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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MEMÓRIAS DE UM SOBREVIVENTE / Doris Lessing
MEMÓRIAS DE UM SOBREVIVENTE / Doris Lessing

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MEMÓRIAS DE UM SOBREVIVENTE

 

Todos nós nos lembramos daquele tempo. Para mim não foi diferente do que foi para os outros. Apesar de fa­larmos sempre sobre as particularidades dos acontecimentos que vivemos juntos, a repetição, o fato de escutar, é como se estivéssemos dizendo: "Para você também foi assim? En­tão está certo, sim, foi isso mesmo, deve ter sido, não é imaginação minha". Brincamos ou discutimos como pessoas que viram criaturas notáveis durante uma viagem: "Você viu aquele peixão azul? Ah, o que você viu era amarelo!" Mas o mar que atravessamos era o mesmo, o prolongado pe­ríodo de desconforto e tensão que antecedeu o fim foi o mesmo para todos, em todos os lugares. Nas menores uni­dades de nossas cidades nas ruas, num aglomerado de altos blocos de apartamentos, num hotel, assim como nas cidades, nações, num continente... sim, concordo, é uma bela e inspirada imagem sobre a natureza dos acontecimen­tos em questão: peixe bizarro, oceanos e tudo o mais. Mas- talvez não fosse impróprio dizer de passagem que nós todo mundo —, ao revermos um período passado da vida, uma seqüência de acontecimentos, descobriremos muito mais coisas do que na época em que tudo se passou. Isto é ver­dade até em relação a fatos como ficar desanimado ao ver a confusão deixada nos lugares públicos após um feriado. As pessoas irão comparar anotações, como se quisessem ou esperassem a confirmação de algo que os próprios aconteci­mentos não permitem ou mais, que tivessem tentado ex­cluir totalmente. Felicidade? É uma palavra que pego de tempos a tempos, em minha vida. Olho-a. Mas nunca achei que ela tivesse me mostrado sua forma. Um significado, então? Uma meta? De qualquer modo o passado, revisto com esse estado de espírito, parece embebido em uma subs­tância que lhe era estranha, que é alheia à experiência. Será este o conteúdo da memória real? Nostalgia, não; não estoufalando disso, da ânsia, do arrependimento mas desta dor envenenada. Nem de uma dúvida sobre a importância que cada um de nós tenta dar ao próprio passado não muito sig­nificativo: "Você sabe que eu estava lá. Eu vi aquilo".

Mas é por causa dessa nossa propensão que eu talvez me permita metáforas extravagantes. Eu vi peixe naquele mar, como se baleias e golfinhos tivessem querido se mos­trar coloridos de verde e vermelho, mas naquela hora não compreendi o que estava vendo e certamente não vi como minha experiência pessoal era comum, compartilhada. Essa é a primeira coisa que compreendemos quando olhamos para trás: nossas semelhanças, não nossas diferenças.

Uma das coisas que sabemos ter sido verdadeira para todos, mas que cada um pensou secretamente ter sido uma evidência da originalidade de sua mente, teimosamente pre­servada, foi o sentimento de que os acontecimentos tinham um curso não oficial. Não respeitável. Estávamos acostuma­dos com noticiários, jornais e pronunciamentos e, no entan­to, negávamos aquilo que de modo algum poderíamos ter menosprezado. Sem isso nos teríamos tornado desesperados, ansiosos, pois é claro que algo deve ter cunho oficial, sobretudo numa época em que nada acontece conforme as expec­tativas. Mas a verdade é que cada um de nós teve consciên­cia, em algum momento, de que não era de fontes oficiais que estávamos obtendo os fatos que se encaixavam num qua­dro muito diferente daquele tornado público. Seqüências de palavras cristalizavam acontecimentos em um quadro, quase numa história: E assim isso aconteceu, e fulano disse... mas cada vez mais freqüentemente estas eram palavras sur­gidas durante uma conversa casual, e talvez até mesmo ditas pela própria pessoa: "Mas é claro!", poderia pensar. "É isso. Eu soube disso durante algum tempo. Só que não tinha visto as coisas colocadas deste modo, não tinha percebido o sen­tido..."

As atitudes em relação à Autoridade, em relação a "eles", eram cada vez mais contraditórias, e todos nós acre­ditávamos estar vivendo numa comunidade peculiarmente anarquista. Claro que não. Em todo lugar era igual. Mas talvez fosse melhor falar disto mais tarde, parando apenas para dizer que o uso da palavra "aquilo" é sempre sinal de crise, de ansiedade generalizada. Há uma diferença entre "Puxa vida, por que eles têm de ser tão incompetentes!" e "Meu Deus, as coisas vão mal!", assim como "As coisas vão mal" é bem diferente de "Aquilo também está começan­do por aqui" ou de "Você já ouviu algo sobre aquilo?"

Vou iniciar este relato numa época anterior a começar­mos a falar sobre "aquilo". Ainda estávamos no estágio do desconforto generalizado. As coisas não iam muito bem, iam até bastante mal. Grande parte das coisas ia mal, desmoronava, trazia o desespero, ou "dava motivo de alarma", como diria o noticiário. Mas "aquilo", no sentido de algo visto como uma ameaça imediata inevitável, não havia.

Eu morava num bloco de apartamentos que era mais um no meio de tantos iguais. O meu ficava no térreo, ao nível do solo. Eu não estava em nenhuma cidade aérea, com caminhos invisíveis entre uma janela e outra, construídos pelo olhar inquisidor ou especulativo que acompanha pás­saros em seus caminhos, enquanto o tráfego e as preocupa­ções humanas acontecem lá embaixo. Não, eu era um daque­les que olham para cima, imaginando como devem ser as coisas lá nas regiões mais altas, onde as janelas recebem mais ar e onde as portas da frente dão para os elevadores que vão para baixo, para baixo, até o som do tráfego, os odores de produtos químicos e uma vida asfixiada... a rua. Estes não eram apartamentos construídos pela prefeitura, com as paredes riscadas de graffiti,os elevadores enferru­jados pela urina, as paredes da portaria sujas de excremento. Não ficavam nas ruas verticais dos pobres, mas em ruas cons­truídas com dinheiro particular. Eram fortes, plantados em solo valioso — o solo outrora valioso. As paredes eram grossas, para famílias que podiam pagar pelo isolamento. A portaria era enorme, atapetada, e tinha até canteiros de flo­res, artificiais, mas bastante bonitas. Havia um porteiro. Estes blocos eram um modelo de solidez e decência.

Mas naquele tempo, com tantas pessoas saindo da ci­dade, as famílias que moravam nos edifícios não pertenciam de modo algum à classe para a qual os prédios haviam sido construídos. Durante anos, nas ruas decadentes dos pobres, casas foram sendo invadidas por grileiros que se acomoda­vam em famílias ou grupos de famílias. Assim, há muito tempo era impossível dizer-se: este é um bairro de operá­rios, homogêneo. Também nesses grandes prédios que já haviam sido alugados apenas por pessoas prósperas, profis­sionais liberais e comerciantes, havia agora famílias ou clãs de gente pobre. Atualmente os apartamentos ou as casas pertenciam àqueles que tinham se dado ao trabalho de ocupá-las. Assim, nos corredores e portarias do prédio onde eu morava podia-se encontrar, como numa rua ou supermercado, todo tipo de pessoas.

Um professor, sua mulher e a filha moravam num apartamento igual ao meu no fundo do corredor. Exatamente em cima do meu havia uma família de hindus, com vários parentes e agregados. Menciono estes dois grupos porque eram os mais próximos de mim e porque quero frisar que não é que não houvesse consciência do que acontecia por trás das paredes e tetos antes do início do o quê? Aqui sinto dificuldade, porque não há nada que eu possa precisar, definir... Agora não estou falando de pressões públicas e acontecimentos que aprisionamos em palavras como "eles", "aquilo", e assim por diante, mas somente de minhas pró­prias descobertas, que se tornaram prementes e me pressio­navam tanto naquela época. Não posso dizer": "Neste ou na­quele dia compreendi que do outro lado da parede acontecia um determinado tipo de vida". Nem mesmo: "Foi na pri­mavera daquele ano que..." Não, a consciência desta outra vida, acontecendo ali tão perto de mim, escondida de mim, surgiu devagar, precisamente como uma categoria de com­preensão que ocorre gradualmente. Esta graduação, este cres­cimento, pode demorar semanas, meses, anos. E é claro que a gente pode "saber" algo e não "saber". (Pode-se também saber algo e depois esquecer!) Olhando para trás posso dizer com certeza que o crescimento desta outra vida ou modo de ser que acontecia além da minha parede já estava em minha mente muito tempo antes de eu compreender o que ouvia, e aguardava. Mas não posso precisar uma data ou época. Certamente esta preocupação interna antecedeu a outra, pública, para a qual uso, esperando não ser frívola, a palavra "aquilo".

Mesmo nas menores coisas sabia que aquilo sobre o que eu estava me tornando consciente, aquilo que estava a ponto de compreender, era qualitativamente diferente do que na realidade acontecia à minha volta: sobre minha ca­beça, a vida familiar carinhosa, agitada, viva dos hindus que vieram, acho eu, do Quênia; e igualmente diferente do que eu ouvia acontecer entre as paredes habitadas pelo Professor White e sua família que dividia a parede da cozinha co­migo e através da qual, apesar da espessura, trocávamos cumprimentos.

Uma das coisas que me fazia não compreender, ou não me permitia compreender, todas as implicações do que acon­tecia além das paredes de minha sala era o fato de elas darem para um corredor. Para ser precisa, era impossível compreender algo pelo que eu ouvia. Os sons provenientes de um corredor, mesmo se muito movimentado, são limita­dos. Ele serve para se ir de um lugar a outro: as pessoas andam pelos corredores sozinhas, aos pares, em grupos, fa­lando ou não. Este corredor saía da portaria principal, pas­sava primeiro pela porta de meu apartamento, depois pela dos White, e seguia em direção aos apartamentos do lado leste do andar térreo do edifício. Por este corredor passa­vam o professor e os membros de sua família, eu e minhas visitas, as duas famílias do lado leste e suas visitas. Assim, era bastante utilizado. Freqüentemente tinha-se que prestar atenção ao passo e à voz, abafados pela solidez daquela pa­rede, mas eu dizia a mim mesma: "Deve ser o professor. Decerto chegou mais cedo hoje". Ou: "Parece Janet che­gando da escola".

Assim, chegou o momento em que tive que admitir que havia uma sala atrás da parede, talvez mais de uma, até um conjunto de salas, ocupando o mesmo espaço do corredor, ou, mais ainda, sobrepondo-se a ele. Compreender aquilo que ouvia, saber que há muito tempo estava consciente de algo semelhante tomou força em mim na época em que sou­be que quase certamente teria que deixar a cidade. É claro que nesta época todos já tinham idéia disso: saber que te­ríamos de deixar a cidade não era privilégio meu. Isto é exemplo de algo que já mencionei: uma idéia surgindo na cabeça de todo mundo ao mesmo tempo, sem nenhuma in­tervenção das autoridades. Quero dizer que não foi anuncia­do pelos alto-falantes, ou nas praças públicas, nos jornais, no rádio, na televisão. Deus sabe que continuamente havia pronunciamentos de todo tipo, apesar de não serem absorvidos pelo povo como o foi aquela outra informação. Em geral o povo tendia a não dar atenção ao que as autoridades diziam não, isso não é verdade. A informação pública era discutida, questionada e criticada, mas tinha um impacto diferente. Suponho ter dito que era encarada quase como uma distração. Não, isso também não é verdade. As pessoas não reagiam de acordo com o que ouviam. É isso. Não, a não ser que fossem obrigadas. Mas esta outra informação, vinda ninguém sabia de onde, as notícias que estavam "no ar", faziam todos agir. Semanas antes do pronunciamento ofi­cial de que certos artigos de primeira necessidade iriam ser racionados, por exemplo, esbarrei no corredor com o Sr. Mehta e sua esposa o velho casal, os avós. Arrastavam atrás de si um saco de batatas. Eu também tinha um esto­que. Cumprimentamo-nos e sorrimos, mutuamente com­preensivos e precavidos. Lembro-me igualmente da Sra. White e eu, desejando uma à outra um bom dia na área pavimentada em frente à portaria. Ela disse, quase casual­mente:

Não devemos deixar as coisas para a última hora.

E eu retruquei:

Ainda temos alguns meses, mas concordo que é me­lhor ir preparando tudo.

Falávamos sobre a mesma coisa que todo mundo: a necessidade de deixar a cidade. Não houve nenhuma intimação pública para que o povo saísse. Não, nunca houve qual­quer reconhecimento, por parte das autoridades, de que a cidade se estivesse esvaziando. Isso deve ter sido mencio­nado de passagem, como um sintoma de outra coisa, como um fenômeno temporário, mas não como um grande fato em nossas vidas.

Não havia uma razão única para as pessoas irem em­bora. Sabíamos que todos os serviços públicos do sul e do leste tinham sido interrompidos e que este estado de coisas se alastrava em nossa direção. Sabíamos que todo mundo tinha abandonado essa parte do país, exceto alguns bandos de pessoas, na maioria jovens, que viviam daquilo que encontravam: plantações abandonadas nos campos, animais que escaparam do matadouro antes de tudo desmoronar. No prin­cípio estes bandos ou turmas não eram particularmente vio­lentos ou prejudiciais para as poucas pessoas que se haviam recusado a ir embora. Até "cooperavam com as forças da lei e da ordem", como diziam os noticiários. Depois, à medida que a comida foi escasseando, e quando o perigo, qualquer que fosse, se aproximou das populações em fuga, os bandos se tornaram perigosos. E quando passaram pelos subúrbios de nossa cidade, as pessoas fugiram e ficaram fora de seu caminho.

Isto aconteceu durante meses. Avisos, vindos em forma de boatos e depois de noticiários, de que essas turmas se moviam por tais e tais áreas, de onde os habitantes haviam partido deixando as portas trancadas até que o perigo pas­sasse; de que novos bandos estavam se aproximando dessa ou daquela área onde as pessoas deviam ser informadas para que tomassem cuidado com suas vidas e suas propriedades; de que um outro bairro, originalmente perigoso, estava de novo seguro — alarmas como estes faziam parte de nossas vidas.

No lugar onde eu morava, no lado norte da cidade, as ruas só se transformaram em estradas para os bandos em migração muito tempo depois de os subúrbios do sul esta­rem acostumados com eles. Mesmo quando partes de nossa própria cidade já tinham a anarquia como uma certeza, nós do norte pensávamos e falávamos como se fôssemos imunes. O problema desapareceria, se dissolveria, acabaria por si só... É tão grande a força daquilo a que estamos acostu­mados, que as primeiras duas ou três aparições de bandos nos subúrbios do norte nos pareceram incidentes isolados, improváveis de se repetirem. Aos poucos começamos a en­tender que agora seriam incomuns nossos períodos de paz, de normalidade, e não os dias de saque e luta.

Assim, teríamos que nos mudar. Iríamos, sim. Mas não já. Logo seria necessário, e nós sabíamos disto... E duran­te todo esse tempo minha vida cotidiana foi o primeiro pla­no, a área iluminada — se é que posso dizer assim — de um mistério que acontecia, há muito tempo, em "algum ou­tro lugar". Sentia cada vez mais que minha vida diária e cotidiana era irrelevante. Sem importância. Aquela parede tornara-se para mim — como dizer? — uma obsessão, tal­vez. Esta palavra implica que estou pronta para abandonar a parede, o significado que tem — estarei preparada para remetê-la às regiões do patológico? Ou significa que eu me sentia mal naquele tempo, ou agora, devido ao meu interesse por ela? Não, sentia-me como se o centro de gravidade de minha vida tivesse se movido, o equilíbrio estivesse em ou­tro ponto, e começava a acreditar — sentindo-me ainda pou­co à vontade — que aquilo que acontecia do outro lado da parede devia ser tão importante quanto minha vida cotidia­na naquele apartamento limpo, confortável e gasto. Ficaria na minha sala — as cores predominantes eram creme, ama­relo e branco, ou pelo menos existiam em quantidade sufi­ciente para que ao andar pela sala eu tivesse a impressão de ver um pôr-do-sol —e esperaria ali, olhando calmamente para a parede. Sólida. Comum. Uma parede sem portas ou janelas: a porta de entrada ficava na parede lateral. Tinha uma lareira. Mas ficava mais para o canto, de modo que sobrava um bom pedaço de parede vazio. Eu não tinha pen­durado nenhum quadro ali. O branco das paredes tinha es­curecido e não refletia muita luz, a não ser quando recebia o sol diretamente. A parede tinha sido forrada com papel.

Fora pintada, mas sob a tinta ainda se percebia a sombra de flores, folhas e pássaros. Quando de manhã o sol batia numa parte da parede os desenhos meio escondidos apare­ciam tão claramente que nos levavam a pensar em árvores e num jardim, como se o banho de luz estivesse produzindo cor — verde, amarelo, uma certa nuança de rosa-claro. Não era uma parede alta: o teto da sala tinha uma altura agra­dável.

Como podem ver, não há nada que eu possa dizer so­bre essa parede que não caia no lugar-comum. Mas parar e olhar para ela, ou pensar nela enquanto fazia as coisas em casa, com a sensação de sua presença o tempo todo em mi­nha mente, era como colocar perto do ouvido um ovo que está prestes a romper-se. A forma quente e macia, na palma da mão, está pulsando. Por trás da casca frágil, que apesar de poder ser amassada entre dois dedos é inviolável devido às necessidades de tempo do pinto, o tempo preciso e seguro de que necessita para libertar-se da prisão escura, é como se um peso se redistribuísse, como quando uma criança muda de posição no útero. Um levíssimo estremecimento. Mais outro. O pinto, cabeça sob a asa, bica seu caminho de saída e logo os fragmentos mínimos se juntam na casca onde, em um instante, aparecerá o primeiro buraco preto. Até acho que encostava minha cabeça na parede, como se faz com um ovo galado, escutando, esperando. Não pelos sons da Sra. White ou pelos movimentos do professor. Eles podiam sim­plesmente entrar ou sair. Os sons cotidianos do corredor deviam continuar ali. Não, eu escutava outras coisas. Apesar de serem, em si, sons comuns: móveis sendo arrastados, vozes muito longínquas, uma criança chorando. Nada de ní­tido. Mas eram familiares. Escutara-os a vida toda.

Numa manhã sentei-me com o cigarro que acendia de­pois do café — eu me permitia este único cigarro verdadeiro durante o dia — e, através de nuvens de fumaça azul, vi como o amarelo do sol se esticava em um losango distor­cido, fazendo com que a própria parede parecesse mais alta no meio do que nas pontas. Olhei para o brilho e a pulsa­ção do amarelo. Olhei como se estivesse escutando, pensan­do em como, conforme mudavam as estações, também se transformavam o formato, o tamanho e a posição dessa man­cha de luz matinal. Então, passei através da parede e soube o que havia do outro lado. A princípio não descobri muito mais do que um conjunto de salas. As salas não eram utili­zadas e já estavam assim há algum tempo. Anos, talvez. Não havia móveis. Em alguns lugares a pintura se descascava da parede e caía em pedacinhos perto do rodapé, juntamente com restos de papel, moscas mortas e poeira. Não entrei, mas fiquei ali, na fronteira entre os dois mundos: meu co­nhecido apartamento e aquelas salas que ali tinham esperado calmamente durante todo esse tempo. Parei e olhei, alimentando-me com os olhos. Senti a mais vívida expectativa, uma saudade. Este lugar tinha o que eu precisava, sabia que es­tava lá, estivera esperando oh, sim, durante toda a vida, toda a vida. Conhecia aquele lugar, reconhecia-o, antes que tivesse realmente absorvido a informação, pelos olhos, de que as paredes eram muito mais altas do que as minhas, de que havia muitas janelas e portas, e de que era um aparta­mento, ou casa, grande, claro, arejado e encantador. Num outro quarto vi de relance uma escada de pintor. E então, exatamente quando a luz esmorecia na minha parede, en­quanto uma nuvem absorvia o sol, vi alguém vestido com um macacão branco levantando um rolo para passar tinta branca na superfície desbotada e manchada.

Esqueci dessa ocorrência. Continuei com as pequenas rotinas de minha vida, consciente da vida por detrás da pa­rede, mas sem me lembrar de minha visita a ela. A não ser alguns dias depois, quando parei novamente, o cigarro na mão, no meio da manhã, e fiquei olhando para a fumaça flu­tuante sob a luz do sol que batia na parede e pensei: Ora! Estive do outro lado, claro que estive. Como pude esquecer? E novamente a parede se dissolveu e passei para o outro lado. Havia mais quartos do que suspeitara da primeira vez. Tinha uma forte impressão disso, apesar de não vê-los todos. Nem, desta vez, vi o homem ou mulher de macacão. Os quartos estavam vazios. Para torná-los habitáveis quanto tra­balho seria necessário! Sim, podia ver que levaria semanas, meses... Fiquei parada olhando a tinta descascada, o canto de um teto manchado pela umidade, as paredes sujas ou es­tragadas. Foi ainda nesta manhã, quando comecei a com­preender quanto trabalho seria necessário, que vi, numa fra­ção de segundos bem, o quê? Mal posso dizer. Havia suavidade, certamente acolhimento, segurança. Talvez tenha visto um rosto, ou sua sombra. Depois compreendi claramente que o rosto me era familiar, mas é possível que este rosto, visto depois que tudo terminou, apareça em mi­nha lembrança neste lugar, nesta segunda visita: ele refletiu sua imagem sem precisar usar como hospedeiro ou espelho nada além de uma emoção de doce saudade, que anseia por seu próprio ar. Este era o legítimo habitante daqueles quar­tos por trás da parede. Não duvidei disso em nenhum mo­mento. O habitante exilado; pois certamente não poderia viver, nunca poderia ter vivido, naquela concha vazia e ge­lada cheia de sujeira e ar mofado.

Quando me vi novamente sentada em minha sala, o cigarro meio queimado, tive a certeza de uma promessa, que não me abandonou mais, não importando quão difíceis as coisas se tornaram depois, tanto em minha própria vida quanto naqueles quartos ocultos.

A criança foi deixada comigo desse modo. Estava na cozinha e, ouvindo um barulho, fui até a sala e vi um homem e uma garota meio crescida, de pé. Não conhecia nenhum dos dois e me aproximei com a intenção de desfazer um engano. Achei que devia ter deixado a porta da frente aberta. Voltaram-se para mim. Lembro-me de como, já na­quela hora, fiquei aturdida pelo riso claro, duro e nervoso do rosto da garota. O homem, de meia-idade, com roupas comuns, sem nada de extraordinário, disse:

— É esta a criança.

Já estava saindo. 'Tinha colocado a mão em seu ombro, sorrindo e balançando a cabeça, e ia embora.

Eu disse:

Mas certamente...

Não, não há nenhum engano. Ela está sob sua responsabilidade.

Estava na porta.

Mas espere um instante...

Ela é Emily Cartright. Cuide dela.

E se foi.

Ficamos ali paradas, a criança e eu, olhando uma para a outra. Lembro-me de que o quarto estava banhado de luz: ainda era manhã. Perguntava-me como os dois haviam en­trado, mas isso já me parecia irrelevante, pois o homem havia partido. Corri então para a janela: uma rua com al­gumas árvores ao longo da calçada, um ponto de ônibus com a costumeira fila de pessoas esperando, esperando; e na cal­çada larga do outro lado, debaixo de umas árvores, algumas das crianças do apartamento dos Mehta, do andar de cima, brincando com uma bola — meninas e meninos de pele es­cura, todos com ofuscantes camisas brancas, vistosos vesti­dos rosa e azul, dentes brancos, cabelos brilhantes. Mas do homem que eu procurava, nem sinal.

Voltei-me para a criança. Mas desta vez o fiz demora­damente, pensando no que dizer, como me apresentar, como lidar com ela — todas as pequenas técnicas e truques patéti­cos de nossa auto-definição. Ela me olhava, cuidadosamente, de perto: veio-me o pensamento de que era uma avaliação téc­nica das possibilidades, feita por um prisioneiro que observa um novo carcereiro. Meu coração já estava pesado: ansie­dade! Minha inteligência ainda não entendia muito do que estava acontecendo.

Emily? — disse experimentalmente, esperando que ela se decidisse a responder às perguntas de minha mente.

Emily Mary Cartright — respondeu, de um modo que combinava com a voz e o sorriso claros e impenetráveis. Atrevida? De qualquer modo era uma forte presença. Eu tentava penetrá-la; tinha consciência de estar fazendo sinais desesperados — meu sorriso, os gestos — que talvez pudessem atingir algo mais suave e cálido que devia haver por trás de sua fria defesa.

Bem, quer sentar? Ou posso fazer algo para você comer? Um chá? Tenho um pouco de chá de verdade, mas é claro...

Gostaria de ver meu quarto, por favor — disse. E agora seus olhos eram, quase sem que ela percebesse, um apelo. Ela precisava, precisava muito, saber que paredes, que proteções poderia colocar à sua volta, como um cobertor, para se confortar.

Bem — disse eu. — Ainda não pensei, ainda não... preciso...

Seu rosto pareceu contrair-se. Mas manteve o claro des­temor.

Você sabe... — continuei. — Não esperava... Vamos ver agora.

Ela esperava. Teimosamente, esperava. Sabia que deve­ria viver comigo. Sabia que seu abrigo, suas quatro paredes, sua toca, o pequeno espaço que era seu e onde se agarraria estava em algum lugar.

Tem o quarto de reserva — falei. — Chamo-o assim. Mas não é muito...

Mas me dirigi — e lembro-me quão desamparada e triste o fiz — para a pequena saleta da frente, e depois para o quarto de reserva.

O apartamento ficava na frente do prédio, do lado sul.

A sala de estar tornava a maior parte — fora por causa de seu tamanho que eu tinha ficado com o apartamento. No fim da saleta de entrada, de modo que era preciso atravessar a sala para alcançá-la, estava a cozinha, num dos cantos do prédio. Era bastante grande, com lugar para a louça e a des­pensa, e também era usada para as refeições. Da saleta de entrada saíam duas portas, uma para a sala de estar e a outra para o quarto que eu chamava quarto de reserva. Este li­gava-se ao banheiro. Meu quarto ficava na frente, dando para a sala. O banheiro, a saleta e o quarto de reserva, jun­tos, ocupavam o mesmo espaço que meu quarto, que não era muito grande. Dá para ver que o quarto de reserva era muito pequeno. Tinha uma janelinha no alto. Era abafado. Não havia como torná-lo atraente. Nunca o usava, a não ser para guardar coisas ou, com muitas desculpas, para que um amigo passasse ali a noite.

Sinto muito ser tão pequeno e escuro... talvez devêssemos...

Não, não, não me importo — disse ela, do modo frio e orgulhoso que lhe era próprio. Mas olhava ansiosa para a cama e compreendi que tinha encontrado o seu refú­gio, seu; aqui, enfim.

"É maravilhoso", disse. "Oh,sim, você não acredita em mim, não sabe o que..."

Mas deixou de lado a possibilidade de explicar aquilo por que havia passado e esperou, todo o corpo expressando o quanto desejava que eu saísse.

E teremos que dividir o banheiro — falei.

Oh, serei sempre muito ordeira — assegurou-me. — Sou realmente boazinha, sabe, e nunca farei bagunça.

Eu sabia que se eu não estivesse nesse apartamento, se ela não sentisse que devia se comportar bem, ela estaria no meio dos lençóis, já bem longe deste mundo.

Não serei chata — asseverou-me. — Preciso me arrumar. Farei isso o mais rápido possível.

Deixei-a e fiquei esperando na sala, primeiro parada olhando pela janela, pensando que talvez ainda houvesse mais surpresas pela frente. Depois sentei, tomando, imagi­no, a posição de O pensador, ou qualquer outra posição igualmente concentrada.

Sim, era extraordinário. Sim, era inteiramente impos­sível. Mas por fim eu tinha aceitado o "impossível". Vivia com ele. Abandonara todas as esperanças de algo comum no meu mundo interior, de uma vida real nesse lugar. E para o público, o mundo exterior, já fazia muito tempo que o normal tinha sido imolado. Poderia alguém descrever este período como "o ordinário do extraordinário"? Bem, o lei­tor não deve sentir nenhuma dificuldade aqui: estas palavras descrevem uma época que já vivemos. (Uma descrição da vida toda? — Provavelmente, mas não ajuda muito pensar assim.)

Mas tais palavras transmitem perfeitamente a atmos­fera do que estava acontecendo quando Emily me foi tra­zida. Enquanto tudo, todas as formas de organização social desmoronavam, vivíamos, adaptando nossas vidas como se nada de fundamental estivesse acontecendo. Era interessante ver quão estabelecidas, quão teimosas, quão repetidas eram as tentativas de se ter uma vida comum. Quando nada, ou muito pouco, restava daquilo a que estávamos acostumados e tínhamos como garantido há dez anos, continuávamos a falar e a nos comportar como se as velhas formas ainda fos­sem nossas. E realmente coisas da antiga ordem — comida, amenidades, até luxo — existiam em níveis mais altos, to­dos sabíamos disso, mas é claro que aqueles que usufruíam destas coisas não chamavam atenção sobre si próprios. Tam­bém podia haver ordem durante algum tempo — períodos de semanas ou meses em determinado bairro, quando as pes­soas viviam e falavam e até pensavam como se nada tivesse mudado. Quando acontecia algo verdadeiramente mau, como um bairro sendo devastado, as pessoas se mudavam por alguns dias, ou semanas, para a casa de parentes ou amigos, e depois voltavam, talvez para uma casa saqueada, para reas­sumir seus trabalhos, suas lidas domésticas — sua ordem. Podemos nos habituar com absolutamente tudo — isso é lugar-comum, é claro, mas talvez se tenha que viver numa época destas para se saber o quanto isto é horrivelmente verdadeiro. Não há nada que as pessoas não tentem acomo­dar em sua vida "cotidiana". Era precisamente isto que dava àquela época seu sabor peculiar: a combinação do bi­zarro, héctico, apavorante, ameaçador — uma atmosfera de cerco de guerra — com o que era costumeiro, cotidiano, até decente.

Por exemplo, nos noticiários e nos jornais eles acompanhavam durante dias a história de uma única criança rap­tada, tirada de seu carrinho, provavelmente por uma pobre e infeliz mulher. A polícia iria revistar os subúrbios e o campo centenas de vezes, procurando a criança e a mulher para puni-la. Mas as notícias seguintes focalizavam a morte em massa de centenas, milhares ou até milhões de pessoas. Ainda acreditávamos, queríamos acreditar, que a primeira, a preocupação com uma única criança, a necessidade de punir os criminosos individuais, mesmo que para isso precisásse­mos de dias e semanas e centenas de nossos melhores poli­ciais, era o que realmente interessava. A segunda, a catás­trofe, era, como sempre foram essas partes dos noticiários para as pessoas que não estão realmente na área ameaçada, um acidente desafortunado e menor — ou ao menos não crucial — que interrompeu o fluxo, o desenvolvimento da civilização.

Este é o tipo de coisa que aceitávamos como normal. Ainda que para todos nós houvesse momentos em que o jogo que concordávamos jogar simplesmente não pudesse en­caixar-se nos acontecimentos, seríamos açoitados por senti­mentos de irrealidade, como a náusea. Talvez este sentimento de que o chão se estava dissolvendo sob nossos pés fosse o verdadeiro inimigo... ou acreditávamos que fosse. Talvez nosso acordo tácito de que nada de mais, ou pelo menos nada irremediável, estava acontecendo fosse porque nosso inimigo era a Realidade, talvez servisse para permitir a nós mesmos saber o que estava acontecendo. Talvez nossas farsas, as far­sas de todo mundo, que naquele momento se sentia nu, in­defeso, como num teatro do absurdo, devessem ser encaradas como algo admirável. Ou talvez fossem necessárias, como as brincadeiras das crianças que fazem do jogo um modo de manter a realidade a uma boa distância de suas fraquezas. Mas cada vez mais, o tempo todo, precisava-se vencer a ne­cessidade de, simplesmente, rir. Não uma boa risada, longe disso. Mas os bramidos e urros do riso de escárnio.

Mais um exemplo: na mesma semana em que uma horda de cerca de duzentos desordeiros surgiu em nossas vizinhan­ças, deixando um cadáver na calçada em frente à minha ja­nela, deixando janelas quebradas, lojas saqueadas, restos de fogueiras, um grupo de mulheres de meia-idade, que se elegeram vigilantes da ordem, fez protestos formais à polícia por causa de um grupo de teatro amador de adolescentes. Este grupo tinha escrito e apresentado uma peça que des­crevia as tensões de uma família comum que morava em um edifício de apartamentos como o nosso, uma família que tinha acolhido meia dúzia de refugiados do sul. (Enquanto os viajantes estavam com os bandos migratórios eram con­siderados "desordeiros", mas quando conseguiam abrigo em alguma família passavam a ser "refugiados".) Um lar que tinha cinco pessoas se via, de repente, com doze, e as brigas resultantes levavam ao adultério e a um incidente onde "uma jovem seduziu um homem com idade suficiente para ser seu avô", segundo a descrição indignada das boas mulheres. Conseguiram organizar uma reunião não muito concorrida sobre a "decadência da vida familiar", sobre a "imoralidade" e a "permissividade sexual". É claro que era cômico. A não ser que fosse triste. A não ser como eu sugeri que fosse admirável; um sinal da vitalidade da dita "vida cotidiana" que iria por fim enfrentar o caos, a desordem, a malevolência dos acontecimentos.

Ou o que se pode dizer sobre os inumeráveis grupos de cidadãos que se batiam do princípio ao fim por qualquer meta social ou ética: melhorar a aposentadoria dos velhos, numa época em que o dinheiro dava lugar à troca de obje­tos; fornecer comprimidos de vitamina às crianças das esco­las; formar grupos de visita a inválidos; arranjar adoções formais e legais para crianças abandonadas; proibir notícias sobre qualquer acontecimento violento ou "desagradável" para não "colocar coisas na cabeça dos jovens"; tentar dia­logar com as hordas de desordeiros que invadiam as ruas ou, ao contrário, açoitá-los; percorrer as ruas exortando o povo a "restaurar o senso de decência em suas práticas sexuais"; concordar em não comer carne de cães e gatos; e assim por diante nunca havia um fim. Farsa. Equilibrar- se em um furacão; ficar em frente de um espelho para tocar a face de alguém ou dar um laço enquanto a casa desmorona à minha volta; estender a mão suave de um cumprimento real a um bárbaro que certamente se abaixará para me dar uma boa dentada... estas comparações me vêm à mente. Na época as analogias eram feitas, é claro, durante as conversas, que eram nossa comida e nossa bebida, e pelos comediantes profissionais.

Numa atmosfera destas, numa época de tais aconteci­mentos, o fato de um homem desconhecido chegar em minha casa com uma criança dizendo que ela estava sob minha responsabilidade e depois ir embora sem maiores explicações não era tão estranho assim.

Quando por fim Emily saiu de seu quarto, após ter mudado de roupa e enxugado do rosto o que parecia ter sido um assalto de infelizes lágrimas, disse:

O quarto será um pouco pequeno para Hugo e eu, mas não tem importância.

Vi que tinha atrás de si um cachorro, não, um gato.

O que era? Um animal, enfim. Era do tamanho de um buldogue e tinha formas mais parecidas com as de um cachorro do que com as de um gato, mas a cara era de gato.

Era amarelo. A pele era áspera e dura. Tinha olhos de gato e bigodes, e uma longa cauda corno um chicote. Um ani­mal horroroso. Hugo. Ela sentou-se cuidadosamente em meu velho e fundo sofá em frente à lareira, e o animal foi para seu lado, sentou-se, tão perto quanto podia, e ela colocou os braços à sua volta. Olhou-me, por trás da cara de gato do animal. Ambos me olharam, Hugo com seus olhos verdes e Emily com seus perspicazes e defensivos olhos cor de mel.

Era uma criança grande, de mais ou menos doze anos. Não era uma criança realmente; estava naquela fase em que logo se tornaria uma moça. Iria ser bonita, pelo menos vistosa. Bem-feita: tinha mãos e pés pequenos, e bons membros, morenos de saúde e sol. Seu cabelo era escuro e liso, dividido do lado, preso com um grampo.

Conversamos. Ou melhor, oferecemos uma à outra pe­quenas observações, ambas esperando que em algum lugar se ligasse o interruptor que tornaria mais fácil o fato de estarmos juntas. Enquanto estava ali sentada em silêncio, seu pensativo olhar escuro, a boca com possibilidades defi­nidas de humor, o ar de paciente e pensativa atenção faziam com que parecesse alguém de quem eu poderia gostar muito, Mas então, quando estava segura de que ela ia corresponder a minhas tentativas, ao meu sentimento de prazer por suas potencialidades, reviveu nela a pequena dama vivaz e segura de si. Esta palavra antiga era adequada para ela: havia algo de fora de moda na imagem que tinha de si própria. Ou talvez fosse uma impressão de outra pessoa à seu respeito?

Murmurou:

— Estou com uma fome terrível, e Hugo também. Po­bre Hugo! Não comeu hoje. E nem eu, para dizer a verdade.

Pedi desculpas e saí correndo para comprar qualquer comida de cachorro ou de gato que conseguisse encontrar para Hugo. Levei algum tempo para encontrar uma loja que ainda tivesse tais coisas. Era objeto de interesse para o ven­dedor, um admirador de animais, que aplaudiu minha in­tenção de lutar por meu direito de ter "bichinhos de esti­mação" naqueles dias. Um ou dois outros fregueses também se mostraram interessados, e tive muito cuidado em não dizer onde morava, quando um me perguntou, e voltei para casa por um caminho sinuoso, procurando ter certeza de que não tinha sido seguida. No caminho visitei várias lojas, pro- curando coisas que normalmente não me interessavam por serem difíceis de achar e muito caras. Mas por fim encontrei alguns biscoitos e doces de qualidade razoável tudo quan­to imaginava que pudesse atrair uma criança. Tinha muitas maçãs e peras cristalizadas e um estoque de alimentos bási­cos. Quando afinal voltei para casa ela estava dormindo no sofá e Hugo dormia a seu lado. Sua face amarela estava no ombro dela, os braços dela ao redor de seu pescoço. No chão a seu lado estava a malinha, tão frágil quanto uma maleta de fim de semana de uma criança pequena. Dentro havia alguns vestidos cuidadosamente dobrados, um suéter e um par de calças. Parecia ser tudo o que tinha de roupas. Não me surpreenderia se achasse um ursinho ou uma bone­ca. Mas em vez disso havia uma Bíblia, um livro de fotogra­fias de animais e algumas revistas de ficção científica.

Como boas-vindas, fiz como pude uma refeição para ela e Hugo. Acordei-os com dificuldade: estavam no estado de exaustão que se segue ao alívio após uma longa tensão. De­pois do almoço quiseram ir para a cama, apesar de ainda estarmos no meio da tarde.

Nos primeiros dias ela dormiu e dormiu. Por isso, e por causa de sua invencível obediência, inconscientemente pensava nela como mais nova do que realmente era. Eu fi­cava sentada em silêncio na sala, sabendo que ela estava dor­mindo, exatamente como se faz com uma criança pequena. Fiz alguns remendos, lavei e passei suas roupas. Mas na maior parte do tempo sentei-me, olhei para aquela parede e esperei. Não podia deixar de pensar que ter uma criança comigo, exatamente quando a parede começava a se abrir, seria uma amolação e que na verdade ela e seu animal eram um estorvo. Isto me fazia sentir-me culpada. Todos os tipos de emoções que não sentia há muito tempo reviveram em mim, e desejei simplesmente atravessar a parede e nunca mais voltar. Mas isso seria irresponsabilidade; significaria dar as costas às minhas obrigações.

Foi um dia ou dois após a chegada de Emily: estava atrás da parede, abrindo portas ou virando as curvas de com­pridos corredores para encontrar outro quarto ou série de quartos. Vazios. Isto é, eu não via ninguém, apesar de sen­tir tão fortemente a presença de alguém que não parava de virar a cabeça depressa, como se uma pessoa pudesse surgir de trás de uma parede nos poucos segundos em que eu tinha ficado de costas. Vazio mas habitado. Vazio mas mobilia­do... perambulando ali, entre paredes altas e brancas, de quarto em quarto, vi que o lugar estava cheio de móveis. Conhecia aqueles sofás, aquelas cadeiras. Mas por quê? De que época de minha vida datavam? Não eram de meu gosto. Entretanto pareciam ter sido meus, ou de um amigo íntimo.

A sala de visitas tinha cortinas de seda rosa-claras, um tapete cinza com delicadas flores em rosa e verde, várias mesinhas e armários. Os sofás e cadeiras eram revestidos com tapeçarias, tinham almofadas em tom pastel cuidadosa­mente espalhadas. Era uma sala demasiadamente formal e auto-suficiente para ter sido minha algum dia. Mas eu conhe­cia tudo ali. Andava, enchendo-me vagarosamente de um desespero irritado. Tudo o que via precisaria ser mudado de lugar, ou remendado, ou limpo, pois nada estava inteiro ou novo. Todas as cadeiras deveriam ser reestofadas, pois o te­cido esgarçava. Os sofás estavam encardidos. As cortinas tinham pequenos rasgões e as traças formavam retalhos desi­guais, cada uma em seu minúsculo buraco. O tapete mos­trava as fibras. E o mesmo acontecia com todos os vários quartos deste lugar, que me davam a sensação de coisas me escapando por entre dedos desajeitados e rijos. Tudo preci­sava ser limpo, dizia o tempo todo para mim mesma. O lugar deveria ser esvaziado, e o que estava lá deveria ser queimado ou jogado fora. Quartos vazios seriam melhores que aquela andrajosidade infinitamente elegante, aquela bu­giganga. Quarto após quarto não havia fim para eles, nem para o trabalho que me esperava. Continuava procurando o quarto vazio que tinha uma escada de pintor e uma figura meio apagada de macacão: se pudesse vê-lo saberia que algo já tinha sido feito. Mas não havia quartos vazios, todos esta­vam repletos de objetos, todos precisavam de cuidado.

Não se deve pensar que toda a minha energia estivesse canalizada para o lugar escondido. Às vezes passava dias sem pensar nele. A consciência de sua presença, qualquer que fosse a forma que tomasse naquele momento, vinha-me em repentes durante minha vida cotidiana, cada vez mais freqüentes. Mas também iria esquecê-los durante alguns dias. Quando estava realmente do outro lado da parede nada mais parecia real. E mesmo as novas e sérias preocupações de minha vida Emily e seu animal assistente fugiam, para muito longe, eram parte de uma outra vida distante que não me dizia muito respeito. E aí está minha dificuldade em descrever esta época: olhando agora para trás, é como se fossem dois tipos de vida, duas vidas, dois mundos, lado a lado e intimamente ligados. Mas então uma vida excluía a outra, e eu não esperava que os dois mundos algum dia se juntassem. Não pensava de jeito nenhum que fossem capazes disso, e teria dito que não era possível. Sobretudo agora que Emily estava lá. Sobretudo quando eu tinha tantos pro­blemas a partir do fato de ela estar comigo.

O problema principal era, e continuou sendo durante algum tempo, ela ser tão infinitamente cordata e obediente. Quando me levantava de manhã, ela já estava de pé, com um de seus vestidinhos limpos, roupas de uma boa criança cuja mãe precisa que seu filho ande bem vestido, a ponto de chamar a atenção. O cabelo, penteado. Os dentes, escova­dos. Esperava-me na sala, com o seu Hugo, e na mesma hora começava a tagarelar, oferecendo isso ou aquilo, como dor­miu maravilhosamente, ou como sonhou, ou como teve essa idéia desconcertante ou tola ou valiosa e tudo de um modo corrido, quase frenético, para evitar qualquer ordem ou crítica minhas. E então começava a falar sobre o café, como "adoraria" fazê-lo — oh, ela simplesmente adoraria, por favor, pois era sempre tão prestativa e capaz. E então ela e eu íamos para a cozinha, o animal airastando-se atrás de nós, e eu e Hugo nos sentávamos para assistir a seus prepa­rativos. E ela era, na verdade, competente e elegante. E en­tão comíamos o que quer que fosse, a cabeça de Hugo na altura de sua cintura, os olhos mirando calmamente ela, eu, nossas mãos, nossos rostos, e quando lhe era oferecido um pouco de comida pegava-a delicadamente, como um gato. Então ela se oferecia para lavar a louça.

Não, não, eu adoro lavar louça, por incrível que pareça, mas gosto realmente!

E ela lavava e deixava a cozinha limpa. Seu quarto já tinha sido arrumado, mas não a cama, que era sempre um ninho ou útero de lençóis e travesseiros embolados. Nunca a censurei por isso, muito pelo contrário. Deliciava-me que tivesse um lugar que sentisse ser dela mesma, que pudesse transfoimar em seu refúgio, onde pudesse esconder-se desta necessidade realmente terrível de ser tão brilhante e boa. Às vezes, imprevisivelmente, durante o dia, ia pata o quarto abruptamente, como se alguma coisa tivesse sido demais. Batia a porta e, eu sabia, mergulhava no amontoado de desordem e ali se deitava e se recuperava... mas de quê? Na sala, sentava em meu velho sofá, as pernas encolhidas, numa posição que era quase uma demonstração daquilo que se poderia esperar dela, como seus modos, sua obediência. Olhava-me, como se adivinhasse ordens ou necessidades, ou lia. Seu gosto por livros era adulto: vê-la ali, com o que tivesse es­colhido, tornava seu jeito de criança prodígio ainda mais impossível, quase como se estivesse, deliberadamente, me insultando. Ou sentava com o braço em torno do animal amarelo, que lhe lambia a mão e colocava a cara de gato em seu colo, ronronando, com um barulho que ressoava nas paredes de meu apartamento.

Não perguntei. Nunca, nem uma vez, lhe fiz uma per­gunta. E ela não fornecia informações gratuitas. Enquanto isso meu coração se condoía dela, de ver seu jeito, e, ao mesmo tempo, sentia realmente uma pena bastante leve e ridícula de mim mesma, entrava num frenesi de irritação ao constatar minha falta de jeito em ultrapassar, pelo menos por um instante, a barreira que ela tinha erguido. Assim era ela, a garotinha séria e solene, em seu vestido de boa menina, mostrando todas as marcas de uma criança solitária, toda cuidados e observação consigo própria, e então ela saía tagarelando e palreando, sendo "agradável", oferecendo-me pequenas habilidades e capacidades em troca de o quê? Não me achava tão formidável assim. Quase me sentia como se não existisse, a meu modo. Era, para ela, uma continua­ção de seus pais, ou de um dos pais, um guardião, um pa­rente distante. E quando saíssemos dali, eu a entregaria a uma outra pessoa? O homem que a tinha deixado sob meus cuidados voltaria para buscá-la? Seus pais chegariam? E se não chegassem, o que eu iria fazer com ela? Quando come­çasse minhas viagens para o norte ou o oeste, juntando-me ao movimento geral da população em fuga do lado sul e leste do país, em busca de quê estaria indo? De que tipo de vida? Não sabia. Mas não tinha pensado em uma criança, nunca numa responsabilidade tão total... e, além disso, mesmo nos poucos dias em que estava ali ela tinha mudado. Seus seios tomavam forma, apagando o corpo infantil. O rosto redondo com atraentes olhos escuros precisavam de muito pouco para se transformar no rosto de uma mocinha. Uma "criancinha" era uma coisa já bastante ruim "crian­ça com seu bichinho"... mas a "mocinha" seria bem outra, e sobretudo nesta época.

Parecerá contraditório quando eu disser que outra coisa que me incomodava era sua indolência. É claro que não havia muito a fazer em meu apartamento. Ela se sentava du­rante horas em frente à janela e olhava, absorta, tudo o que ocorria. Entretinha-me com comentários: era um presente medido e deliberado. Era claro que ela era conhecida por seus comentários "agradáveis". Novamente aqui eu não sa­bia direito o que me chamava a atenção, mas estas decerto não eram percepções de uma garotinha. Ou talvez eu esti­vesse desatualizada, e isso fosse o esperado naquele tempo, pois agora quantas pressões e tensões tinha uma criança que aceitar e incorporar?

O Professor White iria sair da portaria e dar alguns passos e então pararia, olhando a rua de cima a baixo, de modo quase militar: Quem vem lã! Depois, mais confiante, pararia por um momento: podia-se quase imaginá-lo colo­cando um par de luvas, ajeitando o chapéu. Era um homem frágil, jovem para um professor, ainda por volta dos trinta anos. Um homem preciso, cinzento, com tudo na vida em seu lugar certo. No rosto de Emily aparecia um sorriso ao vê-lo, um sorrisinho amargo, como se estivesse pensando: "Vou pegá-lo. Não tem como me escapar!" E por cima das pontiagudas orelhas amarelas de seu animal assistente diria:

Ele parece que vai colocar um par de luvas! (Sim, esta observação era sua.)

E então:

Deve ter um gênio terrível!

Mas por quê? Por que você pensa assim?

Por quê? Bem, é claro, todo esse controle, tudo tão limpo e arrumado deve explodir em algum lugar.

E mais:

Se ele tivesse uma concubina... — o uso da pala­vra fora de moda era deliberado, fazia parte do ato. En­tão ela teria de ser alguém de má reputação, alguém bem estranho, ou ele pensaria que era, ou outras pessoas teriam que pensar assim mesmo que ele não o fizesse. Porque ele teria que se sentir um pecador, não vê?

Bem, claro que ela tinha razão.

Vi-me pedindo desculpas por sentar ali, para ouvir o que ela inventaria a seguir. Mas também sentia certa aversão de ver a faca ser enfiada tão habilmente, tão precisamente, tantas vezes.

Sobre Janet White, uma menina quase de sua idade:

Vai passar a vida toda procurando alguém como o Papai, mas onde irá encontrá-lo? Quero dizer, agora ele não existe.

Claro que se referia à falência geral de tudo, a um tem­po que não era propício à produção de professores de cami­sas muito brancas e limpas e com uma paixão secreta pelo desrespeitável — já que a própria respeitabilidade estava condenada à morte e com ela as distinções que suas neces­sidades secretas deviam alimentar. Chamava o professor de Coelho Branco. A filha, chamava de Menininha do Papai, frisando que ao fazer isso estava, obviamente, descrevendo a si própria:

A quem mais, no final das contas?

Quando sugeri que poderia ser divertido tornar-se ami­ga de Janet, disse:

O quê? Eu e ela?

Ficava ali sentada, a maior parte do dia, refestelando-se numa cadeira grande que escolhera para isso: uma criança, apresentando-se como tal. Podia-se quase ver as soquetes brancas em suas pernas roliças e bem-torneadas, o laço de fita no cabelo. Mas o que se via na realidade era bem dife­rente. Vestia jeans e uma camisa que tinha passado a ferro de manhã, com os dois botões de cima abertos. O cabelo estava agora repartido no meio, e num repente havia se transformado em uma jovem beldade: sim, já era assim.

