Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
MEMÓRIAS DE UM BURRO
AO MEU JOVEM DONO O SR. HENRIQUE DE SÉGUR
O meu jovem dono foi sempre muito bom para mim, mas a verdade é que sempre o ouvi falar com grande desprezo dos burros em geral. Pois para que fique conhecendo melhor os burros é que escrevi estas Memórias, que lhe ofereço. Nelas verá, meu querido e jovem dono, a injustiça com que os homens nos têm tratado, a mim e aos meus amigos burros, burrinhos e burrinhas. Conhecerá o nosso espirito e as excelentes qualidades que possuimos; verá também como fui mau na minha mocidade, a maneira como fui castigado e maltratado, e como o arrependimento me transformou e me devolveu a amizade dos meus companheiros e dos meus donos. Verá, enfim, ao terminar a leitura deste livro, que em vez de se dizer: Estúpido como um burro, teimoso como um burro, se deverá antes dizer: Espirituoso como um burro, dócil como um burro, sábio como um burro, e que tanto o meu dono como os seus pais se sentirão orgulhosos com estes elogios.
Desejo-lhe, meu bom dono, que na primeira ocasião da sua vida se não assemelhe ao seu servo fiel.
CADICHON. (Burro sábio)
Não me lembro da minha infância. Fui, provavelmente, infeliz como todos os burrinhos, bonito e gracioso como sempre somos; tive, certamente, muito espirito, porque ainda hoje, apesar de velho, tenho mais do que todos os meus companheiros juntos. Escoucinhei, mais de uma vez, os meus pobres donos, que, sendo apenas homens, não podiam ter, por consequência, a inteligên cia de um burro.
Começarei por contar uma das partidas que lhes fiz, nos tempos recuados da minha primeira mocidade.
A feira
Como os homens não são obrigados a saber tudo o que os burros sabem, o senhor decerto ignora uma coisa que todos os meus amigos burros conhecem: há na cidade de Laigle, todas as terças-feiras, uma feira onde se vendem legumes, manteiga, ovos, queijo, frutas e outras coisas magníficas. Essas terças-feiras são uns dias de suplício para os meus pobres companheiros. E o mesmo se dava comigo antes de ser comprado pela minha bondosa e velha dona, em casa de quem agora vivo. Pertencia, nesse tempo, a uma lavradeira exigente e má. Imagine que ela levava a sua maldade até ao ponto de me pôr em cima do lombo cestos cheios de ovos das suas galinhas, toda a manteiga e queijo que lhe dava o leite das suas vacas, e todos os legumes e frutos que amadureciam durante a semana!
E quando eu já estava tão carregadinho que mal podia dar um passo, a malvada ainda se escarranchava em cima dos cestos, obrigando-me a trotar debaixo daquele peso até à feira de Laigle, que distava uma légua da propriedade. A cólera refervia-me cá dentro, mas não me atrevia a manifestar-lha, com medo das pauladas dadas com um pau muito grosso e cheio de nós, que muito me magoavam. Todas as vezes que eu via ou ouvia os preparativos para a feira, suspirava, gemia, chegava mesmo a roncar com a esperança de enternecer os meus donos.
Anda, madraço -diziam-me, quando me iam buscar- e cala a boca, não nos atordoes com essa zurrada Hi han hi han. Olha que é uma bonita música! Ó Júlio, meu filho, traz esse preguiçoso para ao pé da porta, para a tua mãe lhe pôr a carga nos costados!. . . Um cesto de ovos. . . mais um!. . . Os queijos, a manteiga. Aí vão agora os legumes. Bem. Levas aí um carregamento que nos dará algumas moedas. Marieta, minha filha, vai buscar uma cadeira para a tua mãe câvalgar este madraço!. . . Assim! Boa viagem, e faz trotar bem este figurão. Leva o pau e não lhas poupes.
Pau, pau, Com mais algumas carícias desse género, já ele não terá vontade de se espreguiçar.
O pau volteava no ar e caía- me nos rins, nas pernas, no pescoço; e eu trotava, galopava. A lavradei ra continuava a bater-me. Indignado com tão grande injustiça e crueldade, tentei dar uma parelha de coices para atirar com a minha dona ao chão, mas, como a carga era muito pesada, apenas baloiçava o corpo para a direita e para a esquerda. Tive, porém, o prazer de a sentir desequilibrar-se.
Malvado burro! Burro teimoso. Eu já te arranjo.
Efectivamente, bateu-me tanto que mal me pude arrastar até à cidade. Mas por fim chegámos. Tiraram-me então as cestas de cima do lombo, que por sinal estava em carne viva, e a minha dona, depois de me ter prendido a uma estaca, foi almoçar, enquanto eu morria de fome e de sede, sem ter sequer uma paveia de palha nem uma gota de água. Mas lá achei meio de me aproximar dos legumes, durante a ausência da lavradeira, e assim pude refrescar-me enchendo o estômago com um molho de alface e outro de couves. Nunca na minha vida tinha comido um tal petisco; estava a acabar a última couve e a última folha de alface, quando a minha dona voltou. Quando deu com o cesto vazio, pôs-se a gritar, enquanto eu a olhava com um ar tão insolente e satisfeito que ela adivinhou o que eu tinha feito.
Não repetirei as injúrias com que me mimoseou. Tinha uma linguinha de prata, a minha dona! Quando se punha a injuriar, era cada palavrão que eu, por mais burro que fosse, corava de vergonha.
Depois de me ter alcunhado com os mais infamantes e humilhantes epítetos, a que eu respondia lambendo os beiços e voltando-lhe as costas, começou a zurzir-me com tal fúria que acabei por perder a paciência e atirei-lhe três coices que Lhe partiram o nariz, dois dentes e um pulso, acabando por a atirar ao chão. Mais de vinte pessoas me saltaram em cima, zurzindo-me de pancada e injuriando-me. Levaram a minha dona não sei para onde e deixaram-me preso à estaca, ao pé das mercadorias que tinha transportado. Vendo que ninguém fazia caso de mim, comi segundo cesto cheio de excelentes legumes, cortei com os dentes a corda que me prendia e voltei sossegadamente para casa.
As pessoas que me encontravam pelo caminho ficavam a olhar para mim, admiradas de me verem sozinho. Diziam:
- Este burro, a arrastar uma corda, vai com certeza fugido.
- É um evadido das galés - disseram outros.
E todos desataram a rir.
- A carga não pesa muito - disse um terceiro.
- O patife fez alguma das suas! - exclamou outro.
- Agarra-o pela corda, homem, e põe o pequeno às cavalitas - disse uma mulher.
E o marido respondeu:
- Montas tu e o petiz.
Querendo dar mostras da minha brandura e da minha complacência, aproximei-me devagarinho da camponesa e parei ao pé dela para a deixar montar.
- O burro parece que não é mau! - disse o homem, ajudando a mulher a sentar-se na albarda.
Sorri de compaixão, ouvindo estas palavras. Mau! Como se um burro bem tratado tivesse razões para ser mau! Nós só somos desobedientes e teimosos quando queremos vingar- nos das pancadas e das injúrias que recebemos. Quando nos tratam bem, somos bons, muito melhores do que os outros animais.
Conduzi a mulher e o rapazinho a sua casa. O petiz tinha dois anos, era bonito, fazia-me festas e o seu desejo era ficar comigo. Mas reflecti e pensei que não seria honesto deixar-me ficar ali, uma vez que os meus donos me tinham comprado. Tinha partido o nariz, dois dentes e um pulso da minha dona. Estava vingado. Percebendo que a mulher ia ceder aos desejos do filho, dei um salto de lado, e antes que pudessem agarrar a corda, fugi a galope e voltei para casa.
A primeira pessoa que me viu foi Marieta, a filha do meu dono.
- Olha, o burro! Voltou cedo. Júlio, vem tirar-lhe a albarda.
- Maldito burro que só me dá trabalhos! - disse Júlio. - Mas porque voltou ele só? Aposto que vem fugido. Patife! - acrescentou ele, dando- me um pontapé nas pernas; - se soubesse que tinhas fugido, dava-te uma sova!
Depois de me tirarem a albarda e o freio, safei-me a galope. Mal chegara ao prado, ouvi grandes gritos que partiam da herdade. Aproximei a cabeça de uma sebe e vi que tinham trazido a minha dona. Eram os pequenos que davam aqueles gritos. Arrebitei as orelhas e ouvi Júlio dizer para o pai:
- Pai, vou buscar o chicote do carroceiro, prendo o burro a uma árvore e dou-lhe tantas que o maldito nunca mais se levanta.
- Pois sim, meu rapaz, mas não o mates porque perdíamos o dinheiro que ele nos custou. Vendê-lo-ei na próxima feira.
Fiquei a tremer de susto ao ouvi-los, e pior ainda quando vi o Júlio correr à cavalariça para trazer o chicote. Não tive mais hesitações, nem escrúpulos, e corri para uma sebe que me separava dos campos, partindo os ramos altos. Fugi por ali, julgando sempre que era perseguido. Não podendo correr mais, parei, pus-me à escuta. . . Não ouvi nada. Não vi ninguém. Respirei com força e regozijei-me por me ver livre daqueles malfeitores.
Mas, que ia fazer agora? Se ficasse naquela terra, todos me reconheceriam e me levariam aos meus donos. Para onde havia de ir?
Olhei em volta de mim. Encontrei-me isolado e infeliz, e já as lágrimas me assomavam aos olhos quando vi que estava na orla de um bosque: era a floresta de Saint Évroult.
- Que felicidade! - exclamei. - Encontrarei nesta floresta erva tenrinha, água e musgo fresco. Ficarei aqui alguns dias e irei depois para outra floresta, ainda mais longe da herdade dos meus donos.
Embrenhei-me no bosque, comi com prazer a erva macia e bebi a água cristalina de uma fonte. Como a noite descia, deitei-me em cima do musgo, por baixo de um velho pinheiro, e dormi tranquilamente até ao dia seguinte.
A perseguição
No dia seguinte, depois de ter comido e bebido, pensei na minha felicidade.
Agora estou salvo -pensava eu;- ninguém me tornará a encontrar, e daqui a dois dias, irei para mais longe. Mal acabava estas reflexões, ouvi os latidos de um cão, e momentos depois, latidos de uma matilha completa.
Inquieto, aterrado, levantei-me e dirigi-me para um ribeirinho que tinha descoberto logo de manhã. Mas quando me meti à água, ouvi a voz de Júlio, que açulava os cães.
Busquem bem, encontrem-me esse miserável burro, mordam-no, dilacerem-no e tragam-mo para eu o deslombar com o chicote.
O terror ia-me fazendo cair; mas reflecti que, metendo-me pela água dentro, os cães não encontrariam vestígios dos meus passos. Pus-me portanto a correr pelo ribeiro, que era orlado, felizmente para mim, por altas moitas de arbustos. Caminhei sem descanso durante muito tempo; os latidos dos cães e a voz do medonho Júlio já mal se ouviam, e acabei por não os ouvir de todo.
Arquejante, esgotado de forças, parei por um instante, comi algumas folhas de arbustos que se debruçavam para a água; estava transido de frio, mas não me atrevia a sair da água, com medo de que os cães me vissem ou me farejassem. Logo que me vi mais descansado, recomecei a correr, seguindo o curso do ribeiro, até sair da floresta; achei-me num prado muito grande, onde pastavam mais de cinquenta bois. Deitei-me ao sol e pude comer e descansar à vontade, porque os bois não faziam caso de mim.
À tarde entraram dois homens no prado.
- Irmão - disse o mais velho -, se recolhêssemos os bois esta noite? Dizem que andam lobos no bosque.
- Lobos! Quem te meteu essa patranha?
- Foi gente de Laigle. Dizem até que levaram para a floresta o burro da quinta dos Olaios e o devoraram depois.
- Ora! Patacoadas! A gente dessa fazenda é tão má que é bem capaz de ter matado o burro com pancada.
- Então, para que é que eles dizem que foram os lobos que o comeram?
- Para que ninguém saiba que foram eles que o mataram.
- Pelo sim, pelo não, é melhor recolhermos os bois.
- Pois sim, irmão. Faz como entenderes.
Eu não me mexia, com medo de que me vissem. A erva alta escondia-me e, felizmente, os bois não
estavam do lado em que eu me encontrava escondido. Levaram-nos para a quinta onde os donos habitavam.
Eu, por mim, não tinha medo dos lobos, porque o burro em questão era eu, e não tinha lobrigado sinal de lobo na floresta onde passara a noite. Dormi, portanto, com todo o descanso, e acabava de almoçar quando os bois voltaram para o prado, acompanhados por dois grandes cães.
Olhava para eles tranquilamente, quando um dos cães se pôs a ladrar furiosamente, correndo para mim seguido pelo companheiro. Que fazer para lhes escapar? Corri para as paliçadas que tapavam o prado, por onde serpenteava o ribeiro que me trouxera até ali. Saltei e ouvi a voz de um dos homens da véspera chamar os cães. Continuei tranquilamente o meu caminho até outra floresta, cujo nome ignoro. Devia estar já a mais de dez léguas da quinta dos Olaios. Estava salvo e podia, portanto, aparecer, sem receio de ser levado de novo para casa dos meus antigos donos.
Novos donos
Vivi nessa floresta um mês, regalado e tranquilo. A verdade é que tinha momentos de grande aborrecimento, mas preferia viver só a viver infeliz. Um belo dia, porém, reparei que a erva ia rareando e se tornava mais dura; as árvores despiram-se das folhas, a água gelava e a terra humedecia.
Que vai agora ser de mim - pensava eu - se me deixo ficar aqui, morro de frio, de fome e de sede. Para onde é que hei-de ir? Quem me quererá?
À força de reflectir, encontrei um meio de encontrar abrigo. Saí da floresta e dirigi-me para uma pequena aldeia que ficava próximo. Vi uma casinha isolada e muito limpa; uma mulher fiava, sentada na soleira da porta. Fiquei comovido com o seu aspecto triste e
bondoso; aproximei-me dela e encostei a cabeça ao seu ombro. A boa mulher deu um grito, ergueu-se com precipitação e olhou para mim cheia de medo. Mas eu não arredei pé e olhei para ela com um olhar terno e suplicante.
- Não me pareces mau. Pobre animal! -disse ela,
Se não tens dono, de bom grado ficarei contigo. Virias substituir o meu pobre Russo, que morreu de velhice. Poderia continuar a ganhar a minha vida indo vender os meus legumes à feira. Mas tu não estás para aí sem dono -acrescentou ela, suspirando.
- Ó avó, com quem está a falar? -disse uma vozinha carinhosa, vinda do interior da casa.
- Converso com um burro que veio encostar a cabeça no meu ombro e que está a olhar para mim com um ar tão triste que não tenho ânimo de o enxotar.
- Vamos lá a ver - replicou a vozinha.
E logo apareceu no limiar da porta um rapazinho dos seus seis a sete anos. Vestia pobremente, mas as roupas eram limpinhas. Pôs-se a olhar para mim com curiosidade e receio.
- Posso fazer-lhe festas, avó? -disse ele.
- Porque não, meu Gino? Mas cuidado, não te vá morder.
O rapazinho estendeu o braço e começou a acariciar-me o lombo.
Eu não fazia um movimento com medo de o aterrorizar, mas voltei a cabeça para ele e lambi-lhe a mão.
GINO - Ó avó, que meigo que ele é! Lambeu-me a mão
AVÓ- O que é esquisito é ele vir sozinho. Onde estará o dono? Gino, vai até à aldeia e pergunta na estalagem onde os viajantes costumam albergar-se se está lá o dono deste burrinho.
GINO- Levo o burrinho comigo, avó?
AVÓ - Não te seguiria. Deixa-o ir onde ele quiser. Gino desatou a correr e eu trotei na peugada dele. Quando viu que o seguia, voltou atrás e disse, fazendo-me festas: burrinho, visto me seguires, também me deixarás montar em cima de ti? E escarranchou-se em cima do meu lombo.
Larguei a galope, o que encantou Gino.
- Alto! -disse ele ao passar à porta da estalagem. Eu parei logo. Gino apeou-se e eu fiquei ao pé da porta, tão quieto como se estivesse preso.
- Que queres, meu rapaz? -perguntou o dono da estalagem.
-Venho saber, Sr. Duval, se este burrico lhe pertence ou a algum dos seus fregueses.
O Sr. Duval veio à porta e olhou para mim atentamente.
- Não, não é meu nem de ninguém que eu conheça. Procura por outro lado.
Gino montou outra vez e eu parti a galope. Caminhámos, caminhámos, perguntando de porta em porta a quem eu pertencia. Como ninguém me reconhecesse, voltámos para casa da boa avó, que continuava a fiar a sua estriga de linho na soleira da porta.
GINO - Avó, o burrico não pertence a ninguém cá da terra. Que vamos fazer dele? Não quer deixar-me, e foge quando alguém pretende tocar-lhe.
AVÓ- Nesse caso, meu Gino, não o deixemos ao relento, que poderia fazer-lhe mal. Vai levá-lo para a cocheira do nosso pobre Russo, dá-lhe um molho de feno e põe-lhe uma selha com água. Vamos amanhã à feira com ele; talvez o dono apareça.
GINO - E se não aparecer, avó?
AVÓ-Ficaremos com ele até que o reclamem. Não podemos deixar o pobre animal morrer de frio durante o Inverno, ou cair nas mãos de gente má que o encha de pancada e o deixe sucumbir de fadiga e de fome.
Gino deu-me de beber e de comer, acariciou-me e saiu. Ouvi-lhe dizer quando fechava a porta:
Deus queira que não tenha dono e que fique connosco.
No dia seguinte, Gino, depois de me ter dado de almoçar, pôs-me um cabresto e levou-me para a porta, onde a avó me pôs uma albarda muito leve, sentando-se em cima. Gino trouxe-lhe um pequeno cesto com legumes, que ela pôs nos joelhos, e partimos para a feira de Mamers. A boa mulher vendeu os seus legumes com um lucro razoável, ninguém me reconheceu e eu voltei para os meus novos donos.
Vivi em casa deles durante quatro anos. Era feliz, não fazia mal a ninguém, cumpria bem o meu dever; gostava muito do meu jovem dono, que nunca me batia; não me cansavam nunca e alimentavam-me com fartura. Não sou guloso. De Verão, comia os restos dos legumes, ervas que os cavalos e as vacas rejeitavam; de Inverno, comia feno e cascas de batatas, cenouras, nabos. Esta é a alimentação de que nós, os burros, precisamos.
Havia, no entanto, alguns dias de que não gostava nada. Eram aqueles em que a minha dona me alugava a rapazes da vizinhança. Como não era rica, nos dias em que não me dava trabalho, ganhava uns cobres alugando-me aos rapazes que habitavam no palácio, e que, vamos lá, não eram nada simpáticos nem bons.
Vou contar o que me sucedeu um dia, num desses passeios.
A ponte
Havia seis burros alinhados no pátio; eu era o mais bonito e o mais forte. Três pequenitos trouxeram-me aveia. Enquanto comia, ouvia as crianças tagarelarem.
CARLOS - Vamos lá escolher os nossos burros. Eu fico com este (e apontava para mim).
- Tu escolhes sempre o que te parece melhor - disseram ao mesmo tempo as cinco crianças. - É melhor tirar à sorte.
CARLOS - Como é que queres tirá-lo à sorte, Carolina? Os burros não se podem meter dentro de um
saco como se fossem bolas.
ANTÓNIO- Não sabes o que dizes! Então não se podem numerar: 1, 2, 3, 4, 5, 6, meter os números num saco e cada um tirar o seu ao acaso?
- É verdade, é verdade! - exclamaram os outros. - Ernesto: escreve tu os números, enquanto nós os escrevemos no corpo dos animais.
Estas crianças são tolas - pensava eu. - Se tivessem espírito, como um burro, em vez de se darem ao trabalho de escrever os números nos nossos corpos, encostavam-nos simplesmente ao muro: o primeiro seria 1, o segundo 2, e assim por diante.
Entretanto, António escreveu com um carvão um enorme 1 na minha garupa. E passou ao companheiro que estava a meu lado; mas eu, para lhe demonstrar que a sua invenção não era coisa por aí além, fiz um movimento e o carvão desapareceu.
- Imbecil! - exclamou ele. - Tenho de recomeçar.
E pôs-se de novo a rabiscar o seu n. 1; mas o meu companheiro, que vira o que eu tinha feito e era um finório, sacudiu-se de tal modo que o n. 2 desapareceu. António começa a irritar-se e os outros riam e tro çavam dele. Faço sinal aos companheiros e ninguém se mexe. Ernesto volta com os números num lenço e todos metem a mão. E enquanto eles olhavam para os
seus números, um novo sinal aos companheiros e todos nos pomos a sacudir o corpo. Adeus, carvão, adeus números.
É preciso voltar ao princípio. As crianças estão furiosas. Carlos triunfa e caçoa; Ernesto, Alberto, Carolina, Cecília e Luísa gritam contra António, que bate com os pés. Injuriam-se uns aos outros, e eu e os meus companheiros começámos a relinchar. O tumulto faz acudir os papás e as mamãs. Explicam-lhes o que se passa. Um dos papás encosta-nos ao muro. As crianças tiram os números.
- Um - grita Ernesto. (Um era eu.)
- Dois! - diz Cecilia. (Era um dos meus amigos. )
- Três! -disse António. E assim seguidamente, até ao último.
- Agora, toca a partir - disse Carlos. - Eu vou adiante.
- Eu te apanharei, não tarda - disse vivamente Ernesto.
- A apostar que não - replicou Carlos.
-Pois eu aposto que sim - respondeu Ernesto.
Carlos deu uma paulada no seu burro que partiu a galope. Antes de dar tempo a Ernesto de me chicotear, larguei atrás de Carlos e passei-lhe adiante. Carlos fica furioso e o seu burro é que paga as favas. Ouço os outros que nos seguem rirem às gargalhadas.
Bravo ao burro n. 1, que corre como um cavalo. O amor-próprio dá-me coragem; continuo a galopar até que chegamos à entrada de uma ponte. Paro bruscamente; acabava de notar que uma das pranchas, a mais larga, estava podre. Não queria cair à água com Ernesto. Voltei para trás, para ir ter com os outros que ainda vinham longe.
- Anda, burrico - gritava Ernesto. - Para a ponte, meu amigo, para a ponte!
Eu resisto e ele dá-me uma paulada.
Continuo a caminhar de encontro aos outros.
- Maldito burro! Teimoso! Voltas ou não voltas para atravessarmos a ponte?
Eu continuava a caminho ao encontro dos meus companheiros e alcancei-os, por fim, apesár das injúrias e das pancadas do malvado rapaz.
- Porque estás a bater no teu burro, Ernesto?exclamou Carolina. - Pois olha que é excelente; trota bem.
-Bato-lhe, porque teima em não atravessar a ponte - respondeu Ernesto. - Voltou para trás sem eu querer.
-Talvez por estar só. Vais ver que a atravessa, agora que estamos todos.
Desgraçados - pensei eu. - Vão cair ao rio. Preciso de lhes mostrar que há perigo.
E galopei para a ponte com grande satisfação de Ernesto e no meio dos gritos de alegria dos outros pequenos.
Mas logo que cheguei à ponte, estaquei bruscamente como se tivesse medo. Ernesto, admirado, quer forçar-me a prosseguir; recuo com mostras de terror, o que surpreendeu mais ainda Ernesto. O imbecil não viu nada. Pois a tábua podre estava bem à vista! Os outros estavam junto de nós e riam-se muito, vendo os esforços que Ernesto fazia para me obrigar a entrar na ponte, sem conseguir que eu desse mais um passo. Desceram dos burros e começaram a empurrar-me, batendo-me sem dó nem piedade. Mas eu não arredei pé.
- Puxem-lhe pelo rabo! - gritou Carlos. - Os burros são tão teimosos que, quando a gente quer que eles andem, recuam.
Como queriam agarrar-me a cauda, atiro-lhes um par de coices. Batem-me todos à uma, sem que isso me demova do meu propósito.
- Espera aí, Ernesto - disse Carlos. - Vou passar adiante. Verás como o teu burro me segue logo.
Mas como eu me colocasse atravessado à entrada da ponte, os rapazes deram-me bordoada de criar bicho.
Pensei com os meus botões:
Ai, sim! Esse malvado quer afogar-se? Pois que se afogue. Pela minha parte fiz todos os esforços para o salvar.
Mal o seu burro tinha dado uns passos, a tábua podre partiu-se, e Carlos e o burro caem de cambulhada na água. Não havia perigo para o meu companheiro, que sabia nadar como todos os burros, mas Carlos é que gritava e se debatia aflitivamente.
- Uma tábua! uma tábua. - dizia ele.
Os pequenos corriam em todas as direcções, fazendo uma gritaria ensurdecedora. Por fim,
Carolina encontrou uma grande vara e estendeu-a a Carlos, que a agarrou com sofreguidão. Mas o seu peso arrastou Carolina, que se pôs a gritar por socorro. Ernesto, António e Alberto correm para ela, e conseguem, com grande custo, tirar Carlos da água, ensopado dos pés à cabeça. Foi então o momento de todos se encangalharem a rir com a cara de parvo que ele fazia, aconselhando-o a voltar para casa, a fim de mudar de fato. Todo alagado, Carlos salta para cima do seu burro. Eu ria-me, à
sucapa, da sua figura ridícula. A corrente levara-lhe o chapéu e os sapatos, a água escorria pelo chão, os cabelos colavam-se-lhe à cara. Os pequenos riam-se a bom rir, os meus companheiros saltavam e corriam para testemunhar a sua alegria.
Devo acrescentar que o burro que Carlos montava não tinha as simpatias de nenhum de nós, porque era quezilento, guloso e estúpido, o que é coisa rara entre os burros.
Carlos desapareceu e tudo voltou à calma ordinária. Todos me acariciaram e admiraram o meu espírito sa gaz. Pusemo-nos de novo a caminho, indo eu à frente do bando.
O cemitério
Íamos agora a passo e estávamos próximo do cemitério da aldeia que fica a uma légua do palácio.
- Não seria melhor voltarmos? - disse Carolina.
- Atravessaremos a floresta.
- Porquê? - disse Cecilia.
CAROLINA - Não gosto de cemitérios.
CECÍLIA (com ar de troça) - Não gostas de cemitérios, porquê? Tens medo de ficar lá?
- Não, mas penso nas pessoas que estão lá enterradas, e faz-me pena.
Todos se puseram a troçar de Carolina e foram passar, propositadamente, rente ao muro. Iam já a dobrar a esquina, quando Carolina, inquieta, fez parar o seu burro, apeou-se e correu para a porta do cemitério. . .
- Que é, Carolina? Aonde vais? - exclamaram os pequenos.
Carolina não respondeu; empurrou precipitadamente o portão, entrou no cemitério, olhou em roda e correu para um coval cuja terra estava remexida de fresco.
Ernesto seguira-a com inquietação e alcançou-a no momento em que ela se abeirava de um túmulo, erguendo nos braços um rapazinho de três anos, cujos gemidos ouvira.
- Que tens, pequeno? Porque choras?
A criança soluçava e não podia responder; era mui to bonita e estava vestida pobremente.
CAROLINA - Quem te deixou aqui sozinho?
CRIANÇA (a soluçar) - Abandonaram-me aqui. Tenho fome.
CAROLINA- Quem é que te abandonou?
CRIANÇA (continuando a soluçar) - Os homens de
preto. Tenho fome.
Ernesto aparecia seguido de todo o grupo que viera atraído pela curiosidade. O pequeno começou a comer, com sofreguidão, frango frito e pão. À medida que ia comendo, secavam-se-lhe as lágrimas e retomava o aspecto risonho. Logo que o viu saciado, Carolina perguntou-lhe porque é que estava deitado naquele túmulo.
CRIANÇA - Meteram lá a minha avó e estou à espera de que ela saia.
CAROLINA- Onde está o teu pai?CRIANÇA
- Não sei; não o conheço.
CAROLINA- E a tua mãe?
CRIANÇA - Não sei. Os homens vestidos de preto levaram-na, como levaram a avó.
CAROLINA - Mas quem é que trata de ti?
CRIANÇA - Ninguém.
CAROLINA - Quem te dá de comer?
CRIANÇA - Ninguém; mamava na minha ama.
CAROLINA - Onde está ela?
CRIANÇA- Está em casa.
CAROLINA - Que faz ela?
CRIANÇA - Passeia, come erva.
CAROLINA - Erva?
Os pequenos entreolharam-se, com surpresa.
- Estará doido? - disse Cecília em voz baixa. ANTóNIO-Não sabe o que diz, é ainda muito novo.
CAROLINA - Porque é que a tua ama não te levou consigo?
CRIANÇA- Não pode, não tem braços.
A surpresa dos pequenos redobrou.
CAROLINA-Então como é que ela te pega ao colo?
CRIANÇA - Ponho-me às cavalitas dela.
CAROLINA - Dormes com ela?
CRIANÇA- Não! Não podia ser.
CAROLINA - Onde é que ela dorme? Não tem cama?
A criança pôs-se a rir e disse:
- Não, dorme em cima da palha.
- Que quer dizer isto? - disse Ernesto. - Vamos pedir-lhe que nos conduza a sua casa e ali veremos a ama, que não deixará de nos explicar o que ele quer dizer.
- Confesso que não compreendo nada - disse António.
CAROLINA - Podes voltar para casa, meu pequeno?
CRIANÇA-Posso, mas não hei-de ir só. Tenho medo dos homens de preto, que estão todos no quarto da minha avó.
CAROLINA - Iremos todos contigo. Indica-nos o caminho.
Carolina montou no seu burro e pôs o pequenito ao colo. Cinco minutos depois chegámos todos à cabana da tia Thibaut, que morrera na véspera e fora enterrada nessa manhã. A criança correu para casa, e gritou:
- Ama, ama! Logo uma cabra saiu do curral, que tinha ficado aberto, correu para o pequenito e testemunhou a sua alegria de o tornar a ver, com mil saltos e carícias. A criança beijou-a e disse:
- Mamar, ama.
A cabra estendeu-se logo no chão, e o petiz aninhou-se junto dela e pôs-se a mamar como se não tivesse comido nem bebido.
- Agora já está explicado o caso da ama - disse Ernesto. - Que vamos fazer desta criança?
- Nada - disse António -; deixemo-la com a sua cabra.
Todos gritaram, indignados.
CAROLINA -Seria um crime abandonar este pobre pequeno. Não tardaria a morrer, por falta de cuidados.
ANTÓNIO-Que queres fazer dele? Vais levá-lo
para tua casa?
CAROLINA- Sim. Pedirei à mamã que mande averiguar quem ele é, se tem parentes, e enquanto não sabemos nada, ficará em nossa casa.
ANTÓNIO -Então o nosso passeio de burro? Voltamos já para casa?
CAROLINA - Não. Ernesto vai fazer o favor de me acompanhar e vocês continuam o seu passeio. São quatro, podem bem dispensar-me e ao Ernesto.
- A Carolina tem razão - disse António. - Montemos e continuemos o nosso passeio.
E abalaram, abandonando a boa Carolina com o seu primo Ernesto.
- Que felicidade não me terem dado ouvidos, quando eu pretendi afastar-me do cemitério! -dizia
Carolina. - Nunca teria ouvido chorar este pequeno, que teria passado a noite sobre a terra fria e húmida!
Ernesto montava-me. Compreendi, com a minha habitual inteligência, que era forçoso chegar depressa ao palácio. Comecei portanto a galopar, seguido de perto pelo meu camarada, e daí a meia hora, chegávamos. Todos se assustaram com o nosso regresso tão cedo. Carolina contou o que lhes tinha acontecido, e sua mãe ficou perplexa sem saber o que havia de fazer da criança. Felizmente, apareceu naquele momento a mulher do guarda, que se ofereceu para o criar, visto ter um filho da mesma idade. A mãe aceitou o oferecimento e mandou perguntar à aldeia o nome do rapazinho e o que era feito dos seus. Soube-se, então, que o pai tinha morrido no ano anterior e a mãe seis meses depois; a criança tinha ficado com uma velha avó muito má e avarenta, que tinha morrido na véspera. Ninguém fizera caso da criança, que seguira o enterro até ao cemitério.
A avó tinha de seu, pelo que o pequenito não ficava pobre. Mandaram buscar a cabrinha para casa do guarda e o rapazinho cresceu, sendo sempre bom. Conheço-o; chama-se João Thibaut, nunca fez mal aos animais, o que prova o seu bom coração; e gosta muito de mim, o que prova a sua inteligência.
O esconderijo
Já disse, mais atrás, que vivia feliz. Mas a minha felicidade devia ser sol de pouca dura. O pai de Gino era soldado; voltou à terra com dinheiro, e uma medalha que lhe tinha sido concedida. Comprou uma casa em Mamers, levou consigo o pequenito e a velha mãe, e vendeu-me a um vizinho que era proprietário de uma pequena quinta. Fiquei muito triste por ter de deixar a minha velha dona e o meu pequeno Gino, que tão bons tinham sido para mim.
O meu novo dono não era má pessoa, mas tinha a pretensão de querer que todos trabalhassem. Para isso atrelava-me a uma carrocinha, onde transportava terra, estrume, maçãs, lenha. Eu começava a fazer-me preguiçoso. Não gostava de me ver atrelado, principalmente nos dias de feira. Verdade é que não me carregavam muito nem me batiam, mas ficava, nesses dias, sem comer até às três ou quatro horas da tarde. Quando o calor apertava, morria de sede, e tinha de esperar que vendessem tudo, que o meu dono recebesse o dinheiro, que se despedisse dos amigos na taberna, onde beberricavam à saúde uns dos outros.
Nessas ocasiões, eu não era nada bom; queria que me tratassem com amizade, caso contrário, vingava-me. Vou-lhes contar o que um dia imaginei. Verão que os burros não são estúpidos e que eu começava a tornar-me mau.
No dia da feira, toda a gente na quinta se levantava mais cedo do que habitualmente. Iam à apanha dos legumes, batia-se a manteiga, ajuntavam-se os ovos. Durante o Verão eu dormia ao ar livre, num vasto prado, donde via e ouvia os preparativos, e sabia que às dez horas da manhã deviam vir buscar-me para me atrelar à carroça, já cheia de tudo o que era destinado à venda. Já disse que essas idas à feira me aborreciam e fatigavam. Tinha visto que havia no prado uma grande cova cheia de silvas; pensei que podia esconder-me ali de modo que não me encontrassem quando me fossem buscar. No dia da feira, logo que vi começar a azáfama na quinta, desci devagarinho para a cova e escondi-me tão bem que era impossível darem comigo. Estava ali havia uma hora, encolhido debaixo das silvas, quando ouvi o rapaz chamar-me, correndo em todas as direcções, e voltar depois para a quinta. Certamente, avisou o patrão de que eu tinha desaparecido, porque momentos depois ouvi a voz do lavrador a chamar a mulher e os criados da quinta para me procurarem.
