Biblio "SEBO"
Ser diferente é um crime? Parece que sim, pelo menos para a maioria das pessoas que conhece aquele menino que nasceu com asas no lugar dos braços. O Menino de Asas, porém, não se deixa intimidar: vai fazer de tudo para vencer a rejeição. Nessa luta, além do preconceito, ele pode descobrir também a amizade e o amor. Acompanhe esta história fantástica.
Quando Menino de Asas nasceu, a mãe ficou muito triste. Mas o pai, que era camponês, consolou-a dizendo:
— Há de ser obra de Deus, mulher. Ele sabe o que faz.
A mulher logo consolou-se daquela aflição e até viu no estranho acontecimento um desígnio divino.
— Ele há de querer significar com esse milagre que toda criança nasce anjo, como nosso filho; não acha, marido?
O marido nada respondeu. Mas lá para dentro de si mesmo concordou que sim, a mulher era atilada; bem podia ser que aquele filho fosse um alado mensageiro de Deus.
Deitado na enxerga ao lado da mãe, Menino de Asas nada pensava. Batia as asas e mamava com sofre-guidão.
Outros filhos não tinha o lavrador. Assim, Menino de Asas ia crescendo sem causar estranheza em casa. Até que, aos sete anos, foi mandado à escola no povoado vizinho.
Menino de Asas já o conhecia. Desde os três anos de idade, quando, depois de vários trambolhões, aprendera a voar, namorava lá de cima o casario da vila e o movimento nas praças e ruas.
Sentia vontade de pousar na janela da escola, onde avistava diariamente aquele magote de crianças sentadas nas carteiras, estudando a lição.
Só não realizava o desejo porque p pai lhe recomendara que jamais descesse na vila. Contemplá-la de uma altura respeitável, podia; mas sobrevoá-la era perigoso.
Certa vez, ao voar sobre a mata, os caçadores despejaram-lhe vários tiros de espingarda, supondo tratar-se de alguma caça rara. Menino de Asas ficou muito ferido.
A lembrança da dor e a presença das cicatrizes ensinaram-lhe, a partir desse dia, que era perigoso lidar com gente que não usasse asas. À exceção dos pais, as outras pessoas não passavam de caçadores.
Fez-se assim muito amigo dos passarinhos e das aves do quintal.
Mesmo o urubu, se não tivesse aquele cheiro ruim, seria um ótimo camarada.
Eram essas as cogitações de Menino de Asas naquele dia em que, levado pelo pai, entrou no povoado rumo à escola. Era seu primeiro dia de aula.
Na rua as pessoas olhavam-no perplexas e cochichavam, dando risadinhas dissimuladas. Menino de Asas começava a perceber que era ele o motivo da curiosidade. Primeiro, ficou orgulhoso e até abria suas belas asas brancas, muito ancho delas.
Mas quando o pai deixou-o sozinho por um momento e o povoado em peso, que se aglomerava em frente à escola, entrou a rir-se dele, foi perdendo o natural orgulho.
Cabisbaixo, asas derrotadas, murchas de vergonha, ouviu o pai despedir-se, o professor ordenar-lhe que o seguisse. Lá dentro, o mestre fez as apresentações.
— Este é o novo aluno. Tem asas em vez de braços. Mas é um bom menino.
Menino de Asas fez-se muito amigo dos passarinhos e das aves do quintal.
Os companheiros responderam em coro:
— Seja benvindo!
E Menino de Asas logo recobrou a alegria.
Na hora do recreio as crianças cercaram-no, crivaram-no de perguntas.
Por que tinha ele asas? Era mesmo bom voar? Seria verdade o que o professor dissera na aula — que na estratosfera era impossível respirar?
Sentindo a cordialidade dos companheiros, Menino de Asas ficou tão à vontade que começou a contar lorotas.