E como num reconhecimento deste passo em direção à vulnerabilidade, agora seus piores, ou melhores, comentários eram sobre os meninos que passavam: este tinha um jeito de andar que ela sabia representar uma insegurança sobre si próprio; aquele tinha um jeito espalhafatoso de se vestir; o outro tinha pele ruim, ou cabelos maltratados. Estes resmungos nada atraentes representavam uma força, um imperativo do qual não havia como escapar, e como uma menina num trampolim muito alto ela estava berrando de pavor.

Era assustadora em sua precisão. Deprimia-me — oh, por várias razões, e uma delas era o meu próprio passado. Por ora ela ainda não suspeitava disso, acreditava realmente — assim me diziam as maneiras gloriosas e os olhares con­fiantes — que estava, como sempre, valendo a pena; e desta vez devido à sua perspicácia. Simplesmente não podia deixar ninguém passar sem engoli-lo, regurgitá-lo e depois cuspir seu visco: o pequeno gênio, aquela que não podia ser enga­nada, que não podia ter nada acima de si; que tinha sido aplaudida por ser assim, a quem tinham ensinado isso.

E até entrei no quarto uma vez e a vi falando pela ja­nela com Janet "White: zelosa, carinhosa, aparentemente sin­cera. Se não gostava de Janet White, pretendia que Janet gostasse dela. Infinitas promessas foram feitas pelas duas garotas: de que iriam juntas ao mercado, fariam visitas, passeios. E quando Janet se foi, sorrindo pelo carinho que absorvera de Emily, esta disse:

Ela ouviu os pais falarem sobre mim e agora vai fazer seu relatório.

Claro que era verdade.

A questão era que não havia ninguém que se aproxi­masse dela, alcançasse seu raio de visão, e não fosse encarado como uma ameaça. Era assim que ela sentia, alguma coisa que acontecera "preparou-a" para tal. Descobri que estava tentando colocar-me em seu lugar, tentando ser ela, compreender como as pessoas podiam ser agudamente resumidas por sua necessidade de criticar, de se defender. E descobri que estava achando que isso era simplesmente o que todos faziam, o que eu fazia, mas que havia algo nela que aumen­tava essa tendência, que a ampliava, exagerava. Pois é claro que, quando alguém desconhecido se aproxima de nós, tomamos todo o cuidado. Tiramos as medidas da pessoa: milhares de medidas e julgamentos incrivelmente rápidos, colocando-a em um exato julgamento silencioso: sim, este me serve; não, não temos nada em comum; não, ele, ou ela, é uma ameaça... cuidado! Perigo! E assim por diante. Mas foi só quando Emily acen­tuou tudo isso para mim que compreendi como estamos todos numa prisão, como era impossível para qualquer um de nós deixar um homem ou uma mulher ou uma criança se aproximar sem a inspeção defensiva, a análise rápida, agu­çada, fria. Mas a reação era tão rápida, tinha se tornado de tal maneira um hábito provavelmente o primeiro ensi­nado por nossos pais —, que não nos apercebíamos do quan­to estávamos aprisionados.

Olhe como ela anda diria Emily. Olhe aquela velha gorda. (Claro que a mulher tinha uns quarenta e cinco ou cinqüenta anos, mas poderia ter trinta!) Quando ela era moça as pessoas diziam que tinha um andar sensual: "Oh, que requebrado sensual você tem, uuh, que sexy!"

E sua paródia era horrível pela exatidão: a mulher, esposa de um comerciante de alimentos que tinha se tor­nado vendedor de coisas usadas e que morava no andar de cima, era dada a uma centena de trejeitos faceiros da boca, dos olhos e dos quadris. Isto foi o que Emily viu primeiro nela: era o que todo mundo devia ver primeiro nela. E com base nesses trejeitos provavelmente era julgada pela maioria das pessoas. Era impossível escutar Emily sem se perceber todo o ser de alguém, sua idéia sobre si próprio diminuída, esvaziada. Era um assalto sobre a vitalidade do outro: escutá- la era conhecer os limites entre os quais todos vivemos.

Sugeri que poderia gostar de ir à escola para ter o que fazer, completei rapidamente ao ver seu olhar zombetei­ro. Este olhar não era medido: era sua reação genuína. Assim, eu estava pegando uma réstia daquilo que tinha pre­cisado durante algum tempo: saber o que ela pensava de mim, a idéia que fazia de mim era condescendência.

Ela disse:

Para quê?

Para quê? A maioria das escolas tinha desistido de tentar ensinar; tinham se tornado, pelo menos para as pessoas pobres extensões do exército, do aparato que mantem a população sob controle. Ainda havia escolas para as crian­ças das classes privilegiadas, dos administradores e super­visores. Janet White freqüentava uma destas. Mas eu tinha muita consideração por Emily para mandá-la para uma, mes­mo que fosse possível conseguir uma vaga. Não que lá a educação fosse má. Era irrelevante. Mereceria... um olhar zombeteiro.

Não serve para grande coisa, concordo. E acho que, de qualquer modo, não ficaremos aqui por muito tempo.

Mas para onde você acha que vai?

Isto me partiu o coração. Seu desesperançado isola­mento nunca tinha se mostrado tão claramente. Tinha fala­do veladamente, até delicadamente, como se não tivesse di­reito de perguntar, como se não tivesse nenhum direito de receber meus cuidados, minha proteção qualquer partici­pação em meu futuro.

Por causa da emoção fiquei mais convencida de meus planos do que pensava. Na verdade, já tinha cogitado al­gumas vezes se uma certa família que eu conhecia no norte do País de Gales me abrigaria. Eram uns fazendeiros muito bons sim, esta é exatamente a medida de minhas fanta­sias a respeito deles. "Bons fazendeiros" era agora seguran­ça, refúgio, paz utopia que se delineavam na cabeça de inúmeras pessoas durante aqueles dias. Mas eu conhecia Mary e George Dolgelly, era íntima de sua fazenda, tinha visitado sua hospedaria, aberta durante o verão. Será que se eu rumasse para lá poderia viver naquele lugar por algum tempo? Eu era habilidosa, gostava da vida simples, sentia-me tão bem na cidade quanto fora dela... É claro que na­quela época estas qualificações pertenciam a um grande nú­mero de pessoas, sobretudo aos jovens, que podiam cada vez mais se voltar para qualquer trabalho. Não achava que os Dolgelly me ofereceriam qualquer pagamento. Mas pelo menos, acreditava, não me cobrariam nada. E a uma crian­ça? Ou melhor, uma mocinha? Uma garota atraente e de­safiadora? Bem, eles tinham seus próprios filhos... pode-se ver que minhas idéias eram bastante convencionais, pouco criativas. Fui falando com Emily desse jeito e, enquanto escutava, seu sorrisinho amargo foi aos poucos dando lugar ao deleite. Mas um deleite carregado de boa educação: eu ainda não podia me convencer de que fosse afeição. Ela co­nhecia o significado dessa fantasia, mas apreciava-a, como eu. Pediu-me para descrever a fazenda: uma vez passei uma se­mana lá, acampada num brejo, com água prateada em pe­quenos canais de uma colina púrpura. Toda manhã ia, com uma caneca até Mary e George e pegava o leite, apro­veitando para comprar pão feito em casa. Um idílio. De­senvolvi-o, deixei-o ganhar detalhes. Iríamos ficar aloja­das na hospedaria e Emily "ajudaria a cuidar das gali­nhas" — um toque de história da carochinha, esse. Come­ríamos na mesa da hospedaria — uma comprida mesa de madeira. Tinha um forno velho num nicho. Teríamos cozido e sopa, comida verdadeira, e poderíamos comer o quanto quiséssemos... não, isto não era realista, mas o quanto pre­cisássemos, de pão verdadeiro, queijo verdadeiro, legumes frescos, talvez até mesmo, algumas vezes, um pouco de boa carne. Haveria o cheiro das ervas penduradas em molhos para secar. A garota ouvia tudo isso, e eu não podia afastar os olhos de seu rosto, onde o conhecido sorrisinho cortante se alternava com sua necessidade de me proteger de minha inexperiência, de minha vida de redoma! Havia algo mais forte do que tudo, algo de que ela quase não tinha consciência, que certamente destruiria todas as evidências, caso ela soubesse que estava traindo sua fraqueza. Mais forte que os trejeitos, que a necessidade de agradar e comprar, que a dolorosa obediência, havia isto: uma fome, uma necessida­de, uma coisa pura, que fazia com que seu rosto perdesse aquele brilho duro e seus olhos, sua defesa. Ela era toda saudade. De quê? Bem, isso não é tão fácil de saber, nunca é! Mas era algo que eu reconhecia, conhecia, e falar da fa­zenda nas colinas de Gales era melhor do que tudo para fazer com que esse sentimento aparecesse, brilhasse: bom pão, água limpa de um poço profundo, legumes frescos; amor, carinho, a proteção verdadeira de uma família. E assim falamos sobre a fazenda, nosso futuro, o dela e o meu, como de uma fábula onde andaríamos de mãos dadas, juntas. E então a "vida" começaria, vida como deveria ser, como tinha sido prometida — por quem? Quando? Onde? — para to­dos nesta terra.

A época idílica — na realidade não mais do que pou­cos dias — terminou abruptamente. Numa tarde quente olhei para fora e vi, sob os plátanos da calçada em frente, cerca de sessenta jovens, e reconheci-os como um bando de viajantes em seu caminho através da cidade. Esse reconheci­mento nem sempre era fácil, apesar de haver tantos iguais, pois se se vissem dois ou três ou quatro de tal grupo separa­dos dos outros poder-se-ia pensar que eram estudantes que ainda — apesar de não haver muitos — podiam ser vistos em nossa cidade. Vistos juntos, eram instantaneamente in­confundíveis. Por quê? Não, não apenas porque um grupo de jovens, naqueles dias, não pudesse significar nada mais. Tinham uma individualidade capitulada, era este o ponto, julgamento e responsabilidade individuais destruídos, e isto aparecia centenas de vezes, não só pela reação instintiva que se tinha ao encontrá-los, que era sempre uma forte apreen­são, mas porque se sabia que em uma confrontação — se se chegasse a isso — haveria um falso julgamento. Não agüentavam ficar muito tempo sozinhos. À massa era sua casa, seu local de auto-reconhecimento. Eram como cães an­dando juntos num parque ou num terreno baldio. A doce cadelinha da matrona (seu volumoso e elegante penteado, uma defesa contra o medo visível em seu animal de estima­ção, cuja capa são os caracóis de uma velha senhora mos­trando o antigo couro cabeludo rosa, mas protegida por um casaco de lã vermelha feito à mão); o grande afegã, criado para correr até quarenta milhas por dia sem sentir, trancado em sua casinha, em seu pequeno jardim; o vira-lata, de uma raça de sobreviventes; o spaniel,por natureza um cão caçador — todos estes adoráveis companheiros de famílias, Togo e Bonzo e Fluff e Lobo, tendo cheirado os traseiros uns dos outros e estabelecido sua procedência, vão embora, um grupo, uma unidade... E claro que esta descrição é verda­deira para qualquer grupo de pessoas, de qualquer idade, em qualquer lugar, caso seus papéis não estejam ainda defi­nidos em uma instituição. Os bandos de "guris" estavam apenas mostrando o caminho para os mais velhos, que logo os copiariam. Um "bando de jovens" quase sempre, e cada vez mais, incluía pessoas mais velhas, até mesmo famílias, mas o rótulo permaneceu. Era assim que as pessoas falavam das hordas em movimento, quando parecia que toda a po­pulação fazia parte da mudança.

Nesta tarde, com as árvores pesadas e carregadas sobre suas cabeças, o sol um verdadeiro festival — era setembro, e ainda fazia calor —, o grupo sentou-se na calçada, arman­do uma grande fogueira e arrumando suas coisas em uma pilha com uma guarda parada ao lado: dois meninos arma­dos de pesados cassetetes. Toda a área se tinha esvaziado, como sempre acontecia. Era improvável achar-se a polícia — as autoridades não podiam lidar com este problema e nem o desejavam: ficavam felizes por se livrarem destes bandos que levavam para outro lugar os problemas que haviam criado. Todas as janelas baixas existentes num raio de várias milhas estavam fechadas e as cortinas, descidas, mas podiam-se ver rostos aglutinados em todas as janelas al­tas dos edifícios à nossa volta. Os jovens acomodaram-se em grupos ao redor do fogo, e alguns casais se abraçaram. Uma garota tocava violão. O cheiro de carne assando era forte, e ninguém gostava de pensar muito nisso. Perguntei-me se Hugo estava em segurança. Não tinha me tornado amiga deste animal, mas sempre me preocupava com o bem-estar de Emily. Então notei que ela não estava na sala nem na cozinha. Bati na porta de seu quarto e entrei: o ninho macio feito de pilhas de roupas de cama que transformara em um abrigo contra o mundo estava lá, mas ela não, e nem Hugo. Lembrei-me que na massa de jovens havia uma mocinha de jeans apertados e camisa rosa que se parecia com Emily. Era realmente Emily, e, agora, da janela, eu a observava. Estava parada perto do fogo, uma garrafa nas mãos, rindo, era uma do bando, da multidão, do time, do grupo. Parado, grudado em suas pernas, apreensivo consigo mesmo, estava o bicho amarelo: tinha sido escondido pela multidão reunida. Vi que ela estava gritando, discutindo. Recuou, a mão na cabeça de Hugo. Foi se afastando aos poucos e então virou-se e correu, o animal saltando a seu lado: vê-los assim, mesmo que ra­pidamente, era um doloroso lembrete de seu poder, sua capacidade, sua força, atualmente enfraquecidos pelos pe­quenos quartos que aprisionavam sua vida e seus movimen­tos. Uma enorme gargalhada rouca partiu dos jovens, tor­nando evidente que tinham estado implicando com ela por causa de Hugo. Não pretendiam realmente matá-lo. Fingi­ram que o fariam e ela acreditara. Isto tudo signifi­cava que não a tinham considerado um dos seus, nem mes­mo potencialmente. Ela não os tinha desafiado como crian­ça, não; mas como uma mocinha, uma igual — devia ter sido assim, e eles não a aceitaram. Tudo isto me veio à mente, foi calculado por mim, quando ela entrou na sala, branca, tremendo, aterrorizada. Sentou-se no chão, colocou os braços em redor de Hugo e abraçou-o estreitamente, balançando-se um pouco, para a frente e para trás, dizendo, ou cantando, ou soluçando:

Oh, não, não, não, Hugo querido. Eu não iria, não poderia, não iria permitir, não fique tão apavorado!

Pois ele tremia tanto quanto ela. Tinha colocado a ca­beça nos ombros dela, uma maneira de se consolarem mu­tuamente nessas ocasiões.

Mas, rapidamente, vendo que eu estava lá e que tinha compreendido sua rejeição pelo grupo adulto que tinha desafiado, ficou vermelha, furiosa. Empurrou Hugo e ergueu-se, o rosto mostrando a luta que travava para se controlar. Tornou-se sorridente e dura, riu e disse:

São realmente bastante divertidos, não sei por que falam coisas desagradáveis sobre eles.

Foi até a janela para observá-los lá fora, ver como le­vavam as garrafas até a boca, passavam nacos de comida um ao outro, como dividiam as refeições. Emily estava subjuga­da: talvez até sentisse medo, perguntando-se como afinal po­deria ter ido embora com eles. Mas cada um de nós, as cen­tenas de pessoas em nossas janelas, sabia que, olhando-os, estávamos examinando nossas próprias possibilidades, nosso futuro.

Logo, sem me olhar, Emily empurrou Hugo para den­tro do quarto e bateu a porta, novamente saiu do aparta­mento e atravessou a rua. Agora a luz da fogueira abria um espaço claro sob as árvores chamuscadas. Todas as janelas mais baixas estavam às escuras, mas refletiam as labaredas ou um brilho gelado da luz de uma meia-lua que passava entre duas torres de apartamentos. As janelas superiores es­tavam cheias de cabeças delineadas contra vários tipos e graus de luz. Mas alguns cidadãos já se haviam juntado aos jovens, curiosos em saber de onde tinham vindo, para onde iam; Emily não era a única. Devo confessar que mais de uma vez visitei um acampamento durante a noite. Não nessa parte da cidade — não, tinha medo de meus vizinhos, de sua condenação —, mas tinha visto rostos que conhecia de minha vizinhança: todos faziam o mesmo, pelos mesmos motivos.

Não tinha medo do que poderia acontecer com Emily caso ela se comportasse direito. Caso não o fizesse, então eu planejava atravessar a rua e resgatá-la. Vigiei a noite toda. Às vezes podia vê-la, outras não. A maior parte do tempo es­tava com um grupo de meninos mais novos do que o resto. Ela era a única garota, e comportava-se tolamente, desafiando-os, afirmando-se. Mas estavam todos bêbados, e ela era apenas mais um dos ingredientes de sua intoxicação.

Tinha gente dormindo na calçada, a cabeça sobre um casaco dobrado ou sobre os braços. Dormiam despreocupa­dos enquanto os outros vigiavam. Este sono tranqüilo, con­fiante de que os outros não os pisariam, de que seriam pro­tegidos, dizia mais do que qualquer outra coisa sobre a resis­tência que estes jovens haviam adquirido, a confiança que tinham uns nos outros. Mas um sono geral não era o que tinha sido planejado. O fogo morreu. Logo seria manhã. Vi que se arrumavam para ir andando. Passei um mau bocado perguntando-me se Emily iria com eles. Mas após alguns cumprimentos, altos e obscenos, como os abraços e os ges­tos de prostitutas e soldados quando um regimento parte, e após ter corrido ao lado deles pela calçada durante alguns metros, ela voltou vagarosamente. Não, não para mim, já a conhecia muito para pensar assim, mas para Hugo. Quando entrou pude ver seu rosto por instantes sob a luz do corre­dor um solitário rosto pesaroso, de modo algum o rosto de uma criança. Mas quando entrou na sala já estava com a máscara.

Foi uma boa noite, diga o que quiser falou.

Eu não tinha dito nada e nada disse então.

Fora o fato de comerem gente, são muito simpá­ticos, eu acho falou com um bocejo exagerado.

E eles comem gente?

Bem, não perguntei, mas acho que sim. E você?

Abriu a porta de seu quartinho e Hugo saiu, os olhosverdes atentos em seu rosto, e ela lhe disse:

Está tudo bem; não fiz nada que você não fizesse,juro.

E com este comentário infeliz e um risinho amargo, ela se foi, dizendo sem voltar-se:

Poderia fazer pior do que ir com eles um dia desses, é o que penso. Pelo menos eles se divertem.

Bem, preferi aquele boa-noite a muitos outros que tro­camos quando às dez horas ela gritava:

Ih, já é hora de dormir; lá vou eu.

E um respeitoso beijo de boa-noite, formal, pairava en­tre nós, um fantasma, como as invisíveis luvas brancas do Professor White.

Isso aconteceu durante todo o último outono, dia após dia, novos bandos passando. E, dia após dia, Emily ficava com eles. Não perguntava se podia. E eu não iria proibi-la, pois sabia que não me obedeceria. Não tinha autoridade. Não era minha filha. Evitávamos uma confrontação. Estava lá sempre que as calçadas em frente ficavam cheias e o fogo era aceso. Por duas vezes ficou muito bêbada, e numa delas apareceu com a blusa rasgada e marcas de dentadas no pes­coço. Disse:

Acho que você está pensando que perdi a virginda­de. Bem, não perdi, apesar de ter sido algo muito íntimo, garanto.

E então o pequeno e frio adendo, sua assinatura:

Se é que importa, o que eu duvido.

Acho que importa — falei.

Ih, é mesmo? Bem, acho que você é uma otimista. Ou algo parecido. O que você acha, Hugo?

Aquela série de bandos em movimento chegou ao fim. A calçada, em todas as direções, estava enegrecida pelas fogueiras que tinham ardido ali durante tantas noites, as folhas dos plátanos pendiam murchas e estragadas, havia ossos, pedaços de pele e vidro quebrado por toda parte, e o ter­reno baldio que havia atrás estava maltratado e imundo. Ago­ra a polícia tinha se materializado, muito ocupada em tomar notas e colher depoimentos. Os lixeiros apareceram. As cal­çadas voltaram ao normal. Tudo voltou ao normal por algum tempo, e as janelas do primeiro andar tinham luzes acesas durante a noite.

Foi mais ou menos nesta época que compreendi que os acontecimentos na calçada e o que acontecia entre Emily e eu deviam ter alguma conexão com o que vi em minhas visitas ao outro lado da parede.

Movendo-me através das paredes altas, silenciosas e brancas, tão inconstantes quanto cenários de teatro, sabendo que o habitante real estava lá, sempre exatamente atrás da próxima parede, pronto para ser percebido ao abrir-se a próxima porta ou a outra depois dessa, cheguei a um quar­to, comprido, de teto baixo, que já tinha sido um belo quar­to, que reconhecia, que conhecia (de onde, entretanto?), e que estava em tal desordem que me senti mal e tive medo. Parecia que selvagens tinham passado por ali, que soldados tinham acampado por lá. As cadeiras e sofás haviam sido deliberadamente retalhados e esfaqueados com baionetas ou facas, o estofo estava espalhado por toda parte, as cortinas de brocado, arrancadas dos trilhos e amontoadas. O quarto devia ter sido usado como açougue, havia tufos de pêlos, sangue, pedaços de entranhas. Comecei a limpá-lo. Trabalhei, usei vários baldes de água quente, esfreguei, remendei. Abri altas janelas para um jardim do século XVIII onde plantas cresciam em desenhos regulares por entre baixas sebes. O sol e o vento foram convidados a entrar naquele quarto e a limpá-lo. Só contava comigo mesma, apesar de não me sen­tir capaz. Então ficou pronto. Os velhos sofás e cadeiras es­tavam consertados e limpos. As cortinas foram jogadas na lixeira; Andei por ali durante muito tempo, pois era um quarto suficientemente grande para permitir algumas pas­sadas. E fiquei na janela, vendo as malvas e as rosas-chá, sentindo o aroma de lavanda, rosas, alecrim, verbena, cons­ciente das lembranças que me assaltavam, reivindicatórias, insinuantes. Uma era da minha vida "real", pois algo em mim resmungava e lutava dizendo que as calçadas onde fo­gueiras tinham sido acesas e árvores chamuscadas faziam parte do estofo e da substância daquele quarto. Mas havia o toque de nostalgia do próprio quarto, da vida que trans­correra ali, que continuaria no momento em que me reti­rasse. E do jardim, cujos caminhos e cantos eu conhecia na carne. E, acima de tudo, do morador que estava em algum lugar próximo, provavelmente me espiando; que, quando eu tivesse saído, iria andar e balançar a cabeça aprovando a lim­peza que eu tinha feito e depois, talvez, saísse para uma volta pelo jardim.

O que descobri a seguir tinha uma ambientação muito diferente: acima de tudo, uma atmosfera diferente. Foi a primeira das experiências "pessoais". Esta foi a palavra que usei para elas desde o princípio. E a atmosfera era sempre inconfundível, assim que eu penetrava em qualquer cená­rio. Isto é, entre o sentimento, a textura ou o jeito dos cenários que não eram "pessoais", como, por exemplo, o comprido e silencioso quarto que tinha sido tão devastado, ou qualquer outro acontecimento, não importa quão cansa­tivo, difícil ou desencorajador, que eu visse neste ou naque­le lugar — entre estes e os cenários "pessoais" repousava um mundo. Os dois tipos, o "pessoal" (apesar de não neces­sariamente para mim) e o outro, existiam em esferas bas­tante distintas e separadas. Um, o "pessoal", era instanta­neamente reconhecido pelo ar que era sua prisão, pelas emo­ções que eram suas criaturas. Os cenários impessoais podiam trazer desencorajamento ou problemas a serem resolvidos, como a reforma de paredes ou móveis, faxina, dar ordem ao caos — mas neste reino havia uma luminosidade, uma li­berdade, uma sensação de possibilidade. Sim, era isso, o es­paço e o conhecimento da possibilidade de ação alternativa. Podia-se limpar ou não o quarto, ou aquele pedaço de terra; podia-se entrar em outro quarto, escolher outro cenário. Mas penetrar no "pessoal" era entrar numa prisão, onde nada poderia acontecer a não ser o que se viu acontecer, onde o ar era sufocante e limitado e, acima de tudo, onde o tempo era uma lei rígida, inalterável e comprida, oh, meu Deus, este passava, ininterruptamente, minuto após minuto, sem nenhuma escapatória a não ser vê-los serem consumidos um após o outro.

Era novamente um quarto alto, mas desta vez quadrado e sem graça, com janelas altas, mas pesadas e cortinas de veludo vermelho-escuro. Uma lareira ardia, e à sua frente havia uma forte proteção, como uma grade de arame. Sobre ela secava uma grande quantidade de fraldas finas, frágeis, fraldas de bebê daquele tipo antigo, e várias camisinhas e faixas, vestidos curtos e compridos, mantos, casacos, meinhas. Um enxoval de recém-nascido eduardiano, emitindo um odor que não é ressecado, mas quase isso: fazendas aque­cidas sem ventilação. Tinha um cavalinho de madeira. Li­vros que ensinavam o alfabeto. Um berço com babados de musselina, diminutas flores azuis e verdes sobre o branco... Percebi a importância das cores, pois tudo era branco: rou­pas brancas, berço, caminha, cobertores, lençóis, fronhas e cesto brancos. Um quarto pintado de branco. Um reloginho branco que seria descrito num catálogo como um "relógio de berçário". Branco. O tique-taque do relógio era delicado, baixo e incessante.

Uma garotinha de uns quatro anos estava sentada num tapete à beira da lareira, com as roupas que secavam entre ela e as chamas. Usava um vestido de veludo azul-marinho. Tinha cabelos escuros repartidos do lado e amarrados por uma larga fita branca, e olhos cor de mel profundamente sérios, quase defensivos.

Na cama estava um bebê, sendo arrumado para a noite.

O bebê estava rindo. Uma enfermeira ou babá suspendia o bebê, mas somente umas largas costas brancas eram visíveis. A visão da garotinha olhando a babá carinhosa debruçar-se sobre o irmão era suficiente, dizia tudo. Mas tinha mais: outro vulto, imensamente alto, forte e poderoso entrou no quarto. Era uma personagem toda feita de implacável ener­gia, e ela, também, inclinou-se sobre o bebê. As duas mu­lheres uniram-se numa cerimônia de adoração, enquanto o bebê balbuciava, correspondia e murmurava. E a garotinha olhava. Tudo à sua volta era enorme — o quarto tão gran­de, quente e solene, as duas mulheres tão altas, fortes e antipáticas, a mobília atemorizante e intrincada, o relógio com seu mecanismo suave que dizia a todos o que fazer — era obedecido por todos, consultado, constantemente olhado.

Ser convidada a esta cena era ser absorvida pelo espa­ço infantil. Vi-o como uma criancinha o faria — enorme e implacável; mas ao mesmo tempo mantinha comigo minha consciência de que era minúsculo e implacável — porque mesquinho, sem importância. Era uma tirania do insignificante, do estúpido. Claustrofobia, falta de ar, um sufoca­mento da mente, da aspiração. E tudo interminável, pois assim era o tempo infantil, onde o final de um dia mal po­dia ser diferenciado de seu início, controlado pelo rígido re­lógio branco. Cada dia era algo a ser escalado, como as enormes e empedernidas cadeiras, uma cama mais alta do que a cabeça, obstáculos e desafios superados com a ajuda de grandes mãos que agarravam, puxavam e empurravam — mãos que, vistas nos cuidados com aquele bebê, pareciam leves e atenciosas. O bebê estava no ar, seguro pelos braços da babá. O bebê estava rindo. A mãe queria tomar-lhe o bebê das mãos, mas a babá segurava-o com força e dizia:

Ah, não, este, este é o meu bebê, ele é meu bebê.

Ah, não, babá — dizia a mãe forte como uma torre, mais alta do que tudo no quarto, mais alta do que a grande babá, quase tão alta quanto o teto: — Oh, não — dizia, sorrindo, mas com os lábios apertados. — É meu bebê.

Não, é meu — dizia a babá, agora ninando e em­balando a criança. — Ele é meu bebê querido, mas a outra, ela é sua, Emily é sua, senhora.

E virava, as costas para a mãe, numa demonstração de independência emocional, enquanto acarinhava e embalava o bebê. A isso a mãe sorria, um sorriso diferente do outro, e não compreendido pela garotinha, mas que a levaria a ser puxada rispidamente pela mão da mãe, e lhe seria dito:

Por que você não tirou a roupa? Disse-lhe que ti­rasse a roupa.

E aí começava um rápido e desconfortável arrastar e empurrar, a garota tentando ficar firme em pé, enquanto pilhas de roupas lhe eram arrancadas. Primeiro o vestido de veludo azul do qual se orgulhava porque lhe caía bem — isto lhe haviam dito as vozes de todo tipo que teimavam umas com as outras lá no alto, por cima de sua cabeça —, mas tinha muitos botões debaixo do braço e nas costas, cada um precisando de muito tempo para ser desabotoado enquan­to os grandes dedos machucavam e apertavam. Então era a vez da camiseta, com rapidez, mas arranhando o queixo, e então a comprida combinação branca, muito grande para ela, e que deixava um cheiro quente e gostoso no ar: a mãe notou-o e fez uma careta:

E agora para a cama — disse, enquanto enfiava apressadamente uma camisola branca pela cabeça da criança.

Emily enfiou-se na cama perto da janela, arrastando-se para a cabeceira, já que para ela era uma cama grande, e le­vantou uma ponta do pesado veludo vermelho para olhar as estrelas. Ao mesmo tempo via as duas enormes pessoas, a mãe e a babá, acalentando o bebê. Seu rosto parecia velho e cansado. Parecia compreender aquilo tudo, tê-lo previsto, vivê-lo por ser obrigada, sentindo-o como uma leve aflição a seu redor — tempo através do qual precisava se arrastar, até que pudesse se livrar. Pois nenhum deles poderia ajudar a si próprio, nem a mãe, aquela temível e poderosa mulher; nem a babá, mal-humorada devido à sua vida; nem o bebê, por quem ela, a garotinha, já sentia uma paixão que a der­retia, tornava-a indefesa. E ela, a criança, não poderia tam­pouco ajudar a si própria, de jeito algum; e quando a mãe falou — com seu modo impaciente e duro, que saiu como uma espécie de júbilo, de coragem, que até a criança reco­nheceu como um pedido de comiseração —: "Emily, você devia se deitar. Vamos dormir", ela deitou-se, e viu as duas mulheres levando o bebê para um outro quarto de onde po­dia ser ouvida uma voz de homem, a do pai. Uma cerimônia de boa-noite, e ela estava excluída: tinham-se esquecido de que ela não tinha sido levada para dar boa-noite ao pai. Virou-se ao contrário, com as costas para o quente quarto branco, onde as chamas vermelhas pulsavam calor, enchiam os pesados lençóis brancos com cheiros quentes, faziam som­bras vermelhas nas grutas por trás das beiradas das cortinas vermelhas, faziam um calor espinhento cobri-la toda sob as pesadas cobertas. Pegou as borlas vermelhas dependuradas das cortinas, trouxe-as para perto de si e ficou puxando-as, puxando-as...

Aquela pequena criança era, sem dúvida, a Emily que tinha sido colocada sob meus cuidados, mas durante alguns dias não compreendi que tinha estado assistindo a uma cena de sua infância (mas é claro que isso era impossível, pois uma infância daquelas não existia naquela época, era obso­leta), uma cena, então, de sua memória, ou de sua história, que a tinha formado... Estava sentada com ela numa ma­nhã e algum movimento que fez mostrou-me o que deveria ter sido óbvio. Então fiquei olhando seu rosto jovem, uma mistura perturbadora da criança e da jovem, e pude ver nele a solitária pessoa de quatro anos. Emily. Perguntei-me se se lembraria de alguma coisa de suas memórias, ou experiên­cias, que tivessem sido "passadas", como um filme, atrás da parede da minha sala, que no momento — o sol iluminando um pedaço de ar e a tinta branca onde os desenhos floridos do papel mantinham sua vida frágil, mas teimosa era uma tela transparente: era um daqueles momentos em que os dois mundos ficavam muito próximos, em que era fácil lembrar que era simplesmente possível atravessar. Sentei-me e olhei para a parede, e estranhamente ouvi sons que não faziam, de modo algum, parte de meu "mundo": um ferro de atiçar sendo energicamente usado numa grelha, pezinhos correndo, uma voz de criança.

Perguntei-me se poderia dizer algo a Emily, fazer-lhe perguntas. Mas não ousei, esta é a verdade. Tinha medo dela. Meu desamparo frente a ela amedrontava-me.

Vestia seus velhos jeans, que já estavam apertados de­mais para ela, e uma blusinha justa.

Você está precisando de roupas novas falei.

Por quê? Então não acha que estou bem?

O terrível "brilhantismo"; mas também havia temor... tinha se encolhido, pronta para rebater as críticas.

Está muito bem. Mas está maior que as roupas.

Oh, querida, não tinha notado que estava tão ruim.

E ela afastou-se de mim e deitou-se no comprido sofá

marrom, com Hugo atrás dela. Na realidade não estava chupando o dedo, mas poderia perfeitamente estar.

Preciso descrever sua atitude em relação a mim? Mas é difícil. Acho que nem sequer me via. Quando me foi tra­zida por aquele homem, quem quer que fosse, viu uma pessoa velha, viu-me claramente, nitidamente, minuciosamente, em detalhes. Mas desde então não acho que tivesse visto, por algum momento, durante todas as semanas em que ficou comigo, mais do que uma pessoa mais velha, com as características esperadas em alguém assim. É claro que não tinha nenhuma idéia do terror que eu sentia por causa dela, da ansiedade, da necessidade de protegê-la... Não sabia que cuidar dela havia enchido minha vida, água encharcando uma esponja..., mas tinha eu o direito de reclamar? Não tinha eu, como os outros adultos, falado da "juventude", dos "jovens", da "garotada" e tudo o mais? E ainda não o fazia, a não ser que fizesse um esforço? Além disso, há poucas des­culpas para que os mais velhos empurrem os jovens para longe de si e os coloquem num compartimento das suas mentes rotulado: "Isso eu não compreendo" ou "Isso não irei compreender" — pois cada um deles já foi jovem... deveria eu ter vergonha de escrever esses lugares-comuns, quando tão poucas pessoas de meia-idade ou velhos são ca­pazes de dar-lhes vida através da prática? Quando tão pou­cos são capazes de ter consciência de seus passados? Os ve­lhos já foram jovens; os jovens nunca foram velhos... esses comentários ou outros desse tipo já figuraram em milhares de diários, livros de preceitos morais, livros de lugares-co­muns, provérbios e assim por diante, e que diferença fize­ram? Bem, eu diria que não muita... Emily viu uma pessoa velha, árida, controlada e distante. Amedrontei-a, represen­tando para ela aquela coisa inimaginável, a velhice. Mas ela, sua condição, estavam tão próximas de mim quanto minhas próprias recordações.

Quando ela foi deitar-se no sofá, de costas para mim, estava zangada. Utilizava-me para checar seu impulso de afastar-se da infância e transformar-se numa moça, uma jo­vem com roupas, maneirismos e palavras precisamente ade­quadas a esta situação.

Seu conflito era enorme, de modo que o uso que fazia de mim era exagerado e cansativo, e isto tudo continuou durante algumas semanas, enquanto ela reclamava que eu criticava sua aparência, que era por minha culpa que teria que gastar dinheiro com roupas, e que ela gostava ou não gostava de sua aparência — que não gostaria de usar so­mente calças compridas, camisas e malhas pelo resto da vida, e queria "finalmente algo decente para vestir"; mas que des­de que minha geração fez aquela confusão toda, a dela não tinha nada para vestir, as pessoas de sua idade ficaram com lojas fora de moda e sonhos de um delicioso passado mor­to... e por aí continuava, e continuava.

E agora não era só que estivesse mais velha e seu corpo o demonstrasse: estava ganhando peso. Ficava o dia todo no sofá com o cachorro-feito-gato, ou gato-feito-cachorro, amarelo, ficaria deitada alisando-o, acariciando-o e socando-o, chupando balas, comendo pão e presunto, agradan­do o animal e sonhando. Ou sentava-se na janela fazendo seus comentariozinhos ríspidos e comendo. Ou supria-se com pilhas de pão, presunto, bolo, maçãs e arranjava um lugar no meio do chão, com revistas e livros velhos, deitada de barriga para baixo, com Hugo esparramado a seu lado: aí lia e sonhava e comia durante uma manhã inteira, um dia inteiro, às vezes por dias.

Isso me deixava quase louca de irritação: ainda que pudesse me lembrar de ter feito o mesmo.

De repente ela se levantava, ia para o espelho e gri­tava:

Oh, querida, vou ficar tão gorda que você vai me achar ainda mais feia!

Ou:

Não caberei em nenhuma roupa, mesmo quando você me deixar comprar algumas novas. Sei que você não quer, na verdade, que eu tenha roupas novas, só diz, acha que estou ficando muito frívola e desalmada, quando tantas pessoas não têm nem o que comer.

Eu apenas podia repetir que adoraria que ela comprasse algumas roupas. Poderia ir aos mercados e lojas de coisas usadas, como a maioria das pessoas. Ou, se preferisse, a uma loja de verdade — pelo menos desta vez. Pois naquele tem­po comprar roupas ou tecidos nas lojas era um símbolo de status.As lojas só eram realmente utilizadas pela classe administrativa, pelos — como a maioria os chamava — "faladores". Sabia que estava atraída pela idéia de ir a uma loja de verdade. Mas ela ignorava o dinheiro que eu tinha deixado na cômoda para ela, e continuava comendo e so­nhando.

Tinha ficado na rua um bom tempo, ocupada com aque­la tarefa comum, colher notícias. Pois apesar de ter, como todo mundo, um rádio, apesar de ser membro de um círculo de jornais — a escassez de material impresso fez com que grupos de pessoas comprassem jornais e periódicos em con­junto e os fizessem circular —, eu, como todo mundo, pro­curava notícias, notícias reais, obtidas quando as pessoas se reuniam nas ruas, nos bares, tabernas, casas de chá. Por toda a cidade encontravam-se esses grupos de pessoas, indo de um lugar a outro, da taberna para os salões de chá, para os bares," para o lado de fora das lojas que ainda vendiam te­levisões. Esses grupos eram como um órgão adicional bro­tando dos órgãos oficiais de notícias: a toda hora novos grupos, casais ou indivíduos juntavam-se em algum lugar, fi­cavam escutando, misturando-se, oferecendo o que eles pró­prios haviam ouvido as notícias tornaram-se uma espécie de moeda —, dando, em troca de rumores e boatos, rumo­res e boatos. Então íamos em frente, e parávamos; íamos em frente e parávamos novamente, como se o próprio movi­mento pudesse apagar o permanente desconforto que todos sentíamos. As notícias colhidas deste modo quase sempre passavam a fazer parte das conversas cotidianas, dias ou mesmo semanas antes de adquirirem vida oficial nos noti­ciários. É claro que freqüentemente eram imprecisas. Mas naquela época todas as notícias o eram. O que as pessoas estavam tentando fazer, em seu movimento contínuo daqui para lá, fuçando novidades, recebendo informação, era isolar resíduos de verdade nos boatos, que era o que mais havia então. Sentíamos que precisávamos ter este precioso resí­duo: era nosso dever, nosso direito. Com isso nos sentíamos mais seguros, isso nos dava identidade. Sem esse resíduo, por menor que fosse, ficávamos como que despojados, an­siosos.

Era assim que víamos as coisas nessa época. Agora penso diferente: o que estávamos fazendo era falar. Faláva­mos. Exatamente como aquelas pessoas acima de nós que passavam a vida em suas eternas e intermináveis conferên­cias falando sobre o que estava acontecendo, o que deve­ria acontecer, o que ardentemente esperavam poder fazer acontecer (mas logicamente nunca fizeram) —, nós falávamos. Nós os chamávamos "os faladores"... e nós próprios passávamos horas, todo o dia, falando e ouvindo falar.

Na maioria das vezes, é claro, queríamos saber o que estava acontecendo nos territórios do leste e do sul aos quais nos referíamos como "para lá" e "lá embaixo" —, porque sabíamos que o que acontecesse lá iria nos afetar mais cedo ou mais tarde. Tínhamos que saber que bandos estavam se aproximando ou diziam que estavam se apro­ximando —, bandos que, como disse, já não eram de modo algum formados por "garotos" e "jovens", mas por pessoas de todo tipo e idade, eram cada vez mais parecidos com tribos, eram a nova unidade social; tínhamos que saber que racionamentos deviam ser esperados ou podiam ser cancela­dos; se outro subúrbio tinha decidido abandonar inteiramen­te o gás, a eletricidade e o petróleo e voltar à luz de vela e à engenhosidade; se um novo amontoado de bagulhos tinha sido encontrado e, caso tivesse sido, se as pessoas podiam ter acesso a suas riquezas; onde havia lojas que tivessem couros, ou lençóis velhos, ou frutos de roseira-brava para melados de vitamina, ou objetos de plástico reciclados, ou coisas de metal como peneiras ou panelas, ou o que quer que fosse, qualquer coisa que pudesse ser arrancada daquela época destituída de abundância.

Claro que tais planos, conciliações e elaborações come­çaram a igualar nossas vidas cotidianas, nossa fartura, nosso gasto e desperdício, num estágio muito anterior, muito antes do tempo sobre o qual estou escrevendo agora. Éramos todos especialistas em fazer grande confusão por muito pouco, mesmo quando ainda tínhamos um bocado, e ainda estávamos sendo incitados pela propaganda a gastar, usar e jogar fora.

Às vezes deixava Emily — temerosa, é claro, do que poderia acontecer em minha ausência, mas pensando que valia a pena arriscar — para fazer viagens até bem longe da cidade, até vilas, fazendas, outros municípios. Isto podia levar dois ou três dias, já que os trens e ônibus eram pouco freqüentes e pouco seguros e os carros — quase todos uti­lizados pela oficialidade — dificilmente paravam para ofe­recer caronas por causa do medo que as pessoas comuns inspiravam à classe oficial. Eu passei a andar, tendo redes­coberto a utilidade de meus pés, como a maioria das pessoas.

Um dia voltei para o apartamento e para Emily com meia dúzia de peles de carneiro, além de outras coisas, que ocultei em armários e locais secretos juntamente com supri­mentos de todo tipo para o futuro e para contingências ainda só parcialmente imaginadas. Mas eram as peles que tinham importância, pois coincidiram com uma nova fase do desenvolvimento de Emily. A princípio tentou ignorá-las. Depois a vi parada na frente de um grande espelho que eu tinha na entrada, ou saleta, e colocava-as sobre si. Parecia estar dese­jando um efeito de princesa selvagem, mas logo que notou que eu a observava com interesse voltou a seu lugar no sofá com Hugo, voltou a seus sonhos que destruíam o tempo em que, de fato, ficávamos juntas. Agora eu acreditava que ela estava intrigada com o negócio da sobrevivência, seus recursos, truques e pequenos artifícios. Lembro-me que foi nesta época que começou a gostar de fazer um prato que consistia em bolinhos com molho, sem usar nada além de alguns alhos velhos, batatas e ervas murchas, e apresentá-los esplendorosos como os de um cozinheiro. Apreciava os mercados, onde procurava coisas com as quais eu própria nunca teria me importado. Adorava o que sempre achei irritante e não conseguia deixar de comparar com a simplicidade e a eficiência do passado fazer o fogo para esquentar água e cozinhar. Recriminava-me por estar disposta a usar os es­toques de madeira que tinha e insistia em ir a algum prédio deserto buscar rodapés velhos ou algo parecido, que ela cor­tava, usando habilmente uma machadinha, em cima do ta­pete, protegido por farrapos ainda piores do que ele próprio. Sim, era muito habilidosa, e isso dizia tudo sobre suas ex­periências antes de vir para mim. E sabia que eu estava olhando e tirando minhas conclusões; e isto a levava de volta ao sofá, por sua necessidade de não ser compreendida e aprovada era mais forte, mesmo agora. Entretanto, eu ficava mais cal­ma vendo suas habilidades e recursos, e o pesado fardo de maus presságios que carregava comigo quanto a seu futuro tornava-se mais leve: como poderia esta criança melancólica, sonhadora, errática, tão absorta em si própria, na fantasia, no passado, sobreviver àquilo que teríamos todos que so­breviver? E comecei a compreender exatamente quão som­brio era meu presságio, quão aguda era minha angústia quan­do ela saía para os edifícios vazios ou terrenos baldios.

Por que você acha que não sei cuidar de mim? gritava, num rasgo de irritação, embora, claro sendo Emily tão instruída a respeito da necessidade de agradar, de aplacar sorrisse e tentasse escondê-la: a irritação real, suas emoções reais, ela devia escondê-las e dissimulá-las, en­quanto o fingimento de raivas e zangas, a representação ne­cessária aos adolescentes, estava em exibição o tempo todo.

Agora sentia-me agradecida por Hugo estar lá. Não era um animal difícil (quase dizia uma pessoa!) com que se dividir uma casa. Não parecia dormir muito: ficava vigian­do. Acredito que encarava assim sua função: devia tomar conta dela. Preferia que Emily o alimentasse, mas comia se eu lhe levava a comida. Queria ser seu único amigo e amor; porém era delicado comigo receio ser esta a única palavra para ele. Esperava ansiosamente seus passeios fora de casa em sua pesada coleira, à tarde. Ficava desapontado se Emily não podia levá-lo, indo submissamente comigo. Comia as substâncias horríveis que estavam sendo vendidas como alimento de cães, mas preferia os restos de nossos pratos, e demonstrava isto.

Não que sobrasse muito: Emily comia e comia, e pas­sara a usar suas pequenas blusas para fora da calça aper­tada. Ficava se examinando em frente ao espelho, os maxi­lares movendo-se por causa de balas ou pão. Eu não dizia nada; fazia questão de não dizer nada, mesmo quando ela me provocava: "Estou bem gorda, não acha?" Ou: "É bom que eu coma bastante para quando for cozinhada num ban­quete". Mas dissesse o que fosse, ela brincava, e comia. Dei­tava no chão, a mão automaticamente levando pão, mais pão, bolo, batatas, tortinhas de frutas, à boca, enquanto os olhos acompanhavam as linhas impressas em algum livro velho que tinha apanhado, mas que logo deixaria cair en­quanto fitava à sua frente, os olhos vidrados. Hora após hora. Dia após dia. Às vezes levantava-se de um salto para preparar algum refresco e oferecer-me um pouco, depois me esquecia. Sua boca estava sempre em movimento, mas­cando, provando, absorta em si mesma, de modo que toda ela parecia ser uma boca, e tudo o mais nela subordinava-se a isto; parecia que até mesmo a absorção de palavras atra­vés dos olhos era uma outra forma de comer, e seus sonhos, um consumo de material que a inchava tanto quanto a comida.

E, então, de repente, tudo virou ao contrário. É claro que na época não pareceu tão súbito. É agora, olhando para trás, que tudo fica tão óbvio: e até, receio, banal e mecâni­co, como o inevitável costuma parecer em retrospectiva.

Alguns jovens de nossos prédios de apartamentos pas­saram a encontrar-se na calçada em frente e no terreno bal­dio, sob as árvores chamuscadas. Estes jovens estavam com­partilhando a glória e a aventura perdidas: lembranças da época em que tribos em migração tinham acendido fogueiras e se banqueteado ali. Mostravam uns aos outros as partes escurecidas da calçada, contavam e recontavam episódios da epopéia. A princípio havia dois ou três, depois meia dúzia, depois... Emily tinha abandonado seus sonhos para obser­vá-los. Não que se pudesse deduzir nada de seu rosto, além de desprezo por eles. Lembro-me de ter sentido pena dos adolescentes roucos, que desejavam tão desesperadamente ser notados e observados, e eram tão esquecidos e pouco atraentes em seus corpos pesados; pena dela, a garota gorda olhando pela janela, a princesa disfarçada. Admirei-me de que tão pouco tempo, alguns anos, fosse transformar aquelas larvas em beldades. Mas estava errada: o tempo passava tão rápido que não se precisava mais de anos... Uma noite Emily saiu a passeio e parou na frente do prédio, com um olhar de ironia, enquanto seu corpo suplicava e exigia. Os garotos a ignoraram. Então fizeram alguns comentários so­bre sua figura. Ela entrou, sentou-se pensativamente em seu canto do sofá durante algumas horas e parou de comer.

Perdeu peso rapidamente. Vivia de chás de ervas e ex­tratos de levedura. E agora eu assistia ao processo inverso, uma forma emergindo inteira e clara enquanto se acumulava toucinho derretido a sua volta.

Comecei a protestar: você precisa comer alguma coisa, devia fazer uma dieta adequada. Mas ela não me ouvia. Eu es­tava distante de sua necessidade de tornar-se valiosa para os heróis da calçada... bem poucos agora que os dias se esticavam e a primavera curava as árvores cicatrizadas.

Estávamos assistindo, apesar de eu ainda não compreen­dê-lo, ao nascimento de um bando, uma turma, uma tribo. Seria agradável poder dizer agora que tinha consciência dos processos que aconteciam à minha frente. Agora julgo que estava cega. É incrível como as coisas sempre funcionam através da imitação criada pelo desejo de ser igual. Todos os processos da sociedade se baseiam nisto, todas as aqui­sições individuais. Por alguma razão, havia como uma cons­piração no sentido de ignorar ou não mencionar este fato, mesmo quando se estava decididamente participando de algo assim. Havia uma espécie de conspiração para que se acre­ditasse que as pessoas crianças, adultos, todo mundo cresciam pela aquisição de hábitos desconectados, de peda­ços isolados de conhecimento, como se escolhessem coisas numa prateleira: "Sim, vou ficar com este", ou "Não, não quero aquele!" Mas na realidade as pessoas vão na direção do bem ou do mal engolindo por inteiro outras pessoas, atmos­feras, acontecimentos, lugares crescem pela admiração. Com freqüência, bastante inconscientemente, é claro. Somos as companhias que mantemos.

Diante de meus olhos, naquela calçada, durante sema­nas, durante meses, poderia ter acompanhado, como num manual de instruções ou num laboratório, a gênese, cresci­mento e desabrochar de uma nova unidade social. Mas não fiz tal coisa, pois estava absorta em Emily, preocupada com ela. Estes processos continuaram e observei-os; os detalhes me escapavam; procurava os efeitos deste ou daquele acontecimento em Emily. Só agora, olhando para trás, é que vejo a oportunidade que perdi.