- Talvez passasse pela sebe - dizia um.
- Por onde querias tu que ele se metesse?A sebe não tem nenhuma abertura. . .
- Talvez deixassem a cancela aberta - disse o patrão. - Corram-me esses campos, rapazes, que ele não deve estar longe, e tragam-mo depressa, porque o tempo passa e vamos chegar tarde.
Cada um por seu lado, percorreram campos e bosques chamando por mim. E eu a rir-me baixinho no meu esconderijo! Os pobres diabos voltaram suados, arquejantes, depois de uma hora de pesquisas inúteis. O patrão jurou-me pela pele, disse que provavelmente me deixara roubar estupidamente, mandou atrelar um cavalo e partiu a resmungar. Logo que vi tudo em sossego e que ninguém podia ver-me, meti com precaução a cabeça de fora, olhei em volta e, não vendo ninguém, saí da cova, corri até ao fim do prado, para que não pudessem adivinhar onde estivera, e comecei a zurrar com quanta força tinha.
Ao ouvirem o barulho, os criados acudiram.
- Olha, já voltou! - exclamou o pastor.
- Donde virá ele? - disse a patroa.
- Por onde é que ele passaria? - observou o carroceiro.
Alegre e contente por me ter visto livre da feira, corri para eles. Receberam-me com carícias, disseram-me que tinha sido um valente por ter fugido às pessoas que me tinham roubado, e outros cumprimentos deste género que muito me envergonharam, porque bem sabia que não eram merecidos. Deixaram-me pastar tranquilamente e teria passado um belo dia se a minha consciência me não censurasse por ter enganado os meus donos.
Quando o patrão voltou e soube do meu aparecimento, ficou muito contente, mas surpreendido. No dia seguinte deu uma volta pelo prado e tapou com todo o cuidado todos os buracos que havia na sebe.
-Vamos a ver agora se ele desaparece -disse ele. - Tapei com silvas os mais pequenos buracos. Nem um gato pode passar.
A semana decorreu tranquilamente, tendo sido esquecida a minha aventura. Mas no dia da feira seguinte, fui meter-me outra vez na cova para me poupar à caminhada. Procuraram-me como na semana anterior e julgaram que tinha sido habilmente levado por um ladrão.
- Desta vez - disse o meu dono com tristeza - está perdido definitivamente. Nem que quisesse voltar, não o poderia fazer, porque tapei cuidadosamente todos os buracos da sebe.
E foi-se embora suspirando, atrelando um dos cavalos à carroça. Como na semana anterior, saí do esconderijo logo que não avistei ninguém; mas julguei mais prudente não anunciar o meu regresso com zurros.
Quando me viram a pastar tranquilamente e quando o meu dono soube que eu tinha voltado pouco tempo depois da sua partida, percebi que ficaram de pé atrás, porque ninguém me elogiou ou acariciou, olharam para mim desconfiados e notei que era mais vigiado do que dantes.
- Ri-me deles e pensei de mim para mim:
Meus bons amigos, dou-lhes um doce se descobrirem a partida que Lhes faço. Sou mais fino do que vo cês todos juntos.
Escondi-me pela terceira vez, muito satisfeito com a minha esperteza. Mas, ainda bem não me acomodara no fundo da cova, quando ouvi os latidos formidáveis do grande cão de guarda e a voz do meu dono, que dizia:
-Agarra, Sultão, agarra; agarra! Desce à cova, morde-lhe as pernas e trá-lo. Agarra, agarra!
Sultão meteu-se na cova e começou a morder-me as pernas e a barriga; e ter-me-ia devorado se eu não saísse precipitadamente do esconderijo. Ia já a correr para a sebe, a fim de procurar uma passagem, quando o lavrador me atirou um laço que me fez parar subitamente. Depois, chicoteou-me sem dó nem piedade, enquanto o cão continuava a morder-me e eu me arrependia amargamente da minha preguiça. Cansado de me maltratar, o lavrador mandou embora o cão, pôs-me o cabresto e atrelou-me à carroça, que já estava pronta a partir.
Soube mais tarde que um dos pequenos da quinta tinha ido para junto da cancela, a fim de ma abrir se eu voltasse e, tendo-me visto sair da cova, avisara o pai. O pequenino traidor!
Fiquei a querer-Lhe mal pelo que eu chamava a sua malvadez, até ao momento em que as minhas desgraças e a minha experiência me fizeram perceber melhor.
Desde então trataram-me com muita severidade; quiseram fechar-me, mas tive meio de abrir todos os obstáculos com os dentes: se era um aloquete, levantava-o; se era um fecho, dava-lhe uma volta; se era um ferrolho, empurrava-o. Entrava em toda a parte e saía de toda a parte. O lavrador praguejava e batia-me; era cada vez mais áspero comigo e eu odiava-o. Sentia-me desgraçado por minha culpa: comparava a minha vida miserável com a que levava outrora em casa destes mesmos donos; mas, em vez de me corrigir, tornava-me cada vez pior e mais teimoso. Um dia entrei na horta e comi todas as alfaces; noutro, atirei ao chão o rapaz que me tinha denunciado; uma vez, bebi uma selha de nata que tinham posto ao ar para fazer manteiga. Matava os franguinhos, os peruzinhos, mordia os porcos. A coisa foi tão falada que a minha dona pediu ao mari do que me vendesse na feira de Mamers, que era daí a quinze dias. Estava magro e escanzelado, à força de pancadas e à falta de bom alimento. Quiseram pôr-me na engorda para obterem mais lucro com a minha venda. Proibiram todos os maus tratos, não me fizeram trabalhar e alimentaram- me bem. Durante quinze dias fui um rei pequeno.
O meu dono levou-me à feira e vendeu-me. Ao deixá-lo, apeteceu-me dar-lhe uma dentada, mas receei que os meus novos donos ficassem a fazer mau conceito de mim e contentei-me em lhe virar o lombo, em sinal de desprezo.
O medalhão
Fui comprado por um homem e uma senhora que tinham uma filha de l2 anos, doente e triste, que não acompanhava com amigos porque os não tinha no campo. O pai não se importava com ela, mas era o enlevo da mãe. Porém não podia admitir que ela gostasse de outra pessoa, nem mesmo de nenhum animal. Mas como o médico tinha recomendado distracções, pensou que os passeios de burro seriam para ela um prazer. A minha pequena dona chamava-se Paulina e era muito boazinha, meiga e linda. Montava-me todos os dias e eu levava-a a passear por bonitas alamedas de bosques que conhecia. Ao princípio, ia connosco um criado ou uma criada; como vissem, porém, que eu era manso e cauteloso, deixaram-na ir sozinha. Ela começou a chamar-me Cadichon, nome que ficou para sempre.
- Vai passear com Cadichon - dizia-lhe o pai. Com um burro assim, não há perigo. É tão inteligente como um homem e saberá reconduzir-te sempre a casa.
Saíamos, portanto, os dois. Quando a sentia fatigada, encostava-me a um muro baixo ou descia a um valado para que ela se pudesse apear facilmente. Levava-a debaixo de nogueiras carregadas de nozes, e parava para a deixar apanhar nozes à vontade. A pequenita gostava muito de mim, apaparicava-me, acariciava-me. Quando chovia e não podíamos sair, vinha visitar-me à cavalariça; trazia-me pão, erva fresca, folhas de alface, cenouras; e ficava comigo muito tempo, falando-me, julgando que eu não a comprendia; contava-me as suas arrelias. e às vezes até chorava.
Oh! meu pobre Cadichon - dizia ela - és um burro e não podes compreender-me, mas és o meu único amigo; só a ti é que posso dizer tudo o que penso. A minha mãe gosta de mim, mas é muito ciumenta; quer que eu goste só dela; não conheço ninguém da minha idade e ando muito aborrecida.
E Paulina chorava e fazia-me festas. Eu também gostava muito dela e lastimava-a. Quando a via ao pé de mim, ficava muito quieto para não a magoar.
Um dia, Paulina veio ter comigo, a correr cheia de alegria.
Cadichon, Cadichon - exclamou ela. - A minha mãe deu-me um medalhão com os seus cabelos; quero ter também os teus, porque sei que és muito meu amigo.
E Paulina cortou pêlos da minha crina, abriu o medalhão e misturou-os com os cabelos da mãe.
Confesso que estava orgulhoso por ver os meus pêlos num medalhão de Paulina, que tanto gostava de mim, mas devo confessar que era deplorável o efeito que eles faziam, rijos, cinzentos e espessos, junto dos cabelos sedosos da mamã. Paulina não o notava e mirava e remirava o medalhão quando a sua mãe entrou.
- Que estás aqui a fazer? - disse ela.
- Estou a olhar para o medalhão, minha mãe respondeu Paulina, escondendo-o na mão.
MÃE - Porque é que o trouxeste para aqui?
PAULINA - Para o mostrar a Cadichon.
MÃE -Tola! parece que perdes a cabeça com o teu Cadichon, Paulina! Como se ele pudesse compreender o que é um medalhão com cabelos!
PAULINA-Oh! minha mãe! Olhe que ele compreende tudo. Até me lambeu a mão quando. . . quando. . . (Paulina corou e calou-se. )
MÃE - Acaba. Porque é que Cadichon te lambeu a mão?
PAULINA (confusa) - Não digo. Tenho medo de que a mãe me ralhe.
MÃE (com vivacidade) - Que tolices terás tu feito? Vamos, diz lá. . .
PAULINA - Não fiz nenhuma tolice, minha mãe. Pelo contrário.
MÃE - Então que medo é esse? Aposto que deste aveia de mais ao burro.
PAULINA- Pelo contrário. . minha mãe. . - Pelo contrário!
- Começo a perder a paciência, Paulina. Quero que me digas o que fizeste e porque andas cá por fora há perto de uma hora.
Efectivamente, a colocação dos meus pêlos dentro do medalhão tinha sido demorada: tirar o papel colado na tampa do medalhão, depois o vidro, meter lá dentro os pêlos e tornar a colar tudo.
Paulina ainda hesitou, mas por fim disse em voz baixa:
- Cortei os pêlos a Cadichon para. . .
MÃE (com impaciência) - Para quê? Vamos, diz. Para quê?
PAULINA - (em voz baixa) - Para meter no medalhão.
MÃE (furiosa) - Qual medalhão?
PAULINA - Aquele que a mãe me deu.
MÃE (no mesmo tom) - O que te dei com os meus cabelos? E que fizeste dos cabelos?
- Estão no medalhão. Olhe - respondeu a pobre Paulina mostrando o medalhão.
-Os meus cabelos misturados com os pêlos do burro! - exclamou ela com arrebatamento. - Essa agora é de mais! Não merecias o presente que te dei. Pôr-me ao nível de um burro! Ter por um burro a mesma ternura que tens por mim!
E arrancando o medalhão das mãos da infeliz Paulina, atirou-o ao chão, pisou-o aos pés e fê-lo em mil bocados. Depois, saiu da cavalariça sem olhar para a filha, atirando a porta com violência.
Paulina, surpreendida e aterrada com esta cólera súbita, ficou imóvel alguns instantes. Mas não tardou a chorar copiosamente, e abraçando-me pelo pescoço, disse-me:
- Cadichon, Cadichon, vês como me tratam? Não vês como me tratam? Não querem que eu goste de ti, mas hei-de gostar, quer queiram quer não, porque tu és bom e não ralhas comigo; nunca me dás um desgosto e procuras divertir-me quando me levas a passear. Ah! Cadichon, que pena não poderes compreender e falar! Quantas coisas te diria!
Paulina calou-se, deitou-se no chão e continuou a soluçar baixinho. Eu estava comovido com os seus desgostos, mas não podia consolá-la, nem sequer demonstrar-Lhe que a compreendia. Sentia-me irritado contra aquela mãe que, por estupidez ou excesso de ternura pela filha, a fazia infeliz. Se pudesse, ter-lhe-ia dito que fazia mal em dar desgostos a Paulina, pois, assim, poderia agravar o seu estado, mas como não podia falar, olhava com tristeza para o seu rosto banhado de lágrimas.
Um quarto de hora depois da partida da mãe, uma criada abriu a porta, chamou Paulina e disse-lhe:
- A sua mãe chama-a; não quer que fique na cavalariça com Cadichon, nem que volte cá.
-Cadichon, meu pobre Cadichon! -exclamou Paulina. - Nem querem que te torne a ver!
-Não, menina, não é bem isso. Vê-lo-á quando for passear. A sua mãe diz que o seu lugar é na sala e não na cavalariça.
Paulina não replicou porque sabia que sua mãe gostava de ser obedecida. Abraçou-me e beijou-me pela última vez, e senti correr as suas lágrimas no meu pescoço. Saiu e não voltou mais. Desde então começou a entristecer, a tossir, a empalidecer, a emagrecer. O mau tempo não permitia que fôssemos passear. Quando me levavam para o pátio Paulina montava-me sem me dirigir a palavra; mas quando estávamos longe das vistas dos outros, apeava-se, acariciava-me e contava-me os seus desgostos para aliviar o coração, pensando que eu não podia compreender. Foi por isso que soube que sua mãe tinha ficado muito aborrecida e de mau humor depois da cena do medalhão, e que Paulina se aborrecia e entristecia cada vez mais, fazendo com que a doença progredisse e se tornasse de dia para dia mais grave.
O incêndio
Uma noite, quando começava a adormecer, fui despertado por gritos de Fogo! Fogo! Inquieto e aterrado, procurei soltar-me da correia que me prendia, mas por mais puxões que lhe desse, nada consegui. Tive então a feliz ideia de a cortar com os dentes. O clarão do incêndio iluminava a minha pobre cavalariça; os gritos e o rumor aumentavam; ouvia as lamentações dos criados, o ruir das paredes e dos sobrados; o fumo já entrava na cavalariça e ninguém pensava em mim, ninguém tinha tido a ideia caritativa de me abrir a porta. As chamas alteavam-se com violência; sentia um calor incómodo que começava a sufocar-me.
Não há nada a fazer! - pensava eu. - Estou condenado a morrer queimado vivo. Que morte horrível! Oh! Paulina, minha dona querida, esqueces-te de mim?
Mal tinha, não pronunciado, mas pensado estas palavras, a porta abriu-se com violência e ouvi a voz aterrada de Paulina que me chamava. Contente por me ver salvo, corri para ela e íamos já a sair, quando se fez ouvir um desmoronamento espantoso. Tinha desabado uma parte do edifício que ficava defronte da cavalariça, e os seus destroços impediam a passagem; a minha pobre dona ia morrer por ter querido salvar-me. Paulina deixou- se cair junto de mim. Tomei subitamente um partido perigoso, mas que era a única maneira de nos podermos salvar. Agarrei com os dentes no vestido da minha pequenina dona desmaiada e saltei por cima das traves a arder. Tive a felicidade de atravessar tudo sem que o fogo se pegasse aos seus vestidos, parei com o fim de ver para que lado havia de me dirigir, mas estávamos cercados pelas chamas. Desesperado, desanimado, ia poisar no chão Paulina completamente desmaiada, quando vi uma das adegas aberta. Entrei precipitadamente, sabendo que estaríamos em segurança nos subterrâneos abobadados. Depus Paulina ao pé de uma selha cheia de água, a fim de que ela pudesse molhar as fontes quando voltasse a si, o que não tardou a suceder. Quando se viu salva e ao abrigo do perigo, ajoelhou-se e orou a Deus por tê-la preservado de tão grande calamidade. Depois agradeceu-me com um carinho e um reconhecimento tão fervoroso que fiquei enternecido. Bebeu alguns golos de água e pôs-se à escuta. O fogo continuava os seus destroços; tudo ardia; ainda se ouviam alguns gritos mas vagamente e sem se distinguirem as vozes.
- Minha pobre mãe e meu pobre pai! - disse Paulina. - Devem julgar que morri desobedecendo-lhes para ir salvar Cadichon. Agora é preciso esperar que o fogo se extinga. Passaremos provavelmente a noite nesta adega, bom Cadichon - acrescentou ela - e é graças a ti que estou viva.
Não disse mais nada, sentou-se num caixote e vi que adormecia, com a cabeça encostada a um tonel vazio. Eu sentia-me fatigado e com sede. Bebi a água da selha e estendi-me ao pé da porta, não tardando a adormecer também.
Só acordei ao romper do dia. Paulina ainda dormia. Levantei-me devagarinho e fui à porta, que entreabri. Estava tudo queimado e apagado. Podia facilmente saltar por cima dos escombros e alcançar o pátio do palácio. Zurrei, para acordar a minha dona. Efectivamente, ela abriu os olhos e vendo-me à porta correu para mim e olhou em volta.
- Tudo queimado! - disse ela tristemente. - Tudo perdido! Nunca mais verei o palácio; morrerei antes que o reconstruam, porque estou fraca e doente, apesar da minha mãe o não acreditar. . .
- Vamos, meu Cadichon -continuou ela, depois de ter ficado por instantes pensativa e imóvel -, saiamos agora. Vamos procurar os meus pais para os tranquilizar, porque me julgam morta. . .
Saltou por cima das pedras e das traves fumegantes, e eu segui atrás dela. Não tardámos a chegar ao prado. Paulina montou-me e eu dirigi-me para a aldeia, onde não tardámos a encontrar a casa onde se tinham refugiado os seus pais. Quando estes a viram deram um grito de alegria e correram para ela. A pequenita contou-lhes com que inteligência e coragem eu a tinha salvado.
Em vez de correrem para mim, para me agradecerem e acariciarem, a mãe olhou para mim com um ar indiferente e o pai nem se dignou olhar.
- Foi por causa dele que tu ias morrendo, minha filha - disse a mãe. - Se não tivesses tido a ideia disparatada de ir abrir-lhe a porta da cavalariça e soltá-lo, não teríamos passado uma noite tão horrível, teu pai e eu.
- Mas - replicou vivamente Paulina - foi ele que...
- Cala-te - disse a mãe interrompendo-a. - Não me fales mais deste animal que detesto e que esteve a ponto de te causar a morte.
Paulina suspirou, olhou para mim compadecida e calou-se.
Nunca mais a tornei a ver. O terror que o incêndio lhe causara, o cansaço de uma noite mal passada sem se deitar na cama, e principalmente o frio da adega, fizeram progredir a doença de que padecia havia muito tempo. Nesse dia ficou a arder em febre, que nunca a abandonou. Meteram-na na cama donde nunca mais se devia levantar. O resfriamento daquela noite acabou o que a tristeza e o aborrecimento tinham começado; morreu um mês depois, sem lamentar a vida, nem recear a morte. Falava muitas vezes em mim e chamava-me no seu delírio. Eu estava abandonado; comia o que encontrava, dormia ao ar livre, ao frio e à chuva. Quando vi sair o caixão que levava o corpo da minha pobre ama, senti uma dor enorme; saí daquela terra onde nunca mais voltei.
A corrida de burros
Eu vivia miseravelmente, por ser Inverno. Escolhi uma floresta onde mal encontrava o preciso para não morrer de fome e de sede. Quando o frio gelava os
ribeiros, apagava a sede com a neve, tinha por único alimento cardos e dormia debaixo dos pinheiros. Comparava a minha triste existência com a que levara
em casa do meu dono Gino e do lavrador que me tinha vendido. Enquanto não fora preguiçoso, mau e vingativo, a vida corria-me bem. Não tinha maneira de sair deste estado miserável, porque queria ser livre e senhor das minhas acções. Ia amiúde aos arredores de uma aldeia que ficava próxima da floresta, para saber o que se passava no Mundo. Um dia - era Primavera e estava um tempo magnífico - fiquei surpreendido ao ver um movimento extraordinário; a aldeia estava em festa; grupos de passeantes com os seus fatos domingueiros e todos os burros da região, presos pelas rédeas, bem escovados e penteados; muitos tinham flores na cabeça, à roda do pescoço, e nenhum tinha albarda ou selim.
É singular! - pensei eu. - Hoje não há feira! Que farão aqui todos estes meus companheiros, assim tão elegantes? E como estão gordos! Bem se vê que os alimentaram bem este Inverno.
Olhei então para mim mesmo; vi-me magro, esquelético, com as crinas muito compridas, os pêlos eriçados, mas sentia-me forte e vigoroso.
Prefiro ser feio - pensava eu - mas lépido e cheio de saúde; os meus companheiros, que vejo tão bonitos, tão gordos e bem tratados, não suportariam as fadigas e as privações que eu suportei este Inverno.
Aproximei-me para saber o que queria dizer aquela reunião de burros, quando um rapaz, que segurava um deles, me avistou e se pôs a rir.
- Eh! rapaz! - exclamou ele. -Vejam lá o burro que nos chega à última hora! Não está tão bem pen teado?
- E bem tratado, bem alimentado! - exclamou outro. - Virá para a corrida?
- Se essa é a sua vontade, deixá-lo correr - disse um terceiro. - Não há perigo de que ganhe o prémio.
Uma gargalhada geral acolheu estas palavras. Eu estava contrariado, arreliado com estes gracejos idiotas; mas fiquei sabendo que se tratava de uma corrida. Mas como? Era o que eu desejava saber. Continuei, portanto, a escutar e a fingir que não compreendia o que diziam.
- Quando partimos? - perguntou um dos rapazes.
- Não sei. Estão à espera do presidente da Câmara.
- Onde é que correm os burros? - perguntou uma mulher que chegava.
JOÃOZINHO - No prado grande do moinho, tia Tranchet.
TIA TRANCHET- Quantos burros estão aqui?
JOÃOZINHO -Dezasseis sem contar consigo, tia Tranchet. (Nova gargalhada acolheu este gracejo. )
TIA TRANCHET (rindo) - És esperto. . . E que ganha o primeiro que chegar?
JOÃOZINHO - Primeiro, a honra; depois, dinheiro e um relógio de prata.
TIA TRANCHET-Quem me dera ter um burro para ganhar o relógio! Nunca tive dinheiro para comprar um.
JOÃOZÌNHO- É pena, é. . . sempre era uma probabilidade de ganhar.
TIA TRANCHET - Pois era. Mas onde é que eu ia buscar de comer para ele?
Aquela boa mulher agradava-me. Parecia-me alegre e boa pessoa. Tive, por isso, a ideia de a fazer ganhar os prémios. Estava habituado a correr na floresta durante horas, no Inverno, para me aquecer, e tivera a fama de correr durante tanto tempo e tão depressa como um cavalo.
Tentemos - pensei eu. -Se perder, não perco grande coisa; se ganhar, farei ganhar um relógio à tia Tranchet, que deseja ter um.
Parti a trote e fui colocar-me ao lado do último burro, com ares de fanfarrão e zurrando com vigor.
- Acaba lá com essa música - exclamou André. Não tens dono, estás sujo, não podes correr.
Calei-me, mas não arredei pé. Uns riam, e outros zangavam-se, e já começavam a questionar, quando a tia Tranchet exclamou:
- Se não tem dono, vai ter uma dona. Reconheço-o. É Cadichon, o burro da pobre menina Paulina. Soltaram-no quando a pequena já não o podia proteger e creio que viveu todo o Inverno na floresta, porque ninguém lhe pôs mais a vista em cima. Fica desde já ao meu serviço, vai correr para mim.
- É Cadichon! - gritaram de todos os lados -; eu ouvi falar desse famoso Cadichon.
JOÃOZINHO - Se quer fazê-lo correr por sua conta, tia Tranchet, tem de depositar uma moeda branca.
TIA TRANCHET - Lá por isso não seja a dúvida, meus filhos. Aí vai a minha moeda - acrescentou, de satando uma ponta do lenço- Mas não me peçam mais, porque não tenho.
JOÃOZINHO - Se ganhar, não lhe faltarão moedas, porque toda a aldeia deitou no saco.
Aproximei-me da tia Tranchet e fiz uma pirueta com um ar tão decidido que os rapazes começaram a recear que eu ganhasse o prémio.
- Ouve, Joãozinho - disse André, baixinho. - Fizeste mal em deixar a tia Tranchet meter a moeda no saco. Agora tem ela o direito de fazer correr Cadichon, que é bem capaz de nos levar o relógio e o dinheiro.
JOÃOZINHO - Tolo! Não vês a figura desse pobre Cadichon! Quanto muito, far-nos-á rir.
ANDRÉ - Sei lá! E se lhe mostrasse um molho de aveia, a ver se ele se safa?
JOÃOZINHO - E a moeda da tia Tranchet?
ANDRÉ - Se o burro se safar, restitui-se-lha.
JOÃOZINHO - Realmente, Cadichon é tanto dela como teu ou meu. Dá-lhe a aveia, mas sem que a tia Tranchet veja a manobra.
Eu ouvira e compreendera tudo, de modo que, quando André voltou com a aveia, eu dirigi-me para a tia Tranchet, que estava a conversar. André seguiu-me e Joãozinho agarrou-me pelas orelhas, fazendo-me voltar a cabeça, julgando que eu não vira a aveia. Não me mexi, apesar da tentação de provar o petisco. Joãozinho pôs-se então a puxar por mim, André a empurrar-me e eu a zurrar, de tal modo que a tia Tranchet se voltou e viu a manobra do André e do Joãozinho.
- O que vocês estão a fazer, meus meninos, não está bem. Exigiram que metesse a minha moeda no saco e querem agora levar-me Cadichon. Parece que estão com medo dele!
ANDRÉ- Medo de um burro tão feio? Era o que faltava!
TIA TRANCHET - Então para que estavam a puxar por ele?
ANDRÉ - Era para lhe dar aveia.
TIA TRANCHET (maliciosa) - Ah! Então o caso muda de figura. Deitem a aveia no chão para ele comer à vontade. E eu a julgar que era partida! Como a gente se engana!
André e Joãoxinho estavam envergonhados e descontentes, os colegas riram-se por eles terem sido descobertos, a tia Tranchet esfregava as mãos e eu estava encantado, comendo a aveia com avidez. De repente produziu-se grande agitação: era o presidente da Câmara que dava ordens para os burros alinharem. Eu fiquei, modestamente, no último lugar. Todos perguntavam quem era o meu dono.
- Não tem dono - disse André.
- É meu! - gritou a tia Tranchet.
PRESIDENTE DA CÂMARA - Tem de meter no saco uma moeda de prata, tia Tranchet.
TIA TRANCHET- Já meti, senhor presidente.
- Bem. Inscrevam a tia Tranchet.
- Já está inscrita - disse o secretário.
- Está tudo pronto? - perguntou o presidente. Um, dois, três!
Os rapazes que seguravam os burros largaram-nos, dando uma chicotada em cada um. Todos partiram. Apesar de não estar preso por ninguém, esperei honestamente a minha vez, levando os outros, portanto, um certo avanço. Mas não tinham ainda dado cem passos e eu já os alcançava, indo à frente do bando sem fazer um grande esforço. Os rapazes gritavam, fazendo estalar os chicotes para excitarem os seus burros. De vez em quando voltava a cabeça, para ver as suas caras e contemplar o meu triunfo, rindo-me dos seus esforços. Os meus companheiros, furiosos por ficarem para trás, redobraram de esforços para me alcançarem e passarem à frente. Ouvia atrás de mim gritos roucos, chicotadas; o burro do Joãozinho esteve quase a passar-me à frente por duas vezes; com um salto vigoroso ultrapassei-o, mas o Joãozinho agarrou-me pela cauda com tanta força que a dor esteve quase a fazer-me cair. O desejo da vingança, porém, deu-me asas, e corri com uma tal velocidade que não só cheguei em primeiro lugar, mas deixei muito longe os meus rivais. Estava arquejante, esgotado, mas contente e triunfante. Ouvi com alegria os aplausos dos espectadores espalhados pelo prado. Como um vencedor, voltei a passo até à tribuna do presidente da Câmara, que devia distribuir os prémios. A boa tia Tranchet veio ao meu encontro, fez-me festas e prometeu-me uma boa ração de aveia.
Já ela estendia a mão para receber o relógio e o saco do dinheiro, quando André e Joãozinho acorreram, gritando:
- Não é justo, senhor presidente. Ninguém conhece este burro, que pertence tanto à tia Tranchet como a mim próprio. Este burro não conta, os nossos é que chegaram primeiro. O relógio e o saco devem ser para nós.
- A tia Tranchet não meteu a moeda no saco?
- Sim, senhor presidente, meteu.
- Alguém se opôs quando ela o fez?
- Não. Mas. . .
- Opuseram-se antes da partida dos burros?
- Não. Mas.
- O burro da tia Tranchet é que ganhou o relógio e o saco.
- O senhor presidente não tem o direito de deliberar sozinho, deve reunir a Câmara para resolver a questão.
O presidente ficou indeciso. Quando vi que ele hesitava, agarrei no relógio e no saco com os dentes e coloquei-os nas mãos da tia Tranchet que, inquieta e trémula, esperava a decisão do presidente.
Esse acto inteligente pôs toda a multidão do nosso lado e valeu-me uma torrente de aplausos.
- A questão foi resolvida pelo vencedor a favor da tia Tranchet - disse o presidente, rindo-se. – Senhores vereadores! Vamos deliberar se estou ou não no meu direito deixando administrar um burro. Meus amigos! - acrescentou ele maliciosamente, olhando para André e Joãozinho. - Creio bem que o mais burro de nós não é o burro da tia Tranchet. . .
- Bravo! Bravo! - gritaram de todos os lados.
E todos desataram a rir, excepto André e Joãozinho, que foram corridos e me ameaçaram de longe. E eu, estava contente? Não! O meu orgulho revoltava-se; achei que o presidente tinha sido insolente a meu respeito, julgando injuriar os meus inimigos quando os classificou de burros. Era ingrato e cobarde. Eu tivera coragem, moderação e paciência, e era aquela a minha recompensa! Depois de me terem insultado, abandonaram-me. A tia Tranchet, até essa, com a alegria de possuir um relógio e cento e trinta e cinco francos esquecia o seu benfeitor, não pensando mais na promessa de uma boa refeição de aveia, e ia-se embora no meio da multidão sem me dar a recompensa que eu ganhara.
Os bons donos
Fiquei sozinho no meio do prado, muito triste, com o meu ferimento na cauda, que me enchia de dores. Pensava se os burros não seriam melhores que os homens, quando senti mãos muito macias correrem-me no pêlo, e ouvi uma voz cheia de ternura dizer-me:
Pobre burrinho! Foram bem maus para ti! Vem comigo para casa da minha avó, que te dará de comer e te tratará melhor do que os teus donos perversos! Como está magro, meu pobre burrinho!
Voltei-me e vi um lindo rapaz de cinco anos; a irmã, que teria talvez três anos, vinha a correr com a criada, direita a nós.
JOANA - Que estás a dizer a esse pobre burrinho, Tiago!
TIAGO- Disse-lhe que viesse connosco para casa da avó. Está tão desamparado!
JOANA - Leva-o, Tiago. Espera. Eu monto-o. Põe-me em cima do burro - disse ela à criada.
A criada montou a pequenita e Tiago queria levar-me, mas eu não tinha rédeas.
- Vou atar-lhe o lenço ao pescoço - disse ele. E tentou fazê-lo, mas o meu pescoço era grosso de mais para o seu lenço. Nem o da criada servia.
- Que vamos fazer? disse Tiago, quase a chorar. CRIADA-Vamos à aldeia buscar o cabresto. Desce do burro, Joaninha.
JOANA (agarrando-se ao meu pescoço) - Não quero apear-me. Quero que o burro me leve a casa.
CRIADA - Mas não temos corda para o levar. Não vês que ele nem se mexe?
TIAGO- Vais ver como ele me segue, quando eu lhe fizer festas. Já sei que se chama Cadichon. Foi a tia
Tranchet que o disse.
Tiago aproximou-se da minha orelha e disse baixinho, acariciando- me:
- Vamos, meu lindo Cadichon.
A confiança do rapazinho comoveu-me; notei com prazer que, em vez de pedir um pau para me bater, só pensou nos meios de persuasão. Assim, logo que ele acabou a sua frase, pus-me a andar.
- Vês como ele me compreende e gosta de nós?
-exclamou Tiago, corado de alegria, os olhos brilhantes de felicidade e correndo adiante de mim para me ensinar o caminho.
CRIADA- Como é que um burro pode compreender o que se lhe diz? Ele anda porque está aborrecido de estar aqui.
TIAGO- Mas ele segue- me.
CRIADA - Porque lhe cheirou o pão que o menino traz no bolso.
TIAGO-É verdade, pobre Cadichon! E eu que não me lembrava de lhe dar o meu pão!
E tirando do bolso um grande bocado de pão, estendeu-mo, para que o comesse.
Eu ficara ofendido com os dizeres da criada e, para lhe provar que me tinha julgado mal, que não era por interesse que seguia o Tiago e levava Joana, mas sim por bondade e complacência, recusei o pão e contentei-me em lamber a mão do pequenito.
TIAGO - Olha, está a beijar-me a mão; e não quer comer! Como eu gosto de ti, meu pobre Cadichon! Já vês que é por gostar de mim que ele me segue.
CRIADA-Tanto melhor para si se julga que o burro é um modelo. Eu não gosto dos burros, que são muito maus e teimosos.
TIAGO- O pobre Cadichon é muito bom para mim!
CRIADA- Veremos se isso dura muito tempo.
- Não é verdade, meu Cadichon, que serás sempre bom para mim e para Joana? - disse Tiago, fazendo-me festas.
Voltei-me para ele e olhei-o com um olhar tão terno que ele o notou, apesar de ser muito novinho.
depois, voltei-me para a criada e deitei-lhe um olhar furioso, que ela também viu, porque disse imediatamente:
- Que olhar tão mau que ele tem! Está a olhar para mim como se quisesse devorar-me!
- Oh! Como é que podes pensar assim? Pois ele olhou para mim com um olhar cheio de ternura, como se quisesse beijar-me.
Ambos tinham razão e eu também. Prometi a mim mesmo ser bom para Tiago, Joana, e todas as pessoas da casa que fossem boas para mim; e tive o mau pensamento de o não ser para os que me maltratassem ou insultassem, como tinha feito a criada. Esta necessidade de vingança foi, mais tarde, a causa dos meus infortúnios.
Iam conversando e caminhando, e chegámos deste modo ao solar da avó de Tiago e de Joana. Deixaram-me à porta, onde fiquei como um burro bem- educado, muito quieto, sem nem sequer estender o focinho para a erva do caminho.
Dois minutos depois, Tiago voltou, a puxar pela mão da avó.