Bobagem, o professor estava errado, nunca tinha ido lá. Ele sim, ia toda tarde à estratosfera e respirava muito bem. Voar era uma delícia, pois não. Chato mesmo eram as estrelas. Muito quentes. Uma vez chamuscara a ponta das asas numa grandona deste tamanho (e abria as asas, dando a medida da estrela). A mãe ralhara, sapecara-lhe um par de cocorotes, proibira-o de chegar perto das estrelas. Podia se queimar.
À tardinha, quando voou para casa, Menino de Asas ia tão feliz que antes de pegar altura, como o pai lhe recomendara, descreveu longos círculos sobre a vila, numa saudação. E até pousou no campanário da igreja, espantando o bando de pombos que olhavam meio aflitos aquela estranha mistura de gente e de pássaro escanchada tranqüilamente na viga do sino grande.
Na hora do jantar Menino de Asas contou ao pai que a escola era ótima. Jamais perderia uma aula. Ir à escola era tão bom como voar sobre a floresta.
A mãe camponesa, despejando nos pratos a sopa fumegante, ouvia-o calada, muito contente e orgulhosa daquele filho de asas.
No dia seguinte Menino de Asas retornou da escola tão triste que se esquecera de fazer uso das asas. Caminhava desajeitadamente na areia quente, como um pássaro esquisito.
Contou que nenhuma criança comparecera à aula. Ficara sozinho na classe, alisando com a ponta das asas os bancos solitários.
O professor também estava triste, nem lhe tomara a lição. Mandou-o para o recreio — e o recreio era o mesmo deserto de crianças.
Não agüentando a solidão, começara a chorar pedindo para voltar para casa.
— Professor, por que os outros meninos não vieram à aula? — perguntou.
O professor respondeu que era feriado, fosse para casa. À noite daria um pulinho à casa de seu pai. Precisava ter uma conversa com ele.
Menino de Asas contava a história muito triste, vagamente inquieto. Teria cometido alguma arteirice?
A mãe achou que sim, o pai achou que não. Aquilo era coisa de caçadores, disse cerrando as grossas sobrancelhas sujas de terra.
Depois do jantar, que foi calado e comprido, chegou o professor. Pediu ao pai camponês que mandasse o filho lá para dentro. E contou.
Menino de Asas não podia mais voltar à escola. A vila em peso impusera-lhe o dilema: ensinar exclusivamente aos seus filhos, que eram a maioria, ou ao Menino de Asas, que era a exceção.
Na véspera tinha havido vários acidentes na vila. Fiadas no exemplo de Menino de Asas, as crianças tentavam levantar vôo e se machucavam, algumas seriamente. O filho do juiz quebrara a perna. O do barbeiro fora levado à outra vila, com suspeita de ter partido duas costelas.
Numa palavra, a vila impusera ao professor que escolhesse entre lecionar aos meninos que usavam pés ou ao único menino que usava asas. Misturá-los é que não era possível.
O professor — disse — muito relutara, muito argumentara com os pais da vila. Com o tempo tudo daria certo, as crianças tinham-se entendido muito bem com Menino de Asas.
Inútil. Os pais da vila mantinham-se irredutíveis.
Assim, Menino de Asas não podia mais ir à escola. Sob pena de, ele, professor, perder o lugar. Era pobre, tinha também quatro meninos, que usavam pés, para alimentar e educar. O pai camponês devia compreender; Menino de Asas tinha mesmo que ficar sem instrução.
Nenhuma criança compareceu. Perguntou ao professor: — Por que os outros meninos não vieram à aula?
— Não há nenhum jeito a dar, senhor mestre? — perguntou a mãe.
— Havia um, sim — disse o professor baixando os olhos. Mas não era sugestão dele, não. Era dos pais dos meninos que usavam pés.
— Qual é? — perguntou o pai agarrando-se àquela esperança.
— Que os pais de Menino de Asas consintam em operá-lo. Que suas asas sejam cortadas — disse o professor baixando ainda mais os olhos.
