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Dostoiévski sai do presídio em 1854, mas estas memórias só principiam a vir a lume em 1860, na revista Mundo Russo, de Stolóvski. Entretanto publicou, como vimos, O pequeno herói, A granja de Stiepántchikovo, O sonho do tio, que passam ainda despercebidos. A sua ressurreição no mundo das letras só é epocalmente reconhecida com as Memórias da Casa dos Mortos, que foram literariamente um êxito e abrem uma nova fase na vida criadora do escritor, pois a sua dolorosa estada no presídio foi uma das mais extraordinárias da sua experiência humana. Não que essa estada tenha criado no espírito de Dostoiévski tendências novas que nele não existissem ainda. O seu amor e a sua compreensão da humildade dos humildes; os seus fundamentais problemas éticos e metafísicos, e a sua inclinação para a penetração psicológica das almas, a paixão com que vive e contempla a vida, a atração pela aproximação das complexidades contraditórias da natureza humana, que se afundam no crime e ascendem à santidade, ou pelo menos ao martírio do remorso e ao gozo da expiação — não foram criados pelo convívio íntimo de quatro anos com os desgraçados, com os forçados do presídio siberiano; tudo isto faz parte do seu gênio. O que poderemos dizer é que o presídio revelou Dostoiévski a Dostoiévski. Até aí ele roçara somente pelos desgraçados, nas ruas de Petersburgo, e adivinhara-lhes a alma por intuição, por simpatia; no presídio ele viu essa alma, tocou-lhe, a ponto de sentir um terror místico perante os grandes criminosos sem consciência, sem problemas de mal e de bem; será do presídio que ele há de trazer as grandes linhas de travejamento dos seus futuros romances, em primeiro lugar de Crime e castigo, e o seu conhecimento do povo russo, que vai passar a considerar como fundamentalmente bom e generoso.
Durante esses quatro anos de cativeiro e trabalhos forçados, Dostoiévski, às escondidas, foi tomando nota de cenas a que assistia, de diálogos que ouvia, e das suas próprias impressões, e foi dessas notas que resultaram descrições admiráveis, como as do hospital do presídio, com a sua higiene duvidosa, os seus moribundos algemados e os infelizes que chegam de olhar alucinado e dorso dilacerado pelo suplício atroz das vergastadas; do inferno dos banhos de vapor dos presos, chafurdando numa promiscuidade de corpos deformados; de certos tipos de presidiários com quem conviveu mais de perto, como o enigmático Pietrov, o meigo e belo Ali, o rotineiro e formalista Akim Akímitch e o facinoroso major, comandante da guarnição... Enfim, todo o ambiente fétido e asfixiante dos alojamentos, com os homens deitados sobre pobres tábuas infectas, minados pelos insetos, agitados pela insônia, convulsionados pela embriaguez... As rixas, os insultos, as invejas, o ódio dos plebeus pelos nobres... A ânsia de liberdade, a festa do Natal, os projetos de fuga... Escritas como uma reportagem, com toda a objetividade, essas “memórias” não representam, entretanto, uma catarse total para o escritor, de tudo quanto viu, ouviu e sentiu no terrível presídio. Como diz Henri Troyat, ao falar da revelação que foi para ele o presídio: “Dostoiévski viu o mundo. Descreveu-o magistralmente. Mas só apresentou o dinheiro miúdo do seu tesouro. Desembaraçou-se dele como quem atira o lastro. Uma vez realizado esse gesto, pode tomar altura. Pode desprender-se do pitoresco siberiano, esquecer os crânios rapados, as faces devastadas, as conversas ordinárias, para só pensar na lição inefável do presídio: transmitir o que aprendeu. E a vida inteira não lhe chegará para levar a cabo semelhante tarefa.”
MEMÓRIAS DA CASA DOS MORTOS
(1860)
INTRODUÇÃO
Nas remotas regiões da Sibéria, no meio da estepe, de montanhas e de bosques impenetráveis, encontram-se às vezes povoações de mil e até de dois mil habitantes, com casas de madeira desmanteladas e com duas igrejas — uma na povoação e a outra no cemitério —, povoações que se assemelham mais a fazendas dos arrabaldes de Moscou do que a aldeias; de maneira geral contam até com comissários de Polícia, conselheiros e outros funcionários subalternos. Na Sibéria, apesar do frio, o serviço é quase sempre moderado e as pessoas levam uma vida simples e com poucas liberdades; seguem regras antigas, sólidas, consagradas pelos séculos. Os funcionários, que na realidade desempenham o papel da nobreza siberiana, são indígenas, siberianos de origem ou vindos da Rússia, na sua maior parte da capital, seduzidos pelo ordenado certo, o pagamento dobrado e as sedutoras ilusões para o futuro. Entre eles, aqueles que conseguem decifrar o enigma da vida, quase sempre ficam na Sibéria e aí se fixam com prazer. Depois acumulam riquezas, recompensas saborosas. Mas os outros, gente desorientada e que não sabe penetrar o enigma da existência, depressa se cansam da Sibéria e a si próprios perguntam tristemente qual o motivo por que foram atraídos para aí. Aguardam com impaciência o fim estipulado do seu serviço — três anos —, pedem imediatamente a transferência e regressam a suas casas, falando mal da Sibéria e troçando dela. Não têm razão, pois não só do ponto de vista do serviço, como em muitos outros, se pode abençoar a Sibéria, que tem um clima excepcional, é notável pelos seus ricos e hospitaleiros mercadores e pelos seus dignos habitantes. As moças têm uma linda cor e são muito honestas. As aves de caça voam pelas ruas e vão cair nas mãos do caçador. O champanha bebe-se mais do que se deve. O caviar é maravilhoso. Em algumas fazendas tiram-se cinco colheitas... De maneira geral, a terra é de uma fertilidade espantosa. O que é preciso é saber aproveitá-la. E na Sibéria sabem fazê-lo.
Foi numa dessas aldeiazinhas alegres, que se provêm a si próprias, muito bem situadas, cuja recordação se conserva indelével no meu coração, que vim a conhecer Alieksandr Pietróvitch Goriântchikov, colono, pertencente à nobreza da Rússia e proprietário, que depois foi presidiário de segunda categoria1 por ter assassinado a mulher, e até ao término dos dez anos de presídio impostos pela lei levava uma existência plácida e ignorada, como colono, na cidade de K***. Verdadeiramente, estava adscrito a uma comuna suburbana, mas vivia na aldeia, onde tinha oportunidade de ganhar alguma coisa, o que o ajudava a manter a sua casa, dando lições às crianças. É frequente encontrar na Sibéria professores que são colonos forçados e que não são exigentes. Ensinam principalmente francês até onde é indispensável para a vida e do qual não teriam, nestas remotas regiões da Sibéria, a menor notícia a não ser por meio deles. Conheci Alieksandr Pietróvitch em casa dum velho funcionário, prestável e hospitaleiro, Ivan Ivânovitch Gvósdikov, pai de cinco mocinhas de várias idades e que prometiam todas vir a ser belas. Alieksandr Pietróvitch lecionava-as três vezes por semana, a 30 copeques de prata por lição. O seu aspecto exterior interessou-me. Era um homem extremamente pálido e seco, novo ainda, de uns 35 anos, baixinho e adoentado. Andava sempre muito bem-arranjado, vestia à europeia. Quando alguém falava com ele, ficava olhando a pessoa, fixa e atentamente; escutava com muita atenção todas as palavras que lhe dirigíamos, como se refletisse ao mesmo tempo, como se com a nossa conversa lhe apresentássemos algum problema ou quiséssemos arrancar-lhe um segredo e, finalmente, respondia com clareza e laconismo, pesando cada palavra da sua resposta, de maneira que se acabava por sentir um certo mal-estar e, por fim, todos se alegravam com o fim do diálogo. Dessa vez perguntei eu a Ivan Ivânitch pelo seu passado, e fiquei sabendo que Goriântchikov vivia de maneira irrepreensível e honesta; aliás, se assim não fosse, também Ivan Ivânitch não lhe teria confiado as filhas; apesar disso era um homem estranho. Escondia-se de toda a gente; era muitíssimo culto e lia muito, mas falava pouco e, de maneira geral, era difícil entabular conversa com ele. Alguns afirmavam que ele estava louco, embora reconhecessem ao mesmo tempo que isso não era nenhum defeito grave, e, por outro lado, a maior parte das pessoas importantes da cidade estava disposta a usar de todas as atenções para com Alieksandr Pietróvitch, a fim de que ele lhes redigisse as petições, etc. Calculavam que devia provir de uma boa família russa, talvez de elevada condição, mas sabiam que ele, desde que entrara para a colônia penal, cortara todo gênero de relações com ela. Numa palavra: que se tinha assim prejudicado. Entre nós, todos conheciam a sua história; sabiam que tinha matado a mulher, ainda no primeiro ano de casados; que a tinha matado por ciúmes e, depois, que ele próprio se tinha entreguado à Justiça, o que suavizara muito a sua condenação. Crimes deste gênero são sempre considerados como desgraças e tem-se sempre pena dos seus autores. Mas, apesar de tudo isto, esse homem extravagante fugia teimosamente de toda a gente e só aparecia junto dos outros para dar as suas lições.
A princípio não lhe liguei grande importância, mas não sei por quê, pouco a pouco fui-me interessando. Tinha qualquer coisa de enigmático. De conversar com ele não havia nem a mais leve possibilidade. É verdade que respondia sempre às minhas perguntas e até de uma maneira tal como se considerasse isso um dos seus primeiros deveres; mas depois das respostas tornava-se-me difícil continuar a interrogá-lo, pois refletia-se sempre no seu rosto, depois desses colóquios, um certo sofrimento e um certo cansaço. Lembro-me de uma vez em que eu saí, em sua companhia, por uma bela tarde de verão, da casa de Ivan Ivânovitch. De repente lembrei-me de convidá-lo para entrar um momento em minha casa e fumar um cigarro. Não sou capaz de descrever o espanto que transpareceu no seu rosto; ficou completamente atrapalhado, começou a murmurar palavras incoerentes olhando-me com maus olhos e deitou a correr para o passeio que ficava em frente. Eu me quedei espantado. A partir daí, sempre que se encontrava comigo olhava-me com uma espécie de medo. Mas eu não me conformava com isto; havia qualquer coisa nele que me atraía e, passado um mês, fui eu mesmo procurar Goriântchikov. É verdade que me conduzi nessa ocasião de maneira rude e pouco delicada. Ele vivia precisamente no limite da povoação, em casa de uma velha que tinha uma filha tuberculosa, mãe por sua vez de uma filha natural, uma garotinha de dez anos, muito gentil e alegre. Nesse momento, quando eu entrei no seu quarto, Alieksandr estava sentado junto dela e ensinava-a a ler. Quando me viu ficou de tal maneira perturbado, como se eu tivesse vindo propor-lhe algum crime. Atrapalhou-se, saltou da cadeira e ficou a fitar-me com uns olhos exorbitados. Finalmente sentamo-nos; ele seguia atentamente cada um dos meus olhares como se receasse descobrir neles algum segredo especial. Percebi que era extraordinariamente desconfiado. Olhava-me com aborrecimento, como se me perguntasse: “Mas quando te irás tu embora?” Pus-me a falar-lhe sobre a povoação, das notícias que corriam; ele abanava a cabeça e sorria, malicioso; não só parecia que ignorava as notícias mais correntes e conhecidas de todos na cidade, como também que não tinha nenhum interesse em conhecê-las. Falei-lhe depois do nosso país, das suas necessidades, ele me escutou em silêncio e olhava-me nos olhos de um modo tão estranho que cheguei a recear perder o fio à conversa. Além disso, pouco faltou para que o aborrecesse por causa de uns livros e jornais novos que eu trazia debaixo do braço, acabados de chegar pelo correio, quando lhos ofereci com uma certa hesitação. Fixou sobre eles um olhar ávido, mas mudou imediatamente de intenção e recusou a oferta, alegando que não tinha tempo para os ler. Finalmente, despedi-me dele e, quando saí de sua casa, parecia que trazia sobre o peito um peso insuportável. Sentia-me envergonhado e parecia-me uma vileza extraordinária desejar o convívio de um homem que procurava precisamente resolver o seu problema principal, isto é, a maneira de esconder-se de toda a gente. Mas o que está feito, feito está. Lembro-me de que não vi quase livro nenhum em sua casa e, portanto, não era verdade aquilo que diziam, que ele lia muito. Entretanto, quando por duas vezes passei, já noite avançada, em frente à sua janela, vi luz nela. Que faria ele acordado, assim, a altas horas? Não lia. Então que fazia?
Circunstâncias várias fizeram com que eu me afastasse da povoação por três meses. Quando regressei, soube que Alieksandr Pietróvitch tinha morrido nesse outono, na maior solidão, e que nem uma só vez tinha chamado o médico.
Na povoação, já quase todos o tinham esquecido, O seu alojamento estava vago. Pus-me imediatamente em comunicação com a dona da casa em que ele vivia, com o intento de conseguir alguns informes: a que se dedicava, concretamente, o seu hóspede? Talvez escrevesse... Por uma moeda de 20 copeques trouxe-me um cesto de madeira de tília cheio de papéis deixados pelo falecido. A velha confessou-me que já utilizara dois cadernos completos. Era uma mulher desabrida e taciturna, de quem era difícil obter respostas claras. A respeito do hóspede não podia dizer-me nada de novo. A avaliar pelas suas palavras, raramente fazia qualquer coisa, e passava meses e meses sem abrir um livro ou pegar numa pena; além disso levava a noite toda passeando, ora para um lado ora para outro, no quarto e, às vezes, até falava sozinho; gostava muito e fazia muitas festas à sua netinha, Kátia, sobretudo desde que soube que lhe chamavam Kátia; e ia sempre ouvir uma missa de réquiem no dia de santa Ekatierina. Visitas, não as suportava. Apenas saía de casa para dar lição às crianças; chegava a zangar-se com ela, com a velhota, quando ela ia uma vez por semana ao quarto para arranjá-lo e, durante três anos completos, quase nunca lhe dirigiu uma palavra. Perguntei a Kátia se ela se lembrava do seu professor. Ela me olhou em silêncio, encostou-se à parede e começou a chorar. Donde se via que até aquele homem encontrara alguém que gostasse dele.
A mulher trouxe os papéis e fiquei a lê-los todo o dia. Três quartas partes desses papéis estavam em branco, continham apontamentos insignificantes ou exercícios de caligrafia. Mas havia um caderno menor, bastante volumoso, escrito numa letra miúda e inacabado, talvez abandonado ou esquecido pelo próprio autor. Era uma descrição, embora incoerente, dos dez anos de vida de presídio que Alieksandr Pietróvitch sofrera. De vez em quando esta descrição era interrompida por outras narrativas, por estranhas e espantosas evocações, escritas com mão nervosa, convulsa, como debaixo de algum temor. Reli várias vezes esses passos e fiquei quase convencido de que tinham sido escritos por um louco. Mas os apontamentos do presidiário, Cenas da Casa dos Mortos, conforme ele os chamava em qualquer passagem do seu manuscrito, não me pareciam isentos de interesse. Todo esse mundo completamente novo, desconhecido até agora; algumas observações particulares a respeito desses homens perdidos seduziram-me e inspiraram-me uma certa curiosidade. É claro que posso estar enganado. Para contraprova escolhi, no princípio, dois ou três capítulos. O público julgará...
A CASA DOS MORTOS
O nosso presídio erguia-se no limite da fortaleza, mesmo dentro do bastião. Se alguém se lembrasse de olhar através dos intervalos do muro para a luz do sol, não veria nada... isto é, veria unicamente uma nesguinha de céu por cima do alto baluarte de terra, sacudido pelos furacões; e que à frente e atrás do baluarte, de dia e de noite, passeavam as sentinelas; e logo a seguir pensaria, esse alguém, que teriam já decorrido muitos anos, voltaria a olhar pelas fendas do muro e tornaria a ver apenas o baluarte, as mesmas sentinelas e essa mesma nesguinha de céu, não desse céu que fica sobre a prisão, mas de outro céu, longínquo e livre. Imaginem um grande casarão, de duzentos passos de comprimento por 150 de largura, rodeado a toda volta por um alto muro em forma de hexaedro irregular; isto é, por uma fiada de altos postes cravados profundamente na terra, fortemente ligados uns aos outros por meio de cordas reforçadas com triângulos transversais e virados para cima: eis a cerca exterior do presídio. Num dos lados deste recinto estava a porta do forte, sempre fechada, e sempre, de dia e de noite, guardada por sentinelas; somente se abria quando era preciso sair para o trabalho. Para além dessa porta ficava o mundo luminoso e livre, viviam as pessoas normais. Mas aquém do recinto, esse mundo afigurava-se-nos como uma história inverossímil. Na parte de dentro ficava um mundo especial, que não se parecia já nada com o outro, que tinha as suas leis especiais, os seus trajos, as suas regras e costumes, uma casa de mortos de além-túmulo e uma vida... como não existe em lugar algum, e pessoas singulares. Pois é esse recanto especial que me proponho descrever.
Quando se entra nesse recinto veem-se alguns edifícios. De ambos os lados do espaçoso pátio interior erguem-se dois compridos pavilhões de madeira, de um só andar. São os alojamentos. Aí ficam os presos, distribuídos por categorias. Depois, ao fundo do recinto, há outra jaula idêntica: é a cozinha, dividida em duas seções; mais além, outra barraca, onde, debaixo do mesmo teto, se encontram a adega, os armazéns e a cavalariça. O centro do pátio, vazio, é um descampado plano e muito espaçoso. É nele que os presos formam para a revista, quando então são também contados, de manhã, ao meio-dia e à tarde, e às vezes também durante o resto do dia... conforme a desconfiança dos vigilantes e a sua aptidão para contar depressa. Em redor, entre os barracões e a taipa, resta ainda um espaço bastante extenso. É aí, junto do barracão traseiro, que alguns dos presos, de caráter mais arredio e severo, gostam de refugiar-se, nos momentos de ócio, às escondidas de todos os olhares, para se porem a meditar, sozinhos. Quando me encontrava com eles, na hora desses passeios, gostava de contemplar os seus rostos desconfiados e sulcados de cicatrizes, procurando adivinhar o que pensavam. Havia um deportado cuja ocupação favorita nos momentos livres consistia em contar os postes da paliçada — que eram 1.150 — e andava sempre a contá-los e a olhar para eles. Cada poste significava para ele um dia; cada dia punha um de lado, e assim, pelo número deles que ainda lhe restavam, podia saber com um simples olhar quantos lhe faltavam para passar na prisão até chegar o fim dos seus trabalhos forçados. Ficava muito satisfeito quando esgotava um dos lados do hexágono. Ainda lhe faltavam alguns anos; mas no presídio havia tempo de sobra para se aprender a ser paciente. Uma vez assisti à despedida de um preso que passara vinte anos no presídio e que alcançara finalmente a liberdade. Havia alguns dos seus companheiros que se recordavam de como ele entrara na prisão, da primeira vez, jovem, despreocupado, sem pensar no seu crime nem no castigo. Saiu depois, já velho, com uma cara azeda e severa. Atravessou em silêncio todos os nossos seis pavilhões. Quando entrava em cada um deles rezava umas orações e depois, curvado, abraçava os camaradas pedindo-lhes que não guardassem dele uma má recordação... Também em certa ocasião, era já de noite, vieram chamar à porta um preso que anteriormente fora um abastado camponês siberiano. Meio ano atrás recebera a notícia de que a mulher voltara a casar, o que lhe causou uma grande impressão. Nessa ocasião era ela quem vinha pessoalmente ao presídio, quem o chamava e lhe entregava uma esmola. Falaram durante dois minutos, choraram os dois e despediram-se para sempre. Vi o seu rosto, quando voltou para o pavilhão... Sim, naquele lugar podia aprender-se a ser paciente.
Quando começava a escurecer, trancavam-nos nos alojamentos, onde ficávamos recolhidos toda a noite. A mim custava-me sempre transpor os umbrais do nosso alojamento, que era uma sala comprida, de teto baixo e abafada, torvamente alumiada por velas de sebo que emanavam um vapor pesado e sufocante. Não compreendo agora como é que pude viver aí dez anos. A esteira que forrava a enxerga em que eu dormia abrangia três tábuas, não mais. Sobre essas esteiras dormiam trinta homens em cada alojamento. No inverno recolhiam-nos cedo; demoravam quatro horas a encurralar-nos a todos. E, entretanto... vozes, ruídos, risos, disputas, barulho de cadeiras, caras com cicatrizes, roupas em farrapos, insultos com palavras ofensivas... Sim, homens endurecidos. O homem é um ser que a tudo se habitua, e esta é, a meu ver, a melhor das suas qualidades.
Viviam ao todo no presídio 250 homens, número que se mantinha quase constante. Uns entravam, outros acabavam de cumprir a sentença e saíam, e outros ainda morriam ali dentro. E que tipos tão variados! Julgo que todos os governos, todas as comarcas da Rússia, tinham ali os seus representantes. Havia também estrangeiros; havia até alguns deportados das montanhas caucásicas. Toda essa gente estava dividida segundo os graus da sua delinquência e, por conseguinte, segundo o número de anos que lhe tinham imposto de pena. É legítimo supor que não devia haver delito algum que não estivesse ali representado. A categoria principal da população de presos era composta pelos deportados-presidiários, de classe civil (os forçados, como ingenuamente lhes chamavam os próprios presos). Eram delinquentes completamente privados de direitos civis, radicalmente separados da sociedade, de rostos marcados, como testemunho eterno do seu repúdio. Tinham sido enviados para trabalhos forçados pelo tempo de oito ou 12 anos, cumpridos os quais os destinavam, como colonos, a qualquer lugar da região siberiana... Havia também delinquentes de direito de guerra, não privados dos direitos civis, como era norma geral nas companhias de presos militares russos. Eram deportados por pouco tempo, passado o qual tornavam a enviá-los para os pontos de procedência como soldados dos batalhões siberianos de linha. Muitos deles regressavam logo a seguir para o presídio como reincidentes graves; e então já não por um breve período de tempo, mas por vinte anos. A esta categoria de presos chamava-se perpétua. Mas estes perpétuos também não estavam privados de direitos civis. Finalmente, havia ainda outra categoria de delinquentes, muito estranhos, na sua maioria militares e bastante numerosa. Chamavam-lhe a seção especial. Vinham de toda a Rússia os delinquentes que a compunham. Consideravam-se a si mesmos como perpétuos e não sabiam qual era o limite da sua pena. Do ponto de vista legal deviam duplicar e triplicar o termo dos seus trabalhos. Antes da descoberta da Sibéria, realizavam nos presídios os trabalhos forçados mais duros. “Vocês têm um limite, mas nós temos presídio para muito tempo”, diziam, quando falavam com os outros, à maneira de conclusão. Soube depois que tinham suprimido esta categoria. Além disso suprimiram também no nosso forte a categoria civil, mas estabeleceram uma companhia geral de presos militares. Escusado será dizer que também aqui se notava o dedo da administração. Mas eu estou aqui a descrever qualquer coisa já velha, que mudou já há tempo e já lá vai...
Há já um certo tempo que tudo isso aconteceu; vejo eu agora tudo isso como num sonho. No entanto ainda me lembro da minha entrada no presídio. Foi numa tarde do mês de dezembro. Começara já a escurecer; os presos voltavam do trabalho; preparavam-se para fazer a chamada. Um suboficial de grandes bigodes foi quem veio abrir-me as portas desta estranha casa, onde eu havia de passar tantos anos e de sofrer tantas comoções, que, se não as tivesse experimentado eu mesmo, não poderia agora fazer delas uma ideia nem sequer aproximada. Por exemplo, nunca pude compreender este fato estranho e misterioso de que, durante os dez anos precisos que durou a minha clausura, nem uma só vez, nem por um minuto sequer, me visse só. Para o trabalho ia sempre numa caravana, em casa estava sempre com os meus dois companheiros, um de cada lado, e nem uma vez sequer, nem uma só vez... sozinho, pois também a isso tive de habituar-me.
Havia ali criminosos ocasionais e criminosos de profissão; bandidos e chefes de bandoleiros. Havia, simplesmente, batedores de carteira e vagabundos, cavalheiros de indústria de todo gênero, e havia também os que deixavam uma pessoa ficar perplexo. Por que estariam no presídio? Mas todos tinham a sua história, turva e densa como os vapores da bruma vespertina. De maneira geral, falavam pouco do seu passado, não gostavam de evocá-lo, e era evidente que se esforçavam por não pensar nele. Conhecia alguns destes delinquentes, de temperamento tão alegre, a tal ponto despreocupados que seria possível apostar que nunca deixavam escapar uma queixa, pelo menos conscientemente. Mas também se viam caras sombrias, quase sempre silenciosas. Raras vezes alguém contava a sua vida, e a curiosidade não era moda nem hábito ali. Se algum, vez por outra, se punha a falar da sua vida, por se sentir aborrecido, era escutado com frieza e com uma atitude áspera. Ninguém ali podia provocar a admiração de ninguém. “Nós sabemos ler e escrever”, diziam alguns com vaidade. Entretanto, lembro-me de como certo bandido, já bêbado (às vezes era possível beber no presídio), se pôs um dia a contar como estrangulara um rapaz de 15 anos, como começara por lhe apertar o pescoço; e que o conduzira para um lugar deserto, de brincadeira, e aí o matara. Todos os do alojamento, que até então o tinham por bobo, levantaram a voz em uníssono e o bandido viu-se obrigado a calar-se; não foi por horror que todos gritaram, mas sim porque não era preciso falar daquilo, porque não era costume falar daquilo. Devo informar que, de fato, aqueles homens sabiam ler e escrever, não em sentido figurado, mas real. Na verdade, mais da metade deles sabia ler e escrever. Em que outro lugar, onde as pessoas russas se reúnam em grande número, se poderia arranjar um grupo de 250 homens, metade dos quais soubesse ler e escrever? Ouvi dizer depois a não sei quem, fundamentando-se em dados semelhantes a estes, que a instrução perde os homens. Isso é um erro; existem outras causas muito diferentes, embora não se possa deixar de concordar que a instrução fomenta no povo o espírito de suficiência. Por isso abunda em todos os lados.
Todas as seções se distinguiam pelo fato; uns usavam umas pequenas capas, metade de cor escura e a outra metade amarela, e as calças, da mesma maneira, tinham uma perna amarela e outra escura. Uma vez, no lugar marcado para o trabalho, uma moça que vendia tortas aos presos olhou-me durante muito tempo e de repente desatou a rir:
— Mas que engraçado! — exclamou. — Não tinham bastante pano amarelo e o preto também não lhes chegou!
Também havia presos que usavam a capa de uma só cor, amarelo; mas, em compensação, tinha as mangas pretas. E também traziam a cabeça rapada de uma maneira diferente: uns tinham a abóbada do crânio rapada ao comprido, outros, de través.
À primeira vista era fácil notar certos traços comuns em toda essa estranha família. As personalidades mais originais, aquelas que dominavam involuntariamente, procuram apagar-se e adotar o tom geral da penitenciária. Direi que, de maneira geral, toda essa gente, salvo raras exceções, composta de indivíduos de uma jovialidade inesgotável, e que por isso sofriam o desprezo geral de toda a colônia penal... era uma gente desconfiada, invejosa, intrigante, vaidosa, irascível e formalista no mais alto grau. A maior virtude, ali, era o dom de não sentir admiração fosse pelo que fosse. Viviam todos preocupados com a maneira de se conduzirem no exterior. Mas não eram poucas as vezes que um aspecto da maior arrogância se transformava no mais humilde, com a rapidez do relâmpago. Havia ali indivíduos de verdadeira firmeza: eram simples e não gritavam. Mas, coisa estranha, desses indivíduos fortes, perseverantes, alguns eram melindrosos no mais alto grau. Geralmente, a arrogância, o aspecto exterior ocupavam o primeiro plano. A maioria estava pervertida e rebaixava-se de um modo estranho. Bisbilhotices e juízos temerários eram contínuos. Enfim, aquilo era uma autêntica imagem do inferno. Mas ninguém ousava revoltar-se contra as leis interiores e os costumes intactos do presídio; todos os acatavam. Havia caracteres que faziam resistência, que só os acatavam com muito custo e muito esforço, mas que, finalmente, acabavam por acatá-los. Havia nessa colônia penal aqueles que tinham premeditado o seu delito, consumando-o voluntariamente; mas também havia os que o tinham cometido como se não estivessem em seu perfeito juízo, como se nem eles próprios soubessem por quê, como num estado de delírio, como crianças. Outros por irritabilidade, delicada e sensível até o inverossímil. Mas ali nos dominavam imediatamente, apesar de alguns terem sido até a entrada para o presídio, o terror dos campos e das cidades. Olhando à sua volta, não tardava um novato a perceber que ali não podia impor-se, que ali não se admirava ninguém; por isso esses se moderavam imediatamente e se adaptavam às atitudes gerais, que consistiam numa certa aparência de dignidade especial e pessoal, comum a quase todos os habitantes da penitenciária. O próprio nome de presidiário acabava, no fim de tudo, por tornar-se qualquer coisa como um cargo, honroso até. De vergonha ou de arrependimento, nem sombra! Além disso havia também uma certa serenidade exterior, oficial, por assim dizer, uma certa reflexão tranquila. “Somos gente perdida!”, diziam. “Quem não soube viver em liberdade que aguente isto, agora.” “Foi por não termos querido obedecer aos nossos pais que obedecemos agora ao batuque do tambor.” “Por não termos querido lavrar o ouro, partimos agora pedras com o maço.” Tudo isto diziam eles às vezes, à maneira de estribilhos e no tom de quem recita um provérbio ou uma frase feita, mas nunca o diziam a sério. Tudo isso eram simples palavras. Duvido que um só deles refletisse, no seu íntimo, sobre o seu delito. Se alguém se atrevesse a dirigir censuras a um preso por causa do seu crime (embora, afinal, não esteja no espírito dos russos acusar os delinquentes), os insultos não teriam fim. Eles insultam de um modo perfeito, artístico. Elevaram o insulto à categoria de uma ciência; esforçam-se por ferir, não tanto com uma palavra ofensiva, mas como com um pensamento ofensivo, com uma ironia, uma ideia vexatória... e da maneira mais concludente e cáustica. Rixas contínuas acabaram por tornar entre eles essa ciência altamente requintada. Toda essa gente trabalhara anteriormente debaixo de pancadas; assim se tornou indolente e acabou por perverter; e se já não o estava anteriormente, corrompeu-se quando entrou para o presídio. Ninguém estava ali por sua vontade; eram todos estranhos uns para os outros.
“Quatro pares de lápti, pelo menos, foi quanto o Diabo gastou para nos trazer até aqui”, diziam. Mas depois, intrigas, enredos, histórias de mulheres, invejas, malquerenças ocupavam constantemente o primeiro plano dessa vida infernal. Mulher alguma conseguiria ser tão intrigante como alguns daqueles desalmados. Repito que havia entre eles caracteres enérgicos, acostumados na sua vida a aguentar e a suportar tudo, batidos, duros. A esses, respeitavam-nos, mesmo contra a vontade; e eles, por seu lado, embora fossem às vezes muito zelosos da sua fama, empenhavam-se em não serem molestos para os outros, não se metiam em brigas inúteis, conduziam-se com uma dignidade invulgar, eram respeitadores e obedeciam quase sempre aos chefes, não por espírito de submissão, nem por considerá-lo seu dever, mas como por virtude de não sei que contrato mútuo que trouxesse vantagens para uns e outros. Aliás, tratavam-nos com circunspecção. Lembro-me de que uma vez aplicaram um castigo, não sei por que falta, a um desses reclusos, um homem forte e enérgico, conhecido dos chefes pelas suas inclinações bestiais. Era num dia de verão, numa hora de descanso. O major, que era o chefe imediato da colônia penal, apareceu em pessoa no corpo da guarda, que ficava junto da porta de entrada, para presenciar a execução do castigo. Esse major era uma criatura fatal para os presos. Tratava-os de uma maneira que os fazia tremer. Era de uma severidade que raiava pela loucura; calcava as pessoas, como diziam os presos. O que mais intimidava os presos era o seu olhar penetrante e inquisitorial, ao qual ninguém podia escapar. Via tudo, como se não precisasse olhar. Quando entrava no presídio já sabia tudo o que se fazia no outro extremo. Os condenados chamavam-lhe o Oito Olhos. Seguia um sistema errôneo. Apenas conseguia piorar os homens já corrompidos, com os seus processos vexatórios e malignos e, se não houvesse acima dele o comandante, homem bom e sensato, que suavizava às vezes as suas ordens selvagens, teria provocado com a sua conduta graves catástrofes. Não percebo como é que pôde acabar a sua carreira são e salvo. Entretanto, só se reformou, diga-se a verdade, depois de ter sido julgado.
O referido preso empalideceu quando o chamaram. De maneira geral, oferecia-se em silêncio e com decisão às vergastadas; suportava o castigo em silêncio e depois erguia-se, como se o sacudisse de si e encarando serena e filosoficamente o percalço sofrido. Diga-se de passagem que, com ele, usavam sempre de muita severidade. Mas, dessa vez, julgava-se no seu direito. Empalideceu e, afastando-se devagarinho da caravana, apanhou e guardou na manga uma afiada ferramenta de sapateiro. Facas e todos os instrumentos cortantes estavam severamente proibidos no presídio. As buscas eram frequentes, inesperadas e escrupulosas, e os castigos, terríveis; mas é tão difícil descobrir um ladrão quando se propõe esconder uma coisa que as facas e os instrumentos cortantes nunca faltavam no presídio, apesar das buscas, que não davam com eles. E se os tiravam aos presos, não tardava que estes aparecessem com outros.
Todos os presos saíram para o pátio e, com a maior tranquilidade, puseram-se a espreitar por entre as gelosias de madeira. Todos sabiam que, dessa vez, Pietrov não se prestava à sova de boa vontade, e que chegara o fim do major. Mas no último momento o major subiu para a sua carruagem e partiu, delegando a outro oficial o cuidado de fazer executar o castigo.
— Foi Deus quem o salvou! — exclamaram depois os reclusos.
Quanto a Pietrov, suportou pacientemente o castigo. A raiva tinha-lhe fugido com a ausência do major. O preso é dócil e paciente até certo limite, mas não é prudente passar desse limite. Efetivamente não pode haver nada mais curioso do que esses estranhos arrebatamentos de impaciência e hostilidade. É vulgar que um homem suporte alguns anos, resigne-se, suporte os castigos mais duros, e de repente fique colérico só por alguma futilidade, por uma ninharia, quase sem motivo. Um estranho poderia tomá-los por loucos e, de fato, há quem pense assim.
Disse já que no decurso de alguns anos nunca tive ocasião de observar nestes homens o mais pequeno indício de arrependimento, nem a menor manifestação de peso na consciência, e que a maioria deles se tinha, no íntimo, por absolutamente inocentes. Este é que é o fato. Não há dúvida de que a explicação de tal fato reside na vaidade, nos maus exemplos, na verdura dos anos e na falsa vergonha. Por outro lado, quem é que pode afirmar que penetrou nas profundidades desses corações degenerados e viu neles o que tão recatadamente escondem de toda a gente? Parece possível observar algum pormenor, no decurso desses anos, surpreender, penetrar nesses corações e achar um ou outro indício de uma angústia interior, de um sofrimento. Mas, comigo, isso não se deu, de certeza que não se deu. Sim, o crime, segundo parece, não pode definir-se em relação a pontos de vista predeterminados e estabelecidos, e a sua filosofia é mais difícil do que se pensa. É certo que os presídios e o sistema dos trabalhos forçados não melhoram os delinquentes, aos quais apenas castigam, mas põem a sociedade a salvo das suas ulteriores tentativas de praticar danos e proveem à sua própria tranquilidade. O presídio e os trabalhos forçados não fazem mais do que fomentar o ódio, a sede de prazeres proibidos e uma terrível leviandade de espírito no presidiário. Estou convencido de que, com o famoso sistema celular, apenas se obtêm fins falsos, enganosos, aparentes. Esse sistema rouba ao homem a sua energia física, excita-lhe a alma, debilita-lha, intimida-lha, e depois apresenta-nos uma múmia moralmente seca, um meio louco, como obra da correção e do arrependimento. Não há dúvida de que o delinquente, ao rebelar-se contra a sociedade, a odeia e quase sempre se considera a si mesmo inocente e a ela culpada. Depois de ter sofrido o castigo que ela lhe impôs, considera-se já limpo, absolvido. Nesse ponto de vista pode pensar-se que seria quase melhor começar por absolver o delinquente. Mas, apesar de todos os pontos de vista possíveis, todos estão de acordo em que há crimes que sempre e em todas as partes, dentro de todas as leis possíveis, desde o princípio do mundo, se consideram crimes indiscutíveis, e como tais serão tidos enquanto o homem não deixar de ser homem. Quantas histórias não ouvi eu no presídio, dos casos mais terríveis e antinaturais, dos crimes mais cruéis, contadas com o sorriso mais inocente e mais infantilmente jovial! Ficou-me especialmente gravada na memória a narrativa dum parricida. Era de família aristocrática; tinha feito o serviço militar e, depois, feito perante seu pai, já septuagenário, o papel de filho pródigo. Levava uma vida completamente licenciosa; estava endividado até a raiz dos cabelos. O pai refreava-o, repreendia-o; mas o pai tinha uma casa, uma granja agrícola, supunham-no endinheirado, e... o filho matou-o, ansioso pela herança. O crime demorou um mês a descobrir-se. Foi o próprio parricida quem foi dar parte do acontecido à Polícia, dizendo que o pai tinha desaparecido de casa, sem que ele soubesse do seu paradeiro. Durante todo esse mês levou a vida mais desregrada. Até que, finalmente, na sua ausência, a Polícia descobriu o cadáver. Ao longo do curral havia um canal, coberto com tábuas, para a condução do esterco. Pois era nesse canal que jazia o cadáver. Estava vestido e penteado; tinha a cabeça encanecida, quase decepada, junto do tronco e, debaixo da cabeça, colocara o parricida uma almofada. Não confessou o crime; era nobre, funcionário, e foi condenado a vinte anos de trabalhos forçados. Durante todo o tempo que convivi com ele manteve-se numa excelente disposição de espírito, jovialíssimo. Era um indivíduo estouvado, desorientado, muito insensato, embora esperto. Nunca lhe notei o menor indício de crueldade pessoal. Os reclusos desprezavam-no não por causa do seu crime, do qual nunca falavam, mas sim devido à sua leviandade, por não saber conduzir-se, Nas suas conversas costumava às vezes recordar o pai. Uma vez, falando comigo a respeito da constituição sadia, hereditária na sua família, acrescentou:
— Olhe, o meu pai nunca se queixou de nenhum achaque, até o último dia da sua vida.
Uma tão brutal insensibilidade chega a parecer inverossímil. Trata-se de um fenômeno, de alguma deficiência ingênita, de uma monstruosidade moral e física, ainda ignorada da ciência, e não de um simples crime. Como era natural, eu não acreditava nesse crime. Mas os seus conterrâneos, é claro, deviam conhecer todos os pormenores da história e contaram-me integralmente. Os fatos eram tão evidentes que não havia outro remédio senão acreditar.
Os presos ouviram-no gritar uma noite, em sonhos:
— Segura-o, segura-o! A cabeça, corta-lhe a cabeça, a cabeça!
Quase todos os presos falam durante a noite e deliram. Insultos, palavras entrecortadas, facas, machados, são o que lhes vêm com mais frequência à boca, nos seus delírios.
— Somos uns homens perdidos — diziam. — Estamos mortos por dentro e é por isso que gritamos de noite.
Os trabalhos forçados não eram uma ocupação mas um dever. Os presos davam conta da sua tarefa ou cumpriam as horas legais de trabalho, e voltavam para o presídio. Encaravam o trabalho com ódio. A não ser por causa da sua ocupação pessoal, particular, à qual se entregavam com toda a alma e com todo o seu empenho, não havia um homem que tivesse podido viver no presídio. E como é que toda aquela gente que vivera intensamente e ansiava viver, juntada ali à força para formar um bando, e à força separada da sociedade e da vida moral, teria podido viver normal e retamente, por sua própria vontade e impulso? Bastava a ociosidade para se desenvolverem ali, no homem, qualidades delituosas, de que até então nem sequer faziam ideia. O homem não pode viver sem trabalho e sem condições legais e normais: degenera e converte-se numa fera. Por isso todos no presídio, seguindo um impulso instintivo e obedecendo a um certo sentimento de conservação própria, tinham a sua ocupação e o seu ofício. Durante os grandes dias de verão, os trabalhos forçados ocupavam a maior parte do tempo; e, com a brevidade das noites, apenas lhes restava tempo para dormir. Mas no inverno, obedecendo às ordens, assim que escurecia, os presos deviam já estar recolhidos. Mas que fazer nas longas e tristes noites de inverno? Por isso todos os dormitórios, apesar dos ferrolhos, se convertiam em imensas oficinas. O trabalho particular não era proibido, mas era, entretanto, proibido ter ferramentas no presídio e, sem elas, não havia trabalho possível. Mas trabalhavam às escondidas, e os chefes às vezes faziam vista grossa. Havia presos que entravam para o presídio sem nenhuma profissão, mas que encontravam ali quem os ensinasse, e depois, recuperada a liberdade, saíam já mestres no seu ofício. Havia sapateiros e alfaiates, carpinteiros e serralheiros, ourives e prateiros. Havia um judeu, Issai Blumstein, que era joalheiro e também usurário. Todos trabalhavam e ganhavam uns cobres. As encomendas de trabalho vinham-lhes da cidade. O dinheiro é liberdade amealhada, e por isso, para o homem totalmente privado de liberdade, torna-se dez vezes mais valioso. Só de senti-lo no bolso já ficavam meio consolados, ainda que o não pudessem gastar. Mas, seja onde for, é preciso gastar o dinheiro, tanto mais que o fruto proibido é o mais apetecido. Havia meio de introduzir no presídio até aguardente. O tabaco era severamente proibido, mas todos fumavam. O dinheiro e o tabaco livravam-nos do escorbuto e de outras doenças. O trabalho, por seu lado, salvava-os do crime; a não ser pelo trabalho, os presos ter-se-iam comido uns aos outros, como feras. Mas apesar disso o dinheiro e o tabaco eram proibidos. De vez em quando passavam revistas inesperadas, à noite, apreendiam tudo quanto era proibido e... por muito bem escondido que os presos tivessem o dinheiro, o major costumava sempre dar com ele. E por isso os presos não o amealhavam e, pelo contrário, apressavam-se a gastá-lo; e por isso também se bebia aguardente na penitenciária. Depois de cada revista, o culpado, além de ser privado de tudo quanto possuía, recebia geralmente também um castigo severo. Mas, depois de cada revista, preenchiam imediatamente os vazios, davam entrada novos objetos e tudo tornava a ficar como antes. E os chefes sabiam e os presos não murmuravam contra os castigos, apesar de aquela vida se assemelhar à daqueles que habitam nas encostas do Vesúvio.
Aquele que não tinha nenhum ofício arranjava-se de outra maneira. Havia presos bastante originais. Alguns imaginavam, por exemplo, uma engenhoca qualquer e ofereciam às vezes tais objetos, que a ninguém fora dos muros do presídio poderia ocorrer não só comprá-los, como vendê-los, como até considerá-los objetos. O recluso era pobre mas extraordinariamente engenhoso. O mais ínfimo farrapo tinha ali o seu valor e servia para alguma coisa. Devido à pobreza, também o dinheiro tinha no presídio um valor muito diferente do que possui na zona da liberdade. Com um grande e complicado esforço, era possível a uma pessoa vestir-se por alguns grochi. Praticava-se ali com êxito a usura. O preso que se encontrava em penúria ou em completa miséria levava o último objeto que possuía ao usurário e recebia deste alguns cobres, mediante uma percentagem feroz. Se não desempenhasse os objetos no prazo marcado, o usurário vendia-os, desapiedada e inexoravelmente; a usura ia até o extremo de admitir que se empenhassem inclusivamente objetos que eram imprescindíveis para os presos em todos os momentos. Mas nestes casos costumavam acontecer contratempos que, entretanto, não eram de todo inesperados. O indivíduo que tinha empenhado os objetos, depois de ter embolsado os cobres, ia contar o sucedido ao oficial, chefe imediato do presídio, e este apressava-se a tirar ao prestamista os objetos empenhados, sem mais explicações e sem comunicar o sucedido ao chefe superior. É curioso que, em semelhantes casos, não surgiam discussões; o prestamista, muito sério e calado, apressava-se a devolver os objetos, como se tivesse contado de antemão com o percalço. É possível que pensasse para consigo que, se se encontrasse no lugar do cliente, teria feito o mesmo. E embora uma vez por outra protestasse, fazia-o sem ódio, apenas para salvar as aparências.
De maneira geral roubavam-se todos uns aos outros, de uma maneira terrível. Tinham quase todos o seu respectivo cofre com fechadura para guardar nele os objetos regulamentares. Era permitido tê-los; simplesmente esses cofres não serviam para nada. Calculo que devam imaginar os espertos ratoneiros que ali havia. A mim, um preso, que me dedicava uma sincera afeição, roubou-me uma vez uma Bíblia, que era o único livro permitido no presídio; confessou-me o roubo no mesmo dia, não porque estivesse arrependido, mas porque teve pena de ver-me procurá-lo com tanto empenho. Havia taberneiros que faziam contrabando de aguardente e que enriqueciam assim depressa. Hei de falar com mais demora desta espécie de gente, pois era bastante curiosa. Também havia no presídio quem se dedicasse ao contrabando, e por isso não é de admirar que introduzissem aguardente no presídio durante as revistas e nas caravanas. O contrabando é, por sua própria natureza, um delito muito especial.
É possível, por exemplo, imaginar que o dinheiro, o lucro, representam para o contrabandista apenas qualquer coisa de secundário, qualquer coisa que não ocupa o primeiro plano? Pois na realidade, assim é. O contrabandista trabalha por prazer, por vocação. Até certo ponto é um poeta. Expõe-se a todos os perigos, coloca-se num transe de terrível inquietação, treme, dá voltas à cabeça e sai como pode do apuro; às vezes, tem até inspirações. Esta aflição é tão forte como o jogo de cartas. Conheci um preso na penitenciária de uma aparência física gigantesca, mas tão ingênuo, amável e mansarrão que ninguém podia supor qual o motivo que o teria levado a uma penitenciária. Era tão pacífico e tão comedido com todos, que, durante todo o tempo que esteve no presídio, nunca brigou com ninguém. Mas era da fronteira ocidental; tinha-se dedicado ao contrabando e, como é natural, não podia reprimir-se e começou a introduzir aguardente no presídio. Quantas vezes não foi castigado por causa disso, e que medo ele não tinha das vergastadas! No entanto continuava, apesar dos lucros insignificantes, e de que quem enriquecia era o fornecedor. Mas aquele pobre homem amava a arte pela arte. Era tão tímido como uma mulher, e quantas vezes, depois de ter sofrido o castigo, jurava e trejurava que não voltaria mais a meter-se naquelas coisas! Fazendo um grande esforço, conseguia manter a sua palavra durante um mês, até que por fim a tentação era mais forte... Graças a esses indivíduos nunca a aguardente faltava no presídio.
E havia, finalmente, uma fonte de rendimentos, que não enriquecia os forçados, porque era de natureza real e benéfica. Refiro-me aos donativos. A classe elevada da nossa sociedade não faz uma ideia de como os comerciantes, os artífices e todo o nosso povo vela pelos desgraçados.2 Os donativos eram permanentes e consistiam quase sempre em pão, chá e bolinhos, raras vezes em dinheiro. Se não fossem esses donativos, muitas vezes o preso, sobretudo se estivesse dependente de um julgamento, e, portanto, submetido a um regime muito severo, passaria muito mal. As esmolas eram distribuídas com igualdade religiosa entre todos os presos, e cada um deles recebia sempre a sua parte. Lembro-me de que, da primeira vez, recebi uma esmola de dinheiro. Foi passado pouco tempo depois de haver entrado para o presídio. Voltava do trabalho matinal, sozinho, separado da caravana. Em direção contrária vinham uma senhora com uma filha, uma menina de dez anos, linda como um anjo. Já de outra vez eu as tinha visto. A mãe era viúva dum militar. Tinham movido um processo contra seu marido, jovem soldado, o qual veio a morrer no hospital da prisão, numa ocasião em que também eu aí estive doente. A mulher e a filha tinham ido despedir-se dele, ambas banhadas em lágrimas. Quando me viu, a menina corou muito e disse à mãe qualquer coisa em voz baixa. Logo depois esta parou, procurou na sua bolsa 0,25 copeque e deu-o à menina. Esta deitou a correr atrás de mim.
— Tome lá, desgraçado, aceite, por amor de Deus, essa esmolinha — disse, parando diante de mim e metendo-me a moeda na mão.
Eu peguei a moeda e a menina voltou para o lado da mãe, muito contente. Trouxe essa moeda muito tempo comigo.
PRIMEIRAS IMPRESSÕES
O primeiro mês e, de maneira geral, os primeiros tempos da minha vida de presidiário, conservo-os muito vivos na minha imaginação, mas os anos seguintes já estão muito apagados na minha memória. Alguns até quase completamente e confundem-se entre si, deixando-me apenas uma impressão total, pesada, monótona, sufocante.
Mas tudo o que vivi durante os primeiros dias da minha vida de recluso perdura ainda na minha imaginação, como se tudo tivesse acontecido ontem. Assim devia ser e assim é, de fato.
Lembro com toda a clareza que, assim que entrei nessa vida, fiquei surpreendido por, afinal, nada daquilo me surpreender; que nessa vida não achava nada de particularmente notável, nada de extraordinário, ou, pelo menos, de inesperado. Parecia-me que já tinha visto tudo aquilo na minha imaginação, quando a caminho da Sibéria me esforçava por admirar o meu futuro. Mas depressa uma quantidade de coisas extraordinariamente insólitas, de fatos espantosos, começaram a fazer-me parar a cada passo. E até muito mais tarde, só quando tinha já muito tempo de presídio, é que me apercebi de tudo quanto havia ali de exclusivo, de inesperado, naquela existência, e sentia então cada vez maior assombro. Confesso que este espanto não me deixou durante todo o longo tempo da minha pena, que nunca o pude afugentar de mim...
A minha primeira impressão, quando entrei no presídio, não podia ser mais repugnante; no entanto — coisa estranha! — pareceu-me que no presídio devia viver-se muito melhor do que imaginara durante o caminho. Os presos, embora com cadeias, caminhavam livremente por todo o presídio, provocavam uns aos outros, entoavam canções, trabalhavam por sua conta, fumavam cigarros, e outros até (embora em pequeno número) bebiam aguardente; e à noite alguns jogavam cartas. O próprio trabalho, por exemplo, não se me afigurava custoso nem forçado, e só depois de muito tempo percebi que o aspecto pesado e forçado daquele trabalho não estava tanto na sua dificuldade e continuidade como em ser imposto, obrigado, a golpes de vergasta. O camponês em liberdade trabalha incomparavelmente mais, às vezes de dia e de noite, sobretudo no verão, mas trabalha para si, trabalha com uma finalidade racional, e assim o seu trabalho é muito mais leve, para ele, do que o do presidiário, forçado e perfeitamente inútil para si. Acontecia-me às vezes pensar que se me desse alguma vez para perder-me completamente, para abater um homem, para castigá-lo com o mais horrível castigo, um castigo que metesse medo e fizesse tremer antecipadamente o criminoso mais valente, não precisava senão dar ao seu trabalho o caráter de uma inutilidade e total e absoluta carência de sentido. Embora o atual trabalho forçado não tenha interesse e atrativo para o preso, é, contudo, em si mesmo um trabalho razoável; o preso fabrica tijolos, amontoa terra, faz argamassa, constrói; em todo este trabalho há uma ideia e uma finalidade. E às vezes o trabalhador forçado dedica-se à sua tarefa, aspira a fazê-la com mais destreza, mais rapidez e perfeição. Mas se o obrigassem a transvasar água de uma cuba para outra, e desta para aquela, a calcar areia, a transportar montinhos de terra de um sítio para outro, e vice-versa, penso que o recluso se suicidaria passados alguns dias ou cometeria mil desacatos, para, ainda que fosse à custa da sua vida, se ver livre de humilhação, de vergonha e de escárnio semelhantes. É claro que tal castigo apenas podia imaginar-se com fins de tortura ou de vingança, e seria absurdo, porque ultrapassaria o seu próprio fim. Mas ainda que não exista o mínimo vestígio desse tormento, desse absurdo, desse vexame e dessa vergonha, no trabalho forçado, o trabalho do preso é incomparavelmente mais penoso que o do homem livre, precisamente por ser forçado.
Além do mais eu entrei para o presídio no inverno, no mês de dezembro, e por isso não podia ainda fazer do trabalho estival, dez vezes mais pesado. No inverno costumava escassear, no nosso presídio, o trabalho obrigatório. Os presos iam para o Irtich3 calafetar velhos barcos do Estado; trabalhavam nas oficinas, varriam dos edifícios oficiais a neve que sobre eles o vento atirava, britavam alabastro, etc. No inverno os dias são curtos, o trabalho acabava depressa e toda a nossa gente regressava cedo ao presídio, onde não havia quase nada para fazer, a não ser para aqueles que se dedicavam a trabalhos particulares. Mas ao trabalho particular apenas se dedicavam três presos, os outros eram parasitas que se punham a deambular sem objetivo de um barracão para outro, discutiam e tramavam intrigas, contavam histórias e bebiam, desde que dispusessem de algum dinheiro; à noite jogavam baralho até empenharem a própria blusa que vestiam, e tudo isso apenas por puro desassossego, por pura ociosidade, só para não fazerem nada. Com o tempo acabei por concluir que, além da privação da liberdade, existe na vida de prisão um paradoxo, talvez mais forte do que em todas as outras, e que vem a ser a forçada convivência geral. Essa convivência geral existe também, sem dúvida alguma, em outros lugares, mas no presídio encontram-se indivíduos de tal jaez que nem a todas as pessoas pode agradar-lhe conviver com eles, e estou convencido de que todo preso sente este vexame que se lhe faz, embora, naturalmente, a maior parte deles o calem.
A alimentação também me parecia suficientemente abundante. Os presos pensavam que não havia outra igual nos presídios da Rússia europeia. Acerca destes não me atrevo a julgar, pois não os conheço. Além disso, alguns presos tinham meio de arranjar uma comida especial. A carne de vaca vendia-se ali a 1 grosh a libra e, no verão, a 3 copeques. Mas somente os presos que contavam com dinheiro certo é que mandavam vir comida particular; os outros comiam no rancho. Além disso, os presos, quando se ufanavam da sua alimentação, falavam apenas do pão e apreciavam especialmente o fato de que nos dessem pães inteiros e não a peso, partidos em pedaços. Isto metia-lhes medo; se lho dessem a peso, havia sempre alguns que ficavam com fome, ao passo que, repartido pelos barracões, chegava para todos. O nosso pão era especialmente saboroso e por isso tinha fama em toda a cidade. Atribuíam isto à habilidade dos condenados padeiros. As sopas de couve também eram muito boas. Faziam-nas numa caldeira comum, temperavam levemente a massa e, sobretudo no dia seguinte, estava fluida, clara. A mim assustava a enorme quantidade de baratas que se encontravam nela. Mas os presos não davam a menor importância a esse pormenor.
Nos primeiros três dias não fui para o trabalho; é assim que procedem sempre para com os recém-chegados; deixam-nos descansar da viagem. Mas no dia seguinte tiraram-me do presídio para me porem os ferros. As minhas cadeias eram grandes e disformes, e tinham “voz de baixo”, segundo diziam os presos. Usavam-se fora do presídio. O modelo que se usava no presídio, disposto de maneira a não estorvar o trabalho, não se compunha de elos mas de quatro varetas de ferro, aproximadamente de um dedo de grossura, unidas entre si por três colchetes. Era preciso trazê-las debaixo das calças. Por meio de um elo segurava-se uma correia que, por sua vez, se prendia à cintura por meio de outra, a qual se prendia diretamente à blusa.
Lembro-me da minha primeira manhã no presídio. No corpo da guarda, à porta do presídio, o tambor tocou a alvorada e dez minutos depois o oficial das sentinelas abriu os barracões. À luz baça de uma vela os presos se foram levantando das suas esteiras. Na sua maioria mostravam-se taciturnos e ainda com sono. Bocejavam, espreguiçavam-se e franziam as fontes estigmatizadas. Alguns persignavam-se, outros começavam a armar brigas com os outros. Lá dentro fazia um calor horrível. O ar fresco de inverno entrava pelas portas assim que as abriam e formavam-se nuvens de vapor no dormitório. Os presos lavavam-se numa vasilha de madeira; enchiam a boca d’água e borrifavam depois as mãos e a cara com esse líquido. A água tinha sido ali colocada já na véspera, pelo paráchnik. Em cada dormitório havia, por ordem superior, um preso, escolhido entre todos, para os serviços desse mesmo dormitório. Era designado com o nome de paráchnik e não ia para o trabalho no exterior. O seu dever consistia em zelar pela limpeza do dormitório, lavar e limpar as esteiras e o chão, trazer e levar o urinol, e encher de água fresca duas vasilhas de madeira, de manhã para se lavarem e no resto do dia para beberem. Por causa da vasilha de lavar o rosto, que era única, surgiram imediatamente questões.
— Onde vais, cabeça de alho chocho? — resmungou um preso de má catadura, alto, seco, esverdeado, com uma estranha protuberância no crânio rapado, ao encarar outro, gordo e baixo, com uma cara que transbordava de jovialidade e franqueza. — Para aí!
— Que fazes tu aí rosnando? Para ficar aqui paga-se dinheiro; para tu, que és uma espécie de monumento. Tudo quanto tens é pontiagudo, meu caro.
Essa saída produziu um certo efeito; alguns riram-se. O que foi bastante para encher o gordo de satisfação, que, pelo visto, desempenhava no dormitório uma espécie de papel de bobo voluntário. O preso alto olhou-o com o maior desprezo.
— Porco! — exclamou, como se falasse para si mesmo. — Como ele engordou com o pão do rancho! Dava uma boa dúzia de presuntos!
— E tu, meu passarão! — exclamou, de repente, o outro, corando. — Isso mesmo, passarão.
— Mas que espécie de passarão? Vamos lá a ver...
— Isso é comigo.
— Mas qual? Diz lá, anda...
Comiam-se, um ao outro, com os olhos. O gordo esperava pela resposta e apertava os punhos, como se fosse às vias de fato. Eu, para dizer a verdade, pensei que fossem acabar brigando; tudo aquilo era novo para mim e contemplava-o com curiosidade. Mas com o tempo acabei por perceber que essas cenas eram completamente inofensivas e se representavam, como no teatro, para assombrar o público; raramente havia rixas no presídio. Tudo isso era bastante característico e refletia a moral da prisão.
O preso alto permanecia muito tranquilo e orgulhoso. Sentia que o olhavam e esperavam para ver o que fazia, se atinava ou não com uma boa resposta; pois era preciso não afrouxar e demonstrar que ele era de fato um passarão e que espécie de passarão. Deitou um olhar ao seu adversário com um indescritível desdém e, para que a ofensa se tornasse ainda mais grave, olhou-o por cima do ombro, de alto a baixo, como se olhasse para um inseto e por fim pronunciou lentamente e com clareza:
— Uma garça real!
Uma ruidosa gargalhada acolheu a saída do preso.
— O que tu és é um tunante, e não uma garça! — respondeu o gordo, sentindo-se vencido e louco de raiva.
Mas, quando a coisa ia começar a tornar-se séria, os outros intervieram.
— Hem? Que é lá isso? — gritou a assistência.
— Deem-lhe com força! — atiçou um, de um canto.
— Segurem-nos, para que eles não se atraquem! — responderam os outros.
— Nós somos valentes, cada um de nós pode lutar contra sete de vocês...
— Sim, são sadios, os dois! Um veio para o presídio por causa de uma libra de pão e o outro... O grande fanfarrão, bebeu leite azedo duma mulher e por isso provou o knut.4
— Bem, bem, já chega! — gritou o inválido que estava encarregado de velar pela ordem dentro do dormitório e que, por esse motivo, dormia num canto, numa esteira especial.
— Água, meus caros! Neválid5 Pietróvitch já acordou! Neválid Pietróvitch, meu irmão!
— Irmão?! Mas por que sou eu teu irmão? Se nunca comemos no mesmo prato, como é que somos irmãos? — resmungou o inválido metendo com dificuldade o braço na manga do capote...
Ia proceder-se à contagem; começava já a clarear; na cozinha tinha-se apinhado um grupo compacto de indivíduos. Os presos atropelavam-se, meio vestidos e com os gorros bicolores, recebiam o pão que ia repartindo um dos cozinheiros. Estes cozinheiros eram escolhidos, cada um, pelos alojamentos, dois para cada cozinha. Eram eles também os encarregados de guardar as facas de cozinha para cortar o pão e a carne, uma para cada cozinha.
Os presos espalhavam-se por todos os cantos e à volta das mesas, com os seus gorros e as suas samarras apertadas por cinturões, já preparados para partirem imediatamente para o trabalho. Alguns tinham na sua frente tigelas de madeira com kvas. Molhavam o pão no kvas e depois bebiam-no. A balbúrdia e o barulho eram insuportáveis, mas havia alguns que, discreta e tranquilamente, conversavam pelos cantos.
— Olá, velho Antônitch, bom apetite! — exclamou um preso novo, inclinando-se diante de um recluso tristonho e desdentado.
— Olá... se é que não estás para aí troçando — respondeu este sem baixar os olhos e esforçando-se por trincar o pão com os seus maxilares sem dentes.
— Olha, Antônitch, eu pensava que tinhas morrido!
— Pois não morri, porque primeiro do que eu ainda hás de ir tu...
Sentei-me junto deles. À minha direita conversavam dois presos muito circunspectos, que se esforçavam por conservar o seu ar grave.
— A mim nunca roubaram nada — dizia um. — Eu é que tenho de ter cuidado para não roubar o que é dos outros.
— Está bem, mas não tentes tocar nas minhas coisas, senão escaldas-te!
— Ah, ele é isso? Então não és como nós? Sabes que mais? Todos nós não passamos de uns presidiários... Deixa estar que ela se encarrega de te tirar tudo e nem sequer te agradece. Olha, meu amigo, os meus cobres também voaram. Ainda há pouco ela esteve... Que se há de fazer? A princípio pensei pedir o auxílio de Fiedka, o carrasco, que ainda tinha uma casa nos arredores, sabes, aquela que ele comprou a Solomonka, o judeu piolhento, aquele que se enforcou depois.
— Já sei, aquele que nos arranjou aguardente durante três anos. Chamavam-lhe Grichka, a taberna às escuras. Bem sei...
— Pois não sabes, taberna às escuras é outro...
— Qual outro! Tens sempre a mania de que só tu é que sabes tudo! Mas eu posso provar-te...
— Então prova lá! Quem julgas tu que és? E saberás quem eu sou?
— Quem és tu? Olha, já te bati várias vezes, e tu ainda perguntas quem sou!
— Tu, bater-me? Ainda está para nascer aquele que me há de pôr a mão, e aquele que alguma vez teve essa ideia, a esta hora, está debaixo do chão.
— Fora daqui! Que o Diabo te carregue!
— E a ti, que te coma a lepra!
— Que morras às mãos dum turco!
E a confusão ia começar.
— Epa! Epa! Fiquem quietos! — exclamaram à volta. — Não souberam viver em liberdade... felizmente que aqui vos dão o arroz. Quietinhos!
Serenaram imediatamente. Insultarem-se, desafiarem-se com a língua, era permitido. Em parte, isto constituía para todos uma diversão. Mas nunca acabavam brigando e só excepcionalmente talvez surgissem inimizades. As rixas eram comunicadas aos majores; faziam inquéritos e o major vinha pessoalmente... Em resumo: as rixas acarretavam incômodos a todos e por isso não consentiam que elas se dessem. Até quando os próprios inimigos se insultavam, era mais para se distraírem, para se desabafarem. Muitas vezes eles próprios se enganavam, começando com um furor, uma raiva, que qualquer pessoa pensava... “Cuidado, vão comer-se um ao outro, são capazes de se matarem.” Mas assim que chegavam a certo ponto, separavam-se imediatamente. A princípio tudo isto me parecia muito estranho. Foi intencionalmente que transcrevi aqui esses exemplos dos diálogos mais correntes entre os presidiários. Eu não podia imaginar, a princípio, que fosse possível as pessoas insultarem-se só por prazer, encontrar nisso uma distração, um exercício agradável, um desporto. E também ali havia vaidade. A dialética do insulto era muito apreciada. Ao bom insultador não faltavam aplausos, como aos autores.
Já desde o dia anterior eu notara que me olhavam de soslaio.
Lembro-me também de alguns olhares sombrios. Mas outros presos, pelo contrário, começavam a rondar-me, supondo talvez que eu trouxesse dinheiro em meu poder. Apressavam-se a servir-me; ensinavam-me a transportar os ferros acabados de fazer; ofereciam-me, é claro, um cofrezinho com chave para que guardasse nele os objetos necessários, que já me tinham entregado, e alguma roupa interior que me pertencia e que levara para o presídio. Mas no dia seguinte roubaram-me e beberam com o dinheiro da venda. Um deles chegou depois a ser um dos que me eram mais dedicados, embora não hesitasse em despojar-me na primeira oportunidade. Fazia-o resolutamente, quase inconscientemente, como por dever, e não era possível ficar a odiá-lo.
Entre outras coisas avisaram-me que era necessário que cada qual tivesse o seu chá e que seria conveniente que eu arranjasse um bule só para mim; por enquanto emprestar-me-iam um e apresentaram-me também a um cozinheiro, dizendo-me que, por 30 copeques por mês, ele se encarregava de trazer-me tudo quanto eu quisesse, se desejasse comer à parte e comprar as provisões por minha conta... Escusado será dizer que me ficaram com o dinheiro e que todos eles se aproximaram de mim naquele primeiro dia, pelo menos umas três vezes, em busca de um empréstimo.
Mas, de maneira geral, no presídio olhavam os aristocratas com maus olhos.
Apesar de estes estarem já privados de todos os seus direitos civis e a todo respeito equiparados aos outros presos — estes não os reconheciam nunca como camaradas seus —, não procediam assim com qualquer intenção deliberada de ofendê-los, mas de um modo totalmente ingênuo, inconsciente. Consideravam-nos sinceramente como aristocratas, apesar de eles próprios se comprazerem na nossa humilhação.
— Não, agora já chega, está quietinho! Os tempos mudaram; ontem ainda Piotr atravessava Moscou em triunfo; hoje, Piotr rói a corda, muito mansinho — e outras amabilidades do gênero.
Contemplavam, compadecidos, o nosso sofrimento, que procurávamos ocultar-lhes. Faziam-nos ver sobretudo a princípio, no trabalho, que não tínhamos tantas forças como eles e que de maneira nenhuma podíamos ajudá-los. Não há nada mais difícil do que adquirir prestígio sobre as pessoas (principalmente sobre pessoas como aquelas) e ganhar o seu afeto.
Havia no presídio alguns presos de origem aristocrática. Em primeiro lugar, cinco polacos. Hei de falar mais demoradamente deles noutra ocasião. Os condenados tinham um ódio muito maior pelos polacos do que pelos deportados russos de sangue azul. Os polacos (refiro-me unicamente aos delinquentes políticos) mantinham para com eles uma cortesia requintada, uma delicadeza ofensiva, cheia de desinteresse, e nunca conseguiam disfarçar bem perante os condenados a sua diferença de classe, o que estes compreendiam claramente, pagando-lhes na mesma moeda.
Eu precisei de cerca de dois anos para vencer a indiferença de alguns presos. Mas na sua maioria acabaram todos por ganhar-me afeição e reconhecer que eu era uma boa pessoa.
Aristocratas russos, sem contar comigo, havia quatro. Um, uma criatura reles e má, extremamente depravada, espião e delator por ofício. Puseram-me imediatamente em guarda contra ele desde a minha entrada no presídio, e passados poucos dias cortei logo com ele todo gênero de relações. Outro, era aquele parricida de que já falei. O terceiro era Akim Akímitch; creio que nunca conheci um indivíduo tão estranho como esse tal Akim Akímitch. A sua recordação ficou-me fortemente gravada na memória. Era um homem alto, seco, de pouca compreensão, analfabeto, e tão rabugento e rigorista como um alemão. Os condenados riam-se dele; mais alguns fugiam do seu convívio por causa do seu feitio melindroso, questionador e implicante. Andava constantemente provocando arruaças, dizendo insultos e brigando com eles. O seu sentimento de dignidade era fenomenal. Assim que observava alguma irregularidade, não descansava enquanto não a emendasse, fosse ela qual fosse. Era o cúmulo da ingenuidade. Por exemplo: ralhava com os presos e pregava-lhes sermões, fazendo-lhes ver como era feio serem ladrões e aconselhava-lhes, muito sério, a que não roubassem. Tinha servido no Cáucaso, no grau de alferes. Travamos amizade desde o primeiro dia e ele contou-me a sua história. Começara o serviço no Cáucaso com os junkers,6 num regimento de Infantaria, até que por fim o fizeram oficial e o mandaram a não sei que forte na qualidade de chefe. Um certo principezinho, aliado da Rússia, lançou uma vez fogo à fortaleza, contra a qual tentou também um ataque noturno, que não teve êxito. Akim Akímitch fingiu que não sabia quem era o autor da façanha. Deitaram a culpa num dos inimigos e, passado um mês, Akim Akímitch convidou o principezinho para uma festa. Este compareceu imediatamente; sem qualquer receio. Akim Akímitch mandou formar o seu regimento e, diante das tropas, lançou no rosto do principezinho o seu procedimento, dizendo que era uma vergonha ter querido pegar fogo ao seu fortim. Depois começou a explicar-lhe, com todo gênero de pormenores, a maneira como devia conduzir-se um príncipe amigo da Rússia, e por fim mandou-o fuzilar, do que participou em seguida ao Comando, com toda a espécie de detalhes. Foi devido a isso que lhe formaram um Conselho de Guerra e o condenaram à morte, embora depois lhe tivessem suavizado a sentença e mandado à Sibéria, para trabalhos forçados de segundo grau, nas fortalezas, por 12 anos. Ele próprio confessava que se conduzira arbitrariamente e disse-me mais que, antes de mandar fuzilar o príncipe, já sabia que um chefe aliado tinha de ser julgado segundo as leis, mas que, apesar de o saber, nunca seria capaz de chegar a compreender a sua falta.
— Pois repare! É que ele tentara incendiar-me o forte! E que havia eu de fazer? Agradecer-lhe, ainda por cima? — dizia-me, em resposta às minhas observações.
Mas os presos, entretanto, apesar de troçarem de Akim Akímitch, devido à sua pouca esperteza, respeitavam-no por causa da sua escrupulosidade e da sua habilidade.
Não havia ofício que Akim Akímitch ignorasse. Era carpinteiro, sapateiro, pintor de paredes, prateiro, serralheiro e aprendera tudo isso no presídio. Era autodidata; via alguém fazer uma coisa e em seguida fazia-a ele logo também. Confeccionava ainda caixinhas, cestinhos, lanternas e brinquedos infantis, que vendia na cidade. Assim, tinha sempre dinheiro que empregava depois em roupa interior fina; em cosméticos e em colchões dobráveis .. Ficava no mesmo dormitório que eu e não foram poucos os serviços que me prestou nos primeiros dias da minha vida de forçado.
Quando saíam da penitenciária para irem para o trabalho, os presos formavam duas filas diante do corpo da guarda; à frente e atrás dos presos alinhavam os soldados da escolta, de espingardas carregadas. Estavam presentes um oficial de engenharia, o condutor e alguns engenheiros subalternos que se destinavam a assistir aos trabalhos. O condutor distribuía os presos e enviava-os para os lugares onde eram necessários.
Destinaram-me, juntamente com outros, à oficina de engenharia. Consistia esta num edifício de pedra, baixinho, situado no pátio maior, cheio de materiais diversos. Havia aí ferragens, carpintaria, oficina de pintura etc., etc. Era aí que trabalhava Akim Akímitch; pintava, preparava os óleos, misturava as cores e construía mesas e outros móveis de nogueira.
Enquanto me punham as grilhetas entretive-me a conversar com Akim Akímitch acerca das minhas primeiras impressões do presídio.
— Sim, não gostam dos aristocratas — disse ele —, especialmente dos presos políticos; de boa vontade os comeriam e não deixam de ter as suas razões. Em primeiro lugar os senhores são pessoas diferentes deles, ainda que eles tenham sido anteriormente modestos proprietários ou militares. Já vê que não é possível que os olhem com simpatia. Acredite que é difícil viver aqui. E entre os presos da Rússia europeia, ainda é mais difícil. Temos aqui muitos que apreciam o nosso presídio, como se tivessem passado do inferno para o paraíso. O trabalho não é nenhuma desgraça. Dizem que na Rússia europeia o comando não se conduz de maneira estritamente militar; pelo menos procede de maneira diferente para com os presos; dizem que os deportados podem viver em suas casas. Eu nunca estive lá, falo pelo que tenho ouvido dizer. Não lhes rapam a cabeça, não usam uniforme, embora no fim das contas não deixe de estar certo que estes andem de uniforme e de cabeça rapada; assim, torna-se tudo mais ordenado e mais agradável à vista. Simplesmente, eles é que não acham graça. Mas repare, que confusão. Um é dos cantões; outro, cherquês; o terceiro, raskólhnik;7 o quarto, um camponês ortodoxo, que deixou na terrinha a família e os filhos queridos; o quinto, judeu; o sexto, cigano; o sétimo não se sabe o que é, e todos eles se veem obrigados a viver juntos, a marchar, seja como for, uns com os outros; a comer no mesmo prato, a dormir nas mesmas esteiras. E que liberdade! Os melhores bocados só se podem comer às escondidas; os cobres têm de ser guardados no fundo das botas e, no fim de contas, a penitenciária é sempre a penitenciária... Quer queiras ou não, a loucura sobe-te à cabeça.
Mas isso eu já o sabia. Tinha um desejo enorme de interrogá-lo acerca do nosso major. Akim Akímitch não era homem para guardar segredos, e lembro-me de que a impressão com que fiquei de tudo quanto me contou não foi muito boa.
Mas eu estava condenado a passar ainda dois anos sob seu domínio. Tudo quanto Akim Akímitch me contou acerca dele, verifiquei depois ser verdade, com a diferença de que a impressão direta é sempre mais forte do que a que se recebe através de uma simples narrativa. Era um homem estranho, embora mais estranho ainda fosse que semelhante homem tivesse um poder ilimitado sobre duzentas almas. Era por natureza um homem severo e mau, e nada mais. Encarava os presos como seus inimigos naturais e nisto consistia o seu primeiro e principal defeito. Possuía sem dúvida algumas aptidões; mas tudo, inclusivamente o que era bom, apresentava nele um aspecto incompleto. Rancoroso, mau, costumava entrar no presídio durante a noite e, se por acaso visse algum preso dormindo sobre o lado esquerdo ou de boca para baixo, no outro dia de manhã, chamava-o para dizer-lhe: “Vamos ver se consegues dormir sobre o lado direito, como te mandei.” No presídio, todos lhe tinham antipatia e temiam-no como à peste. Tinha uma cara muito vermelha e encolerizada. Todos sabiam que era um autêntico brinquedo nas mãos do seu assistente, Fiedka. De quem ele gostava mais era do seu cãozinho Tresorka, e esteve quase a morrer uma vez que o seu Tresorka esteve doente. Diziam que nessa ocasião chorava como se tivesse perdido um filho; chamou um veterinário, com o qual esteve quase a trocar pancada; e quando soube por Fiedka que havia na penitenciária um preso autodidata que fazia curas extraordinárias, mandou imediatamente chamá-lo.
— Salva-me! Cobrir-te-ei de ouro, se salvares o meu Tresorka! — gritou-lhe.
O homem era um siberiano, esperto, hábil de fato, ótimo veterinário, mas muito rude.
— Olhei para Tresorka — disse depois aos outros presos, embora já passado bastante tempo da sua visita ao major, quando já tudo aquilo se tinha esquecido. — Olho-o; o cão está estendido sobre o divã, em cima dum almofadão branco, e concluo que tem uma inflamação, que é preciso fazer-lhe uma sangria para salvá-lo. Mas penso para comigo: “gostaria de saber o que é que aconteceria se eu não o curasse, se o deixasse estourar para aqui!” Nada; vou e digo-lhe: “Vossa Excelência mandou-me chamar já muito tarde; ontem, ou anteontem, talvez ainda pudesse fazer alguma coisa, mas hoje já não é possível...”
E foi assim que Tresorka morreu.
Contaram-me com todos os pormenores como uma vez quiseram matar o nosso major. Havia na penitenciária um certo preso. Estava conosco havia já alguns anos e distinguia-se de todos nós pelo seu ingênuo modo de conduzir-se. Também reparavam que nunca falava com ninguém. Achavam que era um pouco amalucado. Sabia ler e escrever e tinha passado todo o ano anterior lendo constantemente a Bíblia, lendo-a de dia e de noite. Quando todos dormiam, à meia-noite, ele se levantava, acendia uma vela de igreja, trepava no fogão, tirava o livro que lá estava escondido e punha-se a ler até que amanhecia. Um dia chegou junto do oficial e disse-lhe que não queria ir para o trabalho. Avisaram o major, o qual ficou furioso e veio imediatamente numa correria. O preso atirou-lhe um tijolo que já levava, às escondidas; mas errou o golpe. Agarraram-no, levantaram-lhe um processo e castigaram-no. Fizeram tudo isso rapidamente. Passados três dias o infeliz falecia na enfermaria. Quando morreu disse que não tinha feito aquilo por ódio a ninguém, mas apenas porque queria sofrer. E isto sem que pertencesse a alguma seita. No presídio lembravam-se dele com respeito.
Finalmente puseram-me as grilhetas. Entretanto, já tinham aparecido na oficina várias vendedoras de bolinhos. Algumas eram ainda umas mocinhas. Enquanto eram jovens, andavam na venda dos bolos; as mães faziam-nos e elas vendiam-nos. Quando já mulheres continuavam entrando ali, mas sem bolinhos; era esse o costume. Entre as vendedeiras havia também algumas que eram casadas. Os bolinhos custavam 1 groch cada um e quase todos os presos os compravam.
Reparei num preso carpinteiro, já de cabelo branco mas muito mulherengo, que, sorrindo, não tirava os olhos de cima das vendedoras. Pouco antes de elas terem chegado pôs um lenço vermelho no pescoço. Uma mulher gorducha e toda cheia de marcas de varíola sentou-se no banco junto dele e entre ambos entabulou-se o diálogo seguinte:
— Por que não foste lá ontem? — perguntou-lhe o preso com um sorriso fátuo.
— Eu fui, mas Mitka chamou-os — respondeu a mulher com desenvoltura.
— É verdade, chamaram-nos; senão, teríamos ido lá, sem falta... Mas antes de ontem foram lá todas...
— Quem é que foi?
— A Mariachka, Khavrochka, Tchekunda, Dvugrochévaia...8
— Que quer dizer isso? — perguntei eu a Akim Akímitch. — Será possível? .
— É — respondeu-me baixando os olhos, pois era um homem muito austero.
Não havia dúvida de que aquilo era possível, mas apenas uma vez por outra e com grandes dificuldades. De maneira geral entregavam-se mais à bebida do que a isso, apesar da dureza da vida de forçado. Até à mulher era muito difícil chegar. Era preciso arranjar uma hora, um lugar, pôr-se de acordo com elas, marcar um encontro, procurar a solidão, o que era particularmente difícil; escapar da caravana, o que era ainda mais difícil, e depois gastar uma boa soma, relativamente falando. Mas, apesar de tudo isso vim ainda a ter oportunidade, algumas vezes, de testemunhar cenas de amor. Lembro-me de que uma vez, no verão, tínhamos ido para um certo alpendre, nas margens do Irtich, onde nos ocupávamos em acender um forno; as sentinelas eram bons rapazes. Apareceram então ali duas souffleuses, como os presos lhes chamam:
— Olá? Então por onde têm andado? Talvez com os Zvierkóvi? — perguntou-lhes um dos presos, do qual se tinham aproximado e que havia muito tempo as esperava.
— Quem? Eu? Mais tempo demora a pega na árvore do que eu com eles — respondeu com desenvoltura uma das mulheres.
Era uma criatura horrorosa. Vinha acompanhada pela Dvugrochévaia, a qual era também de uma fealdade superior a toda hipérbole.
— Já há tempo que não vos via — continuou o galã dirigindo-se a Dvugrochévaia. — Que fizeste, para estares assim tão magra?
— Eu já lhe digo. Eu, dantes, era muito gorda, e agora, em compensação... pareço um palito.
— Não andaram com os soldados?
— Qual! Isso são as más línguas que o dizem! Embora, no fim das contas... Embora nos deixem sem um cobre, os soldados atraem-nos!
— Então deixem-nos e venham conosco; nós temos dinheiro...
Para completar o quadro imaginemos esse galanteador de cabeça rapada, de grilhetas e de terno listado, e vigiado por sentinelas.
Perguntei a Akim Akímitch e ele me disse que eu podia voltar com a escolta para o presídio, e foi o que fiz. Os outros regressavam já. Os primeiros a regressarem eram os que trabalhavam por empreitada. O único processo de obrigar os presos a trabalharem com persistência era dar-lhas uma tarefa. Às vezes davam-lhes umas tarefas enormes; mas, apesar disso, acabavam-nas muito mais depressa do que quando os faziam trabalhar durante todo o dia, até o toque do tambor, que anunciava a hora do rancho. Assim que acabavam o seu trabalho, os condenados voltavam logo para o presídio e já ninguém os incomodava.
Não comiam todos juntos mas ao acaso, à medida que iam chegando; aliás, também não havia lugar suficiente para todos, ao mesmo tempo, na cozinha. Provei a sopa de couve, mas, por não estar habituado, não fui capaz de ingeri-la e fiz um pouco de chá. Sentei-me na ponta da mesa. A meu lado tinha um companheiro que, tal como eu, era de família nobre.
Os presos entravam e saíam. Havia ainda lugar de sobra, pois ainda não tinham chegado todos. Um grupo de cinco homens formava um pequeno círculo à parte, na mesa ampla. O cozinheiro deu a cada um deles um prato fundo de sopa de couve e deixou em cima da mesa uma travessa com peixe frito. Deviam festejar qualquer coisa e comiam por dois. Olhavam para os outros de soslaio. Entrou um polaco e sentou-se junto de mim.
— Não estava em casa, mas sei tudo! — exclamou com voz forte um preso alto, entrando na cozinha e passando revista com os olhos a todos os presentes.
Devia ter cinquenta anos e era musculoso e magro. Tinha qualquer coisa de sinistro no rosto, ao mesmo tempo que de cômico. O que mais chamava nele a atenção era o seu lábio inferior, grosso e proeminente, o que dava ao seu rosto uma expressão muitíssimo engraçada.
— Saúde! E que vos faça muito bom proveito! Mas por que é que nem sequer cumprimentam? — acrescentou, sentando-se junto dos que comiam. — Bom apetite! Recebam bem o convidado!
— Nós, meu caro, não somos de Kursk!
— Ah! Talvez sejam de Tambov!
— Nem de Tambov. De nós não levas nada, meu caro. Dirige-te a algum ricaço e estende-lhe a mão.
— Na minha barriga, meus caros, hoje estão Ivan Taskun e Maria Ikhóchina;9 mas onde está, onde vive esse ricaço?
— Tens aí Gázin, que é um homem endinheirado; podes dirigir-te a ele.
— Mas Gázin, meus caros, ficou sem dinheiro, embebedou-se, gastou tudo na pinga.
— Tem 20 rublos — disse outro. — Pelo visto, o negócio de taberneiro não é nada mau.
— Mas quê, não admitem convidados? Bem, se é assim, comeremos por conta da casa.
— Vamos lá, pede chá. Olha, os senhores, tomam-no.
— Aqui não há senhores, agora; aqui todos são o mesmo que eu — exclamou com mau modo um preso que estava sentado num canto, Até esse momento não tinha dito uma palavra.
— De boa vontade tomaria chá; mas custa-me pedi-lo, também temos a nossa dignidade! — observou o preso do lábio gordo, olhando-nos com uma expressão bonacheirona.
— Se deseja, eu lhe ofereço — disse, convidando-o — com muito gosto...
— Com muito gosto? Aí é que não havia de aceitar! — e aproximou-se da mesa.
— Em casa só comia sopa de couve; e agora, aqui, apetece-lhe a bebida dos senhores! — exclamou o preso de mau gênio.
— Então, não há aqui quem beba chá? — perguntei-lhe eu; mas ele não se dignou responder-me.
— Olhem, aí estão com os bolos. Ande, dê-me um também!
Entraram com os bolos. Um preso novo trazia um monte de bolinhos e procurava vendê-los aos outros presos. As vendedoras entregavam-lhe dez bolos e, a partir destes, começaram a contar.
— Kalátchi, kalátchi! — gritava ao entrar na cozinha. — Chegados de Moscou, quentinhos! Se não me tivessem custado dinheiro, quem os comia era eu. Vamos, rapazes, que só tenho um! Quem é que teve mãezinha?!
Esta invocação do amor maternal comoveu a todos, e alguns compraram-lhe bolinhos.
— Mas... vocês não sabem? — acrescentou. — Gázin não cometeu nenhum pecado! Meu Deus! Então não se lembrou de sair! Contanto que o Oito Olhos não o descubra!
— Escondem-no. Mas como, embebedou-se?
— Está mas é furioso.
— Então vamos ter pancadaria...
— De quem falam? — perguntei ao polaco que estava sentado junto de mim.
— De Gázin, o preso. É doido por vinho. Assim que apanha algum dinheirinho põe-se logo a beber; se não fosse isto era o homem mais pacato do mundo, mas quando bebe perde a cabeça e atira-se às pessoas de faca em punho. O que vale é que aqui sabem amansá-lo.
— Como é que o amansam?
— Dez presos atiram-se sobre ele e dão-lhe uma sova, com todas as suas forças, até que fique sem sentidos. Isto é, até o deixarem meio morto. Então levam-no para a esteira e deitam-lhe uma samarra por cima.
— Um dia podem matá-lo!
— A outro matá-lo-iam, a ele, não. É o mais forte de todos que estão no presídio, e de uma constituição robustíssima. Na manhã seguinte levanta-se como se nada tivesse acontecido.
— Ora diga-me, por favor — continuei eu a perguntar ao polaco: — Agora, eles estão comendo, enquanto eu bebo chá. E todos olham para mim, como se invejassem o meu chá. Diga-me: que significa isso?
— Não é por causa do chá — respondeu-me o polaco —, mas para o senhor ser nobre, como eu, e não sermos parecidos com eles. Sabe Deus quantos gostariam de brigar conosco. Têm sempre uma vontade enorme de nos ofenderem, de nos vexarem. O senhor admira-se muito desta hostilidade. Aqui, têm-nos um ódio feroz a todos, é uma coisa horrível. A mais horrível, em todos os sentidos. É preciso muita paciência para uma pessoa se acostumar a isto. Há de encontrar muitas vezes essa hostilidade e aversão por causa do chá e da comida especial, apesar de haver aqui muitos que frequentemente comem à parte e alguns que bebem chá constantemente. Eles podem fazê-lo, mas o senhor não pode.
Quando disse isto levantou-se e saiu da mesa.
Passados poucos minutos tive a confirmação das suas palavras.
PRIMEIRAS IMPRESSÕES
(CONTINUAÇÃO)
Assim que Mátski (o polaco com o qual eu tinha acabado de falar) saiu, Gázin, completamente bêbado, apareceu na cozinha.
Um preso bêbado, à luz do dia, quando todos eram obrigados a estar no trabalho, tão próximo do lugar onde estavam os chefes do presídio, que podiam aparecer ali de um momento para o outro, a dois passos do suboficial encarregado da guarda dos presos, e que não se afastava do edifício; tão à vista das sentinelas e dos inválidos, numa palavra, de todos os guardiões do presídio, vinha arruinar por completo a ideia que eu fizera da vida dos presos. Foi preciso ainda muito tempo para que a mim mesmo pudesse explicar todos esses fatos, que eram para mim autênticos enigmas, durante os primeiros dias do meu cativeiro.
Já disse que os presos tinham sempre o seu trabalho particular, e que esse trabalho era uma exigência natural da vida presidiária; que à parte essa necessidade, o preso ama extraordinariamente o dinheiro e valoriza-o acima de tudo, quase tanto como a liberdade, sentindo-se consolado quando o ouve tilintar no bolso, e que, pelo contrário, se mostra diminuído, tristonho e inquieto, e perde a coragem quando ele se lhe acaba, e se torna então capaz de roubar seja o que for, contanto que o arranje. Mas apesar de ser tão precioso na penitenciária, o dinheiro nem sempre contribuía para a felicidade daqueles que o possuíam. Em primeiro lugar, era-lhes muito difícil guardá-lo, de maneira que não lho roubassem nem lho apreendessem. Se o major conseguisse dar com ele em qualquer das suas inesperadas revistas, apreendia-o imediatamente. Pode ser que o empregasse em melhorar o rancho dos presos; fosse lá para o que fosse, o certo era que o levava. Mas o mais frequente era roubarem-no; não havia processo de o porem bem seguro. Mais tarde os presos vieram a descobrir um meio de guardar o dinheiro com toda a confiança. Depositavam-no nas mãos dum velho, um antigo crente, que chegara ali como adepto da seita de cismáticos que formavam os camponeses de Staradúbovo... E não posso deixar de dizer algumas palavras acerca deste, embora me afaste do meu assunto.
Era um velho de sessenta anos, baixinho e de cabelos brancos. Causou-me uma profunda impressão da primeira vez que o vi. Era completamente diferente dos outros presos. Qualquer coisa de plácido e de sereno transparecia no seu olhar, a tal ponto que me lembro de como me agradava olhá-lo nos seus olhos claros e luminosos, rodeados de rugas finas e pequenas. Conversávamos muitas vezes e talvez nunca tenha encontrado na minha vida uma criatura tão boa e tão simpática. Tinha sido deportado por um crime muito grave. Entre os aldeões de Staradúbovo, adeptos da antiga fé,10 começaram a dar-se conversões. O governo protegia os converses e começou a pôr em jogo todos os seus recursos para que se convertessem também os outros dissidentes. Mas o nosso velho decidiu, juntamente com outros fanáticos, dar público testemunho da sua fé, como ele dizia. Os outros começaram a levantar uma igreja nova e eles incendiaram-na. O nosso velho foi enviado para os trabalhos forçados como um dos instigadores. Era um comerciante rico e tinha mulher e filhos; mas aceitou a sua sorte, sem fraquejar, por considerar, na sua cegueira, que aquilo era um martírio pela sua fé. Quem convivesse durante algum tempo com ele havia de fazer involuntariamente esta pergunta: “Como é possível que este homem, tão amável, ingênuo como uma criança, tenha sido um revolucionário?” Algumas vezes eu lhe falava da fé... Não havia quem o demovesse das suas convicções; mas nunca deixava transparecer maldade nenhuma nem ódio nas suas palavras. E ·no entanto tinha incendiado igrejas e não o negava. Calculo que, segundo a sua maneira de pensar, devia considerar a sua conduta e o martírio como uma felicidade. Mas nunca lhe notei nem lhe ouvi nada que pudesse ser indício de vanglória ou de jactância.
Havia ali outros adeptos da antiga fé, na maior parte siberianos. Eram pessoas melindrosas, homens brigões, muito irritáveis e pedantes, e grandes dialéticos na sua doutrina; indivíduos altivos, desordeiros, presunçosos e incrivelmente impacientes. O nosso velho era completamente diferente. Talvez mais lido do que todos eles, evitava as discussões. Era muito sociável. Estava sempre contente e costumava rir-se, não com esse risinho sombrio, cínico, com que se riam os presidiários, mas com um riso claro, plácido, com um riso que transbordava candura infantil e que dizia muito bem com os seus cabelos brancos. Pode ser que eu esteja enganado, mas parece-me que se pode conhecer os homens pela maneira de rir e que, quando surpreendemos um riso afetuoso na boca de alguém que não conhecemos, podemos afirmar que se trata de uma boa pessoa. O velho era muito considerado em todo o presídio, mas não se envaidecia por isso. Os presos chamavam-no avô e nunca se metiam com ele. Mas, apesar da visível dignidade com que suportava os seus trabalhos forçados, escondia na alma um pesar profundo, inconsolável, que se esforçava por dissimular. Eu ficava no mesmo alojamento que ele. Uma vez, aí pelas três da madrugada, acordei e ouvi um chorar manso e reprimido. O velho estava sentado sobre o fogão (aquele mesmo fogão sobre o qual, já antes dele, à noite, se punha a rezar aquele outro preso que lia a Bíblia e queria matar o major) e rezava no seu livro manuscrito. Chorava e eu ouvi como dizia de quando em quando: “Senhor, não me abandones! Senhor, dá-me forças! Os meus filhinhos, tão pequeninos, nunca mais me verão!” Não poderia exprimir a pena que aquilo me fez. Foi a esse velhinho que, pouco a pouco, todos os presos foram confiando o seu dinheiro para que ele o guardasse. No presídio eram quase todos gatunos; mas, de repente, não sei por quê, todos adquiriram a convicção de que aquele velho não poderia roubá-los. Sabiam que ele também escondia em qualquer lugar as quantias que lhe enviavam de casa; mas num lugar tão seguro que não era possível descobri-las. Mais tarde veio a revelar-nos o seu esconderijo, a mim e a alguns dos polacos. Numa das estacas da nossa cerca havia nascido uma galha que, segundo parecia, estava bem agarrada ao tronco. Mas ele levantou a galha e ficou a descoberto um grande buraco. Era ali que o velhote escondia o seu dinheiro, voltando depois a colocar a galha no seu lugar, de maneira que nunca ninguém pudesse suspeitar de nada.
Mas afastei-me da minha narrativa. Tínhamos ficado nisto: no motivo pelo qual o dinheiro não durava muito no bolso dos presos. Mas além da dificuldade de guardá-lo havia no presídio outras causas de sobressalto; o preso é, por natureza, um ser a tal ponto ansioso de liberdade, e também, devido à sua posição social, a tal ponto desorientado e desordenado que, naturalmente, o seduz a ideia de fartar-se de tudo, de gastar de uma só vez todos os seus bens, com balbúrdia e com música, a fim de esquecer, ainda que só por um minuto, a sua sorte. Era estranho ver alguns deles trabalharem sem levantar a cabeça, às vezes durante meses inteiros, apenas com o fim de poderem um dia largar completamente o trabalho, para depois, outra vez, até nova pândega, se porem a trabalhar outros tantos meses a fio. Muitos gostavam de vestir uma roupa nova e, é claro, qualquer coisa fora do comum: umas calças pretas de feitio especial, ou um cinturão, ou uma samarra siberiana. Também se usavam muito as camisas de cor, de algodão, e o cinturão com fivelas de metal. Quando estavam alegres e foliões por causa de alguma festa, era certo que se punham a percorrer todos os alojamentos, chamando por toda a gente. A satisfação de se sentirem bem frajolas raiava pela infantilidade; e, de fato, muitos desses presos eram umas autênticas crianças. Para dizer a verdade, todos esses objetos vistosos deixavam, como por encanto, de ser propriedade sua, pois às vezes, já nessa mesma noite, os empenhavam ou vendiam por um preço irrisório. Aliás, andavam sempre na paródia, para a qual havia oportunidade, geralmente, ou nos dias de festa ou nos dias em que o anfitrião celebrava o seu santo. O preso que celebrava o seu santo onomástico levantava-se nesse dia muito cedo, acendia uma vela e rezava; depois vestia-se, alindava-se e encomendava o jantar. Mandava comprar carne de vaca e peixe e fazer empadas siberianas; a seguir comia como um abade, geralmente sozinho, pois raramente convidava os companheiros para partilharem do festim. Depois aparecia a aguardente; o tipo bebia, percorrendo todos os dormitórios, fazendo barulho, provocando os outros e esforçando-se por demonstrar a todos que estava bêbado, que se excedera, conquistando assim o respeito geral. Entre os russos, em todas as partes se acolhe o bêbado com uma certa simpatia; no presídio quase lhe prestavam homenagem. Havia qualquer coisa de aristocrático na bebedeira dos presidiários. Assim que se embebedava, o preso começava logo a exigir música. Havia no presídio um polaco desertor, muito repugnante, mas que tocava violino, possuindo um que era mesmo seu e representava toda a sua fortuna. Não tinha ofício nem benefício; por isso lembrou-se de dedicar-se a tocar danças alegres para os companheiros que se embriagavam. O seu trabalho consistia em seguir constantemente, de alojamento a alojamento, o bêbado do patrão, tocando o violino com todas as forças. Às vezes o seu rosto refletia desgosto, angústia. Mas aquelas palavras de “Toca, que eu te pago” eram o suficiente para que ele se pusesse a tocar com nova energia. Quando começava a embebedar-se, o preso tinha a certeza absoluta de que, assim que estivesse completamente atascado, os companheiros haviam de dar por isso e então deitá-lo-iam e procurariam algum meio de os chefes não chegarem a saber do ocorrido; e, tudo isso, o fariam com o maior desinteresse. Por outro lado, o suboficial e os inválidos, encarregados de velar pela ordem dentro do presídio, estavam completamente seguros de que o bêbado não chegaria a cometer nenhum desacato. Todos os presos, de todos os alojamentos, tomavam conta nisto, e quando o bêbado se excedia e começava a ficar pesado, deitavam-lhe imediatamente água na fervura e, se fosse necessário, manietavam-no. Mas a chefia secundária do presídio também fazia vista grossa sobre os bêbados e fingia não saber de nada. Sabiam muito bem que, se não permitissem a aguardente, ainda seria pior... Mas donde vinha essa aguardente?
Vendiam-na no presídio os próprios taberneiros de ofício. Eram vários e praticavam um tráfico contínuo e lucrativo, apesar de os bêbados e desregrados serem normalmente poucos, pois, para beber, era preciso contar com dinheiro, e os presos tinham grandes dificuldades para o conseguir. Esse negócio começara, prosperara e se desenvolvera de maneira bastante original. Suponhamos um preso sem ofício e sem vontade de trabalhar (o que não faltavam ali), mas com vontade de possuir dinheiro e, além disso, homem impaciente, que deseja ver depressa o resultado das suas diligências. Conta com algum dinheirinho para começar e decide-se a fazer contrabando de aguardente: empresa atrevida e que acarreta riscos graves. Podia acontecer que o tivesse de pagar com o corpo e se visse ao mesmo tempo privado do seu comércio e do seu pecúlio. Mas o taberneiro arrostava com tudo. Dinheiro, a princípio, tem algum, e além disso, da primeira vez é ele mesmo quem introduz a aguardente no presídio, tirando, é claro, um bom lucro. Repete a operação pela segunda e pela terceira vez, e, desde que os chefes não se intrometam, o seu negócio prospera rapidamente, e é então que assenta sobre uma base mais ampla: arvora-se em negociante, em capitalista, mantém agentes e ajudantes, corre menos perigo e cada vez ganha mais. Quem se arrisca são os ajudantes.
Havia sempre no presídio indivíduos perdulários, jogadores, que se embebedavam até gastarem o último copeque; indivíduos sem ofício, desprezíveis e miseráveis, mas dotados de ousadia e iniciativa no mais alto grau. Esses indivíduos, a respeito de capital, só possuem um: as costas, que podem servir-lhes para qualquer coisa, e portanto utilizam-no e dispõem-se a tirar dele o rendimento que pode dar. O indivíduo avista-se imediatamente com o comerciante e oferece-se-lhe para introduzir a aguardente no presídio; o rico taberneiro tem sempre alguns desses auxiliares, em qualquer parte, fora do presídio — um soldado, um camponês, às vezes uma mocinha — que compra a aguardente nas tabernas, em grande quantidade, relativamente, por conta do negociante e pelo preço conveniente, e vai depois ocultá-la em qualquer esconderijo dos lugares por onde os presos devem passar quando se dirigem para o trabalho. O fornecer começa sempre por dar a provar a excelência da aguardente; mais isto e mais aquilo, o preso não pode resistir muito e pode dar-se por muito feliz se não deixar ali todo o seu dinheiro em troca de uma aguardente que, por muito boa que seja, no fim das contas é aguardente. Ao referido fornecedor apresentam-se de antemão, designados pelo taberneiro do presídio, os transportadores que hão de trazer os odres. Estes odres primeiro são lavados, depois enchem-nos de água, para que conservem assim a umidade e a elasticidade primitivas e fiquem capazes de receber a aguardente. Assim que os têm cheios de água, o preso liga os odres à cintura e, caso se proporcionar, às partes mais escondidas do corpo. É claro que para isto é necessária toda a destreza, toda a manha de larápio do contrabandista. De certa maneira é a sua honra que está em causa. Tem de passar diante dos soldados da caravana e das sentinelas. Mas engana-os; o ladrão eficiente sabe sempre enganar os soldados da caravana que às vezes se reduzem a algum recruta. É claro que primeiro se informam acerca da natureza da caravana, considerando também o momento e o lugar onde vão trabalhar. O preso é, por exemplo, consertador de fogões, e encarrapita-se em cima de um. Como se há de ver o que ele faz aí? O soldado não há de ir encarrapitar-se também atrás dele. Quando regressa ao presídio traz na mão uma moedinha de 15 ou 20 copeques, como por acaso, e espera o cabo à porta. Quando voltam do trabalho todos os presos são revistados pelo cabo das sentinelas, o qual os olha e apalpa por todas as partes, antes que se abram as portas da penitenciária. O introdutor da aguardente espera, de maneira geral, que durante a revista não cheguem a inspecionar-lhe determinadas partes do corpo. Mas às vezes acontece que o cabo o reviste também aí e encontre a aguardente. Então o preso apela para o seu último recurso. Em silêncio e às furtadelas, mete na mão do cabo a moeda que traz na sua. Costuma suceder que, devido a essa manobra, consegue entrar no presídio, sem qualquer contratempo, transportando a sua aguardente. Mas de outras essa manha falha e então não tem outro remédio senão lançar mão do seu último capital: as costas. Dão parte ao major, paga bem com o referido capital, confiscam-lhe a mercadoria e o contrabandista aguenta tudo sem tugir nem mugir e sem denunciar o fornecedor; mas, entenda-se, não porque o papel de delator lhe repugne, mas apenas porque a denúncia não lhe traria proveito algum; ele, de todas as maneiras, havia sempre de apanhar, e a sua única consolação talvez fosse a de que ambos apanhassem. Mas precisa do fornecedor, embora, segundo o costume e em relação à combinação feita, este não dê ao contrabandista nem um só copeque de indenização pelas vergastadas que podem cair-lhe sobre as costas. Quanto às denúncias, costumam ser frequentes. O delator não fica exposto a qualquer contratempo no presídio; nem sequer teme que lhe mostrem desdém. Não o desprezam, tratam-no tão amigavelmente que se no presídio alguém se pusesse a querer demonstrar-lhe a vileza da delação, ninguém o compreenderia. Havia um preso de condição nobre, depravado e mau, com quem rompi todo gênero de relações, o qual era um grande amigo de Fiedka, o delator do major, o que lhe servia de espia e lhe contava tudo o que ouvia aos presos. Pois todos sabiam disso e nunca ninguém pensou em castigá-lo, nem sequer censurar a sua conduta.
Mas já me desviei do assunto. Tínhamos ficado em que a aguardente entrava no presídio sem dificuldade alguma. Bem; uma vez aqui, o taberneiro toma conta dos odres que lhe levam, paga o custo e começa a deitar contas. Verifica então que a mercadoria lhe fica muito cara e, portanto, para obter maior lucro, batiza-a de novo, deitando-lhe outra porção de água, quase metade por metade; e assim aguarda a chegada do cliente, que aparece no primeiro dia de festa, e às vezes no meio da semana: algum preso que trabalhou durante meses como um burro, amealhando alguns copeques para poder depois gastá-los todos num só dia, previamente escolhido. Durante muito tempo o pobre trabalhador sonhou com esse dia, durante a noite, nos seus felizes desvarios, depois do trabalho, e essa ideia ajudou-o a suportar os mil dissabores da vida do presídio. Até que por fim amanheceu o dia abençoado; o dinheiro continua em seu poder; não lho apreenderam nem lho roubaram, e vai passar agora mesmo para a bolsa do taberneiro que, a princípio, lhe dá aguardente pura, se puder, isto é, batizada apenas duas vezes; mas à medida que o recipiente vai minguando, tudo quanto falta supre-o com água. Paga-se ali por um copo de aguardente cinco ou seis vezes mais do que em qualquer outra taberna. Imaginem, portanto, quantos copos de aguardente terá de embutir o preso e quanto dinheiro terá de gastar para chegar a embebedar-se. Mas, por não estar habituado à bebida e também devido à anterior abstinência, não tarda o preso a embriagar-se e, geralmente, continua bebendo até gastar os últimos cobres. É então que aparece toda a espécie de objetos: o taberneiro, ao mesmo tempo é usurário. Começam por levar-lhe os objetos de uso particular, de aquisição recente; depois os já usados, e por fim os objetos que no presídio lhe destinaram para uso próprio. Depois de ter gastado tudo na bebida, tudo, até o último farrapo, o preso vai deitar-se no dia seguinte acorda com um peso insuportável na cabeça e é em vão que corre para junto do taberneiro a pedir-lhe um trago de aguardente, que lhe alivie a enxaqueca. Suporta a sua desdita, amarfanhado, e nesse mesmo dia recomeça de novo o seu trabalho, para novamente, durante meses, trabalhar sem levantar a cabeça, sonhando com o dia feliz da última pândega, que não lhe sairá da memória, até que, pouco a pouco, comece a excitar-se e a pensar noutro dia parecido, que ainda vem longe, mas que há de chegar alguma vez.
Quanto ao taberneiro, quando consegue finalmente reunir uma quantia importante com o seu negócio, algumas dezenas de rublos, prepara pela última vez a aguardente, mas não lhe deita água, pois, dessa vez, destina-a para si mesmo. É que chegou também o seu dia de boêmia! E a festança começa com bebida, comida e música. E tem uma grande ideia: convida também para a orgia as autoridades subalternas que estão mais próximas do presídio. A festança prolonga-se às vezes durante vários dias. Escusado será dizer que a aguardente não tarda a acabar, e então o bêbado anfitrião acode a outros taberneiros, que já estão à sua espera, e bebe da aguardente destes até gastar os últimos cobres. Por muito que os presos velem pelo bêbado, às vezes é apanhado pelos chefes superiores, o major ou o oficial de guarda. Então, levam-no ao comando, tiram-lhe o dinheiro, se o encontram, e, para conclusão, mandam-no açoitar. Esfalfado, volta para a penitenciária e, passados alguns dias, já está de novo em seu oficio de taberneiro. Alguns desses bêbados, ainda com dinheiro, sonham com o belo sexo. À custa de muito dinheiro, deixam às vezes o trabalho, em segredo, e vão até certos arredores, acompanhados pela escolta subornada. Aí, numa casinha sossegada, precisamente no limite da cidade, oferece um banquete a todos e gasta o dinheiro. Com dinheiro, os presos podem fazer tudo, e o próprio soldado da escolta participa de todas essas coisas. Em geral, esses soldados da escolta são futuros candidatos ao presídio. Aliás, sempre que houver dinheiro podem fazer tudo, e essas excursões costumam ficar em segredo. É preciso acrescentar que só muito de longe em longe as realizam. Requerem dinheiro grosso, e os amantes do belo sexo preferem valer-se de outros recursos mais fáceis.
Logo, durante os primeiros dias da minha vida de presidiário, um jovem preso, um rapaz muito bonito, me inspirou uma curiosidade especial. Chamava-se Sirótkin.11 Era, sob vários aspectos, uma criatura muito enigmática. Em primeiro lugar foi o seu belo rosto que me chamou a atenção; não devia ter mais de 23 anos. Pertencia à seção especial, isto é, à perpétua, e justamente por isso era considerado um dos delinquentes militares mais graves. Calmo e simples, falava pouco e raramente sorria. Tinha os olhos azuis, as feições regulares, a cara sem um fio de barba, suave, os cabelos castanhos claros. A cabeça rapada quase nem chegava a desfeá-lo, tão bonito era o rapaz. Não tinha ofício mas recebia dinheiro com frequência, embora não muito. Era muito preguiçoso e andava malvestido. Havia alguém que de vez em quando lhe mandava roupa, uma bonita camisa, por exemplo, e Sirótkin demonstrava então grande alegria por causa do presente e ia exibir-se pelos dormitórios. Não bebia nem jogava baralho e nunca tinha rixas com os outros. Costumava andar pelos alojamentos, de mãos nos bolsos, muito tranquilo e meditabundo. É difícil supor em que poderia pensar. Se alguma vez uma pessoa o olhava, por curiosidade, se lhe perguntava qualquer coisa, respondia imediatamente e com delicadeza, não como um presidiário, mas sempre de maneira lacônica, seca, e olhando para as pessoas como uma criança de dez anos. Quando tinha dinheiro nunca comprava nada que fosse necessário, não dava a roupa para consertar nem comprava sapatos novos, mas comprava um bolinho, um pão doce e saboreava-o... como se tivesse apenas sete anos! “Olha lá, Sirótkin — costumava dizer-lhe os presos — tu és a órfã do presídio.” Nos dias de folga costumava vaguear pelos outros alojamentos; os outros traziam quase todos algum trabalho entre mãos; ele era o único que nada fazia. Se lhe diziam qualquer coisa, quase sempre uma piada (até os seus próprios companheiros costumavam zombar dele), saía dali sem sequer dizer uma palavra e ia para outro alojamento; às vezes, quando as piadas eram muitas, chegava até a corar. Eu pensava muitas vezes: “Por que teria vindo dar ao presídio esta criatura tão agradável e pacata?” Certa vez, estava eu doente no hospital do presídio, Sirótkin também, e a sua cama estava junto da minha; à tardinha pus-me a falar com ele; logo no princípio da conversa se mostrou muito animado e acabou por me contar como é que tinha sido feito soldado, quanto a mãe chorou e a tristeza que sentiu por se ver entre os recrutas. Acrescentou que nunca pôde suportar a vida do quartel, que lá todos eram duros, antipáticos, e que os oficiais estavam quase sempre descontentes com ele.
— E como é que acabou tudo isso? — perguntei-lhe eu. — Por que te mandaram para cá? E como se isso ainda fosse pouco, ainda por cima te mandaram para a seção especial! Ah, Sirótkin, Sirótkin!
— Pois tive de passar um ano inteiro no batalhão, Alieksandr Pietróvitch, e mandaram-me para cá porque matei Grigóri Pietróvitch, que era o comandante da minha companhia.
— É quase inacreditável, Sirótkin, pois será possível que tu fosses capaz de matar alguém?
— Foi como lhe disse, Alieksandr Pietróvitch. Agora já estou arrependido.
— E os outros recrutas não se acostumavam a essa vida? Com certeza a princípio também lhes custa, mas depois acostumam-se e, olha, acabam por ser bons soldados. A tua mãe devia ter-te mimado muito; devia ter-te regalado com tortas de anis e leite até aos 18 anos.
— É verdade que a minha mamacha gostava muito de mim. Quando eu fui para o quartel, dizem que se meteu na cama e não se tornou a levantar... A caserna acabou por se me tornar odiosa. Os oficiais não gostavam de mim, castigavam-me a toda hora... E por quê? Eu sou muito poupado em tudo, minha vida é muito ordenada, não bebo aguardente, não me aproprio do alheio, porque isso não está certo, Alieksandr Pietróvitch, uma pessoa apropriar-se daquilo que não lhe pertence... Todos os que me rodeiam têm o coração de pedra... ninguém a quem confiar os meus desgostos... Às vezes ia para um canto e punha-me a chorar. Pois bem. Uma vez, eu estava de sentinela. Era já noite e tinham-me mandado para junto do estaleiro. Ventava muito, era outono e estava tão escuro que até doíam os olhos. E como eu estava desgostoso, ai, tão desgostoso! Vou e pego na espingarda pela culatra, tiro-lhe a baioneta e ponho-a ao meu lado; descalço o pé direito, apoio o cano da espingarda contra o peito, deito-me sobre ele e puxo o gatilho com o dedo grande do pé... Olho... nada! Verifico a espingarda, limpo-a, ponho-lhe outro cartucho e encosto outra vez o cano contra o peito. Mas... que se passa? O cartucho encrava-se e o tiro falha de novo... “Mas que será isto?”, digo para comigo. Calço outra vez a bota, calo de novo a baioneta, resigno-me e ponho-me a passear de um lado para o outro. E de repente tomei uma resolução: ir para qualquer lugar, para longe da tropa. Passada meia hora surge o comandante com um piquete. Caminha direito para mim e diz: “Então isto é que é ficar de sentinela?” Levantei a espingarda e enterrei-lhe a baioneta até o cano. Quatro mil varadas e depois para aqui, para a seção especial...
Não mentia. Fora na verdade por isso que o mandaram para a seção especial. Aos delinquentes vulgares davam-lhes castigo mais leves. Além disso Sirótkin era o único de todos os seus companheiros que tinha tão boa aparência física. Quanto aos outros da sua categoria, dos quais se encontravam entre nós uns cinquenta, fazia dó olhar para eles; havia apenas duas ou três caras apresentáveis; os outros tinham as orelhas caídas, eram feios e sujos; alguns já tinham cabelos brancos. Se as circunstâncias o permitirem hei de falar mais minuciosamente de toda essa corja. Sirótkin costumava manter relações amigáveis, até com Gázin, aquele a respeito do qual comecei a falar no princípio deste capítulo, recordando a maneira como entrou bêbado na cozinha e acabou assim por desmentir as ideias que eu construíra acerca da vida no presídio.
Esse Gázin era um indivíduo terrível. Provocava em todos uma estranha impressão de horror. Parecia-me que não podia existir criatura mais feroz e abominável. Eu vira em Tobolsk12 o bandido Kâmienlev, famoso pelas suas façanhas, e depois também Sókolov, um preso que aguardava a decisão do processo, um desertor e feroz assassino. Mas nenhum deles me impressionou tão desagradavelmente como Gázin. Parecia-me às vezes que tinha diante de mim uma aranha enorme, gigantesca, de forma humana. Era tártaro e possuía uma força terrível, o mais forte de todos os do presídio; de estatura mediana, de constituição hercúlea, tinha uma cabeçorra disforme, desproporcionadamente grande, andava corcovado e olhava de baixo para cima. Acerca dele corriam no presídio boatos estranhos; sabia-se que pertencia à classe militar, mas os presos diziam entre si, não sei se com verdade, que ele desertara de Niertchinsk;13 já por mais de uma vez tinha estado na Sibéria, por mais de uma vez também tinha fugido e mudado de nome, até que por fim veio parar ali, à seção especial. Diziam também que gostava de matar mocinhas só por puro prazer; que as levava para lugar solitário e começava a meter-lhes medo, a assustá-las, e quando a pobre vítima tinha já caído no cúmulo do espanto e tremia de pavor, ele, então, cortava-lhes o pescoço, mas pouco a pouco, devagar, com deleite. Eu pensava que tudo isto deviam ser suposições sugeridas pela terrível impressão que em todos provocava Gázin; essas suposições condiziam perfeitamente com ele, era o seu próprio rosto que as sugeria. Mas, apesar de tudo, quando não estava bêbado, o homem conduzia-se discretamente no presídio. Mostrava-se sempre tranquilo, não ralhava com ninguém, fugia até das discussões, mas como se desprezasse os outros, como se se considerasse superior a todos eles; falava muito pouco e parecia deliberadamente retraído. Todos os seus movimentos eram lentos, tranquilos, firmes. Lia-se-lhe nos olhos que não tinha nada de bronco, e que, pelo contrário, era muito esperto e havia até sempre na sua cara e no seu sorriso qualquer coisa de extraordinariamente trocista e cruel. Fazia contrabando de aguardente e era um dos mais ricos taberneiros do presídio. Mas embebedava-se duas vezes por ano, e era então que aparecia à superfície a todos a bestialidade da sua natureza. Embebedava-se pouco a pouco e começava por atingir os outros com os seus sarcasmos maldosos, calculados e como que preparados de antemão, até que por fim, já completamente bêbado, se apoderava dele um furor tremendo, empunhava uma faca e arremetia contra as pessoas. Os presos, que conheciam a sua enorme força, fugiam dele e escondiam-se, e ele arremetia contra o primeiro que encontrasse no seu caminho. Mas em breve encontravam o processo de o meterem na ordem. Dez homens de seu alojamento atiravam-se contra ele imediatamente e a luta começava. Não é possível imaginar nada de mais horrível do que essa luta: batiam-lhe sobre o peito, debaixo do coração, sobre a boca do estômago, no ventre; eram muitos e espancavam-no durante muito tempo, e só o largavam quando ele perdia os sentidos e ficava como morto. A outro não se atreveriam eles a surrarem-no assim, pois bater dessa maneira a uma pessoa equivaleria a matá-la; mas a Gázin, não. Depois da sova, quando ele estava completamente desmaiado, tapavam-no com uma samarra curta e levavam-no para a sua esteira. “Curte aí a bebedeira, porco!” E de fato, na manhã seguinte, levantava-se como se nada tivesse acontecido e, taciturno e severo, encaminhava-se para o trabalho. E todas as vezes que Gázin bebia até ficar embriagado, já toda gente sabia, no presídio, que esse dia havia, inevitavelmente, de acabar para ele com uma sova. Também ele o sabia e, no entanto, embebedava-se. Assim aconteceu durante vários anos, até que por fim repararam que Gázin começava a decair. Queixava-se de vários males e tornara-se muito fraco; ia cada vez com mais frequência à enfermaria. “Rendeu-se!”, diziam os presos entre si.
Irrompeu na cozinha, seguido daquele reles polaco do violino, que os bêbados contratavam para complemento da sua paródia, e ficou ali estacado, em silêncio, olhando insidiosamente para todos os presentes. Todos se calaram. Por fim, reparando em mim e no meu companheiro, lançou-nos um olhar hostil e de chacota, sorriu com muita fatuidade, como se estivesse satisfeito consigo mesmo e, bamboleando-se ostensivamente, dirigiu-se para a nossa mesa.
— Dê-me licença que lhe pergunte — começou (falava russo) — com que meios é que conta para permitir-se o luxo de tomar chá aqui.
Não respondi e troquei um olhar com o meu companheiro, supondo que seria preferível calar-me a responder. A primeira resposta ele teria rebentado de cólera.
— Terá dinheiro, por acaso? — continuou ele. — Com que então temos dinheiro, hem? Veio para o presídio para tomar chá, não? Como é que se arranja para tomar chá? Vamos, diga lá...
Mas quando viu que nós estávamos decididos a não responder e a não reparar nele, ficou tão furioso que tremia de cólera. Junto dele estava uma grande bandeja, a um canto, na qual punham todo o pão, já cortado e pronto para o jantar dos presos. Era tão grande que nela cabia todo o pão para meio presídio; mas agora estava vazia. Ele foi, agarrou-a com ambas as mãos e lançou-a por cima de nós. Um pouco mais e ter-nos-ia partido a cabeça. Se bem que o assassinato ou a intenção de matar inspirasse extraordinária aversão em todo o presídio — começariam as indagações, as rusgas, as medidas de rigor obrigatórias, e por isso os presos procuravam cuidadosamente não se lançarem em tais extremos —, apesar disso estavam todos, agora, numa atitude expectante. Nem uma só palavra em nossa defesa. Nem uma palavra para Gázin. A tal ponto era poderosa a inveja que tinham de nós! Era evidente que lhes agradava ver-nos naquele momento difícil... Mas para que o episódio tivesse acabado bem bastou que um, quando ele ia a descarregar a bandeja sobre nós, lhe gritasse:
— Gázin, estão te roubando a aguardente!
Atirou com a bandeja ao chão e, como louco, saiu da cozinha.
“Foi Deus quem os salvou!”, disseram os presos entre si. E passado muito tempo ainda o diziam.
Não pude verificar imediatamente se essa notícia do roubo da aguardente era verdadeira ou inventada de propósito exclusivamente para nos salvar.
À tarde, já tinha escurecido, antes de fecharem os alojamentos, saí, pus-me a passear à volta da cerca, e uma lúgubre tristeza caiu sobre a minha alma, uma tristeza tão grande que nunca depois tornei a sentir outra igual durante toda a minha vida de presidiário. O primeiro dia de desterro é sempre duro de suportar, onde quer que seja, no presídio, na caserna ou nas galeras... Mas lembro-me, com toda a nitidez, de que o pensamento que mais me preocupava depois, e que me acompanhou durante toda a minha vida no presídio — e que, em parte, era um problema insolúvel — e insolúvel continua ainda agora para mim: o da desproporção das penas em relação a crimes idênticos. De fato, nem aproximadamente podem comparar-se uns crimes com outros. Suponhamos que dois homens cometeram um homicídio, que se examinaram as circunstâncias dos dois crimes e que se aplicou aos dois quase a mesma pena. E, entretanto, vejam que diferença entre os dois crimes. Um, por exemplo, matou um homem por uma ninharia, por causa de uma cebola! Saiu para a rua, encontrou o homem no caminho e matou-o. E tudo por causa de uma cebola! “Aí tens, meu caro! Mandaste-me chamar; matei um homem, e tudo isso por causa de uma cebola. Palerma! Uma cebola, que vale 1 copeque! Cem almas... cem cebolas! Olha, toma 1 rublo!” (Lenda presidiária). Outro, em compensação, matou para defender de um tirano inexorável a honra da noiva, da irmã ou da filha. Um outro, servo fugitivo, talvez meio morto de fome, matou um dos que foram enviados em sua perseguição, para defender a liberdade e a vida, ao passo que outro matou umas pobres mocinhas só pelo prazer de degolá-las, de sentir nas mãos o seu sangue morno, gozando com a sua dor, com os seus derradeiros gemidos de pomba debaixo do gume da faca. E então? Pois tanto a um como a outro os mandam para o presídio. É certo que há diferenças no valor dessas penas, mas essas diferenças não são relativamente grandes, enquanto a diferença entre um e outro crime... o é infinitamente. São tantas as diferença quantos os gêneros de crimes. Suponhamos que seja impossível medir, pormenorizar essa diferença; que se trata de um problema insolúvel por sua própria natureza; qualquer coisa como a quadratura do círculo, por exemplo. Mas quem não se aperceba dessa diferença, que atente nesta: a diferença entre as consequências do castigo... Aí tendes um homem que se consome no presídio, se apaga como uma luzinha; e aí tendes um outro que, só depois de ter entrado para o presídio soube o que era uma vida alegre, um agrupamento tão simpático de bravos camaradas. Sim, há alguns deste gênero no presídio. Eis aí, por exemplo, um homem culto sofrendo os remorsos de uma consciência requintada, torturado por um sofrimento moral, perante o qual todo outro sofrimento nada significa, e que se julga a si mesmo, pelo seu crime, mais implacável, mais severamente que a lei mais cruel. E eis aí, em comparação com ele, um outro que nem sequer, um só momento em toda a sua vida de presidiário, se detém a pensar no crime que cometeu. E mais, que se considera até inocente. E há, assim, os que praticam um crime apenas com o fim de irem dar à prisão e livrarem-se, deste modo, da vida, incomparavelmente mais forçada em liberdade do que no presídio. Na vida livre no último grau da humilhação, nunca come o suficiente e trabalha para o amo desde manhã até a noite; ao passo que no presídio o trabalho é mais leve do que em casa; o pão também é dobrado e tão bom como nunca até então o provou, e nos dias de festas tem carne de vaca; além disso há possibilidade de ganhar 1 copeque trabalhando. E os companheiros? Gente esperta, habilidosa, que sabe tudo. De maneira que o nosso homem olha para os companheiros com admiração: nunca, até então, vira outros como eles; considera-os como a mais elevada sociedade que é possível encontrar no mundo. Dar-se-á o caso de que o castigo possa inspirar os mesmos sentimentos a estes dois homens? Mas, afinal, para que matar a cabeça com problemas insolúveis? Ouviu-se o tambor: eram horas de voltar ao alojamento.
PRIMEIRAS IMPRESSÕES
(CONTINUAÇÃO)
Começou a última chamada. Depois disto fechavam logo os alojamentos, cada um com as suas chaves especiais, e os presos ficavam hermeticamente trancados até de madrugada.
Era um suboficial que fazia a chamada. Para isto, os presos formavam às vezes no pátio e vinha também o oficial das sentinelas. Mas o mais frequente era que essa cerimônia se realizasse nos próprios alojamentos. Foi o que se deu nessa altura. Os encarregados da contagem costumavam enganar-se e voltavam ao princípio para contar de novo. Até que, por último, as pobres sentinelas contavam até o número desejado e fechavam então os alojamentos. Em cada um destes alojavam-se uns trinta homens, que se acomodavam com bastante dificuldade nas esteiras. Mas era ainda muito cedo para dormir e portanto cada um procurava ocupar-se com qualquer coisa.
Das autoridades do presídio apenas ficava em cada dormitório um inválido, do qual já falei, e um decano dos presos, naturalmente designado pelo major, em atenção à sua boa conduta. Sucedia com muita frequência que os decanos incorriam, por sua vez, em alguma falta grave; então eram açoitados, destituídos imediatamente, e nomeavam outros. No meu alojamento o decano era Akim Akímitch, o qual, com grande espanto meu, ralhava muitas vezes com os presos, que costumavam responder-lhe com chufas. O inválido era mais esperto que ele, não se metia em coisa alguma, e se por acaso lhe acontecia ralhar com algum, fazia-o apenas por causa das aparências, para tranquilizar a sua consciência. Sentava-se muito caladinho na sua cama de rede e punha-se a coser as botas. Os presos não lhe davam a menor importância.
Nesse meu primeiro dia de vida presidiária não fazia outra coisa senão observar, e depois tive oportunidade de comprovar que as minhas observações eram acertadas. Sobretudo a de que vigiavam exageradamente os presos todos aqueles que não eram presos, fossem eles quem fossem, começando pelos que não estavam em contato estreito com os reclusos, como eram os soldados que vigiavam as caravanas, as sentinelas e, de maneira geral, todos aqueles que tinham qualquer relação com a vida penitenciária. Parecia que esperavam que de um momento para o outro um preso os acometesse com uma faca. E o que é ainda mais curioso: os próprios presos reconheciam que tinham medo deles, o que lhes infundia uma certa coragem. E, no entanto, o melhor chefe para os presos é precisamente aquele que não os teme, e os forçados só se sentem à vontade quando têm confiança neles. Neste caso chega até a ser possível atraí-los. Sucedeu que durante o meu período penitenciário, embora de longe em longe, um ou outro indivíduo do comando entrasse no presídio sem escolta. Era digno de ver como isto impressionava favoravelmente os reclusos. Esses intrépidos visitantes obtinham o seu respeito, e se alguma coisa de desagradável tinha de se dar, nunca acontecia na sua presença. O medo que os presos inspiram é geral em todos os lugares onde há presos e, de fato, não sei ao certo a que seja devido isso. Não há dúvida de que deve ter algum fundamento, a começar pelo próprio aspecto do preso, malfeitor reconhecido; além de que, todo aquele que passa pelo presídio deve sentir que toda essa chusma de indivíduos não está ali por sua vontade, e que, apesar de todas as medidas que se tomem, não é possível fazer do homem vivo um cadáver, pois conserva os seus sentimentos, a sua sede de vingança e de vida, as suas paixões e a necessidade de satisfazê-las. Mas, apesar de tudo isso, estou firmemente convencido de que não há razão nenhuma para temer os presos. Não é assim tão levianamente nem tão instantaneamente que um homem se lança, de faca em punho, sobre o seu semelhante. Em resumo: supondo que exista algum perigo, e que efetivamente ele exista, só poderá encontrar-se onde, precisa onde, pela raridade de semelhantes acontecimentos, pode concluir-se que é insignificante. É claro que me refiro apenas aos presos que cumprem a sua pena, muitos dos quais se alegram de se verem finalmente no presídio (a tal ponto às vezes uma vida nova parece boa!), e estão portanto decididos a viverem aí em paz e tranquilidade. Mas, ainda sem falar nisto, até os que são por sua natureza turbulentos não encontram ali muitos motivos para se tornarem arrogantes. Todos os condenados por muito temerários e duros que sejam, têm medo de tudo no presídio. Quanto ao preso que está para sofrer um castigo... isso é outro caso. Este, na verdade, pode acometer um desconhecido por qualquer futilidade: pela simples razão, por exemplo, de que no dia seguinte tem de partir para cumprir a pena e, se cometer outro crime, afasta assim o castigo. É esta a causa, a finalidade da agressão: adiar a sua sorte, seja como for, e o mais depressa possível. Conheço também um estranho caso psíquico desta natureza.
Entre nós, havia no presídio, na seção militar, um preso, um soldado, que não estava privado dos seus direitos civis, que fora condenado a dois anos de prisão, e que era um grande fanfarrão e covarde de primeira ordem. De maneira geral só muito raramente a fanfarronice e a covardia existem no soldado russo. O nosso soldado parece estar sempre tão atarefado que, ainda que quisesse fanfarronar, não poderia. Mas se por acaso for fanfarrão, é quase sempre também extremamente covarde. Dútov (era este o nome do preso) acabara, finalmente, a sua breve pena e voltara de novo para o batalhão. Mas como todos os da sua classe que são enviados para o presídio para se corrigirem acabam por se corromperem definitivamente, acontece geralmente que, ao se verem em liberdade, ao fim de duas ou três semanas se encontram já envolvidos em novo processo e aparecem outra vez no presídio, com a diferença de que então não vêm já apenas por dois ou três anos, mas sim formando parte da categoria perpétua, por 15 ou vinte anos. Foi o que se deu neste caso. Passadas três semanas da sua saída da penitenciária, Dútov cometeu um roubo por arrombamento e, além disso, armou um escândalo e desatou em impropérios. Instauraram-lhe o processo e condenaram-no à penitenciária. Receoso até o último extremo do castigo que se aproximava, como o mais vergonhoso covarde, aguardou o próprio dia em que deviam levá-lo para o presídio e atirou-se, de faca na mão, contra o oficial de reserva, que entrara no seu alojamento. É claro que devia saber perfeitamente que, com esse ato, agravava muito a sua pena e aumentava os seus anos de trabalhos forçados. Mas calculava que, assim, adiava, ainda que fosse apenas por uns dias, por umas horas, o terrível instante do castigo. Era a tal ponto covarde que quando arremeteu, de faca na mão, contra o oficial, nem sequer chegou a feri-lo, e fez tudo isso apenas para cometer um novo crime pelo qual tivesse de voltar a ser julgado.
Não há dúvida nenhuma de que o momento que antecede o castigo é terrível para o condenado, e eu, durante alguns anos, tive oportunidade de ver mais de um na véspera do dia fatal. Costumava encontrar-me com presos que estavam pendentes de castigo no hospital do presídio, durante as ocasiões em que aí entrava como doente, o que acontecia com muita frequência. Todos os presos russos sabem que as pessoas que mais compassivas se mostram para com eles são os médicos, que nunca estabelecem distinções entre os presos, como de maneira geral toda a gente faz, exceto talvez a gente simples do povo. Esta nunca incrimina o preso pelo seu crime, por muito grave que ele seja, e perdoa-lhe tudo em atenção ao castigo que lhe acarreta e à sua desdita. Não é em vão que, em toda a Rússia, o povo chama desgraça ao crime e desgraçado ao criminoso. Definição cheia de um profundo significado. E é sobretudo interessante o fato de ser inconsciente e instintiva. O médico é também... um verdadeiro refúgio para o preso em muitas ocasiões, mas sobretudo para os presos pendentes de castigo, que suportam duros sofrimentos. Por isso costuma o preso que se encontra nestas condições, quando calcula a data provável em que chegará o dia tão temido, recolher-se à enfermaria na ânsia de alijar, ainda que por pouco tempo, esse doloroso momento. Quando sai daí, sabendo quase com exatidão que no outro dia chegará o momento fatal, adoece quase sempre gravemente. Alguns se esforçam por ocultar os seus sentimentos, apenas por vanglória; mas a sua coragem fingida, forçada, não engana os seus companheiros. Todos passaram pelo mesmo e calam-se por humanidade. Conheci um preso, um rapaz novo, um homicida, soldado, condenado ao número máximo de varadas. Tinha um medo tão grande que, na véspera do castigo, resolveu tomar um copo de aguardente no qual deitara pó de tabaco. De fato, antes do castigo, nunca a aguardente falta aos presos. Muito tempo antes da data temida já a têm em seu poder; compram-na muito cara, mas preferem privar-se do indispensável do que se arriscarem a não ter o dinheiro necessário para arranjar um quartilho de aguardente e bebê-lo um quarto de hora antes da execução da pena. Existe entre os presos a crença geral de que o bêbado não sente tanto os açoites ou as pauladas. Mas estou a afastar-me do meu tema. O pobre rapaz, assim que bebeu a aguardente, pôs-se de fato doente: começou a deitar sangue pela boca e levaram-no para a enfermaria quase desmaiado. A tal ponto essa hemoptise lhe despedaçou os pulmões que, passados poucos dias, descobriram-lhe os sintomas de verdadeira tuberculose, da qual veio a morrer passado meio ano. Os médicos que o tratavam não sabiam a que se devia a doença.
Mas, falando dos delinquentes que costumam fraquejar perante o castigo, devo acrescentar que alguns, pelo contrário, desconcertam um observador pela sua extraordinária impassibilidade. Lembro-me de alguns exemplos de intrepidez que roçava pela insensibilidade, exemplos que não eram nada raros. Recordo-me especialmente do conhecimento que travei com um estranho criminoso. Num dia de verão espalhou-se pela enfermaria do presídio o boato de que nessa tarde ia aplicar-se o castigo ao célebre bandido Orlov, desertor do Exército, que tinha sido trazido para ali. Os presos doentes afirmavam que ele seria cruelmente castigado. Aparentavam todos uma certa comoção e, confesso-o, eu também esperava o aparecimento do famoso bandido com grande curiosidade. Já tinha ouvido contar muitas coisas acerca dele. Era perverso como poucos, degolava sem a menor compaixão velhos e crianças, era um homem de força hercúlea e francamente vaidoso das suas façanhas. Respondia por vários crimes e foi condenado a sofrer uma fila inteira de vergastadas.14 Já tinha caído a tarde quando o trouxeram. A enfermaria já estava na obscuridade e acenderam as luzes. Orlov vinha quase desmaiado, extremamente pálido, com os cabelos empastados, tesos, pretos como o breu. Tinha as costas inflamadas, de uma cor sanguinolenta, arroxeada. Os presos velaram-no toda a noite, levavam-lhe água, mudavam-no de posição, davam-lhe remédios, cuidavam dele como de uma criança, como de um santo homem. No dia seguinte já se levantou e deu dois passeios pela enfermaria. Aquilo me deixou atônito; ele chegara à enfermaria prostrado, num estado de extrema debilidade. Recebera de uma vez metade das pancadas a que o condenaram. O médico só mandou suspender a execução quando viu que, se a prolongassem, o sentenciado correria risco de morte. Além disso Orlov era baixo, de corpo fraco, e ficara sem forças devido ao longo sofrimento durante o castigo. Quando por acaso uma pessoa encontrava presos sentenciados, ficava depois a lembrar-se por muito tempo dos seus rostos espantados, consumidos e pálidos, e dos seus olhares de delírio. Apesar de tudo isso, não tardou que Orlov se restabelecesse. Não há dúvida de que a sua energia interior, anímica, ajudou fortemente a sua natureza. Na verdade, era um homem extraordinário. Por curiosidade convivi de perto com ele e estudei- o durante uma semana. Posso afirmar que nunca na minha vida encontrei um caráter humano mais forte, mais férreo do que o seu. Eu tinha já conhecido em Tobolsk uma celebridade do mesmo gênero, um ex-capitão de bandidos. Esse era uma autêntica fera, e quem quer que se visse diante dele, embora ignorasse o seu nome, havia de pressentir, por instinto, que se encontrava na presença de um ser terrível, bestial. A sensualidade predominava a tal ponto nele, sobre todas as potências espirituais, que só de olhar-lhe o rosto compreender-se-ia imediatamente que ali havia apenas uma ânsia selvagem de prazeres, satisfações e deleites carnais. Estou convencido de que Koriêniev — era esse o nome do bandido — devia também perder a coragem e tremeria de horror perante o castigo, apesar de ser capaz de degolar o próximo sem pestanejar. Com Orlov passava-se o contrário. Este era um verdadeiro dominador da sensualidade. Saltava à vista que este homem tinha um ilimitado poder sobre si mesmo, que desprezava todos os sofrimentos e castigos e nada temia neste mundo.
Percebia-se nele uma energia imensa, uma ânsia de vingança, ânsia de alcançar o fim a que se propunha. Entre outras coisas espantava-me a sua extraordinária altivez. Olhava para todos como de uma altura inverossímil, mas sem para isso fazer qualquer esforço, de uma maneira natural. Penso que não deve ter existido neste mundo uma criatura capaz de se lhe impor. Olhava para tudo com uma estranha fleuma, como se não houvesse nada neste mundo que pudesse assombrá-lo. Mas embora soubesse que os outros presos lhe tinham respeito, nunca se tornou soberbo perante eles. Dizem que a vaidade e a soberba são características de quase todos os presos, sem exceção. Era muito franco e extraordinariamente sincero, embora pouco falador. Às minhas perguntas respondeu imediatamente que esperava restabelecer-se para acabar de cumprir o castigo o mais depressa possível e que, antes, receara não poder suportá-lo.
— E pronto — acrescentou, piscando-me um olho —, é assunto arrumado. Aguentarei o número de vergastas que me restam, e em seguida toca a marchar para Niertchinsk; simplesmente, hei de fugir durante o caminho, ora se fujo! É só ficar bom das costas...
E durante esses cinco dias aguardou com impaciência o momento em que pudesse pedir alta. Nessa expectativa, mostrava-se às vezes muito animado e alegre. Procurei fazer com que ele me falasse das suas aventuras. Ele franzia o sobrolho perante tais perguntas, mas respondia-me sempre com franqueza. Quando percebeu que fazia investigações sobre a sua consciência, procurando algum indício de arrependimento, olhou-me de uma maneira tão nitidamente depreciativa e arrogante como se eu me tivesse repentinamente convertido, a seus olhos, num rapazinho estúpido, com o qual não se pudesse conversar do mesmo modo que com um homem feito. Também no seu rosto se refletiu um pouco de piedade por mim. Passado um momento desatou a rir, com o riso mais franco, sem ponta de ironia, e tenho a certeza de que, quando depois ficou só e se lembrou das minhas palavras, é muito possível que voltasse a rir-se.
Finalmente deram-lhe alta, embora não tivesse ainda as costas completamente saradas; também a mim me deram alta na mesma ocasião, de maneira que saímos juntos da enfermaria: eu para voltar ao presídio, ele para entregar-se ao corpo da guarda, onde estava alojado. Quando nos despedimos apertou-me a mão, o que nele era sinal de grande confiança. Penso que deve ter feito isso por estar muito satisfeito consigo mesmo nesse momento. Mas de fato, não tinha outro remédio senão desprezar-me, e evidentemente que devia olhar-me como um ser humilde, débil, digno de dó e inferior a ele, em todos os sentidos. No dia seguinte aplicaram-lhe a outra metade do castigo...
Quando fechavam o nosso alojamento, este tomava imediatamente um aspecto especial, o aspecto de uma autêntica moradia, de um verdadeiro lar. Era o momento em que eu podia olhar para os meus companheiros, os presos, como pessoas de família. Durante o dia, os suboficiais, as sentinelas e, de maneira geral, os superiores podem aparecer no presídio a todo momento, e por isso todos os seus habitantes se conduzem de outro modo, como se sentissem uma certa inquietação, como se esperassem ouvir um grito de alarme de um instante para o outro. Mas assim que fecham o alojamento, vão todos tranquilamente para o seu lugar, e a maioria se entrega a algum trabalho manual. O alojamento aparece todo iluminado, de repente. Todos têm a sua vela e o seu candeeiro, geralmente de madeira. Um põe-se a consertar os sapatos, outro, a coser alguma peça de roupa. O ambiente mefítico do alojamento vai-se agravando de momento para momento. Um grupo de malandrins senta-se à turca sobre um tapete em farrapos, num canto, e põe-se a jogar baralho. Há em quase todos os alojamentos um preso destes, que possui um tapete velhíssimo, de aproximadamente um metro de comprimento, uma vela e um ensebado baralho de cartas, incrivelmente gastas. A este conjunto chamam maidan.15 O dono destes objetos cobra uma certa quantia aos jogadores: quinze copeques por noite, o que é o seu ganho. Os jogadores costumam jogar a três parceiros, a monte, etc. Jogam sempre a dinheiro. Cada jogador coloca na sua frente um monte de cobres, tudo o que traz na bolsa, e não se levanta da sua posição de cócoras senão quando perde tudo ou deixa os seus companheiros sem uma só moeda. O jogo acaba a uma hora da noite bastante avançada, e às vezes prolonga-se até de madrugada, até mesmo no momento em que se abrem as portas do presídio. No nosso alojamento, e nos outros também, havia sempre mendigos, pedinchões que, ou tinham perdido tudo no jogo e na bebida, ou, simplesmente, eram pedinchões por natureza. Digo “por natureza” e insisto particularmente nesta expressão. Na verdade, em todos as partes onde nos encontremos, qualquer que seja o ambiente, quaisquer que sejam as circunstâncias, há e sempre há de haver alguns homens estranhos, agradáveis, e que muitas vezes não são nada tolos, mas que o destino determinou que fossem eternamente uns mendigos. São sempre uns pobres-diabos, uns mendicantes, parecem sempre intimidados e de ar abatido, não se sabe por quê, e são sempre os alcoviteiros de alguém, o seu correio particular, geralmente daqueles que andam na boêmia e dos que enriquecem de um dia para o outro e se vão elevando acima dos demais. Todos os começos, todas as iniciativas... para eles, são dolorosos e difíceis. Dir-se-ia que nasceram condenados a não serem nunca os primeiros a começar qualquer coisa, limitando-se a secundar os outros, a viver dependentes da sua vontade, a bailar conforme os outros tocam; o seu destino... é cumprir o dos outros. Ainda que tudo em que tomam parte se conclua favoravelmente, nenhuma circunstância nem mudança alguma podem enriquecê-los. Hão de ser sempre mendigos. Tive ocasião de observar que esses indivíduos não formam uma casta única, e que se encontram em todas as sociedades, classes, partidos, nas redações dos jornais e nos grupos de acionistas. Pois sucedia o mesmo em cada alojamento, em todo presídio, e bastava que se falasse de maidan para que logo se apresentasse algum desses tipos oficiosos. De maneira geral, até, não podia haver maidan sem um desses. Contratavam-no para quase todos os jogos, oferecendo-lhe 5 copeques por noite, e a sua missão principal era estar toda a noite de sentinela. Geralmente tinha de passar sete ou oito horas na escuridão, colado à parede, com trinta graus abaixo de zero, de ouvido atento a qualquer rumor, ao menor sussurro, a cada passo que se ouvisse no pátio. O jamor da praça, ou as sentinelas, aparecia às vezes no presídio a uma hora bastante avançada da noite, entrava muito de mansinho e vinha surpreender velas acesas, que até já do pátio se viam. Pelo menos, quando de repente começavam a ranger as fechaduras das portas dos muros dos pátios, era já tarde para se esconderem, para apagar as luzes e se estenderem nas esteiras. Mas como o maidan fazia pagar caro a sua negligência à sentinela contratada, essas surpresas eram muito raras. Não há dúvida de que 5 copeques é uma recompensa ridícula, insignificante, mesmo no presídio; e sempre ali me chocou a desumanidade e a falta de compaixão dos que encarregavam outro de alguma incumbência. “Aceitaste o dinheiro, portanto faz o teu serviço!”
Era este um argumento que não admitia réplica. Pelo dinheiro entregue, o contratador exigia tudo o que podia exigir, e até mais, e ainda pensava que ficava prejudicado. Esse boêmio, esse bêbado que esbanjava o dinheiro a torto e a direito, explorava implacavelmente o servidor. Isto tenho eu observado em mais de uma prisão e em mais de um maidan.
Já disse que, no alojamento, quase todos se ocupavam de algum trabalho particular; à parte os jogadores, não passariam de cinco os indivíduos completamente desocupados, os quais se estendiam logo para dormir. O meu lugar nas esteiras ficava mesmo junto da porta. No outro lado da minha esteira, com a cabeça ao nível da minha, estava Akim Akímitch. Ficava até dez ou 11 horas trabalhando numa lanterna chinesa de muitas cores, que lhe tinham encomendado na cidade, mediante uma boa retribuição. Fabricava essas lanternas de maneira admirável; trabalhava metodicamente, sem interrupção, e quando acabava a sua tarefa recolhia os seus utensílios, estendia a sua cama, fazia a sua oração e deitava-se muito dignamente a dormir. Levava o decoro e a ordem até o extremo, até uma minúcia quase pedante; era evidente que devia considerar-se um homem muito esperto, o que sucede a todos os indivíduos de vistas curtas. A mim tornou-se antipático logo no primeiro dia, embora me lembre que já nesse primeiro dia me deu muito que pensar, admirando-me, sobretudo, que um indivíduo como ele, em vez de triunfar na vida, tivesse ido parar num presídio. Mais adiante hei de ter ocasião de falar de Akim Akímitch por mais de uma vez.
Mas quero descrever rapidamente o resto do nosso alojamento. Tive de viver nele muitos anos, e todos esses indivíduos haviam de ser os meus futuros vizinhos e camaradas. Por isso é compreensível que eu os olhasse com a mais viva curiosidade. À minha esquerda, nas esteiras, havia um grupo de montanheses do Cáucaso, condenados, na sua maior parte a penas várias, por roubo. Entre eles havia dois lésguios, um tchetcheno e três tártaros do Duguestão. O tchetcheno era um homem severo e sombrio; quase nunca falava com ninguém e estava sempre olhando à sua volta com receio e de revés, e com um sorrisozinho transbordante de maldade e zombaria. Um dos lésguios era já velho, tinha o nariz comprido, aguçado, encavalado, uma autêntica cara de bandido. O outro, Nurra, pelo contrário, desde o primeiro dia deixou-me uma impressão muito agradável, muito simpática. Ainda não era velho, de estatura mediana, de natureza hercúlea, louro, de olhos azuis, narizinho curto numa cara de finlandês, e as pernas arqueadas pelo costume de andar sempre a cavalo. Tinha o corpo todo marcado, advindas essas cicatrizes de golpes de baioneta e ferimentos de balas. Pertencia aos montanheses aliados, do Cáucaso, mas, às escondidas, costumava juntar-se aos montanheses inimigos, lutando a seu lado contra os russos. No presídio todos gostavam dele. Estava sempre contente, era sempre amável para todos; trabalhava devagar, com boa vontade e calmamente, embora muitas vezes olhasse com aborrecimento a vergonha e a sujidade da vida do presidiário e se pusesse a resmungar perante qualquer excesso, perante a gatunagem, a bebedeira e, de maneira geral, por tudo quanto não estivesse bem, mas sem brigar com ninguém e afastando-se até de todos por causa do seu aborrecimento. Nunca, enquanto durou a sua vida de preso, roubou nada a ninguém nem praticou nenhuma má ação. Era extraordinariamente devoto. Rezava as suas orações obedecendo estritamente às regras; nos dias de jejum que precediam as festas maometanas jejuava como um fanático e passava as noites inteiras rezando. Todos gostavam dele no presídio e acreditavam na sua honestidade. “Nurra... tu és um leão”, diziam os presos; de maneira que ficara com a alcunha de leão. Estava firmemente convencido de que, depois de cumprida a sua pena, o mandariam outra vez para a sua casa, no Cáucaso, e vivia desta esperança. Creio que teria morrido se lhe tivessem roubado essa ilusão. Desde o meu primeiro dia no presídio que reparei logo nele. Não era possível deixar de atentar no seu rosto bonacheirão e simpático, entre às caras franzidas, ariscas e trocistas dos outros presos. Passada meia hora de eu ter entrado no presídio, passou junto de mim e deu-me uma pancadinha no ombro, sorrindo-me afetuosamente com os olhos. A princípio, não pude compreender o que aquilo significava. Falava muito mal o russo. Passado pouco tempo tornou a passar junto de mim e deu-me outra pancadinha no peito. Depois, isto se repetiu ainda mais vezes. Soube depois que, conforme eu supunha, eu lhe inspirava dó, que compreendia como o presídio me devia ser doloroso e que queria. oferecer-me a sua amizade, dar-me coragem e assegurar-me a sua proteção. Bom e ingênuo Nurra!
Os tártaros do Daguestão eram três e todos irmãos. Dois eram já homens maduros; mas o terceiro, Ali, tinha apenas 22 anos e parecia ainda mais novo. O seu lugar nas esteiras ficava junto do meu. O seu rosto lindíssimo, inteligente, e ao mesmo tempo doce e cândido, desde o primeiro instante cativou o meu coração, e senti-me feliz por ter-me o destino reservado aquele vizinho e não outro. Toda a sua alma se refletia no seu belo, direi até... belíssimo rosto. O seu sorriso era tão ingênuo como o de uma criança inocente; os seus negros e grandes olhos, tão suaves, tão acariciadores que eu sentia sempre uma satisfação especial e até uma espécie de alívio dos meus sofrimentos e inquietações quando o olhava. Falo sem exagero. O irmão mais velho (tinha cinco irmãos mais velhos; os outros tinham sido enviados para as minas), quando ainda estavam na aldeia, ordenou-lhe uma vez que pusesse o gorro e montasse a cavalo para acompanhá-lo num assalto à mão armada. Tão grande é o respeito pelo irmão mais velho entre os montanheses do Cáucaso que o rapaz não se deteve a fazer perguntas, nem sequer se lembrou de indagar aonde iam. E os outros não achavam necessário dizer-lho. Lançaram-se todos na aventura criminosa quando encontraram no caminho um rico mercador armênio e despojaram-no. Eis aqui como isso aconteceu: destroçaram a escolta, mataram o armênio e o séquito e levaram as suas mercadorias. Mas o caso foi descoberto; prenderam os seis, processaram-nos, julgaram-nos e condenaram-nos a trabalhos forçados na Sibéria. A clemência dos juízes para com Ali reduziu-se a imporem-lhe uma pena mais curta: quatro anos. Os irmãos gostavam muito dele, com um amor mais paternal do que fraterno. Era a sua consolação no presídio e, apesar de serem carrancudos e de natureza arredia, sorriam sempre quando o viam, e quando falavam com ele (na verdade falavam muito pouco com ele, como se o considerassem ainda novo demais para falar sobre assuntos sérios) os seus rostos iluminavam-se e eu percebia que lhe diziam qualquer coisa divertida, quase infantil, pelo menos olhavam uns para os outros e sorriam afetuosamente ao escutarem as suas respostas. Ele, por si, não ousava tomar a iniciativa de falar com eles, tal era o respeito que lhes tinha. Custa saber como é que esse rapaz pôde conservar durante todo o tempo do seu cativeiro aquela ternura de coração, aquela docilidade e simpatia, sem se zangar nunca nem perder a calma. Era no entanto de um caráter forte e firme, apesar de toda a sua evidente candura. Com o tempo, acabei por chegar a conhecê-lo a fundo. Era tímido como uma moça solteira e honesta, e qualquer coisa desagradável, cínica, feia ou imprópria, forçada, que sucedesse no presídio, acendia o fogo da indignação nos seus lindos olhos, que, nesses casos, se tornavam ainda mais belos. Fugia de todas as brigas e discussões, embora de maneira geral não fosse desses que se deixam ofender impunemente, e sabia velar pela sua dignidade. Simplesmente, nunca altercava com ninguém, e todos gostavam dele e o mimavam. A princípio, limitava-se a ser delicado para comigo. Mas, pouco a pouco, comecei a conviver mais com ele; passadas poucas semanas, já sabia muito bem o russo, coisa que os seus irmãos não conseguiram durante toda a sua estada no presídio. Revelou-se um rapaz muito esperto, muito modesto e delicado, e até muito sensato. Apresso-me a dizer que, de maneira geral, considero Ali como uma criatura invulgar, e recordo o meu conhecimento com ele como um dos melhores encontros que tive na minha vida. Há naturezas tão naturalmente belas, a tal ponto favorecidas por Deus, que o pensamento só de que alguma vez possam corromper-se nos parece impossível. Estamos sempre tranquilos a seu respeito. Também eu o estou agora a respeito de Ali. Onde estará ele neste momento?
Uma vez, quando havia já bastante tempo que eu estava no presídio, estava estendido na minha esteira e pensava em qualquer coisa muito triste. Ali, sempre trabalhador e ocupado, dessa vez não trabalhava, apesar de ainda ser muito cedo para dormir. Atente-se que nessa ocasião celebravam eles uma festa muçulmana e estavam de folga. Estava deitado, com a cabeça apoiada numa mão e pensando também só Deus saberia em quê. De repente perguntou-me:
— Então, estás assim tão triste?
Eu o olhei com curiosidade e pareceu-me estranha aquela inesperada e direta pergunta de Ali, sempre tão delicado, tão discreto, tão perspicaz; mas quando o olhei atentamente vi-lhe um rosto tão triste, tão torturado pelas recordações, que compreendi imediatamente que também ele sofria, sobretudo naquele momento. Dei-lhe a entender a minha suposição. Ele suspirou e sorriu tristemente. Eu amava o seu sorriso, sempre terno e cordial. Além disso, quando sorria mostrava duas fiadas de dentes como pérolas, de cuja beleza poderia ufanar-se a maior beldade do mundo.
— Então, Ali, não será verdade que, agora, estás pensando nas festas que neste tempo se fazem no Daguestão? Está-se lá bem, não é verdade?
— Oh, sim! — respondeu ele com entusiasmo, e as suas pupilas refulgiam. — Mas como é que sabes que eu pensava nisso?
— Então não havia de saber! Não se está lá muito melhor do que aqui?
— Oh! Por que me dizes isso?
— Na vossa terra deve haver agora flores e luzes...
— Oh! Não continues... — e mostrava um grande desgosto.
— Ouve, Ali, tu tens alguma irmã?
— Tenho... Por que perguntas isso?
— Porque, se é parecida contigo, deve ser muito bonita.
— Comigo! É tão bonita que não há outra como ela em todo o Daguestão! Oh, como é linda a minha irmã! Nunca deves ter visto outra igual em toda a tua vida! E a minha mãe também é multo bonita.
— E gostava muito de ti, a tua mãe?
— Oh! Que dizes? Naturalmente morreu de desgosto por minha causa. Eu era o seu filho preferido. Gostava mais de mim do que da minha irmã, mais que de todos... Sonho sempre com ela e ponho-me a chorar.
Calou-se, e durante toda essa noite não tornou a dizer uma palavra. Por esse tempo procurava sempre ocasião para falar comigo, embora, devido ao respeito que eu, sem saber por quê, lhe inspirava... nunca se atrevesse a ser o primeiro a interpelar-me. Mas ficava muito contente quando era eu quem lhe dirigia a palavra. Eu lhe fazia perguntas acerca do Cáucaso e da sua vida anterior. Os irmãos não o proibiam de falar comigo, até gostavam. E ao verem a amizade crescente que eu sentia por Ali, começaram a mostrar-se mais atenciosos para comigo.
Ali ajudava-me no trabalho, prestava-me todos os serviços que podia nos alojamentos, e via-se, claramente, que sentiria grande satisfação se pudesse suavizar a minha sorte e agradar-me em tudo, e nesta ânsia de agradar-me não havia a mínima baixeza nem o menor desejo de lucro, e sim um vivo sentimento de amizade, que já não escondia. Entre outras coisas, tinha muito jeito para os trabalhos manuais; sabia muito bem coser a roupa branca, remendar o calçado; aprendeu depois também, até onde era possível, carpintaria. Os irmãos sentiam-se muito orgulhosos por ele.
— Olha, Ali — disse-lhe eu uma vez —, por que não aprendes a ler e a escrever russo? Não vês como isso te pode ser útil aqui, na Sibéria, e depois?
— Eu bem queria aprender, mas quem é que me há de ensinar?
— Sim, aqui há poucos que saibam ler e escrever! Mas, se quiseres, eu mesmo te ensinarei!
— Ah, então, ensina-me! — levantou-se da esteira e estendeu-me os braços num gesto de súplica.
Começamos no serão seguinte. Eu tinha uma versão russa do Novo Testamento, livro que não era proibido no presídio. Ali aprendeu o alfabeto muito bem só neste livro, em poucas semanas. Passados três meses já entendia a linguagem do livro... Aprendia com entusiasmo, com prazer.
Uma vez lemos todo o Sermão da montanha. Eu reparei que ele lia alguns passos, acentuando-os de uma maneira especial.
Perguntei-lhe se gostava do que tínhamos lido. Ele me olhou de frente e ruborizou-se.
— Ah, sim! — respondeu. — Sim! Issa16 era um santo profeta, Issa falava pela boca de Deus! Que bonito!
— Mas de tudo, de que gostaste mais?
— Daquele passo que diz: “Perdoa, ama, não faças mal a ninguém, ama os teus próprios inimigos.” Ah, como são belas as suas palavras!
Voltou-se para os irmãos, que assistiam ao nosso diálogo, e pôs-se a falar-lhes com entusiasmo. Ficaram durante muito tempo conversando entre si, num tom sério e movendo afirmativamente a cabeça. Depois, com um sorriso grave e afetuoso, isto é, muçulmano (que é muito do meu agrado, pois a gravidade é precisamente o que mais me agrada desse sorriso), encararam-me e afirmaram que Issa era um profeta de Deus e que operara grandes milagres; que uma vez fez um pássaro de barro e o pássaro deitou a voar... que isso estava escrito nos seus livros. Ao dizerem isto estavam muito convencidos de que me proporcionavam uma grande alegria louvando Issa, e Ali sentia-se muito feliz por ver que os irmãos estavam resolvidos e desejosos de darem a mim essa satisfação.
Obtivemos também um grande êxito quanto à escrita. Ali arranjou papel (e deixou que eu o pagasse), pena e tinteiro, e passados dois meses já tinha aprendido a escrever muito bem. O que encantou também os irmãos. O seu orgulho e a sua satisfação não tinham limites. Não sabiam como me exprimir o seu agradecimento. Quando acontecia trabalharmos na mesma seção, ajudavam-me continuamente e consideravam-se felizes por poderem fazê-lo. De Ali nem quero falar. Queria-me como a um irmão. Nunca mais esquecerei a sua saída do presídio. Levou-me para trás do alojamento, deitou-me os braços ao pescoço e rompeu a chorar. Nunca até então me tinha dado um beijo nem chorado diante de mim. “Fizeste mais por mim”, dizia, “do” que o meu pai e a minha mãe juntos; fizeste de mim um homem. Deus há de pagar-te e eu nunca te esquecerei!”
Onde estás, onde estás a esta hora, meu bom, meu meigo, meigo. Ali?
Além dos circassianos, havia nos nossos alojamentos um grupo de polacos que formavam uma espécie de família e que quase não se comunicavam com os outros presos. Já disse que, pelo seu exclusivismo, pela sua má vontade para com os presos russos, se tornavam antipáticos a todos. Eram caracteres atormentados, doentios; eram apenas seis. Alguns deles eram indivíduos instruídos, dos quais falarei em particular e pormenorizadamente mais adiante. Alguns me emprestaram livros durante a minha vida na prisão. O primeiro desses livros provocou-me uma forte, estranha, especial impressão. Falarei dela em outra ocasião, mais particularmente. Considero essa impressão muito curiosa e tenho a certeza de que muita gente havia de encontrar neles muitas coisas completamente incompreensíveis. Quando não se tem experiência, não se pode julgar coisa alguma. Apenas digo isto: que as privações morais são mais difíceis de sobrelevar do que todos os tormentos físicos. A pessoa do povo que vem parar no presídio encontra-se aí no seu mundo, e talvez num ambiente mais avançado. Não há dúvida de que perde muitas coisas: a terra, a família, tudo, mas o seu meio continua a ser o mesmo. O homem culto, condenado pela lei a sofrer o mesmo castigo que a gente ignara, perde incomparavelmente mais do que esta. Vê-se obrigado a renunciar a todas as suas exigências, a todos os seus costumes; a mover-se num meio, para ele insuficiente, a aprender a respirar outros ares... É como um peixe que tiram da água e põem sobre a areia... E o castigo imposto pela lei, igual para todos, torna-se frequentemente dez vezes mais duro para ele. Isto é verdade... ainda que se fale apenas dos costumes materiais que é preciso sacrificar.
Mas os polacos formavam um grupo especial. Eram seis e viviam todos juntos. De todos os presos do nosso alojamento apenas gostavam de um judeu, e talvez apenas pela única razão de que os divertia. A nosso ver, os outros presos gostavam também dele por outros motivos, embora todos, sem exceção, fizessem troça dele. Era o único judeu que ali havia e ainda hoje não posso lembrar-me dele sem me rir. Cada vez que o olhava vinha-me à memória aquele judeuzinho, Ankel, do Taras Bulba, de Gógol, que, ao despir-se para se meter de noite na cama com a sua judia, ficava terrivelmente parecido com um frango depenado. Issai Fomitch, o nosso judeu, era também tão parecido com um frango sem penas como uma gota de água é parecida com outra. Já não era novo, devia ter uns cinquenta anos, baixinho e enfermiço, esperto e, ao mesmo tempo, evidentemente estúpido. Era audaz e fanfarrão e, ao mesmo tempo, terrivelmente covarde. Todo ele era rugas e tinha na testa e nas faces os sinais com que o tinham marcado no pelourinho. Nunca pude compreender como é que ele pôde resistir a sessenta açoites. Mandaram-no para o presídio como culpado de homicídio. Guardava cuidadosamente a receita que lhe deu o médico da sua judiaria, logo após o castigo. Atribuía tanto poder a essa receita, que, em duas semanas, graças a ela, se lhe haviam de tirar os sinais da cara. Não se atrevia a explorar esse poder no presídio e esperava cumprir os seus 12 anos de pena para, assim que se visse entre a colônia judaica, se pôr a explorar infalivelmente a receita. “Se não for assim não conseguirei casar-me”, dizia-me uma vez, “e eu não tenho outro remédio senão casar-me.” (Dizia “casar-me”, ceceando). Eu era muito seu amigo. Estava sempre de excelente disposição de espírito. A vida era-lhe fácil no presídio; era joalheiro de ofício e tinha muitas encomendas da cidade, na qual não havia nenhum ourives, e por isso livrava-se dos trabalhos pesados. Escusado será dizer que, ao mesmo tempo, era usurário. E emprestava dinheiro a todo o presídio, com os respectivos juros e garantias. Entrara no presídio primeiro do que eu, e um dos polacos descreveu-me com todos os pormenores a sua chegada. Tratava-se de uma história muito interessante, que mais adiante contarei, pois ainda hei de tornar a falar de Issai Fomitch.
O restante dos vizinhos do nosso dormitório compunha-se de quatro velhos crentes, anciãos e muito lidos, entre os quais se achava também o velho de Staradúbovo; de dois ou três pequenos russos,17 sujeitos de má catadura, de um presidiário novo, com o nariz em bico, dos seus 23 anos, que matara oito pessoas, de uma súcia de falsificadores de moeda, um dos quais era o bobo do nosso alojamento e, finalmente, de alguns tipos sombrios e sinistros, rapados e desfigurados taciturnos e invejosos, que olhavam receosamente por baixo, à sua volta, e predestinados a olharem, entristecerem, calar-se e invejar ainda durante muitos anos... todo o tempo da sua condenação. Tudo isto se me apresentou como através de uma névoa naquela primeira, triste noite da minha nova vida; apresentou-se-me assim, por entre o fumo e o barulho, por entre insultos e palavras de um cinismo indescritível, num ambiente pestilencial, por entre ruídos de cadeias, juramentos e risos desvergonhados. Estendi-me nas esteiras descobertas, pus a minha roupa debaixo da cabeça (ainda não tinha almofada) e cobri-me com o meu sobretudo de peles; mas durante muito tempo não fui capaz de adormecer, apesar de estar muito cansado e esgotado por causa de todas as estranhas e inesperadas impressões daquele primeiro dia. A minha nova vida tinha começado. Esperavam-me ainda muitas coisas que nunca imaginara e que nem sequer pressentia...
O PRIMEIRO MÊS
Passados três dias da minha estadia no presídio, ordenaram-me que fosse para o trabalho. Tenho ainda gravado na memória esse primeiro dia de trabalho, se bem que não me sucedera nada de extraordinário, não falando, é claro, de tudo quanto, mesmo sem isso, tinha de extraordinária a minha situação. Mas essa era também uma das primeiras impressões, e eu continuava ainda olhando tudo com assombro. Durante todos esses três primeiros dias experimentei as mais penosas sensações. Eis aqui em que consistia o meu assombro:
— Estou no presídio — repetia-me a cada momento. — Esta vai ser a minha vida durante muitos anos; o lugar em que hei de sentir tão inverossímeis, tão mórbidas impressões! E quem sabe? Talvez... quando, passados uns anos, possa finalmente deixá-lo... chegue a sentir saudades disto — acrescentava, não sem uma mescla dessa maliciosa impressão que às vezes degenera na necessidade de remexermos propositadamente na ferida, pelo desejo de nos distrairmos com o nosso próprio sofrimento, reconhecendo precisamente que no exagero de toda a infelicidade há também um prazer.
A ideia de, com o tempo, vir a ter saudades daquele lugar... a mim mesmo me enchia de espanto; já então pressentia até que grau o homem tem o poder de habituar-se. Mas tudo isto era por pressentimento, pois então, tudo à minha volta era ainda hostil e... horrível... conforme me parecia, embora nem tudo o fosse. Aquela selvagem curiosidade com que me olhavam os meus novos companheiros de presídio, que reforçavam a sua rudeza para com um novato da classe aristocrática, que de repente se introduzia na sua corporação, rudeza que, às vezes, roçava pela maldade... Tudo aquilo me mortificava a tal ponto que era eu mesmo quem desejava ir o mais depressa possível para o trabalho, para saber quanto antes avaliar toda a grandeza da minha miséria e começar como os demais e a colocar-me imediatamente ao seu nível. É claro que eu ainda não tinha reparado nem suspeitado daquilo que tinha diante dos meus olhos, não adivinhava ainda a possibilidade de consolação no meio da hostilidade. Além disso, alguns rostos amáveis, afetuosos, que já encontrara nesses três dias, infundiam-me muita coragem. De todos, o mais carinhoso e amável para comigo era Akim Akímitch. Entre os rostos severos e maldosos dos outros reclusos, não podia no entanto deixar de notar alguns, bondosos e joviais.
— Em todos os lugares há gente má e boa também — costumava dizer a mim mesmo, à guisa de consolação. — Quem sabe? Pode ser que estas criaturas, no fim de contas, não sejam piores do que as outras, do que as que ficaram por lá, fora do presídio.
Pensava isto e movia a cabeça perante tal pensamento; mas, entretanto... meu Deus! Se eu, ao menos, tivesse sabido logo até que ponto esse raciocínio era exato!
Havia, por exemplo, entre nós, um homem ao qual somente ao fim de muitos, muitos anos, cheguei a conhecer bem a fundo, e que andou constantemente à minha volta, quase todo o tempo da minha condenação. Era um preso chamado Suchílov. Quando falei há pouco de outros condenados, os quais não eram piores que outras pessoas, lembrei-me imediata e involuntariamente dele. Prestava-me serviços, apesar de eu ter ainda outro servidor. Akim Akímitch, logo desde o começo, no primeiro dia, me apresentara a um preso... Óssip, dizendo-me que, por 30 copeques por mês, ele se encarregaria de preparar-me todos os dias uma comida à parte, se a do presídio me repugnasse e eu contasse com meios para comer por minha conta. Óssip era um dos quatro cozinheiros designados por eleição, entre os presos, para cuidar das nossas cozinhas, embora, no entanto, pudesse livremente aceitar ou recusar o cargo e até renunciá-lo no dia seguinte. Os cozinheiros não saíam para o trabalho e a sua obrigação reduzia-se a cozer o pão para nós e preparar a sopa de couve. Não os chamavam cozinheiros, e sim cozinheiras, mas não por desprezo, tanto mais que para a cozinha se escolhiam indivíduos habilidosos e, se fosse possível, sérios, mas por leve troça, com o que os nossos cozinheiros nunca se zangavam. Óssip era quase sempre escolhido, e desempenhou a função de cozinheira uns poucos anos quase seguidos, e só renunciava ao cargo quando se sentia triste ou, ao mesmo tempo, lhe chegava a ânsia de negociar na aguardente. Era de uma honestidade e franqueza raras, apesar de se dedicar ao contrabando. Era aquele mesmo matreiro alto, enfermiço, do qual já fiz menção; tinha medo de tudo, principalmente das varadas; agradável, transigente, afetuoso com todos, jamais armava confusão com alguém, mas não podia abster-se de introduzir aguardente clandestinamente, apesar de todo o seu medo dos perigos inerentes ao contrabando. Negociava em aguardente, juntamente com outros cozinheiros, embora, no fim das contas, em menor escala do que Gázin, por exemplo, por não ter coragem para se arriscar a mais. Não me engano dizendo que, num mês, se foi todo o meu dinheiro na minha alimentação, sem incluir o pão, que era do rancho, naturalmente, e às vezes a sopa de couve, quando tinha muita fome, apesar da repugnância que me inspirava, e que, diga-se de passagem, desapareceu completamente com o tempo. Costumava comprar um pedaço de carne de vaca, o que me custava uma libra por dia. No inverno, custava 1 groch. Quem ia buscar a vaca era um dos inválidos, dos quais havia um em cada alojamento com a missão de velar pela ordem e que de bom grado se encarregava de ir todos os dias às compras para os presos, sem lhes cobrar por isso absolutamente nada, a não ser uma pequena gorjeta de vez em quando. Faziam isso por interesse próprio, por causa da sua tranquilidade, senão ser-lhes-ia impossível conviver com os presos na penitenciária. Assim, introduziam chá em tabletes!,18 carne de vaca, tortas, etc., etc., excetuando quase exclusivamente a aguardente. A eles não lhes pediam aguardente, embora às vezes lha oferecessem. Óssip cozinhou para mim, durante vários anos seguidos, única e exclusivamente um pedaço de carne assada. Como é que ela era assada... isso é outra questão; mas não se trata agora disso. É curioso que, durante esse tempo todo, nunca troquei com ele duas palavras. Muitas vezes punha-me a falar com ele, mas era incapaz de manter uma conversa; respondia sim ou não com um sorriso, e pronto. Também nos provocava uma estranha impressão olhar para aquele Hércules com o raciocínio duma criança de sete anos.
À parte Óssip, entre o número dos indivíduos que me serviam, encontrava-se também Suchílov. Não fui eu quem o chamou nem quem o procurou. Foi ele próprio quem se me apresentou e se me recomendou; nem sequer me lembro de quando foi. Lavava-me a roupa. Para este fim tinham construído uma grande poça d’água. Era nessa poça, numas selhas que a Administração fornecia, que se lavava a roupa dos presos. A parte isto, o próprio Suchílov inventou mil coisas para me ser agradável; preparava-me o chá, fazia-me vários recados, arranjava-me aquilo de que. eu precisava, levava o meu capote para coser, engraxava-me as botas quatro vezes por mês. Fazia tudo isto com a melhor boa vontade, conscientemente, com o maior esmero. Em suma: unia o meu destino ao seu e considerava as minhas coisas como suas. Por exemplo, nunca dizia: “O senhor tem um rasgão no capote”, e outras coisas do gênero, mas sim: “Temos tantas camisas”, “Temos um rasgão no capote”. Olhava-me nos olhos e parecia encarar isso como a principal finalidade da sua existência. Ofício, ou, como diziam os presos, ofício manual, não tinha nenhum, e, segundo parecia, de mim recebia apenas 1 copeque. Eu lhe pagava o melhor que podia, isto é, alguns grochi, e ele se dava sempre por satisfeito, sem nada objetar. Não podia deixar de estar ao serviço de alguém, e para isso escolheu-me a mim, por eu ser mais afável do que os outros e mais exato nos pagamentos. Era um desses indivíduos que nunca poderão enriquecer nem prosperar, que se ofereciam para servir de sentinela aos maidani, levando horas inteiras à espreita, colados às paredes, aguentando a geada, de ouvido atento ao menor ruído que se ouvisse no pátio, não fosse por acaso o major da praça, prestando-se a tudo isso por 5 copeques mal contados, por quase toda a noite, expondo-se à contingência de serem descobertos e perder tudo, e de ter de pagar ainda com o corpo. Já me referi a estes indivíduos. A sua característica consistia em... anular a sua personalidade, sempre e em todos os lados, e quase à frente dos outros, e representar nos assuntos comuns um papel não de segunda, mas de terceira ordem. Tudo isto era inato neles. Suchílov era um pobre rapaz pacato e humilde, parecia quase um cão que apanhou pancada, não porque alguma vez alguém lhe batesse, o que jamais acontecia, mas era assim, de seu natural. A mim inspirava-me sempre dó. E mais: nem sequer podia vê-lo sem experimentar esse sentimento, se bem que eu não fosse capaz... de explicar a causa da minha compaixão. Falar com ele, não podia; ele também não se atrevia a falar comigo, e era evidente que isso lhe era difícil, e só se animava quando, no fim do diálogo, o mandava fazer alguma coisa, o mandava sair, dar algum recado. Até que, finalmente, me cheguei a convencer de que, com isso, lhe proporcionava um prazer. Não era estúpido nem esperto, nem novo nem velho, nem alto nem baixo, nem bom nem mau, levemente picado de varíola e um pouco ruivo. Não se podia dizer nada de definido a seu respeito. Apenas uma coisa: segundo penso, e conforme pude adivinhar, pertencia à mesma confraria que Sirótkin, e pertencia a ela unicamente pelo seu aspecto de cão batido e pela sua irresponsabilidade. Os presos algumas vezes dirigiam-lhe piadas, principalmente por se ter trocado no caminho, ao ir para a Sibéria, e tê-lo feito por causa de uma camisa vermelha e por 1 rublo de prata. Segundo as zombarias dos presos, tinha-se vendido por esse preço tão vil. Trocado... significa trocar o seu nome pelo de outro e também a condenação. Por estranho que isto pareça, é exato, e no meu tempo este costume estava ainda em vigor entre os presos enviados para a Sibéria, impondo obrigações aos contratantes e revestindo-se de certas formalidades. A princípio também eu não acreditava nisso, embora, finalmente, não tivesse outro remédio senão acreditar, por o ter visto.
Eis de que maneira as coisas se passavam: enviavam, por exemplo, para a Sibéria um grupo de presos. Uns... vão para o presídio, outros para as oficinas, outros para a colônia, mas vão todos juntos. Em determinado lugar do trajeto, suponhamos no governo de Perm, algum dos deportados sente o desejo de trocar com outro. Um certo Mikháilov, assassino ou réu de outro crime grave, pensa que não lhe convém ir passar uns anos no presídio. Suponhamos que é um indivíduo esperto, habilidoso, que conhece o assunto; então procura algum da caravana que seja mais ingênuo, mais manejável, e ao qual impuseram uma pena relativamente leve: ir para as fábricas por uns poucos anos, ou, inclusivamente, ir para o presídio, mas por menos tempo. Até que encontra um Suchílov. Suchílov é serviçal, por temperamento, e vai simplesmente para a colônia. Venceu já um percurso de quinhentas verstas, naturalmente sem um copeque no bolso, porque Suchílov nunca pode ter dinheiro... e vai cansado, moído, comendo só do rancho, sem provar qualquer coisinha de melhor, vestido com a farda do presidiário, servindo-os a todos por um miserável groch. Mikháilov puxa conversa com Suchílov, torna-se seu amigo íntimo e, por fim, presenteia-o com aguardente. Até que lhe propõe a troca.
— O homem, eu, Mikháilovitch, vou para o presídio, mas não verdadeiramente para o presídio, e sim para a seção especial...
É claro que aí também é presídio, mas um presídio à parte, onde se está muito melhor... Da seção especial, no tempo em que existia, até os próprios funcionários, os de Petersburgo, por exemplo, não sabiam nada. Era um lugarzinho tão especial e à parte, num dos cantos da Sibéria, e tão pouco povoado (no meu tempo não tinha mais de sessenta homens) que se tornava difícil dar com ele. Conheci depois indivíduos que tinham servido na Sibéria e não o conheciam, e que tiveram notícia da existência dessa seção especial pela primeira vez através de mim. No Código dedicavam-lhe ao todo apenas seis linhas: “Estabelece-se no próprio presídio uma seção especial para os criminosos mais graves, até que se inaugurem na Sibéria os trabalhos forçados mais duros.” Até os próprios presos desta seção ignoravam se era... perpétua ou por tempo determinado. Este não estava marcado, apontado: “Até que se inaugurem os trabalhos forçados mais duros”, e portanto... isso equivalia a ficar para sempre no presídio. Não é de admirar que nem Suchílov ou algum da sua caravana o soubessem, incluindo o próprio deportado Mikháilov, o qual pode ser que tivesse alguma ideia acerca de uma seção especial, a avaliar pelo seu crime, bastante grave, pelo qual recebera três ou quatro mil vergastadas. Por isso não devia considerá-lo nenhum bom lugar. Suchílov ia com destino à colônia. Que podia desejar-se de melhor, nestes casos?
— Não quererias trocar comigo?
Suchílov, debaixo do efeito da aguardente, alma simples, cheio de gratidão por Mikháilov, que o convidou para a bebida, não tem coragem de negar-se. Além disso já ouviu dizer aos da caravana que uma pessoa se pode trocar, que há alguns que se trocam e que não se trata portanto de nada de extraordinário nem de inaudito. Chegam a um acordo. O desavergonhado Mikháilov, aproveitando-se da singular ingenuidade de Suchílov, compra-lhe o nome por uma camisa de cor e por 1 rublo de prata, coisa que lhe entrega diante de testemunhas. No dia seguinte, Suchílov ainda está bêbado, mas convidam-no de novo, e agora já não lhe fica bem negar-se; o rublo que lhe deram já o gastou na bebida; a camisa vermelha, passado algum tempo, também. “Não queres? Então devolve-me o dinheiro.” Mas onde é que Suchílov há de ir buscar um rublo de prata? Mas se ele não o devolve, serão os companheiros que o obrigam a devolver; por isso vela severamente a companhia. Acrescente-se ainda que, se deu a sua palavra, tem de cumpri-la, e de fazer com que assim seja também se encarrega a companhia. Senão, condená-lo-ão à morte. Dar-lhe-ão uma boa sova ou matam-no, simplesmente; pelo menos meter-lhe-ão medo, ameaçando-o de morte.
No fundo, se os da súcia tivessem uma só vez sido negligentes neste gênero de assuntos, ter-se-iam acabado estas frequentes trocas de nomes. Como é possível desdizer a sua palavra e desfazer um contrato depois de receber o dinheiro? Quem é que, então, não cumpriria a sua palavra? Em resumo: isso é um assunto que diz respeito a todos os da caravana, e portanto eram todos muito severos neste ponto. Finalmente Suchílov vê que já não há maneira de escapar e acaba cedendo. Participa-o a toda a súcia e, além disso, compete-lhe também dar alguns presentes ou convidar uns tantos para uma rodada de copos, se for preciso. Para os outros, é natural, tudo lhes é indiferente; que Mikháilov ou Suchílov vão para o diabo, o caso é que se bebe aguardente; por isso, por seu lado, ficam muito caladinhos. Na primeira etapa fazem, por exemplo, a troca das chamadas; gritam para Mikháilov: “Mikháilov!”, e Suchílov responde: “presente!” e continuam para a frente. E ninguém fala mais no caso. Em Tobolsk os presos são distribuídos. Mikháilov vai para a aldeia a colonizar e Suchílov é enviado para a seção especial, debaixo duma escolta reforçada. Agora já ninguém pode protestar. E como provar a coisa, no fim das contas? Por quantos anos não se arrastaria depois o caso? E qual seria o resultado? E, finalmente, onde arranjar testemunhas? De maneira que o resultado foi Suchílov ter ido dar à seção especial por 1 rublo de prata e mais uma camisa vermelha.
Os presos troçam de Suchílov não porque se tivesse trocado (embora desprezassem, como imbecis caídos numa armadilha, aqueles que voluntariamente trocavam trabalhos leves por trabalhos pesados), mas por ter se contentado simplesmente com uma camisa encarnada e 1 rublo de prata, Isto é, uma paga insignificante. De maneira geral os que se trocam fazem-no por quantias de certa importância, relativamente. Em todo caso, por algumas dezenas de rublos. Mas Suchílov era tão manso, tão dócil e tão humilde com todos, que nem dava vontade rir-se dele.
Convivi com Suchílov durante alguns anos. Pouco a pouco, foi-me tomando uma dedicação extraordinária; eu não podia deixar de reparar nisso, pois também já me acostumara a ele. Mas uma vez — nunca perdoarei a mim próprio — não desempenhou satisfatoriamente qualquer incumbência que lhe fiz, embora mesmo assim tivesse recebido o dinheiro, e eu tive a crueldade de dizer-lhe: “Repare, Suchílov, você aceita o dinheiro mas não faz as coisas.” Suchílov não disse nada e foi fazer o que eu lhe mandara; mas, de repente, tomou uma expressão muito séria. Passaram-se dois dias. Eu pensava: “Não é possível que tenha ficado assim por causa das minhas palavras.” Eu sabia que um preso, Anton Vassíliev, andava constantemente a reclamar-lhe o pagamento de 1 groch que ele lhe devia. Pensei que, provavelmente, não teria dinheiro e não se atrevia a pedir-mo. No terceiro dia disse-lhe: “Suchílov, penso que você queria pedir-me dinheiro para pagar a Anton Vassíliev! Então tome lá!” Eu estava sentado na esteira e Suchílov de pé, na minha frente. Parecia lisonjeá-lo muito o fato de eu lhe oferecer dinheiro e preocupar-me com a sua situação, tanto mais que, nos últimos tempos, me pedia demasiados adiantamentos, segundo ele próprio pensava, e por isso não se atrevia a pensar que eu lhe fizesse ainda outro. Olhou para o dinheiro, depois para mim, e de repente deu meia-volta e afastou-se. Tudo isto me chocou imensamente. Saí atrás dele e fui alcançá-lo atrás dos alojamentos. Estava junto das paliçadas do presídio, de cara voltada para a cerca e com a cabeça apoiada sobre ela e reclinada na mão. “Que tens, Suchílov?” — perguntei-lhe. Não olhou para mim, e observei com o maior assombro que estava prestes a chorar. “O senhor pensa, Alieksandr Pietróvitch... pensa — exclamou numa voz entrecortada e esforçando-se por olhar para outro lado — que eu... a si... pelo dinheiro... e eu... eu... ah!” E de repente voltou-se de novo para a paliçada de tal maneira que quase se magoou na testa... e rompeu a soluçar!
Era a primeira vez que eu via um homem chorar no presídio. Consolei-o e, embora a partir daí começasse a servir-me ainda com mais boa vontade do que dantes, se isso era possível, e a olhar por mim, apesar de tudo, por alguns indícios quase imperceptíveis pude reconhecer que, no seu coração, não perdoava a minha censura. E, no entanto, os outros troçavam todos dele, feriam-no, em circunstâncias semelhantes, insultavam-no, às vezes gravemente, e ele estava sempre bem com ele e nunca se zangava. Sim, é muito difícil compreender os homens, mesmo em longos anos de convívio.
Eis aqui a razão por que, ao primeiro olhar, não podia o presídio mostrar-se-me sob o aspecto real com que se me revelou depois. Eis aí o motivo por que eu dizia que, ainda que o olhasse como o olhava, com aquela viva e forçada atenção, não podia ver muitas coisas que se passavam mesmo diante dos meus olhos. É claro que, a princípio, impressionavam-me as coisas mais destacadas, que ressaltavam com maior nitidez; mas até mesmo essas, pode ser que não as interpretasse bem e deixavam somente na minha alma uma impressão ingrata, desesperadamente triste. Contribuiu muito para isso o meu encontro com A... v, outro preso que se me dedicou, passado pouco tempo de eu estar no presídio, e que provocou uma impressão especialmente dolorosa nos primeiros dias da minha estadia aqui. Aliás, eu já sabia, antes da minha entrada para o presídio, que devia vir encontrar-me aqui com A... v. Amargurou-me esses penosos tempos iniciais e agravou os meus sofrimentos espirituais. Não posso deixar de falar deles.
Era o exemplo mais repulsivo do ponto até que pode perverter-se e degradar-se um homem, e até que extremo pode matar em si todo sentimento de moralidade, sem o menor remorso da consciência. A... v era um jovem aristocrata ao qual me referi já de passagem, dizendo que delatava perante o major da praça tudo o que se passava no presídio e que era amigo do seu espia Fiedka. Eis aqui, em poucas palavras, a sua história. Como não foi capaz de concluir em lado nenhum um curso de estudos, e como, em Moscou, se tivesse zangado com os pais, assustados com a sua conduta licenciosa, mudou-se para Petersburgo e, para arranjar dinheiro, decidiu levar a termo uma reles delação, isto é, resolveu vender a vida de dez homens a fim de poder satisfazer imediatamente a sua implacável sede dos mais grosseiros e repugnantes deleites, nos quais, seduzido por Petersburgo, pelos seus restaurantes e lugares de luxo, se afundou de tal maneira que, apesar de não ser tolo, chegou a ver-se implicado num assunto estúpido e absurdo. Não tardou que se comprovasse a falsidade da sua delação; na sua denúncia acusava seres inocentes, enganou os seus amigos e foi por tudo isso que o enviaram para a Sibéria, por dez anos, para o nosso presídio. Era ainda muito novo, a vida mal tinha começado para ele. Parecia natural que semelhante mudança na sua sorte o tivesse impressionado, provocando uma reação, alguma mudança na sua natureza. Mas aceitou o seu novo destino sem a menor comoção nem aversão, sem por isso perder a calma nem intimidar-se por nada, como por exemplo com a necessidade iniludível de trabalhar e de ter de renunciar aos restaurantes da moda e aos prazeres. Parecia até que o nome de presidiário lhe caía mesmo a propósito para cometer más ações e vilezas cada vez maiores. O presidiário, de presidiário não passa; uma vez que se encontra nessa situação, já uma pessoa pode descer a tudo sem se envergonhar. Era esta a sua opinião exata. Lembro-me dessa criatura repugnante como de um fenômeno. Vivi alguns anos com assassinos, com malfeitores repelentes; mas digo convictamente que nunca, até hoje, encontrei na vida uma degradação moral tão completa, uma depravação tão consumada e com tão insolentes baixezas como as que reunia A... v.
Havia até entre nós os da classe aristocrática, um parricida, ao qual já me referi. Pois bem: pude comprovar, por muitos indícios e fatos, que até esse indivíduo era incomparavelmente mais nobre de espírito e mais humano do que A... v. A meus olhos, durante todo o tempo da minha vida presidiária, A... v não era mais do que um pedaço de carne com dentes e estômago e com uma sede insaciável dos mais grosseiros, dos mais bestiais prazeres carnais, e considero que era capaz de matar, de assassinar com o maior sangue-frio, contanto que isso lhe proporcionasse a satisfação do mais repelente e caprichoso desses prazeres. Em resumo: de tudo, desde que não corresse nenhum risco. Não exagero, pois cheguei a conhecer bem A... v. Era um exemplo daquilo até onde pode chegar a parte carnal do homem, quando não é interiormente obstada por nenhuma norma, por nenhuma lei. Como me repugnava aquele seu eterno sorriso trocista! Era um monstro, um Quasímodo moral. Acrescente-se a isto que era esperto e inteligente, bonito, e também com alguma instrução e aptidões. Não; melhor seria o fogo, a peste e a fome do que viver com tal homem. Já disse que no presídio todos se envileciam tanto que a espionagem e a delação floresciam e os presos nunca se zangavam por causa disso. Pelo contrário, todos se mostravam muito amigos de A... v e se portavam incomparavelmente melhor para com ele do que para comigo. A brandura que para com ele mantinha o nosso major conferia-lhe a seus olhos distinção e prestígio. Entre outras coisas, convencera o major de que sabia fazer retratos (aos presos, tinha-lhes feito acreditar que era tenente da guarda) e assim conseguiu que o mandassem trabalhar em casa, com o fim de fazer um retrato do major. Como se isso fosse pouco, fez amizade com o delator Fiedka, que tinha uma influência extraordinária sobre o seu amo e, por conseguinte, sobre tudo e todos no presídio. A... v espiava-nos, por ordem do major e, no entanto, quando estava bêbado, batia-lhe na cara, e até o insultava, chamando-o delator e mexeriqueiro. Acontecia com muita frequência que, depois de lhe ter dado uma sova, o major se sentava na sua cadeira e ordenava a A... v que continuasse a fazer-lhe o retrato. O nosso major, segundo parece, tinha engolido a patranha de que A... v era um artista notável, quase um Briúlov,19 de quem tinha ouvido falar; mas, apesar disso, julgava-se com o direito de esbofetear-lhe a cara, porque — que diabo! — ali, ele não era o artista, mas o preso, e ainda que fosse o próprio Briúlov, ele, major, era o seu superior e podia fazer dele o que quisesse. Entre outras coisas obrigava A... v a limpar-lhe as botas e a despejar os bacios de alguns quartos, apesar de que, durante muito tempo, não quis duvidar de que A... v fosse um artista. O retrato foi-se protelando infinitamente, quase durante um ano. Até que por fim o major suspeitou que andavam a enganá-lo e, muito admirado por ver que o retrato nunca mais se acabava e que, pelo contrário, cada dia se parecia menos com ela, encolerizou-se, deu uma boa sova no artista e mandou-o trabalhar como um negro... A... v lamentava o percalço e custava-lhe muito renunciar aos bons dias passados, às sobras da mesa do major, ao amigalhaço Fiedka e a todos os prazeres que os dois sabiam arranjar na cozinha.
Depois do ostracismo de A... v, deixou o major de perseguir a M***, outro preso com o qual A... v andava continuamente em briga. O motivo fora este: M***, na época em que A... v entrara para o presídio, estava só. Aborrecia-se muito; não tinha nada de comum com os outros presos olhava-os com horror e desprezo, não reparava nem via neles nada daquilo que podia torná-los simpáticos e não convivia com eles. Os condenados pagavam-lhe na mesma moeda. De maneira geral, a situação dos indivíduos semelhantes a M***, no presídio, é terrível. M*** não conhecia o motivo por que A... v fora parar ao presídio. Em compensação, A... v, adivinhando com quem tinha de haver-se, afirmou-lhe imediatamente que o tinham deportado em virtude de uma denúncia absolutamente falsa, quase pelo mesmo motivo por que tinham deportado também M***.
M*** ficou muito contente com aquele companheiro e amigo. Seguia-lhe os passos, consolava-o nos primeiros dias de cativeiro, supondo que, com certeza, devia sofrer muito; dava-lhe o que lhe restava de dinheiro, presenteava-o e partilhava com ele as coisas indispensáveis. Mas não tardou que A... v lhe ganhasse ódio, precisamente por ser ele nobre, por olhar com tanta repugnância os atos vis, mas sobretudo por ser tão diferente dele; e tudo quanto M*** lhe dissera, nas suas conversas anteriores, a respeito do presídio e do major, o foi contar a este. O major ficou muito zangado, vingou-se de M*** tornando-o objeto dos maiores vexames e, se não fosse a intervenção do comandante, teria feito alguma atrocidade... A... v não só não sentiu a menor comoção quando M*** veio a saber depois a sua baixeza, como até se comprazia em encontrar-se com ele e ficar a olhá-lo com um sorriso trocista. Pelo visto, isso lhe dava prazer. Era o próprio M*** quem me fazia reparar nisso, algumas vezes. Esse reles companheiro fugiu mais tarde, juntamente com outro preso e com o soldado da escolta; mas disso falarei mais adiante. A princípio também quis enganar-me pensando que eu não conhecia a sua história. Repito que ele me amargurou os primeiros dias de cativeiro, já de si tão tristes. Eu sentia horror perante aquela maldade e vilania cruéis, entre as quais me movia, entre as quais tinha caído. Pensava que todos ali deviam ser maus e vilãos. Mas enganava-me, julgando-os a todos conforme A... v.
Durante esses três dias estive de folga, triste folga, no presídio; estendi-me na esteira, dei pano a certo preso que Akim Akímitch me indicara, o qual a Administração me fornecera, para que me fizesse umas camisas, pagando-lhe, é claro (a tantos grochi por camisa); arranjei, seguindo os reiterados conselhos de Akim Akímitch, um colchão dobrável (de feltro forrado de linho), tão fino como um biscoito, e também uma almofada cheia de lã, terrivelmente dura para quem não estava acostumado, Akim Akímitch trabalhou com persistência preparando-me todas essas coisas e, além disso, fez por sua própria mão um cobertor das tiras de um velho uniforme que se compunha de umas calças já gastas e de uma samarra, que para esse fim comprara a outro preso. Os objetos da Administração, com os quais se acabava de cumprir a pena, tornavam-se propriedade do preso, que os vendia imediatamente ali mesmo, no presídio, e, apesar de se tratar de peças usadas, tinha sempre a esperança de poder vendê-las por qualquer preço. Tudo isso, a princípio, me admirava muito. Era o meu primeiro e verdadeiro contato com o povo. Eu próprio havia me convertido de repente num homem simples, num presidiário como eles. Os seus hábitos, as suas ideias e costumes... eram os meus, pelo menos formalmente, segundo a lei, embora, na realidade, eu não os partilhasse. Estava admirado e comovido, como se nunca tivesse suspeitado da existência de tudo aquilo nem o tivesse ouvido dizer, apesar de o conhecer e ter ouvido dizer. O fato é que a realidade produz sempre em nós uma impressão muito diferente daquilo que se ouviu dizer. Como podia eu, por exemplo, imaginar anteriormente, mesmo de longe, que uns simples trapos pudessem ser considerados como peças de vestuário? Pois desses trapos fiz eu um cobertor! Também era difícil imaginar de que gênero era o pano destinado à roupa dos presos. Parecia, de fato, uma espécie de pano grosseiro, próprio para soldados; mas assim que uma pessoa o vestia transformava-se num crivo e rompia-se com uma facilidade exasperante. Além do mais, entregavam esses fatos aos presos para um ano; mas antes de expirar o prazo já estavam imprestáveis. O preso trabalha, carrega pesos; o uniforme estraga-se-lhe e rompe-se depressa. Em compensação as peles que nos davam eram para três anos e, de maneira geral, serviam-nos, durante todo esse tempo, de sobretudo, de manta e de colchão. Mas as peles eram fortes, embora muitas vezes se vissem, no fim do terceiro ano, isto é, ao expirar o seu prazo, peles remendadas com simples pano de linho. Mas apesar disso, ainda que estivessem muito gastas, quando terminava o prazo marcado os donos vendiam-nas por 40 copeques de prata. E algumas, mais bem conservadas, vendiam-se a 60 e até 70 copeques de prata... o que, no presídio, era muito dinheiro.
O dinheiro — e já falei disto — representava verdadeiramente um raro prestígio e um grande poder. Posso afirmar resolutamente que o preso que possui algum dinheiro, por pouco que seja, padece dez vezes menos no presídio do que aquele que não tem nenhum, se bem que a administração do presídio lhe forneça tudo e ainda que alguém possa perguntar-lhe para que quererá ele o dinheiro, como diziam os nossos superiores. Repito novamente que se os presos fossem privados da possibilidade de arranjar dinheiro, tornar-se-iam loucos, rebentariam como moscas (se bem que lhes fornecessem tudo) ou entregar-se-iam, finalmente, à prática de crimes inauditos: uns, por tristeza, outros, para que deixassem o mais depressa possível de torturá-los e acabassem com eles de uma vez, ou também para, de certa maneira, mudarem de sorte (explicação técnica). Se o preso que conseguiu dinheiro quase à custa de um suor e sangue ou resolveu imaginar uma manha extraordinária para o arranjar, incorrendo às vezes em vilezas e patifarias, gasta-o depois de um modo tão absurdo, num aturdimento infantil, isso não quer dizer que não o aprecie, embora à primeira vista assim pareça. O preso está ansioso por dinheiro, até a vertigem, até a loucura, e se de fato o atira pela janela afora, quando o possui, fá-lo por qualquer coisa que no entanto aprecia ainda mais. Mas o que pode valer mais que o dinheiro para o preso? A liberdade ou, então, uma pequena ilusão de liberdade. Os presos são grandes sonhadores. Hei de dizer depois qualquer coisa acerca disto; mas já que toquei no assunto, direi que vi presos condenados a vinte anos de prisão, que me diziam com a maior tranquilidade frases como esta: “Tenha paciência, homem, Deus há de fazer com que chegue o dia, e então...” O sentido da palavra preso era este: um homem privado de liberdade; mas, se tem dinheiro, dispõe também da sua liberdade. Apesar de todos os estigmas, das cadeias e das odiosas paliçadas do presídio, que lhe limitam o mundo e o encurralam como uma fera enjaulada, pode ter aguardente, isto é, o prazer mais severamente proibido, encontrar-se com mulheres e, às vezes (embora nem sempre), subornar os superiores imediatos, os inválidos ou algum suboficial, os quais farão vista grossa quando ele infringir a lei e a disciplina; e além disso pode até encher-se de empáfia diante dos camaradas. E o preso gosta loucamente de fanfarronar, isto é, fazer acreditar aos companheiros e acreditar ele mesmo, ainda que seja só por um momento, que possui uma liberdade e um poder maior do que parece. Numa palavra: pode armar bulha e ruído, olhar alguém por cima do ombro e demonstrar-lhe que ele pode fazer tudo isso, que tudo isso está nas suas mãos, isto é, acreditar em tudo aquilo que o pobre nem sequer pode imaginar. Eis efetivamente aqui talvez a razão por que logo ao primeiro olhar se veja no presídio uma tendência especial para a gabolice, para a presunção, para o exagero cômico e extremamente ingênuo das boas qualidades de cada um, ainda que se trate apenas de uma exaltação imaginária. Finalmente, toda esta pândega tem os seus perigos; significa ter apenas um vislumbre de liberdade. Mas que não daria uma pessoa pela liberdade? Um milionário, se lhe pusessem a corda no pescoço, não daria os seus milhões por um hausto de ar?
Os superiores costumavam admirar-se de que um preso que tinha levado ali uma vida pacata durante vários anos, modelar, a tal ponto que chegavam a nomeá-lo vigilante, devido à sua boa conduta, se tornasse de repente, sem uns minutos sequer de reflexão — como se o demônio se tivesse apoderado dele —, alvoroçado, questionador, provocador e incorresse às vezes até num ato criminoso, ou se tornasse insolente para com os superiores, ou matasse, ou vexasse continuamente alguém etc. Viam-no e ficavam espantados. E no entanto talvez a causa dessa mudança súbita naquele homem, do qual podia esperar-se tudo menos isso, não fosse outra senão a brusca, repentina manifestação da personalidade, a instintiva nostalgia do seu próprio eu, o desejo de elevar a sua personalidade humilhada, revoltando-se subitamente e chegando até a cólera, até o furor, até a perda da razão, até o espasmo, até a vertigem. Talvez assim o morto-vivo enterrado no sepulcro lance um grito e se esforce por sair dele, embora, naturalmente, a razão possa demonstrar-lhe que todos os seus esforços hão de ser inúteis. Mas tudo assenta precisamente nisso, para que a razão é que já não existe; trata-se de uma loucura. Atentemos, além disso, para que quase todas as manifestações espontâneas da personalidade no preso são consideradas como um crime, e que, nesse caso, para ele é indiferente que tal manifestação seja grande ou pequena. Fanfarronar, comprometer-se — comprometer-se por nada, se necessário for, até o assassinato. Dizem que tudo está no começar; e uma vez metido nesse caminho, não há quem se lhe oponha. Eis a razão por que mais valeria não chegar a tal. Teriam todos mais tranquilidade, sim; mas como consegui-lo?
O PRIMEIRO MÊS
(CONTINUAÇÃO)
Quando eu entrei para o presídio, tinha algum dinheiro, do qual algum trazia comigo, com receio de que mo roubassem. Além disso tinha também escondido alguns rublos entre as folhas do Evangelho, que se podia ler no presídio. Esse livro, com o dinheiro escondido nele, tinham-mo dado ainda em Tobolsk umas pessoas também deportadas por dez anos e que havia muito tempo estavam acostumadas a ver um irmão em cada infeliz. Há na Sibéria, e quase nunca faltam, umas pessoas que se impõem a missão de prestar um auxílio fraternal aos desgraçados e partilhar dos seus sofrimentos, como se fossem todos seus filhos, com absoluto desinteresse e sagrada piedade. Não posso deixar de expor aqui com brevidade um desses encontros. Na cidade em que ficava o nosso presídio,20 vivia uma senhora, Nastássia Ivânovna, que era viúva. É claro que nenhum de nós, estando no presídio, podia conhecê-la pessoalmente. Parecia que tomara como missão da sua vida auxiliar os presos; mas de quem mais ela cuidava era de nós. Teria havido na sua família alguma infelicidade semelhante? Teria alguém particularmente querido e chegado ao seu coração, padecido por algum crime, ou dar-se-ia o caso de que resumisse a sua felicidade em fazer por nós tudo quanto lhe fosse possível? Muito não havia dúvida de que não podia: era muito pobre. Mas nós, os do presídio, sentíamos que tínhamos fora dele uma amiga leal. Entre outras coisas, comunicava-nos frequentemente novidades, do que tínhamos grande falta. Quando saí do presídio e fui para outra cidade, aproveitei a ocasião para fazer-lhe uma visita e conhecê-la pessoalmente. Vivia nos arredores, em casa de um dos seus parentes próximos. Não era nem velha nem nova, nem bonita nem feia; também não era possível saber se era inteligente, se tinha instrução... Notava-se apenas, a todos os momentos, que era de uma bondade infinita, com um enorme desejo de servir, de animar, de fazer por todos qualquer coisa que lhe pedisse, com o maior agrado. Tudo isto se mostrava nos seus olhos plácidos e bondosos. Juntamente com alguns outros dos meus camaradas, passei quase toda a tarde em sua casa. Olhava-nos nos olhos, sorria quando sorríamos, apressava-se a mostrar a sua concordância a tudo quanto dizíamos, esforçava-se por nos oferecer tudo quanto tinha à mão. Deu-nos chá, uma merenda, um pouco de doce de fruta e, se fosse rica, teria ficado satisfeita apenas por poder obsequiar e presentear-nos ainda mais, a mim e aos meus companheiros, que deviam continuar no presídio. À despedida, deu-nos uma cigarreira a cada um, como recordação. Era ela própria quem fazia estas cigarreiras de cartão (sabe Deus como!), forradas com papéis de várias cores, desses mesmos papéis que servem para encadernar os livros de aritmética das crianças (e é possível, afinal, que a sua origem fosse essa). Os bordos e as duas metades da cigarreira eram revestidos de papel dourado, que provavelmente compraria de propósito na loja.
— Como os senhores fumam, pode ser que lhes dê jeito — disse, como se pedisse timidamente desculpa pelo seu presente...
Dizem alguns (já o tenho ouvido e sei) que o maior amor pelo próximo é, ao mesmo tempo, o maior egoísmo. Mas que egoísmo poderia haver nisto... nunca o cheguei a compreender.
Apesar de não possuir muito dinheiro quando entrei no presídio, não podia aborrecer-me seriamente com aqueles presos, que, quase logo na primeira hora da minha vida de cativeiro, depois de me terem enganado uma vez, vinham com muita ingenuidade pedir-me dinheiro por três e até cinco vezes. Mas confesso uma coisa, com franqueza: custava-me muito que todos aqueles indivíduos, com os seus ardis inocentes, me tivessem, como não podiam deixar de me ter, segundo me parecia, por um tolo e por um idiota, e acabassem por rir de mim precisamente por eu lhes dar dinheiro cinco vezes, até. Não havia dúvida de que eles deviam pensar que eu caía nos seus logros e nas suas manhas, ao passo que se lho negasse e os afugentasse do meu lado, tinha a certeza de que haviam de respeitar-me mais. Mas, por muito que isso me custasse, não podia contudo repeli-los. Custava-me também porque pensava, seriamente e com inquietação, naqueles primeiros dias, em que posição devia colocar-me em relação a eles. Sentia e compreendia que todo aquele ambiente era totalmente novo; que estava mergulhado numa treva completa e que não podia viver na treva tantos anos. Era, pois, necessário preparar-me. É claro que decidi que, em primeiro lugar, deveria guiar-me conforme os meus sentimentos e a minha consciência me ordenassem. Mas também sabia que isto era apenas um preceito moral e que a realidade me era completamente desconhecida.
E por isso, apesar de todos os pormenores da minha instalação no presídio, dos quais já falei, e nos quais fui tão eficientemente ajudado por Akim Akímitch, e de eles me distraírem também um pouco, uma estranha, aguda tristeza me afligia cada vez mais. “É uma casa de mortos!”, disse eu a mim próprio, ao olhar uma vez, ao crepúsculo da tarde, à entrada do nosso alojamento, os presos que regressavam do trabalho e se iam espalhando preguiçosamente pelo pátio, pelos alojamentos e pelas cozinhas e vice-versa. Observava-os e procurava adivinhar, pelas suas caras e pelos seus modos, de que gênero de pessoas se trataria e qual seria o seu caráter. Passavam diante de mim de rosto carrancudo ou demasiado alegre (estes dois aspectos são os mais frequentes e, por assim dizer, são característicos do condenado); insultavam-se ou conversavam simplesmente; ou então passavam solitários, meditabundos, devagar, com um ar indiferente; uns com um ar cansado e apático, outros com um olhar sombrio, lúgubre; e estes (até ali!) com um aspecto de superioridade consciente, o gorro à banda, o sobretudo de peles ao ombro, o olhar insolente, sinistro, e um sorriso trocista. “Será tudo isto que vai constituir o meu ambiente, o meu mundo atual”, pensava eu, “no qual, quisesse ou não, tinha de viver...” Por várias vezes tentei interrogar e fazer falar Akim Akímitch, com o qual gostava muito de tomar o chá para não estar sozinho. É necessário dizer que o chá era quase o meu único alimento nos primeiros tempos. Akim Akímitch nunca recusava o convite para o chá e era ele mesmo quem preparava o nosso gracioso samovar, pequeno e automático, de folha, que M*** me emprestara. Akim Akímitch costumava beber quase sempre um copo (possuía copo); bebia em silêncio e com dignidade, depois passava-mo, agradecia-me e continuava em seguida a fazer o cobertor. Mas aquilo que eu queria saber... não podia dizer-mo e, além disso, não compreendia por que eu me interessava tanto pelos caracteres dos condenados que nos rodeavam e que estavam tão próximos de nós, e escutava-me com um certo sorrisinho forçado, que conservo bem gravado na memória. “Não, era preciso que eu descobrisse por mim próprio, sem perguntar a ninguém”, pensava.
Mas, no quarto dia, precisamente como na manhã em que me puseram os ferros, estavam os presos já formados, logo de manhã cedo, em duas filas, na espia nada em frente do corpo da guarda, à porta do presídio. À frente e à retaguarda deles alinhavam os soldados, de espingardas carregadas e baionetas caladas. O soldado tem ordem de fazer fogo sobre o preso que fizer menção de querer deitar a correr; mas ao mesmo tempo torna-se responsável se disparar sem ser num caso de absoluta necessidade. O mesmo sucede nas revoltas declaradas dos presos. Mas quem é que pensaria em fugir assim, às claras?
Apareceram depois o oficial de engenharia, o dirigente dos trabalhos e também os suboficiais de engenharia, e os soldados encarregados de inspecionarem os trabalhos.
Fizeram a chamada; os primeiros a desfilar foram os presos que trabalhavam na alfaiataria; os engenheiros nada tinham a ver com esses que trabalhavam especialmente para o presídio, confeccionando o vestuário. Depois desfilaram os outros, por oficinas, e os destinados aos trabalhos pesados. Com outros presos, em número de vinte, desfilei eu também. Para além da fortaleza, nas margens do rio gelado, havia duas barcaças que pertenciam ao presídio e estavam já impróprias para navegar, mas que era necessário desmontar para que a madeira velha não apodrecesse inutilmente. Aliás, todo esse material velho, segundo parecia, não valia nada. A lenha vendia-se na cidade por um preço insignificante, e por aqueles arredores havia madeira de sobra. Enviavam-nos para ali para que não se juntassem demasiados num mesmo lugar e ficassem portanto sem fazer nada, era o que os presos pensavam. A esses trabalhos entregavam-se eles quase sempre com indolência e apatia; tudo se tornava bem diferente quando se tratava de um trabalho que tinha um fim prático, útil, e, sobretudo, quando podiam fazê-lo de empreitada. Então ficavam verdadeiramente entusiasmados e, embora esse trabalho não lhes trouxesse proveito algum, tive oportunidade de verificar como eles davam o melhor dos seus esforços para terminar a tarefa o mais depressa e o melhor possível, o amor-próprio contribuía também de certo modo para interessá-los. Mas nesse trabalho, que se realizava mais por formalidade do que por necessidade, era difícil marcar uma tarefa, impondo-se portanto o trabalho continuado até o toque do tambor, que chamava ao regresso, às 11 da manhã. O dia estava morno e nublado, a neve quase se derretia...
O nosso grupo dirigiu-se para além do forte, para a margem do rio, fazendo um leve ruído com as cadeias, as quais, apesar de irem escondidas debaixo da roupa, emitiam apesar disso um fino e tênue tilintar metálico, a cada um dos nossos passos. Dois ou três homens afastaram-se em direção ao depósito, onde foram buscar a ferramenta necessária. Eu continuei com os outros e, de fato, estava um pouco entusiasmado: queria ver e ficar sabendo imediatamente de que gênero de trabalhos se tratava. Que seria isso de trabalhos forçados? E como é que ia trabalhar pela primeira vez na minha vida?
Lembro-me de tudo até o mais ínfimo pormenor. No caminho encontramos um homem de barba, que parou e levou a mão à bolsa. Logo a seguir um preso saiu do grupo, tirou o gorro, aceitou a esmola — 5 copeques — e depois voltou para o seu lugar. O homem da barba benzeu-se e continuou o seu caminho. Esses 5 copeques gastaram-nos nessa mesma manhã em bolos, que distribuíram em partes iguais entre todos os do nosso grupo.
Desse grupo de presos, conforme era costume, uns eram retraídos e taciturnos, outros, indiferentes e indolentes; outros, ainda, conversavam entre si em voz baixa. Havia um que se mostrava extraordinariamente alegre e jovial, cantava e pouco faltava para que se pusesse a dançar no meio do caminho, fazendo tilintar as cadeias a cada cabriola. Era o mesmo preso baixinho e manhoso que, na minha primeira manhã no presídio, brigou com outro por causa da água à hora das abluções e porque esse tinha ousado afirmar de si próprio que era uma garça. Chamava-se Skurátov, esse divertido camarada. Até que por fim cantou uma cançoneta, cujo estribilho era este:
Casaram-me, sem eu dar por isso,
Quando estava no moinho.
Só lhe faltava a balalaica.
A sua boa e alegre disposição de espírito suscitou logo a seguir, é claro, o aborrecimento de outros do grupo, que consideravam aquilo quase como um insulto.
— Isso é ladrar! — resmungou um dos presos, de mau humor, que, afinal, não tinha nada a ver com o caso.
— Isso era a canção do lobo e tu trocaste tudo, cabeça de alho chocho! — observou outro, dos carrancudos, com a pronúncia da Ucrânia.
— Serei cabeça de alho chocho — respondeu imediatamente Skurátov —, mas você, na sua Poltava, atafulhava-se de almôndegas!
— Mente! Ele é que as comia! Comia berças e chupava a sola das alpargatas!
— Mas agora o diabo engorda-o com amêndoas de canhão — disse um terceiro.
— Eu, meus amigos, não há dúvida de que sou um menino mimado — respondeu Skurátov com um leve suspiro, para mostrar que a sua educação delicada o fazia sofrer, e dirigindo-se a todos em geral e a nenhum em particular. — Desde pequeno que me criaram com ameixas secas e guloseimas; mas os meus irmãos têm loja aberta em Moscou, negociam com o que calha e estão podres de ricos.
— E tu, em que negociavas?
— Em várias coisas, e lá íamos indo menos mal. Mas olhem, rapazes, foi então que me deram os primeiros duzentos...
— Rublos? — observou um dos curiosos e até deu um pulo ao ouvir falar em tanto dinheiro.
— Não, homem, qual rublos! Vergastadas! Ah, Luká, Luká!
— Que Luká vem a ser esse? É Luká Kuzmitch, não? — exclamou involuntariamente um preso baixinho e magro, de nariz muito afilado.
— Deixa-te lá de Luká Kuzmitch. O diabo te carregue, que eu, cá por mim...
— Sou Luká Kuzmitch,21 mas não é para ti; tu deves mas é chamar-me tio Kuzmitch.
— Vai para o diabo que te carregue, tu mais o teu tio! Não vale a pena contar-te nada. Mas eu queria dizer-vos uma coisa engraçada. Ora ouçam, meus amigos: depois de aquilo ter acontecido, já não fiquei muito tempo em Moscou; deram-me mais cinquenta açoites e mandaram-me para cá. Eu, então...
— Que terias tu feito para te mandarem para cá? — interrompeu um que seguia atentamente a história.
— Era proibido ter patente, beber pelo gargalo e fazer de bobo; por isso, meus amigos, eu não podia ficar em Moscou. E eu, que tinha tanta vontade, tanta, de enriquecer! Uma vontade tão grande que nem sei como hei de dizer!
Alguns riram-se. Pelo visto Skurátov era um desses homens de bom humor ou, para melhor dizer, apalhaçados, que parecem sentir a obrigação de alegrar os seus companheiros tristes e, é claro, sem receber outra recompensa senão insultos. Pertencia a uma especial e interessante categoria de indivíduos, sobre a qual talvez ainda torne a falar.
— Pode ser que, de repente, te acossem como a uma zibelina — observou Luká Kuzmitch. — Olhem, o trajo dele já valia uns 100 rublos.
Skurátov trazia uma pele de carneiro extremamente velha e remendada, na qual se viam buracos por todos os lados. Olhou-a de alto a baixo, com indiferença mas fixamente.
— É verdade — respondeu ele. — Mas em compensação a minha cabeça vale quanto pesa em ouro! Quando me despedi de Moscou, a minha única consolação era que trazia a cabeça no seu lugar. Adeus, Moscou, fica-te com os teus belos banhos e os teus bons ares; bem me tocaram lá a pavana... Quanto à pele, não te importes, meu amigo. Se não olhares para ela, já não te incomoda!
— Talvez queiras que olhe para a tua cabeça?
— A cabeça que ele traz nem sequer é a dele, foi um presente! — disse Luká. — Deram-lha por esmola, quando a caravana passou por Tiumien.
— Bem, mas continua lá com a tua história, Skurátov. Tinhas algum ofício, não?
— Um ofício, ele? Era carregador; acarretava cascalho, empurrava pedras — observou um dos mal-humorados. — Era esse o ofício dele.
— Sim, de fato, experimentei coser sapatos — respondeu Skurátov, sem compreender a maliciosa observação —, mas não cheguei a coser senão um par.
— O quê? E compraram-nos?
— Sim, apareceu-me um tipo que não temia a Deus nem tinha respeito aos pais... e Deus castigou-o: ele me comprou os sapatos.
Todos os que estavam à volta de Skurátov se torceram de riso.
— Sim, mas depois voltei a trabalhar outra vez, mas aqui — continuou Skurátov Imperturbável — fiz, para Stiepan Fíodorovitch Pomórtsev, outro par.
— E então, agradou-lhe?
— Não, meu amigo, não lhe agradou. Atirou-me insultos que chegavam para a vida toda e até me deu um pontapé no traseiro. Ficou tão furioso! Ah, triste vida é a de um presidiário!
Passado um momento voltou
O marido de Akulina.
Pôs-se a cantar isto inesperadamente e a dar saltinhos no chão.
— Que tipo tão inútil! — exclamou um que estava próximo de mim, num tom que não admitia réplica.
— Que tipo tão maluco! — resmungou o da Ucrânia quando passou a meu lado, com uma expressão maldosa nos olhos. — É um ordinário! — observou outro num tom de voz seguro e sério.
Eu não conseguia perceber por que é que queriam tão mal a Skurátov e, de maneira geral, a todos os indivíduos de bom humor, conforme pude observar naqueles primeiros dias, e pareciam até desprezá-los. O aborrecimento do ucraniano e dos outros parecia provir de qualquer ressentimento. Mas não se tratava disso; simplesmente, esse aborrecimento era devido ao fato de Skurátov não ser um homem metido consigo próprio e não afetar essa seriedade, esse aspecto de especial dignidade que impunha a todos os do presídio um cunho de pedanteria; enfim, por ser, segundo diziam, um homem inútil. No entanto não viam com maus olhos a todos os bem-humorados nem tratavam todos como a Skurátov e seus congêneres. Tudo dependia da maneira como o homem se portasse. A um indivíduo simplório, ainda que não fizesse palhaçadas, condenavam-no ao desprezo. O que também me admirou. Mas havia alguns desses tipos alegres que sabiam responder e gozavam com isso, e os outros viam-se assim obrigados a respeitarem-nos. Nesse mesmo grupo de presos que ia para o rio, havia um desses descarados, um tipo na verdade muito divertido e simpático, o qual cheguei a conhecer a fundo, mais tarde, sob este aspecto; um rapagão forte e jeitoso, com um grande sinal numa face e uma cara com expressão muito cômica, embora fosse realmente bonito e muito alegre. Chamavam-lhe o Explorador, porque servira antes como tal; mas agora pertencia à seção especial. Hei de falar dele mais adiante.
Mas nem todos os sérios eram tão expansivos como aquele da Ucrânia, inimigo da alegria. Havia alguns homens no presídio que aspiravam à preeminência, que queriam tornar-se notados em tudo: em saber, em caráter e inteligência. Alguns eram, efetivamente, homens inteligentes e de caráter e, com efeito, alcançavam o que pretendiam, isto é, a superioridade, e uma notável força moral sobre os companheiros. Estes espertalhões costumavam ter grandes inimigos e cada um deles tinha bastante que o invejavam. Mas olhavam os outros presos com dignidade e até com benevolência, não armavam confusões inúteis, mostravam-se ativos no trabalho e nenhum deles se teria aborrecido, por exemplo, por causa de umas simples canções; não se rebaixavam por causa de tais insignificâncias. Comigo eram todos muito afáveis; durante todo o tempo em que estive no presídio nunca me dirigiram a palavra, mas apenas por dignidade. Hei de ter ocasião de voltar a falar deles mais pormenorizadamente.
Chegamos à margem. Aí, no rio, havia na água gelada uma barca velha que era preciso desmontar. Para além do rio via-se a estepe azulada; a paisagem era severa e desértica. Eu esperava que os outros começassem a trabalhar; mas eles nem de longe pensavam em tal coisa. Alguns sentaram-se numas tábuas que estavam por ali espalhadas; quase todos tiraram das botas umas bolsinhas com tabaco da Sibéria, comprado no bazar, em folhas, a 3 copeques a libra, uns cachimbos de madeira de salgueiro feitos à mão. Acenderam os cachimbos; os soldados da escolta formaram círculo à nossa volta e puseram-se a olhar para nós com a cara mais aborrecida deste mundo.
— A quem é que incumbe desmontar a barca? — murmurou um, como se falasse consigo mesmo e sem dirigir-se a ninguém. — É cão aquele que o fizer.
— Aquele que o fizer é porque não tem medo de nós — observou outro.
— Onde, diabo, irão todos esses gajos? — perguntou o primeiro a meia-voz, fingindo não ter ouvido a resposta à sua anterior pergunta e apontando um grupo de camponeses ao longe que se dirigia em fila, sobre a neve maciça, não sabíamos para onde. Um dos camponeses, o último, era um pouco ridículo: abria muito os braços e levava na cabeça um gorro alto em forma de cone truncado. Toda a sua figura se destacava inteira e nítida obre a neve branca.
— Ó compadre, olha como anda o amigo Pietróvitch — observou um, chamando assim o camponês, por troça. É de notar que os presos olhavam sempre os camponeses com um certo desprezo, de maneira geral, apesar da metade ser formada por camponeses.
— O de trás caminha como se estivesse a plantar nabos.
— Pesa-lhe a cabeça; com certeza tem muito dinheiro! — observou outro.
Todos se puseram a rir, mas com certa indolência, como de má vontade. Nisto apareceu por ali uma vendedora de bolos, uma mulherzinha alegre e viva.
Compraram-lhe bolos com os 5 copeques de há pouco e repartiram-nos entre si.
Um rapaz novo, que negociava com bolos no presídio, comprou-lhe vinte; mas pôs-se a discutir com ela para que lhe desse na venda três e não dois bolos, de comissão, como era costume, com o que a mulher não concordava.
— Bem, e isso, também vendes?
— Isso, o quê?
— Isso que os ratos não querem!
Até que finalmente apareceu o suboficial, encarregado de inspecionar os trabalhos, com uma vara.
— Então, de que estão à espera? Vamos começar!
— Bem, Ivan Matviéievitch, dê-nos a tarefa — exclamou um dos chefes de grupo, levantando-se imediatamente.
— Por que não ma pediram antes de saírem? Desmontem a barca, é essa a tarefa.
Finalmente alguns se levantaram e encaminharam-se para o rio, quase sem mexerem os pés. Surgiram então, imediatamente, no grupo, os ativos, pelo menos de garganta. Parecia que a barca não devia ser destruída às cegas, mas sim poupando o mais possível as tábuas e, sobretudo, as de reforço. Estas estavam seguras com grandes cunhas ao fundo da barca, e por isso se tratava de uma tarefa demorada e delicada.
— Olha, a primeira coisa a fazer é tirar as tábuas, vamos, rapazes — observou um que não se tinha na conta nem de ativo nem de entendido, mas que era simplesmente um mocinho dos trabalhos forçados, calado e sossegado, que não tinha dito nada até então; e, metendo mãos à obra, puxou por uma grossa tábua, pedindo auxílio. Mas ninguém o ajudou.
— Não és capaz de arrancá-la! Mesmo que o teu avô, que devia ser um urso, te viesse ajudar, não serias capaz de a arrancar! — resmungou um deles por entre os dentes.
— Mas como é que se há de começar? Não sei — exclamou o outro, num tanto perplexo, largando a tábua e levantando-se.
— Não vais fazer o trabalho todo sozinho... Por que tens tanta pressa?
— Não és capaz de atirar milho às galinhas e agora queres ser o primeiro...
— Eu, meu amigo, eu só... — repetiu o moço indeciso.
— Ó rapazes, vocês querem que eu os guarde num estojo? Ou que vos mande pôr de salmoura para o inverno? — gritou de novo o inspetor, olhando com aborrecimento aquele bando de 12 homens que não sabiam como começar o trabalho. — Vamos começar! E depressa!
— Mais depressa do que depressa não pode ser, Ivan Matviéievitch.
— Mas tu não fazes nada, diacho! Vamos, Saviéliev... digo, Pietróvitch, é contigo que estou falando: que fazes aí parado, com esse olhar de pateta? Vamos, despacha-te!
— Sim, mas que posso eu fazer sozinho?
— Marque-nos o trabalho, Ivan Matviéievitch.
— Já lhes disse. Não posso marcar o trabalho. Desmanchem a barca e, em seguida, vamos para casa. Vamos, mãos à obra!
Dispuseram-se finalmente a fazer qualquer coisa, mas sem vontade, desajeitados. Na verdade era revoltante olhar aquele grupo de trabalhadores sãos e rijos que, segundo parecia, não sabiam decididamente por onde começar o trabalho. Assim que tentaram arrancar a primeira cunha, pequeníssima, partiu-se, “partia-se sozinha”, como eles explicaram ao inspetor, à guisa de desculpa; por isso, assim não se podia trabalhar, e era preciso experimentar de outra maneira. Seguiu-se uma longa discussão acerca da nova maneira como poderia realizar-se aquele trabalho. Escusado será dizer que, pouco a pouco, acabaram por se insultarem, por dizerem bravatas e qualquer coisa mais... O inspetor tornou a aguilhoá-los e brandiu a chibata no ar, mas a cunha tornou a partir-se. Concluiu-se por fim que não havia ali machados suficientes e que era preciso ir buscar algumas ferramentas. Partiram imediatamente em direção ao forte dois indivíduos com escolta em busca das ferramentas, e, entretanto, os outros sentaram-se tranquilamente na barcaça, puxaram dos cachimbos e puseram-se a fumar.
O inspetor finalmente cuspiu:
— Bem. É escusado contar convosco para o trabalho! Que gente, que gente! — resmungou, colérico, deixando cair os braços e encaminhando-se para o forte, zurzindo a vara no ar.
Passada uma hora apareceu outro capataz. Depois de escutar os presos com muita calma, declarou-lhes que lhes dava como tarefa tirarem quatro cunhas, de maneira que não se partissem e saíssem inteiras, e que, além disso, tinham de desmontar uma parte considerável da barcaça, após o que já podiam voltar para o presídio. A tarefa era grande; mas como eles a despacharam! Para onde foi a preguiça? Para onde foi a indecisão? Os machados batiam, as cunhas de madeira começaram a girar. Os outros meteram uns paus grossos por debaixo daquelas e, aplicando-lhes 12 mãos, simples e magistralmente, extraíram as cunhas que, com grande assombro meu, saíram completamente intactas, sem se partirem. O trabalho avançava rapidamente. Parecia que todos, como por encanto, se tinham tornado habilidosos. Nem palavras supérfluas, nem insultos; cada um sabia o que havia de dizer e de fazer, aonde ir e o que aconselhar. Precisamente meia hora antes de soar o tambor a tarefa estava concluída, e os presos voltaram para o presídio cansados mas muito satisfeitos, apesar de não terem conseguido ganhar senão uma meia hora de tempo livre. Quanto a mim mesmo, reparei numa coisa: aonde quer que eu me dirigisse, durante o trabalho, para ajudá-los, estava sempre fora do meu lugar, estorvava sempre, e pouco faltava para que me injuriassem.
Até o último de todos, que era um péssimo trabalhador e não se atrevia a levantar a voz diante dos outros presos, que era o mais desajeitado e desocupado, até esse se sentia com direito a descompor-me quando eu me punha junto dele, alegando que o estorvava. Até que por fim um dos ativos me disse com mau modo:
— Vá para outro lugar! Para que se mete onde não é chamado?
— Já viveste bem — lançou imediatamente outro.
— Mais vale pegares num mealheiro — disse-me um terceiro — e te pores a pedir esmola, para que levantem igrejas e deitem abaixo as tabernas, porque, aqui, não tens nada que fazer.
Por isso vi-me obrigado a ir para um canto e a ficar observando, no ócio, como os outros trabalhavam, o que me punha um peso na consciência. Mas quando o fiz e me afastei, fui para outra ponta da barcaça, começaram então a gritar-me:
— Sempre nos deram uns ajudantes... Que havemos de fazer deles? Não sabes fazer nada?
É claro que diziam tudo isto intencionalmente e para se divertirem. Era preciso aproveitarem a ocasião para se por a rir de um ex-nobre, e não havia dúvida nenhuma de que a agarravam pelos cabelos.
Isso era muito compreensível agora, porque, como já antes disse, a minha primeira pergunta quando entrei no presídio foi esta: “Como conduzir-me, que atitude devo adotar perante estes homens?” Calculava que devia ter frequentemente choques com eles, como este, de agora, no trabalho. Mas apesar de tais choques resolvi não alterar o meu plano de conduta, nesse tempo já meio amadurecido no meu espírito; sabia que estava certo. E assim era; decidi que era preciso conduzir-me com toda a naturalidade e sem mostrar aborrecimento, não deixar transparecer o menor indício de aproximar-me deles, mas sem desprezar a aproximação que eles próprios me oferecessem. Não intimidar-me de maneira nenhuma perante as suas ameaças e sinais de hostilidade e, se fosse possível, fazer-me de desentendido. Não concordar com eles, de maneira alguma, em certos pontos já conhecidos, e não contrariar nenhum dos seus hábitos e costumes; em suma: não me entregar por completo à sua camaradagem. Adivinhei, ao primeiro olhar, que eles, a princípio, me desprezariam por causa disso. Mas em seu entender (tive depois ocasião de sabê-lo a fundo) eu estava de certa maneira obrigado a fazer acreditar e a respeitar, na sua presença, a minha nobre linhagem, isto é, a dar ares de pessoa fina, a fazer espavento, a aparentar importância, a resmungar a cada passo e a fazer trejeitos. Era assim que eles pensavam que os nobres se conduziam. Naturalmente ter-me-iam insultado por isso... mas, ao mesmo tempo, ter-me-iam respeitado. Mas isso não era para mim; eu nunca seria um nobre como eles imaginavam, mas em compensação prometi a mim próprio não rebaixar, com nenhuma concessão perante eles, nem a minha cultura nem a minha ideologia. Se eu, para os lisonjear, me tivesse rebaixado a seus olhos, concordando com as suas ideias, dando-lhes confiança e adquirindo as suas qualidades com o fim de ganhar a sua simpatia... teriam imediatamente suposto que fazia tudo isso pelo medo que lhes tinha e ter-me-iam voltado as costas com desprezo... A... v não era um exemplo a seguir: denunciava-os ao major e todos o temiam. Por outro lado também não queria proceder para com eles com a frieza e a evasiva cortesia com que os polacos os tratavam. Eu bem via agora que eles me desprezavam porque desejava trabalhar como eles e não andava com espaventos nem melindres; e embora soubesse muito bem que, com o tempo, haviam de mudar de opinião a meu respeito, apesar da ideia de que entretanto se julgassem com direito a desprezar-me, pensando que eu, com o trabalho, procurava as suas simpatias... só essa ideia me pesava de um modo terrível.
Quando à tarde, ao terminarmos o trabalho do meio-dia, regressei ao presídio, cansado e esgotado, uma tristeza espantosa tornou a invadir-me. “Quantos milhares de dias como este me esperavam ainda”, pensava eu.” Todos como este todos iguais, parecidos!” Em silêncio, já à tarde, pus-me a andar sozinho, para além dos alojamentos, ao longo do pátio, e de repente vi o nosso Chárik, que corria para mim como uma flecha. Chárik era o nosso cão do presídio, da mesma maneira que há cães de companhias militares, de batalhão e de esquadrão. Vivia no presídio desde tempos imemoriais, não tinha dono certo, considerava todos como tais e alimentava-se com as sobras da cozinha. Era um canzarrão preto com malhas brancas, um mastim ainda não muito velho, com uns olhos muito vivos e uma cauda muito espessa. Ninguém o acariciava, ninguém lhe ligava importância. Eu o afaguei no primeiro dia e dei-lhe pão à mão. Quando eu o olhava, punha-se muito quieto, contemplando-me com amizade e, em sinal de alegria, agitava brandamente a cauda. Agora, que havia já algum tempo não me via... a mim, o primeiro que no decurso de alguns anos se dignara fazer-lhe uma carícia, corria e procurava-me por todos os lados, e quando eu saía do alojamento ladrava e corria logo ao meu encontro. Não sei o que me aconteceu, mas pus-me a beijá-lo e abracei-lhe a cabeça; ele se endireitou, pôs-me as patas dianteiras sobre os ombros e começou a lamber-me a cara. “Eis aqui um amigo que o destino me envia!”, pensei eu, e sempre que, naqueles primeiros tempos lúgubres e duros, voltava do trabalho, a primeira coisa que fazia, antes de entrar em algum lugar, era correr para trás dos alojamentos com Chárik, que saltava na minha frente e ladrava alvoroçado, pegar-lhe na cabeça e pôr-me a dar-lhe beijos e mais beijos, e alguma guloseima, e, entretanto, um sentimento torturante, amargo, me trespassava a alma. E como me era agradável pensar, valorizando perante mim próprio o meu martírio, que no mundo apenas me restava então um único ser que me amasse e me fosse dedicado: o meu amigo, o meu único amigo... o meu fiel Chárik.
NOVOS CONHECIMENTOS. PIETROV
Mas o tempo corria e eu, pouco a pouco, ia-me acostumando. Cada dia me afligiam menos as cotidianas manifestações da minha nova vida. Os acontecimentos, o ambiente, os homens... tudo se ia tornando indiferente a meus olhos. Reconciliar-me com aquela vida era impossível, mas já era tempo de aceitá-la como um fato perfeitamente consumado. Todas as incompreensões que ainda conservava, guardava-as para comigo. Não vagueava pelo presídio como um desgraçado, nem deixava transparecer o meu desgosto. Já não se fixavam em mim olhares de curiosidade selvagem com a mesma frequência, nem me seguiam com um descaramento tão intencional. Eu também me ia tornando indiferente para eles, o que me agradava bastante. Sentia-me já no presídio como em casa, sabia o meu lugar nas esteiras e, pelo visto, tinha-me acostumado já a coisas às quais nunca pensei poder acostumar-me na vida. Apresentava-me todas as semanas para que me rapassem metade da cabeça. Faziam-nos sair do presídio, por turnos, todos os sábados e nas vésperas dos dias festivos, e levavam-nos ao corpo da guarda (aquele que não estivesse rapado devia declará-lo) e aí, os barbeiros do Exército ensaboavam-nos a cabeça e rapavam-nos sem dó nem piedade com as navalhas rombudas, de tal maneira que ainda hoje me corre um calafrio pelo corpo quando me recordo dessa operação. Aliás, tínhamos o remédio à mão: Akim Akímitch indicou-me um preso da tropa, o qual rapava com uma navalha sua, por 1 copeque, todos aqueles que o desejassem. Muitos presos, apesar de serem gente rude, se valiam dele para escapar aos barbeiros do presídio. Chamavam “major” ao nosso barbeiro-recluso... por motivos que ignoro, assim como também não poderia dizer em que se parecia ele com o major da praça. Agora, ao escrever isto, lembro-me da figura do tal major, um rapagão seco, alto e taciturno, pouco esperto, eternamente entregue às suas ocupações e sempre com o afiador na mão, afiando dia e noite a navalha, já muito gasta, e, segundo parecia, completamente absorvido nessa tarefa, que constituía para ele, segundo parecia, a missão de toda a sua vida. De fato, mostrava-se extremamente satisfeito quando a navalha estava boa e quando alguém ia barbear-se; ensaboava o freguês, tinha a mão leve e a navalha parecia de veludo. Era evidente que sentia prazer e se envaidecia do seu ofício, e recebia desdenhosamente o copeque ganho, como se trabalhasse por amor à arte e não por causa do dinheiro. Em maus lençóis se viu uma vez A... v com o major da praça, quando foi para ele com ditos e contos e, ao referir-se uma vez ao nome do nosso barbeiro recluso imprudentemente, lhe chamou “major”. O major do presídio ficou furioso e altamente ressentido:
— Saberás tu, velhaco, o que é um major? — exclamou, lançando espuma pela boca e tratando A... v à sua maneira. — Como te atreves a chamar major a qualquer palhaço e prisioneiro nas minhas barbas, na minha presença?
Só A... v era capaz de entender-se com aquele homem.
Logo no meu primeiro dia de vida no presídio comecei a sonhar com a liberdade. Calcular quando terminariam os meus anos de prisão, pensar em mil coisas diversas, constituía a minha ocupação predileta. Por mais que desejasse não podia pensar noutra coisa e tenho a certeza de que outro tanto há de acontecer a todo aquele que se veja por uns tempos privado da sua liberdade. “Não sei”, pensava eu, “se acontecerá o mesmo com todos os presos”; mas a assombrosa leviandade das suas ilusões chocou-me desde o primeiro momento. A esperança do preso privado de liberdade é de outro gênero, completamente diferente da do homem que vive no mundo comum. Não há dúvida de que o homem livre espera qualquer coisa (por exemplo, uma mudança de sorte, a realização de algum empreendimento), mas vive e movimenta-se; a vida real arrebata-o totalmente no seu torvelinho. Não se passa o mesmo com o preso. Concordemos que esta também é vida... presidiária; mas seja qual for o preso e qualquer também a duração da sua pena, ele não pode decidida, instintivamente, considerar a sua sorte como algo de definitivo, de resolvido, como fazendo parte da vida ativa. Todo preso sente que não está em sua casa, mas assim como se estivesse de visita. Vinte anos afiguram-se-lhe como dois, e está perfeitamente convencido de que, aos cinquenta, quando sair do presídio, será ainda o mesmo homem novo que é agora, aos trinta. “Enquanto há vida, há esperança!”, cogita e afugenta resolutamente da sua mente todo pensamento aborrecido. Até os condenados à perpétua, os da seção especial, até esses pensavam às vezes que aquilo não podia ser e que de repente havia de chegar uma ordem de Píter,22 transferindo-os para Niertchinsk, nas minas de metais, e marcando-lhes um fim à condenação. E então, que mais poderiam desejar? Em primeiro lugar, para chegar a Niertchinsk demora-se quase meio ano; depois, é preferível qualquer outra coisa a estar no presídio. Depois de cumprida a pena em Niertchinsk, então... E dizer que esses cálculos eram feitos por um homem já de cabelos brancos!
Vi em Tobolsk os presos que estão acorrentados às paredes. Mantêm-nos com cadeias de dois metros de comprimento, ao lado da sua esteira. Mandaram acorrentá-los por causa de algum crime totalmente inaudito que cometeram já na Sibéria. Têm-nos assim por cinco anos e até por dez. São, na sua maioria, salteadores de estradas. Somente um que tinha tido um emprego não sei onde, é que tinha melhor aparência. Falava com muita fleuma, quase a meia-voz, e com um leve sorriso. Mostrou-nos a grilheta e demonstrou-nos como lhe era possível estender-se comodamente com ela na esteira. Devia ser um bom patife! De maneira geral todos eles se portam com muita mansidão e parecem contentes, mas todos anseiam cumprir quanto antes a sua pena. “Para quê?”, dirão. Pois vão já saber para quê: para deixarem aquele cubículo abafado, lôbrego, de teto baixo e abobadado, sair para o pátio do presídio e... nada mais. Para além do presídio nunca poderá sair. Sabe perfeitamente que os que se libertam finalmente daquelas cadeias hão de permanecer forçosamente até morte no presídio e com grilhetas. Sabe-o perfeitamente e, no entanto, sente uma ânsia enorme de cumprir o prazo da pena de estar acorrentado às paredes. Mas, se não fosse esta ilusão, poderia suportar as cadeias por cinco ou seis anos sem morrer ou enlouquecer? A quem é que não sucederia o mesmo?
Eu sentia que o trabalho podia salvar-me, fortalecer a minha saúde, o meu corpo. Uma verdadeira inquietação, um desassossego nervoso, o ar nocivo dos alojamentos podiam arrasar-me completamente. “Sair com frequência para o ar livre, cansar-me todos os dias, aprender a suportar pesos... e, pelo menos salvar-me-ei”, pensava eu, “robustecer-me-ei e sairei daqui um dia são, forte e com um ar juvenil.” Não me enganava: o trabalho e o movimento foram-me muito proveitosos. Eu olhava com horror para um dos meus companheiros (de família nobre), que se foi apagando no presídio, como uma luz. Entrou ao mesmo tempo que eu, novo ainda, bonito, forte, e saiu dali acabado e asmático. “Não”, pensava eu quando olhava para ele, “quero viver e viverei.” E por isso, os presos, a princípio, censuravam-me pelo meu amor ao trabalho, e durante muito tempo olharam-me com desprezo e troça. Mas eu me fazia desentendido e aplicava-me com firmeza a todas as coisas, ainda que fosse, por exemplo, a queimar e a britar calcário — um dos primeiros trabalhos que me tinham ensinado. Era um trabalho fácil. Os nossos chefes, os engenheiros, estavam dispostos a adoçar o trabalho dos presos nobres, o que, aliás, não era nenhum privilégio, mas simplesmente uma justiça. Estranho seria exigir de um homem com metade das forças, e que nunca trabalhou, o mesmo rendimento que de um verdadeiro trabalhador de profissão. Mas essa graça nem sempre se torna um fato, e concedia-se até um pouco às escondidas, pois os outros presos tê-lo-iam levado a mal. Era necessário, com muita frequência, realizar trabalhos duros, e para os nobres tornavam-se duplamente pesados, muito mais que para os outros trabalhadores. Para o mármore costumavam designar geralmente três ou quatro homens, velhos ou fracos, de poucas forças, no número dos quais, naturalmente, nos contavam a nós; e além disso tínhamos como chefe um verdadeiro operário, que sabia do ofício. Designavam quase sempre para isso o mesmo indivíduo, durante alguns anos consecutivos, um tal Almázov, homem grave, moreno e pequeno, já entrado em anos, pouco sociável e muito obstinado. Desprezava-nos profundamente. Além disso era tão pouco falador que chegava até ao extremo de sentir preguiça para nos ralhar. O alpendre, no qual se queimava e britava o calcário, ficava num lugar despovoado e não longe das margens do rio. No inverno, sobretudo nos dias nublados, olhar para o rio e para a outra margem, afastada, causava tristeza. Havia qualquer coisa de árido e de nostálgico naquela paisagem desértica que partia o coração. Mas a tristeza tornava-se ainda maior quando sobre o branco e interminável sudário da neve brilhava o sol; oh, quem tivesse podido voar por sobre aquela estepe que começava na outra margem e se estendia para o sul, num grande espaço ininterrupto, num espaço de mil e quinhentas vertas! Almázov entregava-se ao trabalho, geralmente em silêncio e com um ar severo; nós sentíamos uma vergonha enorme por não podermos ajudá-lo de maneira positiva, mas ele, intencionalmente, governava-se sozinho; não pedia o nosso auxílio, propositadamente, para que nos sentíssemos culpados perante ele e sofrêssemos com a nossa própria inutilidade. Mas o trabalho reduzia-se a acender o forno onde devia ser queimado o calcário que nós íamos metendo nele. No dia seguinte, quando o calcário já estava completamente queimado, tirávamo-lo do forno. Cada um de nós pegava um pesado martelo, colocava-se diante da respectiva caixa de calcário e começava a parti-lo. Era um trabalho muito agradável. Não tardava que o duro calcário se desfizesse num pó branco e brilhante. Brandíamos alegremente os nossos pesados martelos e batíamos com tal algazarra que era um gosto. Embora acabássemos por ter de suspender a faina, as nossas faces ficavam afogueadas e o sangue corria-nos mais rápido. Almázov punha-se então a olhar-nos com benevolência, como olharia para umas criancinhas; acendia o cachimbo com um ar condescendente e, no entanto, havia sempre de resmungar quando lhe dirigíamos a palavra. Aliás, é assim que se porta para com todos; mas, na realidade, era, segundo parecia, uma boa pessoa.
O outro trabalho que me destinaram... realizava-se na oficina e consistia em fazer girar a roda de um torno. Era preciso muita força para a fazer andar, sobretudo quando o torneiro (um sapador de engenharia) torneava qualquer coisa, por exemplo, uma balaustrada para uma escada ou uns pés para uma mesa grande, destinadas à casa de algum funcionário; para os tais pés de mesa era preciso até uma viga inteira. Um homem só não tinha força para fazer girar a roda em tais ocasiões; por isso designavam geralmente dois: a mim e a outro preso nobre, B***. E foi esse o nosso trabalho durante alguns anos, sempre que era preciso tornear qualquer coisa. B*** era aquele homem débil, a que já me referi, ainda novo, e que sofria do peito. Tinha entrado para o presídio um ano antes de mim, juntamente com dois companheiros: um velho que passou todo o tempo da sua vida de presidiário rezando, de dia e de noite (pelo que os presos o respeitavam muito) e que morreu um pouco antes da minha entrada no presídio; o outro era um rapazinho loução, saudável, forte, jovial, que a meia jornada de caminho trouxe B*** às costas, pois estava esgotado, e assim o levou durante um trajeto de setenta verstas seguidas. Era digna de ver-se a amizade que existia entre os dois. B*** era um homem muito bem educado, de nobre condição, de um caráter generoso, mas azedo e irritado pela doença. Trabalhávamos os dois juntos na roda, e nisso consistia nossa ocupação. Para mim, esse trabalho constituía um ótimo exercício.
Também me agradava especialmente apanhar neve com a pá. Fazia-se isso, geralmente, depois dos furacões, e com muita frequência no inverno. Depois de um furacão de 24 horas, várias casas ficavam com neve até quase metade da altura das janelas e outras ficavam mesmo completamente cobertas. Então, logo que o temporal amainava e o sol saía, mandavam-nos em grandes grupos, e às vezes a todos os do presídio... tirar os montões de neve dos edifícios públicos. Marcavam o trabalho de cada um, às vezes de natureza tal, que era para admirar como podíamos realizá-lo, embora nos deitássemos todos à obra com a maior atividade. Leve, pouco compacta e gelada só por cima, a neve escorregava facilmente para as pás em grandes montes, espalhava-se a toda a volta e voava pelos ares, transformada em pó brilhante. A pá enterrava-se naquela massa branca, que brilhava ao sol. Os presos entregavam-se a este trabalho quase sempre com gosto. O fresco ar de inverno, o exercício, fortaleciam-nos. Todos ficavam contentes; ouviam-se risos, vozes, gracejos. Punham-se a brincar com a neve, apesar de que, passado um minuto, já os pacatos e insensíveis aos risos e ao bom humor se punham a protestar, terminando o divertimento geral quase sempre em insultos.
Pouco a pouco fui alargando o círculo das minhas amizades. Aliás, eu nem sequer pensava em amizades; sentia-me ainda inquieto, pesaroso e receoso. Os meus conhecimentos começaram por si. O recluso Pietrov foi dos primeiros a visitar-me. Digo “visitar” e insisto especialmente na palavra. Pietrov vivia na seção especial e na caserna mais afastada da minha. É claro que, entre nós, não podiam existir relações; não existia absolutamente nada de comum entre nós. E, no entanto, nos primeiros tempos, Pietrov vinha ver-me quase todos os dias ao alojamento ou fazia-me parar nas tardes de folga, como se sentisse essa obrigação, quando eu ia passear longe dos alojamentos e o mais longe possível de todos os olhares. A princípio isso não me agradava. Mas ele percebeu pouco a pouco que as suas visitas não tardaram a servir-me de distração, apesar de ele não ser tagarela nem pessoa comunicativa. Quanto ao seu aspecto exterior era baixo, de compleição robusta, ágil; nervoso, com uma cara muito simpática, pálida, largo de ombros, e com uma expressão risonha nos dentes brancos, pequenos e bem juntos, e com uma eterna dose de rapé no lábio inferior. Era costume de muitos presos trazerem o tabaco aí. Parecia mais novo do que era. Tinha quarenta anos e aparentava apenas trinta. Falava sempre comigo com muita desenvoltura, mantinha-se perfeitamente ao mesmo nível, isto é, com muitíssimo tato e delicadeza. Se notava, por exemplo, que eu estava ansioso por solidão, deixava-me, depois de me ter entretido uns dois minutos, agradecia-me sempre a atenção que eu lhe dispensara, o que não fazia com mais ninguém do presídio. Curioso é que essa nossa amizade não só se tivesse prolongado durante os primeiros dias como no decurso de vários anos seguidos, sem que nunca se tornasse mais íntima, embora ele me fosse efetivamente muito dedicado. Ainda hoje não percebo por que me teria ele tomado aquele afeto e por que viria ver-me todos os dias. No entanto, um dia roubou-me. E que ele roubava inconscientemente; mas era raro que me pedisse dinheiro. Por isso, não era pelo dinheiro nem por nenhum grande interesse que se aproximava de mim.
Também não sei a razão, mas parecia-me sempre que ele não vivia juntamente comigo no presídio, mas sim longe, noutra casa, na cidade, e que apenas visitava o presídio de passagem, para recolher notícias, visitar-me a mim e ver a vida que levávamos. Estava sempre com pressa de ir para qualquer parte, tal como se tivesse deixado alguém à espera ou tivesse um trabalho para acabar em qualquer lugar. E, entretanto, nunca parecia apressar-se muito. O seu olhar era também um pouco estranho: atento, fixo, com assomos de velhacaria e de zombaria, mas projetado sempre na distância, para além daquilo que tinha na sua frente. Isto lhe dava um aspecto de pessoa distraída. Algumas vezes ficava a pensar para onde iria Pietrov quando se despedia de mim. Onde estarão à sua espera? Mas ele desaparecia rapidamente da minha vista em qualquer lugar, nos alojamentos ou na cozinha; sentava-se junto dos que falavam, punha-se a escutar atentamente, às vezes metia-se na conversa com certo entusiasmo, e depois, de repente, interrompia-se e ficava calado. Mas, quer falasse, quer permanecesse em silêncio, era evidente que estava ali de passagem, que tinha algo que fazer em qualquer parte e que o esperavam. O mais curioso é que ele nunca tinha nada para fazer, absolutamente nada; vivia numa preguiça total (não contando com os trabalhos forçados, é claro). Ofício, não tinha nenhum, e por isso quase nunca tinha dinheiro. Mas não se preocupava com o dinheiro. E de que falava ele comigo? As suas conversas eram tão estranhas como ele próprio. Via, por exemplo, que eu andava sozinho por detrás dos alojamentos e aparecia de repente ao meu lado. Andava sempre muito ligeiro e dava umas voltas bruscas; mesmo que viesse a passo lento parecia sempre que corria.
— Boa tarde.
— Boa tarde.
— Não o incomodo?
— Não.
— Queria fazer-lhe uma pergunta sobre Napoleão Terceiro. Ainda é parente daquele que esteve na Rússia em 1812?
(Pietrov era filho de soldado e sabia ler e escrever).
— Sim, era sobrinho dele.
— Por que lhe chamavam presidente?
Perguntava sempre apressadamente, por hábito, como se tivesse grande urgência em informar-se. Tal como se necessitasse de aclarar algum assunto importantíssimo que não admitisse a menor dilação.
Expliquei-lhe que, de fato, era presidente, acrescentando que talvez não tardasse que fosse imperador.
— Como?
Expliquei-lho como pude. Pietrov escutava atentamente, inclinando um pouco o ouvido para mim, e compreendia as coisas rapidamente.
— Hum! Ora bem, agora, Alieksandr Pietróvitch, eu queria perguntar-lhe uma coisa. É verdade isso que dizem de haver uns macacos com uns braços tão compridos que lhes chegam aos tornozelos e que são tão altos como os homens mais altos?
— É verdade, sim.
— E que macacos são esses?
Expliquei-lho conforme pude.
— E onde vivem?
— Nos países quentes. Na ilha de Sumatra, por exemplo, existem.
— Isso fica na América, não? Também dizem que as pessoas lá, andam de cabeça para baixo; isso é verdade?
— De cabeça para baixo, não. O senhor está a falar dos antípodas.
Expliquei-lhe o que era a América e, conforme pude, o que são os antípodas. Ele me escutava com tanta atenção que parecia exatamente que tinha vindo ter comigo só por causa dos antípodas.
— Ah! Quer saber? No ano passado li a história da Duquesa de Lavallière, num livro que o ajudante Ariéfiev me emprestou. Será verdade tudo aquilo, ou apenas ficção? Era uma obra de Dumas.
— É claro que é ficção.
— Bem. Adeus, passe muito bem!
Pietrov desaparecia e, na verdade, era sempre desta maneira que nós falávamos.
Comecei a procurar pormenores acerca da sua pessoa. M***, que sabia das nossas relações, deu-me algumas informações. Disse-me que, no princípio, nos primeiros dias da sua estadia no presídio, muitos dos reclusos lhe tinham inspirado horror, mas nenhum deles, nem o próprio Gázin, lhe causara uma impressão tão horrorosa como esse tal Pietrov.
— É o mais refinado, o mais desalmado de todos os presos — dizia M***. — É capaz de tudo; não recua perante nada, contanto que faça a sua vontade. Se isso se lhe meter na cabeça, corta-lhe o pescoço, mata-o, muito simplesmente, sem dó nem piedade. Eu até penso que ele não deve ter o juízo perfeito.
Esta opinião interessou-me muitíssimo. Mas M*** não foi capaz de explicar-me a razão dessa opinião sua. E, coisa estranha, durante alguns anos convivi com Pietrov, falava quase todos os dias com ele, e durante todo esse tempo foi-me sinceramente dedicado (embora não perceba por quê) e, durante todos esses anos, embora vivesse discretamente no presídio e nada fizesse de horrível, todos os dias, quando lhe olhava para a cara e falava com ele, pressentia que M*** tinha razão, que Pietrov devia ser talvez o mais intrépido, terrível e o mais difícil de dominar de todos os presos, e não reconhecia qualquer autoridade sobre a sua pessoa. E eu também não era capaz de explicar por que é que... pensava também a mesma coisa.
Reparei, além disso, que esse tal Pietrov era o mesmo que quisera matar o major do presídio quando o chamaram para lhe aplicar um castigo. Já disse que o major “se salvou por milagre”, como diziam os outros presos, retirando-se um minuto antes da execução da pena. Uma vez, antes de ter vindo para o presídio, sucedeu que o coronel lhe bateu durante a instrução. Provavelmente já não devia ser a primeira vez que lhe batia; mas dessa vez não quis dominar-se e deu, com a baioneta, uma pancada ao coronel, às claras, diante de toda a tropa. Aliás, não conheço a história em seus pormenores e ele nunca ma contou. Não há dúvida de que se tratava de arrebatamentos nos quais a sua natureza se mostrava toda. No entanto eram muito raros nele. Vulgarmente era sensato e até pacífico. Palpitavam no seu peito forte paixões ardentes, mas as brasas candentes estavam continuamente cobertas de cinza e ardiam devagar. Nunca pude observar nele uma ponta de fanfarronice nem de jactância, como, por exemplo, noutros. Raramente se zangava com alguém, embora não mantivesse amizade particular com ninguém, a não ser talvez com Sirótkin, e ainda somente quando lhe era necessária. Uma vez, no entanto, tive ocasião de vê-lo seriamente enfurecido. Havia qualquer coisa que não lhe queriam dar, qualquer coisa que lhe tinham tirado. Quem questionava com ele era um preso muito forte, corpulento, mau, brigão, chocarreiro e destemido, Vassíli Antônov, da classe dos presos civis. Havia já muito tempo que vociferavam, e eu pensava que a coisa havia de terminar pelo menos em pancadaria, como era costume; mas Pietrov, embora raramente, às vezes também se encolerizava e desfazia em impropérios como o último dos condenados. Mas dessa vez não foi assim; de repente Pietrov empalideceu e os lábios roxos empalideceram-lhe; respirava afanosamente. Levantou-se do seu lugar e, devagarinho, muito devagarinho, com os seus passos silenciosos, descalço (gostava muito de andar descalço no verão), dirigiu-se para Antônov. De súbito e de chofre, todos emudeceram naquele alojamento ruidoso e vociferante; ter-se-ia ouvido uma mosca. Estavam todos atentos ao que ia passar-se. Antônov caminhou ao encontro de Pietrov, que parecia ter perdido a aparência humana. Não pude mais e saí do alojamento. Esperava que, antes de eu ter tido tempo de transpor a porta, se teria Já ouvido o grito dum homem assassinado. Mas dessa vez também o caso acabou em paz; Antônov não deu oportunidade a que Pietrov se lhe aproximasse e entregou-lhe o objeto disputado, em silêncio e apressadamente (Tudo isso por qualquer insignificância desprezível, por um farrapo qualquer). É claro que depois Antônov ficou ainda a insultá-lo em voz mais baixa, para tranquilizar a sua consciência e por decoro, para mostrar que não era assim com tanta facilidade que lhe metiam medo. Mas Pietrov nem sequer reparou já nesses insultos, nem lhes respondeu; a coisa não estava no insultar, mas apenas nas conveniências; estava muito satisfeito, já tinha o que era seu. Passado um quarto de hora, já andava como antes, vagabundeando pelo presídio, com o aspecto dum homem muito tranquilo que apenas andava a farejar onde é que se falaria de qualquer coisa interessante para meter também a sua colher e saber de novas. Dir-se-ia que tudo o interessava; no entanto acontecia-lhe às vezes permanecer indiferente a tudo e ficar às voltas pelo presídio sem objetivo algum, pavoneando-se para um lado e para outro. Poder-se-ia comparar com um operário, com um bom operário ao qual não dão trabalho e que, enquanto não lho dão, se senta e se põe a brincar com as crianças. Eu também não compreendia por se mantinha ele no presídio, por que não fugia. Com certeza ele não teria medo de fugir, contanto que o tivesse verdadeiramente desejado. Nos indivíduos como Pietrov a razão só impera até o momento em que o desejo não os tenta. Não há freio possível que possa detê-los neste mundo. E eu estou convencido de que ele seria facilmente capaz de fugir, e que a ele não teria importância alguma estar uma semana inteira sem pão na floresta ou na margem do rio, numa cabana. Mas era evidente que essa ideia não lhe tinha ocorrido e que de maneira nenhuma sentia esse desejo. Uma razão sã, um juízo especialmente são, nunca descobri nele. Parece que estas criaturas nasceram já com uma só ideia que, sem que eles próprios reparem nisso, enquanto vivem, os vai impelindo de um lado a outro, e assim desperdiçam toda a sua vida até que se não lhes apresente qualquer coisa com força que os faça então perder completamente a cabeça. Às vezes admirava que aquele homem, que matara o chefe para se vingar de uma correção, se prestasse tão docilmente a ser açoitado no presídio. E sofria esse castigo todas as vezes que era apanhado fazendo contrabando de aguardente. Como todos os presos sem ofício, costumava dedicar-se a esse negócio. Mas quando lhe aplicavam o castigo, prestava-se a isso como em virtude de uma concordância especial, isto é, como se reconhecesse que havia motivo para isso; caso contrário, se não houvesse, ainda que o matassem não se prestaria a tal; era o que parecia. Também me espantava que, apesar da notória dedicação que me tinha, não reparasse que me roubava. Foi ele quem me roubou a Bíblia que um dia lhe entreguei unicamente para que a levasse de um lugar a outro. O trajeto era apenas de alguns passos; mas arranjou no caminho um comprador, ao qual a vendeu, gastando depois o dinheiro na bebida. Na verdade a bebida agradava-lhe muito e, quando desejava muito uma coisa, não tinha outro remédio senão consegui-la. Há homens capazes de matarem uma pessoa por 25 copeques, para beberem um copo desse vinho, enquanto 100 mil o deixariam indiferente noutra ocasião. Nessa mesma noite confessou-me ele o roubo, mas sem a menor comoção nem arrependimento, com a maior indiferença, como se se tratasse da coisa mais vulgar. Tentei dar-lhe uma boa repreensão, porque me custava muito ter perdido a Bíblia. Ele me escutou sem se perturbar, muito tranquilo; concordou comigo em que a Bíblia era um livro muito útil; lamentou sinceramente que eu a tivesse perdido mas não se mostrou absolutamente nada pesaroso por tê-la roubado; mostrava uma tal serenidade que suspendi imediatamente a repreensão. Provavelmente devia suportar as minhas recriminações pensando que fosse uma coisa inevitável censurarem-lhe a sua conduta; que as injúrias aliviam a alma mas que, no fundo, tudo aquilo era uma bagatela, tão insignificante que nem valia a pena falar no caso. Tenho a impressão de que ele me tomava por uma criança grande, um rapazinho que não compreendia as coisas mais simples deste mundo. Se, por exemplo, eu lhe falasse de qualquer coisa que não fosse ciência e livros, é verdade que ele me respondia, mas como se fosse apenas por respeito, limitando-se a respostas muito lacônicas. Costumava perguntar a mim próprio com frequência: “Que interesse terão para ele essas coisas de livros acerca das quais me interroga tantas vezes?” Acontecia que, durante esses diálogos, eu, olhando-o de soslaio, dizia para comigo: “Não estará ele troçando de mim?” De maneira geral escutava-me com seriedade, embora com uma atenção pouco concentrada, o que me contrariava. Fazia as perguntas de maneira precisa, concreta; mas não parecia ficar muito admirado com as informações que eu lhe dava, escutando-as distraidamente... Parecia-me também que chegara à conclusão, sem quebrar muito a cabeça, de que era impossível falar comigo da mesma maneira que com as outras pessoas; que, à parte as questões literárias, eu não sabia nada de nada, nem era capaz de compreender nada, e que por isso não valia a pena incomodar-me.
Estou convencido de que, apesar de tudo, me tinha afeição; e isto desconcertava-me muitíssimo. Considerar-me-ia um homem atrasado no seu desenvolvimento, incompleto; sentiria por mim essa espécie de piedade especial que instintivamente sente todo ser vigoroso em presença de outro mais fraco, considerando-me a mim também assim? Não sei. E embora tudo isto não o tivesse impedido de roubar-me, estou certo de que, ao mesmo tempo que me roubava, devia ter pena de mim. “Que diabo! Pode ser que aprenda a defender o que é seu!”, diria para consigo. “Que homem será este que nem sequer sabe defender o que lhe pertence?” E talvez me tivesse afeição precisamente por causa disso. Ele próprio me disse uma vez, como se o fizesse contra a vontade, que eu era “uma alma boa demais” e que “eu era tão ingênuo, tão ingênuo, que até causava piedade.
— Mas não se ofenda com isto, Alieksandr Pietróvitch, não tome isto como ofensa — acrescentou um momento depois. — Eu estou a falar-lhe com o coração.
Sucede às vezes que estes indivíduos se revelam de repente e fazem notar de um modo enérgico no momento de alguma ação ou revolução gerais. Como não têm o dom da palavra, não podem ser os principais inspiradores e promotores dos acontecimentos; mas são os principais executores e os que primeiro os põem em prática. Começam simplesmente, sem despertar uma expectativa especial; mas são geralmente os primeiros a arremeter contra o principal obstáculo, sem reflexão, sem medo, a se lançarem diretamente contra as baionetas, e todos os sequem, e caminham com persistência, vão até a última barreira contra a qual acabam geralmente por perder a vida. Penso que Pietrov não deve ter acabado bem; bastaria um minuto para ele acabar consigo, e se ainda não sucumbiu, deve ser porque ainda não lhe chegou a vez. Embora, no fim de contas, quem sabe? Pode ser que viva até a idade dos cabelos brancos e que morra de velhice, tranquilamente, e continue andando sem finalidade alguma, de um lado a outro. Mas parece-me que M*** tinha razão quando dizia que este homem era o mais temível de todo o presídio.
HOMENS TEMÍVEIS. LUCHKA
É difícil falar dos homens temíveis; eram raros no presídio, como em toda parte. Uma pessoa vê um homem de aspecto feroz; lembrando-se dos horrores que se dizem dele, afasta-se. A princípio havia um sentimento indefinível que me impelia, na medida do possível, a afastar-me destes homens. Depois, havia de vir a mudar muito a minha opinião a respeito até dos mais ferozes assassinos; verifiquei que havia quem nunca tivesse matado ninguém e fosse mais feroz do que outros que tinham sete mortes sobre as costas. Era difícil formar uma ideia, por mais simples, acerca de alguns crimes, a tal ponto algo de estranho devia ter intervindo na sua realização. Falo assim precisamente porque entre nós, entre as pessoas do povo, se cometem alguns homicídios pelas mais espantosas razões. Existe, por exemplo, um certo tipo de homicida que leva uma vida tranquila e plácida. Sofre um revés da sorte. Suponhamos que seja um camponês, um servo, um burguês ou um soldado. De repente, surge qualquer coisa que o contraria; não se contém e arremessa-se de faca em punho contra o seu inimigo e opressor. É neste momento que se torna um ser invulgar, a partir do momento em que o homem sacode o jugo. Começou por matar o seu inimigo, o seu opressor; trata-se de um crime compreensível; havia uma causa; mas depois continua a matar e não já os inimigos; mata o primeiro que encontra, mata por prazer, por uma palavra forte, por um olhar, para fazer um certo número, ou diz simplesmente: “Não te atravesses no meu caminho, senão...”, tal como se estivesse bêbado ou delirante de febre. Exatamente como se, ao ter infringido uma vez o mandamento da lei de Deus, começasse depois a gabar-se de que para ele já nada existe de sagrado; como se se lhe tivesse metido na cabeça saltar de uma vez por cima de todo direito e poder e se refestelasse na mais desenfreada e licenciosa liberdade; de uma liberdade tão desenfreada que a si mesmo espanta. Sabe, além disso, que o espera um castigo severo. Tudo isto se podia comparar com a dor de um homem que se lança duma alta torre para uma cova a seus pés e se sente feliz por ir assim de cabeça para baixo e acabar o mais depressa possível! E tudo isto pode acontecer aos homens que até então foram pacíficos e mansos. Alguns dos que se lançaram nesta via ainda por cima se vangloriam. Quanto mais mansos foram antes, mais fortemente desejam meter medo aos outros. Sentem prazer com este medo e gozam com a repugnância que inspiram. Fingem um certo desespero, e esses desesperados anseiam às vezes a que o castigo venha o mais depressa possível, desejam que o despachem logo a seguir, porque acaba por se lhes tornar difícil parar finalmente naquele desespero aparente. É curioso que, em parte, toda esta audácia, toda essa aparência só dura até o patíbulo, mas depois sucumbem; tal como se isto fosse um prazo formal, determinado de antemão, em relação às suas próprias leis. Aí, de repente, esses homens sucumbem e tornam-se uns farrapos. No cadafalso, choramingam... pedem perdão ao público. Entrai no presídio e olhai: aí está esse homem tão manso, tão submisso, tão medroso até, que chama a vossa atenção; será possível que seja o mesmo que praticou cinco ou seis mortes?
Não há dúvida de que há alguns que não amansam assim tão depressa no presídio. Conservam certas fanfarronices, certas audácias: “Eu não sou aquilo que vocês pensam; fui condenado por seis!” Mas, apesar de tudo, acaba por amansar. Às vezes só se desforra recordando as suas antigas proezas, as brigas que teve na sua vida, quando estava desesperado, e compraz-se grandemente, quando se encontra com um novato, em gabar-se, dizer fanfarronadas e pavonear-se na sua frente, dando-se ares e contando as suas façanhas, sem no entanto dar a entender, pelo seu aspecto, que tenha vontade de contar essas coisas: “Vejam o homem que eu fui!”
E com que refinamento observam esta vã precaução, que indiferença e negligência se percebem às vezes na sua história! Que estudada leviandade se revela no tom, em cada palavra do narrador! Mas onde aprendeu esta gente tudo isso?
Uma vez, nesses primeiros dias, numa longa tarde, estava eu estendido sobre a esteira, ocioso e triste, e escutava um desses diálogos. Devido à minha inexperiência, tomei aquele que falava por um criminoso extraordinário, ferocíssimo, por um caráter de descomunal dureza, de tal maneira que nesse momento estive a ponto de referir-me a Pietrov. O argumento da narrativa era a descrição da maneira como ele, Luká Kuzmitch, tinha derrubado um major, apenas por prazer, por mais nada. O tal Luká Kuzmitch era aquele mesmo condenado, pequenino, magricela, de nariz bicudo, que pertencia ao nosso alojamento, que era da Ucrânia, e do qual falei já noutra ocasião. De fato, era russo, mas nascera no sul, na condição de servo. Tinha efetivamente qualquer coisa de contundente, de altivo: pequeno é o pássaro mas tem garras. Mas os presos, instintivamente, compreendiam-no. Não tinham grande estima por ele, como dizem no presídio; apreciavam-no muito pouco. Era muito presumido. Nessa tarde estava sentado na esteira cosendo uma camisa. O seu ofício era costurar roupa branca. Junto dele estava um rapazote estúpido e pateta, mas bom e afetuoso, forte e alto, seu vizinho de esteira, o preso Kobílin Luchka. Por causa dessa vizinhança brigava muitas vezes com ele e tratava-o geralmente com soberba, trocista e despótico, o que Kobílin nem sequer notava, às vezes por causa da sua ingenuidade. Nesse momento tricotava e escutava Luchka com indiferença. Este falava em voz alta e clara. Queria que todos os ouvissem, embora fizesse o possível por dar a entender que só contava aquelas coisas a Kobílin.
— Pois eu fui despachado da minha terra — começou, limpando a agulha — para K... v; por causa de umas rixas entre camponeses.
— Há muito tempo? — perguntou Kobílin.
— Quando as ervilhas amadurecerem... já fez mais um ano. Bem, quando cheguei a K... v, tiveram-me algum tempo no presídio. Olho para aquilo: vejo a meu lado um grupo de vinte homens. Circassianos, altos, sãos, fortes como touros. E além disso tão mansinhos... A comida era má e o major manejava-os como queria — Luchka atropelava as palavras de propósito. — Fico ali um dia, outro; vejo... Que gente tão covarde! “Por quê”, disse-lhes eu, “aguentam vocês esse burro?” “Anda, vai tu falar com ele!”, e e riam-se de mim. Eu me calo. E havia lá um circassiano muito trocista, rapazes — acrescentou de repente encarando com Kobílin e dirigindo-se a todos em geral. — Contava como o tinham condenado e como tinha falado no Tribunal e chorado; dizia que tinha filhos e mulher na terra. Era um homenzarrão grisalho e gordo. “Eu falei-lhe: ‘Não! Estou inocente!’” Mas ele, o filho do diabo, sempre escrevendo. Fui e gritei-lhe: ‘Assim tu te arrebentes, se eu não estou inocente!’ E ele sempre escrevendo... Então perdi a cabeça.
— Vássia, dá-me linha, a do presídio está podre.
— Esta é da loja — respondeu Vássia dando-lhe a linha.
— O nosso novelo, o que temos na oficina, é melhor. Os daqui, é o inválido que os compra, e sabe-se lá a que comadre é que ele os compra! — continuou Luchka, enfiando a agulha, virado para a luz.
— À dele, com certeza.
— Sim, é claro.
— Bem. E que foi feito do major? — perguntou, muito solícito, Kobílin.
Foi o que Luchka quis ouvir. No entanto não retomou imediatamente a sua narrativa e fingiu até não reparar em Kobílin. Enfiou a agulha com muita fleuma, mudou a posição das pernas, com calma e indolência, e por fim continuou:
— Até que por fim sublevei os meus ucranianos e tive de ocupar-me do major. Mas já de manhã eu pedira uma faca ao meu companheiro; fiquei com ela e guardei-a, muito naturalmente, como se fosse por acaso. O major apareceu correndo, furioso. Então eu lhes disse: “Não se assustem, russinhos!”. Mas parecia que lhes tinha caído a alma aos pés. Chega o major, furioso, bêbado: “Que se passa aqui? Que aconteceu? Eu sou o czar e também sou Deus!”. Quando ele disse isso de “Eu sou o czar e também sou Deus!” — continuou Luchka — puxei um pouco a faca para fora da manga. “Não”, disse eu e, pouco a pouco, ia-me aproximando dele. “Não. Como pode Vossa Senhoria dizer que é ao mesmo tempo o nosso czar e o nosso Deus?”. “Ah! Mas quem és tu? Quem és tu?”, exclamou o major. “És o causador do motim?”. “Não”, disse, e cada vez me ia aproximando mais. “Não; como Vossa Senhoria sabe perfeitamente, o nosso Deus onipotente, e que está em toda parte, é um só”, disse eu. “E o nosso czar também é um só, que Deus colocou acima de todos nós. É ele, saiba Vossa Senhoria, o monarca. Mas o senhor,” continuei, “é apenas Vossa Senhoria, ou simplesmente, o major... o nosso chefe, por graça do czar e pelos seus serviços.” “O quê? O quê? O quê?”, e já não sabia o que havia de dizer, e entaramelava-se todo, ficou estupefato. “Pois é assim mesmo”, disse eu e, arremetendo contra ele, fui e, de repente, enterrei-lhe a faca nas tripas, até ao cabo. Entrou com muita suavidade, Ele caiu, pesado, e apenas mexeu um pouco os pés. Depois guardei a faca. “Olhem, russinhos, agora levantem-no.”
Neste ponto, vou fazer uma digressão. Infelizmente, expressões como essa de “Eu sou o czar e também sou Deus” e muitas outras do gênero empregavam-se dantes, frequentemente, entre muitos dos nossos superiores. É necessário reconhecer que restam já poucos desses superiores, se é que todos já não morreram. Reparei também que aqueles que mais gostavam de se gabar e de empregar essas expressões eram os chefes que provinham das camadas inferiores. Parece que o grau de oficial lhes transtorna a cabeça. Depois de terem estado muito tempo sob as ordens de outros e percorrido todos os graus subalternos, veem-se de repente feitos oficiais, chefes, enobrecidos e, como não estão acostumados, fazem, dentro dessa embriaguez, uma ideia exagerada do seu poder e significado; claro que apenas em relação aos seus subordinados, aos funcionários de categoria inferior. Perante os superiores continuam observando a antiga submissão, já completamente desnecessária e até aborrecida para muitos desses. Alguns bajuladores procuram até, com uma solicitude especial, fazer notar aos superiores hierárquicos que procedem das categorias inferiores, embora agora sejam oficiais, e sabem ocupar sempre o seu ponto, mas empregam um despotismo ilimitado para com os funcionários inferiores. É claro que agora já não é provável que haja nem é fácil que se encontre quem diga: “Eu sou o czar e também sou Deus.” Apesar disso, direi entretanto que nada revolta tanto os presos, e em geral também todos os funcionários das categorias inferiores, como essas expressões na boca dos chefes. Felizmente, quase tudo isto pertence ao passado, mas até nesses velhos tempos isso tinha consequências graves para esses chefes. Conheço alguns exemplos.
De maneira geral, também é revoltante para o funcionário inferior toda negligência altiva, todo desdém nas relações com eles. Alguns pensam, por exemplo, que os alimentando bem e cuidando bem do preso já cumpriram as leis, e o caso está encerrado. Mas isto é um erro. Todos os homens, sejam quem forem, ainda mesmo inferiores, precisam, ainda que seja uma necessidade só instintiva, inconsciente, de que respeitem a sua dignidade de homem. O próprio preso sabe que é um preso, um réprobo, e conhece a sua condição perante o superior; mas nenhum estigma, nenhuma cadeia consegue fazê-lo esquecer que é um homem. E como é de fato um homem, necessário se torna, e por isso, tratá-lo humanamente. Meu Deus! Se um tratamento humano pode humanizar até aquele no qual a imagem de Deus parece já se ter apagado! A estes desgraçados é preciso tratá-los ainda mais humanamente. É nisto que está para eles a salvação e a alegria. Tive oportunidade de conhecer alguns chefes bons e generosos. Vi bem o efeito que produziam nesses degradados algumas palavras afetuosas e os presos quase ressuscitavam moralmente. Alvoroçavam-se como crianças e, como crianças, começavam a amar. No entanto observei uma coisa estranha: esses mesmos presos não gostam do trato demasiado familiar e demasiado benévolo dos superiores. Querem respeitar o chefe e assim perdem-lhe o respeito. O preso deseja que o seu superior possua condecorações, que tenha boa apresentação e goze também das boas graças de algum chefe mais elevado; que seja severo e grave, e reto, e vele pela sua dignidade. São estes os superiores que mais agradam aos presos, aqueles que velam pela sua dignidade e não o vexam, e assim tudo correrá bem, às mil maravilhas.
— Bom. Por causa disso deviam ter-te assado a pele, não é verdade? — observou Kobílin tranquilamente.
— Hum! Assaram-ma, lá isso é verdade, meu amigo, assaram-ma. Ali, dá-me cá a tesoura. Então, meus amigos, temos hoje maidan ou não?
— Já gastaste tudo na bebida — observou Vássia. — Se não o tivesse gastado, terias tido maidan.
— Sim, sim, pelo sim dão em Moscou 100 rublos — respondeu Luchka.
— E a ti, Luchka, quanto te deram por aquilo? — tornou a perguntar Kobílin.
— Deram-me 105, meu caro. Sabem que mais? Por um pouco que não me matavam — encareceu Luchka, dirigindo-se de novo a Kobílin. — Depois de me terem condenado a esses 105, exibiram-me em público. Até essa data eu nunca soubera o que era o chicote. Tinha-se juntado uma multidão enorme, lá estava a cidade toda: vai ser punido um bandido, um assassino. E que gente tão estúpida, aquela! Tanto que nem se pode dizer! Tínotchka23 despiu-me, estendeu-me e gritou: “Coragem que queima!” Fico à espera. Como será? Quando me deu a primeira chicotada estive quase a ponto de gritar e cheguei até a abrir a boca; mas não gritei. Faltava-me a voz. Quando me bateu pela segunda vez, queres crer que já não o ouvi dizer dois? Quando volto a mim, ouço-o contar: “Sessenta!” Por quatro vezes me tiraram depois do estrado e deixaram-me respirar por uma meia hora. Borrifavam-me com água. Eu olhava para todos com uns olhos exorbitados e pensava: “Vou morrer aqui...”
— E não morreste? — perguntou Kobílin ingenuamente.
Luchka lançou-lhe um olhar cheio de desprezo; ouviram-se risos.
— Que anjinho tu és!
— Há uma aranha no teto — observou Luchka, como se estivesse arrependido de se ter posto a falar com aquele indivíduo.
— És um homem terrível — exclamou Vássia.
Embora Luchka tivesse matado sete homens, nunca meteu medo em ninguém no presídio, apesar de querer talvez passar diante de todos por um homem terrível...
ISSAI FOMITCH. VÂNIA.
A HISTÓRIA DE BAKLÚKHIN
Chegou o Natal. Os presos esperavam-no com certa solenidade e, quando eu olhava para eles, também esperava qualquer coisa de insólito. Quatro dias antes da data festiva, levaram-nos ao banho. No meu tempo, sobretudo nos meus primeiros anos, raras vezes levavam os presos para tomar banho. Todos ficaram alvoroçados e começaram a reunir-se. A saída estava marcada para depois do rancho e nessa tarde não se trabalharia. De todos os de nosso alojamento, o que ficou mais contente foi Issai Fomitch Blumstein, um preso judeu, do qual falei já no quarto capítulo desta minha narrativa. Gostava loucamente dos banhos de vapor, e cada vez que me acodem antigas recordações e me vem à ideia a do banho dos presidiários (o que era digno de ser lembrado), imediatamente se me apresenta no primeiro plano da memória a figura de Issai Fomitch, inesquecível companheiro de presídio e meu vizinho de alojamento. Meu Deus, que ridículo e excêntrico era aquele homem! Já disse algo acerca da sua figura: cinquentão, enfermiço, engelhadinho, com uns sinais enormes nas faces e na testa, magro, débil e com o corpo branco como o de uma galinha. A expressão do seu rosto deixava transparecer uma firme e refratária suficiência e até felicidade. Parecia que não lhe custava absolutamente nada ver-se num presídio. Fosse como fosse, era joalheiro e, como não havia joalheiro na cidade, trabalhava constantemente para os senhores e para as autoridades da cidade, visto que era o único joalheiro. Embora não fosse muito, sempre lhe pagavam qualquer coisa. Não tinha necessidades, vivia até com riqueza; mas amealhava dinheiro e emprestava-o a juros a todo presídio. Tinha o seu samovar, o seu bom colchão, chávenas e uma baixela completa. Os judeus da cidade não lhe negavam a sua amizade e confiança. Ia todos os sábados, debaixo de escolta, à sinagoga da cidade (o que era permitido por lei); e vivia multo feliz, embora sempre à espera do fim dos 12 anos da sua pena, para casar. Tinha um cômico sorriso de ingenuidade, estupidez, velhacaria, astúcia, candidez, timidez, arrogância e franca grosseria. A mim parecia estranho que os presos não se rissem todos dele, sem ser apenas nas ocasiões em que lhe diziam alguns gracejos para se divertirem. Pelo visto, Issai Fomitch servia-lhes de entretimento e constante divertir-se. Não tínhamos outro como ele; “Deixem Issai Fomitch em paz”, diziam os presos, e percebia-se perfeitamente que Issai Fomitch, embora percebesse por que diziam eles aquilo, se sentia muito ufano da sua notoriedade, o que muito divertia os presos. Entrara no presídio da maneira mais ridícula (entrou antes de mim, mas contaram-mo). Um dia, no fim duma tarde de sábado, espalhou-se de repente pelo presídio o boato de que chegara um judeu, que já tinha passado pelo corpo da guarda e que não tardaria a aparecer. Ainda não havia hebreus no presídio nessa altura. Os presos esperavam-no com impaciência, e assim que ele surgiu à porta juntaram-se numa roda. O suboficial do presídio levou-o à guarda civil e apontou-lhe o seu lugar nas esteiras. Issai Fomitch trazia a roupa nas mãos, os objetos do regulamento que lhe tinham entregado e os seus, pessoais. Deixou a roupa no chão, trepou de gatinhas para as esteiras e sentou-se, encolhendo as pernas, sem se atrever a levantar os olhos. Ouviram-se risos e motejos à volta, provocados pela observação acerca das excelências hebraicas. De súbito saiu do cubículo dos presos um rapaz que trazia nas mãos umas calças muito velhas e sujíssimas, um autêntico farrapo, e um par de sapatos, daqueles que eram fornecidos pela administração. Sentou-se junto de Issai Fomitch e deu-lhe uma palmadinha no ombro:
— Olá, meu caro amigo! Já há sete anos que estava à tua espera. Vamos lá ver quanto é que me dás por isto.
Issai Fomitch, que, no momento da sua entrada no presídio, estava tão perturbado que nem sequer se atrevia a levantar os olhos para aquela roda de trocistas, marcadas e ferozes, que o rodeavam, e nem sequer por delicadeza ousava abrir a boca, quando viu aqueles farrapos ergueu-se de repente e começou a revolvê-los com as mãos. Todos aguardavam o que ele iria dizer.
— O quê? Não dás nem sequer 1 rublo de prata por isto tudo? Mas vê bem o que valem! — continuou o preso piscando o olho a Issai Fomitch.
— Um rublo de prata não posso dar. Sete copeques é o máximo.
E foram essas as primeiras palavras que Issai Fomitch pronunciou no presídio. Todos se riram.
— Sete... Bem, dá-mos. Sempre tens uma sorte! Olha, vê se tratas bem dessas coisas, és responsável por elas.
— Ao juro de 3 copeques são 10 copeques — continuou o judeu com uma voz entrecortada e chorona, levando a mão ao bolso em busca de dinheiro e olhando timidamente para os presos. Tinha um medo espantoso e queria resolver o assunto o mais depressa possível.
— Três copeques por ano, hem?
— Não, por ano, não, por mês.
— Sempre me saíste um espertalhão, judeu! Como te chamas?
— Issai Fomitch.
— Muito bem, Issai Fomitch; hás de prosperar aqui. Adeus!
Issai Fomitch tornou a olhar para os trapos e depois guardou-os cuidadosamente no saco, por entre as prolongadas risadas dos presos.
De fato, todos pareciam gostar dele e ninguém o ofendia, embora lhe devessem dinheiro. Era inofensivo como uma galinha e, ao ver qual a disposição de espírito em que os outros se encontravam para com ele, chegava até a pavonear-se com ares de importância, simplesmente, fazia-o de uma maneira tão ingenuamente ridícula que todos lhe perdoavam. Luchka, que conhecera muitos judeus, costumava meter-se com ele, não com má intenção, mas apenas para passar o tempo, do mesmo modo que se atiça um cãozinho fraldiqueiro, um papagaio ou uma ferazinha amestrada. Issai Fomitch percebia isso muito bem, mas nunca se aborrecia e às vezes até lhe respondia à letra.
— Ah, judeu, olha que eu te mato!
— Se me deres uma levas dez — respondia-lhe Issai Fomitch, destemido.
— Maldito piolhento!
— E que tem que eu seja piolhento?
— Piolhento e judeu!
— Por que não havia de sê-lo? Sou piolhento mas sou rico. Desde que não me faltem os cobres!
— Vendeste Cristo!
— Essa também não me impressiona!
— Bem, Issai Fomitch! Não lhe façam mal que não temos outro! — gritavam os presos a rir.
— Ah, judeu, mereces o chicote! Vieste para a Sibéria.
— Já estou aqui, isso é verdade.
— Mas ainda hás de ir para mais longe.
— E então? Deus não está em toda parte?
— Lá isso está...
— Então, pronto. Em tendo Deus e dinheiro, em toda parte se está bem.
— Bravo, Issai Fomitch, bem se vê que és um valente! — gritavam à volta.
Mas embora Issai Fomitch visse muito bem que estavam zombando dele, não deixava de se pavonear; os elogios gerais davam-lhe um prazer evidente e punha-se a cantar por todo o alojamento com uma vozinha de falsete:
Lia... lia... lia... lia... lia!
Um motivo absurdo e ridículo, sempre na mesma toada, sem letra, que ia cantarolando por todo o presídio. Quando ganhou mais confiança comigo, afirmou-me, sob juramento, que essa toada e esse motivo eram os que cantavam os setecentos mil hebreus, desde o primeiro ao último, ao atravessarem o Mar Vermelho, e todos os judeus tinham o dever de cantar esse motivo nos instantes solenes e de triunfo sobre os seus inimigos.
Nas vésperas dos sábados, às cinco da tarde, vinham presos de outros alojamentos para o nosso para verem como Issai Fomitch celebrava o seu sábado. Fomitch era presunçoso e vaidoso a tal ponto que também essa curiosidade geral lhe dava grande satisfação. Arrumava num canto a sua mesinha insignificante, com pedantaria e com uma gravidade postiça, abria o livro de orações, acendia duas velas e, murmurando não sei que misteriosas palavras, envolvia-se na sua estola ritual (“essola”, dizia ele). Era uma espécie de mantelete de lã colorida, que guardava com muito cuidado na sua mala. Punha um bracelete em cada pulso e fixava a meio da testa, por meio de uma fita, uma caixinha de madeira, o que fazia parecer que saía um ridículo cornicho24 da testa de Issai Fomitch. Depois disto começava a oração. Punha-se a ler muito depressa, a gritar, a cuspir, a dar voltas sobre si mesmo e a fazer uma quantidade de gestos violentos e extremamente cômicos. Não havia dúvida alguma de que tudo aquilo era prescrito pelo ritual das preces e que não tinha em si nada de ridículo; o ridículo estava em ele pavonear-se na nossa frente e em tomar ares importantes ao fazer esses gestos. De súbito, eis que ele cobre a cabeça com as duas mãos e começa a ler com uma voz entrecortada pelos soluços. Estes vão aumentando de intensidade até que, como num arrebatamento e fora de si, deixa cair sobre o livro, uivando, a cabeça adornada com aquele corno; mas de súbito, no meio daqueles soluços, desata a rir e continua a ler muito depressa, com voz solene e como que alterada pelo excesso de felicidade. “É capaz de se desmanchar!”, diziam os presos.
Eu perguntei uma vez a Issai Fomitch o que significavam aqueles soluços e, depois, aqueles risos repentinos e triunfantes de felicidade e de glória. Issai Fomitch gostava imenso destas minhas perguntas. Explicou-me imediatamente que o pranto e os uivos simbolizavam a ideia da perda de Jerusalém, e que a Lei mandava que, perante esse pensamento, se irrompesse no maior alarido e as pessoas se sentissem compungidas. Mas que, no meio de tal alarido, ele, Issai Fomitch, devia lembrar-se de repente, como se fosse de um momento para o outro (esse de repente era também prescrito pela Lei) de que há uma profecia acerca do regresso dos hebreus a Jerusalém. De maneira que tinha a obrigação de pôr-se imediatamente muito alegre, de cantar e de rir às gargalhadas e de continuar recitando a sua oração de tal forma que exprimisse o melhor possível, no tom da voz e na expressão do rosto, a felicidade, a solenidade e o triunfo. Essa repentina transição e a obrigação de fazê-la eram muito do agrado de Issai Fomitch, que via em tudo isso algo de especial, uma obra de arte engenhosa e era com uma cara muito vaidosa que ele me comunicava essa sutil prescrição da Lei. Uma vez, o major, com a sua escolta de soldados, entrou no alojamento, no ponto culminante da oração. Todos os presos formaram imediatamente junto das suas esteiras e somente Issai Fomitch continuou gritando e gesticulando como um possesso. Sabia que as orações eram permitidas, que não era possível interrompê-las e que não corria risco algum por gritar diante do major. E agradava-lhe muito bambolear-se perante o major e tornar-se importante a nossos olhos. O major avançou e ficou apenas a um passo dele. Issai Fomitch recuou para junto da sua mesinha e pôs-se a ler rapidamente a sua triunfante profecia, mesmo na cara do major, agitando os braços. Era isso o que lhe era ordenado e, nesse momento, o seu rosto exprimia uma felicidade e um orgulho extraordinários, e cumpria escrupulosamente o mandamento, piscando os olhos de maneira especial, rindo e olhando para o major com desdém. O major estava atônito mas, por fim, desatou a rir, também uma expressão desdenhosa e afastou-se, redobrando então Issai Fomitch a sua gritaria. Uma hora depois, quando ele estava jantando, perguntei-lhe:
— E se o major, bruto como é, tivesse levado aquilo a mal?
— Que disse o senhor do major?
— Que disse eu do major? Mas então não o viu?
— Não.
— Pois esteve a dois passos da sua pessoa, quase em cima do seu nariz.
E Issai Fomitch pôs-se a afirmar-me, com toda a seriedade, que não tinha visto nem a sombra do major e que, nas ocasiões em que recitava aquelas preces, costumava mergulhar numa espécie de êxtase, de tal maneira que nada via nem ouvia de tudo o que à sua volta se passasse.
Parece-me que o estou ainda a ver passeando aos sábados por todo o presídio, sem fazer nada, esforçando-se o mais que lhe era possível por não fazer nada, conforme a Lei lhe ordenava. Que anedotas tão inverossímeis ele me contava sempre, quando voltava da sinagoga, que notícias e boatos tão disparatados acerca de Petersburgo ele me trazia, afirmando-me que os ouvira aos judeus, mas que estes os tinham ouvido diretamente!
Mas já falei demasiado de Issai Fomitch.
Em toda a cidade havia apenas dois balneários públicos. O primeiro, que era mantido por um hebreu, estava dividido em compartimentos, por cada um dos quais se pagava 50 copeques e destinava-se a pessoas de elevada categoria. O outro era para as pessoas inferiores, velho, sujo, escuro; neste iam os do presídio. Fazia frio e havia sol; os presos alegravam-se, mais não fosse senão por saírem do forte e poderem deitar uma vista dolhos à cidade. Íamos escoltados por um piquete completo de soldados, de espingardas carregadas, e as pessoas da povoação ficavam admiradas quando nos viam passar. No balneário distribuíam-nos por dois turnos; o segundo esperava no frígido vestíbulo que o primeiro se lavasse, o que era necessário devido às dimensões exíguas do balneário. E ainda assim chegava a ser difícil compreender como é que essa mesma metade conseguia lá ficar. Pietrov não se afastou do meu lado; sem que eu lho pedisse, ajudou-me a despir e ofereceu-se para me lavar. Ao mesmo tempo que Pietrov, também Baklúkhin se ofereceu para me ajudar; era um preso da seção especial, a que os outros chamavam Sapador e do qual já falei como do mais jovial e simpático de todos os presos, que na verdade era. Eu tinha tido já algum convívio com ele. Pietrov ajudou-me a despir, pois eu demorava muito a fazê-lo, por não estar acostumado, e no vestíbulo do balneário fazia quase tanto frio como na rua. De fato, enquanto não aprende, é muito difícil a um preso despir-se. Em primeiro lugar é preciso saber tirar depressa as palmilhas, que são de couro, de quatro viérchki de comprimento e se colocam sobre a roupa interior, imediatamente abaixo do largo anel de ferro que apanha o pé. Um par destas palmilhas custa nada menos do que 60 copeques de prata e dizem que os presos têm de arranjá-las, à sua custa, é claro, pois sem elas não lhe será possível caminhar. O anel da cadeia não abrange perfeitamente o pé, e entre o anel e o pé pode passar um dedo; de maneira que o ferro bate no pé, magoa-o e basta um só dia para que o preso que não usa palmilhas fique com os pés feridos. Mas não é difícil tirar estas palmilhas. Mais difícil é aprender a tirar as ceroulas por debaixo das cadeias. Isso é uma verdadeira obra de arte. Depois de se tirarem as ceroulas, suponhamos, do pé esquerdo, é preciso puxá-las por entre o pé e o anel da cadeia; depois, uma vez posto o pé em liberdade, vão-se puxando as ceroulas para cima, até ao anel; depois, já descalço o pé esquerdo, passa-se o pé direito através do anel, por debaixo; e depois puxa-se tudo para cima, através do mesmo anel. Para vestir roupa lavada, repete-se a mesma cerimônia. Para um novato é difícil adivinhar como é que se faz isto; o primeiro que me ensinou tudo isto foi um preso, um tal Koriêniev, em Tobolsk, que fora chefe de bandoleiros e havia já cinco anos que estava acorrentado à parede. Mas os presidiários estão acostumados e se despem com a maior facilidade. Dei alguns copeques a Pietrov para sabão e para tília; é verdade que no presídio forneciam sabão aos presos, mas davam somente a cada um pecinho do tamanho de 2 copeques, da grossura dessa fatia de queijo que costumam saborear à tarde as pessoas da classe média. Também vendiam sabão no vestíbulo do balneário, juntamente com hidromel, tortas e água quente. Davam apenas a cada preso, em virtude de contrato com o dono do balneário, a água quente necessária para um jarro; o que desejasse levar-se melhor podia conseguir por 1 groch outro jarro, o qual introduziam no balneário por uma janelinha aberta, na parede do próprio vestíbulo, para tal. Depois de me despir, Pietrov segurou-me pelos sovacos, pois viu como me era difícil caminhar com as cadeias. “Puxe por elas para cima, puxe-as para as ancas”, disse-me, segurando-me como se eu fosse uma criança. “Mas cuidado, agora, que é o princípio!” Eu sentia um certo remorso, queria convencer Pietrov de que podia andar muito bem sozinho; mas ele não fazia caso do que eu dizia. Tratava-me, convictamente, como uma criancinha inválida, à qual toda a gente tem obrigação de ajudar, Pietrov não era, de maneira nenhuma, um criado; se eu o tivesse ofendido, ele bem sabia como havia de proceder. Não lhe ofereci dinheiro pelos seus serviços, nem ele mo pediu. Por que seria então que tinha tantos cuidados comigo?