- Venha ver, avó; venha ver como é manso e gosta de mim! Não acredite na criada -disse ele, pondo as mãos.
- Não, avó, não acredite -disse Joana, por sua vez.
- Vamos lá ver esse famoso burro! - disse a avó sorrindo.
E aproximando-se de mim, acariciou-me, puxou-me as orelhas, pôs-me a mão na boca, sem que eu fizesse um movimento.
AVÓ- Efectivamente, é muito manso. E dizia você, Amélia, que era mau!
TIAGO-Não é verdade, avó? Vamos ficar com ele, sim?
AVÓ-Sim, o burro é bom. Quanto a ficarmos com ele, não pode ser, não é nosso. É preciso entregá- lo ao dono.
TIAGO- Não tem dono, avó.
- Não tem não, avozinha - disse Joana, que repetia tudo o que o irmão dizia.
AVó - Não é possível.
TIAGO- É verdade, avó; foi a tia Tranchet que disse.
AVÓ - Então como é que ele ganhou o prémio da corrida para ela? É porque o pediu emprestado a al guém.
TIAGO- Não, avó, veio sozinho e quis correr com os outros. A tia Tranchet pagou, para ele poder correr, mas não tem dono: é Cadichon, o burro da pobre Paulina, o que os pais expulsaram, depois da morte da filha. Viveu todo o Inverno na floresta.
AVÓ - Cadichon! O famoso Cadichon, que salvou do incêndio a dona?! Tenho grande prazer em o conhecer; é, na verdade, um burro extraordinário e admirável.
E pôs-se a andar à minha roda. Eu sentia-me orgulhoso da minha fama, abria as narinas e sacudia a crina.
- Está tão magro! Pobre animal! A sua dedicação não foi recompensada! -disse a avó, num tom de censura. - Fiquemos com ele, meu filho, visto terem-no abandonado aqueles que tinham obrigação de tratar dele. Chama Bouland; que o leve para a cavalariça.
Tiago, encantado, correu a procurar Bouland, que chegou imediatamente.
AVÓ - Bouland, está aqui um burro que os pequenos trouxeram. Meta-o na cavalariça e dê-lhe de comer e de beber.
BOULAND- E depois entrega-se ao dono?
AVÓ - Não tem dono. Parece que é o famoso Cadichon, que puseram fora, depois da morte da dona. Veio à aldeia, e os meus netos encontraram-no abandonado no prado. Fica connosco.
BOULAND - A senhora faz bem em o conservar. Não há outro igual, cá nestas bandas. Contaram-me dele coisas admiráveis. Dir-se-ia que ele ouve e compreende tudo o que se diz. A senhora vai ver. . . E dirigindo-se a mim: - Vamos, Cadichon, vem comer a tua ração de aveia.
Eu voltei-me logo e segui Bouland.
- É admirável - disse a avó. - Comprendeu perfeitamente.
Enquanto a avó se retirava para casa, Tiago e Joana acompanharam-me à cavalariça, onde me puseram uma manjedoura. Tinha por companheiros dois cavalos e um burro. Bouland, ajudado por Tiago, fez-me uma boa cama e foi buscar a ração de aveia.
- Mais, mais, Bouland - disse Tiago. - Ele corre tanto!
BOULAND - Mas, menino Tiago, se lhe damos aveia de mais, ele fortalece-se a tal ponto, que não poderá montá-lo, nem a menina Joana tão-pouco.
TIAGO - Ele é tão bom! Poderemos montá-lo na mesma.
Deram-me muita aveia e puseram ao pé de mim uma selha cheia de água. Comecei por beber metade da água, porque estava cheio de sede; em seguida dei conta da aveia. Ainda fiz algumas reflexões sobre a ingratidão da tia Tranchet, e depois estendi-me na palha, onde adormeci, satisfeito como um rei.
Cadichon doente
No dia seguinte, o meu trabalho foi passear os dois meninos durante uma hora. Era Tiago quem me vinha dar a aveia, e, apesar das observações de Bouland, dava-me tanta que chegava para alimentar três burros do meu tamanho. E eu comia tudo e ficava radiante. Mas ao cabo de três dias senti-me mal, com febre, dores de cabeça e de estômago; não pude comer aveia nem feno e fiquei estendido na palha.
Quando Tiago apareceu, exclamou:
- Ah! o Cadichon ainda está deitádo! Levanta-te que são horas. Vou dar-te a aveia.
Quis levantar-me, mas a cabeça caiu-me, pesadamente, na palha.
-Ai! que o Cadichon está doente! -gritou o pequeno Tiago. - Bouland! Venha cá depressa!
- Que terá ele! - disse Bouland. - Já Lhe deram a sua ração da manhã. . .
Aproximou-se da manjedoura, olhou e disse:
- Não tocou na aveia, é porque está doente. Tem as orelhas quentes. . . Bate-lhe a anca. . .
- Que é que isso quer dizer, Bouland? - perguntou Tiago, alarmado.
- Isto quer dizer, menino Tiago, que Cadichon tem febre, porque Lhe deu aveia de mais, e é preciso mandar chamar o veterinário.
- Que é um veterinário? - disse Tiago, cada vez mais alarmado.
- É um médico de animais. Eu bem lhe dizia, menino Tiago. Este pobre burro passou grande miséria o Inverno passado, o que se vê bem no pêlo e na magreza. Cansou-se na corrida. Devíamos ter-lhe dado pouca aveia, e erva para refrescar, e o menino Tiago deu-lhe quanta lhe apeteceu.
- Meu Deus! Pobre Cadichon! És capaz de morrer, e por culpa minha! -disse o pobre pequeno, soluçando.
-Não morre, esteja descansado, mas é preciso pô-lo a ração de erva e tratá-lo.
- Não quero ver - gritou Tiago, fugindo.
Levei oito dias a recuperar a saúde. Entretanto, Tiago e Joana trataram-me com uma bondade que jamais esquecerei: vinham ver-me muitas vezes ao dia; apanhavam erva para que não tivesse o trabalho de me abaixar; traziam-me folhas de alface da horta, couves, cenouras, levavam-me todas as noites para a cavalariça, onde encontrava a manjedoura cheia de coisas de que mais gostava: cascas de batata com sal. Um dia, o bom Tiago quis dar-me o seu travesseiro, porque, dizia ele, tinha a cabeça muito baixa quando dormia. Doutra vez, Joana quis cobrir-me com o cobertor da sua cama para que eu não tivesse frio de noite. Outro dia, ainda, envolveram-me as pernas com pedaços de lã. Eu estava desolado por não lhes poder testemunhar o meu reconhecimento, mas tinha a infelicidade de compreender tudo e não poder dizer nada. Acabei de me restabelecer e soube que se projectava uma burricada na floresta, com os primos e primas.
Os ladrões
As crianças estavam reunidas no pátio e tinham arranjado burros em todos os lugarejos. Reconheci-os quase todos, porque tinham tomado parte na corrida; o do Joãozinho olhava para mim com um ar feroz, enquanto eu o contemplava com certa zombaria no olhar. A avó de Tiago tinha em casa quase todos os netos: Camila, Madalena, Isabel, Henriqueta, Joana, Pedro, Henrique, Luís e Tiago. As mães dos meninos deviam ir com eles de burro, e os pais segui- los-iam a pé, armados de paus para fazerem andar os mais preguiçosos. Antes da partida, discutiam todos, como é costume nestes divertimentos, quem é que iria no melhor burro: todos me queriam e, por isso, resolveram tirar-me à sorte. Coube ao pequeno Luís, primo de Tiago, que era bom rapazinho, e me agradaria, se não visse Tiago limpar, às furtadelas, os olhos rasos de água. Tinha pena dele, mas não podia consolá-lo. Precisava de ter, como eu, resignação e paciência. Acabou, pois, por tomar o seu partido, e montou no burro que lhe tocava, dizendo ao primo:
- Irei sempre ao pé de ti, Luís; não faças galopar Cadichon para eu não ficar para trás.
LUÍS- Porque é que ficarias para trás? Porque não galopas como eu?
TIAGO - Porque Cadichon galopa mais depressa do que todos os burros cá da terra.
LUÍS- Quem to disse?
TIAGO- Vi-os correr a todos no dia da festa da aldeia e Cadichon passou-lhes à frente.
Luís prometeu não ir muito depressa e os dois partiram a trote. O meu companheiro não era mau, não tendo eu muito trabalho para não lhe passar adiante. Os outros vinham atrás de nós. Chegámos a uma floresta onde as crianças visitaram as ruínas de um velho convento e de uma antiga capela, que tinham má fama e aonde não se ia senão em boa companhia. Dizia-se que à noite saiam dos escombros ruídos estranhos, gemidos, gritos, arrastar de correntes; e muitos viajantes, que se tinham rido dessas histórias e quiseram ver com os próprios olhos, não tinham voltado nem se ouviu mais falar neles.
Quando todos se apearam dos burros e nos deixaram pastar, com as rédeas soltas, os pais e as mães pegaram nas crianças pela mão, proibindo-as de se afastarem ou de ficarem para trás.
Vi-os afastarem-se na direcção das ruínas e fiquei inquieto. Afastei-me também dos meus companheiros e pus-me ao abrigo do sol sob um arco meio arruinado, próximo do bosque e num sítio mais distante do convento. Estava ali havia um quarto de hora, quando ouvi um ruído perto do arco; escondi-me num ângulo do muro arruinado, donde via tudo sem ser visto. O ruído, apesar de surdo, aumentava, e parecia vir debaixo da terra.
Não tardou muito que eu visse aparecer uma cabeça de homem, que saía com precaução de entre as silvas.
- Nada. . . - disse ele em voz baixa, depois de ter olhado em roda. - Ninguém!. Podem vir. Agarre cada um em seu burro e toca a safar.
Apareceu, então, uma dezena de homens, aos quais disse a meia voz:
-Se os burros fugirem, não corram atrás deles. Depressa e nada de barulho.
Os homens deslizavam com precaução ao longo do bosque; os burros, que procuravam a sombra, comiam erva. A um sinal, cada ladrão puxou pelas rédeas de um burro, e todos eles, em vez de darem o alarme, se deixaram levar como imbecis. Um carneiro não teria sido mais estúpido. Cinco minutos depois, os ladrões chegaram ao maciço próximo do arco, onde fizeram entrar os meus companheiros, um a um, e desapareceram. Ouvi o ruído dos seus passos debaixo do chão, ficando depois tudo em silêncio.
Ora aqui está a explicação dos ruídos que aterram a gente da região: é um bando de ladrões que está escondido nos subterrâneos do convento. É preciso fazê- los prender. Mas como?
Continuei escondido debaixo da abóbada, donde avistava todas as ruínas, e só saí quando ouvi as vozes dos pequenos que procuravam os burros. Corri para os impedir de se aproximarem do arco e das silvas que ocultavam a entrada dos subterrâneos.
- Cadichon está aqui! - gritou Luís.
- Mas onde estão os outros? - disseram todos ao mesmo tempo.
- Não devem estar longe - disse o pai de Luís.
- Vamos procurá-los.
- Talvez do lado da ravina, por trás do arco que vejo acolá - disse o pai de Tiago. - Talvez tenham escolhido aquele sítio, onde a erva é mais tenra.
Tremi, pensando no perigo a que se iam expor, e precipitei-me para os lados do arco, a fim de os impedir de passar. Quiseram afastar-me, mas eu resisti-lhes com tanta violência que o pai de Luís fez parar o cunhado para lhe dizer:
- A insistência de Cadichon tem qualquer coisa de extraordinário. Sabe o que nos contaram da inteligência deste animal. Obedeçamos-lhe e voltemos para trás. Os burros com certeza não foram para lá das ruínas.
- Tem razão, meu caro - respondeu o pai de Tiago. - Tanto mais que vejo a erva pisada perto do arco. Julgo que nos roubaram os burros.
Voltaram para ao pé das senhoras, que não tinham consentido que os pequenos se afastassem. Segui-os, contente por lhes ter evitado uma desgraça terrível. Conversaram baixinho, todos em grupo. Depois, chamaram- me.
- Que vamos fazer? - disse a mãe de Luís. - Um burro só não pode levar todas as crianças.
- Põem-se os mais pequenos em cima de Cadichon e os maiores vão connosco - disse a mãe de Tiago.
- Anda cá, Cadichon; vamos a ver como te portas
- disse a mãe de Henriqueta.
Começaram por colocar Joana, que era a mais pequena, depois Henriqueta, depois Tiago, depois Luís. Como não pesavam muito, larguei a trote.
- Devagar, Cadichon -xclamaram os pais - para que possamos segurar os pequenos.
Comecei a andar a passo, rodeado pelos maiores e pelas senhoras, seguindo os pais atrás de todos.
- Porque é que o pai não procurou os nossos burros? - perguntou Henrique, o mais novo do bando, que já ia cansado de andar.
MÃE- Parece que foram todos roubados, sendo, portanto, inútil procurá-los.
HENRIQUE- Roubados? Por quem, se não estava lá ninguém estranho?
MÃE- Também não vi ninguém, mas havia ao pé do arco vestígios de passos.
PEDRO- Nesse caso, devíamos ter procurado os ladrões.
MÃE- Teria sido imprudente. Para levarem treze burros deviam ser muitos homens, provavelmente armados, e podiam ter matado ou ferido os vossos pais.
PEDRO - Que armas teriam eles?
MÃE - Paus, facas, talvez pistolas.
CAMILA - Era realmente perigoso e o pai fez muito bem em voltar com os tios.
MÃE - Vamos depressa para casa, porque os tios e os vossos pais têm de ir à cidade logo que cheguemos.
PEDRO - Que vão eles fazer?
MÃE- Prevenir a polícia e procurar os burros.
CAMILA - Não devíamos ter ido às ruínas.
MADALENA- Mas era um passeio tão bonito!
CAMILA - Sim, mas muito perigoso. Se em vez dos burros, os ladrões nos tivessem levado a nós?
ISABEL - Éramos muitos. . .
CAMILA- E se os ladrões também fossem muitos?
ISABEL - Defendíamo-nos.
CAMILA-Com quê? Nem sequer tínhamos um pau.
ISABEL- E os nossos pés, os nossos punhos, os nossos dentes? Eu cá mordia-os, arranhava-os e tirava- lhes os olhos com as unhas.
PEDRO - E o ladrão matava-te, ora aí está.
ISABEL- Matava-me? E o nosso pai? E a nossa mãe? Julgas, então, que me deixavam roubar ou matar?
MADALENA-Os ladrões matavam-nos também, antes de te matarem a ti.
ISABEL-Para isso era preciso que eles fossem muitos.
MADALENA- Bastava uma dúzia deles!
ISABEL - Ah! Tu julgas que os ladrões andam por aí às dúzias, como as ostras? Que tolice!
MADALENA - Estás sempre a gozar! Pois eu aposto que, para roubarem treze burros, eles não eram menos de uma dúzia.
ISABEL-Sim, talvez tenha razão. O décimo terceiro foi como contrapeso.
As senhoras e as outras crianças riram-se desta conversa, que já ia degenerando em discussão. Por isso a mãe de Isabel mandou-a calar, dizendo-lhe que Madalena talvez tivesse razão quanto ao número dos la drões.
Estávamos já perto de casa e não tardámos a chegar. Quando viram que todos vinham a pé e eu, Cadichon, com quatro crianças em cima, a surpresa foi enorme. Mas depois de os pais contarem o desaparecimento dos burros e a minha teimosia em não os deixar aproximar de um arco por onde queriam passar para procurarem os animais perdidos, a gente da casa abanou a cabeça e fez uma série de suposições; diziam uns que os burros tinham sido levados pelos diabos; outros pretendiam que as religiosas enterradas na capela se tinham apoderado deles para percorrerem a terra; outros, ainda, afirmavam que os anjos que guardavam o convento reduziam a pó e cinza todos os animais que se aproximassem do cemitério, onde vagueavam as almas das religiosas. Ninguém se lembrou de dizer que havia ladrões nos subterrâneos.
Logo que regressaram, os pais foram contar à avó o roubo provável dos burros. Atrelados os cavalos ao carro, foram à polícia da cidade vizinha depor a sua queixa e voltaram duas horas depois com o oficial e seis guardas. Eu tinha uma tal reputação de inteligência que julgaram o caso grave, logo que souberam da resistência que eu tinha oposto à passagem debaixo do arco. Vinham todos armados de pistolas e carabinas, como para uma campanha. No entanto, aceitaram a refeição que a avó lhes ofereceu e sentaram-se à mesa com os senhores.
Os subterrâneos
O almoço não foi demorado, porque os guardas tinham pressa de ir fazer a sua inspecção antes que chegasse a noite. Pediram à avó licença para me levarem.
- Ser-nos-á muito útil na nossa expedição - disse o oficial. - Este Cadichon não é um burro vulgar; já fez coisas mais difíceis do que a que lhe vamos pedir.
- Levem-no, senhores, se isso lhes pode ser útil - respondeu a avó -; só o que lhes peço é que não o fatiguem demasiado. O pobre animal já andou muito esta manhã e carregou para cá com os meus quatro netos.
- Pode ficar descansada, minha senhora - disse o oficial. - Tratá- lo-emos o melhor possível.
Tinham-me dado de comer: um molho de aveia, uma braçada de alface, cenouras e outros legumes. Bebido e comido, estava preparado para partir. Vieram buscar-me, e pusemo-nos a caminho, indo eu à frente a servir de guia aos guardas, que não se sentiram humilhados porque eram boas pessoas. Há quem julgue que os guardas são maus e severos, mas isto não é verdade: não há gente mais caritativa, mais generosa e mais paciente do que eles. Tiveram para comigo, durante o percurso, toda a espécie de cuidados, abrandando o passo dos seus cavalos quando me supunham cansado, e convidando-me a beber quando atravessávamos algum ribeiro.
A tarde começava a cair quando chegámos ao convento. O oficial deu ordens para seguirem todos os meus movimentos e para andarem todos juntos. Deixaram os cavalos numa aldeia próxima da floresta, e eu conduzi-os sem hesitar à entrada do arco, perto das silvas, por onde tinha visto sair os doze ladrões. Vi com inquietação que ficavam próximo da entrada. Para os afastar dali, dei alguns passos por detrás do muro e eles seguiram-me. Logo que os vi todos ali, voltei às silvas, impedindo-os de se adiantarem quando pretendiam seguir-me. Eles compreenderam e ficaram escondidos atrás do muro.
Aproximei-me então da entrada dos subterrâneos e comecei a zurrar com quanta força tinha. Não tardou que obtivesse os resultados que desejava. Todos os companheiros encerrados debaixo do chão responderam à minha chamada. Dei um passo para os guardas, que adivinharam a minha manobra, e voltei para a entrada dos subterrâneos, recomeçando a zurrar; mas desta vez ninguém me respondeu. Vi logo que os ladrões, para evitar que os meus companheiros os traíssem, lhes tinham pendurado pedras nas caudas.
Toda a gente sabe que nós levantamos a cauda quando zurramos; com o peso das pedras, torna-se impossível fazê-lo, e os meus camaradas calaram-se.
Eu continuava a dois passos da entrada quando vi uma cabeça de homem surgir das silvas e olhar em roda com precaução; e vendo-me só a min, disse:
- Cá está o patife que não pudemos apanhar esta manhã. Vais já fazer companhia aos teus companheiros.
Mas quando ele ia a deitar-me a mão, afastei-me dois passos e ele seguiu-me; afastei-me mais, até o levar à esquina do muro por detrás do qual estavam escondidos os guardas. Antes que o ladrão tivesse tempo de soltar um grito, caíram sobre ele e estenderam-no no chão. Voltei para a entrada do esconderijo e comecei a zurrar, na certeza de que aparecia outro ladrão para ver o que era feito do companheiro. Efectivamente, ouvi o ruído das silvas e vi aparecer outra cabeça, que se pôs a olhar com precaução; não podendo deitar-me a mão, o segundo fez como o primeiro, e eu executei a mesma manobra. E assim, até ter feito cair seis na ratoeira. Depois do sexto, por mais que zurrasse, não aparecia mais ninguém. Pensei que, não vendo voltar nenhum dos homens que tinham vindo cá fora, os ladrões haviam suspeitado de uma armadilha e não se atreviam a aparecer. Entretanto, a noite tinha caído completamente e não se via quase nada. O oficial da guarda destacou um dos seus homens para ir buscar reforços a fim de capturarem os ladrões nos subterrâneos, e levar amarrados, dentro de uma carroça, os seis ladrões já aprisionados. Os guardas que ficaram, receberam ordem de se dividirem em dois grupos para vigiarem as saídas do convento e deixarem-me proceder como entendesse, depois de me terem acariciado e elogiado a minha conduta.
- Se não fosse um burro - disse um dos polícias -, merecia ser condecorado.
- Não vês que já tem uma cruz no lombo? - disse outro.
- Cala-te, meu grande trocista - disse o outro. Não sabes que esta cruz foi marcada nos burros como recordação de Nosso Senhor Jesus Cristo ter montado um?
- É por isso que é uma cruz de honra - replicou o outro.
- Silêncio! - disse o oficial em voz baixa. - Cadichon arrebitou as orelhas.
Ouvi, efectivamente, um barulho extraordinário do lado do arco; não era um ruído de passos, mas antes como que um desmoronamento e gritos abafados. Os guardas também os ouviram, mas sem poderem adivinhar o que seria.
Por fim, um fumo espesso saiu das chaminés e janelas baixas do convento, e as chamas iluminaram a noite; instantes depois, tudo estava a arder.
-Deitaram fogo às caves, para fugirem pelas portas - disse o oficial.
- Vamos apagá-lo, meu tenente! -alvitrou um guarda.
- Dessa estão eles livres! Vigiemos mas é todas as saídas, e quando os ladrões aparecerem, fogo de carabina e, depois, pistola.
O oficial adivinhara a manobra dos ladrões, que sabiam que estavam descobertos e que os seus companheiros haviam sido presos, e por isso pensavam que, com o incêndio e os esforços dos guardas para o apagarem, poderiam safar-se e dar liberdade aos seus amigos. Não tardou que os seis ladrões restantes, que vinham acompanhados pelo comandante, aparecessem precipitadamente na entrada, encobertos pelas silvas; neste sítio encontravam-se apenas três guardas de sentinela, os quais dispararam as carabinas, não dando tempo aos ladrões para fazerem uso das suas armas. Caíram logo dois ladrões e o terceiro deixou cair a pistola, porque tinha um braço partido. Mas os três últimos e o comandante atiraram-se com toda a fúria aos guardas que, com o sabre numa das mãos e a pistola na outra, se bateram como leões. Antes que o oficial e os outros dois guardas que vigiavam o lado oposto do convento tivessem tido tempo de acudir, já o combate estava quase no fim. Os ladrões estavam mortos ou feridos. O comandante ainda se defendia de um guarda, o único que estava de pé, porque os outros estavam feridos. Achegada do reforço pôs termo ao combate. Num abrir e fechar de olhos o comandante foi cercado, desarmado, manietado e deitado junto dos outros seis prisioneiros.
Durante o combate o fogo apagara-se. Ardera apenas palha e bocados de madeira. No entanto, antes de entrar nos subterrâneos, o oficial quis esperar a chegada dos homens que tinha mandado buscar. A noite já ia muito adiantada quando vimos chegar seis guardas e a carroça que devia levar os prisioneiros. Foram deitados lado a lado, e como o oficial tinha um coração generoso, mandara tirar as mordaças aos ladrões, cobrindo estes de injúrias os seus captores, que não Lhes prestavam atenção e subiram dois para a carroça. Tiveram de fazer padiolas para transportar os feridos.
Durante estes preparativos, acompanhei o oficial na descida que este fez aos subterrâneos, seguido de oito homens. Atravessámos um corredor comprido sempre em declive e chegámos às salas onde os bandidos faziam a sua estadia. Numa das divisões que lhes servia de cavalariça, encontrámos todos os meus companheiros com uma pedra atada ao rabo. Foram imediatamente libertados e a sua alegria era tanta que se puseram a zurrar com estrépito.
- Silêncio, burros! - disse um guarda. - Senão voltamos a enfeitar-Lhes a cauda!
- Deixa-os lá - respondeu outro. - Não vês que estão a cantar louvores a Cadichon?
-Pois sim, mas podiam fazê-lo noutro tom - respondeu o primeiro, rindo-se.
Este homem não gosta, com certeza, de música, disse então de mim para mim. Que tem ele a censurar às vozes dos meus companheiros? Eles cantavam a sua libertação!
Continuámos a percorrer os subterrâneos, que estavam cheios de objectos roubados. Num deles estavam encerrados os prisioneiros, que tinham de os servir, cozinhando e fazendo a limpeza dos subterrâneos. Alguns daqueles desgraçados já ali estavam havia dois anos, presos dois a dois e com campainhas nos braços e nas pernas para se saber para que lado iam. Havia sempre dois ladrões de sentinela e nunca deixavam mais de dois no mesmo subterrâneo. Os que trabalhavam de alfaiate reuniam-se todos, mas o extremo das correntes que os ligavam estava preso a uma argola chumbada na parede.
Soube mais tarde que aqueles infelizes eram os viajantes e visitantes das ruínas que tinham desaparecido dois anos antes. Havia catorze; contaram que os ladrões tinham matado três à sua vista, dois por serem doentes e um por se recusar a trabalhar.
Os guardas puseram aquela pobre gente em liberdade, levaram os burros para o solar, os feridos para o hospital e os ladrões para a cadeia. Foram julgados e condenados às galés por toda a vida. Eu fui admirado por toda a gente e, sempre que saía, ouvia dizer às pessoas que encontrava:
- É Cadichon, o famoso Cadichon, que vale mais do que todos os burros cá da terra.
Teresa
As minhas pequenas donas (porque eu tinha tantas donas e donos como a avó tinha netos) tinham uma prima de quem gostavam muito, que era a sua melhor amiga e quase da sua idade. Chamava-se Teresa e era muito boazinha. Quando me montava nunca levava chibata e não consentia que ninguém me batesse. Num dos passeios que as minhas pequenas donas deram, encontraram sentada à beira da estrada uma rapariguinha que se levantou logo que as viu e veio a coxear pedir- lhes esmola. O seu aspecto tímido e triste comoveu Teresa e as suas amigas.
- Porque coxeias? - perguntou-lhe Teresa.
PEQUENA - Os sapatos magoam-me, menina.
TERESA - Porque não pedes outros à tua mãe?
PEQUENA - Já não tenho mãe.
TERESA - Então, ao teu pai.
PEQUENA - Não tenho pai.
TERESA - Com quem é que vives?
PEQUENA - Com ninguém; vivo sozinha.
TERESA - E quem é que te dá de comer?
PEQUENA - Às vezes, ninguém; outras vezes, toda a gente.
TERESA - Que idade tens?
PEQUENA - Não sei, menina, talvez sete anos.
TERESA - Onde dormes?
PEQUENA - Em casa de quem quer receber-me. Quando todos me expulsam, durmo debaixo de uma árvore, ou encostada a um muro, seja onde for.
TERESA - Mas no Inverno deves ficar gelada.
PEQUENA - Tenho frio, mas já estou habituada.
TERESA - Hoje, almoçaste?
PEQUENA - Desde ontem que não como.
- Mas isto é horrível - disse Teresa com as lágrimas nos olhos. - Minhas queridas amigas: a vossa avó não ralhará, certamente, se dermos de comer a esta pequena e a deixarmos dormir no solar. . .
- Não ralha, não - responderam as três primas. Pelo contrário, a avó até ficará encantada. Além disso, ela faz tudo o que nós queremos.
MADALENA - Mas como é que a levaremos até casa, Teresa? Não vês como coxeia?
TERESA - Montamo-la no Cadichon e nós vamos a pé.
- É verdade, é uma boa ideia! -exclamaram as três primas.
E puseram a pequenita em cima de mim.
Camila trazia no bolso um bocado de pão que ficara da merenda e deu-lho. A pequena comeu com sofreguidão e parecia encantada de ir assim num burro, mas não dizia nada, porque estava muito cansada e tinha muita fome.
Quando parei no portão, Camila e Isabel mandaram entrar a pequena para a cozinha, enquanto Madalena e Teresa corriam para junto da avó.
- Avozinha - disse Madalena -, dá licença que dêmos de comer a uma pequenita muito pobre que en contrámos na estrada?
AVÓ - Porque não, minha querida? Mas quem é? MADALENA - Não sei, avó.
AVÓ - Onde mora?
MADALENA - Em parte nenhuma, avó.
AVÓ - Essa agora! Mas onde é que moram os pais?
MADALENA - Não tem pais, avó; é sozinha.
- Dá licença, minha tia -disse timidamente Teresa -, que a pobre pequena durma cá?
- Se realmente não tem asilo, com o maior prazer - disse a avó. - Preciso de a ver e de lhe falar. Levantou- se e seguiu os pequenitos à cozinha onde a rapariguinha acabava de comer a sua refeição. Chamou-a, e ela aproximou-se a coxear. A avó interrogou-a e obteve as mesmas respostas. Ficou em baraçada. Parecia-lhe impossível mandar a criança embora, no estado de abandono e de sofrimento em que a via. Ficar com ela, era difícil. A quem havia de a confiar? E para a educar?
- Ouve, pequena - disse ela -, enquanto não pedir informações a teu respeito e não souber se me disseste a verdade, dormirás e comerás aqui. Depois verei o que posso fazer por ti.
Deu as suas ordens para que preparassem uma cama para a criança e para que nada lhe faltasse. Mas a rapariguinha estava tão porca que ninguém queria tocar-lhe nem aproximar-se dela. Teresa estava desolada; não podia obrigar os criados de sua tia a fazer uma coisa que lhes repugnava.
Eu é que trouxe esta pequena, pensava ela; devo ser eu quem a trate. Que fazer?
Reflectiu um instante e uma ideia brotou no seu espírito.
- Espera aí, pequena - disse ela. - Eu volto já. Correu ao quarto da mãe.
- Mãe! - disse. - Tenho de tomar banho, não é verdade?
MÃE - Sim, Teresa. A criada está à tua espera. TERESA - A mãe dá licença que, em meu lugar, tome banho a pequenita que trouxemos para aqui?
MÃE - Que pequenita? Não a vi.
TERESA - Uma desgraçadinha que não tem pai nem mãe, nem ninguém para tratar dela; que dorme ao relento e só come quando alguém lhe dá alguma coisa. A avó de Camila consente em tê-la cá, mas nenhum dos criados lhe quer tocar.
MÃE - Porquê?
TERESA - Porque ela está tão suja que até mete nojo. Se a mãe der licença, tomará ela o banho que me estava destinado; eu mesma a despirei, ensaboarei e lhe cortarei o cabelo, que está cheio de lêndias.
MÃE - Mas, minha pobre Teresa, não tens tu mesmo nojo de lhe tocar e de a lavar?
TERESA - Talvez, mãe, mas pensarei que se fosse eu que estivesse no lugar dela, ficaria contente se alguém tratasse de mim, e só esta ideia me dará coragem. Depois dela estar lavada, a mãe dá licença que eu Lhe vista um vestido dos meus, já velho, enquanto não lhe compro outros?
MÃE - Pois sim, minha Teresinha. Mas como é que lhe compras vestidos? O dinheiro que tens mal dá para comprar uma camisa!
TERESA - E a minha moeda que está guardada?
MÃE - A que deste a guardar ao teu pai para não a gastares? Mas tu destinavas esse dinheiro para comprar um livro de missa igual ao da Camila.
TERESA - Posso bem passar sem esse livro de missa, minha mãe. Ainda tenho o outro em bom estado.
MÃE - Faz o que quiseres, filha; para fazeres bem, sabes que te dou liberdade completa.
A mãe beijou-a e foi com ela ver a pequena em quem ninguém queria tocar.
A pequenita continuava a esperar à porta. A mãe de Teresa olhou para ela, examinou-lhe as mãos e a cara, e viu que era tudo porcaria e não doença de pele. O cabelo estava cheio de piolhos; pediu, por isso, a tesoura e cortou-o quase rente, sem lhe tocar, levando-o um criado para a estrumeira. Mandou vir depois um balde de água tépida e, ajudada por Teresa, ensaboou-lhe e lavou-lhe a cabeça.
- Agora - disse ela a Teresa - vai dar-lhe banho e deita os farrapos ao lume.
Camila, Madalena e Isabel foram ajudar Teresa. Levaram a pequena para a casa de banho, despiram- na, apesar do nojo que lhes inspirava a porcaria do fato e o cheiro que os farrapos exalavam. Meteram-na na água e ensaboaram-na dos pés à cabeça, tomando gosto pela operação, que as divertia e que encantava a pequenita, a qual, logo que saiu do banho, mostrou uma viva satisfação. Esfregaram-na depois, a ponto de lhe deixarem a pele encarnada, e vestiram-lhe, por fim, uma camisa, umas calças e uma saia de Teresa. Tudo lhe ficava mui to bem, porque Teresa usava o fatinho muito curto, como todas as meninas elegantes, e à pequena mendiga ficava-lhe o fato pelo tornozelo. Quando iam calçá-la, as crianças viram que ela tinha uma chaga no peito do pé e era por isso que coxeava. Camila foi pedir um remédio à avó, que lho deu; e, ajudada pelas outras pequenas, desinfectou-lhe a ferida, que cobriram com uma compressa e uma ligadura.
Calçaram-lhe meias e umas velhas pantufas de Teresa. Quando a mendiga chegou à cozinha, ninguém a reconhecia.
- Será possível que seja aquele horror de há bocado? - dizia um criado.
- Sim, é a mesma - disse outro criado; - era tão feia como agora é bonita.
COZINHEIRO - As meninas e a senhora d'Arbé fizeram bem em a lavar; eu é que nem por dinheiro nenhum lhe punha as mãos em cima.
CRIADA DA COZINHA - Cheirava tão mal!
COCHEIRO - Até admira que você tenha o olfacto tão sensível, com tanta porcaria que maneja!
CRIADA DA COZINHA (abespinhada) - As minhas caçarolas não cheiram tão mal como certa gente que eu conheço.
CRIADOS - Ah! Ah! A rapariga deu sorte. Cuidado com a vassoura!
COCHEIRO - Lá disso tenho eu com que me defender.
COZINHEIRO - Basta de ditos. Vocês bem sabem que ela se irrita com qualquer coisa. . .
COCHEIRO - A mim há-de-me dar isso um grande desgosto! Também tenho o meu génio. . .
COZINHEIRO - Mas eu é que não consinto discussões. A senhora não gosta disso.
PRIMEIRO CRIADO - O Vatel tem razão. Cala-te, Tomás, e vai para o teu serviço.
COCHEIRO - O meu serviço é em toda a parte, quando não tenho que fazer na cavalariça.