Emily não era a única garota a se preparar para tomar seu lugar como mulher entre outras mulheres. Janet White, por exemplo: antes de seus pais a impedirem, Janet passava dezenas de vezes por dia pela nossa janela, em frente aos irônicos rapazes. Houve um período em que garotos e garo­tas se uniram, cada grupo de um lado da rua, em batalhões hostis que trocavam injúrias e insultos.

Depois pôde-se notar que ironizavam menos, ficavam em silêncio com maior freqüência ou conversavam calma­mente entre si, apesar de sempre olharem o outro grupo fingindo não vê-lo.

Dentro do apartamento Emily lembrou-se das peles de carneiro. Novamente arrumou-as em volta do corpo, aper­tou-as firmemente com um cinto e saiu, vaidosa, o cabelo solto.

Veio a mim:

Achei aquela máquina de costura. Posso usá-la?

Claro. Mas não quer comprar roupas? Esta coisa está muito velha. Deve ter uns trinta e cinco anos.

Está bem.

O dinheiro que tinha lhe dado ainda estava na cômoda. Apanhou o dinheiro e rapidamente, quase secretamente, percorreu as cinco ou seis milhas até o centro da cidade, onde as grandes lojas exibiam as mercadorias para a classe oficial ou para qualquer um que pudesse pagá-las. Praticamente sempre a mesma coisa. Voltou com alguns bons tecidos do período anterior à crise. Voltou com linhas, uma fita métri­ca e tesouras. Também visitou as lojas de artigos usados e as barracas do mercado, e no chão de seu quarto empilha­ram-se saques, roubos. Convidou Janet White a entrar, ten­do antes, é claro, pedido educadamente a minha permissão, e as duas ninfas enfurnaram-se no quartinho e matra­quearam, discutiram, ajeitaram-se deste e daquele jeito em frente do espelho comprido — ritual que se repetiu quando Janet White, por sua vez, saiu em sua incursão em busca de tecidos e roupas velhas... repetiu-se no quarto de Janet no final do corredor. E isto resultou na proibição de que saísse às ruas e dos prazeres da tribo, e foi avisada de que não fizesse amizade com Emily. Para Janet haveria outro destino. Para dizer a verdade, não tinha notado quão elevada era a posição dos White nos círculos administrativos; mas naquele tempo eles não eram a única família oficial a se ocultar parcialmente desse modo, vivendo calmamente, num apartamento comum, aparentemente igual a todo mun­do, exceto pelo acesso às fontes de alimentos, bens, roupas, transporte, negados à maioria.

Emily não pareceu se importar com a rejeição de Janet. Seguiu-se um período de semanas em que esteve tão absorta quanto na época cm que comia e sonhava, indolente. Só que agora estava cheia de energia e auto-restrições, pelo menos em relação à comida. Eu observava. Observava interminavelmente, pois nunca tinha visto nenhuma concentração como esta.

Pois apesar de ela, Emily, continuar tão introvertida quanto na época cm que era preguiçosa e sonhadora, ao me­nos agora o que pensava a seu respeito era inteiramente visível, apresentando-se a mim sob a forma de seus costu­mes fantásticos.

Seu primeiro auto-retrato... achou um vestido velho, branco, salpicado de flores rosa. Algumas partes estavam manchadas e puídas. Estas, ela cortou. Montanhas de laços e tule, contas e faixas de pano eram postas e retiradas em um traje caleidoscópico, que mudava de acordo com suas necessidades. Na maioria tias vezes era um vestido de noiva. Depois era um vestido de mocinha — esta declaração ambí­gua de ingenuidade, mais freqüentemente feita por uma visão mais madura do que pelo usuário, um olho que vê a fragi­lidade de certos tipos de roupas adolescentes como a expres­são da evanescência daquela carne. Era uma camisola, quan­do usava sua transparência sobre o corpo nu, era vestido de noite, e às vezes, sem querer, por uma crueldade nela, a vigilância de suas defesas, tirava a inocência de qualquer coisa que usasse, de modo que podia ter flores nas mãos e nos cabelos, numa tentativa de fazer sua versão da prima­vera, tendo, porém o olhar de uma mulher que calculou exatamente a quantidade que irá mostrar numa festa. Este vestido foi para mim uma experiência afetiva. Fiquei amedrontada com ele. Novamente, era uma questão de meu desamparo frente a ela. Acreditava-a capaz de sair à rua usando aquilo. Agora acho que fui estúpida: os mais velhos tendem a não ver — esqueceram! — a pessoa oculta na criatura jovem, o mais forte e poderoso membro do elenco de personagens que habita um corpo adolescente, o eu que instrui, seleciona experiências — e protege.

E assim, assistir a tal criação, num tempo de selvageria e anarquia, este arquétipo de um vestido de garota — ou melhor, esta mistura de arquétipos; o modo como esta criança, esta garotinha, tinha encontrado os tecidos de seus so­nhos nos montes de lixo de nossa velha civilização, tinha encontrado e trabalhado neles, e apesar de tudo havia transformado em realidade a imagem que tinha de si própria..., mas estas velhas imagens, tão indestrutíveis e tão irrelevan­tes — tudo isto era demais para mim, e saí de cena, deci­dida a não dizer nada, não demonstrar nada, não denunciar nada. E foi sorte ter agido assim. Ela usava a coisa pelo apartamento, uma garota nua apenas encoberta; usava-a vai­dosa, tímida, atrevida, apreensivamente; não estava experimentando um vestido, mas auto-retratos, e eu poderia nem estar ali, ela não me notava. Bem, é claro, as pressões sobre a privacidade de cada um tinham nos ensinado a nos retirar­mos para solidões interiores, éramos todos experientes em estarmos com os outros sem estarmos com eles.

Mas eu realmente não sabia se devia rir ou chorar; fiz um pouco de cada coisa, obviamente quando ela não podia me ver. Pois ela era tão cômica, assim como tão corajosa e desembaraçada, com seu olhar direto, honesto, cor de mel — seu olhar de companheiro inglês, indiscreto, crítico, aler­ta; com suas tentativas de maquilar uma carinha viçosa, comportando-se languidamente por trás de véus de harém, o corpo empertigado em poses "sedutoras". Este vestido possuiu-a durante semanas. Então um dia pegou uma tesoura e cortou a parte de baixo, num gesto de ridícula impaciên­cia: algo não tinha funcionado, ou já tinha funcionado e não servia mais, era desnecessário. Jogou a pilha surrada numa gaveta e iniciou uma nova invenção de si própria.

Fazia um frio tardio e prolongado. Havia até um pouco de neve. Em meu apartamento o calor era um visitante esporádico e, como todo mundo, usávamos quase tanta roupa dentro de casa quanto do lado de fora. Emily pegou as peles de carneiro e fez uma longa túnica dramática. Amarrava-a com um chiffon encarnado e usava-a sobre uma blusa velha que tirou de minha cômoda. Sem perguntar. Não sei expli­car como fiquei maravilhada quando fez isso. Mostrava, en­fim, que sentia ter alguns direitos em relação a mim. No caso, o direito infantil de ser travessa; mas era mais do que isso: uma pessoa velha ou madura encontra alguém jovem simplesmente pegando algo seu, uma coisa pessoal, sobre­tudo algo que seja uma forte expressão ou declaração de uma fase da vida (como o vestido branco salpicado de rosa o é para uma mocinha), e que alívio ela sente, isto é, um cho­que, água gelada sobre carne fervente se se preferir, mas uma liberação. Isto ê mais meu do que seu, diz o ato do ladrão, mais meu porque preciso mais, se adequa a meu estágio de vida melhor do que ao seu, você já ultrapassou isso... E talvez o contentamento que isso libera seja até uma insinua­ção de um acontecimento ainda futuro, aquele momento cm que a pessoa vê nos olhos dos outros a declaração — talvez ainda inconsciente: Já pode abrir mão de sua vida, não pre­cisa mais dela, vamos vivê-la para você, por lavor, vá.

A blusa tinha estado entre minhas roupas durante trin­ta anos, já tinha sido uma coisa sofisticada, feita de fina seda verde. Agora ia para baixo da elegante pele de carneiro de Emily, e justamente quando eu tentava conter a necessidade de dizer: "Pelo amor de Deus, você não pode usar esta roupa de bandoleiro na rua, é um convite a um assalto!", ela dei­xou a geringonça cair, pois era somente alinhavada e presa com alfinetes, não mais durável que um sonho.

E assim continuamos. Ela não saía do apartamento, não com qualquer uma de suas fantasias; e cu observava que estas se tornavam mais utilitárias.

Crisálida após crisálida ficou pequena e, então, devido à sua vergonha de ter crescido tanto, pediu mais dinheiro, abruptamente e sem graça, mas com o seu jeito supereducado e terrível, e saiu sozinha para o mercado. Voltou com algumas roupas de segunda mão que num instante transfor­maram-na de uma criança com visões fantásticas de si mes­ma em moça — ou melhor, cm mulher. Tinha treze anos então. Ainda não completara catorze. Mas poderia igual­mente ter dezessete ou dezoito, e tudo tinha acontecido em uma explosão de dias. Agora eu achava que, provavelmente, os heróis da calçada cairiam a seus pés; que ela, uma jovem mulher, exigiria aquilo que a natureza tinha na realidade es­colhido para ela, um jovem de dezessete, dezoito anos, até mais.

Mas a massa, o bando, a turma — ainda não uma tri­bo, mas a caminho de sê-lo — tinha passado por um cres­cimento forçado, como ela. Poucas semanas tinham feito aquilo. Enquanto a neve alvejara a calçada e salientara o preto dos galhos das árvores enfeitadas e hesitantes com o verde novo, e já fora embora e voltara novamente, enquan­to Emily unia-se na imaginação a heróis românticos, chefes e déspotas de haréns, uma dúzia ou mais de jovens rapazes emergiu de seus disfarces de caipiras desajeitados e, à noite, ficavam sob as árvores exibindo-se em roupas coloridas, e as garotas das vizinhanças vinham juntar-se a eles. Agora, nas tardes mais longas do início da primavera era possível ver-se, das centenas de janelas, trinta jovens ou mais. Já havia corrido pela vizinhança o boato de que um fenômeno que acreditávamos pudesse apenas pertencer às regiões "de lá" estava surgindo frente a nossos olhos, em nossas pró­prias ruas, onde até então parecia que o pior a ser esperado era a passagem das migrações de forasteiros.

Ouvimos falar que a mesma coisa acontecia em outras partes de nossa cidade. Não era apenas em nossas calçadas que os jovens juntavam-se para admirar e depois competir com as tribos migrantes; e enquanto competiam tornavam-se parte delas. Todos sabíamos, compreendíamos, e se falava disso nos salões de chá, nas tabernas e cm todos os locais habituais de encontro: era discutido, constituía notícia, fazia as coisas acontecerem. Sabíamos que brevemente nossos jovens iriam embora; tínhamos feito os ruídos rituais de es­panto e alarma; mas agora que estava acontecendo, todo mundo sabia que era previsto, assustávamo-nos com nossa falta de previsão... e com a falta de visão dos outros, cujos bairros ainda viviam sem este fenômeno e que se acredita­vam imunes a ele.

Emily começou a se exibir. Primeiro da janela, obtendo a certeza de que tinha sido vista, e depois na calçada, va­gando por ali como se não notasse os jovens do outro lado da rua. Este período durou mais do que eu esperava, ou do que ela precisaria para ser aceita. Acho, é exatamente isso, que ela tinha medo de dar este grande passo para longe do abrigo, da infância, da liberdade da fantasia: pois agora pa­recia-se com as outras moças e precisava comportar-se e pen­sar como elas. E qual era a aparência delas? Bem, o que mais se destacava nas roupas das que estavam migrando era, obviamente, o fato de serem práticas; tinham que ser: uti­lidade estilizada. Calças, camisas, casacos e cachecóis, tudo grosso, forte e quente. Mas dos mercados, dos montes de lixo, das lojas velhas, vinha o que parecia ser um suprimento infindável de roupas velhas "elegantes" que podiam ser adaptadas ou de algum modo transformadas em pedaços e peças de todo tipo. De modo que pareciam ciganas, das an­tigas, e pela mesma razão. Precisavam manter-se quentes e ter liberdade de movimentos; os pés teriam que levá-las por longas distâncias. Mas uma exuberância de imaginação dei­xava-as coloridas e o tempo quente libertou-as como bor­boletas.

Chegou o dia em que Emily atravessou a rua e uniu-se à multidão, como se fosse bastante fácil para ela fazer isso. Quase ao mesmo tempo aceitou um cigarro do rapaz que parecia ter a personalidade mais forte do grupo, permitiu que ele o acendesse para ela e fumou com naturalidade. Nunca a tinha visto fumar. Ficou ali enquanto a luz esmo­recia no céu em volta dos altos edifícios com suas janelinhas brilhantes. Ficou ainda muito tempo. Os jovens eram uma massa semi- visível sob os galhos. Ficavam conversando bai­xinho, fumando, bebendo das garrafas que guardavam nos bolsos dos casacos; ou sentavam-se no pequeno parapeito que cercava as áreas dos blocos de apartamentos mais próxi­mos. Aquele espaço de calçadas e terreno baldio, com as árvores e as plantas, limitado de um lado pelo pequeno pa­rapeito e de outro por um velho muro, tinha se tornado definido, como uma arena ou teatro. A multidão o tinha exigido, delineado: não seríamos mais capazes de ver nada naquele espaço a não ser o local onde a tribo estava se for­mando.

Mas Hugo não estava lá. Emily o tinha abraçado, bei­jado, conversado com ele, sussurrado em suas horrorosas orelhas amarelas. Mas tinha-o deixado.

Entrando de repente na sala, um estranho diria: "É um cachorro muito amarelo!" Depois: "É um cachorro, não é?"

O que eu via nele, apesar de Emily nunca tê-lo feito, pois ele voltava-se para ver sua entrada desde a hora em que ela atravessava a rua para voltar para casa, era um cachorro amarelo-palha sentado de costas para a sala, absolutamente quieto, durante horas, a cauda comprida batendo nos pés da "cadeira, todo ele expressando uma paciência atenta e triste. Um cão. Emoções caninas: fidelidade, humildade e persistência. Visto assim de costas, Hugo despertava as emoções que a maioria dos cães desperta: compaixão, mal-estar, o mesmo que se sente por uma espécie de prisioneiro ou es­cravo. Mas então ele voltava a cabeça, e a nossa expectativa de ver o afeto cálido e desprezível de um olhar de cachorro se desvanecia: não era o de um cão, meio humanizado. Seus fortes olhos verdes brilhavam. Desumanos. Olhos de gato, uma espécie estranha ao homem, nada melancólica, desprezível ou suplicante. Olhos de gato em um corpo de cachorro — olhos e cara de gato. Esta besta, cuja feiúra atraía os olhos tanto quanto uma cara bonita, de modo que sempre me via perscrutando-o, tentando fazer um acordo com ele e com­preender o direito que acreditava ter de estar ali em minha vida esta aberração, este aleijão, zelava por Emily, e com tanta devoção quanto eu. E era Hugo quem era abraçado, acariciado, amado quando ela voltava de noite cheirando a cigarro, a bebida e cheia da perigosa vitalidade que tinha absorvido da companhia selvagem de que participara duran­te tantas horas.

Atualmente ficava todos os dias com eles, desde o iní­cio da tarde até meia-noite ou mais; eu e o animal ficáva­mos sentados atrás das cortinas, perscrutando a escuridão, pois havia apenas um poste e nada podia ser visto na mul­tidão que circulava lá embaixo, exceto a sombra dos rostos, pequenos brilhos e clarões de cigarros que se acendiam, nada se ouvia de sua conversa a não ser quando riam ou canta­vam um pouco, ou quando as vozes se elevavam selvagemente numa discussão e nestes momentos eu podia sentir Hugo tremer e encolher-se. Mas as discussões eram logo abafadas pelo consenso geral, um veto comum.

E quando víamos que Emily estava voltando, ambos, eu e Hugo, abandonávamos rapidamente nosso posto e íamos para onde ela nos acreditaria dormindo, ou pelo menos não a espionando.

Durante este período, sempre que eu era lançada atra­vés das flores e folhas submersas sob a tinta branca e semi- transparente, encontrava quartos desarrumados ou danifica­dos. Nunca vi quem ou o que fazia aquilo, nem vislumbrei o agente. Parecia-me cada vez mais que, ao herdar esta ex­tensão de minha vida cotidiana, tinha, novamente, recebido uma tarefa. Que eu não era capaz de levar a cabo. Pois não importava o quanto eu varresse, arrumasse e consertasse cadeiras, mesas e objetos; assoalhos arranhados e paredes descascadas, sempre que entrava de novo nos quartos, após uma passagem por minha vida "real", tudo tinha que ser feito outra vez. Era como decifrar uma charada. A minha entrada naquele lugar já tinha menos vitalidade, uma sensação de mau presságio, em vez da expectativa viva e apaixonada que a princípio sentia por poder mover-me ali... Preciso realmente explicar que esta sensação de desencorajamento não tinha nada a ver com a tristeza que acompanhava as cenas "pessoais". Não, mesmo nos piores momentos, a desordem e a anarquia dos quartos não eram tão ruins como a prisão abafada da família, do "pessoal". Era sempre uma liberação afastar-me de minha vida "real" e entrar neste outro lugar, tão cheio de possibilidades, de alternativas. Quando falo aqui em "abafado" refiro-me apenas ao ar ge­ralmente mais leve desta região; não poderia compará-lo com as constrições e confinamentos do lugar, ou da época, em que aquela família representou sua pecinha de mario­netes.

Mas a que leis, ou necessidades, obedecia o destruidor desconhecido? Podia encontrar-me na passagem comprida, mas irregular, como um vasto corredor que se estendia in­definidamente, cheio de portas e pequenos enclaves, onde podiam estar uma mesa com flores ou uma estátua, quadros, objetos de toda espécie, tudo no lugar certo — e abrir uma porta de um quarto contíguo e ver tudo em desordem. Um vento violento estaria fazendo as cortinas voarem para den­tro do quarto, virando mesinhas, varrendo livros dos braços das cadeiras, cobrindo o tapete com cinzas e pontas de ci­garro vindas de um cinzeiro que girava mais adiante, pronto para cair. Abrindo outra porta encontrava tudo como devia: havia ordem, um quarto não só pronto para receber seus ocupantes, tão limpo quanto um quarto de hotel, mas que ele, ela, eles tinham acabado de deixar, pois podia sentir uma personalidade ou presença no quarto visto através da porta entreaberta. E nesse mesmo quarto, ao entrar, talvez apenas um instante depois, podia encontrar um caos, como se fosse um quarto de uma casa de boneca e a mão de uma garotinha se tivesse enfiado pelo teto e derrubado tudo num impulso incontido ou por mau humor.

Decidi que o que devia fazer era repintar os quartos... falo como se fossem um conjunto permanente, reconhecível, estável de quartos, como numa casa ou apartamento, e não um lugar que mudava a cada vez que o via. Primeiro a pintura: qual a vantagem de consertar ou limpar móveis que teriam de ficar entre paredes tão abandonadas e gastas? Encontrei tintas. Latas de tamanhos e cores diferentes estavam esperando em cima de jornais, espalhados no chão de um dos quartos que estava temporariamente vazio — tinha-o visto mobiliado há poucos minutos. Havia pincéis e garra­fas de solvente e uma escada de pintor que tinha visto du­rante uma de minhas primeiras visitas. Comecei por um quarto que conhecia bem: era a sala de visitas que tinha cortinas de brocado, sedas verdes e rosa e móveis velhos.

Empilhei o que era usável no meio do quarto, sob nuvens de poeira. Esfreguei o teto e as paredes com sapólio, água quente, detergentes. Demão após demão de tinta branca foram aparecendo, primeiro grosseiras e falhas, depois cada vez mais perfeitas, até que a última cobriu tudo com um verniz brilhante, limpo e macio, branco como neve recente ou porcelana delicada. Era como ficar parada dentro de uma casca de ovo esvaziada; sentia que os montes de fuligem que tinham sido retirados tinham estado impedindo uma coisa viva de respirar. Deixei os móveis ali no meio do quarto sob suas cobertas, pois agora pareciam muito gastos para um quarto tão bonito, e senti que não valia a pena arrumar tudo: quando eu voltasse o gnomo teria virado tudo ou su­jado as paredes. Mas não, não foi assim, nada disso acon­teceu; ou acho que não, pois nunca mais vi aquele quarto. Não que o tivesse procurado e não conseguisse achá-lo... seria certo dizer que o esqueci? Isto seria falar daquele lugar usando termos de nossa vida comum. Enquanto estive na­quele quarto a tarefa teve sentido; havia continuidade no que fazia, um futuro, e eu tinha um relacionamento contí­nuo com a invisível criatura ou força, destrutiva, assim como o tinha com a outra presença benéfica. Mas esta sen­sação de estar ligada, de conexão, de contexto, pertencia àquela visita especial ao quarto, e na vez seguinte não seria o mesmo quarto, e minha preocupação com ele seria outra e assim acontecia com os outros quartos, outros cenários, cujo sabor e perfume forneciam total autenticidade ao tem­po que duravam, nem um minuto mais.

Estive fazendo, sem relutância ou insatisfação especial, descrições do reinado da anarquia, da mudança, do impermanente. Agora devo voltar ao "pessoal", e o faço de mau grado, sem vontade...

Tinha me aproximado de uma porta, apreensiva, mas também curiosa em ver se a abriria no momento do traba­lho do gnomo, mas em vez disso encontrei um cenário de limpa arrumação, um quarto que oprimia e desencorajava por sua declaração de que ali tudo tinha seu lugar e seu tempo, de que nada poderia mudar ou sair da ordem.

As paredes eram implacáveis; os móveis pesados, poli­dos, brilhantes; sofás e cadeiras pareciam pessoas gordas conversando; os pés de uma enorme mesa esmagavam o tapete.

Havia pessoas. Pessoas reais, e não forças, ou presen­ças. Sobressaindo-se dentre elas havia uma mulher, uma que eu já tinha visto antes, conhecia bem. Era alta, forte, com uma saúde de ferro, toda olhos azuis, rosto corado, e a boca jovial e nada absurda de uma colegial. Seu cabelo era cas­tanho e tinha sido quase todo arrepanhado para o alto da cabeça e firmemente preso. Estava vestida para receber; usava boas roupas, caras, na moda, e dentro delas seu corpo parecia querer afirmar-se — timidamente, mas com certa coragem, até elegância. Seus braços e pernas pareciam estar desconfortáveis; não tinha querido colocar aquelas roupas, mas achara que deveria: teria se livrado delas com uma pe­quena gargalhada, um sorriso, um "Graças a Deus, que alívio!"

Conversava com uma mulher, a visita, que estava de costas para mim. Podia ver seu rosto, seus olhos. Aqueles olhos, desanuviados pela autocrítica, como os céus que ti­nham estado azuis durante muitas semanas e continuariam ainda azuis e sem mudanças durante semanas, pois não se está nem perto da mudança de estação — seus olhos eram vazios, não viam a mulher com quem falava, nem a crian­cinha em seu colo, que sacudia para cima e para baixo ener­gicamente, usando o calcanhar como mola. Nem via a garo­tinha que estava perto da mãe, olhando, escutando, todos os sentidos aguçados, como se cada poro recebesse informa­ções em forma de avisos, ameaças, mensagens de desagrado. Desta criança emanavam fortes ondas de dolorosa emoção. Era culpada. Estava condenada. E, ao reconhecer esta emo­ção e o grupo de pessoas naquela sala confortável e sólida, a cena formalizou-se como um quadro de um vitoria­no ou uma fotografia de uma peça antiga. Sobre ela estava enfaticamente escrito: "culpa".

Em segundo plano havia um homem, parecendo pouco à vontade. Era um soldado, ou tinha sido. Alto e bem-feito de corpo, mantinha-se, entretanto como se fosse penoso demonstrar firmeza e auto-respeito. Seu rosto, convencionalmente bonito, sensível e fácil de sensibilizar-se, estava meio oculto por vasto bigode.

A mulher, esposa e mãe, estava falando. Falava, falava, cada vez mais, como se não houvesse ninguém a não ser ela naquele quarto ou fora dele, como se estivesse sozinha e seu marido e sua filha — sobretudo a garotinha, que sabia ser a ré principal, a que estava sendo denunciada — não pudes­sem ouvi-la.

— Mas eu simplesmente não esperava, ninguém nunca avisa ninguém de como vai ser, é demais. No fim do dia eu não sirvo para mais nada, a não ser para dormir, minha ca­beça fica confusa, é uma luta... ler ou fazer qualquer coisa séria, nem pensar. Emily acorda às seis, acostumei-a a ficar quieta até as sete, mas daí para a frente é trabalho, traba­lho, trabalho, o dia todo, uma coisa atrás da outra, e quando penso que já fui conhecida pela minha inteligência receio que já pareça até piada.

O homem, muito quieto, sentado em sua cadeira, fu­mava. A cinza do cigarro foi crescendo e caiu. Franziu a testa, lançou um olhar irritado para a esposa, puxou rispidamente um cinzeiro em sua direção, de um jeito que dizia ao mesmo tempo que podia ter se lembrado do cinzeiro an­tes, mas que se tinha vontade de deixar a cinza cair estava em seu direito. Continuou fumando. A garotinha, de uns cinco ou seis anos, tinha o polegar na boca. Seu rosto tor­nara-se anuviado e desolado devido ao peso da crítica que caía sobre ela, sobre sua existência.

Era uma criança de cabelos escuros, olhos escuros como os do pai, cheios de dor — culpa.

— Ninguém faz a menor idéia até que tem filhos e vê o que significam. A única coisa que posso fazer para dar conta da correria, das refeições uma atrás da outra, da co­mida, é deixar de lado a atenção que devia dar às crianças. Sei que Emily precisaria de mais tempo do que o que tenho para lhe dar, mas ela é uma criança tão exigente, tão difícil, sempre exigiu muito de mim, quer que lhe conte histórias e brinque com ela o tempo todo, mas estou cozinhando, dando ordens, faço isso o dia todo, bem, você sabe como é, não tenho tempo de fazer nem o que preciso, simplesmente não posso ter tempo para uma criança. Consegui arrumar uma garota no ano passado, mas na verdade dava mais trabalho do que ajudava, realmente, todos os seus problemas, suas crises, e a gente tem que lidar com eles, ela me tomava tanto tempo quanto Emily, mas eu conseguia tirar uma hora para mim depois do almoço e deitava um pouco, mas não tinha coragem de ler, que dizer de estudar, ninguém sabe como é, o que significa, não, o que as crianças fazem com a gente, nos trancam em casa, não sou mais a mesma, sei disto tão bem que sinto medo.

A criança em seus joelhos, dois ou três anos de idade, lerda e passiva, vestida com uma lã branca que cheirava a guardado, estava agora sendo sacudida mais depressa. Seus olhos admiravam o mundo que subia e descia à sua volta, sua boca adenoidal estava aberta e mole, as bochechas gor­das balançando.

O marido, passivo, mas na realidade tenso de irritação — com culpa —, continuava fumando, ouvindo, franzindo a testa.

— Mas o que se pode dar quando não se tem nada? Estou vazia, seca; na hora do jantar estou exausta e a única coisa que quero é dormir. E quando penso como costumava ser, do que era capaz! Nunca pensei que ficaria cansada, nun­ca imaginei que me tornaria uma dessas mulheres que nunca têm tempo de abrir um livro. Mas aqui estou eu.

Sorriu, quase sem sentir. Era como uma criança, aquela mulher alta, sólida, confiante; precisava de compreensão como uma criança. Ficou sentada perscrutando as necessidades de seus dias e suas noites. Para ela não havia ninguém mais ali, pois sentia que estava falando consigo própria: eles não podiam, ou não iriam, ouvir. Estava aprisionada, mas não sabia por que sentia-se assim, pois seu casamento e seus filhos eram o que ela própria tinha desejado e almejado — o que a sociedade havia escolhido para ela. Nada em sua educação ou experiência a tinha preparado para o que de fato sentia, e ela estava isolada em sua tristeza e perplexi­dade, chegando às vezes a acreditar que talvez pudesse estar, de alguma forma, doente.

A garotinha, Emily, deixara a cadeira onde tinha es­tado sentada, agarrada ao encosto, abrigando-se da tormenta de reclamações e críticas. Dirigiu-se para o pai, e ficou ao lado de seu joelho, olhando para a grande e poderosa mu­lher, sua mãe, cujas mãos eram tão dolorosas. Encolhia-se cada vez mais para perto do pai, que parecia não tomar co­nhecimento dela. Ele fez um movimento desajeitado, viran­do o cinzeiro, e o recuo instintivo fez com que seu ombro empurrasse Emily. Ela caiu, afastou-se, como algo deixado para trás quando uma massa de água ou uma corrente de ar passam. Encolheu-se no chão e ficou deitada ali, o rosto para baixo, polegar na boca.

A dura voz acusatória continuava sem parar, iria con­tinuar sempre, tinha sempre continuado, nada poderia pará-la, nada poderia parar estas emoções, esta dor, esta culpa de ter nascido um dia, nascido para causar tanta dor, per­turbação e dificuldade. A voz iria resmungar ali para sem­pre, jamais poderia ser desligada, e mesmo quando o som estivesse mais baixo na memória deveria haver uma perma­nente pressão de desagrado, ressentimento. Freqüentemente, em minha vida cotidiana, eu ouvia o som de uma voz, uma reclamação amarga e baixa que vinha do outro lado da sensa­tez: ali estava, em um dos quartos atrás da parede, ainda ali, sempre ali... parada na janela eu olhei Emily, a garota bri­lhante e atraente, que sempre tinha gente a seu redor ouvindo seu matraquear, sua risada, suas pequenas habilidades. Estava sempre atenta a tudo o que acontecia, nada poderia escapar a ela dentre os movimentos e acontecimentos daquela mul­tidão; enquanto falava com um grupo parecia que suas cos­tas e seus ombros estavam colhendo informações em outro. E mesmo assim estava isolada, sozinha; a "atratividade" era como uma concha brilhante, de dentro da qual ela olhava e ouvia. Era a intensidade de sua autoconsciência que a tor­nava só; esta não a abandonava, mesmo em seus momentos mais febris, quando estava tocada ou bêbada, ou cantando com os outros. Era como se tivesse uma deformidade invisí­vel, uma corcunda nas costas, talvez visível apenas para ela própria... e para mim, enquanto a olhava de um modo que nunca seria possível se ela estivesse perto de mim, em casa.

Emily nem reparava em mim. Estava tão entretida com seus companheiros, que tinha olhos para pouco do que acon­tecia fora. Mas notou-me uma ou duas vezes, e então foi estranho ver como ela me olhava, exatamente como se eu não pudesse perceber seu olhar. Era como se o ato de olhar para fora, estando protegida pela multidão, lhe desse imu­nidade, fosse diferente de olhar para alguém que fizesse parte do grupo, necessitando de um código diferente. Era um lon­go, pensativo olhar, não hostil, apenas diferente, seu verda­deiro eu visível, e então voltava o duro sorriso esperto, o aceno de mão — amabilidade, na medida em que era permi­tida por seus companheiros. Assim que me perdia de vista minha existência desvanecia-se para ela; estava novamente de volta, agarrada por eles, prisioneira de sua situação.

Enquanto eu estava parada na janela, com Hugo a meu lado, observando-a atentamente, vi como o número de pes­soas na calçada havia aumentado: havia cinqüenta ou mais deles agora, e, olhando para cima, para as inúmeras janelas cheias de rostos que circundavam o cenário, entendi que to­dos nós tínhamos algo em comum: nós .nos perguntávamos dentro de quanto tempo aquele tropel, ou parte dele, iria se mexer e partir, quando "os jovens" se iriam... já não faltava muito. E Emily? Iria com eles? Fiquei ao lado do atento bicho amarelo que nunca me deixaria fazer-lhe um ca­rinho, mas que parecia gostar de minha presença ali, perto, a amiga de sua ama, seu amor. Fiquei ali e pensei que um dia qualquer eu poderia aproximar-me da janela e encontrar a calçada em frente vazia, os garis jogando água e desinfetante, varrendo todas as lembranças da tribo. E Hugo e eu ficaríamos sozinhos, e eu teria traído minha fé.

De manhã ela sentava-se com o animal amarelo, alimen­tava-o com substitutivos de carne e legumes, acariciava-o e falava com ele. À noite levava-o para o quartinho, onde ele se deitava em sua cama quando ela dormia. Ela o amava, não havia dúvida, ao menos ela nunca a teve. Mas não era capaz de incluí-lo em sua vida real na calçada.

Numa noite, bem cedo, ela entrou em casa na hora em que a vida lá fora era mais viva, mais barulhenta — exata­mente quando as luzes começavam a aparecer em diferentes alturas no ar que escurecia. Entrou, e com um olhar de agi­tação que tentava ocultar de mim disse para Hugo:

— Venha, venha comigo para ser apresentado.

Teria esquecido sua experiência anterior? Não, claro que não; mas ela achava que as coisas poderiam ter mudado. Agora já era bem conhecida ali — mais que isso, devia sen­tir-se como um dos membros fundadores desta tribo em par­ticular: tinha ajudado a formá-la.

Ele não queria ir. Ah, não, ele realmente não queria ir com ela. Levantou-se de um modo que lançava sobre ela toda a responsabilidade pelo que pudesse acontecer, demons­trando seu desejo, ou pelo menos seu consentimento, de ir com ela.

Ela tomou o caminho e ele seguiu-a. Não o colocou em sua grossa coleira. Estava, ao deixar seu animal desprotegi­do, tornando a massa responsável por seu comportamento.

Vi a garota, frágil e vulnerável mesmo com suas calças grossas, as botas, a jaqueta, o cachecol, atravessar a rua, com o animal seguindo-a sobriamente. Tinha medo, era óbvio quando parou ao lado de um dos barulhentos grupos que tagarelavam vivamente, um que sempre parecia movido por uma violência interna, excitação ou uma prontidão para a excitação. Manteve uma mão sobre a cabeça do bicho, para assegurar-se. As pessoas voltaram-se e viram-na, viram Hugo. Tanto a garota quanto o animal estavam de costas para mim. Pude ver a multidão de frente tanto quanto Emily e Hugo. Não gostei do que vi... Se estivesse lá fora teria tido von­tade de correr, de fugir... Mas ela agüentou firme por um tempo. As mãos sempre abaixadas, perto da cabeça de Hugo, acariciando suas orelhas, dando-lhe tapinhas, confortando-o, aproximou-se calmamente do clã, resolvida a fazer seu teste, a demarcar sua posição entre eles. Ficou lá fora com ele até que o crepúsculo caísse e as multidões fossem absorvidas por matizes de luz e sombra, onde o som — uma risada, uma voz mais alta, o ruído de uma garrafa — era mais forte, e ficou andando em todas as direções para os agora invisíveis olheiros em suas janelas, levando mensagens de alegria ou medo.

Quando voltou com ele parecia cansada, entristecida. Estava muito mais próxima do nível do lugar-comum onde eu, como um dos velhos, vivia. Seus olhos me fitaram ao sentar-se para comer a salada de feijão e a pequena fatia de pão, parecendo realmente ver a sala onde estávamos. Quan­to a mim, estava cheia de apreensão: acreditava que sua tristeza devia-se à constatação de que o seu Hugo não po­deria viajar com a tribo em segurança — achei-a louca só por pensar nisso —, e mostrava que ela tinha decidido par­tir com eles e rejeitá-lo.

Depois do jantar ficou muito tempo sentada na janela. Olhava a cena da qual normalmente fazia parte. O animal sentou-se, não a seu lado, mas quieto em um canto. Podia-se acreditar que estava chorando, ou estaria, se soubesse como. Engolia sua dor. As pálpebras abaixavam-se conforme as on­das de dor o consumiam, e pareceu ter tido um grande tremor.

Quando Emily foi para a cama teve que chamá-lo di­versas vezes, e por fim ele foi, vagarosamente, com um andar calmo e digno. Mas internamente afastava-se dela: estava se protegendo.

Na manhã seguinte ela ofereceu-se para sair e procurar mantimentos. Há algum tempo não fazia isso e, de novo, senti que era um tipo de desculpa porque pretendia partir.

Sentamo-nos os dois quietos na sala comprida, de onde o sol já tinha partido por ser quase meio-dia. Fiquei de um lado e Hugo esticou-se, a cabeça entre as patas, ao longo da parede oposta, onde não poderia ser visto das janelas aci­ma dele.

Ouvimos passos do lado de fora; pararam, depois tor­naram-se furtivos. Ouvimos vozes altas, subitamente mur­muradas.

Uma voz de garota? — não, de rapaz; mas era difícil dizer. Duas cabeças apareceram na janela, tentando enxergar no lusco-fusco da sala: a luz lá fora era brilhante.

— É aqui — disse um dos garotos Mehta, de cima.

Eu o vi na janela — disse um jovem negro. Já o tinha visto com os outros na calçada, um rapaz esguio, flexí­vel, simpático. Uma terceira cabeça apareceu entre as outras duas: uma garota branca, de um dos edifícios.

Cachorro cozido — disse afetadamente. — Bem, eu não vou comer.

Ora, vamos — disse o garoto negro. — Já vi o que você come.

Ouvi um som de chocalho. Era Hugo. Estava tremen­do, e suas garras chocalhavam sobre o rodapé.

Então a menina me viu sentada ali, reconheceu-me, e fez a careta de desprezo com que o grupo presenteava os de fora.

Oh — disse. — Pensamos...

Não — falei. — Estou morando aqui. Não parti.

Os três rostos olharam rapidamente um para o outro, pardo, branco, negro, enquanto se responsabilizavam mutua­mente com ar de "fizemos uma besteira". Desvaneceram-se lá fora, deixando a janela vazia.

Hugo gemeu baixinho.

Tudo bem — falei. — Já foram.

O chocalhar aumentou. Então o animal ergueu-se e afastou-se, numa tentativa de dignidade, em direção à porta da cozinha, que era a mais afastada da janela perigosa. Não queria que eu visse sua perda de autocontrole. Envergonhava-se por tê-lo perdido. O gemido que ouvira era tanto de vergonha quanto de medo.

Quando Emily chegou, uma boa menina, a mocinha da casa, já era noite. Estava cansada, tinha tido que visitar vá­rios lugares para encontrar mantimentos. Mas estava conten­te consigo mesma. Naquela época as rações eram mínimas por causa do inverno, estavam quase acabando: vagens, ba­tatas, repolhos, cebolas. Isto havia. Mas ela tinha conseguido encontrar alguns ovos, um peixinho e até mesmo — um prêmio — um limão fresco, fortemente perfumado. Contei-lhe, quando acabou de mostrar suas prendas, o que havia acon­tecido. Seu bom humor desapareceu. Sentou-se quieta, a cabeça baixa, os olhos separados de mim pelas pálpebras espessas, brancas, de longos cílios. Então, sem me olhar, afastando-se de mim, foi procurar Hugo, confortá-lo.

E depois, um pouco mais tarde, foi para a calçada e lá permaneceu até muito tarde.

Lembro-me de como fiquei interminavelmente sentada no escuro. Adiava a hora de acender as velas, pensando que e suave mancha de luz, que era como se parecia minha ja­nela vista do outro lado da rua, iria lembrar aos canibais lá fora a presença de Hugo. Ele estava de novo encostado na parede, de onde não poderia ser visto facilmente. Estava quieto como se dormisse, mas tinha os olhos abertos. Quan­do acendi as luzes ele não se moveu e nem mesmo piscou.

Olhando para trás, vejo-me sentada na grande sala com seus confortáveis móveis velhos, com as coisas de Emily no pequeno espaço que tinha designado para elas, e o bicho amarelo silenciosamente deitado, sofrendo. E além, como pano de fundo, estava a parede ambígua, que podia dissol­ver-se tão facilmente, dissolvendo também toda esta vida estranha, e as angústias e pressões da época — criando, é claro, as suas próprias. Ali estavam, vagamente presentes, seus de­senhos de frutas, folhas e flores apagados pela luz fraca. É assim que a vejo, nos vejo, àquela época: a sala grande, fracamente iluminada, eu e Hugo ali, pensando em Emily lon­ge, do outro lado da rua, entre a multidão que se deslocava, se dispersava, se diluía e partia — e atrás de nós aquela outra região indefinida, deslocando-se, misturando-se e mu­dando, onde paredes, portas, quartos, jardins e pessoas recriavam-se continuamente, como nuvens.

Naquela noite havia lua. Parecia mais claro do lado de fora da sala do que dentro dela. A calçada estava abarrotada. Havia muito barulho.

Era claro que a turba havia se dividido em duas partes: uma parte preparava-se para ganhar as estradas.

Procurei Emily entre estas pessoas, mas não consegui vê-la. Então eu a vi: estava com as pessoas que ficavam para trás. Todos nós — eu, Hugo, a parte da multidão que ainda não estava pronta para fazer a viagem, e as centenas de pes­soas nas janelas à nossa volta e acima de nós — vimos quan­do os que partiam formaram, como um regimento, quatro ou cinco lado a lado. Não pareciam estar levando muito consigo, mas o verão ainda estava por chegar e o campo para onde se dirigiam ainda estava calmo, ou assim acredi­távamos, ainda não tinha sido muito pilhado. Na maioria eram jovens, pessoas com menos de vinte anos, mas incluíam uma família composta de pai, mãe e três crianças pequenas. Um bebê era carregado nos braços de um amigo, a mãe colocou o segundo nas costas, num suporte, o pai tinha a criança maior sobre os ombros. Havia líderes, três homens: não homens de meia-idade ou velhos, mas os mais velhos entre os jovens. Destes, dois iam à frente com suas mulhe­res, e um vinha atrás com as suas: tinha duas garotas grudadas nele. Havia cerca de quarenta pessoas juntas neste bando.

Tinham um carrinho ou vagão, parecido com aqueles usados nos aeroportos e estações de trem. Este continha al­guns sacos de legumes e cereais, e as pequenas bagagens dos viajantes. Também, no último momento, um casal de jovens, rindo mas ainda envergonhado, ou pelo menos consciente, colocou no carrinho um grande embrulho mole que exsuda- va sangue.

No carro havia finos feixes de bambu tinham sido arrancados de porta em porta por eles e três garotas carregavam-nos como tochas ardentes, uma na frente, outra atrás, outra no meio, tochas muito mais luminosas do que a inadequada quando não inexistente iluminação da rua. E lá se foram, pela estrada norteoeste, iluminados pe­las tochas que pingavam um fogo perigoso sobre suas cabe­ças. Cantavam. Cantaram Mostre-me o caminho do lar — sem, ou ao menos parecia, qualquer consciência de sua irô­nica ternura. Cantaram Não seremos demovidos e pela mar­gem do rio.

Partiram, e deixaram para- trás a calçada onde ainda havia muitas pessoas. Pareciam vencidos e logo se dispersa­ram. Emily voltou para casa, em silêncio. Procurou Hugo ele tinha voltado para seu lugar ao lado da parede —, sentou-se perto dele e puxou-o em parte para o colo. Ficou sentada ali beijando-o, debruçada sobre ele. Eu podia ver a grande cabeça amarela repousando nos seus bra­ços, podia ouvi-lo, por fim, ronronar e murmurar.

Agora eu sabia que apesar de ela desejar mais do que tudo penetrar no futuro de jogadores selvagens, com os que migravam, não estava preparada para sacrificar o seu Hugo. Ou, pelo menos, estava em conflito. E ousei ter esperanças. Apesar de, mesmo enquanto o fazia, perguntar-me por que achava que era tão importante que ela ficasse. Ficar com o quê? Comigo? Acreditava que ela deveria permanecer onde tinha sido deixada por aquele homem? Bem, minha fé a este respeito começava a fraquejar: mas sua sobrevivência importava, presumivelmente, e quem poderia dizer onde era mais provável ela estar a salvo? Acreditava que ela devesse ficar com o seu animal? Sim, acreditava. Absurdamente, é claro, pois ele era apenas um bicho. Mas pertencia-lhe, ela o amava, precisava cuidar dele; não poderia abandoná-lo sem ferir a si própria. Assim disse a mim mesma, discuti comigo mesma, consolei-me — discuti, também, com aquele mentor invisível, o homem que tinha jogado Emily para mim e ido embora: quem era eu para saber o que fazer? Ou o que pensar? Se estivesse cometendo erros, de quem seria a culpa? Ele não tinha me dito nada, nem deixado instruções; não havia nenhum modo de saber como eu de­veria viver, como Emily deveria estar vivendo.

Atrás da parede encontrei uma sala alta, não muito grande, e acho que de seis lados. Não tinha móveis, só uma armação grosseira em dois dos lados. No chão estava jogado um tapete, mas um tapete sem vida: tinha um desenho, in­trincado, mas as cores possuíam uma existência iminente, um potencial, não mais. Tinha havido uma feira ou mer­cado ali, onde ficara grande quantidade de trapos, teci­dos de vestidos, farrapos de bordados orientais do tipo que tem espelhinhos aplicados, roupas velhas tudo num gênero que se pode imaginar. Algumas pessoas estavam pa­radas no quarto. A princípio parecia que não estavam fazen­do absolutamente nada, inúteis e indecisas. Então uma delas retirou um pedaço de pano da bagunça sobre o cavalete e abaixou-se para combiná-lo com o tapete certo, o reta­lho correspondia àquela parte do tapete. Aquele pedaço foi colocado exatamente sobre o desenho e lhe deu vida.

Era como um jogo de criança, em tamanho gigante. Só que não era um jogo, era sério, importante não só para as pessoas diretamente engajadas no trabalho, mas para todos. Então outra pessoa abaixou-se com um pedaço escolhido dentre a pilha multicolorida do cavalete, arrumou e se levantou novamente para observar. Ali ficaram, uma dú­zia de pessoas, quase em silêncio, voltando os olhos dos desenhos do tapete para a massa confusa de panos e re­petindo tudo novamente. Um reconhecimento, o movimen­to rápido, um sorriso de prazer ou de alívio, um olhar de congratulação para os outros... ali não havia competição, só a mais solene e amorosa cooperação. Entrei no quarto, parei sobre o tapete, olhando para baixo, como eles, para a sua inconclusão, desenho sem cor, exceto onde os retalhos já haviam sido postos numa combinação, de modo que al­gumas partes do tapete tinham aparência desbotada enquan­to outras brilhavam, preenchidas, perfeitas. Eu também pro­curei pedaços de pano que pudessem dar vida ao tapete; de fato encontrei um, e abaixei-me para combiná-lo e arrumá-lo, antes que uma força me movesse novamente. Notei que em todos os lugares ao redor, em todos os outros quar­tos, havia pessoas que iriam por sua vez entrar ali, ver aquela atividade central, encontrar seu retalho iriam colo­cá-lo no chão e seriam novamente impelidas a outras tarefas. Deixei aquele quarto alto cujo teto se desvanecia acima numa escuridão onde achei ter visto o brilho de uma estrela, um quarto cuja parte mais baixa tinha uma luz brilhante que envolvia as silenciosas e concentradas figuras como uma luz de palco. Deixei-as e fui em frente. O quarto desapareceu. Não pude achá-lo quando me voltei para vê-lo novamente, como para marcar onde estava. Mas sabia que estava ali esperando, sabia que não tinha desaparecido, e que o traba­lho em seu interior continuava, tinha de continuar, conti­nuaria sempre.

Agora parece que este período foi interminável, mas na realidade foi bem curto, questão de meses. Acontecia tanta coisa, e cada hora parecia cheia de novas experiências. Ainda que aparentemente tudo o que fazia era viver calma­mente ali, naquela sala, com Hugo, com Emily. Dentro tudo era caos: havia a sensação que nos domina quando, num mo­mento da vida, tudo está em transformação, movimento, destruição ou reconstrução, mas isto nem sempre é evi­dente na hora —, há uma sensação de desamparo, como se estivéssemos girando numa montanha-russa ou numa centrifugadora.

Mas eu não tinha alternativa a não ser continuar fazen­do exatamente o que fazia. Olhar e esperar. Olhar, na maio­ria das vezes, para Emily... que vinha agindo como uma es­tranha, assim me parecia, durante anos. Mas é claro que não era assim, era a ansiedade por ela que alongava as horas. O bicho amarelo, melancolia, sua dor engolida juro que era assim, apesar de ele não passar de um animal na determi­nação de ser estóico, de não mostrar suas feridas, sentado em silêncio perto da janela num lugar atrás das cortinas, onde podia facilmente virar-se de costas para o chão ou esticar-se ao longo da parede, numa posição de carpideira, a cabeça sobre as patas dianteiras, os olhos verdes fixos e abertos. Ficava ali, hora após hora, contemplando seus... pensamen­tos. Por que não? Ele pensava, julgava, como os animais podem ser vistos fazendo se forem observados sem precon­ceito. Devo dizer aqui, já que precisa ser dito em algum lugar, sobre Hugo, que acho que a seqüência de comentários automaticamente evocada por este tipo de afirmação, as gas­tas observações a respeito de "antropomorfismo", não têm nada a ver com isto. Nossa vida emocional é compartilhada pelos animais; gabamo-nos de que as emoções humanas são muito mais complicadas do que as deles. Talvez a única emo­ção desconhecida para um gato ou cachorro seja o amor romântico. E mesmo assim tenho minhas dúvidas. O que é a devoção afetiva de um cão por seu dono ou sua dona, a não ser este tipo de amor, todo obrigação e desejo e "me dá, me dá". O que era o amor de Hugo por Emily a não ser isto? Pois para nosso pensamento, nosso aparato intelectual, nosso racionalismo e nossa lógica e nossa dedução e daí em diante, pode ser possível dizer-se com absoluta certeza que cães e gatos e macacos não podem fazer um foguete para voar à lua ou criar um tecido sintético a partir dos subpro­dutos do petróleo, mas ao sentarmo-nos sobre as ruínas des­te tipo de inteligência é difícil dar-lhe muito valor: acho que agora a subestimamos e antes a superestimávamos. Aca­bará encontrando seu lugar: acredito que numa colocação bem baixa.

Acho que durante todo este tempo os seres humanos foram observados por criaturas cuja percepção e compreen­são estavam tão além de qualquer coisa que fôssemos capazes de aceitar, devido à nossa vaidade, que nos sentiríamos diminuídos se fôssemos capazes de conhecê-las, ficaríamos humilhados. Estivemos vivendo com eles como assassinos e torturadores estúpidos, cegos, empedernidos, cruéis, e eles nos observaram e conheceram. E é esta a razão pela qual recusamo-nos a reconhecer a inteligência das criaturas que nos cercam: o choque em nosso amor-próprio seria excessi­vo, o julgamento que teríamos de fazer de nós mesmos, hor­rível demais: é exatamente o mesmo processo que pode fazer alguém continuar eternamente cometendo crimes ou crueldades, apesar de sabê-lo: parar e ter de ver o que já foi feito seria muito doloroso, não se pode suportá-lo.