Quando se abriram as portas do balneário pensei que tínhamos entrado no inferno. Imaginem uma sala de vinte passos de comprimento e de outros tantos de largura na qual estariam reunidos talvez cem homens ao mesmo tempo, ou pelo menos uns oitenta, visto que tinham distribuído os presos todos em dois turnos e ao todo teriam ido ao banho uns duzentos. Havia ali tal quantidade de vapor que nos invadia os olhos, tanto suor e sujidade, um aperto tão grande, que uma pessoa nem sequer sabia onde havia de pôr os pés. Fiquei atemorizado e quis recuar, mas Pietrov deteve-me imediatamente. Com muito custo, com enorme trabalho, abrimos passagem até um banco, por entre cabeças de indivíduos sentados no chão, pedindo-lhes que abrissem um intervalo para podermos passar. Mas os bancos estavam todos ocupados. Pietrov explicou-me que era preciso comprar o lugar e entrou imediatamente em contato com um preso que estava sentado junto de um janela. Cedeu o seu posto por 1 copeque; em seguida Pietrov entregou-lhe o dinheiro que tivera até aí apertado na mão; ele o aceitou e meteu-se imediatamente debaixo do banco, precisamente debaixo do meu lugar, onde tudo estava escuro, sujo, e havia por todos os lados uma umidade escorregadia que atingia quase meio dedo de altura. Mas até os lugares debaixo dos bancos estavam tomados; também ali havia homens apinhados. Não havia em todo o chão um palmo onde não se tivessem acomodado presos às escondidas, curvados e vertendo sobre si a água dos jarros. Outros estavam de pé, no meio deles, segurando o jarro na mão, e assim se lavavam; a água suja corria dos seus corpos diretamente sobre as cabeças meio rapadas25 dos que estavam sentados no chão. Havia homens sentados, encolhidos e comprimidos no banco de suar e em todos os degraus que a ele conduziam. As pessoas do povo lavam-se pouco com sabão e água quente; o que fazem é suar muito e depois borrifarem-se com água fria... é escusado dizer mais. O banco de suar devia ter umas cinquenta filas; todos se fustigavam até o paroxismo. Forneciam-lhes vapor a todos os momentos. Aquilo já não era calor, era fogo. Tudo vibrava e retumbava com a vozearia e o barulho de cem cadeias que se arrastavam pelo chão. Alguns, ansiosos por se despacharem, enredavam-se nas cadeias dos outros, seguravam-se às cabeças dos que estavam sentados mais abaixo, caíam, insultavam-se e puxavam pelos outros. A água suja esguichava por todos os lados. Estavam todos embriagados a tal ponto, em tal estado de embevecimento, que irrompiam em gemidos e em gritos. Junto da janelinha do vestíbulo por onde passavam a água, havia insultos, apertões, uma verdadeira batalha. A água quente acabava por se entornar sobre as cabeças dos que estavam sentados no chão, ainda antes de chegar ao seu destino. De vez em quando, a cara dum soldado, de grandes bigodes, surgia na janela ou na porta aberta, de espingarda no braço, velando pela ordem. As cabeças rapadas e os corpos dos presos, avermelhados pelas vaporizações, pareciam ainda mais espantosos. Nas suas costas, banhadas pelo vapor, ressaltavam, de maneira geral, as cicatrizes das chicotadas e das vergastadas anteriormente recebidas, de maneira que pareciam ter acabado naquele momento de ser flagelados. Terríveis cicatrizes! Corria-me um calafrio pela pele quando olhava para elas.
Tornam a deitar água sobre a pedra quente do forno e o vapor enche tudo de uma nuvem densa, ardente; todos guincham e gritam. Por entre as nuvens de vapor sobressaem as costas magoadas, as cabeças rapadas, as mãos e os pés torcidos; e, para completar o quadro, Issai Fomitch, gritando a plenos pulmões, no alto do banco. Transpirava até ficar quase desmaiado; mas, por fim, dir-se-ia que já não há calor que lhe pareça suficientemente quente; contratou entre os presos um banhista por 1 copeque, mas, por fim, este já não pode suportar mais, larga a vassoura e corre a borrifar-se com água fria. Issai Fomitch não desiste e contrata um segundo, um terceiro; está resolvido a não atender a gastos nestas circunstâncias e chega a contratar até cinco banhistas. “É bem bom o banho de vapor! Bravo, Issai Fomitch!”, gritam-lhe os presos, embaixo. Issai Fomitch sente-se nesse momento superior a todos; toma um ar triunfal e, com uma voz estranha, como de louco, entoa a sua canção: “Lia... lia... lia... lia... lia!”, agitando a cabeça. Cheguei a pensar que se todos nós juntos estivéssemos num inferno, havia de parecer-se muito com aquele lugar. Não pude deixar de comunicar este pensamento a Pietrov, mas ele se limitou a olhar à volta e não disse nada.
Era meu desejo comprar-lhe também um lugar junto do meu; mas ele me disse que se sentia muito bem. Entretanto Baklúkhin comprou-nos água e trouxe-a em quantidade suficiente. Pietrov disse-me que me ia lavar dos pés à cabeça, para que eu ficasse todo limpo, e obrigou-me a tomar o banho de vapor. Eu não me atrevia a vaporizar-me. Pietrov ensaboou-me todo o corpo cuidadosamente. “E agora vou lavar-lhe os pezinhos”, acrescentou como conclusão. Ia para responder-lhe que podia perfeitamente lavar-me sozinho, mas não quis contradizê-lo e entreguei-me à sua vontade. Não havia o menor acento de servilismo nesse diminutivo; tratava-se simplesmente de que Pietrov não podia chamar pés aos meus pés, provavelmente porque os outros, a gente verdadeiramente adulta, tinha... pés e não apenas pezinhos.
Depois de me ter lavado com essas cerimônias, isto é, com solicitude, cuidado e advertências contínuas, tal como se eu fosse de louça e pudesse quebrar-me, levou-me ao vestíbulo e ajudou-me a vestir a roupa interior, e só quando já me não era necessário para mais nada é que voltou para o balneário, para tomar o seu banho de vapor.
De regresso a casa ofereci-lhe uma chávena de chá. O chá não lhe desagradava, bebia-o e agradecia-me. Lembrei-me de abrir a minha bolsa e dar-lhe meio litro de aguardente. Havia sempre aguardente no alojamento. Pietrov ficou muito contente: bebeu, resfolegou, e depois de dizer-me que eu lhe dera vida nova, dirigiu-se para a cozinha, pressuroso, como se se tratasse ali de um assunto que não pudesse resolver-se sem ele. Em sua substituição aproximou-se outro, Baklúkhin, o Sapador, que eu convidara também no banho para uma chávena de chá.
Não conheço caráter mais doce do que o de Baklúkhin. Não tinha, verdadeiramente, medo dos outros, e até provocava desordens com frequência: não gostava que ninguém se metesse nas suas coisas; em suma: sabia velar pelos seus interesses. Mas as suas zangas duravam pouco e, pelo menos na aparência, todos gostavam dele. Quando entrava, todos o acolhiam com benevolência. Até na cidade o conheciam como o homem mais divertido do mundo e que nunca perdia a boa disposição. Era um homenzarrão de uns trinta anos, de rosto ameninado e brincalhão, bastante engraçado e com um sinal. Sabia fazer caretas tão cômicas, imitando os outros, que os que o rodeavam não podiam conter o riso. Era também um dos apalhaçados, mas nunca transigia com os nossos tristonhos inimigos do riso, de maneira que nenhum se atrevia a chamar-lhe fútil e inútil. Transbordava de energia e vitalidade. Estabeleceu amizade comigo desde os primeiros dias, confessou-me que era filho dum soldado que tinha servido nos sapadores, e que havia altas personalidades que o distinguiam e estimavam e sentia-se muito ufano por isso quando o recordava. Pôs-se logo a fazer-me perguntas acerca de Petersburgo. Também lia uns livrinhos. Quando veio tomar o chá comigo, começou por fazer rir todo o alojamento, contando como o tenente Sch*** maltratara ao nosso major nessa manhã e, depois de se ter sentado a meu lado, anunciou-me, com uma cara muito alegre, que se ia armar o teatro. No presídio havia representações teatrais nos dias festivos. Planeavam-se as decorações, que se iam fazendo pouco a pouco. Algumas pessoas da cidade tinham-se oferecido para nos emprestarem os trajos para os vários papéis, inclusivamente para os papéis femininos; e contavam poder conseguir um uniforme de oficial, com dragonas e tudo, por meio de um impedido. A única coisa que poderia obstaculizar era o major, caso se lembrasse de proibi-lo, como fizera no ano anterior. Mas no ano anterior, pelo Natal, o major não estava em seu juízo perfeito; tinha perdido no jogo e além disso não se portaram muito bem no presídio e por isso o proibira. Mas, agora, esperavam que ele não fosse estragar a festa. Em suma, Baklúkhin estava num estado de grande excitação. Via-se claramente que era um dos principais colaboradores do teatro, e eu, então, lhe prometi assistir sem falta à representação. Comoveu-me profundamente o ingênuo entusiasmo de Baklúkhin por causa da festa. Palavra puxa palavra, entabulamos uma longa conversa. Contou-me, entre outras coisas, que não tinha feito o serviço militar todo em Petersburgo; que tinha cometido aí uma certa falta e por isso o tinham mandado a R***, embora como suboficial, para um batalhão de guarnição.
— E foi daí que me deportaram para cá — observou Baklúkhin.
— E por quê? — perguntei-lhe.
— Por quê? Quer saber por que foi, Alieksandr Pietróvitch? Pois foi por me ter apaixonado.
— O quê? Foi por isso que te mandaram para cá? — exclamei eu a rir.
— É verdade — acrescentou Baklúkhin —, é verdade que por causa disso acabei por dar um tiro de pistola num alemão que havia lá; já pode ver!
— Mas como foi isso? Conta-me, que deve ser curioso.
— É uma história ridícula, Alieksandr Pietróvitch.
— Tanto melhor. Conta-ma.
— Quer que a conte? Então ouça.
Eu escutei a história de um homicídio, que não era ridícula e até, pelo contrário, bem invulgar...
— A coisa passou-se assim — começou Baklúkhin. — Quando me transferiram para R***, vi que a povoação era boa, grande, simplesmente, estava cheia de alemães. Bom; eu, é claro, ainda era novo e tinha boa reputação entre o comando. Ia de vez em quando até a cidade de gorro caído para o lado, para matar o tempo, como se costuma dizer, e piscava o olho às alemãs. Ora aconteceu que me apaixonei por uma alemãzinha que se chamava Luísa. Ela e a tia eram as duas costureiras de roupa branca. A tia era velha, parecia um papagaio; mas vivia honestamente. Eu, a princípio, rondava por debaixo da sua janela, de um lado para o outro; mas depois cheguei à fala com ela. Luísa falava bem o russo, embora gaguejasse um bocadinho... e era tão bonita como nunca vi outra igual. Primeiro, comecei por ver se podia levar alguma coisa... mas ela me respondeu: “Não, isso não pode ser, Sacha; porque eu quero conservar toda a minha inocência para poder um dia ser tua esposa”, e fazia-me rapapés e sorria com tal graça... Era tão pura como nunca vi outra. Incitava-me a casar-me. Bem. E por que não havia de casar-me? Já estava decidido a ir procurar o tenente-coronel e expor-lhe o meu desejo de casar-me... Mas depois, que seria? Uma vez, Luísa faltou à entrevista combinada, à segunda não apareceu, à terceira não acodiu... Escrevi-lhe uma carta e não tenho resposta. “Que é isto?”, digo para comigo. “Se me enganasse, seria mais esperta, responderia à carta e viria às entrevistas marcadas. Mas ela não se atrevia a mentir; desligar-se-ia, simplesmente.” “Deve ser a tia”, pensei. A tia não me atrevia eu a procurá-la; embora ela estivesse a par de tudo, costumávamos ter os nossos encontros às escondidas. Fiquei num alvoroço; escrevi-lhe uma última carta e disse-lhe: “Se vieres, irei falar com a tua tia”. Pois sim, vai falando. Um certo Schulz, alemão, seu parente afastado, relojoeiro, rico e já velho, declarou a sua intenção de casar com ela “Para tornar-me feliz”, dizia, “e não se ver sozinho na velhice; diz também que gosta de mim e que havia já algum tempo que tinha esta intenção, simplesmente, estava calado e preparava-se. E olha, Sacha, dizem que é muito rico e que fará a minha felicidade. Será possível que tu queiras privar-me da minha felicidade?” Eu a olho: ela está chorando e abraça-me... Ah! “Os outros é que dizem a verdade,” penso eu. Para que casar com um soldado, ainda que seja suboficial? “Bem”, digo, “adeus, Luísa. Por nada deste mundo te privaria da felicidade. Mas diz-me: ele é jeitoso?”. “Não”, disse ela, “já é quase velho e tem um nariz muito comprido...” Ela própria se ria. Deixei-a. “Tenho a impressão”, disse para comigo, “de que não vai haver casamento.” No dia seguinte de manhã, encaminho-me para a loja dele, na rua que ela me tinha dito. Olho através da vitrina: lá estava o alemão trabalhando nos seus relógios; aparentava uns 45 anos; tinha o nariz comprido, uns olhos vivos, estava de fraque e colarinho alto. Escarrei e senti ganas de partir o vidro da vitrina. “Para quê?”, pensei. “O melhor é ficar quieto. Caiu, caiu numa armadilha!” Ao entardecer fui ao quartel, estendi-me na tarimba e, acredite, Alieksandr Pietróvitch, pus-me a chorar...
“Bem, esse dia passou, e outro, e o terceiro. A Luísa, não a tinha visto. Entretanto, uma alcoviteira (uma velha, também costureira, que às vezes visitava Luísa) veio contar-me que o alemão estava a par dos nossos amores e por isso decidira apressar as coisas. Se não fosse isso ainda teria esperado dois anos. E que tinha feito jurar a Luísa que não voltaria a ver-me; e que tinha as duas na mão, Luísa e a tia; e que ele ainda não pensara tudo bem, que ainda não estava completamente decidido. Disse-me também que convidara as duas para tomar café em sua casa, daí a dois dias, no domingo, reunião a que devia assistir também certo parente velho que fora comerciante e que agora se encontrava na maior miséria, ganhando a vida servindo de guarda a umas tabernas. Quando ouvi dizer que podia ser que tudo ficasse decidido no domingo, senti uma tal ira que só com muito custo consegui dominar-me. E nesse dia e no seguinte não fiz outra coisa senão pensar no mesmo. ‘De boa vontade comeria esse alemão’, pensava eu.
“No domingo de manhã ainda estava numa indecisão, mas quando saí da missa... tomei uma resolução, embrulhei-me no capote e dirigi-me à loja do alemão. Pensava que ia ali encontrá-los todos. Mas nem eu próprio sabia qual o motivo por que me encaminhava para a loja do alemão nem o que tencionava dizer. Entretanto meti uma pistola no bolso, uma pistola velha, de gatilho antiquado, com a qual brincava em pequeno e que agora já não servia para nada. Mesmo assim meti-lhe uma bala. Pensei: “Hão de tentar correr comigo, armar-se-á barulho e então eu puxo da pistola e meto um susto a todos.” Cheguei. Na loja, ninguém; mas estavam todos reunidos atrás da loja. Em redor, nem vivalma, nem um criado. Ela tinha uma alemã que lhe fazia todo o serviço e lhe preparava também a comida. Entrei na loja, olhei; a porta estava fechada mas era uma porta velha, com uma aldraba. Senti que o meu coração teve um sobressalto; parei e escutei: falavam em alemão. Dei um pontapé na porta com todas as minhas forças e ela se abriu imediatamente. Olhei: a mesa estava posta, com uma grande cafeteira e o café fervendo na lamparina de álcool; biscoitos; noutra bandeja, uma garrafa de aguardente, arenques, salsichas e também uma garrafa de vinho. Luísa e a tia, muito janotas, sentadas no divã. Em frente delas, sentado à mesa, o alemão, o noivo, de trajo domingueiro, de fraque e colarinho engomado, de bicos muito tesos. Na ponta da mesa o outro alemão, homem já velho, gordo, de cabelos brancos, muito caiado. Quando eu entrei, Luísa pôs-se muito pálida. A tia deu um pulo do seu lugar. Mas o alemão franziu o sobrolho, ficou sério, levantou-se e saiu ao meu encontro.
— Que deseja? — disse-me.
Fiquei um pouco desconcertado, mas de novo a cólera se apoderou de mim.
— Que desejo? — digo. — Que recebas o teu hóspede como deve ser e lhe ofereças vodca. Vim de propósito para que me convides.
O alemão refletiu um momento e depois disse:
— Sente-se.
Sentei-me.
— Dá-me — disse-lhe eu — um pouco de aguardente.
— Aqui está — disse ele — a aguardente. Se gosta, beba.
— Boa aguardente me deste tu! — disse eu, já completamente enfurecido.
— É verdade, é bem boa.
“Sentia-me ofendido porque ele fazia tão pouco caso de mim. E o pior de tudo era Luísa estar presente. Bebi e disse-lhe:
— Por que me tratas tão mal, alemão? Tu devias ser meu amigo. Eu vim para que ficássemos amigos.
— Eu não posso ser seu amigo — disse ele. — O senhor é um simples soldado.
“Quando ouvi aquilo perdi a cabeça.
— E tu és um espantalho — disse-lhe eu —, um salsicheiro! Não sabes que eu posso fazer de ti o que quiser? Queres que te meta uma bala?
“Puxei da pistola, levantei o gatilho e encostei-lhe o cano na cabeça, numa fronte. Os outros estavam mais mortos do que vivos, não se atreviam a abrir a boca; mas o velho tremia como a folha duma árvore, calava-se e estava lívido.
“A princípio, o alemão assustou-se; mas depois reanimou-se.
— Eu não tenho medo do senhor — disse — e peço-lhe, como homem educado que é, que acabe com esta brincadeira, embora não me meta medo...
— Oh! Estás mentindo — disse eu. — Tu tens medo! Senão, olhem: com a pistola na fronte, não se atreve sequer a mover-se e deixa-se estar muito quietinho.
— Não. O senhor não se atreve a fazer uma coisa dessas.
— Por que não havia de atrever-me? — disse eu.
— Porque isso não é permitido e, se o fizesse, teria um castigo severo.
“Parecia que o Diabo queria fazer pouco daquele imbecil alemão. Se ele não me tivesse irritado daquela maneira, a estas horas ainda estaria vivo, porque tudo se teria limitado a uma contenda.
— Com que então não me atrevo, dizes tu?
— Não!
— Não me atrevo?
— De maneira nenhuma se atreverá a fazer uma coisa dessas comigo.
— Ah, não? Então toma lá, salsicheiro!
“Mal apertei o gatilho, tombou logo na cadeira. Os outros deram um grito. Eu, com a pistola no bolso, escapei-me e, quando cheguei ao forte, atirei a pistola para entre as urtigas, à beira do fosso.
“Voltei para casa, estendi-me na cama e disse para comigo: ‘Hão de vir buscar-me de um momento para o outro.’ Passaram uma hora e outra hora... e não vieram. Mas ao escurecer senti uma tal tristeza que saí; tinha absoluta necessidade de ver Luísa. Passei em frente da relojoaria. Olhei: gente e polícias. Então disse à velha. ‘Vá chamar a Luísa.’ Esperei um momento, olhei: Luísa aparece correndo, atira-se-me ao pescoço e desata a chorar: ‘A culpada de tudo’, diz ela, ‘sou eu, por ter obedecido à tia.’ Informou-me também que a tia voltara para casa, depois do sucedido, e que ficara tão assustada que até adoecera... mas que não diria uma palavra. ‘Não disse nada a ninguém e me proibiu de falar; tem medo.’ Façam o que quiserem! Ninguém nos viu lá, a nós duas. Ele tinha mandado sair a criada porque tinha medo dela. Ela até lhe furaria os olhos se viesse a saber da sua intenção de se casar! Também não estava lá nenhum dos empregados da loja, mandara sair toda a gente. Foi ele próprio quem fez o café e preparou o pequeno almoço. Quanto ao parente toda a vida se conserva calado e nunca disse nada, e por isso, agora também não falará; a primeira coisa que fez quando aquilo se passou foi pegar no chapéu e desaparecer. Naturalmente também calará o bico...”, disse Luísa.
Assim foi. Durante duas semanas ninguém me veio prender nem ninguém suspeitou de mim. E nessas duas semanas, talvez não acredite, Alieksandr Pietróvitch, fui absolutamente feliz. Todos os dias via Luísa. E ela, agora, tomara uma afeição tão grande por mim! Chorava. “Irei atrás de ti para onde quer que vás. Deixarei tudo por ti!”, dizia ela. Eu pensava que já tinha a vida resolvida, ao vê-la assim tão louca por mim. Bem, mas passadas duas semanas, fui preso. O velho e a tia tinham-se posto de acordo e denunciaram-me...
— Mas dê-me licença — disse eu interrompendo Baklúkhin. — Por tudo isso, só devia ter sido condenado a uns 12 anos, no máximo, com direito a passar, depois desse tempo, para a categoria civil, mas o senhor está na seção especial. Como foi isso arranjado?
— Isso é outro assunto — disse Baklúkhin. — Quando eu compareci diante do Tribunal, o capitão se pôs a insultar-me com as palavras mais feias diante dos juízes. Eu não pude conter-me e disse-lhe: “Por que me insultas dessa maneira? Então não vês, velhaco, que estás defronte do espelho da justiça?” A partir desse momento a coisa tomou outro aspecto. Fui julgado de novo, e ao todo condenaram-me a quatro mil açoites e depois à seção especial. Mas quando me enviaram para cá para cumprir a pena, enviaram também o capitão; a mim, pela rua verde,26 e a ele, rebaixado na sua hierarquia, para o Cáucaso, como soldado raso. Até a vista, Alieksandr Pietróvitch. Não deixe de assistir à nossa representação.
A FESTA DO NATAL
Finalmente chegaram as festas. Na véspera de Natal já os presos quase não foram ao trabalho. Entraram os da alfaiataria e das oficinas; os outros, se apareceram, foi apenas em pequeno número, e embora houvesse aquém e além alguns isolados, quase todos, sós ou em grupos, voltaram ao presídio, de onde já não saiu nenhum depois do jantar. E de manhã, a maioria só saiu para tratar dos seus assuntos particulares e não do presídio; mas para tratarem da entrada de aguardente e encomendá-la de novo; outros, com o fim de verem os outros também contentes e satisfeitos e, embora alguns deviam por trabalhos já feitos; Baklúkhin e os que deviam tomar parte na representação teatral... para visitar alguns conhecidos, principalmente impedidos, e receber deles os trajos imprescindíveis. Alguns iam com um aspecto muito alegre e vaidoso, só por verem os outros também contentes e satisfeitos e, embora alguns não tivessem a receber dinheiro em parte nenhuma, parecia que iam também recebê-lo. Em suma: parecia que todos esperavam para o dia seguinte alguma transformação, alguma coisa extraordinária. A tarde, os inválidos que iam ao mercado buscar as encomendas dos presos voltavam carregados com uma quantidade de víveres de todas as espécies: carne de vaca, leitõezinhos e até gansos. Muitos dos presos, até os mais reservados e econômicos, que amealhavam durante todo o ano os seus copeques, consideravam um dever fazer gastos nesse dia, de maneira a celebrarem condignamente a festa. No dia seguinte havia festa verdadeira, rigorosa, formalmente prescrita pela lei. Nesse dia os presos não podiam ser enviados para o trabalho, e dias iguais a esses só havia três por ano.
E, em última análise, quem sabe quantas recordações não se agitariam na alma daqueles réprobos, naquele dia? Os dias das grandes festas gravam-se profundamente na memória das pessoas simples e logo a partir da infância. São os dias em que suspendem os trabalhos rudes e em que se reúnem as famílias. Deviam ser recordados com dor e desgosto no presídio. O respeito pelo dia solene manifesta-se também entre os presos por certos pormenores; poucos se embebedavam, todos andavam sérios e como que preocupados, embora muitos não tivessem motivo algum para o estarem. Mas até os bêbados se esforçavam por conservar, apesar de tudo, uma certa gravidade... Parecia que o riso estava proibido. A atitude geral era a de uma certa meticulosidade e irritante impaciência, e aquele que destoasse do tom geral, mesmo sem intenção, era imediatamente advertido com gritos e descomposturas, e ficavam aborrecidos com ele como se fosse culpado de irreverência perante a festa. Essa disposição de espírito dos presos era interessante e até comovedora. Além da inata veneração pelo grande dia, os presos pressentiam inconscientemente que, com este respeito às festas, se uniam assim a todo mundo, que não eram completamente uns réprobos, uns perdidos, uns farrapos abandonados, e que, embora estivessem no presídio, também eram homens. Era evidente e compreensível que era isso o que eles sentiam. Akim Akímitch fazia também grandes preparativos para a festa. Não tinha relações familiares porque fora criado como órfão numa casa alheia, e entrara para o serviço militar assim que fizera os 15 anos e não tinha havido na sua existência alegrias extraordinárias, pois sempre vivera de modo regular, monótono, sem se desviar nunca dos deveres que lhe tinham prescrito. Também não era muito religioso, porque a moral, segundo parecia, absorvia nele todas as outras qualidades e particularidades humanas, toda paixão e todo desejo, tanto os maus como os bons. E por isso preparava-se para acolher o dia solene não com frivolidade, sem comoção, sem afligir-se com recordações tristes e perfeitamente inúteis, mas antes com essa moral tranquila, metódica, que era afinal apenas a estritamente necessária para o cumprimento do dever e da norma adotados de uma vez para sempre. De maneira geral não gostava de perder muito tempo pensando. Parecia que o significado dos fatos não era para ele o importante mas cumpria com um escrúpulo sagrado a regra que uma vez lhe ordenavam. Se no dia seguinte o mandassem fazer o contrário, fazia-o com o mesmo esmero e meticulosidade com que realizara o oposto no dia anterior. Uma vez, apenas uma vez na vida, ousara atuar por conta própria... e tinha ido parar no presídio. A lição não lhe foi inútil. E embora o destino não o tivesse feito capaz de compreender, pouco que fosse, aquilo em que podia ser culpado, deduziu da sua aventura a regra salvadora de... não raciocinar nunca, e em caso algum, já que raciocinar não era da sua incumbência, como diziam para si os presos. Cegamente submisso à regra, inclusivamente ao seu leitãozinho natalício que recheava de kacha e depois assava (por suas próprias mãos, pois sabia assar), olhava-o com o devido respeito, como se não fosse um leitãozinho como os outros, que também se podem comprar e assar, mas sim outro especial, festivo. É possível que estivesse desde pequeno acostumado a ver na mesa, nesse dia, um leitãozinho e pensasse que ele era indispensável em tal dia, e estou convencido de que, se alguma vez não tivesse comido leitão nesse dia, havia de conservar durante toda a vida remorsos de consciência por não ter cumprido o seu dever.
Ia à festa metido no seu velho capote e nas suas velhas calças, ainda decentemente remendados mas já completamente puídos. Dir-se-ia que guardava cuidadosamente na sua arca o novo uniforme que lhe tinham entregado quatro meses antes e que ainda nem sequer lhe tocara, com a risonha ideia de estreá-lo solenemente na festa. E assim foi, de fato. Foi buscá-lo na véspera, desdobrou-o, mirou-o, remirou-o, limpou-o, alisou-o com a mão e depois experimentou-o. Na verdade o sobretudo ficava-lhe muito bem, estava muito bem-feito e podia-se abotoar todo até acima; a gola, como se fosse de cartão, mantinha a barba elevada; o corte tinha qualquer coisa de militar, e Akim Akímitch até ria de gosto e pavoneava-se, todo vaidoso, em frente do seu espelhinho, ao qual ele mesmo tinha já posto uma moldura de papel dourado, havia já muito tempo. Apenas uma rugazinha junto da gola da jaqueta parecia extemporânea. Assim que a viu, Akim Akímitch decidiu corrigi-la, tornou a provar o sobretudo e finalmente achou-o bem. Tornou então a dobrar tudo, como dantes estava e, com o espírito tranquilo, guardou-o na pequena arca para o outro dia. A cabeça estava satisfatoriamente semirrapada: mas quando se olhou com atenção ao espelho, reparou que não estava toda por igual: havia alguns cabelos espetados e foi imediatamente ter com o major para que o rapasse bem, como devia ser. E ainda que ninguém chegasse a vê-lo no dia seguinte, fez-se rapar só para tranquilizar a sua consciência, para cumprir assim, nesse dia, todos os seus deveres. Veneração perante um pequeno botão, uma botoeira, um nó, tudo isso se lhe gravara no espírito de um modo indelével, sob a forma de um dever indiscutível, e, no coração... como a imagem do mais alto grau de beleza a que pode chegar um homem ordenado. Depois de completos todos os seus preparativos, como decano do alojamento, mandou que todos trouxessem feno e esteve observando cuidadosamente como é que o espalhavam pelo chão. O mesmo fazia também nos outros alojamentos. Não sei por quê, mas pelo Natal espalhavam sempre feno pelo chão dos alojamentos.27 Depois, acabadas todas as suas tarefas, Akim Akímitch pôs-se a rezar a Deus; estendeu-se na sua esteira e afundou-se imediatamente no sonho duma criança inocente, para levantar-se no dia seguinte o mais cedo possível. Aconteceu depois o mesmo a todos os outros presos. Em todos os alojamentos se deitaram muito mais cedo do que de costume. Suspenderam-se os habituais trabalhos noturnos; de maidan, nem falar. Todos esperavam pela manhã seguinte.
Até que ela chegou. Muito cedo, ainda antes de ter nascido o sol, assim que clareou um pouco, abriram os alojamentos e o suboficial de serviço, que entrava para contar os presos, felicitou-os a todos pela festa. Eles lhe responderam com toda a cortesia e amabilidade. Depois de despachar à pressa as suas orações, Akim Akímitch e muitos outros que tinham os seus gansos e leitões na cozinha correram até lá para verem o que faziam deles, como os assavam e como ia isto, aquilo e mais aquilo. Através da obscuridade, pelas estreitas janelas salpicados de neve e de gelo, podia-se ver do nosso alojamento que em ambas as cozinhas ardia um fogo claro, que tinha sido aceso ainda antes do amanhecer, em todos os seis fornos. Pelo pátio, na obscuridade, andavam já os presos com os seus pelicas curtos, que alguns traziam no braço; dirigiam-se todos para a cozinha. Mas alguns, poucos, por sinal, se apressavam já a visitar os taberneiros. Eram os mais impacientes. De maneira geral portavam-se todos com muita dignidade, com muita calma e com um decoro desusado. Não se ouviam, nem os insultos habituais nem as costumadas disputas. Todos compreendiam que era aquele um dia grande e uma grande festa. Havia alguns que entravam nos outros alojamentos para felicitarem os das suas relações. Revelava-se qualquer coisa parecida com amizade. Tive ocasião de reparar que, entre os presos, não havia amizades; não falo da amizade geral; esta existia, e forte; falo da amizade particular, que podia unir dois presos. Esta quase não existia entre nós, e isto é digno de nota, pois não acontece o mesmo em liberdade. Ali, de maneira geral eram todos duros uns para com os outros, secos, a não ser com raras exceções, e isto era uma espécie de tom formal, adotado e convencionado de uma vez para sempre. Também saí do alojamento, assim que começou a alvorecer as estrelas empalideciam; uma bruma tênue se elevava nos ares. Das chaminés dos fornos da cozinha subiam densas espirais. Alguns dos presos, com os quais me encontrava no caminho, me felicitavam pela festa, muito afetuosos e amáveis. Eu lhes agradecia e correspondia. Havia alguns deles que, durante todo aquele mês, nem sequer me tinham ainda dirigido uma palavra. Foi já quase na cozinha que me alcançou um preso do alojamento militar, com o pelico ao ombro. Antes de chegar à porta, assim que me viu, gritou: “Alieksandr Pietróvitch! Alieksandr Pietróvitch!” Corria para a cozinha apressadamente. Eu parei e esperei-o. Era um rapaz de cara redonda e com uma expressão agradável nos olhos, muito falador com os outros, mas que, a mim, nem uma só vez sequer dirigira a palavra nem ligara a menor importância, desde a data da minha entrada no presídio; eu também não o conhecia nem sabia como se chamava. Aproximou-se de mim, ofegante, e sem mais nem menos colocou-se na minha frente, olhando-me com um sorriso estúpido e, ao mesmo tempo, beatífico.
— Então que há? — perguntei-lhe, espantado, ao ver que ele se postava diante de mim, sorria e me olhava com uns olhos muito abertos mas sem se decidir a falar.
— É que há festa... — murmurou e, adivinhando ao mesmo tempo que não tínhamos mais nada a dizer, afastou-se e dirigiu-se ansioso para a cozinha.
É de notar que, depois disto, quase nunca mais voltei a encontrá-lo e mal trocamos uma palavra até a minha saída do presídio.
Na cozinha, em volta dos fornos que ardiam com uma chama viva, agitava-se um bando, empurrando-se uns aos outros. Cada qual cuidava daquilo que lhe pertencia: os cozinheiros ocupavam-se do rancho, pois nesse dia o almoço começava mais cedo. No entanto, ninguém começara a comer, embora alguns de boa vontade o tivessem feito, mas guardavam as conveniências perante os outros. Esperavam o padre e só depois começariam a quebrar o jejum. Mal acabara de amanhecer quando começaram a ouvir-se, às portas do presídio, os gritos estentórios do cabo da guarda: “Cozinheiros!” Esses gritos soavam a cada momento e prolongaram-se quase por duas horas. Chamavam os cozinheiros para que fossem aceitar os donativos chegados de todas as partes da cidade para o presídio. Afluíam em enorme quantidade, e eram tortas, pão, queijinhos, bolos, massas e outras iguarias de forno. Penso que não devia ter havido nenhuma dona de casa, mulher de comerciante ou burguesa, que não tivesse enviado do seu pão para felicitar pela festa os desgraçados presos. Havia presentes ricos: massas da melhor farinha, enviadas em grande quantidade. E havia também presentes muito pobres, como por exemplo um bolinho de 1 groch e duas tortinhas ordinárias, mal salpicadas de creme; era o presente dum pobre para outro pobre. Eram todos recebidos com a mesma gratidão, sem se fazer distinção entre os presentes e os seus doadores. Quando os recebiam, os presos tiravam os gorros, saudavam, felicitavam pela data festiva e levavam os donativos para a cozinha. Quando se tinham já reunido montões do pão oferecido, chamavam os decanos respectivos e estes distribuíam-no todo em partes iguais pelos alojamentos. Não havia disputas nem brigas. A divisão fazia-se por igual e honestamente, no que toca ao nosso alojamento, a distribuição foi feita por Akim Akímitch e por outro preso; fizeram-no por sua própria mão, deram a cada um a sua parte. Não houve a mais pequena discussão nem a menor inveja da parte de ninguém; todos ficaram contentes; não podia existir nenhuma suspeita de que tivessem ocultado parte dos donativos ou não os repartir equitativamente. Depois de ter resolvido os seus problemas na cozinha, Akim Akímitch foi buscar o seu sobretudo, vestiu-o com toda a dignidade e solenidade, alisando a mais pequena ruga e, uma vez vestido, começou a fazer as suas orações. Esteve rezando bastante tempo. Havia já muitos outros que rezavam também, sobretudo velhos. Os novos, de maneira geral, não rezavam; quando muito persignavam-se quando se levantavam e isso só em dias festivos. Depois de ter feito as suas orações, Akim Akímitch dirigiu-se-me com certa solenidade e felicitou-me pela festa. Convidei-o para o chá e ele a mim, para o leitão. Passado um momento, Pietrov aproximou-se também de mim para felicitar-me. Parecia que já tinha bebido e, embora viesse ofegante, quase não disse nada e ficou diante de mim um momento, numa certa expectativa, e depois encaminhou-se para a cozinha. Entretanto, no presídio militar preparavam-se para receber o padre. Esse presídio tinha uma planta diferente das outras; aí, nos alojamentos, as esteiras estavam alinhadas ao longo das paredes e não no meio do aposento, como em todas as outras, e era o único compartimento do presídio que não tinha coisas a estorvar no centro. Provavelmente deviam tê-lo construído dessa maneira para concentrarem nele os presos, em caso de necessidade. No meio da sala puseram uma mesinha, cobriram-na com um pano branco, colocaram nela uma imagem e acenderam uma lamparina. Por fim chegou o padre com a cruz e a água benta. Depois de rezar e cantar diante da imagem, pôs-se diante dos presos e todos se foram aproximando, e beijando a cruz com devoção sincera. Depois disto, o padre foi percorrendo todos os alojamentos e espargiu-os com água benta. Na cozinha gabou o nosso pão de rancho, célebre na cidade pelo u ótimo sabor, e imediatamente os presos lhe prometeram enviar dois pães acabados de sair do forno; ficou encarregado de lhos levar um dos inválidos. Despediram-se da cruz com a mesma veneração com que a acolheram e logo depois chegaram major do presídio e o comandante. Os presos gostavam e apreciavam o comandante. Percorreu todos os alojamentos escoltado pelo major, felicitou-os a todos pela festa, entrou na cozinha e provou a sopa de couve do rancho. Essa sopa era célebre, pois nesse dia destinavam quase uma libra de carne de vitela para cada preso. Além disso havia kacha e manteiga à discrição. Depois de o comandante ter provado o rancho, o major deu a ordem para comer. Os presos esforçavam-se por não chamarem a sua atenção. Não lhes agradava aquele seu olhar maldoso por debaixo dos óculos, à direita e à esquerda, como se encontrasse qualquer coisa em desordem, como se descobrisse algo que não estivesse em regra.
Começaram a comer. O leitão de Akim Akímitch estava esplêndido. O que não consigo explicar foi isto: assim que o major retirou, uns cinco minutos depois, apareceu um extraordinário número de bêbedos, embora cinco minutos antes todos estivessem completamente serenos. Apareceram muitos rostos corados e reluzentes e surgiram algumas balalaicas. O polaco do violino entrou imediatamente atrás de um bêbedo, completamente ébrio, tocando-lhe músicas alegres. A conversa tornou-se mais jocosa e espirituosa. Mas levantamo-nos da mesa sem grande alvoroço. Estavam todos saciados. Muitos dos velhos e dos sérios iam dormir em seguida, o que Akim Akímitch fez também, supondo, segundo parecia, que nas festas principais não há outro remédio senão fazer uma sestazinha depois do almoço. O velhinho dos “antigos crentes” de Staradúvobo, depois de dormitar também um pouco, encarrapitou-se em cima do fogão, pegou no seu livro e ficou rezando até alta noite, numa oração quase ininterrupta. Custava-lhe ver aquela vergonha, como dizia referindo-se à bebedeira geral dos presos. Todos os cherqueses se tinham sentado no degrau da porta e contemplavam os bêbedos com curiosidade, mas também com certa repugnância. Aconteceu-me encontrar-me com Nurra: “Iaman, iaman!”,28 disse-me, meneando a cabeça com um desgosto sincero. “Ah, iaman! Alá vai ficar zanzado.” Issai Fomitch, indiferente e altivo, acendeu uma vela no seu cantinho e pôs-se a trabalhar, dando a entender de maneira evidente que, para ele, aquilo não era uma festa. Em várias partes, pelos cantos, começaram os maidani. Não tinham medo dos inválidos, mas puseram sentinelas por causa do suboficial que, apesar disso, procurava fazer vista grossa. O suboficial de guarda revistou três vezes o presídio neste dia. Mas os bêbedos escondiam-se, os maidani desapareciam antes de ele surgir e ele parecia também ter a intenção de não reparar nas infrações leves. A embriaguez, nesse dia, era considerada como uma falta leve. Pouco a pouco foram-se embebedando todos. E começaram também as disputas. Entretanto, na maioria mantinham-se lúcidos. De maneira que havia sempre quem reparasse nos bêbedos. Em compensação, os que já estavam bêbedos continuavam bebendo sem parar. Gázin estava triunfante. Passeava com um ar fanfarrão à volta do seu lugar nas esteiras, debaixo das quais tinha posto a aguardente, escondida até então, Deus sabe onde, entre a neve, para lá dos alojamentos, e sorria ladinamente, olhando os fregueses costumados. Estava sereno e não bebia nem uma gota. Pelo menos não se embebedaria senão no fim da festa, depois de ter esvaziado os bolos dos presos. Ouviam-se canções pelos alojamentos. Mas a embriaguez degenerava já em bebedeira sufocante e pouco faltava para passarem das canções às lágrimas. Muitos tocavam nas suas próprias balalaicas, de pelicos ao ombro, e tangiam as cordas dos instrumentos numa atitude fanfarrona. Na seção especial tinha-se formado também um coro, composto de oito homens. Cantavam baixo, com acompanhamento de guitarras e balalaicas. Canções honestamente populares, poucas. Lembro-me apenas de uma modinha alegre.
Eu, quando era novo,
Fui a muitas festas...
E aqui escutei também novas variantes dessa canção, que dantes não conhecia. No fim, acrescentavam alguns versos:
Se eu fosse novo,
Levar-me-iam a casa;
Limpavam-me a colher,
Regalavam-me com sopa de couve,
Livravam-me da bebedeira
E ofereciam-me bolachas.
Na sua maior parte cantavam cantigas a que chamávamos “de presos”, e que todos conhecíamos. Uma delas, Era..., tinha caráter humorístico e descrevia como um homem dantes se divertia e vivia senhor de si próprio, em liberdade, ao passo que agora se encontrava no presídio. Referia como dantes bebia champanha e, em compensação, agora...
Dão-me couves com água
E as orelhas gelam-me...
Também era muito conhecida a xácara:
Quando era pequeno, divertia-me,
E tinha o meu capital
Mas, ai, o capital voou,
E agora estou no presídio...
Simplesmente, não diziam capital, mas “copital”, derivando-o da palavra kopit (reunir); também cantavam canções sérias. Uma era própria dos presos e, segundo parecia, também era conhecida:
A luz do céu refulge,
O tambor toca a alvorada,
A velha porta abre-se,
O escriba já nos chama.
Por detrás dos muros ninguém vê
Como vivemos aqui; Mas Deus está conosco,
Ainda que nos mantenha assim etc.
Cantava-se também outra canção mais melancólica, aliás lindíssima, escrita provavelmente por algum preso de falas mansas e inculto. Agora só me lembro de alguns versos:
Os meus olhos não veem a terra
Em que vim ao mundo;
É horrível ser inocente
E estar condenado ao martírio.
Sobre o telhado a coruja pia
E esvoaça pelos bosques;
Também o meu coração sofre e chora
Por não estar aí.
Esta canção cantavam-na com muita frequência, não em coro, mas a uma só voz. Acontecia às vezes que um preso, em dia de festa, subia para o degrau do alojamento, sentava-se, punha-se a meditar, acariciava a face com a mão e entoava essa canção num falsete agudo. Quando o ouvíamos, parecia que o nosso coração se dilacerava. Havia boas vozes entre os presos.
Entretanto começara já a escurecer. Através da tristeza, da melancolia e de um vago pesar infantil, aparecia a embriaguez e o aturdimento. Aqueles que se riam havia ainda uma hora, choravam agora em qualquer canto, completamente bêbados. Outros tinham tido já oportunidade para brigar. Outros ainda, pálidos, mal sustendo as pernas, vagueavam pelos alojamentos e armavam confusão. Até aqueles nos quais a aguardente produzia um efeito pacífico procuravam em vão amigos a quem abrir a sua alma e chorar com eles a sua amarga embriaguez. Toda essa pobre gente desejava animar-se, celebrar alegremente a grande festa... mas, santo Deus, que duro e triste era aquele dia para quase todos! Cada um passava-o o melhor que podia, aferrando-se a alguma ilusão. Pietrov aproximou-se de mim ainda por mais duas vezes. Tinha bebido pouco durante o dia e estava quase completamente lúcido. Mas até a última hora daquele dia esteve sempre à espera de que havia de acontecer infalivelmente qualquer coisa, qualquer coisa extraordinária, festiva e alegre. Embora não tivesse falado acerca disso, podia ler-se-lhe nos olhos. Andava sem descanso de alojamento para alojamento. Mas não chegou a acontecer nada de extraordinário nem houve mais nada senão bebedeiras, tagarelice incoerente de bêbedos e cabeças esquentadas pela aguardente. Sirótkin passeou também com uma blusa vermelha nova por todos os alojamentos, bonito, lavado, e também calmo e simples, como se esperasse alguma coisa. Pouco a pouco tornou-se intolerável e repugnante permanecer nos alojamentos. Não há dúvida de que havia ali muitas coisas ridículas, mas eu tinha uma certa pena e dó de todos eles, e então me invadiam a dor e a tristeza. Eis que, de súbito, dois presos começaram a discutir sobre qual deles haveria de convidar o outro. Via-se que discutiam já havia muito tempo e que antes já deviam ter brigado por mais de uma vez. Um deles, sobretudo, parecia ter uma velha embirração contra o outro. Este se queixava e procurava demonstrar por palavras que fora injustamente tratado, houvera não sei quem comprara um pelico, não se sabe quando, alguém guardara uns dinheiros, mas tudo isso no ano anterior, na semana da manteiga. No entanto havia qualquer coisa, além disso... O queixoso... um mocetão alto e forte, nada tolo, amável mas bêbado, tinha agora o desejo de travar amizades e desabafar a sua amargura. Insultava também e depois mostrava o intento de reconciliar-se sinceramente com o seu adversário. O outro era forte, de estatura mediana, cara redonda, astuto. Talvez tivesse bebido mais que o seu companheiro, mas só se embriagara levemente. Tinha personalidade e fama de endinheirado; mas agora não lhe convinha irritar o seu expansivo amigo por alguma razão e o levara para a taberna; o amigo afirmou que tinha a obrigação e se comprometeu a levá-lo a ela, se fosse um homem honrado.
O taberneiro, com algum respeito pelo freguês e com as suas mostras de desdém para com o amigo expansivo, por não beber do seu, mas sim à custa alheia, puxou da garrafa e serviu-lhe um copo de aguardente.
— Não, Stiopka, tu tens a obrigação — disse o amigo expansivo ao ver que não faz caso dele — porque é a tua obrigação.
— Não vale a pena estar gastando saliva por tua causa! — respondeu Stiopka. — Não, Stiopka, tu mentes — afirmou o primeiro, tirando o copo das mãos do taberneiro — porque tu me deves dinheiro ou então não tens consciência e falta-te um olho, porque também o emprestaste! És um velhaco, Stiopka, um velhaco é o que tu és, sem tirar nem pôr!
— Bem, deixa-te de insultos, senão entornas a aguardente! Já que te fazem a honra de convidar-te, bebe! — gritou o taberneiro para o amigo expansivo. — Ou tenho de estar à espera que bebas até amanhã?
— Já bebo. Mas por que gritas? Hoje é dia de festa Stiepan Dorofiéietch — e com uma reverência voltou-se para o outro, para Stiopka, ao qual havia pouco chamara velhaco. — Que vivas com saúde por cem anos, sem contar os que já viveste! — bebeu, pigarreou e limpou a boca com as costas da mão. — Dantes, meus amigos, eu aguentava muita aguardente — observou com seriedade, como se se dirigisse a todos e não a algum em particular —, mas agora começo já a sentir o peso dos anos. Muito obrigado, Stiepan Dorofiéietch.
— Não tem de quê.
— Mas sempre te vou dizendo, Stiopka, que, à parte isto, tu és um grande velhaco para mim, sempre te digo...
— E eu a ti digo que és um bêbado indecente — interrompeu-o Stiopka, perdendo já a paciência. — Escuta bem cada uma das minhas palavras; este é o mundo: metade é para ti, metade para mim. Vai-te e não tornes a aparecer-me. Estou farto!
— De maneira que não dás o dinheiro?
— Que dinheiro te hei de dar eu, meu cachaceiro?
— Ah, sim! Pois hás de ir ter ao outro mundo para mo devolveres... Mas então eu não o aceito. O nosso dinheiro foi bem ganho, custou suor e calos. Hás de ir para o outro mundo por usar dos meus 5 copeques.
— Vai para o diabo que te carregue!
— Para que me acossas? Não sou nenhum cavalo.
— Puxa, puxa!
— Velhaco!
— Forçado!
E os insultos tornaram-se ainda mais fortes do que antes do copo de aguardente.
Nas esteiras estavam sentados dois amigos perto um do outro. Um era alto, forte, vigoroso, um verdadeiro magarefe, de rosto corado. Pouco lhe faltava para chorar porque está muito comovido. O outro era muito fraco, magro, de nariz comprido, que parece pingar-lhe, e uns olhinhos de suíno fixos no chão. Um homem delicado e educado; noutro tempo foi escriturário e tratava o amigo com um pouco de altivez, pois no íntimo não vai com ele. Passaram o dia todo bebendo juntos.
— Excedeu-se! — gritou o gordo, virando com força a cabeça do escriturário, com a mão esquerda, e segurando-a. O amigo gordo, que veio da classe dos suboficiais, invejava em segredo o seu amigo magro, e por isso falam um ao outro num estilo muito rebuscado.
— Pois eu te afirmo que não tens razão — começou o escriturário, dogmático, sem levantar os olhos para ele e fitando o chão com teimosa gravidade.
— Excedeu-se, não o ouves? — vocifera o outro, sacudindo ainda mais o seu querido amigo. — Tu és a única pessoa que me resta no mundo, compreendes? Por isso é só contigo que me abro; faltou à promessa que me fez!
— Torno a dizer-te, querido amigo, que essa azeda justificação só representa uma vergonha para o teu cérebro — respondeu o escriturário numa voz fraca e leve — e farias melhor em reconhecer, querido amigo, que toda essa bebedeira é efeito da tua inconstância pessoal...
O amigo gordo deitou-se um pouco para trás, ficou olhando estupidamente com os seus olhinhos de bêbedo para o vaidoso escriturário e, de repente, de maneira completamente inesperada, descarregou com toda a força o seu enorme punho sobre a cara daquele. Assim terminou a sua amizade nesse dia. O caro amigo jazeu de sentidos perdidos sobre a esteira...
Mas eis que entra no nosso alojamento um amigo meu, da seção especial, um rapaz muitíssimo jovial, bonacheirão, esperto, gracejador inocente e muito ingênuo. Era o mesmo que no primeiro dia da minha estada no presídio, na cozinha, depois do rancho, perguntava onde é que vivia algum ricaço, afirmando que era ambicioso, e ao qual convidei para o meu chá. Devia ter quarenta anos, lábio inferior muitíssimo grosso, nariz grande e gordo, marcado de pústulas. Tinha uma balalaica nas mãos, na qual tocava com indolência. Atrás dele vinha, como que a reboque, um condenado muito pequenino, com cabeça enorme, que eu só conhecia de vista. Aliás, ninguém reparava nunca nele. Era um indivíduo um pouco estranho, desconfiado, sempre calado e sério; trabalhava na alfaiataria e se esforçava visivelmente por viver retraído e não se relacionar com ninguém. Agora, bêbado também, pegava-se a Varlámov como a sua sombra. Seguia-o com uma terrível comoção, magoava os próprios braços, dava punhadas na parede, nas esteiras, e quase choramingava. Segundo parecia, Varlámov não reparava nele nem por um momento, como se não o tivesse ao seu lado. É de notar que, até então, nunca esses dois homens tinham andado juntos; nem pela sua profissão nem pelo seu caráter havia nada de comum entre eles. Além disso pertenciam a seções diferentes e viviam também em alojamentos diferentes. O preso pequenino chamava-se... Búlkin.
Quando me viu, Varlámov riu-se francamente. Eu estava sentado na minha esteira, perto do fogão. Ele se plantou na minha frente, pareceu refletir um momento, depois voltou-se e, aproximando-se com passos hesitantes e arranhando levemente as cordas da sua balalaica, começou a recitar, batendo o compasso com os pés:
Rosto redondo, rosto branco,
Canta como o rouxinol.
Minha querida,
Com o seu vestidinho de cetim,
Com o seu lindo folho
Tão bonita...
Dir-se-ia que Búlkin tirara essa canção da sua cabeça; e movimentava os braços e, encarando com todos, gritou:
— É tudo mentira, meu amigos, tudo mentira! Não diz nem uma palavra verdadeira; tudo mentira!
— Velhinho Alieksandr Pietróvitch! — exclamou Varlámov com um sorriso ambíguo, olhando-me na cara e como se estivesse disposto a dar-me um beijo. Estava bêbado. A expressão Velhinho Fulano equivalia a Fulano e empregava-se em toda a Sibéria, até em referência a um jovem de vinte anos. A palavra velhinho significava qualquer coisa de respeitável, digno de referência e lisonjeiro.
— Então, Varlámov, então que tal?
— Vai-se andando. Mas quem celebra a festa começa por embebedar-se. Queria desculpar-me! — Varlámov falava com uma certa ênfase.
— É tudo mentira, tudo mentira! — gritou Búlkin desancando as esteiras com desespero. Mas, por mais que gritasse não conseguia que lhe dessem um mínimo de atenção, o que era muito cômico, pois Búlkin atrelara-se a Varlámov desde a manhã, não por isto ou por aquilo, mas sim precisamente porque Varlámov não fazia outra coisa senão mentir, como, não sei por que razão, lhe parecia. Seguia-o como uma sombra; investia com ele a cada palavra, gesticulava; esmurrava as esteiras e as paredes com os punhos até se ferir; parecia sofrer, no seu íntimo, por Varlámov mentir sempre. É muito provável que, se tivesse cabelos na cara, os tivesse arrancado de tão furioso que estava. Parecia que a si próprio se tinha imposto a obrigação de responder por todas as mentiras de Varlámov, nem mais nem menos como se pesassem sobre a sua consciência todos os defeitos de Varlámov. Mas o mais engraçado é que este nem sequer olhava para ele.
— Tudo mentira, tudo mentira, tudo mentira! Nem uma só sequer das suas palavras é verdade! — gritava Búlkin.
— E isso que te importa? — respondiam-lhe os presos, rindo.
— Participo-lhe, Alieksandr Pietróvitch, que fui um rapaz muito jeitoso e que as moças eram doidas por mim... — começou Varlámov de repente, sem mais nem menos.
— Mentira! Outra mentira! — atalhou Búlkin num gemido. Os presos desataram a rir.
— E eu fazia-me todo presumido diante delas: camisa encarnada, calças largas e pregueadas, num esmero, como o conde Butílkin,29 isto é, bêbedo como um sueco; numa palavra... Que mais podia eu desejar?
— Mentira! — afirmou Búlkin energicamente.
— Mas nesse tempo tinha eu, pelo lado do meu pai, uma casa de pedra de dois andares. Pois em dois anos dei cabo de tudo, ficaram-me só as portas, sem falar nos gonzos. É que o dinheiro... é como as pombas, vem e vai-se!
— Mente! — afirmou Búlkin ainda mais energicamente.
— Por isso agora me lembrei e escrevi daqui a meus pais uma carta de partir o coração; talvez me mandem dinheiro. Andavam sempre dizendo que eu me portava mal com os meus pais, que não lhes tinha respeito! Já decorreram sete anos que lhes mandei essa cartinha.
— E não tiveste resposta? — perguntei-lhe sorrindo.
— Não — respondeu ele, sorrindo também de repente e aproximando ainda mais o seu nariz do meu rosto. — Mas eu, Alieksandr Pietróvitch, tenho uma noiva aqui.
— Você? Uma noiva?
— Ainda há pouco tempo Anúfriev dizia: “Pode ser que a minha garota seja picada das bexigas, feia; mas em compensação tem muitos vestidos, ao passo que a tua é pobre como uma mendiga e veste roupa grosseira.
— E isso é verdade?
— Certo, que é uma mendiga! — respondeu ele e esboçou um leve sorriso; ouviram-se também gargalhadas no alojamento. De fato, todos sabiam que estava em relações com uma mendiga e que em meio ano lhe dera dez copeques.
— Bem, e que mais? — perguntei, desejando ver-me finalmente livre dele.
Calou-se, olhou-me comovido e disse com ternura:
— Por causa disso, o senhor podia convidar-me para um trago de aguardente? Olhe, Alieksandr Pietróvitch, eu, durante todo o dia, só bebi chá — acrescentou, melancólico, pegando no dinheiro. — Tomei tanto chá que me sinto sufocado e o chá me chocalha no estômago como uma garrafa...
Quando ele aceitou o dinheiro, a moral intempestiva de Búlkin pareceu ter atingido o paroxismo. Pôs-se a gesticular desoladamente e pouco lhe faltou para se pôr a chorar.
— Gente de Deus! — exclamou, dirigindo-se a todo o alojamento com estupefação. — Olhem para ele! Tudo quanto diz é mentira! Diga o que disser, tudo, tudo, tudo é mentira!
— Mas a ti que te importa? — gritavam-lhe os presos, admirados da sua veemência. — És um malcriado!
— Não consinto que minta! — exclamou Búlkin deitando chispas pelos olhos e descarregando punhadas com todas as suas forças nas esteiras. — Não quero que minta!
Deram todos uma gargalhada. Varlámov guardou o dinheiro, fez-me um gesto de agradecimento e, fazendo trejeitos, saiu do alojamento em direção ao taberneiro, provavelmente. E parecia então reparar nesse instante, pela primeira vez, em Búlkin.
— Vamos lá! — disse-lhe, parando à porta, como se realmente precisasse dele para alguma coisa — Grande trambolho! — acrescentou com desdém, empurrando à sua frente o acalorado Búlkin e pondo-se outra vez a arranhar a balalaica. Mas como descrever aquele barulho! Até que por fim aquele dia opressivo acabou. Os presos deixaram-se cair pesadamente nas esteiras. Durante o sono todos falavam e deliravam ainda mais do que nas outras noites. Jogavam as cartas em qualquer canto. Havia já algum tempo que o dia tão desejado passara. Amanhã recomeçaria a rotina, o trabalho outra vez.
O ESPETÁCULO
Três dias depois do Natal, certa noite realizou-se a primeira representação no nosso teatro. Os preparativos para a sua organização deviam ter sido muitos; mas os atores arranjaram-se de tal maneira que nós não percebíamos o caminho que as coisas iam levando nem do que faziam ao certo. Também não sabíamos bem o que iam representar. Todos os atores, durante aqueles três dias, ao se dirigirem para o trabalho, esforçavam-se o mais que podiam por arranjar os trajos necessários. Baklúkhin, quando se encontrava comigo, limitava-se a fazer castanholar os dedos, de tão contente que andava. Parecia que o major do presídio também estava de bom humor. Aliás, nós ignorávamos completamente se ele sabia qualquer coisa do teatro. Se sabia, daria autorização formal ou decidiria simplesmente guardar silêncio, encolhendo os ombros perante aquela travessura dos presos e exigindo, naturalmente, que tudo se fizesse o mais ordenadamente possível. Penso que ele estava a par do teatro, que fatalmente havia de saber, mas que não queria imiscuir-se no assunto, compreendendo que talvez fosse pior proibi-lo; os presos costumavam fazer disparates, embebedar-se, por isso era preferível que se ocupassem com qualquer coisa. Atribuo este pensamento ao major do presídio, unicamente por ser o mais natural, provável e santo. Também poderia acontecer que dissesse para consigo: “Se os presos não arranjassem teatro nos dias festivos ou alguma distração do gênero, seriam os próprios superiores que deviam encarregar-se de imaginá-lo.” Mas como o nosso major se distinguia precisamente pela sua maneira de pensar diferentemente de lodos os outros mortais, incorro em imprudência ao atribuir-lhe tamanha responsabilidade, supondo que estava informado da representação e que tinha o seu consentimento para ela. A um homem como o major era absolutamente necessário oprimir sempre alguém, tirar algo a qualquer outro, despojar um terceiro dos seus direitos; em suma, alterar a ordem de qualquer maneira. A este respeito era célebre em toda a cidade. Que lhe importava a ele que, precisamente por causa da sua opressão, se produzissem atrevimentos no presídio? O castigo fez-se para a insolência (assim pensam os indivíduos da têmpera do nosso major); com esses patifes dos presos é preciso uma severidade rigorosa, aplicação estrita da lei... Isso é que é preciso e nada mais! Estes inflexíveis cumpridores da lei não compreendem que a sua aplicação estrita, sem discernimento, sem compreensão da sua alma, conduz diretamente à desordem e nada mais pode gerar senão desordem. “A lei é que o diz, portanto, que mais?”, dizem eles, e espantam-se sinceramente de que se lhes exija como complemento, ao aplicar a lei, um juízo são e uma mente lúcida. Sobretudo isto parece a muitos deles um luxo supérfluo e irritante, uma opressão feita sobre a sua personalidade, uma intolerância.
Mas, fosse como fosse, o suboficial decano não foi desfavorável à pretensão dos presos e disto é que eles precisavam. Posso afirmar que o teatro e a gratidão por o terem consentido eram a causa de que, nos dias festivos, não se produzissem em todo o presídio uma desordem séria, nem um roubo. Fui testemunha de que os forçados faziam calar alguns bêbedos e brigões somente com o receio de que proibissem o teatro. O suboficial obteve a palavra dos presos de que tudo se faria com ordem e de que eles se portariam bem. Concordaram e cumpriram religiosamente a sua promessa ficaram muito lisonjeados por terem confiado na sua palavra. É preciso dizer também que dar consentimento para a realização do teatro não implicava o menor sacrifício para os superiores. Não era necessário marcar previamente os lugares; o teatro armava-se e desarmava-se num quarto de hora. A representação devia durar uma hora e meia e, se recebesse de repente indicação superior para suspender a representação... tudo seria recolhido num instante. Os trajos tinham-nos os presos escondidos nos seus baús. Mas, antes de mais, quero dizer como arranjaram o teatro e quais eram concretamente esses trajos, e falarei do programa do teatro; isto é, do espetáculo que se propunham a representar.
Não havia um programa especial manuscrito. Para a segunda ou terceira representação apareceu um, redigido por Baklúkhin, destinado aos senhores oficiais e aos importantes visitantes que tinham honrado o teatro com a sua presença na primeira representação e que eram dos senhores, assistiam geralmente o oficial de reserva, e uma vez assistiu também o próprio oficial encarregado do comando dos oficiais da guarda. Assistiu também uma vez o oficial engenheiro; nesses casos forneciam programas a esses espectadores. Os presos supunham que a fama do nosso teatro presidial se estendia até bem longe, pelo forte e até pela cidade, tanto mais que nela não havia teatro. Quando muito haveria algum espetáculo de amadores. Os presos ficavam contentes como crianças por menor que fosse o êxito e punham-se todos ufanos. “Quem sabe”, pensavam e diziam no seu íntimo, para consigo, “se os chefes superiores virão a saber e virão assistir; então é que eles veriam o que são os presos!” Não se tratava de nenhum espetáculo de soldados, com espantalhos, barcos flutuantes e ursos e cabras que se põem de pé. Aqui são atores, verdadeiros atores, que representam uma comédia de “senhores”; um teatro assim não existe na cidade. Dizem que o general Abróssimov deu uma vez um espetáculo e que ainda há de dar mais; pois bem, pode ser que em matéria de guarda-roupa nos levem a palma, mas, quanto ao diálogo, devia ficar muito abaixo do nosso. A sua fama chegou até o governador e “Quem sabe”, o diabo tece-as, “é possível que sinta vontade de vir ver. Na cidade não há teatro...” Enfim, a fantasia dos presos, sobretudo quando do primeiro êxito, tocou o extremo nos dias festivos, chegaram até a imaginar recompensas ou abreviação do prazo dos trabalhos, embora ao mesmo tempo se pusessem logo depois a rir como crianças dos seus próprios sonhos. Eram umas crianças, completamente umas crianças, apesar de alguns dos que representavam terem já os seus quarenta anos.
Mas, apesar de não haver programas, eu conhecia já a grandes traços o programa do projetado espetáculo. A primeira peça era Filatka e Mirochka, rivais. Baklúkhin, uma semana antes do espetáculo, afirmou diante de mim que o papel de Filatka, que estava a seu cargo, havia de ser desempenhado de uma maneira como não o faziam no teatro em Petersburgo. E repetia isso pelos alojamentos, gabava-se de um modo descarado e sem ponta de vergonha, mas, ao mesmo tempo, com a mais completa bonacheirice; às vezes, de repente, dizia qualquer coisa de teatral, isto é, que pertencia ao seu papel, e todos desatavam a rir, tivesse ou não graça aquilo que ele dizia. Quanto ao mais, devo reconhecer que os presos souberam dominar-se e manter a sua dignidade; para admirar as tiradas de Baklúkhin e falar dos preparativos do teatro, era preciso ser, ou novato sem autodomínio, ou então um forçado cuja autoridade estivesse solidamente estabelecida e que pudesse exprimir os seus sentimentos sem rodeios, ainda os mais ingênuos (o que no presídio é o pior dos defeitos). Os outros escutavam os boatos e calavam-se; verdadeiramente não censuravam nem contradiziam; mas punham o maior empenho em receber os rumores acerca do teatro com indiferença e, em parte, também com desdém. Somente no fim, já quase no próprio dia do espetáculo, é que começaram todos a interessar-se. “Que será?” Que farão eles? E o major? Sairá tudo tão bem como há dois anos? Baklúkhin afirmava-me que os atores tinham sido muito bem escolhidos, que cada um deles estava onde devia estar. E que já tinham o pano. Que o papel da noiva de Filatka seria feito por Sirótkin. “Há de ver como ele fica vestido de mulher!”, dizia, piscando o olho e dando estalos com a língua. A “Caseira benfeitora” teria um vestido com folhos pregueados, uma capa e uma sombrinha na mão; e o “Caseiro benfeitor” usaria um sobretudo de oficial com dragonas e uma bengala de punho. Depois vinha a segunda peça dramática: Kiedril, o glutão. O título interessou-me bastante; mas, por mais que perguntasse pormenores da obra, nada pude saber antecipadamente. Sabia unicamente que não tinha sido tirada de nenhum livro, mas de uma cópia manuscrita; que a tinham obtido de certo oficial reformado que vivia nos arrabaldes e que provavelmente a teria visto representar alguma vez em algum teatro de quartel. Entre nós, em cidades e capitais remotas, há peças teatrais deste gênero que, segundo parece, não têm autor conhecido, que toda a gente conhece, que talvez nunca tivesse sido impressas e constituem e representam, só por si, o patrimônio indispensável de todo teatro popular na zona conhecida da Rússia. Disse teatro popular intencionalmente. Seria muito acertado que algum dos nossos eruditos se ocupasse nessas investigações, mais escrupulosos do que até aqui, acerca do nosso teatro popular, o qual existe e pode ser até que tenha algum valor. Não quero acreditar que tudo quanto vi depois entre nós, no nosso teatro presidial, fosse invenção dos nossos presos. Trata-se, sem dúvida, de uma herança da tradição, de ideias e conceitos estabelecidos de uma vez para sempre e que se vão transmitindo de geração em geração e desde tempos imemoriais. É preciso ir procurá-las entre os soldados e os operários das fábricas, nas cidades fabris e também em alguns ignorados e pobres vilórios, e entre a gente rica. Conservam-se também nas aldeolas e nas capitais dos distritos, entre os servos das grandes casas de proprietários. Penso também que muitas peças antigas se espalharam em cópias pela Rússia, por intermédio dos servos da classe senhorial. Os senhores e os nobres moscovitas de outrora tinham os seus teatros particulares a cargo de artistas servos. E foi nesses teatros que nasceu a nossa arte dramática popular, cujas características são inconfundíveis. Pelo que respeita a Kiedril, o glutão, por muito grande que fosse a minha vontade, nada pude saber com antecedência, a não ser que entravam em cena os espíritos do mal e levavam Kiedril para o inferno. Mas que significava isso de Kiedril e, finalmente, por que havia de ser Kiedril e não Kidril? Tratava-se de uma peça de origem nacional ou estrangeira? Nada disso consegui averiguar. Por último tornou-se público que iam representar uma pantomina com música. Não há dúvida de que tudo isso era muito curioso. Eram 15 os atores, todos gente esperta e hábil. Rebuliam, ensaiavam, às vezes por detrás dos alojamentos; ocultavam-se, escondiam-se. Em suma: queriam assombrar os outros com qualquer coisa de extraordinário e inesperado.
Nos dias de trabalho o presídio fechava cedo, assim que anoitecia. Mas durante a quadra do Natal faziam uma exceção: só fechava à hora de recolher. Esta exceção era especialmente favorável para o teatro. Durante a época festiva, todos os dias, antes de anoitecer, enviavam alguém do presídio a pedir humildemente ao oficial da guarda “que desse autorização para o teatro e não fechasse logo o presídio”, acrescentando que à noite havia teatro e era preciso ele estar aberto; e que não se produziria nenhuma desordem. O oficial de guarda fazia este raciocínio: “De fato, ontem, não houve desordem e agora me dão eles a sua palavra que esta noite também não haverá; isto é, eles se encarregam de vigiar e isto é o melhor de tudo. Se não dou autorização para o espetáculo, não seria improvável (sabe-se lá, sempre são presidiários!) que provocassem intencionalmente alguma desordem e fizessem sair a guarda.” E por fim este outro: “Isto aqui, no corpo da guarda, é um aborrecimento, ao passo que aí há um teatro, não um simples teatro de soldados, mas de presos, e os presos são gente curiosa; será uma distração ir vê-los. O oficial da guarda tinha sempre o direito de assistir.
Aparece o chefe de serviço e diz: “Onde está o oficial?” “Foi ao presídio contar os presos e fechar os alojamentos.” Primeira resposta e primeira desculpa. E assim, os oficiais da guarda, todas as noites, enquanto duraram as festas, deram a sua permissão para o teatro e só fecharam os alojamentos à hora de recolher. Os presos sabiam de antemão que da parte do guarda não haveria obstáculo e estavam tranquilos.
Às sete horas Pietrov veio ter comigo e saímos juntos para assistir ao espetáculo. Do nosso alojamento vieram quase todos, exceto o velho crente e os polacos. Os polacos só na última representação, a 4 de janeiro, é que se decidiram a assistir ao teatro e isso apenas depois de se lhes ter afirmado muitas vezes que estava tudo muito bem, divertido e tranquilo. A altivez dos polacos fazia sofrer os presos; mas no dia 4 de janeiro tiveram um acolhimento muito amável. Até lhes guardaram os melhores lugares. Quanto aos circassianos, sobretudo para Issai Fomitch, o nosso teatro foi um verdadeiro prazer. Issai Fomitch dava a cada noite uns 3 copeques, e na última pôs dez na bandeja, e no rosto se refletia a felicidade. Os atores iam recolhendo da mão dos espectadores o que estes entendessem por bem dar, e os donativos se destinavam ao teatro e ao próprio conforto. Pietrov garantia que haviam de dar-me um dos primeiros lugares, por muito cheio que o teatro estivesse, fundamentando-se em que eu, por ser mais rico do que os outros, provavelmente daria mais, para não falar naquilo que eu sabia mais do que eles daquelas coisas. Assim aconteceu. Mas descreverei em primeiro lugar a sala e a aparência do teatro.
O nosso alojamento militar, no qual armaram o teatro, tinha 15 passos de largura. Do pátio subia-se por uma escadinha; da escadinha passava-se para o andar e do andar para o alojamento. Este alojamento comprido, como já disse, tinha uma construção especial: as esteiras eram encostadas à parede, de maneira que o centro do compartimento ficava livre. A metade da sala mais próxima da entrada, com o degrau, foi deixada para os espectadores; a outra metade, que se comunicava com outro alojamento, foi destinada para cenário. Antes de mais, o que sobretudo me chocou foi o pano de fundo. Apanhava uns dez passos de todo o alojamento, à largura. Era um pano de tal luxo que, na verdade, causava admiração. Além disso era pintado a óleo; representava um campo com caramanchões, lagos e estrelas. Era de pano, novo e velho, conforme aquilo que cada um tinha dado e sacrificado; de batas e camisas velhas dos presos, cosidas umas às outras, para formar uma peça grande e, finalmente, parte dela, para a qual o pano não chegara, era simplesmente de papel, formado também da mesma maneira, às folhas, angariadas em várias oficinas e escritórios. Os nossos pintores, entre os quais se distinguia também “Briúlov”, isto é, A... v, encarregaram-se de pintá-lo e decorá-lo. De fato, era surpreendente. Um tal luxo alegrava até os presos mais severos e impassíveis, os quais, ao presenciarem o espetáculo, pareciam todos tão criançolas como os mais vivos e ruidosos. Estavam todos muito contentes, até exageradamente contentes. A iluminação consistia em algumas velas de sebo partidas em pedaços. Em frente do pano havia dois bancos da cozinha e, diante dos bancos, três ou quatro cadeiras que tinham vindo do quarto do suboficial. Essas cadeiras destinavam-se aos oficiais, mas pareciam ter sido colocadas ali por acaso. Os bancos eram para os suboficiais e para os escriturários dos serviços de Engenharia, para os vigilantes e mais pessoal subalterno, assim como para os superiores que não tinham grau de oficial. E foi o que aconteceu: não faltaram visitantes de todas as categorias durante a festa; numas tardes foram mais, noutras menos, mas no último espetáculo não ficou desocupado nem um só dos bancos. E, por fim, os presos se colocaram atrás dos bancos, de pé, por respeito para com os visitantes, sem gorro, com as jaquetas e meios pelicos, apesar do ambiente sufocante, denso, da sala. Não há dúvida de que o lugar destinado aos presos era muito exíguo. Além de estarem literalmente sentados uns em cima dos outros, sobretudo nas últimas filas, também as esteiras e os entrebastidores estavam ocupados e, finalmente, havia entusiastas que afluíam sem cessar ao teatro, vindos do outro alojamento, e havia ainda, por detrás dos entrebastidores traseiros, quem assistisse ao espetáculo. A exiguidade da primeira metade do alojamento era extraordinária, comparável à exiguidade e ao aperto que havia pouco eu tinha visto no banho. A porta do vestíbulo estava aberta: nele, onde a temperatura era de vinte graus, havia também gente apinhada. Empurravam-nos para a frente, a mim e a Pietrov, quase para os bancos, onde se via muito melhor do que nos lugares de trás. Não há dúvida de que a mim que tinham por um crítico, que já tinha visto outros espetáculos; sabiam que Baklúkhin durante todo aquele tempo se aconselhara comigo e me tratava com respeito; para mim tinham honras e um lugar. Não façamos reparo em que os presos eram gente vaidosa e aturdida; mas tudo isto era só na aparência. Os presos podiam rir-se de mim, ao ver que eu era o pior de todos os que os ajudavam no trabalho. Almázov podia olhar-nos, a nós, os nobres, com desdém, gabando-se diante de todos da sua habilidade para triturar o calcário. Para os seus vexames e troças contribuía também outra coisa: nós tínhamos sido nobres noutro tempo, pertencíamos à mesma classe que os seus antigos senhores, dos quais não podiam guardar boas recordações. Mas agora, no teatro, afastavam-se diante de mim. Reconheciam que, em assuntos teatrais, eu podia julgar melhor do que eles, que via e sabia mais. Até aqueles que não me encaravam com simpatia (eu sabia que assim era) desejavam agora os meus elogios para o seu teatro e, sem a menor humilhação, procuravam-me o melhor lugar. É o que penso agora, ao evocar as minhas impressões de então. Parecia-me que na sua justa opinião acerca de si mesmos não havia nada de baixeza e apenas o sentimento da dignidade pessoal. O traço característico mais elevado e enérgico do nosso povo é o sentimento da justiça e uma ânsia dela. O vaidoso costume de se pôr diante de toda a gente, nas primeiras filas, seja como for, mereça-se ou não se mereça, não existe no nosso povo. Basta somente levantarmos a casca exterior, artificial, e olhar para o miolo atentamente, mais de perto, sem preconceitos, para descobrirmos no povo propriedades de que não suspeitávamos. Os nossos sábios não podem ensinar grande coisa ao povo. E mais, afirmo decididamente que teriam até muito a aprender com ele.
Assim que entramos no teatro, Pietrov disse-me ingenuamente que a mim me colocariam à frente pelo motivo de eu dar mais dinheiro. Não havia preço fixo: cada um dava o que podia e queria. Quase todos davam qualquer coisa, ainda que fosse só 1 groch, quando lhe apresentavam a bandeja. Mas a mim, se me colocaram à frente, foi em parte pelo dinheiro, pensando que eu daria mais que os outros, mas também um pouco por causa desse sentimento de dignidade pessoal: “Tu és mais rico do que eu, por isso vai para a frente, e embora aqui sejamos todos iguais, tu darás mais e, por isso, um espectador como tu é mais agradável para os atores; é para ti o primeiro lugar, porque todos nós não estamos aqui pelo dinheiro, mas sim por respeito; devemos classificar-nos a nós próprios.” Quanto verdadeiro e nobre orgulho havia nisto! Não era respeito pelo dinheiro, mas respeito por si próprio. De maneira geral não se conseguia respeito pela pessoa com o dinheiro, com a riqueza, sobretudo se considerarmos os presos em conjunto, sem fazer distinção, em massa, em grupo. Também não me lembro que algum deles se rebaixasse seriamente pelo dinheiro, ainda que os considerássemos um a um. Comigo eram pedinchões, exploradores. Mas nisso havia mais fanfarroneria e velhacaria do que outra coisa, mais humor e ingenuidade. Não sei se consigo fazer-me entender... Mas já me esquecia do teatro. Vamos ao assunto.
Enquanto o pano não se erguia, toda a sala apresentava um estranho e animado quadro. Em primeiro lugar tínhamos um grupo de espectadores apertados, comprimidos, sacudidos por todos os lados, cheios de impaciência e com uma expressão de beatitude no rosto, à espera do começo do espetáculo. Nas últimas filas, indivíduos que se apinhavam uns sobre os outros. Muitos tinham trazido madeiros da cozinha; colocando um tronco grosso junto da cozinha, o sujeito empinava-se sobre ele com os pés, apoiava-se com as duas mãos sobre os ombros daquele que tinha na sua frente e, sem mudar de posição, ficava assim duas horas muito satisfeito consigo mesmo e com o seu lugar. Outros encarrapitavam-se sobre o fogão, nos rebordos salientes, e assim ficavam todo o tempo, apoiando-se no da frente. Ao lado desta, junto das esteiras, havia também um grosso grupo em cima dos músicos. Aí havia bons lugares. Cinco homens estavam empoleirados em cima do fogão, e aí, de bruços, olhavam para baixo. Que felizardos! Nos parapeitos das janelas, na outra parede, apinhavam-se também grupos de retardatários ou de indivíduos que não tinham conseguido um bom lugar. Todos se mantinham sossegados e com compostura. Todos queriam mostrar perante os senhores e os visitantes a sua melhor parte. Em todos os rostos se refletia a mesma expectativa ingênua. Todos os rostos estavam corados e banhados de suor, devido ao calor e à falta de ar. Que estranho reflexo de alegria pueril, de boa e honesta satisfação, refulgia naquelas frontes e faces desfiguradas e marcadas, nos olhares daqueles homens, até ali retraídos e duros, naqueles olhares em que às vezes chispava um fogo estranho! Estavam todos de cabeça descoberta e na primeira fila, todas as cabeças se mostravam rapadas. Mas ouviam-se passos, ruídos, no palco. O pano sobia logo a seguir. A orquestra começava a tocar... É digna de recordar-se, esta orquestra. A um lado, junto das esteiras, estavam reunidos oito músicos; dois violinos: um existia no presídio, outro foram buscá-lo não sei onde, mas aquele que o tocava era dos nossos; três balalaicas — todas obra dos presos —, duas guitarras e um tamborim, em vez de contrabaixo. Os violinos não faziam mais do que ranger e estalar; as guitarras eram péssimas; mas, em compensação, as balalaicas eram maravilhosas. A destreza no pulsar das cordas igualava decididamente a do mais hábil executante. Tocavam apenas motivos de dança. Nos passos mais próprios para serem dançados os tocadores batiam com as cabeças dos dedos na tampa das balalaicas; o tom, o gosto, a execução, a maneira de tratar, o instrumento, o caráter da reprodução do motivo, tudo aquilo era seu, original, próprio do presídio. Um dos guitarristas sabia também tocar magistralmente o seu instrumento. Era aquele aristocrata que tinha matado o pai. Quanto ao tamborim, havia simplesmente milagres: tão depressa repicava com um só dedo, como passava o polegar pela pele; ora se ouviam pancadas seguidas, retumbantes e monótonas, ora, de repente, aquele dobre forte, cheio, parecia decompor-se numa saraivada, em um número incontável de pequenos, cantantes e claros sons. Finalmente, ouviram-se também dois acordeãos. Palavra de honra... Eu, até então, não fazia ideia do que podia conseguir-se com esses instrumentos simples e populares; a harmonia entre os sons, a execução, mas, sobretudo, a alma, o caráter da ideia e a reprodução do motivo eram simplesmente admiráveis. Pela primeira vez compreendi então perfeitamente tudo quanto há de infinitamente indômito nas indômitas toadas do bailado russo. Até que o pano subiu. Todos se agitaram, todos mudaram o pé em que se apoiavam, os últimos puseram-se em pontas, outros subiram para o seu madeiro; todos, desde o primeiro ao último, abriram a boca e aguçaram o olhar, e reinou então o silêncio mais completo... O espetáculo ia começar...
Junto de mim estava Ali, de pé, no grupo dos irmãos, e os outros circassianos. Eram todos apaixonados pelo teatro e não faltavam nenhuma noite. Todos os muçulmanos e os tártaros são sempre muito apaixonados por todo gênero de espetáculo, segundo pude observar não uma só vez, mas várias. Perto deles via-se também Issai Fomitch, o qual, desde que se levantou o pano, era todo olhos e ouvidos e estava possuído da mais ingênua e ávida expectativa de espanto e de gozo. Teria sido doloroso se viesse a ter uma decepção nas suas expectativas. O simpático rosto de Ali brilhava num júbilo tão infantil e belo, que, confesso, sentia uma alegria atroz em olhá-lo, e lembro-me de que, involuntariamente, a cada gesto cômico e acertado dos atores, quando se produzia uma gargalhada geral, eu me voltava imediatamente para olhar para Ali e divertir-me com a sua cara. Ele não me via a mim, não me dava atenção. Muito próximo de mim, do lado esquerdo, encontrava-se de pé um preso já entrado em anos, sempre triste, sempre descontente e resmungando. Pois também ele reparou em Ali e tive oportunidade de observar como se voltava várias vezes para o olhar, com um meio-sorriso, tão simpático era ele! Chamava-lhe Ali Siemiônitch, não sei por quê.
Principiou a peça Filatka e Mirochka. Filatka (Baklúkhin) tinha, de fato, muita habilidade. Representou o seu papel com admirável fidelidade. Era evidente que meditara cada palavra, cada gesto. Sabia dar intenção e significado a cada palavra e a cada gesto, perfeitamente de acordo com o caráter do seu papel. Acrescentai a esse esforço, a esse estudo admirável, uma alegria espontânea, uma simplicidade e uma naturalidade tais que, se tivésseis visto Baklúkhin, teríeis de reconhecer infalivelmente que era um verdadeiro ator, um ator nato e com muito talento. Tinha visto já Filatka, por mais de uma vez, nos teatros moscovitas e petersburgueses, e declaro terminantemente que os atores dessas capitais, que tinham desempenhado o papel de Filatka, o fizeram pior do que Baklúkhin. Comparados com ele eram artificiais e não uns autênticos camponeses. Punham demasiado empenho em imitá-los. Além disso Baklúkhin era espicaçado pela emulação: todos sabiam que na segunda peça o papel de Kiedril havia de ser desempenhado pelo preso Podsílkin, que todos os outros, não sei por quê, consideravam com mais dotes, superior a Baklúkhin, o que muito fazia sofrer este. Quantas vezes se aproximara de mim naqueles últimos dias, comunicando-me os seus sentimentos! Duas horas antes do começo do espetáculo começara a sentir febre. Quando se punham a rir e o público lhe gritava “Muito bem, Baklúkhin! Bravo!”, todo o seu rosto resplandecia de felicidade, e nos seus olhos chispava o fogo duma autêntica inspiração. A cena do beijo a Mirochka, quando Filatka gritava previamente “Limpa-te!” e ele se limpava, foi de grande comicidade. Houve uma gargalhada geral. Mas o mais interessante para mim eram os espectadores, que, descontraídos, se entregavam sem peias e sem reservas à sua alegria, à sua satisfação. As ovações repetiam-se cada vez com mais frequência. Aí têm um que deu uma cotovelada ao companheiro e lhe comunicou apressadamente as suas impressões, sem saber nem ver quem tinha ao seu lado; outro, a cada cena cômica, voltava-se de repente, entusiasmado, para o público, olhava fixamente para todos, como incitando-os a rirem-se; agitava a mão e logo a seguir voltava-se avidamente para o palco. Um terceiro dava estalos com a língua e com os dedos e não podia estar quieto no seu lugar e, como não podia sair dali, limitava-se a mudar de posição. No final da peça a alegria atingiu o cúmulo. Não exagero absolutamente nada. Imaginem um presídio, cadeias, cativeiro, a perspectiva de longos anos tristes à frente, uma vida monótona, num sombrio dia outonal, e que de repente permitem a tudo quanto tem reprimido, soterrado, desentorpecer, alegrar-se, esquecer o pesadelo, fazer um teatro. E de que maneira! Para se pavonearem diante de toda a cidade e deslumbrá-la... para que se saiba, que diabo!, quem são os nossos presos. Não há dúvida de que, para eles, tudo foi motivo de preocupações: os trajos, por exemplo. Para eles era extraordinariamente curioso verem, por exemplo, Vanhka Otpiéti,30 ou Nietsvietáiev, ou Baklúkhin, noutro trajo completamente diferente daquele com que durante tantos anos diariamente os viam: “Aí o tens: é um presidiário, nada mais que um presidiário; rangem-lhe as cadeias e, no entanto, agora aparece de sobretudo, chapéu redondo, capa... exatamente como um conselheiro de Estado. Pôs uns bigodes e meia peruca postiços. Olha como tira um lencinho vermelho do bolso, como se abana e se dá ares de senhor, tal qual um senhor...”. Todos se entusiasmam. O “Caseiro benfeitor” apareceu em cena vestindo uniforme de ajudante, já muito velho, com dragonas, um gorrozinho com borla, e fez um efeito extraordinário. Para esse papel havia dois amadores e — querem acreditar? — os dois, como autênticas crianças, brigaram um com o outro para verem qual dos dois havia de o fazer: queriam os dois ostentar aquele uniforme de oficial com dragonas. Tiveram os outros atores de separá-los e decidiram, por maioria de votos, confiar o papel a Nietsvietáiev, não porque tivesse melhor apresentação que o outro e portanto se parecesse mais com um senhor, mas porque Nietsvietáiev assegurou a todos que apareceria em cena com bastãozinho e havia de atirá-lo ao chão e bater com ele, como um verdadeiro senhor, como o mais refinado peralvilho, coisa para que Vanhka Otpiéti não podia oferecer-se, pois jamais na sua vida tinha visto um senhor a valer. E de fato, Nietsvietáiev, ao apresentar-se perante o público no seu papel de senhor, não fez outra coisa senão bater rápida e levemente no chão com o seu fino bastãozinho de cana, que, sabe-se lá onde o teria ido arranjar, provavelmente por considerar isso como o sinal da soberania suprema, da elegância e distinção soberanas. Provavelmente, alguma vez, criança ainda, quando andaria descalço, tivera ocasião de admirar a elegância do vestuário do senhor, com o seu bastãozinho, e tê-lo-ia seduzido a sua habilidade para brincar com ele, ficando-lhe essa impressão para sempre bem gravada na alma, de maneira que agora, passados trinta anos, recordava tudo como vira, para completa admiração e gáudio de todo o presídio. Nietsvietáiev estava a tal ponto preocupado com o seu papel que não olhava para nenhum lado nem para ninguém, e até falava sem levantar a vista, e não fazia outra coisa senão seguir com o olhar a ponta da sua bengala. A “Caseira benfeitora” desempenhou também o seu papel de maneira notável; apareceu em cena com um vestido velho, usado, de musselina, que tinha o aspecto de um autêntico farrapo, sem mangas e de decote, com uma cara exageradamente empoada e pintada, uma touca branca de dormir, que se atava debaixo do queixo, uma sombrinha numa mão e na outra um leque de papel pintado, que abanava constantemente. Uma salva de risos acolheu a dama; e nem ela própria conseguia conter-se e por mais de uma vez desatou também a rir. Quem fazia o papel de senhora era o preso Ivanov Sirótkin; ficava muito engraçado, disfarçado de mulher. As cançonetas saíram-lhe muito bem. Em suma: a peça acabou com a mais completa e geral satisfação. Críticos não havia, pois não podia havê-los.
Tornaram depois a tocar a abertura — sombras, sombras minhas —, e outra vez o pano se ergueu. Era Kiedril. Kiedril era qualquer coisa de parecido com Don Juan; pelo menos, tanto o amo como o criado, no fim da peça, são conduzidos ao inferno. Representaram um ato inteiro, mas, pelo visto, cortado: faltavam o princípio e o fim. Quanto a sentido e intenção, não tinha nenhum. A ação se passava na Rússia, em alguma estação de postas. O estalajadeiro introduzia o amo no quarto, o qual ia metido numa capa e com chapéu redondo e revirado. Seguia-o seu criado Kiedril, com um baú e um frango assado embrulhado em papel azul. Kiedril trazia pelico curto e gorro de lacaio. Era o glutão. Quem representava esse papel era o preso Podsílkin, o rival de Baklúkhin; quem fazia de senhor era também o mesmo Ivanov, que tinha desempenhado o papel de “Caseira benfeitora” na primeira peça. A estalajadeira, Nietsvietáiev, anuncia ao hóspede que há demônios no quarto e retira-se. O hóspede, grave e preocupado, resmunga para consigo, dizendo que já sabe disso há muito tempo, e ordena a Kiedril que arrume as coisas e prepare a ceia. Kiedril é cobarde e comilão. Ao ouvir falar de demônios, empalidece e treme como uma vara verde. De bom grado deitaria a correr, mas tem medo do patrão. Mas além disso tem apetite. É guloso, néscio e esperto à sua maneira; covarde, a cada passo engana o seu senhor e, ao mesmo tempo, teme-o. É um tipo curioso de criado, que apresenta uns traços vagos e longínquos de Leporello31 e, de fato, representaram-no de uma maneira notável. Podsílkin tinha inegável talento e, a meu ver, era ainda melhor do que Baklúkhin. Eu naturalmente, quando no dia seguinte me encontrei com Baklúkhin, não lhe exprimi completamente a minha opinião, pois ter-lhe-ia dado um grande desgosto. O preso que fazia o papel de senhor também não o fez mal: disse terríveis absurdos, mas a sua pronúncia era correta e insinuante; e o gesto, ponderado. Enquanto Kiedril deixa o baú no chão, o amo caminha no palco, preocupado, de um lado para o outro, e murmura, de maneira que todos possam ouvi-lo, que nessa noite hão de acabar todos os seus desregramentos. Kiedril, curioso, espevita o ouvido, faz caretas, diz apartes e dá assim ocasião a que os espectadores riam à gargalhada, a cada palavra sua. Não tem pena do patrão, mas como ouviu falar de demônios e queria saber que gênero de criaturas serão, começa a fazer observações e perguntas. O patrão explica-lhe por fim como, certa vez, que se encontrou em apuros, implorou a ajuda do inferno, e como os demônios o livraram de dificuldades; mas que termina naquele dia o prazo e que é muito possível que, obedecendo à combinação, venham buscar-lhe a alma. Kiedril começa a sentir medo. Mas o patrão não perde a cabeça e manda-o preparar a ceia. Assim que ouve falar de ceia, Kiedril reanima-se, puxa do frango, de vinho e, ainda antes de ter dado por isso, já ele meteu na boca e engoliu um pedaço de frango. O público ri. De repente a porta range e o vento bate nas janelas; Kiedril estremece, e depressa, quase inconscientemente, mete na boca um pedaço enorme de frango que não pode engolir. Novos risos. “Está pronto?”, pergunta-lhe o senhor dando voltas pelo aposento. “Vai já, senhor... estou a prepará-lo”, diz Kiedril, que está muito bem sentado à mesa e com a maior tranquilidade se dispõe a comer a ceia do amo. O público estava visivelmente encantado com a insolência e a astúcia do criado e com o fato de o senhor ser um palerma. É preciso reconhecer que, efetivamente, Podsílkin era digno de elogio. A frase “Vou já, senhor..: estou a prepará-lo”, disse-a de uma maneira admirável. Sentado à mesa, põe-se a comer com sofreguidão, dá um pulo a cada passo do amo, não vá ele reparar no seu atrevimento; assim que ele dá meia-volta, esconde-se debaixo da mesa e esconde também o frango. Até que saciou já um pouco o seu apetite; chegou o momento de atender o senhor. “Kiedril, isso está pronto?”, grita o amo. “Já está!”, responde descaradamente Kiedril, reparando que já pouco resta para o senhor. De fato, há apenas no prato um lombo de frango. O senhor, carrancudo e preocupado, senta-se à mesa sem reparar em nada e Kiedril coloca-se atrás da cadeira com a toalha. Cada palavra, cada gesto, cada careta de Kiedril,quando, voltado para o público, aponta o tolo do patrão, provoca nos espectadores gargalhadas irreprimíveis. Mas eis que, ainda mal o senhor provou o primeiro pedaço, se apresentam os demônios. Agora já não é possível compreender nada e nem os próprios diabos se apresentam na maneira como as pessoas imaginam: por uma abertura lateral abre-se uma porta e aparece nela um vulto branco, mas, em vez de cabeça, tem uma lanterna com velas; outro fantasma, também com uma lanterna na cabeça, segura nas mãos um gadanho. Por que as lanternas, por que o gadanho, por que os diabos de branco? Ninguém o pode explicar. Embora, afinal, ninguém pense nisso. Assim é e assim deve ser. O senhor volta-se para os diabinhos, com bastante coragem, e comunica-lhes que está disposto a ir com eles. Mas Kiedril tem medo; como uma lebre, esconde-se debaixo da mesa; mas, apesar do seu medo, não se esquece de pegar na garrafa que está em cima da mesa. Os diabos, passado um momento, desaparecem. Kiedril sai de debaixo da mesa; mas ainda mal senhor começa a atirar-se de novo ao frango, logo três diabos penetram outra vez no quarto, o agarram por trás e carregam com ele. “Kiedril, salva-me!”, grita o patrão. Mas Kiedril não pensa em tal coisa. Desta vez levou consigo para debaixo da mesa a garrafa, o prato e até o pão. Mas ei-lo agora sozinho, pois não estão nem os diabinhos nem o patrão. Kiedril sai do seu esconderijo, relanceia a vista à sua volta e um sorriso ilumina o seu rosto. Pisca o olho com malícia, senta-se no lugar do senhor e, fazendo um sinal para o público, murmura em voz baixa:
— Eia! Agora já estou sozinho... sem patrão!
Todos acolhem este dito com uma gargalhada. No entanto ele acrescenta a meia-voz, dirigindo-se confidencialmente ao público e piscando o olho cada vez com uma malícia mais divertida:
— O patrão foi para os diabos!
O entusiasmo dos espectadores não tem limites. Além daquilo de os diabos terem levado o patrão, a frase foi dita com tal intenção, com uma careta tão cômica e ao mesmo tempo tão solene que, de fato, era impossível não aplaudir. Mas a felicidade de Kiedril não durou muito. Mal acabara de segurar na garrafa, deitar vinho num copo e dispor-se a bebê-lo quando, de repente, eis outra vez os demônios que se aproximam por trás, nas pontas dos pés, e começam a desancar-lhe as costas. Kiedril grita a plenos pulmões; o seu medo é tanto que não se atreve a voltar-se. Também mal pode defender-se: tem nas mãos a garrafa e o copo, dos quais não tem coragem de separar-se. Abrindo a boca de espanto, permanece sentado meio minuto, com os olhos fixos no público, com uma expressão tão cômica de medo e covardia que decerto poderia servir de modelo para um quadro. Agarram-no por fim, levam-no com a garrafa e tudo, enquanto pateia no chão e grita. Os seus gritos são ouvidos para lá dos bastidores. Mas o pano cai e todos riem, todos estão entusiasmados. Então a orquestra começa a tocar a kamárinskaia.
Começa baixinho, de um modo quase inaudível, mas o motivo vai-se avolumando cada vez mais, o compasso acelera-se, e ouve-se o ritmo das pancadas nas tampas das balalaicas... A pantomina começa durante a kamárinskaia, no seu auge, e teria sido ótimo que Glinka pudesse tê-la ouvido no presídio.
O cenário representa o interior duma cabana, onde se veem o moleiro e a mulher. O moleiro, sentado num canto, prepara os arreios do cavalo; a mulher, noutro canto, fia linho. Quem faz o papel da mulher é Sirótkin; o do moleiro é Nietsvietáiev.
Devo dizer que as nossas decorações eram pobríssimas. Tanto nesta como na peça anterior e nas outras, chegávamos a compreender mais pela imaginação do que por aquilo que víamos com os olhos. O lugar da parede traseira estava coberto com uma espécie de tapete ou gualdrapa de cavalo; a frontaria da direita, por uma colcha velha. O lado esquerdo, descoberto, de maneira que víamos as esteiras. Mas os espectadores não eram exigentes e conseguiam compensar a imaginação com a realidade, tanto mais quanto os presos são bem capazes disso. “Dizem-lhe que é um jardim, e ele toma-o por tal; que é uma casa, será uma casa; que é uma Cabana; será... Tanto faz e não é preciso estar com mais cerimônias.” Sirótkin estava muito gracioso no seu disfarce de mulher. Entre os presos ouviram-se alguns galanteios em voz baixa. O moleiro termina o seu trabalho, pega no gorro e no chicote, aproxima-se da mulher e dá-lhe a entender por sinais que tem de sair, mas que, se na sua ausência acontece qualquer coisa... bom, para isso tem ali o chicote. A mulher ouve-o e concorda com um gesto afirmativo da cabeça. Provavelmente já conhece bem aquele chicote: a mulher costuma extraviar-se.
O marido sai. Ainda mal chegou à porta, já a mulher o ameaça com o punho. Decorrem alguns momentos; a porta abre-se e aparece um vizinho, moleiro também, um camponês que veste caftã e usa barba. Traz um presente, um lenço vermelho. A mulher põe-se a rir; mas, assim que o camponês tenta abraçá-la, logo a porta se abre. Onde meter-se? A mulher esconde-o imediatamente debaixo da mesa e ela volta para a roca. Aparece outro adorador: é um escriturário, em uniforme militar. Até aqui a pantomina segue de maneira irrepreensível: cada gesto é exato, até no mínimo pormenor. Havia razão para uma pessoa se admirar ao ver aqueles atores improvisados e, sem querermos, chegaríamos a pensar: “Quantas energias e quanto talento se perdem às vezes, aqui, na Rússia, inutilmente, no cativeiro e nos trabalhos forçados!” Mas o preso que fazia o papel de escriturário devia ter já trabalhado em teatros da província ou caseiros, e pensava que os nossos atores, do primeiro ao último, não percebiam nada do assunto e não se portavam como convinha no palco, E ei-lo que se conduz como se conduziam e falavam antigamente nos teatros dos heróis clássicos: caminha a largos passos e ainda não avançou o outro pé, quando para de repente, deita para trás todo o corpo e a cabeça, olha arrogantemente à sua volta e... dá outra passada. Mas se tal maneira de caminhar era já ridícula nos heróis clássicos, mais grotesca se tornava ainda num escriturário militar e numa cena cômica. Entretanto o nosso público pensava que, provavelmente, era assim que era preciso fazer, e aceitava as grandes passadas do esgalgado escriturário como um fato consumado, sem crítica especial. Mal o escriturário avançara até o centro do palco, logo se ouviu outra voz que chamava; a dona da casa fica outra vez atarantada. Onde esconder o escriturário? Num baú que, felizmente, está aberto. O escriturário acocora-se no baú e a mulher fecha-o à chave. Então aparece um visitante especial, também seu pretendente, mas de uma categoria particular. É um brâmane e vem com o trajo próprio. Soa uma risada geral entre os presos. Quem faz de brâmane é o preso Kóchkin e desempenha esse papel lindamente. Tem um tipo bramânico. Por meio de gestos, exprime toda a grandeza do seu amor. Ergue as mãos para o céu e depois leva-as ao peito, ao coração; de repente, mal acabou com essas ternuras, ouve-se na porta uma pancada forte. Pela maneira de bater conhece-se que é o dono da casa. A mulher fica assustada; fora de si, o brâmane torce as mãos, como se estivesse asfixiado, e suplica-lhe que o esconda. Empurra-o rapidamente para trás do armário; mas, esquecendo-se de abrir a porta, volta para a roca e põe-se a fiar, sem ouvir as pancadas que o marido bate na porta; e com o medo pôs-se a fiar um fio imaginário e dá voltas a um fuso que se esqueceu de apoiar no chão. Sirótkin representa admiravelmente essa expressão de susto. Mas o dono da casa abre a porta com um pontapé e aproxima-se da mulher com o chicote. Viu tudo, pois ficara à espreita, e dá-lhe a entender, espetando três dedos no ar, que ela tem escondidos três homens. Depois começa a procurar os homens. Primeiro, encontra o vizinho e expulsa-o da cabana aos empurrões. O escriturário, acovardado, quis escapar-se; levanta a tampa do baú com a cabeça e dá assim ocasião a que o vejam. O dono da casa deita-lhe uma chicotada, e, desta vez, o escriturário apaixonado não se porta rigorosamente à maneira clássica. Resta o brâmane; o moleiro procura-o durante muito tempo, até que por fim o encontra num canto, atrás do armário; faz-lhe primeiro uma leve reverência e, puxando-o pelas barbas, leva-o para o centro do palco. O brâmane tenta defender-se, grita: “Maldito, maldito!” (a única palavra que se pronunciava na pantomina); mas o campônio não está com meias medidas e trata-o à sua maneira. A mulher, ao ver que se aproxima a sua vez, larga o fuso e sai da cabana correndo. O banquinho rola pelo chão e os presos soltam uma gargalhada. Ali, sem olhar para mim, aperta-me a mão e diz-me: “Olha! O brâmane, o brâmane!” Mas este também não consegue conter o riso. O pano cai. Principia nova cena.
Mas não vou descrevê-las todas. Havia ainda mais umas duas ou três. Todas elas cômicas e de uma alegria natural. Se não tinham sido escritas pelos próprios presos, tinham pelo menos posto em cada uma delas algo da sua lavra. Quase todos os atores improvisavam da sua cabeça, de maneira que, na noite seguinte, costumava o mesmo ator representá-lo de maneira um pouco diferente. A última pantomina, de caráter fantástico, acabava com um bailado. Enterravam um morto. O brâmane, com os seus numerosos servidores, faz sobre o féretro vários gestos; mas de nada lhe valem. Finalmente ouve-se uma voz: “O sol já se põe!” O morto ressuscita e todos, muito contentes, põem-se a dançar. O brâmane dança com o morto, e dança de uma maneira especial, à brâmane. E com isto dá-se por terminado o espetáculo, até a noite seguinte. Os nossos saem todos alegres e satisfeitos; elogiam os atores, agradecem ao suboficial. Não se ouviu nenhuma disputa. Todos se mostram invulgarmente contentes, até felizes, e deitam-se, não como das outras vezes, mas com a alma em paz. “Mas por quê?”, perguntar-se-á. Não será isto um sonho da minha fantasia? É verdadeiro, real. Só em raras ocasiões se permite a esta pobre gente viver à sua maneira, divertir-se como pessoas, viver, ainda que só por uma hora, de uma maneira que não seja a do presídio; e o homem muda logo moralmente, ainda que seja só por uns minutos... Mas eis que já é noite profunda. Estremeço e acordo bruscamente; o velho continua rezando junto do fogão e ali ficará até amanhecer. Ali dorme tranquilo junto de mim. Lembro-me de que ao deitar-se ainda sorria, falando com os irmãos acerca do teatro e, sem querer, fixo o olhar no seu rosto plácido, infantil. Pouco a pouco, começo a recordar tudo: os últimos dias, a festa, todo aquele mês... Ergo a cabeça com receio e contemplo os meus companheiros adormecidos à luz trêmula das velas de sebo do presídio. Contemplo os seus pobres rostos, os seus pobres catres, toda a sua miséria e nudez irremediáveis; contemplo e parece-me que me convenço de que tudo isto é o prolongamento dum vago sonho e não realidade concreta. Mas não, é realidade. Eis que se ouve não sei que gemido: alguém mexe uma mão, pesadamente, e as cadeias rangem. Outro estremece durante o sono e começa a falar... e o velho do fogão reza por todos os cristãos ortodoxos, e ouve-se a sua voz plácida, branda, tranquila: “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de nós!”
“Não é para sempre que estou aqui, mas apenas por alguns anos”, penso, e deixo cair outra vez a cabeça sobre a almofada.
O HOSPITAL
Passado pouco tempo das festas caí doente e levaram-me ao nosso hospital militar. Era um edifício particular, que ficava a meia versta do forte. Um amplo local de um só andar, pintado de amarelo. No verão, quando começaram os trabalhos de reboco, empregaram nele uma enorme quantidade de ocre. No vasto pátio do hospital ficavam a moradia dos médicos e outros edifícios. No corpo principal havia apenas as salas para os doentes. Eram muitas; mas destinavam-nas aos presos, somente dois, e estavam sempre cheias, sobretudo no verão, de maneira que, com muita frequência, era preciso juntar as camas. Estas salas regurgitavam de todo gênero de gente infeliz. Para lá iam também os acusados militares de todas as classes, os condenados a castigos corporais, os que já tinham sofrido os castigos, os que tinham adoecido durante a viagem e precisavam ir ainda para mais longe e, finalmente, os da companhia de castigo: essa instituição especial, de correção, para a qual eram enviados os soldados prevaricantes e dos quais pouco havia a esperar, quanto à emenda na sua conduta, e da qual saíam, geralmente ao fim de dois ou mais anos, transformados nuns parasitas, como seria difícil encontrar outros iguais. Os presos que adoeciam davam parte da sua doença ao suboficial, geralmente da parte da manhã. Apontavam imediatamente o seu nome num livro e enviavam o doente, juntamente com esse livro e uma sentinela, para o lazareto do batalhão.
Lá eram examinados pelo médico a maioria dos doentes de todos os comandos militares distribuídos pelo forte, e aqueles que fossem considerados verdadeiramente doentes eram enviados para o hospital. Tomaram também nota do meu nome no livro, e às duas horas, quando todos os nossos saíam já do presídio para o trabalho da tarde, fui eu conduzido ao hospital. O preso doente costumava levar consigo o dinheiro que podia, pão (pois durante todo aquele dia não podia contar com a comida do hospital), o seu cachimbo, a bolsa do tabaco, fuzil de pederneira e isca. Estes últimos objetos eram cuidadosamente escondidos nas botas. Entrei no vestíbulo do hospital, não sem uma certa curiosidade por aquela nova e para mim desconhecida variação na nossa vida presidial.
Estava um dia morno, triste e nublado: um desses dias em que certos edifícios como um hospital tomam um aspecto especialmente sombrio e lúgubre. Entramos com a escolta no vestíbulo, onde havia dois biombos de cobre e onde aguardavam já outros dois doentes, dos sentenciados a suplício, também com a respectiva escolta. O feldscher apareceu, olhou-nos com indolência e autoridade e, ainda com mais insolência, foi avisar o médico de serviço. Este veio logo: examinou-nos, tratou-nos com muita amabilidade e deu-nos papeletas de doentes, nas quais estavam escritos os nossos nomes. As outras indicações referentes à doença, os medicamentos receitados etc. já tinham sido comunicados ao enfermeiro encarregado das salas dos presos. Eu já ouvira dizer que os presos não se cansavam de gabar os seus médicos. “Os pais não podiam ser melhores”, respondiam às minhas perguntas, quando entrei na enfermaria. Entretanto, despimo-nos. Tiraram-nos o sobretudo e a roupa branca com que entramos e vestiram-nos roupa branca do hospital; deram-nos também meias compridas, pantufas, toucas de dormir e umas batas espessas, de cor preta, feitas de pano e de feltro. Essas batas estavam sujíssimas; mas só reparei nisso quando pus a minha. Pouco depois conduziram-nos às enfermarias dos presos, que ficavam situados ao fundo dum corredor muito comprido, de teto alto e limpo. O asseio exterior em todas as coisas era surpreendente: tudo quanto via pela primeira vez me parecia brilhante. Aliás, podia ser que me parecesse assim depois de ter estado no presídio. Os dois sentenciados foram para a enfermaria da esquerda; eu, para a direita. Junto da porta, segura por uma cavilha de ferro, estava uma sentinela, de espingarda no braço e, a seu lado, uma subsentinela. O jovem suboficial (da reserva do hospital) mandou que me introduzissem e veio ter comigo a uma sala comprida e estreita, ao longo de cujas duas paredes mais compridas se alinhavam cerca de 22 camas, entre as quais havia duas ou três desocupadas. As camas eram de madeira, pintadas de verde, que todos nós conhecemos tão bem na Rússia: essas mesmas camas que, em virtude de não sei que fatalidade especial, não conseguem nunca ver-se livres de percevejos. Fiquei num canto, na parede onde havia janelas.
Conforme já disse, estavam ali presos dos nossos, dos do presídio. Alguns já me conheciam ou, pelo menos, já me tinham visto antes. Os mais numerosos eram os que estavam pendentes de castigo e os das companhias correcionais. Os gravemente doentes, isto é, aqueles que não se levantavam da cama, eram poucos. Outros, levemente doentes ou convalescentes, estavam sentados em cima das suas camas ou passeavam de um lado para o outro na sala, pois havia um espaço livre entre as camas, suficiente para passear. Na sala havia um ambiente sufocante, doentio. O ar estava carregado de diversas emanações desagradáveis e do cheiro dos remédios, sem contar que todo o dia o fogão estava aceso num canto. Sobre a minha cama estava um roupão caído. Vesti-o. Debaixo do roupão apareceram um vestuário de pano, forrado de algodão, uma roupa interior grosseira e de asseio duvidoso. Junto da cama havia uma mesinha e, sobre ela, um jarrinho e um copinho de estanho. Tudo isto se cobria com um paninho que me tinham entregado. Debaixo da mesinha havia também uma prateleira onde se guardava uma chaleira para os bebedores de chá, outros copinhos de madeira com kvas etc. mas os bebedores de chá também eram poucos entre os doentes. O cachimbo e a bolsa do tabaco, que tinham quase todos, sem excluir os tuberculosos, eram escondidos debaixo das camas. O médico e os que estavam às suas ordens quase nunca reparavam nisso e, quando surpreendiam algum com o cachimbo na boca, faziam-se desentendidos. Aliás, os presos eram sempre prudentes e iam fumar para junto do fogão. Talvez, alta noite, se atrevessem a fumar na cama; mas de noite ninguém entrava na enfermaria; a não ser o oficial de guarda ao hospital, quando muito.
Até então eu nunca tinha estado em nenhum hospital; por isso tudo quanto me rodeava era para mim extraordinariamente novo. Observei que despertava uma certa curiosidade. Já tinham ouvido falar de mim e olhavam-me muito descaradamente, até com uma certa presunção de superioridade, como nos colégios olham o novato ou o solicitante, nos lugares oficiais. À minha direita estava deitado um escriturário pendente de castigo, filho natural dum capitão reformado. Tinham-lhe movido um processo por falsificação de moeda e estava ali havia já um ano, segundo parecia, sem estar absolutamente nada doente, mas por ter conseguido convencer os médicos de que tinha um aneurisma. Conseguiu o seu objetivo; perdoaram-lhe o presídio e o castigo corporal e, passado outro ano, enviaram-no para T... k, para tratar-se num hospital. Era um rapaz robusto, forte, de 28 anos, um grande patife, um criminoso, muito esperto, muito orgulhoso e soberbo da sua pessoa, vaidoso, de uma maneira quase mórbida, plenamente convencido de que era o homem mais honesto e justo do mundo, sem culpa absolutamente nenhuma, e viveu sempre nesta convicção. Foi o primeiro a dirigir-me a palavra e começou a interrogar-me com curiosidade, e pôs-me ao corrente das regras exteriores do hospital, com todos os pormenores. Antes de mais informou-me imediatamente que era filho dum capitão. Morria por dar a entender que era de origem nobre, ou, pelo menos, bem-nascido. A seguir foi um doente da companhia correcional, o qual começou a afirmar-me que conhecia muitos dos aristocratas antes deportados, designando-os a todos pelos seus nomes e sobrenomes.
Era um soldado já de cabelos brancos; via-se, no seu rosto, que tudo aquilo era mentira. Chamavam-lhe Tchekunov. Era evidente que se tinha aproximado para me falar, suspeitando, provavelmente, que eu tivesse dinheiro. Como reparasse no meu embrulhinho de chá e de açúcar, ofereceu-me imediatamente os seus serviços: arranjar-me uma chaleira e fazer-me nela o chá.
A chaleira, tinha-me prometido M... tski que ma enviaria no dia seguinte, do presídio, por algum preso dos que iam trabalhar ao hospital. Mas Tchekunov arranjou-me tudo. Trouxe um recipiente de ferro fundido mais um copo; ferveu a água, fez o chá; em suma: serviu-me com extraordinária diligência, o que lhe valeu imediatamente as observações trocistas dum dos presos. Esse doente era um tuberculoso, que tinha a sua cama em frente da minha, de nome Ustiântsev, soldado pendente de julgamento, aquele mesmo que bebeu um copo de aguardente com uma forte dose de tabaco picado, por medo do castigo, e do qual já falei. Até então tinha permanecido silencioso e respirando ofegantemente, olhando-me fixa e seriamente e seguindo com aborrecimento os movimentos de Tchekunov. Aquela estranha e azeda seriedade transmitia características particularmente cômicas ao seu descontentamento. Por fim, não pôde conter-se:
— Olhem que borra-botas! Já arranjou patrão! — exclamou numa voz entrecortada e arquejante, de tão débil que estava. Tinha chegado já aos últimos dias da sua existência.
Tchekunov, muito aborrecido, encarou-o:
— Quem é que é o borra-botas? — exclamou, olhando com desprezo para Ustiântsev.
— O borra-botas és tu! — respondeu imediatamente o outro, num tom de tanta segurança como se se sentisse no pleno direito de insultar Tchekunov e tivesse o dever de o fazer.
— Borra-botas, eu?
— Tu, claro. Escutem, minha gente, parece que não acredita! Fingindo-se admirado!
— A ti que te importa? Não vês que ele está, só, indefeso? Vê-se bem que está acostumado a ter quem o sirva. Por que não hei de eu servi-lo, focinho de porco?
— Quem é que é focinho de porco?
— Tu mesmo.
— Eu, focinho de porco?
— Tu, sim!
— Ah! És assim tão jeitoso? Tens uma cara que parece um ovo de grou... Se eu tenho focinho de porco...
— Ora, se tens! Olhem, ele já está quase a esticar o pernil! Mas até assim tem de papaguear. Por que estás aí a palrar?
— Por quê? Mais depressa me inclino diante de um sapato do que de uma alpargata. O meu pai não se inclinava e mandou-me que também não o fizesse. Eu... eu...
Queria continuar mas teve um tremendo ataque de tosse que durou uns minutos e a seguir cuspiu sangue. Depois, um suor frio, torturante, lhe escorreu pela testa estreita. A tosse não o deixou continuar falando; via-se perfeitamente nos seus olhos a vontade que tinha de continuar insultando o outro; mas, devido à falta de forças, limitava-se a agitar o braço... De maneira que Tchekunov acabou por esquecer-se dele.
Eu senti que a malevolência do tuberculoso se dirigia mais contra mim do que contra Tchekunov. Pelo fato de Tchekunov querer servir alguém e ganhar assim alguns copeques, não tinha nada que ralhar com ele nem que olhá-lo com desdém. Neste ponto, a gente do povo não é tão exigente e sabe muito bem fazer distinções. Eu não fui particularmente simpático para Ustiântsev, não lhe agradava o meu chá nem que eu, até de cadeias, fosse como um senhor, que não pode passar sem servidores, embora eu não tivesse pedido nada a ninguém nem quisesse nenhum gênero de serviços. De fato, eu desejava sempre fazer tudo, eu próprio, e desejava até bastante não deixar perceber que era um homem de mãos brancas, delicado, senhoril. Nisto, sobretudo, punha o meu amor-próprio, já que tive de falar no caso. Mas aconteceu que — e não me lembro como é que isso acontecia — nunca pude repelir os vários servidores e cortejadores, que se agarravam e acabavam por apoderar-se completamente de mim, de maneira que, na realidade, eram eles os meus verdadeiros senhores e eu o seu criado; mas na aparência era notório que eu era de fato um senhor que não pode prescindir de serviços e de criados. O que sem dúvida me custava muito. Mas Ustiântsev era um tuberculoso, um homem azedado. Os outros doentes tinham ares de indiferença, até com sua presunção de altivez. Lembro-me que estavam todos preocupados com uma circunstância particular: pelas conversas dos presos sabia eu que nessa mesma noite haviam de levar ali um condenado, ao qual castigavam naquele mesmo instante com as vergastadas. Os presos aguardavam o novato com certa curiosidade. Diziam: “No entanto o castigo é leve... Só quinhentas vergastadas.”
Relanceei a vista à minha volta por um momento. Tanto quanto pude observar, os doentes que ali existiam eram na sua maior parte doentes de escorbuto e dos olhos... Doenças predominantes naquela região. Havia na sala alguns desses doentes. Dos outros, verdadeiramente doentes, havia-os com febres, com úlceras várias e doentes do peito. Ali não era como nas outras salas; ali estava reunida toda a espécie de doenças, até venéreas. Disse verdadeiramente doentes porque havia alguns que o não estavam, que iam para ali simplesmente para descansar. O médico recebia-os amavelmente, por compaixão, sobretudo quando havia algumas camas disponíveis. A assistência na companhia correcional e no presídio, comparada com a do hospital, parecia tão má que muitos presos optavam gostosamente por se meterem na ama, apesar do ar viciado e da sala fechada. Havia até amadores da cama, da vida de hospital; e sobretudo, mais do que ninguém, os da companhia de castigo. Eu passava revista aos meus companheiros, com curiosidade; mas lembro-me do que me despertou então em mim um, que estava já na última, do presídio, também tuberculoso, que ocupava uma cama perto da de Ustiântsev, e ficava portanto quase na minha frente. Chamavam-lhe Mikháilov; duas semanas antes ainda eu o vira no presídio. Havia muito tempo que estava doente e ter-lhe-ia sido muito útil ter-se hospitalizado já há mais tempo; mas tinha-se aguentado a pé firme, com uma paciência obstinada, aliás inutilmente, e só depois das festas entrou no hospital, para morrer ali, passadas três semanas, de uma tuberculose horrível: estava completamente gasto, o homem. A mim, agora, impressionava-me a sua cara extraordinariamente transfigurada, a sua cara, que também já tinha sido uma das que mais me impressionaram quando eu entrei no presídio; lembro-me de que já então reparei muito nele. Junto dele havia uma cama ocupada por um soldado da companhia de castigo, um homem já velho, de uma cara dura e repelente... Bom, mas não vou enumerar todos os doentes. Recordo agora esse velho unicamente porque me provocou também então uma certa impressão, e num minuto consegui obter uma ideia bastante clara de algumas particularidades da sala dos presos. Lembro-me de que o tal velho tinha nessa altura um catarro fortíssimo. Não fazia outra coisa senão espirrar e passou uma semana espirrando, mesmo quando estava dormindo, sob a forma de salvas de cinco e até de seis espirros consecutivos, e de cada vez exclamava conscienciosamente: “Senhor, mas que castigo!” Sentava-se em cima da cama e atafulhava avidamente o nariz de tabaco, que tirava de um pacotinho de papel, para espirrar com mais força e maior gosto. Espirrava sobre um lenço de algodão aos quadrados, seu, cem vezes lavado e muito desbotado, com o qual esfregava o nariz de uma maneira especial, vincando uma infinidade de rugazinhas pequenas, e pondo à mostra as raízes dos seus velhos e denegridos dentes e também as suas gengivas vermelhas e apodrecidas. Depois de espirrar, abria imediatamente o lenço, olhava com muita atenção os moncos ali acumulados abundantemente e depois limpava-o ao seu encardido roupão de hospital, de maneira que todo aquele monco ficava ali aderente, enquanto o lenço ficava apenas úmido. Assim fez toda a semana. Aquela mesquinha, tacanha maneira de poupar o lenço à custa do roupão do hospital não provocava protesto algum da parte dos doentes, embora alguém depois tivesse de pôr aquele mesmo roupão. Mas eu até fiquei assustado naquele momento e pus-me imediatamente a passar revista com repugnância e curiosidade ao meu roupão. E então reparei que havia já bastante tempo que o seu cheiro forte me chamara a atenção; tinha aquecido no meu corpo e cheirava cada vez mais a xarope, a emplastros e, pelo menos era o que me parecia, não sei a que podridão, o que era explicável, pois não saíra dos ombros dos doentes havia já tempos imemoráveis. Talvez o seu forro de algodão tivesse sido lavado alguma vez, mas não sei ao certo. Mas esse forro estava agora impregnado de toda espécie de líquidos repugnantes, de compressas, da água que escorrem as cantáridas etc. Nessa sala de presos entravam com bastante frequência os supliciados com as vergastadas, de costas chagadas; aplicavam-lhes compressas; mas depois, o roupão, que punham diretamente em cima da camisa úmida, não podia de maneira nenhuma secar, pois absorvia tudo. E durante esses vários anos, durante todo o meu tempo de presídio, sempre que tinha de hospitalizar-me (o que me acontecia com frequência), punha sempre esse roupão com uma enorme desconfiança. Desagradavam-me especialmente os piolhos que costumam encontrar-se nesses roupões e que eram colossais, extraordinariamente gordos. Os presos esmagavam-nos com prazer e quando algum morria, com um estalido debaixo da unha grossa e dura de um deles, podia avaliar-se pela cara do caçador o grau de prazer que sentia com isso. Os percevejos também me repugnavam muito e às vezes acontecia que por um longo e tedioso serão de inverno toda a sala se levantava para exterminá-los. E embora aparentemente tudo estivesse muito limpo na enfermaria (não falando, é claro, no ar pesado), não tinham cuidado com o asseio dos interiores. Os doentes já estavam acostumados a isso e pensavam até que tinha de ser assim, e eles próprios também não observavam regras especiais quanto a asseio. Mas falarei mais adiante das regras...
Assim que Tchekunov me serviu o chá (é preciso dizer que foi feito na água da sala, que traziam uma vez em cada 24 horas, para todos, e se infectava rapidamente naquele ambiente viciado), a porta abriu-se com um certo barulho e, acompanhado por uma forte escolta, entrou um soldado que acabara de sofrer o castigo das vergastadas. Era aquela a primeira vez que eu via um supliciado. Depois entraram ali com frequência até alguns dos que sofriam castigos graves, e de todas as vezes aquilo constituía uma grande distração para os doentes. No entanto acolhiam-nos geralmente com uma expressão de severidade forçada e até também com certa gravidade fingida. Se bem que a recepção dependesse, em parte, do grau de importância do crime e, por conseguinte, da grandeza do castigo. Um indivíduo gravemente supliciado e, portanto, com fama de criminoso, gozava de maior respeito e atenção do que um simples desertor, como esse que agora nos traziam. Mas nem num nem noutro caso havia condolências especiais nem se faziam observações particularmente azedas. Ajudavam o infeliz em silêncio e amparavam-no, sobretudo se não pudesse passar sem ajuda. Até os feldscher sabiam que entregavam o paciente em mãos hábeis. O auxílio prestado consistia, de maneira geral, na frequente e indispensável mudança de um lençol ou da própria camisa empapada em água, que aplicavam sobre as costas doloridas, sobretudo quando a vítima não estava em condições de socorrer-se a si próprio e, além disso, na habilidosa extração das farpas que ficavam muitas vezes enterradas nas costas, farpas essas saídas dos varapaus com os quais tinha sido executado o castigo. Essa última operação em geral era muito dolorosa para o enfermo. Mas eu ficava sempre admirado do extraordinário estoicismo com que eles suportavam a dor física. Muitos supliciados vinham muitíssimo ferido e no entanto raramente algum deles se queixava. Somente o seu rosto parecia transfigurar-se, empalidecer; os seus olhos brilhavam: tinham o olhar fixo, inquieto; os lábios tremiam-lhes, os dentes batiam-lhes como se quisessem morder e não raro que se mordessem até fazer sangue. O soldado que acabava de chegar era um rapaz de uns 23 anos, forte, musculoso, de belo rosto, alto, moreno e bem proporcionado. Tinha as costas completamente laceradas. O corpo, completamente nu da cintura para cima; trazia no ombro um pedaço de lençol molhado, debaixo do qual lhe tremiam os membros todos, como se tivesse febre, e andou meia hora a passear para cima e para baixo na enfermaria. Eu contemplava o seu rosto; parecia que não pensava em nada naquele instante; olhava de maneira estranha e arredia, os olhos sobressaltados, e percebia-se perfeitamente que lhe era difícil fixar a atenção em qualquer coisa. Pareceu-me que olhava fixamente para o meu chão O chá estava quente; o vapor saía da chávena e o pobrezinho tiritava de frio, batendo os dentes. Convidei-o a beber. Aproximou-se de mim bruscamente e, em silêncio, pegou na chávena e bebeu de pé e sem açúcar, fazendo-o muito depressa e como se tivesse um empenho especial em não olhar para mim. Depois de o beber todo, devolveu-me a chávena em silêncio e, sem fazer sequer um movimento de cabeça, pôs-se outra vez a andar para cima e para baixo na sala. Ele estava lá para palavras e cumprimentos! Quanto aos presos, todos eles evitavam, por qualquer motivo, entabular conversa com o recruta castigado; mas começaram a ajudá-lo desde o primeiro momento; e depois pareciam pôr um empenho especial em não lhe prestar mais atenção, talvez com o fim de deixá-lo tranquilo e não importuná-lo com mais perguntas e compaixão, o que, segundo parecia, era tudo quanto ele desejava.
Entretanto, escureceu e acenderam a lamparina. Alguns presos pareciam ter também as suas velas privativas, embora não fossem muitas. Finalmente, depois da visita médica da noite, o suboficial tornou a contar todos os doentes e fechou a sala, deixando nela uma selha para de noite... Fiquei admirado ao saber que essa selha ficava ali toda a noite, quando o lugar que verdadeiramente lhe competia era o corredor, que estava a dois passos da porta. Mas era esse o hábito estabelecido. De dia tiravam os presos da sala, mas não por muito mais de um minuto; de noite nunca o faziam. As salas de presos não se pareciam com as vulgares, e o preso doente, até mesmo assim, levava o seu castigo. Quem fora o primeiro que impôs essa ordem... não sei; sei apenas que em tudo isto não havia nem uma ponta de ordem e que nunca toda a inutilidade desses formalismos se pôs tanto às claras como naquele caso. Essa disposição, é claro, não emanava dos médicos. Repito-o: os presos nunca se cansavam de gabar os seus médicos, consideravam-nos como pais e respeitavam-nos. Todos recebiam deles alguma demonstração de afeto, ouviam alguma palavra amiga, e o preso, desprezado por todos, apreciava aquilo, porque via a sinceridade e verdade daquela boa palavra e daquela carícia. Podia ter sucedido o contrário; ninguém teria pedido contas, ainda que se tivesse portado de outro modo; isto é, duro e desumano; eram bons, por verdadeiro amor à humanidade. E além disso eles compreendiam que ao doente, fosse quem fosse, preso ou não, era-lhe necessário o ar fresco como a qualquer outro doente de mais alta categoria. Os das outras salas, os convalescentes, por exemplo, podiam sair livremente para o corredor, fazer exercício, respirar um ar menos abafado que o das enfermarias, pesado e inevitavelmente sempre carregado de diversas emanações insalubres. É horrível e cruel imaginar agora até que ponto devia viciar-se aquele ar já viciado à noite, quando introduziam aquela selha, com a temperatura morna da sala e com enfermidades conhecidas, nas quais é impossível passar sem sair. Se há um momento disse que para o preso até a doença é castigo, isso não quer dizer, nem quero dizer agora, que o tivessem estabelecido para esse fim. Isso, naturalmente, teria sido uma absurda calúnia da minha parte. Os doentes não se castigam. Ora, se é assim, conclui-se que alguma coisa grave, severa, imprescindível, obrigou os superiores a ditar essa medida, nociva, nas suas consequências. Qual a causa? Mas o pior está em ninguém saber explicar de maneira nenhuma a necessidade dessa e de outras muitas medidas, a tal ponto também incompreensíveis, que não só se torna impossível explicá-las como até vislumbrar a sua explicação. Como explicar semelhante crueldade inútil? Dizendo talvez que o preso pode ir para a enfermaria fingindo-se propositadamente doente, enganar os médicos, ir de noite à sala, a determinado lugar, e fugir, aproveitando-se da obscuridade? Tomar a sério a incongruência de tal suposição parece-me quase impossível. Fugir para onde? Fugir como? Fugir por onde? De dia tiram-nos um a um; pois podiam fazer o mesmo de noite. À porta há uma sentinela com a arma carregada. A retrete fica apenas a dois passos da sentinela; aliás, até aí vai o doente escoltado por uma sentinela que nunca o perde de vista. Lá há apenas uma janelinha de inverno com vidro duplo e com uma grade de ferro. Debaixo da janela, no pátio, e também debaixo das janelas das salas dos presos, há também uma sentinela toda a noite. Para sair pela janela seria preciso partir o vidro e a grade. Quem o consentiria? Mas suponhamos que primeiramente o fugitivo tivesse morto a sentinela, de maneira que não gritasse e ninguém desse por isso. Concedamos também esse absurdo: da mesma maneira teria de quebrar a janela e a grade. Não se esqueçam que aí, junto da sentinela, dormiam os doentes, e que a dez passos, na outra sala de presos, havia outra sentinela e outros doentes. É para onde fugir no inverno, com meias, sapatilhas, o roupão de doente e o gorro de dormir? Ora, sendo o perigo assim tão pequeno (na realidade ele não existia de maneira alguma), para que essa inútil tortura imposta a doentes que talvez se encontrem já nas derradeiras horas da sua vida, a doentes para os quais talvez o ar fresco seja ainda mais preciso do que para os sãos? Para quê? Nunca o pude compreender.
Visto que disse já uma vez “Para quê?” e a palavra me escapou, não posso deixar de referir-me a outra questão que também durante uns anos pus, mentalmente, perante o fato mais enigmático, e para a qual também de maneira nenhuma consegui arranjar resposta. Não posso deixar de falar nisso, ainda que sejam apenas duas palavras, antes de entrar na minha narrativa. Refiro-me às cadeias, das quais nem na doença o preso consegue livrar-se. Até os tuberculosos morriam à minha vista com as cadeias postas. E, no entanto, todos estavam acostumados a isso e todos as consideravam como algo perfeitamente indiscutível. Nem há sequer motivo para pensar que alguém se preocupasse com isso, tanto mais que nem os médicos se lembraram, durante todos esses anos, nem uma só vez, de pedir às autoridades que tirassem os ferros de alguns dos presos ou de doentes graves, especialmente aos tuberculosos. Pensemos que as cadeias, só por si, eram muito incomodativas, só Deus sabe quanto. Pesam umas oito a 12 libras. Carregar com dez libras não era muito angustioso para um homem são. Além disso disseram-me que, por causa das cadeias, passado alguns anos, os pés começam a adelgaçar. Não sei se isso será verdade, embora realmente tenha certos visos de verossimilhança. Um peso, embora reduzido, pesando apenas dez libras, constantemente ligado ao pé, desfigura um pouco anormalmente todo o membro e, passado algum tempo, pode resultar em consequências prejudiciais... Mas suponhamos que para um homem são isso não represente nada. O mesmo podemos supor para o doente? Admitamos também que não represente nada para um doente vulgar. Mas, repito, e para os doentes graves, e para os tuberculosos, para os que até sem isso ficam de mãos e pés fincados, a um ponto tal que até uma palhinha lhes parece pesada? E se de fato os médicos se preocupassem com aliviar, ainda que fosse só os tuberculosos, isso constituiria só por si um verdadeiro e grande benefício. Suponhamos que surge alguém dizendo que o preso é um malvado indigno de comiseração; mas, até assim, por que agravar o castigo a quem já está assinalado pelo dedo de Deus? É impossível acreditar que isso se faça só por castigo. Ao tuberculoso até a lei o exime aos castigos corporais. De maneira que temos de ver alguma medida misteriosa e importantíssima inspirada na prudência salvadora. Mas quê? É impossível compreendê-lo. Porque, no fundo, é muito difícil, quase impossível mesmo, que um tuberculoso possa fugir. Qual deles se lembraria de tal coisa, sobretudo conhecendo os graus de progresso da doença? Fingir-se tuberculoso para enganar os médicos e fugir... é impossível. Com essa doença não pode ser; conhece-se à primeira vista. E há ainda outra coisa: põem grilhetas nos pés duma pessoa somente para que não fuja ou para dificultar-lhe a fuga? Nada disso... As cadeias... são apenas uma desonra, uma vergonha e uma tortura, tanto física como moral. Pelo menos, é o que se pensa. Nunca as cadeias impediram alguém de fugir. O preso mais estúpido e bruto sabe limá-las sem grande dificuldade e muito rapidamente, ou quebrar os rebites com uma pedra. As grilhetas dos pés não constituem de maneira alguma um obstáculo para fugir; e uma vez que é assim, que põem cadeias aos presos apenas para castigá-lo, torno a perguntar: para que castigar um moribundo?
Neste momento em que escrevo isto, lembro-me perfeitamente de um que morreu tuberculoso, daquele mesmo Mikháilov que ocupava uma cama quase em frente da minha, perto de Ustiântsev, e que morreu, lembro-me, no quarto dia da minha entrada no hospital. Talvez eu tenha agora falado dos tuberculoses, repetindo involuntariamente as impressões e ideias que me comoveram por ocasião dessa morte. Aliás, eu mal conhecia Mikháilov. Era ainda um homem muito novo, de uns 25 anos, alto, seco, com uma figura bem proporcionada. Pertencia à seção especial e estava sempre estranhamente taciturno, sempre tranquilo, como que animado de uma tristeza plácida. Parecia que estava a asfixiar-se. Adoeceu do peito precisamente no presídio. Pelo menos era o que os presos diziam quando falavam dele, entre os quais deixou uma boa recordação. Lembro-me ainda de que tinha uns olhos muito bonitos e, de fato, não sei por que me recordo tanto dele. Morreu às três da tarde de um dia frio e claro. Lembro-me de que o sol, atravessando os grossos vidros esverdeados das janelas, levemente cobertos de geada, o iluminava suavemente. Um grosso feixe dos seus raios batia sobre o infeliz. Morreu sem conhecimento e esteve respirando pesada e longamente durante duas horas. Desde a manhã que os seus olhos tinham começado a não reconhecer os que o cercavam. Queria afastar de si tudo o que o oprimia; respirava com dificuldade, profundamente, como se roncasse; o seu peito estava levantado, como se lhe faltasse o ar. Ele próprio afastou a roupa do leito, o vestuário, e, por fim, começou a rasgar a camisa. Era horrível olhar para aquele corpo longo, de mãos e pés descamados, só ossos, consumido, o peito levantado, com as costelas nitidamente marcadas, como as dum esqueleto. Não tinha mais nada sobre o corpo senão uma cruzinha de madeira numa bolsinha e a cadeia, pela qual parecia poder tirar agora o pé doente. Meia hora antes da sua morte já todos nós estávamos em silêncio e só falávamos casualmente e em voz baixa. Os que caminhavam... faziam-no nas pontas dos pés. Falavam pouco uns com os outros, de coisas secundárias, e, de quando em quando, olhavam para o moribundo, que cada vez arquejava com mais força. Finalmente, tateando e com uma mão insegura, procurou sobre o peito a bolsinha com a pequena cruz e começou a querer afastá-la, como se o incomodasse e oprimisse. Tiraram-lhe a bolsa. Dez minutos depois morria. Deram uma pancadinha na porta para chamarem a sentinela e participaram-lho. O enfermeiro entrou, olhou estupidamente para o morto e foi chamar o feldscher, um rapazinho muito bondoso, um pouco demasiado preocupado consigo próprio, que não tardou a aparecer; aproximou-se do morto com passos rápidos, pisando com força a sala silenciosa, e com cara de uma certa satisfação especial, especialmente estudada para aquele transe, como se já esperasse o acontecido, tomou-lhe o pulso, fez um movimento com a mão e foi-se. Participaram imediatamente à guarda o acontecimento; um dos presos exprimiu, numa voz discreta, o pensamento de que deviam fechar os olhos do morto. Houve outro que o escutou atentamente; aproximou-se do cadáver, em silêncio, e fechou-lhe os olhos. Quando reparou na cruzinha que jazia sobre a almofada, apanhou-a, pôs-se a olhá-la e, em silêncio, tornou a pô-la ao pescoço de Mikháilov; depois benzeu-se. Entretanto, a cara do morto tornou-se rígida; os raios do sol brincavam sobre ela; tinha a boca entreaberta; duas fiadas de dentes brancos e juvenis brilhavam por entre os lábios finos e pegados às gengivas. Até que a sentinela chegou finalmente, assim como o suboficial de guarda, de capacete e espingarda no braço, acompanhado por dois vigilantes. Aproximou-se com passos cada vez mais lentos, olhando assombrado para os presos silenciosos que o olhavam tristemente, de todos os lados. Quando chegou quase junto do morto, parou, rígido, como se tivesse medo. Impressionou-o o cadáver, completamente nu, esquelético, só com as cadeias e, de repente, desligou a corrente do seu capacete, tirou-o, sem que ninguém lho pedisse, e persignou-se longamente. Era uma cara severa, envelhecida, de homem experimentado. Lembro-me de que, nesse instante, estava junto dele Tchekunov, também já velho e encanecido. Durante esses momentos esteve sempre olhando para o suboficial, em silêncio e com multa atenção, diretamente e com insistência; e seguia com uma estranha atenção cada um dos seus gestos. Quando os seus olhos se encontraram com os dele, não sei por quê, o lábio inferior tremeu-lhe. Devia ter sentido qualquer coisa de estranho; abriu a boca e, rapidamente, apontando desoladamente o morto ao suboficial, disse:
— Ele também tinha mãe! — e retirou-se.
Lembro-me de que essas palavras me trespassaram literalmente... Por que teria ele as dito e por que se teria lembrado delas? Mas eis que começavam a levantar o cadáver; levantavam-no juntamente com o colchão; a palha rangia; as cadeias, no meio do silêncio geral, rolaram ruidosamente pelo chão... Apanharam-nas. Levaram o cadáver. De repente, todos começaram a falar alto. Ouviu-se o suboficial, no corredor, ordenar a alguém que fosse chamar o serralheiro. Era preciso tirar as algemas ao morto...
Mas já me afastei do assunto.
O HOSPITAL
(CONTINUAÇÃO)
Os médicos visitavam a enfermaria de manhã; apareciam todos às 11 horas, atrás do médico-chefe, e, uma hora antes deles, aparecia na sala a nossa ordenança. Nesse tempo tínhamos como médico de sala um homem novo mas que sabia do seu ofício; era amável, simpático, os presos gostavam muito dele e achavam-lhe só um defeito: ser demasiado modesto. Efetivamente, era inimigo de discussões; dir-se-ia que nós o intimidávamos; pouco faltava para que corasse; mudava a dieta ao primeiro pedido do doente e parecia disposto a receitar os medicamentos à medida da sua preferência. Aliás, era um homem fraco. É preciso reconhecer que, na Rússia, muitos médicos gozam do amor e do respeito do povo, o que é justamente merecido. Sei que as minhas palavras hão de parecer paradoxais, sobretudo se tivermos em conta a incredulidade geral do povo russo a respeito da medicina e dos medicamentos exóticos. De fato, as pessoas do povo, até há pouco tempo, ainda que sofressem das piores doenças, preferiam socorrer-se dos curandeiros ou dos remédios caseiros (que de maneira nenhuma são para desprezar), do que ir procurar o médico ou ir para o hospital. Mas, sem falar nisso, há uma circunstância muito importante, que não tem relação com a medicina, ou seja, a geral incredulidade de todo o povo a respeito de tudo quanto está ligado à burocracia, às formalidades; além disso a gente do povo tem medo e desconfiança dos hospitais, devido a certas histórias horríveis, frequentemente inventadas, mas que às vezes têm um certo fundamento. Mas temem principalmente a disciplina germânica dos hospitais, terem gente estranha à sua volta durante todo tempo da doença, a severidade a respeito da alimentação, as histórias acerca do implacável rigor dos feldscher e dos médicos, a dissecação e a extração das entranhas dos cadáveres etc. Além disso o povo pensa também: “Como pretender que um senhor nos cure, se os médicos, seja como for, são senhores também?” Mas, com um conhecimento mais profundo dos médicos (embora não sem exceções, mas sim na sua maior parte), todos estes medos desaparecem rapidamente; o que, a meu ver, está relacionado com a honestidade dos nossos médicos, sobretudo dos jovens. Muitos deles sabem granjear o respeito e também o amor do povo. Aliás, eu escrevo daquilo que vi e ouvi muitas vezes e em muitos lugares, e não tenho motivos para pensar que, noutros lugares, as coisas se passassem com demasiada frequência de outra maneira. Não há dúvida de que, algumas vezes, o médico deita contas aos seus ganhos, aproveita-se demasiadamente do seu hospital e quase se desinteressa dos doentes e até se esquece da medicina. Isso acontece, mas eu falo da maioria; ou, para melhor dizer, do espírito, da orientação que existe hoje nos nossos dias, na medicina. Esses outros, traidores da causa, lobos no redil das ovelhas, digam o que disserem para justificar-se, como que o meio os corrompe, jamais terão justificação, sobretudo se chegaram até o ponto de perderem o amor pela humanidade. Porque o amor da humanidade, os bons modos, a fraterna compaixão pelo doente, são às vezes mais necessários do que todos os medicamentos. Estamos num tempo em que é sinal de indiferença queixarmo-nos de que o meio nos devora. Suponhamos que isto seja verdade, que corrompa a nossa personalidade; mas nunca completamente e, frequentemente, um velhaco astuto que percebe o caso, encobre e justifica com a influência do meio não só a sua fraqueza mas também muito simplesmente a sua vileza, sobretudo sabe falar ou escrever bem. Bem, mas já estou outra vez a desviar-me do meu tema; queria apenas dizer que a gente de inferior condição é verdadeiramente mais incrédula a respeito da administração sanitária do que dos médicos. Assim que chega a perceber como estes são, na realidade, não tarda a perder muitos dos seus antigos preconceitos. A instalação dos nossos sanatórios, até ao presente, não corresponde muito ao espírito do povo; é-lhe hostil, com os seus costumes regulamentados, e não estão em condições de granjear decididamente a sua fé e o seu respeito. Pelo menos é o que me parece, a avaliar por algumas das minhas impressões pessoais.
O nosso médico de sala costumava parar junto de cada doente; examinava-o e interrogava-o com a máxima atenção e seriedade, receitava o remédio e a dieta. Às vezes via que o doente não estava realmente doente; mas como o preso ia ali para descansar do trabalho ou para meter-se algum tempo numa cama verdadeira e não nas tábuas nuas das tarimbas e, finalmente, numa sala de temperatura moderada e não no úmido corpo da guarda, onde exiguamente se amontoavam grandes grupos de pálidos e míseros sentenciados (os sentenciados estavam quase sempre pálidos e míseros), sinal de que a sua assistência material e o seu estado de espírito são quase sempre piores que os dos já castigados, o nosso médico assistente diagnosticava, com toda a tranquilidade, uma febris catarhalis e permitia-lhe estar ali às vezes uma semana inteira. Todos, entre nós, se riam desta febris catarhalis. Sabiam muito bem que se tratava de um acordo tácito entre o médico e o doente, da fórmula para designar uma doença imaginária: “febre de sustento”, conforme traduziam os próprios presos aquela febris catarhalis. Às vezes o doente aproveitava-se da brandura do coração do médico e continuava metido na cama até que o expulsassem dali à força. Era então de ver o nosso médico assistente; parecia que não se atrevia, que se envergonhava de dizer na cara do doente que ele já estava bom e tinha de dar-lhe alta, embora estivesse no seu direito de, sem mais rodeios, sem lhe dar satisfações, escrever na papeleta de doente: sanat est.32 Começava por dar-lhe algumas indicações; depois perguntava-lhe: “Então, não é tempo, já? Tu estás quase bom e na sala há poucos lugares”, etc., etc., até que o próprio doente acabava por concordar e pedia alta espontaneamente. O médico-chefe, se bem que fosse um homem honesto e amante da humanidade (os doentes também gostavam muito dele), era, apesar de tudo, incomparavelmente mais rígido e decidido do que o médico da sala, e às vezes mostrava até um severo rigor, e por isso os presos tinham por ele um respeito especial. Aparecia sempre seguido por todos os médicos do hospital, depois do médico da enfermaria; examinava-os também a todos, demorando-se especialmente junto dos doentes graves, aos quais sabia dizer sempre uma palavra bondosa, animadora, até, em algumas ocasiões, reconfortante, e geralmente deixava boa impressão. Nunca repelia nem expulsava os atacados de febre de sustento; mas se o doente teimava, então, muito simplesmente, dava-lhe alta: “Vamos, meu amigo, já estiveste bastante tempo de cama descansando; vamos, levanta-te; é preciso ser honesto.” Os que teimavam eram quase sempre os preguiçosos para o trabalho, sobretudo no verão, ou os sentenciados que aguardavam o castigo. Lembro-me de que, com um deles, empregaram um rigor especial, ou melhor até, crueldade; para lhe darem alta. Entrara para a enfermaria com uma doença de olhos; olhos inflamados; queixava-se de picadas fortes. Tinham-lhos tratado com cantáridas, sanguessugas, injeções de um líquido especial, etc.; mas a doença, apesar de tudo, persistia; os olhos não se aclaravam. Pouco a pouco, o médico compreendeu a manha; a inflamação, sempre pequena, nem se agravava nem desaparecia, estava sempre no mesmo grau. O caso tornou-se suspeito. Havia já muito tempo que os presos sabiam que era um falso doente, que andava a enganar os outros, embora ele não quisesse reconhecê-lo. Era um rapaz novo, bonito, até; mas dava-nos a todos uma impressão um pouco desagradável; era reservado, receoso, arredio; não falava com ninguém; olhava de soslaio, escondia-se de todos; parecia desconfiar de todos. Lembro-me de que alguns chegaram até a pensar que ele havia de fazer alguma malandragem. Era soldado, tinha roubado muito, foi apanhado e condenado a mil vergastadas e à companhia de castigo. Com o fim de adiar o instante do castigo, conforme disse já, os condenados decidiam-se às vezes a expedientes terríveis: atirarem-se, de faca na mão, na véspera do suplício, sobre algum chefe ou algum preso, seu companheiro de trabalho, para terem de ser julgados outra vez, adiando assim por um mês ou dois o castigo e desse modo conseguindo o seu objetivo. Não se detinham a pensar em que deviam ser castigados ao fim de dois meses, com duplo, com triplo rigor; o que procuravam era afastar o momento terrível, ainda que fosse só por uns dias, e depois que fosse o que Deus quisesse. Tal era o extremo a que chegava às vezes a falta de coragem destes infelizes. Entre nós, os presos, costumavam dizer que era preciso ter cuidado com ele, não fosse matar alguém de noite. Aliás, limitaram-se a falar mas não tomaram qualquer espécie de precauções especiais, nem sequer aqueles que tinham a cama junto da dele. No entanto viam que ele, durante a noite, besuntava os olhos com a cal do estuque da parede e com mais qualquer coisa, a fim de tê-los outra vez inflamados de manhã. Até que o médico-chefe o ameaçou com a mecha de algodão, para manter a supuração, como se fosse um cavalo. Nas doenças crônicas dos olhos, que se prolongam por muito tempo, e quando se experimentaram já todos os recursos da medicina para salvar a vista, os médicos apelam para um meio forte e doloroso: põem ao doente uma mecha, como se fosse um cavalo. Mas o desgraçado nem assim se restabelecia. Nem sei o que seria aquilo, se coragem ou covardia excessiva, pois a mecha, embora não fosse como as vergastadas, era também muito dolorosa. Seguram o doente por detrás, no pescoço, com a mão, o mais que possam abranger, cortam toda a carne assim apanhada, com uma faca, e fica então aberta uma ferida profunda e extensa em toda a parte inferoposterior da cabeça, introduzem nessa ferida uma grande mecha de algodão, quase da grossura dum dedo; depois, todos os dias, à hora marcada, extraem essa mecha da ferida, de maneira que esta se abre de novo para ficar supurando e não se fecha mais. O infeliz sofreu essa tortura teimosamente durante alguns dias, com dores atrozes, até que por fim consentiu em pedir alta. Os olhos ficaram-lhe completamente bons num só dia, e, quando a ferida do pescoço se fechou, foi levado ao corpo da guarda para receber no dia seguinte outros mil açoites.
Não há dúvida de que o instante que precede o castigo é muito penoso, tão penoso que pode ser que eu incorra em pecado ao chamar a esse medo pequenez de ânimo e covardia. Devia ser terrível quando se sofria um castigo duplo ou triplo e não era administrado de uma só vez. Já falei de alguns condenados que se apressavam a pedir alta, espontaneamente, quando ainda não tinham sequer as costas cicatrizadas das últimas pancadas, a fim de receberem as restantes e de ficarem definitivamente com as suas culpas saldadas, pois o estar pendente de castigo no corpo da guarda era indubitavelmente pior do que o presídio. Mas, além da diferença de temperamentos, desempenhava também um grande papel na decisão e intrepidez de alguns o costume inveterado das pancadas e dos castigos. Dir-se-ia que os que estão muito acostumados ao azorrague têm também a alma e as costas já endurecidas e que acabam por olhar o castigo com ceticismo, quase como uma doença leve, e não têm medo dele. Um dos nossos presos, da seção especial, um calmuco batizado de Alieksandr ou Alieksandra, como o chamavam entre nós, um rapaz invulgar, velhaco, valente e ao mesmo tempo bondoso, contava-me, rindo e gracejando, mas no entanto com muita seriedade, que, se desde a infância, desde a sua primeira e mais tenra infância, não tivesse sofrido o chicote com tanta frequência, de tal maneira que em toda a sua vida, lá longe, na sua tribo, nunca as costas lhe tinham chegado a cicatrizar, de maneira nenhuma poderia ter resistido àqueles quatro mil. Quando me contava isto, quase que dava graças por essa sua educação, debaixo do chicote. “Alieksandr Pietróvitch, a mim, todos”, disse-me uma vez, sentado na minha esteira, antes de se acenderem as luzes”, todos, por isto ou por aquilo, todos me batiam, durante 15 anos seguidos, desde o primeiro dia em que comecei a ter uso da razão, e várias vezes durante o dia; só não me batia aquele que não queria, de tal maneira que acabei por acostumar-me.” Não sei como veio parar junto dos soldados; não me recordo, embora possa ser que ele mo tivesse contado; era um eterno vagabundo e aventureiro. Só me lembro de que me contou o medo enorme que se apoderou dele quando o condenaram a quatro mil vergastadas por ter assassinado o seu chefe. “Eu sabia que haviam de dar-me um castigo severo e que talvez não saísse com vida dos açoites, pois, apesar de estar acostumado ao chicote, quatro mil... Não é caso para brincadeira! Além disso, os chefes estavam todos furiosos contra mim. Eu sabia, sabia-o de fonte certa, que haviam de bater-me com severidade, que não me levantaria debaixo das vergastas. A princípio pensei fazer-me cristão e disse para comigo: ‘Talvez me perdoem’; e, embora os meus me dissessem que com isso não conseguiria nada, que não me perdoariam, eu pensava: ‘No entanto, vou tentá-lo: seja como for, sempre terão mais piedade de um cristão.’ E de fato tornei-me cristão e puseram-me o nome de Alieksandr no sagrado batismo; agora, quanto às vergastadas, fiquei na mesma; nem sequer me perdoaram uma; eu tomei isso como um insulto. Disse para comigo: ‘Esperem, que eu hei de enganar-vos a todos.’ Sabe o que aconteceu, Alieksandr Pietróvitch? Enganei-os! Eu sabia lindamente fingir-me morto; isto é, não completamente morto, mas como se a minha alma estivesse para abandonar o corpo de um momento para o outro. Fui levado para o castigo, deram-me mil pauladas: ‘Queima como fogo!’, gritava eu: dão-me outras mil. ‘Chegou a minha última hora’, pensei; perdi os sentidos, por completo; as pernas dobram-se-me, rolo por terra; tinha os olhos mortiços, a cara arroxeada, mal respirava e a boca cheia de espuma. O médico chegou e declarou: ‘Está quase morto.’ Levaram-me para a enfermaria, mas eu me reanimei imediatamente. Depois levaram-me outras duas vezes, e já estavam furiosos, muito furiosos comigo; mas eu os enganei por mais duas vezes; ao terceiro milhar, assim que me deram a primeira da série, pus-me logo a morrer; e, quando chegou a vez do quarto, parecia que, a cada pancada, era um punhal que me trespassava o coração; cada pancada valia por três, tão fortes eram elas! Enraiveciam-se contra mim. Aquele maldito último milhar (assim lhe...) equivalia a tanto como os três primeiros juntos, e se não entrego a alma ao Criador antes do final (ainda me faltavam duzentas vergastadas), ter-me-iam matado a sério; mas eu não me prestei a isso, outra vez os enganei, morri outra vez; e tornaram a acreditar; como é que não haviam de acreditar, se o próprio médico acreditou? Por isso, os últimos duzentos, apesar de ser como foram, que em outra ocasião, dois mil teriam sido mais leves do que eles, podiam achatar o beque, pois não me mataram; e por que não me mataram? Muito simplesmente porque fui criado debaixo do chicote; desde criança. E por isso que ainda estou neste mundo. Abençoadas pancadas essas!”, acrescentou ao terminar a sua narrativa, como que afundado numa triste reflexão, como se se esforçasse por recordar e contar as vezes que lhe tinham batido, “mas não”, acrescentou passado um minuto de silêncio, “não posso calcular quantas foram, já lhes perdi a conta!”
Olhou para mim e sorriu, mas de uma maneira tão bonacheirona que eu também não pude deixar de corresponder-lhe com outro sorriso.
— Sabe, Alieksandr Pietróvitch? Eu, agora, sonho todas as noites que me vão açoitar infalivelmente. É só isso que sonho!
De fato, costumava gritar frequentemente durante a noite, até enrouquecer, de maneira que os presos tinham de acordá-lo à pancada.
— Ó diabo, por que gritas tu?
Era um homem sadio, de estatura mediana, nervoso e jovial, de uns 45 anos; dava-se bem com todos, embora gostasse muito de roubar, e por causa disso batiam-lhe muitas vezes. Mas quem é que não roubava e quem é que não apanhava pancada, ali?
Acrescentarei a isto uma só coisa: admirava-me sempre aquela extraordinária bonacheirice com que os chicoteados me falavam de todas as surras ou da maneira como lhes tinham batido e quem tinha sido. Raramente percebia o menor indício de rancor ou de ódio em tais histórias; depois, às vezes, eram os causadores de que o coração me parasse primeiro e começasse depois a pulsar com violência. Mas eles contavam e riam-se como crianças. Eis M... tski, por exemplo, que me contou o seu castigo; não era nobre e deram-lhe quinhentas vergastadas. Eu sabia coisas dele por outros e perguntei-lhe:
— Isso é verdade? Como foi?
Ele me respondeu brevemente, como se sentisse uma certa repugnância íntima, como se se esforçasse por não me olhar no rosto, ao mesmo tempo que o seu se ruborizava; passado meio minuto olhou para mim e nos seus olhos brilhava a chama do rancor e os lábios tremiam-lhe de cólera. Eu compreendi que ele nunca poderia esquecer aquela página do seu passado. Mas os outros (não afirmo que não houvesse exceções) quase todos viam isso de outra maneira completamente diferente. “Não é possível”, pensava eu às vezes, “que considerem a si próprios como absolutamente culpados e dignos do suplício, sobretudo quando pecaram, não contra os seus, mas contra os chefes. A maioria deles não se queixava. Disse já que nunca observei remorsos de consciência, nem naqueles casos em que o crime praticado tinha sido contra a sua própria classe. Dos crimes contra os superiores nem é preciso falar. Parecia-me às vezes que, neste último caso, procediam segundo um ponto de vista pessoal, prático, ou, para melhor dizer, fictício. Tomavam em linha de conta o destino, a irrefutabilidade do fato, e não por reflexão mas sim inconscientemente, como uma crença qualquer. O presidiário, por exemplo, apesar de ter sempre a tendência para considerar-se inocente dos crimes contra os superiores, até o ponto de parecer-lhe absurda toda pergunta acerca disso, no entanto aceitava praticamente que os chefes considerassem o seu crime sob outro ponto de vista totalmente diferente, não tendo outro remédio senão castigá-lo. Era uma autêntica luta. O criminoso sabe disso e não duvida de que esteja justificado perante o juízo do seu meio natural, da sua gente, a qual nunca, e ele sabe disso também, o condenará de um modo definitivo, mas em grande parte, ou até na totalidade, lhe perdoará o seu crime, contanto que este não seja contra os seus, os seus irmãos, da mesma classe do povo a que pertence. A sua consciência está tranquila e essa consciência dá-lhe coragem e não sofre moralmente, e isto é o principal. De certa maneira sente que conta com alguma coisa em que se apoiar, e por isso não experimenta ódio e encara antes o que aconteceu como um fato inevitável, que não foi começado nem acabado por ele, e se prolongará devido a uma luta que se trava já há muito tempo, passiva mas teimosamente. Qual é o soldado que odeia verdadeiramente o turco, quando guerreia contra ele? E, no entanto, o turco acomete-o e ele aponta e dispara. Aliás, nem todas as histórias eram tão perfeitamente equânimes e benévolas. Do tenente Tcheriebiátnikov, por exemplo, falavam, embora nem todos, com certas mostras de ódio. Eu conhecia este tenente Tcheriebiátnikov de ouvir falar acerca dele, desde os primeiros tempos da minha estada no hospital, claro que por referências dos presos. Até que um dia cheguei a conhecê-lo pessoalmente, quando ficou ali, uma vez, de guarda. Era um homem de uns trinta anos, de estatura mediana, gordo, com umas bochechas coradas, regurgitando de gordura, uma dentadura enorme e um riso ameaçador, inquietante. Podia ver-se pela sua cara que era o homem mais atoleimado deste mundo. Gostava muito de castigos, de dar pauladas, quando era designado como executor. Apresso-me a participar que eu já considerava o tenente Tcheriebiátnikov, por essa altura, como um monstro entre os seus, e os presos consideravam-no da mesma maneira. Além dele havia também carrascos à antiga, é claro, dessa antiguidade recente, cuja tradição está ainda fresca, mas na qual custa a acreditar, os quais gostavam de desempenhar a sua função escrupulosamente. Mas na sua maior parte a coisa se realizava ingenuamente e sem treino especial. O tenente era comparável a um gastrônomo refinado, na sua maneira de ser carrasco. Gostava apaixonadamente da arte de ser verdugo, e amava-a apenas como arte. Isso o deleitava, e, como um patrício do Império romano, enfastiado, estragado pelos prazeres, inventara vários requintes, várias modalidades antinaturais, artísticas, com o fim de excitar um pouco e de fazer umas agradáveis cocegazinhas na sua alma, atafulhada de gordura. Eis o momento em que conduzem o preso ao castigo e em que Tcheriebiátnikov faz de carrasco: deita um olhar ao longe e a fileira alinhada de indivíduos, armados de grossos varapaus, começa já a animá-lo. Muito contente, passa revista a essas fileiras e exorta energicamente todos a cumprirem a sua missão escrupulosamente, conscienciosamente, senão... Os soldados já sabem o que significa esse “senão”. Eis que trazem o próprio réu; se até esse momento ainda não tinha tido notícias acerca de Tcheriebiátnikov, se não ouviu falar pormenorizadamente acerca dele, verá então os gracejos que o tenente vai dizer-lhe. E é claro que isso seria apenas uma amostra, pois o tenente, em matéria de invenções, era inesgotável. Todos os presos (no momento em que o despem da cintura para cima e lhe atam as mãos à culatra da espingarda e puxando pela qual o leva depois o suboficial ao longo de toda a rua verde) todos os presos, dizia, em tal momento começam sempre, seguindo o costume geral, a suplicar ao executor, com voz chorosa, lamurienta, que o castigue com brandura e não ponha rigor excessivo no suplício.
— Vossa Senhoria! — grita o infeliz réu —, tenha compaixão, seja meu pai; prometo que rezarei sempre a Deus por Vossa Senhoria; não me mate, tenha piedade!
Tcheriebiátnikov costumava aguardar este momento para suspender imediatamente a coisa e interpelar o réu com uma cara compungida:
— Meu amigo — dizia — eu não posso fazer nada por ti, não sou eu quem castiga, mas sim a Lei.
— Está tudo nas mãos de Vossa Senhoria. Tenha piedade!
— Mas tu julgas que eu não tenho pena de ti? Julgas que a mim me agrada ver a maneira como vão surrar-te? Qual! Eu também sou homem! Eu sou um homem ou não sou? Ora, diz tu...
— Isso já se sabe, senhor, isso é coisa já sabida; os senhores são os nossos pais e somos os seus filhos. Seja Vossa Senhoria o meu pai! — grita o réu começando a alimentar esperanças.
— Mas, meu amigo, já que tens cabeça para pensar, vê bem: eu sei que, humanamente, tenho obrigação de olhar-te a ti, pecador, com benevolência e com doçura.
— Vossa Senhoria acaba de dizer a pura verdade!
— Sim, a olhar-te com doçura, como se não fosse pecador. Mas aqui, repara bem, não se trata de mim, mas da Lei. Lembra-te de que eu sirvo a Deus e à Pátria e carregaria a minha consciência de um grande pecado se adulterasse a Lei. Reflete.
— Senhor!
— Bom, no fim de contas, farei isso por ti! Sei que ao fazê-lo cometo um pecado, mas seja... Terei compaixão de ti por esta vez, castigar-te-ei com brandura. Quem sabe se, com isto, afinal não te prejudicarei? Desta vez terei piedade de ti; castigar-te-ei com brandura; mas fixa bem que, se a coisa torna a repetir-se e tornas a praticar algum delito, então... Juro-te que...
— Senhor! Hei de contar isso a toda a gente, como se estivesse perante o trono do Criador do Céu...
— Bem, bem, está bem, está bem! Mas promete-me que daqui em diante vais ser bom.
— Deus me castigue se... Que no outro mundo...
— Não jures, que é pecado. Eu acredito na tua palavra. Dás-me a tua palavra?
— Senhor!
— Bem. Escuta: terei compaixão de ti só por essas tuas lágrimas de órfão. Tu és órfão?
— Sou, sim, senhor. De pai e mãe...
— Bem, então, em atenção às tuas lágrimas de órfão... Mas olha que é a última vez... Vamos, levem-no! — ordenava com uma voz tão suave que o réu já não sabia que orações havia de rezar a Deus por um homem tão clemente.
Eis que a terrível procissão se põe em movimento, que o levam: o tambor repica, erguem-se as primeiras vergastadas...
— Com força! — grita fortemente Tcheriebiátnikov. — Batam-lhe, batam-lhe! Sovem-no bem! Mais força, ainda mais! Com mais força, para o órfão, com mais força, para o velhaco! Surrem-no bem, surrem-no bem!
E os soldados batiam com toda a sua força; saltavam chispas dos olhos do infeliz, que começa a gritar; mas Tcheriebiátnikov corre atrás dele ao longo da fileira e ri, ri às gargalhadas, derrete-se a rir, segura as costas com as mãos para aguentar o riso, não pode conter-se; de tal maneira que, por fim, já não pode mais. Mas continua a rir e somente interrompe o seu riso sonoro, são, alegre, de quando em quando, e então ouve-se de novo:
— Batam-lhe! Batam-lhe! Batam com força no órfão, batam com força ao velhaco!
Mas vejam esta outra variante, também invenção sua. Conduzem o réu ao castigo e ele começa com as súplicas. Desta vez Tcheriebiátnikov não finge, não faz caretas, manifesta-se com franqueza.
— Olha, meu caro amigo — diz —, vou castigar-te como é devido, visto que o mereces. Mas ouve o que vou fazer a teu favor: não te atarei à culatra da espingarda. Vais caminhar sozinho, mas de uma maneira diferente. Correrás com todas as tuas forças ao longo da fileira. E ainda que te deem todas as vergastadas, a coisa se torna mais rápida. Que te parece? Queres experimentar?
O réu, duvidoso, escuta incrédulo e reflete: “Tanto faz”, diz para consigo. “Pode ser que, efetivamente, assim tudo se abrevie. Correrei o mais depressa que puder e assim o suplício será cinco vezes mais breve e pode ser até que nem todas as vergastas me alcancem.”
— Está bem, senhor.
— Bem, então, levem-no. Mas não o atem — grita para os soldados, sabendo no entanto que nem um só pau há de deixar de cair sobre as costas do culpado, pois o soldado que falha o golpe sabe muito bem aquilo a que se expõe. O preso se envaidece, por ir correr com todas as suas forças ao longo da rua verde, mas, naturalmente, não chega na sua carreira nem ao décimo quinto soldado; os paus caem sobre as suas costas como o repicar do tambor e o pobre cai com um grito, desfalecido, como se tivesse sido atingido por um tiro.
— Não, senhor, é melhor fazer conforme manda o regulamento — diz, levantando-se imediatamente do chão, pálido e medroso.
Mas Tcheriebiátnikov, que já de antemão sabia em que ia acabar toda esta brincadeira, desmanchava-se a rir, como um bruto. Mas não vou descrever todas as suas invenções, e tudo entre nós se contava acerca dele.
Era de uma maneira um pouco diferente, noutro tom e com outra intenção, que entre nós falavam também de um certo tenente Smiekálov, que desempenhava o cargo de comandante do nosso presídio antes que viesse para aqui o nosso major da caserna. De Tcheriebiátnikov, embora falassem com bastante imparcialidade, sem ódio especial, não aplaudiam as suas façanhas nem o gabavam, e era evidente que lhe tinham horror. Alguns até o desprezavam. Mas do tenente Smiekálov recordavam-se entre nós com alegria e prazer. O motivo disso estava em que ele não era apreciador dos castigos: não havia nele nem uma ponta de elemento tcheriebiatnikóvico. No entanto, não era absolutamente oposto ao castigo; mas o certo é que até as suas vergastadas eram recordadas entre os presos com certo prazer, tal era o ponto a que esse homem sabia agradar aos presos! Como é que ele conseguia isso? Como alcançara tanta popularidade? De fato, a população dos presos, e pode dizer-se que todo o povo russo, está sempre disposto a esquecer os suplícios por uma só palavra afetuosa. Falo disto como de um fato, sem relacioná-lo com isto nem com aquilo. É fácil agradar a esta gente a granjear essa popularidade. Mas o tenente Smiekálov conquistou uma popularidade especial, de tal maneira que chegavam quase a recordar-se com deleite da maneira como ele castigava.
— Nem nos fazia falta o padre — costumavam dizer os presos, e até suspiravam, comparando-o, na sua recordação, o chefe de outros tempos, Smiekálov, com o atual major da caserna. — Era um homem de coração!
Era um homem simples e bom, de seu natural. Mas às vezes acontecia que os cargos de comando eram ocupados por homens não só bons, mas até generosos, e que nem todos gostassem deles e alguns até se rissem deles. O certo é que Smiekálov sabia fazer com que todos o reconhecessem pelo seu homem; mas isto é uma espécie de habilidade, ou, para melhor dizer, uma aptidão inata, da qual nem sequer se apercebem aqueles que a possuem. Coisa estranha: costumava haver tipos nitidamente maus e que, apesar disso, conquistavam grande popularidade. Não eram ralhadores nem despóticos com as pessoas que dependiam deles e, segundo me parece, devia ser este o motivo disso. Não lhes viam mãos brancas de fidalgo, não tinham cheiro a senhores mas sim um certo cheiro especial da gente de baixa condição, que lhes era inato. E, meu Deus, como o povo fareja esse cheiro! Quem não daria por ele! Está disposto a trocar o homem mais brando pelo mais severo, contanto que exale este cheiro! Que sucederá no caso de o homem que exala este cheiro plebeu, que lhes é próprio, ser ao mesmo tempo bom de seu natural? Nesse caso é para eles um tesouro sem preço!
Conforme disse já, o tenente Smiekálov às vezes castigava, e bem; mas, fosse como fosse, sabia proceder de maneira que não só não lhe guardavam rancor, mas ainda por cima, no meu tempo, em que tudo isso ia já longe, recordavam as suas coisas a respeito das execuções com riso e até com gosto. Mas, aliás, tinha poucas dessas coisas, não podia vangloriar-se de fantasia artística. Para dizer a verdade, tinha um truque, um só, acerca do qual os presos falaram durante um ano inteiro; mas é possível que fosse tão bom por ser o único. Tinha muito de ingênuo. Levavam-lhe, por exemplo, o preso culpado. O próprio Smiekálov assiste ao castigo. Assiste sorrindo, gracejando, começa a interrogar o réu acerca de algo secundário, dos seus assuntos pessoais, domésticos e prisionais, como se fosse sem qualquer objetivo, nem sequer por chalaça, apenas simplesmente... Porque, de fato, gostava de informar-se de todas essas coisas. Trazem as vergastas e a cadeira para Smiekálov: este se senta e acende o cachimbo. Usava um cachimbo muito comprido. O réu começa a suplicar...
— Não, meu amigo, tem paciência, não me venhas agora com... — diz Smiekálov. O réu suspira e conforma-se.
— Um momento, meu amigo, sabes alguns versos de cor?
— Então não havia de saber, senhor? Somos batizados, aprendi-os em criança.
— Bem, então, di-los.
E o preso já sabe o que há de recitar e qual é o resultado dessa recitação; que já trinta vezes teve o mesmo gracejo para outros. Sim, também o próprio Smiekálov sabe que o réu não o ignora; sabe que até os soldados que estão ali postados com as vergastas erguidas ao alto sobre a vítima, estendida, já há muito tempo que ouviram falar deste gracejo; e, no entanto, repete-o de novo... pois uma vez lhe agradou e ficou para sempre, talvez precisamente porque o tivesse inventado, por presunções literárias. O preso começa a recitar; os tipos das vergastas esperam; mas Smiekálov até muda de lugar, levanta as mãos e deixa de fumar o seu cachimbo; espera a frase de sempre. Depois dos primeiros versos conhecidos, o preso chega por fim à frase “Nos Céus”. Era isso o que ele esperava.
— Alto! — grita o tenente, excitado e, de repente, voltando-se com um gesto inspirado para o homem que levanta a vergasta, grita:
— Levem-no!
E começa a rir. Os soldados que o circundam também riem; o executor sorri e pouco falta para que o preso ria também, se não fosse o fato de, à voz de comando “Levem-no para lá”, já a vergasta se ergue no ar, para um minuto depois cortar como uma navalha de barbear o seu corpo culpado. E Smiekálov fica contente porque lhe correu tão bem a coisa... inventada por ele próprio: “nos Céus e levem-no para lá”, que de fato rimam.33 E Smiekálov sai dali perfeitamente satisfeito consigo próprio, o supliciado fica também satisfeito consigo próprio e com Smiekálov e... passada meia hora, anda já contando por todo o presídio como pela trigésima primeira vez se repetiu o já trinta vezes repetido gracejo. Realmente era um homem de coração!
Meia hora depois, a recordação do bondosíssimo tenente tinha qualquer coisa de sedutor.
— Uma vez passava eu diante da casa dele — conta algum dos condenados e todo o seu rosto se ilumina num sorriso, com a recordação — e ele estava lá, sentado junto da janela, de roupão, tomando o chá e fumando o seu cachimbo. Tirei o gorro.
— Aonde vais, Aksiénov?
— Para o trabalho, Mikhail Vassílievitch, direitinho para a oficina, onde estamos fazendo falta.
Ele sorriu-se... Era um homem de bom coração, de muito bom coração!
— Nunca mais voltaremos a ter outro igual! — acrescenta algum dos ouvintes.
O HOSPITAL
(CONCLUSÃO)
Falei dos castigos, assim como dos vários executores destes interessantes encargos, sobretudo porque foi só quando entrei para o hospital que pude fazer uma ideia visual de todas essas coisas.34 Até então apenas as conhecia de ouvido. Para as nossas salas vinham todos os supliciados com as vergastas, dos vários batalhões, das companhias disciplinares e das outras seções militares estabelecidas na nossa cidade e em todos os seus arredores. Nos primeiros tempos, em que eu contemplava com enorme avidez tudo quanto se passava à minha volta, todas essas coisas, para mim tão estranhas, todos esses castigos e os que tinham sido condenados a sofrê-los provocavam em mim uma fortíssima impressão. Ficava comovido, dorido e assustado. Lembro que então comecei imediatamente a fazer perguntas acerca desses novos fenômenos, a escutar as narrativas e conversas de outros presos sobre este tema, e até lhes fazia perguntas, ansioso por saber tudo. Entre outras coisas ansiava conhecer a todo custo todos os trâmites da condenação e da execução, todos os pormenores desta última, e a opinião dos próprios presos acerca de tudo isso; esforçava-me por imaginar o estado psíquico daqueles que se encaminhavam para o suplício. Disse já que, perante o castigo, raro era aquele que conservava o sangue-frio, até mesmo aqueles que já anteriormente tinham sofrido mais de uma sova brutal. Quase sempre o condenado sentia um medo terrível, puramente físico, involuntário e inevitável, que afetava todo o ser moral da criatura.
Além do mais, em todos estes anos da minha vida presidiária, observava involuntariamente no hospital como os abandonavam, depois da primeira metade do castigo, e tratavam as suas costas, para no outro dia irem cumprir a outra metade do castigo a que os tinham condenado. Essa divisão do castigo em duas metades efetuava-se sempre por indicação do médico que assistia ao suplício. Se o número de açoites marcado para o crime fosse grande, de tal maneira que o preso não pudesse aguentá-las todas de uma vez, dividiam esse número em duas ou em três partes, guiando-se pelo que o médico dizia no próprio momento do castigo, se o réu poderia ir avançando ao longo da carreira de vergastas ou se isso acarretaria perigo para a sua vida. De maneira geral, quinhentos, mil e até 1.500 açoites aguentavam-se de uma vez; mas se o castigo consistia em dois ou três mil, a sua execução fazia-se em duas ou ainda em três vezes. Aqueles cujas costas já estavam cicatrizadas, após terem recebido a primeira metade, saíam do hospital para receber a segunda, e, no dia em que lhes era dada alta e na véspera, mostravam-se desusadamente tristes, arredios e irritáveis. Notava-se-lhes um certo embotamento mental, um estranho ensimesmamento. Não entabulavam conversas e ficavam muito cismativos; o mais curioso de tudo era que os próprios presos nunca lhes dirigiam a palavra e evitavam toda alusão ao que os esperava. Nem palavras de mais nem consolações; procuravam até não fixar a atenção sobre eles. O que sem dúvida era o melhor para o sentenciado. Havia exceções, como, por exemplo, a de Orlov, do qual já falei. Depois da primeira metade do castigo só lhe custava que as suas costas demorassem tanto tempo a cicatrizar, impedindo-o de pedir alta o mais depressa possível, para receber em seguida as outras pancadas, encaminhar-se depois, em caravana, para o lugar de deportação que lhe tinha sido designado, e poder assim fugir durante o trajeto. Mas este indivíduo tinha um objetivo e só Deus sabe o que em mente. Era um temperamento estranho e vigoroso. Estava muito satisfeito consigo próprio e num estado de grande exaltação, embora reprimisse os seus sentimentos. O certo era que, antes da primeira metade do castigo, pensava que não escaparia vivo do suplício, que certamente morreria. Até ele tinham chegado já diversos boatos relativos a certas medidas dos chefes, quando ele estava ainda pendente de castigo; já então se preparava para morrer. Mas depois de ter sofrido a primeira metade, ganhou coragem. Entrou no hospital esfrangalhado, meio morto; nunca até então eu vira tais feridas; mas entrou com a alegria no coração, com a esperança de sair com vida, de saber que os boatos eram falsos, de que, de uma vez, já estava livre; depois que, agora, depois do longo processo, começou a sonhar com o caminho, a fuga, a liberdade, os campos e os bosques... Dois dias depois da sua saída do hospital morria ali mesmo, na mesma cama de antes, por não ter suportado a segunda volta de açoites. Mas já falei dele.
E, no entanto, esses mesmos presos que tinham passado dias e noites tão horríveis perante o castigo, sofriam depois o suplício virilmente, até mesmo os fracos. Raras vezes eu os ouvia se queixarem nem sequer os que eram castigados com extrema crueldade; o povo sabe, de maneira geral, suportar a dor. Eu fazia muitas perguntas a respeito da dor. Desejava conhecer concretamente como eram essas dores, com o que, no fim de contas, se podiam comparar. Não sei, verdadeiramente, para que desejaria sabê-lo. Lembro-me apenas de uma coisa, mas não por curiosidade vã. Repito, eu estava muito comovido. Mas fosse quem fosse aquele que eu interrogasse, nunca conseguia obter uma resposta que me satisfizesse. “Queima como fogo”, era esta a única resposta que me davam e tudo que pude apurar. Nestes primeiros tempos, como eu convivesse mais intimamente com M... m, interroguei-o.
— Dói muito — respondeu-me —, mas a impressão é de que queima como fogo, como se uma chama viva queimasse as costas.
Em resumo: coincidiam todos na mesma palavra. Além disso lembro-me de que, então, fiz eu também uma estranha observação, por cuja exatidão não respondo, embora a generalidade das observações dos próprios presos a corrobore firmemente, isto é, que as vergastadas, quando administradas em grande número, representam o castigo mais duro de todos quantos entre nós se empregam. Dir-se-ia à primeira vista que isto é absurdo e impossível.
No entanto, com quinhentas, até com quatrocentas vergastadas, pode deixar-se um homem à morte e, passadas quinhentas, é certo que morre. Mil vergastadas de uma vez não as aguenta nem o homem de constituição mais robusta. Em compensação, quinhentas pauladas podem aguentar-se sem nenhum risco de morte. A mil, pode resistir sem perigo de vida até um homem de natureza pouco vigorosa. Mais ainda: é impossível matar um homem de forças mediantes e de constituição sã. Todos os presos diziam que as vergastadas eram piores que as pauladas.
— As vergastadas dilaceram — diziam —, a dor é mais intensa.
Não há dúvida de que as vergastas são mais dolorosas que os paus. Excitam mais, atuam mais energicamente sobre os nervos, alteram-nos mais profundamente, quebram-nos extraordinariamente. Não sei como será agora, mas nos tempos de uma antiguidade que não vai longe ainda, havia cavalheiros para os quais a possibilidade de castigar a sua vítima constituía uma sensação que fazia recordar o marquês de Sade e a Brinvilliers. Penso que havia qualquer coisa nessa comoção que aplacasse o coração desses cavalheiros: qualquer coisa gostosa e dolorosa, ao mesmo tempo. Há pessoas que parecem tigres ávidos de beber sangue humano. Quem exerceu uma vez esse poder, esse ilimitado domínio sobre o corpo, o sangue e a alma de um semelhante seu, de uma criatura, de um irmão em Cristo; quem conheceu o poder e a plena faculdade de infligira suprema humilhação a outro ser, que traz em si a imagem de Deus — converte-se sem querer em escravo das suas sensações. A tirania é um costume; possui a faculdade de desenvolver-se e degenera, finalmente, numa doença. Eu afirmo que o melhor dos homens pode embrutecer-se e embotar-se por efeito do hábito, até descer ao nível duma fera. O sangue e o poder embriagam, engendram o embrutecimento, a insensibilidade; tanto a inteligência como o sentimento acabam por achar isso natural e, por fim, aprazíveis as manifestações mais anormais. O homem e o cidadão morrem para sempre no tirano; é-lhe quase impossível regressar à dignidade humana, ao arrependimento, a uma nova vida. Além disso, o exemplo, a possibilidade de tal egoísmo faz aparecer também na sociedade um efeito nocivo: semelhante poder é sedutor. A sociedade que contempla com indiferença esse espetáculo está já minada pela base. Em resumo: o direito de impor castigos corporais, outorgado a um sobre o outro, é uma das pragas da sociedade, é um dos meios mais poderosos para aniquilar nela todo germe de civismo e a base completa para a sua dissolução inevitável e infalível.
A sociedade tem horror ao verdugo; mas o verdugo-cavalheiro também não anda longe. Só há pouco tempo foi exposta a opinião contrária, mas só nos livros, abstratamente. Até aqueles que assim se manifestam, nem todos poderão ainda despojar-se dessa necessidade de domínio. E mais: todo industrial, todo empreiteiro, deve infalivelmente experimentar uma certa satisfação comovida pelo fato de um operário e toda a sua família estarem inteiramente à sua mercê. Esta é a pura verdade; não é assim tão depressa que o homem se desprende daquilo que herdou; não é assim tão depressa que se alija aquilo que está na massa do sangue, que lhe foi transmitido, como se costuma dizer, com o leite materno. Não se produzem transformações tão rápidas. Reconhecer a culpa e o pecado original é ainda pouco, pouquíssimo: é preciso desprender-se totalmente deles. Mas isto não é coisa que se faça assim, tão depressa.
Falei do verdugo. A natureza de verdugo encontra-se em germe em quase todo homem contemporâneo. Mas as qualidades brutais do homem não se desenvolvem por igual. Quando, com o desenvolvimento, se abafam num homem todas as outras qualidades, esse homem torna-se, sem dúvida alguma, terrível e selvagem. Há duas espécie de verdugo: voluntários e involuntários, obrigados. O verdugo voluntário é, sob todos os aspectos, pior do que o forçado, o qual, no entanto, provoca no povo tanto espanto e aversão, e até um pavor louco, quase mítico. A que é devido esse terror quase supersticioso do verdugo e essa indiferença, essa quase aprovação em relação ao outro? Há exemplos muito estranhos: conheci pessoas boas e até honestas, até respeitadas na sociedade e, no entanto, não podiam, por exemplo, suportar serenamente que o réu não gritasse debaixo das vergastas nem pedisse clemência. Os réus, quando eram castigados, deviam infalivelmente gritar e pedir compaixão: era esta a sua mentalidade, tinham isto por decente e imprescindível; e quando acontecia de a vítima não gritar, o executor, que eu conhecia, e que a outros respeitos podia passar por um homem, e até por um homem bom, chegava a sentir-se ofendido. Desejaria ter começado a castigar com brandura; mas, como não ouvia as costumadas súplicas “Senhor, pai, tenha piedade, que eu pedirei eternamente a Deus por Vossa Senhorial” etc... enfurecia-se e mandava dar ao réu mais 15 pancadas, para ver se conseguia arrancar-lhe esses gritos e súplicas... e conseguia-o. “Não pode tolerar-se uma coisa dessas, é um descaramento”, respondia-me muito a sério. Quanto ao verdugo de profissão, forçado, involuntário, já se sabe qual a sua origem: é um preso já julgado e condenado à deportação, que obteve comutação da pena e por isso foi destinado a verdugo; faz a sua aprendizagem com outro verdugo e, uma vez instruído, fica para sempre no presídio com esse encargo, passa a viver aí por sua conta, ocupa moradia à parte e até possui a sua fazendinha, mas sempre sob a guarda de uma sentinela. Não há dúvida de que um homem não é nenhuma máquina; o verdugo bate por obrigação, sim, mas às vezes chega a entusiasmar-se; no entanto, embora o bater lhe produza algum prazer, não sente entretanto nenhum ódio supérfluo contra a sua vítima. A destreza do golpe, o conhecimento do ofício, o desejo de destacar-se entre os camaradas e perante o público esporeiam o seu amor-próprio. Esforça-se pelo seu ofício. Fora disso sabe muito bem que é um réprobo para a sociedade, que em todos os lados encontra um terror supersticioso que o segue por toda parte, e que isto tem sobre ele a influência de fomentar o seu ardor, as suas bestiais inclinações. Até as crianças sabem que os pais o amaldiçoam. Coisa estranha: tive muitas vezes a oportunidade de ver carrascos de perto e de verificar que eram todos homens que sabiam raciocinar, mentalmente desenvolvidos, inteligentes, com uma vaidade extraordinária e até orgulhosos. Ter-se-ia desenvolvido neles este orgulho por reação natural contra o desprezo geral que inspiram? Seria provocado pelo reconhecimento do terror que infundem às suas vítimas e pelo seu sentimento de domínio sobre elas? Não sei. Pode ser que o próprio aparato, a própria teatralidade dessa decoração com que se apresentam em público, sobre o cadafalso, contribua para desenvolver neles um pouco de soberba. Lembro-me de que uma vez me sucedeu encontrar-me frequentemente durante algum tempo com um verdugo e observá-lo de perto. Era um homem de estatura mediana, musculoso, seco, de uns quarenta anos, de cara bastante simpática e inteligente, e com o cabelo ondulado. Estava sempre com um ar muito grave e tranquilo; tinha o aspecto completo dum cavalheiro; respondia sempre com brevidade, sensatamente, e até certa amabilidade altiva, como se tivesse razão para mostrar-se orgulhoso perante mim. Os oficiais da guarda costumavam falar com ele diante de mim e, para dizer a verdade, tratavam-no com certo respeito. Ele sabia-o perfeitamente e com os seus superiores dobrava de reserva, de secura e de gravidade. Quanto mais afetuoso se mostrava o superior, mais reservado ele; e embora nunca ultrapassasse os termos duma amabilidade afetada, estou convencido de que, naquele instante, se tinha por infinitamente superior ao chefe que falava com ele. Lia-se-lhe na cara. Acontecia que, às vezes, durante as horas ardentes dos dias estivais, o mandavam, com escolta, armado de uma comprida e fina vara, matar os cães vadios da cidade. Naquela cidade abundavam extraordinariamente esses cães, que não tinham dono, e se multiplicavam com extraordinária rapidez. Na época da canícula tornavam-se perigosos, e mandavam o verdugo, por ordem das autoridades, para exterminá-los. Mas até este humilhante encargo não constituía para ele vexame algum. Era curioso ver a dignidade com que atravessava as ruas da cidade, escoltado pela sentinela esgotada, assustando, só com a sua presença, as mulheres e as crianças que encontrava, e a tranquilidade e até altivez com que olhava todos os transeuntes. Aliás, a vida do verdugo é cômoda. Tem dinheiro, come bem, bebe vinho. O dinheiro, recebe-o das gorjetas. O condenado civil, que foi sentenciado a castigo, a primeira coisa que faz, ainda que pertença à classe mais baixa, é gratificar o verdugo. Mas quando se trata dos outros, dos condenados ricos, são eles próprios que lhe apresentam a conta, marcando uma quantia em relação aos recursos prováveis do réu, cobrando-lhes 30 rublos e às vezes mais. Também fazem negócio em grande escala com os muito ricos. O verdugo não pode castigar com muita brandura: por isso respondem as suas próprias costas. Mas em compensação, pelo preço ajustado promete à vítima não lhe bater com muita força. Cedem quase sempre à sua proposta; senão ele os castiga de maneira bárbara, o que está absolutamente nas suas mãos. Acontece que ele exige uma quantia elevada, até mesmo a um réu probríssimo; os parentes regateiam e fazem-lhe muitas cortesias; mas ai deles se não chegam a lhe satisfazer! É nestas ocasiões que eles se aproveitam do terror supersticioso que inspiram. Quantas selvajarias não se contam do verdugo! Além disso os próprios presos me afirmaram que o verdugo pode matar com uma só pancada. Mas, em primeiro lugar, quando é que tal se comprovou? Embora, no fim de contas, pudesse ser. Afirmam-no redondamente. Um verdugo afirmou-me ele próprio também que, de fato, assim podia ser. Diziam também que pode bater com todas as forças, sobre as costas do réu, mas de maneira que não sofra nem a mais leve arranhadura devido à pancada nem sinta a mínima dor. Correm já por aí demasiadas histórias acerca de todos estes truques e requintes. Mas se o verdugo recebe gratificações para castigar brandamente, apesar de tudo, a primeira pancada pertence-lhe e descarrega-a com todas as suas forças e energias. Isto já se transformou num costume entre eles. As últimas pancadas dão-se frouxas, sobretudo quando lhes pagaram adiantadamente. Mas a primeira pancada, quer lhes tenham pagado ou não, é sua. Não sei, verdadeiramente, por que fazem isso. Talvez para mostrar à sua vítima, nas pancadas seguintes à sua custa, que, depois de uma pancada violenta, as mais fracas já não são tão dolorosas, ou simplesmente pela ânsia de impor-se ao réu, de infundir-lhe medo, mortificá-lo, para que saiba nas mãos de quem está. Em suma: para mostrar o seu poder. Seja como for, o verdugo, antes do início do castigo, encontra-se numa excitação, sente a sua força, reconhece-se poderoso; nesse minuto é um ator: o público admira-o e teme-o, e não há dúvida de que é com certo prazer que grita para a sua vítima, antes da primeira pancada: “aguenta que queima!”, frase habitual e assustadora em tais ocasiões. Custa imaginar até que ponto pode corromper-se a natureza humana.
Nos meus primeiros tempos de hospital, escutei todas essas histórias da boca dos presidiários. Para todos era horrivelmente aborrecido. Os dias eram tão iguais uns aos outros! De manhã, ainda nos servia de distração a visita dos médicos e, depois, o desjejum. Não há dúvida de que a comida, numa monotonia daquelas, representava uma distração notável. As dietas eram diferentes, distribuídas em relação às doenças dos enfermos. Alguns recebiam apenas uma sopa com um pouco de cevada; outros, massas, apenas; um terceiro, sêmola, que tinha muitos apreciadores. Os presos, de estarem tanto tempo metidos na cama, acabavam por tornar-se esquisitos e queriam regalar-se. Aos convalescentes e aos que estavam quase bons davam um pedaço de vaca assada, “uma tora”, como eles diziam. A melhor de todas as rações era a dos escorbúticos: carne com cebola, rábanos etc., e também às vezes um copo de aguardente. O pão era, conforme o gênero da doença, negro ou escuro, muito bem cozido. Essa formalidade e prescrição das dietas só inspiravam vontade de rir aos presos. Não há dúvida de que, em certas doenças, o homem chega a não comer. Mas, em compensação, os doentes que tinham apetite comiam o que queriam. Alguns trocavam as suas dietas, de maneira que dietas indicadas para uns doentes eram comidas por outros que sofriam de doenças completamente diferentes. Outros, que deviam observar dieta, comiam carne de vaca e a ração dum escorbútico, e bebiam kvas, a bebida do hospital, comprando-o àqueles a quem estava destinado. Alguns ingeriam duas rações. As rações vendiam-se e revendiam-se a dinheiro. A de vaca era muito cara: 5 copeques. Se faltava qualquer coisa na nossa sala, enviavam o enfermeiro à outra enfermaria de presos, e se aí também não havia, mandavam-no às salas dos soldados, dos “livres”, como nós lhes chamávamos. Encontrava-se sempre quem quisesse vender a sua ração. Ficavam só com o pão, mas, em compensação, arranjavam dinheiro. Não há dúvida de que a pobreza era geral; mas aqueles que tinham um dinheirinho chegavam até a mandar comprar no mercado tortas, guloseimas etc. Os nossos enfermeiros cumpriam todos estes recados sem o menor risco. Depois do almoço, começavam as horas mais aborrecidas: um, por não fazer nada, adormecia; outro, tagarelava; este resmungava e aquele punha-se a contar patranhas. Quando não entravam novos doentes, o aborrecimento era ainda maior. A entrada de um novato fazia sempre alguma impressão, sobretudo quando ninguém o conhecia. Olhavam-no, esforçando-se por adivinhar quem seria e como, de onde e por que tinha ido parar ali. Nesses casos interessavam particularmente os que vinham das caravanas de condenados; estes começavam logo a falar, não dos seus assuntos íntimos, é claro; desde que não fosse ele próprio quem falasse acerca disto, os outros também nunca lhe perguntavam mais do que: “De onde vieste? Com quem? Que caminho fizeste? Aonde vais?” etc. Alguns, assim que ouviam a nova história, achavam indispensável contar também alguma coisa a seu respeito; das suas diferentes jornadas, dos castigos e dos chefes de caravanas. Os supliciados com as vergastas chegavam também a essa hora, à tarde. Provocavam sempre uma forte impressão, conforme já disse; mas não apareciam todos os dias e, no dia em que não vinham, sentíamos um tédio tal que todas aquelas caras se tornavam mutuamente importunas e chegavam até a surgir brigas. Eram para nós um motivo de alegria os loucos que eram trazidos para ficarem em observação. Os réus costumavam entregar-se ao trabalho de se fingirem loucos para escaparem ao castigo. Alguns eram logo forçados a desistir; ou, para melhor dizer, eles próprios decidiam mudar de tática e, depois de se terem fingido loucos durante dois ou três dias, tornavam-se sensatos de repente, sem mais nem menos, apaziguavam-se e, tristemente, começavam a pedir alta. Nem os presos nem os médicos os censuravam nem envergonhavam, recordando-lhes a sua recente impostura; davam-lhe alta em silêncio, acompanhavam-nos em silêncio e, daí a dois ou três dias, voltavam a aparecer entre nós, já castigados. Mas esses casos eram, de maneira geral, muito raros. Os loucos verdadeiros, colocados em observação, representavam um verdadeiro castigo de Deus para toda a sala. Alguns loucos de bom humor, desinquietos, que gritavam, dançavam e cantavam, a princípio eram acolhidos quase com entusiasmo: “Que engraçado!”, diziam, ao verem alguns deles, que entravam fazendo caretas. Mas a mim causavam-me muita compaixão e custava-me muito ver esses desgraçados. Nunca pude olhar a sangue-frio para um louco.
Aliás, as caretas ininterruptas e os gestos inquietos do louco que tínhamos acolhido com risos, bem depressa chegavam a aborrecer-nos a todos e, passados dois dias, já tínhamos perdido por completo a paciência. Um desses esteve entre nós três semanas e quase que nos fez fugir dali. Por esse tempo, como se fosse de propósito, levaram para ali um louco que me causou uma impressão muito especial. Aconteceu isso no terceiro ano da minha estada no presídio. No primeiro ano, ou, para melhor dizer, nos primeiros meses da minha vida no presídio, eu costumava sair, na primavera, com um turno para o trabalho, a duas verstas dali, para uma olaria onde havia também oleiros, para ir trabalhar como ajudante de pedreiro. Era preciso reparar os fomos para os próximos trabalhos de olaria, no verão. Nessa manhã, na olaria, M... tski e B*** apresentaram-me ao suboficial Ostrójski, que vivia ali como inspetor. Era um polaco de uns sessenta anos, alto, débil, muito educado e com uma aparência imponente. Havia pouco tempo que fazia serviço na Sibéria, e embora fosse de origem plebeia e tivesse sido soldado, M... tski e B*** gostavam dele e respeitavam-no. Andava sempre lendo uma Bíblia católica. Eu falei com ele e ele me tratou muito afetuosamente, com muito tato; contou-me coisas muito interessantes e olhou-me com muita bondade e nobreza. A partir dessa data, não tornei a vê-lo durante dois anos; tinha apenas ouvido dizer que, não sei por que motivo, se encontrava sujeito a uma sindicância quando, de repente, o introduziram na nossa sala, como louco. Entrou a guinchar, a rir às gargalhadas, e, com os gestos mais vulgares e próprios do mujique de Kamarinsk,35 pôs-se a dançar na sala. Os presos estavam entusiasmados, mas eu tinha uma pena... Passados três dias já não sabíamos o que havíamos de fazer à vida. Brigava, punha tudo num alvoroço, guinchava, cantava até durante a noite, fazia a cada momento coisas tão repugnantes que todos nós ficávamos simplesmente agoniados. Não tinha medo de ninguém. Puseram-lhe uma camisa-de-força, mas, com isso, ainda foi pior para nós, embora sem a camisa pusesse tudo em desordem e ralhasse quase com todos. Durante essas três semanas, às vezes era toda a sala, a uma só voz, pediu-se ao médico-chefe que levassem aquele desordeiro dali para outra sala. E aí, passados dois dias, pediram também a sua transferência para outra. E quando uma vez nos levaram dois loucos, desassossegados e rixentos, colocavam-nos alternadamente numa e noutra sala, trocando os dementes. Mas isso ainda era pior. Só descansamos quando os levaram dali não sei para onde...
Lembro-me também de um louco extraordinário. Trouxeram-nos um dia, no verão, um condenado, sadio mas de figura muito desajeitada, de uns 45 anos, com uma cara desfigurada pela varíola, de olhinhos vivos e inflamados e com um aspecto muito severo e sombrio. Colocaram-no junto de mim. Parecia um homem muito pacífico, não falava com ninguém e parecia estar sempre meditando. Já começara a escurecer; de repente, ele encarou comigo. Sem mais quê nem porquê, sem quaisquer preâmbulos, mas com o ar de quem deseja comunicar-me um grande segredo, começou a contar-me que, dali a uns dias, iam aplicar-lhe dois mil açoites, mas que por agora não podiam fazê-lo, pois a filha do coronel G*** estava loucamente apaixonada por ele. Eu olhei para ele, duvidoso, e respondi-lhe que, nesse caso, me parecia que a filha do coronel não poderia fazer nada. Mas eu não sabia nada; é que o tinham levado ali não como louco, mas como doente comum. Perguntei-lhe que doença era a sua. Respondeu-me que não sabia e que o tinham levado ali por qualquer coisa, mas que ele estava perfeitamente bem de saúde e que a filha do coronel o amava com paixão; que ela o tinha visto uma vez, havia duas semanas, quando passara pelo corpo da guarda, e ele também a vira nessa ocasião por um postigo gradeado. Assim que ela o viu apaixonou-se imediatamente. E, desde então, já por três vezes tinha ido ao corpo da guarda, sempre com vários pretextos: da primeira fora com o pai visitar o irmão, que nesse dia estava como oficial de serviço; na seguinte, em companhia de sua mãe, entregar uma esmola e quando passava em frente dele disse-lhe em voz baixa que o amava e que havia de fazer com que o pusessem em liberdade. Era estranha a minúcia de pormenores com que me contou todo esse absurdo que, naturalmente, nascera todo completo no seu cérebro doente e alterado. Tinha uma fé cega em que escaparia ao castigo. Falava muito tranquila e convictamente do apaixonado amor que por ele tinha essa menina e, apesar do absurdo de toda essa história, tornava-se estranho ouvir uma narrativa tão fabulosa acerca de uma moça apaixonada por um homem que andava já perto dos cinquenta anos, e com uma cara tão inexpressiva, tétrica e desfigurada. Era surpreendente o que o terror do castigo pudera provocar naquele espírito apoucado. De fato, talvez tivesse visto alguém pelo postigo e a loucura, que se apoderava já dele por causa do terror, agravando-se de hora para hora, encontrou depressa a sua liberdade, a sua forma. Esse pobre soldado, no qual talvez as mulheres não tivessem reparado nem uma só vez em toda a sua vida, forjou de repente todo esse romance, agarrando-se instintivamente àquilo que podia, nem que fosse uma palhinha. Escutei-o em silêncio e falei depois acerca dele com os outros presos. Mas quando os outros começaram a interrogá-lo, curiosos, guardou um silêncio prudente. No dia seguinte o médico fez-lhe muitas perguntas e disse-lhe depois que ele não estava doente, conforme se deduzia do exame, e deu-lhe alta. Só soubemos que o médico tinha escrito sanat na sua papeleta quando já tinha saído, e por isso não pudemos falar-lhe do caso. Mas nenhum de nós, então, suspeitava do mais importante. No entanto tudo se reduzia a um erro dos superiores, que o tinham enviado para a nossa sala sem repararem no motivo. Assim se produziu esse descuido. Mas é possível que os que o enviaram suspeitassem de alguma coisa mas não estivessem completamente convencidos da sua loucura e, influenciados por vagos rumores, o tivessem mandado para ali para observação. Fosse como fosse, o desgraçado, passado dias, foi levado ao suplício. Segundo parece, o inesperado acontecimento causou-lhe uma impressão profunda; não acreditava que pudessem castigá-lo, e quando o levaram perante as filas, começou a gritar: “Sentinela!” Dessa vez puseram-no no hospital, não na nossa sala, onde havia cama livre, mas noutra. Perguntei por ele e pude averiguar que, durante os oito dias que ali esteve, não disse sequer uma palavra a ninguém e mostrou-se desassossegado e muito triste... Depois, quando as costas lhe cicatrizaram, levaram-no não sei para onde. Eu, pelo menos, nunca mais voltei a ter notícias dele.
No que se refere a tratamentos e remédios, tanto quanto pude observar, os doentes sem gravidade quase não cumpriam as prescrições do médico e não tomavam os remédios; mas os doentes graves e, de maneira geral, os verdadeiros doentes gostavam muito de tratar-se, tomavam conscienciosamente as poções e os papelinhos, embora os que mais lhe agradassem fossem os remédios externos. Sanguessugas, cataplasmas e sangrias, tão do agrado também e tão merecedoras de crédito por parte do nosso povo, aceitavam-nas os presos doentes de muito boa vontade e até com prazer.
Havia uma circunstância estranha que muito me chocava. Aqueles mesmos homens que eram tão corajosos quando tinham de suportar as dores torturantes dos paus e das vergastas, costumavam queixar-se por causa de uma simples ventosa. Dar-se-ia por acaso que se tivessem já tornado muito melindrosos ou que fingiam aqueles melindres? Não tenho explicação para isto. De fato, as nossas ventosas eram de um gênero especial. O pequeno aparelho de picar a pele tinha-o perdido o feldscher, ou tinha-o estragado, se é que não se estragara por si, de maneira que agora era preciso abrir na pele os pontos indispensáveis com a lanceta. Para cada ventosa faziam perto de umas 12 incisões... O aparelho não provocava dor. Os vinte estiletes atuam de uma só vez ao mesmo tempo e a dor é quase imperceptível. Mas as punções com a lanceta são outra coisa. A lanceta pica relativamente com muita lentidão; sente-se a dor, e como, por exemplo, para duas ventosas é preciso fazer umas vinte punções, não há outro remédio senão suportá-las. Eu experimentei isto, mas, embora se sentisse dor e mal-estar, não eram de tal natureza que não se pudesse resistir-lhes sem queixumes. Chegava a ser ridículo, às vezes, olhar para um homenzarrão forte e saudável e vê-lo fazer trejeitos e queixar-se. Geralmente isso fazia o mesmo efeito de quando um homem forte e calmo, pronto para qualquer outra coisa séria, acaba por ser atacado por neurastenia e se torna voluntarioso para com os seus, por permanecer muito tempo sem fazer nada; não come o que lhe apresentam, ralha, insulta; acha tudo mau, tudo o enjoa, todos o tratam mal, todos vivem para atormentá-lo; em suma: põe-se mau, de gordo, como diz o povo desses senhorinhos que, aliás, abundam também entre o povo; e até não eram raros no nosso presídio, devido à convivência geral. Costumava acontecer na minha sala que começassem a ridicularizar alguns desses melindrosos ou simplesmente a injuriá-los; e esse, então, calava-se, como se não esperasse senão isso para se calar. Ustiântsev gostava muito disso e não perdia nunca ocasião de insultar os piegas. Embora, de maneira geral, não perdesse nunca ocasião de insultar fosse quem fosse. Era este o seu prazer, motivado, naturalmente, pela sua doença, e em parte também pela sua estupidez. Costumava começar por se pôr a olhar muito séria e atentamente, e depois, com voz tranquila, cheia de convicção, punha-se a repreender o interessado. Havia sempre de intrometer-se em tudo; parecia que tinha sido incumbido de velar pela ordem entre nós ou pela moral em geral.
— Mete-se em tudo — costumavam dizer os presos, sorrindo.
Mas tratavam-no com delicadeza, evitavam rixar com ele, e só de vez em quando se excediam.
— És um caluniador! Nem em três carradas cabem as tuas mentiras.
— A quem é que eu calunio? Diante de um burro ninguém tira o chapéu, isso já se sabe. Por que grita ele dessa maneira? Por causa da lanceta? Aguenta!
— Mas a ti, que te interessa?
— Nada, meus amigos — interrompia um dos nossos presos —, as ventosas não valem nada, eu já as experimentei, mas não há dor pior do que quando lhe puxam muito a orelha.
Todos se puseram a rir.
— Mas a ti, puxaram-ta?
— Julgas que não? Claro que sim, que puxaram.
— Por isso tu tens as orelhas tão grandes e tão espetadas.
Esse presidiário, Chápkin, tinha de fato umas orelhas muito compridas, espetadas de ambos os lados. Era um vagabundo, ainda novo, manhoso e pacífico, que se exprimia sempre com um certo humorismo fingido e grave, o que comunicava certa comicidade a algumas das suas histórias.
— Como havia eu de pensar que te puxaram as orelhas? Como podia eu pensar isso de ti, que és tão esperto? — insistia de novo Ustiântsev, encarando Chápkin, embora, aliás, isso não se dirigisse a ele sozinho, mas sim a todos em geral; mas Chápkin nem sequer olhava para ele.
— E a ti quem te as puxou? — perguntou-lhe outro.
— Quem? Já toda a gente sabe muito bem que foi o carrasco. Isso, meus ami***, éramos dois e mais outro, todos vagabundos. Durante o caminho tínhamos enchido um pouco a bolsa em Tolminó, uma aldeia que se chama assim. Bem. Entramos e olhamos; as coisas não estavam mal. No campo há quatro liberdades; na cidade, nenhuma, isso já se sabe. Pois bem: a primeira coisa que fizemos foi ir para a pousada. Olhamos. Aproxima-se um, pelo visto enegrecido pelo sol, com os cotovelos rotos, vestido à alemã. Pomo-nos a falar...
— Os senhores — diz-nos ele — deem-me licença que lhes pergunte: trazem documentação?
— Não — respondo-lhe eu.
— Nós também não. E comigo vêm dois amigos — disse — também da casa do general Kukúchkin.36 Somos servos. Por isso tomo a liberdade de perguntar-lhe se não poderia convidar-nos. Se poderia oferecer-nos alguma bebida...
— Com muito gosto — respondemos-lhe. — Pois bem, bebemos. E entretanto começamos a tratar de um assunto da nossa “competência”. A casa ficava no extremo do caminho e nela vivia um burguês opulento, e decidimos visitá-la de noite. E nessa mesma noite todos caímos ali na armadilha. Apanharam-nos e fomos levados à presença do juiz. “Eu próprio — disse — os interrogo.” Apareceu com o seu cachimbo, seguido de um criado com uma chávena de chá; era um tipo gordo, de suíças. Sentou-se. Entretanto tinham trazido para ali outros três indivíduos, também vagabundos. O vagabundo é um homem com graça, meus amigos; não se lembra de nada, absolutamente; ainda que lhes deem uma bordoada na cabeça, esquecem-se de tudo, não sabe nada. O juiz encarou comigo:
— Quem és tu? — e parecia estar gritando dentro de um túnel. Bem; eu, como é sabido, disse o costume:
— Não me lembro de nada, Vossa Senhoria; esqueci-me de tudo.
— Espera, espera, que eu já te digo, a tua cara não me é desconhecida — e olhava para mim com uns olhos enormes. Mas eu nunca o vira até então. Voltou-se para o outro:
— Quem és tu?
— “Fisga-te”, senhor.
— Chamas-te Fisga-te?
— Sim, senhor.
— Bem, está bem. És Fisga-te; e tu? — perguntou ao terceiro, já se sabe.
— Chamo-me “Eu vou atrás dele”.
— Chamas-te assim, tunante?
— É assim que me chamam as pessoas boas. Há muita gente boa no mundo, senhor, isso já se sabe.
— E quem são essas pessoas boas?
— Estou um pouco esquecido, senhor; queira perdoar-me, por caridade.
— Esqueces-te completamente?
— Completamente, senhor.
— Mas tu com certeza que também deves ter tido pai e mãe... não te lembras deles?
— Com certeza que tive, senhor; mas o certo é que também não me lembro deles; pode ser que os tenha tido, senhor.
— Mas onde tens vivido até agora?
— No bosque, senhor.
— Sempre no bosque?
— Sempre no bosque, senhor.
— E no inverno?
— Ao inverno não cheguei a vê-lo, senhor.
— Bem; e tu, como te chamas?
— “Machada”, senhor.
— E tu?
— “Come e não bocejes”, senhor.
— E tu?’
— “Anda como tento”, senhor.
— E não se lembra de nada?
— De nada, senhor.
Levanta-se, sorri e eles olham para ele, rindo-se. Bem; mas às vezes dão-te um soco nos dentes quando acham o riso descabido. Mas todos estes tipos são gordos e bem nutridos...
— Levem-nos para a prisão — disse. — Eu vou com eles; mas, eh! tu, espera aí... quero dizer-te uma coisa... Chega cá, senta-te!
Olho: uma mesa, papel e pena. Penso: “Que andará ele maquinando?”
— Senta-te — diz — à mesa, pega na pena e escreve — e agarrou-me pela orelha e começou a puxar. Eu olho para ele como o diabo olha para o pope.
— Não sei escrever, senhor — digo eu.
— Escreve!
— Tenha piedade, senhoria.
— Escreve como souberes, mas escreve! — e continua puxando a minha orelha e a torcê-la! Bem, meus amigos, só lhes digo que preferia ter levado trezentas pauladas do que ouvir aqueles gritos de “Escreve e nem mais um pio!”
— Mas ele estava bêbado ou o que tinha ele?
— Não, não estava bêbado. É que em T***, um escriturário, roubara a caixa e fugira com ela, e o homem também tinha as orelhas como abanos. Bem, e tinham-no anunciado por todos os lados. Eu, pelos sinais, me parecia com ele, e foi por isso que, assim que me viu, começou a embirrar comigo; queria ver se eu sabia escrever e como era a minha letra!
— Mas que tipo! E doía?
— Ai não, que não doía!
Houve uma gargalhada geral.
— Bem, e escreveste?
— Que havia eu de escrever? Mas ele me pegou na mão e tirou-me a pena; escreveu num papel e depois parou. Deu-me dez bofetões e depois, é claro, largou-me, isto é, mandou-me para o presídio.
— Mas tu sabias escrever?
— Dantes sabia; mas agora, desde que se escreve com estas penas, já me esqueci.
Eis aqui com que histórias, ou melhor, com que tagarelices nós passávamos às vezes o nosso aborrecido tempo. Senhor, que aborrecimento, esse! Dias longos, opressivos, todos iguais, sem a mais leve mudança. Ainda se ao menos tivéssemos um livro! E dizer que eu, sobretudo a princípio, amiudava as minhas visitas ao hospital, umas vezes como doente e outras para descansar; o que interessava era sair do presídio. Porque este era horrível, muito mais horrível do que o hospital, incomparavelmente pior. Maldade, hostilidade, inveja, ataques contínuos contra nós, os aristocratas; caras sombrias, mal-humoradas. Aqui, no hospital, vivíamos todos num plano de maior igualdade, mais amigavelmente. O momento mais triste do dia era à tarde, quando acendiam as luzes e se fazia noite. Deitávamo-nos cedo. Uma lamparina baça brilhava ao longe, junto da porta, como um pontinho luminoso; mas o fundo da sala ficava na escuridão. O ambiente era pesado e fedorento. Há algum que não pode dormir, endireita-se e fica sentado hora e meia na cama, inclinando a cabeça com o gorro de dormir, como se meditasse. Uma pessoa fica olhando para ele uma hora, esforçando-se por adivinhar em que estará ele pensando, com o fim de matar também o tempo de qualquer maneira. E então põe-se a sonhar, a recordar o passado, e surgem quadros amplos e brilhantes, evocados pela fantasia; e recordam-se pormenores que, noutro tempo, não teríamos recordado nem nos teriam causado tanta impressão como agora. E depois começa-se a pensar no futuro: “Como se sairá do presídio? Para onde ir depois? Quando será isso? Ao sair, encontrar-se-á alguém de família?” Uma pessoa pensa e repensa e a esperança nasce na sua alma. Mas outras vezes põe-se simplesmente a contar: “Um, dois, três” etc., com a única intenção de ver se assim adormece. Eu, às vezes, contava até três mil e não adormecia. Mas eis que alguém se volta para o outro lado e a cama range. Ustiântsev tosse, com a sua tosse cheia de expectoração, de tísico; depois solta um débil gemido e diz sempre: “Senhor, pequei!” E é terrível ouvir essa voz doente, enfraquecida e surda no meio do silêncio absoluto. Mas eis que em qualquer parte, num canto, há dois que não dormem e falam de cama para cama. Um fala da sua vida, de algo longínquo, esquecido, vago, de filhos, de uma mulher, da antiga ordem das coisas. E sente-se que tudo isso de que fala jamais voltará para ele; mas ele, o narrador... é como um membro decepado; o outro escuta. Ouve-se apenas um fraco e significativo barulhinho, como de água que corresse ao longe... Lembro-me de que, uma vez, numa longa noite de inverno, me aconteceu ouvir uma certa história. Pareceu-me então como um sonho febril, como se eu tivesse estado com febre e delirante, e tivesse sonhado tudo isso no ardor da febre, ensandecido...
O MARIDO DA AKULHKA
(CONTO)
Uma noite era já tarde, meia-noite. Eu já adormecera, mas de repente despertei. A turva luzinha da longínqua lamparina mal alumiava a sala... Quase todos dormiam. Até Ustiântsev dormia também, e podia ouvir-se no meio do silêncio a dificuldade com que ele respirava e como a garganta lhe estertorava de mucos a cada aspiração. De repente ouviram-se ao longe, nos corredores, os passos pesados da sentinela que se aproximava para a rendição. Ouviu-se o bater duro duma culatra sobre o chão. A enfermaria abriu-se; o cabo entrou com cautela e contou os doentes. Passado um minuto tornaram a fechar a sala, uma nova sentinela ficou ali postada, a outra afastou-se e de novo voltou o silêncio de antes. Foi então que reparei que, perto de mim, à esquerda, havia dois que não dormiam e pareciam cochichar entre si. Isso costumava acontecer nas enfermarias; estavam às vezes dias e meses inteiros deitados um junto do outro, sem dizerem uma palavra, e de repente, numa hora avançada da noite, começava um a falar e a contar todo o seu passado ao vizinho.
Aqueles, pelo visto, havia já algum tempo que falavam. A princípio não reparei nisso e também não podia ouvir bem o que diziam; mas pouco a pouco fui-me acostumando e comecei a compreender tudo. Não tinha sono. Que fazer senão escutar? Um deles falava com entusiasmo, meio erguido na cama, baixando a voz e estendendo o pescoço na direção do camarada. Estava visivelmente exaltado, excitado; percebia-se que tinha uma grande vontade de contar. O seu ouvinte estava sentado na cama, sério e com uma indiferença absoluta, esticando os pés, e de vez em quando murmurava qualquer coisa à guisa de resposta ou em sinal de atenção para com o amigo, mas como se o fizesse apenas por dever e não por amizade, e atafulhava a cada momento o nariz de tabaco, que tirava de uma tabaqueira de osso. Era um soldado da companhia disciplinar, Tchevierin, um homem de uns cinquenta anos, terrível pedante, calculista frio, um imbecil muito soberbo de si próprio. O narrador, Chichkov, era um homem ainda novo, de menos de trinta anos; era um preso civil, que trabalhava na alfaiataria. Até então eu mal tinha reparado nele; e depois também pouco me preocupei com ele, durante todo o tempo da minha vida de presidiário. Era um homem vazio e de poucas luzes. Às vezes ficava calado, punha-se tristonho, arredio, e durante um mês não falava. Mas outras vezes, de repente, metia-se naquilo que não lhe dizia respeito, começava a contar mexericos, exaltava-se por qualquer insignificância, andava de alojamento em alojamento, levava notícias, propalava calúnias, perdia a cabeça. Quando lhe batiam, tornava a calar-se. Era um indivíduo covarde e digno de dó. Todos o tratavam com certo desprezo. Era baixo, fracote, tinha uns olhos inquietos e que pareciam às vezes meditar profundamente. Quando lhe acontecia contar qualquer coisa, começava com muito entusiasmo, até gesticulava, e de repente interrompia-se ou mudava para outra coisa, distraindo-se com novos pormenores, até se esquecer por onde começara. Brigava com frequência e quando rixava com alguém punha-se infalivelmente a dirigir-lhe censuras, a deitar-lhe em rosto qualquer falta que tivesse cometido, falava com muita veemência e a dois dedos do pranto... Mas não tocava mal balalaica e gostava de tocá-la, e nos dias de festa também dançava, e dançava bem, quando lhe pediam... Era fácil conseguir que fizesse uma coisa... Não que fosse complacente de seu natural, mas gostava de cultivar a amizade e de agradar aos companheiros.
Durante muito tempo não consegui perceber de que falava. Pareceu-me também, ao princípio, que se afastava a todos os momentos do tema e se demorava com coisas secundárias. Pode ser também que reparasse em Tchevierin, que não seguia com interesse o seu relato; parecia que queria convencer-se a si próprio de que o seu ouvinte era... todo ouvidos, e talvez lhe tivesse custado muito ter de convencer-se do contrário.
— ... E quando ia ao mercado — continuou — todos lhe faziam reverências e prestavam homenagem; em suma... riquíssimo.
— Tinha então um negócio?
— Sim, era comerciante. Havia muita pobreza entre a gente humilde. Uma autêntica miséria. As mulheres no rio, lá em cima, tiravam a água para regar as suas terras semeadas e, no outono, nem sequer tinham couves para a sopa, nada. Bom. Pois ele tinha um bom pedaço de terreno, mandava lavrar a terra por camponeses de aluguel, mantinha três, e tinha, além disso, uma grande colmeia; negociava em mel e também em gado, e é escusado dizer que gozava de grande consideração no nosso meio. Era já bastante velho, com uns setenta anos; tinha já os ossos duros, os cabelos brancos e era gordo. Quando entrava com a sua pele de raposa numa loja, todos lhe faziam muitas honras: “Saúde, papacha Ankúdi Trofímitch!” “Saúde a ti também”, dizia ele. Como vais ver não desprezava ninguém. “Longa vida tenha Ankúdi Trofímitch!” “Como vão as tuas coisas?”, perguntava ele. “As nossas coisas vão como nozes brancas.37 E as suas, papacha?”
“Vamos andando”, dizia, “por nossos pecados, comendo o pão que o diabo amassou”. “Que viva muitos anos, Ankúdi Trofímitch!” Não desprezava ninguém e falava de tal maneira que... cada palavra sua valia materialmente 1 rublo. Era muito lido, sabia ler e escrever, mas só lia as Escrituras. Sentava a velha na sua frente. “Bem, escuta-me, mulher, vê se me, compreendes!” E começava a explicar-lhe. Mas a velha não era nada velha; casara-se com ela em segundas núpcias, por causa dos filhos, já se vê, pois da primeira não teve nenhum. Bom; pois da segunda, Maria Stiepânova, tinha dois filhinhos ainda pequenos; o mais novo, Vássia, nascera quando ele já tinha setenta anos e quando Akulhka, a filha mais velha, teria já 18.
— E essa é que era a tua mulher?
— Espera, que em primeiro lugar tenho de falar de Filhka Morózov. “Paga-me”, disse Filhka a Ankúdi, “dá-me os 400, senão não trabalho para ti. Não quero mais contratos contigo, e à tua Akulhka”, disse, “meu amigo, não a quero. Eu agora vou começar a viver. Os meus pais morreram, por isso eu gasto o dinheiro e depois assento praça e, passados dez anos, volto feito marechal.” Ankúdi então pagou-lhe para saldar as contas... Porque o seu pai e o velho tinham negociado com o mesmo capital. “És um perdido”, disse. E o outro respondeu-lhe: “Bem, perdido ou não, isso é contigo. Tu queres fazer economias com 2 groch, guardas todo o lixo porque pode servir para as papas. Eu, que diabo!, sentia ganas de cuspir-lhe com isto tudo. Eu”, disse ele, “tenho caráter. Mas não carrego com a tua Akulhka; eu mesmo sem isso já dormi com ela...” “O quê?!”, disse Ankúdi. “Atreves-te a ofender um pai honrado e uma filha honesta? Quando é que tu dormiste com ela, tu, aborto duma serpente, tu imprestável?”, e todo ele tremia. Foi o próprio Filhka que mo contou. “Isso não é comigo”, disse, “mas hei de fazer com que a sua Akulhka não vá agora atrás de nenhum, nem nenhum a queira para mulher, e Mikita Grigóritch já não a leva porque está desonrada. Eu já durmo com ela desde o outono. Mas agora não o faria nem por cem caranguejos. Experimente dar-me cem caranguejos... vai ver como não cedo.” O rapaz começou a falar dela! De tal maneira que os boatos chegavam até a cidade. Reuniu os companheiros e uma boa maquia; andou três meses na pândega e gastou tudo. Eu costumava dizer: “Quando o dinheiro me tiver acabado todo, venderei a casa, venderei tudo e depois, ou assento praça ou me transformo em vagabundo.” Andava bêbado desde a manhã até a noite, e com mulheres aos pares. E as moças gostavam tanto dele que era um horror. Tocava muito bem citara.
— Quer dizer que, antes disso, já andava metido com Akulhka?
— Espera. Nessa altura também morrera o meu pai, e a minha mãe fazia pães de especiaria, trabalhava para Ankúdi e era disso que vivíamos. Vivíamos mal. Bem; também tínhamos um pedacinho de terra atrás do bosque e semeávamos o nosso trigo; mas depois de o pai ter morrido tudo era pouco, porque eu também não ia lá muito bem, meu amigo. Tirava o dinheiro à mãe à custa de pancada...
— Lá isso é que não estava certo. É um grande pecado.
— É que estava sempre bêbado, desde a manhã até a noite. A nossa casinha continuava ainda de pé; embora pobre, era nossa; mas não havia nela nada que roer. Vivíamos em jejum semanas inteiras, roíamos trapos. A mãe estava sempre ralhando comigo, ralhando comigo; e eu... eu, meu amigo, por esse tempo, não me separava um momento de Filhka Morózov. Desde que amanhecia até que anoitecia, sempre com ele. “Toca guitarra e dança”, dizia ele, “que eu ficarei dormindo e dar-te-ei dinheiro, porque sou rico.” As coisas que ele fazia! Só não roubava: “Eu não sou ladrão, sou um homem honrado. Vai e besunta de pez38 a porta de Akulhka, pois não quero que ela se case com Mikita Grigóritch. Para mim, isto é o principal”, disse ele. O velho, já antes, queria dar a moça a Mikita Grigóritch. Mikita também era velho e viúvo, usava óculos, era negociante. Quando soube que corriam boatos acerca de Akulhka, voltou com a palavra atrás: “Para mim”, disse ele “Ankúdi Trofímitch seria uma grande desonra, e também já sou velho para me casar.” Bem; então nós fomos e untamos de pez a porta de Akulhka. E lá em casa bateram-lhe a valer... Maria Stiepânova gritava: “Não sobreviverei a isto!” E o velho: “Noutros tempos, no tempo dos veneráveis patriarcas”, dizia ele, “haviam de atirá-la à fogueira; mas agora reinam no mundo a obscuridade e a corrupção.” Em toda a rua se ouviam os choros de Akulhka; não paravam de bater-lhe desde manhã. E Filhka gritava em pleno mercado: “É a famosa Akulhka a moça, meus amigos. Que toilettes, para receber os amantes, ai não! Eu já lhes escarrei isto na cara, para que se lembrem”. Por essa altura encontrei-me uma vez com Akulhka, que ia buscar água, e gritei-lhe: “Bom dia, Akulina Kundímovna! Como estás? Podes dizer-nos como te governas?” Foi só isto o que eu lhe disse; ela se voltou para olhar-me com uns olhos enormes; mas estava muito fraquinha. Quando ela se voltou para olhar para mim, a mãe, pensando que ela me sorria, gritou da porta: “Por que mostras os dentes, desavergonhada?” E nesse dia tornaram a castigá-la. Bateram-lhe durante uma hora. “Mato-a”, dizia, “porque já não é minha filha.”
— Quer dizer que era uma rameira?
— Escuta, diáduchka. Andava eu assim constantemente bêbado, na companhia de Filhka, quando um dia, em que eu estava na cama, a mãe se aproxima de mim. “Com que então estás deitado, meu velhaco, meu crápula, meu canalha!” E pôs-se a ralhar comigo. “Casa-te”, disse ela, “casa-te com Akulhka. Agora eles dar-ta-ão com gosto, com 300 rublos de dote.” E eu lhe disse: “É uma pena que agora já está desonrada para todos.” “Mas tu, imbecil”, disse ela, “não vês que com a coroa39 tudo se arranja? Para ti é melhor casares com uma que possa sentir-se culpada toda a sua vida. Mas nós ficaremos donos do dinheiro; eu já falei com Maria Stiepânova”, disse ela. “Vinte rublos de prata na mão e caso-me.” E olha, quer acredites quer não, até o dia do casamento andei sempre bêbado. Mas eis que Filhka Morózov vem e me ameaça. “Hei de quebrar-te as costelas, a ti, marido de Akulina”, disse ele, “e hei de ir dormir com a tua mulher todas as noites.” E eu lhe disse: “Mentes, focinho de cão!” Bem; e ele pôs-se a insultar-me pela rua. Eu corri para minha casa: “Não me casarei”, disse eu, “se não me entregarem agora mesmo 50 rublos de prata.”
— E entregaram-tos?
— A mim? E por que não? Nós não estávamos desonrados. O meu pai só ultimamente perdera tudo num fogo; mas antes tínhamos sido mais ricos do que eles. Ankúdi vai e diz: “Vocês estão na miséria”, disse. E eu respondo-lhe: “Ainda não chegou o pez com que me untaram a porta”. E ele tornou-me: “Vamos a ver: pensarás tu tornares-te importante à nossa custa? Demonstra que ela está desonrada; nem todas as bocas se tapam com um lenço. Tão verdade como Deus existir é estar aqui esta porta; não te cases com ela. Agora, quanto ao dinheiro que te dei, hás de devolver-mo.” Então, eu rompi completamente as relações com Filhka; mandei-lhe dizer por Mítri Bíkov que eu agora havia de difamá-lo por toda parte, e, meu amigo, andei bêbado até o dia do casamento. Só acordei para o casamento. Quando voltei para casa, depois da boda, sentamo-nos e Mitrofan Stiepânitch foi e disse: “Embora não seja honroso, é negócio firmado e acabado.” O velho, Ankúdi, também estava bêbado e choramingava, sentado... e as lágrimas corriam-lhe pela barba. Bem, eu, meu amigo, então fui, e vê o que eu fiz: tirei do bolso um chicote que tinha feito antes do casamento e que pensara experimentar no corpo de Akulhka para que ficasse sabendo, que diabo!, do que é apanhar um marido com um engano desonroso e para que as pessoas ficassem sabendo que eu não era nenhum palerma ao casar-me...
— Muito bem! Era para que ela lhe fosse tomando o gosto...
— Não, homem, espera e escuta. Na nossa terra, depois do casamento, os noivos vão imediatamente para o quarto, enquanto os outros bebem. Por isso nos deixaram sós, a mim e a Akulhka. Ela estava branca, parecia que não tinha nem uma gota de sangue. Tinha medo, é claro. Também tinha os cabelos brancos como o linho. Os olhos, dilatados. E estava muito calada, sem dizer uma palavra, perfeitamente muda, naquela casa. Mas que pensas tu, meu amigo? Eu vou e pego no chicote e ponho-o em cima da cama; mas ela, meu amigo, estava inocente.
— Que dizes?
— Absolutamente, como uma moça honesta, de boa família. Por que tinha ela sofrido todos aqueles suplícios? Por que a tinha Filhka Morózov difamado perante toda a gente?
— Realmente...
— Então eu me pus de joelhos a seus pés, em frente da cama, de mãos juntas: “Mátuchka”, disse, “Akulina Kundímovna, perdoa-me; que imbecil eu fui em ter acreditado. Perdoa-me, que sou um canalha!” Ela se sentou diante de mim na cama, olhou-me, atirou-me os braços ao pescoço, sorriu, chorando ao mesmo tempo; chorava e ria... Eu então fui ter com os outros e disse: “Bem, vou ter agora mesmo com Filhka Morózov e ele não viverá nem mais uma hora!” Os velhos não sabiam como haviam de falar-lhe; a mãe atirou-se aos pés dela, soluçando. E quando, no primeiro domingo, entrei na igreja, levava um gorro de pele de cordeiro, muito bonito; um caftã de pano fino, calções largos e pregueados, e ela ostentava uma pele de lebre, nova, e uma touca de seda... Fazíamos um lindo par! As pessoas olhavam para nós com gosto; eu não fazia má figura; de Akulínuchka apenas se podia dizer que valia por dez...
— Bem, está bem.
— Escuta. Depois do casamento, logo no outro dia, embora bêbado, eu deixei os convidados, livrei-me de todos e escapei-me. “Tragam-me aqui”, disse eu, “esse molenga de Filhka Morózov... Que apareça, esse velhaco! Hei de dizê-lo bem alto no mercado!” Bem, eu estava bêbado; por isso, foi já junto de Vlássov que três homens me agarraram, à força, e me obrigaram a voltar para casa. Mas na cidade fizeram-se comentários. As mulheres falavam no mercado umas com as outras e diziam: “Queres saber? Akulhka estava honrada.” Mas passado pouco tempo depois disso, Filhka disse-me em público: “Vende-me a tua mulher... para teres de beber. Faz como Sachka, o militar, que se casou por isso, não dormiu com a mulher e andou três anos bêbado.” Então eu lhe disse: “És um canalha!” “E tu”, respondeu ele, “um burro. Casaram-te quando estavas bêbado. Como podes tu saber alguma coisa?” Eu vou para casa e digo: “Vocês casaram-me quando eu estava bêbado.” A mãe, então, veio ter comigo: “A ti”, disse eu, “mátuchka, taparam-te as orelhas com ouro. Traz cá Akulhka!” Bem, e comecei a bater-lhe. Bati e tornei a bater, durante duas horas, até que já não podia ficar de pé; esteve três semanas sem poder levantar-se da cama.
— Não há dúvida — observou fleumaticamente Tchevierin —, se não lhe bates, então... Se calhar, apanhaste-a com algum amante?
— Não, apanhar não apanhei — disse Chichkov depois de um silêncio e como se fizesse um esforço. — Mas é que eu estava ressentido; toda a gente me ofendia e a alma de tudo isso era Filhka. “Tu”, dizia, “tens uma mulher só para vista, para que a gente olhe para ela.” Uma vez em que dava uma grande festa, convidou-me. “A tua mulher”, disse ele, “tem uma alma doce, boa, é linda e amável, é boa para todos e agora todos a invejam. Mas já te esqueceste, rapaz, de que tu próprio untaste com pez e sua porta?” Eu estava ali, sentado, bêbado; mas ele foi, agarrou-me logo pelos cabelos e sacudiu-me. “Dança”, disse, “marido de Akulhka, enquanto eu te seguro pelos cabelos. Dança e diverte-me!” “És um canalha!”, gritei. E ele me disse: “Vou atrás de ti e hei de matar Akulhka, a tua mulher, diante de ti, hei de matá-la à paulada quando me apetecer.” Quer acredites, quer não, depois disto, eu, durante um mês, não me atrevi a pôr os pés fora de casa. “Há de chegar”, pensava eu, “e há de desonrar-me.” Olha: também por causa disto lhe batia a ela.
— Para que bater-lhe? As mãos podem atar-se a língua; não. Bater muito não dá resultado. Castiga, ensina e depois afaga-a. Com as mulheres, deve ser assim.
Chichkov permaneceu silencioso um momento.
— Vergonha — recomeçou — foi ter entrado em casa esse costume; havia muitos dias que eu não parava de bater-lhe, desde manhã até a noite; não podia levantar-se, andava doente. Mas se não lhe batia não ficava satisfeito. Ela costumava ficar sentada: caladinha, olhava pela janela, chorava... Estava sempre chorando. Fazia pena vê-la, mas eu continuava sempre a bater-lhe. A minha mãe, às vezes, ralhava-me: “Malandro, raça de presidiário, é que tu és!” “Hei de matá-la”, gritava eu, “e ninguém poderá dizer-me nada, porque me ludibriaram quando me casaram!” A princípio, o velho Ankúdi entrava, aproximava-se de mim. “Tu”, dizia ele, “julgas-te uma pessoa importante, mas eu hei de fazer-te entrar na linha.” Mas depois não nos ligou mais importância. Quanto a Maria Stiepânova, estava muito tranquila. Uma vez apareceu e implorou-me com lágrimas: “Venho pedir-te um favor, Ivan Siemiônitch; e não é grande. A ansiedade com que o peço é que é grande. Deixa-nos tranquilos, bátiuchka — e fez-me uma reverência. — Abranda, perdoa-lhe! A nossa filha foi vítima de uma calúnia, tu bem sabes que ela estava honrada...” Fez-me uma reverência até os pés, chorando. Mas eu me encolerizei: “A ela, agora, nem ouvi-la quero! Hei de proceder como me apetecer, pois não posso dominar-me. E Filhka Morózov — disse — é meu camarada e o meu melhor amigo...”
— Queres dizer com isso que tornaram a difamá-la juntos?
— Qual! Ninguém lhe pôde pôr a vista em cima. Tinha desaparecido. Gastara tudo quanto possuía e vendeu-se como substituto a um burguês para servir na milícia em vez do filho do velho. Entre nós, quando alguém se vende como substituto, até o próprio dia em que o levam, todos os da casa têm de prostrar-se diante dele, e ele manda em todos como um verdadeiro senhor. Recebe uma quantia antecipada do dinheiro da venda; e além disso vive em casa do recruta durante meio ano, e, a maneira como se porta, aí, para com todos! Só respeita os ícones! “Eu, caramba, vou ser soldado por causa do teu filho; quer dizer que sou o vosso benfeitor, que vocês ficam todos obrigados a me tratarem com respeito, senão dou o dito por não dito.” Deste modo, Filhka vivia .à grande em casa do burguês; dormia com a filha dele. Depois do almoço, diariamente, puxava-lhe as barbas — enfim fazia tudo que lhe apetecia. Exigia todos os dias um banho e que os vapores do mesmo fossem aumentados com os do vinho, que fosse carregado para lá nos braços das mulheres. Ao voltar dos passeios para casa, postava-se no meio da rua, gritando: “Não quero entrar pela porta, deitem abaixo a paliçada.” De maneira que, ao lado da porta, tinham de abrir uma passagem na cerca para ele passar. Até que finalmente tudo isso acabou quando o levaram para o serviço. Muita gente o acompanhou pela rua: levavam Filhka Morózov para o serviço militar! Ele fazia cumprimentos para a direita e para a esquerda. Mas Akulhka voltava da horta nessa ocasião. “Para”, gritou-lhe ele, saltando da tieliega e dirigindo-se a ela; fez-lhe uma reverência até o chão. “Minha vida”, luz da minha vida! Há dois anos que te amo, mas agora me levam com música para a vida militar. Perdoa-me, filha honrada de pai honrado, porque eu fui um canalha para ti e procedi mal contigo em tudo.” E fez-lhe outra vez uma reverência até o chão. Akulhka, a princípio, parou, morta de medo; mas depois fez-lhe um cumprimento e disse-lhe: “Perdoa-me tu também a mim, rapaz, que eu não tenho nenhuma razão de queixa contra ti.” Eu fui atrás dela para a isbá. “Que disseste tu, cadela?” Mas ela, quer acredites, quer não naquilo que te digo, ficou-se a olhar para mim. “Agora”, disse ela, “amo-o mais do que ninguém neste mundo.”
— É para que vejas!
— Eu, em todo aquele santo dia, não lhe dirigi uma palavra... Só ao anoitecer é que lhe disse: “Akulhka, agora vou-te matar”. Nessa noite não dormi; saí e bebi um pouco de kvas e depois começava já a amanhecer. Regressei a casa. “Akulhka”, disse eu, “levanta-te para irmos para o campo.” Eu, já antes lhe falara disso, e a minha madrasta sabia que havíamos de ir até lá. “Temos de trabalhar”, disse eu, “há já três dias, segundo ouvi dizer, que o empregado não faz nada.” Atrelo a tieliega em silêncio. À saída da nossa aldeia há um faia! que tem umas 15 verstas de comprido, e depois desse faial é que ficava o nosso campo. Tínhamos nós andado umas três verstas pelo faial, quando eu parei o cavalo. “Desce, Akulina”, disse eu, “chegou a tua última hora.” Ela olha para mim, assustada. Fica diante de mim, calada. “Fizeste-me perder a paciência”, disse eu. “Encomenda a tua alma a Deus!” Depois fui e agarrei-a pelos cabelos. Tinha umas tranças muito grossas e compridas. Atei-as ao meu braço; atirei-a ao chão, por detrás, segurando-a entre os joelhos; peguei na navalha, abri-a por detrás da cabeça dela e cortei-lhe a garganta... Ela começou a gritar e a jorrar sangue; retirei a navalha, cinjo-a, corri os dois braços pela frente, deito-a no chão, abraço-me a ela e ponho-me a gritar em cima, a gritar, a gritar... ela tremia toda, escorregava-me das mãos e o sangue salpicava-me... sangue na cara e nas mãos, em borbotões, em borbotões. Larguei-a; senti medo, deixei o cavalo quieto e deitei a correr, a correr, e entrei em casa pela porta dos fundos, onde ficava a casa de banho. A nossa banheira era muito velha e estava quase inutilizável; acocorei-me debaixo e ali estive. Fiquei ali até a noite.
— Akulhka?
— Queres saber? Levantou-se também, depois de mim, e deitou a correr para casa. Encontraram-na depois a cem passos daquele lugar.
— Não a degolaste, naturalmente.
— Sim... — Chichkov fez uma pausa.
— Há uma veia — observou Tchevierin — que se não se apanha da primeira vez, as pessoas podem continuar vivendo e, por muito sangue que vertam, não morrem.
— Mas ela morreu. Encontraram-na morta ao anoitecer. A notícia espalhou-se, começaram a procurar-me e encontraram-me na banheira. E há já quatro anos que vivo aqui, sabes? — acrescentou ele depois de um silêncio.
— Hum! Essa é que é a verdade: se não bates, não consegues nada — observou Tchevierin, fria e calmamente, e, tornando a puxar da tabaqueira, pôs-se a sorver tabaco devagarinho e com deleite. — E por outro lado, rapaz — continuou —, também te portaste como um tolo. Eu, uma vez, também fui encontrar a minha mulher com um amante. Levei-a para a cavalariça, dei duas voltas à rédea do cavalo. “A quem”, disse eu, “a quem é que juraste fidelidade?” “A quem juraste?” E comecei a dar-lhe com as rédeas. Bati-lhe durante meia hora, até que ela me gritou: “Os pés te lavarei e a água beberei!” Chamava-se Avdótia.
TEMPO DE VERÃO
Tínhamos chegado aos princípios de abril e aproximava-se a Semana Santa. Os trabalhos de verão começavam pouco a pouco. O sol cada dia se ia tornando mais quente e mais brilhante; o ar cheirava à primavera e provocava um efeito perturbador no organismo. Os dias bonitos perturbam até os homens que arrastam cadeias e infundem-lhes desejos, anelos, nostalgias. Parece que anseia pela liberdade com mais força sob os feixes ardentes da luz do que nos infelizes dias de inverno ou de outono, e isto observa-se em todos os presos. Parecia que ficavam alegres nos dias luminosos, mas, ao mesmo tempo, manifestavam uma certa impaciência e irritabilidade. Eu reparava que, na primavera, as desavenças se tornavam mais frequentes entre nós. Ouviam-se ruídos mais a miúdo, gritos, vozes, e surgiam complicações; mas, ao mesmo tempo, sucedia que, de súbito, se notava em qualquer parte, no trabalho, algum olhar teimoso e meditabundo, dirigido para a distância azulínea, para algum lugar do outro lado do Irtich, onde se estendia, como um pano, a livre estepe quirguiz, por um espaço de mil e quinhentas verstas; ouvia-se um ou outro suspiro fundo, a plenos pulmões, como se criassem assim a ilusão de aspirarem todo aquele ar longínquo e livre, aliviando dessa maneira a sua alma oprimida e encadeada. “Ah!”, exclama por fim um preso, como se sacudisse os sonhos e as reflexões e, de repente, com um gesto impaciente e azedo, pega na enxada ou nas telhas que é preciso mudar de um lugar para outro. Um momento depois esqueceu já a sua inesperada comoção e começa a rir ou a altercar, segundo o seu temperamento; mas, de súbito, com uma veemência desacostumada, que não corresponde à necessidade, aplica-se ao trabalho, se é que lho deram, e começa a trabalhar, a trabalhar, com todas as energias, como se quisesse afugentar de si, com o trabalho intenso, algo que o oprime e angustia interiormente. É tudo gente forte, na sua maioria na flor da idade e do vigor... Como as cadeias se tornam pesadas, neste tempo! Não estou poetizando ao escrever isto e estou certo da verdade da minha observação. Além de que, no ar morno, debaixo do sol radioso, quando se sente e se treme de comoção, com toda a alma, com todo o ser, perante a Natureza que ressuscita à nossa volta com uma força irreprimível, é que se torna mais duro permanecer fechado no alojamento, sob vigilância e sujeito à vontade alheia; além de que neste tempo primaveril, com a primeira calhandra, começa na Sibéria e em toda a Rússia a vagabundagem: os homens fogem dos presídios e vão refugiar-se nos bosques. Depois do ambiente sufocante, dos castigos, das cadeias e dos açoites, vagabundeiam em plena liberdade por onde lhes apetece, por onde melhor lhes parece bebem e comem O que lhes vem à mão, o que Deus lhes dá e, quando chega a noite, descansam placidamente em qualquer lugar, no bosque ou até sobre a terra, sem grandes preocupações, sem as nostalgias do preso, como os pássaros da selva, depois de darem as boas-noites às estrelas do céu, debaixo do olhar de Deus. Às vezes torna-se também custoso “estar ao serviço do general Kukúchkin”. Às vezes não conseguem um pouco de pão durante 24 horas; é preciso esconder-se de toda a gente; acontece verem-se na contingência de assaltar ou saquear, e às vezes até de matar. “O colono é como uma criança; tudo quanto vê, apanha”, dizem na Sibéria a respeito dos colonos. Mas este provérbio pode aplicar-se integralmente, e até com algum acrescentamento, ao vagabundo. É raro que o vagabundo não seja bandido, e quase sempre é ladrão, é claro, mais por necessidade do que por vocação. Há vagabundos empedernidos. Alguns fogem, depois de cumprida a pena, quando estão já na colônia. Dir-se-ia que se encontram enraizados com gosto na colônia. Mas não: há qualquer coisa ao longe que os atrai e os seduz. A vida nos bosques, vida pobre e horrível, mas livre e aventurosa, tem algo de fascinante, não sei que estranho prestígio para quem uma vez a experimentou. E vejam quem são os que fogem: um homem bastante discreto e sensato, que prometia já se tornar um bom vizinho sedentário e um ativo colono; outro, que se casou, teve filhos, viveu cinco anos seguidos num mesmo lugar. e, de repente, numa linda manhã, foi-se, não se sabe para onde, deixando atônitos toda a família, os filhos e toda a comuna a que estava adstrito. Uma vez, no presídio, apontaram-me um desses fugitivos. Não cometera nenhum crime especial; pelo menos não se contava dele nada do gênero; diziam apenas que fugia, que toda a sua vida fora um vagabundo. Vivera no sul da Rússia, na fronteira do Danúbio e na estepe quirguiz, na Sibéria oriental, no Cáucaso... percorrera tudo. Quem sabe se, noutras circunstâncias, não teria sido um Robinson Crusoé, com a sua paixão ambulatória! Aliás, tudo isto me foi contado por outros; ele, no presídio, quase não falava, dizia apenas as palavras indispensáveis. Era um homem pequenino, de uns cinquenta anos, muito pacato, com uma cara absolutamente plácida e até estúpida, plácida até a idiotia. No verão gostava de sentar-se ao sol e era então infalível que se punha a trautear alguma canção, mas tão baixinho que, a cinco passos de distância, não se a ouvia. O seu rosto parecia de pau; comia pouco, no máximo um naco de pão duro; nunca comprava uma torta nem um gole de aguardente. Duvido de que tivesse dinheiro e até de que soubesse contar. Conduzia-se muito calmamente com toda a gente. Dava de comer à mão aos cães do presídio e, no entanto, entre os presos mais ninguém dava de comer aos cães do presídio. Os russos não gostam de dar de comer aos cães. Diziam que era casado, e até por duas vezes; e acrescentavam que também tinha filhos, em qualquer lado... Ignoro completamente o motivo por que veio parar no presídio. Os presos estavam sempre à espera que ele fugisse dali, mas, ou não lhe chegara ainda a ocasião, ou já passara muitos anos sobre ele; o certo é que continuou ali, numa atitude contemplativa, diante daquele estranho ambiente que o rodeava. Aliás, era impossível supor qualquer coisa; embora pudéssemos perguntar, aparentemente, por que vantagem havia ele de fugir? Apesar de tudo, no fundo, a vida selvática, vagabunda, era um paraíso comparada à do presídio. Isto compreende-se e não é possível estabelecer comparação. Embora sofra muito, ao fim de tudo é uma vida de liberdade.
É este o motivo por que todos os presos na Rússia, estejam onde estiverem, ficam alvoroçados na primavera com os primeiros raios refulgentes do sol primaveril, embora nem de longe tenha a intenção de fugir. Pode afirmar-se categoricamente que, de entre cem, só um se decide a isso, por causa das dificuldades e da responsabilidade; mas em compensação, os 99 restantes sonham com a maneira como poderiam fugir e onde poderiam acolher-se, e alivia-lhes a alma, só o desejo, só a ideia de tal possibilidade. Há alguns que ao menos recordam a vez em que fugiram... Por agora, falo apenas dos condenados. Mas, naturalmente, os que mais frequentemente e em maior proporção se decidem à fuga são os que estão pendentes de castigo. Os condenados já a um determinado número de anos só fogem por acaso no princípio da sua clausura. Quando têm já dois ou três anos de presídio, o preso começa a avaliar esses anos e, pouco a pouco, vai-se conformando e prefere cumprir o prazo legal dos seus trabalhos e instalar-se depois na colônia a afrontar os perigos e a perdição no caso de fiasco. E o fiasco é possível. Talvez apenas um entre dez consiga “mudar de sorte”. De entre os condenados, os que se decidem também à fuga com mais frequência são os condenados a um número de anos muito grande. Quinze ou 12 anos parecem intermináveis, e os condenados a essa pena propendem sempre a sonhar com uma mudança de sorte, embora tenham cumprido já dez anos de presídio. E, por último, também os marcados costumam decidir-se a correr o risco da fuga. “Mudar de sorte” é uma expressão técnica. É assim que responde às perguntas o preso que falha na sua fuga, que ele não tinha outro remédio senão tentar mudar de sorte. Esta expressão, um pouco literária, é com efeito a que empregam nesse ato. Nenhum fugitivo aspira a libertar-se por completo — sabe bem que isso é quase impossível —, mas sim que o enviem para outra prisão, ou o destinem às colônias, ou o tornem a julgar outra vez por outro crime — pelo de vagabundagem — em resumo, que o mandem para onde quiserem, contanto que não seja para o velho lugar de que já está farto, o antigo presídio. Todos estes fugitivos, se não acham no decurso do ano nenhum lugar onde passar o inverno, se, por exemplo, não encontram nenhum protetor de fugitivos que faça negócio com eles; se, finalmente, não podem às vezes conseguir um passaporte mediante um homicídio, com que obter livre trânsito por todos os lados, todos eles, no outono, se é que não foram já antes apanhados, vêm apresentar-se eles próprios, em grupos compactos, na cidade e no presídio, na qualidade de vagabundos, e resignam-se a passar o inverno nos presídios, claro que não sem esperança de tornarem a fugir, assim que de novo chegar o bom tempo.
A primavera exercia também em mim a sua influência. Lembro-me da ansiedade com que às vezes me punha a olhar por cima da paliçada e ali ficava muito tempo, com a testa apoiada a um poste, e, teimosa e insaciavelmente, contemplava a erva verdejante no bastião do forte, e como cada vez azulejava mais intensamente o céu remoto. A minha inquietação e a minha tristeza cresciam de dia para dia, e o presídio tornava-se-me cada vez mais insuportável. A hostilidade que eu tinha constantemente de suportar, por ser nobre, nos primeiros anos da minha vida presidiária, tornava-se-me também insuportável, envenenava a minha existência. Nesses primeiros anos, embora não estivesse doente, metia-me numa cama do hospital só para não estar no presídio, para me ver livre daquela hostilidade geral, que não se aplacava com coisa nenhuma. “Foram vocês, seus narizes de ferro,40 que nos atiraram para a morte!”, diziam-nos os presos. E como eu invejava às vezes a gente de baixa condição que entrava para o presídio! Esses encontravam imediatamente companheiros. E a primavera, sinal de libertação, a alegria geral da Natureza, produzia também em mim um efeito um pouco triste e excitante. No fim da Quaresma, se não incorro em erro, na sexta semana, levaram-me a comungar. Já desde a primeira semana que no presídio todos tinham repartido o velho suboficial por sete turnos, relativamente ao número das semanas da Quaresma, para a comunhão. Em cada turno entraram assim 13 homens. A comunhão foi para mim um encantamento. Os comungantes eram dispensados do trabalho. Íamos à igreja, a qual ficava a pouca distância do presídio, duas ou três vezes por dia. Havia já muito tempo que eu não visitava uma igreja. A missa, que me era tão familiar, desde a minha já recuada infância, na casa paterna; as preces solenes, as reverências até o chão, tudo isso fazia despertar na minha alma o longínquo, remotíssimo passado; invocava impressões desses anos infantis e lembro-me de que me era muito agradável quando, pela manhã, as sentinelas, de arma carregada no braço, nos conduziam, por sobre a terra coberta de geada, à casa de Deus. Aliás, a sentinela não entrava no templo. Na igreja ficávamos em grupo cerrado, no último lugar, junto da porta, de maneira que, quando muito, apenas ouvíamos a voz de baixo do diácono e, de quando em quando, conseguíamos vislumbrar, por entre as fileiras de gente, a sotaina negra e a cabeleira branca do sacerdote. Lembrava-me de como, quando era ainda criança, costumava contemplar na igreja as pessoas do povo, que se apinhava densa e reverentemente à entrada, se afastava ao ver umas grossas dragonas, ou um senhor gordo, ou uma ataviada embora devotíssima dama, que iam infalivelmente colocar-se nos primeiros lugares, prontos a ralharem com quem os disputasse. Ali, junto da porta, parecia-me então que não rezavam como nós, mas que oravam plácida, devota e humildemente, e com uma espécie de reconhecimento perfeito da sua humildade.
Agora, cabia-me também ficar nesse lugar, e nem sequer nele, verdadeiramente: estávamos com ferros e estigmatizados; todos se afastavam de nós e parecia até que lhes metíamos medo; davam-nos sempre esmola. E lembro-me de que para mim isso era agradável, que trazia um certo sentimento requintado, especial, aquela estranha complacência. “Assim seja!”, pensava eu. Os presos rezavam com muito fervor e todos eles iam sempre à igreja munidos do seu humilde copeque para uma vela ou para o deitarem na caixa das esmolas. “Eu também sou uma pessoa — deviam pensar, talvez quando a davam. — Perante Deus todos somos iguais...” Tomávamos a comunhão depois do serviço religioso da manhã. Quando o sacerdote, com o cálice nas mãos, recitava a fórmula costumada: “Tomai-me, a mim, pelo mau ladrão”, quase todos se prosternavam até o chão, fazendo retinir as cadeias, concentrando toda a sua atenção nessas palavras.
Mas eis que chegou também a Semana Santa da Páscoa. Os superiores enviaram a cada um de nós um ovo e um pedaço de pão candial. Da cidade chegavam também donativos para o presídio. De outra vez era a visita do cura com a cruz; de outra, a dos superiores; de outra, as bebedeiras e as rixas. Tudo precisamente igual, ponto por ponto, ao que se passava pelo Natal, apenas com esta diferença: que agora já nos podíamos divertir no pátio do presídio e aquecermo-nos ao solzinho. Tudo estava mais alegre, mais livre do que no inverno, mas, ao mesmo tempo, também mais triste. O longo, interminável dia de verão, tornava-se sobretudo insuportável nos dias festivos. Nos dias úteis, ao menos, parecia mais curto, devido ao trabalho.
Efetivamente, os trabalhos de verão pareciam muito mais difíceis do que os de inverno. Geralmente ocupavam-nos nas construções militares. Os presos construíam, cavavam a terra, colocavam tijolos; outros eram encarregados da parte de serralharia, de carpintaria ou de pintura, nas obras de reparação dos edifícios oficiais. Outros iam para a oficina a fabricar tijolos. Era este último trabalho aquele que, entre nós, se considerava mais pesado. A olaria ficava a três ou quatro verstas de distância do forte. Todos os dias do ano, às seis da manhã, saía um grupo de homens que ia fabricar tijolos. Para este trabalho eram destinados os trabalhadores negros, isto é, os que não tinham ofício e não pertenciam a nenhuma oficina. Levavam consigo o pão, pois, devido à lonjura da oficina, tornava-se fatigante voltar a casa para comer, o que pressupunha andar oito verstas mais; por isso jantavam já à noite, de regresso ao presídio. Marcavam-lhes a tarefa todos os dias e de tal maneira que os presos mal poderiam ter tempo de realizá-la durante todo o dia. Em primeiro lugar era preciso cavar a terra e extrair barro para formar uma massa e, finalmente, fazer com essa massa um considerável número de tijolos: duzentos, se não eram 250. Eu fui apenas por duas vezes à olaria. Os oleiros regressavam já de noite, esgotados, extenuados, e passavam todo o verão atirando à cara dos demais que eram eles que faziam o trabalho mais difícil. Segundo parece, era esta a sua consolação. Apesar de tudo, alguns iam para lá com certo prazer; em primeiro lugar, o trabalho era feito para além da cidade, num espaço aberto, livre, nas margens do Irtich. Fosse como fosse, viam à sua volta qualquer coisa de mais agradável, isto é, não viam o forte nem a terra desnuda. Podiam também fumar livremente e até se deitarem uma meia horinha à vontade. Eu, já antes, tinha ido à oficina ou para o calcário, e, finalmente, empregaram-me nas obras como transportador de telhas. Neste último caso sucedeu-me uma vez acarretar tijolos da margem do Irtich para um quartel em construção, a umas setenta sajénhi de distância, passando pelo bastião do forte e, nessa ocasião, o trabalho prolongou-se durante dois meses consecutivos. Esse trabalho também me agradava, embora a corda com que se carregavam os tijolos, de um dedo de grossura, me ferisse constantemente os ombros. Mas agradava-me ver que, devido a esse trabalho, ia conseguindo maior vigor. A princípio só podia carregar oito tijolos, no máximo, e cada um deles pesava 12 libras. Mas depois cheguei aos 12 e aos 15 tijolos, o que me deu uma grande alegria. No presídio, a força física é tão necessária como a moral, para suportar todos os males materiais dessa malfadada vida.
E eu queria viver ainda, depois de sair do presídio...
E, além disso, gostava de acarretar tijolos não só porque com esse trabalho se robustecia o corpo, como também por ele se realizar nas margens do Irtich. Falo com tanta frequência dessa margem porque era somente nela que se podia ver a terra, os horizontes límpidos e claros, a estepe livre e despovoada, que me provocava uma estranha impressão de solidão. Só nessas margens o forte desaparecia dos nossos olhos, deixávamos de vê-lo. Todos os outros locais do nosso trabalho ficavam junto do forte ou nas imediações. Desde os primeiros dias que eu criei aversão por esse forte e especialmente por outro edifício. A residência do nosso major de presídio parecia-me um lugar maldito, repugnante, e era sempre com ódio que eu olhava quando passava em frente dela. Na margem do rio uma pessoa podia esquecer-se, olhar para o imenso deserto, para a liberdade. Ali tudo me era agradável, o sol radioso, ardente, no céu azul e límpido, a longínqua canção dos quirguizos, trazida até ali, da outra margem, pelo vento. Quando se olhava muito tempo, acabava-se por se distinguir uma mísera e enegrecida tenda de nômades; descobre-se uma pequena lareira junto da tenda: é uma quirguiz que por ali trabalha com as suas duas ovelhas. Tudo isso é pobre e selvagem, mas livre. Descobre-se algum pássaro no ar azul, transparente, e durante muito tempo segue-se firmemente o seu voo: adeja sobre a água, mas desaparece já num golpe forte das asas e, finalmente, se reduz a um ponto que mal se distingue... Até a pobre, humilde florinha do campo que eu encontrava na primavera, precoce, nas fendas das pedras da margem ribeirinha, atraía doentiamente a minha atenção. A tristeza de todo aquele primeiro ano de presídio era insuportável e produzia em mim um efeito enervante, amargo. Nesse primeiro ano, devido a esse sofrimento, não reparava muito no que se passava à minha volta. Fechava os olhos e não queria ver. Não distinguia, de entre os maldosos e invejosos companheiros do presídio, os que eram bons, os que eram capazes de pensar e de sentir, apesar da repugnante carapaça que lhes ocultava o interior. Entre as palavras agressivas, não reparava às vezes na palavra amiga e afetuosa, que se tornava tanto mais apreciada quanto era proferida sem interesse algum e muitas vezes do fundo da alma daqueles que talvez tivessem sofrido e padecido mais do que eu. Mas para que demorar-me mais sobre isto? Eu me sentia muito contente quando vinha muito cansado, ao regressar a casa. “Talvez assim consiga dormir!” Porque isso de dormir era para nós, no verão, um tormento talvez ainda pior do que no inverno. As noites eram às vezes verdadeiramente boas. O sol, que durante todo o dia não se afastava do pátio do presídio, acabava finalmente por desaparecer. Caía o relento e depois vinha a noite quase fria (falando relativamente) da estepe. Entretanto vinham fechar os presos que saíam em magotes para o pátio. A maior parte, para dizer a verdade, dirigia-se para a cozinha. Aí sempre se levanta alguma questão palpitante para o presídio, fala-se disto e daquilo, propalam-se boatos, muitas vezes absurdos, mas que conseguem uma extraordinária atenção da parte daqueles desterrados do mundo dos vivos. Por exemplo, espalhou-se uma vez a notícia de que o nosso major de presídio ia ser reformado. Os presos são crédulos como crianças; eles próprios sabem que a notícia é um boato, que foi espalhada por um indivíduo muito manhoso e estúpido — o preso Kvássov, no qual já há muito tempo decidiram não acreditar e que não diz nada mais senão mentiras —, mas afazem-se à notícia, opinam, alegram-se, consolam-se e acabam por ficar zangados consigo próprios por terem acreditado nas palavras de Kvássov.
— Quem vai lhe dar a reforma? — pergunta um. — Quem está bem, deixa-se estar!
— Acima dele também há chefes! — exclama outro, um rapaz enérgico e esperto, que tinha visto mundo, mas amigo de discutir como não havia outro.
— Os corvos não tiram os olhos uns aos outros! — observou um terceiro, como mal-humorado consigo próprio, um homem já de cabelos brancos, que sorvia à parte, num canto, a sua sopa de couve.
— E esses chefes vêm perguntar-me se o destituem ou não? — perguntou placidamente um quarto, tangendo levemente a sua balalaica.
— E por que não? — respondeu o segundo com veemência. — Isto é, se todos lho pedíssemos e depois abríssemos a boca quando começassem a perguntar... Mas aqui, o que todos fazem é gritar e, quando chega o momento de entrar em ação ninguém se mexe!
— Mas que julgas tu? — interveio o da balalaica. — Estamos num presídio.
— Mas há pouco — continuou o questionador, sem escutar os outros e arrebatadamente — ficou um bocado de farinha. Recolheram o que restava e foram vendê-lo. Não, ele não soube; o alcoviteiro foi-lhe com o conto e retiraram a farinha: é a isso que chamam economia. Isto é justo?
— Mas a quem é que tu te queres queixar?
— A quem? Ao inspetor, que está para chegar.
— Qual inspetor?
— É verdade, brat, que vai chegar um inspetor? — disse um rapaz novo, espevitadinho, que sabia ler e escrever, fora amanuense e lera A duquesa, de Lavallière.
Estava sempre jovial e tinha atitudes de bobo; mas respeitavam-no pela sua instrução e pelo seu verniz de cultura. Sem dar atenção à curiosidade geral, excitada com a notícia da vinda próxima dum inspetor, dirigiu-se diretamente à cozinheira, isto é, ao cozinheiro, e perguntou-lhe se tinha fígado. Os nossos cozinheiros começavam a negociar em coisas deste gênero. Compravam, por exemplo, à sua custa, um grande pedaço de fígado, assavam-no e vendiam-no em pedaços aos presos.
— Um groch ou dois? — perguntou o cozinheiro.
— Dois, do assado. Mas do bom! — respondeu o preso. — Meus amigos, vai chegar um general41 de Petersburgo para inspecionar toda a Sibéria. É a pura da verdade. Disseram-no em casa do comandante.
A notícia produziu uma comoção desusada. As perguntas duraram um quarto de hora: quem era, concretamente, que general, de que categoria e se era mais antigo que os generais da região. Os presos gostam terrivelmente de falar dos graus, dos chefes, de quem é mais antigo, de quem é que manda mais, e ralham e insultam-se por causa dos generais e pouco falta para se baterem. Pensam que isso lhes traz alguma utilidade? De fato assim é: do conhecimento minucioso dos generais, dos chefes, deduzem outros o seu grau de cultura e de inteligência, assim como a posição anterior à sua entrada no presídio que o homem ocupa na sociedade. Em geral, a conversa acerca do alto comando considera-se a mais distinta e principal do presídio.
— Quer dizer, meus amigos, que depois de amanhã o temos aqui e destituirá o major — observou Kvássov, um homenzinho baixinho, coradinho, fogoso, muitissimamente estúpido. Foi o primeiro que levou a notícia do major.
— Agora é que ele vai apanhar como nunca apanhou! — exclamou o preso severo e de cabelos brancos, que já sorvera a sua sopa de couve.
— Ai, não! Pode muito bem ser! — disse outro. — Não roubou pouco dinheiro aqui! Antes de ter sido nomeado para o presídio, comandava um batalhão. Não há muito que queria casar-se com a filha do protopope.
— Sim, mas não chegou a casar-se; apontaram-lhe o caminho da porta por ser pobre, já se vê. E que noivo! Quando se levantava da mesa levava tudo nos bolsos. Antes da Páscoa perdera tudo jogando baralho. Foi Fiedka quem o disse.
— Sim, não é dissipador, mas o dinheiro não lhe fica muito tempo nas mãos.
— Ah, meus amigos, eu também estive para me casar! Casar-se, para um pobre, é uma coisa má; quando uma pessoa se casa as noites tornam-se curtas — observou Skurátov, intrometendo-se na conversa.
— O quê? Estávamos precisamente falando de ti — observou o rapaz espirituoso, da classe dos escriturários. — Mas a ti, Kvássov, sempre te direi que és um grande burro. Achas, porventura, que o major poderá untar as mãos a um general da sua categoria, que se dará ao trabalho de vir de Petersburgo para inspecionar os atos do major? Que idiota és tu, rapaz!
— E então por que é general não é capaz de arranjar dinheiro? — observou com ceticismo alguém do grupo.
— É claro que não aceita, mas, se o aceitar, também há de ser dinheiro grosso...
— Ah, isso já se vê de acordo com a sua categoria.
— Os generais costumam aceitar sempre dinheiro — observou Kvássov resolutamente.
— Sim? E foste tu que lho deste? — exclamou Baklúkhin com desprezo, de repente, ao entrar. — Parece que nunca viste um general na tua vida!
— Ai, não, nunca vi.
— Mentes.
— Quem mentes és tu.
— Meus caros, se ele já tivesse visto algum, ia logo participar a todos que conhecia um general. Vamos, fala, que eu conheço os generais todos.
— Eu vi o general Siebert — respondeu um pouco categoricamente Kvássov.
— Siebert? Esse general não existe. Pode ser que quem te marcou as costas fosse algum Siebert que não passasse de coronel, e a ti, com o medo que tinhas, até te pareceu que era general.
— Nada disso, escutem — gritou Skurátov. — Eu sou um homem casado. De fato, havia um general desse nome em Moscou, o general Siebert, alemão, mas nascido na Rússia. Confessava-se todos os anos em casa do pope russo, acerca dos seus amores, e meus amigos, bebia sempre água como um pato. Sorvia todos os dias quarenta copos d’água do rio moscovita. Diziam que isso curava não sei que doença. Foi o próprio ajudante dele que mo disse.
— Talvez tivesse vermes nas tripas... — observou o preso da balalaica.
— Bem, já chega! Isso não é caso para brincadeiras, e eles... Quem é esse inspetor, meus amigos? — inquiriu um preso, preocupado, que estava sempre desassossegado, Martínov, um velho da seção militar, que fora hussardo.
— As pessoas sempre mentem muito — observou um dos céticos. — Onde iriam buscar essa notícia e para que dizem tanta trapalhada? Tudo isso são boatos.
— Qual boato! — observou dogmaticamente Kulíkov, que permanecera até então altivamente silencioso. Era um indivíduo sisudo, já na casa dos cinquenta, com uma cara muitíssimo bem feita e com modos de uma sobranceria depreciativa. E ele sabia isto e disto se ufanava. Tinha sangue cigano, era veterinário, ganhava dinheiro na cidade, tratando cavalos; mas entre nós, no presídio, negociava em aguardente. Era um homem esperto, com muita experiência da vida. Poupava as palavras como se poupasse os rublos.
— Depois de amanhã, meus caros! — continuou tranquilamente. — Ouvi-o dizer semana passada; vem um general, da alta categoria, para inspecionar toda a Sibéria. Já se sabe o que vai acontecer: untam-lhe as mãos; mas o nosso Oito Olhos, não. Este não se atreverá a olhá-lo de frente. Há generais e generais, meus amigos. Há-os de todas as espécies. Mas sempre vos digo que ao nosso major, em todo caso, hão de deixá-lo no seu posto atual. Isso é que é certo. Nós não temos voto na matéria e os chefes não vão denunciar-se uns aos outros. O inspetor deita uma olhadela a todo o presídio, depois vai-se embora e diz que está tudo muito bem...
— Bem, bem, meus amigos, mas o major tem medo; desde de manhã que ele está bêbado. E à noite chega o outro furgão. Foi Fiedka quem o disse.
— Ao cão preto ninguém o torna branco. Seria esta a primeira vez que ele se embebeda?!
— Não. Por que havia eu de dizer isso se o general não viesse para fazer nada? Não, já lhe suportaram bastantes imbecilidades! — começaram a dizer os presos, excitados.
A notícia referente ao inspetor espalhou-se num momento por todo o presídio. Os presos encontravam-se no pátio e comunicavam uns aos outros a notícia. Alguns ficavam intencionalmente calados conservando o sangue-frio, e assim era evidente que desejavam dar-se ares de pessoas importantes. Outros, pelo contrário, permaneciam indiferentes.
Nos degrauzinhos que levavam aos alojamentos, havia também presos com as suas balalaicas. Uns continuavam falando. Outros entoavam canções; mas, em geral, todos nessa noite se mostravam muito excitados.
Às dez vieram contar-nos a todos, fecharam-nos nos alojamentos e fecharam-nos para toda a noite. As noites eram breves; faziam-nos levantar às cinco da manhã, mas nunca nos deitávamos antes das 11. Até então havia sempre movimento, conversas e, às vezes, como no inverno, havia também maidani. À noite fazia um calor horrível e o ar tornava-se horrivelmente sufocante. Embora o frio entrasse de noite pela janela aberta, os presos toda a noite se reviravam nas suas esteiras, cheios de febre. As pulgas eram aos milhares. Também as tínhamos no inverno; mas assim que a primavera começava, multiplicavam-se em tal quantidade que eu, quando ouvia falar disso, e ainda não tinha tido experiência de tal, nem queria acreditar. E quanto mais avançava o verão mais malignas se tornavam. Para dizer a verdade, é possível nos acostumarmos às pulgas; eu próprio pude comprová-lo mas é custoso. São a tal ponto nocivas que uma pessoa acaba por deitar-se quase com febre e delirar. Quando por fim, chegada já a manhã, nos vamos quedar amodorrados, também as pulgas se aquietam sob a ação da frescura matinal e parece que vamos de fato adormecer... eis que ressoa de repente o implacável repicar do tambor às portas do presídio e começa a alvorada. Embrulhamo-nos na samarra e escutamos com uma maldição as pancadas fortes e precisas, contamo-las e, entretanto, por entre os sonhos vem-nos à ideia de que amanhã será também assim, e depois de amanhã, e ainda durante uns poucos de anos, até que chegue a liberdade. “Mas isso virá a suceder algum dia?, pensamos. “Onde está essa liberdade?” Até lá será preciso levantarmo-nos; começam os apertões do costume, as lavadelas... Os presos se vestem e se encaminham para o trabalho. Em última análise, poder-se-á dormir meia horinha ao meio-dia.
Era com razão que falavam do inspetor. Os boatos cada vez se confirmavam mais e, por fim, todos ficaram sabendo de fonte limpa que ia sair de Petersburgo um general muito importante para inspecionar toda a Sibéria, que vinha já a caminho, que já estava em Tobolsk. Todos os dias chegavam novos boatos ao presídio. Até da cidade chegavam notícias; ouvia-se dizer que todos o temiam e afadigavam-se por pôr tudo em ordem. Acrescentavam que os altos comandos preparavam já recepções, bailes, festas.
Os presos foram mandados em grupos compactos para nivelar as ruas até o forte; tirar montões de terra do meio delas, em suma, queriam arranjar tudo aquilo que era preciso mostrar à personagem. Os nossos compreendiam perfeitamente de que se tratava e cada vez discutiam entre si com mais calor e animação. A sua fantasia alcançava proporções colossais. Chegaram até a planear um motim para quando o general viesse perguntar-lhes se estavam contentes. Mas discutiam e ralhavam uns com os outros. O major do presídio estava comovido. Aparecia com mais frequência pelo presídio, gritava mais do que nunca e mais do que nunca acometia os presos e os mandava ao corpo da guarda e velava com energia pelo asseio e pelas boas maneiras. Por esse tempo, como se fosse de propósito, sucedeu no presídio um importante desacato que, aliás, não provocou nele impressão alguma, contra tudo quanto era de esperar e, pelo contrário, lhe causou satisfação: um preso, numa briga, feriu outro com uma sovela, quase debaixo do coração.
O preso que praticou o crime chamava-se Lômov; o que recebeu a ferida era conhecido entre nós por Gavrilka; era um dos inveterados vagabundos. Não me lembro se teria outro nome; entre nós chamavam-lhe sempre Gavrilka.
Os Lômov tinham sido camponeses abastados em T***, no distrito de K***. Todos os Lômov viviam em família: o velho pai, três filhos e um tio. Eram lavradores ricaços. Diziam por todo esse distrito que tinham uns 300 mil rublos de papel como capital. Eram lavradores, curtiam peles e negociavam; mas a sua maior ocupação era a agiotagem, a proteção de vagabundos e a ocultação de objetos roubados e outras atividades do gênero. Metade dos camponeses do distrito estava endividada com eles e era seus servidores. Tinham fama de labregos habilidosos e astutos e acabaram por ficar ufanos, sobretudo quando uma personagem importante que viajava por aquela região parou na cidade, travou conhecimento com o velho e ficou seduzida com a sua perspicácia e com o seu tato. De repente imaginaram que, para eles, não havia leis, e começaram a aventurar-se cada vez mais em negócios ilegais. Todos estavam contra eles e desejavam vê-los por terra; mas eles cada vez se tornavam mais atrevidos. Não ligavam a mínima importância ao juiz do distrito, aos funcionários. Até que acabaram por cair e perderem-se, mas não por nada mau nem pelos seus crimes ocultos, apenas por qualquer coisa de que estavam inocentes. Possuíam uma grande propriedade a dez verstas da cidade, na parte siberiana. Lá viviam seis criados de lavoura, quirguizos, havia muito tempo, uma vez em cada outono. Um dia de manhã todos esses ganhões quirguizos apareceram degolados. Instauraram-se diligências que se prolongaram por muito tempo. Devido a esse acontecimento vieram a descobrir-se muitas outras coisas feias. Os Lômov foram acusados do assassinato dos criados. Eram eles próprios que o contavam e todos no presídio o sabiam; suspeitaram deles porque estavam muito endividados para com os seus ganhões e, apesar da sua elevada posição, eram avaros e mesquinhos, de maneira que teriam assassinado os quirguizos, para não lhes pagarem o que deviam. Todo o dinheiro se lhes foi nas diligências e no julgamento. O velho morreu. Os filhos foram deportados. Um dos filhos e o tio foram parar no nosso presídio, condenados a 12 anos. Mas por quê? Estavam totalmente inocentes da morte dos quirguizos. E eis senão quando no mesmo presídio apareceu depois Gavrilka, conhecido patife e vagabundo; um tipo alegre e muito vivo, o qual se declarou autor daquela proeza. Aliás, não sei se seria ele próprio quem o teria confessado assim; mas todo o presídio estava convencido de que os quirguizos tinham perecido às suas mãos. Gavrilka tinha tido negócios de vagabundagem com os Lômov. Deu entrada no presídio para cumprir uma breve pena como desertor do Exército e vagabundo.
Degolara os quirguizos juntamente com outros três vagabundos; pensavam levar boa vida na propriedade e roubar muito naquelas terras.
Os Lômov não tinham simpatias entre nós, não sei por quê. Um deles, o sobrinho, era um rapaz novo, esperto e de bom caráter; mas o tio, o que feriu Gavrilka com a sovela, era um rústico grosseiro e estúpido. Antes disso já brigara com muitos outros, que já lhe tinham batido. De Gavrilka todos gostavam, pelo seu temperamento jovial e despreocupado. Embora os Lômov soubessem que ele era culpado e o olhassem como tal, não chegaram a brigar com ele; aliás, nunca procuravam conviver com ele; quanto a ele, não lhes ligava a menor importância. Mas, de repente, surgiu a briga entre ele e o Lômov tio, por causa da fêmea mais repugnante que possa imaginar-se. Gavrilka pôs-se a gabar-se de ter conseguido os seus favores; o camponês sentiu-se ciumento e num belo dia feriu-o com a sovela.
Os Lômov, apesar de terem perdido o seu capital quando do processo, viviam no presídio como ricaços. Era visível que tinham dinheiro. Tinham um samovar, tomavam chá. O nosso major sabia isto e tinha um ódio enorme aos Lômov. Todos percebiam que era duro para com eles e, de maneira geral, trazia-os sempre debaixo dos olhos. Os Lômov explicavam isto dizendo que o major queria que lhe untassem as mãos, mas que deles não levaria nada.
Não há dúvida de que se Lômov tivesse enterrado um pouco mais a sovela, teria matado Gavrilka. Mas o golpe não passou de um simples arranhão. Deram parte ao major. Lembro-me da pressa com que ele chegou, deitando os bofes pela boca, e como era visível o seu ar complacente. Dirigiu-se com uma amabilidade espantosa a Gavrilka.
— Vamos, meu amigo, podes ir andando ao hospital ou não? Não, o melhor é selarem um cavalo para ele. Vamos, preparem imediatamente um cavalo! — gritou para o suboficial, com empenho.
— Mas, excelência, se eu não sinto nada! Foi só um arranhãozinho muito leve, excelência!
— Tu não sabes, tu não sabes, meu filho; porque já vês... o lugar é delicado; tudo depende do lugar; o bandido feriu-te debaixo do coração. Quanto a ti, a ti... — resmungou, encarando com Lômov. — Bem, agora estás nas minhas mãos! Para o corpo da guarda!
E, de fato, vingou-se. Lômov foi julgado e, embora a ferida parecesse um leve arranhão, era evidente que fora feita intencionalmente. O réu viu a duração da pena aumentada e aplicaram-lhe mil açoites. O major estava contentíssimo...
Finalmente chegou o inspetor.
Veio visitar-nos ao presídio no segundo dia da sua estada na cidade. Era dia de festa. Alguns dias antes já tudo ali estava limpo e em ordem. Os presos, todos barbeados; os seus trajos, brancos, limpos. No verão, conforme o regulamento, todos usavam pelicos e calças brancas. E traziam nas costas um círculo negro de duas viérchki de diâmetro. Ensinaram durante uma hora inteira aos presos a maneira como deviam responder se aquela elevada personalidade lhes dirigisse a palavra. Fez-se até um ensaio. O major andava para um lado e para outro, como se lhe faltasse o ar. Uma hora antes da chegada do general, já todos estavam nos seus lugares, como estátuas, com as mãos rígidas nas costuras das calças. Finalmente, à uma da tarde chegou o general. Era um general muito importante, tão importante que, segundo parece, todos os corações burocráticos da Sibéria ocidental deviam ter sentido um sobressalto com a sua chegada. Entrou severo e altivo; vinha acompanhado por um grande séquito das autoridades locais, que lhe faziam escolta; vários generais e coronéis, entre eles um cavaleiro vestido à paisana, alto e garboso, de fraque e sapatos, que também tinha vindo de Petersburgo e que conduzia com extraordinária desenvoltura e à vontade. O general voltava-se para ele a todos os momentos, com muita deferência. Isto interessou extraordinariamente os presos. Um paisano recebendo tantas honras, e da parte dum general como aquele! Depois souberam o seu nome e quem era; mas fizeram-se muitos comentários. O nosso major, que ostentava as suas condecorações no seu uniforme cor de laranja, com os olhos injetados de sangue e a sua cara cor de framboesa, borbulhenta, parecia não ter provocado no general uma impressão particularmente agradável. Como sinal de respeito especial pelo alto visitante, não pusera os óculos. Mantinha-se de pé, à distância, como suspenso por um fio, e aguardava febrilmente o instante em que precisassem dele para alguma coisa, com o fim de, voando, satisfazer aos desejos de sua excelência. Mas não precisavam dele para nada. O general percorreu os alojamentos em silêncio, inspecionou também as cozinhas e, segundo parece, provou a sopa de couve. Fui-lhe apresentado: “Fulano de tal e tal... vamos... da classe nobre.”
— Ah! — respondeu o general. — E como se porta ele agora?
— Até aqui, satisfatoriamente, excelência — responderam-lhe.
O general meneou a cabeça e dois minutos depois saía do presídio. Não há dúvida de que os presos estavam completamente desconcertados e deslumbrados, mas com uma certa desilusão. É claro que nem valia a pena pensar que o major lhe tivesse feito reclamações. E o major estava já previamente convencido disto.
OS ANIMAIS DO PRESÍDIO
A compra de Gniedkó,42 realizada rapidamente no presídio, preocupou e distraiu muito mais agradavelmente os presos do que o elevado visitante. No presídio empregavam um cavalo para o transporte de água, a extração do lixo e outras coisas. Designavam um preso para conduzi-lo, o qual saía com ele, escoltado por uma sentinela, está claro. Havia muito trabalho para o nosso cavalo, tanto de manhã como à tarde. Havia já muito tempo que Gniedkó trabalhava no presídio. Era um bom cavalo, mas já estava cansado. Numa linda tarde, pouco depois do São Pedro, Gniedkó, depois de ter trazido a provisão de água para a tarde, deu uma queda e morreu dentro de poucos minutos. Todos tiveram pena dele; fizeram um círculo à sua volta, falaram, discutiram. Os nossos ex-tratadores de cavalos, os ciganos, os veterinários etc. demonstraram nesta ocasião uma grande competência em assuntos de cavalos e até se insultaram uns aos outros, mas ninguém conseguiu ressuscitar Gniedkó. Jazia morto, de ventre inchado, no qual todos se sentiam na obrigação de porem o dedo; deram do acontecido parte ao major, e este decidiu que comprassem imediatamente outro cavalo. No próprio dia de São Pedro, de manhã, depois da missa, quando estávamos todos reunidos, começaram a entrar os negociantes de cavalos. Escusado será dizer que quem ficou encarregado de negociar a compra foram os próprios presos. Entre nós havia verdadeiros conhecedores, e seria difícil enganar 205 homens, cuja ocupação anterior tinha sido essa. Apresentaram-se quirguizos, marchantes, ciganos, camponeses. Os presos, impacientes, aguardavam o aparecimento de cada novo cavalo. Estavam alegres como crianças. O que mais os lisonjeava era o fato de se comprar um cavalo, tal como se fossem homens livres e houvessem de tirar o dinheiro do seu bolso, como se tivessem pleno direito de efetuar uma compra. Já tinham sido apresentados três cavalos e tinham-nos rejeitado; o negócio só ficou concluído com o quarto. Quando entravam, os negociantes olhavam à sua volta com certo receio e temor, e um tanto assombrados e, de quando em quando, fixavam-na nas sentinelas que os tinham introduzido. Infundia-lhes um certo respeito aquele grupo de duzentos homens daquela espécie, de cabeças rapadas, rostos marcados, com cadeias; em sua casa, num coio como o presídio, cujos umbrais ninguém atravessava. Os nossos punham em ação todos os seus conhecimentos, ao observarem cada novo cavalo que lhes apresentavam. Olhavam-no por todos os lados, sem deixarem um só pormenor por observar, com tal diligência, com uns ares tão sérios e entusiásticos que até parecia que se tratava de algum benefício para o presídio. Os circassianos montavam nas cavalgaduras durante algum tempo; os seus olhos chispavam fogo e falavam com veemência na sua linguagem incompreensível, mostrando os dentes brancos e as caras amareladas e de grande nariz. Alguns dos russos seguiam as suas palavras com tanta atenção que parecia que os olhos lhes queriam saltar das órbitas. Não compreendiam nem uma palavra; mas queriam adivinhar-lhes, pela expressão da cara, o que eles resolveriam, se lhes agradava ou não o cavalo. Ao observador imparcial teria parecido estranha uma atenção tão absorvente. Por que havia um preso de interessar-se, e sobretudo um preso como aquele, amável, apático, que mal ousava levantar a voz diante dos outros presos? Dir-se-ia que ia comprar um cavalo para si, que realmente não lhe podia ser indiferente qual deles se comprasse. Além dos quirguizos distinguiam-se também os ciganos e os antigos negociantes de cavalgaduras; a esses pertenciam o primeiro lugar e a primeira palavra. E eis senão quando se deu uma espécie de torneio nobre entre dois... presos. Kulikov, o cigano, antigo ladrão de cavalos e negociante deles, e um veterinário autodidata, um astuto camponês siberiano, recém-entrado no presídio, que já conseguira tirar a Kulikov toda a sua clientela da cidade. Acontecia que os nossos veterinários do presídio eram muito estimados na cidade, e não só os camponeses ou comerciantes, mas até os mais altos funcionários, se dirigiam ao presídio quando os animais lhes adoeciam, apesar de haver na cidade alguns veterinários a valer. Até a chegada de Iólkin, o rústico siberiano, Kulikov não tivera rival, possuía uma grande clientela e, naturalmente, recebia dinheiro como recompensa. Era bajulador e palrador, sabia muito menos do que aparentava. Graças aos seus ganhos, era um verdadeiro aristocrata no presídio. Pelas suas manhas, pela sua inteligência, sagacidade e decisão, havia já muito tempo que conseguira o respeito involuntário de todos os presos. Entre nós, escutavam-no e obedeciam-lhe. Falava pouco, regateava as palavras e só nas ocasiões mais importantes. Era um grande velhaco, mas possuía autêntica energia, que não era fingida. Era já entrado em anos mas muito garboso, muito esperto. Com os nobres, portava-se com uma cortesia refinada, mas ao mesmo tempo com extraordinária dignidade. Penso que se o tivessem vestido bem e o tivessem apresentado como um conde qualquer em algum círculo da capital, ter-se-ia sentido como num meio seu, teria desempenhado perfeitamente o seu papel, exprimindo-se de maneira distinta, falando com ponderação e talvez que durante toda a noite ninguém suspeitasse de que ele não era um conde, mas um vagabundo. Falo seriamente, pois tais eram o seu desembaraço e a sua habilidade na maneira de conduzir-se. Tinha, além disso, uns modos distintos e elegantes. Devia ter visto muita coisa em toda a vida. Mas o seu passado estava envolto em mistério. Vivia entre nós, na seção especial. Mas quando chegou Iólkin, camponês, e dos mais astutos, cinquentão, velho crente, a fama de Kulikov diminuiu. Em dois meses roubou-lhe quase toda a sua clientela da cidade. Curava com toda a facilidade cavalos que Kulikov perdera a esperança de curar havia muito tempo. E curava também aqueles de que os médicos veterinários tinham desistido. Esse camponês dera entrada no presídio juntamente com outros, envolvido num crime de falsificação de moeda. Ter-se metido, na sua idade, num assunto de tal natureza! Foi ele próprio quem nos contou que por cada três moedas de ouro verdadeiras davam eles só uma falsa. Kulikov sofreu um pouco porque os seus êxitos veterinários tivessem decaído e a sua fama entre os presos também descido. Tinha uma amante nos arredores, usava blusa pregueada, ostentava anel de prata e um brinco também de prata, e sapatos próprios, com enfeites coloridos, mas, de repente, devido à diminuição dos rendimentos, viu-se na necessidade de se meter a taberneiro. Por isso esperavam que, na compra do novo Gniedkó, os dois inimigos houvessem de armar grossa briga. Esperavam isso com curiosidade. Cada um deles tinha o seu partido. Os partidários de cada grupo começavam já a se acalorar e, pouco a pouco, iam-se começando a cobrir de insultos. O próprio Iólkin tinha contraído já a sua cara astuta num sorriso extremamente sarcástico. Mas tal não se deu; Kulikov nem sequer tentou insultar; mas, sem se valer de insultos, portou-se de maneira magistral. Pôs-se a escutar tranquilamente e até com certo respeito as opiniões críticas do rival; mas, assim que o apanhou em erro, imediatamente, num tom de voz resoluto, mas delicado, fez-lhe notar que estava enganado e, antes que Iólkin tivesse tido tempo de refletir e desdizer-se, demonstrou-lhe que estava enganado nisto e naquilo. Em resumo: Iólkin ficou derrotado, de maneira inesperada e hábil, e embora, em última análise, tivesse tido a última palavra, o partido de Kulikov deu-se por satisfeito.
— Não, meus caros, não é assim tão fácil como isso derrotá-lo; ele sabe defender-se; não há quem o embrulhe — diziam uns.
— Iólkin sabe mais! — observavam outros; mas observavam com uma certa transigência. Ambos os partidos adotaram imediatamente um tom conciliador.
— Não sabe nada, o que sucede é que tem a mão leve. Mas não vale a pena estarmos discutindo por causa de uns cavalos e de Kulikov!
— Não discutam, rapazes!
— Não briguem...
Até que finalmente escolheram e compraram o novo Gniedkó. Era um ótimo cavalinho; bonito, forte e com uma estampa muitíssimo agradável. E, sob outros aspectos, parecia também impecável. Começaram a discutir o preço: pediam por ele 30 rublos; os nossos ofereciam 25. Regateavam com ardor e demoradamente cediam e transigiam. Até que finalmente isso acabou por parecer-lhe ridículo a eles próprios.
— Mas és tu que tens de pagar de teu bolso, meu amigo? — diziam uns. — Para que regatear?
— Tens pena da caixa? — exclamavam outros.
— Meus caros, é que todo este dinheiro é da comunidade!
— Da comunidade! Não, meus amigos; os malandros não precisam ser semeados, nascem por si...
O contrato acabou finalmente por fazer-se por 25 rublos. Participaram ao major e a compra deu-se por concluída. Escusado será dizer que, a seguir, trouxeram pão e sal, e Gniedkó foi introduzido com todas as honras no presídio. E não houve preso que não lhe desse nessa ocasião uma palmadinha no pescoço ou não lhe acariciasse o focinho. Gniedkó foi ajaezado nesse mesmo dia para transportar água e todos olhavam com curiosidade para verem como Gniedkó transportaria o seu barril. O nosso aguadeiro, Roman, olhava para o nosso cavalinho com uma extraordinária satisfação. Era um camponês cinquentão, taciturno e de compleição fortíssima. De maneira geral todos os cocheiros russos são de compleição forte e também tristonhos, como se de fato fosse verdade que o trato constante com cavalos imprimisse ao homem uma robustez e gravidade especiais. Roman era amável, afetuoso para com todos, inimigo do palavreado; tirava o seu tabaco de um cornicho e desde tempos imemoriais que sempre estivera encarregado dos cavalos do presídio. O que acabara de adquirir-se era o terceiro. Entre nós todos estavam convencidos de que a cor baia dizia bem com o presídio, que assim ficava sendo da casa. Roman afirmava o mesmo. Um cavalo branco, por exemplo, por nada deste mundo o teriam comprado. As funções de aguadeiro correspondiam desde sempre a Roman, como em virtude de algum direito, e entre nós nunca ninguém pensou em disputar-lhe o cargo. Quando o anterior Gniedkó morreu, ninguém se lembrou, nem sequer o major, de atribuir-lhe a menor culpa; isso fora simplesmente a vontade de Deus e Roman era um bom cocheiro. Gniedkó tornou-se bem depressa o favorito do presídio. Os presos, embora fossem gente rude, costumavam acariciá-lo com frequência. Quando voltava do rio, Roman costumava fechar as portas que lhe abria o suboficial; mas Gniedkó, quando entrava no presídio, parava com a sua selha e ficava à espera dele, olhando-o de soslaio.
— Entra tu sozinho! — gritava-lhe Roman, e Gniedkó dirigia-se imediatamente à cozinha, parava à porta, esperava os cozinheiros e os presos com baldes para recolherem a água.
— Sempre és muito esperto, Gniedkó! — gritavam-lhe. — Vem sozinho! Obedece!
— Lá isso é verdade, é um animal e compreende.
— Bravo, Gniedkó!
Gniedkó mexia a cabeça e resfolegava, como se efetivamente compreendesse, e ficava ufano com aqueles elogios. E era infalível haver sempre quem lhe levasse pão e sal. Gniedkó comia e tornava a mexer a cabeça, como se dissesse: “Eu te conheço! Eu te conheço! Eu sou um bom cavalinho e tu és um homem bondoso!”
Eu também gostava de levar pão a Gniedkó. Era um prazer olhar o seu focinho, tão bonito, e sentir nas palmas das nossas mãos os seus beiços suaves e tépidos, quando recolhia com cuidado aquilo que lhe oferecíamos.
De maneira geral os nossos presos teriam podido afeiçoar-se dos animais e, se lhes fosse permitido, teriam introduzido com gosto no presídio uma multidão de animais e de pássaros domésticos. E que coisa melhor para abrandar, enobrecer o severo e fero caráter dos presos, do que essa ocupação, por exemplo? Mas tal não lhes era permitido. Nem o nosso regulamento nem o lugar o consentiam.
No entanto, durante o tempo em que lá estive, sempre houve no presídio alguns animais. Além de Gniedkó, tínhamos conosco cães, gansos, um cabrito, Vasska, e também uma águia viveu ali durante uma temporada.
Como disse já, vivia entre nós, na qualidade de cão privativo do presídio, Chárik, cão inteligente e meigo, com o qual mantive uma constante amizade. Mas como o nosso povo, de maneira geral, considera o cão um animal imundo, no qual nem sequer se deve fixar a atenção, quase ninguém entre nós reparava em Chárik. Ninguém tratava dele, dormia no pátio, comia das sobras da cozinha e não mostrava um especial interesse por ninguém, embora conhecesse todos os do presídio e os considerasse seus donos. Quando os presos voltavam do trabalho, logo ele, assim que se ouvia o grito diante do corpo da guarda “Cabo da guarda!”, corria para a porta e, saltando com ternura ao encontro de cada grupo, mexia a cauda e olhava amigavelmente nos olhos de cada um dos que ia entrando, esperando deles alguma carícia. Mas durante muitos anos não chegou a conseguir carícia alguma de alguém, a não ser de mim. E por isso gostava mais de mim do que de ninguém. Não lembro como apareceu depois no presídio outro cão, Bielka. O terceiro, Kulhtiapka, fui eu próprio quem o trouxe, quando ele ainda era um cachorrinho, uma vez, quando voltava do trabalho. Bielka era um animalzinho estranho, um ser estranho. Alguém devia ter-lhe passado por cima com uma tieliega, porque tinha a espinha partida ao meio, de maneira que, quando corria, visto de longe, parecia que eram dois animais brancos que corriam, que teriam nascido pegados um ao outro. Além disso era sarnoso; os olhos supuravam-lhe; tinha a cauda completamente pelada e continuamente encolhida. Maltratado pela sorte, pelo visto decidira resignar-se. Nunca ladrava a ninguém, nem rosnava, como se não se atrevesse. Vivia quase só de pão, atrás dos alojamentos; quando via algum dos nossos, punha-se imediatamente a alguns passos de distância, de boca para cima, em sinal de submissão: “Vamos, faz de mim o que quiseres, que eu, como vês, não te oporei resistência alguma.” E todos os presos, perante os quais se estendia desse modo, lhe davam com a ponta do pé, como se considerassem esse procedimento um dever obrigatório: “Desaparece, estupor!”, costumavam dizer os presos. Mas Bielka nem sequer se atrevia a queixar-se e, quando a dor era forte demais, então gemia com a boca fechada e como para dentro. Também se punha da mesma maneira diante de Chárik e de todos os outros cães, quando corria pelo presídio. Costumava estender-se de boca para cima e ficar assim, muito sossegado, quando algum canzarrão se dirigia para ele, de orelhas caídas, rosnando e ladrando. Mas os cães gostam da submissão e do respeito dos seus semelhantes. O cão furioso amansava-se imediatamente; quedava-se, parado, como refletindo, diante do outro cão, estendido diante dele com as patas para cima, dócil, e depois punha-se, com grande curiosidade, a farejar-lhe todas as partes do corpo. Que pensaria Bielka durante todo este tempo, todo trêmulo? “E se este bandido me morde agora!”, lembrar-se-ia, provavelmente. Mas depois de farejá-lo atentamente, o canzarrão acabava por deixá-lo em paz, por não lhe encontrar nada de particularmente curioso. A seguir, Bielka levantava-se e punha-se a correr, coxeando, atrás de uma longa fila de cães que seguiam algum cãozinho fraldiqueiro. E embora ele soubesse que, provavelmente, nunca poderia manter amizade com um cãozinho fraldiqueiro, apesar de tudo, acompanhá-lo, de longe, ao menos... sempre era uma consolação para ele no meio da sua desdita. Pelo visto, já deixara de pensar na felicidade. Perdido o futuro, vivia unicamente de pão e reconhecia plenamente a sua situação. Uma vez experimentei acariciá-lo; isso foi para ele qualquer coisa de tão novo e inesperado que, de repente, foi e estendeu-se a todo o comprimento no chão, sobre as quatro patas, todo a tremer, e começou a gemer com força, de tão comovido. Eu o acariciava muitas vezes, por dó. Em compensação, ele não podia conter um gemido cada vez que me via. Assim que me via ao longe começava a uivar de maneira doentia e lamentosa. O caso acabou desta maneira: fora do presídio, no bastião, os outros cães acabaram por dar cabo dele.
Kulhtiapka era completamente diferente. Não sei por que o teria levado eu, ainda em pequenino, para o presídio. Agradava-me dar-lhe de comer e vê-lo crescer. Chárik tomou imediatamente Kulhtiapka sob sua proteção e dormia com ele. Quando Kulhtiapka era já mais crescidinho, consentia que lhe mordesse as orelhas, lhe puxasse pelo pelo e brincasse com ele, como costumam brincar os cães já grandes com os cachorrinhos. Era estranho que Kulhtiapka se desenvolvesse pouco em altura e somente crescesse em comprimento e profundidade. Tinha um pelo lanudo, cor de rato claro; uma das orelhas crescera-lhe para baixo e a outra para cima. De gênio era vivo e fogoso, como todos os cachorrinhos, os quais costumam, com a alegria de ver o dono, arquejar, chiar, subir-lhe pelo corpo, lambiscar-lhe a cara, sem se preocuparem com reprimir perante ele todos os outros sentimentos. “Contanto que vejam o meu entusiasmo, pouco importa a compostura!” Onde quer que eu estivesse, assim que gritava “Kulhtiapka!”, logo ele surgia de algum canto, correndo, como se saísse de debaixo da terra, e voava para mim com um entusiasmo, ansioso, como uma bala, caindo muitas vezes no caminho. Eu tinha uma enorme amizade por esse aborto. Parecia que o destino só havia de proporcionar-lhe satisfações e alegrias na vida. Mas um belo dia o preso Nieustróiev, que se ocupava em coser sapatos de senhora e em curtir peles, fixou nele uma atenção especial. Houve qualquer coisa que, de súbito, o impressionou. Chamou Kulhtiapka para o seu lado, acariciou-lhe o lombo e, carinhosamente, estendeu-o no chão, de boca para cima. Kulhtiapka, sem receio nenhum, gemia de gozo. Mas na manhã seguinte desaparecera. Procurei-o durante muito tempo, levara sumiço, e só passadas duas semanas tudo se esclareceu. A pele de Kulhtiapka agradara muito a Nieustróiev, que lha arrancou, curtiu-a e a pôs nuns sapatos de veludo, de abafo, que lhe encomendara a mulher do auditor. Ele próprio me mostrou os sapatos quando já estavam prontos. A pele ficava neles admiravelmente. Pobre Kulhtiapka!
