem sempre tenho muito em comum com os outros portugueses daqui; por isso, tenho tendência a limitar as minhas interacções com eles.
‑ Pois não, senhor, tenho a certeza que é muito sensato da sua parte.
‑ Então, Mr. Stewart ‑ disse ele, voltando a sorrir ‑, referiu um problema para o qual precisava da minha ajuda. Importa‑se de me dizer o que é?
Não sei dizer por que é que lhe contei praticamente toda a verdade a respeito de Meia‑Noite, mas libertei‑me dela com uma facilidade assustadora. Não me tinha ainda apercebido da minha necessidade de confessar a minha relação com ele. Aquela sensação de angústia no meu estômago acalmou um bocadinho enquanto Mr. Perrera ouvia com atenção e eu comecei a ver que o único alívio que iria encontrar na América era nos braços da verdade daquilo que sentia pelo meu velho amigo.
‑ Amei‑o ao longo destes dezassete anos de separação tanto como se ele fosse meu irmão, ou mesmo o meu segundo pai ‑ conclui eu.
‑ O amor tem a sua própria vontade ‑ disse Mr. Perrera. ‑ Acredita no destino, Mr. Stewart?
Quando lhe respondi que não tinha a certeza, pôs‑se a olhar para a janela.
‑ Acho que só confio naquilo que não foi manchado pela nossa história ‑ disse ele.
Eu achava que Mr. Perrera era um homem bastante enigmático e infeliz, uma daquelas almas que estão sempre à procura de respostas para perguntas importantes.
Quando as lágrimas lhe assomaram aos olhos, limpou‑as bruscamente, dizendo:
‑ Peço desculpa por esta cena terrível.
‑ Pelo contrário, penso que o senhor é a primeira pessoa branca que encontrei em Charleston que tem coração.
‑ Quer dar‑me o prazer de me acompanhar a minha casa para jantar, esta noite? ‑ perguntou‑me. ‑ Gostaria que conhecesse Luísa, a minha mulher.
‑ Agora?
‑ Sim, nós vivemos a dez quilómetros da cidade. Mas levaremos menos de uma hora a lá chegar no meu cabriole. Está ali à frente, à nossa espera.
Agora parecia preocupado.
‑ Podia passar a noite connosco ‑ acrescentou. ‑ E creio, Mr. Stewart, se quiser aceitar um conselho, que deveríamos sair com uma certa pressa. Em Charleston, nunca se sabe quem nos pode estar a vigiar.
Mr. Perrera tinha uma bela égua castanha que nos levou rapidamente pelas estradas do campo em direcção à casa dele a norte, uma casa caiada de branco com uma grande varanda à frente e apenas a duas léguas de um pequeno afluente do Cooper River. Um carvalho frondoso e dois palmitos mais pequenos forneciam a sombra.
Luísa estava sentada nas escadas quando chegámos. Nessa altura, a noite estava a cair rapidamente, mas, mesmo na luz que desaparecia, vi claramente que era uma negra.
Os dois filhos de Isaac eram Hester, a quem chamavam Hettie, e Reed, que dava pelo nome de Noodle. Correram ao encontro do pai, pedindo‑lhe, com as suas vozes esganiçadas, que ele lhes pegasse ao colo. Com o rapaz agarrado às costas e a rapariga a rir nos braços, ele beijou Luísa. Ela tinha uns olhos castanhos fundos e reservados, maçãs do rosto altas, que pareciam captar os últimos raios de sol, e um pescoço esguio. Pareceu ficar irritada com a minha presença.
Tínhamos um jantar quente à nossa espera e, perante as minhas desculpas por vir incomodar, Luísa assegurou‑me que era um prazer ter um convidado. Contudo, apercebi‑me de que ela só o tinha dito para ser bem‑educada e a nossa conversa forçada durante a refeição convenceu‑me a ir‑me embora depois do jantar. Iria a pé até à terra mais próxima, onde arranjaria um quarto.
Depois de as crianças terem sido metidas na cama, eu disse:
‑ Talvez fosse melhor que eu me fosse já embora. Estão ambos cansados e a terra mais próxima deve ter uma pensão qualquer.
‑ Não, não, John ‑ disse Isaac. ‑ Confia em mim. Conta a tua história.
Sentindo‑me pouco seguro, comecei a falar num tom pouco emotivo. Todavia, quando contei como Meia‑Noite tinha vencido a indelicadeza da minha mãe no nosso primeiro jantar ao dizer que «A África é memória», a minha voz não conseguiu evitar exprimir a minha admiração por ele. Luísa sobressaltou‑se claramente, como se lhe tivessem dado uma palmada nas costas.
‑ Estás a ver? ‑ perguntou Isaac à mulher num tom triunfante. Olhando muito séria para mim, ela disse‑me:
‑ Continue, Mr. Stewart, conte‑me mais.
Ela ouviu‑me falar dos primeiros anos da minha vida como se eu tivesse de lhe provar qualquer coisa. Senti‑me ofendido, mas não disse nada. Mais tarde, ela explicou‑me:
‑ Há muitos homens brancos na Carolina do Sul que sentem afeição pelos seus criados negros. Especialmente pelas suas amas negras. Mas o senhor é apenas o terceiro homem branco que eu conheço que fala com amor e respeito... e também afinidade.
‑ Eu sabia que irias ver isso dessa maneira ‑ disse Isaac sorrindo e, levantando‑se, deu‑lhe um beijo na testa.
‑ Quem são os outros dois? ‑ perguntei eu.
‑ Isaac e um ministro de Charlotte que conheci uma vez. A sua paixão por uma criada negra foi tal, que mudou totalmente de ideias em relação à escravatura. Foi obrigado a desistir do sacerdócio para casar com ela.
Eu guardara para o fim a história de como Meia‑Noite me tinha salvado da Hiena. Recontá‑la aos dois iria mudar tudo.
Estava a descrever como o boximane me tinha enfiado o fumo do cachimbo nos ouvidos, quando Luísa exclamou:
‑ Mas eu conheço esse homem! Vi‑o fazer exactamente isso! Ele era muito conhecido em todo o Low Country. Quando o conheci, não se chamava Meia‑Noite. Era Samuel.
Levantei‑me de um salto.
‑ Conheceu Samuel? Ele está vivo? Luísa olhou para mim esperançosamente.
‑ Se é o mesmo homem, ele vivia em River Bend ‑ uma plantação aqui perto. Era muito conhecido como feiticeiro e curandeiro.
‑ River Bend fica para cima do Cooper River ‑ disse Isaac. ‑ A umas três léguas, julgo eu.
‑ Ele era uma maravilha ‑ disse Luísa com os olhos a brilhar. ‑ Todos os negros daqui o conheciam. Eu até o cheguei a visitar uma vez com uma pessoa amiga que estava doente. Não sei se ainda é vivo. A última vez que ouvi falar dele, tinha desaparecido.
‑ Desaparecido?
‑ Sumiu‑se por completo. Julgo que há uns três anos. Dizem que pode ter fugido. Mas a filha ainda vive em River Bend, creio eu. Não me consigo lembrar do nome dela. Ela... ou qualquer outra pessoa de lá ‑ poderá dizer‑lhe se tiveram alguma notícia dele. ‑ Fez uma pausa para pensar.
‑ Ele era exactamente como o senhor descreveu, só que mais velho, claro. E coxeava ao andar; às vezes, usava uma bengala.
‑ E falava? Não era mudo?
‑ Não, não, ele falava muito bem, lembro‑me disso.
O meu coração batia com tanta força que eu não conseguia ouvir o que os meus anfitriões me estavam a dizer. A minha cabeça parecia que estava fechada dentro de uma campânula de vidro.
Quando voltei a mim, estava sentado numa cadeira à frente de uma fogueira que crepitava na lareira. Isaac disse‑me que eu tinha ficado quase desmaiado e enfiou‑me à força um copo na mão. ‑ Bebe isto, John.
Fiz o que ele me disse. Era brandy e queimava. Ele e Luísa estavam a cochichar atrás de mim. Levantei‑me.
‑ Como é que posso chegar a River Bend? Isaac voltou‑se para Luísa.
‑ Se amanhã eu for a pé para Charleston, levas o John no cabriole?
‑ Nem pensar. Eu não o vou obrigar a ir a pé até Charleston ‑ interrompi eu.
‑ Não me importo. A sério. Faço isso às vezes. É bom para as pernas. Eu próprio te acompanharia, mas tenho de ir todos os dias para a minha loja.
Luísa agarrou‑me na mão, apertou‑a com força e sorriu‑me calorosamente.
‑ Mr. Stewart, será uma honra, levá‑lo a ver o sítio onde Meia‑Noite vivia.
Nessa noite, o sono recusava‑se a aparecer. Eu estava a lembrar‑me de demasiadas coisas de há muito tempo. De facto, nessa noite, ao contrário de todas as outras noites, como nós costumávamos dizer na Pesa, a nossa celebração do Êxodo, eu não conseguia perceber como é que tinha chegado ao presente. Parecia‑me que todo o caminho até aqui tinha sido uma queda instantânea.
Fui até à sala e encontrei Luísa sentada à mesa do jantar, a tomar uma chávena de chá.
‑ Também não conseguia dormir? ‑ perguntei‑lhe.
Ela sobressaltou‑se e levou uma mão ao coração. Pedi‑lhe desculpa por a ter assustado.
Ela riu‑se.
‑ As suas histórias ‑ disse ela, abanando a cabeça como se estivesse perplexa. ‑ Tenho estado a pensar nelas e nas suas semelhanças com a minha vida.
Serviu‑me uma chávena de chá. Eu disse‑lhe:
‑ Referiu que Samuel era muito conhecido no Low Country. Como é que ninguém o conhecia em Charleston? Perguntei em dezenas de lojas e igrejas. Até perguntei a um boticário negro.
‑ Os negros a quem perguntou seguramente que o estavam a proteger. O senhor é branco e estava à procura de um negro que desapareceu, que pode estar escondido. Há fugitivos que se escondem durante anos e anos, em sótãos, caves... Nós tivemos cá dois. Por isso, qualquer pessoa que fosse leal a Samuel mentir‑lhe‑ia. Os outros podem, de facto, nunca ter ouvido falar dele.
‑ Então, a filha também me poderá mentir ‑ principalmente se Meia‑Noite tiver dito mal da minha família.
‑ Mas, depois de tudo o que contou, eu estava à espera que ele se fosse sentir eternamente grato por o ver. O senhor tenciona comprá‑lo, presumo eu.
‑ Sim, mas eu não lhe contei tudo. Aconteceu uma coisa terrível entre Samuel e o meu pai.
‑ John, tem de lhe contar as histórias que nos contou. Elas vão fazer com que ela mude de opinião. Vai ouvir o pai na sua voz. E deve falar com ela quando ela estiver sozinha. Se estiver com outras pessoas, mesmo que sejam outros escravos, pode sentir‑se constrangida na forma de reagir para consigo.
‑ É capaz de levar algum tempo para a apanhar sozinha... e para a convencer. Vou precisar de inventar uma razão para ficar em River Bend durante uma ou duas semanas.
Luísa e eu trocámos várias sugestões durante um bocado, mas nenhuma parecia boa. Passado um bocado, perguntei‑lhe:
‑ Como é que conheceu Isaac?
‑ Oh, tenho a impressão que o conheço desde sempre. Era uma vez Isaac e Luísa... Os pais dele compraram‑me quando eu tinha quinze anos, para lavadeira e costureira.
‑ Mas eles não tinham as mesmas opiniões de Isaac? Quero dizer, eles não...
‑ Eles só mudaram de opinião em relação à escravatura mais tarde. O que é estranho é que, tal como aconteceu consigo e Meia‑Noite, Isaac me ensinou a ler. Não é espantoso?
‑ Sim, pelo menos, é uma coincidência estranha. Naquela altura, acreditava na resposta que dei. Mas agora consigo ver o que é óbvio: o acto de ensinar um amigo a ler está intimamente ligado ao amor. De facto, não consigo pensar em nada de mais natural.
‑ Por favor, desculpe‑me esta pergunta estúpida, mas é uma mulher livre?
Ela deitou‑me um olhar duro.
‑ John, isso não é uma pergunta estúpida. É a única pergunta que faz sentido. Fui oferecida a Isaac pelo pai dele como prenda de aniversário quando ele fez vinte e um anos. Nesse mesmo dia, ele deu‑me a liberdade. ‑ Pôs as mãos em concha à volta da boca e sussurrou: ‑ Embora ele odeie que eu diga isso. Ele diz que assim dá a ideia que ele fez qualquer coisa por mim, quando, na realidade, estava apenas a corrigir uma abominação.
‑ Todavia, na sinagoga, disseram‑me que Isaac era proprietário de escravos.
Franziu a testa.
‑ Algumas dessas pessoas ‑ até mesmo o tio e a tia dele ‑ não querem ver o que nós somos um para o outro. Preferem continuar a acreditar que sou escrava dele a aceitarem que sou a mãe dos filhos dele e que vivemos como marido e mulher.
Voltando a falar num sussurro, acrescentou:
‑ Não só não sou branca, como também não sou judia!
Luísa deu‑me uma tigela das suas papas de abóbora e contou‑me uma coisa curiosa sobre River Bend: Os seus dois últimos proprietários ‑ o Grande Patrão Henry e o Pequeno Patrão Henry ‑ tinham sido encontrados mortos com uma faca espetada no pescoço. As pessoas da terra acreditavam que eles tinham sido assassinados por um fantasma, provavelmente o avô de Mistress Holly, a mulher do Grande Patrão Henry.
Segundo parecia, ele tinha‑se oposto veementemente à escolha do marido que ela fizera.
‑ Moral da história ‑ disse Luísa com um franzir divertido dos lábios: é melhor teres a bênção do avô antes de te casares na região do Low Country da Carolina do Sul.
Ao olhar para os seus olhos brilhantes, imaginei estrelas a espreitarem por trás de nuvens escuras. Percebi que ela passava uma grande parte do seu tempo a proteger a família. Suspeitei que ela podia ser feroz. Digo‑vos isto: não gostaria nada que ela se zangasse comigo.
Sentado na varanda, a observar um pica‑pau de bico cor de marfim a martelar no tronco de uma árvore, tive uma ideia para convencer o dono de River Bend a deixar‑me ficar na sua plantação. Fui buscar o meu caderno de desenho e comecei a trabalhar rapidamente.
Luísa e eu partimos mal acabámos de nos vestir, com Isaac e as crianças a dizerem‑nos adeus do relvado. A estrada para norte estava cheia de buracos e lama. Eu e ela conversámos sobre a infância dela numa ilha ao largo da costa da Carolina do Sul. Ela tinha saudades do oceano, principalmente ao nascer do Sol, e disse que o seu sonho era ter uma casa pequenina ao pé da praia. Quando as crianças fossem crescidas, ela e Isaac iriam fazer uma viagem pela Europa, e, quem sabe, talvez fossem também a Portugal.
Ao fim de algumas horas de viagem, quando o Sol se estava a aproximar do zénite do meio‑dia, uma ponte de madeira que rangia permitiu‑nos passar por cima de um rio pantanoso. Depressa chegámos a um portão onde estava pendurado um letreiro de madeira com letras pretas sob um fundo branco: River Bend. Soltei o trinco e abri‑o. À nossa volta, estendiam‑se campos de arroz, à altura dos ombros e oscilando na brisa. Quatro homens negros e duas mulheres estavam dobrados num campo ao longe. Ao fundo da estrada de terra, a uma distância de uns oitocentos passos, no cimo de uma pequena colina, erguia‑se uma casa enorme de três andares.
Luísa soltou um assobio e abanou a cabeça perante a ideia de ter de entrar numa plantação.
‑ Peço‑lhe muita desculpa por a obrigar a fazer isto ‑ disse‑lhe eu. ‑ Se houvesse outra maneira...
‑ Tenho muito prazer em fazer isto por si. Só estou contente por não ter de cá ficar.
Subimos o caminho lamacento. Por trás da casa, estendia‑se um horizonte infinito de pinheiros e, do lado sul, um grande jardim de hidrângeas, azáleas e outros arbustos floridos.
Fomos recebidos no pátio por um negro velho, com o cabelo grisalho cortado rente e um olho obscurecido por uma catarata. Vestia umas calças de veludo muito velhas e o que outrora devia ter sido uma camisa branca, mas que agora eram apenas uns farrapos cosidos uns aos outros. Coxeava visivelmente ao andar. Nos pés trazia uns sapatos sem fivelas nem atacadores que já deviam ter sido substituídos há uma década. O homem disse‑nos, numa voz hesitante, que se chamava Crow. Luísa, falando por nós dois, perguntou se podíamos falar com o patrão da plantação. Olhei em volta para ver se conseguia ter um vislumbre da filha de Meia‑Noite, mas não havia mais escravos à vista.
Antes que Crow tivesse tempo para anunciar a nossa chegada, um homem branco com calças de cetim azul e chinelos de pele apareceu a correr na varanda. Olhou‑nos lá de cima, com as mãos nas ancas, como se estivéssemos a invadir‑lhe a propriedade.
Eu estava à espera que Luísa tomasse a iniciativa de se lhe dirigir, mas ela ergueu as sobrancelhas e murmurou:
‑ Vá, John, fale.
‑ Senhor, eu... eu peço‑lhe imensa desculpa ‑ gaguejei eu ‑ pela nossa visita inesperada. Chamo‑me John Stewart e sou um estrangeiro nesta sua linda terra, tendo chegado recentemente do outro lado do mar, da longínqua Inglaterra. Pretendo desenhar e pintar as magníficas aves da Carolina do Sul e mais tarde publicá‑las num livro em Londres. Como ainda não tive o prazer de desenhar os pássaros desta área dos Low Lands, eu... eu pensava... ah...
Devido ao olhar impaciente do nosso provável futuro anfitrião, faltaram‑me as palavras.
‑ Apanhou‑me num momento inoportuno, senhor ‑ respondeu‑me irritadamente. ‑ Mas, se me der alguns minutos, irei ter consigo à sala do chá.
Voltando‑se para o velho negro, disse bruscamente:
‑ Crow, toma conta de Mr. Stewart.
Tirei o caderno dos desenhos do cabriole, visto que pretendia mostrar‑lhe os meus desenhos anteriores. Luísa disse‑me que esperaria por mim na varanda.
‑ A minha presença só iria tornar as coisas mais difíceis ‑ observou ela.
Anteriormente, tínhamos combinado que eu diria que ela era a escrava de um amigo de Charleston e que se chamava Dorothy. Na opinião dela, quanto menos as pessoas de River Bend soubessem sobre ela melhor.
‑ Se eles souberem o meu nome, podem criar‑me problemas ‑ dissera ela.
Quando Crow entrou na sala com um bule de chá e um prato de biscoitos, agradeci e perguntei‑lhe os nomes das mulheres representadas nos diversos retratos que enchiam as paredes. Ele disse‑me que a jovem com o olhar derrotado era Mistress Holly.
‑ Posso fazer uma pergunta bastante indiscreta?
Depois de ter recebido o seu consentimento, perguntei:
‑ Isto foi pintado antes ou depois da morte inesperada do marido? Batendo pensativamente com as pontas dos dedos nos lábios, o olho bom de Crow mostrava‑se muito atento.
‑ Oh, deve tê sido muito antes d'ele ter morrido, siô. Deixa‑me vê... ‑ e olhou para o tecto franzindo o nariz. ‑ Acho que foi pintado em 1800 ‑ uns vinte anos antes do Grande Patrão Henry ter morrido.
No mesmo ano em que eu conhecera Daniel e Violeta.
‑ E qual destes homens foi o seu azarado marido?
Crow apontou para um boi ruivo que tinha um mosquete numa mão e uma Bíblia na outra. Os olhos eram mortiços e ele tinha todo o ar de não haver nada que mais apreciasse do que dormir.
Edward veio ter comigo pouco tempo depois, desculpando‑se profusamente por me ter feito esperar. Depois, durante a meia hora seguinte, dedicou‑se a tentar convencer‑me de que era um homem simples e de necessidades modestas. Dado que só as pratas da sala deviam exigir dois dias de trabalho por semana de um escravo para ficarem limpas como devia ser, era uma manha sem sentido. No entanto, para acabar com o discurso, declarei que era evidente que ele era um homem de gostos simples, mas elegantes.
‑ Tudo isto é perfeitamente encantador ‑ acrescentei. Envaidecido com os meus elogios, consentiu com um sorriso ansioso em ver o meu caderno de desenho. Levou o seu tempo com cada um dos desenhos, descobrindo um detalhe qualquer ‑ um bico, uma pena da cauda, o brilho de um olho ‑ com que se encantar. Isto não era tanto para elogiar a minha habilidade, embora o tivesse feito com bastante frequência, como para chamar a atenção para as suas capacidades de observação.
Estava prestes a interrogá‑lo delicadamente sobre a possibilidade de ficar instalado em River Bend, quando a porta da sala se abriu e entrou uma rapariga escanzelada vestindo um vestido branco muito velho. Tinha olhos escuros e ovais e a pele tinha a cor do bronze. Nela, consegui ver Meia‑Noite tal como ele era naquele maravilhoso dia da sua chegada à nossa casa no Porto. Como era ágil e belo!
Senti um desejo imenso de correr para ela. A minha pele formigava com a necessidade de a interrogar sobre o pai ‑ e também de lhe abrir o meu coração.
Sabendo que o meu pai era responsável pela vida de pobreza e humilhação que esta rapariga herdara, a minha vergonha parecia olhar‑me com desprezo; como é que eu podia sequer falar com ela quando, com toda a certeza, ela tinha passado toda a sua infância a amaldiçoar‑me e à minha família?
Ela trazia‑nos biscoitos numa bandeja, embora nós ainda não tivéssemos acabado o monte anterior nem tivéssemos pedido mais. Edward explicou‑me que ela estava sempre a fazer uma tolice qualquer, como a de trazer doces quando não eram precisos. Piscou‑me o olho como se tivéssemos estabelecido uma cumplicidade íntima e depois disse à rapariga: ‑ Morri, eu dantes pensava que tinhas uma boa cabeça em cima desses teus ombros ossudos, mas és uma parva. Julgas que podes fazer o que te apetece, não é verdade? Mas não podes. Um dia vais perceber isso, podes ter a certeza. E não vai demorar muito, calculo eu. Agora, põe esse teu rabo preto e desordeiro daqui para fora, antes que eu te esmurre as orelhas.
‑ Peço muita desculpa ‑ replicou ela, mas não parecia minimamente perturbada com as palavras dele.
Eu, contudo, teria gostado de enfiar o meu punho na cara dele, o que, indubitavelmente, foi a razão de ter pensado em Meia‑Noite a dizer‑me: Tu és apenas um gemsbok, por isso não te deixes provocar tão facilmente...
Tomando‑me, muito provavelmente, por um amigo do patrão, Morri deitou‑me um olhar desdenhoso quando se voltou para sair. Nessa altura, reuni toda a minha coragem e perguntei a Edward se podia ficar em River Bend durante uma semana para desenhar os pássaros locais.
Mantive os dedos entrelaçados no colo enquanto falava; nesta altura já me tinha dado conta de que os sulistas brancos, tal como os ingleses, consideravam os gestos como uma grosseria.
‑ Mas, Mr. Stewart ‑ disse Edward, parecendo espantado ‑, não creio que lhe possamos oferecer as condições a que está habituado em Inglaterra. Isto é uma casa modesta, como já lhe disse, e, neste momento, a minha mulher está fora. Eu próprio só cá estou durante dois ou três dias por semana. Tenho a certeza de que iria achar River Bend um sítio muitíssimo primitivo.
‑ Eu só precisaria de um quarto e de uma refeição por dia, Mr. Roberson.
‑ Sim, mas os pretos, eles têm a tendência para serem desordeiros nesta altura do ano. Os verões quentes e húmidos criam‑lhes uma espécie de furor. Eles seriam capazes de dançar durante toda a noite se não fosse o chicote.
‑ Para lhe dizer a verdade, senhor, eu nunca reparo nos africanos. Nenhuma das malditas velhacarias deles me irritam ‑ disse eu, esperando estar a representar de forma convincente.
‑ Sim, imagino que o senhor deve achar os pica‑paus e as carriças muito mais interessantes ‑ disse ele sorrindo.
‑ De facto, é verdade ‑ concordei com uma gargalhada. Edward abanou a cabeça quando eu insisti em pagar a minha estada, dizendo que nunca o permitiria. Chamou então Crow, que tinha estado à espera à porta da sala, e mandou‑o ajudar‑me a levar as malas para o antigo quarto de Mistress Anne. Antes de subir, saí para ir ter com Luísa. Disse‑lhe que estava tudo bem e voltei com ela ao cabriole para ir buscar as malas. Sussurrei‑lhe que tinha visto a filha de Meia‑Noite e que ela se chamava Morri.
Luísa apertou‑me a mão, mas depois achou que era melhor não mostrar os seus sentimentos.
‑ Oh, estou tão contente, John. Falou com ela?
‑ Não consegui. Tentarei depois.
‑ Vai conseguir convencê‑la, tenho a certeza.
‑ Se ao menos eu tivesse a sua confiança.
‑ A confiança é de graça ‑ disse ela sorrindo ‑, por isso eu tenho toneladas e toneladas dela.
Agradeci‑lhe a ela e a Isaac a ajuda que me tinham dado.
‑ Não lhe darei um beijo aqui ‑ murmurou ela.
Apertámos as mãos.
‑ Agora, tenha cuidado, John. Vou deixá‑lo com aquilo que a minha mãe me costumava dizer sempre que eu me ia meter numa coisa arriscada. Não sei exactamente o que quer dizer, mas costumava dar‑me coragem. ‑ Pousou a mão no meu peito e carregou. ‑ Engole a noite, filho. Engole a noite bem para dentro de ti.
Mais tarde, nesse dia, levei o caderno dos desenhos lá para fora e depois dei a volta ao perímetro da sala do chá em direcção ao edifício da cozinha que estava ligado à casa principal por uma passagem. Ouvia vozes suaves de lá de dentro. Bati à porta e uma velha negra, com óculos e vestindo uma túnica branca e solta, veio à porta e fez‑me uma vénia. Disse‑me que era Lily, a cozinheira. Quando lhe perguntei se havia alguém que me pudesse lavar e engomar uma camisa e umas calças, hesitou durante um bocado, como se fosse surda. Depois, quando repeti o meu pedido, disse‑me:
‑ Vou mandar a Morri fazê isso já, siô.
‑ E eu poderia falar com Morri?
‑ Sim, claro que pode, siô. 'Spere qui um bocadinho, faz favo. Morri apareceu cerca de um minuto depois, os olhos cheios de susto, com um braço esticado ao lado do corpo e a outra mão a agarrá‑lo com força no cotovelo. Ficou à distância de dois bons passos de mim, alerta.
‑ Morri, tenho um favor a pedir‑te.
‑ Sim, senhor.
‑ As roupas que deixei em cima da cama estão muito sujas. Se fazes favor, põe‑me a camisa... põe‑me a camisa tão branca‑branca como o céu.
‑ Branca como o céu? 'Sculpe, mas não compreendo.
‑ Disseram‑me que o céu era dessa cor na Idade das Primeiras Pessoas. Ela recuou um passo.
‑ Nós somos as Primeiras Pessoas ‑ acrescentei. ‑ Tu e eu... e todos os outros. Embora isto seja um segredo que só poucos conhecem.
Antes que eu pudesse continuar a explicar‑me, ela fugiu, apalpando o caminho ao longo da parede da cozinha como se fosse cega.
Por Que É Que Meia‑Noite Não Fala?
Quando o estranho veio à porta da cozinha perguntar por mim, Lily foi‑me buscar saltando como um sapo porque não conseguia perceber metade do que ele estava a dizer. E, na verdade, lá estava ele à porta, nos seus oito palmos e meio, a tentar prender‑me dentro daqueles olhos azul‑acinzentados dele.
Ele perguntou‑me numa voz muito cuidadosa se eu lhe podia lavar umas coisas ‑ como se eu pudesse recusar‑me sem me arriscar a ser castigada. Depois disse umas coisas muito peculiares: que as roupas estavam muito, muito sujas. E que o céu era branco‑branco. Só o meu Papá é que falava assim.
Isso baralhou‑me completamente, lá isso sim. Depois, ocorreu‑me o óbvio: o filho‑da‑mãe já tinha o meu pai prisioneiro! Isto era a sua maneira diabólica de mo dizer. Muito provavelmente, ele e os da laia dele estavam a torturá‑lo num sítio secreto qualquer. Se calhar, já o tinham há três anos.
O que ele estava a fazer em River Bend, eu não sabia dizer. Embora, sendo um branco, provavelmente só queria ver‑me sofrer sem saber que o meu papá era prisioneiro dele.
Mas então por que é que ele tinha andado a perguntar em Charles‑ton pelo meu pai como se não soubesse onde ele estava? E se o Papá tinha sido capturado, por que é que não o tinham devolvido ao Patrão Edward, o dono dele?
Olhar para aquele homem de pé do lado de fora da porta da cozinha fazia com que fosse difícil respirar. Às apalpadelas, encontrei o caminho para sair e corri. Não sabia para onde ia, mas tinha de sair da Casa Grande antes que ela me matasse de sufoco.
Corri o mais depressa que podia e encontrei Weaver a arranjar a rede da capoeira.
‑ Óooo, pára aí, rapariga! Qu'é que t'aconteceu?
‑ Temos de cancelar o que planeámos ‑ murmurei‑lhe eu.
Depois expliquei‑lhe aquilo do estrangeiro que tinha capturado o meu pai.
‑ Não, fitcha, é já tarde p'ra parar o que começámos.
‑ Acho que ele raptou o Papá.
E comecei a chorar porque tinha tido tantas esperanças de que o meu pai tivesse conseguido fugir e estivesse no Norte. Se ele não tinha conseguido fugir, então que hipóteses tínhamos nós?
‑ Vamos morrer, Weaver! Eles vão apanhar‑nos!
‑ 'Calma‑te, rapariga. 'Calma‑te. Conta‑me o que vai nessa tua cabeça.
Eu disse‑lhe que não conseguia perceber por que é que o estranho andava a perguntar pelo Papá se já o devia ter feito prisioneiro. Weaver pensou naquilo enquanto mastigava um caule de arroz e depois disse‑me:
‑ Ele vai descobri quem ajudou ele a fugir. O teu papá nã diz e ele quer muito sabe.
Aquilo fazia muito sentido.
‑ Se ele falar contigo, diz‑lhe que nunca conheceste o meu pai ‑ disse‑lhe eu.
‑ Nã posso dizê isso, rapariga. Tou aqui toda a nha vida.
‑ Então diz que não estavas cá no dia em que ele desapareceu. Estavas em Charleston.