— Cortar as asas de meu filho, milagre de Deus?
— protestou a mãe. — As lindas asas de meu filho? Nunca!
O professor respondeu que assim também pensava, estava até aliviado porque a mãe de Menino de Asas não concordava com a malvadeza.
— É crime cortar asas tão lindas. Até de pássaro, quanto mais de menino.
Assim, estava cumprida a sua missão. Ia embora. O pai de Menino de Asas segurou-o pela gola, argumentou:
— Senhor mestre, ensine meu filho a ler. Ele não deve apenas voar. Tem que usar os pés como os outros, já que vai viver num mundo que só sabe fazer uso dos pés. Senhor mestre, venha cada dia à minha cabana, depois da aula, para ensinar meu filho a ler. E toda manhã e toda tarde levarei à sua casa um cesto de cada coisa que eu extrair da terra.
É possível que o professor tenha aceitado a proposta por interesse. Seus quatro filhos que usavam pés estavam crescendo, careciam de comida. Mas também é possível que ele aceitasse a incumbência com pena de Menino de Asas. De qualquer forma concordou depressa, despediu-se do casal camponês e foi embora.
Tinha urgência em informar aos pais da vila que Menino de Asas não voltaria mais à escola.
E assim, por sete anos, Menino de Asas teve instrução ali mesmo em casa.
O pai camponês laborava a terra dobrado. Tinha que pagar pesado dízimo pela educação do filho. Por fim o professor declarou-o instruído. Nada mais podia ensinar-lhe, porque nada mais sabia.
A mãe camponesa ficou tão comovida que convidou-o a jantar o leitão que há meses grunhia no fundo do quintal na expectativa e temor daquele dia.
À noite, depois de consumido o leitão, o pai camponês entregou ao professor o último cesto de cada coisa que àquela tarde extraíra da terra: uns poucos repolhos, algumas batatas e só.
A eira dera seus últimos frutos. Arruinara-se a terra. E com ela o camponês na educação do filho de asas.
O professor quis recusar, mas Menino de Asas insistiu com ele para que levasse aquela última paga.
— Parto amanhã para a cidade. Trabalharei até que a terra descanse e volte a produzir.
O mestre louvou-lhe as boas intenções.
— Um ótimo filho — disse. — Melhor do que muitos dos meninos da vila.
Depois, despediu-se do casal camponês e foi embora.
Àquela noite Menino de Asas e seus pais ficaram ao pé do fogo concertando planos para o futuro.
A mãe comovia-se. O filho ia partir — e ela chorava. O filho ia conquistar um lugar no mundo — e ela sorria.
De madrugada Menino de Asas levantou-se, lavou--se na carranca que esguichava no fundo do quintal, levantou vôo. Ia dar uma última volta pela mata, despedir-se dos lugares de infância.
Pensou em estender o passeio até à vila, mas desistiu da idéia. Desde aquele longínquo primeiro dia de aula tinha jurado ao pai nunca mais voltar lá. Também tinha-lhe prometido não fazer uso das asas para se locomover. E cumprira a promessa, salvo naquela especial manhã de partida.
Foi o que, de volta, explicou ao pai camponês que o aguardava já vestido, à beira do fogo, olhando o café subir na fervura em grossas bolhas lustrosas.
— Voei pela última vez, meu pai. Na cidade só farei uso das pernas.
O pai rosnou que sim, estava direito. E se pôs lá fora a atrelar o cavalo à carroça. Ia levar o filho à estação.
Partiram com o dia nascendo..
A última visão de Menino de Asas foi a da mãe camponesa, parada junto à cerca de varas, olhando-o sem palavras nem gesto.
— A cidade! — vibrou Menino de Asas desembarcando do trem, a pequena maleta debaixo da asa. Olhava os edifícios, que se iam fazendo gigantes diante dele, ouvia os primeiros rumores das ruas, o grito dos carregadores, apitos, buzinas, imprecações.