No presídio, muitos se dedicavam ao curtimento de peles, e quando apareciam cães de pele bonita, o que acontecia frequentemente, desapareciam num abrir e fechar de olhos. Alguns roubavam-nos, mas outros compravam-nos. Lembro-me de que uma vez encontrei dois presos atrás dos alojamentos. Tomavam resoluções e conferenciavam. Um deles segurava, por uma corda, um grande e esplêndido cão, o qual parecia de raça. Algum criado despedido o teria roubado à sua senhora e o teria vendido aos nossos sapateiros por 30 copeques de prata. Os presos pensavam afogá-lo. O que podiam fazer com a maior facilidade, depois arrancavam-lhe a pele, e, quanto ao cadáver, arrojavam-no a um grande e fundo fosso de esgoto que havia no canto mais recuado do presídio e que, no verão, com o calor, fedia horrorosamente. Só de longe em longe o limpavam. O pobre cão parecia compreender a sorte que o esperava. Interrogativo e inquieto, olhava alternadamente para nós três e, de quando em quando, ousava mexer um pouco a cauda basta, como se estivesse desejoso de abrandar-nos com esse sinal da sua confiança em nós. Eu me apressei a retirar-me, e eles, naturalmente, despacharam o caso com toda a tranquilidade.
Também aos gansos sucedera virem a encontrar-se entre nós, por casualidade. Ignoro quem os teria levado para ali ou a quem pertencessem, mas durante algum tempo divertiram grandemente os condenados, e até chegaram a ser conhecidos na cidade. Haviam-se criado no presídio e mantinham-se na cozinha. Quando cresceram, acostumaram-se a sair todos em grupo, juntamente com os presos, para o trabalho. Assim que se ouvia o tambor e o presídio se punha em movimento para sair, logo os nossos gansos começavam a lançar grasnidos e a correr para nós, agitando as asas e, um atrás do outro, atravessavam a porta altíssima e dirigiam-se invariavelmente para o lado direito, onde se alinhavam, aguardando o fim da divisão dos grupos. Costumavam incorporar-se ao turno mais numeroso e, durante o trabalho, ficavam em qualquer lugar próximo. Quando o grupo se punha de novo em movimento para regressar ao presídio, também eles se levantavam. No forte correu o boato de que os gansos iam com os presos para o trabalho. “Olha, lá vão os presos com seus gansos!”, costumavam dizer os que os encontravam no caminho. “Olhem para os gansos! Como é que vocês os ensinaram assim?”, acrescentavam outros, dando-lhes uma esmola. Mas a despeito de toda essa simpatia, mataram-nos para fazerem um festim depois da Quaresma.
Em compensação, por nada deste mundo teriam matado o nosso cabrito Vasska, se não se tivesse dado uma circunstância especial. Também não sei como é que o arranjaram nem quem o levou ali, mas o certo é que um dia apareceu no presídio um cabritinho branco, muito bonito. Passados poucos dias já todos nós lhe tínhamos tomado amizade e proporcionava-nos distração geral e até alegria. Encontraram também uma razão para mantê-lo: a de que era preciso manter no presídio, além do cavalo, um cabrito também. No entanto não vivia junto do cavalo, mas sim na cozinha, a princípio, e depois andava por todo o presídio. Era um animalzinho extremamente gracioso e muito simpático. Aproximava-se quando o chamavam, saltava para cima dos bancos, das mesas, arremetia contra os presos, estava sempre contente e brincalhão. Uma vez, quando já lhe tinham nascido os cornichos, uma noite, o legiano Babai, que estava sentado na escadinha do alojamento, juntamente com outros presos, lembrou-se de pôr-se a brincar com Vasska. Havia já muito tempo que davam marradinhas com a testa — o que constituía o divertimento favorito dos presos com o cabritinho — quando de repente Vasska se encarrapitou no degrau mais alto da escadinha e, mal Babai se pusera de lado, quando o animal se levantou num ápice, sobre as patas traseiras, encolheu as outras e deu ao legiano, com todas as suas forças, uma marrada pelas costas que o fez rolar de cabeça para baixo pela escada, entre o entusiasmo de todos os presentes e do seu em primeiro lugar. Enfim, todos tinham uma grande amizade por Vasska. Depois começou a tornar-se maior e, após uma prolixa e séria discussão, concordaram em fazer-lhe, e fizeram-lhe, uma certa operação, na qual os nossos veterinários eram mestres consumados: “Assim já não cheirará a macho”, diziam os presos. Depois disso, Vasska começou a engordar terrivelmente. Alimentavam-no como se quisessem cevá-lo. Finalmente tornou-se um bode esplêndido com uns cornos muito compridos e de extraordinária grossura. Também se acostumou a sair conosco para o trabalho, para distração dos presos e das pessoas que se encontravam pelos campos. Todos conheciam Vasska, o cabrito do presídio. Às vezes, quando trabalhavam na ribeira, por exemplo, os presos costumavam cortar os ramos flexíveis dos juncos, procuravam algumas folhas, arrancavam flores junto do muro e coroavam Vasska com tudo isso; atavam-lhe juncos e flores nos cornos e envolviam-lhe todo o corpo em grinaldas. Vasska regressava ao presídio enfeitado e ataviado, e os presos iam atrás dele, e pareciam sentir-se muito importantes perante os transeuntes. A tal ponto chegou essa afeição pelo cabrito que ocorreu a alguns uma ideia absolutamente pueril: “Por que não se hão de dourar os cornos de Vasska?” Simplesmente não chegaram a fazê-lo, tudo ficou em palavras. Aliás, lembro-me de que perguntei a Akim Akímitch, o melhor dourador do nosso presídio, depois de Issai Fomitch, se de fato seria possível dourar os cornos do cabrito. Ele começou por olhá-lo com muita atenção, depois refletiu com muita seriedade e acabou por dizer que era possível, “mas que isso seria de pouca duração e, além disso, perfeitamente inútil”.
E com isto se acabou a história. Vasska teria vivido longo tempo no presídio e teria talvez morrido de asma, mas uma vez, ao voltar do trabalho à frente dos presos, enfeitado e embonecado, encontrou o major que ia no seu drójki: “Alto! — gritou. — Que cabrito é esse?” E explicaram-lhe: “O quê, um cabrito no presídio, e sem minha autorização? Suboficial!” O suboficial apresentou-se e recebeu imediatamente ordem de abater o animalzinho. Que lhe arrancassem o velo, que o vendessem à loja, e que o dinheiro da venda fosse acrescido à quantia que a administração destinava aos presos, e que a carne fosse dada a estes, com a sopa de couve. Fizeram-se comentários no presídio; tiveram muita pena, mas não se atreveram a desobedecer. Mataram Vasska junto do fosso dos esgotos. A carne foi toda comprada por um dos presos, que abonou 1,5 rublo de prata ao presídio. Com esse dinheiro compraram tortas, mas o que comprara Vasska tornou a vendê-lo para ser assado. E, de fato, a carne era extraordinariamente saborosa.
Também viveu algum tempo conosco no presídio uma águia da espécie das estepes, que não são muito grandes. Houve alguém que a levou para o presídio, ferida e maltratada. Todos acudiram ao vê-la; não podia voar; a asa direita estava derrubada e uma pata, deslocada. Lembro-me da ansiedade com que olhava à sua volta, contemplando o grupo curioso, e de como abria o bico curvo, pronta a vender cara a vida. Assim que acabaram de olhá-la à sua vontade e começaram a dispersar, a águia, coxeando, sustendo-se em uma só pata e agitando a asa sã, foi esconder-se no extremo mais afastado do presídio, onde se encolheu num canto, contra a paliçada. Ali viveu três meses, e durante todo aquele tempo nem uma vez sequer se moveu no seu canto. A princípio iam ali muitas vezes para a verem, atiçando o cão contra ela. Chárik lançava-se sobre ela com muito ímpeto, mas era evidente que não se atrevia a aproximar-se muito, o que divertia grandemente os presos. “Isto é que é uma fera!”, diziam. “Não se rende!” Depois Chárik começou a magoá-la seriamente; perdeu-lhe o medo e quando o açulavam apressava-se a agarrá-la pela asa doente. A águia defendia-se com todas as suas forças, com as garras e com o bico, orgulhosa e arrogante como um monarca ferido e, agachando-se no seu canto, contemplava os curiosos que vinham para vê-la. Finalmente, todos se fartaram dela, todos a deixaram em paz e a esqueceram e, no entanto, todos os dias podia ver-se junto dela um pedaço de carne fresca e uma caçarola quebrada com água. Alguém devia cuidar dela. A princípio ela se negava a comer e assim esteve vários dias; até que por fim começou a comer, mas não à mão nem diante das pessoas. Eu pude vê-la uma vez, de longe. Não vendo ninguém e pensando que estivesse só, resolvia-se às vezes a afastar-se um bocadinho do seu canto e coxeava ao longo da paliçada, uns 12 passos além do seu lugar; depois recuava e tornava a sair, como se estivesse fazendo exercício. Quando me via, voltava a correr imediatamente para o seu canto, com todas as forças, dando saltos e deitando a cabeça para trás, abrindo o bico, as penas eriçadas, pronta para o combate. Não conseguia amansá-la com carícias nenhumas; arranhava e bicava; não aceitava a carne da minha mão, e durante todo o tempo que me via não fazia senão olhar para mim de alto a baixo, nos olhos, com os seus, penetrantes e hostis. Aguardava a morte sozinha, não tinha confiança em ninguém nem se amansava com coisa alguma. Até que finalmente os presos se lembraram dela e, embora nenhum a tivesse procurado nem recordado nesses dois meses, de repente todos se encheram de piedade por ela. Discutiram sobre a necessidade de expulsarem a águia.
— Que rebente, mas não no presídio — diziam uns.
— É um pássaro livre, arisco; não se acostumará ao presídio — disseram outros.
— Sinal de que não é como nós — acrescentou um outro.
— Olha que coisa! É uma ave e nós somos homens.
— A águia, meus amigos, é o czar das selvas... — começou a dizer Skurátov; mas desta vez não lhe deram ouvidos.
Certo dia, depois do rancho, quando soou o tambor chamando para o trabalho, pegaram na águia, fechando-lhe o bico com a mão, porque se tinha posto a debater-se, furiosa, e levaram-na do presídio. Foram até o bastião. Doze homens, que pertenciam àquele turno, queriam ver até onde subia a águia. Coisa curiosa: todos estavam tão contentes como se também eles, em parte, fossem recuperar a liberdade.
— Anda, meu palerma, faz-lhe bem, que ela não sabe senão arranhar! — dizia aquele que a segurava, olhando a ave quase com amor.
— Larga-a, Mikita!
— A ela, quer dizer, ao diabo, não o guardes em nenhum cofre. Dá-lhe a liberdade, a liberdade toda, verdadeira.
Largaram a águia do muro sobre a estepe. O outono ia já avançado e estava um dia frio e nublado. O vento zumbia sobre a estepe desnuda e sibilava na erva seca, amarela e densa. A águia atirou-se a direito, agitando a asa sã e como se tivesse pressa de pôr-se longe do alcance dos nossos olhos. Os presos seguiam-na, curiosos, enquanto a sua cabeça brilhava acima da erva.
— Olhem para ela! — exclamou um, pensativo.
— Nem sequer se volta para olhar para nós! — acrescentou outro. — Nem uma só vez sequer se voltou para olhar-nos, meus amigos, voa que voa!
— Ai, tu pensavas que ela viria agradecer-nos? — observou um terceiro.
— Cheirou-lhe a liberdade...
— Sim, a liberdade...
— Já não se vê, meus amigos...
Por que estão assim parados? Marche! — gritaram as sentinelas, e todos, em silêncio, correram para o trabalho.
A RECLAMAÇÃO
Ao começar este capítulo, o editor das Memórias do falecido Alieksandr Pietróvitch Goriântchikov considera-se obrigado a fazer aos leitores a seguinte advertência:
No primeiro capítulo, “Memórias da Casa dos Mortos”, disseram-se algumas palavras a respeito de um parricida de família nobre. Citou-se, entre outros, como exemplo da insensibilidade com que às vezes os presos falam dos crimes por eles cometidos. Disse-se também que o parricida não confessou o crime no julgamento, mas, atendendo a certos relatos de pessoas que conheciam o caso em todos os seus pormenores, os fatos tornavam-se claros a tal ponto que era impossível não acreditar na sua culpabilidade. Essas pessoas contaram ao autor das Memórias que o criminoso tinha uma conduta absolutamente licenciosa, que estava cheio de dívidas e que assassinara o pai com a ânsia de herdar. Aliás, toda a cidade em que antes vivera o parricida contava esta história nos mesmos termos. O editor das Memórias possui referências bastante fidedignas deste último fato. Finalmente, diz-se nas Memórias que o parricida mostrava no presídio a melhor e mais alegre disposição de espírito; que era um tipo desnorteado, sem ponderação alguma, embora não completamente estúpido, e que o autor das Memórias nunca lhe notou nenhuma crueldade especial. Ao que se acrescentavam ainda estas palavras: “É claro que eu não acreditava nesse crime.”
Há pouco, o editor de Memórias da Casa dos Mortos recebeu da Sibéria a notícia de que o suposto criminoso era de fato inocente e sofrera injustamente dez anos de trabalhos forçados, e que era sua inocência fora proclamada pelos juízes de modo oficial. Que os verdadeiros culpados tinham sido encontrados, os quais estavam já convictos e confessos, e que o infeliz já tinha sido posto em liberdade.
O editor não pode de maneira nenhuma duvidar da veracidade desta notícia...
Não é preciso acrescentar mais nada. Não é preciso falar mais nem demorarmo-nos acerca da profundidade trágica deste fato, do malogro duma vida ainda jovem, sob o peso de tão terrível acusação. O fato é demasiado compreensível, impressionante por si.
Nós pensamos também que, se tal fato fosse possível, esta mesma possibilidade acrescenta ainda uma característica nova e luminosa às características e perfeição do quadro da Casa dos Mortos.
E agora continuemos.
Disse eu anteriormente que, finalmente, acabei por me conformar com a minha situação no presídio. Mas isso finalmente operou-se de modo muito lento e doloroso, aos poucos. Na realidade foi-me necessário um ano para isso, e esse ano foi o mais difícil da minha vida. E por isso tudo se me gravou profundamente na memória. Parece-me que recordo cada hora desse ano até nos seus mínimos pormenores. Disse ainda que os outros presos também não podiam acostumar-se a essa vida. Lembro-me de que, nesse primeiro ano, costumava perguntar: “Que se passará com eles? Poderão estar tranquilos?” E essas perguntas preocupavam-me muito. Já antes recordei que todos os presos viviam ali não como em sua casa, mas como numa estalagem de mudas, num bivaque, numa etapa. Até os indivíduos deportados para toda a vida andavam inquietos e nostálgicos, e, infalivelmente, todos eles sonhavam com algo impossível. Essa perene inquietude, que transparecia, mesmo através do silêncio, essa estranha amargura ou excitação, que às vezes costumava involuntariamente acusar-se em esperanças tão mal fundadas, que pareciam estar delirando e que impressionavam sobretudo por se manifestarem muitas vezes em indivíduos de aparência muito realista, tudo isso imprimia um aspecto e caráter singulares àquele lugar, a um ponto tal que talvez esses aspectos constituíssem o mais característico da sua peculiaridade. Parecia sentir-se, quase ao primeiro olhar, que aquilo não existia fora do presídio. Ali, todos eram uns sonhadores. E isto era evidente. Sentia-se isto doentiamente, sobretudo porque o sonho comunicava à maioria dos do presídio um aspecto áspero e severo, um certo aspecto doentio. A imensa maioria era taciturna e má até ao rancor, e não gostava de mostrar as suas esperanças. A simplicidade, a sinceridade, eram objeto de desprezo. Quanto mais arrojadas eram as esperanças e mais o próprio sonhador se dava conta do seu atrevimento, tanto mais teimosa e pudicamente se escondia dentro de si, mas afugentá-las, isso é que não podia. Quem sabe quantos não se envergonhariam delas perante si próprios! Há no caráter russo tanto sentido da realidade e tal curteza de vistas, tanta zombaria interior, a começar pela própria pessoa. Talvez essa grande irritabilidade nesses indivíduos, nas suas mútuas relações cotidianas, tantas discussões e troças entre eles, fossem devidas a esse constante, dissimulado descontentamento de si próprio. E se, por exemplo, surgisse de repente algum mais ingênuo ou sensível, que deixasse transparecer por acaso o que todos escondiam nas suas almas, que se abandonasse aos sonhos e às ilusões, imediatamente o corrigiam e troçavam dele; mas eu tenho a impressão de que os admoestadores mais exaltados eram precisamente os mesmos que, provavelmente, iam mais longe nos seus sonhos e nas suas ilusões. E a esses ingênuos simplórios, como já disse, olhavam-nos de uma maneira geral como imbecis e tratavam-nos com desprezo. Eram todo a tal ponto tão arredios e fátuos que desprezavam as pessoas simples e despidas de amor-próprio. Além desses faladores, crédulos e ingênuos, todos o outros, isto é, os taciturnos, se dividiam categoricamente em bons e maus, severos e amáveis. Os severos e os maus eram incomparavelmente mais numerosos; embora entre eles houvesse também faladores que o eram por natureza, eram todos, infalivelmente, hipocondríacos, inquietos e rancorosos. Intrometiam-se em todos os assuntos alheios, embora não mostrassem o seu próprio íntimo a ninguém, os seus problemas particulares. Era essa a regra, coisa que não se admitia. Os bons — um número muito reduzido — eram pacíficos, ocultavam silenciosamente as suas esperanças, e escusado será dizer que, mais do que os ásperos, eram propensos a alimentar ilusões e a acreditar nelas. Aliás, afigura-se-me também que existiam igualmente no presídio um grupo de indivíduos completamente desesperados. A estes pertencia, por exemplo, aquele ancião, velho crente de Staradúvobo; mas, em todo caso, eram em pequeno número. Esse tal velho mostrava-se tranquilo na aparência (já falei dele) mas, por certos indícios, penso que o seu estado dalma era espantoso. Aliás, tinha a sua salvação, o seu refúgio: a oração e a ideia de sofrimento. Aquele louco, leitor da Bíblia, a que já me referi, e que atirou aquele tijolo ao major, seria provavelmente do número dos desesperados, daqueles que já tinham perdido até a última esperança. E como viver sem ilusões é impossível, procurou um refúgio no sofrimento voluntário, quase artificial. Declarou que agredira o major sem má intenção, mas simplesmente para atrair o suplício. E quem sabe que processo psicológico se operaria então na sua alma! Sem um objetivo pelo qual tenha de esforçar-se, nenhum homem pode viver. Quando perdeu a sua finalidade e a sua ilusão, o homem transformou-se muitas vezes, com o aborrecimento, num monstro. O fim para todos nós era a liberdade e a saída do presídio.
Estou a esforçar-me por classificar em categorias todos os do nosso presídio; mas isso será possível? A realidade é infinitamente diferente, comparada com todos, inclusivamente com os mais refinados produtos do pensamento abstrato, e não suporta distinções vívidas e acusadas. A realidade tende para os casos particulares. Existia vida individual entre nós, embora de uma maneira especial, e não uma vida pública, mas uma vida interior, própria de cada um.
Mas, como disse já noutro lado, eu não podia saber nem compreender a profundidade interior dessa vida, nos meus primeiros tempos de presídio, e por isso todas as manifestações exteriores dessa vida me mortificavam então com uma constante tristeza. Às vezes, invejava simplesmente aqueles que sofriam o mesmo que eu. Até os invejava e deitava as culpas sobre a sorte. Invejava-os porque eles, apesar de tudo, compreendiam-se mutuamente entre si, com os companheiros, embora, na realidade, tanto a eles como a mim nos repugnasse aquela camaradagem debaixo do chicote e dos açoites, aquela comunidade forçada, e procurassem evitar os demais, retirar-se para um lado, para qualquer parte. Torno a repetir que essa inveja, que se apoderava de mim em momentos de mau humor, tinha os seus fundamentos lícitos. No fundo, não têm absoluta razão aqueles que dizem que, para o nobre, para o culto, o presídio e os trabalhos forçados são tão duros como para qualquer labrego. Conheço essa tese, ouvi-a defender nos últimos tempos, tenho lido algo acerca dela. A base dessa ideia é verdadeira, humana. Todos são pessoas, todos homens. Mas é uma ideia demasiado abstrata. Não tem em conta muitas condições práticas, que não podem compreender-se de outro modo senão na própria realidade. Falo assim não porque o nobre e o ilustrado sintam de um modo mais requintado e doloroso, porque estejam mais desenvolvidos. É difícil avaliar numa escala a alma e o seu desenvolvimento. Nem a própria cultura pode servir de medida neste caso. Sou o primeiro a afirmar que no homem mais inculto, no meio mais baixo, entre estes homens que sofrem, se encontram aspectos da mais refinada evolução espiritual. Acontecia às vezes no presídio que uma pessoa conhecesse um homem durante alguns anos e pensasse que ele fosse uma fera, e não um homem, e que o desprezasse. E, de repente, chegava casualmente um instante em que a sua alma descobria num ímpeto involuntário o seu interior e se via nele tal riqueza, tal sentimento e coração, tão clara compreensão da dor própria e alheia, que era como se vos abrissem os olhos, e no primeiro instante nem se queria acreditar naquilo que se via e ouvia. Sucedia também o contrário; a cultura estava às vezes unida a tal barbárie, a tal cinismo, que chegávamos nos a sentir magoados, e, por melhores e prudentes que fôssemos, não encontrávamos no nosso coração desculpa nem justificação alguma.
Não digo tão pouco nada da mudança de costumes, da maneira de viver, de comer etc., que para o homem da camada elevada da sociedade é, sem dúvida, mais duro do que para o labrego, o qual de quando em quando sofre fome em liberdade e, no presídio, pelo menos pode comer até fartar-se. Não discutirei acerca disto. Concedamos que, para um homem, até para um homem de pouca vontade, tudo isto seja uma ninharia comparado às demais incomodidades, embora, na realidade, a mudança de costumes não ser coisa de pouca monta, tal como a última. Mas há um incômodo perante o qual tudo mais empalidece, a tal ponto que não se repara, nem na falta de asseio que nos rodeia, nem na escassa e suja comida. O sibarita mais requintado, o mais pedante peralvilho, desde que tenha trabalhado durante o dia com o suor do seu rosto, como nunca trabalhou quando era livre, comerá nem que seja pão negro e sopa de couve com baratas. A isso tem de acostumar-se, como diz uma canção humorística do presídio que fala de um antigo peralvilho que foi parar àquele presídio:
Deem-me couve com água
Que me empanturro com elas
Não; mais importante do que tudo isso é que, qualquer dos que hão de começar a acostumar-se ao presídio, passadas duas horas de aí estar, considera-se já como todos os outros, considera-se em sua casa, como proletário, com os mesmos direitos que todos à comunidade presidial. Todos o compreendem e ele compreende a todos, conhece todos, todos o consideram como seu. Mas tal não sucede com os bem nascidos, com os nobres. Por mais digno, bom e inteligente que seja, durante anos inteiros hão de olhá-lo com maus olhos e desprezá-lo-ão com todo o seu ser; não o compreenderão e, o que é mais importante, não terão confiança nele. Não é amigo nem companheiro, e ainda que consiga, finalmente, ao fim de alguns anos, que não o ofendam, apesar de tudo nunca será dos seus e terá eternamente, dolorosamente, de reconhecer o seu afastamento, a sua solidão. Este ostracismo opera-se às vezes sem má intenção da parte dos presos e como de maneira inconsciente. Não é dos seus e basta. Nada tão espantoso como viver fora do seu meio. O camponês que foi trazido de Taganrog para o posto de Pietropávlosk encontra imediatamente ali algum camponês russo; imediatamente fala e desabafa com ele e, passadas duas horas, já convivem amistosamente os dois, na mesma choça ou na cabana. Não se dá o mesmo com os bem nascidos. Estão separados do povo baixo por um abismo profundíssimo, e só se repara nisto plenamente, quando o bem nascido, de repente, por forças das circunstâncias exteriores, se vê efetivamente despojado dos seus anteriores direitos e fica também convertido em povo. Nem que durante toda a vida se contacte com o povo, nem que durante uns quarenta anos seguidos se esteja ao seu lado, no serviço, por exemplo, em termos burocráticos ou, simplesmente, afetuosos, com ares de protetor e um certo pensamento paternal, nunca conhecereis a realidade. Tudo será unicamente um erro de óptica e nada mais. Eu sei que todos, absolutamente todos, quando lerem esta minha observação, hão de dizer que eu exagero. Mas estou convencido de que esta é a verdade. E cheguei a esta convicção não livrescamente ou especulativamente, mas pela realidade; tive tempo de sobra de comprovar as minhas convicções. Talvez um dia todos reconheçam até que ponto isto é verdade...
Os acontecimentos, como de propósito, desde o primeiro momento que vieram confirmar as minhas observações e que atuaram sobre mim nervosa e morbidamente. Nesse primeiro ano andava para trás e para diante no presídio quase sozinho. Já disse que me encontrava numa disposição de espírito tal que nem sequer podia apreciar e distinguir aqueles presos que poderiam ser capazes de tomarem depois amizade por mim, embora nunca chegassem a tratar-me de igual para igual. Eram companheiros meus, nobres, mas nunca durante esse tempo tal camaradagem me serviu de alívio. De boa vontade não teria olhado para ninguém e, no entanto, não podia fugir. Eis aqui, por exemplo, uma daquelas ocasiões que pela primeira vez me fizeram compreender o meu isolamento e a minha situação especial no presídio. Uma vez, durante esse mesmo ano, já no mês de agosto, num dia de trabalho claro e quente, à uma da tarde, quando, como de costume, todos descansavam um pouco depois de comer, todo o presídio se pôs de repente em movimento, como um só homem, e começou a dirigir-se para a porta. Eu não sabia de nada até aquele momento. Nesse tempo costumava às vezes absorver-me numa meditação tão profunda que mal dava conta do que acontecia à minha volta. E, no entanto, havia já três dias que lavrava uma surda efervescência no presídio. Pode ser que aquela efervescência tivesse começado muito antes do que pensei depois, recordando involuntariamente algumas conversas de presos e, ao mesmo tempo, o seu mau humor exacerbado, a insociabilidade e a disposição de espírito particularmente agressiva que se notava entre eles nos últimos tempos. Eu atribuía isso ao trabalho pesado, aos aborrecidos longos dias estivais, aos involuntários sonhos de liberdade nos bosques e à brevidade das noites em que era difícil conciliar o sono. Podia ter acontecido que tudo isso, junto, produzisse agora o seu efeito, numa explosão; mas o pretexto desse arrebatamento era... a comida. Já durante alguns dias se tinham queixado ostensivamente e mostrado a sua indignação nos alojamentos, especialmente quando se reuniam na cozinha, às horas do almoço e do jantar; deram a entender a sua insatisfação aos cozinheiros e procuraram até substituir um deles, embora em seguida tivessem expulsado o novo e reintegrado provisoriamente o antigo. Em resumo: todos se achavam numa grande inquietação.
— O trabalho é duro e a comida é uma porcaria — resmungou um na cozinha.
— Pois se não te agrada pede blanc manger para ti — observou outro.
— Eu gosto imenso de couve com sebo, meus amigos — encareceu um terceiro. — Estão bem saborosas.
— E mesmo que te deem sempre couve com sebo, sabem-te bem?
— Não há dúvida de que agora é tempo de carne — disse um quarto. — Nós, na olaria, trabuca que trabuca, e depois da comida temos um apetite devorador. Mas pode-se chamar comida a este sebo?
— E quando não há sebo há fressura. Sebo e fressura é tudo o mesmo. Que comida! Tenho razão ou não tenho?
— Sim, a comida não presta.
— Pode ser que esteja enchendo os bolsos.
— Isso não é da tua conta.
— Então é da conta de quem? As minhas tripas são minhas. Mas se nos juntássemos todos para fazermos uma reclamação haveriam de atender-nos.
— Uma reclamação?
— Sim.
— Parece que ainda não te surraram bastante por causa das reclamações! Cala-te!
— Tens razão — acrescentou, resmungando, outro que até então estivera calado. — Depressa e bem, há pouco quem. Que irás tu dizer, tu, cabeça de alho chocho? Ora, vamos lá a ver...
— Pois bem, hei de dizê-lo. Se formos todos juntos, falarei com todos. Quero dizer: a miséria. Entre nós há quem coma do que é seu e quem não tenha mais do que o rancho.
— Olha que invejoso! Parece que lhe faz mal aos olhos o bem alheio.
— Não abras a boca para a talhada alheia, mas mexe as mandíbulas e procura a tua.
— Procurá-la! Bem poderíamos ficar aqui discutindo até as galinhas terem dentes. Isso quer dizer que tu és rico e podes ficar de braços cruzados...
— Rico como Ierochka, que tinha um cão e um gato.
— Mas, vamos lá a ver, meus amigos: por que não havíamos nós de reclamar? Esfolam-nos vivos. Por que não reclamar?
— Por quê? Parece que, para ti, é preciso mastigar a comida antes de a levares à boca; estás acostumado a comer coisas já mastigadas. Pois porque estamos num presídio, aí tens o porquê.
— O resultado de tudo isto é a gente viver em rixas, meu Deus, enquanto o voievoda vai engordando.
— Lá isso é. Quem engorda é o Oito Olhos. Acaba de comprar uma parelha de cavalinhos.
— Bom. E ele também, diga-se a verdade, não gosta nada de beber...
— Há pouco estava jogando baralho com o veterinário.
— Passaram toda a noite jogando. O nosso, às duas horas, já tinha perdido tudo. Foi Fiedka quem mo disse.
— E por isso nos põem a couve.
— Ah, os imbecis! Se vocês não estivessem aí quietinhos, o caso mudaria de figura.
— Lá isso é, devíamos ir todos juntos e ver que desculpa é que ele nos daria. Era isso o que deveríamos fazer.
— Desculpa? Ele te daria a desculpa...
— E, além disso, instaurariam-te um processo...
Em resumo: andavam todos revoltados. De fato, por esse tempo a comida do presídio era péssima. E a isto juntava-se tudo o mais. Mas o mais importante era a disposição geral de espírito, melancólica, o eterno suplício recalcado. O presidiário é rebelde e turbulento por natureza, mas raramente se sublevam todos ou uma grande parte. E o motivo não é outro senão a eterna discordância. Cada um deles sentia isto, e era essa a razão de que houvesse entre nós mais palavras do que obras. No entanto, dessa vez a agitação não foi em vão. Começaram a reunir-se em grupos, discutiam nos alojamentos, insultavam, recordavam com rancor todas as proezas do nosso major, não perdoavam o mais pequeno pormenor. Alguns pareciam particularmente furiosos. Em todos estes casos surgem sempre agitadores, açuladores. Os instigadores, nestes casos, quer dizer, em casos de levante, costumam ser indivíduos notáveis não só no presídio como em todas as sociedades. Este tipo especial é semelhante em todas as partes. É uma gente fogosa, sedenta de justiça, da maneira mais ingênua e honesta, convencida da sua possibilidade infalível, absoluta, e mais, imediata. Estes indivíduos não são mais tolos do que os outros; há os até muito inteligentes, mas o que sucede simplesmente é que são demasiado impetuosos para serem cautos e calculistas. Em todos estes lances, quando há indivíduos que sabem conduzir habilmente as massas e levar uma empresa por diante, representam um tipo de cabecilhas e autênticos guias, tipo extremamente raro entre nós. Mas esses de que falo agora, agitadores e instigadores do motim, pagam quase sempre pelo seu atrevimento e vão depois encher as prisões. Desempenham um papel, com essa sua impetuosidade, e nisso está a razão da sua influência sobre as massas. Acabam por caminhar todos atrás deles, muito contentes. O seu ardor e a sua honesta indignação atuam sobre a massa, e por fim, até os mais indecisos se lhes juntam. A sua fé ingênua no êxito contagia inclusivamente os céticos mais empedernidos, se bem que essa fé tenha às vezes uma base tão frágil, tão pueril, que nos admiramos de que haja quem os siga. Mas o importante é que eles vão à testa do caso e vão sem medo de nada. À semelhança dos touros, investem de frente com os cornos, às vezes sem estarem informados do caso, sem cautela, sem esse jesuitismo prático com que frequentemente os homens mais vis levam por diante as suas empresas, alcançando os seus objetivos e saindo livres de culpas e de penas. Mas os outros acabam infalivelmente por quebrar a cabeça. Na vida corrente são gente biliosa, mal-humorada, irritada e intolerante. O mais frequente é serem de vistas curtas, o que, por outro lado, constitui a sua força. O mais triste de tudo é que, em vez de irem direto ao fim, desviam-se com frequência; em vez de atacarem o principal, detêm-se com frequência; em vez de atacarem o principal, detêm-se com ninharias. É isto o que os perde. Mas as massas compreendem-nos: nisto radica a sua força... Aliás, é preciso dizer ainda duas palavras acerca disto: que significa um levante?
No nosso presídio havia alguns homens que tinham ido lá parar por causa de um levante. Eram os mais revoltados. Principalmente um, Martínov, que servira nos hussardos, homem fogoso, inquieto e desconfiado, embora reto e honesto. O outro era Vassíli Antônov, homem que se irritava, por assim dizer, a sangue-frio; tinha um olhar receoso, um sorriso altivo e sarcástico, e era muito inteligente e também honesto e reto. Mas é impossível enumerá-los a todos; havia muitos. Entre outros, Pietrov andava sempre de um lado para o outro, escutava o que diziam em todos os grupos, falava pouco mas era visível que estava agitado, e foi o primeiro a sair dos alojamentos quando começaram a formar.
O suboficial do presídio, o qual fazia perante nós as vezes de primeiro sargento, saiu imediatamente, assustado. Depois de terem formado, os presos pediram-lhe com toda a delicadeza que informasse o major de que os presos do presídio desejavam falar com ele e pedir-lhe concretamente contas acerca de alguns pontos. Depois do suboficial, chegaram todos os inválidos e formaram-se noutro lado, em frente dos presos. A incumbência dada ao suboficial era extraordinária ele ficou verdadeiramente espantado. Nem sequer se atreveu a dar imediatamente parte ao major. Em primeiro lugar, se o presídio estava já sublevado, podia ainda acontecer algo de pior. Todos os nossos chefes eram extremamente tímidos em tudo quanto respeitava ao presídio. E, além disso, embora nada acontecesse, embora imediatamente todos caíssem em si e se dispersassem, ainda assim o suboficial teria de ir dar parte do acontecimento ao superior. Pálido e trêmulo de medo, dirigiu-se para o major a toda a pressa, sem pretender sequer interrogar ou admoestar os presos. Via que não era agora oportunidade de falar-lhes.
Completamente ignorante de tudo, também eu saí e meti-me na forma. Os pormenores do caso só os conheci depois. Por então supunha que iam fazer alguma contagem; mas como não vi as sentinelas que assistiam às contagens, fiquei admirado e comecei a olhar à minha volta. Os rostos denotavam agitação e irascibilidade. Alguns estavam pálidos. De maneira geral, todos se mostravam preocupados e taciturnos, na expectativa do que teriam dito ao major. Vi que muitos me olhavam e mostravam um grande espanto, embora voltassem a cara, depois.. em silêncio, para o outro lado. Era evidente que lhes parecia estranho que eu tivesse formado juntamente com eles. Pelo visto não queriam acreditar que eu me associasse também ao levante. Mas depois, quase todos os que se achavam à minha volta começaram outra vez a olhar para mim. Todos me olhavam interrogativamente...
— Por que estás tu aqui? — perguntou-me com voz rude e forte Vassíli Antônov, que estava um pouco mais afastado de mim que os outros e que até então sempre me tratara por senhor, com delicadeza.
Olhei-o, perplexo, fazendo no entanto o possível por compreender o que significava tudo aquilo e adivinhando que se tratava de qualquer coisa de extraordinário.
— Por que estás tu aqui? Vai para o alojamento! — disse um rapaz novo, da seção militar, bondoso e amável, com o qual, até então, quase não tinha convivido. — Não tens nada a fazer aqui.
— Como vi a forma — respondi-lhe —, pensei que nos fossem passar revista.
— E então apresentou-se! — exclamou um.
— Nariz de ferro! — largou outro.
— Papa-moscas! — exclamou um terceiro com um enorme desprezo.
Este novo remoque suscitou uma gargalhada geral.
— Por favor, vá para a cozinha — acrescentou outro.
— Esses, em todos os lugares estão como no paraíso. Aqui é o presídio, mas eles comem tortas e até compram ganso. Tu comes por tua conta. Por que vieste meter-te aqui?
— O teu lugar não é aqui — disse Kulikov, aproximando-se amigavelmente; pegou-me depois pela mão e tirou-me da forma.
Estava também pálido, os olhos escuros cintilavam-lhe e mordia o lábio inferior. Não esperava pelo major com sangue-frio. Verdadeiramente, a mim agradava-me muito olhar para Kulikov em todas essas ocasiões, isto é, em todos os transes em que tinha de manifestar-se.
Era terrivelmente ator mas sabia sê-lo. Tenho a impressão de que teria ido para o suplício com certo chie, com elegância. Agora, quando todos me tratavam por “tu” e me insultavam, extremava-se ele, visivelmente, na sua cortesia para comigo e, ao mesmo tempo, as suas palavras eram um pouco especiais, com seus laivos até de altivez, e não suportavam réplicas.
— Nós estamos aqui por causa de um assunto nosso, Alieksandr Pietróvitch, mas você, aqui, nada tem a fazer. Vá para onde quiser. Espere: .. Olhe, todos os seus estão na cozinha. Vá para lá.
Pela janela aberta da cozinha vi efetivamente os nossos polacos. Aliás, parecia-me que aí havia ainda muita gente além deles. Desconcertado, encaminhei-me para a cozinha. Risadas, insultos e estalos de língua (era isto que, no presídio, substituía o assobio) perseguiram-me.
— Não lhe agrada! Tiu-tiu-tiu! Apanhem-no!
Nunca até então sofrera tais ofensas no presídio e dessa vez custou-me muito. Mas compreendia o instante em que nos encontrávamos. No vestíbulo da cozinha veio ao meu encontro T... ski dos nobres, um rapaz firme e generoso, sem grande cultura e que tinha uma grande amizade por B***. Todos os outros presidiários o distinguiam, e também, em parte, lhe dedicavam amizade. Era valente, viril e forte, e tudo isso se via em cada um dos seus gestos.
— Que faz o senhor, Goriântchikov? — gritou-me. — Venha cá!
— Mas que se passa?
— Forjaram um motim, sabe? Com certeza que não conseguirão nada; quem é que faz caso de uns presidiários? Hão de procurar os instigadores e, se nós nos metermos nisso, seremos os primeiros a ser culpados de rebeldia. Não se esqueça do motivo por que estamos aqui. Eles serão açoitados, mas depois deixam-nos em paz; mas a nós levantar-nos-ão um processo. O major odeia-nos mais do que a todos e ficaria contente se pudesse tramar a nossa perdição. Deitar-nos-iam a culpa de tudo.
— E os presidiários deixar-nos-iam numa linda encrenca... — acrescentou M... tski entrando na cozinha.
— É escusado, não teriam dó de nós — encareceu T... tski.
Na cozinha estava muita gente, além dos nobres; trinta homens ao todo. Todos eles se tinham retirado para ali por não quererem associar-se ao motim: uns., por medo, outros pela convicção firme da absoluta inutilidade de todo protesto. Também se encontrava ali Akim Akímitch, inimigo inato e verdadeiro de todos os alvoroços, que alteravam o curso regular do serviço e da moral. Aguardava em silêncio e muito tranquilo o fim do episódio, sem excitar-se absolutamente nada, e, pelo contrário, estava completamente convencido do triunfo infalível da ordem e da vontade dos superiores. Também lá estava Issai Fomitch, tomado de extraordinária aflição, de nariz caído, escutando ávida e angustiosamente tudo quanto se dizia. Estava extraordinariamente desassossegado. Estavam também todos os polacos presidiários da classe baixa, que faziam causa comum com os nobres. Havia alguns indivíduos tímidos, russos, gente sempre tímida e apreensiva. Não se tinham atrevido a juntar-se aos demais e esperavam com tristeza em que acabaria a coisa. Finalmente, havia também alguns presos sempre severos e graves, gente corajosa. Estavam profundamente convencidos de que tudo aquilo era um absurdo e que dali só sairia algo de mau. Mas, no entanto, a mim parecia que eles se sentiam um pouco inseguros e que não tinham o aspecto de possuírem uma convicção absoluta. Embora compreendessem que tinham toda a razão pelo que respeitava à reclamação e que esperariam as consequências, não se consideravam como dissidentes, desertores da comunidade, que entregavam os seus companheiros à mercê do major do presídio. Andava por ali também Iólkin, aquele esperto camponês siberiano, condenado ao presídio por falsificação de moeda, e que tinha roubado a clientela de veterinário a Kulikov. O ancião dos velhos crentes de Staradúbovo também estava ali. Todos os cozinheiros, desde o primeiro até o último, permaneciam na cozinha, provavelmente convencidos de que faziam parte da administração e, por conseguinte, não estava certo que se pusessem contra ela.
— No entanto — comecei eu, dirigindo-me resolutamente a M*** —, tirando estes, quase todos os outros foram para a forma.
— Bom. E nós? — resmungou B***.
— Nós, se nos agregássemos, comprometer-nos-íamos cem vezes mais do que eles e, para quê? Je hais ces brigands.43 Mas passa-lhe pela cabeça que eles se vão sair bem da reclamação? Que gosto, meter-se numa empresa tão estúpida!
— Isto não dá nada — encareceu outro dos presos, um velho teimoso e azedo.
Almázov, que também estava ali, apressou-se a responder-lhe:
— A não ser que lhes deem umas quinhentas vergastadas, nada de bom sairá daqui.
— Aí está o major! — gritou não sei quem, e todos, avidamente, espreitaram pela janela.
O major chegava correndo, furioso, alterado, purpúreo, de dentes cerrados. Em silêncio, mas com decisão, aproximou-se da parte dianteira da forma. Nesses lances era verdadeiramente ousado e não perdia a presença de espírito. Aliás, estava quase sempre embriagado. Até o seu gorro gorduroso, com a banda cor-de-laranja, e as suas sujas jarreteiras de prata, tinham naquele momento algo de terrível. Atrás dele vinha o escriturário Diátiov, personagem de grande importância no nosso presídio e que tinha até influência sobre o major: um homenzinho pequeno, esperto, muito contente de si próprio e que não era mau. Os presos estavam contentes com ele. Atrás dele vinha o nosso suboficial, que pelo visto já devia ter ouvido a mais feroz reprimenda e ainda se esperava outra dez vezes pior. Os presos que, segundo parece, estavam de cabeça descoberta já desde o momento em que tinham mandado chamar o major, endireitaram-se e perfilaram-se; deram um passo em frente e depois ficaram firmes no seu lugar, esperando a primeira palavra, o primeiro grito do alto chefe.
Não se fez esperar: à segunda palavra, o major rugiu a plenos pulmões, até com uma espécie de gemido, desta vez: estava furioso. Da nossa janela nós pudemos ver como corria pela dianteira da forma, como arremetia contra um ou outro e o interrogava. Mas não podíamos ouvir as suas perguntas nem as respostas dos presos. Apenas o ouvíamos gritar, guinchando:
— Rebeldes! Vergastas! Instigadores! Tu, instigador! Tu, instigador — dizia para algum.
A resposta não se ouviu. Mas, passado um minuto, vimos como se destacava um preso e se dirigia para o corpo da guarda. Um minuto depois seguia-se um segundo e depois um terceiro.
— Todos castigados! Eu vos direi! Quem é que está aí na cozinha? — guinchou quando nos viu pela janela aberta. — Aqui, todos! Enxotem-nos imediatamente para aqui!
O escriturário Diátlov dirigiu-se a nós, para a cozinha. Na cozinha disseram-lhe que estes não tinham aderido ao motim. Retirou-se imediatamente e foi comunicá-lo ao major.
— Ah, não aderiram! — exclamou ele, dois tons mais abaixo, visivelmente satisfeito. — Tanto faz. Todos para cá!
Saímos. Eu senti que tínhamos vergonha de sair daquela maneira. E saímos todos de cabeça baixa.
— Ah, Prokófievitch! Iólkin também! E tu, Almázov... Ponham-se aqui, à parte, ponham-se aqui, façam um grupo — disse-nos o major um tanto precipitadamente, mas com voz mais suave, olhando-nos afetuosamente. — M... ki, tu também aqui... Bem, toma nota, Diátlov. Toma nota já de todos: os contentes para um lado, os descontentes para outro. De todos, desde o primeiro até o último. E depois leva-me a relação. Hei de instaurar um processo a todos! Eu vos direi, tunantes!
Aquilo da relação produziu o seu efeito.
— Nós, contentes! — exclamou de repente uma voz rouca no grupo dos sublevados, mas não com muita decisão.
— Ah, contentes! Quem é que está contente? Quem é que está contente? Que se mostre!
— Contentes, contentes! — acrescentaram várias vozes.
— Contentes! Isso quer dizer que foram instigados. Isso quer dizer que há instigadores, rebeldes. Pois pior para eles!
— Senhor, que é isto? — gritou uma voz de entre o grupo.
— Quem, quem é que deu esse grito? — enfureceu-se o major dirigindo-se para o lado onde tinha soado a voz. — Foste tu que gritaste, Rastorguéiev? Para o corpo da guarda!
Rastorguéiev, um rapaz gordo e alto, destacou-se do grupo e encaminhou-se imediatamente para o corpo da guarda. Não fora ele quem gritara; mas, como o tinham nomeado, absteve-se de protestar.
— Revoltaste-te por causa do rancho! — gritou-lhe o major. — Pois deixa estar, meu gordo, que durante três dias não... Eu vos direi! Vamos lá a ver os que estão contentes que avancem!
— Contentes, excelência! — clamaram sombriamente umas dez vozes. Os outros, teimosos, calavam-se. Mas isso era o suficiente para o major. Pelo visto era-lhe urgente terminar satisfatoriamente o assunto quanto antes e, fosse como fosse, chegar a um acordo.
— Bem, com que então, agora, estão todos contentes — exclamou, atrapalhando-se. — Cá me queria parecer, cá me queria parecer. Houve instigadores. Não há dúvida de que havia instigadores — continuou, encarando com Diátlov. — E preciso averiguar tudo minuciosamente. Mas agora, agora, ao trabalho, que já é tempo! Que toquem o tambor!
Assistiu ao desfile. Os presos, silenciosos e tristes, encaminharam-se para o trabalho, pelo menos satisfeitos por saírem debaixo das suas vistas. Mas assim que acabou o desfile o major dirigiu-se imediatamente para o corpo da guarda e despachou os instigadores, afinal, sem muita severidade. Também tinha pressa. Um deles, segundo contaram depois, pediu-lhe perdão, e ele perdoou-lhe imediatamente. Era evidente que o major não se sentia muito seguro e talvez até tivesse medo. Um motim, apesar de tudo, é uma coisa séria; e embora a queixa dos presos, na realidade, não pudesse chamar-se motim, porque não a apresentaram ao chefe mais elevado, mas sim ao próprio major, no entanto não era nada de bom e era desagradável. O mais aborrecido era que se tivessem sublevado todos ao mesmo tempo. Era preciso abafar o caso fosse como fosse. Não tardaram a soltar os instigadores. No dia seguinte a comida melhorou, embora não por muito tempo. Nos primeiros dias o major visitou o presídio com mais frequência e achou que se praticavam irregularidades. O nosso suboficial andava preocupado e perplexo, como se não pudesse voltar a si do seu assombro. Quanto aos presos, durante muito tempo não puderam libertar-se completamente da sua inquietação, simplesmente, agora, não andavam agitados, como antes, mas sim silenciosos, um tanto perturbados e meditabundos. Alguns até baixavam a cabeça. Outros resmungavam, embora mal tocassem no assunto. Muitos troçavam em voz alta e raivosa, de si próprios, como se quisessem assim impor-se um castigo por causa do motim.
— Aí o tens, meu caro! Apanha-o, morde-o! — dizia um.
— Por causa disso de que te ris é que tens de trabalhar! — acrescentou outro.
— Sim; mas quem é que vai meter-se na boca do lobo? — observava um terceiro.
— Sem o garrote não eras capaz de fazer falar o nosso amigo, isso já se sabe. Ainda bem que nos açoitou a todos!
— Olha, pensa mais e fala menos, que tudo correrá melhor! — observou alguém com raiva.
— Ai, tu queres ensinar-nos? Então és o nosso mestre-escola...
— Ensino o que ensino.
— Mas quem és tu?
— Por agora, até esta data, tenho sido um homem; e tu, quem és?
— Um bandalho, é o que tu és!
— Bem, bem, já chega! Para que havemos de brigar? — gritaram aos contendentes, de todos os lados.
Nessa noite, isto é, no próprio dia do motim, quando voltei do trabalho, encontrei-me com Pietrov atrás dos alojamentos. Andava à minha procura. Aproximando-se de mim, murmurou ao meu ouvido qualquer coisa no gênero de duas, três exclamações vagas; mas em seguida calou-se, ficou abstrato e pôs-se a caminhar maquinalmente ao meu lado. Tudo isso me impressionou bastante e pareceu-me que Pietrov podia dar-me algumas explicações.
— Diga-me, Pietrov — perguntei-lhe —, os seus não estão aborrecidos conosco?
— Quem haveria de estar aborrecido? —, perguntou ele, como se despertasse.
— Os presos, conosco... com os nobres.
— E por que haveriam de estar aborrecidos?
— O homem, por não termos aderido ao motim.
— Mas por que haveriam os senhores de aderir ao motim? — interrogou-me, como se se esforçasse por compreender-me. — Os senhores comem por sua conta.
— Ah, meu Deus! Mas, entre vocês, também alguns comem por sua conta e, no entanto, aderiram ao motim. E nós deveríamos tê-lo feito também por... camaradagem.
— Mas em que somos camaradas, nós e os outros? — inquiriu, atônito.
Eu me apressei a olhar para ele. Era evidente que não me compreendia, que não compreendia o que eu pensava. Eu, em compensação, compreendia-o perfeitamente naquele momento. Pela primeira vez um pensamento que até então vagamente penetrara na minha imaginação, e não me deixava em paz, iluminou-se-me definitivamente e, de repente, compreendi aquilo que até então só mal adivinhara. Compreendi que eu nunca seria ali considerado como um companheiro, que seria um preso à parte, embora estivesse ali pelos séculos dos séculos e ainda que pertencesse à seção especial. Mas ficou-me particularmente gravado na memória o gesto de Pietrov naquele instante. Na sua pergunta “Em que somos camaradas, nós e os senhores?” vibrava tão sincera ingenuidade, tão cândido assombro... Pensei: “Não haverá nestas palavras algo de ironia, de má intenção, de troça?” Mas não havia nada disso; havia simplesmente que não éramos companheiros e nada mais. Tu vais pelo teu caminho e nós, pelo nosso; tu tens as tuas coisas e nós, as nossas.
E, de fato, eu costumava pensar que, depois do levante, eles acabariam simplesmente por dar cabo de nós e não nos deixariam com vida. Pois não se deu nada disso; nem a mais leve censura, nem o mais simples tom de queixa chegamos a ouvir, tampouco juntaram nenhuma malignidade especial à do costume. Riram-se simplesmente de nós, na ocasião, e nada mais. No fim de tudo também não se aborreceram de maneira nenhuma com aqueles que não quiseram aderir ao levante e ficaram na cozinha, nem tampouco com os que se apresentaram a dizer que estavam contentes. Também não compreendia nada disto. Sobretudo este último fato, não podia compreendê-lo.
COMPANHEIROS
A mim, sem dúvida que me atraíam mais os meus; isto é, os nobres, sobretudo nos primeiros tempos. Mas dos três ex-nobres russos que havia no presídio (Akim Akímitch, o alcoviteiro A... v e aquele que era tido por parricida), eu só convivia e falava com Akim Akímitch. Confesso que me aproximava de Akim Akímitch com desespero, em instantes do maior acabrunhamento, e quando já não tinha ninguém a quem dirigir-me senão a ele. No capítulo anterior tentei classificar todos esses indivíduos em categorias; mas agora, que acabo de recordar Akim Akímitch, penso que se pode acrescentar ainda outra categoria. E era ele só que cabia nessa categoria de presos. Refiro-me à... categoria de presos perfeitamente indiferentes. Perfeitamente indiferentes, isto é, daqueles para os quais tanto lhes faria viver em liberdade como no presídio, não os havia entre nós, é claro, nem poderia haver; mas Akim Akímitch parecia constituir uma exceção.
Adaptara-se ao presídio como se tivesse de passar toda a vida nele; mantinha tudo ordenado à sua volta, a começar pelo colchão, pela almofada, pelos seus utensílios de cozinha, como para muito tempo. Mal se notavam nele sinais do bivaque, de provisoriedade. Ainda lhe restavam muitos anos para viver no presídio; e quase nunca pensava na sua saída dali. Mas se estava resignado com a realidade, é claro que não o estava de coração, mas talvez só por disciplina, o que, afinal, vinha a ser o mesmo para ele. Era um homem bom e ajudou-me muito no princípio, com os seus conselhos e com alguns pequenos serviços; mas às vezes, sem querer o confesso, inspirava-me, particularmente nos primeiros tempos, uma vaga, desmedida tristeza, que vinha agravar bastante a minha melancólica disposição de espírito. Mas era essa tristeza que me impelia a falar dele. Uma pessoa, às vezes, sente-se ávida de uma palavra viva, seja qual for, afetuosa, impaciente, maldosa; ao menos queixar-nos-íamos juntos da sorte; mas ele se calava, pegava nas suas lanternas e punha-se a falar de que no ano tantos tiveram uma revista, e de quem era o chefe da divisão, qual era o seu nome e sobrenome, e de se ficara satisfeito ou não com a tal revista e de como tinham sido bem dados os tiros em sinal de encontro etc. E tudo isso com uma vozinha tão uniforme, tão monótona que parecia o gotejar da água. Poderia dizer-se que ele não se entusiasmava, absolutamente nada, quando me contava que, por felicidade sua, não sei em que assunto, no Cáucaso, o julgaram digno de receber a condecoração da Ordem de santa Anna. A sua voz revestia-se nesse momento apenas de uma gravidade e solidez extraordinárias; descia de um tom até chegar ao do mistério, quando pronunciava as palavras santa Anna e permanecia depois particularmente silencioso e sério durante três minutos. Nesse primeiro ano eu tinha já instantes absurdos nos quais, sem saber por quê (e sempre de repente), começava a sentir ódio contra Akim Akímitch, e, em silêncio, amaldiçoava a minha sorte por me ter cabido um lugar ao seu lado, nas esteiras, cabeça com cabeça. Quase sempre, passada uma hora sobre esse sentimento, já eu me recriminava por causa daquilo. Mas isso foi somente no primeiro ano; depois reconciliei-me mentalmente, de uma forma completa, com Akim Akímitch, e fiquei aborrecido das minhas tolices anteriores. Lembro-me de que, exteriormente, nunca me ri com ele.
Além desses três russos, no meu tempo havia também entre nós outros oito. Convivia com alguns deles e até com prazer; mas não da mesma maneira com todos. Os melhores deles eram doentios, exclusivos e rabugentos no mais alto grau. Com dois deles vim depois a cortar relações muito simplesmente. Cultos, só eram três: B... ski e o velho Ch... ski, o qual tinha sido antes, não sei onde, professor de matemática... um bom velhote, muito extravagante e, apesar da sua cultura, de vistas curtas. M... ski e B... ski eram completamente diferentes. Com M... ski entendi-me sempre muito bem, desde o primeiro momento. Nunca me zanguei com ele, respeitava-o; mas, tomar-lhe amizade, tomar intimidade com ele, nunca me foi possível. Era profundamente desconfiado e maldoso, embora soubesse admiravelmente dominar-se. Mas embora isto seja um grande dom, eu não simpatizava com ele; pressentia que jamais ele abriria o seu coração a alguém. Aliás, pode ser que eu estivesse enganado. Era um temperamento enérgico e de uma natureza nobilíssima. A sua habilidade e cautela extraordinárias, e até jesuíticas, no trato com as pessoas, revelava o seu recôndito, profundo ceticismo. E, no entanto, era uma alma que sofria precisamente por causa dessa duplicidade: ceticismo e fé profunda, inquebrantável, em algumas das suas convicções e esperanças particulares. Mas, apesar de toda a sua habilidade mundana, era inimigo irreconciliável de B*** e do amigo deste, T***. B... ski; era um ser doentio, um tanto propenso à tuberculose, excitável e nervoso, mas no fundo extremamente bondoso e até de alma generosa. A sua irritabilidade raiava às vezes por uma impaciência e volubilidade estranhas. Eu não pude suportar esse caráter e depois rompi todo o convívio com B***; mas, apesar disso, nunca deixei de estimá-lo; ao passo que com M*** não cheguei a discutir e, no entanto, nunca pude ganhar-lhe amizade. Passado pouco tempo de rompimento com B*** sucedeu que tive também de romper com T***, aquele mesmo rapaz do qual falei no capítulo anterior, ao descrever o nosso motim. Isso custou-me muito. Apesar de não ser um homem culto, T... ski era bom, enérgico, honesto, enfim. O caso resume-se a que ele gostava e respeitava tanto B... ski, e estava a tal ponto dominado por ele, que todos aqueles que disputavam com B... ski, considerava-os logo também seus inimigos. Segundo parece, mais tarde veio a zangar-se igualmente com M*** por causa de B... ski, embora se tivesse mantido firme por muito tempo. Aliás, todos eles estavam moralmente doentes, eram irritáveis e receosos. O que é compreensível; aquilo para eles era duro, muitíssimo mais duro do que para os outros. Estavam longe da sua pátria. Alguns tinham sido deportados por muito tempo, por dez, por 12 anos. Mas o mais importante era que olhavam com profundo desprezo todos os que os rodeavam; viam somente nos presos a parte bestial e não podiam nem queriam ver neles nem um só traço bom, nada de humano, o que é também muito compreensível. Foi o destino, a força das circunstâncias que os levaram a essa infeliz opinião. Era evidente que a tristeza os oprimia no presídio. Mostravam-se afetuosos para com os quirguizos, para com os tártaros, para com Issai Fomitch; mas, em compensação, evitavam o convívio com os outros presos. Só o velho crente de Staradúbovo lhes merecia pleno respeito. Por outro lado é interessante que nenhum dos presos, durante todo o tempo que eu permaneci no presídio, os tenha increpado pela sua origem, ou pela sua religião, ou pela sua maneira de pensar, como costuma fazer a gente de baixa condição no convívio com os estrangeiros, sobretudo com os alemães, embora raramente. No fim de contas, o que fazem com os alemães é rir-se; o alemão constitui qualquer coisa de profundamente cômico para a gente do povo. Com os nossos, os presidiários conduziam-se até respeitosamente, muito mais do que conosco, os russos, e nunca se metiam com eles. Mas eles, pelo visto, não queriam reparar nisso e torná-lo em consideração. Falei de T... ski. Era aquele que, quando os mudaram do seu primeiro lugar de deportação para o nosso forte, levou B... ski às costas durante todo o caminho, quando este, de saúde delicada e constituição fraca, se rendeu à fadiga, quase a meio da jornada. Antes, tinham sido deportados para I... gorsk. Diziam eles que lá tudo lhes tinha corrido muito bem; isto é, muito melhor do que no nosso forte. Mas aconteceu que lhes encontraram certa correspondência, no fundo completamente inocente, para outros deportados de outra povoação, e por isso foram os dois transferidos para o nosso forte, mais ao alcance das vistas do nosso comando superior. O seu terceiro camarada era Tch... ki. Até sua chegada, M... ki era o único no presídio. Como ele se aborrecia no primeiro ano da sua deportação!
Tch... ski era o tal velho que estava sempre rezando a Deus e do qual já falei. Todos os nossos presos políticos eram gente nova, alguns até muito novos. Tch... ski era o único que passava dos cinquenta. Não há dúvida de que era um homem honesto, mas um tanto extravagante. Os seus companheiros B... ski e T... ski não gostavam muito dele, e nem sequer lhe falavam, do que se justificavam dizendo que ele era teimoso e disparatado. Não sei até que ponto teriam razão. No presídio, como em todos os lugares semelhantes, onde os indivíduos se unem em grupos, não por gosto, mas à força, parece-me que se pode brigar e ganhar-lhes ódio mais depressa do que na vida livre. Muitas circunstâncias contribuem para isso. Aliás, Tch... ski era de fato um homem muito tolo, e talvez até antipático. Todos os seus outros companheiros andavam também um pouco afastado dele. Eu, embora nunca tivéssemos chegado a brigar, também não convivia muito com ele. Parece que conhecia aquilo que estudava, a matemática. Lembro-me de que se esforçou por explicar-me, no seu meio russo, não sei que sistema astronômico especial, da sua invenção. Disseram-me que publicara isso, não sei quando, mas que fizera sorrir o mundo científico. Tenho a impressão de que ele não estava completamente bom do juízo. Passava todo o dia rezando, de joelhos, e com isso conseguia o respeito de todo o presídio, que lhe foi muito útil até o último dia da sua vida. Morreu no hospital, à minha vista, em consequência de uma doença dolorosa. Aliás, o respeito dos presidiários já havia ganhado desde a sua primeira entrada no presídio, depois do episódio com o nosso major. Durante o trajeto de I... gorsk para o nosso forte, não os tinham rapado e a barba tinha-lhe crescido, de maneira que, quando se apresentaram pela primeira vez ao nosso major, este ficou furioso perante tal infração da disciplina, da qual, afinal, não tinham culpa.
— Mas que cara que trazem! — resmungou. — Parecem uns vagabundos, uns bandidos!
Tch... ski, que nessa altura não compreendia bem o russo e julgou que lhes perguntavam se eram vagabundos ou bandidos, respondera:
— Nós não somos vagabundos, mas sim presos políticos.
— O quê? Estás a fazer-te insolente? A fazer-te insolente? — vociferou o major. — Pois, então, para o corpo da guarda! Cem açoites, agora mesmo, neste mesmo momento!
O velho foi castigado. Estendeu-se, sem protestar, debaixo dos arrochos; mordeu as mãos e suportou o castigo sem um grito ou um queixume. Por essa altura, B... ski e T... ski já estavam no presídio, onde M... ski os esperava à porta, e correu a lançar-se nos seus braços, apesar de nunca os ter visto até então. Impressionados pela chegada do major, contaram-lhe o episódio de Tch... ski. Lembro-me de que M... ski me falou disso: “Eu estava fora de mim — dizia. — Não sabia o que fazia e tremia como se estivesse com febre. Esperei Tch... ski junto da porta. Devia vir diretamente do corpo da guarda, onde fora castigado. De repente, a porta abriu-se. Tch... ski, sem olhar para ninguém, de rosto pálido e lábios lívidos e trementes, passou por entre os presos que se tinham apinhado no pátio e já estavam a par de que tinham castigado um nobre;44 entrou no alojamento, dirigiu-se para o seu lugar e, sem dizer uma palavra, começou a rezar a Deus.” Os presos estavam espantados e até comovidos. “Quando eu vi aquele velho — dizia M... ski — de cabelos brancos, que deixara a mulher e o filho na terra, quando eu o vi de joelhos, suplicando e rezando agora, ignominiosamente... fui para trás dos alojamentos e durante duas horas fiquei como que alheado, não podia sair do meu espanto...” A partir daí os presos passaram a respeitar muito Tch... ski e eram muito atenciosos para com ele. Tinha-lhes agradado sobretudo o fato de ele não ter dado um só grito debaixo dos açoites.
No entanto é preciso dizer toda a verdade; não se pode julgar com justeza acerca da conduta seguida pelo comando na Sibéria, para com os deportados da nobreza, fossem eles o que fossem, russos ou polacos. Esse exemplo demonstra unicamente que é possível encontrar-se um homem infame, e não há dúvida de que esse homem infame poderá ser qualquer autoridade, e então, a sorte do deportado, se por acaso esse homem infame não sentir por ele uma estima particular, por força que há de ser horrível. Mas é impossível não reconhecer que os chefes supremos da Sibéria, dos quais depende o tipo de conduta de todos os outros chefes para com os deportados nobres, são muito diferentes, e aproveitam até em alguns casos a oportunidade para tratá-los com mais brandura do que às pessoas do povo. As causas disto são claras; em primeiro lugar, esses altos chefes são também nobres, eles próprios e, além disso, já tem acontecido que alguns nobres não se conformaram a estender-se debaixo das vergastas e se atiraram ao executor, e que daí resultaram horrores; e, finalmente, há 35 anos apareceu de repente na Sibéria um grande grupo de deportados nobres,45 e estes deportados, no decurso de trinta anos, souberam instalar-se e radicar-se em toda a Sibéria, e por isso o comando, devido a um velho hábito já inveterado, involuntariamente olhava no meu tempo os delinquentes nobres dessa categoria com olhos diferentes daqueles com que olhava para os outros deportados. Depois do alto comando, também os chefes inferiores se habituaram da mesma maneira, aceitando-a e acatando-a. Aliás, alguns desses chefes subalternos tinham umas ideias estúpidas, criticavam as disposições dos superiores e, com muita, com muitíssima frequência se teriam sentido bem satisfeitos se os deixassem proceder à sua vontade. Simplesmente não lho permitiam. Tenho motivos fortes para pensar assim e eis aqui a razão: a segunda categoria de presidiários, à qual eu pertencia, e que se compunha de presos do forte, sob comando militar, era incomparavelmente mais dura que as outras duas, isto é, do que a terceira (fabril) e do que a primeira (mineira). Era mais dura, não só para os nobres, mas também para todos os outros presos, precisamente porque o chefe e a estrutura dessa categoria eram inteiramente militares, muito semelhante às companhias correcionais da Rússia. Comando militar severo, regime mais apertado, sempre com as cadeias, sempre com sentinelas à vista, sempre debaixo de ferrolho; não havia tanto rigor nas duas primeiras categorias. Pelo menos era isso o que diziam todos os nossos presos, e havia entre eles alguns que conheciam bem o caso. Todos passariam com alegria para a primeira categoria, que a lei considerava a mais dura, e até muitas vezes sonhavam com isso. Das companhias correcionais da Rússia, todos os nossos que lá estiveram falavam delas com horror e afirmavam que não havia em toda a Rússia lugar mais duro do que as companhias correcionais dos fortes, e que a Sibéria era um paraíso comparada à vida que nelas se levava. Por conseguinte, se com um regime tão severo como o do nosso presídio, com um comando militar sob as vistas do próprio general governador e, finalmente, perante tais casos (que às vezes se davam), de haver alguns indivíduos subalternos, mas serviçais, que por ódio ou pelo desejo de igualdade no serviço estavam prontos a denunciar quem tivesse qualquer benevolência com algum preso dessa categoria... Se, em tal lugar, dizia eu, os presos nobres eram olhados com uns olhos um pouco diferentes daqueles com que eram vistos os outros presos, tanto mais benevolamente haviam de olhá-los na primeira e terceira categorias. Assim, pois, parece-me que no lugar em que eu estava podia, a este respeito, avaliar de toda a Sibéria. Todos os rumores e boatos que chegaram até mim, a respeito do caso, de deportados das primeira e terceira categorias, confirmavam a minha dedução. No fundo, os chefes do presídio olhavam-nos a todos nós, os nobres, com muito mais atenção e cuidado. Tolerância conosco, a respeito do trabalho e da maneira de viver, não havia nenhuma; os mesmos trabalhos, as mesmas cadeias, os mesmos ferrolhos, enfim, tudo igual ao tratamento que tinham os outros presos. Era mesmo impossível aliviarem-nos. Sei que nessa cidade, num passado ainda próximo, tinha havido tantos delatores, tantas intrigas, tantos que se atiravam mutuamente veneno, que o comando, naturalmente, temia as denúncias. E que denúncia poderia ter existido mais terrível, nesse tempo, que a de que se tinham condescendências com os presos da referida categoria? De fato, todos tinham medo, e nós vivíamos nas mesmas condições que os outros presos, embora os castigos corporais constituíssem, relativamente, uma exceção. Para dizer a verdade, seria com muito gosto que nos teriam açoitado se tivéssemos incorrido em qualquer falta. Assim o exigiam o dever do serviço e a igualdade perante os castigos corporais. Mas, açoitarem-nos à toa, levianamente, não nos açoitavam; em compensação, os presos do povo eram objeto de um tratamento precipitado, nesse sentido, especialmente da parte de alguns chefes subalternos, habituados a porem e disporem de tudo à sua vontade. Fomos informados de que o comandante, ao saber do episódio do velho Tch... ski, mostrou claramente o seu desgosto perante o major e admoestou-o para que, daí por diante, procurasse refrear a mão. Foi o que todos me contaram. Também sabiam entre nós que o próprio governador-geral, que tinha confiança no nosso major e em parte lhe tinha também amizade, por ser homem de algumas aptidões, quando soube dessa história também o admoestou. E o nosso major não se esqueceu dessas admoestações. Assim, por exemplo, de boa vontade teria procedido contra M***, ao qual não podia ver por causa das calúnias de A... v; mas nunca pôde mandar açoitá-lo, por mais pretextos que inventasse, por mais que o perseguisse e espionasse. A história de Tch... ski espalhou-se rapidamente por toda a cidade e a opinião geral era hostil ao major; muitos o censuravam e alguns até tinham manifestações hostis. Lembro-me agora também do meu primeiro encontro com o major. A nós, isto é, a mim e a outro deportado nobre, em cuja companhia entrei no presídio, já em Tobolsk nos tinham inspirado medo as histórias referentes ao caráter azedo daquele homem. Uns deportados nobres que ali residiam, depois de terem cumprido já os seus 25 anos de deportação, acolheram-nos com profunda simpatia e conviveram conosco todo o tempo que permanecemos na estação de transportes; puseram-nos de sobreaviso contra o nosso futuro chefe e prometeram-nos fazer todo o possível, por meio dos seus conhecimentos, para nos defender da sua perseguição. De fato, três filhas do general-governador, que acabavam de chegar da Rússia e se hospedaram em casa de seu pai, receberam uma carta deles, e pelo sim, pelo não foram falar com ele a nosso favor. Mas que podia ele fazer? Limitou-se a dizer ao major que fosse um pouco mais comedido. Às três da tarde, nós, isto é, eu e o meu companheiro, chegamos àquela cidade, e as sentinelas levaram-nos diretamente à presença do nosso senhor. Ficamos à espera dele no vestíbulo. Entretanto mandaram também chamar o suboficial. Mal este apareceu, surgiu também o major. A sua cara corada, borbulhenta e maldosa provocou-nos uma impressão extremamente desagradável; era como se uma aranha furiosa se lançasse, rápida, sobre uma pobre mosca que tivesse caído na sua teia.
— Como te chamas? — perguntou ao meu companheiro. Falava depressa, de maneira cortante, entrecortada, e, pelo visto, queria impor-se-nos.
— Fulano de tal.
— E tu? — prosseguiu, encarando-me e fixando-me com os óculos. — Suboficial! Levem-nos imediatamente para o alojamento, que lhes rapem meia cabeça no corpo da guarda e ponham-lhes as cadeias já amanhã. Que capotes são esses? — perguntou, de repente, reparando nos capotes pardos com rodelas amarelas nas costas, que nos tinham entregado em Tobolsk e com os quais nos tínhamos apresentado perante os seus olhos perspicazes. — É uma nova moda! Com certeza que é uma nova moda... mas só em projeto... de Petersburgo... — disse, sacudindo-nos, alternadamente. — Não trazem nada consigo? — inquiriu de repente, dirigindo-se ao guarda que nos tinha conduzido.
— Um fato privativo, excelência — respondeu o guarda, que se perfilou imediatamente, com um pequeno tremor. Todos o conheciam; todos tinham ouvido falar dele; a todos inspirava receio.
— Tirem-lhes tudo. Deixem-lhes só uma muda de roupa branca, mas branca; se trouxerem de cor, recolham-na. Tudo o mais será vendido em hasta pública. O dinheiro, para a caixa. Os presos não possuem nada próprio — continuou, olhando-nos com severidade. — Vamos a ver se se portam bem! Que eu não chegue a saber! Senão... cas-ti-go cor-po-ral! Pela falta mais insignificante... chi... ba... tas!
Toda essa noite estive quase doente, por causa desse acolhimento, devido à falta de hábito. Além disso essa impressão agravava-se com tudo quanto via no presídio; mas já falei da minha entrada no presídio.
Dizia eu há pouco que não se atreviam a ter condescendência alguma nem tolerância para conosco no trabalho perante os outros presos. No entanto, uma vez experimentaram tê-la; durante três meses completos, eu e B... ski íamos para a secretaria dos engenheiros, na qualidade de escriturários. Mas isto fazia-se às escondidas e foi coisa do chefe de engenheiros. Isto é, todos aqueles que deviam sabê-lo, sabiam-no, simplesmente, fingiam ignorá-lo. Isso aconteceu durante o tempo do comandante G... v. O tenente-coronel G... kov parecia um anjo descido dos céus; mas esteve por pouco tempo — se bem me lembro, não esteve entre nós mais de meio ano, pode até ser que menos —, e voltou para a Rússia deixando uma extraordinária impressão em todos os presos. Idolatravam-no, se se pode empregar aqui essa expressão. Não sei o que ele fazia, mas conquistava-os logo à primeira vez. “Um pai, um verdadeiro pai”!, diziam constantemente os presos durante o tempo que ele dirigiu a seção de engenharia. Segundo parece, era grande boêmio. De mediana estatura, com um olhar penetrante, cheio de firmeza. Mas ao mesmo tempo era carinhoso com os presos, quase brando e, de fato, gostava literalmente deles como um pai. Por que amaria ele tanto os presos? Não sei dizê-lo; mas o certo é que não havia um preso a que ele não dissesse uma palavra afetuosa, jovial, e com o qual não se risse e gracejasse, e sobretudo, não havia nisto uma ponta de superioridade, nada que revelasse desigualdade ou pura condescendência de superior. Era o nosso companheiro, o nosso homem, no mais alto grau. Mas, apesar de toda essa sua instintiva democracia, nem uma só vez os presos tiveram a menor falta de respeito ou a menor familiaridade para com ele. Pelo contrário. Simplesmente, a cara dos presos iluminava-se cada vez que o encontravam e, tirando o gorro, quedavam-se a olhá-lo, sorrindo, quando o viam chegar. E se parava a falar com eles, era como se ele lhes oferecesse um presente. Há indivíduos assim, populares. Olhava como uma criança, andava direito, à vontade. “Uma águia!”, costumavam dizer os presos falando dele. Não há dúvida de que não podia aliviar a sua sorte, não há dúvida que não podia; regia apenas os trabalhos de engenharia, os quais, até noutros comandos, se ajustavam a um regime legal perpétuo, estabelecido de uma vez para sempre. Talvez que só, ao encontrar por casualidade um grupo trabalhando e ao ver que a tarefa já estava feita costumasse perdoar o resto do tempo e mandasse os homens para casa antes do toque do tambor. Mas gostava da confiança dos presos, da ausência de exigências mesquinhas e de minudências incomodativas, da ausência absoluta de algumas formas ofensivas no trato com os superiores. Se ele tivesse perdido mil rublos... penso que o maior ladrão de entre os nossos, se os tivesse encontrado, lhos teria restituído. Sim, estou convencido de que faria isso. Com que profunda comoção souberam os presos que o seu comandante-águia estava mortalmente zangado com o nosso major! Isso deu-se no primeiro mês em que ele esteve ali. O nosso major tinha sido seu companheiro de armas não sei quando. Depois encontraram-se como amigos, após uma longa separação, e andaram os dois na boêmia. Mas, de repente, cortaram relações... Brigaram e G... kov tornou-se o seu mortal inimigo. Soube-se também que se tinham batido, nessa ocasião, o que podia acontecer com o nosso major, que se azedava com muita frequência. Quando os presos souberam disso, a sua alegria não teve limites. “Como é que o Oito Olhos podia viver em paz com ele! É uma águia, ao passo que o nosso...” De maneira geral, acrescentavam expressões impróprias para serem escritas. Demonstravam o maior interesse em saber qual dos dois é que sovara o outro. Se os boatos acerca da sua briga tivessem saído falsos (o que poderia muito bem ter acontecido), os nossos presos teriam sentido um grande desgosto. “Não, é verdade que o comandante é que levou a melhor”, diziam. “É pequeno, mas esperto, obrigou-o a meter-se debaixo da cama.” Mas passado pouco tempo, G... kov partiu, e os presos ficaram consternados. Os nossos comandantes de Engenharia eram muito bons, mas, enquanto e estive no presídio, mudaram-nos por três ou quatro vezes. “Todos juntos não valiam o outro!”, diziam os presos. “É uma águia, uma águia e um protetor!” O tal G... kov gostava de todos os nobres e por fim mandou-nos algumas vezes, a mim e a B***, para as secretarias. Mas quando ele partiu isso ficou mais bem regularizado. Havia um dos engenheiros que mostrava muita simpatia por nós. Íamos para lá, copiávamos documentos e começávamos a melhorar a letra quando, inesperadamente, ele recebeu ordem do alto comando para sermos imediatamente reintegrados nos nossos trabalhos anteriores — alguém lhe levara a notícia. Aliás, não ficamos muito desgostosos com isso: a secretaria começava já a fartar-nos. Depois, durante dois anos quase seguidos, fui sempre com B... ski para os mesmos trabalhos, geralmente para a oficina. Conversava com ele, falava-lhe das minhas esperanças e convicções. Era um bom homem; mas as suas ideias eram às vezes muito estranhas e pessoais. Observam-se frequentemente, em certo gênero de indivíduos, ideias completamente paradoxais. Mas sofreram tanto por causa delas, pagaram-nas tão caro, que se lhes torna doloroso desprenderem-se delas e quase impossível. B... ski ficava sentido com qualquer objeção e refutava-a com violência. Aliás, pode ser que, em muitas coisas, tivesse mais razão do que eu, não sei; mas finalmente deixamos de nos dar, o que muito me custou — tínhamos convivido muito um com o outro.
Entretanto, com o tempo, M... ski foi- e tornando cada vez mais triste e sombrio. Apoderou-se dele um grande pesar. Dantes, nos meus primeiros tempos de presídio, era mais expansivo, desabafava a sua alma mais a miúdo e mais completamente. Havia já três anos que ele estava no presídio quando eu para lá entrei. A princípio interessava-se muito pelo que tinha acontecido no mundo, do que não fazia a menor ideia, visto estar assim, no presídio; interrogava-me, escutava-me e comovia-se. Mas, com os anos, começou a fechar-se consigo, a esconder tudo no fundo do seu coração. As brasas cobriam-se de cinza. O seu mau humor aumentava de dia para dia. Je hais ces brigands, repetia-me com frequência, olhando os presos com cara de poucos amigos, os quais eu tinha tido oportunidade de conhecer mais de perto, mas sem que as minhas observações a favor deles o impressionassem. Não compreendia o que eu lhe dizia; aliás, às vezes concordava, distraidamente, mas no dia seguinte punha-se outra vez a repetir: Je hais ces brigands. De fato, costumávamos falar francês, e por causa disso, um capataz, um soldado de engenharia, Dranítchnikov, não sei por quê, deu em chamar-nos “enfermeiros”. M... skí só se animava quando se recordava da mãe. “É velha”, dizia-me, “gosta mais de mim do que de tudo no mundo; mas eu, aqui, não sei se ela ainda está viva ou se já morreu; já tinha sido bastante para a fazer sofrer saber que eu tinha sido condenado às chibatadas... M... ski não era nobre e, antes da deportação, sofrera um castigo corporal. Quando se lembrava disso, cerrava os dentes e fazia por olhar de revés. Nos últimos tempos deu para andar cada vez mais sozinho. Uma vez, de manhã, ao meio-dia, foi chamado ao escritório do comandante. Este o recebeu com um sorriso alegre:
— Muito bem, M... ski, vamos lá a ver: com que sonhou esta noite?
— Eu dei um pulo — contava M... ski quando voltou para junto de nós. — Foi como se o coração me quisesse saltar do peito.
— Sonhei que tinha recebido carta da minha mãe — respondeu.
— Trata-se de qualquer coisa de melhor, de melhor — exclamou o comandante. — Estás livre! A tua mãe pediu... e a sua súplica foi atendida. Aqui tens a sua carta e a ordem que te diz respeito. Agora mesmo sairás do presídio.
Voltou para junto de nós, pálido, ainda mal refeito da comoção. Nós felicitamo-lo. Fazia-nos dó, com as suas mãos trementes, frias. Muitos presos o felicitaram também e congratularam-se pela sua boa sorte.
Foi para a colônia e ficou na nossa cidade, onde lhe deram bem depressa um lugar. A princípio visitava-nos frequentemente no presídio, e quando podia comunicava-nos várias novidades. Interessavam-no sobretudo as de natureza política.
Dos outros quatro, isto é, sem contar com M... ski, B... ski e Tch... ski, dois eram ainda muito novos, condenados a penas breves, eram pouco instruídos, mas honestos, simples, francos. O terceiro, A... tchukóvski, era demasiado insignificante, a sua pessoa não oferecia nada de particular; mas o quarto, B... m, homem já avançado na idade, fazia a todos uma péssima impressão. Não sei como veio parar a essa categoria de presos e ele mesmo o negava. Tinha uma alma grosseira, ruim, com costumes e regras de merceeiro enriquecido à força de poupança. Não tinha a mínima instrução e não se interessava por coisa alguma, a não ser pelo seu ofício. Era pintor de paredes, mas pintor de grande talento. Não tardou que os chefes soubessem da sua habilidade e toda a cidade começou também a chamá-lo para pintar paredes e tetos. Em dois anos pintou quase todos os lugares oficiais. Os donos de prédios pagavam-lhe o seu trabalho e por isso vivia sem dificuldades. Mas o melhor de tudo era que mandavam outros presos para trabalhar com ele. Daqueles que o acompanhavam constantemente, dois aprenderam o seu ofício, e um deles, T... tchévski, acabou por pintar quase tão bem como ele. O nosso major da praça, que vivia também numa residência oficial, por sua vez requisitou B... m e mandou-lhe pintar todos os tetos e paredes. E dizem que, dessa vez, B... m se esmerou muito, de modo que nem em casa do general-governador pintara assim. A casa era de madeira, de um só andar, bastante estragada e suja por fora; mas, por dentro, ficou pintada como um palácio e o major estava entusiasmado. Esfregava as mãos e dizia que, agora, não tinha outro remédio senão casar-se: “Com uma casa destas, uma pessoa não tem outro remédio senão casar-se”, exclamava, muito sério. Cada vez estava mais satisfeito com B... m e com os que o tinham ajudado no seu trabalho. Esse trabalho durou um mês, ao todo. Durante esse mês o major mudou completamente de opinião a respeito de todos nós e começou a abrir-se com eles. Chegou ao extremo de, uma vez, chamar Tch... ski a sua casa.
— Tch... ski — disse —, eu te ofendi. Mandei-te açoitar sem razão, bem sei. Estou arrependido. Compreendes? Eu, eu, eu... estou arrependido!
Tch... ski respondeu-lhe que não compreendia.
— Não compreendes que eu, eu, o teu superior, te mandei chamar para pedir-te perdão? Não compreendes isto? Quem és tu, comparado a mim? Um verme! Menos do que um verme: um preso. Ao passo que eu sou major pela graça de Deus.46 Major! Não compreendes isto?
Tch... ski respondeu que compreendia.
— Bem, pois agora me reconcilio contigo. Mas compreendes isto, compreendê-lo bem, em todo o seu alcance? Serás capaz de compreender e de senti-lo? Pensa somente que eu, eu, sou major, e tu... etc.
Foi o próprio Tch... ski quem me contou esta cena. Havia pois, também, naquele homem bêbado, absurdo e anormal, um sentimento humano. Levando em conta as suas ideias e a sua educação, semelhante conduta podia quase considerar-se generosa. Aliás, pode ser que o fato de estar bêbado contribuísse muito para isso.
Os seus sonhos não chegaram a realizar-se: não se casou, apesar de estar absolutamente decidido a fazê-lo quando acabassem de aformosear-lhe a propriedade. Em vez disso teve de comparecer perante os juízes, os quais o intimaram a pedir a reforma. Todos os seus pecados antigos vieram à luz nessa ocasião. Parece que, antes, tinha sido chefe da Polícia naquela cidade... Esse golpe caiu sobre ele inesperadamente. Essa notícia causou uma alegria imensa no presídio. Foi um dia de festa, uma vitória. Diziam que o major resmungava como uma velha e que chorava. Mas isso de nada lhe serviu. Passou à categoria de aposentado, vendeu a sua parelha de cavalos cinzentos, depois todos os seus bens e ficou na miséria. Nós encontramo-lo depois, à paisana, com um sobretudo roto e um gorro com uma borla. Olhou os presos com ódio. Mas todo o seu poder desaparecera, agora que já não tinha farda. Com o uniforme era um flagelo, um deus. Com aquele sobretudo, ficava reduzido, de repente, a um zero absoluto, e parecia um criado. É extraordinário o que o uniforme representa para esses tipos.
A EVASÃO
Pouco tempo depois da destituição do nosso major, deu-se uma mudança radical no nosso presídio. Suprimiram os trabalhos forçados e, em vez disso, criaram uma companhia disciplinar sujeita a direito de guerra, segundo o modelo das companhias disciplinares russas. O que significava que deixaria de haver no nosso presídio deportados e condenados às galerias de segunda categoria. Por esse tempo começou a ter unicamente presos sujeitos a foro de guerra, isto é, indivíduos que não perdiam os seus direitos civis, soldados como todos os outros, simplesmente castigados, condenados a penas leves (até seis anos, no máximo), e que à sua saída voltavam outra vez para o seu batalhão, como antes. Aliás, os que voltavam para o presídio, por um segundo delito, eram castigados, como antes, a 12 anos. Mas já antes dessa inovação havia seções de presos de direito de guerra, mas que viviam juntamente conosco só por não haver outro lugar onde colocá-los. Agora todo o presídio se transformou numa seção dependente do direito de guerra. Escusado será dizer que os anteriores forçados, verdadeiros forçados civis, privados de todos os seus direitos, marcados e com meia cabeça rapada, continuaram no presídio até cumprirem completamente a sua pena; novos, não entraram, e aqueles aos quais faltava já pouco acabaram de cumprir e saíram, de maneira que, passados dez anos, não podia restar já no nosso presídio nem um só forçado. A seção especial continuou também no presídio, e para ela ainda mandavam de quando em quando réus graves do direito de guerra, até que se inauguraram na Sibéria os trabalhos forçados mais duros. De maneira que, para nós, na realidade a vida continuou como antes: a mesma comida, os mesmos trabalhos e quase o mesmo regime, a não ser terem mudado os chefes. Nomearam um stabsoffizer, um chefe de companhia, e, além destes, quatro tenentes encarregados, por turno, do serviço de guarda no presídio. Suprimiram também os inválidos, em cujo lugar puseram 12 suboficiais e um vigilante. Dividiram-nos em seções de dez homens cada uma, para as quais nomearam outros tantos cabos, de entre os presos, claro que só nominalmente e escusado será dizer que Akim Akímitch foi imediatamente nomeado cabo. Toda esta nova organização e todo o presídio, com todos os seus funcionários e presos, ficaram sujeitos, como dantes, à jurisdição do comandante, como chefe superior. Foi isto o que aconteceu. É claro que os presos, a princípio, ficaram bastante revoltados: comentavam, faziam prognósticos e perguntavam pormenores acerca dos novos chefes, mas quando viram que, na realidade, tudo continuava na mesma, acalmaram-se imediatamente, e a nossa vida foi decorrendo como antes. O principal era que todos se viam livres do antigo major; parecia que todos respiravam e erguiam a cabeça. Desaparecido esse espantalho, todos sabiam agora que, em caso de necessidade, podiam dirigir-se ao chefe, que, quando muito por engano, poderia castigar um justo por um pecador. Também continuava a vender-se aguardente, tal como antes e nas mesmas condições, apesar de os antigos inválidos terem sido substituídos por suboficiais, os quais eram, na sua maioria, homens morigerados e inteligentes, que compreendiam a sua situação. Aliás, alguns deles mostraram a princípio tendência para se fazerem fanfarrões e, sem dúvida por inexperiência, julgaram que podiam tratar os presos da mesma maneira que os soldados. Mas até estes não tardaram a compreender a sua missão. Outros, que tardaram mais a compreendê-la, foram na verdade os presos que lha ensinaram. Houve lições bastante duras. Por exemplo, agarravam um suboficial, embebedavam-no e depois demonstravam-lhe, de uma maneira especial, naturalmente, que tinha bebido juntamente com eles, e que, portanto... Tudo isso fez os suboficiais verem, impávidos, ou melhor, esforçarem-se para não ver como eram introduzidas as vasilhas e vendida a aguardente E mais: passaram a ir ao mercado, como os antigos inválidos e traziam tortas, carne de vaca e outras coisas a mais para os presos; isto é, tudo aquilo que podiam, sem responsabilidade maior. Por que introduziram essas inovações, por que estabeleceram a companhia correcional, isso é coisa que ainda hoje ignoro. Isto se deu já nos meus últimos anos de presídio. Mas ainda tive de viver durante dois anos sujeito ao novo regime.
Descrever toda essa vida, todos os meus anos de presídio? Isso não. Se a fosse escrever, pela sua ordem, consecutivamente, tudo o que aí aconteceu e tudo o que vi e experimentei nesses anos, naturalmente necessitaria escrever ainda um triplo ou um quádruplo número dos capítulos que já tenho escrito. Mas tal descrição acabaria finalmente por se tornar monótona, mesmo sem eu o querer. Esses capítulos seriam todos do mesmo gênero, e, sobretudo, o leitor já pode, pela leitura dos capítulos antecedentes, fazer uma ideia um tanto aproximada da vida presidiária na segunda categoria. O que eu queria era mostrar-vos o nosso presídio e tudo quanto aí passei durante esses anos por meio de um quadro compreensível e claro. Não sei se consegui esse objetivo. Em parte, não compete a mim apreciá-lo. Mas estou convencido de que posso acabar aqui. Além do que, às vezes, com estas recordações, me sinto triste. E, aliás, poderia eu também recordar-me de tudo pela sua ordem? Os últimos tempos parecem ter-se apagado da minha memória. Estou convencido de que muitas circunstâncias me esqueceram completamente. Lembro-me, por exemplo, de que todos esses anos, no fundo tão semelhantes, desfilaram uns atrás dos outros, tediosos, longos, tão monótonos como a água que, depois de uma chuvarada, continua a escorrer gota a gota sobre um teto. Lembro-me de que só uma apaixonada ânsia de ressurreição, de renovação, de uma nova vida, me fortaleceram na esperança e na ilusão. E, finalmente, fiz-me forte; esperava e contava os dias; e, apesar de ainda me faltarem mil, contava-os com prazer um a um; via chegar o fim de um dia e, quando chegava o seguinte, ficava contente por já não me faltarem mil dias, mas apenas 999. Lembro-me de que, apesar das centenas de companheiros, me encontrava numa horrível solidão, e acabei, finalmente, por adaptar-me a essa solidão. Moralmente solitário, passava revista a toda a minha vida passada; apercebia-me dos mais insignificantes por menores de tudo apreciava o meu passado, julgava a mim mesmo de maneira implacável e severa e havia até instantes em que dava graças ao destino por me ter deparado aquela solidão, sem a qual não me teria sido possível julgar-me a mim próprio, nem sequer àquele severo exame da minha vida pretérita. E que esperanças não enchiam então o meu coração! Eu pensava, decidia, jurava a mim próprio que daí por diante não se repetiriam na minha vida futura aqueles erros nem aquelas faltas em que dantes incorrera. Traçava um programa para todo o futuro e propunha-me firmemente a cumpri-lo. Aguardava, chamava, impaciente, pela liberdade; sentia a ansiedade de pôr-me outra vez à prova, numa nova luta. Às vezes assaltavam-me uma impaciência convulsiva... Mas custa-me agora evocar a recordação do meu estado de alma de então. Mas não há dúvida... tudo isto, só a mim interessa... Mas se escrevi tudo isto, que a mim se refere, é porque creio que todos me hão de compreender, que cada um o há de experimentar, se vier um dia dar a um presídio, na flor da idade e das suas energias.
Mas para que falar mais disso? O melhor é contar ainda mais qualquer coisa, para não terminar estes apontamentos de maneira demasiado repentina.
Lembro-me de que talvez haja quem pergunte se não seria possível fugir do presídio e se não fugiu algum preso durante todos esses anos. Disse que o preso que tinha já dois ou três anos de presídio, começava a deitar contas àqueles anos e, involuntariamente, concluía que era preferível cumprir os que faltavam, sem preocupações nem inquietações e, finalmente, estabelecer-se como colono. Mas essa ideia só nascia na cabeça dos presos condenados a penas leves. Mas os condenados a muitos anos estavam dispostos ao risco. No entanto, isso não se dava todos os dias. Não sei se teriam medo, se contariam especialmente com o caráter rígido, marcial, da vigilância, a posição da nossa cidade, que sob muitos aspectos o dificultava (estépico, aberta). Seria difícil dizê-lo. Penso que todas estas causas tinham a sua influência. De fato, fugir dali era difícil. E, no entanto, enquanto estive ali, deu-se um caso desses; houve dois que tomaram essa decisão e dois dos mais graves criminosos...
Na altura da destituição do nosso major... A... v (aquele que fazia de espião do presídio) viu-se completamente só, sem proteção. Era um indivíduo ainda novo, mas o seu caráter tinha-se fortalecido e tornou-se mais resoluto com os anos. Era, de maneira geral, um rapaz esperto, decidido e também muito inteligente. Embora continuasse espiando e imaginando vários ardis para ver se o punham em liberdade, para ver se não se deixava apanhar tão tola e impensadamente como antes, de tal maneira que teve de pagar a sua inépcia com a deportação. Também se dedicara um pouco, ali, à falsificação de passaportes, embora não possa afirmar isto com certeza absoluta. Isso foi o que me disseram os outros presos. Diziam que já trabalhava nisso quando entrava na cozinha do major da praça e, naturalmente, arranjava assim bons rendimentos. Em resumo: segundo parece, era capaz de decidir-se a tudo, contanto que mudasse de sorte. Eu tive oportunidade, casualmente, de conhecer até certo ponto a sua alma; o seu cinismo atingia uma insolência que revoltava e provocava uma repugnância invencível. Creio que, se a aguardente foi coisa do seu agrado e não tivesse outro meio de obtê-la senão matando alguém, infalivelmente o teria feito, desde que pudesse manter-se secreto, sem que ninguém soubesse. Tinha aprendido a fazer os seus cálculos no presídio. Foi assim que esse homem veio a fixar a sua atenção no preso da seção especial, Kulikov.
— Já falei de Kulikov. Já não era novo, mas era apaixonado, inquieto, forte, com muitas e diversas aptidões. Era enérgico e tinha gosto em viver; indivíduos destes, até na extrema velhice, desejam viver. E se eu me admirava por que entre nós não se registravam evasões, a pessoa em quem viria a pensar em primeiro lugar seria Kulikov. Mas Kulikov acabou por decidir-se. Quem, entre os dois, teria mais influência um sobre o outro: A... v sobre Kulikov ou Kulikov sobre A... v? Não sei, mas ambos eram dignos um do outro, e muito indicados para uma empresa dessa natureza. Tinham-se feito amigos. Tenho a impressão de que Kulikov contava sobre o fato de A... v ser nobre e pertencer à boa sociedade, o que prometia uma certa mudança nas futuras peripécias quando chegassem à Rússia. Sabe-se lá o que eles falariam e as ilusões que tinham; mas as suas ilusões deviam sair da rotina costumada da vagabundagem siberiana. Kulikov era histrião por natureza: podia desempenhar muitos e vários papéis da vida; podia prometer-se muito, sobretudo quanto a variedade. Tais indivíduos não podiam viver no presídio e combinaram fugir.
Mas evadir-se sem sentinela de escolta era impossível. Portanto, era preciso convencer uma sentinela. Num dos batalhões que guarneciam o forte, fazia serviço um polaco, homem enérgico e talvez digno de melhor sorte, já entrado em anos, valente, sério. Ainda novo, fugiu assim que entrou para o serviço, na Sibéria, levado por uma funda nostalgia da pátria. Foi apanhado, castigado e mantiveram-no dois anos nas companhias disciplinares. Quando foi reintegrado nas fileiras, reconsiderou e começou a servir conscienciosamente com todas as suas forças. Fizeram-no cabo para distingui-lo. Era homem amigo de honrarias, que se conhecia a si mesmo e sabia o que valia; olhava e falava como quem sabe o que vale. Via-o a miúdo, e falei muitas vezes com ele. Encontrei-o algumas vezes nesses anos, entre as nossas sentinelas. Os polacos também me falaram dele algumas vezes. Disseram-me que a sua antiga nostalgia se transformara em ódio encoberto, surdo, contínuo; que esse homem era capaz de tudo e Kulikov não se enganava quando o escolheu por companheiro. Chamava-se Koller. Chegaram a acordo e marcaram um dia. Era no mês de junho, nos dias de calor. O clima, nessa cidade, é bastante igual: no verão faz um tempo sempre quente, e isto favorecia a vagabundagem. É claro que nunca podiam ir a nenhum lado fora do forte: a cidade era aberta por todos os lados e, à sua volta, não havia bosques, numa grande extensão. Era preciso vestir-se com o trajo regional, e depois, desaparecer no subúrbio, sem ser visto, onde, havia já algum tempo, Kulikov tinha um refúgio. Não sei se se trataria daquela amante dos presos que vivia nos arrabaldes e que guardaria absoluto segredo. É lógico pensar que o tinham, embora, no fundo, nunca se tivesse chegado a descobrir. Nesse ano, num canto dos arrabaldes, tinha começado as suas atividades havia pouco uma bonita moça, chamada Vanhka, que fazia nascer grandes ilusões e, em parte, as converteu logo em realidade. Também lhe chamavam A Chama. Segundo parece, teve sua parte na empresa. Kulikov gastou o seu dinheiro com ela durante um ano inteiro. Os nossos rapazes saíram de manhã, para a contagem, e arranjaram-se de maneira que os enviaram, juntamente com o preso Chílkin, forneiro e gesseiro, para trabalhar num quartel vazio, cujos soldados estavam num acampamento havia já algum tempo. A... v, em companhia de Kulikov, foi até lá com ele na qualidade de trabalhadores. Koller encarregou-se de escoltá-los, mas, como eram necessárias duas sentinelas para os três, Koller, como mais antigo no serviço e como cabo, escolheu de boa vontade um soldadinho novo, com o pretexto de ensiná-lo e de treiná-lo no trabalho de sentinela. Pelo visto, os nossos fugitivos deviam ter já uma grande influência sobre Koller, visto terem conseguido convencê-lo, depois de tantos anos de serviço e de tão boa conduta nos últimos desses anos, e além disso sendo como era um homem inteligente, enérgico e calculista, a decidir-se a segui-los.
Entraram no quartel. Eram seis da manhã. Não havia mais ninguém ali senão eles. Depois de terem trabalhado durante uma hora, Kulikov e A... v disseram a Chílkin que iam à oficina, primeiro para falarem não sei com quem e depois para trazerem umas ferramentas de que precisavam. Era preciso ter cuidado com Chílkin, isto é, proceder com a maior naturalidade possível. Era moscovita, forneiro de profissão, da classe média de Moscou, esperto, astuto, inteligente, pouco falador. Aparentemente era um rapaz fraco, débil. Tinha nascido para usar toda a sua vida colete e americana, à moda moscovita; mas o destino dispôs as coisas de outra maneira e, depois de muitas andanças, acabou por vir parar para sempre ao presídio, à seção especial, isto é, à categoria dos mais ferozes criminosos militares. Até que ponto teria merecido este fim, não sei; mas nunca se lhe notava nenhum desgosto especial; portava-se pacificamente e de maneira regular, embora às vezes se embebedasse terrivelmente; mas até nessas circunstâncias se portava bem. É natural que não estivesse metido na combinação; mas tinha bons olhos. Concluiu-se que Kulikov devia ter-lhe dado a entender com um piscar de olhos que iam em busca de aguardente, que tinham escondido na oficina na tarde anterior. Isso comoveu Chílkin; deixou-os sair sem a menor suspeita e ficou só com o recruta, enquanto Kulikov, A... v e Koller se dirigiam aos arrabaldes.
Passou-se meia hora; os ausentes não voltavam e, de repente, Chílkin ficou perplexo, pôs-se a pensar. Começou a recordar: Kulikov tinha, naquele dia, qualquer coisa de estranho; A... v por duas vezes se pôs a cochichar com ele; pelo menos por duas vezes Kulikov fez-lhe sinais que não lhe escaparam. Lembrava-se de tudo agora. Também notara qualquer coisa em Koller; pelo menos, quando foi com eles, começou a dar instruções ao recruta sobre a maneira como devia conduzir-se na sua ausência, o que lhe pareceu um pouco estranho, pelo menos da parte de Koller. Em resumo: quanto mais aprofundava as suas recordações, tanto mais cresciam as suspeitas de Chílkin. Entretanto o tempo ia passando, eles não voltavam e a sua inquietação aumentava até limites extremos. Compreendia muito bem quanto se arriscava naquele assunto; podia atrair as suspeitas dos superiores. Podiam pensar que deixara sair os seus companheiros, por estar a par de tudo, em virtude de combinação recíproca; e se se demorasse a dar parte do desaparecimento de Kulikov e de A... v, essas suspeitas adquiriam maior probabilidade de verossimilhança. Não havia tempo a perder. De repente, lembrou-se de que, durante os últimos tempos, Kulikov e A... v tinham convivido muito; falavam frequentemente entre si, iam muitas vezes para trás dos alojamentos, longe de todos os olhares. Lembrou-se também do que já algumas vezes pensara acerca deles... Olhou com curiosidade para a sentinela, que bocejava, apoiada à espingarda e esgaravatava inocentemente o nariz com o dedo; de maneira que Chílkin não se dignou comunicar-lhe o seu pensamento e limitou-se a dizer-lhe que o seguiria até à oficina de engenharia. Era preciso perguntar na oficina se porventura não teriam estado ali. Mas ninguém os vira ali. Todas as dúvidas de Chílkin desapareceram. “Se tivessem ido beber para os arrabaldes, o que Kulikov fazia várias vezes — pensou Chílkin —, não teriam saído daquela maneira. Tê-lo-iam dito, pois, para isso, não valia a pena estar com segredos.” Chílkin deixou o trabalho e, sem voltar ao quartel, dirigiu-se para o presídio.
Era já perto das nove horas quando se apresentou ao feldwebel e lhe explicou o que se passava. O feldwebel ficou de sobrolho carregado e, a principio, não queria acreditar. É claro que Chílkin lho participou apenas como um receio, uma suspeita. O feldwebel chamou imediatamente o major. Este chamou imediatamente o comandante. Passado um quarto de hora já tinham sido tomadas todas as medidas necessárias para essa circunstância. Deram parte ao general-governador. Os presos eram delinquentes graves e, por causa deles, podia haver séria admoestação de Petersburgo. Devidamente ou não, A... v fora incluído entre os presos políticos; Kulikov pertencia à seção especial: isto é, ao número dos mais graves criminosos e, além disso, de direito de guerra. Até então ainda não havia exemplo de se ter evadido alguém da seção especial. Recordavam-se, efetivamente, que, por determinação do regulamento, cada preso da seção especial era enviado para o trabalho com duas sentinelas, ou pelo menos, com uma. Não se tinha observado essa regra. De maneira que o caso estava feio. Enviaram-se cavaleiros em direção a todas as aldeias, a todas as localidades circunvizinhas, para participar a evasão e deixar ai os sinais dos fugitivos. Enviaram-se cossacos em sua perseguição; escreveram-se ofícios para os distritos e governos vizinhos. Em suma: ficaram muito sobressaltados.
Entretanto, começava entre nós, no presídio, uma agitação de outra natureza. A medida que regressavam do trabalho, os presos iam-se pondo a par do sucedido. A noticia já se tinha espalhado entre todos, e todos a recebiam com uma alegria incomum, secreta. A todos parecia palpitar-lhe o coração. Além de que esse incidente vinha alterar a monotonia da vida no presídio, uma evasão do formigueiro e uma evasão como aquela revolvia as almas de todos e agitava nelas desejos não completamente esquecidos; a possibilidade de mudar de sorte tornava a fazer palpitar todos os corações... “Vejam como eles fugiram! E por que não?” E, perante esse pensamento todos se animavam e olhavam com olhos interrogativos para os outros. Pelo menos, todos repentinamente se puseram orgulhosos e começaram a olhar com altivez para o suboficial. As autoridades compareceram imediatamente ao presídio. O comandante veio também. Os presos sentiam-se corajosos e olhavam ousada mente, até com certo desprezo e com certa rígida, tácita solidariedade: “Nós cá, caramba, sabemos fazer as coisas.” Escusado será dizer que já tinham contado com a visita geral das autoridades do presídio. Contavam também que infalivelmente haveria investigações e já tinham escondido tudo. Sabiam que as autoridades, nestes casos, eram muitíssimo expeditas. Foi o que aconteceu então: houve um rebuliço enorme; revolveram tudo, revistaram tudo... e, é claro, não encontraram nada. Os presos foram para o trabalho da tarde com uma forte escolta. À noite, as sentinelas inspecionaram demoradamente o presídio, contaram os presos uma vez mais do que o costume, e enganaram-se duas vezes mais que do costume. Depois fizeram uma terceira contagem, de alojamento em alojamento... Em suma: houve uma grande comoção.
Mas os presos não perguntavam a razão daquilo. Mostravam-se todos muito altivos e, como costumava acontecer sempre em tais ocasiões, durante toda essa noite conduziram-se com extraordinário aprumo: “Não é escusado brincarem conosco.” Por seu lado, o chefe pensava: “Não haverá cúmplices dos fugitivos no presídio?” E mandava investigar, escutar o que os presos diziam. Mas estes se limitavam a sorrir: “Não é assunto para participar aos outros. Isso se faz com muita reserva e muita cautela, e só assim. Então Kulikov e A... v não são homens capazes de fazerem as coisas sem deixarem rastro? Fizeram-no magistralmente à chucha calada. São tipos capazes de passar por uma chaminé de bronze, de se esgueirar por uma porta fechada.” Em resumo: a fama de Kulikov e de A... v crescia a olhos vistos; todos se sentiam ufanos por eles. Sentiam que a sua façanha alcançaria a mais remota posteridade dos presidiários, que havia de sobreviver ao próprio presídio.
— São mestres! — diziam uns.
— Se calhar pensavam que não havia aqui quem fosse capaz de fugir! Ai, não, que não havia! — acrescentavam outros.
— Fugiram! — exclamava um terceiro olhando com uns ares de domínio à sua volta. — Houve quem fugisse! Que dizes a isto, bratiets?
Noutra ocasião, o preso ao qual fossem dirigidas essas palavras, teria infalivelmente respondido com altivez e sairia em defesa da sua honra. Mas agora contentou-se em resmungar: “Eu bem dizia que, de fato, nem todos são como Kulikov e A... v.”
— E afinal, meus amigos, verdadeiramente, por que estamos nós aqui? — atalhava um quarto que até então tinha estado calado, sentado modestamente ao pé da janela da cozinha, falando como se cantasse, impulsionado por um sentimento deprimente e ao mesmo tempo com um prazer secreto e segurando a face com a mão. — Por que estamos nós aqui? Não vivemos... como pessoa, morremos... e não somos cadáveres. Ah!
— Vê se descalças esse par de botas... Para que é esse...?
— Aí está Kulikov... — gritou um dos entusiastas, um criançola, de boca rubicunda.
— Kulikov! — acrescentou imediatamente outro, voltando-se para olhar com desprezo para o criançola — Kulikov!
O que queria dizer: “Mas por acaso abundam aqui os Kulikov?”
— Bom; e A... v, meus amigos, é esperto, caramba, é esperto!
— Toma! Esse é um finório! É capaz de engrolar Kulikov e de lhe fazer ver estrelas ao meio-dia!
— Sabe-se lá onde eles já vão, meus amigos!
E surgiram imediatamente discussões sobre a distância a que eles já iriam. E por que lado teriam saído? Por onde lhes seria mais fácil terem saído? E qual seria a aldeia mais próxima? Intervieram na discussão indivíduos que conheciam aqueles arredores. Escutaram-nos com curiosidade. Falavam dos habitantes das aldeias próximas e diziam que não eram gente de confiança. Nas imediações da cidade, a pessoa era interesseira; não davam auxílio aos presos, apanhavam-nos e entregavam-nos.
— O camponês destas terras não se presta a nada. É camponês e basta!
— É um camponês que não sabe o que quer!
— O siberiano é matreiro. Quem lhe cair nas mãos é degolado.
— Então os nossos...
— Tudo se reduz a saber quem pode mais. E os nossos não são qualquer coisa.
— Pois se não morrermos, haveremos de chegar a saber.
— E tu, que dizes? Achas que os apanham?
— Eu penso que, vivos, não os apanham! — junto dos entusiasmados, dando uma punhada na cabeça.
— Hum! Bem. Tudo depende da casualidade.
— Pois eu vou lhes dizer o que penso, meus amigos — exclamou Skurátov. — Se eu tornasse a ser vagabundo, não me apanhariam!
— A ti!
Começaram a rir enquanto alguns fingiam que nem sequer queriam ouvir aquilo. Mas Skurátov estava impetuoso.
— Não me apanhavam vivo! — acrescentou com energia. — Eu, meus amigos, já o tenho pensado muitas vezes e fico admirado comigo mesmo; asseguro-vos que me meteria em qualquer canto e que não me apanhavam.
— Acabavas por ficar cheio de fome e tinhas de ir pedir um pedaço de pão a um camponês.
Gargalhada geral.
— Qual pedaço de pão!
— Para que estás dando tanto à língua? És tão esperto que até vingaste a morte da vaca matando o teu tio Vássía, e por isso é que estás aqui.47
As gargalhadas arrefeceram. Os sérios olhavam com grande aborrecimento.
— Mentes! — gritava Skurátov. — Mikita mente nisso que diz de mim, e não só de mim, mas também do meu tio; mas é verdade que me complicaram a vida. Eu sou moscovita e desde pequeno que estou acostumado à vagabundagem. Quando eu andava aprendendo a ler e a escrever com o nosso subdiácono, em pequeno, costumavam puxar-me as orelhas: “Diz lá: “Senhor, tem piedade de nós, pela grandeza da tua misericórdia etc.” Mas eu ia e dizia: “Leva-me à polícia, senhor, pela grandeza da tua misericórdia etc.” Aí têm como eu era em pequeno!
Tornaram a ouvir-se risos. Mas que mais queria Skurátov? Não tardaram em deixá-lo, para voltarem às suas conversas sérias. Os velhos entendidos em evasões deram a sua opinião. Os mais novos e modestos contentavam-se em olhá-los e estender os pescoços para escutar. Tinha-se reunido uma grande multidão na cozinha, embora, é claro, não estivessem ali os suboficiais. Na sua presença, não se teriam posto a falar. Entre os que davam mostras de maior complacência, chamou-me a atenção um tártaro, Mámetka, de alta estatura, de rosto cheio, com uma figura muito cômica. Falava muito mal o russo e não percebia quase nada do que os outros diziam, mas estava ali e escutava, escutava com prazer.
— Então, Mámetka, yákchi?48 — perguntou-lhe Skurátov, para dizer alguma coisa, já que todos o repeliam.
— Yákchi! Oh, yákchi! — exclamou Mámetka, todo animado, fazendo uma careta a Skurátov com a sua cara grotesca. — Yákchi!
— Não os apanharam, yok?49
— Yok! Yok! — e Mámetka tornou a menear a cabeça e, desta vez, até mexeu as mãos.
— Quer dizer que um mente e o outro não desmente, não é verdade?
— Isso, isso, yákchi! — acrescentou Mámetka movendo a cabeça.
— Bem, então, yákchi!
E Skurátov, depois de ter dado um piparote no gorro de Mámetka e de lho atirar para cima dos olhos, saiu da cozinha na melhor das disposições, deixando o tártaro um pouco perplexo.
O regime de severidade no presídio e as enérgicas rusgas e pesquisas prolongaram-se por uma semana inteira, no presídio e nos arredores. Não sei como seria; mas os presos recebiam todas as notícias referentes às atividades das autoridades fora do presídio, imediatamente e com exatidão. Nos primeiros dias, todas as notícias referentes aos fugitivos eram favoráveis: nem boatos, nem sinais; tinham simplesmente desaparecido. Os presos limitavam-se a sorrir. Cessou toda a inquietação a respeito da sorte dos fugitivos.
— Não encontram nada, não apanham nenhum — diziam com satisfação.
— Levaram sumiço!
— Adeus, espera lá que eu vou ali e já venho!
Os presos sabiam que os camponeses de todos aqueles arredores se tinham posto em movimento e inspecionavam todos os lugares suspeitos, todos os bosques, todos os barrancos.
— É extraordinário — diziam os presos, troçando. — Com certeza que têm alguém que os esconde em sua casa.
— Deve ser isso — diziam outros. — São espertos, prepararam tudo com antecedência.
Iam ainda mais longe nas suas suposições; começaram a dizer que os fugitivos ainda deviam estar nos arredores, escondidos em alguma gruta, e lá continuariam até que passasse a agitação e o cabelo lhes crescesse. Estariam aí meio ano, um ano, e depois partiriam...
Resumindo: estavam todos numa disposição de espírito um pouco romântico. Mas, de repente, passados oito dias sobre a evasão, correu o boato de que tinham encontrado uma pista. Escusado será dizer que o absurdo boato foi imediatamente repudiado com desprezo. Mas ainda nessa noite o boato foi confirmado. Os presos, a princípio, não queriam acreditar. Mas no outro dia de manhã começaram a dizer na cidade que os tinham apanhado, que iam trazê-los. Depois do rancho, souberam também outros pormenores: tinham sido detidos a setenta verstas dali, não sei em que aldeola. Até que, finalmente, se receberam notícias mais concretas. O feldwebel, depois de se ter avistado com o major, anunciou definitivamente que nessa mesma noite os trariam diretamente para o corpo da guarda, à entrada do presídio. Não era possível duvidar. É difícil descrever a impressão que a notícia causou nos presos. A princípio pareceu que todos ficavam aborrecidos; depois ficaram consternados. Depois deram mostras de levarem o caso à conta de brincadeira. A princípio alguns, quase todos, exceto uns tantos indivíduos sérios e moderados, que pensavam por sua própria cabeça e que não era possível demover com brincadeiras, puseram-se a sorrir, mas então já não à custa dos perseguidores mas sim dos detidos. Olhavam com desprezo para os aturdidos e ficavam calados.
Em resumo: na mesma medida em que antes enalteceram Kulikov e A... v, agora os rebaixavam e até com prazer. Parecia que eles os tinham ofendido a todos em qualquer. coisa: Diziam, com um ar depreciativo, que eram muito comilões, que não eram capazes de suportar a fome e que tinham ido à aldeia pedir pão aos camponeses. O que, para um vagabundo, representava o extremo da vileza. Mas esses ditos e contos não eram verdadeiros. Tinham ido seguindo o rasto dos fugitivos; internaram-se no bosque e rodearam este por todos os lados com gente. E quando viram que não lhes restava já possibilidade de salvação, entregaram-se. Não tinham mais nada a fazer.
Mas quando de fato os trouxeram à noite, atados de pés e mãos, com guardas, todo o presídio se empilhou de encontro à paliçada para ver o que fariam com eles. É claro que não viram nada, a não ser as carruagens do major e do comandante, junto ao corpo da guarda. Os fugitivos foram encerrados num calabouço, postos com ferros, e no dia seguinte compareceram perante os juízes.
As troças e os desprezos dos presos cessaram então. Abandonaram a sua atitude anterior. Tomaram conhecimento do lance com mais pormenores, souberam que os fugitivos não puderam fazer outra coisa senão renderem-se, e puseram-se todos a seguir com paixão o desenlace do julgamento.
— Vão dar-lhes mil — diziam uns.
— Qual mil? — diziam outros. — Matam-nos com os paus! A A... v, pode ser que ainda lhe deem mil, mas ao outro matam-no, meu amigo, porque é da seção especial.
No entanto não acertaram. A A... v deram-lhe ao todo quinhentos: levaram em conta a sua anterior conduta satisfatória e ser essa a sua primeira falta. A Kulikov deram-lhe, segundo parece, 1.500. Castigaram-no com bastante brandura. Eles, como pessoas experimentadas, não se contradisseram nem num único ponto perante os juízes; declararam claramente terem fugido diretamente do forte, sem saberem para onde. De todos, o que mais compaixão me inspirava era Koller; este perdia tudo, as suas últimas esperanças; recebeu mais do que os outros, dois mil, e encarceraram-no, mas não no nosso presídio. A... v foi castigado com brandura, com delicadeza, para o que contribuíram os médicos. Mas ele mostrou coragem e disse em voz alta, no hospital, que agora que já tinha recebido o batismo, estava disposto a tudo e não havia de demorar-se ali. Kulikov portou-se como sempre; de uma maneira séria, digna, e quando voltou do castigo para o presídio, parecia que nunca saíra dele. Mas os presos não o viam com os mesmos olhos; apesar de Kulikov saber dominar-se sempre e em todos os lugares, os presos, no fundo da sua alma, pareciam ter-lhe perdido o respeito, pois começaram a tratá-lo com mais familiaridade. Numa palavra: com a evasão, a fama de Kulikov declinou muito. Eis o que vale o êxito entre os mortais.
SAÍDA DO PRESÍDIO
Tudo isso aconteceu já no último ano da minha condenação. Esse último ano tenho-o quase tão bem gravado na memória como o primeiro e, sobretudo, os meus últimos tempos no presídio. Mas para que demorar-me com pormenores? Recordarei unicamente que, nesse ano, apesar de toda a minha impaciência para acabar a minha pena o mais depressa possível a vida se me tornou muito mais leve do que em todos os anteriores anos de deportação. Em primeiro lugar tinha eu já muitos amigos entre os presos e conhecidos firmemente convictos de que eu era uma boa pessoa. Muitos deles me eram dedicados e me queriam sinceramente. A ordenança Balklúskin esteve quase a chorar quando teve de escoltar-me, a mim e a um companheiro meu fora do presídio Durante o mês que depois vivi já livre, na cidade, num edifício da administração, quase todos os dias me vinha visitar, só pelo gosto de me ver. Havia no entanto indivíduos arredios e hostis até o fim, aos quais parecia que lhes custava falar comigo. Sabe-se lá por quê. Dir-se-ia que, entre nós, havia um muro de permeio.
Nos últimos tempos eu tinha mais oportunidades do que durante toda a época da minha condenação. Encontrei nessa cidade, entre os militares da guarnição, conhecidos e até antigos companheiros de estudos. Reatei o convívio com eles. Por seu intermédio consegui arranjar mais dinheiro, escrever à minha família e obter também livros. Havia já alguns anos que eu não lia um livro e ser-me-ia difícil descrever a estranha e ao mesmo tempo profunda impressão que me produziu o primeiro que li no presídio. Lembro-me de que me pus a lê-lo à tarde, quando fecharam o alojamento, e fiquei a lê-lo toda a noite até o amanhecer. Era um número de uma revista. Era como se até mim chegassem notícias de outro mundo; a minha vida anterior surgiu perante mim clara e luminosa, e esforçava-me por adivinhar à medida que ia lendo. Estaria eu muito afastado dessa vida? Tinham-se passado muitas coisas na minha ausência? Que seria que agora os agitava, que questões os preocupavam? Meditava sobre cada palavra, lia nas entrelinhas, esforçava-me por encontrar-lhes um pensamento secreto, alusões ao passado; esquadrinhava os vestígios daquilo que dantes, no meu tempo, comovia as pessoas. E que pena sentia eu então ao reconhecer que era como uma peça desirmanada! Era preciso acostumar-me às coisas novas, travar conhecimento com a nova geração. Li particularmente um artigo em cujo pé vinha o nome dum escritor conhecido, que dantes me fora muito dedicado. Mas surgiam já também nomes novos, manifestavam-se novas personalidades; e eu me apressava a conhecê-los ansiosamente e lamentava ter tão poucos livros e que fosse tão difícil arranjá-los. Dantes, quando estava ainda no presídio, o anterior major da caserna, teria sido muito perigoso introduzir livros no presídio. Em caso de investigação haviam infalivelmente de perguntar: “Donde vieram esses livros? Quem os arranjou? Então tens relações!” E que poderia eu responder a tais perguntas? E por isso, vivendo sem livros, eu, sem querer, afundava-me em mim próprio, fazia perguntas a mim mesmo, esforçava-me por responder-lhes, torturava a imaginação. Mas como explicar tudo isso!
Entrei no presídio no inverno e sucedeu-me também ser liberto no inverno, no mesmo dia do mês em que entrara. Com que impaciência eu aguardava o inverno, com que prazer via o fim do ano; quando na aldeia começam a amarelar as folhas das árvores e a erva se esgota na estepe! E o verão já se foi embora e uiva o vento do outono; caiu o primeiro nevão. Chegou, enfim, esse inverno tão desejado! O meu coração começa muitas vezes a palpitar surda e fortemente, com o grande pressentimento da liberdade. Mas, coisa estranha: quanto mais o tempo ia passando e mais se aproximava o fim da minha condenação, maior era a paciência que se apoderava de mim. Já quase nos últimos dias, até me admirava e dirigia censuras a mim mesmo; tinha-me tornado perfeitamente frio e indiferente. Quando se encontravam no pátio, nas horas de recreio, muitos presos me felicitavam:
— Viva! Com que então vai sair, vai ser posto em liberdade, em breve, em breve, bátiuchka Alieksandr Pietróvitch! Vai deixar sozinhos estes pobres-diabos!
— E você, Martínov, não acaba também em breve? — respondia-lhe.
— Eu? Sim, sim! Ainda me faltam sete anos!
E suspirava, ficava ali especado, olhando abstratamente, como se escutasse o futuro... Sim; muitos felicitavam-me sincera e alegremente. Parecia-me que todos começavam a tornar-se mais afetuosos comigo. Era evidente que se tinham reconciliado comigo. K... tchinski, um polaco nobre, um jovem amável, gostava muito, tal como eu, de vir para o pátio nas horas livres. Pensava que o ar livre e o exercício lhe convinham para conservar a saúde e resistir ao mal causado pelas abafadiças noites do alojamento. “Eu aguardo a sua saída com impaciência — dizia-me, sorrindo, quando se encontrou uma vez comigo, durante os seus passeios. — O senhor sairá, e então eu ficarei sabendo que me falta um ano para cumprir”.
Farei notar aqui, de passagem, que, devido ao muito sonhar e à longa privação da liberdade, esta nos parecia no presídio algo de mais livre que a verdadeira liberdade; isto é, que aquela que verdadeiramente existe na realidade. Os presos encareciam o conceito da liberdade positiva, e isto é muito natural, muito próprio do preso. Qualquer desastrado impedido dum oficial nos parecia quase um rei, em comparação aos presos, simplesmente por andar com a cabeça rapada, sem ferros e sem sentinela.
Na véspera do último dia, ao escurecer, dei a volta, pela última vez a toda a paliçada do presídio. Quantos milhares de vezes teria eu dado volta a essa paliçada em todos aqueles anos! Como eu me aborreci, atrás dos alojamentos, no primeiro ano da minha prisão, só, triste, aniquilado. Lembro-me de que, então, contava os milhares de dias que me restavam. Senhor, há quanto tempo isso foi já! Aqui, neste canto, viveu cativa a nossa águia e era aqui também que eu costumava encontrar-me com Pietrov, que, agora, também não se afasta de mim. Aproxima-se e, como se adivinhasse o meu pensamento, põe-se a caminhar em silêncio ao meu lado e parece admirar-se de algo no seu íntimo. Despeço-me em pensamento destas tábuas denegridas dos nossos alojamentos. Que impressão tão hostil me faziam elas então, nos primeiros tempos! Não há dúvida de que devem estar agora mais velhas do que antes, mas eu não o noto. Quanta juventude não se sepultou inutilmente atrás destas paredes, quantas grandes energias não se perderam aqui sem proveito! E, para dizer tudo: essa gente era uma gente extraordinária. Pode ser que fosse a mais dotada, a mais forte de todo o nosso povo. Mas foi debalde que sucumbiram energias poderosas, sucumbiram de uma maneira anormal, ilegal, irreparável. E quem tem a culpa disso?
— Sim, é esse o ponto: de quem é a culpa?
No dia seguinte, de manhã, antes da saída para o trabalho, quando mal começara a clarear, fui percorrendo todos os alojamentos para despedir-me de todos os presos. Alguns estenderam-me afetuosamente as suas mãos calejadas e fortes. Alguns davam-mas como a um companheiro, mas eram poucos. Outros compreendiam muito bem que daí a um momento eu iria transformar-me num homem diferente deles. Sabiam que eu tinha amizades na cidade, que me dirigiria imediatamente ali, aos senhores, e que trataria com eles de igual para igual. Compreendiam-no e despediam-se afetuosamente, mas não como de um companheiro e antes como de um senhor. Outros voltavam-me as costas e respondiam por entre dentes à minha despedida. Alguns até me olhavam com certo ódio.
Ouviu-se o tambor e todos se dirigiram para o trabalho; só eu fiquei ali. Nessa manhã Suchílov levantou-se mais cedo do que todos e pôs-se a movimentar-se com todas as suas energias para preparar-me o chá. Pobre Suchílov! Chorou quando eu lhe ofereci os meus objetos do presídio, algumas camisas, as palmilhas para usar debaixo das cadeias e algum dinheiro! “Eu não preciso nada disto, eu não quero nada!”, dizia, esforçando-se por dominar os lábios trêmulos... “Como hei de eu suportar a sua ausência, Alieksandr Pietróvitch? Sem você, quem me resta agora aqui?” Despedi-me também pela última vez de Akim Akímitch.
— Em breve chegará a tua vez! — disse-lhe eu.
— Ainda me falta muito tempo — resmungou, apertando a minha mão.
Lancei-me contra o seu peito e abraçamo-nos.
Dez minutos depois da saída dos presos saímos também para nunca mais voltarmos, eu e o meu companheiro, aquele com quem entrara. Era necessário irmos imediatamente ao ferreiro para que nos tirasse os ferros. E a sentinela, de arma no braço, já não nos escoltava; era um suboficial que nos acompanhava. Foram os nossos próprios presos que nos tiraram os ferros na oficina de engenharia. Esperei que desferrassem o meu companheiro e depois aproximei-me da bigorna. Os ferreiros puseram-me de costas, levantaram-me o pé por detrás, apoiaram-no na bigorna... absorviam-se no trabalho, desejavam fazê-lo com a maior perícia, o melhor possível.
— Os rebites, os rebites para cima, pouco a pouco! — mandou o mestre. — Segurem-no bem... Agora deem com o martelo...
As cadeias caíram. Eu as apanhei... Queria tê-las nas minhas mãos, olhá-las pela última vez. Admirava-me agora que ainda há um instante as trouxesse nos pés.
— Bom, vão com Deus! Com Deus! — diziam-me os presos com vozes roucas, entrecortadas, mas nas quais me parecia vibrar agora um pouco de alegria.
Sim, com Deus! Liberdade, vida nova; ressurreição de entre os mortos! Que momento glorioso!
NOTAS
1 Presos do forte, sob comando militar. Prisão mais dura, não só para os nobres, mas também para os outros presos, precisamente porque o chefe e a estrutura dessa categoria eram inteiramente militares. Comando militar severo, regime mais apertado, sempre com cadeias e sentinelas à vista.
2 Expressão usada pelo povo para designar os condenados a trabalhos forçados ou exilados.
3 Rio da Sibéria.
4 Azorrague composto de várias tiras de couro, terminadas por arames torcidos.
5 Deformação de Inuahd (inválido), termo francês, do qual se utilizaram para apelidar, em tom de troça, ao velho soldado condenado. Era desses inválidos que o Comando das prisões russas se valia para vigiar os outros condenados seus companheiros.
6 Suboficiais nobres.
7 Adepto da seita religiosa dos “Velhos Crentes”, que se formou na Rússia, no séc. XVII.
8 Literalmente, no valor de 2 grochi. Ordinária, rameira.
9 Alegoria de calão, para designar a fome.
10 Seita religiosa dos Velhos Crentes, que não adotou as reformas religiosas preconizadas no séc. XVII.
11 Nome derivado de sirotá, órfão.
12 Antiga e importante cidade da Sibéria Ocidental, na Rússia Asiática.
13 Cidade da Transbaical, centro duma região mineira, para onde destinavam os forçados da primeira categoria.
14 Os condenados às vergastadas deviam passar entre duas filas de soldados, armados de vergastas verdes.
15 Na sua expressão usual, no sul da Rússia, mercado, feira.
16 Deformação do russo Iésus (Jesus).
17 Um dos grupos étnicos da Rússia. Morenos, de cabelos e olhos escuros, eram célebres pelo seu apego feroz à língua, às tradições, à história da sua provinda, Ucrânia, cujo folclore era magnífico.
18 Consome-se na Sibéria muito chá, o qual é vendido sob a forma de pesados tabletes, fortemente comprimidos.
19 Karl Briúlov, pintor russo, chefe da escola romântica. Descendente de uma família francesa.
20 Omsk, na Sibéria Ocidental.
21 Chamar alguém apenas pelo seu nome de batismo constitui uma grave indelicadeza na Rússia, sobretudo entre o povo. Deve sempre acrescentar-se o nome do pai.
22 Abreviatura popular de Petersburgo.
23 Diminutivo de Tina, neste local utilizado para aludir ao carrasco, assim apelidado numa canção de presos.
24 Os filactérios, que os observadores rigorosos da lei Judaica prendem na testa e no braço esquerdo durante as suas preces, seguindo as prescrições do Êxodo e do Deuteronômio. Representam o Templo de Salomão, onde estão insertos os Dez Mandamentos da Lei de Moisés.
25 Na Rússia do séc. XVII os pequenos russos eram distinguidos por um topete, que ao mesmo tempo lhes era alcunha, dada pelos grandes russos, de cabelos sobre o occipúcio e o resto da cabeça rapada.
26 Metáfora presidiária para designar a fila das vergastas verdes, por entre a qual deviam passar os que tinham que ser supliciados.
27 Provavelmente para recordar aos fiéis que Jesus Cristo nasceu num estábulo.
28 Mal! Mal! Exclamação tártara.
29 Nome simbólico para designar a garrafa.
30 Morto, no sentido de fracassado, liquidado. Como tantos outros nomes de personagens inventados por Dostoiévski, aproveitando substantivos, adjetivos e até mesmo verbos, este vem do substantivo otipietvânie, que significa o canto funerário, o responso religioso cantado diante do defunto antes de ser enterrado ou conduzido ao cemitério.
31 Personagem de Don Juan de Wolfgang A. Mozart (1756-1794) e uma das diversas encarnações do astuto criado de Don Juan.
32 Abreviatura de sanatus est: está curado.
33 Rimam em russo.
34 Tudo quanto escrevo aqui acerca dos castigos e dos suplícios refere-se ao meu tempo. Agora tenho ouvido dizer que tudo isso já mudou ou está para mudar. Fiódor Dostoiévski.
35 Dostoiévski já se referiu à dança popular kamárinsicaia na Granja de Stiepántchikovo.
36 Ou seja, do bosque, onde canta o cuco. Quer dizer que eles também são vagabundos. Fiódor Dostoiévski.
37 Provérbio que denota a impossibilidade.
38 Besuntar de pez a porta da casa onde vive uma moça indica que ela perdeu a virgindade.
39 A coroa nupcial que era costume pôr nas noivas, no ato do casamento.
40 Expressão cujo verdadeiro sentido é intraduzível.
41 Na Rússia do séc. XVII existia também a categoria de general no funcionalismo civil e correspondia à de conselheiro privado.
42 Diminutivo de gniedói, baio.
43 Odeio esses brigões.
44 Os nobres condenados a trabalhos forçados perdiam os seus privilégios, e somente por uma graça do imperador podiam ser reintegrados nos seus direitos.
45 Os dezembristas, revoltosos de dezembro de 1825, contra a autocracia russa.
46 Expressão usada no meu tempo não só pelo major, mas também por muitos maus chefes, sobretudo originários das categorias inferiores. Fiódor Dostoiévski.
47 Tinham matado um homem ou uma mulher, na crença de que estes tinham infectado o ar, provocando a morte do gado. No presídio havia mais de um condenado deste gênero. Fiódor Dostoiévski.
48 Está bem, em tártaro.
49 Não, em tártaro.
GLOSSÁRIO DE TERMOS RUSSOS E DE OUTRAS LÍNGUAS RESPEITADOS NA TRADUÇÃO
Batiuchka — Paizinho. Sinônimo arcaico de pope. Utilizado também na linguagem do povo como sinônimo de papai, aplicado ao próprio pai ou a pessoas respeitosas, as quais se quer tratar com consideração e afeto ao mesmo tempo.
Bratiets — Irmão. Forma arcaica usada em sentido figurado: irmão de armas, de religião.
Copeque — (Kopleika) — Moeda divisionária, centésima parte do rublo.
Diaduchka — Tio. Em sentido figurado de afeto e respeito.
Drojki — Carruagem leve.
Feldscher, al. — Cirurgião militar.
Feldwebel, al. — Primeiro-sargento ou sargento ajudante.
Groch — Antiga moeda russa equivalente a meio copeque.
Iaman, ta. — Mal! Exclamação tártara.
Junker, al. — Suboficial nobre do exército imperial russo.
Kacha — Mingau.
Kararinskaia — Dança popular russa.
Knut — Azorrague de cordas, ou tiras de couro, presas a um cabo de madeira que servem para fustigar os cavalos.
Kopit — Reunir.
Kvas — Bebida feita de pão de centeio e de lúpulo ou de frutas.
Lapot — Espécie de alpargatas feitas de entrecasca de tilia.
Maidan — No sul da Rússia, feira, praça da feira.
Matuchka — Mãezinha; diminutivo arcaico, utilizado especialmente pelo povo para designar a mulher do pope.
Nevalid — Inválido. Deturpação de invalid, termo incorporado do francês por ocasião das guerras napoleônicas.
Papacha — Pai, paizinho. Em sentido figurado, de respeito e afeto. Também boné de peles usado pelos cossacos.
Parachnik — Preso escolhido para serviços leves.
Raskolhnik — Sectário da agrupação religiosa dos “velhos crentes”.
Sajenh — Medida russa de comprimento equivalente a 2,13 metros.
Sirota — Órfão.
Tieliega — Carroça de quatro rodas para transporte de cargas.
Vierchok — Antiga medida russa de comprimento equivalente a 4,4 metros.
Voievoda — Na antiga Rússia, chefe de exército ou distrito.
Yakchi, ta. — Está bem!
Yok, ta. — Não.
Nota: Abreviaturas usadas: al.: alemão; ta.: tártaro.
NOTA DA EDIÇÃO DE 1967
O idiota (em russo, Idiot) começou a ser redigido por Dostoiévski a 14 de setembro de 1867, em Genebra, Suíça, e foi concluído a 25 de janeiro de 1869, em Florença, Itália, na casa onde o romancista vivia com sua mulher, Ana Grigórievna, defronte do Palazzo Pitti. O mensageiro russo (Ruskii Vestnik), de São Petersburgo, publicou o romance em folhetins, e essa publicação foi sendo feita na medida em que Dostoiévski mandava do estrangeiro os originais. A Primeira parte, remetida a 30 de dezembro de 1867, foi publicada em março de 1868, e os últimos capítulos apareceram, em 1869, como suplemento do número de fevereiro d’O mensageiro russo. Dostoiévski tinha então 48 anos de idade. Escrito em meio às piores adversidades — a eterna falta de dinheiro (“essa coisa, maldita, que tanta falta me faz” — conforme confessa a sua sobrinha Sofia, Aleksandrovna Ivanov, em carta, de 30 de março de 1868, datada de Genebra), violentas crises de epilepsia, a morte de Sônia, filha do romancista, com menos de três meses de idade — O idiota teve uma elaboração difícil e torturada. Dostoiévski escrevia e reescrevia tantas vezes antes de chegar a uma redação definitiva que, no próprio mês da morte da pequena Sônia (maio de 1868), diz: “Apesar de todo o meu desgosto, trabalhei dia e noite no meu romance durante todo esse mês.” A seguir, desabafa: “como eu amaldiçoei o meu trabalho, como me foi penoso e odioso escrever!” A 25 de janeiro, mais aliviado, dirá, em carta, de Florença a sua sobrinha Sofia: “... Agora está terminado, finalmente! Redigi os últimos capítulos trabalhando dia e noite com angústia, na mais terrível das inquietações... mas não estou satisfeito com a minha obra, pois não digo nela nem a centésima parte do que quisera ter dito... Mas não me censuro por isso e continuo amando essas ideias malogradas.” Tão grande desencanto pode parecer exagero de Dostoiévski, em se tratando de um livro da envergadura de O idiota, tantas vezes feito e refeito. Todavia, assim não será se se levar em conta que Dostoiévski — situado num plano elevado entre os escritores de seu tempo — tinha um modo todo especial de penetrar a realidade e de encarar o fenômeno e o mistério da criação artística. Pelo menos, é isso o que se depreende destas palavras suas, dirigidas ao crítico Nikolai Nikolaievitch Strákov, em carta datada de Florença (10 de março de 1869): “Tenho minhas próprias ideias sobre a criação artística; e aquilo que os demais qualificam de quase fantástico e excêntrico constitui para mim, muitas vezes, o mais característico da realidade.”
Curiosa coincidência: quando Dostoiévski concluía esta sua grande criação, O idiota, sua mulher, Ana Grigórievna, lhe dava a grata nova da concepção de mais um filho. Referindo o fato, o ensaísta Rafael Cansinos Assens comenta: “De modo que esta obra [O idiota], de criação literária, se inscreve entre duas fecundidades reais. ‘Nobis nati sunt puer atque liber’, encarecendo os júbilos do salmisia:” (Fiodor M. Dostoiévski, Obras completas, Aguilar S. A. de Ediciones, Madrid, 1949, Cuarta Edicion, Tomo II, pág. 476.)
* EDIÇÃO EM LIVRO EM VIDA DO AUTOR:
1ª e única — 1874, São Petersburgo, 2 volumes.
Dostoiévski fez uma revisão no romance, introduzindo ligeiras modificações no texto publicado por O mensageiro russo.
DOSTOIÉVSKI E O IDIOTA
BRITO BROCA
Depois da publicação de Crime e castigo, em 1866, a necessidade de terminar com urgência o novo livro que devia entregar ao editor fez com que Dostoiévski aceitasse o alvitre de ditá-lo a uma estenógrafa. O romance Um jogador foi feito às carreiras, em 25 dias, e ao ditar a última linha o escritor havia iniciado outro romance, este na vida real, com a jovem estenógrafa, Ana Grigórievna. Se o primeiro não teve o desfecho num casamento, o segundo acabaria na igreja.
Dostoiévski, para quem o isolamento se vinha tornando cada vez mais penoso, casava-se pela segunda vez. Na verdade, seu estado de saúde era bem precário. Repetidos ataques epiléticos, mais fortes do que nunca, deixavam-no em lamentável situação de irritabilidade nervosa. A hiperestesia torturava-o, prejudicando-lhe a atividade intelectual. Além disso, os credores — sempre o leit motiv dos credores! —, os conflitos de família resultantes desse segundo casamento concorriam para exasperar-lhe os nervos e agravar-lhe a moléstia. Tinha necessidade premente de repouso, tranquilidade, esquecimento. O único recurso era abandonar tudo e ir para o estrangeiro, pois na Rússia não poderia desligar-se dos motivos que o atormentavam. Mas de que maneira, se lhe faltava o essencial, o dinheiro? A esposa não hesita em sacrificar o pouco que possui em favor do marido; empenha o mobiliário, e, a 14 de abril de 1867, o casal parte para Berlim.
Depois de dois dias de permanência na capital alemã, ei-los em Dresden, onde alugam apartamento e o escritor experimenta a sensação reconfortante de estar sozinho, ao lado da esposa. Mas não tarda a deixá-la por alguns dias, a fim de tentar a fortuna no jogo, em Hamburgo. De Hamburgo, voltará sem um níquel. Obtendo mais uma vez dinheiro, irá a Baden-Baden, onde, depois de muitas loucuras, muitos desastres — chegando Ana Grigórievna a empenhar a própria aliança para atender ao desespero do marido —, Dostoiévski torna a perder tudo.
No outono de 1867 estão em Genebra e, dando uma pequena trégua à sua inquietude, Dostoiévski começa a escrever O idiota. A esposa anima-o, oferece-lhe toda assistência afetiva. Dentro em pouco, ei-lo de novo excitado, reguingando contra tudo, sempre perseguido pela obsessão do jogo. O editor Katkóv passa a remeter-lhe 100 rublos mensais, à espera do romance. Dostoiévski vai jogar mais uma vez — favorecido pela própria esposa, que acha ser esse, apesar de tudo, o único meio de acalmá-lo — e, como sempre, perde. Não há outro recurso senão solicitar novas remessas de dinheiro. Um acesso de epilepsia, mais violento do que todos os que até então o acometeram, prostra-o inopinadamente. Mal acaba de restabelecer-se, e em março de 1868 a esposa dá à luz uma menina a que o romancista põe o nome de Sônia, a heroína de Crime e castigo.
Então, ao horror da moléstia sucedem as efusões de uma alegria imensa. E o trabalho, interrompido várias vezes por causa do jogo, paralisado pela crise epilética, sofre nova interrupção, desta vez por um motivo grato e feliz: o alvoroço produzido pelo nascimento da criança impede Dostoiévski de concentrar-se na elaboração do romance. E quanto mais devagar caminha este, mais repetidos e frequentes se tornam os pedidos de dinheiro a Katkóv. O escritor já não sabe como desculpar-se do atraso da obra e de tantos adiantamentos. Acaba empenhando a segunda edição desse trabalho, ainda não concluído, por um novo adiantamento. “Tudo se há de arranjar”, pensa ele, numa certa maré de otimismo, logo anulada por um golpe brutal: a pequena Sônia, com apenas três meses de idade, vem a morrer. Dostoiévski não sabe como desabafar tamanha dor. Era demais para uma existência tão atormentada como a sua. E trabalhar de que maneira em tais condições? As ideias não lhe ocorrem, a pena emperra, sente o cérebro vazio, enquanto o coração transborda de fel. Chega a odiar aquele malfadado romance que lhe parece sair cada vez pior das mãos — exacerbando-lhe a consciência de artista — sempre inçado de defeitos, à medida que o autor lhe modifica a estrutura.
Em carta dessa época, Dostoiévski escreve: “Pedem-me acabamento artístico, uma genuína expressão poética, sem o esforço tornar-se visível; lembram-me o exemplo de Tolstói e Gontcharóv, mas não sabem as condições em que estou trabalhando.”
De Genebra partem para Vevey; dali para Milão. Urge trabalhar no romance, terminá-lo seja como for; em caso contrário, perderá a confiança do editor e será, possivelmente, a ruína, a miséria. Em Milão, Dostoiévski sente-se desambientado. Resolve passar algumas semanas em Florença, onde o meio se lhe torna mais propício. Ainda um esforço e em janeiro de 1869 a obra está terminada. Saldada uma parte da dívida, fica a dever a Katkóv um novo livro. É um irônico êxito. Mas sempre pode respirar, pode, pelo menos, contrair novas dívidas. O artista, no entanto, não se sente satisfeito; acha que o romance não chega a exprimir a décima parte do que quis dizer. “Apesar de tudo, gosto da minha ideia”, escreve ele, “mesmo tendo ficado aquém dela, na realização.”
Antes de examinarmos essa ideia central de O idiota, recordemos as diversas formas em que o escritor tentou romanceá-la até chegar à versão definitiva que, na realidade, não o satisfez.
Desde que partiu para o estrangeiro, Dostoiévski procurou não perder o contato com a sua terra, lendo constantemente jornais russos. Não poderia produzir de outra forma. Sentia a necessidade de reconstituir sempre em torno de si a atmosfera em que respiravam os seus heróis, visceralmente russos. Nessa ocasião, as notícias que, com mais frequência, o atraíam eram as da resenha judiciária. A instituição do júri — como já vimos no prefácio de Crime e castigo — sendo uma coisa recente na Rússia, incrementava extraordinariamente a crônica policial. Os casos vinham descritos com uma minudência fora do comum, nessa época em que a imprensa ainda não explorava esse gênero de sensacionalismo. Até crimes ocorridos na província mereciam pormenorizada referência. Um deles chamou a atenção de Dostoiévski: Olga Umétskaia, uma jovem de 15 anos, filha de um casal de latifundiários do distrito de Tula, fora acusada de haver tentado, várias vezes, incendiar a casa da família. O inquérito revelou que Olga, quando criança, tinha sido torturada pelos pais, devendo se encontrar nisso a origem de sua atitude criminosa. O fato sugere ao escritor a intriga que seria a versão inicial de O idiota. Verão os leitores como, nesse ponto, Dostoiévski ainda estava longe da forma definitiva do romance.
Olga figuraria como personagem principal com o nome de Mignon. À margem desse primeiro esboço — encontrado, como os demais, nos arquivos de Dostoiévski — lê-se o seguinte: “A história de Mignon é inteiramente idêntica à de Olga Umétskaia.” O romance desenrolar-se-ia no quadro de uma família pequeno-burguesa de Petersburgo, família de muito poucos recursos econômicos. O pai, depois de várias tentativas fracassadas de enriquecer, acaba praticando um furto. O filho mais velho, poeta, tem as preferências da mãe, que o adora e dele se orgulha. O filho mais novo, chamado simplesmente “o idiota”, é epilético, e a mãe detesta-o. A filha, Mácha, casada, é uma linda criatura, de espírito prático. Mignon aparece como filha adotiva do casal. Um irmão do pai, espécie de filantropo doido, tem algo de uma caricatura dickensiana. O “idiota”, sensual e impetuoso, revela tendências criminosas. Apaixona-se pela cunhada de Mácha, com toda violência de sua instintividade mórbida, mas ela prefere o irmão mais velho. Mignon é tratada na família como simples criada, sobrecarregada de serviços e desprezada. A situação desespera-a, fazendo-a pensar no suicídio ou numa vingança. Também ela ama o poeta. E quando este, acusado do furto cometido pelo pai, vê-se expulso de casa, Mignon resolve acompanhá-lo, o rapaz aproveita-se da oportunidade e violenta-a, mas a pequena, apaixonada, perdoa-o.
Dostoiévski não se satisfez com esse plano geral. Como sempre, o propósito de atrair o público pela complexidade do enredo, a sugestão viva do romance-folhetim, atua-lhe no espírito, concorrendo para que ele lance mão de quatro intrigas subsidiárias. Numa delas surge um filho daquele tio a que nos referimos, personagem novo, a que o romancista empresta um temperamento idealista, todo voltado para o bem: um oposto do “idiota”.
E se esse esboço inicial é muito diferente do que viria a ser o romance mais tarde, a família em questão já apresenta muita semelhança com a do general Ívolguin; o pai, principalmente, parece-se bastante com o general, tipo do fracassado e alcoólatra. No filho poeta encontramos o embrião de Gánia, e na irmã deste uma ascendente de Vária. O tio assemelha-se, em muitos pontos, ao general Epantchín e a “cunhada” identifica-se vagamente com Agláia. Em Mignon não será difícil distinguir o germe de Nastássia. Mas entre o “idiota” e o príncipe Míchkin só existe de comum a epilepsia, a aparência da idiotia. A ideia basilar do romance ainda não se desenhara com precisão no espírito de Dostoiévski. O “idiota” aparece como um indivíduo de baixos instintos, índole justamente contrária àquela que caracterizaria, mais tarde, o sentido do personagem.
Dostoiévski, como já vimos, trabalhava irregularmente, interrompido por inúmeros contratempos. A criação literária não lhe era, além disso, um processo fácil. A profundidade e, sobretudo, a originalidade do que procurava exprimir impunham-lhe um rude e penoso labor. A descida aos infernos, aos subterrâneos da alma, não se podia fazer suavemente. De onde as hesitações, os diversos esboços que precedem as versões definitivas dos seus romances, nos quais percebemos uma espécie de trabalho de exploração, de sapa, tão enredada de escolhos está a rota da verdade que o romancista visa a atingir. Na elaboração de O idiota isso se manifesta de maneira bem eloquente. Até janeiro de 1868 os cadernos de Dostoiévski estão cheios de notações de incidentes que ele pensou introduzir na versão inicial: assassínios, raptos, incestos. As notações denunciam enorme confusão. O romancista parece tateante, não sabe precisamente aonde quer chegar. À versão inicial sucedem mais sete, todas diferentes, com diferentes heroínas.
Mas pouco a pouco a atmosfera se vai clareando e os esboços, como em gradativa justaposição, se aproximam do romance atual. Também as heroínas começam a fundir-se na figura central de Nastássia.
No alto do terceiro esboço, Dostoiévski escreveu: “Novo e último projeto.” Aqui o pai já é um general reformado. Surge uma segunda família, que seria depois a do general Epantchín. A ideia nuclear, porém, ainda não se precisou. O romancista pensa, certo momento, em objetivar no livro a luta entre o amor e o ódio. Mais tarde, sente-se atraído pelo propósito de fixar o drama da nova geração russa, cheia de paixão, sensualidade e idealismo, não acreditando em nada e sem um apoio moral na existência. São ainda os ecos de Crime e castigo a repercutir-lhe no espírito.
Durante muito tempo, o “idiota” permanece um personagem secundário, de má índole, parecendo-se algum tanto com Rogójin. Só no terceiro esboço o romancista consente em dar-lhe uma “boa morte”, o que será o primeiro passo para futura e radical transformação do herói. No quarto esboço, o “filho do tio” surge como um grande e generoso idealista, semelhante ao príncipe. No quinto, o “idiota”, ainda com traços do atual Rogójin — egoísta, cheio de ódio — já deu mais um passo à frente, pois se revela cristão. Mas a figura nobre do esboço continua a ser a do “filho do tio” numa identificação progressiva com Míchkin. O “filho do tio” é aí chamado Gánia — embora em nada se pareça com o Gánia da versão definitiva — e está votado a tornar-se o personagem principal. No sexto esboço, Dostoiévski muda completamente de ideia, e o “idiota” passa a ser o “filho do tio”. É introduzida, também, no romance, a viagem do herói para o estrangeiro e a sua volta à Rússia. O “idiota” aparece seduzindo Mignon e amando a cunhada. Mas o tipo continua flutuante, com um caráter ambíguo, excessivamente orgulhoso, embora ingênuo e bom.
O sétimo esboço assinala verdadeira crise no processo de criação do herói principal. Dostoiévski confessa-se indeciso ante o caráter do personagem, e escreve à margem: “Afinal, quem será ele: um impostor ou a encarnação de um ideal misterioso?” No fim desse esboço, o romancista anota, como quem acaba de fazer, subitamente, uma grande descoberta: “Ele é idiota, mas é um príncipe.” No oitavo esboço a figura do “idiota” se completa e Dostoiévski passa a escrever o romance dentro do plano definitivo: encontrara, finalmente, em seus legítimos contornos, o tema: tocara na surpreendente verdade, cuja presciência o vinha agitando.
Em Crime e castigo o romancista figurava um indivíduo fazendo da sua própria vontade uma lei e não receando passar por cima de qualquer obstáculo para satisfazê-la. Esse indivíduo vai ao crime, porque julga o crime indispensável aos objetivos que tem em mira e cuja legitimidade justifica. Raskólnikov é o tipo do anticristão, daquilo que Nietzsche chamaria, mais tarde, “vontade de poder”. Cometido o delito, o criminoso vê-se acossado pelo sentimento de culpa e submete-se ao castigo, embora sem, no fundo, arrepender-se. Dostoiévski prometera continuar a história de Raskólnikov e mostrar de como viera ele a regenerar-se pela aceitação plena da consciência cristã que Sônia lhe despertara. Mas o romancista não realizou a promessa, não retomou seu herói. Entretanto, quando depois de Um jogador — mais propriamente uma novela — cuidara de escrever outro romance de grandes proporções, em que pensava ele? Lia a crônica judiciária dos jornais russos com o maior interesse: pensava em crimes, incestos, atentados. O tema de Crime e castigo ainda não fora esgotado. É o tipo de uma criminosa que lhe sugere o primeiro esboço de O idiota. Se a regeneração de Raskólnikov ficara de lado, não deixava de trabalhar subterraneamente no espírito do escritor, levando-o, depois de muitas tentativas e hesitações, a encontrar a ideia essencial de O idiota no tipo do cristão idealizado, que seria, de qualquer maneira, uma antítese de Raskólnikov, e, por consequência, um substitutivo do resto da história que não seria escrito.
Foi a figura de Dom Quixote — Dostoiévski revela-o numa carta à sua sobrinha, Sófia Ivánova — que lhe trouxe primordialmente a inspiração de O idiota. Pensou ele em criar o tipo de um Quixote cristão. Ao mesmo tempo, outro tipo, que não é mais do que o de um Quixote inglês, o Pickwick, de Dickens, vinha reforçar as sugestões do primeiro. São bem conhecidas as pitorescas aventuras desse herói dickensiano. Mister Pickwick é um bom burguês, com cerca de cinquenta anos, corado, bochechudo, possuidor de largos rendimentos e com um fundo enternecedor de ingenuidade. Os inúmeros casos em que ele se envolve, sempre iludido na puerícia da sua boa-fé, conservando, apesar de tudo, a mesma atitude de bonomia, otimismo e confiança nos homens, constituem o enredo do romance, até hoje lido com o maior encanto.
Logo depois, a essas duas figuras juntou-se uma outra: a do Pangloss, o conhecido personagem do Cândido, de Voltaire, encarnação prototípica do otimismo, para quem tudo ia bem no melhor dos mundos.
Os três tipos possuem um característico comum: são ridículos e burlescos. O espírito criador de Dostoiévski não tinha no humor uma corda rica. Estava fora do seu feitio mostrar o mais profundo amargor sob uma aparência cômica, como fizeram Cervantes, Dickens e Voltaire. Seu “Quixote-Pickwik-Pangloss” não seria ridículo nem bufo, mesmo porque influiriam nele, emprestando-lhe um caráter particularíssimo, elementos especificamente dostoievskianos.
O escritor meditava nessa época na corrupção política e espiritual do Ocidente. Bem sabemos haver sido ele um dos mais altos representantes da corrente eslavófila, formada pelos intelectuais que viam na Rússia uma predestinação especial e repeliam as influências europeias e ocidentais como desnaturadoras da cultura que os russos deviam preservar para realizar no mundo o grande papel a que estavam votados. No momento em que rascunhava os diversos esboços de O idiota, Dostoiévski teve ocasião de visitar Turguénev, em Baden-Baden, visita realizada, aliás, por insinuação da esposa, empenhada em fazer com que o marido, pela presença, lembrasse ao confrade uma dívida antiga. Dostoiévski foi a contragosto: nunca se dera bem com o autor de Rudine, já por antagonismo de temperamento, já por defenderem convicções inteiramente opostas. Turguénev era ocidentalista apaixonado, pregando a necessidade dos russos adotarem a cultura europeia. Mal começaram a conversar, a discussão explodiu. Turguénev chegou a afirmar que todas as tentativas especificamente russas lhe pareciam grosseiras e estúpidas. Dostoiévski retrucou com malignidade, e o autor de Fumaça foi a ponto de dizer que se considerava alemão e não russo. É natural que semelhante entrevista tivesse agravado a eslavofilia de Dostoiévski no momento em que ele procurava, justamente, as linhas do seu novo romance. O Quixote russo, encarnado no príncipe Míchkin, seria, indiretamente, a personificação do ideal eslavófilo: o russo na pureza de suas qualidades mais intrínsecas, resguardado das deformações ocidentais. Em tais condições, aparecerá ele como o tipo de um homem simples e puro, de uma bondade e pureza incompreendidas pelos que o circundam, embora todos acabem por sofrer a influência delas e a elas se curvando, da mesma maneira por que — pensaria Dostoiévski — o mundo ocidental haveria de aceitar a missão regeneradora da Rússia.
Ora, a eslavofilia de Dostoiévski confundia-se com o seu cristianismo. Seria por meio do sentimento cristão, preservado na mais íntima essência, que os russos deveriam exercer aquela função redentora. De onde o príncipe Míchkin tornar-se igualmente um modelo russo idealizado e apresentado ao Ocidente. A ideia era, realmente, das mais altas e originais. Raskólnikov, o niilista, personificação da mentalidade revolucionária que vinha perturbando principalmente o espírito da juventude russa, iria redimir-se no cristianismo e no eslavismo do príncipe Míchkin. Logo depois, em Os demônios, Dostoiévski procurará fazer uma síntese das ideias essenciais dos dois romances. E mais tarde, em Os irmãos Karamázov, retornará aos mesmos problemas, ou antes, ao mesmo problema — pois os quatro livros são atravessados por um só pensamento — oferecendo-lhe perspectivas mais largas que se truncaram antes de atingir toda a amplitude, já que o escritor não chegou a realizar todo o ciclo que no último romance projetara.
Não será de estranhar, portanto, o parentesco entre tipos e situações de O idiota com os dos aludidos romances. O general Ívolguin, por exemplo, é um sucessor do Marmeládov, de Crime e castigo. Cenas, como as dos niilistas e radicais, na Segunda parte, Capítulos 8 e 9, anunciam o clima de Os demônios. O amor simultâneo de Nastássia e Agláia pelo príncipe antecipa a paixão de Grúchenka e Ekaterína Ivánovna por Dmítrii, em Os irmãos Karamázov. E ninguém deixará de ver no príncipe um irmão mais velho de Aliócha, herói deste último romance. Há também alguns ecos de Humilhados e ofendidos, em personagens secundários, como Epantchín e Liébediev.
A par disso, deve-se levar em conta o substrato autobiográfico. No príncipe Míchkin há muito de Dostoiévski. Machado de Assis seria incapaz de emprestar a qualquer dos seus personagens a doença que lhe dava um profundo sentimento de inferioridade. Evitava até falar nela, nessa negregada epilepsia. Epilético, como ele, Dostoiévski sublima sentimento idêntico que devia experimentar, transferindo a moléstia para um dos seus heróis. O príncipe é epilético e daí lhe vem o desequilíbrio nervoso que o obriga a permanecer longo tempo num sanatório da Suíça, de onde regressa à Rússia, melhor mas não curado da idiotia em que reside o segredo de sua pureza espiritual. É um homem inteiramente diferente dos outros; age e pensa em completo desacordo com o ambiente; e enquanto os outros não o compreendem e consideram-no idiota, ele, por antenas secretas, compreende todo o mundo, ou antes, “sente” todo o mundo, conseguindo, no meio de um desconcertante choque de ideias e atos, um não menos desconcertante entendimento.
Dostoiévski passava aos olhos de muitos como um homem impossível e difícil. Sua biografia atesta o quanto havia de catastrófico nessa estranha personalidade. Ainda no período de elaboração de O idiota — através da Alemanha, da Suíça e da Itália — Dostoiévski cometia erros sobre erros, arrastado pela paixão do jogo, procedendo como um insensato, um ser absurdo e incrível. Podíamos dizer, por transposição, como um “idiota”. Caía depois aos pés da esposa e pedia perdão, reconhecendo as loucuras praticadas, curvando-se entre lágrimas, humilde e submisso. Cousa semelhante já fizera com outras pessoas a quem ofendera. E certa vez, movido por uma necessidade imperiosa de humilhação, fora procurar Turguénev, o homem que, no fundo, sempre detestara, para confessar-lhe uma falta. Dostoiévski sentira, talvez, que se chegasse a determinado grau de humildade conseguiria destruir a incompreensão que parecia cercá-lo. Porque, segundo a palavra do Evangelho, os exaltados serão humilhados e os humilhados, exaltados. O príncipe Míchkin será, em última análise, um autorretrato idealizado do romancista, tanto Dostoiévski reconheceria em si mesmo uma grande vocação cristã fracassada.
A ideia de fazer o herói idiota ter-lhe-ia vindo do folclore russo, em que a idiotia é considerada uma “doença divina”, pelo plano de inocência em que coloca quem a sofre. E no folclore de outros povos podemos encontrar essa mesma versão dos simplórios e débeis mentais, tidos como protegidos de Deus, filhos prediletos daquele que disse: “Bem-aventurados os pobres de espírito.” A pobreza de espírito da sentença evangélica esconde, certamente, uma sabedoria interior, capaz de sobrepor-se ao bom senso dos fariseus. Quando São Francisco de Assis concitava os primeiros irmãos da Ordem a saírem pelo mundo consolando os aflitos, curando os enfermos, pregando a doutrina de Cristo, e aceitando apenas o prato que de esmola lhes estendessem, advertia-lhes: “Não vos inquieteis com o que vos venha a acontecer, pois nós não podemos parecer senão crianças ou malucos.” As palavras do “Poverello di Dio” aplicam-se muito bem à idiotia do príncipe Míchkin, ao quixotismo cristão do herói dostoievskiano.
Míchkin é surpreendido, frequentemente, a dizer as coisas mais profundas e luminosas, fazendo as pessoas que o escutam duvidarem de que se trate de um idiota. Também a dúvida de que Dom Quixote fosse um maluco ocorria constantemente aos que com ele conversavam. A simplicidade, a pureza, a inocência possuem dons divinatórios por despojarem o homem dos preconceitos que lhe encurtam a vista e lhe envenenam a existência. Em David Copperfield, de Dickens, há o tipo extremamente simpático de um velhote meio lunático, Mister Dick, a quem a tia Betsey costuma recorrer, quando hesita em tomar qualquer resolução. E a palavra desse pobre de espírito é sempre justa e acertada. Dostoiévski, que se impressionara com o Pickwick, não devia ignorar o admirável Mister Dick.
No oitavo esboço há um ponto em que o romancista identifica Míchkin com Cristo, falando em príncipe Cristo. Pouco antes, no sétimo esboço, o romancista anotara, como quem fazia uma descoberta essencial: “Ele é idiota, mas é um príncipe.” A categoria de príncipe completara a ideia do herói que o escritor queria concretizar... É idiota, mas é um ser superior e nobre; a pureza e a inocência produzidas pela doença estão igualmente condicionadas à fina estirpe desse homem, diferente da maioria. E não serão os demais no romance, com a pretensão de sensatos e civilizados, uns estúpidos, uns imbecis e uns bárbaros ante a doçura do idiota que supera a todos, na medida em que entra em conflito com todos? Onde, pois, a civilização? Com os burgueses carregados de preconceitos do Ocidente, ou com os simples e os puros, os príncipes do Oriente na sabedoria de sua humildade cristã? Cristo dissera, ele também um príncipe e o maior de todos: “O meu reino não é deste mundo.” Na hierarquia de valores morais sugerida por Dostoiévski os príncipes não foram feitos para reinar neste mundo. Míchkin humilha-se a todo instante. Recebe uma bofetada e perdoa ao agressor; ouve uma ofensa e a retribui com um gesto de amor. Mas há uma sublime ironia nessa humildade. Porque os humilhados serão exaltados e os exaltados serão humilhados. Não teria ido buscar aí Tólstoi a origem da sua teoria da não violência?
Afinal, depois de vencer uma infinidade de tropeços, de anular as consequências de inúmeras intervenções desastrosas, Míchkin vê apertar em torno de si o cerco do Mal. Sua influência angélica desfizera muitas maquinações satânicas, mas ele começa a pressentir a impossibilidade de neutralizar tantos bafejos nefastos. O Mal contamina tudo, infiltra-se em tudo, até culminar na cena do último capítulo: Rogójin mata Nastássia e o príncipe vai encontrá-lo, junto ao cadáver da vítima, para passarem ambos ali a noite, numa trágica vigília. Era demais, sim, era demais. As asas do anjo descaem exaustas, depois de se estenderem num derradeiro esforço de proteção e amor sobre a cabeça do assassino que chora. Estava tudo perdido. O Mal triunfava. O príncipe mergulha definitivamente na idiotia. Ante a realidade demasiado atroz dá-se a ruptura completa do seu espírito. Jung, no livro O Inconsciente e o Eu, já mostrou o mecanismo de defesa que existe muitas vezes na loucura. O indivíduo enlouquece por uma estratégia, o meio de fugir a uma dor, cujo peso não pode suportar. Esmagado pela catástrofe total, o príncipe teria dito, como o herói do Henrique IV, de Pirandello, num recurso supremo de salvação: “Agora completamente idiota, para sempre!...” Não podia haver outro fim — dissera Dostoiévski.
* * *
O romance causou uma impressão de espanto à maioria dos leitores. É realmente uma das obras mais alucinantes de Dostoiévski. Nunca se vira tanta gente estranha, tipos de um comportamento tão esquisito, essa comparsaria fantástica, movendo-se numa atmosfera pesada de mistério. Não se sabe de onde vêm tais criaturas; passam por nós gesticulando, ouvimos-lhes os diálogos, mas nunca as surpreendemos nos flagrantes prosaicos da vida cotidiana. Não as vemos comendo, dormindo, nem sabemos, geralmente, se trabalham ou onde trabalham. São menos figuras humanas do que almas humanas. O realismo de Dostoiévski era, como se sabe, todo psicológico. Em carta ao crítico Strákhov, o escritor observara: “O romance foi escrito com pressa, é prolixo e não está bem realizado. Mas consegui fazer algo. Não me responsabilizo pela obra e sim pela ideia.”
Dostoiévski sempre se torturara com a consciência de um fracasso na luta pela expressão. Mais tarde, lançando os olhos por todos os seus romances, ele lamentará: “Há quarenta anos trago comigo uma ideia que teria feito a felicidade dos homens, se me fosse dado exprimi-la.”
Rio, agosto, 1949.
BIBLIOGRAFIA
Na parte relativa à elaboração de O idiota forneceu-me valiosos subsídios o meu amigo Otto Maria Carpeaux, com seu universalismo cultural e seu prodigioso poliglotismo, pondo-me ao alcance a documentação de livros em russo e alemão ainda não traduzidos para outro idioma. Pela gentileza deste perfeito companheiro, aqui me confesso gratíssimo, indicando algumas dessas obras consultadas:
P. N. Sakúlin e N. F. Bélchikov — O arquivo de O idiota de Dostoiévski. Moscou, 1931, em russo.
V. S. Dorovatóvskaia-Liubímova — “O Idiota de Dostoiévski e a crônica judiciária da época” (na revista Petchát i Revolútsia, III, 1928, págs. 31 e 53, em russo).
A. Manning — “O problema de O idiota de Dostoiévski” (na revista Salvia, nº 1-2, 1928, em russo).
A. L. Volynski — O livro da grande ira (tradução alemã), Frankfurt, 1905.
W. Kunze — “O idiota de Dostoiévski” (na revista Die-Drei, junho, 1924, em alemão).
NOTA SOBRE GRAFIA E ACENTUAÇÃO DOS NOMES PRÓPRIOS
Todos os nomes próprios neste volume são grafados e acentuados segundo a pronúncia russa, a fim de que, transpostos para caracteres latinos, se leiam ou pronunciem corretamente. Com isto, procurou-se também corrigir a maneira errônea e viciosa com que usualmente se escrevem, em língua portuguesa, os nomes russos, o que ocorre sobretudo por influência de traduções francesas, espanholas e inglesas.
Um agradecimento a D. Marina Stepanenko e ao escritor João Guimarães Rosa pela colaboração que nos prestaram na elaboração desse trabalho.
José Geraldo Vieira
PRIMEIRA PARTE
1.
Em dada manhã de novembro, aí pelas nove horas, o rápido de Varsóvia se aproximava de Petersburgo em alta velocidade. Estava degelando, e tão úmido e embaçado que era difícil distinguir qualquer cousa a dez passos da linha à direita ou à esquerda das janelas dos vagões. Dentre os passageiros alguns regressavam do estrangeiro, mas a maioria dos que lotavam os compartimentos da terceira classe era gente de condição humilde, vinda não de muito longe, a negócio. Todos naturalmente estavam cansados e friorentos, com os olhos pesados de toda uma noite de viagem, e suas faces pálidas e amarelentas competiam com a cor do nevoeiro.
Numa das carruagens de terceira classe, dois passageiros desde antes de amanhecer estavam sentados diante um do outro, ao lado da janela. Ambos moços, não muito bem-vestidos, viajando com pequena bagagem. Tinham uma aparência de chamar atenção e demonstravam querer encetar conversação. Se houvessem podido saber o que mutuamente possuíam de extraordinário, muito se teriam admirado de o acaso estranhamente os colocar assim frente a frente, num vagão de terceira classe do rápido de Varsóvia. Um deles era um homem baixo, duns 27 anos, de cabelos crespos quase pretos e olhos cinzentos, pequenos e ardentes. Um nariz grande e chato avultava entre os malares proeminentes. Os lábios finos conservavam em sua curva um contínuo sorriso atrevido, duma ironia maliciosa; mas a fronte, bem conformada e alta, redimia as linhas grosseiras da parte inferior do rosto. O que mais impressionava nesse homem, apesar do seu vigor, era a palidez mortal que lhe dava ao mesmo tempo um aspecto de cansaço e um feitio a bem dizer dolorosamente ardente, que não se coadunava com o insolente sorriso rude nem com a expressão dura e presunçosa dos olhos. Agasalhava-o um grosso sobretudo preto forrado de pele de carneiro e que não lhe deixara sentir o frio noturno; já o seu companheiro, porém, tinha ficado exposto ao frio e à umidade dessa noite bem russa de novembro, para a qual evidentemente não viera preparado. Trazia este uma capa bem espessa e ampla, com enorme capuz, dessas que, embora muito usadas lá fora, na Suíça ou no norte da Itália, durante o inverno, estão longe, todavia, de servir a quem se propõe uma viagem como a do percurso entre Eldtkuhnen e Petersburgo. Viável e satisfatória na Itália, longe estava de ser suficiente para a Rússia. O dono da capa era um jovem também duns 26 ou 27 anos, de estatura pouco acima da vulgar, de cabelos louros e abundantes, faces encovadas e uma barba pontuda tão clara, que parecia branca. Seus olhos eram grandes, azuis e fixos. Através deles transparecia algo gentil, mas com uma expressão afadigada e tão esquisita que muita gente ao primeiro relance reconheceria estar defronte dum epilético. Ainda assim o rosto era agradável, bem tratado, de traços finos, sem uma coloração própria, muito embora nessa ocasião estivesse um pouco azulado por causa do frio. Segurava um pequeno embrulho atado num lenço grande de seda puída onde decerto estavam todos os seus haveres. Calçava sapatos de sola grossa, cobertos com polainas, tudo à maneira estrangeira.
O seu companheiro de cabelos escuros, o do sobretudo de pele de carneiro, continuava a observar tudo isso, visto não ter o que fazer; e por fim, dando ao sorriso uma indelicadeza maior, num desses gestos que não raro traem, casualmente, certa satisfação ante a desgraça alheia, lhe perguntou sem a menor cerimônia:
— Com frio?
E deu uma sacudidela de ombros.
— Muito! — respondeu com extraordinária presteza o seu vizinho. — E pensar que se trata apenas de um degelo. Imagine então se estivesse congelando! Não esperava que por aqui já fizesse tanto frio. Perdi o costume.
— Está vindo do estrangeiro, hein?!
— Estou, sim; da Suíça.
— Credo! Não me diga! — E o homem moreno assobiou e depois riu.
Puseram-se a conversar. Era notável a boa vontade com que o jovem da capa suíça respondia às perguntas do companheiro. Não deixava sequer transparecer nenhum melindre de desconfiança ante a extrema impertinência das indagações inconvenientes e sem propósito. Contou-lhe que estivera uma grande temporada, mais de quatro anos, fora da Rússia; que o tinham mandado para o estrangeiro por causa da saúde, duma certa moléstia nervosa fora do comum, do gênero assim da epilepsia ou da dança de São Guido, com ataques e contrações. O homem trigueiro à medida que escutava não perdia ensejo de rir à grande; e riu muito mais ainda quando o outro em resposta à sua pergunta “Bem, mas afinal de contas o curaram?” respondeu:
— Qual o quê!
— Mas então o senhor deve ter gasto muito dinheiro com isso! E nós aqui a acreditarmos nessa gente de lá — observou o homem de preto, criticando.
— É isso mesmo! — aparteou um indivíduo mal-ajambrado e corpulento, duns quarenta anos, com um narigão vermelho e a cara cheia de espinhas, que estava sentado rente deles.
Pelo jeito devia ser algum funcionário subalterno, com os defeitos típicos da sua classe.
— Pois é! Absorvem todos os recursos da Rússia para acabarem não fazendo cousíssima nenhuma!
— Oh! No meu caso o senhor está completamente equivocado — redarguiu o paciente chegado da Suíça, num tom amável e conciliatório. — Naturalmente não posso contradizer a sua opinião, porque não estou a par de tudo isso; mas no meu caso o médico me conservou lá aproximadamente durante dois anos, à própria custa, e ainda gastou o resto do seu pouco dinheiro com esta minha viagem para cá.
— Como assim?! Então o senhor não dispunha de gente sua que pagasse? — indagou o homem moreno.
— Não; o sr. Pavlíchtchev, que costumava pagar por mim, morreu há dois anos. Escrevi, à vista disso, para Petersburgo, à sra. Epantchiná, uma parenta minha longe, mas não obtive resposta. Então tive que vir...
— E para onde vai agora?
— O senhor quer se referir... onde vou ficar?... A bem dizer, não sei... Por aí...
— Ainda não pensou nisso, não é?
E os dois ouvintes riram, outra vez.
— E não me admiraria nada se esse embrulho aí fosse tudo quanto o senhor possui de seu, neste mundo! — aventou o homem do sobretudo preto.
— Nem vale a pena apostar! — retrucou o funcionário de nariz vermelho, com ar jocoso. — Eu cá não me abalançaria a isso quanto mais a aventar que aqui o amigo tenha alguma cousa no carro de bagagem. Aliás, convenhamos, a pobreza está longe de ser um vício.
Pelos modos esse era de fato o caso, e o jovem logo confirmou tal suposição, imediatamente, com a sua presteza peculiar.
— Seja lá como for, o seu embrulho merece consideração — prosseguiu o funcionário depois que todos se riram à larga (sim, todos, pois por mais estranho que pareça, o dono do embrulho também se pusera a rir, encarando-os, o que aumentou de muito a alegria), embora se possa apostar na certa que dentro dele não haja luíses nem fredericos, e muito menos florins brunidos. Sim, pois se não bastassem as polainas que o senhor usa sobre as botinas compradas no estrangeiro — suficiente seria acrescentar a esse embrulho o tal parentesco com uma pessoa como a sra. Epantchiná, a mulher do general! Sim, convenhamos que esse embrulho aí se reveste de um valor todo especial, se é que realmente a sra. Epantchiná é sua parenta. Não vá o senhor estar laborando num equívoco, num desses enganos que soem muitas vezes acontecer... por via dum excesso de imaginação.
— Outra conjectura certa, essa do senhor — concordou e esclareceu o jovem louro. — Trata-se realmente, por assim dizer, duma afirmação muito relativa, pois ela quase não chega a ser parenta minha; tanto que nem me surpreendi por não haver recebido resposta. Eu já contava com isso.
— Botou fora então o dinheiro dos selos! Hum!... Em todo o caso o senhor é franco, não tem empáfia, o que já é a seu favor! Hã, hã!... Conheço o general Epantchín; aliás toda a gente o conhece; basta ele ser como é; e em tempos conheci o sr. Pavlíchtchev também, que pagou as suas despesas na Suíça, se é que se trata de Nikolái Andréievitch Pavlíchtchev, pois houve dois com esse nome: eram primos. O outro vive na Crimeia. O falecido Nikolái Andréievitch era um homem de valor e muito bem relacionado; chegou a possuir quatro mil servos...
— Exatamente; Nikolái Andréievitch era o nome dele.
E ao responder, o jovem olhou atentamente, de alto a baixo, o cavalheiro que sabia tudo.
Tais cavalheiros oniscientes são encontrados bastantes vezes numa certa camada da sociedade. Sabem tudo. Tanto a sua incansável curiosidade como as suas aptidões de espírito inclinam-se irresistivelmente numa direção, sem dúvida por falta de ideias e de interesses mais importantes na vida, como diria um pensador moderno. Mas as palavras “eles sabem de tudo” devem ser tomadas aqui num sentido quiçá limitado: em que departamento fulano trabalha; que espécie de amigos tem; quais os seus proventos; onde foi governador; quem é sua mulher e que dote lhe trouxe; quais são os seus primos de primeiro grau; quais os de segundo; e outras cousas deste jaez. A maioria de tais cavalheiros oniscientes vivem com as mangas coçadas nos cotovelos e recebem um ordenado de 17 rublos por mês. As pessoas de cujas vidas eles conhecem todos os pormenores ficariam perplexas se lhes fosse dado imaginar suas intenções, mas, muitos desses cavalheiros arrancam de tais conhecimentos uma consolação sobremaneira positiva, o que importa numa ciência completa, disso derivando um autorrespeito e o mais alto prazer espiritual. Não se pode negar que se trata de uma fascinante ciência. Farto estou de haver visto homens cultos, literatos, poetas, políticos que procuraram e acharam nessa ciência o seu mais elevado conforto e a sua última finalidade, apenas tendo conseguido fazer carreira mediante emprego de tais dons.
Durante esta parte da conversação o homem moreno deu em bocejar e em olhar através do vidro da janela, esperando impacientemente o fim da viagem, não tardando a ficar bastante inquieto, deveras, mal contendo a própria agitação. Na verdade seus modos não deixavam de ser bastante estranhos; ora parecia ouvir sem escutar, ora parecia olhar sem ver. Chegou mesmo a rir, uma vez ou outra, sem saber de quê, ou logo se esquecendo do motivo.
— Desculpe, com quem tenho eu a honra de... — perguntou de repente o homem da cara cheia de borbulhas, voltando-se para o moço do embrulho.
— Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin é o meu nome — respondeu este último, sem a menor hesitação, de modo muito espontâneo.
— Príncipe Míchkin? Liév Nikoláievitch?... Não conheço. Nem creio já ter ouvido! — respondeu o amanuense, pensativamente. — Claro que não estou dizendo que desconheço o sobrenome, que até é histórico; o compêndio de História de Karamzín dá, e com notórias razões; refiro-me ao senhor, pessoalmente. Não me constava que houvesse príncipes Míchkin por aí; pelo menos não se ouve falar neles.
— Creio que não haja, mesmo — respondeu logo Míchkin — ou melhor, só existe um, atualmente, que sou eu; cuido ser o último deles. E no que se refere aos nossos pais e avós, alguns não foram senão pequenos proprietários rurais. Meu pai foi cadete, depois tenente do Exército; no entanto, a senhora do general Epantchín não deixava de ser, de certa forma, uma princesa Míchkin, pois como tal foi nascida; foi a última da sua fornada... também!
— Eh! Eh! Eh! “A última da sua fornada!” Boa! Com que graça o senhor esclareceu isso! — chasqueou o funcionário público.
O homem moreno também se arreganhou todo. Míchkin ficou até surpreendido em haver perpetrado um gracejo, aliás muito insípido.
— Palavra de honra que me exprimi assim sem pensar — explicou ele, por fim, meio zonzo.
— Lógico, lógico que foi sem pensar — concordou o funcionário bem-humorado.
— E o senhor, lá no estrangeiro, também esteve estudando com professores, príncipe? — perguntou sem mais aquela o homem do sobretudo de pele de carneiro.
— Estive, sim senhor.
— Pois eu nunca estudei nada.
— Bem, eu, quer o senhor saber? Só estudei um pouquinho — acrescentou o príncipe quase como a querer pedir desculpas. — Eles lá não me apertavam por causa da minha doença.
Nisto o homem da capa preta se saiu com esta, à queima-roupa:
— Conhece os Rogójin?
— Não, não os conheço, absolutamente. Dou-me com muito pouca gente aqui na Rússia. O senhor é um Rogójin?
— Sim, chamo-me Parfión Rogójin.
— Parfión? O senhor é um desses Rogójin que... — começou logo o funcionário, tomando um ar de crescente circunspeção.
— Perfeitamente. Um deles. Sou um dos tais Rogójin, sim — atalhou imediatamente o homem moreno, com um feitio grosseiro de irritação. Não se tinha dirigido uma única vez ao homem das borbulhas, na verdade até ali só havendo falado com Míchkin.
— Não me diga!... — E o amanuense se petrificou, cheio de espanto, enquanto os olhos pareciam querer saltar-lhe das órbitas. E logo o seu rosto assumiu uma expressão de servilismo e de reverência, quase que de pânico. — É parente, porventura, de Semión Parfiónovitch Rogójin, cidadão honorário e hereditário que faleceu há cousa de um mês e que deixou uma fortuna de dois milhões e meio de rublos?!
— E como sabe você que ele deixou dois milhões e meio? — retrucou o homem moreno, sem se dignar olhar para o funcionário público nem mesmo de relance. — Veja este sujeito! — E se voltou bem para o príncipe, indicando com um gesto de pálpebra o outro. — Que lucra gente como essa em bajular logo uma pessoa? Lá isso que meu pai morreu, de fato morreu, está fazendo já um mês. E aqui, conforme o senhor me vê, estou chegando de Pskóv, quase descalço. O patife do meu irmão, mais a minha mãe, não me remeteram um vintém sequer; e muito menos um aviso — nada! Como se eu fosse um cão! E estive todo o mês de cama, em Pskóv, com febre!
— Mas, valha-o Deus, agora vai o senhor entrar num milhão intacto. Isso, avaliando muito por baixo. — E o funcionário agitou as mãos para o alto.
— E este sujeito a se meter, está vendo só o senhor, príncipe?! — disse Rogójin, que acabou se voltando irritado, dizendo para o intruso, depois, em tom furioso: — E escusa de pensar que lhe jogarei um copeque que seja, está ouvindo? Nem que você se equilibre com a cabeça no chão e as pernas para o ar, escutou?!
— Se me equilibro! Olá, se me equilibro!
— Esta agora! Pois não lhe darei cousa nenhuma, pronto! Nem que você dance à minha volta durante uma semana, de fio a pavio.
— Pois não dê, ora essa!? E por que haveria o senhor de dar? Mas que dançarei, lá isso dançarei. Largo a mulher e as crianças e venho dançar na sua frente. Homenagens lhe são devidas! Se são!...
— Enforque-se! — cuspiu o homem trigueiro, logo se voltando para o príncipe, novamente. — Há cousa dumas cinco semanas, sem trazer nada a não ser um embrulho como o senhor agora, fugi da casa de meu pai para a casa de minha tia em Pskóv, onde caí doente. E enquanto estive fora, meu pai morreu. Deu com o rabo na cerca... Deus o tenha na Sua glória, arre! Mas quase que quem morria antes era eu. Sim, matava-me, acredite-me, príncipe! Eu que não fugisse! Dava-me cabo do canastro ali na hora, sem cerimônia alguma!
— O senhor o desgostou com alguma cousa? — indagou o príncipe, olhando para o milionário com um interesse muito especial, perscrutando-o através da pele de carneiro. E conquanto a só história da herança dum milhão tornasse o homem já por si notável, algo mais havia nele que surpreendia e interessava Míchkin. E motivo deve ter havido para o próprio Rogójin se pôr a conversar prontamente com o príncipe, na verdade parecendo se tratar bem mais de uma necessidade física do que mental, despertada mais pela preocupação do que pela franqueza, como se buscasse, na sua agitação e no seu paroxismo, alguém a fim de exercitar a língua. Parecia estar ainda doente, ou pelo menos com um resto de febre. Quanto ao funcionário subalterno, este então já agora permanecia como que suspenso diante de Rogójin, quase não ousando respirar, agarrado às menores palavras, como à espera que delas caísse algum diamante.
— Zangado, lá isso bem que ele estava, e bem que lhe sobravam razões — respondeu Rogójin — mas tudo preparado propositadamente por meu irmão. A minha mãe não posso eu culpar, não passa duma velha que vive lendo As vidas dos santos, sentada entre outras velhotas. E o que o mano Semión disser é lei. Mas por que não me mandou ela avisar ainda a tempo? Eu sei por que foi! Sim, verdade é que eu estava ainda inconsciente a tal altura. Garantem que passaram um telegrama; de fato, mas o passaram a quem? A minha tia. Ora, minha tia cozinha uma viuvez há mais de trinta anos e passa a vida com os iuródivii,1 uns romeiros malucos, isso desde manhã até noite. Não que seja propriamente uma freira; algo muito pior, isso sim. Claro que, como velha, havia de se apavorar com um telegrama. E zás, foi levá-lo imediatamente à delegacia de polícia, sem ao menos abri-lo: e lá ainda está o estupor! Quem me valeu foi Vassílii Vassílitch Konióv, que me escreveu contando essa trapalhada toda. Até me mandou dizer que meu irmão cortou durante a noite as borlas douradas do brocado funerário do caixão de meu pai. “Esta joça deve valer um dinheirão!” disse o gajo. “Só por causa disso ele pode ser mandado para a Sibéria, se eu quiser, pois se trata dum sacrilégio. Você aí, seu espantalho”, virou-se para o funcionário público, “a lei diz ou não diz que isso é sacrilégio?
— Se é sacrilégio? Inominável! — asseverou o amanuense, imediatamente.
— E não é um caso de Sibéria?
— Lógico! Sibéria! Sibéria imediatamente!
— Eles lá cuidam que eu ainda esteja doente. — E Rogójin voltou-se de novo para o príncipe. — Pois, sem dizer um pio a quem quer que fosse, me meti no vagão, doente mesmo como estava e como ainda estou, e vou tocando para casa. “Tu, mano Semión Semiónovitch, ao abrires a porta quando eu bater, vais dar de cara comigo!” Fez meu pai virar contra mim, eu sei. Confesso que fiz meu pai ficar zangado por causa de Nastássia Filíppovna. Por causa do que eu fiz. Quanto a isso, não há dúvida, sou culpado.
— A propósito de quem? De Nastássia Filíppovna? — balbuciou o funcionário com o maior servilismo, como a ligar o que estava escutando com qualquer cousa no seu cérebro.
— Não vá me dizer que a conhece também! — exclamou Rogójin com impaciência.
— Pois conheço! Se conheço! — respondeu o homem, triunfantemente.
— Ora a minha vida! Há várias Nastássias Filíppovnas. E uma cousa lhe digo: deixe-se de insolência, animal! — Voltou-se logo para o príncipe e disse como a desabafar: — Já me palpitava que algum estupor da laia deste não tardaria a se dependurar em mim!
— Mas talvez seja essa a que eu conheço! — disse o amanuense, ressabiado. — Eu, Liébediev, sei de tudo; compreendo que Vossa Excelência me invective; mas, e se eu provar o que digo? Sim, eu me refiro a essa Nastássia Filíppovna mesma, por cuja causa o senhor seu pai tentou lhe dar umas bengaladas. O sobrenome dessa Nastássia Filíppovna é Baráchkov, e é uma dama a bem dizer de alto coturno, e mesmo uma princesa, tal a sua maneira; está ligada a um homem chamado Tótskii Afanássii Ivánovitch — a esse e a mais ninguém, pessoa de propriedades e de imensa fortuna, membro de companhias e de sociedades, mediante as quais se tornou muito amigo do general Epantchín...
— Raios o partam! É isso mesmo! — Rogójin acabou ficando surpreso. — Ufa! Pois não é que o excomungado sabe mesmo?!
— Cá comigo é assim, Liébediev sabe tudo! Eu dava umas voltas por aí, Excelência, acompanhando o jovem Aleksándr Likhatchóv. Logo depois que morreu o pai dele andamos juntos uns dois meses. Mostrei-lhe umas cousas, que eu cá conheço muito bem, a ponto dele não se mexer, um passo que fosse, sem Liébediev. Por sinal que ele agora está na prisão, por dívidas; mas a tal altura tive minhas oportunidadezinhas de vir a conhecer Armância, Corália, mais a princesa Pátski e Nastássia Filíppovna. E muitas outras além destas.
— Nastássia Filíppovna? E por qual motivo esse Likhatchóv... — Rogójin encarou-o com o cenho franzido, enquanto os lábios se crispavam lívidos.
— Absolutamente! Absolutamente! Não senhor! De forma alguma! — garantiu o amanuense, com uma pressa nervosa. — Likhatchóv não a conseguiria por dinheiro algum! Não, ela não é nenhuma Armância. Ela não tem ninguém, a não ser Tótskii. Certas noites acontece ir ela se sentar no seu camarote no Grande Teatro ou na Comédia Francesa. Não digo que os oficiais, por exemplo, não falem a propósito dela; mas até mesmo eles nada podem dizer contra ela. “Lá está a famosa Nastássia Filíppovna!”, dizem, e é tudo. E mais nada, absolutamente, pois não existe mesmo nada.
— Lá isso é a pura verdade — confirmou Rogójin franzindo a testa, sinistramente. — Já uma outra vez Zaliójev disse a mesma cousa. Ia eu atravessando a Perspectiva Névskii, príncipe, metido no casaco de meu pai, que já tinha três anos de uso, quando ela saiu duma loja e subiu para a carruagem. Fiquei logo abrasado. E esbarrei com Zaliójev. Se desmazelado eu andava, elegante e aprumado vinha ele, que nem um oficial de cabeleireiro, como sempre com o seu monóculo. E dizer-se que na casa de meu pai nós usávamos botas alcatroadas e éramos tratados só a sopas de couve sem carne! “Ela não é para o teu bico, rapaz”, chasqueou ele. “É uma princesa. Chama-se Nastássia Filíppovna Barachkóv e vive com o Tótskii. E o tal Tótskii nem sabe o que fazer para se livrar dela, pois já atingiu a idade crítica da vida — 55 anos — e aspira casar-se com a maior beldade de Petersburgo.” Acrescentou, então, que eu poderia ver Nastássia Filíppovna outra vez, ainda naquele dia, no Grande Teatro, na récita do ballet. Que ela deveria estar no seu camarote, na sua baignoire. Falar, na nossa família, em ir ao ballet nunca passaria de extravagante presunção, pois o meu velho não tinha meias medidas: ante uma tal audácia, esbodegaria logo com qualquer de nós, taxativamente! Mas eu escapuli e me esgueirei teatro adentro, lá permanecendo durante uma hora; e vi de novo Nastássia Filíppovna. Consequência: a noite inteira não consegui dormir. Na manhã seguinte, como de propósito, meu pai cai na asneira de me entregar duas apólices de cinco por cento, no valor de 5 mil rublos cada uma. “Vai vendê-las”, diz-me ele, “e entrega 7.500 rublos no escritório do Andréiev, liquidando assim uma conta que tenho lá e volta imediatamente para casa com o troco, que te fico esperando.” Saí com as apólices, troquei-as em dinheiro sonante, mas quem diz que fui ter com Andréiev? Toquei mas foi diretamente para a Loja Inglesa, onde escolhi um par de brincos tendo cada um deles um diamante do tamanho mais ou menos de uma noz. Dei por eles os 10 mil rublos e ainda fiquei devendo mais 400. Disse o meu nome e confiaram em mim. Dali fui com os brincos procurar Zaliójev. Contei-lhe tudo e o intimei: “Leva-me à casa de Nastássia Filíppovna, mano velho.” Despachamo-nos. Não via e nem me posso lembrar que ruas seguíamos, por onde passávamos, por quem cruzávamos. Só sei que fomos parar exatamente na sua sala de visitas e que ela depois apareceu, pessoalmente. Naquele instante como havia eu de dizer a ela quem eu era? E foi Zaliójev quem tomou a palavra: “Queira aceitar isto da parte de Parfión Rogójin, como lembrança do encontro com a senhora, ontem; digne-se aceitar, por quem é!” Ela abriu o estojo, olhou e sorriu. “Agradeça por mim ao seu amigo, o sr. Rogójin, por sua tão amável atenção.” Inclinou-se, saudando, e retirou-se lá para dentro. Hã! Por que não morri eu logo ali mesmo? Se me atrevera a ir à casa dela fora porque pensara: “Só em revê-la, morrerei!” E o que me mortificava mais do que tudo, era aquela besta do Zaliójev haver ficado com as honras e vantagens do ato. Sim, pois malvestido como eu estava, fiquei acolá, diante dela, mudo, pasmado, cheio de acanhamento, ao passo que ele, endomingado na última moda, todo frisado e empomadado, muito garboso com a sua gravata de riscas — era todo mesuras e salamaleques. Ora, é claro que ela o tomou como sendo eu! “Toma tento, ó cousa”, disse-lhe eu, já na rua, “não te ponhas a arquitetar patranhas, hein? Estás ouvindo bem?” Ele ria. “E como é que vais agora prestar contas do dinheiro a teu pai?” Bem me pareceu que a solução era, em lugar de voltar para casa, me atirar ao rio; mas pensei: “Depois do que houve, que me importa o resto?” e entrei em casa desesperado como uma alma sem remissão.
— Que horror! — fez o funcionário, encolhendo-se todo. Positivamente estava assombrado. — Ainda mais sabendo que o falecido era um indivíduo capaz de dar cabo de uma pessoa por causa de 10 rublos, quanto mais então por 10 mil rublos, credo! — acrescentou, meneando a cabeça para o príncipe.
Míchkin encarou Rogójin observando-o com interesse; este último se tornara agora mais lívido do que nunca.
— Capaz de dar cabo de uma pessoa! — disse Rogójin, repetindo as palavras do outro e escandindo-as. — Quem lhe disse que ele era capaz de liquidar com um sujeito? — E, voltando-se imediatamente para o príncipe, prosseguiu: — O velho descobriu logo o meu estelionatozinho... e, de mais a mais, Zaliójev saíra a bater a língua, contando a todo o mundo. Meu pai agarrou-me, fechou-se no andar de cima comigo e, durante uma hora, lhe estive nas garras; desancou-me. “E isto é apenas um prefácio”, me disse ele. “Ainda voltarei para te dizer boa noite.” Que pensa o senhor que ele resolveu? Dirigiu-se nem mais nem menos à casa de Nastássia Filíppovna, arrojou-se aos pés dela, chorando e implorando, a ponto de ela acabar indo buscar o estojo e lho atirar. “Aí estão os brincos, seu barbaças!”, gritou-lhe. “E agora duplicaram de valor para mim, visto Parfión ter afrontado tamanha tempestade para mos trazer. Recomende-me a Parfión Semiónovitch e lhe agradeça por mim.” Durante isso tratei de arranjar 20 rublos com Seriója Protúchin, tomei a bênção de minha mãe e corri a tomar o trem para Pskóv, onde já cheguei tiritando de febre. Aquelas velhas todas de lá desandaram a ler As Vidas dos Santos à minha volta... E eu estatelado, bêbedo, a escutá-las! Acabei com o resto das moedas, percorrendo as tavernas do lugarejo, vagueando pelas ruas sem dar tento de nada, completamente aparvalhado. Ao amanhecer estava em franco delírio e, para cúmulo, os cães não se tinham fartado de rosnar no meu encalço. Escapei de boas.
— Bem, bem! Mas já agora Nastássia Filíppovna vai cantar num outro tom — grasnou o funcionário, esfregando as mãos.
— Isso de brincos, então... Ah, patrão, agora é que ela vai ver o que são brincos!...
— Cale-se, você aí! Se ousar dizer mais uma só palavra sobre Nastássia Filíppovna o escangalho, tão certo como haver um Deus lá em cima! Lanho-o de chicote! Ou pensa que lhe vale de alguma cousa ser íntimo de Likhatchóv? — gritou Rogójin, agarrando-o violentamente por um braço.
— Isso, isso! Escangalhe-me, pois então é que não se livra mesmo de mim! Escangalhe-me e então terá que me aturar deveras! Isso, isso, desça as mãos sobre mim, como a marcar-me com o seu carimbo de posse... Homessa! Chegamos? — O trem entrara de fato na estação. Apesar de Rogójin haver dito que estava voltando sem ter avisado ninguém, vários homens o esperavam. Assim que deram com ele prorromperam em exclamações e lhe atiraram com os gorros.
— Pois não é que Zaliójev também veio me esperar! — sussurrou Rogójin, olhando para aquele bando todo com um sorriso triunfante e algo malicioso; e logo se voltou para Míchkin. — Príncipe, não sei por que simpatizei com o senhor. Talvez porque o tenha encontrado numa emergência destas, muito embora também haja encontrado esse sujeito aqui (e mostrava Liébediev) que não suporto. Vá visitar-me, príncipe. Arrancar-lhe-emos essas polainas, comprar-lhe-emos um casaco de pele, metê-lo-ei numa casaca de primeira ordem com um colete imaculado, e mais tudo aquilo de que o senhor gosta! Enfiarei dinheiro pelos seus bolsos adentro!... e iremos ver Nastássia Filíppovna! Venha, hein?!
Ante o quê Liébediev bimbalhou de modo solene e expressivo:
— Ouviu bem, príncipe Liév Nikoláievitch? Não perca essa oportunidade! Oh, não perca esta ocasião!
Levantando-se, o príncipe cortesmente estendeu a mão a Rogójin, dizendo com a máxima cordialidade:
— Irei com o maior prazer e lhe agradeço haver gostado de mim. Irei ainda hoje mesmo se tiver tempo. Por minha vez confesso que tive, francamente, muito gosto em conhecê-lo e que desde o instante em que me contou essa passagem referente aos brincos senti grande simpatia pelo senhor. Aliás antes mesmo de me contar esse gesto, e apesar de no começo ter estado a me observar de um modo esquisito, eu já estava gostando do senhor. Obrigado também pelas roupas e pelo casaco de peles que está me prometendo. Na verdade ando muito necessitado de roupas e de agasalhos. E, quanto a dinheiro, efetivamente o que ainda me resta é uma ninharia.
— Pois apareça! Esta noite haverá dinheiro, muito dinheiro!
— Haverá sim! Haverá sim! — confirmava sem parar o amanuense. — Muitíssimo dinheiro, antes de anoitecer, antes de cair o sol!
— E mulheres também! Gosta de mulheres, príncipe? Diga com franqueza!
— Eu, n... não! Quer que lhe seja franco? Não sei se o senhor compreenderá, mas é que, decerto por causa da minha doença, nada sei a respeito de mulheres...
— Bem, se isso assim é — exclamou Rogójin — valha-o Deus, que põe Suas complacências nas criaturas inocentes.
— Sim, o Senhor nosso Deus se compraz em criaturas como o senhor — reforçou o funcionário público a quem, voltando-se, Rogójin ordenou:
— Quanto a você, siga-me!
Desceram logo do vagão. Liébediev acabara ganhando a sua partida. O grupo barulhento sumiu logo ao longo da Perspectiva Voznessénski. Quanto ao príncipe, tinha que ir para a Litéinaia. O tempo continuava enevoado e chuvoso. Míchkin informou-se do trajeto com um transeunte — e, como teria que andar umas três verstas, resolveu tomar um fiacre.
Nota
1 Iuródivii: simples de espírito, muitas vezes epiléticos, que passavam por ter os atributos de santos e um certo dom profético. (N. do T.)
2.
O general Epantchín vivia em casa própria, numa travessa da Litéinaia, perto da igreja do Spass Preobrajénskii.
Além desta magnífica residência de seis andares, cinco dos quais estavam alugados, tinha um outro enorme prédio na rua Sadóvaia, que também lhe dava boa renda. Possuía ainda uma vasta propriedade às portas de Petersburgo e também uma fábrica próspera nos subúrbios. Em dias longínquos havia usufruído, como era sabido de todo o mundo, fortes privilégios dos monopólios do governo, tendo, atualmente, interesses e considerável influência na direção de sociedades anônimas muito firmes. Era reputado pela sua grande fortuna e imensas ligações, como homem de negócios, tendo tido sempre o dom de saber se tornar indispensável, sendo a seção governamental onde trabalhava a melhor prova disso. Todavia, era notório que Iván Fiódorovitch recebera pouca educação e era neto de soldado. Esta última condição indubitavelmente só lhe podia ser honrosa. Mas o general, embora fosse um homem inteligente, não se libertara dumas pequeninas fraquezas, aliás desculpáveis, não lhe agradando alusões a tal respeito. Tratava-se, inquestionavelmente, dum homem inteligente e hábil. Adotara como princípio, por exemplo, não se colocar muito em evidência, apagando-se até quando as circunstâncias o exigiam, sendo que muitos o apreciavam justamente por causa da ciência de saber se colocar em seu lugar. Mas se esses que o admiravam por isso soubessem o que, às vezes, se passava na alma de Iván Fiódorovitch, o homem que sabia qual era o seu lugar!...
Embora, realmente, tivesse conhecimentos práticos e experiência própria, bem como notável habilidade, preferia aparecer carregando ideias alheias em vez das inclinações do próprio intelecto, para poder estadear como homem “desinteressadamente devotado” e — para coincidir com o espírito da época — como um coração generosamente bem russo. A tal respeito contavam-se histórias engraçadas que não desconcertavam o general, pois era reconhecidamente bafejado pela sorte, até nas cartas, jogando paradas fortes. E, longe de esconder esse seu fraco (como ele o chamava), intencionalmente o ostentava, visto que, além do lado pecuniário, lhe rendia outras vantagens. Frequentava uma sociedade muito variada, mas composta apenas de gente de categoria. Tinha tudo diante de si; dispunha de tempo para tudo, e tudo lhe vinha a contento. E quanto à idade, também, o general estava no que se chama a flor da vida, com seus 56 anos, não mais; e nós bem sabemos que isso é que é a verdadeira flor da existência do homem, a idade em que realmente a vida começa.
A sua boa saúde, a sua compleição, a sua risada através de dentes bons, embora pretos, o seu ar preocupado de manhã no escritório, as suas maneiras bem-humoradas de noite nas cartas, ou em casa de Sua Alteza, a sua atraente e sólida figura, tudo contribuía para o seu triunfo presente e futuro, despetalando rosas no caminho de Sua Excelência.
O general tinha uma família, com florescentes filhas. Nem tudo, porém, eram rosas somente... Havia circunstâncias imediatas em que as fundadas esperanças e os promissores planos de Sua Excelência exigiam concentrações sérias e profundas. Afinal de contas, que há de mais grave e mais sagrado do que os planos dum pai? A que se devia um homem apegar, se não à sua família?
E a do general consistia de esposa e três filhas já crescidas. Casara-se muito cedo, quando ainda tenente, com uma moça quase de sua idade, que não se distinguia nem pela beleza nem pela educação, e que apenas lhe trouxera um dote de cinquenta almas, dote que serviu, todavia, como um degrau para a fortuna de mais tarde.
Mas, nunca, depois, se queixou desse casamento tão cedo contraído, e nunca o considerou um erro da mocidade; assim, respeitava a mulher, e a temia, às vezes tanto, que até chegava a amá-la... Ela era uma princesa Míchkina, duma antiga embora não muito brilhante família, tendo muito apreço à sua origem. Certa pessoa de influência, um desses protetores cuja proteção nada custa, consentira em se interessar no casamento da jovem princesa, e assim abrira caminho para o jovem oficial e lhe dera mão eficaz, embora, a falar verdade, ajuda alguma fosse precisa, um mero olhar lhe tendo bastado para perceber que não seria repelido. Com raras exceções, marido e mulher passavam a vida em harmonia. No começo, a sra. Epantchiná, como princesa nata, e a última do nome, fizera, mercê também de suas qualidades pessoais, amizades influentes nos círculos elevados, até que, ultimamente, ajudada pela fortuna e pela importância do esposo, já se considerava em casa, mesmo quando em esferas sociais mais elevadas.
Fora durante esses anos que as filhas — Aleksándra, Adelaída e Agláia — tinham crescido. Assinavam-se apenas Epantchiná, é verdade, mas possuíam nobre estirpe pelo lado materno, contavam com um dote apreciável, tinham um pai que, cedo ou tarde, deveria galgar proeminentes posições, e — questão que também não se pode desprezar — eram todas as três notavelmente bonitas, inclusive a mais velha, Aleksándra, que já completara 25 anos. A segunda, Adelaída, tinha 23 e a mais nova, Agláia, apenas vinte. Esta é que era de fato uma beleza, começando já a atrair muita atenção na sociedade. Mas isso não era tudo. Todas as três se distinguiam pela educação, pela habilidade e pelo talento. Cada qual percebera que se dava perfeitamente com as outras; sempre afinavam juntas, em tudo. Falava-se mesmo de sacrifícios feitos pelas duas mais velhas em favor da mais moça, que era o ídolo da casa. Não gostavam muito de se mostrar em sociedade e eram modestas. Ninguém as poderia censurar por altivas ou demasiado inacessíveis, apesar de se saber que eram orgulhosas e compreendiam quanto valiam. A mais velha era musicista; a segunda pintava passavelmente bem, conquanto isso não fosse do conhecimento geral, a não ser recentemente e, ainda assim, por acaso. Em uma palavra: muito se dizia em favor delas. Mas também havia críticas hostis. Falava-se com horror do número de livros que liam. Elas tinham pouca pressa em se casar; era-lhes agradável, e nada mais, pertencer a certo círculo de sociedade. Mas tudo isto era notável, pois todos conheciam a tendência, o caráter, os desejos e as propensões paternas.
Eram cerca de onze horas quando o príncipe tocou a campainha do apartamento do general, que era no primeiro andar e demasiado modesto se considerarmos a sua situação social. Um criado de libré abriu a porta e Míchkin teve dificuldade em explicar a sua aparição a esse homem que desde o começo olhava desconfiado para o seu embrulho. Por fim, ante a sua reiterada e categórica asserção de que era realmente o príncipe Míchkin, e que precisava formalmente avistar-se com o general para um assunto importante, o criado perplexo o conduziu a uma pequena antecâmara, ao lado da sala de espera que precedia ao escritório do general; e aí o passou a outro criado, cujo dever era esperar, todas as manhãs, na ante-sala, os visitantes, indo anunciá-los ao general. Este outro criado, que usava uma casaca de compridas abas, tinha uma atitude muito empertigada para os seus quarenta anos. Era o criado grave de Sua Excelência, introduzia as visitas no escritório e só por isso se dava ares de importância.
— Passe para a sala de espera e deponha o seu embrulho aqui — disse, sentando-se numa poltrona, com deliberada dignidade, passando a olhar com firmeza para Míchkin que se tinha sentado numa cadeira perto dele, com o embrulho no colo.
— Caso o senhor permita — rogou o príncipe — eu preferiria ficar aqui, com o senhor; que vou fazer lá na saleta, sozinho?
— O senhor não pode permanecer na antessala, pois é um visitante, em outras palavras, um hóspede momentâneo. Deseja ver o general em pessoa, ou...
Era evidente que o criado hesitava ante o pensamento de anunciar semelhante visita, razão pela qual fazia novas perguntas.
— Em pessoa, em pessoa, pois tenho um negócio a...
— Não me interessa saber o seu negócio. O meu dever é apenas anunciá-lo. Mas, como já lhe disse, na ausência do secretário, não posso fazê-lo entrar.
A desconfiança do homem crescia mais e mais, pois o príncipe não se parecia com o normal dos visitantes diários; e, mesmo que o general, em dadas horas, recebesse, às vezes, visitas da mais variada condição, especialmente em casos de negócios, o criado sentia, agora, a despeito da latitude das instruções que lhe tinham sido dadas, uma grande hesitação; e só mesmo a opinião do secretário é que lhe mostraria, de modo cabal, a atitude a tomar.
— O senhor é, realmente, de fora, do estrangeiro? — perguntou, sem querer; e logo ficou confuso.
O que decerto pretendera perguntar era se ele “realmente era o príncipe Míchkin”.
— Sim, vim de fora. Acabo de chegar da estação. Creio que o senhor ia perguntar se eu sou realmente o príncipe Míchkin, não o tendo feito apenas por polidez.
— Hum! — fez o criado, admirado.
— Posso assegurar-lhe que não lhe disse uma mentira e que não ficará em apuros, por minha causa. E nem precisa espantar-se com a minha aparência e porque trago um embrulho. É que não estou, atualmente, em circunstâncias lá muito favoráveis... florescentes.
— Hum! A tal respeito não tenha apreensões. O meu dever restringe-se a anunciá-lo; o secretário virá vê-lo, a menos que o senhor... Realmente, a dificuldade está em... O senhor não veio pedir nenhum auxílio ao general? Permita que avance esta pergunta!
— Oh! Não, absolutamente. Quanto a isso, fique descansado. O meu negócio é bem outro.
— Queira perdoar-me. Falei assim, por causa da impressão que o senhor me deu à primeira vista. Faça o favor de esperar; o secretário não demora! E Sua Excelência está ocupado, lá dentro, com o coronel, no presente momento. E depois, vem ainda o secretário... da Companhia... que pediu hora.
— Bem, já que devo esperar ainda um pouco, gostaria de saber se há algum lugar por aqui, onde eu pudesse fumar. Trouxe comigo tabaco e um cachimbo.
— Fumar? — disse o criado, encarando-o com desdenhosa surpresa, como se não devesse acreditar no que ouvira. — Fumar? Não, o senhor não pode fumar aqui. O senhor devia se envergonhar de pensar numa cousa dessas. Eh! Eh! Que pergunta mais disparatada!
— Não quis dizer aqui nesta sala. Julguei que houvesse algum lugar que o senhor pudesse me mostrar, pois há já três horas que não fumo. Estou acostumado a fumar. Mas seja como o senhor quiser. Há um ditado, sabe o senhor, que diz: “Em Roma não se deve... etc.”
O criado não pôde deixar de tartamudear:
— Como é que vou anunciar um camarada da sua marca? O senhor (agora já ciciava) em primeiro lugar não devia estar aqui, o lugar de esperar é na sala de espera, pois o senhor é uma visita, em outras palavras, um hóspede, e vão ralhar comigo por causa disto. — Depois acrescentou, olhando de esguelha para o embrulho que evidentemente o intrigava: — O senhor não tem a intenção de ficar aqui com a família, pois não?!
— Não! Nem penso nisso. Mesmo que fosse convidado. Vim apenas travar conhecimento com a família. E é tudo!
— Como? Travar conhecimento? — disse o criado com espanto e redobrada desconfiança e escandindo as palavras. — Mas, ora essa, o senhor no começo não disse que já os conhecia, que vinha tratar dum negócio?
— Negócio, propriamente, não. A bem dizer, sim, tenho um negócio, mas se prefere outra palavra, ei-la: Vim aconselhar-me. E vim, principalmente, porque, sendo eu próprio príncipe Míchkin, e sendo a sra. Epantchiná uma princesa Míchkin por sua vez, a última delas aliás, não havendo, assim, pois, mais príncipes Míchkin, exceto eu e ela...
— O senhor então é parente? — O lacaio ficava cada vez mais apalermado.
— Não sou propriamente isso. Ou melhor, para clarear um ponto, de vez, sou parente, mas tão afastado que nem tem valor contar com isso. Escrevi de lá à sra. Epantchiná; mas não me respondeu. Apesar disso, no meu regresso, achei que devia vir conhecê-la. Estou lhe dizendo isso para o senhor se certificar a meu respeito, pois verifico que está preocupado. Basta anunciar o príncipe Míchkin; e só este nome será razão suficiente para entenderem o motivo de minha visita. Se eu for recebido, bem; se não, tanto melhor, talvez. Mas não creio que deixem de me receber. É natural que a sra. Epantchiná queira conhecer o último e único rebento da sua família. Ela considera sobremodo a sua família, conforme ouvi em fontes autorizadas.
A conversa do príncipe parecia bastante simples. Mas era justamente essa simplicidade que não se coadunava com o presente caso; e o criado, experimentado como era, não poderia senão sentir que o que era viável de homem para homem não o era absolutamente de uma visita para um serviçal. E, embora os criados, geralmente, sejam mais inteligentes do que os seus amos supõem, o nosso homem concluiu que havia duas explicações: Ou o príncipe era uma espécie de impostor que tinha vindo pedir dinheiro ao general, ou era, simplesmente, um pouco tolo e falho de senso de dignidade, não compreendendo que não devia se sentar numa sala nem conversar sobre negócios com um mero criado. Assim, em ambos os casos, só lhe iria dar incômodos. E então retorquiu, o mais expressivamente possível:
— De qualquer modo, seria melhor que o senhor fosse para a saleta de espera.
— É. Mas se eu estivesse lá não teria podido explicar ao senhor tudo isto — respondeu o príncipe, sorrindo, com bom humor. — E o senhor ainda estaria nervoso a olhar para a minha capa e o meu embrulho. Agora, decerto, o senhor já não vai precisar esperar pelo secretário e pode ir anunciar-me ao general.
— Eu não posso anunciar um visitante como o senhor, sem falar antes com o secretário. Demais a mais, Sua Excelência deu ordens, agora mesmo, para não ser interrompido por ninguém enquanto estivesse com o coronel. O único a entrar, sem se fazer anunciar, só pode ser Gavríl Ardaliónovitch.
— É algum funcionário?
— Gavríl Ardaliónovitch? Não. É empregado da Companhia. O senhor deve pôr o seu embrulho aqui.
— Eu estava pensando nisso também. E acho que devo tirar a capa.
— Naturalmente. Não vai entrar de capa.
O príncipe levantou-se e apressadamente se desembaraçou da capa, ficando só com o seu terno que, embora usado e com o paletó um pouco curto, era decente e de bom talho. Uma corrente de aço era visível no seu colete e preso a ela um reloginho de Genebra, de prata.
Mesmo sendo o príncipe um bocado tolo — e o lacaio se tinha logo dado conta disso —, não era verossímil conversar com um visitante. Mas, ainda assim, não deixava agora de sentir certo prazer, apesar dele lhe ter despertado um sentimento de grande e inevitável indignação quando ousou perguntar:
— E a sra. Epantchiná, quando recebe ela as suas visitas? — E o príncipe voltou a sentar-se no mesmo lugar.
— Tais visitas não são atribuição minha. A senhora generala recebe em diferentes ocasiões, de acordo com o que elas sejam. A costureira é admitida às onze em ponto. Gavríl Ardaliónovitch é admitido mesmo antes de qualquer outra pessoa, às vezes até antes do almoço.
— Os cômodos aqui são mantidos numa temperatura melhor do que no estrangeiro — observou Míchkin. — Mas lá, o ar, fora de casa, é menos gélido do que aqui. Um russo, se não estiver acostumado, dificilmente poderá viver nas casas de lá, durante o inverno.
— Eles as aquecem?
— Não. E as casas são de construção diferente, isto é, as janelas e os fogões são de outro feitio.
— Hum!... O senhor esteve por lá muito tempo?
— Quatro anos. Mas, quase sempre no mesmo lugar, sempre fora de grandes cidades.
— De modo que se desacostumou dos nossos hábitos!
— Sim, de certo modo. E acredite que até estou surpreendido de não ter esquecido o russo. Enquanto falo com o senhor, fico pensando: “Ora, não é que estou falando lindamente o russo?!” Talvez, até, quem sabe se não é por isso que estou falando tanto? Desde ontem que estou abusando, falando russo sem parar.
— Hum!... Ah! O senhor antes viveu em Petersburgo? — E apesar de seus esforços, o lacaio não pôde resistir e enveredou por uma conversa polida e afável.
— Em Petersburgo? Eu? Raramente estive aqui. Só de passagem para outros lugares. Antes não conhecia nada da cidade. E agora, segundo ouvi, há muitas cousas novas, de modo que mesmo quem a conhecia ainda tem muita cousa fresca para ver. Fala-se muito do novo Palácio da Justiça.
— Hã! O Palácio da Justiça. Sim, realmente há um Palácio da Justiça. E lá pelo estrangeiro, como é? Há por lá muitas cortes de justiça? São como as nossas?
— Não saberia lhe responder. Ouvi gabarem muito as nossas, daqui. Conforme o senhor sabe, nós não temos, por exemplo, a pena capital.
— Então, lá, eles executam gente?
— Sim. Uma vez eu vi, na França, em Lion. O dr. Schneider me levou.
— Enforcam, não é?
— Não. Em França eles cortam fora as cabeças.
— Gritam?
— Como poderiam? Aquilo é feito num instante. Fazem o homem ficar deitado e então uma grande faca desce, pelo próprio peso. Uma máquina poderosa, chamada guilhotina. A cabeça pula fora antes que a pessoa pisque! Os preparativos são horríveis. Mal acabam de ler a sentença, aprontam o homem, atam-no, levam-no para o cadafalso — e isso é que é terrível! Juntam-se multidões, até mulheres, embora não gostem que as mulheres assistam.
— Não é cousa para elas!
— Naturalmente que não. Naturalmente. Uma cousa assim, tão hedionda! O criminoso era um homem inteligente, de meia-idade, forte, corajoso, chamado Legros. Mas lhe garanto que quando subiu para o cadafalso estava chorando, e mais branco do que uma folha de papel. Não é incrível? Não é hediondo? Quem pode chorar de medo? Nunca me passou pela cabeça que um homem já feito, não uma criança, mas um homem que nunca chorou, um homem de 45 anos, pudesse chorar de medo! O que não deve estar se passando na sua alma, nesse momento!? A que angústia não deve ela estar sendo levada!? É um ultraje para uma alma, eis o que é! Está escrito: “Não matarás!” E então, porque ele matou, o matam? Não. Isso está errado! Já faz um mês que assisti a isso, mas me parece estar ainda vendo com os meus olhos. Já tenho sonhado uma meia dúzia de vezes.
Míchkin, enquanto falava, estava completamente mudado; uma ligeira coloração subira ao seu rosto pálido, muito embora a sua voz continuasse gentil. O lacaio seguia-o com simpático interesse, tanto que o desagradou ter o príncipe se calado. Ele, decerto, também era um homem de imaginação e de sensibilidade, cujo pensamento trabalhava.
— Ainda é uma boa cousa que, pelo menos, não haja muito sofrimento quando a cabeça cai.
— Quer saber duma cousa? O senhor fez justamente uma observação que já ouvi de muitas outras pessoas — prosseguiu o príncipe, acalorando-se — e a guilhotina foi inventada com esse fim. Mas, naquela ocasião, me ocorreu o pensamento de que talvez isso fosse pior. Pode lhe parecer absurda e bárbara esta minha ideia, mas, quando se tem imaginação, se chega, como eu, a supor isso. Pense! Se houvesse tortura, se, por exemplo, houvesse sofrimento, um ferimento que desse agonia corporal, e tudo o mais, isso pelo menos distrairia o espírito, desviando-o do sofrimento moral, de maneira que só se seria torturado pela dor física até que se morresse. Mas a principal e pior pena não está no sofrimento corporal e sim em se saber com segurança matemática que, em uma hora, depois em dez minutos, a seguir em meio minuto, e, depois, já, bem agora mesmo, neste segundo, a alma deve deixar o corpo, e se vai cessar de ser homem; e que isso tem que acontecer!... O pior de tudo isso está em que é certo. Quando o senhor deita a sua cabeça lá, debaixo da lâmina, e a ouve escorregar vindo para a sua cabeça, este quarto de segundo é o mais terrível de todos. O senhor note que isso não é imaginação da minha parte. Muita gente tem dito o mesmo. Vamos a ver se consigo lhe dizer cabalmente o que sinto. Matar, por causa dum assassinato, é uma punição incomparavelmente pior do que o próprio crime cometido. O assassinato por sentença judicial é incomensuravelmente pior do que o assassinato cometido por bandidos. Quem quer que seja assassinado por bandidos, e cuja garganta tenha sido cortada, num bosque, à noite, ou qualquer coisa assim, naturalmente que espera escapar, até o último momento. Tem havido casos de uma pessoa ainda esperar escapar, correndo, ou suplicando misericórdia, e já depois da garganta ter sido cortada! Mas no outro caso, a que nos estamos referindo, toda esta última esperança, que faz morrer dez vezes, como é fácil compreender, está suprimida, pois se sabe que é certo. Há uma sentença; e toda a medonha tortura jaz no fato de que não há, certamente, meios de escapar. E não há, no mundo, tortura maior do que esta. Podem-se comandar soldados, mandar que um deles se coloque diante dum canhão, em batalha, e ele saber que vão dispará-lo sobre ele: ainda assim, terá uma esperança. Mas leia o senhor uma dada sentença de morte a esse mesmo soldado e ele ou enlouquecerá, ou cairá em lágrimas. Quem já afirmou que a natureza está capacitada para suportar isso, sem loucura? Para que e por que essa revoltante, inútil e desnecessária atrocidade? Talvez, por aí, haja algum homem que já tenha sido exposto a tal tortura e a quem tenha sido dito: “Vai-te embora. Estás perdoado!” Tal homem, decerto, nos pode dizer que foi dessa tortura e dessa agonia que Cristo falou, também. Não, não se pode tratar assim uma criatura humana!
Muito embora o lacaio não estivesse em condições de se exprimir como Míchkin, compreendeu muito, se não tudo, dessa conversa. Isso estava patenteado na expressão atônita do seu rosto.
— Já que o senhor está tão desejoso de fumar — observou ele —, acho que terá tempo, talvez. Mas, apresse-se, pois Sua Excelência pode muito bem perguntar de repente quem estava... e o senhor ainda estar lá fumando. Está vendo aquela porta, no vão da escada? Vá até lá, abra-a. Encontrará uma saleta, à direita. Pode fumar lá; mas seria bom abrir a janela, pois é contra as regras...
Míchkin, porém, não teve tempo para se informar melhor, nem muito menos para fumar. Entrou na sala um jovem com papéis embaixo do braço, que o olhou de esguelha. O lacaio ajudou-o a tirar o casaco de pele.
— Aqui este cavalheiro — começou o lacaio, numa espécie de confidência quase familiar — se anuncia como príncipe Míchkin e como parente da senhora generala. Acaba de chegar do estrangeiro, apenas com esse embrulho debaixo do braço...
O príncipe não percebeu o resto. Enquanto o lacaio cochichava, Gavríl Ardaliónovitch o escutava com muita atenção, olhando para o príncipe. Cessando afinal de ouvir, aproximou-se pressuroso:
— O senhor é o príncipe Míchkin? — perguntou com extrema polidez e cordialidade.
Era um jovem de boa aparência, louro, de cerca duns 28 anos, também de estatura média, com bonito penteado, uma barba à Napoleão III, o rosto vivo e simpático. Só o seu sorriso, todo afabilidade, era um pouco esquisito. Ostentava dentes que pareciam pérolas. A despeito da jovialidade e da aparente maneira natural, havia alguma cousa nele que era demasiado intencional, principalmente no modo dos seus olhos perquirirem.
Míchkin sentiu que, quando sozinho, esse homem devia parecer bem outro, talvez até não rindo nunca. Explicou-se o mais breve que pôde, repetindo parte do que já expusera ao camareiro e a Rogójin. Enquanto isso, parecia que qualquer recordação se ia avivando no espírito de Gavríl Ardaliónovitch.
— Não foi o senhor que mandou uma carta a Lizavéta Prokófievna, há um ano, mais ou menos, da Suíça?
— Sim.
— Então estão a par de tudo, a seu respeito, e certamente se recordarão do senhor. Deseja ver Sua Excelência? Vou anunciá-lo, imediatamente. Sua Excelência deve ficar livre já. Somente... seria melhor se o senhor passasse para a sala de espera... Por que está aqui este senhor? — perguntou ao criado, arrogantemente.
— Digo-lhe já: não houve meios de o convencer a...
Bem neste momento a porta do escritório se abriu e um militar, com uma pasta debaixo do braço, se inclinou ao sair, falando alto. E uma voz exclamou lá de dentro do gabinete:
— Você já está aí, Gánia? Venha cá.
Gavríl Ardaliónovitch fez sinal a Míchkin que esperasse; e entrou apressadamente para o escritório.
Nem dois minutos depois, a porta se reabria e a voz musical e afável de Gavríl Ardaliónovitch se fazia ouvir.
— Príncipe, faça o favor de entrar.
3.
O general Iván Fiódorovitch Epantchín estava de pé, no meio da sala, e olhava com extrema curiosidade para o jovem que entrava. Deu mesmo dois passos em sua direção. Míchkin aproximou-se, apresentando-se.
— Perfeitamente — disse o general —, em que lhe posso ser útil?
— Não tenho nenhum assunto urgente. O objeto da minha visita é simplesmente travar conhecimento com o senhor. Peço desculpas por incomodá-lo, mas como não conheço seus ajustes e horários para receber visitas... Estou vindo diretamente da estação. Acabo de chegar da Suíça.
O general esteve a ponto de sorrir, mas refletiu melhor e se conteve. Refletiu outra vez, acomodou melhor a vista, examinou o seu visitante da cabeça aos pés, rapidamente aproximou dele uma cadeira, sentou-se, por sua vez, perto, e se virou com impaciente expectativa.
Em pé, a um canto do escritório, Gánia arrumava uns papéis.
— Via de regra tenho muito pouco tempo para travar relações — observou o general —, mas como, sem dúvida, o senhor tem em mente algum...
— Eu esperava justamente que o senhor — interrompeu-o o príncipe — julgaria ter eu algum motivo especial nesta minha visita. No entanto, posso assegurar-lhe que não tenho nenhum outro a não ser o prazer de travar conhecimento.
— Naturalmente que isso também é um prazer para mim, mas a vida não é feita só de prazeres, o senhor sabe, tem-se, às vezes, trabalho, é claro... De mais a mais, ainda não atinei com o que possa haver de comum entre nós, digamos, a razão, o motivo, o fim...
— Efetivamente não há razão alguma, e o que há de comum realmente é pouco. Ser eu príncipe Míchkin e a sra. Epantchiná ser da minha mesma família e nome não constituem, de fato, razão, logicamente. Compreendo muito bem. Todavia, foi só isso que me trouxe! Passei quatro anos fora da Rússia, o que é muito tempo. E além disso, quando me ausentei, não estava em perfeito juízo. Não conhecia ninguém aqui, nessa ocasião, e agora menos ainda. Preciso procurar gente de bem. Tenho, por exemplo, um negócio de importância a decidir e não sei de quem me valer. Em Berlim me veio à lembrança de que os seus eram, por assim dizer, parentes meus, e que portanto devia começar por aqui. Podemos ser úteis um ao outro: o senhor a mim e eu ao senhor, visto a sua gente ser tão distinta como tantas vezes ouvi declararem que era.
— Isso me desvanece muito... — disse o general, surpreendido.
— Permita-me perguntar-lhe onde está hospedado?
— Não estou hospedado em lugar nenhum, por enquanto.
— Veio, então, do trem para aqui? E... sem bagagem?
— Toda a bagagem que possuo é um embrulho com a minha roupa branca; não tenho mais nada. Geralmente o carrego comigo. Terei tempo para tomar um quarto mais tarde.
— Então o senhor pensa tomar um quarto num hotel?
— Oh! Sim, naturalmente.
— Pelas suas palavras, no começo, supus que tivesse vindo para permanecer aqui.
— Isso poderia ser só mediante seu convite. Confesso, todavia, que mesmo se fosse convidado não permaneceria, simplesmente porque seria contra a minha natureza.
— Então dá no mesmo que eu não o tenha convidado nem o vá convidar. Conceda, príncipe, de maneira a tornar as cousas claras uma vez por todas: desde que estamos de acordo não podermos trazer à baila parentesco nem relações de amizade entre nós, parentesco e relações que aliás muito me desvaneceriam, não há mais nada senão...
— Senão me levantar e ir embora?! — E Míchkin se ergueu, rindo com positiva jovialidade, apesar de toda a visível dificuldade da sua situação. — E pode crer, general, conquanto eu desconheça os costumes daqui, e nada saiba da vida prática, que ainda assim estou verificando que o que está acontecendo tinha que se dar. Talvez seja melhor dessa maneira. Aliás já não responderam à minha carta, logo... Bem, até à vista; e desculpe ter incomodado.
O rosto do príncipe foi tão cordial, nesse momento, e o seu sorriso tão limpo da menor sombra de qualquer gênero de malquerença, que o general ficou subitamente surpreso e passou a considerar o seu visitante sob um diferente ponto de vista. Deu-se logo uma mudança total na sua atitude.
— Quer saber duma cousa, príncipe? Muito embora eu não o conheça — disse com uma voz muito outra — ainda assim Lizavéta Prokófievna gostará decerto de ver uma pessoa que tem o seu mesmo nome. Fique um pouco, se pode e se é que dispõe de tempo.
— Oh! Tempo é que não me falta; é inteiramente propriedade minha... — E o príncipe imediatamente depôs o chapéu mole de abas redondas sobre a mesa. — Confesso que espero que Lizavéta Prokófievna venha a se lembrar de que lhe escrevi. O criado do senhor, ainda agora, quando eu estava esperando, suspeitou que eu tivesse vindo para implorar auxílio. Percebi isso e concluí que se tratava de ordens estritas dadas a tal respeito. Mas, na verdade, não vim com essa intenção; vim apenas para travar relações. Apenas receio estar atrapalhando, e isso me constrange.
— Bem, príncipe, se realmente é a pessoa que parece ser — disse o general, com um sorriso bem-humorado —, deve ser agradável travar relações com o senhor; mas acontece que sou um homem ocupado, como está vendo, e sou obrigado a sentar-me de novo, olhar e assinar certas coisas; depois, devo ir à casa de Sua Alteza e ao escritório da Companhia; não posso me livrar destas contingências, embora goste de ver pessoas, gentis, naturalmente. Estou certo de que é um homem bem-educado... Qual a sua idade, príncipe?
— Vinte e seis.
— Oh! Pareceu-me bem mais moço.
— Realmente, já me disseram que aparento menos idade. Procurarei não estorvá-lo, pois não gosto de estorvar. E percebo, além do mais, que somos bem diversos, através de diversas circunstâncias, não podendo por isso ter muitos pontos em comum. Entretanto, esta minha última proposição pode não valer, pois muitas vezes, parecendo não haver pontos em comum, os há e muitos... É só por comodidade que as pessoas se classificam segundo as aparências, acabando por não acharem nada de comum entre si. Mas, talvez eu o esteja incomodando, o senhor parece que...
— Duas palavras ainda. Tem o senhor recursos, ou pretende seguir alguma espécie de trabalho? Desculpe estar perguntando.
— Aprecio e compreendo a sua pergunta. No momento não disponho de recursos, nem de ocupação, mas terei. O dinheiro último que tive não era de minha propriedade, me foi dado para a viagem pelo Prof. Schneider, que me estava tratando e educando na Suíça. Chegou resvés para a viagem, de maneira que só tenho, agora, alguns copeques. Há, porém, uma cousa e sobre a qual até preciso muito me aconselhar, mas...
— Diga-me como pretende viver, então, enquanto isso? Quais são os seus planos?
— Desejo trabalhar seja no que for.
— Oh! Então o senhor é um filósofo? Acautelou-se, porém, com alguns talentos, alguma habilitação, fosse o que fosse, de qualquer maneira, de modo a poder ganhar a vida? Mais uma vez me perdoe.
— Oh! Por favor, não me peça desculpas. Não. Suponho que não tenho propensão nem habilitação particular alguma para nada. Pelo contrário, até, pois sou doente e não pude ter uma educação sistemática. Quanto à minha vida, pretendo...
O general interrompeu-o e começou a interrogá-lo. Disse-lhe o príncipe tudo quanto já foi narrado até aqui. Parece que o general já tinha ouvido falar do seu benfeitor Pavlíchtchev e que o conhecera mesmo pessoalmente.
Por que se interessara Pavlíchtchev na sua educação, não soube o príncipe explicar; provavelmente decorrera isso de simples amizade, de longa data, com seu pai. Perdera Míchkin os pais quando era bem criança. Crescera e passara toda a vida no campo, cujo ar era essencial à sua saúde. Pavlíchtchev pusera-o a cargo de umas senhoras de idade, suas parentas, contratando-lhe uma governante e depois um tutor. Disse o príncipe que, conquanto se recordasse de muita cousa, muitas peripécias havia na sua vida que não saberia explicar porque nunca as viera a entender completamente. Que frequentes ataques duma moléstia tinham feito dele um idiota. (Empregou pessoalmente essa palavra “idiota”.) Explicou que Pavlíchtchev encontrara em Berlim o prof. Schneider, um especialista suíço em tais doenças, com uma instituição no Cantão de Valais, onde cuidava de doentes que sofriam de idiotia e de loucura, tratando-os por métodos próprios, com duchas frias e ginástica, educando-os, superintendendo o desenvolvimento mental deles. E que, então. Pavlíchtchev o mandara para a Suíça, para esse médico, havia aproximadamente cinco anos, tendo, porém, morrido logo dois anos depois, sem ter tomado providências a seu respeito. E que Schneider o conservara durante mais dois anos, continuando o tratamento e a educação; conquanto não o tivesse curado de todo, tinha conseguido melhorar sobremaneira a sua condição. Por último, por deliberação própria, e devido, principalmente, a certo fato que inesperadamente acontecera, o tinha mandado de volta à Rússia.
O general ficou muito surpreendido, e perguntou:
— E o senhor não tem ninguém na Rússia? Absolutamente ninguém?
— No momento, ninguém. Mas tenho esperanças. Recebi uma carta estranha sobre a qual até...
O general cortou-lhe a frase, fazendo outra pergunta imediata:
— Foi o senhor, todavia, treinado, no mínimo, para alguma cousa? Essa sua aflição doentia não o impediria, por exemplo, de ocupar algum posto fácil?
— Oh! Certamente que não impediria. E como eu ficaria contente com um lugar qualquer! Ao menos para ver de que sou capaz. Estive estudando, durante estes últimos quatro anos, sem interrupção, embora por um sistema adequado, inteiramente fora dos planos habituais dos outros. E me entretive muito a ler o russo, também.
— O russo? O senhor conhece, então, a gramática russa, e pode escrever sem erros?
— Oh! Perfeitamente.
— Ótimo, ótimo; e a sua caligrafia?
— A minha letra? É excelente. Posso até chamar a isso um talento, pois sou um perfeito calígrafo. Deixe-me escrever-lhe qualquer cousa, como amostra — disse o príncipe, entusiasmando-se.
— Com a melhor das boas vontades. Sabe bem que é uma cousa essencial, saber escrever. E a sua presteza me agrada, príncipe. O senhor é muito agradável, deixe-me dizer-lhe.
— Que material esplêndido para escrita, esse que o senhor tem aqui! Que porção de penas! Quantos lápis! Este papel é magnífico! Sempre preferi papel assim compacto! Que maravilhoso escritório. Conheço aquela paisagem. É uma vista da Suíça. Garanto que o artista a pintou no próprio sítio, que aliás também conheço. É no Cantão de Uri...
— Muito provavelmente. Mas foi comprada aqui. Gánia, dê ao príncipe algum papel. Escolha a pena que quiser. E o papel. Escreva naquela mesinha. Que é isso? — perguntou o general, voltando-se para Gánia que nesse ínterim tinha tirado da pasta uma grande fotografia, tendo-a agora nas mãos. — Ah! Nastássia Filíppovna! Foi ela quem lhe mandou? Ela mesma? — perguntou com muita curiosidade e de modo impetuoso.
— Deu-me agora mesmo. Quando lhe fui levar as minhas congratulações. Há muito tempo que eu lhe vinha pedindo. Nem sei até se não teria sido proposital, da parte dela, por ter aparecido lá com as mãos vazias numa data como esta — ajuntou Gánia com um sorriso desagradável.
— Oh! Não — afirmou o general com muita convicção. — Que mania tem você de entender as cousas! Provavelmente ela não quis insinuar isso. De mais a mais, não é interesseira. E afinal, que espécie de presente lhe poderia você oferecer? Teria que custar alguns mil rublos! Você lhe poderia dar o seu retrato, talvez? E, a propósito, ela ainda não lhe pediu um retrato seu?
— Não pediu e, decerto, nunca o fará. Não vá se esquecer da recepção esta noite, Iván Fiódorovitch, naturalmente! O senhor é um dos mais especialmente convidados.
— Não me esquecerei. Fique tranquilo que não me esquecerei. Hei de ir. Pelo que me parece, ela faz 25 anos!... Ouça, Gánia, não pretendo contar-lhe um segredo; prepare-se, em todo o caso. Ela nos prometeu, a mim e a Afanássii Ivánovitch, dizer a palavra final, na recepção desta noite. Prepare pois o seu espírito.
Gánia ficou tão repentinamente zonzo que empalideceu um pouco.
— Ela disse isso? Deveras? — perguntou ele com voz trêmula.
— Deu-nos a sua promessa, anteontem. Nós a apertamos tanto que acabou prometendo. Mas me recomendou que não lhe dissesse nada antes.
O general olhou Gánia com firmeza: evidentemente não lhe agradava a perturbação que o outro não sabia disfarçar.
— Iván Fiódorovitch há de recordar — disse Gánia hesitante e preocupado — que Nastássia Filíppovna me deixou em franca liberdade até que ela resolvesse, ficando ainda assim a decisão como última palavra minha.
— Que é que você quer dizer com isso?... Que é que você quer dizer com isso? — O general ficou alarmado.
— Não quero dizer nada.
— Veja lá, por Deus, em que situação nos vai você querer deixar!
— Não estou dizendo que recuso. Não me exprimi bem...
— Recusar? Que ideia é essa? — perguntou o general, patenteando bem a sua decepção. — Não se trata de recusar, sabemos, meu rapaz. Trata-se da presteza, do prazer e do júbilo com que você deve receber a notícia duma tal promessa... As cousas, em casa, como vão?
— Isso não importa! Quem decide as cousas em casa sou eu. Só meu pai é que continua a se fazer de maluco, como de hábito; o senhor sabe bem a que ponto lastimável ele chegou. Não nos falamos; mas estou sempre de olho nele e, se não fosse minha mãe, já o teria posto fora de casa. Minha mãe não faz outra cousa senão chorar, é lógico; minha irmã emburra. Mas já lhes disse duma vez para sempre que faço o que quero e que em casa quem manda sou eu... Esclareci isto muito direitinho à minha irmã, na presença de minha mãe.
— Ora aí está um ponto que ainda não consegui compreender, meu rapaz — observou o general, como que meditando; depois, mexendo com as mãos e encolhendo os ombros, prosseguiu: — Nina Aleksándrovna, no outro dia, quando me veio ver, soluçou e se lastimou; você há de se lembrar. Que seria? me pergunto eu. Parece que considera uma desonra. Mas permita que pergunte: Desonra em quê e por quê? De que se pode exprobrar Nastássia Filíppovna? Que se pode censurar nela? Ter vivido com Tótskii? Mas, dadas as circunstâncias, isso é tão pueril! “O senhor não a apresentaria às suas filhas!” diz ela. Bem, e que mais? Como é que ela não enxerga? Como é que ela não entende...
— Não entende o quê? A sua própria situação? — insinuou Gánia ao general que se interrompera embaraçado. — Que quer o senhor? Não há meios dela entender, mas não se zangue com ela, por isso. Já lhe dei uma lição para não se intrometer mais em assuntos alheios. E olhe, se em casa todavia ainda estão relativamente quietos é por não ter Nastássia Filíppovna dado uma resposta definitiva! Mas a tempestade está próxima. Tão próxima, que será hoje, na certa, que se desencadeará.
Míchkin, sentado no canto, escrevendo, ouvia toda a conversa. Quando acabou, trouxe a página escrita, aproximando-se da mesa.
— Ah! Então esta moça é que é Nastássia Filíppovna!? — fez ele, olhando com muita atenção e curiosidade para o retrato.
— Mas é belíssima — acrescentou logo, com entusiasmo.
Realmente era o retrato duma mulher extraordinariamente bela; estava com um vestido de seda preta muito simples e bem cortado, com os cabelos, que deviam ser castanho-escuros, arranjados num penteado singelo. Os olhos eram negros e profundos, a testa pensativa. Tinha uma expressão aflitiva e, por assim dizer, desdenhosa. E o rosto um pouco delgado era talvez pálido.
Gánia e o general fixaram Míchkin com surpresa.
— Nastássia Filíppovna? Dar-se-á o caso do senhor conhecer Nastássia Filíppovna? — titubeou o general.
— Conheço. Estou apenas há 24 horas na Rússia, mas já conheço uma beleza de tal teor! — confirmou Míchkin.
E então lhes descreveu o encontro, no trem, com Rogójin, e tudo quanto este lhe havia contado.
— Ora aqui temos nós mais uma novidade! — disse o general meio atarantado. Prestara muita atenção à história que Míchkin contara e olhava agora para Gánia, refletindo.
— Rogójin? Sim, já soube dessa cena de bebedeira. É um negociante, não é? Trata-se, aliás, duma rematada maluquice!
— Eu também soube! — redarguiu o general. — Nastássia Filíppovna me contou essa história dos brincos, uma vez. Mas agora as cousas mudaram muito, agora há alguns milhões e... uma paixão. E nós bem sabemos do que são capazes esses cavalheiros quando bêbedos!... Hum! Tomara que não sobrevenha nada de sensacional! — concluiu o general, algo pensativo.
— Parece que o senhor está com medo dos milhões desse homem! — sorriu Gánia, afetadamente.
— E você naturalmente não está!?
Gánia voltou-se logo para o príncipe:
— Diga-me uma cousa, príncipe. Que impressão teve o senhor desse Rogójin? Pareceu-lhe pessoa séria, ou apenas algum rematado louco? Qual a sua opinião?
Enquanto Gánia fazia esta pergunta, algo de novo se instalava na sua alma. Uma ideia nova e específica que lhe abrasava o cérebro, fazendo-lhe fulgurar os olhos. O general, que também estava bastante preocupado, olhou, por sua vez, de relance, para o príncipe, muito embora não parecesse contar muito com a resposta deste último.
— Não sei o que lhe diga — respondeu o príncipe — mas uma cousa lhe garanto: há nele uma grande paixão; posso mesmo adiantar mais: uma paixão mórbida. Aliás ele me parece mesmo bem doente e pode vir a fazer, outra vez, dentro de um ou dois dias, uma das suas, principalmente se prosseguiu na orgia.
— O senhor acha? — perguntou o general, refletindo sobre essa opinião.
— Acho.
— Uma das suas, só daqui a um ou dois dias? Talvez ainda hoje, isso sim, e até antes mesmo desta noite! — disse Gánia ao general, num arreganho.
— Hum... Talvez, talvez... E então tudo dependerá da veneta em que ela estiver! — ponderou o general.
— E o senhor bem sabe o feitio dela, às vezes!
— Qual feitio? Que quer você dizer? — e o general ficou como que suspenso por uma extrema perturbação. — Ouça, Gánia, faça-me o favor de pelo menos hoje não contradizê-la muito. E tente... agradá-la deveras. Hum! Que cara é essa? Ouça, Gavríl Ardaliónovitch, não está fora de propósito tornar eu a perguntar-lhe que quer você, afinal de contas! Você sabe muito bem que, no que a mim se refere, esse caso não me sobressalta. Duma maneira, ou de outra, tenho as cousas estabelecidas. Tótskii já decidiu tudo duma vez por todas, e estou perfeitamente tranquilo; por conseguinte, o que me está preocupando é apenas o seu bem. E isto é uma cousa que lhe deve estar entrando pelos olhos adentro. Você não tem o direito de desconfiar de mim. Além disso, você é um homem... um homem... de senso, realmente, e já venho contando com você para o presente caso desde... desde...
— É isso que é o importante — acrescentou Gánia, tirando o general da sua hesitação. Depois contraiu a boca num sorriso maligno, que não procurou esconder, e fitou bem o general; no rosto, com olhos febris, como se quisesse ler através daqueles olhos tudo quanto lhe passava pelo espírito. O general corou, amuado.
— Perfeitamente — aquiesceu ele. — Juízo é o principal. — O seu olhar era cortante. — Você, às vezes, é um sujeito engraçado, Gavríl Ardaliónovitch. Agora, por exemplo, parece que está vendo nesse negociante Rogójin uma saída oportuna para qualquer embaraço seu. Mas é justamente pelo senso que você se deve guiar, neste caso, antes de mais nada. Você deve, neste negócio, pensar e agir honestamente, e às direitas, para com ambos os lados; e, mais ainda, ficar precavido, de antemão, para evitar comprometer os outros, principalmente tendo tido, como teve, tempo suficiente para deliberar e agir. Com efeito, ainda há tempo (e nisto o general franziu as sobrancelhas, significativamente), muito embora para isso você só tenha diante de si algumas horas. Está entendendo? Entendeu bem? Você quer, ou não quer? Se não quer, diga logo duma vez, e fique à vontade. Ninguém o está coagindo, Gavríl Ardaliónovitch, ninguém lhe está preparando uma armadilha. Isto, caso você ache que se trata duma armadilha.
— Eu quero — respondeu Gánia, em voz baixa, mas firme; abaixou os olhos e afundou num silêncio quase sinistro.
O general ficou satisfeito. Excedera-se, talvez, por causa da mútua perplexidade, tendo, evidentemente, ido mais longe do que devia. Virou-se, afinal, para Míchkin e a sua face traiu, sem querer, a verificação desagradável de que o príncipe, estando ali, tinha ouvido tudo. Mas logo se tranquilizou: bastava a quem quer que fosse olhar para Míchkin para não recear nada.
— Oh! — exclamou olhando para o modelo de caligrafia que Míchkin lhe mostrava. — Que letra! Esplêndido! Gánia, venha ver! Que habilidade!...
Sobre a espessa folha de pergaminho o príncipe tinha escrito, em caracteres medievais russos, a sentença:
O humilde hegúmeno Pafnútii após aqui a sua assinatura.
— Esta — explicou Míchkin com extraordinário prazer e sofreguidão — é precisamente a assinatura do hegúmeno Pafnútii, copiada dum manuscrito do século XIV. Os nossos velhos monges e bispos costumavam assinar os seus nomes de modo bonito e, às vezes, com que bom gosto e aplicação! O senhor não tem a coleção de Pogódin, general? E aqui já escrevi num estilo diferente; esta é a maneira francesa da letra redonda, do último século, quando muitas letras eram bem diversas do que são hoje. É a escrita da praça, dos escrivães públicos, imitada dos seus modelos. Tenho um comigo. O senhor há de concordar que isso tem os seus quês! Olhe, por exemplo, estes DD e estes SS redondos. Adaptei a escrita francesa ao alfabeto russo, o que é muito difícil, mas ficou ótimo. Veja agora esta outra letra aqui: não é original? Veja a frase “A perseverança transpõe todos os obstáculos.” É a caligrafia russa dum escrivão profissional ou militar. Era assim que as instruções governamentais eram escritas a certas pessoas importantes. Esta outra, aqui, é uma caligrafia redonda, também, com esplêndidas letras negras, bem grossas, traçadas com um notável bom gosto. Um especialista na arte da caligrafia desaprovaria estes floreios, ou melhor, estes exageros de floreios, estes traços que nunca mais acabam. Veja-os bem; contudo, dão um certo caráter e, na verdade, através deles o senhor está vendo a alma do escrivão militar espiando, demorando em interromper a expressão do seu talento. E o senhor está vendo até o colarinho militar apertado em volta do pescoço... chega-se a ver até mesmo a disciplina, através desta caligrafia. É adorável! Não imagina como me impressionou um espécime destes, ultimamente; descobri-o por acaso. Pus-lhe a mão, imagine justamente onde? Na Suíça! Agora, esta aqui é a letra simples e comum, inglesa; impossível ir-se mais além, na arte. É toda esquisita, finíssima, parece feita de contas e pérolas, não falta nada! E aqui tem o senhor uma variação, já esta agora francesa; obtive-a dum viajante comercial francês. O estilo é o mesmo da inglesa, mas os traços negros são feitos com golpes mais grossos do que os golpes ingleses e, conforme está vendo, a proporção se perdeu. Repare, também, que o oval é um nada mais redondo, admitindo-se também o ornato. Todavia, o ornato é uma cousa perigosa; requer um extraordinário bom gosto e tem acolhida, mas só se a simetria for atingida; e, então, a escrita se torna incomparável e a gente simplesmente se apaixona por ela!
— Oh! Mas o senhor perpetra verdadeiras maravilhas! — disse o general, sorrindo. — O senhor não é apenas um bom calígrafo, meu caro amigo, o senhor é mais, é um artista! Hein, Gánia?
— Maravilhoso — disse Gánia —, e ele também está convencido da sua vocação! — acrescentou com uma risada sarcástica.
— Você pode rir, mas que há nele uma carreira, há! — disse o general. — Sabe, príncipe, para que personagem vai agora o senhor escrever? Ora, bem pode contar com 35 rublos por mês para começar. Mas, são doze e meia — disse, consultando o relógio. — Vamos pois a isso, príncipe. Tenho pressa e talvez não o veja mais hoje. Sente-se, por um minuto. Já lhe expliquei que não posso vê-lo muitas vezes; mas estou sinceramente disposto a ajudá-lo um pouco; naturalmente, isto é, naquilo que for essencial! E, quanto ao resto, o senhor deve agir conforme lhe convier mais. Arranjar-lhe-ei um lugar no escritório, um emprego bem fácil, mas que exija exatidão. Passemos adiante. Na residência, ou melhor, na família de Gavríl Ardaliónovitch Ívolguin, aqui este meu jovem amigo, com quem peço desde já que se dê, a mãe e a irmã separaram dois ou três quartos mobiliados e os cedem com pensão e trato, alugando-os a hóspedes especialmente recomendados. Para o senhor isto é como cousa caída do céu, príncipe, pois não ficará só e sim, por assim dizer, no seio da família; a meu ver, não convém que o senhor se isole logo no começo, numa cidade como Petersburgo. Nina Aleksándrovna e sua filha Varvára Ardaliónovna são senhoras por quem tenho o maior respeito. Nina Aleksándrovna é mulher dum general reformado que foi meu camarada desde que entrei para o serviço, embora, devido a certas circunstâncias, tenha rompido relações com ele, o que não me impede, em certo sentido, de o respeitar. Digo-lhe tudo isso, príncipe, para que perceba que o apresento pessoalmente e que, portanto, me faço, em certo modo, responsável pelo senhor. O preço e as condições são extremamente módicos, e espero que o seu salário brevemente já lhe dê para enfrentá-los. Naturalmente, uma pessoa precisa sempre de dinheiro trocado, no bolso, mesmo que seja um pouco, apenas, mas o senhor não se zangará comigo se eu lhe aconselhar a não ter muito dinheiro no bolso. Depreendo isso pela impressão que tive do senhor. Como, todavia, sua bolsa está presentemente vazia, permita-me emprestar-lhe 25 rublos para as suas despesas mais imediatas. O senhor me pagará depois, naturalmente, e sendo uma pessoa honesta e sincera, como indubitavelmente parece ser, nenhuma incompreensão poderá surgir entre nós. Tenho um motivo para me interessar pelo seu bem-estar; sabê-lo-á mais tarde. Vê, estou sendo perfeitamente correto com o senhor. Espero, Gánia, que você nada tenha a opor à instalação do príncipe em sua casa!...
— Oh! Muito pelo contrário. Minha mãe ficará contente — aquiesceu Gánia, polidamente.
— Vocês só têm um quarto alugado, creio eu. Mora lá aquele Ferd... ter...
— Ferdichtchénko.
— É isso, é isso, Ferdichtchénko. E não simpatizo nada com ele. Não passa dum ordinaríssimo palhaço. Está aí uma cousa que não compreendo: Nastássia Filíppovna dar-lhe tanta confiança. É mesmo parente dela?
— Que nada! É pilhéria. Não há o menor traço de parentesco.
— Bem, enforquemo-lo. Então, príncipe, está satisfeito?
— Agradeço-lhe muito, general. O senhor foi muito bondoso para comigo, e, o que é mais, sem eu lhe ter pedido ajuda. Não estou falando assim por orgulho. De fato não sabia e nem tinha onde ir pousar a cabeça. É verdade que, ainda há pouco, Rogójin me convidou.
— Rogójin? Oh! mas não! Aconselhá-lo-ia, como pai, ou se o senhor prefere, como amigo, a esquecer-se de Rogójin. E ao mesmo tempo o aconselharia a preferir a família para a qual lhe propus entrar como hóspede.
— Já que o senhor é tão bondoso — começou o príncipe — tenho necessidade dum conselho sobre um negócio. Eu recebi uma notificação sobre...
— Perdoe-me — interrompeu-o o general. — Não tenho sequer um minuto mais. Vou falar com Lizavéta Prokófievna a seu respeito. Se ela desejar vê-lo agora (vou tentar dar-lhe as melhores impressões a respeito do senhor!) aconselho-o a aproveitar a oportunidade e ganhar-lhe as boas graças, pois Lizavéta Prokófievna lhe pode ser muito útil. Além do mais o senhor tem o mesmo nome que ela! Se ela não quiser, não há outro jeito, senão outra vez, decerto! E você, Gánia, neste ínterim, vá-me olhando estas contas. Eu e Fedosséiev estivemos lutando em vão, com elas. Não se esqueça de incluí-las.
E o general saiu sem que Míchkin tivesse conseguido falar-lhe acerca do negócio que, por quatro vezes, em vão, ensaiara. Gánia acendeu um cigarro, e ofereceu outro ao príncipe. Este aceitou, mas refreou a vontade de conversar, receoso de se tornar importuno. Começou a olhar o escritório. Mas Gánia mal olhou para a folha de papel coberta de números e para a qual o general lhe tinha chamado a atenção. Estava preocupado. O seu sorriso, a sua expressão, os seus pensamentos pesavam sobre Míchkin, principalmente depois que ficaram sós. E, de repente, ele se aproximou do príncipe, que justamente estava em pé, contemplando o retrato de Nastássia Filíppovna.
— Então, o senhor admira uma mulher como esta, príncipe? — perguntou, pesquisando-lhe a atitude, como se tivesse alguma intenção especial. E o príncipe respondeu:
— Tem um rosto maravilhoso. E percebo que a história dela não é uma história comum. É um rosto prazenteiro. Mas não teria ele passado já por terríveis sofrimentos? Os seus olhos nos dizem isto, e as suas faces, e este trecho debaixo dos olhos! É um rosto altivo, pasmosamente orgulhoso, mas não sei se ela tem bom coração! Se tiver, ah!... Isso a redimiria! De tudo!...
— Casar-se-ia o senhor com essa mulher? — prosseguiu Gánia, pondo nele uns olhos febris.
— Não posso me casar com ninguém. Sou doente.
— E Rogójin? Casar-se-ia ele com esta mulher? Que acha o senhor?
— Rogójin? Casar-se-ia hoje mesmo! Digo mais: casar-se-ia hoje, mas uma semana depois, talvez a matasse.
Ao pronunciar estas palavras, viu Gánia estremecer tão violentamente que logo lhe gritou:
— Está sentindo alguma cousa? — E o segurou, espantado.
— Alteza! Sua Excelência pede a Sua Alteza que se digne entrar! — anunciou o lacaio, aparecendo à porta.
O príncipe seguiu-o.
4.
As três filhas do general Epantchín eram moças florescentes, sadias e bem desenvolvidas, com ombros magníficos, bustos bem conformados e braços quase masculinos; e, naturalmente, assim saudáveis e robustas, gostavam dum bom jantar e não escondiam isso a ninguém. A mãe, às vezes, olhava de soslaio para a franqueza desses apetites, e embora suas advertências fossem recebidas sempre com mostras de respeito, muitas de suas opiniões tinham cessado de ter a irrefutável autoridade de tempos passados, tanto mais que as três moças, agindo sempre de acordo, exerciam tal força sobre sua mãe que esta, para salvaguardar a sua dignidade, dera ultimamente em consentir, cedendo diante de qualquer oposição. O temperamento materno, diga-se de passagem, era muitas vezes empecilho aos ditames do bom senso, pois Lizavéta Prokófievna se tornava cada ano mais caprichosa e impaciente. O marido até a considerava um pouco excêntrica, o que o obrigara, experimentado como era, a uma política mais submissa, visto os modos desenvoltos da esposa acabarem sempre por desabar sobre ele. Mas a harmonia doméstica logo se restabelecia e tudo ficava de novo bem.
A sra. Epantchiná não tinha sequer perdido o apetite e, como de regra, se reunia às filhas, ao meio-dia e meia, para uma refeição tão substancial que equivalia quase a um jantar. As moças tomavam uma xícara de chá, mais cedo, ainda na cama, ao acordarem, precisamente às dez horas. Gostavam desse costume que já era mais que hábito. Ao meio-dia e meia a mesa era servida na sala de almoço existente ao lado dos apartamentos maternos e, ocasionalmente, quando o general dispunha de tempo, se reunia à família, para tal fim. Além de café, chá, queijo, mel, manteiga, filhós especiais de que a dona da casa gostava muito, costeletas e mais cousas, sem contar um caldo de carne bem quente, eram os pratos habituais.
Na manhã em que a nossa história começa, toda a família estava reunida na saleta de almoço, esperando pelo general que prometera aparecer na hora certa. Se se tivesse atrasado um momento que fosse o mandariam chamar, mas foi pontual. Dirigindo-se à esposa, para lhe beijar a mão e lhe dar bom dia, percebeu qualquer cousa esquisita no rosto dela. E, conquanto tivesse tido um pressentimento, a noite toda, de que isso iria acontecer, devido ao “incidente” (sua expressão genérica peculiar), havendo até perdido o sono, por tal motivo, ainda assim se alarmou outra vez, agora. As filhas vieram beijá-lo. E, embora não estivessem zangadas com ele, também, por sua vez, tinham um ar diferente. Verdade se diga que, ultimamente, o general vinha dando motivos para certas suspeitas; mas como era um pai e um esposo de experiência e às direitas, soubera tomar as suas medidas de precaução. Ajudará, talvez, a clarear esta nossa história um pouco mais, se interrompermos esta sequência e introduzirmos explicações diretas quanto às circunstâncias e relações em que vamos surpreender a família do general Epantchín no começo desta narrativa. Acabamos de dizer que o general, conquanto homem originariamente de pouca educação fina, era marido experimentado e um pai às direitas. Adotara, por exemplo, como princípio, não se apressar quanto ao casamento das filhas, isto é, não se aborrecer nem se incomodar relativamente à felicidade delas com uma exagerada ansiedade, como o fazem natural e inconscientemente muitos pais, principalmente em certas famílias cuja sensibilidade cresce na proporção direta das solteironas que se vão acumulando. Sempre conseguiu que Lizavéta Prokófievna concordasse com ele a respeito deste princípio, muito embora se tratasse de atitude difícil por não ser muito natural. É que o general sabia basear os seus argumentos em fatos palpáveis e excessivamente eloquentes. Por conseguinte, deixadas livres em vontade e decisão, as meninas por si mesmas foram se tornando aptas a realizar os seus intentos, disso resultando as coisas marcharem suavemente, trabalharem elas de boa vontade e desistirem de ser caprichosas ou de levar vida fastidiosa. Tudo quanto restava ao casal fazer seria, pois, ajudá-las a ser infalíveis, vigiando-as, sem que dessem por isso, para que não fizessem escolhas esquisitas, nem mostrassem disposições e tendências esdrúxulas. Então, em hora oportuna e decisiva, eles, pais, viriam em sua assistência, com toda a energia e influência, de modo a que as coisas tivessem bom remate. O simples fato, também, de que sua fortuna e roda social cresciam em progressão geométrica, fez as moças subirem na cotação do mercado matrimonial, cada vez mais, à medida que o tempo caminhava.
Mas todos esses fatos incontestáveis devem ser confrontados com um outro: a filha mais velha, Aleksándra, sem notar (como sempre acontece) alcançou, solteira, a idade de 25 anos. E, quase paralelamente a isso, Afanássii Ivánovitch Tótskii, homem da melhor sociedade, de altas ligações e extraordinariamente rico, expressou, mais uma vez, o seu desde muito acariciado desejo de se casar. Era um homem de 55 anos, de temperamento artístico e extraordinariamente refinado. Queria fazer um bom casamento, era grande admirador da beleza feminina e estava, desde algum tempo, em termos de amizade íntima com o general Epantchín, especialmente depois que ambos tomaram parte, juntos, em certas empresas financeiras. Fora então que apalpara o assunto, como que, a bem dizer, lhe solicitando conselho e orientação amigável. Viria a ser levada em consideração uma proposta de casamento com uma de suas filhas? Evidentemente estava prestes uma alteração no curso da vida tranquila da família do general...
A beleza da família era, como já dissemos, inquestionavelmente, a mais nova, Agláia. Mas o próprio Tótskii, homem de extraordinário egoísmo, compreendeu que olharia em vão nesse rumo e que Agláia não era para ele. Talvez o amor como que cego e a superardente afeição das irmãs tivessem exagerado a situação; é que tinham, por assim dizer, combinado entre si, com a maior naturalidade, que o destino de Agláia não poderia ser um destino qualquer, e sim o ideal mais alto possível de felicidade terrena. O futuro esposo de Agláia deveria ser um modelo de todas as perfeições e capacidades, bem como o possuidor de vasta fortuna. As irmãs tinham até concordado, sem se externar muito a tal respeito, em sacrificar seus interesses a favor de Agláia. O dote teria que ser colossal, inaudito. Os pais não ignoravam essa espécie de pacto por parte das duas filhas mais velhas; e assim, quando Tótskii se aconselhou, eles ficaram certos de que uma das mais velhas consentiria em coroar os seus desejos e esperanças, principalmente tendo em vista que Afanássii Ivánovitch não fora nem seria exigente a propósito de dote. O general, com o seu grande conhecimento da vida, ligou desde logo a maior importância à proposta de Tótskii. Dadas certas circunstâncias, este Tótskii tinha que ser extremamente prudente e circunspecto em sua conduta. De fato, ele estava simplesmente tateando o seu caminho, os pais apenas tendo apresentado o caso às filhas como uma remota proposição. Receberam como resposta a segurança satisfatória, conquanto não categórica, de que Aleksándra, a mais velha, talvez não recusasse. Era uma boa moça, bastante sensata, muito fácil de ser levada, apesar de algo voluntariosa. Era provável que consentisse de bom grado em se casar com Tótskii. E se viesse a dar a sua palavra, a manteria com toda a honorabilidade. Não era afeita a aparentar cousas. Com ela não haveria o risco de mudanças e altercações e podia trazer, muito bem, doçura e paz à vida do seu marido. Era muito formosa, embora não o fosse arrebatadoramente. A que situação melhor poderia aspirar Tótskii?
Todavia, o projeto ainda estava no período de tentativa, ficando amistosamente assentado entre Tótskii e o general que não dariam, por enquanto, nenhum passo irrevogável e final. Os pais não tinham mesmo falado abertamente às filhas, pois havia, em tal assunto, sinais dum elemento de discórdia; a sra. Epantchiná, a mãe, começava a demonstrar descontentamento; e isso era uma questão importantíssima. Havia um obstáculo sério, fator complicado, perturbando tudo e podendo até vir a arruinar o caso, completamente.
Este fator complicado e perturbador surgira em cena — como o próprio Tótskii se expressara — havia muito tempo, uns 18 anos antes.
Afanássii Ivánovitch possuía uma de suas lindas propriedades numa província central da Rússia. Fora seu vizinho mais próximo o proprietário de um pequeno e decadente domínio, homem célebre justamente por seu contínuo e incrível azar. Tratava-se dum oficial reformado, de uma família até mesmo melhor do que a de Tótskii. Chamava-se Filípp Aleksándrovitch Baráchkov. Sobrecarregado de dívidas e hipotecas, conseguira afinal, depois de trabalhos exaustivos à maneira dos camponeses, pôr as suas terras em situação mais ou menos favorável. Era um homem que ao menor sinal de melhoria se transfigurava. Radiante e esperançado, viajou, por uns poucos dias, até a pequena cidade do distrito, para tentar um acordo com um dos seus principais credores. Não havia bem dois dias que estava na cidadezinha, quando o starosta1 da sua pequenina aldeia chegou, a cavalo, com a barbicha tostada e o rosto desfigurado, a informá-lo de que o solar tinha sido incendiado na véspera, em pleno meio-dia e que a senhora tinha morrido, queimada, estando porém as crianças intactas. Tal surpresa era demais para Baráchkov, apesar de acostumado a ser pasto da adversidade. Vendo-se viúvo, perdeu o juízo e morreu, em delírio, um mês depois. A propriedade devastada, com os aldeões na penúria, foi vendida para pagar as dívidas. Afanássii Ivánovitch, na generosidade do seu coração, entendeu de recolher e educar as filhas de Baráchkov, duas meninotas de seis e sete anos, que foram trazidas para o pé dos filhos do administrador de Tótskii, um ex-escriturário público, chefe de uma família enorme e que ainda por cima era alemão.
A criança mais nova morreu de coqueluche e a pequena Nastássia Filíppovna ficou sozinha. Tótskii vivia no estrangeiro e cedo esqueceu a existência dessa criaturinha. Cinco anos mais tarde se lembrou, alhures onde estava, de dar uma olhadela à sua propriedade. Aí chegando, reparou entre a família do seu administrador alemão, uma encantadora criança, já menina, duns doze anos, agradável, doce, esperta, e que prometia vir a ser muito bela. (Sobre tal assunto Afanássii Ivánovitch era um infalível perito.) Passou apenas alguns dias na propriedade, mas providenciou grandes alterações na educação da criança. Uma respeitável e culta governante suíça, quase anciã já, com prática de educação da juventude e com competência para ensinar várias disciplinas além do francês, foi contratada. Ficou instalada na casa de Tótskii mesmo, e logo a pequenina Nastássia começou a receber uma educação em linhas mais amplas. Quatro anos depois, a sua educação estava feita. A governante deixou-a, vindo então uma certa senhora, que vivia nas imediações duma outra remota propriedade de Tótskii, numa província recuada, por instruções dele, buscar Nastássia. Naquela outra propriedade havia também uma pequena casa recentemente construída, de madeira. Estava elegantemente mobiliada e o lugar tinha, muito a propósito, o nome de “Otrádnoie”, isto é, “Alegria”. A tal senhora levou Nastássia para acolá e, como era viúva sem filhos e antes vivia longe dali, a uma versta, instalou-se com a menina, definitivamente. Uma velha arrumadeira e uma empregada de muita prática acolheram Nastássia, a cuja disposição ficaram. E ela encontrou aí instrumentos de música, uma biblioteca feminina selecionada, quadros, gravuras, lápis, pincéis, telas e um galgo puro-sangue. Nem duas semanas se passaram quando Afanássii Ivánovitch apareceu...
—... Desde então ele se habituou particularmente a preferir essa sua remota propriedade perdida nas estepes, passando lá dois ou três meses, cada verão. Assim decorreu um bem longo tempo: quatro anos calmos, felizes, num ambiente de bom gosto e de elegância.
Mas, no começo de certo inverno, aconteceu, uma vez, justamente uns quatro meses depois duma das visitas de verão de Tótskii, e que nessa ocasião só durava quinze dias, que um rumor começou a se alastrar até atingir os ouvidos de Nastássia Filíppovna. E o boato era que Afanássii Ivánovitch estava para se casar em Petersburgo com a linda herdeira duma boa família; em vésperas, de fato, de dar um golpe afortunado e brilhante. O boato crescera exageradamente, evidenciando cousas que não seriam bem reais ainda. O suposto casamento, apenas um projeto ainda muito vago, era uma reviravolta na vida de Nastássia Filíppovna, e deu azo a que ela demonstrasse uma grande determinação e uma força de vontade completamente inesperadas. Sem perder tempo em reflexões, deixou a sua pequena casa de campo e surgiu em Petersburgo, inteiramente só, indo diretamente a Tótskii. Ele ficou perplexo e, mal começou a falar com ela, logo viu que estava perdendo o seu latim, que tinha que abandonar a entonação, a lógica e os objetos daquelas agradáveis conversas tão bem-sucedidas até então, tudo, tudo! Pois viu diante dele, sentada, uma mulher inteiramente outra, e não absolutamente aquela moça que tinha deixado nesse último mês de julho, lá em “Otrádnoie”.
E essa nova mulher demonstrou, em primeiro lugar, conhecer e compreender muito — mas muito! — da vida e do mundo, e conhecer tanto que uma pessoa se maravilharia em saber onde e como tomara tanto conhecimento e atingira ideias definitivas. (Na certa, não na sua biblioteca para moças!) E o que é mais, sabia mesmo o aspecto legal de certas coisas e tinha um conhecimento categórico, se não do mundo, pelo menos de como as coisas são feitas no mundo. Em segundo lugar, não possuía mais o mesmo caráter de antigamente. Não havia nada da timidez nem da incerteza da menina de colégio, umas vezes fascinante em sua original simplicidade tão jovial, outras vezes melancólica e sonhadora, estupefata e desconfiada, lacrimosa e difícil.
Sim, era uma nova e surpreendente criatura que ria no rosto dele e que lhe atirava venenosos sarcasmos, abertamente declarando que nunca tivera outro sentimento por ele, em seu coração, senão desprezo — desprezo e repugnância que lhe tinham sobrevindo logo após a primeira surpresa. E essa nova mulher lhe anunciou que para ela, no íntimo, era uma questão absolutamente indiferente que ele se casasse imediatamente com quem tinha escolhido, mas que resolvera evitar esse casamento e não o permitir apenas por ódio, simplesmente, ou pirraça, e que, por conseguinte, assim devia ser, “só porque me quero rir de ti, e bastante, já que cada um ri por sua vez”.
Isto, no mínimo, foi o que ela disse, muito embora não tivesse pronunciado tudo quanto estava em sua mente. Mas, enquanto essa nova Nastássia Filíppovna ria e falava desta forma, Afanássii Ivánovitch ia juntando, como podia, as suas ideias despedaçadas, a ver como deliberaria em face da situação. Tal deliberação lhe tomou tempo, pois levou quinze dias para pesar as cousas e recuperar qualquer ação. Mas, ao cabo dessa quinzena, chegou a uma decisão.
Afanássii Ivánovitch era, a esse tempo, homem de cinquenta anos; seu caráter estava mais que formado e seus hábitos estratificados, a sua posição no mundo e na sociedade tendo sido, desde muito, estabelecida nas mais seguras bases. Prezava a sua paz e o seu conforto acima de tudo neste mundo, como se dá com as pessoas de educação refinada. Nenhum elemento duvidoso e demolidor poderia ser tolerado nesse esplêndido edifício que tinha levado toda a vida a construir. Por outro lado, a experiência profunda e a visão ampla tinham ensinado Tótskii de forma absoluta e ao mesmo tempo correta como se teria que haver com uma criatura fora do comum, uma criatura que não somente ameaçaria mas certamente também agiria e, o que é mais, não se prenderia a nada, especialmente não ligando, como ela não ligava, a coisa alguma na vida, não devendo, portanto, ser provocada. Evidentemente, além de tudo isso, ainda havia mais qualquer outra coisa: o prenúncio já de um fermento caótico em trabalho no seu espírito e no seu coração, algo proveniente duma indignação romântica (Deus sabia por que e contra quem!), prenúncio esse transformado em um insaciável e exagerado paroxismo de desprezo; enfim, algo altamente ridículo e inadmissível na alta sociedade e prestes a prejudicar qualquer homem bem-educado. De mais a mais, com a sua riqueza e as suas ligações comerciais, Tótskii poderia se livrar desse incômodo se se quisesse servir dum golpe perdoável e pequenino de vilania. Por outro lado, era evidente que Nastássia Filíppovna não teria facilidades, por exemplo, para o prejudicar, digamos, no terreno ou no sentido legal, não conseguindo mesmo criar um escândalo de grande projeção, porque fácil lhe seria embaí-la. Mas tudo isso só valeria se Nastássia Filíppovna estivesse armada para se comportar como certas pessoas se comportam em tais circunstâncias, isto é, sem sair muito abertamente do curso regular duma conduta possível e provável. Mas ainda aí a perspicácia de Tótskii lhe serviria de muito, sendo bastante esperto, como era, para ver que Nastássia Filíppovna já se capacitara de que não o poderia prejudicar por vias legais, através da lei, e sim por outros meios que já descobrira em seu espírito e em seus olhos brilhantes. Como não dava valor a coisa alguma e, muito menos, a si própria (era preciso muita inteligência e visão, num mundano cético e totalmente cínico como ele, para perceber que ela havia desde muito deixado de se importar com o próprio futuro e de acreditar na valia de tal sentimento), Nastássia Filíppovna era mulher para enfrentar a ruína sem esperança, e até a própria desgraça, a prisão e a Sibéria, somente pelo prazer de humilhar o homem pelo qual sentia aversão tamanha que chegava a ser desumana. Afanássii Ivánovitch jamais escondera o fato de que era dum certo modo covarde, ou melhor, altamente conservador. Se soubesse, por exemplo, que seria assassinado no altar, no dia em que se casasse, ou que qualquer coisa análoga, aliás excessivamente improvável, ridícula e impossível na sociedade, lhe pudesse acontecer, certamente ficaria alarmado, e bastante! Mesmo que não fosse morto ou ferido, mas que tão somente alguém lhe escarrasse em público na cara, qualquer gesto desse gênero, como forma anômala e chocante de escândalo. E isso era justamente o que Nastássia Filíppovna ameaçava, embora não tivesse dito uma só palavra a respeito. Ela o tinha estudado e compreendido, cabalmente, e portanto sabia como feri-lo. E, como o casamento não passara até então de mera probabilidade, Afanássii Ivánovitch renunciou ao seu projeto e se submeteu a Nastássia Filíppovna.
Houve ainda uma outra consideração que o ajudou em sua decisão: era difícil calcular quão diferente de rosto esta nova Nastássia Filíppovna era da antiga! Tinha sido até então uma lindíssima rapariga, mas agora... como havia Tótskii de se perdoar por não ter reparado o que havia debaixo daquele rosto! Malograra, durante esses quatro anos, em conhecê-la. Muito, sem dúvida, dessa mudança, viera de dentro; e essas atitudes provavam uma repentina alteração! Lembrou-se, contudo, que momentos tinha havido, mesmo no passado, em que aqueles olhos, certas vezes, lhe despertavam estranhas ideias. Havia neles, já naquela época, uma promessa de alguma coisa demasiado profunda. Ah! A expressão escura e misteriosa daqueles olhos! Pareciam estar pedindo que lhe interpretassem o enigma. Também se admirara muitas vezes, nesses últimos dois anos, da assustadora mudança de compleição de Nastássia Filíppovna, que além disso se tornara pavorosamente pálida e talvez ainda mais formosa, por isso. Tótskii, como todo cavalheiro que tinha vivido seus dias livremente, a menoscabara por lhe ter conseguido tão barato a alma virginal. A seguir, porém, sentira uma certa apreensão. Resolvera até, na primavera seguinte, não perder tempo e casar logo Nastássia Filíppovna, mercê dum bom dote, com algum indivíduo decente e de bons sentimentos, que trabalhasse nalguma recuada província. (Oh! De que forma horrível e maliciosa ela não se riu dessa nova ideia!) Mas agora, Afanássii Ivánovitch, fascinado pelo que de novo descobrira nela, positivamente imaginou que ainda se poderia utilizar dessa mulher. Decidiu instalá-la em Petersburgo, cercando-a de luxo e conforto. Se não pudesse ter uma cousa, teria a outra. Poderia até gratificar a própria vaidade e ganhar glória à custa dela, em certos círculos, estimando, como estimava, a própria reputação em tais assuntos.
Tinham-se seguido cinco anos de vida em Petersburgo e naturalmente muitas coisas se tornaram claras nesse tempo. A situação de Tótskii não era lá das mais agradáveis. E o pior de tudo foi que, tendo ficado intimidado, nunca mais pôde recuperar a confiança em si mesmo. Tinha medo de Nastássia Filíppovna, mas nem sequer poderia dizer o que temia. Por algum tempo, pelo menos nos dois primeiros anos de Petersburgo, pensou que ela quisesse desposá-lo, não tendo falado nisso apenas devido ao seu orgulho congênito, permanecendo obstinadamente à espera de que ele a pedisse. Estranho pedido, não havia dúvida, mas suspeitou isso. Meditava e examinava... e cada vez ficava mais preocupado. Para sua grande e de certo modo desagradável surpresa, descobriu (assim é o coração do homem!) e ficou convencido, por uma cousa que aconteceu, que mesmo que lhe pedisse a mão receberia um contra! Levou muito tempo para entender o porquê disso. No fim de contas só descobriu uma explicação: que o orgulho dessa “mulher fantástica e suscetível” tinha atingido um tal ápice de frenesi que preferia expressar-lhe o seu desdém uma vez por todas, recusando-o, a assegurar o seu futuro e até mesmo o seu acesso às alturas da grandeza. O pior de tudo era que Nastássia o estava dominando totalmente. Não que estivesse, ao menos, influenciada por considerações mercenárias, pois, apesar de ter aceito o luxo, e com o luxo o engodo, vivia modestamente, e quase nada poupara para si, durante aqueles cinco anos. Tótskii aventurou uma tática sutil para quebrar as suas cadeias: começou, com habilidade, experimentando tentá-la com toda a sorte de tentações da espécie mais idealística possível. Mas tais ideias, em forma de príncipes, hússares, secretários de embaixada, poetas, romancistas e até mesmo socialistas, não causaram em Nastássia Filíppovna o menor interesse. Teria no coração uma pedra, ou todos os seus sentimentos estariam murchos e secos para sempre? Vivia uma vida apartada, lendo, estudando, ou apreciando música. Tinha poucos amigos, ligava-se a esposas de funcionários inferiores, gente pobre e ridícula; dava-se com duas artistas; recebia algumas velhotas, gostava muito da família dum velho e respeitável mestre-escola; e o numeroso pessoal dessa família a estimava, recebendo-a com efusão. Tinha, à noite, sempre meia dúzia de amigos para vê-la; o próprio Tótskii a visitava com regularidade e frequência. O general Epantchín fizera recentemente seu conhecimento, com certa dificuldade, ao passo que quase ao mesmo tempo um jovem serventuário governamental, chamado Ferdichtchénko, que se fazia de engraçado, um bufão bêbedo e sem educação, lhe tinha merecido acolhida sem dificuldade alguma. Outra pessoa do seu círculo era um homem esquisitão, chamado Ptítsin, modesto, sensato, de maneiras altamente polidas, que tinha vindo da mais extrema pobreza, sendo agora um agiota. Por último lhe fora apresentado Gavríl Ardaliónovitch, e já Nastássia Filíppovna desfrutava de estranha fama. Todos tinham ouvido gabar a sua beleza e era tudo. Ninguém poderia jactar-se de favores seus nem tinha o que dizer contra ela, a sua reputação, maneiras e juízo, confirmando bem num certo ponto a opinião de Tótskii. E fora a essa altura que o general Epantchín começara a tomar uma parte ativa no caso.
Quando Tótskii cortesmente se aproximou dele, pedindo o seu conselho como amigo, a propósito duma de suas filhas, fizera, da maneira mais nobre, uma completa e sincera confissão ao general. Afirmara-lhe que jamais lhe passara pelo espírito apoiar-se em meios equívocos para recuperar a liberdade. Que não se sentiria salvo mesmo que Nastássia Filíppovna lhe jurasse que o deixaria em paz no futuro, pois para ela as palavras significavam pouco, não lhe bastando nem mesmo maiores garantias. Trocaram impressões a respeito e resolveram agir juntos. Ficou resolvido que se experimentariam os meios mais gentis, primeiro, tocando, por exemplo, por assim dizer, nas mais finas cordas do coração dela. Foram ter juntos a Nastássia Filíppovna; e Tótskii falou, com toda a sinceridade, na intolerável miséria da sua situação. Censurou-se por tudo. Disse que quanto à primitiva ofensa não diria que estava arrependido porque era um sensual inveterado e não se pudera conter; mas que, no momento, desejava se casar e que toda a possibilidade deste altamente viável e distinto casamento estava nas mãos dela. Numa palavra, depunha todas as suas esperanças em seu generoso coração. Depois, então, o general Epantchín, como pai, começou a falar. E a verdade é que falou razoavelmente, evitando sentimentalismo. Apenas disse que de certo modo admitia plenamente o direito dela decidir o destino de Afanássii Ivánovitch; e fez uma hábil exibição de sua própria humildade, acentuando, perante ela, que o destino de sua filha e, talvez até, das outras duas estava agora dependendo dela. A pergunta de Nastássia Filíppovna quanto ao que dela desejavam, nesse caso, Tótskii logo com rude sinceridade confessou que ela durante esses cinco anos o tinha apavorado e posto em permanente pânico, não podendo pois ficar tranquilo enquanto Nastássia Filíppovna por sua vez não se casasse. Acrescentou que essa sua proposição aliás seria absurda da sua parte, se ele não tivesse alguma base para isso. Tinha observado e se capacitara como cousa certa que ela era amada por um jovem de bom nascimento e de respeitável família, Gavríl Ardaliónovitch Ívolguin, uma relação que ela aceitara de bom grado em sua casa desde muito. Sim, esse rapaz a amava apaixonadamente, sendo que até daria de bom grado a metade da sua vida pela esperança de ganhar a sua afeição, conforme, na simplicidade do seu puro e jovem coração, lhe confessara, em hora amistosa. E que Iván Fiódorovitch, protetor do jovem, desde muito sabia dessa paixão. E acrescentou por fim que se ele, Tótskii, não estava equivocado, ela, Nastássia Filíppovna, parecia, desde muito, se ter dado conta do amor do jovem, pois todos tinham percebido que ela realmente o olhava com certa indulgência. Fez-lhe ver quanto para ele, mais que para qualquer outro, era difícil falar sobre isso. Mas que se Nastássia Filíppovna permitisse que ele tivesse por ela, no mínimo, algum pensamento bom, assim como um constante desejo de prover ao seu conforto, deveria já ter percebido quanto lhe tinha sido penoso vê-la na solidão. Solidão essa que só podia ser causada por uma vaga depressão acrescida duma completa descrença na possibilidade de uma vida nova, que podia muito bem ter seus novos rumos no amor e no casamento. Disse mais que atirar fora talentos dos mais brilhantes e enveredar por uma irrazoável marcha para a ruína era, pensando bem, nem mais nem menos do que uma variação de sentimentalismo incompatível com o bom senso e o nobre coração duma mulher como Nastássia Filíppovna. Repetindo quão penoso era para ele, mais do que para qualquer outro, ter que lhe falar nisso, afirmou que não desejaria que Nastássia Filíppovna o olhasse com desprezo se ele lhe expressasse, como agora estava expressando, a sincera resolução de garanti-la no seu futuro, oferecendo-lhe a soma de 75 mil rublos. Categoricamente afirmou que essa quantia, aliás, já lhe estava assegurada no seu testamento, não se tratando, absolutamente, duma questão de recompensa, de maneira alguma... não tendo ela, de mais a mais, o direito de impedir que ele satisfizesse um desejo bem humano de fazer algo para aliviar a consciência etc. etc., o que era sempre o remate mais eloquente em tais circunstâncias. Afanássii Ivánovitch falou com elegância moral, alongando-se até. Ajuntou, como que de passagem, a categórica informação de que não deixara cair uma só palavra a quem quer que fosse a respeito dos 75 mil rublos, ninguém, nem mesmo Iván Fiódorovitch, ali sentado, tendo sido, antes, sabedor disso.
A resposta de Nastássia Filíppovna surpreendeu os dois amigos. Não mostrou nenhum traço da antiga ironia nem do primitivo ódio. E em vez daquela gargalhada cuja lembrança punha calafrios glaciais na espinha de Tótskii, pareceu alegrar-se com a oportunidade que lhe era dada de falar a alguém com franqueza e camaradagem. Fez saber que desde muito estivera desejando pedir um conselho amigo e que só o seu orgulho fora empecilho para isso. Mas, já que o gelo estava rompido, nada podia ser melhor. Primeiro com um sorriso morno, depois com uma risada alegre e jovial, garantiu que em caso algum poderia haver mais a tempestade de antes. Que, desde muito tempo para cá, passara a encarar as cousas de modo muito diverso e que, embora não tivesse havido mudança em seu coração, fora compelida a aceitar muitas cousas como fatos definitivos. Que o que tinha sido feito não poderia ser desfeito, que o que tinha passado, o fora de vez, tanto que se admirava de Afanássii Ivánovitch estar ainda sobressaltado. Depois voltou-se para Iván Fiódorovitch e, com ar de muita deferência, disse que sempre só ouvira falar bem de suas filhas, pelas quais entretinha um profundo respeito. Que a só ideia de poder vir a ser útil a elas de qualquer modo, lhe seria uma fonte de orgulho e satisfação. Verdade era que estava deprimida e melancólica; muito melancólica. Afanássii Ivánovitch não tinha feito mais, agora, do que adivinhar os seus sonhos: desejava, de fato, uma vida nova, novos rumos, um novo itinerário, tendo como alvo os filhos e a vida doméstica, senão o amor. Que, relativamente a Gavríl Ardaliónovitch, pouco podia falar. Julgava que fosse verídico que ele a amasse, estando também crente de que poderia se interessar por ele, caso viesse a acreditar na sinceridade desse apego. Mas que, mesmo havendo sinceridade da parte dele, era muito moço ainda, sendo essa sua opinião a tal respeito bem categórica. Que o que mais apreciava nele era estar trabalhando para sustentar uma família sem recursos. Que já ouvira dizer que era um homem de energia e de orgulho, sequioso de abrir o seu caminho e fazer a sua carreira. Também ouvira falar muito bem a propósito da mãe dele, Nina Aleksándrovna, excelente mulher, muito estimada; e que, quanto à irmã, Varvára Ardaliónovna, também lhe haviam garantido ser notável moça de muito caráter, todas essas cousas lhe tendo chegado através de Ptítsin, principalmente a brava maneira com que encaravam o infortúnio. Teria muito prazer em travar conhecimento com elas, mas que era uma interrogação saber se a receberiam bem, dentro da família. Não faria nada que dificultasse a possibilidade dum tal casamento, mas que precisava pensar nisso um pouco mais. Pedia-lhes pois que a não apressassem. E que, quanto aos 75 mil rublos, não necessitava Tótskii de falar tanto a tal respeito. Sabia bem o valor do dinheiro e certamente o aceitaria, desde já lhe agradecendo não ter tocado nesse particular a Gavríl Ardaliónovitch nem mesmo ao general, o que não deixava de ser uma delicadeza. Mas, por que não deveria o jovem ser sabedor disso? De que tinha ela que se envergonhar se, ao entrar para essa família, levasse esse dinheiro? Pondo as cousas bem claras, não era ela que tinha que pedir desculpas a quem quer que fosse de cousíssima alguma, e desejava até que isso ficasse bem patenteado. Que enquanto não se certificasse de que Gavríl Ardaliónovitch, ou a sua família, não tinham nenhum secreto sentimento a seu respeito, não se casaria com ele. E reiterava a afirmação de que não se julgava culpada de nada censurável. Gavríl Ardaliónovitch sabia muito bem em que pé ela havia vivido esses cinco anos em Petersburgo, em que condições estava perante Afanássii Ivánovitch, e se porventura fora levada por dinheiro em tudo isso. Se agora aceitava dinheiro, não o fazia como cobrança pela perda da sua honra de donzela, do que não tinha por que ser censurada, e sim como compensação de sua vida arruinada.
Dizendo isso, inflamou-se tanto e ficou tão nervosa (o que aliás era natural), que o general Epantchín se deu por satisfeito e considerou o caso solucionado. Mas Tótskii, que já certa vez fora penosamente assustado, não ficou lá muito confiante, levando algum tempo com receio de que uma áspide estivesse escondida entre flores. Todavia, pelo menos, negociações tinham sido abertas. O ponto esquemático dos dois amigos era contarem ambos com a possibilidade de Nastássia Filíppovna ser atraída por Gánia, e as cousas começaram a decorrer de tal forma que o próprio Tótskii acreditava, às vezes, na possibilidade de êxito. No entanto, Nastássia Filíppovna teve um entendimento com Gánia. Entendimento curto, porque o assunto era penoso e delicado. Ela reconheceu e sancionou o seu amor, insistindo, porém, em não se comprometer de forma alguma, reservando o direito, até ao casamento (se casamento houvesse) de poder dizer “não” até ao último momento, dando a Gánia igual direito e liberdade. Pouco depois veio Gánia a saber, acidentalmente, que ela estava a par, e com todas as minúcias, da hostilidade da família dele quanto ao casamento e à pessoa dela, bem como das cenas que isso ocasionava em casa. Mas não lhe disse palavra, muito embora diariamente ele esperasse tal assunto.
Há muito mais a relatar sobre todo o murmúrio e consequentes complicações que surgiram do caso proposto e respectivas negociações. Mas estamos a antecipar coisas e a maioria dessas complicações mais não eram do que meros boatos. Falou-se, por exemplo, que Tótskii descobriu ter Nastássia Filíppovna tido um encontro secreto e vago com as filhas do general, história decerto improvável e disparatada. Mas num outro episódio não pôde ele deixar de acreditar, o que o obcecou como um pesadelo: ouviu dizer, como verdade incontestável, que Nastássia Filíppovna estava certa de que Gavríl Ardaliónovitch se casava com ela por causa do dinheiro; que era um coração mercenário, ávido, trêfego e invejoso, sendo a sua vaidade, além de grotesca, ilimitada; que, embora realmente estivesse apaixonadamente se empenhando em conquistá-la (mesmo depois dos dois respeitáveis homens de idade haverem determinado explorar a sua incipiente paixão por ambos os lados, para seus próprios fins, comprando-o para o venderem a Nastássia Filíppovna por intermédio do matrimônio), começara a detestá-la como um pesadelo, paixão e repulsa estando estranhamente associados em sua alma. E que, conquanto, depois de dolorosa hesitação, tivesse consentido em vir a se casar com a “desacreditada rameira”, jurara, em seu coração, fazê-la pagar amargamente, abandonando-a depois, como, segundo afirmaram, dissera mais de uma vez. Transpirou que Nastássia Filíppovna soube de tudo isso e que tinha certo plano “enfiado na manga”. Tótskii ficou em tal pânico que não confiou mais suas inquietudes a Epantchín, mas como homem fraco, momentos havia em que recuperava a calma e a confiança, munindo-se mesmo de ânimo. Ficou sobremaneira aliviado, por exemplo, quando Nastássia Filíppovna prometeu aos dois amigos que lhes daria a palavra final e decisiva na noite do seu aniversário.
Mas, por um outro lado, apareceu um boato ainda mais estranho e incrível, relativamente ao não menos honrado Iván Fiódorovitch e que (pobre dele!) mais e mais se foi fundamentando à medida que o tempo passava.
Ao primeiro exame, soava perfeitamente falso. Era difícil acreditar que Iván Fiódorovitch já em seu venerável fim de vida, com sua excelente compreensão prática pelas coisas do mundo, e tudo o mais, pudesse se enfeitiçar por Nastássia Filíppovna e descesse por tais declives abaixo a ponto de um mero capricho se ter tornado quase paixão. Com o que contava para isso, é difícil imaginar-se; possivelmente com a ajuda do próprio Gánia. Tótskii suspeitou de qualquer cousa, nesse sentido, muito por alto. Suspeita essa suscitada pela probabilidade dum mútuo acordo entre o general e Gánia. Mas é notoriamente sabido que um homem movido pela paixão, especialmente se se trata dum homem de idade avançada, se torna completamente cego e propenso a encontrar fundamentos para sua esperança justamente onde não os há. Daí perder o senso e agir como criança doidivanas, por maior intelecto que possa ter. Veio a público que o general tinha procurado umas pérolas magníficas para o dia do natalício de Nastássia Filíppovna, pérolas que custaram uma soma imensa. E que vivia pensando nesse seu presente, muito embora estivesse perfeitamente informado de que ela não era uma mulher venal. Já na véspera do aniversário andava ele em perfeita febre, apesar de habilmente ter escondido a sua emoção. Era, justamente, daquelas pérolas que a sra. Epantchiná tinha ouvido falar. Lizavéta Prokófievna tinha, na verdade, muitos anos de experiência a propósito da inconstância do esposo; estava, de fato, quase acostumada com isso, mas lhe seria impossível deixar passar em silêncio esse incidente. O zum-zum sobre as tão faladas pérolas lhe tinha feito uma grande impressão. E o general pressentira isso, muito de antemão, pois certas palavras já vinham sendo pronunciadas dias antes e principalmente na véspera, tendo ele receado que uma explicação estivesse, inesperadamente, em vias de ser pedida. Eis por que não estava querendo, de muito bom grado, ir almoçar com a família na manhã em que a nossa história começa. Antes do aparecimento de Míchkin tinha resolvido escapulir a pretexto dum negócio urgente. Escapulir muitas vezes, significava, no caso do general, apenas pôr-se ao fresco. Precisava ter esse dia livre para si, ou no mínimo, de qualquer maneira, essa noite, e bem distante de dissabores advindos de desassossegos. E eis que inesperadamente, e de modo tão propício, surgira o príncipe. “Um verdadeiro enviado de Deus!” pensou o general ao entrar para se defrontar com a esposa.
Nota
1 Camponês mais respeitado de uma aldeia, que os demais camponeses elegem como chefe. (N. do T.)
5.
A sra. Epantchiná era muito ciosa da dignidade da sua família. Como a deveria ter chocado ouvir assim, sem o menor preparo, que esse príncipe Míchkin, o último do nome, de quem já tinha ouvido falar, não passava dum pobre idiota, quase um pedinte, pronto até a aceitar a caridade alheia! O general muito propositadamente quis produzir efeito, impressionando-a de súbito, de modo que com a atenção volvida noutro rumo ela esquecesse o caso das pérolas, atraída por uma nova sensação.
Sempre que alguma cousa acontecia de extraordinário, a sra. Epantchiná dava em abrir desmesuradamente os olhos, derrubando o corpo para trás, ficando assim a fixar o que em frente dela estivesse, sem poder articular palavra. Era uma mulher de compleição forte, da mesma idade do marido, com os cabelos negros ainda abundantes começando a pratear aqui e acolá. Mais alta do que baixa, tinha nariz aquilino, faces fundas amareladas e lábios finos e cerrados. Testa alta mas estreita, sob a qual os grandes olhos cinzentos mostravam, às vezes, uma inesperada expressão. Manifestara, em tempos, a fraqueza de supor esses olhos particularmente fascinantes, convicção essa de que ninguém jamais conseguira demovê-la.
— Recebê-lo? Queres que eu o receba agora, já? — e a dama abriu estateladamente os olhos, o mais que pôde, encarando Iván Fiódorovitch, que ficou logo sem jeito diante dela.
— Ora, tratando-se de quem se trata, não é necessário nenhuma cerimônia; se tu ao menos pudesses fazer uma ideia de como ele é, querida! — apressou-se o general a explicar. — É completamente uma criança, tem um feitio quase patético! Imagina tu que lhe dão ataques, de vez em quando. Acaba de chegar da Suíça, e veio diretamente da estação para aqui. Veste-se desajeitadamente, como um alemão, e está literalmente sem um copeque. Só lhe falta chorar. Dei-lhe 25 rublos e pretendo arranjar-lhe um lugarzinho de escrevente no nosso escritório. E lhes sugiro, mesdames que lhe ofereçam lanche, pois estou a jurar que está com fome.
— Tu me apavoras! — E a generala foi voltando a si, aos poucos. — Está com fome e tem ataques! Mas que espécie de ataques?
— Acalma-te, que os ataques não lhe sobrevêm assim amiúde; além do que, é dócil como criança de colo e muito instruído. Gostaria de recomendar-lhes, mesdames (dirigiu-se outra vez às filhas), que o submetessem a um examezinho, a ver para o que dará.
— Um exame? — balbuciou a esposa, rolando os olhos, no máximo do espanto, do marido até às filhas e destas, outra vez, até ao general.
— Oh! querida, não tomes as cousas intencionalmente... e sim de modo natural. Como já disse, passou-me pela cabeça tratá-lo amigavelmente; acho ser até um ato de caridade introduzi-lo um pouco em família.
— Introduzi-lo na família? Da Suíça?
— Agora já não se pode recuar. Convidei-o. Mas repito mais uma vez, seja como decidires. Pensei nisso por vários motivos; primeiro, ter ele o teu nome, ser talvez até parente teu; depois, a seguir, não ter ele onde pousar a cabeça. Supus que te fosse de certo modo interessante vê-lo, já que, de fato, pertences à mesma família.