‑ Tudo o que quiseres, Morri. Ond'é que achas qu'ele tem o tê papá?
‑ Não sei ‑ respondi, mas sabia que tinha de descobrir.
Fiquei umas horas longe de casa, a passear por Porters Woods, desejando fervorosamente que o estranho não ficasse muito tempo. Se ele lá estivesse quando Beaufort deixasse o seu sinal de que os barcos estavam no cais, à espera para nos levarem para a liberdade, iríamos ter de fazer uma grande matança em River Bend. Eu ficava doente só de pensar nisso e não sabia se o conseguiria mesmo fazer, mas, pensei para comigo, só o saberia com toda a certeza quando chegasse a altura de apertar o gatilho. No caminho de regresso à Casa Grande, parei para falar outra vez com Weaver e ele contou‑me que tinha tido uma conversa muito agradável com o estranho. Até o tinha levado a ver as cabanas dos escravos.
- Bem, espero que não lhe tenhas ido mostrar o meu quarto. E é melhor que não lhe tenhas contado nada sobre o Papá.
‑ Nã disse nada. 'Tás com uma das tuas más disposições, não 'tás, fítcha?
‑ Ora, tenho razões para estar.
Voltei para casa em passo decidido, determinada a descobrir que tipo de segredos este visitante guardava. Crow disse‑me que ele andava lá por fora; por isso, introduzi‑me no quarto dele.
Encontrei as malas de couro em cima da cama. Abri‑as e descobri duas coisas que fizeram o meu coração dar um pulo: uma comprida pena branca e uma seta de fabrico artesanal dividida em três secções, cada uma delas encaixando perfeitamente na outra.
Sentei‑me, estupefacta. Porque a seta era exactamente igual à maneira como o Papá tinha descrito que a sua gente as fazia em África. A pena... bem, podia ter sido arrancada a uma galinha velha qualquer, só que era a mais comprida que eu já vira. Fez‑me lembrar aquele misterioso pássaro branco de que o Papá me tinha falado, aquele que ele tentara encontrar durante anos e que tinha, finalmente, vislumbrado em Portugal.
A estranheza deste indivíduo tornava‑se cada vez maior, sabem? Porque ao passar os olhos pelos desenhos dele, descobri um esboço do próprio Papá. Ele tinha talento, concedia‑lhe isso, partindo do princípio que tinha sido ele que o tinha desenhado. Conseguira pôr qualquer coisa do espírito do meu papá naquela folha de papel. Mas não era o homem que eu conhecia. Porque, ao olhar para a cara dele através das minhas lágrimas, apercebi‑me de que este homem era o meu papá antes de eu ter vindo a este mundo. Devia ter apenas uns trinta anos de idade. Nessa altura, devia ter conseguido correr mais depressa do que um gemsbok.
Mas não era só isso; também havia uma nota escrevinhada no fundo: Por que é que Meia‑Noite não fala?
Eu não conseguia perceber como é que este traficante de escravos com a cabeça cheia de lama tinha um desenho do Papá que devia ter sido feito há vinte anos, ou mais, se calhar, até mesmo antes de ele chegar a River Bend. E o mais peculiar de tudo: como é que ele podia ter sabido que o nome do Papá não era Samuel quando ele vivia do outro lado do oceano?
Fui mais ESTÚPIDA do que uma minhoca por não ter percebido mais cedo que este estranho com a seta do Papá era um rapazinho que se tinha tornado homem e viera de muito longe. Mas quando percebi, corri para fora de casa, atravessei os campos de milho e as hortas dos escravos e percorri o caminho que levava até ao rio. Encontrei‑o sentado numa rocha e ele voltou‑se para mim como se tivesse medo do que eu pudesse fazer. Se calhar, julgou que eu tinha uma faca.
‑ É o John, não é? É John, o gemsbok!
Os olhos dele iluminaram‑se e ele levantou‑se.
‑ Sim, vim de Portugal. E, Morri, não sabes como estou contente por te ter encontrado.
Estendi‑lhe o desenho do Papá.
‑ E também tem a seta dele.
‑ Vim procurar o teu pai. E levar‑te para casa, se quiseres vir comigo. Aproximou‑se de mim, devagarinho, as lágrimas a correrem‑lhe
pelas faces, mas, ao mesmo tempo, parecendo preocupado como se tivesse medo de me magoar. A voz estava muito sumida.
‑ Posso tocar em ti, Morri? ‑ perguntou muito baixinho. Fiz que sim com a cabeça, mas não tinha a certeza de confiar nele. Ele pousou as mãos nos meus ombros e depois baixou‑as, acariciando os meus braços. Estava a sentir o meu corpo como se estivesse a certificar‑se de que eu era verdadeira. Era muito delicado... demasiado delicado. Assustou‑me.
Então ele sorriu e limpou as lágrimas. Agora parecia‑me mais velho do que aquilo que eu tinha pensado. Devia estar perto dos trinta e cinco anos. Fiz umas contas de cabeça e pareceu‑me que correspondia ao que o Papá me contara.
‑ O... o que é que posso fazer por si? ‑ perguntei com toda a cautela.
Então ele levou a minha mão aos lábios, beijou a palma e fechou‑a num punho, como o meu papá costumava fazer às vezes. Isso ainda me convenceu mais do que tudo o resto que este tinha de ser John, o gemsbok.
‑ Guarda‑o sempre contigo ‑ disse‑me ele.
‑ Vou guardar ‑ respondi eu, os meus sentimentos todos baralhados e às turras uns com os outros.
Eu não parava de pensar que este homem era John e que devia ter confiança nele porque o meu papá tinha, mas a verdade é que ele era um homem branco e eu não tinha essa confiança.
Sentámo‑nos junto do rio e conversámos durante quase duas horas e eu acabei por lhe contar tudo o que sabia sobre o desaparecimento do meu pai, o que não era quase nada, e como o Patrão Edward me tinha mandado para longe dali. Eu confundi‑o com a velocidade com que estava a falar, porque o meu coração não parava de saltar com o nervoso; por isso, tive de voltar para trás e contar‑lhe como tudo tinha começado: como o meu pai tinha vindo parar a River Bend, que lhe tinham cortado os tendões dos calcanhares e os assassinatos do Grande Patrão Henry e do Pequeno Patrão Henry. Não o queria contar, tudo aquilo me saiu de roldão, como se toda uma casa cheia de recordações tivesse ficado demasiado cheia. Até falei de coisas que devia ter mantido secretas ‑ como ter visto o Grande Patrão Henry encharcado de sangue, com o meu copo de limonada vazio no chão, ao lado da mão dele.
John pediu‑me licença muito educadamente e correu para o rio quando lhe contei como o meu pai tinha ficado aleijado por tentar fugir antes de eu ter nascido. Julguei que ele se estava a aliviar, mas depois ouvi o barulho de vómitos. Ele chamou‑me e perguntou se a água era boa para beber e eu disse‑lhe que tinha um mau sabor, mas não fazia mal. Quando voltou, pediu‑me desculpa por me ter deixado sozinha.
Por vezes, enquanto falava com ele, perguntava para comigo onde é que eu estava. Porque não me parecia que isto pudesse estar a acontecer em River Bend. Quero dizer, um homem branco, grande e alto, a ouvir o que eu dizia como se isso pudesse mudar alguma coisa.
Quando ele me perguntou quem é que eu pensava que tinha cometido os crimes, disse‑lhe que tinha desconfiado que o Pequeno Patrão Henry tinha matado o pai, mas, depois, quando ele tinha sido assassinado da mesma maneira... Bem, já tinha sido há muito tempo e ninguém sabia.
Eu queria pôr aquele assunto para trás das costas; por isso, perguntei‑lhe como é que tinha sido a viagem de Portugal até à Carolina do Sul. Ele depressa compreendeu que eu estava muitíssimo interessada em ouvir falar do Papá antes de eu o ter conhecido e, por isso, começou a contar‑me tudo o que podia, o que era espantosamente mais do que eu teria pensado que qualquer homem branco seria capaz de se lembrar sobre um africano. Começou pelo primeiro jantar deles e terminou com a viagem que os nossos pais tinham feito a Inglaterra.
Depois, foi a vez dele ser muito cauteloso. Perguntou‑me se o Papá me tinha contado o que o pai dele lhe fizera em Londres. Disse‑lhe o que tinha ouvido. Ele disse que não tinha sido isso que acontecera, que o Papá era capaz de nem sequer conhecer toda a verdade. Depois contou‑me como é que o pai dele tinha arranjado maneira de ele ser raptado e vendido como escravo a Mr. Miller, em Alexandria. Antes de me contar, disse‑me:
‑ Só espero que não me fiques a odiar quando eu tiver acabado de te contar esta história horrível.
Não sei muito bem o que senti quando a ouvi. Não o odiava, isso não. E disse‑lhe:
‑ Se o meu papá não tivesse vindo para cá, eu não teria nascido. E ele nunca teria conhecido a minha mãe. Ele amava‑a loucamente. Acho que agora não se pode mudar nada do passado. Por isso, não o odeio, nem sequer odeio o seu papá. Devia odiar, mas não odeio.
‑ Morri, como é que pensas que os homens bons fazem coisas más? ‑ perguntou‑me ele. ‑ Porque aquilo que eu ainda não te disse sobre o meu pai é que ele era um homem bom e generoso. E não queria que pensasses que ele não amava o teu pai. Eu sei que o amava.
Tentei pensar no que o Papá diria, mas não me consegui lembrar de nada que fosse suficientemente bom. Quando lhe disse que não sabia, John levantou‑se com um ar muito decidido.
‑ Morri, não posso voltar para casa até encontrar o teu pai ‑ ou descobrir o que lhe aconteceu. Se ele for escravo nalgum sítio, comprarei a liberdade dele. Mas com tudo o que me contaste, continuo sem saber onde devo começar a procurá‑lo.
‑ Acho que ele deve estar no Norte. Se calhar, vai ter de voltar para Nova Iorque e começar a procurar lá.
‑ Vens comigo?
- Eu? O Patrão Edward não está disposto a deixar‑me apanhar o barco para Nova Iorque agora. Talvez depois do jantar ‑ respondi eu, rindo.
‑ Não acreditas a sério que eu te deixaria aqui, agora que te encontrei? Pagarei qualquer preço que Edward peça por ti. Embora peça desculpa de estar a falar assim contigo.
As intenções dele assustaram‑me, sabem, porque Beaufort ia deixar uma fita no nosso portão num destes dias. Não que eu lhe pudesse contar isso; por isso, disse‑lhe:
‑ Não posso ir consigo. Tenho de ficar aqui... para o caso de o meu pai voltar para me vir buscar.
‑ Mas se ele fosse fazer isso, já o teria feito. Tu mesma disseste que ele deve pensar que morreste.
‑ Eu só disse isso porque... porque às vezes tenho muito medo de estar aqui sozinha sem os meus pais. Mas ele vai voltar um dia para me levar. Pode ter a certeza disso.
Eu não estava a dizer o que pensava de verdade, que era que, mesmo que o papá estivesse vivo, o Patrão Edward tinha sido mais esperto do que ele. A minha mentira emaranhou‑se no meu medo e fez com que a minha voz parecesse uma rosnadela. John olhou para mim como se eu lhe tivesse dado um tiro. Nessa altura, lembrei‑me da carta que o Papá tinha deixado para ele. Mas a verdade é que não lha podia dar sem fazer com que ele ainda quisesse mais que eu fosse com ele.
‑ Estás zangada comigo ‑ disse ele como um menino pequenino que tivesse acabado de fazer uma maldade.
‑ Não, não estou, mas não posso ir consigo. ‑ Levantei‑me pensando naquelas armas escondidas debaixo da varanda. ‑ Tenho de voltar para casa. Não vai querer ver o Patrão Edward furioso comigo. Desta vez, ele era capaz de fazer qualquer coisa terrível.
‑ Não, Morri ‑ replicou ele, falando como se tivesse dentro de si anos e anos de ódio ‑, acho que gostaria de o ver furioso contigo. Era capaz de gostar de o ver tentar cortar‑te os tendões dos calcanhares, porque, digo‑te isto: enfiava‑lhe uma faca no pescoço e torcia‑a com tanta força que ele estaria morto mesmo antes de começar a pedir‑te desculpa!
Depois de Morri ter descoberto a minha identidade, tivemos uma longa conversa ao pé do Cooper River. Mas nada do que lhe contei conseguiu vencer as reticências dela ao falar comigo. A frustração fez‑me chorar. Eu tinha‑me deixado acreditar que, mal ela soubesse quem eu era, herdaria toda a antiga afeição de Meia‑Noite por mim. Tinha‑me esquecido que não havia magia neste mundo.
Desprezei‑me pelo meu acanhamento à frente dela e pela minha incapacidade em a convencer a ir‑se embora comigo. E depois estraguei realmente tudo ao deixar‑me vencer pelo meu temperamento exaltado de escocês declarando que se alguma vez o Patrão Edward tentasse cortar‑lhe os tendões dos calcanhares, lhe rasgaria a garganta.
A partir daí, Morri falou comigo como se eu fosse perigoso ‑ como de facto eu poderia ter sido. Implorou‑me que não dissesse nada ao Patrão Edward que tinha conhecido o pai dela. Claro que eu não tinha a mínima intenção de o fazer e ela ter‑me obrigado a jurar decepcionou‑me imenso. Também pediu que não mencionasse ao Patrão Henry a minha vontade de a comprar. Estava completamente fora de questão, disse‑me ela, e eu só lhe arranjaria problemas. Se eu de facto me preocupasse com o seu bem‑estar, deixá‑la‑ia em paz.
No meu quarto, nessa noite, fiquei deitado na cama a recordar os jardins dos escravos que tinha visto naquele dia e a pensar também em como Meia‑Noite tinha limpado a terra por trás da nossa casa a seguir à sua vinda para o Porto, permitindo que as roseiras, há muito adormecidas, florescessem. Nesta primavera, os seus rododendros daqui iriam ser nuvens de rosa e vermelho.
Na escuridão do meu quarto, o seu desaparecimento deixou‑me às voltas na cama. Um homem e um acto cobarde podiam prejudicar tantas pessoas durante vinte anos ou mais. A maldade daquilo que o meu pai fizera até era capaz de continuar durante muitas gerações, porque aqui estava Morri, obrigada a viver como uma prisioneira, isolada do resto do mundo. Os filhos dela também iriam nascer e morrer aqui, ou, pior ainda, podiam ser vendidos a outros donos que vivessem a centenas de léguas.
Arriscando‑me a uma invasão de mosquitos, abri a janela para procurar o Arqueiro, mas não o consegui descobrir. Desejava comer a noite e todas as suas estrelas, tal como Luísa sugerira, para poder ganhar a perícia daqueles caçadores.
A Minha Vingança Está Aqui
Agora que tinha conhecido um homem branco com memória para os negros, não estava muito segura de que isso fosse uma coisa boa. Por que o que é que eu sabia de facto acerca dele?
Era principalmente nisso que eu estava a pensar quando corri para o portão principal de River Bend antes da alvorada do dia seguinte. Mas não havia nem planta nem fita à vista.
Quando os primeiros raios de sol espreitaram através dos pinheiros, eu já estava a bater a roupa do Patrão Edward nas pedras para a esfregar no Christmas Creek. Estava a desejar que John se fosse embora. Eu achava que não lhe devia nada só porque ele tinha sido amigo do meu Papá. De qualquer das maneiras, ele não passava de um garoto nessa altura. Se calhar, o homem que ele era agora não tinha nada a ver com o rapazinho que tinha sido todos aqueles anos antes.
Pouco depois, Wiggie veio dizer‑me que Cullenn, o bebé de Rosa, estava a tossir e que precisavam de mim. Tive receio que fosse garrotilho e, por isso, fui ao jardim do Papá e misturei camomila e cássia para ele respirar. O ar na cabana dele estava bafiento como pão bolorento e, por isso, eu mesma o levei para Porters Woods e fiz lá uma fogueira, porque Rosa era uma escrava dos campos e não podia ser dispensada da monda do arroz.
E foi aí que voltei a ver John ‑ sentado à beira do bosque. Ele perguntou‑me se Cullenn era meu filho, o que me fez rir porque toda a gente podia ver que ele não era nada parecido comigo.
‑ Há bebés que se parecem com o pai ‑ disse ele, fazendo uma cara muito triste. ‑ Como tu, por exemplo.
Desviei os olhos porque os olhos dele estavam a adoçar a minha raiva e eu precisava de todos os bocadinhos dela para conseguir a coragem necessária para agarrar na minha pistola e marchar para fora de River Bend.
‑ Morri, tenho de te levar daqui para fora ‑ disse‑me ele.
‑ Agradeço‑lhe por pensar em mim ‑ respondi friamente ‑, mas é inútil falar destas coisas. Eu não posso ir.
Deu uns passos na minha direcção.
‑ Não compreendes o que te estou a dizer? ‑ implorou. ‑ Não tens de continuar aqui mais tempo.
‑ O John é que não está a compreender. Se o capataz me vir a falar consigo, sou de certeza castigada. Só está a dificultar‑me a vida. Por isso, deixe‑me em paz.
Quando vi que ele não se mexia, gritei‑lhe:
‑ Não me podem ver a falar consigo! Vá‑se embora!
Vi que o tinha magoado, mas sabia que era para bem dele e não disse mais uma palavra. Mas, mesmo assim, senti‑me culpada.
Não o voltei a ver nesse dia, sábado. Weaver disse que o tinha visto um par de vezes, sentado numa pedra ao pé do Cooper River, parecendo muito preocupado e a desenhar no seu caderno como se a vida dele dependesse daquilo.
John jantou com a família na Casa Grande no sábado à noite. Mistress Anne tinha vindo de Charleston e o Patrão Edward e Mistress Kitty tinham chegado de Cordesville. Tinham ouvido dizer que estava cá instalado um artista escocês e tinham vindo só para o verem. Mais tarde, Crow contou‑me que Mistress Anne tinha namorado descaradamente com John durante quase todo o jantar.
Passei a maior parte da noite na cabana de Rosa, uma vez que Cullenn continuava a tossir e precisava da minha atenção constante. Tinha o nariz horrivelmente carregado; por isso, fiz um dos truques do meu pai e cobri‑o com a minha boca para chupar aquela porcaria toda.
Domingo era o nosso dia livre e Cullenn estava melhor; por isso, disse a Rosa como tratar dele e depois fui com Weaver para Comingtee para ele poder estar com a mulher e os filhos. Tivemos más notícias mal lá chegámos. Martha e os dois filhos estavam com dúvidas sobre a nossa fuga. Mas Weaver disse que era muito tarde para mudarmos de ideias, que tínhamos de ir porque já havia demasiadas pessoas que sabiam do plano e já tínhamos as armas. Martha disse‑nos que uma lavadeira, chamada Sarah, também iria connosco. Ela e o filho de Weaver, Frederick, queriam casar.
Passei o dia a ver as barcaças do algodão a passarem, a bordar as mangas do meu vestido dos domingos e a cantar com o outro filho de Weaver, Taylor, que tinha uma guitarra velha. Ninguém voltou a dizer mais uma palavra sobre a nossa fuga. Weaver pescou durante um bocado e apanhou umas carpas, que foram muito boas para o jantar, embora nós nos limitássemos a debicar como se fôssemos ser enforcados na manhã seguinte. É engraçado como o cair da noite nos pode levar a pensar na morte.
Voltámos tarde para casa no domingo, quase à meia‑noite. De manhã, quando eu estava ainda agarrada a uns últimos minutos de sono, Wiggie levou John a uma casa ao pé de Stromboli, onde vivia aquela negra elegante que tinha ido com ele a River Bend. Julguei que ele tinha desistido de mim e, na minha cabeça, misturaram‑se uma data de sentimentos a esse respeito. Acho que até me senti magoada. Mas, depois, Crow disse‑me que John tinha passado grande parte do domingo a fazer perguntas bisbilhoteiras a ele, a Lily e até a Mr. Johnson. Queria saber tudo sobre os assassinatos do Grande Patrão Henry e do Pequeno Patrão Henry. Fê‑los descrever tudo com todos os pormenores, até mesmo os ataques que eles tinham tido. Chegou mesmo a pedir a Lily a receita da limonada! Depois de ouvir aquilo, senti‑me muito aliviada por ele nos ter deixado. Ele não estar na plantação queria dizer que não havia possibilidade de um de nós ter de lhe fazer mal.
Cullenn estava quase bom na segunda‑feira. Não tinha febre nem tosse. Achei que pelo menos tinha acontecido uma coisa boa. Uma coisa boa por dia é tudo o que geralmente peço; embora, um dia, tencione convencer‑me a pedir duas.
Nunca esquecerei aquela terça‑feira, dia dois de Setembro de 1823, porque nessa manhã encontrei uma fita vermelha atada ao portão e um vaso de cravos cor‑de‑rosa. Não posso dizer como é que os levei para a Casa Grande porque não me lembro de nada.
Fui ter com Lily. Disso lembro‑me. Ela obrigou‑me a sentar e abanou‑me com um abanico porque eu estava a arder.
‑ Qu'rída, 'tás a assustar‑me muito ‑ disse‑me ela.
‑ Estou a assustar‑me a mim mesma ‑ disse‑lhe eu.
O nosso plano era ir tirar os mosquetes, as pistolas, a pólvora e as espadas de debaixo da varanda ao cair da noite de domingo. Saíamos pelo portão da frente e seguíamos até Petrie's Landing, onde os barcos estariam à nossa espera.
Descíamos o rio nos barcos a remos até ao porto de Charleston e ao Capitão Ott.
íamos atar o Patrão Edward e Mr. Johnson com umas cordas e fechá‑los no Primeiro Celeiro. Também íamos atar os dois capatazes negros, visto que nunca poderíamos confiar neles. Quando aparecesse alguém para os soltar do celeiro, já estaríamos em segurança a bordo do Land‑mark. Ou mortos.
Nessa noite, muito depois da Meia‑Noite, rastejei por baixo da varanda para ir buscar um dos mosquetes. Estava escuro e eu tinha medo que uma cascavel me cravasse as mandíbulas na mão. Estava a tremer como uma menina pequena. Mas apanhei‑a. O cano adaptava‑se à palma da minha mão como a própria morte.
Dei‑a a Weaver à porta da cabana dele. Ele acordou Saul, Sweet‑Pea e Drummond, os trabalhadores dos campos que dormiam na mesma cabana. Sweet‑Pea e Drummond eram gémeos, tinham apenas vinte anos, e Saul era tio deles. Weaver contou‑lhes o que estávamos a planear. Sweet‑Pea vinha connosco, mas Drummond disse não obrigado, era um plano idiota, mas ele não diria nada nem ao superintendente nem ao Patrão Edward. Saul disse que não tinha a certeza se queria arriscar‑se. Weaver passou toda a noite a pé a ensinar Sweet‑Pea e Saul a meter a pólvora e a disparar. Ao amanhecer, Saul estava completamente convencido de que era capaz de disparar a arma e, por isso, decidiu que viria connosco.
Ao mesmo tempo, contei os nossos planos a Lily. Ela agarrou na cruz de latão que tinha à roda do pescoço, como se ela pudesse voar, e disse que tinha muito medo por mim. Parecia que não compreendia que eu lhe estava a dizer que ela também podia vir. Limitou‑se a abanar a cabeça e a dizer:
‑ Eu nã, qu'rida. Eu vou morrer em River Bend, sabes? Não havia nada que eu pudesse fazer para a convencer a vir.
‑ Vou ter sodades tuas, qurida ‑ disse ela, começando a chorar. ‑ Mas vou reza p'ra que chegue ao Norte. ‑ Agarrou‑me pelos ombros. ‑ É bom que me mandes um carta qando lá chegares, porqu'eu nã quero ter que me preocupa contigo. Peço ao Patrão Edward p'ra ma ler. Ele vai fica muto aliviado por sabe qu'tás em segurança no Norte.
Piscou‑me o olho e desatámo‑nos as duas rir. Depois apertou‑me contra o peito como se fosse a minha mamã.
Por isso, agora éramos quatro de River Bend que tínhamos concordado em fugir: eu, Weaver, Sweet‑Pea e Saul. Com mais quatro de Comingtee, éramos oito.
Backbend e Hopper‑Anne, os netos de Lily, disseram na quarta‑feira que também vinham, juntamente com Lucy, a mulher de Backbend. Também iam trazer o bebé, Scooper. A Avó Blue disse que estava demasiado velha para se arrastar pelos campos com os cães desejosos de lhe abocanhar o velho rabo africano. Mas o filho, Parker, e a mulher Christmas‑Eve(1) ‑ que, claro tinha nascido no dia vinte e quatro de Dezembro ‑ também vinham, mais o neto dela, Randolph, e os filhos dele, Lawrence e Mimi. Rosa e o marido, Langston, disseram que era demasiado perigoso. Ainda não tínhamos dito a Wiggie porque não tínhamos a certeza de que ele não iria passar a informação ao Patrão Edward ou aos capatazes.
Crow... implorámos ao velho e magro rabugento, mas ele recusou‑se a mudar o seu não para sim. Quando lhe dissemos que íamos fechar os brancos todos e os dois capatazes negros no Primeiro Celeiro, ele sorriu rasgadamente como quando era novo e disse:
‑ Alguém tem de ficar para garantir que eles não fogem. Serei eu.
‑ Por favor, Crow, suplico‑te. Vem connosco. Não te podemos deixar cá ficar.
‑ Lembras quando me chicotearam tanto que nhas costelas pareciam dentes à mostra? Quando fizeram isso, menina ‑ apertou‑me a mão com toda a força ‑, eu disse para mim: Crow, tens de te voltar cont'a eles e fazê‑los sangrar. Esta é a minha oportunidade, qu'rida. Deixam‑me aqui qu'eu trato que eles não vão a lado nenhum. Os olhos deles vão sangrar quando virem River Bend vazio e vocês já idos há muito. E eu que'o ver isso co'estes meus olhos!
‑ Mas tu podes vir! A liberdade está lá fora. Crow, tens de vir. Não te posso deixar!
‑ Não, qurida, nha vingança 'tá aqui.
Por isso, na quarta‑feira, à hora do jantar, estava decidido que treze de nós de River Bend ‑ incluindo um bebé recém‑nascido ‑ íamos fechar para sempre o portão da nossa plantação atrás de nós. E depois havia ainda a família de Weaver de Comingtee: Martha, Taylor, Frederick e Sarah.
*1. Christmas Eve ‑ Véspera de Natal. (N. da T.)
Meu Deus, eu esperava que conseguíssemos meter dezassete pessoas nos três barcos a remos que o Capitão Ott ia deixar em Petrie's Landing.
Muito tarde, nessa noite de quarta‑feira, Weaver atravessou às escondidas a ponte para Comingtee, onde disse à família para se dirigir a River Bend por volta das seis da tarde de domingo. Agora Martha tinha a certeza que não tinha coragem para fugir, mas Weaver disse‑lhe que havia uma cama com colchão de penas à espera dela em Nova Iorque. Aquilo era uma pequena brincadeira entre os dois, visto que Martha estava sempre a dizer que queria dormir nem que fosse só uma vez na vida num colchão de penas com uma almofada que não fosse feita de roupas velhas. Weaver tinha dito sempre que a primeira coisa que faria com o primeiro dinheiro que ganhasse seria comprar‑lhe uma cama como devia ser.
Quinta‑feira de manhã, estávamos, excepto Weaver, tão nervosos como peixes fora de água com aquilo que estava prestes a acontecer. Estávamos todos a pensar exactamente a mesma coisa: que bastava uma pessoa dizer qualquer coisa estúpida a Mr. Johnson ou a um dos capatazes para ficarmos todos enterrados até ao pescoço em estrume. Passei metade do tempo tão perto de desmaiar que tinha de estar sempre a molhar a cabeça com água.
Então, por volta do meio‑dia, John entrou pelo portão da frente, carregando uma mala de couro e o seu caderno de desenho. Weaver viu‑o primeiro do que eu porque estava a ajudar a inundar os campos de arroz a uns duzentos metros da entrada. Eu só o ouvi quando ele chegou à varanda, porque ele chamou por Crow. Eu tinha estado a varrer um carreiro de formigas da cozinha e corri para ver quem era. Ele olhou para mim como se tivesse dentro dele um segredo muito brilhante que ia mudar tudo.
Um comentário aparentemente inofensivo de Mistress Anne, no nosso jantar de sábado à noite, juntamente com uma das minhas próprias observações, combinaram‑se para me fazer ter algumas suspeitas sobre a origem dos ataques de que tanto o Grande Patrão Henry como o Pequeno tinham sofrido. Se eu não tivesse descoberto a causa deles, creio que Morri poderia nunca ter chegado a confiar em mim.
Eu estava quase desesperado quando o jantar começou, visto que Morri tinha recusado mais uma vez pensar sequer em ir‑se embora comigo. Durante a tarde, tinha‑a visto a cuidar de um bebé doente e falara‑lhe gentilmente, mas ela gritara‑me que eu lhe estava a tornar a vida ainda mais difícil do que já era. Parecia‑me que não conseguia dizer‑lhe nada certo.
Ao princípio, Mistress Anne tinha falado maldosamente dos seus falecidos pai e irmão, chamando ao primeiro um bruto e ao segundo um fraco. No entanto, para o fim, suavizou‑se um bocadinho e melhorou muito a minha disposição ao pedir a Lily que preparasse limonada para todos, como nos dias da sua juventude quando Samuel dava todas as noites um copo ao pai e ao irmão por razões de saúde.
‑ Sabe, Mr. Stewart ‑ disse‑me Mistress Anne ‑, o meu pai e o meu irmão sofriam de uns terríveis ataques de febre e tonturas. Para ser completamente franca consigo, às vezes receio que os meus filhos possam ter herdado esta propensão, embora, até agora, tenhamos tido muita sorte. Respondendo às perguntas que lhe fiz, disse‑me que nunca tinha pedido a Lily a receita da limonada, mas que esta devia conter algumas das plantas que Samuel cultivava no seu jardim.
‑ Todos nós beneficiámos imenso da presença dele. Embora ele tenha desaparecido sem deixar rasto há três anos. Arrepio‑me só de pensar no destino do pobre homenzinho. Verdade que me arrepio. Nesta altura, os cães já o devem ter devorado até ao último osso.
Quando Lily entrou na sala com os copos e um jarro de limonada, Anne pediu‑lhe que nos desse a receita. Consistia em sumo de limão, mel, folhas de menta e um pó feito de várias outras plantas. Quais exactamente, não sabia dizer. Explicou‑nos que só Samuel as conhecia, embora Morri tivesse aparecido com uma receita que era quase tão boa.