COZINHEIRO - Agora tem trabalho: olhe para Cadichon, que tem ainda os arreios e anda a passear como um burguês à espera do jantar.
COCHEIRO - Tenho a impressão de que Cadichon espreita às portas. É mais esperto do que parece.
O cocheiro chamou-me, pegou nas rédeas e levou-me para a cavalariça, onde me deixou, depois de me ter tirado o selim e me ter dado de comer. Fiquei ali com dois cavalos e um burro a que eu não ligava importância alguma.
Não sei o que se passou à noite no solar; na tarde seguinte, puseram-me o selim e montaram a pequena mendiga; as pequenitas, minhas donas seguiam-me a pé, e assim fomos até à aldeia. Compreendi, pelo caminho, que iam comprar vestidos para a pequena. Teresa queria pagar tudo, mas as outras queriam contribuir com a sua parte. Discutiam tão acaloradamente que, se não paro à porta do estabelecimento, teriam passado adiante. Iam atirando com a pequena ao chão quando a desmontaram, porque a agarraram todas ao mesmo tempo; uma puxava-lhe pelas pernas, outra por um braço, e Isabel, que era forte como duas ou três, empurrava-as a todas para ser ela só a ajudar a pequena a apear-se. A pobre criança, aterrada e puxada para todos os lados, começou a gritar, juntando-se gente e vindo a dona da loja à porta.
- Bons dias, meninas; permitam-me que as ajude a pegar nessa pequena. Eu tenho mais força do que as meninas.
As crianças, satisfeitas por não cederem umas às outras, largaram a pequenita, que foi tirada de cima de mim pela mulher.
- Que é que desejam, minhas meninas? - perguntou ela.
MADALENA - Precisamos de alguma coisa para vestir esta pequena, Sr. g Juivet.
CAMILA - Tudo, Sr. g Juivet; dê-me pano para três camisas, umas calças, um vestido, um avental, uma touca.
TERESA (em voz baixa) - Eu é que quero, Camila, visto que sou eu quem paga.
CAMILA (em voz baixa) - Pois sim, mas nós queremos pagar a nossa parte.
TERESA (em voz baixxa) - Prefiro pagar eu só; é minha filha.
CAMILA (em voz baixa) - Não, ela é de nós todas.
- Que fazenda desejam as meninas? - interrompeu a lojista com a mira de vender.
Enquanto Teresa e Camila continuavam a discutir em voz baixa, Madalena e Isabel tinham comprado tudo o que era preciso.
- Adeus, Sr. a Juivet - disseram elas. - Mande-nos tudo a casa o mais depressa possível, com a conta.
- O quê? Vocês já compraram tudo? - exclamaram Camila e Teresa.
- Já. Enquanto vocês conversavam - disse Madalena com malícia- escolhemos tudo o que é necessário.
- Deviam ter-nos consultado - disse Camila.
- Decerto, visto que sou eu que pago - disse Teresa.
- Também nós pagamos - exclamaram em coro as outras três.
ISABEL - Assim somos todas a vestir a pequena. MADALENA (rindo) - Até que enfim que chegámos a um acordo.
Eu tinha ouvido tudo porque a porta ficara aberta e estava indignado com a Sr. e Juivet, que fazia pagar às boas pequenitas o dobro, pelo menos, do que valiam as suas fazendas, e esperava que as suas mães não consentissem naquela exploração. Voltámos a casa e todas estavam satisfeitas.
Estava um tempo esplêndido. Encontravam-se todos sentados na relva quando voltámos. Pedro, Henrique, Luís e Tiago, que tinham ido pescar para o lago enquanto estávamos na aldeia, acabavam de chegar com três peixes grandes e muitos mais pequenos. Enquanto Luís e Tiago me tiravam o selim e as rédeas, as quatro primas explicaram às suas mães o que tinham comprado.
Neste momento, chegou a Sr. a Juivet.
- Bons dias, Sr. g Juivet - disse a avó. - Faça favor de desatar o embrulho aqui na relva para vermos as compras dessas meninas.
A Sr. a Juivet cumprimentou, desatou o embrulho, deu a conta a Madalena e foi estendendo as fazendas.
Madalena corara ao aceitar a conta; a avó tirou-lha das mãos e teve uma exclamação de surpresa.
- Tanto dinheiro para vestir uma pequena mendiga! . Sr. g Juivet! - acrescentou ela num tom severo. A senhora abusou da ignorância das minhas netas. Sabe muito bem que as fazendas que traz são boas e caras de mais para vestir uma criança pobre. Leve tudo isso, e fique sabendo que, de hoje em diante, ninguém da minha família Lhe comprará nada.
- Minha senhora! - disse Juivet com cólera reprimida. - As meninas escolheram o que quiseram; não fui eu que as obriguei a comprar.
AVó - Mas devia mostrar- lhes fazendas mais simples e não as levar a comprar coisas que a senhora já não vende a ninguém.
- Ninguém lhe pagará nada e a senhora vai levar tudo isso - disse a avó, severamente. - E saia imediatamente. A minha criada irá buscar à loja da Sr. Jourdon o que nós desejamos.
A Sr. g Juivet retirou-se furiosa, e eu acompanhei-a um bocado de caminho, zurrando em ar de troça e saltando em volta dela, o que muito divertiu as crianças. A criatura, porém, ia cheia de medo porque se sentia culpada e receava que eu a castigasse; todos naquela terra me tomavam por feiticeiro e todos os malvados me receavam.
As mães ralharam às pequenitas, os primos troçaram delas e eu fiquei ao pé deles a comer a erva, vendo-os saltar, correr e cabriolar. Ouvi que os pais combinavam uma caçada para o dia seguinte e que Pedro e Henrique levariam pequenas espingardas, devendo acompanhar os caçadores um moço vizinho.
A caçada
No dia seguinte devia realizar-se a abertura da caça. Pedro e Henrique foram os primeiros a aparecer, com as suas espingardas em bandoleira e os olhos brilhantes de felicidade. Como era a sua iniciação, apresentavam-se com um porte orgulhoso e batalhador, que parecia ameaçar todos os animais de caça. Eu seguia-os de longe e vi os preparativos da caçada.
- Pedro! - disse Henrique, com um ar de convicção. -Quando as nossas bolsas já estiverem cheias, onde meteremos a caça que matarmos?
- Estava, precisamente, a pensar o mesmo - respondeu Pedro. - Vou pedir ao pai que leve o Cadichon.
Esta ideia não me agradou nada; sabia que os caçadores novatos atiram a torto e a direito, sem se preocuparem com quem lhes fica próximo. Apontando a uma perdiz, podiam muito bem crivar-me de chumbo, e, por isso, esperei com inquietação o seguimento da
proposta.
- Meu pai! - disse Pedro, quando avistou o pai.
- Podemos levar o Cadichon?
- Para quê - respondeu o pai, a rir-se. – Queres caçar de burro e perseguir assim as perdizes! Nesse caso, temos de pôr asas a Cadichon.
HENRIQUE (contrariado) - Ó pai, é para ele carregar com a nossa caça, quando tivermos as bolsas cheias.
PAI (surpreendido, rindo) - Para carregar a vossa caça! Pois vocês julgam, pobres ingénuos, que vão matar alguma coisa?
HENRIQUE (melindrado) - Com certeza, meu pai!
Tenho vinte cartuchos; matarei, pelo menos, quinze peças.
PAI - Ah! Ah! Esta é boa! Sabem o que matarão, e mais o vosso amigo Augusto?
HENRIQUE- Não, pai.
PAI - O tempo.
HENRIQUE - Então não sei para que nos deram as espingardas e porque é que vamos à caça. Se não vamos matar nada. . .
PAI - É para os acostumar e mais nada. A primeira vez nunca se mata nada - só à força de falhar tiros é que se começa a abater caça.
A conversa foi interrompida pela chegada de Augusto, pronto, também, para matar tudo o que encontrasse. Pedro e Henrique estavam fulos quando Augusto apareceu.
PEDRO - O pai julga que não mataremos nada, Augusto. Vamos provar-Lhe que somos mais espertos do que ele imagina.
AUGUSTO - Podes ter a certeza de que mataremos mais caça do que eles.
HENRIQUE - Mais?
AUGUSTO - Sim, porque somos novos e desembaraçados, enquanto os nossos pais são já um pouco velhos.
HENRIQUE - Isso é verdade. . . O pai tem quarenta e dois anos. Pedro tem quinze, e eu treze. Que diferença!
AUGUSTO - O meu pai tem quarenta e três, e eu catorze.
PEDRO - Ouçam. Não lhes digo nada e ponho a albarda e seirões ao Cadichon. Ele irá atrás de nós e à volta trará a caça.
AUGUSTO - Põe-lhe os seirões maiores. Pode ser que matemos um veado!
Henrique encarregou-se de tudo. Eu ria-me à socapa: tinha a certeza de que voltaria com os cestos vazios.
- A caminho! - disseram os pais. - Nós vamos à frente e vocês seguem-nos de perto; quando chegarmos ao vale, cada qual irá para o seu lado. . .
- Que é isto? - acrescentou o pai de Pedro, surpreendido. -Cadichon vai connosco? E com dois enormes seirões.
- É para trazer a caça - disse o guarda, rindo.
PAI - Ah Ah Teimaram em trazer Cadichon Não lhe hão-de dar grande trabalho.
Olhou, sorrindo, para Pedro e Henrique, que se fizeram desentendidos.
- A tua espingarda está carregada, Pedro? - perguntou Henrique.
PEDRO - Ainda não. Custa muito a armar e a desarmar. Espero que apareça a primeira perdiz.
PAI - Estamos no vale. Caminhemos na mesma linha e atiremos sempre em frente de nós e não para a direita ou para a esquerda, para não nos matarmos uns aos outros.
Não tardaram a aparecer perdizes de todos os lados; eu ficara, prudentemente, para trás, e bastante afastado. E fiz bem, porque mais de um cão retardatário foi ferido com grãos de chumbo. Os cães farejavam e traziam a caça; reboavam os tiros. Eu não perdia de vista os meus três gabarolas; via-os disparar muitas vezes mas nunca atingir o alvo. Impacientes, dispararam à toa, ora longe, ora perto de mais; por vezes disparavam os três sobre a mesma perdiz, que voava como se não fosse nada com ela. Os pais, pelo contrário, eram certeiros na pontaria; tiro disparado era caça morta. Ao cabo de duas horas, o pai de Pedro e de Henrique aproximou-se deles.
- Então, meus filhos, Cadichon está muito carregado? Há ainda lugar para despejar a minha bolsa, que está cheia a transbordar?
Os pequenitos não responderam; viram, pelo ar zombeteiro do pai, que ele conhecia os seus desaires.
Eu aproximei-me a correr e voltei um dos seirões para o pai.
PAI - O quê!? Nada! Tenham cuidado com as bolsas, que se abrem, se as enchem de mais!
As bolsas estavam vazias. O pai pôs-se a rir com a cara dos jovens caçadores, despejou a sua caça num dos seirões, e voltou com o cão, que tinha parado à espera dele.
AUGUSTO - O teu pai matou grande quantidade de perdizes. Mas não admira: tem dois cães que as descobrem e as apanham, e a nós não nos deram nenhum.
HENRIQUE - É verdade, quem sabe quantas perdizes matámos! O que nos faltou foi o cão para as apanhar.
PEDRO - Eu não vi cair nenhuma.
AUGUSTO - É que uma perdiz morta não cai logo a seguir ao tiro; voa ainda algum tempo e vai cair muito longe.
PEDRO - Mas quando o pai e os tios disparam, as perdizes caem imediatamente.
AUGUSTO - Parece-te isso porque estás longe, mas se estivesses ao pé deles, verias a perdiz voar ainda por algum tempo.
Pedro não respondeu, mas não se deu por convencido. Caminhavam, agora, com menos prosápia que à partida. Já começavam a perguntar que horas eram.
- Tenho fome - disse Henrique.
- E eu tenho sede - disse Augusto.
- E eu estou cansado - disse Pedro.
Mas não havia remédio senão seguir os caçadores, que disparavam, matavam e se divertiam. Estes não esqueciam os seus jovens companheiros e, para os não fatigarem, propuseram fazer alto para almoçarem. Os rapazes aceitaram com alegria. Assobiaram aos cães e prenderam-nos, dirigindo-se depois para uma herdade que ficava a cem passos e para onde a avó tinha enviado provisões.
Sentaram-se no chão, debaixo de uma velha carvalheira, e tiraram o que vinha nas cestas. Havia, como em todas as caçadas, um pastelão de galinha, um presunto, ovos cozidos, queijo, marmelada e algumas garrafas de vinho velho. Todos os caçadores, novos e velhos tinham grande apetite e comeram como lobos. Mas a avó tinha mandado tantas iguarias que os guardas e a gente da quinta comeram também à farta. Os cães tinham sopa e água do lago.
- Então não tiveram sorte, meus filhos? - disse o pai de Augusto. - Cadichon não parecia muito arreliado com a carga.
AUGUSTO - Não é para admirar, meu pai; nós não tínhamos cães. . .
PAI - Julgas então que um, dois, ou três cães seriam o suficiente para fazer cair as perdizes?
AUGUSTO - Não as teriam matado, mas teriam procurado e trazido aquelas que nós matámos. . .
PAI (interrompendo-o, surpreendido) - Aquelas que mataram? Vocês julgam que mataram perdizes?
AUGUSTO - Pois com certeza, mas como não víamos onde elas caíam, não as podíamos apanhar.
PAI - E julgas, que, se elas tivessem caído, vocês não as veriam?
AUGUSTO - Não, porque não temos tão bons olhos como os cães.
O pai, os tios e os próprios guardas deram grandes gargalhadas, o que enfureceu os três rapazinhos.
- Ouçam - disse o pai de Pedro e de Henrique.
- Já que vocês dizem que não trazem caça por não terem cão, cada um vai ter o seu, quando continuarmos a caçada.
PEDRO - Mas os cães não hão- de querer ir connosco, pai; não nos conhecem. . .
PAI - Irão dois guardas para os obrigarem a segui- los. Nós só partiremos meia hora depois, a fim de os cães não terem a tentação de nos seguir.
PEDRO (radiante) - Obrigado, meu pai. Ainda bem! Com os cães temos a certeza de matarmos muita caça.
Terminado o almoço e depois de um ligeiro repouso, os jovens caçadores prepararam-se para se porem de novo a caminho.
- Agora, sim, agora é que somos verdadeiros caçadores - disseram eles, todos ufanos.
E aí vão eles, e eu atrás, como antes do almoço, mas sempre de longe, à cautela. Os pais tinham recomendado aos guardas que não os perdessem de vista e evitassem qualquer imprudência. As perdizes surgiam de todos os lados como de manhã e, como de manhã, não abatiam uma para amostra, apesar de os cães cumprirem o seu dever. Mas como haviam eles de trazer a caça, se ela não existia?
Augusto, enervado por disparar sem acertar, vê um dos cães à espreita, e julgando disparar melhor antes da perdiz levantar voo, aponta e dispara. . . O cão cai para o lado, contorcendo-se com dores.
- É o nosso melhor cão! -exclamou o guarda, correndo para ele.
Mas quando chegou, o cão expirava: o tiro tinha-o alcançado na cabeça.
- Bonito tiro, Sr. Augusto! - disse o guarda, deixando cair o animal. - Ainda bem que a caçada acabou.
Augusto estava imóvel e consternado; Pedro e Henrique estavam comovidos com a morte do cão, e o guarda reprimia a sua cólera.
Aproximei-me para ver quem era a vítima infeliz da inexperiência e do amor-próprio de Augusto. Qual não foi a minha dor, reconhecendo Médor, o meu amigo, o meu melhor amigo! E que horror e desgosto senti quando vi o guarda levantar Médor e metê-lo num dos seirões que eu trazia às costas! Era esta a caça que me estava destinada! Médor, o meu maior amigo, morto por um mau rapaz, desajeitado e orgulhoso.
Voltámos para os lados da herdade. As crianças iam caladas, o guarda praguejava de vez em quando e eu matutava na reprimenda severa e na humilhação que o desastrado rapaz devia sofrer.
Ao chegarmos à herdade, encontrámos ainda os caçadores que, sem cães, preferiam descansar e esperar o regresso dos pequenos.
- Já?! - exclamaram, vendo- nos voltar.
PAI DE PEDRO - Parece que mataram caça grossa. Cadichon caminha como se viesse carregado e um dos seirões vem imclinado por um peso grande.
Levantaram-se e vieram ao nosso encontro. Os pequenos ficaram para trás. As suas caras tristes e confusas impressionaram os pais.
PAI DE AUGUSTO (rindo) - Não têm aspecto de triunfadores.
PAI DE PEDRO (rindo) - Mataram algum vitelo ou carneiro que tomaram por um coelho.
O guarda aproximou-se.
PAI - Que há, Michaud? Vens com uma cara de enterro, como os pequenos.
- Tenho razões para isso, senhor - respondeu o guarda. - Trazemos uma triste caça.
PAI (rindo) - Que é? Algum carneiro. . . ou vitelo?.
GUARDA - O caso não é para rir. É o seu cão, Médor, o melhor da matilha, que o Sr. Augusto matou, tomando-o por uma perdiz.
PAI - Médor!. . . Desastrado! Nunca mais voltarás a caçar aqui.
- Venha cá, Augusto - disse o pai. - Aqui tem o resultado do seu orgulho fátuo e da sua ridícula presunção. Diga adeus aos seus amigos. Vai voltar imediatamente para casa e deixará no meu quarto a espingarda. Proíbo-lhe que lhe toque até ter mais juízo e mais modéstia.
- Mas, pai! - respondeu Augusto. - Não sei porque está tão zangado. Não é a primeira vez que se mata um cão na caça.
- Cães! Alguém mata os cães! - exclamou o pai estupefacto. -Essa agora é forte! Onde aprendeu essas noções da caça?
- Ó pai - respondeu Augusto com o ar mais desenvolto. - Toda a gente sabe que acontece muitas vezes aos grandes caçadores matarem os cães.
- Meus queridos amigos - disse o pai voltando-se para os companheiros-, desculpem-me por lhes ter trazido um rapaz tão imprudente e tão tolo como Augusto.
Depois, voltando-se para o filho:
- Já ouviu as minhas ordens, senhor. Retire-se.
AUGUSTO- Mas, pai. . .
PAI (com voz severa) - Silêncio, já Lhe disse! Se não quer travar conhecimento com a coronha da minha espingarda.
Augusto baixou a cabeça e retirou-se, muito confuso.
- Vêem, meus filhos - disse o pai de Pedro e Henrique -, aonde conduz a presunção, isto é, a crença de um mérito que se não tem? O que sucedeu a Augusto poderia ter sucedido aos meninos. Imaginaram que não havia nada mais fácil do que disparar bem, que bastava querer matar; aí têm o resultado. Esta manhã mostraram-se todos três muito ridículos; desprezaram os nossos conselhos e a nossa experiência; foram, portanto, todos três, os culpados da morte do meu pobre Médor. Vejo, por isso, que são ainda muito novos para virem à caça. Veremos daqui a um ano ou dois. Até lá, voltem à jardinagem e aos seus brinquedos de crianças.
Pedro e Henrique abaixaram a cabeça sem responder. A entrada em casa fez-se tristemente. Os pequenos quiseram enterrar no jardim o meu infeliz amigo, cuja história vou contar. Vão ver porque é que eu gostava tanto dele.
Médor
Eu conhecia Médor havia muito tempo, desde quando era novo e ele mais novo ainda. Vivia eu mise ravelmente em casa daquelas más criaturas que me tinham comprado a um negociante de burros e de cuja casa fugi com tanta habilidade. Era magro porque nem sempre arranjava de comer. Médor, que lhes fora dado como cão de guarda e que era, por sinal, um excelente cão de caça, era menos desgraçado do que eu; divertia as crianças, que lhe davam pão e restos de comida; confessou-me, além disso, que quando podia introduzir-se na leitaria, com a dona ou a criada, sempre encontrava meio de surripiar algumas goladas de leite ou de nata, e apanhar os bocados de manteiga que saltavam quando estavam a fazê-la. Médor era bom; a minha magreza e a minha fraqueza comoveram-no; um dia, trouxe-me um bocado de pão e deu- mo com um ar triunfante.
- Come, meu pobre amigo! - disse-me ele na sua linguagem. - Eu tenho bastante pão para me alimentar, e tu só tens cardos e ervas ruins e em quantidade tão diminuta que mal chegam para ires vivendo.
- Bom Médor - respondi-lhe eu -, tenho a certeza de que te privas do pão para mo dares. Não sofro tanto como pensas, porque estou habituado a comer pouco, a dormir pouco, a trabalhar muito e a ser chicoteado.
- Eu não tenho fome, meu amigo - disse-me Médor-, asseguro-te que não tenho fome. Prova-me a tua amizade aceitando o meu pequeno presente. É bem pouco, mas dado com toda a boa vontade, e se recusares, ficarei desconsolado.
- Nesse caso, aceito, meu bom Médor - respondi-lhe eu-, porque gosto de ti; e confesso-te que este pão me fará bem porque tenho fome.
E comi o pão do bom Médor, que contemplava com alegria a minha sofreguidão. Senti-me mais animado com esta refeição desacostumada e disse-o a Médor, julgando testemunhar-Lhe assim o meu reconhecimento. Resultou daí que todos os dias me aparecia com um grande pedaço de pão. À tardinha, vinha deitar-se ao pé de mim, debaixo da árvore que eu escolhera para passar a noite; conversávamos então sem que ninguém nos pudesse ouvir, porque conversávamos sem falar. Nós outros, animais, não pronunciamos palavras como os homens, mas compreendemo-nos com um piscar de olhos, movimentos de cabeça, de orelhas e de cauda, e palestramos, assim, tal como os homens.
Vi-o chegar, uma tarde, triste e abatido.
- Meu amigo - disse-me ele -, receio não poder continuar a trazer-te uma parte do meu pão, porque os donos disseram que estava já bastante crescido para ficar preso de dia e que só à noite me soltariam. Além disso, a dona ralhou aos pequenos por me darem pão de mais; proibiu-os de me darem de comer: é ela que quer alimentar-me, e pouco, para fazer de mim um bom cão de guarda.
- Meu bom Médor - disse-lhe eu -, se é por isso que estás atormentado, por já não me poderes trazer pão, fica tranquilo, que eu já não preciso dele; descobri esta manhã um buraco na parede do celeiro onde guardam o feno; já tirei um bocado e poderei, facilmente, comer todos os dias.
- Mal sabes o contentamento que sinto! - disse Médor. - Mas olha que eu tinha um grande prazer em partilhar contigo do meu pão. E agora, ficar preso todo o dia, não te ver mais, é triste.
Conversámos ainda durante muito tempo e ele deixou-me muito tarde.
- Terei tempo de dormir de dia - dizia ele - e tu não tens muito que fazer nesta estação.
Passou-se um dia sem que visse o meu pobre amigo. À noitinha esperava-o com impaciência, quando o ouvi ganir em altos gritos. Corri até à sebe e vi a malvada da caseira, que o agarrava pela pele do pescoço, enquanto Júlio lhe batia com o chicote do carroceiro.
Saltei a sebe, atirei-me a Júlio e mordi-o no braço, de modo a fazer-lhe cair o chicote das mãos. A caseira largou Médor, que fugiu a sete pés; era o que eu queria; larguei também o braço de Júlio e ia voltar para o meu poiso, quando me senti agarrado pelas orelhas; era a caseira, que gritava a Júlio, a espumar de raiva:
- Dá cá o chicote grande, que quero castigar este malvado! Nunca vi burro tão mau! Dá cá, ou bate tu.
- Não posso mexer o braço - disse Júlio a chorar -; está inchado.
A caseira agarrou no chicote que tinha caído ao chão e correu para mim, a fim de vingar o mal do filho. Não caí na tolice de a esperar, está bem de ver. Dei um salto e afastei-me quando ela estava quase a tocar-me. Continuou a perseguir-me e eu a fugir, colocando-me sempre fora do alcance do chicote. Diverti-me imenso com esta corrida; via a cólera da mulher aumentar à medida que se cansava; eu fazia-a correr e suar sem que ela tivesse o prazer de me tocar sequer com a ponta do chicote, Quando a corrida terminou, o meu amigo estava suficientemente vingado. Procurei-o com os olhos, porque o tinha visto correr para os lados onde eu estava; mas ele esperava, para se mostrar, que a cruel mulher desaparecesse.
- Miserável! Celerado! - gritou a caseira, retirando-se. - Hás-de pagar-mas quando tiveres o freio.
Fiquei só. Chamei Médor, que mostrou timidamente a cabeça por cima da sebe, e corri para ele.
- Podes vir! - disse-lhe eu. - Ela já lá vai. Que fizeste? Porque é que Júlio te batia?
- Porque eu tinha agarrado um bocado de pão que um dos miúdos tinha poisado no chão. Ela viu, agarrou-me, chamou Júlio e ordenou-lhe que me desse uma sova mestra.
- Ninguém se atreveu a defender-te?
- Defender-me? Todos eles gritavam: É bem feito! É bem feito! Chega-lhe, Júlio, para que não tenha vontade de fazer outra.
- Estejam descansados que não fraquejarei: vão ver como ele canta.
E ao meu primeiro latido, bateram todos as palmas, gritando:
- Bravo! Mais! Mais!
- Patifes! - exclamei. - Mas para que agarraste esse pedaço de pão, Médor? Não te tinham dado de comer?
- Tinham. Eu estava satisfeito; mas o pão da minha sopa estava tão esmigalhado que não me foi possível tirar nada para ti, e se eu conseguisse levar-te esse pedaço de pão que os pequenos tinham deixado cair, terias um bom acepipe.
- Meu pobre Médor! Foi então por minha causa que te bateram!. . . Obrigado, meu amigo, obrigado! Nunca esquecerei esta prova da tua amizade e da tua bondade! Mas não voltes a fazer outra, suplico-te. Julgas que teria comido o pão com alegria se soubesse que esse teu gesto te fazia sofrer! Antes viver de cardos, e saber-te bem tratado e feliz.
Conversámos ainda por muito tempo e obtive de Médor a promessa de nunca mais se arriscar a ser chicoteado por minha causa; e eu prometi-lhe fazer as minhas partidinhas a todos os da quinta, e cumpri. Um dia, atirei para um fosso cheio de água Júlio e a irmã, e fugi, deixando-os a esbracejar e a debater-se. De outra vez, persegui o pequeno de três anos como se quisesse mordê-lo. O que ele gritava e corria, cheio de medo, e como eu me regozijava! Um belo dia fingi-me atacado de cólicas, deitei-me na estrada, a estrebuchar, com um carregamento de ovos, que ficaram completamente esmigalhados; a caseira estava furiosa, mas não se atrevia a bater-me, porque me julgava realmente doente.
Pensou que eu poderia morrer e que perderia o dinheiro que lhe tinha custado e, assim, em vez de me bater, levou-me para a cavalariça e deu-me feno e farelo. E o que Médor e eu nos rimos quando Lhe contei à noite! outra partida, a melhor que fiz em toda a minha vida!
A rendeira tinha estendido sobre a sebe toda a roupa branca, a secar ao sol. Agarrei em tudo aquilo com os dentes e atirei-o para a estrumeira. Ninguém me viu fazer isto. Quando a caseira foi buscar a roupa e não a viu, procurou-a por toda a parte e foi dar com ela na estrumeira. Isso é que foi praguejar! Bateu na criada, esta bateu nos pequenos, estes bateram nos gatos, nos cãés, nos vitelos e nos carneiros. Era um barulho ensurdecedor, porque todos gritavam ao mesmo tempo. Mais uma noite bem passada com Médor, a rirmo-nos e a galhofar.
Reflectindo mais tarde nestas maldades, censurei-me sinceramente, porque me vingava nos inocentes dos crimes dos culpados. Médor aconselhava-me moderação e indulgência, mas eu não Lhe dava ouvidos e tornei-me cada vez pior; fui bem castigado como mais tarde se verá.
Um dia, dia de tristeza e de luto, um sujeito que passava viu Médor, chamou-o e fez-lhe festas; depois foi falar ao caseiro, e comprou-o. O caseiro, que julgava ter um cão de pouco valor, estava encantado; o meu pobre amigo foi preso com um pedaço de corda e levado pelo seu novo dono. Ao despedir-se, olhou para mim com um olhar tão doloroso que eu corri à sebe, mas as brechas estavam todas tapadas. E lá se foi o meu querido Médor. Desde esse dia não havia nada que me alegrasse. Pouco tempo depois, deu-se a cena da feira e a minha fuga para a floresta de Saint-Évroult. Durante os anos que se seguiram a esta aventura, pensei muitas vezes no meu amigo, e senti desejos de o encontrar, mas onde procurá-lo? Soube que o seu novo dono não era daquelas paragens, e tinha ido ali para visitar um amigo.
Quando o pequeno Tiago me trouxe a casa da sua avó, imaginem o meu contentamento, vendo, tempos depois, chegar com seu tio e primos, Pedro e Henrique, o meu amigo, o meu querido Médor. A surpresa foi geral, quando viram Médor correr para mim, fazer-me mil carícias, e eu segui-lo para toda a parte. Julgaram todos que a alegria de Médor era por estar no campo em liberdade, e a minha por ter um companheiro para o passeio. Se pudessem entender-nos e adivinhar as nossas palestras, então teriam compreendido a amizade de um pelo outro.
Médor regozijou-se quando lhe contei a minha vida calma e feliz, a bondade dos meus donos, a minha boa e gloriosa reputação; condoeu-se comigo pelas minhas tristes aventuras; riu-se, galhofando e censurando-me ao mesmo tempo, das partidas que tinha feito ao caseiro; estremeceu de orgulho ao ouvir a narração do meu triunfo na corrida de burros; lamentou-se pela ingrati dão dos pais da pobre Paulina e derramou algumas lágrimas sobre a triste sorte daquela infeliz criança.
Os rapazes da escola
Médor tinha-se afastado, um dia, da casa onde tinha nascido e onde vivia bastante feliz, em perseguição de um gato que lhe tinha roubado um pedaço de carne que o cozinheiro lhe dera, porque a assara demasiado. Como, porém, não tinha o gosto tão delicado como as pessoas que a rejeitaram, agarrara-a e pusera-a próximo da sua casota, quando um gato, que estava escondido, lha roubou e fugiu com ela. O meu amigo nem sempre tinha petiscos ao seu alcance. De modo que correu a bom correr atrás do ladrão, e tê-lo-ia apanhado sem dificuldade se o gato se não tivesse lembrado de subir a uma árvore. Médor não podia ir atrás dele e não teve remédio senão assistir à refeição do larápio, que comeu à sua vista a carme que lhe roubara. Justamente irritado com tal descaramento, encostou-se à árvore, ladrando com quantas forças tinha. Os seus latidos atraíram os rapazes que saíam da escola e que se juntaram a Médor para injuriarem o gato e para lhe atirarem pedras.
O gato fugiu para o cimo da árvore e escondeu-se na espessura dos ramos, o que não impediu que os maus rapazes continuassem a atirar pedras e a fazer barulho, todas as vezes que um miar mais plangente lhes mostrava que o gato tinha sido atingido.
Médor começava a aborrecer-se com a brincadeira; o miar doloroso do gato fez-Lhe passar a cólera, e receou a crueldade dos rapazes. Começou, portanto, a ladrar-lhes e a puxar-lhes pelas blusas, mas eles conti nuaram a atirar pedras, agora não só ao gato, mas também ao meu amigo. Por fim, um grito rouco e horrível seguido do estalar dos ramos, anunciou que eles tinham ferido gravemente o gato, o qual caía da árvore, um minuto depois, morto. Uma pedra esmigalhara-lhe a cabeça. Os maus rapazes ficaram contentes com este resultado, em vez de se arrependerem da sua crueldade. Médor olhava para o seu inimigo com ar compadecido e para os rapazes com ar de censura, e ia voltar para casa, quando um dos rapazes exclamou:
- Vamos dar-lhe um banho no ribeiro.. Agarra-o, Frederico; olha que ele foge.
E eis Médor perseguido por aqueles vadios, que eram muitos e por isso o cercaram, impedindo-lhe a marcha. Era nesse tempo muito novo, apenas de quatro meses; não podia correr depressa nem por muito tempo; acabaram por apanhá-lo e um agarrou-lhe pela cauda, outro pelas patas, o outro pelo pescoço, pelas orelhas, puxando cada um para seu lado, com grandes gritos de alegria. Por fim, ataram-lhe ao pescoço uma corda que quase o estrangulava, arrastaram-no, obrigando-o a caminhar à força de pontapés. Chegaram à borda do ribeiro e iam atirá-lo, quando o mais velho exclamou:
- Espera, dá cá a corda; vamos prender-Lhe balões ao pescoço para o obrigar a flutuar, e empurramo-lo para a fábrica, fazendo-o passar por baixo da roda.
O pobre Médor debatia-se em vão; que podia ele fazer contra uma dúzia de garotos, os mais novos dos quais tinham, pelo menos, dez anos? André, o pior do bando, atou-lhe os balões ao pescoço e atirou-o para o meio do rio. O meu infeliz amigo, levado mais pela corrente do que pelas varas que os seus algozes seguravam, estava meio afogado e meio estrangulado pela corda, que a água tinha apertado mais. Chegou, deste modo, até ao sítio onde a água se precipitava com violência por baixo da roda da fábrica. Se a roda o apanhasse, era uma vez Médor.
Os operários voltavam de almoçar e preparavam-se para erguer o dique que retinha a água. Aquele que devia levantá-lo avistou Médor, e dirigiu-se aos maus rapazes que esperavam, a rir-se, que o dique fosse levantado, e deixasse passar Médor, arrastando-o para debaixo da roda.
- Mais uma malandrice, patifes. Venham cá, amigos. Vamos corrigir estes vadios que se divertiam a afogar um pobre cão.
Os seus camaradas acudiram, e enquanto ele salvava Médor, estendendo-lhe uma prancha, para a qual o cão subiu, os outros perseguiram os rapazes, apanharam-nos a todos dando-lhes uns valentes bofetões. Quanto mais eles gritavam, mais os operários batiam. Deixaram-nos por fim, e o bando lá se foi gritando e chorando.
O salvador de Médor tinha cortado a corda que o estrangulava e deitou-o ao sol, sobre um molho de feno. Médor secou depressa e o operário levou-o a casa dos donos, onde lhe disseram que podia ficar com ele, porque já tinham muitos cães, e, se ele o deixasse, o afogariam com uma pedra ao pescoço. Como era um bom homem, teve pena de Médor e levou- o consigo. A mulher, quando viu o cão, pôs-se a gritar, dizendo que o marido a arruinava, que um cão não servia para nada e que, ainda por cima, tinha de lhe pagar a licença.