Atordoado com o barulho atravessou um vasto patamar, achou-se na rua. Ia atravessá-la quando alguém o advertiu:
— Olha o sinal, arigó!
Ficou plantado no mesmo lugar, esperando o sinal abrir, a maleta colada no corpo. Temia que alguém a arrebatasse; o pai muito lhe recomendara a esse respeito.
Quando o sinal abriu, disparou com a multidão, chegou incólume do outro lado.
Começou a procurar uma das muitas pensões que sabia existir por ali. Finalmente avistou uma:
Dirigiu-se para lá saltando entre os automóveis, a asa livre abrindo-se, instintivamente, para manter o equilíbrio.
Seus movimentos, aquela asa esquisita abrindo-se no ar, começaram a chamar a atenção.
De um momento para outro viu-se cercado por um grupo de curiosos. O tráfego interrompido, gente parada diante dele, rondando-o, avançando hipóteses.
— É camelô! — dizia um colegial.
— Não, deve ser propaganda da Semana da Asa! — rebatia um senhor de óculos.
— Qual nada. Demagogia comunista, no duro. Olhe as asas brancas! — dizia um policial dentro de um jipe chapa-branca.
A multidão crescia, o trânsito engarrafava, guardas apitavam, surgia gente de todos os lados.
Menino de Asas ia pedindo timidamente "com licença, com licença", mas não conseguia avançar um passo.
Todos queriam vê-lo de perto, apalpá-lo, tocar-lhe as asas, que iam ficando sujas de poeira e do suor daquelas centenas de mãos que se acercavam, algumas temerosas, outras curiosas, a maioria irreverentes.
— É um anjo em pessoa! — dizia uma velha, benzendo-se.
— Anjo nada. Camelô, já disse! — gritava o estudante.
O tumulto crescia. Uma patrulha da Aeronáutica, chamada pelo telefone, não se sabe por quem, tentava manter a ordem.
Tratando-se de um ser alado, cumpria-lhe dissolver os curiosos e restabelecer a ordem, interpretou um senhor de óculos, com sotaque jurídico.
A multidão crescia, o trânsito engarrafava, surgia gente de todos os lados.
A multidão começava a formar uma barreira compacta em torno de Menino de Asas. Fotógrafos batiam chapas.
Menino de Asas, meio cego pelo estouro das lâmpadas, em vão pedia passagem.
— Com licença, com licença.
Chegavam turmas de repórteres radiofônicos, um caminhão de externa de tevê. A patrulha da Aeronáutica, verificando que nada tinha a fazer ali, retirou-se entre palmas.
Menino de Asas já não pedia "com licença". Valendo-se da confusão ia se esgueirando entre o povo. Procurava chegar à Pensão Dom Pedro.
Alcançou-a no exato momento em que o gerente fechava a porta. Entrou, pediu, morto de cansaço:
— Um banho e um quarto.
O gerente examinou-o com curiosidade, pegou na ponta das asas enegrecidas de suor e poeira.
— São asas de verdade. Como foi que aconteceu?
— Nasci assim, não tenho culpa — respondeu Menino de Asas.
— É, mas agora vai ser um abacaxi hospedá-lo. A coisa lá fora está preta.
— Tenho dinheiro, posso pagar.
— Quanto?
— O que diz a placa: dez cruzeiros a diária.
— É pouco, seu anjo.
— Então qual é o preço?
— Para você, que não é gente nem bicho, o dobro. Mas com a condição de ficar no quarto até que as coisas se esclareçam. Serve assim?
Menino de Asas foi à janela, olhou pela frincha. Lá fora, a confusão continuava, não havia como escolher.
— Combinado. Aqui tem uma quinzena. E quero um banho.
— Quarto 12 — disse o gerente. — Terceira porta à esquerda. Quanto ao banho, seu anjo, só com água, não é?
— Claro.
— Mas como o encanamento estourou, seu anjo, o banho fica para amanhã, tá?