Mas as pessoas precisam de escravos, vítimas e agregados, e é claro que muitos de nossos  o são porque foram transformados naquilo que acreditávamos que deveriam ser, assim como muitos seres animados podem vir a ser o que se espera deles. Mas nem todos, de modo algum; o tempo todo, durante nossas vidas, somos acompanhados, aonde quer que vamos, por criaturas que nos julgam e que às vezes se comportam com uma nobreza que é... nós a chamamos humana.

Hugo, este arremedo de criatura, era, em seu relacio­namento com Emily, tão delicado quanto um amante fiel que se contenta com cada pequena possibilidade de não ser banido da presença amada. Isto é o que impôs a si próprio: não fazer exigências, não perguntar, não incomodar. Estava esperando. Como eu. Observava, como eu o fazia.

Eu passava longas horas com ele. Ou me sentava nas horas em que o sol batia na parede, esperando que ela se abrisse, se desdobrasse. Ou andava pelas ruas, coletando no­tícias, boatos e informações como todos, perguntando-me o que seria melhor, e decidindo não fazer nada por enquanto; perguntando-me por quanto tempo nossa cidade resistiria, erodida como estava em todos os sentidos, seus serviços terminando e terminados, suas pessoas fugindo, seus víveres se esgotando, sua lei e ordem consistindo cada vez mais naqui­lo que os cidadãos se impunham, uma auto-restrição instin­tiva, até mesmo do cuidado com outros que iam pelo mesmo caminho.

Parecia haver nova aspereza na tensão da espera. Por um motivo — o tempo: o verão chegara quente e seco, o sol tinha uma aparência empoeirada. A calçada em frente à minha janela enchera-se de novo. Mas agora havia menos interesse pelo que acontecia lá fora: as janelas mostravam menos cabeças, as pessoas tinham se acostumado àquilo. To­dos sabiam que muitas vezes as ruas se esvaziariam, em parte, quando uma nova tribo partisse, e reconhecíamos com sentimentos confusos a sorte que tinha escolhido nossa rua como ponto de encontro das migrações de nossa parte da cidade: pelo menos os pais sabiam o que seus filhos estavam fazendo, mesmo que não gostassem daquilo. Acostumamo- nos a observar um bando heterogêneo de pessoas reunido ao longo da calçada com seus patéticos volumes de bagagem, e ao vê-los partir, cantando suas velhas canções de guerra, ou canções revolucionárias que pareciam tão impróprias quanto canções sobre sexo são para os velhos. E Emily não partiu. Corria um pouco atrás deles com as outras garotas e depois voltava para casa, vencida, colocando os braços ao redor de seu Hugo, o cabelo escuro jogado sobre o pêlo amarelo. Era como se ambos chorassem. Eles agarravam-se, criaturas na dor, confortando um ao outro.

O passo seguinte foi Emily apaixonar-se... Tenho consciência de que este parece um termo impróprio para a época que descrevo. Foi por um jovem que parecia pronto a liderar o próximo contingente para fora da cidade. Era, apesar das roupas de valentão, um jovem cuidadoso, ou pelo menos lento ao fazer julgamentos. Talvez um temperamento observador, mas impulsionado para a ação pela época? Era, de qualquer modo, o guardião natural dos mais jovens, dos necessitados, dos desamparados. Tornara-se conhecido por isso, era importunado por isso, às vezes criticado: delicade­zas deste tipo eram supérfluas frente à necessidade de so­brevivência. Talvez tenha sido por isto que ele atraiu Emily.

Acho que sua confiança nele era tal que ela até pensou em levar Hugo até o bando para outra tentativa, mas isto deve ter partido dela para Hugo, pois ele percebeu: tremeu e encolheu-se e ela teve que abraçá-lo e dizer:

Não, não vou, Hugo. Prometo que não. Ouviu? Já prometi, não é?

Bem, então era isso, ela estava apaixonada. Era o ver­dadeiro "primeiro amor". O que significa que meia dúzia de namoricos, cada um tão doloroso, intenso e sério quanto os posteriores amores "adultos", tinham passado. Este na­moro era "primeiro" e "sério" porque correspondido, ou ao menos reconhecido.

Lembro-me de que costumava perguntar-me se estes jo­vens, vivendo como precisavam, no aqui e agora, que nunca iriam trancar-se como casais entre paredes, a não ser por algumas poucas horas ou dias numa casa abandonada qual­quer, ou numa choupana num campo, iriam algum dia dizer a outro: "Eu te amo. Você me ama? Será que nosso amor vai durar?", e daí por diante. Frases que pareciam ser cada vez mais as chaves ou documentos da posse de estados e condições agora obsoletos.

Mas Emily estava sofrendo, padecendo, como acontece nesta idade, tão tenra quanto um pão fresco, amando um herói de vinte e dois anos. Que inexplicavelmente, até misteriosamente, a tinha escolhido. Ela era a sua garota, escolhida dentre tantas e reconhecida como tal. Ficava a seu lado na calçada, seguia-o nas expedições, e as pessoas sentiam prazer e até mesmo achavam importante quando lhe diziam:

Gerald disse... Gerald quer que você...

Ia da dor à exaltação em segundos, e ficava ali a seu lado, pujante e bela, os olhos ternos. Ou afundava-se no canto do sofá, para ficar um pouco só, ou pelo menos afas­tada dele, pois aquilo tudo era demais, poderoso demais, e ela precisava tomar fôlego. Estava radiante de felicidade, sem ver a mim ou àquilo que a cercava, e eu sabia que es­tava dizendo para si própria: "Mas ele me escolheu, a mim...", e isso não incluía "E só tenho treze anos!", o que era um pensamento para a minha idade. Uma garota estava pronta para o casamento quando seu corpo também estava.

Mas a vida destes jovens era comunitária, e quando escolhiam um ao outro, a vida sexual estava longe de ser o foco ou o móvel do relacionamento. Não, nenhuma consu­mação individual tinha significado frente a este ato de mis­turar-se constantemente com os outros, como se um ritual gigantesco de alimentação estivesse acontecendo, todos pro­vando, lambendo e regurgitando com todos, cada um se dan­do a conhecer e conhecendo o outro neste provar e escolher - olhando-se, esfregando ombros e corpos, falando, trocan­do emanações.

Mas enquanto Emily fazia parte deste ato comunitário, do banquete comunal, sentia ao mesmo tempo o que tradicionalmente as garotas sentiam: queria, eu sabia, ficar a sós com Gerald; teria gostado desta experiência, antiga.

Mas nunca ficava só com ele.

O que desejava era impróprio. Sentia ser errado, até criminoso, pelo menos o suficiente para ser repreendida. Ela era um anacronismo.

Eu não disse nada, pois nossas relações não eram do tipo que me permitisse perguntar, nem ela se mostrava aber­ta a isto.

Tudo o que sabia era o que podia ver por mim mesma: que ela estava sendo interminavelmente preenchida por uma violência de necessidades que nela explodiam, ofuscando seus olhos e sacudindo seu corpo de um modo que a espantava - necessidades que nunca poderiam ser satisfeitas com um abraço no chão de um quarto vazio ou no isolamento de um campo. À sua volta a luta pela vida continuava, mas Gerald sempre ocupava seu centro: onde quer que ela se entregasse a uma tarefa ou obrigação, lá estava ele, tão eficiente, prá­tico e ocupado com coisas importantes, mas ela, Emily, es­tava possuída por um inimigo selvagem, estava assolada de amor e dor. E se ela traísse o que sentia através de um olhar ou uma palavra errados, e daí? Iria perder seu lar ali, entre aquelas pessoas, a sua tribo... E era por isso que tão fre­qüentemente ela escapulia para dentro de casa, para enroscar-se perto de seu familiar chego e colocar os braços a seu redor. Ao que ele podia corresponder com um grunhido aba­fado, pois sabia muito bem o uso que ela estava fazendo dele.

Houve esta justaposição: Emily deitada com o rosto sobre o grosseiro pêlo amarelo, uma mão ainda infantil abar­cando uma orelha áspera, seu corpo tenso expressando vazio e saudade. A parede à meu lado abria-se, lembrando-me de novo quão fácil e inesperadamente podia fazê-lo, e eu me vi andando em direção a uma porta de onde vinham vozes. Uma risada frenética, gritos, protestos. Abri a porta para aquele mundo que respirava irritação, confinamento, mes­quinharia. Um mundo intensamente colorido: as cores eram vulgares e espalhafatosas como em velhos calendários. Um lugar quente e atravancado, tudo muito grande, maior que o natural, difícil: era de novo a visão infantil que me apri­sionava. Grandeza e mesquinharia; violência de emoções e sua insignificância — contradições, impossibilidades nasciam e faziam parte da substância de qualquer coisa que se visse quando este clima determinado se introduzia. Era um quar­to. Novamente uma lareira ardia na parede por trás de uma alta proteção de metal. Novamente era um quarto denso, pesado, absorvente, com o tempo como ar, o ruído de um relógio sentido como condição de cada instante e pensamen­to. O quarto estava repleto de uma luz quente: uma luz avermelhada, listrada e cruzada por sombras derramava-se sobre as paredes, pelo teto, e sobre as macias cortinas bran­cas imensamente compridas que enchiam uma parede em frente às duas camas: camas de pai e mãe, camas do marido e da mulher.

As cortinas, por algum motivo, enchiam-me de angús­tia, com sua caída suave. Eram de cambraia ou musselina branca com um desenho entremeado, e desdobravam-se infi­nitamente. Um branco que era feito de luminosidade e trans­parência para deixar o sol entrar e que tinha sido envolvido pelo ar da noite e ficado abafado, opaco, pendurado como mortalha que repelia ar e claridade para refletir a luz quente da chama vinda da lareira cercada de ferro.

De um lado do quarto a mãe estava sentada com o bebê, sempre com sua lã mofada. Seus braços envolviam-no e parecia absorta. Numa enorme cadeira colocada em frente às cortinas estava sentado o homem com cara de soldado, os joelhos abertos, segurando entre eles a garotinha, que se encolhia. Em seu rosto, sob o bigode, havia um pequeno riso duro. Estava brincando de fazer cócegas na criança. Era uma "brincadeira", a "brincadeira" da hora de dormir, um ritual. A criança mais velha estava recebendo uma brinca­deira, estava sendo cansada, estava recebendo permissão de ter atenção antes de ser posta na cama, e este era um ser­viço do pai para a mãe, que não conseguia dar conta de todas as exigências de seu dia, das exigências de Emily. A criança usava uma camisola comprida, com babados nos pul­sos e no pescoço. Seu cabelo tinha sido escovado e estava preso por uma fita. Há alguns minutos tinha sido uma me­nininha bonita, limpa e arrumada numa camisola branca, com uma fita branca no cabelo, mas agora ela sentia calor e estava suando, e seu corpo contorcia-se e girava para esca­par das enormes mãos do homem que a espremiam e se fin­cavam em suas costas, para escapar da enorme face cruel que se inclinava tão próxima, com seu olhar de satisfação egoísta. O quarto parecia inundado por uma angústia quen­te, pelo medo de ficar detida ali, pela necessidade de ser presa e torturada, já que era este o modo de agradar aos captores. Gritava: "Não, não, não, não...", desamparada, explorada e desnudada por este homem.

A mãe estava indiferente. Não sabia o que acontecia ou o que sua garotinha sofria. Pois era uma "brincadeira" e os gritos e protestos eram os mesmos de sua própria in­fância e, conseqüentemente, adequados, saudáveis, permiti­dos. Ninava e conversava com seu impassível bebê boquia­berto, enquanto o pai continuava sua tarefa, olhando de vez em quando para a esposa com uma expressão maravilhosa­mente complexa culpa, mas sem consciência; súplica, pois sentia estar errado e precisava ser refreado; espanto, por isto ser permitido e por ela, que não só não protestava como encorajava-o ativamente à "brincadeira"; e, misturado a isto tudo, um olhar que nunca se afastava de seu rosto, de absoluta incredulidade na possibilidade de tudo. Deixou os joelhos relaxarem-se e tentou soltar a criança, que quase caiu, sem um joelho que a apoiasse, mas antes que ela pu­desse fugir foi novamente aprisionada, quando os joelhos fecharam-se a seu redor. A requintada tortura recomeçou.

Aqui, aqui, aqui, Emily resmungava o grande homem, envolvendo-a com seu cheiro de tabaco e de rou­pas sujas. Agora, isso, você vai ver continuava ele, enquanto os dedos afundavam-se em suas costas, por todos os lados, e ela gritava e suplicava.

Esta cena desvaneceu-se como um relâmpago ou como um pesadelo e o mesmo homem estava sentado no mesmo quarto, mas agora numa cadeira próxima à cama. Usava um pesado roupão marrom de uma lã muito grossa e áspera, uma roupa de soldado, e ele fumava, sentado, olhando a esposa. A mulher grande e saudável estava tirando a roupa de modo rápido e eficiente, de seu lado da cama, perto do fogo: só que agora era verão e a lareira tinha flores verme­lhas. As cortinas desciam moles e quietas, muito brancas, mas abertas para mostrar pedaços de vidro negro que refle­tiam o homem, o quarto, os movimentos da mulher. Ela não prestava atenção ao marido, que, sentado ali, via sua nudez emergir. Estava falando, relatando seu dia para ele, para ela própria:

— E lá pelas quatro eu estava bem exausta, a garota tinha tirado folga, o bebê estava acordado desde a manhã, não tinha dormido, e Emily hoje estava muito implicante e exigente... e... e...

A lamúria continuava, ela parada, nua, procurando o pijama. Era uma mulher vistosa e sólida, de pele branca e clara e seios pequenos e redondos. Os bicos eram virginais para uma mulher que tinha tido dois filhos: pequenos e com estreitas aréolas cor-de-rosa. Seu cabelo castanho e cheio caía pelas costas e ela primeiro coçou a cabeça, depois embaixo do braço, levantando-o para mostrar fios de com­pridos cabelos castanhos. Em seu rosto surgiu um olhar de intensa satisfação que a teria assustado se tivesse podido vê-lo. Coçou a outra axila, e depois se permitiu coçar, vo­luptuosamente, com ambas as mãos, a cintura, os quadris, o estômago. Suas mãos não se abrandaram. Ficou ali se co­çando, vigorosamente, durante muito tempo, alguns minu­tos, enquanto marcas vermelhas apareciam na sólida carne branca sob os dedos enérgicos, e de vez em quando ela tinha um grande arrepio de prazer, mascarado como frio. O mari­do permanecia sentado e observava. Em seu rosto havia um pequeno sorriso. Levou o cigarro à boca e deu uma profun­da tragada, deixando-a sair vagarosamente, permitindo que escorregasse da boca entreaberta e das narinas.

Sua esposa tinha terminado de se coçar e enfiava-se num pijama de algodão de pintinhas rosa, que lhe dava o aspecto de uma alegre colegial. Seu rosto estava inconscien­temente ávido — por dormir. Já se imaginava escorregando para a trégua. Entrou eficientemente na cama, como se seu marido não existisse, e num movimento deitou-se e virou-lhe as costas. Bocejou. Então lembrou-se dele: havia algo que devia fazer antes de permitir-se este prazer supremo. Voltou-se e disse: "Boa noite, meu querido", e na mesma hora afundou-se, dormindo, virada para ele. Este continuou sentado, fumando, examinando-a agora atentamente em seu descanso. Havia divertimento ali, incredulidade e, ao mesmo tempo, uma austeridade que havia começado, pelo visto, como uma variação da exaustão moral, até de uma falta de vitalidade, e que há muito tempo se tinha tornado uma sen­tença para ele mesmo e para os outros.

Agora apagou o cigarro e levantou-se da cadeira, gen­tilmente, como se tivesse medo de acordar uma criança. Foi para o outro quarto, que pertencia às crianças, com suas cortinas de veludo vermelho e seu branco, branco, branco em toda parte. Dois berços, um pequeno, um grande. Andou delicadamente, um homem grande no meio de milhares de minúsculos apetrechos de bebês, passou pelo berço pequeno em direção ao grande. Parou a seus pés e olhou para a garo­tinha, agora adormecida. Seu rosto ardia, vermelho. Gotas de suor pairavam-lhe na testa. Estava dormindo levemente. Enquanto ele olhava, ela empurrou as cobertas, virou-se e ficou deitada, a camisola enrolada na cintura, mostrando o traseirinho e a parte de trás de belas pernas. O homem abaixou-se e fitou, e fitou... um ruído vindo do quarto, sua esposa se mexendo ou talvez dizendo algo num sonho, fê-lo ficar de pé parecendo... culpado, mas desafiante e, acima de tudo, zangado. Zangado com quê? Com tudo, esta é a resposta. Fez-se silêncio de novo. Lá embaixo, nesta casa alta, um relógio bateu: eram apenas onze horas. A garoti­nha virou-se de novo e ficou de barriga para cima, nua, barriga estendida, vulva proeminente. O rosto do homem adicionou outra emoção àquelas já descritas aqui. De repen­te, mas sem brusquidão, puxou uma coberta para cima da garota e prendeu-a firmemente. Na mesma hora ela começou a contorcer-se e a choramingar. O quarto estava muito quen­te, as janelas, fechadas. Quase abriu uma, mas lembrou-se de uma proibição. Voltou-se e saiu do quarto sem olhar nova­mente para os dois berços, onde o garotinho permanecia em silêncio, a boca aberta, mas onde a menina estava tossindo e lutando para escapar, escapar, escapar.

Em um quarto, cujas janelas se abriam para um jardim tradicional, um quarto que tinha "jeito" de pertencer a al­gum outro país, diferente dos quartos desta casa, havia uma caminha onde uma menina estava deitada. Era mais velha, e encontrava-se doente, irritada. Mais pálida, mais magra do que eu jamais a tinha visto, seu cabelo escuro estava úmido e grudado, e pairava um cheiro de suor guardado. À sua volta havia livros, brinquedos, revistas. Ela agitava-se incan­sável e continuamente, esfregando uma perna contra a ou­tra, debatendo-se, virando-se, embalando a si mesma, fazendo queixas e dando ordens a alguém. Era um terremoto de febres, energias, desejos, ódios, necessidade. Entrou a mu­lher alta e grande, preocupada, com um copo na mão. Ao ver o copo a menina animou-se: ali pelo menos havia alguma diversão, e ela reclinou-se para sentar-se. Mas a mãe já tinha depositado o copo e estava saindo para outra tarefa.

Fique comigo implorou a menina.

Não posso, tenho de olhar o nenê.

Por que você sempre chama ele de nenê?

Não sei, realmente, é claro que já é tempo... já está bem grandinho... mas sempre me esqueço.

Por favor, por favor.

Ah, está bem, só um pouquinho.

A mulher sentou-se na ponta da cama, parecendo apres­sada, parecendo, como sempre, sobrecarregada e irritada. Mas também estava lisonjeada.

Beba sua limonada.

Não quero. Mamãe, me nina, menina...

Oh, Emily!

Com uma gargalhada de deleite a mulher inclinou-se para a frente, oferecendo-se. A garotinha passou os braços ao redor do pescoço da mulher e pendurou-se ali. Mas não foi encorajada.

Me nina, me nina murmurava, quase para si própria, e bem que devia ser para ela mesma, pois a mulher estava completamente atrapalhada com aquilo. Aturou os bracinhos quentes por algum tempo, mas então não pôde mais se conter seu desagrado por contato físico levantou suas próprias mãos para afastar os braços da criança para longe de si.

Vamos, chega disse. Mas continuou ali, mais um pouco. O dever a fez ficar. Dever para com o quê? Para com a doente, muito provavelmente. "Uma criança doente precisa da mãe." Algo deste tipo. Entre a forte necessidade da menininha de ter seu corpo acalentado, tranqüilizado com um carinho, com amor, que deitado junto da grande e forte parede de um corpo, um corpo seguro que não a sacudisse, atormentasse ou apertasse; queria segurança e calma en­tre ela e a respiração regular da mãe, de corpo calmo, todo auto-suficiência e dever, havia um vazio, uma falta de cons­ciência. Não havia contato nem conforto mútuo.

A garotinha deitou-se e depois estendeu a mão para o copo, bebendo sofregamente. No momento em que o copo ficou vazio a mãe levantou-se e disse:

Vou lhe fazer outra.

Ah, fique comigo, fique comigo.

Não posso, Emily. Você está sendo rabugenta de novo.

O papai pode vir?

Mas ele está ocupado...

Não pode ler para mim?

Você já sabe ler sozinha, já está bem crescida.

A mulher saiu com o copo vazio. A menina pegou um biscoito meio comido de baixo do travesseiro, apanhou um livro e comeu e leu, comeu e leu, os membros sempre em movimento, agitando-se e ajeitando, sua mão livre tocando o rosto, o cabelo, os ombros, sentindo todos os pontos da carne, cada vez mais e mais para baixo, perto da virilha, de suas "partes íntimas" — mas daí a mão foi rapidamente re­tirada, como se esta área estivesse cercada com arame. En­tão ela apertou as coxas, cruzou-as e descruzou-as, virou, mexeu, e leu e comeu e comeu e leu.

Ali estava Emily agora, deitada no chão de minha sala.

Hugo querido... Hugo querido, querido. Você é o meu Hugo, o meu amor, Hugo...

E enchi-me daquela impaciência ridícula, do desamparo de um adulto que vê algo novo crescer. Ali estava ela enclausurada em sua idade, mas numa continuidade com aque­las cenas por trás da parede, uma vivência que a tinha forma­do — ainda que não pudesse vê-la ou saber dela, e seria inútil que lhe dissesse isto; se o fizesse ela escutaria palavras, nada mais. Daquela região nebulosa por trás dela veio o dita­do: Você é isto, e isto e isto — isto ê o que você deve ser, e não aquilo; e as necessidades biológicas de sua idade demarcaram uma fronteira precisa, previsível e regular em sua vida, fazendo-a ser exatamente isto e aquilo. E assim continuaria, tinha que continuar, e eu precisava assistir. E no momento devido ela se encheria como um vasilhame de substâncias e experiências; seria puxada por aquelas parteiras, algumas re­conhecíveis, compreendidas e usuais para todos, algumas a serem unicamente reveladas por seus métodos de trabalho —, tornar-se-ia madura, a condição ideal encarada como jus­tificativa de todas as experiências anteriores, um ápice de realização, inevitável e peculiar. Este ápice é como vemos as coisas, é um vértice biológico: crescimento, a realização no alto da curva de sua existência animal, depois uma queda em direção à morte. Absurdo, é claro, sem sentido. Mas era difícil dominar em mim esta impressão a seu respeito, co­berta de impaciência ao vê-la enroscar-se e esfregar-se em seu ronronante animal amarelo, fazer-me acreditar que esse estágio de sua vida era tão válido quanto qualquer outro posterior — talvez para ser adicionado ou capturado na imagem de um sorriso sereno, mas capaz —, e que o que eu na realidade esperava (exatamente como se em algum lugar de seu interior ela devesse ser) era o momento em que abandonaria este carrossel, este guia que a levava da escuridão para a escuridão. Abandonar inteiramente... E depois?

Havia novos acontecimentos na vida da calçada. Sur­giram com Gerald; precisamente com sua necessidade de proteger os fracos, sua identificação com eles, aquela quali­dade que não poderia ser incluída nos balancetes da sobre­vivência. De súbito tinham aparecido crianças de nove, dez, onze anos, sem estar ligadas a famílias, mas sós. Algumas tinham pais dos quais haviam fugido, ou que ainda viam, mas só ocasionalmente. Algumas não tinham pais. O que tinha acontecido com eles? É difícil dizer. É claro que, ofi­cialmente, as crianças ainda tinham pais, casas e tudo o mais, e caso não os tivessem deveriam ser adotadas ou re­cebidas sob custódia. Oficialmente, as crianças iam à escola com regularidade. Mas a prática não se parecia em nada com isto. Às vezes as crianças agregavam-se a outras famílias por­que seus próprios pais eram incapazes de lidar com as pres­sões, não sabiam onde encontrar comida e bens, ou simples­mente tinham perdido o interesse por elas e as tinham jogado fora para que se defendessem sozinhas, como em outras épocas se fazia com cães e gatos que não davam mais prazer. Alguns pais estavam mortos, devido à violência ou às epidemias; outros tinham saído da cidade e deixado os filhos para trás. Estas crianças abandonadas costumavam ser ignoradas pelas autoridades, a não ser que chamassem especificamente a atenção, mas as pessoas deviam alimentá-las ou levá-las para suas próprias casas. Ainda faziam parte da sociedade, queriam fazer parte, e concentravam-se nos locais onde havia gente. Eram bem diferentes daquelas crian­ças que terei de descrever em breve, que tinham se afastado totalmente da sociedade, que eram nossos inimigos.

Gerald observou que uma dúzia de crianças ou mais estava literalmente morando na calçada, e começou a tomar conta delas de modo organizado. Claro que Emily venerou-o por isso, e defendeu-o das críticas inevitáveis. Em geral se dizia que os velhos deviam ser deixados para morrer posso assegurar que isto criou uma nova dimensão de terror nas vidas dos velhos, já tênues —, que os mais fracos teriam de ir para o paredão: isto já estava acontecendo e não era um processo que pudesse ser alterado por sentimentos de repugnância. Mas Gerald tomou uma posição. Começou por defendê-las quando as pessoas tentaram escorraçá-las. Dormiam no terreno baldio perto da calçada e começaram as reclamações sobre o cheiro e a confusão. Logo aconteceria o que todos temíamos acima de tudo: as autoridades teriam de intervir.

Havia casas e apartamentos vazios em toda parte; a cerca de meia milha dali havia uma grande casa vazia, em boas condições: Gerald levou as crianças para lá. Há muito tempo que o fornecimento de energia tinha sido cortado, mas naquela época quase ninguém pagava as contas de luz. A água ainda estava ligada. As janelas tinham sido quebra­das, mas fizeram venezianas para o térreo e usaram velhos pedaços de plástico nas janelas do andar de cima.

Gerald tornou-se um pai ou irmão mais velho das crian­ças. Conseguiu-lhes comida. Em parte, mendigou nas lojas. As pessoas eram muito generosas. Esta era uma coisa estra­nha: a ajuda mútua e o auto-sacrifício andavam lado a lado com alnsensibilidade. E tez excursões ao campo para conseguir os viveres que ainda podiam ser comprados ou rou­bados. E, o melhor de tudo, havia um grande quintal atrás da casa, e agora ele lhes ensinava como cultivá-lo. Era vi­giado noite e dia pelas crianças mais velhas armadas de revólveres e cassetetes, ou arcos e flechas ou catapultas.

Ali estava: carinho, cuidado, uma família.

Emily acreditava que tinha adquirido uma família pronta.

Então começou uma época nova, estranha. Ela estava vivendo comigo, "sob meus cuidados" o que era uma piada, mas ainda constituía a razão pela qual permanecíamos juntas. Certamente estava vivendo com o seu Hugo, a quem não suportaria deixar. Mas toda noite, após um jantar feito bem cedo (eu até dei um jeito para que comesse numa hora que se adaptasse melhor a sua nova vida), ela dizia:

Acho que vou sair agora, se você não se incomodar.

E sem esperar resposta, mas dando-me um pequeno sorriso culpado, até chateado, ela partia, após ter beijado Hugo numa pequena cerimônia secreta que era como um pacto ou promessa. Normalmente voltava no meio da manhã.

Preocupava-me, é claro, com uma gravidez; mas as cláusulas de nosso contrato tornavam impossível fazer perguntas e, no meu caso, suspeito que aquilo que eu encarava como um fardo impossível, que poderia soterrá-la, destruí-la, seria acolhido por ela com: — E daí? Outras pessoas já tiveram bebês e se ajei­taram, não é?

Preocupava-me também que sua ligação com esta nova família pudesse tornar-se tão forte que ela simplesmente se afastasse, para longe de nós, Hugo e eu. Ali estávamos nós, os dois, esperando. Esperar era nossa ocupação. Fazíamos companhia um ao outro. Mas ele não era meu, não era o meu animal, definitivamente ele não era isso. Ele esperava, atento, por Emily: com seus olhos verdes firmes e atentos. Estava sempre pronto para levantar-se e recebê-la na porta — eu sabia que ela estava chegando minutos antes de isso acontecer, pois ele farejava, ouvia ou intuía sua presença quando ainda estava a várias ruas de distância. Na porta os dois pares de olhos, os verdes, os castanhos, envolvidos numa estonteante onda de emoção. Então, ela o abraçava, alimentava-o e tomava banho. Ainda não havia banheiros ou chuveiros na comunidade de Gerald. Vestia-se e saía na mesma hora para a calçada.

Este período, também, pareceu interminável. Aquele verão foi longo, o mesmo tempo dia após dia. Quente, aba­fado, barulhento, poeirento. Emily, como as outras garotas, tinha voltado, com o calor, a antigos modelos de roupa, tro­cando os panos grosseiros que já estavam gastos. Voltou a usar a velha máquina de costura e fez para ela vestidos ale­gres e criativos, tirados dos panos velhos das prateleiras, ou voltou a usar os próprios vestidos antigos. As calçadas pa­reciam muito estranhas para alguém de minha idade, com décadas de diferentes modas em exposição, todas ao mesmo tempo, apagando aquela série de lembranças que dizem: "Foi neste ano, quando usávamos..."

Todo dia, desde o início da manhã, Gerald e as crian­ças da comunidade iam para a calçada, de modo que Emily só se separava de sua "família" durante algumas horas por dia, quando cumpria sua visita a nossa casa para vestir-se e tomar banho, e durante cerca de uma hora por noite, quando jantava comigo. Ou melhor, com Hugo. Acho, também, que vir em casa rapidamente era para ela uma necessidade emocional: precisava de uma pausa em suas emoções, em sua felicidade. Na outra casa tudo era um enorme crescendo de alegria, sucesso, realização, de fazer, construir, ser necessá­ria. Voltava dali como alguém que corre às gargalhadas sob um forte temporal, ou que se afasta de uma banda que toca muito alto. Iluminava-se num sorriso, sentada no sofá, pron­ta para voar, carinhosa, amando a humanidade. Não conse­guia deixar de rir o tempo todo, onde quer que estivesse, de modo que as pessoas ficavam olhando-a, depois aproximavam-se para conversar com ela, tocá-la, compartilhar a vitalidade que emanava dela, formando um poço ou reser­vatório de vida. E naquele rosto radiante ainda se podia ver o incrédulo: "Mas por que eu? Isto acontecer comigo!"

Bem, é claro que tal intensidade não poderia perdurar. Em seu auge já era assustadora: vivia caindo cm pequenas depressões, fadigas e irritações que a exaltação de apenas uma hora antes fazia pensar serem impossíveis. Depois mer­gulhava de novo na alegria.

Logo percebi que Emily não era a única garota a quem Gerald obsequiava. Não era de modo algum a única que o ajudava nos serviços domésticos. Observei que não estava segura a respeito de sua posição junto a ele. Às vezes não ia para a casa dele, mas ficava comigo; e eu acreditava que isto era uma tentativa de "esnobá-lo", ou mesmo de provar a si própria que ainda tinha alguma independência.

No mercado de boatos ouvi que o jovem Gerald estava "seduzindo todas aquelas jovens, uma vergonha". Gozado, ouvir aquelas velhas palavras, "seduzir", "imoral", "chocan­te", e tudo o mais; eram palavras que não tinham mais ne­nhuma força, pois não levavam as pessoas a tomar ne­nhuma atitude. Quando os cidadãos são tocados por algo demonstram-no, mas na verdade ninguém se importava mui­to com o fato de uma jovem de treze ou catorze anos ter relações sexuais. Havíamos voltado a uma época primitiva da condição humana.

E o que estava sentindo Emily? Mais uma vez suas emoções não tinham se adaptado à mudança. Apenas al­gumas semanas, mesmo dias, depois de isto ocorrer, sentia-se como a viúva de um êxtase morto, de um paraíso perdido. Gostaria de ter ido embora para sempre naquela época em que se sentia como um sol que atraía todos para sua volta, quando se sentia cheia de luz e carinho por cies, uma alegria que construía com seu amante Gerald. Mas o fato de não se ver em primeiro plano, ou sozinha, com ele, de sentir-se in­segura e desamparada ali, onde achava que era o seu centro, fê-la perder o brilho, o esplendor. Começou a definhar, ficava sentada indiferente, e tinha que forçar-se para iniciar qualquer atividade. Gostei de que aquilo acontecesse: eu não podia evitar. Ainda sentia que ela devia permanecer co­migo, pois o homem — guardião, protetor ou o que quer que fosse — tinha me pedido para cuidar dela. Se estava sendo passada para trás por Gerald — que era como ela sentia —, devia ser doloroso para ela, mas ao menos ela não iria com ele quando se decidisse a liderar uma tribo. Se é que ele agora partiria, após ter formado uma nova comu­nidade.

Eu esperava, observava... andando através de uma clara faixa de folhas, flores, pássaros, frutos, a essência da floresta trazida à vida nos desenhos apagados do papel de parede. Atravessei quartos que pareciam ter envelhecido desde a última vez que os vira. As paredes tinham se afi­nado, perdido substância para o ar, para o tempo; por todo o solo da floresta levantavam-se frágeis e altas paredes, to­das ainda de pé e no ângulo certo, mas eram fantasmas de paredes, como cenários de um teatro. Erguiam-se como ga­lhos, perdidas as folhas; e a luz do sol batia frouxa e clara sobre elas, nos lugares onde não havia a frondosa sombra das folhas. A terra tinha acordado, grama e flores frescas nasciam por toda parte.

Andei de quarto em quarto através das paredes sem substância, procurando seu ocupante, seu habitante, aquele cuja presença ainda podia sentir, mesmo com a floresta tomando conta de quase tudo.

Alguém... sim, realmente, havia alguém. Perto... andei de leve sobre a grama, ao longo de uma parede fina coma casca de ovo, sem fazer barulho, sabendo que poderia por fim voltar a cabeça facilmente para onde a parede trans­versal a esta tinha caído, e se dissolvido há muito tempo, e ver — o que quer que fosse... uma presença sutil e for­te, íntima, cuja face me seria familiar, sempre me tinha sido familiar. Mas quando cheguei ao fim da parede havia um riacho borbulhando por entre a grama, tão claro que os pei­xes em seu fundo de seixos brilhantes me olhavam com seus olhos redondos como se não houvesse água entre nós, como se boiassem no ar a meus pés.

Vagando, quarto após quarto, todos abertos para as fo­lhas e o céu, invadidos pela grama e pelas flores límpidas do antigo mundo, vi quão vasto era aquele lugar, sem fron­teiras ou fim que eu pudesse encontrar, muito maior do que eu jamais tinha compreendido. Há muito tempo, quando ainda era firme e forte, uma proteção contra a floresta e as intempéries, quantos deviam ter vivido ali, multidões, ape­sar de todos terem sido dominados pela presença que per­manecia no ar que respiravam apesar de não o saberem, eram minúsculas partes de um todo, suas vidas e mortes eram um produto de escolhas ou desejos pessoais tanto quan­to o destino e a sorte das moléculas de uma folha o são.

Andei de volta, em direção à região fronteiriça que me separava de minha vida "real", e descobri que ainda havia um conjunto de salas sólidas, ainda não rarefeitas, com chãos e tetos intatos, mas, ao olhar, vi que os rodapés estavam começando a ceder, tinham se quebrado em alguns locais. Depois, que havia buracos abertos neles, e depois vi que, na realidade, não eram verdadeiramente rodapés, mas ape­nas algumas tábuas velhas jogadas na terra que começava a mostrar seu verde. Afastei as tábuas, descobrindo a terra limpa e insetos que exerciam vigorosamente seu trabalho de recriação. Abri as pesadas cortinas para deixar o sol entrar. O cheiro de crescimento veio forte da velha sala abafada e fugi dali, procurando meu caminho de volta através das de­licadas faixas de sombra, deixando aquele local, ou reinado, para o crescimento limpo e os insetos laboriosos, porque... eu precisava. No final das contas, nunca era eu mesma quem ordenava que agora devia interromper minha vida comum, pois já era tempo de passar de uma vida para outra. Não era eu quem adelgaçava a parede ensolarada, nem era eu quem arrumava o cenário às suas costas. Nunca pude esco­lher. O sentimento de que fazia as coisas como devia e como precisava era muito forte. De que eu estava sendo levada, dirigida, guiada, sempre sob o domínio de uma enorme mão que envolvia minha vida e me usava para propósitos aos quais eu não compreendia por ser tão primária ou terra-a- terra.

Devido a este sentimento, nascido de experiências vi­vidas atrás da parede, eu estava me transformando. Uma inquietação, um desejo que tinha estado comigo durante toda a vida, que sempre tinha sido acompanhado por uma avalancha de protestos (mas contra o quê?), tinha se abrandado. Descobri que passava mais tempo simplesmente espe­rando. Esperava para ver o que aconteceria a seguir. Obser­vava. Encarava cada novo acontecimento com calma, para ver se poderia compreendê-lo.

O acontecimento seguinte foi June.

Numa tarde, quando Emily tinha estado em casa comi­go e Hugo durante um dia e uma noite, sem ter ido sequer uma vez cuidar da comunidade, apareceu uma garotinha na porta perguntando por ela. Digo "uma garotinha" consciente do absurdo da expressão com suas associações a frescor e promessa. Mas, apesar de tudo, tratava-se de uma garotinha: uma criança muito frágil, com fortes ossos proeminentes. Seus olhos eram de um azul pálido. Tinha cabelos claros que pareciam cair sujos sobre os ombros e escondiam uma cari­nha atraente. Era pequena para a idade, parecia ter uns oito ou nove anos, mas na realidade tinha onze. Em outras pala­vras, era dois anos mais nova que Emily, que era uma jovem mulher amada — precariamente — pelo rei, Gerald. Mas seus seios eram pontinhos eriçados e o corpo já tinha atin­gido a fase de crisálida.

Onde está Emily? — perguntou. Sua voz... bem, direi apenas que pertencia ao extremo oposto da "boa lin­guagem", das normas uma vez utilizadas para pronunciamen­tos, notícias ou pela oficialidade. Mal podia compreendê-la, tão degenerado era o seu sotaque. Não me refiro às palavras que usava, que uma vez decifradas pareciam sempre muito bruscas, eram tentativas teimosas e persistentes de dominar significados e idéias tão claramente quanto numa aula. A maneira peremptória de perguntar "Onde está Emily?" não era originária da rudeza, mas do esforço que tinha colocado nisso, da determinação de ser compreendida e levada até Emily, ou de que Emily fosse trazida até ela. Era também devida ao fato de ser uma pessoa educada para acreditar que tinha direitos. E ela jogava na direção de seus objetivos, queria coisas e conseguia-as: encontraria Emily mesmo sem a ajuda de palavras, habilidades, modos — sem direitos.

Está aqui — respondi. — E, por favor, entre.

Seguiu-me, cheia da determinação que a tinha trazido ali. Seus olhos perscrutavam tudo e veio-me à mente que apreçava o que via. Ou melhor, avaliava, pois "apressar" já estava algo fora de moda.

Quando viu Emily, agora uma jovem mulher sofrendo numa cadeira junto à janela, os dois pés descalços apoia­dos lado a lado sobre o seu solícito animal amarelo, o rosto da criança iluminou-se com um doce sorriso de cortar o cora­ção, todo confiança e amor, e ela correu, esquecendo-se de si própria. E Emily, vendo-a, sorriu e esqueceu-se dos proble­mas — problemas de amor e quem sabe mais o quê — e as duas meninas entraram no pequeno quarto que pertencia a Emily. Duas garotas com uma amizade de meninas, apesar de uma já ser mulher e a outra, ainda criança, com corpo e cara de criança. Mas, conforme descobri, sem imaginação de criança, pois estava apaixonada por Gerald. E após ter so­frido com os ciúmes provocados pelo favoritismo de Emily, tendo-a algumas vezes odiado e denegrido e outras admi­rado fervorosa e servilmente, era agora sua companheira de dor, já que Gerald estava sendo amado e servido por outra garota, ou garotas.

Tinha chegado de manhã e já era hora do almoço quan­do as duas emergiram do quarto, e Emily disse com suas infalíveis maneiras de visita:

— Se você não se incomodar, eu gostaria de convidar June para comer alguma coisa.

Mais tarde surgiram novamente do quarto abafado e vieram para a sala. Sentaram no chão, cada uma de um lado de Hugo, e conversaram enquanto o acariciavam. June es­tava querendo conselhos e informações de todo tipo sobre questões práticas, sobretudo a respeito do jardim, que era responsabilidade de Emily, já que entendia deste tipo de coisa.

Entendia? Eu não sabia nada disto sobre Emily, que nunca tinha demonstrado o menor interesse por estes assun­tos, nem mesmo pelas plantas de vaso.

Fiquei sentada ouvindo a conversa, reconstruindo a partir dela a vida de sua comunidade... quão estranho era que, por toda parte, em nossas cidades, lado a lado com cidadãos que ainda usavam luz elétrica, retiravam água de bicas, pela qual haviam pago, esperavam que seu lixo fosse recolhido, existissem casas que sobreviviam como se a era tecnológica absolutamente não tivesse acontecido. A grande casa a quinze minutos de caminhada havia pertencido a uns velhos. Possuía muito terreno. Os arbustos e as flores tinham sido retirados e agora só restavam verduras e legumes. Havia inclusive um pequeno galpão onde eram criados alguns fran­gos — outra ilegalidade que ocorria em toda parte e que as autoridades fingiam não ver. A dona-de-casa comprava — ou conseguia de algum modo — farinha, cereais, mel. Mas es­tavam quase conseguindo uma colmeia. Também compra­vam substitutos de "galinha", "vaca" e "carneiro" e prepa­ravam refeições em geral pouco apetitosas. Pouco apetitosas apenas para alguns: muitos daqueles jovens jamais haviam provado outra coisa e agora preferiam os substitutos ao pro­duto real. Como já disse, aprendemos a gostar do que con­seguíamos.

O lugar era um aglomerado de pequenas oficinas: fa­ziam sabão, velas, tingiam velhos panos; curtiam couro; faziam conservas; consertavam e faziam móveis.

E assim viviam todos, do bando de Gerald, já em nú­mero de trinta, sob constante pressão para expandir-se, já que havia tanta gente que desejava juntar-se a eles e tinha de ser recusada: não havia espaço.

Não que eu estivesse surpresa por saber disto tudo. Já ouvira falar a esse respeito, de vários modos. Por exemplo, existira uma comunidade de adultos jovens e crianças pe­quenas ali perto onde até o sistema de águas e esgotos tinha entrado em colapso. Construíram uma privada no quintal, uma fossa coberta por uma caixa de embalagem, com uma lata de cinzas contra o cheiro e as moscas. Traziam água da rua, ou puxavam-na como podiam dos canos, e tomavam ba­nho em casa de amigos: houve um tempo em que minha casa foi utilizada por eles. Mas este grupo desapareceu. Por toda a cidade surgiam estes focos de vida primitiva, de necessi­dades primárias. Parte de uma casa... depois a casa to­da... um grupo de casas... uma rua... um conjunto de ruas. Olhando-se do alto de um grande prédio, podiam-se ver estes núcleos de barbarismo tomar corpo e alastrar-se. A princípio os observadores eram pura hostilidade e medo. Eram a imagem da desaprovação, da integridade, mas na ver­dade estavam aprendendo enquanto, ainda afortunados, ob­servavam aqueles selvagens de cujos dedos brotavam novas habilidades e talentos. Em algumas partes da cidade, subúr­bios inteiros transformaram-se. Havia milhares de pessoas assim, todas cultivando suas batatas, cebolas, cenouras e re­polhos e montando guarda a seu lado noite e dia, criando galinhas e patos, subdividindo sua rede de esgotos, compran­do ou vendendo água, utilizando quartos vazios ou uma casa vazia para criar coelhos e até porcos — pessoas que não se reuniam mais em distintas e pequenas famílias, mas amontoa­vam-se em grupos e clãs cuja estrutura evoluía segundo as necessidades. À noite tais áreas mergulhavam numa perigosa obscuridade onde ninguém ousava penetrar, com sua iluminação pública escassa ou inexistente, as calçadas esburacadas e ruas arrebentadas, as janelas mostrando o cintilar minús­culo de velas ou o brilho intenso de uma lâmpada improvi­sada numa parede ou teto. Mesmo durante o dia, andar por ali vendo rostos zangados meio escondidos atrás de venezianas, sabendo que arcos, flechas e catapultas ou até mesmo revólveres estavam prontos para serem utilizados caso se cometesse algum erro... tal expedição era como uma incur­são em território inimigo, ou ao passado da raça humana.

Mas mesmo neste último estágio ainda havia uma parte da sociedade que conseguia viver como se nada de mais esti­vesse acontecendo nada irreparável. A classe dominante mas esta era uma expressão superada, assim diziam; mui­to bem, então o tipo de gente que conduzia as coisas, admi­nistrava, reunia-se em conselhos e comitês, tomava decisões. Falava. A burocracia. Uma burocracia internacional. Mas quando não foi assim? uma parte da sociedade conse­guindo o máximo possível e mantendo para si, e tanto quan­to possível para os outros, uma ilusão de segurança, perma­nência, ordem.

Parece-me que isto tem algo a ver, no fundo, com a consciência, um traço da humanidade que ainda exige que haja algum tipo de justiça ou imparcialidade; sente-se que é intolerável (isto é sentido pela maioria das pessoas, em parte, ou pelo menos ocasionalmente) que algumas pes­soas passem bem enquanto outras fitam famintas e mor­rem. A princípio este é o mecanismo mais poderoso de ma­nutenção da sociedade. Depois vai sendo minado, arruinado, destruído... sim, é claro que isto não é novidade, vem acon­tecendo através da história, sempre muito parecido. Houve alguma época cm nosso país na qual a classe dominante não estivesse vivendo em sua torre de respeitabilidade e riqueza, fechando os olhos para o que acontecia ao redor? Poderia ter havido alguma diferença real quando esta "classe domi­nante" usava palavras como justiça, bem-estar, igualdade, ordem, ou mesmo socialismo? Usou-as, deve até ter acredi­tado nelas, ou acreditado nelas durante algum tempo; mas neste meio tempo tudo desmoronava, enquanto os adminis­tradores ficavam calados, como sempre, amorteciam-se para não ver o pior, tentavam falar, desejar e legislar fugindo do pior, pois admiti-lo era admitir que eles próprios eram inú­teis, admitir que a segurança extra de que gozavam era rou­bada e não recebida como pagamento pelos serviços presta­dos...

E de certo modo todos participavam desta farsa de que nada de mais estava acontecendo ou de que estava acon­tecendo, mas num belo dia tudo voltaria atrás e pronto! Estaríamos de volta aos bons velhos tempos. Quais, entre­tanto? Isto dependia do temperamento de cada um: se não se tem nada, se está livre para escolher entre sonhos e fan­tasias. Eu imaginava uma espécie bastante elegante de feu­dalismo — sem guerras, é claro, ou injustiças. Emily, que nunca a tinha vivido ou sofrido, teria gostado de ver a Idade da Abundância de volta.

Eu participava do jogo da cumplicidade como todo mundo. Renovei meu aluguel por mais sete anos: claro que não teríamos mais texto este tempo. Lembro-me de uma discussão com Emily e June a respeito da substituição das cortinas. Emily queria cortinas de musselina amarela que tinha visto numa loja de trocas. Levantei-me a favor de um tecido mais grosso, que abafasse o barulho. June concordava com Emily: a musselina, com um bom forro — e tinha uma loja que só vendia tecidos de forro a duas milhas dali —, tinha uma boa caída c era aconchegante. Além de tudo, um tecido mais grosso, supostamente mais quente, ficava tão duro que era capaz de a corrente de ar passar pelos cantos... sim, mas quando o pano grosso fosse lavado perderia a go­ma... este era o tipo de conversa que todos éramos capazes de entabular; podíamos demorar dias ou semanas para tomar uma decisão. Decisões reais, tais como se a eletricidade teria de ser cortada de uma vez, em geral eram tomadas com um mínimo de discussão. Impunham-se a nós — foi naquele ve­rão que decidi mandar desligar meu fornecimento de energia. Na verdade foi logo antes da visita de June. Sua primeira visita: logo começou a vir todos os dias e normalmente encontrava-nos discutindo sobre iluminação e aquecimento. Disse-nos que numa cidadezinha a umas doze milhas de dis­tância havia um homem vendendo utensílios do tipo dos usados antigamente em acampamentos. Não, não eram os mesmos utensílios, mas ele tinha criado uma série de coisas novas: já tinha visto alguns, iríamos consegui-los também. Ela e Emily discutiram e decidiram não fazer a expedição sozinhas, e pediram a Gerald que as acompanhasse. Lá fo­ram eles, e voltaram no fim de uma tarde, carregados de todo tipo de engenho e bugiganga que fornecesse luz e calor. E ali estava Gerald, em minha sala. De perto, este jovem capitão não parecia tão formidável. Parecia envergonhado e até mesmo desamparado — seus contínuos olhares na dire­ção de Emily eram ansiosos, c ele passou o tempo todo pe­dindo sua opinião sobre isto ou aquilo... E ela colaborava, era real e extraordinariamente prática e sensata. Eu estava vendo algo em seu relacionamento — eu me refiro àquela ligação que estava sob a outra, talvez menos poderosa e que era mais evidente, e a que Emily correspondia: por trás deste negócio quase convencional de uma garota apaixonada pelo líder da turma, podia-se ver um homem muito jovem, sobrecarregado, cheio de responsabilidade e inseguro, pedin­do apoio, até carinho. Tinha saído com Emily e June para "ajudar a trazer víveres para Emily e sua amiga passarem o inverno", mas isto não significava apenas que tinha bom coração — o que era verdade —, mas era um modo de dizer a Emily que precisava dela de novo em sua casa. Um paga­mento, talvez; um suborno, se quisermos ser cínicos. Ela divertia-se com a volta. Intensamente cansada após a longa caminhada carregando fardo tão pesado, corada, queimada de sol e bela, fazia-se faceira para ele, tornava-se fugidia e difí­cil. Quanto a June, ainda incapaz de entrar neste jogo, per­manecia calada, observando, inteiramente excluída. Emily, sentindo seu poder em relação a Gerald, usava-o: serpentea­va, luxuriosa, com o corpo, brincava com a cabeça e as ore­lhas de Hugo e sorria para Gerald... sim, voltaria com ele para sua casa, já que ele desejava tanto, a desejava. E cerca de uma hora depois lá se foram eles, os três, Emily e Gerald na frente, June colada atrás. Pareciam pais com um filho — e acredito que June sentia isto.