Gritou tanto, que o marido, para viver em paz desembaraçou-se de Médor, dando-o àquele mau caseiro a quem eu já pertencia e que precisava de um cão de guarda.
Aqui têm como Médor e eu nos conhecemos e ficámos para sempre amigos.
O baptizado
Pedro e Camila iam ser padrinhos de uma criança que acabava de nascer e cuja mãe tinha sido criada de Camila.
Esta quis pôr o seu nome à afilhada.
- Isso é que não - disse Pedro. - Eu é que sou o padrinho e quero que ela se chame Pierrette.
CAMILA - Pierrette! Que horrível nome! Não quero. Há-de chamar-se Camila, porque eu é que sou madrinha e tenho todo o direito de lhe pôr o meu nome.
PEDRO - Não. O padrinho é que tem mais direito.
CAMILA - Pois então, já não quero ser a madrinha.
PEDRO - E se tu lhe puseres o teu nome, eu não sou o padrinho.
CAMILA - Faz o que quiseres. Vou pedir ao pai que seja ele o padrinho em teu lugar.
PEDRO - E eu pedirei a minha mãe que seja a madrinha em vez de ti.
CAMILA - Tenho a certeza de que a minha tia nunca consentirá que a menina se chame Pierrette. É ridículo!
PEDRO - E eu tenho a certeza de que meu tio não quererá que ela se chame Camila. É idiota!
CAMILA - Então para que me puseram o nome de Camila? Vai lá dizer-lhes que é um nome idiota e verás como és recebido.
PEDRO - Podes dizer o que quiseres. O que te garanto é que nunca serei padrinho de uma Camila.
- Pai! - disse maliciosamente Camila, correndo ao seu encontro. - Quer ser padrinho, comigo, da pequena Camila?
PAI - Qual Camila, minha querida? Camila só conheço uma, és tu.
CAMILA - É a minha pequena afilhada. Quero que se chame Camila, quando a baptizarem hoje.
PAI - Mas Pedro é que é o padrinho. Já vês que não pode levar dois.
CAMILA - É que o Pedro já não quer ser padrinho.
PAI - Não quer! Que capricho é esse?
CAMILA - Diz que o nome de Camila é horrível e estúpido e quer que ela se chame Pierrette!
PAI - Esse nome é que é horrível e estúpido.
CAMILA - Foi o que eu Lhe disse, mas ele não quis crer-me.
PAI - Escuta, filha. Trata de te entender com teu primo. Mas, se ele persistir em não querer ser o padrinho senão com a condição de lhe dar o nome de Pierrette, então vou eu no lugar dele.
Durante esta conversa de Camila com o pai, Pedro tinha ido ter com a mãe.
- Mãe! - disse-lhe. - Queres substituir Camila, e seres tu a madrinha da pequenita que se baptiza hoje?
MÃE - Substituir Camila?! A criada quer que seja ela a madrinha.
PEDRO - É porque ela quer que a menina se chame Camila; acho este nome muito feio e, como sou eu o padrinho, quero que ela se chame Pierrette.
MÃE - Pierrette! Que nome tão feio! É mesmo ridículo.
PEDRO - Oh! mãe, deixe-me dar-lhe esse nome, peço-lhe. . . Não quero que se chame Camila. . .
MÃE - Se nenhum quer ceder, que é que se há-de fazer?
PEDRO - É por isso que a mãe podia substituir Camila, para dar à pequena o nome de Pierrette.
MÃE - Meu pobre Pedro: em primeiro lugar dir-te-ei, francamente, que não me agrada nada esse nome, que é ridículo. E, depois, a mãe da pequena foi criada de Camila e não tua, e é principalmente Camila que ela quer ter por madrinha da filha. Creio, até, que ficará bem contente se puserem à filha o nome da madrinha.
PEDRO - Nesse caso, não quero ser o padrinho.
Camila apareceu neste momento.
CAMILA - Que decidiste, Pedro? Daqui a uma hora é o baptizado e não se pode dispensar o padrinho.
PEDRO - Consinto que ela se não chame Pierrette, mas também não há-de ser Camila.
CAMILA - Já que tu cedes na tua Pierrette, também cedo na Camila. Queres que façamos uma coisa? Vamos perguntar à criada que nome quer ela dar à filha.
PEDRO- Tens razão; vai perguntar-lhe.
Camila foi e não tardou a voltar.
- Pedro, Pedro, a criada quer que a filha se chame Maria Camila.
PEDRO - Perguntaste-lhe se não gostaria que se chamasse Pierrette?
CAMILA - Perguntei, sim, mas ela desatou a rir e a mãe também. Disseram que era um nome muito feio.
Pedro corou e suspirou, porque também ele estava já a achar o nome um pouco ridículo.
- Onde estão os confeitos? - perguntou ele.
CAMILA - Num cesto grande que levaram para a igreja. Ficaram aqui as caixas e os embrulhos. Vem ver quantos há.
E correram para a antecâmara onde tudo estava preparado.
PEDRO - Já vista atirar confeitos?
CAMILA - Não, nunca, mas dizem que é muito divertido.
PEDRO - Parece-me que não me interessará; não deixarão de se empurrarem e de se baterem. E depois, não gosto que se atirem confeitos às crianças como se elas fossem cães.
- Camila, Pedro, venham; já aí vem a criança!exclamou Madalena, que chegava toda esbaforida.
Foram todos ao encontro da menina.
- Como a nossa afilhada é bonita! - disse Pedro. CAMILA - É, é, e tem um vestido todo bordado, uma touca de rendas e uma capa forrada de seda cor-de-rosa.
PEDRO - Foste tu que deste tudo isto?
CAMILA - Não. Não tinha dinheiro que chegasse. Foi a minha mãe que pagou tudo, excepto a touca, que foi comprada com o meu dinheiro.
Estavam já todos prontos para partir, e o carro à porta para levar a menina com a ama, o padrinho e a madrinha. Camila e Pedro não cabiam em si de contentes por irem, como pessoas crescidas, sozinhos no carro. Eu também ia, atrelado ao carrinho dos pequenos; Luís, Henriqueta, Tiago e Joana meteram-se noutro, Madalena e Isabel na boleia para guiarem, e Henrique nas traseiras; as mães, os pais e os criados tinham ido adiante, não muito distanciados de nós, na previsão de qualquer acidente; era um excesso de prudência porque, comigo, sabiam que não havia nada a recear.
Parti a galope apesar da carga que levava; o amor-próprio impelia-me a alcançar e mesmo a passar adiante do outro carro. As crianças estavam encantadas.
Batiam palmas, aplaudiam.
- Bravo! - gritavam as pessoas que encontrávamos na estrada. - Isso é que é um burro! Corre mais do que um cavalo!
Os pais e as mães, escalonados ao longo do caminho, não estavam muito tranquilos; quiseram obrigar-me a afrouxar o andamento, mas eu não fiz caso e galopei ainda com mais entusiasmo. Não tardei a alcançar a caleche e passei, triunfalmente, por diante dos cavalos, que olhavam para mim, surpreendidos. Humilhados por verem que um burro corria mais do que eles, que tinham partido primeiro, começaram a galopar, mas o cocheiro reteve-os e foram obrigados a moderar o passo enquanto eu alongava o meu.
Quando a caleche chegou à porta da igreja, já os meus donos, pequenos e grandes, tinham descido do carro e eu fui acolher-me à sombra de uma sebe, porque estava deveras cansado.
À medida que iam chegando, tinham frases de admiração para mim e davam os parabéns às crianças.
O certo é que eu e o meu carro fizemos boa figura. Eu estava bem escovado e bem penteado; os arreios tinham sido envernizados e enfeitados com borlas encarnadas, e tinham-me prendido às orelhas tufos de dálias brancas e vermelhas.
Ouvi pela janela aberta a cerimónia do baptizado; a menina gritava como se a degolassem. Camila e Pedro, um pouco envergonhados, não atinavam com o Credo, vendo-se o abade obrigado a dizê-lo em voz baixa. Pela janela vi a pobre madrinha e o infeliz padrinho, vermelhos como cerejas e com as lágrimas nos olhos, o que sucede a muita gente boa e já crescida.
Logo que Maria Camila ficou baptizada, saíram todos da igreja para atirarem ao rapazio os confeitos, e quando o padrinho e a madrinha apareceram, gritaram todos em uníssono: Viva o padrinho! Viva a madrinha!
Deram a Camila o cesto dos confeitos. Camila atirou sobre os rapazes uma chuva de confeitos. Começou, então, uma verdadeira batalha, disputando todos os confeitos. Metade deles perderam-se, calcados aos pés ou desaparecidos por entre a erva. Pedro estava muito sério; Camila, que ao princípio achara graça, agora já não se ria; via que as batalhas eram a valer, que muitas crianças choravam e outras tinham a cara toda arranhada.
- Tinhas razão, Pedro - disse ela, quando se instalaram no carro-; se voltar a ser madrinha, hei-de dar os confeitos, mas nunca mais os atirarei.
A caleche abalou e, por isso, não ouvi o seguimento da conversa. Os outros pequenos subiram para o carrinho, mas, desta vez, os pais e as mães quiseram acompanhar-nos.
- Cadichon já fez uma figura bonita - disse a mãe de Camila -; agora pode voltar mais devagar, para podermos ir assim ao vosso lado.
- Mãe! - disse Madalena. - Gosta deste costume de atirar confeitos aos rapazes?
MÃE - Não, minha querida filha, acho-o ignóbil; as crianças assemelham-se, assim, a cães que se batem por um osso. Se algum dia for madrinha nesta terra, mandarei dar os confeitos e distribuirei pelos pobres dinheiro.
MADALENA - Tem razão, minha mãe; veja se me arranja a ser madrinha de alguém, para fazermos como a mãe diz.
MÃE (sorrindo) - Para seres madrinha, era preciso que houvesse uma criança para baptizar, e eu não conheço nenhuma.
MADALENA - Que pena! Gostava de ser madrinha com Henrique. Que nome davas ao teu afilhado, Henrique?
HENRIQUE - Henrique; e tu?
MADALENA - Madelon.
HENRIQUE - Madelon! Que horror! Isso não é um nome.
MADALENA- É tanto nome como Pierrette.
HENRIQUE - Pierrette é mais bonito! Mas lembra-te de que Pedro desistiu. . .
-Eu também posso desistir - disse Madalena, rindo-se -; mas temos tempo de pensar nisso.
Chegávamos ao solar. Todos se apearam e foram mudar de vestuário; tiraram-me também as dálias e as borlas, e fui-me à minha erva, enquanto as crianças merendavam.
O burro sábio
Um dia, vi correrem para mim as crianças. Eu pastava sossegadamente no prado, perto do solar, Luís e Tiago brincavam ao pé de mim e divertiam- se a subir com ligeireza ao meu lombo; julgavam ser ágeis mas eram, devo confessá-lo, bastante trôpegos, principalmente o bom Tiago, gorducho e com uma barriga maior do que a do primo. Luís conseguia, às vezes, agarrando-se-me à cauda, trepar para cima de mim. Tiago fazia esforços prodigiosos, mas rebolava e só conseguia montar com a ajuda do primo, que era mais velho do que ele. Para lhes poupar tão grandes trabalhos, eu tinha-me encostado a um montículo de terra. Luís já tinha mostrado a sua agilidade e Tiago acabara de se escarranchar sem grande esforço, quando ouvimos vir para nós um bando alegre.
- Tiago, Luís! - gritavam eles. - Vamos depois de amanhã à feira ver um burro sábio.
TIAGO - Um burro sábio?! Que é um burro sábio?
ISABEL - É um burro que faz habilidades.
MADALENA - Habilidades. . . sim. . . habilidades.
TIAGO - Nunca fará mais do que o Cadichon.
HENRIQuE - Ora O Cadichon É muito bom e muito inteligente para um burro, mas nunca saberá fazer o que faz o burro sábio da feira.
CAMILA - Se lho mostrassem, ele faria o mesmo. PEDRO - Vamos lá a ver o que faz esse burro sábio e veremos depois se é mais sábio do que Cadichon.
CAMILA - Pedro tem razão, esperemos até depois da feira.
ISABEL - Então que é que faremos depois da feira?
- Questionaremos - disse Madalena, rindo.
Tiago e Luís guardaram silêncio depois de terem dito qualquer coisa ao ouvido um do outro, e deixaram ir os outros embora. Depois de se terem certificado de que ninguém podia vê-los nem ouvi-los, puseram-se a dançar em roda de mim, rindo e cantando:
Cadichon, Cadichon, à feira tu irás, O burro sábio verás, Para o que ele fizer olharás, E como ele farás.
Toda a gente te honrará
E aplaudirá;
Vê lá, tu, meu burrinho, Se és mais sábio do que o teu vizinho.
- Isto é muito bonito - disse Tiago parando de cantar.
LUÍS - Pudera, não havia de ser bonito! São versos.
TIAGO - Versos? Eu julgava que era dificil fazer versos.
LUÍS - Muito fácil como vês. Não difícil como crês.
- Vês? Mais versos.
TIAGO - Vamos dizê-los aos primos.
LUíS - Não, não, que se eles ouvissem os nossos versos adivinhariam o que queremos fazer; devemos fazer-lhes a surpresa na feira.
TIAGO - Julgas que o meu pai e o tio nos deixarão levar o Cadichon à feira?
LUÍS - Decerto, depois de lhes termos dito, em segredo, por que razão queremos mostrar o burro sábio a Cadichon.
TIAGO - Vamos, então, já, pedir-lhes licença.
Quando se dirigiam para casa, os pais vinham ao seu encontro, ver o que estavam a fazer.
- Pai! Pai! - gritaram eles. - Venham depressa. Temos um favor a pedir-lhes.
- Falem. Que é que querem?
- Aqui não, pai - disseram eles com ar misterioso
puxando cada qual o seu pai para o prado.
-Que há? -perguntou, rindo, o pai de Luís.
- Em que conspiração nos querem meter?
- Caluda! Meu pai! Caluda! - disse Luís. - Vai ouvir. Já sabe que depois de amanhã haverá um burro sábio na feira.
PAI DE LUíS - Não sabia: Mas para que precisamos de burros sábios, se temos o Cadichon?
LUÍS - É essa, também, a nossa opinião: que Cadichon é mais sábio do que os outros burros todos juntos. As minhas irmãs, primas e primos, fazem tenção de ir à feira ver aquele burro e nós queríamos levar o Cadichon para ele ver o que o outro faz, e fazer também.
PAI DE TIAGO - Como é que vocês levariam o Cadichon, por entre a multidão, a olhar para o burro?
TIAGO - É que em vez de irmos de carro, montaríamos no Cadichon e colocar-nos-íamos muito próximo do círculo onde o burro sábio fará as suas habilidades.
PAI DE TIAGO - Está bem tudo isso. Mas não acredito que o Cadichon aprenda tudo com uma só lição.
TIAGO - Não é verdade, Cadichon, que farás tudo melhor do que esse estúpido do burro sábio?
Dirigindo-me esta pergunta, Tiago olhava para mim com um ar tão inquieto que eu comecei a zurrar para o tranquilizar, enquanto me ria da sua inquietação.
- Ouve? Cadichon diz que sim! - exclamou Tiago, triunfante.
Os pais riram-se, beijaram os filhinhos e prometeram que eu iria à feira com eles.
Ah! - disse de mim para mim. - Duvidarem da minha habilidade! O que é para admirar é que os pequenos sejam mais inteligentes do que os pais.
Chegou o dia da feira. Uma hora antes da partida escovaram-me, pentearam-me e puseram-me um selim e umas rédeas novas: Luís e Tiago pediram para partir primeiro, a fim de não chegarem tarde.
- Porque é que vocês querem ir adiante? - perguntou Henrique. - Como é que vão?
LUÍS - Vamos no Cadichon e queremos sair priimeiro porque vamos devagar.
HENRIQUE - Vocês vão sozinhos?
TIAGO - Não, o pai e o tio vão connosco.
HENRIQUE - Vão aborrecer-se a andar uma légua a passo.
LUÍS - Com os pais não nos aborrecemos.
HENRIQUE - Eu antes quero ir de carro; chegarei primeiro.
TIAGO - Não, porque nós saímos muito antes de vocês.
Acabavam de pronunciar estas palavras quando o criado me levou para junto deles. Os pais já estavam prontos; puseram os pequenos em cima de mim e eu parti devagarinho, para não fazer correr os pobres pais.
Uma hora depois chegávamos ao campo da feira; havia já muita gente em volta do círculo indicado por uma corda, onde o burro sábio devia mostrar as suas habilidades. Os pais dos meus amiguinhos colocaram-se, comigo ao lado, junto à corda. Os meus outros donos e donas não tardaram a chegar e colocaram-se ao pé de nós.
Um rufar de tambores anunciou que o meu sábio companheiro ia aparecer. Todos os olhos estavam fixos na barreira, que se abriu por fim, e o burro sábio apareceu.
Era magro, esquálido, triste e infeliz. O seu dono chamou-o e ele aproximou-se sem pressas e até com um ar receoso; vi logo, por isto, que o animal fora muito castigado para aprender o que sabia.
- Meus senhores e minhas senhoras! - disse o dono. - Tenho a honra de lhes apresentar Milflores, o príncipe dos burros. Este não é tão burro como os seus companheiros. é um burro sábio, mais sábio do que muitas pessoas presentes; é o burro por excelência, o burro sem rival. Vamos, Milflores, mostra o que sabes fazer, mas, primeiro, cumprimenta estes senhores e estas senhoras como um burro bem-educado.
Eu era orgulhoso e este discurso irritou-me; resolvi vingar-me antes da sessão acabar.
Milflores deu três passos em frente e cumprimentou, abaixando a cabeça.
- Milflores, vai levar este ramo de flores à senhora mais bonita que aqui está.
Eu ri-me, vendo todas as mãos estenderem-se e prepararem-se para receber o ramo. Milflores deu a volta ao círculo e parou diante de uma mulher muito gorda e muito feia, que depois soube ser a mulher do dono e que levava açúcar na mão. O burro sábio estendeu-lhe o ramo.
Esta falta de gosto indignou- me; saltei por cima da corda para o meio do círculo, com grande surpresa da assembleia; cumprimentei graciosamente para a direita e para a esquerda, caminhei com um passo resoluto para a mulher gorda, arranquei- lhe o ramo das mãos e fui largá-lo sobre os joelhos de Camila, voltando para o meu lugar, muito aplaudido pelos circunstantes. Todos perguntavam que significava esta cerimónia e muita gente supôs que era coisa combinada e havia dois burros sábios em vez de um; outros, que me viam na companhia dos meus pequenos donos e me conheciam, estavam maravilhados com a minha inteligência.
O dono do Milflores parecia muito contrariado e o burro sábio ficara indiferente com o meu triunfo; comecei a acreditar que ele era realmente estúpido, o que é bastante raro entre burros. Logo que se estabeleceu o silêncio, o dono chamou Milflores.
- Anda cá, Milflores, mostra a estes senhores e a estas senhoras que, depois de teres sabido distinguir a beleza, sabes, também, reconhecer a estupidez; pega nesta cabeçada e vai pô-la na cabeça do mais tolo que aqui está.
E apresentou-lhe uma cabeçada magnífica, guarnecida de campainhas e fitas de todas as cores. Milflores, agarrou-a com os dentes e dirigiu-se para um homem gordo e avermelhado que abaixava a cabeça para a receber. Era fácil reconhecer pela sua semelhança com a mulher gorda, tão falsamente proclamada a mais bela da sociedade, que o rapaz gordo era filho e comparsa do dono.
Chegou o momento de me vingar das palavras insultantes deste imbecil - pensei eu.
E antes que alguém me segurasse, saltei para a arena, corri para o meu companheiro, arranquei-lhe a cabeçada no momento em que a punha na cabeça do gorducho e, antes do dono ter voltado a si do espanto, corri para ele, pus as patas da frente nos ombros do homem e quis pôr-lhe a cabeçada na cabeça. Ele empurrou-me com violência e ficou ainda mais furioso ao ouvir as gargalhadas e os aplausos do ajuntamento.
-Bravo, seu burro! -gritavam de todos os lados. - Tu é que és o verdadeiro burro sábio!
Animado pelos aplausos da multidão, fiz novo esforço para lhe meter a cabeçada pela cabeça abaixo; à medida que ele recuava, eu avançava, e isto degenerou numa corrida em que acabei por lhe pôr as patas dianteiras nos ombros, fazendo-o cair. Aproveitando a queda, enterrei-lhe a cabeçada até ao pescoço e retirei- me imediatamente. O homem levantou-se meio tonto e começou a girar em volta e a saltar. Eu, para completar a farsa, comecei a imitá-lo de um modo grotesco e a saltar como ele; interrompia esta imitação para lhe zurrar aos ouvidos, e depois sustentava-me só nas patas traseiras.
É impossível descrever o que esta cena tinha de hilariante; nunca nenhum burro alcançou tão grande êxito, nem triunfo tão completo. O circo foi invadido por milhares de pessoas, que queriam fazer-me festas, tocar-me no pêlo. Os que já me conheciam sentiram um certo orgulho e apontavam-me aos que não me conhe ciam, contando histórias verdadeiras e falsas em que eu era sempre o protagonista. Diziam, por exemplo: que de uma vez eu apagara um incêndio, pondo eu só uma bomba em movimento; tinha subido a um terceiro andar, abrira a porta da casa da minha dona, agarrara nela ainda a dormir e, como as chamas já tivessem invadido as escadas e as janelas, atirara-me do terceiro andar depois de ter colocado a minha dona em cima de mim; nem ela nem eu ficámos feridos, porque o anjo da guarda da minha dona nos tinha amparado no ar para nos pôr no chão com toda a cautela. De outra vez, eu tinha matado cinquenta bandidos, estrangulando-os um a um com os dentes, de modo que nenhum deles teve tempo de acordar e dar o alarme aos seus companheiros. Em seguida, fui libertar cento e cinquenta prisioneiros que os ladrões tinham acorrentado nas cavernas, a fim de os engordarem e comerem depois. Ainda de outra vez, eu batera numa corrida os melhores cavalos da terra; correra, em cinco horas, vinte e cinco léguas sem parar.
À medida que estas notícias se iam espalhando, a admiração aumentava; comprimiam-se em volta de mim, vendo-se os guardas obrigados a afastar a multidão. Felizmente, os pais de Luís, de Tiago e dos meus outros donos tinham levado os pequenos logo que a multidão se tornou mais compacta. Tive um trabalhão para fugir, mesmo com o auxi io dos guardas, porque todos me queriam passear em triunfo. Fui obrigado, para me subtrair a esta honra, a dar algumas dentadas à direita e à esquerda, tendo, porém, o cuidado de não ferir ninguém.
Logo que me vi livre da multidão, procurei Luís e Tiago, mas não os descobri. Não queria que os pequenitos voltassem a pé para casa, e por isso, sem perder tempo a procurá-los, corri à cavalariça onde ficaram os nossos cavalos e os arreios. Entrei e já lá os não vi; tinham abalado. Então, correndo a bom correr pela estrada que levava ao solar, não tardei a alcançar os carros, onde tinham empilhado as crianças; havia quinze pessoas nas duas caleches.
- Cadichon! Aí vem Cadichon - gritaram as crianças quando me avistaram.
Fizeram parar os carros; Tiago e Luís pediram para se apear, porque queriam beijar-me e voltar a pé; depois Joana e Henriqueta, depois Pedro e Henrique, e Isabel, Madalena e Camila.
- Vejam lá - diziam Luís e Tiago - como nós conhecemos melhor do que vocês o que vale Cadichon! Vejam como ele foi inteligente! Como ele compreendeu as habilidades do imbecil do Milflores e do idiota do dono
- É verdade - disse Pedro. - Mas o que eu gostava de saber é porque é que ele queria pôr a cabeçada ao dono. Terá compreendido que o dono era idiota e que uma cabeçada é sinal de imbecilidade?
CAMILA - Pois claro que compreendeu; tem talento bastante para isso.
ISABEL - Ah! Ah! Ah! Tu dizes isso porque ele te deu o ramo como à mais bonita da roda.
CAMILA - Nem me lembrava disso; mas já que mo recordas, digo-te que fiquei muito admirada, e que gostaria que ele o levasse a minha mãe, que era a mais bonita que lá estava.
PEDRO - Tu é que a representavas, e por isso o burro não podia ter escolhido melhor.
MADALENA - E eu?! Sou para aí uma cara de meter medo?
PEDRO - Não, mas gostos não se discutem, e o gosto de Cadichon fê-lo escolher Camila.
ISABEL - Em vez de estarmos para aqui a falar de bonitas e de feias, devíamos perguntar a Cadichon como é que ele compreendeu o que o homem dizia.
HENRIQUETA - Que pena Cadichon não poder falar! Quantas histórias nos contaria!
ISABEL - Sabe-se lá se ele nos compreende? Eu já li as Memórias de uma boneca, . Então uma boneca vê e compreende alguma coisa? Pois essa boneca escreveu que via e ouvia tudo.
HENRIQUE - Tu acreditas nessas coisas?
ISABEL - Acredito.
HENRIQUE - Como é que a boneca pôde escrever?
ISABEL - Escrevia de noite, com uma pena pequenina de colibri, e escondia as Memórias debaixo da cama.
MADALENA - Não creias nessas patacoadas, minha pobre Isabel. Foi uma senhora que escreveu essas Memórias de uma boneca e, para tornar o livro mais divertido, imaginou ser ela a boneca e escrever como se fosse uma boneca.
ISABEL - Julgas então que não foi uma verdadeira boneca que escreveu as Memórias?
CAMILA - Não creio. Como queres tu que uma boneca, que não é viva, que é de madeira, ou de louça, e cheia de farelo, possa reflectir, ver, ouvir e escrever?
Assim palestrando, chegámos ao solar; as crianças correram a contar à avó, que tinha ficado em casa, tudo o que eu tinha feito.
- Esse Cadichon é, de facto, maravilhoso! - exclamou ela, vindo fazer- me festas. - Já conheci burros muito inteligentes, mas nunca vi nenhum como Cadichon. Devemos confessar que somos muito injustos para com os burros.
Voltei-me para ela e contemplei-a com reconhecimento.
- Dir-se-ia que ele me compreendeu - continuou ela. - Meu pobre Cadichon! Podes ter a certeza de que, enquanto for viva, não te venderei e te tratarei como se compreendesses tudo o que se passa à roda de ti.
Suspirei pensando na idade da avozinha, que tinha cinquenta e nove anos, e eu apenas nove ou dez.
Meus queridos donos pequeninos, quando a avó morrer, não me vendam e deixem-me morrer servindo-os.
Quanto ao infeliz dono do burro sábio, arrependi-me amargamente, mais tarde, da partida que lhe tinha pregado, e vão ver o mal que eu fiz quando mostrei as minhas habilidades.
A rã
O rapaz orgulhoso que matara o meu amigo Médor, conseguira ser perdoado, provavelmente à força de actos de servilismo, e permitiram-Lhe voltar a casa da avozinha. Como devem calcular, eu não o podia ver e procurava o ensejo de lhe fazer uma partida, porque não era caritativo e não aprendera ainda a perdoar. Esse Augusto era poltrão e estava sempre a alardear a sua coragem. Um dia em que o pai o tinha levado de visita, e que as crianças Lhe propuseram um passeio pelo parque, Camila, que corria à frente, deu de repente um salto e não pôde conter um grito.
- Que tens? Que foi? - exclamou Pedro, correndo para ela.
CAMILA - Tive medo de uma rã que me saltou sobre o pé.
AUGUSTO - Tem medo das rãs, Camila? Eu não tenho medo de nenhum animal.
CAMILA - Então porque é que o outro dia deu um salto tão grande, quando eu lhe disse que tinha uma aranha no braço?
AUGUSTO - Porque não entendi o que dizia. CAMILA - Essa agora! Não entendeu? Pois eu falei bem claro!
AUGUSTO - Mas eu julguei que dizia: Olha uma aranha acolá em baixo . Foi por isso que eu dei um salto para ver melhor.
PEDRO - Isso não é verdade, porque me disseste: Sacode-a, Pedro. .
AUGUSTO - O que eu queria dizer era que te afastasses para a ver melhor.
- Está a mentir - disse Madalena em voz baixa a Camila.
- Já percebi - respondeu Camila, também em voz baixa.
Eu estava a ouvir a conversa e aproveitei-a, como se vai ver. As crianças tinham-se sentado na erva e eu segui-as; ao aproximar-me, vi uma rã verde, muito próxima de Augusto, cujo bolso entreaberto tornava fácil o que eu premeditava. Cheguei-me para ele sem fazer barulho, agarrei na rã por uma pata, meti-a no bolso do gabarola e depois afastei-me, para que Augusto não pudesse adivinhar que fora eu o autor da partida.
Não ouvia bem o que diziam, mas via que Augusto continuava a gabar- se de não ter medo de nada, nem mesmo dos leões. As crianças indignavam- se. Nesta altura, Augusto teve necessidade de se assoar. Meteu a mão no bolso e retirou-a logo, dando um grito de horror e erguendo-se precipitadamente:
-Tirem-na! Tirem-na! Tenho medo! Acudam! Acudam
- Que é que tem, Augusto? - perguntou Camila, meio risonha, meio aterrada.
AUGUSTO- Um bicho! um bicho! Tirem-no daqui, peço-lhes!
PEDRO - Mas que bicho? Onde está o bicho?
AUGUSTO - No meu bolso. Senti-o, toquei-lhe. Tirem-no, tenho medo.
- Tira-o tu, poltrão - disse Henrique, indignado.
ISABEL - Ora vejam lá! Tem medo de um bicho que tem no bolso e quer que nós o tiremos, não se atrevendo ele a tocar-lhe!
Os pequenos, ao princípio aterrados, acabaram por se rir das contorções de Augusto, que não sabia como desembaraçar-se da rã. O terror aumentava a cada movimento do animal. Por fim, perdendo a cabeça, louco de terror, não encontrou outro meio de se ver livre do animal, que ele sentia mexer, senão tirando o casaco e atirando-o ao chão. Ficou em mangas de camisa. Os pequeninos desataram às gargalhadas e foram apanhar o casaco. Henrique entreabriu o bolso, e a rã saltou pela abertura, apesar de estreita.
CAMILA (rindo) - O inimigo está em fuga.
PEDRO - Vê lá, não corra ele atrás de ti!
HENRIQUE - Não te aproximes, senão ele devora-te.
MADALENA - Não há nada mais perigoso do que uma rã!
ISABEL - Ainda se fosse um leão, Augusto saltar-lhe-ia em cima; mas uma rã! A sua coragem não bastaria para se defender das suas garras!
LUíS - E tu esqueces os dentes.
TIAGO (apanhando a rã) - Podes vestir o casaco; o inimigo está preso.
Augusto estava envergonhado e imóvel ante as gargalhadas dos colegas.
- Vamos vesti-lo, porque ele nem força tem para o fazer - exclamou Pedro.
-Vê lá, não esteja alguma mosca ou moscardo poisado no casaco - disse Henrique -; seria mais um perigo.
Augusto quis fugir mas todos correram atrás dele perseguindo-o e impedindo-lhe a passagem. Pedro levava o casaco do fugitivo, que tinha apanhado do chão. Foi uma caçada muito divertida para todos, excepto pa ra Augusto que, vermelho de cólera e de vergonha, corria desanimado. Eu tinha-me associado à brincadeira, galopando para a frente e para trás, redobrando o seu terror com os meus zurros e as minhas tentativas de o agarrar pelos fundilhos; cheguei a apanhá-lo, mas ele resistiu e ficou- me um pedaço de fazenda nos dentes, o que produziu ainda maior risota. Consegui, por fin, agarrá-lo solidamente e ouvi um grito; julguei que os meus dentes tinham agarrado coisa diferente da fazenda. Pedro e Henrique acorreram e viram-se gregos para o segurar, mas eu dei novo safanão. Ouviu-se novo grito, até que Augusto ficou tranquilo, dando aso a Pedro e Henrique de lhe vestirem o casaco. Foi só então que o larguei e afastei-me cheio de contentamento por ter conseguido fazê-lo cair no ridículo. Nunca ele soube como é que a rã lhe foi parar ao bolso, e desde esse dia, nunca mais se atreveu a falar da sua coragem. . . diante dos amigos.
O pónei
Devia estar satisfeito com a minha vingança, mas não o estava; conservava contra o infeliz Augusto um sentimento de ódio que me fez cometer a seu respeito uma nova maldade, de que mais tarde me arrependi.
Depois da história da rã, ficámos livres dele durante um mês. Mas um dia veio com o pai, o que não causou alegria a ninguém.
- Que vamos fazer para divertir este rapaz? perguntou Pedro a Camila.
CAMILA- Propõe-lhe uma burricada até à floresta. Henrique montará Cadichon, Augusto irá no burro da caseira e tu irás no teu pónei.
PEDRO - Boa ideia! Oxalá que ele a aceite!
CAMILA - Aceita. Manda aparelhar o pónei e os burros; quando estiverem prontos, obriguem-no a montar no que lhe é destinado.
Pedro foi ter com Augusto, que estava a maçar Luís e Tiago, pretendendo ajudá-los com os seus conselhos a embelezarem o seu pequeno jardim; arrasava tudo, arrancava legumes, replantava flores, cortava os morangueiros; os pequenos procuravam impedi-lo de praticar estes vandalismos, mas ele repelia-os aos pontapés sobre os destroços das suas flores e dos seus legumes.
- Porque estás tu a atormentar os meus primos?perguntou-lhe Pedro, descontente.
AUGUSTO - Não os atormento; estou, pelo contrário, a ajudá-los.
PEDRO - Mas se eles não querem ser ajudados?. . . AUGUSTO - Têm de ser ajudados à força. .
LUÍS - Ele fez isto porque nós somos pequenos; contigo e com o Henrique não se atrevia a fazê-lo.
AUGUSTO - Não me atrevia? Repete lá!. . .
TIAGO - Não, não te atrevias! Pedro e Henrique são mais fortes do que uma rã.
A estas palavras, Augusto corou, encolheu os ombros com desdém, e dirigindo-se a Pedro:
- Que é que me querias, querido amigo? Parece que andavas à minha procura quando vieste aqui. . .
- Sim, vinha propor-te uma burricada - respondeu Pedro com frieza. - Daqui a um quarto de hora estará tudo pronto. Se queres, vem comigo e com Henrique.
-Aceito - replicou Augusto, entusiasmado por terminar assim com os sarcasmos de Tiago e Luís.