Mas naquele momento eu já tinha compreendido que as plantas eram irrelevantes. Isto não me teria ocorrido se, durante a minha infância, Meia‑Noite e eu não tivéssemos lido juntos dúzias de vezes o relato de Estrabão da vitória do rei Mitridates de Ponto sobre os Romanos.
O que era relevante era o mel.
No dia seguinte, interroguei Crow e Lily com mais pormenor. Ambos se mostraram reticentes em falar comigo, mas, através da acumulação de pequenos pormenores, fui capaz de trazer à superfície o tesouro sinistro de que andava à procura.
Crow disse‑me que os ataques do Grande Patrão Henry tinham começado antes da vinda de Meia‑Noite para River Bend, mas também deu como data dela 1809, o que ‑ por aquilo que Morri me tinha contado ‑ eu sabia que era uma mentira. Confirmou‑me também que só Mistress Holly e o Patrão é que tinham as chaves do quarto onde o corpo fora encontrado.
Interroguei Crow à porta do seu quartinho, logo ao lado do estúdio. Para mudar de assunto, ele mostrou‑me algumas das suas quinquilharias, incluindo dois moldes que ele tinha feito comprimindo conchas de vieiras em barro do leito do rio. Também me contou que antigamente fizera muitos outros, alguns dos quais tinham sido cozidos num forno pelo irmão mais novo, recentemente falecido, que tinha sido ferreiro na plantação Limerick. E não tinham sido só conchas ‑ também tinha feito moldes de moedas e das flores de Samuel.
Mais tarde, Lily contou‑me que, quando o Grande Patrão Henry estava com um daqueles ataques, era como se estivesse encharcado até aos olhos. O Pequeno Patrão Henry tinha sido igualzinho. Também me garantiu que os conhecimentos médicos e os cuidados de Samuel tinham sempre conseguido restaurar a saúde do Grande Patrão e do Pequeno Patrão. Sobressaltou‑se quando lhe perguntei se a limonada que ela fazia durante os ataques deles tinha alguma diferença das que fazia todos os dias. Negou que houvesse qualquer diferença.
Eu sabia que também esconderia a verdade se estivesse na posição dela. Para aliviar os seus receios, disse‑lhe que tinha a certeza absoluta de que ela nunca teria feito nada de mau a nenhum dos patrões. Depois foi a minha vez de mentir. Num tom de voz confessional, disse‑lhe que uma das minhas filhas que estava em Inglaterra também sofria dos mesmos ataques. Expliquei‑lhe que a única coisa que queria era saber o segredo da receita para poder aliviar o sofrimento da minha menina.
Ao pensar nas minhas filhas na Londres longínqua, foi muito fácil deixar que os meus olhos se enchessem de lágrimas. Comovida, Lily contou‑me muito baixinho que, quando o Patrão se estava a sentir um pouco maldisposto, Meia‑Noite pedia‑lhe às vezes que ela usasse aquilo a que chamou o mel que cura ‑ uma variedade escura e forte que ele extraía dos favos de um enxame especial de Porters Woods. Só ele é que conhecia a sua localização, embora tivesse passado o segredo a Morri. Lily asseverou‑me que Morri me daria um jarro dele para a minha filha antes de eu deixar River Bend.
Dei‑lhe um beijo pela sua bondade e vi, de relance, que ela estava a limpar a face mal eu saí a porta.
Foi assim que descobri como é que Meia‑Noite provocava os ataques. Quanto aos seus motivos, não me parecia que um escravo precisasse de uma razão especial para dar mel maluco ao patrão. No entanto, Morri tinha‑me dado uma quando me disse que o pai tinha ganhado para ela o direito de ler, assim como os jardins para ele e para os outros escravos, ao curar o Grande Patrão Henry do pior dos seus ataques e ameaçando‑o depois que nunca mais o voltaria a ajudar. Provavelmente, o Pequeno Patrão Henry tinha‑lhe feito outras concessões pela mesma razão.
Lily tinha julgado sempre que os ataques pioravam por si e que o mel que curava era a única coisa que se interpunha entre o patrão e a morte. Não tinha nenhum motivo para duvidar de Meia‑Noite, cujos talentos de curandeiro eram muito afamados. Ele dizia‑lhe quando é que devia começar a usá‑lo e quando é que devia parar.
Claro que era possível que o primeiro ataque tivesse sido verdadeiro e que tivesse dado a Meia‑Noite a ideia para o seu ardil. Em qualquer dos casos, mal ele vira como era fácil produzir uma doença grave e depois curá‑la retirando a causa, compreendera a utilidade do seu estratagema. Tinha plantado os rododendros para ter acesso ao mel maluco feito com o seu pólen.
Na verdade, era uma estratégia brilhante. Provavelmente, tinha‑a considerado uma desgraça, mas necessária. E sancionada pela História através da vitória do rei Mitridates.
Também devia ter sido uma forma de recordar o poder que o mel tinha na cultura boximane.
Durante a minha primeira conversa com Morri, ela tinha‑me dito que o Grande Patrão Henry tinha exercido os seus direitos com algumas das raparigas escravas no mês anterior a ter sido vítima de um ataque terrível. Uma chispa repentina nos olhos dela ‑ que ela tentou esconder de mim, olhando para o chão ‑ levou‑me a crer que ela tinha sido uma das vítimas dele. Mesmo que ela tivesse guardado segredo, o pai teria provavelmente adivinhado por qualquer mudança subtil no porte dela.
Isto era uma motivação suficiente para Meia‑Noite cometer um homicídio, na minha opinião, tal como terem‑lhe cortado os tendões dos calcanhares. Todavia, eu não acreditava que ele tivesse cometido qualquer dos crimes. Pois se ele tivesse querido acabar com a vida de qualquer dos patrões, bastava‑lhe ter aumentado a dose de mel ou acrescentar um veneno mais potente à limonada de Lily.
Quando mencionei a Lily e a Crow a possibilidade de Mistress Holly ter cometido os assassínios, ambos disseram que era impossível. Garantiram‑me que ela se acobardava à frente do marido como um cão espancado. Lily também me disse que Mistress Holly tinha gostado tanto do inútil do filho que teria dado a vida por ele sem um momento de hesitação.
Parecia‑me possível que três pessoas tivessem estado envolvidas nos assassínios: Meia‑Noite, ao causar um dos ataques com o mel maluco, e uma ou duas outras pessoas que espetaram as facas no Grande e no Pequeno Patrão Henry.
Se, no primeiro caso, o perpetrador tivesse sido Mistress Holly, então o marido não teria gritado quando ela entrou no quarto. Embora, o mais certo era o assassino tê‑lo esfaqueado quando ele estava no máximo do ataque, quando estava a delirar e, por isso, não poderia ter gritado o nome do assassino, fosse ele ou ela quem fosse.
A não ser que ele já estivesse morto antes de a faca ter sido usada e esta só tivesse sido utilizada para desviar as suspeitas de um envenenamento. Isso parecia‑me provável, só que Crow me dissera que grande parte do sangue se tinha ensopado nas camisas das vítimas. Se eles estivessem mortos nem que fosse há meia hora, não creio que isso pudesse ter acontecido.
Talvez o segundo homicídio tivesse sido obra de Mistress Anne, que me parecia uma senhora cheia de esperanças frustradas e um grande desejo de vingança, carregando toda a raiva que a mãe nunca se atrevera a expressar.
Antes destas descobertas, eu tinha poucas razões para procurar falar com Mr. Johnson, mas agora fui ter com ele aos campos para ver se ele tinha algumas ideias sobre o assunto.
‑ Não tenho nada para lhe dizer, senhor ‑ foi tudo o que ele me quis dizer sobre os homicídios.
Na forte compressão dos lábios, vi que ele teria gostado de me chicotear por o interrogar sobre um assunto tão delicado. O óbvio ainda não me tinha ocorrido: que ele se considerasse parcialmente responsável, uma vez que o governo diário da plantação lhe competia.
‑ Acredita que um dos escravos pode ter sido capaz de cometer os crimes? ‑ perguntei‑lhe.
‑ Acredito que nenhum seria incapaz.
‑ E Mistress Holly? Ele encrespou‑se.
‑ O que é que está a insinuar, Mr. Stewart?
‑ Apenas que ela era muito infeliz.
‑ Não consigo perceber em que é que isso lhe possa dizer respeito. Não, não percebo mesmo.
A sua atitude tinha passado a desafiadora e eu percebi imediatamente que tinha feito um inimigo. Pedi desculpa e voltei rapidamente para a Casa Grande.
Da minha janela, vi Morri voltar para casa nessa noite, já tarde, quase ao bater da Meia‑Noite. Enquanto ela dava as boas‑noites muito baixinho a Weaver no caminho de cascalho ao pé da varanda, percebi aquilo que até ali me tinha recusado a admitir: que falar com ela seria inútil. Ela tinha‑me contado tanta coisa no dia anterior, mas agora eu via, na maneira como ela olhava lentamente em roda da plantação, como seria difícil para ela deixar este sítio sem o pai. Especialmente por ser o único lar que tinha conhecido.
Sentado em cima da cama, a ouvir o barulho estridente dos grilos e o piar distante de um mocho, toda a noite parecia estar a dizer‑me: Várias vidas dependem de ti. Podes resolver as coisas se fores devagarinho...
Resolvi que seria melhor para mim ir para casa de Isaac e Luísa durante uns dias.
Isso daria a Morri oportunidade para pensar no seu destino sem que os meus desejos lhe confundissem as emoções. Além disso, iria insistir com Luísa para que voltasse comigo e falasse com Morri. Tinha a certeza que ela teria muito mais hipóteses de convencer a rapariga a abandonar River Bend do que eu tinha tido, que nenhum argumento de que eu me conseguisse lembrar seria tão eloquente como a liberdade da própria Luísa.
Ficar com Luísa e Isaac e ter tempo para pensar naquele ambiente agradável só me fez compreender que não tinha outra escolha a não ser afrontar os desejos de Morri e oferecer a Edward todo o dinheiro que tinha por ela, mesmo que ela não quisesse ser comprada. Se ele se recusasse a vendê‑la, teria de arranjar maneira de a roubar. Iria, sem dúvida nenhuma, precisar de ajuda, mas Luísa já tinha mencionado que ela e Isaac tinham escondido fugitivos e eu tinha a certeza que podia contar com eles.
Fiquei com Isaac e Luísa três dias e meio e, na última manhã, Isaac sugeriu uma maneira de tirar Morri da plantação sem levantar suspeitas para eu poder falar com ela calmamente e vencer a sua oposição.
‑ Aluga‑a ‑ disse‑me ele.
‑ Não percebo.
‑ Os escravos são alugados para fora pelos donos para fazerem todos os tipos de trabalho ‑ como estivadores, costureiras, cozinheiras... Diz a Edward que queres alugar a Morri por uma semana ou duas para ela te ajudar a percorrer as plantações do Low Country. Oferece‑lhe cinquenta dólares por ela e outros cinquenta para usares uma das carruagens dele. Ele vai aceitar. E assim vais ter muito tempo para a convencer e não terás de a obrigar a fazer nada. Podes trazê‑la cá a casa e Luísa falar‑lhe‑á das diferenças entre a escravidão e a liberdade. Haverá sossego e poderemos todos conhecermo‑nos uns aos outros.
Luísa estava de acordo. Até nos atrevemos a considerar que era um plano infalível.
Dezassete Vidas nas Minhas Mãos
O Patrão Edward chamou‑me à sala do chá com um berro desagradável na quinta‑feira, pouco antes do meio‑dia. A voz era tão alta que eu pensei que se calhar ele tinha partido um dos cristais a que eu tinha acabado de limpar o pó. John, que tinha voltado para River Bend nessa manhã, estava com ele.
‑ Morri, tenho uma proposta muito boa para ti ‑ disse‑me o Patrão. ‑ Mr. Stewart gostava de te alugar por uma semana, ou coisa assim, para tu o ajudares a orientar‑se no Low Country. Envolveria algumas viagens. Haveria um salário de cinco dólares para ti. Atrevo‑me a dizer que poderíamos dispensar‑te sem que houvesse grandes problemas por aqui. ‑
Sorriu‑me afectadamente. ‑ O que é que dizes a isso?
Ele estava tão cheio de si que até parecia que tinha vencido as eleições
para a Assembleia Legislativa do Estado. Estava com um ar demasiado
feliz para isto ser bom para mim e eu devia ter percebido que havia um
plano frio como a morte escondido dentro dele.
‑ Nã tenho nenhum desejo de partir, Patrão Edward. Preferia fica, se nã s'importar.
‑ Sabes que eu posso mandar‑te, mas Mr. Stewart e eu preferíamos ambos que concordasses em ir.
‑ Importa‑se que eu diga uma palavra? ‑ perguntou John.
‑ Não, não ‑ replicou o Patrão Edward ‑, faça favor.
‑ Morri ‑ disse ele ‑, asseguro‑te que quero mesmo a tua ajuda. E julgo que és bem capaz de apreciar a aventura. E tanto eu como Edward estamos de acordo que és a pessoa mais qualificada.
‑ Mr. Stwart gostaria de sair contigo no sábado ‑ acrescentou o Patrão. ‑ Mas terias de ir a Comingtee no domingo porque há um jantar que combinámos. Vai ser uma grande festa. Tenho a certeza que gostarás de ir.
Era evidente que era a primeira vez que John ouvia falar da festa. O Patrão Edward explicou‑lhe que algumas famílias dos donos das plantações se iam juntar.
‑ Estamos a contar que vá ‑ acrescentou ele.
‑ Será uma honra.
O Galaró voltou‑se para mim com um olhar severo.
‑ Por isso, Morri, estou a contar contigo para saíres com Mr. Stewart no sábado. Depois, no domingo à tarde, vais a Comingtee connosco e ajudas na cozinha. Na segunda‑feira, voltas a ficar com Mr. Stewart, desta vez durante uma semana, mais ou menos.
‑ Nã tou muito certa.
‑ De que é que não tens a certeza?
‑ Se eu ir com ele.
‑ Não me importo de te dizer que estou muito desapontado contigo, rapariga. Pensava que ias ficar contente com esta oportunidade. Se for preciso, obrigo‑te com o chicote. Gostavas de vinte? Estás a ouvir, minha preta estúpida?
Sentei‑me no quarto esforçando‑me o mais que podia por pensar no que havia de fazer, mas era como se estivesse entalada numa chaminé sem nenhuma luz ‑ não havia maneira de subir nem de descer. Não conseguia pensar numa maneira de fazer com que John não me levasse com ele sem lhe falar na nossa fuga. Como desejava ter o poder de dizer não. Quando conseguisse o direito de dizer essa palavra tão simples no Norte, não sabia se voltaria alguma vez a dizer sim a qualquer coisa.
John veio ter comigo uma hora depois, quando eu estava a passar a ferro no quarto de Lily, por cima da cozinha. Pediu desculpa pela má educação do Patrão Edward e disse que esperava que eu estivesse satisfeita por deixar a plantação durante uma semana.
Agarrando‑me com força a todos os meus anos de raiva, disse‑lhe:
‑ Não sabe nada de mim nem de River Bend. Não passa de um estranho aqui. E anda a meter‑se em tudo a pensar que sabe o que está a fazer. Mas não sabe. Não sabe a trapalhada infernal que está a arranjar só por estar aqui. Ora, eu não vou mudar de ideias; por isso, não tente convencer‑me. Porque mesmo que faça com que eu seja chicoteada, não vou concordar em sair consigo. Não vou andar a passear por esses campos fora consigo ou com qualquer branco. E agora ‑ disse eu, agarrando no ferro e passando‑o por um colarinho ‑ tenho muito trabalho. Por isso, deixe ‑me em paz e aos outros também. Sei que gostava do meu papá e que ele gostava de si, mas ele foi‑se embora há muito tempo. Até é capaz de ter morrido. E eu não sou ele; por isso, deixe‑me em paz. Deixe‑me em paz já! Obriguei‑me a ser o mais má que podia porque ele tinha‑se mostrado muito mais teimoso do que aquilo que eu pensava que ele era. Com apenas três dias e três noites até domingo, não tinha tempo para falar simpaticamente com um branco, fosse ele quem fosse. Tinha dezassete vidas nas minhas mãos.
Como ele não se mexeu, gritei‑lhe como uma doida:
‑ Não entende o que eu lhe estou a dizer? Não o queremos em River
Bend! Eu não o quero cá! Vá‑se embora e arranje outra pessoa para comprar!
Nessa noite, depois do jantar, o Patrão Edward mandou Crow chamar‑me ao escritório, onde me perguntou o que é que eu tinha decidido.
‑ Nã vou a lado nenhum. Tenho muito trabalho aqui em River Bend e é isso que vou continuar a fazê.
‑ E se eu chamasse Mr. Johnson?
‑ Pois então faça‑o, chame‑o.
Saiu da sala a bater com os pés no chão como se quisesse enfiar aquelas botas horrorosas pelo chão dentro. Corri para junto de Lily porque estava assustada.
O que aconteceu a seguir foi que Copper, um dos capatazes negros, entrou de rompante na cozinha, atrás de Mr. Johnson, com olhos assassinos. Lily pôs‑se à minha frente como um escudo, mas Copper atirou‑a contra um armário onde ela guardava as panelas e agarrou‑me pelo pulso. Tentei dar‑lhe um pontapé e Lily também, mas ele agarrou‑me a perna e levantou‑a por cima do ombro dele.
Agora Lily estava a gritar, mas Mr. Johnson deu‑lhe uma bofetada com tanta força que ela caiu no chão com um grito. Com ela caída no chão, ele deu‑lhe dois pontapés na barriga.
‑ Tu não me desafias, porca preta e inútil!
Copper arrastou‑me para o pátio, onde ele e o outro capataz me ataram ao barril dos castigos.
‑ Vais com Mr. Stewart no sábado? ‑ rosnou o Patrão Edward.
‑ Nã vou a lado nenhum com ninguém! ‑ gritei‑lhe.
Naquele momento antes do chicote te rasgar a esperança, pensas que tens força para o desafiar. Pensas que a tua raiva justa é tão dura como uma rocha e que te vai tornar invencível. E pensas que não és o teu corpo. Não, o tu que é importante está bem dentro de ti, onde ninguém pode chegar. Mas o que esqueces é que mesmo a maior muralha de determinação se desfaz em pó quando lhe batem o suficiente. Não, tu estás mesmo ali, à superfície, onde a tua pele está a ser arrancada em tiras que queimam. Não és nada senão a própria dor e odeia‑la mais do que odeias o homem branco que te está a chicotear.
‑ Dê‑lhe vinte para começar, Mr. Johnson ‑ ordenou o Patrão Edward.
Cerrei os dentes. A primeira chicotada cortou o ar. Não doeu muito ‑ só ardeu como a picada de uma vespa. Pensei que conseguia aguentar as vinte sem me molhar toda.
‑ Duas...
Aquela queimou. Soltei um grito.
‑ Três...
Senti a minha raiva desaparecer, o desespero a subir para enfrentar a chicotada seguinte.
‑ Quatro...
Fiz chichi no barril e pelas pernas abaixo. Não consegui controlar as lágrimas. E não conseguia respirar.
‑ Cinco...
O chicote acertou num osso. Imaginei Lily agarrada àquela cruz dela. Pensei em Deus. Implorei‑lhe que me ajudasse. Comecei a recitar um verso de um dos meus Salmos preferidos: ...a armadilha partiu‑se e nós escapámos... a armadilha partiu‑se...
‑ Seis...
‑ Por favor, pare, Patrão Edward ‑ gemi eu. ‑ Por favor, pare!
‑ Sete...
Imaginei que todo o meu corpo se estava a desfazer em bocados ensanguentados.
‑ Po' favo', larg'a Morri ‑ implorou Crow. ‑ Castigme a mim. ‑Oito...
Agora, as lágrimas corriam. Depois gritei por socorro o mais alto que consegui. E gritei aquilo que ele queria ouvir:
‑ Vou com Mr. Stewart!
Mr. Johnson parou, mas o Patrão Edward disse‑lhe para não me ligar e continuar. O que eu não percebi é que ele não estava a castigar‑me por
eu o ter desafiado. Não, senhor, ele tinha uma razão melhor para me magoar a sério e estava a saborear aquilo. ‑ Nove...
Naquela altura eu estava a lutar violentamente contra as cordas e a berrar por Deus, pelo Louva‑a‑deus e pelo Papá. E continuei a gritar por eles, mas não veio ninguém. Nunca se está tão sozinho como quando se está a ser chicoteado. ‑Dez...
Crow voltou a suplicar ao Patrão Edward que o castigasse em vez de mim. Eu sabia que ele se estava a oferecer não só por mim, mas por lealdade para com o meu papá. Mas a voz dele estava muito longe. Depois ouvi‑o gemer. Penso que o Patrão Edward lhe deve ter dado um pontapé na barriga. Eu já não conseguia meter ar suficiente para gritar alto. O que era muito bom porque queria dizer que não ia demorar muito a desmaiar. Só esperava que Copper não me atirasse com água para me acordar.
‑ Onze...
A número onze não caiu. Virando a cabeça, consegui ver Mr. Johnson no chão, a cara enfiada na terra. Ele estava a levantar‑se muito devagarinho.
‑ Alto aí! ‑ gritou o Patrão Edward. ‑ Espere um minuto, Mr. Johnson!
Consegui ouvir barulho de luta e homens a gritar. Quando me voltei outra vez para a frente, vi uma sombra passar à minha frente. Pensei que era a do meu papá.
Devo ter desmaiado mesmo, porque quando acordei estava deitada de cara para baixo na minha cama e Lily estava a espalhar qualquer coisa gorda nas minhas costas.
‑ Vais fica boa, qu'rida ‑ estava ela a dizer.
Voltei‑me para olhar para ela. Tinha o olho esquerdo todo inchado e quase fechado.
‑ De calque maneira nã consigo ver nada do esquerdo. Levou‑me um copo de água aos lábios. Crow também lá estava, de pé aos pés da cama. Com a voz entrecortada de um sentimento de justiça que eu já não lhe ouvia há anos, explicou‑me que Mr. Stewart tinha descido a correr do quarto quando me ouviu gritar e fora direito a Mr. Johnson, dando‑lhe um valente murro que o atirou ao chão ao mesmo tempo que ameaçava que o matava se ele me voltasse a tocar.
‑ Uau, qu'rida ‑ disse Lily ‑, aquelhome estava danado como uma cascavel!
Crow acrescentou que Mr. Johnson tinha querido desafiar Mr. Stewart para um duelo logo naquele instante, mas que o Patrão Edward o tinha acalmado e mandado para casa. Segundo parecia, quando se ia embora, tinha‑me dado mais uma chicotada só por maldade.
‑ E Mr. Stewart?
Lily disse que ele já tinha ido ver‑me, tinha estado ali mesmo, onde ela estava sentada. Tinha querido assegurar‑se que eu ainda estava viva. Já tinha falado com o Patrão Edward e agora devia ter voltado para o quarto.
‑ O que é que o Galaró lhe disse?
‑ Primeiro berrou com ele por ter batido em Mr. Johnson ‑ disse Crow. ‑ Depois beberam uns whiskies e ficou tudo bem.
‑ E ninguém contou nada de nós?
Lily deu‑me uma palmadinha carinhosa na mão.
‑ Agora cala‑te e pára de te enervares, fitcha.
Acordei na sexta‑feira de manhã desejando poder largar a pele das minhas costas como uma cobra e deixá‑la gritar a outra pessoa. Uma coisa era certa: eu tinha de arranjar maneira de me escapar de ir com John no dia seguinte e de o levar a Comingtee no domingo. Se não conseguisse, Weaver e os outros iam ter de fugir sem mim. E diabos me levassem se eu tencionava ficar para trás no Egipto com o Faraó. Nem pensar, não senhor.
Uma hora depois, eu já estava cheia de febre e a enrolar as palavras como se a minha língua estivesse cheia de cola. Crow achou que devia ser das chicotadas. Lily levou‑me para o quarto dela para tratar de mim.
O Patrão Edward tinha voltado para Cordesville com a família. Ia voltar às nove da manhã de sábado e tinha dito a Mr. Johnson que se eu não tivesse já saído com Mr. Stewart quando ele chegasse, levaria mais trinta vergastadas. Lily correu a buscar John, que estava sentado ao pé do rio a desenhar os escravos nos campos de arroz ali perto. Ela disse que tinha a obrigação de lhe dizer como é que eu estava, visto que ele tinha batido em Mr. Johnson por minha causa. Ele veio ver‑me, todo macambúzio, e sentou‑se ao lado da minha cama, com os braços cruzados no peito, sem dizer palavra. Eu estava demasiado fraca para lhe dizer qualquer coisa maldosa. A verdade é que eu gostava que ele estivesse a olhar para mim com aqueles seus olhos claros e tristes. Acho que toda a gente gosta de sentir pena de si próprio de vez em quando.
Ele perguntou a Lily se podia ficar uns minutos sozinho comigo; por isso, ela voltou para as suas limpezas. Ele pegou‑me no pulso e sentiu‑o a pulsar violentamente; depois molhou uma toalha e pô‑la em cima da minha testa. Disse que o meu papá tinha feito isso com ele uma vez, há quase vinte e cinco anos, antes de ter obrigado a Hiena a deixá‑lo em paz. Disse que nunca se perdoaria por ter feito com que me chicoteassem.
‑ Tem de deixar de estar sempre a pedir desculpa ‑ disse‑lhe eu sorrindo.
‑ De qualquer maneira, eu nunca quereria forçar‑te a vir comigo.
‑ Então, vai‑se embora?
‑ Não sei que fazer. Suponho que vou ficar até domingo, visto que tenho que ir àquele jantar em Comingtee com Edward. Rezo para que tenhas mudado de ideias até lá. Isto não é vida para ti. Deves saber isso.
‑ Eu sei, mas não posso ir.
‑ Acho que nunca compreenderei isso. Morri, sei que é uma decisão difícil e estou disposto a esperar por ti o tempo que for preciso. Posso voltar para Charleston e esperar lá durante alguns dias e depois voltar cá. Vou continuar a voltar. Não vês que não te posso deixar aqui?
Calculei que John não tardaria a ouvir falar na nossa fuga. Quer nós conseguíssemos escapar quer não, ficaria liberto da sua necessidade de me ajudar.
‑ Então espere uma semana por mim ‑ disse‑lhe eu. ‑ Se eu não lhe mandar recado, parta sem mim. Sei que isto não faz sentido, mas faça o que eu lhe peço.
‑ Muito bem, farei como tu dizes... por agora. Mas o que é que vais fazer com Edward? De certeza que ele vai ficar furioso por não ires comigo.
‑ Não se preocupe. Eu tratarei disso ‑ disse eu com grande convicção, mas a verdade é que não sabia o que fazer para ele me largar.
Não queria que John pensasse nisso e, por isso, perguntei‑lhe:
‑ E o John? Vai voltar para Nova Iorque quando já não tiver nada que fazer aqui?
‑ Sim. O teu pai é capaz de estar no Norte, como tu dizes. Tem de haver uma maneira de o encontrar. E, Morri, quando eu o encontrar, se ele ainda for escravo nalgum sítio, vou libertá‑lo. Depois, se tiveres decidido ficar aqui, voltaremos os dois para te buscar. Prometo‑te. Só peço que se tiveres notícias dele, me escrevas. Vou deixar‑te a morada. E há outra coisa que te queria pedir, embora não tenha o direito de o fazer.
‑ O quê?
Foi então que ele me perguntou se me podia beijar. Nunca tinha sido beijada na cara por um homem branco. Pareceu‑me perigoso, mas também delicado... como uma coisa que as crianças faziam quando ninguém estava a olhar.
No sábado de manhã, as coisas começaram logo a correr mal. Weaver veio acordar‑me ao nascer do Sol. Disse que Backbend, Lucy e Hopper‑Anne tinham mudado de ideias em relação a acompanhar‑nos. Diziam que eu ter apanhado com o chicote e depois ter ficado com febre era sinal que era má altura. Sweet‑Pea e Saul também estavam quase a desistir. Para impedir que o Patrão Edward mandasse pessoas para a Casa do Açúcar, estavam a falar em deixar escapar qualquer informação para Mr. Johnson antes que as coisas fossem demasiado longe.
Se eu não me levantasse e falasse com eles todos, disse Weaver, então iríamos ter de desistir de tudo. Mas, quando me levantei, o mundo começou a rodopiar e eu quase caí. Por isso, disse a Weaver que me encontraria com ele durante a pausa do meio‑dia e que falaria com Backbend, Saul e Sweet‑Pea. Era um perigo porque Mr. Johnson iria achar esquisito que eu fosse aos campos, mas não podia ser evitado.
Pedi a Lily que me fizesse um chá de camomila muito forte, mas isso não ajudou muito com as dores que sentia em todo o corpo. Por volta das onze horas, o Patrão Edward chegou a casa e ficou doido de fúria quando me viu lá. Entrou no meu quarto e arrancou‑me o cobertor, dizendo que, se eu não estivesse vestida e fora de River Bend dali a meia hora, me mandava chicotear outra vez. Ao sair, cuspiu no chão e disse que nunca tinha conhecido uma preta tão teimosa como eu.
Eu não consegui perceber por que é que ele estava a ser mais cruel do que o costume senão mais tarde e, nessa altura, percebi que ele gostava que a sua vingança fosse servida antes do prato principal.
Lily correu outra vez a buscar John. Eu esperava que ele conseguisse convencer o Patrão Edward a não ser bruto comigo. Se eu saísse com John agora, ficaria presa em River Bend para sempre. Provavelmente, ninguém mais iria fugir, porque se Weaver estava a pensar em fracasso, as coisas estavam mesmo a desmoronar‑se.
Quando John entrou no meu quarto, pedi a Lily que nos deixasse sozinhos outra vez e pedi‑lhe que fechasse a porta. Rezando ao Louva‑a‑deus para estar a fazer o que estava certo, contei‑lhe muito baixinho os nossos planos para fugir. E disse‑lhe que ele tinha de arranjar maneira de eu não sair de River Bend naquele dia porque tinha de convencer muita gente.
Contar isto a um branco foi a coisa mais difícil que eu já fizera. Estava à espera que ele me denunciasse ao Patrão Edward. Até lhe disse que compreenderia, sendo ele da mesma raça e tudo, mas que, por amor à memória do meu Papá, esperava que ele não o fizesse.
‑ Morri ‑ disse ele, soltando um grande suspiro ‑, se eu não contei a ninguém do mel maluco que o teu pai dava ao Grande Patrão Henry, por que é que havia de dizer alguma coisa sobre a vossa fuga?
O coração quase me saltou do peito quando ele disse aquilo. Fi‑lo repetir porque não tinha a certeza de ter ouvido bem. Então ele explicou‑me como é que tinha descoberto tudo. Eu fui muito rápida a dizer que o Papá não tinha cometido os crimes.