E foi espiar pela frincha da janela. A rua estava calma agora.
Sujeito insolente, pensou Menino de Asas estirado na cama, dorme-não-dorme. Os olhos iam-se fechando, imagens dançando neles, difusas e neutras. Pegou no sono.
Acordou noite feita, levantou-se, foi à janela. A escuridão tinha-se abatido sobre a cidade.
Não era a quieta noite do campo, negra e macia como uma asa de borboleta. Era uma escuridão avermelhada, salpicada de luzes, degradada pelo pisca-pisca dos anúncios luminosos.
Do quarto vizinho vinha um choro de criança misturado com música de rádio. Prestou atenção à música. Dorida, tensa, difícil. Música de cidade, mesmo; dava vontade de chorar.
A grande torre da Central, os ponteiros luminosos dando a hora em gás néon. Sete e meia.
Operários passavam apressados, marmitas debaixo do braço, a caminho da estação.
Longe, por trás dos edifícios, ouvia-se um resfolegar de locomotiva. O trem, a viagem, o desembarque, a confusão na rua. . . rememorava Menino de Asas.
Alguém batia à porta. Deixou a janela, foi atender. Era o gerente. Trazia um jornal na mão, abriu-o, leu os títulos espalhafatosos.
Conflito na Central com vários feridos
Motivo: a aparição de um ser misterioso, meio pássaro meio gente, criando curiosidade confusão e pânico no meio do povo.
— O tráfego engarrafado — "Provocação subversiva", afirma o Ministro da Justiça.
— Ordenada a prisão do estranho personagem — Prêmio em dinheiro a quem levá-lo ao programa de TV da Casa Matatias, oferece o patrocinador.
— E agora, seu anjo? — perguntou o gerente.
Menino de Asas, perplexo, só sabia responder:
— Que cidade, que cidade!
Os olhos de sapo do gerente brilhavam esquisitos. Roçava repetidamente a mão gorda na face de Menino de Asas, consolava-o:
— A coisa ficou difícil, mas dá-se um jeito. Por enquanto, precisa alimentar-se. Vou buscar seu jantar.
— Prefiro descer.
— Com essas asas? A sala de jantar está cheia. É cana na certa.
— Cana? — estranhava Menino de Asas. — O que é isso?
— Cadeia, prisão — e o gerente fazia um gesto ilustrativo com a chave, rodando-a na fechadura.
Menino de Asas obstinava-se.
— Não fiz nada. Quero descer, comer alguma coisa, sair para procurar trabalho.
— A esta hora, é impossível. O comércio está fechado. Depois, — completou com voz macia — já tenho emprego para você. Aqui mesmo na pensão. Serve?
— Fala sério? — perguntou Menino de Asas, os olhos brilhando de contentamento.
— Seriíssimo, seu anjo. Começará quando passar essa onda dos jornais. Por enquanto, fique aqui mesmo no quarto, comendo, dormindo, descansando. E tranqüilo, que é meu protegido. Quer mais alguma coisa?
— Estou com frio.
— Vou lhe emprestar minha capa.
O gerente desceu e logo reapareceu com uma velha capa de gabardina.
— Tome, proteja-se. Amanhã terá um cobertor de lã. Hoje não é possível; estão todos na lavanderia.
E desapareceu de novo, escada abaixo.
— Bom sujeito, o gerente — concluiu Menino de Asas. — Capa, emprego, amizade, tudo de uma vez — e sorria, pensando que dentro de um mês estaria mandando o primeiro dinheirinho para casa.
Ficou muito tempo à janela olhando a cidade, o peito destilando gratidão.
A chuva voltara a cair. Menino de Asas esquadrinhava o céu coberto de nuvens avermelhadas pelo jato sangüíneo dos anúncios luminosos; seus olhos espalhavam-se pela massa compacta de edifícios, subiam até o Cristo do Corcovado, envolto num halo de luz e vapor.