Pedro e Augusto foram à cavalariça onde pediram ao cocheiro que aparelhasse o pónei, o meu companheiro da caseira e eu.
AUGUSTO - Ah! Tens um pónei? Eu gosto muito dos póneis.
PEDRO - Foi a avó que mo deu.
AUGUSTO - Então sabes montar a cavalo?
PEDRO - Desde os dois anos.
AUGUSTO - O que eu queria era ir no teu pónei.
PEDRO - Não to aconselho, visto não teres aprendido a andar a cavalo.
AUGUSTO - Nunca aprendi, mas monto como outro qualquer.
PEDRO - Já experimentaste alguma vez?
AUGUSTO - Quantas vezes! Quem é que não sabe andar a cavalo?
PEDRO - Quando é que tu andaste? Teu pai não tem cavalo.
AUGUSTO - Nunca andei de cavalo, mas já montei em burros: é a mesma coisa.
PEDRO (com um sorriso) - Repito-te, meu caro Augusto, que, se nunca montaste um cavalo, não deves montar o meu pónei.
AUGUSTO (melindrado) - Porquê? Podes bem ceder-mo por uma vez.
PEDRO- Não quero recusar-to, mas o pónei é um pouco vivo e...
AUGUSTO- E quê?
PEDRO - Pode atirar-te ao chão.
AUGUSTO - Está descansado, sou mais esperto do que imaginas. Se mo cederes, podes ter a certeza de que o conduzirei tão bem como tu próprio.
PEDRO - Como quiseres, meu caro, vai no pónei, que eu vou no burro da caseira e Henrique no Cadi chon.
Henrique foi ter com eles; estávamos todos prontos para partir. Augusto aproximou-se do pónei, que seagitou, deu dois ou três saltos e ficou inquieto.
- Segurem-no bem, até eu estar montado - disse ele. COCHEIRO - Não há perigo; o animal não é mau; não tenha medo.
AUGUSTO (melindrado) - Eu não tenho medo nenhum. Parece-lhes que eu tenho cara de medo? Não tenho medo de nada.
HENRIQUE (em voz baixxa) - Excepto das rãs. AUGUSTO - Que dizes, Henrique? Que disseste ao ouvido de Pedro?
HENRIQUE (com malicia) - Nada de interessante! Pareceu-me ver uma rã na erva.
Augusto mordeu os beiços, fez-se muito corado, mas não respondeu. Acabou por montar o pónei e retesou logo as rédeas. O pónei recuou e Augusto agarrou-se ao selim.
- Não puxe as rédeas; um cavalo não se guia como um burro - disse o cocheiro, rindo.
Augusto largou as rédeas: Eu parti adiante com Henrique e Pedro seguiu-nos no burro da caseira. Eu comecei maliciosamente a galopar e o pónei tratava de me passar adiante. Pedro e Henrique riam a bom rir. Augusto gritava, agarrado às crinas do cavalo. Eu estava resolvido a não parar senão quando visse Augusto estatelado no chão.
O pónei, excitado pelos gritos e pelas risadas, não tardou a passar adiante de mim; eu segui-o de perto, mordiscando a cauda, quando ele afrouxava o passo. Galopámos assim durante quase meia hora.
Augusto parecia cair a cada passo, sempre agarrado ao pescoço do cavalo. Para apressar a sua queda, mordi com mais força a cauda do pónei, que disparou uma parelha de coices tão violenta que Augusto foi sair-lhe pela cabeça e ficou estendido no chão sem dar acordo de si. Pedro e Henrique, julgando-o ferido, apearam-se e correram a levantá-lo.
- Estás ferido, Augusto? - perguntaram-lhe com inquietação.
- Creio que não; não sei - respondeu Augusto, que se levantou ainda a tremer do susto que tinha apanhado. Quando se pôs de pé, tremiam-lhe as pernas e batia os dentes. Pedro e Henrique examinaram-no, e não tendo notado nenhuma arranhadura, olharam para ele com compaixão e troça.
- Olha que é muito triste ser-se tão poltrãodisse Pedro.
- Eu. . . não. . . sou. . . poltrão. . . mas tive. . muito medo. . . - respondeu Augusto, batendo os dentes uns nos outros.
- Agora, não pensas mais em montar no meu pónei, não é verdade? Salta para o burro, que eu vou a cavalo.
E sem esperar a resposta de Augusto, saltou com ligeireza para cima do pónei.
- Antes queria o Cadichon - disse timidamente Augusto.
- Como quiseres - respondeu Henrique. - Toma lá o Cadichon; eu vou no burro da caseira.
O meu primeiro movimento foi impedir Augusto de me montar, mas formei outro plano para lhe dar uma lição completa, e que melhor servia a minha aversão e a minha maldade. Deixei que ele me cavalgasse e segui de longe o pónei. Se Augusto se atrevesse a bater-me para me fazer andar mais depressa, tê-lo-ia atirado ao chão; mas ele sabia da amizade que todos me tinham e deixou-me ir no passo que eu queria. Não deixei de roçar, sempre que podia, pelos tojos e pelos pinheiros, que vergastavam a cara do meu cavaleiro. Este queixou-se a Henrique, que Lhe respondeu friamente:
- Cadichon só faz essas partidas às pessoas de quem não gosta; é provável que tu não estejas nas suas boas graças.
Daí a pouco voltámos para casa. O passeio não divertia nada Henrique e Pedro, que se aborreciam de ouvir os gemidos de Augusto, já com a cara a escorrer sangue. Mas agora é que o meu terrível plano se ia realizar. Voltando pela quinta, íamos pela beira de um buraco, ou antes, um fosso onde vinha ter a canalização das águas sujas e gordurosas da cozinha; era para ali que se atiravam todas as imundícies, que formavam uma lama negra e viscosa. Eu tinha deixado passar Henrique e Pedro; ao chegar junto do fosso, dei um salto e dei uma parelha de coices que atirou com Augusto para o pântano. E fiquei tranquilamente a vê-lo debater-se naquela lama negra e infecta que o cegava.
Ele quis gritar, mas a água entrava-lhe pela boca e não tinha nada a que se agarrar. Eu ria de mim para mim. Médor, meu pobre amigo, estás vingado! Não reflecti no mal que poderia fazer àquele pobre rapaz que, ao matar Médor, tinha sido imprevidente e não maldoso; não pensava em que eu era o pior de todos. Pedro e Henrique, que se tinham apeado do cavalo e do burro, não me vendo nem a Augusto, admiraram-se com essa demora e voltaram para trás, avistando-me então à beira do fosso, contemplando com um ar satisfeito o meu inimigo, que se debatia no charco. Aproximaram-se, e verificando que Augusto corria um perigo sério, de ser sufocado pela lama, começaram a gritar, vendo-o em tão cruel posição. Acudiram os criados da quinta, que estenderam uma prancha, à qual Augusto se agarrou, saltando em seguida para terra. Mas ninguém queria aproximar-se dele, porque estava coberto de lama e cheirava muito mal.
- É preciso mandar prevenir o pai - disse Pedro.
- O meu pai e os meus tios - disse Henrique -, para que nos digam o que se deve fazer para o levar.
- Vamos, Augusto; segue-me, mas de longe - disse Pedro. - Essa lama tem um cheiro insuportável.
Augusto, todo coberto de lama negra, e mal podendo ver, seguiu-os de longe, no meio das exclamações dos criados. Eu ia atrás, correndo e zurrando com todas as minhas forças. Pedro e Henrique mostravam-se descontentes com a minha alegria, e gritavam para me calar. Este rumor fora do vulgar atraiu a atenção de toda a gente da casa, porque sabiam que eu só zurrava nas grandes ocasiões. Estavam todos à janela, de modo que, quando chegámos à vista do solar, ouvimos gritos e um movimento extraordinário. Instantes depois, todos, grandes e pequenos, velhos e novos, tinham descido e nos rodeavam. Augusto estava no meio do círculo e todos perguntavam o que tinha acontecido e fugiam quando ele se aproximava.
A avó foi a primeira a dizer:
- É preciso lavar esse pobre pequeno e ver se não está ferido.
- Mas como lavá-lo? - disse o pai de Pedro. – É preciso preparar um banho.
- Eu encarrego-me disso - disse o pai de Augusto. - Segue-me. Vejo pelo teu andar que não estás ferido. Vamos ao ribeiro. Logo que tenhas sacudido a lama, ensaboas-te e acabas a lavagem. A água neste tempo não está fria. Pedro que te empreste roupa branca e o resto do vestuário.
E dirigiu-se para o ribeiro. Augusto tinha medo do pai e, por isso, não teve outro remédio senão segui-lo. Eu também fui assistir à operação, que foi demorada e custosa, porque a lama pegara-se à pele e aos cabelos. Os criados tinham trazido roupa branca, sabão, vestuário e calçado. Os pais ajudaram a lavar Augusto, que saiu do banho ao fim de meia hora, tão envergonhado e trémulo que não queria aparecer a ninguém, e fez com que o pai o levasse para casa. Entretanto todos desejavam saber como se teria dado o acidente. Pedro e Henrique contaram as duas quedas.
- Eu creio - disse Pedro - que elas foram planeadas por Cadichon, que não gosta de Augusto. Cadichon mordeu na cauda do meu pónei, o que nunca faz quando qualquer de nós o tem montado; obrigou-o assim a ir a galope e atirar com Augusto ao chão. Não assisti à segunda queda; mas, pelo aspecto triunfante de Cadichon, pelos seus zurros alegres e pela atitude que ele tem agora, é fácil de adivinhar que o atirou de propósito àquele lamaçal.
- Como é que sabes que Cadichon não gosta dele?
- Demonstrou-o de mil maneiras diferentes - respondeu Pedro. - Não te lembras como, no dia da rã, Cadichon perseguia Augusto, como o agarrou pelos fundilhos e o conservou preso até nós lhe vestirmos o casaco? Eu olhei bem para ele nessa ocasião e vi o olhar mau que deitava a Augusto, olhar que só tem para as pessoas que detesta. Para nós nunca olhou assim. Com Augusto, os seus olhos brilham como carvões acesos. Não é verdade, Cadichon - acrescentou ele olhando-me fixamente-, que adivinhei que detestas Augusto e que foi de propósito que Lhe fizeste mal?
Eu respondi zurrando e lambendo-lhe depois a mão.
- Sabes - disse Camila - que Cadichon é um burro verdadeiramente extraordinário? Tenho a certeza de que nos ouve e nos compreende.
Olhei para ela com meiguice, e aproximando-me, encostei a cabeça ao seu ombro.
- Que pena, meu Cadichon - disse Camila -, que te tornes por vezes mau e nos obrigues assim a gostar menos de ti! E que pena que não possas escrever! Deves ter visto muitas coisas interessantes -continuou ela, passando a mão pela minha cabeça e pelo meu pescoço. - Se pudesses escrever as tuas Memórias, tenho a certeza de que seriam muito curiosas!
HENRIQUE - Que tolices estás a dizer, minha pobre Camila! Como queres tu que Cadichon, que é um burro, possa escrever as suas Memórias?
CAMILA - Um burro como Cadichon é um burro sem rival.
HENRIQUE - Ora! Todos os burros se parecem uns com os outros, e por mais que façam nunca passam de burros.
CAMILA- Há burros e burros.
HENRIQUE - Isso não impede que, quando queremos dizer que um homem é estúpido, lhe chamemos estúpido como um burro, teimoso como um burro, e que se me dissesses: Henrique, és um burro, eu me zangasse, porque tomava a frase como uma injúria.
CAMILA - Tens razão; mas sinto e vejo que Cadichon compreende muitas coisas, que gosta de nós e que tem uma inteligência extraordinária. Além disso, os burros só são burros porque a gente lhes dá esse nome e os trata com crueldade.
HENRIQUE - Nesse caso, a tua opinião é que foi por habilidade que Cadichon descobriu os ladrões e fez tantas coisas extraordinárias?
CAMILA - Certamente. Devemos à sua inteligência e à sua vontade a descoberta dos ladrões. Se não foi assim, diz tu porque é que foi?
HENRIQUE - Porque tinha visto de manhã os seus companheiros entrar no subterrâneo e queria ir ter com eles!
CAMILA- E as habilidades do burro sábio?
HENRIQUE - Foi por ciúmes.
CAMILA - E a corrida dos burros?
HENRIQUE - Foi por orgulho de burro.
CAMILA - E o incêndio, quando salvou Paulina?
HENRIQUE - Foi por instinto.
CAMILA - Não digas mais, Henrique, que me impacientas.
HENRIQUE - Ninguém mais do que eu gosta do Cadichon, mas tomo-o pelo que ele é: um burro, e tu fazes dele um génio. Nota que, se ele tem a inteligência e a vontade que lhe supões, é mau e detestável.
CAMILA - Porquê?
HENRIQUE - Tornando ridículo o burro sábio e o seu dono, e impedindo-o de ganhar dinheiro, que lhes era necessário para se alimentarem, e depois fazendo mil partidas a Augusto, que nunca lhe fez mal, e fazendo-se temer e detestar pelos outros animais, aos quais morde e dá coices.
CAMILA - Nisso tens razão, Henrique. Prefiro acreditar, para honra de Cadichon, que ele não sabe o que faz nem o mal que faz.
E Camila afastou-se com Henrique, deixando-me só e descontente com o que acabava de ouvir. Sentia que Henrique tinha razão, mas não queria confessá-lo, e sobretudo, não queria reprimir os sentimentos de orgulho, de cólera e de vingança que sempre me dominaram.
O castigo
Fiquei só até à noite. Ninguém veio ver-me. Aborrecia-me, e por isso fui postar-me ao pé dos criados, que tomavam ar à porta da cozinha, conversando.
- Se eu estivesse no lugar da senhora - disse a cozinheira -, vendia o burro.
CRIADA - Realmente, está a tornar-se muito mau. Vejam o que ele fez ao pobre Augusto. Podia tê-lo afogado.
CRIADO - Vocês não viram como ele estava contente, como saltava e zurrava!
COCHEIRO - Não tarda que as pague. Eu lhe darei a ceia!
CRIADO - Vê lá que a senhora não saiba. . .
COCHEIRO - Como é que o saberia? Julgas que o vou chicotear diante da senhora? Espero que ele vá para a cavalariça.
CRIADO - Então terás que esperar! É um animal que faz todas as suas vontades e recolhe às vezes bem tarde.
COCHEIRO - Descansa, que, quer ele queira quer não, há-de ir para a cavalariça quando me apetecer.
CRIADA - Como é que você faz isso? Ele põe-se a zurrar e amotina toda a casa.
COCHEIRO - Deixe-o comigo. Tenho artes para lhe cortar o assobio: nem o ouvirão respirar.
E todos deram uma gargalhada. Eu estava furioso e procurava meio de me subtrair ao correctivo que me ameaçava. Podia atirar-me a eles e mordê-los mas não me atrevia, com medo de que se fossem queixar; e eu sentia vagamente que, já cansada com as minhas partidas, a minha dona poderia bem vender-me.
Enquanto eu deliberava, a criada fez notar ao cocheiro os meus olhos maus.
O cocheiro abanou a cabeça, levantou-se, entrou na cozinha e saiu depois, para se dirigir à cavalariça: mas, ao passar por mim, atirou-me um nó corredio ao pescoço; eu puxei para trás, para o partir, e ele puxou para a frente, a fim de me fazer andar; cada um de nós puxava para o seu lado, mas, quanto mais puxávamos, mais a corda me estrangulava; tentei zurrar, mas mal podia respirar e cedia sem querer ao cocheiro, que me levou assim até à cavalariça, cuja porta foi logo aberta pelos outros criados. Logo que cheguei à minha manjedoura, puseram-me o freio, tiraram-me a corda que me estrangulava, e o cocheiro, depois de ter fechado bem a porta, agarrou num chicote de carroceiro e começou a zurzir-me implacavelmente, sem que ninguém me acudisse. Por mais que zurrasse, os meus donos não me ouviam, e o cocheiro pôde castigar-me, à vontade, das maldades de que me acusava.
Por fim, deixou-me todo dorido e num estado de abatimento impossível de descrever. Era a primeira vez, desde a minha entrada naquela casa, que me batiam e me humilhavam. Reflecti e reconheci que merecia aquele castigo.
No dia seguinte, era já tarde quando me fizeram sair; tive tentações de morder o cocheiro na cara, mas não o fiz com medo de ser vendido. Dirigi-me para casa e vi os pequenos reunidos e conversando com animação ao pé da escadaria.
- Aí vem o malvado Cadichon - disse Pedro ao ver-me aproximar. - Ponhamo-lo daqui para fora, não vá ele morder-nos ou fazer-nos alguma partida como a de outro dia ao desgraçado Augusto.
CAMILA- Que disse o médico ao meu pai?
PEDRO - Disse que Augusto estava muito doente; tem febre, delírio. . .
TIAGO - Que é delírio?
PEDRO - O delírio é o estado de uma pessoa que, por ter uma febre muito alta, não sabe o que diz, não reconhece ninguém e julga ver coisas que não existem.
LUÍS - Que é que Augusto vê?
PEDRO - Julga estar a ver sempre Cadichon, que quer atirar-se a ele, que o morde e o pisa aos pés; o médico está muito preocupado. O pai e os tios foram e para lá.
MADALENA- Como o Cadichon é mau! Atirar o pobre Augusto para aquela lama fétida!
- Sim, muito mau - exclamou Tiago, voltando-se para mim. - Já não gosto de ti!
- Nem eu, nem eu, nem eu - repetiram todas as crianças. - Vai-te daqui; não te quero ver mais.
Eu estava consternado. Todos, até o meu pequeno Tiago, que eu amava tão ternamente, todos me expulsavam, me repeliam.
Afastei-me lentamente alguns passos e voltando-me, olhei para eles com um ar tão triste que Tiago se comoveu, correu para mim, agarrou-me na cabeça e disse-me com uma voz carinhosa:
- Ouve, Cadichon, nós agora já não gostamos de ti; mas, se fores bom, podes ter a certeza de que voltaremos a gostar como dantes.
- Não, não, nunca como dantes! - exclamaram todas as crianças. - É muito mau!
- Vês, Cadichon, aqui tens o resultado de se ser mau - disse- me o pequeno Tiago, passando-me a mão pelo pescoço. - Vês, ninguém quer gostar de ti. . . Mas - acrescentou ele, falando-me ao ouvido- eu ainda gosto um pouco de ti e, se não fores mau, gostarei como dantes.
HENRIQUE - Cuidado, Tiago, não te aproximes muito; olha que ele dá-te uma dentada ou um coice. . .
TIAGO - Não há perigo; tenho a certeza de que anós não morderá!
HENRIQUE - Porquê? Ele atirou Augusto por duas vezes ao chão.
TIAGO - Oh! Augusto é diferente! Não gosta dele.
HENRIQUE - Não gosta, porquê? Que lhe fez Augusto? É também capaz de começar a detestar-nos.
Tiago não respondeu, porque não havia resposta a estes argumentos; mas abanou a cabeça e, voltando-se para mim, fez-me uma carícia amigável, que me comoveu até às lágrimas. O abandono dos outros tornou-me ainda mais precioso aquele testemunho de afecto do meu querido Tiaguinho e, pela primeira vez, senti no coração um pensamento sincero de arrependimento. Pensei com inquietação na doença do infeliz Augusto.
De tarde, soube-se que ele estava ainda mal e que o médico tinha apreensões graves. À noite foram lá os meus pequenos donos, e as primas esperaram impacientemente temente o seu regresso.
- Então? Então? - gritaram elas logo que os avis taram. - Notícias? Como está Augusto?
- Não está nada bem - respondeu Pedro -, mas um pouco melhor do que ontem.
HENRIQUE - O pobre pai mete dó; chora, soluça, pede ao bom Deus que lhe não leve o filho; diz coisas tão comoventes que me fizeram chorar.
ISABEL - Vamos rezar todos por ele, não é verdade, meus amigos?
- Sim, e com todo o fervor dos nossos corações - disseram todas as crianças ao mesmo tempo.
MADALENA - Pobre Augusto! E se ele morresse?. . .
CAMILA - O pobre pai morreria de desgosto, porque não tem outro filho.
ISABEL - Onde está a mãe de Augusto? Nunca aparece.
PEDRO - Milagre seria se aparecesse: morreu há dez anos.
HENRIQUE - E o que é mais singular é que a pobre senhora morreu por ter caído à água durante um passeio de barco.
ISABEL - Afogou-se?
PEDRO - Não. Retiraram-na da água, mas como estava muito calor e a água muito fria, foi acometida de febres e delírio, exactamente como Augusto. Morreu oito dias depois.
CAMILA - Deus permita que não suceda o mesmo a Augusto.
ISABEL - É por isso que precisamos de rezar muito; talvez o bom Deus nos conceda o que Lhe pedirmos.
MADALENA - Onde está Tiago?
CAMILA - Ainda agora aqui estava. Talvez fosse para casa.
Não tinha ido para casa, o pobre pequeno, mas ajoelhara por detrás de uma caixa, e, com a cabeça oculta nas mãos, rezava e chorava. Era eu o causador da desgraça de Augusto, da horrível inquietação do infeliz pai, e, enfim, do pesar do meu pequenino amigo! Este pensamento deu-me uma grande tristeza; nunca devia ter vingado Médor!
Que lucrou ele com a queda de Augusto? Ressuscitou, por acaso? A vingança serviu-me de alguma coi sa? Não foi ela causa de me recearem e detestarem?
Esperei com impaciência o dia seguinte para ter notícias de Augusto. Fui dos primeiros a tê-las, porque Tiago e Luís me atrelaram ao carrinho para ir a casa dele. Encontrámos, quando lá chegámos, um criado que ia a correr chamar um médico, e que nos disse que Augusto tinha passado uma noite horrível e que acabava de ter uma convulsão que assustara o pai. Tiago e Luís esperaram o médico, que não tardou a aparecer e prometeu dar-lhes notícias quando se fosse embora.
Meia hora depois descia as escadas.
- Então, Dr. Tudoux, como está Augusto? - perguntaram os pequenos.
LUíS - Mas essas convulsões não são perigosas?
TIAGO - Nesse caso, o Dr. Tudoux não está preocupado?
LUíS e TIAGO - Estamos bem contentes! Obrigado, Dr. Tudoux. Vamos já tranquilizar os nossos primos e primas.
TIAGO - É, sim, senhor.
O Dr. Tudoux cumprimentou e foi embora. Eu fiquei tão admirado e humilhado que não pensei em me pôr a caminho senão depois de ouvir repetir por três vezes:
- Vamos, Cadichon, a caminho! Vamos, que temos pressa!
Desatei a correr até ao solar, onde nos esperavam as primas, primos, tios, tias e pais.
- Está melhor! - gritaram Tiago e Luís, começando a contar a conversa que tiveram com o Dr. Tudoux, sem se esquecerem do seu último conselho.
Eu esperava com viva impaciência a decisão da avó. Ela reflectiu um instante.
- É certo, meus queridos filhos, que Cadichon já não merece a nossa confiança; peço aos mais novos que nunca mais o montem; e à primeira tolice que ele faça, dá-lo-ei ao moleiro, que o empregará a carregar as sacas de farinha. Mas quero ainda experimentá-lo, antes de o reduzir a esse estado de humilhação; talvez ele se corrija. Veremos daqui a alguns meses.
Eu estava cada vez mais triste, humilhado e arrependido, mas não podia reparar o mal que tinha feito, senão à força de paciência, de resignação e de tempo. Começava a sofrer no meu orgulho e nos meus afectos.
As notícias de Augusto já foram melhores no dia seguinte; poucos dias depois entrava em convalescença e não se preocuparam mais com ele no solar. Eu é que nunca mais me esqueci, porque ouvia dizer constantemente ao pé de mim:
-Cuidado com o Cadichon! Lembra-te do Augusto!
O arrependimento
Desde o dia em que rasgara a cara de Augusto fazendo-o roçar pelas silvas, e em que o tinha atirado para o fosso de lama, era visível a mudança nas maneiras de toda a gente do solar. Até os próprios animais me tratavam com mais azedume, procurando evitar-me ou calando-se na minha presença, porque, como já disse a propósito do meu amigo Médor, nós outros, animais, compreendemo- nos, apesar de não falarmos como os homens; é que os movimentos dos olhos, das orelhas e da cauda substituem em nós as palavras. Eu bem sabia a causa desta transformação e irritava-me, quando, um dia em que estava sozinho como de costume e deitado junto dum pinheiro, vi aproximar-se de mim Henrique e Isabel, que se assentaram e continuaram a conversar:
- Parece-me que tens razão, Henrique - dizia Isabel - e partilho os teus sentimentos; também eu já não gosto de Cadichon desde que ele foi tão mau para Augusto.
HENRIQUE - E não foi só ao Augusto. Lembras-te da feira de Laigle, onde foi tão mau para o dono do burro sábio?
ISABEL - Lembro-me muito bem. Toda a gente se ria! Verificámos que ele mostrava grande inteligência mas nenhum coração.
HENRIQUE- É verdade. Humilhou aquele pobre burro e o dono. Disseram-me que o desgraçado se tinha ido embora sem ganhar nada, porque todos o escarneciam. A mulher e os filhos choravam; não tinham que comer.
ISABEL - E tudo isso por culpa do Cadichon. HENRIQUE - Decerto. Se não fosse ele, o pobre homem teria ganho para se sustentarem algumas semanas.
ISABEL - Lembras-te das maldadas que ele fazia em casa do antigo dono, e que nos contaram? Comia os legumes, partia os ovos, sujava a roupa branca. . . Decididamente, também já não gosto dele!
Isabel e Henrique levantaram-se e continuaram o seu passeio. Eu fiquei triste e humilhado. Lembrei-me primeiro de procurar uma pequena vingança, mas pensei depois que eles tinham razão; tinha-me sempre vingado. E para quê? Para ser sempre infeliz?
Principiei por dar cabo dos braços, dos rins e do estômago de uma das minhas donas. Se não tivesse tido a sorte de poder fugir, ter-me-iam talvez matado.
Fiz mil patifarias ao meu outro dono, que tinha sido sempre bom para mim enquanto eu não fui preguiçoso e mau; só depois é que ele começou a tratar-me mal e a fazer de mim um desgraçado.
Quando Augusto matou o meu amigo Médor, eu não reflecti que ele o fizera por inadvertência e não por malvadez. E eu perseguira Augusto e acabara por o atirar para o leito, doente, depois de o ter lançado a um pântano de lama.
E quantas maldades que eu não contei! Acabei, portanto, por não ter quem gostasse de mim e por viver só. Ninguém se chegava a mim para me consolar e acariciar. Os próprios meninos fugiam de mim.
Que devo fazer? - pensei eu tristemente. - Se pudesse falar, iria dizer a todos que me arrependo e que peço perdão a todos aqueles a quem fiz mal, que serei bom daqui por diante. . . Mas não posso fazer-me compreender, Não falo!
Deitei-me na erva e chorei, não como os homens, que derramam lágrimas, mas no fundo do coração; chorei, gemi, senti a minha desgraça e, pela primeira vez, arrependi-me seriamente.
Ah! se tivesse sido bom! Se, em vez de querer mostrar a minha inteligência, eu tivesse mostrado bondade e paciência! Se tivesse sido para todos o que fora para Paulina! Como todos gostariam de mim e como eu seria feliz!
Reflecti durante muito tempo e formei vários planos, uns bons, outros maus.
Decidi-me, por fim, a fazer- me bom, de maneira a reconquistar a amizade dos meus donos e dos meus companheiros. E fiz logo o ensaio das minhas boas resoluções.
Eu tinha nos últimos tempos um companheiro que tratava muito mal. Era um burro que tinham comprado para nele montarem os meus amos pequenos, que tinham medo de mim desde que eu estivera prestes a afogar Augusto; só os maiores é que não me receavam; e até, quando se fazia uma burricada, o Tiaguinho era o único que pedia para me montar, quando antigamente todos disputavam esse privilégio.
Desprezava esse companheiro; sempre que passava por ele atirava-lhe uma parelha de coices e mordia- lhe, se ele quisesse passar-me à frente. Assim, o pobre animal acabara por me ceder sempre o prineiro lugar e submeter-se às minhas vontades.
À noite, quando chegou a hora de recolher à cavalariça, encontrei-me à porta, precisamente no momento em que o meu companheiro ali chegava; ele deu-me lugar para eu passar primeiro; mas, como estava alguns passos adiante de mim, eu parei e fiz-lhe sinal para entrar. O pobre burro obedeceu-me a tremer, inquieto com a minha delicadeza e receando alguma partida, dentada ou coice. Ficou muito admirado por se encontrar são e salvo na sua manjedoura e ver que eu me colocava pacatamente na minha.
Vendo o seu espanto, disse-lhe:
- Meu irmão, fui mau para ti, mas nunca mais o serei; humilhei-te, maltratei-te, desprezei-te, mas nunca mais o farei, e daqui em diante espero que vejas em mim um amigo.
- Obrigado, irmão - respondeu-me o pobre burro, todo contente -; eu era infeliz e agora serei feliz; era triste, serei alegre; encontrava-me só, sentir-me-ei acompanhado e protegido. Mais uma vez obrigado, irmão; gosta de mim sempre, porque eu já há muito tempo que gosto de ti.
-Deixa também que te diga obrigado, irmão, porque fui mau e tu me perdoas; volto a ter melhores sentimentos e tu recebes-me; quero ser teu amigo e tu dás-me a tua amizade. Obrigado, irmão.
E ao mesmo tempo que comíamos a nossa ceia, íamos conversando. Era a primeira vez, porque eu nunca me tinha dignado falar-lhe. Encontrei-o melhor e mais prudente do que eu era, e pedi-lhe que me amparasse na minha nova vida; ele prometeu-mo com tanto afecto como modéstia.
Os cavalos, testemunhas da nossa conversa e da minha humildade desacostumada, olharam uns para os outros e para mim, com surpresa. Apesar de falarem baixo, ouvi-os dizer:
- É mais uma partida de Cadichon - disse o primeiro cavalo-; é porque quer fazer alguma ao seu companheiro.
- Pobre burro, tenho pena dele - disse o segundo cavalo. - Se lhe disséssemos que desconfie do seu inimigo?
- Agora não - disse o primeiro cavalo. - Silêncio! Cadichon é mau! Se nos ouve, vingar-se-á.
Chocou-me a má opinião que os dois cavalos formavam a meu respeito. O terceiro não tinha dito nada; metera apenas a cabeça por cima da baia, e observava-me atentamente. Olhei para ele com tristeza e humildade, mas ele não se mexeu e pareceu- me ficar surpreendido, a fitar-me sempre.
Fatigado e abatido pela tristeza, deitei-me na palha e notei que a minha cama era pior do que a do meu companheiro. Em vez de me zangar, como o teria feito noutro tempo, pensei que assim é que estava bem.
Castigam-me por ter sido mau - pensei eu - e fazem-mo sentir. Devo considerar-me ainda feliz por não me terem mandado para o moinho, onde me bateriam e dariam uma cama ainda pior.
Gemi durante algum tempo e acabei por adormecer. Quando acordei, vi entrar o cocheiro, que me fez levantar com um pontapé, desprendeu-me e pôs-me em liberdade; fiquei à porta e vi, com surpresa, escovar cuidadosamente o meu companheiro, pôr- lhe as minhas rédeas novas e o meu selim à inglesa, e levá-lo para o pátio do solar.
Inquieto e trémulo de comoção, segui-o; qual não foi o meu espanto e o meu desgosto quando vi o pequeno Tiago, o meu dono tão querido, montar o meu companheiro depois de alguns minutos de hesitação. Fiquei imóvel, aniquilado. O bom Tiago viu que eu ficava pesaroso, porque se aproximou de mim, fez-me uma festa na cabeça e disse-me tristemente:
- Pobre Cadichon! Vês o que fizeste? Já não posso montar-te porque os meus pais têm medo de que me atires ao chão. Adeus, pobre Cadichon! Mas descansa que ainda gosto de ti.
E partiu lentamente, seguido do cocheiro, que lhe dizia:
- Cuidado, Sr. Tiago, não fique aí ao pé do Cadichon, que ele pode morder-lhe e morder o burrico.
Olhe que ele é mau!
- Comigo nunca foi mau, e nunca o será respondeu Tiago.
O cocheiro bateu no burro, que começou a trotar
Perdendo-os eu de vista e ficando no mesmo lugar, cheio de desgosto. O que mais me apoquentava era a impossibilidade de dar a conhecer o meu arrependimento e as minhas boas resoluções. Não podendo suportar por mais tempo o peso horrível que me oprimia o coração, desatei a correr sem saber para onde ia. Corri por muito tempo, deitando abaixo sebes saltando valados, atravessando rios, e só parei diante de um muro que não podia deitar abaixo nem transpor.
Olhei em volta de mim. Onde estava? Julgava reconhecer aquela terra, sem, no entanto, poder adivinhar onde me encontrava. Caminhei a passo, encostado ao muro. Estava alagado em suor porque já tinha corrido durante muitas horas, a avaliar pelo andamento do sol.
O muro terminava pouco adiante; dei a volta e recuei cheio de surpresa e de terror. Estava a dois passos do túmulo de Paulina.
A minha dor foi ainda maior.
Paulina! Minha querida dona! - exclamei eu. Tu gostavas de mim porque eu era bom, e eu gostava de ti porque tu eras boa e infeliz. Depois de te ter perdido, encontrei outros donos tão bons como tu, que me trataram com amizade. Mas tudo mudou; o meu mau génio, o desejo de mostrar a minha inteligência e de satisfazer as minhas vinganças, destruíram a minha felicidade. Agora ninguém gosta de mim e, se morrer, ninguém me chorará.
Chorei amargamente e, pela centésima vez, censurei os meus próprios defeitos. Mas um pensamento consolador deu-me de repente coragem: Se voltar a ser bom, se fizer tanto bem como de mal fiz, talvez os meus donos me restituam a sua amizade, principalmente o meu Tiaguinho, que ainda gosta um pouco de mim. . . Mas, que devo fazer para lhes testemunhar que estou mudado e arrependido?
Enquanto reflectia no meu futuro, ouvi passos pesados aproximarem-se do muro, e uma voz de homem falar com mau humor:
- De que te vale chorar, palerma? As lágrimas não te darão pão, não é verdade? Que queres tu que eu faça se não tenho nada para te dar? Julgas acaso que tenho o estômago cheio? Eu que, desde ontem de manhã, só tenho dentro dele ar e poeira!. . .
- Nesse caso descansemos um quarto de hora à beira deste muro.
Deram a volta e vieram sentar-se ao pé do túmulo onde eu estava. Reconheci com surpresa o pobre dono de Milflores, a mulher e o filho, todos muito magros e extenuados.