‑ Ele contou‑me do mel que curava, lá isso contou, para o caso de eu alguma vez precisar de o usar para me defender. Mas também jurou que não o tinha feito.
John disse que também tinha calculado isso mesmo. Apostava em Mistress Holly para o primeiro assassinato e em Mistress Anne para o segundo.
‑ Então vai arranjar maneira de eu ficar em River Bend? ‑ perguntei.
‑ Vou falar com Edward e invento uma razão qualquer. Ora bem, que armas é que têm?
Contei‑lhe das pistolas, mosquetes e espadas.
‑ Sabem usá‑las?
‑ Weaver sabe. Ele treinou alguns dos homens. Também me mostrou.
‑ E pólvora?
‑ Temos muita ‑ garanti‑lhe.
‑ Onde é que têm tudo guardado?
‑ Por baixo da varanda. Excepto uma pistola que tenho aqui comigo.
‑ Aqui? Onde?
‑ Debaixo da cama.
‑ Isso é uma loucura! Se a encontrarem aqui, és enforcada. Dá‑ma. Limitei‑me a olhar para ele. Estendeu a mão.
‑ Dá‑ma. Direi que é minha. Não te preocupes, deixo‑a no meu quarto, debaixo da cama. Podes ir buscá‑la antes de fugires.
Eu continuava a não ter a certeza.
‑ Está muito mais segura comigo. Não te trairei. Tudo o que fiz de valioso na minha vida me trouxe até ti. Juro pela memória do teu pai. Agora dá‑me a arma!
Rastejei para baixo da cama e entreguei‑lha. Com aquele gesto eu sabia que estava a colocar a minha vida nas mãos dele. E não gostava nada.
Ao vê‑lo apertar a arma na mão, soube que também tinha de lhe dar a carta do meu pai. Afinal, era dele. Por isso, depois de ele sair do meu quarto, esgueirei‑me de casa com uma pá e dirigi‑me para o esconderijo em Porter's Woods. Ao escavar ali, com as minhas mãos, comecei a chorar. Desenterrar coisas é um bocadinho parecido com lembrar, penso eu. Não lha dei imediatamente porque sabia que, depois disso, ficaríamos sempre ligados por aquilo que o meu pai lhe tivesse pedido. Não tinha a certeza que fosse uma coisa boa e só arranjei coragem para lha dar nessa noite. Depois de ele a ler, não conseguiu falar. Sentou‑se com a cabeça entre as mãos. Quando ma entregou, li‑a de uma ponta à outra. Devia ter ficado satisfeita por o Papá confiar tanto nele, mas a maneira como o meu pai escreveu fez‑me gelar. Porque agora sabia que ele não estava no Norte. Nunca mais o veria. Era órfã. E eu não queria outro pai, nem mesmo um que o meu papá me tivesse escolhido.
Sentámo‑nos ao lado um do outro e ele tocou com a comprida pena branca na testa de ambos. Depois pôs o braço à volta dos meus ombros. Senti nele um poder silencioso que só sentira antes no meu pai. Quase consegui ouvir a barriga dele a batucar. Mas aquilo só me fez sentir mais infeliz, porque ele não era o meu papá.
Meu querido John,
Vimos‑te de longe e estamos a morrer de fome.
Se estás a ler esta carta, então é porque chegaste finalmente a River Bend. Mas eu já não posso saudar‑te em pessoa. Disso tenho muita, muita pena. Como seria bom passear de mão dada contigo ao longo do Christmas Creek. Eu agora tropeço como um boximane velho, com um coxearzinho; por isso, terias de esperar por min para eu te apanhar de quando em quando. Mas eu não creio que tu te importasses muito. Até te faria bem andar mais devagar do que costumas fazer! Tenta não ficar triste por não nos encontrarmos. Aquilo que resta de mim ainda está em ti. E aquilo que foi unido há tanto tempo no Porto, em verdade, não pode nunca ser separado. Tu sabes isso ou não estarias aqui. Obrigado por vires, A rapariga que te entregou a carta é a minha filha, Morri. Nós chamamos ‑lhe assim, mas o seu nome verdadeiro é Memória. Ela é aquilo que eu fiz do meu passado, E também ela transporta dentro de si aquilo que resta de mim. Sei que vais ser tão bondoso para ela como terias sido para mim.
Tenho feito o que posso para expulsar o mal que vive em River Bend para o mais longe de que sou capaz. Como diria Benjamim, tentei restaurar alguma da prata que ainda permanece nesta aldeia de escuridão. Agora consigo ver a natureza deste mal, embora me tenha escapado durante anos. É um esquecimento de todas as histórias do mundo. Mas nós lembramo‑nos das histórias dos boximanes, tu e eu, e iremos triunfar no fim.
Lembras‑te como as Irmãs Oliveira nos diziam para nos rodearmos de coisas bonitas? Vais ver como eu tentei seguir o conselho delas com os jardins que plantei, especialmente se fores suficientemente afortunado para passeares por eles depois de uma tempestade. A chuva daqui lembra‑me o sítio onde nasci e isso tem sido uma coisa boa. Embora eu tivesse gostado de andar muitas léguas e de caçar.
Tens de fazer de gemsbok aqui. O que vais ver vai fazer com que te queiras tornar um leão escocês, mas isso só te iria trazer mais problemas. Eles não compreendem nada ‑ nada do Leão, da Avestruz, da Girafa e da Zebra em River Bend. Eles não compreendem nada da Tora. O Tempo da Hiena é eterno aqui. Por isso, peço‑te que não fiques demasiado tempo. Nós os dois sabemos como a Hiena te tentou enganar no passado. Ela tentará outra vez. Agarra‑te com força à pena branca que te dei quando os teus espíritos estiverem a cair. Ela vai proteger‑te. Não tenhas medo ‑ eu consigo ver o Louva‑a‑deus ainda a andar entre os teus dedos.
Vais encontrar muitos pássaros para imitar no Low Country, muitos deles lindos ‑ lindos, e eles também te vão ajudar. Vão fazer‑te lembrar de tudo o que está dentro de ti e que não pode ser danificado por este lugar.
Há muitos anos contei‑te como o Louva‑a‑deus roubou mel à Avestruz e como eu roubaria um tesouro para ti se alguma vez precisasses. Não menti. Pois embora eu não possa estar contigo, esse tesouro está à tua frente. Entrego Morri aos teus cuidados. Ides precisar um do outro para se moverem em segurança no futuro. Leva‑a deste lugar e dá‑lhe um lar. Cria‑a como se fosse tua filha. Não consigo pensar em ninguém que fosse um pai melhor e sei que ela te vai amar. Se ainda és o John que eu conheci ‑ como deves ser ‑, então sei que gostarás dela no momento em que a vires.
Vou dizer‑te um segredo: Nunca soubeste, mas és o maior caçador que conheci. Estares aqui é prova disso. Talvez não sejas o mais corajoso ou o mais forte, embora essas qualidades estejam mais presentes em ti do que julgas. Ou mesmo o mais rápido, embora corresses como o vento quando eras uma coisa pequenina e provavelmente ainda corras. Não, os maiores caçadores são os mais leais e mais dedicados. Por isso não vais falhar. Eu sei isto.
Dá os meus mais afectuosos cumprimentos a Benjamim. Diz‑lhe que tenho estado a trabalhar com afinco e que não há sítio nenhum que precise mais da nossa alquimia judaica do que a América. Se eu tiver conseguido restaurar um bocadinho do que foi quebrado e esquecido, então talvez não seja tão mau que eu tenha sido enviado para cá. Dá um beijo meu às Irmãs Oliveira e diz‑lhes que elas me ajudaram a fazer aquilo que eu precisava de fazer. Abraça a tua mãe por mim e diz‑lhe que eu a recordo só com carinho. Espero que ela esteja bem. Abraça também o teu querido pai por mim e diz‑lhe que está perdoado. Espero que ele me tenha perdoado o mal que eu lhe fiz.
John, por favor, perdoa‑me não ter estado contigo enquanto crescias até à idade adulta. Neste momento, isso é o meu remorso mais doloroso. Fica sabendo que estou eternamente orgulhoso de ti.
Midnight
Meia‑Noite assinou o seu nome, em inglês, com um focinho no M, orelhas compridas no d e uma cauda farfalhuda no t.
Fiquei comovido com a fé que ele tinha em mim de uma maneira que ultrapassava as palavras, mas também fiquei completamente abalado pela sensação de que ele tinha conhecimento de que ia morrer. Essa possibilidade reduziu todos os meus outros pensamentos a cinzas e deixou‑me perante uma paisagem desolada.
Como a minha vida teria sido muito melhor e muito mais digna se eu o tivesse tido ao pé de mim, pensei eu. Como todos nós poderíamos ter sido muito mais se nada disto tivesse acontecido.
Haveria abominação maior do que escravizar um homem que conseguia escrever uma carta como esta a um velho amigo que não via há quase duas décadas? Era um crime contra tudo o que os homens e as mulheres deviam ser ‑ e tudo aquilo em que nós imaginávamos que um dia nos poderíamos tornar.
Depois de ter lido a carta, Morri deve ter chegado à mesma conclusão sobre o falecimento do pai. Quando começou a bater os dentes, supliquei‑lhe que se sentasse a meu lado. Passei o braço por cima dos ombros dela e apertei‑a com força, tal como Meia‑Noite fizera tantas vezes comigo.
Eu sabia que, onde quer que ele estivesse, estava a contar comigo e saber isso dava‑me forças.
Depois de Morri me ter deixado, sentei‑me a pensar se teria de matar alguém para a libertar. Todavia, quando agarrei na pistola dela para ver como é que a morte se encaixava na minha mão, reparei que o ouvido ‑ que conduz a faísca da caçoleta para o cano ‑ tinha sido soldado. Espetei‑o com uma agulha de coser sem resultado. Esta arma não servia para nada. Pior ainda, podia ter ferido quem a tentasse disparar. Estava quase a ir à cozinha pedir uma pua a Lily para abrir o buraco à força, quando me apercebi daquilo que era óbvio: o buraco tinha sido selado propositadamente. Alguém envolvido na conspiração de Morri, se calhar quem lhe vendera as armas, tinha querido frustrar os planos de fuga dela.
Ela tinha sido traída.
Escondendo a arma debaixo do meu caderno de desenho, saí para o corredor e depois desci as escadas a correr. O Patrão Edward, ouvindo os meus passos, chamou‑me do escritório.
Disse‑lhe que não lhe podia fazer companhia naquele momento.
‑ Quero desenhar mais uma árvore nesta luz maravilhosa ‑ expliquei‑lhe.
Apressei‑me a sair de casa e a dar a volta sorrateiramente até à cozinha. Morri estava no andar de cima a passar a ferro. Quando lhe mostrei a prova da traição, deitou‑me um olhar de agonia desesperada. Expliquei‑lhe que precisava de ver as outras armas. Combinámos que ela se iria meter no esconderijo e que, depois do jantar, teria pelo menos algumas delas no quarto para eu as poder examinar. Era um risco, mas tinha de ser corrido.
Era evidente para ambos que a coragem dela estava a fraquejar. No entanto, eu sentia‑me mais forte do que me tinha sentido nas últimas semanas, devido, penso eu, à confiança que ela tinha em mim.
Já tinha começado a pensar noutro plano e disse‑lhe para não se preocupar demasiado com os ouvidos soldados, que não iríamos precisar de disparar armas nenhumas para chegarmos a Petries Landing. Disse‑lhe que precisava de mais tempo para o delinear e que lhe revelaria tudo mais tarde, nessa noite.
Ao jantar, forcei‑me a conversar de ninharias com Edward. Depois de termos tomado o nosso Porto, fui lá para fora, dizendo a Crow que precisava de apanhar ar. Estava uma noite quente e húmida. Ele era da opinião de que se aproximava uma tempestade.
Esgueirando‑me para o quarto de Morri, bati ao de leve na porta e chamei‑a. Encontrei‑a com dois mosquetes e uma segunda pistola. Estava a chorar; já as tinha verificado e estavam igualmente estragadas.
‑ Não sei como é que Weaver não viu isto ‑ gemeu ela.
‑ Foi à noite que ele mostrou aos homens como carregar e disparar?
‑ Sim.
‑ Seria fácil não dar por isso à luz de uma vela. Presumo que ele nunca disparou nenhuma delas.
‑ Não, nunca.
‑ Ter‑me‑ia acontecido o mesmo. A culpa não é dele.
Então tive a pior revelação possível: O Patrão Edward e os donos de Comingtee já sabiam do plano de Morri. Agora isso parecia claro. Tinham organizado a festa precisamente por essa razão. As patrulhas iriam reunir‑se ao princípio da noite de domingo em Comingtee e avançar para
River Bend para encurralar os escravos. Mesmo agora, estávamos a representar numa peça da autoria deles. Edward tinha‑me convidado para ir a Comingtee para poder divertir‑me com os cães a irem atrás dos foragidos.
‑ Isso explica as coisas maldosas que ele tem andado a fazer ultimamente ‑ disse Morri quando lhe expliquei o meu raciocínio.
‑ Meu Deus, acho que estamos perdidos. E não há uma bendita coisa que a gente possa fazer. ‑ Afundou‑se na cadeira. ‑ Não sei como é que isto pode ter acontecido. Coitado do Weaver. Embora talvez... talvez ainda haja tempo para um de nós fugir ‑ disse ela muito excitada.
‑ É capaz de o levar consigo para um sítio, qualquer sítio... para os seus amigos ao pé de Stromboli?
‑ Não creio que isso vá ser necessário.
Falei com confiança, porque tinha lido livros de história militar suficientes para saber que a surpresa era a arma mais poderosa de todas. O importante era que Edward não sabia que nós sabíamos que ele tinha descoberto os planos de fuga dos escravos. Ele ainda estava à espera que eles fugissem no dia seguinte.
‑ Temos de partir agora ‑ disse eu a Morri.
‑ Agora? Não podemos fazer isso... é demasiado cedo.
‑ Não, o que não podemos fazer é esperar que eles nos apanhem. Disse‑lhe então para avisar Weaver e os outros para se prepararem.
Como ela tinha planeado originariamente, primeiro prendíamos Mr. Johnson, o Patrão Edward e os dois capatazes negros e fechávamo‑los num dos celeiros. Eu achava que tinha pensado em tudo o que era essencial até ela me dizer:
‑ Martha, a mulher de Weaver, está em Comingtee com os filhos. Eles estão a contar que a gente parta amanhã. Não podemos ir sem eles.
Como o sino do recolher já tinha soado, Weaver estava na sua casa térrea. Morri e eu encontrámo‑lo lá e ela pediu‑lhe para vir falar com ele cá fora. Ele recebeu as más notícias estoicamente e voltou para dentro para pedir ajuda a Saul e Sweet‑Pea. Infelizmente, recusaram. Mesmo assim, Weaver, Morri e eu concordámos num plano. íamos a casa de Mr. Johnson e fazíamo‑lo prisioneiro. Usando as chaves dele, íamos buscar corda ao Primeiro Celeiro ou à Casa Grande e amarrávamo‑lo, depois íamos prender os dois capatazes. Por último, dominávamos o Patrão Edward e levávamo‑lo também para o celeiro. Depois, Weaver corria para Comingtee para trazer a mulher e os filhos.
Morri foi‑nos buscar duas espadas debaixo da varanda. Enquanto ela ficava à espera à porta da cozinha, eu e Weaver avançámos cautelosamente pelo caminho que levava à casa do superintendente, que ficava entre a Casa Grande e a ponte de madeira sobre o Cooper River que levava a Comingtee. A porta estava fechada à chave, mas uma janela lateral estava aberta. Rangeu quando a levantámos. Com os corações a bater furiosamente, Weaver e eu esperámos pelo barulho de Johnson a levantar‑se da cama. Não ouvindo nada, entrei trepando por cima do peitoril. Weaver segurava uma vela acesa, mas uma lamparina acesa lá dentro já espalhava uma luz amarela pela sala vazia. Uma escada levava à porta aberta do quarto. Weaver juntou‑se a mim.
Mr. Johnson tinha de ter ouvido o rangido dos nossos passos nas tábuas nuas do soalho. Agarrei na espada com as duas mãos com toda a força. Quando ele aparecesse nas escadas, corria para ele e atirava‑lhe com a lâmina da espada às pernas. Provavelmente, ele dispararia contra mim, mas Weaver seria capaz de o dominar antes que ele pudesse carregar uma segunda bala.
Eu estava a segurar a espada com tanta força que os pulsos me estavam a doer. Apesar do calor, sentia‑me gelado até aos ossos. De certeza que já tinha passado um minuto sem um único som.
De espada levantada, subi as escadas e espreitei pela porta. A cama estava vazia. Estava demasiado escuro para dizer com toda a certeza se Johnson estava à espera num canto para me meter uma bala na cabeça. Brandi a espada à minha frente e saltei para dentro do quarto.
Não estava lá ninguém.
Weaver teve então o bom senso de ir à janela. A cerca de duzentos passos de distância estava a ponte para Comingtee. À luz do luar, conseguíamos ver dois homens lá sentados. Um parecia ser Johnson. Ambos tinham mosquetes.
Era evidente que Johnson e o companheiro estavam de guarda entre as duas plantações. Obviamente, o Patrão Edward tinha sido informado por quem quer que tivesse traído Morri que a família de Weaver estava a contar juntar‑se a nós. Nesta última noite antes da nossa partida marcada, eles tencionavam, sem a menor dúvida, impedir qualquer comunicação entre as duas plantações.
Quando corríamos pelas escadas abaixo, eu estava convencido que as nossas esperanças dependiam do Patrão Edward estar demasiado confiante como costumava aparentar sempre.
Pois se houvesse mais de dois homens escondidos na plantação à espera de saltar sobre nós, então estava mesmo tudo perdido.
Era necessário mudar de estratégia. Primeiro, íamos ter de subjugar os dois capatazes negros e ser muito rápidos; se eles conseguissem gritar, alertariam Johnson e o amigo na ponte para a sua difícil situação. Precisávamos de estar em vantagem numérica. Weaver ia ter de arriscar acordar os escravos na cabana ao lado: Blackbend, Parker e Randolph. Morri correu para a Casa Grande para ir buscar Crow. Voltaram juntos com uma braçada de corda. Weaver e Crow foram então à segunda cabana buscar os outros homens. Morri e eu continuámos cá fora. Como a sua determinação parecesse estar a enfraquecer, garanti‑lhe que ainda tínhamos a surpresa do nosso lado e que isso nos levaria à vitória. Ela disse que esperava que a forca fosse uma maneira rápida de morrer. Tinham dado aos dois capatazes negros o privilégio de dormirem sozinhos em metade da casa térrea. Weaver foi o primeiro a entrar. Ele, Parker e eu atirámo‑nos a Copper, o mais forte dos dois, enquanto Backbend, Randolph e Crow se lançavam sobre Nighthawk. É difícil subjugar um homem assustado que sabe que é desprezado e eu apanhei um valente pontapé no queixo de Copper. Parker teve de o esmurrar duas vezes na barriga para lhe fazer perder o ímpeto de lutar.
Quando já lhe tínhamos atado as mãos enormes atrás das costas, ele lutou contra as cordas com uma tal ferocidade que receei que nos fosse capaz de matar se se conseguisse soltar. Enfiámos‑lhe à força uma toalha dentro da boca que depois lhe atámos à volta da cabeça com um barbante. Nighthawk desistiu muito mais depressa e aceitou a mordaça sem lutar. Crow disse‑lhe que não o íamos matar e era evidente que ele confiou totalmente nessa promessa.
Morri tinha ficado de guarda. Não lhe parecia que o Patrão Edward ou Mr. Johnson pudessem ter ouvido a luta. Levámos os dois capatazes para trás do Primeiro Celeiro e deixámo‑los ali, muito bem amarrados um ao outro, de barriga para baixo, com as mãos atadas aos pés.
Wiggie, que dormia no Segundo Celeiro com as suas adoradas carruagens, devia ter sido acordado com o barulho da nossa luta e apareceu à porta, vestindo apenas uma camisa de noite e a esfregar a cara ensonada. Quando lhe contámos os nossos planos, ele disse que era uma loucura e que nos devíamos ir confessar imediatamente ao Patrão Edward, o que levou a que Weaver insistisse em atá‑lo. Wiggie garantiu‑nos que não iria dizer nada, mas não nos podíamos arriscar.
Enquanto Weaver e Parker faziam o seu trabalho, as lágrimas corriam pelas faces do cocheiro. Morri pediu‑lhe desculpa em nosso nome. Deixámo‑lo com os dois capatazes.
Pedi então a Weaver que fosse até ao cais dos barcos e remasse para o outro lado do Cooper River. Dali, ele podia fazer o resto do caminho a pé até Comingtee sem ser visto pelos homens que estavam na ponte.
Weaver garantiu‑me que estaria de volta com a família em menos de duas horas. Morri, Crow e eu dirigimo‑nos então para a Casa Grande para prendermos o Patrão Edward.
Crow tinha‑nos informado que o Patrão ainda devia estar no quarto com Joanne, a cozinheira novinha que viera substituir Marybelle.
‑ Ele está a jogar às escondidas com ela ‑ dissera‑nos ele. Quando irrompemos pelo quarto, encontrámo‑lo de pé, atrás da rapariga. Primeiro, olharam para nós com as bocas abertas de espanto aterrorizado. Depois, Joanne agarrou num cobertor e cobriu‑se.
‑ O que é que significa isto? ‑ berrou Edward.
‑ Vista as calças. Vamos dar um passeio até ao celeiro, onde vai ficar durante algum tempo. Não será molestado.
‑ Mas isto é absurdo! Um homem branco a ajudar escarumbas... Será enforcado.
Quando me viu encolher os ombros, continuou:
‑ Stewart, o senhor está completa e irrevogavelmente louco!
‑ Vista as calças.
Sentia‑me confuso por lhe estar a dar ordens.
‑ Isto é traição!
‑ Sim, pois é, mas mesmo assim vai fazer o que lhe estou a dizer.
‑ Está a trair a sua raça!
‑ A minha raça? ‑ soltei uma gargalhada. ‑ Senhor, é um bocadinho mais complicado do que isso. Está a ver, sou um judeu escocês‑português que foi educado em casa de um ateu julgando que era cristão por nascimento e cujo maior amigo foi um boximane africano.
‑ Mesmo assim, continua a ser um homem branco.
‑ As suas calças, senhor... vista‑as!
Ordenei a Joanne que se vestisse. Petrificada, ela não se mexeu.
‑ Joanne ‑ disse Morri com doçura ‑, nós vamo‑nos embora daqui. Vamos sair de River Bend. Se quiseres vir, és bem‑vinda. Estás a ouvir‑me, rapariga?
‑ Eu ir... eu ir fica com Patrão Edward ‑ gaguejou ela. ‑ Eu fica onde é meu lugar.
‑ Então agarra nesse teu vestido e vem comigo. Não te vamos fazer mal. Anda. Faz o que eu te digo.
Joanne desapareceu com Morri.
‑ Tu também vais ser enforcado, Crow ‑ disse Edward. ‑ Sabes disso, suponho?
‑ Acho que sim, senhor.
‑ Se me apetecer até te corto os tomates ‑ Fechou o punho. ‑ Achas que irias gostar que eu tos tirasse? Vou mandar a Lily prepará‑los como se fossem castanhas. O que é que dizes a isso, preto?
Aguentando as ameaças de Edward durante o tempo todo, Crow atou as mãos do dono com toda a força atrás das costas.
‑ Estás a magoar‑me, preto! ‑ gritou Edward quando Crow apertou o nó.
‑ Abra a boca, Patrão Edward.
Tinha um trapo de limpar as pratas pronto para lho enfiar lá dentro, mas Edward apertou os maxilares com toda a força.
Na cómoda dele, estava uma repulsiva estatueta de cerâmica de uma criança negra a ser mijada por um cão, com a seguinte inscrição: A Estação das Chuvas no Sul. Não me sinto orgulhoso daquilo que fiz a seguir, mas agarrei na estatueta e disse‑lhe:
‑ Se não deixar que Crow o amordace, usarei isto para o convencer. Ouça bem, vou parti‑la de qualquer das maneiras, mas poderá ser no chão ou na sua cabeça.
Se ele não tivesse feito um sorriso de escárnio ao mesmo tempo que me mandava para o inferno, não sei se teria levado a cabo a minha ameaça terrível.
‑ Afasta‑te, Crow. Agora abra a boca, Edward! Ele recusou‑se. Por isso, com todas as minhas forças, bati‑lhe com a estatueta na cabeça. Os bocados saltaram em todas as direcções. Era um barro mais duro do que eu pensara e as pernas de Edward dobraram‑se. O sangue escorria‑lha da têmpora. Eu tinha‑lhe feito um corte muito feio. Fiquei imediatamente envergonhado com o meu acto. Mas não queria deixar transparecer o meu remorso. Ordenei‑lhe que abrisse a boca o mais que pudesse. Gemendo, obedeceu‑me.
‑ Apesar de tudo o que possa estar a pensar ‑ disse‑lhe eu ‑, não será maltratado se me obedecer. Só o vamos trancar no celeiro, mais nada.
Com a chave de Edward, Morri abriu a porta do Primeiro Celeiro. Mal tivemos o Patrão, os dois capatazes negros, Wiggie e Joanne atados de forma a não poderem levantar‑se nem rastejar, fechámo‑los lá dentro.
Weaver apareceu a ofegar. Naquele momento, estávamos todos à porta do celeiro com todos os escravos da plantação. Aqueles que tinham decidido ficar em River Bend estavam demasiado excitados para ficarem à espera nas cabanas.
‑ Não posso atravessar ‑ gemeu Weaver. ‑ Eles tiraram o bote. Explicou‑nos que o barco a remos tinha sido levado para o outro lado do rio.
‑ Por que é que não atravessaste a nado? ‑ perguntei‑lhe. Deixou cair a cabeça e disse‑nos que não sabia nadar.
‑ Alguém sabe? ‑ perguntei.
Quando ninguém respondeu, Weaver disse:
‑ Tenho que fica.
‑ Não, tu vais connosco ‑ declarou Morri.
‑ Nem pensa. Têm de ir todos sem mim.
‑ Vai, sim, Weaver ‑ disse Lily. ‑ Todos sabem qu'tás envolvido. Se ficas p'ra trás, és enforcado.
‑ Nã posso deixa Martha e meus filhos.
Parker sugeriu que fôssemos todos ao mesmo tempo atacar os homens na ponte, mas a mulher, Christmas‑Eve, disse que o mais provável era eles meterem balas em pelo menos dois de nós e ela não queria correr o risco de um deles ser o marido.
‑ Nenhum de nós quer morrer ‑ comentou Morri ‑, mas temos de fazer qualquer coisa e depressa!
Naquele momento pareceu‑me que sempre soubera que, um dia, teria de voltar a entrar na água. Na verdade, até estava espantado por ter levado tanto tempo a acontecer. Uma parte de mim até o queria fazer.
À borda do rio, tirei os sapatos, meias, calças, camisa e colete. Lâminas de luar reflectiam‑se na superfície escura e dura da água. Imaginei que era funda, lamacenta e fria e que os seus braços me iriam receber sofregamente.
Weaver e Morri estavam comigo. Os outros tinham ficado no celeiro.
‑ A corrente costuma ser forte? ‑ perguntei a Morri, entregando‑lhe a minha pena branca.
‑ Pode ser. Mas esta noite... ‑ olhou para a água ‑, esta noite não parece muito má. Diz que sabe nadar bem?
‑ Não nado há vinte e cinco anos. Vamos ver ‑ respondi, sorrindo. Uma onda de medo dominou‑me quando meti o pé na superfície
gelada. O rio estava espesso de resistência quando dei as primeiras braçadas. Depois imaginei Daniel chamando‑me da outra margem: Pára de pensar, raios te partam, e limita‑te a nadar, minha toupeirinha!
E foi o que fiz. A ansiedade mantinha‑me a flutuar e a mover‑me com rapidez. Ao chegar ao outro lado, sacudi‑me como se fosse Fanny. Daniel riu‑se de mim, mas eu estava contente por o ter a meu lado.
Depois remei o melhor que pude de volta a River Bend, a quarenta passos mais abaixo do sítio de onde eu tinha partido. Weaver e Morri correram por entre os arbustos e o capim ensopado para virem ter comigo. Weaver agachou‑se dentro do barco enquanto eu vestia a minha roupa seca. Combinámos encontrar‑nos na varanda dali a duas horas, a um quarto para a Meia‑Noite. Ele disse‑nos para nos irmos embora sem ele depois dessa hora, pois isso quereria dizer que ele não tinha conseguido chegar à família ou que tinha sido apanhado no regresso a River Bend.
Ao investigarmos as carruagens no Segundo Celeiro, descobrimos que o Patrão Edward se nos tinha adiantado. Todas as rodas das traseiras estavam presas com duas correntes grossas. Nenhuma das chaves do Patrão Edward as abria.
Quando entrámos no Primeiro Celeiro para tirarmos a mordaça a Wiggie e lhe perguntar, ele disse‑nos que só Mr. Johnson é que tinha as chaves. Ficámos a saber que teríamos todos de ir a pé. Morri calculava que eram duas léguas e meia até Petries Landing. Poderíamos lá chegar em três ou quatro horas se andássemos depressa.
Quinze negros e um branco encharcado até aos ossos a percorrer uma estrada no meio dos campos de arroz iria de certeza levantar grandes suspeitas em qualquer carruagem que passasse. Mas atravessar os bosques ou seguir ao longo da margem do rio seria impossível, segundo Morri, porque o mato era muito denso e os pântanos impossíveis de atravessar se não se conseguisse andar sobre a água.
Ela foi ao esconderijo debaixo da varanda e trouxe as duas últimas espadas. Agarrámos também em forquilhas, pás e malhos do Segundo Celeiro e distribuímo‑los por todos. Como tínhamos de esperar por Weaver, arrastámo‑nos silenciosamente para a Casa Grande. O medo da morte que vi nos olhos de Lily fez‑me pensar nas minhas filhas. Não gostaria que elas julgassem que eu tinha simplesmente desaparecido, como por vezes eu pensava em relação ao meu pai. Voltando‑me para Morri, disse‑lhe:
‑ Se as coisas correrem mal... depois de eu ter sido enforcado, gostava que escrevesses às minhas filhas para a morada de Nova Iorque que eu te dei. Gostaria que lhes dissesses que eu morri de facto. Tens de lhes dizer que tens a certeza absoluta.
‑ Eu? John, receio que não estejas a pensar direito. Não sabes que eles também me vão enforcar? E muito primeiro que a um branco.