E agora acho que devo me perguntar e responder por que Emily não optou por ser uma capitã, uma líder por conta própria. Bem, por que não? Sim, perguntei-me isto, é claro. As atitudes das mulheres em relação a si mesmas e aos homens, os padrões que as mulheres estabeleceram para si pró­prias, a galanteria de sua luta pela igualdade, o doloroso e demorado questionamento de seus papéis, de suas funções, tudo isto torna difícil para mim dizer, simplesmente, agora, que Emily estava apaixonada. Por que não tinha seu próprio bando, sua própria hospedaria de bravos foragidos e bandoleiros, de pessoas que plantavam, cultivavam e obtinham sua própria comida? Por que não era sobre ela que diziam: "Ali tinha uma casa, estava desocupada, Emily reuniu um bando e mudaram-se para lá. Sim, lá é muito bom, vamos ver se nos aceitam?"

Não havia nada que a impedisse. Nenhuma lei, escrita ou não, dizia que não devia, e sua capacidade e talento eram tão diversos quanto os de Gerald ou de qualquer outro. Mas não o fez. Acho que nunca lhe ocorreu.

O problema era que amava Gerald. E a necessidade dele, de sua atenção e percepção, a necessidade de ser aquela que o apoiava e consolava, que o ligava ao mundo, que o mantinha firme com seu bom senso e seu carinho esta necessidade tirava-lhe a iniciativa que precisaria ter para ser a líder de uma comunidade. Não desejava nada além de ser a mulher do líder da comunidade. Sua única mulher, é claro.

No final das contas, esta é uma história, e espero que seja verídica.

Numa tarde, ao voltar de uma excursão à cata de no­tícias, vi que minha casa tinha sido revirada, exatamente do mesmo modo que o lugar atrás da parede era revirado pelo "gnomo" ou princípio anárquico. Foi o que pensei enquanto olhava uma cadeira virada e livros espalhados pelo chão. Havia uma desordem generalizada e, acima de tudo, uma sensação estranha ao lugar. Então, uma a uma, faltas e au­sências específicas foram se tornando evidentes. Suprimentos de comida haviam desaparecido, estoques de cereais valiosos, conservas, frutas cristalizadas: velas, peles, a veneziana de plástico as coisas óbvias. Muito bem. Então, tinham sido ladrões e eu tivera sorte por não ter acontecido antes. Mas então vi que objetos que só tinham valor retrospectivo estavam faltando: um aparelho de televisão parado há meses, um gravador, lâmpadas, um liquidificador. Na cidade havia muitas lojas repletas de aparelhos elétricos absolutamente inúteis c comecei a pensar que aqueles ladrões eram burros ou tolos. Vi que Hugo permanecia deitado ao pé da parede; não tinha sido perturbado pelos intrusos. Isto era estranho, e ao mesmo tempo em que me dei conta da inexplicável natu­reza do roubo, fui atraída à janela por vozes que conhecia muito bem. Ali vi uma pequena procissão de objetos sendo trazidos de volta. Sobre uma dúzia de cabeças, cabeças de crianças, balançavam a televisão, sacos de combustível e ali­mentos e todo tipo de bolsas e caixas. Os rostos tornaram-se visíveis, pardos, brancos e pretos, quando se apressaram em resposta à voz de Emily:

Vamos lá, já é tarde! querendo dizer que eu já estava de volta e olhava pela janela. Vi Emily vindo atrás dos outros. Estava ocupada: supervisionando, parecendo res­ponsável e zangada oficial. Ainda não a tinha visto neste papel, para mim era uma nova Emily. Conhecia todos aque­les rostos eram as crianças de Gerald.

Num instante minha sala foi atulhada por caixas, em­brulhos e pacotes, e crianças. Quando o chão estava coberto com o que tinha sido tirado, as crianças começaram a sair novamente, olhando para Emily mas não para mim: eu bem que podia estar invisível.

E agora peçam desculpas — ordenou.

Sorriram, um sorriso frágil e sem jeito que combinava com ela, lá vem ela! Estavam obedecendo a Emily, mas ela mostrava-se dominadora: eu podia ver que não era a pri­meira vez que provocava aqueles sorrisos delicados e desconcertados. Fiquei ainda mais curiosa sobre o verdadeiro papel que ocupava naquela outra casa.

Não, vamos — disse Emily. — É o mínimo que podem fazer.

June encolheu os frágeis ombros e disse:

Sentimos muito. Mas trouxemos tudo de volta, não é?

Minha tentativa de transcrever isto seria:

Chitumuto. M'tocemo tu voltia, né?

Neste esforço em falar havia a força da frustração: esta criança, como outras formadas por nosso velho tempo, que tinha sido, acima de tudo, verbal, ligado às palavras, suas trocas e usos, tinha sido excluída de toda aquela riqueza. Nós (refiro-me aos educados) nunca tínhamos encontrado um modo de compartilhar aquela plenitude com as camadas mais baixas de nossa sociedade. Mesmo em duas mulheres paradas no meio-fio da calçada, lançando suas frases de fo­foca, existia o explosivo esforço da frustração: a linguagem empobrecida e rude dos pobres sempre tinha tido, de algum modo, a energia de um ressentimento (inconsciente, talvez, mas presente) alimentado pelo conhecimento das habilidades e facilidades que existiam logo acima deles e cujo lugar em suas conversas era preenchido pela constante repetição das frases — como muletas — "sabe?", "entendeu?" e "né?" e tudo o mais, frases que constituíam boa parte de tudo o que diziam. As palavras em suas bocas — e agora na de June — tinham uma qualidade de laborioso esforço — ter­rível, devido às pronúncias tão fáceis de se conseguir, mas para os outros.

Por fim as crianças se foram, e June ficou protelando sua saída. Pelo olhar que lançava para a sala podia ver que não queria ir. Lamentava não o ato, mas suas conseqüências, que poderiam separá-la de sua adorada Emily.

O que houve? — perguntei.

O controle de Emily escapou-lhe e cia deixou-se cair, uma criança preocupada e cansada, perto de Hugo. Ele lam­beu-lhe a bochecha.

Bem, eles gostaram das suas coisas, é só.

Sim, mas... — meu sentimento era, mas eu sou amiga e eles não deviam ter mexido! Emily percebeu, e, com seu sorriso áspero, disse:

June já tinha estado aqui, conhecia o local; então quando a criançada começou a perguntar para onde ir, su­geriu que viessem para cá.

Acho que tem sentido.

Sim — insistiu, lançando-me um olhar sério para mostrar que não devia brincar com sua ênfase. — Sim, tem sentido.

Quer dizer, eu não devia pensar que havia algo de pessoal nisto?

Novamente o sorriso, patético por sua esperteza, sua precocidade — mas que palavra fora de moda, esta —, fiando-se em certos padrões para obter sua força.

Oh, não... foi pessoal... um cumprimento, se quiser!

Colocou o rosto sobre o pêlo amarelo de Hugo e riu. Sabia que precisava esconder o rosto para evitar o esforço de mostrá-lo todo inteligência e ambição, bondade e saber. Seus dois mundos, o de Gerald, o dela, tinham se entrela­çado de modo apavorante. Podia sentir isto nela, compreen­dê-lo. Mas havia um cansaço, uma exaustão que eu não compreendia — apesar de acreditar ter vislumbrado a razão disto em seu relacionamento com as crianças. Seu problema não era tanto por ela ser uma das que brigavam pelo favo­ritismo de Gerald, mas talvez porque o fardo que carregava era pesado demais para alguém daquela idade.

Perguntei:

Por que se importaram com os aparelhos elétricos?

Porque eles estavam aí — respondeu rispidamente; e compreendi que estava decepcionada comigo. Não tinha compreendido a diferença entre eles — uma categoria onde às vezes se incluía, às vezes não — e eu.

Agora estava me olhando. Não sem afeto, fico feliz em dizer, mas de modo meio irônico. Estava se perguntando se devia tentar algo comigo — seria rejeitada? Seria compreen­dida?

Disse:

Esteve lá em cima recentemente?

Não, acho que não. Devia ter estado?

Bem, então... sim, sim, acho que devia! — e ao mesmo tempo em que decidia ir em frente com o que quer que fosse, tornava-se excêntrica, alegre, uma garotinha con­vencendo ou desarmando pais ou adultos. Exclamou:

Mas precisamos achar algum lugar para pôr tudo. Isso, vamos. E é claro que o elevador não está funcionando — atualmente quase nunca está —, oh, querida!

Num instante estava voando pelos quartos, juntando todos os aparelhos elétricos que eu tinha, exceto o rádio, sem o qual ainda estava convencida de não poder viver — as notícias de outros países podiam perfeitamente vir de outros planetas, tão distantes pareciam agora; e, de qualquer modo, com eles acontecia o mesmo que conosco. Liquidifi­cadores, a televisão, lâmpadas — o que já mencionei. A eles juntou um secador de cabelos, um massageador, uma grelha, uma torradeira, uma cafeteira, uma chaleira, um as­pirador de pó. Estavam todos amontoados num carrinho.

Vamos, vamos, vamos, vamos — exclamou alegre, delicadamente, os olhos sérios sempre sobre mim, com medo de que ficasse ofendida, e lá se foi, empurrando o carrinho sobrecarregado. A portaria estava cheia de gente: subiam e desciam as escadas ou esperavam o elevador — que estava funcionando. Riam, falavam e gritavam. Era uma massa ardente e brilhante, inquieta, animada, efervescente; todos pareciam ter febre. Então percebi que, obviamente, tinha me acostumado a ver o saguão e a portaria do edifício repletos daquela multidão, mas não havia compreendido. Porque ao longo dos corredores dos andares mais baixos tudo tinha continuado como sempre: silêncio, sobriedade, e portas numeradas 1, 2, 3, atrás das quais moravam o Sr. e a Sra. Jones e família, a Srta. Foster e a Srta. Baxter, o Sr. e a Sra. Smith e a Srta. Alicia Smith — pequenas unidades independentes, o velho mundo.

Esperamos nossa vez no elevador, empurramos o car­rinho carregado para dentro dele, e subimos com um bando de pessoas que observavam nossos bens e não lhes davam muito valor. No último andar empurramos o carrinho para o corredor e Emily parou por um instante, indecisa: podia ver que não era porque não soubesse o caminho, mas porque pensava no que seria melhor para mim: precisamente, no que seria bom para mim!

Ali em cima havia o mesmo que no primeiro andar: salas em toda a volta do prédio com um corredor entre elas; quartos avulsos e desocupados, uma área no centro — mas aqui a área era um poço, ou buraco. Aqui também havia grande rebuliço e movimento. Era como aproximar-se de uma feira livre, gente com pacotes nos braços, ou um velho ambulante carregado disto e daquilo, um homem carregan­do cuidadosamente uma coisa preciosa embrulhada, em cima da cabeça, de modo que ninguém pudesse alcançá-la. Era difícil lembrar que nas partes mais baixas do prédio havia calma e as pessoas davam passagem umas às outras. Uma sala em frente ao elevador tinha uma montanha de bugi­gangas, até o teto, e à sua volta se agachavam crianças que separavam coisas segundo sua categoria. Uma criança sorriu para Emily e exclamou:

Estou ajudando neste monte. Acabou de chegar.

E Emily respondeu:

Que bom, fico contente — apoiando a criança.

Mais uma vez aparecia, nesta troca, algo que me fazia pensar: a garotinha tinha corrido para se explicar. Mas está­vamos na porta de outra sala, onde um buraco irregular da parede, como se houvesse sido feito por uma bomba, fazia a ligação com o quarto que tínhamos deixado — a montanha de coisas ocultara o buraco. Através dele passavam, de mão em mão ou em diferentes carrinhos, certas categorias de obje­tos: esta sala era para vasilhames — jarras, garrafas, latas, etc., feitos de todo tipo de material, de vidro a papelão. Cerca de uma dúzia de crianças carregava os vasilhames do monte ao lado, pelo buraco, até esta sala: a única coisa que não estava em falta nestes mercados, a única coisa que tinha faltado durante tanto tempo, era trabalho, eram mãos para trabalhar no que fosse preciso. No canto havia dois jovens, de guarda, armados: revólveres, facas, soqueiras de ferro. Só quando saímos para um outro quarto, onde a atmosfera era ainda mais pesada, mais indiferente, e onde não havia guardas, compreendi o conteúdo dos quartos onde os dois rapazes armados eram necessários, e que este quarto agora guardava coisas sem nenhum valor: aparelhos elétricos como os que empurrávamos em nosso carrinho.

Ficamos ali durante algum tempo, observando o bur­burinho e o movimento, vendo as crianças trabalharem.

Ganham dinheiro, sabe? — disse Emily. — Ou levam alguma coisa em troca. Até as crianças do colégio vêm passar uma hora aqui.

E vi que, dentre aquelas crianças, algumas das quais tinham rostos que me eram bastante familiares da calçada, havia umas mais bem-vestidas, mais limpas, e acima de tudo com uma independência do tipo só-estou-aqui-porque-quero que distinguia os jovens de uma classe privilegiada que se engajavam num trabalho que acreditavam inferior a suas potencialidades. Em poucas palavras, estavam ali cumprindo o equivalente aos empregos de verão das crianças da classe média de antigamente: fazer embrulhos em lojas, limpar restaurantes, ficar atrás de um balcão. Sim, acabaria notan­do isto sem a ajuda de Emily, mas seus olhos aguçados aceleravam esse processo. Ela estava realmente me achando lerda para compreender, para me adaptar, e quando lhe parecia que eu não tinha captado os acontecimentos tão rapidamente quanto ela achava que eu devia, apressava-se em explicar. Parecia que quando as pessoas abandonaram aque­les andares mais altos, para fugir da cidade, os comerciantes tinham se mudado. Era um prédio enorme, muito mais só­lido e bem construído do que a maioria, com estrutura forte para agüentar muito peso. O Sr. Mehta tinha arrendado um depósito de lixo, muito antes de o governo intervir em todos os depósitos de lixo, e fazia negócio com várias pessoas uma delas era o pai de Gerald, um homem que antigamente dirigia uma fábrica de cosméticos. As bugigangas utilizáveis dos depósitos eram trazidas para ali e separadas, em geral por crianças. As pessoas iam até lá para negociar. Vários objetos eram levados de volta para as feiras livres e lojas.

Os objetos que estavam quebrados e podiam ser con­sertados eram deixados ali: passamos por vários quartos onde pessoas habilidosas, na maioria velhos, consertavam-nos — vários utensílios, panelas furadas, roupas, móveis. Havia naqueles quartos muita vitalidade e interesse: as pessoas ficavam em volta olhando. Um velho, relojoeiro, estava sen­tado num canto, sob uma luz especialmente colocada para ele, e à sua volta, fascinada, quase sem respirar, comprimida, havia uma massa compacta tão compacta que um guarda tinha que pedir a toda hora que se afastassem, e quando não o faziam continha-os com um cassetete. Mal tomavam conhecimento de sua existência, tão concentrados estavam, velhos e jovens, homens e mulheres, assistindo àquela pre­ciosa habilidade as mãos de um velho trabalhando com a frágil máquina.

Havia uma mulher colocando lentes em armações de óculos. Tinha um quadro de oculista na parede e, segundo suas conclusões, ia entregando óculos de segunda mão a pes­soas que ficavam em fila e que, uma após outra, recebiam um par que ela considerava adequado. Uma oculista dos velhos tempos; e ela, também, tinha uma multidão de admi­radores. Um que consertava cadeiras, outro que consertava cestos, cercado de fios e palhas torcidas, um amolador de facas ali estavam todos, em suas velhas ocupações, cada um com um guarda, cada um sendo admirado por bárbaros maravilhados.

O que não havia nos quartos que atravessamos, um após o outro? Barbante e garrafas, pilhas de plástico e acrílico talvez o mais valioso dos artigos —, montes de metal, arame, fita plástica; livros e chapéus e roupas. Havia um quarto cheio de coisas que pareciam bastante novas e boas e que tinham chegado aos depósitos de lixo protegidas da sujeira e do desgaste: um tecido num saco plástico, guarda-chuvas, flores artificiais, uma caixa de rolhas.

E por toda parte estava a massa viva de gente, para ali atraída tanto pelos artigos quanto pelo espetáculo. Em um dos quartos havia até mesmo um bar, vendendo ervas para chá, pão, bebidas alcoólicas. Algumas pessoas pareciam embriagadas, mas em geral dão esta impressão quando estão em mercados, mesmo sem álcool. Era difícil se distinguir vendedores de compradores, os donos do negócio dos visitantes; era uma multidão poliglota, bem-humorada, que res­peitava as ordens e instruções dos vários guardas; uma mul­tidão organizada e capaz de apaziguar rapidamente disputas e discussões, sem deixar-se envenenar por maus sentimentos. As pessoas brincavam, mostravam umas às outras suas aqui­sições, e até compravam e vendiam entre si, sem passar pela formalidade da engrenagem dos serviços dos comerciantes oficiais um processo que se dava ordenadamente e com o assentimento geral. O que os comerciantes desejavam era a massa, a multidão de pessoas, era o fluxo de objetos, che­gando e partindo.

Demos uma volta por todo o andar e, após sermos cumprimentadas por inúmeras pessoas muitas das pessoas da calçada ali estavam —, voltamos novamente ao quarto de material elétrico e apresentamos nosso carrinho. Em troca recebemos alguns vales e eu disse a Emily que, como fora ela quem tinha tido a idéia, tinha o direito de aproveitar os lucros. Olhou-me ironicamente já esperava por isto, e compreendi que era porque eu devia estar esperando muito em troca. E o que seria feito, queria eu saber, com nossa torradeira e nossa grelha? Bem, seriam desmontadas e seus componentes incorporados a outros objetos — obviamen­te não tinham mais nenhuma utilidade, não é? Decerto eu não me importaria com isso, não? Bem, se eu não me importasse, ela gostaria muito de levar para a casa de Gerard mas será que eu não me importaria mesmo? al­guns utensílios de cozinha, de que estavam precisando. En­contramos uma panela velha, um jarro de ágata, uma bacia plástica e um esfregão: foi isto que recebemos em troca do material elétrico do que tinha sido, apesar de tudo, um apar­tamento prodigamente equipado.

De volta ao apartamento, Emily deixou de lado seu charme de criancinha, sem o qual nunca teria tido coragem de me levar em uma expedição que sentia claramente ser em seu território e muito longe do meu, e ficou sentada me olhando. Acho que estava se perguntando se, lerda como eu era, teria realmente compreendido que os bens, as "coisas", eram artigos diferentes para ela e para crianças como June; de algum modo mais preciosos, por serem insubstituíveis, mas também sem nenhum valor... não, não está certo, sem nenhum valor pessoal: as coisas não mais pertenciam às pessoas como antigamente. É claro que muito tempo antes de acabar a época do dar e receber, isto já ara verdade para algumas pessoas: todo tipo de experiências de vida comuni­tária tinha sido experimentado, além do fato de que pessoas como "os Ryan" tinham abolido a idéia de meu e seu, sem formular nenhuma teoria a respeito. June era June Ryan. Sua família tinha sido o desespero das autoridades muito tempo antes do colapso da velha sociedade, quando as coisas ainda eram consideradas normais. E, como uma Ryan... Mas veremos isso mais tarde, quando eu descrever "os Ryan" no seu lugar apropriado...

Por que o estou adiando? Este lugar serve tanto quan­to qualquer outro. Será que meu desejo de adiar o que tem de ser dito sobre os Ryan não é mais do que uma extensão e um reflexo das atitudes e sentimentos das ditas autoridades em relação "aos Ryan"? Era verdade que "os Ryan", signi­ficando um tipo de vida, seriam inassimiláveis, tanto na teoria teorias sobre a sociedade e seu funcionamento quanto na prática?

Para descrevê-los, suas circunstâncias... nada que o leitor não tenha escutado centenas de vezes: era um caso de livro, como viviam exclamando os assistentes sociais. Um operário irlandês casou-se com uma refugiada polonesa. Am­bos eram católicos. Ao cabo de certo tempo, já tinham onze filhos. Ele bebia, era estúpido, esporadicamente carinhoso. Ela bebia, era histérica, incompetente, de um amor impre­visível. As crianças não paravam na escola. As autoridades encarregadas do bem-estar social, da adoção, a polícia, os psicólogos, todos conheciam os Ryan. Então os dois rapazes mais velhos foram levados a julgamento por roubo e passa­ram um tempo numa casa de correção. A segunda garota não a mais velha ficou grávida. Tinha quinze anos. Não, não havia nada de tão estranho nisto, mas o caso dos Ryan parecia mais sério e sem esperanças, porque havia tantos deles e porque os pais eram figuras notáveis e interessantes cujas declarações costumavam ser citadas em conferências e congressos. Sempre acontece de um único caso sair de seu anonimato e representar os outros: em nossa cidade havia milhares de "Ryans", de todos os tipos, cores, nacionalida­des, desconhecidos a não ser de seus vizinhos e das autori­dades, e estas pessoas, no devido tempo, se veriam em pri­sões, institutos, casas de correção. Mas a família Ryan atraía algum tipo de caridade, foram instalados em uma casa: fize­ram-se esforços para mantê-los juntos.

Era assim que o quadro se apresentava para a oficia­lidade, que fazia o máximo que podia; que aparecia nos relatórios; foi assim que um jornal, escolhendo os Ryan den­tre tantos, devido à sua qualidade de serem mais visíveis que os outros, os apresentou. Por trás e abaixo da fronteira da pobreza era esse o título. Um livro reproduzia uma dúzia de casos, entre os quais o dos Ryan: Dejetos da sociedade afluente. Um jovem recém-saído da universidade, e cuja tia era assistente social do caso, tinha recolhido notas para um livro, Os bárbaros que nós criamos, comparando os Ryan àqueles que derrubaram Roma.

Os Ryan...

Para começar, como era a casa dos Ryan? Bem, entulha­da, e seus móveis estariam bons para um depósito de lixo. Nada sobre o chão desnudo, a não ser sujeira, um osso, um prato de comida rançosa de gato: cães e gatos, assim como as crianças, eram impulsivamente alimentados. Não havia aquecimento suficiente, de modo que os treze Ryan e seus amigos os Ryan atraíam outras pessoas e colocavam-nas em sua órbita estavam sempre no mesmo quarto, apertando-se. Em geral os pais estavam bêbados e, às vezes, tam­bém as crianças. Os amigos eram de todos os tipos e chama­vam bastante a atenção, com suas vidas fora do comum. Sentavam-se todos, comendo biscoitos ou salgadinhos, e fa­lavam, falavam. Mas às vezes a mãe ou uma das meninas mais velhas preparava algumas batatas com um pouco de carne, ou abria uma lata de qualquer coisa, e então havia um festival. Salgadinhos, refrigerantes e chá com seis ou oito colheres de açúcar para cada xícara — esta era a dieta dos Ryan, assim se mantinham indiferentes ou atingiam um auge anormal de vitalidade, quando o açúcar penetrava em suas veias. Ficavam sentados falando sem parar; a sala animava-se com aquela crônica perpetuamente renovada: Os Ryan con­tra o mundo. Comentava-se como as três crianças do meio tinham sido provocadas no parque por uma turma ou família rival, mas tinham vencido; ou como a assistente social tinha deixado um bilhete dizendo que a quinta criança, Mary, tinha que ir ao hospital na quarta-feira, e que não se esque­cessem, pois sua ordem devia ser cumprida; como Paul achou um carro aberto e levou-o, não importava para quê, simplesmente porque estava ali. Duas das meninas tinham visitado um supermercado e tinham voltado com vinte bolsinhas de plástico, um quilo de café, uma tesoura de jardi­nagem, alguns temperos da seção hindu e seis coadores plás­ticos. Tais objetos ficariam jogados, sem uso, ou seriam trocados por outros: o roubo existia pelo prazer que dava, não pela posse. A pretinha Tessa, amiga de Ruth, e o irmão de Tessa, e Irene, outra amiga de Ruth e sua irmã tinham assistido televisão a tarde toda numa loja amiga da rua prin­cipal, que não enxotava as crianças que entravam para uma tarde de televisão gratuita — o aparelho dos Ryan estava sempre quebrado. Stephen tinha encontrado um cachorro na rua e fora até o canal, onde jogou pedaços de pau para que apanhasse, e o cachorro era tão inteligente que trouxe de volta três... não, cinco ou seis pauzinhos de uma vez... Fa­lavam, falavam; bebiam e construíam seu dia, suas vidas, em meio a vívidos e perspicazes comentários; e quando iam para a cama já eram três, quatro, seis horas da manhã — mas não tiravam a roupa, ninguém naquela casa trocava a roupa para dormir, pois nunca era hora de dormir. Uma criança adormecia no lugar onde estava sentada, ou no colo de uma irmã, e ficava dormindo ali ou era colocada no chão sobre um casaco. Pela manhã as quatro camas da casa ti­nham, cada uma, três ou quatro corpos, com cães e gatos, tudo junto, quente, aconchegante, protetor. Ninguém levan­tava antes das dez, onze, meio-dia: se um Ryan conseguia emprego era despedido em uma semana, pois lhe era impos­sível acordar na hora.

Viviam com o salário-desemprego a não ser quando o Sr. Ryan decidia-se, e conseguia emprego: era carpinteiro. Então corria dinheiro, e compravam roupas e sapatos novos. Estes utensílios eram usados comunitaria­mente, pois ninguém possuía este casaco ou aquele vestido. As crianças usavam o que servisse e estivesse mais à mão. Era comum que, no dia seguinte à compra, as roupas, por um motivo ou outro, estivessem reduzidas a frangalhos.

As crianças arrumavam "trabalho" quando tinham von­tade o que era freqüente. June, a frágil e meiga garoti­nha, era líder desde uns sete anos. Quatro ou cinco crianças escorregavam para dentro de um apartamento ou de uma loja e voltavam com... dinheiro? Não, não era assim, não era este o ponto. Ou, caso fosse dinheiro, então seus bolsos ficariam durante dias entupidos com montes de notas que se perdiam, eram dadas ou "levadas" por alguém. Não, era mais provável que voltassem com um abajur de mesa, um monte de mesinhas que tinham visto num anúncio de tele­visão e adorado, um espelho com uma moldura de plástico rosa, e cigarros que pelo menos eram valorizados e ime­diatamente divididos.

A verdade é que o objetivo dos santos e dos filósofos era seu por herança: O caminho dos Ryan, era como devia ser chamado. Cada dia, cada experiência, existia em si pró­pria, cada atitude era desconectada de suas conseqüências. "Se você roubar irá para a prisão." "Se você não comer direito sofrerá de falta de vitaminas." "Se você gastar este dinheiro agora não poderá pagar o aluguel na sexta-feira." Tais verdades, sempre apresentadas pelos oficiais que entra­vam e saíam da casa, nunca poderiam penetrar na cabeça de um Ryan.

E certamente os padres e conselheiros espirituais fica­vam inferiorizados? É feio prender-se a propriedades? Que propriedades? Um Ryan não tinha nada, nem uma camisa ou um pente. É uma prisão ser escravo de um hábito? Que hábitos? a'não ser não ter nenhum hábito. Encarar o próximo como a si mesmo? Esta graça dos muito pobres pertencia-lhes dentro do clã formado pelos Ryan e seus amigos, brancos, mulatos ou negros, que entravam e saíam dia e noite da casa, havia um infinito dar e grande tolerância, uma generosidade de julgamento, uma delicadeza de compreensão que não existiam em muitos outros mais afortunados, ou pelo menos não ocorriam sem um duro balanço de perdas e ganhos.

Ninguém deve se ligar às aparências? Há muito que os Ryan não podiam se dar a este luxo.

Ninguém deve ser orgulhoso, não deve esbarrar no direito do outro, deve ser humilde e cordato? Cinco minutos na casa dos Ryan fariam qualquer pessoa da classe média telefonar indignada para seu advogado.

Imprestáveis e irresponsáveis, incorrigíveis, sem futuro, deseducados e ineducáveis — se soubessem escrever e ler seus nomes seria ótimo; corrompidos, aviltados, depravados - mas o que se pode esperar quando cinco ou seis pessoas, de várias idades e sexos, dormem juntos na mesma cama? — sujeira, insalubridade, piolhos e fraqueza junto com má ali­mentação, quando não estavam numa fase de fartura mo­mentânea... em resumo, e para finalizar, tudo o que nossa velha sociedade via como ruim era encarnado pelos Ryan. Tudo o que nossa velha sociedade almejava não tentava aos Ryan, tinham se desligado, tudo era demais para eles.

Os pobres Ryan, julgados e condenados; os perigosos Ryan, tamanha ameaça para todos nós, para o nosso modo de pensar; os afortunados Ryan, cuja vida de aqui e agora, comunitária e confusa, parecia ser toda a alegria e sensações: gostavam de estar juntos. Gostavam um do outro.

Quando começaram os maus tempos, ou melhor, quan­do se achou que haviam começado, como algo muito dife­rente, os Ryan e todos os outros iguais a eles passaram subi­tamente a ser vistos sob novo enfoque. Em primeiro lugar - mas, é claro, isto é um clichê sociológico — alguns dos rapazes conseguiram colocação na polícia ou em uma das várias organizações militares ou paramilitares que surgiram. E depois foram estas pessoas que aceitaram mais facilmente a vida primitiva das tribos nômades: nada havia mudado para eles, pois quando não tinham estado de mudança, de quartos para cortiços, albergues, hospedagens em ruas inva­didas? Comiam mal? Estavam comendo melhor e mais saudavelmente agora do que quando a sociedade os alimentava. Eram ignorantes e analfabetos? Estavam sobrevivendo ade­quadamente e com alegria, o que era mais do que se podia dizer sobre a maioria das pessoas da classe média, que tenta­vam fingir que, na verdade, não estava acontecendo nada, a não ser uma reorganização da sociedade, ou que desapa­reciam de vários modos, incapazes de suportar uma existên­cia onde a respeitabilidade e os ganhos não podiam mais dar o valor de uma pessoa.

"Os Ryan", não mais um extremo, desapareceram na sociedade, foram absorvidos por ela. Quanto aos nossos Ryan, a família real aqui descrita, ainda constituíam um núcleo em algum lugar próximo — a mãe e três dos filhos menores; o pai morrera num acidente devido à bebida. Todos os outros filhos tinham abandonado a cidade, exceto dois, que estavam na polícia. June tinha se agregado ao lar de Gerald, e um de seus irmãos mais novos passava parte do tempo ali. Finalmente, os "Ryan" se tinham transformado em algo sem nada de especial. Com seu jeito humilde e não exigente, tinham feito parte de nossa sociedade, mesmo quando parecia que não: tinham sido formados por ela, obedeciam-lhe. Estavam tão longe do que estava por aconte­cer, muito em breve quando "a turma de guris do sub­terrâneo" apareceu em nossas vidas e destruiu o lar de Gerald —, quanto estávamos, ou tínhamos estado, dos "Ryan".

Uso a expressão lar de Gerald como as pessoas tinham utilizado os Ryan, referindo-me a um tipo de vida. Ambos, modos de vida passageiros: todos os nossos tipos de vida, nossos compromissos, nossas pequenas adaptações transitórias, todas elas, nada poderia perdurar.

Mas enquanto duraram, estiveram tão próximas e liga­das quanto Emily e seus deveres no lar de Gerald. Lar que eu agora tinha visitado, pois mal Emily e eu tínhamos chegado de volta a nossos quartos quando a campainha tocou e surgiu June, toda cheia de sorrisos ansiosos. A princípio não mencionou o roubo, ficando apenas sentada no chão, abraçada a Hugo. Seus olhos percorriam a sala para ver onde estavam as coisas que tinha levado e sido obrigada a devolver. A maioria estava fora de sua vista, de volta aos armários e despensas, mas havia um monte de peles sobre uma cadeira, e por fim ela disse, num rompante de restitui­ção desesperada:

Tudo bem, não é? Quero dizer, está tudo bem?

Até levantou-se para acariciar a pele do animal, como

se ele pudesse ter sido ferido. Eu teria gostado de rir, ou de sorrir, mas Emily olhava-me zangada, furiosa de verdade, e disse delicadamente para June:

Sim, está tudo certo, obrigada.

A criança iluminou-se e disse, voltando a atenção para mim com dificuldade:

Você vai nos visitar? Quero dizer que Gerald dei­xou. Perguntei a ele, sabe? Disse para ele, ela pode vir? Entende o que quero dizer?

Gostaria muito respondi, tendo consultado Emily com os olhos. Estava sorrindo: era o sorriso de uma mãe ou guardiã.

Mas Emily precisava preparar-se primeiro: emergiu a tempo do banheiro, os cabelos recém-lavados e penteados, as roupas limpas, o busto delineado sob o algodão azul, o rosto suave e fresco, cheirando a sabonete — uma bela emba­lagem de garota, pronta para se dar de presente às respon­sabilidades, a Gerald. Mas seus olhos pareciam sombrios, defensivos, preocupados, e ali à seu lado estava June, a criança, abrindo um sorriso claro, absolutamente indefeso e confiante para Emily mulher — sua amiga.

Andamos, as três, por ruas poeirentas e, como sempre, cobertas de papel, latas, todo tipo de entulho. Seria necessá­rio passar por um alto hotel, que ainda tentava atrair turis­tas, e eu observava para ver o caminho que Emily escolheria: cada indivíduo escolhia um caminho cuidadoso por entre os azares das ruas, e podia-se dizer muito da personalidade de alguém que escolhesse passar por um prédio estranho, onde poderia ser escolhido como vítima ou alvo, ou que escolhesse entrar em outra rua, ou que se empenhasse cora­josamente em atravessar os jardins, ou passasse por eles ra­pidamente virando o rosto. Emily foi em frente, atravessan­do, sem pensar, todo o lixo. Não era a primeira vez que me encantava com as diferenças existentes dentro e fora de casa: dentro de casa Emily era tão meticulosa quanto um gato, mas na rua parecia não ver onde pisava.

Há muito tempo o hotel havia sido invadido por gri­leiros: outra palavra obsoleta. Mas todo tipo de gente vivia ali, apesar de, como máquina, o local ser inútil, como todos os prédios complicados que dependiam de tecnologia.

A esguia coluna, hoje recortada contra um céu quente e poeirento, mostrava-se rasgada e remendada, como renda: algumas janelas encontravam-se rachadas ou quebradas. Mesmo assim os andares superiores estavam cheios de anúncios. De uma das janelas partia um zumbido elétrico: alguém tinha construído um pequeno moinho que aproveitava o vento e o transformava em energia para aquecimento ou iluminação. De outras janelas, discos oblíquos agarravam- se em algo que, da rua, parecia uma teia de aranha: servia para captar os raios solares. E entre estas invenções de últi­ma hora bailavam e bamboleavam roupas penduradas em arames e pedaços de madeira intermináveis.

Em cima parecia alegre e até frívolo, com o céu azul como fundo; embaixo havia montes de lixo à volta de todo o prédio, com atalhos que levavam até a entrada. O chei­ro... bem, vou ignorar isto, já que Emily e June pareceram capazes de fazê-lo com tanta facilidade.

Há pouco tempo tinha ido ao prédio, alcançado o últi­mo andar e ficado ali, olhando a cidade lá embaixo, que — acho que não é surpreendente — não parecia tão diferente do que era antes de as máquinas pararem. Fiquei olhando para baixo e imaginando-me de volta no tempo: todos nós fazemos muito disso, combinar, comparar e pesar fatos em nossas mentes para adequá-los, orientarmo-nos a respeito. O presente era tão singular e parecia-se tanto com um sonho que para compreendê-lo este processo tinha de ser utilizado: Era assim, não era? Sim, era assim, mas agora... Enquanto ficava ali, pensando que estava faltando alguma coisa, um avião, um jato subindo ou descendo no aeroporto e domi­nando o céu, ouvi um troar baixinho, um som de abelha, não mais alto do que isto, e ali estava — um avião. Peque­no, como um louva-a-deus, pintado de vermelho-vivo, intei­ramente só no céu vazio onde outrora tantas máquinas enor­mes tinham enchido nossas vidas de barulho. Ali estava, um sobrevivente, talvez transportando a polícia, o exército ou os altos oficiais para uma conferência em algum lugar, onde iriam falar, falar, falar e adiar as decisões sobre nossa situa­ção, a triste situação de todo o mundo — era bonito de se ver, levantava o moral, ver aquela coisinha deslizando no vazio, para algum lugar impossível de atingir naquela época, a não ser na imaginação.

Eu tinha descido vagarosamente pelo hotel antigo, explorando, examinando. Lembrara-me de um novo município construído para operários africanos perto de uma enorme mina na África, que eu tinha visto nos tempos não tão lon­gínquos em que os continentes ficavam próximos uns dos outros, a apenas um dia de viagem. O município ocupava acres, fora construído de uma só vez, e consistia em milhares de "casinhas" idênticas, formadas de um quarto, uma pe­quena cozinha e um banheiro com uma pia. Mas em uma casa podiam-se ver os padrões de vida da comunidade tribal trazidos para a cidade praticamente inalterados: uma foguei­ra ardia no meio do chão de cimento, a um canto havia um rolo de lençóis e em outro duas panelas e uma caneca. Na "casa" seguinte, uma cena de respeitabilidade vitoriana: uma cristaleira, uma mesa, uma cama, todas intensamente lustradas, enfeitadas com uma dúzia de peças de croché, e um quadro da família real na parede em frente à porta, de modo que a rainha, em toda a sua realeza, e o observador pudes­sem lançar olhares de aprovação do interior. Entre estes dois extremos havia todo tipo de variações e acordos: bem, era assim que o hotel tinha ficado. Era um conjunto de ruas verticais em que se podia encontrar de tudo, desde uma respeitável família fazendo piadas sobre a situação da Inglaterra antes do advento da canalização de esgotos e carregando penicos e baldes escadas abaixo até o único banheiro que ainda funcionava, até pessoas morando, comendo e dor­mindo no chão, que faziam fogo sobre uma folha de amianto e urinavam pela janela — naquele tempo, um chuvisco fino caindo do céu não significava obrigatoriamente chuva imi­nente ou vapor condensado.

Era desta possibilidade que eu queria fugir rapidamen­te, em vez de ficar ali parada, no meio do lixo, admirando. Sobretudo porque podia ver, atrás das janelas do primeiro andar, dois jovens com revólveres: tomavam conta do prédio, de parte dele ou simplesmente de seu próprio quarto, ou quartos — quem sabia? Mas June, vendo-o, soltou uma exclamação, gritou e pareceu feliz — à seu modo de ficar feliz, como se cada pequeno acontecimento lhe oferecesse prazeres nunca imaginados. Com um pedido de desculpa a Emily por fazê-la esperar (tinha a maior dificuldade para lembrar-se de minha presença), entrou, enquanto nós duas, Emily e eu, permanecíamos sob uma nuvem de moscas, vendo através da janela, June ser abraçada e abraçar — um dos dois jovens tinha visitado a casa dos Ryan, o que signi­ficava que se tornara praticamente um membro da família. Agora ele lhe dava uma dúzia de pombos: os revólveres eram de ar comprimido; os pombos retornariam — tinham voado quando chegamos — e se acomodariam novamente sobre o monte de lixo onde se alimentavam. Partimos, levando os pássaros mortos que serviriam para a próxima refeição do lar, ouvindo o farfalhar de seda das asas e o pum, pum, pum, pum das armas.

Atravessamos algumas velhas linhas de trem, agora co­bertas de plantas, algumas das quais Emily arrancou, ao passar, para fazer remédios e perfumes. Logo estávamos ao lado da casa. Sim, já passara por ela, morta de curiosidade, durante meus passeios, mas nunca tinha tido vontade de entrar, temendo, como sempre, ultrapassar meus limites com Emily. De novo June acenou para um jovem parado atrás das venezianas entreabertas devido ao calor e de novo caiu por terra uma ou outra barreira. Entramos numa sala mui­to simples e limpa, o que a princípio me chocou, pois ainda não tinha me livrado das velhas associações com "os Ryan". Não havia nenhum móvel, mas as cortinas e as vene­zianas estava limpas e inteiras, e esteiras e colchões achavam-se enrolados e empilhados ao longo das paredes. Estava sendo levada de quarto em quarto num passeio rápido, en­quanto procurava as salas comunitárias a sala de jantar, a sala de visitas, etc. Havia uma grande sala de refeições, com cavaletes e bancos, tudo intensamente limpo, mas fora isso cada quarto era auto-suficiente como oficina ou casa. Abrimos inúmeras portas e vimos crianças sentadas em colchões que também serviam de cama. Conversavam ou mergulhavam em alguma tarefa, e pelas paredes penduravam- se roupas e pertences. Podia-se ver que tinham se formado alianças e afinidades naturais que transformavam esta comu­nidade num conjunto de pequenos grupos.

Havia uma cozinha, um quarto grande onde metade do chão tinha sido coberto com folhas de amianto e de ferro, onde queimava qualquer combustível que fosse pos­sível obter. Naquele momento o fogo estava aceso e dois adolescentes preparavam uma refeição. Ao verem Emily co­locaram-se de pé e deixaram-na provar e examinar a comida: era um cozido, feito com carne sintética e batatas. Ela disse que estava bom, mas que seria melhor colocar um pouco de tempero, e ofereceu-lhes um punhado de ervas que tinha apa­nhado junto à linha do trem. E ali estavam alguns pombos: podiam limpá-los se quisessem, ou procurar alguém que acei­tasse uma tarefa extra não, ela, Emily, iria encontrar alguém e mandar para lá.

Agora compreendia algo que tinha me passado meio despercebido: o modo como as crianças reagiam ao ver Emily. Era assim que as pessoas respondiam à Autoridade. E agora, como ela tinha criticado o cozido, um garoto cor­tava e batia as folhas verdes sobre uma tábua, com um pedaço de aço afiado: tinha recebido uma ordem, ou assim o sentia, e estava obedecendo.

Os olhos de Emily me procuravam queria saber o que eu tinha visto, o que compreendi, o que achava. Parecia tão preocupada que June pegou sua mão instintivamente e sorriu tudo isto era uma pequena e nítida apresentação de uma situação que eu não poderia evitar fingindo que não vira nada.

Poucos dias antes Emily tinha vindo até mim ao voltar do lar e dito:

É impossível viver sem um mínimo de ordem. Por mais que se tente.

E ela não estava longe de chorar, e seriam lágrimas de criança.

E eu disse:

Você não é a primeira pessoa a ter estes pro­blemas!

Sim, mas não é o que pretendíamos, o que tínhamos planejado. Gerald e eu tínhamos resolvido, desde o princí­pio, que tudo seria discutido, não haveria aqueles absurdos antigos, pessoas encarregadas de dizer às pessoas o que fazer, aquelas besteiras horríveis.

Disse a ela:

Todo mundo precisa aprender a encontrar seu lugar numa estrutura — esta é a primeira lição. Obedecer. Não é assim? E é o que todo mundo faz.

Mas a maioria daquelas crianças não recebeu ne­nhuma educação!

Ela era toda indignação e incredulidade.. Fazia uma pergunta extremamente adulta e responsável: no final das contas, é algo que a maioria dos adultos nunca questiona. Mas eu tinha enfrentado ali uma mocinha em cujos olhos apareciam — só para serem escondidas, negadas — as ne­cessidades de amparo de uma criança, as queixas implicantes de uma pessoa muito jovem, e não de um adulto, contra as circunstâncias.

Começa quando se nasce — falei. — Ela é uma boa menina. Ela é má. Você foi uma boa menina hoje? Ouvi falar que você tem sido má. Oh, ela é ião boa, que criança boa... não se lembra?

Ela me fitava; na realidade não escutava.

É tudo falso, não tem nada a ver com a realidade, mas passamos a vida toda imersos nisto: se é boa menina, se é má menina. "Faça como eu digo e direi que você é boa." É uma armadilha onde todos caímos.

Decidimos que não iria acontecer — falou.

Bem, não se consegue uma democracia tomando resoluções ou pensando que a democracia é uma idéia atraen­te. E isto é o que sempre fizemos. Por um lado, "você é uma menina, uma menina má", tem-se instituições, hierar­quias e um lugar na ordem das coisas; por outro lado, fica­mos tomando decisões sobre a democracia, ou dizendo o quão democráticos somos. De modo que não há motivo para você sentir-se tão mal. O que aconteceu é o que sempre acontece.

Ficou de pé: estava zangada, confusa, impaciente co­migo.

Olhe, tínhamos tudo para começar de novo. Não havia necessidade de ser como sempre foi. É este o ponto. Tenho medo — e saiu para a cozinha para fugir do assunto.

E agora ela estava em sua cozinha, ou de Gerald, zan­gada, confusa, ressentida.

Aquela criança correndo para cumprir sua tarefa, sem levantar os olhos porque o supervisor ainda estava ali e poderia brigar — isto a humilhava. "Mas por quê?", murmurou, olhando-me, querendo, na verdade, eu sabia, uma resposta, uma explicação. E June continuava sorrindo a seu lado, sem compreender, mas sentindo pena por sua amiga estar tão triste.

Ora, tudo bem, não faz mal! — disse Emily afinal, afastando-se de mim, de June, da cena, e saindo enquanto perguntava: — Onde está Gerald? Disse que estaria aqui.

Foi com Maureen para o mercado — disse uma das crianças.

Deixou algum recado?

Ele disse que devíamos dizer-lhe que hoje é dia de arrumarmos os cabelos.

Ah, ele disse, foi? — mas depois, passada a raiva, falou: — Está bem, diga a todo mundo para ir para a sala — e tomou o caminho do quintal.

Era, sob qualquer ângulo, um quintal especial: planeja­do, arrumado, organizado, cheio de coisas boas de todo tipo — batatas, alho, cebolas, repolhos, em quantidade. Não se via nenhuma erva daninha ou flor. Algumas crianças estavam trabalhando e ao verem Emily apressaram o ritmo do trabalho.

De repente ela exclamou:

Ora, não, não! Eu disse que o espinafre devia ficar até a semana que vem, está fora do tempo.

Uma criança de uns sete anos fez uma careta bem clara para June, como se dissesse: "Quem ela pensa que é, man­dando na gente?", uma reação absolutamente rotineira, que pode ser observada sob uma forma ou outra em qualquer lugar onde haja grupos, hierarquias, instituições. Em poucas palavras, por toda parte. Mas Emily viu-a, sofreu com isto e abrandou a voz:

Mas eu disse para deixar, não foi? Será que vocês não vêem sozinhos? As folhas ainda estão pequenas.

Vou mostrar a Pat — disse June rapidamente.

Na verdade, não tem importância — disse Emily.

Antes de deixarmos o quintal Emily teve que fazer vá­rias observações: a cinza usada para afastar os insetos dos repolhos tinha sido colocada muito perto da raiz.

Será que você não vê? — disse Emily para a crian­ça, desta vez uma criança negra, que permanecia rígida à sua frente, o rosto agoniado pelo esforço de suportar a crítica quando achava que estava trabalhando tão bem. — Não de­via ficar tão perto da raiz, você devia ter feito um círculo, assim... — ajoelhou-se no solo úmido e espalhou as cinzas tiradas de uma bolsa plástica em volta dos pés de repolho. Fê-lo rápida e habilmente, era uma especialista, e a criança olhou para June, que colocou a mão em seu ombro. Quando Emily levantou os olhos da cinza viu as duas crianças, uma abraçando protetoramente a outra, aliadas contra ela, a che­fe. Ficou vermelha e disse: — Desculpem se fui ríspida, não queria.

Ao que ambas as crianças afastaram-se e foram para seu lado, tranqüilizadas por sua calma, através dos caminhos do quintal exemplar, em direção à casa. Segui-as, esquecida. A criança negra tinha colocado a mão sobre o braço de Emily; June segurava sua outra mão; Emily andava às cegas entre as duas, e eu sabia que estava assim porque tinha os olhos cheios de lágrimas.

Na porta dos fundos foi em frente sozinha, a criança negra seguindo-a. June deixou-se ficar para trás comigo. Sorriu para mim, desta vez vendo-me realmente: o sorriso tí­mido, aberto, desarmado oferecia-me sua inadequação, sua privação — sua história. Ao mesmo tempo seus olhos pe­diam-me para não criticar Emily, pois ela não suportaria que Emily não fosse aprovada.

No saguão, ou sala de jantar, os cavaletes tinham potes de água arrumados em todo o seu comprimento, recendendo a uma erva forte. Também havia pentes e montes de pano velho. As crianças enfileiravam-se perto dos cavaletes e as mais velhas, juntamente com Emily, começaram a pentear as cabeças que lhes eram apresentadas.

Emily tinha se esquecido de mim. Então me viu e per­guntou:

Gostaria de ficar para jantar conosco?

Mas eu sabia que ela não queria que eu ficasse.

Mal tinha me recuperado quando a ouvi exclamar com ansiedade:

Gerald disse quando voltaria? Maureen comentou alguma coisa? Ele deve ter dito quanto tempo levariam.

De volta à casa vi, pela janela, Gerald chegando à cal­çada com uma garota, talvez Maureen. Parou, cercado de crianças como sempre, algumas de seu lar, outras não. Pro­vavelmente via sua estada ali, durante horas, como uma fun­ção. Acho que era. Recolhia informações, como todos fazía­mos; atraía novos recrutas para seu lar — mas tinha mais candidatos do que podia abrigar; simplesmente se mostrava — exibindo suas qualidades entre quatro ou cinco jovens que eram os líderes naturais. Seria isto o equivalente aos homens irem caçar enquanto as mulheres ficavam cuidando da casa? Distraía-me com estes pensamentos enquanto Hugo permanecia a meu lado, observando o jovem em seu unifor­me de bandoleiro, sobressaindo dentre os outros, com tan­tas garotas por ali, procurando seu olhar, esperando para falar com ele... velhos pensamentos sobre padrões sociais antigos. Enquanto alguém os cultivasse eles não morreriam. Exatamente como os velhos padrões que ficavam se repetin­do, se reformando mesmo quando os acontecimentos permi­tiam qualquer outra experiência, desvio ou mutação, assim acontecia com os velhos pensamentos, que combinavam com os padrões. Continuava escutando a voz estridente e preo­cupada de Emily: "Onde está Gerald, onde está?", enquan­to permanecia em seu lugar de mulher, catando lêndeas e piolhos nas cabeças das crianças, enquanto Gerald provavel­mente planejava uma expedição para conseguir víveres em algum lugar, pois ninguém poderia acusá-lo de pouco inven­tivo ou preguiçoso.

Mais tarde ele deixou a calçada e Maureen também. Logo depois Emily chegou a casa. Estava muito cansada e não tentava escondê-lo. Deixou-se cair ao lado do animal e descansou enquanto eu preparava o jantar. Servi-o e, enquanto lavava a louça, ela descansava novamente. Parecia que minha visita à outra casa e o fato de ver o quanto ela tinha que fazer ali lhe permitiam, por fim, descansar ao meu lado, sentar e se deixar servir. Quando terminei de lavar a louça fiz chá para nós duas e sentei-me com ela sob o crepúsculo da tarde de verão, enquanto ela permanecia agarrada a Hugo.