Sentia desejo de voar até lá, cabriolar à toa, cantar sua felicidade, molhar as asas e a face ardente no sereno luminoso que se desprendia do céu.
Contentou-se em rezar o padre-nosso como a mãe lhe ensinara. E voltou à cama disposto a dormir.
Acordou com um barulho na rua. Vozes, correr de guardas, apitos estridentes. Espiou da janela, viu que estava cercado.
Na calçada, em pijama, protegido por um guarda--chuva, lá estava o gerente parlamentando com o chefe do grupo.
"E a mim que procuram!" — coriscou-lhe a memória alertada. A camaradagem do gerente, pura traição! Queria entregá-lo à polícia ou levá-lo à tevê para receber o prêmio prometido pela Casa Matatias.
Correu à porta, a chave fora retirada enquanto dormia. Estava prisioneiro ali dentro. E cercado lá fora.
Vestiu-se às pressas, meteu a capa dentro da maleta, fechou-a, ajustou-a entre as pernas, escancarou violentamente a janela, lançou-se no espaço.
Ia caindo, caindo. Logo recuperou o equilíbrio, começou a ganhar altura.
Voava com dificuldade. A maleta atrapalhava-lhe os movimentos. Da rua vinha o alarido dos guardas estupefactos.
— Fugiu! Fugiu!
E a voz enérgica do chefe do grupo, ordenando:
— Fogo!
Balas começaram a assoviar em torno de Menino de Asas. Uma nuvem salvadora escondeu-o dos guardas. À falta de alvo, o tiroteio lá embaixo cessou.
Voou muito tempo sobre a cidade, procurando orientação e pouso. Inútil. As ruas estavam cheias de gente que se apinhava, como formigas de asas, em torno de pequenos focos de luz: entradas de teatros, cinemas, bares.
Sobrevoou mar e montanha, viu muitos edifícios iluminados e interiores de apartamentos com famílias recolhidas.
Moças e rapazes dançavam freneticamente no terraço de vidro de um arranha-céu, que brilhava na névoa como um navio no mar. Adivinhou calor e alegria desprendendo-se dos corpos moços.
E ele condenado a sobrevoar aquela cidade hostil aonde chegara pela manhã cheio de planos e esperança! Aquela cidade que elegera para viver e que o expulsara para o céu molhado e escuro; aquela cidade que supunha amável e que o recebera com risadas e empurrões; aquela cidade que não resistira, antes quedara estupefacta ante. o que ele tinha de mais belo: as suas asas brancas.
Menino de Asas sofria, comunicava seu desespero e solidão aos céus impassíveis. E voava, voava.
Onde aterrissar àquela hora? Não tinha vez nem lugar. Em qualquer rua onde recolhesse as asas e passasse a fazer uso das pernas, estaria armado o escândalo, a curiosidade, o alvoroço.
Voava agora sobre a imensa pista do aeroporto. Lugar de sobra para descansar as asas fatigadas. Mas apenas asas de metal dormiam tranqüilas na pista iluminada.
Motores roncavam certos e nítidos dentro da noite, bebendo gasolina aos galões. Cuidadosamente lavados e revisados, os aviões preparavam-se para a grande revoada da madrugada. Homens de macacão rodavam em torno, solícitos como pajens.
Para aquelas asas de metal inerte, douradas pela luz dos holofotes, iam todas as solicitudes, zelos e atenções. Para as suas asas de carne sensível e sangue trabalhado sobrava apenas escárnio. Elas, que estavam geladas e tiritantes, agora se desequilibravam, batiam num ritmo desigual, que ninguém escutava lá embaixo.
Da terra não viria ajuda. Da terra chegava apenas o ronco dos motores e o possante fremir das hélices dos aviões, anunciador da madrugada dos homens.