— Naturalmente, mamãe. E se não é preciso fazer cerimônia com ele! E ainda por cúmulo está com fome e depois duma viagem dessas! Por que não havemos de lhe dar alguma coisa a comer, já que não tem para onde ir? — opinou Aleksándra, que era a mais velha.
— E se é uma criança, ainda! Podíamos até brincar de cabra-cega com ele!
— De cabra-cega? Que é que você está dizendo?
— Ora, mamãe, deixe de cousas! — interrompeu Agláia, zangando-se.
A segunda filha, Adelaída, que estava de ânimo alegre, não se pôde conter e rompeu numa risada.
— Mande-o buscar, papai. Mamãe já deu licença — decidiu Agláia.
O general tocou a campainha e mandou introduzir o príncipe.
— Está bem, mas com a condição de que vocês lhe passem um guardanapo em volta do pescoço, quando ele se sentar à mesa — obtemperou a generala. — E chamem Fiódor ou Mávra para ficarem atrás da cadeira dele tomando conta enquanto estiver comendo. Estará ao menos no momento a salvo desses ataques? É muito gesticulador?
— Oh! Não fales assim. É muito bem-educado, e tem maneiras encantadoras. Apenas é um pouco simplório, mas nem sempre. Mas, ei-lo que vem. Faça o favor de entrar. Deixa que te apresente o príncipe Míchkin, último de seu nome, teu homônimo, ou melhor, xará e talvez até teu parente. Recebe-o bem e sê gentil para com ele. Como o almoço vai ser servido, príncipe, queira dar-nos a honra... E desculpe-me, pois tenho que me apressar, estou atrasado...
— Nós sabemos perfeitamente por que é essa sua pressa... — disse-lhe a esposa, com ênfase.
— Estou com pressa, estou com pressa, querida. Estou atrasado. Deem-lhe os álbuns, mesdames. Peçam-lhe que escreva qualquer cousa para vocês; tem uma letra que é um assombro. Vocês deveriam ver como ele escreveu para mim, em antigos caracteres: “O hegúmeno Pafnútii apôs aqui a sua assinatura.” Bem, adeus!
— Pafnútii? O abade? Espera um minuto, para um pouco. Aonde vais e quem é Pafnútii? — chamava-o a esposa, com franco aborrecimento que, ante a fuga do marido, se transformou em agitação.
— Sim, sim, querida, houve um hegúmeno chamado Pafnútii, que viveu há muito tempo. Mas tenho que sair, já devia estar na casa do conde; imagina tu que ele próprio marcou hora... Adeus, por enquanto, príncipe!
Em passadas largas, o general se retirou.
— Eu sei quem é o conde que ele vai ver! — disse com muita finura Lizavéta Prokófievna, volvendo os olhos irritadamente para o príncipe. — Que foi? — recomeçou ela, impaciente e amuada, tentando recordar-se. — Ora bem, que foi? Ah! sim, falávamos do hegúmeno...
— Mamãe! — ia recomeçar Aleksándra, mas Agláia chegou a bater com o pé.
— Não me interrompam — falou a generala martelando cada palavra. — Também tenho o direito de saber. Sente-se aqui, príncipe, nesta poltrona. Aqui, em frente de mim. Não, aqui, perto do sol, mais para a claridade, para eu poder ver bem. Afinal, que hegúmeno foi esse?
— O hegúmeno Pafnútii — respondeu Míchkin, com atenção e seriedade.
— Pafnútii? Hã!... Isto é interessante. Bem, e depois, que é que houve com ele?
Fazia estas perguntas impacientemente, às pressas, de modo cortante, conservando os olhos fixos no príncipe. E, à medida que ele respondia, ela ia meneando a cabeça, a cada palavra.
— O hegúmeno Pafnútii do século XIV — começou Míchkin — era o Superior do Mosteiro do Volga naquela parte que atualmente é a província de Krostoma. Foi famoso por sua santa vida. Visitou os tártaros, na sua Horda de Ouro, ajudou na distribuição da governança pública tendo, assim, que assinar diversos documentos. Vi uma cópia da sua assinatura. Gostei da letra e a imitei. Quando o general manifestou desejos de ver a minha letra, ainda agora, para me arranjar um emprego, escrevi várias sentenças em diferentes caligrafias e entre outras cousas escrevi: “O hegúmeno Pafnútii apôs aqui a sua assinatura” com a própria letra do hegúmeno. O general gostou muito e foi por causa disso que esteve a falar ainda agora.
— Agláia, tome nota de Pafnútii; ou melhor, escreva, senão eu me esqueço. Mas julguei que se tratasse de cousa mais interessante. E onde ficou essa imitação da assinatura dele?
— Creio que ficou no escritório do general, sobre a mesa.
— Mande alguém trazer, já.
— Não preferiria a senhora que eu escrevesse aqui, outra vez?
— Naturalmente, mamãe — comentou Aleksándra — mas o melhor agora é almoçarmos primeiro; estamos com apetite.
— Isso mesmo — concordou a mãe. — Venha, príncipe. Está com disposição?
— Sim, comecei a sentir fome agora e lhe fico muito grato.
— É uma cousa ótima que o senhor seja assim tão delicado. Verifico, com prazer, que o senhor não se aproxima, sequer, da criatura estranha que me foi descrita como sendo o senhor. Venha. Sente-se aqui, diante de mim — insistiu, fazendo Míchkin sentar-se, mal entraram na saleta de almoço. — Quero examiná-lo. Aleksándra, Adelaída, ajudem-me a servir o príncipe. Realmente ele não é nenhum doente, conforme... Creio não ser necessário o guardanapo passado ao pescoço durante a refeição, não é mesmo, príncipe? Costumava usá-lo, príncipe?
— Só até aos sete anos, creio eu; mas agora, durante as refeições, ainda o uso, mas sobre os joelhos.
— Muito bem. E os seus ataques?
— Ataques? — O príncipe ficou um pouco zonzo. — Agora são bem mais raros. Mas, não sei, já me disseram que o clima aqui me fará piorar.
— Como ele fala direitinho!... — E a senhora virou-se para as filhas e anuía ainda, com a cabeça, a cada palavra dele. — Eu não esperava isso. Então tudo não passou de brincadeira e invencionice de meu marido, como de hábito. Anime-se, príncipe, e vá me dizendo onde nasceu, e depois, para onde o levaram. Quero ficar sabendo tudo. O senhor me interessa sobremodo.
O príncipe agradeceu e, enquanto comia com excelente apetite, começou a repetir a história que já tinha contado várias vezes essa manhã. A dona da casa cada vez demonstrava estar mais contente com ele. As meninas já o ouviam com maior atenção; as relações se estreitavam. Veio a verificar-se que Míchkin conhecia muito bem a sua árvore genealógica. Mas, apesar dos esforços gerais, não houve meios de descobrirem que espécie de parentesco próximo poderia haver entre ele e a senhora generala. Entre os avôs e as avós um distante parentesco podia ser descoberto. A senhora ficou particularmente satisfeita com essa averiguação tão evidente, pois muito raramente lhe era dado ensejo de discorrer sobre a sua linhagem. Foi, assim, com entusiasmo que se levantou da mesa.
— Venham todos vocês! Vamos para a sala de estar — disse ela. — Tomaremos lá o café. Temos uma sala onde nos reunimos sempre — ia explicando ao príncipe, enquanto o conduzia. — Minha pequena sala de conversa, onde nos reunimos quando estamos sozinhas e onde cada uma se entretém com o seu trabalho. Aleksándra, minha filha mais velha, esta aqui, toca piano, lê, ou costura; Adelaída pinta paisagens e retratos (mas não há meio nunca de acabar cousa alguma) e Agláia fica sentada e não faz nada. Eu, tampouco, não sou muito boa em trabalhos; não consigo ter nada acabado. Bem, chegamos. Sente-se aqui, príncipe, perto do fogo, e me conte qualquer cousa. Quero saber de que jeito o senhor conta uma história. Quero orientar-me bem a seu respeito e quando encontrar a velha princesa Bielokónskaia hei de falar a respeito do senhor. Quero que todos se interessem pelo senhor. Vamos, conte alguma cousa.
— Mas, mamãe, que modos de pedir que lhe conte uma história... — redarguiu Adelaída que tinha ido sentar-se junto ao cavalete e já segurava os pincéis e a paleta, diante do trabalho; copiava de uma gravura uma paisagem começada havia muito tempo.
Aleksándra e Agláia sentaram-se num pequeno sofá, cruzando os braços, preparadas para ouvir a conversa. Míchkin percebeu que era o centro de atenção de todas. E então Agláia observou:
— Pois eu nunca haveria de contar nada se me pedissem deste modo.
— Por que não? Que há de mais nisso? Por que não há de me contar qualquer cousa? Ele tem língua. Quero ver como descreve os fatos. Vamos, seja o que for. Diga-nos se apreciou a Suíça, e quais as suas primeiras impressões lá. Vocês vão ver, ele já vai começar e muito bem.
— Foi uma impressão deveras forte... — começou o príncipe.
— Ora, bravos, estão vendo? — aplaudiu a impetuosa senhora dirigindo-se às filhas. — Não disse que ele ia começar?
— Mas, mamãe, deixe-o falar, ao menos! — retrucou Aleksándra, contendo-a. E ciciou ao ouvido de Agláia: — Este príncipe está com mais cara de ser um finório do que um idiota.
— Nem há dúvida; vi isso logo — respondeu Agláia. — E é intolerável fingir assim. Estará ele tentando, com isso, alguma vantagem?
E o príncipe repetiu:
— A minha primeira impressão foi muito forte. Quando me tiraram da Rússia e me conduziram através duma porção de cidades alemãs, eu não fazia mais do que contemplá-las calado e me lembro de que não fazia perguntas. Eu acabara de ter uma série violenta e lancinante de ataques da minha doença. Sempre que piorava e os acessos vinham com mais frequência, eu caía depois numa completa estupefação. Perdia a memória e, embora o meu cérebro trabalhasse, parecia que a sequência lógica das minhas ideias se tinha quebrado. Era incapaz de ligar mais do que dois ou três pensamentos. Pelo menos é a impressão que me dava. Depois os acessos abrandaram e escassearam e me tornei outra vez forte e sadio, como estou agora. Lembro-me que vivia insuportavelmente triste, querendo sempre chorar, permanentemente assustado e com pavor. O mais chocante era tudo me parecer estranho. Tudo me parecia alheio e isso me oprimia... Mas esse estado soturno se levantou, lembro-me bem, uma tarde, ao chegar a Basileia, na Suíça. O que me despertou foi o zurro dum jumento, na praça do mercado. O jumento mexeu comigo e, não sei por que estranho motivo, simpatizei com ele; e repentinamente tudo se tornou claro na minha cabeça.
— Um jumento? Isso é originalíssimo! — observou a generala. — Aliás, pensando bem, não há nada de estrambótico nisso! Qualquer de nós pode sem mais aquela ficar gostando dum jumento! — anuiu ela, lançando um olhar impaciente às filhas, que se tinham posto a rir. — Já aconteceu na mitologia. Adiante, príncipe.
— Fiquei, desde então, gostando terrivelmente de jumentos. Eles têm uma atração toda especial por mim. Comecei a me informar bem, a respeito deles, pois antes nunca tinha visto nenhum e imediatamente compreendi que criatura útil ele é; industrioso, forte, paciente, barato, resignado... Foi, pois, através desse jumento, que a Suíça começou a me fascinar, a ponto da minha melancolia passar completamente.
— Isto tudo é formidável, mas passemos além do jumento. Passemos a outra cousa. Por que é que você continua rindo, Agláia? E você, Adelaída? O que o príncipe nos contou sobre o jumentinho foi deveras magnífico. Ele viu, ao passo que vocês não viram nunca nenhum. Vocês ainda não estiveram no estrangeiro!
— Eu já vi um jumento, mamãe — asseverou Adelaída.
— E eu também já ouvi um — garantiu Agláia.
E as três moças riram-se, outra vez. O príncipe riu com elas.
— Isso não fica bem para vocês — ralhou a mãe. — Deve desculpá-las, príncipe; são sempre assim, alegres. Por mais que eu zangue, gosto muito delas. São teimosas, são umas cabeças-tontas.
— Por quê? — E Míchkin ria. — Eu faria o mesmo, no lugar delas. Mas voltemos ao jumentinho. Trata-se duma criatura muito útil e de muito bom coração.
— E o senhor, príncipe, tem o senhor também bom coração? Pergunto por curiosidade.
Riram-se todas, de novo.
— Mas... outra vez esse aborrecido jumento?! Já não estava pensando mais nesse bicho. Acredite-me, príncipe, falei sem nenhuma...
— Insinuação?... Oh! Eu sei! — E o príncipe desandou a rir.
— Já que, em vez de se zangar, o senhor ri, fico mais à vontade. Vejo que é um moço de muito bom coração — afirmou Lizavéta Prokófievna.
— Nem sempre, nem sempre!... — avisou Míchkin.
— Pois eu sou — garantiu categoricamente a dona da casa. — Ou, se prefere, vou lhe mostrar. É o meu único defeito, pois não convém ter sempre bom coração. Muitas vezes zango com estas meninas e ainda mais com Iván Fiódorovitch, mas o pior é que quando me zango é que verifico que tenho bom coração. Ainda agora, antes do senhor chegar, eu estava zangada e achava que não seria capaz de compreender cousa alguma. Sou assim, às vezes. Sou como uma criança. Obrigada pela lição, Agláia. Mas não estou dizendo inconveniência nenhuma. Não sou nenhuma maluca, como pareço, e como estas minhas filhas gostam de me fazer crer que eu seja. Tenho uma vontade própria e não me envergonho à toa. E digo isso sem malícia. Agláia, venha cá me dar um beijo, aqui... Agora, basta de carinhos — disse depois de Agláia beijá-la com ternura nos lábios e na mão. — Adiante, príncipe. Vamos a ver se o senhor se lembra de qualquer coisa mais interessante do que um jumento.
— Não sei como se possa falar assim por encomenda — raciocinou Adelaída. — Eu, nem pensar direito poderia.
— Não se incomode, que o príncipe pode pensar por nós todas, pois é muito inteligente; pelo menos dez vezes mais esperto do que vocês, provavelmente mesmo umas doze vezes. Espero que não levem muito tempo para se darem conta disso, pois ele já lhes vai provar imediatamente. Não é, príncipe? Continue. E pode, por enquanto, deixar de lado o jumento. Que viu mais o senhor no estrangeiro além do jumento?
— Mas o jumento já bastou para provar que ele é bem esperto — redarguiu Aleksándra. — E foi bem interessante o que nos contou da sua condição de doente e como um golpe exterior fez com que as coisas todas lhe agradassem. Sempre me interessou saber como se perde a razão e como é que se recupera depois. Mormente quando ela volta sem se esperar.
— Sim, sim — gritou a mãe, impetuosamente. — Também sei que vocês, quando querem, são espertas. Bem, parem, chega de rir. O senhor ia falar sobre o cenário da Suíça, creio eu! E então?
— Chegamos a Lucerna e fiquei arrebatado pelo lago. Ao mesmo tempo que tal beleza me arrebatou, me deprimiu — confessou o príncipe.
— Mas... por quê? — indagou Aleksándra.
— Não sei por quê. Toda a paisagem fora do comum sempre me perturba e me deprime pela primeira vez — observou o príncipe. — Sinto ao mesmo tempo felicidade e angústia. Mas isso se dava mais quando eu estava doente.
— Como eu gostaria de ver o lago! — ponderou Adelaída.
— Não sei por que ainda não fomos ao estrangeiro. Aqui, não há meios de obter assuntos para pintar, principalmente nestes dois últimos anos. O Oeste e o Sul já os pintei há muito. Príncipe, dê-me assunto para um quadro.
— De pintura, que sei eu? Mas me parecia que bastava olhar e pintar.
— Mas olhar, como? Não sei como olhar as cousas.
— Por que continua você a falar através de enigmas? — interrompeu-a a mãe. — Eu não sou capaz de baralhar as cousas assim. Que quer você dizer com essa história de não saber como olhar? Não tem olhos? Sirva-se deles! Se aqui você não pode ver, que fará no estrangeiro? Príncipe, acho que vai ser necessário o senhor nos explicar como é que se veem as cousas!
— Sim, é melhor mesmo — reforçou Adelaída. — O príncipe aprendeu a ver as cousas no estrangeiro.
— Acho que não. Apenas me dei melhor lá. Se aprendi a ver as cousas, isso não sei. Mas, quase todo o tempo, fui muito feliz.
— Feliz? O senhor sabe como ser feliz? — exclamou Agláia. — E tem a coragem de dizer que não sabe se aprendeu a ver as cousas? O senhor pode até nos ensinar!
— Então, ensine! — riu Adelaída.
— Eu não posso ensinar nada. — E o príncipe também riu. — Passei quase todo o tempo que estive no estrangeiro, na mesma aldeia, uma aldeia suíça. Raramente fazia excursões e, essas mesmo, ali por perto. Que lhes hei de eu pois ensinar? No começo fui ficando menos obtuso e logo comecei a ficar mais forte. E pouco a pouco cada dia se foi tornando mais precioso para mim, à medida que o tempo ia passando e eu me dava conta disso direitinho. Deitava-me feliz e mais feliz me levantava. Explicar-lhes, porém, por que, não sei.
— Então não sentia vontade de sair? De ir a algum lugar? — perguntou Aleksándra.
— No começo, bem no começo, tive, sim. E até me tornei agitado. Estava continuadamente preocupado com a vida que devia levar. Queria saber que era que a vida me tinha reservado. Ficava intoleravelmente ansioso, às vezes. A solidão, as senhoras sabem, dá isso. Havia lá uma pequena cascata. Era um fio de água, muito delgado, quase perpendicular, que se despenhava da montanha, espumoso, branco, esparzindo gotículas em volta. Apesar de cair duma grande altura não dava a impressão de ser alta. Estava longe de meia versta, mas parecia estar a uns cinquenta passos. À noite gostava de ouvir o seu barulho. Em tais momentos eu estava sempre dominado por uma grande angústia. Às vezes, também, eu pasmava a encarar as geleiras ao meio-dia, sozinho, a meio caminho do cume da montanha, cercado por imensos pinheirais resinosos. Na crista da rocha, um castelo medieval em ruínas; lá embaixo, ao longe, no vale, a nossa pequenina aldeia, tenuemente visível; muita claridade solar; amplo céu azul. E um terrível silêncio. Então eu sentia que alguma cousa me estava subjugando e ficava a imaginar que se fosse andando sempre, até bem longe, sempre para diante, até alcançar aquela linha onde o céu e a terra se encontram e se tocam, então, lá sim, é que eu acharia a chave do mistério. Lá é que eu veria uma vida mil vezes mais rica e turbulenta do que a nossa. Sonhava com uma grande cidade, como Nápoles, por exemplo, cheia de palácios, ruídos, bramidos e vida. Sim; não sonhava pouco!... E depois concluía que até numa prisão se pode encontrar uma vida afortunada!...
— Já li essa sua última reflexão, aliás tão edificante, no meu livro de leituras, quando eu tinha doze anos — desconcertou-o Agláia.
E Aleksándra disse:
— Isso tudo é filosofia. O senhor é um filósofo e, quem sabe? talvez tenha chegado aqui para ensinar.
— Talvez tenha razão — sorriu o príncipe. — Talvez seja eu um filósofo e saiba ensinar a pensar... É bem possível; é verdade. Talvez seja assim.
— E a sua filosofia é como a de Evlámpia Nikoláievna — interpôs Agláia. — Trata-se da viúva de um funcionário público que vem ver-nos mais como parenta pobre. Viver barato é o seu único objetivo na vida. Viver tão singelamente quão possível for, mas não fala senão de dinheiro. E tem dinheiro. É uma simuladora. É como a riqueza da vida do senhor dentro duma prisão. Ou como os seus quatro anos de felicidade nos vales que o senhor trocaria por Nápoles. E olhe lá que teria ganho na troca, embora fosse um lucrozinho à toa.
— Pode haver duas opiniões a respeito de prisão — sentenciou o príncipe. — Certo homem que viveu doze anos numa prisão me disse uma cousa, depois. Ele era, como eu, um dos clientes do meu professor. Também tinha ataques e, às vezes, ficava excitado; chorava, queria matar-se. A sua vida na cadeia foi uma vida miserável, asseguro-lhes, mas não, absolutamente, sem sentido. Imaginem que seus únicos amigos eram uma aranha e uma árvore que crescia debaixo da sua janela gradeada. Mas o melhor é deixar de lado este caso e lhes contar como vim a encontrar, no ano passado, um outro homem em cuja vida houve uma circunstância bem estranha, pelo fato de ser daquelas que raramente acontecem. Esse homem fora, uma vez, conduzido com mais outros ao cadafalso, levado por uma sentença de morte. Ia ser fuzilado por causa duma ofensa política. Vinte minutos mais tarde, porém, lhe era lida a comutação da pena de morte pela de degredo. Todavia, no intervalo entre as duas sentenças, vinte minutos, ou talvez um quarto de hora, teve ele a convicção firme de que ia morrer. Sempre o escutei sequiosamente, quando se punha a recordar as sensações dessa ocasião e, muitas vezes, depois, eu o interrogava a respeito. Lembrava-se de tudo com perfeita exatidão e costumava dizer que lhe era impossível esquecer aqueles vinte minutos. A vinte passos do cadafalso, a cuja volta soldadesca e povaréu permaneciam, havia três postes fincados no chão, pois se tratava de vários condenados. Os três primeiros foram conduzidos até os postes e amarrados, com a túnica dos condenados (um camisolão branco), os capuzes puxados bem por sobre os olhos para que nada vissem, sendo que então uma companhia de vários soldados se postou diante de cada poste. O meu amigo era o oitavo da lista e portanto tinha que ser um dos do terceiro turno. O padre se acercou de cada um, com a cruz. Ele só dispunha de cinco minutos mais para viver. Contou-me que aqueles cinco minutos lhe pareceram um infinito e vasto tesouro. Sentia tantas vidas naqueles cinco minutos que não precisava se incomodar com o último momento, tanto mais que havia subdividido o seu tempo da seguinte maneira: dois minutos para se despedir dos companheiros. Outros dois para o seu último pensamento geral. E, depois, o último, o quinto, para olhar em redor de si pela derradeira vez. Lembrava-se muito bem dessa extravagante subdivisão do seu tempo. Ia morrer aos 27 anos, moço, forte e em plena saúde. Ao se despedir dos camaradas ocorreu-lhe perguntar a um deles qualquer cousa inadequada à circunstância, e achou muito curiosa a resposta. Após as despedidas, vieram os tais dois minutos que reservara para pensar em si mesmo. Sabia de antemão em que devia pensar. Desejava atinar, da maneira mais clara e pronta possível, como é que estava existindo agora, isto é, vivendo, e como é que dentro de três minutos seria qualquer outra cousa, alguém ou nada! E isso, como e onde? Resolvera solucionar tudo, de vez, naqueles dois únicos e últimos minutos, Não longe dali havia uma igreja cuja cúpula dourada cintilava aos raios solares. Como se lembrava de se ter posto a fixar, fascinado, aquela cúpula fulgurante de luz! Não podia tirar os olhos de lá! Era como se aqueles raios fossem já a sua outra futura natureza, visto como, dentro de três minutos, ele dum certo modo se iria fundir neles...
A incerteza e um como que sentimento de pavor pelo mistério em que já estava quase ingressando foram terríveis. Disse-me, porém, que nada foi tão cruel naquele momento como este contínuo pensamento em forma de interrogação: “E se eu não morrer? Se eu for devolvido à vida? Ah! Que eternidade! Tudo seria meu! Eu transformaria cada minuto em outras tantas eternidades! Não desperdiçaria um segundo sequer! Contaria cada minuto que fosse passando, sem desperdiçar um único!” Disse-me que esta ideia lhe veio com tal furor, que desejou ser imediatamente fuzilado, logo, logo!...
Subitamente, Míchkin interrompeu o que estava contando. E elas ficaram à espera de que ele prosseguisse e tirasse qualquer conclusão.
— Acabou? — perguntou Agláia.
— Como?! Ah! Sim — disse Míchkin, despertando dum sonho momentâneo.
— Mas, para que nos contou esta história?
— É que qualquer cousa em nossa conversa me fez recordá-la...
— O senhor fala muito abruptamente... — observou Aleksándra. — Provavelmente quis dizer, príncipe, que nenhum momento da vida deve ser considerado como insignificante e que, muitas vezes, cinco minutos são um precioso tesouro. Isto tudo é muito louvável; mas deixe que lhe pergunte, já que esse amigo que contou tais horrores foi perdoado e teve a pena comutada, havendo sido presenteado portanto com essa “eternidade de vida”. Que fez ele dessa riqueza, depois? Viveu, de fato, contando cada minuto?
— Qual nada! Disse-me depois. Eu também tive curiosidade em saber e perguntei. Muito pelo contrário: perdeu muitos e muitos minutos.
— Ainda bem que isso prova que é impossível viver “contando cada minuto”. Por algum motivo é isso impossível.
— Sim, alguma razão deve haver — confirmou o príncipe. — Também eu penso assim e, no entanto, não acredito que...
— Acha então que vive mais sabiamente do que qualquer outro? — indagou Agláia.
— Sim, muitas vezes julgo assim.
— E não muda de opinião?
— Penso sempre do mesmo modo.
Até então estivera contemplando Agláia com um sorriso gentil e tímido. Mas ao fazer tal afirmativa deu uma risada, passando a olhá-la com jovialidade.
— Isso é que é ser modesto...
O tom da voz de Agláia tendia para a irritação.
— Gosto de ver moças corajosas. Conto-lhes uma destas e não se impressionam! Pois eu fiquei estarrecido com o que esse homem me contou... Essa causa de dividir os seus últimos cinco minutos... Palavra, tenho até sonhado com essa história...
Tornou a olhar para as suas ouvintes, examinando-as uma por uma.
— Ficaram zangadas comigo, por alguma cousa que eu tenha feito sem querer?
Olhava-as agora bem no rosto, parecendo um tanto embaraçado, assim de repente.
— Zangadas? Nós? Por quê? — exclamaram as três, surpreendidas.
— Ora... por haver eu assumido todo este tempo um ar de quem recita um sermão...
Elas riram muito.
— Pelo amor de Deus, não me tomem por pretensioso. Sei por experiência própria que tenho vivido menos do que os outros e que conheço a vida muito menos do que qualquer outra pessoa. Natural, pois, que às vezes eu diga tolices.
E perturbou-se completamente.
— Se é feliz, conforme disse, deve ter vivido mais e nunca menos do que os outros. Não vejo por que haja de nos pedir desculpas — redarguiu Agláia, com timbre irritado. — E não suponha, por favor, que nos esteve pregando um sermão. E nem se trata, da sua parte, de nenhum sinal de superioridade, pois, com esse seu quietismo, fácil lhe é encher de felicidade um século de existência. Ou lhe mostrem uma execução, ou lhe façam um aceno com um simples dedo, para o senhor tanto faz, pois qualquer dos casos lhe dará margem para fazer edificantes reflexões, aperfeiçoando seu estado de beatitude. Ora, assim a vida é muito fácil.
— Não, compreendo, Agláia, que você esteja sempre “de ponta” com o que lhe dizem — disse a generala ao reparar no feitio do príncipe. — Tampouco entendo o que você está aí a retrucar. Dedo de quem? Qual dedo? Não diga asneiras. O príncipe falou magnificamente; pena que o assunto tenha sido um pouco triste. Qual o motivo de pretender descoroçoá-lo? Quando começou, ele estava risonho; agora está sombrio.
— Está muito bem, mamãe. Escute, príncipe, que pena o senhor não ter assistido a uma execução... porque eu gostaria de lhe perguntar uma cousa.
Mas Míchkin prontamente respondeu:
— Já assisti a uma.
— Já? — entusiasmou-se Agláia. — Bem me pareceu. Isso é o cúmulo! Se já assistiu a uma coisa dessas como é que tem a coragem de declarar que sempre foi feliz? Não estou eu dizendo uma verdade que o contradiz?
— Mas então, na sua aldeia, havia execuções? — quis saber Adelaída.
— Vi uma, mas foi em Lion. Estava de visita à cidade, com Schneider. E ele me levou. Tivemos essa oportunidade logo que acabamos de chegar.
— Bem. Gostou? O que viu foi edificante e instrutivo? — persistia Agláia.
— Absolutamente não gostei e até adoeci depois. Devo confessar que fiquei pregado ali, no lugar, sem poder tirar os olhos daquilo.
— Eu faria o mesmo — afirmou Agláia.
— Eles implicam com as mulheres que vão assistir. Os jornais até censuram.
— É lógico. E se consideram que não é próprio para mulheres, inferem que o é para os homens. Justifica-se. Congratulo-me com essa lógica! E naturalmente também pensa assim, príncipe!?
Adelaída interrompeu-os, perguntando:
— Como foi essa execução?
— Não me sinto muito inclinado agora a contar. — Míchkin estava meio atarantado, de sobrancelhas franzidas.
— Por que essa má vontade em nos relatar isso? — indagou Agláia, com certo ar escarninho.
— É que ainda agora mesmo acabei de descrever essa execução.
— Agora mesmo? A quem? Ora essa!
— Ao lacaio da entrada, enquanto esperava.
— Qual? — ouviu ele de todos os lados.
— Um que fica na saleta, que tem os cabelos meio encanecidos e a cara vermelha; enquanto estive sentado na antecâmara, esperando falar com Iván Fiódorovitch.
— Que despropósito! Isso é até original! — sentenciou a generala.
— Ora, o príncipe é um democrata — sublinhou Agláia. — Bem, se contou a Aleksiéii, como há de recusar a nós outras?
— Já estou preparada para ouvir — disse Adelaída.
E Míchkin começou, dirigindo-se a esta:
— Ainda agora me veio ao espírito um pensamento, quando me pediu um assunto para o seu quadro (Míchkin animava-se logo, confiante): sugerir-lhe que pintasse o rosto de um homem condenado! Um momento antes da guilhotina cair, quando ele ainda estivesse de pé no cadafalso, antes de se curvar sobre o cepo.
— O rosto? Só o rosto? — interessou-se Adelaída. — Seria um tema estranho. E que espécie de quadro produziria isso?
— Não sei. Mas, por que não pintar? — insistiu Míchkin com ardor. — Vi uma tela mais ou menos assim, em Basileia, não há muito tempo. Gostaria de descrevê-la para as senhoritas. Um dia destes o farei. Impressionou-me como quê!
— Não deixe de nos contar depois como era esse quadro de Basileia — disse Adelaída. — Mas, por hoje nos explique como devo pintar a execução. Poderia dizer-me como é que o senhor próprio a imaginaria? A cabeça como deve ser? E tem que ser só a cabeça? Como é o rosto?
— Praticamente tem que ser no minuto que antecede à morte — começou Míchkin, com muita presteza, servindo-se de suas recordações e dando até mostras de aflição, como não querendo esquecer nenhuma minúcia de importância relativa ao caso. — O momento em que ele acabou de subir a escadinha e parou sobre o cadafalso. Bem nesse instante ele olhou na minha direção. Olhei para a sua face e compreendi tudo. Será possível contar isso? Desejo, sim, desejo muito que a senhorita ou qualquer outra pessoa pinte isso. Melhor se fosse a senhorita. Já me veio a ideia de que a senhorita fizesse bem um quadro desse gênero. Mas, veja bem, tem-se que imaginar tudo quanto sucedeu antes, tudo, tudo! O condenado estava na prisão e pensava que a execução seria dentro de uma semana; contava com as formalidades de praxe e calculava que os papéis levariam uma semana para voltar. Mas, por uma circunstância fortuita, o prazo foi reduzido. Às cinco da manhã ele estava dormindo. Fins de outubro. Às cinco da manhã ainda é frio e escuro. O superintendente da prisão chega sem nenhum rumor, acompanhado do guarda, e lhe toca o ombro, com muito cuidado. Ele se apoia no cotovelo e se ergue um pouco. Vê a lanterna, pergunta: “Que é?” “A execução será às dez horas.” Não pôde apanhar bem o sentido disso, por estar apenas semiacordado, mas acabou objetando que a sentença demoraria no mínimo uma semana em seus trâmites. Nisto acordou de todo, deixou de protestar, ficou mudo. Assim me contaram. Depois falou: “É duro assim de repente!...” E de novo se calou, não falando daí em diante mais nada. As três ou quatro horas seguintes foram esgotadas nos usuais preparativos: receber o sacerdote, depois o almoço, no qual lhe serviram vinho, café e carne (não é isso um escárnio? Pensem na crueldade disso! E dizer-se que, afinal, esses inocentes funcionários agem de boa-fé, convencidos de que estão praticando um último ato de humanidade!) e depois a toilette (sabem que é isso?); só então é que o levaram através da cidade, para o suplício. Penso que também este homem, como aquele outro, deve ter imaginado, enquanto era levado através da cidade, que ainda lhe sobrava um tempo sem fim para viver. Devia ir pensando, pelo caminho: “Pois não é que ainda falta muito tempo! Tenho três ruas! Devo passar por esta, até o fim, depois ainda tem a próxima antes de chegar a terceira; à esquerda há um padeiro, na terceira rua... sim... à esquerda. Ainda falta muito para chegar diante da casa do padeiro...”
Em torno da carreta, multidão, barulho e exclamações. E ele tinha que suportar dez mil faces, vinte mil olhos! E, pior do que isso, tinha que suportar o pensamento seguinte: “São dez mil, mas nenhum deles vai ser executado; eu é que vou ser executado.” Bem, todo esse preparativo. Agora, rente ao cadafalso, uma escadinha. Diante desses três degraus, começou a chorar, ele que tinha sido um forte, que fora um grande criminoso, segundo me disseram. O sacerdote não o deixava um só momento; acompanhou-o desde a carroça e não deixou de lhe falar todo o tempo. Duvido que tenha escutado. E se começou a escutar não deve ter apreendido mais do que duas palavras. Deve ter sido assim. E eis que começou a subir os degraus. Suas pernas estavam ligadas uma à outra, de maneira que teve que subir dando uns pulinhos lúgubres. O sacerdote, que era um homem inteligente, deixou de lhe falar, só lhe dando a cruz para que a beijasse. Ao pé da escada, ele estava lívido e, quando chegou à plataforma do cadafalso, parou e estava tão branco como papel, como papel imaculado sobre que se escreve. As suas pernas devem ter fraquejado, depois devem ter endurecido como paus. Eu pensava comigo que ele devia estar se sentindo tão mal como se uma cousa na garganta o sufocasse fazendo-lhe uma espécie de êmbolo. As senhoritas nunca sentiram isso, quando estão com temor, ou nos momentos terríveis em que conservamos toda a nossa razão, mas ela não tem mais nenhum poder? Penso que quem quer que se defronte com a destruição inevitável, por exemplo, ao perceber que uma casa vai desabar, deve sentir um desejo só, instantâneo e imediato: sentar-se e fechar os olhos, à espera... venha o que vier... Quando essa fraqueza estava chegando, o sacerdote em silêncio e num movimento lépido lhe chegou a cruz aos lábios, erguendo-a até ele, uma pequena cruz de prata maciça, conservando-lha assim à altura dos lábios, muito tempo. Cada vez que a cruz lhe tocava os lábios, ele reabria os olhos e parecia vir à vida por uns poucos segundos; e as suas pernas se moviam. Tornava a beijar a cruz, veementemente. Beijava-a com pressa, como para não se esquecer de se munir de alguma cousa de que muito necessitava, muito embora eu duvide que naquele momento lhe viessem sentimentos religiosos propriamente. E assim foi, até que o levaram para o cepo. É incrível, como são raríssimas as pessoas que desfalecem nesse momento. Pelo contrário, o cérebro fica tão aguçado que decerto trabalha numa progressão tremendamente centuplicada, qual máquina em alta velocidade. Quer me parecer que nessa hora sobrevenha um agudo tumultuar de ideias de toda sorte, sempre inacabadas e também absurdas, completamente gratuitas e inadequadas. “Aquele homem está me olhando. Tem uma verruga na cara. Um dos botões do casaco do algoz está enferrujado.” E uma porção de outras cousas que nessa hora vêm à tona... Há um ponto que se grava indelével, um eixo ao qual a pessoa não se pode eximir, já que tudo o mais roda à sua volta. E pensar que tem que ser assim até o último quarto de segundo, quando a cabeça já está sobre o cepo, à espera... e sabe! Subitamente ouve em cima de si o retinir do aço. Sim, tem que ouvir isso. Se eu estivesse lá, curvado, ficaria bem atento a fim de ouvir e de escutar! Dura apenas a décima parte de um segundo, mas a pessoa sabe que escutará. E calculem que ainda é ponto de controvérsia saber se, um segundo depois de cortada, a cabeça sabe que foi cortada! Que ideia! E se eu lhes disser que cinco segundos depois ela ainda sabe!?
Pinte o cadafalso de maneira que só o último degrau possa ser visto distintamente. No primeiro plano, o criminoso tendo acabado de o subir. Pinte-lhe a cabeça e o rosto, branco como papel; o sacerdote erguendo a cruz. O homem vorazmente estendendo os lábios azuis e olhando... e com que olhos! E ciente de tudo. Uma cruz e uma cabeça, mais nada, eis o quadro. O rosto do sacerdote e o do carrasco. Os seus dois ajudantes. E umas poucas cabeças e olhos, embaixo, pintados, se quiser, no plano posterior, em meia-luz, assim como guarnição viva de tela... Eis o quadro!
Cessando de falar, Míchkin ficou olhando para elas.
— Não me digam que isso é quietismo — comentou consigo mesma Aleksándra. Mas Adelaída disse alto:
— E agora nos conte como foi que o senhor se apaixonou... — O príncipe olhou-a, admirado.
— Escute — tornou Adelaída, de modo um tanto veemente — o senhor nos prometeu falar sobre a tela de Basileia, mas eu preferia que nos contasse agora os seus namoros. Não negue que já esteve apaixonado! Além disso, logo que começa a descrever qualquer cousa, deixa de ser um filósofo.
E nisto Agláia observou, inesperadamente:
— Mal o senhor acaba de contar qualquer cousa fica assim como se estivesse envergonhado... Por que é isso?
— Que despautério, menina!... — ralhou a mãe.
E Aleksándra concordou:
— Que falta de propósito!...
— Não acredite em Agláia, príncipe — pediu a sra. Epantchiná, virando-se para ele. — Ela faz isso de caso pensado, por malícia; todavia não a eduquei assim tão mal. Oh! Não pense mal delas por estarem mexendo com o senhor desse jeito. Não pense que seja maldade. Eu sei que elas já estão gostando do senhor. Conheço o rosto de cada uma delas.
— Eu também conheço — disse o príncipe com uma ênfase toda especial.
— Como assim? — perguntou Adelaída, com curiosidade.
— Que sabe o senhor a respeito de fisionomias? — debicaram as outras duas também.
Míchkin, porém, não respondeu e ficou sério. Todas aguardavam a sua resposta.
— Eu direi mais tarde — disse, com delicadeza e seriedade.
— O senhor está mais é querendo suscitar a nossa curiosidade — exclamou Agláia. — E para que essa solenidade?
— Ora bem — interveio outra vez Adelaída, com precipitação. — Se deveras é um conhecedor de rostos, certamente já teve algum amor, e a minha conjectura, ainda há pouco, foi certa. Conte-nos, então...
— Não, nunca me apaixonei — respondeu o príncipe tão gentilmente como antes e com o mesmo ar grave. — Eu fui feliz, mas de um modo diferente.
— Como? Em quê?
— Então, se querem, está bem, vou contar — disse. E se concentrou, meditando profundamente.
6.
— Estão todas me olhando com tamanho interesse que se eu não as satisfizer ficarão zangadas comigo.
Foi com essas palavras que o príncipe começou, acrescentando logo, com um sorriso:
— Brincadeira minha; sei que não ficarão, não. Havia, lá onde eu estive, um bando de crianças. Eu estava sempre com as crianças! Somente com as crianças!... Era a criançada da aldeia. Toda uma revoada de escolares. Não que eu cuidasse delas. Oh, não; havia um professor para isso, Jules Thibault. Mas de certo modo não deixava eu de lhes ser útil, passando a maior parte do tempo no meio delas. Durante aqueles quatro anos posso dizer que convivi com elas. Para mim nada mais me interessava que isso. Costumava falar com elas a respeito de tudo, não as enganando em nada. Os pais e os conhecidos delas implicaram logo comigo, só porque as crianças não podiam passar sem mim e estavam sempre me rodeando, a tal ponto que o professor se tornou meu inimigo ferrenho. Tive muitas outras inimizades lá, pelo mesmo motivo, e o próprio Schneider se voltou contra mim. Não sei o que temiam! Às crianças se pode dizer tudo, tudo! Sempre me chocou verificar como os adultos não as compreendem, o pouquíssimo que os pais entendem de seus próprios filhos. Nada se deve ocultar às crianças, nem mesmo sob o pretexto de ser ainda muito cedo para que nos entendam. Isso é uma ideia triste e mesquinha. Sim, logo se dão conta de que os pais as consideram pequeninas demais para compreender as cousas! E, todavia... sabem tudo! Há gente crescida que ignora que mesmo no caso mais difícil uma criança pode dar um conselho acertado! Reparem bem: não é uma vergonha decepcionarmos esse pequenino pássaro que nos olha com tamanha felicidade e confiança? Digo pássaro porque não há coisa mais bela no mundo. Mas o que na verdade indispôs toda a gente contra mim foi o seguinte: Thibault tinha inveja e ciúme de mim. No começo, ele apenas meneava a cabeça, não podendo atinar como era que a meninada compreendia tudo através de mim e quase nada do que ele ensinava. Deu então em caçoar, só porque lhe disse que nenhum de nós podia ensinar fosse o que fosse às crianças, e que delas sim, tínhamos que aprender tudo. Como pôde esse homem, vivendo por ofício entre as crianças, vir a ter ciúmes de mim, chegando a me intrigar tanto? Pois se a alma só se robustece no convívio com as crianças, não é mesmo?... Havia na instituição de Schneider um homem muito infeliz. Duvido mesmo que haja outra infelicidade comparável à dele. Estava em tratamento lá por causa de loucura. A meu ver, não era louco mas sim medonhamente desgraçado. Isso é que ele era. Se ao menos as senhoritas imaginassem o que a criançada fez por ele no fim... Mas, sobre esse paciente será melhor eu falar numa outra ocasião. Eu lhes vou dizer, agora, como foi que tudo aquilo começou. No início, as crianças não se sentiram atraídas por mim. Eu era tão grande! Sou sempre tão desajeitado! Eu sei também que sou feio... E, ainda por cima, eu era estrangeiro. No começo elas caçoavam de mim e, depois que me viram beijar Marie, deram em me jogar pedras. Eu só a beijei uma vez... Ora, por que estão rindo? — e Míchkin se apressou em deter o sorriso de suas ouvintes. — Não se tratava de namoro, não. Se chegassem a saber que criatura infeliz ela era, teriam compaixão, como eu tive. Vivia na nossa aldeia, com a velha mãe. Das duas janelas da sua casa em ruínas uma estava reservada, com licença das autoridades locais, que tinham dado permissão à velha, para a venda, ali, de cordões de sapatos, linhas, fumo e sabão. Rendia uma bagatela, mas era com o que elas viviam. A velha era inválida; tinha as pernas inchadas, vivia entrevada. Marie, sua filha, era uma rapariga de vinte anos, fraca e magra. E apesar de há muito tempo tuberculosa, ia de casa em casa, para trabalhos pesados: esfregava assoalhos, lavava roupa, varria quintais e tratava do gado. Um caixeiro-viajante francês a seduziu e a levou consigo, para acabar, uma semana depois, abandonando-a. O tratante desapareceu! Teve ela que voltar para casa, esmolando, toda enlameada e em frangalhos, os sapatos em petição de miséria. Levou uma semana para chegar; teve que passar noites nos campos apanhando um frio espantoso. Trazia os pés cheios de feridas, e as mãos gretadas e inflamadas. Antes, já não era bonita; apenas os olhos eram suaves, doces e inocentes. E como era calada! Lembro-me de que, uma vez, trabalhando, se pôs a cantar! E não posso esquecer como todo o mundo desandou a rir, com essa surpresa. “Marie está cantando! Ora essa, Marie cantando!...” Ficou tão desconcertada que nunca mais entreabriu os lábios. Naqueles outros tempos o povo ainda era bom para com ela, mas quando voltou, escangalhada e doente, ninguém mais teve pena. Como, em tais circunstâncias, o povo se torna cruel!? Como é grosseira a noção que as criaturas têm dessas cousas! Para começar, a própria mãe a recebeu com desprezo e cólera. “Tu me desgraçaste!” E foi a primeira a abandoná-la à sua vergonha. Mal souberam que Marie tinha voltado, todos vieram logo ver, e a aldeia em peso se aglomerou diante do casebre da velha. Todos! Velhos e crianças, mulheres e raparigas, todo o mundo, uma gentalha sequiosa e movediça. Marie jazia por terra, aos pés da velha, esfomeada e em andrajos, toda em lágrimas. Vendo-os chegar, cobriu o rosto com a cabeleira, a cara grudada no chão. Ficaram ali, pasmados diante dela, como diante dum réptil. Os velhos a censuravam e os moços se riam. O mulherio a espezinhava com ultrajes, olhando com asco, como se a pobrezinha fosse uma aranha. E a mãe permitia tudo isso, ali ao lado, acenando com a cabeça, concordando com todos, embora o estupor da velha já estivesse bastante doente e quase moribunda. Tanto que, dois meses depois, morria. E sabendo que estava para morrer, até à data da morte não sonhou sequer em se reconciliar com a filha. Nunca lhe dirigiu uma palavra; pô-la a dormir no alpendre, quase que lhe negava comida. Como, porém, precisava de escalda-pés, Marie lhe fazia isso sempre pronta; a velha aceitava o serviço em silêncio, sem jamais lhe dirigir uma palavra amável. Marie resignou-se a tudo e, quando vim a conhecê-la, tive informações de que achava isso muito certo, considerando-se a mais ínfima das criaturas. Já quando a velha nem se podia mais levantar, as velhotas da aldeia se revezavam para ficar com ela um pouco, como é de hábito entre essa gente. Nenhuma deu mais comida a Marie, e na aldeia todos se afastavam dela; e ninguém lhe quis dar mais trabalho, como antigamente. E assim, cada qual cuspia nela; os homens, não a olhando mais como a uma mulher ao menos, diziam-lhe indecências. Às vezes, mas poucas, quando voltavam bêbedos, aos domingos, eles se divertiam em jogar-lhe moedas, atirando-as perto, no chão. Marie apanhava-as, sem dizer palavra. Começou a escarrar sangue, nessa época. ultimamente, as suas roupas eram andrajos só, o que ainda a envergonhava mais de aparecer na aldeia. Desde que regressara, andava descalça. Então, a criançada principalmente, todo o bando — eram cerca duns quarenta escolares — começou a apupá-la e a jogar-lhe porcarias. Ela pediu ao vaqueiro que a deixasse olhar pelas vacas, mas o homem a enxotou; mesmo assim, deu em sair, o dia inteiro, com o gado, por deliberação própria, ainda que sem licença. E como isso convinha ao vaqueiro, que logo percebeu a vantagem, não a enxotou mais e, uma vez ou outra, lhe dava do pão e do queijo que lhe sobrava do jantar. Considerava isso um grande favor de sua parte. Quando a mãe dela morreu, o pastor não teve escrúpulo de envergonhar Marie na igreja, defronte de todo o mundo. Marie estava chorando ao lado do ataúde, em trapos, como andava, Uma porção de gente se tinha juntado para vê-la assim ao lado do caixão a chorar. E então, o pastor (ele era ainda moço e toda a sua ambição era vir a se tornar um grande pregador!) apontou para Marie e, dirigindo-se a todos, disse: “Ali vedes a causa da morte desta prestante mulher (o que era uma mentira, pois havia dois anos que ela estava doente), ali está ela, defronte de vós e não ousa olhar-vos, pois sabe que está marcada pelo dedo de Deus; ali está ela, os pés descalços e a roupa em trapos! Seja isso uma advertência a todas a fim de preservarem a virtude. Eis o desgosto que uma filha pode causar a sua mãe!” E assim por diante, sempre neste estilo. E, acreditem, mesmo que lhes custe, tal infâmia agradou sobremodo! Mas... nisto, as cousas seguiram um curso diferente. A criançada tomou sozinha uma deliberação, e, como já estava toda do meu lado, começou a gostar de Marie.
E eis como isso aconteceu... Eu desejava fazer alguma cousa por Marie. Ela estava bem necessitada de dinheiro, mas eu nunca tinha comigo uma nota sequer, nesse tempo. Lembrei-me dum alfinete com um diamantezinho e o vendi a um bufarinheiro que andava de aldeia em aldeia vendendo e comprando roupa velha. Deu-me oito francos, e aquilo valia bem uns quarenta. Tratei logo de encontrar Marie sozinha. Por fim dei com ela perto duma sebe, fora da aldeia, num atalho da montanha, atrás duma árvore. Entreguei-lhe então os oito francos e lhe disse que tomasse cuidado, pois me seria impossível arranjar mais. Foi então que a beijei e lhe disse que não pensasse que eu era algum mal-intencionado. Expliquei-lhe que a beijava não porque estivesse enamorado, mas porque tinha muita pena dela; e afirmei que nunca, desde o começo, a tinha julgado culpada, mas somente infeliz. Pretendi confortá-la, ali mesmo, e persuadi-la a que não se considerasse inferior a qualquer pessoa; creio, porém, que ela não me entendeu. Percebi isso imediatamente, embora não me respondesse quase nada todo o tempo, assim, diante de mim, a olhar para o chão, horrivelmente confusa. Quando acabei, ela beijou minha mão, e eu imediatamente segurei a dela, e a teria beijado se ela não a retirasse. Foi então que o bando de crianças nos viu. Percebi depois que nos estavam espiando desde alguns momentos antes. Começaram a assobiar, a rir e a bater palmas. Marie fugiu. Eu quis falar às crianças mas elas se puseram a atirar-me pedras. Naquele mesmo dia, todo o mundo soube disso, em toda a aldeia. O peso de tudo caiu sobre Marie, de novo; antipatizaram com ela ainda mais. Cheguei mesmo a ouvir que pretenderam que as autoridades a castigassem; mas, graças a Deus, tal não se deu. Todavia as crianças não a deixaram em paz; atormentavam-na ainda mais e até lhe atiravam imundícies. Enxotavam-na; ela fugia, com aqueles seus pulmõezinhos fracos, arfando, e quase sem fôlego. Corriam atrás dela, gritando e xingando. Até que, uma vez, tive uma briga, deveras, com eles. Pus-me a falar-lhes. Falava-lhes todos os dias e o mais possível. Às vezes paravam e escutavam, embora ainda me escarnecessem. Fiz-lhes ver quanto Marie era infeliz; deixaram logo de debicar e se retiraram calados. Pouco a pouco, começamos a conversar juntos. Não lhes ocultava cousa alguma, contei-lhes toda a história. Ouviram com toda a atenção e logo começaram a ter pena de Marie. Alguns até a saudavam amistosamente à medida que a encontravam. É um hábito de lá, quando uma pessoa encontra outra, conheçam-se ou não, inclinarem-se e se desejarem bom dia. Posso imaginar como isso causou admiração a Marie. Duas menininhas, um dia, trouxeram comida que lhe ofereceram; e depois vieram me dizer. Contaram-me que Marie chorou e que a amavam, agora, muito. Imediatamente todos começaram a querer bem a ela, e a mim, também. Deram em vir ver-me, sempre, e me pediam que lhes contasse histórias. Creio que me saí bem nisso, pois se puseram a escutar-me, muito contentes. Foi depois disso que comecei a ler e a estudar, simplesmente para ter o que lhes contar e, nos três anos seguintes, acostumei-me a inventar-lhes histórias. Depois, então, quando todo o mundo, inclusive o próprio Schneider, me repreendia por falar com elas como a pessoas crescidas, não lhes escondendo absolutamente nada, eu afirmei que era uma vergonha decepcioná-las; que elas viriam a saber tudo, de qualquer maneira, mesmo que muitas cousas lhes fossem ocultadas, e que talvez viessem a sabê-las por um meio mau; ao passo que, comigo, não. Basta que cada qual se lembre da própria infância.
Não concordaram... Eu beijara Marie, umas duas semanas antes de sua mãe morrer. Na ocasião em que o pastor pronunciou a sua arenga, já a criançada toda estava do meu lado. Imediatamente lhes contei a má ação do pastor, explicando-lhes bem. Ficaram zangadas com ele, e algumas se enfureceram tanto que apedrejaram e quebraram os vidros das janelas dele. Fi-las parar, pois isso não estava direito. Mas todos na aldeia vieram a saber disso e começaram a me acusar de estar corrompendo as crianças. E tendo percebido que as crianças gostavam de Marie, ficaram horrorizados. Marie, porém, era feliz, agora! Proibiram as crianças de se encontrar com ela. Mas escapuliam para onde ela guardava o gado, aproximadamente meia milha fora da aldeia. Levavam-lhe iguarias. E uma ou outra, isoladamente, vinha a correr, só para abraçá-la, beijá-la e dizer-lhe “Je vous aime, Marie” e logo voltava a correr tão ligeiro quanto as suas perninhas lhe permitiam. Marie quase ficava fora de si, ante uma felicidade para ela nunca vista. Pois se nem sonhara com tal possibilidade! Ficava ruborizada e radiante. Do que as crianças mais gostavam, especialmente as meninas, era correr até ela para lhe dizer que eu a amava e lhes tinha falado muito dela. Contavam-lhe que eu lhes tinha relatado tudo a seu respeito e que por isso, agora, lhe tinham amor e compaixão. E que para sempre isso seria assim! Corriam, depois, para mim, com seus rostinhos alegres e compenetrados, e participavam que tinham acabado de ver Marie e que Marie me enviara lembranças.
De tardinha costumava eu ir passear até à cascata. Era um lugar bem escondido da aldeia, todo rodeado de álamos. Lá costumavam se reunir à minha volta algumas dessas crianças que vinham às escondidas. Acho que o meu sentimento por Marie lhes causava imenso prazer; e este foi o único ponto em que as decepcionei. Pensam que lhes disse que elas estavam enganadas, que eu não estava namorando Marie? Que somente tinha muita pena dela? Não lhes disse nada a tal respeito, pois fácil era perceber que queriam que as cousas fossem conforme suas imaginações e de acordo com o que julgavam como lógico. Cuidavam que suas conjecturas eram certas. Quanta delicadeza e ternura naqueles coraçõezinhos! Mas uma cousa não lhes entrava nas cabecinhas: que Marie, sendo amada pelo querido Léon, devesse andar tão malvestida e descalça. E, querem saber? Conseguiram arranjar-lhe sapatos, meias grossas, roupa branca e até mesmo um vestido. Como, não sei. A verdade é que conseguiram. E o bando inteiro a trabalhar sempre. Quando eu, maravilhado, as interrogava à cata de esclarecimentos, apenas davam risadas gostosas; as menininhas, essas então batiam com as mãos e me davam beijos. Algumas vezes eu também me abalançava a ir ver Marie, mas sempre às escondidas. Ela já estava então muito mal; quase não podia andar. Impossível lhe era já agora trabalhar na casa do pastor, mas ainda saía todas as manhãs com o gado. Costumava sentar-se um pouco apartada. Preferia instalar-se numa espécie de saliência, entre rochedos quase a pique. Sempre se sentava acolá, fora da vista, num canto, permanecendo quase o dia inteiro, desde manhã cedinho, naquele seu retiro. Saía só na hora de recolher o gado. Mas já estava tão fraca, por causa da tuberculose, que encostava a cabeça contra a rocha e fechava os olhos dormitando, com a sua respiraçãozinha penosa. Seu rostinho era tão transparente que parecia uma caveira. Havia sempre suor a lhe escorrer da testa e das têmporas. Eu a encontrava quase sempre assim. Mal eu aparecia, ela despertava, abria os olhos e não parava de me beijar as mãos. Eu quase não demorava porque não queria que ninguém me visse. Quedava-me ali, sentado ao seu lado, não tentava sequer recolher as mãos, pois Marie se sentia feliz em mostrar com aqueles beijos a sua gratidão. Uma vez ou outra ela experimentava dizer qualquer cousa... Mas nunca cheguei a compreender aquelas palavras engroladas. Parecia uma criatura em transe, numa terrível crise de ânsia ante tão pequena mas para ela tamanha felicidade. Às vezes eu levava comigo algumas das crianças. Estas ficavam por perto, vigiando os arredores, como que a proteger-nos de alguém, ou de alguma cousa, sentindo com isso um extraordinário prazer. Quando nos íamos, Marie ainda ficava, tão sozinha, com os olhos fechados, a cabeça reclinada contra o rochedo, sonhando talvez com alguma cousa...
Certa manhã já não pôde sair com as vacas; ficou em casa, na sua solitária choupana. As crianças souberam disso imediatamente e quase todas vieram perguntar por ela, nesse dia. Estava deitada, completamente só. Durante dois dias foi guardada apenas pelas crianças que se revezavam em turnos; mas quando a notícia se espalhou pela aldeia e houve indícios de que Marie estava à morte, todas aquelas velhas da terra vieram e se instalaram na sua cabeceira. Penso que então aquela gente começou a sentir pena de Marie. Ainda assim, ralhavam com as crianças e as proibiam de vir vê-la, como já tinham feito antes. Marie estava quase todo o tempo adormecida, mas o seu sono era entrecortado por uma tosse terrível. As velhotas escorraçavam com as crianças; mas estas apareciam do lado de fora da janela, algumas vezes, um momento só que fosse, para dizerem “Bonjour, notre bonne Marie”, e mal as pressentia, ou as ouvia, ela parecia reviver e, apesar das velhas estarem ali, experimentava levantar-se apoiada nos cotovelos, acenava-lhes e lhes dizia “Merci”. Deram em lhe trazer guloseimas, como antes, mas raramente ela comia alguma cousa. E, em verdade, lhes posso garantir que foi graças a elas que Marie morreu quase feliz! Graças a elas, pôde esquecer o seu amargo sofrimento. Elas lhe trouxeram, com isso, uma como que absolvição, pois até ao fim se considerou uma grande pecadora. Ah! As crianças pareciam aves, batendo com as asas contra a janela, chamando por ela, todas as manhãs: “Nous t’aimons, Marie!”
Morreu muito cedo. Eu esperava que ela durasse mais. Na véspera da sua morte fui vê-la, ao pôr do sol. Parece que me reconheceu quando lhe segurei e apertei a mão pela última vez. Como seus dedos se haviam descarnado! Na manhã seguinte vieram participar-me que Marie tinha morrido. Não houve quem pudesse conter as crianças. Elas lhe enfeitaram o caixão com flores e lhe puseram uma grinalda na cabeça. O pastor, na igreja, não cometeu nenhuma aviltação desta vez. Não foi um funeral concorrido, havia pouca gente, atraída pela curiosidade; mas quando o caixão teve que ser carregado para fora, a criançada investiu para o carregar. E conquanto não fossem suficientemente fortes para aguentar o peso, sozinhas, ajudaram a levá-lo, e caminhavam atrás do ataúde, chorando. Desde então, as crianças zelaram pela sepultura de Marie. Plantaram rosas, em toda volta, e cada ano a cobriam de flores.
Foi, porém, depois do enterro, que eu fui mais perseguido pelos aldeões, por causa da criançada. O pastor e o mestre-escola os atiçavam. As crianças ficaram estritamente proibidas de se encontrar comigo, e Schneider empregou todo o seu esforço para que tal proibição fosse efetiva. Mas nós nos víamos, assim mesmo; comunicávamo-nos a distância, por sinais. Enviávamo-nos pequenos bilhetes. Por fim as cousas se aplainaram. Mas foi esplêndido, todo esse tempo. Essa perseguição ainda me aproximou mais das crianças. No último ano, o pastor e Thibault estavam quase reconciliados comigo. E Schneider argumentava muito comigo a respeito do “meu sistema” pernicioso para com as crianças. Como se eu tivesse algum “sistema”! Por fim, Schneider revelou um muito estranho pensamento, o que fez pouco antes de eu vir embora. Confessou-me que tinha chegado à conclusão de que eu era uma completa criança, eu próprio. Nem mais nem menos do que uma criança; que eu era adulto apenas na cara e no tamanho, mas que, no desenvolvimento, na alma, no caráter, e talvez até na inteligência, não tinha crescido, e que permaneceria sempre assim, mesmo que vivesse até os sessenta!...
Ri-me muito. Ele estava errado, é lógico, pois não sou nenhuma criança. Mas numa cousa ele tem razão. Não gosto de ser como as pessoas crescidas. Notei isso, desde muito. E não gosto, porque não sei como agir diante delas. Digam-me seja o que for, por mais gentis que sejam comigo, sempre me sinto de certo modo oprimido diante delas e fico medonhamente alegre quando posso voltar para os meus companheiros; e os meus companheiros têm sido sempre as crianças, não porque eu próprio seja uma criança, mas porque sempre me senti atraído por elas. Quando eu era novato na aldeia, ao tempo em que empreendia melancólicos passeios pela montanha, sozinho, e me acontecia, especialmente por volta do meio-dia, encontrar o bando barulhento saindo da escola, a correr, com suas sacolas e com suas lousas, entre gritos, jogos e risadas, imediatamente a minha alma corria para eles. Não sei como se dava, mas a verdade é que tinha uma espécie de intensa e feliz sensação cada vez que os encontrava. Ficava parado, quieto, sorria com felicidade vendo-lhe as pequeninas pernas sempre voando por aí afora, meninas e meninos correndo juntos, com seus sorrisos e com suas lágrimas (pois muitos deles armavam rixas, choravam, interrompiam as brigas, passavam a brincar de novo, à saída da escola, de volta para casa) e isso me fazia esquecer todos os meus lúgubres pensamentos. Depois do que, nos três últimos anos, eu nunca pude compreender como e por que há gente triste. O centro de minha vida foram as crianças.
Não contava ter que deixar a aldeia e nem me passava pelo espírito que um dia teria que regressar à Rússia. Pensava permanecer sempre lá. Mas por fim acabei vendo que Schneider não podia continuar me conservando consigo. Foi então que as cousas viraram subitamente, e tão importantes foram elas em sua evidência, que o próprio Schneider instou comigo para vir embora e garantiu a minha volta. Vou examinar essas cousas e aconselhar-me com alguém. Minha vida talvez mude completamente. Deixei muita cousa lá, muita, mesmo! Ao tomar o trem, pensei: “Vou agora me encontrar com o mundo. Ignoro tudo, por assim dizer, mas uma vida nova começou para mim.” Tomei a resolução de fazer a minha tarefa resoluta e honestamente. Deve ser duro e difícil viver no mundo. Em primeiro lugar, resolvi ser cortês e sincero com todo o mundo. “Ninguém deve esperar mais do que isso, de mim. Talvez aqui também me olhem como uma criança; não faz mal.” Todo o mundo me toma por um idiota e isso também pela mesma razão. Outrora estive tão doente que realmente parecia um idiota. Mas posso eu ser idiota, agora, se me sinto apto a ver, por mim próprio, que todo o mundo me toma por um idiota? Quando cheguei, pensei: “Bem sei que me tomam por um idiota; todavia tenho discernimento e eles não se dão conta disso!...” Muitas vezes tive este pensamento.
Mal cheguei a Berlim, recebi algumas cartinhas que as crianças tinham conseguido me escrever, e então compreendi quanto gosto de crianças. A primeira carta dá sempre muita saudade. Como as crianças lamentavam a minha ausência! E todavia tinham tido um mês, de antemão, para se prepararem para minha partida. “Léon s’en va, Léon s’en va pour toujours!” Como antes, encontrávamo-nos sempre na cascata e falávamos da nossa separação. E, certas vezes, tão radiantes como outrora! Era só quando nos separávamos, à noitinha, que elas me abraçavam e beijavam com mais calor do que o faziam antigamente. Uma ou outra vinha me ver sozinha e em segredo, simplesmente para me beijar e abraçar sem ser diante das demais. Quando vim embora, elas todas, todo o bando me acompanhou à estação. A estação da estrada de ferro distava da aldeia cerca de uma versta. Esforçavam-se por não chorar, mas algumas não se puderam conter e soluçavam alto, principalmente as meninas. Apressamo-nos para não chegar atrasados; mas aqui e além, uma delas saía correndo de uma azinhaga, pulava para os meus braços, beijava-me, obrigando toda a procissão a parar, simplesmente para isso. E embora tivéssemos pressa, parávamos, esperando que este, ou aquele, me dissesse adeus. Quando me acomodei e o trem partiu, todas elas exclamaram “Hurra!” e permaneceram lá até perderem o trem de vista. Eu também não tirava os olhos delas... E agora lhes digo, quando entrei aqui e olhei para os rostos tão doces das senhoritas — eu agora estudo o rosto de todo mundo, perfeitamente! — e lhes ouvi as primeiras palavras, meu coração sentiu luz pela primeira vez, desde a Suíça. E então pensei comigo que talvez eu seja uma pessoa de sorte. Sei bem que nem sempre a gente encontra pessoas com quem logo simpatize! E não é que vim para aqui diretamente da estação e as encontrei? Sei bem que a gente se peja de falar do seu próprio sentimento com qualquer um, mas lhes falei sem sentir nenhum pejo. Sou muito insociável, e, provavelmente, não voltarei a vê-las tão cedo. Não tomem isso como desconsideração. Nem estou dizendo isso por não dar valor a esta amizade, e não pensem, muito menos ainda, que me considerei ofendido por qualquer cousa. As senhoritas me perguntaram a respeito da impressão que tive do rosto de cada uma e o que teria eu notado neles. Terei muito prazer em responder. Vós, Adelaída Ivánovna, tendes um rosto feliz, o mais simpático dos três. Além de serdes muito bonita, a gente verifica, olhando-vos, “que tendes o rosto de uma extremosa irmã”. Vosso contato é simples e alegre, mas tendes especial habilidade em ver dentro dos corações. Eis como o vosso rosto me impressionou. Vós, Aleksándra Ivánovna, tendes também um rosto belo e doce; mas talvez haja nele uma secreta perturbação. Vosso coração, certamente, é dos mais bondosos, mas não é alegre. Há qualquer peculiaridade em vosso rosto, algo do que vemos na Madona de Holbein, em Dresde. Bem, quanto ao vosso rosto, isto basta. Acertei? Eu, pelo menos, acho que sois assim. Mas, pelo vosso rosto, Lizavéta Prokófievna — ele se voltou repentinamente para a sra. Epantchiná — pelo vosso rosto distingo perfeitamente que sois uma criança em tudo, em tudo, no bem e no mal igualmente, a despeito de vossa idade. Aborrece-vos, dizer-vos eu isso? Já esclareci, e bem, o que penso a respeito das crianças. E não penseis que foi a minha simplicidade que me fez falar tão sinceramente sobre o rosto de cada uma. Oh! Absolutamente, não! Talvez haja algum propósito bem meu no que acabo de fazer!
7.
Quando o príncipe acabou de falar, elas todas estavam olhando para ele, jovialmente: mesmo Agláia e, dum modo todo especial, Lizavéta Prokófievna.
— Bem, elas o submeteram a um exame — exclamou a generala. — Bem, meninas, vocês pensaram que iam protegê-lo como a um parente pobre, mas ele apenas se digna tolerar vocês, e isso mesmo com a cláusula de que não virá muitas vezes não! Mistificou-nos a todos, principalmente a Iván Fiódorovitch. Bem feito! Bravo, príncipe! Meu marido ainda agora mandou que submetêssemos o senhor a um exame. E quanto ao que disse do meu rosto, está perfeitamente certo; sou uma criança, sei disso muito bem. Eu já sabia antes, portanto falou por mim, pondo os meus pensamentos nas suas palavras. Creio que o seu caráter e o meu são iguais, exatamente, como duas gotas de água, e isso me alegra. A única diferença é que o senhor é um homem e eu sou uma mulher que nunca esteve na Suíça. Ora, aí está a única diferença.
— Não tire conclusões tão depressa, mamãe — disse Agláia. — O príncipe confessou que em tudo isso tinha um motivo especial e que não estava falando à toa.
— Foi, sim — riram as outras.
— Não o importunem, queridas. Ele é mais perspicaz do que vocês três juntas. Vão ver já. Mas por que foi que o senhor não falou nada a respeito de Agláia, príncipe? Agláia está esperando; e eu também.
— Não posso dizer nada por enquanto. Direi mais tarde.
— Por quê? Ela não tem nada que chame atenção?
— É isso mesmo. Vós sois inexcedivelmente bela, Agláia Ivánovna. Sois tão bela que se fica com medo de olhar-vos.
— Só isso? Não diz nada sobre as qualidades dela? — insistia a sra. Epantchiná.
— É difícil julgar a beleza. Eu, pelo menos, ainda não sou capaz. A beleza é um enigma.
— Esplêndido, considerar Agláia como enigma. Esclareça o enigma, Agláia. Mas então ela é bonita?
— Muito!... — respondeu o príncipe, olhando com entusiasmo para Agláia. — Tão bonita, decerto, como Nastássia Filíppovna, embora muito diferente de rosto.
Todas se entreolharam, pasmadas.
— Como quem? — explodiu a sra. Epantchiná. — Como Nastássia Filíppovna? Onde viu Nastássia Filíppovna? Qual Nastássia Filíppovna?
— Refiro-me a um retrato que Gavríl Ardaliónovitch estava agora mesmo mostrando a Iván Fiódorovitch.
— Como? Ele trouxe o retrato dela para Iván Fiódorovitch?
— Só para mostrar. Nastássia Filíppovna, hoje, deu o seu retrato a Gavríl Ardaliónovitch, e ele, então, o trouxe para mostrar.
— Quero ver isso! — disse impetuosamente a sra. Epantchiná. — Onde está essa fotografia? Se lhe foi dada, deve tê-la guardado, com certeza; e como hoje é quarta-feira, dia de ficar trabalhando no gabinete, ainda deve estar lá. Não pode sair antes da hora. Chame-o, imediatamente. Não, não estou morrendo por vê-lo, não. Príncipe, quer me fazer um favor? Vá até ao escritório, peça a fotografia e traga-a aqui. Diga-lhe que queremos ver; faça o favor.
Depois que o príncipe saiu, Adelaída disse:
— É tão agradável! Mas parece tão ingênuo...
— Sim, um tanto — concordou Aleksándra. — E isso o faz um pouco ridículo, deveras.
Nenhuma delas dissera direito o que tinha no pensamento.
— Mas se saiu muito bem a respeito de nossos rostos — considerou Agláia. — Adulou-nos bem; inclusive à mamãe.
— Deixem de fazer espírito. É favor! Ele não me lisonjeou; eu é que fiquei lisonjeada.
— Será que ele estava simulando? — Adelaída parecia indecisa.
— Eu acho que ele não tem nada de ingênuo.
— Parem com isso — disse-lhes a mãe, ficando zangada. — No meu entender, vocês são mais ridículas do que ele. Acho que tem todas as faculdades em ordem, no sentido correto. Exatamente como eu.
“Fiz mal em falar nessa fotografia...” ia pensando Míchkin enquanto se dirigia ao escritório, sentindo uma pancada na consciência. “Mas falei, está falado, e quem sabe até se não foi bom?”
Uma compreensão ainda difusa se estava aclarando em seu espírito. Encontrou Gavríl Ardaliónovitch ainda no escritório, absorvido com os seus papéis. É lógico que não recebia salário da Companhia para não fazer nada. Quando o príncipe lhe pediu a fotografia ficou desconcertado, tendo sido preciso que o príncipe lhe contasse como é que elas tinham ouvido falar nisso.
— Arre! Mas que necessidade tinha o senhor de dar com a língua? — exclamou desapontadíssimo. — Que tem o senhor que se imiscuir? — E sussurrou por entre os dentes: “Idiota!”
— Desculpe-me. Fiz isso inadvertidamente. É que as coisas se encaminharam de tal maneira! Eu estava dizendo que Agláia era tão bonita como Nastássia Filíppovna... e aí...
Gánia pediu-lhe que lhe contasse exatamente como o fato se havia passado. E o príncipe o fez. Gánia olhava-o com desdém e sarcasmo.
— O senhor... encasquetou-se-lhe Nastássia Filíppovna no cérebro... — Mas, refletindo, parou de falar, porque uma ideia lhe veio subitamente.
O príncipe tornou a pedir o retrato.
— Ouça, príncipe, eu queria lhe merecer um favor... mas, realmente, não sei...
Calou-se, embaraçado. Parecia estar lutando consigo mesmo e ensaiando refazer-se. O príncipe esperava calado. Gánia tornou a examiná-lo, com mais cautela, olhando-o demoradamente.
— Príncipe — recomeçou ele —, elas lá dentro estão aborrecidas comigo, por causa dum incidente à toa e ridículo, pelo qual aliás não mereço censura; e nem é preciso aqui me explicar porquê. Acho que estão um pouco sentidas comigo, de maneira que, por enquanto, não devo entrar lá a não ser sendo convidado. Mas eu precisava muito dizer uma cousa a Agláia Ivánovna. Até escrevi umas poucas palavras, à espera duma oportunidade (segurava um papel dobrado) e não sei como lhas entregar. O senhor quer pegar nisto e entregar, mas quando ela estiver sozinha, de modo que ninguém veja? Compreendeu bem? Não se trata de nenhum segredo impróprio, nada disso... mas... Quer me fazer este favor?
— Não gosto muito de fazer isso — respondeu o príncipe.
— Oh! Mas, príncipe, é uma cousa importantíssima para mim — suplicou Gánia. — Ela naturalmente responderá. Acredite-me, foi só em último recurso, só por não haver outra fórmula que tive de recorrer a... E não tenho mais ninguém a não ser o senhor, é preciso ser já... é muito importante, o senhor nem pode imaginar...
Olhava-o com olhos de servil bajulação, terrivelmente receoso de que Míchkin se negasse.
— Está bem, levarei.
— Mas entregue de maneira que ninguém veja — rogou Gánia, mais aliviado. — E, outra cousa, posso eu, de fato, me fiar na sua palavra de honra, príncipe?
— Sossegue, que não mostrarei isto a ninguém — disse o príncipe.
— O bilhete não está fechado, mas... — recomeçou Gánia, com ansiedade, calando-se logo muito confuso.
— Oh! Não vou ler, não! — respondeu o príncipe, com muita simplicidade. Apanhou também o retrato que lhe fora entregue e saiu do escritório.
Gánia, mal se viu sozinho, pôs as mãos na cabeça e declamou para si mesmo:
— Uma palavra dela... e rompo com tudo, nem tem dúvida!
E, por causa da excitação e da dúvida, não havia meios de pôr a papelada em ordem. Começou então a passear pela sala, de um canto para outro.
O príncipe saiu um pouco pensativo, pois tal missão o impressionava desagradavelmente. Além disso, esse fato de um bilhete de um homem como Gavríl Ardaliónovitch para uma moça como Agláia Ivánovna, era qualquer cousa de desarmonioso. E estando duas peças ainda longe da sala de estar, parou porque só então lhe veio uma ideia: olhar, aproveitando bem a claridade (e para isso se aproximou da janela) o retrato de Nastássia Filíppovna.
Parecia tentar decifrar qualquer mistério que antes já o havia impressionado naquele rosto. Impressão que não tinha ainda passado; entretinha-se assim, pois, a verificar mais uma vez o que seria. E aquele rosto ainda o impressionou mais, não só por sua extraordinária beleza, como por qualquer cousa que existia escondida nele. Era uma expressão de ilimitado orgulho ou desdém, quase ódio, em que se diluía, ao mesmo tempo, algo de confiante e de prodigiosamente enternecedor. O contraste entre esses dois elementos despertava um sentimento próximo da compaixão. Aquela deslumbrante beleza era de arrebatar. A beleza de um rosto pálido, cujas faces eram quase fundas e os olhos mais que brilhantes. Uma estranha e perturbadora beleza. O príncipe esteve a contemplar o retrato durante um minuto e, depois, olhando apressadamente em volta, em sobressalto, o aproximou dos lábios e o beijou. Quando, porém, surgiu na sala de jantar já estava perfeitamente calmo. A sala de jantar era, por sua vez, separada da sala de estar por uma outra peça, e foi aí que, inesperadamente, deu com Agláia que vinha sozinha.
— Gavríl Ardaliónovitch pediu-me que lhe entregasse isto. — E lhe estendeu o bilhete.
Agláia parou, pegou o bilhete e olhou de modo estranho para o príncipe, sem uma sombra sequer de embaraço. Apenas talvez houvesse uma expressão de admiração em seus olhos, expressão que parecia se referir ao gesto de Míchkin, esses olhos parecendo interrogá-lo, com calma e altivez, de que maneira se misturara nessa combinação com Gánia. E então, algo de irônico ou desdenhoso apareceu em seu rosto. Com imperceptível sorriso, saiu.
A generala contemplou em silêncio, demoradamente, o retrato de Nastássia Filíppovna, esticando afetadamente os braços, para o afastar.
— Sim, é linda — pronunciou, afinal. — Realmente, muito linda. Só a vi de longe, duas vezes. Então esta é a espécie de beleza que o senhor aprecia?
— É sim senhora — respondeu o príncipe, com certo esforço.
— Esta aqui, não é?
— É, essa sim, senhora. Justamente.
— Por quê?
— Neste rosto há muito sofrimento... — respondeu o príncipe, como se estivesse refletindo consigo mesmo e não respondendo a uma pergunta.
— Creio que o senhor está falando no ar... ao acaso — concluiu a sra. Epantchiná; e atirou o retrato sobre a mesa, com um gesto altivo.
Aleksándra pegou-o; Adelaída aproximou-se da irmã e se puseram as duas a contemplá-lo. Nisto, Agláia voltou à sala.
— Que força! — exclamou impetuosamente Adelaída, sem se conter, olhando o retrato por cima do ombro da irmã.
— Onde?... força? — perguntou a sra. Epantchiná de modo cáustico.
— Uma beleza assim é força! Com uma beleza como esta se pode virar o mundo de cima para baixo — afirmou calorosamente Adelaída, encaminhando-se com ar pensativo para o cavalete de pintura. Agláia apenas olhou o retrato de esguelha, superficialmente, apertando um pouco as pálpebras; amuou e foi sentar-se, juntando as mãos. A sra. Epantchiná tocou a campainha. E disse ao criado que atendeu:
— Chame Gavríl Ardaliónovitch aqui. Ele está no escritório.
— Mas, mamãe... — exclamou significativamente Aleksándra.
— Quero dizer umas palavras a esse indivíduo. Basta — interveio, interrompendo o protesto. Estava evidentemente irritada. — Nós aqui só temos mistérios, está vendo, príncipe, mistérios e mais nada. Tem sido sempre assim, até parece um protocolo já estabelecido. Como isso enerva!... E se trata exatamente de uma questão que exige acima de tudo franqueza, lealdade e retidão. Casamentos... estão sendo arranjados...
— Mamãe, que é que a senhora está dizendo?!
Aleksándra tentava contê-la outra vez.
— Que é, querida filha? E agrada-lhe então tal atmosfera? Não se incomode do príncipe estar ouvindo, já somos amigos, os dois. Pelo menos ele e eu nos entendemos. Deus quer homens bons, sim, claro que os há de querer direitos, não tolerando os fracos e manhosos. Isso então de manhosos não os suporta, a esses que hoje dizem uma cousa e amanhã declaram outra. Está compreendendo, Aleksándra Ivánovna? Dizem, príncipe, que sou espinoteada, mas eu é que sei que espécie de gente é essa. Sim, pois o coração é que conta, tudo o mais sendo tolice. É lógico, que urge ter também um pouco de sensatez... talvez até o senso venha de fato a ser a grande cousa necessária. Agláia?! Está rindo de sua mãe?! Não estou me contradizendo, não! Uma boba com coração e sem senso é tão infeliz quanto uma boba com senso e sem coração. Esta é uma verdade bastante antiga. Eu sou uma bôba com muito coração e quase nenhum senso, você é uma boba com muito senso e quase sem coração... Portanto somos ambas infelizes e dignas de dó.
— Infeliz e digna de dó a senhora, mamãe? Por causa de quê? — não pôde Adelaída deixar de perguntar. Parecia a única do grupo que não perdera a boa disposição.
— Antes de tudo, vocês são umas filhas que tenho na conta de muito atiladas — redarguiu categoricamente a generala — e como isso por si só já é mais que suficiente, não é preciso entrarmos em outras cousas. Palavras demais já foram gastas. Veremos de que maneira vocês duas (com Agláia não conto!) saberão se servir do critério e das palavras... E só quero ver de que forma você deslindará o caso que lhe querem armar com o tal cavalheiro esplêndido, minha admirabilísima Aleksándra Ivánovna. Hã... — exclamou a generala vendo entrar Gánia — eis que entra um outro termo destacado duma aliança matrimonial... Bom dia! — disse ela em resposta à saudação e às mesuras de Gánia, não lhe dizendo que se sentasse. — Com que então, na iminência de contrair núpcias, hein?
— Núpcias? Como? Quais núpcias? — tartamudeou Gavríl Ardaliónovitch, completamente zonzo. Estava terrivelmente vexado.
— Bem, já vejo que prefere uma pergunta direta: Então, vai casar?
— Eu... n... não senhora! — mentiu Gavríl Ardaliónovitch; e uma onda de vergonha lhe subiu ao rosto. Ainda assim conseguiu ver Agláia, de viés, sentada um pouco longe da mãe. E apressadamente retirou o olhar porque sentiu que ela o examinava com uma atenção firme, vigiando-lhe a confusão.
— Não? Respondeu que não? — persistiu a implacável senhora. — Chega. Vou marcar bem o dia de hoje. Numa quinta-feira, pela manhã, isto é, hoje, o senhor disse “Não” como resposta à minha pergunta. Não é quinta-feira hoje?
— Acho que sim, mamãe — respondeu Adelaída.
— Vocês não sabem nunca que dia é da semana. E que dia é hoje, do mês?
— Vinte e sete — prontificou-se Gánia.
— Vinte e sete. Em todos os sentidos, bem. Pode ir. Até à vista. Parece-me que o senhor, hoje, ainda tem muito que fazer. E já está na hora de me vestir para sair. Leve a sua fotografia. Recomende-me à sua infeliz mãe. Quanto ao senhor, príncipe, adeus, por hoje. Venha ver-nos mais vezes. Hei de visitar a velha princesa Bielokónskaia de propósito para falar sobre o senhor. E quer saber duma cousa, meu caro, estou convencida que foi simplesmente por minha causa que Deus o trouxe da Suíça aqui para Petersburgo. Decerto que o senhor veio por outros motivos, mas foi principalmente por minha causa. Deus dispõe... Adeus, queridas. Aleksándra, venha ao meu quarto, querida.
A generala retirou-se. Sucumbido, confuso, atarantado, Gánia pegou o retrato de sobre a mesa e se voltou com um sorriso crispado para o príncipe.
— Príncipe, vou agora mesmo para casa. Se o senhor não mudou de opinião quanto a residir conosco, poderei levá-lo, visto o senhor não saber o endereço.
— Fique mais um pouco, príncipe — pediu Agláia, levantando-se logo da cadeira. — Quero que o senhor escreva no meu álbum. Papai gabou tanto a sua caligrafia! Vou buscá-lo, não demoro.
E saiu.
— Por agora adeus, príncipe; também me vou — despedia-se Adelaída, apertando a mão de Míchkin, com toda a deferência, sorrindo gentilmente, antes de sair. Não olhou para Gánia, embora não modificasse o ar cordial.
Mal as outras tinham saído, Gánia rosnou, virando-se com grosseria para o príncipe, com um olhar de fúria.
— Belo trabalho, hein? Tudo cousa sua! Por que esteve a tagarelar sobre meu casamento? O senhor não passa dum reles alcoviteiro!
— Dou-lhe a minha palavra que o senhor está enganado — explicou o príncipe, com toda a calma, polidamente. — Eu nem sabia que o senhor ia se casar.
— O senhor bem que ouviu, ainda agora, Iván Fiódorovitch dizer que tudo ficaria arranjado esta noite, em casa de Nastássia Filíppovna. E veio para aqui repetir. Não minta. Por intermédio de quem poderiam elas vir a saber? Ora bolas! Quem podia ter dito, senão o senhor? Já se esqueceu de que a sra. Epantchiná insinuou isso?
— O senhor é quem deve saber, melhor do que quem disse... se, realmente, acha que insinuaram alguma cousa. Eu não disse uma palavra a respeito.
— E o bilhete? Entregou o bilhete? Que é da resposta? — interrompeu-o Gánia, com impaciência.
Mas, bem nesse momento, Agláia voltou e o príncipe não teve tempo de responder.
— Aqui está o álbum, príncipe — disse ela, depondo-o aberto sobre a mesa. — Escolha uma página e escreva alguma cousa. Aqui está uma pena, e bem nova. Não se importa que ela seja de aço? Ouvi dizer que os calígrafos não empregam penas de aço.
Falava com o príncipe como se nem notasse a presença de Gánia. Mas, enquanto o príncipe arrumava a pena e escolhia a folha, preparando-se, Gánia se aproximou da lareira para onde se retirara Agláia, à direita de Míchkin e, com voz trêmula e torturada, balbuciou:
— Uma palavra! Apenas uma palavra e estarei salvo.
Prontamente se virando, o príncipe os encarou. O desespero estampado na cara de Gánia era verdadeiro; tinha o ar de ter dito aquilo sem pensar. Agláia olhou-o por alguns segundos, exatamente com aquele mesmo espanto calmo com que tinha examinado antes, na saleta, o príncipe. Para Gánia, nesse momento, essa surpresa admirada, que quase era perplexidade, foi mais terrível do que o mais desdenhoso desprezo.
— Que é que vou escrever? — perguntou Míchkin, vacilando.
— Vou lhe ditar — acalmou-o Agláia, voltando-se para ele. — Posso começar? Escreva: “Não sou mercadoria.” (Sublime mercadoria!) Agora date. Dia e mês. Deixe ver. — O príncipe estendeu-lhe o álbum. — Excelente! Como o senhor escreveu isso maravilhosamente! Que caligrafia esquisita! Obrigada. Adeus, príncipe. Ou antes, fique — acrescentou, porque um pensamento lhe veio inesperadamente. — Venha comigo, vou-lhe dar uma cousa como lembrança.
O príncipe seguiu-a até à sala de jantar onde, parando, Agláia lhe estendeu o bilhete de Gánia, ordenando:
— Leia isso.
Olhando espantado para ela, o príncipe segurou o bilhete.
— Eu sei que o senhor não leu. Assim como sei que o senhor não é o confidente deste homem. Leia! Quero que leia.
Era um bilhete evidentemente escrito às pressas:
Hoje, a minha sorte deve ser decidida, sabeis a que respeito. Tenho que dar, irrevogavelmente, hoje, a minha palavra. Sei que não tenho direito algum à vossa simpatia. Não ouso ter esperança alguma. Mas, certa vez, pronunciastes uma palavra. E essa palavra iluminou a negra noite da minha vida, tornando-se o meu fanal para sempre. Dizei essa palavra mais uma vez e me tereis salvo da ruína. Dizei apenas “Rompe com tudo” e eu romperei, hoje mesmo, com tudo. Oh! Não vos custa nada dizer isso! Dizei essa palavra ao menos como um sinal de vossa simpatia e compaixão por mim. Só isso. Nada mais, nada! Não ouso sonhar com esperança, porque não mereço. Mas, depois duma palavra vossa, aceito outra vez a pobreza! Alegremente suportarei a minha situação desesperançada. E enfrentarei a luta. E me alegrarei com ela. E me reerguerei com renovada força.
Mandai-me essa palavra de simpatia. Somente de simpatia, juro! Não lanceis ao desprezo um homem desesperado e submerso; e não considereis audácia o que apenas é esforço para me salvar da perdição.
G. I.
— Este homem me assegura — disse Agláia abruptamente, quando viu que Míchkin tinha acabado de ler — que as palavras “Rompe com tudo” não me comprometem e não me obrigam a nada! E me dá uma garantia escrita disso, conforme o senhor está vendo nesse bilhete. Repare como ele se apressou ingenuamente a sublinhar certas palavras, e de que modo grosseiro mostra, através delas, o seu pensamento e intenção. Todavia ele há de pelo menos calcular que se rompesse com tudo, por si só, sem nenhuma palavra minha, sem mesmo me falar fosse o que fosse, sem esperar nada de mim, eu teria dele uma impressão diferente e talvez, até, pudesse vir a lhe conceder uma certa amizade. Está farto de saber disso. Mas a sua alma é imunda. Sabe, mas não se pode conduzir senão assim. Sabe, mas me pede uma garantia. Não sabe o que seja agir por confiança. Quer antes que lhe dê esperança da minha mão, para então renunciar aos 100 mil! E quanto a qualquer palavra minha, no passado, de que fala no bilhete, dizendo que lhe iluminou a vida, trata-se duma insolente mentira. Eu simplesmente tive pena dele, naquela ocasião, e foi isso apenas que lhe signifiquei. Mas é atrevido e despudorado. Não sei por que teve, então, a audácia de uma esperança a meu respeito. Não sei como lhe veio essa noção. Bem que imediatamente reparei. E não se cansa de tentar colher-me, mesmo agora. Mas, basta. Faça o favor de lhe devolver o bilhete logo que o senhor sair daqui de casa. Não antes. Compreende, não é?
— E que resposta lhe devo dar?
— Nenhuma. Evidentemente será essa a melhor resposta. Vai viver, então, na casa dele?
— Foi o próprio Iván Fiódorovitch quem me aconselhou isso, esta manhã.
— Então fique de guarda contra ele. Um aviso meu. Ele não lhe perdoará nunca lhe ter levado um bilhete devolvido.
Apertando-lhe ligeiramente a mão, Agláia saiu. Nem mesmo sorriu quando o príncipe se curvou. Tinha o rosto contraído e sério.
De volta à sala, o príncipe foi explicar a Gánia que ia só apanhar o seu embrulho e que já vinha, acrescentando:
— Partiremos já.
Gánia batia com o pé, impaciente. Tinha o rosto sombreado de raiva. Até que por fim saíram para a rua, o príncipe com o seu embrulho debaixo do braço.
— A resposta? A resposta? — exclamou Gánia, fazendo-o parar, abalroando-o. — Que foi que ela mandou dizer? Entregou-lhe o bilhete?
Sem responder, o príncipe lhe devolveu a carta, o que pôs o outro petrificado.
— Como? A minha carta? Não entregou? Por quê? Ah! Eu logo vi. Que é que eu podia esperar do senhor? Ora bolas! Agora é que estou entendendo por que foi que ela não me compreendeu ainda agora. Mas, por que deixou de entregar? Oh, que inferno!...
— Perdão. Muito pelo contrário. Consegui entregá-la menos dum minuto depois que a recebi do senhor. E fiz tudo exatamente conforme o senhor me preveniu. Estou com ela, outra vez, porque Agláia devolveu-ma agora mesmo.
— Quando? Mas... quando?
— Não viu quando eu acabei de escrever no álbum e ela me chamou lá dentro? Ao chegarmos à sala de jantar ela me devolveu a carta, me obrigou a lê-la e mandou que lha entregasse de novo.
— Obrigou o senhor a ler? — gritou Gánia. — E o senhor leu?
Ele parou, pasmado, no meio da calçada. Estava tão admirado que ficou com a boca aberta.
— Sim, acabei lendo... Foi agora mesmo, lá...
— E ela, quando lha entregou, lhe disse que a lesse? Disse ela isso?
— Disse sim, e lhe asseguro que não li senão depois que ela insistiu. E antes de a entregar a ela, também não tinha lido.
Gánia ficou calado, um longo minuto, refletindo, com angustiado esforço. E só depois é que exclamou:
— Impossível! Ela não lhe poderia ter dito que lesse. O senhor está mentindo! O senhor leu por curiosidade!
— O senhor fique sabendo que eu não minto — respondeu o príncipe com voz imperturbável. — E sinto sinceramente, pode crer, sinto muito que isso lhe tenha sido tão desagradável.
— Mas, ó criatura desenxabida! Diga, ela não falou nada, naquela hora? É lógico que tinha que dizer qualquer cousa. É lógico que deve ter dado qualquer resposta!
— Ah! Sim, é lógico.
— Então? Diga! Que inferno!...
E Gánia bateu com o pé direito duas vezes, nas lajes.
— Quando eu acabei de ler, ela me disse que o senhor estava tentando armar-lhe um laço, pretendendo comprometê-la com a promessa de sua mão, não querendo perder, sem essa garantia, os 100 mil rublos. Que se o senhor tivesse feito tudo isso, sem pedir compromisso algum e tivesse rompido com tudo, sem exigir prévia garantia, que ela até se sentiria na obrigação de lhe dedicar um pouco de amizade. E eu também acho. Ah!... E outra cousa ainda: quando lhe perguntei, já com a carta devolvida, qual era a resposta que eu devia trazer, ela retrucou que a ausência de resposta era a resposta que o senhor merecia. Penso que foi exatamente assim; em todo o caso me perdoará o senhor se esqueci as palavras exatas e por isso apenas estou repetindo conforme o que depreendi.
Subjugado por uma angústia incomensurável, Gánia desencadeou a sua fúria sem restrições.
— Ah! Então é assim, hein? — rosnou ele. — Então ela joga pela janela fora os meus bilhetes! Com que então não quer fazer barganhas! Pois eu quero! E vamos ver! Ainda tenho umas cousas para outras cartadas! Veremos! Ela vai se arrepender. Vou fazê-la ficar fina, se vou!
Tinha as faces lívidas e rijas e espumava pela boca. Apertava os punhos. Andaram alguns passos. Comportava-se exatamente como se estivesse sozinho no quarto, sem mais ninguém, não guardando as aparências perante o príncipe, absolutamente não o considerando motivo para se conter ou para se exceder. Até que refletiu e se dominou.
— Ora, aí está uma cousa que não entendo... Como foi que o senhor (um idiota, ajuntou mentalmente) se tornou de repente depositário da confiança dela, com menos de duas horas de conhecimento?
A inveja, que era o que ainda estava faltando para lhe completar o sofrimento, desencadeou-se então, imediatamente lhe pungindo o peito.
— Realmente, não lhe sei explicar — respondeu Míchkin.
Gánia rebateu com cólera:
— Foi, portanto, para lhe dar uma prova de confiança que o chamou até à sala de jantar? Disse que era para lhe dar uma cousa!
— Entendo que foi para isso.
— Mas, raios me partam! Que foi que o senhor fez para a agradar? Como foi que o senhor fez para conquistar o coração delas todas? Escute. — Estava horrivelmente agitado e em terrível tumulto íntimo; todos os seus cálculos se haviam dissipado. — Escute: não poderá o senhor se lembrar do que esteve conversando com elas? As palavras, uma por uma, desde o começo? Fazer uma espécie de relato disso tudo? Não se recorda de ter notado qualquer coisa?
— Um relato? posso, sim — prometeu o príncipe. — Logo no começo, quando entrei, e nos ficamos conhecendo melhor, pusemo-nos a falar da Suíça.
— A Suíça que se dane!
— Depois, então, falamos da pena capital.
— Pena... capital?
— Sim, na conversa, qualquer cousa trouxe isso à baila, por qualquer analogia ou associação de ideias... Depois contei como passei três anos lá; narrei a história duma pobre rapariga da aldeia...
— Para o diabo a tal rapariga. Adiante.
Gánia estava enfurecido e a sua impaciência não tinha limites.
— Depois, de como Schneider me deu a sua opinião sobre o meu caráter e como me forçou a...
— Raios partam Schneider e a opinião dele que se dane! Que mais?
— E aí, não sei o que me levou a falar sobre fisionomias, ou melhor, sobre a expressão que cada rosto tem e... coisa vai, eu disse que Agláia decerto era tão bonita quanto Nastássia Filíppovna. Aí está como foi que vim a fazer menção do retrato...
— Mas, diante delas, o senhor não repetiu o que ouviu esta manhã no escritório? Não? Não mesmo?
— Repito-lhe que não.
— Como demônio então... Ai! ai! ai! Será que ela mostrou a carta à velha?
— Com toda a segurança lhe garanto que não. Estive lá todo o tempo e ela, ou não teve ocasião, ou não quis.
— Veja bem! Não terá o senhor omitido alguma cousa?... Que raio de idiota! — sussurrou completamente alucinado. “Não sabe nem contar as cousas direito.”
Gánia, uma vez tendo começado a abusar de alguém sem encontrar resistência, perdia o senso da restrição, como se dá sempre no caso de certas pessoas. Pelo caminho que ia, não estava longe de se exaltar, até ficar cego de fúria. E foi isso que sucedeu, do contrário teria compreendido que esse “idiota”, que estava sendo tratado tão grosseiramente, era, no mais das vezes, penetrante e atilado na compreensão das cousas, e que o relato que pôde dar de tudo fora extremamente satisfatório. E aconteceu o que ele não esperava, pois o príncipe lhe disse, de repente:
— Em boa hora lhe confesso, Gavríl Ardaliónovitch, que em tempos estive tão doente, que realmente fiquei quase um idiota. Mas já há muito tempo que me restabeleci, e portanto não admito que me chamem de idiota no rosto. Conquanto eu, em consideração à sua má sorte de hoje, lhe possa perdoar isso, pois compreendo o que seja confusão, lhe faço sentir que o senhor foi muito mal-educado para comigo, já por duas vezes. Não gosto disso, absolutamente, e de mais a mais, logo a seguir a uma apresentação e a um conhecimento tão recente! Assim, pois, como estamos justamente numa esquina e num cruzamento, não será melhor nos separarmos? O senhor toma a direita, para a sua residência, e eu vou por aqui, pela esquerda. Tenho comigo 25 rublos e acho que isso dá para uma hospedaria.
Gánia ficou mortalmente desconcertado e vermelho de vergonha diante de tão inesperada recusa.
— Perdoe-me, príncipe! — E substituiu o tom ofensivo por um outro de extrema polidez: — Peço-lhe, por misericórdia, que me desculpe! O senhor bem está vendo o meu atarantamento. O senhor só sabe muito por alto... mas se soubesse de tudo, estou certo que concordaria que eu mereço alguma desculpa. Muito embora, naturalmente, seja indesculpável que eu...
— Oh! Não é preciso o senhor se desculpar tanto!... — apressou-se o príncipe em adverti-lo. — Eu entendo bem quanto tudo isso lhe é terrível! Sei que foi por isso que o senhor se tornou grosseiro. Bem, vamos então para a sua casa. E o faço com prazer.
A caminho, olhando ressentido para o príncipe, Gánia ia pensando ocultamente: “Não! Isso não fica assim, tu me pagas! O velhaco extraiu-me tudo que lhe convinha e agora tirou a máscara... Atrás disso tem cousa. Mas veremos. Tudo se decidirá! Tudo! E tem que ser hoje!”
Estavam agora parados, em frente da casa.
8.
O apartamento de Gánia era no terceiro andar, subindo-se até ele por umas escadas largas, claras e limpas. Consistia de seis ou sete peças, umas grandes, outras pequenas. Embora fosse um apartamento comum, parecia estar um pouco além das posses dum escriturário com família, mesmo com um ordenado de 2 mil rublos por ano. Gánia e a sua família o tinham tomado dois meses antes, com a intenção de admitir pensionistas, para satisfazer, malgrado o enorme aborrecimento que isso causava a Gánia, os urgentes desejos de sua mãe e de sua irmã que ansiavam por um meio idôneo que aumentasse um pouco a renda doméstica. Gánia fizera carranca, qualificando isso de tomar hóspedes como coisa degradante, achando que tal fato o humilhava perante a sociedade que costumava frequentar, apresentando-se como um moço com um brilhante futuro diante de si. Todas essas concessões ao inevitável, bem como as apertadas condições da sua vida, lhe eram uma profunda ferida interior. Durante certo tempo, no começo, isso o irritara extremamente, tais bagatelas o exasperando de maneira desproporcionada; e agora, se se submetia a elas, por enquanto, era porque contava modificar tudo isso num futuro que cuidava mais do que próximo. Acontecia, porém, que mesmo o processo dessa alteração, através do qual se evadiria dessa rotina, trazia em seu bojo uma formidável dificuldade. Uma dificuldade cujo aplainamento ameaçava tornar-se mais perturbador e vexatório do que tudo isso por que estava passando.
O apartamento era dividido por um corredor onde logo deram, mal acabaram de subir e entrar. Num dos lados da passagem estavam os três melhores quartos que se destinavam aos pensionistas “especialmente recomendados”. Na extremidade, lá perto da cozinha, havia um outro cômodo, menor do que os outros três, que era ocupado pelo chefe da família, o general reformado Ívolguin, que dormia sobre um largo sofá e tinha que passar, ao entrar ou ao sair, pela cozinha, servindo-se da escada dos fundos. Kólia, o caçula, um colegial de treze anos, compartilhava desse quarto. Tivera que ser socado lá; e aí preparava as suas lições, dormindo, sobre lençóis furados num segundo sofá curto e estreito, sendo obrigado, além do mais, a esperar pelo pai e a andar de olho nele, cousa que estava cada vez ficando mais imprescindível. Ao príncipe seria dado o quarto do meio. O primeiro, à direita, era ocupado por Ferdichtchénko e o outro, à esquerda, estava vazio. Mas Gánia conduziu o príncipe até à outra metade do apartamento, do lado oposto à passagem e onde estavam a sala de jantar, a sala de visitas, que só era sala de visitas, ou de estar, de manhã, sendo depois transformada em escritório e quarto de dormir de Gánia, e uma outra terceira peça, muito pequena, sempre fechada, onde dormiam a mãe e a irmã. Numa palavra, estavam todos apertadíssimos nesse apartamento. A impressão não era lá grande coisa. Gánia apenas cerrou os dentes e não disse nada para se desculpar. Conquanto fosse ou aparentasse ser respeitador da família, desde o primeiro minuto se percebia que era um grande déspota perante os seus.
Nina Aleksándrovna não se achava sozinha na sala de estar. Sua filha estava com ela e ambas estavam ocupadas, costurando, enquanto falavam com uma visita, Iván Petróvitch Ptítsin. Nina Aleksándrovna aparentava ter cerca de cinquenta anos, com faces murchas e encovadas e olheiras negras sob as órbitas. Tinha um ar de pouca saúde e certa melancolia; mas o rosto e a expressão dele eram agradáveis. Logo à primeira palavra se poderia ver que possuía muita dignidade e firmeza. A despeito do abatimento que a melancolia lhe dava, sentia-se que tinha vontade própria e ânimo resoluto. Estava modestamente vestida de preto e à maneira antiga, mas os seus modos, a sua conversa e todo o seu feitio evidenciavam plenamente que era mulher que já conhecera melhores dias. Varvára Ardaliónovna era uma moça de uns 23 anos, de altura média e quase magra. O seu rosto, apesar de não ser muito bonito, possuía o segredo do encanto sem beleza e era extraordinariamente atraente. Parecia-se muito com a mãe e estava vestida quase que do mesmo modo, não demonstrando nenhuma preocupação de ser elegante. Os seus olhos castanhos deviam ter sido, alguma vez, alegres e cariciosos, mas sabiam como regra ser sérios e pensativos, principalmente nesta época. O seu rosto também mostrava decisão e até teimosia; de fato sugeria mais vontade e determinação do que o materno. Varvára Ardaliónovna era de temperamento brusco e seu irmão muitas vezes temia esse temperamento. E a própria visita que estava com elas, no momento, também tinha por que recear isso. Iván Petróvitch Ptítsin era um moço que ia fazer ainda trinta anos, vestia-se com elegância, mas modestamente, e tinha maneiras agradáveis, embora algo estudadas. A sua barbicha castanho-clara indicava logo que não era funcionário público. Sabia falar bem e expeditamente, mas era de seu natural calado. Dava uma impressão boa, em conjunto. Estava, via-se logo, atraído por Varvára Ardaliónovna, não sabendo esconder esse sentimento. Ela tratava-o de modo amistoso, mas parecia querer mistificar umas respostas que não lhe agradavam. Mas Ptítsin estava longe de perder a coragem. Nina Aleksándrovna tratava-o com cordialidade e ultimamente já confiava um pouco mais nele. Era notório que estava em vias de fazer fortuna, dedicando-se a empréstimos, a juros altos, com garantias mais ou menos certas. Era grande amigo de Gánia.
Gánia saudou a mãe, friamente, não cumprimentou a irmã e, depois de apresentar o príncipe secamente, não levando mais do que um minuto a explicar de quem se tratava, logo arrastou Ptítsin para fora da sala. Nina Aleksándrovna trocou algumas palavras corteses com o príncipe e disse a Kólia, que apareceu espiando pela porta, que o conduzisse ao quarto do meio. Kólia tinha uma cara de garoto prazenteiro e agradável, e todo o seu modo era simples e confiado.
— Onde está a sua bagagem? — perguntou Kólia.
— Trouxe só um embrulho que deixei na antessala.
— Vou buscá-lo já. Como só temos o cozinheiro e a Matrióna, eu também ajudo. Vária é quem olha por tudo e anda de lá para cá. Gánia disse que o senhor chegou da Suíça.
— Cheguei, sim.
— E sentiu-se bem na Suíça?
— Muito.
— Há montanhas por lá?
— Sim.
— Vou apanhar o seu embrulho.
Varvára Ardaliónovna entrou.
— Matrióna vai fazer a sua cama. Trouxe mala?
— Não, apenas um embrulho. O seu irmão já foi apanhá-lo, deixei-o na antessala.
Voltando ao quarto, Kólia perguntou:
— Onde foi que o senhor o deixou? Não achei lá nenhum pacote, exceto este embrulhozinho.
— Só tenho esse — respondeu o príncipe, pegando-o.
— Hã! Levei um susto! Cuidei que Ferdichtchénko o tivesse carregado.
— Não digas asneiras — corrigiu Vária, veementemente. E mesmo com o príncipe falou de modo curto e com estrita civilidade.
— Chère Babette, por que não me tratas mais ternamente? Olha que eu não sou Ptítsin!
— Ainda queres mais é levar umas lambadas! Kólia, não sejas engraçadinho! O senhor sempre que quiser alguma cousa pode chamar Matrióna. O jantar é às quatro e meia. Tanto pode jantar conosco, à mesa, como no seu quarto, se preferir. Kólia, vem, não fiques no caminho.
— Vamo-nos, cabeçuda!
Quando saíam deram com Gánia, que perguntou ao irmão:
— Papai está em casa? — Depois da resposta, ciciou-lhe qualquer cousa ao ouvido, tendo Kólia seguido a irmã, após acenar com a cabeça.
— Uma palavra, príncipe. Com tanta cousa, ia até me esquecendo. Tenho um pedido a lhe fazer. Tenha a bondade, e não se moleste com o meu pedido, de não dizer uma palavra que seja do que se passou entre mim e Agláia; e muito menos de, do que ouvir aqui, contar lá, pois há degradação bastante aqui, também. Aliás, já me resignei a isto. Em todo o caso, contenha-se hoje.
Evidenciando certa irritação à advertência de Gánia, Míchkin respondeu, deixando transparecer que as suas relações estavam cada vez ficando mais prejudicadas:
— Posso garantir-lhe que falei muito menos do que o senhor supôs.
— Bem, o senhor hoje, querendo ou não, me encheu as medidas. Em todo o caso repito que me faça o favor de ficar calado.
— Perdão, o senhor, apesar dos pesares, devia ter percebido, Gavríl Ardaliónovitch, que não me excedi absolutamente. Como havia eu de adivinhar que não devia falar na fotografia? O senhor não me avisou nada.
— Arre! Que quarto infame — observou Gánia, olhando em redor, com desprezo. — Escuro e dando para a área. O senhor veio para a nossa casa numa época péssima, sob todos os pontos de vista. Mas estou entrando em assunto que não me concerne. Não sou eu quem aluga os quartos.
Ptítsin meteu a cabeça para dentro do quarto e chamou Gánia que logo deixou o príncipe, saindo. Havia mais qualquer cousa que tencionava dizer, mas além de estar notoriamente sem jeito, demonstrou certo pejo em fazê-lo. A desculpa com o quarto fora um modo de disfarçar.
Mal havia o príncipe acabado de se lavar e de se arrumar um pouco, quando a porta se reabriu e uma outra pessoa espiou lá para dentro. Era um indivíduo duns trinta anos, baixo e corpulento, com uma grande cabeça rodeada de melenas ruivas. Tinha uma cara vermelha e carnuda, uns lábios grossos e o nariz além de grande era chato. Os olhos pequeninos, esmagados em gordura, olhavam como se estivessem sempre pestanejando. Todo o seu semblante produzia uma impressão de insolência. Estava com uma roupa um pouco ensebada.
A princípio entreabriu a porta o suficiente para insinuar a cabeça. Essa cabeça, rolando, olhou todo o quarto, por uns cinco segundos; depois a porta começou a se abrir vagarosamente, rangendo, e toda a sua pessoa se patenteou no umbral. Não entrou logo, o estranho visitante; mas, mesmo sem entrar, aqueles olhinhos já examinavam o príncipe, da entrada. Por fim o homem fechou a porta atrás de si, aproximou-se bem, sentou-se numa cadeira, tomou a mão do príncipe, obrigando-o a sentar-se no sofá, perto.
— Ferdichtchénko — disse, olhando com atenção e desplante para o príncipe.
— E que mais? — perguntou o príncipe, querendo até rir.
— Um inquilino — explicou o outro, continuando a examiná-lo.
— O senhor quer apresentar-se, não é?
— Is...so! — disse o visitante, suspirando e encaracolando o cabelo. Desviou o olhar para o lado oposto, para poder fazer a seguinte pergunta: — Tem dinheiro? — E logo se voltou para o príncipe.
— Um pouco.
— Quanto?
— Vinte e cinco rublos.
— Mostre.
O príncipe tirou do bolso interno do colete a nota de 25 rublos e a estendeu a Ferdichtchénko, que a esticou bem, a examinou e a olhou por transparência na claridade.
— É estranho como, pouco a pouco, elas vão tomando uma cor de barro! Estas notas de 25 rublos geralmente acabam tomando uma horrorosa cor escura, ao passo que as outras, essas então desbotam. Ei-la. Guarde-a.
Míchkin pegou-a de novo e Ferdichtchénko se levantou.
— A razão desta minha primeira visita foi preveni-lo de que não me empreste dinheiro, pois pode estar certo de que lho pedirei.
— Perfeitamente.
— Tenciona pagar isto aqui?
— Decerto.
— Bem, mas eu, jamais! Nunca. Obrigado. Estou aqui ao lado. A próxima porta, à direita. Percebe? Não precisa vir ver-me muito amiúde. Deixe, que eu virei. Outra cousa, já viu o general?
— Não.
— Nem o ouviu, pelo menos?
— Naturalmente que não.
— Bem. Vê-lo-á e ouvi-lo-á. Outra cousa. Imagine que até a mim ele ensaia pedir dinheiro emprestado. Avis au lecteur. Até logo. Pode existir alguém com este nome Ferdichtchénko? Hein?
— Por que não?
— Até logo.
Dirigiu-se para a porta. Mais tarde veio o príncipe a saber que esse indivíduo se incumbira por conta própria de assombrar todo o mundo, fingindo-se de original e fora do comum, apesar de mesmo nisso malograr sempre. Às vezes se saía tão mal nesse propósito que disso resultava mortificação e apuros para ele próprio. Ainda assim não desistia nem se emendava. À porta empertigou-se, esbarrando num cavalheiro que ia entrando. Mostrando caminho, por assim dizer, a essa nova visita que o príncipe não conhecia, pestanejou diversas vezes, por detrás dela, à guisa de advertência, obtendo assim uma saída razoavelmente eficiente.
Este outro cavalheiro era um homem duns 55 anos, agigantado e espadaúdo, com uma cara imensa, bochechuda, vermelha que nem púrpura, servida lateralmente por suíças grisalhas, e marcada por uns bigodões espessos. Os olhos enormes eram quase saltados. A sua aparência seria até impressionante se não fosse o modo geral desmazelado, imundo e horripilante. Vestia, como roupa de estar em casa à vontade, uma usada sobrecasaca que além de mostrar o forro puído tinha os cotovelos esburacados. Nos recintos fechados ele fedia um pouco a vodca, mas os seus modos eram teatrais e solenes. Traía um cioso desejo de ostentar dignidade.
Aproximou-se do príncipe, resolutamente, com um sorriso afável. Tomou-lhe a mão, calado, e a mantendo algum tempo na sua, olhou para o rosto do príncipe com aquele feitio com que uma pessoa se alvoroça quando descobre num suposto desconhecido traços de há muito familiares.
— Ah! Mas é ele! — solenemente, vagarosamente pronunciou isso. — É a sua figura viva! Ouvi-os, em minha própria casa, pronunciarem um nome que me é querido e familiar e que me levou, de súbito, a um passado que já se foi para sempre!... O príncipe Míchkin?
— Sim.
— O general Ívolguin, reformado e desafortunado. Qual o seu nome e o de seu pai? Posso aventurar esta pergunta?
— Liév Nikoláievitch.
— Sim, sim! O filho do meu amigo, do meu companheiro de infância, devo dizer, Nikolái Petróvitch?
— O nome de meu pai era Nikolái Lvóvitch.
— Lvóvitch — corrigiu logo o general, mas sem pressa e com absoluta calma, como se absolutamente não se tivesse esquecido e apenas tivesse pronunciado errado por acidente. Sentou-se e tomando de novo a mão do príncipe também o fez sentar-se, mais ao seu lado. — Dizer-se que eu já o carreguei nos meus braços!
— Será possível? Meu pai morreu há vinte anos.
— Sim. Vinte anos. Vinte anos e três meses. Estivemos juntos na escola. Eu entrei diretamente para o exército.
— Meu pai também esteve no exército. Chegou a alferes no regimento de Vassílievskii.
— No de Bielomírskii. Foi transferido para o de Bielomírskii um pouco antes da sua morte. Estive no seu leito de morte e o abençoei para a eternidade. Sua mãe...
E como que interrompido pelo efeito de dolorosas recordações o general fez uma pausa.
— Sim, ela morreu seis meses mais tarde devido a um resfriado — explicou o príncipe.
— Não foi resfriado. Absolutamente. Deve confiar nas palavras e na memória dum velho. Eu estava lá. Fui dos que a sepultaram. Foi desgosto, pela morte do esposo. Absolutamente não foi resfriado. Sim, recordo-me também da princesa. Ah! A mocidade! Foi por causa dela que o príncipe e eu, amigos desde a infância, estivemos a ponto de nos tornarmos assassinos um do outro.
O príncipe começou a escutar com uma certa desconfiança.
— Eu estava apaixonado por sua mãe, quando ela ficou noiva de seu pai. Noiva dum amigo. O príncipe descobriu isso e foi um golpe para ele. Veio ver-me muito cedo, certa manhã, antes das sete horas, e me acordou. Ergui-me ao mesmo tempo estremunhado e cheio de assombro. Houve silêncio de ambos os lados. Compreendi tudo. Ele puxou duas pistolas do bolso. “Através dum lenço, sem testemunhas.” Testemunhas para que, se, dentro de cinco minutos, teríamos mandado um ao outro para a eternidade? Carregamos as pistolas, estendemos o lenço, apontamos as pistolas para o coração um do outro, e nos encaramos. Subitamente, lágrimas golfaram dos olhos de ambos. As mãos tremeram. De ambos os lados, ao mesmo tempo. Depois, é lógico, ora essa, seguiram-se abraços e um conflito de generosidade mútua. O príncipe exclamava: “Ela é tua!”; e eu dizia: “Não! Tua!” Com que então veio morar conosco?!
— Sim, por algum tempo, decerto — gaguejou o príncipe.
Nisto Kólia apareceu à porta e disse:
— Mamãe mandou pedir para o senhor ir lá dentro, príncipe!
O príncipe levantou-se logo para atender ao chamado, mas o general afetuosamente lhe pôs a mão no ombro, obrigando-o a sentar de novo.
— Como um verdadeiro amigo que fui de seu pai, desejo preveni-lo, o senhor facilmente pode verificar que sou um homem que sofreu muitos reveses, vítima duma trágica catástrofe que quase me levou à barra dos tribunais. Nina Aleksándrovna é uma rara mulher. Varvára Ardaliónovna, minha filha, uma filha rara. Fomos impelidos, malgrado nosso, a tomar pensionistas — uma incrível queda, não há dúvida! E eu que estive na iminência de chegar a governador-geral. Mas ao senhor teremos sempre prazer em receber. E no entanto há uma tragédia no meu lar!
O príncipe olhava-o com uma curiosidade interrogativa.
— Está sendo arranjado um casamento. Um estranho casamento. Um casamento entre uma mulher de caráter duvidoso e um jovem que poderia vir a ser gentil-homem da corte. Essa mulher está na iminência de ser trazida para esta casa onde estão minha mulher e minha filha! Mas enquanto em mim houver hausto, ela não transporá a nossa porta. Atravessar-me-ei, deitado, no patamar e quero ver se tem a coragem de passar por cima de mim. Deixei de falar com Gánia. Evito, em verdade, encontrar-me com ele. E como o senhor vai viver aqui conosco, terá ocasião de ver. De qualquer modo, terá ocasião de ver. Mas, como filho que o senhor é dum amigo, tenho direito de esperar que...
Mas Nina Aleksándrovna apareceu em pessoa, na entrada do quarto, e chamou o príncipe.
— Príncipe, queira ter a bondade de vir até à sala de estar!
— Imagina tu, querida — exclamou o general —, que acabei por me lembrar que muita vez trouxe o príncipe, em criança, nos meus braços!
Nina Aleksándrovna olhou-o de esguelha, como a censurá-lo, depois procurou ver a impressão do príncipe; mas não disse palavra. O príncipe seguiu-a. Mal tinham entrado na sala e se sentavam, e ia ela, às pressas, em voz baixa, dizer qualquer cousa, quando o general apareceu. Nina Aleksándrovna parou logo de falar, curvando-se sobre a sua costura, com ar aborrecido, o que não passou despercebido ao general que ainda assim não perdeu o bom humor.
— Que cousa tão inesperada! O filho dum amigo meu! — dirigia-se à mulher. — Nunca me passaria pela ideia... Tu, com toda a certeza, querida, te lembras do finado Nikolái Lvóvitch! Ainda estava em Tver quando estivemos lá.
— Nikolái Lvóvitch? Não me lembro. Era seu pai? — perguntou ela ao príncipe.
— Sim, em Tver — teimava o general. — Foi transferido de Tver pouco antes de sua morte. E antes da doença lhe aparecer. Foi, sim. O senhor era muito pequeno, para se lembrar tanto da remoção como da viagem. Pavlíchtchev deve se ter esquecido! E que excelente homem!
— O senhor também conheceu Pavlíchtchev?
— Era um desses homens que não se encontram mais hoje. Mas eu estava lá. Abençoei seu pai no leito de morte.
— Meu pai faleceu enquanto estava aguardando um julgamento. Mas nunca conseguiu saber de que era ele acusado. Morreu num hospital.
— Oh! Foi por causa do soldado raso Kolpakóv. E não há dúvida de que o príncipe seria absolvido.
— Foi, então, assim? Tem certeza? — perguntou o príncipe cada vez ficando mais interessado.
— Posso afirmar — garantiu o general. — A corte dissolveu-se sem ter chegado a um veredicto. Foi um caso inacreditável. Misterioso, pode-se dizer. O Capitão Lariónov, comandante da companhia, veio a morrer. O indicado para substituí-lo no cargo foi o príncipe. Ora bem. Nisto o soldado Kolpakóv cometeu um furto. Roubou as botas de couro dum camarada e as vendeu, gastando o dinheiro em bebida. Ora bem. Então o príncipe, observe bem, na presença do caporal e do sargento, lhe deu um empurrão e ameaçou açoitá-lo. Ora bem. Kolpakóv retirou-se para a barraca, deitou-se, e um quarto de hora depois estava morto. Excelente. Quem havia de esperar? Era incrível. Fosse como fosse, o enterraram. O príncipe instaurou um inquérito, fez um relatório do caso e o nome de Kolpakóv foi retirado da lista. Parecia que tudo estava muito em ordem. Seis meses mais tarde, nem mais nem menos, durante uma revista da brigada, reaparece o nosso Kolpakóv, como se nada se tivesse passado com eles antes. E aparece onde? Na terceira companhia do segundo batalhão do regimento de infantaria de Novozemliánskii, na mesma brigada e na mesmíssima divisão!
— Como? — perguntou o príncipe completamente espantado.
— Não foi assim; meu marido se enganou — corrigiu Nina Aleksándrovna, dirigindo-se imediatamente a ele com olhos de angústia. Mon mari se trompe.
— Mas querida, se trompe é fácil de dizer. Como explicas então um caso destes? Todo o mundo ficou boquiaberto! Eu teria sido o primeiro a dizer qu’on se trompe. Mas, infelizmente, eu era uma das testemunhas e fazia parte da comissão. Todos que o viram testemunharam que se tratava do mesmo soldado raso Kolpakóv que tinha sido enterrado seis meses antes com a usual parada e rufar de tambores. Admito que foi um caso fora do comum, incrível mesmo, mas?...
— Pai, o seu jantar está pronto — anunciou Varvára Ardaliónovna, entrando na sala.
— Ah! Isso é o essencial. Excelente! E não resta dúvida que me sinto esfomeado... Mas foi, pode-se dizer, um caso psicológico...
— A sopa está esfriando — disse Vária, com impaciência.
— Já vou indo, já vou indo — murmurou o general, deixando a sala. E, a despeito de todos os inquéritos... ouvia-se o general falando lá do corredor enquanto se ia.
— Caso o senhor permaneça aqui, terá que desculpar muita cousa em Ardalión Aleksándrovitch — disse Nina Aleksándrovna. — Mas não o importunará sempre. No mais das vezes janta sozinho. Todos têm os seus defeitos, o senhor sabe, as suas manias, e decerto algumas até que uma pessoa nem espera. E um especial favor lhe vou pedir: se meu marido, por acaso, lhe perguntar pelo pagamento, será favor responder-lhe que já me pagou. Naturalmente que lhe deduziremos da sua conta qualquer cousa que o senhor tenha dado a Ardalión Aleksándrovitch, mas só lhe peço isso para evitar uma complicação nas contas... Que é, Vária?
Voltando à sala, ela estendeu à mãe o retrato de Nastássia Filíppovna, sem dizer uma palavra. Nina Aleksándrovna, muito sobressaltada, ficou a contemplá-lo por algum tempo, sendo que no começo pareceu atemorizada, tomando-se depois de amarga emoção, que não soube dominar. Acabou olhando, inquieta, para a filha que explicou:
— Um presente dela para ele, hoje. E esta noite tudo vai ser decidido.
— Esta noite? — disse Nina Aleksándrovna, em voz baixa onde havia decepção. — Bem, então não pode haver mais dúvida; não nos resta mais nenhuma dúvida. Com a oferta deste retrato a decisão já está mais do que clara! Mas foi ele próprio que te mostrou isto? — acrescentou, com surpresa.
— A senhora sabe que desde o mês passado nós mal nos falamos. Foi Ptítsin quem me contou tudo. E, quanto ao retrato, dei com ele no assoalho, perto da mesa. Apanhei-o.
— Príncipe — dirigiu-se Nina Aleksándrovna ao príncipe, de repente —, o senhor conhece meu filho há muito tempo? Se não me engano, quando me falou a seu respeito disse que o senhor acabara de chegar, não sei de onde, hoje.
Teve o príncipe que dar uma breve informação a propósito de sua vida, pondo de parte, entretanto, muita cousa. Nina Aleksándrovna e Vária escutavam.
— Com esta pergunta não estou experimentando descobrir seja o que for a respeito de meu filho — asseverou ela. — Pode ficar certo disso. Se alguma cousa houvesse que eu não pudesse vir a saber através dele próprio, não a quereria saber por outro meio. Se estou lhe fazendo esta pergunta é porque ainda agora, quando o senhor foi ver o seu quarto, Gánia, ao me responder quem era o senhor, me disse: “Ele está a par de tudo; não é preciso ter cerimônias com ele.” Que significa isso? Ou melhor, eu gostaria de saber até que ponto...
Inesperadamente Gánia e Ptítsin entraram. Nina Aleksándrovna calou-se instantaneamente. O príncipe não se mexeu, sentado ao lado dela, ao passo que Vária se retirou. Lá estava, sobre a mesinha de trabalho de Nina Aleksándrovna, bem perto dela e no lugar mais visível, o retrato de Nastássia Filíppovna. Gánia deu com ele e fechou o cenho. Atravessou a peça e foi apanhá-lo; depois, com ar de aborrecimento, o atirou, quase o deixando cair, sobre a sua escrivaninha, na extremidade oposta da sala.
De súbito, a mãe lhe perguntou:
— Então é hoje, Gánia?
— É hoje o quê? — Gánia ficou zonzo. Imediatamente, porém, se voltou para o príncipe e disse insolentemente: — Ah! Compreendo. Obra do senhor, outra vez. Parece que se trata duma doença incurável, essa sua! O senhor não sabe ficar calado? Mas deixe que lhe diga, Alteza...
Foi então que Ptítsin interveio, dizendo:
— Gánia, a culpa foi minha, e de mais ninguém.
Gánia esteve uns segundos a olhá-lo, como para se certificar. Mas Ptítsin continuou:
— É melhor assim, Gánia, principalmente tendo em vista que o caso já está deliberado. — E foi sentar diante da mesa; tirou do bolso um pedaço de papel todo escrito a lápis, que ficou estudando.
A Gánia nem ocorreu pedir desculpas ao príncipe. Continuou de pé, carrancudo, à espera duma cena de família.
— Se tudo está resolvido, então Iván Petróvitch tem razão — atalhou Nina Aleksándrovna. — E é favor, Gánia, não amuar. Desmanche essa carranca. Fique tranquilo que não lhe vou perguntar nada que você queira me esconder. Asseguro-lhe que já estou completamente resignada. Por favor, não se preocupe.
Dito isto, continuou com o seu trabalho. E, realmente, parecia se ter acalmado. Gánia surpreendeu-se com isso, mas teve a prudência de ficar calado, diante da mãe, como que à espera de que lhe dissesse alguma cousa mais definitiva. As disputas domésticas já o tinham feito sofrer demasiado. Notando a sua prudência, Nina Aleksándrovna acrescentou, com um sorriso amargo:
— Você ainda está duvidando. Já não acredita em sua mãe. Não se inquiete mais com isso. Nunca mais verá lágrimas nem cenas. Pelo menos de minha parte. Tudo quanto desejo é que você seja feliz. E você bem que sabe disso. Submeto-me ao inevitável e o meu coração sempre estará com você, tanto se ficarmos juntos como se nos separarmos. Naturalmente que só respondo por mim. Mas não espere o mesmo de sua irmã!...
— Ah! Ainda e sempre Vária! — exclamou ele, olhando para a irmã com ódio e desdém. — Mãe, torno a jurar o que já repeti mais de uma vez. Enquanto eu estiver aqui, enquanto eu viver, ninguém ousará faltar com o respeito à senhora. E insisto, perante quem quer a quem estas palavras interessem, que exijo o mais alto respeito para com a senhora por parte de quem quer que entre nossas portas adentro.
Agora estava aliviado, tinha uma expressão conciliatória e ao mesmo tempo procurava demonstrar afeto.
— Você bem sabe, Gánia, que por mim não tenho medo. Não foi por minha causa que estive todo este tempo aborrecida e aflita. Disseram-me que hoje vai ficar tudo decidido. E eu pergunto, decidido o quê?
— Ela prometeu participar hoje se concorda, ou não — respondeu Gánia.
— Levamos quase três semanas sem tocar neste assunto. E foi melhor assim. Agora que tudo vai ser decidido, permito-me a mim mesma fazer-lhe apenas uma pergunta: Como pode ela dar-lhe o seu consentimento e oferecer-lhe um retrato, se você não a ama? Como é que uma mulher assim tão...
— Experimentada... não é o que a senhora quis dizer?
— Não quero chegar a tanto. Como pôde você tapar-lhe os olhos assim, completamente?
E dentro dessa inesperada pergunta soava uma nota de intensa exasperação. Gánia ficou quieto, pensou um minuto e depois disse com indisfarçada ironia:
— A senhora está outra vez se exaltando, mãe, e de novo não se sabe dominar. E é sempre assim que isso começa entre nós, sempre cada vez se esquentando mais. Disse a senhora que não faria mais admoestações e todavia está recomeçando! Seria preferível acabarmos com isso duma vez, não acha? Mas reconheço que suas intenções sempre foram boas... E nunca, em circunstância alguma, abandonarei a senhora. Um outro homem se teria afastado léguas duma tal irmã. Repare o modo dela me olhar! Terminemos com isto! Já estava ficando tão aliviado... E que ideia é essa da senhora imaginar que estou enganando Nastássia Filíppovna? Quanto a Vária, ela que se arranje, ora aí está. Bem, e acho que por agora basta.
A cada palavra se inflamava mais e dava passos sem direção, pela sala. Estas discussões sempre tocavam o ponto sensível de cada membro da família. Tanto que Vária reafirmou:
— Eu já disse que, se esta mulher vier aqui para casa, eu saio. Disse e cumprirei a minha promessa.
Gánia vociferou:
— Teima, teima, assim, sempre! E é por causa dessa tua obstinação que nunca te casarás. E não bufes comigo, que eu não tenho medo, estás ouvindo? Faze o que muito bem quiseres, que eu pouco me importo, Varvára Ardaliónovna! E podes transferir-te com teus planos, imediatamente até, se quiseres. Já não te suporto. Mas que é isso? O senhor resolveu deixar-nos afinal, príncipe? — disse, voltando-se para Míchkin que se levantara do seu lugar.
A voz de Gánia traía o máximo de irritação dum homem que se entrega de tal maneira à própria irritação que em vez de se conter transforma isso em paradoxal prazer, sem olhar as consequências. Míchkin respondeu ao insulto lançando um olhar como que simbólico para a porta; mas vendo pela cara de Gánia que qualquer resposta agravaria a situação, virou-se e saiu em silêncio. Poucos minutos depois percebeu que as vozes na sala de estar indicavam que a conversa tinha adquirido, na sua ausência, um tom mais barulhento e mais categórico.
Atravessou a sala de jantar rumo ao vestíbulo, em direção ao seu quarto. Ao passar pela porta da frente do andar ouviu e percebeu que alguém, do lado de fora, estava fazendo desesperados esforços para tocar a campainha que parecia estar estragada, apenas balançando sem fazer nenhum som. O príncipe virou o trinco da porta, abriu-a e deu um passo atrás, sobressaltado. Diante dele estava Nastássia Filíppovna. Fácil foi reconhecê-la imediatamente, por causa do retrato. Os olhos dela fulguravam de nervosismo, quando o viu. Entrou logo para o vestíbulo, fazendo-o recuar e, arrojando o casaco de peles, lhe gritou:
— Já que a preguiça te impede de consertar a campainha, fica ao menos na entrada para ver quem bate. E o molenga ainda por cima deixa cair o meu casaco!
De fato o casaco estava no chão. Nastássia Filíppovna não esperara que ele a ajudasse a despi-lo e lho tinha jogado nos braços, já de costas, sem olhar para ele que, trapalhão como era, não tivera tempo de o segurar.
— Por que não te despedem? Vai anunciar-me.
O príncipe achou que era preciso naturalmente dizer qualquer cousa, mas a confusão o inibiu. A única cousa que soube fazer foi rumar para a sala de estar, com o casaco, que apanhara do chão, no braço.
— Ora essa, e agora ainda leva lá para dentro o meu casaco? Que é que vais fazer lá dentro com ele? Ah! ah! ah! É gira?
O príncipe voltou e a fixou, como se estivesse petrificado. Vendo-a rir, sorriu também, mas não pôde falar, mesmo assim. Ao abrir a porta, e dar com ela, tinha ficado lívido, mas agora estava rubro, como se o sangue lhe tivesse subido ao rosto em jacto.
— Que idiota! — gritou Nastássia Filíppovna, batendo com o pé, indignada. — Onde é que vais agora? E que nome vais anunciar lá dentro?
— Nastássia Filíppovna! — balbuciou ele.
— Tu me conheces? — perguntou ela, imediatamente. — Nunca te vi. Bem, vai anunciar-me. E que gritaria é essa, lá dentro?
— Estão brigando — respondeu. E enveredou para a sala de estar.
Entrou justamente no momento crítico. Nina Aleksándrovna estava a ponto de se esquecer que já “se tinha resignado a tudo”. Defendia Vária, a cujo lado se pusera também Ptítsin que até deixara de lado as suas contas a lápis. Vária não estava de maneira alguma intimidada; não era rapariga para se intimidar; mas a brutalidade do irmão se tornava mais grosseira e insuportável, à medida que ia falando o que bem queria. Em momentos tais ela adotava um hábito: ficar calada, olhando com um silêncio desdenhoso para o irmão, pois sabia que com isso o levava ao auge do desespero mais ilimitado. E foi nesse momento que o príncipe, entrando, anunciou:
— Nastássia Filíppovna!
9.
Fez-se silêncio completo na sala. Todos pasmaram para o príncipe, como se não tivessem ouvido ou não conseguissem compreender. Gánia ficou hirto de terror. A chegada de Nastássia Filíppovna, e justamente naquela hora, causou a maior e mais desordenada surpresa em todos. O fato mesmo de Nastássia Filíppovna se ter lembrado de visitá-los, já era assombroso. Até então fora tão altiva que nem em conversa com Gánia expressara, uma vez sequer, o desejo de lhe conhecer a família, sendo que, de modo algum, ultimamente, fazia a menor alusão a ela, como se nem existisse. Muito embora, de certa maneira, isso ao menos lhe proporcionasse alívio, por assim evitar um assunto melindroso, armazenara, todavia, em seu coração, um ressentimento contra ela. Verdade é que preferiria expor-se a receber da parte dela observações ferinas e irônicas, quanto à sua família, a recebê-la em casa. Tinha certeza de que ela estava a par de que em casa o seu compromisso despertava discórdias, não ignorando a atitude de tal família a seu respeito. Essa visita agora, logo a seguir ao presente do retrato, e no dia mesmo do seu aniversário, dia em que prometera dar a sua decisão, equivalia indubitavelmente à decisão mesma.
Mas não durou muito a estupefação com que todos fitavam o príncipe. E não durou porque Nastássia Filíppovna apareceu, em pessoa, à porta da sala de estar, obrigando o príncipe a recuar outra vez para lhe dar passagem.
— Sempre consegui entrar. É de propósito que a campainha está travada? — foi dizendo, muito bem-humorada, estendendo a mão a Gánia que se precipitara ao seu encontro. — Por que está assim tão transtornado? Faça o favor de me apresentar.
Gánia, completamente zonzo, a apresentou primeiro a Vária. As duas mulheres, antes de se cumprimentarem, se estudaram com os olhos, de modo estranho; mas como Nastássia Filíppovna ainda estava sorrindo, pôde mascarar os seus sentimentos sob essa amostra de expansibilidade. Mas Vária não escondeu os seus, fitando-a com uma intensidade esquisita. Não surgiu em seu semblante o sorriso sequer que a simples polidez exige.
Gánia estava em transe. Era inútil intervir e nem haveria tempo e modo; mas conseguiu atirar à irmã um olhar de soslaio tal que ela bem se deu conta do que esse momento representava para ele. Decidiu ceder e sorriu afetadamente para a outra. (Na família todos ainda gostavam bastante uns dos outros.) Quem, afinal, salvou a situação foi Nina Aleksándrovna a quem Gánia logo a seguir a apresentou, embora já irremediavelmente confuso. E tão confuso que em vez de apresentar Nastássia Filíppovna apresentou a mãe a esta. Mas tão logo Nina Aleksándrovna começou a falar no “grande prazer etc.”, já Nastássia Filíppovna, sem lhe dar atenção, se virava apressadamente para Gánia, sentando-se, sem esperar que lho dissessem, num sofazinho, a um canto, perto da janela.
— O seu escritório onde é? — perguntou logo. — E onde estão os inquilinos? Você recebe inquilinos, não é?
Gánia enrubesceu terrivelmente e ia tartamudear qualquer resposta quando ela prosseguiu, não lhe dando tempo:
— Em que lugar você os aloja? Você nem ao menos um escritório tem? Dá lucro? — perguntou, já agora se dirigindo a Nina Aleksándrovna.
— Só dá incômodos — respondeu esta. — Naturalmente sempre compensa um pouco, mas só aceitamos justamente aqueles que...
Novamente Nastássia Filíppovna deixava de prestar atenção; fitava Gánia, sorria; até que exclamou:
— Mas com que cara você está! Meu Deus! Você está engraçadíssimo, agora!
A sua risada ressoou por diversos segundos e o rosto de Gánia se contraiu terrivelmente. A sua estupefação, o abatimento cômico que o atarantava desaparecera; mas estava agora tão pavorosamente pálido, com os lábios tão crispados, e tão solenemente calado, com um olhar mau e duro fitando a sua visitante, que a fez rir ainda mais.
Havia um outro observador que mal se tinha restabelecido do espanto que Nastássia Filíppovna lhe produzira; mas, apesar de estarrecido no mesmo lugar, em plena sala, pôde notar o pavor e a transformação de Gánia. Esse observador era o príncipe. Instintivamente, mesmo intimidado como estava, deu um passo à frente e disse a Gánia:
— Beba um pouco de água. Não fique assim.
Dissera isso compelido pelas circunstâncias, sem nenhuma intenção ou motivo segundo. Mas o efeito dessas palavras em Gánia foi formidável. Todo o seu ódio se voltou para o príncipe. Segurou-o pelo ombro e o encarou, calado, com ódio e desejo de vingança, mas impossibilitado de lhe dizer qualquer desaforo. Isso causou uma emoção geral. Nina Aleksándrovna soltou uma exclamação curta e fraca, enquanto Ptítsin dava uns passos à frente. Kólia e Ferdichtchénko, que tinham chegado à porta, estacaram, atônitos. Apenas Vária, com aquele seu feitio teimoso, olhava em silêncio, provocadoramente, de propósito, em pé, como estava, ao lado da mãe, os braços cruzados sobre o peito.
Contendo-se, Gánia sorriu nervosamente. E tendo recuperado quase a naturalidade, disse:
— Ora essa. O senhor é médico, príncipe? Pois não é que me surpreendeu? Nastássia Filíppovna, posso apresentá-lo? Trata-se duma rara personalidade, embora eu só o conheça desta manhã para cá.
Nastássia Filíppovna olhou espantada para o príncipe.
— Príncipe? Ele é príncipe? Ora, imaginem que eu o tomei ainda agora por um criado, e até lhe disse que viesse participar a minha chegada. Ah! ah! ah!
— Não houve ofensa. Não houve ofensa! — entrou dizendo Ferdichtchénko, rapidamente se dirigindo para ela, aproveitando enquanto riam. — Não houve ofensa. Se non è vero...
— E eu que estive quase a descompô-lo, príncipe! Perdoe-me, por favor. Ferdichtchénko, que esteve você fazendo para chegar aqui a tal hora? Não contava de modo algum encontrá-lo aqui. Príncipe o quê? Míchkin? — perguntava ela a Gánia que, com o príncipe ainda preso pelo ombro, forcejava por apresentá-lo.
— Nosso inquilino — esclareceu Gánia.
Era notório que o estava apresentando e quase o empurrando para cima de Nastássia Filíppovna como uma curiosidade, como um meio de fugir à situação falsa em que estava colocado. E ao príncipe foi fácil colher no ar a palavra “idiota” pronunciada às suas costas, provavelmente por Ferdichtchénko, à guisa de informação complementar para Nastássia Filíppovna.
— Diga-me por que não me corrigiu ainda agora quando cometi a seu respeito tão tremendo equívoco? — perguntou Nastássia Filíppovna, observando-o da cabeça aos pés, sem cerimônia alguma. E ficou à espera da resposta, impacientemente, certa de que seria um despautério qualquer e tão estúpido que os faria rirem.
— Porque fiquei surpreendido! Dei convosco tão inesperadamente! — balbuciou o príncipe.
— Como soube que era eu? Onde me viu antes? Mas, espere um pouco. Acho que realmente já o vi em qualquer parte... Mas diga por que foi, afinal, que ficou tão assombrado? Que é que há em mim, de mais, para causar espanto?
— Agora é que eu quero ver... — insistiu Ferdichtchénko, com um risinho afetado. — Ó Deus, as cousas que eu diria em resposta a isso! Vá, príncipe, não nos faça pensar que é um rematado paspalhão!
— No seu lugar, eu também diria o mesmo — observou o príncipe rindo para Ferdichtchénko. — É que hoje o vosso retrato me deixou muito impressionado. — Dirigia-se finalmente a Nastássia Filíppovna. — Ainda por cima, acontece que estive falando com os Epantchín a vosso respeito. E, o que é mais, já esta manhã, no trem, antes mesmo de chegar a Petersburgo, Parfión Rogójin já me falara sobre vós... E eis que, ainda agora ao abrir a porta, juro que estava pensando em vós, não sei por quê... E não é que subitamente...
— E como reconheceu que era eu?
— Pela fotografia e...
— E o quê?
— Correspondeis exatamente ao que eu imaginara... Foi como se já vos tivesse visto também, não sei onde. Esta a sensação que tive.
— Onde? Onde?
— Senti como se tivesse visto os vossos olhos em alguma parte... Mas isso é impossível, é bobagem minha... Estive sempre ausente daqui. Talvez, em sonho!...
— Bravo, príncipe! — gritou Ferdichtchénko. — Agora retiro o meu se non è vero. — Arrependendo-se, porém, do elogio, acrescentou: — Mas tudo isso não passa de inocência...
As poucas frases pronunciadas pelo príncipe foram em voz perturbada, sendo obrigado a parar para tomar fôlego. A menor cousa lhe causava emoção. Nastássia Filíppovna olhou-o com interesse e já sem rir.
Nisto uma outra voz ruidosa ribombou por detrás do grupo, que se tinha fechado em volta do príncipe e de Nastássia Filíppovna, parecendo abrir uma passagem fendendo o grupo ao meio. E, diante de Nastássia Filíppovna, surgiu o chefe da casa, o general Ívolguin em pessoa. Vestia sobrecasaca e a camisa tinha um peitilho postiço alvíssimo. A bigodeira acabara de ser pintada.
Isso, para Gánia, era mais que insuportável.
De que lhe valera, ambicioso e frívolo, além de hipersensitivo em grau mórbido, ter procurado durante aqueles dois últimos meses, a todo custo, alcançar um meio de vida mais apresentável e distinto? Faltando-lhe experiência, embarafustara errado pelo caminho que se propusera. Era o déspota do lar, tendo assumido em desespero de causa uma atitude de completo cinismo. Mas não pudera manter essa posição diante de Nastássia Filíppovna, que o deixara propositadamente na incerteza até o derradeiro momento. O “pobretão impaciente”, como depois viera a saber que ela o chamava, tinha jurado por quantas juras sabia que a faria pagar amargamente por isso tudo: mas ao mesmo tempo, como uma criança, sonhara reconciliar todos esses equívocos. E por cúmulo, agora, tinha que beber mais esta taça amarga, e bem nesta hora, ainda por cima. Mais uma tortura não prevista, a mais terrível de todas para um homem fútil: a agonia de ter que corar diante dos parentes e por causa deles, e em sua própria casa. Este o cruel e último quinhão. E pelo seu espírito acima subiu esta pergunta íntima: “A recompensa valerá tudo isto?”
Estava justamente acontecendo, nesse momento, o que durante dois meses fora o seu pesadelo, que o enregelava de terror e abrasava de vergonha. Afinal estavam aí face a face os dois: o pai e ela! Quantas vezes não o atormentara a visão imaginada do velho no dia do casamento! Mas nunca conseguira compor definitivamente esse quadro, apressando-se em apagá-lo do espírito. Quem sabe se não estava exagerando a sua desventura para além de todas as proporções? Mas é sempre assim com essa gente fútil. Não se fartara naqueles dois meses de considerar dum modo global a questão, tendo decidido, custasse o que custasse, afastar o pai, no mínimo, momentaneamente, mandando-o até, se necessário fosse, para fora de Petersburgo, com ou sem anuência materna.
Dez minutos antes, quando Nastássia Filíppovna entrou, ele ficara tão zonzo e embaraçado que nem lhe ocorreu a hipótese de tamanha possibilidade, isto é, de Ardalión Aleksándrovitch aparecer em cena. E não procurara um meio de impedir isso. E eis que, diante de todos, solenemente vestido e garboso para a ocasião, o general irrompe na sua sobrecasaca, justamente na hora em que Nastássia Filíppovna estava “apenas procurando um motivo para cobri-lo de ridículo, mais à sua família”. (Gánia estava mais do que convencido disso.) E essa visita, que intento tivera, se não esse? Viera para fazer amizade com a mãe e a irmã, ou para insultá-los a domicílio? E pela atitude de ambas as partes não restavam dúvidas a respeito. Sua mãe e sua irmã estavam sentadas à parte, muito envergonhadas, ao passo que ela, Nastássia Filíppovna, parecia esquecer intencionalmente que elas estavam ali naquela mesma sala, com ela. E se assim se comportava era lógico que tinha um intento com isso.
Ferdichtchénko logo se assenhoreou do general, manobrando-o.
— Ardalión Aleksándrovitch Ívolguin — disse o general, curvando-se e sorrindo, com dignidade. — Um antigo soldado hoje na desgraça, e pai duma família que se sente feliz ante a perspectiva de incluir uma tão encantadora...
Mas não pôde concluir, porque Ferdichtchénko, instalando às pressas uma cadeira atrás dele, pesadamente o abateu sobre ela; o general inconscientemente anuiu porque uma cousa dessas logo depois do jantar o comovia tanto que as pernas lhe fraquejavam. Ou melhor, caiu sobre a cadeira. Mas isso não o desconcertou. Recuperou as maneiras, encarou Nastássia Filíppovna com um sorriso complacente, deliberada e galantemente ergueu os dedos dela até os seus lábios. Tentar desconcertar o general era empresa difícil. Ele sabia perfeitamente que ainda tinha um exterior bem apresentável, e se não fosse certo desmazelo poderia passar... Movera-se no passado sempre em boas rodas sociais, das quais acabara sendo excluído havia apenas uns dois ou três anos. Dera daí para cá em se abandonar a certas fraquezas, sem peias. Apesar disso, porém, ostentava uns restos de maneiras agradáveis bem espontâneas.
O aparecimento do general, de quem já ouvira tanto falar, parece que deleitou Nastássia Filíppovna. E ei-lo que recomeçava:
— Segundo me consta, aqui o meu filho...
— Sim, o seu filho... Mas convenhamos que o pai não deixa também de ainda ser bonitão!... Por que nunca me foi ver? Fechou-se assim, voluntariamente, ou isso foi obra de seu filho? A quem comprometeria o senhor, indo ver-me?
— Os filhos do século XIX e os seus respectivos pais... — explicou o general.
— Nastássia Filíppovna, desculpe por um instantinho Ardalión Aleksándrovitch, pois alguém o está procurando... — disse Nina Aleksándrovna em voz alta.
— Desculpá-lo em quê? Já me tinham falado tanto dele! Almejava tanto conhecê-lo. Que faz ele, presentemente? Reformou-se? Ora, não vá me deixar, general! Fique, não vá embora!
— Eu lhe prometo que ele voltará, ou irá vê-la. Mas agora ele precisa descansar.
— Ardalión Aleksándrovitch, oh... estão dizendo que o senhor precisa descansar — reagiu Nastássia Filíppovna, fazendo ar de decepção e de amuo, como uma criança a quem privam do brinquedo.
O general esmerou-se em tornar a sua posição ainda mais néscia do que antes. E pondo a mão sobre o coração, solenemente, desaprovou a ordem da esposa, dizendo:
— Oh! Querida, querida!
— Mamãe, a senhora não se retira? — disse Vária, de modo significativo, perto da porta para onde se arredara.
— Não, Vária, devo permanecer aqui, até ao fim...
Nastássia Filíppovna ouviu muito bem tanto a pergunta como a negativa, mas isso parece que aumentou o seu entusiasmo. Fez mais perguntas ao general, com muita vivacidade. Daí a cinco minutos o general, em estado triunfante de espírito, provocava risadas em certa parte do grupo.
Kólia puxou o príncipe pela aba do casaco.
— Saia com ele, de qualquer jeito. Isto não pode continuar. É um favor que lhe suplico. — Havia lágrimas de indignação nos olhos do pobre rapaz. — Oh! Este maldito Gánia!
Enquanto isso, em resposta a dada pergunta de Nastássia Filíppovna, o general explicou:
— Tive a fortuna de ser, deveras, um amigo íntimo de Iván Fiódorovitch Epantchín. Eu, ele e o falecido príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin, cujo filho tive a fortuna de reabraçar hoje depois de vinte anos de separação, éramos, os três, inseparáveis; formávamos, por assim dizer, uma bela cavalgada, como os três mosqueteiros, Atos, Portos e Aramis. Mas, um está na sepultura, ai dele! derrubado pela calúnia e por uma bala. O segundo está diante da senhora, lutando ainda e sempre contra calúnias e balas.
— Que balas?
— As que estão aqui, no meu peito. Recebi-as debaixo das muralhas de Kars, e quando o tempo muda me dou conta delas. Malgrado isso, no mais que a mim respeita, vivo como um filósofo: passeio, jogo damas no meu café como um burguês comanditado, e leio o Indépendance. Mas com Epantchín, o terceiro, o nosso Portos, não tenho mais nada a ver, depois daquele escândalo, há dois anos, na estrada de ferro, com um cãozinho lulu.
— Um cãozinho? Como assim? — perguntou Nastássia Filíppovna com uma curiosidade faiscante. — Com um cãozinho de colo? Vejamos. No estrada de ferro, ainda por cima!... — insistiu, fechando um pouco os olhos, como quando alguém quer recordar alguma cousa.
— Foi um caso idiota. Nem merece a pena contar. E tudo por causa da governante da princesa Bielokónskaia, mistress Schmidt. Nem merece a pena repetir.
— O senhor tem que me contar! — insistia alegremente Nastássia Filíppovna.
Ferdichtchénko observou:
— O senhor também nunca me contou. C’est du nouveau.
— Ardalión Aleksándrovitch! — suplicou outra vez Nina Aleksándrovna.
E Kólia exclamou:
— Pai, lá no corredor querem falar urgentemente com o senhor!
— Trata-se duma história estúpida e pode ser contada em duas palavras — decidiu-se o general, com muita complacência.
— Dois anos atrás, sim, aproximadamente há dois anos, logo depois da inauguração da estrada de ferro de X... estava eu já nesse tempo em trajes civis, mas ainda muito ocupado com um caso importante que se prendia à minha promoção antes da reforma. Tomei um bilhete de primeira classe, entrei, sentei-me, pus-me a fumar. Ou melhor, já entrei fumando; tinha acendido o meu charuto lá fora. Fumar nem era proibido nem permitido. Tolerava-se, pode-se dizer assim. Naturalmente depende da pessoa que fuma. De mais a mais a janela estava aberta. Um pouco antes do apito, duas senhoras subiram, com um cachorro pequenino assim, se sentaram no mesmo compartimento, diante de mim. Entraram atrasadas. Uma delas estava vestida de maneira extravagante, em azul-claro. A outra, mais sobriamente, de seda preta, com uma capa. Que eram bonitas, não havia dúvida; mas tinham um ar desdenhoso, e falavam inglês. Fiz que não reparei e continuei a fumar. Hesitei, mas estava ao lado da janela e como a janela estava aberta, prossegui. O cão estava sobre os joelhos da dama de azul-claro. Era um bichinho pequenininho, assim como o meu punho fechado, todo preto, com manchas brancas, uma perfeita raridade! Tinha uma coleira de prata, com uma inscrição. E logo percebi que as damas ficaram aborrecidas com o meu charuto, é lógico. Uma delas se pôs a fitar-me com o seu lornhão de tartaruga. Fiquei impassível; e elas... nem bico! Se me dissessem alguma causa, me advertissem, me pedissem, para que é que a gente tem língua, afinal de contas? Mas estavam caladas. Subitamente, sem advertência, dou-lhe a minha palavra de honra, sem a menor advertência, como se inopinadamente tivesse ficado maluca, a tal de azul desmaiado me arrancou o charuto da boca e o atirou pela janela. O trem ia desembestado, a toda. Fitei-a, perplexo. Uma mulher selvagem, sim, positivamente uma mulher inteiramente do tipo selvagem, muito embora de maneiras, alta, bonitona, com faces rosadas, aliás rosadas até demais. Os olhos dela fulguravam, me hipnotizando. Sem proferir uma palavra, e com extraordinária cortesia, a mais perfeita, a mais refinada cortesia, eu, delicadamente, segurei o cachorrinho pela coleira, com dois dedos, assim, e o atirei pela janela afora, em busca... do meu charuto!... Ele apenas soltou um ganido! O trem ia por aí afora a toda velocidade.
— O senhor é um monstro! — ria-se, a perder, Nastássia Filíppovna, batendo as mãos, como uma criança.
— Bravo! Bravo! — aplaudia Ferdichtchénko.
Ptítsin, que quando o general apareceu na sala também ficara sem jeito, agora também ria. E riu o próprio Kólia que gritou ainda: — Bravo!
— E eu tinha direito a fazer o que fiz! Perfeitamente! — explicou o general, todo entusiasmado, em triunfo. — Se os charutos são proibidos num carro de primeira classe, quanto mais os cachorros!
— Bravo, pai, esplêndido! Eu faria a mesma cousa! — exclamou Kólia, jovialmente.
Mas Nastássia Filíppovna perguntou, pressurosa:
— E a dama? Que fez ela?
— A dama? A de azul? É aí que a coisa descamba para o desagradável — redarguiu o general, franzindo as sobrancelhas. — Sem proferir uma só palavra e sem me avisar, me esbofeteou. Uma mulher selvagem, dum tipo inteiramente selvagem.
— E o senhor?
O general fechou os olhos, franziu ainda mais as sobrancelhas, encolheu os ombros, atirou as mãos para os lados, fez uma pausa, depois, de súbito, confessou:
— Perdi a cabeça.
— Maltratou-a? Deu-lhe uma lição?
— Por honra minha, não o fiz. O que se seguiu foi uma cena escandalosa. Maltratá-la, porém, não o fiz. Simplesmente brandi o meu braço, o necessário para afastá-la... Mas quis o demônio que a tal de azul-claro fosse a governante inglesa, ou uma espécie quase de amiga da família Bielokónskii, sendo que a de preto, conforme depois vim a saber, era a infanta mais velha das Bielokónskii, uma donzela já velhusca, duns 35 anos. Ora, a senhora sabe em que termos a generala Epantchiná está ligada à família Bielokónskii. Todas as seis princesinhas tiveram chiliques, choramingaram, guardaram luto pelo cãozinho, a governante inglesa deu gritinhos! Um completo manicômio. Naturalmente que eu tinha que me desculpar, manifestar o meu arrependimento. Escrevi uma carta. Recusaram receber-me, a mim e à carta. E a Epantchiná me descompôs, vedou-me a entrada em sua casa, rompeu comigo.
— Mas, permita uma observação: como é que o senhor explica isto? — perguntou Nastássia Filíppovna, atrapalhando-o. — Há cinco ou seis dias li, no Indépendance — sempre leio o Indépendance — uma anedota exatamente igual à sua história. Precisamente a mesma cousa! Só que tem que se passou entre um francês e uma inglês a, numa estrada de ferro renana. O charuto foi arrancado da mesma maneira, o cachorro foi atirado pela janela como o seu. E acabou do mesmo jeito. E até o vestido também era azul!
O sangue subiu à cara do general. Kólia também enrubesceu e tapou o rosto com as mãos. Ptítsin virou-se e saiu precipitadamente. Ferdichtchénko era o único que ainda ria. Quanto a Gánia, nem é preciso falar. Todo o tempo estivera de pé, numa agonia indizível.
Mas o general afiançou:
— Pois lhe asseguro que a mesma cousa se passou comigo.
— De fato, papai teve uma questão com mistress Schmidt, governante das Bielokónskii — asseverou Kólia — estou me lembrando agora.
Mas a dama, sem piedade, persistiu:
— Como? Exatamente a mesma cousa? A mesma história nas extremidades opostas da Europa, e iguais, minúcia por minúcia, até na cor do vestido azul-pálido? Vou lhe mandar o Indépendance Belge.
— Mas note que o incidente que se passou comigo foi há dois anos — teimou ainda o general.
— Ah! Então, está bem! — E Nastássia Filíppovna ria como se estivesse com um ataque histérico.
— Papai, estou lhe pedindo; ouça, vamos até lá dentro, preciso lhe dar uma palavrinha — disse Gánia, com voz entrecortada e com certa acrimônia, puxando o pai maneirosamente pelo ombro.
Havia um lampejo de infinito ódio em seus olhos.
Neste momento a campainha da porta da frente tocou de modo violento. E de maneira tal que devia até ter arrebentado. Anunciava uma visita excepcional. Kólia correu a abrir a porta.
10.
De repente um vozerio de muita gente na entrada. Os que estavam na sala de visitas tiveram a impressão de que muitas pessoas tinham subido e que outras ainda estavam na escada. Uma porção de vozes falando e exclamando ao mesmo tempo; e isso tanto em cima como lá embaixo; a porta do patamar evidentemente tinha sido escancarada. Que visitas seriam essas? E todos, na sala, se entreolharam. Gánia saiu apressadamente em direção à sala de jantar, onde diversos dos recém-chegados já se aglomeravam.
E nisto gritou uma voz:
— Lá vem ele, o Judas! Como vai você, Gánia, seu tratante?
Donde estava, o príncipe ouviu e reconheceu de quem era essa voz. Uma outra voz prorrompeu:
— Cá está ele! Cá está ele em pessoa!
O príncipe não teve a menor dúvida: a primeira voz era de Rogójin e a segunda era de Liébediev.
Gánia estacou, petrificado, olhando para eles em silêncio; e apesar de parado na porta entre um cômodo e outro não conseguiu embargar a passagem de umas dez ou doze pessoas que acompanhavam Parfión Rogójin rumo à sala de jantar. Era um bando misturadíssimo, inconcebível, de gente ordinária. A maioria entrou conforme chegara, ainda com seus sobretudos e peles. Nenhum deles estava propriamente bêbedo, mas vinham todos fazendo algazarra. Só mesmo assim em grupo é que poderiam ter a audácia de entrar, o que fizeram em bolo compacto. O próprio Rogójin conteve seu ímpeto à frente dos comparsas, malgrado seu ar resoluto. O rosto sombrio e façanhudo patenteava seu alvoroço. Depois de Liébediev apareceu Zaliójev, que arremessara a peliça sobre um móvel da saleta de entrada e ostentava sua decisão, assim com aquele cabelo revolto, e uma coragem de espalha-brasas. Seguiam-no outros dois indivíduos com o mesmo feitio, parecendo comerciantes, um homem com um capotão militar e o outro, gorducho, que entrou às gargalhadas. Depois um hércules espadaúdo, sombrio e silencioso, decerto porque confiava nos próprios punhos. Entrou também um estudante de Medicina, com um polaco mirrado que aderira ao bloco na rua, momentos antes. Duas mulheres quaisquer enfiaram os focinhos na porta do sobrado, mas não se aventuraram a entrar, mesmo porque Kólia lhes bateu com a porta nas fuças, correndo o ferrolho depois.
— Como vai a vidinha, Gánia? Hein, seu maroto?! Pela certa não esperava por Parfión Rogójin, hein? — tornou a falar Rogójin adiantando-se na direção da sala de visitas sem tirar os olhos de cima de Gánia.
Mas, de súbito, deu com Nastássia Filíppovna lá dentro, sentada de frente para a sala de jantar. Ah! Nem por sonhos esperava dar com ela naquela casa; a prova foi que, quando a viu, ficou tão atarantado que seu rosto se tornou lívido a ponto de os lábios tomarem uma coloração azul.
— Com que então é verdade? — disse isso bem devagar, inteiramente desconcertado; e até perdeu o modo insofrido com que entrara. — Então a cousa está liquidada mesmo?... Hã... Você vai me pagar, e bem caro — rosnou, encarando Gánia com uma fúria repentina e incrível. — Hã, hã, vamos ver!
Faltou-lhe o ar, quase não pôde dizer as últimas palavras. Como um autômato penetrou na sala de visitas, logo se detendo, porém, ao dar com Nina Aleksándrovna e Vária. Emoção e embaraço o sustiveram. Atrás dele entrou Liébediev, bêbedo que nem se aguentava, e ainda assim o seguindo como sombra. Também transpuseram o portal o estudante, o brutamontes dos punhos e Zaliójev, este então fazendo mesuras a torto e a direito; por último se insinuou o homenzinho gorducho. A presença de senhoras os constrangeu; mas tal respeito momentâneo não significava grande garantia; bastava que os quisessem expulsar, que alguém levantasse a voz por qualquer motivo, para que logo aproveitassem para armar um charivari.
— Olá! O senhor também aqui, príncipe? — disse Rogójin ainda se espantando mais ao deparar com Míchkin. — E sempre com as polainas, hein? — Respirou fundo, esqueceu-se logo do príncipe e tornou a olhar para Nastássia Filíppovna, dirigindo-se para ela como atraído por um ímã.
Ela também estava olhando com inquieta curiosidade para aquela malta de invasores. Finalmente Gánia recuperou a presença de espírito.
— Permitam que lhes pergunte que significa isto? — disse com voz embargada, encarando com rosto severo os recém-chegados e se dirigindo principalmente a Rogójin. — Isto aqui não é uma cocheira, senhores. Minha mãe e minha irmã moram aqui.
— Estamos vendo perfeitamente que sua mãe e sua irmã estão aqui — respondeu Rogójin, por entre os dentes.
Liébediev sentiu que era chegada a hora de “colaborar”.
— Sim, claramente se vê que sua mãe e sua irmã estão aqui!
E o homenzarrão dos punhos compreendeu que a situação se ia azedando e se pôs a engrolar qualquer cousa, ele também.
— Mas, palavra de honra! — explodiu Gánia, erguendo a voz, sem se moderar. — Primeiramente peço a todos que se dirijam para a sala de jantar e que depois, lá, educadamente me digam...
— Imaginem, ele não sabe!... — goelou Rogójin, rilhando os dentes, zangado, sem arredar passo. — Diga-me uma cousa, você conhece Rogójin?
— Certamente que já o encontrei nalgum lugar, mas...
— Nalgum lugar, hein? Há três meses, perdi, para você, no jogo, duzentos rublos que eram de meu pai. Ele até morreu sem descobrir isso. Você me distraía e Kniff me furtava!... E não está me reconhecendo mais, hein? Ptítsin assistiu a isso. Quer você saber que espécie de homem você é? Se eu agora lhe mostrar 3 rublos, aqui do meu bolso, você engatinhará até a ilha Vassílievskii, para os ganhar... E não pense que vim apenas com estas botas! Não! Arranjei uma bolada de dinheiro, irmão, posso comprar você inteiro com toda a tua gente. Posso arrematar você; se eu quiser, arremato tudo! — Rogójin excitava-se cada vez mais e a sua bebedeira se ia exteriorizando. — Vê lá, Nastássia Filíppovna, não me enxotes! Dize-me só uma coisa: vais te casar com ele, ou não?
Foi uma pergunta feita em desespero, como apelando para uma divindade, mas com a coragem dum homem condenado à morte e que, portanto, nada tem a perder. E esperava ao resposta, com mortal angústia.
Com altivez e expressão desdenhosa, Nastássia Filíppovna o examinou de alto a baixo; depois olhou de esguelha para Nina Aleksándrovna e Vária; daí fitou Gánia, e disse, mudando de tom:
— Certamente que não. Mas que foi que lhe aconteceu? E que lhe deu na cabeça para fazer uma pergunta destas? — Falou devagar, de modo grave, e, pelo menos aparentemente, com certa surpresa.
— Não? Não! — exclamou Rogójin quase louco de júbilo. — Então não vais... Mas como é que me disseram? Hã? Nastássia Filíppovna, contaram-me que estavas comprometida com ele! Como se fosse possível! Bem lhes disse eu que era impossível! Se eu quiser, compro-o por 100 rublos. Se eu lhe desse mil, 3 mil rublos para desistir, ele fugiria no próprio dia do casamento, deixando a noiva para mim. É ou não é verdade, Gánia, seu canalha? Você agarraria os 3 mil rublos, não é mesmo? Aqui está o dinheiro! Aqui o tem! Eu trouxe a bolada para facilitar a sua assinatura numa renúncia categórica. Eu disse que o compraria, e o comprarei!
— Saia daqui, seu bêbedo! — gritou Gánia que, depois de lívido, ficou vermelho. A esta explosão se seguiu uma outra, geral, pois todo o bando estava à espera apenas do sinal para a briga. Mas nisto, com solicitude, sibilantemente, Liébediev ciciou qualquer cousa ao ouvido de Rogójin.
— Tens razão, funcionário — respondeu Rogójin — tens razão, alma de bêbedo! Aqui vai, Nastássia Filíppovna — berrou, fitando-a, como um sujeito em delírio que da extrema timidez passa à maior audácia — aqui vai o dinheiro. Dezoito mil rublos! (E atirou sobre a mesa, diante dela, um maço de notas embrulhadas em papel branco amarrado com barbante.) Aqui vai! E ainda arranjei mais, que está para chegar.
Não se aventurou a dizer o que queria. Mas, arcado para ele, Liébediev sussurrava com um feitio atônito:
— Não, não, não!...
Adivinhava-se que estava horrorizado ante a grandeza da soma, incitando o outro a tentar a sorte com uma quantia menor.
— Não, irmão, você está doido! Não sabe como tem que ser o comportamento aqui. Pensa que sou maluco como você? — Mas, dando com os olhos chamejantes de Nastássia Filíppovna, Rogójin parou, sobressaltado e se dominou. — Ai, ai, ai! Já fiz embrulhada; pra que o fui ouvir, Liébediev! — exclamou com certo vexame.
Mas, inesperadamente, Nastássia Filíppovna deu uma risada, olhando para a cara atônita de Rogójin.
— Dezoito mil rublos para mim? Não passarás nunca dum mujique! — acrescentou com uma familiaridade insolente, levantando-se do sofá, como para se ir embora.
Gánia assistira à cena com o coração soterrado.
— Então — gritou Rogójin — 40 mil! Quarenta, e não 18! Ptítsin e Biskúp prometeram arranjar-me, até às sete horas, 40 mil! Dinheiro certo, ali!
O escândalo agravava-se, mas Nastássia Filíppovna, já de pé, continuava a rir, prolongando a cena de propósito. Nina Aleksándrovna e Vária também se tinham levantado e esperavam, em silencioso pasmo, até ver onde aquilo iria parar. Os olhos de Vária faiscavam e o efeito de tudo isso em Nina Aleksándrovna era pavorosamente cruel; tremia e estava a ponto de desfalecer.
— Então, se é assim, 100. Dar-te-ei 100 mil rublos, hoje. Ptítsin, empresta-me isso, já está valendo, está feito!
— Você está maluco! — balbuciou, sem se fazer esperar, Ptítsin que se encaminhou para ele e o segurou. — Você está bêbedo! Olhe que chamam a polícia! Onde é que você pensa que está?
— Está bêbedo e quer se mostrar! — disse Nastássia Filíppovna, zombando dele.
— Não é ostentação, não! Arranjarei o dinheiro antes de anoitecer! Ptítsin, seu agiota, empreste-me isso, vamos! Peça os juros que quiser! Arranje-me 100 mil rublos para esta noite! Quero mostrar que não vacilo diante de nada. — A excitação de Rogójin não tinha limites.
Foi então que, profundamente agitado, Ardalión Aleksándrovitch gritou com voz ameaçadora:
— Qual é o sentido disto? Vamos, diga! — e investia sobre Rogójin.
A subitaneidade da explosão do velho, até então em completo silêncio, foi muito cômica. Houve gargalhadas.
— Olá... Quem temos nós aqui! — riu Rogójin. — Venha cá, seu barbaças, vamos embebedá-lo!
— Isso é nauseante — proferiu Kólia, chorando de vergonha.
— Não há ninguém que expulse esta mulher desavergonhada daqui para fora? — exclamou Vária, tremendo de pejo.
E Nastássia Filíppovna respondeu com uma alegria onde havia desprezo:
— Chamam-me de mulher desavergonhada! A mim que vim, pressurosa, convidá-los a todos para a minha recepção desta noite! Eis como sua irmã me trata, Gavríl Ardaliónovitch!
No primeiro instante Gánia ficou aniquilado ante a explosão da irmã, mas quando viu que Nastássia Filíppovna ia embora, investiu desatinado para Vária e a agarrou pelo braço, com fúria.
— Veja o que você foi fazer! — Encarava-a como se a quisesse fulminar ali mesmo. Estava tão fora de si que não sabia o que estava fazendo.
— Que foi que eu fiz? Ora essa! E para onde me quer arrastar? Será para pedir perdão a ela por ter insultado mamãe e ter vindo aqui desgraçar nossa família, criatura vil!? — Vária gritou de novo, com ar impávido, desafiando o irmão. Ficaram assim, um encarando o outro. Gánia mantinha-a presa pelo braço; ela experimentou livrar-se duas vezes, até que, de repente, perdendo toda a compostura, cuspiu na cara do irmão.
— Que moça! Bravos! — exclamou Nastássia Filíppovna. — Ptítsin, dou-lhe os meus parabéns!
Gánia viu tudo dançando diante dos seus olhos. E, completamente esquecido de si, arremeteu contra a irmã e teria acertado no rosto dela se uma outra mão estranha não agarrasse a sua. O príncipe estava entre ele e Vária.
— Não faça isso! Pare! — gritou, insistentemente; e era como se a sua violenta emoção sacudisse tudo.
— Atravessar-se-á você sempre no meu caminho? — berrou-lhe Gánia. Soltou o braço de Vária e, louco de raiva, recuando, deu uma bofetada em Míchkin, com a mão que tinha ficado livre.
— Ah! — gritou Kólia, juntando as mãos. — Meu Deus!
Exclamações foram ouvidas de todos os lados. O príncipe ficou sem cor. Olhou Gánia bem de frente, com olhos de estranhíssima censura. Quis proferir qualquer cousa, mas os lábios tremeram e ficaram contraídos numa espécie de sorriso inconsistente. Por fim pôde dizer, brandamente:
— Bem, em mim pode; mas nela, não consentirei.
Não se podendo dominar mais, saiu de perto de Gánia, foi para um canto, com o rosto escondido para a parede; e pouco depois balbuciou com voz entrecortada:
— Oh! Como o senhor se deve envergonhar do que fez!
Gánia ficou, de fato, totalmente esmagado. Kólia correu para o príncipe, abraçou-o e o beijou. Seguiram-no Vária, Ptítsin, Nina Aleksándrovna e o próprio Rogójin, ficando todos, inclusive o general, aglomerados em volta do príncipe.
— Não se incomodem! Não se incomodem! — murmurava Míchkin, em todas as direções, ainda com o mesmo sorriso forçado.
— Ele se arrependerá — garantiu Rogójin. — Você não se envergonha, Gánia, de ter insultado um... cordeiro... destes? (Não conseguiu achar outra palavra.) príncipe querido, deixe-os, despreze-os e venha comigo. Hei de mostrar-lhe que amigo Rogójin pode vir a ser.
Nastássia Filíppovna também ficara estupefata com a ação de Gánia e a resposta do príncipe. A sua face, de hábito pálida e melancólica, que parecia até ali só se ter animado num papel de comediante, estava agora indiscutivelmente tomada por um sentimento novo. Todavia persistiu em esconder isso, conservando uma expressão sarcástica.
— Com certeza já vi o seu rosto, não me lembro onde — falava agora, de modo sério, subitamente se recordando da sua primeira pergunta.
— Não estais envergonhada? Seguramente não sois o que pretendeis ser agora! Não é possível — exclamava o príncipe com uma censura profunda e sincera. Nastássia Filíppovna ficou perplexa, mas sorriu, para encobrir qualquer cousa. Olhou para Gánia, um tanto confusa, e se retirou da sala de estar; mas antes de chegar à porta voltou, e, com passo rápido, se aproximou de Nina Aleksándrovna; tomou-lhe a mão erguendo-a até os lábios.
— Efetivamente não sou o que pareço ser. Ele tem razão — sussurrou, enrubescendo fortemente. Voltou-se de todo, saiu tão depressa que ninguém percebeu para que foi que ela reentrara; tudo quanto se notou foi que dissera qualquer cousa, muito baixo, a Nina Aleksándrovna, e que pareceu lhe ter beijado a mão. Só Vária, além de ver, também ouviu e a acompanhou com o olhar, assombrada, até vê-la sair. Gánia refez-se e saiu para ver Nastássia Filíppovna retirar-se. Só a alcançou escada abaixo.
— Não me acompanhe. Até logo. Venha esta noite, está ouvindo? Sem falta.
Ele voltou abstraído, preocupado. Uma cruel incerteza pesava sobre o seu coração. E mais amarga do que até então. A figura do príncipe também ainda o obcecava... E estava tão absorto que nem percebeu o bando de Rogójin passar ao seu lado, já no corredor, preparando-se para descer. Discutiam entre si, estabanadamente. Rogójin caminhava ao lado de Ptítsin, conversando sobre negócio urgente. Ainda assim ao passar por Gánia lhe gritou:
— Você perdeu a partida!
E enquanto o outro descia, Gánia o olhava, inquieto.
11.
O príncipe saiu da sala de visitas e se encerrou no seu quarto. Kólia correu imediatamente para tentar acalmá-lo. O pobre garoto não se dispunha a deixá-lo.
— O senhor fez bem de ter vindo embora. Agora aquilo lá vai piorar. E todos os dias é isto, aqui em casa. Tudo só por causa de Nastássia Filíppovna.
— Há tantas fontes de tribulação em sua família, Kólia! — observou o príncipe.
— Há, sim. Não se pode negar. E é tudo culpa nossa. Mas quer saber duma coisa? Tenho um amigo que ainda é mais desgraçado. O senhor gostaria de conhecê-lo?
— Muitíssimo. É um camarada seu?
— Sim, quase como um camarada. Depois lhe contarei... Mas como Nastássia Filíppovna é linda, não acha? Nunca a tinha visto antes, apesar de ter feito todo o possível. Fiquei deslumbrado. Se Gánia estivesse apaixonado por ela, eu lhe perdoaria tudo. Mas por que está ele contando com dinheiro? Isso é que é horrível.
— Realmente, não aprecio muito o seu irmão.
— Já percebi. Mas, como foi que o senhor pôde, depois... mas, quer saber? não tolero certas ideias. Um espinoteado qualquer, um doido, um tratante, num acesso de loucura dá uma bofetada num homem e este se desonra por toda a vida, não pode resgatar o insulto a não ser com sangue, a menos que o outro se ajoelhe e lhe peça perdão. Na minha opinião isso é absurdo e é tirania. O drama de Lérmontov, O Baile de Máscaras, é baseado nisso e o acho estúpido. Ou, explicando-me melhor, não o acho natural. É verdade que ele o escreveu na meninice.
— Gostei muito de sua irmã.
— Viu? Escarrou na cara de Gánia! Ela tem cabelo nas ventas. Se o senhor não brigou com ele, estou certo de que não foi por falta de coragem. Mas aí vem ela. É falar-se no diabo e ele logo... Eu sabia que ela viria. Tem muitos defeitos, mas que é generosa, é.
Mal entrou, Vária implicou com o irmão.
— Você não tem nada que fazer aqui. E, antes de mais nada, vá ver seu pai. Ele o estava incomodando, príncipe?
— Absolutamente. Muito pelo contrário.
— Desta vez, mana, perdeste! Por que implicas comigo? Quanto a papai, pensei que fosse sair com Rogójin. Está arrependido agora, com certeza. Ainda assim acho bom ir procurá-lo — acrescentou, saindo.
— Graças a Deus consegui tirar mamãe de lá e a obriguei a deitar-se. Acabou o barulho. Gánia está envergonhado e muito deprimido. Pudera! Que lição!... Vim para lhe agradecer, de novo, príncipe, e para lhe perguntar se já conhecia Nastássia Filíppovna, antes!
— Não conhecia, não.
— Então que foi que fez o senhor dizer, diante dela, que ela “não era assim”? E parece que o senhor acertou. Também acho que não seja. Mas não a compreendo. É evidente que teve o propósito de insultar-nos. Isso ficou mais do que claro. Eu sei que muita cousa que me falavam dela é falsa. Mas se realmente veio para nos convidar, por que se portou assim para com mamãe? Ptítsin, que a conhece bem, me declarou que dificilmente a consideraria capaz de fazer o que nos fez hoje. E Rogójin, então?! Como é que uma pessoa que se respeita pode agir desse modo na casa dos outros?... Como mamãe ficou aborrecida com o que lhe aconteceu!
— Não se incomodem com isso. — E o príncipe ajudou as palavras com um gesto.
— E não é que ela acabou obedecendo ao senhor?
— De que modo?
— O senhor lhe perguntou se não sentia vergonha e imediatamente ela mudou. Pode ficar certo que tem influência sobre ela, príncipe. — E Vária sorriu levemente.
Nisto a porta se abriu e, para grande surpresa de ambos, Gánia entrou. Não titubeou nem mesmo à vista da irmã. Ficou parado, um pouco, à entrada, depois caminhou resolutamente para o príncipe.
— Príncipe, comportei-me como um sujeito à toa. Perdoe-me, meu caro camarada. — Falava com sentimento, não encobrindo uma expressão de mágoa que havia no seu rosto.
O príncipe olhou-o espantado e não respondeu.
— Vamos, perdoe-me — insistiu Gánia, com humildade. — E se deixar, estou pronto a beijar a sua mão.
O príncipe comoveu-se e, embora não dissesse nada, abraçou Gánia. Beijaram-se, com sinceridade.
— Eu não tinha a menor ideia, a menor ideia de que o senhor pudesse ser assim — disse o príncipe, retomando o fôlego. — Julgava-o incapaz disso.
— De confessar o meu erro? E dizer-se que esta manhã o tomei por um idiota! O senhor percebe o que os outros não veem. Explicando, ou não explicando, o senhor compreende tudo...
— Aqui está uma outra pessoa a quem o senhor também devia pedir perdão — e o príncipe apontou para Vária.
— Não adianta, príncipe. São todos meus inimigos. Já fiz várias tentativas. Não há nenhum perdão sincero vindo da parte de certa gente — rematou impetuosamente Gánia, dando as costas para Vária, que inesperadamente disse alto:
— Sim, eu te perdoo.
— E serás capaz de vir comigo esta noite à casa de Nastássia Filíppovna?
— Se exiges, vou. Mas cabe a ti próprio julgar se não é fora de propósito eu ir lá, esta noite.
— Ela não é como aqui pensam. Viste que ela hoje aqui a cada vez se mostrou mais enigmática. Só usou de artifícios.
E Gánia riu dum modo vicioso.
— Eu sei perfeitamente que ela não é assim e que tudo não passa de maneirismo. Mas que pretende ela? Além disso, pensa bem, Gánia, afinal ela te toma por quem? Lá o ter beijado a mão de mamãe, não representa nada, pode ter sido uma impostura. Tu sabes que ela continuou rindo de ti, na mesma! Isso não vale 75 mil rublos, realmente não vale, tu bem sabes, mano! E é porque sei que ainda és capaz de sentimentos nobres que te falo assim. Para com isso. Acautela-te. Isso não pode acabar bem.
Estava tão excitada que, mal acabou de falar, saiu quase a correr do quarto.
— Elas todas são assim! — E Gánia sorriu. — E supõem que não conheço a vida. Ora, conheço muito mais do que elas.
E tendo dito estas palavras se sentou no sofá, dando mostras de querer prolongar a visita.
— Se sabe as cousas tão bem, por que é que escolheu um tal tormento? — aventurou-se o príncipe a comentar. — O senhor sabe que tal situação não vale 75 mil rublos.
— Não é a isso que estou me referindo — redarguiu Gánia. — Mas diga, já que falou neste assunto, o que pensa o senhor? Quero saber a sua opinião. Uma tal miséria vale ou não vale 75 mil rublos?
— Acho que não vale.
— Eu sabia que o senhor ia responder assim! E um tal casamento é vergonhoso?
— Vergonhosíssimo.
— Bem, deixe-me dizer que me vou casar com ela. Cousa, aliás, sobre a qual já não há dúvida. Cheguei a hesitar e bastante, mas agora resolvi ceder. Não fale! Eu sei o que é que o senhor quer dizer.
— Eu não ia dizer o que o senhor pensa. Surpreende-me muito a sua imensa confiança.
— Sobre quê? Qual confiança?
— Ora! A respeito do seguinte: que Nastássia Filíppovna está certa que se casará com o senhor e que isso é caso resolvido. E a seguir que, se ela se casar com o senhor, os 75 mil rublos entrarão para o seu bolso. Mas naturalmente que em tudo isso há muita cousa que eu ignoro.
Gánia chegou-se mais para perto do príncipe.
— É evidente que o senhor não sabe quase nada. Mas por que então me sujeitaria eu a tais cadeias?
— Penso que no mais das vezes muita gente se casa por causa do dinheiro, que aliás fica com a esposa.
— N...ão, conosco não será assim... Neste caso há pontos a considerar... — murmurou Gánia, com ar meditativo.
— Quanto à resposta dela, hoje, não há dúvida — acrescentou apressadamente. — Em que se baseia o senhor para julgar que ela me dará o contra?
— A esse respeito não sei senão o que vi, e o que acabou de dizer Varvára Ardaliónovna.
— Ah! Foi bobagem dela. Elas não sabem mais o que dizer. Nastássia Filíppovna estava rindo de Rogójin, dou-lhe a minha palavra. Eu vi. Tenho a certeza. Eu estive aturdido, mas agora compreendi. E quanto ao modo dela se comportar perante mamãe, papai e Vária?
— E perante o senhor, também.
— Talvez. Foi uma maneira muito feminina de se cobrar de velhas contas. Ela é pavorosamente irritável, presunçosa e egoísta. Como qualquer escriturário que acabou de ser vítima de injustiça no seu serviço. Quis demonstrar pessoalmente todo o seu desprezo por todos e... por mim. Eis a verdade, não nego... E ainda assim quer se casar comigo. O senhor não sabia a que falsos papéis pode levar a vaidade humana. Repare só e verá que ela me considera um sem-vergonha porque a aceitei, ela, amante de outro homem, e a aceito abertamente por causa de dinheiro! E desconhece que qualquer outro homem a aceitaria de um modo ainda mais desavergonhado do que o meu, acenando-lhe com ideias liberais e progressistas, fingindo acobertá-la sob problemas femininos. E ela entraria direitinho nessa armadilha como um fio numa agulha. Convenceria ele a tola vaidosa (e seria fácil) que se casasse com ela, apenas devido ao seu “nobre coração” e “desventura”, embora fosse, como no meu caso, por causa de dinheiro, tal e qual. Não me absolvem porque não finjo envergonhar-me. E é o que eu devia fazer. Mas, ela, que faz ela? Não dá no mesmo? Então que direito tem de desprezar e de armar jogos assim, comigo? Porque eu me mostro altivo e me vendo caro? Está bem, veremos!
— O senhor a amou até que isso tivesse acontecido?
— No começo a amei. Basta! Há mulheres que só servem para amantes. Não digo que tivesse sido minha amante. Se ela sempre se comportar direito, o mesmo farei eu. Mas sei que é uma insubordinada. Já prevejo tudo: largo-a logo e levo o dinheiro comigo. Não quero que se riam de mim. Acima de tudo, tenho horror do ridículo.
— Eu, por mim, considero Nastássia Filíppovna muito sagaz — observou o príncipe prudentemente. — Por que procuraria ela a armadilha sabendo de antemão que miséria isso significaria para ela? O senhor bem vê que ela se poderia casar com qualquer outro. E isso é que me surpreende.
— Ora, é que há outras razões. O senhor não sabe de tudo, príncipe. É que... De mais a mais, está persuadida de que a amo até à loucura, garanto-lhe. E ainda por cima tenho fortes suspeitas de que também me ama à sua maneira, conforme o ditado que o senhor conhece: “Castigo quem amo.” Considerar-me-á toda a vida como um patife (e talvez seja isso o que ela deseje) e ainda assim me amará à sua maneira. Ela está se preparando para isso, o seu caráter é assim. É uma autêntica mulher russa, digo-lhe eu. Mas tenho uma pequenina surpresa guardada para ela. Aquela cena de ainda agora com Vária foi ocasional, mas me serviu; viu como estou apegado a ela e ficou convencida de que estou pronto a romper com todas as amarras por sua causa. Não sou tão parvo, pode o senhor ficar certo. E já que nisso estamos, o senhor não vai inferir do que aqui lhe digo que sou tagarela, não é mesmo? Talvez, de fato, eu esteja errado em confiar no senhor, caro príncipe. Mas o senhor é o primeiro homem honrado com quem cruzei no meu caminho. Zangou-se por causa do que aconteceu ainda agora? Não? Esta é a primeira vez, de há dois anos a esta parte, creia, que eu falo de coração. Aqui há gente terrivelmente pouco honesta, e Ptítsin, por exemplo, é o mais honesto de todos. Acho que o senhor está rindo, não? Os canalhas admiram as pessoas honestas... O senhor ignorava isso? E por conseguinte, eu... mas em que sou eu um canalha, diga-me com toda a sua consciência!? Por que é que todos fazem coro com ela, chamando-me de canalha? E quer saber duma cousa? Acabei seguindo o exemplo deles e dela e também me chamo um canalha! Isso é que é uma canalhice, realmente, uma canalhice!...
— Eu nunca o consideraria propriamente um canalha! — disse o príncipe. — Ainda agora pensei no senhor como num fraco, e imediatamente depois o senhor se reabilitou, causando-me júbilo à alma. Foi uma lição, para eu não julgar sem experiência. Agora concluo que o senhor não pode ser considerado sem moral e nem mesmo, realmente, um homem depravado. Na minha opinião o senhor não é mais que um homem como tantos outros de qualidades sem interesse real, ou melhor, sem qualidades quaisquer. E, além disso, tendo fraqueza de mais e originalidade de menos.
Gánia sorriu sarcasticamente, mas não respondeu nada. Vendo que a sua opinião tinha sido mal aceita, o príncipe se embaraçou e também ficou calado. Pouco depois Gánia lhe perguntou:
— Meu pai lhe pediu dinheiro?
— Não.
— Se lhe pedir, não dê. Outrora foi um homem decente. Lembro-me. Frequentava só gente direita. E com que rapidez fraqueja essa gente decente, quando a velhice chega! Basta uma circunstância mínima, e não fica mais nada dessa gente, tudo se vai num relâmpago! Outrora ele não pregava mentiras deste jaez, posso lhe garantir. Outrora apenas foi um pouquinho entusiasmado, e veja em que deu! Naturalmente a bebida está no fundo de tudo isso. E quer saber duma cousa? Tem uma amásia! E agora está ficando pior do que um simples mentiroso. Não entendo mais a capacidade de sofrimento de minha mãe. Ele lhe falou no cerco de Kars? E como o seu cavalo baio trotador começou a falar? Pois olhe que ele não se limita somente a tais despautérios!...
E repentinamente Gánia desferiu uma gargalhada.
— Por que é que está me olhando assim? — perguntou ao príncipe, interrompendo-se de repente.
— Estou surpreendido com a sua gargalhada tão franca. Ainda bem que pode rir como uma criança. O senhor entrou aqui para fazer as pazes comigo; disse, até: “Se consentir, beijarei a sua mão”, tal como uma criança o teria feito. Ainda é, pois, capaz de tais palavras e de tais impulsos. E depois o senhor começa uma enorme lenga-lenga a respeito desse negro caso e desses 75 mil rublos. Devo dizer-lhe quanto tudo isso me parece absurdo e incrível.
— E o que deduz disso?
— Não estará agindo impensadamente? Não deveria examinar-se antes? Varvára Ardaliónovna tem razão, decerto!
— Ah! Lições de moral!? Que eu sou rapaz desmiolado, estou farto de saber — interveio Gánia, acaloradamente. — E basta ver a conversa que acabo de ter com o senhor. Não é por motivos mercenários que vou fazer este casamento, príncipe — continuou, espicaçado pela vaidade da mocidade que o não deixava calar-se. — Certamente ainda não posso me orientar, porque sou fraco demais, em caráter e em espírito. A paixão me cega porque só tenho uma coisa em mira. O senhor pensará que, mal eu ponha a mão em 75 mil rublos, compro logo uma carruagem. Não, continuarei usando o meu paletó do ano retrasado e não prestarei atenção nos meus conhecidos que frequentam clubes. Há pouca gente perseverante, entre nós, embora não passemos de cavadores de dinheiro. Mas eu, eu serei perseverante. A grande cousa é fazer isso cabalmente; esse é que é o problema. Ptítsin, aos dezessete anos, dormia na rua e vendia canivetes. Começou com um copeque e hoje tem 60 mil rublos. Pergunte a ele o que passou para chegar a isso. Mas eu começarei para cá dos empecilhos e já com capital. Dentro de quinze anos, dirão: “Ali vai Ívolguin, o rei dos judeus!” Disse-me o senhor, ainda agora, que não tenho nada de original. Observe, caro príncipe, que nada ofende mais a um homem da nossa raça e da nossa época do que lhe dizerem que não é original, que não tem força de vontade nem talentos especiais e que não passa dum indivíduo comum. O senhor nem sequer me deu crédito para me considerar um canalha de primeira ordem, e o senhor sabe que eu estaria pronto para aniquilá-lo, só por causa disso. O senhor me ofendeu mais do que Epantchín, o qual, sem discussão, sem experimentar tentar-me, na simplicidade do seu coração, repare bem, acreditou que eu fosse capaz de vender a minha vida. Isso me exaspera há tempos e é por isso que eu quero dinheiro. Mas deem-me o dinheiro e verão se me torno ou não um homem altamente original. O que há de baixo e de desprezível no dinheiro é que com ele se compra até mesmo talento, e assim será até o fim do mundo. Dirá o senhor que também isso não passa de infantilidade ou, talvez, de romantismo. Bem, para mim será melhor assim e hei de fazer o que desejo. Seja como for perseverarei e não desistirei. Rira bien qui rira le dernier. O que levou Epantchín a insultar-me desse jeito? Despeito, não podia ser! Nunca! Então foi porque me achou um tipo sem a menor importância. Mas, então... Agora, chega, porém. É tempo de me ir. Kólia já meteu o nariz pela porta duas vezes; ele quer avisar que o jantar está pronto. Preciso sair. Procurarei o senhor, de vez em quando. O senhor se sentirá à vontade, conosco; considerá-lo-ão da família, em pouco. Então, estamos de bem, outra vez? Creio que o senhor e eu seremos amigos ou inimigos. E que acharia, príncipe, se eu lhe tivesse beijado a mão, como me prontifiquei com sinceridade? Isso me tornaria seu inimigo, depois?
— Estou certo que sim, mas não para sempre. Não aguentaria e haveria de me perdoar — respondeu o príncipe com uma risada, depois de ter pensado um pouco.
— Ah! ah!... O senhor precisa ser vigiado com mais cuidado. Ora bolas! Também pôs a sua gotinha de veneno... E quem sabe se o senhor, afinal, não é um inimigo? Por falar nisso — ah! ah! ah! — ia me esquecendo de perguntar. Tenho razão em crer que o senhor também ficou arrebatado diante de Nastássia Filíppovna?
— Sim... Eu gosto dela.
— Ficou apaixonado?
— N...ão!
— Pois não é que o senhor está ficando vermelho e com ar infeliz? Ora, não faz mal, não tem importância, não vou rir por causa disso. Mas, quer saber duma coisa? Ela é uma mulher de vida virtuosa! Não acredita? Pensa o senhor que ela está vivendo com esse tal Tótskii? Absolutamente. Há muito que isso acabou. E reparou que ela é terrivelmente retraída e que até ficou embaraçada, por alguns segundos, hoje? Foi, sim. É gente dessa marca que gosta de dominar os outros. Bem, adeus.
Gánia saiu bem-humorado e muito mais à vontade do que quando entrara. O príncipe ficou pensando mais de dez minutos sem se mover.
Kólia meteu a cabeça pelo vão da porta, outra vez.
— Não quero jantar, Kólia. Almocei demais em casa dos Epantchín.
Kólia entrou logo e entregou um bilhete ao príncipe. Estava dobrado num envelope fechado e era do general. A cara de Kólia, ao entregá-lo, deixava ver claramente quanto isso o desgostava.
O príncipe leu, levantou-se e pegou no chapéu.
— É a dois passos daqui. Nem isso — explicou Kólia, ainda confuso. — Ele está sentado lá, diante duma garrafa. Que jeito faz para arranjar bebida fiado, não entendo. príncipe, meu caro príncipe, não diga à minha gente que eu lhe entreguei esse bilhete. Já jurei mais de mil vezes não levar nem trazer bilhetes destes, mas acabo ficando com pena. E deixe que lhe diga, não fique com cerimônia diante dele; passe-lhe qualquer bagatela que ele logo o deixa em paz.
— Já era minha intenção procurar seu pai, Kólia... por causa dum negócio. Vamos.
12.
Kólia levou o príncipe pela Litéinaia abaixo, até um café. Era ao rés do chão, com um bilhar aos fundos. Num compartimento separado, à direita, Ardalión Aleksándrovitch estava instalado, como freguês habitual. Sobre a mesa, diante dele, uma garrafa. Segurava um número aberto do Indépendance Belge, à espera do príncipe. Logo que o viu, abaixou o jornal que acabou por abandonar, e iniciou uma longa e calorosa explicação, que o príncipe não compreendeu, porque o general já não estava “bom”.
— Não tenho 10 rublos trocados — foi logo dizendo o príncipe — mas aqui está esta nota de 25 rublos. É favor trocá-la e me dar 15, senão ficarei sem dinheiro nenhum.
— Oh! Certamente! E vamos tratar disso, já!
— E aproveito, general, para lhe fazer, também, um pedido. O senhor, por acaso, já esteve na casa de Nastássia Filíppovna?
— Eu? Se já estive? O senhor me pergunta isso a mim? A mim? Inúmeras vezes, meu jovem camarada, inúmeras, incontáveis vezes! — exclamou o general num excesso de triunfo a que se misturava um pouco de complacência. — Devo dizer-lhe, porém, que interrompi minhas visitas, pois não hei de ser eu quem há de encorajar uma aliança tão inverossímil! Aliás, o senhor já teve ocasião de ver hoje, já testemunhou minha atitude, a respeito! Tenho feito tudo quanto pode fazer um pai sensato, mas indulgente, é claro! Mas, deste minuto em diante, sobe à cena, irrompe um pai muito diferente do antigo; e então veremos se um militar, um militar, sim, que serviu com honra, triunfará sobre a intriga, ou se uma desavergonhada cocote forçará o caminho e entrará para uma família respeitável! Respeitável e decente!
— Ia perguntar se o senhor poderia levar-me, como amigo seu, à casa de Nastássia Filíppovna, esta noite. Tenho que ir lá, mas não sei de que modo arranjar isso. Fui apresentado a ela hoje, mas para a reunião desta noite não me foi feito convite de espécie alguma. Não ficaria bem que eu pusesse de lado as convenções, por menores que elas fossem. Contanto que eu entre, podem até rir de mim.
— Esta é, precisamente, a minha ideia, meu jovem amigo. Precisamente! — disse o general, com entusiasmo. — E quer saber duma cousa? Quando ainda há pouco lhe mandei pedir que viesse até aqui, não cuide que foi por causa da ninharia deste dinheiro. Absolutamente. Não! — garantiu ele, apropriando-se da nota e a enfiando logo no bolso. — Mandei atrás do senhor, precisamente para lhe pedir que me desse a honra e a alegria de ser meu companheiro numa “expedição” à casa de Nastássia Filíppovna. Ou melhor: numa “expedição” contra Nastássia Filíppovna. O general Ívolguin e o príncipe Míchkin! Ah! Como isso a vai espantar! A pretexto de cortesia pelo seu aniversário, esclareço a minha vontade irrefutável; indiretamente, é lógico; não de frente, será mais efetivo do que sendo feito diretamente. Depois do que, então, Gánia verá o que lhe compete fazer. Terá ele que escolher entre o pai que serviu sempre com honra o seu soberano e... por assim dizer essa... Mas, agiremos! Agiremos! A sua ideia é feliz, muito feliz, e partiremos às nove horas. Temos muito tempo, ainda.
— Onde é que ela mora?
— Não fica perto, não. Ao lado do Grande Teatro, no edifício Mitóvtsov, mal se chega ao parque... É num primeiro andar. Não vai ser uma grande reunião, embora se trate do seu aniversário. Acabará cedo...
A noite avançava. O príncipe ficara sentado, ouvindo e esperando o general que tinha começado um número extraordinário de anedotas. E que nunca mais acabava. Quando o príncipe chegara, ele pedira outra garrafa que levou mais de uma hora para esvaziar. Depois, uma terceira. E nunca mais acabava. E provavelmente, durante todo esse tempo, o general esgotou o repertório de quase toda a sua história.
Não aguentando mais, o príncipe se levantou, dizendo que lhe era impossível esperar. Então, o general esvaziou o resto da garrafa, abandonando, a seguir, o “reservado”, espalhafatosamente. O príncipe estava irritado. Não compreendia como pudera ter acreditado no general de maneira tão cretina. Contara com ele, apenas como um meio de ser levado à casa de Nastássia Filíppovna, malgrado, mesmo, qualquer inconveniência. Mas não previra dificuldades nem complicações. E acontecia o quê? Que o general estava, agora, completamente bêbedo; e não era que estivesse apenas eloquente, falando por quantas juntas tinha. Dera para ficar sentimental, já próximo às lágrimas, insistindo — e não havia paciência que suportasse! — que fora o mau comportamento dos membros de sua família que o pusera na ruína, mas que urgia, que já era tempo de se pôr um paradeiro nisso!
Finalmente conseguiram chegar ao fim da Litéinaia. Começara a degelar. Um vento quente e úmido, desses que deprimem qualquer mortal, varria as ruas, de alto a baixo. Carruagens rodavam por sobre a lama. Os cascos dos cavalos feriam os lajedos arrancando sons metálicos. Multidões desanimadas seguiam de cabeça baixa, nos passeios, com um ou outro bêbedo, aqui e ali, no meio delas.
— Está vendo aquele primeiro andar, todo iluminado? — perguntou o general. — Pois é lá que moram os meus velhos camaradas. E eu, que servi muito mais do que eles, que me defrontei com muito mais perigos e incômodos, vou indo, com este passinho, à casa duma mulher de reputação duvidosa! Eu, um homem que tem treze balas no peito!... O senhor não acredita? Pois, olhe, foi por minha causa que o dr. Pirogóv telegrafou para Paris arriscando-se a sair de Sebastopol, que estava assediada, e conseguiu que Nelaton, o médico da corte francesa, obtivesse um passaporte, em nome da ciência, para poder entrar na cidade cercada. E só para me examinar! Isso foi com o assentimento das mais altas autoridades. “Ah! Cá está o nosso Ívolguin, o homem que tem treze balas no corpo!” Era como falavam! Está vendo, agora, esta casa aqui, príncipe? Pois, no primeiro andar, mora o general Sokolóvitch, um velho amigo meu, com sua numerosa e distinta família. Atualmente, este lar, mais três famílias que moram na Perspectiva Névskii e outras duas mais, para os lados da Morskáia, constituem o meu presente círculo de relações pessoais. Nina Aleksándrovna já abdicou das circunstâncias, há muito tempo. Mas eu ainda gosto de recordar o passado, e encontro um como que refrigério na sociedade culta dos meus velhos camaradas e subordinados que me veneram até hoje. Este general Sokolóvitch... (Não tenho ouvido falar nele ultimamente e há muito que não visito Ana Fiódorovna!) Quer saber duma cousa, príncipe? Quando a gente mesma não se toma em consideração, insensivelmente se vai acostumando a não visitar mais ninguém. Mas, estou a ver que o senhor não parece acreditar em mim! Hum! Mas por que não apresentar o filho do meu mais dileto amigo da mocidade, do meu inefável companheiro de infância, a esta admirável família? O general Ívolguin e o príncipe Míchkin! Por que negar-lhe a oportunidade de lhe fazer ver uma jovem estranhíssima? Não um, com efeito, mas dois ou mesmo três ornamentos de Petersburgo e da alta sociedade? Beleza, cultura e educação! A questão “mulher”, a poesia, tudo unido numa feliz e variada combinação! E não falando do dote de 80 mil rublos, em caixa-forte, já posto de lado para cada uma delas, cousa que não faz recuar, sejam quais forem as questões sociais ou feministas! Em verdade, devo apresentá-lo; nem há dúvida. O general Ívolguin e o príncipe Míchkin! Uma sensação, deveras!
— Mas agora? Já? O senhor então se esqueceu de que...
— Não me esqueci de nada. Venha comigo. Por aqui! Subamos esta magnífica escadaria. Admira-me não ver o porteiro! Ah! Mas hoje é dia santo! É por isso que o porteiro não está... Não sei o que esperam para despedir esse malandrão! De mais a mais, sempre bêbedo! Este Sokolóvitch é muito reconhecido a mim (a mim e a mais ninguém!) porque me deve toda a felicidade da sua vida e da sua carreira. Eis-nos chegados.
O príncipe resolvera não protestar mais. E para evitar que o general se irritasse, o seguiu submissamente, esperando, no íntimo, que o general Sokolóvitch e toda a sua família se evaporassem como miragem, acabando até por nem sequer existirem, podendo, assim, ambos refazerem seus passos escadas abaixo. Mas, para total desapontamento seu, esta esperança começou a se desvanecer, pois à medida que o levava escadas acima, o general ia dando, com uma exatidão matemática, sem calar, minúcias biográficas e topográficas, devendo com certeza ter mesmo relações no prédio. Então, quando chegaram em cima, ao primeiro andar, e o general quebrou à direita, e se lhes apresentou a porta de um apartamento luxuoso, o príncipe decidiu fugir aproveitando estar o general a puxar a campainha. Mas uma estranha circunstância o reteve, por um momento.
— O senhor está enganado, general — avisou ele. — O nome que está escrito aqui na porta é Kulakóv, e o senhor quer Sokolóvitch.
— Kulakóv... Kulakóv não quer dizer nada. O apartamento é de Sokolóvitch. E é Sokolóvitch que vim procurar. Kulakóv que se dane! Aí vem gente.
A porta abriu-se, de fato. O lacaio que atendeu avisou que o patrão e senhora não estavam em casa.
— Que pena! Que pena! É sempre assim que as cousas me acontecem! — Ardalión Aleksándrovitch repetiu isso, várias vezes, com profundo pesar. — Diga-lhes, meu rapaz, que o general Ívolguin e o príncipe Míchkin desejavam apresentar os seus respeitos, em pessoa, e que sentem, extremamente, extremamente... — Nisto, duma peça interior, uma outra pessoa espreitou para a porta aberta. Parecia uma arrumadeira, ou antes, uma governante. Mulher quarentona, toda de preto. E ouvindo os nomes do general Ívolguin e do príncipe Míchkin se aproximou, meio desconfiada.
— Maria Aleksándrovna não está em casa — pronunciou, à medida que examinava cuidadosamente o general. — Foi com a srta. Aleksándra Mikháilovna à casa da avó.
— Aleksándra Mikháilovna, também? Ó céus, que lástima. Acredite-me, minha senhora, eu tenho azar! Humildemente lhe rogo apresentar os meus cumprimentos! E quanto a Aleksándra Mikháilovna, peça-lhe que se recorde... ou melhor, transmita-lhe os meus sinceros votos de que obtenha aquilo que desejou quinta-feira, à noite, ao ouvir a balada de Chopin! Ela logo se dará conta. E que os meus desejos se realizarão, porque são sinceros! O general Ívolguin e o príncipe Míchkin!
— Não me esquecerei — disse a criatura, com mais confiança, ao saudá-los.
E, escadas abaixo, o general continuava a lastimar, com a mesma veemência, não os ter encontrado, principalmente pelo que o príncipe perdera em não travar relações com gente agradabilíssima.
— E deixe que lhe diga, meu caro: tenho um pouco de poeta, na alma! Já tinha percebido isso? Bravos! Mas... que diabo! Estou em crer que fomos ter a um apartamento errado — concluiu inesperadamente. — Os Sokolóvitch... é verdade... não moram aqui! E até me parece que estão, atualmente, em Moscou. Sim, enganei-me. Mas não faz mal.
— Há uma cousa que quero saber — observou o príncipe muito desconsolado —, devo eu desistir de contar com o senhor? Não seria melhor eu ir sozinho?
— Desistir? Contar? Sozinho? Mas por que e para que isso, quando para mim se trata duma empresa vital, de que depende tanto o futuro de minha família?! Não, meu jovem amigo, o senhor não conhece o general Ívolguin. Dizer “Ívolguin” corresponde a dizer “um penhasco”. Eis o que costumavam dizer no esquadrão quando estreei no serviço. “Podes construir sobre Ívolguin como sobre uma rocha.” Atrasaremos nossa ida apenas por um minuto, detendo-nos um pouco na casa onde a minha alma, desde muito, encontra consolo depois das ansiedades e das provações.
— O senhor pensa voltar para a sua casa?
— Não! Quero mais é ir ver a sra. Tieriéntieva, viúva do Capitão Tieriéntiev, meu antigo subordinado que também foi meu amigo. Em casa da sra. Tieriéntieva encontro refrigério para o meu espírito! E é para onde levo os meus cuidados de todos os dias e todas as minhas angústias domésticas. E, como hoje estou vergado ao peso moral de atribuições pesadíssimas, é claro que...
— Pesa-me ter sido tão pavorosamente estúpido, a ponto de incomodar o senhor, esta noite — redarguiu o príncipe. — Além disso, o senhor está num estado que... Sabe duma cousa, adeus!...
— Mas não consinto. Deveras, não permito que o meu jovem amigo se vá — exigiu o general. — É uma pobre viúva, e mãe de família! E como sabe arrancar do imo do coração os acordes que, como nenhum outro, ressoam dentro do meu ser! Visitá-la é questão de menos de cinco minutos. Não faço cerimônia nenhuma, quase que vivo lá. Preciso lavar-me, fazer um pouco a toilette. Depois, imediatamente partiremos para o Grande Teatro. Pois não está vendo que preciso do senhor a noite toda? É aqui, nesta casa. Eis-nos chegados. Olá, Kólia, já estás aqui? Márfa Boríssovna está? Ou também estás chegando como nós?
— Oh! Não — respondeu Kólia, que se encontrara com eles no portão de entrada. — Estive um bocadinho, com Ippolít. Está pior; esteve de cama, desde a manhã. Fui até ali, buscar um baralho numa loja. Márfa Boríssovna está à sua espera. Mas, há uma cousa, papai: o estado em que o senhor se encontra! — Kólia calou-se logo, ficando a reparar na maneira em que o pai estava. E resolveu acompanhá-lo. — Bem, entre, venha!
O encontro com Kólia induziu o príncipe a acompanhar por uns minutos o general até os cômodos para onde já subiam. O príncipe precisava de Kólia. Resolvera desistir do general, fosse como fosse, e não havia meios de se perdoar ter confiado nele. Levaram muito tempo para subir até o quarto pavimento, e isso mesmo pelas escadas dos fundos.
— O senhor quer apresentar o príncipe, não é mesmo?
— Sim, meu querido, quero apresentá-lo. O general Ívolguin e o príncipe Míchkin! Mas, e lá por dentro? Como está Márfa Boríssovna?
— Para lhe falar com franqueza, e já que me pergunta, seria melhor o senhor não ir lá. Ela vai pô-lo em apuros. Há três dias que o senhor não dá sinal de si! Está cansada de esperar pelo dinheiro. Para que foi o senhor prometer dinheiro? O senhor não se emenda! Agora, arranje-se!
Pararam, já no quarto andar, diante duma porta baixa. O general estava evidentemente atemorizado e empurrou o príncipe para a sua frente.
— Fico aqui atrás — murmurou. — Quero pregar-lhe um susto!
Kólia entrou logo. A tal surpresa do general negou fogo, pois uma mulher espiou para fora da porta. Estava exageradamente pintada, com muito carmim, usava chinelas, uma blusa de lã e tinha o cabelo enrolado em trancinhas. Era uma quarentona. Logo que o descobriu, gritou:
— Chegou o homem vil e malicioso! Bem que o meu coração suspeitou que era ele!
— Vamos entrando. Não há nada — balbuciou o general, tentando rir, muito sem jeito.
Mas como é que não havia nada? Com dificuldade conseguiram atravessar uma passagem, para uma saleta escura e abobadada, mobiliada com meia dúzia de cadeiras de junco e com duas mesas de jogo. E logo a dona da casa voltou à carga, num tom frenético, descompondo-o como de hábito.
— Você não tem vergonha? Você não tem vergonha, seu selvagem? Tirano da minha família, seu monstro!? Você me roubou tudo! Você me sugou, até eu ficar seca, e ainda não está contente, seu vampiro! Já não aguento mais! Seu descarado, sem brio!
— Márfa Boríssovna, Márfa Boríssovna! Este é o príncipe Míchkin. O general Ívolguin e o príncipe Míchkin! — disse, mas já sem solenidade, o general, trêmulo e desenxabido.
— Acredita o senhor — a viúva do capitão voltava-se agora para o príncipe —, acredita o senhor que este descarado não poupou nem os meus filhos órfãos? Roubou-nos tudo. Carregou com tudo! Vendeu e empenhou tudo, e nos deixou sem nada! Que é que eu vou fazer com as suas promissórias, homem sem escrúpulos e manhoso calculista? Responda, ande, impostor! Vamos, ande, responda, monstro insaciável! Como é que vou nutrir os meus filhos órfãos? E ainda por cúmulo me chega aqui bêbedo desta maneira, que nem se aguenta nas pernas!... Que fiz eu para chamar a ira de Deus sobre mim? Responda, ande, vil e nojento hipócrita!
Mas o general não estava adequado à situação.
— Márfa Boríssovna, aqui estão 25 rublos... foi tudo quanto pude arranjar, graças à generosidade dum nobre amigo príncipe, enganei-me, cruelmente. Assim... é a vida. Mas agora vai me desculpar. Estou frouxo! — disse o general, cambaleando pela sala, em todas as direções. — Estou mole... bambo... frouxo... Desculpe, sim? Liénotchka, um travesseiro, linda criança!...
Liénotchka, uma criança de oito anos, correu logo a buscar um travesseiro e o veio ajeitar no duro sofá que um encerado rasgado cobria. O general sentou-se, pretendeu dizer algumas cousas mais; nisto, sentindo o sofá, estirou-se, virou para a parede e instantaneamente caiu no sono profundo dos justos.
Márfa Boríssovna, com uma cerimônia lúgubre, avançou uma cadeira para perto duma das mesas de jogo e a indicou ao príncipe. Sentou-se, por sua vez, voltada para ele, e ficou calada. Três crianças, um garoto e duas meninas, das quais Liénotchka era a maiorzinha, agruparam-se em redor da mesa, puseram os cotovelinhos em cima e ficaram a encarar o príncipe. Kólia apareceu, vindo do quarto contíguo.
— Estou muito contente em encontrar você aqui, Kólia — disse-lhe o príncipe. — Quem sabe se você me poderia ajudar? Tenho que ir à casa de Nastássia Filíppovna. Pedi a Ardalión Aleksándrovitch para me levar até lá; mas você está vendo, seu pai adormeceu. Quereria você me levar até lá? Não conheço as ruas, nem sei o caminho. Só me lembro do endereço: Edifício Mitóvtsov, perto do Grande Teatro.
— Mas Nastássia Filíppovna nunca morou ao lado do Grande Teatro, e nem nunca papai esteve em casa dela, pode ficar sabendo desde já. É engraçado que tivesse contado com ele para qualquer cousa. Ela mora perto da rua Vladímirskaia, nas Cinco Esquinas. É pertinho daqui. Se quiser, eu o levo até lá e mostro onde é.
O príncipe e Kólia saíram imediatamente. O príncipe (ai dele!) não tinha com que pagar uma caleça. Tiveram que ir a pé.
— Quis apresentar Ippolít ao senhor — disse Kólia. — É o filho mais velho da viúva. Estava na outra sala. É doente. Passou de cama o dia inteiro. Mas é tão original! Melindra-se à toa, e calculo como não estava envergonhado do senhor ter chegado num momento como aquele... Eu não tenho de que me envergonhar, porque afinal de contas se trata de meu pai. Mas... é a mãe dele! E isso é diferente; numa cousa assim, não há nenhuma desonra para o sexo masculino. Mas, talvez, isso não passe dum preconceito. Por que há de um sexo ser mais privilegiado do que o outro, em tais casos? Ippolít é um esplêndido camarada, mas se escraviza ainda a preconceitos!
— Você quis dizer, ainda há pouco, que ele é tísico?
— É sim. E, a meu ver, a melhor cousa, para ele, seria morrer logo. Se eu estivesse no lugar dele, desejaria, na certa, estar morto. Ele tem pena do irmão e das irmãzinhas, aquelas que o senhor viu. Se fosse possível, se ao menos tivéssemos dinheiro, eu e ele tomaríamos um pequenino aposento, juntos, e largávamos nossas famílias. É o nosso sonho. E o senhor quer saber? Quando, ainda agora, contei a ele o que tinha acontecido ao senhor, ele ficou possesso, e disse que um homem, que recebe uma bofetada, e não se bate logo a seguir, em duelo, é um desbriado. Como vê, ele é genioso. Pavorosamente. Até já desisti de argumentar com ele. Com que então Nastássia Filíppovna também convidou o senhor!?
— Aí é que está! Não me convidou.
— Então, como é que vai lá? — perguntou Kólia, parando logo no meio da calçada. — E com essa roupa! O senhor não sabe que é uma reunião noturna?
— Deus sabe como é que irei lá. Se me deixarem entrar, ainda bem. Se não deixarem, que hei de fazer? E, quanto à roupa, que remédio?
— O senhor pensa em ir, por quê? Ou vai somente pour passer le temps em roda distinta?
— Não, nem por isso. Isto é... vou com um fim. É difícil explicar, mas...
— Está bem. Isso não é comigo. O que me inquieta é saber se o senhor não se está apenas convidando para uma reunião numa fascinante sociedade de cocotes, generais e agiotas! Porque se fosse somente para isso, o príncipe vai me desculpar, mas eu me riria do senhor e não lhe daria mais a menor atenção. Gente honesta já por si mesma é terrivelmente rara. Além disso, não há mais ninguém que se possa respeitar. Não adianta querer uma pessoa topar com gente que faz questão de ser respeitada. É o caso de Vária, por exemplo! E já reparou, príncipe, que hoje em dia está tudo cheio de aventureiros? E de modo particular entre nós, na Rússia, na nossa querida terra? Como foi que tudo isso ficou assim é que não posso compreender. Os alicerces pareciam tão firmes! E, todavia, que vemos nós, agora? Muito se fala e se escreve, mostrando este estado de cousas. Na Rússia, então, todo o mundo está pondo à mostra essas cousas todas. Nossos pais são os primeiros a retrogradar, e se envergonham de sua antiga moral. Ainda no outro dia os jornais deram que certo pai, em Moscou, ensina aos filhos que não vacilem diante seja do que for, para obter dinheiro. Olhe, por exemplo, para o meu general. Ao que chegou ele! E todavia fique sabendo que ainda não o acho dos piores... E falo sério. No fundo, a causa é a desordem e o vinho... Tenho certeza. Tenho pena dele, é lógico, e só não espalho essas cousas com medo de que se riam de mim. E essas pessoas sensíveis, que se escandalizam, que vêm a ser elas? Cavadoras de dinheiro, sem exceção! Ippolít faz a apologia do usurário, diz que está direito. Fala de valorização econômica, de maré do capital, que em que subir e descer... Entenda-se lá isso! Vexa-me ouvi-lo falar deste modo; mas ele, eu compreendo. É um exasperado, e com razão. Agora imagine, a mãe dele, a viúva do capitão. Ouça: essa mulher toma dinheiro do general e depois o empresta a ele próprio, general, mas... com juros. Isso não é hediondo? E o senhor sabe que minha mãe (sim, estou me referindo a Nina Aleksándrovna) ajuda Ippolít, com dinheiro, roupas e tudo o mais? E provê as crianças duma porção de cousas, por intermédio de Ippolít, com pena delas não terem quem as cuide direito? Vária também ajuda.
— Ora, aí está. Você diz que não há mais gente honrada, forte, honesta, que não passam todos de cavadores de dinheiro. Mas em sua casa, mesmo, há gente às direitas: sua mãe e sua irmã. Você então não acha que ajudar deste modo, e em tais circunstâncias, seja uma prova de força moral?
— Vária faz isso por vaidade, para mostrar-se, para não ficar inferior a mamãe. Mas esta, realmente, eu a respeito, deveras. Não só respeito, como até acho que está direito. O próprio Ippolít sente isso, e ainda fica mais amargo contra quase todos. No começo ele ria e achava que isso era degradante, para mamãe; mas agora já começa a compreender bem. Hum! Então o senhor acha que isso é força? Preciso tomar nota disso. Gánia ignora tudo isso. E se viesse a saber, chamaria a isso ser “conivente”.
— Gánia não sabe? Acho que é muito ele não ter percebido isso ainda — ponderou o príncipe.
— Ouça, príncipe. Estou gostando muito do senhor. E não há meios de me esquecer do que lhe aconteceu esta tarde.
— Pois eu também estou gostando muito de você, Kólia.
— Escute, de que maneira pretende o senhor viver aqui? Estou dando um jeito de arranjar um emprego, e breve estarei ganhando alguma cousa. Moremos juntos. O senhor, eu e Ippolít. Alugaremos uma peça e consentiremos que o general venha ver-nos.
— Com o maior prazer. Mas havemos de estudar isso, pois ainda me sinto muito zonzo. Quê? Chegamos? É esta a casa? Que entrada magnífica! E tem porteiro, no vestíbulo! Bem, Kólia, não sei o que sucederá.
O príncipe deteve-se, deslumbrado.
— Amanhã o senhor me contará. O principal é não ficar constrangido. Deus o acompanhe, pois sei que as suas decisões sempre miram o bem. Adeus. Volto e vou contar a Ippolít a nossa combinação. E não tenha dúvida, garanto que ela o recebe! Não se perturbe. Ela é muito extravagante. É no primeiro andar: vá pela escadaria, pergunte ao porteiro.
13.
Muito desajeitado, lá subiu ele, fazendo o que pôde para ganhar coragem. “O pior que pode acontecer é ela recusar-se a receber-me e pensar mal de mim! Ou me mandar entrar só para se rir na minha cara... Ora, não faz mal.” E de fato a perspectiva não o alarmou muito; mas quanto à pergunta “que ia ele fazer e por que ia lá”, não pôde encontrar resposta satisfatória. Muito dificilmente calharia a única eventualidade boa, isto é, arranjar um ensejo de poder dizer a Nastássia Filíppovna: “Não case com esse homem, não faça a sua própria destruição. Ele não a ama, é o seu dinheiro que ele ama, já mo confessou; e Agláia Epantchiná também me disse e vim expressamente para a avisar.”
Havia uma outra pergunta sem resposta, diante dele, e tão vital, que Míchkin temia sequer considerá-la; não poderia, não ousaria, não admitiria. Não saberia como formulá-la. Só o pensamento o fazia corar e tremer. Mas, a despeito de todas essas dúvidas e apreensões, acabou entrando e perguntando por Nastássia Filíppovna.
Ela vivia num apartamento realmente magnífico, embora não muito grande. Datava isso do começo dos seus cinco anos de Petersburgo, quando Afanássii Ivánovitch fora pródigo em gastos para com ela. Naqueles dias ele ainda tinha esperanças no seu amor e sonhara tentá-la principalmente com o luxo e o conforto, pois sabia quão facilmente se adquirem tais hábitos e quão dificilmente depois eles nos abandonam, quando já o luxo se tornou indispensável. A esse respeito Tótskii abraçou a velha tradição, sem modificá-la em nada, pois tinha um ilimitado respeito pela força suprema do apelo dos sentidos. Nastássia Filíppovna não recusou o luxo — gostava disso com efeito — mas, por mais estranho que pareça, não era absolutamente uma escrava do luxo; via-se logo que poderia passar sem ele a qualquer momento; dera-se mesmo ao trabalho de dizer isso várias vezes, o que causava uma desagradável impressão em Tótskii. Mas não era só. Mais cousas havia em Nastássia Filíppovna que desagradavam a Tótskii e subsequentemente lhe causavam estranheza. À parte a deselegância da classe de gente com a qual ela muitas vezes se juntava e pela qual se sentia atraída, ostentava ainda outras propensões bem extravagantes. Mostrava uma espécie de selvagem mistura de gostos opostos, certa propensão para apreciar cousas e meios que mal se suporiam conhecidos por uma pessoa fina e bem-educada. Realmente, se Nastássia Filíppovna em vez disso demonstrasse, por exemplo, uma elegante e encantadora ignorância do fato de que mulheres do campo não estavam em condições de usar as combinações de batiste que ela usava, Afanássii Ivánovitch teria provavelmente ficado em extremo satisfeito. O plano completo de educação de Nastássia Filíppovna fora elaborado desde o começo de modo a conferir com o de Tótskii, que era pessoa sutilíssima à sua maneira. E todavia o produto resultante fora esse, e bem estranho. Mas apesar disso, Nastássia Filíppovna conservara qualquer cousa, que muitas vezes impressionava o próprio Tótskii, por sua extraordinária originalidade, causando-lhe uma espécie de fascínio. E que mesmo ainda no presente o encantava, conquanto já todos os seus primitivos desígnios sobre Nastássia Filíppovna tivessem desmoronado.
Veio ao encontro do príncipe uma camareira. (Nastássia Filíppovna só tinha empregadas.) Deu-lhe ele o nome que devia ir anunciar e, com surpresa sua, a rapariga não estranhou e nem demonstrou hesitação à vista de suas botinas sujas, do seu chapéu de abas enormes, da sua capa sem mangas, e do seu ar embaraçado. Segurou-lhe a capa, disse-lhe que aguardasse na sala de espera e foi logo anunciá-lo.
O grupo dessa noite, em casa de Nastássia Filíppovna, consistia do círculo que sempre estava à sua volta. Os convidados eram em pequeno número, com efeito, comparando com as recepções em idêntica data natalícia nos anos passados. Em primeiro lugar, estavam presentes Afanássii Ivánovitch Tótskii e Iván Fiódorovitch Epantchín. Ambos muito amistosos, mas intimamente entregues à sua mal disfarçada apreensão quanto à prometida declaração referente a Gánia. Este, naturalmente, lá estava também, e bem preocupado e soturno, com um feitio quase rude, desde o começo, afastado para um canto, e sem falar. Não se arriscara a trazer Vária, e nem Nastássia Filíppovna fizera qualquer referência a ela; mas logo que cumprimentara Gánia ao recebê-lo, aludira à cena com o príncipe. O general Epantchín, que ignorava o incidente, ficou muito curioso. Então Gánia, secamente e com certa reserva, mas perfeitamente franco, contou o que se passara aquela tarde e como depois se dirigira ao príncipe para lhe pedir desculpas. Veementemente exprimiu a sua opinião de que era estranho e arbitrário chamar o príncipe de “idiota”, e que pensava dele o oposto — um homem que sabia, de fato, muito bem, o que valia.
Ouviu-o Nastássia Filíppovna, nessa asseveração, muito atenta, observando-o com curiosidade, mas a conversa passou imediatamente para o nome de Rogójin como figura principal na cena em casa de Gánia, que Tótskii e Epantchín estavam também interessadíssimos em ouvir. Ptítsin era a pessoa que mais conhecia Rogójin e tinha estado com ele, ocupado e a seu serviço, até às nove horas dessa noite. Rogójin insistira em obter, nesse dia mesmo, 100 mil rublos. “É verdade que estava bêbedo”, ponderou Ptítsin, “mas, por mais difícil que pareça, garanto que arranjou os 100 mil. Só não sei se será para hoje e se será todo o dinheiro. Uma porção de gente está trabalhando para ele — Kinder, Trepálov, Biskúp. Não se importou com os juros a pagar, bêbedo como estava e no entusiasmo ainda tão recente da fortuna.”
Toda essa informação foi recebida com interesse, embora parecendo ter deprimido alguém. Nastássia Filíppovna ficou calada, obviamente não querendo emitir opinião. Gánia, esse então estava mudo. O mais secretamente preocupado de todos era Epantchín. As pérolas com que a havia presenteado aquela manhã tinham sido aceitas com uma quase fria polidez, e mesmo uma sombra de escárnio. De todo o grupo, Ferdichtchénko era o único de ânimo adequado ao dia festivo. Ria, às vezes, alto, sem nenhum motivo, simplesmente porque escolhera o papel de truão. O próprio Tótskii (que tinha a reputação de talentoso narrador de casos, e que de hábito, em tais reuniões, era quem dirigia a conversação), estava evidentemente fora de humor e de má vontade, o que não era natural nele. Os demais convidados, em pequeno número, eram não só incapazes duma conversa viva, mas positivamente incapazes, geralmente, de dizer qualquer cousa. Um velho professor fora convidado, sabe Deus porquê. Havia ainda um moço desconhecido e pavorosamente acanhado, que durante a recepção se mantinha integralmente mudo; uma senhora espaventada, quarentona, decerto alguma atriz; e uma jovem muito formosa, demasiado bem-vestida mas extraordinariamente apática.
A aparição do príncipe, por conseguinte, foi recebida com positivo agrado. O seu nome produziu surpresa e certos sorrisos extravagantes, especialmente quando o ar de espanto de Nastássia Filíppovna demonstrou que não o tinha convidado. Mas, logo depois do primeiro instante de pasmo, mostrou tanto prazer, que a maioria do grupo prontamente se preparou para ir, alegre, ao encontro do inesperado visitante.
— Conquanto seja inocência dele — observou Iván Fiódorovitch Epantchín — e mesmo seja perigoso encorajar tais tendências, a bem dizer não há nada de mau que se lhe tenha encasquetado na cabeça aparecer, e de maneira tão original. Talvez venha a distrair-nos e até mais do que seria de esperar dele.
— Especialmente tendo-se convidado a si mesmo — desfechou logo Ferdichtchénko.
— E que há de mais nisso? — perguntou o general secamente. Ele detestava Ferdichtchénko.
— Que há? Acho que deve pagar entrada! — explicou este último.
— Ora, vamos e venhamos, o príncipe Míchkin não é Ferdichtchénko — disse o general sem poder resistir mais. Nunca se perdoaria a si mesmo estar no mesmo pé de igualdade com Ferdichtchénko, ao seu lado, numa recepção.
— Pelo amor de Deus, general, poupe Ferdichtchénko — replicou este sorrindo amarelo. — Eu me acho aqui numa situação muito especial.
— Situação especial por quê?
— Já da última vez tive a honra de explicar exatamente isso à assistência, mas não deixarei de o repetir agora a Vossa Excelência. Vê Vossa Excelência, todos são espirituosos, ao passo que eu não. A fim de compensar-me disso, obtive permissão para falar a verdade, pois todo o mundo sabe que só quem não tem espírito é que diz verdades. Além disso, sou um homem muito vingativo e eis por que não sou espirituoso. Suporto qualquer insulto, mas somente até que o meu antagonista se dane; logo, porém, que ele se arruína, volto aos meus apontamentos de memória e me vingo, seja lá como for. “Dou o meu pontapé”, como disse Iván Petróvitch Ptítsin que, por sua vez, não dá pontapés em ninguém. Conhecerá Vossa Excelência a fábula de Krilóv, O leão e o asno? Ora, bem. Trata-se do senhor e de mim: foi escrita para nós.
— Já está a dizer mais disparates, julgo eu, Ferdichtchénko — retrucou o general, esquentando-se.
— Como, Excelência? — retorquiu Ferdichtchénko que se apurara em responder com acerto, prolongando assim os seus despautérios. — Não se preocupe, Excelência, conheço o meu lugar. Se digo: “O senhor e eu somos o leão e asno da fábula de Krilóv”, naturalmente que tomo para mim a parte do asno, e Vossa Excelência fica sendo o leão, como na fábula de Krilóv:
Trôpego e velho, o ex-rei dos animais
Perdera a sua antiga força.
— Eu, Excelência, sou o asno.
— Lá com isso concordo plenamente — soltou o general, sem tomar as suas precauções.
Tudo isso era muito grosseiro e intencional, sendo cousa mais do que aceita que Ferdichtchénko, onde estivesse, conseguia sempre se apresentar como maluco.
— Aqui apenas me recebem, e me deixam estar, sob a condição de que eu só fale deste modo — explicara ele certa vez. — E de fato, a não ser assim, poderia uma pessoa como eu ser recebida? Claro que não. Poderia uma pessoa como eu estar ao lado dum gentleman como Afanássii Ivánovitch? Tal fato nos conduz à única explicação cabível: que só toleram isso justamente por ser inconcebível.
Mas, se era grosseiro, também era ferino, muito ferino, e Nastássia Filíppovna parecia gostar disso. Os que a queriam visitar tinham que acomodar seus espíritos de modo a suportar Ferdichtchénko. Talvez ele já tivesse adivinhado a verdade, isto é, que era recebido ali porque a sua presença se tornara, desde o começo, insuportável a Tótskii. Gánia também sofria indizível agonia nas mãos dele; e a tal propósito Ferdichtchénko era capaz, realmente, de vir a ser uma necessidade para Nastássia Filíppovna.
— O príncipe vai começar, cantando-nos uma ária muito em voga — concluiu Ferdichtchénko, olhando logo para Nastássia Filíppovna, a ver o que ela diria. E então, secamente, ela lhe observou:
— Tenha a bondade, Ferdichtchénko, de dominar seus pruridos!
— Ah! Bem, se ele está sob a sua especial proteção, também eu serei indulgente.
Mas Nastássia Filíppovna se levantou, como se não tivesse escutado e foi encontrar-se com o príncipe.
— Estou envergonhadíssima — disse inesperadamente, surgindo diante dele — por me ter esquecido de convidar o senhor, esta tarde; mas me sinto muito honrada e satisfeita em o senhor me dar ensejo de lhe agradecer e lhe poder assegurar quanto fez bem em ter vindo.
À medida que falava, encarava o príncipe com a maior atenção, tentando descobrir a explicação da sua vinda.
O príncipe deveria, decerto, responder qualquer cousa a estas palavras amistosas; mas estava tão zonzo e atrapalhado que não pôde articular palavra; atitude essa que Nastássia Filíppovna percebeu com satisfação.
Nessa noite usava ela vestido de soirée e o seu porte era impressionante. Segurou-lhe a mão e o introduziu na sala. Mas, à porta, o príncipe parou, de repente, e balbuciou apressadamente, com extraordinária emoção:
— Tudo em vós é perfeito... mesmo o serdes delgada e pálida... Quem gostaria de imaginar-vos de outro modo?... Desde muito desejava vir ver-vos... Peço... perdão!
— Perdão de quê? — sorriu Nastássia Filíppovna. — Isso destruiria todo o encanto e originalidade. Dizem, com efeito, que o senhor é um homem original. Então acha que eu sou uma perfeição! Verdade?
— Verdade!
— Embora seja um adivinhador de primeira ordem, desta vez se enganou. Ainda hei de lembrar-lhe isso hoje...
Apresentou o príncipe aos seus convivas, a metade dos quais já o conhecia. Tótskii logo disse qualquer gentileza. O grupo pareceu reanimar-se, pondo-se todos a falar e a rir. Nastássia Filíppovna fez o príncipe sentar-se ao seu lado.
— Mas convenhamos que é extraordinário o príncipe ter vindo! — exclamou Ferdichtchénko, mais alto do que o diapasão das outras vozes. — E o caso está tão claro que fala por si.
— É claro demais e fala plenamente por si só — atalhou Gánia, que até ali estivera calado. — Estive observando o príncipe, hoje, quase que continuadamente, desde o instante mesmo em que ele viu o retrato de Nastássia Filíppovna, pela primeira vez, esta manhã, na mesa de Iván Fiódorovitch. Lembro-me até, perfeitamente, de que então pressenti qualquer cousa da qual agora estou mais do que convencido e que, aliás, o próprio príncipe acaba de confessar.
Esta longa observação de Gánia foi articulada do modo mais sério possível, sem traço algum de mínima brincadeira e em tom quase sombrio, soando de modo estranho.
— Não fiz confissão de espécie alguma — replicou o príncipe, corando. — Apenas respondi a uma pergunta.
— Bravo! Bravo! — gritou Ferdichtchénko — reconheçamos que foi sincero; foi inteligente e sincero.
Todos riram alto. Mas Ptítsin retorquiu, aborrecido, em voz baixa:
— Não grite, Ferdichtchénko.
— Eu não esperaria nunca por um tal proeza, príncipe — redarguiu Iván Fiódorovitch. — Quem haveria de pensar que o senhor fosse um camarada assim? Pois não é que eu apenas o tinha considerado, até aqui, como um filósofo? Ah! o pândego!
— E a julgar pelo modo como o príncipe cora ante uma inocente brincadeira, feito uma jovem ingênua, concluo que, como rapaz honrado que é, alimenta louváveis intenções em seu coração! — Quem disse, ou melhor, quem balbuciou isto agora, tão inesperadamente, foi o velho professor, ancião desdentado de mais de setenta anos. Isso então, sim, causou surpresa geral, pois não passara pela cabeça de ninguém que o velho abrisse a boca a noite inteira.
Todos riram mais do que antes. O ancião, provavelmente imaginando que estavam rindo da sua sabedoria, desandou a rir mais cordialmente ainda, à medida que olhava os circunstantes, até que acabou tossindo violentamente. Nastássia Filíppovna, que tinha uma afeição sui generis por esses velhos e velhas extravagantes e principalmente por iuróvidii, interessou-se logo por ele; foi beijá-lo e mandou que lhe servissem mais chá. Disse depois à criada que apareceu que trouxesse a sua capa, na qual ela se embrulhou. E ordenou que pusesse mais lenha na lareira. Perguntou que horas eram, tendo a criada dito que eram dez e meia.
— Amigos, que tal um champanha? — sugeriu Nastássia Filíppovna inesperadamente. — Mandarei abrir algumas garrafas. Talvez elas vos façam mais espirituosos. É favor porem a cerimônia de lado.
A oferta de bebida, e especialmente de modo tão gentil, partida de Nastássia Filíppovna, causou estranheza, sabido por todos, como era, o rígido protocolo de decoro mantido nas recepções anteriores. Os convidados estavam ficando mais animados, mas não da mesma maneira de sempre. O vinho foi, porém, aceito; primeiro pelo general Epantchín; em segundo lugar pela dama espetaculosa; depois pelo velhote; a seguir por Ferdichtchénko e afinal, por todos. Tótskii também tomou uma taça, querendo mudar o atual tom da reunião, a ver se lhe dava um caráter expansivo de alegria total. Gánia foi o único que não bebeu.
Depois que Nastássia Filíppovna tomou uma taça de champanha, declarou que aquela noite ainda beberia mais três. Era difícil entender as suas extravagantes e, às vezes, inesperadas maneiras, essas suas risadas histéricas sem motivo, que se alternavam com súbitas depressões taciturnas e silenciosas. Alguns entre os convidados suspeitaram que fosse febre; até que perceberam, por fim, que ela deveria estar esperando qualquer cousa, pois frequentemente olhava para o relógio, tornando-se impaciente e preocupada.
— Acho que estás com uma pontinha de febre — disse-lhe a dama espetaculosa.
— Uma pontinha? Com muita. Foi por isso que me enrolei na minha capa — respondeu-lhe Nastássia Filíppovna, que de fato estava ficando pálida e parecia às vezes combater um violento arrepio.
Ficaram todos consternados e fizeram um movimento que Tótskii soube expressar muito bem, dizendo a Iván Fiódorovitch:
— E se deixássemos a nossa aniversariante descansar?
— De modo algum. Peço-lhes que fiquem. Hoje, mais do que nunca, preciso não estar sozinha. — Houve nessa repentina solicitação uma ênfase que devia ter uma significação.
E como quase todos os convidados sabiam que uma importantíssima decisão estava para ser tomada essa noite, aquelas palavras pareceram-lhes cheias de sentido. Mais uma vez Tótskii e o general Epantchín trocaram olhares. Gánia estremeceu, convulsivamente.
— Não seria uma bela ideia, se jogássemos qualquer petit jeu? — lembrou a dama espaventada.
— Eu conheço um petit jeu, muito moderno, que é esplêndido — desferiu Ferdichtchénko. — Isto é, moderno! Só o vi jogarem uma vez; e mesmo assim falhou.
— Qual é? — perguntou a dama sôfrega.
— No outro dia o nosso grupo estava reunido, tínhamos estado bebendo, a falar verdade, e repentinamente não sei quem fez a sugestão que cada um de nós, sem deixar a mesa, contasse qualquer cousa que tivesse feito, mas que fosse honestamente considerada como a pior de todas as ações más da vida. Mas tinha que ser feito honestamente, isso era essencial, tinha que ser verídico, não podia ser mentira.
— Estranha ideia — comentou o general.
— Nada pode ser mais estranho, Excelência. Mas é o que há de melhor.
— Ideia ridícula — achou Tótskii. — Mas eu a entendo. É uma espécie de fanfarronada.
— Quem sabe se não é isso que estamos querendo, Afanássii Ivánovitch?
— Mas esse petit jeu tem que ser instalado em pranto e não em risadas — propôs a dama extravagante.
— Isso é impossível e absurdo — comentou Ptítsin.
— Teve êxito? — perguntou Nastássia Filíppovna.
— Qual nada, malogrou. Cada qual certamente contou qualquer cousa: alguns deles falaram a verdade, e, acredite a senhora, alguns até positivamente estavam sentindo prazer. Mas depois todo o mundo ficou envergonhado; não houve meio de se refazerem. No conjunto, porém, esteve engraçado, de certo modo, naturalmente.
— Realmente devia ter sido interessante — observou Nastássia Filíppovna, começando a se entusiasmar. — Experimentemos, senhores! De fato não estamos muito animados. Se cada um de nós consentir em dizer qualquer cousa... conforme o jogo... naturalmente! Por vontade própria. Ninguém é forçado a fazê-lo, hein? Quem sabe se conseguimos? Seja como for será original.
— É uma ideia genial! — disse Ferdichtchénko. — Mas as mulheres ficam excluídas; os homens que comecem. Tiraremos a sorte, como fizemos naquela ocasião. É preciso, é preciso! Se alguém não quiser entrar, não entra. Mas seria pena! Joguem as suas sortes aqui no meu chapéu, senhores; o príncipe misturará. Nada pode ser mais simples. Cada um tem que descrever a cousa pior que fez em sua vida, o que é pasmosamente fácil, senhores! Vão ver! Se alguém se tiver esquecido, incumbo-me de lhe avivar a memória.
A ideia pareceu muito extravagante; quase ninguém gostou. Alguns ficaram carrancudos, outros riam, dissimulando. Houve uns protestos fingidos. Iván Fiódorovitch, por exemplo, não querendo contradizer Nastássia Filíppovna, notara que ela estava atraída por aquela ideia, decerto por ser original e irrealizável. Nastássia Filíppovna sempre fora teimosa e inconsiderada ao manifestar qualquer desejo, mesmo que se tratasse dum capricho extremado que até a prejudicasse. E parecia estar agora em histerismo, indo e vindo, rindo espasmodicamente, de modo violento, principalmente ante os protestos inquietantes de Tótskii. Os seus olhos negros faiscavam e havia um fluxo héctico em suas faces pálidas. O ar algo decepcionado e inibido dos seus convivas possivelmente aumentava o seu irônico desejo de fazer aquele jogo. Talvez fosse o cinismo ou a crueldade da ideia que a atraísse. Uma parte do grupo, porém, percebeu que havia uma intenção toda especial nesses seus modos. Acabaram concordando. Seria curioso, afinal de contas; e para muita gente a perspectiva era tentadora. O mais excitado de todos era Ferdichtchénko.
— E se houver qualquer cousa que não possa ser dita diante de senhoras? — comentou timidamente o jovem taciturno.
— Ora, não será preciso contar essa. Haverá muitas outras ações imorais, além dessa! — respondeu-lhe Ferdichtchénko. — Ah! Essa gente moça!
— E como hei de eu saber qual das minhas ações é a pior? — titubeou a dama espaventada.
— Ficam as damas isentas dessa obrigação — repetiu Ferdichtchénko. — Mas apenas da obrigação: seja o que for que nasça de suas inspirações, será acolhido com gratidão! Os homens ficam, outrossim, isentos, se fizerem muita questão.
— Onde está a prova de que não estarei mentindo? — inquiriu Gánia. — E se minto, lá se vai o essencial do jogo! E como saber que ninguém está mentindo? Com certeza é o que se vai dar.
— Ora, pois até será uma cousa fascinadora ver que espécie de mentiras pode um homem pregar! Não há propriamente perigo algum em você contar mentiras, Gánia, visto nós todos sabermos a sua pior ação qual seja. E calculem agora, senhores — exclamou Ferdichtchénko em súbita inspiração — pensem apenas com que olhos nós nos olharemos uns para os outros amanhã, por exemplo, depois que tivermos contado nossos casos!
— Mas é isso possível? Você realmente está falando sério, Nastássia Filíppovna? — indagou Tótskii, com dignidade ofendida.
— Se está com medo dos lobos, não entre na floresta! — observou Nastássia Filíppovna, desdenhosamente.
— Deixe que lhe pergunte, Ferdichtchénko, que espécie de petit jeu pode uma pessoa achar nisso? — prosseguiu Tótskii cada vez mais inquieto. — Garanto-lhe que tais cousas redundam em fiasco. Você, por exemplo, já disse que não deu certo, aquela vez.
— Sim, sucesso nenhum. Ora, pois se eu apenas achei que a minha pior ação foi ter roubado três rublos! Foi a única cousa que lhes pespeguei!
— Ouso dizer: suponho que não houve possibilidade de você dizer isso a ponto de parecer verdadeiro e nem creio que tivessem acreditado! Gavríl Ardaliónovitch acabou de fazer ressaltar que a menor desconfiança de falsidade estragaria todo o jogo. Contar a verdade só é possível por acidente, através duma especial ostentação, aliás de péssimo gosto! É inconcebível e totalmente impróprio nesta sala.
— Mas que pessoa sutil é o senhor, Afanássii Ivánovitch! — exclamou Ferdichtchénko. — Positivamente, me surpreende! Ora calculem, senhores meus: observando, como observou, que não consegui contar a história do meu furto de maneira a fazê-la parecer verdadeira, Afanássii Ivánovitch dá a entender que suspeita, e da forma mais sutil, que eu não teria furtado, realmente (pois não seria gentil dizer alto o que ele pensa) e todavia, em seu íntimo, ele está convencido de que Ferdichtchénko pode muito bem ser gatuno. Mas vamos ao caso, senhores, vamos ao jogo! As sortes já foram ajuntadas e ponha também a sua aqui, Afanássii Ivánovitch, para que não haja quem se tenha recusado. Príncipe, sacuda! E tire!
Sem uma palavra o príncipe meteu a mão dentro do chapéu e o primeiro nome que tirou foi o de Ferdichtchénko, o segundo o de Ptítsin, o terceiro o do general Epantchín, o quarto o de Tótskii, o quinto o dele mesmo, o sexto o de Gánia, e assim por diante. As senhoras não tinham entrado nisso.
— Bom Deus, que calamidade! — exclamou Ferdichtchénko. — E eu que pensava que o primeiro fosse o príncipe e depois o general. Mas, graças a Deus, ainda bem que depois de mim vem Iván Petróvitch e serei compensado. Bem, senhores, preciso, naturalmente, dar um bom exemplo; mas o que mais lamento, de tudo, neste momento, é que eu não seja uma pessoa de categoria, distinguida por qualquer cargo — e nem mesmo duma classe hierárquica decente. Que interesse poderá haver para vós, que Ferdichtchénko tenha cometido algo de hediondo? E qual será a minha pior ação? Aqui há um embarras de richesse. Devo confessar o mesmo furto da outra vez, para convencer Afanássii Ivánovitch de que se pode furtar sem ser ladrão?
— E também está me convencendo, sr. Ferdichtchénko, de que é possível ter prazer, e até mesmo festejar a descrição duma ação imunda, por vontade própria. Mas... peço desculpas, sr. Ferdichtchénko.
— Comece logo, Ferdichtchénko, você está maçando demais! Comece logo duma vez! — insistiu Nastássia Filíppovna, com irritada impaciência.
Todo o mundo já notara que depois de sua risada histérica, ficara repentinamente mal-humorada, irritável, pouco cortês, teimando em seu selvagem capricho, com ar imperioso. Afanássii Ivánovitch sentia-se horrivelmente afrontado. Estava também furioso com Iván Fiódorovitch que dera para bebericar champanha, como se mais nada o afetasse. Pensando talvez o que contaria, quando a sua vez chegasse.
14.
— Eu não sou espirituoso, Nastássia Filíppovna, e é isso que me faz falar demais — exclamou Ferdichtchénko, começando a sua história. — Se eu fosse tão ajuizado quanto Afanássii Ivánovitch ou Iván Petróvitch, devia ter ficado quieto, refreando a minha língua, esta noite, como Afanássii Ivánovitch e Iván Petróvitch. Príncipe, permita que lhe pergunte: Que acha? Não lhe parece que haja no mundo muito mais homens ladrões do que não ladrões? E que não há no mundo um homem, por mais honesto, que nunca tenha, uma vez pelo menos, roubado qualquer cousa em sua vida? Essa é uma ideia minha, pela qual todavia não concluo que todos os homens sejam ladrões; no entanto, Deus bem sabe, muitas vezes sou tentado a isso. Que é que o senhor acha?
— Ufa! Que maneira estúpida de começar a história! — comentou a dama espalhafatosa, cujo nome era Dária Aleksiéievna. — E que bobagem! É impossível que todo o mundo haja roubado qualquer cousa. Eu nunca roubei nada.
— A senhora nunca roubou nada, Dária Aleksiéievna? Mas, que dirá o príncipe, que está ficando vermelho!?
— Acho que o que o senhor diz é verdade, apenas com bastante exagero — afirmou o príncipe que, de fato, sem motivo, estava enrubescendo.
— E o senhor, príncipe, o senhor aí, nunca roubou nada?
— Arre! Que cousa ridícula! Que confiança é essa, Ferdichtchénko? — atalhou o general.
— O senhor está mas é envergonhado de contar o que lhe concerne e por isso está tentando arrastar o príncipe para assim se desvencilhar!... — aparteou Dária Aleksiéievna.
— Ferdichtchénko, ou conte a sua história, ou feche a boca duma vez, e não se meta com os outros. Não há paciência que o suporte — disse Nastássia Filíppovna irritadamente, dum modo agudo.
— Um minuto, apenas, Nastássia Filíppovna; mas já que o príncipe confessou, pois insisto em que o que o príncipe disse valeu por uma confissão, que diria mais alguém (para não mencionar nomes) se me desse na telha ao menos uma vez falar a verdade? Quanto a mim, senhores, não é necessário dizer mais; o caso que vou contar é simples, estúpido e imundo. Mas lhes dou minha palavra que não sou gatuno. Não sei como cheguei a furtar. Isso aconteceu no ano retrasado, certo domingo, em casa de Semión Ivánovitch Ichtchénko, que recebera amigos para o jantar. Depois do jantar os cavalheiros ficaram sentados, ainda sob o efeito do vinho. Ocorreu-me pedir à sua filha, uma senhorita chamada Maria Semiónovna, que tocasse piano. E eu fiquei perambulando numa extremidade do salão. Sobre a mesa de trabalho de Maria Semiónovna estava uma nota de 3, rublos, dessas de papel verde. Devia tê-la tirado para alguma despesa. Não havia mais ninguém na sala. Peguei a nota e soquei-a no meu bolso. Para que, não saberei dizer. O que me levou a isso, não sei. Apenas vim, muito apressado, até o salão e me sentei à mesa onde fiquei quieto, esperando alguma cousa, excitadíssimo. Continuei a tagarelar, contei anedotas, dei gargalhadas. Depois fui ter com as senhoras. Cerca de meia hora depois deram por falta da nota e começaram a interrogar a criadagem. As suspeitas caíram numa de nome Dária. Mostrei extraordinário interesse e simpatia e recordo que, quando Dária estava totalmente zonza, me pus a persuadi-la a confessar, assegurando-lhe que a sua patroa seria generosa; e fiz isso alto, diante de todos. Todos prestavam atenção e eu sentia imenso prazer em passar uma raspança na criada. Enquanto isso a nota estava no meu bolso. Gastei aqueles três rublos em bebida, numa tasca, aquela noite mesmo; entrei e mandei vir uma garrafa de Lafitte. Nunca tinha pedido uma garrafa como essa, está claro. É que eu queria gastar o dinheiro duma vez. Não senti sobressaltos de consciência nem naquela ocasião, nem tempos depois. Cometeria outra vez o gesto, sem dúvida; podem acreditar, ou não, como preferirem; é-me indiferente. Ora aí está; foi tudo.
— Mas, sem dúvida essa não foi a sua pior ação — sentenciou Dária Aleksiéievna, com aversão incontida.
— Foi um caso psicológico e não uma ação — observou Tótskii.
Então, sem encobrir sua repugnância, Nastássia Filíppovna perguntou:
— E a criada?
— Foi mandada embora no dia seguinte, naturalmente. A família, nesses pontos, era estrita.
— E você deixou que isso acontecesse?
— Essa é boa! Ora essa, então eu haveria de ir e contar, eu? — torceu-se todo Ferdichtchénko, apesar de vexado pela péssima atmosfera causada pela história.
— Que horror! — exclamou Nastássia Filíppovna.
— Ora essa, a senhora quis ouvir a pior ação de um homem e estava a esperar uma cousa edificante! As piores ações dum homem são sempre repugnantes, Nastássia Filíppovna! Vamos ter a sanção disso diretamente através de Iván Petróvitch. A maioria das pessoas são brilhantes pelo lado de fora e desejam parecer virtuosas só porque têm carruagem própria. Todo o mundo tem carruagem. E por que meios?...
Ferdichtchénko de fato se zangara repentinamente, a ponto de se esquecer que estava ultrapassando os limites; toda a sua cara se distorcera grotescamente. É que lá consigo esperara outro efeito da sua história. Tais erros de tato, essa especial maneira de “cartear”, como Tótskii chamava a isso, acontecia muitas vezes com ele e estava especificamente em seu caráter.
Nastássia positivamente tremia de fúria, olhando sem parar para Ferdichtchénko. Ele acabou ficando deprimido e recaiu em atroz silêncio, quase gelado de desaponto. Tinha ido longe demais.
— Não seria melhor acabarmos com isso? — perguntou Tótskii, com veemência.
— É a minha vez, mas requeiro isenção, já que tenho direito. E deixo de contar — declarou categoricamente Ptítsin.
— Então você não quer?
— Não posso, Nastássia Filíppovna. E quer que lhe diga? Considero este petit jeu fora de propósito.
— General, parece que é a sua vez — lembrou Nastássia Filíppovna, virando-se para Epantchín. — Se o senhor recusar, nos desarticulamos todos e é pena, porque eu estava aguardando o fim para contar um incidente da minha própria vida. Mas só queria fazer isso depois de Afanássii Ivánovitch e do senhor, porque ambos me devem dar estímulo — acrescentou, rindo.
— Já que a senhora promete isso — exclamou o general, enfaticamente — estou pronto a contar-lhe a minha vida inteira; confesso que tenho a minha história pronta para a minha vez...
— E basta o ar de Sua Excelência para se julgar do especial prazer com que trabalhou a sua anedotazinha — ousou observar Ferdichtchénko, com um sorriso sarcástico, apesar de ainda não estar muito à vontade.
Nastássia Filíppovna olhou de esguelha para o general e também sorriu consigo mesma. Mas a sua depressão e irritabilidade estavam notoriamente aumentando a cada momento. Tótskii ficou mais alarmado ainda depois que ela prometeu contar também alguma cousa.
— Já me aconteceu, amigos, como a todos nós, cometer ações em minha vida que não fossem lá muito bonitas — começou o general. — É estranho que eu ainda considere o breve incidente que vou descrever como tendo sido a mais vil ação da minha vida. Já se passaram quase 35 anos e ainda não consigo conter uma dor no coração, se é que me exprimo bem, só em recordar. Trata-se, contudo, dum caso extremamente idiota; eu era, naquele tempo, simples tenente e estava abrindo a minha carreira no Exército. Ora, todos nós sabemos o que um tenente é: sangue moço e ardoroso, mas, dinheiro mesmo, nenhum! Eu tinha um ordenança, naqueles dias, chamado Nikífor, que era terrivelmente zeloso em minha defesa. Mexia-se, costurava, lavava, fazia a limpeza, e mesmo “requisitava” à direita e à esquerda com mão forte, para ajudar nossa manutenção caseira. Além de sincero, era honestíssimo. Eu era severo, mas justo. Aconteceu permanecermos certo tempo numa cidadezinha. Tinha-me acomodado num subúrbio, em casa da viúva dum tenente reformado. A velhota já passava dos oitenta anos. Morava numa pequena e antiga casa em ruínas, de madeira, e era tão pobre que nem criada possuía. E o pior é que ela em tempos tivera numerosa família e parentela. Alguns haviam morrido, outros se dispersado, e os demais a tinham esquecido. O marido morrera havia quase meio século. Durante anos uma sobrinha vivera com ela. Uma rapariga corcunda, má como uma bruxa, conforme dizia o povo. Até mordera uma vez o dedo da velha. Mas até essa falecera. De maneira que a velhinha estava lutando sozinha, havia já três anos. Eu me sentia medonhamente instalado lá e a mulher era tão obtusa que ninguém lhe podia arrancar nada de compreensível. Uma ocasião ela me roubou um galo. O caso nunca pôde ser tirado a limpo, até hoje, mas não havia mais ninguém, deve ter sido ela. Discutimos por causa do galo, mas discutimos feio e sério. E aconteceu que logo que requeri fui transferido para outro quartel, nos subúrbios do outro lado da cidadezinha, e me instalei na casa dum negociante, de imensas barbas e família patriarcal, lembro-me bem. Nikífor e eu estávamos muito contentes com a mudança. Eu deixara a velhinha, indignado. Três dias depois, vindo eu das manobras, Nikífor me informou: “Fizemos mal, Excelência, em deixar nossa terrina em casa daquela megera. Onde é que vou pôr a sopa, agora?” Foi surpresa para mim. “Como assim? — danei. — Como é que você esqueceu a terrina lá?” Então, muito espantado, Nikífor me relatou que, quando estava mudando os nossos cacarecos, a mulherzinha não entregara a terrina em represália a lhe termos quebrado a tigela. Ficava com a terrina em lugar da tigela, declarando que eu é que resolvera isso para indenizá-la. Tal manha naturalmente me enfureceu. Isso faria ferver o sangue de qualquer jovem oficial. Dei um pulo e me precipitei para lá. Estava fora de mim, se assim me posso exprimir, quando cheguei à casa da anciã. Dei com ela sentada na soleira, acocorada num canto, sozinha, como a apanhar sol, o queixo apoiado na mão, o cotovelo no joelho. Desfechei-lhe uma torrente de berros, chamando-a de toda a sorte de nomes; bem sabem como é boa a gíria russa. Mas uma cousa me parecia estranha, à medida que eu a olhava: estava com a cara voltada e um pouco erguida para mim, os olhos muito redondos e fixos, e não respondia água-vai. Olhava-me de maneira esquisita, parecia vacilar para a frente, e só acabei de descompô-la quando a minha fúria se esgotou. Encarei-a, fiz-lhe perguntas, e ela: nada! Fiquei meio sem jeito. Moscas zuniam, o sol descambava e reinava uma tranquilidade, por ali... Completamente desconcertado, fui embora. Antes de chegar a casa compareci à presença do major que me disse que fosse à companhia; de maneira que não voltei para casa senão quando já era bem noite. E eis as primeiras palavras de Nikífor: “Pois não é, Excelência, que a nossa velhinha morreu?” “Morreu, quando?” “Ora, esta tardinha, há cerca duma hora e meia.” Assim, pois, mesmo na hora em que eu a estava descompondo ela teve o seu trespasse. Isso me causou tamanha impressão que não pude suportar. O pensamento não me largava. De noite, era na certa: tinha que sonhar com isso. Não sou supersticioso, absolutamente, mas, dois dias depois, lá estava eu na igreja, no seu funeral. E na verdade, quanto mais o tempo passa, mais isso me reaparece. Não são aparições, propriamente, mas agora, como então, se me afigura vê-la ainda. E fico atordoado. Cheguei à conclusão de que o remorso consiste nisto. Em primeiro lugar, era uma mulher. Claro! Uma pobre criatura, uma criatura humana, como deram para dizer hoje em dia. Tinha vivido, vivido uma longa vida, vivido demais. Outrora tivera filhos, marido, família, parentes — tudo isso tagarelando, rindo, não é mesmo? Enfim, a vida em redor dela. E em seguida, duma vez para sempre, completo vácuo, tudo acabara, fora deixada sozinha, como... mosca execrada desde o começo do tempo. E só depois, no fim, é que Deus a levara, ao pôr do sol, numa sossegada tarde de verão, pobre da minha velhota se indo embora para sempre! Um tema para uma piedosa reflexão, não há a menor dúvida. E eis que bem nesse momento, em vez de lágrimas que a acompanhassem, não é mesmo? um estourado dum tenenteco, espetaculosamente, com as mãos na cinta lhe faz cena reles e miserável, enquanto ela deixa a superfície da terra, com a fanfarra russa dos meus desaforos por causa duma terrina! Naturalmente eu tinha razão para a descompor, mas mesmo assim, com o correr dos anos a mudança de temperamento, acabei desde há muito encarando a minha ação como a dum outro homem que não eu; e ainda tenho remorsos. Isso, pois, repito, me parece extravagante; pois, se tive de que me zangar, por que ficar assim? Que raio lhe deu na cabeça para morrer bem naquele momento? Naturalmente há apenas uma explicação: que o que eu fiz foi de certo modo mórbido. E como não conseguisse paz de espírito, quinze anos depois, ainda, tomei a meu cargo duas velhas incuráveis num asilo, a fim de lhes suavizar os últimos dias de existência terrestre com um ambiente confortável. Penso legar-lhes uma soma de dinheiro para uma aplicação perpétua. E é tudo, a respeito. Repito que posso ter feito outras cousas más em minha vida; mas este incidente, eu escrupulosamente o considero a pior ação da minha vida.
— Pois em vez da pior, Vossa Excelência descreveu uma de suas mais belas ações. O senhor me logrou! — comentou Ferdichtchénko.
— Efetivamente, general, nunca imaginei que o senhor tivesse um coração tão bom, apesar de tudo. Chego a lastimar-me — disse Nastássia Filíppovna descuidadamente.
— Lastima-se, por quê? — indagou o general com um sorriso afável; e, não sem complacência, sorveu o seu champanha.
Mas era agora a vez de Tótskii e ele também se tinha preparado. Todo o mundo pensara que ele se recusaria com Ptítsin. Ainda assim todos, por certas razões, esperavam com curiosidade a sua confissão. E, ao mesmo tempo, espiavam Nastássia Filíppovna.
Com um extraordinário ar de dignidade que condizia com a sua majestosa aparência, Afanássii Ivánovitch começou com sua voz calma e polida a contar uma de suas “encantadoras anedotas”. Ele era, diga-se de passagem, um homem de fina aparência, dignificante estampa, alto, corpulento, um pouco calvo e ficando já grisalho. Tinha bochechas rosadas, flácidas e dentes postiços. Usava roupas amplas e bem cortadas e camisas de preço. Quanto às suas mãos quase redondas e brancas, dava prazer olhá-las. Usava num dos dedos da mão direita um anel de caríssimo diamante.
Enquanto esteve contando a sua história, Nastássia Filíppovna ficou contemplando sem parar a renda pregueada de sua manga, alisando-a com dois dedos da mão esquerda. Não olhou nem mesmo de relance para o locutor.
— O que torna a minha tarefa mais fácil — começou Afanássii Ivánovitch — é a estrita obrigação de descrever a minha ação mais vil em toda a minha vida. E em tal caso não pode haver hesitação. A consciência e a manifesta voz do coração ditam logo o que se deva dizer. Confesso com amargura que, entre todas as inumeráveis e decerto frívolas e impensadas ações de minha vida, uma há cuja impressão ficou algo mais forte, vincando o meu espírito. Aconteceu aproximadamente há vinte anos. Estagiava eu no campo com Platón Ordíntsev. Ele acabara de ser nomeado marechal da nobreza e viera com sua jovem esposa, Anfíssa Aleksiéievna, para aí passar as suas férias de verão. Fora isso pouco antes do dia de seu aniversário e dois bailes tinham sido arranjados. Por aquele tempo a encantadora novela de Dumas Filho La Dame aux Camélias estava no ápice da moda e fazendo grande sensação na sociedade. Trata-se duma obra que, em minha opinião, jamais envelhecerá ou desaparecerá. Nas províncias provocava êxtase em todas as damas, pelo menos nas que a tinham lido. O encanto da novela, a originalidade da situação do principal caráter, aquele mundo fascinante analisado tão sutilmente, e os admiráveis incidentes disseminados pelo livro (por exemplo, o uso de buquês com camélias brancas e cor-de-rosa alternativamente), todos aqueles encantadores pormenores, com efeito, e todo o ensemble causavam uma subjugadora sensação. As camélias tornaram-se extraordinariamente em moda. Todo o mundo as queria, todo o mundo procurava obtê-las. Agora lhes pergunto eu se era possível arranjar camélias assim, num distrito na campanha, quando a procura é enorme, mesmo não havendo muitos bailes? Pétia Vorkhovskói estava rompendo o coração nesse tempo, coitado, por causa de Anfíssa Aleksiéievna. Realmente não sei se havia qualquer cousa entre eles, isto é, quero dizer, se ele apoiava suas esperanças com quaisquer razões. O coitado andava louco por camélias. Para Anfíssa Aleksiéievna, para a noite do baile. A Condessa Sótskaia, uma nobre de Petersburgo, em visita à mulher do governador, e Sófia Bezpálova viriam, sabia-se ao certo, com buquês de camélias brancas. Anfíssa Aleksiéievna ansiava por despertar sensação com camélias rubras. O pobre Platón estava quase ficando maluco — naturalmente, pois se ele era o marido! Prometera procurar as flores. Querem saber o que sucedeu? Exatamente na véspera do baile todas as camélias foram adquiridas por Ekaterína Aleksándrovna Mitíchtcheva, uma terrível rival de Anfíssa Aleksiéievna. E rival em tudo. Só faltou puxarem punhais! Naturalmente houve ataques e chiliques. Imaginem os apuros de Platón. Está-se a ver que se Pétia fosse capaz de arranjar um buquê nesse momento crítico, suas chances melhorariam muito. A gratidão duma mulher, em tais casos, é ilimitada. Ele voou como um louco; mas era uma empresa difícil e nem adiantava falar nisso. E eis que de repente o encontro às onze horas da noite na véspera ainda do aniversário e do baile que seria dado por Madame Zubkóva, vizinha dos Ordíntsev. Estava radiante. “Que é que há?” “Encontrei! Heureca!” “Bem, meu caro, és formidável. Onde? Como?” “Em Iekcháisk, um lugarejo a quinze verstas daqui, fora já do nosso distrito. Mora lá um mercador como esses de antanho, riquíssimo, chamado Trepálov; ele e a mulher, em vez de filhos, criam canários. E têm ambos a paixão das flores! E o homem tem camélias.” “E se não for verdade? E se ele não as quiser dar?” “Atiro-me de joelhos e me humilho a seus pés até que ceda. Não saio de lá sem elas.” “Quando vais buscá-las?” “Amanhã cedo, ao clarear, às cinco da madrugada.” “Bem, então sê feliz.” Palavra que me senti contente, também eu. Voltei para casa de Ordíntsev. Bateu uma hora da madrugada, e eu ainda estava pensando. Resolvi deitar-me; nisto, uma ideia muito original me veio. Embarafustei para a cozinha, acordei Savélii, o cocheiro, e lhe disse, dando-lhe quinze rublos: “Arranje-me os cavalos em meia hora.” Dito e feito. Meia hora mais tarde o trenó estavaca no portão. Tinham-me dito que Anfíssa Aleksiéievna estava com febre por causa da enxaqueca, e delirando! Entrei para o trenó e saí a toda. Antes das cinco estava eu em Iekcháisk, na estalagem. Esperei que rompesse o dia. E nada de clarear! Afinal, às sete horas, cheguei à casa de Trepálov. Falei sobre isso e aquilo, até que perguntei: “Terá o senhor camélias? Bom bátiuchka, ajude-me, salve-me! Inclino-me, arrojo-me aos seus pés!” O velho era um homenzarrão, de cabeça grisalha, severa, um velho que dava medo. “Não, não! Lá por isso, não. Que é que há de parecer?” Arrojei-me aos pés dele. Positivamente caí sobre o assoalho. “Não faça isso! Ora essa!” E ficou aparvalhado. “É que está em risco uma vida humana”, berrei-lhe. “Bem, neste caso, leve-as, em nome de Deus.” Cortei todas as camélias vermelhas. Eram maravilhosas, esquisitas. Havia uma estufa cheia assim. O velho até suspirava. Tirei uma nota de 100 rublos. “O senhor está me insultando!” “Então, pelo menos, valoroso senhor, entregue estes 100 rublos ao hospital local, para mantimentos e outras despesas.” “Bem”, disse o velho, “agora a cousa muda de figura; é uma obra meritória e nobre que compraz a Deus. Darei este dinheiro ao hospital, para que rezem pela sua saúde.” Aquele velho russo de boa têmpera me agradou; era um russo de cem costados, de la vraie souche! Radiante, voltei. Mas por um caminho diferente, para evitar encontrar Pétia. Mal acabei de chegar enviei o imenso ramalhete a Anfíssa Aleksiéievna, com meus cumprimentos, quando acordasse. É fácil imaginar o seu júbilo, a sua gratidão, as suas lágrimas de alegria. Pláton, que na véspera estava até sem fôlego, soluçou sobre o meu peito. Arre! Todos os maridos são a mesma cousa, desde a criação do matrimônio legal. Não quero aventurar-me a dizer mais, mas as chances de Pétia acabaram completamente, depois deste episódio. No começo calculei que ele ao descobrir o que eu fizera quisesse me matar! Tanto que me preparei para o encontro; mas chego a não acreditar no que aconteceu. Sabem o que foi? Ele teve uma síncope; passou a noite delirando e no dia seguinte estava com febre cerebral e arquejava como uma criança; teve até convulsões. Um mês mais tarde, ao entrar em convalescença, inscreveu-se como voluntário e foi para o Cáucaso. Parece romance. Acabou sendo morto na Crimeia. Naquele tempo o seu irmão, Stepán Vorkhovskói, comandava um regimento; Pétia distinguiu-se na batalha. Confesso que sinto agulhadas na consciência mesmo tantos anos depois. Ora, com que fim lhe desferi eu um tal golpe? E nem se diga que eu, então, estivesse também apaixonado. Foi mera travessura oriunda dum flerte; nada mais. Se eu não lhe tivesse arrebatado aquele buquê — quem sabe? — o homem podia estar vivo ainda hoje, podia ter sido feliz, podia ter triunfado. E nunca lhe teria passado pela cabeça ir brigar com os turcos!
Afanássii Ivánovitch acabou de falar com a mesma majestosa dignidade com que tinha começado. O grupo ali reunido notou que havia uma luz estranha nos olhos de Nastássia Filíppovna. Quando ele rematou a sua história, os lábios dela se contraíram. Todo o mundo prestava atenção em ambos, com uma curiosidade muito especial.
— Enganaram Ferdichtchénko! Olá, se enganaram! Isto realmente é que é fraude! — exclamou Ferdichtchénko, com voz lacrimosa, vendo que urgia dizer alguma cousa.
— E de quem é a culpa, se você não soube ganhar? Então você pensa que esta gente aqui é imbecil? — Quem assim lhe cortou a palavra foi Dária Aleksiéievna, antiga e sincera amiga e aliada de Tótskii.
— Você tem razão, Afanássii Ivánovitch, o jogo é muito insípido e precisamos acabá-lo ligeiro — comentou Nastássia Filíppovna com ar descuidado. — Contarei o caso que prometi e logo os deixarei à vontade; poderão até jogar cartas.
— Mas antes disso, a sua anedota prometida — concordou o general, calorosamente.
Então, sem que ninguém esperasse, Nastássia Filíppovna se virou subitamente para Míchkin.
— Príncipe, aqui os meus velhos amigos, o general Epantchín e Afanássii Ivánovitch, querem que eu me case. Diga-me que é que o senhor acha. Devo casar-me, ou não? O que o senhor disser, eu farei.
Afanássii Ivánovitch tornou-se lívido. O general ficou petrificado. Todo o mundo olhou cheio de espanto e perplexidade. Gánia enterrou-se onde estava.
— Com... quem? — perguntou o príncipe com voz quase imperceptível.
Firmando bem a voz, Nastássia Filíppovna pronunciou devagar:
— Com Gavríl Ardaliónovitch Ívolguin.
Seguiram-se alguns segundos de silêncio. O príncipe parecia estar lutando para falar; e era como se um terrível peso, em seu peito, não o deixasse proferir palavra.
— N...ão... não vos caseis com ele — sussurrou, por fim, e respirou angustiadamente.
— Então, assim será! — Voltou-se imperiosamente e com ar de triunfo para Gánia: — Gavríl Ardaliónovitch, escutou a decisão do príncipe? Bem, a resposta dele é a minha resposta! E esta é a solução do caso, duma vez para sempre!
— Nastássia Filíppovna! — Ela olhou. Era Tótskii, com voz trêmula.
— Nastássia Filíppovna! — Era o general em tom persuasivo, mas agitado.
Houve comoção geral, quase tumulto.
— Que é que há, amigos? — prosseguiu ela, encarando os convidados, surpreendida. — Por que estão tão perplexos? Mas que fisionomias!
— Mas... você se esqueceu, Nastássia Filíppovna — balbuciou Tótskii gaguejando — que havia feito uma promessa, aliás voluntária, e que poderia ter poupado, em parte... Estou estupefato... é lógico, não compreendo... mas, enfim... fazer isso... diante de tanta gente... numa hora destas, e fazer da forma por que fez, como um petit jeu, num caso que afeta a honra e o coração... um caso que envolve...
— Não o compreendo, Afanássii Ivánovitch. Quer saber duma coisa? Você nem sabe o que está dizendo. Em primeiro lugar que quer você dizer com “diante de tanta gente”? Não estamos nós diante de caros e íntimos amigos? E petit jeu, como? Por quê? Eu realmente pretendia contar a minha anedota! Pois não é que a contei? E não foi bonita? Por que há de então você dizer que isso não é sério? Então, não é sério? Você bem que me ouviu avisar o príncipe: “O que o senhor disser, eu farei.” Se ele tivesse dito: “Sim!”, eu imediatamente teria dado o meu consentimento. Mas ele disse: “Não!”, e eu recusei. Então não foi sério? Pois se toda a minha vida estava oscilando numa balança! Mais sério do que isso?!
— Mas o príncipe... que tem o príncipe com isso? E quem é o príncipe, afinal de contas? — murmurou o general não podendo reprimir a sua indignação ante a autoridade (que o ofendia) dada ao príncipe.
— Ora, o que o príncipe tem com isso é que ele é o primeiro homem que encontrei em toda a minha vida, e em quem acreditei como num sincero amigo. Ele acreditou em mim, mal me viu, e eu nele.
— Só me resta agradecer a Nastássia Filíppovna, pela extraordinária delicadeza com que... me tratou — articulou, finalmente, em voz entrecortada, mal abrindo os lábios hirtos, Gánia, muito pálido. — Respeito sua decisão... naturalmente! Mas... o príncipe... pôr o príncipe neste assunto!...
— É por causa dos 75 mil rublos? Não é o que você quis dizer? — interrompeu-o, repentinamente, Nastássia Filíppovna. — Quis você se referir a isso? Não o negue, você certamente pensou nisso. Afanássii Ivánovitch, esqueci-me de acrescentar, ficam sem efeito os 75 mil rublos que me ofereceu! E deixe-me assegurar-lhe que o desembaraço de bom grado. Basta! Já era tempo de você também ficar livre. Nove anos e três meses! Amanhã, vida nova! Mas hoje é meu dia onomástico e pela primeira vez em minha vida inteira estou fazendo o que quero. General, tome outra vez as suas pérolas; dê-as à sua mulher. Ei-las! Amanhã deixarei este apartamento, por bem, de maneira que não haverá mais recepções, amigos!
Dito isso, logo se levantou, como se pretendesse ir embora.
— Nastássia Filíppovna! Nastássia Filíppovna!... — ouvia-se de todos os lados. Todos estavam emocionados, levantando-se e rodeando-a, tendo ouvido, boquiabertos, aquelas palavras impetuosas, febris e desesperadas. Todos sentiam que havia qualquer cousa errada que não era possível explicar nem descobrir. Bem nesse momento a campainha tocou violentamente. Tão violentamente como, aquela tarde, a do apartamento de Gánia.
— Ah! É a solução! Afinal! Já são onze e meia? — exclamou Nastássia Filíppovna. — Peço-vos, amigos, que vos senteis. É a solução!
Dizendo isso, deu o exemplo, sentando-se de novo. Um riso estranho lhe crispava os lábios. Ficou calada, em febre, olhando para a porta.
E então, lá consigo, Ptítsin adivinhou: “Sem dúvida, é Rogójin com os seus 100 mil rublos!”
15.
Kátia, a camareira, entrou muito aflita.
— A senhora não imagina, Nastássia Filíppovna! Mais de dez homens! Quase arrombaram a porta! E bêbedos como nunca vi. E pretendem ser recebidos. Dizem que se trata de Rogójin e que a senhora sabe.
— Está bem, Kátia. Introduza-os para aqui, imediatamente.
— A senhora não imagina como eles estão, Nastássia Filíppovna... em que estado lastimável. Credo!...
— Que entrem todos, Kátia, sem exceção. Não tenha medo. Do contrário entram mesmo que você se oponha. Que rebuliço estão fazendo! Até parece esta tarde. Acaso aqui os meus amigos se sentirão ofendidos — voltou-se para os seus convidados — por eu receber um bando desta ordem? Lastimo, e desde já peço perdão. Mas não há outro jeito e estou ansiosa que consintam em ser testemunhas desta cena final. Espero e confio que isso não os moleste...
Os convidados continuaram atônitos, entreolhando-se e ciciando. Era perfeitamente claro que aquilo tudo fora calculado e arranjado de antemão, e que Nastássia Filíppovna agira num momento de paroxismo, impossível lhe sendo agora remediar tal conjuntura. A curiosidade os atiçava; motivos para pânico não existiam, visto haver somente duas mulheres entre os convivas: Dária Aleksiéievna, uma dama desembaraçada que conhecia o lado pior da vida, não tendo portanto do que se escandalizar, e a formosa mas impassível estrangeira. E essa taciturna estrangeira mal entendia o que se estava passando; era alemã, recém-chegada à Rússia, não sabia uma única palavra eslava e era tão obtusa quanto bonita. Tratavam-na como uma novidade, sendo moda convidá-la para recepções; comparecia suntuosamente vestida, penteada como para uma exibição teatral; faziam-na sentar na sala de visitas como uma decoração encantadora, da mesmíssima forma com que pessoas há que pedem às vezes a amigos, como empréstimo para uma festa de cerimônia, uma tela, uma estátua, uma porcelana ou um mármore de enfeitar lareira.
Quanto aos homens, por sua vez, Ptítsin, por exemplo, era amigo de Rogójin; Ferdichtchénko estava no seu elemento; Gánia, conquanto ainda não refeito, se sentia dominado pelo irresistível impulso de suportar a ignomínia até ao fim; o velho mestre-escola, que apenas poderia ter uma noção difusa do que iria acontecer, esse, de fato, estava quase em lágrimas e literalmente acovardado, tremendo de susto ante a agitação fora do comum que reinava na sala e no vestíbulo; tudo isso porque o adorava Nastássia Filíppovna como se fosse sua neta; numa circunstância destas preferia morrer a sair dali.
Pelo que dizia respeito a Tótskii devera ele, naturalmente, ter tomado antes suas providências para não se comprometer em aventuras semelhantes; mas o caso o interessava demasiado, mesmo a tão desmedido preço moral. Sem contar que Nastássia Filíppovna deixara escapar ainda agora duas ou três palavras favoráveis a ele, e isso já seria motivo por si só para não se ir embora sem que o caso se clareasse. Resolveu permanecer e ficar calado, limitando-se apenas a observar, conforme exigia a sua dignidade.
O general Epantchín, ofendido abertamente com a ridícula devolução do seu presente, só podia se sentir mais agravado ainda com a entrada de Rogójin e as excentricidades anteriores. Um homem da sua posição já se rebaixara bastante, com efeito, sentando-se ao lado de Ptítsin e de Ferdichtchénko. E mesmo que a paixão pudesse haver contribuído para isso, não podia ele já agora deixar de tomar atitude, retirando-se, movido por um sentimento de dever que emanava concludentemente da sua classe, da sua importância e do respeito que devia a si mesmo. Ora, todas estas razões corroboravam para a impossibilidade da presença de Rogójin numa sala onde Sua Excelência estivesse.
— Ah! General... — interrompeu-o logo Nastássia Filíppovna quando ele ia lançar o seu protesto. — Eu me havia esquecido. Ainda bem que a lembrança me acudiu a tempo. Se isto é uma ofensa que o atinge, meu caro general, não sou eu quem insistirá em conservá-lo nesta casa. E isso por mais que eu estivesse, como deveras estou, ansiosa por merecer a honra de tê-lo ao meu lado numa conjuntura tão especial como é a desta hora. Seja como for, agradeço-lhe muito, levando em conta a sua amizade de sempre e a sua atenção lisonjeira para comigo. Assim, pois, se estiver com receio...
— Permita-me, Nastássia Filíppovna! — exclamou o general, num rasgo de sentimento cavalheiresco. — A quem está a senhora dizendo isso? É tão só por devotamento para com a senhora, que resolvo permanecer ao seu lado, agora. E se houver algum perigo... Além do que, por que não confessar que estou profundamente apreensivo? Isto é, quero referir-me a que vão estragar seus tapetes e talvez quebrar cousas... E a senhora não devia se expor pessoalmente, a meu ver, Nastássia Filíppovna.
— Rogójin! Lá vem ele! — anunciou Ferdichtchénko.
Enquanto isso o general segredava a Tótskii apressadamente:
— Qual é a sua impressão? Não lhe parece também que ela perdeu o juízo? Não falo alegoricamente. Falo no sentido literal. Hein?
— Já muita vez lhe contei que ela sempre teve predisposição para isso — sussurrou Tótskii, disfarçando.
— E creio, além do mais, que ela está com febre...
Rogójin se fazia acompanhar mais ou menos pelo mesmo séquito daquela tarde. Havia só mais dois acréscimos no grupo. Um velho descarado, outrora editor dum jornal de má reputação, difamador, e de quem corria a história de que, por causa de bebida, tinha posto no penhor a dentadura, montada sobre ouro; e um subtenente, rival, por ofício e por título, do homem do boxe. Era completamente desconhecido de todos os do bando de Rogójin, mas fora apanhado na rua, no lado do sol da avenida Névskii, onde costumava fazer parar os pedestres, pedindo auxílio, numa linguagem de Marlínskii, falsamente alegando que, em seus tempos de rico, o mínimo que dava de esmola eram 15 rublos de cada vez. E os dois rivais imediatamente haviam tomado mútua atitude hostil. O indivíduo dos punhos considerara-se afrontado com esse acréscimo ao grupo. Calado por natureza, simplesmente grunhia como um urso, de quando em quando, e com profundo desprezo olhava para os estratagemas do rival que, tendo sido homem do mundo e diplomata, tentava obter boas graças, insinuando-se. O subtenente prometera, a julgar pelas aparências, maior “execução técnica” e desteridade, “no trabalho”, do que propriamente força, pois era menor do que o homem das munhecas. Delicadamente, e sem entrar em competição declarada, embora se vangloriando insistentemente, aludia reiteradamente à superioridade do boxing inglês. O que ele tinha mais era ar de um campeão da cultura ocidental. O dono das munhecas apenas sorria com desprezo e insolência, não se dignando contradizer abertamente o rival, muito embora, de quando em vez, lhe mostrasse, silenciosamente movendo-o por acidente, quase nas fuças, um argumento profundamente nacional — um desproposital, musculoso e proeminente punho coberto de abundantes pelos ruivos. E assim ficava perfeitamente esclarecido para cada um que, se esse argumento genuinamente nacional tivesse que ser empregado às direitas por qualquer motivo, reduziria tudo a massa informe.
Graças aos esforços de Rogójin, que estivera durante todo o dia fazendo preparativos para a visita a Nastássia Filíppovna, ninguém do grupo estava bêbedo demais. Ele mesmo, por enquanto, estava até bem sóbrio, embora bastante estupidificado com o número de sensações por que passara nesse caótico dia em nada comparável a quaisquer outros de toda a sua vida anterior. Apenas uma cousa teimava em ficar aderida ao seu espírito e ao seu coração e de que se dava conta a todo instante e a todo minuto. Por causa dessa cousa passara todo o tempo, das cinco horas da tarde às onze da noite, em contínua agonia e ansiedade, brigando com Kínder & Biskúp, judeus e agiotas, que também se mexiam como loucos por causa dele. Tinham eles, apesar dos pesares, conseguido levantar os 100 mil rublos sobre os quais Nastássia Filíppovna, por zombaria, fizera uma rápida e vaga menção. Mas o dinheiro fora arranjado à razão de juros tais, que mesmo Biskúp não se aventurou a contar a Kínder senão ao ouvido, num sussurro de espanto.
Da mesma maneira que de tarde, Rogójin caminhava à frente; os demais o seguiam um pouco sem jeito, embora perfeitamente cônscios de seus papéis. O que mais temiam — Deus sabe por quê — era Nastássia Filíppovna. Muitos estavam mesmo convencidos de que seriam sem a menor cerimônia “postos escadas abaixo, a pontapés”, e entre estes estava o dândi e dom-joão Zaliójev. Outros, porém — e o mais importante era o homem dos punhos — acariciavam em seus corações profundo embora tácito desprezo e mesmo cólera por Nastássia Filíppovna, e haviam entrado na casa dela, a fim de pô-la em tempestade. Mas só a magnificência das duas primeiras salas, com cousas em que sequer tinham jamais ouvido falar, quanto mais visto, o mobiliário escolhido, os quadros, a Vênus de tamanho natural, tudo despertara neles um indômito sentimento de respeito e até de medo. Isso não os impediu, porém, de gradualmente se aglomerarem com insolente curiosidade na sala de visitas, atrás de Rogójin. Mas quando o homem dos punhos, o seu rival e mais alguns outros deram com o general Epantchín entre os convidados ficaram instantaneamente tão sucumbidos, que imediatamente procuraram retroceder para a sala anterior. Liébediev se achava entre os mais despachados e resolutos e caminhava quase rente de Rogójin, tendo alcançado a verdadeira significação duma fortuna de um milhão e quatrocentos mil rublos, cem mil dos quais já embolsados. Convém observar, não obstante tudo isso, que todos eles, sem exceção, inclusive o espertalhão de Liébediev, estavam um pouco incertos quanto aos limites reais de suas forças, não sabendo mesmo se seriam capazes de fazer quanto quisessem ou resolvessem. Liébediev tivera o desplante de jurar pouco antes que agiriam; mas agora se sentia inquietantemente impelido a lembrar vários artigos do código penal, muito taxativos e categóricos.
Sobre o próprio Rogójin, Nastássia Filíppovna produziu uma impressão muito diferente da produzida em seus asseclas. Logo que a cortina da porta foi erguida e ele a viu, tudo o mais cessou de existir para ele, como já acontecera naquela manhã; e até mesmo de modo mais absoluto do que então. Ficou pálido e por um minuto se deteve, atônito. Deve-se conjecturar que o seu coração estava batendo violentamente, enquanto pasmava para ela timidamente, sem poder, no seu desespero, desprender dela os olhos. De súbito, como se tivesse perdido a razão, vacilando, prosseguiu até chegar perto da mesa. Antes de lá chegar tropeçou na cadeira de Ptítsin e pisou com suas enormes botas imundas na cauda compacta do magnífico e caro vestido azul da estúpida beldade alemã. Nem se desculpou, nem percebeu. Depôs sobre a mesa um estranho objeto que carregava com as duas mãos ao atravessar a sala de visitas. Era um grande pacote de seis polegadas de largura e oito de comprimento, embrulhado num número da Gazeta da Bolsa, atado com duas voltas de barbante, como os embrulhos de pães de açúcar. Ficou parado, sem proferir uma palavra, e deixou cair os braços à espera da sua sentença. Estava vestido exatamente como antes, exceto quanto a um largo lenço de pescoço, de seda vermelha e verde, onde espetara um grande diamante em forma de besouro e mais um anel com outro diamante num dedo sujo da sua grossa mão direita.
A três passos da mesa parou Liébediev, os outros, como já disse, foram entrando gradualmente na sala de visitas. Kátia e Pácha, criadas de Nastássia Filíppovna, muito aflitas e nervosas, puseram-se a olhar pela nesga da cortina repuxada.
— Que é isto? — perguntou Nastássia Filíppovna, medindo Rogójin com uma viva atenção e olhando depois de soslaio para o embrulho.
— Cem mil rublos! — balbuciou Rogójin.
— Oh! Então manteve a sua palavra? Que homem! Sente-se, faça o favor, aqui nesta cadeira; tenho uma cousa a lhe dizer, ainda. Que gente é essa? A mesma? Bem, faça-os entrar e sentar. Sirvam-se deste sofá aqui e daquele outro acolá. Ali estão duas poltronas vagas. Que é que eles têm? Não estão querendo?
É que alguns estavam completamente envergonhados e, recuando, procuravam lugar na outra sala. Outros ficaram, sentando onde lhes foi indicado, a certa distância da mesa, os restantes ficando pelos cantos. Se um ou outro quis ir embora, a maioria, porém, recuperou a audácia com incrível rapidez.
Rogójin, que obedecera sentando onde lhe fora indicado, achou melhor se levantar de vez, decerto para poder distinguir e examinar os convidados. Viu Gánia, sorriu maldosamente e lhe sussurrou: “Olá!” Fitou o general e Tótskii apaticamente, sem interesse nem inferioridade. Mas quando deu com o príncipe ao lado de Nastássia Filíppovna, admirou-se tanto que levou muito tempo para poder despregar os olhos perplexos, sem compreender aquela presença. Cuidou até que fosse delírio seu, consequência não só das violentas emoções desse dia inteiro como do cansaço da noite anterior, havendo mais de quarenta e oito horas que não dormia.
Mais eis que Nastássia Filíppovna se dirigiu aos convidados numa espécie de desafio febril e vivaz:
— Amigos, estão vendo este embrulho aqui em cima da mesa? São cem mil rublos! Cem mil rublos embrulhados nesse pacote imundo. Hoje de tarde este homem gritou como um possesso que haveria de me trazer cem mil rublos esta noite! E estive esperando todo este tempo. Decidiu arrematar-me em leilão. Começou com um lance de 18 mil, depois passou dum salto, inopinadamente, para 40 mil e depois até aqueles 100 mil que ali estão. Manteve sua palavra. Oh! Como ele está lívido!... Deu-se isso em casa de Gánia, na tarde de hoje. Tendo eu ido em visita à mãe dele no meu futuro lar, a irmã vociferou nas minhas faces: “Por que não expulsam daqui essa criatura desavergonhada?” E cuspiu na cara do irmão. É uma rapariga de caráter!
— Nastássia Filíppovna! — advertiu-a o general Epantchín que estava começando a compreender a situação.
— Que é, general? Acha impróprio? Vamos deixar de lérias! Preferia o senhor que eu me sentasse no camarote do Teatro Francês como um inacessível modelo de virtude? Que eu corresse como uma corça selvagem de todos quantos me andaram perseguindo nestes últimos cinco anos, e desfrutasse ares de soberba inocência, tudo como se eu fosse uma criatura imbecil? Aqui, na presença de todos, ele veio e depôs cem mil rublos sobre a mesa, após estes meus cinco anos de inocência! E não há dúvida que trouxeram troicas que estão lá fora me esperando. Ele me avalia em cem mil rublos. Gánia, pois não é que você ainda está com ar de estar zangado comigo? Teria você imaginado, realmente, que eu poderia fazer parte de sua família? Eu, a mulher de Rogójin? Que foi que o príncipe disse ainda agora?
— Eu não disse que éreis de Rogójin! Vós não pertenceis a Rogójin! — proferiu o príncipe com uma voz entrecortada.
— Nastássia Filíppovna, deixa disso! Deixa disso, querida! — disse Dária Aleksiéievna, não se podendo conter. — Se te agoniam tanto, então larga-os! Mas como tens coragem, realmente, de ir-te com um sujeito como esse, mesmo por cem mil rublos? Concordo que cem mil rublos é alguma cousa! Fica com os cem mil rublos e manda-o às favas! É assim que se trata essa canalha! Ah! Estivesse eu em teu lugar, punha-os todos na rua!... Palavra de honra.
Dária Aleksiéievna estava positivamente irada. Ela que era uma mulher de natural calma, conquanto muito impressionável.
— Não te encolerizes, Dária Aleksiéievna! — riu para ela Nastássia Filíppovna. — Pois se eu, que sou eu, não falei com cólera! Zanguei-me porventura? Apenas não posso compreender que bobagem me deu de querer entrar para a família daquele ali. Vi a mãe dele. Beijei a mão dela. E os artifícios que empreguei esta tarde em seu apartamento, Gánetchka, foram de propósito para ver pela última vez até onde você podia chegar. E em verdade, você me surpreendeu. Eu contava com um arranjo qualquer, mas não este. Casar-se-ia você comigo, sabendo que aquele acolá me tinha dado pérolas quase às vésperas do nosso casamento, e que eu as aceitara? Ora, em sua casa, e na presença de sua mãe e de sua irmã, esse outro aqui esteve me pondo em leilão. E ainda assim, depois disso, você pôde vir até aqui para contratar casamento e esteve até para trazer sua irmã!? Teria razão Rogójin quando disse que você, por causa de três rublos, andaria de quatro patas até o Vassílievskii?
— Oh! Se ia... — reafirmou Rogójin, subitamente, com um ar quieto, mas onde havia profunda convicção.
— Eu chegaria a compreender, se você estivesse na penúria, mas contaram-me que você ganha um bom salário. E, a par da desgraça e de tudo o mais, pensar em levar uma mulher que você odeia para dentro de sua casa (sim, pois você me odeia, eu sei disso!) Sim, agora acredito que um homem como você até mataria qualquer pessoa, por dinheiro! Todo o mundo está possuído hoje em dia a um tal grau, tão dominados todos pela ideia do dinheiro que parece que enlouqueceram. Desde a adolescência já começam a ser usurários! Um homem envolve em seda a sua navalha para que não deslize, vem por detrás dum amigo e lhe corta a garganta como a um carneiro, conforme li ultimamente. Afinal, você é um sujeito desavergonhado! Eu sou uma mulher desavergonhada, mas você é pior! Quanto a este porta-ramalhetes, nem digo nada...
— Mas é a senhora? A senhora, Nastássia Filíppovna?! — E o general Epantchín bateu com as mãos uma na outra, verdadeiramente estupefato. — A senhora, tão fina, com ideias tão delicadas! E agora! Isso é linguagem? Isso são expressões?
— Eu agora estou embriagada! General — e Nastássia Filíppovna deu uma gargalhada — quero dar o meu salto! Hoje, o meu dia onomástico, meu dia de festa! Como estive esperando isto?! Dária Aleksieievna, estás vendo este porta-ramalhetes? Este Monsieur aux camélias? Aquele que está ali, rindo de nós!...
— Eu não estou rindo, Nastássia Filíppovna. Eu estou somente escutando com a maior atenção — protestou Tótskii, com dignidade.
— Por que estive eu a atormentá-lo durante estes últimos cinco anos, não consentindo que se fosse? Valia ele isso? Ele é justamente o que devia ser... Provavelmente julga que o tratei muito mal. Deu-me educação, manteve-me como uma condessa, e o dinheiro, o dinheiro que despendeu comigo!... Outrora procurou-me um respeitável marido, lá no campo, e agora, aqui, depois, Gánetchka. E, podem acreditar, não vivi com ele estes cinco anos últimos, e ainda por cima lhe tomei dinheiro e cuidei que tinha direito a isso! Fui tão completamente perdida, em todo o sentido! Dir-me-ão: “Fique com os cem mil rublos e livre-se dele; é um sujeito horrível.” E realmente ele é horrível... Eu podia ter me casado há muito tempo, não com Gánia, mas com qualquer outro. Verdade é que isso também teria sido horrível. E por que passei cinco anos com minha angústia? E — será que acreditarão? — há quatro anos passados cheguei a pensar que seria melhor casar-me com Afanássii Ivánovitch sem demora! Pensei nisso, sem nenhum despeito. Eu tinha toda sorte de ideias na cabeça, naquela época e, querem saber? conseguiria fazê-lo resolver-se. Sentia-se propenso a isso, embora vocês julguem impossível. Estava mentindo, acredito, mas quando uma cousa se lhe mete na cabeça não sabe refrear-se. Mas depois, louvado seja Deus, verifiquei que esse homem não valia a minha angústia! Repentinamente senti tal decepção que, se ele tivesse me proposto, eu me negaria a casar-me com ele. Durante cinco anos estive representando esta farsa. Não, melhor é estar em meu lugar adequado, nas ruas! Prefiro uma orgia com Rogójin ou ir empregar-me amanhã como lavadeira. Sim, pois nada tenho de meu. Ao me ir, desistirei de tudo isto, largo aqui até os meus trapos. E quem há de querer uma mulher sem nada? Perguntai ali a Gánia se me quereria! Ora, nem mesmo Ferdichtchénko!
— Talvez Ferdichtchénko não quisesse, Nastássia Filíppovna. Eu sou uma cândida alminha! — atalhou Ferdichtchénko. — Mas dum eu sei que a quereria. O príncipe a tomaria. A senhora está aí a lastimar-se, mas olhe um pouco para o príncipe. Faça como eu que o estou espiando há uma porção de tempo.
Nastássia Filíppovna voltou-se com curiosidade para o príncipe.
— Isso é verdade? — perguntou-lhe.
— É verdade — balbuciou o príncipe.
— Aceitar-me-ia, como estou, sem nada?
— Aceitaria, Nastássia Filíppovna.
— A cousa muda de figura — murmurou o general. — Já contava com isso.
O príncipe olhou de um modo sério, triste e penetrante para o rosto de Nastássia Filíppovna, que o continuava estudando.
— Aqui está um achado! — disse ela, voltando-se inesperadamente para Dária Aleksiéievna. — É simplesmente por bondade de coração. Conheço-o. Encontrei um benfeitor! Mas talvez seja verdade o que dizem a respeito dele, que é um... “não lá muito...” Mas, com que vai o senhor viver, se está assim tão apaixonado? O senhor, um príncipe, está pronto a casar-se com a mulher de Rogójin?
— Vou casar-me com uma mulher honesta, Nastássia Filíppovna, e não com a mulher de Rogójin — explicou o príncipe.
— Acha então que sou uma mulher honesta?
— Sim, quero dizer isso.
— Ora, todos esses gestos... são de romances! Fantasias fora da moda, príncipe inefável. Hoje em dia o mundo já se tornou bem mais sábio. E como pode casar-se, príncipe? Oh! Precisa duma aia, bem mais do que duma consorte!