O pai olhou para mim e, surpreendido, disse, depois de uma breve hesitação:
- Ou me engano muito, ou este burro é o que me fez perder mais de cinquenta francos na feira de Laigle. Patife! - disse ele dirigindo-se a mim. - Foste tu que causaste a morte do meu Milflores e me impediste de ganhar o sustento para mais de um mês! Vais pagarmas todas!
Levantou-se e aproximou-se de mim. Eu não me afastei, porque tinha a consciência de ter merecido a cólera daquele homem, que ficou espantado com a minha atitude.
-Não é ele, porque, se fosse, já se teria safado. . Bonito burro! - acrescentou, apalpando-me todo. - Se pudesse tê-lo em meu poder um mês, pelo menos, nem tu, meu rapaz, deixarias de comer, nem a tua mãe, nem eu.
Resolvi imediatamente seguir aquele homem durante alguns dias e sofrer tudo para reparar o mal que lhe tinha feito e ajudá-lo a ganhar algum dinheiro para ele e para a familia.
Quando se puseram a caminho, segui-os. Ao princípio não deram por mim, mas o pai, tendo-se voltado muitas vezes para trás e vendo-me sempre, quis enxotar-me. Eu recusei-me e continuei a segui-los.
- É curioso! - disse o homem. - O burro não se quer ir embora! Deixá-lo vir.
Ao chegarem à aldeia, entraram numa taberna e pediram de jantar e dormida, acrescentando lealmente que não tinham dinheiro nenhum.
- Já por cá há bastantes pobres, meu bom homem
- respondeu o estalajadeiro. - Vão pedir a outra freguesia.
Eu coloquei-me ao lado do estalajadeiro e pus-me a cumprimentá-lo até o fazer rir.
- O senhor tem um animal inteligente - disse ele, rindo-se. - Se quiser mostrar-nos as suas habilidades, dar-lhe-ei de comer e de dormir.
- Isso não se recusa - respondeu o homem -; daremos uma representação, mas quando tivermos alguma coisa no estômago. Em jejum não há probabilidades de se ter voz de comando.
- Entrem, entrem, vou mandá- los servir imediatamente. Madelon, minha velha, dá de jantar a três, não contando com o burrico.
Madelon serviu-Lhes uma sopa, que engoliram de um trago; depois umas couves, salada e queijo, que todos saborearam já com menos gula porque a fome estava acalmada.
A mim deram-me um molho de feno, que mal provei porque estava muito triste.
O estalajadeiro foi chamar toda a aldeia para me vir ver; o pátio encheu-se de gente e eu fui para o meio, levado pelo meu novo dono, que estava muito atrapalhado por não saber o que eu faria e se tinha recebido educação de burro sábio. Disse- me ao acaso:
- Cumprimenta a ilustre sociedade.
Eu cumprimentei para a direita e para esquerda, para trás e para diante, e todos me aplaudiram.
- E agora?! Que é que lhe vais ordenar! -disse-lhe a mulher em voz baixa. - Ele não sabe o que tu queres.
-Talvez tenha aprendido. Os burros sábios são muito inteligentes. Vou experimentar. . . Agora, Milflo res (este nome fez-me suspirar), vai dar um beijo na senhora mais bonita da sociedade.
Olhei para todos os lados, vi a filha do estalajadeiro, bonita morena de quinze a dezasseis anos, que estava por detrás de toda a gente. Corri para ela, afastei as pessoas que embaraçavam a passagem e passei o focinho na testa da pequena, que desatou a rir, e ficou muito contente.
- O tio Hutfer ensinou-lhe bem a lição – disseram algumas pessoas, rindo-se.
- Palavra de honra que não - respondeu Hutfer -, nunca pensei que ele fizesse uma coisa destas.
- Agora, Milflores, - disse o homem -, vai procurar alguma coisa, seja o que for, que puderes encontrar, e leva-a ao homem mais pobre da sociedade.
Dirigi-me para a sala onde acabavam de jantar, agarrei um pão e, com ele em triunfo, entreguei-o ao meu novo dono. Risada geral, toda a gente aplaudiu, e o meu amigo exclamou:
- Não foi você que o ensinou, tio Hutfer; este burro é realmente sábio e aproveitou bem as lições do dono.
- Vai deixá-lo com o seu pão? - perguntou alguém da multidão.
- Ah! isso não - disse Hutfer. - Deixe cá ver isso, homem do burro.
- A verdade é que nada disto foi combinado, estalajadeiro; e no entanto, o meu burro disse a verdade, fazendo de mim o homem mais pobre da sociedade, porque desde ontem de manhã que nem eu, nem a minha mulher, nem o meu filho, tínhamos comido um bocado de pão.
- Deixe ficar o pão, meu pai - disse Henriqueta Hutfer. - Não nos falta a nós de comer, e o bom Deus nos dará sempre.
- Tu és sempre assim, Henriqueta. Se a gente te desse ouvidos, daríamos tudo o que temos - disse o pai.
- Nós não somos muito pobres, meu pai; o bom Deus abençoou sempre as nossas colheitas e a nossa casa.
-Visto isso. . . se assim o queres. . . ele que fique com o pão.
Ao ouvir estas palavras, fui direito a ele, cumprimentei-o profundamente e fui depois agarrar com os dentes uma terrina vazia e apresentei-a aos circunstantes para que deitassem a sua esmola. Quando acabei a minha volta, a terrina estava cheia. Fui esvaziá-la nas mãos do meu dono, levei-a para onde estava quando a agarrei, cumprimentei e retirei-me gravemente, no meio dos aplausos da sociedade.
Estava contente e consolado, e mais me ammei às minhas boas resoluções. O meu novo dono parecia encantado. Ia a retirar-se, quando todos o rodearam e lhe pediram que desse outra representação no dia seguinte. Ele prometeu com entusiasmo e foi descansar para a sala, com sua mulher e filho.
Quando se viram sós, a mulher olhou para todos os lados e, não me vendo senão a mim com o focinho pousado no peitoril da janela, disse ao marido em voz baixa:
- É bem singular o que nos sucede com este burro que encontrámos num cemitério, que nos segue e nos faz ganhar dinheiro! Quanto tens tu aí?
- Ainda não contei - respondeu o homem -; ajuda-me. Toma lá um punhado de moedas.
- Oito francos e quatro sous - disse a mulher depois de ter contado.
- E eu tenho sete e cinquenta. . . Isto faz?. . . Quanto é que faz, mulher?
MULHER - Quanto é que faz? Oito e quatro são treze, mais sete, vinte e quatro, mais cinquenta, faz sessenta.
HOMEM - Estúpida! É lá possível que eu tenha sessenta francos na mão? Anda cá tu, rapaz; visto que estudaste, deves saber.
RAPAZ - Que diz, meu pai?
HOMEM - Há oito francos e quatro sous de um lado, e sete francos e cinquenta do outro.
RAPAZ (todo lampeiro) - Oito e quatro, doze, e vai um, mais sete, vinte, e vão dois; mais cinquenta. . . cinquenta e dois, e vão cinco. . .
HOMEM - Imbecil. Então onde estão os cinquenta? se eu tenho oito numa mão e sete na outra?
RAPAZ - E os cinquenta, pai?
HOMEM (imitando-o) - E os cinquenta, pai? Tu não vês, grande estúpido, que os cinquenta são cêntimos, e os cêntimos não são francos?
RAPAZ - Não serão, mas não deixam de ser cinquenta.
HOMEM - Cinquenta quê? Que grande imbecil!
Se eu te der cinquenta bofetadas, tu chamas a isso cinquenta francos?
RAPAZ - Não, meu pai, mas não deixariam de ser cinquenta.
HOMEM - Toma lá uma por conta, grande animal.
E deu-lhe uma bofetada que reboou em toda a casa.
O rapaz começou a chorar. Eu estava irritado. Que culpa tinha o pequeno de ser estúpido?
Este homem não merece a minha compaixão - pensei eu -; graças a mim tem com que viver oito dias. Quero fazer-lhe ganhar ainda o espectáculo de amanhã, e depois voltarei para casa dos meus donos.
Talvez me recebam com mais amizade.
Retirei-me da janela e fui comer cardos frescos que havia à beira de um valado; depois, entrei na cavalariça da estalagem, onde encontrei já muitos cavalos que ocupavam os melhores lugares. Fui meter-me modestamente a um canto, onde reflecti à minha vontade, porque ninguém me conhecia e não se importavam, portanto, comigo. A noitinha, Henriqueta Hutfer entrou na cavalariça, verificou se faltava alguma coisa e, avistando-me no canto húmido e escuro, sem manjedoura, chamou um dos criados.
- Fernando - disse ela -, dê palha a este pobre burro para que não durma na terra húmida; deite-lhe aveia e ferio e veja se ele tem sede.
FERNANDO - A menina Henriqueta, por este andar, arruína o seu pai. Que lhe importa que este animal durma sobre a terra dura ou sobre uma boa cama de palha?
HENRIQUETA - Quando se trata de ti, não dizes essas coisas, Fernando; quero que todos sejam bem tra tados, quer sejam animais, quer sejam homens.
FERNANDO (maliciosamente) - Quantos homens não desejariam passar por animais!
HENRIQUETA (sorrindo) - É por isso que se diz: todos comem palha. . .
FERNANDO - Não a menina Henriqueta, que é inteligente e maliciosa como um macaco!
HENRIQUETA (rindo) - Obrigada pelo cumprimento, Fernando! Se eu sou um macaco, que serás tu?
FERNANDO - Ah! menina, eu não disse que a menina era um macaco; se me expliquei mal é porque sou um burro.
HENRIQUETA - Um burro, não digo, mas um falador que só dá à língua quando devia trabalhar, isso sim. Faz a cama ao burro - acrescentou num tom sério - e dá-lhe de beber e de comer.
E saiu. Fernando resmungou qualquer coisa e fez o que a patroa lhe ordenara, não sem me dar com a forquilha, atirando-me de mau humor com um molho de feno e um balde de água. Como não estava preso, podia muito bem ter-me safado, mas preferi sofrer mais e dar no dia seguinte, para acabar uma boa obra, a minha segunda e última representação.
Efectivamente, no dia seguinte vieram buscar-me e o meu dono levou-me a uma grande praça que estava cheia de gente, porque o tambor da aldeia tinha andado a tamborilar todo o santo dia, gritando:
Esta noite, grande representação do burro sábio Milflores; às oito horas na praça em frente da Câmara e da Escola.
Recomecei as habilidades da véspera, acrescentando danças executadas com graça; valsei, polquei, e fiz a Fernando a partida inocente de o obrigar a valsar zurrando diante dele e apresentando-Lhe a pata diantei ra como a convidá-lo. A princípio, recusou-se, mas como gritassem de todos os lados:
- Sim, sim, valsa com o burro " ele saltou para a arena rindo-se e começou a saltar, o que eu imitei o melhor que pude.
Por fim, como me sentisse fatigado, deixei Fernando a saltar sozinho, e fui, como na véspera, procurar uma terrina; como não encontrasse nenhuma, agarrei com os dentes num cesto sem tampa e dei a volta, apresentando o cesto a todos os presentes. Não tardou a encher-se e eu a despejá-lo na blusa daquele que julgavam ser o meu dono; continuei o peditório e, depois de todos me terem dado, cumprimentei a sociedade e esperei que o meu dono contasse o dinheiro que Lhe tinha feito ganhar e que montava a mais de trinta e quatro francos. Como julgasse que a minha antiga falta estava bem reparada, e que podia voltar para casa, cumprimentei o meu dono e, rompendo por entre a multidão, parti a trote.
- Olhe o seu burrico que foge! - disse Hutfer, o estalajadeiro.
- E corre a bom correr! - disse Fernando. O meu pretendido dono voltou-se, olhou para mim com inquietação e chamou-me:
- Milflores! Milflores! mas, vendo-me continuar a trotar, ouvi-o exclamar num tom de piedade:
- Agarrem-no, por favor! É o meu ganha-pão. Se mo trouxerem, dou ainda outra representação.
- Onde é que arranjou este burro? -perguntou um homem chamado Clouet. - Desde quando é que o tem?
- Tenho-o. . . desde que é meu - respondeu o meu falso dono, um tanto embaraçado.
- Bem sei - replicou Clouet -; mas desde quando é que é seu?
O homem não respondeu.
- É porque me parece reconhecê-lo - acrescentou Clouet -; parece-se muito com Cadichon, o burro do solar da Herpinière. Ou eu me engano muito, ou é Cadichon.
Eu tinha parado; ouvia murmúrios; via o embaraço do meu dono, quando, no momento em que menos se esperava, ele desatou a correr para o lado oposto ao que eu tinha tomado, seguido pela mulher e pelo filho.
Alguns quiseram correr atrás dele, mas muitos disseram que era inútil porque eu tinha fugido e o ho mem levava o dinheiro que Lhe pertencia e que eu lhe tinha feito ganhar honestamente.
- E quanto a Cadichon - disseram -, ele não se enganará no caminho e ninguém o agarrará à força.
A multidão dispersou e cada um recolheu a casa. Eu recomecei a correr, esperando chegar a casa dos meus verdadeiros donos antes da noite; mas era longe e estava fatigado, e vi-me obrigado a descansar à distância de uma légua do solar. Tinha anoitecido, as cavalariças deviam estar fechadas, e decidi, por isso, deitar-me num pinhal à beira dum regato.
Mal me estendera sobre o musgo, ouvi caminhar com precaução e falar baixo.
Olhei, mas não vi nada, porque a noite estava muito escura. Pus-me à escuta e ouvi a seguinte conversa.
Os ladrões
-Ainda não está bastante escuro, Finório; será mais prudente esperarmos neste pinhal.
- Mas tu não vês, Andarilho, que precisamos de um pouco de luz para reconhecermos o local? Olha que ainda não estudei bem os pontos de entrada.
- Tu nunca estudas nada - replicou Andarilho. Nem sei porque é que os companheiros te puseram o nome de Finório. Eu cá por mim ter-te-ia chamado Palerma.
FINÓRIO - Mas eu é que tenho sempre as boas ideias.
ANDARILHO - Boas ideias, conforme! Que é que vamos fazer ao solar?
FINÓRlO - Que vamos fazer? Roubar a horta e o pomar! Eis o nosso trabalho.
ANDARILHO - E depois?
FINÓRIO - Como, depois?! Depois faremos um molho disso tudo, atiramo-lo por cima do muro e vamos vendê-lo à feira de Moulins.
ANDARILHO- Por onde entrarás, imbecil?
FINÓRIO - Por cima do muro, com uma escada. Ou julgavas que ia pedir a chave da porta?
ANDARILHO - Vá de piadas! O que eu te pergunto é se marcaste o lugar onde devemos trepar ao muro.
FINÓRIO - Não marquei, e é por isso que queria ir à frente, em reconhecimento.
ANDARILHO - E se te virem?
FINÓRIO - Se me virem, direi. . . que ia pedir um copo de vinho e um pedaço de pão.
ANDARILHO - É tolice. Tenho outra ideia. Conheço o local; há um sítio onde o muro está arruinado. Pondo os pés nos buracõs, chegarei ao alto do muro, conseguirei uma escada e passo-a para o teu lado, porque te custa muito a trepar.
FINÓRIO - Tens razão. . .
ANDARILHO - Mas, se aparece alguém?
FINÓRIO- Idiota! Se aparecer alguém, comigo se há-de haver!
ANDARILHO - Que lhe farás?
FINÓRIO - Se for um cão, degolo-o; é para isso que vou armado com a minha faca bem afiada.
ANDARILHO - E se for um homem?
- Um homem - disse Finório, coçando a orelhaé um caso sério. . . Não se pode matar um homem como quem mata um cão. Se fosse por alguma coisa que valesse a pena. . . mas por legumes! E então esse solar que está cheio de gente!
ANDARILHO - Mas que é que farás?
FINÓRIO - Safo-me; é mais seguro.
ANDARILHO - Não passas de um cobarde. Se vires ou ouvires alguém, chama-me, que eu tratarei dele.
FINÓRIO - Se é esse o teu gosto. . . Eu não penso do mesmo modo.
ANDARILHO - Está tudo combinado. Esperemos a noite e vamos até junto do muro da horta; tu ficas cá fora, para avisares, se vier alguém; eu trepo ao muro, passo-te a escada, e vais ter comigo.
- Combinado - disse Finório.
Voltou-se inquieto, pôs-se à escuta e disse em voz baixa:
- Ouvi barulho ali atrás. Estará lá alguém?
- Quem é que viria agora ao pinhal? - respondeu Andarilho. - Estás sempre com medo. Deve ser algum sapo ou algum lagarto.
Calaram-se, e eu não fiz o menor movimento, pensando no que poderia fazer para impedir os ladrões de entrarem na horta e para agarrá-los. Não podia prevenir ninguém, nem sequer defender a entrada de casa. No entanto, depois de ter reflectido muito, acabei por tomar um partido que podia muito bem impedir os ladrões de agir e, até, fazê-los prender. Esperei que eles partissem para me pôr também a caminho, pois não queria mexer-me enquanto pudessem ouvir-me.
A noite estava escura e eu sabia que eles não podiam andar com ligeireza. Tomei por um caminho mais curto e, saltando sebes e valados, cheguei muito antes deles ao muro da horta.
Conhecia o ponto arruinado de que falara Andarilho, e encostei-me ao muro num sítio onde não podiam ver-me.
E esperei um quarto de hora. Ouvi então passos silenciosos e um vozear baixo; os passos aproximaram-se com precaução: uns dirigiam-se para mim, eram os de Andarilho; os outros afastavam-se para a extremidade do muro, do lado da porta de entrada, eram os de Finório.
Eu não via, mas ouvia tudo. Quando o Andarilho chegou ao sítio onde as pedras caídas tinham deixado buracos, começou a trepar, tacteando com os pés e com as mãos. Eu mal respirava; ouvia e reconhecia todos os seus movimentos. Logo que o vi subido à altura da minha cabeça, avancei para o muro, agarrei-o por uma perna e puxei-o com força. Num abrir e fechar de olhos, estava no chão, aturdido pela queda e ferido pelas pedras; para o impedir de gritar e chamar pelo companheiro, dei-lhe uma patada na cabeça, que o prostrou sem sentidos. Fiquei muito quieto ao pé dele, pensando que o companheiro viria ver o que se passava. Não me enganei, porque vi daí a pouco Finório caminhar com precaução. Andava e parava, punha-se à escuta. continuava a andar. Chegou, assim, próximo de Andarilho; mas como olhava para o ar, não o via estendido no chão, sem sentidos.
-Tens aí a escada?. . . Posso subir?. . . - dizia ele em voz baixa.
O outro, naturalmente, não lhe respondia. Vi que o homem não se decidia a trepar e receei que ele se afastasse. Era tempo; saltei sobre ele e, agarrando-o pela camisa, deitei-o ao chão, dando-lhe também uma patada na cabeça. Obtive o mesmo êxito, porque ficou sem sentidos, ao lado do amigo. Como já não tivesse nada a perder, comecei a zurrar com quantas forças tinha; corri à casa do jardineiro, às cavalariças, ao solar, zurrando com tal violência que toda a gente despertou. Alguns dos homens mais valentes apareceram com armas e lanternas; levei-os comigo para junto dos dois ladrões estendidos ao pé do muro.
- Dois homens mortos! Que quer dizer isto? - dise o pai de Pedro.
PAI DE TIAGO - Não estão mortos, respiram. JARDINEIRO - Ouvi gemidos.
COCHEIRO - Sangue! Uma ferida na cabeça!
PAI DE PEDRO - Têm ambos o mesmo ferimento! Parece uma patada de cavalo ou de burro!
PAI DE TIAGO - É verdade. Têm na testa a marca de uma ferradura.
COCHEIRO - Que querem os senhores que se faça destes homens?
PAI DE PEDRO - É preciso levá-los para casa, e ir no carro chamar o médico. Enquanto ele não vem, vamos ver se voltam a si.
O jardineiro trouxe uma padiola, onde deitaram os feridos, levando-os para uma sala que servia de arrecadação no Inverno. Os ladrões continuavam desmaiados.
- Não conheço estas caras - disse o jardineiro, depois de os ter examinado atentamente com a luz.
- Talvez tragam consigo documentos que provem a sua identidade - disse o pai de Luís. - Mandaríamos dizer às suas familias que eles estão aqui feridos.
O jardineiro remexeu-lhes nos bolsos, tirou alguns papéis, que entregou ao pai de Tiago, em seguida duas facas muito afiadas e pontiagudas e um grande molho de chaves.
- Ah Ah Isto mostra claramente qual o estado civil destes cavalheiros! - exclamou ele. - Vinham roubar e talvez assassinar.
- Começo a compreender - disse o pai de Pedro.
- A presença de Cadichon e os seus zurros explicam tudo. Esta gente vinha para roubar. Cadichon, com o seu instinto habitual, adivinhou-o, lutou com eles, rachou-Lhes a cabeça e pôs-se depois a zurrar para nos dar aviso.
- Deve ser isso - disse o pai de Tiago. - Pois pode gabar-se de nos ter prestado um enorme serviço, este bom Cadichon. Anda cá, meu velho, restituímos-te a nossa afeição.
Eu estava contente, passeava de um lado para o outro enquanto tratavam de Finório e de Andarilho. O Dr. Tudoux chegou, ainda os ladrões não tinham recuperado os sentidos. Examinou as feridas.
- Duas pancadas aplicadas com gana -disse ele. - Vê-se distintamente a marca de uma ferradura e. . . Ah! - disse ele, avistando-me. - Não seria uma nova maldade daquele animal, que está a olhar para nós como se nos compreendesse?
- Agora não houve malvadez, mas um óptimo serviço, revelando uma grande inteligência - respondeu o pai de Pedro. - Esses homens são ladrões; veja estas facas e estes papéis que tinham nos bolsos.
E começou a ler:
- Palácio Herpe. Muita gente. Difícil roubar. Horta fácil. Legumes e frutos. Muro baixo.
- Presbitério. Abade velho, sem armas. Criada surda e velha. Pode roubar-se durante a missa.
- Castelo de Sourval. Proprietário ausente; mulher só no rés-do-chão; criado no segundo andar; bons objectos de prata. Matar se gritarem.
- Castelo de Chanday. Cães de guarda vigorosos a envenenar; ninguém no rés-do-chão. Pratas, galeria de curiosidades ricas e jóias. Matar, se aparecer alguém.
- Como se vê - continuou o pai do Pedro - estes homens são bandidos que vinham para devastar a horta, à falta de melhor. Enquanto lhes presta os seus serviços, vou mandar prevenir o oficial da guarda.
O Dr. Tudoux abriu o estojo, tirou uma lanceta e tratou os dois ladrões, que não demoraram muito a abrir os olhos, e ficaram aterrados vendo-se cercados de gente e num quarto do solar. Quando se viram mais sossegados, quiseram falar.
- Silêncio, patifes - disse-lhes o Dr. Tudoux com calma e lentidão. - Silêncio! Não precisamos dos vossos discursos para sabermos quem sois e o que vínheis aqui fazer.
O Finório levou a mão ao bolso do casaco e viu que nem os papéis nem a faca ali estavam já, Olhou para o Andarilho com um olhar sombrio e disse-lhe em voz baixa:
-Eu bem te dizia que tinha ouvido barulho no pinhal.
- Cala-te - disse o Andarilho no mesmo tom de voz. - Olha que podem ouvir-nos! Devemos negar tudo.
FINÓRIO - Mas eles têm os papéis!
ANDARILHO - Dirás que os encontrámos.
FINÓRIO- E as facas?
ANDARILHO - As facas também! O que é preciso é audácia.
FINÓRIO - Quem foi que te deu a martelada na cabeça?
ANDARILHO - Eu sei lá! Não tive tempo de ver nem de ouvir! Vi-me deitado ao chão e ferido num abrir e fechar de olhos.
FINÓRIO - A mim aconteceu-me o mesmo. O que é preciso é saber se nos viram trepar ao muro.
ANDARILHO - Vamos ver. Aqueles que nos deitaram ao chão hão-de vir dizer como o fizeram!
FINÓRIO - É verdade. Até lá é preciso negar tudo. Combinemos os pornenores para não nos contradizermos.
Primeiro: vínhamos juntos. Encontrámos esses...
- Separem esses homens - disse o pai de Luís -, para que eles não combinem as histórias que nos irão contar.
Dois homens agarraram no Finório, enquanto outros dois se apoderavam do Andarilho, e, apesar da sua resistência, ataram-nos de pés e mãos e levaram o Andarilho para outra sala.
A noite ia adiantada; esperava-se com impaciência o oficial, que chegou ao amanhecer, escoltado por quatro guardas, porque Lhe haviam dito que se tratava da prisão de dois ladrões. Os pais dos meus pequenos donos contaram-lhes o que tinha sucedido e mostraram-lhes os papéis e as facas encontradas nos bolsos dos ladrões.
- Este género de facas - disse o oficial – indica ladrões perigosos, que assassinam para roubar, o que é fácil de verificar lendo os seus papéis. Não me surpreenderia se estes dois homens fossem um tal Finório e um tal Andarilho, ladrões muito perigosos, fugidos da prisão e que são procurados pela polícia de muitos departamentos onde fizeram roubos audaciosos. Vou interrogá-los separadamente e podem, se quiserem, assistir aos interrogatórios.
Dizendo isto, entrou na sala para onde tinham levado Finório. Olhou para ele e disse:
-Bons dias, Finório! Então deixaste-te apanhar?
Finório estremeceu, corou, mas não respondeu.
- Então perdeste a língua, Finório? - disse o oficial. - Pois no último processo tinha-la bem comprida.
- A quem está a falar o senhor. respondeu o Finório, olhando para todos os lados. - Só eu estou aqui. . .
OFICIAL - Bem sei que só estás tu aqui; pois é a ti que eu falo.
FINÓRIO - Não sei porque me trata por tu; eu não o conheço!
OFICIAL - Mas conheço-te eu. És o Finório, fugido da prisão, onde estavas condenado por agressão e roubo.
FINÓRIO - O senhor está enganado. Não sei a quem se refere.
OFICIAL - Então quem é você? Donde vem? Para onde é que ia?
FINÓRIO - Sou negociante de carneiros e ia à feira de Moulins comprar anhos.
OFICIAL - Ah! sim? E o seu companheiro? Também é negociante de carneiros?
FINÓRIO - Não sei. Tínhamo-nos encontrado momentos antes de sermos atacados por um bando de ladrões.
OFICIAL - E estes papéis que tinham nos bolsos? FINÓRIO - Não sei. Encontrámo-los perto daqui e nem tivemos tempo de os ler.
OFICIAL - E as facas?
FINÓRIO - As facas estavam com os papéis.
OFICIAL - A noite devia estar muito escura e vocês viram logo esses objectos. . .
FINÓRIO - O acaso. O meu companheiro pôs-Lhe os pés em cima; abaixou-se e eu ajudei-o. Foi às apalpadelas que encontrámos os papéis e as facas, que dividimos pelos dois.
OFICIAL - Pois fizeram mal em dividir. É o bastante para os meter na cadeia.
FINÓRIO - O senhor não tem o direito de meter na cadeia gente honrada. . .
OFICIAL - Vamos a ver. Até logo, Finório. Não se incomode - acrescentou, vendo que Finório se ia a levantar do banco. - Guardas, vigiem bem este cavalheiro a fim de que lhe não falte nada. E não o percam de vista, porque é um finório que já nos escapou mais de uma vez.
O oficial saiu, deixando Finório inquieto e apreensivo.
- Oxalá que o Andarilho diga o mesmo que eu disse, Vendo entrar o oficial,
Andarilho sentiu-se perdido, mas retomou coragem e conseguiu ocultar a sua inquietação. Olhou com um ar indiferente para o oficial, que o examinava atentamente.
- Como é que se encontra aqui ferido e amarrado? - disse o oficial.
- Não sei - respondeu Andarilho.
OFICIAL - Mas sabe com certeza quem é, para onde ia e como foi ferido?
ANDARILHO - Lá isso, quem sou, sei-o bem, e também para onde ia; mas não sei quem me atacou tão brutalmente.
OFICIAL- Procedamos com ordem. Quem é você? ANDARILHO - Que tem o senhor com isso? Não tem o direito de perguntar às pessoas que passam quem elas são.
OFICIAL - Tenho tanto direito como de pôr as algemas aos que não querem responder-me, e levá-los para a cadeia. Recomeço: quem é você?
ANDARILHO - Sou negociante de vinhos.
OFICIAL - Como se chama?
ANDARILHO - Roberto em toda a parte.
OFICIAL- Para onde ia?
ANDARILHO - Sem destino. Comprar vinho onde o houvesse.
OFICIAL - Não andava só, não é verdade? Tinha um companheiro.
ANDARILHO - É o meu sócio. Fazíamos negócios em comum.
OFICIAL- Trazia alguns papéis nos bolsos? Sabe o que esses papéis continham?
O Andarilho olhou para o oficial.
Leu com certeza os papéis - pensou ele -; quer apanhar-me, mas vou ser mais esperto do que ele.
E disse em voz alta:
- Se sei! Então não havia de saber? Papéis perdidos, sem dúvida, por bandidos e que eu ia entregar à polícia da cidade.
OFICIAL - Onde encontrou esses papéis?
ANDARILHO - Na estrada, eu e o meu companheiro; ambos os lemos e, se caminhávamos de noite era para os entregar mais depressa.
OFICIAL - E as facas?
ANDARILHO - As facas foram compradas por nós para nos defendermos, porque nos disseram que andavam por aqui ladrões.
OFICIAL - E quem foi que o feriu, a si e ao seu companheiro?
ANDARILHO - Precisamente os ladrões, que nos atacaram, sem que conseguíssemos vê-los.
OFICIAL - É curioso. O Finório contou as coisas de outro modo.
ANDARILHO - É que o Finório teve tanto medo que perdeu a memória; não deve acreditar no que ele diz.
OFICIAL - Nem no que diz ele nem no que diz você, amigo Andarilho. Agora é que o reconheço; você traiu-se.
Andarilho viu que tinha feito tolice, reconhecendo que o seu companheiro se chamava Finório. Era uma alcunha que lhe tinham posto na prisão para zombarem da sua falta de esperteza.
Quanto ao Andarilho, era uma alcunha que lhe tinham posto por ele andar sempre de um lado para o outro.
Não havia meio de negar; mas como também não queria confessar, tomou o partido de encolher os ombros, dizendo:
- Nem que eu conheça algum Finório! Não era difícil adivinhar que o senhor falava do meu companheiro; julguei que lhe chamava Finório em ar de troça.
- Está bem. Dá-lhe as voltas que quiseres - disse o oficial. - Andavas então a comprar vinho com o teu companheiro, encontraste os papéis na estrada, ias entregá-los à polícia depois de os ter lido, compraram as facas para se defenderem dos ladrões e foram atacados por esses mesmos ladrões?
ANDARILHO - É isso mesmo. A minha verdade é uma.
OFICIAL - A tua verdade, não; a tua história, porque o teu companheiro disse precisamente o contrário.
-Que lhe disse ele? -perguntou o Andarilho, muito inquieto.
- É inútil que o saibas por enquanto. Quando voltares para a prisão, ele to dirá.
E o oficial saiu, deixando o Andarilho num estado de raiva e inquietação fáceis de imaginar.
- Doutor, estes homens estão em estado de caminhar até à cidade? - perguntou o oficial ao dr. Tudoux.
- Não os obrigando a andar depressa, creio que poderão - respondeu o Dr. Tudoux com lentidão. Mas se caírem pelo caminho, podem mandar buscar um carro. Õ que não quer dizer que não possam morrer daqui a três ou quatro dias, porque a patada do burro fez-lhes muito mal à cabeça.
O oficial ficou atrapalhado. É verdade que os presos não lhe inspiravam compaixão; mas era bom e não queria fazê-los sofrer sem necessidade. O Sr. Ponchat, Pai de Pedro e Henrique, vendo-o embaraçado, propôs-lhe atrelar o cavalo ao carro, o que foi aceite pelo oficial, que agradeceu. Logo que trouxeram o carro, meteram dentro o Finório e o Andarilho, cada um no meio de dois guardas. Além disso, tinham tomado a precaução de os prender pelos pés, a fin de evitar que eles saltassem do carro. O oficial ia a cavalo e não perdia de vista os dois presos. Não tardaram a desaparecer e eu fiquei só diante da casa, comendo erva e esperando com impaciência a saída dos meus donos pequenos, principalmente do meu Tiaguinho, que desejava tornar a ver; o serviço que acabava de prestar devia ter feito perdoar as minhas maldades passadas.
Logo que amanheceu completamente e que todos se levantaram, se vestiram e almoçaram, alguém apareceu no alto da escadaria. Eram os pequenos. Todos correram para mim e me fizeram festas. Mas de todas as carícias foram as do meu Tiaguinho as que mais me sensibilizaram.
- Meu bom Cadichon - dizia ele -, até que enfim, voltaste! Estava tão triste com a tua ausência! Vês, meu querido Cadichon, como todos gostamos de ti?
CAMILA - É verdade que ele voltou muito bonzinho.
MADALENA - Já não tem aquele ar insolente dos últimos dias.
ISABEL - Já não morde no seu companheiro nem nos cães de guarda.
LUÍS - E deixa-se selar e pôr o freio com toda a paciência.
HENRIQUETA - Já não come os ramalhetes que eu trago na mão.
JOANA- Nem escouceia quando o montamos.
PEDRO - E já não corre atrás do meu pónei para lhe morder a cauda.
TIAGO - E salvou todos os legumes e frutas, fazendo com que os ladrões fossem apanhados.
HENRIQUE - Até lhes partiu a cabeça com as patas.
ISABEL - Mas, como é que ele fez para apanhar os ladrões?
PEDRO - Não se sabe ao certo como ele fez, mas fomos avisados pelos seus zurros. O pai, os tios e alguns criados apareceram e viram Cadichon a passear de um lado para o outro, galopando inquieto de casa para o jardim; seguiram-no, alumiados por lanternas, e ele levou-os até ao muro da horta, onde encontraram os dois homens desmaiados, e viram que eram ladrões.
TIAGO - Como souberam que eram ladrões? Então os ladrões têm caras diferentes das outras pessoas?
ISABEL - Com certeza que não são caras como nós! Eu já vi um bando de ladrões todos de chapéus pontiagudos, capas castanhas e caras de patifes, com bigodes enormes.
- Onde é que os viste? -perguntaram todos ao mesmo tempo.
ISABEL - Vi-os, no Inverno passado, no teatro de Franconi.