Menino de Asas sobrevoava a cidade como um pássaro desorientado. A maleta encharcada, presa entre as pernas duras de frio, pesava toneladas. Sentia-se exausto, perdido, desarvorado. E voava, voava.
Agora, sobre o morro de casebres adormecidos. Barracos de lata é caixão de pinho tombavam instintivamente uns por cima dos outros, numa solidariedade de coisas frágeis que se amparam reciprocamente.
Um odor repelente de lama e detritos chegava às suas narinas. Nos seus ouvidos viajavam restos de batuque e cantiga, de repinicar de cordas. O morro cantava e fazia macumba para afugentar os duendes que rondavam o seu humilde adormecer.
A mata. No meio dela brilhava o clarão de um pequeno incêndio. Decidiu-se: desceria nas proximidades, vestiria a capa, iria esquentar corpo e asas tiritantes no crepitar gostoso das chamas. E lançou-se em pique, direto à clareira.
Enganara-se Menino de Asas. Não era clarão de incêndio no meio da mata, mas fogueira arrumada por mão humana. Debaixo das barracas, armadas em torno do fogo, vultos conversavam à solta, entre risadas. Um caldeirão de ferro fervia qualquer coisa de cheiro prometedor.
Menino de Asas estacou a alguns passos, a dúvida tomando conta dele. Seria algum acampamento de ciganos?
Em casa ouvia muitas histórias de ciganos que roubavam meninos gajães para vendê-los na feira ou transformá-los em escravos. Ficou parado na dúvida, escutando os rumores do acampamento. Por fim decidiu-se.
Fosse o que fosse, ali havia esperança de comida, de companhia e abrigo. Enrolado na capa que lhe escondia as asas molhadas, a maleta debaixo da capa, aproximou-se da zona do fogo. Alguém o avistou, gritou para os companheiros:
— Chegou mais um!
Um enxame de cabeças curiosas assomaram à entrada das barracas.
— Chega pra cá, foragido! — disse uma voz bem--humorada.
Nela Menino de Asas adivinhou o metal do comando. Devia ser o chefe do acampamento. Um rapazola parrudo, de seus dezesseis anos, nariz reto, pele amulatada, cabelo liso, buço apontando.
Menino de Asas olhou em torno, seu espanto cresceu. As caras que surgiam de dentro das barracas eram todas imberbes como a sua. Gente de seu tope ou ainda mais jovem: oito, nove, dez anos.
— Então, como vai aquilo por lá? — perguntou o chefe. — Deu hoje no jornal que fugiu muita criança. Você é o primeiro que aparece. Cadê os outros?
— Vim só.
— E os outros?
Menino de Asas não entendia patavina daquelas perguntas. Para ganhar tempo, arriou a maleta ao pé do fogo, sentou-se, respirou fundo. O cheiro de comida espicaçava-lhe a fome. O chefe impacientou-se:
— Cadê os outros, fujão?
— Não sei. Vim sozinho. Cheguei hoje de manhã.
— Então não fugiu do SAM?
— SAM? O que é isso? Fugi mas foi da pensão.
— Então cai fora, que isto aqui não é lugar pra turista!
O chefe levantara-se, crescia para Menino de Asas, punhos ameaçadores.
— Deve ser algum alcagüete, Pilão! — gritou um guri de dentro de uma das barracas. — Olha a maleta e a capa. — É espião!
Num minuto, Menino de Asas estava cercado, seguro por dezenas de mãos.
— Cuidado, ele tem um troço debaixo da capa! Deve ser arma! — advertiu um negrinho, abrindo o canivete e pondo-se em guarda.
A capa foi arrancada com violência dos ombros de Menino de Asas, houve um hiato de espanto no acampamento.
Suas asas apareciam brancas e firmes, buscando equilíbrio e liberdade para o corpo prisioneiro.
Chamuscadas pelo reflexo vivo das labaredas, elas se punham de novo em guarda, prontas para o vôo.
Mas o cerco afrouxava. A perplexidade dominava aqueles rostos infantis.