O príncipe levantou-se e, com voz trêmula, e tímida, mas com ar de absoluta convicção, pronunciou estas palavras:
— Nada sei sobre isso, Nastássia Filíppovna. Nada vi da vida: vós, quanto a isto, tendes razão. Mas considero que vós é que me daríeis honra, e não eu a vós. Eu nada sou; mas tendes sofrido tanto, que sairdes desse inferno que tem sido vossa existência já é imenso! Por que então vos envergonhais, prontificando-vos a ir com Rogójin? Isso é delírio, febre... Devolvestes ao sr. Tótskii 75 mil rublos e acrescentastes que desistis de tudo quanto se acha nesta casa. Quem aqui há que faria uma tal cousa? Nastássia Filíppovna... eu... eu vos amo. Amar-vos-ei até a morte. Por vós... morrerei, Nastássia Filíppovna. Não consentirei que digam uma palavra sobre vós. Sois pobre, mas que tem isso? Trabalharei, Nastássia Filíppovna, trabalharei...
As últimas palavras foram cobertas por uma risada mal sufocada de Ferdichtchénko e de Liébediev. O próprio general emitiu uma espécie de bufo desaprobatório. Ptítsin e Tótskii a custo continham um sorriso. Os demais estavam ofegantes por causa da própria estupefação.
— Mas talvez venhamos a ser ricos e não pobres, Nastássia Filíppovna... Riquíssimos — prosseguiu o príncipe no mesmo tom de antes. — Ainda não me certifiquei e lastimo que durante o dia não tivesse tido tempo de providenciar a respeito da carta que recebi de Petersburgo, quando ainda na Suíça, carta que tenho aqui comigo, assinada pelo sr. Salázkin, na qual ele me comunica que devo receber uma grande herança. Aqui está a carta...
E o príncipe, com efeito, desembaraçou, da papelada do bolso, uma carta.
— Mas é de estarrecer! — murmurou o general. — Isto aqui não passa dum perfeito hospício de alienados.
Durante alguns segundos reinou silêncio total.
— Está o senhor dizendo, príncipe, que se trata duma carta, essa aí, da parte de Salázkin? — perguntou Ptítsin. — É um homem muito conhecido nos meios bancários. Trata-se dum advogado muito sério e se de fato lhe mandou essa notícia, o senhor pode confiar completamente que é verdade. Acontece, por acaso, que conheço a letra dele, pois tenho tido negócios com ele, ultimamente... Consente que eu olhe, só para examinar a letra?
Com a mão a tremer, o príncipe estendeu a carta, sem proferir palavra.
— Esta agora!... Esta agora! — exclamou o general, olhando para todos, como fulminado. — Será que se trata realmente duma herança?
Ninguém tirava os olhos de Ptítsin que percorria as linhas da carta com olhos de perito. A curiosidade geral recebera um novo e violento estímulo. Ferdichtchénko não conseguia ficar imóvel. Rogójin olhava cheio de espanto e ansiedade, rondando os olhos do príncipe para Ptítsin e vice-versa. Dária Aleksiéievna parecia suspensa no ar, tamanha era a sua surpresa misturada de esperança. O próprio Liébediev não pôde deixar de sair do seu canto e, inclinando de viés, espiava a carta por cima do ombro de Ptítsin; mas às pressas e com medo, como quem pressente e pretende evitar uma pancada na cabeça por causa da ousadia.
16.
— É autêntica — anunciou finalmente Ptítsin, dobrando a carta e a devolvendo ao príncipe. — Sua tia deixou um testamento em ordem, mercê do qual o senhor se empossará de uma enorme fortuna, sem a menor dificuldade.
— Não pode ser...! — E o brado do general soou como um tiro de pistola.
Todos ficaram outra vez boquiabertos de assombro.
Ptítsin explicou então, dirigindo-se mais ao general do que aos circunstantes, que, segundo os termos da carta, o príncipe perdera, havia cerca de cinco meses, uma tia que o não chegara a conhecer pessoalmente, irmã mais velha de sua mãe e filha dum comerciante de Moscou, membro da terceira ghilda, ou categoria, um tal Papúchin que morrera na pobreza após uma falência. Mas que esse Papúchin tinha um irmão que lhe sobrevivera ainda bastante tempo. Tratava-se dum rico comerciante, conhecidíssimo que, tendo perdido no mesmo mês os dois filhos, vira piorado com esse desgosto o seu já péssimo estado de saúde, morrendo logo a seguir. Viúvo, não tinha no mundo outro herdeiro a não ser a sobrinha, a tia do príncipe, mulher então totalmente pobre, sem nada de seu. Mas que a coitada herdara quando a bem dizer já estava também para morrer, vítima duma hidropisia; tivera porém tempo e modo de, pensando no sobrinho distante, fazer testamento, servindo-se em tal conjuntura do advogado Salázkin. Todavia, nem o príncipe nem o médico a cujo cargo ele estava na Suíça, se tinham decidido a esperar pela notificação oficial. O príncipe, uma vez com a comunicação de Salázkin em mãos, resolvera pôr-se a caminho a fim de entabular averiguações.
— Desde já lhe posso assegurar, e acho que isso chega — concluiu Ptítsin, voltando-se de novo para o príncipe — que o caso é verdadeiro e mais do que exato no que respeita à fortuna, e que tudo quanto Salázkin lhe participa é autêntico e incontestável, o que equivale a já estar o senhor com o dinheiro no bolso. Congratulo-me com o senhor, meu caro príncipe! Trata-se de um milhão e meio, ou possivelmente mais. Papúchin era um comerciante riquíssimo.
— Viva o último dos príncipes Míchkin... — berrou Ferdichtchénko.
— Hurra! — rosnou Liébediev com sua voz de bêbedo.
“Pobrezinho! E não é que lhe emprestei esta manhã 25 rublos? Ah! ah! ah! Um conto de fadas, é o que isto é!” — raciocinou o general quase estupidificado de assombro. — Bem, congratulo-me com o senhor, congratulo-me com o senhor! — acrescentou em voz alta.
E, levantando-se, foi abraçar o príncipe. Os demais também se levantaram, rodeando o príncipe. Mesmo aqueles que se tinham retirado para detrás da cortina reentraram na sala de visitas. O falatório e as exclamações produziam algazarras, sendo que até se ouviu quem bradasse por champanha. O rebuliço excitava a todos a ponto de por um instante esquecerem Nastássia Filíppovna e o fato de que eram seus convidados. Mas, pouco a pouco e a todos ao mesmo tempo, ocorreu ter ele acabado de lhe fazer uma oferta de casamento. A situação agora se lhe apresentava, por seu absurdo patético, três vezes mais extraordinária do que antes. Assombrado, Tótskii encolheu os ombros e foi a única pessoa que não se pôs de pé, tendo ficado como estava, enquanto todo o mundo começou a se aglomerar em desordem ao redor da mesa.
Houve, mais tarde, quem asseverasse que fora naquele momento que Nastássia Filíppovna ficara louca. Ainda estava sentada e começou a olhar à sua volta com um estranho e espantado olhar, como se não atinasse, e estivesse tentando apreender o que acontecera. Depois, subitamente, se virou para o príncipe e, com o cenho fechado e ameaçador, o fixou com atenção. Mas isso durou pouco: talvez cuidasse que tudo era brincadeira e a mofa. Mas a expressão do príncipe acabou por certificá-la. Refletiu um pouco; depois, sorriu de um modo ainda vago, como sem saber por quê.
— Então, sou uma princesa de verdade! — ciciou para consigo mesma, como se estivesse zombando. E, acontecendo olhar para Dária Aleksiéievna, deu uma gargalhada. — Que fim surpreendente... nunca esperaria... Mas por que estão todos de pé, amigos? Por favor, sentem-se! Congratulem-se comigo e com o príncipe! Quem foi que pediu champanha? Ferdichtchénko, trate disso. Kátia, Pácha, venham cá! (Descobrira repentinamente as criadas lá na entrada.) Sabem vocês duas que eu vou me casar? Pois ouçam. Aqui com o príncipe. Ele tem um milhão e meio. É o príncipe Míchkin e vai casar comigo.
— E olhe que é um bom partido, mátuchka. Calhou bem. Não perca a ocasião.
O conselho era de Dária Aleksiéievna, tremendamente comovida pelo que se tinha passado.
— Sente-se aqui ao meu lado, príncipe — chamou-o Nastássia Filíppovna. — Isto, assim! Ah! Já estão trazendo champanha. Congratulemo-nos, amigos!
— Hurra! — gritaram numerosas vozes.
Muitos se agruparam logo em volta das garrafas e entre eles estavam quase todos os companheiros de Rogójin. Mas embora soltassem exclamações e não estivessem dispostos a parar tão cedo, ainda assim alguns houve que, apesar da estranheza das circunstâncias e do ambiente, perceberam que a situação tinha mudado. Outros estavam desnorteados e esperavam com desconfiança. Mas houve quem sussurrou que não havia nada de mais naquilo, pois os príncipes estavam dando, ultimamente, para se casarem com não importava que classe de mulheres, até mesmo com raparigas de campos de ciganos. Rogójin, porém, separado de todos, estarrecido, tinha a cara contraída num sorriso fixo e enigmático.
— Príncipe, meu caro amigo, pense no que vai fazer — murmurou o general com apreensão, aproximando-se furtivamente do príncipe e puxando-o pela manga.
Nastássia Filíppovna notou isso e deu nova gargalhada.
— Não, general! Agora sou uma princesa, está ouvindo? E o príncipe não permitirá que eu seja insultada. Afanássii Ivánovitch, congratule-se comigo, você também. Agora posso sentar-me ao lado de sua esposa, esteja ela onde estiver. Que acha, não é uma pechincha, um marido como este? Um milhão e meio e um príncipe, e ainda por cima um idiota, dizem eles. Que pode haver de melhor? A verdadeira vida está começando agora, para mim. Você veio muito atrasado, Rogójin. Leve outra vez o seu dinheiro. Vou me casar com o príncipe e sou mais rica do que você!
Rogójin, porém, resolveu tomar conta da situação. Com uma expressão de indizível sofrimento na cara juntou as mãos, e um grunhido partiu do seu peito.
— Largue-a! — gritou para o príncipe.
Houve gargalhadas.
— Largá-la para quem? Para você? — perguntou Dária Aleksiéievna, de modo triunfante. — Estúpido, atreve-se a arrojar o dinheiro dessa forma sobre a mesa! Quem se vai casar com ela é o príncipe! Você entrou aqui só para fazer estardalhaço!
— Eu também quero casar com ela! Quero casar com ela já, neste minuto. Dou o que pedir!
— Saia daí, seu bêbedo de rua! Você devia mais era ser jogado pela janela! — exprobrava-o Dária Aleksiéievna, indignadíssima.
As gargalhadas agora eram mais altas do que antes.
— Está ouvindo, príncipe? — perguntou Nastássia Filíppovna, voltando-se. — É assim que um mujique arrebata a noiva!
— É porque bebeu muito! E é sinal dum grande amor!
— E não se sentirá envergonhado depois, príncipe, ao se lembrar de que sua noiva quase saiu com Rogójin?
— Vós estáveis com febre e estais ainda agora em delírio.
— E não se sentirá enrubescer quando lhe disserem depois que sua mulher viveu com Tótskii no papel de amante?
— Por que me hei de envergonhar?... Não foi vontade vossa ter estado com Tótskii.
— E nunca me exprobrará por isso?
— Nunca.
— Olhe lá... Não responda pela vida inteira.
— Nastássia Filíppovna — disse o príncipe, vagarosamente e como se estivesse compadecido dela — acabei de dizer-vos ainda agora que tomaria vosso consentimento como uma honra conferida a mim e não a vós. Sorristes àquelas palavras e houve quem risse de nós. Pode ser que eu me tenha expressado de forma ridícula e que me tenha tornado ridículo, eu próprio! Mas penso que sempre entendi o sentido de honra e, portanto, estou certo de que o que eu disse é verdade. Vós vos quisestes arruinar ainda agora irrevogavelmente. E nunca vos perdoaríeis por isso, depois. Mas vós não mereceis censura alguma. Vossa vida não pode ser arruinada assim. Que importa que Rogójin tenha aparecido e que Gavríl Ardaliónovitch vos tenha ludibriado? Por que haveis de persistir nessa obstinação? Repito-vos que quase ninguém faria o que fizestes. Quanto à vossa decisão de vos irdes com Rogójin, estáveis doente quando vos acudiu esse plano. E doente ainda estais; devíeis ir para a cama. Se tivésseis saído com Rogójin, no dia seguinte iríeis ser até lavadeira; não suportaríeis viver com ele. Sois altiva, Nastássia Filíppovna; talvez sejais tão infeliz que realmente vos cuidais digna de censura. Precisais bem quem olhe por vós, Nastássia Filíppovna. Eu olharei por vós. Ainda esta manhã, ao ver o vosso retrato, senti uma cousa assim como se vos estivesse reconhecendo, como se já vos tivesse socorrido... Respeitar-vos-ei toda a minha vida, Nastássia Filíppovna.
O príncipe acabou. E tinha o ar de se estar lembrando duma cousa súbita. Enrubesceu e então teve consciência da classe de gente em cuja presença dissera aquilo.
Ptítsin abaixou a cabeça, humilhado. Tótskii pensou consigo mesmo: “ É um idiota, mas sabe que a adulação é o melhor meio de se prender uma pessoa, e faz isso por instinto.” O príncipe notou, num canto também, os olhos de Gánia, fulgurando para ele como se o quisessem consumir.
— Que grande coração! — pronunciou Dária Aleksiéievna, emocionadíssima.
— Um homem fino, mas votado à ruína — ciciou o general.
Tótskii tomou o chapéu e estava para levantar-se e esgueirar-se olhando porém de esguelha para o general, fazendo-o compreender que deviam sair juntos.
— Obrigada, príncipe. Nunca ninguém me falou deste modo — disse Nastássia Filíppovna. — Tentaram sempre comprar-me, mas nenhum homem decente pensou em se casar comigo. Ouviu, Afanássii Ivánovitch? Que acha de tudo isso que o príncipe disse? Foi um pouco impróprio, não acha?... Rogójin, não se vá ainda! Perdão, pensei que ia indo. Quem sabe se, no fim de tudo, não é com você que me irei? Para onde pensava você levar-me?
— Para Ekaterinhóv! — informou Liébediev, lá do seu canto. Rogójin contentou-se em pasmar, contemplando-a com os olhos muito esgazeados, como se não acreditasse em seus sentidos de ver e ouvir. Jazia completamente zonzo, como se tivesse levado uma pancada na cabeça.
— Que é que estás pensando, querida? Qual! Estás mesmo doente! Perdeste a cabeça? — exclamou Dária Aleksiéievna, preocupadíssima.
— Pensaste que fosse verdade? — riu Nastássia Filíppovna, levantando-se do sofá. — Arruinar uma criança como esta aqui? Isso seria papel para Afanássii Ivánovitch: ele gosta de crianças! Venha, Rogójin. O dinheiro está pronto? Lá isso de querer casar comigo, não! Mesmo assim, passe o dinheiro. Talvez mesmo não me case com você. Pensou que casando comigo ficaria com o dinheiro? Teve tal ideia, hein? Eu sou uma desavergonhada rameira! Fui a concubina de Tótskii... Agora, príncipe, case mas é com Agláia Epantchiná! Se casasse comigo, teria Ferdichtchénko, pelo resto da vida, a apontá-lo com o dedo, escarnecendo de sua coragem. Que não tenha medo, príncipe, compreendo, mas eu terei... Sim, teria medo de arruiná-lo e de vir a ser exprobrada, depois, por isso. Quanto a dizer-me que lhe concedo uma honra, ali está Tótskii que, a tal respeito, lhe pode dizer alguma cousa. E você, Gánia, saiba que perdeu também Agláia Ivánovna. Não tivesse regateado com ela e ela casaria com você. Homens há que são assim, ficam sem optar, quando urge escolher duma vez para sempre: ou mulheres à toa, ou mulheres direitas. Do contrário sai barafunda. Olhem só: o general está de boca aberta, muito admirado!
— Mas isto é Sodoma... Sodoma! — apostrofou o general encolhendo os ombros. Não tardou que se levantasse do sofá. Todos os outros se ergueram também.
Nastássia Filíppovna chegara ao paroxismo da exaltação.
— Será possível? — soluçou o príncipe, torcendo as mãos.
— Cuidou então que podia ser? Mesmo sendo uma desavergonhada, também mantenho um certo orgulho. Disse-me, príncipe, esta noite, que eu era uma perfeição. Admirável perfeição sou eu, não resta dúvida, que apenas para me vangloriar de espezinhar um milhão e um título de princesa me arremesso num esgoto! Que espécie de esposa lhe poderia eu ser, afinal de contas? Olhe, Afanássii Ivánovitch, atirei fora, de fato, um milhão, reparou bem? Já vê que se enganou terrivelmente ao pensar que eu me casaria de bom grado com Gavríl Ardaliónovitch por causa de 75 mil rublos! Ora, Afanássii Ivánovitch, guarde os seus 75 mil rublos. Arre, você nem sequer chegou a fazer uma oferta de cem mil. Rogójin subiu o lance. Pobre do Gánia, também. Mas não o hei de esquecer. Confortá-lo-ei depois, tenho cá uma ideia. Depois, depois... Agora quero um pouco de ar, de estúrdia! Sou uma mulher da rua! E dizer-se que estive durante dez anos numa prisão! Mas agora vou gozar a vida. Vamos, Rogójin, está preparado? Então vamos!
— Vamos!!! — urrou Rogójin, quase em delírio, tamanha era a sua alegria. — Olá, vocês todos, vinho! Ufa!...
— Mande buscar vinho, eu também bebo. E música? Não há música, então?
— Sim, sim, haverá vinho! E música! Chegue pra lá! — berrou freneticamente ao ver Dária Aleksiéievna se aproximar de Nastássia Filíppovna. — Ela é minha, muito minha! Chega. E tu, ó minha soberana...
Cambaleava de alegria. Andava em redor de Nastássia Filíppovna, gritando para toda gente:
— Que ninguém se aproxime dela!
Toda aquela sua espécie de escolta invadiu a sala. Uns bebiam, outros gritavam, e todos riam, no auge da excitação, muito à vontade. Ferdichtchénko tentou confraternizar com eles. O general Epantchín e Tótskii trataram de efetuar uma retirada precipitada. Gánia já estava também com o chapéu na mão, mas permanecia ainda, sempre calado, chumbado ao chão, embora sentisse que devia fugir à cena que defrontava.
— Não se aproximem! — grunhia Rogójin.
— Por que está você se esgoelando? — dizia-lhe Nastássia Filíppovna, às gargalhadas. — Quem manda aqui ainda sou eu. Se me der na veneta ainda o ponho para fora a pontapés! E ainda está com o dinheiro, hein? Tire a mão desse embrulho aí em cima da mesa. Dê-mo. Neste pacote tem mesmo cem mil rublos? Credo, que embrulho horrendo! Mas que é que tu queres, Dária Aleksiéievna? Achavas então que eu deveria me casar com o outro, com o príncipe? (Apontava para Míchkin.) Querias que eu me arruinasse com ele? O coitado necessita é duma aia! Como pode ele casar? Ali o general bem podia ser a ama dele. Repara: não o quer largar. Olhe, príncipe, eu, sua ex-noiva, agarrei o dinheiro. Sou ou não sou uma mulher ordinária? E era com uma mulher assim, príncipe, que desejava casar? Mas... que é isso? Está... chorando?! Ficou triste? Ora, ria como eu. — E ao dar este conselho não pôde Nastássia Filíppovna evitar que duas grandes lágrimas lhe deslizassem pelo rosto abaixo. — Confie no tempo, que tudo faz passar. É preferível refletir dobrado agora do que mais tarde sem parar... Mas vocês todos deram agora para chorar? Pois não é que Kátia também está chorando? Que é isso, Kátia? Vou deixar um presente para você e outro para Pácha. Não pensem que me esqueço de vocês, não. E agora, Kátia, volte para os seus. Fiz uma rapariga honesta como você perder o seu tempo com uma mulher ordinária como eu... Pois, príncipe, a falar verdade, é melhor assim, muito melhor. Mais tarde se arrependeria, príncipe, e não seríamos felizes. Não adianta jurar; sei que me desprezaria! E como tudo viria a ser estúpido, depois... Não, mais vale nos separarmos como amigos, pois não daria certo. Teria sido um sonho, nada mais. Não sonhei eu com príncipe? Claro que sonhei. Sim, sonhei, há muito tempo, quando morei solitária durante cinco anos, naquela casa de campo em plena estepe. Outra cousa não fazia eu senão pensar e sonhar... sonhar e pensar. Imaginava sempre alguém como o meu bondoso príncipe Míchkin, correto e direito, e ao mesmo tempo tão ingênuo que não cessaria de proclamar diante de toda gente: “Por que censurar-te, Nastássia Filíppovna? Em quê? Por quê? Eu que te adoro!” Era hábito meu devanear assim. E tanto, tanto que quase perdi o juízo. E eis que vinha sempre aquele homem, quedava-se dois meses por ano, e me trazia o quê? Vergonha, desonra, corrupção, degradação, posto o que, se ia embora. Como podia eu suportar aquilo? Milhares de vezes me vinha a tentação de me atirar na represa; mas tão pobre criatura era eu que nem coragem para isso me sobrava... Mas agora... Rogójin, você está pronto? Então vamos!
— Se estou! Não se aproximem!
— Estamos prontos! — Várias vozes fizeram coro.
E as mesmas vozes gritaram: — As troicas estão esperando. Não ouvem os guizos?...
Nastássia Filíppovna abriu o pacote.
— Gánia, tive uma ideia formidável. Quero indenizá-lo: por que haveria você de perder tudo? Rogójin, será verdade mesmo que ele, por causa de três rublos, andaria de gatinhas até ao Vassílievskii?
— Que dúvida!
— Então escute, Gánia: quero ver dentro da sua alma, pela última vez. Você andou me torturando estes três últimos meses, e agora é a minha vez. Está vendo este rolo? Dentro dele tem cem mil rublos. Pois eu vou jogá-lo no fogo, diante de todos que, assim, serão testemunhas. Logo a seguir atiço o fogo; e então você, mas sem calçar as luvas, com as mãos nuas, apenas com as mangas arregaçadas, tirará o pacote para fora da lareira. Que mal faz que você chamusque as pontas dos dedos, já que se trata de cem mil rublos, está ouvindo bem, cem mil rublos? Mas não vá demorar em tirar. Admirarei sua habilidade vendo-o introduzir as mãos no fogo para salvar o dinheiro. E todos ficam sendo testemunhas de que eu disse que o pacote ficará sendo seu. E se você não o salvar então ele pegará fogo e se queimará todinho, pois não consentirei que mais ninguém tente tirá-lo. Agora, recuem todos. O dinheiro é meu. É a paga de uma noite com Rogójin. O dinheiro é, ou não é meu, Rogójin?
— Se é, minha alegria! Se é, minha rainha!
— Então recuem todos. Eu faço o que quero. Não se metam! Ferdichtchénko, atice o fogo. Quero labaredas bem vivas e altas. Assim!
— Nastássia Filíppovna, minhas mãos não querem obedecer! — confessou Ferdichtchénko, sucumbido.
— Hã, assim é que se faz! — exclamou Nastássia Filíppovna. — Está vendo? — Empunhou as tenazes, ajeitou duas achas de lenha bem acesas. Mal o fogo se abriu em labaredas, jogou o pacote lá para dentro.
Partiu de todos um grito que se continuou num alarido. Uns esbarravam nos outros, querendo olhar. E exclamavam:
— Ela não está no seu juízo! Enlouqueceu!
— Não deveríamos nós... não deveríamos nós segurá-la? — sussurrou o general para Ptítsin, trêmulo, com o rosto branco que nem um lenço, sem poder tirar os olhos do rolo prestes a inflamar-se.
— Está louca! Quem não vê que ela está louca? — teimava o general, o que fez Afanássii Ivánovitch, cuja lividez se acentuava, responder:
— Quanta vez não lhe disse eu que ela era uma mulher excêntrica?
— Mas, vamos e venhamos, são 100 mil rublos!
— Deus do céu! — ouviu-se de todos os lados em uníssono. E todos se aglomeraram à frente do fogão, empurrando-se uns aos outros a fim de ver bem, soltando exclamações. Houve quem subisse nas cadeiras para enxergar melhor por sobre as cabeças dos que tapavam a cena. Dária Aleksiéievna correu para a outra sala para confabular com Kátia e Pácha, todas três muito assustadas. A bela alemã sumiu.
— Mátuchka! Minha rainha! Onipotente dama! — bradou Liébediev, arremessando-se de joelhos diante de Nastássia Filíppovna, com as mãos na direção do fogo. Mátuchka, insigne mátuchka! São cem mil! Cem mil! Eu vi! Ordene-me que as retire. Meter-me-ei lá dentro! Encaixo esta minha cabeça cheia de cãs lá dentro e... Minha mulher está doente, morrendo numa cama! Tenho treze filhos, todos órfãos já! Enterrei meu pai não há uma semana, não tenho nem o que comer! Nastássia Filíppovna!
E tentou aproximar-se do fogo.
— Saia daí! — gritou-lhe Nastássia Filíppovna, afastando-o. — Recuem todos. Gánia, como é, você não se mexe? Está com vergonha? Tire o dinheiro lá de dentro, não vê que a sua sorte está ali?
Mas Gánia naquele dia já sofrera demais, e não estava preparado para mais esta prova última, ainda por cima tão inopinada. O grupo se bipartiu diante dele, deixando-o face a face com Nastássia Filíppovna, a menos de três passos. Perto do fogão, ela esperava, atenta, olhando-o com olhos ardentes. Mudo, de braços cruzados, as luvas e o chapéu nas mãos, com seu fraque, ele estacara, fitando o fogo. Um sorriso de demente se perdia em seu rosto branco que nem giz. Embora não conseguisse despregar a vista do fogo, do maço de notas quase a se inflamar, qualquer coisa nova e diferente parecia se ter inserido no vão da sua alma, dando-lhe ânimo para enfrentar a prova. Não se mexeu do seu lugar, ficando mais do que evidente perante todos que não tiraria o dinheiro.
— Pense bem no que está fazendo! Se o dinheiro pega fogo, esta gente aqui o estraçalha — advertia-o Nastássia Filíppovna. — E você se dana todo. Olhe que estou falando sério.
O fogo que no começo se avivara em labaredas saindo de duas achas rubras, ficou um pouco abafado quando o pacote caiu no seu centro. Mas uma pequenina labareda azul, uma língua de chama delgada e comprida, deu em serpentear lambendo o pacote. Depois o fogo subiu, envolveu-o pelos contornos e repentinamente o papel do maço se inflamou, produzindo um clarão vivo. Todos emitiram um suspiro ofegante.
— Senhora! — vociferou de novo Liébediev arremetendo; mas Rogójin o agarrou e puxou violentamente para trás. E enquanto fazia isso, e depois, seu olhar estatelado se fixava cada vez mais em Nastássia Filíppovna. Era-lhe impossível arredar os olhos daquele semblante. O prazer embebedava-o: estava no sétimo céu.
— Mas é uma perfeita rainha! — não cessava de repetir para quantos lhe estavam perto revezando-se. — Isso é que é atitude! Isso é que é ter raça! Qual de vocês, seus batedores de carteira, faria uma cousa destas? Qual?!...
O príncipe assistia, calado e soturno.
— Por uma notinha de mil, eu tirava o pacote todo com os meus dentes! — propôs Ferdichtchénko.
— Também eu, também eu tirava com os dentes! — grunhiu o hércules dos munhecaços, lá da retaguarda do grupo, sinceramente alvoroçado. — Raios me partam! Está queimando! O fogo dá cabo do dinheiro já — gritou, vendo a labareda. E rodos gritaram a uma voz, investindo para o fogão: — Está pegando fogo! Está pegando fogo!
— Gánia, não finja! Pela última vez lhe digo: Não finja!
— Que diabo, tire logo duma vez! — rugiu Ferdichtchénko, avançando para Gánia em ímpeto nervoso e o puxando pela manga. — Tire logo duma vez, seu bestalhão. Está pegando fogo, não seja cretino!
Gánia desvencilhou-se violentamente de Ferdichtchénko, voltou-se e enveredou para a porta de saída. Mal deu dois passos, cambaleou e caiu no assoalho, pesadamente.
— Desmaiou! — exclamaram.
— Mátuchka, está ardendo! — soluçou Liébediev.
— Vai se perder tudo! — ouvia-se de todos os lados. E, donde estava, Nastássia Filíppovna gritou para as criadas:
— Kátia, Pácha, deem-lhe um copo com água, um cálice de vodca!
Dito isto, ela mesma segurou as tenazes e com elas retirou o pacote. Todo o papel de fora do embrulho se havia queimado e estava em cinzas, mas se via imediatamente que o conteúdo estava intacto. O pacote fora embrulhado em pelo menos três folhas dobradas de papel de jornal e as notas estavam perfeitas. Todos respiraram livremente. E foi Liébediev quem comentou com grande alívio:
— Talvez uma pobre nota de mil esteja chamuscada, mas o resto está que é uma beleza!
— É tudo dele! O maço inteiro é dele! Estão ouvindo, amigos? — declarou Nastássia Filíppovna, depondo o pacote de notas ao lado de Gánia. — Ele não faria isso, aguentou a prova e portanto o seu amor-próprio ainda é maior do que o seu amor pelo dinheiro. Mas não importa, ele chegará a isso ainda. Por dinheiro, ele mataria alguém... Ei-lo que está voltando a si. general Iván Petróvitch, Dária Aleksiéievna, Kátia, Pácha, Rogójin, estão me ouvindo? As notas são para ele, são de Gánia. Dou-lhas para que faça com elas o que quiser, como recompensa por seja lá o que for! Digam-lhe isso! Deixem o pacote ali ao lado dele... Rogójin, marche! Príncipe, adeus! Saiba que foi o primeiro homem que encontrei em minha vida! Afanássii Ivánovitch, adeusinho, merci!
O bando dos sequazes de Rogójin atravessou os salões em direção à porta da frente, atrás de Rogójin e de Nastássia Filíppovna, fazendo estardalhaço, aos berros e exclamações. No vestíbulo as empregadas deram a ela a capa de peles; a cozinheira Márfa entrou correndo, vindo da cozinha. Nastássia Filíppovna beijou-as a todas.
— Mas como pode a senhora deixar-nos sozinhas, querida mátuchka! Mas para onde vai a senhora? E logo no seu aniversário, ainda por cima, num dia como o de hoje! — perguntavam-lhe as raparigas, em pranto, beijando-lhe as mãos.
— Para onde vou? Para a sarjeta, Kátia. Já não ouviste dizer que lá é que é o meu lugar? Ou talvez vá ser lavadeira. Larguei Afanássii Ivánovitch. Saúda-o da minha parte e não penses mal de mim...
O príncipe investiu precipitadamente para a porta da rua onde todo o bando estava se dispondo nas quatro troicas com guizos. O general Epantchín conseguiu alcançá-lo escadas abaixo.
— Escute uma cousa, veja o que está fazendo, príncipe! — disse, segurando-lhe o braço. — Desista! Não está vendo o que ela é? Falo-lhe como um pai.
O príncipe olhou para ele, e sem articular uma só palavra se desvencilhou e desceu precipitadamente.
Na porta da rua, donde as troicas acabavam de partir, o general viu o príncipe chamar o primeiro fiacre e bradar para o cocheiro: “Para Ekaterinhóf! Siga as troicas!” Nisto, rente ao degrau os cavalos cinzentos do general se adiantaram; o general rumou para casa, com os seus novos planos, suas novas esperanças e suas pérolas que, malgrado tudo, não se esquecera de levar consigo. Entre os seus planos a fascinante figura de Nastássia Filíppovna esvoaçou duas ou três vezes. O general suspirou.
— É pena. Realmente, é uma pena. Essa mulher está perdida! É uma louca!... Mas o príncipe se livrou de Nastássia Filíppovna... de maneira que o que aconteceu no fundo foi bom...
E outras palavras edificantes, conquanto curtas, resumindo a situação, foram pronunciadas por outros dois convivas de Nastássia Filíppovna que tinham decidido fazer uma pequena caminhada.
— Quer o senhor saber duma cousa, Afanássii Ivánovitch? Já ouvi dizer que algo de semelhante a isto é feito entre os japoneses — observou Iván Petróvitch Ptítsin. — É o caso que quando alguém se sente insultado vai onde está o seu inimigo e declara: “Você me desgraçou e como vingança vou abrir meu ventre diante de você!” E com tais palavras imediatamente rasga o ventre na presença do inimigo, sentindo, com certeza, grande júbilo em agir assim, como se realmente se estivesse vingando. Há gente muito esquisita, neste mundo, Afanássii Ivánovitch!
— E cuida você que se pode comparar este caso de agora com isso? — respondeu-lhe Tótskii, com um sorriso. — Hum!... Não está mal comparado, você arranjou uma excelente imagem! Em todo o caso você viu, meu caro Iván Petróvitch, que eu fiz tudo quanto pude. E convenha comigo que fazer mais do que fiz era impossível. E você há de admitir, outrossim, que essa mulher tinha algumas qualidades brilhantes... e certos pontos de primeiríssima ordem. Senti-me tentado, naquele concílio de loucos, mesmo que isso me rebaixasse ainda mais, a gritar alto e bom som que ela própria era a minha melhor desculpa a todas as suas acusações! Quem não se sentiria muitas e muitas vezes fascinado por tal mulher a ponto de perder o juízo e... tudo o mais? Veja por exemplo aquele estúpido Rogójin como lhe arremessou aos pés a sua carga de dinheiro! A bem dizer, tudo quanto acabou de se passar não foi mais do que cousa efêmera, romântica e inverossímil; mas que houve colorido nisso tudo e originalidade, lá isso convenhamos que houve! Deus meu, o que não se faria com um caráter daqueles, com uma beleza daquelas! Mas apesar de todo o esforço, apesar mesmo da sua educação, tudo está perdido! Ela é um diamante que não foi lapidado, não me fartarei de dizer muita e muitas vezes!
E Afanássii Ivánovitch suspirou profundamente.
SEGUNDA PARTE
1.
Dois dias depois do estranho incidente na recepção em casa de Nastássia Filíppovna, com o qual finalizamos a primeira parte da nossa história, o príncipe Míchkin seguiu inesperadamente para Moscou a fim de receber a sua inesperada fortuna. Foi dito que devia ter havido outros motivos para tão apressada partida; mas quanto a isso e quanto às aventuras do príncipe durante a sua ausência de Petersburgo pouca informação podemos dar. Esteve ausente seis meses; e mesmo aqueles que tinham razões para se interessar por seu destino durante todo esse tempo, pouco vieram a saber. Mesmo os boatos que até eles chegaram espaçadamente foram, em sua maioria, estranhos e quase sempre contraditórios. A família Epantchín, naturalmente, tomou mais interesse do que quaisquer outras pessoas, apesar dele ter ido embora sem mesmo se despedir. O general Epantchín viu-o duas ou três vezes; tiveram certa conversação séria. Mas, embora o tendo visto, não fez menção disso à família. E no começo, com efeito, no mínimo por um mês depois da partida do príncipe, o seu nome foi evitado pelos Epantchín. Só a generala, logo no começo, dissera “que se havia enganado cruelmente com o príncipe”. Dois ou três dias depois acrescentara, vagamente, sem mencionar o nome de Míchkin, “que a cousa mais chocante da sua vida era a facilidade com que se enganava com certas pessoas”. E, finalmente, uns dez dias depois, ao se zangar com as filhas, explodiu, acrescentando judiciosamente: “Basta de tantos erros. Basta, daqui por diante.”
Devemos esclarecer que durante certo tempo a atmosfera sentimental da casa foi insuportável. Havia uma sensação de mal-estar, como que de indizível discórdia. A atmosfera era tensa, pesada. Todo o mundo andava amuado. O general vivia atarefadíssimo, dia e noite, absorvido em seu trabalho. A família quase não o via mais. Raramente fora visto, antes, tão ocupado e ativo, especialmente no que concernia ao seu trabalho oficial. Quanto às meninas, nunca falavam abertamente uma palavra que fosse. Mesmo quando juntas, sozinhas, muito pouco diziam. Eram moças orgulhosas, de brio e fechadas mesmo umas com as outras, embora se compreendessem entre si não só com a palavra como com o olhar, nem sempre, pois, lhes sendo preciso falar muito.
Havia apenas uma conclusão a ser tirada por um observador neutro, caso houvesse algum; isto é, que a julgar pelo fatos acima mencionados, aliás bem poucos, o príncipe conseguira deixar forte impressão na família Epantchín, apesar de só ter estado com eles uma única vez e isso mesmo por tempo bem curto. Talvez o sentimento que ele inspirou não passasse de mera curiosidade despertada por suas aventuras excêntricas.
Pouco a pouco os boatos que tinham circulado através da cidade se foram perdendo nas trevas da incerteza. Contava-se, com efeito, a história de certo principezinho muito ingênuo (ninguém lhe sabia o nome), que entrara inesperadamente na posse de vasta fortuna, e que se casara com uma mulher francesa, uma notória dançarina de cancã do Château des Fleurs de Paris. Diziam outros, porém, que fora um general que se metera nos dinheiros e que o homem que se casara com a conhecida francesa dançarina de cancã era um jovem russo comerciante, de incrível fortuna, o qual, na cerimônia do casamento, por simples e pura arrogância, queimara, estando bêbedo, numa vela, talões de apólices no valor de 700 mil rublos. Tais boatos, porém, acabaram se extinguindo, para isso tendo contribuído muito certas circunstâncias. Todos os do séquito de Rogójin, por exemplo, muitos dos quais poderiam ter esclarecido muita cousa, haviam partido, nas suas pegadas, para Moscou, uma semana depois duma tremenda orgia no Vauxhall de Ekaterinhóv e na qual tomara parte Nastássia Filíppovna. As poucas pessoas interessadas no caso ficaram cientes, através de certas informações, de que Nastássia Filíppovna, logo depois da orgia, fugira sem deixar vestígios, tendo constado traços de sua passagem por Moscou; e tanto que a partida de Rogójin para Moscou coincidia com tal boato.
Da mesma forma correram rumores a respeito de Gavríl Ardaliónovitch Ívolguin, também muito conhecido em determinadas rodas. Mas certa cousa lhe aconteceu que abrandou e fez parar, completamente, todas as histórias a seu respeito: caiu seriamente doente, não podendo voltar ao escritório e menos ainda à sociedade. Restabeleceu-se após um mês de enfermidade, mas, por motivos que ele lá sabia, resignou ao cargo que desempenhava no escritório, como guarda-livros da Companhia, tendo sido substituído por outra pessoa. Nem uma vez, sequer, voltou à casa dos Epantchín, de maneira que um novo escriturário tomou os encargos de secretário do general. Os inimigos de Gavríl Ardaliónovitch poderiam insinuar que ele ficara tão humilhado com o que lhe acontecera que se envergonhava até de sair à rua; mas, na verdade, estava doente, tendo até sofrido um ataque de hipocondria; deu em ficar taciturno e irritável. Naquele mesmo inverno, Varvára Ardaliónovna se casou com Ptítsin. Quantos os conheciam deduziram que o casamento foi consequência do fato de Gánia não querer retomar as suas obrigações e não estar capacitado para tomar conta da família, chegando a necessitar de assistência e mesmo de cuidados dos seus.
Notemos, de passagem, que na família Epantchín não se faziam sequer referências a Gavríl Ardaliónovitch, como se este nunca tivesse sido visto e com efeito nem existisse no mundo, absolutamente. Ainda por cúmulo, a família inteira veio a saber, logo depois, um fato notável a respeito dele. Na noite fatal, depois da sua desagradável experiência com Nastássia Filíppovna, Gánia não se deitara, depois de chegar à casa, tendo ficado à espera do príncipe, com uma impaciência febril. O príncipe, por sua vez, tendo ido a Ekaterinhóv, só voltara à casa às seis horas da manhã seguinte. Então Gánia entrara nos cômodos dele e depusera sobre a mesa, à sua frente, o pacote de notas entreaberto com que Nastássia o presenteara enquanto jazia desacordado no chão. E solicitara ao príncipe devolver na primeira oportunidade o presente. Que, ao entrar nos cômodos de Míchkin, o fizera de maneira desesperada e quase hostil; mas que, depois da troca de algumas palavras entre os dois, Gánia permanecera lá mais de duas horas, chorando amargamente todo o tempo, tendo os dois se separado em termos amistosos.
Tal história, que chegou ao conhecimento dos Epantchín, aconteceu ser perfeitamente exata. Estranho foi, naturalmente, que tais fatos pudessem logo transparecer e cair no conhecimento geral. Tudo quanto tinha acontecido, por exemplo, em casa de Nastássia Filíppovna, se tornou conhecido dos Epantchín quase que no dia imediato e de maneira minuciosa. Quanto aos fatos relativos a Gavríl Ardaliónovitch, poder-se-ia supor que tivessem sido levados até à casa dos Epantchín por Varvára Ardaliónovna, que se tornara muito amiga das moças, embora talvez não falasse nada do irmão. Pelo menos não devia. Ela também era uma mulher altiva, à sua maneira, e era esquisito que buscasse intimidade com quem tinha despedido seu irmão. Já era conhecida, desde muito antes, das meninas Epantchín, mas as vinha ver raramente. Mesmo agora mal se mostrava na sala de visitas e entrava, ou melhor, deslizava pela escada dos fundos. Lizavéta Prokófievna nunca se incomodara com ela outrora e muito menos agora, o que não a impedia de demonstrar grande respeito pela mãe, Nina Aleksándrovna. Ficara espantada, amuara e considerava a intimidade das filhas com Vária como uma veneta qualquer e caprichos de quem “não sabia de que maneira contrariar a própria mãe”. Mas Vária continuara a visitá-las, tanto antes como depois de casada.
No entanto, um mês depois da partida do príncipe, a sra. Epantchiná recebeu uma carta da velha princesa Bielokónskaia, que tinha ido passar quinze dias com a filha mais velha casada; e essa carta lhe produziu um efeito marcante, nada, porém, tendo referido às filhas e nem a Iván Fiódorovitch, ficando por vários indícios provado que a sua extrema excitação provinha disso. Deu em falar de modo algo estranho às filhas e sempre a respeito de assuntos extraordinários; evidentemente estava ansiosa por abrir seu coração, a custo se contendo. No dia em que recebera a carta se mostrara duma bondade incomum para com todos; chegara mesmo a beijar Adelaída e Agláia; confessara até que estava em falta com elas; escusado dizer que as moças ficaram sem entender. Mostrou-se mesmo indulgente com Iván Fiódorovitch, com o qual durante um longo mês estivera “atravessada”. Claro que já no dia seguinte se arrependeu da própria sentimentalidade, arranjando motivos para se indispor com todos, antes do jantar, só clareando o horizonte lá pela noitinha. Durou toda uma semana esse esplêndido bom humor, caso que não se dava havia muito tempo.
Uma semana mais tarde chegou outra carta da princesa Bielokónskaia; e então a sra. Epantchiná resolveu falar. Anunciou, com toda a solenidade, que a “velha Bielokónskaia (nunca chamava de outro modo a princesa na ausência da mesma, quando a ela se referia) lhe mandara reconfortantes novas a propósito daquele... ‘extravagante indivíduo, aquele príncipe, sabem qual, pois não?’”. A velha dama lhe descobrira as pegadas em Moscou, informara-se a respeito e descobrira cousas bem boas. O príncipe fora afinal ter com ela, causara-lhe excelente impressão, conforme ficara evidente só com o fato de ela o ter convidado a ir vê-la todos os dias, entre uma e duas horas. “Ele não lhe deu trégua desde esse dia; e ela ainda não se aborreceu dele”, concluiu a sra. Epantchiná, acrescentando que, por interferência da “velha”, o príncipe fora recebido em casa de duas ou três boas famílias. “Ainda bem que ele não se plantou em casa e não se manteve tão arisco como um palerma.”
As moças a quem tudo isso foi comunicado, perceberam logo que sua mãe estava escondendo muita causa da tal carta. Muita cousa que, decerto, vieram a saber através de Varvára Ardaliónovna, provavelmente a par de tudo por Ptítsin, que sabia quanto se passava com o príncipe nessa sua estada em Moscou. E Ptítsin estava em condições de saber muito mais do que qualquer outra pessoa, malgrado o seu impenetrável silêncio costumeiro a propósito de negócios, apenas Vária lhe conseguindo arrancar as palavras. A sra. Epantchiná ficou antipatizando ainda mais com ela, por causa disso.
Mas, fosse o que fosse, o gelo se rompera, sendo já possível falar alto naquela casa sobre o príncipe. Desta forma, o grande interesse por ele despertado e a extraordinária impressão deixada na família mais uma vez se evidenciaram. A mãe ficou perplexa com o efeito que as notícias de Moscou causaram sobre as filhas. E as filhas, por sua vez, perplexas ficaram com a mãe que, depois de declarar que “a cousa mais chocante da sua vida era a facilidade com que se enganava com certas pessoas”, procurava, sem embargo, para o príncipe, a proteção da “onipotente” e velha princesa Bielokónskaia, o que decerto custara muita insistência e súplica, pois se sabia quão difícil era à “velhota” deixar que outros se prevalecessem dela em tais casos.
Logo que o gelo se rompeu e o vento mudou, também o general se apressou em explicar-se. Ficou evidente que também ele tomara o príncipe sob especial interesse. Mas só discutiu o aspecto comercial da questão. Veio a saber-se que, no interesse mesmo do príncipe, solicitara a certas pessoas influentes de Moscou — umas duas em quem podia confiar — para o vigiarem, como lhes fosse possível; e vigiarem principalmente o tal Salázkin a quem o príncipe confiara o seu caso. Tudo quanto sobre a fortuna fora dito — “ou melhor, quanto à exatidão dessa fortuna” — era realidade; mas o espólio propriamente dito era menos considerável do que se tinha murmurado no começo. A propriedade estava em parte sobrecarregada com dívidas; outros pretendentes tinham surgido também, e apesar dos conselhos dados ao príncipe, ele se vinha comportando de modo a prejudicar-se. “Que Deus o proteja!” Agora que o gelo do silêncio se rompera, o general estava contente em poder exprimir o seu modo de sentir “com toda a sinceridade do seu coração”, muito embora “esse indivíduo fosse um pouco destituído”, acrescentou, como bom observador. E a prova é que fizera uma série de cousas estúpidas. Credores do falecido comerciante tinham feito suas reclamações, por exemplo, baseando-se em documentos sem valor ou a estudar. Muitos mesmo, enfunando-se com o temperamento do príncipe, chegaram a apresentar-se sem documentos de qualquer ordem, e — parece incrível! — o príncipe satisfizera a maioria deles malgrado as asseverações dos amigos de que toda essa corja de credores não tinha absolutamente direito a cousa alguma; e que o único motivo pelo qual os satisfizera fora o de estarem eles atualmente em más condições.
A sra. Epantchiná observou que a velha Bielokónskaia lhe mandara dizer, em carta, algo a respeito e que isso “era estúpido, muito estúpido. Mas os malucos não têm cura”, acrescentara ela taxativamente; mas aditara de modo a evidenciar quanto lhe agradava a conduta desse “maluco”. Notou afinal o general quanto a mulher se interessava por Míchkin, como se fosse seu filho, dando logo em se mostrar afetuosa com Agláia, o que dantes não acontecia. Vendo isso, Iván Fiódorovitch adotou a política de tomar, por certo tempo, o ar próprio de quem anda ocupadíssimo em negócios.
Mas esse agradável estado de cousas não perdurou muito. Quinze dias depois, houve, outra vez, uma inesperada mudança. A generala amuou; e então, encolhendo os ombros, o general Epantchín se resignou outra vez ao “gelo do silêncio”.
O fato foi que, duas semanas antes, ele recebera uma carta confidencial, não muito clara, mas autêntica, informando-o de que Nastássia Filíppovna, que no começo tinha desaparecido em Moscou, depois de lá mesmo ter sido encontrada por Rogójin, sumira outra vez e de novo fora reencontrada, tendo-lhe prometido casar-se com ele. E o incrível é que, depois desses quinze dias, Sua Excelência tinha, de repente, vindo a saber que ela escapulira pela terceira vez, quase na véspera do casamento, ocultando-se numa província qualquer, coincidindo que na mesma ocasião o príncipe Míchkin também sumira, deixando os seus negócios nas mãos de Salázkin. “Se com ela, ou em perseguição dela, não ficou esclarecido, mas que há cousa nisso, há”, concluíra o general.
Lizavéta Prokófievna também recebeu notícias desagradáveis. O remate de tudo isso foi que, dois meses depois da partida do príncipe, quase todos os boatos a seu respeito se extinguiram em Petersburgo e o “gelo do silêncio” não foi mais rompido pela família Epantchín. Mas Vária continuava a visitar as moças.
Para encerrar tais rumores e explicações, acrescentaremos que na primavera houve muitas novidades no lar dos Epantchín, não tendo sido pois difícil esquecer o príncipe, que não mandava notícias, e decerto nem pensou nisso. Durante o inverno combinaram após muitas vacilações passar o verão no estrangeiro, isto é, Lizavéta Prokófievna mais as filhas, visto ser impossível, ao general, perder seu tempo em “diversões frívolas”. Tal decisão partiu mais dos imediatos e contínuos esforços das moças, totalmente persuadidas de que os pais não as queriam levar para fora do país por estarem empenhados demais em casá-las, procurando-lhes maridos. Decerto os pais acabaram se convencendo que isso de maridos era matéria que também podia ser achada no estrangeiro; e que essa viagem, por um verão apenas, longe de atrapalhar seus planos, poderia talvez “ser proveitosa”. E esta é a ocasião e o lugar de mencionar que o proposto casamento de Afanássii Ivánovitch Tótskii com a moça mais velha foi desmanchado, a oferta mesmo formal, de sua mão, nunca tendo chegado a ser feita, o que se deu por si só, sem nenhum discurso ou disputa doméstica. O projeto caíra sozinho ao tempo da partida do príncipe; e caíra tanto dum como do outro lado. O fato fora uma das causas do mau humor da família, muito embora a mãe acabasse por declarar peremptoriamente, então, que ficara tão contente “que até se benzera com as duas mãos ao mesmo tempo”. Apesar de vencido, e de saber que só se podia queixar de si mesmo, o general se considerou ofendido e desconsiderado em casa, por algum tempo. Sentia ter perdido Afanássii Ivánovitch, “uma tamanha fortuna e um sujeito tão aguçado!”. Mas não demorou muito para o general vir a saber que Tótskii se apaixonara por certa francesa da mais alta sociedade, marquesa e legitimista; que estavam ambos para se casar, e que Afanássii Ivánovitch se achava de viagem marcada para Paris, e, depois, Grã-Bretanha. “Ora, com a tal francesa, é um homem perdido!”, concluiu ele. Estavam os Epantchín se preparando a fim de partir antes do verão, quando uma circunstância de todo inesperada sobreveio, mudando-lhes os planos. E o passeio foi adiado, outra vez, com grande satisfação para o general e respectiva esposa. Apareceu em Petersburgo, vindo de Moscou, um certo príncipe Chtch... homem muito conhecido; e justamente muito considerado por suas excelentes qualidades. Tratava-se dum desses homens modernos, pode-se mesmo dizer reformadores, e que sendo honesto, modesto, e desejando de modo inteligente e acertado o bem público, trabalhava deveras, sempre se distinguindo por uma rara e feliz faculdade de saber como trabalhar. Sem cortejar o favor público, evitando a amargura e a verbosidade das lutas partidárias, o príncipe tinha uma lúcida compreensão da sua época e respectiva evolução, muito embora não se considerando um chefe. Estivera no serviço imperial. Fora, em seguida, membro ativo de um Zémstvo. Filiara-se, como correspondente, a diversas sociedades culturais. Colaborando com um afamado perito, tinha reunido fatos e observações que o levaram a melhorar em muito o plano de uma nova linha de estrada de ferro de grande importância. Andava pelos trinta e cinco anos de idade. Era homem “da mais alta sociedade” e possuía, além de tudo, uma “boa, sólida e notória fortuna”, segundo as palavras do general Epantchín que, por acaso, tivera negócios com ele relativos a certos empreendimentos de monta. Conhecera-o em casa do conde, que era o diretor do seu departamento de trabalho oficial. Interessava-se o príncipe Chtch... pelos homens práticos da Rússia, e nunca desdenhara a sociedade deles. E aconteceu ser introduzido na família Epantchín, tendo Adelaída Ivánovna, a segunda das irmãs, lhe causado considerável impressão. Pediu-a, no fim do inverno. Adelaída o apreciava deveras; Lizavéta Prokófievna, idem. O general Epantchín ficou radiante. O passeio ao estrangeiro foi naturalmente transferido, e o casamento marcado para a primavera.
Isso não impediria que a viagem se realizasse lá pelos meados do verão, apenas como uma breve visita de um mês ou dois, a título de consolo para a mãe e para as duas filhas que ficavam; consolo pela perda de Adelaída. Mas aconteceu logo algo de novo. Nos fins da primavera (o casamento de Adelaída fora adiado para o meio do verão), o príncipe Chtch... apresentou aos Epantchín certo membro de sua família, muito íntimo seu, embora parente afastado. Tratava-se de Evguénii Pávlovitch R., jovem de vinte e oito anos, ajudante de campo imperial, muito bem-parecido e pertencente a grande e importante família. Era talentoso, brilhante, “moderno”, “de alta educação” e, também, quase fabulosamente rico. Principalmente com este último ponto era o general Epantchín muito cuidadoso sempre. Tomou suas informações. “Parece que a cousa é certa, embora, naturalmente, a gente se deva sempre certificar.” Esse jovem e futuroso ajudante de ordens viera altamente recomendado de Moscou, pela princesa Bielokónskaia. Mas corria a seu respeito um rumor algo inquietador: falava-se em liaisons, em conquistas, em corações esmagados. Vendo Agláia, deu em se tornar assíduo em suas visitas aos Epantchín. Nada ainda fora dito, nenhuma suspeita, por menor, se esboçara, e já aos pais pareceu ficar de lado, outra vez, a ida ao estrangeiro, pelo verão. Só Agláia era de opinião diversa.
Tudo isso aconteceu justamente antes da segunda entrada do nosso herói na cena desta história. A esse tempo, a julgar pelas aparências, tinha o pobre príncipe Míchkin sido completamente esquecido em Petersburgo. E se, inopinadamente, surgisse entre aqueles que o tinham conhecido, pareceria ter caído do céu. Devemos aqui acrescentar outro fato, para assim completarmos a nossa introdução.
Depois da partida do príncipe, continuara Kólia Ívolguin a passar o seu tempo como antes — quer dizer, ia à escola, visitava o seu amigo Ippolít, tratava do pai, ajudava a irmã em casa, levava recados. Mas todos os pensionistas se tinham ido. Ferdichtchénko fora-se três dias depois da noitada em casa de Nastássia Filíppovna, sem deixar traço, de maneira que não se sabia dele absolutamente. Dizia-se, aliás, em fontes desautorizadas, que dera em beber. Com a ida do príncipe para Moscou os hóspedes acabaram. Mais tarde, com o casamento de Vária, Nina Aleksándrovna e Gánia mudaram-se para a casa de Ptítsin na outra ponta da cidade. Quanto ao general Ívolguin, um acontecimento surpreendente lhe sucedera mais ou menos nessa ocasião: fora dar com os costados na prisão dos devedores por obra e graça da sua amiga, a viúva do capitão, ligando-se o fato a diversas promissórias por ele assinadas no valor total de 2 mil rublos. Causara-lhe isso não pequena surpresa; o pobre general fora “indubitavelmente vítima de sua incrível fé na generosidade do coração humano, falando-se dum modo genérico”. Tendo adotado o suave hábito de assinar promissórias e letras, nunca lhe passara pela cabeça que isso implicasse em qualquer compromisso. Sempre supusera que tudo estava muito bem. Mas aconteceu que tudo ficou foi muito mal. “Depois duma cousa destas, como acreditar na humanidade? De que modo mostrar a alguém a sua generosa confiança?”, deu ele em exclamar, amargamente, amesendado entre os seus novos amigos, em casa de Tarássov, em frente duma garrafa de vinho, contando-lhes anedotas sobre o cerco de Kars e do soldado que ressuscitou. Assim a cousa lhe assentou de maneira capital. Ptítsin e Vária foram de opinião que nunca estivera em lugar mais próprio; Gánia concordara inteiramente com eles. Apenas a pobre Nina Aleksándrovna derramou lágrimas amargas, em segredo (do que em casa todo o mundo se admirou, deveras) e, doente como já estava, arrastava-se, muitas vezes, como podia, para visitar o marido.
Mas desde o tempo da “adversidade do general”, como Kólia dizia — e, mais exatamente, desde o tempo do casamento da irmã — Kólia se desvencilhara deles e as cousas deram em se passar de tal modo que muito raramente dormia em casa, só sabendo, os seus, que fizera um número sem conta de novas relações. Ainda assim se tornou bastante conhecido na prisão dos devedores. Nina Aleksándrovna não ia até lá sem ele, e em casa, agora, já não o aborreciam com questões. Vária, que fora antes tão severa, já não o enfezava com a menor indagação que fosse a respeito da sua vagabundagem; e, com grande surpresa para o restante da família, Gánia, a despeito da sua hipocondria, dera habitualmente em conversar e em se comportar de maneira totalmente amistosa para com o irmão. E isso era algo inteiramente novo, pois Gánia, com vinte e sete anos de idade, jamais tomara o menor interesse, como amigo, pelo rapazinho de quinze anos. Tratara-o sempre de modo rude e exigia que a família fosse severa para com ele, estando sempre pronto a puxar-lhe as orelhas, o que levava Kólia, “para lá dos mais extremos limites do sofrimento humano”. Podia-se com isso concluir que Kólia se tornara positivamente indispensável ao irmão. Verdade é que o impressionara o fato de Gánia haver devolvido o dinheiro: só por tal gesto estava pronto a perdoar-lhe muita e muita cousa.
Foi só três meses depois da partida do príncipe, que a família Ívolguin se deu conta de que Kólia inesperadamente entretinha relações com os Epantchín, sendo muito bem recebido pelas moças. Vária soube logo disso, não devendo ele à irmã esse conhecimento, tendo-os procurado por vontade e inclinação sua. Pouco a pouco os Epantchín foram gostando dele. Logo no começo, Lizavéta Prokófievna não o tolerou; mas depois começou a levá-lo a sério, “por causa da sua franqueza e porque não era adulador”. Que Kólia não era adulador, aí estava uma asserção mais que verídica. Armara as cousas de maneira a ser bastante independente e a se pôr em pé de igualdade perante elas, chegando, às vezes, a ler livros e jornais para a generala ouvir. A sua prestimosidade estava sempre à prova. Uma ou duas vezes, no entanto, teve brigas com Lizavéta Prokófievna, ousando chamá-la de déspota e jurando que não tornaria a pisar em casa dela. A primeira vez a briga começou por causa da questão “mulher”, já a segunda tendo sido por causa de divergência quanto ao melhor tempo do ano para apanhar verdelhões. E, por mais esquisito que pareça, dois dias depois da briga a sra. Epantchiná mandou-lhe um bilhete, por um criado, pedindo-lhe que voltasse. Kólia não embirrou e foi imediatamente vê-la. Somente Agláia não simpatizava com ele, conservando-o a distância. E no entanto era a Agláia que ele estava destinado a surpreender: o fato foi que, na Páscoa, ele aproveitou uma oportunidade de estarem ambos sós para lhe entregar uma carta, apenas lhe dizendo que lhe fora recomendado entregar-lha quando estivesse sozinha. Agláia encarou de modo ameaçador o “pequeno atrevido”, mas Kólia se retirou sem aguardar mais nada. Ela abriu a carta e leu:
Outrora me honrastes com a vossa confiança:
Talvez, agora, já me tenhais esquecido. Todavia vos estou escrevendo!... Como pode ser isso? Não sei. Mas sinto um irreprimível desejo de vos relembrar, e a vós tão só, que ainda existo. Quantas vezes não tenho eu tido saudades das três. Mas, de todas, era só a vós que eu via. Preciso de vós — preciso muitíssimo. A meu respeito, que hei de dizer? Nada há a dizer. E nem é disso que se trata. O meu maior desejo é que sejais feliz. Sois feliz? Eis tudo quanto eu vos queria dizer.
Vosso irmão,
PRÍNCIPE L. MÍCHKIN.
Lendo essa carta tão curta quanto incoerente, Agláia corou e ficou pensativa. Seria difícil dizer no que estava ela pensando. Entre outras cousas perguntou a si mesma se a deveria mostrar a alguém. Sentiu que isso a envergonharia. E acabou trancando a carta na gaveta da sua mesa, fazendo-o com um sorriso irônico. Mas no dia seguinte a tirou de lá e a enfiou dentro dum volume grosso e pesadão (sempre fazia isso com os seus papéis de maneira a poder encontrá-los com facilidade quando quisesse). E nem bem uma semana depois, notou que livro era esse. Era Dom Quixote de la Mancha. Agláia desandou a rir, sem saber por quê. Nunca se ficou sabendo se chegou a mostrar a carta às irmãs.
Mas mesmo quando estava lendo a carta ficara perplexa com uma cousa: como podia o príncipe ter escolhido aquele criançola presumido e confiado como seu correspondente, e talvez até único, em Petersburgo? Pôs-se então, com um cuidado exagerado, a reexaminar Kólia. Mas, apesar de ser ele facilmente suscetível, desta vez nem chegou a perceber essa análise. Apressadamente, e de maneira seca, explicou que apesar de ter dado o seu endereço permanente ao príncipe quando este deixara Petersburgo, tendo-se-lhe oferecido ficar às ordens para o que pudesse fazer, a entrega dessa carta fora a primeira incumbência recebida da parte dele; e, como reforço do que estava dizendo, mostrou o recado que o príncipe lhe dirigira. Agláia não fez a menor cerimônia e leu. A carta para Kólia dizia isto:
Caro Kólia, queira ter a bondade de entregar a carta selada aqui junta a Agláia Ivánovna!
Espero que v. esteja bem.
Seu dedicado
PRÍNCIPE L. MÍCHKIN.
— É ridículo confiar num fedelho como você! — disse Agláia arrogantemente a Kólia, tornando a lhe entregar a carta que acabara de ler; e passou por ele, desdenhosamente, indo embora para os seus aposentos.
Isso ultrapassava o que Kólia podia suportar, pois chegara a pedir a Gánia, sem lhe dizer para quê, que lhe emprestasse (e para essa ocasião) o seu novo cachecol verde. Ficou amargamente ofendido.
2.
Estava-se nos primeiros dias de junho e havia já uma semana que em Petersburgo fazia um tempo lindíssimo, cousa não muito comum. Os Epantchín possuíam uma luxuosa vila de verão em Pávlovsk. Lizavéta Prokófievna tornou-se de repente agitada, sem parar um momento, e depois duns dois dias de lufa-lufa transferiram-se todos para lá.
E eis que, dois ou três dias depois disso, o príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin chegou de Moscou, pelo trem da manhã. Não se encontrou com nenhum conhecido, na estação, mas pouco depois de desembarcar teve a súbita impressão de que estranhos olhos fulgurantes o olhavam por entre as pessoas que enchiam a plataforma. Procurando vê-los, com maior atenção, não os descobriu mais. Talvez tivesse sido pura fantasia, mas isso lhe deixou uma desagradável sensação. De mais a mais, o príncipe estava tristonho e pensativo, qualquer cousa, decerto, o aborrecendo.
O fiacre tomou a direção do hotel nas imediações da Litéinaia. Não era, absolutamente, um hotel de primeira ordem; o príncipe tomou duas pequenas peças escuras e pessimamente mobiliadas. Lavou-se, mudou de roupa, não pediu cousa alguma, e saiu apressadamente, como se não quisesse perder tempo ou deixar de encontrar quem procurava.
Se alguém que o tivesse conhecido seis meses antes, ao tempo da sua primeira chegada a Petersburgo, o visse agora, bem o poderia imaginar grandemente mudado, a sua aparência sendo muito melhor. Mas isso seria verídico somente até certo ponto, pois tal diferença consistia apenas no modo de se vestir. As roupas eram novas e tinham sido cortadas por um bom alfaiate moscovita. Mas, mesmo nelas, havia qualquer cousa que não estava direito: eram demasiado conforme a moda (como as roupas feitas por alfaiates conscienciosos, mas não muito hábeis); e ainda por cima quem as usava era um homem que, a bem dizer, jamais se importara com sua aparência. De maneira que alguém, propenso a achar graça nas cousas, teria encontrado de que se rir na aparência do príncipe. O povo rirá sempre, seja do que for.
O príncipe tomou um fiacre e mandou seguir para Péski. Fácil lhe foi encontrar uma pequena casa de madeira numa das ruas de lá. E com surpresa verificou que era bem bonita, embora pequena, e limpa, muito bem conservada, tendo na frente um jardim cheio de flores. As janelas que davam para a rua estavam abertas e através delas vinha o som contínuo duma voz estridente, como de alguém que, ou lesse alto, ou estivesse fazendo um discurso. Às vezes, essa voz era interrompida por um coro de cristalinas risadas. O príncipe atravessou o jardim, subiu os degraus e perguntou pelo sr. Liébediev.
— Está lá dentro — respondeu a cozinheira ao abrir-lhe a porta, com as mangas arregaçadas até os cotovelos. E apontou para a sala de visitas.
Era um aposento forrado de papel azul bem escuro e mobiliado com certo capricho e elegância — isto é, contendo um sofá, uma mesa redonda, um relógio de bronze dentro duma redoma de vidro, um estreito espelho de parede, e um pequeno candelabro de forma antiga que pendia, por uma cadeia de bronze, do teto adornado. Bem no meio da sala, com as costas viradas para a porta, estava o sr. Liébediev em pessoa. Vestia-lhe o busto apenas um colete, pois tirara o paletó por causa do calor. Dando golpes no próprio peito, estava a declamar tragicamente a respeito de qualquer assunto. Os seus ouvintes consistiam num rapaz duns quinze anos, de rosto animado e inteligente, segurando um livro; uma mocinha duns vinte anos, vestida de luto, que ninava uma criança nos braços; uma meninota de treze anos, também de luto, que ria escancaradamente; e uma figura exótica, escarrapachada no sofá, um rapaz até bonito, duns vinte anos, moreno, de cabeleira espessa e comprida, grandes olhos negros, com um começo de barba e de buço. Pelos modos, era quem interrompia Liébediev, frequentemente, argumentando com ele; e era isso que provocava as gargalhadas dos outros.
— Lukián Timoféitch! Lukián Timoféitch! Estou chamando. Olhe pra cá. Ora, dane-se!
E agitando os braços a cozinheira se foi, vermelha de raiva.
Liébediev voltou e olhou; vendo o príncipe, ficou por algum tempo embasbacado. Em seguida avançou na direção dele, com um sorriso congratulatório; mas antes de chegar parou outra vez, murmurando:
— Il... il...ustríssimo príncipe!
Mas, sem propósito algum, como se não tivesse podido aproximar-se, deu uma volta e, sem mais aquela, investiu contra a rapariga de luto que estava com o nenê ao colo, a ponto desta se espantar, recuando. Deixou-a, porém, imediatamente, embarafustou na direção da mais nova, que estava de pé no portal do quarto próximo, ainda com ar de riso no semblante alegre. Ela se aturdiu com a exclamação e se trancou na cozinha. Para lhe aumentar o pavor Liébediev se pôs a sapatear atrás dela. Nisto, dando com os olhos do príncipe, que o olhava embaraçado, resolveu explicar:
— Para impor, nem mais nem menos do que... respeito! Eh! eh! eh!
— Mas não há nenhuma necessidade disso — começou o príncipe.
— Um minuto... um minuto... um minuto... num abrir e fechar de olhos!
E Liébediev apressadamente sumiu da sala. Surpreendido, o príncipe olhou para a moça, para o rapaz e para o sujeito do sofá; estavam todos rindo.
Riu-se Míchkin, também.
— Ele foi vestir o casaco — disse o rapazinho.
— Que cousa horrível! — começou o príncipe. — E eu esperava... Diga-me, ele está...
— Se ele está bêbedo? Não foi o que o senhor pensou? — gritou uma voz lá do sofá. — Quase nada. Três ou quatro cálices; uns cinco, talvez; mas que tem isso demais? É o comum.
Virou-se o príncipe para o sofá donde vinha aquela voz; mas foi a mocinha quem começou a falar: e com a mais cândida das expressões no rosto encantador, disse:
— De manhã, ele nunca bebe muito. Se o senhor veio para conversar sobre negócios, fale agora, que é a melhor hora. Quando ele entra de noite volta quase sempre bêbedo. Ultimamente deu em chorar de noite e em ler-nos a Bíblia, pois não há nem cinco semanas que mamãe morreu.
— Fugiu lá para dentro porque não sabia o que responder ao senhor — disse, rindo, o rapazola do sofá. — Aposto o que quiserem como ele já lhe pregou uma peça e está chocando mais outra para breve.
Nisto, entrando de novo, já de paletó, pestanejando e tirando o lenço do bolso para enxugar as lágrimas, Liébediev desandou a dizer:
— Não há nem cinco semanas! Cinco semanas, se tanto. Ela deixou-nos sozinhos no mundo!
— Mas por que veio o senhor assim todo rasgado? — perguntou-lhe a rapariga. — Pois não sabe que atrás da porta está pendurado o seu paletó novo? O senhor não viu?
— Cala essa boca, libélula! — berrou-lhe Liébediev. — Arre, também! — E bateu com o pé.
Que havia ela de fazer senão rir?
— O senhor não pense que me mete medo, não. Eu não sou Tánia. Eu não fujo lá pra dentro, não. O senhor vai mais é acordar Liúbotchka e amedrontá-la até lhe virem as convulsões. Para que berrar dessa maneira?
— Não blasfemes, que Deus ouve! Não digas tal cousa! — Liébediev ficou logo apavorado e voando para o nenezinho, que dormia no colo da mana maior, fez sobre ele o sinal da cruz diversas vezes, com uma expressão de susto. — Deus a proteja e a preserve! É a minha caçulinha Liubov — acrescentou, virando-se para o príncipe —, nascida do meu sacratíssimo matrimônio com a minha mulher Elena, recentemente falecida... E falecida de parto. E esta aqui, de luto, é a minha filha Vera. E este... este, oh! este aqui...
— Ora essa, prossiga! — exclamou o rapazola. — Prossiga, está com medo?
— Vossa Excelência — disse Liébediev, numa espécie de impulso — por acaso leu nos jornais o assassinato da família Jemárin?
— Sim, li — respondeu o príncipe com certa surpresa.
— Pois bem, o verdadeiro assassino da família Jemárin, ali o tem o senhor!
— Que é que você me está dizendo? — fez o príncipe.
— Falando de modo alegórico, é claro. Ei-lo acolá, o futuro assassino número dois duma família Jemárin. Ele está acabando os preparativos para isso...
Todo o mundo riu. O príncipe chegou a desconfiar que Liébediev estivesse fingindo de maluco prevendo as perguntas que lhe seriam feitas e, não sabendo que jeito dar, procurasse assim ganhar tempo.
— É um rebelde! Vive tramando! — bradava Liébediev fingindo não se poder conter. — Diga-me o senhor, posso eu, tenho eu a obrigação de reconhecer aquele boca imunda ali, por assim dizer aquele monstro, como um sobrinho meu, ele, o único filho de minha defunta irmã Anísia?
— Ai! ai! Cale a boca, seu bêbedo! Seria o senhor capaz de acreditar numa cousa, príncipe? Ele agora deu em se fazer de advogado; e pleiteia casos no tribunal. Ficou, de repente, tão eloquente que até em casa, diante das crianças, fala difícil, em linguagem rebuscada! Não há cinco dias fez um discurso, diante do juiz de paz. E quem pensa o senhor que ele defendeu? Não uma pobre anciã que pediu e rogou que a defendesse, e que tinha sido saqueada por um agiota ignóbil que lhe furtara 500 rublos, tudo quanto a coitada tinha neste mundo. Defendeu mas foi o próprio agiota, um judeu chamado Záidler! E só porque este lhe prometeu 500 rublos...
— Cinquenta rublos se eu ganhasse a causa e não mais do que 5 se eu a perdesse — explicou Liébediev incontinenti, mudando de tom, deixando de lado o diapasão dos berros.
— Ora naturalmente que fez papel de idiota! Hoje em dia as cousas são diferentes; que haviam de fazer senão se rirem dele? Mas ficou radiante consigo mesmo. “Não vos esqueçais”, disse ele, “que um infeliz velho, achacado de males, vivendo só do seu labor honesto, está a ponto de perder a sua última côdea de pão! Não vos esqueçais das sábias palavras do legislador: ‘Que a misericórdia prevaleça sempre nos tribunais!’” E o senhor quer saber duma cousa incrível? Todas as manhãs ele nos declama esse trecho, palavra por palavra, tal como o descascou lá! Justamente quando o senhor chegou ele nos lia essa joça pela quinta vez, todo radiante! Ele está lambendo os beiços de gosto. E agora ainda vai defender mais outro. O senhor é o príncipe Míchkin, não é? Kólia me disse que jamais encontrou pessoa mais inteligente do que o senhor, no mundo...
— Justamente, justamente, não há mais ninguém tão inteligente no mundo — sustentou logo Liébediev.
— Mesmo assim, ele está mentindo, bem sabemos. Kólia gosta do senhor, mas este homem aqui o está adulando... Eu, todavia, não o pretendo adular, desde já lhe garanto. O senhor tem bastante descortino, pode julgar entre mim e ele! — Voltou-se para o tio: — Aceitaria o senhor, o príncipe como juiz entre nós dois? Que bom ter aparecido aqui, príncipe!
— Perfeitamente! — gritou Liébediev, resolutamente. E, como um autômato, se virou para toda a assistência que começara a se juntar em volta dele.
— Mas que é que há? — perguntou o príncipe fechando a cara.
Doía-lhe a cabeça, e cada vez se convencia mais de que Liébediev estava zombando, contentando-se em ganhar tempo.
— Eis a situação do caso. Eu sou sobrinho dele. Quanto a isso, ele não mentiu, embora nunca fale a verdade. Não acabei os meus estudos, mas pretendo acabá-los: quero, porque tenho caráter. Arranjei um emprego na estrada de ferro que me dará 25 rublos por mês. Não nego que, umas duas ou três vezes, ele me tenha ajudado. Eu tinha 20 rublos e perdi-os. E quer o senhor saber duma cousa, príncipe, sou tão ordinário, tão ruim que os perdi no jogo.
— Perdeu-os para um tratante... um tratante, a quem você não devia ter pago! — interpôs Liébediev.
— Que é tratante, é; mas que eu devia pagar, devia — continuou o rapazola. — De que é um tratante também eu dou testemunho, e não porque me tenha batido. Chegou a ser oficial, foi expulso do exército, príncipe; um tenenteco que deu baixa, que anda com o grupo de Rogójin e que ensina boxe. Todo o bando, agora, vai de mal a pior, desde que Rogójin os largou. Mas o pior de tudo é que eu, sabendo que ele era tratante, gatuno e sem-vergonha, me sentei a jogar com ele, e quando apostei o meu último rublo (estávamos jogando pálki) pensei comigo mesmo: “Se eu perder irei ter com meu tio Lukián e me humilharei diante dele; ele me atenderá.” Isso de fato foi vil, sim, realmente foi vil. Foi uma ruindade consciente!
— Muito exato. Foi uma ruindade consciente — repetiu Liébediev.
— Ora, é favor não me interromper; espere um pouco — redarguiu-lhe o sobrinho, com pouco caso. — O tal está gozando a minha desgraça. Vim até ele, príncipe, e confessei tudo. Agi decentemente, não me poupei. Humilhei-me diante dele o mais que pude; todos aqui são testemunhas. Só poderei entrar para o emprego da estrada de ferro melhorando as minhas vestes, pois não hei de ir assim todo rasgado. Isto são botas que se usem? Como havia eu de ir para lá deste modo? E se eu não for a tempo, outro arranjará o meu lugar e ficarei outra vez na rua... E quando arranjarei eu uma outra oportunidade? No momento só peço a ele que me arranje 15 rublos e prometo nunca mais pedir nada; e, o que é mais, antes do fim do primeiro trimestre lhe restituirei o dinheiro emprestado. Eu tenho palavra. Posso viver só de pão e kvás, meses e meses, pois sou um sujeito de vontade. Em três meses ganho 75 rublos. Contando com o que já lhe pedi emprestado antes, estarei devendo a ele coisa duns 35 rublos; logo, até lá, terei o suficiente para lhe pagar. Ele que marque os juros que exige, que se dane o resto! Então ele não sabe com quem está tratando? Pergunte-lhe, príncipe, se nas outras vezes em que me ajudou eu não paguei. Então, por que é que ele não quer me ajudar agora? Está zangado porque paguei o tenente, e não pode haver outro motivo. O senhor está vendo o que ele é: não passa dum cão com os dentes arreganhados, diante da gamela.
— E nem assim se vai embora? — gritou Liébediev. — Planta-se aqui e não há meios de ir embora.
— Já lhe disse. Sem o dinheiro, é escusado; não vou. O senhor está rindo, príncipe? Parece que acha que eu não tenho razão?
— Não estou rindo: mas, a meu ver, de fato você não está lá muito com a razão — respondeu o príncipe, a contragosto.
— Diga então duma vez que eu não estou com razão absolutamente. Não venha com panos quentes. Que é que quer dizer com esse “lá muito”?
— Posso ser mais explícito: ambos não estão com a razão.
— Mais explícito? Que absurdo! O senhor acha que eu não sei que a minha decisão nisso não pode valer? Que o dinheiro é dele, que é a ele que compete decidir, e que o que estou exigindo é um ato de violência da minha parte? Mas o senhor não sabe nada da vida, príncipe. Não há vantagem alguma em poupar homens como este aqui duma liçãozinha. Eles precisam duma lição. A minha consciência é clara. Eu tenho consciência, logo não lhe advirá nada de mau; eu lhe pagarei com juros. Além disso já lhe dei uma satisfação moral, também; ele assistiu à minha humilhação. Que é que ele quer mais? Que lucra ele em não ajudar a gente? Preste bem atenção nele! Pergunte-lhe como é que ele trata os outros! E como se aproveita das pessoas! Pergunte-lhe de que maneira foi que comprou esta casa! Aposto, seja o que for, como ele já enganou o senhor antes e que já está tratando de enganá-lo outra vez. O senhor ri. Não acredita, então?
— É que me parece que tudo isso não tem nada que ver com o seu caso — observou o príncipe.
— Estou aqui há três dias e quanta cousa não vi eu! — exclamou o rapazola. — O senhor até nem vai acreditar! Ele desconfia deste anjo, desta rapariguinha órfã aqui, minha prima e sua filha; e todas as noites dá busca no quarto dela à procura de amantes! Aparece aqui, pé ante pé, e espia até debaixo do sofá. A maluqueira dele deu para desconfiar. Vê gatunos em todos os cantos. De noite está sempre se levantando, experimentando as janelas, a ver se estão bem fechadas, revistando as portas, espiando dentro do forno; e isso mais de doze vezes por noite. Vai ao tribunal defender gatunos, mas se levanta três vezes por noite para vir rezar de joelhos, aqui na sala de visitas, as suas orações; e chega até a encostar a cabeça no assoalho, mais de meia hora, às vezes. E o que ele reza por todo o mundo, que piedosas lamentações, quando está bêbedo! Imagine que tem rezado até pelo descanso eterno da alma da condessa Du Barry! Eu ouvi, com estes ouvidos. E Kólia também ouviu. Está doido varrido!
— Está vendo, está ouvindo como ele caçoa de mim, príncipe? — interveio Liébediev envergonhado e zangado deveras. — Ele não compreende que, por mais bêbedo, degradado e trapaceiro que eu possa ser, a minha única boa ação na vida foi, quando esta víbora arreganhada era bebê ainda, eu lhe mudar as fraldinhas. Dava-lhe banho, e ficava de pé noites seguidas ao lado de minha irmã Anísia, que enviuvara e que não tinha vintém, tão pobre eu quanto ela. Atendia-os quando ficavam doentes, roubava, para aquecê-los, sim, roubava lenha da porteira, lá embaixo, cantarolava e dava estalinhos com os dedos numa bola assoprada! E eis para que serviu eu ter sido ama dele! Para isso, para estar acolá, rindo de mim, agora! Que é que você tem com isso se uma vez fiz o sinal da cruz pela alma da condessa Du Barry? Três dias antes acontecera eu ler, num dicionário, a vida dela, que eu desconhecia. Sabe quem foi ela, a Du Barry? Vamos, diga, sabe? Sabe nada!
— Ora, naturalmente quem sabe é o senhor só — balbuciou o rapazola com desdém, embora a contragosto.
— Pois saiba que foi uma condessa que, da mais baixa e vergonhosa condição, se ergueu a uma situação quase de rainha, e a quem uma grande imperatriz escreveu com a sua própria letra: “Querida prima.” E um cardeal, um legado do papa, em uma levée du roi (sabe você que era uma levée du roi?) se ofereceu para lhe calçar as pernas nuas com meias de seda, e considerou isso uma honra — ele que era um alto personagem sacro? Sabia disso? A sua cara mostra que não. Ora bem, e como foi que ela morreu? Vamos, responda, se é que sabe!
— Vá para o diabo, não me amole!
— Morreu do seguinte modo: depois de ter tido tantas honrarias, o carrasco Samson arrastou essa grande dama, que não tinha culpa, que era inocente, até à guilhotina, para diversão dos poissardes parisienses; e tamanho foi o terror dela que nem se deu conta do que lhe estava acontecendo. Viu que ele lhe dobrava o pescoço debaixo da lâmina e lhe dava pontapés, enquanto a ralé ria! E então lhe suplicou gritando: “Encore un moment, monsieur le bourreau, encore un moment!”, palavras que significam: “Ainda um minuto, senhor carrasco, um minutinho só!” Talvez só por causa dessa sua imploração Deus a tenha perdoado: pois ninguém pode imaginar maior miséria para uma alma humana do que essa. Você entende o sentido da palavra miséria? Pois bem, miséria era aquilo! Quando eu li esse caso da condessa rogando “só um minuto mais!” senti meu coração como que apertado entre duas tenazes. E que tem um verme como você que ver com isso, se eu, antes de me deitar, acho que deva mencionar em minhas orações essa mulher pecadora? E talvez a razão por que a mencionei tenha sido que, desde o começo do mundo, provavelmente, ninguém se benzeu em sua intenção e nem mesmo pensou em fazê-lo. E lhe há de ter feito bem sentir no outro mundo que existe um pecador que ao menos pronunciou uma oração por ela aqui na terra. Por que é que você está rindo? Acha que não, hein seu ateu? Como é que você sabe? E, se você disse que me escutou, mentiu. Eu não rezei pela condessa Du Barry, apenas; na minha oração, eu disse assim: “Senhor, dai descanso perpétuo à alma dessa grande pecadora, que foi a condessa Du Barry e a todos os mais com ela parecidos!” E o caso, portanto, é muito diferente, pois há muitas dessas mulheres pecaminosas, exemplos da mutabilidade da fortuna, que sofreram muito, e que lá estão ainda se debatendo nas trevas, lamentando-se e esperando. E rezei, depois, por você e por quantos são como você, insolentes e atrevidos, visto você se perturbar ao ouvir minhas orações...
— Chega, cale a boca! Vá rezando por quem quiser, dane-se; pare com esse berreiro! — interrompeu-o o sobrinho, zangado. — O homem deu para ler, que se há de fazer? O senhor não sabia, príncipe? Não? — acrescentou com arreganho grosseiro. — Ele só lê livros e histórias dessas!
— É que seu tio não é homem sem coração, convenhamos — observou o príncipe, embora com certa relutância, pois estava começando a sentir grande aversão pelo rapazola.
— Se o senhor começa a elogiá-lo desse modo, ele acaba inchando. Olhe só, ele está lambendo os beiços, botou a mão sobre o coração e já está de boca cheia. Vá lá que tenha coração; mas é velhaco, e isso é que atrapalha; e, ainda por cima, é bêbedo. Está todo esbandalhado como acontece com quem leva a beber uma série de anos; é por isso que tudo lhe sai arrevesadamente. Gosta dos filhos, não nego; respeitava minha defunta tia... e até gosta de mim a ponto de no seu testamento me deixar uma doação...
— Não deixarei nada! — berrou Liébediev, furiosamente.
— Escute, Liébediev — falou o príncipe, de modo firme, dando as costas para o rapazola. — Sei, por experiência, que você, quando quer, pode ser um homem metódico, se lhe convém... Disponho de muito pouco tempo, hoje... e se você... Perdão, qual é o seu nome próprio? Não me lembro.
— Ti... Ti... Timoféi.
— Mais?
— Lukiánovitch.
Foi uma risada geral.
— Mentira! — gritou o sobrinho. — Até dizendo o nome ele mente! Ele não se chama Timoféi Lukiánovitch, príncipe, e sim Lukián Timoféitch. Mas como é que o senhor prega uma mentira dessas? Pois não é tão fácil dizer Lukián em vez de Timoféi? E que importância tem isso para o príncipe? Ele mente, mas é por vício, garanto-lhe eu.
— Mas afinal como é? — perguntou o príncipe, impacientemente.
— O direito, realmente, é Lukián Timoféitch — admitiu Liébediev, nas raias da confusão, abaixando os olhos humildemente e tornando a colocar a mão sobre o peito.
— Mas não entendo por que você disse então errado.
— Para me humilhar — sussurrou Liébediev, abaixando a cabeça ainda mais e fingindo maior humildade.
— Ora, mas que asneira! Eu só queria mais era saber onde anda Kólia — disse o príncipe, virando-se para ir embora.
— Eu lhe direi onde está Kólia. — E o rapazola se adiantou.
— Não, não, não! — Liébediev se esquentou, muito excitado.
— Kólia dormiu aqui e saiu de manhã para ir procurar o pai, a quem o senhor, príncipe, tirou da cadeia. Deus sabe por quê, pagando-lhe as dívidas. O general, ontem, prometeu vir dormir aqui, mas não veio. Com certeza dormiu no Hotel da Balança, aqui ao lado. Kólia provavelmente está lá, ou em Pávlovsk, em casa dos Epantchín. Como tinha dinheiro, desde ontem andou falando em ir lá. De maneira que ou está no Hotel da Balança, ou em Pávlovsk.
— Foi a Pávlovsk... a Pávlovsk!... Vamos por aqui, por este caminho até ao jardim. Mandarei vir café!
E segurando a mão do príncipe, Liébediev levou-o para fora. Deixando a sala, atravessaram o pequeno pátio e passaram por uma cancela. Havia ali um jardim pequenino mas encantador e onde, por causa da estação do ano, tão bela, todas as árvores já estavam com folhas. Liébediev fez o príncipe sentar-se num banco de madeira pintado de verde e preto, junto a uma mesa da mesma cor e plantada no chão, e se sentou diante dele. Um minuto depois, trouxeram café, que o príncipe não recusou. Liébediev ficou a olhá-lo bem no rosto, de modo obsequiador e ao mesmo tempo ardente.
— Eu ignorava que você tinha este estabelecimento — disse o príncipe, com um ar de quem está pensando em cousa muito diferente.
— É dos... órfãos... — fez Liébediev, remexendo-se; calou logo.
O príncipe, que sem dúvida já nem se lembrava da observação que acabara de fazer, olhava em frente, com ar distante. Um minuto se passou. Liébediev vigiava-o e esperava.
— E então? — disse o príncipe, como quem acorda. — Sim, você sabe muito bem qual é o nosso negócio. Vim, em resposta à sua carta. Fale.
Liébediev ficou confuso, tentou dizer qualquer cousa, mas gaguejou, e as palavras não lhe vieram. O príncipe esperava e sorria melancolicamente.
— Acho que o compreendo perfeitamente, Lukián Timoféitch. Você absolutamente não me esperava e pensou que eu não viria de tão longe logo à sua primeira carta; e a escreveu apenas para limpar a sua consciência. Mas eu vim. Vamos, desista, não me decepcione! Desista de servir a dois senhores. Rogójin esteve aqui há três semanas. Eu sei de tudo. Conseguiu você vender-lha outra vez, como já o fizera antes? Fale a verdade.
— O monstro achou-a sozinho... sozinho.
— Cuidado com ele. Naturalmente que tratou você mal...
— Espancou-me. Espancou-me miseravelmente — interrompeu-o Liébediev, com tremenda veemência. — Soltou o seu cachorro atrás de mim, em Moscou! E como correu atrás de mim pela rua afora! Uma cadela de caça, um animal pavoroso!
— Você acha que eu sou alguma criança, Liébediev? Diga-me, seriamente: ela, em Moscou, o deixou? Quando? Agora?
— Seriamente, seriamente, escapuliu-lhe no dia mesmo em que iam casar. Ele estava a contar os minutos, enquanto ela fugiu aqui para Petersburgo, diretamente vindo me procurar. “Salve-me, proteja-me e não diga nada ao príncipe, Lukián...” Ela tem mais medo do senhor do que do outro, príncipe. Que cousa misteriosa, não acha?
E Liébediev, astutamente, pôs o dedo na testa.
— E você vai e os ajunta de novo, não foi?
— Ilustríssimo príncipe, como poderia eu... como poderia eu evitar isso?
— Bem, agora, chega. Eu descobrirei sozinho. Diga só onde está ela agora. Está com ele?
— Oh! Não, absolutamente não! Está sozinha. “Eu sou livre”, disse ela. E o senhor sabe, príncipe, quanto ela insiste neste ponto. “Eu ainda sou perfeitamente livre”, diz ela. Está morando ainda em casa de minha cunhada, conforme lhe disse na carta.
— Estará lá agora?
— Sim, a não ser que esteja em Pávlovsk, com um tempo tão bonito como este, na vila de Dária Aleksiéievna. “Ainda sou perfeitamente livre”, diz ela. Ainda ontem gabava a sua liberdade falando com Nikolái Ardaliónovitch. Um mau sinal!
E Liébediev arreganhou os dentes.
— Kólia costuma vê-la frequentemente?
— É um desmiolado, um sujeito sem critério. Não sabe guardar um segredo.
— Você tem estado lá?
— Todos os dias. Todos os dias.
— Então, esteve lá ontem?
— N...ão. Estive há três dias.
— É uma lástima que você tenha dado para beber, Liébediev. Do contrário eu poderia lhe ter feito já uma pergunta.
— Não, não, não. Nem um pouco. — E Liébediev positivamente aguçou as orelhas.
— Diga-me, como foi que você a deixou? Em que estado?
— Procurando...
— Procurando?
— Deixei-a como se estivesse a procurar, sempre, uma cousa. Como se tivesse perdido qualquer cousa. Atormenta-a a ideia do casamento e o considera um insulto. Pensa nele menos do que numa casca de laranja. Ou melhor, tem que pensar a toda hora, pois só a lembrança dele lhe causa medo e a faz tremer. Não lhe quer nem ouvir o nome, e não se encontram, sempre que isso possa ser evitado... E ele acha que tudo vai bem. E não há saída, para isso. Ela vive agitada, sarcástica, violenta, não para de falar...
— Violenta? Não para de falar?
— Violenta, sim. Ainda no outro dia, por causa duma conversa, quase me arrancou os cabelos. Estava eu tentando trazê-la para a intimidade do Apocalipse.
— Como? — perguntou o príncipe pensando que escutara errado.
— Lendo-lhe o Apocalipse. Ela é uma criatura de imaginação infatigável. Eh! eh! Não tardei em notar também sua grande inclinação para os assuntos elevados, mesmo os de difícil alcance. Ela aprecia conversas deste teor e as toma como sinal de grande apreço. Ora, eu tenho muito jeito para interpretar o Apocalipse. Há mais de quinze anos que o venho interpretando. Ela acabou concordando comigo que nós estamos vivendo na era do terceiro ginete, o ginete negro, e do cavaleiro que traz na mão uma balança, já que na presente era tudo é pesado nos pratos das balanças e ajustado por contratos, toda gente outra cousa não fazendo senão pensar nos seus direitos... “Uma medida de trigo por um dinheiro e três medidas de cevada por um dinheiro.” E também pensam em conservar o espírito livre, o coração puro e o corpo incólume e todas as subsequentes dádivas de Deus. Ora, claro está que se eles se fundamentam apenas no direito não farão jus a tais dádivas, razão pela qual sobrevirá o ginete amarelo e aquele cujo nome é Morte, após o que virá o inferno... Quando estamos juntos conversamos sobre estas cousas... E isto atua favoravelmente sobre ela.
— E você acredita nessas tais cousas? — perguntou o príncipe esquadrinhando Liébediev com uma expressão estranha.
— Não somente acredito como as explico. Despojado de tudo, e de tudo carecendo, outra cousa não sendo aqui embaixo senão um miserável átomo no vórtice da circulação humana, natural é que ninguém me respeite e que eu não passe dum joguete para o capricho alheio, sendo apenas pontapés a vantagem que de tudo isso me resulta. Mas no meu pendor para interpretar a Revelação, sou igual aos mais adiantados que possam existir no orbe, pois jeito não me falta. Já duma feita um grande senhor tremeu diante de mim, sentado na sua poltrona, ao verificar de súbito este meu extraordinário dom. O caso foi que Sua Excelência Ilustríssima Nil Aleksiéievitch me mandou buscar, no ano retrasado, um pouco antes da Páscoa — eu servia no apartamento dele — e ordenou a Piótr Zakháritch que me levasse do escritório à sala onde ele estava. E ficando então nós sozinhos, me diz ele assim: “É verdade que expões o Anticristo?” Não fiz segredo. “Dizem”, respondi. E expliquei e interpretei. E, em vez de lhe abrandar o terror, aumentei-lho, intencionalmente, à medida que ia desdobrando a alegoria e inserindo as datas. Ele se pôs a rir, mas por fim deu em tremer ante as correlações, intimando-me a fechar o livro e a ir embora. Deu-me um presente, na Páscoa, mas, uma semana depois, rendia a alma ao Criador.
— Como assim, Liébediev?
— Muito simples. Foi atirado da sua carruagem, depois do jantar... bateu com a cabeça de encontro a um poste e ali mesmo imediatamente morreu, como uma criança, uma criancinha. Vivera setenta e três anos. Tinha uma cara vermelha, cabelos grisalhos, andava a bem dizer encharcado em perfumes e estava sempre a rir — ria como uma criança. E então Piótr Zakháritch se recordou e me disse: “Você bem que previu.”
O príncipe fez menção de se levantar. Liébediev ficou admirado e realmente se espantou de Míchkin se estar preparando para ir embora. Tanto que observou, de modo obsequioso:
— O senhor agora já não toma muito interesse pelas cousas. Eh! eh!
— É que não estou me sentindo lá muito bem. Tenho a cabeça pesada, por causa da viagem, com certeza — respondeu o príncipe, de cara fechada.
— O senhor devia ir para fora da cidade — aventurou Liébediev, timidamente.
Já em pé, o príncipe parecia refletir.
— Dentro de três dias saio com toda a minha família, por causa do meu recém-nascido e para dar uns últimos arranjos nesta casa aqui. Vamos, também nós, para Pávlovsk — disse Liébediev.
— Vocês também vão para Pávlovsk? — perguntou o príncipe, repentinamente. — Por que é que todo o mundo aqui está indo para Pávlovsk? Você tem lá uma vila, dizia você?
— Não é todo o mundo que está indo para Pávlovsk. Iván Petróvitch Ptítsin deixou-me ir para uma das vilas que adquiriu lá, baratinho. Lá é bonito, bem situado, há vegetação, em redor, tudo é bem barato, as pessoas são de bon ton e a atmosfera é musical: eis por que todo o mundo vai para Pávlovsk. Mas eu morarei num pavilhão, pois a vila propriamente dita, eu...
— Vai alugá-la?
— N...ão. Não é bem isso.
— Alugue-ma — propôs-lhe logo o príncipe.
Não fora para outra cousa que Liébediev estivera trabalhando. Essa ideia lhe ocorrera três minutos antes. Não precisava de inquilino, pois já tinha encontrado alguém que lhe dissera que talvez tomasse a vila. E Liébediev estava mais do que certo que nem era questão de “talvez”, que essa pessoa na certa alugaria a casa. Mas agora lhe vinha essa outra ideia, que já o entusiasmava por causa das vantagens: alugar a casa ao príncipe, mesmo porque o outro pretendente não dera uma decisão categórica. “Mera coincidência, mas que dá uma feição nova ao negócio”, eis o que se levantou na imaginação dele, imediatamente. Recebeu a proposta do príncipe, com júbilo, e à imediata pergunta dele quanto ao preço simplesmente agitou as mãos.
— O senhor é quem manda. Trataremos disso já. O senhor não será prejudicado.
Estavam ambos saindo do jardim.
— E talvez eu lhe pudesse... eu lhe pudesse dizer uma cousa que lhe deva interessar, caso o senhor queira, mui altamente honrado príncipe, e referente quase que ao mesmo assunto — balbuciou Liébediev, bamboleando-se alegremente ao redor do príncipe.
O príncipe parou.
— Dária Aleksiéievna tem uma vila em Pávlovsk, também.
— E daí?!
— E uma certa pessoa, que é amiga dela, evidentemente pretende visitá-la frequentemente lá, com uma certa finalidade...
— Quem?
— Agláia Ivánovna...
— Arre, basta, Liébediev! — interrompeu-o o príncipe, demonstrando uma desagradável sensação, como se tivesse sido tocado num ponto sensível. — Que tenho eu que ver com isso?... Gostaria mais que você me dissesse quando se muda. Quanto mais cedo melhor para mim, pois estou num hotel...
E enquanto assim falavam, deixaram o jardim e, sem irem para a casa, atravessaram o pátio e chegaram ao portão.
— Ora muito bem, dá tudo muito certo! — entusiasmou-se Liébediev. — Venha diretamente hoje, do hotel para a minha casa, e depois de amanhã nos mudaremos todos juntos para Pávlovsk.
— Vou pensar — respondeu o príncipe, saindo pelo portão e parecendo concentrar-se.
Liébediev ficou a olhá-lo. Impressionou-o o ar distraído do príncipe que até se esquecera de se despedir, ao ir embora. Nem sequer um gesto fizera, o que não estava de acordo com o que Liébediev conhecia da sua educação e delicadeza.
3.
Passava das onze horas. O príncipe calculou que na residência dos Epantchín só encontraria o general que todavia poderia ter ficado na cidade, preso às suas obrigações, não estando ainda em casa. Viera-lhe o pensamento de que o general o pudesse levar até Pávlovsk; mas queria antes fazer uma visita na qual tinha particular interesse. Mesmo ante a hipótese de perder o general Epantchín e falhar em sua visita a Pávlovsk, ficando obrigado a adiá-la para o dia seguinte, decidiu o príncipe ir procurar a casa onde tanto desejava ir.
E todavia essa visita, sob um dado aspecto, era arriscada. Ficou perplexo e cheio de hesitação. Sabia que descobriria a casa na rua Gorókhovaia, não longe da rua Sadóvaia; resolveu ir até lá, crente de que pouco a pouco o seu espírito se refizesse.
Quando chegou ao ponto em que as duas ruas se cruzam, surpreendeu-se com a extraordinária emoção que estava sentindo; não esperava que o seu coração viesse a bater assim tão dolorosamente. Certo prédio, de longe, lhe atraiu a atenção, por causa, sem dúvida, de sua aparência esquisita; muito tempo depois o príncipe ainda se lembrava de se ter dito: “Deve ser aquela!” E com ar muito curioso caminhou nessa direção para verificar a sua conjectura: preferiria, fosse como fosse, não ter acertado no seu pressentimento. Era uma casa enorme e sinistra, de três andares, sem pretensões arquitetônicas, duma cor verde suja. Uns poucos edifícios dessa espécie, construídos no fim do século passado, ainda permanecem sem modificação alguma em dadas ruas de Petersburgo (onde tudo se modifica tão depressa). São construídos solidamente, com largas paredes e raras janelas, muitas vezes com barras de ferro nas janelas do rés do chão. De hábito há sempre uma loja de câmbio, embaixo, e o dono, quase sempre da seita dos Skoptzy (que praticam a automutilação), trabalha na loja e mora em cima. Por dentro e por fora essas casas têm um aspecto inóspito e frígido. Dir-se-ia que conservam algo de sombrio e secreto, e seria difícil explicar, só pela simples impressão, por que sugerem isso. As linhas arquitetônicas possuem, sem dúvida, um segredo específico. E tais prédios são ocupados, em sua maioria, por gente de comércio.
Tendo-se dirigido até à porta, o príncipe examinou a inscrição que nela havia, lendo: “Residência legada, hereditariamente, ao cidadão hereditário e honorário Rogójin.” Sem hesitar sequer, abriu a porta de vidro, que se fechou ruidosamente atrás dele, e subiu a grande escadaria até ao primeiro andar; uma escadaria de pedra, grosseiramente feita e muito escura; as paredes eram pintadas de vermelho. Ele sabia que Rogójin, com a mãe e o irmão ocupavam todo o segundo andar dessa casa lúgubre. O criado que abriu a porta ao príncipe fê-lo entrar sem lhe perguntar o nome, levando-o lá para dentro. Atravessaram uma enorme sala de visitas cujas paredes tinham sido pintadas fingindo mármore; o assoalho era de tacos de carvalho, e os móveis de 1820, rústicos e pesados. Passaram através de pequenas peças que obrigavam a virar e a desviar, ora subindo dois ou três degraus, ora descendo outros tantos, até que a empregada bateu numa porta que foi aberta pelo próprio Parfión Semiónovitch. Ao ver o príncipe ficou tão pálido e petrificado que durante certo tempo permaneceu feito uma estátua, fixando-o com olhos de espanto e contraindo a boca num sorriso de completa admiração, como se achasse na visita do príncipe algo de inacreditável e miraculoso. Apesar de preparado para isso, o príncipe ficou surpreendido.
— Parfión, dar-se-á o caso de eu ter vindo em hora inoportuna? Posso ir embora, seja franco — disse, por fim, com embaraço.
— Absolutamente! Absolutamente! — tornou Parfión, refazendo-se. — Seja bem-vindo. Entre para cá.
Dirigiram-se um ao outro, como amigos íntimos. Já em Moscou tinham muitas vezes passado horas juntos, e esses encontros haviam deixado eterna memória em seus corações. Desde três meses não se encontravam.
O rosto de Rogójin não perdeu a sua palidez e havia ainda um ligeiro repuxamento bem perceptível. Embora recebesse bem o visitante, a sua extraordinária confusão persistia. Ao introduzir o príncipe e ao convidá-lo a sentar numa poltrona, este se virou para ele e continuou de pé, impressionado com aquele olhar estranho e pesado. Era como se qualquer cousa transfixasse o príncipe e como se, ao mesmo tempo, certa recordação lhe viesse de novo, de algo recente, sinistro e angustiante. Sem se sentar, e sem se mover, ficou olhando por algum tempo Rogójin, bem nos olhos. E foi como se aqueles olhos brilhassem com mais fulgor. Por fim Rogójin sorriu, embora ainda bastante embaraçado e não sabendo direito o que estava fazendo.
— Por que é que o senhor está me olhando tão atentamente? Sente-se.
O príncipe sentou-se.
— Parfión — falou ele —, diga-me com sinceridade: você sabia que eu devia chegar hoje a Petersburgo, ou não sabia?
— Pensei que o senhor viesse e, como vê, não me enganei — ajuntou Rogójin, com um sorriso sarcástico. — Mas como poderia eu dizer que seria hoje?
O príncipe ainda ficou mais chocado por certo feitio abrupto que demonstrava a irritabilidade estranha dessa resposta.
— Mesmo que você soubesse que eu chegaria hoje, por que esse feitio irritado, ao me responder? — sussurrou o príncipe, de modo gentil, embora ainda mais confuso.
— A minha pergunta tem alguma cousa demais?
— É que, ao desembarcar, hoje, na estação, vi dois olhos que me olhavam como você fez agora mesmo!
— Não diga! Uns olhos? Quais? De quem? — perguntou Rogójin com ar desconfiado.
E ao príncipe pareceu ter ele tremido.
— Não sei; talvez fosse uma alucinação; dei agora para imaginar cousas, sempre. Quer saber, Parfión, meu amigo, sinto-me de novo como há cinco anos atrás, quando tinha ataques.
— Bem, talvez fosse imaginação sua. Como hei de eu saber? — balbuciou Rogójin.
Aquele sorriso amistoso, em seu rosto, não era muito adequado àquele momento, e sim forçado, e por mais que tentasse não o conseguia endireitar.
— Pensa ir de novo para o estrangeiro? — perguntou ajuntando logo, inopinadamente. — Lembra-se daquela vez, quando eu vinha de Pskóv? Vínhamos no mesmo vagão, juntos; foi no último outono. Eu vinha para cá, e o senhor... com a sua capa, lembra-se, e aquelas polainas!
E Rogójin de repente deu uma risada; mas desta vez havia franca malícia, e estava satisfeito em a haver podido evidenciar por esse modo.
— Mora aqui, definitivamente?
— Sim, estou na minha casa. Onde haveria eu de estar?
— Há quanto tempo não nos víamos! Ouvi muitas cousas a seu respeito, que eu custo a acreditar.
— Essa gente sempre tem o que contar — observou ele, secamente.
— Com que então você mandou embora todos aqueles indivíduos que o não largavam, instalou-se aqui em sua velha residência e vive sossegadamente! Bravo, isso é muito bom. Esta casa é sua, ou pertence a vocês todos em comum?
— É de minha mãe. Os cômodos dela são para lá do corredor.
— E seu irmão, onde é que vive?
— Meu irmão Semión Semiónovitch mora no pavilhão.
— Ele é casado?
— Viúvo. Por que quer saber?
O príncipe olhou-o e não respondeu; ficara pensativo, e foi como se não tivesse ouvido a pergunta. Rogójin esperou e não insistiu. Ficaram calados, por algum tempo.
— No caminho para cá adivinhei, à distância duns cem passos, que era esta a sua casa — confessou o príncipe.
— Como assim?
— Não sei como foi. A casa de vocês tem o ar da sua família, e lembra a sua maneira de vida, Rogójin, mas se você me perguntasse como cheguei a essa conclusão, eu não lhe saberia explicar. É uma impressão assim aérea, creio eu. E até me indispôs ter-me ela perturbado tanto. Eu antes já fazia ideia de que você viveria numa casa assim. E logo que a vi, mesmo de longe, pensei: “É, nem mais nem menos, a espécie de casa que ele deve habitar.”
— Pois é! — Rogójin sorriu de modo distraído, não tendo compreendido bem o pensamento obscuro do príncipe. — Foi meu avô quem construiu esta casa — acrescentou.
— Esteve sempre alugada, embaixo, aos Khludiakóv, que são Skoptzy, e que continuam como inquilinos.
— Mas é tão sombria! Você mora numa escuridão! — observou o príncipe, olhando para a sala.
Era um salão alto e sem luz, atulhado de móveis de todos os feitios, quase que em sua maioria grandes mesas de negócios, escrivaninhas e aparadores, onde estavam guardadas uma porção de livros comerciais e uma enorme papelada. Um largo sofá, forrado de marroquim, com certeza servia de cama ao dono da casa. O príncipe reparou na existência duns dois ou três livros sobre a mesa junto da qual Rogójin o fizera sentar-se. Um deles, justamente a História, de Solovióv, estava aberto tendo uma marca dentro. Pelas paredes pendiam alguns quadros a óleo, com molduras douradas bastante gastas. Os quadros eram escuros e manchados e dificilmente se descobriria o que representavam. Um retrato de corpo inteiro atraiu a atenção do príncipe. Representava um homem de cerca de cinquenta anos, metido numa sobrecasaca muito longa, de talhe ocidental; duas medalhas lhe pendiam do pescoço. Tinha uma barba grisalha muito rala, e uma cara enrugada, com olhos desconfiados, melancólicos, desses que não fixam ninguém.
— É seu pai?
— É, sim — respondeu Rogójin, com um movimento de boca que revelava desagrado, como se esperasse qualquer gracejo provocado pela fisionomia paterna.
— Pertencia aos “Velhos Crentes”?
— Não; ia sempre à igreja; mas, na verdade, costumava dizer que a antiga forma de crer era mais verdadeira. Tinha também muito respeito para com os Skoptzy. Aqui era o escritório dele. Mas, por que perguntou o senhor se ele era um “Velho Crente”?
— O seu casamento vai ser aqui?
— S... sim — respondeu Rogójin, logo se sobressaltando ante tão inesperada interrogação.
— E vai ser já?
— O senhor sabe muito bem que isso não depende de mim.
— Parfión, eu não sou seu inimigo, e não tenho a intenção de interferir em cousa alguma que lhe diga respeito. Digo-lhe o que já uma vez lhe disse, quase que em idênticas circunstâncias. Quando o seu casamento estava acertado, em Moscou, eu não impedi, você bem sabe disso. A primeira vez ela veio ter a mim, fugida, no dia em que deviam ser as núpcias; mas veio porque quis, e até rogando que eu a salvasse de você. Estou lhe repetindo as próprias palavras dela. Depois ela fugiu também de mim. Você a achou, outra vez, e estava de novo para se casar com ela quando me disseram que ela tornou a fugir. Foi mesmo? Liébediev me contou. Eis por que vim. Mas que vocês estavam juntos outra vez, só vim a saber ontem, no trem, por intermédio dum de seus primitivos amigos, um tal Zaliójev, se lhe interessa saber. E foi certo desígnio que me trouxe até aqui, em Petersburgo. Queria persuadi-la a ir para o estrangeiro, por causa da saúde. Ela não está nada bem, física e mentalmente. Do cérebro, principalmente; e a meu ver precisa ter muita cautela. Não quero dizer com isso que fosse comigo para o estrangeiro, sendo o meu plano que devia ir sem mim. Estou-lhe contando a absoluta verdade. Mas se é certo que vocês já se acomodaram, não me farei ver, e jamais, tampouco, tornarei a vê-la. Você sabe que não o estou enganando, pois sempre fui correto e sempre me abri com você. Nunca lhe ocultei o que eu penso sobre isso, e sempre tenho dito que casar-se com você seria a perdição dela. E a sua, também... maior, talvez, do que a dela. Se vocês viessem a separar-se, de novo, eu ficaria muito satisfeito; mas não pretendo atrapalhar nada e nem tentarei, eu próprio, separá-los. Não se zangue e não desconfie de mim. Você próprio sabe se eu era realmente rival seu, mesmo quando ela fugiu, me largando. Agora você está rindo. Eu sei de que é que você está rindo. Sim, moramos separados, em cidades diferentes e você sabe tudo isso com exatidão. Já lhe expliquei antes que eu não a amo com amor e sim com piedade. Creio que a minha definição é exata. E naquela ocasião você me disse que compreendia o que eu estava dizendo. Não foi verdade? Não compreendeu? E agora você, aqui, está me olhando com ódio! Então escute, eu vim para o tranquilizar, pois você me é muito caro. Gosto muito de você, Parfión. E com isto me vou embora e nunca mais voltarei aqui. Adeus!
O príncipe levantou-se.
— Fique mais um pouco comigo — disse Parfión, mansamente, continuando sentado em seu lugar, com a cabeça descansando sobre a mão direita. — Há quanto tempo que eu não o via!
O príncipe sentou-se. Ficaram outra vez calados.
— Quando o senhor não está diante de mim, me ponho a odiá-lo. Minuto por minuto, durante estes três meses, Liév Nikoláievitch, em que não o vi, eu o detestei. Palavra de honra. Sentia-me capaz até de envenená-lo. Digo-lhe isso, agora. Bastou o senhor ficar sentado comigo um quarto de hora apenas, e toda a minha raiva passou e o senhor me é caro, como merece. Fique comigo um pouco...
— Quando estamos juntos, você acredita em mim; mas quando estou ausente deixa de acreditar, imediatamente, e começa a desconfiar de mim. Você é como seu pai — respondeu o príncipe, com um sorriso afável, tentando esconder a emoção.
— Acredito em tudo quanto diz, quando estou em sua companhia. Compreendo, naturalmente, que não podemos ser postos no mesmo nível...
— Por que acrescenta isso? Pronto, já se irritou outra vez contra mim — disse o príncipe, admirado.
— Está bem, irmão, é que a sua opinião, no caso, não foi pedida — respondeu. — Foi assentada sem nos consultar. Quer saber, nossas maneiras de amar são bem diferentes. E há uma diferença em tudo — prosseguiu devagar, depois duma pausa. — Diz o senhor que a ama com piedade. Em mim, porém, não há nenhuma espécie de piedade por ela. E ela também me odeia, mais do que a qualquer cousa. Dei em sonhar com ela, agora, e sonho que está sempre a rir de mim, com outros homens. E é isso, deveras, o que ela está fazendo, irmão. Está aí, está indo para o altar comigo, e todavia se esqueceu de me lançar ao menos um pensamento. É o mesmo que se estivesse trocando de sapato. Não vai acreditar numa cousa. Sabe há quantos dias não a vejo? Cinco dias. Não ouso ir à casa dela. Perguntaria logo: “Que é que veio fazer aqui?” Ela me cobriu de vergonha.
— De vergonha? Não diga isso.
— Então o senhor não sabe? Ora, pois se, como o senhor ainda agora mesmo disse, ela fugiu de mim, com o senhor, justamente no dia em que ia ser o casamento!
— Mas você vai agora pensar que...
— Então ela não me envergonhou em Moscou, com aquele oficial, Zemtiújnokov? Estou farto de saber isso! E quando já tinha combinado comigo o dia do casamento!
— Impossível! — sustentou o príncipe.
— Sei disso direitinho! — E Rogójin teimava com convicção. — Dirá o senhor que ela não é uma mulher dessas! Não adianta vir dizer-me que ela não é uma mulher dessas, irmão! Isso é asneira. Com o senhor, claro que ela não fará isso, e até se horrorizará com essas cousas, decerto. Mas comigo ela se porta assim. A cousa é essa. Ela me olha com profundo desprezo. Eu sei com toda a exatidão que só para me ridicularizar fingiu um caso com Keller, aquele oficial, o homem que boxeia... O senhor naturalmente ignora as partidas que ela me pregou em Moscou! E o dinheiro; a dinheirama que eu gastei!...
— E... e você vai se casar com ela, agora? E que é que você vai fazer depois? — perguntou-lhe o príncipe, horrorizado.
Rogójin desceu um olhar terrível e sombrio sobre o príncipe e não respondeu.
— Há cinco dias que não a vejo — continuou ele, depois de um minuto de intervalo. — É bem capaz de me fugir outra vez. “Em minha casa ainda mando eu”, disse ela. “Se me der na veneta rompo contigo e vou para o estrangeiro.” Disse-me isso também... Que iria para o estrangeiro — observou ele, como entre parêntesis, com um olhar todo especial jogado para dentro dos olhos do príncipe. — Eu sei que às vezes ela diz isso somente para me amedrontar, procurando meios de se rir de mim. Mas momentos há em que fica sinistra e taciturna, e não há meios de lhe arrancar palavra. E é disso que tenho pavor. Um dia julguei que o melhor sistema a adotar seria levar-lhe presentes sempre que a fosse ver. E o resultado foi que me ridicularizou ainda mais. Irritou-se, deu à criada, a Kátia, o xale que eu lhe trouxera. Um xale igual àquele jamais ela o teve, não obstante haver sempre vivido suntuosamente. E quanto a marcar a data em que deva ser o nosso casamento, nem ouso abrir os lábios perguntando. Que raio de noivo estuporado sou eu que até medo tenho de visitá-la! Planto-me aqui, sentado, e quando já não suporto mais então saio, passo escondido diante da casa dela, fico num vão pelas esquinas, a espreitar. Ainda um destes dias fiquei a noite inteira, até amanhecer, vigiando-lhe a porta. Cá uma desconfiança. E ela deve me haver visto, lá da janela. “Que me farias tu”, disse ela depois, “caso viesses a saber que te engano?” Então não me contive e lhe arrumei: “Vai fazendo uma ideia, desde já...”
— Ideia de quê?
— Sei lá! — riu Rogójin conturbado. — Em Moscou não a surpreendi com ninguém, por mais pistas que procurasse. Chamei-a de parte, certa ocasião, e então lhe fiz saber: “Prometeste casar comigo. Vais entrar para uma família honrada. Sabes o que foste até aqui?” E lhe disse o que ela havia sido.
— Teve essa coragem?
— Tive, sim.
— E depois?
— “Agora nem mesmo como um criado te suportarei, quanto mais como marido!” “Pois daqui não me vou sem que retires essa frase; aconteça o que acontecer.” “E eu chamarei Keller, então, e direi a ele que te jogue para fora segurando-te pela nuca.” Então me atirei a ela e a espanquei até ficar negra e azul.
— Impossível!... — bradou o príncipe.
— Estou lhe dizendo como foi — reafirmou Rogójin, vagarosamente, mas com os olhos em chamas. — E pelo espaço de 36 horas não dormi, não comi e nem bebi. Não saí do quarto dela. Fiquei ajoelhado diante dela. “Não vou embora enquanto não me perdoares; nem mesmo morto. E se chamares alguém, eu me atirarei ao rio, pois que será de mim, doravante, sem ti?” E ela esteve todo aquele tempo como uma alucinada. Chorava... De repente, quis até me matar com uma faca. Depois me injuriou. Chamou Zaliójev, Keller e Zemtiújnokov. E diante de todos eles apontava para mim e me ridicularizava. “Que tal achas irmos nós, aqui, sem contar contigo, é claro, ao teatro, em bando? Vocês, amigos, que dizem, hein, cavalheiros? Ele que fique para aí. Ou será que pensa que vai também, ou que eu deva ficar com ele? Quando sair darei ordem para que te tragam o chá, escutaste, Parfión Semiónovitch? Deves estar com o estômago dando horas.” Voltou do teatro sozinha. “Esses teus amigos não passam duns covardes e duns pobres-diabos! Ficaram com medo de ti e até quiseram me apavorar. Disseram: ‘Ele vai lhe fazer pagar caro, Nastássia Filíppovna! É homem para lhe cortar a garganta, veja o que está fazendo!’ Pois agora, escuta: vou para o meu quarto de dormir e nem sequer fecharei a porta. Vês o medo que me inspiras? Fica sabendo e, se não acreditares, vai verificar. Trouxeram-te o chá?” Disse-lhe eu: “Não, e nem quero.” “Nem estou aqui para insistir, era só o que faltava. Isso de birras, enjoa.” E fez conforme dissera: não fechou por dentro a porta do quarto. Na manhã seguinte, ao aparecer e dar comigo, emitiu uma gargalhada. “Qual, és mesmo um cretino! Pois fica por aí.” “Perdoa-me!”, insisti eu. “Não me enfureças! E desde já fica certo que não me caso contigo absolutamente! Passaste a noite toda nessa cadeira. E não dormiste?” “Não.” “Estúpido! E estás resolvido a não almoçar nem jantar, também?” “Estou. Só quero uma cousa: que me perdoes!” “Se soubesses como isso te calha bem! Tal e qual um selim numa vaca! E nem cuides que eu me esteja afligindo. Importa-me lá que comas ou não. Cuidas que com isso me enterneces? Causas-me mas é ódio, isso sim!” Apesar de tal declaração daí a pouco deu em troçar de mim, e fiquei admirado da raiva lhe haver passado, pois ela guarda raiva por um tempo incrível, principalmente quando alguém a irrita. Então compreendi que me tem em tão pouca conta que nem mesmo um sentimento de ódio lhe mereço. E esta é que é a verdade. “Sabes que em Roma existe o papa, não sabes?” “Mais ou menos...” “Nunca pegaste sequer numa História Universal, Parfión Semiónovitch?” “Sou um burro, nunca aprendi nada.” “Pois vou te dar uma História a ler. Certa vez um papa se zangou com um imperador que então resolveu se ajoelhar, descalço, diante do palácio, ficando três dias sem comer nem beber à espera de ser perdoado. E que cuidas tu que o imperador pensou e que juras fez enquanto esteve ajoelhado acolá? Escuta, eu mesma te vou ler.” Deu um pulo e trouxe o livro: “Poesia”, disse, e começou a ler-me em versos o que o imperador jurara durante aqueles três dias, isto é, de como se vingaria do papa. “Não estás gostando, Parfión Semiónovitch?”, perguntou-me. “Está muito certo tudo quanto me leste”, afirmei eu. “Ah! Então achas que está certo? Então também estás fazendo o teu juramentozinho, hein? ‘Quando ela se casar comigo eu a farei recordar-se desta passagem. Humilhá-la-ei até meu coração folgar.’” “Não, não sei, quem te diz que estou pensando isso?” “Hã, ainda dizes que não. Afinal, qual é a resposta certa?” “Sei lá. Não estive a fazer projetos ainda.” “Mas, e para agora, que ideias tens em mente?” “Contemplar-te, ver-te a andar pela sala, ouvir o frufru do teu vestido e sentir que meu coração transborda... Depois, se saíres daqui da sala, ficarei à escuta. E se não ouvir nada então me consolarei em recordar todas as tuas palavras, uma por uma... E o timbre da tua voz, e tudo que te vi fazer. Já na noite passada não pensei em nada só para ficar ouvindo bem a tua respiração; enquanto dormias te remexeste, mudando de posição...” “Está bem, então sou eu que te devo dizer que em todo esse tempo não pensaste nem te arrependeste de me haver espancado?!” “Quem te diz que não pensei? Devo ter pensado...” “E se eu não te perdoar e não casar contigo?” “Já te disse que me afogo.” “Mas talvez me mates, antes!”, disse ela e pareceu ficar refletindo. E então se zangou outra vez e saiu da sala. Uma hora depois voltou, parou diante de mim e declarou: “Eu me casarei contigo, Parfión Semiónovitch. E não porque tenha medo de ti”, explicou com um semblante sinistro. “Se me devo perder, qualquer forma serve. Puxa a cadeira para junto da mesa. Mandei vir teu jantar. E se eu me casar mesmo contigo, serei séria no que te diz respeito.” Permaneceu calada, depois, algum tempo, até que acrescentou: “Afinal de contas não és um lacaio, logo não fica bem eu te tratar como um lacaio.” E então marcou, a seguir, a data do casamento. E eis que, uma semana depois, fugiu de mim, indo se acoitar na casa de Liébediev. Mal embarafustei pela casa adentro, veio a mim e explicou: “Não desisti, propriamente, apenas exijo o tempo que cuidar necessário para viver livre, pois sou dona de mim mesma. Aconselho-te a aproveitar também, caso queiras, a tua liberdade.” E eis em que pé estamos agora... Diga-me, Liév Nikoláievitch, que pensa de tudo isso?
— E você próprio, que pensa você disso tudo? — perguntou-lhe o príncipe, por sua vez, olhando amarguradamente para Rogójin.
— Então o senhor acha que eu posso pensar?! — foram as palavras que irromperam dos lábios de Parfión Semiónovitch. Decerto quis acrescentar alguma cousa, mas ficou calado, com um desânimo desesperador.
O príncipe levantou-se decidido a despedir-se de vez, o que fez com estas palavras:
— Não quero atrapalhá-lo, de forma alguma. — E falava mansamente, quase a esmo, aparentemente, mas como se respondesse a algum secreto pensamento.
— O senhor quer saber duma cousa? — disse Rogójin, com repentina impetuosidade, os olhos faiscando. — Como é que o senhor me vem com isto agora? Quer me dizer que deixou de a amar? Ou se trata de mais um fingimento? Eu vejo as cousas. E por que foi então que veio para cá com tamanha pressa? Por piedade? — E o rosto dele esboçou maldosa ironia. — Ah! ah!
— Você pensa que eu o estou enganando, agora? — perguntou o príncipe.
— Não. E creio no senhor. Mas é que não entendo isso! Não vá a sua piedade ser maior do que o meu amor!
Toda a sua face ardia num desejo premente de se explicar. E havia nela uma certa malícia.
— Escute, dentro de você, amor e ódio se confundem! — disse o príncipe sorrindo. — Mas um prevalecerá e então talvez a perturbação venha a ser pior. É o que lhe digo, irmão Parfión...
— Quer dizer que eu a matarei?
O príncipe estremeceu.
— Você a odiará amargamente, por causa desse amor, por causa de toda essa tortura que você está sofrendo agora. O que me parece mais estranho em tudo isso é que ela ainda pense em se casar com você. Quando ouvi isso ontem, mal pude acreditar e fiquei tão aflito. Veja bem: ela o largou duas vezes e fugiu no dia do casamento. Portanto, ela tem qualquer pressentimento. Que é que ela descobriu em você, agora? O dinheiro não pode ser; seria bobagem. E é claro que você esbanjou muito, ultimamente. Será simplesmente para arranjar marido? Ora, acharia muitíssimos outros. Qualquer outro seria preferível, mil vezes, visto como você, realmente, poderá chegar até a assassiná-la. E ela sabe disso muitíssimo bem, agora, decerto. Ou será porque você a ama tão apaixonadamente? É verdade que pode muito bem ser por isso. Já me disseram que há mulheres que apreciam tal espécie de amor... Mas... — o príncipe calou-se e ficou pensativo.
— Por que está outra vez a sorrir olhando para o retrato de meu pai? — perguntou Rogójin que se pusera a vigiar todos os movimentos e alterações de atitude e de fisionomia do príncipe, tomado de intensa atenção.
— Por que estou sorrindo? É que me veio agora a impressão de que se não fosse essa desgraça, isto é, esse seu amor, você muito provavelmente ficaria como seu pai e isso em tempo muito rápido até. Você se estabeleceria aqui, sossegadamente, moraria aqui em cima, com uma esposa obediente e submissa. Seria secarrão, pouparia as palavras, não confiaria em ninguém, nem sentiria quaisquer desejos. Não faria mais do que juntar dinheiro, num sinistro isolamento. No máximo se comprazeria com velhos livros e se interessaria pela maneira por que os “Velhos Crentes” se benzem... Mas isso, é claro, somente já em idade mais madura...
— Ria-se... Mas, quer saber, ela também disse a mesma cousa, não há muito, quando esteve a olhar para aquele retrato ali. É esquisito que ela e o senhor hajam chegado a dizer a mesma cousa.
— Como assim? Então ela esteve aqui, em sua casa? — indagou o príncipe, com interesse.
— Esteve. E olhou muito tempo para o retrato e me fez perguntas a respeito de meu pai. “Serás exatamente como ele foi”, disse a rir. “Tens temperamento apaixonado, Parfión Semiónovitch, paixões temperamentais que dariam contigo na Sibéria se não fosses suficientemente sagaz. Sim, sagaz, lá isso és, e até muito.” (Estas foram as palavras dela, textuais. Palavra de honra, foi a primeira e única vez que a vi analisar-me neutramente.) “Se não fosse isso, se deixasses todas essas tolices, e como não tens instrução quase nenhuma, começarias desde logo a economizar dinheiro e te arranjarias muito bem, conforme se deu com teu pai, com os teus inquilinos da seita dos Skoptzy. Quem sabe até se não te converterias à crença deles? Sim, talvez te convertesses à crença deles e desses em amontoar dinheiro a tal ponto que em vez de dois milhões viesses a ter uns dez milhões até, muito embora morresses de fome entre os sacos de moedas. Sim, pois em tudo és apaixonado. A mínima cousa te leva à paixão.” Foi como ela conversou, quase que com estas mesmas palavras. E, antes, jamais me havia falado assim. O senhor sabe, ela não dá confiança de conversar senão trivialidades comigo, só me ridicularizando; e de fato, desta vez, também começou a rir. Sentia-se mal aqui. Andou pela casa toda, prestando atenção em tudo e pareceu assustada, a ponto de eu dizer: “Mudarei tudo isto aqui, transformarei tudo. Ou, se quiseres, compro outra casa antes de nos casarmos.” “Não, não”, disse ela. “Nada deve ser transformado, moraremos aqui como está. Quero morar com tua mãe, quando eu vier a ser tua esposa.” Levei-a até minha mãe. Mostrou-se muito respeitosa diante dela, mais do que se fosse sua própria filha. Há já uns dois anos para cá que minha mãe não está em seu juízo perfeito (está doente) e desde que meu pai morreu, ela virou uma verdadeira criança: não fala, não anda, só sabe inclinar a cabeça para quem lhe aparece. Se a deixassem de alimentar creio até que nem daria conta disso, nem mesmo três dias depois. Então peguei na mão direita de minha mãe, dobrei-lhe os dedos. “Mãe, abençoa-a! Ela vai para o altar comigo.” Ela beijou então a mão de minha mãe, com sentimento, e me fez este reparo: “Quanto sofrimento não deve ter tua mãe suportado!” Depois viu este livro aqui. “O quê? Começaste então a ler a história russa?” (Já certa vez, em Moscou, me dissera: “Não sabes nada. Precisas te instruir. Lê ao menos a História da Rússia de Solovióv.”) “Está muito bem. Continua a ler. Vou escrever uma lista de livros que deves ler primeiro. Achas que vale a pena eu fazer essa lista?” Sim, antes, nunca me havia falado desta maneira. Fiquei admiradíssimo. Pela primeira vez respirei como um homem que enfim está vivendo!
— Fico muito contente com isso, Parfión — disse o príncipe com sinceridade. — Muito contente mesmo. Quem sabe se depois de tudo Deus não ligará mesmo vocês dois direito?
— Isso nunca se dará! — afirmou Rogójin veementemente.
— Escute, Parfión, desde que você a ama assim, acabará ganhando o respeito dela. Não quer você isso? Se quer, por que não há de ter essa esperança? Eu disse ainda há pouco que não podia compreender que ela casasse com você. Mas, mesmo que eu não entenda isso, não tenho dúvidas de que possa ser uma razão suficiente essa questão de sua sensibilidade. Ela está convencida do seu amor e deve acreditar em algumas de suas boas qualidades, também. Nem pode ser diferentemente, e o que você acaba de me contar vem confirmar ainda mais essa minha impressão. Você próprio diz que ela achou um modo de lhe falar e de o tratar, inteiramente diverso daquele a que você está acostumado. Você anda desconfiado e ciumento e é isso que faz com que exagere tudo quanto tem notado erroneamente. Naturalmente ela não pensa tão mal a seu respeito quanto você diz. Se pensasse, seria o mesmo que deixar-se deliberadamente afogar ou degolar. E isso não é possível! Que pessoa existe que deliberadamente se deixe afogar ou degolar?
Parfión escutava com um sorriso amargo as palavras impetuosas do príncipe. A sua convicção nem assim se abalava.
— Que maneira horrível essa com que está me olhando, Parfión! — E havia no príncipe um como que sentimento de medo.
— Deixar-se afogar ou degolar! — disse, afinal, Rogójin. — Ah! Ora, é justamente para isso que ela se quer casar comigo! Porque espera ser morta! Então o senhor quer me dizer, príncipe, que nunca chegou a ter compreensão da raiz de tudo isso?
— Não estou compreendendo você!
— Bem, talvez não me compreenda mesmo. Eh! eh! Dizem por aí que o senhor não é lá... muito certo. Ela ama um outro homem: compreenda bem isto! Assim como eu a amo agora, assim ela ama, agora, um outro homem. E quer o senhor saber quem é esse homem? É o senhor! Como? Não sabia?
— Eu?
— O senhor! Ela ama-o desde aquele dia do aniversário dela. Só que acha impossível casar-se com o senhor, porque cuida que o desgraçaria e que arruinaria toda a sua vida. “Todo o mundo sabe quem eu sou”, diz ela. E teima nisso. Disse-me uma vez tudo isso direitinho, na minha cara. Ela receia desgraçar e arruinar o senhor! Mas eu, eu não valho nada; comigo ela pode se casar! É para o que eu lhe sirvo! Repare só.
— Mas por que foi, então, que ela fugiu de você para mim... e de mim...
— E do senhor para mim! Ah! Ora, uma porção de cousas lhe vêm à cabeça. Anda agora sempre com uma espécie de febre. Gritara uma vez: “Quero acabar comigo, caso-me! Marca logo o casamento!” Ela própria apressa as cousas, fixa a data, mas quando o dia se aproxima fica com medo, ou lhe sobrevêm outras ideias! Só Deus sabe! O senhor tem visto. Dá em chorar, em rir, em tremer com febre. E que é que há de estranho em ela ter fugido? Fugiu do senhor naquela ocasião porque percebeu quanto o amava. E não pôde continuar com o senhor. Disse-me, príncipe, ainda agora, que a andei procurando em Moscou. Não é verdade. Foi ela quem veio diretamente para mim, fugida do senhor. “Marca o dia. Estou pronta. Dá-me champanha! Vamos até aos ciganos!”, gritava. Ela já se teria afogado desde muito, se não tivesse a mim. Eis a verdade. Ainda não fez isso porque me acha, decerto, mais terrível do que a água. É por despeito que se vai casar comigo. Se casar comigo garanto-lhe que será por despeito.
— E como é que você... como é que você... — E logo o príncipe se calou, encarando Rogójin com verdadeiro pavor.
— Acabe a frase, vamos! — replicou este último, arreganhando os dentes. — Se quiser, poderei dizer-lhe em que é que está pensando bem neste momento: “Como, depois de tudo isso, pode ela ser sua mulher? Como foi que eu permiti que ela chegasse a isso?” Eu sei que o senhor está pensando nisso.
— Não vim aqui com essa ideia, Parfión. Digo-lhe que não era isso que eu tinha no meu espírito...
— Pode ser que o senhor não tenha vindo com essa ideia e que nem ela estivesse em seu espírito, mas agora certamente a sua ideia é essa. Tornou-se essa! Ah! ah! Bem, basta. Por que está o senhor tão confuso? Realmente, o senhor então não sabia? O senhor está mas é me surpreendendo!
— Tudo isso é ciúme. Tudo isso é doença. Você exagerou tudo isso imensamente — murmurou o príncipe agitadíssimo. — Por que é que está pegando na minha mão?
— Deixe isso quieto — disse Parfión, de modo rápido, tirando da mão do príncipe uma faca que ele pegara de cima da mesa. E a colocou onde estava antes, ao lado do livro.
— Bem que ao vir para Petersburgo eu já previa isto — continuou o príncipe. — Bem que eu não queria vir aqui. Bem que quis esquecer tudo, arrancar tudo do meu coração. Bem, então, adeus!... Mas por que se incomoda de eu pegar nisto?
É que, enquanto falava, o príncipe tinha outra vez, de modo distraído, pegado a mesma faca, de cima da mesa, e de novo Rogójin lha tirava da mão e a atirava sobre o móvel. Era uma faca lisa, em forma de punhal, com cabo de chifre e uma lâmina de 3½ verchóki de comprimento e espessura usual. E vendo que o príncipe havia posto um reparo especial em a faca por duas vezes lhe ter sido tirada da mão, Rogójin tornou a pegar nela, muito sério, enfiou-a dentro do livro e atirou com este para cima duma outra mesa.
— Você corta as páginas com ela? — indagou o príncipe, como que maquinalmente, absorvido em profundos pensamentos.
— Sim.
— Mas não é uma faca de jardim? Dessas de podar?
— É sim. Então não se pode cortar as folhas dum livro com uma faca de jardim?
— Mas é... uma faca quase nova em folha!
— E que tem que seja nova? Não posso comprar uma faca nova? — perguntou Rogójin.
E a sua cólera crescia a cada palavra do príncipe. Este estremeceu e encarou bem Rogójin.
— Arre! Que dois que nós somos! — Riu de repente, e se levantou. — Desculpe-me, irmão, quando fico com a minha cabeça pesada como está agora, é sinal de que a minha doença está querendo voltar... Ando me tornando, ultimamente, muito distraído! É tão ridículo! O que eu lhe queria perguntar era uma coisa bem diferente... esqueci agora. Adeus!...
— Por aí, não — disse Rogójin.
— Tinha esquecido...
— Por aqui, por aqui! Vou lhe mostrar.
4.
Percorreram as mesmas peças que o príncipe já atravessara ao entrar; Rogójin ia um pouco adiante e o príncipe o seguia. Chegaram a um salão de cujas paredes pendiam vários quadros com retratos de bispos e paisagens tão confusas que pareciam borrões de cor. Por sobre a esquadria duma porta que dava para a sala seguinte se inclinava ligeiramente um quadro de formato um tanto esquisito, como que achatado, pois se tinha uns dois archines de comprimento não chegava a ter de altura mais do que seis verchóki. Representava o Nosso Salvador, depois da descida da Cruz. O príncipe parou a olhá-lo, com ar de estar refletindo; mas prosseguiu fazendo menção de transpor a porta. É que se sentia tão oprimido que tinha pressa em sair daquela casa o mais rapidamente possível.
Mas Rogójin o deteve, estacando inesperadamente a olhar para o quadro.
— Este e os outros, imagine que meu pai os comprou por alguns rublos num leilão. Gostava de quadros. Levou um “entendido” para dar a opinião. “São rebotalho”, disse o tal, “mas este aqui vale a pena carregar.” Referia-se a este quadro ali em cima. Custou 2 rublos. Quando meu pai ainda era vivo esteve aqui um homem que se prontificou a dar 350 rublos por ele. E na semana passada um negociante, o Savéliev, falando com meu irmão Semión Semiónovitch, chegou a oferecer 500 rublos.
— É uma cópia duma tela de Holbein — disse o príncipe, pondo-se a examinar o quadro. — Não entendo muito de arte, mas me parece uma boa cópia. Vi o original no estrangeiro, de forma que reconheci logo.
Rogójin esqueceu logo o quadro e prosseguiu. Só mesmo a irritação que nele se evidenciou inesperadamente na atitude preocupada podia explicar essa alteração abrupta. O príncipe achou esquisito que a conversa a respeito do quadro, não tendo sido iniciada por ele e sim por Rogójin, fosse por este deixada em suspenso.
Mas, depois de dar alguns passos, Parfión se saiu com esta:
— E por falar nisso, Liév Nikoláievitch, há muito tempo que estou para lhe perguntar se acredita em Deus.
O príncipe não pôde deixar de retorquir:
— Por que me faz assim de chofre uma pergunta dessas, olhando para mim desta forma tão esquisita?
— É que às vezes fico a olhar para aquele quadro — declarou Rogójin, depois de uma pausa, parecendo não ter ouvido as palavras do príncipe.
— Eu acho — observou o príncipe como a desvendar um pensamento que lhe adviera do assunto do quadro —, quer que lhe fale com franqueza?... Esse quadro... esse quadro só serve para fazer muita gente perder a fé.
— Nem mais nem menos! — afirmou logo Rogójin.
Estavam justamente na porta principal, que dava para as escadas.
— Como? — E o príncipe até parou. — Que disse você? Falei isto por brincadeira. Está você falando sério? Acha mesmo? E qual o motivo por que deseja saber se acredito em Deus?
— Oh! Por nada! Já lhe devia ter feito esta pergunta antes. Hoje em dia existe muita gente que não acredita. Como o senhor viveu no estrangeiro... Uma vez um homem me declarou, é verdade que estava bêbedo, que há mais quem não acredite, aqui na Rússia, do que nos outros países. E explicou assim: “É mais fácil para nós do que para eles porque estamos muito mais adiantados!” E Rogójin sorriu com ironia. Sem esperar pela resposta abriu a folha da porta e ficou segurando pela maçaneta dando tempo para que o príncipe passasse. Embora surpreendido, o príncipe saiu. Rogójin transpôs o patamar, fechando a porta atrás de si. Ficaram então assim parados um diante do outro, como se não soubessem o que decidir.
— Então, adeus — disse o príncipe, estendendo-lhe a mão.
— Até à vista — respondeu Rogójin apertando a mão que lhe era estendida, mas o fazendo dum modo quase distraído.
O príncipe desceu um degrau e se voltou.
— Quanto à questão de fé — começou sorrindo (evidentemente não queria se despedir sem um remate e parecia estar entregue a qualquer recordação analógica) — quanto à questão de fé, tive na semana passada, em dois dias seguidos, quatro conversas diferentes. Voltava eu para casa pela estrada de ferro recentemente inaugurada e, durante quatro horas, conversei com um homem, no vagão. Fizéramos camaradagem, ali mesmo. Já me haviam falado muito sobre ele, antes. Que era ateu, entre muitas outras cousas mais. Efetivamente se tratava de um homem culto; desde logo fiquei radiante com o ensejo de manter uma conversa com uma pessoa verdadeiramente instruída. Além disso, conforme depois fui verificando, era um indivíduo duma educação fora do comum, tanto que se entreteve comigo como se eu fosse pessoa de igual valor e com as mesmas ideias dele. Realmente, ele não acreditava em Deus. Mas uma cousa me impressionou sobremaneira: que não tivesse querido, todo aquele tempo, tratar eloquentemente do assunto. E me impressionou justamente porque eu já muitas vezes encontrara descrentes e os tinha ouvido ou lhes havia lido os livros e esses me pareceram bem diferentes deste outro, embora o nível fosse mais ou menos o mesmo. Aproveitei então para lhe observar isso; mas acho que não me expliquei bem, ou o fiz confusamente, pois não me compreendeu. Desci, à noitinha, num hotel provincial onde, na noite anterior, tinha sido cometido um crime. E todo o mundo falava sobre o caso. Dois camponeses, de meia-idade, amigos desde muito tempo, inteiramente abstêmios, tendo tomado apenas chá, resolveram ocupar o mesmo quarto. Mas um deles reparou, naqueles dias, que o companheiro estava usando um relógio de prata preso a uma corrente de miçangas amarelas. E antes não o tinha nunca visto com aquilo. O homem não era gatuno, pelo contrário, era um homem honesto, tinha posses, como lavrador, não era absolutamente necessitado. Mas aquele relógio o impressionou; e tão fascinado acabou ficando que, por fim, não pôde se dominar. Tomou dum punhal e quando o outro se virou para ir, ele se aproximou cautelosamente por detrás, mediu bem o golpe, revirou os olhos para o céu, benzeu-se e fez mentalmente esta prece: “Que Deus me perdoe, por amor de Cristo!” E cortou a garganta do amigo, dum golpe só, tomando-lhe, depois, o relógio.
Rogójin emendou várias gargalhadas, como se estivesse com um acesso. E vê-lo dar essas gargalhadas, a ele que antes estivera tão soturno, era positivamente estranho.
— Gostei disso! Sim, isso derruba tudo! — exclamou convulsivamente, custando a retomar o fôlego. — O seu primeiro homem não acredita em Deus, absolutamente, ao passo que o segundo acredita nele de modo tão categórico que até reza enquanto pratica um assassinato! O senhor não teria capacidade para inventar uma coisa destas, irmão! Ah! ah! ah! Isto derruba tudo!
— Na manhã seguinte, saí para andar pela cidade — continuou o príncipe, assim que Rogójin ficou quieto, embora com os lábios ainda repuxados pelo esgar espasmódico da gargalhada. — E vi um soldado embriagado, num estado horroroso de desordem, a cambalear da parede para o meio-fio. Coseu-se a mim: “... me compre uma cruz de prata, barine! Cedo-lha por 2 grivnas! É prata maciça.” — Essa cruz que eu estava vendo na mão dele, ele a devera ter furtado. Sacudia-a enfiada numa fita azul encardida. Qualquer um veria que era de estanho. Era graúda, tinha oito pontas, típico modelo bizantino. Tirei 20 copeques, dei-lhos e imediatamente pus a cruz no pescoço. E pude ver na cara dele quanto ficou alegre por ter enganado um estúpido barine. Sumiu logo; decerto foi beber com o que tinha arranjado pela cruz. Naquela ocasião eu estava estupefato com as impressões violentas que a Rússia me causava! Antes eu não conhecia nada a respeito da Rússia. Eu crescera como que desarticulado e as recordações do meu país, dum certo modo, me eram fantásticas, durante aqueles cinco anos no estrangeiro. Ora, continuei a caminhar, pensando em tais cousas. “Sim, deixarei de julgar este homem que vendeu o seu Cristo. Só Deus sabe o que está oculto no coração fraco dum bêbedo.” Uma hora depois, quando regressava ao hotel passei por uma mulher do povo que tinha uma criança fraquinha ao colo. Era uma mulher bastante moça, e a criança não teria mais do que umas seis semanas. Nisto — e decerto era a primeira vez em toda a sua vidinha! — a criança lhe sorriu. Vi-a benzer-se com grande devoção. Por esse tempo eu tinha mania de fazer perguntas até na rua, ao acaso. — “Que estás fazendo, criatura?” Então, tornando a fazer o sinal da cruz, com a mesma devoção, a mãe respondeu-me: — “Deus, no Céu, cada vez que vê um pecador o invocar, com todo o coração, tem a mesma alegria que uma mãe quando vê o primeiro sorriso no rostinho do filho.” Foi com estas palavras mais ou menos que aquela camponesa me transmitiu este pensamento sutil, profundo e verdadeiramente religioso. Pensamento em que toda a essência da Cristandade encontra a sua expressão. Sim, a concepção de Deus é esta. Ele é nosso Pai e nosso Deus e se compraz nos homens como um pai se compraz em seu filho. A ideia fundamental de Cristo! Uma simples mulher do povo. É verdade que se tratava duma mãe... e quem sabe até se essa mulher não era a esposa daquele soldado? Escute, Parfión. Você me fez aquela pergunta, ainda agora. Está aqui a minha resposta: A essência do sentimento religioso não se esboroa sob espécie alguma de raciocínio, ou de ateísmo, e não tem nada que ver com crimes ou delinquências quaisquer. Há alguma cousa mais, além disso. E sempre haverá; alguma cousa sobre a qual os ateus arremetem e se esboroam. E sempre se falará dela. E o principal é que essa cousa será notada mais claramente, e de modo mais rápido, no coração russo, do que em qualquer outro. Esta é a minha conclusão. E é uma das principais convicções a que já cheguei, na Rússia. Há muita cousa que fazer, Parfión! Há muita cousa que fazer neste nosso mundo russo, acredite-me. Recorde-se de como foi que nos encontramos em Moscou e conversamos, certa ocasião... e nunca me passou pela cabeça, que, voltando, agora, encontrasse você pela forma por que encontrei. Absolutamente. Está bem... Adeus, até que nos encontremos de novo. Deus esteja com você!
Virou-se e desceu as escadas.
— Liév Nikoláievitch! — gritou Parfión, lá de cima quando o príncipe já estava no andar de baixo. — Ainda tem aquela cruz que comprou do soldado?
— Tenho!
E o príncipe parou.
— Mostre.
“Mais outra das tais cousas estranhas”, pensou o príncipe.
E, num instante, subiu de novo e puxou a cruz sem a tirar do pescoço.
— Dê-ma.
— Para quê? Você... (O príncipe não desejava separar-se da cruz.)
— Quero usá-la. E lhe darei a minha.
— Você está querendo trocar as cruzes? Está bem, Parfión. Com muito gosto. Ficaremos sendo irmãos.
O príncipe tirou a sua cruz de estanho; e Parfión a sua, de ouro. E trocaram; Parfión não disse nada. Com dolorosa surpresa o príncipe reparou que o mesmo sorriso amargo, irônico e desconfiado continuava estampado nas faces do novo irmão adotivo. E que, como nos outros momentos, isso estava visível, dum modo amplo. Então, ainda calado, Rogójin tomou a mão do príncipe e ficou hesitando, um pouco, sem tomar resolução alguma. Por fim puxou-o, dizendo:
— Venha comigo.
Atravessaram o patamar do primeiro andar e Rogójin tocou a campainha da outra porta fronteira. Abriu-a uma velha, toda arcada, que usava um lenço preto dobrado sobre as cãs e que se inclinou profundamente, diante de Rogójin, sem articular palavra. Este lhe perguntou, às pressas, qualquer cousa, e foi entrando, sem esperar resposta, guiando o príncipe através das salas. Outra vez atravessaram cômodos escuros, de um asseio extraordinário, mas álgidos e severos, mobiliados com peças antiquadas que cobertas claras escondiam. Sem se fazer anunciar, Rogójin conduziu o príncipe para o interior dum aposento pequeno, espécie de saleta de visitas que uma parede de mogno envernizado dividia, com portas em cada extremidade, uma delas dando para um dormitório, naturalmente. Num canto da saleta, perto da lareira, uma velhinha estava sentada numa poltrona. Nem por isso parecia tão idosa. Tinha um rosto redondo, aparentando boa saúde, mas estava bastante grisalha e, logo à primeira vista, se percebia que se tornara quase infantil. Vestia um vestido de lã preta, tinha um grande xale-manta passado pelos ombros, e, na cabeça, uma touca branca, muito limpa, com fitas pretas que desciam ao pescoço, onde se atavam. Os pés descansavam sobre um escabelo. Uma outra velhota, muito asseada, um pouco mais idosa, lhe fazia companhia. Também estava de luto e, como a outra, usava um toucado. Estava calada, tecendo uma meia, e era assim uma espécie de companheira. Ambas davam a impressão de estar sempre caladas. A primeira velha, vendo o filho com o príncipe, sorriu-lhes, sacudindo a cabeça várias vezes, o que era uma maneira de mostrar satisfação.
— Mãe — disse Rogójin, beijando-lhe a mão — este é o meu grande amigo, o príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin. Trocamos agora mesmo as nossas cruzes. Já uma vez, em Moscou, foi um verdadeiro irmão para comigo. Fez muita cousa por mim. Abençoe-o, mãe, como se estivesse dando a bênção a um filho seu. Assim, não, minha velhinha! Deixe-me arranjar direito os dedos da senhora.
Mas antes que Parfión conseguisse pegar-lhe nos dedos, já ela erguia a mão direita, com dois dedos dobrados sob o polegar, e três vezes, com devoção, fez o sinal da cruz sobre o príncipe. Depois ficou a acenar com a cabeça, bondosamente, significando afeição, outra vez.
— Vamos, Liév Nikoláievitch. Eu o trouxe aqui somente para isso — explicou Rogójin. E quando chegaram, de novo, à escadaria, acrescentou:
— Sabe? Ela não compreende nada do que a gente lhe diz! E, portanto, não compreendeu uma só palavra do que falei; mas o abençoou. Evidentemente, fez isso lá por sua própria vontade. Bem, agora, adeus. É hora do senhor ir indo. E eu também.
Abriu a porta.
— Deixe-me ao menos abraçá-lo, ao nos separarmos, estranho camarada! — exclamou o príncipe, olhando-o com um ar de amável censura. E ia abraçá-lo; mas Rogójin, que também tinha aberto os braços, logo os deixou cair, outra vez. Faltou-lhe coragem.
Voltou-se, para não olhar o príncipe, não querendo o abraço. Mas, repentinamente, murmurou, depois duma estranha risada:
— Está com medo? Embora tenhamos trocado de cruzes, não o assassinarei, por causa do seu relógio. — E todo o seu rosto se alterou. Ficou terrivelmente pálido, com os lábios a tremer, os olhos quase sinistros. Mas acabou abraçando o príncipe, ardorosamente.
E disse, depois, quase sem fôlego:
— Bem, tome-a então, já que assim está destinado. Ela é sua! Dou-lha... Lembre-se de Rogójin!
Dando-lhe as costas, depois, para não vê-lo mais, entrou apressadamente, batendo com a porta.
5.
Já era um pouco tarde, quase duas e meia, o príncipe não encontrou mais o general em casa. Deixou o seu quarto e resolveu ir ao Hotel da Balança perguntar por Kólia e, caso este não estivesse, deixar-lhe um bilhete. No Hotel da Balança lhe foi dito que Nikolái Ardaliónovitch saíra de manhã deixando o seguinte recado: que se alguém o procurasse dissessem que voltaria às três horas; mas que se às três e meia ainda não tivesse voltado era sinal de que fora de trem a Pávlovsk jantar na casa da generala Epantchiná.
O príncipe sentou-se, decidido a esperar. E como já estava ali, resolveu jantar.
Kólia não apareceu às três e meia, e nem mesmo às quatro. O príncipe então saiu e se pôs a andar maquinalmente. No começo do verão em Petersburgo há, muitas vezes, dias admiráveis, claros e já quentes. Por sorte, esse era um dia assim. Durante certo tempo o príncipe errou sem destino. Conhecia muito mal a cidade. Perambulou por praças e pontes, esteve parado em esquinas admirando a fachada dos prédios. Entrou numa confeitaria a fim de descansar um pouco. Tornou a sair. De quando em quando dava para prestar atenção nos transeuntes, com muito interesse; depois esqueceu essa gente das calçadas, seguiu a esmo. Sentia-se constrangido e aflito, ansiando ao mesmo tempo por solidão. Desejava estar sozinho, entregar-se de todo a esse estado de ânimo, sem relutância alguma. Reagiu à ideia de prestar atenção às questões que surgiam do seu coração e do seu espírito, murmurando para si mesmo, confusamente: “Que culpa tenho eu de tudo isso em que me baralhei?”
Lá para as seis e meia se encontrou diante da estação da linha de Tsárskoie Seló. A solidão já se tornara intolerável. Empolgou-o um impulso novo e ardente, e, por um momento, as trevas que haviam baixado em sua alma foram aclaradas por um raio de luz. Comprou um bilhete para Pávlovsk e ficou impaciente por seguir. Mas alguma cousa decerto o perseguia, e essa alguma cousa era uma realidade e não uma fantasia como estava talvez inclinado a supor. Já se ia sentar no seu vagão quando de repente atirou o bilhete na plataforma e abandonou a estação, confuso e pensativo.
Poucos minutos depois, já na rua, se recordou subitamente de qualquer cousa. Foi como se tivesse enfim agarrado uma preocupação angustiosa e que desde muito o molestava. E então percebeu que viera até ali imerso em qualquer preocupação que já durava tempo, muito embora somente agora tivesse verificado isso. Durante horas e horas antes, mesmo no Hotel da Balança e até mesmo antes de ir lá, estivera a procurar não sabia o quê; às vezes se esquecia dessa preocupação mas daí a meia hora, se tanto, ela voltava transformada ora em angústia, ora em apreensão.
Mal acabara exatamente agora de verificar este mórbido e até então inconsciente impulso de busca, de angústia, de cuidado por qualquer cousa difusa, quando lhe surgiu uma recordação que o interessou sobremodo. Lembrou-se com a maior segurança de que, justamente no momento em que percebera que andava à procura de qualquer cousa urgente, havia parado na calçada defronte de uma vitrina, examinando com muita atenção os artigos ali expostos. Resolveu já agora ir verificar se deveras tinha estado diante de tal loja cinco minutos antes, talvez; ou se não teria sido sonho; ou se se teria enganado.
Existiria realmente a tal loja com os tais artigos expostos na tal vitrina? Ah! Sem dúvida não estava se sentindo bem, hoje, a bem dizer se achando quase no estado em que outrora se sentia quando estava para vir um dos ataques da sua antiga moléstia. Sabia que em tais ocasiões costumava pouco antes se sentir excepcionalmente “ausente” de tudo, e que então confundia cousas e pessoas, caso não se esforçasse por prestar bastante atenção nelas. E havia ainda um outro motivo especial para fazer com que desejasse realmente descobrir se antes tinha estado mesmo diante da tal loja. Entre os artigos expostos na vitrina havia um que ele admirara de modo particular, havendo até calculado que devia valer uns 60 copeques de prata. Lembrava-se dessa particularidade, não obstante sua agitação e seu estado mental. Portanto, se tal loja existisse, se tal artigo lá estivesse mesmo na vitrina, isso confirmava que de fato parara acolá, atraído simplesmente por aquele tal artigo. E por conseguinte tal artigo deveria interessá-lo muito, já que o atraíra mesmo estando ele como estava, aborrecidíssimo e confuso por ter saído do trem e abandonado a estação. Enveredou para a direita, olhando para as lojas e eis que, quando mais batia seu coração tomado de impaciência, deu de súbito com a loja! Encontrara-a finalmente! Estava a quinhentos passos dela, ainda agora, quando lhe veio a vontade irreprimível de voltar. E lá estava o artigo que devia valer uns 60 copeques. Olhava-o e repetia: “Deve valer uns 60 copeques, não mais”, e riu. Mas sua risada era histérica. Sentiu-se indisposto, infeliz, zonzo. Lembrou-se claramente, então, de que quando ali estivera antes, ainda agora mesmo, repentinamente se tinha voltado da vitrina para a rua, como fizera aquela manhã ao descer do trem quando, já na rua, surpreendera os olhos de Rogójin sobre ele. Dando como certo que não se tinha enganado (muito embora antes soubesse que era verdade mesmo), afastou-se da loja e estugou o passo. Urgia dar tudo por acabado. Agora estava mais do que ciente de que nem mesmo na estação aquilo fora imaginação sua. Algo de verídico se passara com ele, ligado à sua inquietação anterior. Mas o subjugou uma intolerável repugnância; resolveu não pensar mais nessas cousas, e conseguiu dar um curso completamente outro às suas cogitações.
Lembrou-se, por exemplo, de que sempre um minuto antes do ataque epilético (quando lhe vinham ao estar acordado) lhe iluminava o cérebro, em meio à tristeza, ao abatimento e à treva espiritual, um jorro de luz e logo, com extraordinário ímpeto, todas as suas forças vitais se punham a trabalhar em altíssima tensão. A sensação de vivência, a consciência do eu decuplicavam naquele momento, que era como um relâmpago de fulguração. O seu espírito e o seu coração se inundavam com uma extraordinária luz. Todas as suas inquietações, todas as suas dúvidas, todas as suas ansiedades ficavam desagravadas imediatamente. Tudo imergia numa calma suave, cheia de terna e harmoniosa alegria e esperança. Tal momento, tal relâmpago, era apenas o prelúdio desse único segundo (não era mais do que um segundo) com que o ataque começava. Esse segundo era naturalmente insuportável. Ao pensar depois naquele momento, quando outra vez bom, muitas vezes dissera a si próprio que aqueles relâmpagos e fulgores, lhe dando a mais alta percepção de autoconsciência e, por conseguinte, também de vida em sua mais alta forma, não passavam de doença, isto é, de mera interrupção de uma condição normal. Portanto, não eram absolutamente a mais alta forma de existir e de ser, devendo muito ao contrário ser contada como a mais baixa. E acabava chegando, por último, a uma conclusão paradoxal. Que tem que seja doença? Que mal faz que seja uma intensidade anormal, se o resultado desse fragmento de segundo, recordado e analisado depois, na hora da saúde, assume o valor de síntese da harmonia e da beleza, visto proporcionar uma sensação desconhecida e não adivinhada antes? Um estado de ápice, de reconciliação, de inteireza e de êxtase devocional, fazendo a criatura ascender à mais alta escala da vivência?
Estas expressões assim vagas pareciam-lhe muito compreensíveis, embora fracas demais. Que aquilo realmente era “beleza e adoração”, que era realmente a mais alta escala da vivência, não podia haver sequer possibilidade de dúvida.
Era como se em tal fração de momento contemplasse visões irreais e deslumbrantes como as despertadas pelo haxixe, pelo ópio ou pelo vinho ao destruírem a razão e distorcerem a alma. Era capaz de julgá-las inteiramente quando o ataque cessava. Tais frações de momento, para defini-las numa palavra, caracterizavam-se por uma fulguração da consciência e por uma suprema exaltação da emotividade subjetiva. Se, nesse segundo, ou melhor, bem no último momento consciente anterior ao ataque, ele tivesse tempo para dizer a si mesmo, clara e lucidamente: “Sim, por este só momento se daria toda a vida!”, então esse momento, sem dúvida, valia realmente por toda a vida. Não insistia na parte dialética do seu argumento, ainda assim. Estupefação, treva espiritual e idiotismo, lá estavam e lá ficavam, diante e dentro dele, conspicuamente, como a consequência desses “mais altos momentos”. Lá isso era irrefutável. A sua conclusão, ou melhor, a sua avaliação desse momento encerrava indubitavelmente um erro. Ainda assim, a realidade da sensação o deixava perplexo. E que poderia haver de mais real do que um fato? Ora, aquela sensação era um fato real, talvez a única realidade desejada. Tanto que ele chegara a dizer que tal fração de segundo, só pela felicidade infinita em que o arremessava, valia por toda a vida. “Nesse momento”, conforme dissera a Rogójin um dia, em Moscou, num de seus encontros, “eu como que compreendo a extraordinária expressão do apóstolo: ‘Não haverá mais tempo!’” E acrescentara com um sorriso: “Sem dúvida: era a este mesmo que aludia Maomé, durante o qual o profeta epilético visitava as mansões todas de Alá em menos tempo de que o necessário para virar no chão a água dum cântaro.”
Sim, encontrara-se bastantes vezes com Rogójin em Moscou, e não fora apenas sobre essas cousas que conversara com ele. “Rogójin ainda agora acabou de dizer que naquela ocasião fui para ele um verdadeiro irmão. Disse isso pela primeira vez, hoje”, pensou o príncipe.
Assim pensava, sentando-se num banco debaixo duma árvore no Jardim de Estio. Eram cerca de sete horas. O jardim estava quase vazio. Uma sombra passou pelo sol poente no crepúsculo abafadiço, e havia no ar como que um pressentimento de tempestade distante. A sua disposição contemplativa oferecia-lhe certo encanto. O espírito e a memória pareciam prendê-lo aos objetos visíveis à sua volta; e sentia prazer nisso. Esforçava-se, ainda assim, por esquecer alguma cousa atual, verdadeira, decerto grave; e ao primeiro olhar para dentro de si mesmo, se deu conta imediatamente do seu sinistro pensamento, aquele pensamento ao qual desde muito estava querendo fugir. Lembrou-se de que conversara com o garçom, durante o jantar na taverna, sobre um assassinato sensacional que despertara muitos comentários. Mal, porém, se recordava disso, quando algo estranho veio se interpor.
Um extraordinário e insubjugável desejo, quase uma tentação, paralisou repentinamente sua vontade. Levantou-se do banco. E do jardim se dirigiu diretamente para a Petersbúrgskaia. Pouco antes, havia pedido a um transeunte, nas margens do Neva, que lhe apontasse, por sobre o rio, Petersbúrgskaia. O homem lhe tinha mostrado; mas não fora até lá, naquela ocasião. Em todo caso, agora isso lhe serviu. Desde muito guardava certo endereço. Facilmente encontraria a residência da parenta de Liébediev; mas lhe ocorria quase a certeza de que não estivesse em casa. “Certamente foi para Pávlovsk. Do contrário Kólia teria deixado ao menos uma palavra no Hotel da Balança, conforme combinara.” Se, pois, se dirigiu para lá, não foi com a intenção de vê-la. O que o atraía agora era uma sinistra e atormentadora curiosidade de ordem muito diversa. Uma ideia nova lhe viera ao espírito.
Mas já era para ele suficiente estar andando e saber aonde ia, muito embora um minuto mais tarde estivesse caminhando de novo quase inconscientemente, alheio ao que o rodeava. Uma ulterior consideração sobre a sua “inesperada ideia” lhe tornou imediatamente insípida, para não dizer impossível. Fixava com angustiosa e intensa atenção qualquer cousa que o seu olhar descobrisse: contemplava o céu, contemplava o Neva. Falou a um garoto que encontrou. Talvez a sua condição de epilético estivesse piorando, e da maneira mais aguda. A tempestade armava-se, embora vagarosamente. Começava a trovejar, ao longe. A atmosfera tornara-se muito abafada...
Sem saber por quê (como uma pessoa perseguida por uma frase musical que acorda em seus ouvidos e não o larga, insiste, volta e irrita), perseguia-o agora com uma insistência incômoda a imagem do sobrinho de Liébediev, que conhecera nessa manhã. E o mais absurdo é que o continuava vendo como o assassino de que Liébediev falara quando lho apresentara. Sim, de fato ele, Míchkin, tinha lido qualquer cousa a tal respeito. Desde que chegara à Rússia lia nos jornais e ouvia em conversas muitos casos desses, e acompanhava tais descrições. Ainda esta tarde, por exemplo, se interessara bastante pela conversa do garçom a respeito do assassinato da família Jemárin — o tal assassinato comentado por Liébediev. Recordava-se de que o garçom concordara com seus pontos de vista. Relembrava-se perfeitamente dos modos, das palavras desse garçom. Indivíduo arguto, atencioso e grave, muito embora “só Deus saiba realmente como ele é deveras, visto me ser difícil conhecer gente que nunca vi num país onde mal acabo de chegar... ” Todavia a alma russa começava a inspirar-lhe uma fé apaixonada. Oh! Naqueles seis meses tinha visto muita, muitíssima cousa que para ele era novidade absoluta, inesperada e inconjeturável. Se a alma alheia é por si só uma região sombria, a alma russa, essa então é uma gruta escura, por muitas e muitas razões. Contava já com alguns amigos. Um deles, por exemplo, era Rogójin. Certos episódios não o haviam tornado a ele, Míchkin, e Parfión amigos mesmo, quase irmãos? Mas, apesar disso tudo, poderia dizer deveras que conhecia direito Rogójin? Não era essa criatura um caos? Quanta cousa absurda e hedionda não existe na alma humana! Que sujeito repulsivo e convencido não era aquele sobrinho de Liébediev... “Mas em que e em quem estou eu a pensar?” (O príncipe continuava como dentro dum sonho... ) “Teria ele assassinado aquelas criaturas, aquelas seis pessoas? Que embrulhada estou fazendo!... Que cousa mais absurda... Estarei delirando... E que rosto encantador, suave, o da filha maiorzinha de Liébediev! Aquela que estava com um irmãozinho no colo! Que expressão cândida, ainda infantil! Que sorriso beatífico...” E o mais estranho era que se esquecera dos traços verídicos daquele rosto. Se o baralhava, como era então que não podia esquecê-lo? Liébediev, que batia com o pé no chão para assustar a filharada, com certeza adorava todos eles. E também adorava o sobrinho, tão certo como dois mais dois serem quatro! Mas como podia ele, Míchkin, se aventurar a analisá-los tão categoricamente, se tinha acabado de chegar naquele dia mesmo? Como podia fazer tais julgamentos? De mais a mais, esse próprio Liébediev, por exemplo, não fora um enigma para ele? Esperara acaso encontrar um Liébediev tão diferente? O Liébediev que se apresentara hoje era o mesmo da outra vez? O Liébediev e a Du Barry! Ó Céus! Se Rogójin viesse a cometer um assassinato não seria cousa de espantar: compreender-se-ia. Era homem de uma natureza bem outra. Afinal, uma aquisição de arma com o intuito de matar e o assassinato de seis pessoas perpetrado em completo delírio eram cousas completamente diferentes!
Mas a essa altura o príncipe se sobressaltou. Adquirira Rogójin uma arma para determinada finalidade? “Não é um ato vil e criminoso da minha parte fazer uma suposição desta ordem, assim com tão cínica frieza?”
E uma onda de pejo se lhe espraiou pela cara. Ficou aterrado. Chegou a parar na rua, ofegando. Várias lembranças se alternaram na sua memória: a estação ferroviária de Tsárskoie Seló, onde estivera de tarde; a outra estação por onde chegara a Petersburgo, aquela manhã mesmo; a pergunta feita cara a cara por Parfión: “Uns olhos? Quais? De quem?”; a cruz que ele lhe dera; a bênção da velha Rogójin, em cujos cômodos estivera; aquele último abraço, convulso; a renúncia de Rogójin, lá naquela escada... E após tudo isso estar ele, Míchkin, naquela espécie de delírio ambulatório em busca sabia lá de quê!... Ah! Aquela loja! Aquele objeto exposto naquela vitrina... Quanta vilania!
E apesar de tudo, ainda caminhava agora com um “propósito especial”, guiado por uma “ideia súbita”! Toda a sua alma ficou dominada pelo desespero e pelo sofrimento. E o príncipe desejou retroceder, voltar para o hotel. Virou, com esse intento; mas um minuto depois refletiu, virou outra vez teimando em prosseguir no rumo de antes.
Sim, já estava agora na Petersbúrgskaia; e bem perto da tal casa. E isso não tinha mais nada que ver com aquele especial propósito nem com aquela ideia súbita. Mas como podia ser isso então? Sim, é que a sua moléstia estava voltando. Não havia a menor dúvida. Talvez até viesse a ter um ataque ainda hoje mesmo. Aquela treva já era um sintoma; a “ideia” também era consequência dessa espécie de aura prolongada. Mas eis que a treva se dispersa; o demônio a arrebata para longe; a dúvida cessa de existir: reina alegria em seu coração! Havia tanto tempo que não a via! Que desejo agudo de vê-la! Sim... que bom encontrar-se com Rogójin, tomá-lo pela mão, fazê-lo caminhar a seu lado! Sentia o coração tão puro! Não, não era rival de Rogójin! Amanhã iria procurá-lo, contaria que tinha ido vê-la. De fato viera para Petersburgo simplesmente para vê-la. Rogójin tinha dito isso, e era verdade. Talvez a encontrasse. Talvez ela não tivesse ido para Pávlovsk.
Urgia clarear tudo isso, agora. E era o que ia fazer, lançar luz, muita luz, tanto no coração de um como no do outro. Não era direito, não era normal, mas sinistro e apaixonado, aquele gesto de renúncia de Rogójin proclamado no patamar da sua residência. Urgia lançar luz, muita luz, sobre isso tudo para que a ação fosse livre. Pois então o próprio Rogójin não podia caminhar na luz? Se dissera que não a amava “assim”, isto é, que não tinha compaixão por ela, “nenhuma espécie de piedade”, todavia acrescentara depois: “Talvez a piedade do senhor seja maior do que o meu amor!” Mas Rogójin fora injusto para consigo próprio. Ah! Pois isso de estar ele, Rogójin, lendo, ultimamente... já não era indício bastante de piedade? Pelo menos o começo já duma “piedade”? A só presença daquele livro não provava que tal homem se sentia consciente de modo pleno quanto à sua atitude para com essa mulher? As palavras dele, lá na sua casa, não significavam alguma cousa bem mais profunda do que mera paixão? E o rosto de Nastássia Filíppovna era um rosto para inspirar apenas paixão? Ah! Um rosto assim inspirava sentimentos muito acima da paixão somente. Era um rosto que arrebatava, que prendia a alma inteira!... Ele...
E uma pungente, dolorosa recordação traspassou o peito do príncipe.
Pungente, e quanto! Lembrava-se agora de quanto sofrera, ainda recentemente, ao perceber sintomas de loucura nessa mulher. Sofrera tanto que beirava o limiar do desespero. E como pôde ele, Míchkin, se resignar quando ela lhe fugira para Parfión? Por que não correra à sua procura, ao invés de ficar à espera de notícias?... Seria possível que Parfión Rogójin ainda não tivesse percebido que ela estava louca? Como tem sossego esse homem para discernir as cousas, se tudo que faz é através de arrebatamentos, envolto sempre num ciúme horrendo? Falar nisso... que teria ele querido dizer, ainda hoje, com aquela suposição? (O príncipe enrubesceu involuntariamente, sentindo o coração subir-lhe à garganta.)
Ora, que adiantava estar pensando em tais cousas? Havia loucura, e de ambos os lados. Ele, Míchkin, amar aquela mulher, apaixonadamente, era cousa que nem se devia supor. Corresponderia a julgá-lo capaz de crueza espiritual, de falta de humanidade. Sim, sim! Até consigo próprio Rogójin era injusto e falso! Ou talvez ignorante do próprio coração que tinha, coração apto a se compadecer, coração que, assim que acabasse de conhecer a verdade, assim que notasse que criatura digna de piedade era aquela mulher infeliz e insana, lhe perdoaria todo o passado causador de tão recíprocos tormentos! Sim, ele se tornaria o servo, o irmão, a Providência dessa criatura! A paixão ensinaria ainda muita cousa a Rogójin e despertaria grandes aperfeiçoamentos no seu espírito. A compaixão era a principal e decerto a única lei de toda a existência humana. Ah! Como se enganara, imperdoável e desonrosamente a propósito de Rogójin! Não, não era “a alma russa que era uma região de trevas”, mas era, sim, a sua alma essa negra região, já que pudera pensar tais horrores! Pois que, só por umas poucas palavras ardentes saídas do coração, em Moscou, Rogójin o tinha chamado de seu irmão, enquanto que ele... Mas isso era doença e delírio. Isso tudo teria jeito!... Quão sinistramente não dissera Rogójin, aquela manhã. que estava “perdendo a fé”! Esse homem devia estar sofrendo terrivelmente! Ele dissera que “gostava de olhar aquele quadro”. Não que o apreciasse; sentia-se arrastado, atraído a isso. Rogójin não era simplesmente uma alma apaixonada; era um lutador, fosse como fosse. Queria retomar, à força, a fé perdida. Tinha uma angustiosa necessidade dela agora... Sim, acreditar nalguma cousa! Acreditar em alguém! Ah! Quão estranha não era aquela pintura de Holbein!... Mas... pois não é que é esta a rua? E a casa deve ser aquela! Sim, é ali, nº 16, a “residência da sra. Filíssova”. É aqui. O príncipe tocou e perguntou por Nastássia Filíppovna.
A própria dona da casa lhe respondeu que Nastássia Filíppovna tinha ido aquela manhã mesmo para Pávlovsk, para a casa de Dária Aleksiéievna “e era muito provável que passasse alguns dias lá”. A sra. Filíssova era baixota, viva, incisiva, quarentona, com ar desconfiado e astuto. Perguntou-lhe o nome, e havia evidentemente nessa pergunta um ar intencional de mistério. O príncipe, no começo, não quis responder, mas, subitamente se voltando, lhe pediu, com veemência, que transmitisse o seu nome a Nastássia Filíppovna. A sra. Filíssova recebeu esse pedido categórico com grande atenção e com um extraordinário ar de sigilo, com o qual, evidentemente, queria significar: “Fique tranquilo; eu compreendo.” O nome de Míchkin parece que lhe causou grande impressão. Ele a olhou de maneira vaga, virou-se, e saiu rumo ao hotel. Mas, agora, estava completamente diferente. Uma extraordinária diferença lhe sobreviera, e de modo quase instantâneo. Ia por ali afora, ainda mais pálido, fraco, agitado e se sentindo mal. Tremiam-lhe os joelhos e um vago sorriso de desnorteamento lhe levantava o lábio azulado. A sua “súbita ideia” estava ao mesmo tempo confirmada e justificada. Acreditou outra vez no seu demônio.
E por sua vez ela, a sua ideia, confirmava o quê, justificava o quê? Por que de novo esse tremor, esse suor gélido, essas trevas glaciais de sua alma? Seria porque, uma vez mais, vira aqueles olhos? Mas se saíra do Jardim de Estio de propósito para vê-los! Consistira nisso a teima daquela “ideia súbita”. Tinha querido intensamente rever “aqueles olhos”, e tanto que estava quase certo de que os encontraria lá, diante daquela casa. Pois se tinha querido isso apaixonadamente, por que então estava agora tão esmagado e atônito pelo fato de os ter acabado de ver? Acaso não esperava por isto? Sim, aqueles eram os mesmíssimos olhos (e nem podia haver dúvida alguma de que fossem) que vira fulgurar na estação, por entre o povo, ao desembarcar do trem de Moscou; eram os mesmos (absolutamente os mesmos) que surpreendera a olhá-lo aquela mesma tarde quando, em casa de Rogójin, se estava sentando na sala. Naquela ocasião Rogójin tinha negado, perguntando com um sorriso duro e tortuoso: “Uns olhos? Quais?!” E, não havia muitas horas, quando ele, o príncipe, fora tomar o trem para Pávlovsk a fim de ir ver Agláia, havia surpreendido, de repente, outra vez aqueles mesmos olhos. Era a terceira vez, naquele dia! Viera-lhe então um desejo instantâneo e quase indomável de ir procurar Rogójin e de lhe dizer que olhos eram aqueles. Embarafustara pela estação afora, decidido a isso; mas, na rua, ficara inconsciente, depois, inconsciente de tudo até ao momento em que dera consigo mesmo parado diante da loja do cuteleiro a considerar que um certo artigo ali exposto, um objeto com um cabo de chifre de veado, deveria custar 60 copeques. Então um esquisito e terrível demônio se apossara dele e não havia meio de querer largá-lo. Fora esse demônio quem lhe sussurrara ao ouvido, quando, perdido em cismas, estava no Jardim de Estio sentado debaixo de uma árvore: “Rogójin, hoje, não deixou nem deixará de te seguir o dia inteiro, rastejando nas tuas pegadas.” E decerto, descobrindo que ele, Míchkin, não tinha ido a Pávlovsk (contratempo sem dúvida terrível para Rogójin) fora vaguear pelas imediações da casa da Filíssova, à espreita de que viesse, muito embora o príncipe tivesse dado a sua palavra de honra a Rogójin, de que não iria vê-la e nem viera a Petersburgo com esse fim. No entanto, bem que se apressara a ir até lá, febrilmente. Como admirar-se, pois, de haver encontrado Rogójin? E viu apenas um homem cuja disposição era sombria, mas que facilmente se chegava a compreender como, por que e com que fim ali viera ter. Aquele homem taciturno nem sequer se escondia mais. Se de manhã, sem motivo justificado, Rogójin tinha negado e mentido, de tarde, porém, na outra estação, se mantivera parado, quase à mostra, até se podendo dizer que o príncipe é que se escondera. E agora ali estava, nas imediações daquela casa, postado na calçada oposta, esperando-o, de braços cruzados. E bem à mostra, de propósito. Hirto, visível, como um acusador e como um juiz, e não como... um réu ou um espião.
E por que então o príncipe não foi ao encontro dele? Por que se afastou, fingindo não haver notado nada, embora os olhos de ambos se tivessem encontrado? (Sim, os seus olhos se tinham encontrado e ambos se tinham fixado bem.) Todavia o príncipe, horas antes, chegara a querer pegar Rogójin pela mão a fim de levá-lo até lá. Estivera resolvido mesmo a ir no dia seguinte à casa dele somente para dizer que tinha ido vê-la. Recusara-se a seguir o seu demônio quando, já a meio caminho, súbita alegria inundara a sua alma. Ou haveria hoje qualquer cousa em Rogójin, ou na imagem inteira desse homem, em suas palavras, movimentos, expressões, modos, e tudo, tomado em conjunto, que justificasse as tremendas desconfianças do príncipe e as revoltantes diligências ditadas por sua voz interior? Algo que pudesse ser visto mas que fosse difícil analisar e descrever? Algo impossível de, com base suficiente e através de tantos mistérios confusos e indiscerníveis, justificar aquela impressão categórica e total que não tardou daí a pouco, por um impulso externo, a se tornar uma firme convicção?!
Mas... convicção de quê? (Oh! Como o príncipe se sentia torturado pela hediondez, pela “ignominiosidade” da sua convicção, dessa “vil desconfiança”, e como se repreendia por isso!) À guisa de repreensão e de desafio não cessava de se exprobrar: “Fala, se és capaz, formula o teu pensamento, ousa exprimi-lo bem claro e bem nítido, sem vacilação. Oh! Que ignóbil que és!” E repetia tais doestos a si mesmo, indignado, o rosto cheio de vergonha. “E com que olhos poderei olhar para esse homem, pelo resto da minha vida? Que dia, meu Deus! Que pesadelo!”
Um momento houve, ao fim dessa miserável e longa caminhada de volta de Petersbúrgskaia, em que um irresistível desejo assaltou o príncipe de ir diretamente à casa de Rogójin, e de ficar a esperá-lo, e de abraçá-lo, com vergonha, com lágrimas, e de lhe dizer e liquidar tudo. Mas já estava diante do seu hotel. Como achara antipático esse hotel, de manhã! Aqueles corredores, aquela casa, aquele quarto — e antipatizando logo à primeira vista! E quantas vezes, durante o dia, não pensara, com repugnância, que teria que voltar para lá... “Ora, como uma velha doente, dei hoje em acreditar em todos os pressentimentos!”, pensou com irritada ironia, já diante da porta da entrada. Uma circunstância sobrevinda nesse dia se levantou no seu espírito, bem nesse momento; mas foi um pensamento “frio”, com perfeita tranquilidade, “sem pesadelo”. Repentinamente se lembrou da faca que vira sobre a mesa de Rogójin. “E por que não haveria Rogójin de ter uma faca qualquer em cima da sua mesa?”, perguntou a si mesmo, com ar atônito. Mas nisto se sentiu petrificado de espanto, pois de súbito se lembrou que estivera parado diante da loja do cuteleiro. “Mas que conexão pode haver entre uma e outra cousa?” — exclamou ele, por fim, parando. Um novo e insuportável golpe de vergonha, quase que de desespero, deixou-o plantado ali mesmo, fora da entrada. E, assim, permaneceu por um minuto. A gente é assaltada por insuportáveis e repentinas lembranças, principalmente quando elas vêm associadas à vergonha. “Sim, sou um homem sem coração e um covarde”, disse e repetiu, melancolicamente. Quis prosseguir, mas... estacou de novo.
Aquela entrada, que era sempre escura, ainda mais escura estava agora. A nuvem carregada se alargara pelos céus, tapando toda a claridade. E no momento exato em que o príncipe transpôs a entrada, a tempestade caiu em terrível aguaceiro. Estava o príncipe bem na entrada da porta da rua e acabava de sair de sua momentânea parada. E então viu perto das escadas, na obscuridade do corredor, embaixo, um homem. E esse, que parecia estar à espera de qualquer coisa, logo sumiu lá para dentro. O príncipe pudera apenas vê-lo de relance, muito mal, e não poderia dizer quem fosse. Além de que, muita gente subia e descia, pois era um hotel com contínuo vaivém. Mas ficou nitidamente convencido de que tinha reconhecido o homem e não tinha dúvidas de que era Rogójin. E imediatamente o príncipe enveredou escadas acima, atrás dele. Seu coração parou. “Tudo será decidido agora”, disse, com uma convicção inaudita.
O lance de escada, pelo qual o príncipe embarafustou lá de baixo, levava aos corredores do primeiro e do segundo andares onde estavam os quartos. Como em todas as casas antigas, a escada era de pedra, escura, estreita e girava em volta dum grosso pilar central também de pedra. No primeiro patamar, separando em lance do outro, havia uma escavação no pilar, uma espécie de nicho, da largura de um passo, se tanto, e com meio passo de profundidade. Ainda assim dava para uma pessoa caber lá dentro. Escuro como estava, pôde todavia o príncipe descobrir ao chegar ao patamar que um homem se estava escondendo dentro do nicho. Bem que o príncipe quis passar sem olhar para o lado direito. Já tinha dado um passo além, mas não pôde resistir e se voltou.
Aqueles dois olhos, aqueles mesmos dois olhos, bateram de cheio nos seus. O homem que se tinha escondido dentro do nicho já estava dando um passo para fora. Por um segundo, ficaram olhando um para o outro, quase se esbarrando. Então, de repente, o príncipe o segurou pelos ombros e o virou para a escada, para mais perto da claridade. Queria ver bem aquela cara.
Os olhos de Rogójin faiscaram e um sorriso de fúria lhe contorceu a face. A sua mão direita estava erguida e uma cousa fulgurava nela; Míchkin nem pensou em resistir. Apenas se recordou de que pensou ter gritado: “Parfión, não acredito!” E nisto alguma cousa pareceu girar em partículas diante dele! Toda a sua alma se inundou de intensa claridade interior. Duraria esse momento, o quê? Meio segundo, talvez; mas ainda assim, clara e conscientemente, se lembrou do começo, do primeiro som do pavoroso grito que rompeu do seu peito e que não pôde evitar de modo algum. Depois a sua consciência instantaneamente se extinguiu e trevas completas se seguiram.
Era um ataque epilético, o primeiro que tinha depois duma longa pausa. É bem conhecido que o ataque epilético sobrevém inesperadamente. Nesse momento o rosto se deforma horrivelmente, de modo particular os olhos. Não só o corpo inteiro como os traços do rosto trabalham com sacudidelas convulsivas e contorções. Um terrível e indescritível grito, que não se assemelha a cousa alguma, é emitido pela vítima. Nesse grito tudo quanto é humano fica obliterado; e é impossível, ou dificílimo, ao observador imaginar e admitir que seja um homem quem o desfere. É como se um outro ser estivesse gritando dentro do homem. Pelo menos é assim que muita gente tem descrito a impressão que isso dá. A cena dum homem acometido de ataque epilético enche os que o testemunham de verdadeiro e irreprimível horror, tanto no acesso como no horror resultante havendo um elemento de mistério. É bem provável, portanto, que alguma dessas sensações de horror repentino, acrescida de qualquer outro aspecto momentâneo, tenha paralisado de repente o braço e o intuito de Rogójin. Só assim se explica que o príncipe não tivesse sido apunhalado. Decerto Rogójin bem naquele instante foi surpreendido com a cena do ataque, ouvindo o uivo e vendo o príncipe cambalear, cair e bater com a cabeça violentamente num degrau, já na parte inferior do lance da escada. Fugindo por ali abaixo, e se desviando do corpo caído, Rogójin, atônito, conseguiu escapulir.
Lutando com suas violentas contraturas, o enfermo ainda rolou os degraus restantes, até ao patamar, no corredor. Cousa duns cinco minutos depois, deram com ele assim, isso logo ocasionando ajuntamento. Uma poça de sangue sob a cabeça despertou dúvida se aquele homem ali se tinha machucado ou se fora vítima dum crime. Logo verificaram porém que se tratava dum caso de epilepsia; e um dos garçons do hotel reconheceu em Míchkin um hóspede registrado aquela manhã. Ainda bem que quaisquer dificuldades posteriores foram sanadas mercê duma circunstância fortuita e favorável. Ei-la: Kólia Ívolguin prometera voltar ao Hotel da Balança entre três e quatro horas. Em vez disso, fora a Pávlovsk; lá resolvera, por acaso, não jantar em casa da generala Epantchiná, regressando mais tarde a Petersburgo e logo se dirigindo ao Hotel da Balança. Cientificado pelo bilhete que o príncipe lhe deixara, de que este se achava na cidade, apressou-se em ir encontrá-lo no endereço indicado. Lá, porém, lhe foi dito que o hóspede tinha saído. Entrou então para o restaurante do rés do chão, anexo ao hotel, e se pôs a esperar tomando chá e ouvindo órgão. Acontecendo, no entanto, ouvir dizer que alguém tivera um ataque, saiu a ver, movido por um pressentimento. E no próprio local reconheceu o príncipe, logo ajudando a tomar medidas convenientes, sendo a primeira delas transportar o doente para o quarto. Apesar de já ter recobrado a consciência, o príncipe durante muito tempo ficou marasmado. Mandaram chamar um médico, por causa do ferimento na cabeça, tendo o doutor acabado por dizer que era cousa sem importância, apenas receitando uma compressa. Uma hora depois, quando o príncipe já estava começando a compreender o que se passara, Kólia o levou do hotel para a casa de Liébediev. Este recebeu o doente com reverências e extraordinária circunspeção. E foi por causa de tudo isso que apressou a mudança. Três dias depois, estavam todos em Pávlovsk.
6.
Não sendo grande, a vila de Liébediev era confortável e até bonita. A parte a ser alugada fora pintada recentemente. Pela varanda bastante larga, situada na frente da casa, tinham sido colocados grandes caixotes pintados de verde com pés de laranjeiras, limoeiros e jasmineiros, o que na opinião de Liébediev tornava a aparência ainda mais sedutora. Quando comprara a casa já encontrara algumas dessas árvores, tendo ficado tão encantado com o efeito que elas produziam, que resolveu, na primeira oportunidade, comprar mais algumas, em leilão. Depois que todas as plantas foram trazidas para a vila e colocadas nos lugares definitivos, Liébediev, todos os dias, descia uma porção de vezes os degraus da varanda para ir admirar lá da rua o efeito. E de cada vez aumentava, mentalmente, o preço que decidira pedir ao futuro locatário.
O príncipe, alquebrado, deprimido e fisicamente incapacitado, dera-se bem com a transferência para a vila. Já no dia de sua chegada a Pávlovsk, isto é, três dias depois do ataque, parecia estar bem, embora sentisse ainda, por dentro, as consequências do mal. Agradavam-lhe as fisionomias que o assistiam durante aqueles dias, distraía-se com Kólia que não o largava por preço algum, simpatizava com a família de Liébediev. (O sobrinho deste fora embora para qualquer parte.) O próprio Liébediev não lhe era intolerável; quanto ao general Ívolguin, tratara-o bem ainda em Petersburgo ao lhe receber a visita. Na noite em que chegara a Pávlovsk ficara rodeado na varanda por uma porção de visitas. O primeiro a chegar foi Gánia, e tão mudado que o príncipe quase o não reconheceu: emagrecera muito naqueles seis meses. Vieram depois Vária e Ptítsin, que também possuíam uma vila em Pávlovsk. O general Ívolguin, esse então quase não largava a casa de Liébediev e não era de estranhar que, por assim dizer, fizesse parte dos cacarecos. Liébediev tentou conservá-lo apartado da vila, isto é, no seu pavilhão, querendo com isso evitar que o velho desse em visitar a todo instante o príncipe. O general e o príncipe tratavam-se como amigos velhos, como se se conhecessem desde muitos anos. Mesmo antes da transferência, durante aqueles três dias na residência antiga de Liébediev, o príncipe notara que este mais o general estavam frequentemente juntos, sempre absorvidos em longa conversa, às vezes exaltavam-se aos gritos, discutindo, abordando assuntos difíceis, até mesmo científicos, o que evidentemente soerguia Liébediev ao sétimo céu. Isso até dava a impressão de que o general lhe era indispensável. Depois da mudança para Pávlovsk, dera Liébediev em atenazar a família tanto quanto fazia com o general. A pretexto de não incomodar o príncipe não permitia que ninguém dos seus o fosse ver. Batia com o pé, corria atrás das filhas, escorraçava-as, inclusive Vera com a criancinha; e para isso bastava desconfiar que quisessem ir para a varanda onde o príncipe estava sempre, apesar de o príncipe lhe pedir que não agisse assim. Mas ele lhe explicava categoricamente em resposta a essas advertências:
— Em primeiro lugar, se o senhor as deixar fazer o que muito bem quiserem, não haverá respeito aqui; e, em segundo lugar, aqui não é o lugar delas.
— Mas por que isso? — protestava o príncipe. — Com essas atenções e vigilâncias você acaba me aborrecendo. É estúpido estar aqui sozinho, já lhe disse muitas vezes; e você me deprime muito mais com esse negócio de andar na ponta dos pés e de viver gesticulando.
E o príncipe percebeu que, enquanto Liébediev escorraçava com todos os de casa, a pretexto de que o doente necessitava de sossego, ele, por sua vez, estava vindo demais; e sempre abria primeiro a porta, metia a cabeça pelo vão, olhava em volta, como a certificar-se de que o príncipe lá estava, ou não tinha saído, e então, depois, muito devagar, pé ante pé, em passinhos furtivos, se aproximava da poltrona a ponto de, às vezes, até assustar o seu inquilino. Estava sempre a perguntar se queria alguma cousa; e quando o príncipe, finalmente, lhe suplicava que o deixasse só, virava-se e muito obedientemente, pé ante pé, sem uma palavra, demandava a porta, gesticulando muito, como a querer dizer que apenas viera dar uma olhadela, mas que não diria palavra alguma, absolutamente, que já estava indo embora, que não voltaria. Ainda assim, dez minutos depois, ou, no máximo, um quarto de hora, reaparecia. O fato de Kólia ter livre acesso perante o príncipe era a fonte da mais profunda mortificação e até mesmo de indignação para Liébediev. E Kólia descobriu e contou que Liébediev, certa vez, ficara meia hora escutando à porta a conversa do príncipe.
— Você afinal parece que se apropriou de mim definitivamente, conservando-me sob chave e cadeado — protestou o príncipe, um dia. — Aqui, na vila, de qualquer maneira, eu não quero que isso continue; e deixe que lhe diga, verei quem muito bem eu quiser, e irei aonde me aprouver ir.
— Mas nem há a menor dúvida! — afirmou Liébediev, com aquelas mãos que nunca ficavam paradas.
O príncipe correu-lhe o olhar, da cabeça aos pés.
— Você trouxe para cá o armariozinho que estava preso à cabeceira da sua cama?
— Não trouxe, não.
— Então você o deixou lá?
— Não me foi possível trazê-lo, só se estragasse a parede, arrancando-o... Estava encravado com muita firmeza.
— E não lhe faz falta?
— Há um aqui. E muito melhor. Já o achei ao comprar a vila.
— Hã!... Quem foi que esteve à minha procura cerca de uma hora, e você não deixou que me viesse ver?
— Foi... foi o general. De fato não consenti; ele não deve vir vê-lo. Eu tenho um grande respeito para com esse homem, príncipe, é... é um grande homem. Garanto-lhe. Pois bem, queria vê-lo. Em todo o caso... é melhor, ilustríssimo príncipe, não o receber.
— Mas por quê? Permite que lhe pergunte?! E por que é que você anda na ponta dos pés e se aproxima de mim sempre assim como se viesse sussurrar-me um segredo ao ouvido?
— Sou abjeto, abjeto!... Sei que sou — respondeu Liébediev inesperadamente, ferindo o peito com vontade. — E não seria o general incômodo para o príncipe? Demasiado hospitaleiro?
— Como, demasiado hospitaleiro?
— Sim, não atrapalharia? Para começar lhe digo, ele pretende morar comigo e acho que não o impedirei. Mas é o homem dos exageros, imediatamente se julga um parente! Já muitas vezes me tem querido afirmar e até provar nosso parentesco; parece que estamos ligados através duns tantos casamentos. O senhor, por exemplo, segundo ele, é seu primo, em segundo grau também, pelo lado materno; ainda ontem esteve a me explicar isso. Se o senhor é primo dele, então o senhor e eu somos parentes também, ilustríssimo príncipe. Mas, deixemo-lo; trata-se duma fraqueza insignificante; e me garantiu, há pouco, que, em toda a sua vida, desde quando era aspirante até o dia 11 de junho do ano passado, nunca se sentava para jantar com menos de duzentas pessoas à sua mesa. E prosseguiu afirmando mais que não se levantavam nunca da mesa, a ponto de jantarem, cearem e tomarem chá quinze horas seguidas durante as 24 horas do dia, e isso durante trinta anos a fio, sem interrupção, mal havendo tempo para a troca das toalhas da mesa. Se alguém se levantava, vinha outro e se sentava; e que nos dias santos o menos que havia de gente eram umas trezentas pessoas, sendo que no milésimo aniversário da fundação da Rússia ele contara setecentas pessoas. É uma mania, quase uma paixão; e o senhor sabe muito bem que tais asserções são péssimo sintoma. Chega-se a ter medo de conservar em casa um hóspede assim. De forma que estive pensando: não seria tal indivíduo uma companhia inconveniente para o príncipe e para mim?
— Mas você está em ótimas relações com ele, segundo me parece...
— Somos como irmãos. Diverte-me infinitamente! Vá lá que sejamos até parentes, já que ele insiste tanto nisso! Mesmo porque isso é uma honra para mim, pois com toda essa história de banquetes de duzentos talheres e comemorações do milésimo aniversário da Rússia, acabei me convencendo de que ele é de fato uma personalidade notável! E olhe que não estou a fazer piada! O príncipe referiu-se ainda há pouco a segredos; isto é: que estou vindo a todo instante como se tivesse algum segredo a contar... Pois olhe que acertou. Certa pessoa... muito sua conhecida, ainda agora mesmo mandou dizer que tem muito empenho em obter uma entrevista com o senhor... mas em segredo.
— Em segredo, por quê? De modo algum. Irei hoje mesmo ver essa pessoa, se é que você assim o quer.
— Eu? Eu não tenho nada com isso, absolutamente! — E Liébediev abriu as mãos para os lados, protestando. — Naturalmente se essa pessoa pede segredo é porque teme alguma cousa. Mas não aquilo que o senhor pensa. Por falar nisso, quer saber de outra cousa? O monstro vem todos os dias perguntar como vai passando o senhor!
— Deu você em falar tanto de “monstro” que já ando desconfiado.
— Não precisa desconfiar... Não precisa absolutamente desconfiar! — disse Liébediev querendo logo desistir do assunto. — Apenas lhe quero dar a entender que essa pessoa não está com receio de ninguém e sim duma certa cousa, o que é muito diferente, muitíssimo diferente.
— Ora bem, de quê? Diga logo! — perguntou e exigiu o príncipe, com impaciência, olhando para os misteriosos trejeitos de Liébediev.
— Isso agora é segredo! — E Liébediev riu.
— Segredo? Por quê? De quem?
— Não digo. Pois o príncipe ainda agora mesmo não zangou comigo por eu estar aparecendo aqui a cada instante com ares de quem quer contar um segredo? E não me proibiu, não me escorraçou? — E Liébediev, gozando de modo total o fato de haver conseguido excitar a curiosidade do seu ouvinte, levando-o a uma dolorosa impaciência, concluiu de repente: — A tal pessoa está com medo de Agláia Ivánovna.
O príncipe ficou sério e se manteve calado durante mais de um minuto, até que disse:
— Meu caro Liébediev, desisto da sua vila. Onde está Gavríl Ardaliónovitch? Onde está o casal Ptítsin? Você também os sequestrou?
— Eles virão! Virão! E, além deles, o general Ívolguin, também. Vou abrir as portas e vou chamar também as minhas filhas. Todos, todos, todos, imediatamente, imediatamente! — sussurrou Liébediev, amedrontadíssimo, agitando os braços e correndo duma porta para outra.
Bem nesse momento, Kólia, vindo da rua, entrou pela varanda e anunciou que alguns amigos — a sra. Epantchiná e as suas três filhas — vinham a caminho para visitá-lo.
— Devo deixar entrar os Ptítsin e Gavríl Ardaliónovitch, caso venham, ou não devo? E o general, faço-o entrar até aqui, ou não? — dizia Liébediev, dando pulinhos, excitadíssimo com as notícias.
— Por que não? Deixe entrar quem quiser. Devo-lhe observar, Liébediev, que você adotou uma atitude errada para comigo desde o começo. Você está se equivocando sem parar, sempre. Eu não tenho a menor razão para estar me escondendo de quem quer que seja. — E o príncipe sorriu, ante o que Liébediev achou que também devia rir. Malgrado a agitação em que estava, demonstrava extrema satisfação.
As notícias trazidas por Kólia eram reais. Tinha vindo apenas alguns passos na frente dos Epantchín a fim de anunciar a chegada deles; tanto assim que as visitas chegaram ao mesmo tempo, vindas de ambos os lados, os Epantchín surgindo da rua, e os Ptítsin, Gánia e o general Ívolguin lá de dentro.
Os Epantchín só agora tinham sabido por Kólia que o príncipe estava doente e que se achava em Pávlovsk. Até então a sra. Epantchiná se mantivera em angustiosa perplexidade. Dois dias antes o general mostrara à família o cartão deixado pelo príncipe. A vista desse cartão acordou em Lizavéta Prokófievna a firme convicção de que o príncipe não tardaria em vir visitá-los em Pávlovsk. Em vão as filhas lhe garantiram que um homem que passara seis meses sem escrever não haveria de se apressar agora e que, com certeza, não lhe faltava com que se entreter, e bastante, em Petersburgo, afora eles. Como poderiam, pois, saber dele? A generala zangou-se seriamente com tais observações e quis até apostar como o príncipe apareceria no dia seguinte, no máximo, mesmo que fosse um pouco tarde e atrasado! No dia seguinte puseram-se a esperá-lo a manhã inteira; esperaram-no para jantar, para o serão, e quando começou a escurecer Lizavéta Prokófievna desandou a implicar com tudo, a brigar com todo o mundo, não fazendo, é lógico, enquanto isso, a menor alusão ao príncipe. Tampouco no terceiro dia foi dita uma palavra sequer, a respeito dele. Quando, ao jantar, Agláia caiu na asneira de observar que mamãe estava furiosa porque o príncipe não tinha vindo, ao que o pai imediatamente redarguira não ser sua a culpa, Lizavéta Prokófievna se levantou da mesa e saiu, encolerizada. Por fim, lá pela noitinha, Kólia chegou e fez uma completa descrição das aventuras do príncipe, pelo menos até onde sabia. Lizavéta Prokófievna ficou triunfante, mas Kólia apanhou uma boa raspança: “Você se gruda aqui dias e dias seguidos e a gente tem de aguentá-lo, e você podia ao menos nos ter participado isso tudo, já que ele não se achava capaz de vir.” Kólia esteve a ponto de se queimar com a expressão “e a gente tem de aguentá-lo”, mas adiou isso para uma ocasião mais propícia; se a frase não tivesse sido tão ofensiva, a teria talvez desculpado inteiramente, pois ficara muito contente com a agitação e a ansiedade de Lizavéta Prokófievna ao saber da doença do príncipe. Começou ela a insistir sem parar na necessidade de mandar vir uma celebridade médica de Petersburgo, a cuja procura seria bom mandar logo um portador; e que fosse médico célebre deveras e que viesse logo pelo primeiro trem. Mas as filhas a dissuadiram. Não quiseram, contudo, ficar atrás de sua mãe quando esta de repente resolveu ir visitar o doente.
— Pois se ele está em seu leito de morte — dissera Lizavéta Prokófievna, toda zonza — por que estarmos com cerimônias? Trata-se dum amigo da família, ou não?
— Mas não fica bem a gente ir correndo, sem saber direito como ele está — observara Agláia.
— Muito bem; então não venham. E até fazem bem, pois do contrário, se Evguénii Pávlovitch chegar, não terá ninguém que o receba.
A tais palavras, naturalmente, Agláia saiu logo com os demais. Aliás mesmo sem essas palavras, ela agiria do mesmo modo. O príncipe Chtch... que estava sentado com Adelaída, ante essa conversa, logo concordou em acompanhá-las. Tinha-se interessado muito pelo príncipe, ao ouvir falar dele antes, logo que travara relações com os Epantchín. Pareceu-lhe até que o conhecia, que se tinham encontrado alhures, ultimamente, e que tinham passado uma noite juntos numa cidadezinha do interior, três meses antes. De fato o príncipe Chtch... lhes contou uma porção de cousas relativas ao príncipe e se referiu muito amistosamente a ele; era, pois, com verdadeiro prazer que o ia visitar. O general Epantchín não se achava em casa essa tarde; quanto a Evguénii Pávlovitch, estava demorando um pouco.
A vila de Liébediev não ficava a mais do que trezentos passos. Lizavéta Prokófievna ficou logo desapontada de encontrar um grupo de gente em visita ao príncipe, sem falar no fato de entre essa gente haver umas duas ou três pessoas com quem positivamente embirrava. O seu segundo desaponto foi a surpresa de encontrar um jovem com a evidente aparência de estar gozando perfeita saúde, todo janota, que lhe veio ao encontro muito risonho, em vez do doente que contara ir deparar num leito de morte. Instantaneamente estacou, admirada, proporcionando intenso prazer a Kólia que bem poderia ter explicado, antes de saírem, que ninguém estava a morrer e que não se tratava de nenhum caso de leito de morte. Mas não o fizera justamente porque manhosamente antevia a raiva da sra. Epantchiná quando, conforme ele já contava, desse com o príncipe, por quem tinha real afeição, em perfeita saúde. Queria assim lhe gozar a cólera. Kólia, de fato, só fazia disparates, tanto em falar alto as suas opiniões, como em sempre atiçar a irritação de Lizavéta Prokófievna. Estava sempre às turras com ela e, muitas vezes, de modo muito malicioso, apesar da estima que um tinha pelo outro.
— Não perde por esperar, meu amiguinho, não se precipite! Não gaste à toa o seu trunfo — avisou-o Lizavéta Prokófievna, sentando-se na poltrona que o príncipe lhe ajeitava.
Liébediev, Ptítsin e o general Ívolguin correram a arrumar cadeiras para as moças. A de Agláia foi o general Ívolguin quem a trouxe. Liébediev ofereceu uma outra ao príncipe Chtch... também, expressando, com a curvatura do seu dorso, um profundo respeito. Vária saudou as senhoritas como habitualmente, com um sussurro absorto.
— Em verdade, príncipe, contava encontrá-lo, por assim dizer, de cama. Exagerei as cousas, na minha aflição, confesso. Senti-me terrivelmente desapontada, ainda agora mesmo, ao deparar com o seu rosto feliz, mas lhe juro que isso não durou mais do que um minuto, foi só enquanto não pensei. Sempre ajo e falo com mais sensibilidade quando me dão tempo para pensar. Creio que o mesmo se dá com o senhor. E, realmente, o restabelecimento dum filho meu não me daria mais satisfação do que o seu restabelecimento, príncipe; e caso não me esteja acreditando, a vergonha é para o senhor e não para mim. Este garoto malvado se compraz em brincadeiras de mau gosto como esta, à minha custa. Parece-me que ele é seu protégé. Se de fato é, eu o aviso desde já que uma bela manhã me negarei o prazer e a honra de continuar nossa amizade.
— Mas que foi que eu fiz? — perguntou Kólia. — Quanto mais eu lhe garantisse que o príncipe já estava quase bom, a senhora não haveria de querer acreditar em mim, porque lhe é muito mais interessante imaginá-lo em seu leito de morte.
— Veio para se demorar? — interrogou Lizavéta Prokófievna, dirigindo-se ao príncipe.
— Por todo o verão, e talvez um pouco mais.
— Veio sozinho, pois não? Ou está casado?
— Casado? Eu? — E o príncipe sorriu ante a simplicidade do escárnio.
— Não sei por que está rindo. Podia muito bem acontecer. Estive pensando nesta vila. Por que o senhor não foi ter conosco? Temos lugar de sobra. Mas seja como quis. Alugou dessa pessoa aí?... Dessa? — acrescentou, abaixando a voz, apontando Liébediev. — Por que é que ele vive dando pulinhos?
Nisto Vera apareceu, vindo lá da casa para a varanda e, como sempre, com o nenezinho no colo. Liébediev, que não parava em volta das cadeiras, completamente atarantado, sem saber o que fazer de si próprio e tampouco querendo ir embora, desesperadamente zonzo investiu logo contra a filha, gesticulando e a escorraçando da varanda; e, por distração, até batendo com o pé.
— Estará ele louco? — observou logo a sra. Epantchiná.
— Não, está mas...
— Bêbedo, decerto. Esta sua roda não é lá tão atraente assim — deixou escapar, depois de olhar de soslaio para as outras visitas. — Mas que bonita menina! Quem é?
— É Vera Lukiánovna, a filha aqui de Liébediev.
— Ah!... Ela é muito mimosa. Gostaria de conhecê-la.
Mal ouviu as palavras acolhedoras da sra. Epantchiná, Liébediev tratou logo de vir trazendo a filha, empurrando-a, para apresentá-la.
— Os meus filhos sem mãe! — ganiu, aproximando-se. — E esta criancinha de colo também é órfã; é irmã daquela, é a minha filha Liubóv... nascida do meu legítimo casamento com a minha defunta mulher Elena, que morreu, não faz seis meses, de parto, pela vontade do Altíssimo... Sim... ela substitui a mãe, para o pequerrucho, apesar de só ser irmã e não mais... não mais... não mais...
— E o senhor não passa dum maluco, se me permite! E por ora, chega. — Lizavéta Prokófievna se ia desmandando em sua indignação.
— Perfeitamente — concordou Liébediev, com uma curvatura respeitosa.
— Escute, sr. Liébediev, é verdade o que dizem por aí? Que o senhor interpreta o Apocalipse? — perguntou Agláia.
— Perfeitamente... Há mais de quinze anos.
— Já ouvi qualquer cousa a seu respeito. Ou foi nos jornais?
— Não, era um outro intérprete, um outro que já morreu. Eu sou o sucessor — disse Liébediev fora de si de tanto júbilo.
— Então fará o favor de interpretá-lo para mim, qualquer dia destes, já que somos vizinhos. O Apocalípse me é incompreensível.
— Devo preveni-la, Agláia Ivánovna, de que tudo isso é simples charlatanismo da parte dele. — O general Ívolguin pôs logo as cousas nos seus lugares; estava sentado ao lado de Agláia, latejando de vontade de entrar na conversa. — Naturalmente que nas férias se toleram disparates — prosseguiu — e certos divertimentos! E encarregar um tão extraordinário intruso da interpretação do Apocalipse é um divertimento como qualquer outro, e até mesmo uma diversão notavelmente hábil... Mas... vejo que a senhorita está me olhando com surpresa! General Ívolguin! Tenho a honra de apresentar-me. Muitas vezes a ergui no meu colo, Agláia Ivánovna.
— Muita satisfação. Já conheço Varvára Ardaliónovna e Nina Aleksándrovna — sussurrou Agláia, fazendo desesperados esforços para não cair na gargalhada.
Lizavéta Prokófievna ficou rubra. A tensão que se estava acumulando desde muito em seus nervos repentinamente achou uma saída. Ela não podia suportar o general Ívolguin, com quem já tivera relações outrora.
— O senhor está mentindo. Aliás, como sempre, bátiuchka. O senhor nunca a ergueu no colo — interrompeu-o ela com ar indignado.
— A senhora está esquecida. Já sim, mamãe, em Tver — asseverou logo Agláia. — Quando nós estávamos morando em Tver, eu tinha seis anos; lembro-me bem. Ele fez para mim um arco e uma flecha e me ensinou a atirar; eu até matei um pombo. O senhor se lembra de que nós matamos um pombo, juntos?
— E de que o senhor me trouxe um capacete feito de papelão e uma espada de pau? Eu também me lembro — fez Adelaída.
— É mesmo, estou me lembrando — interveio Aleksándra. — Até as duas brigaram por causa do pombinho morto. E ficaram de castigo uma em cada canto. Adelaída ficou no canto com o capacete na cabeça e a espada na mão.
Quando o general Ívolguin disse a Agláia que a tinha carregado ao colo, dissera isso sem nenhuma significação, apenas para encetar conversa e porque sempre iniciava uma conversa deste jeito com gente nova, quando queria estabelecer relações. Mas, desta vez aconteceu que estava dizendo a verdade, muito embora, como se deu no momento, tivesse esquecido. Foi só quando Agláia declarou que tinham matado um pombo juntos que a memória se avivou; então se recordou de tudo, minúcia por minúcia, segundo acontece com gente idosa, muitas vezes, ao relembrar qualquer cousa. Seria difícil dizer que é que haveria nessa reminiscência que pudesse produzir tão forte efeito no pobre general que estava, como de costume, um pouco bêbedo; mas o fato é que imediatamente ficou comovido.
— Lembro-me, lembro-me perfeitamente. Eu era capitão. A senhorita era uma bonequinha assim... Ah, Nina Aleksándrovna!... Gánia... Antigamente eu frequentava a casa de Iván Fiódorovitch!...
— E veja agora para o que deu! — atirou-lhe a sra. Epantchiná. — Então não bebeu ainda quanto quis, para que isso o afete tanto assim? E não se lembra quanto tem desgostado sua senhora! Em vez de olhar pelos filhos acabou indo parar numa prisão de sujeitos que não pagam! Deixe disso, bátiuchka; meta-se em qualquer canto, atrás duma porta, e chore a sua antiga inocência; e talvez Deus lhe perdoe. Vamos, vamos, deixe disso. Não há nada melhor para ajudar um homem a se emendar do que pensar no passado com saudade!
É desnecessário repetir que ela estava falando seriamente. O general Ívolguin, como todo beberrão, era muito sensível, e, como todos os bêbedos que caíam demasiado, sempre que se recordava dos tempos felizes ficava de beiço trêmulo. Obedeceu, levantou-se e se dirigiu humildemente para a porta. Lizavéta Prokófievna logo ficou com pena dele.
— Ardalión Aleksándrovitch, bom homem! — chamou-o. — Espere aí. Todos nós somos pecadores. Quando sentir a consciência mais aliviada venha ver-me. Sentaremos e falaremos sobre o passado. Quem sabe se não sou cinquenta vezes mais pecadora do que o senhor? Mas, por enquanto, até à vista; vá, de que lhe adianta ficar aí parado? — disse logo, receosa, ao vê-lo voltar.
— Deixe-o sozinho, é melhor — disse o príncipe, contendo Kólia que ia atrás do pai. — Se ele se desapontar ainda mais, todo este minuto será perdido para ele.
— É isso mesmo; deixe-o sozinho, por uma meia hora — apoiou Lizavéta Prokófievna.
— Estão vendo no que deu ter falado a verdade uma vez na vida? Resultou em pranto — ousou comentar Liébediev.
— Também é outro, o senhor aí, se não é mentira o que já ouvi a seu respeito, bátiuchka — disse Lizavéta Prokófievna, fazendo-o calar prontamente.
As relações mútuas das visitas pouco a pouco foram se mostrando. O príncipe era naturalmente sensível e apreciou, ao máximo, a simpatia demonstrada pela sra. Epantchiná e filhas e lhes disse que antes delas terem vindo já tencionava fazer-lhes uma visita aquele dia mesmo, apesar do seu estado ainda precário e do adiantado da hora. Lizavéta Prokófievna, reparando nas pessoas que o estavam visitando, observou que ainda lhe era possível cumprir essa intenção. Ptítsin, que era homem muito educado e cortês, prontamente se retirou para os cômodos de Liébediev, tendo até querido levar este consigo. Liébediev, por sua vez, prometeu ir logo. Vária, no entanto, entrara em conversa com as moças, e ali continuou. Tanto ela como Gánia tinham ficado mais à vontade com o desaparecimento do general. Gánia acabou se retirando, pouco depois de Ptítsin. Nos poucos minutos em que ficou nos fundos da varanda mantivera-se discreto e digno, nem sequer se desapontando com o ar intencional com que a sra. Epantchiná, por duas vezes, o examinara de alto a baixo. Quem quer que o tivesse conhecido antes havia certamente de notar que mudara muito. E isso punha Agláia mais à vontade.
— Quem saiu agora não foi Gavríl Ardaliónovitch? — perguntou ela, sem se dirigir propriamente a ninguém, interrompendo, com a sua pergunta, feita em voz alta, a conversa geral.
— Foi — respondeu o príncipe.
— Quase que não o conheci. Está muito mudado... Melhorou muito — disse Agláia.
— Felizmente — apoiou o príncipe, com sinceridade.
— Esteve bem doente — acrescentou Vária, em tom de alegre comiseração.
— Melhorou em quê? — perguntou Lizavéta Prokófievna, com muita raiva e ar escandalizado. — Que ideia! Não vejo em quê! Qual é a melhora que lhe notam?
— Não há nada comparável ao “pobre cavaleiro” — saiu-se, sem mais nem menos, Kólia, que estava ao lado da cadeira da sra. Epantchiná.
— É exatamente a minha opinião — disse o príncipe Chtch... e riu.
— E eu penso precisamente da mesma maneira — declarou solenemente Adelaída.
— “Pobre cavaleiro”? Qual? — perguntou a generala, olhando para todos eles, atarantada e em dúvida; vendo, porém, que Agláia tinha ficado vermelha, disse logo: — Alguma asneira, naturalmente. Que “pobre cavaleiro” é esse?
— Não é a primeira vez que esse fedelho, favorito da senhora, tem torcido perversamente as palavras alheias! — respondeu Agláia, com uma indignação altiva.
Em todas as explosões de raiva de Agláia (o que se dava muitas vezes) aparecia logo, apesar do feitio sério que ela tomava, qualquer cousa de infantil ou de colegial tão ingenuamente espetacular que era impossível deixar de rir ao olhá-la. Isso ainda a exacerbava mais, pois não podia compreender de que era que se riam e “como podiam e ousavam rir”. Suas irmãs e o príncipe Chtch... riam agora e o próprio príncipe Liév Nikoláievitch, embora também se tornando vermelho sem saber por quê. Kólia riu estrepitosamente, achando que tinha triunfado. Agláia, então, ficou seriamente zangada, o que redobrou a sua beleza. A confusão lhe assentava bem e quanto mais se zangava mais confusa ficava.
— Ele tem torcido perversamente muitas das suas palavras também! — acrescentou ela.
— Estou me baseando nas suas próprias exclamações! — disse Kólia. — Há mais ou menos um mês, a senhora folheava o Dom Quixote, quando disse textualmente que nada era comparável ao “pobre cavaleiro”. Não sei a quem se referia a senhora, se era a Dom Quixote ou a Evguénii Pávlovitch, ou qualquer outra pessoa; mas a senhora se referiu a alguém, e até bem demoradamente.
— O senhor está mais é se excedendo, rapazinho, com essas suas conjeturas! — ralhou Lizavéta Prokófievna, querendo contê-lo.
— Mas não sou eu só — teimava Kólia. — Todo o mundo disse e ainda está dizendo. Ora essa, o príncipe Chtch..., Adelaída Ivánovna e os demais declararam agora mesmo que ficavam a favor do “pobre cavaleiro”. Portanto deve haver um “pobre cavaleiro”. E realmente há; creio que se não fosse Adelaída Ivánovna nós já saberíamos há muito quem era o “pobre cavaleiro”.
— Eu? Que foi que eu fiz? — perguntou Adelaída, rindo.
— A senhora não quis pintar o retrato dele? Eis o que foi que a senhora fez! Naquela ocasião Agláia Ivánovna lhe suplicou que pintasse o retrato do “pobre cavaleiro” e lhe descreveu completamente como devia ser o quadro. Ela lhe explicou tudo. A senhora não pintou.
— Mas como haveria eu de pintar se, conforme lá diz o poema, esse “pobre cavaleiro”
... nem sequer,
Sempre o rosto escondido na viseira,
Ergue o olhar para um corpo de mulher?
Como então lhe hei de pintar o rosto? Só se pintar a viseira... do herói taciturno...
— Que negócio é esse de viseira? — perguntou, zangada, a generala, começando a desconfiar a que pessoa se referiam as filhas com a tal alcunha de “o pobre cavaleiro”. Decerto já a aplicavam havia alguns meses. Mas o que mais a afligia era que o príncipe Liév Nikoláievitch também estava começando a ficar enrubescido, sendo que acabou por fim tão sem jeito como um menino de dez anos ante zombarias de adultos.
— Bem, querem vocês parar com essa maluqueira, ou não? Expliquem já essa charada de “pobre cavaleiro”! É assim um segredo tão misterioso que não se possa vir a saber?
Mas todos continuaram a rir.
Por fim o príncipe Chtch... resolveu explicar, querendo esclarecer o mistério e mudar a conversa:
— O fato é o seguinte: existe um estranho poema russo, ou melhor, uma balada a respeito dum cavaleiro pobre. Trata-se dum trecho solto, sem começo nem fim. Ora, aconteceu estarmos nós um dia, há cousa dum mês, querendo descobrir, alegres da vida, como sucede depois do jantar, um assunto para o próximo quadro de Adelaída. É sabido como a família inteira anda sempre tentando achar assuntos para as telas de Adelaída. Conversa vai, conversa vem, nos ocorreu o tema do “pobre cavaleiro”. Já nem me recordo quem foi que se lembrou disso primeiro.
— Foi Agláia Ivánovna! — gritou Kólia.
— Talvez. Talvez tenha sido. Não me lembro — continuou o príncipe Chtch... — Alguns riram da ideia, outros acharam que não havia assunto melhor. Mas todos foram unânimes quanto a isto: que para pintar o “pobre cavaleiro” antes de mais nada era preciso achar uma cara para ele. Começamos pelas caras de todos os amigos e conhecidos. Mas nenhuma dava certo. E então desistimos da ideia. Não sei por que motivo Nikolái Ardaliónovitch se lembrou disso e trouxe à baila essa história. O que naquela ocasião tinha propósito, já agora não interessa.
— Trata-se pela certa de alguma asneira dele com intenção perversa! — declarou logo Lizavéta Prokófievna.
— Asneira? Pelo contrário: demonstração do mais profundo respeito! — aparteou Agláia de modo inteiramente inesperado e com voz grave e séria.
Tinha dominado já a sua emoção e estava completamente à vontade. E mais ainda, olhando-a, até se podia verificar, mediante certos indícios, que ela se sentia bastante satisfeita pelo fato de a brincadeira estar prosseguindo. E essa revulsão de sentimento se operou nela justamente à medida que o desapontamento crescente do príncipe se foi tornando visível para todos.
A generala investiu:
— Ainda agora vocês se riam de bobagens, e essa menina intervém e diz que se trata de cousa digna de respeito. Corja de malucos! Respeito de quê? Por quê? Digam logo que é que lhes incute tanto respeito!
Cada vez mais séria e grave, Agláia respondeu logo à pergunta desdenhosa da mãe:
— O mais profundo respeito, sim senhora, porque esse poema descreve nem mais nem menos um homem que é capaz dum ideal. E mais ainda: um homem que, uma vez deparando com esse ideal, acredita nele e por ele dá a sua vida, cegamente. Ora, isso nem sempre acontece nos nossos dias. O poema não diz exatamente qual seja o ideal do “pobre cavaleiro”, mas podemos inferir que seja alguma visão, alguma imagem de “pura beleza”. Vai daí, devido a essa amorosa devoção, o cavaleiro pôs um rosário em volta do pescoço, em vez do gorjal. É verdade que há uma divisa obscura, que não nos é explicada, naquelas letras A. N. B. gravadas no seu escudo...
Kólia corrigiu-a logo:
— A. M. D.!
— Se eu disse A. N. B., sei o motivo... — atalhou Agláia, zangando-se. — Evidentemente fica explícito que a esse pobre cavaleiro pouco se lhe dava quem fosse a sua dama e o que ela fazia. A ele lhe bastava tê-la escolhido e ter posto a sua fé em sua “pura beleza”, a que não cessou de render homenagem. E é nisto justamente que está o mérito. Mesmo que ela se tornasse, por exemplo, ladra, mais tarde, para ele o que importava era acreditar nela e estar sempre disposto a quebrar lanças por sua “pura beleza”. O poeta parece ter querido significar, numa impressionante figura, a concepção do amor platônico da cavalaria medieval, tal como era sentido por um leal e sublime cavaleiro. Naturalmente tudo isso é um ideal. No nosso pobre cavaleiro tal sentimento atinge o seu limite mais elevado no ascetismo. Deve-se admitir que ser capaz de tais sentimentos significa muita cousa e que eles produzem uma profunda impressão. Imensa, louvável sob qualquer ponto de vista por exemplo, em Dom Quixote. O “pobre cavaleiro” no fundo é o próprio Dom Quixote. Um Dom Quixote sério e não cômico. No começo eu não entendia e me ria dele, mas agora amo e respeito o “pobre cavaleiro”.
Foi com estas palavras que Agláia concluiu. Encarando-a, era difícil dizer se estava falando sério, ou pilheriando.
E a mãe comentou:
— Seja lá como for, não passa dum maluco. Ele, com as suas façanhas... Só disseste tolices, criatura, com essa tua lenga-lenga, e a meu ver isso não te fica bem. Pelo menos não são boas maneiras. Como é esse poema? Recita-o lá! Decerto o sabes de cor. Preciso ouvir. Sempre embirrei com versos; deles não sai nada que preste. Mas, pelo amor de Deus, dê a sua opinião, príncipe! Ajude-me! Pois não combinei, daquela vez, que nos ajudaríamos os dois a esclarecer cousas? — acrescentou ela, voltando-se para o príncipe Liév Nikoláievitch.
Mostrava-se bastante zangada. O príncipe tentou falar, mas se sentiu demasiado confuso. Agláia, no entanto, que já se excedera no seu discurso, não estava absolutamente embaraçada; muito pelo contrário, parecia radiante com o efeito produzido. Levantou-se logo, ainda grave e séria, atendendo ao pedido materno, como se outra cousa não quisesse agora senão recitar. E foi para o meio da varanda, bem defronte do príncipe, que continuava sentado na sua poltrona. Todos os olhares a acompanharam, com surpresa. O príncipe Chtch... as irmãs e a mãe de Agláia pareciam incomodados com essa brincadeira que já os preocupava. Era evidente que ela se comprazia com a expectativa, demorando bastante o prelúdio do recitativo. Lizavéta Prokófievna esteve a ponto de ordenar à filha que se sentasse. Bem no momento em que esta começou a declamar a célebre balada, outras duas visitas entraram da rua e se dirigiram à varanda. Eram o general e um jovem.
A entrada de ambos causou discreto alvoroço.
7.
O jovem que chegou com o general aparentava uns 28 anos, era alto e elegante, tinha um rosto bonito e inteligente e nos seus olhos grandes e negros havia uma expressão simpaticamente irônica. Agláia não se voltou para o olhar. Continuou a recitar os versos, persistindo em não fixar senão o príncipe e como que recitando só para ele. Mas os recém-chegados de certa forma interromperam a situação desagradável em que ele se achava. Vendo-os, ele levantou-se, curvou-se um pouco, lá da distância donde estava, para o general, fez sinal que não interrompesse a declamação, e se colocou por detrás da poltrona, aproveitando para ficar menos exposto. Depois, apoiando o braço no espaldar da poltrona, ficou à vontade para escutar a balada numa posição mais conveniente e menos ridícula do que antes. Lizavéta Prokófievna, por seu turno, duas vezes se voltou para os recém-chegados, categoricamente lhes fazendo sinal de que ficassem quietos. O príncipe se interessou muito por esse seu novo visitante, o jovem que estava com o general. Sabia que devia ser Evguénii Pávlovicht Rádomskii, de quem já ouvira falar tanto, tendo até pensado nele mais de uma vez. A única cousa de que se admirou foi estar essa pessoa em roupas civis, pois, pelo que ouvira, Evguénii Pávlovitch era militar. Um sorriso de afável ironia brincava nos lábios do jovem durante todo o tempo em que o poema era recitado, como se já soubesse alguma cousa a respeito da brincadeira do “pobre cavaleiro”.
“Quem sabe até se não foi ideia dele!”, pensou o príncipe.
Mas, quanto a Agláia, a cousa era muito outra. A afetação e a pompa com que começara a recitar já iam sendo substituídas por um modo sério e por uma profunda consciência do espírito e significado do poema. Dizia estrofe por estrofe com uma tão nobre simplicidade, que antes do fim da declamação não só tinha despertado a atenção geral como, pela interpretação do elevado espírito da balada, conseguira até justificar, por certo modo, a exagerada gravidade com que se havia postado no centro da varanda. Tal gravidade podia até ser tomada como consequência da profundidade do tema, ou como respeito à beleza dos versos que se propusera interpretar. Que fulgor o dos seus olhos! E um tremor quase imperceptível de deslumbramento duas vezes fulgiu no seu semblante admirável. Recitou:
Viveu outrora no seu burgo nobre
Um cavaleiro austero e taciturno
Cuja magnificência era ser pobre!
Como sempre, uma noite, após o turno
Pelas ermas ameias do castelo,
Se estirou no seu tálamo noturno
E, dormindo, sonhou sonho tão belo
— Oh radiosa visão de eucaristia!
Que artista ou poeta algum, em seu anelo
De interpretar o enigma que envolvia
Essa visão de uma tamanha essência,
Nunca o fará em cor ou verso, um dia!
Sublimando de vez sua existência,
Passa a adotar um teor extraordinário:
Se alguma tentação defronta, vence-a
Pois usa agora apenas um rosário
Ao invés do gorjal. E nem sequer,
Nas contingências deste mundo vário,
Lançando-se em batalha — onde as houver,
Sempre o rosto escondido na viseira,
Ergue o olhar para um corpo de mulher.
Com seu sangue, conforme a leal maneira
Estas três letras N. F. B.
Grava no escuro oval, com mão certeira.
Contra a Mourisma, em prol da sua fé,
Investe então com alma corajosa
Sempre que alguma pugna audaz se dê,
Bradando: “Lumen Coeli, Sancta Rosa!”
Eis a vida qual foi, deste Cruzado,
No Oriente rubro e na África pasmosa!
Já velho, regresse ao seu condado,
E, sem reconhecer o que era seu,
Envolto no marasmo do passado,
Um dia em solidão plena morreu...
Mais tarde, ao recordar aquele momento, o príncipe ficava sempre estupefato e atormentado por uma interrogação para a qual não achava resposta: como pudera um tão sincero e nobre sentimento estar associado com tal malícia tão indisfarçável e irônica? Da existência dessa zombaria não tinha ele dúvidas; compreendera isso muito bem e tinha em que se fundamentar. No decorrer da declamação, Agláia tomara a liberdade de mudar as iniciais A. M. D. para estas outras N. F. B. Lá que tivesse entendido mal, ou ouvido errado, não era possível (aliás mais tarde isso lhe foi provado). Em todo o caso, a atitude de Agláia — um gracejo, naturalmente, embora desapiedado e impensado — fora premeditada. Durante aquele mês, todo o mundo falou (e sempre rindo) do “pobre cavaleiro”. Ainda assim, conforme o príncipe se lembrou depois, Agláia pronunciara aquelas letras sem nenhum traço de mofa nem de escárnio, sem mesmo acentuá-las com ênfase a fim de demonstrar seu secreto significado. Pelo contrário, pronunciara aquelas letras com a mesma imutável gravidade, com uma tão inocente e ingênua simplicidade que se podia supor que tais iniciais estivessem na balada e impressas no livro. O príncipe sentiu-se atormentado por um mal-estar que o deprimiu.
Lizavéta Prokófievna, é claro, não percebeu nem compreendeu a troca das letras, nem a alusão nelas incluída. O general Epantchín só percebeu que estavam recitando um poema. Alguns dos ouvintes, porém, compreenderam e ficaram surpreendidos com o arrojo da intenção ante o sentido que nisso estava subentendido; mas ficaram calados e fingiram não ter reparado. Mas o príncipe estava pronto a apostar que Evguénii Pávlovitch não só compreendera, como estava tentando evidenciar que compreendera: o seu sorriso era demasiado zombeteiro.
— Que esplêndido! — elogiou a sra. Epantchiná, arrebatada pelo entusiasmo, logo que a declamação acabou. — De quem é esse poema?
— De Púchkin, mamãe — informou Adelaída. — Não nos envergonhe! Será possível?
— É de espantar que eu não seja mais ignorante ainda, com estas minhas filhas! — respondeu Lizavéta Prokófievna, amargamente. — Mas é uma desgraça! Logo que chegarmos a casa me mostrem esse poema de Púchkin.
— Creio que não temos lá nenhum Púchkin!
— Eu me recordo de haver visto dois volumes muito gastos rodando pelos cômodos! — acrescentou Aleksándra.
— Temos que mandar uma pessoa, Fiódor ou Aleksiéii, pelo primeiro trem, comprar um, na cidade. Será melhor mandar Aleksiéii. Agláia, vem cá me dar um beijo! Declamaste esplendidamente; mas se recitaste com sinceridade — acrescentou diminuindo o tom de voz — me entristeces; se quiseste gracejar com ele, não posso deixar de censurar teus sentimentos e até seria melhor que tivesses permanecido calada. Estás compreendendo bem? Podes ir, criatura. E ainda tenho mais alguma cousa a te dizer daqui a pouco, caso nos eternizemos nesta visitinha.
Neste ínterim o príncipe cumprimentava o general Epantchín que por sua vez lhe apresentava Evguénii Pávlovitch Rádomskii.
— Peguei-o pelo caminho, ainda na estação. Ao saber que eu vinha para cá e que todos estavam aqui...
— E soube também que o senhor se encontrava em Pávlovsk — atalhou Evguénii Pávlovitch. — Então, como desde muito tenho pensado obter não somente uma apresentação mas também a sua amizade, não quis perder este ensejo. O senhor está passando bem? Disseram-me que...
— Estou ótimo, e sinto muito prazer em conhecê-lo. Já me falaram muito a seu respeito e já conversei diversas vezes sobre o senhor com o príncipe Chtch... — respondeu o príncipe, estendendo-lhe a mão.
Cortesias recíprocas foram trocadas. Apertaram a mão um do outro e se olharam bem. Não tardou que a conversa se generalizasse. Míchkin notou (dera agora para notar tudo, de modo rápido e vivo; e possivelmente notava até mesmo cousas que nem existiam) que os trajes civis de Evguénii Pávlovitch haviam despertado a curiosidade geral, e até surpresa; tanto que logo as restantes impressões e novidades ficaram esquecidas e apagadas. Esse pasmo até levava a conjeturar que tal mudança implicava em algo muito importante. Adelaída e Aleksándra examinavam Evguénii Pávlovitch com certa perplexidade. O príncipe Chtch..., seu parente, mostrava-se um pouco preocupado e o general falava com certa emoção contida. Agláia foi a única que observou Evguénii Pávlovitch sem se alterar, durante alguns instantes, embora demonstrando curiosidade, também ela; parecia apenas decifrar qual dos trajes lhe ia melhor, se o civil, se o militar. E logo se virou, não prestando mais atenção. Lizavéta Prokófievna tampouco se abalançou em fazer comentários ou perguntas, não obstante ser ela quem decerto reparara logo na transformação. Pareceu ao príncipe que ela implicava um pouco com Evguénii Pávlovitch.
Como a interpretar a impressão geral, Iván Fiódorovitch exclamava com alvoroço:
— Até me assustei! Palavra, que fiquei surpreendido quando dei com esse nosso amigo vestido assim em Petersburgo. Cheguei a acreditar que não fosse ele. E por que assim tão depressa, eis o enigma! Diz ele que não se devem quebrar cadeiras!1
Pela conversa que se seguiu o príncipe ficou sabendo que Evguénii Pávlovitch vinha participando desde muito tempo a sua decisão de deixar temporariamente o serviço do exército; mas falava disso sempre com tanta leviandade que ninguém tomara a sério tais palavras. Era seu feitio falar tudo com ar brincalhão, mesmo quando os assuntos eram sérios; de forma que era impossível acreditar nele, o que talvez lhe conviesse.
— Será apenas por algum tempo, por alguns meses. Um ano, no máximo — ria Rádomskii.
— Mas por que isso? Não chego a compreender. Principalmente você que desfrutava uma situação de primeira ordem — continuou argumentando o general Epantchín.
— E onde arranjaria eu tempo para visitar os meus domínios, senão assim? O senhor mesmo não me aconselhou a ir ver direito as minhas propriedades? E mesmo pretendo dar um pulo até ao estrangeiro...
E logo o assunto foi cortado. Ainda assim uma excessiva e predominante inquietação, cujo motivo o príncipe não atinava, parecia pairar na atmosfera.
— Então o “pobre cavaleiro” ainda continuava em cena? — perguntou Evguénii Pávlovitch acercando-se de Agláia.
E, para maior atarantamento do príncipe, esta o olhou admirada e altiva, como a lhe dar a entender que o “pobre cavaleiro” era um assunto com que ele nada tinha que ver, não chegando ela, portanto, a compreender por que lhe fazia uma tal pergunta. Enquanto isso, Kólia continuava os seus debates com Lizavéta Prokófievna:
— Mas é muito tarde, muitíssimo tarde para mandar alguém à cidade a estas horas. Pela milésima vez multiplicada por três lhe faço ver que é demasiado tarde para mandar comprar na cidade um volume de Púchkin.
— Realmente já está muito tarde para ir à cidade agora — interveio Evguénii Pávlovitch, afastando-se de Agláia. — A estas horas as lojas em Petersburgo já devem estar fechadas. Já passa das oito — declarou, consultando o relógio.
— Se a senhora passou até agora sem este livro por que não há de poder esperar por amanhã? — fez Adelaída.
— E nem é chique pessoas da melhor sociedade estarem a se interessar por literatura — acrescentou Kólia. — Pergunte só a Evguénii Pávlovitch. É muito mais correto viver refestelado num cabriolé amarelo, de rodas encarnadas.
— Você está dando para falar por símbolos, outra vez, Kólia! — observou Adelaída.
— Mas ele só sabe falar charadisticamente — cascalhou Evguénii Pávlovitch. — Anda procurando em revistas frases inteiras. O meu prazer de ouvir a conversa de Nikolái Ardaliónovitch vem de longe, mas desta vez não se trata de nenhuma charada. Nikolái Ardaliónovitch está aludindo em cheio ao meu char-à-banc amarelo de rodas vermelhas. Mas já o troquei; você está atrasado.
O príncipe escutava Rádomskii falar. E verificava quanto as suas maneiras eram excelentes, modestas e vivazes. Estava particularmente satisfeito em ouvi-lo responder com perfeita equanimidade e bonomia às troças de Kólia.
— Que é isso? — perguntou Lizavéta Prokófievna, dirigindo-se a Vera, a filha de Liébediev que estava parada diante dela com alguns volumes grandes, quase novos e finamente encadernados em suas mãos.
— Isto é Púchkin — disse Vera. — O nosso Púchkin. Papai me disse que viesse oferecer à senhora.
— Como é isso? Como pode ser isso? — disse Lizavéta Prokófievna, espantada.
— Não como um presente! Não se trata de presente. Eu não tomaria tal liberdade! — E Liébediev surgiu, empurrando a filha. — A preço de custo. Trata-se do nosso Púchkin para uso da família. Trata-se da edição Annénkov, que já não se compra hoje em dia; a preço de custo! Ofereço com veneração, e só o quero vender para satisfazer à insigne impaciência dos honorabilíssimos sentimentos literários de Vossa Excelência.
— Bem, se é que o vende, obrigada. E fique desde já sabendo que não terá prejuízo. Peço-lhe, porém, uma cousa só; que não represente o maluco, aqui, por favor. Já me disseram que é muito lido, mas a nossa conversa fica para outro dia. Irá levá-los, pessoalmente, não é?
— Com veneração e... o maior respeito! — careteou Liébediev, com extraordinário júbilo, tomando os livros das mãos da filha.
— Está bem. Veja lá, não vá perdê-los. Pegue-os; fico com eles, mesmo sem “o maior respeito”. Mas somente com uma condição: a de só receber sua visita na porta, o que não quer dizer tampouco que seja hoje — acrescentou ela examinando-o cuidadosamente. — É melhor até mandar sua filha em seu lugar. Mande-a logo mais. Vera, de você eu gosto, está ouvindo?
Vera, todavia, já estava falando com o pai a propósito de um outro assunto.
— Por que é que o senhor, papai, não avisa ao príncipe que aquela gente está aí, querendo falar com ele? Se o senhor demora eles acabam entrando à força. Escute o escarcéu que estão fazendo! Liév Nikoláievitch — e agora se aproximara do príncipe — chegaram quatro homens que querem falar com o senhor. Já vieram há muito tempo, estão furiosos e papai não os quer deixar vir aqui.
Liébediev explicou, gesticulando muito:
— O filho de Pavlíchtchev! O filho de Pavlíchtchev com mais uns outros! Não prestam para nada! Não merecem vir aqui para estorvar. Não vale a pena, príncipe, lhes dar atenção. E nem fica bem o senhor se incomodar por causa de um tal canalha, ilustríssimo príncipe. Não prestam para nada...
— O filho de Pavlíchtchev está aí? Oh, meu Deus! — exclamou o príncipe sobremodo desconcertado. — Ah, sim. Você sabe, porém, que... já pedi a Gavríl Ardaliónovitch que trate do caso desse moço. E ainda agora Gavríl Ardalionóvitch me disse que...
Nisto apareceu Gánia, vindo do pavilhão para a varanda, acompanhado por Ptítsin. Dentro do pavilhão havia rumores de altercação, ruídos esses que logo foram escutados na sala contígua, como se pessoas estivessem se aproximando. E a voz do general Ívolguin parecia querer dominar as outras. Kólia correu lá para dentro.
— Ora aí está uma cousa pela qual me interesso — disse alto Evguénii Pávlovitch.
“Então este senhor aqui está a par do que se trata”, pensou o príncipe.
— Um filho de Pavlíchtchev?... Qual filho de Pavlíchtchev? — perguntou admirado o general Iván Fiódorovitch, olhando para o grupo com curiosidade e logo percebendo pelo rosto de todos, com surpresa, que ele era o único que ignorava essa nova revelação.
De fato a excitação e a expectativa eram gerais. O príncipe ficou profundamente espantado que um caso assim tão pessoal despertasse tamanho interesse da parte de todos.
— Aproveite, príncipe, e ponha logo um ponto final nisso, já, o senhor mesmo. — Era Agláia quem falava assim, levantando-se na direção do príncipe, com uma seriedade muito particular. — E consinta que sejamos suas testemunhas. Estão ensaiando atirar-lhe lama, príncipe. Deve defender-se de modo triunfante. E saiba que ficarei contente se o fizer.
A sra. Epantchiná corroborou:
— E eu também. Quero que essa reivindicação enervante tenha um remate categórico. Trate-os como merecem ser tratados, príncipe. Não os poupe! Essa história anda a pôr zoada nos meus ouvidos e já ando com a paciência em pandarecos, por sua causa. Sem contar, ainda por cima, que deve ser interessante ver a cara que eles têm. Faça-os fugir e nós continuaremos onde estamos. Agláia teve uma boa ideia. Já ouviu referências a essa história, também príncipe? — Desta vez se dirigia ao príncipe Chtch...
— Naturalmente que já. Foi em sua casa, até. Estou com muita curiosidade de ver esses rapazes — respondeu o príncipe Chtch... — São o que por aí se chama de niilistas, não é verdade?
— Não, alteza. Não são propriamente dos tais niilistas — explicou Liébediev dando um passo à frente, muito irrequieto. — Disse-me o meu sobrinho que estes tais já ultrapassaram de muito o niilismo. Trata-se duma classe diferente. E a senhora se equivoca, Excelência, se cuida que os humilhará com sua veneranda presença. Eles não sabem o que seja inibição perante quem quer que defrontem. Longe disso. Os niilistas no mais das vezes sabem onde têm o nariz e são mesmo gente culta; mas estes tais os ultrapassam de muito porque antes de tudo são homens práticos, de negócios... Estes aqui fazem parte de uma espécie de dissidentes do niilismo, não lhes seguem a linha, adotam uma variante, uma espécie de viés, por tradição oral; não se manifestam através de artigos de jornais e sim por tarefas diretas, ativas. Não é uma questão, por exemplo, da irracionabilidade de Púchkin ou de qualquer outro, nem da necessidade de desarticular a Rússia toda, não. O que eles pregam e exigem é o direito que uma pessoa tem, caso deseje deveras uma cousa, de não se deter perante quaisquer obstáculos, mesmo que seja preciso liquidar com meia dúzia de indivíduos para obter uma finalidade. Seja lá como for, príncipe, eu o aconselharia a não...
Mas o príncipe, já tinha ido abrir a porta para eles, dizendo enquanto isso, a sorrir:
— Você os está caluniando, Liébediev. Vejo que seu sobrinho influenciou muito os seus sentimentos. Não acredite nele, Lizavéta Prokófievna. Posso assegurar-lhe que isso de Górskii e Danilóv são meras exceções, e que estes rapazes... estão apenas... equivocados. Preferia não recebê-los aqui, diante de outras pessoas. Desculpe-me Lizavéta Prokófievna. Deixá-los-ei entrar apenas para que a senhora os veja; depois, passarei para a sala com eles. Entrem, senhores!
Afligia-o ainda um outro pensamento, e bem desagradável: não teria porventura alguém arranjado de antemão tal encontro para essa hora e na presença de toda essa gente, que assim testemunharia um espetáculo com propensões mais de vergonha e derrota do que de triunfo? Mas logo ficou triste por lhe vir ao pensamento uma tão “monstruosa e perversa desconfiança”. Morreria de pejo se alguém descobrisse que uma tal ideia fulgurara em sua mente. No momento em que os visitantes entraram, logo tendeu a acreditar que o seu senso moral estava muito abaixo do nível dos recém-vindos.
Entraram cinco pessoas: quatro visitantes e o general Ívolguin, este então num estado de grande nervosismo e violenta loquacidade. O príncipe pensou: “O general decerto está do meu lado.” E sorriu. Kólia esgueirava-se por entre eles, falando muito inflamado com Ippolít, que fazia parte do grupo. E, escutando, Ippolít arreganhava os dentes.
O príncipe os fez sentar. Eram todos muito jovens, meros adolescentes, de maneira que tal visita, o assunto e a atenção que lhes estava sendo dispensada, tudo tomava deveras um ar de causa extravagante. Iván Fiódorovitch, por exemplo, que nada sabia ainda a respeito dessa nova revelação e nem a podia compreender, ficou muito indignado quando viu que se tratava de gente assim tão nova. Se o não contivesse a impetuosidade inconcebível de sua mulher a favor dos negócios particulares do príncipe, o general teria lavrado o seu protesto, retirando-se. Todavia se deixou ficar, parte por curiosidade, parte por cavalheirismo, esperando ajudar o príncipe ou, no mínimo, vir a ser útil no exercício da autoridade que emanava de sua pessoa e de sua condição. Mas a profunda saudação que o general Ívolguin lhe fez de longe o pôs de novo sobre brasas. Amarrou a cara e resolveu taxativamente se manter calado.
Se três do grupo eram bem jovens, o quarto porém já era homem perto dos trinta anos. Tratava-se do tenente reformado que fizera parte do bando de Rogójin, o tal campeão de boxe “que nos seus bons tempos não dava aos mendigos nunca menos de 15 rublos a cada um”. Adivinhava-se logo que viera com os outros como um amigo “persuasivo” e para, caso necessário, garanti-los. O primeiro e o mais importante dos restantes era um jovem a quem fora dada a designação de “o filho de Pavlíchtchev”, muito embora se apresentasse com o nome de Antíp Burdóvskii. Era um rapaz de roupas sujas e comuns. As mangas do seu casaco brilhavam como dois espelhos. O colete puído estava abotoado acima da junção das clavículas, tapando de todo a camisa; trazia ao pescoço uma écharpe de seda preta incrivelmente ensebada e mais torcida do que uma corda. Mãos encardidas. Não era feio e o rosto, conquanto marcado de espinhas, entremostrava, se é que assim se pode dizer, um ar de insolente inocência. Teria uns 22 anos, era magro e de estatura regular. Não havia um traço de escárnio nem de introspecção na sua fisionomia; nada, a não ser uma visível convicção dos seus próprios direitos e ao mesmo tempo algo como uma estranha e permanente vontade de ser e de se sentir insultado. Entrara acompanhado pelo sobrinho de Liébediev, já conhecido do leitor, e por Ippolít, e vinha falando com excitação e depressa; dava a impressão de gaguejar, percebendo-se que pronunciava as palavras com dificuldade e precipitação, dando às sílabas um sotaque que parecia de estrangeiro; mas era russo legítimo. Ippolít ainda era mais jovem do que os demais; devia andar pelos 17 ou 18 anos, tinha uma expressão inteligente mas irritada e apresentava evidentes sinais de doença. Magro como um esqueleto, pálido e amarelo como um círio, olhos brilhantes como brasas; nas bochechas chupadas, havia de cada lado uma mancha vermelha típica da tuberculose. De fato, tossia sem parar, a mínima palavra e o menor hausto o pondo sufocado. Devia estar tuberculoso já em terceiro grau. Dir-se-ia que não tinha vida para mais de umas três semanas. Tão cansado se sentia que logo se atirou a uma cadeira, diante de todos. Os outros visitantes ficaram um tanto cerimoniosos e mesmo confusos, mal acabaram de aparecer na varanda. Faziam tudo, ainda assim, para assumir um ar importante e se via bem que temiam não aguentar até ao fim essa dignidade que contrastava tanto com a fama do desprezo que manifestavam pelas trivialidades do mundo e pelas convenções, já que só consideravam uma cousa: os seus interesses.
E eis que cada qual se apresentou, sucessivamente.
— Antíp Burdóvskii — pronunciou “o filho de Pavlíchtchev”, depressa, como a evitar que a língua se travasse.
— Vladímir Doktorénko — articulou clara e distintamente o sobrinho de Liébediev, como alardeando o fato de possuir tal nome.
— Keller — disse o tenente reformado.
— Ippolít Tieriéntiev — sibilou o último do grupo, com uma inesperada voz de falsete.
Um por um, eles finalmente se sentaram nas cadeiras vagas existentes perto do príncipe e, tendo declarado seus nomes, deram em rodar nas mãos os gorros a fim de reforçar suas atitudes. Parecia que iam falar, mas permaneceram calados, à espera de qualquer cousa. Mas aquele silêncio tinha algo de desafio, como dando a entender que “não, meu caro, está muito enganado se pensa que desistimos”. Bastaria uma pessoa articular algumas palavras a título de prólogo querendo ajudá-los, para que desandassem a falar ao mesmo tempo, atrapalhando-se uns aos outros.
Nota
1 A expressão “quebrar cadeiras” foi empregada por Gógol na peça O inspetor-geral. Um professor de História é censurado por se exaltar a ponto de “quebrar cadeiras” quando fala de Alexandre o Grande. Assim, quando se quer exprimir com despropositado dispêndio de energia, emprega-se tal expressão. (N. do T.)
8.
Foi o príncipe quem rompeu o silêncio:
— Eu não esperava por nenhum dos senhores. Tenho estado doente. Deve haver um mês solicitei a Gavríl Ardaliónovitch (e logo se voltou para Antíp Burdóvskii), conforme fiz saber especialmente ao senhor, que cuidasse do seu caso. Não quero dar a entender com isto que me oponho a uma explicação pessoal. Mas o senhor e os seus companheiros devem concordar comigo que numa ocasião destas, com visitas que aqui estão... Bem. Sugiro que passemos para uma das salas, caso desejem ainda assim ter um colóquio comigo. Estou com pessoas amigas, aqui, e...
— Bem vemos que amigos não lhe faltam — atalhou o sobrinho de Liébediev em tom de provocação, conquanto sem ousar erguer a voz — mas permite que eu faça um reparo? É o seguinte: o senhor nos devia ter tratado com mais um pouco de consideração e não nos ter feito esperar duas horas na sua antecâmara.
— O mesmo digo eu... Nem parece educação de príncipe... Afinal de contas... É o senhor porventura algum general?... Mas não sou seu criado! E... e... eu... e... — balbuciava Antíp Burdóvskii aos arrancos, excitadíssimo, os beiços trêmulos, a raiva lhe entrecortando ainda mais as palavras. Falando, parecia que estava explodindo ou se rasgando. Acabou por se atrapalhar tanto que no fim de umas quatro ou cinco elocuções já ninguém o entendia direito.
— Pois se o homem é príncipe, rapazes! — advertiu-os por escárnio Ippolít com seu timbre de falsete.
— Se eu fosse tratado assim — garantiu o campeão de boxe — ou melhor, se a cousa fosse diretamente comigo, eu, como um homem de honra... Ainda bem que o caso não é comigo, vim só acompanhar ali o Burdóvskii...
— Senhores, somente ainda agora, não há sequer minutos, foi que vim a saber que estavam aqui — reiterou-lhes o príncipe.
— Não temos medo, príncipe, dos seus amigos, quaisquer que sejam eles, pois estamos no nosso direito — declarou outra vez o sobrinho de Liébediev.
— E que direito tinha o senhor, deixe que lhe pergunte — tornou a guinchar Ippolít, cada vez mais excitado — de submeter o caso de Burdóvskii ao julgamento de seus amigos? Está mais que claro de antemão qual possa ser a opinião de seus amigos!
O príncipe conseguiu uma brecha:
— Caso o senhor não queira falar aqui, sr. Burdóvskii, convido-o a passar para uma das salas. E torno a repetir que foi precisamente ainda agora mesmo que vim a saber que estavam aí...
— Mas o senhor... não tem o direito... não tem o direito... o direito! Por que chamou seus amigos?... Por que... se cercou deles?... — gaguejou outra vez Burdóvskii encarando-o de modo ao mesmo tempo rude e desconfiado. E, quanto mais desconfiava daquelas presenças, mais se acalorava. — O senhor... não tem... esse di... di... direito!
Uma vez pronunciadas estas palavras aos repelões, calou abruptamente, como se o acometesse uma súbita inibição. Fixando os olhos de míope, uns olhos salientes e injetados de sangue, em Míchkin, ficou como que hirto, numa indignação muda, com o corpo em ângulo para a frente. À vista disso o próprio príncipe, atarantado, não respondeu nada, ficando a contemplá-lo muito pasmo, sem prosseguir.
Foi então que Lizavéta Prokófievna lhe disse, sem nenhuma aparente relação com aquela conjuntura:
— Escute! Olhe, Liév Nikoláievitch! Leia isto aqui. Há de interessá-lo.
E lhe estendeu logo um semanário humorístico, mostrando um trecho com o dedo. É que, mal haviam aquelas visitas sido introduzidas, Liébediev dera uns pulinhos de lado até chegar perto de Lizavéta Prokófievna (de quem andava procurando cair em boas graças) e sem dizer nada extraíra do bolso lateral do casaco aquele jornaleco, que abriu diante dos olhos dela mostrando bem um trecho marcado a lápis de cor. Os poucos períodos que Lizavéta Prokófievna teve tempo de ler, além de surpreendê-la, emocionaram-na fortemente.
O príncipe vacilou:
— Em vez de ler isso agora diante de todos... não seria melhor eu ler sozinho, logo mais... depois?
— Não, não! Deve ser lido alto. Leia você, Kólia!
E arrancando impacientemente o pasquim das mãos do príncipe, quase sem lhe haver dado tempo de o segurar, o entregou a Kólia.
— Bem alto, para que todos ouçam!
Lizavéta Prokófievna era uma criatura impulsiva e não havia quem lhe pudesse tolher os ímpetos. Em uma decisão lhe vindo, não tornava a refletir, levantava todas as âncoras e zarpava para o alto mar, pouco se importando com o tempo. Iván Fiódorovitch remexeu-se, inquieto. Imediatamente todos ficaram perplexos, aguardando. Kólia segurou o jornal e começou a ler alto o trecho que Liébediev, num arremesso, veio mostrar qual era.
FILHOS DE PROLETÁRIOS E REBENTOS DE NOBRES OU
EPISÓDIOS DE UMA ESPOLIAÇÃO DE HOJE E DE SEMPRE
PROGRESSO! REFORMA! JUSTIÇA!
“Coisas bem estranhas se passam na nossa chamada Santa Rússia, nesta era de reformas e de grandes empresas, era de movimentos nacionais e de centenas de milhões de rublos drenados para o exterior, anualmente, era do encorajamento do comércio e da paralisação da indústria, etc., etc., já que nem é possível enumerar tudo, senhores. Portanto — vamos direto ao fato. Eis aqui uma especiosa anedota acerca dum rebento da nossa decadente nobreza (De Profundis!), um dos tais rebentos cujos avós se arruinaram na roleta, cujos pais se viram obrigados a servir como aspirantes e porta-bandeiras no exército e que, via de regra, morrem nas vésperas de ser denunciados pelo uso indébito dos dinheiros públicos, ao passo que os tais rebentos, isto é, os netos, como o herói da nossa história, ou crescem idiotas, ou se complicam em casos criminosos, sendo aliás absolvidos pelo júri que confia e acredita que se emendarão, ou então acabam perpetrando uma dessas burlas que fazem pasmar o público e desgraçam ainda mais esta nossa época já tão degradada. O rebento a que nos referimos, usando polainas como um forasteiro e tremendo de frio dentro duma capa sem forro, chegou a uns seis meses a esta nossa Rússia, vindo da Suíça, onde estivera em tratamento por causa duma idiotia (sic!). Cumpre aqui confessar que era um camarada de sorte e a tal ponto que — sem nada dizer quanto à interessante moléstia que o obrigou a se submeter a um tratamento na Suíça (imaginem lá se existe algum tratamento para a idiotia!) — poderia servir como ilustração do provérbio russo que diz: Isso de sorte é só para certa casta de gente! Deixado criança ainda com a morte do pai — consta ter este sido um tenente que morreu quando estava para ser julgado pelo repentino desaparecimento do dinheiro todo da companhia, vulgar peripécia ou consequência de jogo de cartas, agravado ainda por cima pelo uso excessivo de cnute no lombo dos seus subordinados (decerto os senhores se lembram ainda como isso era nos velhos tempos!) — foi o nosso baronete pegado e educado pela caridade de um riquíssimo latifundiário russo. Esse latifundiário russo — que aqui chamaremos P. — era o amo ou o senhor de quatro mil almas. (Sim, dispunha de quatro mil servos! Compreendem, senhores, o que isso significa? Eu não chego a aquilatar, tenho que ir a um dicionário ver o que quer dizer isso, porque essas cousas de outrora já não me entram no bestunto!) Tratava-se muito provavelmente dum desses mandriões desocupados que malbaratam a existência no estrangeiro, o verão nas estações de águas, o inverno no Château des Fleurs de Paris, sítios esses onde, no transcorrer de seus dias, deixam somas incríveis. Pode-se dizer com segurança que pelo menos um terço do tributo pago outrora pelos servos ia direitinho para as algibeiras do proprietário do Cháteau des Fleurs de Paris (que sujeito afortunado!). Assim pois pôde o caridoso e disponível P. tratar do fidalgote como autêntico príncipe; contratou tutores, governantas (decerto bem bonitas) trazidas por ele pessoalmente de Paris. Mas o último rebento da nobre mansão era idiota. De nada valeu no caso a interferência de governantas oriundas do Château des Fleurs. Aos vinte anos o tal rebento não aprendera língua nenhuma, nem mesmo a sua nativa língua russa; quanto a esta última, em todo o caso isso ainda é desculpável. Por fim deu na veneta do feliz senhor de servos, P., que o idiota talvez recuperasse o juízo na Suíça. O ricaço imaginava que até a inteligência podia ser comprada, tanto mais na Suíça! Cinco anos entre as geleiras passou ele, sob os cuidados dum doutor célebre, nisto sendo gastos muitos milhares. O idiota, é claro, não deixou de continuar idiotíssimo, mas pelo menos se tornou um ser humano, o que vale pouco, está-se vendo. P. morreu de repente, sem deixar testamento e com os negócios, como era de esperar, desorganizados. Irromperam inúmeros herdeiros vorazes que pouco se importaram com a tradição de latifundiários tomarem à sua conta, por vezo de caridade, o tratamento de rebentos aristocráticos na Suíça, por causa de idiotia. O rebento, conquanto imbecil, lá deu um jeito de enganar o seu médico obtendo continuar a ser tratado grátis por mais dois anos, conforme nos atestaram, escondendo a notícia da morte de seu benfeitor. Mas o médico não era assim tão cretino como os seus clientes. Alarmado com a interrupção do encaixe cambial e principalmente com o apetite daquele paspalhão de vinte e cinco anos, abotoou-lhe umas polainas, presenteou-o com uma capa esburacada e caritativamente o recambiou de terceira classe nach Russland, desembaraçando-se do gajo. A sorte pareceu dar as costas ao nosso herói. Mas qual o quê! O fado que mata de fome províncias inteiras arremessou todas as suas dádivas sobre este aristocrata, nisso imitando aquela nuvem da fábula de Krilóv que passou intacta por sobre os campos ressecados e foi chover em cima do oceano. Quase no momento exato de sua chegada a Petersburgo, um parente de sua mãe (pertencente sem dúvida a uma família de comerciantes) deu com o rabo na cerca, isto é... em Moscou! Um celibatário, negociante da velha guarda e ‘velho crente’, que deixou uma fortuna redonda de vários milhões em caixa forte. (Se ao menos fosse para mim e para os caros leitores!) E tudo foi parar, sem demandas, nas mãos do nosso rebento, aquele tal baronete que se fora curar de imbecilidade na Suíça! Bem, isso agora era uma toada mais fina! Uma chusma de amigos e conhecidos se ajuntou em volta do nosso barão de polainas que perseguia uma célebre beldade de fácil virtude. Melhorou as relações e, acima de tudo, era perseguido por perfeitos bandos de jovens donzelas esfomeadas e sedentas de matrimônio legítimo. E, com efeito, que poderia haver de melhor?! Um aristocrata, um milionário e um idiota... todas as qualidades juntas duma só vez, um esposo que não se encontraria assim sem mais aquela, mesmo procurado com uma lanterna de Diógenes!”
— Isto... isto ultrapassa a minha tolerância — bradou Iván Fiódorovitch, subindo ao cúmulo da indignação.
— Pare com isso, Kólia! — gritou o príncipe com voz suplicante. Ouviram-se exclamações.
— Leia! Leia, haja o que houver! — ordenou Lizavéta Prokófievna, evidentemente fazendo um desesperado esforço para continuar se contendo. — Príncipe, se o senhor faz parar a leitura, nós brigamos!
Não havia outra solução. Kólia, inflamado, rubro, agitado, prosseguiu na leitura, com voz perturbada.
“Mas enquanto o nosso milionário feito às pressas flutuava, por assim dizer, no empíreo, uma nova revelação veio à cena. Certa manhã um visitante surgiu, com uma fisionomia serena, vestido modestamente, mas um homem de bem, evidentemente de tendências progressistas. Numa linguagem cortês mas digna e sensata, em breves palavras lhe explicou a razão da sua visita. Tratava-se dum notável advogado. Recebera instruções dum certo moço e viera a seu mando. Este moço era, nem mais nem menos, o filho do falecido P., apesar de usar um outro nome. O libertino P. tinha, em sua mocidade, seduzido uma moça virtuosa, serva doméstica, mas de educação europeia (aproveitando-se, sem dúvida, daqueles direitos senhoriais dos tempos de servidão) e notando a próxima e inevitável consequência dessa ligação, se apressou em lhe arranjar, como marido, um certo homem honrado e de caráter que se ocupava em comércio e outros serviços, e que, havia muito, se apaixonara pela moça. Tratou logo o patrão de ajudar o jovem casal. Mas tal ajuda, dado o caráter nobre do marido, logo foi suspensa. O tempo passou e o barine pouco a pouco esqueceu a moça e o filho que ela tivera dele, vindo depois, como já é sabido, a morrer sem deixar nada explícito quanto a esse filho. Enquanto isso, esse seu filho, que crescia sob um outro nome, visto ter nascido depois dum casamento legítimo, tendo sido adotado devido ao honorabilíssimo caráter do esposo de sua mãe, esposo esse que, por sua vez, também veio a falecer, mais ou menos nesse mesmo tempo, se viu à mercê de seu próprio fado, com a mãe doente, de cama, padecendo, e isso numa das mais afastadas províncias da Rússia. Ganhava a sua vida na capital, com o seu trabalho honrado de todos os dias, dando aulas em casas de famílias de negociantes. E, desta maneira, se foi aguentando, primeiramente na escola, e depois frequentando cursos de leitura proveitosa, tendo em mira o seu futuro adiantamento. Mas o que é que se pode ganhar dando aulas a 10 copeques por hora a meia dúzia de pobres, e ainda por cima com a progenitora de cama, inválida, a sustentar e cuja morte afinal de contas, lá numa remota província, em nada lhe alterava a situação? E eis que se levanta, agora, a questão: qual devia ser, para o nosso pobre rebento, a justa decisão a tomar? Com toda a certeza o leitor esperaria que ele dissesse a si mesmo: ‘Gozei toda a minha vida das mercês de P., algumas dezenas de milhares de rublos seguiram para a Suíça, por conta de minha educação, de minhas governantas e do meu tratamento como imbecil. E agora nado eu nos meus milhões, ao passo que o nobre filho de P. está gastando os seus altos talentos em dar lições, sem ser culpado do desregramento de seu libidinoso pai que o esqueceu. Tudo quanto foi gasto comigo devia ser gasto com ele. As enormes somas despendidas comigo, não são, nem eram, na realidade, minhas. O que houve foi um engano da fortuna; essas somas deviam ter ido para o filho de P., deviam ter sido gastas em benefício dele, e não no meu, como foi feito pelo fantástico capricho do frívolo e desmemoriado P. Se, porém, eu fosse nobre, delicado e justo, devia entregar metade da minha fortuna ao filho dele; mas, como antes de mais nada eu sou esperto, e estou mais do que farto de saber que não pode haver demanda judicial, absolutamente não darei a ele a metade dos meus milhões. Em todo o caso, seria vil e vergonhoso, da minha parte (o rebento esqueceu que mesmo isso não seria prudente), não devolver eu, agora, ao filho de P., as dezenas de milhares de rublos gastas por P. com a minha cretinice. Isso seria justo e direito! Pois que teria sido de mim se P. não me tivesse educado e tivesse olhado por seu filho, em lugar de mim?’
“Mas não! Não é deste modo, próprio de cavalheiro, que tal gente encara essas cousas. A despeito das representações do advogado do jovem, o qual se encarregou dessa causa apenas por amizade e quase que contra a vontade do interessado, como que à força, a despeito de lhe serem apontadas quais as obrigações da honestidade, da honra, da justiça e mesmo da prudência, o paciente da Suíça permaneceu inflexível e — que é que o leitor está pensando? — tudo isso não é nada; e agora chegamos ao que é realmente imperdoável e que não pode ser desculpado sob rótulo de doença alguma! O interessante vem agora: este tal milionário, que já tinha aproveitado as polainas do professor, não pôde compreender que aquele nobre caráter que se matava dando aulas, não estava pedindo caridade, não estava pedindo auxílio, e sim pugnando pelo que de direito lhe era devido, muito embora não se tratasse duma demanda judicial. Nem mesmo a isso recorreu, sendo os seus amigos que por conta própria a isso se obrigaram. Com ar majestoso, julgando com o poder dos seus milhões ser capaz de esmagar as pessoas impunemente, o nosso rebento tirou do bolso uma nota de 50 rublos e a mandou ao nosso excelente rapaz, num gesto de caridade insultante. Sei que o leitor propende a não acreditar nisso. O leitor dana-se, sofre, solta exclamações de indignação; mas foi isso, leitor amigo, o que ele fez! O dinheiro, é lógico, lhe foi remetido de volta imediatamente, arremessado, por assim dizer, às suas fuças! Qual o recurso deixado então? Não cabe demanda judicial, só há um recurso: a publicidade. Esta história é pois apresentada ao público sob garantia de absoluta autenticidade. Um dos nossos mais conhecidos escritores humorísticos alinhavou um excelente epigrama sobre o caso e que merece destaque como rascunho da vida russa, tanto na província como na capital:
Nem todo idiota é bocó:
Vou provar esta asserção;
Citando um exemplo só.
Com seus ataques insanos,
Metido num capotão,
No espaço de cinco anos,
O bom Liév ficou
Simulando ser bocó.
Mas quando à Rússia voltou,
O nosso imbecil primário
Achou prontinha uma herança!
E o que é mais extraordinário,
Do estudante que logrou
Nem ao menos teve dó!...
Este epigrama provou
E ainda prova, por si só,
Que esse Idiota Milionário
Nada tinha de bocó!”
Mal acabou de ler, Kólia entregou o jornal ao príncipe e, sem dizer uma palavra, correu a se meter num canto e tapou o rosto com as mãos. Sentia-se intoleravelmente envergonhado; a sua sensibilidade juvenil, não afeita ainda a tais vilanias, ficara ferida muito além do que podia suportar. A impressão que sentia era que algo de terrível tinha sucedido, esmigalhando tudo! E que ele, por ter lido alto aquilo, fora a causa de tudo.
Todavia, os demais pareciam sentir a mesma cousa. As moças ficaram muito deprimidas e envergonhadas. Lizavéta Prokófievna lutava com uma violenta raiva. Ela também, talvez, estivesse amargamente arrependida de se ter metido nisso. E agora se mantinha calada. Quanto a Míchkin, sentiu o que as pessoas demasiado sensíveis sentem em tais casos; ficou tão envergonhado com a conduta dos outros, sentiu tamanha vergonha pelas suas visitas, que por muito tempo teve pejo de encará-las. Ptítsin, Vária, Gánia, o próprio Liébediev — todos estavam com um ar embaraçado. E a coisa mais estranha é que tanto Ippolít como o “filho de Pavlíchtchev” pareciam ambos perplexos. O sobrinho de Liébediev também estava notoriamente atarantado. O boxeador era o único calmamente sentado, inteiramente sereno, cofiando os bigodes, com um ar sobranceiro, com os olhos postos no chão, não por desapontamento, mas fingindo um modesto orgulho e um iniludível triunfo. Era patente que o artigo o deleitara.
— Isso nem merece comentário! — sentenciou o general, em voz baixa. — Nem cinquenta lacaios juntos comporiam uma cousa assim!
— Permita-me, meu caro senhor, perguntar-lhe como ousa fazer tão insultantes suposições? — gritou Ippolít, a tremer.
— Isto, isto, isto, para um homem honrado... o senhor mesmo há de convir, general, se é que é um homem de bem, isto, isto... é insultante! — gaguejava o boxeador que inesperadamente também se inflamara, torcendo os bigodes e agitando os ombros e o corpo.
— Em primeiro lugar, eu não sou “o seu caro senhor”, e em segundo lugar, não tenho que lhes dar satisfações! — respondeu Iván Fiódorovitch, com severidade. Estava terrivelmente zangado. Ergueu-se da cadeira e sem dizer mais nada foi para a entrada da varanda onde ficou de pé, perto dos degraus, de costas para o grupo, violentamente indignado com a mulher por não ter ela sequer pensado em sair de lá.
— Amigos, amigos, permitam-me, finalmente, que eu fale — disse o príncipe, aflito e embargado. — E eu lhes peço para conversarmos de maneira a que nos possamos entender todos. Quanto ao artigo não digo nada, senhores, ele fala por si. Apenas uma cousa, amigos: nada do que está escrito no artigo é verdade. Digo assim, porque os senhores mesmos sabem. É tão ignominioso, de fato, que eu me surpreenderia enormemente se foi algum dos senhores que escreveu isso!
— Até ao presente momento eu ignorava esse artigo — avisou Ippolít. — Não o aprovo!
— Embora eu soubesse que estava escrito, eu... eu também teria aconselhado a não o publicarem, porque acho prematuro — ajuntou o sobrinho de Liébediev.
— Eu sabia, mas eu tenho direito... eu... — balbuciou “o filho de Pavlíchtchev”.
— Como! Foi então o senhor quem preparou tudo isso? — perguntou o príncipe, olhando atentamente para Burdóvskii. — Mas é possível?
— Recusamo-nos a reconhecer o seu direito de perguntar uma cousa dessas! — interveio o sobrinho de Liébediev.
— Apenas o que me admira é que o sr. Burdóvskii pudesse... ele próprio... Mas... agora pergunto eu, já que os senhores deram publicidade ao caso, por que ficaram tão ofendidos, ainda agora, quando eu principiei a falar sobre o caso diante dos meus amigos?
— Até que enfim! — ciciou Lizavéta Prokófievna, indignadíssima.
— E então, príncipe, o senhor se esquece também — e Liébediev, não se podendo conter, arranjava uma passagem por entre as cadeiras, num estado febril de agitação — então, o senhor se esquece também que foi somente graças à sua bondade e à infinita grandeza do seu coração que recebeu e escutou essa gente? E que essa gente não tem o direito de pedir nada, especialmente tendo o senhor posto já o caso nas mãos de Gavríl Ardaliónovitch, o que, também, já foi excesso de bondade? E agora, ilustríssimo príncipe, no seio dos seus diletos amigos, o senhor não pode sacrificar a companhia deles por essa gente. E o que o senhor deve fazer é escorraçar toda essa corja para a rua, já! E eu, como dono da casa, fá-lo-ei com o maior prazer...
— Perfeitamente! Muito bem! — trovejou o general Ívolguin, de súbito, lá dos fundos da sala.
— Chega, Liébediev, chega, chega! — ia começando o príncipe, mas as suas palavras se perderam numa explosão de indignações.
— Não, com licença, príncipe, com licença, não chega não! — vociferou o sobrinho de Liébediev cujo timbre afogava o dos outros. — Agora devemos colocar o caso sobre uma base firme e clara, visto, evidentemente, não estar nada combinado. Há um certo sofisma, uma certa sutileza judiciária envolvida em tudo isso e, por causa dessa sutileza, nos ameaçam pôr na rua. Mas é possível, príncipe, que o senhor possa pensar que nós somos tão cretinos que não sabíamos que não temos recurso judicial a interpor e que, analisando o caso sob o ponto de vista da lei, não temos sequer direito a tentar uma ação por um simples rublo? Mas nós, de um modo absoluto, nos damos conta de que, se não há uma reivindicação legal, há, todavia, uma reivindicação humana, natural! A que é dada pelo bom senso e pela voz da consciência. E conquanto essa reivindicação não esteja escrita em nenhum código humano, todavia um homem generoso e honesto, noutras palavras, um homem sensato, sente que tem que ser generoso e honesto mesmo em pontos que não estão escritos nos códigos. Eis por que viemos até aqui sem nenhum medo de ser postos na rua (como nos ameaçaram ainda agora) pois não estamos pedindo, mas sim requerendo, apesar mesmo do impróprio da hora, adiantada para a nossa visita. (Aliás não viemos em hora tardia, foi o senhor quem nos deixou a esperar na sua antecâmara.) Viemos, repito, sem tergiversar, porque o consideramos um homem de sensatez, isto é, de honra e de consciência. E o que é mais, não viemos humildemente, não viemos como pedintes, nem como trampolineiros, e sim com nossas cabeças eretas, como homens livres. Não se trata sequer duma petição, mas sim duma instância livre e altiva. (Ouça bem, não com uma petição, mas com uma instância, guarde bem isso.) E pomos o caso em suas mãos, diretamente, dignamente. Como se considera o senhor, perante o direito, no caso de Burdóvskii? Não admite o senhor que foi beneficiado e talvez até salvo da morte, por Pavlíchtchev? Se o senhor admite isso (o que é evidente), tenciona ou pensa o senhor, já que recebeu milhões, compensar o filho de Pavlíchtchev em sua pobreza, apesar de usar ele o nome de Burdóvskii? Sim ou não? Se sim, ou melhor, em outras palavras, se o senhor tem o que o senhor chama, em sua linguagem, honra e consciência, e que nós outros mais exatamente chamamos de senso comum, então nos atenda e satisfaça, e daremos o caso por liquidado. Satisfaça-nos sem querer salamaleques ou gratidões de nossa parte; não espere isso de nós, pois não terá agido por nossa causa e sim por causa da justiça. Se, porém, o senhor não nos quiser satisfazer, isto é, se responde não, vamos embora imediatamente e o caso também está acabado! E então lhe havemos de dizer na cara, diante de todas as suas testemunhas, que o senhor é um homem de inteligência inferior e de desenvolvimento primário. E que, pelo futuro, não ouse cognominar-se homem de brio e de consciência, pois não tem o direito de o fazer, visto ter comprado tal direito barato demais. Terminei! Expus o caso. Ponha-nos na rua se é capaz. Não lhe será difícil, o senhor tem a força. Mas, ainda assim, lembre que não pedimos, exigimos! Exigimos e não pedimos!
E o sobrinho de Liébediev parou, muito excitado.
— Nós exigimos... exigimos... exigimos... não pedimos!... — berrava Burdóvskii, grosseiramente, até ficar vermelho como um camarão.
Depois dessa espécie de discurso feito pelo sobrinho de Liébediev, houve uma movimentação geral, com murmúrios de protesto, embora cada pessoa do grupo não tentasse se intrometer no caso, exceto Liébediev, talvez, que parecia estar com um acesso de febre. (E interessante será destacar aqui que Liébediev, embora estivesse do lado do príncipe, não deixava de demonstrar emoção, de ordem como que familiar, ante o discurso do sobrinho, dando em encarar os presentes com certo ar de satisfação.)
— Na minha opinião — começou o príncipe, em voz um tanto baixa —, na minha opinião, sr. Doktorénko, na metade de quanto falou agora, o senhor está com a razão, e em mais da metade, mesmo. E eu concordaria com o senhor imediatamente se o senhor não tivesse deixado fora do seu discurso uma certa cousa. Mas eu lhe posso dizer o que foi exatamente que o senhor deixou de fora; não me sinto apto, mas para tornar o seu discurso inteiramente certo, alguma cousa se requer dentro dele. Porém será melhor voltarmos ao caso, desde o começo, senhores! Digam-me, por que publicaram este artigo? Não há uma só palavra nele que não seja calúnia; portanto, no meu pensar, os senhores cometeram uma perversidade.
— Dá licença?
— Meu caro senhor!
— Isso... isso... isso — ouvia-se de todos os lados, ao mesmo tempo, lá do grupo dos visitantes.
— No que se refere ao artigo — atalhou estridulamente Ippolít — já disse que nem eu nem os demais o aprovamos. Foi escrito por aquele ali (apontou para o boxeador que estava sentado a pouca distância); foi escrito ignominiosamente, concordo, escrito em mau russo, e na gíria dos homens do exército, reformados. Ele, além de estúpido, é um mercenário; concordo. Digo-lhe isso todos os dias na cara, mas, pelo menos na metade, estava direito. A publicidade é um direito legal para todos e ainda mais para Burdóvskii. Ele lá que responda pelos seus absurdos! No que se refere ao meu protesto pela presença de seus amigos, penso ser necessário informá-los, senhores, que eu protestei apenas para defender os nossos direitos. Na realidade, porém, até preferimos que houvesse testemunhas e, de nossa parte, nós quatro estamos certos que, sejam essas suas testemunhas quais forem, mesmo que se trate de amigos seus, não podem deixar de reconhecer a reivindicação de Burdóvskii (porque ela é matematicamente certa), sendo, portanto, até melhor que se trate de amigos seus; isso tornará a verdade ainda mais patente.
— Lá isso é verdade. Concordamos sim! — asseverou o sobrinho de Liébediev.
— Por que foi, então, que os senhores começaram a fazer rebuliço e gritaria, se até as testemunhas lhes convinham? — indagou o príncipe, surpreso.
— E quanto ao artigo, príncipe — aparteou o boxeador, que se estava tornando excitado demais e desesperado para falar (suspeitar-se-ia até que a presença de senhoras produzia um forte e patente efeito sobre ele) — quanto ao artigo, confesso ser eu o autor, muito embora ali o meu amigo doente, a quem já me acostumei a perdoar, por causa justamente da doença, tenha criticado dizendo que não prestava. Mas eu o escrevi e o publiquei no jornal dum amigo, em forma de carta. Tão só não são meus os versos que, de fato, vieram da pena dum célebre satírico. Só os li para o sr. Burdóvskii, e isso mesmo em parte; e ele logo concordou comigo que o publicasse, muito embora estejam a ver que eu os poderia publicar sem o consentimento dele. O direito de publicidade é um direito que abrange a todos e é um direito honorável e benéfico. Espero que o senhor príncipe seja bastante progressista para não negar isso!...
— Não lhe estou negando nada, mas há de convir que esse seu artigo...
— É severo, quer o senhor dizer?! Mas o senhor sabe muito bem que isso é em benefício público, a bem dizer. E, além do mais, como se haveria de deixar passar um caso tão flagrante como esse? Tanto pior para o culpado! Mas o público se beneficia diante de tais cousas. Quanto a certas pequenas incorreções, a bem dizer hipérboles, há de o senhor convir que o que importa no caso, bem mais, é o motivo. O objeto, a intenção, vem primeiro. O que importa é o exemplo benéfico; depois então que se entre no caso individual. E sem falar no mais: o estilo, o valor humorístico da cousa... E de fato, todo o mundo escreve desse jeito, conforme o senhor muito bem sabe. Ah! ah!
— Mas os senhores estão numa pista completamente falsa, posso lhes assegurar — exclamou o príncipe. — Os senhores publicaram este artigo na suposição de que eu por nada me induziria a satisfazer o sr. Burdóvskii; e então tentaram amedrontar-me e tirar uma vingança. Mas em que se apoiavam os senhores? E se eu me decidisse a satisfazer a reivindicação do sr. Burdóvskii? E digo-lhes plenamente, diante de todo o mundo, que tal é o meu querer.
— Isso? Ora aí está uma sábia e generosa afirmativa dum homem sábio e generoso! — elogiou o campeão de boxe, virando-se para todos os lados.
— Céus! — não pôde deixar de exclamar Lizavéta Prokófievna.
— Inominável! Inominável! — desaprovava e se escandalizava o general, categoricamente.
— Com licença, amigos! Com licença! Vou explicar bem — suplicou e prometeu o príncipe. — Sr. Burdóvskii, o seu agente ou representante, Tchebárov, foi ver-me há cinco semanas. A descrição que o ex-tenente Keller faz dele, desse Tchebárov, é lisonjeira demais — acrescentou o príncipe com vontade de rir, voltando-se para o ex-campeão de boxe. — Eu não apreciei esse senhor de forma alguma. Percebi logo que esse Tchebárov entrou neste caso com intenções escusas e que, para falar candidamente, abusou de sua simplicidade, senhor Burdóvskii, quando o atiçou a tentar essa reivindicação.
— O senhor... não tem o di... di... direito de dizer is...so! Eu não sou... nenhum sim... simplório — pôs-se Burdóvskii a gaguejar, excitadíssimo. E logo o sobrinho de Liébediev lhe veio em ajuda:
— Com que direito faz o senhor suposições desta ordem?
—... que são insultantes no mais alto grau! — estridulou Ippolít. — A sua insinuação é insultante, falsa e impertinente!
— Lastimo. Lastimo! Lastimo... — desculpou-se Míchkin, prontamente. — Por favor, desculpem-me. É que pensei que fosse melhor para nós que eu usasse inicialmente de franqueza. Mas os senhores é que decidem. Como queiram. Eu disse a Tchebárov que, como não me achava em Petersburgo, ia autorizar imediatamente um amigo a tratar do caso e que lho comunicasse, senhor Burdóvskii. Declaro-lhes, senhores, que no começo tomei o caso como uma trapaça apenas, por causa da comparticipação de Tchebárov, cujos modos me pareceram suspeitos e demasiado vivazes... Oh! Não se ofendam, senhores! Pelo amor de Deus, não se ofendam — exclamou o príncipe, vivamente, ao tornar a distinguir sinais de ressentimento em Burdóvskii e demonstrações de protesto por parte dos amigos deste. — Claro que não me refiro ao senhor nem aos presentes, quando falo em trapaça, chantagem. Naquela ocasião eu não conhecia nenhum dos senhores pessoalmente. Ignorava-lhes até os nomes. Apenas me restringi a julgar Tchebárov. Falei de modo geral porque... Se soubessem quão nefandamente fui saqueado depois que entrei na posse de minha fortuna!
— Príncipe, o senhor é extraordinariamente ingênuo! — zombou o sobrinho de Liébediev.
— Quem lhe manda ser príncipe e milionário! Pode muito bem ser que o senhor seja bondoso e simples, mas de qualquer forma não pode fugir à lei geral — sentenciou Ippolít.
— Possivelmente, senhores, muito possivelmente — apressou-se o príncipe em concordar — muito embora eu não saiba a que lei geral se estejam referindo. Mas permitam que eu prossiga e não se ofendam, absolutamente; juro que não tenho a menor intenção de insultar ninguém. E é uma lástima, senhores, que não se possa proferir uma palavra, sinceramente, sem que fiquem logo ofendidos! Mas, em primeiro lugar, foi um terrível choque saber da existência dum filho de Pavlíchtchev e em tão terrível situação, como Tchebárov me explicou. Pavlíchtchev foi meu benfeitor e amigo de meu pai. Mas, ah! por que escreveu o senhor aquelas falsidades a respeito de meu pai, sr. Keller? Nunca houve apropriação indébita do dinheiro de nenhuma companhia, nem maus-tratos a subordinados quaisquer... Quanto a isso estou absolutamente convicto!... E como pôde o senhor estender a sua mão para escrever tal calúnia? E o que o senhor disse de Pavlíchtchev ultrapassa tudo quanto é suportável. Deu o senhor esse nobre homem como sendo um libertino frívolo, e o fez com tanta audácia e segurança como se realmente estivesse contando a verdade; e todavia, ele foi um dos homens mais virtuosos e castos que já houve no mundo! Era notavelmente culto, costumava corresponder-se com inúmeros cientistas dos mais insignes, e gastou grande parte do seu dinheiro com o desenvolvimento da ciência. Quanto ao seu coração e à sua benemerência, oh! sem dúvida estava o senhor completamente com razão ao dizer que eu, naquele tempo, era mais um idiota do que qualquer outra cousa, não tendo a menor noção de nada (apesar de falar russo e até poder entender o que me falassem); mas posso agora apreciar tudo quanto recordo, em seu verdadeiro valor...
— Com licença — guinchou Ippolít — não será isso muito sentimental? Nós aqui não somos nenhumas crianças. O que queremos é entrar diretamente na questão. E já são quase dez horas, repare bem.
— Muito bem, senhores — concordou logo o príncipe. — Depois da minha primeira suspeita, ainda pensei que talvez eu me houvesse equivocado, e que Pavlíchtchev tivesse efetivamente um filho. Mas fiquei muitíssimo admirado que aquele filho desvendasse, tão diligentemente, isto é, quero dizer, tão publicamente o segredo do seu nascimento, desgraçando o nome de sua mãe. Pois já naquela ocasião Tchebárov me ameaçava com a publicidade!...
— Cousa ridícula! — comentou o sobrinho de Liébediev.
— O senhor não tem o direito... o senhor não tem o direito! — exclamava Burdóvskii, ao que guinchou com veemência Ippolít:
— O filho não é responsável pelo procedimento imoral do pai, nem a mãe tem do que ser censurada.
— Mais razão ainda, então, para poupá-la, pensaria eu, no caso — aventurou singelamente o príncipe.
— O senhor não é tão somente ingênuo, príncipe; vai, talvez, um pouco além... — chacoteou o sobrinho de Liébediev, maldosamente.
— E que direito tinha o senhor? — ganiu Ippolít, numa voz deformadíssima.
— Todavia, nenhum. Todavia, nenhum — prontamente redarguiu o príncipe. — Os senhores têm razão nisso, admito, mas me saiu, e que hei de fazer? E comigo mesmo eu disse, naquela ocasião, que não devia deixar o meu sentimento pessoal intervir no caso, porque, se considero ser preciso satisfazer a solicitação do sr. Burdóvskii por causa do meu sentimento para com Pavlíchtchev, eu devia satisfazê-la de qualquer modo, mesmo que respeitasse ou não o sr. Burdóvskii. Apenas fiz tal reparo, senhores, porque me pareceu anômalo, para um filho, desvendar o segredo materno tão publicamente... E de fato foi principalmente neste terreno que me capacitei que Tchebárov era um tratante e tinha instigado o sr. Burdóvskii a uma tal fraude por dolo.
— Mas isso é intolerável! — partiu de entre os seus visitantes, alguns dos quais chegaram a se levantar.
— Senhores, foi justamente então que compreendi que o pobre sr. Burdóvskii devia ser uma pessoa simples e sem ajuda, facilmente dominada por cavalheiros de indústria, e que, por conseguinte, eu precisava ajudá-lo. E o farei como a um “filho de Pavlíchtchev” — primeiramente, livrando-o do sr. Tchebárov, em segundo lugar, oferecendo-lhe os meus amistosos bons ofícios e guia, e, em terceiro lugar, decidindo dar-lhe 10 mil rublos, exatamente quanto, segundo meus cálculos, Pavlíchtchev deve ter gasto comigo.
— O quê! Só 10 mil rublos? — vociferou Ippolít.
— Bem, príncipe, nós somos muito fraquinhos em aritmética, ou melhor, o senhor é um ás em contas, muito embora se faça de simplório — zombou o sobrinho de Liébediev.
— Eu não concordo em receber 10 mil rublos.
— Segura isso, Antíp! — compelia-o o boxeador, num sussurro claro e rápido, inclinando-se para ele por detrás da cadeira de Ippolít! — Segura isso! E depois veremos!!!
— Escute, sr. Míchkin — goelou Ippolít — compreenda bem que nós não somos cretinos, vulgares cretinos, como provavelmente pensam todas essas suas visitas, tanto essas damas que nos desprezam condignamente, como esse senhor da alta sociedade — apontou para Evguénii Pávlovitch — a quem não tenho, naturalmente, a honra de conhecer, muito embora cuide já ter ouvido falar em Sua Excelência.
— Mas, por Deus, os senhores de novo não me entendem — voltou-se o príncipe para eles, com agitação. — Em primeiro lugar, sr. Keller, em seu artigo o senhor descreveu a minha fortuna muito por ouvir dizer! Eu absolutamente não herdei milhões. Tenho talvez uma oitava ou uma décima parte do que o senhor supõe. E, em segundo lugar, dezenas de milhares não foram gastos comigo na Suíça. Pagavam-se a Schneider 600 rublos por ano; e isso mesmo ele só recebeu durante os três primeiros anos; e Pavlíchtchev nunca foi a Paris para buscar lindas governantas; isso é outra calúnia. Na minha opinião, muito menos de 10 mil rublos foram gastos comigo, ao todo; mas eu me propus dar 10 mil e hão de admitir que eu não haveria de oferecer ao sr. Burdóvskii, em pagamento, mais do que lhe era devido, mesmo que eu simpatizasse imensamente com ele! E não haveria de fazê-lo por um sentimento de delicadeza apenas, pois lhe deveria pagar o que lhe era devido e não lhe fazer uma esmola! Não sei por que hão de os senhores se negar a compreender isto. E além disso, resolvi, por amizade e ativa simpatia, compensar mais tarde o infeliz sr. Burdóvskii, que evidentemente fora enganado, pois não podia ele, de outra maneira, concordar numa cousa tão baixa como, por exemplo, essa de dar publicidade a este escândalo referente à sua mãe, como deixou, no artigo do sr. Keller... Mas por que estão os senhores ficando zangados, outra vez? Temos que nos estar equivocando completamente uns aos outros? Ora, aconteceu o que eu já pensava! Estou convencido agora, pelo que vejo, que meu pressentimento era correto — tentou a custo o príncipe persuadi-los, ansioso por pacificar a excitação deles, sem reparar que, ao contrário, a estava aumentando.
— Convencido agora de quê? — caíram-lhe em cima, quase em fúria.
— Ora, em primeiro lugar, tive tempo para ver nitidamente quanto o sr. Burdóvskii se parece comigo; e agora vejo claramente o que ele é. É um homem inocente, dominado por qualquer um. Um homem desamparado... E, por conseguinte, eu devo ajudá-lo. E, em segundo lugar, Gavríl Ardaliónovitch, a quem o caso foi confiado, e com quem não falei durante muito tempo porque estive viajando e, depois disso, doente em Petersburgo, me disse ainda hoje que examinou o dossiê de Tchebárov, atentamente, acabando por deduzir que Tchebárov é quem eu já cuidava que fosse. Sei, senhores, que muita gente me considera como um idiota, e que, dada a minha reputação de jogar fora dinheiro, à vontade, Tchebárov pensou que podia facilmente vir como impostor sobre mim, contando principalmente com a minha estima por Pavlíchtchev. Mas o ponto capital — ouçam-me, senhores, ouçam-me bem! — o ponto capital é que está provado agora que o sr. Burdóvskii não é em absoluto filho de Pavlíchtchev! Gavríl Ardaliónovitch acabou de me dizer e me garante que tem legítimas provas disso. Bem, que pensam os senhores disto? É difícil acreditar numa cousa destas, depois da celeuma que foi feita! E escutem, as provas existentes são positivamente categóricas! Quase não creio ainda, chego a não acreditar, asseguro-lhes que estou duvidando até, visto Gavríl Ardaliónovitch não ter tido tempo para me mostrar todos os documentos. Mas que Tchebárov é um tratante, quanto a isso não há mais dúvida! Ele abusou do pobre sr. Burdóvskii e dos senhores todos que vieram auxiliar um amigo (notoriamente ele carece de uma ajuda, compreendo, naturalmente!); abusou dos senhores todos e os envolveu num caso fraudulento, pois lhes sustento que de fato se trata dum dolo; é uma trapaça!
— Como, trapaça!? Então não é filho de Pavlíchtchev? Mas, como assim? — tais eram as exclamações ouvidas de todos os lados.
Todo o bando de Burdóvskii como que caiu numa inexpressiva perturbação.
— Sim, naturalmente que é trapaça! Pois se o sr. Burdóvskii afinal não é mesmo o filho de Pavlíchtchev, sua reivindicação é simplesmente fraudulenta (claro que se, no caso, ele soubesse a verdade); mas a cousa é que foi enganado, eis por que insisto quanto a que seja aclarado o seu caráter! Eis por que digo que ele merece ser lastimado por sua simplicidade e não pode ser deixado sem auxílio. Se assim não fosse, também ele seria um tratante. Estou agora convencido que ele não compreendeu! Eu estava na mesma situação que ele, quando fui para a Suíça; também eu tinha o hábito de gaguejar incoerentemente. Tenta uma pessoa se exprimir e não pode. Compreendam que eu posso simpatizar com ele, muito bem, eu sou quase como ele, se é que me é permitido falar assim. Inteiramente igual! Portanto, não existe nenhum “filho de Pavlíchtchev”; o que houve foi mistificação; mas, apesar de tudo, não mudei de modo de pensar. E estou pronto a lhe dar 10 mil rublos em memória de Pavlíchtchev. Antes do sr. Burdóvskii aparecer em cena, já eu tinha resolvido dedicar 10 mil rublos à fundação duma escola em memória de Pavlíchtchev; mas agora dá no mesmo ser para uma escola ou para o sr. Burdóvskii, pois apesar dele não ser filho de Pavlíchtchev, me merece tanto como se o fosse, por ter sido tão impiedosamente enganado. Piamente acreditou ele ser filho de Pavlíchtchev! Falem com Gavríl Ardaliónovitch, ouçam-no, amigos; terminemos com isto! Não se excitem. Sentem-se! Gavríl Ardaliónovitch lhes explicará tudo, diretamente. E confesso que terei muita satisfação em ouvir também todos os comprovantes. Disse-me ele que foi a Pskóv ver sua mãe, sr. Burdóvskii, que absolutamente não morreu como o fizeram declarar no artigo... Sentem-se, senhores, sentem-se!
O príncipe sentou-se e conseguiu que Burdóvskii e seus amigos se tornassem a sentar. Durante os dez ou vinte minutos últimos falara alto e impetuosamente, com uma impaciência precipitada, quase arrebatado, tentando falar com todos; e não pôde depois, amargamente, deixar de se arrepender de certas frases e suposições que então lhe escaparam. Se não se tivesse esgotado a ponto de perder a serenidade, não teria sido capaz de tão mal e tão apressadamente pronunciar alto certas conjeturas e certos desnecessários protestos. Mal se tinha sentado em seu lugar e já um ardente remorso fazia doer o seu coração. Além do fato de ter “insultado” Burdóvskii declarando em público sofrer o mesmo de igual doença de que ele próprio se fora tratar na Suíça, o oferecimento de 10 mil rublos destinados a uma escola tinha sido feito, a seu ver, grosseiramente e sem delicadeza, como uma caridade. E, ainda por cima, fizera isso alto, diante de todo o mundo. “Eu devia ter esperado e só lhe fazer esse oferecimento amanhã, a sós”, pensava o príncipe. “Agora, talvez não tenha sido correto! Sim, sou um idiota, verdadeiramente um idiota”, disse para si mesmo, num paroxismo de vergonha e de mal-estar.
No entanto, Gavríl Ardaliónovitch, que até então estivera para um canto, num obstinado silêncio, avançou, e por convite do príncipe, tomou posição ao lado dele e começou calmamente, com muita clareza, a dar conta do caso que lhe fora confiado pelo príncipe. Todas as conversas cessaram instantaneamente. Todos ouviam com extrema curiosidade, especialmente o grupo de Burdóvskii.
9.
— Certamente o senhor não chegará ao ponto de negar — começou Gavríl Ardaliónovitch, dirigindo-se imediatamente a Burdóvskii que se pôs a escutá-lo atentamente, apesar duma visível agitação, os olhos muito abertos — não tentará nem quererá, de fato, negar que nasceu justamente dois anos depois que sua respeitável mãe se casou com o sr. Burdóvskii, seu pai. A data do seu nascimento pode ser facilmente comprovada, de modo que a distorção deste fato — tão insultante para o senhor e para sua mãe... no artigo do sr. Keller, deve ser levada à conta, simplesmente, da superabundância da imaginação do mesmo sr. Keller; supunha ele, sem dúvida, tornar a reivindicação mais forte, por essa declaração, assim, pois, cooperando em seu interesse. O sr. Keller diz que antes de publicar lhe leu parte do artigo, mas não todo e... não pode haver dúvida de que não lhe leu esta passagem...
— De fato não li — interrompeu o boxeador —, mas todas as informações me foram dadas por pessoa competente e eu...