Lá fora, o barulho e o clamor da calçada, sob um pôr-do-sol colorido; ali dentro, havia silêncio, uma luz suave, o ronronar do animal, que lambia o braço de Emily. Ali den­tro, o som de uma menina chorando, como uma criança, com pequenos e sentidos suspiros e soluços. Não queria que eu soubesse que estava chorando, mas não tinha se preocupa­do em sair dali.

A parede abriu-se. Por trás dela havia um céu inten­samente azul, um azul fortemente limpo e frio, um azul que não havia na natureza. De uma ponta a outra do horizonte o céu permanecia uniformemente colorido, sem mostrar em nenhum ponto aquela profundeza que nos faz olhar para dentro num momento de especulação ou descanso, o azul que muda com a luz. Não, este era um céu todo auto-suficiência, que não poderia mudar ou refletir nada. As paredes altas, agudas e quebradas elevavam-se em sua direção, e olhá-las era sentir sua firmeza rija, como flocos de tinta velha ampliados. Aqueles pedaços de parede eram de um branco resplandecente, assim como o céu azul, um mundo ameaçadoramente duro.

Emily surgiu, seu rosto sério inclinado sobre um tra­balho. Vestia uma roupa de um suave azul-acinzentado, como uma antiga criança de creche, segurava uma vassoura de ga­lhos, do tipo usado em jardins, e juntava as folhas caídas em montes que surgiam, por toda parte, sobre a grama que invadia a casa quebrada. Mas enquanto varria, enquanto fa­zia seus montes, as folhas espalhavam-se novamente a seus pés. Varria mais depressa, mais depressa, o rosto rubro, de­sesperado. A vassoura girava numa nuvem de folhas amare­las e laranja. Tentava livrar a casa das folhas, de modo que o vento pudesse soprar sem espalhá-las novamente. Um quar­to foi limpo, depois outro. Mas lá fora as folhas atingiam a altura de seus joelhos, o mundo todo estava firmemente coberto de folhas que caíam tão rápido quanto flocos de neve, de todos os pontos do céu horrível. O mundo estava sendo submerso em folhas mortas, asfixiado por elas. Ela virou-se num impulsivo gesto de pânico para ver o que es­tava acontecendo nos quartos que já tinha limpado: as pilhas que tinha feito já estavam submergindo. Correu desesperada pelos quartos sem tetos para ver se, aqui ou ali, haveria um lugar que ainda estivesse coberto e protegido, ainda esti­vesse a salvo da asfixiante queda de matéria orgânica morta. Não me via. Seu olhar, fixo, arregalado, horrorizado, passava por mim. Via apenas os fragmentos das paredes que não po­deriam protegê-la nem afastar a borrasca sibilante. Encos­tou-se na parede, apoiando-se na inútil vassourinha, olhando e ouvindo as folhas sussurrarem e caírem sobre ela e à sua volta, e sobre o mundo todo, numa tempestade de decadên­cia. Desvaneceu-se, uma figurinha atenta, uma pequena ga­rota de cor brilhante, como um enfeite de porcelana pintada de uma cristaleira ou prateleira, um coágulo vívido de cor numa brancura pintada, a horrível brancura de um mundo de creche que saía do quarto dos pais, onde o verão, uma tempestade ou um mundo de neve jaziam do outro lado das grossas cortinas.

Branco. Xales, lençóis, roupas de cama e travesseiros brancos. Numa interminável planície branca, um bebê per­manecia enrolado sem poder libertar os braços. Olhava fixo para um teto branco. Virando a cabeça via uma parede bran­ca de um lado e a ponta de um armário branco de outro. Ágata branca. Paredes brancas. Móveis brancos.

O bebê não estava sozinho; algo se movia, uma cria­tura de andar pesado, cada passo fazendo o berço balançar. Tum, tum, tum, lá iam os pés pesados e, mais além, um ruído de metal sobre pedra. A criança esticava o pescoço e não conseguia ver. Esforçava-se em manter a cabeça erguida acima do calor úmido do travesseiro, mas tinha que deixá-la cair novamente no calor macio. Jamais, a não ser quando jazesse desamparada em seu leito de morte, toda a força de seus membros esgotada, nada sobrando a não ser a consciên­cia por trás do olhar, ficaria tão desamparada quanto agora. A enorme criatura de passos pesados aproximou-se barulhen­ta do berço, cujas grades de ferro tremiam e chocalhavam, e quando a imensa face inclinou-se sobre ela foi extraída do branco quente e içada perdendo o fôlego, e foi agarrada por mãos que apertavam suas costelas. Estava suja. Já. Suja. O som da palavra era de desaprovação, desgosto, desagrado. Isto significava ser desenrolada, virada para todos os lados, entre mãos rudes e violentas, como um pedaço de filé de peixe numa tábua ou uma galinha sendo recheada.

Suja, suja... o som frio e ríspido da palavra, para mim que via a cena, tinha o ar do "pessoal", da inaltera­bilidade das leis deste mundo. Brancura, desaprovação soan­do numa palavra, uma frieza, uma asfixia, conforme o ar caía e caía, derrubado numa tempestade de branco na qual as marionetes estremeciam em seus fios... Suponha, então, que as represas se encham de gelo e neves que venham para sempre, uma terna queda branca; suponha que os quartos se encham de pó frio, toda água finda e cristalizada, todo calor tornado latente num ar gélido e seco que fira e inca­pacite o pulmão... Uma cena do quarto dos pais, onde as cortinas brancas estão fechadas, nevasca de musselina bor­dada. Atrás delas, a neve é cada vez mais branca, pois o céu está encoberto. As duas enormes camas, subindo cada vez mais alto, quase tocando o asfixiante teto branco, esta­vam ocupadas. A mãe numa, o pai na outra. Há algo novo no quarto, um berço, mais uma vez inteiramente branco, um gélido brilho branco. Uma coisa alta, este berço, não tão alta quanto as camas iguais a torres que acolhiam as pessoas grandes, mas ainda assim além do alcance. Uma figura bran­ca entra apressadamente, aquela cujo peito parece uma ca­lota, que é severa. Uma trouxa é tirada do berço. Enquanto as duas pessoas nas camas sorriem encorajadoramente, esta trouxa é agarrada e mostrada a ela. A trouxa fede, ela fede: penetrantes e perigosos são estes odores, como tesouras, ou severas mãos torturadoras. Uma desolação e uma solidão tais que ninguém no mundo (exceto todos no mundo) jamais sentiu, ela as sentia agora, e a violência de sua dor era tal que não podia fazer nada a não ser permanecer ali, dura, primeiro olhando fixamente para a trouxa, depois para a enorme enfermeira de roupa branca, depois para a mãe e o pai, que sorriam de suas camas.

Gostaria de ter desaparecido de suas vistas, os sorri­dentes, as pessoas grandes que se elevavam até tocar o teto de seu quarto quente e sufocante, vermelho e branco, bran­co e vermelho, tapete vermelho, chamas vermelhas dançando na lareira. Tudo era demais, alto demais, grande demais, poderoso demais; a única coisa que deseja é fugir e esconder-se em algum lugar, deixar que tudo aquilo acabe. Mas está sendo repetidamente presenteada com a trouxa fedo­renta.

Agora, Emily, este é o seu bebê — a voz sorridente, mas peremptória vinha da grande cama da mulher. — É o seu bebê, Emily.

Esta mentira a confunde. É um jogo, uma brincadeira, da qual deveria rir e protestar, como quando seu pai lhe faz "cócegas", uma tortura que apareceria em pesadelos anos mais tarde? Deveria agora rir, protestar e reclamar? Olha para os rostos, a mãe, o pai, a babá, pois todos a enganavam. Este bebê não é seu, eles sabem disso, então por quê... Mas novamente dizem:

O bebê é seu, Emily, e você deve amá-lo.

A trouxa estava sendo empurrada para ela, e espera­vam que estendesse os braços e a segurasse. Outra decepção, pois não era ela quem segurava, mas a babá. Mas eles esta­vam sorrindo e elogiando-a por segurar aquilo no colo. E assim, era tudo demais, as mentiras eram demais, o amor era demais. Eles eram muito fortes para ela. E ela não se­gurou o bebê: continuava sendo mostrado para ela, contra ela, em direção a ela. Segurou-o e amou-o com um amor apai­xonado, violento e protetor que havia em seu coração como um truque ou uma traição, aquecido com um âmago de gelo...

Agora o quarto é aquele de cortinas de veludo verme­lho, e uma garotinha de uns quatro anos, vestida com um avental florido, está de pé ao lado de um bebê atarracado e de boca aberta, displicentemente sentado sobre um pedaço de linóleo estendido sobre o tapete.

Não, não é assim — comanda, enquanto o ga­rotinho, cheio de admiração por esta sua mentora forte e inteligente, tenta colocar um bloco sobre outro. Derru­ba-os. — Assim — ela grita estridentemente, e ajoelha-se nervosa, colocando um bloco sobre o outro, muito depressa e habilmente. Está bastante absorta, cada um de seus áto­mos, em sua necessidade de fazer isto, fazer bem, mostrar que pode, provar a si própria que pode. O bebê afável fica ali sentado, está olhando, impressionado, mas o negócio é fazer, sim, fazer, colocar os blocos um sobre o outro, com perfeição, canto com canto, lado com lado. — Não, não é assim, é assim!

As palavras ecoam pelo quarto, o próximo quarto, as escadas, o jardim. — Assim, nenê, não vê? Assim.

Com minha visita a sua casa, as coisas entre Emily e eu continuaram a tornar-se mais fáceis. Numa manhã, por exemplo, fui capaz de comentar sobre seu rosto abatido e seus olhos fundos. Na véspera não tinha ido ao lar de Gerald, e não dava sinais de ir agora. Já era meio-dia e ainda não tinha se vestido. Usava uma velha camisola, desleixada, que já tinha sido um vestido de festa de verão. Estava deitada no chão, abraçada a Hugo.

Na verdade não sei o que estou fazendo lá — disse como quem faz uma pergunta.

Diria que você tem feito tudo.

Fixou o olhar em mim; sorriu — com amargura e não tão segura de si.

É, mas se eu não fizesse alguém faria.

Bem, isto eu não esperava: era, digamos, um pensa­mento adulto demais. Ao mesmo tempo em que interiormente eu a elogiava por causa disto, fiquei preocupada com o outro lado desta idéia, sua área sombria, sua verdadeira escuridão, que leva a qualquer tipo de indiferença e desespero: geral­mente é o primeiro passo, para ser mais precisa, em direção ao suicídio... no mínimo é o mais mortal dos drenos de energia.

Mas me saí com:

Verdade. Verdade para todos nós. Mas isto não quer dizer que devamos ficar na cama! Minha preocupação é por que você está se sentindo assim. Agora. Qual a origem?

Sorriu — sim, era muito esperta, muito inteligente:

Bem, não vou cortar o pescoço fora! — e depois, mudando completamente o tom, gritou: — Mas se cortasse, e daí?

É Maureen? — perguntei. Não conseguia pensar em nada mais para lhe dizer.

Minha estupidez permitiu que ela se recuperasse — já estava de volta a seu próprio nível. Olhou-me; olhou-me... ah, aqueles olhares que eu recebia sempre, como rajadas de ironia. Este significava: Oh, um melodrama! Ele não me ama, ama outra!

Maureen... — deixou escapar com indiferença, en­colhendo os ombros. Mas depois, condescendente, se permi­tiu: — Na verdade não é Maureen. Neste exato minuto é June.

E esperou, observando, com seu sorrisinho amargo, que eu respondesse: "Que absurdo, não é possível!"

Não está certo, não é? — arremedou.

Mas ela... tem quantos anos?

Na verdade tem onze, mas diz que tem doze.

Agora ria, mostrando sem querer sua verdadeira filo­sofia: minha enérgica desaprovação dava-lhe forças e ela já estava sentada e até ria. Minha língua rejeitava, uma após outra, uma série de verbalizações, nenhuma das quais, eu sa­bia, poderia merecer mais do que zombaria. Por fim ela ironizou de novo:

Bem, ela não pode ficar grávida. Pelo menos isso.

Eu ia capitular.

Dá no mesmo — disse eu. — Não é possível que seja bom para ela.

Seu sorriso mudou: ficou um pouco triste, talvez inve­joso, e significava: "Você se esquece de que não estamos em condições de seguir os seus padrões. Nós não temos esta sorte, lembra?"

Por causa deste sorriso fiquei quieta, e então ela disse:

Você está pensando: "Oh, ela é apenas uma crian­ça, coitada!", este tipo de coisa. Mas eu estou pensando: "June era minha amiga e agora não é mais".

Agora eu tinha sido realmente silenciada. Pois que absurdo era este? Se June não era sua amiga agora, o seria daqui a uma semana, quando Gerald partisse para outras? Por um instante e parecia que isto acontecia dezenas de vezes por dia Emily tinha saído de um reinado de sofis­ticação completamente desconectado de mim (que fazia esta palavra significar aceitação, compreensão do andamento das coisas) e se tornado uma criança, realmente uma criança, igualzinha às de antigamente...

Encolhi os ombros, deixando-a entregue a si mesma. Eu não poderia ajudá-la, e aquela conversa cheia de altos e baixos tinha sido demais para mim.

Emily atribuiu ao meu movimento uma condenação, e gritou:

Nunca tive ninguém antes, ninguém assim tão ínti­mo quanto June e virou o rosto para ocultar lágrimas infantis.

E isto mostra como se pode ficar cego a respeito de algo. Pois eu tinha visto a criança June adorando a "mulher mais velha", como seria natural, pois é uma fase do cresci­mento de qualquer pessoa. Nunca havia compreendido o quanto Emily dependia daquela órfã frágil que não só apa­rentava ter três anos menos como vivia num mundo dife­rente, tão diferente quanto a infância é do início da vida adulta.

Só pude lhe dizer:

Você sabe que ele vai cansar-se dela e vocês pode­rão ser amigas de novo.

Quase teve um ataque por causa de minhas maneiras e meus pensamentos antiquados.

Não é uma questão de ficar cansado.

O que é então? Diga.

Olhou-me, encolheu os ombros por sua vez e disse:

Bem, as coisas são bem diferentes, não são... ele simplesmente tem que... dar voltas, acho. Como um gato delimitando seu território e sorriu com a idéia.

Bem, não importa quão originais e brilhantes sejam os novos hábitos, o negócio é que, certamente, June não vai demorar para ficar livre, não é?

— Mas sinto saudades agora — choramingou, uma me­nininha de novo, a mão enxugando as lágrimas. Mas logo saltou e disse, como um adulto: — De qualquer forma, pre­ciso ir lá, goste ou não — e se foi, os olhos vermelhos, infelizes, repleta de uma raiva reprimida que aparecia em cada movimento. Só foi porque seu senso de responsabili­dade não lhe permitiria agir de outro modo.

Por trás de minha parede florida elevava-se firme uma casa alta, delicada, brilhantemente branca. Via de longe, de­pois cheguei mais perto, notando que era a primeira vez que me aproximava de uma casa por fora, em vez de me encon­trar dentro do prédio desde o momento em que atravessava a misteriosa fronteira. Era uma casa sólida e bem-conservada, num estilo próximo ao do Cape Dutch, onde cada curva solene falava do burgo, do burguês. A casa reluzia, com um peculiar brilho. Era feita de uma substância que era fami­liar em si, mas não quando moldada numa casa. Quebrei um pedaço e comi: doce, dissolvia na boca. Uma casa de açúcar, como a dos contos de fadas; ou, se não era açúcar, de substância comestível usada para cobrir barras de torrone. Fiquei partindo pedacinhos, comendo e provando... era compulsivamente comestível, pois não satisfazia, não en­joava: podia-se comer e comer e nunca ficar saturada daque­la insipidez branca. Lá estava Emily, partindo pedaços in­teiros de teto e enchendo a boca saudável. E também June, escolhendo e lambiscando languidamente. Um pedaço de parede, um fragmento de janela... abrimos, comendo feito cupins, nosso caminho até a casa, nossos estômagos repletos mas insatisfeitos, incapazes de parar mas nauseados. Comen­do um canto da parede vi um quarto da região que conhe­cia como "pessoal". Conhecia o quarto. Um quarto pequeno, fortemente iluminado pelo sol que entrava pela janela. Um chão de pedra, com um berço no centro e, no berço, uma criança, uma menininha. Emily, absorta, distraída. Estava comendo... chocolate. Não, fezes. Tinha defecado sobre o frescor da cama branca e pegava punhados de excremento, que espalhava por toda parte com gritinhos de triunfo e alegria. Já o tinha espalhado sobre lençóis e cobertas, na madeira do berço, em si mesma, no rosto e no cabelo, e permanecia ali sentada, um macaquinho, pensativamente comendo e digerindo.

Esta cena — criança, berço, quarto ensolarado — des­vaneceu-se bruscamente, saiu do alcance de minha vista e desapareceu para ser substituída pela mesma cena em ta­manho menor, reduzida pela necessidade de diminuir para assim conter a dor; pois subitamente ouviram-se passos pe­sados ressoando na pedra, uma voz alta e zangada, a respi­ração profunda — ouviram-se um murmúrio e depois excla­mações de desagrado, e a criança chorando e gritando, pri­meiro de raiva e logo depois — quando foi quase afogada pelo vigor com o qual estava sendo esfregada e açoitada num banho profundo e muito quente — de desespero. Lacrime­java num desespero inocente, enquanto a grande mulher fungava e cheirava para ver se o fedor da merda tinha saído, mas achava (apesar da água quente demais que escaldava e queimava, apesar das esfregadelas que deixavam a pele frá­gil dolorida e vermelha) um resquício de cheiro, de modo que ela continuava gritando de desagrado e medo. A mãe reclamava sem parar, a criança soluçava exausta. Foi colo­cada num cercado e seu berço levado para limpeza e desin­fecção. Sozinha em sua dor, soluçava sem parar.

Uma criança chorando. O triste som perdido da incompreensão.

— Você é uma criança terrível, Emily, terrível, terrí­vel, terrível, desagradável, imunda, suja, suja, suja suja, uma menina suja, Emily, você é uma menina suja, terrível, ah, desagradável, você é imunda, suja, suja, Emily.

Vaguei procurando-a pelos quartos adjacentes, mas sem nunca encontrar a porta certa, apesar de, às vezes, poder ouvir a tristeza de Emily muito próxima de mim. Freqüentemente sabia que uma única parede nos separava, que po­deria tocá-la se não houvesse uma parede ali. Mas, seguindo aquela parede até o fim, ultrapassei o "pessoal" e saí num claro gramado verde ou num pequeno campo cercado de ár­vores. Sobre o gramado havia um ovo. Era do tamanho de uma casinha, mas tão leve que uma brisa poderia movê-lo. Em torno deste brilhante ovo branco, sob um céu claro, moviam-se Emily, sua mãe, seu pai — e esta era a associa­ção de pessoas mais improvável que eu poderia imaginar — e também June, perto de Emily. Estavam à vontade, felizes sob a luz do sol, com a brisa leve balançando suas roupas. Tocaram no ovo. Recuaram e observaram. Sorriram; estavam todos repletos de prazer e bem-estar. Encostaram os rostos na curva suave da superfície do ovo para que suas faces pudessem senti-la; embalaram-no delicadamente com a pon­ta dos dedos. Esta cena toda era grande, iluminada e apra­zível, era a liberdade — e dali voltei-me para um canto onde havia uma passagem estreita e escura e o som de uma crian­ça chorando... claro que tinha me enganado, não estava atrás daquela parede, havia uma outra, e eu sabia exatamente onde estava. Comecei a correr, corri, precisava alcançá-la. Tinha consciência de estar também relutando, pois ansiava pelo momento em que eu, também, iria cheirar aquele odor contaminante e débil de seu cabelo, de sua pele. Enquanto corria estabelecia uma tarefa para mim mesma: não deveria mostrar minha repugnância, como tinha feito a mãe com sua respiração fortemente presa, uma ânsia de vômito controla­da, os músculos do estômago em intermináveis convulsões, seu frêmito de desagrado pela criança mostrando-se através dos braços que levaram Emily para longe do cenário de seu prazer e a atiraram brutal e punitivamente na banheira onde a água, por causa da pressa, ainda estava fria, mas onde uma água muito quente penetrava, e as duas correntes de água muito fria e muito quente se misturavam à sua volta, escal­dando e congelando-lhe as pernas e a barriga. Mas não con­seguia encontrá-la, nunca a encontraria, e o choro continua­va sem parar, e eu podia ouvi-lo durante o dia, em minha vida "real".

Acho que já disse que quando estava num mundo — a região por trás da parede florida de minha sala —, a ordem lógica do tempo que rege a vida cotidiana não existia; que uma vez de volta a minha vida "comum" eu me esquecia, às vezes durante dias, de que a parede podia abrir, tinha aberto, iria abrir de novo, e que eu então iria simplesmente mover-me através dela em direção àquele outro espaço. Mas nesta época começou um período em que algo do sabor do local por trás da parede invadia continuamente minha vida real. Sua primeira manifestação foi o soluço de uma crian­ça. Muito fraco, muito distante. Às vezes inaudível, ou quase isso, fazendo-me aguçar os ouvidos antes de perdê-lo. Começava de novo, e ficava bem alto, mesmo quando eu estava conversando com a própria Emily, ou na janela vendo os acontecimentos lá fora. Ouvia o choro de uma criança, uma criança só, rejeitada, repudiada; e ao mesmo tempo, por trás dele, podia ouvir as queixas da mãe, os protestos da mulher, e os dois sons existiam lado a lado, ponto e con­traponto.

Ficava sentada escutando. Ficava sentada sozinha e es­cutava. Fazia calor, muito calor — era o final do verão. Quase sempre havia relâmpagos, súbitas tempestades evapo­radas; havia inquietude nas ruas, necessidade de mudar... Estabeleceria pequenas tarefas para mim mesma, pois tinha que me mudar. Ficava sentada, ou me mantinha ocupada, e ouvia. Numa manhã Emily surgiu, toda vivacidade e ani­mação, e, vendo-me colocar ameixas em bandejas para secar, reuniu-se a mim. Vestia uma blusa de algodão listrado e jeans. Faltava um botão na altura do busto e a blusa se abria, mostrando os seios já formados. Parecia cansada, assim como cheia de energia; ainda não tinha tomado banho e exalava um cheiro de sexo. Estava satisfeita e tranqüila, um pouco triste, mas bem-humorada. Era, em poucas palavras, uma mulher sentada sorrindo e enfileirando ameixas com pequenos movimentos calmos; todos os ódios, impulsos e necessidades afastados de si, exorcizados pelo amor recente. E o tempo todo aquela criança chorava. Eu a observava; e pensava como os velhos, lutando contra o tempo, contra a sua perversidade absoluta — usando, futilmente (mas a cul­pa não é deles), o mesmo pensamento como um tipo de medida ou bússola: Faz catorze anos, ou menos, que você chorava tão sentidamente e durante tanto tempo por causa de sua incompreensão e por causa de seu traseiro e suas per­nas escaldadas. Catorze anos para mim não é quase nada, pesa pouco em minha escala: na sua escala, é tudo, sua vida toda.

Ela, pensando no tempo, falando dele como antigamen­te se esperava que uma garota fizesse enquanto conquistava vagarosamente os marcos da estrada que a separava da vida adulta e da liberdade, dizia: "Já vou fazer quinze anos", porque tinha acabado de completar catorze Ontem mesmo tinha dito isto; era capaz de falar assim, ainda que atrevidamente e jogando os cabelos para trás, como uma "mocinha". Entretanto, tinha acabado de fazer amor, e não havia nada de mocinha nisto.

Naquela manhã ouvi os soluços enquanto trabalhava com ela. Mas Emily não ouviu nada, apesar de eu não con­seguir acreditar nisto.

Está ouvindo alguém chorar? — perguntei, tão ca­sualmente quanto pude, enquanto me contorcia por dentro para não ouvir o som miserável.

Não, você está? — e lá se foi para a janela, com Hugo atrás. Estava olhando para ver se Gerald já chegara. Ainda não. Foi tomar banho e se vestir; depois voltou para a janela e ficou esperando — sim, ele estava chegando. E agora ela ficaria ali um pouco mais, tomando cuidado para não vê-lo, como para reafirmar sua independência, enfatizar esta sua outra vida comigo. Ainda iria demorar mais meia ou uma hora. Até se sentaria de novo com seu horrível animal amarelo e lhe faria carinhos. Seu silêncio ficaria cada vez mais tenso, seus olhares pela janela cada vez mais estuda­dos: garota-na-janela-indiferente-a-seu-amor. Então sua mão, que alisava e acariciava a cabeça do animal, iria pender, es­quecida dele. Gerald a tinha visto. Tinha observado que ela não o estava notando. Tinha se virado: ao contrário dela, ele na realidade não se importava muito, ou melhor, importava- se, mas não do mesmo modo. De qualquer maneira, agora, naquela tarde, June estava lá, e Maureen, e uma dúzia de outras garotas. E Emily não podia suportar aquilo. Saiu, dando um beijo em Hugo. Quanto a mim, recebi o ritual "vou sair um pouquinho, se você não se importar".

E num instante ela estava com eles, sua família, sua tribo, sua vida. Uma garota atraente, com o cabelo escuro envolvendo um rosto pálido, muito honesto, estava onde Gerald estava, vagando por ali com as facas na cintura, os bigodes, os fortes braços morenos. Meu Deus, quantos sé­culos tínhamos recuado, quantos lentos passos da evolução humana Emily desfazia ao passar de meu apartamento para a vida da calçada! E que promessas, que possibilidades, que experiências, que variações sobre o tema humano eram aban­donadas! Olhando, entrei em desespero frente à precarieda­de de toda tentativa e esforço humano, e saí da janela. Foi nesta tarde que tentei deliberadamente alcançar o outro lado da parede: fiquei muito tempo olhando e esperando. A pa­rede não estava iluminada agora, estava uniforme, opaca, inexpressiva. Levantei-me e apertei as mãos contra ela, alisei-a, sentindo e vivenciando, tentando tudo para derrubar a pesada solidez com a força de meu desejo. Era absurdo, sabia disto. Não era devido à minha vontade, nem à de nin­guém mais, que a parede cedia ou estendia uma ponte ou uma porta. Mas o interminável soluçar baixinho, a criança infeliz, estavam me deixando histérica, estavam me tirando o bom senso... ainda que voltando o rosto eu pudesse vê-la, uma luxuriosa garota na calçada, sem sorrir, talvez devido à sua seriedade inata, mas realmente muito longe de chorar. Era a criança que eu queria pegar, beijar e confortar. E a criança estava tão próxima, era uma questão de achar o lugar certo e apertá-lo, como nas velhas histórias. Uma determi­nada flor do desenho, ou um ponto que se podia encontrar contando os passos e, depois, empurrando delicadamente... mas é claro, eu sabia que não tinha nada a ver com a tenta­tiva de desejar deliberadamente. Fiquei assim a tarde toda, penetrei na noite, enquanto na escuridão lá fora as tochas se acendiam sobre a calçada e mostravam a massa tumultua­da comendo, bebendo, juntando-se em clãs e alianças. Deixei minhas mãos percorrerem a parede, vagarosamente, palmo a palmo, mas não encontrei o caminho naquele dia, nem no outro, nunca encontrei a criança chorosa que continuava ali, soluçando desamparadamente só e sem dono, com longos anos à sua frente para serem vividos antes que pudesse adquirir forças e libertar-se.

Nunca encontrei Emily. Mas encontrei... bem, o que achei era inevitável. Podia tê-lo previsto. A descoberta tinha em si, tinha como quintessência, a banalidade, o tédio, a insignificância, a restrição da dimensão "pessoal". O que mais poderia encontrar — inesperadamente, não é preciso dizer — quando, do outro lado da parede, corri sem parar através de passagens, de corredores, entrei em quartos onde eu sabia que ela deveria estar, mas não estava, até que por fim encontrei-a: uma criança loura de olhos azuis averme­lhados e sombrios devido às lágrimas. Quem mais poderia ser além da mãe de Emily, a grande e bruta mulher, sua torturadora, a imagem do mundo? Não foi Emily que pe­guei nos braços e cujo choro tentei acalmar. Os bracinhos levantavam-se, desesperados por carinho. Mas um dia seriam aqueles braços enormes, a quem nunca tinham ensinado a ternura. O rosto, vermelho de necessidade, consolava-se por fim numa exaustão sem dor conforme a garotinha apoiava a cabeça em meus ombros, os fios macios de cabelos doura­dos de bebê ficavam secos e belos e eu delicadamente en­xugava as gotas de suor com os dedos. Uma menininha bo­nita e suave, encontrando afinal algum consolo em meus braços... e o que vira eu numa fase anterior à cena em que uma garotinha alegremente espalhava fezes pelo cabelo, pelo rosto, pela cama? Nesta ocasião, seguindo um choro longín­quo, entrei num quarto que era todo branco, limpo e esté­ril, a cor de pesadelo da privação de Emily. Um quarto de bebê. De quem? Isto era anterior ao nascimento de um irmão ou irmã, pois ela era pequenina, um bebê, e sozinho. A mãe estava em algum outro lugar, não era hora da comi­da. O bebê estava desesperado de fome. A necessidade res­soava em sua barriga, estava sendo comida viva pela necessidade de comida. Berrava em meio a um sufocante e denso calor; o suor escorria de seu rostinho escarlate; virava a cabeça à procura de um peito, uma mamadeira, qualquer coisa: desejava líquido, aconchego, comida, cuidado. Ela virava-se, esperneava e gritava. E gritava pois devia esperar até ser alimentada, a rígida ordem do regime dizia que devia ser assim: nada poderia mover aquela mulher empedernida, que estabelecera suas necessidades e sua relação com seu bebê segundo um relógio estranho a ambos e que deveria ser obedecido até o fim. Sabia estar vendo um incidente que se repetira infinitamente na vida de Emily? de sua mãe? Era algo contínuo, seria assim, dia após dia, mês após mês. Tinha havido um bebê gritando, com fome, depois soluçan­do e se calando de ódio, desejando a refeição que não veio ou, se veio, não foi suficiente. Havia algo naquela mulher forte e impenetrável que fazia as coisas assim, ditava-as. Necessidade. As leis rígidas deste pequeno mundo pessoal. Calor. Fome. Uma luta de emoções. A torrente quente e vermelha de chamas, vinda de uma lareira barrada entre paredes brancas, lã branca, madeira branca, branca, branca. O cheiro enjoado vindo do suor que se acumulava sob o queixo, o cheiro da pesada lã úmida. E a insignificância, extrema insignificância, fraqueza, desamparo, elevando-se e implorando por migalhas de comida, de liberdade, única va­riedade de escolha que poderia chegar a este lugarzinho quente onde as marionetes pendiam de seus cordões in­visíveis.

Acho que este é o lugar adequado para dizer algo mais sobre "aquilo". Apesar de que, obviamente, não há lugar ou tempo "adequado", já que não houve um momento deter­minado que demarcasse agora ou naquela época o início "daquilo". Assim, surgiu um período em que todos falavam sobre "aquilo"; sabendo que não o tínhamos feito até muito recentemente e que havia um ingrediente novo em nossas vidas.

Talvez tivesse sido melhor ter começado esta crônica com uma tentativa de descrever detalhadamente "aquilo". Mas será possível fazer um resumo de qualquer coisa sem que "aquilo" de um modo ou outro seja o tema prin­cipal? Talvez, na verdade, "aquilo" seja o tema secreto de toda a literatura e de toda a história, como anotações de tinta invisível nas entrelinhas, que acabam sobressaindo, bem negras, apagando a velha impressão que conhecíamos tão bem, como a vida, pública ou privada, que se revela inesperadamente e nos mostra algo que jamais imaginára­mos possível vemos "aquilo" como o reflexo dos acon­tecimentos, da experiência... Muito bem, mas o que foi "aquilo"?... Tenho certeza de que desde que existem ho­mens sobre a Terra fala-se precisamente assim sobre "aqui­lo" nas épocas de crise, já que é na crise que "aquilo" se torna visível, e nossa presunção naufraga sob sua força. Pois "aquilo" é uma força, um poder, tomando a forma de terre­moto, de um cometa cuja malignidade chega cada noite mais perto, distorcendo qualquer pensamento pelo medo "aqui­lo" pode ser, já foi, pestilência, uma guerra, a alteração do clima, a tirania que torce as mentes humanas, a selvageria de uma religião.

"Aquilo", em resumo, é a palavra para ignorância ine­vitável ou para consciência inevitável. Seria uma palavra para a inadequação humana?

"Já ouviu alguma coisa sobre aquilo? - fulano e beltrano disseram que aquilo..."

Pior ainda quando se atinge o estágio de "Ouviu al­guma novidade", quando "aquilo" absorve tudo o mais, e nada pode ser dito quando as pessoas perguntam o que está mudando em nosso mundo, o que muda nosso mundo. Só "aquilo", uma palavra muito pior do que "eles"; pois "eles", ao menos, também fazem parte da humanidade, podem ser modificados, estão desamparados, como nós próprios.

"Aquilo", talvez neste momento da história —, fosse sobretudo a consciência de algo acabando.

Como iria Emily colocar o que sentia em palavras? Talvez o descrevesse nos termos daquela imagem dela var­rendo, varrendo, o aprendiz de feiticeiro colocado a traba­lhar em um jardim maligno contra enchentes de folhas mor­tas que ela nunca conseguiria limpar, não importa o quanto tentasse. Sua noção de responsabilidade, embora expressa em imagens ela nunca seria capaz de dizer que sim, era uma boa menina e não uma garotinha suja e má: uma boa menina que devia amar e proteger seu irmão, seu bebê, o indefeso, o fraco, o que sorria cordial e indiferentemente, que ficava sentado completamente bambo e mole entre a lã branca que fedia a umidade.

Era tão difícil! poderia ela dizer. Tudo era tão difícil, um esforço, um fardo tão grande, todas aquelas crianças na casa, nenhuma moveria um dedo para ajudar a não ser que eu ficasse em cima o tempo todo, transforma­ram-me num tirano e riam de mim, mas não tinham necessidade disso, poderiam tornar tudo igual e fácil se fizessem sua parte, mas não, eu sempre tinha que supervisionar tudo, pentear seus cabelos sujos e ver se tinham se lavado. E de­pois as dores que tinham quando não comiam direito, e o cheiro horrível de desinfetantes que o governo fornecia, e o modo como June ficou doente deixou-me louca de preo­cupação, continuava doente sem motivo — era isto, nunca havia uma boa razão para as coisas, algo aconteceu e então tudo desmoronou.

Sim, é provável que a versão de Emily soasse assim.

June, voltando um dia com Emily para meu aparta­mento, cerca de quinze dias após sua iniciação na vida de mulher — coloco-o assim porque era como ela obviamente o sentia —, mudara fisicamente, sob todos os aspectos. Sua experiência tinha-lhe marcado o rosto, que parecia ainda mais desprotegido, com seu jeitinho de órfã triste, do que antes. E parecia mais velha do que Emily. Seu corpo ainda tinha uma camada de gordura em volta da cintura, como as crian­ças, e os seios cresceram sem tomar forma. A ansiedade, ou o amor, tinham-na feito comer o suficiente para engordar. Víamos, aos onze anos, como seria ao atingir a meia-idade: o inquieto corpo gordo, o rosto que reunia, parecia sempre capaz de reunir, duas qualidades opostas: o desamparo pa­ciente da vítima e a dura curiosidade do inquisidor.

June não estava bem. Através de nossas perguntas ficou claro que aquilo não era novo, que ela vinha se sentindo mal "há bastante tempo". Sintomas? "Nunsei, me sinto mal, sabe como é."

Sentia dores de estômago e enxaquecas freqüentes. Faltava-lhe energia — mas não se podia esperar energia de uma Ryan. Ela "só se sentia toda mal, vai e vem, sério".

Esta aflição não pertencia apenas a June. Quase todos nós a conhecíamos.

Dores e mal-estares vagos; indisposições que vinham e passavam, mas sem obedecer à lógica dos médicos; infec­ções que pareciam provenientes de uma única fonte, já que se espalhavam pela comunidade como uma epidemia, em­bora sem uniformidade epidêmica — em cada vítima apa­reciam sob diferentes sintomas: erupções aparentemente sem causa; doenças nervosas que podiam acabar em surtos de in­sanidade ou produzir tiques ou paralisias; tumores e doenças de pele; dores que "andavam" pelo corpo; novas doenças que durante algum tempo, por falta de informação, foram cata­logadas junto com as velhas, até que se tornou claro que eram novas doenças; mortes misteriosas; exaustões e apatias que prendiam as pessoas durante semanas às camas e faziam parentes e pacientes usarem palavras como "fingi­mento" e "neurose" e que subitamente desapareciam, li­vrando os pobres doentes da crítica e da dúvida. Em resumo, houve um longo período de aumento generalizado de doen­ças, tanto tradicionais quanto novas, e se June reclamava que "se sentia mal, sabe como é?" — acreditávamos, pois isto era suficientemente comum para ser classificado como uma doença diagnosticada. June resolveu mudar-se para nossa casa "por alguns dias", segundo ela, mas o que precisava era fugir das pressões, psicológicas ou não, do lar de Gerald, e Emily e eu sabíamos, mesmo que June não o soubesse, que ela gostaria de viver conosco.

Ofereci o grande sofá da sala para June, mas ela prefe­riu uma esteira no chão do quarto de Emily, e assim passou a dormir sobre ela, apesar de eu me perguntar como. Fazia muitas perguntas em silêncio. Era comum eu experimentar uma reação de claro espanto em relação a perguntas feitas de maneira inocente. Eu realmente não sabia se Emily e June considerariam o lesbianismo a coisa mais normal do mundo, ou não. Os padrões morais tinham mudado tanto du­rante minha vida, e era tão diferente nos diversos setores da comunidade, que eu já tinha aprendido há muito tempo a aceitar qualquer norma de determinado lugar ou época. Quase acreditava que as duas meninas dormiam uma nos braços da outra para apoiar-se mutuamente. Claro que não podia mais ter dúvidas, depois do que Emily tinha me dito, sobre como se sentia agora que tinha a criança, sua "verdadeira amiga", ali sozinha com ela. Praticamente sozinha — havia eu e havia Hugo. Mas pelo menos não havia tantos outros o tempo todo.

Emily tentou "paparicar" June. Quer dizer, exaspera­va-se e oferecia-lhe comida. Mas uma Ryan não come como as pessoas comuns: June mordiscava, cheia de enjôos e antipatias. Provavelmente estaria, como dizia Emily, sofrendo de uma deficiência de vitaminas, mas ela respondeu:

Isso não tem o menor sentido para mim: nunca comi de outro modo, não é? Mas agora sinto um mal-estar geral e antes não sentia nada.

Assim, se perguntássemos a June o que "aquilo" signi­ficava para ela, provavelmente responderia:

Bem, sei lá, sinto um mal-estar geral.

Talvez, no final das contas, tenha-se que terminar caracterizando "aquilo" como uma nuvem ou emanação, mas invisível, como o vapor d'água que se sabe estar presente na sala onde se está sentado, que faz parte do ar que se sabe estar lá quando se olha por uma janela — o olhar atravessa o ar, e a mente nos diz que vê um pardal catando insetos num galho; e sabe-se que o ar é em parte vapor d'água que a qualquer momento — é só uma corrente de ar frio surgir de algum lugar — irá se condensar em neblina ou cair sob a forma de chuva. "Aquilo" estava em toda parte, em tudo, corria em nosso sangue, em nossa mente. "Aquilo" não era nada que pudesse ser descrito de uma vez por todas, ou imo­bilizado, ou mantido parado. "Aquilo" era uma doença, um cansaço, tumores; "aquilo" era a dor de ver Emily, uma ga­rota de catorze anos, aprisionada em sua necessidade de... varrer folhas mortas; "aquilo" era o preço ou as más con­dições do fornecimento de energia elétrica; o modo como os telefones não funcionavam; as tribos migrantes de canibais; era "eles" e suas artimanhas; "aquilo" era, afinal, o que se vivenciava... e acontecia no espaço por trás da parede, mo­via os jogadores por trás da parede, tanto quanto em nosso mundo cotidiano, onde uma hora seguia outra e a vida obede­cia às unidades, como um certo tipo de jogo.

No fim do verão havia um estado de coisas tão ruim por trás da parede quanto deste lado, conosco. Ou talvez fosse só eu que estivesse vendo mais claramente o que lá aconte­cia. Em vez de entrar num quarto, ou passagem, onde havia uma porta que se abria para outros quartos e passagens, de modo a me dar uma sensação de opção e possibilidade, mas sempre limitada à próxima curva do corredor, à abertura da próxima porta — a sensação de plenitude, de espaço sempre se abrindo e sendo mantido à distância por uma ordenação dentro da qual eu estava colocada, como parte dela —, pa­recia agora que uma perspectiva tinha mudado e que eu estava vendo os conjuntos dos quartos de cima, ou que eu era capaz de movimentar-me tão rapidamente por eles que poderia visitá-los todos de uma vez e esgotá-los. De qualquer forma, a sensação de surpresa, de expectativa, tinha acabado, e podia até dizer que aqueles conjuntos e séries de quartos, até tão recentemente cheios de alternativas e possibilidades, tinham absorvido algo do ar claustrofóbico do domínio do "pessoal", com suas rígidas necessidades. Entretanto, a de­sordem nunca tinha sido maior. Às vezes parecia-me que todos aqueles quartos tinham sido arrumados, cuidadosa­mente, em cada detalhe, só para serem desarrumados de no­vo; como se uma imensa casa tivesse sido escolhida e deco­rada para mostrar centenas de diferentes costumes, modas, épocas — mas bem arbitrariamente, sem uma seqüência e sem mostrar como um estilo transformou-se em outro. Arru­mada, perfeita — e logo desarrumada.

Não posso começar a dar uma idéia da confusão da­queles quartos. Talvez nem conseguisse entrar em um quar­to, tal a montanha de móveis rachados e partidos. Outros quartos tinham sido usados, ou davam esta impressão, como depósitos de lixo: estavam repletos de pilhas de lixo fétido. Alguns tinham móveis bem arrumados, mas os tetos haviam desaparecido, ou faltavam paredes. Uma vez vi, no centro de um quarto suntuoso e formal — francês, do Segundo Império, tão sem vida como se tivesse sido armado em um museu —, os restos de uma fogueira acesa sobre uma peça de ferro-velho, alguns sacos de dormir jogados num canto, uma grande panela cheia de batatas cozidas e frias perto da parede, ao lado de uma dúzia de pares de botas. Sabia que os soldados voltariam de repente, e se queria conservar mi­nha vida deveria ir embora. Já havia um cadáver, com o san­gue seco manchando o tapete à sua volta.

E mesmo assim, com todas estas evidências de destrutividade, não conseguia atravessar a parede sem sentir um pouco da velha expectativa, esperança, até mesmo saudade. E, com razão, pois quando a anarquia estava no auge e eu já tinha quase perdido o hábito de esperar qualquer coisa que não fossem quartos confusos e sujos, houve uma visita em que encontrei isto: estava num quintal entre quatro paredes, velhas paredes de tijolos, e ali havia um céu maravilhosamente suave que eu sabia ser o céu de um outro mundo que não o nosso. Este quintal tinha algumas flores, mas a maior parte das plantas eram legumes. Havia canteiros cuida­dosamente cheios de folhagens — cenouras, alfaces, rabane­tes, e lá estavam os tomates, pés de groselha e melões, ama­durecendo. Alguns canteiros estavam arados e prontos para ser plantados, outros tinham sido revolvidos e recebiam sol e ar. Era um lugar repleto de esforço, utilidade, espe­rança. Andei sob um céu fecundo e pensei em como as pes­soas deviam se alimentar daquele quintal. Mas isto não era tudo, pois acabei notando que sob aquele quintal havia outro. Pude descer facilmente pelo declive de terra onde havia até degraus de, acho eu, pedra. Cheguei ao quintal inferior que ficava exatamente sob o primeiro e ocupava a mesma área: o sentimento de conforto e segurança que me deu realmente não pode ser descrito. Este quintal não recebia menos sol, vento ou chuva que o outro. Aqui também havia os altos e aconchegantes muros de tijolos, e os canteiros encontra­vam-se em diferentes estágios de preparação e uso. Numa parede crescia uma estranha rosa amarela. Era de um amarelo suave e seu perfume envolvia todo o quintal. Alguns cravos e resedás cresciam perto de uma velha pedra ensolarada: eram flores antigas, bem pequenas, mas delicadas e indivi­duais: ali estavam todas as velhas flores das casas de campo, entre porros, alhos e hortelãs. Havia um jardineiro. Vi-o no instante em que notei que ouvia com prazer o barulho de água correndo perto de meus pés, onde havia um canal na terra margeado de frágeis ervas e grama. Perto da parede o canal era de pedra e mais largo: o jardineiro inclinava-se sobre um riacho de pedra no ponto em que penetrava no quintal, vindo de uma abertura verde, macia, cheia de mus­go. Em volta de cada canteiro havia um fio de água limpa, o quintal era uma rede de canais d'água. E olhando para cima, além das paredes, vi que a água vinha de montanhas a quatro ou cinco milhas de distância. Nelas havia neve, apesar de já estarmos no meio do verão, e esta era água feita de neve derretida, gelada, com o gosto do ar que soprava nas montanhas. O jardineiro voltou-se quando corri em sua direção para perguntar se tinha alguma notícia das pessoas cuja presença era tão forte neste lugar, tão penetrante quan­to o perfume da rosa, mas ele simplesmente meneou a cabeça e voltou para as suas obrigações de controlar o fluxo d'água, de ver se corria por igual por entre os canteiros. Olhei para as montanhas e para a planície que havia entre elas, onde se encontravam cidades e grandes casas de pedra em meio a jardins, e pensei que observava o submundo — tão extenso e produtivo — abaixo do nível para o qual eu agora tinha que voltar. Alcancei novamente o primeiro plano e vi os velhos muros-aquecidos pelo sol da tarde, ouvi a água cor­rendo por toda parte, apesar de não ter podido ouvi-la na primeira vez que tinha estado ali. Caminhei calma e cuidado­samente de um ponto sólido, mas úmido para outro, com o cheiro de maçã ácida subindo-me às narinas e o som de abe­lhas nos ouvidos. Olhei para o alimento que a terra produzia, que nos garantiria mais um inverno seguro. Quintais, quin­tais, quintais sobre quintais: a superfície alimentar da terra dobrada, duplicada, interminável — sua plenitude, riqueza, generosidade...

E de volta a minha vida comum, vi June indiferente numa cadeira funda, sacudindo a cabeça, com um sorriso paciente, para um prato de comida que lhe era estendido por Emily.

— Mas ela tem de comer, não tem? — disse-me Emily, cheia de preocupação, e quando a criança continuou a sorrir e a recusar Emily virou-se e colocou o prato na frente de Hugo, que, sabendo que estava sendo usado para uma de­monstração de rejeição, como se ela estivesse jogando a co­mida numa lata de lixo, virou a cara. Então vi Emily, toda cheia de amoroso arrependimento, sentar-se ao lado de seu escravo negligenciado e afundar o rosto em seu pêlo, como tinha sido seu costume habitual. Vi como ele virou ligeira­mente a cara na direção dela, apesar de sua intenção de não corresponder, entregue ao prazer. A contragosto, lambeu um pouco sua mão, com o olhar de uma pessoa que está fa­zendo algo que não deseja, mas não consegue parar... e ela sentou-se e chorou, ela chorou. Lá estavam eles, os três, June com sua doença, qualquer que fosse, o feio bicho amarelo em sua humildade, sofrendo sua dor no coração, e a impetuosa jovem. Sentei-me em silêncio entre os três, e pen­sei nos quintais que jaziam um sobre o outro, tão próximos de nós, atrás de uma parede que a esta hora — era noite — era bem opaca e não continha nenhuma profundidade, nenhu­ma promessa. Pensei nas riquezas que se armazenavam para aquelas criaturas e para todas as outras como elas. E apesar de ser difícil manter uma vivência daquele outro mundo com seu perfume, suas águas rolantes e suas inúmeras plantas enquanto permanecia sentada naquela sala estúpida, acanha­da e cotidiana, com a calçada lá fora efervescendo como sem­pre com sua vida tribal — eu a mantive. Fixei-a em minha mente. Era capaz disto. Sim, até o fim foi assim; as intima­ções daquela vida, ou vidas, tornaram-se mais poderosas e freqüentes em minha vida "comum", como se aquele lugar estivesse nos alimentando e sustentando, e quisesse que soubéssemos disto. Um vento soprava de um lugar ao outro; o ar de um lugar era o ar do outro; ao ir para a janela após uma fuga pelo espaço por trás da parede havia um momento de dúvida, minha mente embaralhava-se e tinha que se firmar, enquanto eu assegurava a mim mesma que não, o que eu estava olhando era a realidade, era a vida real; eu entrava sem rodeios no que todo mundo concordava ser a normalidade.

No fim do verão havia centenas de pessoas de todas as idades na calçada. Agora Gerald era apenas um entre cerca de uma dúzia de líderes. Entre eles havia um homem de meia-idade — um novo acontecimento, este. Havia igual­mente uma mulher, que liderava um pequeno bando de garotas. Eram muito críticas e conscientes da autoridade mas­culina, da organização masculina, como se tivessem se im­posto a obrigação de estar sempre ali, comentando tudo o que os homens faziam. Eram um coro de condenação. Mesmo assim a líder parecia achar necessário gastar muita energia evitando que membros de seu rebanho se extraviassem e aderissem ao dos homens. Isto originava vários comentários, nem sempre bem-humorados por parte dos homens, e às vezes das outras mulheres. Mas os problemas e dificuldades que todos tinham que enfrentar faziam com que este tipo de discussão parecesse menor. E era um grupo eficiente, que mostrava grande ternura entre si e em relação às crianças, sempre pronto a dar informações — ainda o bem mais im­portante —, e generoso em relação a seus alimentos e per­tences.

Foi para o grupo de mulheres que perdemos June.

Aconteceu assim. Emily tinha novamente começado a passar a maioria de seus dias e de suas noites na outra casa: a responsabilidade a tinha levado de volta, pois tinha rece­bido recados dizendo que era necessária. Queria que June fosse com ela, e June ouviu os argumentos de Emily, con­cordou com ela, mas não foi. Comecei a pensar que isto seria trocar Emily, meu encargo real, por June, e não sentia qual­quer responsabilidade particular em relação a ela. Gostava da criança, apesar de sua indiferente presença fazer pesar a atmosfera de minha casa, tornando-me também indiferente e deixando Hugo sofrer permanentemente de ciúmes. Fica­va bem contente quando ela se levantava para falar comigo: pois a maior parte do dia permanecia numa ponta do sofá, sem fazer absolutamente nada. Mas a verdade é que gostaria de viver sem ela. Perguntava por Gerald quando Emily vinha voando preparar um de seus pratos favoritos, fazer litros de precioso chá, servir xícaras cheias até a metade de precioso açúcar: escutava, e perguntava por esta ou aquela pessoa; gostava de fofocas. Correspondia ao nervoso e à angústia de Emily com:

— Vou amanhã, prometo, Emily — mas permanecia onde estava.