Crow levou‑me ao quarto do Patrão Edward e depois foi com Morri acalmar os outros escravos. Da janela do quarto, eu tinha uma imagem perfeita da ponte que levava a Comingtee. Mr. Johnson e o colega não se tinham mexido. Pela maneira como estavam sentados, calculei que estivessem a dormir. Enquanto os observava, apercebi‑me de que também tínhamos de os capturar. Pois se eles descobrissem a nossa ausência antes da alvorada, dariam o alarme e mandariam os cães atrás de nós... e alertariam também as patrulhas.
Fui ao meu quarto e guardei a pena, o arco e o caderno dos desenhos, juntamente com a carta de Meia‑Noite e a ilustração feita por Berequias Zarco. Podiam enterrar‑me com tudo aquilo se me apanhassem.
Weaver voltou às vinte para a Meia‑Noite, com Martha, os dois filhos e Sarah. Estavam todos um bocadinho histéricos, mas Weaver achava que não tinham sido vistos. Estava tudo calmo em Comingtee, garantiu‑me ele.
Fui com ele juntar‑me a Morri, Crow e os outros escravos, deixando Lily na Casa Grande. Mas antes de chegarmos às cabanas, dois homens brancos, cada um com o seu mosquete, apareceram‑nos de nenhures. Um deles era Mr. Johnson. Não reconheci o outro, mas mais tarde soube que era Mr. Davies, o superintendente de Comingtee. Deviam ter‑se esgueirado da ponte durante os dois ou três minutos em que eu tinha estado a falar com Weaver e a família. Provavelmente ouviram ou viram a família atravessar o rio no barco a remos para River Bend.
‑ E para onde é que vai, Mr. Stewart? ‑ perguntou‑me ele sorrindo. Era evidente que teria imenso prazer em me dar um tiro.
Atirei‑me a ele. Lembro‑me de ter ouvido um tiro e um baque no meu ombro esquerdo, como se tivesse sido atingido por uma prancha de madeira. Com a raiva e o medo que sentia, não ouvi o segundo tiro disparado por Mr. Davies.
Quando choquei contra Johnson, fiz‑lhe voar o mosquete. Também o tinha deixado sem respiração e, enquanto ele estava dobrado, atirei‑me a ele dando‑lhe dois socos no queixo com toda a força de que fui capaz. Indefeso, levou as mãos à cara e gemeu que não conseguia respirar. Recuei e fui buscar o mosquete dele. Enquanto eu esfregava os nós dos dedos ensanguentados, ele implorou‑me numa voz a tremer que não o matasse.
Desviando os olhos para o lado, descobri então que Weaver estava caído no chão, moribundo. A bala de Mr. Davies tinha‑lhe acertado numa artéria do pescoço. O sangue corria por cima dele e Martha gemia. Frederick e Taylor tinham conseguido dominar Mr. Davies e já o tinham trespassado com a baioneta dele. Também ele estava estendido no chão a morrer.
Trabalhando rápida mas silenciosamente, levámos o corpo de Mr. Davies para o Segundo Celeiro; não queríamos que os nossos prisioneiros vissem o cadáver ensopado de sangue. Atámos Mr. Johnson e amordaçámo‑lo, causando‑lhe tantas dores no maxilar partido que ele nos implorou, por entre lágrimas, que não o fizéssemos. Não sinto nenhum orgulho por vos dizer que naquele momento não me preocupei nada com o conforto dele. Pois com aqueles seus olhos a saltarem‑lhe das órbitas, era evidente que ele queria dizer‑me que eu seria um homem morto se ele me tivesse em seu poder nem que fosse por um instante.
Agora eu já tinha sido alertado para a gravidade do meu ferimento por um pulsar incessante no ombro e cotovelo. A minha mão esquerda estava gelada e a minha camisa encharcada de sangue, mas eu não podia pensar nisso naquela altura. Tínhamos de nos ir embora.
Parker, Crow, Frederick e Taylor levaram o corpo de Weaver para o portão de River Bend. Martha dissera que preferia que ele fosse enterrado fora da plantação. Os homens fizeram turnos a cavar. Junto do rio, o solo era fácil de cavar. Enterrámo‑lo vestido, sem uma mortalha. Eu disse a oração judaica pelos mortos ‑ a kaddish.
Com a corda que nos restava, atámos os pulsos dos fugitivos. Começámos com os homens e acabámos com as mulheres, atando‑os bem uns aos outros para que quem quer que nos visse na estrada pensasse que eles eram meus prisioneiros.
Eu ia atrás. Diríamos às patrulhas que os ia levar para Charleston para os vender. Pedi desculpa a Morri por a atar, mas ela disse‑me:
‑ Se com isso conseguir chegar ao Norte, até me podes pôr um freio na boca e marcar‑me com um ferro.
Os soluços de Martha não seriam motivo para suspeitas, disse‑me Morri, pois não era invulgar ver‑se mulheres a chorar nestas marchas forçadas para o mercado.
E foi assim que nos preparámos para sair de River Bend para sempre, deixando Crow, Lily e a Avó Blue para trás. Crow apertou‑me a mão, dizendo:
‑ Tenha muito cuidado agora, Mr. John.
‑ E tu vai devagar ‑ disse‑lhe eu.
Com uns modos muito solenes, ele fechou o portão atrás de nós e voltou para a Casa Grande com o braço por cima dos ombros de Lily.
Ao fim de uma légua, eu estava demasiado fraco pela perda de sangue para conseguir continuar. Lembro‑me de Morri inclinada sobre mim, mas não conseguia dar mais um só passo. O meu espírito fugira. Também devia estar a delirar; tinha a certeza de que estava a ouvir Esther a tocar Bach no violino.
Morri começou a falar, mas eu não conseguia compreendê‑la. Percebi pelos gestos dela que queria que eu a desamarrasse, o que mal consegui fazer.
Havia muitas coisas que eu teria gostado de lhe dizer sobre o pai dela naquele momento, pois não a queria deixar com nenhumas perguntas por responder depois de ter partido. Mas não tinha forças para o fazer. Em vez disso, contei‑lhe das moedas de ouro da Mamã, cosidas dentro do forro do meu colete. Ela deveria subornar quem quer que fosse preciso para conseguir fugir.
Instruí‑a para pedir desculpa às minhas filhas e à minha mãe por mim. Ela tinha de me deixar ali, sentado na terra, porque não conseguia continuar. E tinha de levar a pena do pai dela e nunca a largar.
Ela estava a implorar‑me para continuar a andar, mas eu disse‑lhe que não fazia mal. Eu não estava triste. Era verdade, havia ainda muita coisa que eu teria gostado de fazer, mas iria encarar a morte tão bem quanto era capaz ‑ deitado de costas a olhar para cima, para o Arqueiro. Agora, a única coisa que me interessava era que ela conseguisse encontrar a liberdade.
Depois disso, lembro‑me de estar sentado com Benjamim e outro homem na cela dele. Este outro homem tinha uma barba muito comprida. Estava a ler‑me do livro místico judeu, o Zohar. E o que ele dizia era:
Estas são as cores intensas, escondidas e a brilhar...
Perguntei‑lhe como se chamava. Disse‑me que era Berequias Zarco e que tinha feito toda aquela viagem de três séculos para me encontrar. E tudo iria correr bem. Ele levar‑me‑ia em segurança para a Terra Prometida.
Depois, estendeu a mão por cima de mim e começou a murmurar orações, incluindo as de protecção que Benjamim me tinha dado da última vez que o vira no Porto.
Tudo Tinha Estado sempre à Espera
Mais tarde, quando ele tropeçou, descobri que tinha a cara coberta de suor e os olhos mortiços. Mesmo só com a luz da Lua, conseguia ver que ele estava a enfraquecer rapidamente. Perguntei‑lhe se ele queria parar um bocadinho. Eu iria buscar‑lhe água a um sítio qualquer. Não me ouviu. Olhava para lá de mim e fosse o que fosse que estivesse a ver, não ficava em nenhum sítio perto da Carolina do Sul.
Depois, passada uma meia légua, caiu no chão, a ofegar como se tivesse um buraco nos pulmões. Disse que não conseguia continuar, que estava mais pesado que todo o resto do mundo. Eu disse‑lhe que ele iria conseguir viver se continuasse a andar. Talvez eu não acreditasse de facto nisso, mas há alturas em que temos de dar coragem às outras pessoas. Ele disse que não tinha medo de morrer. Só queria olhar para o céu e ver os caçadores do meu Papá. Isso seria suficiente. Isso e eu conseguir chegar ao Norte.
A última coisa que ele fez antes de perder os sentidos foi agradecer‑me. Levei um dia inteiro para perceber que ele estava a pensar tal e qual como o meu papá e que não estava a agradecer apenas a mim. Não, senhor, acho que ele estava a agradecer ao mundo por tudo o que tinha vivido.
Alguns dos escravos estavam prontos para o deixar ali, mas eu disse que não dava mais um passo sem ele.
‑ Ele pode ser um homem branco ‑ disse‑lhes eu ‑, mas ele tem uma memória. E isso é uma coisa preciosa que não quero perder esta noite.
Desapertei as cordas de toda a gente, visto que aquele ardil era agora tão inútil como o pó. Frederick, Taylor, Parker e Lawrence levantaram John e carregaram com ele em turnos de dois. Não sei como é que conseguiram, mas aqueles bons homens negros levaram‑no pela estrada durante as duas léguas que faltavam.
Nenhum destino de preto soprou o vento na direcção errada, na direcção das patrulhas. Não, senhor. Nem uma única cara branca olhou para nós de boca aberta de nenhum portão ou porta. Os donos das plantações ou estavam a ressonar nas suas camas de penas ou longe da terra, fugindo à estação doentia. E o Capitão Ott tinha mesmo cumprido a sua promessa. Em Petries Landing, três barcos a remos espreitavam para nós no meio das ervas dos pântanos como se sempre tivessem estado à espera que nós nos decidíssemos a partir. Mimi correu para eles e quase caiu na água. Acho que ela queria ter a certeza de que eles eram verdadeiros. Todos queríamos.
Deitámos John de costas no barco maior. Tinha o pulso tão fraco como um murmúrio. Desejei que o Papá estivesse ali para o ajudar. Para, pelo menos, lhe segurar na mão enquanto ele morria.
Remámos o mais depressa que conseguíamos. Por duas vezes, o nosso barco e um dos outros ficaram encravados na lama. Depois, o barco onde iam Backbend, Lucy e Hopper‑Anne, bateu em qualquer coisa, abriu um buraco e começou a afundar‑se. Eles gritavam horrivelmente. Remámos para eles e puxámo‑los para dentro do nosso barco antes que se afogassem, mas foi por um triz. E se calhar, mais alguém os tinha também ouvido.
A umas trinta braças do Landmark, um dos marinheiros britânicos viu‑nos. Baixaram umas escadas de corda que tivemos de subir. Foram obrigados a atar John com umas cordas por baixo dos braços para o puxarem para a coberta. O Capitão Ott veio ter connosco e apertou a mão de cada um de nós como se estivéssemos a chegar a casa dele para o jantar de Natal. Implorei‑lhe que chamasse o médico de bordo para John. Entreguei‑lhe as moedas do forro do colete de John. Mas ele deu‑me uma palmadinha no ombro e disse‑me que as guardasse para a nossa nova vida. Enquanto o cirurgião operava John num quarto pequeno por baixo do convés, saímos para o mar. Os gemidos de John faziam‑me sentir agoniada. Andando de um lado para o outro do lado de fora da porta do sítio onde o estavam a operar, tive de me sentar no chão para não cair. Um marinheiro negro, chamado Richardson, de uma terra chamada Hull, levou‑me para o convés, onde eu conseguia respirar melhor.
Acho que aqueles britânicos nunca tinham visto tantos negros ‑ homens, mulheres e crianças ‑ juntos. Olhavam para nós como se tivéssemos passado todas as nossas vidas naufragados numa ilha deserta. E, se calhar, tinham razão.
Sentei‑me ao lado da cama de John nessa noite. Dormi um pouco, mas preferi estar acordada porque os meus sonhos pareciam estar todos queimados nas margens.
Ele não se mexeu do seu torpor e eu não me atrevia a tocar‑lhe, mas pensei que se lhe falasse baixinho o poderia chamar para nós ‑ para a vida. Por isso, contei‑lhe algumas das histórias que o Papá me confiara e que ele era capaz de já ter ouvido antes, quando era pequeno. Eu tinha esperança que o Louva‑a‑deus o pudesse salvar, mesmo que o cirurgião e eu não conseguíssemos.
Eu pensava que ser livre me iria encher de alegria, mas penso que nunca estive mais cansada do que naqueles dias seguintes enquanto nos dirigíamos para Nova Iorque. Tinha em cima de mim todo o solo lodoso de River Bend, agarrado a todo o meu corpo.
Ao princípio da tarde do nosso primeiro dia completo no mar, John acordou, mas estava completamente grogue. Fi‑lo beber um copo de água e comer um bocado de pão, visto que tinham sido essas as ordens do cirurgião. Nessa noite, o pulso dele começou a acelerar e tinha a cara tão quente que eu pensei que ele ia ficar reduzido a cinzas. Às vezes, também tinha arrepios. Quando nos deixaram sozinhos, fiz aquilo que o meu papá costumava fazer comigo, e enrosquei‑me atrás dele, na cama.
No nosso segundo dia no mar alto, o braço ficou gangrenoso, disse o cirurgião. Quando olhei para a serra do Dr. Brampton, soube que não tinha estômago para o que eles lhe iam fazer, mas não havia outra maneira de o salvar. Os gritos de John podiam ter partido todos os vidros de todas as igrejas da Carolina do Sul e ainda passar a fronteira e partir todas as taças de cristal da Georgia.
Não me deixaram vê‑lo nesse dia; por isso, só na manhã seguinte é que pude entrar. Pela maneira como ele olhou para mim, percebi que ele estava outra vez com os vivos.
‑ Nós estamos livres? ‑ perguntou num murmúrio.
Ele falou como se não se atrevesse a acreditar que tivéssemos conseguido.
Fez‑me chorar ‑ porque ali estava ele sem um braço e tinha usado a palavra nós.
Depois disso, John quis falar, como uma forma de se esquecer do que lhe acontecera, acho eu. Por isso, enquanto ele estava deitado na cama, conversámos de tudo, incluindo de quem nos poderia ter traído. Contei‑lhe de Beauford e dos outros dois homens que nos tinham ajudado com as armas; Mr. Trevor e Mr. Rollins. Ele teve muita dificuldade em acreditar que um negro ou um mulato nos pudesse ter traído.
‑ Não sei nada disso ‑ disse‑lhe eu. ‑ Há muitos de nós que só querem fazer boa figura aos olhos dos brancos.
John disse que Mr. Trevor podia ter tido necessidade de confiar em muitas pessoas para conseguir arranjar‑nos as armas. Qualquer uma delas podia ter‑nos traído e ganhado umas moedas pelo trabalho.
Uma coisa era certa. O Patrão Edward devia ter sabido pelo menos uns dias antes o que andávamos a pensar. Se calhar até mesmo há semanas. Foi por isso que ele gostou tanto de me mandar flagelar. Estava a vingar‑se antes do facto.
Chegámos ao porto de Nova Iorque dois dias depois. John lutava contra as dores o melhor que podia, mas ainda não conseguia andar sozinho; por isso, o Capitão Ott mandou que uns marinheiros o levassem para fora do navio e o metessem numa carruagem para casa da amiga dele, Violeta. Nós seguimos a pé, atrás. Não tínhamos malas, não tínhamos dinheiro, não tínhamos mapas. As pessoas de Nova Iorque deitavam‑nos uns olhares intensos, piores ainda que os Britânicos, e também murmuravam. Nós estávamos a olhar para elas ‑ e para os edifícios de tijolo e para as carruagens e para o céu baixo e cinzento, e para os pináculos das igrejas e uns para os outros ‑ como se isto fosse tudo impossível.
Mas era possível, não havia dúvida que era. Nesta altura, o que era espantoso não era que tivéssemos chegado ao Norte, mas que Nova Iorque ali tivesse estado sempre, durante os quinze anos que eu tinha vivido em River Bend, à espera que nós chegássemos. Tudo tinha estado sempre à espera.
Quando tomei consciência de mim, caí num pânico tão imenso que pensei que ele me engoliria inteiro e que nunca mais me largaria. Como é que eu iria prosseguir sem um braço?
Mantive‑me muito quieto, mas sabia que desejar ser o homem que tinha sido era inútil ‑ não havia nenhuma magia que me pudesse levar de volta a esse tempo.
A dor de não estar inteiro agoniou‑me tanto que tive de ir buscar o bacio. Graças a Deus estava sozinho; por isso, ninguém ouviu os meus soluços. Abafei‑os com a almofada, embalando‑me para a frente e para trás como uma criança.
Morri veio ter comigo quando eu estava neste estado frágil e confuso. Apertei‑lhe a mão com toda a força e perguntei‑lhe se estávamos de facto livres, uma vez que era a única coisa em que consegui pensar que podia fazer com que a perda do meu braço tivesse valido a pena. Ela respondeu que estávamos e levou a minha mão à face dela. Eu senti‑me comovido por ela ter acabado por confiar em mim, mas tinha tanta inveja do corpo inteiro dela que não conseguia olhá‑la nos olhos.
Depois de ela me ter deixado e de eu ter voltado a chorar durante bastante tempo, resolvi tentar imitar um homem com os dois braços em condições. Durante os dias que se seguiram no mar, apesar das constantes ondas de dor que me trespassavam o ombro, sorri enquanto conversava com Morri, com o Capitão Ott e os simpáticos tripulantes, como se o meu coto fosse apenas uma ferida superficial. Levantei o meu copo num agradecimento ao cirurgião pelo seu trabalho rápido em meu benefício. Sabia que isto era tudo uma mentira que iria pagar mais cedo ou mais tarde, mas não lhes podia mostrar os meus verdadeiros sentimentos com medo de enlouquecer com o desgosto.
Claro que era um alívio tremendo que a minha mãe não tivesse de visitar a minha campa, que as minhas filhas ainda tivessem um dos progenitores. Contudo eu sabia que tinha de repensar muitas coisas da minha vida. E embora eu expressasse os meus sentidos agradecimentos a Morri e aos outros quando ela me contou como eu tinha sido transportado até aos barcos a remos pelos escravos para a viagem rio abaixo, uma parte sombria de mim amaldiçoava tudo e todos.
Sempre que um dos refugiados me vinha visitar ao camarote, eu interrogava‑me sobre o que significaria para eles terem saído de River Bend. A maior parte deles falava com vozes felizes, mas era evidente que estavam assustados com a perspectiva de uma vida onde as suas próprias escolhas iriam comandar os seus destinos. Morri depositou‑me na mão as minhas moedas de ouro, dizendo que não tinha sido obrigada a oferecer nenhum suborno.
Martha e os filhos estavam desconsolados por terem perdido o seu adorado Weaver e só apareceram duas vezes no meu camarote para exprimirem a sua tristeza por eu ter sido ferido e para participarem na comemoração presidida pelo Capitão Ott na nossa última noite no mar. Na festa, a pequena Mimi perguntou se o meu braço tinha tido um funeral como devia ser. Disse‑lhe que não sabia, mas que esperava que estivesse em paz onde quer que estivesse. Mais tarde, o médico disse‑me que tinha sido lançado ao mar.
Muitas vezes, quando estava sentado ao pé de Morri, repisava o mistério do desaparecimento de Meia‑Noite.
‑ Vamos começar a procurar o teu papá assim que chegarmos a Nova Iorque ‑ garanti‑lhe eu.
‑ Receio que ele esteja morto, John. Temos de encarar isso.
‑ Não! ‑ gritei eu, deixando que as minhas emoções escapassem por instantes ao meu controlo rígido. ‑ Se ele tiver morrido... se ele está morto, então por que é que eu fiquei sem um braço? Não pode ser!
Eu estava a gritar tão alto que Morri pediu ajuda. O médico apareceu e enfiou‑me à força duas colheres cheias de remédio. Caí num sono leve em que os meus remorsos pareciam infiltrar‑se em tudo o que me rodeava. Num dos sonhos, Daniel e eu estávamos no mercado das aves do Porto. Ele disse‑me que eu só ter um braço era a razão de eu não o ter conseguido salvar de se afogar. Quando voltámos para minha casa para jantar com os meus pais, compreendi que me tinha enganado ‑ a nossa casa parecia mais uma caverna húmida. Não sabíamos onde estávamos. Então, Daniel disse que estávamos dentro da barriga de um animal gigantesco ‑ meio leão, meio pássaro. Ouvíamos o vento a uivar lá fora e sabíamos que estávamos a voar, mas não conseguíamos ver para onde íamos.
A minha vergonha fez‑me desejar trancar a porta à medida que nos íamos aproximando de Nova Iorque, pois em breve teria de enfrentar Violeta. Lamentei não ter feito amor com ela antes, como homem completo.
Há mulheres que são a eficiência em pessoa quando se vêem perante as dificuldades dos outros e Violeta provou ser uma dessas pessoas dotadas a partir do momento em que lhe apareci à porta. Depois do primeiro arquejo de horror perante a minha infelicidade ‑ os grandes olhos cor de jade inundados de lágrimas ‑, transformou‑se na minha enfermeira.
‑ Agora estás em casa ‑ disse‑me ela, dobrando‑se para me dar um beijo na testa ‑, e eu vou tratar de te pôr bom nem que seja a última coisa que faça.
É‑me difícil falar das relações iniciais que Violeta estabeleceu com os antigos escravos de River Bend, visto que durante aquelas primeiras semanas, fiquei quase sempre confinado ao meu quarto. Contudo, não pude deixar de notar que Morri ficava taciturna e nervosa sempre que ela e Violeta se encontravam comigo ao mesmo tempo. Consegui ver na cara preocupada da rapariga que ela tinha sentido o choque de emoções no interior da nossa anfitriã.
Sempre que ela ou Violeta me perguntavam como é que eu me sentia, eu mentia, falando da amputação como sendo uma insignificância comparada com o sofrimento daqueles que viviam em escravatura. Morri mostrava‑se relutante em dar a sua opinião, mas finalmente disse:
‑ Não creio que as infelicidades se possam comparar, John. Quando eu estava em River Bend, não me fazia sentir melhor saber que também havia famílias brancas que eram pobres e se viam obrigadas a viver em sítios que odiavam. Eu fingia que ajudava, claro que sim ‑ todos nós fazíamos, mas não ajudava nada.
Quatro cartas, longas e íntimas, da Mamã, de Fiona e das minhas filhas esperavam por mim quando regressei. Felizmente, tudo estava bem em Londres. Ver a letra delas fez‑me tremer de saudades e garanti‑lhes que estava bem nas minhas respostas.
Para evitar críticas posteriores da minha mãe, disse que tinha tido um pequeno percalço na Carolina do Sul. Não disse mais nada, visto que as más notícias iriam apenas funcionar como um chamamento e eu não conseguia enfrentar a minha mãe no estado em que me encontrava. Mal eu decidisse o que ia fazer a seguir, escrevi, mandaria instruções para Graça e Esther. Avisei‑as que era possível que não tardasse muito a pedir‑lhes que se viessem juntar a mim em Nova Iorque.
Houve várias ocasiões durante os quinze dias seguintes de sofrimento e desconforto físico em que estive à beira de implorar a Violeta para me abraçar e me deixar olhar para ela sem a touca. Mas ela nunca desceu ao jardim durante a noite, como fizera na minha visita anterior. Se tivesse, eu podia ter descido as escadas aos tropeções para me ir sentar aos pés dela como se fosse Fanny. Lá fora, sob as estrelas, creio que teria sido capaz de dizer a verdade.
O que me pôs numa estrada mais saudável foi uma carta espantosa que recebi de Isaac e Luísa. Para além das notícias sobre a família e de uns desenhos coloridos de pica‑paus feitos por Noodle e Hettie, continha um artigo do Charleston Courier que descrevia a nossa fuga para a liberdade não como uma evasão mas como uma série atroz e grotesca de assassinatos cometidos pelo fantasma de River Bend, que se tinha descoberto ‑ ao fim de todos estes anos ‑ ser Mr. Johnson, o superintendente! O raciocínio por trás desta conclusão espantosa era o seguinte:
O corpo de Edward Roberson, Patrão de River Bend, tinha sido encontrado num dos celeiros de River Bend, com uma faca espetada no pescoço. Isto era, claro, precisamente como o Grande Patrão Henry e o Pequeno Patrão Henry tinham sido mortos. Daí que o mesmo vilão devia ser o responsável. Além disso, Mr. Davies, um superintendente da Plantação Comingtee, tinha morrido de uma profunda ferida de baioneta no peito. No artigo, dizia‑se que a sua presença em River Bend tinha sido pedida por Edward Roberson, que ele estava desconfiado que o seu próprio superintendente andava a conspirar contra ele.
O corpo de Mr. Johnson tinha sido encontrado do lado de fora do Primeiro Celeiro, com uma bala na têmpora. Esta ferida fora aparentemente auto‑infligida, visto que ele segurava uma pistola. O maxilar tinha sido partido, como se tivesse havido uma luta com o seu patrão, Mr. Roberson.
Ambos os homens tinham arranhões nos cotovelos e joelhos, possivelmente resultantes de uma luta de socos. Mr. Roberson também tinha um golpe muito feio na cabeça, provavelmente em resultado de uma pancada com a pistola dada pelo seu superintendente assassino.
O artigo afirmava que Mr. Johnson se tinha suicidado, sem a menor dúvida, depois de ter morto Edward Roberson e o outro superintendente. Dois capatazes negros tinham também sido mortos, provavelmente por terem permanecido leais ao Patrão Edward.
A afeição que eles tinham por ele era a que teriam por um pai, dissera Mistress Anne ao Courier.
Quanto ao motivo, era sugerido que estes eram crimes de paixão louca e de ganância. Há muitos anos que se dizia que Mr. Johnson estava apaixonado por Mistress Holly, a mulher do Grande Patrão Henry, o proprietário anterior. Aparentemente, ele tinha tentado livrar‑se de Henry e do filho para se apoderar tanto de River Bend como da sua proprietária. Na sua cabeça desequilibrada e louca, imaginara que Edward Roberson era o último obstáculo para os seus planos de controlar a plantação.
Não havia nenhuma referência a Joanne, Wiggie e aos outros escravos que tínhamos fechado no Primeiro Celeiro. Provavelmente, tinham‑lhes poupado a vida.
Na carta que me escreveu, Isaac perguntava se alguma coisa do que estava escrito no artigo era verdade ou se era tudo apenas uma invenção das autoridades brancas.
Eu achei aquilo tudo uma grande confusão e li a carta várias vezes, como se estivesse escrita numa língua estrangeira. Morri mostrou ter maior discernimento ao dizer‑me que as autoridades nunca teriam permitido que se soubesse que tinha havido uma fuga bem sucedida de uma plantação. Notícias dessas teriam enchido de medo todos os residentes brancos do Sul. Por isso, os proprietários das plantações e a polícia tinham fabricado esta história. Era melhor que fosse divulgado como um simples crime de paixão e cobiça do que uma evasão bem sucedida de negros para o Norte.
‑ Mas como é que eles vão conseguir manter a nossa fuga em segredo? ‑ perguntei‑lhe.
‑ Não vão. Mas se eles não admitirem que aconteceu, os escravos vão pensar que é apenas um boato e os brancos que é uma tremenda mentira. Imagino que é assim que toda a nossa história vai ser escrita.
Foi então que me ocorreu que já deveriam ter ocorrido várias rebeliões igualmente não noticiadas nas plantações de todo o Sul. A isto, Morri disse:
‑ Não creio que venha a haver qualquer relato de um grupo de escravos que os tenham derrotado. Nem uma só página impressa.
Ela mostrou ter uma mente tão alerta nesta e noutras ocasiões que eu muitas vezes abanei a cabeça de espanto por ela ter apenas quinze anos de idade. Nas minhas conversas com ela a respeito de River Bend nos dias seguintes, comecei a considerá‑la como uma amiga e como verdadeira filha do seu pai. A sua presença, mais do que qualquer outra coisa, devolveu‑me a minha voz e o meu sorriso verdadeiros e sentia‑me feliz quando ela olhava para mim com uma verdadeira afeição.
Conversámos bastantes vezes sobre o que ela queria fazer com a sua vida. Na minha opinião, ela devia arranjar um professor particular para História, Filosofia, Música e outros temas essenciais, com o objectivo de a preparar para uma educação universitária. Mas ela achava que eu estava a exagerar. Disse que queria uma coisa mais simples: ganhar a vida. Ela sempre tinha gostado de bordar e pensámos na possibilidade de ela fazer roupa por encomenda, como Francisca fizera.
Vi nos olhos dela que isso não lhe teria agradado muito. Pensando como Meia‑Noite, disse‑lhe:
‑ Vai dar umas voltas pela cidade. Vê aquilo que há e logo descobrirás. Sei que sim.
Então, enquanto tinha a sua atenção carinhosa, arrisquei mais um trambolhão para o meu coração e disse‑lhe que tinha esperança de a adoptar. Como ela podia ter concordado com isto só para me agradecer por a ter ajudado a fugir de River Bend, agarrei‑lhe nas duas mãos com a minha, apertei‑as com força e disse‑lhe:
‑ Aliviaria o meu espírito saber que tinha seguido as instruções do teu pai. Como penso que nesta altura já sabes, eu não só gosto muito de ti como também te admiro muito. Mas, Morri, não deves responder que sim a não ser que seja o que tu realmente queres, mesmo que o teu pai o possa ter querido. Gostava de acrescentar que nunca tentarei substitui‑lo no teu coração ‑ nunca. Pensa nisso e diz‑me o que decidires dentro de... digamos, dentro de um mês.
Morri concordou, mas nos seus olhos havia o desespero que eu tinha causado ao falar do pai dela como se ele estivesse no túmulo. Todavia, eu sabia que tinha sido ele que não me tinha deixado outra opção.
Claro que ainda continuava a existir a questão de saber quem é que tinha cometido os homicídios em River Bend. Separadamente, eu e Morri chegámos à mesma conclusão: Crow.
Nos poucos dias que eu tinha passado em River Bend, tinha‑se tornado claro para mim que o espírito dele não estava realmente quebrado, mas sim subterrado. Depois de os escravos terem fugido de River Bend, Crow deve ter‑se vingado.
Todavia, as portas dos quartos do Grande Patrão Henry e do Pequeno Patrão Henry tinham sido encontradas fechadas à chave depois de lhes terem espetado as facas nos pescoços. Sem a chave, como é que Crow poderia ter entrado?