— Com licença, sr. Keller — atalhou Gavríl Ardaliónovitch — permita que eu fale. Asseguro-lhe que já chegarei ao seu artigo. E então o senhor dará as suas explicações; mas o melhor, agora, é tratarmos das cousas em sua sequência natural. Inteiramente por acaso, com o auxílio de minha irmã Varvára Ardaliónovna Ptítsina, obtive duma sua amiga íntima, a sra. Zubkóva, viúva que tem uma propriedade no campo, uma carta que lhe escreveu do estrangeiro o sr. Pavlíchtchev, há vinte e quatro anos. Havendo travado conhecimento com a sra. Zubkóva, tive ensejo de recorrer também, por sugestão dessa mulher, a um seu parente que fora outrora grande amigo do sr. Pavlíchtchev, o coronel reformado Viazóvkin. E dele consegui mais outras duas cartas escritas também pelo sr. Pavlíchtchev, ainda do estrangeiro. Através de tais cartas e dos fatos e datas nela mencionados, ficou categoricamente provado, sem nenhuma possibilidade de erro ou de dúvida, que ele partira para fora do país um ano e meio antes do senhor nascer, sr. Burdóvskii, e que fora do país permaneceu durante três anos. Ora, como o senhor bem sabe, sua mãe nunca esteve fora da Rússia. No momento não lhe leio as cartas; já é tarde. Mas se lhe interessa, marque uma hora para conversar comigo, amanhã cedo, se quiser, sr. Burdóvskii, e traga as suas testemunhas — quantas lhe aprouver — e peritos para examinar a caligrafia; estou certo de que o senhor ficará mais do que convencido da veracidade dos fatos expostos. Se assim for, todo o caso, naturalmente, cai por terra e fica liquidado.
Isso provocou, outra vez, emoção geral e excitação crescente. Burdóvskii imediatamente se levantou.
— Já que assim é, fui enganado! Enganado não por Tchebárov, mas desde muito antes. Não preciso de peritos, não preciso ir ver o senhor; acredito, retiro minha reivindicação... Não concordo em receber os 10 mil rublos... Adeus.
Pegou o gorro e afastou a cadeira para sair.
— Se o senhor pudesse ficar mais um pouco, sr. Burdóvskii — disse Gavríl Ardaliónovitch, detendo-o com brandura e delicadeza. — Ao menos uns cinco minutos. É que alguns outros fatos vieram à luz, a tal respeito, e são muito importantes. E eu acho que o senhor não os devia ficar ignorando e, decerto, lhe seria muito mais conveniente se o seu caso pudesse ser completamente esclarecido.
Burdóvskii sentou-se sem falar, de cabeça baixa, parecendo perdido em cismas. O sobrinho de Liébediev, que se tinha levantado para segui-lo, também se sentou de novo, não tendo, porém, perdido a sua arrogância, apesar de não poder esconder quanto estava perplexo. Ippolít estava carrancudo, decepcionado e evidentemente atônito, mas deu em tossir tão violentamente que manchou de sangue o seu lenço. O boxeador, esse, então, mostrava-se arrasado.
— Ó Antíp! — disse ele amargamente. — Já no outro dia... anteontem, te disse que talvez não fosses mesmo filho de Pavlíchtchev!
Isso provocou gargalhadas gerais, umas mais altas do que outras.
— O fato que o senhor aduziu neste momento, sr. Keller — agora Gavríl Ardaliónovitch imprensava-o — tem seu valor. Apesar disso, no entanto, eu tenho o direito de argumentar que embora o sr. Burdóvskii soubesse muito bem a data de seu nascimento, ignorava completamente a circunstância do sr. Pavlíchtchev residir no estrangeiro onde passava a maior parte de sua vida, só voltando uma vez ou outra à Rússia. De mais a mais o fato dele estar fora naquele tempo não era cousa assim tão importante que obrigasse as pessoas a se recordarem disso vinte anos depois; nem mesmo as pessoas que conheciam bem o sr. Pavlíchtchev, sem falar no sr. Burdóvskii que, a essa altura, nem nascido era. O que não quer dizer que fosse ou seja impossível estabelecer a veracidade desse fato. Quanto a mim, devo confessar que foi por mero acaso que coligi tais fatos que podiam muito bem não ter chegado às minhas mãos. O que também prova que essa averiguação pudesse ser quase impossível ao sr. Burdóvskii, e até a Tchebárov, mesmo no caso de a procurarem obter, ou nisso pensarem. Quem sabe até se nem lhes passou isso pela cabeça!
— O senhor dá licença? — aparteou, com irritação, Ippolít. — Para que toda essa lenga-lenga, se posso perguntar?! O caso já foi esclarecido; concordamos em aceitar o fato mais importante; por que então desenrolar toda essa lenga-lenga a respeito? Ou quererá o senhor, quem sabe, estadear a sua habilidade em investigações e expor diante de nós e do príncipe as suas extraordinárias qualidades de detetive? Ou está o senhor tentando desculpar e justificar o sr. Burdóvskii, provando que ele se atrapalhou em toda essa questão por causa de sua ignorância? Veja, porém, que isso é uma imprudência, senhor! Burdóvskii dispensa as suas desculpas e justificações, deixe que lhe diga! Isso lhe é penoso e incomodativo; afinal de contas já basta a posição desastrada em que ele está; e o senhor devia ver e compreender isso.
— Chega, sr. Tieriéntiev, chega — disse Gavríl Ardaliónovitch fazendo-o calar-se. — Fique calmo, não se excite; receio que o senhor piore. E lastimo isso. Se prefere, paro aqui, ou antes, tratarei de resumir o mais possível uns tantos fatos que, estou convencido, devem ser plenamente conhecidos — acrescentou reparando no movimento geral de notória impaciência. — Eu apenas quero demonstrar que o sr. Pavlíchtchev evidenciava esse interesse e bondade para com sua mãe, sr. Burdóvskii, somente porque ela era irmã duma serva por quem desde a mocidade ele estava apaixonado. E tanto que certamente acabariam se casando se ela não tivesse morrido repentinamente. Tenho provas da exatidão disso e de certos outros fatos pouco conhecidos ou inteiramente esquecidos. E, mais ainda, posso informá-lo como sua mãe foi tomada aos dez anos pelo sr. Pavlíchtchev e educada por ele como se fosse sua parenta, de como teve à sua disposição um dote considerável e de como os aborrecimentos originados por causa disso partiram dos numerosos parentes por cuja conta certos rumores correram. Chegou-se a pensar que ele se casaria com a sua pupila, acabando ela, porém, em sua livre escolha, se casando (e isso posso provar de maneira taxativa) com um funcionário rural chamado Burdóvskii. Reuni documentações fidedignas que comprovam que seu pai, sr. Burdóvskii, que não mostrava propensões para o comércio, largou o emprego ao receber o dote de sua mãe, de 15 mil rublos, e se meteu em especulações comerciais, tendo sido enganado; perdeu todo o seu capital, desandou a beber para esquecer suas mágoas, consequentemente caindo doente, e vindo a morrer, por fim, oito anos depois de ter esposado a mãe do senhor. Então, depois disso, ficou ela, segundo o seu próprio testemunho, completamente sem recursos e teria chegado à ruína se não fosse o constante e generoso auxílio do sr. Pavlíchtchev que lhe concedia 600 rublos por ano. Também ficou notório que ele gostava extremamente do senhor quando criança. Pelo que sua mãe me contou, é quase certo que ele gostava do senhor principalmente por causa do seu feitio desventurado de criança miserável, parecendo estropiado e gago. E, como vim a saber em fontes muito seguras, Pavlíchtchev em toda a sua vida sempre teve um sentimento de especial ternura por tudo quanto injustamente fosse flagelado pela natureza, principalmente crianças, fato esse que, a meu ver, é de grande valor no nosso caso. Finalmente, posso garantir que descobri um fato de importância primordial, e que vem a ser o seguinte: a marcada preferência de Pavlíchtchev pelo senhor (e foi mediante os esforços dele que o senhor entrou para o ginásio e recebeu uma educação apropriada) pouco a pouco foi levando os parentes de Pavlíchtchev e os membros de sua casa a imaginarem que o senhor fosse filho dele e que o seu pai tivesse sido enganado. Mas é preciso que se repare bem que tal ideia só avultou e se tornou convicção geral nos últimos dias de vida de Pavlíchtchev, quando toda a parentela dele estava sobressaltada com o seu testamento, estando já os fatos originais esquecidos e até impossibilitada sua averiguação imediata. Sem dúvida, tal ideia também lhe chegou aos ouvidos, tomando conta inteiramente do senhor. Sua mãe, cujo conhecimento tive a honra de fazer, sabia desses boatos. Mas até hoje não sabe (e nem eu lhe disse) que o senhor, seu filho, estivesse dominado por tal suposição. Fui encontrar sua respeitabilíssima mãe em Pskóv, doente e na extrema penúria em que ficara desde a morte de Pavlíchtchev. Disse-me ela, com lágrimas nos olhos, de pura gratidão, que era sustentada apenas pelo senhor. Ela confia muito no seu futuro e crê de modo absoluto em seu triunfo daqui por diante...
— Mas isso já está ficando intolerável! — berrou o sobrinho de Liébediev, não suportando mais. — Qual é o fim desse romance?
E Ippolít o coadjuvou, num movimento abrupto:
— Isso ofende e chega a ser inaudito!
Só Burdóvskii ficou imperturbável.
— Qual o fim, o objeto disto? — disse Gavríl Ardaliónovitch, com fingida admiração, maliciosamente preparando o seu remate. — Porque, em primeiro lugar, o sr. Burdóvskii decerto está agora plenamente convencido de que o sr. Pavlíchtchev o amava por generosidade e não por ser o filho dele. Só este fato já era essencial que o sr. Burdóvskii soubesse, já que ficou do lado do sr. Keller, aprovando tudo quanto do artigo lhe foi lido. Digo isto porque considero o sr. Burdóvskii um homem direito. Em segundo lugar parece que não houve a menor intenção de chantagem e dolo no caso, mesmo da parte de Tchebárov; esse é um ponto importante para mim, também, porque o príncipe, ao falar acaloradamente ainda agora, me mencionou como concordando com a sua opinião de haver um elemento desonesto e trapaceiro no caso. Pelo contrário, houve absoluta boa-fé por parte de todos, e muito embora o sr. Tchebárov possa ser um grande espertalhão, neste caso ele aparece apenas como um agudo e intrigante advogado. Esperava fazer alto negócio com isso, como advogado, e os seus cálculos não foram apenas agudos e magistrais; foram seguros. Baseava-se ele na correção com que o príncipe se comporta a respeito de dinheiro; baseava-se em sua gratidão e respeito por Pavlíchtchev. E, o que é mais, se baseava principalmente na maneira cavalheiresca com que o príncipe, como é mais que notório, cumpre suas obrigações de honra e consciência. Quanto ao sr. Burdóvskii, pessoalmente, ainda se pode dizer que, graças a certos pendores seus, foi tão trabalhado por Tchebárov e por seus amigos outros, que tomou o caso a peito, fora até do seu interesse moral, porém mais como um serviço à verdade, ao progresso e à humanidade. Agora, pois, após tudo quanto acabo de dizer, se torna mais do que claro que o sr. Burdóvskii é um homem inocente, sejam quais forem as aparências. E assim, o príncipe, mais prontamente e zelosamente do que antes, lhe vai oferecer seu amistoso auxílio e, de modo particular, essa ajuda substancial a que se referiu ainda agora ao falar sobre escolas e Pavlíchtchev.
— Pare! Agora não, Gavríl Ardaliónovitch, deixe isso para depois... — exclamou o príncipe desapontadíssimo; mas era tarde demais.
— Eu já lhe disse, já lhe disse três vezes — falou Burdóvskii no auge da irritação — que não quero o dinheiro, que não aceito... porque... não quero aceitar... Vou-me embora!
E já ia a correr pela varanda. Mas o sobrinho de Liébediev o agarrou pela manga e lhe disse ao ouvido qualquer coisa. Imediatamente Burdóvskii voltou e tirando um enorme envelope sem lacre do bolso o arremessou sobre a mesa, na direção do príncipe.
— Aí está o dinheiro. Como foi que o senhor ousou? Como? O dinheiro!
— Aqueles 250 rublos que o senhor teve o desplante de lhe enviar, como uma esmola, por Tchebárov! — explicou Doktorénko. Ao que Kólia comentou:
— Mas o artigo dizia 50.
— Fiz mal — declarou o príncipe erguendo-se e indo até Burdóvskii. — Confesso que fiz mal, Burdóvskii, mas acredite que não mandei isso como esmola. Tenho que reconhecer agora e antes... (O príncipe estava muito angustiado, com um ar exausto e esgotado e as suas palavras eram um pouco desconexas.) Falei em trapaça, mas não me referi ao senhor. Eu estava enganado. Disse que o senhor era doente como eu. Mas o senhor não é como eu, o senhor dá aulas... o senhor sustenta sua mãe. Eu disse que o senhor estava expondo sua mãe à vergonha; mas o senhor a ama, ela mesma o disse... E eu não sabia. Gavríl Ardalionóvitch não me tinha contado tudo. Sou culpado. Cheguei a lhe oferecer 10 mil rublos, mas mereço censuras, eu devia ter feito isso de modo diferente, e agora... isso não pode ser feito, porque o senhor me desdenha...
— Isto é uma casa de loucos! — exclamou Lizavéta Prokófievna.
— Lógico que é uma casa de malucos! — não pôde Agláia deixar de dizer, cortantemente.
Mas as palavras delas se perderam na celeuma geral. Todos gritavam e discutiam, alguns seriamente, outros rindo. Iván Fiódorovitch Epantchín estava no auge da indignação e, com um ar de ofendida dignidade, esperava pela mulher. Quem pôs em tudo aquilo a última palavra foi o sobrinho de Liébediev:
— Sim, príncipe, tem-se que lhe fazer justiça. O senhor sabe como aproveitar a sua... ora bem... doença (para me exprimir polidamente); tal jeito deu o senhor no modo por que ofereceu sua amizade e seu dinheiro, de maneira tão engenhosa, que é impossível agora a um homem de bem receber uma e outra cousa, seja sob que circunstância for. E isso ou é uma demonstraçãozinha de inocência, ou de esperteza... O senhor sabe, melhor do que nós.
— Mas, com licença, senhores! — volveu Gavríl Ardaliónovitch que nesse ínterim tinha aberto o envelope. — Aqui não há 250 rublos e sim somente 100. Quero, com o que estou dizendo, que não haja mal-entendido.
— Deixe, deixe... — exclamou o príncipe, acenando para Gavríl Ardalionóvitch.
— Não! “Deixe”, não!... — E o sobrinho de Liébediev se interpôs. — Esse seu “deixe” é insultante para nós, príncipe. Não estamos escondendo, declaramos abertamente: no envelope há só 100 rublos, em lugar de 250; nem isso vem a dar no mesmo...
— De fato não vem a dar no mesmo! — acrescentou Gavríl Ardaliónovitch, com um ar de ingênua perplexidade.
— Queira não nos interromper; não somos nenhuns idiotas, senhor advogado — redarguiu o sobrinho de Liébediev com desprezo. — Naturalmente que 100 rublos não são a mesma coisa que 250, nem isso vem a dar no mesmo, mas o que importa é o princípio. O que importa é a iniciativa e lá isso de estarem faltando 150 rublos é mero pormenor. O que importa é que Burdóvskii não aceita a sua esmola, Excelência, que a joga em rosto e isso tem justamente o sentido de que não faz diferença se são 100 ou 250. Burdóvskii não aceitou os 10 mil rublos, conforme o senhor já escutou; e não teria trazido os 100 rublos, em restituição, se fosse desonesto. Os 150 rublos ficaram com Tchebárov como pagamento da viagem que fez para se avistar com o príncipe. O senhor pode rir de nossa falta de tirocínio e experiência em negócios; o senhor tentou o mais que pôde nos ridicularizar, mas não ousará chamar-nos de desonestos. Nós nos cotizaremos todos, senhor, para pagar ainda esses 150 rublos ao príncipe. Tê-lo-íamos pago, mesmo que fosse só 1 rublo! Pagaremos com juros. Burdóvskii é pobre, Burdóvskii não tem milhões, e Tchebárov mandou cobrar a sua viagem. Nós esperávamos ganhar a questão... quem não teria feito o mesmo, no lugar dele?
— Quem não teria?! — exclamou o príncipe Chtch...
— Eu acabo perdendo o juízo, aqui! — proferiu Lizavéta Prokófievna.
— Isto me faz lembrar — disse, a rir, Evguénii Pávlovitch, que desde muito estava prestando atenção em tudo aquilo — uma célebre defesa feita recentemente por um advogado que, enumerando com justificativa a pobreza do seu cliente, desculpando-o por ter assassinado e roubado seis pessoas duma só vez, repentinamente rematou com algo mais ou menos assim: “Era natural que, ante a sua pobreza, ocorresse ao meu cliente a ideia de assassinar seis pessoas! Sim, porque, afinal de contas, em idêntica situação, a quem não ocorreria a mesma ideia?” Algo mais ou menos deste teor! Muito engraçado.
— Basta! — fez ver Lizavéta Prokófievna, num transporte quase de raiva. — Já é tempo de parar com este espetáculo.
Estava numa terrível excitação. Atirou a cabeça para trás, ameaçadoramente e, com os olhos em chama, e um ar de altivo e feroz desafio, encarou um por um, já não podendo distinguir amigos de inimigos. Atingira aquele auge de ódio longamente contido mas por fim irreprimível em que a avidez pelo conflito imediato e pelo ataque súbito cria, em dada pessoa, o impulso que tudo comanda. Aqueles que conheciam a sra. Epantchiná logo sentiram que lhe sobreviera algo fora do comum. Iván Fiódorovitch disse no dia seguinte ao príncipe Chtch...: “Ela tem desses ataques de vez em quando, mas acessos como o de ontem jamais lhe vêm a não ser de três em três anos. No máximo!” — acrescentou enfaticamente.
— Chega, Iván Fiódorovitch. Deixa-me sozinha — gritou Lizavéta Prokófievna. — Tira esse braço daí, não me ofereças o braço. Ou achas que me vais conduzir para fora? És o marido, o chefe da família, mas só me pegarias pela orelha e me levarias lá para fora se eu fosse néscia demais para te obedecer e seguir. Devias mais é pensar em tuas filhas, isso sim! Agora já sabemos o caminho sem ti. Tive vergonha suficiente para me conter um ano. Espera, não vês que tenho que agradecer ao príncipe? Muito obrigada, príncipe, pelo divertimento. Permaneci de propósito para ouvir o que esses rapazes diziam. E é uma desgraça! Uma desgraça! Que caos, que infâmia! Pior do que um sonho. Há muita gente como eles? É? Fique quieta, Agláia! Deixe-me, Aleksándra, vocês não têm nada com isto! Saia da minha frente, Evguénii Pávlovitch, não me incomode!... Então, meu caro, você lhe está pedindo desculpas? — dirigia-se agora a Míchkin. — “A culpa foi minha”, diz ele, “de ousar vos oferecer uma fortuna...” E, escute aqui, de que é que você se está rindo aí, seu fanfarrão? — apontava para o sobrinho de Liébediev. — “Nós recusamos a fortuna”, diz o outro. “Nós exigimos, não pedimos!” Como se não soubessem que amanhã este idiota se porá de rastros para lhes oferecer sua amizade e seu dinheiro, outra vez. É, ou não é, você aí?
— É, sim, senhora! — disse o príncipe, com voz tênue e humilde.
— Ouviram? Vocês já contavam com isso! — E voltada para Doktorénko: — É o mesmo que o dinheiro já estar no bolso de vocês! E aí está por que vocês tentam impressionar-nos... Não, meu rico tipo, não me venha com manhas, eu o conheço... estou vendo o seu jogo...
— Lizavéta Prokófievna! — exclamou o príncipe.
— Vamos embora, Lizavéta Prokófievna, já é tempo de nos irmos, e levemos o príncipe conosco — disse o príncipe Chtch... procurando sorrir, para aparentar calma.
As moças estavam de pé, ao lado, meio espantadas; o general Epantchín permanecia boquiaberto; os demais presentes, admirados. Os que se achavam mais para o lado de fora cochichavam entre si, sorrindo às escondidas. A cara de Liébediev estava estarrecida, numa expressão de perfeito êxtase.
— Caos e infâmia podem ser encontrados em qualquer lugar, senhora! — disse o sobrinho de Liébediev, nem com isso perdendo o embaraço em que estava.
— Ruim, assim, não! Ruim assim, como entre os senhores, não, caro senhor — retorquiu Lizavéta Prokófievna num ar de vingança histérica. — Larguem-me! — gritava para os que tentavam persuadi-la. — Ora, pois não disse você ainda agora, Evguénii Pávlovitch, que até um advogado, no tribunal, declarara ser muito natural que um pobre sangre seis pessoas? Isso significa o fim de tudo; nunca ouvi tamanha cousa. Está tudo mais do que claro agora! E este sujeito gago, quem não vê que mataria qualquer um? (E apontava para Burdóvskii, que a ficou fitando atarantadamente.) Estou pronta a apostar que ele matará alguém! Talvez, de fato, não aceite o seu dinheiro, talvez não queira os seus 10 mil rublos, talvez não o aceite por causa da consciência; mas irá à noite matar você e tirar o dinheiro do cofre; e fará isso por causa da consciência. Então não será desonestidade, para ele. Será apenas uma erupção de “nobre indignação”, será um “protesto”, ou Deus sabe o quê... Arre! Tudo está de pernas para o ar, tudo está de cambalhotas! Uma rapariga cresce em casa e repentinamente, no meio da rua, se mete num fiacre, dizendo: “Mamãezinha, no outro dia me casei com um tal Kárlitch, ou Ivánitch, adeusinho!” E está direito, um comportamento desta ordem, respondam?! É natural, demonstra respeito? A questão “mulher”? Este fedelho — apontou para Kólia — ainda no outro dia estava argumentando sobre o significado da questão “mulher”. Mesmo que a mãe seja maluca, qualquer de vocês tem que se comportar como um ser humano, perante ela. Por que chegar a casa com a cabeça no ar? “Abra caminho, não vê que estou entrando? Restitua-nos os nossos direitos e não dê um pio sequer! Preste-nos toda espécie de respeito, como até aqui nunca nos foi prestado e nós a trataremos pior do que ao mais ínfimo lacaio.” Exigem justiça, repisam em seus direitos, e ainda o caluniam como pérfidos no artigo dum jornaleco. “Exigimos, não pedimos e não lhe dispensaremos gratidão porque o senhor está agindo em satisfação à própria consciência!” Isso é raciocínio de gente? Pois bem, se vocês lhe não demonstram gratidão, o príncipe lhes pode responder que também não a dispensa a Pavlíchtchev, porque Pavlíchtchev também agiu direito em satisfação à sua consciência. E vocês bem sabem que estão contando justamente com a gratidão dele por Pavlíchtchev! Ele não lhes pediu dinheiro emprestado, não lhes deve nada; com que é então que vocês estão contando, senão com a sua gratidão? E como é então que vocês repudiam isso? Lunáticos! Encaram a sociedade como selvagem e inumana, porque ela expõe a donzela seduzida à vergonha; mas se vocês cuidam que a sociedade é inumana, devem vocês também pensar que a pobre moça sofre pela censura da sociedade! E, se assim é, por que a expõem vocês à sociedade, através dos jornais, e acham que ela não deva sofrer? Lunáticos! Ordinários! Não acreditam em Deus, não creem em Cristo! Ora, vocês, estão tão comidos pelo orgulho e pela vaidade que acabarão se entredevorando, eis o que desde já lhes profetizo. Não é isso caos, infâmia e pandemônio! E depois de tudo ainda esta desventurada criatura precisa lhes ir pedir perdão, também! Há mais gente como vocês? E de que é que se estão rindo? De eu não ter me sabido conter e explodir contra vocês? Sim, explodi sim, e agora não há outro jeito! Que é que está arreganhando os dentes, você aí, seu “limpa-chaminés”? — apontou para Ippolít. — Está quase a botar a alma pela boca e ainda tenta corromper os outros! Foi você quem pôs a perder este fedelho aqui — apontava para Kólia — que não faz outra cousa senão besteiras por sua causa; você lhe prega ateísmo, você que não crê em Deus, você que não está ainda assim tão velho para uma surra! Você não se enxerga? Então, vai procurá-los, amanhã, príncipe Liév Nikoláievitch? — perguntou ela, de novo, ao príncipe, com a respiração suspensa.
— Vou.
— Então não quero mais saber de você. — Virou-se, para se ir, mas tornou a voltar. — E irá ver este ateu, também? — apontou para Ippolít. — Tem a coragem de se rir de mim? — gritou ela, num verdadeiro berro, e avançou para Ippolít, não suportando seu esgar sarcástico.
— Lizavéta Prokófievna! Lizavéta Prokófievna! Lizavéta Prokófievna! — ouviu-se de todos os lados, ao mesmo tempo.
— Mãe, isso é vergonhoso! — disse Agláia, alto.
— A srta. Agláia Ivánovna não se inquiete — respondeu Ippolít, calmamente.
Lizavéta Prokófievna tinha-se arremessado contra ele e lhe segurara o braço. E, por qualquer motivo inexplicável, ainda o estava segurando com força. Ficou diante dele, com os olhos coléricos presos nele.
— Não se inquiete, a sua mamãe já se dará conta de que não pode atacar um agonizante... Se ela quer que eu explique por que me ri, eu explico. E terei muito gosto se ela me der permissão para isso.
Nisto começou a tossir terrivelmente, e não podia parar.
— Ele está a morrer e ainda quer pronunciar discursos — gritou Lizavéta Prokófievna largando-lhe o braço e olhando quase com terror para o sangue que ele limpava dos lábios. — Você não tem que falar nada. Deve mais é ir se deitar.
— É o que farei — respondeu Ippolít, numa voz rouca, muito baixa, quase um sussurro. — Assim que chegar à casa me deitarei... Nestes quinze dias vou morrer, já sei. B... já me disse isso na semana passada. De maneira que, se me permite, lhe quero dizer umas palavras, ao nos separarmos.
— Está maluco? Deixe de bobagem! Precisa mais é de enfermeira; agora não é hora de falar. Vá já para a cama!
— Se me meto na cama nunca mais me levantarei até morrer — disse Ippolít, sorrindo. — Ontem, por exemplo, pensei em me deitar e não me levantar mais; mas decidi deixar isso para até depois de amanhã, caso pudesse me aguentar nas pernas... e assim poder vir com eles até aqui... O que há é que me sinto terrivelmente cansado.
— Sente-se, sente-se, por que há de estar de pé? Tem uma cadeira aqui! — E Lizavéta Prokófievna correu e lhe ajeitou ela própria uma cadeira.
— Muito obrigado — continuou Ippolít, brandamente. — Mas a senhora também vai se sentar, diante de mim, e nós vamos conversar, Lizavéta Prokófievna; faço questão disso, agora... — e sorriu outra vez. — Pense bem, esta é a última vez que saio a apanhar ar e ver gente. Em quinze dias certamente estarei debaixo da terra. De modo que será uma espécie de despedida à humanidade e à natureza. Não sou lá muito sentimental, a senhora já deve ter reparado, mas estou bastante contente que tudo isso se passe em Pávlovsk; aqui, seja lá como for, ainda se podem ver as árvores cheias de folhas.
— Você não pode falar agora — insistiu Lizavéta Prokófievna, cada vez mais sobressaltada. — Está mais é com febre. Esteve para aí a dar guinchos e agora nem pode tomar a respiração! Está sufocado!
— Isso passa, num minuto. Por que teima a senhora em contrariar o meu último desejo? Quer saber duma cousa? Há muito tempo que eu sonhava em vir a conhecê-la, Lizavéta Prokófievna. Kólia me falava tanto na senhora! Ele foi o único que não me largou de mão... A senhora é uma criatura original, uma criatura excêntrica... e quer saber duma cousa, eu já estava gostando da senhora, mesmo.
— Deus meu! E não é que estive a ponto de agredi-lo?
— Foi Agláia Ivánovna quem não deixou. Não estou enganado, não é? Esta é sua filha Agláia Ivánovna? É tão bonita que logo, à primeira vista, adivinhei que era ela, apesar de nunca a haver visto. Que ao menos me seja dado olhar para uma mulher bonita pela última vez na minha vida. — E Ippolít sorriu com uma espécie de sorriso crispado e sem graça. — O príncipe está aqui, e o marido da senhora; todo o mundo. Por que não consente no meu derradeiro desejo?
— Vejam uma cadeira! — gritou Lizavéta Prokófievna; ela mesma, porém, agarrou a primeira que estava à mão e se sentou defronte de Ippolít. — Kólia — ordenou ela — você hoje deve ir com ele, deve levá-lo. E amanhã, certamente, irei eu até lá...
— Se a senhora dá licença, vou pedir ao príncipe uma xícara de chá... Sinto-me muito cansado. É verdade, Lizavéta Prokófievna, ainda há pouco, creio eu, a senhora deu a entender que queria levar o príncipe a tomar chá em sua casa; em vez disso, fique conosco um pouco mais; o príncipe nos fará servir chá a todos, aqui. Desculpe esta minha ideia... Mas como sei que a senhora é de boa índole e o príncipe também... como, afinal, de boa índole somos todos...
O príncipe apressou-se em dar ordens nesse sentido. Liébediev saiu quase a voar, precipitadamente, da sala; Vera acompanhou-o.
— Então, está bem — decidiu repentinamente a generala. — Pode falar, mas fale devagar, sem se excitar. Você, afinal, abrandou o meu coração. Príncipe, o senhor não merece que eu tome chá aqui. Mas... seja. Ficarei; não pensem que me vou desculpar perante quem quer que seja! Absolutamente! Era só o que faltava! Ainda assim, príncipe, peço perdão se ralhei com o senhor; vá lá por esta vez. Mas não estou prendendo ninguém — voltou-se com uma expressão de extraordinária raiva para o esposo e as filhas, como se a tivessem desconsiderado. — Eu sei voltar para casa sozinha.
Mas não a deixaram acabar. Prontamente todos a rodearam. O príncipe logo começou a insistir com todos para que ficassem para o chá, pedindo desculpas por não ter pensado nisso antes. Até o general Epantchín assumiu um ar cordial, chegando a murmurar algo convincente; e perguntou a Lizavéta Prokófievna se na varanda não estaria muito frio para ela. Esteve quase a indagar de Ippolít quanto tempo cursara a Universidade, por um nada deixando de o fazer. Evguénii Pávlovitch e o príncipe Chtch... tornaram-se inesperadamente em extremo cordiais e bem-humorados. Uma expressão de prazer começou a se misturar à de espanto nos rostos de Adelaída e Aleksándra; de fato todos pareciam radiantes por ter acabado o paroxismo de Lizavéta Prokófievna. Somente Agláia continuava amuada lá no seu canto, sentada a pouca distância. Todos resolveram ficar; ninguém quis ir embora, nem mesmo o general Ívolguin, depois que Liébediev lhe segredou qualquer cousa decerto não muito agradável, apenas se retirando para um canto. O príncipe estendeu o seu convite a Burdóvskii e aos amigos deste, sem exceção. Balbuciaram, com ar constrangido, que esperariam por Ippolít e logo se retiraram para a ponta extrema da varanda, onde se sentaram enfileirados. Provavelmente o chá já tinha sido providenciado, antes, por Liébediev, pois foi trazido quase imediatamente.
Soaram as onze horas.
10.
Ippolít apenas umedeceu os lábios, logo depondo sobre a mesinha a xícara de chá trazida por Vera Liébediev; e ficou olhando em torno, meio confuso. Depois começou a falar, com uma espécie de precipitação súbita:
— Está vendo estas xícaras, Lizavéta Prokófievna? Estas xícaras de porcelana chinesa... Creio que são legítimas... Liébediev as traz guardadas a chave sempre no aparador, expostas como numa vitrina, como é de hábito. Fazem parte do dote trazido pela mulher dele... Sempre guardadas! Mas agora estão aqui fora, estão sendo usadas somente por causa da senhora... Em sua honra, tão alegre ficou ele de ver a senhora aqui.
E foi como se esgotasse o assunto, embora ficasse com ar de querer prosseguir.
Evguénii Pávlovitch disse ao ouvido de Míchkin:
— Envergonhou-se. Eu já esperava por isso. É perigoso, não acha? Sinal certo de que, por despeito, tentará fazer alguma cousa tão excêntrica que a própria generala ficará atrapalhada.
O príncipe ficou a olhar para ele de modo indagador.
— Não receia qualquer disparate? Eu por mim não receio. Pelo contrário, até gostaria, pois na verdade estou ansioso para que a nossa querida Lizavéta Prokófievna seja punida... e ainda hoje, até mesmo já se for possível. E não quero sair daqui sem assistir a isso. O senhor parece estar com febre...?
— Oh! Não se incomode. De fato, não estou bem — respondeu o príncipe, sem dar atenção, evidenciando mesmo certa impaciência. É que ouviu falarem no seu nome. Era Ippolít conversando a seu respeito, por entre risadas histéricas. Dizia:
— A senhora não acredita? Pois não acredite; mas o príncipe: acreditaria imediatamente e não se surpreenderia nada.
— Está ouvindo, príncipe? Ouça o que ele está dizendo. — E Lizavéta Prokófievna se voltou para ele.
Pessoas riam, perto. Intrometido como sempre, Liébediev avançou até junto de Lizavéta Prokófievna, muito agitado.
— Ele estava me dizendo que este palhaço aqui, o seu proprietário, foi... quem corrigiu para aquele cavalheiro o artigo que leram esta noite a seu respeito.
O príncipe fitou Liébediev, com surpresa.
— Fale logo duma vez! — exclamou Lizavéta Prokófievna batendo com o pé.
— Bem — balbuciou o príncipe, examinando Liébediev — vejo agora que ele o fez.
— É a santa verdade, Excelência — respondeu Liébediev firmemente, sem a menor hesitação, pondo a mão sobre o peito.
— E parece orgulhar-se disso! — observou ela quase pulando da cadeira.
— Eu sou um homem vil — sussurrou Liébediev, cuja cabeça pendia mais e mais à medida que com a mão ele batia no peito.
— Que tenho eu com isso, se o senhor é uma pobre criatura? Ele pensa que se justifica dizendo que é uma pobre criatura! E o senhor não tem vergonha, príncipe, de tratar com gente tão à toa? Pergunto mais uma vez. A isso não se perdoa.
— O príncipe me perdoará! — exclamou Liébediev com ar comovido.
— Foi só por nobreza de alma — disse Keller com voz retumbante, indo até eles e se dirigindo imediatamente a Lizavéta Prokófievna — foi só por bondade, senhora, e para evitar deixar mal um amigo que se tinha comprometido, que eu não disse nada, esta noite, a respeito das correções, apesar dele ter sugerido que nos atirassem escadas abaixo, como a senhora muito bem ouviu. Para pôr as cousas em sua verdadeira luz, confesso que de fato recorri a ele, como a uma pessoa competente e lhe ofereci 6 rublos, não para corrigir o estilo, mas simplesmente para me dar os fatos que, em sua grande maioria, me eram desconhecidos. As polainas, o apetite em casa do professor suíço, os 50 rublos em vez de 250; toda a arrumação, toda ela pertence a ele. Vendeu-me as informações por 6 rublos, mas o estilo, lá isso não senhora, o estilo ele não corrigiu.
— Devo observar — atalhou Liébediev com febril impaciência e com uma voz arrastada, enquanto a risada crescia cada vez mais — que só corrigi a primeira metade do artigo, porque quando chegamos ao meio não concordamos e até brigamos por causa dum ponto; não corrigi, pois, a segunda parte, não sendo portanto de estranhar a má gramática dessa segunda metade, e que não pode ser levada à minha conta...
— E em tudo isso o que aborrece é essa parte! — observou Lizavéta Prokófievna.
— Permita o senhor que lhe pergunte quando foi corrigido o artigo — disse Evguénii Pávlovitch, dirigindo-se a Keller.
— Ontem de manhã — respondeu Keller. — Nós nos encontramos, tendo cada qual prometido, sob palavra de honra, guardar segredo.
— Isto enquanto se arrastava diante de você com protestos de devoção. Que corja! Não quero mais o seu Púchkin e não consentirei que sua filha venha à minha casa visitar-me.
Lizavéta Prokófievna estava a ponto de erguer-se, mas logo se virou irritada para Ippolít, que ria.
— O senhor acha que eu vim para aqui como palhaço, seu moço?
— Deus me livre de pensar isso! — respondeu Ippolít com um sorriso forçado —, mas o que mais me impressiona, de tudo, é a sua incrível excentricidade, Lizavéta Prokófievna. Confesso que encetei essa conversa sobre Liébediev de propósito; eu sabia que efeito isso teria sobre a senhora, e sobre a senhora só, pois o príncipe certamente perdoará... e até arranjará uma desculpa para ele, em seu espírito, agora mesmo, muito provavelmente. Não é verdade, príncipe?
Faltava-lhe o ar; a sua estranha excitação aumentava a cada palavra.
— Bem! — disse Lizavéta Prokófievna, colericamente, admirada do tom dele. — Bem! E daí?
— Já ouvi muita cousa a respeito da senhora, em assuntos desta mesma natureza... e com grande prazer!... E assim fui aprendendo a respeitá-la! — continuou ele.
O que ele disse foi isso, conquanto com tais palavras quisesse significar cousa muito diferente. Falou com uma certa ironia e ainda por cima se achava excitado duma forma diversa da habitual, como se nisso houvesse inquietação. Mostrava-se confuso e perdia a cada palavra o fio do que estava dizendo. Tudo isso, mais a sua aparência tuberculosa e aqueles seus olhos estranhamente fulgurantes e aloucados não podiam deixar de chamar a atenção geral.
— Eu devia me surpreender, embora nada saiba a respeito do mundo (do que estou bem ciente), não só de a senhora permanecer em nossa companhia, apesar de não sermos companhia decente para a senhora, como também de consentir que essas... jovens escutassem um caso escandaloso, muito embora já devam ter lido tudo isso em romances. Não sei se me explico bem... porque estou meio zonzo, mas, seja lá como for, quem, a não ser a senhora, permaneceria aqui... a pedido daquele garoto (sim, garoto, devo confessar) para passar a noite conosco e tomar parte em tudo, muito embora estivesse farta de saber que no dia seguinte se envergonharia?... (Concordo que não me estou exprimindo lá muito direito.) Eu aprovo tudo isso, extremamente; e profundamente respeito tudo isso, embora qualquer pessoa possa ver pela expressão do rosto do marido da senhora quanto tudo isto lhe parece impróprio. Eh! eh! — cacarejou ele, atarantado de todo; e repentinamente deu em tossir tanto que por uns dois minutos não pôde prosseguir.
— Tanto falou que perdeu o fôlego! — pronunciou Lizavéta Prokófievna, friamente, observando-o com uma curiosidade severa. — Bem, meu caro camarada, já chega. Precisamos ir indo.
— Permita-me que lhe diga também, da minha parte — irrompeu irritado, perdendo a paciência, Iván Fiódorovitch — que minha mulher está aqui, em visita ao príncipe Liév Nikoláievitch, nosso amigo, e vizinho, e que de modo algum lhe compete criticar Lizavéta Prokófievna em qualquer de suas ações e nem, tampouco, se referir alto e na minha cara, ao que está escrito no meu semblante, compreendeu o senhor? E se minha senhora permaneceu aqui — prosseguiu com uma irritação que a cada palavra crescia mais — foi por puro espanto, senhor, e por um interesse, compreensível hoje em dia a todos, pelo espetáculo dado pela gente nova. Eu próprio fiquei, como quem para na rua quando vê algo que... que... cause...
—... curiosidade — completou Evguénii Pávlovitch.
— Excelente e verídico. — E Sua Excelência, quase perplexo pela comparação, ficou radiante. — Precisamente, como um caso raro. Mas, seja lá como for, o que espanta mais do que qualquer outra cousa e me causa pena, se assim, gramaticalmente, se pode dizer, é que o senhor não é capaz, seu moço, de compreender que Lizavéta Prokófievna ainda ficou mais tempo porque o senhor está doente, se é que realmente está desenganado, ou, melhor explicando, ficou por compaixão, ficou por causa do seu angustiante pedido, senhor, e que, portanto, nenhum desdouro, absolutamente nenhum, causa isso ao nome dela, ao seu caráter, agora, ou depois!... Lizavéta Prokófievna! — concluiu o general com o rosto afogueado — se pretende ir, despeça-se então do príncipe...
— Obrigado pela lição, general — aparteou Ippolít, falando sério e olhando-o pensativo.
— Vamos, mamãe. Há quanto tempo já deveríamos ter ido! — disse Agláia, de modo colérico e impaciente, erguendo-se da cadeira.
— Dois minutos mais, caro Iván Fiódorovitch, se é que permite. — Lizavéta Prokófievna voltou-se com dignidade para o esposo: — Creio que ele esteja com febre e com delírio. Basta ver-lhe os olhos. Ele não pode ficar assim. Liév Nikoláievitch, não poderia ele passar a noite aqui, com você, para não ter que ir para Petersburgo, de noite, nesse estado? Cher prince, espero que não se aborreça — acrescentou, dirigindo-se ao príncipe Chtch... logo a seguir dizendo à filha: — Aleksándra, venha cá, endireite esse cabelo, querida.
Ela própria endireitou o penteado da filha, o qual, aliás, estava perfeitamente direito, e a beijou. Só para isso a chamara.
— Bem que eu a cuidava suscetível duma expansão!... — recomeçou Ippolít, despertando da sua rêverie. — Sim, era isso que eu queria dizer. — Mostrava-se satisfeito como se repentinamente se tivesse lembrado de qualquer cousa. — Aqui Burdóvskii sinceramente desejava proteger a própria mãe, não é? E acontece que a desgraçou. Aqui o príncipe deseja ajudar Burdóvskii e com toda a sinceridade lhe oferece a sua amizade, uma fortuna, e talvez seja entre todos nós o único que não sinta aversão por ele; e todavia estão um diante do outro se olhando como a inimigo! Ah! ah! ah! Todos aqui detestam Burdóvskii porque acham que se comportou de maneira hedionda e incrível com sua mãe. É isso, ou não é isso? Todos aqui gostam imensamente da beleza e da elegância das formas e é só isso o que lhos importa. É ou não é verdade? Desde muito reparei que é isso o que importa aqui. Ora bem, deixem que lhes diga que nenhum dos senhores aqui amou tanto sua mãe como Burdóvskii ama a dele. Eu sei, príncipe, que o senhor, às escondidas, mandou dinheiro para a mãe de Burdóvskii, por intermédio de Gánia, aposto até, eh! eh! eh! — ria histericamente — e aposto agora como Burdóvskii o vai acusar de indelicadeza e falta de respeito para com a mãe dele. Juro que assim será. Ah! ah! ah!
A essa altura ficou, de novo, sufocado e tossiu.
— Bem, é tudo? Agora, chega. Já disse tudo o que tinha a dizer? Bem, agora vá dormir; está com febre — interrompeu-o Lizavéta Prokófievna, impaciente, com os olhos arregalados para ele. — Meu Deus! Ele ainda quer falar mais!
— O senhor está rindo, não é? Por que é que o senhor continua a rir de mim? Reparo que o senhor está sempre a rir de mim — disse Ippolít virando-se para Evguénii Pávlovitch, irritadíssimo.
Este, realmente, estava rindo.
— Eu só queria lhe perguntar, sr..., Ippolít... desculpe-me, esqueci o seu nome.
— Sr. Tieriéntiev — disse o príncipe.
— Sim, Tieriéntiev. Obrigado, príncipe. Já me fora mencionado antes, mas me esqueci... Eu queria perguntar-lhe, sr. Tieriéntiev, se é verdade o que ouvi dizer: que o senhor acha que lhe bastará falar, duma janela, pelo espaço apenas dum quarto de hora, para que eles concordem com o senhor e o sigam imediatamente.
— É muito possível que eu tenha falado assim — respondeu Ippolít, procurando lembrar-se. — Com certeza falei — acrescentou logo, ficando ainda mais sequioso e olhando para Evguénii Pávlovitch. — Por quê? E daí?
— Absolutamente por nada. Eu só queria saber para orientação minha.
Evguénii Pávlovitch ficou calado, mas Ippolít continuou a olhá-lo com um ar impaciente de espera.
— Bem, vocês acabaram? — perguntou Lizavéta Prokófievna. — Acabem logo com isso, amigos; ele já devia estar deitado. Ou vocês acham que ainda não acabaram? — Estava irritadíssima.
— Sinto-me tentado a acrescentar — prosseguiu Evguénii Pávlovitch, sorrindo — que tudo quanto ouvi de seus companheiros, sr. Tieriéntiev, e tudo quanto o senhor disse ainda agora, com um talento inconfundível, advém, na minha opinião, da teoria da vitória do direito antes de tudo, à parte tudo e com exclusão de tudo e talvez mesmo antes de saber em que consista esse direito. Mas talvez eu esteja enganado...
— Claro que está enganado. Não chego mesmo a compreendê-lo. Adiante!
Houve um sussurro num dos cantos. O sobrinho de Liébediev estava cochichando qualquer cousa.
— Ora, é pouca cousa mais — continuou Evguénii Pávlovitch. — Só quero observar com isto que, sob esse ponto de vista, se pode facilmente saltar para o direito da força, o direito do braço individual, da vontade pessoal, como já tantas vezes tem acontecido na história do mundo. Proudhon chegou ao direito da força. Na guerra americana muitos dos liberais mais avançados se declararam do lado dos plantadores, sob a base de que os negros são negros, e inferiores à raça branca e, por conseguinte, que o direito da força estava do lado dos brancos...
— Pois bem!
— Portanto o senhor não nega que a força seja direito?
— E que mais?
— Só me resta dizer que os senhores são lógicos. Eu só queria observar que do direito da força ao direito dos tigres e dos crocodilos, mesmo para o direito dos Danilóv e Górskii, não há mais do que um passo.
— Não sei. E que mais?
Ippolít mal escutava o que Evguénii Pávlovitch dizia e respondia “Pois bem!” e “Que mais?” mais como cacoete apanhado em argumentos do que por atenção ou curiosidade.
— Nada mais... É tudo.
— Não pense, porém, que estou zangado com o senhor — concluiu Ippolít, inesperadamente. E, sem saber o que estava fazendo, lhe estendeu a mão, a sorrir.
Evguénii Pávlovitch primeiramente ficou surpreendido; depois, com a maior seriedade, tocou a mão que lhe era oferecida como se estivesse aceitando uma desculpa.
— Devo ajuntar — ponderou com o mesmo modo equivocamente respeitoso — a minha gratidão para com o senhor pela atenção com que me escutou, pois, segundo inúmeras vezes observei, os nossos liberais são incapazes de permitir que alguém mais tenha uma convicção própria sem que logo se defronte com o antagonista desdenhoso, ou cousa pior.
— Nisso tem o senhor perfeitamente razão — observou o general Epantchín. E cruzando as mãos atrás das costas se retirou com ar aborrecido para os degraus da varanda, onde bocejou, cheio de tédio.
— Bem, desta vez, basta, meu amigo — anunciou Lizavéta Prokófievna — pois até você? — disse, referindo-se a Evguénii Pávlovitch.
— Já é tarde — ponderou Ippolít, levantando-se de modo preocupado, e quase alarmado, olhando em volta com um ar perplexo. — Detive-os tanto tempo. Quis dizer tudo... Eu pensava que todos pela última vez... foi tudo imaginação...
Era evidente que ele se reanimava por acessos e supetões. Vinha a si, de repente, do atual delírio, por uns poucos minutos; recordava-se e falava em estado de completa consciência, principalmente em frases desconexas que talvez tivesse pensado ou aprendido de cor em suas longas horas de enfadonha doença, no leito, na solidão das vigílias.
— Bem, adeus — repetiu de modo abrupto. — Pensam que me é fácil dizer-vos adeus? Ah! ah! — riu de sua grosseira pergunta e, furioso por não conseguir dizer o que queria, gritou, irritado: — Excelência, tenho a honra de convidá-lo para os meus funerais, caso ache que eu mereço tal honra... E todos vós, senhoras e cavalheiros, acompanhados pelo general!
Riu outra vez, mas era o riso dum louco. Lizavéta Prokófievna correu para ele assustada e o segurou pelo braço. Ele a olhou com atenção, com o mesmo riso parado e glacial.
— Sabem que vim para cá para contemplar as árvores? Aquelas ali! — e apontou para as árvores do parque. — Será isso ridículo, será? Não haverá nada de ridículo nisso? — perguntou com ar sério a Lizavéta Prokófievna, acabando por ficar imerso em pensamentos; um minuto depois soergueu a cabeça e começou com ar perscrutador a encarar todo o grupo; procurava Evguénii Pávlovitch que estava de pé, bem perto, à direita dele, no mesmo lugar de antes; mas, como tinha esquecido, o procurava. — Ah, o senhor não foi embora! — Encontrara-o, por fim. — O senhor ainda há pouco estava rindo por eu querer discursar da janela para a rua, durante um quarto de hora... Mas saberá o senhor que ainda não fiz dezoito anos? Descansei tanto sobre o meu travesseiro, tanto espiei através da janela, tanto e tanto pensei sobre tudo e sobre todos... que... um homem morto não tem idade, anote bem isso. Foi o que eu pensei na semana passada ao passar as noites acordado... E quer saber que é que o senhor receia acima de tudo? Antes de mais nada o senhor receia a nossa sinceridade, muito embora nos menospreze! A senhora pensou que eu queria me rir da senhora, Lizavéta Prokófievna! Não, eu não me estava rindo da senhora, eu só queria lhe ser agradável. Kólia me disse que o príncipe achava que a senhora não passava duma criança... e é isso mesmo... Sim... mas, sim o quê? Que é que ia dizer?... — Tapou a cara com as mãos e ficou a refletir. — Ah, sim, quando a senhora disse ainda agora “Adeus!” me veio logo este pensamento: “Esta gente toda aqui não existirá mais, nunca mais, para mim! E estas árvores também... Não haverá mais nada para mim a não ser a parede de tijolos vermelhos, as paredes da casa de Meyer... em frente da minha janela... Bem, dize-lhes tudo isso... tenta dizer-lhes; ali está uma beleza de rapariga... que adianta? Estás morto, sabes? Apresenta-te como homem morto; dize-lhes que o homem morto tem licença de dizer o que quiser... e que a princesa Maria Aleksiéievna1 não achará isso defeito!” Ah! ah! Não se riem?... — Olhou-os a todos, um por um, com ar desconfiado. — Não sabem que ideias me vêm à cabeça quando estou com ela pousada no travesseiro! E mais, estou convencido de que a natureza é muito irônica... Disseram ainda há pouco que sou um ateu, mas conhecem ou não conhecem os caprichos da natureza?... De que é que estão rindo, outra vez? São terrivelmente cruéis — rematou, com uma indignação lúgubre, olhando-os a todos. — Eu não corrompi Kólia — concluiu, num tom inteiramente outro, sério e convicto, como se recordando outra vez de qualquer cousa.
— Ninguém, ninguém está rindo de você, aqui. Não se aborreça — disse Lizavéta Prokófievna, aflita. — Amanhã virá um novo médico. O outro estava errado. Sente-se, você nem pode se suster nas pernas! Está delirando... Ah! Que é que vamos fazer com ele, agora? — perguntou, ansiosamente, fazendo-o sentar-se na poltrona.
Uma lágrima brilhou em sua face. Ippolít parou, como que espantado. Ergueu a mão, esticou-a timidamente e tocou a lágrima. Sorriu um sorriso de criança.
— Eu... lhe... — começou ele, jubiloso — a senhora nem imagina quanto eu... Ele sempre me falava tão entusiasticamente da senhora, ele, ali — e apontou Kólia. — Eu gosto do entusiasmo dele. Eu nunca o corrompi! É o único amigo que deixo... Bem gostaria eu de deixar um amigo em cada um, em cada um, mas não me resta senão ele... Eu pensava fazer muito, eu tinha o direito... Oh! quanto eu desejava! Mas agora não desejo nada. Não quero desejar nada. A mim mesmo me prometi não desejar nada; eles que procurem a verdade sem mim! Sim, que a natureza é irônica, é! Por que — resumiu ele com veemência — cria ela os melhores seres apenas para se rir deles, depois? Foi obra dela a única criatura reconhecida sobre a terra como perfeição... foi ainda ela quem mostrou essa criatura aos homens, como foi ela quem decretou que essa criatura dissesse tais palavras pelas quais tanto sangue foi derramado, tanto, tanto que, se o fosse duma só vez, todos os homens se teriam afogado nele. Ah! Bem bom é que eu vá morrer! Talvez também eu viesse a proferir alguma mentira horrível, a natureza me teria feito cair nessa armadilha... Mas eu não corrompi ninguém. Eu queria viver para a felicidade de todos os homens, só para descobrir e proclamar a verdade... Olhando através da janela para as paredes de Meyer, sonhei discursar apenas pelo espaço dum quarto de hora, o bastante para convencer todo o mundo, todo o mundo! E ao menos, uma vez na minha vida, encontrei os senhores, já que não tenho outros; e vejam só: o que resultou de tudo isso? Nada! O que resultou de tudo isso é que também aqui me desprezam! Portanto, não passo dum doido! Portanto não sou necessário aqui! Portanto já é tempo que eu me vá! Não consegui deixar atrás de mim nenhuma memória, nenhum eco, nem traço, nenhuma ação; não preguei sequer uma única verdade!... E não riam do camarada louco! Esqueçam! Esqueçam tudo! Esqueçam, por favor, não sejam assim tão cruéis! Sabem, porventura, que se não me tivesse sobrevindo esta tuberculose eu me mataria?
E ainda parecia estar para dizer muito mais cousas, mas não disse. Recostou-se para trás, na poltrona, cobriu a cara com as mãos e começou a chorar feito criança pequena.
— Que é que vamos fazer com ele, agora?! — exclamava Lizavéta Prokófievna que, se inclinando sobre ele, lhe tomou a mão, apertando-a de encontro ao peito. Ele soluçava convulsivamente. — Ora vamos, vamos, não chore, que é isso? Vamos, chega! Você é um bom rapaz. Deus lhe perdoará, levando em conta a sua ignorância! Vamos, chega; seja homem! Olhe que depois se envergonhará do que está fazendo!
— Longe, bem longe — disse Ippolít, tentando soerguer a cabeça — tenho um irmão e irmãs, ainda bem pequeninos! Pobres inocentes... Ela os corromperá. A senhora, que é uma santa, é uma criança também como eles, salve-os, tire-os daquela mulher... Ela... Oh! Que desgraça Ajude-os, ajude-os! Deus lhe pagará centuplicadamente. Pelo amor de Deus, pelo amor de Cristo!
— Iván Fiódorovitch, escuta, homem, vamos, responde: que é que vamos fazer com ele agora?! — gritava Lizavéta Prokófievna, exasperada. — Faze-me o favor de romper com esse teu silêncio majestático! Se não te resolves a nada, fica sabendo desde já que passarei a noite aqui nesta casa tratando deste moço. Não me tiranizes, estou farta de despotismos!
Aos brados, nervosa, colérica, Lizavéta Prokófievna esperava uma resposta imediata. Mas em muitos casos, como no exemplo de agora, quem assiste a cousa deste gênero tende a receber as perguntas em silêncio total, com interesse passivo, não querendo assumir responsabilidade nenhuma; e só muito depois de tudo isso passado é que exterioriza sua opinião. Entre as pessoas ali presentes em tal circunstância, algumas havia, capazes de continuar sentadas naquela varanda até pela manhã sem proferir uma única palavra. Citemos um exemplo: Varvára Ardaliónovna. Permanecia sentada bem perto, ouvia tudo com uma atenção extraordinária, mas nem mesmo nos momentos mais críticos emitira a menor opinião; decerto, tanto esse seu silêncio como essa curiosidade estavam sendo superintendidos por motivos específicos.
Finalmente, o general deu o seu parecer:
— A meu ver, querida, do que mais se precisa aqui, no momento, é de uma enfermeira e não de uma criatura agitada como tu. Sim, uma pessoa sensata, equilibrada, de confiança, que passe a noite tomando conta do doente. O melhor é falarmos com o príncipe. Seja como for... o doente tem que ficar em paz. E amanhã, então, tomaremos providências, voltaremos ao caso.
E nisto Doktorénko, de modo ao mesmo tempo irritado e irritante, se dirigiu ao príncipe:
— Já é meia-noite! Temos que ir embora! Afinal, ele vem conosco ou fica com o senhor?
— Não seria preferível o senhor ficar aqui fazendo companhia a ele? Há lugar de sobra — redarguiu o príncipe.
— Excelência! — Era Keller, que embarafustou inesperadamente até chegar bem perto do general Epantchín. — Se precisam de um homem de confiança para passar a noite aqui com o rapaz, estou pronto a sacrificar-me por um amigo... É uma alma tão boa! Ah, Excelência, não imagina! Não é de hoje que eu considero este rapazinho como sendo um gênio! Não sou instruído, é claro, vê-se logo, mas que as palavras dele são pérolas, lá isso são, Excelência!
O general afastou-se, com desdém.
Enquanto isso o príncipe raciocinava alto, levado pelas considerações de Lizavéta Prokófievna:
— De fato seria mais conveniente ele ficar aqui, já que tem dificuldade até em andar.
E ela, cada vez mais alvoroçada:
— Mexa-se, príncipe! Ou está dormindo? Olhe, se não o quer aqui, meu caro, eu levo conosco o doente para a minha casa. (Deus do Céu, pois se até o príncipe, também, está que nem se pode suster em pé!) Você também está sentindo alguma cousa?!
Ao entrar, aquela noite, com as filhas em visita ao príncipe, Lizavéta Prokófievna não o encontrara, conforme sua imaginação supunha, às portas da morte. E ele, para a tranquilizar, aparentara estar muito melhor do que de fato estava; mas, já agora, o incidente com o “filho de Pavlíchtchev”, com a barafunda suscitada por Ippolít, tudo, somado à sua doença ainda recente e a recordações inerentes, trabalhara a sua sensibilidade delicada, pondo-o no limiar da febre. Certa ansiedade amedrontadiça podia ser notada nos seus olhos que não largavam Ippolít, como à espera de mais alguma cousa.
E eis que de repente Ippolít se levantou horrivelmente lívido, com o rosto deformado por uma expressão de vergonha terrível e desesperadora. Tal aspecto estava mais nítido principalmente no olhar que verrumava o grupo com chispas de ódio e pavor, muito embora os lábios se contorcessem num arreganho abjeto. Circunvagou o olhar sempre com o mesmo fulgor até encontrar Burdóvskii e Doktorénko que se achavam nos degraus da varanda. E correu para eles.
— Ah! Era isto que eu temia! — exclamou o príncipe. — Tinha que se dar!...
Lá dos degraus Ippolít se voltou depressa para ele e, com os traços todos da fisionomia vibrando de raiva demoníaca, o apostrofou:
— Hã! “Era isto que eu temia”, hein? Mas “tinha que se dar”, hein? Pois deixe que lhe diga: se há aqui alguém que eu deteste — vociferou, cuspindo, com um guincho estridente —, olhe que a todos aqui eu detesto, a todos, todos, é o senhor, alma jesuítica, visguenta, milionário idiota, filantropo reles! Ao senhor detesto mais do que aos outros e a tudo o mais no mundo! Eu o compreendi logo e o detesto desde muito tempo, quando apenas o conhecia de ouvir falar a seu respeito. Detestava-o já com todo o ódio da minha alma... E tudo isto foi elucubração sua. O senhor me conduziu a esta ruína que aqui está. O senhor arrastou um homem quase morto até à vergonha! O senhor, o senhor, o senhor é o culpado desta minha abjeta covardia! Eu o mataria, se eu tivesse que continuar a viver! Não quero, não preciso da sua benevolência, não preciso de nada, de nada, está ouvindo? De ninguém! O senhor me pegou em delírio, mas agora ouse triunfar, se é capaz! Eu os amaldiçoo, a todos, a todos!
E a essa altura, ficou sufocado.
— Ele se envergonhou de ter chorado! — sussurrou Liébediev ao ouvido de Lizavéta Prokófievna. — Isso “tinha que se dar”; o príncipe — bravos! — viu bem certo através dele.
Lizavéta Prokófievna, porém, nem se dignou olhá-lo de esguelha. Estava de pé, ereta, altiva, a cabeça um pouco para trás, examinando “toda essa ralé” com uma curiosidade desdenhosa. Quando Ippolít acabou, o general encolheu os ombros. Sua mulher olhou-o, medindo-o de alto a baixo, colericamente, como a exigir uma explicação a esse movimento de ombros, mas logo se voltou para o príncipe.
— Temos que lhe agradecer, príncipe, sim, ao senhor, o excêntrico amigo de nossa família, a agradável noite que nos proporcionou. Suponho que o seu coração se rejubila agora por ter conseguido arrastar-nos até ao âmago de sua loucura... Basta, meu caro amigo. Muito obrigada por nos ter dado uma visão bem clara, afinal, do que o senhor é.
E com modos indignados começou a arranjar o manto, esperando “essas pessoas aí” desaparecerem, para então sair. Um fiacre chegou nesse momento para os levar. Doktorénko mandara, um quarto de hora antes, o filho de Liébediev, um garoto de colégio, ir buscar um carro de praça. Imediatamente, depois da esposa, o general Epantchín conseguiu deitar a palavra, também.
— Sim, com efeito, príncipe! Eu nunca poderia esperar por uma cousa destas, depois de tudo, depois de todas as nossas amistosas relações... E, de mais a mais, Lizavéta Prokófievna...
— Não, não, arre! Como se pode fazer uma cousa destas? — exclamou Adelaída, aborrecida com seus país. E aproximando-se do príncipe, estendeu-lhe a mão.
Ele somente pôde responder com um sorriso apalermado. E já em seus ouvidos soava uma outra voz bem feminina. Era Agláia:
— Se não expulsar daqui para fora toda essa gente sórdida, eu... eu o odiarei por toda a minha vida!... Por toda a minha vida!
Tinha um ar frenético e se virou antes que ele a pudesse olhar. Todavia, já agora, quem e o que poderia ele escorraçar, visto os outros terem carregado com o doente e com ele terem partido?
— Afinal? Decides-te ou não, Iván Fiódorovitch? Até que horas devo eu aturar este resto de espetáculo?
— Está bem, está bem, querida, estou às tuas ordens. Príncipe...
E Iván Fiódorovitch estendeu a mão para o príncipe que nem lha pôde apertar, pois o general abalou atrás de Lizavéta Prokófievna que descia os degraus da varanda, furiosa, praguejando.
Aleksándra, Adelaída e o noivo desta despediram-se do príncipe com demonstrações de afeto. O mesmo fez Evguénii Pávlovitch que era o único de bom humor.
— Desde que vi essa gente, príncipe, previ o desfecho. Apenas lamento que o meu pobre amigo tivesse que passar horas tão ruins — sussurrou, com um sorriso encantador.
Agláia foi embora sem dizer adeus.
Mas as peripécias dessa noite não haviam acabado. Lizavéta Prokófievna ainda teria que se defrontar com outra surpresa. Ainda não tinha acabado de descer os degraus que davam da varanda diretamente sobre a estrada que marginava o parque, quando uma carruagem magnífica, puxada quase a galope por dois cavalos brancos, se aproximou da vila.
Dentro da caleça estavam duas senhoras vestidas espaventosamente. A caleça passou, mas a alguns metros da casa os cavalos foram sofreados com estardalhaço. E uma das senhoras, como se houvesse reconhecido repentinamente uma pessoa com quem precisasse falar, se voltou, começando a dizer alto, com uma voz cristalina:
— Evguénii Pávlovitch. És tu, querido?
Donde se achava, o príncipe se sobressaltou e talvez mais alguém. Mas a voz continuava:
— Ah! Como foi bom te haver encontrado, afinal!... imagina tu que mandei um mensageiro, isto é, dois, dois mensageiros à cidade! E estiveram o dia inteiro à tua procura!
Evguénii Pávlovitch parou no último degrau, como fulminado. Lizavéta Prokófievna também se deteve, mas sem ficar petrificada, pondo-se apenas a encarar a audaciosa personagem com o mesmo desprezo frio e a mesma altivez fremente com que, cinco minutos antes, encarara “aquela ralé ignóbil”. Depois volveu um olhar firme para Evguénii Pávlovitch.
E lá da caleça a voz cristalina continuava:
— As notícias são ótimas, sabes? Não te inquietes mais por causa das promissórias que estavam com o Kupfer. Rogójin comprou-as por 30 mil rublos. Acabei por persuadi-lo. Arranjei-te sossego para mais três meses. Quanto a Biskúp e toda a sua canalha, não te aflijas que daremos um jeito por intermédio de amigos. Vês? Tudo se aplainou. Fica tranquilo, querido. Até amanhã!...
E a carruagem rodou, logo desaparecendo.
Rubro de indignação, depois lívido de espanto, Evguénii Pávlovitch olhava agora em redor, muito espantado, raciocinando em voz alta: “Quem será essa criatura? Promissórias?... Quais promissórias? Não tenho a menor ideia do que isto signifique...”
Lizavéta Prokófievna continuou a fixá-lo ainda por uns dois minutos mais. Por fim embarafustou estrada adiante, rumo a casa, todos os demais procurando acompanhá-la.
Um minuto depois Evguénii Pávlovitch voltou à varanda, onde ainda se achava o príncipe, e, extremamente agitado, lhe perguntou:
— Príncipe, porventura não saberá o que significa essa... história?
— Não sei de nada, não entendi cousa nenhuma — respondeu o príncipe, entregue também ele a um estado de angustiosa tensão.
— Deveras? Que significará tudo isso?
— Não sei... Não posso atinar...
Afinal Evguénii Pávlovitch deu de ombros, com uma espécie de riso espasmódico:
— Promissórias? Eu, assinar promissórias? Isso é algum engano! Não é comigo! Dou-lhe a minha palavra de honra. Mas, que é isso? Está se sentindo mal? Está desmaiando, príncipe?
— Eu? Oh! Não; não!... Asseguro-lhe que não...
Nota
1 Alusão à comédia de Gribolédov, A desgraça de ter inteligência, em que Famussov exclama numa passagem diretamente ligada ao título: “Meu Deus, que não dirá agora a princesa Maria Aleksiélevna?”. (N. do T.)
11.
Só três dias depois de tudo isto foi que os Epantchín ficaram de bem outra vez com o príncipe.
Este, como sempre, se considerava muito culpado, aceitando contrito o castigo, muito embora no íntimo estivesse perfeitamente convencido de que Lizavéta Prokófievna não estava propriamente zangada com ele, mas consigo mesma. Assim, um tão longo período de animosidade o reduziu, no começo do terceiro dia, ao mais lúgubre atarantamento. Outras circunstâncias contribuíam para isso; principalmente uma que, para a sensibilidade do príncipe, foi crescendo de importância durante aquele tríduo insuportável. (Não era de agora que ele se censurava de dois defeitos opostos: a sua excessiva presteza “insensata e despropositada” em acreditar em toda gente e, por outro lado, a sua lúgubre desconfiança de todo o mundo.) Em síntese: já no terceiro dia o tal incidente da dama espalhafatosa que interpelara Evguénii Pávlovitch estava tomando em sua imaginação proporções alarmantes e misteriosas. A essência de tal enigma, sem falar em outros aspectos do caso, residia para ele, Míchkin, nesta mortificante pergunta: “Era ele culpado dessa nova ‘monstruosidade’, ou se daria que...” Mas não tinha coragem de continuar o pensamento. Quanto às letras “N. F. B.”, não via nisso senão uma inocente jocosidade... uma brincadeira sobremodo infantil. Sim, de fato; tanto que chegaria a ser vergonhoso e até mesmo de certo modo deselegante tentar esquadrinhar isso.
Todavia, no dia seguinte àquela cena noturna tão escandalosa e nociva, da qual se julgava a causa maior, tivera Míchkin o prazer, logo de manhã cedo, duma visita do príncipe Chtch... acompanhado de Adelaída. “Tinha vindo principalmente para indagar da sua saúde.” Tratava-se dum passeio matinal. Adelaída chegara até a descobrir no parque uma árvore... Sim, uma árvore maravilhosa! Velha, copada, de galhos retorcidos, com uma fenda enorme no tronco e já toda coberta com folhas novinhas muito verdes. Que esplêndido motivo para uma tela! Positivamente não podia Adelaída deixar de pintar aquela árvore. De forma que não se referiam senão a isso, durante a curta visita, que apenas durou uns trinta minutos. Como sempre, o príncipe Chtch... se mostrava muito cordial e amável. Interrogou Míchkin sobre causas antigas referente ao modo pelo qual haviam travado conhecimento; assim, nada foi dito a propósito dos acontecimentos da véspera.
Mas Adelaída não era criatura para se conter. Confessou com um sorriso que tinham vindo “incógnitos”. Mas a confissão ficou apenas nisto, embora através da palavra “incógnitos” se pudesse depreender que ela e eventualmente o noivo estavam em má cotação perante os pais, ou melhor, perante a mãe. Mas nem Adelaída nem o príncipe Chtch... proferiram uma única palavra a respeito de Agláia ou mesmo do general Epantchín. E saindo, para prosseguir no passeio, tampouco instaram para que Míchkin os acompanhasse. Muito menos insinuaram que os fosse visitar a casa. Verdade é que uma frase muito sugestiva escapou dos lábios de Adelaída. Conversando sobre uma aquarela que estivera pintando, demonstrou, de repente, vivo desejo de mostrar-lha. “Como é que se fará isso? Espere! Ou mando Kólia trazer-lha ainda hoje, caso ele apareça, ou eu mesma lha trarei amanhã quando sair para dar uma volta com o príncipe”, concluiu ela satisfeita por ter saído da dificuldade tão habilmente e até mesmo com ar natural em seu efeito recíproco.
Por fim, quando já se despedia, o príncipe Chtch... fez um gesto de quem quase se esquecera duma cousa.
— Ah! Sim! Sabe o senhor por acaso quem é aquela pessoa que falou alto, ontem, lá da carruagem?
O príncipe respondeu logo:
— Foi Nastássia Filíppovna. O senhor não descobriu que era ela? Mas quem a acompanhava, não sei.
— Ah! Sim. Já me disseram também a mesma cousa. Mas que desejaria ela dizer assim tão alto? Tratava-se, para mim, devo confessar, dum mistério... Para mim e para todos.
E, falando, o príncipe Chtch mostrava extrema e visível perplexidade.
Simploriamente, Míchkin explicou:
— Referiu-se a umas promissórias de Evguénii Pávlovitch. Comunicou-lhe que, a pedido dela, Rogójin tirou esses títulos das mãos dum agiota. Que ele, Rogójin, esperará, enquanto Evguénii Pávlovitch não as puder saldar.
— Eu escutei, eu escutei, meu caro príncipe. Mas não pode ser!... Evguénii Pávlovitch não pode ter assinado tais letras! Pois se ele é riquíssimo!... É verdade que se descuidou, tempos atrás, e, com efeito, eu próprio o ajudei... Mas, com a fortuna que tem, precisar passar promissórias a um agiota e estar embaraçado por isso!? É impossível! E nem pode ele estar assim em termos íntimos e amistosos com Nastássia Filíppovna! Eis o que é mais misterioso. Evguénii Pávlovitch jura que isso é algum equívoco (e eu confio nele de modo absoluto). Escute uma cousa, caro príncipe: não saberia o senhor de nada? Não ouviu por acaso qualquer referência, ou boato?
— Não tenho a menor noção a respeito desse mistério e lhe asseguro que estou alheio a tudo!
— Ora, ora, príncipe, que modo estranho de responder. Quer que eu lhe seja franco? Hoje não estou conhecendo o senhor. Então acha que eu o suporia comprometido num caso tão escabroso? O príncipe hoje não está muito feliz!
Deu-lhe logo um abraço, chegando até a beijá-lo.
— Escabroso? Como, escabroso?
— Pois não percebe que tal pessoa quis positivamente prejudicar Evguénii Pávlovitch, atribuindo-lhe, aos ouvidos dos que saíam da varanda, fatos de que ele não participou?! Fatos que ele até ignora! — redarguiu o príncipe Chtch..., com fisionomia severa.
Míchkin ficou confuso, continuando a olhar com firmeza para o seu interlocutor, como à espera de outras palavras em prosseguimento àquela observação. E vendo que tais palavras não vinham, instou, de modo indireto:
— Tal pessoa apenas se referiu a umas promissórias... Foi só sobre esse assunto de dívidas que tal pessoa quis comunicar qualquer solução...
— Mas eu lhe pergunto... e o príncipe julgue por si mesmo... que pode haver de comum entre tal... pessoa e Evguénii Pávlovitch? E ainda mais com esse Rogójin metido no caso? Repito-lhe que a fortuna de Evguénii é enorme! Disso estou perfeitamente informado, sem contar que ainda herdará uma outra fortuna dum tio! Será que Nastássia Filíppovna não teria querido...
E nisto o príncipe Chtch... interrompeu a frase, pois evidentemente não lhe convinha conversar com o príncipe a respeito de Nastássia Filíppovna.
— Está bem... Mas, pelo menos ele a conhece... É a dedução, perante o que todos ouvimos aqui da varanda, ontem — disse Liév Nikoláievitch.
— Bom, lá isso pode ser. Creio que sim. Talvez se tenham dado há uns dois ou três anos passados... Ou melhor: Evguénii se dava com Tótskii. Não passou disso. Intimidade nunca houve. De mais a mais ela não estava aqui. Andou muito tempo não sei por onde. Muita gente que veraneia em Pávlovsk nem sabe da presença dela aqui. Eu, por exemplo, foi apenas há três dias, se tanto, que reparei nessa carruagem.
— Que carruagem esplêndida! — disse Adelaída.
— Sim, realmente é uma caleça muito bonita.
E os dois noivos se despediram de maneira amistosa, até mesmo fraternal, do príncipe Liév Nikoláievitch.
Mas o nosso herói emprestou a essa visita uma importância máxima. Desde a noite anterior que ele suspeitava duma série de cousas cujo prelúdio vinha de data precedente e que atingia agora o ápice com essa visita de encontro às suas apreensões. Percebia que o príncipe Chtch..., ao querer interpretar o incidente andara quase beirando a verdade determinante do mesmo, percebendo até que reinava uma intriga. (“Estou em jurar que ele percebeu tudo... mas como não ousa falar às claras, me comunicou sua desconfiança alinhavando uma interpretação vaga.”) Uma cousa era mais do que certa: os dois tinham vindo vê-lo na esperança de colher qualquer informação esclarecedora. (Pelo menos o príncipe Chtch... viera com esse intuito.) Portanto o consideravam incluído nessa tal intriga. Ora, se de fato Nastássia Filíppovna urdira tal estratagema e o efetivara, a dedução a tirar era esta: ela agira assim movida por um terrível propósito. Qual? Um propósito especialíssimo! “E agora como se há de fazer com que essa mulher não prossiga nisso? Não há quem seja capaz de a demover duma resolução quando ela tem um desígnio em mente!” E o príncipe sabia disso por experiência própria. “Ela é louca! Louca!”
Levara toda aquela manhã emaranhado no exame de muitos outros incidentes inexplicáveis e simultâneos, e demandando, todos eles, uma imediata solução. O príncipe não podia deixar de se sentir acabrunhadíssimo. Sua atenção foi distraída um pouco pela vinda de Vera Liébediev que apareceu com Liúbotchka para visitá-lo e que, muito risonha, lhe contou uma história muito comprida. Não tardou que entrasse também a outra irmãzinha, sempre de boca aberta, a olhar muito pasmada para o príncipe; e daí a pouco surgia o filho de Liébediev, que já frequentava a escola! Este então informou que “a estrela chamada Absinto”, no Apocalipse, “e que cai sobre os cursos das águas” era, segundo a interpretação do pai, a rede de estradas de ferro espalhadas pela Europa. O príncipe não acreditou que Liébediev interpretasse assim esse trecho de versículo, tendo, em pensamento, resolvido perguntar isso depois, na primeira oportunidade.
Por intermédio de Vera veio a saber que Keller se encafuara placidamente na casa deles. Instalara-se no pavilhão, desde a véspera, e não dava o menor sinal de estar com vontade de se ir embora, principalmente depois que arranjou amizade com o general Ívolguin, estando ambos inseparáveis. Como motivo dessa resolução dava o seu desejo de “se instruir a fundo”.
À proporção que via e escutava os filhos de Liébediev, o príncipe cada vez simpatizava mais com eles. Kólia não apareceu porque logo cedinho fora a Petersburgo. O próprio Liébediev também saíra ao clarear do dia, para tratar de certos negócios seus. Mas o príncipe esperava com impaciência a visita de Gavríl Ardaliónovitch que devia vir vê-lo nesse dia, sem falta. De fato este chegou às seis da tarde, depois do jantar. O príncipe percebeu, ao primeiro relance, que se algum homem havia que devesse saber “as novidades”, era este. E como não, se na verdade dispunha de gente como a sua irmã e o cunhado, fontes esplêndidas de informações?
As relações do príncipe com Gavríl Ardaliónovitch eram especiais. Encarregara-o, por exemplo, de deslindar o caso de Burdóvskii, recomendando-lhe especial interesse. Não obstante a confiança demonstrada em tal circunstância, perdurava entre ambos, devido a conjunturas anteriores, certa cerimônia, havendo assuntos sobre os quais não se abalançavam a trocar impressões. O príncipe parecia notar em Gánia, às vezes, o desejo duma sinceridade maior e mais amistosa. Agora, por exemplo, mal acabou de entrar, todo o seu feitio dava ensejo a que Míchkin rompesse de vez com a camada de gelo que ainda os bloqueava. Mas Gavríl Ardaliónovitch estava com pressa, porque sua irmã, com quem tinha um assunto urgente a tratar, o estava esperando com as crianças de Liébediev lá no pavilhão.
Por isso a visita de Gánia ao príncipe não durou mais do que vinte minutos. E se aquele contava com uma série completa de perguntas impacientes, confissões impulsivas e desabafos íntimos, se enganou tremendamente, pois o príncipe todo esse tempo permaneceu como que distraído, com o pensamento longe. Absolutamente não se deram as tais perguntas esperadas... Muito menos ainda a pergunta principal que era lógico esperar. Então Gánia resolveu adotar a maior cautela nas próprias palavras. E falou sem parar, enchendo bem aqueles vinte minutos, mantendo uma conversa viva, rápida, com muita efusão. Não tocou, absolutamente, no ponto principal.
Disse, entre outras cousas, que Nastássia Filíppovna estava em Pávlovsk havia somente uns quatro dias, mas que já atraía as atenções gerais. Que se instalara com Dária Aleksiéievna numa pequena casa desgraciosa na rua dos Marinheiros, mas que a sua carruagem era talvez a mais luxuosa de Pávlovsk. Que a não largava uma chusma de seguidores, velhos e moços, sua carruagem sendo acompanhada muitas vezes por homens a cavalo. Que ela, Nastássia Filíppovna, continuava muito caprichosa na escolha de amigos, recebendo somente aqueles com os quais simpatizava.
Que ainda assim se estava formando um verdadeiro regimento à sua volta, dispondo até de campeões caso precisasse. Que certo senhor que morava numa vila de veraneio já brigara com uma senhorita de quem era formalmente noivo. E que um general escorraçara o filho, pelo mesmo motivo. Que ela aparecia constantemente pelas ruas guiando a parelha, e que a acompanhava uma jovem encantadora duns dezesseis anos no máximo, parenta longe de Dária Aleksiéievna. Que essa jovem cantava muito bem, de maneira que a casa, de noite, atraía as atenções gerais. Que, no entanto, Nastássia Filíppovna se comportava com extrema conveniência, vestindo-se sem alarde e com extraordinário bom gosto, a ponto de todas as damas invejarem sua elegância, sua beleza e sua carruagem.
— O excêntrico incidente de ontem — aventurou Gánia — foi decerto premeditado. Ninguém podia esperar por uma cousa dessas, dada a compostura que até então manteve: para se descobrir nela qualquer defeito ou falta, só procurando muito ou inventando. Mas não deve haver gente tão baixa assim para se encarregar disso — concluiu ele, certo de que o príncipe lhe iria perguntar por que chamara ao incidente da véspera de “premeditado” e por que não haveria gente tão baixa assim para agir contra ela...
Gánia espraiou-se quanto a Evguénii Pávlovitch sem que nada lhe fosse perguntado a tal respeito; e o mais estranho é que entrou em tal assunto sem o menor pretexto. Na opinião dele, Evguénii Pávlovitch antes não conhecia Nastássia Filíppovna e, mesmo agora, a devia conhecer muito por alto, pois lhe tinha sido apresentado eventualmente havia uns quatro dias apenas, ao sair a passeio, não tendo ido, provavelmente, vez alguma à casa dela. Quanto às promissórias, havia algum fundamento; Gánia nem tinha dúvida. A fortuna de Evguénii Pávlovitch era de fato vultosa, mas certos negócios ligados à sua propriedade estavam realmente confusos. E ao chegar a este ponto deveras interessante, Gánia parou. Assim pois, relativamente ao escândalo da véspera feito por Nastássia Filíppovna, não fez ele nenhum outro comentário além do que acima foi exposto.
Finalmente apareceu Varvára Ardaliónovna, procurando Gánia. Ficou só um minuto; participou (sem ter sido perguntada) que Evguénii Pávlovitch fora, aquele dia, a Petersburgo e talvez ficasse lá até o dia seguinte. Que Ptítsin, seu marido, também estava em Petersburgo, provavelmente por causa dos negócios de Evguénii Pávlovitch; sabia disso muito por alto. E ao se ir acrescentou que Lizavéta Prokófievna estivera todo o dia com o diabo no corpo; e que, o que era pior, Agláia brigara com a família inteira, não apenas com o pai e a mãe, mas até com as irmãs, “o que constituía um péssimo sinal”.
Depois de lhe terem dado, assim, meramente de passagem, este último retalho de notícias (que era de extrema importância para o príncipe), irmão e irmã lá se foram. E Gánia não pronunciou uma só palavra a respeito do caso do “filho de Pavlíchtchev”. E assim agira, decerto, por falsa delicadeza, para poupar os sentimentos do príncipe. Ainda assim, o príncipe lhe agradeceu, mais uma vez, a maneira cuidadosa pela qual se conduzira no caso, ficando contentíssimo de se ver sozinho, afinal. Deixou a varanda, atravessou a estrada e entrou parque adentro. Precisava pensar muito antes de decidir certo passo. E nem tal “passo” era dos que se possam dar a esmo, e sim dos que só se devem dar depois de madura deliberação. Veio-lhe então uma terrível vontade de deixar tudo e de voltar para o lugar donde tinha vindo: ir indo, até chegar a qualquer região remota; ir, imediatamente, sem sequer dizer adeus a quem quer que fosse. Um pressentimento lhe veio de que se permanecesse ali, poucos dias que fosse, seria arrastado a esse mundo, irrevogavelmente, e que estragaria a sua vida dentro disso, para sempre. Mas nem dez minutos duraram tais considerações. Logo caiu em si e verificou que lhe seria “impossível” ir embora, que isso seria quase covardia. Tantas e tais eram as dificuldades que se lhe antolhavam que lhe cabia o dever de solvê-las ou, no mínimo, de fazer tudo quanto pudesse para solvê-las. Absorvido em tais pensamentos regressou a casa depois dum passeio de menos de um quarto de hora. E nesse momento se sentia profundamente infeliz.
Liébediev ainda não regressara; por isso foi que lá pela noitinha Keller conseguiu irromper diante do príncipe entornando confidências e confissões, apesar de não estar bêbedo. Declarou francamente que estava ali, diante de Míchkin, para lhe contar toda a sua vida e que fora para fazer isso que ficara em Pávlovsk. Não houve a menor possibilidade de o príncipe se livrar dele. Nada o induziria a ir embora. Keller ali estava preparado para um discurso interminável, engrolando incoerências. Mas, sem mais aquela, quase logo depois das primeiras palavras, passou logo do preâmbulo à conclusão, anunciando que “tinha perdido a tal ponto qualquer traço de moralidade (e apenas por falta de crença no Todo-Poderoso!) que se tornara até gatuno”.
— Pode o senhor imaginar uma cousa destas?
— Escute, Keller. Se eu estivesse em seu lugar só haveria de confessar isso em caso de muita necessidade — começou o príncipe. — Mas talvez você faça cousas assim contra si mesmo, de propósito!
— Ao senhor, só, só ao senhor, e isso mesmo para promover o meu aperfeiçoamento. A mais ninguém. Morrerei levando o meu segredo para a tumba. Mas, príncipe, se soubesse, se pudesse vir a saber quão difícil é hoje em dia se arranjar dinheiro! Como há de uma pessoa arranjá-lo, permita que lhe pergunte? A resposta é sempre a mesma: “Traga ouro e diamantes e lhe daremos alguma cousa por eles!” Aí está por que eu não o arranjo. Pode o senhor imaginar uma cousa destas? Perdi o meu caráter, acabei por perdê-lo de tanto esperar, esperar. “Pode-me dar alguma cousa por esmeraldas?”, perguntei então. “Claro, por esmeraldas também”, disse o homenzinho. “Bravos, então está bem”, disse eu! E, pondo o meu chapéu, raspei-me, apostrofando-os: “O que vocês são, são uns canalhas. Danem-se! Sim, por Júpiter!”
— E você tinha esmeraldas, mesmo?
— Lérias! Ó príncipe, que ideia doce, inocente, pastoral, digo até mesmo cândida, que o senhor tem da vida!
O príncipe acabou sentindo não propriamente pena desse homem, mas indisposição por causa dele. Ocorreu-lhe ajudar de qualquer forma essa criatura, mediante alguma boa influência. Não, no caso, influência sua, pois não se considerou capaz de poder exercê-la, por muitos motivos; não que deixasse de confiar em si mesmo, mas devido ao seu feitio sui-generis de encarar as cousas. E assim o foi aturando, uma vez vencido o desejo de se ver livre dele. Keller, com extraordinária presteza, confessou ações sobre as quais pareceria inconcebível que alguém quisesse conversar. A cada nova história asseverava que positivamente estava arrependido e “cheio de lágrimas”, mas, falando, via-se que estava orgulhoso de as ter cometido. E se tornou tão absurdo que, por fim, tanto ele como o príncipe se riam a perder.
— A grande cousa é que você tem uma espécie de confiança infantil, e uma extraordinária franqueza — disse no fim, o príncipe. — E, quer saber, isso faz com que muita, muita coisa lhe seja perdoada!
— Eu tenho alma nobre, nobre e cavalheiresca! — confirmou Keller enternecido. — Mas quer saber duma cousa, príncipe: tudo isso não passa de sonho, ou, como direi?, de bravata; e sempre dá em nada. E por que será? Não compreendo!
— Não descoroçoe! Agora se pode dizer, com certeza, que você me fez um relato total de tudo. Parece-me que até será impossível acrescentar qualquer cousinha mais ao que você me disse, não é?
— Impossível? — exclamou Keller, quase com ar aflito. — Oh, príncipe, como o senhor interpreta, duma maneira completa, à la Suisse, a natureza humana!
— Acha então possível acrescentar mais alguma cousa? — indagou o príncipe, com um espanto acanhado. — Ora diga lá, Keller, que é que deseja de mim e por que foi que veio a mim com essa confissão.
— Do senhor? O que desejo? Em primeiro lugar, causa prazer assistir à sua simplicidade; dá gosto sentar e ficar ouvindo o senhor. A gente vê logo que tem diante de si uma pessoa virtuosa, nem há dúvida; e, em segundo lugar, em segundo lugar... — e ficou confuso.
— Quem sabe se você não queria me pedir dinheiro emprestado? — foi-lhe ao encontro do pensamento o príncipe com ar grave e singelo, um pouco timidamente, até.
Keller não pôde deixar de ficar sobressaltado. Assestou imediatamente, cheio de admiração, o olhar no rosto do príncipe e arrumou com o punho fechado, violentamente, sobre a mesa.
— Ora aí está como se derruba um sujeito, dum golpe só! Palavra de honra, príncipe, que simplicidade, que inocência, cousa nunca vista nem mesmo na Idade do Ouro! Como duma vez só o senhor traspassa o âmago dum sujeito, como uma flecha, com essa sua tão profunda observação psicológica! Mas, com licença, Alteza! Isto requer, está a pedir uma explicação, pois estou traspassado... Naturalmente, em todo este meu ímpeto, o meu intento era pedir-lhe dinheiro emprestado. Mas o senhor me perguntou como se não achasse repreensível, como se fosse uma cousa mais que lógica.
— Sim... de você só podia ser mesmo assim.
— E isso não o aborrece?
— Não!... Por quê?
— Escute, príncipe. Tenho estado por aqui, desde ontem; primeiro, por uma deferência toda especial para com o arcebispo francês Bourdaloue,1 estive saboreando-o em casa de Liébediev até às três da madrugada; e, em segundo lugar, e esse é que é o principal (e agora solenemente lhe faço o juramento de que estou a dizer a santa verdade!) fui ficando porque eu desejava, em lhe fazendo uma completa e sincera confissão, como direi?, promover o meu aperfeiçoamento. E pensando nisso adormeci, banhado em lágrimas, lá pelas quatro da madrugada. Acreditará o senhor na palavra dum homem de honra, se eu disser que logo que caí no sono, sinceramente cheio por dentro, e, como direi?, por fora, de lágrimas (sim, eu estava soluçando deveras, lá disso me recordo eu!), um pensamento infernal me sobreveio? “E por que, uma vez tudo feito e dito, não lhe pedir dinheiro emprestado, depois da minha confissão?” E o caso foi que preparei a minha confissão, como direi?, assim à guisa dum fricassé, tendo lágrimas como molho, para calçar o caminho com aquelas lágrimas de modo a abrandá-lo e sacar-lhe 150 rublos. Não acha o senhor que isso foi vil?
— O mais provável é que isso não se tenha dado assim; o mais certo deve ter sido que ambas as cousas vieram ao mesmo tempo. Os dois pensamentos lhe acudiram juntos. Aliás isso acontece muitas vezes. Comigo se dá isso constantemente. Parece-me, porém, que seja um mau sinal. E quer saber duma outra cousa, Keller? Não me farto de me repreender por isso. Você deve ter estado a falar como se fosse eu, ainda agora. Às vezes chego a imaginar que todo o mundo seja assim — continuou o príncipe com ar sério e de profundo interesse — tanto que eu estava começando a desculpar-me, pois é extremamente difícil lutar contra esses pensamentos duplos. Eu tenho tentado. Só Deus sabe como eles nascem e surgem no espírito. Mas você chama a isso simplesmente vilania! Agora comecei a ter medo desses pensamentos, outra vez. Seja lá como for, não sou seu juiz. Mas, a meu ver, não se pode chamar isso de vilania, apenas. Que acha você? Você estava agindo fraudulentamente para obter o meu dinheiro com lágrimas; mas, ao mesmo tempo, você jura que também havia um outro motivo para a sua confissão. Logo havia tanto um motivo honroso, como um outro, mercenário. Quanto ao dinheiro, você precisa dele para viver dissolutamente, não é? Por conseguinte depois duma tal confissão isso naturalmente é fraqueza. E afinal como há de você desistir de viver dissolutamente, duma hora para outra? É impossível, eu sei. Que fazer, então? O melhor é deixar isso com a sua consciência. Que acha?
E o príncipe olhou Keller com grande interesse. O problema das ideias duplas tinha evidentemente ocupado o seu espírito por algum tempo.
— Esplêndido! Palavra que não percebo por que, afinal de contas, chamam o senhor de idiota! — exclamou Keller.
O príncipe corou um pouco.
— Nem o pregador Bourdaloue teria poupado um homem; mas o senhor poupou um, julgando-me de modo humano! Para me punir, pois, e para lhe mostrar quanto isso me toca, não tomarei 150 rublos. Dê-me só 25, que serão suficientes! É tudo quanto desejo, por uns quinze dias. Não voltarei por causa de dinheiro, senão daqui a uns quinze dias. Minha intenção era dar um presentinho a Agáchka, mas ela não o merece. Oh! Que Deus o abençoe, príncipe!
Liébediev entrava, tendo acabado de chegar da cidade. E reparando que Keller estava com uma nota de 25 rublos na mão, amarrou a cara. Mas Keller, uma vez provido de fundos, ficou com pressa de se ir embora. Imediatamente se pôs Liébediev a falar mal dele.
— Você está sendo injusto, ele realmente está arrependido — observou o príncipe, depois.
— De que lhe adianta o arrependimento? É a mesma cousa que eu, ontem, a dizer: “Sou abjeto, sou abjeto!” O senhor bem sabe que isso não passa de palavras.
— Então, no seu caso também, foram apenas palavras? Pois eu pensava que...
— Bem, ao senhor, mas ao senhor só, contarei a verdade, porque o príncipe vê através das pessoas. Palavras e ações, mentiras e verdades estão em mim de tal forma misturadas que no fundo sou sincero. A verdade e a ação consistem, em mim, numa contrição sincera, creia ou não o senhor, juro que é assim, e a palavra e a mentira no pensamento infernal (e sempre presente) de como enganar alguém, de como, através de lágrimas, fingir arrependimento. Eis o que se dá, por Deus! Eu a outro homem não diria isto, pois ou se riria, ou me xingaria. Mas o senhor, príncipe, o senhor julga humanamente.
— Ora muito bem! Keller também me disse isso ainda agora — exclamou o príncipe — e vocês ambos parecem orgulhosos disso! Vocês, positivamente, me surpreendem. Mas ele, ao menos, é mais sincero do que você; transformou isso em método. Bem, chega. Não franza a cara, Liébediev, e tire essa mão do coração. E que é que você me quer falar? Você não entrou aqui, à toa...
Liébediev careteou e deu uns pulinhos. O príncipe declarou:
— Estive esperando por você o dia inteiro, para lhe perguntar uma cousa. Diga-me a verdade certa, uma vez na vida. Você tem alguma coisa com aquela carruagem que parou aqui, ontem, ou não tem?
Liébediev tornou a fazer uma careta, a dar uns risinhos, a esfregar as mãos; deu até mesmo um espirro. E não havia jeito de falar.
— Vejo que sim.
— Mas indiretamente, indiretamente! O que estou lhe dizendo é a santa verdade! A única parte que tomei naquilo foi fazer uma certa pessoa saber a tempo exato que eu tinha determinado número de pessoas em minha casa e que “umas quantas” pessoas estavam presentes.
— Eu sabia que você tinha mandado seu filho lá. Ele acabou de me dizer não há muito. Mas que complicação é essa? — perguntou o príncipe impaciente.
— A intriga não é minha. Minha, não — protestou Liébediev, gesticulando. — Há outros, outros, metidos nisso; e se trata mais duma fantasia do que duma intriga.
— Mas que significa isso? Pelo amor de Deus, explique-se. Será possível que você não compreenda que isso me diz respeito? Veja bem, estão difamando o caráter de Evguénii Pávlovitch.
— Príncipe, ilustríssimo príncipe! — recomeçou Liébediev, saltitando. — O senhor não consentiu nunca que eu dissesse a verdade toda. O senhor bem sabe disso; eu tentei mais de uma vez. O senhor jamais consentiu que eu prosseguisse...
O príncipe ficou parado, pensando um pouco.
— Está bem, diga então a verdade — ordenou com certo esforço, depois duma luta severa consigo mesmo.
E Liébediev prontamente começou:
— Agláia Ivánovna...
— Cale-se, cale-se! — gritou o príncipe, furioso, ficando logo vermelho de indignação e de vergonha, ao mesmo tempo. — Isso é impossível, é absurdo! Você inventou tudo isso; ou você mesmo ou algum outro maluco como você. E nunca mais me torne a falar nisso.
Tarde da noite, lá pelas dez horas, Kólia chegou com uma verdadeira mochila de novidades. Tais novidades eram de duas ordens: de Petersburgo e de Pávlovsk. Apressadamente relatou os principais itens das novidades de Petersburgo (principalmente as referentes a Ippolít e à cena da véspera) passando logo para as novidades de Pávlovsk, deixando claro que depois voltaria outra vez às outras. Regressara de Petersburgo havia três horas, e antes de vir falar com Míchkin estivera em casa dos Epantchín. “Está lá uma trapalhada!” Sem dúvida a base de tudo era o caso da carruagem; mas alguma cousa havia acontecido — alguma cousa que nem ele nem o príncipe sabia o que era. “Não espionei, nem fiz indagações com ninguém, naturalmente. Receberam-me, todavia, muito bem, melhor do que eu esperava; mas, quanto ao senhor, príncipe, nem uma palavra.”
O fato mais importante e de maior interesse era que Agláia tinha brigado com todo o mundo lá, a respeito de Gánia. Não chegara a saber minúcias da briga, a não ser que fora por causa de Gánia (imagine só); que fora uma briga séria; logo, devia haver alguma cousa importante. O general aparecera atrasado e carrancudo; chegara com Evguénii Pávlovitch, que fora excelentemente acolhido e que estivera todo o tempo maravilhosamente alegre e encantador. Mas a notícia mais impressionante foi a de que Lizavéta Prokófievna muito de mansinho mandara chamar Varvára Ardaliónovna que estava noutro cômodo, sentada com as moças e, duma vez para sempre, a pusera para fora de casa, embora de maneira muito polida. “Foi a própria Vária quem me contou.” Mas que, quando Vária saíra dos cômodos da sra. Epantchiná e se despedira das moças, estas ignoravam a cena da proibição definitiva e que se estivesse despedindo delas pela última vez.
— Mas Varvára Ardaliónovna esteve aqui às sete horas — disse o príncipe, atônito.
— Foi posta para fora às oito horas, ou pouco antes. Estou com muita pena de Vária... E de Gánia também. Sem dúvida os dois estavam sempre às voltas com umas intrigazinhas; não podiam passar sem isso. Nunca pude descobrir que é que ambos estavam chocando, e nem quero saber. Mas lhe asseguro, meu caro e bondoso príncipe, que Gánia não tem mau coração. Sob muitos pontos de vista é uma alma perdida, não resta dúvida, mas tem pontos, por outro lado, que merecem ser estimados, e nunca me perdoarei por o não ter compreendido antes... E agora fico sem saber se devo ir lá, ou não, depois do que se passou com Vária. Verdade é que desde o começo os frequentei por mim só, separadamente; mas, ainda assim, devo agora refletir sobre minha conduta.
— Você não precisa se incomodar por causa de seu irmão — comentou o príncipe. — Se as cousas chegaram a isto, é que a sra. Epantchiná julgou seu irmão perigoso, o que significa que certas esperanças dele estavam sendo encorajadas de novo.
— Como? Que esperanças? — disse Kólia espantado. — Certamente não vai agora, o senhor pensar que Agláia... Isto é impossível!
O príncipe ficou calado.
— O senhor é terrivelmente cético, príncipe — acrescentou Kólia, dois minutos depois. — Tenho reparado que de algum tempo para cá o senhor vem ficando um grande cético; deu em não acreditar em nada e está sempre a imaginar cousas!... Será que usei a palavra “cético” corretamente, neste caso?
— Creio que sim, embora não tenha muita certeza eu próprio.
— Mas, pondo de lado a palavra “cético”, encontrei uma outra explicação! — exclamou Kólia. — O senhor não é cético, o que o senhor é, é ciumento. O senhor está demoniacamente enciumado de Gánia, por causa de certa elegante senhorita!
Dizendo isso, Kólia se levantou e começou a rir como talvez nunca tivesse rido antes. Estava radiante com a ideia de que o príncipe estivesse com ciúme de Agláia; mas parou logo que percebeu que o príncipe se tinha molestado de fato. Depois disso ficaram falando seriamente, com ânimo, durante uma hora, ou quase uma hora e meia.
No dia seguinte teve Míchkin que passar a manhã toda em Petersburgo, a negócio urgente. Já era tarde, seriam cinco horas, quando, de volta para Pávlovsk, encontrou o general Epantchín na estação da estrada de ferro. O general pegou-o precipitadamente pelo braço, encarando-o como que preocupado, e arrastou o príncipe para um compartimento da primeira classe onde pudessem viajar juntos e sós. Ardia de impaciência para discutir alguma cousa importante.
— Para começar, caro príncipe, não esteja zangado comigo, e, se da minha parte alguma cousa houve, esqueça-a. Eu devia ter ido vê-lo ontem, mas não fui porque temi que Lizavéta Prokófievna interpretasse isso a seu modo... A minha casa está simplesmente um inferno... Uma inescrutável esfinge se instalou lá; estou zonzo e em tudo isso não ligo pé com cabeça. Quanto a você, a meu ver, tem menos culpa do que qualquer de nós; embora, naturalmente, muita cousa se tenha dado por sua causa. Quer saber duma cousa, príncipe? É bonito ser filantropo, mas com moderação. Eu gosto da caridade, dos corações bondosos, naturalmente, e respeito Lizavéta Prokófievna, mas...
E neste estilo prosseguiu o general durante muito tempo; as suas palavras se foram tornando estranhamente incoerentes. Via-se que ele estava extremamente transtornado e que se debatia contra alguma cousa localizada muito além da sua compreensão.
— Tenho plena certeza de que o senhor nada tem com isso — conseguiu ele enfim se tornar mais claro —, mas eu lhe peço, como um amigo, que não nos visite por um certo tempo, até que os ventos mudem. E quanto a Evguénii Pávlovitch — continuou com extraordinária veemência — trata-se tudo duma insensata calúnia, a mais difamante das maledicências! Trata-se de enredo, de intriga, duma tentativa de destruir tudo para que briguemos com ele. E deixe que lhe diga baixo, no ouvido, que ainda não houve troca duma só palavra entre nós e Evguénii Pávlovitch. Está compreendendo? Não existe compromisso de espécie alguma! Mas essa palavra deve ser dita e em breve, aliás. Trata-se, pois, duma tentativa de estragar o rapaz! Mas com que fim? Para quê? Não atino! Ela é uma mulher espetacular, uma mulher excêntrica. Ando com tanto medo dela que nem tenho podido dormir. E que carruagem! — com cavalos brancos, realmente muito chique! Sim, é justamente o que em francês se chama chic! Quem lhe terá dado tudo isso? Eu me enganei, fiz mal, por Júpiter, anteontem, pois cheguei a pensar que fosse Evguénii Pávlovitch. Mas já verifiquei que não pode ser absolutamente. E se assim não é, qual o fim dela se intrometer? Aí é que está o enigma, aí é que está o mistério! Para guardar Evguénii Pávlovitch para si mesma? Mas lhe repito e estou pronto a jurar que ele nem a conhece e que aquele negócio de promissórias é pura invenção! E a insolência dela em dizer alto, daquela maneira: “Querido”, lá do outro lado da rua? Invencionice nefanda! Claro que devemos desprezar tudo isso e tratar Evguénii Pávlovitch com redobrado respeito. Foi o que eu já disse a Lizavéta Prokófievna. Mas deixe que lhe externe agora a minha opinião particular. Estou mais que convencido de que ela está fazendo tudo isso só para se vingar de mim pessoalmente, por causa do que houve, lembra-se? Apesar de em verdade eu não lhe ter feito nada. Mudo de cor, só em pensar naquilo. Não foi à toa que reapareceu por aqui. Pensei que essa mulher tivesse ido embora de vez! Onde diabo se escondeu esse tal Rogójin? O senhor não saberá, por acaso? E eu que pensava que ela já era a sra. Rogójina desde muito tempo!
O homem estava de fato completamente desnorteado. Falou só ele, a viagem inteira, durante aquela hora toda do percurso; fazia perguntas a que ele mesmo respondia; tocava, segurava, largava a mão do príncipe, e de forma que este ficou mais do que convencido de que o general não desconfiava dele. E isso era o que importava ao príncipe. E para conclusão de tudo, acabou o general por lhe contar o que havia sobre o tio de Evguénii Pávlovitch que era o diretor de certo departamento em Petersburgo!: “Numa situação importantíssima, com setenta anos, um viveur, um gourmand, um velho aristocrata com hábitos... Ah! ah! Disseram-me que lhe tinham falado de Nastássia Filíppovna e que andou atrás dela. Fui vê-lo não há muito tempo. Não me pôde receber, não estava passando bem. Mas é um velho muito rico, riquíssimo, um homem de importância e... praza a Deus, ainda há de florescer por muitos anos, mas Evguénii Pávlovitch acabará entrando na posse de todo esse dinheiro. Claro, claro... Ainda assim, tenho algum receio, certo receio muito vago... Há qualquer cousa no ar, um pressentimento que esvoaça como um corvo. Tenho certo receio, certo receio!...” E foi somente no terceiro dia, conforme já dissemos, que se deu a formal reconciliação dos Epantchín com Liév Nikoláievitch.
Nota
1 Louis Bourdaloue, jesuíta francês, célebre pregador e moralista, autor de Sermões (1632-1704). (N. do T.)
12.
Às sete horas da noite o príncipe se preparava para ir ao parque quando, sem ser esperada, Lizavéta Prokófievna entrou sozinha pela varanda adentro.
— Não vá pensar — começou ela — e lhe digo isso antes de mais nada, que lhe vim pedir perdão. Era só o que faltava. A culpa foi inteiramente sua.
O príncipe não respondeu uma única palavra.
— Foi, ou não foi?
— Tanto minha, como sua, muito embora nem eu nem a senhora tenhamos do que ser censurados. Amolei-me trasanteontem, mas hoje cheguei à conclusão de que não tinha razão nenhuma para isso.
— Então é o que tem a dizer? Muito bem. Escute, mas escute sentado pois não pretendo ficar em pé.
Sentaram-se ambos.
— Em segundo lugar, nem sequer uma só palavra a respeito dos tais rapazes. Sentei-me apenas por uns dez minutos. Vim para colher informações. (E calculo já quanta coisa você não está imaginando.) E se você se referir, mesmo por alto, aos rapazes daquela noite, àqueles insolentes, eu me levanto, vou embora e rompo definitivamente com você.
— Perfeitamente — respondeu o príncipe.
— Permita que lhe pergunte uma cousa. Mandou você, há uns dois meses, ou mesmo dois meses e meio, aí pela Páscoa, uma carta a Agláia?
— Escrevi.
— Com que fim? Que dizia essa carta? Mostre-me essa carta!
Os olhos de Lizavéta Prokófievna despediam chispas; toda ela se agitava com impaciência.
— Não está comigo. — O príncipe ficou zonzo e horrivelmente desapontado. — Se ela não a pôs fora, está com ela, com Agláia Ivánovna.
— Não finja! Que é que você escreveu?
— Não estou fingindo, não tenho de que ter medo. E não vejo razão alguma para não poder lhe ter escrito...
— Não dê com a língua nos dentes. Tem muito tempo para falar depois. Que dizia a carta? Por que é que você está ficando vermelho?
O príncipe pensou um pouco.
— Não estou compreendendo o que a senhora quer; apenas percebo que esse caso da carta a aborreceu. Mas deve concordar que eu posso recusar-me a responder a essa pergunta. Para lhe mostrar, porém, que não é a carta que me está embaraçando e que não me arrependo de a ter escrito e que absolutamente não estou vermelho por causa dela — Míchkin ficou mais vermelho ainda, no mínimo o dobro do que estava — vou lhe repetir a carta, pois acho que a sei de cor.
Dito isso, o príncipe repetiu a carta, quase palavra por palavra, conforme a escrevera.
— Mas que amontoado de asneiras! Qual a significação de todos esses disparates? explique-me, já que os escreveu — perguntou Lizavéta Prokófievna, dum modo agudo, depois de ouvir com uma atenção extraordinária.
— Eu próprio não poderia explicar bem. Só sei que escrevi com sinceridade. Naquela ocasião eu tive momentos de intensa vivacidade e invulgares esperanças.
— Esperanças? Quais?
— É difícil explicar. Mas não é o que a senhora está pensando aí, talvez. Esperanças... Isto é... em uma palavra, esperanças quanto ao futuro! E alegria por não ser, talvez, um estranho numa certa casa... Veio-me, de repente, um enternecimento pelas coisas do meu país. Certa manhã de sol peguei da pena e escrevi. Por que a ela, não sei. Quanta vez a gente espera contar com um amigo ao seu lado, compreende? E a impressão é que eu precisava dum amigo — acrescentou o príncipe, depois duma pausa.
— Você está apaixonado?
— N...ão. Eu... eu escrevi como se escrevesse a uma irmã. De fato, cheguei até a assinar “Seu irmão”.
— Sim. Você sabia por quê. Estou compreendendo.
— É-me muito desagradável, Lizavéta Prokófievna, responder a essas perguntas.
— Eu sei que lhe é desagradável, mas que me importa que lhe seja desagradável? Escute, conte-me a verdade, como se estivesse diante de Deus. Você me está mentindo, ou não?
— Não estou, não.
— Você está falando a verdade, ao dizer que não está apaixonado?
— Acho que é a pura verdade.
— Palavra de honra? Então você “acha”, hein? Foi o garoto quem levou a carta?
— Pedi a Nikolái Ardaliónovitch...
— O garoto! O garoto! — E Lizavéta Prokófievna o interrompeu violentamente. — Não conheço nenhum Nikolái Ardaliónovitch. Só conheço o garoto.
— Estou dizendo Nikolái Ardaliónovitch.
— O garoto, digo-lhe eu.
— Garoto, não. Nikolái Ardaliónovitch — respondeu o príncipe, teimando firmemente, embora de maneira delicada.
— Oh! Muito bem, meu caro, muito bem! Conservarei essa queixa contra você.
Por um minuto dominou sua emoção e ficou calma.
— E que significa essa história de “pobre cavaleiro”?
— Absolutamente não sei. Não tenho nada que ver com isso. Alguma brincadeira.
— Ouvir tudo isso, duma vez, é agradável! Mas como poderia ela estar interessada em você? Como, se o chamou de alienado e de idiota?
— A senhora não precisava me contar isso — observou o príncipe, em ar de reprimenda, mas em tom quase de sussurro.
— Não se zangue. Ela é uma moça estouvada, rebelde e maluca. Quando se interessa por alguém só sabe tratar assim, grosseiramente, confundindo a pessoa em pleno rosto. Com qualquer outro faria o mesmo. Mas é favor não ficar triunfante, meu caro amigo, ela não é sua. Não quero nem pensar nisso e nunca tal se dará. Escute uma cousa: jure-me que você não se casou com aquela mulher.
— Lizavéta Prokófievna, que é que a senhora está dizendo? Dou-lhe a minha palavra! — E o príncipe quase deu um salto de espanto.
— Mas você esteve para se casar com ela, não esteve?
— Estive quase me casando — balbuciou o príncipe, abaixando a cabeça.
— Então você está apaixonado por ela? Foi por causa dessa outra que você apareceu por aqui? Foi por causa dela?
— Não vim para me casar — respondeu o príncipe.
— Tem você alguma cousa no mundo que considere como sagrada?
— Tenho, sim, senhora.
— Jure, então, que não veio para se casar com ela.
— Juro pelo que a senhora quiser.
— Acredito em você. Beije-me. Até que enfim posso respirar livremente; mas deixe que lhe diga: Agláia não ama você, fique avisado disso, e não se casará com você enquanto eu for viva; está ouvindo?
— Estou ouvindo, sim senhora... — E o príncipe enrubesceu tanto que não pôde continuar olhando para Lizavéta Prokófievna.
— Preste bem atenção. Considerei a sua volta como minha Providência: (Você não vale isso!) Molhei muitas fronhas com as minhas lágrimas, à noite. Não por sua causa, meu caro, não precisa inquietar-se. Também eu tenho os meus tormentos... e bem diferentes, perpetuamente os mesmos. Eis por que andei esperando o seu regresso com tal impaciência. Ainda acredito que o próprio Deus me enviou você como um amigo e irmão. Não tenho mais ninguém, exceto a princesa Bielokónskaia; e essa mesma está longe e, além disso, é tão estúpida como um carneiro com aquela sua velhice. Agora me responda simplesmente: sim, ou não. Se sabe, ou se não sabe por que foi que ela deu aqueles gritos lá da carruagem trasanteontem.
— Dou-lhe a minha palavra de honra que não sei de nada referente a isso e que nem estou nessa história.
— Basta; acredito em você. Agora já tenho outras ideias a tal respeito. Ontem de manhã atirei toda a culpa sobre Evguénii Pávlovitch... após levar três dias a fazer ilações. Ficou perfeitamente evidente que ele foi ridicularizado como um imbecil, por alguma causa, por algum motivo, com algum fim. Seja como for, isso dá apreensões! E não fica bem! Mas Agláia não se casará com ele, digo-lhe desde já. Ele pode ser um homem esplêndido, mas é assim que as cousas são. Antes, ainda hesitei; mas agora me convenci da realidade. “Põe-me primeiro num caixão, enterra-me depois, e então poderás casar tua filha.” Foi o que eu disse hoje sem titubear a Iván Fiódorovitch. Vê a confiança que deposito em você? Está vendo bem?
— Vejo e compreendo.
Lizavéta Prokófievna olhou penetrantemente para o príncipe. Decerto ela queria sorrateiramente descobrir que impressão essas notícias a respeito de Evguénii Pávlovitch causavam nele.
— Você não sabe de nada, quanto a Gavríl Ardaliónovitch?
— Ao contrário... Sei muita cousa.
— Você soube, ou não soube, que ele... reatou relações com Agláia?
— Absolutamente não soube — disse o príncipe, surpreendido e mesmo atarantado. — A senhora diz que Gavríl Ardaliónovitch mantém intimidade com Agláia Ivánovna? Impossível!
— Sim, ultimamente, sim. A irmã esteve preparando o caminho aqui para ele, todo o inverno. Trabalhando como um rato, indo e vindo.
— Não acredito — repetiu o príncipe, firmemente, depois de certa reflexão, muito perturbado. — Se isso se tivesse dado, certamente que eu teria sabido.
— Acha que ele viria espontaneamente fazer-lhe uma lacrimosa confissão, reclinado sobre o seu peito? Ah! Você é um simplório, um simplório! Todo o mundo faz de você o que quer... Não tem vergonha de confiar nele? Pois não vê que ele lhe está armando um embuste?
— Eu sei muito bem que ele me decepciona muitas vezes — considerou o príncipe, com relutância, em voz baixa. — E ele sabe muito bem que eu sei... — E o príncipe se calou.
— Você sabe mas continua confiando nele! Isso é o cúmulo! Mas também que se havia de esperar de você? Não tenho do que ficar surpreendida. Senhor Deus! Você sempre será o mesmo homem! Irra!... E sabe que esse Gánia, ou essa Vária, a puseram em correspondência com Nastássia Filíppovna?
— Puseram quem?
— Agláia.
— Não acredito! É impossível! Com que fim? — Ergueu-se da cadeira.
— Também eu não acreditava, mas há provas. É uma rapariga voluntariosa, caprichosa, doida! Perversa, perversa, perversa! Digo e repetirei durante mil anos: ela é uma rapariga ruim! Todas o são, mesmo essa insossa franguinha Aleksándra; mas Agláia ultrapassa todos os limites. Chego até a não acreditar!... Talvez porque não me convenha acreditar! — ajuntou, como que para si só. — Por que você não nos veio ver? — Virou-se prontamente para o príncipe. — Por que levou três dias sem aparecer? — gritou com ar impaciente.
O príncipe pôs-se a dar os motivos, mas novamente ela o interrompeu.
— Todos o consideram um maluco e não acreditam em você! Foi ontem à cidade? Aposto como foi implorar de joelhos àquele tratante que aceitasse o seu dinheiro, os seus 10 mil rublos!
— Absolutamente; isso nem me passou pela cabeça. Não fui vê-lo; de mais a mais ele não é um tratante! Mandou-me uma carta.
— Mostre-ma!
O príncipe tirou uma folha da sua carteira e a estendeu a Lizavéta Prokófievna. Dizia assim:
Caro Senhor. — Não tenho, perante olhos alheios, o menor direito a qualquer orgulho. Na opinião do mundo sou demasiado insignificante para ter tal luxo. Mas isso é perante os olhos de outros e não perante os seus. Estou perfeitamente persuadido, caro senhor, de que é melhor do que os outros homens. Não concordo com Doktorénko e rompi com ele por causa desta divergência. Nunca receberei dinheiro, por menor que seja, do senhor; mas ajudou minha mãe e portanto tenho que lhe ser grato, mesmo que isso seja uma prova de fraqueza. Em todo o caso já agora o considero de modo diferente, e me acho no dever de lho dizer. E em conformidade com isso me parece que não pode haver mais relações de qualquer ordem entre nós. — ANTÍP BURDÓVSKII.
P. S. Os 200 rublos que faltam lhe hão de ser pagos corretamente assim que for possível.
— Quanta asneira e bobagem! — comentou Lizavéta Prokófievna, atirando-lhe com o papel de volta. — Nem merece leitura. Por que você está se arreganhando?
— Confesse que ficou contente com o que leu! E bastante.
— Quê? Com este amontoado de besteiras tresandando a vaidade? Ora, mas você não está vendo que todos eles estão giras, com orgulho e vaidade?
— Sim, mas ele próprio se confessa em erro, rompeu com Doktorénko e, por ser vaidoso, isso lhe deve ter custado ainda mais. Oh! A senhora não passa duma criança, Lizavéta Prokófievna!
— Quer, no fim de tudo, que eu esbofeteie você?
— Não, de modo algum. Mas por que quer a senhora fingir que não ficou satisfeita com a carta? Está envergonhada dos seus sentimentos? Em tudo a senhora é assim!
— Não se atreva mais a dar um passo para ir me ver — gritou Lizavéta Prokófievna, ficando em pé e se tornando pálida de tanta raiva. — Não quero nunca mais lhe pôr os olhos em cima.
— Dentro de três dias a senhora virá por sua espontânea vontade convidar-me. Ora, diga, não se sente envergonhada? Pois se esses seus sentimentos são dos melhores! A senhora bem sabe que com isso está apenas se afligindo.
— Nunca o convidarei, nem que esteja morrendo por isso. Esquecerei o seu nome! Até já o esqueci!
Afastou-se de perto do príncipe.
— Não é preciso a senhora me proibir. Já me proibiram! — disse o príncipe, seguindo-a.
— O... quê? Quem o proibiu? — Virou-se como um relâmpago, como se uma agulha a tivesse picado. O príncipe hesitou em responder; sentiu que tinha dado uma escorregadela em falso.
— Quem foi que o proibiu? — gritou Lizavéta Prokófievna, violentamente.
— Agláia Ivánovna.
— Quando? Fale, homem!
— Mandou-me dizer, esta manhã, que não me atrevesse a ir vê-las outra vez.
Lizavéta Prokófievna ficou como que petrificada, mas se pôs a refletir.
— Mandou como? Mandou quem? Pelo garoto? Um recado verbal? — perguntou mais uma vez.
— Eu tenho o bilhete.
— Onde? Dê-me isso. Já!
Míchkin pensou um minuto; por fim tirou do bolso do colete um pedaço de papel enxovalhado onde estava escrito:
Príncipe Liév Nikoláievitch! — Se, depois de tudo quanto aconteceu, conta surpreender-me com a sua visita à nossa vila, saiba desde já que não me encontrará entre os que se comprazerão em vê-lo.
AGLÁIA EPANTCHINÁ.
Lizavéta Prokófievna refletiu um pouco: depois avançou para o príncipe, tomou-o pela mão e o arrastou atrás de si escadas abaixo.
— Vamos. Imediatamente! Tem de ser já, agora mesmo! — gritou, num acesso de extraordinária excitação e impaciência.
— Mas a senhora está me expondo a...
— A quê? Inocente! Palerma! Você nem parece homem! Ainda bem que vou ver isso tudo eu mesma, com os meus olhos.
— Mas deixe ao menos que eu pegue o meu chapéu...
— Pronto, está aqui o seu horroroso chapéu! Vamos! Não sabe nem escolher as suas cousas com gosto!... Hã! Então ela lhe escreveu isso... depois do que se passou!? Birra, veneta ou acesso?!... — murmurou Lizavéta Prokófievna, arrastando o príncipe por ali fora e sem lhe soltar a mão. — Ainda hoje o defendeu lá em casa e disse alto que era um bobo em não vir ver-nos... Mas justamente por isso ela não lhe devia ter escrito um bilhete tão insensato! Um bilhete impróprio! Indigno de uma menina distinta, bem-educada e sensata! Ah!... Já sei! Já sei!... Ela ficou mas foi ansiosa com o fato de você não aparecer lá em casa! Mas fez muito mal em escrever nestes termos a um idiota, porque em lugar de entender o que ela queria, você tomou a carta ao pé da letra, como uma proibição... Está gostando de me ouvir, não é? Feche esses ouvidos! — gritou, toda inflamada, ao perceber que falara demais. — Ela precisa de alguém, como você... para se rir. Desde muito que ela procura um fantoche, eis por que o chamou. E agora estou satisfeita, satisfeitíssima... pois minha filha sempre acabou achando um bufão! Estou satisfeitíssima. É para o que você serve! E ela sabe como deve manobrá-lo. Oh, se sabe! E bem!...
TERCEIRA PARTE
1.
Estamos sempre ouvindo queixas quanto à ausência de gente prática na Rússia. Apregoam que não nos faltam políticos aos punhados, generais às grosas e que a qualquer momento farta quantidade de homens de negócios de todas as categorias pode ser encontrada. Mas gente prática, lá isso não há — pelo menos todo o mundo se anda queixando de tal escassez. Fartamo-nos de ouvir que não há técnicos eficientes nas estradas de ferro, pelo menos em muitas linhas. Que não é possível sequer instalar e dirigir decentemente uma companhia de vapores. A todo momento ouvimos dizer que houve um encontro de trens ou que ruiu uma ponte à passagem dum comboio, numa linha de estrada de ferro inaugurada pouco antes. Ou então se escuta comentar que um trem de ferro ficou bloqueado pelo gelo e que, devido a isso, uma viagem que mesmo no inverno dura quatro horas se atrasou cinco dias. Fala-se de centenas de toneladas de víveres apodrecendo durante dois ou três meses por dificuldade de despacho. E até se conta (muito embora pareça quase incrível) que o encarregado dum comerciante apanhou com um caixote pelas trombas somente pelo fato de ter pretendido promover um despacho de mercadorias. E que o superintendente, autor da façanha, tentou justificar essa demonstração de eficiência sob o fundamento de que perdera a paciência. Tantas são as repartições do Governo que até fazem uma pessoa cambalear ao pensar nelas. Isso de serviço público representa tal variedade de cargos que toda gente ou já ocupou um, ou ainda está ocupando, ou pretende arranjar nomeação em breve. Assim, natural é que com tanta abundância de material fiquemos admirados que ainda não tenha sido possível instalar uma repartição técnica decente, de maneira a fazer correr no horário uma estrada de ferro ou funcionar direito uma linha de navegação.
Tal estado de coisas sugere muitas vezes uma simples resposta — tão simples de fato que difícil é acreditar, isso sim, na explicação. É verdade, dizem-nos, que todo o mundo na Rússia esteve, está ou pretende se empregar em repartições governamentais e que tal sistema vem sendo seguido há mais de duzentos anos, segundo os mais rígidos padrões germânicos, isto é, de avô a neto... Mas também é verdade que isso de funcionário público é o indivíduo mais negativamente prático do mundo e que as coisas chegaram a tal ponto que um caráter puramente teórico e a negação absoluta de qualquer conhecimento técnico vêm sendo encarados cada vez mais, mesmo nos círculos oficiais, como os atributos e prerrogativas que recomendam uma promoção. Mas nem é preciso discutir sobre funcionários; restrinjamo-nos a falar sobre homens práticos. Não resta dúvida que incompetência e completa falta de iniciativa sempre foram consideradas como principal indício de um homem prático, sendo assim ainda mesmo hoje. Mas por que nos censuramos se esta opinião já por si só constitui uma acusação?! Sempiternamente, por este mundo afora, a falta de originalidade sempre foi avaliada como a principal característica e a melhor recomendação dum homem prático, ativo e diligente, e no mínimo 99 por cento da humanidade — para só avaliarmos modestamente — mantiveram sempre esta opinião e, no máximo, um por cento divergiu dela.
Inventores e gênios foram quase sempre considerados apenas como loucos, no começo de suas carreiras; e não raro até ao fim delas, também. Esta é uma observação corriqueira, familiar a toda gente. Citemos um exemplo: os bancos. Há anos e anos que uma porção de gente deposita seu dinheiro em bancos, muitíssimos milhões estando investidos assim a quatro por cento. Ora muito bem. Suponhamos que os bancos cessem de existir e que o povo seja deixado, economicamente, sob a sua própria iniciativa pessoal. Que sucederia? A maior parte desses milhões se perderia infalivelmente em especulações desenfreadas ou na mão de tratantes. Assim pois, tal hábito, o dos bancos, por exemplo, está deveras de acordo com os ditames da propriedade e da decência. Sim, se uma absoluta incompetência e uma indecorosa falta de originalidade foram aceitas universalmente como os atributos essenciais de um homem prático e de um gentleman, uma repentina transformação nesse sistema seria de todo indecente e grosseira. Qual a mãe terna e devotada que não desmaiaria e não ficaria de cama ao ver o filho ou a filha se afastar uma polegada dessa trilha obrigatória? “Não, melhor será que ele viva feliz e bem, embora sem originalidade”, é o que toda mãe pensa enquanto embala um berço. Já desde os mais remotos tempos que as nossas amas cantavam ninando bebês: “Dorme, dorme, criança chorona, que inda te hei de ver de dragona!” Isso prova que já as nossas velhas amas consideravam o posto de general como sendo o pináculo mais alto da felicidade russa, e, louvado seja Deus, que isso ainda continue sendo o ideal russo mais popular de ventura pacífica e benfazeja. E, realmente, quem, na Rússia, após atravessar um curso, mesmo sem distinção, e servir durante trinta e cinco anos, não conseguirá finalmente ser general e não investirá uma soma decente num banco? É assim que o russo acaba adquirindo a reputação de homem prático e diligente, e quase sem esforço. Entre nós a única pessoa que malogrará no intento de vir a ser general é o homem de individualidade própria... ou, por outras palavras, o homem que não suporta a rotina. Possível é que haja em tudo algum engano meu ou uma exceção estatística; mas, falando dum modo geral, a verdade é esta. Assim, a nossa sociedade tem sido perfeitamente correta na sua definição do que seja um homem prático.
Mas muito do que aqui está é supérfluo. O que eu pretendia era simplesmente dizer umas poucas palavras que explicassem os nossos amigos Epantchín. Tal família, ou pelo menos os seus membros mais representativos, sofriam duma característica familiar específica, bem oposta às virtudes que estivemos discutindo antes. Muito embora não se capacitassem nitidamente do fenômeno (nem ele é tão fácil de ser compreendido), ainda assim suspeitavam frequentemente que em sua família tudo era diferente de quanto nas outras se encontrava. Nas outras as coisas aconteciam serenamente; já na deles os fatos se passavam aos solavancos; os outros timbravam em seguir a rotina... ao passo que eles sentiam atração pelo excepcional. Toda a gente se comporta de modo decorosamente tímido, optando eles por via bem inversa. Lizavéta Prokófievna era, de fato, muito propensa (demasiadamente até) a alarmar-se à toa; não que houvesse nisso desejo veemente ou saudoso daquela timidez convencional geralmente adotada. Mas na família talvez somente ela captasse tal ansiedade aflitiva, pois as moças eram ainda muito novas, não obstante possuírem boa dose de penetrante ironia; o general, esse então, conquanto arguto (o que todavia lhe custava certo esforço), o mais que fazia era murmurar “Hum!” diante das circunstâncias estarrecedoras, quanto ao mais confiando no expediente da mulher. Assim, pois, a responsabilidade de tudo cabia a ela. Não se infira daí que essa família se distinguisse por iniciativas notáveis, ou se tivesse livrado da bitola da rotina mediante uma inclinação consciente para a originalidade, o que significaria uma completa infração às normas das faculdades habituais. Oh! Longe disso! De maneira alguma agiam assim mercê dum propósito consciente. E, todavia, a despeito de tudo, a família Epantchín, apesar de altamente respeitável, não era bem o que toda família respeitável devia ser. Ultimamente dera Lizavéta Prokófievna em se queixar de si própria, sozinha, e do seu “desafortunado” caráter ante tal estado de coisas, o que aumentava a sua angústia. Dera em se culpar continuamente de ser “uma velha excêntrica e maluca que não sabia como se comportar”, afligindo-se com perturbações imaginárias, andando sempre em estado de perplexidade, atarantadamente, sem saber como agir em face das mais corriqueiras contingências, multiplicando sempre toda a sua desventura.
No começo de nossa narrativa mencionamos já que a família Epantchín desfrutava da estima sincera de todos. O próprio general, conquanto de origem obscura, era recebido em toda a parte e tratado com respeito. E de fato merecia esse respeito — em primeiro lugar como homem de fortuna e de reputação, e, em segundo lugar, por ser pessoa muito decente, apesar de não ter, de modo algum, grande inteligência. É que uma certa estupidez de espírito parece ser às vezes uma qualificação necessária se não para todo homem público, ao menos para aquele que seriamente se propõe a ganhar dinheiro. E, finalmente, o general tinha boas maneiras, era modesto, sabia como e quando conter a língua, sem todavia permitir que lhe pisassem nos calos; não somente era homem de posição, mas também de bons sentimentos. O mais importante, porém, é que era fortemente protegido. Quanto à sua mulher, como já explicamos, era de boa família, o que, aliás, não é motivo para grande consideração entre nós a não ser que haja amigos poderosos, no caso. De tais amigos poderosos, porém, ela soubera adquirir um círculo razoável. Era respeitada e no fim as pessoas de importância acabavam gostando dela, tendo sido pois natural que os demais seguissem tal exemplo, considerando-a e recebendo-a. Não havia dúvida que todas as ansiedades dela pela família eram sem fundamento. Poucos motivos havia para esses afoitamentos que eram ridiculamente exagerados. Mas é sempre a mesma história com todos nós: se temos uma verruga na testa ou no nariz, cuidamos sempre que ninguém tenha mais nada a fazer, no mundo, senão ficar pasmado para a nossa verruga, achar graça nela e por causa dela nos desprezar, mesmo que tenhamos descoberto a América. Sem dúvida Lizavéta Prokófievna era considerada geralmente “uma excêntrica”, o que não era questão que a impedisse de ser estimada; mas o caso é que acabou por não acreditar mais nessa estima, todo o seu tormento jazendo nisso. Encarando as filhas, ela se consumia pela suspeita de que estava arruinando o futuro delas, pois era ridícula, insuportável, ignorando como comportar-se. E por tudo isso estava sempre censurando as filhas e o marido, brigando com eles o dia inteiro, embora os amasse com uma afeição apaixonada, a ponto de se sacrificar.
O que mais que tudo a incomodava era a desconfiança de que as filhas se estavam tornando quase tão excêntricas quanto ela, e que moças de sociedade não deviam e não podiam ser assim. “Elas estão mas é dando para niilistas, isso é que é!” — repetia a si mesma a todo instante. Neste ano que passou, e de então para cá, esta melancólica noção cada vez se fixava mais em seu espírito. “E, para começar, por que é que não se casam?” — não cessava de se interrogar. “Para atormentarem a mãe fazem disso o fim e a razão de suas existências; e isso tudo advém dessas ideias novas, desses amaldiçoados direitos da mulher! Pois não meteu Agláia na cabeça, há seis meses, cortar o cabelo, aquele seu magnífico cabelo? (Deus do Céu, nem mesmo eu, quando moça, tive cabelo assim!) Estava com a tesoura na mão; tive que me ajoelhar aos pés dela... Pois bem, fez; e fez por despeito, sem dúvida para martirizar sua mãe, pois é uma menina ruim, voluntariosa, mimada e acima de tudo é ruim, ruim, ruim! Pois não quis essa gorducha, a Aleksándra, seguir o exemplo da outra, e não é que tentou cortar as tranças, e não por birra, não por capricho, e sim só por simplicidade, por burrice, só porque Agláia a persuadiu de que sem aqueles balandraus dormiria melhor e se livraria de ter dor de cabeça? E o número sem conta de pretendentes que tiveram nestes cinco anos? E olhem lá que havia uns rapagões de primeira ordem, entre eles! Elas estão esperando o quê? Por que é que não se casam? Simplesmente, para aborrecerem sua pobre mãe, não há outra razão, nenhuma, absolutamente!”
Até que enfim o sol parece que ia raiar, para o seu coração materno. Até que enfim uma filha, até que enfim Adelaída se tinha arranjado. “Ao menos uma nos sai das mãos!”, dissera a sra. Epantchiná, quando teve ensejo de se referir ao fato, em voz alta (em suas reflexões ela conversava consigo mesma com a maior das ternuras!). E como a cousa se dera bem, como calhara tudo tão direito! Até na sociedade se comentava isso com respeito. Ele era um homem de altas maneiras, um príncipe, um ricaço, um rapagão, e, o que é mais, se tratava dum casamento por amor. Que poderia ser melhor? Mas sempre tivera menos cuidados com Adelaída do que com as outras duas, muito embora suas propensões artísticas às vezes mexessem gravemente com o apreensivo coração da mãe. “Mas Adelaída tem um temperamento prazenteiro e muito juízo, e, além disso, trata-se duma menina que irá longe, com as próprias pernas”, tal era a reflexão consoladora. Por quem ela mais receava, entre todas, era por Agláia. Relativamente à filha mais velha, Aleksándra, a mãe ainda não soubera direito se devia ter, ou não, apreensões. Muitas vezes imaginava que para essa “não restavam mais esperanças”. “Está com 25 anos, portanto acaba mas é solteirona. E com aquela beleza toda!” E, pensando nela Lizavéta Prokófievna derramava lágrimas, de noite — é a pura verdade — enquanto Aleksándra dormia que era um regalo! “Que há de ser dela? Será apenas niilista ou simplesmente uma espinoteada?” Que nem mesmo espinoteada ela era Lizavéta Prokófievna estava farta de saber, tanto que levava muito em conta os seus julgamentos e não cessava de lhe pedir conselhos. Mas que ela era uma “água morna” em momento algum tivera dúvidas. “Que se há de fazer com uma criatura que nem se mexe? E nem se diga que uma “água morna” seja quieta! Ah!... eu acabo tonta com estas meninas!”
Lizavéta Prokófievna tinha um inexplicável sentimento de simpatia e de comiseração por Aleksándra — mais até do que por Agláia, a quem idolatrava. Mas os piores epítetos (pelos quais demonstrava a sua maternal solicitude), ironias e apelidos, como “água morna”, só alegravam Aleksándra. E a coisa chegou a tal estado que, certas vezes, casos insignificantes punham a sra. Epantchiná terrivelmente zangada, fazendo-a chegar a um perfeito frenesi. Aleksándra, por exemplo, gostava de dormir até tarde e era dada a sonhar muito. Mas os seus sonhos eram sempre marcados por uma extraordinária inépcia e inocência, podiam ser sonhos duma criança de sete anos. Pois essa inocência mesma dos seus sonhos tornava-se uma fonte de irritação para a mãe. Certa vez sonhou Aleksándra com nove galinhas, o que deu azo a séria briga entre a mãe e a filha. Por quê? Seria difícil explicar. Outra vez, e não se repetiu, conseguira ela sonhar com qualquer coisa que podia ser chamada original — sonhara com um monge que estava sozinho num quarto escuro onde ela sentia medo de entrar. Tal sonho foi imediatamente transmitido à mãe, em triunfo, pelas duas irmãs a rirem; mas a mãe ainda ficou mais zangada, chamando as três de “malucas”.
— Hum! Tanto tem ela de moleirona quanto de maluca e não passa duma galinha choca! Não há meios de espevitá-la. E não é que deu para ficar triste? Que estará ela sentindo? Que é? — Às vezes fazia essa pergunta ao marido e, como de hábito, perguntava histericamente, ameaçadoramente, exigindo uma resposta súbita. Iván Fiódorovitch dizia “Hum!”, franzia a testa, encolhia os ombros, e com um gesto descoroçoado se saía com uma frase destas:
— Do que ela precisa é de marido!
— Pois que Nosso Senhor lhe conceda um que não seja como tu, Iván Fiódorovitch! — desandava Lizavéta Prokófievna, por fim, como uma bomba. — Que não seja como tu no falar nem no julgar, Iván Fiódorovitch. Que não seja um vilão grosseiro como tu, Iván Fiódorovitch...
Iván Fiódorovitch imediatamente arranjou meios de fugir, e Lizavéta Prokófievna se acalmou, depois da “explosão”. Nessa mesma noite, naturalmente se tornou, como invariavelmente se dava, atenciosa, gentil e prazenteira para com o marido, “o grosseirão” Iván Fiódorovitch, o seu bom, querido e adorado Iván Fiódorovitch, pois sempre o amara e sempre estivera apaixonada por ele, toda a vida — fato esse de que ele estava perfeitamente ciente e pelo qual lhe dispensava ilimitado respeito. Mas a sua principal e contínua ansiedade era Agláia.
“Ela é direitinho; direitinho eu, sob qualquer aspecto é o meu retrato”, costumava dizer a mãe consigo mesma. “Cabeçuda, um perfeito diabinho! Niilista, excêntrica, maluca e ruim, ruim, ruim! Senhor Deus, como ela vai ser infeliz!”
Mas, como íamos dizendo, um mágico sol fulgurante tinha abrandado e iluminado tudo, de repente. Pelo espaço de quase um mês, Lizavéta Prokófievna teve uma folga em suas ansiedades. O casamento próximo de Adelaída fez com que na sociedade também se viesse a falar em Agláia. E os modos de Agláia eram tão bons, tão harmoniosos, tão vivos, tão encantadores! Um nada altiva, mas isso até lhe ia bem! Portara-se, todo esse mês, tão carinhosa, tão gentil com sua mãe! (Verdade é que era necessário ter muito cuidado, estar muito atenta a Evguénii Pávlovitch, para lhe perscrutar o íntimo, mas Agláia nem por isso o favoreceu mais do que aos outros.) Fosse lá como fosse, como se tinha ela de repente tornado uma jovem tão radiante! E que linda estava, louvado seja Deus, que linda estava! Cada dia ficava mais bela. E nisto...
Nisto aquele desventurado principezinho, aquele miserável idiotazinho, nem acabara de surgir e já tudo estava de novo uma barafunda, a casa inteira de pernas para o ar.
Que teria, pois, acontecido?
Não tinha acontecido nada a ninguém, eis a verdade. Mas Lizavéta Prokófievna possuía tal peculiaridade: armava combinações e concatenações das coisas mais triviais até chegar a ver, através da sua onipresente ansiedade, alguma coisa que a alarmasse a ponto tal que, além de a tornar doente, lhe inspirava terror totalmente exagerado e inexplicável, a todo ponto insuportável. Imagine-se, agora, qual não seria o seu sentimento quando, através do emaranhado de absurdos e infundados aborrecimentos, verificou qualquer coisa que realmente era importante e que desta vez, sim, podia com toda a seriedade causar ansiedade, hesitação e desconfiança?
“E que insolência me escreverem, naquela amaldiçoada carta anônima, que aquela marafona anda em comunicação com Agláia!” Nisto pensava Lizavéta Prokófievna, durante o percurso para casa quando trouxe consigo o príncipe e mesmo depois, quando o fez sentar-se em torno da mesa redonda, com a família inteira ali reunida. “Como se atreveram a pensar numa tal coisa? Se eu acreditasse numa sílaba sequer, morreria de vergonha, e ainda bem que não mostrei a carta a Agláia! Estão querendo fazer de nós, os Epantchín, uma fábrica de gargalhadas! E a culpa toda é de Iván Fiódorovitch! Ah! Por que não fomos nós passar o verão na Ilha Ieláguin? Bem dizia eu que devíamos ir para Ieláguin! Deve ter sido essa implicante Vária quem escreveu a carta, ou... talvez... mas toda a culpa, todinha, é de Iván Fiódorovitch! Foi para dar na vista que essa marafona reergueu isso outra vez, como lembrança de suas primitivas relações, para o fazer de idiota, como já judiou dele antes, aquela vez, arrastando-o pelo nariz quando ele lhe levou as pérolas... E o máximo e o mínimo, em tudo isso, é que nos comprometeu. Sim, tuas filhas, Iván Fiódorovitch, foram metidas nisso, umas moças, umas donzelas, que frequentam a melhor sociedade, em via de se casarem; sim, elas estavam lá, estavam perto, ouviram tudo e foram arrastadas à cena com aqueles rapazes indecorosos! Sim, tu te podes felicitar! Elas estavam lá e também ouviram! Jamais perdoarei, jamais perdoarei a este desditoso principezinho! E por que esteve Agláia com sua histeria estes três últimos dias? Por que foi que esteve a ponto até de brigar com as irmãs, até mesmo com Aleksándra, cujas mãos sempre andava, antes, beijando, como se fosse Aleksándra sua mãe, tanto e tanto a respeitava? Por que se comportou ela de maneira tão enigmática com todo o mundo, estes três dias? Que tem Gavríl Ardaliónovitch com isso? Por que hoje e ontem elogiou ela tanto Ívolguin e rompeu, depois, em pranto? Por que é que esse amaldiçoado “pobre cavaleiro” é citado naquela carta anônima, e por que não mostrou ela, nunca, às irmãs, a carta do príncipe?... E por que... foi que me induziu a correr à casa dele, como uma gata com ataque, e a arrastá-lo até aqui? Deus nos acuda! Eu devia estar fora do meu juízo, para poder ter feito isso! Falar a um jovem dos segredos de minha filha! E segredos que a ele dizem respeito! Deus do Céu, foi, neste caso, uma graça divina ser ele um idiota e... e... um amigo da família, se não?!... Mas será possível que Agláia se tenha deixado fascinar por um “peixe-boi” destes? Céus, que estou eu tagarelando? Arre!... Somos uma súcia de esquisitos! O que deviam era colocar-nos numa redoma — principalmente eu — e exibir-nos a 2 copeques cada um. Nunca te perdoarei isso, Iván Fiódorovitch, nunca! E por que é que ela, a minha filha, não o põe a ridículo agora? Dizia tanto que estava troçando dele e por que parou? Lá está ela, de boca aberta para ele; e nem fala nem sai de lá, planta-se, apesar de lhe ter dito que não viesse mais!... Vejam só como ele está pálido. E aquele insigne tagarela Evguénii Pávlovitch açambarcou toda a conversa. Que corda que ele tem, não para, não deixa que ninguém se intrometa. Eu logo descobriria alguma coisa se me fosse dado converter a conversa no que eu muito bem sei!...”
O príncipe, de fato, estava bastante pálido, sentado lá rente à mesa redonda. E parecia bastante preocupado; momentos havia em que uma espécie de arrebatamento inundava a sua alma, sem que ele soubesse qual e porquê. Oh! Com que cuidado, com que medo relanceava, às vezes, o olhar para um canto, lá donde uns olhos negros o estavam intencionalmente fitando! E ao mesmo tempo como o seu coração palpitava com delícia por poder estar sentado ali entre eles, de novo, por poder ouvir aquela voz familiar, depois do que ela lhe tinha escrito! Céus! Que lhe diria ela agora? Ele ainda não tinha pronunciado uma palavra e escutava com desmedida atenção a “disparada” de Evguénii Pávlovitch, que raramente estava de ânimo tão disposto, feliz e excitado como naquela noite. O príncipe escutava-o, mas mal apreendia uma só palavra do que ele estava a contar desde muito. À exceção de Iván Fiódorovitch, que ainda não tinha voltado de Petersburgo, toda a família se achava reunida ali, como em assembleia. O príncipe Chtch... também. Tinham já demonstrado querer sair um pouco para ouvir a banda do jardim, antes do chá. Evidentemente a conversa começara antes da chegada do príncipe. Um pouco depois Kólia fizera a sua aparição na varanda. “Ele então é recebido aqui da mesma forma que antes”, verificou o príncipe, mentalmente.
A vila dos Epantchín era luxuosa, construída em forma de chalé suíço, pitorescamente coberta por trepadeiras em flor e rodeada por um jardim bem tratado. Estavam todos na varanda, como na casa do príncipe, mas a varanda aí era um pouco mais ampla e mais suntuosa.
O tema da conversa parecia agradar a poucos do grupo. Tinha nascido de um acalorado argumento, e não havia dúvida que todos gostariam bem de mudar de assunto. Mas Evguénii Pávlovitch persistia cada vez mais obstinadamente, sem se importar com a impressão que estava causando; a chegada do príncipe parece que o tornou ainda mais impetuoso; Lizavéta Prokófievna já estava de cara fechada, muito embora não o estivesse quase entendendo. Agláia, sentada para um dos lados, quase num canto, continuava a escutar, obstinadamente silenciosa.
— Ora, mas por quem são — estava Evguénii Pávlovitch protestando veementemente —, quanto ao liberalismo, não o ataco. O liberalismo não é um pecado. É uma parte essencial dum todo que sem essa parte se espatifaria, perecendo. O liberalismo tem tanto direito a existir como o mais judicioso conservadorismo. Mas eu estou atacando o liberalismo russo! E torno a repetir que o ataco justamente pela razão de que o liberal russo não é um liberal russo, mas um liberal antirrusso. Mostrem-me um liberal russo e eu o beijarei diante de todos aqui.
— Isto é se ele deixar que o senhor o beije! — disse Aleksándra, que se mostrava excepcionalmente animada, a ponto de suas faces estarem mais coradas do que habitualmente.
“Ora essa”, pensou Lizavéta Prokófievna, “não faz senão dormir e comer, e não há meios de ninguém a despertar, senão quando, lá de ano em ano, se levanta como se tivesse uma mola e se sai com uma destas, de tal maneira que se tem que ficar de boca aberta a olhá-la.”
O príncipe instantaneamente notara, desde o começo, que Aleksándra não estava gostando da maneira um tanto jactanciosa por que Evguénii Pávlovitch estava falando. Discorria ele sobre um assunto sério e parecia preso a isso, mas ao mesmo tempo se via que estava brincando.
— Estava eu sustentando, na hora mesmo em que o senhor chegou, príncipe — prosseguiu Evguénii Pávlovitch —, que os liberais sempre nos vieram de duas classes da sociedade: da classe dos antigos proprietários de terras, o que hoje é coisa de antanho, e de famílias clericais. E que, como estas duas classes se foram transformando em castas, algo como coisa à parte da nação, e cada vez mais, assim, geração após geração, tudo quanto têm feito é absolutamente antinacional.
— O quê? Então tudo quanto tem sido feito é antinacional? — protestou o príncipe Chtch...
— Antinacional. Conquanto seja russo, não é nacional. Entre nós, os liberais não são russos e os conservadores tampouco são russos quaisquer deles... E podem ficar certos de que a nação não aceitará nada do que tem sido feito pelos proprietários de terras e pelos estudantes eclesiásticos, nem agora, nem mais tarde.
— Bem, isso é demais! Como pode você manter tal paradoxo, se é que está falando sério!? Protesto contra tal interpretação disparatada sobre o proprietário de terras russo. Você mesmo é um latifundiário russo — objetou calorosamente o príncipe Chtch...
— Não estou falando do proprietário de terras russo no sentido em que você o está tomando. Essa é uma classe respeitabilíssima, e não porque eu pertença a ela. Especialmente agora, desde que deixou de ser uma casta.
— Então quer dizer que não tem havido nada de nacionalismo em literatura? — aparteou Aleksándra.
— Não sou nenhuma autoridade em literatura, mas até a literatura russa, na minha opinião, não é absolutamente russa, a não ser, talvez, Lomonóssov, Púchkin e Gógol. Esses são nacionais.
— Não está mal, como começo; e além disso um desses foi camponês; os outros dois eram proprietários de terras — disse Adelaída, sorrindo.
— Justamente, mas não fique triunfante. Como, de todos os escritores russos, esses foram os únicos capazes de dizer algo de seu, algo não emprestado, eles, por tal fato, se tornaram nacionais. Qualquer russo que diga ou que escreva ou mesmo que faça algo seu, algo original, e não alheio, inevitavelmente se torna nacional, mesmo que não possa falar escorreitamente o russo. Eu encaro isso como um axioma. Mas, no começo, nós não estávamos falando de literatura. Falávamos dos socialistas, antes. Ora bem, continuo a sustentar que nós não temos um único socialista russo; não há nenhum, nem nunca houve, pois todos os nossos socialistas também são proprietários de terras ou estudantes canônicos. Todos os nossos conhecidos e declarados socialistas, tanto aqui como no estrangeiro, não são mais do que liberais da fidalguia agrária ou dos tempos dos donos de servos. Por que está rindo? Mostre-me os livros deles, mostre-me as teorias deles, as memórias deles. E, muito embora eu não seja crítico literário, posso lhe escrever a crítica mais conveniente pela qual lhe mostrarei, tão claro como o dia, que cada página dos livros deles, panfletos ou reminiscências foi escrita por proprietários de terras russos da velha escola. A raiva, a indignação, o talento, tudo é típico daquela classe, como se ainda se estivesse na fase pré-Fámussov. Seus arroubos, suas lágrimas, conquanto talvez reais e sinceras, são lágrimas de proprietários de terras e de estudantes de patrologia. A senhora está rindo, outra vez? E o senhor também, príncipe? Então não concordam ambos comigo?
Estavam realmente todos rindo; e Míchkin também sorriu.
— Não posso dizer, à queima-roupa, se concordo ou não — disse o príncipe, deixando logo de sorrir e ficando na atitude do colegial apanhado em falta —, mas eu lhe asseguro que o estou escutando com o maior prazer...
Disse isso e quase que ficou sem ar, um suor frio a lhe escorrer pela testa. Estas eram as suas primeiras palavras, desde que estava ali, sentado; experimentou olhar para todo o grupo, mas não teve coragem; Evguénii Pávlovitch percebeu a atrapalhação dele e sorriu.
— Vou dizer-lhes uma coisa, senhores — prosseguiu ele no mesmo tom de antes, com extraordinária bonomia e vivacidade, mas ao mesmo tempo quase não podendo conter a vontade de rir, provavelmente de suas próprias palavras —, uma coisa cuja descoberta e observação tenho a honra de adjudicar a mim mesmo somente; nada foi ainda dito ou escrito sobre ela, garanto. E essa coisa, ou melhor, esse fato exprime toda a essência do liberalismo russo de cuja espécie estou tratando. Em primeiro lugar, que é o liberalismo, falando dum modo geral, senão um ataque (se judicioso ou errôneo, já é outra questão) à ordem estabelecida das coisas? É assim, ou não? Ora bem, o meu fato é que o liberalismo russo não é um ataque contra a ordem existente das coisas, mas é um ataque contra a essência mesma das coisas, das coisas em si, e não meramente contra a ordem das coisas; não contra o regime russo, mas contra a própria Rússia, isto é, detesta e espanca a própria mãe. Todo e qualquer fato desastroso e infeliz na Rússia excita a sua gargalhada e quase o seu contentamento. Detesta os hábitos nacionais, a história russa, tudo. Se alguma justificação há para ele é que não sabe o que está fazendo e toma esse ódio pela Rússia como sendo liberalismo da mais viçosa espécie. (Oh! Muitas vezes, entre nós, se encontram liberais que são aplaudidos por todos e que no fundo são os mais absurdos, os mais estúpidos e os mais perigosos conservadores e que não se dão conta disso, eles mesmos.) Este ódio pela Rússia chegou até, ultimamente, a ser tomado por alguns dos nossos liberais como um sincero amor por seu país. Proclamavam que sabiam melhor do que os outros como esse amor devia ser mostrado; agora, porém, se tornaram mais cândidos e se sentem envergonhados com aquela ideia de “amar” alguém a sua pátria. Baniram a própria concepção dela, como trivial e perniciosa. Isto é um fato. Insisto sobre isto... e a verdade será dita mais cedo ou mais tarde, inteira, simples e francamente. Mas se trata dum fato que nunca foi ouvido e que nunca existiu em nenhum outro povo desde que o mundo começou, portanto se trata dum fenômeno acidental e não deverá ser permanente, cuido eu. Não pode haver em mais parte alguma um liberal que odeie o seu próprio país. Como poderemos explicar isso entre nós? Ora, pelo mesmo fato de antes, que o russo liberal até aqui não tem sido russo, nenhuma outra coisa mais explica isso, a meu pensar.
— Tomo tudo quanto você disse como brincadeira, Evguénii Pávlovitch — replicou o príncipe Chtch... seriamente.
— Ainda não vi um liberal, portanto não me abalanço a julgar — disse Aleksándra. — Mas ouvi, indignada, as suas ideias; o senhor tomou um caso individual e através dele generalizou; logo, não foi senão injusto.
— Um caso individual? Ah! Essa era a palavra esperada! — esgrimiu Evguénii Pávlovitch. — Príncipe, que pensa disso? Será que eu tomei um caso individual, ou não?
— Devo dizer, também eu, que pouco tenho estado com liberais, só tendo visto um ou outro — disse o príncipe —, mas me parece que parcialmente o senhor tem razão e que essa espécie de liberalismo russo de que o senhor está falando realmente está disposta a odiar a Rússia, e não apenas as suas instituições. Naturalmente isso só é verídico em parte... Naturalmente que não é verídico no todo.
E, confuso, parou. A despeito de sua excitação, estava grandemente interessado na conversação. Uma das mais impressionantes características do príncipe era a extraordinária ingenuidade de sua atenção, a forma com que se punha sempre a escutar o que o interessava e as respostas que dava quando alguém lhe fazia perguntas. O seu rosto e mesmo a sua atitude de modo sui-generis refletiam essa ingenuidade, essa boa-fé sem desconfiança de zombaria ou humor alheio. Mas, conquanto Evguénii Pávlovitch desde antes se comportasse para com ele com certa ironia, ao lhe ouvir agora essa resposta, ficou a olhá-lo gravemente como se não tivesse esperado isso dele.
— Mas... como o amigo é estranho! — disse ele. — O senhor realmente me respondeu falando sério, príncipe?
— Como assim, e o senhor não perguntou sério? — replicou Míchkin, surpreso.
Todos riram.
— Vá a gente confiar nele — disse Adelaída. — Evguénii Pávlovitch sempre quer troçar com alguém! Se vissem que histórias ele conta às vezes, com perfeita seriedade!
— Acho que esta conversa está mais é cacete e que nem valia a pena ter começado — comentou Aleksándra, sem ninguém esperar. — E a nossa ideia de darmos um passeio?
— Então, vamos. Está uma noite admirável! — exclamou Evguénii Pávlovitch. — Mas para lhe mostrar que desta vez eu estava falando sério e, mais ainda, para mostrar ao príncipe isso (o que o senhor disse me interessou extremamente, príncipe, e lhe asseguro que não sou de modo algum um camarada pateta, como lhe devo ter parecido, embora, de certo modo, eu o seja, um tanto!), e se aqui as senhoras me permitem e os senhores também, farei ao príncipe uma última interrogação para satisfazer a minha própria curiosidade; depois do que, ponto final! Tal pergunta me ocorreu propriamente há duas horas. Vai ver, príncipe, como também, às vezes, penso em coisas sérias; à tal pergunta eu já respondi, mas vejamos como a responde o príncipe. Falou-se, ainda agora, sobre um “caso individual”. Tal frase aqui dita há pouco é muito significativa; a todo passo a estamos ouvindo. Todo o mundo falou e comentou, ultimamente, um hediondo assassinato de seis pessoas por um certo jovem, e o estranho discurso feito pelo conselho de defesa, no qual foi dito que, considerando bem a pobreza do criminoso, devia ter sido natural para ele pensar em matar seis pessoas. Não foram estas, propriamente, as palavras usadas, mas o sentido, penso eu, foi este, ou quase assim. A minha opinião privada é que o advogado que deu expressão a essa tão estranha ideia estava convicto de exprimir o sentimento mais liberal, mais humano e mais progressista que podia ser articulado em nossos dias. Ora, que fazer então disso? É esta corrupção de ideias e de convicções, é a possibilidade de um ponto de vista assim deformado e extraordinário, um “caso individual”, ou um exemplo típico?
Todos riram, outra vez.
— Individual, naturalmente, individual! — disseram, rindo, Aleksándra e Adelaída.
— Deixe que lhe previna de novo, Evguénii Pávlovitch — disse o príncipe Chtch... —, que a sua brincadeira continua, e muito chocha.
— Que é que o senhor acha, príncipe? — prosseguiu Evguénii Pávlovitch, sem escutar, mas vigiando os olhos com que Míchkin, muito sério e interessado, o encarava. — Acha o senhor que é um caso individual ou genérico? E devo confessar que foi por sua causa que pensei nisso.
— Não. Individual, não! — respondeu o príncipe, com gentileza, mas firmemente.
— Mas, palavra de honra, Liév Nikoláievitch! — exclamou o príncipe Chtch..., desapontado. — Pois não vê o senhor que ele o quer apanhar em falso? Ele está troçando e quer brincar com o senhor!
— Pensei que Evguénii Pávlovitch estivesse falando sério — respondeu Míchkin, enrubescendo e abaixando os olhos.
— Meu caro príncipe — continuou o príncipe Chtch... —, lembre-se do que estivemos a conversar uma vez, deve haver uns três meses. Disse-me o senhor que se podiam apontar notáveis e talentosos advogados em nossos tribunais recentemente criados! E que muitíssimos veredictos altamente magistrais tinham sido exarados! Quanto isso o alegrava e como eu estava satisfeito de ver esse prazer! Dizia-me o senhor que nos tínhamos que orgulhar do nosso Direito!... Logo, esta inepta defesa, este estranho argumento é, naturalmente, uma casual exceção, uma entre mil certas.
O príncipe pensou por um momento e, com um ar de perfeita convicção, apesar de se pôr a falar serenamente e até um pouco tímido, respondeu:
— Apenas quis significar que uma perversão de ideias e de concepções, conforme se expressou Evguénii Pávlovitch, com a qual nos defrontamos muitas vezes, é, infelizmente, muito mais a regra geral do que um caso excepcional. E tanto que se esse não fosse um fenômeno tão geral talvez não fosse possível haver tantos crimes como esse.
— Crimes impossíveis? Mas lhe afirmo que crimes destes e talvez até ainda mais terríveis existiram no passado e em todos os tempos, e não só entre nós senão por toda a parte e, na minha opinião, ocorrerão muitas e muitas vezes durante muito tempo. A diferença está em que havia muito menos publicidade na Rússia, outrora, ao passo que agora se começou a falar e mesmo a escrever sobre tais casos a ponto tal que é como se esses criminosos fossem um fenômeno recente. Eis como advém o seu engano, engano extremamente ingênuo, príncipe, fique sabendo — disse o príncipe Chtch... com um sorriso irônico.
— Não deixo de reconhecer que houvesse outrora muitíssimos crimes e bem terríveis. Estive ultimamente visitando prisões e consegui travar conhecimento com alguns criminosos convictos. Há mesmo criminosos muito maiores do que esse, homens que cometeram uma dúzia de assassinatos e que, todavia, nem sentem o menor remorso. Mas vou dizer o que observei: reparei que o mais feroz e impenitente assassino, apesar de tudo, sabe que é um “criminoso”, isto é, considera em sua consciência que agiu mal, mesmo que não se arrependa. Verifiquei tal, em um por um. Ao passo que aqueles, de que Evguénii Pávlovitch estava falando, se recusam a se considerar criminosos, e acham que estão no seu direito, e que agiram certo; esta é a atitude deles. E eis em que consiste a diferença. E, observe, são todos eles jovens, isto é, estão na idade em que se pode mais fácil e inexoravelmente tombar sob a influência de ideias pervertidas.
O príncipe Chtch... parou de sorrir e ficou escutando Míchkin com um ar espantado. Aleksándra, que ia dizer qualquer coisa, mudou de ideia, como se um pensamento especial a tivesse detido. Evguénii Pávlovitch olhava para Míchkin com verdadeiro pasmo, sem vestígio de gracejo.
— Mas, meu bom senhor, diga lá por que o está olhando tão surpreso? — interveio Lizavéta Prokófievna, inesperadamente. — Por que cuidava que ele não fosse tão inteligente quanto o senhor e não pudesse raciocinar como o senhor pode?
— Nunca pensei nisso, absolutamente — disse Evguénii Pávlovitch. — Apenas, como é que, desculpe a pergunta, já que vê isso tão claramente, como é que o senhor, desculpe-me outra vez, não notou a mesma perversão de ideias e de convicções morais naquele estranho caso... o outro dia, lembra-se... o caso de Burdóvskii, lembra-se? É exatamente a mesma coisa. Parece-me que naquela ocasião não viu isso, absolutamente.
— Mas consinta que lhe diga, meu caro — interrompeu Lizavéta Prokófievna, esquentando-se —, que todos nós notamos. Aqui estamos sentados, julgando-nos superiores a ele. Pois ele recebeu uma carta dum desses daquela noite, do pior do bloco, o escrofuloso, lembras-te, Aleksándra?, e na carta pede perdão, lógico que à sua maneira, naturalmente, e declara que rompeu com os companheiros que o instigaram naquela ocasião, lembra-te, Aleksándra?, e que deposita total confiança no príncipe. Nós, porém, não tivemos carta, embora estivéssemos de nariz voltado para ele.
— E Ippolít acaba de se mudar para a nossa vila, também — contou Kólia.
— O quê? Já está lá? — perguntou o príncipe, afogueado.
— Chegou logo que o senhor saiu com Lizavéta Prokófievna. Eu o levei.
— Bem, pois eu aposto uma coisa — disse Lizavéta Prokófievna, inflamando-se repentinamente, esquecida já de que estivera elogiando o príncipe. — Aposto que este aqui foi vê-lo a noite passada na sua água-furtada e lhe pediu perdão de joelhos, a fim de que esse rancoroso espalha-brasas se pudesse mudar para a sua vila. Você não esteve lá, ontem? Você mesmo confessou. É ou não é verdade? E não se ajoelhou?
— Não fez nada disso — gritou Kólia. — Muito pelo contrário. Foi Ippolít quem segurou a mão do príncipe ontem e a beijou duas vezes. Eu vi. Foi como a entrevista acabou; e mais: o príncipe lhe disse apenas que ele ficaria mais confortavelmente lá na vila, concordando ele em ir logo que se sentisse melhor.
— Kólia, não precisa você... — balbuciou o príncipe, levantando-se e pegando o chapéu. — Para que há de você estar a falar nisso? Eu...
— Onde é que vai? — perguntou Lizavéta Prokófievna, interceptando-o.
— Não se amofine, príncipe — continuou Kólia, vivamente. — Se o senhor for lá agora o incomodará. Ele ficou a dormir, depois da viagem. Está satisfeito e, quer saber duma coisa, príncipe?, acho até que será melhor o senhor não ir vê-lo hoje, senão ele torna a ficar desapontado. Ainda esta manhã me dizia que nunca se sentira tão forte e tão bem, nestes últimos meses, como agora. Já não tosse nem a metade do que tossia.
Notou o príncipe que Agláia deixara o seu lugar e se aproximava da mesa. Não teve coragem de olhá-la, mas sentiu em todo o seu ser que ela o estava olhando naquele instante e que, decerto, o estava olhando colericamente, que devia haver indignação em seus olhos negros e que o seu rosto devia estar vermelho.
— Mas eu acho que fez mal em o fazer vir para cá, Nikolái Ardaliónovitch, se é que se está referindo àquele rapaz tuberculoso que chorou e que nos convidou para o seu enterro — comentou Evguénii Pávlovitch. — Ele falou com tamanha eloquência da parede da casa fronteira à sua que certamente morrerá de saudades dessa parede; fique certo disso.
— Tal e qual. E brigará e romperá com o senhor e irá embora outra vez; esse é que vai ser o fim. — E Lizavéta Prokófievna puxou para perto de si a cesta de costuras, com um ar de dignidade, esquecendo-se de que todo o mundo se estava preparando para ir dar um passeio.
— Lembro-me de quanto ele alardeou sobre a tal parede — recomeçou Evguénii Pávlovitch. — E sem aquela parede ele não conseguirá morrer eloquentemente! E o diabo é que está ansioso por uma cena de morte com bastante retórica.
— Como? — perguntou o príncipe, que prosseguiu: — Se o senhor não o perdoar, há de ele então morrer sem o seu perdão... Pois olhe, ele veio para cá, por causa das árvores.
— Oh! Quanto a mim, perdoo-lhe tudo por tudo. Pode até lhe dizer isso.
— Não é bem essa a maneira — respondeu o príncipe, mansamente e como que com relutância, com os olhos fixos num ponto do assoalho, sem os levantar. — O senhor devia estar preparado para receber o perdão dele também.
— Não vejo por quê! Que lhe fiz eu de mal?
— Se o senhor não compreende, então... Mas o senhor compreende; ele desejava abençoar todos e que todos o abençoassem. E era só.
— Caro príncipe — apressou-se a se interpor o príncipe Chtch... com certa apreensão e trocando olhares com alguns dos demais —, não é fácil atingir o paraíso aqui na terra mas o senhor teima em contar encontrá-lo. O paraíso é um negócio difícil, príncipe, muito mais difícil do que parece ao seu bom coração. O melhor é pormos o assunto de lado, senão acabaremos nos sentindo atrapalhados também, e então...
— Vamos ouvir música! — aconselhou Lizavéta Prokófievna com entusiasmo, levantando-se do seu lugar espetacularmente.
Saiu; e todos seguiram o seu exemplo.
2.
De repente Míchkin se aproximou de Evguénii Pávlovitch.
— Evguénii Pávlovitch — disse ele, com estranha vivacidade, apertando-lhe a mão —, creia que eu o considero como o melhor e o mais honrado dos homens, apesar de tudo. Pode ficar certo disso!...
Evguénii Pávlovitch recuou um passo, surpreendido. Teve que lutar, um momento, com uma irresistível vontade de rir. Mas, reparando melhor, notou que o príncipe parecia outro, ou, no mínimo, estava num estado de espírito todo especial.
— Não tenciono apostar, príncipe — disse ele —, que o senhor não quisesse dizer o que disse e nem tampouco deixar de falar comigo, absolutamente. Mas de que é que se trata? Não está se dando bem, aqui?
— Talvez, talvez. E o senhor foi muito hábil em perceber que talvez não fosse ao senhor que eu quisesse me dirigir.
Disse isso com um sorriso estranho e até mesmo absurdo; mas logo, como que repentinamente excitado, ajuntou:
— Não me queira relembrar a minha conduta de há três dias. Só eu sei quanto vivi envergonhado estes três últimos dias... Sei que fui culpado!...
— Mas que foi que o senhor fez assim de tão terrível?
— Vejo que está mais sentido comigo do que qualquer outra pessoa, Evguénii Pávlovitch. Está até corando; isso é sinal de bom coração. Vou-me embora, dentro em breve, pode ficar certo disso.
— Que foi que lhe aconteceu? Porventura irá ter um ataque? — perguntou Lizavéta Prokófievna a Kólia, muito espantada.
— Não se assuste, Lizavéta Prokófievna. Não estou com um ataque. O que há é que estou resolvido a sumir. Eu sei que sou um desfavorecido da natureza. Estive doente durante 24 anos, desde o meu nascimento até completar 24 anos. Deve tomar tudo quanto eu digo agora como coisa dum homem doente. Vou-me embora, imediatamente, imediatamente. Pode ficar certa disso. Não me sinto envergonhado, não: pois seria estranho que eu estivesse envergonhado disto, não seria? Mas estou deslocado na sociedade... Falo não por vaidade ferida!... Estive a refletir durante estes três dias e achei cá comigo que lhe devia explicar certas coisas sinceramente e de modo bem digno para com a senhora, na primeira oportunidade que eu tivesse. Há ideias, grandes ideias, sobre as quais eu não devo começar a falar, porque na certa faria todo o mundo rir. O príncipe Chtch... ainda agora me avisou sobre tal coisa. Minha atitude não é conveniente. Não tenho nenhum senso de proporção. Minhas palavras são incoerentes, não se enquadrando no assunto; e isso é uma degradação para tais ideias. Portanto, não tenho nenhum direito!... Além disso, sou sensível morbidamente... Estou mais do que certo de que ninguém, aqui nesta casa, feriria meus sentimentos e que sou mais querido aqui do que mereço. Mas eu sei (e sei ao certo) que vinte anos de doença devem deixar traços, e que por conseguinte é impossível a qualquer pessoa deixar de rir de mim... às vezes... Não é assim, não é mesmo?
E ficou como que à espera duma resposta, olhando à sua volta.
Todos se detiveram, numa difícil perplexidade, ante esta explosão inesperada, mórbida e, em todo o caso, aparentemente sem causa. Mas esta explosão acabou por produzir um estranho episódio.
— Mas por que está dizendo isto aqui?! — exclamou Agláia, de repente. — Por que está dizendo isso a eles? A eles? A eles?
Parecia irritada até o ápice de indignação. Seus olhos faiscavam. O príncipe ficou a olhá-la, mudo, atarantado, cada vez mais lívido.
— Não há aqui ninguém que mereça tais palavras — rompeu Agláia. — Não há aqui ninguém, ninguém que valha o seu dedo mínimo, nem o seu espírito, nem o seu coração! É mais honrado do que qualquer um deles, mais nobre, melhor, mais bondoso, mais inteligente do que qualquer um deles! Alguns nem mereceriam se abaixar para levantar o lenço que o senhor deixasse cair!... Por que humilhar-se, pôr-se abaixo deles? Por que há de falsear tudo que é seu? Por que é que não tem orgulho?
— Deus nos acuda! Quem esperaria uma coisa destas? — gritou Lizavéta Prokófievna.
— Salve, “pobre cavaleiro”! — gritou Kólia, entusiasmado.
— Cale a boca!... Como ousam eles insultar-me em sua casa? — disse Agláia, correndo para perto de sua mãe e a ela se dirigindo, sem que ninguém esperasse. Estava agora naquele estado histérico em que não há mais diferenciação nem conveniência a respeitar. — Por que é que todos me torturam, todos, todos? Por que estiveram me importunando estes três últimos dias, por sua causa, príncipe? Nada me induziria a casar-me com o senhor! Consinta que lhe diga que jamais o faria, sob consideração de espécie alguma. Mas compreenda bem! Então pode lá alguém casar com uma criatura como o senhor? Mire-se num espelho, veja com o que se parece aí, parado! Por que me martirizam e não param de dizer que me hei de casar com o senhor? O senhor deve saber. O senhor está dentro do conluio, com eles, também!
— Mas nunca ninguém te martirizou a tal respeito! — murmurou Adelaída, assombrada.
E Aleksándra, por sua vez, disse:
— Mas nunca ninguém pensou em tal coisa! Nunca se disse uma palavra quanto a isso!
— Quem a andou atormentando? Quando foi atormentada? Quem podia ter dito tal coisa? Não estará ela delirando? — E a generala se dirigiu para a sala, trêmula de raiva.
— Todo o mundo anda falando, todo o mundo, nestes três últimos dias! Não quero me casar com ele, absolutamente, jamais!
E, ao gritar assim, rompeu em pranto e, escondendo o rosto no lenço, caiu sobre uma cadeira.
— Mas nem ele próprio...
E inesperadamente o príncipe titubeou:
— Mas eu não vos pedi... Agláia Ivánovna!
— O... quê? — aparteou Lizavéta Prokófievna, indignada, toda espanto e horror. — Que é isso? — E não podia dar crédito aos seus ouvidos.
— Quero dizer que... quero dizer que... — gaguejou o príncipe. — Eu apenas quis explicar a Agláia Ivánovna... isto é, só quis ter a honra de aclarar bem que não tive a intenção... a honra de pedir a mão dela... em tempo algum. A culpa não é minha, a culpa não é minha, com efeito, Agláia Ivánovna. Eu nunca desejei, nunca isso me entrou na cabeça. E nunca hei de querer, vós mesma vereis isso por vós. Podeis ficar certa. Alguma pessoa por vingança me deve ter caluniado. Por que estardes aborrecida? — E, dizendo isso, se aproximou de Agláia.
Afastando o lenço com que cobria o rosto, Agláia olhou de esguelha para aquele rosto aparvalhado, entendeu bem a significação do que ele dizia e caiu repentinamente num acesso de riso. Mas um riso tão alegre, tão irresistível, tão engraçado e tão gostoso que Adelaída não se pôde conter, principalmente quando olhou também para o príncipe. Atirou-se para a irmã, abraçou-a e rompeu no mesmo riso de meninas de escola, um riso que era um prazer. Olhando-as, o príncipe também se pôs a rir, repetindo várias vezes, com uma expressão de júbilo e de felicidade:
— Isso! Assim! Muito bem! Muito bem! Deus seja louvado!
Aleksándra também se juntou a eles, rindo de todo o coração. Parecia que as três não parariam mais de tanto rir.
— Coisas mesmo de loucos! — sentenciou Lizavéta Prokófievna. — Primeiro assustam a gente, depois então...
Agora dera o príncipe Chtch... em rir também, o mesmo fazendo Evguénii Pávlovitch. Kólia, esse então ria sem parar, o mesmo se dando com Míchkin, que olhava para todos eles.
— Vamos dar um passeio, vamos dar um passeio! — exclamou Adelaída. — Nós todas, e o príncipe vem conosco. Por que há de ir embora, excelente amigo? Ele não é formidável, Agláia? Não é, mamãe? Vou até lhe dar um beijo e abraçá-lo, por causa da explicação que deu ainda agora a Agláia. Mamãe, deixas-me dar um beijo nele? Agláia, deixas que eu dê um beijo no teu príncipe? — Ia dizendo a estouvada rapariga. E imediatamente saltou para o príncipe e o beijou na testa.
Ele lhe agarrou as mãos, apertando-as com tanta força que ela quase gritou. Olhou-a com infinito contentamento e apressadamente lhe puxou a mão que três vezes beijou.
— Vamos! — chamava Agláia. — Príncipe, escolte-me! Deixa, mamãe, apesar dele me ter recusado? O senhor me recusou foi por bem, não é, príncipe? Mas não é assim que se oferece o braço a uma dama. Não sabe como é que se dá o braço a uma dama? Assim, sim. Vamos; nós é que abriremos o caminho. Não quer que nós dois sigamos na frente, tête-à-tête?
Não parava de falar, sempre rindo, espasmodicamente.
— Louvado Deus! Louvado Deus! — repetia Lizavéta Prokófievna, embora não soubesse com o que se estava alegrando tanto.
“Que gente extraordinariamente engraçada!” — pensava o príncipe Chtch..., talvez pela centésima vez desde que os conhecia; mas gostava dessa gente engraçada. Quanto a Míchkin, não se sentia lá muito atraído por ele. E, ao saírem, o príncipe parecia meio sem jeito e, por certo, um tanto preocupado.
Quanto a Evguénii Pávlovitch, esse estava no mais franco bom humor. Em todo o caminho para a estação da estrada de ferro brincava com Adelaída e Aleksándra, que riam de suas graças com tão acentuada presteza que logo desconfiou que elas não estavam mais era ouvindo o que ele dizia. E, ao pensar nisso, rompeu de repente numa risada franca, cujo motivo não houve meio de elas compreenderem. Esse modo divertido era característico do homem que ele era. Conquanto as duas irmãs continuassem de disposição hilariante, não deixavam de olhar para Agláia e Míchkin, que seguiam na frente. Evidente era que a conduta da irmã mais moça constituía um completo enigma. O príncipe Chtch... tentava conversar sobre outros assuntos com Lizavéta Prokófievna, com a intenção, decerto, de lhe distrair o espírito, só conseguindo amolá-la terrivelmente. Parecia estar ofuscada, respondia ao acaso, e às vezes nem mesmo isso. Mas esse não seria o fim dos enigmas de Agláia, naquela noite. O último coube como quinhão ao príncipe, sozinho. Quando se tinham distanciado cerca duns cem passos da casa, Agláia disse, quase ciciando, de tão baixo, ao seu obstinadamente mudo cavalheiro:
— Olhe ali, à direita.
O príncipe olhou.
— Mas olhe com mais atenção. Está vendo ali no parque, aquele banco lá onde estão aquelas três grandes árvores?... Um banco verde?
Míchkin respondeu que estava vendo.
— Gosta do lugar? Muitas vezes vou me sentar lá, sozinha, às sete horas da manhã, quando todo o mundo está dormindo.
O príncipe sussurrou que o local era encantador.
— E agora pode me deixar. Não quero mais continuar andando de braço dado. Ou melhor, pode continuar de braço dado comigo, mas não me dirija a palavra, uma só vez que seja. Quero ir pensando só.
Tal aviso era desnecessário, porém. O príncipe não teria proferido, em caso algum, uma só palavra, pois o seu coração começara a palpitar violentamente desde que ela lhe mostrara o banco lá no parque. Depois de um minuto de atarantamento, enxotou, com vergonha, certa ideia inconcebível.
É um fato mais do que sabido já por todo o mundo que o público que se ajunta em volta do coreto de música de Pávlovsk é mais “seleto” nos dias de semana do que nos domingos e feriados ou dias santos, em que “toda espécie de gente” acorre para lá, vinda da cidade. E a moda é juntarem-se perto do coreto de música no Vauxhall. A orquestra é a melhor das nossas bandas de parques e quase sempre toca peças novas. Há muito decoro e decência de comportamento nos jardins, embora haja um ar de simplicidade e de convívio. Esses veranistas reúnem-se ali com o fim de encontrar conhecidos. Muitos o fazem com real prazer e frequentam os jardins só com esse fim. Outros há que vão apenas por causa da música. Cenas desagradáveis são ali muito raras, embora possam ocorrer ocasionalmente, até mesmo em dias de semana. O que, aliás, é inevitável.
Estava uma noite propícia e havia muita gente no jardim. Todos os lugares perto da orquestra estavam tomados. O nosso grupo sentou-se nas cadeiras um pouco mais ao lado, perto da saída, à esquerda do edifício. Todo aquele povo e mais a música reavivavam um pouco Lizavéta Prokófievna e divertiam as moças. Já tinham trocado olhares com alguns veranistas e acenado afavelmente para vários conhecidos, examinado vestidos, notado os que lhes pareciam excêntricos, discutindo-os com sorrisos sarcásticos. Evguénii Pávlovitch também, a cada instante, se curvava, saudando pessoas de suas relações. Agláia e Míchkin, sempre juntos, já estavam começando a atrair atenções. E logo vários rapazes vieram ter com as moças e a generala, uns dois ou três ficando a conversar com elas. Eram amigos de Evguénii Pávlovitch. Entre eles estava um belo e jovem oficial de muito bom humor e que conversava muito. Apressou-se em se dirigir a Agláia e fazia o possível para despertar a atenção dela. Ela se portou muito graciosamente e com desembaraço perante ele. Evguénii Pávlovitch pediu licença ao príncipe para apresentar-lhe esse seu amigo. Míchkin a custo compreendeu o que queriam dele, mas a apresentação foi feita, tendo ambos se inclinado e apertado as mãos. O amigo de Evguénii Pávlovitch fez logo uma pergunta ao príncipe, que, ou não respondeu, ou gaguejou qualquer cousa de modo tão estranho que o oficial ficou a olhar para ele um pouco, depois para Evguénii Pávlovitch, de soslaio, compreendendo logo por que fora feita a apresentação; sorriu, altivamente, e se voltou de novo para Agláia. O único a notar que Agláia havia enrubescido foi Evguénii Pávlovitch.
O príncipe nem sequer observou que outras pessoas estavam conversando e prestando atenção em Agláia. Achava-se talvez inconsciente ou, pelo menos, durante momentos e momentos esteve ali como se não estivesse sentado ao lado dela. Agora, por exemplo, aspirava estar muito longe, poder desaparecer dali completamente. É indubitável que se sentiria bem melhor num lugar ermo e triste onde pudesse ficar sozinho com os seus pensamentos, sem que ninguém soubesse do seu paradeiro. Ou, no mínimo, estar em casa, na varanda, sem mais ninguém, acolá, sem Liébediev e nem os filhos dele; estirado no sofá, com a cabeça enterrada no travesseiro e assim permanecer um dia, uma noite e mais outro dia. Pensava e sonhava com as montanhas e, de modo muito particular, com um sítio em que sempre gostava de pensar, um sítio onde sempre gostara de ir e donde costumava contemplar a aldeia lá embaixo; a cascata brilhando como um filete branco a cair; as nuvens brancas, e aquele castelo em ruínas. Oh, que saudades! Por que não estava agora lá, sem pensar em nada? Oh! A não pensar em cousa alguma, pelo resto da vida! E então mil anos não seriam demasiado longos! E ser completamente esquecido aqui! Oh! Sim, completamente! Teria sido bem melhor, com efeito, que o não tivessem conhecido e que tudo não passasse dum sonho. Pois não dava justamente no mesmo, sonho ou realidade? De vez em quando olhava para Agláia, e por cinco minutos não retirou o olhar de cima do seu rosto. Mas era um olhar estranho. Parecia olhar não para ela e sim para um objeto a quilômetros de distância, ou para um retrato.
— Por que é que está me olhando assim, príncipe? — perguntou ela, de repente, interrompendo a palestra e a risada com o grupo que a rodeava. — Estou com medo; chego a sentir que quereria me tocar o rosto com os dedos, para senti-lo bem. O modo dele olhar não lembra isso, Evguénii Pávlovitch?
O príncipe pareceu surpreendido de que lhe estivessem a falar; fez assim um ar de ponderação; decerto não compreendeu absolutamente nada, e por isso não respondeu. Notando, porém, que ela e os demais se puseram a rir, entreabriu a boca e riu também. A risada aumentou. O oficial, que devia estar de ânimo jovial, esse então não parava de rir. E imediatamente Agláia balbuciou, colericamente, lá consigo mesma: “Imbecil.”
— Ó Céus! Seguramente ela não deve... Um homem assim!... Pois não estará ela completamente louca? — pronunciou a mãe, raciocinando.
— É brincadeira dela. O mesmo que aquela história de “pobre cavaleiro”! Não passa de brincadeira — ciciou, no ouvido materno, Aleksándra, com decisão. — Está fazendo o príncipe de bobo, outra vez, aliás como sempre. Mas agora está se excedendo. Devemos pôr um ponto nisso, mamãe. Ela teima, como uma atriz, e nos está espantando por pura maldade...
A mãe respondeu, baixinho:
— Ainda bem que se atira a um idiota como ele.
A advertência da filha a aliviou um pouco.
Não obstante, o príncipe ouviu que o chamavam de idiota. Sobressaltou-se; não, porém, por estar sendo chamado de idiota, qualificativo que imediatamente esqueceu. É que, entre a multidão, não longe do lugar onde estava sentado (não saberia apontar para o ponto exato), surpreendeu, num relance, um rosto, um rosto lívido, com cabelos negros e crespos, com um sorriso e uma expressão já bem conhecidos, muito conhecidos. Foi apenas um relance, pois aquele rosto logo sumiu. Muito provavelmente se tratava de mera imaginação sua. Tudo quanto lhe ficou foi o vislumbre dum sorriso disforme, duns olhos, duma gravata verde, espalhafatosa. Mas se o vulto desaparecera por entre o povo ou se se esgueirara para dentro do edifício não poderia garantir.
Um minuto depois, recomeçou o príncipe a olhar vivamente em redor, muito preocupado. Essa primeira aparição devia ser precursora duma segunda. E certamente que era. Poderia ele ter esquecido a possibilidade dum encontro, ao entrar no jardim? Verdade é que o fizera automaticamente, sem a menor noção do que estava praticando, tal o seu estado de espírito.
Se a sua capacidade de observação fosse maior, teria reparado que já há um bom quarto de hora Agláia também estava olhando em torno, um tanto inquieta, como à procura de alguém. E, à medida que a preocupação de Míchkin se tornava mais evidente, a de Agláia aumentava. Tanto que, mal movia os olhos para qualquer ponto, ela o imitava. A explicação disso se seguiu quase imediatamente.
Um grupo de pessoas, umas dez, inesperadamente apareceu do lado da entrada perto da qual o príncipe e as Epantchín se haviam sentado. Vinham à frente do grupo três mulheres, duas das quais duma aparência notoriamente esplêndida; não era, portanto, de admirar que estivessem seguidas de tantos admiradores. Mas havia algo de especial tanto nas mulheres como nos homens que vinham com elas, algo bem diverso das pessoas que estavam reunidas ali para ouvir música. E imediatamente chamaram a atenção de todos os presentes, que olharam, por lhes ter parecido não ser gente até então vista por ali; somente alguns dos rapazes sorriram, trocando palavras baixinho, no ouvido uns dos outros. De mais a mais era impossível não reparar nessa gente, pois se apresentava de modo sensacional, falando alto e rindo. Podia-se até pensar que alguns dentre o grupo estivessem embriagados, muito embora se tratasse de gente muito bem vestida e distinta. O que não quer dizer que entre eles não houvesse pessoas extravagantes, quer pelas roupas, quer pelas caras demasiado vermelhas. Havia até alguns oficiais e não muito jovens. Estavam eles muito bem trajados com roupas muito bem cortadas e confortáveis, com anéis, abotoaduras, esplêndidas cabeleiras pretas, belos bigodes, com uma dignidade toda jactanciosa em suas faces, gente que decerto era evitada na sociedade como praga. Entre os nossos lugares suburbanos de reunião há vários, naturalmente, que são tidos, e fundamentadamente, como de excepcional respeitabilidade, gozando, por isso, de uma boa reputação. Mas mesmo a pessoa mais precavida pode ser apanhada por uma telha que tomba do telhado do vizinho. Uma telha dessas estava para se despenhar sobre o público escolhido que ali se reunira para escutar a banda.
No caminho que vai do edifício ao coreto havia três degraus. E o grupo estava parado justamente no alto desses três degraus; hesitavam em descer, mas uma das mulheres deu um passo à frente; e só duas pessoas do seu acompanhamento a imitaram. Uma era um homem de meia-idade e de aparência um pouco modesta. Tinha o ar de um cavalheiro, a todos os respeitos, apesar do seu feitio decaído de indivíduo que ninguém conhece e que não conhece ninguém. A outra era um sujeito de ar duvidoso, de cotovelos coçados. Mais ninguém seguiu a dama excêntrica. Ao descer os degraus, não olhou para trás, dando a entender que pouco se importava em ser ou não seguida. Ria e falava alto, como antes. Estava ricamente vestida, com excelente gosto, mas um tanto esplendidamente demais. Virou-se para o outro lado do coreto, onde uma carruagem particular esperava alguém.
Havia três meses que o príncipe não a via. Desde que chegara a Petersburgo estava tencionando ir vê-la; mas, talvez, um secreto pressentimento o tolhesse. Não podia, ainda assim, avaliar que impressão lhe causaria o seu encontro, muito embora, muitas vezes, tivesse tentado imaginar, com pavor. Mas uma coisa era mais que clara: que tal encontro lhe seria penoso. Diversas vezes, durante os últimos seis meses, se tinha recordado da primeira impressão que aquele rosto lhe causara quando o vira apenas em fotografia. Mas mesmo a impressão causada pela fotografia era, lembrava-se muito bem, angustiante. Aquele mês na província, em que a via quase cotidianamente, havia exercido um pavoroso efeito sobre ele, tamanho que, muitas vezes, tentara afastar de si toda essa reminiscência. Havia no rosto daquela mulher qualquer coisa que sempre o torturava. Em conversa com Rogójin, tinha considerado essa sensação como infinita piedade para com ela, e isso era a verdade. Aquele rosto, mesmo em retrato, só fizera nascer no seu íntimo um verdadeiro martírio de piedade: o sentimento de compaixão e até mesmo de sofrimento para com aquela mulher nunca abandonara o seu coração, nem abandonaria. Oh! Não, esse sentimento era maior do que nunca! Mas o que falara a Rogójin não o satisfizera; e somente agora, ante o súbito aparecimento dela, compreendeu o príncipe, através decerto de sua imediata intuição, o que tinha faltado em suas palavras. E as palavras que faltavam só expressariam horror — sim, horror! Agora, bem neste momento, tinha sentido isso, plenamente. Estava certo, estava plenamente convencido; e ele sabia as razões por que aquela mulher era louca. Se, amando uma mulher mais do que a tudo no mundo, ou antevendo a possibilidade de vir a amá-la assim, alguém, inesperadamente, desse com tal mulher acorrentada, atrás de grades e debaixo do açoite do vigia da prisão, esse alguém sentiria o que o príncipe sentiu naquele momento.
— Que é que o príncipe tem? — disse-lhe baixo Agláia, prontamente, olhando-o e ingenuamente lhe segurando o braço.
Ele virou a cabeça, olhou para ela, mirou bem dentro daqueles olhos negros, que brilhavam nesse instante com uma luz que para ele era mistério; tentou sorrir mas, imediatamente, como que a esquecendo logo, volveu os olhos para a direita e recomeçou a procurar a espantosa aparição.
Nesse momento Nastássia Filíppovna passava perto das cadeiras das jovens. Evguénii Pávlovitch continuava a falar qualquer coisa com Aleksándra, e devia ser coisa interessante e divertida. Falava apressadamente, com ímpeto. O príncipe lembrou-se (depois) que Agláia sussurrara estas palavras: “Mas que...”, início duma frase vaga e incompleta, logo se tendo contido e ficado calada; mas isso bastou.
Nastássia Filíppovna, que ia passando, sem reparar em ninguém, subitamente se virou para eles e pareceu observar apenas a presença de Evguénii Pávlovitch.
— Olá! Então, estás aqui? — exclamou, inopinadamente, parando. — Se mandassem um mensageiro procurar-te, como haveria o homem de te achar, se estás aqui onde ninguém poderia supor?!... Pensei que estivesses em casa de teu tio.
Evguénii Pávlovitch, rubro, encarou, furioso, Nastássia Filíppovna, logo, porém, se virando para o outro lado.
— Como? Então não sabes? Calculem só, ele ainda não sabe! Pois o homem se matou! Com um tiro! O teu tio se suicidou esta madrugada. Contaram-me isso às duas da madrugada! E metade da cidade já sabe. Lá se foram 350 mil rublos do Estado; é o que dizem. Mas há quem garanta que fossem 500 mil. E eu que sempre contava que ele te deixasse uma fortuna. Jogou tudo fora! Que velho dissipado! Bem, adeus, bonne chance! Então, deveras, não vais até lá? Soubeste introduzir os teus papéis mesmo na hora, hein? Que camarada manhoso! Bobagem. Tu sabias, se sabias! Provavelmente ontem já sabias!
Posto que em sua insolente atitude persistisse uma proclamação pública dum conhecimento e duma intimidade que não existiam, ainda assim devia haver, para isso, um motivo, sem dúvida nenhuma. Evguénii Pávlovitch pensou logo em escapar sem dar na vista dessa que o assaltava. Mas as palavras de Nastássia Filíppovna caíram sobre ele como um raio. Ao ouvir falar na morte do tio ficou branco como uma folha de papel e se virou para sua informante. Nisto Lizavéta Prokófievna precipitadamente se ergueu da sua cadeira, fazendo todos os outros se levantarem e logo se foram embora. Apenas o príncipe permaneceu por um momento em indecisão, e Evguénii Pávlovitch continuava em pé, sem poder dar conta de si. Não estavam os Epantchín nem a vinte passos de distância, quando se seguiu um incidente escandaloso e ultrajante.
O oficial, que era um grande amigo de Evguénii Pávlovitch e que estivera conversando com Agláia, ficou indignadíssimo.
— Para se tratar com uma mulher desta ordem só mesmo um chicote! — exclamou ele quase gritando. (Evidentemente deveria ter sido antigo confidente de Evguénii Pávlovitch.)
Instantaneamente Nastássia Filíppovna se voltou para ele. Os seus olhos fulguraram. Correu para o moço que lhe era completamente estranho e que estava a uns dois passos dela, arrebatou-lhe da mão um fino chicote de montaria, desses trançados, e desandou a golpear na cara o seu insultador. Tudo isso aconteceu num momento!... O oficial, fora de si, avançou para ela. O bando de acompanhantes de Nastássia Filíppovna já não estava mais junto dela. Aquele cavalheiro idoso, cheio de decoro, tratou de desaparecer totalmente. E o outro, o folgazão, ficou de lado, rindo a bom rir. Mais um minuto e a polícia apareceria e Nastássia Filíppovna seria posta fora dali, à força, caso uma inesperada ajuda não estivesse à mão.
O príncipe, que também estava parado a uns dois passos, conseguiu segurar o oficial pelos dois braços, por detrás. Desvencilhando os braços, o oficial lhe deu um violento empurrão no peito. Míchkin foi atirado a três passos, para trás, indo cair numa cadeira. E nisto mais dois campeões avançaram para defender Nastássia Filíppovna. Defrontando o oficial atacante surgiu o boxeador, aquele autor do artigo já conhecido do leitor e primitivamente membro da comitiva de Rogójin, o qual logo se foi apresentando, enfaticamente:
— O ex-tenente Keller! Já que o capitão quer brigar, aqui estou, às suas ordens, como substituto do sexo fraco. Tirei o meu curso de boxing inglês. Não empurre, capitão, veja lá! Lastimo-o, pelo mortal insulto que o capitão teve que receber, mas não posso permitir, de modo algum, que use os punhos contra uma mulher. E, demais a mais, em público. Se, como homem de honra e como cavalheiro, o capitão prefere outro sistema, já sabe o que eu quero dizer, capitão!
Mas o capitão tinha caído em si e nem o escutou. Foi quando Rogójin apareceu no meio do povo e segurando Nastássia Filíppovna pelo braço a carregou dali. Também Rogójin parecia terrivelmente abalado; estava branco e tremia. E, ao retirar Nastássia Filíppovna, ainda teve tempo para rir bem na cara do oficial, com desprezo, dizendo-lhe, em seu vulgar triunfo: “Fiau! Apanhou! Está com as fuças escorrendo sangue! Fiau!”
Como que voltando a si e já sabendo a quem se dirigir, para tratar do caso, o oficial (embora cobrindo o rosto com um lenço) se virou para o príncipe, que estava se levantando da cadeira onde tombara.
— O príncipe Míchkin, cujo conhecimento tive a honra de travar ainda agora mesmo?
— Ela é louca! É uma insana! Dou-lhe minha palavra! — respondeu o príncipe, com voz abalada, gesticulando com as mãos trêmulas.
— Eu, naturalmente, não me posso jactar de muitos conhecimentos a tal respeito. O que me compete é saber o nome do senhor.
Curvou-se e foi embora. A polícia compareceu apressadamente cinco minutos depois que a última pessoa interessada tinha desaparecido. Mas a cena não durara mais do que dois minutos. Muitos da assistência se tinham levantado e ido embora; outros apenas mudaram de lugar, escolhendo outro. Enquanto a alguns a cena distraíra, estavam outros ainda fazendo perguntas e conversando a respeito. O incidente acabou, de fato, da maneira de sempre. A banda recomeçou a tocar. O príncipe seguiu os Epantchín. Se lhe tivesse vindo o pensamento de olhar para o lado esquerdo, quando estava sentado na cadeira sobre a qual fora atirado, teria visto, então, a uns vinte passos Agláia, que tinha ficado parada a presenciar a cena escandalosa, indiferente aos apelos da mãe e das irmãs. O príncipe Chtch... precipitara-se até ela, persuadindo-a, finalmente, a ir embora. A mãe recordou, depois, que ela chegara onde eles estavam tão excitada que mal pudera com certeza tê-las ouvido quando a chamavam. Mas, dois minutos depois, quando regressavam por dentro do parque, Agláia explicou, com aquele seu tom descuidado e caprichoso:
— Eu só queria ver como ia acabar a farsa!
3.
A cena no jardim impressionou mãe e filhas a ponto de as horrorizar. Excitada e em pânico, Lizavéta Prokófievna só faltou correr, com as filhas, de volta para casa. Segundo o modo dela pensar e discernir, o que tinha acontecido era tanto, e tanta coisa tinha sido trazida à luz pelo incidente, que certas ideias tomaram forma definitiva em seu cérebro, apesar de sua confusão e atarantamento.
Todo o mundo percebera que tinha acontecido qualquer coisa fora do comum e que, ocasionalmente também, um extraordinário segredo estava na iminência de vir a furo. Apesar de todas as anteriores explicações e afirmativas do príncipe Chtch..., Evguénii Pávlovitch fora “desmascarado”, posto à mostra, revelado “e publicamente descoberto em suas ligações com aquela criatura”. Assim pensavam a mãe e as duas filhas mais velhas. O único efeito dessa conclusão era que o mistério assim se ia intensificando mais. E, embora as moças estivessem secretamente indignadas, até certo ponto, com a mãe, ante o seu extremo alarma e sua tão precipitada corrida, ainda assim não se aventuraram a aborrecê-la com perguntas durante o primeiro embate com o tumulto. No entanto algo as fez supor que sua irmã Agláia sabia mais do caso do que a própria mãe e todas elas juntas. O príncipe Chtch... também se viu nas trevas; também ele mergulhou em seus pensamentos. De volta para casa, Lizavéta Prokófievna não trocou uma palavra com ele e nem deu um sinal de o querer fazer. Adelaída fez uma tentativa de interrogação: “Que tio é esse de que se falou agora mesmo? E que foi que houve em Petersburgo?” Ele apenas murmurou qualquer coisa, com uma cara muito desenxabida, a propósito de colher informações e de tudo ser invencionice.
— Sem dúvida — concordou Adelaída e não perguntou mais nada.
Agláia tornou-se excepcionalmente quieta, só tendo feito a observação no caminho que eles estavam andando depressa demais. Uma vez se virou, procurando o príncipe com a vista, tendo-o descoberto quando este vinha apressadamente para elas. Sorriu ironicamente dos esforços que ele fazia para alcançá-las e não se tornou a virar mais.
Por fim, quando já estavam quase chegando à vila, viram Iván Fiódorovitch, que chegava de Petersburgo e que lhes veio ao encontro. Suas primeiras palavras foram perguntar por Evguénii Pávlovitch. Mas a mulher se afastou dele, colericamente, sem responder e sem sequer o olhar. Pelo rosto das filhas e do príncipe Chtch... adivinhou logo que uma tempestade estava se juntando. Mas, fora disso, já havia uma expressão diferente da costumeira, em suas faces. Tomou o braço do príncipe Chtch..., parou com ele, à entrada, e trocaram umas poucas palavras quase em sussurro. Pelo ar inquieto com que ambos depois entraram para a varanda e subiram para os cômodos de Lizavéta Prokófievna, se podia deduzir que ambos estavam a par de certas extraordinárias notícias. Uma por uma, se foram todas juntando lá em cima, nas peças de Lizavéta Prokófievna, não ficando, afinal, ninguém na varanda, a não ser o príncipe. Embora não tivesse nenhum motivo justificado para ficar ali, se sentou a um canto, à espera de qualquer coisa. Não lhe ocorreu sequer, já que elas estavam tão transtornadas, ser melhor ir embora. Parecia completamente esquecido do universo inteiro e poderia continuar a ficar ali, sentado, ainda uns dois anos, se isso fosse possível. De quando em quando chegavam até ele vozes de exaltada conversa. Ser-lhe-ia impossível, depois, dizer quanto tempo estivera ali, sentado. E já se ia tornando tarde e completamente escuro quando, inopinadamente, Agláia apareceu na varanda. Aparentava calma embora estivesse um tanto pálida. Ao ver o príncipe, com quem não contava, não tendo sequer desconfiado que estaria sentado ali a um canto, sorriu, admirada.
— Que é que está fazendo aí?
O príncipe, muito confuso, murmurou qualquer coisa e logo se levantou. Mas Agláia sentou-se ao lado dele, o que o fez sentar de novo. Então ela o examinou bem, depois olhou vagamente para a janela e outra vez para ele.
Míchkin pensava: “Decerto ela se quer rir de mim. Não; teria então rido antes, naquela ocasião.”
— Quem sabe se quer um pouco de chá? Vou mandar vir — disse ela, depois daquele seu silêncio.
— N...ão. Acho que não.
— Como é isso? Acha que não? Oh! Aproveite e ouça. Se alguém o desafiar para um duelo, que fará? Quis lhe perguntar isto antes.
— Ora... Quem?... Ninguém me desafiará para um duelo.
— Mas se desafiarem? Ficaria muito assustado?
— Acho que ficaria muito... muitíssimo amedrontado.
— Que é que está dizendo? Então é um covarde?
— N...ão. Acho que não. Um covarde é quem tem medo e foge. Mas se alguém tem medo, mas não foge, não é um covarde — disse o príncipe, sorrindo, depois de pensar um momento.
— E não fugiria?
— Acho que não fugiria. — E começou, depois, a rir das perguntas de Agláia.
— Apesar de eu ser mulher, nada me faria fugir — observou ela, quase ofendida. — Mas está rindo e pretendendo, como aliás faz sempre, tornar-se mais interessante. Diga-me, é verdade que atiram a doze passos de distância, não é, e às vezes só a dez, ficando feridos ou morrendo, não é?
— Nem sempre se morre em duelo, acho eu.
— Nem sempre? Púchkin foi morto.
— Pode ter sido acidentalmente.
— Não foi acidentalmente, não. Era um duelo de morte e ele foi morto.
— A bala feriu-o tão baixo que sem dúvida Dantes, o seu rival, alvejou mais alto, para a cabeça ou para o peito. Ninguém alveja assim, portanto é mais provável que a bala prostrasse Púchkin por acidente. Gente entendida me contou assim.
— Mas um soldado, com quem falei uma vez, disse que eles eram obrigados pelo regulamento a disparar “do meio para cima”; a frase dele foi “do meio para cima”. Perguntei, depois, a um oficial, que me respondeu que era perfeitamente certo.
— Isso é provavelmente porque atiram de longe.
— Sabe atirar?
— Nunca atirei.
— Não sabe, ao menos, carregar uma pistola?
— Não. Isto é, sei como isso é feito, mas nunca fiz.
— É o mesmo que dizer que não sabe, pois é preciso prática. Ouça e guarde: primeiro tem que comprar um pouco de pólvora, não úmida, mas bem seca (dizem que úmida não serve); uma pólvora bem fina; peça para lhe darem dessa e não da que é usada nos canhões. Quanto às balas as pessoas mesmas as fazem. Tem pistolas?
— Não, e nem quero — riu o príncipe.
— Mas que bobagem! Deve comprar uma, francesa ou inglesa. Consta-me que são as melhores. Pegue, então, um dedal cheio de pólvora, ou mesmo dois, e vá derramando lá dentro. Será melhor encher. Calque com feltro (dizem que é preciso que seja com feltro, não sei porquê); pode consegui-lo nos colchões, ou nas portas: usam feltro para tapar as frestas. Depois, quando tiver socado bem o feltro, meta a bala, está ouvindo? A bala depois, a pólvora primeiro, do contrário nada de tiro. Por que é que está rindo? Quero que se exercite, no tiro, todos os dias, e aprenda a acertar num alvo. Não quer?
O príncipe ria. Agláia bateu com o pé, zangada. O ar sério que ela tomou durante essa conversa o surpreendeu um pouco. Achou preferível procurar outro assunto, perguntar por qualquer coisa. Algo que fosse mais sério, em todo o caso, do que carregar uma pistola. Mas tudo desertou da sua cabeça, exceto que ela ali estava, sentada ao seu lado, e que a podia estar olhando e lhe era indiferente, nessa ocasião, que ela falasse sobre o que quer que fosse.
Iván Fiódorovitch, em pessoa, desceu as escadas, acabando por aparecer na varanda. E ia sair, com uma cara carrancuda, atormentada e resoluta.
— Ah! É Liév Nikoláievitch, é você? Para onde se dirige você, agora? — perguntou, apesar de Míchkin estar sentado sem se mexer. — Venha, tenho uma palavra a dar-lhe.
— Adeus — disse Agláia, estendendo a mão para o príncipe.
Já agora estava um tanto escuro na varanda. Ele não pôde distinguir bem o rosto dela. E, um minuto depois, ao deixar a vila com o general, enrubesceu demasiado e apertava a mão, fechando-a firmemente.
Aconteceu que Iván Fiódorovitch tinha que tomar o mesmo rumo. Apesar do adiantado da hora ele se estava apressando para discutir alguma coisa com alguém. Mas, enquanto isso, a caminho, começou a falar com o príncipe de modo excitado e rápido e como que sem nexo, frequentemente se referindo a Lizavéta Prokófievna. Se Míchkin fosse mais arguto teria, nesse momento, adivinhado que o general queria saber algo através dele, ou melhor, queria perguntar-lhe uma coisa determinada, não conseguindo, porém, enveredar para esse ponto. O príncipe sentia-se tão confuso que no começo não escutou absolutamente nada, e quando o general parou, na frente dele, com uma pergunta vivaz, teve que confessar, muito envergonhado, que não tinha entendido uma só palavra.
O general encolheu os ombros.
— Mas que raio de gente extravagante que vocês todos são! — recomeçou ele. — Estou lhe dizendo que não há meios de eu entender os motivos de alarma de Lizavéta Prokófievna. Ela está lá, como uma histérica, a chorar e a declarar que nós fomos envergonhados, que estamos desgraçados. Quem? Como? Por quem? Confesso que sou culpado. (Reconheço isso.) Sou culpado e muitíssimo, mas as perseguições dessa mulher impertinente (que aliás se está conduzindo mal neste ajuste) podem ser contidas pela polícia, na pior das hipóteses, e pretendo avistar-me com alguém nesse sentido e dar uns passos. Tudo pode ser feito com calma, decentemente, bondosamente até, da maneira mais amistosa, sem sopro de escândalo. Creio que muitas coisas possam acontecer no futuro e que ainda há algo que não ficou e nem está explicado; em tudo isso há uma intriga. Mas, já que há confusão agora, mistério haverá sempre. Se eu não ouvi nada, e o senhor não ouviu nada, e ela não ouviu nada, e ele tampouco nada ouviu, então quem ouviu? Aprazer-me-ia perguntar. Como explicar isso, senão que é menos do que miragem, irreal, algo como o luar ou como qualquer alucinação!?
— Ela está louca — murmurou o príncipe, recordando, com angústia, a recente cena.
— Tal e qual o que eu digo, se é que você se está referindo à mesma pessoa. Tal ideia me ocorreu também e dormi em beatífica paz. Mas agora vejo que a opinião deles é que é a mais correta, e não acredito que seja loucura. Ela é uma mulher espinoteada, estou certo, mas também é artificiosa e está longe de ser maluca. A sua veneta hoje, a respeito de Kapitón Aleksiéitch, mostra isso demasiado claramente. Trata-se dum caso de fraude, ou, no mínimo, um caso jesuítico de conveniência dela.
— Qual Kapitón Aleksiéitch?
— Mas, por misericórdia, Liév Nikoláievitch, você não está me ouvindo! Foi no começo que eu falei sobre Kapitón Aleksiéitch. Fiquei tão confuso que ainda estou com os nervos estragados. Foi o que me reteve até tarde, na cidade, hoje. Kapitón Aleksiéitch Radómskii, o tio de Evguénii Pávlovitch...
— Ah! — exclamou o príncipe.
— Disparou um tiro em si mesmo, ao raiar do dia, hoje, às sete horas. Um velho altamente conceituado, de setenta anos, um epicurista. É verdade o que ela disse, também: uma enorme soma de dinheiros públicos posta fora.
— Mas onde pôde ela...
— Ouvir isso? Ah! Ah! Ora essa, ela dispõe de todo um regimento à sua volta, desde que chegou aqui. Você sabe que classe de gente deu para visitá-la agora e que busca “a honra de se dar com ela”. Deve naturalmente ter ouvido isso esta manhã de alguém que chegou da cidade; pois meia Petersburgo já está a par disso, agora, bem como meia Pávlovsk, ou toda, talvez. Mas que observação mentirosa a que ela fez sobre o uniforme, segundo me repetiram, dizendo que Evguénii Pávlovitch introduzira os seus papéis no tempo exato! Que insinuação demoníaca! Não, isto não sabe a loucura. Recuso-me a acreditar, é lógico, que Evguénii Pávlovitch pudesse prever a catástrofe de antemão, isto é, adivinhar que às sete horas da manhã de um determinado dia etc. etc... O que se podia ter dado é ter ele tido um pressentimento. E eu, e todos nós, e o príncipe Chtch... contávamos que o tio lhe deixasse uma fortuna. É terrível! Terrível! Mas, compreenda-me, não faço carga sobre Evguénii Pávlovitch seja no que for e apresso-me em tornar isso bem claro, mas ainda assim tudo isto é muito suspeitoso, devo confessar. O príncipe Chtch... está tremendamente impressionado. O caso rebentou tão estranhamente!
— Mas em que faz isso desconfiar-se da conduta de Evguénii Pávlovitch?
— Em nada. Ele se comportou muito honradamente. Eu não insinuei nada a tal propósito. Nas suas propriedades, creio eu, ninguém lhe toca. Lizavéta Prokófievna, naturalmente, não quis ouvir nada. Mas, o que é pior, todo esse rebuliço de família, ou antes, este disse que disse, fica-se sem saber como chamá-lo... Você é um amigo da família, num sentido bem exato, Liév Nikoláievitch, e acredite-me, agora vim a saber que Evguénii Pávlovitch, embora não tenha a certeza, há cerca de um mês, propôs casamento a Agláia, e ela se recusou a ser noiva dele.
— Não é possível! — exclamou o príncipe com veemência.
— Ora essa. Você sabe alguma coisa a respeito? Você está vendo, meu caro! — exclamou o general, sobressaltado e surpreso, parando como que petrificado. — Devo lhe ter falado mais do que devia. E isso porque você... porque você... é um camarada tão excepcional. Talvez você saiba alguma coisa?
— Quanto a Evguénii Pávlovitch não sei nada — balbuciou o príncipe.
— Nem eu, tampouco. Quanto a mim, meu rapaz, eles certamente desejam ver-me morto e enterrado e não se dão conta de quanto isso é pungente para um homem e que não suportarei tal cousa. Presenciei agora mesmo uma cena terrível! Estou lhe falando como se você fosse meu filho. O pior de tudo é que Agláia parece zombar da mãe. As irmãs contaram à mãe, como mero palpite, e aliás acertado, que ela disse “não” a Evguénii Pávlovitch e que teve uma explicação um tanto formal com ele. Mas que ela é uma criatura voluntariosa e caprichosa é, não há palavras que a qualifiquem. Generosidade e todas as demais qualidades brilhantes de espírito e de coração ela possui, mas é caprichosa, escarnecedora, deveras um pequeno demônio, e cheia de fantasias, ainda por cima. Riu na cara da mãe, ainda agora, e riu das irmãs e riu também do príncipe Chtch... Eu nem conto, naturalmente, pois outra coisa não me tem ela feito senão rir de mim. Todavia, é claro, eu a amo. Eu a amo mesmo rindo de mim e acredito que ela, esse pequeno demônio, me ama também, especialmente por causa disso, isto é, mais do que a qualquer outra pessoa, creio eu. Aposto o que quiser como também faz você de truão. Pois não é que a fui encontrar agora mesmo, conversando com você, logo imediatamente depois da tempestade lá em cima? Dei com ela sentada ao seu lado, como se nada tivesse acontecido.
O príncipe ficou vermelho e fechou mais a mão direita; mas não disse nada.
— Meu bom e caro Liév Nikoláievitch — recomeçou o general com brio e sentimento —, eu... e Lizavéta Prokófievna (muito embora ela esteja abusando de você e de mim também, por sua causa, sem que eu compreenda por quê), nós o amamos muito, nós amamos muito você e o respeitamos, a despeito de tudo, quero dizer, a despeito de todas as aparências. Mas você mesmo há de concordar comigo que é irritante e que acabrunha ouvir e ver aquele demoniozinho de sangue-frio inesperadamente (sim, estava diante da mãe com uma expressão de profundo desdém para com todas as nossas perguntas, principalmente as minhas, pois, diabos me levem!, fui tão tolo que me deu no bestunto demonstrar severidade, visto ser o chefe da família, bem, que fiz papel de tolo, fiz), ver, dizia eu, aquele demoniozinho de sangue-frio inesperadamente declarar, com uma risada: “Aquela ‘maluca’ (foi esse o termo que empregou, e eu tive a surpresa de a ouvir repetir a própria frase usada por você: “Como é que ainda não notaram isso?”) meteu na cabeça que me há de casar, custe o que custar, com o príncipe Liév Nikoláievitch, e para tal fim está fazendo tudo para pôr Evguénii Pávlovitch fora de nossa casa”... Ela disse apenas isto; não deu maiores explicações, continuou a rir e nós ficamos de boca aberta; ela então escancarou a porta e saiu. Depois foi que me contaram o que se passou entre ela e você, esta tarde. E... e ouça, caro príncipe, você não é um homem sensível, não se ofende à toa. Observei isso, em você, mas... não fique zangado. Sou obrigado a crer que ela está fazendo você de truão. Ela se ri como uma criança, por isso não vá se zangar com ela, mas é o que se passa. Não pense nada quanto a isto; ela está simplesmente nos pondo a todos, a você e a nós, malucos, sem maldade. Bem, adeus. Você conhece os nossos sentimentos a seu respeito, não é? Jamais mudarão, de forma alguma. Mas, agora, tenho que ir por aqui. Adeus! Poucas vezes me vi metido assim, num beco sem saída, como desta vez. Nem sei como dizer!... Que lindo dia de verão!
Deixado sozinho na encruzilhada, Míchkin olhou em torno, atravessou rapidamente a estrada, aproximou-se o mais que pôde para debaixo da janela acesa duma vila, desdobrou o pedaço de papel que guardara bem apertado em sua mão direita todo aquele tempo em que estivera conversando com Iván Fiódorovitch e, aproveitando um fraco feixe de luz, leu:
Amanhã de manhã, às sete horas, achar-me-ei no banco verde, lá no jardim, esperando por você. Resolvi falar-lhe a respeito dum assunto excessivamente importante que nos diz respeito, diretamente.
P. S. Espero que não mostre esta carta a ninguém. Embora me envergonhe ter que lhe recomendar essa cautela, parece-me que você necessita dessa recomendação, e a escrevo enrubescendo de vergonha ante o seu absurdo caráter.
P.P.S. Refiro-me ao banco verde que lhe mostrei esta manhã. Devia se envergonhar de eu precisar lhe escrever também isto.
A carta fora rabiscada às pressas e dobrada de qualquer forma, e mais provavelmente antes um pouco de Agláia ter vindo para a varanda. Numa indescritível agitação, que tocava às raias do terror, o príncipe apertou o papel que tinha outra vez preso na mão direita e precipitadamente se afastou da janela, como um ladrão fugindo da luz. Mas ao fazer isso deu um encontrão num indivíduo que estava por detrás dele.
— Eu o estive seguindo, príncipe — disse o homem.
— Ah! É você, Keller! — exclamou o príncipe, admirado.
— Eu o estive procurando, príncipe. Estive a vigiá-lo, diante da casa dos Epantchín. Naturalmente que não pude entrar. Vim caminhando atrás do senhor enquanto estava com o general. Estou a seu serviço, príncipe, disponha de mim. Estou pronto a não importa qual sacrifício. À própria morte, se necessário for.
— Oh! Para quê?
— Ora, é que, sem dúvida, vai se dar um desafio. Aquele tenente... Eu o conheço, conquanto muito por alto... e ele não engole uma afronta. Quanto aos como nós, isto é, como Rogójin e eu, o tenente estará inclinado a olhar como sujos, e talvez merecidamente; de maneira que o senhor será o único escolhido. O senhor é quem tem que “pagar o pato”, príncipe. O gajo esteve a informar-se a seu respeito, ouvi dizer, e sem dúvida um amigo dele irá em visita ao senhor, amanhã, e pode bem ser que já esteja à sua espera, agora. Se o senhor me quer dar a honra de me escolher como testemunha sua, estou pronto a ser rebaixado nas fileiras, pelo senhor. Ora aí está por que o estive procurando, príncipe.
— Então, até você me fala num duelo! — E o príncipe riu, para grande pasmo de Keller. E riu cordialmente. Keller, que tinha estado em palpos de aranha enquanto não satisfizera a si próprio, oferecendo-se a Míchkin como testemunha, ficou por assim dizer ofendido à vista da alegria franca do príncipe.
— Mas o senhor lhe segurou os braços, esta tarde, príncipe. E isso é difícil, a um homem de honra, suportar num lugar público.
— E ele me deu um soco no peito! — exclamou o príncipe, rindo. — Não temos mais por que brigar! Pedir-lhe-ei que me desculpe e é tudo. Mas, se devemos lutar, então lutaremos. Deixá-lo atirar, gostarei disso. Ah! Ah! Agora já sei como carregar uma pistola. Sabe que já aprendi a carregar uma pistola? Sabe como é que se carrega uma pistola, Keller? Primeiro você tem que adquirir pólvora, pólvora para pistola, não úmida e não da grossa como a de canhão. Depois tem que enfiar a pólvora primeiro e arranjar o feltro duma porta. Depois tem que enfiar a bala lá para dentro; depois e não antes da pólvora, do contrário a coisa não serve. Ouviu bem, Keller? Senão a coisa não vai lá das pernas. Ah! Ah! Não é esta uma magnífica razão, amigo Keller? Arre, Keller, você sabe que eu devo abraçá-lo e lhe dar um beijo, agora mesmo? Ah! Ah! Ah! Pois não é que você me veio a calhar, e tão inesperadamente, esta tarde! Venha ver-me de vez em quando, logo mais dar-lhe-ei champanha. Ficaremos ambos bêbedos. Você não sabe que eu tenho doze garrafas de champanha em casa, na adega de Liébediev? Ele as arranjou não sei como e as vendeu anteontem. Justamente no dia em que mudei para a vila. Comprei-lhas todas. Acabaremos com toda a remessa, juntos. Você está indo para casa, para dormir?
— Como faço todas as noites, príncipe.
— Bravos, neste caso, sonhe bonito! Ah! Ah! Ah!
E, atravessando a estrada, Míchkin sumiu dentro do parque, deixando Keller mais do que perplexo. Jamais vira o príncipe com tão estranha disposição e nunca poderia imaginá-lo assim.
“Decerto é febre, pois que se trata dum homem nervoso e tudo isso deve tê-lo afetado. Ou, talvez, também seja medo. Mas estou certo que gente dessa ordem não é covarde, por Júpiter!” — E Keller continuava pensando: “Hum! Champanha! Em todo o caso, não é nada mau! Doze garrafas, uma dúzia; uma provisãozinha razoável. Aposto como Liébediev arranjou essa champanha de alguém, como garantia. Hum! Excelente tipo, esta príncipe! Gosto de gente assim. Mas não há tempo a perder. E... uma vez que há champanha, este é o momento para...”
Que Míchkin estava com febre era, naturalmente, uma suposição correta. Vagabundeou uma porção de tempo pelo parque, no escuro, até que foi “dar consigo” a caminhar ao longo duma avenida. A impressão ficara em sua consciência de ter caminhado umas trinta ou quarenta vezes para cima e para baixo, nessa avenida, dum banco até uma alta e notável árvore velha, distanciados um do outro cerca duns cem passos. Não poderia, mesmo que tentasse, recordar-se do que estivera a pensar, todo esse tempo, isto é, no mínimo uma hora. Mas eis que lhe veio agora um pensamento que lhe fez dar uma risada; e, conquanto não houvesse motivo para isso, continuou querendo rir. É que lhe ocorreu que a sugestão dum duelo não nascera apenas no espírito de Keller e que, por conseguinte, a conversa sobre a maneira de carregar uma pistola não deixara de ter fundamento.
“Essa é boa!” E parou imediatamente. Surpreendeu-o uma outra ideia. “Ela saiu para a varanda na hora mesmo em que eu estava sentado lá num canto e ficou muito admirada de me encontrar, tendo então — como ela ria! — me oferecido chá; e já estava com o bilhete na mão, todo esse tempo, decerto. Logo, ela sabia que eu estava sentado na varanda. Por que, então, se admirou? Ah! Ah!”
Tirou a carta do bolso e a beijou; mas logo se refez e começou a refletir. “Como tudo isso é estranho! Como tudo isso é estranho!”, pensou um minuto mais tarde, já tomado duma certa tristeza. Nos momentos de intenso júbilo sempre o acometia uma tristeza que nem ele próprio poderia dizer por quê. Olhou em redor e ficou espantado de se achar ali. Sentia-se exausto; dirigiu-se até o banco e se sentou. Havia, em volta, uma tranquilidade extraordinária. Já tinha cessado a música no jardim e talvez não restasse uma só pessoa no parque. Devia passar das onze e meia, no mínimo. E que noite quente, clara e macia! Uma dessas noites de começo de junho, em Petersburgo. Todavia, na espessa alameda onde ele estava sentado, reinava a escuridão.
Se alguém lhe viesse dizer, agora, que ele estava apaixonado, seriamente apaixonado, repeliria a ideia com surpresa e até mesmo com indignação. E, se acrescentassem que a carta de Agláia era uma carta de amor, marcando uma entrevista com um amante, ele coraria com vergonha dessa pessoa e talvez a desafiasse para um duelo. Tudo isso era perfeitamente sincero e jamais, em momento algum, ele duvidou disso ou admitiu sequer a sombra de um pensamento ambíguo, quanto à possibilidade da moça o amar, ou vice-versa. Envergonhar-se-ia de uma tal ideia. A possibilidade de ser amado, ou de amar, para ele, “para um homem como ele era”, olhá-la-ia sempre como a uma coisa monstruosa. Parecia-lhe apenas uma travessura da parte dela, supondo que houvesse alguma coisa de sério em tudo isso. Mas tal consideração o desconcertou completamente e imaginou isso tudo na ordem natural das coisas. Absorveu-o agora um outro pensamento. Acreditava piamente na declaração feita pelo general de que ela fazia todo o mundo de palhaço, principalmente a ele. Não se sentia nem um pouco insultado por isso; a seu ver era justamente como tinha que ser. O que contava agora, para ele, era que no dia seguinte a veria de novo, bem cedo, de manhã, e que se sentaria ao seu lado no banco verde e aprenderia como carregar uma pistola e poderia olhar para ela. Que mais poderia querer? Ocorreu-lhe uma ou duas vezes ficar pasmado ante a expectativa do que ela lhe pretenderia dizer. Qual seria esse assunto importante que lhe dizia respeito assim tão diretamente? Fosse como fosse, jamais teve um momento de dúvida sobre a existência real desse “assunto importante” para o qual fora intimado. Mas estava longe de considerar esse “assunto importante”, agora. Não sentia, com efeito, a menor inclinação para pensar nisso.
O ruído de passos vagarosos na areia da alameda fez com que erguesse a cabeça. Um homem, cujo rosto era difícil distinguir no escuro, veio na direção do banco onde acabou por se sentar. O príncipe precipitadamente se virou quase esbarrando nessa pessoa em quem imediatamente reconheceu Rogójin.
— Eu sabia que estava vagabundeando mais ou menos por aqui. Não foi preciso muito tempo para achá-lo — disse Rogójin, por entre os dentes.
Era a primeira vez que eles se estavam vendo depois daquele encontro no corredor do hotel. Espantado com o súbito aparecimento de Rogójin, não pôde o príncipe durante algum tempo ligar seus pensamentos; uma pungente sensação sobreveio em seu coração. Rogójin viu o efeito que a sua vinda produzira e, apesar de no começo haver ficado sem jeito e se ter posto a falar aparentando naturalidade, Míchkin teve a impressão de que não havia nele nada de estudado nem qualquer embaraço especial. Se existia qualquer falta de jeito em seus modos e em suas palavras, era apenas superficialmente, pois, quanto ao ânimo, era imutável.
— Como foi... que me encontrou aqui? — perguntou o príncipe, só para dizer qualquer coisa.
— Ia eu procurá-lo, quando Keller me disse: “Foi para o parque.” Bem, pensei, então é isso.
— Isso o quê? — perguntou o príncipe com inquietação.
Rogójin riu disfarçadamente e não deu explicação.
— Recebi sua carta, Liév Nikoláievitch. Não vale nada. Cada vez mais me espanto com o senhor. Mas agora lhe vim falar da parte dela. Intimou-me a levá-lo sem falta. Está precisando lhe falar. E muito. Quer vê-lo hoje.
— Amanhã, irei amanhã. Agora vou para casa. Quer vir comigo?
— Para quê? Já lhe disse o que tinha que dizer. Adeus.
— Então, não vem? — perguntou o príncipe, cortesmente.
— É um camarada esquisito, Liév Nikoláievitch. A gente não pode deixar de ficar admirado. — E Rogójin riu com maldade.
— Por quê? Por que está você tão amargo contra mim, agora? — perguntou o príncipe, calorosamente e com ar entristecido. — Você agora já sabe muito bem que tudo quanto pensou era falso. Mas tenho a impressão de que ainda está zangado comigo. E quer saber por quê? Porque você me atacou. Digo-lhe que o único Parfión Rogójin de que eu me recordo é aquele com quem troquei as cruzes aquele dia. Escrevi-lhe a noite passada que esquecesse toda aquela loucura e que não falasse nela vez nenhuma. Por que é que você está se afastando? Por que retira e esconde a sua mão? Digo-lhe que considero tudo o que se passou como loucura. Compreendo o que era que você estava sentindo aquele dia. Como se fosse eu! O que você imaginou não existe. Por que haveríamos de ficar zangados?
— Como se pudesse se zangar! — E Rogójin tornou a rir em resposta às palavras ardentes de Míchkin.
Ele tinha recuado um pouco para o lado e estava agora com a cara virada e as mãos escondidas para trás.
— Não se trata mais, para mim, de ir vê-lo, Liév Nikoláievitch — acrescentou, falando devagar e terminando com uma espécie de tom sentencioso.
— Você então ainda me odeia tanto?
— Não sou seu amigo, Liév Nikoláievitch; como, pois, haveria de ir vê-lo? Ah, príncipe, não passa duma criança! Está querendo um joguete e o quer imediatamente, mas, compreender as coisas, não, não compreende. O que me está dizendo é o mesmo que me escreveu na sua carta. Está pensando que não acredito no senhor? Acredito sim, palavra por palavra; nunca me enganou, nem nunca me há de enganar no futuro. Mas, apesar de tudo, ainda assim, não sou seu amigo. Escreveu-me que se tinha esquecido de tudo e que só se lembrava do irmão Rogójin com o qual tinha trocado as cruzes e não daquele Rogójin que lhe erguera uma faca. Os meus sentimentos, porém, pensa que os conhece? (Tornou a rir.) Ora, talvez eu nunca me venha a arrepender do que fiz, muito embora já tenha recebido o seu perdão. Talvez até eu estivesse pensando já numa outra coisa mais, esta noite; mas, quanto a isso...
— Você se esqueceu de pensar! — atalhou o príncipe. — É o que parece. Aposto como você tomou logo o trem e foi até Pávlovsk, lá para o coreto, segui-la por entre a multidão, vigiando-a, como andou fazendo hoje. Isso não me surpreende! Se você não tivesse chegado a um tal estado, naquela ocasião, em que não lhe era possível pensar em mais nada, talvez você não me atacasse com aquela faca. Eu tive o pressentimento, antes, só em olhar para você. Você nem sabe como estava! Já quando trocamos as nossas cruzes, aquela ideia devia estar atrás do seu espírito. Mas por que, então, me levou você até a sua mãe? Achou, talvez, com isso, que poria um freio em si próprio? Não, você não podia ter pensado nisso, mas talvez sentisse, como eu... Estávamos ambos sentindo o mesmo. Se você não tivesse cometido aquela agressão (que Deus evitou), que seria de mim, então? Eu suspeitei, sim, suspeitei que você era capaz disso; logo, nossos pecados foram os mesmos, em verdade. (Sim, não emburre. E por que está rindo?) Diz você que “não se arrependeu”. Talvez, mesmo que quisesse, não conseguisse, visto não gostar de mim, ainda por cima! E, se eu, para você, não passasse dum inocente anjo, ainda assim você continuaria a me detestar, enquanto pensasse que ela ama a mim e não a você. Isso deve ser ciúme. Mas eu estive pensando bem toda a semana, Parfión, e já lhe vou dar a minha opinião. Você sabe que ela agora deve amá-lo mais do que a qualquer outro e de tal modo que quanto mais ela o atormenta mais o ama? Ela não lho dirá; a você cumpre saber de que modo ver isso. Quando tudo está dito e feito, por que então só se preocupar você com essa história de casamento? Algum dia ela lhe esclarecerá tudo. Mulheres há que querem ser amadas dessa forma, e esse é justamente o caráter dela. E também o seu amor e o seu caráter devem impressioná-la! Você sabe que há mulheres capazes de torturar um homem, com sua crueldade e desdém, sem a menor aflição de consciência, porque cada vez que olham o amante pensam: “Agora eu judio dele até a morte, mas depois o indenizo com o meu amor!”
Rogójin ria, escutando o príncipe.
— Pelo que vejo, príncipe, já foi submetido também a esse tratamento... Se não me engano ouvi qualquer alusão a isso...
— Uma alusão a isso? A mim?
Sobressaltou-se, logo ficando calado, numa extrema confusão.
Rogójin continuava a rir. Ouvira atento e com sinais de prazer a pergunta do príncipe. Já antes a conversa cordial o impressionara, por causa da veemência notada; e foi isso que o encorajou.
— Não somente ouvi como estou vendo agora que é verdade — acrescentou. — Basta prestar atenção ao seu modo esta noite. Antes, nunca esteve assim nem me tratou conforme me está tratando agora. Alusão... Claro que ouvi alguma alusão. Tanto ouvi que vim até aqui, a este parque, a tais horas, quase meia-noite.
— Seja mais explícito, Parfión Semiónovitch.
— Ela já me havia dito, tempos atrás, e hoje vi com os meus olhos, quando dei com o senhor esta tarde sentado no parque ao lado daquela jovem, escutando a banda. Quer saber? Pois ouça: hoje e todo o dia de ontem ela não parou de me asseverar, chegando a jurar por Deus, que o senhor está apaixonadíssimo por Agláia Epantchiná. Pouco se me dá, príncipe, e não tenho nada com isso. Mas duma coisa eu sei: se deixou de amar Nastássia Filíppovna, ela ainda o ama. Bem sabe o senhor que ela está resolvida a casá-lo com a outra. Jurou que haveria de fazer isso. Hã, hã, parece pilhéria mas jurou. Disse-me com aquela voz: “Avise-os, pois sem isso não me caso com você. No dia em que eles forem para a igreja, nós dois também iremos.” Não consigo compreender essa pirraça. Será mania, ou o quê? Se ela o ama para lá de todas as medidas... isto é, se o quer como doida, por que raios há de querer casá-lo com a outra? Disse-me: “Quero vê-lo feliz.” Logo, ela deve amá-lo.
— Ora, isso prova o que eu já disse e escrevi a você. Que ela está fora do seu juízo normal — afirmou o príncipe, com ar de verdadeira mágoa, depois de escutar Parfión.
— Lá isso é Deus quem sabe. Só Ele. O príncipe deve estar enganado... Mas hoje ela marcou a data do casamento, quando a levei do Vauxhall para casa, através do jardim. “Dentro de três semanas, ou talvez antes mesmo”, disse ela, “é provável que nos casemos.” Jurou e beijou a imagem sagrada. Parece pois que tudo agora depende do senhor, príncipe. Hã!...
— Está vendo você? Loucura típica! O que você insinuou aí por mim nunca se dará. Amanhã irei ver vocês.
— Não sei por que há de teimar em chamá-la de doida — observou Rogójin. — Se todos a acham normal, por que há de insistir em considerá-la assim? Como foi então que ela pôde escrever cartas à outra? Se estivesse maluca, isso seria fácil de perceber nas cartas!...
— Que cartas? — perguntou Míchkin, espantado.
— Ora essa! As que escreve à outra, àquela jovem, que as recebe e lê. Então não sabe? Pois trate de verificar. Naturalmente ela lhas há de mostrar.
— Não posso acreditar numa coisa dessas! — exclamou o príncipe.
— Ora, Liév Nikoláievitch! Tem andado no mundo da lua? É o que está parecendo. Mexa-se, homem, já não é sem tempo. Ponha os seus detetives na pista e fique de olho dia e noite a ver os passos que ela dá, pois do contrário...
— Cale-se e nunca mais fale nisso! — ordenou Míchkin. — Escute, Parfión: pouco antes de você aparecer eu estava aqui e de repente comecei a rir sem saber o motivo. Decerto porque me lembrei de que amanhã é dia do meu aniversário. Já é quase meia-noite. Nosso encontro veio bem a propósito. Venha comigo. Vamos esperar a passagem de hoje para amanhã. Tenho vinho lá em casa. Podemos beber. Você me formulará os votos que eu não sei como desejar a mim mesmo. Faça isso que eu, por minha vez, lhe desejarei toda a felicidade. Do contrário me devolva a minha cruz. Você, no outro dia, ficou com ela e a tem aí consigo, não tem?
— Está aqui no meu peito — disse Rogójin.
— Está bem, então vamos. Não quero ir ao encontro da minha nova vida sem você. Sim, porque para mim começou uma outra vida. Fique sabendo, Parfión, que comecei a viver hoje uma vida nova.
— Estou vendo com os meus olhos e sei que começou, sim. E direi isso a ela. Não me parece absolutamente o mesmo, Liév Nikoláievitch.
4.
Ao chegar próximo da vila, Míchkin notou com surpresa que a varanda estava profusamente iluminada e que um grupo numeroso e turbulento a enchia. Gente alegre que falava alto, dando a impressão, com suas vozes e risadas, duma formidável pândega. Ao subir para a varanda pôde ver que estavam bebendo. Decerto era champanha, várias garrafas já tendo sido esvaziadas, pois o grupo se mostrava alegre demais. Reconheceu logo as fisionomias. Por que estariam reunidos ali? Quem os teria convidado? Ele, Míchkin, não, pois só ainda agora, por acaso, é que se lembrara do seu aniversário.
Acompanhando-o escada acima, Rogójin murmurou:
— Se estes patuscos correram para cá, algum aviso tiveram de que o senhor ia abrir champanha. Basta um assovio: aparecem de todos os cantos.
Disse isso irritado; é que possuía bastante experiência própria para fazer tal observação.
Todos logo rodearam o príncipe, com exclamações e cumprimentos, aumentando assim a algazarra. E os que só nesse momento ficaram sabendo que era o aniversário dele se apressaram em lhe dar parabéns.
O príncipe ficou admirado com a presença de certas pessoas, como, por exemplo, a de Burdóvskii. Mas o que mais o surpreendeu foi deparar com Evguénii Pávlovitch no meio daquele bando: isso era inacreditável e pasmoso.
Muito vermelho e alvoroçado, Liébediev tratou de explicar o caso, armando uma lenga-lenga de bêbedo. Ainda assim, o príncipe percebeu de todo aquele arrazoado que o ajuntamento se fizera ao acaso e pouco a pouco. Que, à noitinha, primeiro chegou Ippolít, que, se sentindo bastante melhor, expressou o desejo de ficar ali na varanda aguardando a volta do príncipe. De fato, havia horas e horas que ali estava estirado no sofá. Depois viera juntar-se a ele o próprio Liébediev, com todos os de casa, isto é, a filharada e o general Ívolguin. Burdóvskii ali se achava porque fora quem trouxera Ippolít. Mais tarde, após o escândalo no parque, Gánia e Ptítsin, passando, acabaram entrando também. E finalmente Keller, ao chegar, contou que era o aniversário de Liév Nikoláievitch, atiçando a ideia de abrirem champanha. Evguénii Pávlovitch aparecera à procura de Míchkin, haveria no máximo meia hora.
A lembrança de abrir champanha fora incentivada principalmente por Kólia, a pretexto de ser festejada essa data. Que ele, Liébediev, à vista disso, anuíra.
— Então mandei abrir champanha! Mas da minha! À minha custa, para comemorar o seu aniversário e me congratular com o senhor. E haverá ceia e refrescos! Minha filha está preparando. Pois é. E conversávamos todos. Adivinhe, príncipe, em que é que estávamos falando? Lembra-se do “Ser ou não ser...” do Hamlet? Pois era o assunto. Aliás, tema bem hodierno. Perguntas e respostas... E o sr. Tieriéntiev interessou-se mais do que todos. Não quis ir deitar-se. Apenas deixei que ele bebesse um pequeno gole. Um gole só não faz mal... Venha cá para o meio, príncipe. Dirija, assuma o comando! Estávamos todos à sua espera... Ansiávamos por sua inteligência fulgurante...
No meio daquela barafunda, o príncipe deu com os olhos meigos e suaves de Vera Liébediev, que procurava se aproximar através daquela gente toda. Sem se importar com os demais, o príncipe foi estender-lhe a mão. Ela enrubesceu de contentamento e lhe desejou uma vida muito feliz “de hoje por diante”, feito o que, voltou depressa para a cozinha para preparar a ceia e os refrescos. É que, minutos antes da chegada de Liév Nikoláievitch, a filha mais velha de Liébediev, atraída pela interminável discussão dos convivas alegres, viera escutá-los, ali tendo ficado, muito embora aqueles assuntos da mais abstrata natureza lhe parecessem sobremodo misteriosos. A irmã menorzinha acabara dormindo em cima da arca, na sala contígua, e lá estava de boca aberta, resfolegando. Quanto ao filho de Liébediev, o garoto que já frequentava a escola, esse permanecia entre Kólia e Ippolít, sua cara muito viva demonstrando que não iria embora tão cedo; escutava, atento e esperto, decidido a ficar horas a fio.
Quando Míchkin foi apertar a mão de Ippolít, imediatamente depois da de Vera, este lhe disse:
— Fiquei aqui de propósito, à sua espera. Folgo em ver que chegou com ótima disposição.
— Como sabe que estou de ótima disposição?
— Basta olhá-lo. Quando acabar de receber os cumprimentos dos outros, venha sentar-se aqui. — E repetiu, como querendo que o fato ficasse bem explícito: — Fiquei aqui de propósito à sua espera.
Ainda assim o príncipe o censurou delicadamente por não se ter ido deitar, fazendo ver quanto era tarde da noite. E ele, em resposta a essa advertência, confessou que não podia compreender como era que, tendo três dias antes estado quase à morte, se sentia agora melhor do que nunca em toda a sua vida.
Burdóvskii levantou-se só para vir explicar que fora ele quem trouxera Ippolít; e que estava radiante; que, de fato, escrevera muita asneira naquela carta, mas que estava, agora, simplesmente radiante... E, sem acabar de dizer por que estava radiante, calorosamente apertou a mão do príncipe e voltou a sentar-se...
O último que Míchkin cumprimentou foi Evguénii Pávlovitch, que imediatamente o segurou pelo braço.
— Tenho duas palavras a dar-lhe — ciciou — e sobre um caso importante. Venha comigo aqui para um lado, um momento.
— Duas palavras — ciciou uma outra voz na outra orelha do príncipe; e uma outra pessoa o segurou pelo outro braço.
Assustado, deu Míchkin com uma cara descabelada que ria e que pestanejava. Instantaneamente reconheceu Ferdichtchénko surgido só Deus sabia donde. E ele próprio interrogou Míchkin.
— Porventura se recordará de Ferdichtchénko?
— Donde está vindo você?
— Ele está arrependido. — Veio explicar Keller, a correr. — Estava escondido. Não queria vir conosco. Estava escondido lá na esquina. Não queria, príncipe, estava arrependido...
— Mas de quê? De quê?
— Mas eu dei com ele. Dei com ele e o trouxe. É entre todos os meus amigos o homem mais raro que conheço. Mas está arrependido...
— Obrigado por tudo, cavalheiros; sentem-se com os demais. Volto já — disse o príncipe, conseguindo finalmente se retirar com Evguénii Pávlovitch.
— Estou gostando disto aqui — observou este último. — Eu os estive apreciando por uma meia hora, enquanto o esperava. Escute uma coisa, Liév Nikoláievitch, já arrumei tudo com Kurmíchov e vim justamente para tranquilizar o seu espírito. Não precisa ficar preocupado. A meu ver ele está tomando a coisa por um lado muito sensível.
— Mas qual Kurmíchov?
— Ora, o indivíduo que o príncipe segurou pelos braços esta tarde. Ficou tão furioso que queria vir pedir-lhe amanhã mesmo uma satisfação.
— Que é que me está dizendo? Que tolice desse moço!
— Lógico que é uma asneira e só podia acabar em outra pior. Essa gente...
— Mas não veio por causa de mais alguma coisa, Evguénii Pávlovitch?
O outro respondeu prontamente, a rir:
— Sim, realmente vim por outro motivo mais. Devo partir esta madrugada para Petersburgo, meu caro príncipe, por causa desse caso infeliz... o caso de meu tio. E, quer saber, tudo era verdade, e todo o mundo sabia, exceto eu. Sinto-me tão acabrunhado que nem tive coragem de permanecer com a família Epantchín. E nem poderei me despedir deles amanhã, pois partirei muito cedo para Petersburgo. Está compreendendo? Tenho que ausentar-me por uns três dias, no mínimo. Resumindo: as coisas, para mim, vão mal. E, já que o caso é da mais alta importância, cuidei conveniente lhe falar francamente umas tantas coisas inadiáveis, não devendo deixá-las para o meu regresso. Talvez seja melhor eu ficar sentado à espera de que esta reunião acabe; mesmo porque não tenho onde ficar. Estou em tal estado que não me apetece ir dormir. E desde já o informo que vim solicitar os préstimos da sua amizade, meu caro príncipe. Considero-o uma pessoa rara, incapaz, absolutamente, de falsidades ou mentiras. Ora, se há pessoa que, dadas umas quantas circunstâncias, necessita dum amigo e dum conselheiro da sua categoria, sou eu. Mesmo porque atravesso um péssimo momento...
Tornou a sorrir.
Depois de pensar um pouco, o príncipe propôs:
— A dificuldade está no seguinte: o senhor acha preferível esperar que esta gente se retire. Mas só Deus sabe a que horas se retirarão. Não seria melhor, por conseguinte, darmos agora mesmo uma volta pelo parque? Ao voltar eu inventaria uma desculpa qualquer por me haver ausentado.
— Não, não! Tenho minhas razões para não querer que se suspeite que estivemos ambos a conversar sobre qualquer assunto à parte. Aqui há gente curiosa quanto às nossas relações. Não percebeu isso ainda, príncipe? Convém muito mais que pensem que vim cumprimentá-lo como camarada do que percebam que tivemos um entendimento particular. Concorda com a minha proposta? Que é que eles podem demorar aqui? Quanto? Umas duas horas?... Espero. Depois então eu muito me honraria com um colóquio duns vinte minutos ou meia hora...
— De qualquer maneira, seja muito bem-vindo. Fico muito satisfeito de o ver aqui, mesmo que seja principalmente com a finalidade de um colóquio. Agradeço-lhe também as bondosas palavras sobre as nossas cordiais relações. Aproveito para lhe pedir desculpas por não lhe ter prestado hoje a atenção que merece. E lhe explico: é que, de certo modo, ultimamente ando meio aéreo às coisas... Mesmo hoje, mesmo agora...
— Estou compreendendo, estou compreendendo — murmurou Evguénii Pávlovitch, com um sorriso dissimulado.
Esta noite ele se sentia capaz de achar tudo inefável.
— Está compreendendo o quê? — perguntou o príncipe com uma desconfiança jovial.
— Pois ainda não suspeitou, meu caro príncipe — disse Radómskii, sorrindo mais e sem responder diretamente à pergunta —, ainda não suspeitou que vim simplesmente para o pegar e, com ar de quem não quer, lhe extrair uma solicitação?
— Que veio para obter de mim uma vantagem qualquer nem tenho dúvida — concordou Míchkin, rindo também. — Está, talvez, tentando ludibriar-me um pouco. Mas que importa? Nada receio. Além disso, meu ânimo se afaz a tudo, acredita? Estou convencido que é um esplêndido camarada e que decerto nos tornaremos cada vez mais amigos. Eu o aprecio muito, Evguénii Pávlovitch. Considero-o... um excelente cavalheiro.
— Mais uma confirmação de que constitui um autêntico prazer ter-se alguma coisa, seja lá qual for, a tratar com a sua pessoa — concluiu Radómskii. — Vamos beber uma taça à sua saúde. Estou contentíssimo de ter vindo à sua casa. — Parou um segundo, no máximo, perguntando logo outra coisa: — Esse jovem Ippolít tenciona instalar-se aqui?
— Convidei-o, provisoriamente.
— Ele... não vai morrer assim ex abrupto, não é?
— Por que esse receio?
— À toa. É que passei meia hora com ele...
Enquanto isso, Ippolít, à parte, aguardando para falar com o príncipe, prestava atenção em ambos, mostrando-se febrilmente excitado quando os viu voltar para perto da mesa. Sua inquietação era quase convulsiva, e tinha a fronte perlada de suor. Em seus olhos brilhantes, errando de objeto para objeto e de rosto para rosto, além duma impaciência incontida se lia uma preocupação difusa. Apesar de ter tomado parte preponderante na ruidosa conversa generalizada, sua irrequietude provinha mais da febre do que da aglomeração. Agora já prestava pouca atenção aos diálogos, apenas dando um ou outro aparte incoerente, com atitude irônica e efeito paradoxal, às vezes até os deixando incompletos apesar de intervir com ardor. O príncipe veio a descobrir, com mágoa e surpresa, que o tinham deixado beber duas taças de champanha, sem nenhum protesto, e que essa que permanecia já esvaziada de todo na sua frente era a terceira. Mas, ao verificar isso, já era tarde; antes, tal leviandade lhe passara despercebida.
As primeiras palavras de Ippolít foram estas:
— Calhou, calhou magnificamente ser hoje seu aniversário! Estou radiante!
— Sim? Mas... por quê?
— Não tardará a saber. Antes, porém, sente-se. Em primeiro lugar, por se acharem reunidos aqui todos os seus amigos. Aliás, ao vir para cá eu já calculava que isto aqui devia estar sempre assim, concorrido; pela primeira vez na vida uma suposição minha deu certo! Que pena não saber que era seu aniversário! Ter-lhe-ia trazido um presente! Ah! Ah!... Mas quem sabe se não lhe trouxe eu um presente? Ainda demora muito a clarear?
Ouvindo e consultando o relógio, Ptítsin, que estava perto, teve a bondade de informar:
— Daqui a umas duas horas nascerá o sol.
E uma outra pessoa qualquer comentou:
— Para que essa pressa de sol? Já se pode ler aqui fora!
— Quero vê-lo raiar. Podemos beber em saudação ao sol, príncipe? Que acha o senhor?
E Ippolít falava abruptamente, voltando-se para o grupo, com ar desenvolto e quase imperioso, não por ostentação e sim por temperamento.
— Se assim deseja, podemos fazer isso. Mas devia ficar mais quieto, Ippolít. Calma!
— Descansar! Dormir! É só o que o senhor me aconselha. Será acaso meu tutor, ou aio, príncipe? Somente depois que o sol surgir e “ressoar na abóbada” (qual foi o vate que escreveu que “o sol ressoa na abóbada”? É besteira mas é bonito!) é que iremos dormir. Você aí, Liébediev, é exato que o sol é a fonte da vida? Que significa isto, “fonte da vida”, no Apocalipse? Já o ouviu falar na “estrela que é chamada Absinto”, príncipe?
— Ouvi dizer que aqui o nosso Liébediev identifica a “estrela que se chama Absinto” como sendo a rede de estradas de ferro disseminadas por toda a Europa.
Ante o coro de gargalhadas que se ergueu, Liébediev se levantou, gesticulando, tentando querer deter tal onda:
— Desculpem-me, desculpem-me, mas já é demais! Desculpem-me, cavalheiros, mas isso já é atrevimento. — Voltou-se para Míchkin, como a excluí-lo da sua reprimenda: — Ao senhor, príncipe, tão só ao senhor, digo e explico que, em certos pontos, representa isso...
E bateu duas vezes sobre a mesa, sem a menor cerimônia, o que aumentou a alegria geral.
Embora ele, Liébediev, se achasse no seu habitual estado de “carraspana noturna”, aquela discussão demorada e difícil o superexcitou; sempre, em tais circunstâncias, tratava com ilimitado desprezo os que não concordassem com ele. Prosseguiu:
— Assim não vale! Há meia hora, príncipe, fizemos uma combinação aqui: ninguém poderia interromper nem rir enquanto o outro estivesse falando, deixando-o expressar-se à vontade. E depois então, sim, seria permitido aos ateus se manifestarem, caso quisessem. Escolhemos como presidente o general, para desta forma cada qual, mediante a autoridade da mesa, poder berrar a sua ideia, a sua profunda ideia... sem ser interrompido.
— Pois então fale, fale! Quem o mandou calar?! — gritaram diversas vozes.
— Fale! Mas não diga asneira!
— E que vem a ser essa história de “estrela que tem por nome Absinto”? — indagou uma voz isolada.
— Eu cá não tenho a menor ideia! — declarou taxativamente o general, enquanto com ar insigne reassumia o seu primitivo posto de presidente.
Nesse ínterim Keller, remexendo-se na sua cadeira com impaciência e sofreguidão, ciciou quase ao ouvido do príncipe:
— Gosto que me pelo de todos esses argumentos e discussões... Naturalmente quando é coisa elevada, é claro! — Voltou-se inesperadamente para Evguénii Pávlovitch, que estava sentado ao seu lado, acrescentando: — Assuntos culturais e políticos. O senhor não sabe quanto eu dou a vida, por exemplo, para ler nos jornais os debates no Parlamento inglês! Não me refiro ao que eles discutem (não sou político, é claro!), mas aprecio o modo com que falam uns com os outros e se comportam como políticos, se bem me exprimo. “O nobre visconde coloca-se em campo oposto”, “o nobre duque está corroborando o meu ponto de vista”, “o meu honrado aparteante acaba fazendo a Europa inteira pasmar com uma tal proposta”, todas estas expressões, todo este parlamentarismo dum povo livre, eis o que me fascina! Lambo-me todo, príncipe! Sempre fui um artista, cá no âmago, palavra de honra, Evguénii Pávlovitch!...
Na outra extremidade, Gánia, todo acalorado, aparteava Liébediev:
— Ora! Então se deve depreender do que você diz, Liébediev, que as estradas de ferro são uma praga, a ruína da espécie humana, uma calamidade que caiu sobre a terra para poluir as “fontes da vida”!?
Essa noite Gavríl Ardaliónovitch estava em estado otimista e ânimo triunfante, segundo já Míchkin reparara. Dera em brincar com Liébediev, prazenteiramente, atiçando-o; mas a verdade é que acabou se inflamando também.
— Somente as estradas de ferro, não! — retorquiu Liébediev, perdendo cada vez mais a compostura e gostando, ao mesmo tempo, tremendamente da discussão. — Fique sabendo que não são somente as estradas de ferro que poluem as “fontes da vida”, e sim tudo, tudo que é amaldiçoado. A conceituação científica e materialista dos últimos séculos em geral, a meu ver, é deveras amaldiçoada!
— A seu ver, ou realmente? É importante esclarecer isso, vamos e venhamos — aparteou também Evguénii Pávlovitch.
— Amaldiçoada! Amaldiçoada! Com toda a segurança amaldiçoada no consenso divino! Amaldiçoada, sim senhor! — sustentou Liébediev, com veemência.
— Calma! Calma, Liébediev. Pela manhã cumpre ser mais moderado — fez Ptítsin, com um sorriso.
— Perfeitamente! À noite, porém, há que ser sincero! Há que ser mais ardente e franco! — volveu Liébediev, inflamado. — Mais leal, mais categórico, mais honesto e honrado! E, mesmo que perante todos eu esteja expondo o meu lado fraco, não importa. Seus ateus, lanço-lhes meu desafio. A um por um, sem exceção! Com que é que pretendem salvar o mundo? Onde foi que descobriram que tem que ser mediante uma norma de progresso retilíneo? Respondam, provem, vocês e mais os seus homens de ciência, de indústria, de cooperação, de trabalho remunerado e tudo o mais! E me atiram com o crédito? Que vem a ser crédito? Aonde os levará o crédito?
— Arre! O senhor deu para altas elucubrações...
— Quer saber duma coisa, prezado senhor? A minha opinião é que quem não se interessa em tais questões é um requintado patife, um folgazão.
— Mas essas coisas que você citou pelo menos levam à solidariedade geral e a um equilíbrio de interesses — observou Ptítsin.
— Ora aí está! Ora aí está! Não reconhecem nenhuma base moral! Apenas a satisfação do egoísmo individual e da necessidade material! Paz universal, felicidade universal, sim, mas por necessidade. Tê-lo-ei compreendido direito, meu caro senhor, consente que pergunte?
— Mas a necessidade de comer, de beber, de viver, assim como uma convicção completa e realmente científica de que essa contingência só pode ser satisfeita mediante associação e solidariedade de interesses, eis o que, acho eu, constitui já uma ideia suficientemente poderosa para servir como fundamento e “fonte de vida” às futuras idades da humanidade — observou Gánia, exaltando-se de verdade.
— A necessidade de comer e beber é simplesmente o instinto de autoconservação!...
— Mas não acha que esse instinto de autopreservação por si só é importante? Ora, o instinto de autoconservação é a lei normal da humanidade!...
— Quem lhe disse isso? — perguntou Evguénii Pávlovitch. — Que é uma lei não há dúvida. Mas não é mais normal do que a lei de destruição, ou mesmo a de autodestruição. Acha que a autoconservação seja a única lei da espécie humana?
— Boa! Hã, hã! — exclamou Ippolít, virando-se prontamente para Evguénii Pávlovitch e o examinando com uma curiosidade insolente. Vendo, porém, que este começou a rir, deu em rir também; em seguida cutucou Kólia, que se achava em pé ao seu lado e lhe tornou a perguntar que horas eram. Vendo Kólia tirar o relógio de prata, se apossou dele, consultando as horas com muita atenção. A seguir, como se tudo se lhe tornasse indiferente, se escarrapachou no sofá, pôs os punhos por baixo da nuca e ficou fitando o teto. Minutos depois se sentou outra vez, com o peito bem rente da mesa, coçando-se e prestando atenção no aranzel de Liébediev, cuja excitação chegara ao auge, segurando vorazmente o paradoxo de Evguénii Pávlovitch e redarguindo logo:
— Ora aí está uma ideia insidiosa, porque é hábil e irônica. Parece areia fina querendo entravar o funcionamento de molas! Não passa, aparentemente, duma interferência de neutros se imiscuindo entre batalhadores a fim de estarrecê-los. No fundo, porém, é uma ideia exata! Nem o senhor, um ás notório da ironia e um oficial de cavalaria (dotado aliás de cérebro), nem mesmo o senhor se dá conta de quão profunda e exata é a sua ideia. Realmente, cavalheiro, a lei de autodestruição e a lei de autopreservação são igualmente fortes na humanidade! Foi concedido ao diabo domínio igual sobre a humanidade até um tempo que não nos é dado saber. O senhor está rindo? Não acredita no diabo? Fazer pouco do diabo é uma ideia francesa, aliás bem frívola. Sabe o senhor quem é o diabo? Sabe o nome dele? Nem sequer lhe sabe o nome o senhor, e, se ri, é porque segue o exemplo de Voltaire, isto é, acha graça nos cascos, nos chifres, no rabo, enfim na forma alegórica inventada pelos senhores mesmos. Todavia lhe asseguro que o diabo é um espírito, e que esse espírito diabólico é sobremaneira ameaçador e nocivo, mesmo sem ter os cascos e os chifres que os senhores lhe inventaram. Mas... não é dele que se trata agora.
— Tem certeza mesmo que não é dele que se trata agora? — perguntou Ippolít apondo às próprias palavras uma risada estentórica.
— Mais outro aparte perspicaz e incisivo! — aceitou Liébediev. — Mas, repito, não é dele que se trata agora. A nossa questão é se as “fontes da vida” não se enfraqueceram com o aumento das...
— Estradas de ferro! — goelou Kólia.
— Comunicações ferroviárias não, jovem e impetuoso mancebo, mas sim por causa dessa tendência genérica da qual as estradas de ferro são, por assim dizer, a expressão mais vivaz e dinâmica. Há quem diga que elas correm por aí fora com todo o seu estrépito, fumaça e velocidade em prol do bem-estar da espécie humana. Eis que acode um pensador dado a elucubrações, como diria o meu nobre amigo, e pondera: “Esta humanidade quanto mais barulhenta e comercial fica, menos paz de espírito desfruta!” “Perfeitamente, mas bendito seja o ruído dos vagões levando pão para a humanidade! Três e quatro vezes bendito, pois tal estrépito resolve a fome, ao passo que a paz espiritual não resolve o problema do estômago!”, retruca violentamente um segundo pensador dialético, desses que se bamboleiam pelas assembleias; brada e se retira triunfante... A mim, porém, vil que sou, pequenino conforme me reconheço, a mim não me engambelam os vagões que levam pão para a humanidade! Sim, porque os vagões que levam pão para a humanidade, se não estiverem cautelosamente consignados sob uma base moral, podem estar friamente excluindo da felicidade desse pão uma outra parte considerável da humanidade, aquela donde esse pão foi tirado, ora esta é muito boa! E isso há de suceder com frequência!
Mas houve quem não compreendesse, pois se ouviu este raciocínio:
— Os vagões podem friamente excluir...?
— E isso há de suceder com frequência — repetiu Liébediev, não se dignando a explicar a dúvida. — Já tivemos Malthus, amigo da humanidade. Mas isso de amigo da humanidade, em lhe faltando princípios morais explícitos, acaba em antropófago! E olhem que deixo de lado a vaidade dele. Sim, porque, se ferirmos a vaidade dum desses muitíssimos amigos da humanidade, ele imediatamente porá fogo no mundo, por simples vingança, reflexa, como aliás todos nós, de fato, cumpre ser claro! Como eu, o ínfimo de todos, pois cá o degas seria o primeiro a trazer a lenha e safar-se. Mas ainda isto não é o ponto a que queríamos chegar.
— Qual é ele então?
— Deixe-se de lérias!...
— O ponto prová-lo-á o que segue: uma velha anedota. Sim, pois inevitavelmente tenho que lhes chapar com uma história dos tempos antigos. Em nossa era, em nosso país, que, estou convencido, os senhores amam como eu, pois que até estou pronto a derramar a minha última gota de sangue...
— Toque para diante! Não divague!
— No nosso país, como em todo o resto da Europa, vastas e terríveis carestias assolam a humanidade e tanto quanto tem sido verificado, e tanto quanto me possa eu lembrar, isso nunca sucede mais do que quatro vezes a cada século, ou, em outras palavras, cada 25 anos. Não quero disputar o número exato, mas são comparativamente raras.
— Comparadas com o quê?
— Comparadas com o século XII, ou os próximos dele, seja o anterior ou o posterior a ele, pois que naquela época as grandes carestias, como escrevem e como asseveram os escritores, vinham periodicamente cada dois anos, ou no máximo, cada três anos, a tal ponto que devido a isso tamanha era a conjuntura que os homens chegaram a recorrer ao canibalismo, conquanto às ocultas. Um desses canibais anunciou, espontaneamente, já depois de velho, que, no curso de sua longa vida de famélico, tinha matado e comido, no mais absoluto segredo, sessenta monges e mais alguns leigos, mas estes mesmos, crianças, obra de seis, se tanto. Isso é extraordinariamente pouco, comparado com a imensa massa de eclesiásticos a que tinha dado consumo. De leigos crescidos, ao que consta, nunca os atacara com tal intento.
— Isso não pode ser verdade! — berrou o presidente, o general, com voz de ressentimento. — Não me farto de discutir com esse indivíduo, senhores, a respeito dessas coisas; ele sempre nos traz destas histórias absurdas; e tão absurdas que nossas orelhas chegam a doer. E sem nenhuma partícula de veracidade.
— General! Contente-se em se lembrar do assédio de Kars! Quanto aos senhores, deixem que lhes diga que a minha história é verídica. Apenas observei que toda e qualquer realidade, mesmo através de suas inalteráveis leis, sempre, ou quase sempre, dificilmente é crível, muitas vezes. Até, com efeito, quanto mais real for, mais improvável parece!
— Mas como pôde ele comer sessenta monges? — perguntaram, rindo, em volta.
— É que os não comeu duma só vez, é claro. Se, porém, eu explicar que os digeriu no decorrer de 15 ou vinte anos, fica tudo perfeitamente compreensível e natural!...
— Natural?
— Sim, natural! — repetiu Liébediev, com pedante insistência. — De mais a mais, todo monge católico é, por sua própria natureza, facilmente maleável e curioso e não seria difícil o ir levando para dentro da floresta, ou para qualquer lugar secreto, e então agir com ele como já foi dito. Não nego, porém, que o número de pessoas devoradas pareça excessivo quanto ao ponto de vista da voracidade.
— Pode bem ser, meus senhores — observou, inopinadamente Míchkin, que até então tinha escutado em silêncio os antagonistas diversos, sem tomar parte na conversa, só algumas vezes se juntando cordialmente às gargalhadas gerais. Evidentemente estava contente com a alegria e a barulhada que todos faziam, e até mesmo por estarem a beber bastante. Talvez não viesse a articular uma só palavra que fosse toda a noite; mas, de repente, não se pôde conter. Falou com tanta gravidade que todos logo se viraram para ele, com a maior atenção. — O que eu quero dizer, senhores, é que as carestias costumavam ser frequentes. Sempre ouvi isso, apesar de conhecer pouco História. E acho que devam ter sido. Quando eu me achava entre as montanhas suíças fiquei surpreendido ante as ruínas de castelos feudais, construídos nas faldas das montanhas ou nas rochas escarpadas que têm no mínimo meia milha de altura (o que quer dizer algumas milhas de caminho nas montanhas). Os senhores sabem o que é um castelo: uma perfeita montanha de pedras; representam um formidável, um incrível trabalho. E, naturalmente, todos foram construídos pela gente pobre, pelos vassalos. Além disso, tinham estes que pagar todas as taxas e sustentar o clero. Como haveriam eles de prover a si próprios e lavrar a terra? Nessa época, não deviam ser em grande número; morreram terrivelmente, com as calamidades, e muitas vezes não deveriam ter literalmente nada para comer. Muitas vezes, com efeito, pasmei como foi que essas criaturas não se extinguiram todas; como foi que aturaram e como fizeram para suportar isso e sobreviver. Sem dúvida Liébediev tem razão em que houve canibais, e talvez muitos; só o que eu não compreendo é por que trouxe para essa história monges e o que quer ele dizer com eles.
— Na certa porque no século XII eram só os monges que conseguiam comer; e por conseguinte as únicas pessoas que eram gordas — observou Gavríl Ardaliónovitch.
— Ora aí está uma exata e magnífica dedução! — exclamou Liébediev. — Observando-se que o tal indivíduo poupou os leigos, isto é, os seculares, não se chegando a computar um leigo para sessenta eclesiásticos, que é que se infere? Infere-se, deduz-se uma verificação terrível, uma assertiva histórica, uma informação estatística, enfim um desses fatos que permitem tirar da história uma ilação bastante eloquente por parte de quem tem espírito crítico. Sim, pois daí se depreende com exatidão matemática que os eclesiásticos viviam sessenta vezes mais felizes e com mais conforto do que o resto da humanidade daquele período. E quem nos diz que de fato não eram sessenta vezes mais gordos?...
— Exagero... Exagero seu, Liébediev.
E todos riram.
— Concordo que seja uma conjectura emanada dum dado histórico; mas a que nos quer você levar com ela? — perguntou o príncipe, intervindo de novo. (Falava com tamanha gravidade, sem absolutamente zombar ou troçar de Liébediev, de quem todos riam, que as suas palavras e modos, justamente por contrastarem com o tom dos demais, acabavam por assumir um efeito cômico. Todos estavam na iminência de rir também dele, circunstância que ele não percebeu.)
Evguénii Pávlovitch inclinou-se e disse:
— Ora, príncipe! Não vê que esse sujeito é um louco varrido? Ainda agora mesmo me contaram que lhe deu na telha advogar, fazer libelos e defesas judiciais, tirar carta de rábula. Estou esperando um remate funambulesco!
Enquanto isso Liébediev aumentava de timbre, estentoricamente:
— Ao que eu quero chegar? Não foi a pergunta que me fizeram? Respondo de chofre: quero e vou chegar a formidáveis deduções. Mas, antes de mais nada, passemos a analisar a situação psicológica e legal do criminoso. Estamos vendo que o criminoso, ou, como hei de chamá-lo?, que o meu cliente, a despeito da impossibilidade de achar qualquer outro comestível, muitas vezes, no decorrer da sua interessante e atribulada carreira, evidenciou sinais dum desejo de arrependimento e de querer evitar, isto é, pou...par o clero. Isto nos é claramente patenteado pelos autos! Convém a esta altura relembrar que ele, afinal de contas, deu cabo de cinco ou seis crianças, um número relativamente insignificante conquanto enorme sob outros pontos de vista sentimentais. É evidente por conseguinte que, atormentado por terríveis problemas de consciência (pois o meu cliente é um homem religioso e de consciência, como provarei mais adiante) e para ressarcir o seu pecado tanto quanto lhe fosse possível, trocou a sua dieta, o seu regime clerical pelo laico, ou secular, se bem me estou fazendo entender. Que o tivesse feito por mera experiência é calúnia que não se lhe pode fazer, absolutamente não se tendo tratado duma variação gastronômica, já que o número de seis é indubitavelmente insignificante. Por que somente seis? Por que não trinta? (A metade padres, a metade leigos.) Mas, se nem experiência foi e sim apenas uma “variação” despertada simplesmente pelo desespero e medo do sacrilégio, e para não ofender a Igreja, então o número seis se torna perfeitamente inteligível; pois seis tentativas de apaziguar os rebates da consciência são mais do que bastantes, já que tais tentativas não foram vãs. E, em primeiro lugar, na minha opinião uma criança é uma coisa demasiado pequenina, isto é, insuficiente, e portanto ele precisaria de três ou cinco vezes mais crianças, ou rebentos laicos, para o mesmo período de tempo dum eclesiástico. E, por conseguinte, o pecado, embora menor, por um lado, seria maior por outro, não em qualidade, mas em quantidade. Mercê de tais considerações, senhores, me vejo eu entrando pelos sentimentos adentro dum criminoso do século XII. Quanto a mim, homem do século XIX, eu teria arrazoado diferentemente, concedam que lhes diga; e, por conseguinte, não acho que seja preciso se estarem arreganhando diante de mim, senhores, e nem é este o momento propício, general, para o senhor também se arreganhar. Em segundo lugar, uma criança, no meu modo de pensar, é uma coisinha insuficientemente nutritiva e talvez doce demais e enjoativa; portanto, o apetite do meu cliente não ficaria satisfeito, muito embora ficassem os rebates da consciência.
“E agora como conclusão, senhores, o final; nele repousa a solução duma das maiores questões daquela e desta idade. O criminoso acaba indo dar informações contra si ao clero! E acaba entregando-se às autoridades. E então pasmamos ante as torturas que, naquela época, o esperavam: a roda, o pelourinho e o fogo. Quem o induziu a ir dar queixas de si mesmo? Por que não parou ele, simplesmente, nos sessenta e não guardou segredo até o seu último suspiro? Por que simplesmente não deixar o clero em paz e viver em penitência, como eremita? Por que, afinal de contas, não entrar ele próprio para um mosteiro? Seria uma solução. É que deve ter havido algo mais forte do que o pelourinho e do que o fogo, mais forte até do que o seu costume de vinte anos! Deve ter havido uma ideia mais forte do que qualquer miséria, calamidade, tortura, praga, lepra, e todo esse inferno sem o qual a humanidade inteira não suportaria o mundo e a vida, ideia que reuniu todos os homens, que lhes guiou o coração e que fez frutificar as ‘fontes da vida’. Mostrem-me algo que seja igual a essa força, nesta nossa era de vícios e de estradas de ferro... Eu deveria dizer de navios e de trens, mas digo vícios e estradas de ferro, porque estou bêbedo, mas sou sincero. Mostrem-me qualquer ideia que ligue a humanidade de hoje e que tenha o poder dessa outra naqueles séculos. E ousem dizer-me que as ‘fontes da vida’ não se enfraqueceram e não se conspurcaram debaixo da ‘estrela’, debaixo das teias em que os homens estão enrodilhados. E nem me venham querer assustar, com a prosperidade, a saúde, a diminuição da carestia e a rapidez dos meios de comunicação. Há mais saúde, mas há menos vigor, não há mais ideia sólida; tudo se tornou mais mole, tudo é dúctil, todo o mundo é maleável! Todos nós, todos nós estamos ficando mais moles... Mas, quanto a isso, basta. Este ainda não é o ponto. O ponto, honrado príncipe, é se não nos devíamos aprontar para a ceia que está sendo preparada para as nossas visitas?”
Liébediev tinha levado os seus ouvintes a um verdadeiro estado de indignação. (Deve-se acentuar que rolhas lhe foram arremessadas incessantemente todo o tempo.) Mas essa inesperada referência à ceia logo conciliou todos os seus antagonistas. Ele chamou essa conclusão de “galharda conclusão jurídica”. Risadas bem-humoradas ecoaram outra vez; as visitas ficaram mais alegres, e todos se ergueram de ao pé da mesa, para desentorpecer as pernas e caminhar pela varanda. Apenas Keller não gostou do discurso de Liébediev e estava tenebroso.
— Ele ataca o progresso e gaba o carolismo do século XII. Está se pavoneando; não há sinceridade nenhuma no que disse. E como foi que ele conseguiu, por exemplo, vir para esta casa aqui? Ora aí está uma coisa que eu queria que ele me explicasse! — disse alto, tomando cada qual e todos como testemunhas.
— Eu sim, eu conheci um intérprete de mão-cheia do Apocalipse — pôs-se a dizer o general, lá num canto, a um outro grupo de ouvintes, entre os quais Ptítsin, cujos botões segurava, distraidamente. — O falecido Grigórii Semiónovitch Burmístrov. Esse sim fazia o coração da gente se abrasar. Primeiro punha os óculos e abria um grande livro encadernado em couro negro; tinha uma barba incomensurável e duas medalhas em reconhecimento às suas munificentes caridades. Começava devagar e em tom severo. Os generais se inclinavam diante dele e as senhoras caíam em faniquitos. Ao passo que este camarada aqui concluiu com uma ceia! Isto é o cúmulo!
Ptítsin escutou o general, sorriu e foi à cata do chapéu, como se quisesse ir embora; mas ou ficou sem disposição para isso, ou se esqueceu. Gánia já antes de todos se levantarem tinha acabado de beber e afastado o copo. Uma sombra de tristeza lhe envolvia o rosto, agora. Depois que todos abandonaram a mesa, ele se dirigiu para perto de Rogójin e se sentou ao seu lado. Dir-se-ia que ambos estavam na mais amistosa das relações. Rogójin, que antes fizera menção, repetidamente, de se levantar e ir embora, permanecia sentado, quieto e de cabeça pendida. Era como se também ele tivesse esquecido sua decisão tantas vezes ensaiada. Não bebera sequer uma gota de vinho, a noite inteira, e conservava um ar muito taciturno. De vez em quando erguia os olhos e contemplava ora um, ora outro. Estaria ele à espera de alguma coisa de grande importância, a ponto de no seu foro íntimo ter resolvido aguardar?
O príncipe não bebera ao todo mais do que umas duas ou três taças de champanha que apenas o tinham conseguido tornar um tanto jovial. Ao sair de perto da mesa deu com o olhar de Evguénii Pávlovitch e então se lembrou da conversa que deviam ter a sós e lhe sorriu cordialmente. Em resposta, Evguénii Pávlovitch lhe fez um gesto, mostrando Ippolít, em quem se pusera a prestar atenção. O rapaz dormia estirado no sofá.
— Diga-me uma coisa, príncipe: por que motivo se teria este rapaz instalado aqui na sua casa? Aposto como veio com alguma intenção má — disse de chofre, com uma tal implicância e demonstrando tamanha antipatia que Míchkin, surpreendido, não pôde deixar de redarguir:
— Reparei, ou pelo menos me pareceu, que se preocupou demasiado com ele, esta noite, Evguénii Pávlovitch. Não é verdade?
— E acrescente mesmo que dada a minha situação por causa de meu tio não me faltariam motivos para preocupações muito outras que não esta. Na verdade, nem eu mesmo me explico a razão pela qual esse rosto antipático atraiu a minha atenção a noite inteira.
— Tem um rosto bonito...
Nisto Evguénii Pávlovitch puxou o príncipe pelo braço, exclamando:
— Veja! Veja!...
O príncipe, todavia, olhou foi para Radómskii, com admiração ainda maior.
5.
Ippolít, que lá pelo fim da arenga de Liébediev adormecera repentinamente sobre o sofá, acordou de súbito, como se lhe tivessem dado um empurrão.
Sobressaltado, sentou-se, olhou em redor e ficou muito branco, parecendo muito espantado de se achar ali; e, quando se lembrou de tudo e refletiu uns segundos, uma expressão de horror lhe veio ao semblante.
— Como? Estão saindo? Já acabou? Terminou? O sol já nasce? — pôs-se a perguntar, inquieto, agarrando a mão do príncipe. — Que horas são? Pelo amor de Deus, que horas são? Peguei no sono sem querer... Dormi muito tempo? — continuou a indagar como se uma coisa lhe tivesse arrebatado o destino enquanto dormia.
— Dormiu... quer saber... apenas uns sete ou oito minutos! — acalmou-o Evguénii Pávlovitch.
Ippolít fixou-o avidamente, distendendo por alguns momentos um raciocínio vagaroso.
— Só? Então eu...
E deu um suspiro ardente e profundo, como aliviando algum peso. Verificou que o grupo não se dissolvera, que tinha abandonado a mesa apenas para sentar a uma outra na peça contígua diante da ceia, que a aurora ainda não chegara e que, afinal de contas, a única coisa terminada de fato fora o bestialógico de Liébediev. Sorriu e um fluxo vermelho, característico da tuberculose, lhe tingiu as faces. Comentou com ironia a afirmativa de Radómskii:
— Esteve contando os minutos enquanto eu dormia, hein, Evguénii Pávlovitch? Bem reparei esta noite que o senhor não tirava os olhos de cima de mim. Olá, Rogójin! Vi-o em sonhos agora mesmo. — Franziu uma sobrancelha na direção do príncipe, como a mostrar-lhe Parfión, que ainda permanecia sentado diante da mesa. Logo mudou de assunto. — Onde está o orador? Que fim levou Liébediev? Então ele já finalizou aquela xaropada? Como foi a peroração? É verdade, príncipe, que o senhor disse uma vez que a beleza salvaria o mundo? Senhores! — exclamou bem alto, dirigindo-se para o grupo inteiro. — Aqui o príncipe afirma que a beleza salvará o mundo! Participo-lhes que a razão desta sua ideia tão radiosa advém do fato de estar ele apaixonado. Mal embarafustou por aqui adentro esta noite, logo vi isso na fisionomia dele. Não desaponte, príncipe, senão me enternecerá ainda mais. Afinal, que espécie de beleza é que salvará o orbe? O senhor é um cristão fervoroso? Kólia me garantiu que o senhor é cristão convicto.
O príncipe olhava-o atentamente, sem responder.
— Ah! Não responde? — E bruscamente Ippolít acrescentou: — Cuida porventura que sou muito seu amigo?
— Não, não julgo. Já percebi que não gosta de mim grande coisa.
— Como? Mesmo depois de ontem? Ontem fui sincero com você.
— Eu sabia, ontem também, que você não gostava de mim.
— E por que será? Inveja? Pensou, desde que me conhece, que fosse por causa disso, não pensou? Mas por que estou eu interpelando-o assim na sua própria casa? Quero um pouco mais de champanha. Keller, torne a encher a minha taça.
— Você não deve beber mais, Ippolít. Não consinto. — E o príncipe lhe arredou para longe a taça.
— Tem toda a razão. — E, concordando, foi assumindo gradualmente um feitio de quem se torna mais lúcido. — Comentariam... chamar-me-iam de bêbedo, ainda por cima... ou de romântico. Tanto se me dá. Pois comentem... ou deixem de comentar! Não concorda comigo, príncipe? Hei de me importar muito com o que digam depois, hein? Que pode interessar a qualquer um de nós o que acontece depois? Parece que ainda não acordei direito... Tive um sonho... Credo! Ainda não se desfez direito. Não lhe desejaria um sonho destes, príncipe, apesar de nossa antipatia recíproca. Eu cá adoto o seguinte sistema: não desejo o mal para uma pessoa mesmo que embirre com ela. Mas... chega de perguntas e declarações. Príncipe, dê-me a sua mão. Quero apertá-la calorosamente. Assim! Ainda bem que o senhor me estendeu. Portanto, acredita que quando aperto a mão de alguém o faço com sinceridade. Não beberei mais, já que esse é o seu desejo. Que horas serão? Outra pergunta vã. Se aqui há uma criatura que sabe a hora, e que hora é esta, exatamente esta, sou eu. Sim, porque ela, a hora, ei-la!... Este é o tempo exato. Armaram a ceia acolá naquele canto?! Então isso significa que esta mesa aqui está livre? Ótimo. Ora muito bem, cavalheiros, eu... Mas os senhores querem ouvir ou não querem?... Príncipe, era meu intento ler um pequeno ensaio. Bem sei que cear é bem mais interessante; ainda assim...
E de súbito, da maneira mais inesperada, sacou do bolso de dentro do paletó um envelope grande, selado com uma rodela de lacre, e o depôs em cima da mesa, na sua frente.
Tal gesto inopinado alarmou a assistência que não esperava por uma coisa dessas e que, além de um tanto bebida, tinha fome. Evguénii Pávlovitch quase deu um pulo da cadeira. Gánia caminhou depressa para a mesa. Rogójin fez o mesmo, mas com uma espécie de raiva sinistra, como se estivesse pressentindo o que ia acontecer. Liébediev, que já se achava perto, abaixou os olhos perscrutadores arregalando-os por sobre o envelope, querendo adivinhar o que seria aquilo.
Foi então que o príncipe perguntou com certo receio:
— Isso aí o que é?
— Ao primeiro clarão do sol nascente me “prostrarei”, príncipe. Já lhe disse. Palavra de honra. O senhor verá! — exclamou Ippolít. — Mas... mas... Cuidam que não serei capaz de abrir este envelope? — acrescentou volvendo os olhos para os assistentes, encarando-os um por um, como a desafiá-los indistintamente.
Míchkin reparou que ele tremia de modo quase convulsivo.
— Por que havemos de pensar uma coisa dessas? — respondeu o príncipe por todos. — E por que pensa você isso da gente? Que ideia é essa... que ideia é essa de ler isso a estas horas? Que é que tem aí nesse envelope, Ippolít?
— Sim, que é? — perguntavam todos, entre si. — Que foi que lhe aconteceu? Está querendo o quê?
Em breve o rodearam todos, alguns ainda comendo. Aquele envelope com o lacre vermelho parecia um ímã.
— Escrevi isto anteontem, príncipe, logo depois que prometi vir passar uma temporada na sua casa. Passei o dia inteiro escrevendo, fui pela noite adentro, e só ontem foi que acabei. Depois me deitei e tive um sonho...
— Não seria muito melhor adiar isto para amanhã?
— Amanhã “não haverá mais tempo” — disse Ippolít ejaculando uma risada histérica. — Mas não se assustem. Levarei apenas uns quarenta minutos a ler. Uma hora, no máximo. E por que não hei de ler se noto tamanha curiosidade, se todos não tiram os olhos de cima do lacre? Ah! Como um envelope grande, lacrado, causa sensação, gente! Hum! Vejam só o que é o mistério! Devo soltar o lacre ou não, senhores? — perguntou, fixando-os com olhos fulgurantes e rindo de modo esquisitíssimo. — É segredo, gente, segredo! Lembra-se, príncipe, quem foi que proclamou que já não haveria “mais tempo”? Foi o grande e poderoso arcanjo do Apocalipse.
— É melhor não ler! — exclamou de repente Evguénii Pávlovitch com um timbre de tamanha preocupação que alvoroçou os demais.
— Deixe dessa ideia. Não leia, não! — aconselhou o príncipe também, pondo a mão sobre o envelope.
— Ler para quê? É hora de cear, isso sim — declarou alguém.
— É algum artigo? Colaboração para alguma revista? — perguntou um outro.
— Alguma droga, na certa — aventou um terceiro.
O gesto de Míchkin, conquanto tímido, pareceu haver arrefecido Ippolít.
— Então... não querem que eu leia? — disse quase a sussurrar, com certa apreensão, os lábios lívidos repuxados por um sorriso em esgar. — Acham que não convém ler? — murmurou, esquadrinhando vagarosamente as fisionomias dos demais, como a querer cobrar ânimo para investir sobre todos com um único arremesso difuso. — Estão com medo de quê? — Depois ficou a consultar a indecisão do príncipe.
— Por que haveríamos nós de ter medo? — redarguiu este último, mudando de fisionomia cada vez mais.
Então, dando um salto da cadeira, como se alguma mola o tivesse arrojado, Ippolít perguntou ao acaso:
— Alguém terá aí uma moeda de 20 copeques? Ou qualquer outra?
— Tome — disse Liébediev, entregando-lhe imediatamente uma.
E o fez certo de que o rapaz, devido ao seu estado de saúde, estivesse em algum delírio.
Voltando-se depressa para a menina, Ippolít pediu:
— Vera Lukiánovna, pegue esta moeda, atire-a para o ar... Cara ou coroa. Se for cara, então quererá dizer que posso ler!
Vera olhou muito espantada para a moeda, depois para Ippolít, por último para o pai e amedrontadamente recuando a cabeça, como se achasse que não devia olhar para a moeda, arremessou-a para o ar. Esta caiu na mesa, com a efígie virada para cima.
— Ler! Vou ler — grunhiu Ippolít como varado pela decisão do destino. Mais pálido do que estava era impossível. Nem que aquilo fosse a sua sentença de morte.
— Mas... — irrompeu ele despropositadamente, metendo-se entre os mais próximos, após meio minuto de silêncio — como?! Então ganhei? Foi mesmo “cara”? — E com um pasmo que era quase súplica, tomando a todos como testemunhas, os encarou. Depois tornou a se voltar para Míchkin com um legítimo ar de assombro. — Mas isto é prova da força psicológica. É... deveras inacreditável, príncipe! — disse e repetiu, forçando o hausto e parecendo recobrar o ânimo. — Guarde bem este fato, príncipe, não esqueça, Alteza, já que, segundo creio, o senhor costuma colecionar episódios referentes às sentenças de morte... Pelo menos me contaram, ah! ah!... Deus do Céu, que absurdo sem pé nem cabeça!
Sentou-se no sofá, fincou os cotovelos sobre a mesa e apoiou a cabeça.
— Ora, isto é positivamente vergonhoso! Importa-me lá que seja vergonhoso! — Imediatamente ergueu a cabeça outra vez. — Senhores, senhores! Vou romper o lacre do meu envelope! — exclamou com repentina decisão. — O que aliás não obriga ninguém a ficar para ouvir.
Com as mãos trêmulas de tanta excitação, abriu o envelope, tirou diversas tiras de papel escritas em letra miúda; começou a arrumá-las, colocando-as na sua frente.
— Mas de que se trata? Que é que ele vai ler? — murmurou alguém, soturnamente; mas os outros ficaram calados, sentando-se e espiando com curiosidade. Contavam com alguma coisa fora do comum. Vera grudou-se à cadeira do pai, amedrontada, com vontade de chorar. Kólia não deixava também de estar assustado. Liébediev, que já se tinha sentado, tornou a se levantar e trouxe as velas para perto de Ippolít, para clarear mais.
— Senhores, o que isto seja os senhores vão ver já, por si mesmos — começou Ippolít, que bem sabia por que começava assim. E logo desandou a ler: — “Explicação indispensável.” Mote: “Après moi le déluge.” Hum! Não estou gostando! Será que escrevi seriamente um mote tão estúpido? Ouçam, senhores!... Asseguro-lhes que tudo isto não passa afinal duma algaravia! Uns pensamentos meus... E se porventura pensam que há qualquer coisa misteriosa, qualquer coisa proibida, então, de fato...
— Por que é que não lê isso sem prefácio? — interrompeu-o Gánia.
— É afetação — ajuntou outra pessoa.
— É muita falação — disse Rogójin, que até ali estivera calado.
Ippolít o encarou de repente e, quando os seus olhos se encontraram, Rogójin fez um arreganho vagoroso e ácido, pronunciando arrastadamente esta opinião:
— Não é por este caminho que vais lá das pernas, rapaz, digo-te eu...
Ninguém naturalmente entendeu o que Rogójin quis dizer. Pensaram todos que fosse uma ideia qualquer vinda num relance. Mas essa frase causou terrível impressão em Ippolít, que ficou tão trêmulo que o príncipe chegou a estender a mão para ampará-lo, e até quis gritar, só o não tendo feito porque a voz lhe faltou. Ippolít levou quase um minuto fixando Rogójin, calado, a respiração presa. Por fim, retomando o fôlego, pronunciou, com tremendo esforço:
— Com que então era você? Sim, você?
— Fui eu o quê? Fui eu o quê? — retrucou Rogójin, espantado.
Ippolít, inflamando-se, exclamou, tomado de fúria, violentamente:
— Você esteve no meu quarto, à noite, na semana transacta, à uma hora da madrugada, depois que fui a sua casa de manhã! Você! Sim, confesse; foi você.
— A semana passada? De madrugada? Você não está com as ideias muito claras, rapaz!
Ao que o “rapaz”, sem responder, ficou durante um minuto refletindo, com o indicador na testa. Mas havia qualquer brilho dissimulado e quase triunfante no seu sorriso pálido e um pouco destorcido pelo medo.
— Foi você! — repetiu, num sussurro, com intensa convicção. — Você entrou e se sentou no meu quarto, sem dizer nada, na cadeira perto da janela, durante uma hora inteira; mais: entre meia-noite e duas da madrugada. Depois, entre duas e três horas, você se levantou e foi embora... Foi você, foi você! Por que quis você me amedrontar? Por que foi me afligir? Não compreendo, mas foi você!
E, apesar de ainda estar tremendo de medo, havia fulguração de ódio em seu olhar.
— Os senhores virão a saber de tudo isso, diretamente... Eu... eu... Escutem...
Mais uma vez, com encarniçada pressa, agarrou as tiras de papel que tinham corrido para os lados, procurando ajuntá-las; mas tremiam em suas mãos convulsas, e por isso custou-lhe endireitá-las.
— Ou é maluqueira, ou delírio — rosnou Rogójin de maneira quase inaudível.
Afinal a leitura começou. Nos primeiros cinco minutos o autor do inesperado artigo estava sem ar e leu aos supetões, incoerentemente. Mas, com a continuação, a sua voz ficou mais forte e começou a exprimir melhor o sentido. Um violento acesso de tosse o interrompia, às vezes. Lá pela metade do artigo já estava rouco. E no fim a sua excitação febril, que ia aumentando com a leitura, alcançou tal ápice que produziu penosa impressão na assistência. Eis aqui o artigo inteiro:
“EXPLICAÇÃO INDISPENSÁVEL
“Après moi le déluge!
“O príncipe esteve aqui ontem, de manhã. Entre outras coisas me persuadiu a que me mudasse para a sua vila. Eu tinha certeza de que ele insistiria sobre isso e falaria pelos cotovelos até me convencer que era ‘mais suportável morrer entre árvores e gente’, conforme sua expressão. Mas hoje já não disse ‘morrer’ e sim ‘viver’, o que no meu caso vem a dar no mesmo. Perguntei-lhe que queria dizer com aquelas ‘árvores’ e por que me amolava tanto com elas. E vim a saber, então, com grande surpresa para mim, que eu próprio dissera naquela tarde que seria capaz de vir para Pávlovsk só para olhar para as árvores pela última vez. Quando lhe disse que tanto se me dava morrer olhando para árvores como para os muros de tijolos que dão para a minha janela, não sendo pois preciso tanta bulha por causa de uns 15 dias, ele imediatamente concordou; mas o verde e o ar fresco, segundo ele, deveriam produzir, seguramente, uma mudança física em mim, até talvez aliviando a minha excitação e os meus sonhos. Redargui-lhe, a rir, que estava falando como um materialista. Como ele jamais mente, essas suas palavras devem valer alguma coisa. Tem um belo sorriso; examinei-o agora, cuidadosamente. Não sei se gosto dele ou não. Nem disponho de tempo para perder com isso. Devo observar, porém, que o ódio que senti por ele, durante cinco meses, começou a se desfazer este mês. Mas... então, por que deixei o meu quarto? Um homem condenado à morte não deve deixar o seu canto. Talvez, quem sabe, tenha eu decidido ir a Pávlovsk para ver o príncipe, apenas? Se não fosse ter tomado, como tomei, a minha decisão final, deixando de me consumir aos poucos até o último instante, nada me teria induzido a deixar o meu quarto e eu não aceitaria o seu convite para ir morar com ele, para morrer em Pávlovsk. Devo apressar-me a acabar esta ‘explicação’ antes de amanhã, seja como for. Não terei, pois, tempo para relê-la, nem para emendá-la. Só a relerei amanhã, quando for mostrá-la ao príncipe e a duas ou três testemunhas que porventura encontre por lá. Portanto, não deve haver por aqui uma só palavra falsa, tudo tem que ser a verdade última e solene. E já estou curioso para saber que impressão isto causará na hora e no minuto da sua leitura. Fiz mal em escrever, penso eu, que esta é a última e solene verdade; não vale a pena dizer mentiras por uns 15 dias, já que, de qualquer maneira, não vale a pena viver 15 dias. Esta é a prova evidente de que não quero senão escrever a verdade. (N. B.: Não esquecer o pensamento: Não estarei maluco neste instante, ou melhor, nestes minutos? Já me asseguraram, positivamente, que os tuberculosos, em seu último estágio, perdem a cabeça por tempos. Devo verificar isto amanhã, pela impressão que causar no meu auditório. Ora aí está um caso que tenho que verificar, do contrário, como agirei?)
“Está me parecendo que escrevi algo terrivelmente estúpido; mas, como já disse, não tive tempo para corrigir. Além disso prometi a mim mesmo, de propósito, não emendar uma linha sequer deste manuscrito, mesmo se perceber que me contradigo em cada cinco linhas. O que desejo decidir depois, com a leitura de amanhã, é justamente se a sequência lógica de minhas ideias está correta; quero perceber os meus erros e por conseguinte se tudo quanto andei pensando aqui neste quarto é verdade ou delírio.
“Se eu tivesse deixado o meu quarto, há dois meses atrás, e tivesse dito adeus às paredes de Meyer, estou certo que teria ficado triste. Mas agora não sinto nada. Sei que vou deixar o meu quarto e aquela parede para sempre. Portanto, a minha convicção de que 15 dias não valem nada, e que não adianta sentir nem lastimar coisa alguma, se assenhoreou de toda a minha natureza e já pode ditar os meus sentimentos. Mas é isso certo? É verdade que a minha natureza já se deixou vencer? Se eu for torturado por alguém, agora, naturalmente que ainda darei gritos, vociferarei e não direi que é indiferente sofrer só porque tenho apenas duas semanas de vida.
“Mas, na verdade, só tenho mesmo duas semanas para viver, e não mais? Aquele dia, em Pávlovsk, eu menti. B... não me disse nada, pois nunca me viu. Mas, há cerca de uma semana, me trouxeram um estudante chamado Kisloródov. Por suas convicções se trata dum materialista, dum ateu, dum niilista. E foi por isso que o mandei chamar. Eu precisava dum homem que me dissesse a verdade nua, isto é, sem cerimônia nem brandura. E foi o que ele fez, não só com desembaraço e sem preâmbulo, mas com satisfação óbvia (que excedeu ao que eu pensava). Provou-me que eu tenho mais ou menos um mês de vida, talvez um pouco mais, caso as circunstâncias me sejam favoráveis, sendo porém mais provável que morra antes. Em sua opinião posso morrer subitamente, amanhã, por exemplo. Há casos assim, e antes de ontem, por exemplo, em Kolómna, uma jovem senhora tuberculosa, cujas condições eram idênticas às minhas, ia sair para ir ao mercado comprar seus mantimentos quando repentinamente se sentiu mal e caiu sobre um sofá; deu um suspiro e morreu. Tudo isso Kisloródov me disse sem rodeios e insensivelmente, como se me estivesse fazendo uma honra, ou melhor, como que dando-me a entender que me considerava, a mim também, um ser superior, igual a ele, imbuído do mesmo espírito de negação, e que, é claro, não se importa de morrer. De qualquer modo o fato é verdadeiro: um mês, não mais. E estou perfeitamente convencido de que ele não se equivocou.
“Admirei muito ter o príncipe adivinhado que eu tinha ‘maus sonhos’. Expressou estas palavras sinceras: que em Pávlovsk a minha excitação e os meus sonhos se modificariam. E por que sonhos? Ou ele é um pouco doutor, ou excepcionalmente inteligente, e vê habilmente as coisas. (Mas o que ele é, depois de tudo quanto disse e fez, é um idiota; quanto a isso não pode haver dúvida.) Antes de ele entrar eu tive, e até parece coincidência, um lindo sonho (apesar de, a falar a verdade, ter sempre milhares de sonhos como esse). Adormeci, creio que uma hora antes dele chegar, e sonhei que estava num quarto que não era o meu, melhor mobiliado e mais claro. Havia um sofá, uma cômoda, um guarda-roupa e a minha cama, que era grande e larga, coberta com uma colcha de seda verde. Mas no quarto deparei com um bicho asqueroso, uma espécie de monstro. Parecia um escorpião, mas não era um escorpião; era mais asqueroso e mais horripilante. Assim julguei porque não havia nada semelhante a ele na natureza e parecia ter vindo ali por encomenda, expressamente, havendo, portanto, nisso, qualquer coisa de misterioso. Examinei-o com muito cuidado. Era pardo, coberto com uma carapaça; tratava-se dum réptil com sete polegadas de comprido, dois dedos de espessura na cabeça, rematando em ponta na cauda, de forma que esta só tinha um sexto de polegada de largura. Quase duas polegadas para baixo da cabeça e em ângulo de 45 graus com o corpo saíam duas pernas, uma de cada lado, do comprimento aproximado de quatro polegadas; de maneira que toda a criatura tinha a forma dum tridente, olhada de cima. Não pude verificar bem a cabeça, mas saíam dela dois fiapos duros, como bigodes, curtos, também marrons, lembrando duas agulhas fortes. Havia dois fios iguais àqueles na cauda e na extremidade de cada perna perfazendo oito, ao todo. O bicho corria pelo quarto, muito depressa, com a sua cauda e as suas pernas; e quando corria o corpo e as pernas rastejavam como serpente, com extraordinária desenvoltura, apesar da carapaça; e era horrível de ver-se. Eu estava com um medo terrível de ser mordido. Sabia que ele era venenoso, mas o que mais que tudo me aterrorizava era ignorar quem o teria posto no meu quarto, qual a intenção e qual o segredo. Meteu-se debaixo da cômoda; depois debaixo do guarda-roupa e trepou pelos cantos. Sentei-me numa cadeira e ergui as pernas. O bicho andava à vontade pelo quarto e sumiu perto da minha cadeira. Procurei-o com terror e como estava sentado com as pernas erguidas calculei que não subisse por mim acima. De repente ouvi, atrás de mim, quase à altura da minha cabeça, um ruído, como duma coisa que estivesse sendo raspada. Voltei-me e vi que o réptil subia pela parede, já estando ao nível da minha cabeça e tocando o meu cabelo com a cauda, que se virava e enrolava com extraordinária rapidez. Dei um pulo e o bicho desapareceu. Fiquei com medo de ir para a cama, durante a noite, pois podia ser que ele se insinuasse debaixo do travesseiro. Minha mãe entrou no quarto com um conhecido dela e tentou pegar o bicho. Eles estavam muito mais calmos do que eu poderia estar, sem medo absolutamente. E não perceberam o meu pavor. O réptil recomeçou a rastejar. O demoniozinho queria alguma coisa! E correu desta vez do quarto para a porta, rastejando de modo mais revoltante ainda. Então minha mãe abriu a porta e chamou Norma, a nossa cachorra felpuda terra-nova (que já morreu há mais de cinco anos). Arremessou-se ela para o quarto e estacou diante do réptil. O bicho parou também, mas ainda se contorcendo; e raspava o chão com as patas e a cauda. Os animais não sentem terror pelo mistério, a não ser que eu esteja enganado. Mas naquele momento me pareceu que havia um terror extraordinário em Norma. Um terror deprimente, como se a cadela também tivesse notado que ali estava algo de poderoso e estranho. Começou a recuar aos poucos, diante do réptil que deu em rastejar também vagarosamente para ela, querendo decerto pegá-la para a picar. Apesar de apavorada, Norma olhava para aquilo com fúria, embora tremendo. De repente abriu com certo jeito os dentes, mostrando as tremendas mandíbulas vermelhas, agachou-se, preparada para o salto, e subitamente pegou o bicho com os dentes. O réptil lutou para se livrar e Norma outra vez o agarrou quando já escapulia, duas vezes prendendo-o todo nas mandíbulas, parecendo engoli-lo enquanto dava safanões, moendo a carapaça entre os dentes, com as pernas e a cauda dependuradas para fora da bocarra. E como aquilo ainda assim se mexia horripilantemente! Nisto Norma deu um grito agudo e lancinante. O animal conseguira picar-lhe a língua. Ganindo e latindo, abriu a boca, por causa da dor, e eu vi o bicho, apesar de cortado em dois, ainda mexer lá dentro, lançando do seu corpo esmagado uma porção de um fluido branco como o que sai quando se esmaga uma barata... Nisto acordei e o príncipe chegou.”