Na calçada Emily era muito enérgica. A tropa de Gerald tinha cerca de cinqüenta pessoas, contando com os que real­mente viviam no lar e os outros que gravitavam em torno dele, vindos da multidão que continuava chegando, intermi­nável, durante as longas e quentes tardes de verão.

Emily era sempre vista próximo a Gerald, importante em seu papel de conselheira, de fonte de informações. Fiz então o que sempre tinha tido o cuidado de evitar, com medo de magoar Emily, de desequilibrar a balança. Atravessei so­zinha a rua para "ver o que estava acontecendo" como se não estivesse, há tantos meses, observando o que acontecia!

Mas era assim que os cidadãos mais velhos descreviam sua primeira ou, mesmo, suas incursões subseqüentes à cal­çada. Descreviam-na freqüentemente, até o instante em que agarravam um cobertor, algumas roupas quentes, e um pou­co de comida, para deixarem a cidade com uma tribo de passagem ou que partia de nossa calçada. Até me perguntava se o fato de eu sair do apartamento para visitar o outro lado da rua não seria um sinal de uma intenção interior de partir que eu ainda não conhecia. Esta era uma idéia tão atraente que assim que entrou em minha cabeça tomou tal vulto que tive de lutar para abafá-la. Minha primeira incursão à cal­çada ficar ali, misturar-me com outros por uma hora, ou mais —, na realidade era para saber o que Emily, tão habil­mente e durante tantas horas por dia, distribuía ali. Bem, eu estava estonteada. . . como aquela menina conseguia me pegar de surpresa! Agora que eu circulava entre a multidão inquieta, viva e insensível, via como todo mundo, e não só aqueles que pareciam prontos a jurar obediência a Gerald, a procurava em busca de notícias, informações, conselhos. E ela estava sempre pronta. Sim, havia maçãs em conserva em tal e tal loja daquele bairro. Não, o ônibus para tal cidade­zinha a vinte milhas a oeste ainda não tinha sido suspenso, ainda fazia uma viagem por semana até dezembro, e havia um que sairia segunda-feira às dez da manhã, mas será pre­ciso ficar a noite toda na fila e estar preparado para brigar por um lugar: vale a pena, pois dizem que lá está cheio de estoques de maçãs e ameixas. Um fazendeiro vinha toda sex­ta-feira de carroça, com gordura e miúdos de carneiro, e poderia ser encontrado em... Grandes e fortes cavalos esta­vam à venda ou disponíveis para trocas. Sim, tinha uma casa a quatro ruas de distância que serviria muito bem para estábulo. Quanto à forragem, pode ser encontrada, mas o melhor é plantar, e para um cavalo são necessários... Vários aparelhos químicos para cozinha e iluminação seriam feitos amanhã de tarde no segundo andar do velho Plaza Hotel; precisava-se de um assistente, que seria pago segundo o tipo de aparelho. Cinzas vegetais, esterco, adubos estariam à venda domingo às três da tarde, sob o velho viaduto da Smith Street. Aulas sobre como construir seu próprio motor movido a vento, a serem pagas em alimentos e combustí­vel... desinfetantes e purificadores de ar, desinfetantes para água, esterilizadores de terra... aves domésticas e vivei­ros... amoladores de facas... um homem que conhecia a planta da rede de esgotos e dos rios que desembocavam neles estava bombeando água para a superfície... Na rua entre a estrada e a Praça Y estavam crescendo maravilhosas plantações de milefólios e tussilagem, e numa esquina do Piltdown Way havia um canteiro de batatas que alguém plantou e depois abandonou: provavelmente deixou a cida­de. Emily sabia de todas estas coisas, muitas outras, e pro­curava saber sempre mais, em virtude de sua energia e pre­paro, naquele lugar que parecia uma feira onde centenas de egos colidiam, competiam e se alimentavam Emily, a ga­rota de Gerald. Era assim que se referiam a ela, assim que era mencionada. Isto surpreendeu-me por conhecer a situa­ção na casa que tinha visitado. Seria esta mais uma sobra emocional, ou pelo menos verbal, do passado? Um homem teria uma mulher, uma mulher oficial, como uma primeira esposa, mesmo quando na realidade comandava um ha­rém?... Se se podia usar um termo antiquado, então por que não também um outro? Eu tinha experimentado com June: "o harém de Gerald", falei, e sua carinha mostrou-se confusa. Tinha ouvido a palavra, mas não a tinha associado a nada que pudesse estar próximo a ela. Mas claro, ela tinha visto um filme, sim, Gerald tinha um harém. Ela, June, fazia parte dele. Ela até deu uma risadinha, olhando-me com aque­les olhos claros que pareciam estar sempre arregalados de espanto. Ali ficou, vendo-se como uma garota de harém, uma mulherzinha velha com sua cintura gorda de criança, seus olhos de criança, seu cabelo claro jogado para um lado.

Claro que Emily notou minha aparição na calçada, e achou que eu estava pronta para migrar. E como era atraen­te estar com aquela massa de gente vigorosa, todos tão in­ventivos nos caminhos deste mundo primitivo, tão simples e criativos, em tudo que faziam! Que alívio seria jogar longe, num sacudir de ombros, todos os velhos costumes, os velhos problemas estes, uma vez que se dava o passo de atra­vessar a rua e juntar-se às tribos, iriam diluir-se, perder sua importância. Atualmente o trabalho de dona-de-casa podia ser adequadamente descrito como o de cuidar de uma caver­na, e era uma ocupação insignificante, banal. A concha que protegia aquelas vidas era adequada para receber "todos os confortos modernos", mas dentro dela se barganhava, to­mava posse e até roubava, acendiam-se velas e se acotovelava em torno de fogueiras feitas com madeira cortada com ma­chados. E aquelas pessoas, aquelas tribos iriam dar as costas àquilo tudo, e simplesmente pegar a estrada. Sim, é claro que teriam de parar em algum lugar, encontrar uma cidade vazia e apossar-se dela; ou fixar-se onde os fazendeiros que restavam permitissem, em troca de seu trabalho ou de sua atuação como exército particular. Teriam de reconstruir al­gum tipo de ordem, mesmo que não fosse mais do que a apropriada para os bandidos que viviam nas florestas do norte. Muito em breve, provavelmente, apareceriam respon­sabilidades e deveres que pareceriam estúpidos e inúteis. Mas até então, durante semanas, meses, quem sabe com sorte até um ano ou mais, a vida primitiva da humanidade dominaria: disciplinada, mas democrática quando as pes­soas dão o que têm de melhor até a voz de uma criança é ouvida com respeito; todas as preocupações com proprieda­des teriam desaparecido; todos os tabus sexuais também — exceto os novos, mas os novos são sempre mais suportáveis que os velhos; todos os problemas seriam divididos e com­partilhados. Livre. Livre, ao menos do que sobrou da "civi­lização" e de suas ruínas. Infinitamente invejável, infinita­mente desejável, e como desejei simplesmente fechar minha casa e partir... Mas como poderia? Havia Emily. Enquanto ela ficasse, eu ficaria. Comecei novamente a pensar nos Dol- gelly, em como iríamos pedir-lhes um galpão, reformá-lo e transformá-lo num lar... June também, é claro. Pois pela intensa ansiedade que Emily demonstrou, vi que não lhe seria possível separar-se de June.

E Hugo? A verdade é que ela não tinha tempo para ele, e eu pensava que se havia sido ele quem a mantivera ali até então, isto não era mais verdade.

Acho que ele abriu mão de qualquer esperança neste período em que Emily mal nos via e só vinha em casa para ver June. Um dia vi-o sentado abertamente à janela, todo o seu feio eu, teimosamente amarelo, visível para qualquer um que quisesse ver. Era um desafio, ou indiferença. Claro que foi visto. Alguns jovens atravessaram a rua para ver o animal amarelo ali sentado, mirando-os firme com seus olhos de gato. Ocorreu-me que alguns daqueles jovens, as verdadeiras crianças de cinco ou seis anos, poderiam jamais ter visto um gato ou um cão como "bicho de estimação", para ser amado e fazer parte de uma família.

Puxa, é feio — ouvi, e vi as crianças fazerem ca­retas e se afastarem. Não, não haveria nada que salvasse Hugo quando chegasse sua vez. Ninguém diria: "Ah, não o mate, é um bicho tão bonito!"

Bem... Emily chegou uma noite e viu o brilho ama­relo na janela. Hugo estava nitidamente ali, iluminado pela flama do pôr-do-sol e pelas velas. Ficou chocada, sabendo de uma vez por todas por que ele havia optado por desobe­decer ao instinto de sobrevivência.

Hugo — disse. — Oh, meu querido Hugo...

Ele continuou de costas para ela, mesmo quando ela colocou as mãos em volta de seu pescoço e afundou o rosto em seu pêlo. Ele não se abrandaria, e ela sabia que ele estava dizendo que ela o tinha abandonado e não se importava com ele.

Ela puxou-o do assento alto e sentou-se com ele no chão. Começou a chorar, um choro irritado, irritante, fun­gado, proveniente do cansaço. Eu podia ver isto. Assim como June, que observava sem se mover. E assim como Hugo. Por fim ele lambeu sua mão e deitou-se pacientemente, di­zendo a ela a seu modo: Isto é para lhe agradar. Não me importo com a vida se você não se importa comigo.

Agora Emily era toda conflito, toda angústia. Ficava correndo do meu apartamento para aquela casa, dali para a calçada. June, tinha que ver June, trazer para ela os bocados de comida que gostava, colocá-la na cama na hora certa, pois June, entregue a si própria, ficaria naquele canto do sofá até quatro ou seis horas da manhã, sem fazer nada, exceto talvez prestar atenção aos movimentos internos de sua doença, qualquer que fosse. E Hugo, ela tinha que fazer um pouco de estardalhaço em torno de Hugo, tinha que amá-lo. Era como se tivesse se imposto a obrigação de dar atenção a Hugo, calculada, como um remédio ou um alimento. E ali estava eu própria, a velha e árida guardiã, a mentora, um tipo de reservatório, suponho. Ali estavam as crianças, sem­pre procurando-a quando ficava muito tempo afastada da casa. Ela estava esgotada, mal-humorada, ríspida e atormen­tada, e dava dó vê-la assim.

E então, subitamente, tudo terminou.

Estava resolvido: June partiu.

Um dia, levantou-se do sofá e voltou para a rua. Por quê? Nunca descobri o que moveu June. De qualquer modo, voltou a passar as tardes com a multidão lá fora. Não parecia pertencer mais a um grupo do que a outro: sua pessoinha gorda, pálida e apagada podia ser vista tanto nos outros clãs quanto no de Gerald. Foi vista, mas apenas uma ou duas vezes, no grupo das mulheres. E então o grupo das mulheres partiu e June partiu com elas.

E, claro, nós não acreditamos. A princípio nem mesmo sabíamos o que tinha acontecido. June não estava no meu apartamento. Não estava na calçada. Não estava na casa de Gerald. Emily correu histérica por toda parte, fazendo perguntas. Em certo ponto ficou atordoada. June tinha partido, sem mais nem menos, sem deixar um recado? Sim, era o que parecia: tinha ouvido falar, alguém tinha dito, que ela estava com vontade de se mudar.

Era este negócio de June ter partido sem dar adeus, sem deixar um bilhete, que Emily não conseguia engolir. June não tinha dito nada? — falamos, juntamos as migalhas que tínhamos e, por fim, fomos capazes de concluir que June tinha dito, no dia em que partiu:

— Bem, acho que vejo vocês por aí.

Mas ela não tinha dirigido isto especialmente para mim ou para Emily. Como poderíamos ter compreendido que este era o seu adeus antes de partir para sempre?

Era a inconseqüência do ato que chocava. June não acreditava que merecíamos o esforço de receber um adeus? Não tinha se despedido por pensar que iríamos tentar retê-la? Não, não podíamos acreditar nisto: ela teria ficado, do mesmo modo como partiu. A chocante verdade era que June não achava que ela merecesse o esforço: devia ter sentido que o fato de deixar-nos não tinha nenhuma importância. Apesar de Emily lhe ser tão devotada, preocupada e amoro­sa? Sim, apesar disto. June não se valorizava. Amor, devo­ção, esforço podiam ser despejados nela, um saco sem fun­do, e desaparecer, sem deixar vestígios. Ela não merecia nada, não devia nada, não poderia ser realmente amada e, assim, não seria possível sentir-se sua falta. Assim ela se foi. Provavelmente uma das mulheres tinha sido gentil com ela, e June correspondera àquela promessa de afeto, como 'fizera com Emily. Partira porque tanto podia ir num dia como no outro. Não fazia diferença, ela não fazia diferença. Por fim concordamos em que a mulher enérgica e viril que liderava aquele bando tinha conquistado a indiferente June com sua energia, numa época em que Emily não tinha o suficiente para dar.

Emily não podia aceitar isto.

E então começou a chorar. A princípio com lágrimas violentas, o rosto conturbado e os olhos admirados e vazios de uma criança que só conseguia expressar: O quê! Aconte­ceu comigo! Não é possível! Não é justo! Torrentes de lá­grimas, soluços ruidosos, exclamações de raiva e desagrado, mas o tempo todo os olhos, que pareciam pintados, intocá­veis Eu, sou eu que estou sentada aqui, com quem aconteceu esta terrível injustiça... Uma grande confusão, barulho e choro, aquele tipo dc lágrimas dificilmente insuportável, não dolorosas, que não eram lágrimas de mulher...

Que surgiram a seguir.

Emily, olhos fechados, as mãos nas coxas, balançava-se para a frente e para trás e de um lado para outro, e estava chorando como chora uma mulher, ou seja, como se a teria estivesse sangrando. Quase disse "como se a terra tivesse decidido dar uma boa chorada" — mas seria desonesto pri­vá-la de sua força. Ouvindo, eu certamente não seria capaz de fazer menos que prestar homenagem à qualidade mínima do ato de chorar como chora urna mulher adulta.

Quem mais poderia chorar assim? Não uma velha. As lágrimas da velhice podem ser infelizes, podem ser mise­ráveis, podem ser tão ruins quanto se quiser Mas são lá­grimas que sabem mais do que reivindicar justiça, já apren­deram demais, não têm aquela característica abismal do san­gue que se escoa. Uma criança pequena pode chorar como se toda a dor solitária do universo fosse só sua — não é a dor de um choro dc mulher que importa, não, é o finalismo da aceitação de um erro. Assim foi, assim é, e assim será sempre, diziam aqueles olhos fechados e gotejantes, o corpo balançando, a mágoa. Mágoa -— sim, um prantear, é isto. Alguns inimigos foram enfrentados, vencidos, mas uma ba­talha tinha sido perdida, todos os navios foram afundados, tudo acabou, nada restou, nada se pode esperar... Sim, apesar de mim mesma, cada palavra que escrevo beira a farsa, em algum lugar há o bramido de uma gargalhada — precisamente como acontece quando uma mulher chora exa­tamente deste jeito. Pois na vida há sempre o bramido de uma gargalhada, que é tão intolerável quanto as lágrimas. Sentei-me ali, continuei sentada, observando Emily, a mu­lher eterna, em sua tareia dc chorar. Gostaria dc poder me afastar, sabendo que não faria muita diferença se ficasse ou não. Gostaria de dar-lhe algo, apoio, um abraço amigo uma boa xícara de chá? (Que ofereceria no momento devi­do.) Não, eu tinha de escutar. A mágoa, a expressão do in­tolerável. "O quê, meu Deus", qualquer um poderia per­guntar marido, amante, mãe, amigo, até mesmo alguém que em algum momento chorou, ele próprio, aquelas lágri­mas, mas, particularmente, um marido ou amante "o que, meu Deus, você esperava de mim, da vida, para chorar assim, agora? Não vê que é impossível, você é impossível, ninguém poderia jamais ter prometido tanto a ponto de justificar estas lágrimas... não vê?" Mas isto não adiantava. Os olhos embotados vêem através de você, eles estão vendo algum antigo inimigo que, graças aos céus, não é você mes­mo. Não, é a Vida, a Fatalidade ou o Destino, uma força tal que trespassou o coração desta mulher, e ela ficará ali sentada para sempre, balançando-se em sua arcaica e terrí­vel mágoa, e os soluços que lhe estão sendo arrancados são um dos pilares sobre o qual tudo deve se apoiar. Nada mais poderia justificá-los.

No tempo devido, Emily soçobrou, aconchegou-se no chão, e apaziguando-se gradativamente fungou e soluçou como uma criança e, afinal, foi dormir.

Mas quando acordou não voltou à outra casa, nem foi para a calçada. Ficou sentada, aceitando a situação. E teria ficado ali para sempre, muito provavelmente, se não tivesse sido desafiada.

Gerald veio vê-la. Sim, já tinha vindo antes e voltava com freqüência, atrás de conselhos. Como sua visita não era nada de novo, nós não sabíamos que seu problema, nosso problema, era algo de novo. E nem ele, nesta fase.

Queria falar a respeito de "um bando de guris novos" pelos quais se sentia responsável. Estavam vivendo fora da sociedade, aparecendo em incursões para saques de alimen­tos e outros objetos. Nenhuma novidade nisto. Muitas pes­soas tinham aderido a uma existência subterrânea, apesar de isto parecer um pouco estranho, com tantas casas e hotéis vazios. Mas poderiam ser pessoas ativamente procuradas pela polícia, ou criminosos de algum modo, que achavam os subterrâneos do metrô mais seguros.

Aqueles "guris", então, estavam vivendo como tou­peiras ou ratos dentro da terra, e Gerald achava que devia fazer algo e queria o apoio e a ajuda de Emily. Desejava desesperadamente que ela se animasse e lhe desse energias, com sua crença e sua competência.

Ele era todo súplica; Emily era toda indiferença e dis­tância. A situação era bastante cômica. Emily, uma mulher, sentada ali expressando todo o seu sarcasmo: "Você me quer de volta, precisa de mim olhe para você, imploran­do, praticamente de joelhos, mas quando você me tem não me dá valor, acha que ficarei ali para sempre. E quanto às outras?" A ironia inspirava sua pose e seus gestos, lançava um brilho de inteligência que se convertia em crítica total em seus olhos. Por seu lado, ele sabia que estava sendo reprovado, e que certamente devia ter alguma culpa, mas até este momento não tinha compreendido quão profundos eram os sentimentos dela e quão enorme devia ser o seu crime. Perscrutava a memória atrás de uma atitude que ti­vesse achado delinqüente na hora em que a cometeu, que pudesse ver agora se realmente tentasse, e estava dis­posto a tentar como algo errado... seria esta, talvez, a situação cômica primitiva?

Ele agüentou firme. Ela também. Ele parecia um ga­roto com sua malha rasgada e seus jeans gastos. Era real­mente um homem muito jovem, este bandoleiro, este jovem capitão. Parecia cansado, parecia ansioso; parecia que pre­cisava de uma boa refeição e depois dormir. Há alguma ne­cessidade de descrever o que aconteceu? Por fim Emily sorriu, sarcasticamente, para si própria pois ele não po­deria entender por que ela sorria e ela não seria desleal compartilhando isto comigo; animou-se a responder ao apelo que ele não tinha a menor idéia de estar fazendo, o verdadeiro apelo, pois ele continuava explicando e exortando logicamente. Em pouco tempo começaram a discutir os problemas do lar como se fossem um casal de jovens pais. Então lá se foi ela com ele, e durante alguns dias eu não a vi, e só aos poucos comecei a compreender a natureza deste novo problema, e o que havia de tão difícil a respeito daqueles "guris" em particular. Não foi com Emily que compreendi: ao juntar-me às pessoas da calçada encontrei todo mundo falando nisso; eles eram um problema para todo mundo.

Um problema novo. Para entender por quê, nós, donas-de-casa, tivemos que chegar a um acordo a respeito de como tínhamos nos afastado dos tempos em que contávamos histórias e boatos sobre "aquelas pessoas de lá", sobre as tribos e bandos em migração. Antigamente, há muito pouco tempo, observar e temerosamente uma turma que passava por nossas janelas era o limite de nosso declínio para a anarquia. Antigamente, há alguns meses, víamos os bandos como amontoados sem qualquer ordem. Agora nos pergun­távamos se, e quando, nos juntaríamos a eles. Mas acima de tudo havia o fato de que, quando estudados, quando compreendidos, os bandos e tribos mostravam uma estru­tura, como aquela dos homens primitivos ou dos animais, onde na realidade havia leis rígidas e eficientes. Após pas­sar algum tempo neste tipo de vida aprendiam-se as regras — nenhuma delas escrita, é claro, mas sabia-se o que se devia esperar.

E era precisamente nisso que as novas crianças eram diferentes. Ninguém sabia o que esperar. Antes, muitas crianças sem pais agregavam-se espontaneamente a outras famílias, clãs ou tribos. Eram crianças levadas e difíceis, problemáticas, partiam o coração; não eram como as crian­ças de uma sociedade estável: mas podia-se lidar com elas segundo os termos do que era conhecido e compreendido.

Não acontecia isto com o novo bando de "guris". Bandos, melhor dizendo, logo descobrimos que havia vá­rios; não era só em nosso bairro que estes agrupamentos de crianças muito pequenas desafiavam qualquer tentativa de compreensão. Pois eram muito pequenas. As mais velhas tinham nove, dez anos. Parecia que nunca tinham tido pais, nunca tinham conhecido o aconchego de uma família. Algu­mas tinham nascido nos subterrâneos e sido abandonadas. Como tinham sobrevivido? Ninguém sabia. Mas isto era algo que aquelas crianças sabiam fazer. Roubavam o que preci­savam para viver, o que na realidade era bem pouco. Usa­vam roupas — apenas o necessário. Eram... não, não eram como animais que tivessem sido lambidos, que viram suas mães ronronar e, como pessoas, tinham descoberto seu modo de se comportar copiando exemplos. Não chegavam a ser um bando, mas um amontoado de indivíduos que só es­tavam juntos pela proteção que o número oferecia. Não ti­nham lealdade uns com os outros, se tanto, uma lealdade vacilante e imprevisível. Podiam estar caçando em grupo num momento e se matando em outro. Juntavam-se segundo o impulso do momento. Não havia amizade entre eles, apenas alianças momentâneas, e pareciam não se lembrar do que tinha acontecido minutos antes. Em nosso bairro havia um grupo de uns trinta ou quarenta e, pela primeira vez, vi pessoas mostrando as reações descontroladas do verdadeiro pânico. Iriam chamar a polícia, o exército; iriam sufocar as crianças nos subterrâneos...

Uma mulher do prédio em que eu morava saíra com um pouco de comida para ver "se se podia fazer alguma coisa por eles" e encontrara dois deles numa incursão. Ofe­receu-lhes alimento, que comeram sofregamente, rasgando-o, abocanhando-o e rosnando um para o outro. Ela tinha espe­rado, desejando conversar, oferecer ajuda, mais comida, tal­vez até mesmo casa. Eles acabaram de comer e se foram, sem olhar para ela. Ela sentou-se: era um galpão velho perto da entrada dos subterrâneos, onde crescia grama e capim e havia tanto proteção quanto bastante espaço aberto, de modo que poderia correr se precisasse. E precisou... pois quando se sentou viu que de todos os lados surgiam crianças, gru­dadas umas às outras. Tinham arcos e flechas. Ela, sem con­seguir acreditar, como disse, "que eles não tivessem mais esperanças", começou a falar calmamente com eles, sobre o que ela poderia oferecer, dos riscos que corriam vivendo assim. Compreendeu, num verdadeiro pavor, que eles não a compreendiam. Não, não é que não compreendessem a fala, pois estavam se comunicando entre si com palavras reconhecíveis ao menos isso: eram palavras e não grunhidos, latidos ou gritos. Continuou sentada, sabendo que um simples impulso seria o suficiente para que algum deles erguesse um arco e arremessasse uma flecha em sua direção. Continuou falando enquanto conseguiu se controlar. Era como ela o disse falar para o vazio. Fora a experiên­cia mais estranha de sua vida.

Quando os vi eram simplesmente crianças, pelo menos foi só isto que entrou na minha cabeça dura. Eram simplesmente crianças... mas eles são perversos. Por fim levantei-me e fui embora. E o pior de tudo foi quando um deles saiu correndo atrás de mim e puxou-me a saia. Não conseguia acreditar. Sabia que ele poderia facilmente me enfiar uma faca. Estava com o dedo na boca e puxava minha saia. Brincando. Era só um impulso, entende? Não sabia o que estava fazendo. No instante seguinte ouvi um grito e todos eles saíram correndo atrás de mim. Corri, posso lhe dizer, e só escapei porque me enfiei naquele velho Park Hotel da esquina e me livrei fazendo uma barricada numa sala do quarto andar, onde fiquei até escurecer.

Eram estas as crianças que Gerald tinha decidido que precisavam ser recuperadas em seu lar. Caberiam todas? Bem, de algum jeito, e se não coubessem havia uma outra casa grande do outro lado da rua e, quem sabe, Emily e ele poderiam se dividir entre as duas casas...

Houve muita resistência a respeito da idéia. De todo mundo. Inclusive de Emily. Mas Gerald venceu a todos: sempre vencia, pois no final das contas era ele quem teria de mantê-los, conseguir-lhes comida e utensílios — era ele quem assumia a responsabilidade. Se ele dizia que era pos­sível, então quem sabe... e eles eram apenas "uns gurizinhos", estava certo disso.

— Uns gurizinhos, como podemos deixá-los apodre­cer ali?

Acho que os outros da casa se confortaram com "eles não vão vir". Estavam errados. Gerald conseguia fazer com que as pessoas acreditassem nele. Desceu aos subterrâneos, fortemente armado e deixando isto bem visível. Sim, estava apavorante... Eles surgiram de buracos, cantos e túneis, pareciam capazes de enxergar sem muita luz enquanto ele estava meio cego pela chama da tocha. Estava sozinho ali, e era um inimigo, como todo mundo, oferecendo-lhes algo de que nem sabiam o nome. Mas ele foi capaz de fazer com que o seguissem. Saiu dos subterrâneos como se fosse o Flautista Mágico, com as vinte crianças, ou mais, que o seguiram correndo e gritando até a casa, escancarando e batendo as portas, deixando a marca dos dedos no precioso plástico da janela. Sentindo o cheiro da comida no fogo, amontoaram-se todos, esperando sua vez. Viram as pessoas se sentando, crianças de sua idade juntamente com adultos, algo espantoso para eles. Pareciam dominados; ou pelo me­nos seus reflexos tinham sido momentaneamente controla­dos. Ou talvez estivessem curiosos. Não se sentaram na mesa — nunca o tinham feito, não se sentaram no chão de modo ordenado para serem servidos, mas ficaram de pé agarrando a comida que lhes era oferecida em bandejas, examinando-a, com os olhos espertos observando tudo, ten­tando compreender. Quando não havia comida suficiente para corresponder a suas expectativas corriam gritando pela casa, destruindo tudo.

O lar se dissolveu. Gerald não queria ouvir os moti­vos, as súplicas dos moradores antigos. Havia algo naquela situação das crianças que Gerald não poderia tolerar; tinha que mantê-las ali, tinha que tentar, e agora não iria jogá-las na rua. E também já era tarde demais. Os outros se foram. Gerald e Emily precisaram de algumas horas para compreen­der que sua "família" tinha partido, e que agora eram pais de crianças selvagens. Gerald parecia realmente acreditar que seria possível ensinar-lhes regras que fossem para o bem de todos. Regras? Mal podiam compreender o que lhes era dito: não tinham a menor idéia sobre o funcionamento de uma casa. Quebravam tudo, arrebentavam as plantas do quintal, sentavam-se na janela jogando lixo sobre os passan­tes, como macacos. Estavam sempre bêbados; tinham ensi­nado a si próprios a embriaguez.

Da janela vi que Emily estava com os braços enfaixa­dos e fui perguntar o que havia de errado.

— Ah, nada de mais — disse ela, com seu humorzinho sarcástico, e então me contou como ela e Gerald, des­cendo de manhã até os locais mais baixos da casa, descobri­ram que as crianças tinham se agachado e cavado juntas, como macacos numa jaula pequena demais. Havia pedaços de comida semi-crua pelo chão. Eles tinham sido ratos de esgoto: perto da casa havia uma entrada para os canos. Nada sob a terra poderia ser estranho àquelas crianças, e elas ha­viam descido rastejando, com suas catapultas, arcos e flechas.

Em cima, Emily e Gerald tiveram uma conversa a res­peito da estratégia. Sua situação era crítica. Não tinham sido capazes de encontrar nenhum de seus próprios filhos — nenhum. Todos haviam partido para outras comunas ou lares, ou tinham decidido que já estava na hora de se unirem a uma caravana que partisse da cidade para sempre. Os dois tinham ficado inteiramente sós, com aquelas novas crianças. Por fim decidiram que deviam descer às partes mais baixas da casa e ter uma conversa compreensiva, mas enérgica, fazer uma tentativa. O que tinham em vista, na realidade, era a imemorial conversa "sensata" dos adultos, apelando para o bom senso das crianças antes de darem um castigo. O problema era que não havia castigo possível, pois tudo já tinha acontecido àqueles proscritos. Emily e Gerald no­taram que não tinham como ameaçá-los, nem nada a ofere­cer a não ser os velhos argumentos de que a vida é mais confortável para uma comunidade quando seus membros mantêm tudo limpo, dividem o trabalho e respeitam a indi­vidualidade um do outro. E as crianças tinham sobrevivido sem que tais pensamentos jamais lhes tivessem ocorrido.

Mas, sem conseguirem pensar em mais nada, os dois jovens pais desceram, e um dos pirralhos correu em sua direção, atingindo Emily com um porrete. Bateu nela nova­mente e gritou — num instante outra criancinha saltou para atacar. Gerald, tentando salvar Emily, também acabou sen­do atingido, mordido, arranhado por uma dúzia deles ou mais. Precisaram de toda a sua força para lutar com aquelas crianças, nenhuma das quais tinha mais de dez anos, e mes­mo assim a vergonha de surrar ou machucar uma criança era tão forte que "paralisou nossos braços", como disse Emily.

— Como é possível bater numa criança? — tinha per­guntado Gerald, apesar de o braço de Emily estar seria­mente ferido. Parados ali, encurralados, sangue por todo lado, os dois jovens tinham rechaçado as crianças e, gritando acima de seus gritos, tinham tentado conversar e persuadir. A resposta a estas exortações foi as crianças se amontoarem num canto da sala, resistindo, os dentes à mostra, segurando seus porretes, prontas a revidar um ataque, como se as palavras fossem mísseis. Por fim, Emily e Gerald afastaram- se, tiveram outra discussão e decidiram que algo deveria ser tentado, mas não sabiam o quê. De noite, deitados em sua cama no alto da casa, sentiram cheiro de fumaça: as crianças tinham ateado fogo ao primeiro andar, exatamente como se a casa não fosse seu abrigo. O fogo estava ardendo, e mais uma vez os pequenos selvagens atiraram-se sobre suas armas enquanto Gerald, fora de si de emoção — pois ele simplesmente não podia suportar o fato de estas crian­ças não poderem ser salvas (uma pergunta a que obviamen­te nenhum de nós saberia responder) —, implorava, argu­mentava, tentava persuadi-los. A pedra de uma catapulta passou perto de seu olho e abriu-lhe um corte na face.

O que deveria ser feito?

As crianças não podiam ser jogadas na rua. Para quem dá-las? Não, com suas próprias mãos, Gerald tinha aberto os portões aos invasores, que agora iriam ficar. Por que não!? Tinha pilhas de camas, roupas, uma lareira para quei­mar o combustível — nunca tinham se protegido do frio. Sim, quase certamente a casa em breve seria queimada. Tinha sido arrumada e limpa, mas agora havia comida por toda parte, no chão, paredes, tetos. Cheirava a fezes: as crianças usavam o chão, até mesmo dos quartos onde dormiam. Não tinham nem ao menos a limpeza dos animais, seu senso de responsabilidade. Sob todos os aspectos eram piores do que animais, e piores do que homens.

Ameaçavam todos nas vizinhanças, e no dia seguinte haveria uma grande reunião a respeito, na calçada. As pes­soas viriam dos apartamentos e casas próximas. Eu fui con­vidada. O fato de caírem completamente as barreiras entre os cidadãos e a vida na calçada mostrava como era séria a ameaça que estas crianças representavam.

Na tarde seguinte saí, tendo o cuidado de deixar Hugo em meu quarto, com a porta trancada e as cortinas fe­chadas.

Era uma tarde de outono, com um sol fraco e frio. Folhas voavam por toda parte. Éramos uma grande massa, quinhentas pessoas ou mais, à qual continuava se juntando gente. Numa pequena plataforma de tijolos improvisada havia uma dúzia de líderes. Emily estava lá em cima, com Gerald.

Antes de a conversa começar, as crianças sobre as quais se discutiria chegaram e ficaram um pouco distantes, escu­tando. Atualmente eram cerca de quarenta. Lembro-me de termos ficado encorajados com sua presença entre nós, en­fim tinham vindo — algum sentimento de comunidade, talvez? Por fim tinham compreendido que haveria uma reu­nião que lhes dizia respeito; tinham captado as palavras, da mesma forma que todos nós... então começaram a dançar à nossa volta e a cantar: "Eu sou o rei do castelo, você é um tratante sujo". Era apavorante. Esta antiga canção in­fantil era um canto de guerra, tinham-na recriado e estavam- na vivendo. Porém, mais do que isto, víamos como palavras familiares podiam mudar de sentido — o quão rapidamente tudo podia mudar, nós podíamos mudar... Tínhamos mu­dado: aquelas crianças eram nós mesmos. Sabíamos disso. Ali ficamos, estúpidos e desconfortáveis, escutando. Foi com o acompanhamento deste canto agudo e irônico que Gerald começou a descrever a situação. Enquanto isto havia apreensão, inquietude na multidão, proveniente de algo além da presença das crianças ou de nosso conhecimento de nós mesmos. Pois esta reunião parecia-se com uma "reunião de massas" do nosso mundo comum, e tínhamos toda a razão em ter medo de tais reuniões. O que temíamos mais do que tudo era a atenção da Autoridade — que "eles" pudessem ser alertados. Gerald, sensato como sempre, explicou o quanto era essencial, para nós próprios, recuperar as crianças, e nós que, ombro contra ombro, de novo ouvíamos uma pessoa falar do alto de uma plataforma, pensávamos que esta era mais uma rua em um dos vários subúrbios, e que nosso confortável hábito de só vermos a nós mesmos, nossa calçada e sua vida agitada era um modo de conseguirmos lidar com o medo. Um modo útil: nós não éramos importan­tes, e a cidade era grande. Éramos capazes de continuar nossas vidinhas precárias por causa de nosso bom senso, que permitia que "eles" não nos notassem. Cada vez tinham mais coisas para supervisionar, mas mesmo assim ainda não per­mitiriam que se queimasse uma casa ou uma rua, ou que um bando de crianças não fosse controlado por ninguém e aterrorizasse todo mundo. Eles tinham espiões entre nós. Eles sabiam o que estava acontecendo.

Talvez ao descrever, como fiz, apenas o que acontecia entre nós, em nossa vizinhança, eu não tenha sido capaz de dar uma visão suficientemente clara de como nossa socie­dade, atualmente muito singular, funcionava... pois afinal estava funcionando. Durante este tempo todo, enquanto a vida cotidiana simplesmente se dissolvia ou encontrava no­vas formas, a estrutura de governo continuava, apesar de lerda e ineficiente, e tornava-se cada vez mais ramificada. Quase todo mundo que tinha um emprego fazia parte da administração sim, claro que nós, pessoas comuns, di­zíamos brincando que a máquina governamental prosseguia funcionando apenas para que alguns privilegiados continuas­sem a ter empregos e salários. E havia alguma verdade nisto. O que o governo na realidade fazia era adaptar-se aos acon­tecimentos, enquanto fingia, provavelmente até para si pró­prio, que os tinha provocado. E os tribunais continuavam a funcionar, inúmeros deles; os processos legais eram infini­tamente prolongados e cheios de truques, ou breves e dra­conianos, como se a impaciência dos advogados com seus próprios processos e precedentes ficasse marcada na maneira pela qual a lei podia ser subitamente dispensada como um todo, reinterpretada e reescrita e então o que tinha sido substituído continuava oprimindo tão pesadamente quanto antes. As prisões estavam cheias como sempre: muitos cri­mes vinham sendo cometidos, e parecia que a cada dia sur­giam novas e desconhecidas categorias de crime. Reforma- tórios, casas de correção, abrigos, asilos para velhos todos proliferavam e eram lugares selvagens e terríveis.

Tudo funcionava. Funcionava de algum modo. Fun­cionava sobre uma corda bamba de um lado aquilo que á autoridade tolerava, de outro o que não suportaria. Nossa reunião estava sobre este fio. E logo chegaria a polícia com um enxame de carros, agarraria aquelas crianças e as co­locaria atrás das barras de um "lar", onde não sobrevive­riam uma semana. Sabendo suas histórias, não se poderia sentir nada além de compaixão por elas; nenhum de nós queria que terminassem num "lar" mas também não queríamos, não poderíamos tolerar, uma visita da polícia, que atrairia a atenção oficial para centenas de modos de vida ilegais. Casas habitadas por pessoas a quem não per­tenciam; quintais onde cresciam alimentos para pessoas que não tinham direito a eles; andares térreos de casas acomo­dando cavalos e burros que serviam de transporte para os inumeráveis pequenos negócios que floresciam ilegalmente, os pequenos negócios onde todas as riquezas de nossa velha tecnologia eram tão engenhosamente adaptadas e transfor­madas; minúsculas criações de, perus, galinheiros, gaiolas de coelhos toda esta nova vida, como a seiva que empurra as velhas árvores, era ilegal. Nada disto existia oficialmente. E quando "eles" fossem forçados a ver estas coisas enviariam o exército ou a polícia para acabar com tudo. Esta visita seria citada nas manchetes ou noticiários como "Tais e tais ruas foram limpas hoje". E todo mundo saberia exata­mente o que tinha acontecido e agradeceria a sorte de não ter sido em sua própria rua.

Tal "limpeza" era o que todos temiam mais do que tudo, e mesmo assim nós "os" estávamos provocando ao nos reunir. Gerald falava, emocionada e desesperadamente, como se o próprio ato de falar pudesse trazer alguma solu­ção. A certa altura disse que o único modo de lidar com os "guris" era separá-los e colocá-los sozinhos ou aos pares em várias casas. Lembro-me da ironia que se elevou das crian­ças e de suas caras brancas e zangadas. Pararam sua patética dança guerreira e agruparam-se, desafiantes, armas prontas.

Um homem jovem elevou-se em meio à multidão: tinha os braços em volta de um galho de árvore e apoiava-se ali.

Para que estamos fazendo isto? gritou. Se vierem agora será o nosso fim, sem que se importem com as crianças. E se querem saber o que penso, devíamos infor­mar a polícia e acabar com isto. Não podemos resolver esta situação. Gerald já tentou, não, Gerald?

E desapareceu, arrastando o galho.

Emily falava agora. Parecia que alguém tinha lhe pe­dido. Parou sobre a pilha de tijolos, séria, preocupada, e disse:

O que podemos esperar? Estas crianças se defen­dem. Foi o que aprenderam. Quem sabe devêssemos conti­nuar tentando? Eu me ofereço, se outros também o fi­zerem.

Não, não, não — elevou-se de todos os pontos da multidão. Alguém gritou:

Parece que já lhe quebraram um braço.

Foram os boatos que me quebraram o braço, e não as crianças disse Emily sorrindo, e algumas pessoas riram.

E ali permanecemos. Não é comum que uma multidão tão grande permaneça em silêncio, indecisa. Chamar a po­lícia seria ir muito mais baixo do que suportaríamos, e não podíamos chegar a isto.

Um homem gritou:

Vou chamar a polícia sozinho, e depois vocês podem ajustar as contas comigo. Tenho que fazê-lo, ou o bairro irá arder em chamas uma noite destas.

E agora as crianças começavam a escapar, ainda em seu bando compacto, agarrando seus paus, suas pedras, suas catapultas.

Alguém gritou:

Estão fugindo.

Estavam. A multidão acotovelava-se e se agitava, ten­tando ver como as crianças atravessavam a rua correndo e desapareciam no crepúsculo.

Vergonha! berrou uma mulher na multidão. Ficaram apavorados, pobrezinhos!

Neste momento ouviu-se um brado: "A polícia!", e todos correram. Das janelas de meu apartamento, Gerald, Emily, eu e mais alguns outros víamos os grandes carros rugindo, piscando as luzes, tocando suas sirenes. Não havia ninguém na calçada. Os carros seguiram em grupo, contor­naram um quarteirão, depois voltaram e contornaram nova­mente. O estridente, lamuriento e clangoroso destacamento de monstros andou por nossas ruas silenciosas durante meia hora ou mais, "mostrando os dentes", como dizíamos, e de­pois se foi.

O que "eles" não podiam tolerar, não podiam tolerar nem mesmo agora, era a aparência de reunião pública, que devia ameaçá-los. Extraordinário e patético, pois a última coisa que poderia interessar a alguém naquela época era mudar a forma de governo: só queríamos esquecê-lo.

Quando as ruas ficaram silenciosas, Emily e Gerald foram para a outra casa ver se as crianças tinham voltado. Mas tinham estado lá e partido, levando consigo todos os seus pequenos pertences paus, pedras e porretes, pedaços de rato assado, batatas cruas.

Os dois tinham a casa só para si. Nada os impedia de construir ali uma nova comunidade. A antiga poderia ser restaurada? Não, claro que não: algo orgânico, que tinha crescido naturalmente, fora destruído.

Fazia frio. Havia muito pouco combustível. Nas longas e escuras tardes e noites sentava-me com uma única vela brilhando em minha sala. Ou eu a apagava e deixava o fogo iluminar a sala.

Um dia, sentada ali, olhando o fogo, vi-me no centro e do lado de fora da cena mais incongruente que se pode imaginar. Como posso falar em "fora de hora" num mundo onde não existia o tempo? Mesmo assim, até ali, onde se aceitava o que viesse e não se criticava a ordem das coisas, eu pensava: "Que cena mais estranha para aparecer agora!"

Estava com Hugo. Hugo não era apenas uma compa­nhia, um apoio, como são os cães. Era um ser, uma pessoa, com seus próprios direitos, e necessário aos acontecimentos que eu via.

Era um quarto de menina, de uma estudante. Bem pe­queno, com convencionais cortinas floridas, uma colcha bran­ca na cama, uma escrivaninha com livros escolares dispostos cuidadosamente, um horário escolar pregado num armário branco. No quarto, em frente a um espelho que normalmente não fazia parte do quarto (tinha um espelhinho pregado na parede sobre uma bacia) um espelho comprido, amplo, todo ornamentado, dourado, cheio de arabescos e estrias, o tipo de espelho que se associa a um estúdio de filma­gem, uma loja de vestidos caros ou um teatro —, em frente a este espelho, que só estava ali porque a atmosfera e as necessidades emocionais da cena pediam mais do que o só­brio espelhinho quadrado, havia uma jovem. Era Emily, que ali se apresentava como uma jovem mulher.

Hugo e eu ficamos lado a lado, observando-a. Minha mão estava sobre o pescoço do animal, e eu podia sentir os tremores de sua inquietude subindo por minha mão, vindos de seu coração apreensivo. Emily tinha uns catorze anos, mas já era "bem crescida", como diziam antigamente. Usa­va um vestido de noite. O vestido era escarlate. É difícil descrever meus sentimentos ao ver isto, ao vê-la. Certamente eram violentos. Estava chocada com o vestido, ou melhor, que tais vestidos já tivessem sido tolerados e até mesmo usados por qualquer mulher, pelo que faziam da mulher. Mas tinham sido considerados inevitáveis, vistos simples­mente como mais uma moda, nem pior nem melhor do que as outras.

O vestido era justo na cintura e no busto: o termo bus­to é adequado, aqueles não eram seios, que respiram, sobem e descem e podem mudar segundo as emoções; for­mavam um bloco único, inflado, saliente. Os ombros e as costas estavam nus. O vestido descia justo até os joelhos, passando pelos quadris e pelo traseiro novamente a pa­lavra adequada, pois a bunda de Emily estava espremida numa única protuberância. Mais para baixo, retorcia-se e alargava em volta dos tornozelos. Era um vestido de espa­lhafatosa vulgaridade. Era também, de um modo pervertido, não sexual, devido à sua propaganda do corpo, uma corpo­rificação das fantasias de um certo tipo de homem que, vestindo assim uma mulher, transforma-a numa boneca ri­dícula, tanto provocante quanto desamparada; desarma-a, torna-a algo a ser odiado, temido, de que se tem pena algo grotesco. Dentro daquela monstruosidade de vestido, que era uma roupa convencional usada por centenas de mi­lhares de mulheres durante uma época de minha vida, co­biçado por mulheres, admirado por mulheres em inúmeros espelhos, usado por mulheres para vestir suas fantasias ma­soquistas dentro deste horror escarlate estava Emily, dando voltas em frente ao espelho. Seu cabelo estava preso, deixando a nuca descoberta. Tinha unhas escarlates. Nunca se tinha usado esta moda durante a vida de Emily pelo menos para as pessoas comuns não tinha havido moda de espécie alguma, mas lá estava ela, a poucos passos de nós, e, sentindo nossa presença, a de seu animal fiel e seu angus­tiado guardião, voltou a cabeça, devagar, devagar, e nos olhou através de longos cílios entrefechados, os lábios afas­tados para beijos fantásticos.

A mulher alta e grande, mãe de Emily, entrou no quarto e sua aparição súbita diminuiu Emily, tornou-a me­nor, de modo que começou a tremer desde o momento em que a mãe parou à sua frente. Emily encarou-a e encolheu de tamanho, desfazendo sua pose provocante, estremecendo e encolhendo a língua que se projetava da boca. A mãe arregalou os olhos, horrorizada e cheia de desaprovação, enquanto a filha ficava cada vez menor, já era uma frágil boneca escarlate, de peito estufado e com o traseiro delinea­do desde a cintura até os tornozelos. A bonequinha contorceu-se e ajeitou-se e depois dissolveu-se num clarão de fumaça vermelha, como numa fábula moralista sobre a carne e o Demônio.

Hugo dirigiu-se para o espaço em frente ao espelho, fungou e farejou-o e depois cheirou o lugar onde Emily tinha estado. O rosto da mãe franziu em desagrado, mas agora era o animal que a estava afetando.

— Fora — disse, com sua voz baixa e aflita, aquela voz que nos oprimia com sua raiva e ameaça. — Fora, seu animal sujo, imundo.

E Hugo recuou até mim, ambos fugimos juntos da mulher que avançava em nossa direção com os punhos le­vantados para me atingir, atingir Hugo. Afastamo-nos de­pressa, depois mais depressa, enquanto a mulher avançava, ficava maior, até tornar-se enorme, absorvendo em si mes­ma o quarto infantil de Emily com seu convencionalismo afetado, o espelho incongruente e — bum! — estávamos de volta à sala, ao lugar escuro onde uma única vela brilhava em seu halo de luz, onde a pequena lareira aquecia um es­paço de ar mínimo à sua volta. Eu me achava sentada em meu lugar de sempre. Hugo estava de pé próximo à parede, olhando-me. Olhamos um para o outro. Ele estava chora­mingando... não, a palavra correta é chorando. Estava cho­rando, desolado, como um ser humano faz. Voltou-se e de­sapareceu em meu quarto.

E esta foi a última vez em que vi Emily ali, no que eu denominei de "pessoal". Quero dizer que não voltei a entrar em cenas que mostrassem seu desenvolvimento como mocinha, bebê ou criança. Aquela horrível cena do espelho, com suas implicações de perversidade, tinha sido o fim. Nem penetrando naquele outro mundo — e isto também era uma novidade — através das chamas ou do brilho parcimonioso da lareira onde eu me sentava durante as longas noites de outono, encontrei os quartos que se comunicavam interminavelmente um com o outro: ou não achei que os tivesse encon­trado. Ao voltar de uma viagem àquele lugar, eu não conse­guia ter uma lembrança clara do que tinha vivido, de onde tinha estado. Sabia que tinha estado ali, pelas emoções que o lugar provocava em mim: tinha sorvido ali, em alguma fonte murmurante e rica, todo o alívio e suavidade; tinha sido ame­drontada e ameaçada. Ou talvez à luz trêmula dessa sala, ou sob ela, agora parecesse reluzir uma outra luz vinda dali — tinha-a trazido comigo e ela permaneceria algum tempo, fazendo-me sentir saudades daquilo que representava.

E quando se desvanecia, como o ar ficava abafado, turvo e pesado... Hugo adquirira uma tosse seca, e quan­do estávamos sentados juntos podia, de repente, saltar e dirigir-se para a janela, farejando, arfando, e eu a abria, pois também estava sufocada pelo ar abafado e pesado da sala. Ficávamos ali, lado a lado, inspirando o ar que entrava, tentando limpar nossos pulmões com ele.

Após alguns dias sem ter visto Emily, fui até a casa de Gerald, atravessando ruas desarrumadas, como sempre, mas que pareciam muito mais limpas. Era como se um excesso de sujeira e confusão tivesse irrompido em algum lugar, mas os ventos, ou pelo menos os movimentos de ar, tivessem-no levado embora. Durante a caminhada não vi ninguém.

Tinha uma leve esperança de que tivessem tentado res­taurar a horta. Não. Continuava arrebentada e pisada e al­gumas galinhas ciscavam por ali. Sob os arbustos, um ca­chorro rastejava em sua direção. Era uma visão tão rara que tive de parar para ver. Não um cachorro, mas um bando de cachorros, que rastejavam de todos os lados em direção às galinhas que ciscavam. Não posso descrever o mal-estar que isto me causou: havia algo de enorme esperando para irromper em mim, algum movimento e mudança reais em nossa situação: cães! um bando de cães, onze ou doze deles, o que isto poderia significar? E observando-os, minha pele arrepiada e o suor frio de minha testa mostraram-me que eu estava com medo, e tinha boas razões para isso: os cães poderiam me escolher em lugar das galinhas. Dirigi-me o mais rápido que pude para dentro da casa. Ela estava limpa e vazia. Enquanto penetrava na casa procurava ouvir os sons da vida nos quartos superiores nada. No alto da casa uma porta fechada. Bati e Emily entreabriu-a vendo que era eu, deixou-me entrar e fechou-a rapidamente de novo, trancando-a. Estava vestida com peles, calças de coelho ou gato, uma jaqueta de pele, um boné de pele cinza afundado na cara. Parecia uma pantomima de gato. Mas pálida, e do­lorida. Onde estava Gerald?