Ao princípio, nem eu nem Morri conseguíamos responder a isto. Mas depois eu lembrei‑me dos decalques das conchas no barro que ele me tinha mostrado. Comecei a pensar que ele devia ter tirado as chaves dos quartos ao Grande Patrão Henry ou a Mistress Holly durante o tempo suficiente para as imprimir nos moldes, depois tinha‑as mandado fazer ao irmão ferreiro de Comingtee. Sem que eu o tivesse pressionado para me dar informações, Crow tinha‑me dito que também tinha feito moldes de dólares de prata. Penso que ele queria que eu adivinhasse a verdade, para que aqueles de nós que conseguíssemos fugir soubéssemos que ele se tinha vingado.
Depois de ter assassinado o Patrão Edward e os outros, Crow tinha, muito provavelmente, metido uma pistola na mão de Mr. Johnson para enganar as autoridades. Parecia igualmente possível que ele tivesse deixado os corpos atados e cobertos de sangue no local exacto onde os tinha assassinado. Quem quer que estava encarregado da investigação, tinha fabricado a versão dos acontecimentos que tinha sido publicada no jornal para prevenir o medo da parte dos cidadãos brancos, tal como Morri dissera. Nesse caso, Crow seria enforcado, muito provavelmente em segredo.
Mas se ele tivesse plantado todas as pistas e convencido Lily e os outros escravos a não dizerem nada, a polícia podia ter acreditado que ele estava inocente. Ele até podia ter confortado Mistress Kitty na sua dor.
Tentar compreender o artigo e os acontecimentos de River Bend com Morri aumentou consideravelmente a minha percepção de ter algumas escolhas na vida ‑ e de ter a força necessária para planear o meu próprio futuro.
Os olhares baixos de Violeta quando estava na minha presença deram‑me todavia a entender que ela receava o meu vigor recém‑descoberto. Que também ela pudesse ter preferido que a nossa relação tomasse um curso mais amigável e mais honesto ‑ que ela também estivesse à mercê de emoções que não compreendia bem ‑, nunca me ocorreu.
Apesar das provas da minha visita anterior, fui completamente incapaz de compreender que Violeta, simplesmente, não dizia aquilo que pensava. Se eu tivesse reflectido com cuidado nos nossos dias em comum quando éramos crianças, teria visto que isto era consistente com a sua personalidade. Provavelmente, o desejo de se abrir com os outros tinha‑lhe sido violentamente arrancado, primeiro, em casa dela no Porto e, mais tarde, em Inglaterra.
A necessidade de arranjar trabalho produtivo para os refugiados de River Bend depressa eclipsou as minhas preocupações pessoais. Para os ajudar, reuni coragem para sair do quarto durante mais do que umas horas de cada vez no princípio da nossa quarta semana de liberdade. Tornou‑se‑me imediatamente claro que a maior parte deles estava a precisar de uma rotina. Parker, em particular, tinha começado a beber e era frequente aparecer em casa a praguejar. Morri chamou‑me de parte no meu primeiro dia no andar de baixo e contou‑me como uma noite, numa taberna barulhenta, ele tinha batido na cara de Christmas‑Eve, pondo‑lhe um olho negro. Percebi que tinha de agir rapidamente e que, para os ajudar a arranjar trabalho, seria necessário mostrar a manga vazia do meu casaco em público. Que Morri e os outros tinham ‑ de uma forma algo vaga, mas determinada ‑ estado à espera que eu descesse e lhes oferecesse ajuda desde o princípio tornou‑se‑me completamente óbvio. Isso deu‑me um respeito considerável pela paciência e tacto deles para comigo.
Passei os dias seguintes a levar os nossos hóspedes de River Bend a lojas e armazéns na tentativa de lhes arranjar trabalho regular. Recebemos quase sempre os mesmos sorrisos falsos e as mesmas recusas rápidas. Lembro‑me em especial do dono de uma loja de tecidos em Wall Street a quem tentei convencer a dar emprego a Hopper‑Anne, cujo inglês era muito bom e claro. Não só se pôs a olhar fixamente para o braço que me faltava, como também teve o atrevimento de me dizer:
‑ Os meus clientes não estão à espera de serem atendidos por uma negra, por muito clara que seja a pele dela ou por muito parecida com a branca que seja a sua forma de falar.
Para o bem ou para o mal, ter perdido um braço não tinha aplacado em nada o meu temperamento de escocês das Terras Altas e descompu‑lo violentamente pela sua hipocrisia.
Passado algum tempo, tornou‑se muito claro que ia ser impossível eu arranjar um trabalho honesto para todos os antigos escravos. Felizmente, eles compreenderam isso primeiro do que eu e trataram eles próprios do assunto.
Através das amizades que Hopper‑Anne, Lucy e Christmas‑Eve criaram na Igreja Episcopal Protestante de St. Phillip, depressa conseguiram arranjar trabalho para Parker, Randolph e Backbend como estivadores para Harkness & Co., uma companhia de navegação na South Street. Pouco depois, Hopper‑Anne foi contratada para uma padaria de um proprietário negro, na Chambers Street, e Christmas‑Eve e Lucy começaram a trabalhar como empregadas de cozinha da Spear Tavern na Broadway.
Violeta deu uma ajuda preciosa aos restantes. Sentou‑se à secretária da sala e escreveu uma carta comovente solicitando conselho a Francis Lemoyne, o filho mais velho do homem de quem ela tomara conta. Embora ele lhe guardasse um ressentimento persistente por ela ter herdado a casa onde estávamos presentemente acampados, mesmo assim contactou uns lavradores quakers que conhecia e conseguiu obter ofertas de emprego para todos os escravos de River Bend que quisessem viver num ambiente rural.
No fim, todos, com excepção de Morri e Randolph, agarraram esta oportunidade. Randolph resolveu ficar como estivador em Nova Iorque, com os filhos, e não tardou muito que lhes arranjássemos um apartamento condigno em Bowling Green.
‑ Nem pensar que voltarei alguma vez para uma vida de trabalho no campo ‑ disse‑me Morri. ‑ Sabes, John, não há nada melhor no mundo do que poder dizer não.
Dias mais tarde, Morri voltou para casa a cantar e a arfar ao mesmo tempo. Estava tão eléctrica que não parava de saltar em volta da sala. Enquanto eu fumava o meu cachimbo, contou‑me que, num dos seus passeios pela cidade, conhecera o director da escola para crianças negras na Church Street, um antigo fugitivo chamado William Arthur.
‑ Ele disse‑me que eu podia começar a dar lições de leitura e escrita imediatamente! Não se importa que eu não fale assim tão correctamente. Ou que não seja muito mais velha do que as crianças. Não se importa nem uma pinga!
Depois de termos bebido um cálice de porto ao seu êxito, sentou‑se no braço da minha cadeira e apertou‑me a mão com força. Tinha a cara toda contraída, como se tivesse um grande segredo para me contar.
‑ O que é? ‑ perguntei‑lhe eu.
‑ Gostava que me adoptasses, John, mas só na condição de, se o meu pai voltar, ele me poder voltar a adoptar.
Recebi a primeira das respostas da minha mãe às minhas cartas durante a nossa sétima semana em Nova Iorque. John, escreveu‑me ela, a ponta da caneta tendo rasgado o papel com a irritação, se não me disseres com exactidão a natureza do teu «percalço» na Carolina do Sul na tua próxima carta (que tem de ser escrita imediatamente!), garanto‑te que aparecerei à tua porta sem ser convidada e prego‑te um sermão de um género que nunca ouviste, mas que é por demais evidente que devias ter!
Alguns dias depois, quando eu estava ainda a pensar como descrever o meu ferimento à minha mãe, Backbend, Lucy, Hopper‑Anne, Scooper, Parker, Christmas‑Eve, Frederick, Sarah, Taylor e Martha subiram para as carruagens à frente da casa de Violeta para fazerem a viagem de cerca de vinte léguas até às quintas quakers localizadas perto da cidade de Southeast.
Iam ganhar bons salários e os filhos poderiam frequentar uma escola local. Os Quakers ‑ que neste momento me pareciam representar a possibilidade do bem no nosso mundo ‑ tinham concordado generosamente em os ajudar também a construir as suas próprias casas.
Quando as carruagens partiram, ouvi Morri cantarolar «Barbara Allen» para si. Juntei‑me a ela numa estrofe. Graças a Deus, isto ia voltar a fazer‑me pensar seriamente numa forma de encontrar Meia‑Noite.
Em todas as MINHAS SEMANAS de angústia, dificilmente esquecera o meu velho Amigo, mas, ao reler a carta dele em Nova Iorque, ficara convencido de que ele devia ter tido uma visão do seu próprio fim: um sonho com o Louva‑a‑deus.
Vejo agora que ‑ ainda mais do que a perda do meu braço ou o distanciamento de Violeta ‑ fora esta aceitação passiva da morte dele que tornara as minhas semanas de solidão tão lúgubres. Descobri que os meus períodos de maior tristeza têm estado sempre relacionados com um sentimento de derrota e que, quase sempre, tenho encontrado o caminho de regresso à saúde ao começar uma nova campanha.
Por isso, com as moedas de ouro da minha mãe e a maior parte do que me restava das minhas poupanças, resolvi publicar um pedido para que Meia‑Noite ‑ ou qualquer outra pessoa que soubesse qual fora o seu destino ‑ me escrevesse. Iria colocar estes anúncios em jornais de todos os Estados Unidos, desde Nova Iorque até aos Territórios do Oeste, todas as semanas, durante todo o tempo que fosse preciso até receber uma resposta. Claro que, se ele ainda estivesse vivo, eu não podia saber se ele tinha o hábito de ler qualquer tipo de notícias, mas havia todas as probabilidades que ele conhecesse alguém que o tivesse.
Morri demonstrou um grande entusiasmo em ajudar a escrever o nosso anúncio, que acabou por ficar assim:
Procurando Meia‑Noite, Samuel ou Tsamma. Vimos‑te de longe e estamos a morrer de fome.
Quem tiver informações, por favor escreva para o Gemsbok, ao cuidado de Senhora Violeta, 73, John Street, Nova Iorque.
Encontrei a linda pena que julgaste que tinhas perdido para sempre e tenho‑a comigo em segurança. Vai devagar.
Não quisemos pôr nada no anúncio referente a River Bend, nem usar o nome de Morri, temendo a atenção dos traficantes de escravos que podiam querer raptá‑la.
A segunda parte do meu plano iria transformar‑se no meu trabalho mais importante na América. Decidi compilar uma lista dos escravos e dos negros livres da Carolina do Sul, assim como das suas moradas. Mais tarde, iria juntar os outros estados do Sul. Isto parecia‑me essencial, pois fosse quando fosse que acontecesse a abolição da escravatura, em cinco ou em cinquenta anos, aqueles que tinham estado escravizados iriam ter de enfrentar a quase impossível tarefa de descobrir irmãos, irmãs, mães, pais e filhos que tinham estado perdidos para eles durante tantos e tantos anos. Iriam precisar desesperadamente de uma lista daquelas.
Era uma tarefa imensa e eu sabia que iria levar muitos anos e um esforço enorme para ficar o mais completa possível. Mesmo assim, quanto mais pensava nesse plano, mais excitante ele se tornava.
Para criar a minha lista, eu sabia que iria precisar de centenas de correspondentes em toda a Carolina do Sul ‑ pessoas dispostas a fazer um levantamento dos escravos, negros livres e mulatos da sua vizinhança e apontar os nomes completos e respectivas localizações, assim como dos familiares.
Tinha a certeza de que os Quakers iriam ajudar ‑ como de facto fizeram. E, entre a congregação dos judeus de Charleston, também tenho encontrado várias almas generosas e diligentes.
Como é natural, os meus primeiros correspondentes foram Isaac e Luísa. Escrevi‑lhes pouco tempo depois de ter recebido a carta deles, relatando‑lhes a nossa fuga, e até agora já me forneceram cento e doze nomes e respectivas localizações.
Os relatórios dos censos existentes indicavam que havia pelo menos duzentos e sessenta mil negros escravizados na Carolina do Sul e, por isso, é evidente que terei muito que fazer no futuro. Mas não me sinto nem desanimado, nem intimidado. A lista crescerá exponencionalmente à medida que mais pessoas forem sabendo da sua existência. Tenho a certeza que até a própria natureza está do meu lado nesta batalha.
A catorze de Novembro, uma semana depois de os antigos escravos terem partido para a cidade de Southeast, assinei os papéis da adopção de Morri. Como eu não era cidadão americano, todo o processo foi tratado na Embaixada Britânica.
Ela resolveu registar‑se como Memória Tsamma Stewart, o que eu achei que era um nome esplêndido e único. Para comemorarmos, apanhámos o ferry boat para Brooklyn, onde jantámos numa taberna da marginal onde admitiam negros. Eu bebi um bocadinho de whisky a mais para celebrar, mas Morri guiou‑me em segurança de regresso ao nosso ferry boat.
Tinha‑me mantido afastado da Escola da Church Street até então para evitar embaraçá‑la, mas agora decidi fazer uma inspecção paternal ao seu local de trabalho. Sentado ao fundo da sala de aula dela, o orgulho que senti ao vê‑la livre e útil foi a confirmação de que tinha feito bem em a ir observar.
Enquanto ouvia as crianças dela ler em voz alta uma fábula de Esopo, senti a presença de Meia‑Noite a meu lado. Estava a sorrir como um tonto.
Depois de visitar a escola de Morri, deixei de questionar se a perda do meu braço tinha sido um sacrifício justo para a liberdade dela. Vendo os pequenitos amontoados à volta dela, puxando‑lhe pelo vestido vermelho que eu lhe tinha comprado, deixei de comparar infelicidades, como ela própria me tinha aconselhado. Sinto‑me grato por isso porque, a dada altura, julguei que o meu egoísmo iria ser a minha perdição.
Outros acontecimentos também conspiraram para me devolver o vigor honesto e total, o primeiro dos quais completamente inesperado. Eu ainda não escrevera à minha mãe a explicar‑lhe o meu ferimento. Esta cobardia, combinada com as saudades que tinha das minhas filhas e a minha incerteza sobre o que seria agora melhor para elas, fez‑me mergulhar numa súbita espiral de desespero e insónia. Fechei à chave a porta do meu quarto e não deixei entrar nem Morri nem Violeta. Fumava de mais e acabei por adoecer. O que eu não sabia era que Violeta tinha outra chave. Ela introduziu‑se no meu quarto antes da alvorada do dia dezanove de Novembro, enquanto eu fumava o cachimbo do meu pai como um doido, e anunciou:
‑ Já não consigo aguentar a nossa luta mais tempo, John. Se prometeres que depois não dizes nada sobre o que se passou entre nós ou sobre aquilo que desejas que aconteça no futuro, deitar‑me‑ei contigo agora.
‑ Tens a certeza? ‑ perguntei, sentindo todo o meu destino na minha voz.
‑ Sim ‑ replicou ela.
Aproximei‑me dela com o coração cheio de esperança e gratidão. Beijar‑lhe os lábios ‑ como tinha querido fazer durante mais de duas décadas ‑ provocou‑me uma tal descarga eléctrica que me senti arrancado ao meu próprio corpo.
Estar com ela significava tudo para mim; eu estava no centro do mundo. Ali, bem no interior da nossa união, o meu braço perdido não era uma desvantagem tão difícil de suportar como tinha pensado.
Depois, ela encostou a cabeça no meu ombro e adormeceu.
Passado um bocado, pensei em Francisca. Parecia tão diferente de Violeta; eram mulheres nascidas sob constelações que guardavam diferentes territórios da noite. Talvez fosse isso, mais do que qualquer outra coisa, que me fez acreditar que a minha mulher não levaria a mal qualquer felicidade que eu pudesse agora encontrar na minha nova vida.
Acariciei o cabelo de Violeta enquanto ela dormia, como sempre tinha desejado. O simples movimento dos meus dedos acalmou‑me e a sensação doce dela fez‑me acreditar que tinha finalmente chegado a casa. Agora sabia que tudo iria correr bem entre nós.
De facto, durante as semanas seguintes, as nossas relações foram tudo aquilo que eu desejara que fossem. Demos longos passeios pelas florestas a norte da ilha de Manhattan, observando gaios azuis, guarda‑rios e outros pássaros que não me eram tão familiares. Ela apanhou folhas outonais cor de fogo e eu comprei‑lhe flores. Comemos castanhas nos parques e corremos atrás um do outro pelas escadas acima. Para o feriado americano do Dia de Acção de Graças, ela cozinhou um peru com compota de arandas. Para sobremesa, fez‑me rabanadas, como a minha mãe lhe ensinara. Nunca falámos do que tinha acontecido entre nós porque não havia necessidade. À noite, no silêncio da nossa cama, parecia‑me que nos tínhamos, finalmente, reconciliado com a morte de Daniel. A nossa união era uma vitória sobre traições, loucura, pedras tumulares e adeuses eternos. Era a prova de que a ressurreição era possível. Talvez fosse mesmo mais um milagre.
Eu não tinha a certeza de que Violeta pudesse ter uma criança nesta idade tardia, mas, quando nos fundíamos na noite, desejava desesperadamente que pudesse.
O segundo acontecimento que estimulou a minha recuperação foi a minha decisão de recomeçar a fazer cerâmica e painéis de azulejos, e, para esta finalidade, mandei limpar o pequeno barracão nas traseiras do
jardim de Violeta. Comprei uma roda de oleiro em segunda mão e ferramentas para o fabrico de azulejos.
Centrar um recipiente de barro só com uma mão não se mostrou tão difícil como eu tinha imaginado e, passados poucos dias, já era capaz de fazer peças modestas, como tigelas, pratos e jarros. Também acabei os meus esboços para um painel de escravos do campo que desejava fazer, embora achasse que, sem um braço, ainda não tinha a energia necessária para um projecto tão ambicioso.
Finalmente, enviei uma carta à minha mãe e às minhas filhas explicando que queria ficar em Nova Iorque e pedindo que Graça e Esther viessem o mais depressa possível. Pedi desculpa por lhes voltar a perturbar a vida e prometi que explicaria tudo quando chegassem. Em relação ao meu braço, disse apenas que tinha sido ferido quando estava no Sul, mas que não havia motivos para preocupações; os meus médicos americanos tinham declarado que estava de perfeita saúde. Disse‑lhes que ainda não tinha encontrado Meia‑Noite, mas que estava outra vez envolvido na sua busca.
Por esta altura, já tinha compreendido que gostava de Violeta de uma maneira que estava muito para além de declarações de amor e gestos de afeição. De uma forma vaga, sabia que éramos feitos de elementos diferentes, mas isso parecia uma vantagem, como se a nossa liga de metais provasse ser mais forte do que a pureza.
Um dia, quando andávamos a passear, abordei o assunto que me andava a consumir há tanto tempo.
‑ Violeta, gostaria de ter um filho ‑ de começar uma família nova contigo neste jovem país.
Ela empalideceu. Sentei‑a no degrau da entrada de uma casa próxima e agachei‑me ao lado dela.
‑ O que foi? Julguei que fosses ficar feliz.
‑ E estou, John. Foi apenas o choque. Dá‑me um momento.
‑ Se estás preocupada por causa das minhas filhas, tenho a certeza que elas adorarão ter um irmãozinho ou uma irmãzinha. Embora seja melhor não as deixarmos escolher o nome ‑ acrescentei soltando uma gargalhada. ‑ Escolheriam os piores.
Violeta estendeu a mão para tocar na minha boca e eu beijei‑lhe as pontas dos dedos.
‑ Chega, John, vamos falar disto mais tarde. Estou demasiado estupefacta agora para conseguir falar.
Achei que lhe devia dar um dia ou dois para se adaptar à ideia antes de voltar a falar do assunto. Contudo, na noite seguinte, eu e Morri estávamos convidados para jantar em casa de William Arthur, o director da escola dela. Violeta tinha pedido que a dispensassem, uma vez que as relações entre ela e Morri continuavam um pouco reticentes. Voltámos para casa muito mais cedo do que tínhamos contado, porque Mr. Arthur era um madrugador e estava sempre na cama por volta das dez horas.
Descobrindo que Violeta não estava na sala, corri pelas escadas acima, subindo dois degraus de cada vez, em direcção ao nosso quarto, tencionando atirar‑me para cima dela, mas ela não estava lá. Intuitivamente, fui à janela do quarto onde eu dantes dormia. Descobri‑a sentada no jardim, envolvida num xaile preto português. Nas mãos, tinha o tampo da mesa que Daniel tinha esculpido para ela pouco antes de morrer. Estava a soluçar.
Corri para ela, mas nada do que eu lhe disse fez parar as lágrimas.
‑ Por favor, diz‑me o que se passa... é o Daniel? Eu também penso muitas vezes nele, sabes?
Desviando os olhos e falando em português, disse‑me:
‑ Eu não te amo, John. Não da maneira que tu desejas. Não como eu amava Daniel. ‑ Levou uma mão tremente à boca. ‑ Nunca amarei, estás a ver, por isso não devemos ter um filho.
‑ Então... então por que é que vieste ter comigo?
‑ Era a maneira de nos libertar aos dois do ressentimento zangado que se tinha desenvolvido entre nós. Era a única maneira de te ajudar.
Olhando para mim com os olhos carregados de tristeza, continuou:
‑ Eu avisei‑te de que não te devias apaixonar por mim. Fiz tudo o que pude para te mostrar isso.
Compreendi então que ela tinha mantido toda aquela distância entre nós porque queria de facto proteger‑me dela. De uma forma estranha, ela tinha sido mais generosa durante as semanas da nossa desilusão do que quando partilhara a cama comigo. Não tinha havido nenhumas complicações entre nós, do ponto de vista dela; muito simplesmente, nunca me tinha amado.
Levantei‑me, sentindo que a minha vida girava devagarinho até parar. Mas não estava zangado nem mesmo triste. Embora fosse um paradoxo, sentia‑me ao mesmo tempo oco e muito pesado. Sentia que era composto de todos os pensamentos que tinha tido dela ao longo daqueles últimos vinte anos ‑ todas as minhas orações e desejos. Estava muito cansado ‑ principalmente de mim próprio.
‑ De facto, avisaste‑me ‑ disse‑lhe numa voz de pedra, não querendo ir‑me abaixo. ‑ Agradeço‑te muito sinceramente por isso. E por tentares ajudar‑me. Agora vejo o dilema em que te meti.
Premi os meus lábios secos na face gelada dela e deslizei pela escada acima como um espectro. Do meu quarto, observei‑a sentada no jardim durante mais de uma hora. Depois ela voltou para dentro, deixando o tampo da mesa em cima do banco. Olhando fixamente para ele, através da floresta de ervas escuras, imaginando a minha cara tal como Daniel a tinha esculpido, percebi que nunca tinha querido compreender toda a verdade da nossa relação. Mesmo quando era rapariga, ela dissera‑me que eu não podia esperar mais nada a não ser amizade.
Quando ela voltou para o jardim, foi com uma faca comprida. O meu coração deu um salto e os meus olhos turvaram‑se; tive a certeza de que se ia matar.
Quando cheguei ao pé dela, estava a destruir a cara do retrato que Daniel fizera dela, atacando‑a e cortando‑a com uma tal violência que, sem dar por isso, recuei, quase caindo. Teria gostado de lhe agarrar na mão para a fazer parar, mas agora sabia que ela não queria nem precisava da minha protecção.
No dia seguinte, não tomei o pequeno‑almoço e dei um longo passeio ao longo do rio Hudson, pensando no filho que nunca teríamos. Fui ter com Morri quando ela acabou a escola e expliquei‑lhe solenemente o que se tinha passado entre mim e Violeta. Disse‑lhe que tencionava passar o fim‑de‑semana fora da cidade para poder pensar no meu futuro e no das minhas filhas.
Morri e eu fizemos uma longa viagem de barco no sábado de manhã até à cidade colonial de Roslyn, no fundo de uma pequena enseada na costa norte de Long Island. Na nossa primeira tarde, demos um passeio pelo meio dos bosques, subimos uma colina íngreme e entrámos numa grande extensão desolada de árvores sem folhas. Estava mais frio do que eu alguma vez tinha sentido e eu sentia‑me como se estivéssemos a andar através de uma velha paisagem que tinha gelado dentro de mim.
Esperava a todo o momento ver o corpo de Violeta no chão, como ela tinha ficado depois de ter sido atacada pelo tio.
Morri andava mais depressa do que eu e parava frequentemente à espera que eu a alcançasse. Alegrava‑me a forma como ela olhava para trás à minha procura.
Na segunda‑feira, pouco antes da alvorada, começou a nevar. Era a primeira neve que Morri via. Correndo lá para fora, caiu de rabo no chão, magoada mas a rir. Sentei‑me ao lado dela. Inclinando a cabeça para trás, observei os flocos a caírem, sentindo o formigueiro do frio nas minhas faces. Ela e eu estivemos deitados juntos durante muito tempo, deixando‑nos cobrir pela neve.
Voltámos para casa de Violeta ao princípio da noite de segunda‑feira, uma vez que Morri tinha o dia livre na escola. Violeta veio receber‑nos à porta com palavras simpáticas e beijos, oferecendo‑se para nos preparar café quente e rabanadas. Eu não consegui suportar a generosidade dela e saí de casa a correr. Ao fim da tarde seguinte, tendo passado a noite numa pensão decrépita virada para o Hudson, descobri uma casinha de três divisões em Greenwich Village que podia começar a arrendar na semana seguinte. Era velha e vulgar e o jardim não passava de lama e lixo gelados, mas as paredes eram sólidas e não era cara.
Quando informei Violeta das minhas intenções, ela sorriu‑me encorajadoramente e disse:
‑ Só te peço que mantenhas aqui o teu estúdio. Para podermos continuar a ser amigos. Faz‑me esse favor, John.
Pela primeira vez na minha vida, disse‑lhe que não. Nunca me tinha sido tão difícil dizer uma palavra tão simples.
Escrevi imediatamente à minha mãe para a informar da minha nova casa e mudei a morada nos anúncios dos jornais. Na minha última noite em casa de Violeta, ela escapuliu‑se para o jardim antes do amanhecer. A olhar para as estrelas, iluminada pelo luar, parecia outra vez aquela ninfa da noite que eu outrora tinha imaginado. Quando ela me viu, recuei para as sombras como um criminoso. Ela começou a atirar uma bola ao ar. Era a de Fanny. Na minha imaginação, consegui ver a minha querida cadela aos saltos para a apanhar, ladrando de excitação. Voltei para a cama a cambalear. Um bocadinho depois, ouvi o som de pedrinhas a serem atiradas à minha janela. Tapei a cabeça com a almofada. Quando, passados alguns minutos, tirei a almofada, ela ainda estava a atirar pedras. Continuou até ao nascer do Sol, mas eu não me atrevi a ir ter com ela.
Uma manhã, a meio de Janeiro, ouviu‑se bater com toda a força à porta da nossa nova casa em Waverly Place. Correndo para a abrir, descobri a minha mãe a levar as mãos à boca, já lavada em lágrimas. Atrás dela, estavam Esther e Graça. Uma dezena de malas, pelo menos, estavam a ser descarregadas de três grandes carruagens.
A nossa reunião foi algo histérica, como acontece sempre na nossa família. Parecia uma ópera italiana maluca a ser tocada a um'ritmo demasiado rápido, com quatro personagens de temperamentos totalmente diferentes à procura de um equilíbrio, perdido algures entre as lágrimas e o riso. Cobri as minhas filhas de beijos e abracei‑as alternada e repetidas vezes.
As meninas traziam os brincos de filigrana que eu lhes tinha comprado em Alexandria e informaram‑me, cheias de orgulho, que não os tiravam há várias semanas e que não faziam tenção de o fazer durante muitas mais. Quando lhes mostrei a casa, disse‑lhes que teriam de partilhar um quarto, mas elas afirmaram que era muito melhor assim, visto que dormiam sempre mais profundamente quando estavam juntas. Tal como Morri, a Mamã tinha o seu próprio quarto e afirmou que era perfeitamente encantador, embora não tivesse uma única peça de mobília, nem sequer um tapete. As condições eram obviamente modestas e limitadas e, apesar dos sorrisos delas, desconfiei que as achavam deprimentes depois de uma viagem tão longa. Quando lhes mostrei como é que me tinha encafuado naquilo que tinha sido uma despensa, já a preparar‑me para a chegada delas, senti que a minha coragem se afastava de mim em bicos dos pés.
‑ Continua a respirar ‑ disse‑me a Mamã.
Mas eu não me consegui rir. Ela deu‑me uma palmadinha na testa como se quisesse meter‑me algum juízo dentro da cabeça.
‑ Pára de te preocupares, John ‑ disse‑me ela, com a intenção evidente de me dar uma ordem. ‑Já todos passámos por bem pior do que um bocadinho de falta de espaço e de pó, até Graça e Esther.
Levei à vez as minhas filhas e a minha mãe em passeios pela Broadway nos dois dias seguintes, como se ao ar livre e à luz do Sol conseguisse falar mais livremente da perda do meu braço e das minhas experiências em River Bend.
Pedi imediatamente desculpa à minha Mamã por ter ficado sem o braço, porque, uma vez que eu tinha vindo ao mundo inteiro, parecia uma afronta tanto para as dores de parto dela como para tantos anos de cuidados que me proporcionara. Ela mandou‑me calar e não parava de me repetir:
‑ Devias ter‑me dito muito mais cedo, sabes. Não precisas de sofrer sempre sozinho. Andas a fazer isso desde que eras um rapazinho e acho que já era altura de parares.
Eu não me cansava de lhe garantir que as minhas dificuldades já tinham acabado há muito tempo. Mas ela não conseguia conciliar a imagem do filho que tinha na cabeça com o homem à frente dela. De manhã cedo, quando ainda estava meio a dormir, apanhei‑a várias vezes parada à minha porta a observar‑me com olhos preocupados.
A Mamã tinha sido sempre uma pessoa de humores inesperados e, depois deste período inicial de descrença e dor, voltou à sua disposição brincalhona para comigo. Embora isto por si só fosse um alívio imenso, eu sabia que iria levar muitos mais meses para ela ser capaz de olhar para mim sem me comparar com o que eu fora.
Cada uma das minhas filhas reagiu de maneira diferente à perda do meu braço. Graça, sempre pensativa, era dada a silêncios cautelosos sobre o assunto, até que eu compreendi, num momento de revelação, que ela estava à espera de uma garantia de que eu era o mesmo homem que sempre tinha sido. Eu tinha esquecido uma das lições que aprendera na infância: que a separação era mais difícil para os mais novos. Foi por isso que durante quinze dias me dediquei a ela desde manhã até à hora de ela ir dormir, lendo‑lhe durante uma hora ou mais todas as noites, antes de a aconchegar para dormir. Quando ela perdeu os seus modos cautelosos comigo, quando foi capaz de passar um dia a explorar a cidade com a minha mãe sem sequer se lembrar da minha existência, soube que ia ficar bem.