— Senhores — disse Ippolít, interrompendo inesperadamente a leitura e parecendo envergonhado, quase —, não tive tempo de reler isto e acho que escrevi demais, muita coisa até sem necessidade. Este sonho, por exemplo...
— De pleno acordo — apressou-se Gánia em concordar.
— Há aqui muita coisa demasiado pessoal, devo confessar. Isto é, quase que só falo de mim.
E, dizendo isso, Ippolít fez um ar de enfado e de cansaço, limpando o suor da fronte com um lenço. Liébediev anuiu:
— Realmente você está interessado demais na sua pessoa.
— Não estou forçando ninguém a escutar, permitam que lhes diga, senhores. Quem não quiser ouvir pode ir embora.
— Hum! Está mandando a gente embora da casa do outro! — comentou Rogójin de modo perfeitamente audível.
— E se nos levantássemos e fôssemos embora? — propôs Ferdichtchénko, de repente, bem alto. Ele não tinha ousado falar até agora.
Ippolít baixou os olhos e prontamente agarrou o manuscrito. Mas no mesmo segundo ergueu a cabeça de novo e disse olhando fixamente para Ferdichtchénko, com olhos flamejantes e duas nódoas de sangue nas faces:
— Tu me detestas, eu sei.
Houve risadas, mas não de todos. Ippolít enrubesceu ainda mais; e então Míchkin interveio.
— Ippolít, dobre o seu manuscrito e entregue-mo. Vá deitar-se no meu quarto. Conversaremos antes de dormir. Conversaremos amanhã. Mas sob a condição de que nunca mais abra essas folhas. Está feito?
Ippolít o encarou demonstrando nitidamente um assombro incontido.
— Impossível. Senhores, aqui está uma situação estúpida na qual não sei como devo me comportar! — exclamou, tornando-se cada vez mais febrilmente excitado. — Não vou interromper mais a minha leitura. Portanto, se alguém não quer me ouvir, que se vá.
Tomou apressadamente um gole da água do copo, fincou os cotovelos sobre a mesa para amparar o rosto e esconder os olhos e continuou a ler, passando-lhe logo o vexame.
“A ideia”, prosseguiu ele, “de que não vale a pena viver poucas semanas começou a me vir seguramente há um mês, quando eu dispunha apenas desse mês para viver. Mas só passou a me obcecar, creio eu, há três dias atrás, quando passei aquela noite em Pávlovsk. Na primeira vez que tal pensamento me arrebatou plenamente eu me achava na varanda do príncipe, na ocasião mesmo em que tentava uma experiência e um julgamento sobre a vida, ainda tolerando ver pessoas e árvores (não nego que me propus isso). Exatamente quando me excitei insistindo pelos direitos do ‘meu semelhante’ Burdóvskii, quando ainda sonhava que todos me abririam os braços para me acolher e me pedir perdão pelos erros do mundo e da vida, o mesmo estando eu disposto a fazer com todos! Resumindo: exatamente quando eu me comportei, mais do que nunca, como um rematado imbecil. E foi então que me assaltou esta minha ‘última convicção’. Admirei-me de ter podido viver seis meses sem que ela me tivesse vindo antes. Estava farto de saber que era um tuberculoso sem possibilidade de cura. Quanto a isso nunca procurei me enganar. Compreendia a minha situação, claramente. Mas a verdade é que quanto mais claramente a compreendia mais desejo tinha de que a minha vida se prolongasse. Agarrei-me à vida, queria viver apesar de tudo. Admitindo que eu percebia muito bem a nefanda e obscura fatalidade que estava para me esmagar como a um inseto e, ainda por cima, sem a menor culpa de minha parte, por que foi que, ainda assim, não me insurgi contra a minha involuntária passividade? Por que haveria de querer começar a viver deveras sabendo que estava no fim? Por que tentei isso antes e haveria de tentar então, sabendo que seria inútil optar fosse lá pelo que fosse? Pois se nem ler eu podia, tendo desistido dos livros! Que me adiantava ler, de que me valia aprender por seis meses? Quantas vezes a evidência dessa verificação não me fez jogar os livros para um lado?
“Sim, aquelas paredes de Meyer poderiam contar uma história. Muito poderia eu escrever sobre elas. Não há um pedaço daquelas paredes imundas que eu não tenha estudado. Raios as partam! E todavia ainda me são mais caras do que as árvores de Pávlovsk. Ou melhor: seriam, se tudo já agora não me fosse indiferente.
“Lembro-me com que interesse voraz andei, nesse tempo, prestando atenção na vida de todos, coisa com que antes jamais me importara. Quando a doença me impossibilitava de sair, ficava a olhar para a rua, esperando, nervosamente, por entre maldições e pragas, a vinda de Kólia. Tudo, tudo eu esquadrinhava; não me escapulia a menor novidade, fato, palavra. Virei um tagarela, criticava toda gente! Não havia meios, por exemplo, de compreender como é que quem dispõe de tanta vida diante de si, longe estando a morte, não se torna rico (e com efeito ainda hoje não entendo isso!). Conheci um pobre-diabo que (segundo me contaram) veio a morrer de fome. Lembro-me de que, ao saber disso, fiquei furioso: minha vontade era ressuscitá-lo, se eu tivesse tal dom, somente para o executar! Às vezes, por aquele tempo, eu ficava um pouco melhor, uma semana ou outra, e me dava ao luxo de sair um pouco; mas as ruas me exasperavam a tal ponto que acabava me trancando dentro do quarto, de propósito, dias e dias seguidos, embora pudesse sair como qualquer outra pessoa. Não podia suportar a multidão apressada, barulhenta, preocupada, pensativa, impaciente, desfilando em duplo sentido, atropelando-me pelas calçadas. Por que essa taciturnidade, essa preocupação, esse alarido, esse eterno e teimoso rancor (pois a multidão tem rancor, tem rancor, tem rancor!)? De quem é a culpa se ela é miserável e não sabe como viver, embora tenha sessenta anos de vida pela frente? Por que foi que Zarnítzin se deixou morrer de fome se tinha sessenta anos de vida à sua disposição? Toda a gente mostra os seus andrajos, as suas mãos escalavradas e calosas, e grita selvagemente: ‘Trabalhamos que nem bois de arado, somos pobres e famintos que nem cães, ao passo que tantos há por aí que não fazem nada e são ricos!’ (A eterna lamúria!) E, por entre a turba que vai e vem desde manhã até a noite, eis que surgem sujeitos lerdos e ranhentos, como esse amanuense suplente, Iván Fomítch Súrikov, ‘fidalgo de nascença’, que vive no meu quarteirão, numa mansarda e que me farto de ver com os cotovelos coçados, os botões querendo cair, indo e vindo pelo bairro desempenhando tarefas insignificantes, levando e trazendo recados e sempre a se queixar! É pobre, não tem amigos, passa fome, morreu-lhe a mulher à míngua de remédios, o filhinho morreu enregelado num inverno destes, a filha já moça é amásia não sei de quem... Iván Fomítch Súrikov! Sempre a se lastimar, o estupor!... Oh! Nunca senti a menor, a mínima piedade por esses estúpidos e nem sinto agora, digo com orgulho! Por que não é ele um Rothschild? De quem é a culpa se ele não tem milhões como Rothschild, se não tem pilhas e pilhas de fredericos de ouro e de napoleões de ouro, tão altas como estas montanhas que se veem nas festas de carnaval? Pois se está vivo que raio faz ele com tamanho poder como é o da vida? E de quem é a culpa se o estupor não compreende isso?
“Oh! Agora já não me importo mais, não me resta tempo nem mesmo para me irritar. Mas então, repito, naquele tempo, ah!... eu me crispava no meu travesseiro, mordia com raiva a orla da minha colcha! E que devaneios, que sonhos, que projetos! Que vontade que me vinha de me ver solto na rua, apenas com os meus 18 anos, sem roupa, sem teto, completamente abandonado e só, sem trabalho, sem quarto, sem uma côdea de pão, sem um conhecido único, sem parentes de qualquer espécie, largado numa grande cidade, sentindo fome, desdenhado (quanto mais, melhor!) mas com saúde, pois então haveria de mostrar a todos...
— Que é que eu poderia mostrar...?
“Oh, sem dúvida cuidam que ignoro quanto humilhei a mim próprio, conforme se depreende desta minha ‘Explicação’. Decerto, um por um, todos me olham como um choramingas que não sabe nada da vida e esquecem que ainda tenho somente 18 anos e que viver do modo por que vivi durante esses seis meses significa o mesmo que já estar com os cabelos grisalhos! Pois riam e digam que isso tudo não passa de contos de fadas. De fato a mim mesmo outra coisa não fiz senão contar histórias da carochinha, enchendo noites a fio com esses contos fantasmagóricos. Ainda hoje não os esqueci.
“Mas hei de porventura contá-los agora que o tempo das histórias de fadas já acabou, mesmo para mim? Ora, contá-los a quem? Distraía-me com eles porque já tinha visto perfeitamente que me era vedado até mesmo aprender a gramática grega, como me deu na veneta certa vez. ‘Morrerei sem sequer haver chegado à sintaxe’, pensei, logo na primeira página, e joguei o livro para baixo da mesa. Lá ainda deve estar ele, pois proibi Matrióna de o pegar do chão.
“Qualquer pessoa em cujas mãos esta minha ‘Explicação’ vier a cair acabará, caso tenha paciência bastante para lhe lançar os olhos, por me considerar como um sujeito maluco, um garoto de escola ou, mais provavelmente ainda, como um homem condenado à morte, propenso por isso a acreditar que todos os demais pensam pouco, pouquíssimo da vida e que não fazem senão dissipá-la à toa, vivendo assaz preguiçosamente, apaticamente, nenhum deles sequer merecendo vivê-la. Bem, protesto contra o meu leitor, pois se equivocou; e esta minha convicção não é de forma alguma uma consequência de estar eu condenado à morte. Pergunte-se a essa gente, pergunte-se o que essa gente toda entende por felicidade. Fique o mundo sabendo que Colombo foi feliz não quando descobriu a América, mas sim quando a estava por descobrir. Em verdade afirmo que o trecho mais alto da sua felicidade foram aqueles três dias antes da descoberta do Novo Mundo, quando a equipagem amotinada e desiludida esteve a ponto de aproar de volta para a Europa. Não era o Novo Mundo que importava, mesmo que de tão real lhe caísse ombros abaixo.
“Colombo morreu sem quase o haver visto direito e sem saber ao certo o que havia descoberto. É a vida que vale, que importa, a vida e nada mais, o processo, a maneira de descobrir, a tarefa perpétua e imorredoura. E não a descoberta em si, absolutamente. Mas que adianta estar aqui a falar! Decerto o que aqui estou dizendo ou escrevendo não passa dum lugar-comum e me hão de tomar como um colegial desenvolvendo o tema da composição de sabatina. ‘O nascer do sol.’ Ou, no máximo, dirão talvez que de fato alguma coisa tinha eu a dizer mas que não soube me ‘explicar’. Acrescentarei, todavia, que, sempre no fundo de cada novo pensamento humano, de cada pensamento de gênio ou mesmo de cada pensamento que emerge do cérebro como altíssima centelha, alguma coisa há que não pode ser comunicada aos outros, mesmo que fossem precisos volumes e mais volumes a respeito e que se levasse mais de 35 anos a querer explicar; alguma coisa que não sai do cérebro, que não pode emergir, que aí fica para sempre intacta e incomunicável. Morre-se com ela, sem poder participá-la a quem quer que seja. E todavia bem pode ser que essa seja a ideia mais importante entre todas. Se também eu falhei ao querer transmitir tudo quanto me andou atormentando nestes últimos seis meses, ainda assim cumpre ficar entendido que para chegar a esta minha ‘última convicção’ paguei demasiado caro. Eis o que achei necessário antepor de forma bem explícita à minha ‘Explicação’ e isso por motivos que me concernem. Visto o quê, prossigo.
6.
“Não quero mentir; a realidade me colheu com demasiada força em suas garras no decorrer destes seis meses; e algumas vezes me arrebatou a ponto de me obrigar a esquecer a minha sentença de morte. Ou melhor: cheguei a não pensar nela e até a trabalhar. Já que estou falando nisto convém citar as circunstâncias. Quando, há oito meses, adoeci gravemente, cortei todas as minhas amarras com o mundo e desisti de andar com quantos tinham sido meus camaradas. Como sempre fui um taciturno, os meus companheiros facilmente me esqueceram. Naturalmente mesmo sem esta decisão minha acabariam me esquecendo. O meu ambiente doméstico ou, para ser mais exato, a minha ‘família’ também predispunha ao solipsismo. Há cinco meses que me apartei de vez, de tudo e de todos, confinando-me num dos cômodos de casa. Acostumados a me obedecer, dos meus nunca ninguém ousou me aparecer, exceto nas horas marcadas para a arrumação do quarto e para me trazerem as refeições. Minha mãe acatava o meu estado de ânimo e sempre que vinha à minha presença permanecia ali toda trêmula, perto da porta, e não abria a boca. Dava nas crianças para não fazerem barulho, pois isso me incomodava. De fato muitas vezes, ao menor ruído, eu fazia um escarcéu. (A criançada deve estar com saudades de mim!) Acho que atormentei muito o meu ‘fiel e bom’ Kólia, como eu o chamava. Além mesmo dos limites da sua paciência. Mais tarde isso chegou a saturá-lo. Não vejo nisso nada de extraordinário. As criaturas foram feitas para se atormentarem reciprocamente. Percebia que ele não se exasperava com a minha irritabilidade, resolvido de antemão a não ser ríspido com um inválido. Provavelmente encaixou isso na cabeça para imitar a mansidão cristã do príncipe, o que, afinal, acabei achando engraçado. Não passa dum garoto muito novo e ávido do mundo; de maneira que tinha mesmo que imitar tudo. Acabei compreendendo e aceitando que ele tratasse, em hora oportuna, de traçar o seu próprio caminho. Gosto muito dele. Não deixei também de implicar com Súrikov, que mora numa mansarda do meu prédio e que corre levando recados de um para outro, desde manhã até a noite. Tanto andei a lhe querer provar que era um imbecil em suportar a sua pobreza que se encolheu e desistiu de me encontrar. É uma natureza muito mansa, o mais suave dos seres vivos. (N. B.: dizem que a mansuetude é uma força tremenda. Devo interrogar o príncipe a tal respeito. Aliás a expressão é dele.) Mas em março, quando me dei ao trabalho de subir aquelas escadas todas para lhe dar os meus pêsames por haver o seu filhinho morrido enregelado, conforme soube, caí na asneira de, lá em cima, querer explicar ao pobre-diabo, outra vez, embora inoportunamente, que tudo isso era consequência da sua ‘burrice’. E sorri, lançando uma olhadela para o cadaverzinho. Então os lábios do homem se puseram a tremer e, contendo as lágrimas de antes, pôs uma das mãos no meu ombro e com a outra me apontou a porta, dizendo muito brandamente, com menos do que um sussurro: ‘Saia, senhor!’
“Saí e apreciei aquilo muitíssimo; apreciei logo, instantaneamente, mesmo no momento justo em que ele me apontou para a saída. Durante muito tempo aquelas duas palavras produziram em mim uma impressão dolorosa, quando calhava pensar nelas. A impressão que me causavam era uma espécie de desprezível piedade para com ele, coisa que eu absolutamente não queria sentir. Mesmo na hora aguda do insulto (sei bem que aquilo foi um insulto, embora involuntário), mesmo em tal ocasião não demonstrou ira! Se os seus lábios tremeram não foi isso provocado por acesso de ira, não, juro! Com a mão no meu ombro pronunciou o seu significativo ‘Saia, senhor!’, absolutamente sem ira. O que havia era dignidade; muita mesmo, conquanto inadequada inteiramente ao caso, tanto que, a bem dizer, havia até algo de cômico e grotesco na cena; mas cólera, não; não havia cólera. O máximo que se deve ter dado foi ter ele sentido desprezo por mim. Depois disso, encontrando-me umas duas ou três vezes pela escada, cumprimentou-me tirando o chapéu, coisa que antes não fazia. Antes parava, de chapéu na cabeça, dizia qualquer coisa a esmo; destas duas ou três vezes continuou subindo, resvalando por mim muito confuso. Se me desdenhava, fazia-o à sua maneira: desprezava-me mansamente. Ou quem sabe lá se me tirou o chapéu, cumprimentando apenas o filho dum seu credor, visto em tempos ter pedido dinheiro emprestado à minha mãe, nunca tendo podido, depois, ser perfeitamente estrito em seus pagamentos. Com efeito esta interpretação parece mais viável. Estou certo que, se eu tivesse resolvido dar tudo como não se tendo passado, ele em menos de dez minutos me viria pedir perdão; decidi, porém, não modificar meu feitio.
“Foi mais ou menos nessa época, isto é, quando o filhinho de Súrikov morreu de friagem, em meados de março, que inesperadamente dei em me sentir bem melhor durante uns 15 dias. Passei então a sair, pouco antes do crepúsculo. Eu gostava do mês de março, quando começa o degelo. Andando pelas ruas via acender os bicos de gás. Andava às vezes horas e horas a fio. Aconteceu, uma noite, na rua das Seis Quitandas, um indivíduo que parecia um gentil-homem passar adiante de mim. Não lhe distingui a fisionomia, reparei somente que levava não sei o que embrulhado em jornais; vestia uma espécie de sobretudo horroroso, curto demais para o seu tamanho e muito ralo para a estação. Bem no instante em que ele passava por mim rente a um lampião, notei que qualquer coisa caiu do seu bolso. Apressei-me em pegá-la, pois alguém, um homem metido num cafetã, pulara na minha frente; vendo porém que eu a estava pegando nem fez menção de discutir, contentando-se apenas em arriscar uma olhadela e continuar o seu caminho. Tratava-se duma carteira velha, de marroquim, recheada (percebi logo) de tudo que fosse possível, menos dinheiro. O homem que a perdera já ia a uns quarenta passos na minha frente e logo se sumiu na multidão. Pus-me a correr e a chamar por ele; como não podia dizer nome nenhum e apenas gritava ‘êh!, êh!’, ele não se voltou. Súbito, atirou-se à esquerda e desapareceu no portal de uma casa. Quando alcancei a entrada, que era muito escura, não vi ninguém. O prédio era enorme, uma dessas construções monstruosas destinadas a inquilinos de classe baixa, que muitas vezes contêm até mais de cem cômodos e que dão uma renda fabulosa. Quando entrei correndo me pareceu ver um homem já na parte mais afastada do pátio. Devido à escuridão não consegui distingui-lo a não ser muito mal. Avancei e chegando ao fundo dei com a entrada para as escadas. Umas escadas estreitas e imundas; não havia luz de espécie alguma. Ouvi passos, ruídos de quem está subindo. Subi também, certo de que enquanto lhe abrissem a porta eu conseguiria alcançá-lo. Os lances da escada eram curtos, mas os andares eram tantos que nunca mais que eu chegava. E fui ficando sem fôlego. Antes de atingir o quinto andar escutei que uma porta se abriu e logo se fechou, lá em cima. Galguei os lances, cheguei a um corredor, vi uma porta, comecei a tomar respiração e toquei a campainha. Só alguns minutos depois foi a porta aberta por uma mulher que voltou a assoprar o fogo debaixo dum samovar. Escutou-me em silêncio, creio que não entendeu uma única palavra do que eu disse, e sempre calada me abriu uma porta que dava para uma outra peça; vi-me num cômodo estreitinho e miserável, mobiliado com o indispensável. Havia uma cama para casal, com cortinados, onde jazia estirado um homem; Tieriéntitch, pois este foi o nome com que ela chamou esse homem avisando a minha entrada, resmungou qualquer coisa, com um tom pastoso de bêbedo e mostrou uma outra porta oposta à que a mulher tornou a fechar. Num castiçal de lata uma vela quase gasta iluminava uma garrafa. Tive o expediente de abrir a tal porta, logo me vendo num outro cômodo.
“Esse cômodo era menor do que o anterior e estava atulhado de coisas, de tal maneira que me vi atrapalhado para andar. Um estreito leito de solteiro, num lado, tomava muito espaço. O resto dos móveis consistia de três cadeiras amontoadas com roupa de toda sorte e uma mesa ordinária em frente dum sofazinho forrado com encerado; mas isso desarrumado de tal jeito que não havia lugar para se passar entre a mesa e a cama. Brilhava no centro da mesa uma vela de sebo fincada num castiçal idêntico ao outro. Na cama chorava um garotinho que, a julgar pelos sons que emitia, não podia ter mais do que três semanas. Estava sendo ‘trocado’ por uma mulher pálida de expressão doentia, ainda moça, de roupão, com ares de se ter acabado de levantar duma doença. Mas a criança não se sentiu confortada com a fralda limpa e desandou a berrar, querendo decerto a maminha. No sofá dormia uma outra criança, duns três anos, coberta, penso eu, com o casaco do pai. Junto da mesa estava um homem com um paletó muito coçado (tinha acabado de tirar o sobretudo, que jogou sobre a cama). Estava desmanchando um pacote azul que continha duas libras de pão de trigo e duas pequenas salsichas. Reparei ainda num bule de chá sobre a mesa e numa pada de pão preto. Uma maleta meio aberta e dois embrulhos de roupas apareciam debaixo da cama.
“Aquilo é que era desordem. Mas logo à primeira vista me impressionou serem homem e mulher gente de alguma educação, e que a pobreza reduzira àquela condição degradante a que se chega quando a desordem triunfa de todo esforço para combatê-la e ainda por cima conduz uma pessoa a achar no seu crescimento cotidiano uma espécie de cruel e (como no caso) vingadora satisfação.
“Quando entrei, o homem, que acabara de entrar antes de mim e estava desenrolando as suas provisões, falava com a mulher, que, não tendo ainda acabado de arrumar o bebê, desandou a soluçar. As notícias deviam ser más, como de hábito. O homem, que aparentava uns 28 anos, tinha um rosto sombrio e esgotado, bigodes pretos e queixo escanhoado. Deu-me a impressão de ser mais educado e simpático do que a mulher. Tinha um rosto apático, com igual expressão nos olhos, havendo apenas uma sombra de orgulho mal contido. A minha entrada ocasionou uma cena estranha.
“Pessoas existem, de cuja irritadiça sensibilidade deriva um extraordinário prazer com que se nutrem, principalmente, quando essa irritabilidade atinge um clímax que prontamente condiz com eles. Em tais momentos positivamente preferem ser insultadas a não o serem. E são sempre, depois, perseguidas por remorso, se têm compreensão, naturalmente, e são capazes de se dar conta de que foram dez vezes mais excitadas do que precisavam ser.
“Aquele homem me fitou, por algum tempo, com assombro, ao passo que na mulher notei maior espanto, como se houvesse algo de monstruoso em ter alguém entrado ali e estar a vê-los. Investiu logo contra mim, em fúria; não tive tempo nem para articular duas palavras; e, embora visse que eu estava decentemente vestido, ele sentiu, acho eu, que era um hediondo insulto aquela minha ousadia de lhe sondar o antro sem cerimônia alguma e em reparar no horripilante ambiente que tanto o envergonhava. Contentava-o, sem dúvida, essa oportunidade de descarregar sobre qualquer um a sua raiva pelo seu mau fado. No primeiro minuto pensei que me ia atacar. Tornou-se branco como uma mulher em histeria, assustando a própria esposa.
“— Como ousa o senhor ir penetrando assim dessa maneira? Ponha-se lá fora! — exclamou, tremendo, pronunciando com dificuldade as palavras. Mas, de repente, viu a sua carteira na minha mão.
“— Acho que o senhor deixou cair isto na rua — disse-lhe eu tão secamente quanto pude. (De fato era a melhor coisa a fazer.) Pasmou, defrontando-me com absoluto terror, e por algum tempo não teve jeito para apanhá-la. Só depois foi que arrebatou a carteira e, boquiaberto, bateu com a mão na testa.
“— Bom Deus! Onde, como encontrou o senhor isto?
“Expliquei-lhe em breves palavras, e fazendo até o possível para ser ainda mais seco, como tinha pegado a carteira, corrido atrás dele, chamando-o e como, por fim, por acaso e quase adivinhando o caminho, o acompanhara escadas acima.
“— Ó Céus! — gritou, virando-se para a esposa. — Aqui estão todos os nossos documentos, o último dos meus instrumentos, tudo... Oh, meu caro senhor, compreenderá o que acaba de fazer por mim? Eu ficaria perdido!
“Nesse ínterim segurei a maçaneta da porta para me ir sem lhe responder. Mas estava sem fôlego, eu próprio, e a minha atrapalhação provocou tal acesso de tosse que mal me pude suster. Vi o homenzinho correndo dum lado e doutro, para pegar uma cadeira que estivesse sem roupas; finalmente, esvaziando uma da roupa que atirou para o assoalho, a trouxe, ajudando-me a sentar. Creio que levei tossindo uns três minutos, ou mais. Quando sosseguei, dei com ele sentado perto, numa outra cadeira da qual também tinha arremessado a roupa para o pavimento; e me olhava atentamente.
“— O senhor parece estar doente — disse, no tom em que os médicos iniciam a consulta com os seus clientes. — Sou eu próprio um médico (não disse doutor). — E ao dizer isso algo o fez apontar para o quarto, como protestando contra o seu ambiente. — Vejo que o senhor...
“Fui logo dizendo o mais ligeiro possível, enquanto me levantava:
“— Estou tuberculoso.
“Ele também se levantou logo.
“— Decerto o senhor está exagerando. Se tomar cuidado de acordo com...
“Mas ainda estava tão atarantado que não pôde tomar uma atitude condigna, atrapalhado ainda por cima com a carteira na mão esquerda.
“— Oh! Não se incomode — atalhei eu, pegando outra vez na maçaneta da porta. — B... n examinou-me a semana passada, e o meu caso já está liquidado. (Não sei por que me servi de novo de B... n.) Com licença...
“Experimentei de novo abrir a porta, deixando o meu grato doutor muito embaraçado em sua vergonha; mas nisto a tosse me atacou e desta vez pior. Ele então insistiu comigo para sentar e ficar descansando. Virou-se para a mulher, que donde se achava articulou umas palavras de cordial gratidão. E ao falar ficou tão desapontada que uma onda de sangue parecia querer romper a pele macerada das suas faces. Permaneci tão a contragosto naquela confusão que eu estava piorando ainda mais. E então o nosso caro doutor começou a ser tomado de remorsos; percebi logo.
“— Se eu soubesse... — começou ele, desconcertado, mexendo-se sem nunca mais parar. — Estou-lhe de tal maneira grato, comportei-me tão mal com o senhor! Mas, como o senhor vê.... — mostrava outra vez o cômodo — no presente momento estou numa tal situação...
“— Oh! Nem preciso olhar. O habitual é isso. Vai ver que o senhor perdeu o seu lugar e veio a Petersburgo tratar do caso e tentar arranjar outra coisa...
“— Como é que o senhor soube? — indagou admirado.
“— Basta um relance para se descobrir isso — disse eu com involuntária ironia. — Bandos e bandos de gente acorrem das províncias, cheios de esperança, correndo atrás de coisas. E acabam vivendo assim.
“Ele então, sem mais aquela, desandou a falar acaloradamente, com os lábios crispados. A sua história era uma longa queixa e devo confessar que me comoveu. Aliás a história de toda essa gente. Como médico de província tivera um emprego público; mas certas intrigas, nas quais a sua própria mulher estivera envolvida, revoltaram o seu brio, acabando por perder a calma. Uma mudança de autoridades locais favorecera os desígnios dos seus inimigos que espezinharam a sua reputação e fizeram representações contra ele. Perdera o lugar, gastara as economias para vir a Petersburgo tratar do caso. Aqui durante muito tempo não houve meios de conseguir uma audiência. E, quando conseguiu, lhe responderam com uma negativa. Em seguida, promessas, repreensões severas, a necessidade de escrever folhas e folhas à guisa de explicação. Acabaram indeferindo a petição, ordenando-lhe que encaminhasse uma outra mais resumida. Andara de Herodes para Pilatos, durante cinco meses, até gastar o último vintém. Acabara pondo até a roupa da mulher no penhor. E agora, ainda por cima, um bebê.
“— Precisamente hoje recebi a recusa formal à minha petição. Não tenho pão, nem coisa nenhuma. A mulher acabou de se levantar do resguardo. E eu... eu...
“Ergueu-se da cadeira, começou a dar voltas. A sua mulher chorava num canto. O recém-nascido goelava ainda mais. Tomei o meu caderno de notas e comecei a escrever. Quando acabei e me ergui, ele também estava de pé, me encarando com uma curiosidade que dava pena.
“— Pus aqui o seu nome — fui dizendo — e todo o seu caso; o lugar onde o senhor servia, o nome do governador, o dia e o mês. Tenho um camarada que foi meu antigo companheiro de escola, chamado Bákhmutov, cujo tio, Piótr Matviéitch Bákhmutov, atualmente é conselheiro de Estado e diretor...
“— Piótr Matviéitch Bákhmutov! — exclamou o nosso homem, tremendo. — Mas tudo depende justamente dele.
“Toda essa história a respeito do nosso doutor, cuja solução satisfatória tive a sorte de levar a termo, se ajusta, por qualquer desígnio, ao enredo duma novela. Avisei a essa pobre gente que não depusesse nenhuma esperança em mim pois que eu não passava dum pobre estudante (propositadamente exagerei a minha pobreza; além do quê, já acabei os meus estudos há muito tempo e não sou mais matriculado). Disse-lhes que nem valia a pena saberem o meu nome, mas que eu iria imediatamente à ilha Vassílievskii à casa do meu colega Bákhmutov. E que, como sabia que o seu tio, o atual conselheiro de Estado, era um advogado sem filhos que adorava de verdade o sobrinho por ser o último representante da família, ‘talvez esse meu camarada possa vir a fazer alguma coisa pelo senhor, através do tio, está claro’.
“— Ah! Se ao menos permitissem que eu explicasse a Sua Excelência! Se, ao menos, me concedessem a honra duma explicação pessoal! — exclamou ele, com os olhos esbugalhados, agitando-se como se estivesse com febre.
“Que o ‘apadrinhasse’ foi o que me pediu. Repetindo-lhes que isso na certa mais uma vez ia dar em nada, acrescentei que se, no dia seguinte, eu não voltasse, significaria que tudo tinha dado em nada e que desistissem. Acompanharam-me até a porta com reverências, emocionadíssimos! E jamais esquecerei a expressão de seus rostos. Tomei um carro e imediatamente me dirigi à ilha Vassílievskii.
“Na escola, durante anos, eu estivera em más relações com Bákhmutov. Era considerado entre nós como aristocrata, ou pelo menos eu o considerava um deles. Vestia-se muito bem, dirigia os seus cavalos, mas não mostrava soberba. Sempre fora bom camarada, de constante bom humor, sendo algumas vezes até satírico. Sempre fora o primeiro da classe, apesar de inteligência média. Eu nunca fui o primeiro em coisa alguma. Todos os colegas gostavam dele, exceto eu. Durante todo aquele tempo muitas vezes se ensaiara para o meu lado, mas sempre eu me desviava com teimosa birra. Agora, não o via há mais de ano. Estava matriculado na Universidade. Quando, pelas nove horas, cheguei à sua casa, fui anunciado com grande cerimônia. Vindo a mim, primeiro mostrou admiração, não demonstrando sequer afabilidade; depois, porém, se desmanchou todo, desandando a rir.
“— Que te deu na cabeça de me vir ver, Tieriéntiev? — gritou com a sua invariável bonomia, que, não sendo ofensiva, muitas vezes era impudente e que eu, por admirar, tanto odiava nele. — Mas que foi isso?! — exclamou espantado. — Pareces-me bem doente!
“É que a minha tosse me torturava outra vez. Procurei uma cadeira, fiquei quase sem poder tomar fôlego, respirando com dificuldade.
“— Não te incomodes. Estou tuberculoso — avisei-o. — E vim à tua casa para um pedido.
“Sentou-se cada vez mais espantado, e eu lhe pespeguei a história do doutor, fazendo-lhe ver que, dada a sua influência sobre o tio, estava em condições de poder fazer alguma coisa.
“— Farei. É lógico que farei — afirmou. — Atacarei meu tio amanhã. E olha, tenho satisfação, deveras, em te fazer isso. Aliás, como me contaste essa embrulhada direitinho!... Mas como foi que te passou pela cabeça vir até a minha casa?
“— É que tudo, neste caso, depende só de teu tio. Nós dois, Bákhmutov, fomos inimigos; mas como és um homem de bem, pensei que mesmo a um inimigo nada recusarias — acrescentei com sarcasmo.
“E ele exclamou rindo:
“— A mesma política de Napoleão com os ingleses! — comparou, rindo. — Farei isso! Olá, se farei! E se puder irei até mesmo agora — ajuntou, reparando que eu me levantava da cadeira com um modo grave e compenetrado.
“E a verdade é que o caso foi arranjado por nós dois, e da maneira mais triunfante possível. Em menos de seis semanas já o doutor estava indicado para outro posto, numa outra província, e recebia uma ajuda de custo para a viagem, além duma indenizaçãozinha. Creio até que Bákhmutov chegou a visitar bastantes vezes o médico (eu, intencionalmente, não o fiz e até uma certa vez o recebi friamente quando me veio agradecer), obrigando-o a receber dinheiro emprestado. No decorrer dessas seis semanas vi Bákhmutov duas vezes. A última vez que ele se encontrou com o médico foi a terceira em que o vi. Bákhmutov ofereceu-lhe, bem como à mulher, um jantar com champanha, antes da partida. A verdade é que a pobre senhora saiu antes de nós, preocupada por causa do garotinho. Estava-se no começo de maio. Nessa tarde tão linda a enorme bola de sol mergulhava nas águas. Bákhmutov, depois, saiu comigo. Estávamos ambos um pouco embriagados e seguimos pela ponte Nikoláievskii. Bákhmutov me referiu o seu prazer pela afortunada solução do caso, agradeceu-me por tudo, disse quanto se sentia feliz depois duma boa ação, acentuou que o mérito era todo meu e que o povo incidia em erro ao declarar e pregar que a benevolência individual estava fora de uso e prática. Pude conversar com ele durante muito tempo.
“— Quem quer que ataque a caridade — comecei — ataca a natureza humana e lança seu desprezo sobre a dignidade pessoal. Tenho para mim, todavia, que “a organização pública de caridade” e o problema propriamente dito da liberdade individual são duas questões distintas e não mutuamente exclusivas. A bondade individual permanecerá sempre, porque é um impulso da pessoa, a inclinação viva duma personalidade querendo exercer uma influência direta sobre outra. Havia, por exemplo, em Moscou, um general, ou melhor, um conselheiro de Estado, cujo nome era alemão. Passou toda a sua vida visitando prisões e prisioneiros. Cada leva de exilados para a Sibéria sabia de antemão que o ‘velho general’ os visitaria na ‘Colina dos Pardais’. Ele se desincumbia desse bom trabalho com a maior devoção. Ia e vinha por entre as fileiras dos prisioneiros, parava diante de cada um, perguntava-lhe por suas necessidades, chamando cada um de ‘meu caro’, e ainda por cima dava conselhos paternais. Costumava dar-lhes dinheiro, trazia-lhes artigos de primeira necessidade, faixas para as pernas, roupas de baixo e até livros de devoção que distribuía entre os que sabiam ler, firmemente persuadido de que os leriam pelo caminho para si e para os que não soubessem ler. Era incapaz de interrogar um prisioneiro sobre o seu crime. E, se o criminoso começava a falar nisso, apenas escutava. Todos os criminosos estavam em pé de igualdade, perante ele. Não fazia distinção. Falava-lhes como a irmãos e eles o consideravam como a um pai. Se entre os prisioneiros descobria uma mulher com uma criancinha, ia acariciá-la e estalava os dedos para a fazer rir. E, desta maneira, durante anos e anos visitou prisioneiros enquanto viveu. E tanto fez que acabou conhecido em toda a Rússia e na Sibéria inteira. Não havia sentenciado que não soubesse da sua existência. Um homem que esteve na Sibéria me disse que muitas vezes vira os mais empedernidos criminosos sentirem saudade do ‘general’. Já no fim da vida ele só podia dar 20 copeques a cada um dos prisioneiros das levas que ia visitar com dificuldade, sua fama decrescendo um pouco do antigo calor de lenda e respeito. Sei dum homem, entre essas ‘infelizes’ criaturas, que assassinara 12 pessoas, das quais seis crianças, estrangulando-as ferozmente só para dar vazão à sua gana (homens há capazes disso). Pois bem, esse mesmo homem, vinte anos depois, um dia, a propósito de nada, deu um suspiro e exclamou: ‘Que fim terá levado o nosso ‘velhinho general’? Viverá ainda? Tomara que sim!...’
“Quem sabe se esse monstro até não teve um sorriso ao dizer isso. Ora aí está. Mas, pergunto eu, que espécie de germe teria o velho ‘general’ deixado cair na alma desse criminoso para, vinte anos depois, tal monstro sentir saudades dum homem de bem? Como explicarias tu, Bákhmutov, o sentido da associação duma personalidade com uma outra a ponto de influir no destino dela? Sabes muito bem que levamos uma vida inteira sem dar conta da infinita multidão de divertículos fechados na nossa alma. Não sabemos nada de nós mesmos. O mais hábil jogador de xadrez, o mais profundo, somente é capaz de saber de antemão no máximo alguns lances. Julgou-se um prodígio certo campeão francês capaz de deduzir a mecânica de dez lances imediatos. Quantos lances, pergunto eu, restam e que somos incapazes de perceber? Ao espalhar o germe, ao espalhar a tua caridade, a tua bondade, estás dando, de uma forma ou de outra, parte da tua personalidade e tomando para teu uso parte da alheia. Ficas em mútua comunhão com alguém e, à medida que crescer o teu desvelo, irás sendo recompensado com a verificação das mais estupendas descobertas. Acabarás te dedicando a esse teu trabalho como se fosse uma ciência; ele tomará posse da tua vida toda e a encherá por inteiro. Por outro lado, todos os teus pensamentos, todo o germe que espalhaste, e do qual talvez já nem te lembres, crescerá e tomará forma. Quem o receber de ti o passará adiante. E como hás tu de no fim de tudo poder dizer que parte virás a ter na futura determinação dos destinos da humanidade? Se esse conhecimento e a duração desse trabalho te tornarem, por fim, apto a propagar algum poderoso germe, a legar ao mundo algum veemente pensamento, então... Falei muito; até demais!
“— E dizer-se que tu, que estás falando tais coisas, és uma vida condenada pela doença! — exclamou Bákhmutov, com tom inflamado, como a admoestar alguma coisa invisível.
“Nesse momento estávamos parados na ponte, com os cotovelos na balaustrada de ferro, vendo correr as águas do Neva.
“— Queres tu saber em tudo isso o que é que mais me conturba? — perguntei-lhe, inclinando-me sobre a guarda de metal.
“— Não te atirares ao rio?... — redarguiu Bákhmutov, com certo pânico, como se lesse tal pensamento na minha fisionomia.
“— Não é isso, não. Em face do tempo, só me atormenta a seguinte reflexão: disponho de dois a três meses ainda para viver; talvez quatro. Mas quando me restarem somente dois, por exemplo, e me vier uma ânsia insopitada de fazer alguma boa ação, dessas que requerem afinco, atividade e pertinácia, uma coisa do gênero, digamos, da desenvoltura que tive que desdobrar por causa do tal médico da carteira, terei que desistir por falta de tempo suficiente e me contentar com uma boa ação em escala menor, dentro do meu prazo temporal (caso ainda aspire a cometer boas ações...). Hás de concordar que é uma ideia divertida.
“O bom do Bákhmutov ficou aflito por minha causa. Acompanhou-me até a minha porta, de carro, mantendo-se calado durante todo o percurso, tendo tido bastante tato para não tentar me consolar. Ao nos despedirmos apertou calorosamente a minha mão e pediu licença para me vir ver de vez em quando. Respondi-lhe que se era para me consolar (pois eu me dizia que, mesmo que ele ao vir ficasse calado, ainda assim teria vindo consolar-me!) acabaria mais era, cada vez que viesse, fazendo com que eu me lembrasse da morte mais do que nunca. Encolheu os ombros e concordou comigo. Deixamo-nos muito cordialmente, o que era o máximo que podíamos esperar um do outro.
“Mas aquela tarde e aquela noite me foi arremessado o primeiro germe da minha ‘convicção final’. Agarrei-me avidamente a esta ideia nova e a analisei em todos os seus ramos e aspectos. Apesar de haver entrado com sono, não dormi a noite toda. E quanto mais profundamente eu analisava, cada vez mais absorto, mais aterrorizado me sentia. Um terror formidando me assaltou e obcecou continuamente nos dias seguintes. Não raro, de tanto pensar nesse terror que me crispava, sucedia chegar à fímbria dum outro. De toda essa série de apreensões só pude concluir uma coisa: que a minha ‘convicção final’ tomara posse integral de mim e me conduziria a uma conclusão lógica. Assim foi, mas me faltou ânimo para agir. Somente três semanas depois que tal torpor passou é que a dita resolução veio ao meu encontro. E de que modo? Através duma circunstância estranhíssima.
“Tenho aqui na minha ‘Explicação’ todas essas datas e números anotados. É mais que evidente que pouco se me dá sigam ou não este meu concatenar de ideias; ainda assim, agora (e decerto somente agora, isto é, neste momento) eu gostaria que todos quantos terão que ajuizar da minha ação se capacitassem de quão longa é a cadeia de raciocínios lógicos que leva a esta ‘derradeira convicção’! Escrevi, poucas linhas antes, que a determinação final de que eu carecia para atingir e pôr em prática a minha ‘convicção final’ não me veio absolutamente através de nenhum raciocínio lógico feito até então, e sim mediante um estranho choque, e uma estranha circunstância talvez até não muito adequada. Cerca de dez dias antes, Rogójin viera ver-me a propósito dum negócio que lhe concernia, e que não vem ao caso relatar. Nunca tinha visto Rogójin antes, mas ouvira falar muito sobre ele. Dei-lhe a informação que me solicitou. Não se demorou, despediu-se logo, e, como o único motivo de sua visita fora tal informação, claro que nossas relações não poderiam passar dessa visita ocasional. Mas ele me impressionou sobremodo, de forma que passei o dia entregue a pensamentos esquisitos; tanto que decidi ir vê-lo no dia seguinte, a título de retribuição de visita. Percebi logo não haver ele gostado de me rever, tendo até insinuado de maneira indireta e cortês que não era conveniente entabularmos conhecimento; ainda assim permaneci por toda uma hora, que achei interessante, a mesma impressão decerto tendo tido ele. Éramos criaturas tão diferentes que o contraste surgia de modo categórico. Sabíamos disso; principalmente eu. Eu era um homem cujos dias estavam contados, ao passo que ele estava vivendo quantitativamente a vida mais completa e real possível, tendo muito mais em que se absorver do que em ‘deduções finais’, números, dados etc., que não lhe diziam respeito, mesmo porque... mesmo porque estava entregue lá à sua mania, essa é que é a verdade!... O sr. Rogójin que me desculpe esta expressão, quando mais não seja porque sou literato de meia-tigela e não sei como exprimir minhas impressões pessoais. A despeito da sua casmurrice, pareceu-me um homem de espírito vivaz, apto a pegar as coisas no ar, muito embora mostrando pouco interesse pelo que não lhe concerne diretamente. Não fiz a menor insinuação sequer quanto à minha ‘convicção final’, mas suponho que teve alguma desconfiança decorrente da conversa. Ou melhor, da minha conversa; ele não falava; manteve-se fechado em copas. Quando me despedi, lhe afiancei que não obstante toda a diferença e contraste existentes entre nós dois — les extremités se touchent — (traduzi-lhe tal provérbio para o russo) talvez não estivesse ele assim tão distante de compreender a minha ‘última explicação’ como pareceria. Respondeu-me a isso com um esgar ácido e amarelo, levantando-se e indo buscar pessoalmente o meu gorro, de modo ostensivo (apesar de eu já me estar despedindo por livre vontade minha), e sem a menor cerimônia me conduziu para fora da sua soturna residência, com a pretensão talvez de apenas me estar acompanhando polidamente. Sua casa impressionou-me. Não passa dum mausoléu rústico, lembra um recanto de cemitério, e creio que se compraz em tal ambiente, o que é muito natural pois condiz com a sua vida, que é tão sobrecarregada de vigor e intensidade que não necessita de divagação.
“Tal visita me cansou demais e não me senti nada bem aquela manhã. De tardinha me senti tão fraco que me estirei na cama, acometendo-me acessos de febre com rajadas de delírio. Kólia permaneceu ao meu lado até as onze horas. Lembro-me porém de tudo que ele conversou e do que falamos ambos. Mas, sempre que uma espécie de névoa me envolvia, eu dava para ver Iván Fomítch, que estava a receber milhões, já não tendo onde os colocar e com um medo pavoroso de que lhos roubassem, a ponto de decidir enterrá-los no chão. Por fim o aconselhei a, em vez de meter uma tamanha montanha de ouro num buraco que teria que ser enorme, derreter aquilo tudo numa forma e fazer com todo o bloco um esquife de ouro para o filhinho que morrera enregelado, para isso necessário sendo desenterrá-lo de lá onde jazia, coitadinho. Este meu sarcasmo imediatamente foi aceito por Súrikov com lágrimas de gratidão, e ele saiu logo para realizar tal intento, por minha vez lhe atirando eu com uma blasfêmia quando ele saía.
“Depois que melhorei, Kólia me garantiu que eu não dormira um só instante e que não cessara de falar sobre Súrikov. De vez em quando me vinha tal prostração, verdadeiro estado de colapso, que quando Kólia teve que ir embora, não podia dissimular sua aflição. Ao me levantar para fechar a porta, repentinamente me lembrei do quadro que vira em casa de Rogójin, sobre a porta duma daquelas salas lúgubres. Mostrou-mo ele próprio ao passarmos e creio que estive a contemplá-lo bem uns cinco minutos. Não tem tal quadro valor algum sob o ponto de vista artístico, mas produziu em mim certo mal-estar esquisito.
“A tela representa Cristo acabado de ser descido da cruz. Creio que, via de regra, os pintores que pintam Cristo na cruz ou depois de descido dela timbram em manter uma extraordinária beleza no Seu rosto. Esforçam-se por preservar essa beleza mesmo em Suas mais tenebrosas agonias. No quadro de Rogójin não havia o menor vestígio dessa beleza. Tratava-se tão só, em tudo e por tudo, do cadáver dum homem que padeceu infinita agonia antes de morrer crucificado; que foi lanceado, torturado, flagelado pelos guardas e pelo povo quando carregava a cruz no ombro e caía sob o seu peso e que depois de tudo isso padeceu a agonia da crucificação, sobrevivendo ainda no mínimo seis horas (conforme deduzo). Trata-se puramente do rosto dum homem acabado de ser descido da cruz, isto é, manifestando ainda vestígios de calor e de vida. Não há rigidez ainda, de forma que se nota expressão de sofrimento não terminado no rosto do homem já morto, como se ele ainda estivesse sentindo. (Isso conseguiu colher bem o artista que fez aquele quadro.) Não que a face tenha sido poupada. Evidencia bem o cadáver dum homem, um ex-homem, a natureza dum ser que acabou. Um homem qualquer deve ficar assim, não pode deixar de ficar assim após tamanho sofrimento. Sei que a Igreja Cristã estipula, desde os primeiros séculos do Cristianismo, que o sofrimento de Cristo não foi simbólico mas autêntico e que portanto o Seu corpo esteve sujeito de modo total e exato às leis da natureza desde que foi pregado na cruz. Na tela, o rosto está horrivelmente macerado por golpes, tumefacto, coberto de equimoses medonhas, violáceas; deformado; os olhos dilatados, foscos, são uns olhos cujo branco emite um livor de luz mortiça, meio vidrado. E o mais estranho é que ao se olhar para aquele cadáver e homem torturado uma pergunta bizarra e específica se levanta: se aquele cadáver (e o de Cristo deve ter ficado assim) fosse visto por Seus discípulos, por aqueles que teriam que ser os Seus principais apóstolos, pelas mulheres que O seguiram na via-sacra e que permaneceram ao pé do madeiro, por todos que acreditaram Nele e O adoraram antes, como haveriam agora de acreditar que esse mártir ressuscitaria? A pergunta acode instintivamente: se a morte é tão terrível e se as leis da natureza tão poderosas, como poderiam elas ser derrotadas?! Como poderiam elas ser subjugadas, se nem mesmo Ele, tal como está, as venceu, Ele, que em Sua existência governava a natureza a Seu talante, exclamando: ‘Talitha cumi!’ ‘Levanta-te, rapariga!’ — e a jovem se levantou; dizendo para Lázaro: ‘Lázaro, sai para fora!’ — e o morto saiu para fora? Contemplando uma tal tela, a gente concebe a natureza sob a forma dum monstro imenso, impiedoso, bronco, mudo, ou, mais exatamente, bem mais veridicamente falando, por mais que soe estranho, sob a forma duma nefanda máquina de construção recentíssima que, muda e apática, esmagou e devorou um ser infinitamente precioso, um ser que vale mais do que toda a natureza com as suas leis, que vale toda a Terra que foi criada sem dúvida somente para o advento e descida a ela, à Terra, desse ser! Tal quadro exprime e inconscientemente sugere a qualquer um a concepção de uma tão negra, misteriosa, insolente, incrível e eterna Força que não há quem possa fugir à sua sujeição. Se há quem esteja rodeando o morto (na tela não aparece ninguém), deve estar experimentando a mais terrível angústia, a mais tremenda consternação, pois aquele crepúsculo do Gólgota deve estar esmagando todas as suas esperanças, e a bem dizer todas as suas convicções. E deve sair dali tomado de pavor, levando dentro de si um pensamento poderoso, do qual jamais se livrará. E se o Mestre pudesse Se ter visto assim, na véspera da crucificação, teria Ele subido ao madeiro e morrido como o fez? Esta é uma outra interrogação que se levanta também no espírito de quem contempla aquele quadro.
“Tudo isso flutuou na minha mente, em intervalos, num delírio difuso durante hora e meia antes de Kólia ir embora; e não raro tomando forma e aspecto de visão aguda. Pode uma coisa que não tem forma aparecer de fato? Mas a verdade é que me pareceu naqueles instantes ver sob uma conformação estranha e incrível aquela Força estupidamente misteriosa, aquele Poder cego e surdo. Lembro-me de que não sei quem parecia me levar pela mão, soerguendo um castiçal, para me mostrar uma enorme aranha repugnante, asseverando-me a rir, diante da minha indignação, que ela era a mesmíssima Força misteriosa, muda e onipotente. No meu quarto, diante do ícone, está sempre acesa uma pequena lâmpada. Dá uma luz muito fraca, mas ainda assim alumia tudo e até se pode ler, perto dela. Creio que já devia ser mais de meia-noite. Eu não dormia, absolutamente, estirado na cama, com os olhos arregalados. De repente, a porta do meu quarto se abriu e Rogójin entrou.
“Entrou, fechou a porta, olhou-me sem dizer nada e se dirigiu vagarosamente para a cadeira que estava bem embaixo da lâmpada. Fiquei muito surpreendido e o encarei, perplexo. Rogójin fincou os cotovelos sobre a mesinha e fixou os olhos em mim, sempre calado. Assim se passaram dois ou três minutos, e me lembro que aquele seu silêncio me ofendia e irritava imensamente. Por que não falava? A sua vinda àquelas horas da noite era descabida, evidentemente, mas não era isso que me chocava. E sim uma coisa muito outra. Mesmo não lhe tendo eu, de manhã, esclarecido bem os meus pensamentos, ele os havia entendido, parecendo-me pois explicável que, tendo aparecido àquelas horas ermas, o fizesse para retomar tal conversa. Ao vê-lo entrar eu só podia supor que essa fosse a razão do seu aparecimento. Despedíramo-nos, de manhã, quase abruptamente e me lembro que me lançara duas ou três vezes um olhar sarcástico. E agora eu estava vendo em seu rosto aquele mesmo olhar sarcástico, e isso me ofendia insuportavelmente. Que se tratava de Rogójin mesmo e não duma aparição, duma alucinação, eu não tinha a mais leve dúvida, desde o começo. E nem isso me passou pela cabeça.
“E lá continuava ele, sentado, fitando-me com a mesma expressão sarcástica. Virei-me, furioso, na cama, com o cotovelo apoiado no travesseiro, decidido a não dizer uma só palavra também eu, nem que ele teimasse em seu mutismo até a consumação dos séculos. Ele que falasse primeiro se quisesse. Assim se passaram bem uns vinte minutos, até que me invadiu uma desconfiança: e se não fosse Rogójin, mas apenas uma aparição? Jamais vira eu uma aparição, antes ou durante a minha moléstia, mas achava, desde criança, e ultimamente também, que se alguma vez me aparecesse tal coisa eu morreria logo no próprio local, muito embora não acreditasse em fantasmas. Quando, porém, a ideia me assaltou de que em vez de Rogójin fosse uma aparição, recordo que absolutamente não fiquei amedrontado. Fiquei mas foi com ódio. Outra coisa estranha, ainda, não ter eu tido pressa em resolver verificar se era Rogójin ou um fantasma, como deveria ter feito. Parece que um novo pensamento, ligado a Rogójin, tomara o meu raciocínio: interessava-me determinado contraste, isto é, que de manhã Rogójin estava em robe de chambre e de chinelas, quando o visitei, ao passo que então, nessa noite, se apresentava de casaca, colete branco e gravata de soirée. Um raciocínio se apresentou como opção definitiva: ‘se penso tratar-se de aparição, e não estou com medo, por que não ir até acolá verificar duma vez? Faltar-me-ia coragem? Estaria eu com receio?’ Mal acabara de me perguntar isto, um calafrio me percorreu a espinha e os meus joelhos deram em tremer como varas. Bem nesse instante, como adivinhando o meu pânico, Rogójin tirou a mão do queixo, esticou o rosto e começou a entreabrir os beiços como se fosse dar uma gargalhada, sempre me fixando persistentemente. Tomou-me uma tal fúria que quase me arremessei sobre ele. Mas como eu teimava em não querer falar primeiro, e nem me mexer, continuei mudo e deitado. Ainda por cima, seria mesmo Rogójin? Sei lá quanto tempo tal cena durou! Tampouco posso garantir se perdi a consciência nesse ínterim. Finalmente ele se levantou, lançou sobre mim um olhar deliberadamente enigmático, igual ao com que entrara, desmanchou o riso sarcástico, dirigiu-se na ponta dos pés para a porta, abriu-a e saiu. Não me levantei da cama. Permaneci de lado, a pensar, não sei quanto tempo, com os olhos arregalados. Só Deus sabe que pensamentos tumultuavam em mim. Não saberei dizer mesmo como perdi a consciência e consegui dormir. Só acordei quando na manhã seguinte, já às dez horas, bateram na minha porta. Eu dera ordem para que Matrióna batesse sempre que eu não abrisse a minha porta até as dez horas pedindo que me trouxessem o chá. Quando lha fui abrir, me ocorreu logo este pensamento: ‘Como poderia ele ter entrado se esta porta está fechada por dentro?’ Indaguei sobre a porta da rua e as do vestíbulo e do corredor, acabando por me convencer firmemente que Rogójin, em carne e osso, não podia ter entrado em casa e muito menos no meu quarto, já que as portas tinham sido fechadas.
“Ora muito bem, foi este singular incidente, cujas minúcias acabo de relatar, a causa dos raciocínios que me levaram até esta ‘derradeira decisão’. O que me levou a ela não foi nenhuma convicção lógica e sim um sentimento de repulsão. Eu não podia continuar a tolerar uma vida que ia tomando formas tão estranhas e humilhantes. Aquela aparição degradou-me. Outras coisas continuariam a me degradar. Não sou criatura que se submeta a uma força sinistra que toma a conformação até duma aranha! Foi somente já ao anoitecer, quando me certifiquei de que havia alcançado o momento final duma determinação categórica, que senti certo alívio. Tratava-se porém apenas do primeiro estágio; para realizar o segundo, necessário era ir para Pávlovsk. Mas tudo isso já expliquei suficientemente.”
7.
“Eu tinha uma pequena pistola de bolso: comprei-a quando ainda garoto, naquela idade absurda em que nos enlevamos com histórias de duelos e assaltos de bandidos, imaginando de que forma valorosa enfrentaremos um disparo no caso dum desafio. Há um mês a procurei e a carreguei. Na caixa onde estava encontrei também duas balas e um chifre com pólvora suficiente para três cargas. Trata-se duma pistola ordinária, que não atinge o alvo a não ser de perto e que só matará se for desfechada à queima-roupa. Mas é lógico que arrebentará com o crânio duma pessoa se for disparada rente à têmpora.
“Resolvi morrer em Pávlovsk, ao raiar do sol, e decidi fazer isso dentro do parque para não alvoroçar ninguém. A minha ‘Explicação’ fornecerá à polícia informes suficientes. Os amadores de psicologia e quem quer que se interesse terão farto ensejo para a obtenção de dados sensacionais. Não desejo, porém, que este manuscrito venha a público. Peço ao príncipe que guarde uma cópia para si e que entregue este original a Agláia Ivánovna Epantchiná. Tal é, por assim dizer, o meu testamento, pois nisso se resume a minha última vontade. Lego o meu esqueleto à Academia de Medicina, a bem da ciência.
“Não admito a quem quer que seja o direito de me julgar, já que considero haver ultrapassado o limite de qualquer julgamento. Ainda não há muito tempo me dei ao capricho de imaginar — caso me desse à fantasia de matar alguém, uma dúzia de pessoas duma só vez, por exemplo, ou de cometer um gesto congênere, inteiramente aloucado, algo que assumisse a característica do crime mais nefando do mundo — em que apuros se veriam os meus juízes sabendo que eu, por causa da minha doença, não duraria mais do que duas semanas e que lhes era impossível, devido à lei que aboliu a punição corporal e a tortura, me dar um corretivo oportuno. Quisessem ou não, teriam que me deixar morrer confortavelmente num hospital, bem aquecido e agasalhado, melhor do que em casa. Até me admira que esta ideia já não tenha ocorrido a uma pessoa que esteja no meu estado; quando mais não fosse, por brincadeira, visto, neste país, não faltar gente folgazã.
“Conquanto não reconheça em ninguém o direito de me julgar, sei que serei julgado postumamente, quando, mudo e inerte, não puder me defender. Portanto, não quero me ir sem deixar algumas palavras de defesa. Mas defesa livre, e não arrancada para me justificar, oh não, pois não tenho de que pedir perdão a ninguém e nada de que ser perdoado. Faço simplesmente por minha espontânea vontade.
“Aqui, preliminarmente, se apresenta uma pergunta fora do comum: pode alguém se arrogar o direito de impedir que eu disponha dos meus últimos 15 dias de vida? Com que razão? Que tem o mundo que ver com isso? Compete a quem quer que seja exigir que eu, além de condenado, ainda por cima suporte conscientemente a minha sentença até o dia final? É isso porventura da alçada de alguém? A moral exige uma tal coisa? Admito que se eu estivesse no auge da saúde e da robustez, a moralidade poderia me censurar, baseada em linhas de tradição, por ter disposto duma vida que poderia ‘ser útil ao próximo’ e utilizada em algum benefício geral. Mas, no estado em que estou, com o prazo para a minha sentença a se esgotar!? Que obrigação moral é essa que exige não somente a vida duma criatura, mas até mesmo o seu último fôlego? E para quê? Para ouvir as palavras de consolo do príncipe cujos desvelos cristãos tenderão a me convencer que devo me resignar a morrer? (Cristãos como ele sempre estão com tal espécie de argumentos preparados; trata-se duma espécie de mania.) Afinal, que quer ele com essas ridículas ‘árvores de Pávlovsk’? Que amenizem as últimas horas da minha vida? Pois não é lógico que quanto mais eu me esquecer da minha situação mais me prenderei a este resquício de vida e de amor que tende por força a tapar da minha vista as paredes de Meyer e tudo quanto nelas está tão categoricamente escrito? Que só poderei vir a ser ainda mais infeliz? De que me adianta esta natureza, este parque de Pávlovsk, o sol que nasce e que se põe, o céu azul, as fisionomias satisfeitas, se todo esse festival começa desde logo me excluindo? Para que desejo eu essa magnificência se cada minuto, cada segundo, sou obrigado, forçado a reconhecer que mesmo a diminuta mosca, zumbindo à luz do sol, ao meu lado, tem seu quinhão no banquete e no coro, sabe que lhe foi guardado um lugar, contenta-se com a sua porção e é feliz? Só mesmo eu, que sou um banido, e um covarde, me tenho recusado até agora a reconhecer uma tal situação. Oh! Bem sei quanto o príncipe e todos os demais gostariam, por princípio, e para a vitória da moralidade, de entoar comigo os célebres versos clássicos de Millevoye
Ah! puissent voir votre beauté sacrée
Tant d’amis sourds à mes adieux
Qu’ils meurent pleins de jours, que leur mort soit pleurée,
Q’un ami leur ferme les yeux!
em lugar destas ‘palavras arrogantes e amargas’. Mas, acreditem, sim, acreditem, ó almas ingênuas, que estas edificantes estrofes, este louvor acadêmico ao mundo em versos franceses, na verdade contêm tanta amargura escondida, tamanha malícia irreconciliável amaneirada em rima, que talvez o próprio poeta se tivesse confundido e tomasse tal malícia por lágrimas de ternura e morresse sem perceber seu equívoco; paz às suas cinzas. Em verdade lhes digo que em cada um de nós há um limite de ignomínia no conhecimento da própria mesquinhez e incapacidade, além do qual nenhum de nós pode ir e além do qual cada um de nós começa a sentir satisfação imensa na sua própria degradação!... Oh! Naturalmente a humildade é uma grande força, nesse sentido, concordo... Mas não no sentido em que a religião aceita a humildade como uma força.
“Religião! Sim, posso admitir a vida eterna, talvez até a tenha admitido sempre. Que a consciência, abrasada pela vontade de uma Força mais alta, contemple o mundo em redor e diga: ‘Existo!’ e que logo a seguir seja sentenciada por essa Força à aniquilação, visto ser necessário que tal ocorra para qualquer finalidade — ou mesmo que tal finalidade não tenha lógica nenhuma — eis um fato que aceito; mas me reservo sempiternamente o direito de perguntar: que necessidade há em tudo isso que eu seja humilde? Pois então não posso ser placidamente devorado sem a obrigação de homenagear quem ou aquilo que me devora? Haverá de fato alguém lá no alto que se ofenda pelo fato de eu não querer esperar por uns 15 dias mais? Não creio. E é muitíssimo mais provável que se alguma necessidade há é da minha vida insignificante, a vida dum átomo para completar uma tal ou qual harmonia universal, por mera questão de mais ou de menos, para rematar algum contraste, ou coisa que o valha, da mesma forma que a vida de milhões de criaturas é necessária cada dia como um sacrifício como se, sem a morte delas, o resto do mundo não pudesse prosseguir (muito embora isso não seja uma ideia muito generosa, devo observar). Pois que seja. Admito, pelo contrário, isto é, que sem o contínuo devorar recíproco seria impossível acomodar o mundo. Estou mesmo pronto a admitir que não chego a compreender nada relativamente a tal acomodação. Mas duma coisa estou certo: se me foi concedido em dada hora ter consciência de que existo, pouco se me dá que haja erros na construção do mundo e sem os quais ele não possa prosseguir. Isto posto, quem me condenará e mediante qual libelo? Digam o que disserem, tudo isso é impossível e injusto.
“Ainda assim, a despeito de todo o meu desejo em contrário, nunca pude conceber a inexistência duma vida futura e da Providência. O mais certo é que de fato existem, mas que nada compreendemos a respeito dessa vida futura e de suas leis. Já, portanto, que é tão difícil e até mesmo impossível compreender, não me cabe responsabilidade nenhuma por não ser capaz de compreender o inconcebível. Torna-se patente, dir-me-ão,
e o príncipe na certa está com os que tal dizem, que devo obedecer sem raciocinar, simplesmente por piedosa crença e que naturalmente serei recompensado no outro mundo por minha humildade.
“Ora, estamos mas é rebaixando muito a Deus, atribuindo-Lhe as nossas ideias, compelidos pela impossibilidade de compreendê-Lo. Mas, repito mais uma vez, se é impossível compreendê-Lo, como havemos de ter uma resposta para aquilo que ao homem não é dado compreender? E, já que assim é, como posso eu vir a ser julgado por não ter capacidade para compreender a vontade e as leis da Providência? Não, o melhor é pormos a religião para um lado.
“E já falei bastante, com efeito. Quando acabar este trecho, já, sem dúvida, o sol estará nascendo e ‘ressoando na abóbada’ e o seu incomensurável poder se propagará por sobre a terra. Que nasça! Quero olhar firme para a fonte da energia e da vida; não quero essa vida! Se tivesse o poder de não nascer, certamente não aceitaria a existência em condições tão irônicas. Resta-me, porém, ainda, a faculdade de me matar, embora só possa liquidar alguns dias, visto mesmo estes já estarem contados. Como veem, trata-se duma faculdade muito relativa, dum poder limitado, a minha revolta não passando de insignificante, quase.
“Eis a minha última ‘Explicação’: morro, mas não porque me faltem forças para suportar estas três semanas que seriam as restantes. Tê-las-ia, se quisesse, e chegaria até mesmo, querendo, a achar um conforto já de si suficiente na avaliação do dano que me é causado. Não sou o poeta francês e não estou à cata de tal consolação. De todo este estado decorre uma consequente tentação: a Natureza limitou tanto qualquer atividade minha com essa sentença de vida só por mais três semanas que na certa a única ação que ainda tenho tempo de iniciar e acabar por vontade própria é o suicídio. Claro que tenho que tirar vantagem desta última possibilidade de ação. Vezes há em que um protesto representa uma ação pequena mas positiva...”
A “Explicação” terminara. Ippolít, finalmente, parou de ler.
Sói suceder, em casos extremos, que um homem nervoso, exasperado, fora de si, atinja tal ápice de franqueza cínica que seja capaz
de tudo, indiferente a quaisquer efeitos de sua atitude escandalosa, alegrando-se até mesmo com isso. Arremete contra as pessoas com a decisão cega mas firme de daí a um minuto se precipitar num abismo, pondo termo a todas as dificuldades em jogo. O sintoma precursor desse estado é via de regra o esgotamento físico. A tensão extrema e anormal que se ia apossando de Ippolít atingiu naquele momento o seu auge. Aquele rapaz de 18 anos de idade, combalido pela doença, parecia tão fraco que nem uma folha trêmula se desprendendo duma árvore. Mas logo que pela primeira vez, no decorrer dessa última hora, ele circunvagou o olhar pelo auditório, uma expressão de asco o mais altivo, desdenhoso e amargo possível se estampou nos seus olhos e no seu sorriso. Tomou um ar instantâneo de desafio. Mas os ouvintes também não tardaram em demonstrar sua indignação geral. Puseram-se logo de pé, abandonando a mesa com ruído e maus modos. O cansaço, o vinho e a tensão forçada concorreram para tal disposição bem como para a péssima impressão, se é que tais palavras explicam bem o ambiente que logo se criou.
De repente Ippolít se levantou dum salto como impelido por um maquinismo subjacente, exclamando virado para o príncipe logo que viu os cimos das árvores se iluminarem e apontando para elas como para um prodígio:
— O sol! O sol!... O sol está nascendo!
Ao que observou Ferdichtchénko:
— Cuidavas que ele não haveria de nascer?
E Gánia disse baixo, se espreguiçando e bocejando, farto daquilo tudo, já com o chapéu nas mãos:
— E hoje vai fazer outra vez um dia quente e abrasador. Qual esta estiagem ainda dura um mês!... Você vem, ou não, Ptítsin?
Ante aquelas palavras Ippolít ficou tão espantado que sua fisionomia tomou um ar de estupefação. Ficou mortalmente lívido e começou a tremer todo. Voltou-se para Gánia e lhe disse:
— Sua afetação insultante de indiferença não me atinge, seu patife!
— Afinal, isso é o cúmulo, como forma de despedida a quem se retira! — rosnou Ferdichtchénko. — Que rebate mais ilógico!
— Ora, é um maluco... — disse Gánia.
Ippolít procurou se refrear, passando a dizer, trêmulo como antes e gaguejando a cada palavra:
— Compreendo, senhores, que mereço a atitude que adotaram... e peço desculpas de os haver maçado com estes despautérios — apontou para o manuscrito —, ou melhor, lamento não haver conseguido sequer lançar a menor apreensão nos senhores... — Sorriu alvarmente. — Macei-o muito, Evguénii Pávlovitch? — Voltou-se para Radómskii dando um passo: — Macei-o, ou não? Diga!
— Um pouco prolixo, mas de resto...
— Seja franco! Pelo menos uma vez na vida não esteja a mentir... — insistiu Ippolít, cada vez mais trêmulo.
— Ora, que tenho eu com isso, palavra de honra!?... Tenha a bondade de me deixar em paz! — disse Evguénii Pávlovitch voltando-se com ar desdenhoso.
Ptítsin dirigiu-se a Míchkin:
— Boa noite, até amanhã, príncipe.
Nisto Vera gritou, alarmada, correndo para Ippolít.
— Mas ele vai se matar mesmo! Pois não estão vendo? Olhem! Ele não disse que quando o sol nascesse se mataria com um tiro? Não fazem nada?
— Mata-se coisa nenhuma! — murmuraram maldosamente várias vozes entre as quais a de Gánia.
— Senhores, atenção! — exclamou Kólia correndo por sua vez a segurar o braço de Ippolít. — Vejam como ele está! Príncipe, príncipe, o senhor não acha?
Vera, Kólia, Keller e Burdóvskii haviam rodeado Ippolít, estando a segurá-lo.
— É um direito que ele tem... é um direito... que... ele tem! — gaguejou Burdóvskii conquanto também sobressaltado.
A esta altura Liébediev, completamente bêbedo e furioso, se acercou do príncipe e perguntou com insolência:
— Desculpe, príncipe, mas quer que eu aja? Quais são as suas ordens?
— Agir, como?
— Ai, ai! Perdão! Sou o dono da casa, muito embora tais palavras não signifiquem uma falta de respeito para com o senhor... Claro está que quem manda nisto tudo deveras é o senhor... mas aqui, na minha casa, não admito! Não admito que na minha casa um...
Interveio então o general Ívolguin, inesperadamente, com indignação e dignidade:
— O moço não vai se matar! O desventurado rapaz está... gracejando!
Ferdichtchénko aplaudiu:
— Bravos, general!
Liébediev retrucou:
— Sei muito bem, prezado general, que ele não se mata coisa nenhuma! Mas isso não impede que eu aja... sim, sou o dono da casa!
Então Ptítsin, que já se havia despedido do príncipe, inesperadamente veio estender a mão a Ippolít:
— Escute uma coisa, sr. Tiérientiev, parece-me que durante a leitura o senhor se referiu ao seu esqueleto e em deixá-lo para a Academia, não foi mesmo? Quis o senhor referir-se ao seu esqueleto mesmo, isto é, aos seus ossos, se bem ouvi?
— Sim, estava me referindo aos meus ossos...
— Então está muito bem. Perguntei apenas para me certificar bem dessa sua vontade expressa, pois sei dum caso em que houve dúvidas e...
— Oh! Não está direito isso. Não é hora de gracejos... — advertiu logo o príncipe. Não tardou que Ferdichtchénko também pusesse seu reparo:
— Está vendo? Fez o rapaz se pôr a chorar.
Mas não era verdade. Ippolít fez um movimento para avançar, mas os quatro que o rodeavam lhe seguraram logo os braços. Espalhou-se uma gargalhada.
Veio então o parecer de Rogójin:
— Era o que ele estava querendo: que o segurassem bem. A tal leitura ou confissão foi com este fim. Adeus, príncipe. Arre! Estivemos sentados muito tempo... Estou com os ossos doendo.
— Se o amigo realmente estava com ideia de se matar, Tiérientiev — disse rindo Evguénii Pávlovitch —, depois de todos estes comentários e despedidas, eu, no seu caso, não me mataria, só para lhes fazer pirraça.
— Estão tremendamente sequiosos de ver-me disparar uma bala! — exclamou Ippolít num repelão. Falou como se fosse atacar alguém. — Estão furiosos porque não faço isso aqui defronte deles.
— Ah! Então não vai fazer isso em público? Longe de mim querer instigá-lo a não fazê-lo; muito pelo contrário, acho muito provável que o amigo se matará. O essencial é não se alvoroçar... — disse Evguénii Pávlovitch num tom protetor.
— Só agora vejo que cometi um formidável erro em lhes ler a minha “Explicação” — disse Ippolít olhando para Evguénii Pávlovitch com ar muito sério, como a pedir um conselho confidencial a um amigo.
— De fato. O amigo ficou numa situação absurda; mas, francamente, já agora não sei como aconselhá-lo — retorquiu Radómskii, sorrindo.
Ippolít esquadrinhou-o com um olhar agudo e não lhe deu resposta. Pareceu mesmo ficar completamente zonzo por alguns momentos.
— Não! Vamos e venhamos, que raio de comportamento é esse? — tornou a intervir Liébediev. — Vossemecê declara: “Dou cabo de mim, com um tiro, no parque, de forma a não alvoroçar ninguém!” Acha então que saindo daqui e indo queimar os miolos ali no parque, a três passos daqui, não prega susto em ninguém?!
— Senhores... — começou Míchkin.
— Não, permita-me, prezado príncipe — interrompeu-o Liébediev furiosamente —, o senhor mesmo viu e escutou perfeitamente, não se trata de pilhéria, e aqui pelo menos a metade dos seus visitantes é da mesma opinião e está convencida que depois do que ele declarou está obrigado, sim, a honra obriga aqui este moço a se matar, e eu, como dono da casa, e como uma das testemunhas disso, peço que o senhor me ajude e me dê mão forte!
— Mas que é que você quer, Liébediev? Estou às suas ordens.
— Já lhe digo. Antes de mais nada ele deve entregar a pistola de que tanto se pavoneou antes, bem como toda a munição. Se entregar, consentirei que permaneça esta madrugada nesta casa, levando em consideração o seu estado de saúde; mas sob a minha vigilância, é claro. Mas amanhã ele tem que se safar daqui. Queira perdoar-me, príncipe! Se ele não entregar a arma, imediatamente o agarro por um braço e o general pelo outro e levamos o caso à polícia. E lá a polícia que se encarregue desta trapalhada. Aqui o sr. Ferdichtchénko, como amigo que é, se dirigirá à delegacia.
Foi uma barafunda dos infernos no terraço. Liébediev estava excitadíssimo e pôs de lado qualquer comedimento. Ferdichtchénko fez menção de ir chamar a polícia. Gánia intrometendo-se disse que era bobagem pois não via ninguém com disposição de queimar os miolos. Evguénii Pávlovitch assistia, calado.
— Príncipe, já alguma vez se atirou dum campanário abaixo? — sibilou Ippolít, voltando-se para o príncipe e fazendo tal pergunta disparatada e logo obtendo esta resposta cândida do príncipe:
— Eu?... N... não!
— Supõe que não previ todo este alvoroço! — sussurrou-lhe ainda Ippolít, olhando com olhos flamejantes, como se tal pergunta merecesse deveras uma resposta. — Está bem! Seja! — exclamou ele, de repente, voltando-se para todo o grupo. — Eu estou errado e os senhores com a razão. Liébediev, aqui estão as chaves. — Tirou do bolso uma carteira e desta uma argola de aço com três ou quatro chaves enfiadas. — Pegue esta, a penúltima... Kólia lhe mostrará... Kólia, onde está Kólia? — gritou, olhando para ele e não o vendo. — Pois é, ele lhe mostrará. Foi ele que me ajudou a pôr na mala as minhas coisas, ontem. Leve-o, Kólia. No escritório do príncipe, debaixo da mesa... na minha mala... com esta chave... bem no fundo... dentro duma caixa pequena... a minha pistola e o chifre com a pólvora. Ele mesmo foi quem arrumou, sr. Liébediev; ele lhe mostrará. Mas com uma condição: que amanhã cedo, quando eu seguir para Petersburgo, o senhor me devolverá a minha pistola. Está ouvindo? Faço isso por causa do príncipe e não por causa do senhor.
— Agora a situação melhorou muito! — anuiu Liébediev agarrando o molho de chaves; e dando uma risada maldosa correu para o cômodo contíguo.
Kólia quis ficar onde estava, ensaiou dizer qualquer coisa, mas Liébediev o arrastou.
Ippolít encarou aquele grupo tresnoitado. Míchkin notou que os dentes do rapaz rangiam, como se o acometesse um calafrio.
— Que miseráveis que eles são! — sussurrou Ippolít, exasperado, para o príncipe.
Ao dizer estas palavras a Míchkin o fez como pouco antes, bem inclinado sobre ele e em tom muito baixo.
— Não se incomode com eles! Você está muito fraco...
— Um minuto, um minuto... Já vou; apenas um minuto.
E eis que inesperadamente se abraça ao príncipe e lhe diz de modo esquisito:
— Pensa, decerto, que enlouqueci?
— Não, mas você...
— Um minuto, um minuto, tenha paciência. Não diga nada, não se mexa; quero olhá-lo bem nos olhos... Assim, fique assim. Deixe-me olhá-lo. Despeço-me dum homem.
Imóvel, diante do príncipe, ficou a fixá-lo durante uns dez segundos, sem dizer uma única palavra. Lívido, os cabelos molhados de suor, segurava dum modo esquisito a mão de Míchkin como não querendo que ele se retirasse.
— Ippolít, Ippolít, que é que você tem?! — exclamou o príncipe.
— Oh! Absolutamente nada. Vou me deitar. Imediatamente... imediatamente. Só queria beber uma taça em saudação ao sol!... Deixe-me beber, príncipe, deixe!
Com um gesto rápido agarrou uma das taças de cima da mesa e deixando o lugar correu para os degraus da varanda. Míchkin ia correr atrás dele, mas aconteceu, por fatalidade, que bem nesse instante Evguénii Pávlovitch lhe estendeu a mão para se despedir. Daí a um segundo se levantou um verdadeiro clamor na varanda, passando a reinar indescritível balbúrdia.
Eis o motivo: assim que atingiu os degraus da varanda, Ippolít estacou com a mão esquerda segurando a taça e com a direita enfiada no bolso do casaco. Segundo a declaração feita posteriormente por Keller, Ippolít já estava com a mão direita metida no bolso antes de sair; e, mesmo antes, enquanto estivera a falar com o príncipe, lhe segurava ora o ombro, ora a gola do paletó mas só com a mão esquerda, a direita já enfiada no bolso, atitude essa que o havia feito desconfiar. Reparando nisso, Keller quis correr atrás do amigo, e o fez, mas chegou atrasado, porque estava um pouco longe. Vira unicamente qualquer coisa brilhar na mão direita de Ippolít e, quase no mesmo instante, o cano de uma pistola encostado à têmpora do enfermo. Keller correu para lhe agarrar a mão, mas Ippolít puxou o gatilho. Pôde ouvir o som do cão, um estalido seco, mas não se produziu detonação nenhuma. Precipitando-se, Keller segurou Ippolít, que caiu em seus braços, como que desmaiado, julgando talvez que se tivesse matado mesmo. Com a pistola na mão, Keller mandou trazer uma cadeira e, sustentando sempre Ippolít, fê-lo sentar nela. Todos rodearam a cadeira, falando alto e fazendo perguntas. Tinham ouvido o estalido e pasmavam agora vendo o homem vivo, sem um arranhão sequer. O próprio Ippolít estava ali, sentado, sem compreender nada do que se estava passando. Olhava em redor, sem nenhuma expressão nos olhos. Liébediev e Kólia voltaram a correr. Perguntas cruzavam-se.
— O tiro falhou?
— Será que a pistola não estava carregada?
— Estava, sim — asseverou Keller, examinando a pistola — mas...
— Então o tiro engasgou...
— ... Esqueceram-se de pôr a cápsula... — explicou Keller.
É difícil descrever a cena tragicômica que se seguiu. O pasmo geral no primeiro momento foi instantaneamente seguido por uma gargalhada. E uma boa parte do grupo não pôde conter um acesso de hilaridade ante aquela situação grotesca. Ippolít soluçava com repelões que pareciam histéricos, torcendo as mãos, voltando-se para este, para aquele, até mesmo para Ferdichtchénko, de quem acabou por segurar ambas as mãos jurando que se tinha esquecido, “sim, esquecido completamente e não de propósito”, de meter a cápsula; que “estava com todas elas ali no bolso do colete, mais duma dúzia (mostrou-as a todos, voltando-se bem). Mas que não as colocara antes receando uma possível explosão na algibeira”. Investiu para Keller, pediu ao príncipe e a Evguénii Pávlovitch que fizessem com que aquele lhe devolvesse a pistola, pois haveria de lhes mostrar a todos, sim, a todos que “tinha honra, honra...”, que não era um desavergonhado, não!
E acabou caindo exânime, sendo levado para o escritório de Míchkin; Liébediev, cuja bebedeira passara instantaneamente com o choque, tratou de mandar vir um médico, permanecendo ele em pessoa ao lado do paciente, com a filha, o filho, Burdóvskii e o general. Vendo Ippolít ser carregado completamente sem sentidos, Keller, estatelado no meio da varanda, posição que repetiu daí a segundos no meio do escritório, fez a seguinte declaração, muito exaltado, destacando palavra por palavra, com um timbre que ninguém poderia deixar de ouvir:
— Senhores, se alguém se atrever na minha presença a insinuar sequer que a cápsula foi esquecida intencionalmente, dando assim a entender que tudo não passou duma farsa deste infeliz moço, tem que se haver comigo!
Tal desafio não mereceu resposta. Já agora os convivas tinham mais era pressa de ir embora. Ptítsin, Gánia e Rogójin saíram juntos.
O príncipe ficou muito surpreendido de Evguénii Pávlovitch, ou por esquecimento, ou deliberadamente, se retirar sem o colóquio marcado para depois de tudo.
— Mas o senhor não pretendia conversar comigo depois que todos se fossem?
— De fato, de fato — disse Evguénii Pávlovitch sentando-se já agora e fazendo o príncipe se sentar ao seu lado. — Mas prefiro adiar nossa conversa. Confesso-lhe que toda esta cena me pôs indisposto, e o mesmo lhe deve ter acontecido. Estou com a cabeça confusa. De mais a mais, o que desejo conversar é assunto muitíssimo importante para qualquer de nós dois. É que, príncipe, pela primeira vez na vida quero agir de modo estritamente correto, isto é, agir sem nenhum motivo subentendido. Ora, neste momento, depois de tudo quanto se passou, me sinto incapaz de fazer direito seja o que for; e o mesmo decerto há de lhe acontecer... Assim pois... conversaremos mais tarde. Quem sabe até, se ao tratarmos do assunto após estes três dias que preciso ficar em Petersburgo, ele já não estará muito mais fácil para nós ambos?
Feito o quê, tornou a se levantar, ficando assim esquisito se haver sentado pouco antes. O príncipe achou mesmo que Radómskii estava irritado, com uma expressão hostil no olhar, coisa que não havia antes.
— Naturalmente vai para perto do rapaz, agora?...
— Vou sim... Fiquei apreensivo.
— Ora! De quê? Ele viverá não três semanas, mas o dobro; poderá mesmo melhorar muito, aqui. Mas a melhor coisa a fazer é descartar-se dele.
— Quem sabe se eu próprio não o induzi a esse gesto tresloucado, deixando de lhe dar conselhos? Não vá ele julgar que eu não acredite que tenha querido se matar mesmo... E, a propósito, Evguénii Pávlovitch, que acha?
— Não pense nisso. Só mesmo um bom coração como o seu se pode inquietar. Pode ser que haja casos destes, mas na vida real jamais soube de quem se matasse somente com o propósito de receber aplausos ou por despeito de não os ter recebido. Tampouco creio que se trate duma exibição de pusilanimidade. Seja o que for, o melhor é o príncipe se livrar dele assim que puder, ainda hoje.
— Acha que tornará a tentar contra a vida?
— Não, já agora não o fará. Mas fique em guarda contra esses nossos Lacenaires de segunda mão. Não se esqueça de que o crime é, via de regra, a válvula de escapamento desses indivíduos nulos, revoltados, ávidos e impetuosos.
— Será ele um Lacenaire?
— A essência é a mesma, embora o emploi seja diferente, talvez. Não tenha dúvidas de que esse indivíduo não seja capaz de dar cabo duma dúzia de pessoas simplesmente como uma “façanha”, conforme ele próprio o disse durante a leitura da tal “Explicação”. Essa espécie de ameaça contida em tais palavras vai me obrigar a andar de olho atento, doravante. Perdi o sono...
— Não terá o senhor ficado nervoso em excesso?
— Ora, príncipe, o senhor é uma criatura formidável. Então não o julga, depois de tudo isso, capaz de matar uma dúzia de pessoas?
— Francamente, não sei responder. Tudo isso é muito estranho; mas...
— Está bem, como queira, como queira! — concluiu Evguénii Pávlovitch, contrafeito. — Aliás o senhor não é criatura que se deixe atemorizar. O que importa é que não seja uma das doze!
— Não me parece que ele venha a matar ninguém — disse Míchkin olhando para Evguénii Pávlovitch, mas com o pensamento longe.
Este deu uma risada significativa.
— Adeus. Já é tempo de ir embora. Chegou a reparar que ele legou a Agláia Ivánovna uma cópia ou o original da “Explicação”?
— Reparei, sim. Fez-me espécie...
— Tanta como no caso dos doze candidatos à morte?...
E, rindo outra vez, Evguénii Pávlovitch se retirou.
Uma hora depois disso, isto é, entre três e quatro da madrugada, o príncipe resolveu dar uma volta pelo parque. Tentara dormir, mas as violentas pancadas do coração não haviam deixado. A casa já voltara à tranquilidade. O pobre rapaz pegara no sono. O médico que o examinou declarara não haver perigo nenhum. Liébediev, Kólia e Burdóvskii se tinham deitado no mesmo quarto para se revezarem em guarda. Portanto, não havia nada a temer.
Mas a intranquilidade de Míchkin crescia sempre. Percorreu o parque, olhando distraído para tudo quanto o rodeava. Espantou-se quando viu que havia chegado à rotunda existente diante da estação. E só reconheceu o local pelo coreto de música e pelos bancos encarreirados diante das estantes.
Aquele cenário lívido o impressionou. Regressando, tomou o atalho por onde viera na véspera com as Epantchiná, até que chegou perto do banco verde marcado como local do encontro. Sentou-se e imediatamente deu uma gargalhada, logo ficando indignado consigo mesmo. Invadiu-o de novo a tristeza. Que vontade de ir embora! Mas para onde? Numa árvore, por cima da sua cabeça, um passarinho chilreava: começou a procurá-lo por entre as folhas. Nisto o passarinho voou e o príncipe, por analogia, se recordou da “mosca no ardente raio de sol” sobre que escrevera Ippolít “e que sabia que tinha direito a comparticipar do festival da vida e tomava parte no coro geral, só ele sendo um banido de tudo”. Antes, ao ouvir a frase, se impressionara; e agora se estava lembrando dela. Repentinamente, evocações de coisas antigas, já desde muito sedimentadas, começaram a tumultuar dentro dele logo se pondo a rodeá-lo.
Sim, fora na Suíça, no primeiro ano, logo no começo. Não passava então dum idiota. Não sabia sequer falar direito... muitas vezes ficando apatetado diante das pessoas. Certa vez subia pelo flanco duma montanha, por um dia claro e ensolarado. E caminhou horas e horas, com o espírito avassalado por uma ideia difusa e pertinaz. Diante dele, o céu como um esmalte; embaixo, o lago; e, em toda a volta, o horizonte luminoso e ilimitado parecendo não ter fim. Pusera-se a contemplá-lo demoradamente, tomado de angústia. E agora se lembrava muito bem que havia estendido as mãos para aquele azul infinito e radioso, derramando lágrimas. O que o torturava então era sentir-se totalmente fora de tudo aquilo. Que festival era aquele? Que significava aquele imenso e eterno espetáculo sempre renovado e que o atraíra sempre, desde a mais longínqua infância, mas no qual jamais pudera tomar parte? Cada manhã o mesmo sol deslumbrante! Todos os dias o mesmo arco-íris como um diadema sobre a cascata! Todas as tardes a geleira fulgurando envolta em púrpura ao fundo do horizonte! “Cada diminuta mosca que zunia ao redor dele no ardente raio do sol tinha a sua parte no coro, sabia o seu lugar, gostava, e era feliz!” Cada folha de relva cresce e é feliz. Tudo tem a sua trajetória, cada coisa sabe que possui um itinerário e por ele adiante envereda por entre hosanas! Não há quem não saia de manhã com uma canção e não volte ao crepúsculo, cantando... Só ele não sabe nada, não compreende nada, nem homens, nem sons. Não comparticipa de nada, é um banido. Oh! Naturalmente que não dissera se servindo de palavras, sua interrogação tendo sido apenas mental. Era um sofrimento mudo de quem não atina com um enigma; mas agora lhe parecia que havia dito tudo aquilo com as mesmas palavras de Ippolít, a ponto da frase relativa à mosca parecer sua, Ippolít o havendo plagiado, tomando-a das suas lágrimas e dos seus pensamentos de então. Tamanha certeza teve disso que, enquanto refletia, o seu coração acelerava o ritmo.
Sentado naquele banco, adormeceu, com o queixo sobre o peito; mas a agitação perdurava. Já no limiar do sono o envolveu a noção de que Ippolít mataria uma dúzia de pessoas; e sorriu ante o absurdo dessa hipótese. Circundava-o uma claridade deslumbrante; em toda a volta só havia sossego quebrado apenas pelo sussurro das folhas que tornavam a solidão e a luminosidade maiores. Sonhou uma porção de coisas. Sonhos agitados que de momento a momento lhe produziam estremeções. Por último lhe apareceu uma mulher. Reconheceu-a. E reconhecê-la era torturante. Sabia o seu nome. Reconhecê-la-ia em qualquer lugar; mas — que coisa estranha — o seu rosto de agora não era o mesmo que conhecia antes, e isso lhe ocasionava uma relutância perturbadora em reconhecê-la como sendo a mesma. O rosto dessa criatura deixava transparecer tal remorso, tamanho pavor que parecia uma criminosa cruel correndo depois de haver cometido um crime hediondo. Pelas faces brancas lhe deslizavam lágrimas. Passando por ele pôs o dedo na boca advertindo-o que não dissesse nada e a seguisse com a maior precaução. Vê-la, assim, fez gelar seu coração. Nada, nada, absolutamente nada sobre a face da terra o induziria a acreditar que ela fosse uma criminosa. Mas percebeu que estava para suceder algo de terrível que lhe iria arruinar a vida para sempre. Aquela mulher ansiava por lhe mostrar qualquer coisa no parque, não longe dali. Ergueu-se para a seguir. E repentinamente escutou, bem próximo, o som alegre duma risada cristalina, ao mesmo tempo que certa mão o tocava. Segurou essa mão, apertou-a com força... e acordou. Diante dele, rindo, estava Agláia.
8.
Ria, mas estava escandalizada.
— Dormindo? Será possível? — exclamou com admirado desdém.
Acordando, o príncipe logo que, cheio de surpresa, a reconheceu, balbuciou:
— Sois vós! Ah! É mesmo, combinamos um encontro aqui... E não é que adormeci?...
— Estou vendo.
— Foi outra pessoa que me acordou ou fostes vós? Não esteve mais ninguém aqui, pouco antes de vós? Julguei, ou foi sonho, que uma outra mulher se achava aqui!?
— Uma outra mulher, aqui?
“Não passou de sonho...” explicou ele a si mesmo, refletindo.
— Como é que a uma hora destas pôde me vir um tal sonho?... Sentai-vos.
Tomou-lhe a mão e a fez sentar no banco; sentou-se ao lado e continuou com a mesma expressão perplexa. Ao invés de começar a conversar, Agláia encarou seu companheiro de banco, esquadrinhando-o de alto a baixo. Ele a olhava também mas como se não a estivesse vendo. Por fim Agláia enrubesceu.
— Ah! É mesmo... — disse ele, com um sobressalto. — Ippolít desfechou um tiro de pistola no ouvido.
— Quando? E... na sua casa? — perguntou Agláia com uma surpresa que logo cedeu. — Ontem à noite ainda estava vivo, não estava? E como é que o encontro aqui a dormir, depois duma coisa dessas?! — exclamou com uma vivacidade de espanto.
O príncipe tratou de esclarecer:
— Mas não morreu, não! A pistola negou fogo.
Então Agláia instou para que lhe fizesse uma descrição minuciosa do que se passara de noite. E, durante a narrativa, o incitava por meio de perguntas às vezes até despropositadas. Ao lhe serem relatadas as ocasiões em que Evguénii Pávlovitch interviera, ela se interessou muito, obrigando-o a repetir as palavras deste.
— Está bem, mas o tempo é precioso. Quanto a essa historiada, basta. Só podemos ficar aqui uma hora. Até as oito. Às oito horas tenho que ir embora pois não quero que em casa venham a saber que estive sentada aqui e tampouco que saí com este intuito. Tenho muita coisa a lhe dizer. Mas agora, com essas novidades sensacionais, fiquei sem jeito. Quanto a Ippolít, acho que a pistola fez muito bem em não disparar... Dele que se podia esperar? Acredita mesmo que pretendia se matar e que não se trata duma comédia?
— Não, não foi a fingir.
— De fato, isso é mais provável. Com que então leu que me deviam entregar a tal confissão? E o encarregou dessa empreitada? Trouxe? Por que não trouxe?
— Pois se ele não morreu... Depois peço e vos entrego.
— Não se esqueça. Mas traga sem pedir. Um pedido desta ordem o rejubilaria, talvez tendo sido somente por causa disso que tentasse contra a vida. Para que eu depois lesse a confissão. Por favor, Liév Nikoláievitch, não faça esse riso. Pois então não pode muito bem ter sido por isso?
— Mas eu não estou rindo! Mesmo porque também suponho que essa fosse uma das razões prováveis.
— Não é mesmo? Não lhe parece verdade? Hã, acha, hein?!
E Agláia esboçou um ar de surpresa.
Logo a seguir lhe fez uma porção de perguntas, falando muito depressa, parecendo às vezes se atrapalhar e deixando as frases sem fim. Toda essa pressa era como se quisesse avisá-lo duma determinada coisa. Ao mesmo tempo se mostrava extraordinariamente nervosa e, apesar de o olhar com certo ar zombeteiro e quase de provocação, entremostrava sem querer algum receio. Viera apenas com um vestido matinal, muito simples, usado, e a todo instante enrubescia e olhava em torno. Sentara-se na extremidade do banco, estando ainda admirada do príncipe haver concordado que talvez Ippolít quisesse se matar para que ela, depois, lesse a sua confissão. E, como a esclarecer seu pensamento, o príncipe acrescentou:
— Naturalmente o desejo dele era que nós o gabássemos... bem como vós...
— Que o gabássemos?
— Isto é... como hei de dizer?... É difícil explicar. Decerto queria ele que desfilássemos diante dele ou que fazendo um círculo insistíssemos em declarar que gostávamos muito dele e que lhe rendíamos grande apreço; cuidava decerto e talvez mesmo ansiava por que todos rogassem que não fizesse uma tal coisa, que permanecesse vivo. Quem nos diz até que ele não esperasse tal atitude mais de vós do que de nós outros, já que chegou a mencionar vosso nome naquela ocasião? Podia muito bem acontecer que vos tivesse no espírito, inconscientemente.
— Isso agora é que não compreendo. Como podia ele ter isso em mente, inconscientemente? Ah! Já compreendi! Vou exemplificar. Quando eu tinha apenas 13 anos me veio mais de trinta vezes a fantasia de tomar um veneno e deixar uma longa carta a meus pais! Enlevava-me imaginar como haveria de ficar no caixão; como todos viriam em prantos se jogar sobre mim arrependidos de haver judiado de mim!... Por que é que está rindo de novo? — acrescentou logo, franzindo a testa. — Não teve nunca fantasias, projetos, sonhos extravagantes? Nunca imaginou que era marechal de campo e que derrotou por exemplo... Napoleão?
— Quantas vezes, palavra de honra! Pensamentos dessa natureza me acodem sempre que sonho — respondeu, rindo. — Basta-me pegar no sono e pronto... Mas não é Napoleão que venço e sim os austríacos.
— Não estou disposta a brincadeiras, Liév Nikoláievitch. Irei eu mesma procurar Ippolít. Pode desde já preveni-lo. Tive uma péssima impressão do seu comentário. Não deve nunca interpretar as coisas parcialmente e tampouco julgar a alma dum homem, como fez a propósito de Ippolít. A gente sempre, em lugar de só querer ver a verdade exata com intuito de julgar direito, acaba mais é cometendo injustiças por falta de ternura e caridade.
O príncipe redarguiu:
— Mas se há aqui algum engano ou injustiça é da vossa parte para comigo. Pois então há algum mal em que ele pensasse desta maneira? Pois a tendência geral não é pensar desta forma? Além disso talvez ele nem tivesse absolutamente tal pensamento, apenas fosse um desejo vago... Decerto ansiava desde muito se aproximar dos homens, ganhar-lhes o respeito, merecer-lhes a estima. Sabeis muito bem que tais sentimentos são bons. Mas não deu certo. Alguma coisa interveio e atrapalhou. Talvez a doença, ou qualquer outra coisa, quem sabe? Pois não sucede tantas vezes tudo correr esplendidamente com uma pessoa e pessimamente com outra?...
— Está porventura, Liév Nikoláievitch, se estribando em experiência própria?
— Quem sabe? Quem sabe? Pode muito bem ser — respondeu o príncipe sem perceber sarcasmo na pergunta.
— Seja como for, tudo isso era suficiente para que eu, por exemplo, no seu lugar, não dormisse. Isso prova só que onde quer que se encoste pega logo no sono, não é? Acha bonito uma coisa dessas?
— Mas... se passei a noite toda em claro... E depois ainda por cima levei horas a caminhar! Fui até perto do coreto.
— Qual coreto? O da música?!
— Lá onde a banda esteve tocando, ontem. A seguir vim para aqui, sentei-me, estive a pensar que não acabava mais... acabei dormindo!
— Ah! Então foi assim? Bem, então o caso é diferente. Mas para que foi ao coreto?
— Não sei. À toa.
— Muito bem, muito bem! Isso fica para depois. Acabou mas foi interrompendo o fio da minha conversa. E que tenho eu com isso, se foi até o coreto? Que mulher era essa com a qual esteve sonhando?
— Era... a que vistes aquela noite.
— Ah! Sim, sim! Já compreendi muito bem. Não lhe sai da cabeça!... E sonhou o quê, com ela? Que é que ela estava fazendo? Não pense que me interessa saber... — disse mais alto e com pronúncia diferente, amuada. — Não me interrompa!...
Parou de falar por um momento, como para tomar alento ou dissipar o amuo.
— Passemos agora ao que interessa. Devo dizer-lhe por que foi que lhe pedi que viesse se encontrar comigo aqui. Desejo propor-lhe que sejamos bons amigos. Por que arregala os olhos dessa maneira? — perguntou com timbre quase colérico.
Naturalmente o príncipe se pusera a contemplá-la muito atento, vindo a perceber que ela, ditas aquelas palavras, enrubescera logo. Em circunstâncias análogas, ela sempre quanto mais enrubescia mais zangada parecia ficar consigo mesma, e isso estava nitidamente visível em seus olhos lampejantes. Então, via de regra, transferia a raiva, irritando-se com a pessoa causadora de tal situação, merecesse esta ou não censura, pondo-se logo a descompô-la. Mas como percebia quanto era arrebatada e irritadiça, tendo demasiada consciência do seu temperamento, adotara como regra ser esquiva a conversas e intimidades, sendo mais calada do que as irmãs, às vezes mesmo circunspecta demais. Quando, e principalmente em casos súbitos e delicados, era obrigada positivamente a falar, iniciava a conversa com acentuada altivez e com uma expressão quase de desafio. E sempre sentia de antemão quando começava a ficar vermelha.
— Talvez não esteja disposto a aceitar esta minha proposta — disse com ar sobranceiro.
— Como não? Quero, e muito. Apenas a acho desnecessária... quero dizer... — Quis o príncipe explicar.
— Pensou então o quê? Supôs que lhe pedi que viesse se encontrar comigo aqui para quê? Seja franco! Ou estará me supondo uma espinoteada como pensam todos lá de casa?
— Não sabia que em casa vos consideravam uma espinoteada. Eu não vos considero.
— Não me considera? Muito hábil da sua parte. Maravilhosamente bem respondido.
— Acho até que deveis dar mostra muito constantemente de grande sensatez — prosseguiu o príncipe. — Ainda agora dissestes uma coisa admirável. Quando faláveis a respeito de Ippolít: “A gente sempre, em lugar de só querer ver a verdade exata com o intuito de julgar direito, acaba mais é cometendo injustiças por falta de ternura e caridade.” Não me esquecerei disso, que me há de prestar muitos serviços.
Agláia ficou logo rubra, com o prazer que sentiu. Tais transições de sentimentos se operavam nela quase sem mostras de artifício, alternando-se rapidamente. Também Míchkin ficou satisfeito e sorriu, com notório prazer, esquadrinhando-a.
— Ouça — começou ela —, esperei muito tempo para lhe dizer uma porção de coisas. Tive vontade desde que me escreveu aquela carta; e até mesmo antes. Aliás ontem já ouviu metade delas. Considero-o o mais honesto e sincero dos homens, mais honesto e mais sincero do que qualquer outro. E se andam dizendo por aí que o seu juízo... isto é, que às vezes fica afetado do juízo, são injustos. Já me certifiquei disso e já tive brigas com os outros, muito embora veja que é mesmo afetado mentalmente... (não vai, naturalmente, se zangar comigo; estou falando dum ponto de vista muito alto). O espírito, que conta, esse é melhor em você do que nos demais. É alguma coisa com o que eles, de fato, nunca sonharam. Sim, pois há duas espécies de espírito, o principal, que importa, e o secundário, que tem valor muito relativo. Tenho razão. É isso mesmo, não é?
— Talvez seja — pronunciou o príncipe muito baixo. O seu coração palpitava e latejava violentamente.
— Eu tinha certeza de que você entenderia — continuou ela de modo expressivo. — O príncipe Chtch... e Evguénii Pávlovitch, por exemplo, não entendem que haja estas duas espécies de espírito; nem Aleksándra, tampouco; mas, calcule só, mamãe entende!
— Vós vos pareceis muito com Lizavéta Prokófievna.
— Acha? Realmente? — perguntou Agláia, com surpresa.
— Deveras.
— Muito obrigada — disse Agláia depois dum momento de reflexão. — Fico muito contente de parecer com mamãe. Gosta então muito dela? — acrescentou sem se dar conta da ingenuidade da sua pergunta.
— Muitíssimo. E me alegra sobremodo que tenhais reparado nisso imediatamente, por vós mesma.
— E fico mais contente de ouvir isso porque já reparei que muita gente às vezes ri dela. Mas deixe que lhe diga o principal. Andei refletindo por muito tempo e afinal o descobri. Não quero que em casa se riam de mim; não suporto que me tenham na conta duma estouvada; não quero que me enfezem com motejos... Percebi instantaneamente a intenção e me recusei a ficar noiva de Evguénii Pávlovitch, porque estou farta de assistir a essa procura contínua de noivos para mim! O que eu quero... o que eu quero... Ora muito bem, o que eu quero é fugir de casa, e o escolhi para me ajudar.
— Fugir de casa?! — exclamou o príncipe.
— Sim, sim, fugir, fugir! — repetiu ela, mudando de cor, inflamando-se logo com extraordinária exasperação. — Não os posso suportar, já não os tolero mais! Não cessam de me enraivecer. Não quero corar diante deles, na frente do príncipe Chtch... de Evguénii Pávlovitch, ou de qualquer outro! E foi por isso que o escolhi. A você direi tudo, tudo, mesmo a coisa mais importante, sempre que quiser, e sei que você, por seu lado, não me esconderá nada. Quero poder falar livremente pelo menos a uma pessoa a respeito de tudo quanto eu vier a pensar. Desandaram a dizer, sem mais aquela, que eu o estava esperando e que o amava. Isso começou antes da sua volta, embora eu não lhes mostrasse a carta. Com a sua vinda para aqui tudo recrudesceu. Quero ser destemida e não ter receio de coisa alguma. Estou farta de bailes. Quero fazer-me valer, ser útil. Desde muito que anseio viajar, sair disto. Há vinte anos que vivo engarrafada em casa. Só pensam numa coisa: casar-me. Desde os 14 anos que venho pensando em fugir desta vida, embora fosse uma tola. Agora planejei tudo e estive aguardando a sua volta para que me informe bastante a respeito do estrangeiro. Nunca vi uma catedral gótica. Quero ir a Roma. Quero visitar todas as sociedades cultas. Quero estudar em Paris. Venho me preparando e estudando muito; no ano passado li muitos livros. Li todos os livros proibidos. Adelaída e Aleksándra leem os livros que muito bem querem. Mas a mim não deixam e me vigiam. Não pretendo indispor-me com as minhas irmãs, mas já fiz ver a mamãe e a papai que desejo operar uma transformação completa na minha posição social. Quero dedicar-me ao ensino das crianças e pensei em para isso recorrer a você porque nos declarou naquele dia quanto gostava da infância. Não nos poderíamos ambos dedicar a isso, não digo já, imediatamente, mas num futuro próximo? Poderíamos vir a ser muito úteis. Não quero me limitar a ser filha dum general. Diga-me uma coisa: você estudou muito?
— Oh! Nem por isso!
— É pena, porque eu tinha pensado em... Como é que fui pensar nisso!... Não importa, de qualquer maneira você será o meu guia. Já o escolhi.
— Isso é absurdo, Agláia Ivánovna.
— Quero fugir de casa, pronto! — exclamou; e de novo os seus olhos cintilaram. — E, se você não concordar, então me caso com Gavríl Ardaliónovitch. Estou farta de em casa ser considerada como uma criatura horrível e de me acusarem sabe Deus de quê!
— Perdestes o critério? — admoestou-a o príncipe, quase saltando do banco. — Acusada de quê? Por quem?
— Por todo o mundo. Mamãe, papai, as manas, o príncipe Chtch... e até esse confiado Kólia. E, se não falam diretamente, pensam! Já lhes disse tudo isso na cara; a mamãe e a papai também. Mamãe depois ficou doente um dia inteiro. No dia seguinte Aleksándra e papai vieram me aconselhar: que eu nem sabia quanta asneira dissera; as palavras que proferira. Retruquei-lhes logo que sabia sim, muito bem, que conhecia o sentido de todas as palavras, todas! Que já não sou uma simples meninota; que no ano atrasado li até duas novelas de Paul de Kock, para ficar sabendo... coisas! Mamãe quando ouviu isto quase caiu desacordada.
Uma estranha ideia ocorreu ao príncipe, que, olhando para Agláia muito firme, sorriu.
Mal podia acreditar que aquela jovem altiva que certa vez lhe lera com ar majestoso e sobranceiro a carta de Gavríl Ardaliónovitch era a mesma que ali estava sentada ao seu lado. Não podia conceber que aquela severa e desdenhosa beldade não passasse na verdade duma menina, duma criançola que nem mesmo agora compreendia o sentido de todas as palavras.
— Vivestes sempre em casa, Agláia Ivánovna? Quero dizer, nunca estivestes numa escola, como interna? Nunca estudastes num instituto?
— Em parte nenhuma. Permaneci sempre em casa, como se estivesse arrolhada numa garrafa! E somente para casar é que me extrairão de dentro da garrafa. Por que é que está rindo outra vez? Será que está caçoando de mim, que passou para o lado deles? — ajuntou com a testa ameaçadoramente vincada. — Não me faça zangar; que é que está pensando de mim? — “Estou certa que veio a este encontro todo compenetrado de que estou apaixonada por você e que por isso lhe marquei esta entrevista”, refletiu ela, irritadíssima.
— Confesso que ontem cheguei a recear tal coisa — declarou Míchkin com a maior simplicidade. — Estava no auge da confusão. — Mas hoje estou convencido de que...
— De quê?... — gritou Agláia Ivánovna; e o seu lábio inferior começou a tremer. — Ficou com medo de que eu... Ousou imaginar que eu... Ó céus! Suspeitou, acaso, que o convidei para o prender numa armadilha? Para que nos descobrissem aqui, depois, e que assim se visse forçado a se casar comigo?
— Agláia Ivánovna! Não vos envergonhais? Como pôde uma ideia vil desabrochar em vosso coração inocente! Juro que nem vós mesma acreditais numa só dessas vossas palavras e que nem sabeis o que estais dizendo.
Agláia ficou a olhar para o chão, muito séria, como que perplexa ela própria ante o que dissera. E balbuciou:
— Não estou envergonhada absolutamente. Como sabe que o meu coração é inocente? E que ousadia foi aquela de me mandar uma carta de amor?
— Uma carta de amor? Minha carta... uma carta de amor? Mas se foi uma carta a mais respeitosa possível! Uma carta que era a emanação da minha alma no momento mais amargo de minha vida! Pensei então em vós como numa luz... Eu...
— Está bem, está bem! — atalhou ela de chofre, num tom inteiramente mudado, arrependida de todo e como que receosa. Voltou-se para ele, embora tentando evitar olhá-lo, quase lhe tocando o ombro a pedir com veemência que não ficasse zangado. E acrescentou, terrivelmente transfigurada: — Muito bem. De fato empreguei uma expressão estúpida. Mas o fiz com a intenção de experimentá-lo. Dou o dito por não dito. Se o ofendi, perdoe-me. Por favor, não me encare. Vire para lá. Você declarou que foi uma ideia ignóbil. Pois eu a disse somente para o magoar. Às vezes tenho medo do que vou dizer e assim mesmo digo! Acabou de confessar que escreveu aquela carta no momento mais lancinante da sua vida. Sei que momento foi esse. — Olhava outra vez para o chão, o tom da voz era brando.
— Oh! Se soubésseis uma milésima parte!
— Sei de tudo! — exclamou ela com renovada animação. — Esteve vivendo na mesma casa mais dum mês com aquela mulher horrível com quem fugiu...
Desta vez não ficou rubra, mas sim lívida, ao pronunciar tais palavras e se levantou sem saber o que estava fazendo; mas, caindo em si, logo tornou a se sentar. Por muito tempo seu lábio ainda tremia. O silêncio durou um minuto. O príncipe quedou muito atônito ante a subitaneidade daquela explosão, sem saber a que atribuí-la. E nisto Agláia afirmou de modo categórico:
— Absolutamente não o amo!
Míchkin não deu resposta. Ficaram em silêncio por mais um minuto. Abaixando então ainda mais a cabeça, ela proferiu depressa mas de modo quase inaudível:
— Eu amo Gavríl Ardaliónovitch...
— Não é verdade! — rebateu o príncipe, numa espécie de sussurro.
— Então estou mentindo? É verdade, sim! Dei-lhe meu consentimento anteontem, aqui neste mesmo banco.
O príncipe sobressaltou-se e refletiu durante um minuto; depois repetiu com energia:
— Não é verdade! É uma invenção isso tudo.
— Você é formidavelmente cortês. Pois saiba que ele se emendou e que me ama acima da própria vida. Queimou a mão diante de mim para provar que me ama acima da própria vida.
— Queimou a mão?!
— Sim, a mão. Não acredita? Acha que é mentira? Bem me importa.
Míchkin permaneceu calado, de novo. Não havia nenhum traço de gracejo nas palavras de Agláia, que continuava carrancuda.
— Isso se passou aqui? Neste banco? Então ele trouxe uma vela? Do contrário não percebo como poderia...
— Pois trouxe sim... Que há de extraordinário nisso?
— Inteira, num castiçal?
— Bem... isto é... um pedaço, um toquinho só, já no fim... ou inteira. Não vem ao caso. Acendeu a vela, pôs o dedo em cima da chama, ficou assim meia hora. Há alguma coisa impossível nisso?
— Ainda esta noite estivemos juntos. Estava com os dedos intactos.
Agláia caiu num acesso repentino de gargalhada, como uma criança.
— Quer saber por que tive que lhe inventar toda essa mentira? — Virou-se outra vez para o príncipe, de repente, com uma confiança infantil e o riso ainda lhe aflorava aos lábios. — Porque, se uma pessoa precisa mentir, deve inventar com muita habilidade uma coisa fora do comum, bem excêntrica, inédita ou bastante rara; a mentira adquirirá foros de verdade. Sempre reparei nisso. Falhou desta vez porque não fiz com todas as regras.
Nisto franziu novamente a testa, como a recordar-se de qualquer fato, voltou-se para o príncipe com uma expressão séria e até melancólica e declarou:
— Quando declamei o “cavaleiro pobre”, não obstante querer elogiá-lo indiretamente por algo, quis também desapontá-lo por causa de sua atitude e mostrar-lhe que sabia de tudo.
— Sois muito injusta comigo e com essa infeliz mulher a quem vos referistes agora mesmo com falta de caridade, Agláia.
— É porque sei de tudo! De tudo! Eis por que falei deste modo. Sei que há seis meses passados lhe propôs casamento diante duma porção de gente. Não me interrompa. Como vê, estou falando sem comentar. E depois disso ela fugiu com Rogójin; tempos depois você viveu com ela em qualquer localidade da província, ou em qualquer cidade até que ela o largou por qualquer outro. — Agláia enrubesceu de ressentimento. — E agora ela está outra vez com Rogójin que a ama como um louco. E, recentemente, você... que não é o tolo que dizem, veio a galope para aqui nas pegadas dessa mulher, logo que descobriu que ela voltara para Petersburgo. Ainda ontem de noite não hesitou em defendê-la; há poucos minutos estava sonhando com ela aqui mesmo... Como vê, sei de tudo. Foi por causa dela, sim, por causa dessa mulher, que você veio aqui para Pávlovsk, não foi?
— Não nego — respondeu o príncipe brandamente, abaixando o olhar com certo modo soturno e vago, não suspeitando com que olhos chamejantes Agláia o fulminava. — Por causa dela, com o fim de verificar se... Creio que ela não é feliz com Rogójin, muito embora... Enfim, conquanto não soubesse o que poderia fazer por ela aqui, de que forma ajudá-la, vim.
Parou e fitou Agláia, que o escutava calada e séria.
— Ah! Veio sem saber por quê? Quer prova maior de que a ama e muitíssimo? — externou Agláia, a custo.
— Não — retrucou o príncipe. — Não. Eu não a amo. Oh! Se ao menos pudésseis saber e avaliar com que horror me recordo do tempo que passei com ela!
Disse isto sacudido por um calafrio.
— Conte-me tudo.
— E nem há em tudo quanto se passou nada que não possais escutar. Se muita vez me passou pela mente, como quando vos escrevi, vos contar tudo, a vós e a mais ninguém, não sei o motivo de tal desejo. Com certeza porque vos quero muito. Essa infeliz criatura está convencida de que é a mulher mais pecaminosa e decaída deste mundo! Oh! Não a vilipendie nem a apedreje. Ela já se torturou demasiado com a consciência do seu imerecido opróbrio. E, meu Deus, ela não tem do que ser censurada. Ah! Não cessa de clamar, a todo instante, do fundo da sua desdita, que não suporta mais viver no erro e que foi vítima dos outros, dum homem depravado e libertino. Mas se eu próprio asseverar isso, então ela será a primeira a não crer, a jurar com todas as forças de sua consciência que é culpada. Quando tentei desmanchar essa ideia fixa tão sinistra, o meu gesto a atirou num abismo tal de escrúpulos que para fugir a isso se arrojou num outro pior, tal o seu desatino. Só em recordar esse tenebroso tempo meu coração se estraçalha. Fugiu de mim. E sabeis por quê? Para quê? Para arranjar uma prova de que era uma criatura ignóbil. E o que ainda é talvez mais terrível é que ela própria ignora que agiu somente com esse intuito, decidida a praticar uma ação infame somente para poder dizer a si mesma: “Largaste-o, chafurdaste neste lodo! E agora? Duvidas agora de que és uma criatura infame?” Agláia, é difícil compreender tais complexidades. Quer saber? É bem provável que nessa contínua sensação de escrúpulo e de vergonha exista para ela uma espécie de terrível prazer anômalo, uma espécie de vingança contra alguém. Às vezes consigo levá-la até onde um pouco de luz a faça ver claro dentro e fora da sua angústia. Mas acaba se rebelando sempre e me acusa amargamente de pretender incutir uma superação na sua miserável vivência (coisa que nem me acode ao cérebro). O que ela me disse quando lhe propus casamento! Que não condescendia em aceitar consolo ou ajuda de quem quer que fosse, tampouco desejando ser elevada a nenhum plano superior! Ontem reparastes nela? Cuidais que ela se sinta bem naquela roda? Que aquela gente seja companhia adequada para ela? Se soubésseis quanto é bem-educada, que compreensão manifesta pelas coisas, quando tem paz! Não raro me surpreendia deveras.
— Costumava pregar-lhe moral... quando esteve com ela? Sermões, como este?
— Oh! não — continuou o príncipe pensativo, não percebendo o tom nem a pergunta. — Dificilmente lhe falo. Muitas vezes quero falar mas não sei o que deva dizer. Já me convenci que em certos casos o melhor de tudo é ficar quieto. Oh! Eu a amei. Eu a amei muito; mas depois... depois ela adivinhou a verdade.
— Qual verdade?
— Adivinhou que era somente piedade o que eu tinha por ela, já que não a amava mais.
— Como é que sabe? Talvez se tenha apaixonado por esse latifundiário com quem fugiu...
— Não, não; estou bem a par de tudo. Não fez mais do que se rir dele.
— E nunca riu de você?
— N...ão. Mas dá risadas estranhas quando se exaspera. Transforma-se numa fúria terrível quando censura uma pessoa. A mim, por exemplo. Contra si mesma, também. Mas... depois... Não quero me lembrar, não quero me lembrar disso!...
E escondeu o rosto nas mãos.
— Sabe que ela me escreve cartas quase todos os dias?
— Então é verdade?! — exclamou o príncipe, perplexo. — Ouvi falar, mas não acreditei.
— Quem lhe contou? — perguntou Agláia, receosa.
— Rogójin me disse ontem, mas dum modo vago.
— Ontem? Ontem de manhã? Ontem?... A que horas? Antes da banda tocar, ou depois?
— Depois, tarde da noite, por volta das onze horas.
— Ah! Se foi Rogójin... E sabe o que ela me escreve sempre nessas cartas?
— Seja o que for, não me surpreenderá. Está com o juízo alterado.
— Eis as cartas! — Agláia tirou três envelopes da sua bolsa e os largou no banco, perto do príncipe. — Há uma semana exata que insiste, roga, implora e me incensa, para que me case com você. Oh! É bem esperta, apesar de louca. Em bom fundamento se apoia você para a achar bem mais sensata do que eu. Escreve que gosta de mim, que tenta diariamente arranjar um ensejo para me ver mesmo que seja de longe. Asseverou-me que você me ama, que tem certeza, desde muito; que você costuma falar com ela a meu respeito e... Tem um modo de escrever esquisito, extravagante! Não mostrei essas cartas a ninguém. Achei melhor aguardar que você aparecesse. Sabe qual é o sentido de tudo isso? É capaz de adivinhar?
— Loucura típica. Uma das muitas provas de sua insanidade mental — explicou o príncipe; e seus lábios começaram a tremer.
— Está querendo chorar?
— Não, Agláia. Não estou chorando. — E o príncipe ficou a fitá-la.
— Que lhe parece que devo fazer? Que é que me aconselha? Não posso ficar a receber indefinidamente essas cartas!
— Tende paciência, rogo-vos! — exclamou Míchkin. — Que podeis fazer nessa incerteza? Farei tudo para impedir que ela continue a vos escrever.
— Então é um homem sem coração! — redarguiu Agláia. — Está vendo evidentemente que ela não está caída por mim, que é a você que ela ama, tão somente a você. Não disse ainda agora mesmo que notava tudo nela? Como não notou isso? Não compreendeu ainda do que se trata? O que estas cartas significam?... Ciúme! Mais do que ciúme. Ela... Será que você acredita piamente que ela se case com Rogójin, conforme garante aqui nestas cartas? Pois sim! No dia imediato ao nosso casamento se mataria!
O príncipe estremeceu. Seu coração parou. Só pôde fazer uma coisa: ficar olhando para Agláia, completamente marasmado. E como lhe pareceu estranho verificar quanto essa menina aí era já tão acabadamente mulher!
— Deus bem sabe, Agláia, que para restituir a paz a essa criatura e a tornar feliz eu daria até mesmo a minha vida... Mas agora já não a posso amar. E ela sabe disso!
— Sacrifique-se então. Coisa aliás bem do seu feitio. Você é uma pessoa tão caridosa! E não me chame de Agláia!... Chamou-me simplesmente de Agláia, ainda ontem. Compete a você soerguê-la. É obrigado a tal gesto. Devia ir embora com ela outra vez a fim de lhe dar paz e sossego ao coração. Ora, você bem sabe que a ama!
— Não posso sacrificar-me desta forma, apesar de já haver querido certa vez... e de ainda querer agora. Tenho a certeza de que comigo ela se perderia. E por isso me afasto. Devia ir vê-la hoje às sete horas, mas decerto não irei mais. Ela em seu orgulho nunca toleraria a minha compaixão... e acabaríamos caindo ambos na ruína. Sei quanto isso é esquisito, mas que é que em todo esse caso não é anormal? Dizeis que ela me ama. Mas isso é amor? Posso considerar amor o que presenciei? Não, amor não é, e sim qualquer outra coisa!
— Mas que palidez é essa? — perguntou de chofre Agláia, pasmando para a fisionomia do príncipe.
— Não é nada. É que passei a noite em claro. Estou exausto... Realmente, Agláia, eu e ela conversamos sobre vós.
— Então, é verdade? Falou com ela sobre mim? E... e como se preocupou você comigo se apenas me viu uma vez?
— Não sei como isso se deu. Na minha treva de então sonhei que... Tive a ilusão decerto de que me era possível ir ao encontro duma nova aurora. Não sei como me nasceu esse pensamento. O que vos escrevi naquela ocasião era verdade, embora eu não soubesse. Tudo não passou dum sonho em plena treva... Depois comecei a trabalhar. Contava permanecer ausente uns três anos.
— Então veio por causa dela!? — E a voz de Agláia tremeu.
— Sim, esse foi o motivo.
Houve de parte a parte um silêncio opressivo que se dilatou durante dois minutos. Agláia levantou-se do banco e disse com voz entrecortada:
— Pois fique com a ideia, com a convicção de que essa... sua... mulher é uma louca! Mas eu não tenho nada que ver com as suas fantasias de louca... Intimo-o, Liév Nikoláievitch, a restituir estas cartas a essa mulher, da minha parte! E, se ela ousar tornar a me escrever uma linha que seja, farei queixa a meu pai e então se há de providenciar o seu internamento numa casa de correção!...
O príncipe levantou-se dum pulo e ficou boquiaberto diante da fúria repentina de Agláia. Foi como se uma espécie de névoa o envolvesse.
— Não podeis sentir uma coisa destas! Não pode ser! — balbuciou.
— Sinto! Sinto, sim! — gritou Agláia, fora de si. — É a verdade, a pura verdade!
— Que é que é verdade? Verdade o quê? — ouviram ambos uma voz aflita indagar, perto deles.
Era Lizavéta Prokófievna que estava chegando.
— A verdade... é que vou me casar com Gavríl Ardaliónovitch! Que amo Gavríl Ardaliónovitch e que vou fugir de casa amanhã com ele! — bradou Agláia quase esbarrando na mãe. — Ouviu agora? Ficou satisfeita a sua curiosidade? Ou quer saber mais?
E correu para casa.
— Não, meu amigo, não se vá embora — disse Lizavéta Prokófievna sustando os passos do príncipe. — Você terá a bondade de me dar uma explicação. Que é que eu fiz para ter tantos aborrecimentos? Não consegui dormir a noite inteira.
O príncipe seguiu-a.
9.
Chegando à casa, Lizavéta Prokófievna parou na primeira sala; não pôde ir além e se atirou ofegante num divã, esquecendo-se mesmo de convidar o príncipe a sentar. Era uma sala bem grande, com uma mesa ao centro e uma lareira a um canto; havia muitas flores numa étagère entre as janelas, e uma porta de vidro, na parede oposta, dava para o jardim. Adelaída e Aleksándra apareceram logo com ar indagador, ficando a olhar para a mãe e o príncipe.
Na vila de verão da família as moças geralmente se levantavam às nove horas; mas, de três dias para cá, a mais nova, Agláia, dera em se levantar mais cedo para passear no jardim da casa; não às sete horas, mas às oito ou pouco mais. Lizavéta Prokófievna, que na verdade não conseguira conciliar o sono a noite inteira por causa dos seus muitos aborrecimentos, se erguera às oito horas, contando encontrar-se com Agláia no jardim, certa de que a filha já se teria levantado. Não a descobriu, porém, nem no jardim nem no quarto e acabou ficando tão preocupada que acordou as outras filhas, vindo a saber pelas criadas que Agláia saíra às sete horas na direção do parque. As moças riram de mais esta esquisitice de sua extravagante irmã e avisaram à mãe que a caçula ficaria zangada se fosse procurada no parque onde, na certa, devia estar com um bom livro sentada no banco verde. Aquele banco verde que na véspera fora motivo de discussão com o príncipe Chtch... Ela a achá-lo muito pitoresco, o príncipe a negar.
Lizavéta Prokófievna ao surpreender a filha e o príncipe no tal banco ficara alvoroçadíssima com a declaração aloucada de Agláia. Razões lhe sobravam para se alarmar; mas, depois que trouxe o príncipe consigo até a sala, se arrependeu do que então dissera. “Afinal de contas, que havia de mais em Agláia se encontrar com o príncipe no parque, mesmo que essa entrevista tivesse sido marcada previamente?”
— Não pense, meu bom amigo — começou ela, toda empertigada —, que o trouxe até aqui para lhe passar uma descompostura e interrogá-lo. Depois do que se passou ontem eu não poderia ter nenhuma ansiedade em vê-lo durante muito tempo...
Não pôde prosseguir, teve que parar um momento. Foi o príncipe quem completou a frase, com perfeita serenidade, dizendo:
— Mas a senhora gostaria muito de saber como foi que fui encontrar Agláia Ivánovna esta manhã!
— Gostaria, por quê? — Lizavéta Prokófievna inflamou-se logo. — Nunca tive medo de falar sempre o que quis! De mais a mais não estou insultando ninguém e nem é minha intenção ofender quem quer que seja...
— É lógico que a senhora deseja saber, sem ofensa. A senhora é a mãe dela. Fui encontrar-me com Agláia Ivánovna esta manhã no banco verde, porque ela ontem me convidou. Ontem à noite, me fez saber, por um recado escrito, que desejava encontrar-se comigo para debater um assunto importante. Encontramo-nos e estivemos durante uma hora a conversar sobre coisas que somente concernem a ela. Foi tudo.
— Naturalmente que foi tudo, meu caro senhor; não há nisso a menor sombra de dúvida — concordou a sra. Epantchiná, com dignidade.
— Sobretudo, príncipe — disse Agláia, entrando inesperadamente na sala —, agradeço-lhe de todo o coração por não ter acreditado que eu condescenderia em mentir! Isso chega, mamãe, ou pretende a senhora fazer-lhe um exame mais minucioso?
— Você sabe muito bem que eu até agora nunca tive do que corar diante de você, embora você ficasse contente se por acaso eu tivesse — replicou-lhe Lizavéta Prokófievna severamente. — Adeus, príncipe, perdoe-me de o ter incomodado e espero que fique convencido sempre do meu imutável respeito.
O príncipe imediatamente se inclinou para a direita e para a esquerda e silenciosamente se retirou. Aleksándra e Adelaída riram e cochicharam. A mãe as olhou duramente.
— Mamãe, só mesmo assim é que o príncipe faria tão magníficas mesuras. Via de regra é um desajeitado, mas não é que fez agora, de repente, direitinho feito Evguénii Pávlovitch?
— Delicadeza e dignidade são ensinadas pelo coração e não pelo professor de dança — resumiu logo, sentenciosamente, Lizavéta Prokófievna. E subiu para o quarto, sem sequer olhar para Agláia.
Quando o príncipe chegou à casa aí pelas nove horas, encontrou Vera Lukiánovna e a criada na varanda. Estavam limpando e varrendo, por causa da desordem da noite anterior.
— Graças a Deus tivemos tempo de acabar antes do senhor chegar — disse Vera alegremente.
— Bom dia. Sinto-me um pouco fraco, não dormi bem. Gostaria de me recostar um pouco.
— Aqui na varanda, como o senhor fez ontem? Está bem; vou avisar a todos para não o acordarem. Papai saiu não sei para onde.
A criada foi-se. Vera esteve para acompanhá-la, mas se voltou e veio ansiosamente até perto do príncipe.
— Príncipe, tenha pena desse pobre indivíduo. Não o mande embora hoje.
— De forma alguma o mandarei. Ele que resolva o que quiser.
— Ele não fará nada, agora, e... não seja severo com ele.
— Certamente que não; por que haveria eu de ser?
— E não ria dele, isso é o principal.
— Oh! Nem pensar nisso!
— Estava louca para falar sobre isso com uma pessoa como o senhor — disse Vera, corando. — Apesar do senhor estar cansado — riu, dando meia volta para se ir embora —, os seus olhos estão tão bonitos neste momento, parecem tão felizes!
— Não diga! Deveras? — perguntou o príncipe vivamente, pondo-se a rir, satisfeito.
Mas Vera, que era ingênua e encabulada como uma criança, ficou logo tão confusa e tão vermelha que se retirou depressa, rindo ainda.
“Que jovial rapariga!...”, pensou o príncipe, que logo se esqueceu dela.
Foi para o canto da varanda, onde havia um sofá com uma mesinha ao lado. Sentou-se, escondeu as faces nas mãos e permaneceu assim por uns dez minutos. E, de súbito, muito agitado, tirou ligeiro as três cartas do bolso do casaco.
Mas a porta se reabriu e Kólia surgiu. Isso, muito a propósito, aliviou o príncipe, que, guardando de novo as cartas, adiou o mau momento.
— Ora! Mas que desventura! — disse Kólia, sentando-se no sofá e entrando logo no assunto, como as crianças da sua idade costumam fazer. — Que é que o senhor pensa de Ippolít, agora? Desmereceu ele do seu respeito?
— Ora essa, por quê?... Mas, Kólia, estou muito cansado... Além disso, é muito triste tudo isso, para se recomeçar a... Mas como vai ele?
— Está dormindo há umas duas horas. Pelo que depreendo o senhor não dormiu, nem ficou em casa; deve ter estado no parque... Ficou nervoso, é natural; não é de admirar.
— Por que depreende você que estive passeando no parque e que não fui dormir?
— Vera acabou de dizer. Esforçou-se até para me persuadir a que não viesse; respondi-lhe que ficaria só por um momento. Permaneci estas duas horas na cabeceira de Ippolít; agora cabe a vez a Kóstia Liébediev. Burdóvskii já foi embora. Bem, príncipe, descanse. Boa noite, ou melhor... bom dia! Mas, quer saber? Ainda estou estupefato!
— Naturalmente! Tanta coisa...
— Não, não, príncipe! Estupefato com a “Confissão” de Ippolít. Principalmente aquele trecho a propósito da Providência e da vida futura. Há o pensamento dum gigante em tudo aquilo.
O príncipe olhou afetuosamente para Kólia, que não teve dúvida em entrar logo a explicar em que consistia a seu ver o tal “pensamento de gigante”.
— E não é apenas o pensamento, mas também a maneira pela qual dispôs tudo aquilo. Se fosse escrito por Voltaire, Rousseau, Proudhon eu não me impressionaria tanto. Mas por um homem que tem certeza de que só dispõe de dez minutos para se exprimir desta forma, não é formidável? Ora, isto é a mais alta afirmação de dignidade pessoal, de confiança em si mesmo... Significa uma força titânica de vontade! Depois de tudo, haver quem ouse declarar que ele tirou a cápsula de propósito é vil, é incrível! Mas, quer saber, príncipe?, ele ontem mentiu. Eu não lhe arrumei absolutamente a mala, e nem nunca vi a pistola. Ele arrumou tudo sozinho, mantendo-me sempre arredado. Vera acabou de me dizer que o senhor vai consentir na permanência dele aqui; juro que não há perigo, mesmo porque não o deixaremos sozinho.
— Vocês permaneceram sempre perto dele?
— Revezamo-nos. Kóstia Liébediev e eu. Keller ficou um bocadinho mas depois se retirou e foi dormir no pavilhão de Liébediev porque o quarto era apertado para tanta gente. Ferdichtchénko fez o mesmo, e às seis horas se retirou. O general, como sempre, dormiu na casa de Liébediev, para onde se recolheu logo. Liébediev não demora a aparecer, pois já o esteve procurando umas duas vezes, não sei para quê. Devo deixar que venha, ou não, já que o príncipe precisa descansar? Também vou ver se consigo dormir um pouco. Por falar nisto, gostaria de lhe contar uma coisa a respeito de papai, o general. Não compreendi direito... Burdóvskii me acordara às seis da manhã para eu ficar de plantão, perto do doente; eu saí um pouco para tomar ar, entre a vila e o pavilhão, e dei com ele tão bêbedo que nem me reconheceu. Quase me deu um esbarrão. Nisto voltou a si, agarrou-me, perguntando logo: “Como vai o nosso doente? Vim só para saber como passou ele.” Dei-lhe as informações. “Bem, está muito bem”, respondeu papai, “mas ao que vim de fato, o que me fez levantar foi a necessidade dum aviso urgente. Tenho motivos para prevenir que contenham a língua diante de Ferdichtchénko e que fiquem de alcateia.” Compreende alguma coisa, príncipe?
— De fato? Mas... a que propósito nos pode isso interessar?
— Naturalmente em nada. Não somos maçons! Mas fiquei espantado com a atitude do general levantando-se só com a preocupação de vir me acordar para dizer isto.
— Diz você que Ferdichtchénko saiu?
— Às sete horas. Veio ver-me de passagem. Eu estava levantado por causa de Ippolít. Saiu, declarando que ia passar o dia com Vílkin. Esse Vílkin é um sujeito bêbedo daqui de Pávlovsk. Bem, vou deitar. Chegou Lukián Timoféietch... O príncipe está dormindo, Lukián Timoféietch, meia volta, volver!
— Um momento apenas, honorabilíssimo príncipe. Trata-se dum assunto importantíssimo para mim. — Liébediev ia entrando e falava com voz afetadamente baixa, muito compungido, à medida que fazia mesuras exageradas.
Havendo entrado e já com o chapéu na mão, se esforçava por manter uma expressão circunspecta; mas sua fisionomia excêntrica deixava transparecer uma grande preocupação. O príncipe convidou-o a sentar.
— Soube que perguntou por mim já duas vezes. Que nervoso é esse? Por causa ainda de tudo que aconteceu essa noite?
— Quer dizer... por causa do rapaz, príncipe? Oh! Não; essa noite as minhas ideias ficaram atrapalhadas... mas hoje é meu intento não contrafazer as suas ordens, seja no que for.
— Contrafa... Que é que está dizendo?
— ...zer! Contrafazer! Trata-se dum galicismo horrível como muitíssimos outros que se intrometeram no nosso léxico e com os quais não concordo.
— Que lhe aconteceu, Liébediev, para estar assim tão formalizado e falando com tamanha cadência como se estivesse soletrando?... — indagou Míchkin.
— Nikolái Ardaliónovitch — disse Liébediev dirigindo-se a Kólia com uma voz quase desembargada —, tenho eu que tratar com o príncipe dum negócio todo íntimo.
— Lógico, lógico! E que não me interessa... Adeus, príncipe. — E Kólia se retirou imediatamente.
— Gosto desta criança porque tem tato... — pronunciou Liébediev, seguindo-o com o olhar. — Um garoto esperto, mas algo perguntador... Topei com uma severa calamidade, honorabilíssimo príncipe, esta noite, ou esta manhã, ao dealbar... Hesito em precisar a hora certa...
— Que foi?
— Sumiram 400 rublos do bolso do meu casaco, honorabilíssimo príncipe. Estávamos aguardando o dia — acrescentou com um sorriso azedo.
— Você perdeu 400 rublos? Que pena!
— Principalmente se considerarmos que sou um pobre homem honradamente mantendo família com o meu próprio labor.
— Naturalmente, naturalmente. Como aconteceu isso?
— Frutos do beber! Vim ter logo com o senhor, como a nossa Providência, honorabilíssimo príncipe. Recebi a soma de 400 rublos, novinhos em folha, dum devedor, ontem, às cinco da tarde, e voltei para cá de trem. Estava com a carteira no bolso. Ao mudar o meu uniforme pelo casaco de casa, pus o dinheiro no bolso do casaco, pretendendo nessa mesma noite encontrar uma colocação para ele... Estava esperando um agente.
— Por falar nisso, Lukián Timoféietch, é verdade que você pôs um anúncio dizendo que emprestava dinheiro sobre ouro ou artigos de prata?
— Através de agentes; o meu nome não aparecia nem o meu endereço. A soma à minha ordem é mesquinha e, em vista do aumento de minha família, o senhor há de admitir que, por notória razão, isso de juros...
— Perfeitamente, perfeitamente. Apenas perguntei para saber. Desculpe ter interrompido.
— Mas o tal agente não apareceu. Nesse ínterim o desgraçado rapaz foi trazido para aqui. Eu já estava “alto”, depois do jantar; as visitas foram chegando; bebemos... chá e, por ruína minha, fui ficando alegrote. Quando Keller chegou, atrasado, e disse que era o seu dia de festa natalícia e ordenou champanha, eu, como tenho coração, caro e honorabilíssimo príncipe (como o senhor já deve ter notado segundo tantas vezes me pareceu), desde que tenho um coração não direi sensível mas grato, do que aliás me orgulho, pensei, ora bem, comemorar com o maior respeito a festiva data em perspectiva e, querendo me pôr em condições para poder me congratular também com o senhor, ao ir mudar o meu surrado casaco de casa pelo meu uniforme que eu tirara ao chegar, como de fato tirei, segundo o senhor decerto observou, príncipe, vendo-me depois toda a noite com o meu uniforme, como dizia, ao trocar os meus “arreios”, esqueci a carteira no bolso do casaco... tão verdade é o que digo que quando Deus quer castigar um homem Ele, primeiro que tudo, o priva da sua razão; e somente esta manhã, às sete e meia, ao acordar, pulei como um maluco e me precipitei logo para o meu casaco: o bolso estava vazio! A carteira tinha desaparecido!
— Puxa! Que coisa desagradável!
— Desagradável, deveras; e com verdadeiro tato o senhor acaba de achar a palavra para isso — acrescentou Liébediev não sem simulação.
— Bem, mas... — disse o príncipe, preocupado, ponderando. — Isso é sério, você bem que sabe.
— Sério, deveras. Novamente, príncipe, o senhor encontrou a palavra para descrever...
— Ora! Pare com isso, Liébediev. Não são palavras o que temos que procurar neste caso. Você acha que a teria deixado cair do bolso, quando estava bêbedo?
— Podia bem ser. Tudo pode acontecer quando se está bêbedo, conforme o senhor tão bem se expressou, honorabilíssimo príncipe. Mas eu lhe peço que considere comigo o seguinte: se deixei cair o artigo do meu bolso ao mudar o casaco, o artigo caído devia estar no assoalho. Onde está o artigo?
— Não o teria você posto numa gaveta, numa mesa?
— Já procurei em tudo, desarrumei tudo, embora não tivesse escondido em lugar nenhum e nem aberto gaveta nenhuma, conforme me lembro perfeitamente.
— Já olhou no seu armário?
— A primeira coisa que fiz foi espiar no armário e já tornei várias vezes a procurar dentro dele. E como havia eu de o ter colocado no armário, honorabilíssimo príncipe?
— Confesso que isso já está me amolando, Liébediev. Então alguém deve ter achado no assoalho.
— Ou tirado do meu bolso. Das duas alternativas, uma!
— O que mais me preocupa é saber quem seria. Eis a questão!
— Nem há dúvida. Esta é a grande questão. O senhor encontrou a palavra mesma, verdadeira, com maravilhosa exatidão e definiu a situação, ilustríssimo príncipe.
— Ora, Lukián Timoféietch, pare com essa coisa ridícula, essa...
— Galhofa?! — exclamou Liébediev, juntando as mãos e as esfregando.
— Está bem, está bem, está tudo muito direito. Não estou zangado, não. É um outro negócio, agora. Estou com receio do pessoal. De quem suspeita você?
— Dificílima e complicada pergunta. Da criada não desconfio; esteve sempre sentada na cozinha. De meus próprios filhos também não...
— É claro.
— Uma das visitas, então.
— Será possível?
— Totalmente e no mais alto grau impossível, mas tem que ser! Estou inclinado, pois, a admitir e convencido mesmo de que é um caso de furto. Quem sabe se não foi cometido à noite quando estávamos juntos, nessa mesma noite, depois, ou de manhã, por alguém que tenha passado a noite aqui?
— Ai, ai, meu Deus!
— Burdóvskii e Nikolái Ardaliónovitch, naturalmente eu os excluo. Nem entraram no meu quarto.
— De pleno acordo. E mesmo que tivessem entrado. Quem passou a noite lá?
— Contando comigo, éramos quatro em dois quartos pegados: o general, Keller, o sr. Ferdichtchénko e eu. Portanto deve ter sido um de nós quatro.
— Um dos três, então. Mas quem?
— Contei comigo para ser correto moral e matematicamente! Mas admitirá, príncipe, que eu pudesse parvamente ter roubado a mim mesmo, muito embora esses casos aconteçam?
— Ora, Liébediev, que enfadonho é tudo isto! — exclamou o príncipe. — Voltemos ao ponto em que estávamos. Por que embrulha você as coisas?
— Assim, pois, restam três. Primeiro, o sr. Keller, instável, beberrão e sob certos respeitos, muito liberal! Quero referir-me ao que respeita a dinheiro, a gastar, a pagar, mas sob outros respeitos, mais cavalheiresco do que liberal em suas tendências. Dormiu aqui, no quarto do doente, e foi só alta noite que apareceu no pavilhão sob o pretexto de lhe ser difícil dormir no chão sem nada.
— Você suspeita dele?
— Suspeitei. Quando às oito horas pulei da cama como um maluco, batendo na testa com as mãos, imediatamente acordei o general, que dormia um sono de inocência. Tomando em consideração o estranho desaparecimento de Ferdichtchénko, o que por si só levantou nossas suspeitas, resolvemos revistar Keller, que jazia estirado dormindo como uma toupeira. Revistamo-lo todinho. Não lhe achamos um níquel nos bolsos e não havia um só bolso que não estivesse rasgado. Tinha só um lenço de algodão, listrado de azul, num estado nojento. E também uma carta de amor duma arrumadeira ameaçando-o e pedindo dinheiro! E alguns pedaços do artigo que o senhor ouviu. O general decidiu que ele era inocente. Para completar nossas investigações acordamos o homem, sacudindo-o violentamente. Mal pôde entender do que se tratava. Escancarou a boca com um ar de bêbedo; a expressão do seu rosto era ao mesmo tempo cômica e inocente; aloucada, mesmo. Não foi ele!
— Bem, isso me satisfaz — disse o príncipe, com satisfação. — Estava mais desconfiado dele, creio eu.
— O senhor estava com receio? Então o senhor tem qualquer razão para isso! — E Liébediev perscrutou-o nos olhos.
— Oh, não! Não quero dizer nada — gaguejou o príncipe. — Foi estupidez minha dizer que o meu maior receio era ele. Faça-me um favor, Liébediev, de não repetir isso a ninguém!...
— Príncipe, príncipe, as suas palavras estão no meu coração, no fundo do meu coração. E o meu coração é uma tumba!... — asseverou Liébediev, em êxtase, apertando o chapéu contra o peito.
— Bem, bem. Então deve ter sido Ferdichtchénko. Isto é, quero dizer que você passa a suspeitar de Ferdichtchénko!
— Quem mais? — articulou Liébediev mansamente, olhando com atenção para Míchkin.
— Efetivamente. Quem mais estava lá?... Mas insisto ainda: que provas existem?
— Há uma prova. Primeiro haver desaparecido às sete horas da manhã, ou mesmo antes.
— Já soube. Kólia me contou que Ferdichtchénko fora até ele e dissera que ia passar o dia com... esqueci o nome... certo amigo dele.
— Vílkin. Então Nikolái Ardaliónovitch já lhe tinha contado?
— O furto, não.
— Ele ignora, pois a esse tempo eu ainda o conservava em segredo. Então foi ter com Vílkin. Devo dizer que não há nada de estranho num bêbedo ir ver um outro bêbedo como ele próprio, mesmo que isso seja antes do dia raiar e sem razão nenhuma. Mas aqui temos um rastro. Antes de sair deixou o endereço... Agora, príncipe, sigamos a questão. Por que deixou ele um endereço? Por que propositadamente se desviou ele do caminho da saída direita, indo dizer a Nikolái Ardalionóvitch que ia passar o dia com Vílkin? Por que esse aviso? Não, aqui temos nós a astúcia, a astúcia dum gatuno! É o mesmo que dizer: “Não encobrirei os meus traços de propósito; portanto, como serei eu o gatuno? Deixará dito um gatuno para onde foi?” Trata-se dum excesso de zelo para desviar suspeitas e para apagar, por assim dizer, as pegadas na areia... Está me entendendo, honorabilíssimo príncipe?
— Compreendo, compreendo perfeitamente; mas isso tudo não basta.
— Um segundo rastro. A pista acabou se descobrindo que foi falsa, pois o endereço não é exato. Uma hora mais tarde, isto é, às oito horas, estava eu batendo à porta de Vílkin. Mora na Quinta Rua e eu também o conheço. Não havia sinal de Ferdichtchénko; e a criada, que é surda como uma pedra, me disse que alguém tinha realmente batido uma hora antes e com tanta força que quebrara a campainha. Mas a criada não quis abrir a porta para não acordar o sr. Vílkin e decerto não desejando tampouco se levantar ela própria.
— E é essa toda a sua suspeita? Não é muita.
— Príncipe, mas de quem suspeitar, então? Julgue o senhor próprio — concluiu Liébediev, com a máxima persuasão; e havia um brilho de qualquer coisa dissimulada em seu arreganho de dentes.
— Você deve dar uma batida em seus cômodos outra vez e espiar gaveta por gaveta — aconselhou o príncipe, com certa veemência, depois de refletir um pouco.
— Já revistei tudo — acentuou Liébediev, insinuando qualquer coisa mais.
— Arre! Por que diabo foi você mudar de casaco? — E Míchkin deu um soco na mesa com certo aborrecimento.
— Ora aí está uma pergunta parecida com uma outra duma comédia fora da moda. Mas, bondoso príncipe, vejo que minha desgraça atingiu o seu coração. Não mereço isso. Quero dizer que sozinho não valho isso, mas o senhor ficou preocupado com o criminoso... Com este Ferdichtchénko, que não vale um caracol!
— Realmente. Você não deixou de me aborrecer. — O príncipe interrompeu-o com certa acrimônia e dum modo vago. — Que pretende então você fazer... já que está tão convencido de que foi Ferdichtchénko?
— Príncipe, honorabilíssimo príncipe, quem mais então poderia ter sido? — perguntou Liébediev, agitando-se com crescente persuasão. — Conforme o senhor vê, a falta de mais alguém em quem me deter, e por assim dizer, a completa impossibilidade de suspeitar de quem quer que seja a não ser Ferdichtchénko, torna-se, por assim dizer, uma peça de convicção; a terceira, contra o mesmo sr. Ferdichtchénko. Ora, pergunto eu, novamente, quem mais podia ter sido? O senhor não suspeitaria de Burdóvskii, a meu ver?!
— Que asneira!
— Nem do general! Ah! Ah! Ah!
— Você está doido! — disse o príncipe, quase furioso, mexendo-se impacientemente no sofá.
— Doido, não há dúvida! Ah! Ah! Ah! E ele me divertiu também. Refiro-me ao general. Fui com ele, ainda agora, quando a pista ainda estava fresca, à casa de Vílkin... e devo dizer-lhe que o general estava mais impressionado do que quando o acordei, o que aliás foi a primeira coisa que fiz, quando dei pelo extravio. A cara dele mudou. Ficou vermelho; depois, pálido. E por fim caiu em violenta indignação, e muito justa, como se antes de qualquer outra coisa eu tivesse suspeitado dele! É um homem honorabilíssimo. Frequentemente está contando mentiras, por fraqueza; mas é pessoa dos mais nobres sentimentos. Um homem, além disso, sem estratagemas, que inspira a maior confiança, por sua inteireza. Já lhe disse uma vez que o que sinto por ele não é só um fraco, é afeição! Inesperadamente ele parou no meio da rua, desabotoou o casaco, pôs o peito à mostra e berrou: “Reviste! Já que revistou Keller, por que não me há de revistar? O direito é isso!” Os seus braços e as suas mãos estavam tremendo; ficou completamente lívido. Olhava-me ameaçadoramente. Ri e disse: “Escute aqui uma coisa, general! Se alguém ousasse dizer tal calúnia do senhor, eu arrancaria minha cabeça com as minhas próprias mãos. Haveria de pô-la numa bandeja e a levaria a quem desconfiasse do senhor. ‘Está vendo esta cabeça?’, perguntaria eu. ‘Pois é com ela que respondo por ele. E não é só isso. Caminharia dentro do fogo, por ele.’ Eis o que eu faria, general!”, disse-lhe eu. Então, ali em plena rua, ele me apertou nos braços, desfez-se em lágrimas, tremendo, e me ficou apertando tanto que me provocou tosse. “Tu és o único amigo que me resta no infortúnio!”, disse. Aquilo é que é homem de sentimento. E, então, logo me contou ali mesmo uma anedota: que uma vez fora suspeitado, na sua mocidade, de ter furtado 500 rublos. Mas que logo no dia seguinte aconteceu que se precipitou por uma casa incendiada adentro, e extraiu das chamas para fora o conde que tinha suspeitado dele, e mais Nina Aleksándrovna, que então era uma menina. O conde abraçara-o e disso proviera seu casamento com Nina Aleksándrovna. E mais ainda... que, no dia seguinte, foram encontrar nas ruínas da casa uma caixa com o dinheiro dado como perdido. Era um cofre forte inglês, com uma fechadura com segredo e que tinha sido posto debaixo do assoalho, de maneira que ninguém notara, só sendo achado depois do incêndio. Uma mentira com todos os ff e rr. Mas, quando se referiu a Nina Aleksándrovna, aí não pôde, chorou. De fato, Nina Aleksándrovna é a mais respeitável das damas, apesar de estar zangada comigo.
— Você não a conhece, não é?
— Muito mal, se tanto; mas gostaria, de todo o coração, quando mais não fosse para me justificar perante ela. Nina Aleksándrovna embirra comigo porque acha que eu desencaminho para a bebedeira o seu esposo. Mal sabe essa digna senhora que, longe de desencaminhá-lo, eu o refreio. O que venho tentando é tirá-lo da mais perniciosa companhia. De mais a mais, trata-se dum amigo, e confesso que não o quero abandonar, agora. De fato, justo e feito. Onde ele vai, lá estou eu. Pois o único meio de manobrar com ele é por intermédio da sensibilidade. Chegou até a desistir de visitar a viúva do seu capitão, agora, muito embora, secretamente, tenha saudades dela, afligindo-se muito, principalmente de manhã, quando calça as suas botas. Não sei em que pé se acha, presentemente. Ele está sem dinheiro e isso atrapalha, pois como há de ir vê-la sem isso? Ele não lhe tem pedido dinheiro, honorabilíssimo príncipe?
— Não tem.
— É porque tem vergonha. Já deu a entender. Confessou-me, de fato, que pensou incomodá-lo, mas que se intimidou porque o senhor o obsequiou, não há muito; e além disso acha que o senhor não lho daria. Disse-me isso como a um amigo.
— Então você lhe dá dinheiro?
— Príncipe, honorabilíssimo príncipe, a esse homem não dei dinheiro apenas, mas a bem dizer, a vida... Mas não, não quero exagerar, a minha vida não; mas se fosse um caso de febre, um abscesso ou mesmo uma tosse, estaria pronto a suportar no lugar dele; realmente o faria. Pois o considero como um grande homem, embora decaído! Sim, com efeito; e não dinheiro só!
— Então você lhe dá dinheiro?
— N...ão; dinheiro não tenho dado. Não tenho dado. E ele está farto de saber que não darei, não. Mas isso tem sido somente com o ponto de vista de ajudá-lo em aperfeiçoamento e reabilitação. Agora está insistindo para ir comigo a Petersburgo, para encontrarmos o sr. Ferdichtchénko enquanto a pista está fresca. Pois estamos cientes de que foi para lá. O meu general é todo impetuosidade, mas desconfio que o que quer é escapulir, até Petersburgo, para ir visitar a tal viúva. Vou deixar que venha comigo, de propósito, confesso, e que concordamos tomar diferentes direções logo que chegarmos lá, de maneira a apanharmos mais facilmente o sr. Ferdichtchénko. Assim, pois, vou deixá-lo ir e depois lhe caio em cima inesperadamente, como neve sobre a cabeça, em casa da viúva, só para envergonhá-lo, como a chefe de família e como a homem, propriamente, falando dum modo geral.
— Mas ao menos não faça nenhum estardalhaço, Liébediev. Pelo amor de Deus, não faça nenhum distúrbio — disse o príncipe, abaixando a voz, com certa inquietação.
— Oh! Não. Simplesmente para envergonhá-lo e ver que espécie de cara ele faz, pois só pela cara se pode julgar muita coisa, estimado príncipe, principalmente num homem como ele. Ah, príncipe, grande como é agora a minha preocupação, não posso ainda assim deixar de pensar nele e na reforma da sua moral! Tenho um grande favor a pedir-lhe, príncipe, e devo confessar que foi expressamente para isso que vim perante o senhor. O príncipe tem intimidade na casa dele, já morou mesmo com ele; se, pois, o senhor pudesse ajudar-me, honorabilíssimo príncipe, inteiramente por causa dele e de sua felicidade...
E Liébediev não se conteve e juntou as mãos, como em súplica.
— Ajudá-lo? Ajudá-lo como? Acredite, estou fazendo todo o possível a ver se o entendo, Liébediev.
— Foi inteiramente com esta convicção que vim até aqui. Poderíamos agir por intermédio de Nina Aleksándrovna, constantemente de olho nele e, por assim dizer, encaminhando-o para o seio da família. Não os conheço infelizmente. Contudo, Nikolái Ardaliónovitch adora o senhor, por assim dizer, com todas as fibras do seu coração juvenil, e ele poderia ajudar talvez...
— Meter Nina Aleksándrovna nessa história, não! Pelo amor de Deus! Nem Kólia, tampouco... Mas talvez eu ainda não tenha conseguido entender você, Liébediev.
— Ora, não há nada que entender. — Liébediev ergueu-se dum salto da sua cadeira. — Simpatia, simpatia e ternura: eis todo o tratamento que o nosso doente requer. O senhor me permite, príncipe, pensar nele como num doente?
— Sim, o que mostra a sua delicadeza e inteligência.
— A bem da clareza, devo explicar com um exemplo tirado da prática. O senhor vê a espécie de homem que ele é. A única fraqueza agora é para com essa viúva, que não lhe permitirá entrada sem dinheiro; e é em tal casa que penso descobri-lo hoje, para o seu próprio bem. Mas, supondo que não fosse só a viúva do capitão; supondo que ele tivesse cometido atualmente um crime, ou de qualquer modo uma ação desonrosa (do que aliás ele naturalmente é incapaz), mesmo então, digo eu, o senhor poderia fazer alguma coisa por ele, simplesmente por generosa ternura, por assim dizer, pois ele é o mais sensível dos homens. Acredite-me, não se conteria por cinco dias; falaria contra si mesmo; choraria e confessaria, principalmente se alguém trabalhasse com habilidade, e com um estilo honroso, por intermédio de sua acautelada família, e o senhor, em suas idas e vindas... Oh, caridosíssimo príncipe! — Liébediev caiu numa espécie de exaltação. — Naturalmente não estou afirmando que ele... Estou pronto a derramar minha última gota de sangue, por assim dizer, por ele, neste momento, muito embora a sua incontinência, a sua bebedeira e a viúva do capitão, e tudo o mais, em conjunto, possam levá-lo a...
— Em tal caso estou pronto a ajudá-lo — disse o príncipe, levantando-se. — Apenas confesso, Liébediev, que estou terrivelmente inquieto. Diga-me, você ainda... Em uma palavra, você mesmo disse que suspeita de Ferdichtchénko...
— Ora, quem mais? Sinceramente, príncipe? — E de novo Liébediev juntou as mãos, suplicemente, com um sorriso adocicado.
O príncipe franziu a testa e se moveu do seu lugar.
— Repare bem: um erro, Lukián Timoféietch, seria uma coisa terrível. Esse Ferdichtchénko... Eu não gostaria de falar mal dele... Esse Ferdichtchénko... ora, quem sabe, talvez seja ele... Quero dizer que talvez ele seja mais capaz do que... qualquer outro...
Liébediev esgazeou os olhos e apurou os ouvidos.
— Vê você — continuou o príncipe, mais carrancudo ainda e vacilando, à medida que passeava para cima e para baixo, pela varanda, esforçando-se por não olhar Liébediev — procurarei fazer-me entender... Disseram-me a respeito do sr. Ferdichtchénko que era um homem diante do qual a gente devia ter cuidado em não dizer coisa de mais, está compreendendo? Digo isto para mostrar que talvez ele realmente seja mais capaz do que qualquer outro... É preciso, de toda maneira, não se cometer um equívoco, e essa é a principal coisa, está entendendo?
— Quem lhe disse isso a respeito do sr. Ferdichtchénko? — jogou Liébediev, de repente.
— Foi-me segredado isso... Eu próprio não acredito muito, contudo... E me amola bastante ter-lhe dito isso. Assevero-lhe que não acredito, eu próprio... deve ser leviandade de quem disse. Irra! Que estúpido fui!
— Vê o senhor, príncipe — disse Liébediev, contraindo-se todo —, isto é importante. Isto é importante exatamente agora. Não me refiro ao sr. Ferdichtchénko. Refiro-me ao modo por que esta informação chegou ao senhor. — Dizendo isso Liébediev deu uns passinhos pela frente e pelas costas do príncipe, tentando emparelhar com ele. — Tenho uma certa coisa a dizer-lhe, príncipe: ainda agora mesmo, quando eu ia indo com o general à casa de Vílkin, depois que me pespegou aquela léria do incêndio, ele estava fervendo, naturalmente, ainda com cólera; e, sem mais aquela, começou a despejar a mesma suspeita a respeito do sr. Ferdichtchénko, mas de um modo tão estranho e incoerente que não pude deixar de lhe fazer certas perguntas, e acabei me convencendo que toda aquela longa história não era mais do que uma inspiração apenas de Sua Excelência, erguendo-se, solitária, por assim dizer, do seu generoso coração. Pois ele mente inteiramente por não poder restringir a sua sentimentalidade. Agora, bondosamente considere o senhor isto: se ele mentiu, e tenho certeza que mentiu, logo não foi dele que o senhor ouviu o que há pouco me disse. Foi uma inspiração de momento, príncipe, compreende o senhor? Logo, foi outra pessoa que lhe disse aquilo!... Isto é muito importante... Isto é muito importante... Isto é muito importante... e... por assim dizer...
— Foi Kólia quem me disse, ainda agora, e foi dito por seu pai nesta manhã, quando o encontrou às seis horas, entre seis e sete horas, no corredor, ao sair para qualquer coisa.
E o príncipe contou a história, mais minuciosamente.
— Ah! Bem, isso é o que se chama um indício. — E Liébediev riu, sem fazer ruído, friccionando as mãos. — Tal como eu pensei. Quer isso dizer que Sua Excelência acordou do seu sono de inocência às seis horas, expressamente para ir acordar seu dileto filho e avisá-lo do grande perigo de se misturar com o sr. Ferdichtchénko. Que perigoso homem não deve ser esse sr. Ferdichtchénko! E que paternal solicitude, da parte de Sua Excelência!
— Escute, Liébediev — o príncipe estava completamente atordoado —, ouça, guarde segredo absoluto sobre isso. Não faça clamor. Peço, exijo, Liébediev. Estou resolvido a ajudá-lo mas com a condição de ninguém vir a saber nada sobre este assunto.
— Fique tranquilo, boníssimo príncipe, muito leal e generoso príncipe! — exclamou Liébediev em perfeito êxtase. — Esteja tranquilo que tudo isso ficará enterrado em meu coração, que é um coração galhardo! Daria o meu sangue, gota a gota. Ilustre príncipe, sou uma pobre criatura quer de alma quer de espírito, mas pergunte a qualquer outra pobre criatura, a um tratante mesmo qualquer, com quem preferiria ele ter negócios, com um bandido de igual laia ou com um coração nobre como o senhor! E ele responderia logo que preferia a pessoa de coração leal, nobilíssimo príncipe! Ora, que significa tal opção? O triunfo excelso da virtude! Adeus, honorabilíssima Alteza. Cumpre agir de mansinho, muito em surdina, e... de mãos dadas...
10.
Só à noite, quando teve coragem de as ler, foi que o príncipe compreendia por que ficava gelado, sempre que tocava naquelas três cartas.
Já de manhã, quando se estirara na espreguiçadeira da varanda, sem resolver abri-las, tivera, outra vez, mal caíra num sono profundo, outro sonho desagradável. Novamente a “mulher pecamiminosa” lhe apareceu. E novamente o olhava através das lágrimas que lhe perlavam os longos cílios, e lhe acenava que a seguisse. O príncipe acordara, lembrando-se, como tinha acontecido antes, da angústia que o seu rosto lhe causava. Teve vontade de ir procurá-la imediatamente; mas não podia. Então, quase desesperado, abriu as cartas e começou a lê-las.
Estas cartas também eram como um sonho! Às vezes temos sonhos estranhos. Impossíveis e incríveis sonhos. Ao acordar, lembramo-nos deles e passamos diante dum fato estranho: lembramo-nos, primeiro que tudo, de que a nossa razão não nos abandonou completamente durante o sonho. Recordamos mesmo que agimos sagazmente, e até com lógica, durante aquele tempo todo, aquele longo, longo tempo em que nos cercavam assassinos que nos enganavam, escondendo as suas intenções e se comportando amistosamente conosco, embora tivessem uma arma preparada e só esperassem um sinal. Lembramo-nos como os iludimos escondendo-nos astutamente, e como depois nos déramos conta de que eles tinham percebido nosso esconderijo, mas fingiam não saber onde estávamos escondidos; e, apesar disso, dissimulávamos de novo e os enganávamos outra vez. Como nos lembramos de tudo isso, claramente! Mas como foi que pudemos reconciliar a nossa razão com os notórios absurdos e impossibilidades através dos quais os nossos sonhos surgiam? Um dos nossos assassinos transformava-se em mulher, diante de nossos olhos; e de mulher, num manhoso e repugnante anãozinho; e aceitávamos isso logo, como uma coisa que, embora se tivesse dado, não nos devesse causar surpresa, naquela hora mesma em que, por um outro lado, a nossa razão atingira a mais alta tensão e mostrara toda a sua extraordinária força, argúcia, sagacidade e lógica!
E, outrossim, ao acordar e voltar plenamente à realidade, como é que sentíamos a toda hora, umas vezes com mais extraordinária intensidade do que outras, que ficava alguma coisa sem explicação, atrás desse sonho? Ríamo-nos, ante o absurdo do nosso sonho mas, simultaneamente, sentíamos que, intercalado entre esses absurdos, permanecia um pensamento oculto; e que esse pensamento era real, pertencia, como coisa e como fato, à nossa vida de então e de agora; alguma coisa que existe e existiu sempre em nosso coração. E, além disso, uma outra coisa nova, profética, mas que não esperávamos, nos era dita, em nosso sonho. A impressão colhida pode ser alegre ou angustiosa; mas é viva, embora não possamos saber nem reter o que nos foi dito.
E assim aconteceu, mais ou menos, depois que o príncipe abriu e leu aquelas cartas. E, antes mesmo de as desdobrar, sentiu que o só fato da existência e significação delas era como um pesadelo. O que a levaria a escrever à outra?, perguntava-se ele, enquanto vagabundeava, sozinho, a noite anterior (certos momentos nem sabendo para onde ia). Como pudera ela ter escrito isso? Como pudera tal fantasia se ter levantado em seu espírito? Mas essa fantasia, agora, tomara forma. E a coisa mais espantosa, para ele, era que, ao ler aquelas cartas, quase acreditava haver descoberto a justificativa dessa fantasia. Mesmo sendo, como parecia, um sonho, um pesadelo, uma loucura; algo, porém, de atormentadoramente real, algo de angustiosamente verdadeiro, justificava o sonho, o pesadelo e a loucura! Horas seguidas, os fragmentos do que tinha lido o perseguiam; examinava-os, refletia sobre eles. Chegou a ficar inclinado a dizer a si mesmo que tinha previsto tudo isso, e tudo conhecido de antemão. Era como se tivesse lido antes, há muito tempo já, e que tudo por que se estava afligindo agora já lhe tivesse dado sofrimento antes, em sonho, como se o que se escondia naquelas cartas já fosse uma coisa lida, “em tempos”.
Quando abrirdes esta carta — assim começava a primeira epístola —, ireis logo, antes de qualquer outra coisa, olhar a assinatura. E a assinatura, então, vos dirá tudo; e tudo ficará explicado. Portanto, não é preciso fazer nenhuma justificativa. Se, dum certo modo, eu estivesse no mesmo nível em que estais, esta minha impertinência poderia vos ofender. Mas, quem sou eu, e quem sois vós? Somos dois extremos opostos, e eu estou tão infinitamente abaixo de vós que não vos posso insultar, mesmo que o quisesse.
Em outro lugar, escrevera:
Não tomeis as minhas palavras como superabundância dum espírito doentio, mas... vós sois, para mim, a perfeição! Eu vos vi! Eu vos vejo todos os dias. Eu não vos julgo. Não foi através da razão que cheguei a concluir que sois a perfeição. Apenas cheguei a isso pela fé. Mas... um mal vos faço: amo-vos! E a perfeição não deve ser amada. Só se pode olhar a perfeição como perfeição. Não é assim? E, todavia, vos amo até a paixão. E, se o amor iguala, não fiqueis inquieta: não me pus em pé de igualdade perante vós, nem mesmo no mais íntimo de mim mesma. Reparai bem que escrevi: “Não fiqueis inquieta!” Ficareis, possivelmente, intranquila? Beijaria as vossas pegadas, se pudesse! Oh! Não me ponho no mesmo alto nível em que estais, olhai a minha assinatura. Será suficiente que olheis a minha assinatura.
Escrevia ela, numa outra carta:
Noto, porém, que junto sempre o vosso nome com o dele! E, todavia, nunca, uma vez sequer, me perguntei a mim mesma se vós o amais. E ele vos ama, embora só vos tenha visto uma vez. Ele pensa em vós, como numa “luz”. Foram as próprias palavras dele, eu as ouvi, mas, mesmo sem palavras, eu sabia que éreis uma “luz” para ele. Vivi um mês inteiro ao seu lado, e compreendi, pude compreender então que também o amais. Assim, pois, para mim, vós e ele sois um.
Escrevia ela, depois:
Que significa isso, Deus meu?! Ontem passei por vós e me pareceu que enrubescestes. Mas não pode ser. Foi equívoco meu. Se fosseis conduzida a um antro asqueroso e vos mostrassem o vício, em sua crueza, não deveríeis enrubescer. Sois muito sublime para vos melindrardes com um insulto. Poderíeis odiar o que for baixo e vil, não por vós, mas por causa dos outros, daqueles que estão errados. Para vós, porém, não há quem seja mau. Quereis saber? E penso que deveis me amar. Sois para mim o mesmo que para ele: “um raio de luz”. Um anjo não pode odiar. não pode deixar de amar. Pode alguém, não me refiro a um anjo, mas a um ser humano, amar a todos os homens, a todo seu próximo? Muitas vezes me tenho feito esta interrogação. Naturalmente que não. Não é natural, com efeito. No amor abstrato para com a humanidade, não se ama a ninguém, e sim a si próprio. Mas isso não conta, para nós, e vós sois diferente. Como não amaríeis alguém, se não sois comparável a ninguém, estando, como estais, acima de todo insulto e de todo ressentimento pessoal? Vós, e ninguém mais, podeis amar sem egoísmo. Só vós podeis amar, não só por vós, mas por ele, que tanto amais. Ah! Como me seria amargo vir a saber que sentis vergonha, ou cólera, motivadas por mim! Isso seria a vossa ruína, pois cairíeis ao meu nível, imediatamente!
Ontem, depois de vos ter encontrado, voltei para casa e inventei um quadro. Os artistas geralmente pintam o Cristo tal como Ele aparece nas histórias do Evangelho. Eu O pintaria diferentemente. Imaginá-Lo-ia sozinho. (Os Discípulos algumas vezes O devem ter deixado sozinho.) Apenas deixaria uma criancinha ao lado Dele. Uma criança a brincar ao lado Dele, dizendo-Lhe qualquer coisa, com a sua vozinha de pássaro. Cristo teria estado a escutar, mas agora estaria pensativo, com a Sua mão descansando inconscientemente sobre a linda cabeça da criança. Ele estaria olhando para a distância, para o horizonte. Um pensamento, do tamanho do mundo, habita nos Seus olhos. A Sua face está conturbada. A criança se apoiaria calada, sobre o joelho de Cristo, o rostinho pousado sobre a mão; a cabeça virada um pouco para cima, olharia com atenção para Ele, refletindo, com aquele jeitinho pensativo que as crianças às vezes têm. E o sol estaria a descambar. Este seria o meu quadro! Vós sois inocente, e, na vossa inocência, jaz toda a vossa perfeição. Lembrai-vos disto, tão só. Que tendes vós que ver com a minha paixão por vós? Agora sois toda minha; estarei toda a minha vida ao vosso lado... Morrerei breve...
Finalmente, na derradeira carta, estava escrito:
Pelo amor de Deus, não penseis nada de mim, e nem que me estou aviltando em escrever-vos, desta forma, ou que pertença à classe de gente que tem prazer em se aviltar, mesmo que isso o seja só por orgulho. Não. Eu tenho a minha consolação, embora me seja muito difícil explicar-vos qual e como seja. A mim própria me seria difícil explicar isso de modo claro. E como me atormenta não o poder fazer! Mas uma coisa sei: que não me posso aviltar nem mesmo num acesso de orgulho que porventura viesse a ter! E também sou incapaz dum voluntário aviltamento, mesmo por pureza. Assim, pois, não me estou aviltando, absolutamente.
Por que será que desejo unir-vos bem? Por vossa ou por minha causa? Por minha, naturalmente! Por minha causa, logicamente, pois assim solverei todas as minhas dificuldades. Já desde muito que venho dizendo isso a mim mesma. Ouvi dizer que vossa irmã Adelaída dissera do meu retrato, certa vez, que, com uma beleza assim, era possível virar o mundo de cima para baixo. Oh! Mas eu renunciei ao mundo! Diverte-vos, talvez, ouvir isso de mim, tendo-me encontrado, como já me encontrastes, coberta de rendas e de diamantes, em companhia de bêbedos e de devassos?! Ah! Nem chegueis a imaginar isso! Já cessei, decerto, de existir, e sei disso muito bem. Deus sabe o que, em meu lugar, vive dentro de mim. Leio isso todos os dias, em dois terríveis olhos que estão sempre me contemplando, mesmo quando não estão diante de mim. Estes olhos estão “calados” agora (sempre foram silenciosos!) mas eu conheço os segredos deles. Ou melhor, dele. A sua casa é sinistra e há um mistério dentro dela. E eu sei que ele tem escondida, numa caixa, uma navalha, enrolada em seda como a daquele assassino de Moscou. E que, como aquele outro, ele vive assim, com sua mãe, e guarda uma navalha enrolada em seda para, com ela, cortar uma garganta. Todo o tempo em que estive naquela casa se me afigurava que, não sei onde, ali debaixo do assoalho, devia estar um cadáver, escondido talvez por seu pai, amortalhado num encerado, cercado de jarras contendo desinfetante Jdánov. Poderia mostrar-vos o canto de que desconfio. Ele não fala, mas estou farta de saber que me ama tanto que é impossível que não me odeie! O vosso casamento e o meu realizar-se-ão na mesma época. Já fixamos isso.
Como haveria ele de me esconder segredos?! Eu seria capaz de o matar, só lhe inspirando terror, mais nada! Mas ele me matará antes! Ainda agora, há pouco, ele riu e disse que eu estava delirando. E sabe que vos estou escrevendo...
E havia outros, muitos outros delírios mais, naquelas cartas. Uma delas, escrita numa letra pequena — a segunda —, enchia duas grandes tiras de papel de bloco.
Por fim, o príncipe deixou a escuridão do parque por onde vagabundeara por longo tempo, como já o fizera na noite anterior. A noite clara, límpida, pareceu-lhe mais clara do que nunca.
“Ainda será muito cedo?” (Esquecera de trazer relógio.) Representou-se-lhe ouvir música, a pouca distância. “Deve ser no Vauxhall”, pensou. “Certamente elas não foram até lá, hoje.” — Ao fazer esta reflexão, se deu conta de que estava perto da vila dos Epantchín. Sabia perfeitamente que lhe tinha que acontecer isso, encontrar-se, finalmente, ali; e foi com o coração pulsando demais que subiu os degraus da varanda, sem encontrar ninguém. A casa parecia vazia. Esperou; depois abriu a porta que dava para o salão. “Eles nunca a fecham.” Este pensamento vislumbrou-o através do espírito; mas a sala também estava vazia, imersa quase na escuridão. Ficou parado, no meio, perplexo. E, nisto, uma porta se abriu e Aleksándra entrou, vinda dum cômodo, com uma vela na mão. Levou um susto, mas reconheceu Míchkin e parou, diante dele, numa atitude interrogativa. Pelo modo, ela simplesmente ia atravessar a sala duma porta para outra, nem lhe passando pela ideia que iria encontrar alguém.
— Como foi que veio até aqui?
— En... trei...
— Mamãe não está se sentindo bem; Agláia também. Adelaída já foi para a cama. E é o que eu vou fazer. Estivemos em casa, sem mais ninguém, toda a noite. Papai e o príncipe estão para Petersburgo.
— Eu vim... até aqui... assim...
— Sabe que horas já são?
— N... ão.
— Já passa da meia-noite. Nós nos deitamos sempre a uma hora.
— Ora essa! Eu pensava que fossem umas nove e meia...
— Não faz mal! — Riu ela. — E por que não veio antes? Nós o estivemos esperando.
— Pensei que... — gaguejou ele, já a sair.
— Então, adeus! Como se vão rir, amanhã, quando eu contar...
Voltou para casa, pela estrada que rodeia o parque. O seu coração batia tanto como se tivesse levado um susto. Os pensamentos o alvoroçavam, e tudo à sua volta se transfigurava num sonho. E, de repente, como naquele sonho que o fizera acordar sobressaltado, duas vezes, na véspera, a mesma aparição surgiu diante dele. A mesma mulher, saindo do parque, se estampou diante dele, como se o estivesse esperando ali. Estremeceu e parou. Ela lhe tomou a mão e a apertou. “Não, não foi uma aparição!” Era ela, e estava, enfim, pela primeira vez depois que se tinham separado, diante dele, parada, dizendo-lhe qualquer coisa, enquanto ele a olhava em silêncio. Como o seu coração crescia, e que dor angustiante que isso tudo lhe causava, pobre coração! Ah! Como esquecer que o coração lhe doía sempre, assim, quando a encontrava! Ela caiu de joelhos, diante dele, ali na estrada, como uma demente. Deu um passo para trás, estupefato. Ela tentava beijar-lhe as mãos, prendendo-as, e, tal como no sonho daquela noite, lágrimas fulgiam em seus longos cílios.
— Levantai-vos! Levantai-vos! — ciciou, muito zonzo, tentando erguê-la.
— Estás feliz? És feliz? — perguntava ela. — Dize-me uma palavra só. Estás feliz, agora, hoje, neste momento? Estiveste com ela? Que foi que ela te disse? — E não se levantava nem o ouvia. Fazia-lhe as perguntas atropeladamente, tinha pressa em falar, como se estivesse sendo perseguida. — Vou-me embora amanhã, como mandaste dizer. Eu não quero... É a última vez que te estou vendo. A última! Desta vez é absolutamente a última!
— Acalmai-vos! Levantai-vos! — disse ele desesperado.
Ela olhava-o vorazmente, apertando-lhe as mãos.
— Adeus! — disse, por fim. Levantou-se e foi embora, apressadamente, quase a correr. E então o príncipe divisou Parfión, que inesperadamente se destacou da sombra e a tomou por um dos braços, levando-a.
— Espere um pouco, príncipe — disse Rogójin, de lá. — Volto em menos de cinco minutos.
E em menos de cinco minutos voltava, de fato, encontrando o príncipe no mesmíssimo lugar.
— Ajudei-a a subir para a carruagem — disse. — Estivemos aqui esperando, na esquina, desde as dez horas. Ela sabia que o senhor devia estar na casa daquela jovem, esta noite. Eu lhe tinha contado que o senhor me escreveu hoje. Ela jurou que não escreverá mais para aquela jovem. Prometeu-me e irá embora daqui amanhã, conforme o senhor deseja. Mas desejou vê-lo pela última vez, apesar do senhor se ter recusado a vê-la. Estivemos esperando ali, naquele banco, para lhe sairmos ao encontro, quando estivesse de volta.
— Foi você que a trouxe ou ela veio por sua própria vontade?
— Por que não? — Rogójin arreganhou os dentes. — Vi o que já não ignorava. Já leu as cartas? Já?
— E é verdade que ela lhas mostrava? — perguntou o príncipe, impressionado por essa ideia.
— Naturalmente. Ela me ia mostrando à medida que escrevia cada uma delas. Aquela a respeito da navalha, também, ah! Ah! Lembra-se?
— A coitada está louca! — exclamou o príncipe, torcendo as mãos, convulsamente.
— Quem sabe lá? Talvez não! — disse Rogójin com voz muito baixa, como se falasse para si mesmo. E o príncipe a tal respeito não respondeu nada.
— Bem, então, adeus! — disse Parfión. — Eu também vou embora, amanhã. Não guarde ressentimento de mim. E deixe que lhe pergunte, irmão — acrescentou, virando-se —, por que não respondeu àquela pergunta: “És feliz, ou não?”
— Não, não, não! — exclamou o príncipe, com inenarrável tristeza.
— Penso que não, também! Deveras! — Rogójin riu maliciosamente e foi embora, sem olhar para trás.
QUARTA PARTE
1.
Havia uma semana que se dera o encontro daquelas duas personagens da nossa história no banco verde. E agora, nessa clara manhã, aí pelas dez e meia, Varvára Ardaliónovna Ptítsin regressava de uma visita a certos amigos, imersa em sinistra reflexão.
Gente há cujo aspecto característico e típico é difícil descrever integralmente. É gente habitualmente chamada “comum” ou “maioria” e que efetivamente compõe a quase totalidade da humanidade. A maior parte dos autores tenta, em seus contos e novelas, selecionar e apresentar de modo artístico e vivo tipos raramente encontrados na inteireza de suas vidas imediatas, muito embora sejam, sem embargo, mais reais do que a vida real mesma. Podkolióssin,1 como um tipo, talvez seja exagerado, mas não é absolutamente irreal. Quantas pessoas inteligentes, depois que se puseram em contato com Podkolióssin, através de Gógol, não passaram logo a descobrir que uma porção, dezenas e centenas, de amigos e conhecidos seus se pareciam extraordinariamente com ele? Já sabiam, sem ter ainda lido Gógol, que esses seus amigos eram como Podkolióssin; apenas ignoravam que nome dar-lhes. De fato, na vida real, poucos são os noivos que escapolem pela janela antes do casamento, visto como, abstraindo outras considerações, esse modo de fuga tem seus inconvenientes. E no entanto, quantos homens, mesmo inteligentes e virtuosos como pessoas, não se deram conta, bem na véspera de seus casamentos, de que estavam prontos a reconhecer no fundo de seus corações que eram outros tantos Podkolióssin? Nem todos os maridos exclamam a todo passo: “Tu l’as voulu, George Dandin!”2 Mas quantos milhões e bilhões de vezes este grito de coração não tem sido proferido por maridos, por este mundo afora, logo depois de suas luas de mel ou, quem sabe, no dia seguinte ao do casamento?
Sem entrar em considerações mais profundas, queremos singelamente mostrar que, na vida de todos os dias, certas características tidas como típicas estão a ponto de submergir e que os Georges Dandin e os Podkolióssin existem e se locomovem diante de nós, cotidianamente, apenas em forma menos concentrada. Com a asseveração de que Georges Dandin, em sua perfeição total, como Molière o retratou, também pode ser encontrado na vida real, embora não frequentemente, terminaremos as nossas reflexões que já estão começando também a invadir a esfera da crítica jornalística. Todavia a pergunta fica de pé: que fará um autor com gente comum, absolutamente “comum”, e como há de colocá-la diante do leitor tornando-a interessante? É de todo impossível deixá-la fora da ficção, pois essa gente do lugar-comum é, a todo momento, o principal e indispensável anel da cadeia dos negócios humanos. Se os deixarmos de fora perdemos toda a verossimilhança com a realidade. Encher uma novela completamente só com tipos, ou melhor, querer torná-la interessante mediante apenas caracteres estranhos e incríveis será querer torná-la irreal e até mesmo desinteressante. A nosso ver, um escritor deve procurar a torto e a direito enredos interessantes e instrutivos mesmo entre gente vulgar. Quando, por exemplo, a natureza mesma de certas pessoas vulgares reside justamente em sua perpétua e invariável vulgaridade, ou melhor ainda, quando, apesar de todos os mais estrênuos esforços para fugir à órbita da mesmice e da rotina, essa gente acaba por se sentir invariavelmente ligada para sempre a essa mesma rotina, então tal gente adquire um caráter sui-generis, todo seu, o caráter da vulgaridade, desejosa acima de tudo de ser independente e original sem a menor possibilidade de o conseguir.
A essa classe de gente “vulgar” ou “comum” pertencem certos personagens da minha narrativa que até aqui, devo confessar, foram insuficientemente explicados ao leitor. Tais são Varvára Ardaliónovna Ptítsina, seu marido o sr. Ptítsin e seu irmão Gavríl Ardaliónovitch.
Não há, com efeito, nada mais aborrecido do que ser, por exemplo, rico, de boa família, ter boa aparência, ser bastante esperto e mesmo sagaz e todavia não ter talento, nenhuma faculdade especial, nenhuma personalidade mesmo, nenhuma ideia pessoal, não sendo propriamente mais do que “como todo mundo”. Ter fortuna, mas não ter a de Rothschild; ser duma família honrada mas que nunca se distinguiu por qualquer feito; ter uma boa aparência mas, mesmo com ela, não exprimindo nada de particular; ter inteligência, mas nenhuma ideia própria; ter bom coração, mas sem nenhuma grandeza de alma; ter uma boa educação mas nem saber o que fazer com ela; etc., etc... Há uma extraordinária multidão de gente assim no mundo, muito mais até do que a muitos possa parecer. Essa multidão pode, como toda a outra gente, ser dividida em duas classes: os de inteligência limitada e os de alcance mais vasto. Os primeiros são os mais felizes. Nada é mais fácil para essa gente “comum”, de inteligência restrita, do que se imaginar original e mesmo exceção, e folgar com essa ilusão, nunca chegando a perceber o equívoco. Basta a muitas de nossas mocinhas cortarem o cabelo de certo modo e usarem óculos azuis e se cognominarem de niilistas, para ficarem de vez persuadidas de que, com isso só, obtiveram automaticamente “convicções” próprias. Basta a certos cavalheiros sentir o mais leve prurido de qualquer emoção bondosa e humanitária para que imediatamente fiquem persuadidos de que ninguém mais sente o que eles sentiram, e de que formam a vanguarda da cultura. Basta a certos indivíduos assimilar uma ideia expressa por outrem, ou ler qualquer página solta, para imediatamente acreditarem que essa é a sua opinião pessoal espontaneamente brotada de seu cérebro. A imprudência da simplicidade é, se assim se pode dizer, espantosa, em tais casos. Por mais incrível que pareça, isso existe. Essa impudência de simplicidade, essa confiança sem vacilações do homem estúpido em seus talentos, foi soberbamente pintada por Gógol no espantoso caráter do seu personagem, o tenente Pirogóv. Pirogóv não possuía a menor dúvida de que era um gênio, superior mesmo a qualquer gênio. Tinha tal certeza disso que jamais consigo mesmo debateu isso. Aliás nunca, com efeito, debateu coisa alguma. O grande escritor foi obrigado até, no fim, a castigá-lo, como uma espécie de satisfação ao ultraje moral sentido pelo leitor. Vendo, porém, que o grande homem apenas titubeia um pouco, depois do castigo, logo se refazendo ao engolir um pastel, ele, Gógol, levanta as mãos para o céu, cheio de espanto, e deixa que o leitor dê cabo dele como quiser. Nunca me conformei que Gógol tomasse o seu grande Pirogóv de uma escala tão humilde; era tão senhor de si que nada lhe foi mais fácil, à medida que suas dragonas aumentavam de espessura e de torcidinhos, do que se imaginar um extraordinário gênio militar, ou melhor, não se imaginar, mas ter isso como certo e líquido. Pois se fora feito general, logicamente que era um gênio militar! E quantos como ele não fizeram terríveis fiascos, depois, nos campos de batalha? E quantos Pirogóv não tem havido entre os nossos escritores, sábios e propagandistas! Digo “tem havido”, mas naturalmente que ainda os há!
Gavríl Ardaliónovitch Ivólguin enquadrava-se na segunda categoria. Pertencia à classe dos “mais dotados”, embora o enfatuasse, da cabeça aos pés, o desejo da originalidade. Mas tal classe, como já observamos acima, é bem menos feliz do que a primeira: pois o homem vulgar “esperto”, mesmo se se considera ocasionalmente, ou sempre, homem de gênio ou de originalidade, conserva o verme da dúvida enquistado em seu coração, o que, em muitos casos, arrasta o nosso homem sagaz ao extremo desespero. Mesmo quando se submete, o faz completamente envenenado, visto seu íntimo ser dirigido por sua vaidade. Mas o exemplo que tomamos foi extremo. Para a grande maioria dessa gente hábil as coisas não terminam assim tão tragicamente. O mais que acontece a tais pessoas é ficarem com o fígado afetado na velhice. Mas antes de desistirem e se humilharem, esses homens não raro fazem papéis de malucos; e tudo só pelo desejo de originalidade. E realmente há estranhos exemplos desta asserção; um homem direito, às vezes, por querer ser original, é capaz de cometer uma baixeza. Acontece comumente que um desses desprotegidos da sorte não só é honesto como bom; é o anjo da guarda da família e mantém, por meio do seu trabalho, não apenas os seus, mas também os estranhos. Mesmo assim não consegue descanso em toda a sua vida! O pensamento de que preencheu tão bem a sua vida, em vez de lhe dar conforto e consolo, muito pelo contrário, o irrita. “Foi apenas nisto que consumi toda a minha vida?”, diz ele. “Foi nisto que me atolei dos pés à cabeça? Foi pois nisto que malbaratei minhas energias, o que me impediu de fazer algo de grande? Se não tivesse perdido tempo nisso eu teria, na certa, descoberto a pólvora ou a América, ou qualquer outra coisa, não sei precisamente qual, mas que teria descoberto, lá isso teria!” O que é mais característico nesses indivíduos é que nunca chegam a saber direito que coisa lhes foi destinada descobrir e dentro de que são eles uns ases em descobertas. E todavia seus sofrimentos, suas ânsias pelo que deveriam ter descoberto, seriam bastantes para um Colombo ou um Galileu.
Gavríl Ardaliónovitch tinha dado o primeiro passo nessa estrada, mas estava apenas em seu começo. Dispunha ainda, diante de si, de muito tempo para representar de maluco. Uma profunda e contínua consciência da sua falta de talento e, ao mesmo tempo, o obsedante desejo de mostrar a si mesmo que era um homem de grande independência, se lhe agarrara ao coração quase que desde a infância. Era um rapaz de apetites violentos e de zelosas sofreguidões mas que, positivamente, já nascera com os nervos extenuados. Tomou a violência dos seus desejos como força. A sua sôfrega paixão em querer se distinguir o levou muitas vezes à beira das mais insensatas ações, mas o nosso herói sempre, no último momento, fraquejava, sem coragem para o arremesso. Isso levava-o ao desespero. Para conseguir aquilo que sonhava era capaz de arquitetar fosse o que fosse de extremamente vil. Mas como quem dispõe é o destino, ele sempre acabava parecendo demasiado honesto para qualquer grande ruindade. (Mas para as ruindades pequeninas estava sempre mais do que preparado.) Considerava com repugnância e cólera a pobreza de sua família. Tratava até a própria mãe com altivez e desprezo, muito embora estivesse farto de saber que a reputação e o caráter dessa mulher eram o eixo sobre o qual o seu futuro repousava.
Ao entrar a serviço do general Epantchín dissera a si mesmo, imediatamente: “Já que tenho que ser ruim, hei de o ser totalmente, a ver se ganho ao menos a minha partida.” E, ainda assim, nem ruim completamente conseguiu ser. E por que imaginaria ele que precisaria de fato de ser ruim? Naquela ocasião, quanto a Agláia, simplesmente a temeu, mas se conservou de atalaia, à espreita duma oportunidade, muito embora nunca tivesse acreditado, seriamente, que ela se valesse dele. E depois, ao tempo do seu caso com Nastássia Filíppovna, deu-lhe no bestunto imaginar que o dinheiro lhe seria o meio de conseguir tudo. “Se há que ser ruim, sejamo-lo com toda a perfeição”, incentivava-se continuamente. “Gente vulgar tem medo disso, mas eu não tenho.”
Havendo fracassado quanto a Agláia, e esmagado pelas circunstâncias, perdeu toda a coragem e imediatamente levou a Míchkin o dinheiro que uma louca lhe arremessara à cara depois de o receber, por sua vez, dum louco. Milhares de vezes, depois disso, se arrependera de ter devolvido aquele dinheiro, embora continuamente se estivesse jactando de o ter feito. E efetivamente derramara lágrimas, durante três dias, enquanto o príncipe fora a Moscou. E, naqueles três dias, o seu ódio para com o príncipe se multiplicara, só por este último o olhar com demasiada piedade embora “nem todo o mundo tivesse tido força” para um ato como esse de devolver o dinheiro. Mas a franca confissão que a si mesmo fazia, de que a sua miséria não era devida senão à contínua mortificação sofrida pela sua vaidade, o afligia horrivelmente.
Foi só muito depois que viu e compreendeu que fim bem diferente poderia ter tido o seu caso com uma criatura tão estranha e inocente como Agláia. Os remorsos quase deram cabo dele. Largara o emprego e caíra em desespero e desânimo. Fora obrigado a viver com o pai e a mãe em casa de Ptítsin, a expensas deste último, a quem abertamente desprezava, apesar de lhe seguir os conselhos e mesmo lhos pedir. Gavríl Ardaliónovitch estava aborrecido, por exemplo, com Ptítsin, por este não aspirar a tornar-se um Rothschild. “Já que você enveredou pela agiotagem adentro, faça-o de modo absoluto: procure extorquir todo o mundo, amoede o dinheiro dos outros, mostre resolução, torne-se um rei entre os judeus.”
Mas Ptítsin era modesto e sem ambições, e apenas sorriu a isto. Mas, certa vez, viu ser necessário ter uma explicação a sério com o cunhado, desincumbindo-se dela com dignidade. Provou a Gánia que não agia desonestamente e que não admitia que o tratasse de judeu usurário; que não era sua a culpa do dinheiro ser considerado de tamanho valor; que agia estritamente com decência, não passando, na realidade, de mero intermediário em tais negócios, e que devia justamente à inteireza de sua atitude, nos negócios, ser considerado favoravelmente entre gente de bem, e estar obtendo lucros. “Nunca serei um Rothschild e nem me passa pela cabeça tal ambição”, dissera, já a sorrir. “Mas terei a minha casa, embora pequena, na Litéinaia, talvez mesmo duas, e então farei ponto final.” “E, quem sabe, talvez mesmo três”, pensara mais de uma vez, sem porém pronunciar isso alto, sonhando escondido esse sonho de “meio-dia”.
A natureza gosta de gente assim e se compraz com ela. E recompensaria logo Ptítsin não com três, mas com quatro casas! E justamente porque ele resolvera desde a infância não ser nunca um Rothschild. Sem embargo, para além de quatro casas não avançará a natureza e o triunfo de Ptítsin terá fim aí.
Já a irmã de Gavríl Ardaliónovitch era pessoa bem diferente. Também ela afagava fortes aspirações; mas tais desejos apenas indicavam persistência e jamais impulso. Todas as emergências a encontravam alicerçada em bom senso e a todo o momento se servia disso na vida cotidiana. Não que não pertencesse, também ela, a essa gente “comum” que sonha ser original; cedo, porém, descobriu que não possuía nenhuma originalidade muito particular, mas se importou muito pouco com essa decepção que soube transformar numa espécie de orgulho. O seu primeiro passo prático, dado com eficiente decisão, foi o de se casar com Ptítsin. Mas, ao se casar, não dissera: “Já que tenho que ser ruim, que o seja então até conseguir o meu fim”, como com certeza a aconselhara seu irmão Gánia, e possivelmente falando alto, ao dar o seu consentimento de irmão mais velho a esse casamento. Muito pelo contrário, até: Varvára Ardaliónovna só se casou depois de se convencer que o seu futuro marido era um homem simples, sem ambição, medianamente educado, e que coisa alguma jamais o induziria a cometer qualquer ato que o desonrasse muito. Quanto a atos de ruindade pequenina, Varvára Ardaliónovna não se molestaria com tais insignificâncias, sabido como é que eles se encontram por toda parte. Que adianta procurar um ser ideal? E além do mais sabia que se casando providenciaria um refúgio para sua mãe, seu pai e seus irmãos. Ao ver o irmão em apuros tratou logo de ajudá-lo, esquecendo-se de todas as anteriores incompreensões mútuas.
Às vezes, e sempre de maneira amistosa, Ptítsin instigava o cunhado a arranjar um outro lugar. “Você tem birra dos generais e não passa todavia dum general”, costumava dizer-lhe, por brincadeira; “mas repare só, todos ‘eles’ acabarão sendo generais! Se você viver bastante se fartará de ver isso.” “Mas quem lhe meteu na cabeça que desprezo generais, sendo eu próprio um deles?”, pensava Gánia, ironicamente, lá consigo.
Por causa só do irmão, resolveu Varvára Ardaliónovna alargar o seu círculo de relações. Habilmente se houve até conseguir ir à casa dos Epantchín, onde as recordações de infância a deixaram estar à vontade, visto ela e Gánia terem brincado, em crianças, com as meninas Epantchín. Temos que acentuar aqui que, se Varvára Ardaliónovna visitasse os Epantchín à cata de qualquer sonho fantástico, só por isso automaticamente se excluiria da classe de gente em que mentalmente se enfileirara. Mas não ia lá em perseguição de nenhum sonho. Achava-se mas era trabalhando numa base muito firme; estava apenas calculando bem as peculiaridades da família Epantchín, não se cansando, nunca, de estudar o caráter de Agláia. A tarefa que se propusera era a de juntar esses dois, Agláia e o irmão, outra vez. Possivelmente atingiu eficazmente, mas só em dada extensão, esse objetivo; talvez tivesse feito alguns disparates, edificando demais sobre o irmão, esperando dele o que ele nunca, em circunstância alguma, poderia dar. Em todo o caso se comportou em casa dos Epantchín com uma arte considerável; durante semanas e semanas não fizera a menor alusão ao irmão; sempre fora muito sincera e natural, comportando-se com suficiente dignidade. Quanto às profundidades da sua consciência não tinha medo de perscrutá-las, não tendo sequer de que se censurar. Estava nisso a sua força. Só havia uma coisa que percebera em si mesma: também ser vingativa e ter uma boa dose de amor-próprio e até mesmo de vaidade mortificada. Dava-se conta disso principalmente em certos momentos, quase sempre quando voltava para casa vindo duma dessas visitas aos Epantchín.
Agora mesmo, por exemplo, estava de volta duma dessas suas visitas e, conforme já dissemos, se sentia preocupada e desanimada. Uma sombra de amarga mordacidade era visível em seu mal-estar. Ptítsin ocupava em Pávlovsk uma espaçosa mas não muito atraente casa um tanto feia, numa rua poeirenta, casa essa que dentro de pouco tempo viria a ser de propriedade sua. (Ele já estava pensando em vendê-la.) Ia Varvára Ardaliónovna a subir os degraus, quando ouviu um barulho fora do comum, lá dentro, chegando até ela as vozes do pai e do irmão, gritando um com o outro. Entrando na sala de visitas deparou com Gánia a andar dum lado para outro, lívido de fúria, todo descabelado. Ela só fez uma coisa: atirou-se para um sofá, sem tirar o chapéu e fechou a cara com ar contrafeito. Mas como sabia que, se deixasse passar um minuto que fosse sem perguntar ao irmão por que razão estava em tal estado, ele certamente se enfureceria com ela também, logo se apressou em comentar, em forma de pergunta:
— A história de sempre, não é?
— Que história de sempre! — exclamou Gánia. — A habitual história! Não! Só o diabo sabe o que se passa aqui dentro e que não é, desta vez, a mesma coisa de sempre. O velho está ficando perfeitamente caduco... Mamãe virou uma catadupa de lágrimas. Dou-te a minha palavra de honra, Vária, desta vez ou o ponho na rua, digam o que disserem, ou então me vou eu! — acrescentou imediatamente ao lhe vir à mente não lhe ser possível expulsar ninguém duma casa que não era a sua.
— Mas não deves ser irredutível. Tens que fazer certas concessões... — murmurou Vária.
— Concessões? Quais? — exclamou Gánia, inflamando-se. — Concessões aos seus asquerosos hábitos? Não. Vai dizendo o que te vier à cabeça, mas isso é impossível! De que jeito, então, hei de tratá-lo? Ele sabe que errou tremendamente e isso é que o põe ainda mais fora de si! A porta não chega, quer arrombar a parede também para entrar. Por que estás sentada aí assim? Vira-te para mim!
— Estou como fico sempre! — respondeu Vária, meio desajeitada.
Gánia olhou-a com maior atenção.
— Estiveste lá?
— Estive.
— Está vendo? Lá está ele a berrar outra vez! Mas isso é insuportável, e ainda por cima, a esta hora!
— A esta hora, por quê? Que tem agora de especial?
Gánia encarou a irmã de maneira ainda mais esquisita e depois perguntou:
— Descobriste mais alguma coisa?
— Nada que eu já não esperasse; descobri que tudo é verdade mesmo. Meu marido estava mais perto da realidade do que nós. Está acontecendo justamente o que ele predisse desde o começo. Por falar nisso, onde está ele?
— Não sei se está em casa, ou se não. Que foi que aconteceu?
— O príncipe está formalmente noivo dela. É coisa resolvida. As mais velhas contaram-me. Agláia consente. Decidiram não encobrir mais. (Houve tanto mistério até aqui!) O casamento de Adelaída será transferido de maneira que os dois casamentos se realizem no mesmo dia. Uma concepção de todo em todo romântica! Inteiramente poética! Farias melhor escrevendo um poema para tal ocasião em vez de estar zanzando pela sala sem propósito. A princesa Bielokónskaia deve chegar esta noite. Vem mesmo a calhar; haverá recepção. Ele vai ser apresentado à princesa Bielokónskaia que todavia já o conhece. Creio que a participação será dada a público. Só estão com receio que quebre qualquer coisa ao entrar na sala de visitas ou, pior ainda, que escorregue e caia, o que não é de todo improvável.
Gánia ouviu com a maior atenção; mas estas notícias, que o deviam ter arrasado, para grande surpresa de sua irmã não pareceram, de modo algum, ter tido qualquer efeito depressivo sobre ele.
— Ora, isso estava mais do que claro — disse, depois de pensar um momento. — É, pois, o fim — acrescentou, com um sorriso estranho, olhando de soslaio para o rosto da irmã e continuando a dar passos pela sala mas não tão apressados.
— Ora, graças, tomas conhecimento disso como filósofo. Fico realmente satisfeita.
— Lógico. É um peso que me sai do espírito. E para ti, também.
— Penso que te ajudei quanto pude, sinceramente, sem comentários nem aborrecimentos. Nem sequer te perguntei que espécie de felicidade esperavas de Agláia.
— Ora essa, estava eu esperando... alguma felicidade de parte de Agláia?!
— Por favor, não metamos filosofia nisso! Naturalmente que estavas. Mas tudo se foi e não há mais nada a fazer. Fomos uns bobos. Devo confessar que nunca tomei o caso a sério. Encarei-o simplesmente como uma probabilidade. Toda a minha presunção se baseava no caráter ridículo dela e o meu único objetivo era te ser agradável. Havia dez probabilidades contra uma de que isso desse em nada. E até hoje não sei o que era que esperavas.
— Agora, já sei; tu e teu marido tentareis fazer-me arranjar um emprego; dar-me-eis a ler coisas sobre perseverança, força de vontade e de como não se devem desprezar pequenas vantagens e uma porção de coisas mais. Já sei de cor. — E Gánia riu.
Vária calculou: “Ele está me ocultando qualquer plano.” Nisto Gánia a interrogou:
— Como foi que eles receberam isso? Ficaram contentes, o pai e a mãe?
— N... ão. Penso que não. Podes julgar por ti. Iván Fiódorovitch está alegre. A mãe está preocupada. Como pretendente ela nunca o aceitou, sabemos disso muito bem.
— Não é a isso que me refiro. Que ele é um pretendente inexequível, impossível, é evidente. Estou me referindo à atitude deles agora, depois do fato. Qual é a atitude deles agora? Ela já disse que sim, categoricamente?
— Ela até agora ainda não disse que não, eis tudo. E que mais se poderia esperar dela? Sabes muito bem quanto é espinoteadamente esquiva e reservada. Quando criança entrava de gatinhas para dentro do armário e ficava sentada lá dentro para se livrar das visitas. Apesar de ter crescido e ser hoje um florido mastro de quermesse, nessas coisas ainda é a mesma. Não sei, mas creio que, pelo menos do lado dela, ainda pode haver coisa. Dizem que caçoa do príncipe de manhã até de noite só para ocultar os seus sentimentos; mas deve arranjar cada dia, fingidamente, qualquer gracinha para lhe dizer, pois o tolo parece estar no céu, todo radiante. Dizem que está que é uma maravilha vê-lo. Foram elas que me disseram. Mas também me pareceu que as mais velhas estavam mas era rindo de mim. E na minha cara!
Gánia acabou por franzir o cenho; decerto Vária prosseguia em suas impressões com o fim de lhe comunicar o seu verdadeiro ponto de vista. Mas ouviram, outra vez, lá em cima, nova balbúrdia.
— Tenho que pô-lo para fora! — rugiu Gánia, violentamente, como que satisfeito de achar com que vingar a sua tribulação.
— Sim... para ele ir então nos desgraçar por aí, como já fez ontem!...
— Ontem? A que te referes? Como? Ele então... — E Gánia pareceu ficar terrivelmente alarmado e curioso.
— Ora, meu caro, pois não soubeste? — E Vária se adiantou para ele.
— O quê! Mas teria ele tido a coragem de ter estado lá? Não pode ser! — exclamou todo vermelho de vergonha e de raiva. — Deus do Céu! Mas vieste de lá, ouviste alguma coisa? O velho esteve lá? Dize logo duma vez, esteve, ou não?
E Gánia embarafustou na direção da porta. Vária precipitou-se atrás dele contendo-o com as duas mãos.
— Que é que vais fazer? Onde vais? — perguntou. — Se o expulsas, ele fará pior do que já andou fazendo. Procurará todo o mundo.
— Que foi ele fazer lá? Que foi que elas disseram?
— Ora, nem elas próprias puderam contar-me, pois não entenderam nada; apenas as deixou assustadas. Foi à procura de Iván Fiódorovitch, que não estava. Então pediu para ver Lizavéta Prokófievna. Primeiro lhe pediu um lugar; queria um emprego; depois começou a se queixar de nós. De mim, de meu marido, de ti, especialmente... Falou uma porção de asneiras.
— Não chegaste a saber o quê? — Gánia contraía-se histericamente.
— Como poderia eu? Se nem ele sabia o que estava a dizer. Ou quem sabe se acharam melhor não me contar tudo?
Gánia deu um soco na cabeça e foi para a janela. Vária sentou-se rente à outra janela.
— Aquela Agláia é uma criatura absurda — observou inopinadamente. — Imagina tu que me deteve só para me dizer: “Tenha a bondade de apresentar os meus especiais respeitos a seu pai. Certamente ainda terei, um dia destes, a oportunidade de revê-lo.” E disse isso com ar tão sério. Que coisa terrivelmente extravagante!
— Mas não foi zombando? Não foi zombando?
— Foi como acabei de dizer. Não foi zombando, mas foi esquisito... entendes?
— Saberá ela alguma coisa a respeito do velho, ou não? Que achas?
— Não paira no meu espírito a menor dúvida de que eles, na família, nada saibam. Mas a tua pergunta me despertou um pressentimento: talvez Agláia saiba. Talvez seja a única a saber, mesmo porque notei quando ela mandou seus cumprimentos a papai, de maneira tão cerimoniosa, que as irmãs ficaram surpreendidas. Por que só para ele, em particular? Se ela sabe, só poderia ter sido o príncipe quem lhe contou.
— Não é difícil adivinhar quem lhe contou. Um ladrão! Era só o que nos faltava! Um ladrão na nossa família, “o chefe da casa”!
— Não digas asneiras. — Vária acabou perdendo a paciência. — Coisa de bêbedo, eis tudo. E quem arranjou a história? Liébediev, o príncipe... só servem para a mesma canga! São uns sabidões. Não ligues!
— O velho é um gatuno e um bêbedo — prosseguiu Gánia, amargamente. — Eu não passo dum pedinte, o marido de minha irmã é um agiota... que atraente perspectiva para Agláia! Um inefável estado de coisas, lá isso não há dúvida!
— Mas esse marido de tua irmã, mesmo sendo um agiota... está...
— ... me aguentando aqui! Não é o que quiseste dizer? Não adoces o caso, é favor.
— Não emburres — disse Vária, modificando-se. — Não passas dum colegial; não compreendes coisa alguma. Pensas que tudo isso te deprime aos olhos de Agláia! Não a conheces. Queres saber qual é o sonho dela? Dar o contra no pretendente mais precioso e fugir, de bom grado, com não importa qual estudanteco para ir morrer de fome numa água-furtada! Nunca chegaste a entender quanto ela se interessaria por ti, e o que virias a ser aos seus olhos, se tivesses tido a habilidade de suportar o nosso ambiente com orgulho e fortaleza. O príncipe fisgou-a, em primeiro lugar porque não a andou pescando; e em segundo lugar porque é considerado por todo o mundo como um idiota. Só o fato de estar se servindo dele para assombrar a própria família é uma alegria para ela. Ah! Não compreendes absolutamente nada!
— Bem, veremos se compreendo, ou não — murmurou Gánia de modo enigmático. — Seja como for, incomoda-me saber ela alguma coisa a respeito do velho... Acho que o príncipe seria capaz de dar com a língua nos dentes. E também me parece que obrigou Liébediev a ficar calado, pois não lhe consegui arrancar nada quando insisti em saber.
— Conforme estás vendo, o fato se propalou. Alguém foi. Claro que não incluímos o príncipe numa coisa dessas. Aliás, que importância tem isso? E que é que estás esperando? Mesmo que te restasse alguma esperança, qual podia ser senão uma: ela considerar-te como um mártir...?
— Apesar de toda a sua propensão romântica, ela se acovardaria com um escândalo. Está tudo resolvido, mas apenas até certo ponto e debaixo de cautela. As mulheres são todas iguais.
— Dizes que Agláia se acovardaria? — inflamou-se Vária olhando para o irmão desdenhosamente. — Tens mesmo uma alminha insignificante. Tu e o teu bando sois gente à toa. Ela pode ser excêntrica e ridícula, mas é mil vezes mais generosa do que qualquer de nós.
— Está certo, está certo. Não é preciso emburrares — retorquiu Gánia, de modo complacente.
— Tenho pena de mamãe; o resto não me importa — continuou Vária. — Temo que esse escândalo referente a papai chegue aos seus ouvidos. Ah! Receio muito.
Ao que o irmão ponderou:
— Não tenhas dúvida de que já chegou.
Vária, que se levantara para ir até lá em cima com Nina Aleksándrovna, estacou, encarando o irmão com muita curiosidade.
— Quem lhe poderia ter dito?
— Ippolít, muito provavelmente. A maior satisfação da sua vida seria poder comunicar o caso a mamãe logo que se mudasse para aqui. Garanto!
— Mas como teria ele sabido? Dize, anda, fala! O príncipe e Liébediev devem ter guardado segredo. Kólia, por sua vez, ignora tudo.
— Foi Ippolít! Descobriu sozinho. Não imaginas que besta manhosa ele é. Que alcoviteiro! Que língua! Que faro que tem para descobrir qualquer coisa ruim, seja a espécie que for de escândalo. E por mais incrível que te pareça, tenho a certeza de que tem a pretensão de querer se insinuar junto de Agláia. Se ainda não arranjou meios, arranjará. Rogójin também já o conhece, e demais. Nem sei como o príncipe ainda não notou isso. Esse Ippolít tem uma sede de me liquidar! Considera-me seu inimigo pessoal. Percebi isso há bastante tempo... Por que e com que fim, agora que está para morrer, não posso atinar. Mas eu ficarei com a melhor. Verás como quem se liquida é ele, e eu fico invulnerável...
— Por que o atraíste para cá, se o detestas? Liquidá-lo, valerá a pena?
— Tu mesma não me aconselhaste a atraí-lo para a nossa casa?
— Pensei que te conviesse. Já soubeste que se apaixonou por Agláia e que lhe tem escrito?... Consta até que escreveu a Lizavéta Prokófievna.
— Por esse lado ele não oferece perigo — respondeu Gánia, com um sorriso de pouco caso — e é muito provável até que isso não passe duma invenção. Quanto a estar apaixonado pode muito bem ser, pois é rapaz. Mas... escrever cartas anônimas à velha, não chegaria a tanto. Ele não passa duma mediocridade insignificante e desprezível, mas enfatuada. Estou convencido que, se falou com ela a meu respeito, me pintou como um aventureiro sórdido; deve, no mínimo, ter começado por aí. Confesso que fui leviano, no começo, abrindo-me demais com ele. É que cuidei que, para se vingar do príncipe, trabalhasse pelos meus interesses. Mas é muito manhoso, o bruto! Só agora é que o compreendo inteirinho por dentro. Só podia ter ouvido da própria mãe, a viúva do capitão, essa história de furto. E todavia o que levou o velho a isso foi ela própria. Sim, foi por causa dessa mulher. Uma vez, sem mais aquela, me disse que o general prometera quatrocentos rublos à mãe. E disse isso sem quê nem para quê, absolutamente sem a menor cerimônia. Então compreendi tudo. Lembro-me da cara com que me disse isso, fitando-me com uma espécie de júbilo. E com certeza foi contar à mamãe também pelo simples prazer de lhe machucar o coração. E como é que neste mundo, onde tanta coisa acontece, não acontece ele morrer, explica-me! Garantiu morrer em três semanas. E não é que o estupor está até engordando? Já tosse menos; ainda na noite passada me disse que já havia dois dias que não escarrava sangue.
— Bota-o pra fora.
— Não penses que o odeio, não! Eu o desprezo! — Gánia pronunciou isso com orgulho. — Ora! Odeio-o sim! Se odeio! — exclamou repentinamente, com extraordinário arrebatamento. — E lho direi na cara, mesmo que esteja na cama a morrer! Ah! Se lesses a tal confissão dele!... Senhor Deus, a ingenuidade da sua insolência! É direitinho um tenente Pirogóv, um Nozdrióv bancando o trágico, e acima de tudo é um cachorro! Oh! Como me faria bem malhá-lo até achatá-lo, apenas para ver com que cara ficava! Agora, como está liquidado, quer a todo custo se vingar nos outros... Mas que é isto? Que barulheira é essa, outra vez? Não tolero mais isso, Ptítsin! — gritou ele para o cunhado que entrava na sala. — Que significa isso? Onde vamos parar? Mas isto é... mas isto é...
E a algazarra se aproximava precipitadamente. A porta se escancarou de repente, surgindo o velho Ívolguin, colérico, fora de si, a descompor Ptítsin, numa extrema agitação. O velhote era seguido por Nina Aleksándrovna, Kólia e Ippolít, que apareceu por último.
Notas
1 Podkolióssin: herói da melhor peça de Gógol — O casamento (1842). De caráter pouco enérgico, Podkolióssin tem, por vezes, assomos de independência. E, na hora do casamento, salta pela janela. (N. do E.)
2“Tu l’as voulu, George Dandin” (“Tu o quiseste, George Dandin”): A citação feita por Dostoiévski é da comédia George Dandin ou le Mari Confondu, de Molière. George Dandin é um camponês que, graças ao seu dinheiro, casa com Angélique de Sotenville, a filha de um fidalgote arruinado e cioso da sua nobreza. Devido à inabilidade de um mensageiro, Dandin vem a saber que a mulher se corresponde com um galanteador chamado Clitandre, e disso faz queixa aos sogros. Angélique, entretanto, não tem dificuldade em fazer com que as aparências fiquem a seu favor. Clitandre exige explicações, e Dandin vê-se obrigado a pedir-lhe desculpas. “Tu o quiseste, George Dandin”, dizia a si mesmo George Dandin, que, eterno enganado, passa pelas piores adversidades, pondo em realce, como quis demonstrar Molière, a loucura que comete um homem ao se casar com mulher de condição superior à sua. (N. do T.)
2.
Havia cinco dias que Ippolít se mudara para a casa de Ptítsin. E isso se dera naturalmente, sem ter sido preciso romper com Míchkin. Muito pelo contrário, pois se despediram como bons amigos.
Gavríl Ardaliónovitch, que aquela noite se mostrara tão antagônico, viera vê-lo, porém, trazido decerto por alguma ideia repentina e que tratou de realizar; Rogójin também aparecera em visita especial.
O próprio príncipe acabou por se convencer que era melhor para “o pobre rapaz” sair de sua casa. Mas, por ocasião da mudança, Ippolít manifestara bem claro que se mudava por instâncias de Ptítsin “que, por bondade, lhe arranjara um canto”, e parece que muito intencionalmente não declarou uma só vez que ia ser hóspede de Gánia, embora tivesse sido este quem em casa de Vária insistira para que o recebessem. Gánia percebeu isso logo depois, e se mostrou magoadíssimo. E não mentiu quando disse à irmã que o doente melhorara. Efetivamente Ippolít parecia um pouco melhor do que antes, e a diferença era visível ao primeiro relance. Entrou na sala depois de todos os outros, mostrando na cara um sorriso sarcástico e maligno. Nina Aleksándrovna também entrou muito assustada. Tinha mudado muito nesses seis meses, estando bem mais magra. Desde que se mudara para a casa da filha, depois do casamento desta, pusera de lado, pelo menos aparentemente, qualquer interferência nos negócios dos filhos.
Kólia estava aborrecido e preocupado porque não conseguia entender muita coisa da “maluquice” do general. “Maluquice” era como ele dizia, não estando ciente dos motivos da última barafunda doméstica. Inquietava-o saber que o pai brigava em toda parte, o dia inteiro, inesperadamente tão mudado que sem dúvida nenhuma não era mais o mesmo homem; e ainda por cúmulo dera em beber sem interrupção antes destes três últimos dias. Viera a saber até que o pai brigara não somente com Liébediev mas mesmo com o príncipe, rompendo de vez. Então resolvera trazer-lhe meia garrafa de vodca, paga do seu bolso.
— Na minha opinião, mãe, é deixá-lo beber — foi dizendo a Nina Aleksándrovna, ao subir a escada. — Há uns dias que não toca numa só gota. Eu até lha levava na cadeia.
O general escancarou a porta, empurrando-a, e apareceu no umbral, trêmulo de tanta indignação.
— Senhor — berrou ele, com voz de trovão, para o genro. — Se decidiu, de fato, sacrificar, por um fedelho e ateu, um venerável velho, seu pai, isto é, o progenitor da sua esposa, que serviu ao seu soberano, então fique sabendo que a contar desta hora nunca mais porei os meus pés portas adentro desta casa. Escolha, senhor, escolha imediatamente: ou eu, ou este... parafuso! Sim, um parafuso! Saiu-me sem eu pensar, mas é um parafuso, pois vara a minha alma, sem o menor respeito... Sim, um parafuso!
— Não quereria o senhor dizer um saca-rolhas? — atiçou Ippolít.
— Não, um saca-rolhas, não! Sou eu que estou diante do senhor, eu, um general, e não uma garrafa! Eu tenho condecorações, está ouvindo?... méritos honoríficos... e o senhor não tem nada, ora aí está! Tem que ser ele, ou eu! Resolva, senhor, imediatamente. Imediatamente! — continuava a berrar, furiosamente, para Ptítsin.
Nesse momento Kólia aproximou do general uma cadeira, sobre a qual ele se deixou cair, exausto.
A constrangida resposta de Ptítsin foi esta:
— O senhor faria melhor em se ir deitar a ver se dormia um pouco...
— Finja que o ameaça... — disse Gánia à irmã, em voz baixa.
— Ir deitar? — berrou o general. — Não estou bêbedo, senhor. E não admito que me insulte, está ouvindo? Verifico — prosseguiu, levantando-se — que tudo aqui é contra mim. Tudo e todos! Não aguento mais! Vou embora! Mas o senhor pode ficar certo que...
Não lhe permitiram acabar. Obrigaram-no a se sentar outra vez, pedindo-lhe que se acalmasse. Gánia, furioso, se retirou para um canto. Nina Aleksándrovna tremia e chorava.
Foi então que, de dentes arreganhados, muito cinicamente, Ippolít exclamou:
— Mas que foi que eu fiz a este senhor? De que se queixa ele?
— Não se faça de inocente! — observou-lhe Nina Aleksándrovna, sem lhe dar tempo. — Isso até é vergonhoso para o senhor, numa situação dessas, meter-se a atormentar um velho. Isso é desumano!
— Para começar, minha senhora, a que situação se refere? À senhora, pessoalmente, respeito muito... mas...
— Não passa dum parafuso... Pois não estão vendo? — vociferou o general. — Reparem como ele vara o meu coração e a minha alma! Pois querem saber, esse tratante pre-ten-deu que eu acredite no ateísmo! Deixe-me dizer-lhe, seu reles gaiato, que, antes do senhor ter nascido, já eu era cumulado de honras! O senhor não passa duma minhoca invejosa, cortada em dois pedaços, tossindo e morrendo de despeito e ruindade! Para que Gavríl foi meter o senhor aqui? São todos contra mim! Até o meu próprio filho.
— Ora! Deixe de armar tragédias! — interveio Gánia. — Faria melhor não nos andar envergonhando a todos, aí pela cidade.
— O quê? Eu te envergonho, seu desaforado? Eu só te dignifico, embora não o mereças! Eu não posso te envergonhar. — Danou-se a vociferar e não houve meios de contê-lo. Isso levou Gavríl também a se desmandar:
— Não fale em honra! — berrou, zangado.
— Que é que você está dizendo? — trovejou o general, ficando lívido e dando um passo na direção do filho.
— Estou dizendo que o melhor é eu não abrir a boca... — rugiu Gánia, resolvendo calar-se.
Ficaram assim, de pé, um diante do outro. O mais furioso era o filho.
— Gánia, olhe o que está fazendo! — E Nina Aleksándrovna avançou para dominar o filho. Vária interrompeu-os, indignada:
— Que espetáculo, hein?! Mamãe, fique quieta! — disse, segurando-a.
— Se não fosse mamãe, o senhor ia ver!... — explicou Gánia, de modo trágico.
— Vamos, abra a boca! Fale! Não engula! Fale — rugia o general, em absoluto delírio. — Ou falas, ou te amaldiçoo!
— Hei de me incomodar muito com a sua maldição! De quem é a culpa, se o senhor virou possesso estes últimos oito dias? Oito dias! Está vendo como contei direito? Veja lá, não me faça ir mais longe! Se me dano, conto tudo! Para que foi o senhor daqui fazer discursos na casa dos Epantchín? Que adianta vir depois dizer que é um velho de cabelos brancos, um pai de família? Belo pai, não há dúvida!
— Gánia!? Cala a boca, maluco! — dizia alto Kólia. — Cala a boca, maluco!
Ippolít resolveu insistir, voltando com aquela voz de motejo:
— Mas insultei como? Em quê? Quero saber: por que é que sou parafuso? Não o ouviram me chamar de parafuso? Eu estava bem sossegado e foi ele quem veio, ainda agora, me falar a respeito dum tal capitão Ieropiégov. Eu não desejo absolutamente a sua companhia, general. Tenho me fartado de evitar o senhor. De mais a mais, que diabo, convenhamos que não me interessa esse capitão Ieropiégov. O mais que fiz foi expressar a minha sincera opinião de que esse capitão Ieropiégov muito possivelmente nunca existiu.
Ele então armou um escarcéu.
— E certamente que nunca existiu mesmo! — reforçou Gánia.
A expressão estupefata do general, rodando os olhos em volta, demonstrava o pasmo que as palavras do filho, ditas com tão extraordinária franqueza, lhe causavam. No primeiro instante, nem pôde achar palavras. E foi somente quando Ippolít desandou a rir do aparte de Gánia, gritando: “Escutou, aqui o seu filho também é da opinião que nunca existiu tal pessoa chamada capitão Ieropiégov”, que o general, completamente desarvorado gaguejou:
— Kapitón Ieropiégov, e não capitão!... Kapitón... tenente-coronel reformado Ieropiégov Kapitón.
— Kapitón? Também nunca existiu nenhum Kapitón! — berrou Gánia, no auge da exasperação.
— Não houve por quê? — investiu o general, com o sangue a subir-lhe pelo rosto.
Ptítsin e Vária tentaram abrandá-lo.
— Vamos acabar com isso!
Kólia tornou a zangar:
— Cale a boca! Você aí, Gánia, cale a boca!
Mas essa intervenção só conseguiu dar tempo ao velho, que se refez.
— Baseado em quê diz você que ele nunca existiu? Por que não existiu?
— Ai! Ai! Ai! Não existiu porque não existiu, aí está! E não podia ter existido! E quer saber de uma coisa? Largue-me, estou lhe dizendo! Não adianta me ameaçar.
— E é meu filho... o meu próprio filho... quem... Ó Deus do Céu! Não existir uma pessoa como Ieropiégov! Ieróchka Ieropiégov!
— Mau! Mau! Agora já é Ieróchka, antes era Kapitóchka! — atiçou Ippolít.
— Kapitóchka, senhor! E não Ieróchka. Kapitón, Kapitón Aleksiéievitch, quero dizer, Kapitón... tenente-coronel a meio soldo, casado com Maria... Maria... Petróvna Su... su... su... Um amigo e camarada... Sutugóva... dos meus tempos de cadete. Por causa dele derramei sangue, protegi-o com meu corpo... mas ele foi morto! Não ter existido uma pessoa como Kapitóchka Ieropiégov! E que pessoa! Ah!... — rugiu o general, como um bárbaro, apesar de saber que aquilo que estava a dizer aos berros não era o que tinha importância naquele momento. Em outra ocasião não haveria de ser isso que o danaria. Talvez até qualquer outra coisa mais insultante, conforme a ocasião, não o pusesse em fúria assim. Mas, desta vez, tal é o mistério do coração humano, acontecera que uma simples desconsideração, como essa dúvida de ter ou não existido Ieropiégov, exercera o efeito da última gota que derrama o cálice... O velho ficou vermelho, levantou os braços ao céu e bradou:
— Basta! Maldição! Maldição! Nikolái, traz minha maleta! Vou embora! Vou embora!
Apressadamente se foi, indignadíssimo. Nina Aleksándrovna, Kólia e Ptítsin embarafustaram atrás dele.
— Viu o que você fez? — disse Vária ao irmão. — Vai rodar por aí, outra vez, na certa! Isto é uma desgraça!
— Não furtasse! — vociferou Gánia, salivando de raiva. Nisto os seus olhos encontraram os de Ippolít. Então, virando-se para ele, com firmeza, mas na realidade encobrindo o sobressalto que sentira, proferiu:
— Quanto ao senhor, devia lembrar-se, afinal de contas, que está em casa alheia, usufruindo uma hospitalidade e não para irritar um velho que positivamente está fora do seu juízo.
Ippolít também ficou um pouco confuso; mas se refez instantaneamente.
— Não concordo muito com isso. Não creio que seu pai não esteja em seu juízo perfeito. — Falava com absoluta calma. — Muito pelo contrário. Parece-me até que, ultimamente, ele vem tendo mais senso. O senhor não pensa assim? Tornou-se tão desconfiado, tão precavido! Espreita, acautela-se, pesa as palavras... E quando começou a me seringar com essa história de Ieropiégov ou Kapitóchka, logo percebi que tinha um intuito. Mera concepção para ajeitar uma entrada...
— Escute lá! Vá para o diabo! Pouco se me dá que ele tenha querido ou não ajeitar fosse o que fosse!... Peço-lhe que não tente suas evasivas em mim — guinchou Gánia. — Se o senhor também está a par do que lançou o velho neste estado (e reparei que o senhor andou estes cinco dias aqui, espionando, e, a tal ponto, que nem mesmo disfarçou), se, pois, também está ciente, mais uma razão para não irritar esse pobre infeliz e nem aborrecer minha mãe, exagerando o caso! Está farto de ter entendido que foi tudo burrada da bebedeira, apenas, e não mais; coisa enfim que não prova nada, que nem merece atenção! Mas preferiu espionar e atormentar porque o senhor é...
— Um parafuso! — E Ippolít riu.
— Porque o senhor é uma criatura abjeta; teve o desplante de atormentar durante meia hora uma porção de gente, intimidando-a com a afirmação de que se ia matar com uma pistola que afinal nem carregada estava, e se deu ao papel de se sujeitar a uma exibição dessa ordem, seu saco ambulante de fel, que não é capaz nem mesmo de se suicidar sem fazer o próprio panegírico, para afinal até na morte falhar, como já falhou no resto! E eu lhe dei hospitalidade, mediante a qual começou a engordar, a parar de tossir! E, em paga...
— Peço permissão somente para duas palavras: estou na casa de Varvára Ardaliónovna, e não na sua! Se não incido em equívoco, o senhor também está usufruindo a hospitalidade do sr. Ptítsin. Mas, há quatro dias, encarreguei minha mãe de me procurar cômodos aqui em Pávlovsk e de se mudar também ela para aqui, visto o clima me convir, o que não quer dizer que eu tenha engordado e não tussa mais. Comunicou-me minha mãe, ontem à noite, que um aposento está à minha espera. Assim, pois, me apresso em lhe participar que, por minha parte, agradecendo a bondade que sua mãe e sua irmã me dispensaram, me mudarei ainda hoje, conforme já resolvi desde a noite passada. E desculpe tê-lo interrompido, visto me parecer que o senhor ainda tem muito que dizer.
— Oh! Se é assim! — disse Gánia, contraindo-se.
— Se é assim, permita que me sente — acrescentou Ippolít, sentando-se com perfeito ademã na cadeira onde antes estivera o general. — Além do mais, estou doente, o senhor bem sabe. Bem. Agora estou à sua disposição para escutar o que provavelmente vai ser a nossa última conversa, ou, usando dum maneirismo mais lato, o nosso último encontro.
Gánia subitamente se sentiu envergonhado.
— Não pense que estou aqui para me diminuir, entretendo-me em palestra com o senhor. E caso...
— Não é preciso ficar exaltado — interrompeu Ippolít. — No dia exato em que vim para aqui, a mim mesmo fiz o voto, ou promessa, de não me negar o prazer de saldar antigas contas com o senhor, e da maneira mais cabal e eficaz, na hora da nossa despedida. Minha intenção é fazer isso agora, mas depois do senhor, naturalmente.
— Peço-lhe que saia desta sala!
— Eu achava melhor o senhor falar! O senhor sabe que se arrependerá se não desembuchar!
— Contenha-se, Ippolít. Isso tudo é tão degradante! Faça o favor de ficar quieto — disse Vária.
— Tão só para obedecer a uma dama — riu Ippolít, levantando-se. — Com a maior boa vontade, Varvára Ardaliónovna. Pela senhora estaria pronto a acabar definitivamente, mas tenha paciência, pois umas certas explicações entre mim e seu irmão são absolutamente essenciais e, por nada deste mundo, eu me iria, deixando um mal-entendido.
— Em letras redondas, o senhor não passa dum traficante de escândalos — gritou Gánia — e só por isso se quer despedir com um escândalo.
— Ora aí está, vê o senhor? — observou Ippolít, friamente. — Volta ao assunto. Aliás eu já lhe tinha feito ver que o senhor lastimaria se não desembuchasse. Mais uma vez lhe abrirei o caminho, e agora estou à espera de suas palavras.
Gavríl Ardaliónovitch encarou-o com o maior desdém.
— E o senhor não querer falar. Quer me dar a entender, com isso, que prefere guardar a parte que lhe compete! Faça como lhe aprouver. Por minha vez, serei tão breve quanto possível. Hoje, já por duas ou três vezes, fui censurado por ter aceito a sua hospitalidade. Isso não é bonito! Ao convidar-me para vir ficar aqui com o senhor, o senhor ensaiou engodar-me, contando que eu pagaria as culpas do príncipe. O senhor veio a saber, além disso, que Agláia Ivánovna, demonstrando simpatia por mim, lera a minha confissão. Supondo, não sei por que, que eu estava pronto a me devotar completamente aos seus interesses, o senhor cuidou que eu o ajudasse a seu modo. Não quero nem tenho tempo para amiudar esta explicação. Tampouco peço confissões, ou termos fixos, da sua parte. Basta que eu deixe isso para a sua consciência, entendendo-nos agora, cabalmente, um ao outro.
— Só Deus sabe que complicações o senhor faz com as coisas mais comuns! — refletiu Vária.
— Eu já expliquei: esse indivíduo é um traficante de escândalos e um imundo colegial! — reafirmou Gánia.
— Com licença, Varvára Ardaliónovna, preciso continuar. Ao príncipe, naturalmente, não posso respeitar nem amar, embora sabendo que seja um homem bom conquanto bem ridículo. Mas não posso, por isso, dizer que tenha motivos para detestá-lo. Não impedi que seu irmão tentasse fazer de mim uma escora contra o príncipe. Eu fingia estar a olhar para a frente, para depois dar uma boa gargalhada. Eu sabia que seu irmão cometeria um erro de palmatória, inutilizando-se, lastimavelmente. E assim foi... Estou pronto a poupá-lo, agora, simplesmente em consideração à senhora, Varvára Ardaliónovna. Mas já que esclareci não ser fácil apanhar-me, explicar-lhe-ei, também, por que fiquei tão ansioso por enfurecer seu irmão. Devo dizer-lhe que agi assim porque o detesto e aqui o confesso francamente. Quando eu morrer (porque acabo morrendo, mesmo que tenha engordado como disseram), quando eu morrer, desconfio que irei para o paraíso com o coração incomparavelmente mais aliviado, caso, em vida ainda, tenha conseguido enfurecer ao menos um espécime da classe de gente que me andou perseguindo a vida inteira, e a quem eu toda a vida tenho odiado, classe essa da qual seu irmão é um excelente e notável exemplar. Gavríl Ardaliónovitch, eu detesto você simplesmente porque (e há de este “simplesmente porque” lhe parecer maravilhoso) simplesmente porque você é o tipo, a encarnação, o suprassumo da mais insolente, da mais vulgar, da mais repugnante e da mais pomposa mediocridade. A sua mediocridade é feita de pompa, de vaidade, de contentamento olímpico. Você é mais ordinário do que o que de mais ordinário possa haver. Jamais a menor ideia de vontade própria se esboçou no seu coração, quanto mais em seu espírito! Acresce a isso que a sua vaidade não tem limites; você se persuadiu de que é um grande gênio; como, porém, a dúvida às vezes lhe tira o sono em certos momentos opacos, então, por isso, a sua inveja e o seu rancor se desmandam. Mas esses trechos opacos, sim, negros, ainda lhe toldam o horizonte. Quando, porém, você acabar de ficar estúpido, o que não falta muito, eles se clarearão. Mesmo assim, jaz diante de você uma longa e tortuosa estrada. Como me alegro em não poder chamá-la uma estrada prazenteira! Em primeiro lugar, desde já lhe vaticino que não obterá uma certa jovem...
— Oh! Isso é insuportável! — exclamou Vária. — Cale-se, criatura malvada e horripilante.
Gánia estava branco. Contraído e calado. Ippolít parou, encarou-o, demoradamente, com prazer e com desdém; depois se virou para Varvára, fez-lhe uma saudação, curvando-se, e saiu sem acrescentar nenhuma palavra mais. Por algum tempo Vária não ousou dirigir-se ao irmão, nem sequer olhá-lo enquanto ele dava grandes passadas pela sala, dum lado para o outro, decerto com muita justiça se queixando intimamente do quinhão recebido e do vexame que não evitou. Acabou indo para a janela, onde ficou, de costas para a irmã que pensava no provérbio russo: “Faca que corta com os dois gumes...” Nisto começou, outra vez, uma barulheira lá em cima.
— Onde é que vais? — perguntou Gánia, virando-se logo que reparou que ela estava se levantando para subir. — Espera um pouco. Olha isto aqui.
Aproximando-se dela, lhe atirou sobre a cadeira um pedaço de papel dobrado em dois, como um cartão.
— Céus divinos! — sussurrou Vária, juntando as mãos.
O bilhete continha sete linhas apenas:
Gavríl Ardaliónovitch.
Convencida como estou dos seus amistosos sentimentos para comigo, tomo a liberdade de lhe pedir conselho em assunto da máxima importância para mim. Ficar-lhe-ia muito reconhecida se fosse encontrar-se comigo, amanhã, às sete horas, no banco verde.
Fica perto da nossa vila. Varvára Ardaliónovna, que o deve acompanhar, sabe onde é.
A. E.
— Céus divinos! Que irá fazer ela, desta vez? — E Varvára Ardaliónovna estirou os braços para o céu, em súplica.
Depois do que tinha sofrido, e ainda sob o eco da profecia de Ippolít, Gánia não pôde logo demonstrar o seu triunfo, mas pouco a pouco lhe veio disposição para fanfarronadas. Vendo Vária também radiante de satisfação, não reprimiu o sorriso de íntima alegria que lhe percorreu o rosto.
— E justamente logo no dia em que o noivado vai ser anunciado! Efetivamente ninguém é capaz de saber o que ela fará desta vez!
— Que é que pensas? Que será que ela me quer falar amanhã?
— Não te importes com isso. O que tens que reparar é que é a primeira vez que te quer ver, depois de seis meses. Ouve bem, Gánia. Aconteça o que acontecer, dê no que der, garanto-te que é importante. É tremendamente significativo. Não te pavoneies, não faças nenhum disparate e nem te acovardes, tampouco. Presta atenção. Ela agora deve ter adivinhado com que fim eu andei batendo pernas daqui pra lá, estes seis meses todos! E calcula só, não me disse uma palavra, hoje, um indício sequer! Estive lá, às escondidas, já te contei. A velha nem percebeu, do contrário me mandava agarrar. Arrisquei-me a isso, por tua causa, e com que custo!
Lá em cima, novamente, começou a gritaria; e pouco depois, várias pessoas, descendo, faziam barulho.
— Isto, ainda mais agora, não convém de modo algum — exclamou Vária contrariada, persuadindo o irmão de que não convinha uma sombra sequer de escândalo. — Sobe, vai ao encontro dele. Pede-lhe perdão!
Mas o chefe da família passou por eles e saiu pela rua fora. Kólia esbofava-se, com a sacola atrás do pai. Nina Aleksándrovna ficou a chorar, parada no patamar; depois tentou precipitar-se atrás dele; mas Ptítsin a puxou degraus acima, dizendo-lhe:
— Não piore as coisas. Ele não tem para onde ir. Será trazido de volta em menos de meia hora; já dei ordem a Kólia. Deixá-lo fazer-se de louco.
Gánia gritou-lhe da janela:
— Não se faça de herói. Para onde quer ir o senhor? Não tem para onde ir!
Vária chamou-o:
— Volte, papai. Os vizinhos acabam escutando...
O general virou-se bem, ergueu a mão esticada para o céu e bradou:
— Que a maldição do Todo-Poderoso caia sobre esta casa!
— Ouçam... parece canastrão teatral... — murmurou Gánia fechando a janela com uma pancada súbita.
Os vizinhos decerto estavam ouvindo. Vária saiu da sala para os seus cômodos, correndo. Vendo-se então sozinho, Gánia pegou no bilhete de cima da mesa e o beijou; depois estalou os dedos com satisfação e piruetou sobre si mesmo.
3.
A cena havida com o general em outras circunstâncias teria dado em nada. Ele tivera, antes, muitas vezes, explosões de mau gênio, desta mesma qualidade, embora muito espaçadas umas das outras. E, falando dum modo geral, era um homem de boa índole e até de disposição bondosa. Lutara, mais de cem vezes, com os maus hábitos que se vinham assenhoreando dele nos últimos anos. Caía sempre em si, recordando-se que era um chefe de família, queria reconciliar-se com a esposa, e não era raro derramar lágrimas sinceras de arrependimento. Respeitava e venerava mesmo Nina Aleksándrovna por lhe haver perdoado muito e por amá-lo sabendo embora que ele se tornara uma figura grotesca e degradada. Pena era que os bem-intencionados esforços do seu coração para dominar as suas falhas durassem tão pouco. E o pior era que o general tinha um caráter demasiadamente “impulsivo”. Não conseguindo suportar durante muito tempo o vazio da sua vida, relegado em casa como mero penitente, acabava sempre por se revoltar. Era presa de paroxismos e de excitação dos quais ele próprio não cansava de se repreender intimamente, conquanto isso pouco adiantasse. Brigava, punha-se a discutir, empregando uma exótica eloquência e uma retórica exagerada, insistindo em querer ser tratado com o maior respeito e consideração, acabando, quase sempre, por abandonar a casa, às vezes até por dias e dias seguidos. Nesses dois últimos anos tinha apenas uma vaga ideia das coisas domésticas, só sabendo delas “por ouvir dizer”. Desistira de aprofundar a curiosidade em tais casos, não sentindo mais o menor impulso para tal.
Desta vez, porém, a explosão do general assumira excepcional desespero porque, no fundo, a causa e a razão eram graves. Todos pareciam estar cientes de certa coisa, mas se sentiam temerosos de aludir a ela. O general apresentara-se dum modo formal perante a família, ou, mais propriamente, perante Nina Aleksándrovna, havia três dias. Mas não se apresentara, como das outras vezes, humilde e arrependido. A reaparição, desta vez, estava marcada, ao contrário, por uma irritabilidade que se evidenciava na sua loquacidade, nos seus movimentos, no modo de defrontar os demais, de cabeça erguida e ademã violento, fosse quem fosse que encontrasse, muito embora, como sempre, descambando, nas disputas, para assuntos inadequados e impróprios, não sendo possível a ninguém atingir o fundo daquilo que o atormentava. Não que, lá uma vez ou outra, não se mostrasse prazenteiro. A maior parte do tempo, porém, vivia taciturno, parecendo, todavia, nem ele mesmo saber sobre que fato meditava tanto. Se, por exemplo, se metia numa conversa onde se falasse de Míchkin, dos Epantchín, de Liébediev, não era raro, sem mais aquela, interromper as perguntas ou as respostas, permanecendo com um sorriso vago, sem se dar conta que estava a sorrir ou que jaziam à espera da sua resposta. Levara a noite anterior gemendo e se lastimando, cansando assim Nina Aleksándrovna que passara toda a noite acordada a preparar-lhe fomentações. Mas, ao amanhecer, caíra num sono profundo, a ponto de dormir quatro horas seguidas. Mas acordara com um ataque violentíssimo e desordenado de hipocondria cujo remate lógico fora uma briga com Ippolít e “uma maldição sobre esta casa” (como dera, ultimamente, em dizer à toa). Também haviam reparado que, durante esses três últimos dias, dera em ter acessos de amor-próprio, o que o tornou, dum modo mórbido, suscetível a ofender-se por nonadas, levando Kólia a reiteradamente explicar à mãe que isso era falta de bebida, ou talvez, até, uma “espécie de saudade” de Liébediev, de quem o general se tinha tornado excessivamente amigo, de tempos para cá. Mas que fazer, se justamente três dias antes brigara sem mais aquela com Liébediev, separando-se dele como uma fúria? Pois se até com Míchkin houvera uma cena, a ponto de Kólia ter ido pedir esclarecimentos! Disso resultara Kólia suspeitar que o príncipe sabia de alguma coisa que não queria dizer, tendo Gánia feito a mesma suposição, com muita possibilidade de acerto. Chegara a haver uma conversa entre Ippolít e Nina Aleksándrovna e era de estranhar que esse vingativo rapaz chamado tão francamente por Gánia de “traficante de escândalos”, tivesse tido a prudência de não iniciar Kólia em segredos funestos. Era muito provável que Ippolít não fosse o malicioso e sórdido “cachorro” que Gánia descrevera à irmã. Ou a sua malícia era, de outra maneira, não tão acessível à primeira vista? Mas era provável que tivesse informado Nina Aleksándrovna dos seus reparos e averiguações, só para lhe “quebrar o coração”... Não nos esqueçamos que as causas das ações humanas são, de hábito, incomensuravelmente mais complexas e variadas do que as subsequentes explicações que delas damos. Estas últimas podem ser definidas de maneira mais singela.
O melhor caminho, para um contador de histórias, é restringir-se ele à simples narrativa dos fatos. E esta será a linha que adotaremos no resto da narrativa da atual catástrofe da vida do general. Fazemos isso, porque inevitavelmente devemos conceder mais espaço e atenção do que originariamente tínhamos deliberado para este personagem de importância aparentemente secundária em nossa história.
Esses acontecimentos se tinham sucedido uns aos outros, na ordem seguinte:
Quando Liébediev voltou, naquele dia mesmo, com o general, de Petersburgo, onde fora procurar Ferdichtchénko, nada dissera de particular a Míchkin. Não estivesse o príncipe preocupado e com o tempo absorvido em outras impressões de grande importância, teria percebido logo que, durante dois dias, Liébediev, em vez de lhe vir dar qualquer explicação, pelo contrário, e por qualquer motivo, evitava encontrar-se com ele. Quando o príncipe pôde, afinal, volver a sua atenção para o assunto, se surpreendeu de se haver esquecido que nesses três dias tinha encontrado Liébediev naqueles seus habituais e antigos estados de bem-aventurança de espírito sempre em companhia do general. Não podiam passar nunca um sem o outro, um só momento que fosse. Muitas vezes ouvira o príncipe os sons da ruidosa e precipitada conversa, seguidos de alegres disputas, no andar de cima. Certa vez, mesmo, as apojaturas de uma canção marcial báquica romperam repentina e inopinadamente em seus ouvidos, logo reconhecendo o basso profondo do general. Mas a canção parara antes do final. Depois, numa outra hora, se seguira uma palestra extremamente animada e por sinal que tipicamente de bêbedos. Seria até fácil conjeturar que os amigos se estavam a abraçar, acabando, porém, um deles, por chorar. Arrematara tudo uma briga violenta, a que sucedera súbito silêncio, logo depois.
Agora, por causa disso, parecia preocupado, e como o príncipe geralmente precisava ausentar-se de casa, só voltando tarde, sempre lhe comunicavam, depois, que Kólia andara à sua procura. Mas quando sucedia encontrarem-se, Kólia parecia não ter nada de particular para lhe contar, a não ser que “não estava satisfeito” com o general, nem com os seus modos, “atualmente”. “Eles andam sempre juntos, embebedam-se numa taverna, saem abraçados, brigam em plena rua. Pregam partidas um ao outro e não se podem separar.” Quando o príncipe lhe fez ver que antes era a mesma coisa, todos os dias, Kólia ficou como se quisesse dar uma outra explicação recente, mas acabou por não poder explicar a causa de sua presente intranquilidade.
Na manhã que seguira à noite da cantiga e da briga, ia o príncipe saindo de casa, cerca das onze horas, quando esbarrou com o general que entrava e que lhe pareceu muito excitado e lastimavelmente esbodegado.
— Desde muito tenho buscado a honra de encontrá-lo, honradíssimo Liév Nikoláievitch. Desde muito! — Apertou a mão do príncipe cem tanta firmeza que quase o machucou. — Desde muito, muito tempo.
O príncipe convidou-o a sentar-se um pouco.
— Não, não me sentarei. Não quero retê-lo. Virei uma outra vez. Terei, então, o ensejo de congratular-me com o senhor, a propósito do estado de graça do seu coração boníssimo.
— Qual estado de graça do meu coração?
O príncipe ficou desconcertado, pois, como quase toda gente em situação especial igual à sua, supunha que a ninguém era dado adivinhar ou compreender nada do seu íntimo.
— Não se incomode! Não se incomode! Não ferirei os seus mais delicados sentimentos. Já conheço isso e sei o que isso é, quando uma outra pessoa intromete o nariz, como se costuma dizer... onde não é chamado. Sinto isso cada manhã. Vim, por causa de um outro negócio muito importante. Um negócio muito importante, príncipe.
O príncipe tornou a pedir-lhe que se sentasse e deu o exemplo, sentando-se primeiro.
— Por um segundo, vá lá. Vim para me aconselhar. Eu já não tenho, naturalmente, nenhum alvo na vida; mas como respeito a mim mesmo, e como admiro o espírito prático no que aliás o russo só dá provas de deficiência... Desejo recolocar-me, bem como a minha esposa e meus filhos, em uma situação... Príncipe, preciso de seus conselhos!
O príncipe aplaudiu calorosamente tais intenções.
— Bem, tudo isto não foi mais do que uma série de disparates que me pus a dizer-lhe, príncipe... — interrompeu o general, subitamente, mudando para outro assunto. — O que eu desejava dizer era outra coisa, e essa, importante. Simplesmente lhe desejo explicar, Liév Nikoláievitch, como a um homem em cuja sinceridade de coração e nobreza de sentimentos tenho a mais completa confiança, que... que... As minhas palavras surpreendem-no, príncipe?
O príncipe observava o seu visitante, se não com surpresa, ao menos com extrema atenção e curiosidade.
O velho estava um tanto pálido; de instante em instante os seus lábios se repuxavam e as suas mãos não podiam ficar quietas. Tendo ficado sentado menos do que dez minutos, ainda assim por duas vezes se levantou, por qualquer motivo, e outras tantas tornou a se sentar, obviamente não prestando a menor atenção no que estava dizendo e fazendo. Havia alguns livros sobre a mesa; tomou um deles, e, sempre a falar, abriu-o, deu uma olhadela a uma página, fechou-o imediatamente e o repôs sobre a mesa, alcançou um outro livro, que nem abriu, ficando a segurá-lo todo o tempo, com a mão direita, agitando-o no ar, conforme a gesticulação.
— E basta! — gritou, subitamente. — Vejo que estive a incomodá-lo tremendamente.
— Oh, de maneira nenhuma! Faça o favor de prosseguir. Muito pelo contrário. Estou escutando e procurando adivinhar em que lhe possa ser útil.
— Príncipe, anseio ganhar por mim próprio, uma situação de respeito... Estou ansioso... quero... respeitar... a mim, e... aos meus direitos!
— Um homem animado por tal desejo já é digno de respeito, só por essa razão.
Como pudera o príncipe usar, ali, duma expressão de almanaque, dizendo aquela frase que aparece nos guias de bom-tom? Naturalmente porque lhe veio a firme convicção de que isso produziria um excelente efeito. Adivinhara, instintivamente, que qualquer frase redonda, mas agradável, pronunciada no momento exato, teria imediatamente uma influência não só irresistível como também calmante no espírito desse homem, especialmente na situação em que desconfiava achar-se o general. Fosse como fosse, só poderia mandar embora uma tal visita depois de lhe iluminar o coração! E esse era o problema.
A frase envaideceu e comoveu o general Ívolguin, agradando-lhe muito. E imediatamente ficou derretido, mudando para o tom de outrora; e começou a desembuchar toda uma explicação entusiástica. Mas, conquanto se esforçasse por ouvir com a maior atenção, Míchkin não logrou entender absolutamente nada. Nesses dez minutos o general falou veementemente, aos atropelos, como se lhe fosse impossível despejar como queria a aluvião de pensamentos com a necessária pressa. Positivamente lhe apareceram lágrimas nos olhos, lá para o fim, muito embora não dissesse nada, a não ser orações e sentenças sem começo nem fim, que se atropelavam umas sobre as outras!
— Agora, chega. Já me compreendeu. Estou satisfeito — concluiu, levantando-se logo. — Um coração como o seu não pode deixar de compreender um homem que sofre. Príncipe, o senhor é idealmente generoso. Que valem os demais homens, diante do senhor? Mas é moço, e eu o abençoo. O simples e o complexo, em tudo isto, é que vim pedir-lhe uma entrevista, um encontro, uma hora certa, para uma conversa importante comigo, e na qual repousa toda a minha esperança. Não solicito mais do que amizade e simpatia, príncipe. E esta sofreguidão de amizade e simpatia que há no meu coração nunca a pude governar, príncipe.
— E por que não imediatamente? Estou pronto a ouvi-lo.
— Não, príncipe, não! — interrompeu ardorosamente o general. — Agora, não! Agora seria um sonho vão! É muito, muito importante! A hora dessa conversação será a hora dum irrevocável destino. Será a minha hora! E eu não desejaria que nos fosse dado termos que interromper um momento tão sagrado por causa de qualquer eventual arrivista, qualquer sujeito impudente! E que abundância não há, caro príncipe, de tais indivíduos! — Abaixou-se para o príncipe, de súbito, e disse com estranho, misterioso e quase assustador sussurro: — Um desses indivíduos impudentes que não valem a biqueira do seu sapato, príncipe adorado! E não é ao meu sapato que os comparo! Tome nota, muito especialmente, que não estou tomando como termo de comparação o meu sapato, a este aqui, pois tenho muito respeito de mim mesmo para dizer diretamente que... Mas só o senhor é capaz de compreender que não estou me referindo em tal caso à biqueira do meu sapato, mostro, talvez, o mais alto orgulho de mérito... e de consideração! Salvo o senhor, mais ninguém compreenderá isso... E ele, ainda menos do que os demais. Ele não compreende nada, príncipe, ele é absolutamente, totalmente incapaz de compreender. Para entender, urge ter coração!
Alarmando-se, o príncipe marcou para o dia seguinte, àquela mesma hora, um encontro com o general que, reanimado ante tal conforto, saiu todo confiante. E, à noite, entre seis e sete horas, o príncipe mandou pedir a Liébediev que viesse vê-lo, por um instante.
— Muito orgulhoso por tamanha honra! — foi logo dizendo Liébediev, cuja aparição foi feita com alacridade, decerto para desvanecer a suspeita de que se estivera, nesses três dias, a esconder, evitando encontrar o príncipe. Sentou-se na beira da cadeira, com sorrisos e tiques, os olhinhos cautelosos e risonhos, friccionando as mãos, assumindo um ar bem-aventurado ante a perspectiva de ir ouvir certa comunicação de importância primacial desde muito esperada e adivinhada por todo o mundo. O príncipe retraiu-se. (Desde tempos notara que, gratuitamente, toda gente esperava uma novidade, esperando só que ela fosse participada para se congratularem, adiantando-se, porém, em prognósticos, sorrisos e olhares. Keller, por exemplo, uma ou duas vezes, viera visitá-lo, muito pressuroso, não se demorando mais do que um minuto, mas o desejo de lhe dar parabéns era notório nele; ambas as vezes, porém, não ousara sequer começar, tendo-se retirado imediatamente, para um salão de bilhar onde, ultimamente, fazia sensação, bebendo “pesadamente”. Até mesmo Kólia, apesar de sua tristeza, tentara iniciar um assunto indireto...)
Sem preâmbulos, Míchkin perguntou a Liébediev — havia irritação na sua voz — que pensava do estado de espírito do general Ívolguin, que parecia andar tão inquieto. (Complementarmente, pôs Liébediev a par da cena de ainda há pouco.)
— Cada qual tem motivos para inquietações, príncipe... e, de modo especial, nesta hora estranha e difícil, conforme o senhor sabe. — Foi uma resposta dada com secura a que se seguiu o silêncio ofendido que caracteriza o ar duma pessoa que acaba de se decepcionar profundamente por causa duma perspectiva falhada.
— Que filosofia! — sorriu o príncipe.
— Em nossa idade, bem proveitosa que é uma filosofiazinha, por causa da sua lição prática. Mas até ela é menoscabada! Da minha parte, excelentíssimo príncipe, lhe sou muito grato pela confiança que se dignou testemunhar-me a respeito de certo e determinado ponto, embora até um grau muito relativo, apenas... Compreendo que assim devesse ser e não me queixo...
— Liébediev, parece que você está ressentido por alguma coisa!
— Absolutamente, de modo algum, distinto e resplendente príncipe! De modo algum. — Liébediev apaixonou-se, levando as mãos ao coração. — Pelo contrário. Sei que, nem pela posição que desfruto neste mundo, nem pelas qualidades sejam de espírito ou de coração, e tampouco pela soma de minha fortuna, sei que, de modo algum, mereço a confiança com que o senhor me honra, e que está muito acima de minhas esperanças; se, de algum modo, o posso servir, só será como escravo e mercenário. Nem poderia ser de outra forma. Ressentido... não estou. Estou, mas é... triste.
— Vamos, vamos, Lukián Timoféietch!
— Nem poderia ser de outra forma. E assim, verifico, também, no presente caso. Vindo ao seu encontro, levando o senhor no coração e no pensamento, disse comigo: “Sei que, como amigo, não mereço a vossa confiança, mas como locatário da casa em que morais, talvez venha, em tempo oportuno, e um pouco antes do acontecimento que se vai dar, a receber um aviso, ou... no mínimo, uma notificação, ligadas as coisas a certas transformações esperadas para um futuro próximo.”
Dizendo isto, Liébediev não tirava do príncipe os olhinhos agudos, a tal ponto que o príncipe, estupefato, quase se decidiu a lhe satisfazer a curiosidade, acabando, porém, por se enraivecer.
— Não compreendo uma só palavra! E você não passa dum terrível intrigante! — disse e rompeu numa gargalhada. Instantaneamente, Liébediev também riu, confirmando e redobrando as suas esperanças. — E sabe você, Lukián Timoféietch, o que tenho a dizer-lhe? Não fique zangado, mas a sua simplicidade me espanta. E não só a sua. Você está esperando uma coisa de mim, e com tamanha simplicidade que eu me sinto verdadeiramente envergonhado e com a consciência doendo, por não ter nada, absolutamente nada, para satisfazê-lo. Juro, é a verdade. Nada! Viria você a supor isso? — E o príncipe tornou a rir.
Liébediev arranjou um ar de dignidade, habilmente ficando calado, por astúcia e velhacaria, talvez para não continuar a ser acoimado de ingenuamente indiscreto e curioso. Desde muito o príncipe se arriscava a tê-lo como inimigo por causa do modo com que habitualmente o mandava embora. Mas o príncipe sempre fizera isso não porque ele o desgostasse, mas por causa dessa curiosidade insuportável. Ainda um dia desses, por exemplo, Míchkin diante dele se refreara, só porque considerava os seus sonhos e esperanças como crime; e, todavia, Liébediev imediatamente tomou tal reserva como prova duma desconfiança pessoal, ou mesmo como aversão; melindrara-se, com o coração cheio de ciúme não só de Kólia e de Keller, como da própria filha Vera. Todavia, agora mesmo, estava apto a contar uma porção de novidades; e sinceramente desejava contá-las, apesar de estar assim sinistramente calado.
Depois de breve silêncio, perguntou:
— Em que lhe posso ser útil, excelentíssimo príncipe, já que, afinal, me mandou chamar ainda agora?
— Ora! Queria perguntar-lhe a respeito do general — respondeu o príncipe, saindo do seu estado de meditação. — E a respeito daquele roubo de que você me falou.
— A respeito de quê?
— Ora!... Não se faça de desentendido! Oh! Por que há de você estar sempre representando, Lukián Timoféietch? O dinheiro, o dinheiro, os quatrocentos rublos que deixou cair no outro dia do bolso, e de que me veio falar, aquela manhã, quando ia a Petersburgo. Compreendeu, afinal?
— Hã... O senhor está falando daqueles quatrocentos rublos? — balbuciou Liébediev, como se ainda estivesse adivinhando. — Muito obrigado, príncipe, por sua simpatia, que me envaidece muito. Mas... eu os encontrei algum tempo depois.
— Encontrou? Ah! Louvado seja Deus!
— Esta sua exclamação ainda é mais uma generosidade da sua parte, pois quatrocentos rublos não são uma ninharia desprezível para um pobre homem que vive do seu árduo trabalho, com uma récua de crianças sem mãe!...
— Mas não é a isso que me refiro! Naturalmente que me alegra saber que você encontrou o dinheiro. — O príncipe procurou apressadamente corrigir-se. — Mas como foi que o encontrou?
— Muito simplesmente. Estava debaixo da cadeira sobre a qual eu dependurara o meu casaco. Com certeza a carteira escorregou do bolso para o assoalho.
— Debaixo da cadeira? Mas como? Você me disse que tinha estado a revirar todos os cantos! Como foi que lhe passou despercebido um lugar tão à vista?
— Tenho a convicção de que olhei. Lembro-me muito bem de ter olhado. Agachei-me, fiquei de quatro, apalpei todos os lugares com a mão, mudei as cadeiras dos seus lugares; não confiava apenas em meus olhos! E lá, debaixo da cadeira, não havia coisa nenhuma; o lugar estava vazio e liso como as minhas mãos; mas, ainda assim, continuei a tatear uma porção de tempo. É sabida a atrapalhação em que fica uma pessoa quando quer achar logo qualquer coisa perdida, mesmo que seja sem importância. Embora vendo que não tem nada ali, a pessoa, apesar do lugar estar vazio, torna a espiar uma dúzia de vezes.
— Bem o suponho! Mas como foi que você acabou vendo? Ainda não compreendi — murmurou o príncipe desconcertado. — Você me contou, naquela ocasião, que tinha procurado, que não achou nada lá, e como é que, de repente, isso foi aparecer?
— E de repente isso foi aparecer! — E Liébediev suportou o olhar esquisito do príncipe que lhe fez esta outra pergunta:
— E o general?
— Que é que tem o general?... — Liébediev tornou a ficar perplexo.
— Ó meu caro! Estou perguntando o que foi que disse o general, quando você olhou a carteira. Pois não sabe muito bem que vocês dois estiveram procurando juntos?
— Antes, tínhamos estado a procurar juntos. Mas quando achei, confesso, sofreei a minha língua e preferi não contar a ele que eu tinha encontrado sozinho a carteira.
— Mas... por quê? E o dinheiro? Estava todo lá?
— Abri a carteira. O dinheiro estava intacto. Nota por nota.
— Devia ter vindo dizer-me — observou-lhe o príncipe, pensativo.
— Temi incomodá-lo, príncipe, em seus interesses pessoais e, de certo modo, absorventes; e, além disso, fiz como se não tivesse encontrado nada. Abri a carteira, revistei-a, tornei a fechá-la e a recoloquei no mesmo lugar debaixo da cadeira.
— Mas, para quê?
— Oh! Por nada. Por curiosidade — cacarejou Liébediev, esfregando as mãos.
— Então, está caída lá, desde anteontem?
— Oh! Não. Só ficou lá um dia e uma noite. O senhor há de compreender que, em parte, eu queria que o general a encontrasse. Pois, se eu a encontrei, por que não haveria o general de dar com ela assim tão à mostra, debaixo da cadeira, e como que hipnotizando os olhos? Mudei a cadeira uma porção de vezes, de lugar, ajeitando-a de maneira que a carteira ficasse completamente à mostra. Mas o general candidamente não a viu, de modo que ela ficou lá vinte e quatro horas. Ele me parece extraordinariamente distraído, agora! E não há meios de avisá-lo. Conversa, conta histórias, dá risadinhas, e de repente fica de gênio ruim comigo! Não sei por quê. Já a última vez, quando saímos da sala, deixei a porta escancarada, de propósito. Tive a impressão de que ele hesitou e quis falar qualquer coisa. Naturalmente estava preocupado a respeito da carteira, com uma tal soma de dinheiro dentro; acabou saindo, mostrando uma raiva terrível, mas não disse nada. Já na rua, nem dois passos tínhamos dado juntos, ele me largou, tomando direção oposta. É verdade, porém, que nos encontramos à noite, na taverna.
— Mas você, afinal, pegou a carteira de debaixo da cadeira?
— Não; desapareceu de lá, naquela mesma noite.
— E onde está agora?
— Oh... Aqui. — E Liébediev riu inclinando-se, com todo o seu peso, para trás, e encarando Míchkin, prazenteiramente. — Ela apareceu aqui, de repente, na aba do meu casaco. Aqui! Não quer ver? Apalpe.
A aba esquerda do casaco formava, com efeito, do lado de dentro, uma espécie de teta, no lugar mais visível, mostrando perfeitamente, ao tato, que ali havia uma carteira de couro que tinha caído dum bolso furado.
— Extraí-a e espiei. O dinheiro estava lá, inteirinho. Enfiei-a outra vez no mesmo lugar. E com ela tenho andado, para cá e para lá, desde ontem de manhã. Assim a danada me acompanha, batendo contra as minhas pernas quando ando.
— E você não notara isso?
— Se eu não notei isso? Ah! Ah! E acreditaria o senhor, nobilíssimo príncipe, embora o fato não mereça ser notado pelo senhor, que os meus bolsos sempre estiveram novinhos, bons, só agora, de repente, numa só noite, aparecendo um deles com um buraco deste tamanho!? Repare só, não parece que foi cortado com um canivete? Não chega a ser inacreditável?
— E... o general?
— Esteve zangado o dia todo. Tanto ontem, como hoje. Pavorosamente mal-humorado. Antes andava contente, risonho; depois passou apenas a responder aos meus cumprimentos. Lá uma vez ou outra, fica sentimental, até às lágrimas, mas desta vez está zangado comigo deveras. E, até fiquei receoso, pois ele é um militar e eu não o sou. Ontem estávamos sentados juntos na taverna. Como por acaso, a aba do meu casaco se abriu e de modo, se não exagerado, espalhafatoso. E aquilo ficou à mostra, como uma montanha! Ele olhou, disfarçou, depois se danou. Não costuma me encarar. Só me encara quando está sentimental, ou então embriagado. Mas ontem me cravou um olhar tal que me correu um calafrio pela espinha. Por causa das dúvidas, acho que amanhã vou contar a ele que achei a carteira... Mas ainda quero ter, antes, uma noite de farra e de provocação, com ele.
— Por que você o atormenta tanto assim?
— Eu não o estou atormentando, príncipe, eu não o estou atormentando — replicou calorosamente Liébediev. — Eu amo o general sinceramente. E o respeito mesmo; de agora por diante, quer o senhor acredite ou não, ele me é mais caro do que antes. Acabei por apreciá-lo ainda mais.
Liébediev dizendo isso, impetuosamente, parecia tão sincero, que o príncipe ainda ficou mais indignado.
— Se você gosta dele como diz, por que o atormenta desta forma? Por quê? Pelo fato, tão só, de ter colocado a carteira em lugar que você pudesse ver, debaixo da cadeira, e, a seguir, no forro do seu casaco, mostrando com isso que não quer decepcionar você a respeito dele; mas até com a simplicidade do seu coração franco lhe pedindo, por este modo, perdão?!... Ele prova, com isso, que conta com a delicadeza dos seus sentimentos e, por conseguinte, que acredita na sua amizade, para com ele, em qualquer circunstância! E, todavia, você reduz um homem como esse, um homem honrado, a uma tal humilhação!
— Honradíssimo, príncipe, um homem honradíssimo! — concordou Liébediev, com os olhos em chispas. — E o senhor, nobilíssimo príncipe, é a única pessoa capaz de pronunciar palavras assim, a respeito dele! Aí está por que lhe sou devoto, por que estou pronto a venerar o senhor, apesar de eu, com os meus vícios inumeráveis, estar podre até a medula! Mas está decidido! Faço que achei a carteira agora mesmo, já, e não amanhã. Vou tirá-la, aqui, diante do senhor. Ei-la. Espie o dinheiro! Intacto! Vê? Tome-o, príncipe, guarde-o até amanhã. Até amanhã, ou até quando o senhor quiser. Depois o receberei. E quer saber duma coisa, príncipe, vou fazer correr que a carteira foi encontrada por aí, no jardim, por exemplo, atrás duma pedra! Na noite mesmo em que foi perdida. Que acha?
— É preferível não lhe dizer pessoalmente que encontrou a carteira. Deixe-o verificar, sozinho, que não há mais nada enchendo a aba do seu casaco, e ele compreenderá.
— O senhor pensa assim? Não seria melhor dizer que a achei, e fazer uns ares de tanta naturalidade que ele não desconfie de nada, agora?
— N... ão! — argumentou o príncipe. — N... ão! É muito tarde para isso. Ainda fica mais arriscado. O melhor, realmente, é não dizer nada. Seja amável com ele, mas não demais... e... Enfim, você bem que sabe!
— Que sei, sei, príncipe! E sei até que me vai ser difícil fazer isso com toda a distinção precisa. Pois só um coração como o seu sabe como é que deve agir. De mais a mais o general é propenso a irritações, ultimamente me tratando, até, de cenho fechado. Se, um minuto, choraminga e chega ao cúmulo de me abraçar, logo a seguir, inesperadamente, se abespinha comigo, escarnecendo, desprezando-me... Foi até por isso que aquela hora lhe mostrei, assim como quem não queria, a aba do casaco. Ah! Ah! E já vou indo, pois está mais do que claro que estou tomando seu tempo e interrompendo os seus mais urgentes sentimentos, se bem explico...
— Pelo amor de Deus! Lá vem você outra vez com seus mistérios...
— Pisando de mansinho, pisando de mansinho...
O caso, conquanto liquidado, lançou o príncipe numa confusão ainda maior. Começou a aguardar, com impaciência, a entrevista do general, marcada para o dia seguinte.
4.
A hora marcada tinha sido “ao meio-dia”, mas o príncipe se atrasou sem querer e, ao regressar a casa, já encontrou o general. Notou, ao primeiro relance, que o velho estava ofendido, evidentemente, pelo fato de ter estado a esperar. Desculpando-se, o príncipe se apressou em sentar-se, mas se sentiu de tal maneira tímido que foi como se o seu interlocutor fosse de porcelana e temesse quebrá-lo. Antes, nunca se sentira intimidado na presença do general, nem a ideia de que isso pudesse acontecer lhe passara jamais pela cabeça. Além disso, era fácil verificar que se achava diante dum homem completamente diverso do da véspera. Em vez duma agitada incoerência, deparou com uma indisfarçável e marcada reserva. Via que ali estava um homem que havia tomado uma resolução irrevogável. (Essa atitude era mais aparente do que real.) Mas, mesmo através dessa reservada dignidade, o visitante manteve uma tranquilidade cavalheiresca nas maneiras. Passou, mesmo, a tratar o príncipe com ar de condescendência, como certas pessoas orgulhosas que se comportam de maneira fidalga, desculpando um insulto gratuito. Falou afavelmente; só a entonação estava ligeiramente modificada.
— Aí está o livro que me emprestou, no outro dia — disse, mostrando, significativamente, um volume que trouxera, e que jazia sobre a mesa. — Muito obrigado.
— Ah! Sim. Leu aquele artigo, general? Gostou? Não achou interessante? — O príncipe comprazia-se com a oportunidade de iniciar conversa através dum assunto qualquer, mesmo que fosse, como aquele o era, inadequado.
— Interessante, talvez, mas indigesto; e portanto, absurdo. Para cada sentença uma mentira provável. — O general falava com aprumo, e até contornava as palavras, um pouco.
— Ah! Trata-se de uma história despretensiosa; recordações dum veterano que foi testemunha ocular da chegada dos franceses a Moscou. Mas há alguns trechos bem interessantes. E não há dúvida de que uma informação dada por uma testemunha é sempre preciosa, seja ela qual for.
— Pois, fosse eu o editor, não a imprimia. E, dum modo geral, no que concerne a qualquer descrição dessas chamadas testemunhas oculares, há sempre gente mais inclinada a acreditar em mentirosos grosseiros do que num homem de valor que tenha estado a servir. Quanto a mim, posso gabar-me de saber mais do que as descrições contam a respeito do ano de 1812... Príncipe, cheguei à seguinte resolução: vou abandonar definitivamente a casa de Liébediev. — E o general olhou Míchkin de modo significativo.
— O senhor tem os seus cômodos próprios, em casa de sua filha aqui em Pávlovsk... — disse o príncipe, porque não achou outra coisa a dizer. (Lembrou-se que o general ficara de vir pedir-lhe conselho sobre assunto importante, do qual dependeria o seu destino.)
— Em casa de minha mulher! Ou, em outras palavras, na casa de minha filha.
— Desculpe-me, eu...
— E abandono a casa de Liébediev, meu caro príncipe, porque rompi com esse indivíduo. Rompi ontem, à noite, e lastimo não o haver feito muito antes. Insisto a tal respeito, príncipe, e desejo ser compreendido por aqueles a quem galardoo o meu coração. Príncipe, acabo sempre galardoando o meu coração e sempre tenho que me arrepender, decepcionadíssimo. Esse homem não é merecedor do que lhe doei.
— Há muita coisa nele que é extravagante — observou o príncipe, discretamente —, em linhas gerais; mas entre elas se pode perceber um coração que não é mau e, através de muitas simulações, uma inteligência que diverte.
A beleza das expressões e a respeitabilidade do tom desvaneceram o general que, apesar disso, continuou a olhar para o príncipe com certa desconfiança. Mas os modos do príncipe eram tão sinceros que o general acabou por não suspeitar mais dele.
— Lá que ele tenha boas qualidades — concordou o general — fui o primeiro a declarar, quando galardoei a minha amizade a esse cavalheiro. Todavia não preciso da casa dele e nem da sua hospitalidade, tendo, como tenho, uma família própria. E repare que não estou aqui tentando justificar as minhas falhas. Fui fraco; bebi com ele, e agora só posso lamentar-se disso. (Releve, príncipe, a rudeza dum homem que foi destratado.) Mas não foi somente por causa da bebida que me tornei amigo dele. O que me permitiu isso foi, justamente, ter-lhe verificado qualidades. Mas apenas até certo ponto, mesmo no que se refere às qualidades. Mas já que ele, subitamente, teve a impudência de declarar na cara de quem quer que fosse — e todavia foi na minha! — que, em 1812, quando devia ser simplesmente uma criança, perdeu a perna esquerda e que a enterrou no cemitério de Vagánskovskii em Moscou, então ultrapassa os limites e se mostra desrespeitoso e impertinente...
— Deve ter dito por brincadeira, para despertar risada!
— Compreendo. Uma brincadeira inocente, mesmo que seja grosseira, pode, de fato, ser dita apenas para despertar gargalhada, e não fere, concordo, um coração humano. Um homem pode mentir, ninguém lho proíbe, simplesmente por camaradagem íntima, para agradar a um outro homem com que esteja falando. Mas se houver indícios que sejam, indícios de desrespeito, se ele pretende, justamente, com tal desrespeito, mostrar que está farto dessa camaradagem, nada mais resta a esse outro homem, se tiver honra, senão ir embora e romper todas as ligações, repondo o ofensor em seu conveniente lugar.
O general positivamente enrubescia, enquanto estava falando nisso.
— Ora, Liébediev não podia ter estado em Moscou, em 1812! Não tem idade para isso; trata-se dum despautério.
— Primeiramente, isso. Mas, supondo que pudesse, então, já ter nascido, como pode ele declarar na cara de quem quer que seja que o chasseur francês fez pontaria com um canhão e atirou na perna dele, apenas por gracejo? E como ousa declarar que apanhou a perna e a carregou para casa, e que, depois, a foi enterrar no cemitério de Vagánskovskii? E acrescentar que mandou erigir, por cima, um monumento, tendo num lado a inscrição: “Aqui jaz a perna do assessor colegial Liébediev” e no outro lado: “Descansai, cinzas amadas, até ao dilúculo da ressurreição”? E sustentar que assiste, cada ano, a um serviço oral, sacro (o que não está longe de ser blasfêmia), e que cada ano timbra em ir a Moscou, para assistir a essa cerimônia? E que desaforo é esse de, para provar isso, me convidar a ir até Moscou, para me mostrar, não só a tumba, como até mesmo o tal canhão tomado aos franceses e que jaz, presentemente, no Kremlin? E ter a imaginação acesa a tal ponto que me declara, a mim, senhor, que se trata do décimo sétimo canhão depois dos portões, e que por sinal que é um falconete francês de marca antiquada?!
— Além do que ele tem as pernas intactas, segundo creio eu. — riu o príncipe. — Asseguro-lhe que foi um inofensivo gracejo. Não fique zangado.
— Mas permita, ao menos, que eu tenha a minha opinião! Quanto a ter ele as duas pernas, lá isso não é absolutamente improvável; declarou-me que arranjou uma perna com Tchernosvítov.
— Ah! Sim. Dizem que até se pode dançar, com as pernas desse fabricante.
— Estou perfeitamente ciente disso. Quando Tchernosvítov inventou a sua perna, lá dele, a primeira coisa que fez foi vir, correndo, mostrar-ma. Mas tais pernas foram inventadas muitíssimo mais tarde, são quase que recentes, de hoje! Mas, ouça mais esta, príncipe: ele afirma que a sua defunta mulher não chegou a saber nunca que ele, seu marido (e quanto tempo não estiveram eles casados!), tinha uma perna de pau. Quando me permiti fazer-lhe sentir quanto tudo isso era estapafúrdio, disse-me (e eu sei por que foi que ele disse): “Pois mesmo o senhor que foi pajem ou camareiro de Napoleão, em 1812, me teria permitido enterrar a minha perna em Vagánskovskii.”
— Mas o senhor, realmente...? — E o príncipe logo se interrompeu, embaraçado.
O general também mostrou laivos de perturbação, mas instantaneamente fitou Míchkin com distinta condescendência, e até mesmo com ironia.
— Continue, príncipe, continue! — interferiu, com proposital suavidade. — Posso fazer concessões. Fale! Confesse que se diverte ante o pensamento de estar vendo diante de si um homem em seu presente estado de degradação... e imprestabilidade, e ouvir que esse homem já foi, todavia, testemunha ocular de grandes acontecimentos. Ele já não lhe tagarelou isso também?
— Não, nunca ouvi nada de Liébediev, se é que o senhor se está referindo a ele.
— Hum! Supus o contrário. A conversa particular teve lugar ontem, entre nós, a propósito desse estranho artigo dos Arquivos. Fiz um reparo relativamente a absurdos contidos ali, já que eu fora uma testemunha ocular... Mas o senhor está sorrindo; príncipe, na minha cara?
— N... ão!
— Já várias vezes, ao espelho, reparei que pareço ainda mocetão! — O general destacava bem as sílabas. — Mas sou, efetivamente, mais velho do que aparento. Em 1812 eu estava no meu décimo, ou undécimo ano. Não posso dizer, exatamente, a minha idade. Na lista de serviço, ela está bem diminuída; foi sempre o meu fraco, toda a minha vida, dar-me por mais moço do que sou.
— Asseguro-lhe, general, que não acho estranho que o senhor tenha estado em Moscou, em 1812... e naturalmente que o senhor poderia narrar acontecimentos como qualquer outro que lá também tenha estado. Um dos nossos escritores começa a sua autobiografia dizendo que, quando era criança de colo, em 1812, foi alimentado com papinhas de pão fornecidas pelos soldados franceses.
— Ora aí está. Vê o senhor? — aprovou condescendentemente o general. — O que aconteceu a mim foi, e era lógico, fora do comum, mas que pode haver nisso, de incrível? Muitas verdades, amiudadamente, parecem impossíveis. Pajem... Camareiro!... Hum... Realmente, soa estranho. Mas as aventuras duma criança poderão, talvez, ser explicadas justamente pela sua idade. O que se deu comigo, não se daria se eu já tivesse quinze anos, pois, com esta idade eu não correria, como corri, no dia da entrada de Napoleão, em Moscou, para fora da casa de madeira, da rua Stáraia Basmánnaia, onde eu vivia com minha mãe que, não podendo ter deixado a cidade a tempo, estava petrificada pelo pânico. Aos quinze anos, também eu teria tido medo; mas, aos dez, não temia nada, e abri passagem através da turbamulta, até aos degraus do palácio, justamente na hora em que Napoleão estava desapeando do seu cavalo.
— Certamente. A observação, de que aos dez anos não se tem medo, é verdadeira — concordou o príncipe, envergonhado, esforçando-se para não corar.
— Mais do que certo. E tudo aconteceu de um modo tão simples e natural quanto era mais do que possível na realidade. Meta-se um novelista a trabalhar neste artigo e vê-lo-emos a bracejar num mar de incríveis e improváveis redundâncias.
— Nem há dúvida — fez o príncipe. — Veio-me a mesma ideia, ainda há pouco. Conheço o caso verdadeiro de um assassínio, por causa dum relógio. Os jornais estão dando. Se qualquer autor o inventasse, os críticos e aqueles que sabem a vida do povo gritariam imediatamente que era falso e inverossímil; lendo-o nos jornais, como coisa que acontece mesmo, a gente só tem que, através desses fatos, ir estudando a vida russa, em sua múltipla realidade. A sua observação foi excelente, general — concluiu o príncipe, afogueado, sentindo alívio por ter descoberto um refúgio para o seu rubor.
— Pois não é? Pois não é? — gritou o general, com os olhos fulgurando de prazer. — Um garoto, uma criança, que ignora o que seja medo, cava uma passagem na multidão, para ver a parada, os uniformes, o séquito e o grande homem de quem ouvia falar tanto. Pois, naquele tempo, não se falou noutra coisa, durante anos e anos. O mundo regurgitava com esse nome. Posso dizer que o bebi com o meu leite. Napoleão estava a dois passos, quando notou o meu olhar. Eu parecia um nobrezinho. Vestiam-me sempre com muito capricho. Não havia ninguém com o apuro com que eu estava em toda a multidão, pode crer.
— Não há dúvida que isso o deve ter impressionado, além de que patenteava que nem todo o mundo tinha deixado Moscou e que até nobres havia ainda, por lá, com seus filhos.
— Nem mais, nem menos! Justamente! Ele quis ganhar a simpatia dos boyards! Pois bem, quando lançou o seu olhar de águia para mim, os meus olhinhos devem ter fulgurado, em resposta aos dele. “Voilà un garçon bien éveillé! Qui est ton père?” Respondi-lhe, prontamente, quase sem ar, de tamanha excitação: “Um general que morreu no campo de batalha, por sua pátria!” “Le fils d’un boyard et d’un brave par dessus le marché! J’aime les boyards. M’aimes tu, petit?” A esta rápida pergunta, respondi ainda mais apressadamente: “Um coração russo pode discernir um grande homem, mesmo no inimigo da sua pátria.” Isto é, não me lembro bem se usei, literalmente, estas palavras... Eu era uma criança... Mas deve ter sido este o fluxo de minhas palavras. Napoleão ficou estarrecido. Pensou um pouco e disse ao seu séquito: “Gosto da altivez desta criança. Se todos os russos pensassem o mesmo, então...” Não disse mais nada. Encaminhou-se para o palácio. Imediatamente, misturei-me ao cortejo, sempre no seu encalço. Abriram-se alas e era como se já me considerassem um favorito. Mas tudo isso se deu num momento... Só me recordo que o imperador chegou ao primeiro salão e parou diante do quadro que representava a Imperatriz Catarina; ficou a olhar, muito tempo, profundamente; e por fim proferiu: “Foi uma grande mulher!” Dito o quê, prosseguiu. Dentro de dois dias eu era conhecido de todo o mundo no palácio e no Kremlin; chamavam-me: “Le petit boyard”. Eu só voltava para casa para dormir. É claro que em casa estavam todos nervosíssimos com isso. Dois dias depois, um dos pajens de Napoleão, o Barão de Basencour, morria, exausto pela campanha. Napoleão lembrou-se logo de mim. Vieram buscar-me; levaram-me sem nenhuma explicação. Experimentaram em mim o uniforme do pajem falecido — um garoto de doze anos. E quando me conduziram, envergando o uniforme, diante do Imperador, e ele fez, com a cabeça, que estava muito bem, então foi que me participaram (mas eu já havia adivinhado) que eu fora considerado merecedor da graça, e designado pajem à disposição de Sua Majestade. Fiquei contente. Eu me sentia extraordinariamente atraído para ele... e, além disso, como é fácil de compreender, um uniforme brilhante é muita coisa para uma criança. Eu usava uma espécie de casaca verde-musgo, de longas abas estreitas, com botões dourados, alamares amarelos, trabalhados a ouro, nas folhas, e tinha um colarinho grande, ereto, trabalhado também em ouro e com bordados até as pontas. Uns calções de espesso pelo de camurça, um colete de seda branca, meias de seda até aos joelhos, e sapatos com fivelas... E quando o imperador saía a cavalo eu fazia parte do cortejo, com minhas botas de cano alto. Conquanto a situação não fosse nada promissora, e houvesse uma sensação de terrível catástrofe no ar, a etiqueta era conservada o mais possível; e, com efeito, quanto maior a previsão da catástrofe, maior e mais rigorosa a pragmática da corte.
— Sim, naturalmente — murmurou o príncipe, com ar quase desesperado. — As suas memórias devem... ser extremamente interessantes.
O general, logicamente, estava a repetir a história que tinha contado a Liébediev, na véspera, e por isso é que se achava assim tão fluente. Mas, a esta altura, deitou uma olhadela para Míchkin, desconfiado, de novo.
— As minhas memórias! — ia ele conduzindo com redobrada dignidade. — Escrever as minhas memórias?! Ora aí está uma coisa que não me tenta muito, príncipe! Mas já que estamos neste pé, as minhas memórias já estão escritas... e permanecem, todavia, fechadas na minha escrivaninha. Quando os meus olhos estiverem fechados para sempre na tumba, elas poderão ser publicadas! E não tenho dúvidas que serão traduzidas em vários idiomas estrangeiros, não tanto por seu valor literário, mas, principalmente, pela importância dos tremendos acontecimentos mundiais de que fui testemunha eventual, embora como mera criança. Mais por isto, com efeito. Por ser criança, eu tinha ingresso, por assim dizer, até no quarto de dormir do “Grande Homem”. À noite eu ouvia as lamentações deste “Titã em agonia”. Por que haveria ele de ter pejo de se lamentar e mesmo chorar, diante duma criança que, no entanto, já tinha entendido que a causa da sua angústia era o silêncio do imperador Alexandre?
— Parece até que ele escreveu cartas, como preliminares de paz... — insinuou o príncipe.
— Não estamos aptos a informar sobre quais preliminares teria ele escrito; mas escrevia o dia todo, horas inteiras, carta após carta. Estava tremendamente agitado! Certa noite, estando nós sozinhos, precipitei-me para ele, a chorar. (Oh! Eu o amava!) “Pede, pede perdão ao imperador Alexandre!” — exclamei eu. Naturalmente que, em vez dessa expressão, eu devera ter dito: “Faze as pazes com o imperador Alexandre!” Mas, como criança ingênua, naturalmente eu me expressava conforme sentia. “Oh! Meu filho!”, exclamou ele, dando passadas largas, para cima e para baixo, no imenso salão. — “Oh! Meu filho!” Deixara de ver em mim um garoto de apenas dez anos e gostava de conversar comigo. “Oh! Meu filho! Estou pronto a beijar os pés do imperador Alexandre! Mas... esse rei da Prússia, e esse imperador da Áustria! Ah! Para estes, o meu ódio é perpétuo... e afinal, naturalmente que não podes, ainda, saber nada de política!” Parece que, nisto, se deu conta de com quem estava a se externar, e parou. Mas, muito tempo depois, ainda havia raios de fogo em seus olhos. Ora, dirão, já que fui testemunha ocular de tão grandes acontecimentos, e que tão bem os descrevo, dirão que publique as minhas memórias... E então, todos os críticos, todas as vaidades literárias, toda a inveja, toda a camarilha... Não! Não cai nisso este seu humilde servidor!...
— Lá quanto à camarilha, não resta dúvida que a sua observação é verdadeira, e eu concordo com o senhor — observou o príncipe, serenamente, depois de momentâneo silêncio. — Li, não há muito tempo, um livro de Charras, sobre a batalha de Waterloo. Trata-se, evidentemente, dum livro sério, e dizem os entendidos que foi escrito com conhecimento integral do fato. Realmente, nele, a cada passo, se verifica o achincalhamento de Napoleão; e se lhe tivesse sido possível anular o gênio de Napoleão, em cada uma das outras batalhas e campanhas; Charras teria ficado muito contente e o faria. Aliás não dou razão a esta obra, conquanto séria, pois há nela espírito de partido. O senhor tinha muito o que fazer, na qualidade de pajem de Napoleão?
O general ficou radiante. A espontaneidade e a simplicidade da pergunta do príncipe dissiparam logo os últimos traços de desconfiança.
— Charras? Eu próprio fiquei indignado. Cheguei a escrever-lhe, a esta altura, mas não me lembro se... Pergunta-me o amigo se eu tinha muito que fazer, no serviço de Sua Majestade, o Imperador. Ora, nem por isso. Chamavam-me um pajem à disposição, mas não levei aquilo muito a sério. De mais a mais, Napoleão logo perdeu toda a esperança de vencer os russos, e não resta a menor dúvida de que acabaria por me esquecer, se não tivesse tomado uma afeição especialíssima por mim. Já o fato de me ter como que adotado, fora um golpe político magistral. Digo isso, hoje, galhardamente. O meu coração sentira-se atraído para ele. Os meus deveres não eram definidos; tinha, apenas, que estar presente, em palácio e... acompanhá-lo quando saía. Eis tudo. Eu cavalgava bem. Ele costumava dar passeios antes do jantar. Davout, eu e um mameluco, Roustan, fazíamos parte, geralmente, do seu cortejo.
— Constant. — O príncipe pronunciou este nome quase sem querer, emendando o general.
— N...ão! Constant não estava lá. Tinha ido levar uma carta à imperatriz Josefina. O seu lugar foi preenchido por dois assistentes e por alguns ulanos polacos... Este era habitualmente o seu séquito, exceto quando Napoleão também levava consigo generais e marechais para explorarem as cercanias, ou consultá-los a respeito das posições das tropas. Quem estava, o mais das vezes, de serviço, era Davout, conforme, agora, me estou recordando. Era um homem corpulento, entroncado, de óculos, de sangue-frio, com uma estranha expressão nos olhos. Era mais consultado do que qualquer outro pelo imperador que preferia o seu modo de opinar. Lembro-me que estiveram em conferência, durante vários dias; Napoleão costumava receber Davout de manhã e de tarde. Houve entre eles frequentes discussões; enfim Napoleão pareceu a ponto de ceder. Estavam sozinhos no gabinete do imperador e não repararam na minha presença. Repentinamente o olhar do imperador caiu sobre mim, e um estranho pensamento brilhou em seus olhos. “Criança”, disse-me ele, “que achas? Se eu adotar a fé ortodoxa e libertar os escravos, ficariam os russos do meu lado, ou não?”, “Nunca!”, exclamei, indignado. Como isso impressionou o Imperador! “No patriotismo que está brilhando nos olhos desta criança”, disse ele, “leio o veredicto de todo o povo russo. Basta, Davout. Tudo isso não passa duma fantasia. Explique-me o plano seguinte!”
— Mas naquele primeiro plano havia também uma grande ideia — disse o príncipe evidentemente se interessando. — O senhor atribui tal projeto a Davout?
— De qualquer forma, eles se consultavam entre si. Mas não há dúvida que a ideia fora de Napoleão, ideia duma águia. Mas também não era mau o segundo plano. Era o famoso “conseil du lion”, como o próprio Napoleão chamou o projeto de Davout. Tal projeto consistia em fecharem-se no Kremlin, com todas as tropas; construírem barracas, cavarem trabalhos de engenharia, montarem canhões, matarem o maior número possível de cavalos, salgarem-lhes as carnes, arranjarem, requisitando ou pilhando, todo o trigo possível, e passarem lá o inverno até a primavera. E, na primavera, então, abrir, aos golpes, caminho através dos russos. Esse plano fascinou Napoleão. Costumávamos andar a cavalo em volta das muralhas do Kremlin, todos os dias. E ele, em pessoa, mostrava onde demolir, onde construir mirantes e revelins, onde devia ser a fila dos blocausses. Tinha olho vivo, julgamento pronto e visão certa. Afinal, isso ficara mais ou menos combinado. Mas Davout insistia por uma decisão definitiva. Ei-los, de novo, incomunicáveis, em conferência. E eu lá!... Como sempre, Napoleão passeava pelo salão, com os braços cruzados. Eu não podia retirar os olhos dele. E o meu coração estava aos pinotes. “Já vou indo...”, disse Davout. “Onde?”, perguntou Napoleão. “Salgar carne de cavalo”, respondeu Davout. Napoleão empertigou-se todo; aquele era o ponto de desacordo. “Criança, que pensas da nossa ideia?” Era evidente que, na maioria das vezes que me interrogava, o fazia como um homem que, apesar de sua grande inteligência, deseja se livrar duma responsabilidade. Virei-me para Davout, em vez de me virar para Napoleão e disse, assombrosamente inspirado: “General, melhor, enquanto é tempo, ainda seria voltar, correndo, para trás!” E... o plano foi abandonado. Davout, encolhendo os ombros, saiu, resmungando: “Bah! Il devient superstitieux!” E, no dia seguinte, a retirada foi ordenada.
— Tudo isso é muito interessante — murmurou o príncipe, em voz baixa —, se é que realmente assim foi... quero dizer... — e tentou corrigir-se.
— Ah, príncipe! — exclamou o general, embalado pela sua história, não a interrompendo nem mesmo à vista da indiscreta observação do príncipe. — Diz o senhor, “se realmente assim foi...” Mas houve mais, garanto-lhe, muitíssimo mais. Estes são apenas insignificantes fatos políticos. Mas não se esqueça, por exemplo, e lhe repito, que fui testemunha ocular e, por assim dizer, íntima, das lágrimas e das lamentações desse grande homem, à noite. E essas, ninguém mais viu, senão eu! É verdade que lá para o fim ele deixara de chorar, não tinha mais lágrimas; mas ainda se lamentava, de quando em quando, e a sua face estava enevoada por uma como que... treva. Como se a eternidade já tivesse aberto as suas asas negras sobre ele. As últimas noites, nós as passávamos juntos, só nós dois, e em silêncio. O mameluco Roustan roncava no salão contíguo; o sono desse camarada era medonhamente barulhento. “Sim, mas é devotado a mim e à dinastia!”, costumava dizer ele, Napoleão. Certa noite também me comovi, ficando muito aflito. Não sei como, ele viu as lágrimas nos meus olhos. Olhou-me ternamente. “Sentes por mim!”, exclamou. “E provavelmente, uma outra criança há que, a esta hora, também sente por mim, meu filho, le roi de Rome; todos os mais me odeiam, e meus irmãos ainda hão de ser os primeiros a me lançarem na desgraça.” — Comecei a soluçar, precipitei-me para ele. Curvando-se para mim, abraçou-me; ficamos assim algum tempo. E nossas lágrimas correram juntas. “Escreva, escreva uma carta à imperatriz Josefina!” — disse-lhe eu, entre soluços. Napoleão conteve-se, ponderou e disse: “Agora me trouxeste à lembrança esse outro coração que me ama. Obrigado, querido.” — Imediatamente se assentou e escreveu, à imperatriz Josefina, uma carta que foi levada, no dia seguinte, por Constant.
— O senhor agiu esplendidamente — arriscou o príncipe. — Tirou-o dos maus pensamentos e o levou aos bons sentimentos.
— Justamente, príncipe. E como o senhor disse isso bem! Tal e qual como o seu bom coração — exclamou o general, em transe; e por mais estranho que isso pareça, lágrimas verdadeiras correram dos seus olhos. — Sim, príncipe, foi um espetáculo magnífico. E saiba que não o abandonei, estive sempre perto dele, estive a ponto de acompanhá-lo até Paris. E não resta dúvida que teria compartilhado com ele o degredo naquela “sufocante ilha-presídio”. Mas, ai de nós! Os fados violentamente nos separaram. Ele, para a “sufocante ilha-presídio” onde, quem sabe, nas horas da sua mais trágica tribulação, se deve ter lembrado das lágrimas do garoto que o abraçou e perdoou em Moscou! E eu, para o corpo dos cadetes, onde só encontrei ríspida disciplina, rudeza de camaradagem!... Ai de mim! Tudo se transformou em pó e cinzas. “Não quero separar-te de tua mãe, levando-te comigo”, dissera no dia da retirada, “mas terei ensejo, e breve, de fazer alguma coisa por ti.” Já havia montado a cavalo. “Escreva uma coisa qualquer para o álbum de minha irmã, como souvenir”, disse eu, timidamente, porque notei que ele estava perturbado e soturno. “Que idade tem ela?”, perguntou. “Três anos só”, respondi. “Une petite fille, alors!” E escreveu no álbum:
Ne mentez jamais.
Napoléon, votre ami sincère.
— Um tal conselho, num momento como aquele, príncipe, imagine o senhor!
— Sim, foi notável.
— Esta frase foi guarnecida e bordada a ouro, montada sob vidro, ficou anos e anos dependurada na parede da sala de visitas de minha irmã, no lugar de maior importância. Ela acabou morrendo de parto. Por onde andará aquilo, agora? Não sei... Mas Céus! Pois não é que já são duas horas!? Como foi que o prendi até agora, príncipe? Mas é imperdoável!
O general levantou-se da sua cadeira.
— Oh! Muito pelo contrário — ciciou o príncipe. — O senhor me entreteve tanto, e de fato estava tão interessante! Sou-lhe tão grato!
— Príncipe — o general tornou a falar, apertando-lhe a mão até doer, fixando-o com olhos que despediam centelhas, como que repentinamente fulminado por um pensamento que lhe veio à mente. — Príncipe, o senhor é tão bondoso, tem um coração tão bom! Quantas vezes não entristeço por sua causa!? Fico comovido quando o olho. Oh! Que Deus o abençoe! Possa uma vida florescente recomeçar para o senhor... Uma vida com muito amor. Quanto à minha, está acabada! Perdoe-me. Adeus!