HENRIQUE - Ah Ah Ah Que tolice Eu julgava que eram ladrões a valer, que tinhas encontrado numa das tuas viagens, e já estava admirado de não ouvir dizer nada ao tio e à tia. . .
ISABEL (melindrada) - Decerto que eram ladrões verdadeiros, pois até os guardas se bateram com eles e mataram-nos ou prenderam-nos. E olhem que não é coisa para a gente se rir. Eu tive muito medo. Até houve guardas feridos!
PEDRO - Ah Ah Ah Que tola que tu és O que viste é o que se chama uma comédia, que é representada por homens pagos para desempenharem o seu papel todas as noites.
ISABEL - Como todas as noites?! Se os mataram a todos!
PEDRO - Pois tu não vês que se fingem mortos ou feridos, mas que estão tão vivos como nós?. . .
ISABEL - Então como é que o pai e os tios reconheceram que eram ladrões?
PEDRO - Porque lhes encontraram nos bolsos facas para matar homens, e. . .
TIAGO (interrompendo-o) - Como são as facas para matar homens?
PEDRO - Ora! Como todas as facas.
TIAGO - Então como é que sabes que eram para matar homens? Talvez fossem para cortar o pão.
PEDRO - Estás-me a maçar, Tiago! Queres compreender sempre tudo e interrompeste-me quando ia dizer que se encontraram papéis onde estava escrito que vinham roubar os nossos legumes, que matariam o Sr. Abade e muitas outras pessoas.
TIAGO - E porque é que não nos queriam matar a nós?
ISABEL- Porque sabiam que o pai e os tios são muito corajosos, que possuem pistolas e espingardas e todos nós os auxiliaríamos.
HENRIQUE - Tu havias de lhes prestar um grande auxílio, se viessem atacar-nos!
ISABEL- Seria pelo menos tão corajosa como tu e saberia bem puxar pelas pernas aos ladrões para os impedir de matar o pai.
CAMILA - Não comecem a discutir, e deixem o Pedro continuar a contar o que ouviu dizer.
ISABEL - Não precisamos de Pedro para saber o que já sabemos.
PEDRO- Então, porque é que me perguntas como é que o pai reconheceu os ladrões?
- Sr. Pedro, Sr. Henrique! O Sr. Augusto procura-os -disse o jardineiro, que ia levar os legumes à cozinha.
- Onde está? - perguntaram.
- No jardim - respondeu o jardineiro -; não se atreveu a vir até ao solar com medo de se encontrar com Cadichon.
Eu suspirava e pensava que o pobre Augusto tinha motivo para me recear desde o dia triste em que estive quase a afogá-lo na lama, depois de o ter feito arranhar-se nas silvas.
Devo-lhe uma reparação, disse comigo; como hei-de fazer para lhe prestar um serviço e mostrar-lhe que já não tem motivo para me recear?
A reparação
Enquanto procurava em vão o que é que poderia fazer para testemunhar o meu arrependimento a Augusto, os pequenos aproximaram-se do lugar onde eu reflectia enquanto pastava. Vi que Augusto ficava a certa distância de mim e me olhava desconfiado.
PEDRO - Hoje há-de estar calor. Úm longo passeio não será nada agradável. Ficamos melhor no parque, à sombra.
AUGUSTO - Pedro tem razão, tanto mais que, depois da doença que me ia matando, fiquei muito fraco e canso-me com facilidade.
HENRIQUE - O Cadichon é que foi o causador da tua doença. Ainda lhe queres mal?
AUGUSTO - Não creio que o tenha feito de propósito; teve talvez medo de alguma coisa que viu no caminho. Foi o terror que lhe fez dar um salto e projectar-me naquela terrível fossa. Já vês que não posso detestá-lo, mas. . .
PEDRO - Mas, quê?
AUGUSTO (corando) - Mas prefiro nunca mais o montar.
A generosidade daquele pobre rapaz comoveu-me e aumentou o desgosto que eu sentia por o ter maltra tado.
Camila e Madalena propuseram fazer cozinhados; os pequenos tinham construído um forno no seu jardim e aqueciam-no com lenha que eles mesmos iam apanhar. A proposta foi aceite com alegria e os pequenos foram buscar aventais de cozinha, voltando preparados para ajudar aos cozinhados. Augusto e Pedro trouxeram a lenha.
Antes de acenderem o forno, reuniram-se para combinar o que havia de ser o almoço.
- Eu farei uma fritada - disse Camila.
MADALENA - Eu, café com leite.
ISABEL- Eu, costeletas.
PEDRO - E eu, vitela frita.
HENRIQUE - Eu, uma salada com batatas.
TIAGO - Eu, morangos com leite.
LUíS - Eu, fatias de pão com manteiga.
HENRIQUETA - E eu darei açúcar areado.
JOANA - E eu, cerejas.
AUGUSTO - Eu cortarei o pão, porei a mesa, prepararei o vinho e a água e servirei a todos.
Foram à cozinha pedir o que lhes era necessário para confeccionarem cada um o seu prato. Camila trouxe ovos, manteiga, sal, pimenta, um garfo e um fogão.
- Preciso de lume para derreter a manteiga e fritar os ovos - disse ela. - Augusto, acenda uma fogueira, se faz favor.
AUGUSTO - Onde?
CAMILA- Próximo do forno. Depressa, enquanto bato os ovos.
MADALENA- Augusto, vá à cozinha e traga-me café para misturar com o leite. Esqueci-me dele. Depressa, depressa
AUGUSTO - Mas tenho de acender a fogueira para Camila.
MADALENA - Depois. Vá depressa buscar-me o café. Não demore muito, que eu tenho pressa.
Augusto lá foi, correndo.
ISABEL - Augusto, preciso de brasas e uma grelha para assar as costeletas, porque já as preparei.
Augusto, que já trazia o café voltou a correr.
PEDRO - Preciso de azeite para o molho.
HENRIQUE - E eu vinagre para a salada; Augusto, depressa! Azeite e vinagre.
Augusto, que voltava com a grelha, voltou a correr buscar o azeite e o vinagre.
CAMILA - Então, Augusto, o lume? Já tenho os ovos batidos. Assim a fritada não prestará.
AUGUSTO - Fui fazer outros recados. Ainda não tive tempo de pegar fogo à lenha.
ISABEL - E as brasas, Augusto?! Esqueceu-se?
AUGUSTO - Não, Isabel, mas ainda não tive tempo.
ISABEL - Assim não poderei grelhar as costeletas! Avie-se, Augusto!
TIAGO - Não tenho açúcar para os morangos. Henriqueta, dá-me açúcar, anda.
HENRIQUETA - Já estou cansada. Vou descansar. Tenho uma sede!.
JOANA - Come cerejas. Eu também tenho sede.
TIAGO - E eu! Vou comer umas poucas para refrescar a língua.
LUíS - Eu também me quero refrescar. Já estou cansado de fazer fatias.
E os quatro aproximaram-se do cesto das cerejas. JOANA - Sentemo-nos; é mais cómodo para nos refrescarmos.
E tão bem se refrescaram que comeram as cerejas todas; quando já não havia mais, olharam uns para os outros, com inquietação.
JOANA - Agora vão ralhar connosco.
LUÍS (inquieto) - Que vamos fazer, meu Deus?!
TIAGO - Vamos pedir a Cadichon que venha socorrer-nos.
LUÍS - Que queres que o Cadichon faça? Ele não se pode fazer nas cerejas que nós comemos.
-Deixa lá. . . Cadichon; meu bom Cadichon, vem ajudar-nos. Trata de encher o cesto que está vazio.
Eu estava próximo dos quatro gulosos e Tiago metia-me o cesto vazio debaixo do focinho para me fazer compreender o que esperava de mim. Farejei-o e parti a trote; fui à cozinha, onde vira pôr um cesto cheio de cerejas, agarrei-o com os dentes e trouxe-o, largando-o no meio das crianças ainda sentadas em círculo, em roda dos caroços e dos pés das cerejas que tinham posto nos pratos.
Um grito de alegria acolheu o meu regresso. Os outros voltaram-se todos e perguntaram o que acontecera.
- Foi o Cadichon! Foi o Cadichon! - exclamou Tiago.
- Cala-te - disse-lhe Joana -; assim, eles ficam sabendo que comemos as cerejas.
- Que importa que saibam? - respondeu Tiago. Quero que eles saibam também como Cadichon é bom e inteligente.
E, correndo para junto deles, contou-lhes como eu tinha encoberto a sua gulodice. Em vez de ralharem aos quatro pequenos, elogiaram Tiago pela sua franqueza e a mim pela minha inteligência.
Entretanto, Augusto tinha posto fogo à lenha de Camila e de Isabel; Camila tratava da sua fritada, Madalena fazia o seu café com leite, Pedro cortava a vitela às fatias, Henrique mexia e remexia a salada de batatas, Tiago preparava os morangos, Luís acabava a sua ilha de fatias de Pão com manteiga, Joana tirava os pés às cerejas, e Augusto, suando, punha a mesa e ia buscar água fria para refrescar o vinho, e enfeitava a mesa com pratinhos de azeitonas e de sardinhas. Esquecera, porém, o sal, e descobrira moscas mortas no fundo dos copos e nos pratos. Quando tudo ficou pronto, Camila deu uma palmada na testa.
- Ah - disse ela. Só nos esquecemos de uma coisa: pedir licença às nossas mães para almoçarmos ao ar livre e comer dos nossos cozinhados.
- Vamos lá - exclamaram as outras. – Augusto fica a guardar o almoço.
E correndo para casa, entraram na sala onde estavam reunidos os pais.
A presença dos pequenos, muito corados e arquejantes, com aventais de cozinha, surpreendeu-os a todos.
Então pediram licença para almoçarem ao ar livre, mas com tal volubilidade que os pais não perceberam a princípio. Depois de algumas perguntas e exclamações, a licença foi concedida e não tardaram a voltar para o pé de Augusto e do almoço. Augusto, porém, tinha desaparecido.
- Augusto! Augusto! gritaram todos.
- Estou aqui! - respondeu uma voz vinda de cima.
Todos ergueram a cabeça e viram Augusto, que estava empoleirado no cimo de um carvalho, começar a descer com lentidão e precaução.
- Para que subiste à árvore? Que ideia tão estapafúrdia! - disseram Pedro e Henrique.
Augusto continuava a descer sem responder. Quando chegou ao chão, os pequenos viram com surpresa que estava pálido e trémulo.
MADALENA - Que é que te aconteceu, para trepares à árvore?
AUGUSTO - Fiquem sabendo que, se não fosse Cadichon, não me teriam encontrado nem a mim nem ao almoço. Foi para salvar a vida que trepei a este carvalho.
PEDRO - Conta-nos o que aconteceu. Como é que Cadichon te salvou a vida e guardou o nosso almoço?
CAMILA - Vamos para a mesa, porque estou a morrer de fome. Ele que conte enquanto comemos.
Sentaram-se na relva em volta da toalha. Camila serviu a fritada de ovos, que todos acharam excelente; Isabel serviu as costeletas. Em seguida veio o resto do almoço, que estava muito bom e bem servido. Enquanto comiam, Augusto contou o seguinte:
- Logo que vocês saíram daqui, vi avançar os dois cães de guarda da quinta, atraídos pelo cheiro da comida.
Agarrei num pau e pretendi afastá-los. Mas eles viam as costeletas, os ovos, a manteiga, o pão, e em vez de terem medo do pau, quiseram atirar-se a mim: atirei com o pau à cabeça do maior, que me saltou às costas. . .
- Às costas?! - disse Henrique. - Então o cão andava à roda de ti?
- Não - respondeu Augusto, corando muito. Mas eu tinha deitado o pau fora, já não tinha nada para me defender e tu compreendes que era inútil fazer-me devorar pelos cães esfaimados.
- Compreendo - disse Henrique num tom escarninho -, tu é que tinhas voltado as costas e fugias.
- Ia à vossa procura - disse Augusto. - Os malditos cães correram atrás de mim, mas Cadichon veio em meu socorro, agarrando o cão maior pela pele do lombo e sacudindo-o até me ver trepar à árvore; o outro saltou então, agarrou-me pelas calças e ter-me-ia feito em postas se o Cadichon não me acudisse com presteza, largando o primeiro cão, ao qual deu uma forte dentada, e agarrando no rabo do outro, que largou imediatamente as minhas calças. Depois de o ter atirado para longe, voltou-se com uma agilidade surpreendente e atirou-lhe um valentíssimo coice às maxilas. Só então é que os dois cães fugiram a latir, e eu preparava-me para descer da árvore quando vocês apareceram.
Admiraram muito a minha coragem e a minha presença de espírito e todos vieram fazer-me festas e aplaudir-me.
- Como vêem -disse Tiago em ar de triunfo e com os olhos brilhantes de alegria -, o meu amigo Cadichon voltou excelente; não sei se vocês gostam dele. eu por mim declaro que cada vez gosto mais. Não é verdade, meu Cadichon, que cada vez seremos mais
amigos?
Respondi o melhor que pude, zurrando alegremente. As crianças riram-se e recomeçaram a comer.
Madalena serviu o café com leite.
- Que bom! - disse Tiago. .
- Dá-me mais - disse Luís.
- A mim também, a mim também – disseram Henriqueta e Joana.
Madalena estava muito contente, e os outros também, com o êxito das suas iguarias. Não ficou nada do almoço. Só o pobre Tiago teve um momento de humilhação; tinha açucarado os morangos e começou a esmagá-los, o que produziu uma massa que tinha mau aspecto, embora não tivesse perdido o sabor.
Quando chegou a vez de Tiago servir os morangos, Camila exclamou:
- Mas que é isto?! Caldo vermelho?! Como fizeste isto?
- Não é caldo vermelho - disse Tiago um pouco confuso -; são morangos em creme. É bom, podes ter a certeza, Camila; prova e verás.
- Morangos? - disse Madalena. - Onde é que estão os morangos? Não os vejo. O que tu nos dás mete nojo.
- Mete nojo, mete - exclamaram os outros.
- Julguei que seriam melhores esmagados - disse o pobre Tiago com os olhos cheios de lágrimas. - Mas, se querem, vou colher outros morangos.
- Não, não, meu bom Tiaguinho -disse Isabel, compadecida. - Isto deve ser muito bom. Serve-me, anda! Vou comer com grande prazer. .
Tiago beijou Isabel, já refeito da sua perturbação, e encheu-lhe o prato.
As outras crianças, enternecidas, como Isabel, pela bondade e boa vontade de Tiago, pediram-lhe também que Lhes deitasse os morangos no prato e, depois de terem provado, declararam que eram excelentes. Muito melhores do que se estivessem inteiros.
Tiago, que examinava, inquieto, as caras dos outros enquanto provavam, ficou radiante com o êxito do seu invento. Ele mesmo comeu e só teve pena de lhe ter ficado pouco.
Terminado o almoço, foram lavar a louça numa grande selha que ali tinha ficado desde a véspera e que estava cheia de água.
Esta parte do programa não foi a menos divertida, e ainda a lavagem não acabara quando chegou a hora do estudo e do chamamento dos pais para começarem os seus trabalhos. Concederam-Lhes mais um quarto de hora de tolerância para acabarem o serviço. Depois levaram tudo para a cozinha, foram para o estudo, e Augusto despediu-se para voltar para casa. Mas, antes de se ir embora, chamou-me e, vendo aproximar-me, correu para mim, fez-me muitas festas e agradeceu-me, por palavras e gestos, o serviço que lhe tinha prestado. Vi com reconhecimento este sinal da sua amizade, que me confirmava que Augusto era melhor do que eu o julgara; que não tinha rancor nem maldade, e que, se era gabarola e pouco inteligente, a culpa não era dele.
Tive ocasião, poucos dias depois, de lhe prestar novo serviço.
O barco
TIAGO - Que pena não se poder fazer todos os dias um almoço como o da semana passada! Gostei tanto!
LUÍS - E olha que almoçámos bem!
CAMILA - Eu o que achei melhor foi a salada de batatas com molho de vinagre.
MADALENA - Eu bem sei porquê: porque a mãe te proíbe habitualmente de comer coisas avinagradas.
CAMILA (rindo) - É possível; as coisas que se comem menos vezes, parecem sempre melhores, principalmente quando se gosta delas.
PEDRO - Que vamos fazer hoje para nos entretermos?
ISABEL - É verdade, é a nossa quinta-feira. Estamos livres até ao jantar.
HENRIQUE - E se fôssemos à pesca, ao lago grande?
CAMILA- Boa ideia! Teremos assim um prato de peixe para amanhã.
MADALENA - E como é que pescamos? Onde estão as linhas?
PEDRO - Temos muitos anzóis; faltam-nos só canas para as linhas.
HENRIQUE - Se pedíssemos aos criados para as irem comprar à aldeia?
PEDRO - Não se vendem lá. Seria preciso ir à cidade, que fica muito distante.
CAMILA - Aí vem Augusto. Talvez tenha canas em casa. Ia-se no pónei buscá-las.
TIAGO - Vou eu no Cadichon.
HENRIQUE - Não podes ir tão longe, sozinho.
TIAGO - É só meia légua.
AUGUSTO (chegando) - Que é que querem ir buscar no Cadichon, amigos?
PEDRO - Canas para pescar. Tens?
AUGUSTO - Não. Mas não há necessidade de ir tão longe; faremos quantas quisermos, a questão é ter navalhas.
HENRIQUE - É verdade. Nem nos passava pela cabeça. . AUGUSTO - Vamos cortá-las ao bosque. Trazem navalhas? Eu tenho a minha no bolso.
PEDRO - Tenho uma magnífica, que a Camila me trouxe de Londres.
HENRIQUE - E eu uma que me deu a Madalena.
TIAGO e LuIS - Nós também temos!
AUGUSTO - Venham então connosco; à medida que formos cortando as canas, vocês vão-Lhes arrancando as folhas.
- E que faremos nós enquanto esperamos?disseram Camila, Madalena e Isabel.
- Vocês vão preparando o que é necessário para a pesca - respondeu Pedro-: pão, minhocas e anzóis.
E cada qual foi ao seu trabalho.
Eu dirigi-me devagar para o lago e esperei mais de meia hora a chegada dos pequenos. Por fin1 avistei-os correndo, cada um com o seu aparelho de pesca.
HENRIQUE - Parece-me que é preciso não fazer o mínimo barulho. Se lhes metermos medo, os peixes escondem-se no lodo.
CAMILA - Talvez seja melhor atirar-lhes migalhas de pão para os atrair.
MADALENA - Sim, mas poucas; porque se lhes dermos de mais, já não têm fome depois.
ISABEL - Deixem-me cá! Vão vocês preparando os anzóis, que eu vou atirar-lhes o pão.
Isabel pegou no pão e, à primeira migalha que atirou, logo um cardume de peixes apareceu à superfície da água. Isabel atirou mais. Luís, Tiago, Henriqueta e Joana quiseram ajudá-la, e atiraram tanto pão que os peixes, saciados, desapareceram.
- Parece-me que lhes demos pão de mais - disse. -- Isabel, baixo, a Luís e Tiago.
TIAGO - Não faz mal. Comerão o resto esta noite... ou amanhã.
ISABEL - Mas assim já não têm fome e não mordem no anzol.
TIAGO - Os primos e as primas é que vão ficar desapontados. Não lhes diremos nada. Deixemo-los
ocupados com os anzóis. E daí, talvez os peixes piquem.
- Os anzóis estão prontos - disse Pedro, levando as linhas -; que cada um pegue na sua cana.
Todos atiraram as linhas à água e esperaram alguns minutos, sem fazerem barulho, mas o peixe não picava.
AUGUSTO - Este lugar não é bom. Vamos para outro lado.
HENRIQUE - Parece-me que não há peixe aqui, porque há muitas migalhas de pão que eles não comeram.
CAMILA - Vão até ao fim do lago, onde está o barco.
PEDRO - Aí é muito fundo.
ISABEL - Que importa? Receias que os peixes se afoguem?
PEDRO - Os peixes, não; um de nós é que podia afogar-se, se lá caísse.
HENRIQUE - Como é que havíamos de cair? Não nos aproximamos muito da beira do lago.
PEDRO - Pois sim, mas é mais prudente não deixar ir para lá os mais pequenos.
TIAGO - Deixa-me ir contigo, Pedro; ficaremos longe da água.
PEDRO - Não, não, fiquem aqui, que nós não nos demoramos muito. Desconfio que não encontraremos peixe. Mas a culpa é de vocês, que lhes atiraram pão de mais. Eu bem os vi. Não quero dizê-lo a Henrique, a Augusto, a Camila e a Madalena, mas é justo que sejam castigados pela vossa inadvertência.
Tiago não insistiu mais e contou aos outros culpados o que Pedro lhe acabava de dizer. Resignaram-se, pois, a ficar onde estavam, esperando que os peixes se deixassem apanhar.
Eu tinha seguido Pedro, Henrique e Augusto até ao extremo do lago, onde eles lançaram as suas linhas, sem nenhum êxito. E por mais que mudassem de lugar, os peixes não apareciam.
- Meus amigos! - disse Augusto. - Tenho uma ideia que me parece excelente; em vez de estarmos aqui a aborrecer-nos e a esperar que apeteça aos peixes deixarem-se apanhar, façamos uma pesca a valer. Apanhemos quinze ou vimte ao mesmo tempo.
PEDRO - Não conseguimos apanhar um, e dizes que apanharemos quinze ou vinte?
AUGUSTO - Com uma rede.
HENRIQUE - É muito difícil; o meu pai diz que é preciso saber lançá-la.
AUGUSTO- Tolice! Eu já a lancei dez vezes, vinte vezes. É muito fácil!
PEDRO - E apanhaste muitos peixes?
AUGUSTO - Não, porque não a lançava na água. HENRIQUE - Então onde é que a lançavas?
AUGUSTO - Sobre a relva ou sobre a terra, para me treinar.
PEDRO - Mas isso não é a mesma coisa. Olha que na água não a lançarias com tanta facilidade.
AUGUSTO - Ai sim?! Pois váis ver como a lanço? Vou buscá-la.
PEDRO - Não vás, Augusto. Se nos sucedesse alguma coisa, o pai ralharia.
AUGUSTO - Que é que há-de suceder? Se eu te digo que em casa é assim que se pesca sempre! Espera, que não me demoro muito.
E Augusto largou a correr, deixando Pedro e Henrique descontentes e inquietos. Não tardou, trazendo a rede a arrastar.
- Cá está! Agora os peixes que se acautelem!
Atirou com a rede destramente e puxou por ela com precaução.
- Puxa mais depressa! - disse Henrique.
- Não, não - disse Augusto -; é preciso puxá-la com cuidado, para que se não rompa e deixe fugir o peixe.
Continuou a puxar mas, quando a rede apareceu, viram que estava vazia; nenhum peixe tinha caído.
- Oh! - disse ele. - A primeira vez não vale. Não vale a pena desanimar. Recomecemos.
Mas não foi mais feliz.
- Não sei do que seja - disse ele. - Talvez aqui na margem haja pouca água. Vou meter-me no barco, que é muito comprido, o que me permitirá poder atirar a rede mais para o largo.
- Não, Augusto - disse Pedro. - Não entres no barco, porque podes embaraçar-te na rede e cair à água.
- Pareces uma criancinha, Pedro - replicou Augusto -; eu tenho mais coragem do que tu. Vais ver.
E saltou para o barco, que se pôs a balançar tanto, que Augusto, apesar de se rir, teve medo. Viu que ia fazer alguma asneira. Estendeu mal a rede, porque o movimento do barco o incomodava. Prevaleceu, porém, o seu amor-próprio. Atirou a rede com pouco balanço, receando cair à água; mas a rede prendeu-se-lhe ao ombro direito e deu-Lhe uma sacudidela que o fez cair no lago, de cabeça para baixo. Pedro e Henrique deram um grito de terror, que respondeu ao grito de angústia de Augusto, que estava envolvido na rede e não podia nadar para vir à superfície. E quanto mais se debatia mais se embrulhava na rede. Ia-se afundando pouco a pouco; mais alguns instantes e estaria perdido. Pedro e Henrique não lhe podiam acudir porque não sabiam nadar. E Augusto afogar-se-ia antes que alguém pudesse acudir.
Não me demorei muito a tomar o meu partido. Atirei-me resolutamente à água, nadei para ele e mergulhei, porque já estava a uma grande profundidade, agarrei na rede com os dentes e puxei-o para a borda do lago. Trepei a escarpa, continuando a puxar por Augusto, com risco de o magoar, arrastando-o sobre pedras e raízes. Depois deixei-o, em cima da relva, sen sentidos.
Pedro e Henrique, pálidos e trémulos, correram para ele, desembaraçaram-no, com grande trabalho, da rede, que o envolvia e, vendo chegar Camila e Madalena, pediram-lhes que fossem buscar socorros.
Os pequenos, que tinham visto de longe a queda de Augusto, chegaram também a correr e ajudaram Pedro e Henrique a enxugar-lhe a cara e os cabelos, que estavam ensopados em água. Mas logo apareceram os criados, que levaram Augusto, desmaiado. As crianças ficaram sós comigo.
- Excelente Cadichon! - exclamou Tiago. - Foste tu que salvaste a vida a Augusto! Viram com que coragem ele se atirou à água?
LUÍS - É verdade! E como mergulhou para pegar no Augusto!
ISABEL - E como o estendeu com todas as cautelas sobre a relva!
TIAGO- Pobre Cadichon! Está todo molhado!
HENRIQUETA - Não Lhe toques, Tiago, olha que te molha. Não vês como está a escorrer?
- Que me importa ficar um pouco molhado?disse Tiago, abraçando-me pelo pescoço.
LUÍS - Em vez de o abraçares e elogiares, farias melhor se o levasses para a cavalariça para o secarmos com palha e lhe darmos aveia para o aquecer e restituir-lhe as forças.
TIAGO - Tens razão. Vamos, Cadichon!
JOANA - Como é que vão secá-lo com palha?
LUÍS - Esfregando-o, até que esteja bem seco.
Eu seguia Tiago e Luís, que se encaminharam para a cavalariça, fazendo-me sinal para os acompanhar. Ambos começaram a esfregar-me com tanta força que daí a pouco estavam a escorrer em suor; mas não cessaram enquanto não me viram bem seco. Entretanto,
Henriqueta e Joana revezavam-se para me pentearem as crinas e a cauda. Fiquei magnífico e comi com apetite extraordinário a aveia que Tiago e Luís me deram.
- Henriqueta - disse Joana, em voz baixa -; parece-me que deram aveia de mais a Cadichon.
HENRIQUETA - Não faz mal, Joana. É para o recompensar pela sua boa acção.
JOANA - É que eu queria tirar-lhe um bocado. HENRIQUETA - Para quê?
JOANA - Para dar aos nossos coelhinhos, aos quais nunca a dão e que gostam tanto dela.
HENRIQUETA - Se o Tiago e o Luís te vêem tirar a aveia ao Cadichon, zangam-se.
JOANA - Não me verão. Tiro-a quando não estiverem a olhar.
HENRIQUETA - Nesse caso serás uma ladra, porque roubas a aveia do pobre Cadichon, que não pode queixar-se porque não pode falar.
- É verdade - disse Joana com tristeza. - Mas os meus coelhinhos ficariam tão contentes com a aveia!
E Joana sentou-se perto da manjedoura, vendo-me comer.
- Para que ficas aí, Joana? - perguntou Henriqueta. - Anda comigo. Vamos saber como está Augusto.
- Não - respondeu Joana. - Prefiro esperar que o Cadichon acabe de comer, porque, se deixar alguma aveia, levo-a para os meus coelhos. Assim já não é um roubo.
Henriqueta insistiu para que fosse com ela, mas Joana recusou-se e ficou ao pé de mim, indo-se Henriqueta embora com os primos e primas.
Eu comia lentamente; queria ver se Joana, logo que se visse só, sucumbiria à tentação de levar à minha custa a aveia para os seus coelhos. De quando em quando ela olhava para a manjedoura.
- Como ele come - dizia ela. - Nunca mais acaba. A aveia diminui. . . Oxalá que não a coma toda! Como eu ficaria contente se ele deixasse alguma, pouca que fosse.
Teria realmente comido tudo, mas tive pena da pobre pequena, que não tocava na aveia apesar das tentações que sentia. Fingi, pois, que estava satisfeito e abandonei a manjedoura, deixando ainda metade da ração. Joana deu um grito de alegria, pôs-se em bicos de pés e meteu a aveia no seu aventalinho preto.
- Como és bom, como és gentil, meu lindo Cadichon! - dizia ela. - Nunca vi burro melhor do que tu! É muito gentil da tua parte não seres guloso! Todos gostam de ti porque és muito bom. . . Os coelhos ficarão muito contentes. Dir-lhes-ei que és tu que lhes dás a aveia.
E Joana, que tinha acabado de encher o avental, saiu a correr. Vi-a chegar à casinha dos coelhos e ouvi-a contar-lhes como eu era bom, que não era nada guloso, que era preciso ser como eu e que, visto eu ter deixado aveia para os coelhos, estes deviam deixar alguma coisa para as avezinhas.
- Voltarei daqui a bocado - disse-lhes ela. - Vamos a ver se foram tão bons como Cadichon.
Fechou em seguida a porta e foi ter com Henriqueta. Segui-a para saber notícias de Augusto; ao aproximar-me do solar, vi com satisfação que Augusto já estava sentado na relva com os seus amigos. Quando me viu chegar, levantou-se, veio ter comigo e disse, acariciando-me:
- Cá está o meu salvador. Se não fosse ele, teria morrido. Perdi os sentidos no momento em que o Cadichon começava a puxar-me para terra. Mas vi-o muito bem atirar-se à água e mergulhar para me salvar. Nunca esquecerei o serviço que me prestou, e nunca mais aqui virei sem ir dar os bons-dias a Cadichon.
- Dizes bem, Augusto - disse a avó. - Quando se é bom, o nosso reconhecimento tanto se estende ao homem como aos animais. Eu também me lembrarei sempre dos serviços que Cadichon nos tem prestado e, suceda o que suceder, estou resolvida a nunca mais me separar dele.
CAMILA - Mas ainda não há muito tempo que a avó queria mandá-lo para o moinho, onde ele seria muito infeliz.
AvÓ - Mas não o mandei, queridinha. É verdade que pensei fazê-lo, depois da partida que ele fez a Augusto e de várias maldades de que todos se queixavam. Mas estava decidida a conservá-lo em recompensa dos seus antigos serviços. Agora, não só ficará connosco, mas quero que ele viva tranquilo e feliz.
-Obrigado, avó, obrigado! -exclamou Tiago, saltando ao pescoço da avó, que esteve quase a atirar ao chão. - Eu me encarregarei de Cadichon, porque gosto muito dele e também gostará mais de mim do que dos outros.
AvÓ - Porque é que queres que ele goste mais de ti do que dos outros, meu Tiaguinho? Não é justo.
TIAGO- justo, sim, avozinha, porque gosto mais dele do que os primos e primas, e depois, quando ele foi mau e ninguém gostava dele, era eu que ainda lhe queria. Não é verdade, Cadichon?
Fui logo encostar a cabeça ao seu ombro. Todos desataram a rir e Tiago continuou:
- Não é verdade, primos e primas, que querem que Cadichon goste de todos?
- Sim, sim, sim! - responderam todos, a rir.
TIAGO - E não é verdade que eu gosto de Ca dichon e que sempre gostei mais dele do que vocês todos?
-Sim, sim, sim! -responderam todos a um tempo.
TIAGO - Já vê, avozinha; que sendo eu aquele que mais gosta de Cadichon, aquele que o trouxe para cá, devo ser só eu a tratar dele.
AVó (sorrindo) - Não desejo outra coisa, meu Tiago; mas quando cá não estiveres, não poderás tratar dele.
TIAGO (com vivacidade) - Mas eu hei-de estar sempre cá, avozinha.
AVÓ - Não, meu querido, não estarás cá sempre, porque os teus pais te levarão quando se forem em bora.
Tiago ficou triste e pensativo, com o braço encostado a mim e a cabeça apoiada na mão.
De repente toda a sua cara refloriu.
- Avó - disse ele -, quer dar-me o Cadichon?
AVÓ - Dar-te-ei tudo o que quiseres, meu Tiago, mas não poderás levá-lo contigo para Paris.
TIAGO - É verdade, não posso; mas será meu, e quando o meu pai tiver um solar mandaremos buscar Cadichon.
AVÓ - Dou-to com essa condição. Entretanto, ele viverá aqui e provavelmente mais tempo do que eu. Não te esqueças então de que o Cadichon é teu e que o deves tratar bem.
Desde esse dia, o meu pequeno dono Tiago pareceu-me gostar ainda mais de mim. Eu, por minha parte, fiz todo o possível por ser bom, útil e agradável, não só para ele, mas para todas as pessoas da casa. Não tive de me arrepender dos meus esforços para me corrigir, porque todos se afeiçoaram a mim cada vez mais. Continuei a velar pelas crianças, a preservá-las de muitos acidentes, a protegê-las contra os homens e animais maus.
Augusto vinha muitas vezes a casa e nunca se esquecia de me visitar, como prometera, e sempre me trazia uma guloseima: ora uma maçã, ora uma pêra, ora pão e sal, que era para mim um petisco, ora um punhado de alface ou algumas cenouras; nunca, numa palavra, se esquecia de me dar o que sabia que me seria agradável. Isto prova que eu me tinha enganado sobre a bondade do seu coração, que julgava mau, só porque o pobre rapaz fora algumas vezes tolo e vaidoso.
O que me levou a escrever as minhas Memórias foi uma série de conversas entre Henrique e os seus primos e primas. Henrique sustentava sempre que eu não compreendia o que fazia, nem porque o fazia. As suas primas, e Tiago principalmente, tomaram o partido da minha inteligência e da minha vontade de proceder bem. Aproveitei um Inverno muito rude, que não me permitia andar cá fora, para compor e escrever sobre alguns dos acontecimentos mais importantes da minha vida. Talvez eles vos divirtam, meus amiguinhos; e, em todo o caso, farão com que trateis bem os vossos servos; que aqueles que julgam que são os mais estúpidos não o são tanto como parecem; que um burro tem, como os outros, um coração para amar os seus donos, para sofrer com os seus maus tratamentos, uma vontade para se vingar ou para testemunhar o seu afecto que pode, graças aos seus donos, ser feliz ou infeliz, um amigo ou um inimigo, por mais pobre burro que seja. Vivo feliz, todos gostam de mim, sou tratado como um amigo pelo meu pequeno dono Tiago; começo a envelhecer, mas os burros vivem muito tempo, e enquanto puder andar e suster-me de pé, porei as minhas forças e a minha inteligência ao serviço dos meus donos.
Condessa de Ségur
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