Esther resolveu fazer de minha enfermeira e, durante algum tempo, aguentei de bom humor que ela me ajudasse a descer as escadas e me ajeitasse as almofadas da cama. Depois comecei a ficar irritado e uma vez fi‑la chorar com os meus repentes. Foi a Mamã quem me disse que a pequena não era assim tão diferente da irmã como eu pensava e que estava a pedir que eu a tranquilizasse da forma mais adaptada à sua maneira de ser. Por isso, deixei‑me ser apaparicado por ela durante mais algumas semanas, pedindo‑lhe apenas que me deixasse ouvi‑la tocar violino.
Isto alegrou‑a tanto que até se tornou o meu despertador matinal, acordando‑me todas as manhãs com serenatas de minuetes e gavotas de Bach. Soube que ela estava bem quando começou a dar‑me algumas respostas tortas sem recear que eu pudesse voltar a ir‑me embora ou que outro dos meus membros se lembrasse de cair.
Ao princípio, as relações entre a minha família e Morri foram constrangidas, como eu devia ter esperado. A solução dela foi retirar‑se para a solidão protectora do quarto no cimo das escadas quando não estava a dar aulas. Uma tarde, quando me atrevi a bater à porta e a entrar, chorou nos meus braços. Tinha a certeza que as outras todas a odiavam.
‑ Sou tão diferente delas. Tu tens sido tão bondoso, mas é um erro eu continuar aqui.
A Mamã entrou nessa altura no quarto, tendo ouvido aquela agitação, e ajoelhou‑se ao lado de Morri, que se endireitou assustada. A Mamã agarrou a rapariga pelos ombros.
‑ Morri, agora ouve‑me. O teu papá foi o amigo mais verdadeiro que alguma vez tive. Ele salvou a vida de John, como deves saber, e, por isso, salvou a minha. ‑ Limpou as lágrimas da menina com o seu próprio lenço. ‑ Nessa altura, fiz‑lhe uma promessa ‑ que sempre o trataria como se fôssemos parentes. Por isso, não foi o facto de John te ter adoptado que te trouxe para esta família. ‑ Beijou‑lhe as duas mãos e fechou‑as. ‑ Tu, minha filha ‑ continuou sorrindo ‑, já fazias parte da minha família antes de teres nascido!
Olharam‑se nos olhos durante muito tempo. Depois, a Mamã deu‑lhe uma palmadinha brincalhona na coxa e disse:
‑ Agora anda comigo para a cozinha. Podemos ir‑nos conhecendo melhor enquanto fazemos o jantar.
Essa noite salvou o dia. As meninas pegaram na deixa da avó e, durante o jantar, começaram a pensar em Morri como uma companheira de brincadeiras mais velha. De facto, logo nessa mesma noite, competiram desavergonhadamente pela atenção dela; Esther com o seu violino e Graça com os seus mapas e almanaques. A primeira decisão importante que tomaram como trio foi tomada na manhã seguinte: mal fossem um bocadinho mais velhas, iriam viajar pela Escócia, Itália, índia e China. ‑ Na volta, vamos visitar África, para vermos de onde veio o teu pai ‑ disse Graça a Morri, com a maior seriedade.
Elas estavam sentadas no nosso pequeno sofá e eu enfiei‑me no meio delas, sentando Esther no meu colo.
‑ Bem, se resolverem ir por mar, não contem comigo para as acompanhar ‑ disse eu, suspirando dramaticamente.
A minha mãe riu até às lágrimas. Quando recuperou o fôlego, disse:
‑ John, tu nunca percebes nada, pois não? Elas as três não têm a menor intenção de te convidar, ou a mim, para as acompanhar.
Uma noite, pouco depois da chegada delas, senti‑me com força suficiente para contar à Mamã o que acontecera entre mim e Violeta. Ela passou a ir vê‑la uma ou duas vezes por semana depois disso e, numa dessas ocasiões, levou Graça e Esther com ela. As meninas depressa ficaram a gostar muito dela e contavam‑me as brincadeiras que faziam juntas. A Mamã confirmou que Violeta era muito gentil e carinhosa com elas. Lembrei‑me do quanto ela tinha gostado das crianças de Newcastle que tinha criado e era evidente que ela estava outra vez a redescobrir a alegria com as minhas filhas. Só nos meus piores momentos é que eu lhe levava isso a mal.
Quando a minha mãe e as minhas filhas iam passear até casa de Violeta, eu comecei a ter a sensação de que iam visitar um fantasma. Na minha mente, ela já não era muito diferente de Daniel. De certa forma, era tranquilizador, uma vez que desconfiava que em breve seria capaz de começar a pensar nela apenas com carinho.
E foi assim que a Mamã, Esther, Graça, Morri e eu começámos a nossa vida em Nova Iorque, à espera de notícias de Meia‑Noite.
John Stewart, 4 de Abril de 1824.
Elas Acolhiam com Alegria Saber o Que Ia Acontecer a Seguir
Parada ali na rua a ver aquelas carruagens a afastarem‑se com quase metade das pessoas que eu conhecia, fazia com que me sentisse toda desfeita por dentro. Só Randolph e os filhos, Mimi e Lawrence, ficaram na ilha de Manhattan. Tornaram‑se os meus únicos elos com River Bend, o que não me servia de muito, uma vez que eu nunca tinha sido muito chegada a Randolph.
Eu fiquei em Nova Iorque porque sabia, desde o primeiro instante em que cá cheguei, que este era o sítio para mim.
Aqui, toda a gente anda de um lado para o outro a fazer negócio e a construir. Nova Iorque são coisas a mudar de mãos. É movimento. E eu gosto de fazer parte disso.
Não que eu não sentisse falta da rotina vagarosa de River Bend. Todos sentíamos, acho eu. Embora nenhum de nós alguma vez fosse dizer fosse o que fosse disto a um branco, excepto talvez a John, porque eles iriam interpretar mal e usar isso contra nós. Mesmo os que aqui não gostavam muito da escravatura pareciam achar que nós não servíamos para mais nada a não ser carregar caixotes e limpar chaminés. Eu nunca pensara que veria alguém no Norte quase tão miserável como eram os escravos dos campos em River Bend, mas, ao ver os limpa‑chaminés negros com os seus trapos imundos, percebi como estava enganada.
A verdade secreta é que tinha saudades de andar atrás de Lily pela cozinha, a lamber as colheres. Tinha saudades de Crow a contar‑me naquela sua voz trocista as tolices que tinha ouvido o Patrão Edward dizer. Até tinha saudades de me sentar na praça, depois de toda a gente estar a dormir, a pensar no raio de uma maneira de me pôr longe daquele escuro horizonte de pinheiros.
Suponho que por viver na minha cabeça algures entre River Bend e Nova Iorque, deixei de saber quem era durante um certo tempo.
Quis falar nisto a John pouco depois de termos chegado e estive quase a fazê‑lo por uma ou duas vezes, mas ele estava bem enterrado nas areias da sua própria desgraça e eu não queria aumentar‑lhe as preocupações. Violeta, a mulher que ele amava, ao princípio pareceu‑me uma pessoa demasiado reservada para ser boa para alguém. Também me apercebi de uma grande dose de raiva dentro dela, como se pudesse estar a esconder armas no quarto. Nunca ninguém viu uma pessoa fazer tanto como ela e agir de uma maneira bondosa, ajudando de cem maneiras diferentes, sempre sem deixar que os outros vissem o que estava a sentir. Ela era um ponto de interrogação gigantesco, todo embrulhado num chapéu de abas largas. Mas ela não conseguia esconder de mim que a assustava que John gostasse tanto dela. Se isso tinha a ver com o facto de ele só ter um braço, não saberia responder.
Foi durante este período que comecei a escrever coisas da minha vida em River Bend e de como todos tínhamos conseguido chegar a Nova Iorque. Mais tarde, John leu uma parte e disse‑me para continuar, que tinha jeito para contar a minha história. Quando conversávamos assim, só os dois, comecei a ver nele muito do meu pai ‑ em pequenas coisas que ele dizia e fazia, como a maneira como ele às vezes se sentava nos calcanhares ou dizia que as coisas eram muito, muito isto ou aquilo, ou a forma como escrevia um A com uma cauda, ou um B com patas. Era como se ambos estivéssemos a viver o que o meu papá tinha deixado ao partir.
No princípio de Novembro, talvez uma semana antes das outras pessoas de River Bend se irem embora de Nova Iorque para as quintas, eu andava a passear pela Church Street quando vi um grupo de crianças sair de roldão da porta de um desses edifícios de tijolos finos que eles têm lá, todas elas a guincharem como doidas. Enquanto eu as estava a observar e a sorrir, apareceu um homem negro e jovem a fumar um cachimbo. Isso fez‑me lembrar o Papá; por isso, acho que estava a olhar fixamente para ele e ele perguntou‑me:
‑ O que é que estás a olhar, garota?
Não fiquei muito contente com aquele garota, por isso corrigi‑lhe a gramática:
‑ Para o que é que estás a olhar.
‑ O que é isso?
Ele parecia ser um daqueles negros do Norte todos emproados que tínhamos encontrado, que pensavam que nós não passávamos de uns burros ‑ e que diziam que não compreendiam o nosso sotaque sulista.
Comecei a andar.
‑ Sabe ler e escrever, jovem senhora? ‑ gritou ele atrás de mim. Voltei‑me e medi‑o de alto a baixo. Não era nada feio, se olhássemos de lado.
‑ Se souber, o que é que tem a ver com isso? Ele riu‑se ao ouvir aquilo e perguntou:
‑ De onde és?
‑ Da Lua. ‑ Imitando o tom nasalado com que os negros daqui falam, continuei: ‑ É por isso que tenho esta minha pronúncia peculiar, sabe.
‑ Como é que te chamas? Quando lhe respondi, ele disse‑me:
‑ Bem, Morri, gostarias de dar um bom uso à tua leitura e escrita ensinando?
‑ Nunca ensinei nada a ninguém.
‑ Óptimo ‑ respondeu‑me ele, soltando uma gargalhada. ‑ Assim não vais ter de desaprender os maus hábitos.
‑ O que é que iria ensinar?
‑ A ler e a escrever. Isto é uma escola. Dá‑me licença que me apresente: sou o director da escola, William Arthur.
Desceu as escadas e apertou‑me a mão.
‑ És o director? Ora... ora, não podes ter mais de trinta anos!
‑ Tenho vinte e sete. Nunca me disseram que era preciso alguma idade especial, sabes. Se há, é melhor dizeres‑me visto que este já é o meu terceiro ano.
‑ E vais pagar‑me?
‑ Um salário regular todos os meses. Podes começar daqui a uns dias, ainda esta semana?
‑ E por que não já hoje? Voltou a rir‑se.
‑ Porque não preciso de ti hoje. Preciso de ti daqui a dois dias. Tudo o que tens a fazer é estares aqui todas as manhãs, às nove em ponto e ensinar as crianças a ler e a escrever. Quatro horas por dia. Duas classes de trinta cada uma. Achas que uma jovem senhora da Lua é capaz de fazer isso?
‑ Espero que sim. A ver vamos.
Fiquei tão feliz com o meu novo emprego que quando cheguei a casa disse a John que devíamos tratar dos papéis da adopção. Era o que ele queria e o que o meu papá tinha querido e eu estava na disposição de fazer com que toda a gente em Nova Iorque ficasse tão feliz como eu. Depois John falou do papá como se ele estivesse morto, estragando tudo. Perdoei‑lhe porque vi nos olhos dele que, de certo modo, éramos iguais, visto que provavelmente iríamos passar toda a nossa vida a perguntar‑mo‑nos o que lhe teria acontecido.
Gostei imediatamente das crianças da minha escola e elas andavam à minha roda como se eu fosse feita de cristais de açúcar. Se calhar era porque eu lhes dava para ler coisas de que elas gostavam. Para elas, a leitura é diferente do que é para nós. Os adultos gostam sempre de surpresas e de coisas novas. As crianças adoram a repetição. Acolhiam com alegria saber o que ia acontecer a seguir.
Quando falei a Randolph da escola, ele matriculou Mimi e Lawrence. Vê‑los ali fazia‑me sorrir como uma tonta ‑ como se todos nós fôssemos feitos de luar. Não demorei muito a conseguir que eles, e quase todas as outras crianças ‑ mesmo as mais pequeninas ‑, aprendessem o ABC. Também tínhamos alguns poetas entre nós. Havia um rapaz chamado Charles que escreveu um poema épico sobre uma formiga, um rato e uma ratazana que se meteram num barco para irem para África. Era um trabalho realmente muito bom.
John veio à minha sala de aulas depois de me ter adoptado e foi muito estimulante para mim tê‑lo ali. Ele tinha arranjado um trabalho bom para fazer ‑ compilar uma lista dos escravos e negros libertados da Carolina do Sul, para que todas essas pessoas se pudessem encontrar umas às outras quando, finalmente, a escravatura acabasse. E escrevemos uma mensagem para o meu pai, que John mandava publicar uma vez por semana em mais de cem jornais.
Apercebi‑me de que gostava cada vez mais dele. Também confiava nele, o que era ainda mais importante, na minha opinião. Consegui compreender por que é que o Papá gostava tanto dele.
Pouco depois de eu ter começado a ensinar, William Arthur convidou‑me e a John para jantar com ele. Isso abriu uma porta para nos tornarmos amigos e ele convidava‑me para os seus aposentos de quando em quando. John dava‑me autorização, mas avisou‑me para ter cuidado, porque embora eu parecesse mais velha ainda era aquilo a que ele chamava «uma jovem kelpie». Mas nada aconteceu entre nós. Eu pensava que possivelmente nunca aconteceria.
Nos finais de Dezembro, as coisas ficaram muito torcidas entre John e Violeta, porque ela, finalmente, disse‑lhe aquilo que ele já devia ter adivinhado há muito tempo: que nunca o amara como ele queria. Eu e ele fomos passar um fim‑de‑semana a uma cidadezinha em Long Island para fugir dela e conversarmos sobre o assunto e eu vi como a desilusão estava a roubar toda a força daquele homem.
Na segunda‑feira de manhã, mesmo antes de nos virmos embora, nevou. Escorreguei no passeio quando corri lá para fora para a saudar. Ali deitada, a observar aqueles flocos imparáveis a cair sobre a terra, de boca aberta para sentir a humidade, soube que nunca viveria num sítio onde nunca nevasse.
Em Janeiro, as filhas e a mãe de John vieram de Londres para ficarem a viver connosco. Nunca se tinha visto tanta excitação. Ao princípio, Mrs. Stewart assustou‑me, mas gostei do seu afecto pelo filho. E gostava que ela só usasse os óculos quando ninguém estava a ver. Era uma coisa que me fazia rir quando estava sozinha no meu quarto. Ela disse‑me logo coisas muito simpáticas e ensinou‑me a cozinhar, embora, cá para mim, algumas das receitas de bacalhau fossem intragáveis. Ela fazia‑me lembrar Lily. Acho que por ser muito mais velha do que eu e ser tremendamente feroz na defesa daqueles que amava. Achei que John tinha muita sorte em a ter como mamã. Ao princípio, achei que aquelas filhas dele não eram muito parecidas. Esther andava sempre a correr de um lado para o outro e às risadinhas. Nunca se tinha visto uns dedos de criança moverem‑se tão depressa como os dela quando estava a tocar violino. Ela também falava muito depressa, de forma que não se conseguia perceber metade das palavras que ela dizia e era preciso estar sempre a pedir‑lhe para repetir. Esther faz‑me recuar aos tempos em que eu era pequena. Temos segredos e estamos sempre a rir. Graça é mais cautelosa. Estuda os seus mapas e quase tudo o resto como se lá houvesse qualquer coisa que fosse mudar o mundo inteiro. Gostei logo dela porque ambas gostamos de silêncio e de observar as coisas. Com Esther foi preciso mais tempo para me habituar, mas, como já disse, ela acabou por me arrastar todo o caminho para a amizade com a sua excitação. Gosto muito quando elas batem à porta do meu quarto antes de entrarem. É como se fôssemos uma família, mas eu continuasse a ter o direito de estar sozinha e de não estar sempre com vontade de ser amigável. Elas têm os seus planos de irem comigo até África. Disse‑lhes que as levava e se calhar até levo, mas a verdade é que para mim é suficiente ficar num sítio onde me sinta em segurança.
No princípio de Julho de 1842, ao fim de ter sido cortejada de forma muito querida, durante vários meses, por William Arthur, encontrei‑me uma noite em casa dele na Chambers Street, brincando com uma almofada de seda que tinha no colo enquanto conversávamos sobre a escola. Quando ele me tirou a almofada e me beijou, quase desmaiei.
Havia algumas coisas a respeito dele de que não me sentia muito segura. E eu gostava mais de ter o poder de dizer não do que de outra coisa qualquer. Tentei ir devagar. Mas ele adorava fazer as coisas depressa. Por isso, às vezes, depois dessa noite em Junho, deitava‑me com ele durante um bocado e depois corria para casa antes que John ou Mrs. Stewart começassem a ficar preocupados comigo. William e eu gostávamos um do outro tanto quanto é possível a duas pessoas que estão um pouco inseguras sobre o que irá ser viverem juntas. As únicas coisas que faltavam na minha vida eram as pessoas que tinham morrido ou ficado presas em River Bend. Tinha saudades de Crow, Lily e da Avó Blue. E da Mamã. Perguntava‑me se o Papá estaria com ela agora, ou se ainda estaria algures no nosso mundo. Perguntava‑me se ele poderia ver as coisas boas que estavam a acontecer à sua Memória. Estava quase sempre a pensar nisso e sabia que iria sempre fazê‑lo.
Memória Tsamma Stewart, 27 de Junho de 1824
Pós‑escritos.
Estamos a dezassete de Outubro de 1825, e já passaram mais de dezoito meses desde que escrevi pela última vez sobre a minha vida. Andávamos há quase dois anos a publicar os nossos pedidos semanais para que Meia‑Noite nos escrevesse em cento e doze jornais. Todos os pratos, vasos e jarros que eu vidrava e vendia tinham sido para os conseguir publicar.
A mãe contratou um agente em Portugal para nos arrendar a nossa casa do Porto e vender as terras e, com os proventos, pudemos comprar uma confortável casa federal, em Greenwich Village, com vista para o rio Hudson. Mudámos para lá em Agosto de 1824, e, como havia espaço para o pianoforte da Mamã, ela mandou‑o vir de barco de Londres nesse mesmo mês. Nos finais de Setembro, já tinha conseguido sete estudantes, dois dos quais tinham muito talento. Hoje em dia, anda a falar muito seriamente em fundar a escola de música que ela tinha anteriormente imaginado em Londres. Anda até a tentar convencer a Tia Fiona a vir para Nova Iorque para a ajudar.
Morri continua a achar o ensino gratificante, embora tivesse tido algo semelhante a um naufrágio com o director da escola, que durante algum tempo parecera realmente apaixonado por ela. No entanto, ao fim de umas semanas de lágrimas terríveis, ela tinha conseguido chegar a terra sã e salva. Ela tem mais equilíbrio do que qualquer pessoa que eu já conheci ‑ exceptuando, talvez, o meu pai.
Lawrence e Mimi estão numa das classes de Morri. Quando os vi há pouco tempo, Mimi disse‑me que esperava que eu não sentisse muito a falta do meu braço. Deixei que ela e as outras crianças tocassem no seu coto, o que acharam bastante assustador e maravilhoso. Como elas adoram sentir medo quando sabem que estão completamente seguras!
Esther estuda violino e teoria musical com um professor exigente, mas bondoso, de Colónia.
Graça revelou‑se uma espécie de feiticeira com as línguas e já fala lindamente francês, graças às lições de um excelente jovem de Estrasburgo.
Nestes últimos meses, Violeta tem levado as crianças da Church Street, assim como Esther e Graça, ao Castle Garden em noites sem luar para lhes ensinar as constelações. Ela é arrebatada mas paciente com eles e a minha mãe diz que lhe está a fazer bem poder ensiná‑las. Eu ando, lentamente, a fazer os possíveis por criar um novo tipo de relação com ela. Embora não nos vejamos, mandamos saudações e notícias através das minhas filhas. A Mamã chama‑lhe uma «amizade de caneta e papel», guiada de longe por aquilo que nunca poderá ser. Ela diz que, por vezes, é tudo o que podemos esperar. Estou a tentar libertar‑me de todas as expectativas.
Na altura em que estávamos a sofrer juntos, eu não me apercebi de quanto da minha urgência e desespero era provocado pela ausência súbita que a morte de Francisca tinha criado na minha vida. Agora vejo o esforço corajoso que Violeta fez ao tentar salvar‑me da minha própria loucura.
Tenho agora trinta e nove correspondentes e uma lista de mil setecentos e dezoito nomes de negros e respectivas localizações na Carolina do Sul, na Georgia, no Mississipi, no Alabama e na Louisiana. É frequente a minha lista ler‑se como o Antigo Testamento: Moon Mary, filha de Augustus e Angola Mary, mãe de William, Sawmill, e Linda, irmã de Tina, Claude, Merchant e Picker Stephen...
As cartas frequentes de Isaac e Luísa têm‑nos dado notícias de River Bend, onde Crow foi de facto enforcado pouco depois da nossa fuga, pelo menos, se os boatos que tinham ouvido em Charleston eram dignos de crédito. Pouco depois da nossa partida repentina, como Luísa designa tão simpaticamente a nossa fuga, Mistress Anne investiu em gado novo adquirido em hasta pública. Passados meses, tinha os campos de arroz a produzir em pleno.
Lily, a Avó Blue e os outros que tinham ficado continuavam em cativeiro. Eles estão, evidentemente, no cimo da lista que eu estou a compilar. Morri escreveu a Lily para lhe dizer que estamos todos bons e que temos saudades dela. Esperamos que ela consiga arranjar alguém que lhe leia a carta.
Quando compreendi que não ia voltar ao Porto nos tempos mais próximos, comecei a escrever longas cartas a Benjamim, Gilberto, Luna Oliveira, ao meu sogro Egídio e até à minha Avó Rosa. Luna manda‑me frequentemente desenhos de frutos e flores e eu retribuo o favor com os meus desenhos dos habitantes de Nova Iorque.
Um dia, em Setembro de 1824, chegou pelo correio um manuscrito fininho, escrito por Benjamim e intitulado: «Sobre o Significado Escondido da Escravatura» e que me era dedicado. Nele, Benjamim fazia a leitura de versos da Tora para demonstrar que a escravatura era o último arquejo de um mundo moribundo. Os Reinos Inferiores estavam a largar a pele como uma cobra, teorizava ele, preparando‑se para ascender para mais perto dos Reinos Superiores. O verdadeiro e duradouro mal desta prática, escreveu ele, é que a escravatura impede os nossos espíritos de alcançarem a realização e a compreensão, de se elevarem no firmamento no interior de cada um de nós e, assim, de se unirem ao Senhor. Como tal, é uma abominação que tem de ser abolida se queremos criar um mundo apropriado para o Messias.
Na carta que o acompanhava, Benjamim informou‑me que, embora a situação política em Portugal tivesse acalmado, ele previa que não tardaria muito a haver uma guerra civil entre aqueles que eram a favor de uma constituição e aqueles que preferiam uma monarquia absoluta.
Numa das cartas que lhe escrevi, contei‑lhe que tinha visto Berequias Zarco quando estava a despedir‑me da vida na estrada entre River Bend e Petrie's Landing. Ele respondeu‑me que havia pouca coisa fora do alcance de um poderoso místico judeu ‑ mesmo as viagens no tempo ‑e que não ficaria surpreendido se ele próprio também viesse a encontrar Berequias um dia! Ele tinha a certeza de que o meu ilustre antepassado tinha ajudado a salvar a minha vida ao recitar aquelas orações.
Soube da morte de Benjamim há apenas quatro meses por Luna Oliveira e ainda não consigo ter coragem para escrever mais do que umas poucas palavras sobre o que isso significou para mim. É como se um eclipse se tivesse instalado não apenas sobre a nossa vida em comum, mas também sobre as esperanças que ele tinha de um mundo melhor. Às vezes pergunto‑me se ainda resta alguém que assuma a sua alquimia e as suas orações místicas ‑ que esteja algures, numa cela secreta, a tentar descobrir o significado de cada momento.
Demasiado fraco para me escrever uma carta, o velho boticário pedira a Luna para me dizer que se sentia orgulhoso por me ter podido contar entre os seus amigos e que ‑ depois de eu ter trazido Morri para Nova Iorque ‑ me tinha visto sentado à direita de Deus numa das suas visões. Eu deveria lembrar‑me sempre que cada um de nós era prata aos olhos de Moisés.
A Mamã e eu dissemos uma oração kaddish por ele, evidentemente. E na noite em que recebemos a notícia da sua morte, acendi as sete velas da menorah da minha mãe e deixei‑a acesa na janela do meu quarto durante toda a noite. Pareceu‑me essencial comemorar a partida dele deste mundo com luz.
E foi assim que chegámos a Outubro de 1825.
Há três dias, no dia catorze, às cinco da tarde, bateram à porta da nossa casa. Esther, que estava na sala a praticar no seu violino, foi abrir e gritou:
‑ Papá, é melhor vires para dentro!
Eu estava no jardim a plantar uns bolbos de outono ‑ uma tarefa nada fácil só com um braço. Com os dedos sujos de terra e amaldiçoando a interrupção, corri para a sala.
Ele estava a descalçar os sapatos à porta. Adivinhei que era ele por aquele pequeno gesto e pela sua silhueta. Ninguém mais podia ter aquela forma.
Deu um passo para dentro de casa. Os olhos traziam as chuvas do deserto.
Não consegui falar durante um bom bocado. O meu corpo parecia estar a fundir‑se com tudo o que me rodeava.
‑ Vimos‑te de longe e estamos a morrer de fome ‑ sussurrei.
Ele repetiu as minhas palavras. Depois, numa voz delicada e alegre, começou a cantar «The Foggy, Foggy Dew», adaptando a letra ao nosso encontro:
E sempre, sempre que olho para os olhos dele, ele lembra‑me os velhos dias...
No meu murmúrio entrecortado, juntei‑me a ele:
Ele lembra‑me o Verão. E o Inverno também. E as muitas, muitas vezes que o apertei nos meus braços...
Corri para ele e ajoelhei‑me aos seus pés, abraçando a sua linda barriga, cheirando o seu cheiro, com que eu sonhara durante todos estes vinte anos de separação. Estava a soluçar e a tremer. Mas não queria recuperar a minha compostura; o meu espírito estava simplesmente demasiado cheio para ser contido e já não havia necessidade de me controlar. Nos braços dele, podia ser aquilo que mais desejava.
Ele passou‑me as mãos pela cabeça e depois dobrou‑se e beijou‑me na testa. Estiquei o braço e apertei‑lhe a mão com toda a força, como se quisesse certificar‑me de que ele era real.
‑ Sim, estou aqui ‑ disse‑me ele.
Esther entrou e veio ajoelhar‑se a meu lado.
‑ É Meia‑Noite ‑ murmurei‑lhe.
‑ Eu sei.
Levantei‑me então e fiz a pergunta que tinha tido medo de fazer durante toda a minha vida adulta:
‑ És capaz de me perdoar? Ele sorriu.
‑ Não há nada a perdoar, meu pequeno gemsbok. Estou muito, muito contente por te ver. Obrigado por teres vindo procurar‑me. ‑ Estendeu a mão e tocou‑me na cara. ‑ Estás igual a quando eras um rapazinho. Só um bocadinho mais alto ‑ comentou rindo.
‑ Perdi o braço quando fugia com os escravos de River Bend. Fez‑me uma festa no coto.
‑ Isso é uma coisa muito má. Lamento muito. Iremos dançar pela tua perda. Mas a verdade é que vais passar optimamente sem ele. Calculo que já o deves ter descoberto porque foste sempre muito rápido a aprender.
Assenti com a cabeça. Agarrei‑me ao ombro dele para me apoiar e comecei outra vez a chorar. Devia estar a dar um belo espectáculo.
Como eu não tinha sido capaz de pensar como devia ser, Esther disse a Meia‑Noite:
‑ Morri está viva e na escola dela. Tem estado à tua espera.
E foi assim que Meia‑Noite e a filha se voltaram a reunir na nossa casa nessa mesma tarde. Depois de terem chorado juntos, dei a Meia‑Noite a sua velha roca e o abraço que Benjamim lhe mandara. Ficou doido de alegria por os receber, mas muito triste com a notícia da morte do boticário. Falámos de Benjamim e das Irmãs Oliveira durante um bocado e eu contei‑lhe como Graça tinha sido morta. Morri já lhe tinha contado o triste destino de Weaver. Sobre o meu pai, a única coisa que lhe disse naquela altura foi que ele tinha morrido há muito tempo, durante a ocupação francesa do Porto.
Meia‑Noite chorou lágrimas silenciosas quando ouviu aquilo e tremeu durante algum tempo enquanto eu o abraçava, garantindo‑me que nem o odiava nem o recordava com rancor. Depois fumou o seu cachimbo à lareira e contou‑nos como tinha desaparecido e como tinha acabado por nos encontrar.
Como é evidente, eu estava preocupado com a primeira vez que ele visse a minha mãe. E, de facto, inicialmente, as coisas foram difíceis entre os dois. Calculei que eles deveriam ter muito para conversar e que iriam ser precisas várias semanas para se sentirem à vontade numa nova forma de amizade. Mas agora, havia tempo.
Suponho que nunca terei a certeza absoluta do que desejo para eles. E, às vezes, quando os vejo juntos, ainda penso no meu adorado pai e em tudo o que poderia ter sido.
Eu não consegui estar longe de Meia‑Noite nessa primeira tarde enquanto ele nos contava o seu desaparecimento de River Bend. Sentei‑me ao lado dele e passei o meu braço por cima do ombro dele. Ele manteve a mão apoiada na minha coxa, o que era um grande conforto. Morri sentou‑se aos pés dele. A minha família instalou‑se à nossa volta.
Para grande estupefacção nossa, o boximane disse‑nos que os índios eram os responsáveis pelo seu desaparecimento. Muitos anos antes, em 1814, cinco índios Creek tinham entrado a cavalo em River Bend e, em troca de uma fortuna em peles, o Grande Patrão Henry tinha autorizado que Meia‑Noite tentasse curar o curandeiro moribundo. Neste esforço, ele tinha tido um êxito total e isto tinha‑lhe granjeado, como era natural, uma grande fama entre os clãs creek do Sul. Mais tarde, em Dezembro de 1820, a mulher grávida do chefe de um clã nas montanhas da Georgia adoeceu gravemente. Este chefe era filho do poderoso chefe cujo curandeiro tinha sido salvo por Meia‑Noite. Ele enviou imediatamente um grupo para River Bend a fim de trocar mais peles pela autorização para levar temporariamente o boximane para a Georgia. Contudo, os tempos tinham mudado. Os índios estavam a perder poder e território a cada dia que passava. Lidar com eles de forma civilizada já não era considerado um mal necessário pelos colonos e pelos donos das plantações. O Patrão Edward expulsou os emissários índios da plantação dizendo que em circunstância alguma aceitaria dispensar Meia‑Noite nem que fosse por um só dia.