Voltou para um ninho que construíra para si no chão, com tapetes e almofadas de pele. O quarto fedia terrivel­mente por causa das peles, mas respirando fundo, prestando atenção, notei que mesmo assim o ar era fresco e frio e que eu estava sem fôlego. Emily ajeitou um lugar para mim nos tapetes. Sentei-me e me cobri. Fazia muito frio: não havia aquecimento ali. Ficamos sentadas juntas e caladas respirando.

Ela disse:

Agora que o ar lá de fora está se tornando irres­pirável, passo a maior parte do tempo aqui.

E compreendi que era verdade: há um momento em que alguém diz algo que cristaliza em fato impressões só parcialmente captadas e que estavam mostrando uma conclusão óbvia... neste caso era que o ar que respirávamos tinha realmente se tornado ruim para nossos pulmões, há muito tempo vinha ficando cada vez mais viciado e pesado. Tínhamos nos acostumado com ele, estávamos nos adaptan­do: eu e todos os outros vínhamos respirando aos poucos, relutantemente, como se ao racionarmos aquilo que despejávamos em nossos pulmões, em nossos organismos, pudéssemos também racionar os venenos que venenos? Mas quem poderia saber, ou dizer!? Era "aquilo" nova­mente, sob uma nova forma quem sabe "aquilo" em sua forma primária?

Sentada naquele quarto, cujo chão era todo coberto de peles que serviam para sentar ou encostar, um quarto no qual não havia nada a fazer a não ser deitar, ou sentar, com­preendi que estava... feliz, simplesmente por estar ali, e respirar. Foi o que fiz, durante muito tempo, enquanto cla­reava os pensamentos e iluminava o espírito. Pela limpa janela de polietileno vi um céu turbulento e nebuloso, cheio de nuvens carregadas de neve; vi a luz mudando sobre a parede. De tempos em tempos Emily e eu sorríamos uma para a outra. Havia calma em toda parte. Houve um mo­mento em que subiu um violento cacarejar e rosnar do quintal, mas não nos mexemos. Parou. Silêncio novamente. Continuamos sentadas, sem nos mexer, simplesmente respi­rando.

Havia máquinas no quarto: uma pendurada do teto, outra no chão, uma pregada à parede. Serviam para purifi­car o ar, e funcionavam enviando correntes de elétrons, íons negativos as pessoas tinham-nas usado durante algum tempo, exatamente quando ninguém sonhava em usar a água dos poços sem que antes passassem por inúmeros tipos de purificadores. Ar e água, água e ar, nossas substâncias bá­sicas, os elementos onde estávamos mergulhados, nos mo­víamos, dos quais éramos feitos e refeitos, continuamente, perpetuamente recriados e renovados... por quanto tempo teríamos que desacreditá-los, expulsá-los, tratá-los como possíveis inimigos?

É bom você levar algumas máquinas para casa disse ela. Temos um quarto cheio.

Gerald?

Sim, foi até um depósito. Tem um quarto cheio de máquinas embaixo deste. Mas eu vou ajudá-la a carregar. Como você pode viver com este ar imundo? falou como se tivesse algo mais a dizer, mas tivesse recuado.

Estava sorrindo, mas como se me repreendesse.

Vai voltar para... — eu hesitei em dizer "casa", mas ela disse:

Sim, vou voltar para casa com você.

Hugo vai ficar contente falei, sem qualquer acusação, mas seus olhos marejaram e ela ficou rubra.

Por que você já pode voltar? perguntei, arris­cando; mas ela simplesmente balançou a cabeça, como se dissesse: já, já eu respondo... E o fez, quando conseguiu se controlar.

Não há mais razão para eu ficar aqui.

Gerald se foi?

Não sei onde está. Desde que trouxe as máquinas.

Está formando um bando novo?

Tentando.

Quando se levantou, enrolando as peles em grandes fardos para levá-las conosco, separando outras para cobrir as máquinas, ouviu-se um ruído na porta, e Emily foi ver o que era. Não, não era Gerald, e sim um casal de crianças. Ao ver as crianças tive medo. E compreendi, num súbito clarão mais um! —, que eu, que todo mundo, tinha passado a ver qualquer criança como algo simplesmente apa­vorante. Mesmo antes da chegada dos "pobres gurizinhos" isto já era verdade.

Aquelas duas crianças, sujas, rosto esperto, atento, zan­gado, sentaram-se no chão de peles, afastadas de nós e afas­tadas uma da outra. Cada uma tinha um pesado porrete, com os punhos encravados nele, prontos para serem usados contra nós e contra eles próprios.

Acho que aqui tem ar fresco disse o garoto ruivo, de pele leitosa e deliciosas sardas. A outra, uma garotinha adorável, angelical, disse para si mesma:

É, preciso de um pouco de ar fresco.

Sentaram-se, respiraram e nos observaram enquanto nós, sem tirar os olhos deles, continuávamos a enrolar e a empacotar.

Para onde vão? — perguntou a menina.

Diga a Gerald que ele sabe onde me encontrar.

Isto me encheu a cabeça de idéias demais para que eu pudesse absorvê-las de uma vez só.

Estas crianças seriam membros do novo bando de Ge­rald? Não eram membros do bando de crianças dos subterrâ­neos? Então era verdade que... talvez o bando só fosse letal como unidade, mas os indivíduos fossem recuperáveis, e Gerald tinha razão? Quando os embrulhos ficaram prontos saímos, com as crianças atrás. Mas nos deixaram ao ver o açougue em que se tinha transformado o jardim: peles por toda parte, pedaços de carne, um cachorro morto. Quando nos fomos, as crianças ficaram cortando o cachorro, acoco­radas dos dois lados da carcaça, trabalhando com pedaços de aço afiado.

Voltamos pelas ruas que mostrei a Emily estarem — verdade? — menos imundas, o que ela conferiu rapidamen­te. Ruas desertas, nem uma alma a não ser nós — também comentei isto e a ouvi rir. Ela estava sendo paciente comigo.

Na portaria do prédio onde vivíamos, um grande vaso que costumava ter flores jazia em pedaços ao lado do eleva­dor. Havia um rato morto no meio do lixo. Enquanto Emily pegava o animal pelo rabo para jogá-lo na rua, o Professor White, a Sra. White e Janet apareceram no corredor que compartilhávamos. Tinham conservado de tal forma os ve­lhos costumes, que era possível dizer, rapidamente, que esta­vam vestidos para uma viagem — casacos, cachecóis, malas. Ver aquelas três pessoas assim era lembrar daquele outro mundo ou camada da sociedade, acima de nós, onde as pessoas ainda se apresentavam através de suas roupas e per­tences, segundo a ocasião. Os White, como se nada tivesse acontecido a nosso mundo, partiam para uma viagem, e Janet estava dizendo:

Ora, rápido, vamos, vamos embora, mamãe, papai. É horrível continuar aqui quando todo mundo já se foi.

Clique — ali estava novamente. As poucas palavras mostraram-se repentinamente, como se tivessem sido emi­tidas pela própria atmosfera, por "aquilo", resumindo um novo estado de coisas que ainda não se mostrara até agora — ao menos para mim. Vi o olhar rápido e amedrontado que Emily me lançou, e ela, instintivamente, acercou-se de mim, num gesto maternal de proteção ao que poderia ser um momento de fraqueza. Fiquei quieta, vendo os White se agitar e se ajeitar, vendo o meu passado, os nossos pas­sados: parecia cômico. Era cômico. Sempre tínhamos sido animais ridículos, mesquinhos e orgulhosos, interpretando nossos papéis, fazendo nossas partes... não era agradá­vel ver os White, ver a nós próprios. E então todos disse­mos adeus, quase como antigamente: foi um prazer conhecê-los, espero que nos encontremos de novo, e todas estas coisas, como se nada de mais estivesse acontecendo. Tinham descoberto que naquela tarde partia um carro da cidade, seguiria até dez milhas ao norte, em alguma missão oficial. Não estava à disposição dos cidadãos comuns, mas eles ti­nham subornado e conseguido sua chance de participar da viagem, que os deixaria a uma milha do aeroporto, com a bagagem. Havia um vôo oficial programado para aquela tarde em direção ao extremo norte: novamente, enquanto nenhuma pessoa comum poderia conseguir um lugar em tal vôo, isto poderia ser possível ao diretor de um departamento, caso ele tivesse a quantia — astronômica, é claro — não para as passagens, mas, de novo, para os subornos. Que barganhas e promessas, ameaças e súplicas deveriam existir naquela viagem, que terrível esforço — e tudo segundo os novos costumes, nossas novas maneiras, as da sobrevivência, de sobreviver a qualquer preço. Mas nada disso aparecia em seu comportamento: Adeus, adeus, foi muito bom tê-los como vizinhos, nos veremos em breve, sim, espero que sim, adeus, boa viagem.

Entramos em meu apartamento e, das janelas, vimo-los descer a rua carregando as pesadas malas.

Agora os quartos próximos ao meu ficariam vazios. Vazios... Ocorreu-me que ultimamente via poucas pes­soas pelo saguão, pelos corredores. O que tinha acontecido ao mercado? Perguntei a Emily e ela sacudiu os ombros, demonstrando claramente que eu já devia saber. Saí nova­mente do apartamento e fui até a sala do porteiro, no fim do corredor. "Em caso de emergência, chamar no apartamento 7, 5º andar." O modo como o bilhete pendia espetado, o silêncio de todo o corredor, disseram-me que ele e sua fa­mília tinham se ido, tinham partido: aquele bilhete devia estar ali há semanas. Mas fui para o elevador, que às vezes funcionava, e apertei o botão. A máquina moveu-se em algum lugar acima e esperei, apertando e observando aten­tamente, mas o elevador não veio, de modo que usei as escadas, cada vez mais para cima, andar após andar vazio, sem a energia do comércio e da barganha em nenhum lugar. Os comerciantes, os compradores, os objetos, tudo havia partido, e não havia ninguém no apartamento 7 do quinto andar, mas no alto do prédio, perto do teto, vi alguns jo­vens alimentando cavalos com garfadas de feno, e recuei, sem querer ser vista, já que alguns daqueles que trabalha­vam eram crianças pequenas. Percorri o corredor, passando por mais quartos que continham animais: a cabeça de uma cabra espiava por uma porta, um casal de carneiros majes­tosos estava parado no fim do corredor, de algum lugar pró­ximo vinha o ruído de pás que cavavam e o cheiro de por­cos. Tentei o próprio telhado: lá em cima havia uma flo­rescente feira, com legumes e ervas de todo tipo, uma estufa de polietileno, coelhos em gaiolas e uma família — mãe, pai e três filhos — trabalhando arduamente. Lançaram-me um olhar típico daquela época: Quem é você? Ami­ga? Inimiga? — e esperaram, as ferramentas que seguravam prontas para serem usadas como armas. Desci novamente ao andar de baixo e uma criança encolheu-se num canto escuro — tinha estado me seguindo. Mostrava os dentes num ricto vingativo, mas calculado. Quero dizer que sua animosidade era calculada, medida, a fim de assustar-me. Podia ima­giná-la em frente a um espelho que tivesse achado em algum canto, praticando uma infinidade de expressões hor­ríveis. Eu estava realmente apavorada: suas mãos (como as de Emily naqueles dias!) estavam grudadas com firmeza ao peito, onde se podia ver o cabo de uma faca. Pensei que conhecia seu rosto, achava que — tinha cabelos ruivos e o mesmo tamanho — era um dos moleques que tinham visitado Emily naquele mesmo dia. Mas é claro que não fiz nenhum apelo a áreas tão sentimentais como o conhecimento, mas recuei espantada, movendo a mão direita ameaçadoramente para o local onde estava minha faca inexistente. Ele encolheu-se e eu passei por ele seguindo pelo corredor, examinan­do os quartos, sentindo que ele ia atrás de mim, mas a uma boa distância. Vi Gerald. Estava sentado num monte de peles cercado de crianças — eram o "bando do subterrâneo" e estavam vivendo no "meu" prédio. Isto realmente me chocou, e desci correndo, quase derrubando o garotinho que continuava em sua função de fazer caretas e assustar. Desci sem parar até o meu apartamento, que após tudo o que eu tinha visto parecia um estranho reduto de ordem, de amenidades fora de moda, de aconchego. Emily tinha acendido a lareira e estava sentada próximo a ela, em frente a Hugo.

Olhavam um para o outro, sem se tocar, observando-se lon­ga e silenciosamente. A menina inteiramente envolvida em peles, de modo que era difícil até mesmo dizer onde começava e terminava o seu próprio cabelo sedoso, e o pobre ani­mal, com seu pêlo amarelo e áspero pareciam a Bela e a Fera, mas agora a Bela estava tão próxima da Fera, enro­lada naquelas roupas animais, tão rija e feroz quanto a Fera, sobrevivendo como tal. Sim, a Beleza tinha sido destituída, muito rebaixada... Passei um mau momento, observando os dois, pensando quão próximos estávamos de correr e nos esgueirarmos como ratos em túneis mas vi que o fogo estava firme e brilhante, que as máquinas que tínhamos trazido funcionavam, e que as cortinas tinham sido fechadas, com lençóis velhos alfinetados sobre elas. O ar ali era bom e limpo, e podia sentir o meu verdadeiro eu voltando a viver, mas antes saí de novo do apartamento e fui para a calçada.

O crepúsculo caía. Havia apenas umas poucas pessoas no ponto de encontro. Vagavam por ali com um olhar in­certo e perdido: tantas tribos haviam partido, e aqueles eram os retardatários. Como tudo estava escuro! Normalmente, quando chegava o crepúsculo centenas de velas pareciam flutuar para cima e para baixo dos grandes prédios: pessoas nas janelas, olhando a rua, e os quartos à sua volta sombrea­dos pela luz das velas. Mas agora, nesta tarde, havia poucos brilhos lá em cima, na escuridão. De minhas janelas não vi­nha nada, apesar de meus quartos ainda estarem vivos: não era possível dizer-se, pelas luzes das janelas, quem estava no prédio. Nenhuma luz nas ruas, só uma escuridão densa e pesada, o luzir de um cigarro na calçada, mais nada. Notei que estava ali, de pé, visualizando a face escura do prédio, onde uma única chama de vela a minha ardia. Qual­quer um que tivesse passado saberia que ali, sozinha, inde­fesa, havia uma única pessoa, ou uma única família. Eu tinha estado louca. As pequenas reações de impaciência ou preo­cupação de Emily eram compreensíveis, compreendidas. E, com bastante freqüência, sob a luz daquela chama solitária, tinha sido possível ver a silhueta observadora e paciente de Hugo: sim, tinha sido exatamente por isto que ela viera para casa pelo menos parecia que desta vez iria tomar conta de mim, e não o contrário.

Voltei para o apartamento. Emily fora para a cama. Hugo não tinha ido com ela. Orgulho: e obviamente ela o tinha compreendido. Jazia em frente da lareira como qual­quer animal doméstico, o focinho virado para o calor, osolhos verdes atentos e abertos. Estendi-lhe a mão e ele brindou-me com um leve agitar da cauda. Fiquei muito tempo sentada, enquanto o fogo ardia, ouvindo o absoluto silêncio do prédio. Mas acima de mim havia uma fazenda, animais, as crianças letais e um velho amigo, Gerald: fui para a cama, cobrindo a cabeça como os camponeses e as pessoas mais simples costumam fazer, para não pensar no medo, só deixando o rosto descoberto. E ao acordar na ma­nhã seguinte constatei que não havia água nas torneiras.

O edifício, como uma máquina, estava morto.

Naquela manhã Gerald desceu com duas das crianças, o ruivo e uma garotinha negra. Trouxe vinhos de presente pois achara um velho comerciante de vinhos que ainda tinha mercadorias.—, e lençóis. Além de alguma comida. Emily cozinhou algo para nós cinco um tipo de cozido, com carne: estava bom e confortante.

Gerald queria que nos mudássemos para o último an­dar, onde seria mais fácil para ele instalar uma máquina que utilizasse o vento, um dos pequenos moinhos de vento: teríamos energia suficiente para esquentar água, quando fosse possível encontrá-la. Eu não disse nada, deixei Emily discutir e decidir. Ela disse que não, seria melhor ficar ali embaixo: não me olhou ao dizer isto, e vagarosamente chegou-me a idéia de que lá no alto do prédio ficaríamos mais vulneráveis ao ataque: não seria fácil descer correndo, en­quanto aqui seria uma questão de pular a janela. Tinha sido por isto que ela dissera "não" a sua oferta de "um enorme apartamento verdade, Emily, muito grande e cheio de todo tipo de comidas e confortos. E eu poderia instalar os motores em um dia não poderíamos...?" Ele apelou para as crianças, que balançaram a cabeça e sorriram. Esta­vam sentadas ao seu lado, aquelas coisinhas, de uns sete ou oito anos: eram suas, suas criaturas; apossara-se delas, tinha seu bando, sua tribo... mas só porque pagava o preço de fazer o que elas queriam, de servi-las.

O que ele desejava era tê-la de volta. Queria que ela subisse com ele, para viver com ele, como uma rainha, se­nhora ou mulher de bandoleiro, entre as crianças, seu ban­do. E ela não desejava isto, definitivamente não desejava. Não que o dissesse, mas estava claro. E as crianças, esper­tas e atentas, sabiam qual era o problema. Era difícil saber o que sentiam não demonstravam nenhum dos sinais conhecidos. Seus olhos corriam de Emily para Gerald, de Gerald para Emily: será que se perguntavam se Emily, comoGerald, poderia tornar-se um deles, matar com eles, lutar com eles? Ou será que pensavam que ela era bonita e sim­pática e que seria agradável tê-la por perto? Será que viam- na ou sentiam-na como alguém que preenchesse o lugar de suas mães se é que se lembravam de algum modo das mães e da família? Será que pensavam que deveriam matá- la, já que Gerald, propriedade deles, a amava? Quem poderia dizer?

Sua maneira de comer era terrível. Gerald dizia: "Use uma colher, olhe, assim... não, não jogue no chão!" de um jeito que mostrava que em seus próprios quartos, em sua gruta, há muito que não se importava com tais amenidades. Seu olhar para Emily dizia que se ela estivesse lá com eles poderia influenciar e civilizar... mas isto não adiantava nada, e os três, o homem e as duas criancinhas, partiram ao meio-dia. No dia seguinte nos trariam carne fresca: iriam matar um carneiro. Disse a Emily que logo viria vê-la nova­mente, agora aquele era o lar de Emily. Meu apartamento era de Emily, e eu era sua velha ajudante. Bem, por que não?

Quando ele se foi ela ficou em silêncio, e então Hugo aproximou-se e sentou-se, colocando a cara sobre o joelho dela; estava dizendo: Não consigo entender por que, no final das contas, você me escolheu, em vez dele, em vez de todos os outros!

Era gozado e patético; mas ela me lançava olhares avisando que não era para rir: era ela quem prendia o riso, apertava os lábios, prendia a respiração para conter uma gargalhada. Acariciou-o:

Hugo querido, querido, Hugo querido...

Balancei a cabeça e fiquei olhando. Estava vendo uma mulher madura, uma mulher que já tinha feito tudo o que podia, mas ainda continuava sendo requisitada, chamada, persuadida a dar: tal mulher é realmente generosa, seus co­fres estão sempre cheios e sendo esvaziados. Ama oh, sim, mas em algum ponto mostra um cansaço mortal. Já conheceu tudo, e nãc deseja nada mais mas o que pode fazer? Ela se conhece os olhos dos homens e dos garotos assim o dizem como uma fonte se não for isto então não será nada. É assim que ainda pensa, ainda não abriu mão desta ilusão. Dá. Dá. Mas com este cansaço que a para­lisava e apagava... assim ela abraçou a cabeça de Hugo, falou de amor em suas orelhas, murmurou absurdos carinho­sos. Por sobre sua cabeça seus olhos encontraram os meus: eram os olhos de uma mulher madura de uns trinta e cinco ou quarenta anos... não queria nunca mais sofrer assim. Como mulher exausta de nossa civilização morta, conhecia o amor como se fosse uma febre, para ser sofrido, para ser carregado: "apaixonar-se" era uma doença a ser suportada, uma armadilha que poderia levá-la a trair sua própria na­tureza, seu bom senso, seus verdadeiros propósitos. Era uma porta que não dava em lugar algum: não era uma abertura para a vida. Era um estado, tuna condição, suficiente em si mesma, quase independente de seu objeto... "apaixona­do". Se ela tivesse falado sobre isso teria falado assim, como escrevi. Mas não queria falar. Demonstrava sua fadi­ga, sua disposição para entregar-se se fosse absolutamente necessário, para se dar sem Gerald, a quem tinha ado­rado, seu "primeiro amor" verdadeiro; por quem tinha es­perado, sofrido, passado noites acordada — Gerald, seu amante, agora precisava dela e a desejava, após ter conse­guido sair do círculo de suas próprias necessidades, mas ela não tinha mais energias para levantar-se e encontrá-lo no­vamente.

Quando, naquele mesmo dia mais tarde, Gerald desceu novamente, sozinho, numa tentativa de persuadi-la a voltar para ele, ela conversou com ele. Falou enquanto ele ouvia. Disse-lhe o que tinha acontecido com ele, pois ele não o sabia.

Depois que a comunidade que ele construíra fora des­feita pelo bando de "guris" do subterrâneo, e depois que ele vira que nenhum de seus afilhados iria retornar, tinha de­dicado toda a sua força em conseguir que Emily voltasse para ele, para construir um novo lar. Tinha voltado à calçada, para atrair o núcleo de uma nova tribo. Mas isto não ocor­reu, não ocorreria. Por quê? Talvez se acreditasse que ele continuava em contato com as crianças perigosas, ou que qualquer nova comunidade que se formasse fosse capaz de atraí-las; talvez fosse o fato de ter demonstrado abertamente que estava pronto para se unir a uma mulher, a Emily, em vez de continuar optando livremente, de distribuir favores a qualquer uma que encontrasse em sua cama; rejeitou as meninas — alguma lei tinha funcionado, o resultado era que Gerald, originalmente um jovem príncipe, talvez o mais cobiçado dentre os jovens da calçada, viu-se sem seguidores, exatamente como um dos jovens que tinham que se unir a um líder para sobreviver... Gerald ouviu aquilo tudo, pensativo, atento, sem discordar de nada do que Emily estava dizendo.

E então você decidiu que era melhor ter as crianças do que nada, ou do que ser paciente e esperar. Você sim­plesmente tinha que ter um bando, a qualquer preço. E voltou para eles e dominou-os. Mas foram eles que o domi­naram, entende? Aposto que você tinha que fazer exata­mente o que queriam, não é? Tenho certeza de que você não pode parar de fazer o que querem. E você tem que ir em frente, aconteça o que acontecer.

Mas agora ele tinha recuado, não estava preparado para isto, não conseguia escutar.

Mas eles são simples guris — disse. — Não é melhor para eles que me tenham? Consigo comida e coisas para eles. Tomo conta deles.

Antes também tinham comida e coisas — disse Emily secamente.

Seca demais... ele a via como crítica — isto e nada mais. Não havia afeto por ele — assim ele sentia. Foi-se e não voltou durante alguns dias.

Estávamos organizando nossa vida, nossos quartos.

Conseguíamos ar puro, mas para isto de vez em quando tínhamos que nos sentar e ficar virando uma manivela para recarregar as baterias. Fazia calor: Emily saiu com um machado e voltou com grandes feixes de madeira. E, exatamente quando eu pensava que a falta d'água nos levaria para as estradas, ouvimos o ruído de cascos lá fora e uma charrete apareceu, carregada de baldes plásticos, baldes de madeira, baldes de metal com água.

Á-g-u-a! Á-g-u-a! — o velho grito ressoou por nos­sas sufocantes ruas. Duas meninas de uns onze anos vendiam, ou melhor, permutavam o carregamento. Desci com reci­pientes, e vi outras pessoas provenientes dos vários prédios de apartamentos à nossa volta. Não muitas, não mais do que umas cinqüenta. Paguei caro pela água: as meninas tinham aprendido a ser duras, a virar a cabeça e sacudir os ombros à idéia do que aconteceria com as pessoas sem água. Por dois baldes de boa água — pelo menos podíamos prová-la antes de comprar — dei uma pele de carneiro.

E então Gerald apareceu, com cerca de vinte membros de seu grupo — veio com recipientes de todo tipo. Obvia­mente havia todos aqueles animais lá em cima, e precisavam de água: mas num instante o bando conseguiu a água — simplesmente roubou-a, sem pagar. Vi-me gritando para Gerald que aquele era o meio de vida delas, das garotinhas, mas ele não ligou. Acho que não me ouviu. Ficou em guarda, todo vigilância, os olhos friamente observadores, enquanto suas crianças agarravam os baldes e corriam para o prédio, enquanto as vendedoras reclamavam e as pessoas que tinham vindo para comprar água e ainda não tinham sido servidas berravam e gritavam. Então Gerald e as crianças se foram e chegou a minha vez de ser assaltada. Fiquei parada com os dois baldes cheios, e um dos homens do edifício em frente estendeu-me a mão, abaixando a cabeça para me olhar nos olhos e mostrando os dentes. Entreguei-lhe um balde e cor­ri para dentro com o outro. Emily ficara olhando pela janela. Parecia triste. E também irritada. Podia ver as pala­vras que usaria para xingar Gerald nascendo em sua cabeça.

Colocamos um prato com água limpa para Hugo, que bebeu sem parar. Ficou parado ao lado do prato vazio, com a cabeça baixa: enchemo-lo de novo e ele bebeu... um terceiro prato saiu do balde e em nossas mentes havia um mesmo pensamento — assim como na de Hugo. Emily sentou-se a seu lado e o abraçou como antigamente: ele não precisava se preocupar ou se magoar, ela iria protegê-lo, ninguém o atacaria; receberia água mesmo que eu, ou ela, precisássemos ficar sem...

Quando dias mais tarde as vendedoras reapareceram, havia homens protegendo a água com revólveres, e com­pramos obedecendo a filas ordenadas. Gerald e seu bando não estavam lá. Uma mulher da fila disse que "aquele bando imundo" tinha conseguido conquistar o rio Fleet e começado a vender água por conta própria. Era verdade, e para nós — Hugo, Emily e eu — representava uma boa notícia, pois Gerald nos trazia um balde de água limpa, ou mais, todos os dias.

Bem, tivemos que fazer isto, precisávamos dar água aos animais, não é?

Pelo ar defensivo do comentário entendemos que ocor­rera uma dura batalha. Com as autoridades? Com outras pessoas que utilizavam a fonte? — pois é claro que velhos poços e fontes tinham sido abertos por toda a cidade. Se tinha sido com as autoridades, como fora que Gerald e as crianças tinham vencido? — deviam ter feito algo para con­seguir alcançar e abrir o reservatório.

Bem — disse Gerald —, eles não têm tropas sufi­cientes para poder vigiar tudo, não é? Á maioria já se foi, não é? Quero dizer, agora somos mais numerosos do que eles...

E se todos já tinham partido, o que é que nós — Emily, Hugo e eu — estávamos fazendo ali?

Mas nunca mais havíamos pensado em partir, pelo me­nos seriamente. Podíamos falar um pouquinho sobre os Dolgelly, ou dizer:

Bem, qualquer dia destes precisamos pensar real­mente em...

Ar, água, comida, calor — tínhamos tudo isso. Atual­mente as coisas eram bem mais fáceis do que vinham sendo há muito tempo. Havia menos tensão, menos perigo. E até as poucas pessoas que ainda se escondiam nas gretas e fen­das da grande cidade continuavam vivendo, vivendo...

Quando o outono terminou e o inverno chegou vi uma tribo partindo. A última tribo, pelo menos de nossas calça­das. Era como todas as outras que tinha visto partir, só que mais bem equipada, mas uma caravana típica de nossa área em particular: agora, comparando anotações, parece que cada bairro tinha suas peculiaridades de viagem, até mesmo esti­los! Sim, posso usar esta palavra... como os hábitos e costumes se formam rapidamente! Lembro-me de ter ouvido alguém dizer, e isto foi numa das primeiras tribos migra­tórias:

Onde está o couro de sapato? Sempre temos um estoque de couro de sapato.

Talvez seja interessante descrever detalhadamente esta última partida.

Fazia frio naquela manhã. Um céu opressivo movia-se rapidamente de oeste para leste, um mar escuro e torrencial. O ar estava pesado e difícil de respirar, apesar do vento que soprava e levantava flocos dos montes de neve que cobriam, brilhantes, ruas e calçadas. O chão parecia fluido. Os altos prédios em volta mostravam-se escuros e pontiagudos, ou desapareciam em meio a neve e nuvens.

Cerca de cinqüenta pessoas haviam se reunido, todas firmemente enroladas em suas peles. À frente havia dois jovens com dois revólveres que deixavam abertamente à vista. Atrás deles estavam mais quatro, com arcos e flechas, paus, facas. Depois vinha uma carroça construída a partir de um carro: tudo, até a altura das rodas, fora retirado e sobre a base colocaram pedaços de madeira que formavam uma superfície plana. A carroça era puxada por um cavalo, e estava entulhada de pacotes de roupas e equipamentos, três criancinhas e feno para o cavalo. As crianças mais ve­lhas deveriam andar.

Atrás deste carro seguiam as mulheres e crianças, e atrás delas vinha uma outra carroça, dirigida por dois jo­vens. Nesta carroça havia uma grande versão da velha caixa de feno: um recipiente de madeira, isolado e acolchoado, onde podiam ser ajustados vidros e potes que, postos a ferver exatamente antes do início da jornada, podiam con­tinuar em banho-maria dentro de seus ninhos e estar sempre prontos a oferecer uma refeição. Após este segundo carro vinha um terceiro, uma velha carroça de leite carregada de gêneros alimentícios: cereais, legumes secos, concentrados, etc. E uma quarta carroça, puxada por um burro. Estava cheia de gaiolas. Tinha algumas galinhas poedeiras; coelhos, não para comer, mas para procriação: uma dúzia ou mais de fêmeas prenhes. Este último carro tinha uma guarda especial de quatro garotos armados.

O cavalo e o burro é que distinguiam esta caravana: nossa parte da cidade era conhecida por seus animais de carga. Não sei por que se desenvolveu ali esta especialidade. Talvez porque nos velhos tempos tivéssemos haras e, quando surgiu a necessidade, foi fácil transformá-los em fazendas de criação. Tínhamos cavalos obviamente sob forte guar­da, noite e dia.

Normalmente, quando uma coluna de pessoas partia em jornada para o norte ou o oeste, as pessoas saíam dos prédios para dizer adeus, desejar boa sorte, mandar recados para amigos e parentes que tinham partido na frente. Na­quela manhã só quatro pessoas vieram. Eu e Hugo ficamos na janela olhando, enquanto a tribo se ajeitava e partia, sem confusões nem despedidas. Aquela partida era muito diferen­te das anteriores, quando tinha havido tanto tumulto e ale­gria. As pessoas estavam derrotadas, pareciam apreensivas, tornavam-se pequenas e imperceptíveis dentro de suas peles: aquela caravana daria uma boa presa.

Emily nem olhou.

No último instante, Gerald saiu com meia dúzia de crianças, e permaneceu na calçada até que o último carro com sua carga sacolejante saísse de vista, atrás da igreja da esquina. Então Gerald voltou-se e guiou sua turma para dentro do prédio. Viu-me e balançou a cabeça, mas sem sorrir. Parecia esgotado e realmente deveria estar. Só o fato de ver aquele bando de crianças selvagens já era sufi­ciente para fazer o estômago de qualquer um retrair-se de angústia. E ele vivia entre elas dia e noite: acho que só saiu com elas para impedi-las de atacar as carroças carregadas.

Naquela noite ouvimos uma batida na porta, e encon­tramos quatro das crianças de pé: tinham os olhos arrega­lados e estavam excitadas. Emily simplesmente bateu e tran­cou a porta. Depois colocou pesadas cadeiras na frente. Entre cochichos e murmúrios os passos recuaram.

Emily olhou-me e balbuciou algo por sobre a cabeça de Hugo. Levei alguns minutos para compreender: "Hugo assado".

Ou Emily assada disse eu.

Alguns minutos depois ouvimos gritos vindos da rua, depois o som de muitos pés correndo, e as vozes esganiçadas de crianças em triunfo sons de um ataque, de um crime. Afastamos nossas pesadas cortinas a tempo de ver, sob o brilho da neve iluminada por uma pequena lua, o bando de Gerald, mas sem ele, arrastando algo atrás de si. Parecia um corpo. Não precisava ser nada disto, poderia ser um saco ou um embrulho. Mas ali estava a suspeita, e suficien­temente forte para que acreditássemos nela.

Atravessamos a noite sentados à lareira, esperando, escutando.

Não havia nada que evitasse que a qualquer instante um de nós se tornasse uma vítima.

Nada. Nem o fato de Gerald, sozinho ou com um grupo de crianças, ou mesmo algumas das crianças sozinhas, poderem descer para nos visitar do modo mais normal do mundo. Traziam-nos presentes. Traziam-nos farinha, leite em pó e ovos; placas de polietileno, fitas gomadas, pregos. Trouxeram-nos tapetes de pele, carvão, sementes, velas. Trouxeram... a cidade em volta estava quase vazia, e tudo o que se precisava fazer era entrar em edifícios e depósitos desprotegidos e pegar o que se quisesse. Mas a maior parte do que havia eram coisas que ninguém jamais usaria ou teria vontade de usar de novo: coisas que se fossem encontra­das dali a poucos anos por algum sobrevivente o obrigariam a perguntar: Pra que diabos servia isto?

Como já faziam as crianças. Podia-se vê-las acocoradas sobre uma pilha de cartões de felicitações, um abajur de náilon rosa, um anão de jardim feito de plástico, um livro ou um disco, virando-os e revirando-os: Para que servia isto? O que faziam com isto?

Mas aquelas visitas, aqueles presentes, não significavam que sob outro ânimo, em outra ocasião, não matariam. E por causa de um capricho, de um desejo, de um impulso.

Inconseqüência...

Novamente a inconseqüência, como na partida da pe­quena June. Ficávamos sentados, preocupando-nos com isto, falando disto, escutando ao longe, sobre nossas cabeças, havia o relincho de um cavalo, o balido de uma ovelha: pássaros esvoaçavam por nossas janelas em seu caminho para o alto do prédio, onde os restos de uma fazenda compen­sariam o esforço de passar por uma janela quebrada, onde havia uma horta e até mesmo algumas árvores. Inconseqüên­cia, algo novo na psicologia humana. Novo? Bem, se sempre existira, tinha sido bem canalizada, disciplinada, socializada. Ou tínhamos nos acostumado tanto à forma como se apresen­tava que não a reconhecíamos.

Antigamente, não fazia muito tempo, se um homem ou uma mulher nos apertasse a mão, nos oferecesse presentes, teríamos uma boa razão para esperar que ele ou ela não nos matasse no próximo encontro simplesmente porque esta idéia lhe passasse pela cabeça... isto parece, como sempre, beirar o fingimento. Mas o fingimento depende do normal, do comum, do padrão. Sem a norma, que é a origem da farsa, esta forma particular de ironia desaparece.

Lembrei-me de June, na primeira vez em que assaltou meu apartamento, e perguntei para Emily:

Mas por que eu?

A resposta foi: Porque você está aqui, ela conhece você. Até mesmo: Porque você é amiga.

Devíamos acreditar que as crianças lá em cima pode­riam descer uma noite e nos matar porque éramos amigas. Elas nos conheciam.

Uma noite, sentadas em volta da lareira, que ardia lentamente, ouvimos vozes vindas da porta e da janela. Não nos mexemos nem procuramos as armas. Nós três trocamos olhares não se pode dizer que fossem de divertimento: não éramos tão filosóficas, mas afirmo que os olhares tinham algo de humorístico. Naquela manhã tínhamos alimentado alguns dos pirralhos que agora estavam lá fora. Tínhamos nos sentado para comer com eles. Está bem aquecido? Tome outro pedaço de pão. Quer mais um pouco de sopa?

Não poderíamos nos defender de tantos: trinta ou mais ao todo, sussurrando atrás da porta, sob a janela. E Gerald? Não, naquilo não podíamos acreditar. Estava dormindo ou tinha saído em alguma expedição.

Hugo moveu-se, colocando-se entre Emily, que ele defenderia, e a porta. Olhou-me, sugerindo que eu deveria me colocar entre ela e a janela. Claro que era Emily quem deve­ria ser defendida.

O tumulto e os murmúrios continuaram. Ouvimos al­guns socos na porta. Mais tumulto. E subitamente uma ex­plosão de ruídos gritos e passos se afastando correndo. O que tinha acontecido? Não sabíamos. Talvez Gerald ti­vesse ouvido o que estavam fazendo e vindo para impedi-los. Talvez tivessem simplesmente mudado de idéia.

E no dia seguinte algumas das crianças, com Gerald, desceram e passaram conosco horas agradáveis... Posso dizê-lo, posso escrevê-lo. Mas não posso transmitir a nor­malidade disto, o que havia de ordinário em sentar ali, con­versar, partilhar a comida, olhando para um rosto infantil e pensando: "Bem, bem, deve ter sido você quem planejou me enfiar uma faca na noite passada!"

E assim tudo continuou.

Não partimos. Se alguém perguntasse: "Quer dizer que vocês duas ficaram ali, em perigo, em vez de deixar a cidade e ir para o campo, onde as coisas eram seguras ou mais seguras, por causa daquele animal, daquele bicho feio, arrepiado e velho estão prontas a morrer de fome ou frio ou a ser assassinadas, simplesmente por causa do animal!", então teríamos que dizer: "Claro que não, não somos tão tolas, colocamos os seres humanos onde devem estar, acima dos animais, para ser salvos a qualquer preço. Os animais devem ser sacrificados em nome dos humanos, isto é correto e honesto e também o faremos, exatamente como todo mundo".

Mas não era mais a questão da sobrevivência de Hugo.

A pergunta era: para onde iríamos? Para quê? Vinha silêncio lá de fora, dos lugares que tantas pessoas tinham se preparado para alcançar. Silêncio e frio... nunca voltou qualquer palavra, ninguém retornou à nossa calçada e disse: "Eu voltei do norte, do oeste, e passei por isto e isto e ele disse..."

Não, tudo o que podíamos ver quando olhávamos para cima eram as pesadas nuvens do inverno correndo em nossa direção: uma nuvem escura, uma nuvem escura e fria. Pois nevou. A neve desceu, a neve atingiu nosso moinho de ven­to. E com aquelas pessoas que partiram, as multidões, o que havia acontecido? Já deviam ter ultrapassado a fronteira do mundo de apartamentos... Nos rádios ou, ocasionalmente, nos alto-falantes de um carro oficial, que visto de nossas janelas parecia uma relíquia de uma época morta, vinham notícias do leste: sim, parecia que lá ainda havia algum tipo de vida. Umas poucas pessoas até cultivavam fazendas, fa­ziam colheitas, construíam vidas. "Lá embaixo", "lá fora" ouvíamos falar destes lugares; para nós continuavam vi­vos. E onde estávamos havia vida; a velha cidade, quase vazia como estava, mantinha pessoas, animais e plantas, que continuavam a crescer, conquistando ruas, calçadas, os an­dares térreos dos prédios, forçando fendas, escalando pare­des... vida. Quando a primavera chegasse, que erupção de vida verde haveria, com os animais procriando, comendo e florescendo!

Mas em relação ao norte e ao oeste, não. Nada a não ser frio e silêncio. Não queríamos partir. E com quem? Emily, eu própria e nosso animal iríamos sozinhos? Não havia tribos partindo, nem mesmo se formando, quando olhávamos de nossas janelas não havia ninguém lá na calçada. Tínhamos sido deixadas na gelada escuridão daquele inverno interminável. Ah, era tão escuro, era um escuro tão pesado e denso! À nossa volta as altas torres pretas elevavam-se da neve que se acumulava em torno de suas bases, cada dia mais alta. Agora não havia mais luz naqueles prédios, nada; e se uma vidraça reluzia nas longas noites negras era devido à lua, momentaneamente exposta entre uma nuvem apres­sada e outra.

Uma tarde, cerca de uma hora antes de a luz se ir, Emily estava olhando pela janela quando exclamou:

Oh, não, não, não!

Juntei-me a ela, e vi Gerald lá fora, sob a neve limpa e profunda, elevando-se entre galhos secos. Usava seu vistoso casaco, mas aberto, como se não se importasse com o terrí­vel frio. Não tinha nada sobre a cabeça, e perambulava como se estivesse sozinho na cidade e ninguém pudesse vê-lo. Es­taria visitando novamente o local afinal de contas tão recente de seus triunfos, quando era o senhor da calçada, o capitão das tribos que se formavam? Prestava atenção em si mesmo, sob a delicada neve gelada, sob o céu onde pesa­das nuvens traziam a escuridão do oeste, sob as árvores ne­gras pintadas de branco. Ficou durante vários minutos para­do, bem quieto, observando, imerso em pensamentos ou abs­trações. E Emily observava, e eu podia sentir a febre de sua angústia aumentando. Agora nós três estávamos lá, observan­do Gerald. E obviamente poderia haver outras pessoas, tam­bém olhando de suas janelas. Não tinha armas. Suas mãos sem luvas estavam nos bolsos, ou pendiam a seu lado. Parecia bastante indiferente. Tinha se desarmado e não se importava.

Então um pequeno objeto passou voando por ele, como um rápido pássaro. Ele lançou um olhar rápido e indife­rente ao prédio e permaneceu onde estava. Seguiu-se uma pequena chuva de pedras: nas janelas acima de nós arma­vam-se catapultas em sua direção, talvez até algo pior do que isto. Uma pedra atingiu seu ombro: podia ter atingido o rosto, ou mesmo um olho. Agora ele voltou-se delibera­damente e encarou o prédio, e vimos que se apresentava como alvo. Suas mãos pendiam flácidas e ele permanecia em silêncio, sem sorrir, mas despreocupado, sem alarmar-se, esperando, os olhos fixos em algo ou alguém nas janelas, provavelmente acima de nós.

Oh, não disse Emily de novo. E num instante ela saltou, saindo do apartamento. Vi-a correndo pela rua. Hugo respirava em pequenos e ansiosos ganidos, e seu nariz embaçava a vidraça. Coloquei a mão em seu pescoço e ele acalmou-se um pouco. Emily tinha passado o braço em redor de Gerald e falava com ele, arrastando-o daquela calçada, pela rua, em nossa direção. Havia uma torrente de pedras, pedaços, de metal, restos, lixo. Surgiu sangue na têmpora de Gerald, e uma pedra, alcançando o peito de Emily, fê-la recuar. Gerald, trazido de volta à vida pelo perigo que ela corria, passou a protegê-la com os braços e a arrastá-la para o prédio. Acima de mim podia ouvir os gritos e brados das crianças, e seu canto:

Sou o rei do castelo...

O ruído e o canto continuaram acima de nós, quando Gerald e Emily chegaram no quarto onde Hugo e eu os es­perávamos. Gerald estava lívido e tinha um profundo corte na testa, que Emily lavou e medicou. E ele a examinou para ver se a pedra a tinha machucado muito: só um arranhão, nada mais.

Emily fê-lo sentar-se em frente à lareira, e sentou-se com ele, esfregando as mãos dele entre as suas.

Ele estava muito abatido, muito deprimido.

Mas não passam de gurizinhos! disse novamente, olhando para Emily, para mim, para Hugo. É tudo o que são.

Seu rosto era todo incredulidade e dor: não sei o que havia em Gerald que não o deixava nem mesmo agora suportar aquilo em que as crianças se tinham transfor­mado. Sei que era algo profundo, fundamental. E desistir deles seria abandonar pelo menos era assim que ele sentia - sua melhor parte.

Sabe de uma coisa, Emily? O pequenino, Denis, ele tem uns quatro anos, sim, só isso. Você o conhece, sabe de quem estou falando? Voltou para cá comigo há alguns dias... o pequenino, bochechudo.

Sim, lembro-me, mas Gerald, você tem que ad­mitir...

Quatroele insistiu. Quatro. É isto. Deduzi de algo que ele disse. Nasceu no ano em que o primeiro ban­do de viajantes passou por aqui. Já sai com os outros, é tão duro quanto os outros. Sabia que ele estava metido naquele negócio... sabe, daquela noite?

Um assassinato? perguntei, enquanto Emily não dizia nada, mas continuava a esfregar as mãos frias de Gerald.

Sim, bem... mas foi um assassinato, acho. Ele estava lá. Quando voltei naquela noite perdi a cabeça, fi­quei muito nervoso. Disse isso a eles... e então um deles disse que tinha sido Denis, tinha sido o primeiro a atirar o que tinha na mão uma pedra, suponho. Foi o primeiro, e então os outros o seguiram... quatro anos. E quando voltei ao apartamento, encontrei o homem morto, e eles todos estavam... e Denis estava lá, tão imponente como a vida que mantinham, pegando sua parte... não é culpa de­les, como pode ser culpa deles? Como se pode acusar uma criança de quatro anos?

Ninguém os está acusando disse Emily baixinho. Seus olhos brilhavam, seu rosto estava pálido, e ela perma­necia sentada ao lado de Gerald como se rendesse guarda, como se o protegesse, como se o tivesse resgatado e agora não o fosse deixar partir.

Não, mas se ninguém os salvar, então é a mesma coisa que condená-los, não é? Não é? apelou para mim.

Continuamos sentados a noite toda, esperando. É claro que esperávamos um ataque, uma visita, uma comitiva - algo. Sobre nós, no imenso prédio deserto, não havia ruí­do algum. E durante todo o dia seguinte nevou e esteve escuro e frio. Ficamos sentados e esperamos, e nada acon­teceu.

Sabia que Emily esperava que Gerald visitasse o topo do edifício, para descobrir o que tinha acontecido. Estava pensando em dissuadi-lo. Mas ele não foi, e tudo o que disse, depois de alguns dias, foi:

Bem, talvez tenham se mudado para outro lugar.

E os animais? — disse Emily, impetuosa, pensando nos pobres animais lá em cima.

Ele levantou a cabeça, olhou-a e deu aquela risada cur­ta que indica que alguém chegou ao fim de um pensamento: uma decisão, mas uma decisão embasada em ironia ou em conflito.

Se eu for lá em cima, bem, posso ser escorraçado de novo — e isto não é bom. Quanto aos animais, terão sua chance como todo mundo; ainda tem gente lá em cima.

E assim continuamos em silêncio, os quatro.

Tudo terminou, mas não sei dizer quanto tempo depois de Gerald ter se unido a nós. Ficamos ali, esperando o fim do inverno, e sabíamos que era um tempo interminável, mas não tão comprido quanto nossos sentidos fatigados nos di­ziam. Um tempo interminável, mas mesmo assim não maior do que um inverno. Então, numa manhã, uma tímida man­cha amarela caiu sobre a parede e fez surgir, revivido, o de­senho escondido. Tinha uma sensação tão forte de que era isso que estávamos esperando há tanto tempo que chamei os outros, que ainda dormiam:

Emily, Emily! Gerald e Emily, venham rápido. Hu­go, onde está você?

Do quarto surgiu aquele bicho lerdo, Hugo, e atrás dele vieram Gerald e Emily, enrolados em suas peles, boce­jando, desgrenhados, sem surpresa, mas inquisitivos. Hugo também não estava surpreso, nem mesmo ele: parou, todo atento e revivificado ao lado da parede, olhando-a como se por fim aquilo que desejasse, precisasse, e soubesse que iria acontecer, estivesse ali, e ele estivesse pronto para aquilo.

Emily pegou Gerald pela mão e, com Hugo, atravessou a tela da floresta em direção a... e agora é difícil dizer exatamente o que aconteceu. Estávamos naquele lugar que não nos devia lembrar nada parecido — quartos decorados desta ou daquela maneira, abarcando gostos e costumes de um milênio; paredes quebradas, caindo, crescendo nova­mente; um teto de casa que se parecia com um chão de floresta, onde brotavam grama e ninhos de passarinho; quar­tos desalinhados, desarrumados, assaltados; um jardim de um verde intenso sob nuvens poderosas e resplandecentes, e no jardim um gigantesco ovo preto de ferro bexiguento, mas polido e vítreo, refletindo, com seu brilho preto. A seu redor permaneceram Emily, Hugo, Gerald, o pai com cara de comandante, a mãe enorme, sorridente e galante, e o pequeno Denis, o criminoso de quatro anos, de mãos dadas com Gerald, agarrado e olhando para seu rosto, sor­rindo — ali permaneceram, olhando aquele ovo de ferro até que este, quebrado pela força de suas presenças, par­tiu-se, e dele saiu... uma cena, talvez, com pessoas em uma sala quieta inclinadas sobre pedaços de pano estam­pado que eram postos sobre um tapete que não tinha ne­nhuma vida até que lhe fosse injetada vitalidade através dos retalhos que se encaixavam exatamente: mas não, não vi isto, ou se o vi foi sem clareza... aquele mundo, que se apresentava em milhares de pequenos flashes,numa con­fusão de pequenas cenas, de facetas de um outro quadro, sem nenhuma permanência, desdobrava-se enquanto pene­trávamos nele, estava se encobrindo, se desvanecendo, se ofuscando e partindo — todo ele, árvores e regatos, gramas e quartos e pessoas. Mas a única pessoa que eu tinha estado procurando aquele tempo todo estava lá: lá estava ela.

Não, não sou capaz de dizer exatamente como era. Era bonita: esta é uma palavra que serve. Só a vi por um instan­te, como no intervalo de tempo em que um relâmpago ilu­mina o ar escuro — um brilho: só se virou uma vez para mim, e tudo o que posso dizer é... nada.

Então, à seu lado, quando ela se voltou para seguir em frente para sempre, enquanto o mundo se desdobrava a seu redor, estava Emily, e ao lado de Emily estava Hugo, e logo atrás deles, Gerald. Emily, sim, mas muito superior a si própria, transmutada, sob outra forma, e o amarelo Hugo combinava com seu novo eu: um esplêndido ani­mal, belo, todo delicado, dignidade e altivez, andava a seu lado, e a mão dela estava em seu pescoço. Ambos an­davam rapidamente atrás d'Aquela que ia à frente mostrando-lhes a saída daquele pequeno mundo desmoronado para um outro mundo inteiramente diferente. Sorriram... vendo aquelas faces, Gerald atirou-se a seu encontro, mas ainda hesitou, num medroso conflito, olhando para trás e à sua volta, enquanto os fragmentos brilhantes giravam a seu redor. E então, no último instante, elas vieram, suas crian­ças vieram correndo, pendurando-se em suas mãos e em suas roupas, e todos eles seguiram rapidamente atrás dos outros, enquanto as últimas paredes se dissolviam.

 

                                                                                            Doris Lessing

 

 

                      

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