E saiu, atropeladamente, cobrindo o rosto com as mãos. O príncipe não pôde duvidar da sinceridade da emoção do general. Percebeu também que o velho se deixara arrebatar pelo êxito da sua palestra. Mas, sendo da classe dos mentirosos, para os quais mentir se torna uma paixão, ainda assim, como todos eles, o general, mesmo no ápice da intoxicação, secretamente suspeitou que não estava sendo acreditado, e que não podia ser acreditado. E provavelmente, na atual situação, o velho se sentiu oprimido pela vergonha, quando voltou à realidade das coisas. Se suspeitasse que Míchkin sentia compaixão, se consideraria insultado. E todavia o príncipe, por sua vez, ponderou: — “Não fiz pior, conduzindo-o a tal exaltação?” Mas não se pôde conter, e riu desabaladamente, durante uns dez minutos. Depois se repreendeu dessas gargalhadas; mas mesmo essa repreensão era inútil, pois sabia que tinha uma infinita piedade para com o general. A sua apreensão, no entanto, não fora senão um pressentimento, pois à noite recebeu uma carta resoluta do general. Informava-o que se separava dele, também, e para sempre. Que, conquanto o respeitasse e lhe fosse muito grato, “nem mesmo dele, todavia, podia aceitar provas de compaixão que eram incompatíveis com a dignidade dum homem já bastante infeliz sem isso.” Sabendo, porém, o príncipe, que o velho se refugiara em casa de Nina Aleksándrovna, ficou mais tranquilo a respeito dele. Mas já vimos que o velho tinha acabado por provocar, também, aborrecimentos em Lizavéta Prokófievna, visto, diante dela, ter feito amargas insinuações contra Gánia. Resultara disso ter sido despedido, depois de causar indignação à generala. Quanto a isso só fazemos menção aqui, não podendo entrar em minúcias, O resultado foi ter ele passado toda a manhã e toda a noite inteiramente desengonçado, pelas ruas, num estado quase de delírio.
Kólia não teve forças para sobrepujar a situação. E não houve energia que conseguisse fazer o pai voltar para casa.
— Ora, bem. Mas, afinal, para onde nos atiramos nós agora, general, resolva logo — dizia Kólia. — Para a casa do príncipe, não há de querer ir. Com Liébediev, o senhor está brigado. Dinheiro, o senhor não tem. E eu, muito menos! Belo espetáculo damos nós dois aqui, rua abaixo, rua acima, não há dúvida, rolando feito massa!
— É melhor estar na massa popular do que na do pão! Ah! Ah! É a segunda vez que faço este trocadilho. A primeira vez foi para causar admiração numa sala de jantar de oficiais em quarenta e quatro... Espera, foi em mil oitocentos... quarenta e quatro, sim. Não me lembro... Não corrija, espere a ver se me lembro. Onde está a minha mocidade? Que foi feito do meu verdor?, conforme exclamou... quem foi que exclamou assim, Kólia?
— Gógol, papai, nas Almas Mortas — respondeu Kólia, arriscando uma olhadela ao estado paterno.
— Almas Mortas! Sim, morto... Quando vocês me sepultarem, escrevam na lápide sepulcral: Aqui jaz uma alma morta. Sim, a desgraça me persegue. Quem foi que disse isto, Kólia?
— Não sei, papai.
— Não teria sido uma pessoa assim como Ieropiégov? Ierochka Ieropiégov... — gritou no seu delírio, estacando no meio da rua. — E foi meu filho, o outro meu filho quem disse essa coisa... Ieropiégov que, por onze meses, foi uma espécie de irmão para mim, e por causa de quem me bati em duelo! Disse-lhe o príncipe Vigoriétskii, nosso capitão, à mesa: — “Grísha, onde foi que tu ganhaste a tua condecoração, essa cruz de Sant’Ana, vamos, dize-me!” — “No campo de batalha, pela minha pátria, eis onde a conquistei!” — E eu bradei imediatamente: — “Isso, assim, bravos, Grísha!” — Depois... duelo! Depois... ele se casou com Maria Petróvna Su... Sutúguina, e foi morto em batalha. Uma bala, resvalando por meu peito, atingiu-o na fronte. — “Nunca me esquecerei!” — disse e caiu ali mesmo. Eu... eu servi no exército, com honra, Kólia; e servi nobremente. Mas a desgraça, “a desgraça me persegue”. Tu e Nina vireis à minha sepultura. “Minha pobre Nina.” Costumava chamá-la assim, nos antigos tempos, Kólia, há muitos, muitos anos, e como ela gostava, Kólia... Nina, Nina, que fiz eu da nossa vida? Por que havias tu de me amar, alma que tanto sofreste? Tua mãe tem a alma dum anjo, Kólia; estás ouvindo bem? dum anjo!
— Então eu não sei disso, papai? Voltemos, querido papai, para casa, para perto de mamãe. Ela nos está procurando. Venha, por que teima em ficar aqui? Parece que o senhor não está compreendendo... Por que é que o senhor está chorando?
Kólia limpou-lhe as lágrimas, e lhe beijou as mãos.
— Estás beijando as minhas mãos? Estas, as minhas?
— Sim, as suas, as suas! Que é que tem isso de espantoso? Venha, por que há de o senhor se pôr a chorar, no meio da rua? E o senhor se chama a si mesmo de general, de figura do exército!... Então, venha, vamos!...
— Que o Senhor te abençoe, criança adorada, por estares sendo respeitosa para com um desditoso e desgraçado velho. Sim, com um desditoso e desgraçado velho, teu pai. Que também venhas tu a ter um filho assim... Le roi de Rome. Maldição, maldição para aquela casa!...
— Mas por que, arre, também, há de o senhor caminhar desse jeito! — exclamou Kólia, afogueando-se repentinamente. — Que foi que aconteceu? Por que não vamos agora para casa? Onde é que o senhor está com a cabeça?
— Vou te explicar, vou te explicar. Dir-te-ei tudo. Não grites assim. Ouvirão por aí... Le roi de Rome. Ah! Como me sinto doente! Como me sinto triste! “Velha ama, onde é a tua tumba?” De quem é esta poesia. Kólia?
— Não sei. Não sei de quem é essa poesia. Vamos já pra casa. Imediatamente! Se for preciso, dou uma surra em Gánia. Mas... pra onde é que vai indo o senhor, outra vez?
O general arrastava-o para os degraus duma casa fechada.
— Mas pra onde vai o senhor? Esta casa é dum desconhecido.
O general sentou-se num dos degraus, segurando sempre a mão de Kólia, puxando-o.
— Inclina-te! Mais baixo, um pouco mais baixo — sussurrava. — Vou te contar tudo... “a desgraça me...” Inclina-te mais. Quero dizer no teu ouvido, no teu ouvido .
— Mas que é, papai? — E, terrivelmente alarmado, Kólia se abaixava para escutar.
— Le roi de Rome... — ciciou o general com uns estremecimentos incontidos e paroxísticos.
— O quê? Por que continua o senhor a seringar com le roi de Rome? O quê?
— Eu... eu... — sussurrou o general de novo, puxando cada vez mais o ombro do “seu rapaz”. — Eu quero contar tudo... Maria, Maria... Petróvna Su-su-su... — Kólia desvencilhou-se, segurou o general que tentava levantar-se e o encarou perplexo. O ancião estava vermelho, vermelho, mas os lábios tinham ficado azuis nesse rosto que espasmos começavam a deformar.
E, de repente, o general tropeçou para diante e começou, vagarosamente, a escorregar pelos braços do filho abaixo.
Compreendendo, afinal, o que se estava passando, o rapaz começou a gritar em plena rua:
— Um ataque! Um ataque! Ele está com ataque apoplético!...
5.
A bem dizer, Varvára Ardaliónovna, em sua conversa com o irmão, exagerara um pouco a veracidade das notícias relativas ao compromisso do príncipe para com Agláia.
Talvez, como mulher de visão aguda, tivesse adivinhado o que estava para acontecer num futuro imediato; talvez, desapontada pelo fato do seu sonho (no qual, contudo, nunca tinha acreditado, realmente) se ter esfumado, fosse ela demasiado humana para se pagar essa decepção, destilando amargo veneno no coração do irmão, exagerando a calamidade, apesar de o amar sinceramente e se sentir triste por causa dele. Em todo o caso não obtivera tais informações com suas amigas, as moças Epantchín; havia apenas conjecturas, meias palavras, silêncios significativos e insinuações. Talvez até as irmãs de Agláia tagarelassem um pouco com o fim de virem a saber qualquer coisa da própria Varvára Ardaliónovna. Bem podia ser o caso que nem elas mesmas se pudessem privar do prazer muito feminino de martirizar uma amiga, um pouco, mormente a tendo conhecido desde a infância; não podiam deixar de ter pressentido, ao menos por alto, o que essa amiga alvejava.
Por outro lado o príncipe, também, embora houvesse dito a verdade ao assegurar a Liébediev que não tinha nada para lhe dizer e que nada de importante lhe acontecera, podia se ter enganado. Algo de muito estranho certamente estava acontecendo a todos eles; nada tinha acontecido e, todavia, ao mesmo tempo, muita coisa estava acontecendo. Varvára Ardaliónovna, com o seu infalível instinto feminino, adivinhara este último fato.
É muito difícil, ainda assim, explicar de maneira categórica como foi que todo o mundo na casa dos Epantchín foi ferido ao mesmo tempo pela mesma ideia de que alguma coisa vital acontecia a Agláia e que o seu destino estava sendo decidido. Mas assim que tal ideia relampejou sobre todos eles, logo se puseram a insistir que tinham sentido desconfianças e previsto isso havia muito, tudo se tendo clareado desde o episódio do “pobre cavaleiro” e até mesmo antes, apenas se tendo dado o seguinte: que não tinham, àquela altura, querido acreditar em coisa assim tão absurda. Foi o que as irmãs declararam; Lizavéta Prokófievna, naturalmente, previra e soubera de tudo muito antes de qualquer outra pessoa; e até, por isso, por muito tempo o seu coração tinha doído. Mas tivesse sabido cedo ou tarde, o fato foi que só pensar no príncipe se lhe tornou insuportável porque a arremessou muito longe para fora daquilo com que estava contando. Havia nisso uma pergunta que requeria uma imediata resposta; mas não só era impossível respondê-la como também a pobre Lizavéta Prokófievna, por mais que lutasse, não conseguia sequer ver claramente a pergunta. O caso era mesmo difícil. “Era o príncipe um bom partido, ou não? Era tudo isso bom, ou não? Se não era uma coisa assim tão boa (e indubitavelmente não era), por que modo não o era? E se, talvez, fosse uma boa coisa (o que também era possível), por que modo o era, então?” O próprio chefe da família, Iván Fiódorovitch, ficou naturalmente mais surpreendido do que todos, mas, imediatamente depois, confessou: “Em verdade, sempre tive uma vaga suspeita de tudo isso, agora como antes me parecia imaginar algo deste jaez.” E recaiu em silêncio ante os ameaçadores olhares da mulher; ficava calado, de manhã, mas, à noite, a sós com ela, e compelido a explicar-se, repentinamente, com desacostumado arrojo, saía-se com opiniões destas: “Afinal de contas, pergunto eu, que importância tem isso?” (Silêncio.) “Tudo isso seria muito estranho, logicamente, se fosse verdadeiro, mas se ele nem toca nisso?... “ (Silêncio, outra vez.) “E por outro lado, se encararmos a coisa sem preconceitos, o príncipe é um camarada encantador, palavra de honra, e... e, e — bem, o nome, o nome de nossa família, tudo isso tem assim o ar de que quisemos levantar o nome de nossa família que tinha decaído aos olhos do mundo, isto é; encarando sob este ponto de vista, já que sabemos muito bem o que o mundo é. O mundo é o mundo! E, além disso, o príncipe não deixa de ter fortuna, conquanto de segunda ordem; ter, lá isso tem, e... e...” (prolongado silêncio e completo colapso). Ao ouvir tais palavras do marido, a cólera de Lizavéta Prokófievna ultrapassava todos os limites.
Na opinião dela tudo quanto tinha acontecido era “uma loucura imperdoável e criminosa, uma espécie de alucinação fantástica, estúpida e absurda!” Em primeiro lugar “este príncipe é um doente, um idiota e, em segundo lugar, um louco. Nem sabe nada do mundo nem nele tem sequer um lugar. A quem se poderia apresentá-lo, onde colocá-lo? Era uma espécie de democrata incrível; não tinha arranjado sequer um emprego... e... que haveria de dizer a princesa Bielokónskaia? E era esse, era esse, afinal, a espécie de marido que haviam imaginado e planejado para Agláia?” Este último argumento, naturalmente, era o principal. Ante tal reflexão o coração materno estremecia, sangrando e chorando, muito embora, ao mesmo tempo, qualquer coisa palpitasse dentro dele, sussurrando: “Mas por que não é o príncipe o que desejavas?” E esse protesto do seu próprio coração atormentava Lizavéta Prokófievna muito mais do que todo o resto.
As irmãs de Agláia, por qualquer razão, ante o pensamento do príncipe, ficavam contentes. Nem achavam estranho isso. E, resumindo, podiam a qualquer momento ficar do lado dele, completamente. Mas ambas, lá consigo mesmas, tinham decidido ficar quietas. Já fora notado na família, como uma regra invariável, que quanto mais obstinadas e enfáticas fossem as oposições e as objeções de Lizavéta Prokófievna em qualquer caso em discussão, mais certo sinal seria isso de que ela já estava quase a concordar com todos. Mas Aleksándra não conseguiu ficar perfeitamente calada. A mãe, que desde muito a tinha escolhido como conselheira, chamava-a a todo instante, servindo-se não só de suas opiniões como de suas reminiscências; isto é, não se fartava com coisas assim: “Como foi que tudo isso se passou? Como foi que ninguém viu? Por que foi que não me vieram dizer? Que negócio foi esse do tal horrendo ‘pobre cavaleiro’? Por que havia de ser ela só, Lizavéta Prokófievna, a se incomodar com tudo, a reparar e prever tudo, enquanto os outros não faziam mais do que contar quantas vezes o galo cantava?” E assim por diante, Aleksándra, no começo, se encolheu, acabando por dar razão à ideia do pai de que, aos olhos do mundo, a escolha do príncipe Míchkin como marido para uma das Epantchín parecia muito satisfatória. E, pouco a pouco se inflamando, acabou por acrescentar que o príncipe, de maneira alguma, era um doido e nem nunca o tinha sido; quanto a ter ou não importância — era impossível vir a saber-se de que dependeria a importância dum homem decente, havia alguns anos para cá, entre nós, na Rússia; se dos seus triunfos no serviço, o que era essencial, ou se de alguma coisa mais. A tudo isso a mãe prontamente retorquia que ela, Aleksándra, era uma “niilista” e que esse seu parecer era típico da sua noção quanto à questão “feminista”. Meia hora depois despachou-se para a cidade e de lá para a Ilha Kámennii para se encontrar com a princesa Bielokónskaia que, afortunadamente, aconteceu estar realmente, então, em Petersburgo, embora já pronta para deixar a cidade. A princesa Bielokónskaia era a madrinha de Agláia.
A velha princesa escutou os jatos verbais febris e desesperados de Lizavéta Prokófievna e absolutamente não se comoveu com as lágrimas dessa mãe estonteada, chegando até a encará-la sarcasticamente. A velha dama era uma déspota terrível; não consentiria nem às suas mais antigas amigas porem-se em pé de igualdade com ela. Considerava Lizavéta Prokófievna apenas como sua “protegida”, como o fora havia já trinta e cinco anos antes, nunca se tendo podido reconciliar com a precipitação e independência do seu caráter. Entre outras coisas observou que, “como sempre, estavam eles precipitados e querendo transformar uma colina numa cadeia de montanhas; que, tanto quanto tinha ouvido, em nada ficava convencida de que tivesse havido algo de sério, a bem dizer; e não seria, em tal caso, melhor esperar até que sobreviesse alguma coisa de fato? Que o príncipe, na sua opinião era um jovem, decente apesar de doentio, excêntrico e quase sem importância. O único ponto mau, em tudo isso, é que ele mantinha uma amante”. A sra. Epantchiná logo se deu conta de que a princesa estava ressentida com eles porque Evguénii Pávlovitch, que por ela lhes fora apresentado, tinha fracassado. Voltou a Pávlovsk num estado de irritação ainda maior do que aquele em que saíra, e descompôs todo o mundo, duma vez, baseando-se em que “todos tinham ficado malucos” e que as coisas não eram feitas assim por ninguém, exceto eles. “Por que estavam com essa precipitação? Que é que tinha acontecido? Tanto quanto eu possa ver, não aconteceu nada ainda! Esperem até que sobrevenha algo ponderável! Afinal, Iván Fiódorovitch está sempre a imaginar coisas e a transformar outeiros em cordilheiras!”
A conclusão disso era que deviam ficar calmos, esperar, e olhar tudo friamente. Mas, ai dela! A calma não durou nem dez minutos. O primeiro golpe no seu rosto foram as notícias do que tinha acontecido durante a sua ausência, quando fora à Ilha Kámennii. (A visita da sra. Epantchiná se dera no dia seguinte ao em que o príncipe fora pagar a visita deles, cerca da meia-noite em vez das nove horas.) Em resposta às impacientes perguntas maternas, responderam as irmãs minuciosamente, começando por declararem “que nada de mais tinha acontecido durante a ausência dela”; que o príncipe tinha vindo e demorado; que, por mais de meia hora, Agláia ficara sem descer para vê-lo mas que acabara por descer e logo convidara o príncipe para jogar xadrez; mas que o príncipe não sabia como se jogava aquilo, tendo Agláia logo se aborrecido dele; mas que, como estava muito animada, zombara de tal ignorância, ao que ele ficou muito envergonhado; riu-se ela pavorosamente, a tal ponto que até dava pena olhar-se para ele, tendo ela então sugerido jogarem cartas. E que jogaram duraki, tendo então acontecido o oposto, pois o príncipe jogava aquilo de maneira prodigiosa, como um professor; que, mesmo Agláia trapaceando e mudando de baralho e furtando no nariz dele, ainda assim ele ganhara todas as cinco vezes que ela dera cartas. Que Agláia “subiu a serra”, quase perdendo a compostura, tendo dito tais coisas mordazes e horrendas ao príncipe que ele deixou de rir e ficou inteiramente pálido, principalmente quando ela lhe disse, por fim, “que não poria o pé na sala enquanto ele estivesse lá” e que positivamente era sem propósito vir ele visitá-las de noite, depois da meia-noite, depois de tudo quanto tinha acontecido. E que batera com a porta e saíra. Que o príncipe se fora como dum funeral, apesar de todos os esforços das duas para o consolarem. E que então, inesperadamente, um quarto de hora depois que o príncipe saíra, Agláia desceu às carreiras para a varanda, sem mesmo ter tido o cuidado de enxugar os olhos ainda molhados de lágrimas. Descera porque Kólia tinha chegado, trazendo um ouriço. E todas começaram logo a espiar o ouriço. Kólia explicou que o ouriço não era dele; que saíra a passear com um colega de escola, Kóstia Liébediev; que esse tinha ficado lá fora e estava com vergonha de entrar porque carregava uma machadinha; que haviam comprado o ouriço e a machadinha dum camponês que encontraram. O camponês vendera o ouriço por cinquenta copeques, tendo eles tentado persuadi-lo a vender também a machadinha porque “não precisava dela”, e que era uma boa machadinha. E logo Agláia começou a instar com Kólia para que lhe vendesse o ouriço, ficando muito animada e chegando até a chamá-lo de “querido”. Por muito tempo Kólia não quis atendê-la até que por fim correu até Kóstia Liébediev e o intimou a vir; de fato aquele viera, com machadinha e tudo, mas muito encabulado. E eis que então ficou esclarecido que o ouriço não era deles, absolutamente; pertencia a um outro, a um terceiro garoto, chamado Petróv, que entregara dinheiro aos dois para comprarem a História de Schlosser, para ele, dum quarto garoto que, precisando de dinheiro, vendia barato. Que tinham ido pois comprar a História de Schlosser, mas haviam acabado por não resistir e comprado o ouriço! De maneira que o ouriço e a machadinha pertenciam ao terceiro garoto a quem os iam levar em vez da História de Schlosser. Mas tanto Agláia insistiu que acabaram decidindo vender-lhe o ouriço. Logo que Agláia comprou o ouriço, o colocou, com a ajuda de Kólia, num cesto de vime, cobrindo-o com um guardanapo; e então começou ela a instar com Kólia para levar aquilo para o príncipe, da parte dela, pedindo que aceitasse como um sinal do seu “profundo respeito”. Kólia anuiu, radiante, e prometeu fazê-lo sem falta, mas logo começou a amolá-la para saber “que é que o ouriço representava a ponto de fazer dele um presente”.
Agláia respondeu que ele não tinha nada com isso. Retrucou ele que estava convencido que havia naquilo alguma alegoria. Agláia, zangando-se, correra atrás dele, chamando-o de “confiado”. Kólia respondeu logo que se não fosse o respeito que tinha pelo sexo feminino e, mais ainda, pelo que chamou de “convicções próprias”, lhe mostraria ali mesmo, imediatamente, como sabia responder a tais insultos. Contudo acabou Kólia indo levar o ouriço, muito satisfeito, com Kóstia Liébediev a correr atrás dele. Vendo Agláia que Kólia sacudia demais o cesto, o chamou lá na varanda, advertindo-o: “Por favor, não vá derrubar, Kólia querido!”, como se um minuto antes não tivesse estado a brigar com ele. Kólia parara. E também ele, como se não tivesse estado a xingá-la antes, exclamou com a maior justeza: “Não derrubo não, Agláia Ivánovna, fique descansada”, retornando a correr com a maior velocidade. Depois do que, Agláia se pusera a rir tremendamente. E subira muito contente para o seu quarto, tendo o resto do tempo ficado na melhor índole.
Tal narrativa deixou Lizavéta Prokófievna completamente confusa. Perguntar-se-á: por quê? É que ela estava evidentemente num estado de espírito mórbido. Sua apreensão subiu ao ponto extremo com a história do ouriço. Que significaria esse ouriço? Que convenção estaria nisso subentendida? Que representaria ele? Qual seria a mensagem cifrada? E ainda por cúmulo, Iván Fiódorovitch que aconteceu estar presente durante a conversa, estragou todo o negócio com a sua resposta. Na sua opinião não havia hieróglifo nem mensagem de qualquer espécie, o ouriço “era simplesmente um ouriço e nada mais do que um ouriço — no máximo significando um amistoso desejo de esquecer o amuo recente e recomeçar; numa palavra, tudo era travessura, mas inocente e perdoável”.
Devemos notar, entre parênteses, que ele conjecturara direito. O príncipe tinha voltado para casa depois de ter sido ridicularizado e despedido por Agláia, tendo ficado sentado a um canto, mais de meia hora, no mais negro dos desesperos quando, inesperadamente, surgiu Kólia com o ouriço. E o céu logo clareou. Foi como se o príncipe tivesse ressuscitado. Deu em perguntar uma porção de coisas a Kólia, suspenso em cada palavra dita por ele, repetindo as perguntas mais de dez vezes, rindo como uma criança e continuamente apertando as mãos dos dois garotos engraçados que o examinavam com tanta franqueza. A conclusão de tudo era que Agláia o perdoara e que poderia ir vê-la outra vez. Iria à noite, e isso para ele não era o fato principal, mas o único.
— Que crianças que vocês são, Kólia! E... e... que belo é que vocês sejam assim crianças! — exclamara, por fim, jubiloso.
— O fato puro é que ela está apaixonada pelo senhor, príncipe, isso é que é tudo! — respondera Kólia com autoridade, categoricamente.
O príncipe enrubesceu, mas desta vez não respondeu nada, tendo Kólia simplesmente rido e batido palmas. Um minuto depois ria o príncipe também; e desde então começou a olhar para o relógio cada cinco minutos, para ver como o tempo custava a passar, achando que demorava para chegar a noite.
Mas o temperamento da sra. Epantchiná sobrepujou qualquer senso de conveniência; por fim, não pôde deixar de desafogar a sua excitação paroxística. A despeito dos protestos do marido e das filhas, imediatamente mandou chamar Agláia, com o fim de lhe fazer a fatal pergunta e arrancar-lhe uma resposta perfeitamente clara e decisiva. “Para pôr um fim nisso tudo, duma vez para sempre, para ficar livre e não ter que voltar ao assunto de novo! Se esperar até amanhã, morro sem vir a saber!” E foi então que eles se deram conta do absurdo ponto a que tinham levado as coisas. Não puderam extrair de Agláia senão fingida admiração, cólera, risadas e gracejos para com o príncipe e para quantos a interrogavam.
Lizavéta Prokófievna permaneceu nos seus aposentos até ao anoitecer, só descendo para o chá na hora em que o príncipe era esperado. Aguardava a vinda dele em pânico e quase caiu com um ataque quando ele apareceu.
O príncipe, por sua parte, entrou timidamente, como que procurando um lugar conveniente, olhando para os olhos de todo o mundo, e com o ar de querer indagar de todos eles por que era que Agláia não estava já na sala, fato que logo o deixou preocupado. Essa noite não estava presente nenhuma outra visita. A família estava só. O príncipe Chtch... ainda se achava em Petersburgo, ocupado com os negócios do tio de Evguénii Pávlovitch. “Se esse, ao menos, estivesse aqui, para dizer qualquer coisa, fosse o que fosse”, disse Lizavéta Prokófievna a si própria, deplorando aquela ausência. Iván Fiódorovitch mostrava-se com um ar espantado; as irmãs permaneciam sérias e, de propósito, ou não, caladas. Lizavéta Prokófievna ficou sem saber como iniciar a conversa. Finalmente, vigorosamente criou ânimo e descompôs a estrada de ferro, encarando o príncipe como num resoluto desafio.
Pobre Míchkin! Agláia não descia e ele estava em palpos de aranha. Perdendo a cabeça e mal podendo pronunciar as palavras, exprimiu a opinião de que melhorar a linha seria excessivamente prático; mas Adelaída riu de repente, e ele ficou outra vez esmagado. Foi nesse instante que Agláia surgiu. Calmamente e com dignidade, fez uma cerimoniosa curvatura para o príncipe e solenemente se foi sentar no lugar mais à vista, junto à mesa redonda. De lá olhava para o príncipe, indagadoramente. E todo o mundo percebeu que era chegado o momento em que todas as dúvidas seriam dissipadas. Foi então que ela lhe perguntou firmemente e com ar quase de reprimenda:
— Recebeu o meu ouriço?
— Recebi — respondeu o príncipe, com o coração sucumbido; e ficou escarlate.
— Então explique logo o que pensa a respeito. Isso é essencial para a paz de espírito de mamãe e de toda a família.
— Agláia, minha filha, Agláia... — começou o general subitamente alvoroçado.
— Mas que despropósito, menina! — disse Lizavéta Prokófievna, alarmada, sem saber direito porquê.
— Não vejo em que seja isso um despropósito, mamãe! — respondeu logo a filha, desabridamente. — Eu hoje mandei ao príncipe um ouriço, e quero saber a opinião dele. Então, príncipe?
— Mas que espécie de opinião, Agláia Ivánovna?
— Sobre o ouriço.
— Quereis dizer, suponho eu, Agláia Ivánovna, que desejais saber como eu recebi... o ouriço... ou, melhor, como encarei o fato de... me mandardes... o ouriço, isto é... Em tal caso, a meu ver, creio que, de fato...
Faltou-lhe o ar e emudeceu.
— Bem, não disse lá grande coisa — sentenciou Agláia, depois de esperar cinco segundos. — Muito bem. Concordo em que ponhamos de lado o ouriço. Mas ficarei muito contente se puder pôr um fim a uma série de mal-entendidos que se veem acumulando entre nós. Quero saber pessoalmente se pretende me pedir em casamento, ou não?
— Deus do Céu! — rompeu do peito de Lizavéta Prokófievna.
O príncipe sobressaltou-se e recuou; Iván Fiódorovitch ficou petrificado; as irmãs fecharam os semblantes.
— Não minta, príncipe. Diga a verdade. Por sua causa venho sendo perseguida por estranhas perguntas. Há qualquer fundamento para que tais perguntas se deem? Então?!...
— Eu não vos fiz o meu pedido, Agláia Ivánovna — disse o príncipe subitamente reanimado. — Mas sabeis quanto vos amo e quanto creio em vós... mesmo agora.
— O que eu estou perguntando é.. se está pedindo, ou não está pedindo a minha mão!
— Estou — respondeu Míchkin com o coração opresso.
Seguiu-se um movimento geral de pasmo.
— A coisa não é absolutamente assim, meu caro amigo — atalhou Iván Fiódorovitch, violentamente agitado. — Isto... isto é quase impossível, se é que é assim, Agláia. Perdoe, príncipe, perdoe, meu caro amigo!... Lizavéta Prokófievna! — E se voltou pedindo o auxílio da esposa. — Tu deves tomar parte nisto...
— Eu não! Recuso-me! — exclamou Lizavéta Prokófievna sacudindo as mãos.
— Deixe que eu fale, mamãe. Neste caso eu valho alguma coisa; o momento capital da minha sorte está sendo decidido (esta foi a expressão usada por Agláia). Eu quero decidir por mim mesma e fico contente de o fazer perante todos aqui. Permita que lhe pergunte, príncipe: se “acaricia tal intenção”, de que modo se propõe a assegurar a minha felicidade?
— Para falar a verdade, não sei, Agláia Ivánovna, como responder-vos a esta pergunta... Responder o quê? E, além do mais, é isso necessário?
— Parece-me que está embaraçado e com falta de ar. Descanse um pouco e refaça o seu espírito. Beba um copo de água, embora daqui a pouco lhe tragam um pouco de chá.
— Eu vos amo, Agláia Ivánovna, eu vos amo muitíssimo, não amo senão a vós e... Não gracejeis, imploro-vos... eu vos amo muitíssimo.
— Trata-se dum assunto importante, aliás, e não somos crianças; devemos encará-lo praticamente... Tenha a bondade de explicar qual é a sua fortuna!
— Agláia, que é isso? Que é que você está fazendo? Não se trata disso, absolutamente não se trata disso — murmurou Iván Fiódorovitch, desapontado.
— Que vergonha! — disse Lizavéta Prokófievna num balbucio audível, ao que Aleksándra, também num balbucio, rematou:
— Ela está fora do seu juízo.
— A minha fortuna?... Isto é, quanto tenho em dinheiro? — disse o príncipe, aparvalhado.
— Justamente!
— Atualmente... eu tenho cento e trinta e cinco mil rublos — afirmou o príncipe, corando.
— E é tudo? — disse Agláia, alto, com franca admiração, sem nenhum fingido rubor. — Não tem importância, todavia, principalmente vivendo com economia. Pensa entrar para algum cargo?
— Eu estava pensando em me preparar para os exames, a ver se me torno um preceptor...
— Muito apropriado; e nem há dúvida que isso aumentará a sua renda. Pretende então vir a ser um gentil-homem da câmara?
— Gentil-homem da câmara? Nunca pensei nisso, mas...
Mas a essa altura as duas irmãs não puderam resistir e caíram na gargalhada. Adelaída já havia desde antes reparado pelos traços contraídos do rosto de Agláia sintomas de iminente e irreprimível risada que ela estava a prender com quanta força tinha. Olhou Agláia ameaçadoramente para as irmãs que ainda riam, mas um segundo depois também ela desandou num acesso de gargalhada frenética e quase histérica. Por fim se levantou e saiu correndo da sala.
— Eu já estava vendo que tudo era brincadeira e nada mais! — exclamou Adelaída. — Desde o começo, desde a história do ouriço.
— Não, isso não permitirei. De modo algum — e exasperada, fervendo de raiva, Lizavéta Prokófievna se precipitou atrás de Agláia. As irmãs correram lá para dentro, imediatamente, atrás dela. O príncipe ficou sozinho na sala, com o chefe da família.
— Isso agora... Poderia você imaginar uma coisa destas, Liév Nikoláievitch?! — exclamou abruptamente o general Epantchín, mal sabendo o que deveria dizer. — Sim, seriamente, diga-me!
— Vejo que Agláia Ivánovna está se rindo de mim — disse Míchkin, tristemente.
— Espere um pouco, meu rapaz. Vou até lá e você espere aí um pouco, porque... afinal de contas, você, no mínimo, Liév Nikoláievitch, deve me explicar já agora como foi que tudo isso aconteceu, e que significa isto encarado em conjunto, por assim dizer?! Você há de concordar, meu rapaz... eu sou o pai dela! Seja como for, sou pai... E todavia não compreendo nada; que você ao menos me ponha a par.
— Eu amo Agláia Ivánovna, ela sabe isso... e eu acho que o sabe; há muito tempo.
O general encolheu os ombros.
— Estranho, estranho!... E você gosta mesmo muito dela?
— Muito.
— Pois tudo isso me parece muito estranho. Isto é uma tal surpresa e um tal golpe que eu... Quer saber duma coisa, meu rapaz, não se trata de fortuna (embora eu esperasse que você tivesse um pouco mais), mas é a felicidade de minha filha... De fato... está você em condições de assegurar... a felicidade dela? E... e... que significa isso? É brincadeira ou é verdade, da parte dela? Não quanto a você, mas quanto a ela, me refiro eu agora.
Nisto se ouviu a voz de Aleksándra, lá da porta, chamando o pai.
— Espere um pouco, meu rapaz, espere um pouco! Espere um pouco e fique aí a cogitar. Voltarei já — disse apressadamente. E quase que em alarma, avançou lá para dentro em resposta ao chamado.
Encontrou a mulher e a filha, uma nos braços da outra, misturando as lágrimas. Eram lágrimas de felicidade, de ternura e de reconciliação. Agláia estava beijando as mãos da mãe, as faces e os lábios. Permaneciam apertadas num grande amplexo.
— Olhe para isto, Iván Fiódorovitch. Aqui está ela, como realmente é — dizia Lizavéta Prokófievna.
Agláia escorregou aquele seu rosto feliz, banhado de lágrimas, até o seio materno, e depois olhou para o pai; riu alto, atirou-se sobre ele, abraçou-o calorosamente, beijando-o várias vezes. Depois se atirou de novo sobre sua mãe, e escondeu o rosto completamente no seio dela, sem que ninguém o pudesse ver. E logo desatou a chorar outra vez. Lizavéta Prokófievna cobria-a com a ponta da sua manta.
— Que é que nos estás fazendo, tu, cruel menina, é só o que eu quero saber! — dizia, mas jubilosamente, como se já agora pudesse respirar mais livremente.
— Como sou cruel! Como sou cruel! — concordava ela. — E ruim! Não valho nada. Dize isso a papai. Oh! Sim, ele está aqui. Papai, estás aqui? Estás ouvindo? — E riu por entre as lágrimas.
— Minha querida! Meu ídolo! — O general beijava-lhe as mãos, todo resplandecente de felicidade. Agláia não retirou a mão. — Assim, pois, tu então amas esse jovem?
— N...ã...o! Não posso suportar o teu jovem. Não o tolero! — exclamou Agláia, se inflamando repentinamente, e erguendo a cabeça. — E se tu, papai, ousas outra vez... Eu já disse, papai, eu quero dizer, papai, estás ouvindo, eu quero significar que...
E certamente que seus modos eram veementes. Ficou vermelha e os seus olhos cintilaram. O pai quedou estático e sem jeito. Mas Lizavéta Prokófievna lhe fez um sinal por detrás da filha e ele tomou tal sinal como significando: “Não faças perguntas.”
— Se assim é, meu anjo, seja como quiseres, é a ti que cabe decidir; ele ficou esperando lá, sozinho. Deveremos nós dar-lhe a entender que se deva ir embora?
Iván Fiódorovitch, por seu turno, piscou para a esposa.
— Não, não, isso não é necessário. E nem seria delicado. Tu vais até ele, tu mesmo, papai. E eu entrarei logo a seguir. Desejo pedir perdão a esse bom rapaz, porque feri os seus sentimentos.
— Sim, e dum modo terrível — concordou Iván Fiódorovitch, muito sério.
— Bem, então... o melhor é ficarem aqui e eu entro sozinha. Logo imediatamente depois entram todos. Mas venham imediatamente, mal eu esteja chegando; será melhor.
Ela já tinha chegado até a porta, mas repentinamente, não se contendo, voltou.
— Sou capaz de rir! Vou morrer de rir! — declarou, pesarosa.
Mas no mesmo instante se desprendeu dali e se encaminhou para o príncipe.
— Em que vai dar isso? Que é que tu achas? — começou Iván Fiódorovitch, precipitadamente.
— Nem sei o que diga. Tenho medo — respondeu Lizavéta Prokófievna, prontamente. — Mas, pelo menos para o seu espírito, está tudo mais do que claro.
— Para o meu, também. Tão claro como o dia. Ela o ama.
— Amor, só, não. Está apaixonada — asseverou Aleksándra. — Mas, pensando bem, apaixonada por...
— Se o destino dela tem que ser esse, que Deus a abençoe! — disse Lizavéta Prokófievna, benzendo-se devotamente.
— É o destino dela — concordou o general. — E não há como escapar uma pessoa ao seu destino.
E todos eles entraram na sala de jantar onde uma surpresa os esperava, outra vez.
Agláia, longe de rir, como temera, ao se dirigir até Míchkin, lhe disse timidamente:
— Perdoe a uma estúpida, imbecil e ruim moça! — Tomou-lhe a mão. — E creia-me que todos o respeitamos imensamente. E se ousei ridicularizar a sua esplêndida e bondosa simplicidade, me perdoe como perdoaria a uma criança por estar sendo mal comportada. Perdoe-me por estar eu insistindo num inconcebível absurdo que não poderia, naturalmente, ter a menor consequência.
E Agláia proferiu as últimas palavras com uma ênfase especial.
O pai, a mãe e as irmãs haviam todos chegado à porta a tempo de ouvir tudo isso; e ficaram impressionados com tais palavras: “... inconcebível absurdo que não poderia vir a ter nenhuma consequência”. E mais ainda pela maneira por que ela se referia a esse “inconcebível absurdo”.
Todos se entreolharam, interrogativamente. Mas parece que o príncipe não entendeu tais palavras, pois estava no auge mesmo da felicidade.
— Por que falais deste modo? — murmurou ele. — Por que... me pedis... perdão?
Teria dito até que não merecia que ela lhe pedisse perdão. Quem sabe, talvez não tivesse notado o significado das palavras “inconcebível absurdo que não poderia vir a ter nenhuma consequência”, mas, sendo o homem estranho que era, talvez ficasse aliviado ante tais palavras. Não há dúvida que só o simples fato dele poder vir ver Agláia de novo, sem empecilho, de que lhe seria permitido falar com ela, sentar-se ao seu lado, passear com ela, já era o máximo de felicidade para ele; e, quem sabe, talvez só isso já lhe bastasse para o resto da vida. (E era justamente esse contentamento platônico que Lizavéta Prokófievna receava secretamente; compreendia-o; temia muitas coisas, em segredo, que não se aventurava a pôr em palavras.)
É difícil descrever como o príncipe recobrou ânimo, completamente, além da coragem que o reanimou essa noite. Tornou-se tão jovial que elas, por sua vez, joviais se foram tornando para com ele, como as irmãs de Agláia depois se expressaram. Deu em falar muito, o que não lhe acontecera mais desde aquela manhã, havia já seis meses, quando conhecera os Epantchín. Em seu regresso a Petersburgo adotara notório e intencional mutismo e tinha pouco depois dito ao príncipe Chtch..., na presença de todos, que devia se conter e calar, para não degradar uma ideia, só com o exprimi-la. Foi quase ele somente quem falou essa noite, contando uma porção de coisas. Respondia às perguntas claramente, minuciosamente, e com prazer. Mas em toda essa sua conversa não houve sequer indício de palavra referente a idílio. Só expressava coisas sérias, às vezes, mesmo, profundas ideias. Chegou até a expor alguns pontos de vista seus, observações pessoais, o que até seria engraçado se não fosse tão bem expresso. Com o que, todos quantos o ouviram essa noite, acabaram concordando, mais tarde. Embora o general Epantchín gostasse de assuntos sérios, como palestra, ainda assim, tanto ele como Lizavéta Prokófievna lá intimamente acharam que isso estava sendo intelectual demais, tanto que lá para o fim da noite já estavam entediados. Mas Míchkin tanto falou que acabou até contando histórias muito divertidas, de que era o primeiro a rir, vindo todos a rir mais da sua jovial gargalhada do que da história propriamente. Quanto à Agláia, pouco falou, em toda a noite. Mas esteve todo o tempo a escutar Liév Nikoláievitch, fitando-o mesmo mais do que o ouvindo.
Tanto que, depois, dizia Lizavéta Prokófievna ao marido:
— Ela estava a olhar para ele, sem poder tirar os olhos, estava presa a cada palavra que ele dizia, atenta a tudo. Mas vá uma pessoa dizer-lhe que ela o ama e essa pessoa terá as paredes por ouvidos.
— Para isso não há recurso algum. É o destino — respondeu o general, encolhendo os ombros.
E muito tempo depois, ainda conservava o hábito de repetir essas palavras que o tinham agradado. Devemos acrescentar que, como homem de negócios, ele também não estava lá muito contente com a presente situação, acima de tudo com essa indefinibilidade. Mas também ele resolvera provisoriamente conservar-se quieto e precaver-se... contra Lizavéta Prokófievna.
Essa feliz disposição de espírito da família não durou muito. No dia seguinte indispôs-se Agláia outra vez com o príncipe e as coisas ficaram nesse pé durante vários dias. Por horas inteiras debicava ela o príncipe, transformando-o num palhaço. Verdade é que muitas vezes ficavam sentados debaixo do arvoredo, no jardim, mas logo foi observado que em tais vezes Míchkin, quase sempre apenas lia alto, para Agláia, um jornal, ou algum livro.
— Ouça aqui — dissera-lhe Agláia uma vez, interrompendo-lhe a leitura do jornal —, tenho reparado que é medonhamente mal instruído. Não sabe nada profundamente; se alguém lhe pergunta quem é qualquer pessoa, ou em que ano tal fato se passou, ou o nome de um tratado, sua vacilação causa lástima.
— Já vos disse que aprendi pouco — respondeu o príncipe.
— Que sabe então, se ignora coisas tão banais? Depois disso, como lhe hei de ter respeito? Continue a ler, ou melhor, não leia mais. Deixe isso de lado.
E mais uma vez, nessa noite, uma coisa se deu, a todos surpreendendo o comportamento de Agláia. O príncipe Chtch... havia regressado. Agláia estava muito cordial com ele. Fez-lhe muitas perguntas a respeito de Evguénii Pávlovitch. (Míchkin ainda não entrara.) E inesperadamente o príncipe Chtch... se permitiu uma alusão a “certo acontecimento muito próximo, na família”, aproveitando-se dumas poucas palavras que Lizavéta Prokófievna deixara escapar. E sugeriu que deveriam adiar de novo o casamento de Adelaída, de maneira que os dois casamentos se pudessem realizar juntos. Agláia inflamou-se ante “essas estúpidas suposições”, fazendo-o de modo chocante; e entre outras coisas lhe escapou a frase que “não tinha intenção, no presente, de substituir a amante de ninguém.”
Estas palavras impressionaram todo o mundo, e mais ainda os pais. Tanto que, numa confabulação secreta com o marido, Lizavéta Prokófievna insistiu ser urgente e necessário entrar no assunto relativo a Nastássia Filíppovna, com Míchkin, uma vez por todas.
Jurou Iván Fiódorovitch que tudo isso era apenas “uma veneta”, ligando tudo a um escrúpulo ou suscetibilidade de Agláia; que se o príncipe Chtch... não tivesse feito nenhuma referência a casamentos, tal explosão não teria havido, pois Agláia sabia, e sabia de muito boa fonte, que tudo isso não passava duma difamação de gente perversa. Que Nastássia Filíppovna ia se casar com Rogójin; que o príncipe não tinha nada que ver com tal história, nem havia mesmo uma liaison com ela; e que nem nunca houvera, já que a verdade devia ser dita.
E no entanto continuava o príncipe felicíssimo, nada o perturbando. Oh! Lógico que ele também, muitíssimas vezes, percebera algo sombrio e impaciente na expressão de Agláia; mas tinha mais confiança em algo bem diferente, e a melancolia se desfazia por si só. Uma vez tendo confiança numa coisa, nada o podia demover, depois. Talvez houvesse quietude demais em seu espírito. Pelo menos foi a impressão de Ippolít, com quem, por, acaso, se encontrou no parque.
— Ora ainda bem. Já uma vez não lhe disse eu que o senhor andava apaixonado? — começou ele, dirigindo-se a Míchkin e o fazendo parar.
O príncipe apertou-lhe a mão e o felicitou “por lhe parecer ter melhorado muito”. O doente também deu mostras de certa esperança, como acontece facilmente com os tuberculosos.
Dirigira-se ao príncipe só para lhe dizer qualquer coisa sarcástica a respeito de sua expressão de felicidade; mas logo se desviou desse fim, começando a falar sobre si próprio. Começou a se queixar, e as suas queixas, em sua maioria, eram intermináveis e um pouco incoerentes.
— Custará ao senhor crer quanto eles aqui são irritáveis, insignificantes, egoístas, nulos e vulgares. Quer saber duma coisa, apenas me acolheram supondo que eu ia morrer logo, o mais depressa possível! E agora estão todos uma fúria porque eu, em vez de morrer, pelo contrário, dei em melhorar. Mas é uma farsa! Aposto como o senhor nem acredita!
O príncipe não se sentiu disposto a nenhuma resposta.
— Às vezes penso em tornar a me mudar para a casa do senhor — acrescentou Ippolít, despreocupadamente. — Então o senhor não acha que eles sejam capazes de acolher um homem com a condição só de que esse homem não demore a morrer? Pois são!
— Pensei que o tinham convidado com outras tenções.
— Ah!... O senhor nem por isso é tão simplório como o querem fazer ser. Agora não é tempo, do contrário eu lhe diria qualquer coisa relativa a esse tal miserável Gánia e respectivas esperanças. Eles estão minando a sua situação, príncipe; estão fazendo isso sem misericórdia e... chega a causar pena a serenidade do senhor... Mas, ai do senhor, não pode fazer nada!
— Estou achando graça na sua piedade para comigo — riu o príncipe. — Então acha! Então acha que eu seria mais feliz se fosse menos sereno?...
— Melhor é ser infeliz e saber a verdade, do que ser feliz e viver... nas nuvens. Está me parecendo que o senhor não acredita que tem um rival... e neste quarteirão, não é mesmo?
— O que você me quer dizer sobre um suposto rival meu, Ippolít, é um tanto cínico. Desculpe-me; não tenho o direito de lhe responder assim. Quanto a Gavríl Ardaliónovitch, julgue você por si mesmo se ele, em seu espírito, pode ser feliz depois de tudo quanto perdeu. Isso, caso você saiba alguma coisa, pouca que seja, dos negócios dele. A mim me parece melhor considerar o assunto só quanto a este ponto de vista. Já é tempo dele mudar; ele tem uma vida diante de si; e a vida, Ippolít, é uma coisa rica, muito embora... muito embora... — E o príncipe parou, como que em dubiedade. — Quanto ao fato de que me estejam minando, não entendo o que você quer dizer. Vamos mudar de conversa, Ippolít.
— Deixá-la-emos de lado, por enquanto. Além disso o senhor continua, e não há quem o demova, a ser cavalheiro, haja o que houver. Sim, príncipe, o senhor é dos tais que nem mesmo tocando numa coisa, acreditam! Ah! Ah! E o senhor ainda me despreza bastante, não?
— Por quê? Porque você tem sofrido e ainda está sofrendo mais do que nós?
— Não, mas porque eu não valho o que sofro!
— Quem quer que possa sofrer mais ainda, vale cada vez mais o próprio sofrimento. Tanto que, quando Agláia Ivánovna leu a sua confissão, quis logo conhecê-lo, mas...
— Mas desistiu, não pôde... Compreendo, compreendo... — retorquiu logo Ippolít como se quisesse interromper a conversa o mais ligeiro possível. — A propósito, disseram-me que o senhor leu para ela, alto, toda essa algaravia. Foi em literal delírio que escrevi aquilo e que fiz... E o que eu não compreendo é como haja quem possa ser assim não direi cruel (pois seria humilhante para mim), mas tão infantil e vingativo que me tendo admoestado por causa dessa confissão a use agora contra mim, como uma arma. Não se preocupe, não é ao senhor que me estou referindo.
— Pois eu sinto que você tenha repudiado esse manuscrito, Ippolít; ele é sincero! E você sabe muito bem que mesmo os mais absurdos pontos dele, e não são poucos (Ippolít ficou carrancudo), foram redimidos pelo sofrimento, pois confessar é sofrer e... talvez signifique até grande virilidade. A ideia que animou você deve ter fundamentos bem nobres, sejam lá quais forem. Vejo isso mais claramente à medida que o tempo passa, juro-lhe. Eu não o estou julgando. Falo apenas para dizer o que penso e lamento não o ter compreendido naquela ocasião.
Ippolít enrubesceu fortemente. Acudiu-lhe ao espírito o pensamento de que Míchkin estava simulando e querendo envolvê-lo nessa simulação. Nisto o olhou bem no rosto; e então viu e se convenceu que havia sinceridade. E a sua face se iluminou.
— Sim, seja lá como for, morrerei — quase acrescentando: “apesar de ser quem sou.” — E imagine agora como seu amigo Gánia me roga pragas. A objeção que ele me berrou é que no mínimo três ou quatro dos que escutaram a minha confissão morrerão, muito provavelmente, antes de mim. Que diz o senhor disto? Supõe ele que isso seja um conforto para mim. Ah! Ah! Em primeiro lugar, esses tais ainda não morreram. E mesmo que essa gente tivesse morrido, há de o senhor admitir que isso não me valeria de modo algum como conforto. Ele julga os outros por si. Mas o diabo é que ele ainda vai mais adiante. Agora deu simplesmente em abusar de mim. Diz ele que um sujeito decente deve morrer em silêncio e que tudo não passa de egoísmo da minha parte. Que me diz o senhor a isto? Egoísmo, sim, mas da parte dele; de que lhe vale todo aquele refinamento se ao mesmo tempo tem uma rudeza bovina de egoísta, muito embora não dê por isso? Leu o senhor, por acaso, príncipe, a morte de Stepán Glíebov no século XVIII? Pois ontem me aconteceu ler isso...
— Qual Stepán Glíebov?
— O que foi empalado no tempo de Pedro.
— Oh, sim, já sei. Esteve quinze horas no pelourinho, exposto à geada, num casaco de pele, e morreu com extraordinária grandeza. Sim, já li isso, mas qual a relação que...
— Deus concede tal morte a certos homens, mas não a nós! Acha o senhor, talvez, que eu não seja capaz de morrer como Glíebov?
— Por que não? — respondeu Míchkin, meio embaraçado. — Apenas queria dizer que você... a meu ver, não seria como Glíebov, mas sim... a meu ver, mais provavelmente você faria como...
— Ah! Já sei, como Osterman? E não como Glíebov... não foi o que o senhor quis dizer?
— Qual Osterman? — perguntou o príncipe, surpreso.
— Osterman, o diplomata Osterman. Osterman, do tempo de Pedro — explicou Ippolít bastante desapontado.
Seguiu-se uma perplexidade mútua.
— Oh! N...ã...o! Eu não quis dizer isso — afirmou categoricamente o príncipe, após breve pausa. — Você nunca seria, acho eu... um Osterman.
Ippolít franziu a cara.
— A razão pela qual eu mantenho isso — resumiu o príncipe ansioso por colocar as coisas direito — é que os homens daqueles tempos (e juro que isso sempre me impressionou) não eram absolutamente como nós hoje somos; não era a mesma raça de agora, dos nossos tempos; realmente parece que somos duma espécie diferente... Naqueles tempos os homens tinham uma ideia, mas agora nós somos mais nervosos, mais evoluídos, mais sensíveis; somos homens capazes de duas ou de três ideias ao mesmo tempo... Os homens modernos têm maiores propensões... e eu juro que isso os impede de serem inteiriços como os de outrora. Foi... foi só com essa ideia que eu disse aquilo, e não...
— Compreendo, o senhor está aplainando as coisas melhor para me consolar agora por causa da simplicidade com que discordou de mim, ah! ah! O senhor é uma perfeita criança, príncipe. Noto que todos os senhores me tratam com o cuidado com que se trata uma xícara de porcelana chinesa... Mas não me zango, está tudo muito bem, não faz mal! Afinal, pensando bem, tivemos uma conversa formidavelmente engraçada; o senhor, às vezes, é uma perfeita criança, príncipe. Deixe, porém, que lhe diga que talvez eu viesse a ser melhor coisa do que Osterman. Não valia a pena ressuscitar Osterman... Acho que devo morrer o mais depressa possível, ou, então... eu próprio devo... Mas, aqui me despeço. Adeus! Bem, já agora, diga a este seu amigo qual seria para mim a melhor maneira de morrer?... Ter um fim virtuoso, o mais possível, não é assim? Vamos, diga-me!
E então, o príncipe disse em voz baixa:
— Passar por nós... E ao passar nos perdoar a nossa felicidade...
— Ah! Ah! Ah! Direitinho o que eu pensava. Eu sabia que teria que ser uma coisa mais ou menos assim! Pois não é que o senhor... não é que o senhor... Bem, bem! Esta gente eloquente! Adeus! Adeus!
6.
O que Varvára Ardaliónovna disse ao irmão sobre a recepção dos Epantchín, para a qual a princesa Bielokónskaia era esperada, estava perfeitamente correto. Os convivas eram esperados essa noite. Era realmente correta a informação, mas um pouco exagerada, pois tudo tinha sido arranjado às pressas, e mesmo com desnecessária excitação, justamente porque naquela família “tudo quanto se fazia era diferente do modo dos outros fazerem”. E tudo devido quer à impaciência de Lizavéta Prokófievna que estava “ansiosa para não continuar suspensa”, quer aos temores do coração paterno quanto ao que concernia à felicidade de sua filha favorita. Como a princesa Bielokónskaia não se demoraria e como vir ela a ser “madrinha” certamente pesaria na sociedade, e esperavam que simpatizasse com Míchkin, os pais contavam que “o mundo” aceitaria com bons olhos o noivado de Agláia sob os auspícios da onipotente princesa anciã e que, por conseguinte, o que nele houvesse de estranho, viria a parecer muito menos estranho debaixo de tal recomendação. O fato real é que os pais não se sentiam capazes de decidir a questão, por si mesmos, como se houvesse qualquer coisa de anômalo nela. E se houvesse, tanto pior! Assim, não ficaria havendo nada de estranho. A cândida e amistosa opinião de pessoas influentes e idôneas não tendo sido precisa até agora visto Agláia não ter até então decidido nada. Em todo o caso, mais tarde ou mais cedo, o príncipe teria que ser apresentado à sociedade, da qual não tinha a menor ideia. Resumindo, estavam tentando “mostrá-lo”. A reunião arranjada era, porém, simples. Somente “amigos da família” eram esperados e, esses mesmos, poucos. Além da princesa Bielokónskaia, viria uma outra dama, esposa dum importante dignitário. Evguénii Pávlovitch era o único jovem esperado e deveria vir fazendo honras à velha princesa. Míchkin ouvira dizer que a princesa viria com três dias de antecedência. Da reunião só veio a saber na véspera. Notara, naturalmente, o ar atarefado dos membros da família e, através de deduções tiradas das ansiosas tentativas para lhe assinalarem o fato, percebeu que receavam a impressão que viria a causar. Mas, de qualquer maneira, os Epantchín todos, sem exceção, estavam possuídos pela ideia de que ele era simplório demais para adivinhar que estavam preocupados a seu respeito, e por causa da recepção. E, assim, olhando-o, estavam todos interiormente constrangidos. Ele, na verdade, ligou pouca importância ao acontecimento porque estava mais preocupado com coisa bem diferente. Agláia tornava-se cada hora mais soturna e caprichosa, e isso o oprimia. Quando soube que também contavam com a vinda de Evguénii Pávlovitch, ficou muito satisfeito e disse que desde muito estava desejoso de vê-lo. Por qualquer equívoco, ninguém gostou dessa observação. Agláia retirou-se amuada da sala e foi só mais tarde, lá pela meia-noite, quando o príncipe se despediu, que ela aproveitou a oportunidade para trocar algumas palavras com ele, quando saía.
— Gostaria que não viesse ver-nos, durante o dia, amanhã. Venha só à noite. Chegue quando as visitas já estiverem aqui. Sabe que vai haver visitas, não sabe?
Tinha o ar impaciente e severo. Foi a única vez que lhe falou da recepção. Para ela, também, a lembrança dessas visitas era insuportável. Todo o mundo notara isso. Viera-lhe até a tentação de indispor-se com os pais, por tal motivo, só a impedindo uma mistura de orgulho e modéstia. Míchkin percebeu imediatamente que ela também estava apreensiva por causa dele, e conquanto não quisesse admitir receio da parte dela, acabou subitamente se sentindo assustado.
— Sim, fui convidado — respondeu.
Ela, evidentemente, achou dificuldade em prosseguir.
— Pode-se falar consigo a respeito duma coisa séria? Ao menos uma única vez? — Sentiu-se inesperadamente temerosa e aborrecida, não sabendo direito porque, mas ainda assim não se contendo.
— Podeis, sim. Estou ouvindo, de bom grado — balbuciou ele.
Depois de um minuto de silêncio, ela começou, com evidente mortificação:
— Não quis discutir com eles, a tal respeito, porque não há quem os demova de certas coisas. Certos princípios de mamãe sempre me revoltaram. Quanto aos de papai, nem falo nada; já estamos habituados a não esperar nada dele. Mamãe é uma nobre mulher, naturalmente. Se você ousasse propor-lhe a compreensão de qualquer coisa, veria. Até hoje ela ainda se inclina profundamente diante dessas criaturas insuportáveis. Não me refiro só à velha princesa; esta então é uma velha desprezível, um desprezível caráter, mas muito esperta e sabe como fazê-los girar ao redor do seu dedo. Ao menos tem isso! Oh! A baixeza de todas essas coisas! E o ridículo! Nós sempre fomos gente da classe média, como a classe média possivelmente possa ser. Por que forçar-nos para esse círculo aristocrático? E minhas irmãs adotam a mesma política. Não viu como o príncipe Chtch... as alvoroçou? Por falar nisso, por que se alegrou você com a vinda de Evguénii Pávlovitch?
— Escutai, Agláia. Parece que estais receosa de que eu me escarrapache aqui, amanhã... na recepção!
— Eu? Com medo? Por sua causa? — E Agláia enrubesceu. — Não vejo por que hei de eu ter receio, por sua causa, mesmo que você se arruíne totalmente!... Que tenho eu que ver com isso? E como pode empregar tais palavras? Que quer dizer com esse termo grosseiro “escarrapache!”?
— É... gíria de recreio de colégio.
— É sim, um termo de colégio! Horroroso! Decerto pretende usar expressões como esta amanhã! Neste caso escolha mais umas, no seu dicionário, em casa. É uma pena como você sabe entrar corretamente num salão! Onde aprendeu? Saberá como segurar uma xícara de chá e tomá-lo direitinho, quando todo o mundo o estiver olhando?
— Creio que sim.
— Se sabe, é pena. Pois, se não soubesse, ao menos teria do que me rir. Em todo o caso, preste atenção. Imagine quebrar o vaso de porcelana da China da sala de visitas. É um vaso extravagante. Por favor, quebre-o! Foi um presente. Mamãe ficaria tão fora de si que choraria diante de todo o mundo. Ela o admira tanto! Gesticule, como você sempre faz quando fala, bata nele e quebre-o! Sente-se perto, de propósito.
— Que nada! Sentar-me-ei o mais longe possível! Obrigado por me terdes prevenido.
— Então, fique nervoso e acabe desengonçando os braços. Aposto o que quiser como vai logo discorrer sobre qualquer coisa difícil, um assunto elevado. Isso... demonstrará muito... tato!
— Se não for apropriado, acho que será estúpido.
— Ouça, uma vez por todas — disse Agláia, perdendo a paciência. — Se falar sobre qualquer coisa assim como pena capital, ou a posição econômica da Rússia, ou como a Beleza salvará o mundo, naturalmente eu ficarei radiante, aplaudirei, rirei... mas desde já o previno, não me apareça depois, nunca mais! Estou falando sério! Desta vez estou falando sério.
Realmente a sua ameaça era séria. Algo de excepcional podia ser ouvido nestas palavras e visto naqueles olhos; algo que não era brincadeira e que o príncipe nunca reparara antes.
— Agora, depois do que acabastes de dizer, tenho a certeza de que vou falar demais e que até vou quebrar o vaso, Antes não tinha receio de nada, agora tenho pavor de tudo. Certamente “que me escarrapacharei!”
— Então, contenha a língua. Sente-se quieto e contenha a língua.
— Vou fazer o possível. Mas já tenho a certeza de que vou ficar atrapalhado, que começarei a falar demais e que espatifarei o vaso. Talvez até escorregue no assoalho encerado! Ou qualquer coisa assim. Isso já me aconteceu uma vez. Agora vou sonhar com essa história. Por que me fostes falar?
Agláia olhou-o soturnamente.
— Vou dizer uma coisa: será melhor que eu não venha amanhã. Darei parte de doente e assim tudo acabará bem — concluiu ele.
Agláia bateu com o pé e ficou branca de raiva.
— Bom Deus! Onde é que já se viu uma coisa destas? Agora que tudo está arranjado por sua causa, não quer vir! Ó meu Deus! Mas é um regalo tratar com uma pessoa tão insensata.
— Então eu venho! Então eu venho! — interrompeu-a apressadamente o príncipe. — E dou minha palavra de honra que ficarei todo o tempo sentado, sem abrir a boca. Vou tomar tento em mim.
— E faria bem. Mas por que disse, há pouco, que ia “dar parte” de doente? Onde colhe estas expressões? Que o atacou para as usar deste modo? Ou está querendo que eu me aborreça, de propósito?
— Peço perdão. Isto foi mais um termo de colégio... Não usarei mais. Compreendo perfeitamente que fiqueis preocupada por minha causa. (Sim, não fiqueis zangada.) Até fico contente quando me emendais. Agora, por exemplo, nem sabeis como estou, ao mesmo tempo, assustado e contente. Mas asseguro que todo esse receio é despropositado e insignificante. Deveras, Agláia. Mas permanece a alegria. Estou formidavelmente contente por serdes a criança que sois; uma criança tão bondosa! Oh! Como podeis ser maravilhosa, Agláia!
Agláia naturalmente estava a ponto de ter um acesso de raiva, mas subitamente tomou posse da sua alma, num instante, um sentimento inteiramente inesperado.
— E nunca me censurará pelas palavras grosseiras que acabei de lhe dizer? Nunca? Em dia algum? — perguntou.
— Como podeis pensar isso? Que ideia! Estais um deslumbramento! Oh! Por que enrubescestes? Mas ficastes tristonha, outra vez! E agora já estais de novo me olhando desapontada. Destes para me olhar, de vez em quando, dum modo esquisito, Agláia. Não éreis assim, antes. Eu sei por que é!
— Psiu!
— Não, é melhor que eu diga logo! Desde muito que estou querendo dizer. Até já comecei, mas não é o bastante, visto terdes o costume de não acreditar no que eu falo. Há uma pessoa entre nós...
— Psiu! Psiu! Psiu! Psiu! — Agláia interrompeu-o imediatamente, segurando-lhe a mão com força, olhando-o quase com terror.
Nisto, lá de dentro chamaram por ela. Com ar de alívio, deixou-o logo e correu.
O príncipe teve febre a noite toda. Uma febre que já desde várias noites não o largava.
Mas, aquela noite, estando em subdelírio, um pensamento lhe sobreveio: e se, no dia seguinte, diante de todo o mundo, tivesse um ataque? Já tivera ataques em público. Tal pensamento gelou-o. Em sonho, se imaginou no meio duma estranha e incrível companhia de gente desconhecida. E o pior é que não parava de falar. Sabia que não devia falar, mas falava o tempo todo, tentando persuadir essa gente de alguma coisa, voltando-se ora para Ippolít, ora para Evguénii Pávlovitch que estavam extremamente amistosos para com ele.
Às nove horas, quando se levantou, sentia o espírito confuso; as impressões lhe vinham dum modo compacto e a cabeça lhe doía. Veio-lhe uma vontade indomável e disparatada de ir ver Rogójin, de ficar horas e horas a conversar com ele. Sobre quanta coisa não conversariam! Mas logo caiu em si: era a Ippolít que deveria ir ver. Sentia uma sensação esquisita em seu coração, tanto que quando lhe aconteceu certa coisa, pouco depois, ficou sem perceber direito o que era. Todavia tudo não passava de quê? Duma visita de Liébediev.
Dera-se um pouco depois das nove horas a entrada de Liébediev. Vinha já completamente bêbedo. Desde que o general Ívolguin o tinha largado, havia uns três dias, até Míchkin, que ultimamente já não era tão observador, reparou que Liébediev ia de mal a pior. Andava todo engordurado e sujo, a gravata para um lado, a gola do paletó puída. No cubículo onde morava erguia a todo instante uma tempestade que se ouvia do pátio. Vera, mais duma vez, em lágrimas, viera, por causa disso, chamar o príncipe.
Mas esta manhã ao se apresentar, começou a falar de um modo enigmático, batendo no peito, culpando-se duma porção de coisas.
— Recebi... recebi o castigo da minha baixeza e da minha vilania... uma formidável bofetada — concluiu tragicamente.
— Uma bofetada? De quem? E já tão cedo?
— Já tão cedo? — E Liébediev sorriu sarcasticamente. — Que tem o tempo a ver com isso de castigos corporais? Além de que o que recebi foi um castigo moral, e não físico!
Sentou-se logo, sem cerimônia, e começou a contar a sua história que, aliás, era muito incoerente. O príncipe, fechando o cenho, esteve para se ir, mas certas palavras lhe prenderam a atenção. Ficou completamente mudo de espanto ante as coisas estranhíssimas que este sr. Liébediev estava a contar.
Aparentemente, para poder começar, meteu a história duma carta. O nome de Agláia Ivánovna foi encaixado... Depois, Liébediev entrou a falar mal do próprio Míchkin. Só se podia concluir que estava zangado com o príncipe. Relembrou, inicialmente, que o príncipe o honrara com a sua confiança, em determinadas transações com “certa pessoa” (com Nastássia Filíppovna), interrompendo-as completamente e ignominiosamente o despedindo, chegando até a tomar contra o pobre dele atitudes ofensivas, como ainda no outro dia repelindo, com imediata grosseria, “uma inocente pergunta a respeito de próximas alterações íntimas”. Com lágrimas de bêbedo protestou que, depois disso, tinha que explodir, principalmente sabendo o mundo de coisas que sabia de Rogójin, de Nastássia Filíppovna e da amiga dela, da própria Varvára Ardaliónovna e mesmo de... sim... de Agláia Ivánovna.
— Se não acredita em mim, saiba então que foi através de Vera, através de minha adorada filha única... isto é, a bem dizer não é a única, pois na verdade tenho três... E quem foi que informou Lizavéta Prokófievna, por meio de cartas, em segredo de morte, naturalmente? Eh! Eh! Quem andou escrevendo a ela, informando-a direitinho das astúcias e alternativas da “personagem” Nastássia Filíppovna? Eh! Eh! Eh! Quem, quem é o escritor anônimo, permita-me perguntar-lhe!?
— Serás tu! — exclamou o príncipe.
— Nem mais nem menos! — replicou o bêbedo com dignidade. — E esta manhã mesmo, há meia hora, aí pelas oito e meia. Não, já faz três quartos de hora! Informei àquela mãe de coração tão generoso que tinha um fato... de importância a participar-lhe. Informei por carta entregue à empregada, pela porta dos fundos. O papel lhe foi ter às mãos.
— Você já esteve hoje com Lizavéta Prokófievna? — perguntou o príncipe, incapaz de crer nos seus ouvidos.
— Agora mesmo, e recebi um golpe moral. Devolveu-me a carta; ou melhor, atirou-ma à cara, sem a abrir. E me deu, moralmente falando, um pontapé. Não fisicamente, lá isso não! Embora quase fosse físico também; não esteve mesmo longe de o ser!...
— Que carta foi essa que ela lhe atirou sem abrir?
— Ora! Eh! Eh! Já não lhe disse? Pensei que já lhe tinha dito! Era uma carta que me fora entregue de propósito com o fim de eu a... entregar a...
— De quem? De quem?
Era difícil de ligar pé com cabeça, nas explicações de Liébediev, ou de entender fosse o que fosse. Mas, tanto quanto depreendeu, Míchkin ficou sabendo que a carta tinha sido trazida por uma empregada, a Vera Liébedieva que, por sua vez, a deveria entregar à pessoa a quem era endereçada. “Tal como da outra vez, a uma certa personagem, da parte duma outra... pessoa. Pois, como vê, designo uma das partes aqui chamando-a “personagem” e à outra simplesmente “pessoa”, por ser assim mais derrogatório e distinguível, visto haver grande distinção entre uma inocente e bem-nascida senhorita da família dum general e... uma senhora duma outra espécie. A carta provinha dessa pessoa cujo nome começa pela letra “A”...
— Como assim? Para Nastássia Filíppovna? Absurdo! — exclamou Míchkin.
— Era, sim; era, sim. E se não para ela, para Rogójin. Dá no mesmo. Foi para Rogójin... e havia uma outra, também, para o sr. Tieriéntiev, para lhe ser entregue, vinda da pessoa que começa pela letra “A” — disse Liébediev, sorrindo e piscando.
Como continuamente misturava uma coisa com outra e esquecia o que tinha começado a falar, o príncipe teve paciência em deixá-lo ir falando. Ainda assim ficou obscuro se a correspondência fora levada por ele ou por Vera. Apesar de ter declarado que dava no mesmo que as cartas fossem dirigidas para Rogójin ou para Nastássia Filíppovna, pareceu mais provável a Míchkin que as cartas não lhe tivessem passado pelas mãos, se é que cartas havia. Ficava, pois, sem explicação, como conseguira ele ter em mãos aquela carta. O mais provável é que a tivesse surripiado de Vera, roubando-lha com jeito, visto lhe convir ir entregá-la a Lizavéta Prokófievna. Foi, pelo menos, o que, de certo modo, o príncipe depreendeu e deduziu.
— Isso só existe na sua cabeça! — disse-lhe, em extrema agitação.
— Não só nela, nobilíssimo príncipe! — respondeu Liébediev, não sem alguma malícia. — Pensei até em trazer-lha, em depô-la em suas mãos, para lhe render um serviço... mas refleti que a melhor maneira de usá-la, nestas circunstâncias, era levá-la à mãe de tão nobre coração, visto já me ter comunicado com ela, por carta anônima; e quando, ainda agora mesmo, lhe escrevi um bilhete preliminar, pedindo-lhe que me recebesse às oito e vinte da manhã, tornei a assinar. “Do vosso secreto informante”. E então, pela porta dos fundos, fui pronta e imediatamente introduzido à presença da ilustre dama.
— E então?
— E então... lá, como já disse, quase me espancou. Sim, quase; ou melhor, até se poderia dizer que, praticamente, me espancou. Arremessou-me à cara a carta! Bem reparei que desejou guardá-la, vi isso muitíssimo bem; mas refletiu melhor e a jogou nas minhas fuças. “Já que um indivíduo da sua marca aceita destes encargos... tome!” Estava positivamente ofendida. Deduzo que estava ofendida porque não se envergonhou. É uma senhora muito esquentada!
— E onde está a carta?
— Tenho-a ainda comigo. Está aqui. — E estendeu a Míchkin o bilhete de Agláia a Gavríl Ardaliónovitch, o mesmo que este, duas horas antes, mostrara, com tanto triunfo, à irmã.
— Esta carta não pode ficar com você.
— Então é sua. Dou-lha — apressou-se em declarar, calorosamente, Liébediev. — De agora em diante, sou do senhor, inteiramente do senhor, da cabeça ao coração, servo do senhor, depois da minha passada vilania. “Puna-se o coração, poupe-se a barba”, como disse Thomas Moore, na Inglaterra e na Grã-Bretanha. “Mea culpa, mea culpa”, como diz o papa romano, isto é, quero dizer o papa de Roma, embora tenha dito o papa romano.
— Esta carta tem que ser enviada imediatamente — disse, muito ansioso, o príncipe. — Vou entregá-la.
— Mas, não seria muito melhor, não seria muito melhor, muitíssimo culto príncipe, fazer isto... com ela? Isto!... — E fez com as mãos um gesto para os lados e para baixo, um gesto significativo, piscando, dissimuladamente, com uma porção de caretas, remexendo-se no seu lugar, violentamente, como se tivesse sido inesperadamente picado por uma agulha. O príncipe perguntou-lhe, severamente:
— Que é que você quer dizer?
— Não seria melhor abri-la? — ciciou, insinuando-se como que confidencialmente.
O salto que Míchkin deu na direção dele foi de tal ímpeto que Liébediev fugiu, desabaladamente, só parando lá longe, na porta, a ver se conseguia perdão.
— Escute uma coisa, Liébediev! Como lhe é possível chafurdar assim em tão abjeta degradação? — perguntou-lhe o príncipe, amargamente.
— Sou abjeto, abjeto!... — Logo se aproximou, em lágrimas, batendo no peito.
— Você bem sabe que isso é abominável!
— Que é abominável, é! Eis a palavra para isso!
— Que hábito horroroso, proceder de maneira tão falsa! Você não passa dum espião! Para que foi mandar cartas anônimas, afligir uma mulher de coração tão bondoso? Agláia não tem o direito de escrever a quem quiser? Você foi lá para delatar... Esperava receber uma recompensa? Que foi que o induziu a inventar histórias?
— Simplesmente uma agradável curiosidade e o desejo de pôr em útil ação um coração generoso! Mas, agora, sou outra vez só do senhor. Todo! O senhor pode até mandar enforcar-me!
— E você foi lá deste jeito? Será possível? — indagou o príncipe, enojado.
— Não, eu estava direito! Mais decente! Foi só depois da minha humilhação que me reduzi a este estado!
— Bem, basta! Vá embora.
Teve que repetir esta intimação várias vezes antes de conseguir que Liébediev se fosse. Antes de abrir a porta, ainda voltou, nas pontas dos pés; parou no meio da sala e gesticulou, querendo significar que convinha abrir a carta. Não se aventurou a objetivar o conselho com palavras. Posto o quê, saiu, com um sorriso suave e cortês.
Fora-lhe extremamente doloroso ter tido que ouvir tudo aquilo. Agora ficava ainda mais evidente o que o andava impressionando: a grande inquietação de Agláia, o seu ar como que perplexo, a sua angústia causada por qualquer coisa. (Por ciúme, sussurrava o príncipe.) Gente mal-intencionada a andava afligindo; e o que era mais estranho, gente em quem confiava. Sem dúvida aquela inexperiente e febril cabecinha estava chocando alguns planos especiais, decerto ruinosos e totalmente bárbaros. O príncipe ficou muito alarmado e, em sua perturbação, não soube o que fazer. Sentia, porém, que urgia fazer alguma coisa. Olhou mais uma vez para o sobrescrito da carta lacrada. Oh! Não receou nada; não se perturbou. Quanto a isso, confiava em Agláia. O que, a propósito da carta, o inquietou, foi outra coisa muito diferente: não confiava em Gavríl Ardaliónovitch. Mesmo assim, resolveu ir pessoalmente entregar a carta, tendo até saído de casa com tal desígnio. Mas, na rua, mudou de ideia. Por feliz casualidade encontrou, quase à porta de Ptítsin, Kólia, encarregando-o de entregar a carta ao irmão, como vinda diretamente de Agláia Ivánovna. Sem perguntar nada, Kólia a foi entregar logo, de maneira que Gánia não suspeitou que ela tivesse dado tantas voltas.
Regressando a casa, Míchkin mandou chamar à sua presença Vera Liébedieva; contou-lhe o indispensável, sossegando-lhe o espírito, pois a coitada estivera todo o tempo à cata do que julgara ter perdido, e ainda estava em lágrimas. Ficou horrorizada quando soube que fora o pai quem carregara com a carta. (O príncipe veio a saber dela, em seguida, que mais de uma vez tinha ajudado Rogójin e Agláia Ivánovna, em segredo, sem lhe ocorrer que Míchkin, com isso, estava sendo injuriado.)
Depois de tudo isso, o príncipe ficou tão zonzo que, duas horas depois, quando uma pessoa, a mando de Kólia, correu a dar-lhe notícias de que o general Ívolguin piorara, não alcançou, nos primeiros minutos, a gravidade do caso.
Depois, porém, este acontecimento lhe acabou distraindo completamente a atenção. Foi à casa de Nina Aleksándrovna (para onde o doente naturalmente tinha sido carregado) e lá ficou até a noite. Nenhum auxílio podia prestar. Mas pessoas há, cuja presença, nas horas de angústia, é consolo. Kólia estava terrivelmente desesperado; chorava desesperadamente, embora a todo instante o mandassem à rua para diversos expedientes: correr à procura dum médico (sendo que veio logo com três), dar uma carreira à farmácia, mandar chamar o barbeiro. Afinal conseguiram fazer o general voltar a si, mas ficou completamente marasmado, opinando os médicos que, em todo o caso, continuava em perigo. Gánia ficou muito aflito, tentou dominar-se, não subiu, parecia recear o doente. Em dada hora, diante de Míchkin, juntou as mãos e, numa linguagem desconexa e incoerente, deixou cair esta frase:
— Que calamidade! E justamente num momento destes!
O príncipe pôs-se a analisar intimamente o que quereria ele significar por “um momento destes”. Não encontrou Ippolít em casa de Ptítsin. Liébediev que, depois da explicação matinal, tinha dormido de dia um sono só, correu para lá, à noite. Agora já estava “curado”, e derramou lágrimas verdadeiras sobre o doente, como se se tratasse dum irmão. Censurou-se repetidas vezes, em voz alta, sem explicar por que, e não largava Nina Aleksándrovna, assegurando, a todo momento, que “fora a causa disso, ele e mais ninguém, mercê duma leviana curiosidade” e que o “finado” (persistia em chamar assim ao general ainda vivo) fora positivamente um homem de gênio! Insistia, muito sério, nessa coisa de gênio, como se isso pudesse causar, no momento, qualquer vantagem. Reparando que as lágrimas dele eram verdadeiras, Nina Aleksándrovna acabou por lhe dizer, com uma nota de reprimenda feita cordialmente:
— Bem, que Deus te abençoe, não chores. Vamos! Que Deus te perdoe!
Liébediev ficou tão impressionado com estas palavras, e com o tom delas, que não houve meio de deixá-la um momento, grudando nela toda a noite (e os dias subsequentes, desde manhã até a hora da morte do general não largando a casa). Duas vezes, durante o dia, um mensageiro de Lizavéta Prokófievna veio perguntar pelo moribundo.
Quando, às nove horas da noite, o príncipe apareceu na sala de visitas dos Epantchín, que já estava repleta de convidados, Lizavéta Prokófievna logo lhe começou a perguntar pelo general, de modo muito simpático e minucioso, respondendo com dignidade à pergunta da princesa Bielokónskaia: “Que doente é esse e quem é essa Nina Aleksándrovna?”, o que muito agradou a Míchkin. Em resposta à sra. Epantchiná, explicou a situação do enfermo, falando esplendidamente (como as irmãs de Agláia disseram depois), modestamente sereno, com dignidade, sem profusão de gestos nem de palavras. Soube entrar admiravelmente; estava vestido com perfeição, e em vez de escorregar no assoalho polido, como temera na véspera, a impressão que causou a todos foi evidentemente favorável.
Sentando-se e olhando em torno, por sua parte ele notou logo que a companhia não era absolutamente constituída pelos fantasmas com que Agláia tinha tentado amedrontá-lo, nem se assemelhava às figuras de pesadelo do seu sonho da última noite. Pela primeira vez na sua vida, estava vendo um corte transverso daquilo a que se dá o nome respeitável de “sociedade”. Em tempos passados certas considerações o tinham inclinado, quase que sequiosamente, ao projeto de penetrar nesse círculo encantado. E era por isso que se sentia tão profundamente interessado na sua primeira impressão. E esta era fascinante. Pareceu-lhe, de certo modo, que essa gente devia ter nascido para estar, por assim dizer, junta. Era como se não houvesse recepção alguma de convivas na casa dos Epantchín, mas de uma gente própria a que ele desde muito tempo estivesse devotado, lhe conhecesse os pensamentos e à qual estivesse voltando agora, depois duma curta separação. O encanto e a distinção de suas maneiras, sua simplicidade e sinceridade aparente produziam um efeito quase feérico. Nunca lhe entraria pela cabeça que toda aquela singela nobreza de maneiras e aquela dignidade, a que se juntaram talento e espírito fossem mera encenação, ou que a maioria dos convidados, a despeito de seu exterior atraente, fosse de cabeças ocas, inacauteladas, sua superioridade sendo mero verniz, dela nem sendo responsáveis, tendo-a adotado apenas por herança, inconscientemente. Empolgado pelo encanto de sua primeira impressão, o príncipe não se inclinou absolutamente a suspeitar disso. Viu, por exemplo, que esse importante e velho dignitário, que podia ser seu avô, parava de falar para ouvir um jovem inexperiente como ele; não só ouvi-lo, mas até conceituar a sua opinião; e que era cordial, sinceramente bondoso para com ele, muito embora fossem, como eram, estranhos um ao outro, tendo-se encontrado pela primeira vez ali. Decerto o refinamento da cortesia fora o que produzira maior efeito na sequiosa sensibilidade de Míchkin. Ele estava pois prejudicado por sua predisposição a impressões favoráveis.
E todavia, essa gente — muito embora fosse amiga da família e amiga entre si, na realidade não era tão amiga da família nem tão amiga entre si, como ao príncipe pareceu quando lhe foi ao encontro para lhe ser apresentado. Pessoas havia, na reunião, que jamais reconheceriam os Epantchín como seus iguais. E pessoas havia que mutuamente se detestavam: a velha princesa Bielokónskaia sempre havia menoscabado a esposa do velho dignitário, ao passo que esta, por sua vez, estava longe de gostar de Lizavéta Prokófievna. Esse dignitário, seu marido, que por qualquer motivo fora o patrono dos Epantchín desde a mocidade deles em diante, e era a pessoa mais influente dali, era um personagem de tão vasta importância aos olhos de Iván Fiódorovitch que este, perante o outro, só conhecia a sensação da reverência e do temor, ao passo que o dignitário sentiria desprezo por si mesmo se algum dia, por um momento só, viesse a se pôr em pé de igualdade com ele, cuidando-se no mínimo como um Júpiter olímpico. Havia gente que não se encontrava desde muitos anos e que não sentia senão indiferença, ou melhor, desprazer uma pela outra. Todavia, agora se saudavam como se se tivessem encontrado ontem em agradável companhia. E nem a reunião era assim numerosa. Além da princesa Bielokónskaia e do velho dignitário que, de fato, era um indivíduo de categoria, e respectiva esposa, havia, em primeiro lugar, um corpulento general, conde, ou barão, com nome alemão — homem de extraordinária taciturnidade com reputação de grande conhecedor dos negócios públicos e até com vocação para sábio — um desses administradores do Olimpo que conhecem tudo, exceto, talvez, a Rússia; homem que uma única vez, em cinco anos, fizera uma observação extraordinariamente profunda, dessas que inevitavelmente se transformam em provérbio, caindo até nos círculos mais avançados; um desses oficiais do governo que, habitualmente, após um extremo período de serviço, morrem de posse de larga fortuna e com as honras inerentes às posições do mando, muito embora nunca tenham realizado nenhum grande empreendimento; pelo contrário, até tendo tido aversão pelos empreendimentos.
Este general era o chefe imediato do general Epantchín que, no zelo de sua gratidão, o que nele era uma forma toda especial de vaidade, o considerava seu protetor. Coisa aliás que o outro absolutamente não considerava como sendo de Iván Fiódorovitch, pois o tratava com absoluta frieza; sabendo embora avaliar os seus préstimos, substituí-lo-ia imediatamente por outro oficial, se, por qualquer consideração, mesmo trivial, achasse conveniente tal troca.
Havia, também, um importante cavalheiro, de meia-idade, suposto parente de Lizavéta Prokófievna (coisa aliás bem inverídica), homem de alta posição por nascimento e fortuna. Ainda era robusto, gozava de excelente saúde, era um grande conversador e tinha reputação de homem insatisfeito no mais legítimo sentido da palavra. E mesmo atrabiliário (o que também lhe era agradável); copiava os artifícios da aristocracia inglesa e o gosto inglês como rosbife, armaduras, mordemos etc.). Era um grande amigo do dignitário e o divertia. Todavia Lizavéta Prokófievna, por qualquer motivo, acariciava a extravagante ideia de que a este provecto cavalheiro (aliás pessoa frívola com inclinação pelo sexo fraco) repentinamente lhe daria na cabeça fazer a felicidade de Aleksándra, pedindo-lhe a mão. Abaixo dessa altíssima e sólida camada da sociedade, vinham os convidados mais novos, também se fazendo notar por suas qualidades extremamente elegantes, e a cujo grupo pertenciam o príncipe Chtch... e Evguénii Pávlovitch, bem como o afamado e fascinante príncipe N... que seduzira e transtornara corações pela Europa inteira, homem duns quarenta e cinco anos, de formosa aparência ainda, e formidável causeur. Tinha dissipado uma grande fortuna e habitualmente vivia no estrangeiro.
Havia também outra gente, que constituía uma terceira camada especial, não pertencendo ao círculo fechado da sociedade, mas que, como os Epantchín, podia ser encontrada nela. Através dum certo senso e dum talento de adaptação que sempre os guiava, os Epantchín gostavam, nas raras ocasiões em que davam recepções, de misturar com a alta sociedade pessoas de graduação um pouco menor, representantes seletos da “espécie média”. E não faltava quem elogiasse os Epantchín por fazerem isso, pois davam a entender assim que percebiam com muito tato a sua posição. Um dos representantes da classe média, esta noite, era um coronel de engenharia, homem sério, amigo íntimo do príncipe Chtch... por quem fora introduzido e apresentado em casa dos Epantchín. Quase não falava em sociedade, usava um anel desconforme e raro no dedo indicador da mão direita, provavelmente um presente. Havia, também, um poeta de origem alemã, mas poeta em idioma russo, perfeitamente apresentável, podendo, sem dúvida, ser introduzido sempre em boa sociedade, sem que viesse a causar apreensões. Era de aparência bem conformada, embora, por certa razão, difícil de dizer à primeira vista qual fosse, repulsiva. Devia ter uns trinta e oito anos e se vestia irrepreensivelmente. Descendia duma família alemã fundamentalmente burguesa mas respeitável. Tinha o dom de obter vantagens e escolher oportunidades, sabendo quais as pessoas altamente colocadas cujo patrocínio lhe convinha. Certa vez traduzira versos duma obra importante dum poeta alemão, fora hábil ao dedicar a sua tradução, e mais hábil ainda em ostentar sua amizade com um célebre poeta russo, já morto (havia uma turma de escritores cuja amizade gostava de recordar pela imprensa; sempre amizades de grandes escritores já mortos). Fora apresentado recentemente aos Epantchín, pela esposa do velho dignitário. Esta dama era célebre pela proteção que dedicava a literatos e homens cultos; tinha mesmo, com sua influência, arranjado pensão para um ou dois escritores, servindo-se de poderosos personagens. Realmente dispunha de influência. Era mulher de quarenta e cinco anos (e por conseguinte bastante nova ainda para um homem da idade do marido); fora muito bonita e, como certas mulheres quarentonas, tinha ainda a mania de se vestir um pouco espalhafatosamente. Sua inteligência era curta e os seus conhecimentos literários duvidosos. Proteção a literatos era uma mania igual à dos seus atavios estapafúrdios. Muitas obras e traduções lhe haviam sido dedicadas e, com a sua permissão, dois ou três escritores tinham publicado cartas a ela escritas sobre assuntos da maior importância!...
Toda essa sociedade tomou-a Míchkin como moeda de lei, ouro puro, sem liga. Toda essa gente se achava, essa noite, como que por privilégio, no mais feliz estado de espírito e muito contente de si. Todos, sem exceção, sabiam que estavam, com a sua visita, prestando uma grande honra aos Epantchín. Mas pobre dele, Míchkin! Não suspeitava existirem tais sutilezas. Não suspeitava, por exemplo, que, conquanto os Epantchín estivessem considerando um passo tão importante para decisão do futuro de sua filha, ousariam deixar de exibi-lo, a ele, príncipe Liév Nikoláievitch, ao velho dignitário que era reconhecidamente o patrono da família. E embora o velho dignitário, por sua parte, viesse a suportar com perfeita equanimidade as novidades da mais terrível calamidade que caísse sobre os Epantchín, certamente se ofenderia se os Epantchín contratassem o noivado de sua filha sem se aconselharem com ele, ou melhor falando, sem o seu consentimento. O príncipe N... estava convencido que era uma espécie de sol que se tinha levantado esta noite para ofuscar a sala dos Epantchín, sendo, como era, encantador e inquestionavelmente talentoso. Olhava-os a todos como infinitamente abaixo dele, e fora justamente essa franca e generosa noção de si próprio que o insinuara com maravilhosa e encantadora facilidade entre os Epantchín. Sabendo muito bem que tinha que contar uma história qualquer, para deleitar os convivas, para tal se preparara com positiva inspiração. Quanto ao príncipe Liév Nikoláievitch, é lógico que depois que ouviu a história sentiu que jamais ouvira nada tão brilhante como humor, alegria estonteante e ingenuidade encantadora, dos lábios dum dom-joão como esse príncipe N... Se, no entanto, tivesse sabido quão velha e repetida essa história era, sabida até de cor, gasta, usada e imprópria para uma sala de visitas, só em casa dos Epantchín podendo passar como novidade ou improviso, como verídica reminiscência dum homem esplêndido e brilhante!... Até mesmo o pequeno poeta alemão, que se estava comportando com grande modéstia e polidez, inclinava-se a acreditar que, com a sua presença, rendia uma homenagem à família. Mas Míchkin não via nada pela outra face, não sabia reconhecer correntes submarinas! Tal calamidade, Agláia não previra.
E, esta noite, ela estava particularmente formosa. Trajavam as três moças vestidos de soirée, mas não demasiado suntuosos, e usavam penteados de estilo sui-generis. Agláia estava sentada com Evguénii Pávlovitch; conversava com ele e até brincavam ambos com excepcional amizade. Evguénii Pávlovitch comportava-se com mais tranquilidade do que de costume, um pouco, talvez, em respeito aos dignitários. Conhecido em sociedade da forma por que o era, estava como em casa, apesar de tão moço. Chegara à casa dos Epantchín, essa noite, com crepe no chapéu, o que não passou despercebido à princesa Bielokónskaia, que aprovou isso. Qualquer jovem mundano não poria luto, em tais circunstâncias, por tal tio. Lizavéta Prokófievna também apreciou, embora tivesse mais com que se preocupar essa noite.
Notou o príncipe que Agláia o observara com certa atenção uma ou duas vezes e lhe pareceu que ela quis significar com isso que estava contente com ele. Pouco a pouco começou a se sentir muito feliz. Aquelas suas apreensões depois da conversa com Liébediev pareciam-lhe, agora, bem como as suas mais recentes ideias quando de súbito lhe voltavam à memória por entre intervalos, um sonho inconcebível, incrível e ridículo! (Durante todo o dia o seu esforço principal — embora inconsciente — tinha sido rejeitar até à anulação aquele sonho!) Falava pouco, e isso mesmo em resposta a perguntas. Já muito depois, não falou mais. Sentado como estava, ficou quieto, a ouvir, evidentemente feliz e satisfeito consigo. Mas, vagarosamente, dentro dele começou a trabalhar qualquer coisa, assim como que uma inspiração, pronta a romper no primeiro ensejo!... E eis que se pôs a falar, mas, com efeito, só em resposta a perguntas, aparentemente, sem nenhum especial desígnio.
7.
Contentava-se o príncipe em prestar atenção na conversa de Agláia com o príncipe N... e Evguénii Pávlovitch quando, inesperadamente, o velhote anglomaníaco (que entretinha, a um canto, o velho dignitário, contando-lhe com muita animação uma história qualquer), pronunciou o nome de Nikolái Andréievitch Pavlíchtchev. Míchkin virou-se logo na direção dos dois e ficou a escutar.
Discorriam sobre negócios públicos e comentavam certos distúrbios havidos recentemente em propriedades rurais. Devia ser divertido o cunho da narrativa do anglomaníaco pois o velho, ao fim de cada período do locutor, desandava a rir. Aquele, de fato, narrava de modo muito pitoresco, ajudando o efeito com as mãos, pondo uma ênfase muito flexível nos fonemas. E contava como se vira obrigado, como consequência direta da recente legislação, a vender um esplêndido domínio na província, nada mais nada menos do que pela metade do valor real, embora não estivesse precisado de dinheiro; e como ao mesmo tempo se vira obrigado a conservar uma outra propriedade que estava arruinada, em litígio e sujeita a embaraços, tendo até gasto dinheiro com isso.
— Para evitar cair na aplicação da lei agrária, tive que protelar o inventário da propriedade antiga de Pavlíchtchev. Mais uma ou duas outras heranças como esta, e eles me arruínam... E deixe que lhe diga que eu deveria entrar na posse de nove mil acres de excelente terra.
Estando por acaso o general Epantchín perto de Míchkin e lhe notando a atenção toda especial pela conversa, lhe disse baixo:
— Nem tenha dúvida. Iván Petróvitch é parente do falecido Nikolái Andréievitch; aproveite o ensejo para travar conhecimento.
O general Epantchín estivera até então a entreter um outro general que era o diretor da sua seção; desde muito percebera a situação deslocada do príncipe, preocupando-se com isso. Desejou trazê-lo com naturalidade para a conversação, e nesse sentido foi desentocá-lo, apresentando-o de novo àqueles grandes personagens.
— Pela morte dos pais, aqui o nosso Liév Nikoláievitch teve Nikolái Andréievitch como tutor! — explicou, indicando Míchkin a Iván Petróvitch.
— Agrada-me sobremodo ouvir isso — disse cortesmente este último. — E, de fato, recordo-me bem disso. Quando, à entrada, Iván Fiódorovitch nos apresentou, imediatamente reconheci o senhor. E foi pelo rosto; mudou pouco, é verdade. E me lembrei, embora o senhor só tivesse uns dez ou doze anos quando o vi. Aliás os seus traços são fáceis de guardar. Reconhecem-se logo...
— O senhor me viu quando eu era criança?
Iván Petróvitch reparou na surpresa do príncipe, e continuou:
— Sim, e há muito tempo! O senhor costumava viver em casa de meu primo, em Zlatovérkhovo. Não se recorda de mim? É muito provável que não se possa recordar... O senhor, naqueles tempos, tinha uma espécie de doença: e que até me impressionou muito, naquela ocasião.
— Não me recordo do senhor, em absoluto — asseverou fervorosamente Míchkin.
Seguiram-se mais algumas palavras entre ambos. Da parte de Iván Petróvitch, muito calmas; da parte de Míchkin, muito agitadas. E logo ficou mais ou menos esclarecido que as duas senhoras, solteiras, primas de Pavlíchtchev, que tinham vivido na propriedade dele, em Zlatovérkhovo, e que haviam criado o príncipe, também eram primas de Iván Petróvitch. Este, como aliás qualquer outra pessoa, não saberia explicar o que induzira Pavlíchtchev a tomar tão a peito a proteção do jovem príncipe. “Não me ocorreu nenhuma curiosidade a respeito.” Ainda assim, parece que tinha uma excelente memória, pois ainda se lembrava de quanto a sua prima mais velha, Márfa Nikítichna, fora severa para com o seu pequenino pupilo, “tanto que, uma ocasião, me levantei a seu favor e ataquei o sistema de educação dela. Por qualquer coisinha, vara, e outra vez, vara! Convenhamos que para uma criança doente...” E como era mais terna a irmã caçula, Natália Nikítichna, para com a pobre criança... “Estão ambas”, prosseguiu ele, “na província de X... (embora não esteja certo se estão vivas) onde Pavlíchtchev lhes deixou pequenina propriedade extremamente bela. Parece-me que Márfa Nikítichna quis entrar para um convento, mas não tenho certeza, não. Acho que estou confundindo com outra pessoa... Foi ela, sim; contou-me no outro dia a senhora do médico.”
O príncipe ouvia com olhos radiantes de prazer e emoção. Calorosamente declarou que nunca se perdoaria de não ter ainda arranjado uma oportunidade para empreender uma visita às senhoras que o tinham educado, não obstante ainda poucos meses antes ter estado nas províncias do centro. Adiava sempre, tolhido por outros negócios. Mas que, desta vez... estava decidido. Iria procurá-las nem que tivesse que se perder na província de X...
— Com que então o senhor conhece Natália Nikítichna!? Que delicada e santa natureza! E Márfa Nikítichna também!... Perdoe-me, mas acho que o senhor se engana no que disse de Márfa Nikítichna. Era severa, mas... como não haveria de perder a paciência com um idiota da marca que eu era naquele tempo? Hã! Hã. O senhor mesmo sabe muito bem que eu era um completo idiota. Ah! Ah! Ora, o senhor me viu, como é que não se lembraria disso? Diga-me, faça o favor, então... Meu Deus!... Então o senhor é parente de Nikolái Andréievitch Pavlíchtchev?!
— Dou-lhe a minha palavra que sou — disse Iván Petróvitch com um sorriso, examinando o príncipe.
— Oh! Eu não disse isso porque estivesse duvidando... E na verdade, como haveria eu de duvidar afinal, ah! ah! Mas que homem que foi Nikolái Andréievitch Pavlíchtchev! Que coração boníssimo!
Míchkin não estava propriamente sem fôlego e sim “sufocado pela gratidão”, como disse no dia seguinte Adelaída a seu noivo, o príncipe Chtch...
— Misericórdia e clemência! — exclamou rindo Iván Petróvitch. — Por que não poderei eu também ser parente dum homem de coração boníssimo?
— Oh! Meu Deus! — disse logo Míchkin dominado pela confusão e cada vez mais afoito. — Tornei a dizer uma estupidez... Mas isso tinha que acontecer porque eu... eu... eu... Mas eis outro despropósito que me ia saindo! Mas, quem sou afinal, digam, diante de tantos interesses, tão vastos interesses, comparado com um tão nobre coração? Pois o senhor bem sabe: ele foi realmente um coração nobilíssimo, não foi? Não foi?
O príncipe positivamente tremia todo. É difícil dizer por que motivo estaria tão agitado, em tal paroxismo de emoção, assim quase inconveniente, toda a sua maneira tão desproporcionada com o assunto geral e a conversa do seu grupo. Seu estado de espírito era consequência da mais viva e ardorosa gratidão que se estendia a Iván Petróvitch, senão a todos. “Espumava de felicidade.” Iván Petróvitch começou a fitá-lo mais detidamente, e o próprio dignitário passou a prestar-lhe uma atenção mais especial. A princesa Bielokónskaia, contraindo os lábios, olhava para Míchkin com raiva. O príncipe N..., Evguénii Pávlovitch, o príncipe Chtch... e as moças interromperam a conversa e se puseram a escutar. Agláia apenas parecia assustada, mas Lizavéta Prokófievna tinha o coração em sobressalto. E a culpa era delas, mãe e filhas, que se tinham comportado de modo tão estranho, na antevisão de tudo, havendo decidido que seria melhor para o príncipe ficar toda a noite sentado e quieto. Mas a verdade é que quando o viram sentado, em completa solidão, perfeitamente satisfeito em seu canto, se sentiram mortalmente penalizadas. Aleksándra estivera a ponto de ir ter com ele, atravessando o salão e, para ficar mais próxima, se ajuntara ao grupo do príncipe N..., perto da velha Bielokónskaia. Quando porém, agora, Míchkin resolvera falar, ficaram por demais preocupadas.
— Bem razão tem o senhor de dizer que ele foi o mais excelente dos homens — pronunciou Iván Petróvitch com uma expressão onde já não havia traço de sorriso. — Sim, sim, era um excelente homem! Excelente e valioso — acrescentou depois duma pausa. — De valor sob qualquer aspecto, pode-se dizer — insistiu mais expressivamente ainda, depois dum outro intervalo. — E é muito agradável ouvir isso da sua parte!...
— Não foi com esse Pavlíchtchev que houve uma história extravagante com... com o abade?... o abade?... Esqueci o abade qual foi... mas todo o mundo andou falando disso em certa ocasião! — sobreveio o dignitário, tentando lembrar-se.
— Com o Abade Goureau, um jesuíta — lembrou-lhe Iván Petróvitch. — E aí tem o senhor a que se expõe a nossa mais excelente e preciosa gente! Pois ele era, além de tudo, um homem de boa estirpe e de fortuna, viria a ser um gentil-homem da câmara se tivesse preferido continuar nas funções... E não é que repentinamente abandonou a carreira para ingressar na Igreja Romana e se tornar um jesuíta, com a maior decisão, com uma espécie mesmo de entusiasmo? Mas morreu na hora certa... conforme todo o mundo disse.
Míchkin ficou inteiramente pasmado.
— Pavlíchtchev converteu-se à Igreja Romana? Impossível! — exclamou horrorizado.
— “Impossível”? Com efeito! — E Iván pronunciou isto com firmeza. — Exagera muito, o senhor, não lhe parece, caro príncipe?... Principalmente tendo, como tem, tão alto conceito do falecido... Certamente que ele foi um homem de grande coração e a isso, principalmente, atribuo eu o sucesso desse velhaco Goureau. Mas nem me pergunte que amolações e trapalhadas não tive eu depois com esse caso e com esse Goureau. Imagine o senhor — disse voltando-se para o dignitário —, tentaram demandar contra o testamento e me vi obrigado a recorrer às mais vigorosas medidas para os repor no uso da razão, pois eles eram de primeira ordem neste gênero de especialidade. For-mi-dá-vel gente! Mas, louvado seja Deus! Tudo isso aconteceu em Moscou. Dirigi-me diretamente à Corte e logo os reconduzimos a um raciocínio mais lúcido.
— O senhor nem imagina quanto me aflige e me faz pasmar — asseverou o príncipe.
— Sinto muito. Mas como fato em si, tudo isso não passou de insignificante negócio e acabou em fumaça, como tais coisas sempre acabam. Nem penso mais nisso. No verão passado — virou-se para o velho — contaram-me que a Condessa K... entrou para um convento católico, no estrangeiro. Os russos, uma vez na mão desses velhacos, não se livram mais... especialmente no estrangeiro.
— Isso tudo provém do nosso tédio — murmurou, com autoridade, o velho dignitário. — As maneiras que eles empregam para conquistar prosélitos é repugnante e só própria deles. Sabem como intimidar o povo. Também a mim me pregaram um bom susto, em Viena, em 1832. É o que lhe digo! Mas não me apanharam. Fugi-lhes das malhas, ah! ah! Consegui escapulir...
— A mim, o que me contaram, meu caro senhor, foi que o senhor fugiu de Viena para Paris com a condessa Levítzkaia, abandonando o seu posto, e não por causa dos jesuítas — intrometeu-se inesperadamente a princesa Bielokónskaia.
— Procurando bem, deve haver nisso um jesuíta — retorquiu o velho dignitário, rindo ante a agradável recordação. Mas genialmente acrescentou, refugiando-se no pasmo do príncipe Liév Nikoláievitch que o estava ouvindo de boca aberta e que ainda mais espantado ficou: — O senhor parece-me muito religioso, coisa que hoje em dia não se encontra com frequência entre gente nova.
Por qualquer motivo o príncipe se tornou objeto de atenção para ele que evidentemente quis estudá-lo mais intimamente.
— Pavlíchtchev, que era um homem iluminado e um cristão, um verdadeiro cristão — declarou Míchkin sem que isso fosse esperado —, como pôde aceitar uma fé que não é cristã? O catolicismo vale tanto como qualquer religião não cristã — ajuntou, de repente, olhando em volta, como a querer, com os olhos cintilantes, esquadrinhar todo o grupo.
— Ora vamos, isso é exagerado — balbuciou o velho que olhou, surpreendido, para o general Epantchín.
— Por que diz o senhor que o catolicismo é uma religião anticristã? — interrogou Iván Petróvitch virando-se lá da sua cadeira. — Que é então?
— Primeiramente é uma religião anticristã — começou o príncipe com excesso de animação, respondendo com uma presteza mais que afoita. — Em segundo lugar, o catolicismo é até pior do que o ateísmo, na minha opinião. Sim, esta é a minha opinião. O ateísmo apenas nega, ao passo que o catolicismo falseia o Cristo, calunia, difama e se opõe ao Cristo. Prega o anticristo! Declaro e assevero que prega o anticristo. Esta é a convicção a que cheguei e que me atribulou. O catolicismo romano não consegue sustentar a sua posição sem uma política universal de supremacia e exclama: “Non possumus!” Assim, a meu ver, nem religião é, mas tão somente uma espécie de tentativa de continuação do Império Romano Ocidental; e tudo nela está subordinado a esta ideia, começando mesmo pela fé. O papa se apoderou da terra, seu trono terrestre, e empunhou o gládio. Desde então tudo continuou da forma antiga, sendo que à espada, ao gládio, eles juntaram a mentira, a fraude, o embuste, o fanatismo, a superstição e a vilania. Divertiram-se com os mais santos, mais sinceros e mais ferventes sentimentos do povo. Trocaram tudo, tudo, pelo dinheiro, pela vil força terrena. E não é justamente isso que ensina o Anticristo? Como poderia o ateísmo deixar de provir dele? O ateísmo emergiu do próprio catolicismo romano! Este gerou aquele. Começou pelos seus adeptos: poderiam eles crer em si próprios? Um se fortaleceu com a reação contra o outro. Um foi procriado pela mentira e pela incapacidade espiritual do outro. Ateísmo! Entre nós são só as chamadas classes excepcionais que não creem, aquela camada que conforme tão bem se expressou Evguénii Pávlovitch, perdeu as suas raízes. Mas aí pela Europa uma formidável massa de gente está começando a perder a fé, um pouco por causa da treva e da mentira e muito, principalmente agora, por causa do fanatismo e do ódio da igreja e da cristandade.
O príncipe parou para tomar fôlego pois argumentara com incrível precipitação. Estava pálido e sem ar. O velho dignitário, depois que todos se entreolharam, deu um largo sorriso. O príncipe N... tirou os óculos, pondo-se sem eles a observar Míchkin por algum tempo. Por sua vez o poeta alemão, saindo do seu canto, se aproximou da mesa, um sorriso hostil nos lábios, com ar de querer prolongar assunto tão inédito.
Nisto, com afetação de quem se sente desconsiderado diante de tamanha desenvoltura, Iván Petróvitch disse vagarosamente:
— Mas como o senhor está exagerando! Existem representantes dessa igreja que não somente são virtuosos como até mesmo merecedores de todo o nosso respeito!
— Não estou falando contra os representantes individuais da igreja. Estou falando da essência do catolicismo romano. Estou falando de Roma. Como haveria uma igreja toda de desaparecer? Nunca disse isso!
— Estou de acordo. Trata-se de fato bem conhecido. De assunto, com efeito, aqui, inadequado e inconveniente, agora. De mais a mais, é uma questão puramente teológica...
— Oh! Não, não! Não é uma questão apenas teológica, posso afiançar-lhe. Interessa-nos muito mais intimamente do que o que o senhor julga. O erro está justamente em não sabermos ver que não se trata duma questão teológica, exclusivamente! Foi precisamente como desespero, como oposição ao catolicismo que o ateísmo nasceu, com uma função ética para substituir a força moral perdida da religião. Para extinguir a sede espiritual da humanidade abrasada e então salvá-la a seu modo, não através de Cristo, mas pela violência. Ora, também isso não passa de tentativa de liberdade por intermédio da violência! Também isto outra coisa não é senão união feita com a espada e o sangue. “Não ouseis ter crença em Deus! De que adianta ter propriedades e individualidade! Fraternité ou la mort! Dois milhões de cabeças!” Pelas suas obras os conheceremos, já foi dito. E não acredite o senhor que tudo isso não tenha um alvo, que tudo isso não constitua um perigo. Oh! É preciso resistirmos, imediatamente, já! Aquele Cristo que conservamos intacto, o nosso Cristo, e que eles não conheceram nunca, deve brilhar diante de todos e vencer o Ocidente! Não deixemos que as forças dos jesuítas nos escravizem! Levemos a nossa civilização russa até eles, enfrentemo-los, e não consintamos que seja dito diante de nós, como ainda agora foi, que a sua pregação é mais sagaz e mais proficiente.
— Mas me permita um instante... um instante! — retrucou Iván Petróvitch, cujo espanto crescia à medida que olhava para o príncipe positivamente com receio. — Todas essas suas ideias são muito valiosas e demonstram patriotismo, mas tudo isso está exagerado ao extremo e... com efeito, seria melhor desistirmos de...
— Exagerado em quê? Eu não disse tudo, absolutamente; não disse tudo pois me faltam os termos mediante os quais possa...
— Per-mi-ta-me ...
Sentando-se de chofre na cadeira, o príncipe parou de falar, encarando com olhar fixo e fervente Iván Petróvitch.
— A minha impressão é que o amigo se deixou afetar pelo que aconteceu ao seu benfeitor — observou indulgentemente o velho dignitário em tom calmo e inalterável. — Esse seu temperamento ardoroso deve provir da sua solidão. Se vivesse mais entre as pessoas, e visse um pouco mais o mundo, espero que chegaria a ser um notável moço. Se não tivesse crescido assim tão irritável, veria como tudo isso é muito mais simples. E acabaria reconhecendo, ainda por cima, como eu reconheci, que esses casos excepcionais são devidos, por uma parte, por estarmos blasés, por outra parte por estarmos aflitos...
— Justamente, justamente! — aplaudiu Míchkin. — Esplêndida ideia! Tudo isso advém da nossa estupidez, duma grande estupidez nossa. Não por sermos blasés. Muito ao contrário. Pela nossa insatisfeita sofreguidão, e não por sermos blasés. Nisso o senhor está errado. Não só, simplesmente, pela nossa sofreguidão insatisfeita, mas por esta abrasadora, sufocante sede. E não se diga que a diferença é assim tão diminuta que dela nos possamos rir. Desculpe-me, mas essas coisas devem ser olhadas de frente. Logo que os russos sentem o chão sob os pés e se convencem que é chão, ficam tão contentes de o terem atingido que não param mais, vão aos limites mais avançados. Por que será? O senhor se surpreendeu com Pavlíchtchev e deu como causa, da parte dele, loucura ou simplicidade. Mas não foi uma coisa nem outra. A intensidade russa é uma surpresa não só para nós, como para a Europa inteira. Se um de nós se torna católico, automaticamente vira jesuíta e dos mais inabaláveis. Se se torna ateu, não cessará nunca de clamar pela extirpação da crença em Deus, através da força, isto é, pela espada. Por que é isto? Por que este frenesi? Precisamos descobrir o motivo. Seria porque encontrou a pátria que tinha perdido aqui? Ele atingiu o litoral, descobriu a terra e investe para beijá-la. Os ateus russos, da mesma maneira que os jesuítas russos, são os exilados não só da vaidade, não só de um mau e vão sentimento, mas também de uma agonia espiritual, de uma sede interior, a fome por uma coisa mais alta, a rota firme rumo a uma outra pátria já que deixaram de crer nesta porque nunca chegaram a conhecê-la. É mais fácil um russo se tornar ateu, do que qualquer outra pessoa no mundo. E os russos não só se tornam ateus, como acreditam invariavelmente no ateísmo, como numa nova religião, sem reparar que estão pondo a sua fé a serviço duma negação. Tão grande é a nossa fome! “Quem não tem raízes debaixo de si, não tem Deus!” Não sou eu que o estou dizendo! Foi dito por um mercador e Velho Crente que encontrei certa vez em viagem. Na verdade, as suas palavras não foram estas. O que ele disse foi: “O homem que renunciou à sua pátria, renunciou ao seu Deus!” Corre entre nós que muita gente altamente educada se filia à seita dos Flageladores. Ora, pergunto, será isso pior do que o ateísmo, o jesuitismo ou niilismo? Não será, antes, um pouco mais profundo? Pois foi ao que os levou a sua agonia. Revelado aos sôfregos e febris companheiros de Colombo o “Novo Mundo”, revelemos ao russo o “mundo” da Rússia, deixemo-lo descobrir o ouro, o tesouro escondido dentro da terra! Mostremos-lhe a humanidade inteira levantando-se outra vez renovada pelo pensamento russo tão somente, talvez pelo Deus e pelo Cristo russo, e veremos em que poderoso e verdadeiro gigante, belo e sábio, ele se desenvolverá diante dos olhos do mundo atônito! Atônito e pasmado, porque não esperava de nós senão a espada! Senão a espada e a violência, porque, julgando-nos por eles próprios, não nos podiam conceber livres da barbárie. Sempre foi assim até aqui e continuará sendo, cada vez mais! E...
Mas, a esta altura, aconteceu um incidente que cortou de pronto a eloquência do locutor, da maneira mais inesperada.
Este período desordenado, este rasgo de estranhas e agitadas palavras e de entusiásticas ideias confusas que pareciam tropeçar umas nas outras, pareciam indicar, todas elas, algo da ominosa condição mental desse jovem que, a propósito duma nonada, se pusera nesse estado assim tão inesperadamente. Dentre os presentes, aqueles que conheciam o príncipe, se encheram de apreensões (e alguns até ficaram contrafeitos) ante essa explosão que não era de esperar, dada a sua habitual timidez e notório acanhamento, ou melhor, dado o seu raro e especial tato diante de certos casos, pois tinha um sentimento instintivo das conveniências reais. Não puderam entender o motivo a que era devido isso. O que lhe tinham contado a respeito de Pavlíchtchev não podia ter sido a causa. Lá dos seus lugares as damas o contemplavam crentes de que estava fora do seu juízo. E a princesa Bielokónskaia confessou depois que estivera até para se retirar. Os senhores de idade ficaram desconcertados, em seu primeiro espanto. O diretor de seção olhou-o, lá do seu canto, dum modo carrancudo e antipático. O coronel de engenharia permaneceu em absoluta imobilidade. O alemão empalideceu, mas, sorrindo um sorriso artificial, observou toda aquela gente a ver que efeito estava sentindo. Mas tudo isso, se escândalo houve, em outra circunstância teria terminado de maneira comum. O general Epantchín, que estava extremamente estupefato, compreendera a situação muito antes dos demais e fizera diversas tentativas para que o príncipe parasse. Os seus esforços tendo falhado, dirigiu-se em pessoa, para o príncipe, com firme e resoluto desígnio e, se houvesse tido tempo, um minuto só que fosse, teria tomado a extrema solução de levar Míchkin para fora do salão, de maneira amistosa, pretextando achar-se ele doente, o que bem poderia talvez ser verdadeiro, estando o general, no íntimo, convencido disso... Mas a cena acabou de um modo muito outro.
No começo, quando de sua entrada na sala, lembrando-se de que Agláia o amedrontara a respeito do vaso da China, sentou o mais distante possível dele. Pareça, ou não, verdade, depois das palavras de Agláia, na véspera, o obsedou como convicção prodigiosa o pressentimento incrível de que, pela certa, quebraria o vaso no dia seguinte. Para evitar o desastre, cuidadosamente se afastara do vaso. Mas tinha que ser. No decorrer do serão outras e mais ardentes impressões se foram apoderando da sua alma, conforme ainda agora mesmo estivemos descrevendo. E ele esqueceu o seu pressentimento. Quando ouviu falar o nome de Pavlíchtchev e, depois, quando o general Epantchín o conduziu até Iván Petróvitch, para o apresentar, Míchkin se mudara para mais perto da mesa, acabando por se sentar justamente na poltrona mais próxima do enorme e lindo vaso da China que estava sobre um pedestal quase rente do seu cotovelo e um pouco atrás.
Ao proferir as últimas palavras, inadvertidamente escancarara os braços e dera um repelão com o ombro... Houve um grito geral de espanto. O vaso balançou primeiro, como a hesitar se deveria cair sobre uma das cabeças dos senhores idosos; mas subitamente se inclinou para o lado oposto, na direção do poeta alemão, que se desviou para um lado; e então se foi espatifar no assoalho. Um barulho, um só grito, e os preciosos cacos se espalharam pelo tapete. A perplexidade e o susto decorrentes e como a situação de Míchkin se tornou crítica, tudo isso é desnecessário descrever aqui. Mas não podemos omitir uma impressão exótica que logo o crispou e que não se desvaneceu nem mesmo durante o tempo em que toda aquela massa de sensações o confundiu. O que o impressionou não foi a vergonha nem o escândalo concomitante com o susto. Nem foi mesmo o inesperado do fato. Foi essa presciência de que isso se daria ao tomar de súbito uma conformação objetiva. Não saberia julgar porque o subjugara antes essa certeza agora confirmada. Ficou parado, sentindo um aperto no coração, invadido por um terror quase supersticioso.
Bastou porém um minuto para sentir um desafogo quando tal terror foi substituído por uma espécie de luz, de alegria radiosa. Antes que o ar lhe faltasse, já o momento crítico tinha passado. Respirou fundo e olhou em volta.
De início ficou impossibilitado de compreender o tumulto que o cercava; imediatamente depois lhe pareceu não ser causa nem motivo daquilo tudo e sim estar também ele presenciando, como se, num conto de fadas, tivesse entrado pulando invisível lá para dentro, atraído pelo fato com o qual nada tinha que ver mas que o interessava. Via gente curvada, pegando aqui e acolá os cacos maiores; ouvia o vozerio; via Agláia, pálida, sem traço de ódio ou de aborrecimento, olhá-lo de modo muito estranho. Aqueles olhos o miravam com afeição, depois olhavam para as outras pessoas também com afeição, e isso deu ao coração de Míchkin uma doce pena. Para maior espanto seu, viu todos de repente se sentarem outra vez. E rindo, sim, todos estavam rindo, como se nada houvesse acontecido. No momento seguinte, olhando-lhe a estupefação muda, tornaram a rir. Era uma risada amável, alegre, bondosa. Muitos se dirigiam a ele, cordialmente. Lizavéta Prokófievna, mais do que todos risonha, lhe dizia qualquer coisa muito, muitíssimo inefável. Quando o príncipe reparou, o general estava a dar-lhe pancadinhas amistosas no ombro, Iván Petróvitch também se ria; mas o velho dignitário foi de todos o mais encantador. Tomou a mão do príncipe, apertou-a de modo jocoso e ao mesmo tempo íntimo, bateu-lhe com a outra mão livre umas pancadinhas nas costas, animou-o, deram alguns passos juntos. Falava-lhe como a um garoto que tivesse levado um susto. (O príncipe ficou radiante com isso.) E acabou por fazê-lo sentar ao seu lado. Agora Míchkin olhava, contentíssimo, para aquele semblante venerável, e não podia falar, com a respiração suspensa. Como gostou da fisionomia daquele velho!
— Com que então — murmurou afinal — realmente todos me perdoam? A senhora também, Lizavéta Prokófievna?
A risada foi maior do que antes. Lágrimas vieram aos olhos de Míchkin. Nem podia acreditar: estava encantado.
Iván Petróvitch disse então:
— Não há dúvida que era um vaso preciosíssimo. Lembro-me dele ali no mesmo lugar deve haver uns quinze anos. Quinze, no mínimo!
— Não foi nenhum desastre terrível. Se até a gente acaba um dia, quanto mais um objeto? Por que todo esse espanto, Liév Nikoláievitch, por causa dum vaso de cerâmica? — exclamou Lizavéta Prokófievna, com vivacidade redundante. — Veja lá se vai agora ficar desapontado por causa disso! — acrescentou com ar de já estar apreensiva. — Não se incomode, meu rapaz, não se incomode. Veja que eu estou à vontade! Não estou?
— E perdoa-me por tudo? Por tudo, além do vaso?
E ia levantar-se, mas o velho lhe puxou o braço, como para não o deixar prosseguir, murmurando por cima da mesa para Iván Petróvitch:
— C’est très curieux et c’est très sérieux!
Mas o fez alto e instintivamente a ponto de o príncipe dar a entender que ouvira.
— Assim pois não ofendi a ninguém? Nem podem imaginar como esta verificação me põe feliz. Mas tinha que ser assim. Poderia eu ofender a alguém aqui? Persistindo em perguntar é que ofendo, não é mesmo?
— Acalme-se, meu querido rapaz. Isso tudo é exagerado. Não há motivo para se mostrar tão grato assim! Trata-se dum sentimento excelente mas exagerado.
— Não estou agradecendo e sim apenas eu... eu... os estou admirando! Palavra de honra que olhá-los dá felicidade... Decerto estou proferindo bobagens, mas devo falar, devo explicar, quando mais não seja por consideração a mim próprio...
O que dizia, o que fazia era já sob espasmo, febricitação e névoa. Provavelmente as palavras que proferia não eram as que pretendera proferir. Mas os seus olhos perguntavam se ainda podia continuar a falar mais e mais. E nisto deram com os da princesa Bielokónskaia.
— Está muito bem, bátiuchka, prossiga, prossiga, mas não se precipite dessa forma. Já não viu o resultado da sua pressa no que deu ainda agora? Estas damas e estes cavalheiros já foram mais extravagantes do que o senhor, e portanto não se podem surpreender. E nem o senhor fez nada de extraordinário! Que fez o senhor? Quebrou um vaso e nos pregou um susto.
Míchkin ouvia, sorrindo.
Pouco depois teve o velho dignitário que ficar todo vermelho, pedindo ao príncipe “calma, calma!” pois este se voltando para ele lhe perguntara de chofre:
— Com que então foi o senhor quem, há três meses, salvou do degredo um estudante chamado Podkúmov e um tabelião chamado Chvábrin?
Virou-se a seguir para Iván Petróvitch:
— E penso que foi o senhor, se ouvi direito, que presenteou madeira suficiente para os seus mujiques reconstruírem suas isbás que um incêndio destruíra? E isso depois de lhes haver abolido a servidão e nem assim lhe terem dado provas sequer de agradecimento?
— Oh! Exageraram-lhe! — Mas Iván Petróvitch sentiu um prazer dignificado. Nesse caso, Iván Petróvitch tinha toda a razão, pois era apenas um boato absolutamente falso, que tinha chegado aos ouvidos do príncipe.
Agora era com a princesa Bielokónskaia:
— E não me recebeu a senhora há seis meses, em Moscou, como a um filho, quando Lizavéta Prokófievna lhe escreveu me recomendando? E que mãe daria aos próprios filhos os conselhos que a senhora me deu?! Nunca me esquecerei. Lembra-se, Alteza?
— Por que está o senhor nesse estado? — desfechou-lhe a princesa Bielokónskaia, vexada. — É uma pessoa de coração esplêndido, mas... absurda. Se alguém lhe dá uma pequena moeda se põe a agradecer como se esse alguém lhe tivesse salvo a vida. Sua gratidão é valiosa mas vexa... — Esteve a ponto de se zangar, mas acabou também ela rindo, e dessa vez a risada era de desvanecido contentamento.
O rosto de Lizavéta Prokófievna estava radiante. O do general Epantchín até refulgia, sendo que ele, repetindo as palavras da princesa que tanto o haviam tocado, disse ainda em êxtase:
— Também acho que se Liév Nikoláievitch não fosse tão precipitado seria... como direi?... seria...
Somente Agláia demonstrava mortificação. Havia um rubor talvez de ressentimento difuso em sua face.
E o velho dignitário exclamou outra vez para Iván Petróvitch:
— Ele é deveras muito encantador!
E eis que com emoção crescente, recomeçando a falar de modo cada vez mais extravagante e impetuoso, sempre com uma estranha pressa, Míchkin declarou:
— Dizer-se que entrei neste salão, hoje, com uma tremenda angústia interior! Temia-os a todos e temia a mim mesmo. A mim mais do que a todos. Quando cheguei do estrangeiro vim com o intento de procurar a melhor gente. Gente de antigas famílias, de antigas linhagens, como é o meu caso entre as quais me encontro na primeira fila por direito de nascimento. Agora, por exemplo, me vejo sentado perto duma princesa, como príncipe que sou, não é verdade? Ainda quero conhecê-los mais, e sei que é necessário, muito necessário! A mim me diziam que, em gente como as pessoas com quem aqui tenho a honra de estar, havia mais defeitos do que qualidades. Que era gente rabugenta, exclusivista, voltada só para os seus interesses, estagnada, de educação superficial e de hábitos ridículos! O que se falou e o que por aí há escrito a tal respeito! Entro aqui com a maior curiosidade. E com inquietação, dado esse conceito crítico. Vim com o intento de formar pessoalmente uma opinião exata, ver se de fato a camada superior do povo russo não prestava para nada, se vivia fora do seu tempo, aderida à sua vida retrógrada! Vim para verificar se, assim sendo, não lhe valeria mais morrer de vez em lugar de se estiolar aos poucos, persistindo em intermináveis e inúteis rixas com os homens do futuro, em lugar de lhes entravar o caminho com seus corpos já quase cadáveres. Já anteriormente não cheguei nunca a acreditar nessa asserção, tanto mais que entre nós aqui na Rússia nunca houvera uma casta superior propriamente, salvo os cortesãos, por uniforme ou por acidente, e que desapareceram de todo, agora. Estou falando direito, ou não?
— Não, não está certo — disse Iván Petróvitch sorrindo com ironia.
— Pronto! Lá vem ele outra vez! — comentou a princesa Bielokónskaia, perdendo a paciência.
— Laissez-le dire!... Está morto por isso! — garantiu-lhe o velho dignitário, em voz baixa.
O príncipe perdera completamente o autodomínio:
— E que encontro eu? Sim, aqui neste salão, nesta sociedade? Gente elegante, de bom coração, inteligente! Deparo com um respeitável ancião que se prontifica a ouvir um rapaz como eu, e que se torna afável comigo! Encontro gente apta a compreender e a perdoar! Eis a bondosa gente russa! Tão bondosa e caritativa como a que encontrei por lá. Talvez até melhor! Fácil é julgar que deliciosa surpresa não é a minha! Oh! Permitam-me que eu traslade isso para palavras! Tanto se ouve dizer e tanto se acredita que a alta sociedade não passa de maneirismos, de etiquetas antiquadas, na qual toda a realidade da vida está extinta! E agora, aqui estou e verifico por mim próprio que entre nós na Rússia não se dá isso. Lá fora talvez possa ser, mas aqui na Rússia, não! Pode gente assim ser contrafação? Pode disto nascer vocação para jesuítas? Ouvi o príncipe N... contar agora há pouco uma história. Que espontaneidade, que singeleza de humor, que franqueza genuína. Poderiam tais palavras sair dum homem que estivesse morto já? Cujo talento e cujo coração houvessem secado já? Tratar-me-iam os mortos como aqui me trataram? Não é isto material e substância para o futuro? Para uma crença esperançosa? Pode gente assim ficar para trás, deixar de ter sensibilidade?
— Peço-lhe de novo, meu rapaz, que se acalme. Vamos deixar esse assunto para uma outra vez. Terei muito prazer — sorriu o velho dignitário.
Iván Petróvitch resolveu limpar a garganta, mexendo-se na sua poltrona. O general Epantchín fez um movimento qualquer. O chefe de seção resolveu conversar com a esposa do alto dignitário, deixando de prestar atenção em Míchkin. Mas a mulher do dignitário ainda assim o escutava e olhava de soslaio.
— Não, o melhor para mim é falar — tornou a investir o príncipe, febrilmente, dirigindo-se para o ancião com particular confiança, como se estivesse fazendo uma confidência. — Ontem, Agláia Ivánovna me pediu que permanecesse aqui hoje muito calado. Ou melhor, chegou a me dizer quais os assuntos que eu não deveria falar em hipótese alguma. (Ela sabe em que espécie de assuntos digo incoerências.) Tenho vinte e seis anos, mas não ignoro que sou uma criança. Já muitas vezes me admoestei a mim próprio pois acho que não tenho o direito de exprimir uma opinião já que o faço sempre errado. Foi somente com um tal Rogójin que uma vez me abri francamente. Líamos Púchkin inteiro, juntos, do qual ele ignorava até o nome. Sempre temi que este meu modo absurdo pudesse desacreditar o pensamento, a ideia dominante. Não tenho elocução. Não tenho gesticulação adequada, causo risos nos outros, enfim... degrado as minhas ideias. Não tenho o senso de proporção, muito menos! E isso é que é pior. Sei que me é muito mais vantajoso ficar sentado, quieto. Mas quando persisto em ficar quieto me torno muito sensível e, o que é mais, me ponho a pensar numa porção de coisas. E então sinto que o melhor é falar. Falando me sinto logo magnificamente. Todos estão com expressão tão inefável! Prometi ontem a Agláia Ivánovna que ficaria calado hoje toda a noite!
— Vraiment? — sorriu o velho dignitário.
— Mas pensando bem vi que não tenho razão em pensar assim. A sinceridade não é declamação, mesmo que pareça ser só isso e nada mais. Não é verdade mesmo?
— Às vezes.
— Quero explicar tudo, tudo, tudo! Sim, cuidam que sou utópico? Teórico? Pelo amor de Deus! Mas as minhas ideias são o que há de mais simples! Não acreditam? Riem? Digo-lhes, sou às vezes desprezível exatamente por não manter sempre acesa essa minha fé, por vacilar às vezes. Quando entrei aqui neste salão, ainda há pouco, perguntava a mim mesmo: “Como me devo dirigir a eles? Com quais palavras devo começar a fim de que me compreendam ao menos um pouco?” Como entrei amedrontado! E mais amedrontado estava por todos aqui. Foi terrível, terrível! E, afinal, por que esse medo? Não é vergonhoso ter medo? Por que há de um espírito avançado recear diante duma tal ou qual massa de retrógrados e maus? Devia entrar de fronte erguida! E eis o que me tornou assim tão feliz! É que minutos depois já eu me havia convencido que não existe absolutamente essa tal ou qual massa retrógrada e má, mas que todos são, todos somos substância viva! Assim, por que continuar eu preocupado, arredio, temendo já agora apenas o meu feitio absurdo? Meu? Só meu? Estamos todos fartos de saber que somos absurdos, superficiais, que temos maus hábitos, que somos maçantes, que não sabemos encarar as coisas, que não compreendemos coisíssima nenhuma! Somos todos assim, nós, eu, eles, aqueles, estes, todos! E não ficam ofendidos por lhes estar eu dizendo no rosto, que são, que somos absurdos? Estão? Mas é que também assevero que somos substância esplêndida! Querem que lhes diga uma coisa? A meu ver às vezes ser absurdo não deixa de ser bom. Com efeito, é melhor até. Torna mais fácil nos perdoarmos uns aos outros, é mais fácil do que ser humilde. Não é possível a humanidade compreender tudo, imediatamente, não é possível começar logo com a perfeição! Para atingirmos a perfeição, devemos começar por uma grande ignorância bem difusa! Tudo que é compreendido depressa carece de compreensão eficiente. Digo-lhes isto porque por mais que se haja entendido e compreendido muita coisa, muitíssima mais ainda há a ser compreendida com eficiência essencial! Mas agora caio em mim: não se teriam molestado por um criançola como eu lhes dizer tais coisas? Claro que não! Bem sabem todos aqui de que forma relevar e perdoar os que os ofendem e os que não os ofendem. Sim, sempre é muito mais difícil perdoar quem não nos ofende, pois tal perdão tem que ser duplo, para a inocência alheia e para a injustiça de nosso equívoco, já que erradamente supusemos nos ter advindo dano. Eis o que eu esperava de gente sã, eis o que eu ansiava por declarar quando comecei a me exprimir, não sabendo ser claro... O senhor está rindo, Iván Petróvitch? Cuida que ao entrar aqui eu estava com prevenção por causa deles, de quem passo por paladino, tido como sou por um democrata, um advogado da igualdade? (Riu de forma crispada. Já vinha entrecortando os períodos com acento de riso prazeroso.) Não, não era isso. Meu medo era por todos nós aqui juntos. Pois se eu próprio sou um príncipe, de antiga família! Se me vejo sentado entre príncipes! Falo, para salvar a todos nós, para que a nossa classe não pereça em vão nas trevas, sem realizar nada, tendo recebido tudo e tudo tendo perdido! Por que hei de eu desaparecer e dar passagem a outros, quando posso permanecer na vanguarda e ser dos principais? Já que estamos na frente, urge sejamos os chefes! Tornemo-nos servos pata sermos condutores!
Fez menção de se levantar da poltrona mas o velho dignitário o conteve de novo embora o olhasse com uma inquietação crescente.
— Tenham paciência, ouçam! Sei que não está direito que eu esteja falando. Melhor dar um exemplo, fica mais claro!... Melhor começar... e já comecei... e... e... pode alguém ser deveras infeliz? Posso eu, por exemplo, me considerar infeliz só porque sou doente, só por causa do meu caso tão triste? Mas se posso ser feliz! Palavra que não entendo como é que existe gente que ao passar por uma árvore não se sinta feliz em vê-la! Como pode uma pessoa conversar com outra e não sentir felicidade em amar essa outra pessoa? Estão entendendo? O que digo é certo, exato, nítido! Só que não consigo me exprimir certo... E que de coisas inefáveis deparamos a todo instante, a cada passo, tantas e tais que mesmo o homem mais desesperançado tem que se sentir feliz, pelo menos ao dar com uma delas! Que nossos olhos batam no rosto duma criança, que nossos olhos se deslumbrem diante do nascer do sol, que se abaixem para ver como a erva cresce! Isso não chega para dar felicidade? E se nossos olhos dão de chofre com uns olhos que nos amam?!...
Ergueu-se por um instante, enquanto falava. De repente o ancião o olhou estupefato, sendo que Lizavéta Prokófievna, erguendo os braços, aturdida, exclamou: “Deus do Céu!”, pois fora a primeira a perceber a terrível surpresa.
Nisto, Agláia se precipitou donde estava para ele e ainda chegou a tempo de tomá-lo nos braços, ouvindo com terror, a face repuxada pela angústia, aquele uivo selvagem do “espírito que dilacera e rasga um desgraçado”.
O doente jazia agora sobre o tapete e alguém se apressou em lhe colocar uma almofada sob a cabeça.
Quem poderia esperar por uma coisa destas?
Um quarto de hora depois, o príncipe N..., Evguénii Pávlovitch e o velho dignitário se empenhavam em restabelecer a vivacidade da reunião. Foi impossível. E dentro de meia hora a recepção se desfez, sendo pronunciadas muitas palavras de simpatia e de mágoa, os comentários se restringindo ao mínimo. Iván Petróvitch observou que “o jovem era um eslavófilo mas que não havia nada de perigoso nisso”. O alto dignitário não expressou opinião de espécie alguma. Cumpre dizer, de passagem, que no dia seguinte e no imediato, todos os que tinham estado presentes pareciam um tanto ou quanto circunspectos ou mesmo frios com os Epantchín. Iván Petróvitch tomou ares de “desconsiderado”, isso logo passando. O chefe de seção do departamento onde trabalhava o general Epantchín tratou-o um tanto secamente. O velho dignitário grunhiu qualquer reparo genérico, à guisa de advertência ao chefe da família, valendo-se da sua categoria de padrinho, ou melhor, patrono, coisa que logo abrandou, passando através de termos elogiosos a deixar entrever quanto se interessava pelo futuro de Agláia. Realmente era um homem de bom coração. E a prova complementar disto é que uma das razões por que naquela noite se interessara por Míchkin promanava do fato de já ter ouvido alusões ao papel que o príncipe desempenhara no escândalo referente a Nastássia Filíppovna. Viera a saber qualquer coisa sobre o caso, interessara-se bastante, gostaria até de fazer umas perguntas.
A princesa Bielokónskaia disse a Lizavéta Prokófievna ao se despedir aquela noite:
— Bem, há nele coisas boas e ruins. E se desejas que eu seja franca: as ruins são em maior quantidade do que as boas. Podes ver por ti mesma o que ele é: um homem doente!
A generala compenetrou-se, duma vez para sempre, que um tal noivado era “impossível” e naquela mesma noite ainda fez o voto de, enquanto vivesse, não consentir que ele viesse a ser marido de Agláia. Tal opinião perdurou até à manhã seguinte, quando se levantou. Com o decorrer das horas se sentiu enleada em contradições que chegaram ao auge por volta de meio-dia, ao se sentar para o almoço.
Em resposta a uma pergunta que as irmãs lhe fizeram com muita cautela, Agláia declarou, friamente, mas com altivez, de forma peremptória:
— Nunca lhe dei margem a acariciar qualquer esperança, nem mesmo vagamente. Jamais o considerei sequer em pensamento como podendo vir a ser meu noivo. Para mim é um homem tão desinteressante como outro qualquer.
Lizavéta Prokófievna queimou-se logo:
— Nunca poderia esperar isso de ti! — disse com mágoa. — Bem sei que como pretendente ele se acha fora de questão, e agradeço a Deus estarmos todas e todos de pleno acordo. Mas não esperava estas palavras de ti. Esperava coisa muitíssimo diferente! Quanto a mim, estive para mandar embora toda aquela gente ontem à noite e ficar apenas com ele! Eis a minha opinião em resposta à tua!...
E imediatamente se calou, apavorada com as próprias palavras. Mas se ao menos pudesse saber quanto estava sendo injusta com a filha nesse momento! Sim, pois esta já mentalmente havia decidido tudo. Também ela estava aguardando ansiosa a hora definitiva e qualquer alusão, qualquer referência, só lhe poderia produzir uma profunda ferida coração adentro.
8.
Também para o príncipe essa manhã começou sob a influência de cruéis pressentimentos; poderiam eles ser explicados por seu estado doentio, mas a sua tristeza era quase indefinida. E isso o angustiava ainda mais. Verdade é que fatos desagradáveis e mortificantes estavam demasiado vivos. Essa tristeza, porém, se desvencilhara já de tais lembranças e agora perdurava transformada em angústia. Pouco a pouco o invadia a convicção de que algo de especial e decisivo lhe aconteceria naquele dia mesmo. O ataque da noite anterior fora de pouca importância, só lhe permanecendo agora, sem contar a depressão e o enfado, dores pela cabeça e pelos membros. O cérebro funcionava bem, apesar da alma estar inquieta e aflita. Levantou-se um pouco mais tarde e logo se recordou da noite em casa dos Epantchín, não tendo conseguido lembrar direito como fora trazido para casa uns trinta minutos após o ataque. Veio a saber que os Epantchín já haviam mandado um mensageiro saber de sua saúde. Às onze e meia recebeu outra pessoa que lhe causou grande prazer. Foi Vera Liébedieva que, tendo sido das primeiras visitas, ficara ali desde antes à espera que levantasse. Assim que o viu, desandou a chorar, mas o príncipe a acalmou, não demorando ela a sorrir. O príncipe logo se impressionou pela simpatia que a menina parecia lhe dedicar; tomou-lhe a mão e a beijou. Ela ficou muito vermelha de pejo.
— Oh! Que é que o senhor está fazendo?
E retirou a mão, atônita, indo embora apressadamente, muito confusa; mas tivera tempo de lhe dizer antes que o pai saíra muito cedo de casa a fim de ir ver o defunto (que era como persistia em chamar ao general); de fato, ou deveria ter morrido aquela noite, ou estava nas últimas.
Ao meio-dia o próprio Liébediev voltou e veio ver Míchkin “apenas um instantezinho para me informar sobre a sua preciosa saúde”, mas também para dar uma espiada no guarda-louça e no cofre. Quedou-se diante do príncipe a suspirar e a fungar até compreender que se devia retirar, o que fez só depois dumas tentativas para saber algumas novidades a respeito do ataque da noite anterior, conquanto fosse evidente que já se inteirara de todas as minúcias. Pouco depois da sua saída apareceu Kólia, mas com muita pressa. Apesar disso o seu estado de nervosismo o fez solicitar sem rodeios uma explicação a Míchkin por lhe haver escondido tudo referente ao general. Coisas... que conforme asseverou só viera a saber direito na véspera. Estava profunda e violentamente amargurado. Com toda a simpatia possível, o príncipe lhe contou o episódio por inteiro, fazendo um relato absolutamente nítido, o que produziu o efeito dum raio sobre o pobre rapaz que, sem poder articular uma única palavra, caiu em pranto. O príncipe sentiu que aquelas eram das tais impressões que permanecem para sempre e que causam uma crise na vida dum jovem. Apressou-se em lhe dar a sua opinião sobre o caso, acrescentando que, a seu ver, a morte do velho teria como causa predominante o horror advindo da própria ação. E que não era qualquer pessoa que seria capaz dum tal sentimento. Ao ouvir isso, os olhos de Kólia faiscaram.
— Os três, Gánia, Vária e Ptítsin, são um bando ordinário; não brigarei com eles mas doravante nossos caminhos têm rumos opostos. Ah! Príncipe, tive de ontem para hoje sentimentos tão novos! Tudo isso foi uma lição para mim. Considero agora minha mãe também sob a minha responsabilidade. Mesmo estando como está em casa de Vária e a coberto de todas as necessidades, isso não impede que eu...
Foi-se logo, dum salto, lembrando-se que era esperado em casa. Na varanda perguntou, voltando-se, pela saúde do príncipe, e ao ouvir a resposta ajuntou lestamente:
— E não há mais nada de novo? Ouvi ontem qualquer coisa... (conquanto não devesse fazê-lo... ) mas se precisar dum servo dedicado, aqui tem um, defronte do senhor. Parece que nenhum de nós é feliz, não é mesmo? Não pergunto nada, não pergunto nada.
E foi embora. O príncipe caiu em meditações ainda mais profundas. Cada qual vaticinava mais desgraças, cada qual esboçava já conclusões, cada qual o olhava como ciente de fatos que todavia ele ainda ignorava. “Liébediev faz perguntas; Kólia insinua coisas; Vera chora...” Por fim atirou para longe as cogitações que o amofinavam, criticando “esta estuporada sensibilidade doentia...”
Mas uma hora depois o seu rosto se iluminou vendo entrar as Epantchín “que subiam para uma visita dum instantezinho só...” Realmente não demoraram. Ao levantar-se da mesa do almoço, em casa, Lizavéta Prokófievna convidou autoritariamente para um passeio, “todos juntos”. Foi mais uma ordem seca, abrupta, sem explicações. Saíram todos, isto é, ela, as meninas e o príncipe Chtch... Lizavéta Prokófievna tomou logo por um caminho em sentido oposto aos habituais passeios diários. Entenderam logo o que isso significava, mas se abstiveram de comentários e objeções, evitando assim que ela se irritasse e os admoestasse. Deixaram-na seguir na frente; vendo que ela não olhava para trás, Adelaída foi a primeira a dizer que era tolice correr tanto, pois ninguém alcançava a mãe.
Diante da vila do príncipe, Lizavéta Prokófievna, voltando-se repentinamente, declarou:
— Cá estamos. Pense Agláia o que pensar, e tenha havido o que houve e... haja o que houver, ele não é nenhum estranho. E o que é mais, está doente e conturbado. Vou visitá-lo, de qualquer modo. Quem quiser vir comigo que venha. Quem não quiser, a estrada é larga...
Entraram todos, naturalmente. O príncipe ainda achou ser sua obrigação pedir desculpas mais uma vez pelo vaso e pela cena...
— Oh! Não tem importância! — atalhou logo a generala. — Não me incomodo com o vaso, me incomodo, isso sim, por você. Com que então está ciente de que se prestou a uma cena ontem à noite? Bem, isso modifica o provérbio; já agora diremos: “A manhã é boa conselheira” em lugar do antigo refrão: “Escuta o que te diz teu travesseiro.” O que houve não tem a mínima importância, serviu apenas para que todos compreendam duma vez para sempre que não devem atiçá-lo. Adeus, pois, por enquanto. Se se sentir mais forte, dê um passeiozinho, depois durma um pouco. Conselho de velha. E se se sentir bem disposto, apareça como de hábito. Mas fique certo, duma vez por todas, que sobrevenha o que sobrevier, nós seremos sempre seus amigos. Eu, pelo menos. Por mim posso responder.
Todas aceitaram tal desafio, apressando-se em secundar os sentimentos maternos. Saíram. Mas na presteza generosa de dizer palavras amáveis e encorajadoras estava pressuposto algo difuso que era cruel, embora Lizavéta Prokófievna estivesse longe de tal intento. Naquelas palavras “como de hábito” e “eu pelo menos” transparecia uma nota funesta. Míchkin começou a pensar em Agláia. Não havia dúvida de que ela ao se despedir lhe endereçara um sorriso maravilhoso, como aliás fizera também ao entrar; mas não pronunciara uma palavra sequer, nem mesmo quando as outras disseram protestos de amizade; todavia, enquanto as manas falavam, olhou-o umas duas vezes dum modo muito intencional. O seu rosto estava mais pálido do que de costume, como se tivesse dormido mal à noite. O príncipe ponderou que deveria ir visitá-los ao fim da tarde, “como de hábito”. E desde então não deixou mais de olhar para o relógio.
Daí a uns três minutos (após a saída das Epantchin) Vera entrou e disse:
— Trago-lhe um recado de Agláia Ivánovna; mas em segredo, Liév Nikoláievitch.
— Algum bilhete? — E Míchkin estremeceu.
— Não, um recado, muito às pressas. Pede-lhe que não saia de casa hoje um minuto que seja, até às sete, ou até às nove. Não ouvi direito.
— Mas... por quê? Como foi que ela disse?
— Por quê? Não sei. Estava muito séria. O recado foi só esse.
— Disse que era muito sério?
— Não, isso ela não falou. Deu um jeito de parar e de me dizer o recado justamente quando corri ao seu encontro para me despedir. Mas pela fisionomia percebi que era importante. Olhou-me de tal modo que fiquei com o coração batendo...
Depois de mais algumas perguntas, o príncipe ficou mais agitado do que antes, apesar das respostas pouco terem adiantado. Novamente sozinho, se estirou no sofá e reentrou em reflexões. “Talvez tenham alguma visita até às nove horas e Agláia tema que eu torne a cometer algum disparate”, pensou por fim, esperando ansiosamente e vendo as horas a todo instante. Mas o mistério se desvendou muito antes do que calculava, a chave do enigma sendo trazida por uma visita, caso esse que se revestiu duma forma ainda maior de mistério e enigma.
Mais ou menos uma hora depois da visita das Epantchín, Ippolít chegou. E tão fraco e cansado que se atirou sobre uma poltrona, sem pronunciar uma palavra, literalmente prostrado, logo desandando a tossir de maneira insofrida até vir sangue. Seus olhos emitiam chispas e duas rosetas rubras lhe tingiam a face. O príncipe balbuciou qualquer coisa a que ele não pôde responder, apenas durante muito tempo fazendo sinal com a mão que aguardasse. Por fim se reanimou.
— Desta vez me vou — disse com esforço, muito rouco.
— Acompanho-o, se deseja — ofereceu-se o príncipe levantando-se mas repentinamente retrocedendo ao lembrar que estava proibido de sair. Ippolít riu:
— Não me refiro que me vá de sua casa — prosseguiu, tossindo e ofegando sem parar. — Pelo contrário tive que vir aqui por causa duma coisa importante; doutra forma não ousaria importuná-lo. A frase “desta vez me vou” disse-a querendo significar que estou prestes a levar a breca. Longe de mim querer excitar compaixão; tampouco vim por simpatia, pode crer... Deitei-me hoje às dez horas decidido a não me levantar mais, esperando a hora. Por conseguinte, se mudei de ideia por alguma coisa, foi conforme vai já saber.
— Aflige-me vê-lo nesse estado. Por que não me mandou chamar em vez de ter vindo?
— Bem, já consola um tanto ouvir isso. É uma demonstração de pesar manifestada segundo os protocolos da polidez... Mas, ia me esquecendo: e o senhor próprio como vai?
— Agora estou bem. Ontem passei um pouco mal...
— Eu sei, eu sei. O pior foi o vaso chinês. Sinto não ter estado lá. Mas o que me trouxe foi um outro assunto. Em primeiro lugar tive o prazer de descobrir Gavríl Ardaliónovitch em colóquio com Agláia Ivánovna no banco verde. Fiquei boquiaberto em verificar como é possível um homem ter cara tão estúpida. Depois que ele se foi, deliciei-me em acentuar esta minha impressão a Agláia Ivánovna. O senhor parece já não se surpreender mais com coisa alguma deste mundo, príncipe — disse ele olhando para o rosto do príncipe com certa decepção. — “Não se surpreender diante de nada”, dizem, “é sinal de grande inteligência.” Para o meu modo de compreensão pode todavia ser prova da máxima estupidez. Mas com isto não estou incluindo o senhor no meu ponto de vista. Desculpe-me, estou muito infeliz hoje nas minhas expressões.
— Eu soube ontem que Gavríl Ardaliónovitch... — Mas o príncipe cortou a frase, notoriamente confuso, porque só então se deu conta de que Ippolít poderia se aborrecer por ele, Míchkin, não se surpreender.
— Já sabia, então? Ora aí está uma novidade. Mas não me vá dizer agora que até tomou parte ou que pelo menos testemunhou tal entrevista.
— Você sabe melhor do que eu, pois se você a testemunhou, bem viu que eu não estava.
— Ora! Podia estar atrás duma moita! Mas fiquei contente por sua causa, pois cheguei a desconfiar que Gavríl Ardaliónovitch... fosse o favorito.
— Peço-lhe, Ippolít, que não se ponha a falar nestes termos.
— Principalmente já estando o senhor, como está, a par de tudo.
— Engana-se. Ignoro tudo completamente. A própria Agláia Ivánovna sabe que desconheço tal fato. Não soube de nada a respeito de qualquer encontro. Diz-me você que houve tal encontro entre eles. Muito bem. Mudemos de assunto!...
— Mas, como é isso? Num minuto sabe, no minuto seguinte ignora? Diz-me: “Muito bem. Mudemos de assunto!...” Mas, escute, não confie tanto assim, principalmente se ignora, conforme diz, o que se teria passado. A sua calma, aliás paradoxal, só se explica pela razão de ignorar o que houve. E não suspeita nada do que aqueles dois, irmão e irmã, estão planejando? Muito bem, muito bem, vou mudar de assunto — acrescentou percebendo a expressão de impaciência do príncipe. — O que aqui me trouxe deveras foi um assunto bem outro que me diz respeito e peço permissão para me explicar. Raios me partam que nem me é possível sequer morrer sem dar explicações. Já não tolero essa coisa terrível de ter que andar a me explicar. Interessa-lhe ouvir?
— Fale. Estou escutando.
— Eis-me forçado a mudar de opinião outra vez embora continue a citar o nome de Gavríl Ardaliónovitch. Acreditaria o senhor se eu lhe declarasse que também tive uma entrevista marcada para hoje no banco verde? Não quero pregar uma mentira. Quem insistiu nesse encontro fui eu. Solicitei-o sob a promessa de revelar um segredo. Não sei se cheguei cedo demais. (Creio que sim.) Mal me tinha eu sentado ao lado de Agláia Ivánovna, Gavríl Ardaliónovitch e Varvára Ardaliónovna se aproximaram de braço, como se estivessem a passear. Verem-me foi-lhes tão inesperado que ficaram perplexos. Agláia ficou muito vermelha. Se quiser acreditar, bem, se não... Ficou embaraçada, ou porque eles me vissem com ela, ou por eu os vir chegar. Bem sabe que beleza ela é, mas a verdade é que mudou, ficou vermelha, instantaneamente, dum modo até incrível. Levantando-se, respondeu ao cumprimento de Gavríl Ardaliónovitch e ao insinuante sorriso de Varvára, mas logo se foi explicando: “Vim, apenas, para lhes exprimir, pessoalmente, a minha gratidão ante os seus sinceros e amistosos sentimentos, e se eles me vierem a ser necessários, acreditem que...” Depois voltou para o banco. E os dois prosseguiram, com um ar que não sei se era de patetas ou de triunfantes. O de Gánia, pelo menos, era de pateta. Ele nem sequer articulou uma palavra e ficou tão vermelho como uma lagosta. (É extraordinário como a cara dele pode mudar duma hora para outra.) Mas Varvára Ardaliónovna compreendeu que deviam raspar-se o mais depressa possível, e que Agláia Ivánovna, da sua parte, já dissera o suficiente; e arrastou o irmão dali; ela é mais esperta do que ele, e não tenho dúvida de que está toda triunfante agora. Eu, porém, se estava ali, era porque tinha vindo de completar as providências para um encontro com Nastássia Filíppovna.
— Com Nastássia Filíppovna? — não pôde deixar de gritar o príncipe.
— Arre! Afinal começa o senhor a perder o seu ar de indiferença. Pelo menos já ficou surpreendido! Alegra-me verificar que, finalmente, está ficando um ser humano. Congratulo-me com o amigo. Eis, porém, o que advém de a gente querer servir uma rapariga de alma meiga. Recebi dela um tapa na cara.
— Simbolicamente falando? — Míchkin não pôde deixar de perguntar.
— Sim, moralmente, e não fisicamente; mesmo porque não creio que alguém levantasse a mão contra uma criatura no meu estado; agora, já nem mesmo mulher me bate! Nem o próprio Gavríl me bateria! Verdade é, porém, que ontem, uma vez, pelo menos, parece que ele quis voar sobre mim... Aposto o que quiser como sei o que o senhor está pensando agora. Está pensando: “Ele está nas últimas, naturalmente, mas mereceria, pelo menos, ser sufocado com um travesseiro, ou um esfregão molhado, durante o sono. Olá se merecia...” Está escrito em sua testa que está pensando isto, neste segundo.
Com evidente desagrado, o príncipe respondeu:
— Sabe muito bem que sou incapaz de pensar tal coisa...
— Não sei; sonhei na noite passada que estava sendo sufocado com um pano úmido por... um homem!... Vou dizer-lhe por quem: Rogójin! Que acha? Um pano molhado pode sufocar um homem?
— Não sei.
— Já ouvi dizer que isso é possível. Está bem, ponhamos isso de lado. Escute, tenho cara de caluniador? Por que me acusou ela hoje de caluniador? E, repare bem, só me deu tal epíteto depois de me escutar, palavra por palavra, e depois de me fazer as perguntas que lhe convinham. Mas isso é próprio de mulher. Apenas no interesse dela me pus em contato com Rogójin, aliás pessoa interessante. Apenas no interesse dela lhe arranjei uma entrevista com Nastássia Filíppovna. Seria porque feri o amor-próprio dessa jovem insinuando ocasionalmente que estaria se contentando com as “sobras” da outra? Sim, tentei fazer-lhe ver isso em seu próprio interesse, não nego. Escrevi-lhe duas cartas só com tal finalidade e hoje, por uma terceira vez, na entrevista, insisti no assunto... Fiz-lhe ver que isso era humilhante para ela. Não que a palavra “sobras” fosse minha. É de outra pessoa. Pelo menos em casa de Gánia todo o mundo a emprega e até ela própria a repetiu. Como então me chama de caluniador? Já sei, já sei, é muito divertido pôr-se a olhar para mim deste jeito! Aposto como me está aplicando aqueles versos:
Mas no crepúsculo do seu declínio
Teve um brilho de amor em despedida...
— Ah! Ah! Ah! — Sufocou-o um acesso de riso convulsivo. Depois disse através dum ataque violento de tosse: — Repare que espécie de sujeito é Gánia. Fala em “sobras” e todavia ele próprio se esforça para obter vantagens, agora!
O príncipe continuou calado por muito tempo, aniquilado pelo espanto. Finalmente murmurou:
— Vai haver, disse você, uma entrevista com Nastássia Filíppovna?
— Ai, mau! Tem dúvida de que Agláia Ivánovna se vá encontrar hoje com Nastássia Filíppovna? Para esse fim foi ela trazida de Petersburgo por Parfión a instâncias minhas, mediante convite de Agláia Ivánovna. Lá está ela onde esteve antes, em casa de... Dária Aleksiéievna... uma mulher duvidosa, sua amiga. Perto de onde o senhor mora. Nessa casa suspeita Agláia Ivánovna se encontrará hoje com Nastássia Filíppovna para ambas decidirem vários problemas. Vão ocupar-se com aritmética. Não sabia? E se eu lhe der minha palavra de honra?
— Isso é inacreditável!
— Lá que seja inacreditável talvez seja! Será? Não será? Muito embora isto aqui não passe dum lugarejo onde se uma mosca zunir toda gente sabe! Mas já que o estou avisando venha de lá com a sua gratidão, homem! Bem, até à vista... decerto no outro mundo! Ah! Uma coisa, ainda: apesar de ter sido grosseiro com o senhor, e saber os motives muito bem... por que hei de acabar sendo o vencido? Podia me responder com toda a amabilidade? Perco eu para ganhar o senhor, hein? Dediquei a ela a minha “Confissão”. (Não sabia o senhor disso?) E de que forma ela a recebeu, ainda por cima! Ah! Ah! Mas a verdade é que com ela não agi grosseiramente, feito canalha, não lhe causei dano nenhum! Ela em paga me vilipendiou, me amesquinhou, a mim que nem mesmo ao senhor fiz qualquer mal. Se me referi a “sobras” e outras coisas no gênero, no entanto aqui vim lhe avisar o dia, a hora e o local do encontro. Verdade é que se estou desvendando todo o jogo, o faço por mero ressentimento e não por generosidade. Vou-me embora; adeus. Falei mais do que um gago ou um tísico! Tome agora suas previdências, se quer ser chamado homem! A entrevista dar-se-á hoje; esta noite. Ora aí está.
Ippolít dirigiu-se para a porta; mas como Míchkin o chamasse, parou na soleira.
— De acordo com o que veio me dizer, Agláia Ivánovna vai a uma entrevista hoje na casa de Nastássia Filíppovna? — E ao perguntar, manchas vermelhas lhe apareceram na face e na testa.
— Não posso garantir mas é mais que provável — respondeu Ippolít. — Aliás, onde haveria de ser? Nastássia Filíppovna não haveria de ir à casa da outra. Muito menos na de Gánia, cujo pai está em coma. Não sabe que o general entrou em agonia?
— Tudo prova a impossibilidade dum tal encontro — aventurou o príncipe. — Como haveria ela de sair, mesmo que o quisesse? Não sabe os hábitos daquela casa? Sair sozinha para ir ver Nastássia Filíppovna lhe seria impossível. Isso é um absurdo!
— Olhe aqui, príncipe; ninguém pula pela janela. Mas quando lavra incêndio em casa, o cavalheiro mais fino, ou a mais elegante das damas saltam pela janela. Se não há outro recurso, por que não pular mesmo que seja alto demais? E a sua gentil dama irá mesmo se encontrar com Nastássia Filíppovna. Com que então os Epantchín não permitem que as moças saiam sozinhas para onde queiram, hein?
— Não, eu não disse isso...
— Pois então ela tem mesmo que descer lá das suas alturas e ir diretamente até à casa da outra. E conforme o caso nem precisa voltar para o lar. Casos há em que se incendeiam os navios para não se regressar. A vida não consiste apenas em almoços e jantares, e em príncipes Chtch... e não sei mais quê! Estou a ver que o senhor considera Agláia Ivánovna uma meninota, ou uma colegial! Espere, então, até às sete ou oito horas. Se eu fosse o senhor, mandava Kólia, por exemplo. Por sua causa ele de bom grado se prestará a ser espião. Penso eu. Tudo é relativo, neste mundo. Ah! Ah!...
Ippolít foi-se. O príncipe era incapaz de mandar alguém espiar e nem achou que havia motivos para isso. Estava agora mais do que explicado o pedido feito por Agláia: não sair de casa... Mas, quem sabe se ela desejava vir vê-lo? Ou queria evitar que ele fosse à sua casa? Podia ser isso, esse pedido de que permanecesse em casa. A cabeça de Míchkin estava num redemoinho. O quarto inteiro rodava... Estirou-se no sofá e fechou os olhos.
Um ou outro caso era provável. Por que haveria de tornar Agláia como meninota, ou como colegial? Entendeu agora que se antes já estava inquieto era porque desconfiara de qualquer coisa. Mas, ir ver a outra, por quê? Os arrepios o fizeram certificar-se de que estava, novamente, com febre. Não, não a considerava uma criançola! Verdade é que certos modos e certos pontos de vista manifestados por ela, o vinham, ultimamente, horrorizando. De fato, às vezes ficava reservada demais, vigiava-se muito, alvoroçando-o. Bem que experimentara não pensar nisso, afugentar certas ideias que o oprimiam. Mas, que se esconderia naquela alma? Esse mistério o aborrecera muitas vezes, embora tivesse fé naquela alma. Tinha havido, porém, uma combinação, tudo viera à luz, agora. Que horrível pensamento! E, de novo, aquela mulher! Bem lhe parecera, sempre, que aquela mulher apareceria no último momento para arrebentar, como a uma linha podre, o seu destino! Sempre pressentira isso, podia jurar, agora, mesmo estando quase em delírio. Bem que experimentara, ultimamente, esquecê-la... mas isso não fora senão medo dela! Amava ou odiava aquela mulher? Como é que esta pergunta nunca lhe viera antes? O seu coração a este respeito tinha certeza: sabia que amava! O seu medo não era tanto pelo encontro das duas, nem pela estranheza e pelo motivo desconhecido de tal encontro! E nem mesmo por aquilo que disso adviria! Adviesse o que adviesse. O seu medo era... de Nastássia Filíppovna. (Lembrou-se, alguns dias depois, que bem através daquelas horas febris, os seus olhos, a sua expressão, tinham estado diante dele e que as suas palavras tinham soado em seus ouvidos; estranhas palavras, embora delas pouco tivesse ficado depois que aquelas horas febris de miséria se tinham desfeito.) Muito mal se lembrava que Vera lhe tinha trazido o jantar, que o havia comido, mas não sabia se depois disso dormira ou não. O que acabou por ficar sabendo foi que as coisas só começaram a se clarear quando, aquela noite, Agláia inesperadamente apareceu, subindo a varanda. Saltando do sofá, ele precipitou-se para ela. Eram 19h15. Agláia viera sozinha, vestida simplesmente com um albornoz claro. Parecia apressada. Sua face estava tão pálida quanto de manhã e os seus olhos cintilavam com uma luz viva e fria. Nunca lhe vira tal expressão nos olhos. Olhou de maneira atenta e observou com aparente tranquilidade:
— Está preparado. Vestido e com o chapéu na mão. Quer dizer que foi avisado. E já sei por quem: Ippolít.
— Sim, ele me disse — murmurou o príncipe mais morto do que vivo.
— Então, vem. É lógico que me deve acompanhar até lá. Já está bastante forte, pode sair?
— Já estou bom. Mas é isso possível?
Calou-se repentinamente e não houve meios de dizer mais nada. Foi a única tentativa feita para conter a rapariga louca. Depois do quê, a seguiu como um escravo. Por mais baralhadas que estivessem suas ideias, compreendeu todavia que, mesmo sem ele, ela iria até lá. Por conseguinte, devia acompanhá-la de qualquer forma. Não era preciso adivinhar a resolução dela. E ninguém lhe impediria esse impulso selvagem. Caminharam todo o tempo calados, só no fim pronunciando uma ou outra palavra. Notou que ela sabia bem o caminho. E quando, em certo momento, lhe sugeriu que fossem por um caminho mais longo mas com a vantagem de ser mais deserto, ela fez um ar de reflexão demorada e acabou respondendo:
— Dá no mesmo...
Quando já tinham quase atingido a residência de Dária Aleksiéievna (uma grande casa velha de madeira), descia de lá uma senhora vestida espalhafatosamente, com uma menina. Entraram ambas numa elegante carruagem que estava parada rente aos degraus; acomodaram-se conversando e rindo. Parece que não notaram o par que se aproximava, pois nem o olharam sequer. Logo que a carruagem partiu, a porta se abriu e Rogójin, que estava do lado de dentro, fez Míchkin e Agláia entrarem, fechando depois a porta.
— Em toda a casa não há ninguém, senão nós quatro — observou, ruidosamente, olhando o príncipe de modo estranho.
Logo na primeira sala para onde passaram, deram com Nastássia Filíppovna que os esperava. Ela também estava vestida simplesmente, toda de preto. Levantou-se para saudá-los, mas não sorriu e nem estendeu a mão ao príncipe.
Seus olhos atentos e inquietos pousaram sobre Agláia. As duas sentaram-se a pequena distância uma da outra. Agláia, num sofá, a um canto da sala; Nastássia Filíppovna rente à janela. Liév Nikoláievitch e Parfión não se sentaram e nem ela os convidou a isso. O príncipe olhou com perplexidade e mesmo, depois, com angústia para Rogójin que continuava com o mesmo sorriso. O silêncio durou pouco, logo uma expressão de vivacidade percorrendo todo o rosto de Nastássia Filíppovna. O seu olhar brilhou, obstinado, firme e cheio de rancor, não deixando um só segundo de alternar de um visitante para outro.
Agláia estava evidentemente perturbada, mas apesar da confusão não parecia intimidada. Desde que penetrara na sala não erguera os olhos para a rival, mantendo-os no assoalho, com ar de reflexão, apenas de quando em quando procurando olhar para as paredes e os móveis com naturalidade. Havia uma secreta expressão de mal-estar em seu rosto, como se receasse uma contaminação. Maquinalmente arranjou a orla do vestido e se sentou mais para a beira do sofá, fazendo isso com gestos e movimentos provavelmente inconscientes. Mas essa atitude mutável tornava insultuoso o seu comportamento concentrado. Por fim olhou bem para Nastássia Filíppovna e leu instantaneamente tudo quanto se ocultava no enigmático brilho dos olhos da rival. A mulher compreendeu a mulher. E Agláia estremeceu.
— Naturalmente sabe o motivo do pedido que fiz para que viesse de Petersburgo — disse com voz baixa, fazendo duas pausas em período tão curto.
— Não, não sei de nada — respondeu Nastássia Filíppovna de modo abrupto e seco.
Agláia enrubesceu. Repentinamente a feriu, como fenômeno incrível, estar sentada ali com tal criatura e presa a uma sua resposta. Ao primeiro som da voz de Nastássia Filíppovna um calafrio a percorreu, o que logo a outra de modo muito claro percebeu.
— Compreende tudo, mas por cálculo pretende não entender... — disse Agláia, quase num sussurro, olhando logo para o chão.
— Por que faria eu isso? Por que deveria eu fazer isso? — disse Nastássia e sorriu.
— Para adquirir vantagem sobre a minha situação de estar aqui nesta casa — atalhou Agláia de modo deselegante e inconveniente.
— Vós, e não eu, sois a responsável por vossa situação — opinou Nastássia Filíppovna, com veemência. — Não estais aqui por convite meu. Eu sim é que aqui me acho obedecendo a um convite vosso; e ainda ignoro qual seja a razão.
Agláia ergueu orgulhosamente a cabeça.
— A sua língua é a arma de que dispõe. E não vim lutar batendo boca.
— Ah! Então viestes lutar comigo? Pois acreditai que vos julgava mais fina.
Olharam uma para a outra sem esconder seus mútuos despeitos. Uma delas era a mulher que havia escrito aquelas cartas à outra. E agora, ao primeiro encontro, tudo caía aos pedaços. E ainda assim nenhuma das quatro pessoas que se achavam naquela sala parecia haver percebido tão estranho fenômeno. O príncipe, que um dia antes nem por sonhos admitira a possibilidade disso, estava ali, olhando e ouvindo, como se desde muito houvesse previsto tudo. O mais fantástico dos sonhos se convertia assim nitidamente na mais viva e cabal realidade. Uma dessas mulheres desprezava naquele momento a outra, e de tal maneira, querendo lhe exprimir com tamanha intensidade esse desprezo (viera somente para isso, conforme Rogójin declararia no dia seguinte) que, não contando de antemão com o desordenado intelecto e a alma tenaz da rival, cuidou que esta não adotara previamente nenhuma ideia a usar contra tal desprezo maligno tão tipicamente feminino. O príncipe certificou-se logo que Nastássia Filíppovna espontaneamente não faria menção às cartas. Essas cartas o afligiam agora a ponto de dar metade de sua vida para que Agláia não se referisse a elas.
Mas parece que Agláia repentinamente se contagiou na atmosfera de contensão pois, já se dominando, disse:
— A senhora me compreendeu mal. Não vim lutar, muito embora não a estime... Eu vim... apenas conversar, como um ser humano se dirigindo a outro ser humano. Quando a mandei procurar já havia decidido o que lhe haveria de dizer e não quero me afastar agora duma tal decisão, mesmo que não fosse neste momento compreendida de todo. Seria pior para uma de nós, ou melhor... não para mim! Desejei responder-lhe ao que me escreveu e vim fazê-lo pessoalmente por me parecer mais conveniente. Ouça agora a minha resposta a todas as suas cartas: tive pelo príncipe Liév Nikoláievitch, desde o dia em que o conheci e principalmente depois que me contaram o que lhe aconteceu na recepção da senhora, tive pena dele porque é um homem tão puro de coração que chegou a acreditar, mercê de sua ingenuidade, que poderia ser feliz com... uma mulher... de tal caráter. Do que temi que lhe viesse a suceder tudo já se deu, pois a senhora foi incapaz de amá-lo. Antes, o torturou e o abandonou. Não o pôde amar porque é muito orgulhosa... Não, expressei-me mal, porque... é muito vã... Ainda não é o termo que quero... Porque o seu egoísmo deu em crescer... crescer até ao ponto de vir a ser loucura, do que as suas cartas são uma prova concludente. Não podia amar um homem simples como ele e muito provavelmente no íntimo o desprezava e achava ridículo. A senhora não pode amar coisa nenhuma, exceto a sua própria vergonha e esse seu contínuo pensamento, que já é mania, de que foi posta pelos homens debaixo da ignomínia e da humilhação. Se a sua ignomínia fosse menor e pudesse, por isso, se libertar dela de vez, seria muito menos infeliz... — Agláia sentia prazer em pronunciar palavras ponderadas e desde muito preparadas, mas ainda assim, agora, pronunciava, demasiado apressadamente, essas palavras que tinha escolhido antes da entrevista; mas, apesar do nervoso, examinava o efeito delas no rosto contraído de Nastássia Filíppovna. — Deve a senhora se recordar bem que ele me escreveu uma carta naquela ocasião. Sei que a senhora soube e leu essa carta, pois ele me disse, depois. Pois bem, aquela carta me fez entender tudo e de maneira bem correta. Ele já teve ocasião de me confirmar tudo isto que lhe estou agora quase que repetindo palavra por palavra. Depois da carta, esperei. Estava certa de que a senhora viria aqui, porque sem Petersburgo a senhora não pode existir. A senhora ainda é muito nova e bem-parecida para as províncias. Aliás estas palavras não são minhas — acrescentou enrubescendo vivamente e desde então a coloração não lhe abandonou mais as faces, até acabar de falar. — Quando revi o príncipe, me senti cruelmente tocada e ferida, por causa dele. Não ria. Se a senhora rir é porque não está capacitada para entender o que estou dizendo.
— Bem vedes que não estou rindo — disse Nastássia Filíppovna dum modo grave e quase lúgubre.
— Aliás, tanto se me dá. Pode rir, se quiser. Às primeiras perguntas que a ele dirigi, me respondeu que tinha cessado desde muito de a amar e que até a sua lembrança lhe causava tortura; mas que... sentia pena da senhora... e que quando pensava na senhora o coração lhe ficava trespassado. Tenho a dizer-lhe, também, que nunca, em minha vida, encontrei um homem como ele, de uma simplicidade tão nobre e duma confiança tão ilimitada. Compreendi, só pelo modo dele falar, que quem quisesse o podia enganar e que ele perdoaria quem o enganasse; eis porque o fiquei querendo mais.
Agláia parou um momento, como que espantada, não acreditando ter ousado e podido pronunciar tais palavras. Mas, ao mesmo tempo, um orgulho infinito apareceu em seus olhos. Agora parecia de fato não se importar se “aquela outra mulher” se risse, imediatamente, ante a confissão saída de sua boca.
— Já lhe disse tudo e agora, sem dúvida, entendeu o que quero da senhora.
— Talvez tenha entendido, mas seria melhor se vós mesma mo dissésseis — respondeu Nastássia Filíppovna, mansamente.
Houve um brilho de cólera no rosto de Agláia.
— Queria que me fizesse saber — pronunciou com firmeza e de modo bem perceptível — que direito tem de se misturar nos sentimentos dele por mim? Com que direito ousou mandar-me aquelas cartas? Com que direito andou declarando a ele e a mim que o ama, para abandoná-lo em seguida, por vontade própria, fugindo de maneira tão degradante e insultante?
— Nunca declarei a ele, ou a vós, que o amo — articulou Nastássia Filíppovna, com esforço. — E tendes razão em dizer que fugi dele — acrescentou tão baixo que o tom foi quase inaudível.
— Então nunca o declarou a mim, nem a ele? — gritou Agláia, — E as suas cartas? Quem lhe pediu para começar lutando e pedindo que eu me casasse com ele? Não era isso declaração? Por que se interpôs? Pensei, no começo, que tentasse fazer erguer-se em mim uma aversão por ele, ao interferir contra nós, obrigando-me, assim, a desistir. Foi só depois que adivinhei o que isso tudo significava. Simplesmente imaginou que estava fazendo algo de heroico e de maravilhoso, trabalhando assim a favor de suas pretensões. Como há de amá-lo, se ama tanto a sua vaidade? Por que, então, não se foi simplesmente embora daqui em vez de ficar a me escrever cartas tão absurdas? Por que então não se casa com o homem que com generosidade a ama e a honra, com o lhe oferecer a sua mão? E claro, porque se se casasse com Rogójin de que se haveria de queixar? Ao contrário, teria feito muita honra a si mesma. Evguénii Pávlovitch disse muito bem que a senhora leu poesia demais e teve educação demasiada para a sua... situação: que é “saia e blusa” e quer ser “dalmática”; que vive na indolência querendo heroísmos... Ajunte-se agora, a isso, que ele caracterizou tão bem, a vaidade! E logo se tem uma explicação de tudo.
— E vós, não viveis na indolência?
Com excessiva rapidez e crueldade as coisas haviam chegado a um extremo tão inesperado; inesperado, porque Nastássia Filíppovna, ao dirigir-se a Pávlovsk, imaginava que tudo se passaria de maneira bem diferente, muito embora os seus pressentimentos fossem antes maus do que bons. Agláia deixou-se levar de modo tão absoluto pelo impulso do momento como se, estando a cair precipício abaixo, não pudesse resistir à alegria tenebrosa da vingança. Era positivamente estranho para Nastássia Filíppovna ver Agláia neste estado. Olhou-a e não pôde acreditar em seus olhos, ficando, nos primeiros instantes, completamente estupefata. E apesar de, como dissera Evguénii Pávlovitch, ser uma mulher que havia lido poesia demais, ou fosse uma louca como Míchkin estava convencido, de qualquer modo, muito embora às vezes se comportasse com cinismo e impudência, ainda assim estava longe de não ser uma mulher modesta, mansa e sincera (mais até do que se poderia acreditar). Por mais cheia que andasse de ideias românticas, de fantasias caprichosas e cismas egoísticas, ainda assim havia nela muita coisa de forte e de profundo!... O príncipe compreendeu isso. E agora a expressão do seu rosto era de indizível sofrimento. Agláia percebeu, tremeu de desdém, e com indescritível altivez disse em resposta à exclamação de Nastássia Filíppovna:
— Ousa dirigir-se deste modo a mim?
— Deveis ter-me ouvido mal — disse Nastássia Filíppovna, com surpresa. — Como foi que me dirigi a vós?
— Se, realmente, queria ser uma mulher respeitável, por que, tão simplesmente, não abandonou o seu sedutor, Tótskii, sem cenas teatrais? — disse Agláia, subitamente, desviando a orientação da conversa.
— Que sabeis vós da minha situação, para assim ousardes julgar-me? — indagou Nastássia Filíppovna, trêmula; estava ficando terrivelmente branca.
— Que sei? Pergunta isso a mim? Sei que a senhora não foi trabalhar, mas que se meteu com um homem rico, Rogójin, para fingir de anjo decaído. Não me espanta que Tótskii tente até se dar um tiro, para se livrar dum tal anjo decaído.
— Não faleis assim! — Nastássia Filíppovna fez um ar tanto de repulsa como de angústia. — Vós me entendeis tanto quanto a criada de Dária Aleksiéievna que se foi queixar ao juiz do noivo! Ela entenderia melhor do que vós.
— E que tem de mais que entendesse?! Muito provavelmente! Uma rapariga respeitável que trabalha para viver! Por que se refere com tamanho desprezo a uma empregada doméstica?
— Não sinto desprezo pelo trabalho, e sim por vós, quando falais de trabalho!
— Se quisesse ser respeitável tinha que começar por se tornar primeiro uma lavadeira!
Ambas se ergueram e se olharam, lívidas.
— Agláia, pare; isso é injusto! — exclamou o príncipe, zonzo.
Rogójin já não sorria, mas estava escutando com os lábios cerrados, de braços cruzados.
— Vede! Olhai-a! — disse Nastássia Filíppovna, fremindo de cólera. — Olhai essa jovem! E eu que a tomava por um anjo! Vieste à minha casa, tu, Agláia Ivánovna, sem trazeres uma governante? Bem, já que assim preferes... vou dizer-te imediatamente, e em cheio, por que me vieste ver. Tinhas medo, eis por que vieste.
— Medo de ti? — perguntou Agláia, fora de si, com uma admiração ingênua, insultada por aquela mulher lhe ousar falar desta forma.
— De mim, sim... naturalmente que de mim! Tiveste medo. Se resolveste vir aqui, é que tinhas medo de mim. Não desprezamos aqueles dos quais temos medo. E dizer-se que respeitei isso que está aí, até este momento! Mas queres saber o teu medo qual é e qual o teu fim, o teu propósito principal agora, nisto tudo? Queres descobrir, tu mesma, se ele te ama mais do que a mim... Não passas duma terrível ciumenta!...
— Ele já me disse que te odeia! — murmurou Agláia.
— Talvez, decerto mesmo, não o mereço... mas penso que estás mentindo! Ele não me pode odiar! Ele não pode ter dito isso! Mas estou pronta a perdoar-te, tendo em vista a posição em que te achas... embora eu esperasse poder pensar melhor a teu respeito. Pensei que fosses mais esperta e bem mais bonita, cheguei a pensar mesmo... Está bem, toma o teu tesouro!... Aqui está ele, até está te olhando, está deslumbrado! Toma-o, mas com a condição de deixares esta casa imediatamente! Já, neste minuto!
Atirou-se numa poltrona e caiu em pranto. Pouco depois, porém, ergueu um rosto que se iluminava com um sentimento novo. Olhou com decisão para Agláia, fixou-a bem e se levantou.
— Mas, se duvidas, eu falarei com ele... Basta que eu ordene, estás ouvindo bem? Basta uma palavra minha, e ele te arremessará para longe, imediatamente! E ficará comigo! E casará comigo, ao passo que tu terás que correr para tua casa, escorraçada e sozinha. Devo fazê-lo? Devo? — gritou, como louca, sem saber que era capaz de dizer tal coisa.
Agláia correu aterrorizada para a porta, mas parou, porque ela continuava a falar.
— Quer que mande Rogójin embora? Achavas, então, que eu ia me casar com Rogójin só para te ser agradável! Pois aqui, na tua presença, vou gritar para Rogójin: “Vai embora!” e vou dizer ao príncipe: “Lembras-te do que me disseste?” Ó Céus, por que me humilhei diante deles? Disseste-me, ou não, príncipe, que me seguirias acontecesse o que acontecesse, que não me abandonarias nunca, e que me amavas... e que me perdoavas tudo... e que me resp... e... quê?... Sim! Isto também tu disseste! E foi para te deixar livre que fugi aquela vez! Mas agora não fugirei, não! Pergunta, vamos, pergunta a Rogójin, se eu sou uma mulher perdida! Ele to dirá! E agora, que ela me cobriu de vergonha, diante de teus olhos, arredar-te-ás de mim e te retirarás de braço com ela? Bem, então, sê tu também maldito, pois eras a única pessoa no mundo em quem eu confiava!
Sem saber direito o que estava dizendo, soltando as palavras com esforço, o rosto convulso, os lábios repuxados, disse mais alto ainda:
— Vai-te embora, Rogójin! Não és preciso para nada!
Evidentemente não acreditava numa sílaba da sua tétrica eloquência, e ao mesmo tempo desejava prolongar essa situação, por um minuto mais que fosse para iludir-se. O sofrimento foi tanto que a poderia ter matado (como, pelo menos, pensou o príncipe).
— Aqui está ele. Olha-o! — gritou para Agláia apontando para Míchkin. — Se não vier para mim, imediatamente, se não me tomar, se não desistir de ti, toma-o tu, eu to dou, não o quero!
Mas ela e Agláia ficaram, nisto, em suspenso, e ambas, como criaturas loucas, olharam para o príncipe. Ele, decerto, não entendeu toda a força deste desafio. De fato! É certo que não entendeu. Apenas via, diante de si, a frenética e desesperada face que (como uma vez dissera a Agláia) “tinha apunhalado o seu coração para sempre”. E vendo, não pôde suportar mais e se voltou suplicando e repreendendo Agláia, mostrando-lhe Nastássia Filíppovna: “Como podeis...? Não vedes, então, que criatura infeliz ela é?”
E não pôde pronunciar mais nada, petrificado pela terrível expressão dos olhos de Agláia. Esse olhar traía tamanho sofrimento, e ao mesmo tempo tão desmesurada cólera que, com um gesto de desespero, correu para ela... Mas era muito tarde. Ela não pudera suportar o instante sequer da sua hesitação. Escondeu o rosto nas mãos, gritou “ó meu Deus!”, descobriu o rosto e saiu a correr da sala, seguida por Rogójin que foi desaferrolhar a porta. O príncipe instantaneamente correu também, mas já na porta se sentiu agarrado por dois braços, diante do umbral. Diante do seu, se estampava, convulso e desesperado, o rosto de Nastássia Filíppovna que de modo lancinante lhe disse:
— Tu a segues? A ela?
E caiu sem sentidos em seus braços. Susteve-a, carregou-a para a sala, depô-la num canapé, e ficou ali, em pé, marasmado. Havia um copo com um resto de água sobre a mesinha ao lado. Aproximando-se, vindo da porta, Rogójin aspergiu-o sobre o rosto dela. Abrindo, um minuto depois, os olhos, durante outro minuto não se lembrou de nada; mas, subitamente, volveu os olhos em redor, tentou erguer-se, arremessou-se aos braços do príncipe, gritando:
— Meu! És meu!... A jovem orgulhosa já foi embora? Ah! Ah! Ah! — Parecia uma histérica em paroxismo. — Ah! Ah! Ah! Eu te ofereci àquela jovem louca! E por quê? Para quê? Eu estava fora de mim! Vá-se embora, Rogójin! Ah! Ah! Ah!...
Rogójin olhou-os; não disse palavra. Tomou o chapéu e saiu.
Dez minutos depois o príncipe estava sentado ao lado de Nastássia Filíppovna, com os olhos postos nela, acariciando-lhe o rosto e os cabelos com ambas as mãos, como se ela fosse uma criancinha. Suspirava em resposta às suas risadas e chorava em resposta às suas lágrimas. Não dizia nada. Só lhe escutava o balbucio entrecortado, incoerente e excitado. Não compreendia quase nada do que ela balbuciava, mas lhe sorria meigamente e logo que percebia que recomeçava a afligir-se, a chorar, a queixar-se dele, a lastimar-se, principiava de novo a acariciar-lhe a cabeça, desde os cabelos até ao queixo, acalmando-a, consolando-a como a uma criancinha.
9.
Tinham-se passado 15 dias, desde os acontecimentos narrados no último capítulo, e a situação dos personagens que lhes dizem respeito estava tão completamente mudada que nos é difícil continuar a nossa história sem algumas explicações. No entanto nos temos que restringir, o mais possível, à declaração singela dos fatos, e por uma razão muito simples: porque defrontamos com muitas dificuldades, em vários pontos, ao querermos explicar quanto ocorreu. Tal declaração de nossa parte deve parecer muito estranha e obscura para o leitor que tem o direito de perguntar por que nos pusemos a descrever aquilo de que não tínhamos uma ideia clara e uma opinião pessoal. Evitando colocar-nos numa posição ainda mais falsa, preferimos dar um exemplo, mercê do qual o leitor bondosamente compreenderá a nossa dificuldade. Tentaremos, até, fazer com que esse exemplo não quebre a sequência da narrativa, tornando-se, antes, mera continuação dela.
Quinze dias antes, isto é, no começo de julho, a história do nosso herói, e, dum modo mais particular, o último incidente dessa história se foi transformando no escândalo do ano, dada a sua estrutura estranha, divertida e até mesmo solene, espalhando-se gradualmente pelas ruas contíguas às vilas de Liébediev, Ptítsin e Dária Aleksiéievna, atingindo a casa dos Epantchín, ultrapassando, a seguir, a cidade, e se desfigurando nos distritos vizinhos. Quase toda a sociedade que se aglomerava na praça, habitantes, veranistas e povo, que se reuniam para escutar a banda, glosavam esta história, através de mil variações. De como um príncipe, depois de ter causado um escândalo numa família muito conhecida e distinta, namorando uma formosa moça dessa família e chegando até a ficar noivo, se deixava cativar por uma conhecida cocote, e, rompendo com todos os amigos, indiferente a tudo, desdenhando ameaças, zombando da indignação popular, resolvera, poucos dias depois, olhando todo o mundo de cabeça erguida, casar-se ali mesmo em Pávlovsk, franca e publicamente, com essa mulher de passado ignominioso.
A história tornou-se tão ricamente adornada de escandalosas minúcias, tantas e tão distintas pessoas tomaram parte nela, tão fantásticas e enigmáticas evidências foram dadas, e por outro lado, foram apresentados fatos tão concretos e tão incontestáveis que a curiosidade geral e a tagarelice não podiam deixar de ser desculpáveis.
Verdade é que os comentários promanavam da mais múltipla, sutil e engenhosa interpretação. E promanavam — isso lhes dando maior probabilidade! — dessa gente sensível que, em todas as classes da sociedade, transforma a sua vocação em consolo, apressando-se sempre em explicar tudo aos vizinhos.
Segundo a versão dessa gente, um jovem de esplêndida família, um príncipe quase rico, mas louco e democrata, dera guarida em seu cérebro ao niilismo contemporâneo revelado pelo sr. Turguénev. Embora não sabendo quase uma só palavra de russo, se apaixonara pela filha do general Epantchín, conseguindo ser aceito como noivo, pela família. Mas, como certo francês daquela história que os jornais recentemente tinham publicado (que depois de consentir que o sagrassem sacerdote, voluntariamente tendo recebido as ordens, e se sujeitado a todo o cerimonial de reverências, orações, ósculos e votos, acabara, no dia seguinte, por informar, publicamente, ao bispo, em cartas mandadas aos jornais liberais, que não acreditava em Deus e que por considerar desonroso enganar os fiéis, e deles receber considerações sem motivo, renunciava à batina!), como esse francês ateu, o príncipe também fingira e representara! Chegaram a afirmar que ele esperou, de propósito, pela recepção formal, dada pelos pais da moça para participarem o noivado (recepção essa em que fora apresentado a muitos personagens distintos), para declarar alto e bom som, diante de todos, que julgava leviandade venerar velhos dignitários, renunciando, a seguir, e de modo insultuoso, ao noivado. E que, depois, em luta com os lacaios que o punham para fora, quebrara um magnífico vaso da China. E assim, mais uma vez ficaria patenteada mais uma das características e tendências da época, pois não havia dúvida que o desmiolado jovem estava apaixonado pela noiva — a filha dum general — mas renunciara simplesmente por causa do niilismo. E ainda por cima resolvera levar o escândalo mais adiante, determinando-se a casar com uma mulher perdida, somente para comprovar, com isso, à vista de todo o mundo, que a sua convicção era que não havia mulher perdida nem mulher virtuosa, todas elas sendo iguais e livres! Que a antiga divisão não merecia crédito! E que aos seus olhos uma mulher perdida era superior a uma que não fosse perdida!
Tais versões, parecendo extremamente prováveis, foram aceitas pela maioria dos veranistas e mais prontamente à medida que os fatos diários lhes davam azo. Garantiram que a pobre moça adorava tanto o noivo — no dizer de alguns, seu sedutor —, que no dia em que a abandonou correu a encontrá-lo, deparando com ele nos braços da amante. Outros asseguraram, ao contrário, que a coitada fora propositadamente atraída por ele à casa da amante, por causa ainda do niilismo que é a doutrina que timbra em envergonhar e insultar. De todos esses rumores resultou um interesse cada dia mais crescente, culminando quando se veio a saber que o incrível casamento realmente ia ser o desfecho.
E agora, se nos pedissem uma explicação, não quanto à significação niilista do incidente, oh! não!, mas até que ponto o casamento proposto satisfazia aos desejos reais do príncipe, e quais eram esses desejos nessa ocasião, definindo a condição espiritual do nosso herói, teríamos dificuldade em responder. Só podemos dizer uma coisa: que o casamento, de fato, foi combinado e que o próprio Míchkin autorizou Liébediev, Keller e um amigo de Liébediev, apresentado por este nessa emergência, a empreender todas as providências necessárias, tanto as religiosas, como as seculares, sendo-lhes recomendado não poupar dinheiro, pois Nastássia Filíppovna insistia na urgência. Que Keller conseguira ver atendido o seu ardente desejo de ser escolhido como padrinho, enquanto Burdóvskii, escolhido para assumir o mesmo papel por parte de Nastássia Filíppovna, aceitara evidenciando entusiasmo. O casamento estava marcado para o começo de julho. E não foram só estes os informes autênticos. Outros fatos foram por nós sabidos, e, por estarem em contradição direta com os precedentes acima narrados, atrapalham os nossos cálculos.
Desconfiamos, por exemplo, que, depois de ter autorizado Liébediev e outros a acelerar todos os preparativos, horas depois o príncipe parecia ter esquecido o casamento, os padrinhos e as cerimônias, sendo mais razoável pensarmos que justamente incumbiu urgência e cuidados a outrem para evitar pensar ele próprio no fato, apressando assim o esquecimento. No que estaria ele pensando simultaneamente com isso? Que era que não conseguia esquecer? Com o que estava lutando? Também não resta dúvida que não houve coação da parte de Nastássia Filíppovna, muito embora tivesse sido ela quem pensara no casamento e dera a entender a sua urgência, de Míchkin partindo, sem dúvida, um imediato acordo. (Mas uma espécie de acordo casual, como se o que lhe era sugerido fosse um pedido comum.) Esses fatos estranhos pululam diante de nós, mas, em vez de clarearem as coisas, tornando-as compreensíveis, positivamente as obscurecem, tornando absurdas as explicações tomadas onde quer que o sejam. Passemos a outro exemplo.
Ficou notório, como coisa verdadeira, que durante essas duas semanas o príncipe passava os dias inteiros em casa de Nastássia Filíppovna, sendo levado por ela a passear e a ouvir música. Que era visto na carruagem, acompanhando-a, todos os dias. Que uma só hora sem vê-la, o inquietava (indícios de amor sincero). Que, todavia, quando ela falava com ele, ficava a escutá-la com um sorriso indulgente e sutil, sem, porém, durante essas longas horas, dizer quase nada. Também se veio a saber que, no decorrer daqueles dias, fora muitas vezes à casa dos Epantchín, não o tendo feito às escondidas de Nastássia Filíppovna, sabendo embora que isso a exasperava. Verificou-se que, enquanto permaneceram em Pávlovsk, os Epantchín não o receberam, proibindo peremptoriamente Agláia Ivánovna de o ver. Que ele se retirava do vestíbulo, sem dizer palavra, voltando no dia seguinte, parecendo ter esquecido a recusa da véspera e saindo indiferente à de então. Também se descobriu que, uma hora depois da volta de Agláia Ivánovna da casa de Nastássia Filíppovna, o príncipe tinha ido pressuroso à casa dos Epantchín, certo de encontrá-la, à sua chegada, tendo posto toda a casa em rebuliço visto não se saber onde estivesse Agláia, tendo sido por ele que os Epantchín se puseram a par da ida da moça à casa de Nastássia Filíppovna. Asseverou-se que, nessa ocasião, aflitíssimos, Lizavéta Prokófievna, as filhas e o príncipe Chtch... destrataram violentamente Míchkin, renunciando, nos mais fortes termos, a qualquer amizade ou relação daí em diante com ele. E que fora justamente no momento mais acalorado que Varvára Ardaliónovna subitamente aparecera para dizer a Lizavéta Prokófievna que Agláia Ivánovna estava lá em sua casa, num pavoroso estado de espírito, jurando não querer voltar à casa paterna. Tal novidade afetara ainda mais Lizavéta Prokófievna. (E acontece que era verdadeira, pois, fugindo atarantada da casa de Nastássia Filíppovna, Agláia preferiria morrer a entrar em casa, tendo voado para casa de Nina Aleksándrovna, debulhada em pranto, tendo então Varvára Ardaliónovna, por sua parte, achado ser essencial ir avisar prontamente a mãe da moça.) Mãe e filhas arrojaram-se, imediatamente, para a casa de Nina Aleksándrovna, seguidas pelo chefe da família, Iván Fiódorovitch, que mal acabara de chegar da rua.
Atrás deles seguira o príncipe, atarantado, embora o expulsassem e descompusessem, nem mesmo na casa onde ela estava lhe tendo sido permitido, devido às cautelas de Vária, ver Agláia. O final disso fora que, mal viu a mãe e as manas, também debulhadas em pranto, sem ousarem proferir uma palavra de censura, Agláia se arremessou nos braços delas, regressando logo com todos para o lar. Além de tudo isso, ainda se adiantou, sem que o pudéssemos autenticar, que Gavríl Ardaliónovitch também não fora muito feliz nessa conjuntura, por causa do seguinte: resolvera aproveitar a oportunidade de Varvára ter ido a correr à casa de Lizavéta Prokófievna, deixando-o sozinho com Agláia, para inoportunamente lhe falar ainda na sua paixão; mas, ouvindo isso, apesar de estar zonza e em lágrimas, ela desandou a rir, repentinamente. E até lhe perguntou se ele, para lhe provar esse amor, queimaria o dedo numa vela. E Gavríl Ardaliónovitch — prossegue a história — ficara petrificado diante da pergunta. Tão petrificado, a sua cara traindo tamanho espanto que, tomada duma espécie de ataque histérico, Agláia riu dele, acabando por fugir, escadas acima, para os cômodos de Nina Aleksándrovna, onde a família a fora encontrar.
Esse episódio foi contado ao príncipe, no dia seguinte, por Ippolít, que, não podendo mais levantar da cama, mandou-o chamar de propósito para lhe narrar o caso. Como Ippolít soubera do fato, ignoramos; mas quando Míchkin ouviu falar em vela e em dedo, riu tanto que Ippolít ficou admirado. E, inesperadamente depois, o príncipe se pusera a tremer e a chorar... Devia juntar-se a isso que durante aqueles dias estivera num estado de grande confusão, e que uma extraordinária perturbação, embora vaga, o atormentava, agora. Ippolít rudemente afirmou que o príncipe estava fora do seu espírito; mas era impossível garantir-se isso com segurança.
Apresentando todos estes fatos e não tentando explicá-los, não temos o intuito de justificar o herói aos olhos do leitor. E, o que é mais, estamos inclinados a comparticipar da indignação que ele provocara mesmo nos amigos. Vera Liébedieva ficara zangada, por uns dias. Kólia, idem. Keller só deixou de ficar indignado depois que foi escolhido para padrinho; sem que seja preciso nos referirmos a Liébediev que logo começara a intrigar, ora a favor, ora contra o príncipe, movido por uma indignação verídica. (Sobre isso, aliás, falaremos mais tarde.) Mas, em compensação, simpatizamos logo com algumas palavras proferidas por Evguénii Pávlovitch, vigorosas e profundamente psicológicas, ditas em cheio, e sem cerimônia alguma, em conversa com o príncipe, seis ou sete dias depois do que se passara em casa de Nastássia Filíppovna.
Temos que intercalar aqui que não só os Epantchín, mas todos aqueles que lhes estavam direta ou indiretamente ligados, julgaram melhor romper com o príncipe. O príncipe Chtch... para citar um exemplo, ao encontrar Míchkin, virava a cabeça para o lado e não respondia à sua saudação.
Mas Evguénii Pávlovitch não receou comprometer-se, visitando o príncipe, embora visitasse também, e assiduamente, os Epantchín, que o recebiam com evidente cordialidade. Uma dessas visitas suas ao príncipe foi justamente na noite do dia em que os Epantchín deixaram Pávlovsk. Estava perfeitamente a par dos rumores em circulação, e, muito possivelmente, ajudava até a espalhá-los. O príncipe alegrou-se de o ver e começou logo a falar nos Epantchín. Uma tal franqueza fez que Evguénii Pávlovitch também sentisse a língua solta, indo diretamente ao ponto, sem se vexar.
O príncipe ignorava que os Epantchín tivessem ido embora. De tão surpreendido, ficou lívido. Um minuto depois, meneava, porém, a cabeça, confuso e meditativo, concordando que “só podia ser assim”. E avidamente perguntou “para onde tinham ido”.
Enquanto isso, Evguénii Pávlovitch o examinava cuidadosamente, pasmado, e não à toa, ante a rapidez das perguntas, a ingenuidade e a inquietação, o sossego e o nervosismo, e simultaneamente, com isso tudo, ante essa franqueza inefável. Contou tudo, mas procurando ser delicado. Muitas coisas o príncipe ignorava e essa era a primeira pessoa do círculo dos Epantchín a visitá-lo. Confirmou o boato de que Agláia estivera doente, três dias e três noites, com febre, sem dormir. Que já estava, agora, bem melhor e fora de perigo, mas num estado muito nervoso. Que, felizmente, tinham adotado uma boa política em casa, resolvendo não fazer a menor alusão ao passado, não só diante de Agláia, mas mesmo entre si. Que os pais já estavam pensando numa excursão ao estrangeiro, no outono, logo depois do casamento de Adelaída, tendo Agláia recebido as primeiras insinuações sobre essa viagem em silêncio. Que ele, Evguénii Pávlovitch, muito provavelmente iria também até ao estrangeiro, podendo o próprio príncipe Chtch... sair, uns pares de meses, com Adelaída, caso os negócios permitissem. Mas que, quanto ao general, esse teria que ficar. Que se tinham mudado todos para Kólmino, a umas vinte verstas de Petersburgo, pois possuíam lá uma espaçosa mansão. Que a princesa Bielokónskaia não voltara para Moscou, parecendo que ainda permanecia um pouco em Pávlovsk, propositadamente. Que a saída dos Epantchín de Pávlovsk fora consequência duma resolução categórica de Lizavéta Prokófievna, envergonhada com o que acontecera. Que ele, Evguénii Pávlovitch, fora dos que mais cautelosamente tinham transmitido à generala os rumores que circulavam pela cidade, tendo-lhas parecido, por isso, impróprio mudarem-se para a vila de Ieláguin.
— E, com efeito — acrescentou Evguénii Pávlovitch —, o senhor deve compreender que eles a custo poderiam enfrentar tudo isso... Principalmente sabendo do que se passa aqui em sua casa, príncipe! E ante a sua insistência, embora insistam em não o receber, de lhes ir bater todos os dias na porta.
— Sim, sim, sim! Tem razão. Mas eu queria ver Agláia — disse o príncipe, acenando com a cabeça três vezes.
— Ah! Querido príncipe — exclamou Evguénii Pávlovitch, com exaltação e tristeza —, como lhe haveriam de permitir uma coisa dessas, depois de tudo quanto aconteceu? Naturalmente, naturalmente! Foi tudo tão súbito! Compreendo que o senhor estivesse fora dos seus sentidos e não pudesse conter a pobre menina. Isso não estava em suas forças. Mas devia ter compreendido como e quanto o sentimento dela para com o senhor era intenso e sério. Pois se ela nem se dominou sabendo que havia na sua vida uma outra mulher... E o senhor pôde abandonar e despedaçar um tesouro como aquele?
— Sim, sim, sim! Tem razão. Sou muito culpado — recomeçou Míchkin, numa terrível angústia. — E o senhor sabe, só ela, só ela demonstrava essa consideração para com Nastássia Filíppovna. Só ela, mais ninguém.
— Sim, é isso que torna tudo ainda mais terrível, não haver nada de sério em tudo isso! — tentou explicar Evguénii Pávlovitch, deixando-se empolgar. — Há de me perdoar, príncipe, mas eu estive pensando muito, muitíssimo... nisso tudo. Estou a par de tudo o que aconteceu antes, de tudo quanto aconteceu há seis meses. E cheguei à conclusão de que nada disso tinha consistência. Foi só a sua cabeça, e não o seu coração, que se envolveu numa ilusão, numa fantasia, numa miragem! E só o imaginoso ciúme duma rapariga completamente inexperiente é que poderia ter tomado isso a sério!...
A esta altura, sem retalhar muito as coisas principais, Evguénii Pávlovitch deixou que toda a sua indignação enfunasse. Raciocinando com clareza e, repetimos, com muita visão psicológica, traçou um quadro vívido das primeiras relações do príncipe com Nastássia Filíppovna. (Ele sempre tivera o dom da linguagem, mas esse momento lhe despertou uma eloquência verdadeira.)
— Desde o primeiro minuto, tudo começou com falsidade. E o que nasce com a mentira, com a mentira morre; isto é uma lei da natureza. Não concordo e até me indigno quando alguém o chama de idiota. O senhor é inteligente demais para merecer essa classificação. Mas o senhor é tão estranho que não se assemelha a nós outros, vamos, concorde comigo. E então me veio à cabeça que o que está no fundo de tudo que aconteceu é a sua inata falta de experiência (marque bem esta palavra “inata”, príncipe!), a sua extraordinária ingenuidade, a sua fenomenal carência de noções de proporção (o que, aliás, o senhor mesmo várias vezes reconheceu) e, finalmente, a enorme massa de convicções que, sendo, como no senhor são, intelectuais, o senhor cuidou que fossem inatas e intuitivas. Deve admitir, príncipe, que desde o começo houve em suas relações para com Nastássia Filíppovna um elemento convencional democrático (uso esta expressão por brevidade), uma fascinação, por assim dizer, pelo caso “mulher” (para expressar-me outra vez com brevidade). Sei todas as minúcias da cena escandalosa que se passou em casa de Nastássia Filíppovna quando Rogójin trouxe o dinheiro. Se prefere, posso analisar tudo, contando pelos meus dedos, ou lhe mostrando num espelho, para o senhor assim se certificar de que realmente sei como tudo isso foi, como acabou, e no que acabou. Na juventude, lá da Suíça, anelava pela Rússia, e pensava no seu país natal como numa terra da promissão. Lá leu uma porção de livros sobre a Rússia, excelentes livros, decerto, porém perniciosos para o senhor. Depois veio para cá, sequioso de bem-fazer e, se bem me exprimo, de meter mãos à obra. Exatamente no primeiro dia da sua chegada, a triste e lancinante história de uma mulher aviltada lhe chega aos ouvidos. O senhor, um cavalheiro virginal, a escutar a história duma dama! Naquele mesmo dia viu essa mulher e ficou maravilhado ante tão fantástica e demoníaca beleza! (Concordo que ela seja bonita, naturalmente!) Junte a isso os seus nervos e a sua epilepsia; junte a isso o degelo de Petersburgo, que estraçalha os nervos. Junte tudo isso num só dia, numa cidade desconhecida e quase fantasmagórica. Um só dia com tantas peripécias e encontros, um só dia com tão inesperados conhecimentos, hora sobre hora, da mais surpreendente realidade, o encontro com as três beldades Epantchín. E Agláia entre elas. Depois, a sua fadiga, o torvelinho na sua cabeça e, ainda por cima, a sala de Nastássia Filíppovna, o diapasão dessa sala! E... que poderia o senhor esperar? Diga-me, vamos, que pensa de tudo isso?
— Sim, sim! Sim, sim! — O príncipe abaixou a cabeça e começou a mudar de cor. — Tem razão. Foi o que aconteceu, realmente. E, sabe o senhor, mal dormi, ou melhor, não dormi absolutamente naquele trem, nem naquela noite nem na anterior. Estava pavorosamente exausto.
— Pois decerto! E é o que estou procurando demonstrar — acudiu Evguénii Pávlovitch. — Intoxicado, por assim dizer, pelo entusiasmo, logo se lhe deparou o ensejo de proclamar, publicamente, a generosa ideia de que o senhor, um príncipe por nascimento, e um homem de vida ilibada, não considerava desonrada uma mulher arremessada à vergonha não por culpa própria e sim por um repugnante aristocrata libertino. Deus do Céu, naturalmente que se entende isso! Mas esse não é o ponto, meu caro príncipe. O ponto é saber se houve realidade, se houve sinceridade em suas emoções; se o que houve foi sentimento natural ou entusiasmo intelectual. Que pensa disto? A mulher, no templo, realmente foi perdoada — uma mulher justamente como esta. Mas não lhe foi dito que agira bem e que todo o respeito lhe era devido. Não é mesmo? Não lhe disse o senso comum, três meses depois, qual o verdadeiro estado da questão? Não desejo criticá-la, mas poderiam todas as aventuras dessa mulher justificar o seu intolerável e diabólico orgulho e o seu insolente egoísmo rapace? Perdoe-me, príncipe, se me deixei arrastar por tudo isso, mas...
— Sim, talvez tudo seja assim. Talvez tenha razão... — tornou a concordar o príncipe. — Ela é muito suscetível... O senhor está certo, mas...
— Que é merecedora de compaixão? É o que quer dizer, meu magnânimo amigo? Mas como pôde, atrapalhando-se com a compaixão, servir o prazer de uma mulher para envergonhar outra? E esta, uma pura e suave moça que o senhor consentiu que uns olhos altivos e rancorosos humilhassem! Ao que o vai levar a compaixão, ainda? A um exagero que ultrapassa tudo quanto se possa imaginar. Como pôde o senhor, amando uma jovem, humilhá-la perante a rival, e, por causa da rival, deixando-a assim, depois do senhor mesmo lhe haver feito uma proposta de casamento honorabilíssima? Não lhe fez o senhor esse pedido, essa proposta? Sim, o senhor o fez, e diante dos pais e das irmãs. Chama-se ainda, depois disso, um homem de bem? Permita que lhe pergunte, príncipe? E... o senhor não iludiu essa adorável criatura quando lhe disse que a amava?
— Sim! Sim! Tem razão! De fato eu me sinto culpado! — repetiu o príncipe, tomado de inenarrável angústia.
— Mas acha que isso é o bastante? — insistiu Evguénii Pávlovitch, indignado. — Acha que basta gritar: “Ah, mereço todas as censuras!”? Sim, é digno de censura, mas persiste! E onde estava o seu coração, então, o seu coração de cristão? Ora, não viu o rosto de Agláia, naquele momento? Bem, e estava ela sofrendo menos do que a outra, do que essa outra mulher que se interpôs entre ela e o senhor? Como foi que viu isso e permitiu? Como pôde permitir?
— Mas... eu não permiti! — balbuciou o desgraçado príncipe.
— Não permitiu?
— Sim, não permiti coisa nenhuma! Até agora não compreendo como tudo aquilo se passou. Eu... eu ia correr atrás de Agláia Ivánovna, mas justamente naquele instante Nastássia Filíppovna caiu desacordada. Desde então não me deixaram mais ver Agláia Ivánovna.
— Deixe disso! O ataque não importava! De qualquer forma o senhor devia ter corrido atrás de Agláia! Mesmo que a outra desmaiasse!
— Sim, sim! Devia ter feito isso, sim! Ela podia, porém, ter morrido; o senhor não sabe. Ela poderia até se matar, o senhor não a conhece... Depois, que é que tinha? Eu contava depois tudo a Agláia e então... Evguénii Pávlovitch... Mas vejo que o senhor não sabe nada. Diga-me, por que não me hão de deixar ver Agláia Ivánovna? Eu já teria explicado tudo a ela. Para que se puseram as duas a falar de coisas erradas?... Foi por isso que aconteceu tudo aquilo. Ao senhor é difícil explicar. Mas a Agláia eu posso. Ah! A pobrezinha! A pobrezinha! E o senhor a me recordar ainda o rostinho dela quando se foi embora... Então eu poderia esquecer?... Vamos lá! Temos que ir! — Pulou subitamente e puxou Evguénii Pávlovitch.
— Ir aonde?
— Ver Agláia Ivánovna! Vamos imediatamente!
— Mas não está mais aqui em Pávlovsk, estou lhe dizendo. E ir, para quê?
— Ela compreenderá, ela compreenderá! — bradou o príncipe, implorando, com as mãos juntas. — Ela compreenderá que não se trata do que aconteceu, mas de alguma coisa mais! Alguma coisa bem diferente!
— Que quer dizer com mais essa coisa “diferente”? Só se é para dizer que se vai casar com a outra! Pois o senhor persiste, não é? O senhor vai, ou não vai se casar?
— Vou sim. Vou sim!
— Então, como é que “há uma outra coisa diferente?”
— Não é isso, não é isso. O eu me ir casar não quer dizer nada, absolutamente nada.
— Como não quer dizer nada? Não tem importância? Ora, a mim me parece que não se trata duma coisa à toa, acho eu! Vai se casar com uma mulher que ama, para a tornar feliz. E Agláia Ivánovna vê e sabe disso. E como é que ainda acha que não tem importância?
— Fazê-la feliz? Oh! Não! Apenas vou me casar com ela. É ela quem quer. E que tem que eu case com ela? Eu... Oh!... Nada disso tem importância! Assim ela não morre. Casar-se com Rogójin é que seria uma loucura! Compreendo agora tudo quanto não compreendi antes. E, veja o senhor, quando elas estavam lá, uma em face da outra, não pude suportar o rosto de Nastássia Filíppovna... O senhor não sabe, Evguénii Pávlovitch — o príncipe abaixou a voz, misteriosamente —, eu nunca disse isto a ninguém, nem mesmo a Agláia, mas eu não posso suportar o rosto de Nastássia Filíppovna. O senhor tinha razão quando ainda há pouco falava daquela noite em casa de Nastássia Filíppovna; mas deixou de dizer uma coisa que ignora. Já naquela manhã, quando olhei o retrato dela, não pude suportar aquele rosto!... Veja por exemplo os olhos de Vera; não são uma coisa muito diferente? Eu... eu tenho medo do rosto dela! — acrescentou com extraordinária expressão de terror.
— Tem medo?
— Sim. Ela é louca — ciciou ele, empalidecendo.
— Tem certeza? — perguntou Evguénii Pávlovitch, com extremo interesse.
— Tenho sim. Agora, tenho. Certifiquei-me, destes últimos dias para cá.
— Mas que é que está fazendo, então, príncipe? — O pavor também se estava comunicando a Evguénii Pávlovitch. — Então vai se casar com ela por causa duma espécie de medo? Mas não se compreende! Sem mesmo a amar, talvez?
— Oh! Não. Eu a amo com todo o meu coração. Ora... ela é uma criança! Agora ela não passa duma criança. Completamente! Uma criança! Oh! O senhor não entende essas coisas.
— E ao mesmo tempo declara que ama Agláia Ivánovna?
— Oh! Sim, sim!
— Mas como? Então ama a ambas?
— Oh! Sim, sim!
— Palavra de honra, príncipe, pense no que está dizendo!
— Sem Agláia, eu sou... Preciso absolutamente ver Agláia! Eu... eu vou morrer qualquer dia destes, durante o sono! Ainda na noite passada tive a sensação de estar morrendo... Oh! Se Agláia soubesse, se ela ao menos pudesse vir a saber tudo, mas absolutamente tudo, entende? Pois num caso destes se precisa vir a saber de tudo, isso é que importa! Por que é que nós nunca chegamos a saber tudo relativamente a uma outra pessoa, principalmente quando se censura essa pessoa? Não sei mais o que estou dizendo. Estou zonzo. O senhor me assombrou... Será que ela ainda tem a mesma expressão no rosto, como na hora em que fugiu? Provavelmente é minha a culpa toda. Não sei bem como, mas a culpa é minha. Há em tudo isso qualquer coisa que eu não lhe posso explicar, Evguénii Pávlovitch. Não posso achar as palavras, mas... Agláia... Agláia compreenderia. Eu sempre acreditei que ela compreenderia.
— Não compreenderia não, príncipe. Agláia o amou como mulher, como ser humano e não como espírito abstrato. Quer saber duma coisa mais do que provável, príncipe? O senhor nunca amou nenhuma delas!
— Sei lá! Talvez... talvez seja isso. O senhor tem razão em muita coisa, Evguénii Pávlovitch. O senhor é muito inteligente! Ah! A minha cabeça está começando a doer, outra vez. Pelo amor de Deus, vamos à casa dela! Pelo amor de Deus!
— Mas já lhe disse que não está em Pávlovsk. Foi para Kólmino.
— Então vamos a Kólmino, imediatamente.
— Isso é impossível — declarou Evguénii Pávlovitch, peremptoriamente, levantando-se.
— Ouça, escreverei a ela. O senhor leva a carta.
— Não, príncipe, não! Poupe-me essa incumbência. Não posso.
Despediram-se. Evguénii Pávlovitch saiu com profundas impressões, concluindo de tudo isso que o príncipe não estava em seu juízo perfeito. “Que quereria ele significar com aquele rosto que quanto mais temia mais amava? E quem sabe se realmente não viria a morrer sem ver Agláia, de modo a ela nunca vir a saber quanto ele a amava? Ah!... Pode-se amar duas pessoas ao mesmo tempo? Bem misterioso que isso é... Pobre idiota! Doravante, que será dele?”
10.
Mas o príncipe não morreu antes do casamento, aquele seu pressentimento, confiado a Evguénii Pávlovitch, de que morreria talvez até mesmo à noite, durante o sono, não se tendo realizado.
Continuou dormindo pouco e assim mesmo com pesadelos; mas, de dia, no meio de gente, era amável e parecia sem preocupações, só se perdendo em cismas quando estava sozinho. O casamento fora apressado, já tendo sido fixado, devendo se realizar uma semana depois daquela visita de Evguénii Pávlovitch. Tal pressa embaraçaria seus melhores amigos, caso os tivesse, de salvar o “pobre maluco”. Ao que constava, o general Epantchín e senhora tinham sido, parcialmente, os responsáveis pela visita de Evguénii Pávlovitch. Mas, se na imensa bondade de seus corações, eles podiam desejar salvar o pobre lunático da ruína, era difícil ir além desse fraco esforço, a sua posição e mesmo a sua inclinação sendo incompatíveis com qualquer ação mais pronunciada.
Já mencionamos aqui que muitos dos que formavam a roda do príncipe se opuseram a ele. Vera Liébedieva só teve o recurso de se fechar na solidão do cômodo que habitava, onde, por entre lágrimas, deixou o príncipe sem sua habitual assistência. Kólia estava nessa ocasião ocupado com os funerais do pai, pois o velho general viera a morrer de um segundo ataque que lhe sobreveio oito dias após o primeiro. O príncipe, com a mais fervorosa simpatia, se associou ao luto da família, passando nos primeiros dias várias horas ao lado de Nina Aleksándrovna. Assistiu ao funeral e ao serviço na igreja. A muita gente não passou despercebido que a chegada e a saída dele, da igreja, dera lugar a sussurros entre a assistência que lá estava. Também nas ruas e no jardim, ao passar, mencionavam-lhe o nome, apontando-o, passando ele indiferente aos sussurros entre os quais se distinguia o nome de Nastássia Filíppovna. Cuidaram até que ela tivesse ido aos funerais, mas não a encontraram. Outra pessoa que primou pela ausência foi a viúva do capitão, impedida de tal desplante por Liébediev. A cerimônia do sepultamento causou aflitiva e forte impressão no príncipe que, em resposta a algumas perguntas de Liébediev, confessou que era a primeira vez que assistia a um funeral ortodoxo, apenas guardando vaga lembrança dum outro, na sua infância, na igreja da sua aldeia.
— Sim, nem parece que a pessoa que está no caixão seja a mesma que elegemos presidente ainda no outro dia, não é, príncipe? Por quem está o senhor procurando?
— Oh! Ninguém. Pareceu-me...
— Rogójin?
— Por quê? Ele veio?
— Sim, está lá dentro, na igreja.
— Tive a impressão de haver visto os olhos dele. — Míchkin estava confuso. — Mas por que veio? Foi convidado?
— Nem pensaram nele. Ora, não o conhecem, sequer! Veja que multidão! Há gente de toda espécie! Mas o senhor parece estar espantado? Agora dei para encontrar sempre Rogójin. Na semana passada o encontrei quatro vezes em Pávlovsk.
— Pois eu, desde aquela vez... nunca mais o vi — declarou o príncipe.
O príncipe lá consigo concluíra, já que Nastássia Filíppovna, nem sequer uma só vez, desde aquela noite, lhe dissera ter visto Rogójin, que este se andava retraindo, de propósito. Todo aquele dia esteve o príncipe perdido em raciocínio, ao passo que Nastássia Filíppovna, tanto nesse dia como de noite, estivera excepcionalmente vivaz.
Kólia, que havia feito as pazes com o príncipe antes da morte do pai, sugerira que devia escolher Keller e Burdóvskii para seus padrinhos (pois o casamento ia ser realizado com urgência e portanto precisava tê-los à mão). Garantira o bom comportamento de Keller e a sua provável serventia, não havendo sido necessário se referir a Burdóvskii, sabidamente uma pessoa quieta e sempre às ordens. Nina Aleksándrovna e Liébediev chegaram a fazer ver ao príncipe que, já que o casamento era coisa determinada, não precisava ser em Pávlovsk, numa estação de verão, tão à vista. Sugeriram que isso se realizasse em casa, e melhor ainda, em Petersburgo. Foi só então que o príncipe viu claramente o rumo que suas apreensões estavam tomando. Deu como resposta que não admitia comentários, e que esse era o desejo de Nastássia Filíppovna.
Um dia depois da escolha, foi Keller chamado para falar ao príncipe, sendo então informado que seria o seu “padrinho”. Ficou parado à entrada, e, mal avistou Míchkin, levantou a mão direita, com o dedo polegar afastado dos outros, e jurou, como fazendo um voto:
— Não beberei mais!
Depois se aproximou do príncipe, apertou-lhe calorosamente a mão, sacudindo-a e anunciou que, na verdade, quando ouvira falar nesse casamento, tomara atitude hostil imediata, desancando-o pelos bilhares, pois se antecipara ao príncipe na escolha, diariamente, com a impaciência dum amigo, desejando para ele, no altar, toda de branco, pelo menos uma princesa de Rohan! Mas agora via com os seus próprios olhos que Míchkin procurara e acertara pelo menos doze vezes mais do que todos os amigos juntos! Pois não se importara com pompa, riqueza ou conceito público, só se importando com a verdade! Que as simpatias das pessoas exalçadas eram demasiado bem conhecidas e que o príncipe era demasiado sublime por sua educação para não ser uma pessoa exalçada, falando dum modo geral.
— Mas a ralé, a gentalha, julga diferentemente; na cidade, nas casas, nas reuniões, nas vilas, nos banhos públicos, nas tavernas e nos bilhares não se fala de outra coisa, senão do próximo acontecimento. Já me chegou aos ouvidos, por exemplo, que estão preparando uma serenata ao jeito de vaia, debaixo da sua janela, e isso, a bem dizer, na noite do casamento. Se o senhor vier a precisar da pistola dum homem honesto, estou pronto a trocar uma dúzia de tiros, como cavalheiro, na madrugada seguinte às núpcias.
Aconselhou também, como aviso prévio, já que na certa viria uma onda de almas imundas aglomerar-se diante da igreja, a se ter preparada a mangueira de jorrar água, diante da calçada. Mas Liébediev se opôs, temendo que o jorro da mangueira lhe derrubasse a casa.
— Este Liébediev está intrigando contra o senhor, príncipe, lá isso é que está. Queria pô-lo sob tutela quanto à sua liberdade e ao seu dinheiro, as duas coisas que distinguem cada um de nós dum quadrúpede! Ouvi, ouvi em boas fontes! É a santa verdade!
Míchkin então se lembrou já lhe ter sido rosnada uma coisa assim, a que naturalmente não prestara atenção. Agora, desta vez, também simplesmente se riu e esqueceu de novo. Mas não havia dúvida que, de fato, Liébediev andara, por este tempo, muito ocupado. Os projetos deste homem nasciam de inspirações e, através do ardor com que se metia a ombro, se tornavam demasiado complexos desenvolvendo-se para lá de ramificações desde muito já afastadas do original ponto de partida. Essa a razão por que se atrapalhava em suas empresas. Quando, quase às vésperas do casamento, se dirigiu ao príncipe para expressar seu arrependimento (era um hábito dele vir expressar arrependimento àqueles contra os quais estivera intrigando, principalmente não tendo obtido êxito), declarou que nascera para ser um Talleyrand e não sabia como se tornara um simples Liébediev. E então desvendara todo o seu jogo que escandalizou profundamente o príncipe. Segundo a sua história, começara por procurar a ajuda de certas pessoas de importância, com cujo apoio pensou contar em caso de necessidade. Começara por procurar Iván Fiódorovitch. O general, embora perplexo, acreditou na boa vontade do homem para com o príncipe, mas declarou que por mais que desejasse não lhe era possível agir nesse caso. Lizavéta Prokófievna não o quis ver nem escutar. Evguénii Pávlovitch e o príncipe Chtch... simplesmente o despediram. Mas Liébediev não era homem para perder assim a energia! E foi aconselhar-se com um advogado sagaz, um velho de experiência, seu amigo e até mesmo protetor. Dera-lhe este a opinião de que a coisa só era possível se testemunhas idôneas atestassem o desarranjo mental e a indubitável insanidade; e, ainda mais, pessoas de importância apoiando estas. Liébediev, nem com isso se desencorajou e teceu meios e modos de um médico, também homem de valor, já idoso, com uma condecoração, a cruz de Sant’Ana, e que estava em Pávlovsk, vir ver o príncipe, por assim dizer por acaso, para ver e apalpar o terreno, travando relações com ele e depois, não oficialmente, mas como amigo, dizer o que julgava dele. O príncipe recordava-se da visita desse médico. Recordava-se que, certa noite, Liébediev o amolara a respeito de não o achar bom; mas, vendo que o príncipe categoricamente recusara uma visita médica, Liébediev aparecera, assim por acaso, com o doutor, pretextando que tinham ambos vindo da casa de Ippolít Tieriéntiev, o qual vinha de piorar; e que o doutor, ali, tinha muita coisa a dizer a Míchkin a respeito do doente. O príncipe louvara Liébediev e recebera o médico cordialmente. Puseram-se logo a discorrer sobre Ippolít. O doutor pediu ao príncipe que lhe fizesse um relato da cena do suicídio, bem minuciosa; e o príncipe quase o distraiu com a descrição e a explicação do acidente. Falaram, também, do clima de Petersburgo, das aflições de Míchkin, da Suíça e do Dr. Schneider. A discussão do sistema do Dr. Schneider e as histórias do príncipe a respeito dele interessaram tanto o médico que ficou duas horas e até fumou os excelentes cigarros do príncipe, enquanto Liébediev fora atrás dum licor que pouco depois Vera trouxe. E que o doutor, que era um homem casado e pai de família, se derramou em tais elogios a Vera que a acabaram indignando. Separaram-se como amigos. Tendo deixado o príncipe, o doutor disse a Liébediev que se uma pessoa como aquela devia ser posta sob vigilância, quem estaria apta a vigiá-la? E como resposta à trágica descrição de Liébediev quanto ao próximo acontecimento, o doutor abanara a cabeça, dissimulada e astutamente, observando que, mesmo excluindo o fato de que “não há ninguém com quem um homem não se possa casar”, a fascinante senhora, além de ser incomparavelmente bela, o que só bastava para atrair um homem rico, também — assim, pelo menos, tinha ouvido — possuía uma fortuna, advinda de Tótskii e de Rogójin, em pérolas, diamantes, xales e móveis. Por conseguinte, a escolha do príncipe, longe de ser um forma peculiar, ou melhor, evidente de loucura, era, antes, um testemunho da perspicácia de sua sabedoria mundana e da sua prudente previdência, levando, portanto, à conclusão inteiramente oposta, a favor, com efeito, do príncipe...
Esta opinião impressionara de tal forma Liébediev que não prosseguiu, tendo chegado a dizer a Míchkin:
— E agora, não verá o senhor em mim mais do que devoção e inteireza, pronto até a derramar meu sangue pelo senhor. Vim especialmente para lhe falar como estou falando.
Ippolít também distraiu o espírito do príncipe durante aqueles dias, em que foi chamado à casa dele bastantes vezes. A família estava vivendo em uma pequena casa não longe. Os menores, a irmã e o irmão de Ippolít sentiam-se radiantes em Pávlovsk porque pelo menos aí podiam fugir do doente, escapando para o jardim. A pobre viúva do capitão fora abandonada à sua mercê, sendo sua vítima de agora. O príncipe era obrigado a intervir e a pacificá-los todos os dias; e o doente ainda o apelidava de sua enfermeira, menoscabando-o por tomar o papel de pacificador. Passaram a ter grande ressentimento por Kólia, visto este estar espaçando suas visitas, tendo, primeiramente, passado junto do pai moribundo e depois com a mãe viúva. Por fim fez Ippolít do casamento do príncipe com Nastássia Filíppovna o mote de escárnio, ofendendo tantas vezes, com isso, o príncipe, que este acabou se zangando, a ponto de deixar de visitá-lo. Mas logo daí a dois dias a viúva do capitão trotou para casa do príncipe, de manhãzinha, e implorou com lágrimas que fosse vê-lo, do contrário “aquele indivíduo seria a causa da morte dela”. Inventou até que o doente tinha um segredo para contar. Míchkin foi. Ippolít preparara tudo; chorou, e depois das lágrimas, naturalmente, ainda ficou mais estúpido e insolente do que antes, embora tivesse receado demonstrar o seu despeito. Estava tão mal que pelos indícios o fim estava perto. Não tinha segredo nenhum a dizer-lhe, e sim, apenas, algumas petições. E, sem ar, ou, para melhor dizer, com emoção (possivelmente envergonhado), avisou o príncipe “que se acautelasse contra Rogójin”. “É um homem que nunca largará de mão uma coisa. Ele não é como o senhor, ou eu, príncipe; se quiser uma coisa, nada o demoverá.”
O príncipe começou a interrogá-lo mais minuciosamente, tentando colher fatos, fosse como fosse. Mas fatos não havia e só sentimentos e impressões de Ippolít que para sua intensa satisfação conseguiu o que queria: sobressaltar o príncipe, de modo cabal. A princípio, o príncipe não quis responder a certas insinuações de Ippolít, apenas sorrindo ao seu conselho de “ir para o estrangeiro; que havia padres russos por toda parte, que se poderia casar por lá”, terminando com esta sugestão:
— É por causa de Agláia Ivánovna que eu receio, o senhor sabe. Rogójin sabe quanto o senhor a ama. É um caso de amor por amor. O senhor lhe roubou Nastássia Filíppovna! Ele então matará Agláia Ivánovna; e muito embora ela não seja sua, o senhor ficará sentido, pois não é?
Conseguiu o seu fim; o príncipe deixou-o, partindo completamente zonzo.
Estas advertências relativas a Rogójin foram feitas na véspera do casamento. À tarde, o príncipe viu Nastássia Filíppovna pela última vez antes do casamento. E ela não estava em estado de o deixar sossegado. Pelo contrário, ultimamente o pusera mais e mais apreensivo. Até aquela tarde, isto é, dias antes quando ela o via, se esforçava por encorajá-lo, estando terrivelmente assustada com a sua expressão melancólica. Chegou a cantar para ele. Coisas assim alegres, que lhe vinham à mente, ao que o príncipe, fingindo, ria cordialmente. Algumas vezes, porém, ele ria de verdade ante a maneira brilhante, o talento e o sentimento puro que ela punha ao lhe contar histórias, deixando-se levar pelo assunto, inefavelmente. Alegrava-a a alegria do príncipe e começava a orgulhar-se dele. Mas, de hora a hora, a tristeza e a ansiedade cresciam mais marcadamente nele. A sua opinião sobre Nastássia Filíppovna estava feita, senão a atitude dela lhe pareceria incompreensível e enigmática; acreditou, porém, que ela se refaria. Fora sincero quando disse a Evguénii Pávlovitch que a amava verdadeira e sinceramente e que em seu amor havia um elemento de ternura para com uma criança doente e infeliz que não podia ser deixada entregue a si mesma. Não explicou a mais ninguém o seu sentimento por ela e de fato o desagradava falar nisso quando lhe era impossível evitar o assunto. Quando estavam os dois juntos, não discutiam “os seus sentimentos”, como se nisso houvesse uma tácita promessa mútua. Qualquer pessoa podia testemunhar a alegria e a agitada conversação diária de ambos. Dária Aleksiéievna costumava dizer, muito depois, que não fizera outra coisa aqueles dias senão admirar-se e rejubilar, olhando-os.
Mas a sua noção sobre a condição mental e espiritual de Nastássia Filíppovna, em certo grau o poupava de muitas perplexidades. Ela, agora, era uma mulher completamente diferente da mulher que conhecera três meses antes. Não achou paradoxal, por exemplo, que ela, que preferira fugir a casar com ele, e fugir com lágrimas de maldições e de reprimendas, insistisse agora no casamento, o que o fez acreditar que ela já não julgava mais que tal casamento o desgraçaria. Tão rápida prova de confiança em si mesma, no ver do príncipe, não parecia natural; e muito menos decorrer apenas do seu ódio para com Agláia Ivánovna, conquanto fosse capaz de sentir sobremaneira tal ódio. Não podia provir também do temor do seu destino com Rogójin, muito embora tanto esta como as outras coisas pudessem sedimentar dentro dela. Mas o que claramente ficava patente ao seu espírito era a desconfiança antiga: isto é, que aquela pobre alma estivesse estilhaçada. Se tais conhecimentos lhe poupavam perplexidades, não eram de molde, todavia, a lhe dar paz e sossego, todo esse tempo.
Às vezes experimentava não pensar em nada disso; punha-se a encarar o seu casamento apenas como qualquer formalidade comum; muito menos se inquietava com o próprio destino. Quanto a certos protestos, como no gênero das conversas com Evguénii Pávlovitch, se sentia totalmente incapaz de responder a eles, tal incapacidade sendo de tal ordem que o melhor era esquecer qualquer referência.
Percebeu porém que Nastássia Filíppovna sabia e compreendia perfeitamente bem tudo quanto Agláia Ivánovna significava para ele. Nunca lhe dissera nada, mas naqueles dias em que ele teimara em ir à casa dos Epantchín, o rosto dela mostrava bem sua apreensão; esse rosto só tendo ficado calmo e radiante quando ela veio a saber que tal família deixara Pávlovsk. Embora fosse o príncipe pouco perspicaz, o pensamento de que Nastássia Filíppovna podia armar algum escândalo para obrigar Agláia a sair de Pávlovsk, tinha-o atormentado até a partida dos Epantchín. As conversas e o nervosismo em todas as vilas de Pávlovsk por causa de tal casamento eram sem dúvida sustentados por Nastássia Filíppovna com o propósito de irritar a sua rival. E como, naqueles dias, fora difícil encontrar os Epantchín, Nastássia Filíppovna deu um jeito de passar em frente das janelas deles, com o príncipe ao lado, na carruagem. O príncipe caiu nessa armadilha, só percebendo, e muito surpreso (o que estava de acordo com seu atarantamento), quando a caleça já se achava rente à fachada e já era tarde demais para evitar o escândalo. Não ousou fazer nenhuma reprimenda, mas ficou doente dois dias; donde ela não repetir a experiência. Nos dias anteriores à data do casamento, ela teve crises de tristeza. Conseguia disfarçar. Recalcava a melancolia, tornava-se cada vez mais carinhosa e meiga, mas não com o antigo arrebatamento de felicidade. O príncipe redobrou a atenção. Intrigou-o, como fato curioso, nunca lhe falar de Rogójin. A não ser certa vez, uns cinco dias antes da data do casamento, é que Dária Aleksiéievna lhe mandou recado urgente para que viesse imediatamente, visto Nastássia Filíppovna estar num estado terrível.
Encontrou-a a gritar, a chorar e a tremer, dizendo que Rogójin estava escondido no jardim, em sua casa! Que tinha acabado, ainda agora, de vê-lo! Que ele a ia matar, de noite, que lhe ia cortar a garganta! Não houve meio de acalmá-la. Mas, indo já bem depois Míchkin ver Ippolít, a viúva do capitão, que acabava de chegar da cidade onde fora a pequenos negócios seus, lhe contou que Rogójin fora nesse dia ao seu cômodo e lhe fizera lá perguntas a respeito de Pávlovsk. Em resposta ao relato do príncipe respondeu ela que Rogójin tinha estado a falar com ela justamente na hora mesma da suspeita de estar no jardim da casa de Nastássia Filíppovna, ficando, pois, tudo explicado como pura imaginação. Nastássia Filíppovna depois de fazer insistentes perguntas à viúva do capitão, acabara ficando grandemente aliviada.
Mas, na véspera do casamento, deixara-a o príncipe em grande excitação. O enxoval tinha chegado do costureiro, de Petersburgo. O vestido nupcial, o véu de noiva, e assim por diante. O príncipe não julgava que à vista do vestido ela ficasse tão nervosa. Gostou de tudo e, segundo as suas expressões, estava mais feliz do que nunca. Mas deixou também deslizar o que estava em seu espírito; que ouvira que na cidadezinha havia rancor; que os boêmios da praça estavam preparando uma espécie de demonstração, uma espécie de charivari, com música e versos compostos para o momento, tudo com a aprovação geral da sociedade de Pávlovsk. E que, por isso mesmo, queria erguer a cabeça ainda mais alto do que nunca, diante deles, para deslumbrá-los a todos com o bom gosto e a riqueza de seus enfeites. “Deixá-los sussurrar! Que me vaiem, se são capazes!” E os seus olhos dardejavam, ante mero pensamento disso. Tinha um outro pensamento secreto que não exteriorizou alto. Esperava que, por dados motivos, Agláia ou, a seu mando, qualquer outra pessoa, estivesse também no meio dos curiosos quando houvesse aglomeração, ou às escondidas na igreja. E secretamente se preparava. Eram onze horas da noite quando se separou do príncipe, ficando absorta em tais pensamentos. Mas antes de soar a meia-noite um mensageiro chegou correndo; queria falar com o príncipe, da parte de Dária Aleksiéievna, que lhe rogava “que viesse imediatamente, que ela estava muito mal”.
Encontrou o príncipe sua noiva na cama, chorando, em desespero, numa grande crise, durante muito tempo não dando resposta ao que lhe era dito através da porta fechada. Por fim, abriu, não deixou entrar mais ninguém, senão o príncipe. Caiu de joelhos, diante dele (assim, pelo menos, Dária Aleksiéievna, que conseguiu espiar, contou depois).
— O que estou fazendo? O que estou fazendo? O que estou fazendo de ti? — gritava, abraçando-lhe os pés, convulsivamente.
O príncipe teve que passar uma hora inteira com ela. Não sabemos sobre que conversaram. Contou Dária Aleksiéievna que se separaram despedindo-se em paz e felicidade. E que, durante a noite, o príncipe mandara uma vez saber notícias dela, lhe tendo sido dito que caíra em profundo sono.
De manhã, antes mesmo dela ter acordado, dois recados tinham sido mandados perguntando por ela a Dária Aleksiéievna, sendo que um terceiro mensageiro veio de lá, depois, dizendo que havia um verdadeiro enxame de costureiros e cabeleireiros de Petersburgo, em volta de Nastássia Filíppovna, agora, não havendo nem traço da balbúrdia da véspera ou da noite. Que estava ela toda atarefada em se embelezar, preparando a toilette do casamento. E que bem neste minuto, agora, havia uma importante consulta a respeito de quais diamantes devia pôr, e como pô-los.
O príncipe ficou completamente calmo.
A narração do que se seguiu, durante a cerimônia, me foi dada por pessoa que assistiu a tudo. E creio que contou corretamente.
Estava o casamento marcado para as oito horas da noite. Mas, às sete, Nastássia Filíppovna já estava quase completamente pronta. Uma turba fervilhante começara a ajuntar-se desde as seis em volta da vila de Liébediev. E outra, ainda maior, diante da casa de Dária Aleksiéievna. A igreja começara a encher desde as sete horas. Vera Liébedieva e Kólia achavam-se muito nervosos, por causa de Míchkin, embora estivessem muito ocupados preparando a recepção e os refrescos nos apartamentos do príncipe, apesar dos convidados não serem em grande número. Além das pessoas indispensáveis, estariam presentes Liébediev, os Ptítsin, Gánia, o doutor com a sua cruz de Sant’Ana ao pescoço, e Dária Aleksiéievna como convidada também. Tendo sido perguntado ao príncipe por que fora o doutor convidado, sendo “homem que mal conhecia”, respondeu complacentemente:
— Em consideração ao seu busto condecorado; como se trata de pessoa muito respeitada, convém ao estilo da coisa! — E riu.
Keller e Burdóvskii, em traje de gala, de luvas, pareciam estar corretos; apenas Keller tendo perturbado outra vez o príncipe e seus partidários, pela insistência que não era lá muito distinta, agora, de brigar, lançando olhares assaz hostis, da janela e da porta, à onda de curiosos que cercava a casa.
Por fim, às sete e meia, o príncipe saiu para a igreja, de carro. Queremos observar que ele, particularmente, não quis omitir nenhuma das cerimônias usuais, tudo devendo ser feito, abertamente, publicamente e na “devida ordem”. Tendo feito, como foi possível, a sua passagem por entre a multidão, na igreja, escoltado por Keller, que ainda dardejava olhares ameaçadores para a direita e para a esquerda, e seguido dum contínuo fogo de sussurros e exclamações, o príncipe desapareceu temporariamente atrás do altar-mor da igreja, enquanto Keller saiu para ir buscar a noiva na casa de Dária Aleksiéievna, lá encontrando uma multidão duas ou três vezes maior e mais estouvada e crepitante do que a que rodeava a casa do príncipe. Ao subir a escada ouviu exclamações que ultrapassavam sua capacidade de paciência e já se ia voltar para dirigir uma arenga apropriada à ralé e à gentalha quando foi impedido disso, ainda a tempo, por Burdóvskii e Dária Aleksiéievna. Contendo-o, obrigaram-no a entrar. Keller era todo irritação e pressa. Nastássia Filíppovna levantou-se, olhou-se ainda ao espelho, observando-se com um sorriso contrafeito, conforme depois Keller contou, “tão pálida como a morte”, inclinou-se com toda a devoção para o ícone e se dirigiu para os degraus.
Um zumbido de vozes, quase clamor, saudou a sua aparição. No primeiro instante é verdade que houve sons de risos e aplausos, talvez mesmo assobios; mas, dentro de um momento, começaram a ser ouvidas coisas assim:
— Que beleza! — exclamavam de dentro da multidão.
— Não é a primeira e nem será a última!
— Vai cobrir tudo com a cauda do vestido nupcial!
— Uma beleza destas não se acha tão depressa! — gritaram os que estavam mais perto. — Hurra!
— Que princesa! Por uma princesa assim, vendo a alma! — gritou um serventuário que avaliou: — “Uma noite pelo preço de uma vida!”
Nastássia Filíppovna evidentemente estava tão branca como um lenço, quando apareceu com os seus grandes olhos postos sobre a multidão. Olhos que pareciam carvões acesos. Toda a turba, agora, era a seu favor, pois a indignação se tinha transformado em gritos de entusiasmo. E a porta da carruagem já estava aberta, e Keller já oferecia o braço à noiva, quando ela, de súbito, deu um grito e enveredou por entre a multidão. Todos, acompanhando-a com os olhares, ficaram petrificados de pavor. A multidão abriu-se para lhe dar passagem. E nisto, a cinco ou seis passos do último degrau, apareceu Rogójin. Nastássia Filíppovna lhe descobrira os olhos no meio da multidão. Arremessou-se na direção dele, como uma criatura que enlouqueceu; agarrou-se a ele, com as duas mãos, gritando:
— Salve-me. Leve-me daqui. Para onde quiser, já!
Tomando-a nos braços, Rogójin a carregou para a sua carruagem. Num relance puxou uma nota de cem rublos, entregando-a ao cocheiro.
— Para a estação da estrada de ferro. Se pegarmos ainda o trem, mais outra nota igual!
Disse e pulou para dentro da carruagem onde já estava Nastássia Filíppovna; e bateu a porta. O cocheiro não hesitou um momento. Fustigou os cavalos. Keller deu explicações, depois: que tinha sido pegado de surpresa! “Um minuto só, mais, e eu voltaria a mim e não os teria deixado fugir”, explicou, ao descrever a aventura. Burdóvskii pensou em tomar uma outra carruagem que se encontrava ali perto, ao lado, e correr em perseguição de Rogójin, mas refletiu, quando já estava para sair, considerando que “de qualquer forma era demasiado tarde e ninguém a iria trazer à força”.
— E o príncipe não haveria de querer isso, não! — decidiu Burdóvskii, tremendamente agitado.
O carro, ao galope dos animais, chegou à estação, ainda a tempo. Rogójin e Nastássia Filíppovna saltaram a correr. E quando Rogójin já estava a subir para o trem, fez parar uma meninota que se achava com um manto preto, ainda decente, embora usado, e com um lenço de seda na cabeça.
— Quer cinquenta rublos por isso? — perguntou, instantaneamente, estendendo o dinheiro para a rapariga que ficou espantada, sem saber se segurava ou não o dinheiro. E logo Rogójin lhe arrebatou manto e lenço que jogou aos ombros e à cabeça de Nastássia Filíppovna. Sua toilette fora do comum despertaria atenção durante a viagem. E foi só depois, quando os viu desaparecer no vagão, que a rapariguinha compreendeu qual a serventia do seu manto velho e do lenço barato.
A notícia do que acabara de acontecer chegou à igreja com uma rapidez assombrosa. Quando Keller entrou como um raio, muitas pessoas se precipitaram para ele a fazer-lhe perguntas. Ninguém saiu da igreja que burburinhava de falatórios, risadas e movimentos de cabeças. O que todo o mundo queria era ver como o noivo receberia a notícia.
Ele recebeu a comunicação com aparente calma; apenas ficou pálido e teve certa dificuldade em dizer:
— Eu tinha qualquer receio, mas nunca pensei que isto viesse a acontecer. — E acrescentou depois de breve pausa: — Contudo, está na ordem natural das coisas, principalmente tendo em vista o estado dela.
Até Keller falou depois sobre tal observação do príncipe como sendo de “uma filosofia incomparável”.
Aparentemente calmo e resignado, o príncipe deixou a igreja; pelo menos assim muita gente teve a impressão e comentou depois. Tinha o ar de querer veementemente ir embora para casa e ficar sozinho, nem isso lhe tendo sido de todo permitido, pois vários convidados o acompanharam até aos seus aposentos: Ptítsin, Gavríl Ardaliónovitch e o médico que, como os outros, não pensou em tão cedo ir embora. Era mais do que natural que a casa em pouco estivesse literalmente rodeada de gente desocupada. Lá da varanda, Míchkin ouvia Liébediev e Keller, furiosos, afastando pessoas desconhecidas que só por estarem regularmente vestidas se julgavam no direito de ir entrando. A algumas delas que se adiantaram se dirigiu o príncipe, perguntando do que se tratava, polidamente afastando Keller e Liébediev. Depois se encaminhou para um cavalheiro corpulento, de cabeça grisalha, parado diante dos degraus, à frente dum dos tais grupos, e cortesmente o convidou a honrá-lo com a sua entrada. Um tanto desconcertado, o homem entrou, seguido logo depois de um segundo e um terceiro. Até que do grupo entraram bem uns oito, que conseguiram isso de maneira desenvolta. Depois do que, não houve mais quem se arriscasse a se ajuntar àqueles, pondo-se até alguns, cá de fora, a censurar os outros que, no entanto, lá dentro se assentavam, desmanchando-se em conversa e aceitando o chá que lhes era oferecido. Tendo isso, da parte do príncipe, sido feito com modéstia e espontaneidade, a surpresa dos recém-chegados se foi transformando em grata expectativa. Ficaram, naturalmente, tentando reanimar a conversa e encaminhá-la para o tema que jazia culminante em seus espíritos. Arriscaram umas perguntas indiscretas, também tendo sido proferidas certas observações. O príncipe respondeu a tudo com tanta simplicidade e cordura e, ainda por cima, com tamanha dignidade e confiança na bem educada intenção dos convidados que a atmosfera de curiosidade se extinguiu por si mesma. Pouco a pouco a conversa enveredou para outras coisas, aliás sérias. Um cavalheiro, por exemplo, pegando no ar qualquer palavra, jurou, repentinamente, com intensa indignação, que não venderia a sua propriedade, acontecesse o que acontecesse, mas que, muito pelo contrário, iria contemporizando, e que “possuir imóveis era melhor do que dinheiro”.
— Este é que é o meu sistema econômico, meu caro senhor, e não há mal nenhum em comunicar este meu ponto de vista. — Dirigia-se ao príncipe que calorosamente levou em apreço aquelas palavras, até que Liébediev lhe disse ao ouvido, disfarçando, que aquele indivíduo não tinha lar, nem casas nem propriedade de espécie alguma. Quase uma hora se passou nisto e o chá acabou, ficando então as visitas sem jeito de permanecer mais tempo. O doutor e o cavalheiro dos cabelos grisalhos despediram-se efusivamente de Míchkin, pondo-se também os demais em debandada, despedindo-se com ruidosa cordialidade, expressando a opinião de que não era preciso ninguém se afligir, que tudo acabaria da melhor forma; e assim por diante. Antes tinha havido tentativas de pedir champanha, acabando, porém, as pessoas mais velhas por frear a rapaziada.
Depois que todos se foram embora, Keller se inclinou para Liébediev e lhe fez ver que “você e eu devíamos ter feito uma barreira, ter brigado, mesmo que nos desgraçássemos e fôssemos arrastados até a polícia! Mas ele fez uma porção de novos amigos. E que amigos! Conheço-os a todos.”
Liébediev que estava um pouco “alto” grasnou, por entre gesticulações:
— “Aos sábios e aos prudentes escondeste estas coisas mas as revelaste às criancinhas!” Já antes disse eu isto, referindo-me a ele, mas agora acrescentarei que Deus salvou a própria criança do báratro sem fundo. Ele e os Seus santos!
Enfim, lá para as dez e meia, o príncipe conseguiu ficar sozinho. Doía-lhe a cabeça. Kólia ajudou-o a mudar a roupa de casamento pelo terno diário e foi a última pessoa a deixá-lo, tendo-se despedido com muita efusão, sem falar no que havia acontecido, e prometendo vir bem cedo no dia seguinte. Depois, no inquérito, testemunhou que o príncipe não deixara escapar nenhuma insinuação ou pressentimento fosse sobre o que fosse, na hora de se despedirem, tendo pois escondido até dele suas intenções. E em breve não ficou mais ninguém na casa, tendo Burdóvskii ido ver Ippolít, e Keller com Liébediev saído decerto para beber. Apenas permaneceu, por algum tempo ainda, no apartamento do príncipe, Vera Liébedieva. E isto mesmo para apressadamente repor as coisas em seus costumeiros lugares, olhando, de relance, ao sair, para Míchkin que estava sentado, com os cotovelos fincados sobre a mesa e com a cabeça escondida entre as mãos. O príncipe voltou-se para ela, com surpresa, e por um minuto ficou como que a se querer recordar. Mas, recordando e reconhecendo as coisas, uma a uma, pouco a pouco foi começando a ficar agitado. O mais que fez, porém, foi pedir-lhe muito sério, que lhe batesse na porta, no dia seguinte, às sete horas, com tempo de ainda pegar o primeiro trem, tendo Vera dito que sim. Ao que o príncipe lhe rogou que não dissesse isso a ninguém. Ela tornou a prometer. E, quando já estava abrindo a porta para sair, o príncipe a chamou, uma terceira vez, tomou-lhe as mãos, beijou-as, depois lhe beijou a testa e, de maneira um tanto esquisita, lhe disse:
— Até amanhã.
Assim, pelo menos, o descreveu Vera, depois.
Saiu, muito aflita, por causa dele. E, em verdade, só teve ânimo e sossego de manhã quando, às sete horas, lhe bateu à porta, conforme a combinação, informando-o que o trem para Petersburgo partiria dentro dum quarto de hora. E, pelo tom, lhe pareceu que ele respondera de forma natural e até mesmo afável. Disse, lá de dentro, que nem se despira, mas que tinha dormido um pouco. Que pensava voltar ainda hoje. Parecia, por conseguinte, que ele julgara melhor e mais conveniente não dizer senão a ela, nesse momento, que ia à cidade.
11.
Uma hora depois já chegava a Petersburgo. E logo um pouco depois das nove horas estava tocando a campainha da casa de Rogójin. Durante longo tempo, parado no vestíbulo do andar, não foi atendido. Insistiu. Por fim a porta da ala ocupada pela mãe de Rogójin foi aberta por uma empregada idosa e de aparência respeitável que foi logo informando:
— Parfión Semiónovitch não está em casa. Com quem quer falar o senhor?
— Com Parfión Semiónovitch.
— Não está. — A criada olhava para o príncipe com uma curiosidade desatenciosa.
— Em todo o caso me informe se ele dormiu em casa esta noite e se chegou sozinho aqui, ontem!
A velha continuava olhando para ele sem responder.
— Esta noite passada não veio com ele, para aqui, Nastássia Filíppovna?
— Mas permita, por favor, que lhe pergunte: quem é o senhor?
— O príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin. Somos amigos íntimos.
— O patrão não está em casa. — A mulher abaixou os olhos.
— E Nastássia Filíppovna?
— Não entendo o que o senhor está falando.
— Espere, espere! Quando é que ele volta?
— Quanto a isso, não sabemos tampouco.
E a porta fechou-se.
O príncipe resolveu voltar daí a uma hora justa. Deu uma olhadela ao pátio e viu o porteiro.
— Parfión Semiónovitch está em casa?
— Sim, está.
— Como é que me disseram agora mesmo que não estava?
— Disse-lhe isso a empregada dele?
— Quem me disse foi a empregada da mãe dele. Toquei a campainha da porta dele, mas não obtive resposta.
— Talvez ele tenha saído — ponderou o dvórnik. — Ele nunca avisa, sabe? Às vezes leva a chave e as peças ficam fechadas até três dias seguidos.
— Veja se se lembra bem se ele esteve em casa ontem!
— Esteve sim. Às vezes entra pela porta da frente e a gente não vê.
— E não estava Nastássia Filíppovna com ele, ontem?
— Isso não posso dizer. Ela não vem muito por aqui. Penso, porém, que se tivesse estado, a gente teria visto, ou pelo menos sabido.
Perdido em pensamentos, o príncipe, tendo saído, começou a caminhar pela calçada oposta, para cima e para baixo. Reparara já que as janelas do apartamento de Rogójin se achavam fechadas e que as do lado onde a mãe dele morava estavam quase todas abertas. Era um dia quente e luminoso. Lá da calçada fronteira tornou a olhar para cima. E então distinguiu que, além de fechadas, as janelas tinham entre as vidraças, cortinas brancas. Ficou parado algum tempo e teve, de repente, como que a impressão de que um canto duma cortina fora afastado e logo largado, no ínterim entre uma coisa e outra lhe parecendo ter visto, de relance, a cara de Rogójin, numa espécie de vislumbre. Esperou mais um pouco, depois resolveu voltar e tocar outra vez; refletindo porém melhor, resolveu esperar uma hora. “E quem sabe se não foi apenas imaginação minha...”
Mas essa resolução de adiar por uma hora fora subconsciente pressa de ir até Ismáilovskii Polk, ao apartamento que Nastássia Filíppovna ocupava ultimamente. Lembrou-se que três semanas antes, quando a seu pedido deixara Pávlovsk, ela se tinha ido acomodar em casa duma amiga, viúva dum mestre-escola, estimável senhora com família, que alugava peças mobiliadas e que vivia, realmente, quase que só disso. Assim, pois, não era de todo improvável que, voltando a Pávlovsk, pela segunda vez, não tivesse conservado os aposentos. E, de qualquer forma, mais provável era agora que tivesse passado esta noite, de ontem para hoje, naqueles aposentos, levada naturalmente por Parfión. O príncipe tomou uma tipoia e no caminho lhe veio a censura de não ter começado por onde agora ia, pois era evidente que ela não teria passado a noite em casa de Rogójin, reforçando-lhe este pensamento a afirmativa do porteiro de que Nastássia Filíppovna raramente aparecia. Se, dantes, não aparecia senão raramente, por que haveria de permanecer em casa de Rogójin essa noite? Procurando se reconfortar com tais deduções, chegou Míchkin à casa de Ismáilovskii Polk, mais morto do que vivo.
Mas, para grande decepção sua, na casa da viúva do mestre-escola nem sequer tinham ouvido falar em Nastássia Filíppovna essa manhã, ou na véspera; mas todos acorreram para o observar como a um prodígio. A numerosa família daquela senhora, todas meninas entre sete e quinze anos, rodeara a mãe, fitando Míchkin com muita vivacidade. Juntou-se-lhes a tia, de cara chupada e amarela e, por último, a avó, muito idosa, de óculos. A dona da casa, muito diligentemente, lhe sugeriu que entrasse e se sentasse, o que o príncipe logo fez. Percebeu que sabiam muito bem quem ele era e que estivera para se casar na véspera, estando mortas por perguntar pela noiva, muito abismadas por estar ele a indagar da esposa que, não havia dúvida, devia estar consigo àquela hora, em Pávlovsk. Mas, delicadas como eram, não o fizeram. Em breves palavras lhes satisfez a curiosidade quanto ao casamento. Gritos e exclamações de espanto e de admiração se seguiram, de modo que se viu na obrigação de contar a história quase toda, embora por alto, naturalmente. Por fim, as senhoras idosas e sábias, em concílio, determinaram que a primeira coisa a fazer, indubitavelmente, era bater à porta de Rogójin até obter resposta, procurando saber, positivamente, alguma coisa dele. Caso não estivesse em casa (do que ele teria que se certificar de modo absolutamente certo!), ou se não quisesse dizer, então o príncipe devia ir imediatamente à casa duma senhora alemã que vivia em companhia da mãe em Semiónovskii Polk, muito amiga de Nastássia Filíppovna; quem sabia lá se, no seu atarantamento e desejo de se esconder, não fora passar a noite lá, com elas?
O príncipe levantou-se, completamente arrasado. Segundo, depois, elas depuseram, ficara mortalmente pálido; de fato, as suas pernas não se resolviam a caminhar. Percebeu, dentro do terrível e agudo estridor de suas vozes que estavam combinando agir com ele, e que lhe perguntavam o seu endereço na cidade. Ainda por cúmulo, não tinha ele endereço algum para lhes dar. Aconselharam-no a ir então para um hotel; o príncipe pensou um pouco e lhes deu o nome do hotel onde estivera uma vez já, aquele onde cinco semanas antes sofrera um ataque.
Encaminhou-se novamente para a casa de Rogójin. Lá, desta vez, não conseguiu ser atendido em nenhuma das duas portas. Foi então procurar o porteiro, com muita dificuldade acabando por encontrá-lo no pátio, ocupado, e que lhe respondeu grosseiramente, olhando-o de esguelha, garantindo que Parfión Rogójin saíra de manhã, muito cedo, para Pávlovsk, não devendo voltar a casa esse dia.
— Fico esperando. Talvez volte à noite.
— Não voltará nem daqui a uma semana. É escusado.
— Mas, então, esteve em casa esta noite?!
— Que esteve, lá isso esteve. Pode ficar certo.
Tudo era muito suspeito e havia qualquer coisa esquisita nisso. Muito possivelmente o porteiro recebera instruções recentes, na sua ausência de ainda agora, pois como era que, da primeira vez, fora tão tagarela e agora lhe voltava as costas? Sem dizer nada, o príncipe resolveu voltar daí a duas horas e, se achasse preciso, ficar vigiando a casa, logo lhe sobrevindo uma esperança na pessoa da senhora alemã de Semiónovskii Polk.
Mas na casa da senhora alemã não entenderam uma palavra do que ele queria. E, por algumas palavras deixadas escapulir, o príncipe se deu conta de que essa beldade alemã cortara relações com Nastássia Filíppovna, quinze dias antes, não tendo pois ouvido mais falar nela, ultimamente, esmerando-se mesmo em dar a entender que não se importava absolutamente de saber até “que se tinha casado com todos os príncipes do mundo”. O príncipe apressou-se em ir embora. E então começaram a lhe ocorrer outras hipóteses e conjeturas. Ela podia ter ido para Moscou, como já fizera antes, uma vez, tendo naturalmente Rogójin ido depois, ou talvez mesmo com ela. “Se, ao menos, eu pudesse achar alguns traços!” Nisto, se lembrou que lhe era conveniente ficar um pouco no hotel; e foi ligeiro para a Litéinaia. Arranjou logo um quarto. O criado perguntou-lhe se queria comer alguma coisa. Respondeu a esmo que sim. Depois, quando caiu em si, ficou furioso em ter que perder meia hora com um almoço. E ainda foi muito depois que lhe veio a evidência que não era obrigado a comer o que lhe haviam trazido. Ao sair afinal do hotel, mal sabendo o que estava fazendo, uma estranha sensação tomou posse dele quando se viu ao longo do corredor escuro e abafado. Uma sensação que custou, cruelmente lenta, a se transformar em pensamento perceptível. Perceptível? Pois se nem assim pôde adivinhar que pensamento novo, ou velho, era esse em que se debatia! A sua cabeça estava num rodopio. Mas, para onde estava ele indo agora? Arremessou-se, outra vez, na direção da casa de Rogójin.
Mas este não havia voltado. Resposta nenhuma, por mais que tocasse a campainha ou batesse. Foi tocar diante da porta da velha senhora Rogójin. Estava aberta, e algum tempo depois de espera, alguém lhe disse que Rogójin não estava e nem estaria durante, pelo menos, três dias. O príncipe ficou mais perplexo ainda ao se sentir olhado, como antes, com tão desconcertante curiosidade.
Desta vez não conseguiu, de modo algum, encontrar o porteiro. Atravessou para a calçada do outro lado, como já fizera antes, percorreu a vista pelas janelas e ficou caminhando para cima e para baixo, por meia hora, ou possivelmente mais, sob o calor insuportável. Em todo esse tempo, coisa alguma buliu lá em cima; as cortinas brancas estavam imóveis e as janelas permaneciam fechadas. Imaginou que, decerto, daquela vez, antes, se tinha enganado; devia ter sido mera alucinação.
De fato, as vidraças eram opacas e encardidas, sendo difícil cá de baixo distinguir se alguém espiava de lá. Sossegado com estas reflexões, dirigiu-se de novo à casa da viúva em Ismáilovskii Polk.
Já o estavam esperando, aflitas. A senhora estivera pessoalmente já em três ou quatro lugares, inclusive na porta da residência de Rogójin, onde nada pudera saber nem ver. O príncipe, ouvindo em silêncio, entrou para a sala, sentou no sofá e ficou a olhar como se não estivesse entendendo o que elas todas lhe contavam, falando ao mesmo tempo. Por mais estranho que seja, convém ser dito aqui que, em dado momento, o seu olhar era de quem está com o espírito completamente ausente do corpo. Toda a família declarou mais tarde que, nesse dia, ele estava assim como uma pessoa em quem é fácil ver que “o fim já era claro”. Posto o quê, se levantou e pediu para ver os aposentos que tinham sido de Nastássia Filíppovna. Estes eram claros, altos, lindamente mobiliados, dos que se alugam a alto preço. As senhoras relataram mais tarde como foi que o príncipe examinou tudo, minuciosamente, coisa por coisa, objeto por objeto. Que, tendo visto sobre a mesa um livro aberto, um volume francês, Madame Bovary, dobrou a folha, fechou-o, pediu permissão para levá-lo e sem ouvir as explicações das senhoras de que o livro era de uma biblioteca circulante, meteu-o a seguir no bolso externo do paletó. Sentou-se um pouco, em frente mesmo da janela. E depois, notando uma mesa de jogo, com o tampo coberto de rubricas de giz, perguntou quem tinha estado a jogar. Responderam que na temporada anterior Nastássia Filíppovna costumava jogar todas as noites, com Rogójin, paciência, o burro, durakí uíste e mielniki. Que se tinham posto a jogar cartas, naquela vez em que vieram de Pávlovsk, porque Nastássia Filíppovna vivia sempre se queixando que estava entediada, que Rogójin nem conversar sabia, as noites sendo insuportáveis. Que muitas vezes até chorara. E que então, uma noite, sem dizer nada, ele, Rogójin, trouxera um baralho. Que Nastássia ficara contente, dando então em jogar para se distrair. O príncipe perguntou pelo baralho; mas não houve meio das cartas aparecerem. É que Rogójin trazia um baralho novo todas as tardes levando o usado cada vez que se ia embora, de noite.
Aconselharam-no as senhoras a voltar ainda à casa de Rogójin e a tocar bem alto e bater com força. Não agora, mas de noite. “Talvez conseguisse alguma coisa.” Ofereceu-se a viúva, a, enquanto isso, ir até Pávlovsk, pessoalmente, à casa de Dária Aleksiéievna, a fim de indagar se alguma coisa fora sabida lá. Sugeriram a Míchkin que em todo o caso voltasse às dez horas para, se fosse necessário, combinarem os planos para o dia seguinte. A despeito de todas as tentativas para consolá-lo e acalmá-lo, a sua alma estava subjugada por um absoluto desespero, tendo se dirigido para o hotel numa inexprimível angústia. A poeirenta e sufocante atmosfera de Petersburgo pesava sobre ele como uma prensa; era acotovelado por gente vagarosa ou bêbeda; fixava a êsmo as fisionomias. E decerto caminhou muito além do que o necessário, já sendo quase noite quando voltou para o seu quarto. Resolveu descansar um pouco antes de tornar a ir à casa de Rogójin, como lhe tinham aconselhado. Sentou-se num sofá, apoiou os cotovelos sobre a mesa, afundou em pensamentos.
Deus sabe o tempo e aquilo em que pensou. Havia muitas coisas que ele temia. Sentiu dolorosamente, pungentemente, uma terrível apreensão. Mais, bem mais que apreensão. Pavor. Vera Liébedieva lhe veio ao espírito. E nisto o pensamento o assaltou de que Liébediev talvez soubesse dalguma coisa; ou que, se não soubesse, pudesse procurar mais depressa e com mais facilidade do que ele. Depois se lembrou de Ippolít; e que Rogójin costumava conversar com Ippolít. E pensou ainda em Rogójin, quando estivera no funeral, depois no jardim e depois — e isso repentinamente — naquela vez em que ele, Rogójin, estivera ali no corredor do hotel e como se escondera e o esperara com um punhal. Recordou-se dos olhos dele, aqueles olhos que o olhavam em brasa, na treva. Estremeceu, porque um pensamento, esse pensamento que se estava conformando em expressão aguda, lhe veio à cabeça.
Se Rogójin estivesse em Petersburgo, escondido mesmo, por enquanto, acabaria, certamente, por vir até ele, o príncipe, fosse com boa ou com má intenção, como já fizera uma vez. De qualquer maneira, se, pois, quisesse vir vê-lo, não podia ser em lugar nenhum senão ali, naquele corredor. Não tendo nenhum outro endereço, só poderia supor que ele, o príncipe, estivesse no mesmo hotel de antigamente. Acabaria por vir procurá-lo ali; tentaria isso, se tivesse grande precisão dele. E quem sabia lá se já não tinha precisado dele?
Desta maneira esteve a considerar. E a ideia lhe pareceu bem razoável. Não lhe teria sido possível explicar por qual motivo concluíra que ele, o príncipe, era necessário a Rogójin e que, portanto, se teriam que encontrar. Mas a conclusão era categórica, na forma deste pensamento alternado: “Se ele estiver bem, não virá; mas se se sentir infeliz, virá. E é lógico que se sente infeliz.”
Já que estava com esta convicção, devia ter ficado no hotel, esperando Rogójin, em seu quarto. Mas não se sentiu capaz de permanecer ali, com aquela ideia. Agarrou o chapéu e saiu apressadamente. Àquela hora o corredor estava escuro. “E se ele, de repente, saísse daquele vão e investisse contra mim, na escada?” Foi a ideia que lhe relampejou no espírito quando se sentiu perto do mesmo lugar daquela vez passada. Mas não surgiu ninguém. Alcançou a porta da rua, saiu, admirou-se ao ver a densa multidão que se espraiava pelas ruas (como sempre, no verão, à hora do poente, acontece em Petersburgo). Virou na direção da Gorókhovaia. Devia já estar distanciado do hotel uns cinquenta passos quando, na primeira rua que ia atravessar, alguém, na multidão, sem ele esperar, lhe tocou o cotovelo e lhe sussurrou ao ouvido:
— Liév Nikoláievitch, meu irmão, preciso de ti. Segue-me.
Era Rogójin.
Foi uma coisa estranha, mas deve ser dita: o príncipe pôs-se logo a lhe contar efusivamente, muito além de qualquer propósito, de modo atabalhoado, que estivera a esperá-lo no hotel e que até pensara encontrá-lo no corredor.
— Eu estive lá — respondeu Rogójin. — Vem comigo!
Esta resposta surpreendente só espantou o príncipe dois minutos depois, quando a entendeu bem. E, tendo compreendido, ficou alarmado, a olhar com toda a atenção para Rogójin, que caminhava na sua frente, à distância de um passo, abrindo passagem para ele, Míchkin, com cuidado mecânico, alheio a todo o mundo.
— Mas, se esteve no hotel, por que não foi me procurar no quarto?
Rogójin parou, olhou-o um pouco e, como se não tivesse ouvido direito a pergunta, disse:
— Presta atenção no que te vou pedir, Liév Nikoláievitch! Segue sempre à direita, rua acima, até a minha casa; e eu atravesso e vou pelo outro lado da rua. Mas repara que um tome conta do outro.
Dito o que, atravessou a rua, para a outra calçada, parou, a ver, de lá, se o príncipe estava andando. Vendo, porém, que não, fez-lhe um sinal com os olhos, tomou a direção de Gorókhovaia e seguiu, virando a todo momento para olhar o príncipe, e lhe fazendo sinal para o seguir. E evidentemente se certificou logo que o príncipe o tinha compreendido e o estava já seguindo, pelo outro lado da rua, na calçada paralela. O príncipe pensou que, com certeza, Rogójin queria espreitar alguma pessoa que lhe não conviria que passasse por ele ou o seguisse. E tinha atravessado para o outro lado, por precaução. “Mas, ao menos, por que não me disse de quem está com receio?”
Caminharam, assim, uns quinhentos passos. De repente, sem saber direito por que, Míchkin começou a tremer. Rogójin continuava a olhá-lo, de quando em quando, porém mais espaçadamente. Sentindo que não podia prosseguir, o príncipe lhe fez um sinal, chamando-o. Rogójin atravessou imediatamente a rua, enviesando-se na sua direção.
— Nastássia Filíppovna está em sua casa?
— Está.
— Foi você que me olhou, por detrás da cortina, esta manhã?
— Fui.
— Como? Era você?
E o príncipe não soube o que perguntar a seguir e nem como acabar a sua interrogação. De mais a mais, o seu coração batia tanto que mal poderia continuar a falar, Rogójin também ficou calado e continuou a olhar para ele, como ainda agora, com uma expressão de sonho...
— Bem, então vou indo — disse, afinal, preparando-se para atravessar para o outro lado. — Tu vais sozinho, pois fica melhor cada um seguir separadamente...
Quando, por fim, dobraram a esquina para a Gorókhovaia, já próximos da casa de Rogójin, as pernas do príncipe começaram a fraquejar a ponto de lhe ser quase impossível poder prosseguir. Eram mais ou menos dez horas da noite.
As janelas do lado da velha ainda estavam escancaradas, como de dia. As da parte de Rogójin permaneciam todas fechadas e, na penumbra, as cortinas ficavam mais visíveis. O príncipe aproximava-se pela calçada oposta à casa. Rogójin, sempre pela sua calçada, chegou, dobrou para as escadas e, lá do vão, lhe acenou. Míchkin atravessou e veio se juntar a ele.
— O porteiro ignora que estou aqui. Menti-lhe, esta manhã, que ia para Pávlovsk e deixei uma palavra neste sentido também à minha mãe — sussurrou, com um sorriso dissimulado e quase jactancioso. — Vamos entrar de maneira que ninguém ouça.
A chave já estava na sua mão. Subindo a escada, virou-se, fez com o dedo no ar um gesto bem significativo, dando a entender ao príncipe que subisse sem nenhum ruído. Abriu sem o menor estalido a porta dos seus aposentos, fez o príncipe passar, entrou também, com muita cautela, fechou a porta, guardou a chave no bolso.
— Vem — ciciou ele.
Desde a Litéinaia que só falava por cicios, estando, por dentro, a despeito de toda a calma aparente, num estado de intensa agitação. Chegando à sala de visitas, a caminho do gabinete, se dirigiu para a janela e fez um gesto para Míchkin.
— Esta manhã, quando tocaram, adivinhei logo que eras tu. Fui, na ponta dos pés, até àquela porta e te ouvi falar com a Pafnútievna. Mal o dia raiou eu dei ordem a ela para que se tu, ou qualquer pessoa mandada por ti, batesse na minha porta, não dissesse absolutamente que eu estava aqui; principalmente se fosses tu; e lhe dei o teu nome. Depois, quando te foste embora, me veio o pensamento: “E se ele fica parado a espiar lá da rua, vigiando?” Aproximei-me então desta janela, aqui, franzi um pouco a cortina... E lá estavas tu, e me olhaste até... Foi assim.
— Onde está Nastássia Filíppovna? — perguntou o príncipe, quase sem fôlego.
— Ela... está... aqui... — respondeu Rogójin, baixo, demorando a falar.
— Onde?
Rogójin ergueu os olhos e fitou o príncipe.
— Vem...
Falava sempre ciciando, com aquele mesmo ar de sonho. Já um pouco antes, ainda agora mesmo, quando contou aquela coisa a respeito da cortina, parecia querer dizer coisa muito outra, apesar de ter simulado estar falando espontaneamente.
Entraram no gabinete. Havia qualquer mudança naquela sala, depois da anterior vinda do príncipe. Uma pesada cortina verde, que devia ter servido para outro fim, pendia de viés, separando a ala da alcova de Rogójin. Estava escuro. As noites brancas, do verão de Petersburgo, já se iam alterando, e se não houvesse lua cheia teria sido difícil distinguir qualquer coisa nessas peças com janelas tapadas por cortinas. Em todo o caso podiam distinguir o rosto um do outro, embora mal. As faces de Rogójin estavam pálidas como de costume. Os seus olhos cintilantes continuavam a vigiar o príncipe, com um brilho seco.
— Seria melhor acender uma luz — sugeriu Míchkin.
— Não. Não precisa — respondeu o outro que, tocando a mão do príncipe, o fez sentar. Sentou-se também, por sua vez, tendo trazido a cadeira para tão perto que quando se sentou, ficou roçando os joelhos do outro. Junto deles, um pouco para um lado, havia uma mesinha redonda.
— Fiquemos aqui um pouco — disse, como querendo persuadir o príncipe a não se levantar. — Bem me pareceu que devias estar lá naquele hotel, de novo — começou ele, com aquela maneira por que certas pessoas, iniciando um assunto importante, preludiam antes com ninharias que não vêm a propósito. — Mal entrei pelo corredor adentro, pensei: “E se ele estiver sentado lá dentro esperando por mim, enquanto eu estou aqui em pé, esperando por ele?” Estiveste na casa da viúva do mestre-escola?
Devido ao violento palpitar do seu coração, o príncipe mal pôde responder:
— Estive.
— Pensei nisso, também. “Vão acabar falando”, pensei... e então disse comigo assim: “Vou trazê-lo aqui, esta noite, de maneira a passarmos a noite juntos.”
— Rogójin! Onde está Nastássia Filíppovna? — perguntou o príncipe, prontamente. E todos os seus membros começaram a tremer, quando ficou de pé. Rogójin também se levantou, e sussurrou, apontando para a cortina:
— Está ali.
— Dormindo? — balbuciou o príncipe.
Rogójin tornou a olhar para ele com profunda atenção.
— Bem, entra, tu... somente... Entra...
Ergueu a cortina, assim, em pé, voltado para o príncipe.
— Entra! — disse, reforçando, com um gesto, empurrando-o mansamente para dentro da cortina. Míchkin entrou.
— Está escuro... — disse.
— Mas se vê... — ciciou Rogójin.
Vejo muito mal... Aqui... é... uma cama?
— Aproxima-te — sugeriu Rogójin, brandamente.
O príncipe deu o primeiro passo; depois o segundo e parou.
Parou e ficou olhando. Passou um minuto. Custou muito a passar outro minuto. Permaneciam perto da cama, bem rente. Não falavam absolutamente nada. O coração do príncipe batia tão violentamente que era agora a única coisa audível na quietude mortal da alcova. Os seus olhos já se estavam acomodando na treva e então começou a distinguir a cama inteira. Alguém jazia nela, dormindo um sono de perfeita imobilidade, sem fazer ruído algum, por mais insignificante que fosse: nem mesmo o da respiração. E quem assim dormia estava coberto desde a cabeça até aos pés com um lençol branco sob o qual os membros vagamente se configuravam. Tudo quanto se podia ver era que um corpo humano jazia ali, estendido em todo o seu comprimento.
Na mais completa desordem, aos pés da cama, sobre as cadeiras ao lado, e pelo chão, havia roupas jogadas. Um rico vestido de seda branca. Flores. E fitas. Numa pequenina mesa, junto à cabeceira da cama, um diadema de diamantes que tinha sido tirado e posto ali. Do lado dos pés da cama havia um monte de sedas e cambraias amarrotadas, e sobre elas emergia duma nesga do lençol um pé nu. Tão branco, tão imóvel que parecia de mármore. O príncipe olhava... E, olhando, sentia que a alcova cada vez se tornava mais sepulcralmente silenciosa. Nisto ouviu o zunido duma mosca que voou sobre o leito e foi pousar no travesseiro. O príncipe recuou.
— Agora, vem comigo! — Era Rogójin, que lhe tocava no braço.
Saíram da alcova e se sentaram nas mesmas cadeiras, novamente um defronte do outro. Tremendo com uma violência cada vez mais incontida, Míchkin não tirava os olhos indagadores do rosto de Rogójin.
— Noto que estás tremendo, Liév Nikoláievitch, muito mais do que quando estiveste doente. Lembras-te, em Moscou? Tal qual como antes de te vir o acesso, aquela vez!... Fica bem calmo, senão, que vou fazer contigo agora?
O príncipe escutou, fez todo o esforço para ficar em condições de compreender; mas os seus olhos não paravam de perguntar que é que fora aquilo...
— Quem foi? Foi você? — conseguiu dizer, por fim, mostrando a cortina.
— Fui eu. — Rogójin ciciou; e não pôde erguer os olhos.
Mantiveram-se calados cinco minutos. Cinco minutos...
— Escuta aqui — recomeçou Rogójin. como se não tivesse interrompido a sua confissão —, como és doente e tens ataques e convulsões, não vá alguém ouvir do pátio, ou da rua... e descobrir, assim, que há gente aqui nos meus aposentos. Se descobrirem... começarão a bater e entrarão... pois todos estão convencidos de que não estou em casa. Já foi por isso que não acendi a luz... podiam perceber da área ou da calçada... Quando saio, levo, sempre, a chave... e ninguém entra aqui, nem para a limpeza, enquanto dura a minha ausência. Dois... às vezes três dias... É hábito meu. Tomei bastante cuidado para que não percebessem que estamos aqui...
— Pode continuar... — disse o príncipe. — Eu perguntei, tanto ao porteiro como à empregada, se Nastássia Filíppovna não tinha passado a noite aqui. Portanto... isto é...
— Eu sei que perguntaste. Mas eu disse à Pafnútievna que Nastássia Filíppovna estivera aqui ontem apenas uns dez minutos e que já havia regressado para Pávlovsk. Ninguém sabe que ela ficou aqui, de noite. Entrei, ontem, com ela, às escondidas, tal como nós dois fizemos ainda agora. Quando vínhamos para cá eu pensei que ela não tomaria cuidado para entrar em segredo. Mas qual o quê! Entrou na ponta dos pés, suspendeu e dobrou a cauda do vestido em volta do corpo, segurando a ponta na mão, para que a seda não rugisse; e quando falou, foi sempre ciciando... Chegou a me balançar o dedo, escadas acima — era de ti que ela tinha medo! No trem, se visses, estava louca de terror! E foi ela quem quis passar a noite aqui. Porque eu, eu tinha pensado em levá-la ao apartamento dela, na casa da viúva; mas, qual o quê! “Mal o dia raie, ele me achará lá!” Foi o que ela disse. “Mas você (referia-se a mim) vai me esconder hoje, e amanhã de manhã, cedinho, partiremos para Moscou.” Depois, já não era para Moscou que queria ir... Qualquer outra cidade... Oriól, por exemplo... Até mesmo já deitada, me dizia, de lá, que tínhamos que ir para Oriól...
— Escute, Parfión! Que é que você vai fazer, agora? Que é que pensa fazer?
— Mas para de tremer! Eu fico espantado, por tua causa! Nós vamos ficar aqui, toda a noite. A cama é aquela só... Mas acho que podemos pegar as almofadas e os coxins dos dois sofás, e fazer uma espécie de cama para mim e para ti, do lado de cá, da cortina... Para ficarmos juntos. Pois se eles vierem para cá e começarem a pesquisar, a indagar, e entrarem, darão logo com ela e a levarão. E... me achando.... me perguntarão... eu direi que fui eu e me levarão imediatamente. Assim, pois, se ficares, é melhor, não é? Ela agora fica conosco, ao nosso lado, junto de ti... e junto de mim...
— Sim, sim! — concordou o príncipe vivamente.
— Quando vierem... nós não confessaremos não, e não deixaremos que a levem!
— É sim! Não deixaremos, não, de forma alguma, custe o que custar. Isso mesmo... — decidiu o príncipe.
— Foi o que eu decidi também, rapaz, não a entregar de forma alguma. A ninguém! Ficaremos quietos aqui, a noite inteira. Hoje só saí, de manhã, por menos de uma hora. Não contando esse tempo, estive sempre com ela. E depois só saí para te ir buscar, de noite já. Mas uma outra coisa... de que estou com medo: está muito quente e talvez comece a cheirar mal... Tu estás sentindo algum cheiro?... Eu...
— Talvez esteja... Nem sei... Mas... de madrugada, certamente...
— Eu a cobri com um oleado americano! Um bom oleado. Estendi o lençol por cima e coloquei em volta, embaixo, rente à cama, quatro botijas de desinfetante Jdánov. Desarrolhei... Ainda estão lá... Devem servir...
— Ah! Sim, como leu que fizeram aquela vez em Moscou!?...
— Por causa do cheiro, irmão! Viste como ela está... deitadinha... De manhã quando houver luz é que deves ir olhá-la... Que é isso? Não te podes erguer? — perguntou Rogójin, com espanto, vendo, todo apreensivo, que Míchkin estava tremendo de maneira tão absurda que, apesar do esforço para ir ver outra vez Nastássia Filíppovna, não conseguia se pôr em pé...
— As minhas pernas não... obedecem — explicou baixinho o príncipe — e creio que é... terror! Mas quando isto passar, me levantarei para ir... vê-la.
— Sossega; vou arranjar uma cama para nós. Deitando, ficarás logo melhor. Eu deitarei também... E ficaremos escutando... Pois é, rapaz, não compreendo ainda, não compreendo como tudo isso foi... Bem que te avisei, que te preveni, de antemão... de modo a que ficasses sabendo...
Sussurrando essas palavras ininteligíveis, Rogójin começou a fazer as camas no chão. Era evidente que só essa noite é que lhe tinha vindo à cabeça improvisar essa cama no chão. A outra noite, ficara no sofá. Mas não havia agora lugar para dois, no sofá estreito, e Rogójin resolveu e combinou que deviam deitar juntos. Eis por que, com muito esforço, ele agora arrastava os vários coxins do sofá e os depunha ao rés da cortina. Fez a cama de qualquer modo. Aproximou-se do príncipe afavelmente e, com certo entusiasmo macabro, o conduziu pelo braço. Mas o príncipe achou que podia ir, e se desvencilhou, pensando que o tremor já havia passado.
Rogójin fez o príncipe estirar-se nos coxins, à esquerda, e depois, sem se despir se arrojou, pesadamente. Cruzou as mãos debaixo da cabeça e começou a balbuciar:
— Está quente, sim, está quente, irmão! E, como sabes, vai começar a cheirar. Acho que não devemos abrir as janelas... Minha mãe tem sempre jarros com flores... Uma porção de flores... E que perfume delicioso que elas têm! Cheguei a pensar em trazer... mas Pafnútievna podia desconfiar... ela repara em tudo...
— É reparadeira, sim... — concordou o príncipe, aparvalhadamente.
— Achas que devíamos comprar punhados e mais punhados de flores para rodeá-la toda? Mas... pensando bem, amigo, vê-la rodeada de flores nos causaria tamanha tristeza!...
— Escute — disse o príncipe, de modo incerto, como se estivesse procurando o que ia dizer, já esquecido outra vez do que era —, escute, com que foi que fez isso? Com uma faca? Com aquela mesma...?
— Com aquela!
— Outra coisa, ainda. Quero perguntar-lhe outra coisa, Parfión. Quero fazer-lhe uma porção de perguntas. Quero que me conte tudo... Mas, para começar, será melhor me dizer, primeiro, para eu entender bem... Você pensava em matá-la antes do nosso casamento, com uma faca, à entrada da igreja?
— Não sei se pensei, ou não — respondeu Rogójin, secamente, parecendo até surpreendido com a pergunta, ou não a compreendendo.
— Você chegou a levar consigo a faca para Pávlovsk?
— Não, nunca! Tudo quanto te posso dizer a respeito da faca é que eu a tirei duma gaveta esta madrugada... pois tudo aconteceu de madrugada, mais ou menos às quatro horas... A faca esteve enfiada dentro dum livro, sempre, aqui, em casa. E... e... coisa estranha. Afundou três ou quatro polegadas, bem debaixo do seio esquerdo. Não saiu mais do que uma quantidade assim... duma meia colher de sopa... de sangue... que se espalhou pela camisola. Nem tanto!...
— Isso... isso... isso eu sei, já li a respeito, é o que eles chamam de hemorragia interna — esclareceu sinistramente o príncipe, em grande agitação. — Às vezes não dá uma gota... Quando a punhalada vai certeira ao coração e encrava...
— Para! Não estás ouvindo? — Rogójin interrompeu-o imediatamente, sentando-se, apavorado, sobre o coxim. — Escuta só!
— Não ouço nada — respondeu Míchkin tão rápido quanto apavorado.
— Passos! Ouves? Na sala de visitas... — Puseram-se ambos a escutar.
— Ouço — disse o príncipe, sem a menor hesitação.
— Passos de gente!
— Sim.
— Convém, ou não, fechar a porta?
— Feche.
Foram fechar a porta e vieram deitar outra vez. Ficaram calados uma porção de tempo.
— Ah! É mesmo! — começou inesperadamente o príncipe, com um sussurro farfalhante, como retomando um pensamento e querendo falar depressa antes de o esquecer de novo; sentou-se no chão. — É mesmo! Eu queria aquele baralho de cartas!... As cartas... Elas me disseram que você jogava com ela!
— Jogava, sim — confirmou Rogójin, depois de curto silêncio.
— Onde estão... as cartas?
— Estão aqui — disse Rogójin, depois de uma pausa maior. — Aqui.
Tirou do bolso um baralho de cartas enrolado em papel e deu a Míchkin, que o tomou com uma espécie de marasmo. Um sentimento novo, de desesperadora tristeza, pesava em seu coração. Compreendeu, subitamente, que nesse momento e durante muito tempo, antes, não estivera a dizer o que desejava; e que isso não era direito; estava fazendo uma coisa má. E compreendeu, também, que essas cartas que segurava agora, e que, só de as ver, lhe davam tanto conforto, não eram de ajuda nenhuma, absolutamente não serviam para coisa alguma, agora... Levantou-se, comprimindo o baralho na mão fechada. Rogójin continuava deitado e não parecia ouvir nada, nem nada ver dos gestos do príncipe; mas os seus olhos cintilavam na treva, e estavam muito arregalados, com uma expressão fixa. O príncipe foi sentar-se na cadeira, começando a olhá-lo de lá, com terror.
Passou meia hora.
E então Rogójin se pôs a falar alto, e a rir, como se tivesse esquecido que deviam falar somente ciciando.
— Aquele oficial, aquele!... Tu te lembras como ela chicoteou aquele oficial, perto do coreto da música? Ah! Ah! Ah! E havia um cadete... um cadete... um cadete também que interveio...
O príncipe pulou da cadeira, com redobrado pavor. Nisto, Rogójin ficou quieto (e foi subitamente que se calou) e o príncipe se curvou docilmente sobre ele, depois se sentou ao lado e, com o coração batendo violentamente e a respiração aos arrancos, começou a fitá-lo. Rogójin nem virou a cabeça para ele, como se o tivesse esquecido. O príncipe olhava e esperava. O tempo foi passando. Começou a clarear. De vez em quando, Rogójin recomeçava a murmurar coisas, com voz rígida, incoerentemente; ria e soltava exclamações. Então o príncipe estendia a mão trêmula até ele e mansamente lhe tocava a cabeça, os cabelos, acariciando-os, ou lhe afagava a face... pois não podia fazer mais nada! Começou a tremer, outra vez. E as pernas, de novo, pareceram nem existir. Uma sensação nova lhe corroía o coração com infinita angústia.
No entanto, tinha clareado completamente. Em dado instante ele se estirou sobre as almofadas, como que absolutamente inerme, sem esperança e sem solução. Juntou o seu rosto ao rosto petrificado de Rogójin, as suas lágrimas escorrendo para as dele, ambos, decerto, nem as percebendo nem se importando com elas.
Fosse como fosse, quando, depois de muitas horas, as portas foram arrombadas e pessoas estranhas entraram, deram com o assassino completamente inconsciente, a delirar. Míchkin estava sentado no assoalho, sem se mover dali, ao lado dele. E sempre que o homem que se achava delirando desandava a dar gritos e a tartamudear, ele se apressava em lhe passar a mão trêmula, suavemente, sobre os cabelos e sobre a face, como o acariciando e acalmando. Mas nem por isso conseguiu compreender nenhuma pergunta que lhe foi feita e nem reconheceu as pessoas que o rodeavam.
Se Schneider, em pessoa, viesse da Suíça para olhar o seu antigo pupilo e paciente, ligando a cena de agora à recordação do estado em que o príncipe, às vezes, ficava naqueles seus primeiros anos de estada no estrangeiro, teria erguido as mãos para o ar, desesperançado, e diria, como dizia naquele tempo: “Um idiota!”
EPÍLOGO
Precipitando-se para Pávlovsk a viúva do mestre-escola se dirigiu diretamente a Dária Aleksiéievna que já estando assombrada com os acontecimentos da véspera, ainda ficou num pânico maior, ante o que lhe foi contado.
Resolveram as duas senhoras comunicarem-se imediatamente com Liébediev que, como era natural, estava preocupadíssimo com o seu inquilino e amigo. Contou-lhes Vera Liébedieva tudo quanto sabia. A conselho de Liébediev decidiram seguir os três para Petersburgo com o fim de o mais depressa possível evitar o que pudesse estar para acontecer. E assim foi que, cerca das onze horas da manhã do dia seguinte, o apartamento de Rogójin foi arrombado na presença da polícia, das senhoras, de Liébediev e dum irmão de Rogójin, Semión Semiónovitch, que morava na outra ala — ato esse facilitado pela declaração do porteiro que, depondo, disse ter visto à noite Parfión Semiónovitch entrar pela porta da frente, com uma visita, mas, pelo que lhe pareceu, às escondidas.
Durante dois meses esteve Rogójin prostrado, com inflamação cerebral, tendo sido julgado logo que se restabeleceu. Com muita exatidão deu provas irretorquíveis sobre cada ponto do libelo, em consequência do que absolutamente não foi trazido à baila o nome de Míchkin.
Durante o julgamento, conquanto taciturno, não contradisse Rogójin o eloquente conselho judicial que provou, com clareza e lógica, ter o crime sido cometido em consequência da febre cerebral que acometera o réu muito antes da perpetração do crime que, assim, pois, mais não foi do que um resultado de suas perturbações. Não acrescentou Rogójin coisa alguma em contestação, mantendo com a mesma clareza exata o seu depoimento feito durante o inquérito relativamente às circunstâncias ligadas ao crime. Foi sentenciado, em vista das circunstâncias atenuantes, a somente quinze anos de servidão penal na Sibéria. Ouviu a sentença soturnamente calado e como que “sonhando”. Toda a sua enorme fortuna, de que só uma parte comparativamente pequena fora dilapidada nos primeiros meses de libertinagem, passou para o seu irmão, Semión Semiónovitch, com grande satisfação deste. Sua velha mãe ainda vive, e parece que, lá uma vez ou outra, se recorda de seu filho favorito, Parfión, decerto, porém, muito vagamente, Deus lhe tendo poupado o espírito e o coração do conhecimento do golpe desferido sobre o seu melancólico lar.
Liébediev, Keller, Gánia, Ptítsin, e muitas outras pessoas desta história, continuam a viver, tendo mudado pouco, quase nada havendo a relatar sobre eles.
Ippolít, 15 dias depois de Nastássia Filíppovna, morreu em terrível estado de excitação, e decerto mais cedo do que calculara. Kólia ficou profundamente marcado pelos acontecimentos, ligando-se mais intimamente do que nunca à sua mãe, Nina Aleksándrovna, que vive inquieta com esse seu filho demasiado pensativo para a idade. Mas duma coisa ela não tem dúvida: ele tornar-se-á um homem útil e ativo; entre outras coisas, a acomodação do futuro de Míchkin foi, parcialmente, obra sua. Desde muito tendo notado que Evguénii Pávlovitch Radómskii era uma pessoa diferente das outras cujas amizades fora fazendo, o procurou para contar o caso do príncipe e sua consequente situação. Evguénii Pávlovitch não o decepcionou na estima com que era distinguido, pois tomou logo o maior interesse pela sorte do infortunado “idiota” que, devido a seus cuidados e diligências, foi reenviado ao dr. Schneider, na Suíça. Considerando-se, francamente, um homem supérfluo na Rússia, Evguénii Pávlovitch seguiu para o estrangeiro, decidido a passar uma grande temporada na Europa, fazendo, então, várias visitas a seu amigo doente na instituição do dr. Schneider. Visitava-o, no mínimo, de três em três meses. Mas Schneider franzia as sobrancelhas e meneava a cabeça, cada vez mais desanimado; pressentia, categoricamente, ser impossível uma remissão, de vez em quando se permitindo um ou outro vaticínio quanto a possibilidades ainda mais melancólicas. Isso afetou muito o coração de Evguénii Pávlovitch; e não é um coração qualquer, esse seu, como fica demonstrado ante o fato de Kólia lhe escrever cartas que recebem constantes respostas. Há ainda um outro fato que patenteia um traço bondoso do seu caráter, e aqui nos apressamos em mencionar qual seja: depois de cada visita sua ao dr. Schneider, Evguénii Pávlovitch sempre remete uma carta a certa pessoa de Petersburgo, com as mais simpáticas e minuciosas informações sobre o estado da saúde do príncipe. Acompanhadas com as mais respeitosas expressões de devotamente, essas cartas invariavelmente (e cada vez com mais frequência) contêm um franco desenvolvimento de ideias, vistas e sentimentos, qualquer coisa que, em realidade, se aproxima dum sentimento fervoroso de amizade mal disfarçada através disso tudo. Essa pessoa, que se corresponde com ele (conquanto, deste lado, as cartas sejam menos frequentes) e que é assim merecedora de tanta atenção e respeito da sua parte, é Vera Liébedieva. Nunca nos foi dado nos certificarmos de como essas relações nasceram entre ambos; não resta dúvida, porém, terem começado ao tempo do colapso total do príncipe, quando Vera Liébedieva ficou tão aflita que até caiu doente. Mas, dum modo exato, qual o incidente que os levou a esse conhecimento e amizade, não sabemos informar.
Aludimos a essas cartas principalmente porque contêm notícias sobre os Epantchín e, especialmente, sobre Agláia. Segundo uma carta de Paris, um pouco desconexa, Evguénii Pávlovitch contava que, após uma súbita e extraordinária atração por um conde polaco exilado, Agláia se casara logo, apesar da oposição dos pais que só tinham acabado dando consentimento por haver possibilidades dum terrível escândalo. Depois de seis meses de silêncio, chegou nova carta de Evguénii Pávlovitch, mandando à pessoa com quem se correspondia uma comprida e minuciosa descrição de como, em sua última visita à instituição do dr. Schneider, se tinha encontrado lá com o príncipe Chtch... e toda a família Epantchín (exceto, naturalmente, Iván Fiódorovitch, retido, pelos negócios, em Petersburgo). E que fora um estranho encontro, todos tendo demonstrado extraordinário contentamento, não cessando Adelaída e Aleksándra de se demonstrarem incalculavelmente gratas a ele, “por sua angélica bondade para com o desgraçado príncipe”. Lizavéta Prokófievna não parava de chorar amargamente, à vista da aflita e humilhada condição de Míchkin. Evidentemente tudo lhe fora perdoado. O príncipe Chtch... fizera mesmo umas poucas observações justas e sinceras. Que lhe parecera a ele, Evguénii Pávlovitch, que Adelaída e o marido não estavam em muito perfeita harmonia, mas que, com certeza, no futuro, Adelaída ainda viria a permitir que o seu impetuoso temperamento fosse guiado pelo príncipe Chtch... que tinha bom senso e experiência. E seria de esperar, de mais a mais, que as cruéis experiências que a família sofrera através, principalmente, da recente aventura de Agláia com o conde exilado, viessem a causar profunda impressão na irmã. Que tudo quanto a família receara ao negar Agláia ao conde polaco, se tinha, em menos de seis meses, confirmado, e até da pior maneira, com surpresa que eles nunca haviam sequer sonhado. Esclareceu-se que o conde nem conde era e que, se estava exilado como dizia, era isso devido a certa aventura sombria e duvidosa do seu passado. O tratante fascinara Agláia pela sua extrordinária “nobreza” de alma dilacerada em angústia patriótica. Fascinação essa que, mesmo depois de casada, subira a ponto de fazer que ela se tornasse sócia dum Comitê pela restauração da Polônia e desse em frequentar o confessionário dum célebre pregador católico, passando logo o seu espírito a lhe sofrer a influência. Quanto às vastas propriedades do conde polaco, e de que antes mostrara ao príncipe Chtch... e a Lizavéta Prokófievna as mais incontestáveis provas, não passavam dum mito. E ainda mais: que seis meses após o casamento, o conde e o seu amigo, o célebre confessor, haviam conseguido indispor Agláia completamente com a família, de modo que há meses nem sequer tinham notícias dela. Restava de fato ainda muita coisa a contar; mas Lizavéta Prokófievna, filha e genro estavam tão aborrecidos com esse “terrível caso” que relutaram em aludir a outros pontos durante essa conversa com Evguénii Pávlovitch, muito embora cientes de que ele já sabia a história da última peripécia de Agláia. Como Lizavéta Prokófievna se sentia ansiosa por voltar à Rússia! Segundo o relato de Evguénii Pávlovitch, ela agora se mostrava mais amarga e injusta do que nunca em suas críticas contra tudo da Europa.
— Eles aqui nem sabem fazer um pão decente! No inverno ficam mais entanguidos do que camundongos numa adega. Aqui só me foi dado o consolo de ao menos poder chorar lágrimas bem russas por este desgraçado. — Apontava para o príncipe que nem a tinha reconhecido. — Já chega de seguir as nossas venetas! Já é tempo de sermos sensatos. Tudo isto, toda esta vida aqui no estrangeiro, e toda esta Europa tão gabada, tudo, mas tudo, não passa duma fantasia! E todos nós, no estrangeiro, somos fantasia e nada mais!... Guarde bem estas minhas palavras, pois irá me dar razão pessoalmente! — concluiu ela, de modo quase raivoso, ao se despedir de Evguénii Pávlovitch.
Fiódor Dostoiévski
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