Nesta altura, os índios não pediram mais favores. Quatro guerreiros a cavalo apanharam Meia‑Noite no dia vinte e um de Janeiro em Porters Woods, quando ele andava a perseguir abelhas que voavam para os seus cortiços. Os homens cobriram cuidadosamente as pistas e cavalgaram a toda a velocidade para a Georgia. Não encontraram oposição nenhuma no caminho, principalmente por estarem fortemente armados e por seguirem por trilhos que não eram utilizados com frequência pelos brancos.
Meia‑Noite ficou mais de dois meses junto da mulher doente, desde o quinto até ao sétimo mês de gravidez, tratando‑a com essências e chás. Embora não a tivesse conseguido salvar, conseguiu que ela desse à luz uma criança saudável, um rapaz. Por isso, o chefe concordou em lhe garantir uma fuga segura do território da escravatura.
Todavia Meia‑Noite insistiu em ir primeiro libertar a filha. Vestido como um índio, foi escoltado até River Bend por um grupo de doze guerreiros. Um batedor, de sangue negro e creek e que falava bom inglês, introduziu‑se uma noite na plantação e perguntou por Morri. Tinha sido este homem que mais tarde tinha sido descrito a Morri como um mulato.
Tal como o Patrão Edward pretendera, o batedor foi informado de que Morri tinha morrido recentemente de doença. Meia‑Noite insistiu em ver o túmulo dela com os seus próprios olhos. Enganado pelo marcador de madeira, ficou convencido de que ela estava de facto morta, provavelmente assassinada por vingança pelo próprio Patrão Edward e pediu aos índios que o levassem para lá das fronteiras da escravatura, bem para o interior do deserto que ficava a ocidente do Território do Arkansas. Já não queria viver nos Estados Unidos.
Meia‑Noite passou os quatro anos seguintes a seguir as chuvas e os relâmpagos nas montanhas e nos desertos do Sudoeste americano, vivendo como os boximanes tinham vivido durante milénios.
‑ Eu andava devagar ‑ disse‑nos ele. Sorriu para a filha e acariciou‑lhe o cabelo.
‑ E chorei pela minha Morri em silêncio, sem falar durante muitos meses. Mas fui para muito longe. Depois o Louva‑a‑deus veio ter comigo e, juntos, andámos entre os dedos do gunga, e foi muito, muito bom.
Na Primavera de 1825, desejoso de ter outra vez companhia, dirigiu‑se para um acampamento temporário de comerciantes, caçadores de peles e prospectores, a uns setenta quilómetros a oeste de Independence, Missouri, ao longo do Trilho de Santa Fé. Um caçador de peles judeu, de Cincinnati, chamado Mordecai Levi, ficou atónito e muito satisfeito por ele conhecer histórias da Tora e convidou‑o para o acompanhar nas suas excursões. Meia‑Noite estava a viver com Levi numa cabana de madeira há quatro meses quando o velho aventureiro reparou num anúncio curioso num exemplar da Cincinnati Gazette que lhe tinha sido mandado pela irmã mais velha. Ele tinha ouvido muitas vezes a saudação do boximane ‑ Vimos‑te de longe e estamos a morrer de fome ‑ e percebeu imediatamente que um anúncio que incluía estas palavras só podia ser destinado a Meia‑Noite. Mostrou‑lhe o jornal.
‑ És um rapaz esperto ‑ disse‑me então o boximane, sorrindo e dando‑me uma palmadinha no joelho. ‑ Eu compreendi logo‑logo o que é que tu querias dizer pela pena linda. Comecei a andar nesse mesmo dia.
‑ Vieste a pé todo o caminho até aqui? ‑ perguntou a minha mãe.
‑ Exactamente ‑ respondeu ele com um grande sorriso.
‑ Devem ser mais de quinhentas léguas. Em quantos meses?
‑ Três. Vim devagar porque a terra é muito, muito bonita e eu sabia que Morri estava em segurança com John. Como sempre, o Louva‑a‑deus não parava de me repetir: Vai devagar. ‑ Soltou uma gargalhada. ‑ E eu assim fiz. Não estava disposto a arriscar‑me a outros vinte anos de sarilhos para cá chegar.
Nem Meia‑Noite nem eu conseguíamos dormir nessa primeira noite do nosso reencontro; por isso ficámos sentados a conversar até muito depois de os outros se terem ido deitar. Quando o interroguei sobre as suas experiências como escravo, ele meditou nas palavras durante muito tempo.
‑ É qualquer coisa como uma pedra por dia, John ‑ respondeu finalmente.
‑ Não percebo.
‑ Não sei se consigo explicar tudo o que significou para mim, mas .para já vou dizer‑te apenas isto... o patrão entrega‑te uma pedra todos os dias e tu aceitas e mete‑la no teu bolso. Fazes isso muito, muito cuidadosamente, porque não queres que ele se zangue. ‑ Meia‑Noite fingiu que estava a receber uma pedra e depois colocou‑a na palma da minha mão. ‑ Mas, John, depressa ficas sem bolsos. Mas não tens licença para as pousar no chão, por isso, o que é que fazes?
‑ Não sei.
‑ Começas a engolir as pedras. O teu estômago depressa fica cheio e tu começas a ficar doente e por isso deitas‑te. ‑ Esfregou a barriga.
- Só um dia de descanso, pensas tu, e tudo ficará melhor. Mas o patrão continua a dar‑te pedras. Porque ele meteu o seu dinheiro em ti e resolveu que não quer esperar nem um só dia que tu recuperes as forças. Tu dizes não, porque julgas que podes. Por isso, ele chicoteia‑te; o que faz com que fiques confuso‑confuso, uma vez que não sabes como viver uma vida onde não podes decidir nada. Nem sequer o Louva‑a‑deus te pode dizer como fazer isso. Ao fim de poucos meses, o teu espírito está tão pesado com as pedras que já nem consegue pôr‑se de pé. Por isso, como és bondoso, deitas o teu espírito. E deixas que ele seja coberto de pedras até não conseguir respirar nem mexer‑se.
‑ Então, quer dizer que estás enterrado vivo ‑ disse eu.
‑ Exactamente, John, mas só com uma pedra de cada vez.
Quando, mais tarde, nessa mesma noite, disse a Meia‑Noite que ele ter sido traído pelo meu pai parecia torná‑lo diferente dos outros escravos e o seu cativeiro ainda mais cruel, ele replicou:
‑ Não, John, não foi assim. Eu era exactamente como eles. Cada um dos escravos foi também traído. Pelo seu chefe, em África, que o vendeu por uns panos ou um mosquete. Pelos homens brancos que o acorrentaram e o fizeram atravessar o oceano nos porões dos barcos deles. Pelos donos das plantações que o compraram e o puseram a trabalhar nos campos deles. ‑ Abriu muito as mãos e depois juntou‑as como se quisesse abarcar o mundo inteiro. ‑ Até por esta época em que vivemos que permite que estas coisas aconteçam.
‑ É por isso que não odeias o meu pai? Que lhe consegues perdoar?
‑ Em parte, embora perdoar não seja a palavra correcta.
‑ Então qual é?
Ele deu uns estalidos na sua própria língua, o que me fez franzir o sobrolho.
‑John, tu sempre quiseste ter respostas claras e, por vezes, não há nenhuma ‑ sorriu e deu‑me umas palmadinhas na perna. ‑ O teu pai não me traiu apenas a mim, mas o mundo todo ‑ todos os homens e todas as mulheres e todas as criaturas da floresta ‑ e até ele próprio. E mais do que tudo, o próprio Louva‑a‑deus. Mas isso só foi possível por causa de forças e poderes que estavam muito para além dele. Levei anos a ver isso com clareza e a ver a minha própria traição a ele a essa mesma luz. Tu queres, eu sei, ouvir‑me dizer que o desprezava. Não te irei desapontar ‑ desprezei‑o, e durante muitos anos. Mas também o recordei com carinho.
Isso fez com que ainda fosse mais difícil viver com o que tinha acontecido entre nós. ‑ Deu uma longa passa no cachimbo. ‑ Todos nós pagámos pelos nossos erros durante muitos anos, e agora só desejava que o teu querido pai ainda estivesse vivo. Que bom homem ele era e como seria maravilhoso poder vê‑lo!
Deixou‑me sem palavras e, quando me sorriu tranquilizadoramente, soube que ele me estava a dizer que nunca mais precisaríamos de voltar a falar nestas coisas. Sabia que, só por isso, teria sempre uma grande dívida de gratidão para com ele.
Contudo, o seu raciocínio depressa desviou os meus pensamentos para a forma como Violeta também tinha sido traída pelo mundo. Os olhos dele, franzidos, começaram a examinar‑me para descobrir a causa do meu distanciamento repentino e eu contei‑lhe como tudo tinha corrido mal entre nós. Tentei não mostrar que tinha o coração destroçado, mas ele percebeu‑o perfeitamente e contou‑me uma história que eu nunca tinha ouvido:
‑ Era uma vez um pastor no Norte de Portugal que levou o seu rebanho para as pastagens mais verdes que conseguiu descobrir. À noite, dormiu num pequeno casebre de pedra ali perto. Mas, de manhã descobriu que uma das ovelhas tinha sido tosquiada. Não ficou satisfeito. E estava muito, muito intrigado. Na noite seguinte, aconteceu a mesma coisa.
Levantei‑me então da cadeira e sentei‑me nos calcanhares para ouvir a história mais confortavelmente. Meia‑Noite fez o mesmo. Ficámos frente a frente, separados apenas por cerca de dois passos. Parecia‑me que estávamos na sua terra natal deserta e que nunca mais nos voltaríamos a separar.
‑ O pastor ficou furioso. Como era esperto, ficou acordado na terceira noite e viu as Mulheres do Céu descerem das estrelas por uma corda que tinham tecido do ar. Viu‑as agarrar numa das ovelhas e tosquiá‑la. Então, saltou para fora do seu esconderijo e correu atrás delas até que apanhou a mais bonita de todas. Casou com ela. E, a partir desse momento, nunca mais teve problemas com as Mulheres do Céu.
‑ Deve ter tido alguns, senão não me estarias a contar isto ‑ comentei eu rindo.
‑ Obrigado, John, por chamares a atenção para isso ‑ replicou ele, os olhos radiantes de alegria.
‑ Ora bem, havia apenas um problema ‑ continuou ele. ‑ A mulher possuía um lindo cesto de vime e ele não conseguia ver nada do que lá estava dentro por causa da tampa. Antes de ela aceitar casar com ele, obrigou‑o a prometer que nunca levantaria a tampa para espreitar lá para dentro ‑ pelo menos, até ela lhe dar licença para o fazer. ‑ Meia‑Noite ameaçou‑me com o punho. ‑ Ela avisou‑o que se ele desobedecesse aos desejos dela, um destino terrível poderia estar à espera deles. Contudo, à medida que o Verão ia passando, a necessidade de saber o que lá estava punha‑o nervoso. Um dia, quando a mulher não estava em casa, ele...
- Tirou a tampa ‑ disse eu.
O boximane retorceu os lábios comicamente, franziu o nariz e olhou em volta como se receasse estar a ser observado por olhos atentos. Então, depois de ter espreitado para dentro do cesto imaginário, inspirou o fumo do seu cachimbo durante mais tempo do que parecia ser possível, como se estivesse a inalar as palavras da história. Farrapos de fumo saíam-lhe pelo nariz e pelas orelhas.
‑ Quando a mulher voltou ‑ continuou Meia‑Noite ‑, percebeu o que o marido tinha feito. Começou a chorar, acusando‑o de ter espreitado para dentro do cesto.
O pastor disse‑lhe: «Como és tola a derramares essas lágrimas por causa de uma insignificância. Não havia nada no cesto. Estava completamente vazio.»
«O que queres dizer com isso de vazio?», perguntou‑lhe a mulher. «É precisamente, precisamente o que eu quero dizer. Não havia nada lá dentro.»
Meia‑Noite bateu as palmas, fazendo‑me dar um salto.
‑ É isso, John ‑ disse ele ‑, foram as últimas palavras que o pastor disse à mulher pois ela estendeu a mão para o sol vermelho e dourado que se punha, agarrou na extremidade de uma corda celestial e voltou a subir para o céu.
‑ E...? ‑ perguntei eu.
‑ E nada ‑ respondeu ele sorrindo.
‑ Acabou?
‑ Sim, acabou.
Enquanto eu me esforçava por compreender o que é que aquilo queria dizer, ele bateu com o pé no chão.
‑ John, sabes por que é que ela se foi embora?
‑ Para o castigar por ser curioso?
‑ Não, não ‑ exclamou ele, franzindo a boca. ‑ Isso é a história judia de Adão e Eva. Isto é uma história boximane.
Quando abanei a cabeça, ele disse:
‑ Não foi por ele ter quebrado a promessa. Não foi por causa da curiosidade dele. A Mulher do Céu conhecia a nossa natureza e, claro, já estava à espera que ele fosse espreitar. Tal como o Deus da Tora está sempre à espera que Adão e Eva comam a maçã que lhes deixa. Não, a Mulher do Céu voltou as costas ao pastor porque ele encontrou o cesto vazio e se riu.
‑ Mas estava vazio.
‑ Não, na realidade o cesto estava cheio de coisas lindas‑lindas do céu, que ela lá tinha metido para ambos. Simplesmente, o pastor não as viu.
Meia‑Noite desenhou um círculo no ar com as mãos.
‑ John, uma vez o Louva‑a‑deus perdeu‑se. E andou por todo o deserto de África tentando encontrar a sua casa. Finalmente, exausto ao fim de muitos anos, desistiu. Foi só nessa altura que ele reconheceu a sua árvore e a sua folha.
‑ Meia‑Noite ‑ implorei eu ‑, já estou destreinado; por isso, explica‑me se fazes favor o significado disso ou eu desato a gritar e acordo a casa toda.
Apontou‑me dois dedos.
‑ A tampa do cesto são os teus olhos. Quando eu olho lá para dentro, vejo coisas lindas‑lindas ‑ tudo aquilo que lá puseste durante toda a tua vida. Até a Violeta que conheceste quando eras uma criança lá está. Está lá para ti sempre que a quiseres. Mas o segredo é que ela não pode sair para este mundo. O destino dela é permanecer só dentro de ti. De facto, sempre que tentas fazê‑la sair, ela morre.
No dia seguinte, contei esta história à Mamã. Acho que ela a fez ter vontade de me falar de Meia‑Noite pela primeira vez. Mas antes disso, tocou o segundo andamento da sonata «Appassionata» de Beethoven com uma delicadeza e um recolhimentos incomparáveis, como se estivesse a criar uma nova e delicada forma de vida com as notas ‑ um ser etéreo feito de música.
Sentei‑me ao lado dela para lhe virar as páginas. Quando ela acabou, eu estava tão arrebatado que lhe disse que ela era um génio. Ela riu‑se.
‑ John, és um amor, mas estás a confundir‑me com o Senhor Beethoven.
‑ Não, Mamã, a genialidade dele chegou‑me através de si; por isso, não há nenhuma diferença.
Os olhos dela humedeceram‑se e ela disse‑me:
‑ Isso é, sem dúvida nenhuma, a coisa mais bonita que alguma vez me disseram. Sabes, às vezes penso que bastava escutarmos um pouco mais o Senhor Beethoven e o Senhor Mozart para as coisas serem todas muito melhores. Mas não ouvimos realmente o que eles nos querem dizer. Não, realmente não. ‑ Afastou‑me uns cabelos da testa. ‑ Acho que não sabia o que eles estavam de facto a dizer até ter chegado à tua idade.
‑ E o que é que eles estão a dizer, Mamã?
‑ É segredo ‑ respondeu num murmúrio, sorrindo como uma menina.
‑ Não contarei a ninguém, juro.
‑ Bem, John, só te vou dizer a ti, uma vez que os outros iriam achar que eu era doida. Todos os grandes compositores estão a dizer‑nos com os seus acordes e melodias ‑ e até nos silêncios entre as notas ‑ que a vida é longa, mas não tão longa como nós julgamos ao princípio. E que também vai ser muito mais dura do que alguma vez imaginámos; por isso, devemos criar toda a beleza de que formos capazes enquanto cá estivermos e ajudar todas as pessoas a quem amamos a fazer a mesma coisa. Também devemos ouvir‑nos uns aos outros da mesma forma como os ouvimos a eles ‑ isso é muito, muito importante. E devemos ter a coragem de lutar contra tudo que comprometa a nossa própria beleza ou que, de alguma maneira, a possa prejudicar. Todos os compositores verdadeiramente grandes estão a preparar‑nos para vivermos correctamente e a dar‑nos coragem para seguirmos com as nossas vidas o melhor que pudermos, mesmo que tenhamos cometido os erros mais imperdoáveis ‑ como eu, Meia‑Noite e o teu pai.
Limpei as minhas lágrimas, explicando:
‑ E só que com Meia‑Noite aqui... e aquilo que a Mamã acabou de dizer...
‑ Sim, nós passámos todos por tempos difíceis. Mas também tivemos sorte. Sabes, cada vez estou mais convencida que, apesar de todas as mortes que conhecemos, tivemos a possibilidade de conhecer as pessoas mais maravilhosas... e de estarmos um com o outro, claro. E agora, com Meia‑Noite de volta, é como se pudéssemos finalmente fechar uma porta velha e enferrujada atrás de nós e entrarmos juntos no futuro, traga‑nos ele o que trouxer. Isso foi obra tua, John. Obrigada. Tenho um orgulho imenso naquilo que conseguiste realizar.
‑ Alguma vez pensa no que aconteceu entre si e Meia‑Noite?
‑ Oh, sim, claro. Fui tão tola em ter tratado das coisas da maneira que tratei. Eu não me compreendia a mim mesma, quanto mais ao teu pai ou a ele. E sei que o teu pai também não se compreendia a si próprio ‑ vejo isso agora. Pelo menos , até já ter sido tarde de mais. John, queres saber o que mais me preocupa na minha vida?
‑ Claro.
‑ Aprendemos tantas coisas quando envelhecemos. E, todavia, todo esse conhecimento... tudo isso, desaparece quando morremos. Parece‑me um desperdício tão horrível.
‑ A não ser que o passe aos outros.
‑ Sim, a não ser que façamos isso, mas não é assim tão fácil. Se calhar, até nem é possível. Provavelmente, as lições mais importantes temos de ser nós próprios a aprendê‑las sozinhos.
‑ Mas se tudo aquilo que diz sobre os maiores compositores for verdade, então as suas lições de música podem ser muito importantes nas vidas dos alunos.
‑ Também penso isso, John. Pelo menos, é por isso que as dou.
‑ Já falou com Meia‑Noite sobre o que se passou entre si e o pai... e o que o Papá lhe fez a ele?
‑ Sim, já tivemos algumas oportunidades para conversar a sério. Meia‑Noite também envelheceu, e eu acho que ambos vemos os erros que cometemos. Mas não podemos voltar ao passado para mudar a forma como as coisas aconteceram, por isso temos de nos limitar a continuar a andar. Foi isso que ele me disse e eu acho que ele tem razão.
‑ A Mamã pediu‑me para lhe dar uma partitura de Mozart.
‑ Quanto a mim, John, vou também continuar a tocar, a ouvir e a ensinar o melhor que posso.
Dando‑nos ao Mundo
Só passaram TRÊS DIAS desde que ele chegou e é quase impossível acreditar que ele está aqui. Usa um colchão de palha no meu quartinho. Dorme pacificamente. E, tal como ontem, vai acordar esta manhã a querer ver Nova Iorque de uma ponta à outra. Às vezes, sento‑me ao lado dele, com as minhas mãos em cima do seu peito adormecido. Ontem à noite, olhei para ele durante muito tempo na escuridão cor de pérola da Lua que há tanto tempo atrás disse à nossa gente que somos seres eternos. Acreditei que era verdade enquanto o observava.
Não consigo acompanhá‑lo enquanto ele corre pela cidade. Não sei como é que ele consegue andar tão depressa com os tendões dos calcanhares aleijados. Ele volta‑se para trás para olhar para mim e ri‑se. Eu gemo e faço‑lhe sinal para continuar a andar.
Nunca imaginamos como a vida é estranha antes de passarmos por um desgosto sério e uma grande confusão. Eu era órfã e depois fui adoptada por John e agora tenho outra vez o meu papá. Isto quase me faz acreditar que tudo é possível. O Papá diz que isso é a crença mais poderosa de todas.
Pus aqui o quase porque as coisas ficaram muito sujas com William Arthur quando eu deixei de ter as minhas regras há umas dez semanas. Ele gritou‑me de uma maneira horrível e começou a dizer‑me o que é que eu tinha de fazer com o bebé que crescia dentro da minha barriga. Acusou‑me de «ter roubado a semente dele».
Deixei‑o seguir o seu caminho. Porque eu sei o que é roubar e nunca roubei nada dele.
Hoje em dia, ele limita‑se a ser bem‑educado para comigo na escola. Mas agora isso é a única coisa que quero dele.
Tenho as crianças na minha sala de aula para educar e tenho John e a família dele, e tenho o Papá e isso chega‑me.
Acho que não estou disposta a obrigar‑me a fazer coisas que não quero até ficar transformada num nó só para ficar com um homem. Mesmo com um bom. Seja como for, preciso de muitas horas para mim. O que aconteceu entre nós até pode não ter sido culpa dele. Ou minha. Mas eu não fugi de River Bend e vi Weaver morrer no seu próprio sangue para começar outra vez a receber ordens.
Depois de ter deixado de ver William, comecei a gostar de estar sozinha ‑ a gostar disso mais do que nunca. Suponho que sou uma jovem muito peculiar.
A geografia também é importante. Tenho de me lembrar de dizer isso às crianças. Se estivéssemos a viver a apenas cem léguas a sul daqui, seríamos todos escravos. Penso que um dos nossos objectivos devia ser tornar os mapas e as fronteiras menos importantes ‑ para toda a gente em todo o sítio.
Há muita coisa que não compreendo. Mas só tenho dezassete anos. O Papá diz que muitas coisas ainda devem ser misteriosas para mim porque são misteriosas para toda a gente. John disse‑me que é uma tradição judaica que alguns ensinamentos perigosos só sejam ensinados a pessoas com mais de quarenta anos.
O que eu quero compreender acima de tudo é como tudo isto estava à minha espera em Nova Iorque e eu não sabia. Não podemos predizer o futuro, lá isso é verdade, mas eu não tinha a mais pequena ideia da vida que um dia iria ter.
Por causa disso, acabei por acreditar que todos temos milhares de possibilidades armazenadas dentro de nós, cada uma delas como uma lagarta dentro de um casulo gigantesco. Há muita gente que se recusa a acreditar nisso, mas a vida que sai de nós é moldada por muito mais do que as circunstâncias, não quer dizer que eu não tivesse as mesmas asas e as mesmas manchas e, até, as mesmas cores, se ainda estivesse a viver em River Bend. Acho que seria muito parecida com o que sou agora. Mas estaria muitíssimo diminuída. Para já, não estaria a ensinar, não estaria a devolver nada ao mundo, o que agora me parece a coisa mais importante.
Penso que isso é a coisa mais triste da escravatura: não nos é permitido darmo‑nos ao mundo. Li isso num livro que John me deu sobre o significado oculto da escravatura. Foi escrito pelo feiticeiro judeu com quem o Papá trabalhou em Portugal, Benjamim. E eu acho que ele tem razão.
Estou grata por agora ter essa possibilidade. Estou grata à Mamã, ao Papá e a tantos outros. A Lily também. E a Crow, claro ‑ o meu lindo e corajoso Crow. E também a Weaver, que morreu para eu estar aqui. E a John.
E, muito estranhamente, até estou grata ao Patrão Edward, a Mistress Holly e até ao Grande Patrão Henry ‑ a todos os brancos de River Bend, pois eles ajudaram a tornar‑me naquilo que sou.
Vou andar devagar, como o Papá me está sempre a dizer. Vou agarrar em todas as coisas que puder e depois devolver tudo o que tenho às minhas crianças ‑ à pequenina que está a crescer dentro da minha barriga, também.
Memória Tsamma Stewart Nova Iorque, 17 de Outubro de 1825
Não, eu Não sou um caçador no sentido vulgar da palavra. Mas encontrámo‑nos um ao outro. Violeta disse às minhas filhas para me dizerem que o tínhamos feito à luz do Arqueiro, e eu acho que ela tem razão.
Ainda há tanta coisa que eu não compreendo a respeito dela. Espero que a nossa vida separados um do outro possa ter o resultado que ambos gostaríamos que tivesse. Quando lhe escrevi um bilhete a dizer‑lhe que Meia‑Noite nos tinha encontrado, contei‑lhe um bocadinho do que ele me dissera sobre a escravatura. Ela escreveu‑me em resposta: Um único acto de crueldade pode levar uma vida inteira a reparar ‑ e, às vezes, nem sequer chega a vida inteira. E como se tivéssemos uma hipótese de sermos e se nos desviarmos nem que seja um passo, ficamos perdidos. Nós aprendemos isso da maneira mais difícil, tu e eu. Como pós‑escrito, acrescentou: Achas que algumas pessoas até acabam por gostar do sabor das pedras?
Não foi apenas Meia‑Noite, também Berequias Zarco me encontrou, viajando através de três séculos para me ajudar quando caí na escuridão. Pode ter sido apenas uma visão resultante do meu delírio, mas também é verdade que ele, enquanto meu antepassado, vive dentro de mim. Nesse sentido muito real, ele viajou de facto para o futuro e eu sou o seu veículo.
Neste momento, ao pensar nele, pergunto a mim próprio o que gostaria de deixar depois da minha morte, para os meus descendentes, tal como ele me deixou as iluminuras da capa do manuscrito. Talvez escolhesse o retrato de Meia‑Noite que fiz em Alexandria a fim de o encontrar. Penso que qualquer pessoa que olhasse para ele reconheceria que eu tinha feito o meu melhor para captar a beleza de uma pessoa com as minhas modestas capacidades.
As Irmãs Oliveira teriam dito que eu tinha conseguido habitar o meu desenho. Talvez agora eu seja suficientemente bom para executar o painel de azulejos dos escravos dos campos. Veremos.
Quando eu tinha sete anos, aprendi nas Fábulas da Raposa que Aquele que persegue o mal, persegue‑o até à sua própria morte.
Mas e o bem? Seria ele de algum modo capaz de restaurar a vida? Não posso afirmá‑lo, claro, mas começo a suspeitar que a bondade é o único milagre ao alcance das mãos humanas: Que aquele que persegue o bem possa unir aquilo que há muito está separado.
Soube isso no minuto em que vi Meia‑Noite parado à minha porta.
E quanto àquela velha raposa generosa que escreveu as suas fábulas para que um dia um traquinas de um rapazinho de sete anos do Porto as pudesse ler? Ter‑me‑ia ela sempre querido dizer: Aquele a quem armaram ciladas e perseguiram, quando libertado, poderá realizar muito mais... ?
Não quero deixar as minhas filhas, Morri, Meia‑Noite e a minha mãe, mas, se eu soubesse que estava prestes a partir desta vida, sentiria que tinha conseguido realizar alguma coisa. Isso é, penso eu, tudo o que nós todos precisamos de saber.
Acreditamos que somos criaturas do tempo, do espaço e de um lugar específico, quando não somos nada disso. Nestas últimas noites, tenho estado sentado no escuro, virado para Jerusalém, e vi isso com toda a clareza. Senti‑me a libertar‑me deste corpo, a descartá‑lo como um membro‑fantasma. As margens abrem‑se e eu estou fora de mim, a pairar como música. Não sei onde estou. Não estou em lado nenhum. E sei que não sou em nada diferente de Meia‑Noite.
De facto, sou todos os tons e todos os acordes. Todos o somos, ou não os poderíamos ouvir nos nossos ouvidos quando não há nenhuma música a tocar. Tudo que existe no mundo tem um cognato no nosso interior. Até o mais pequeno dos átomos.
A esperança utilizou‑me totalmente. Não que eu esteja acabado. Não, penso que ainda tenho mais uma viagem para fazer. Embora, não saiba muito bem qual é a sua natureza, consigo sentir que estou a ser puxado por forças maiores do que eu. Pelo mundo, se preferirem. Ou pelas minhas filhas que contêm a mãe delas e a mim dentro de si e que, sem dúvida nenhuma, desejam que eu continue com elas mais algum tempo. Não acredito que haja uma vida eterna a seguir a esta, nem que nos vamos todos erguer no Monte das Oliveiras quando o Messias chegar. Pois o segredo é este:
O Messias está aqui agora e nós já estamos a viver no Monte das Oliveiras.
Essa é a lição mais importante que aprendi durante a minha viagem à procura de Meia‑Noite.
E assim, a vida é escrita no tempo presente, com a tinta que nos foi legada pelo passado. A morte também. O Génesis e o Êxodo estão a acontecer dentro de nós neste preciso momento. Até a Paixão de Cristo. E é bom que estejam, pois nós não quereríamos esperar. Por que é que haveríamos de querer?
Engole a noite!
Foi o anjo Rafael que disse a Tobias: «Escreve todas estas coisas que te aconteceram.»
E para agradecer, tal como Tobias, foi isso que fiz.
Pai, agora podes voltar para nós. Continuaremos a viagem juntos e tu podes agarrar na minha mão. Pediremos perdão a Meia‑Noite. Sei que és um homem bom, tal como sei que cometeste um acto monstruoso. Tenho as cartas que escreveste para tentares compensar o que tinhas feito e sei que te arrependeste daquilo que fizeste. Não sei qual poderá ser a lição da tua vida e da tua morte, excepto que todos nós fazemos coisas terríveis quando o Tempo da Hiena desce sobre nós.
Talvez um mal como aquele que fizeste não possa ser perdoado, nem sequer por aqueles que prejudicaste, uma vez que é uma abominação contra a própria vida. Mas, se tivermos sorte, então poderemos bani‑lo do tempo presente e consigná‑lo para sempre ao passado. Meia‑Noite garante‑me que o fizemos. Ele recorda‑te com carinho.
Se estás morto há todos estes anos, Papá, como deve ser realmente o caso, então dir‑te‑ei isto, uma vez que sempre viveste dentro de mim:
Vimos‑te de longe e estamos a morrer de fome. Estás redimido e podes ir em paz.
John Zarco Stewart Nova Iorque, 17 de Outubro de 1825.
Richard Zimler
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