O negrinho que sacara o canivete, mais que depressa fechou-o, meteu-o no bolso. Braços e mãos, antes rijos e ameaçadores, pendiam agora rendidos diante da aparição. O chefe ordenou:
— Soltem-no. É o Menino de Asas.
— Você me conhece? — perguntou Menino de Asas esperançado. Sentia que a hostilidade desaparecera dos modos do chefe.
— Claro. O sururu da Central saiu em tudo que foi jornal.
Virou-se para a corriola que assistia ao diálogo:
— Então era verdade mesmo, hem pessoal? Aí está o monstro em carne e osso.
— Carne, osso e penas! — disse o negrinho do canivete mostrando os dentes, numa alegria.
— Mais fome do que penas — corrigiu Menino de Asas, já à vontade, fungando o ar que recendia à sopa.
O negrinho do canivete disparou até à barraca, voltou com um prato fundo e uma colher. O chefe do bando despejou duas conchas de caldo grosso no prato, colocou-o diante de Menino de Asas.
Indiferente à colher, como um pobre bicho doméstico acostumado à escudela, ele se pôs, ruidoso e triste, a comer.
O acampamento era um quilombo de garotos fugidos do SAM.
Era o que explicava o chefe do bando a Menino de Asas, os dois de conversa no fundo da barraca.
Pilão apontava as luzes da cidade faiscando longe no meio da chuva, convidava:
— Se quiser, pode ficar com a gente. Com essas asas, lá embaixo, você não tem vez. Se te pegam é SAM na certa. Ou coisa pior. O jornal disse que você é comunista. É verdade?
— Deus me livre. Minha mãe muito recomendou que eu não me metesse com essa gente. Ela diz que todo comunista tem parte com o demônio.
— Pode ser. A turma que pirou hoje do SAM também está sendo acusada de comunista. Mas nosso dever é recebê-los. Certa vez fizemos uma revolta por causa da bóia, que andava uma droga. O diretor mandou botar no jornal que nós estávamos a serviço dum tal de Seu Moscou. Quando nos pegaram, a cana foi dura. O pessoal apanhou dobrado.
— Vá ver que os de hoje fugiram também por causa da bóia — aventurou Menino de Asas.
Também pode ser. Mas o jornal disse que foi porque fecharam a escola, transformaram a sala em capela.
O pessoal não gostava da escola; mas gostava ainda menos da reza. Rezar padres-nossos ajoelhado em monte de caroço de milho, não é reza coisa nenhuma. É castigo disfarçado em oração.
— Oração não é castigo. Eu gosto de rezar. Pilão irritou-se.
— Então reza, papa-hóstias!
Menino de Asas não queria quizilas com o chefe. Gostava de rezar, pronto. Que tinha Pilão com isso? Pilão ria meio divertido, meio mau.
— É porque o inspetor do SAM nunca te puxou a orelha com força, no catecismo, até ela se despregar do osso.
Menino de Asas protestou. Era mentira. Pilão continuava rindo, feito um espírito zombeteiro. De repente, gritou para uma das barracas:
— Graveto!
Apareceu um garoto amarelo, cabelo sarará, olhinhos ruins.
— Mostra a orelha pro Menino de Asas. Graveto girou a cabeça, Menino de Asas horrorizou-se. Faltava um pedaço do lóbulo inferior.
— Foi um puxavante do senhor inspetor — esclareceu Graveto fazendo um esgar. E disparou de volta à barraca.
— Não acredito! — teimava Menino de Asas.
— Acredite se quiser, meu anjinho — prosseguiu Pilão. — Mas trate de não se deixar agarrar, viu? Com essas asas de passarinho, o mínimo que você arranja no SAM é uma gaiola. Eles não fazem por menos.
— Mas eu não fiz nada!
— Nem eu, nem Graveto, nem Tição! Nenhum de nós fez nada! — explodiu Pilão. — E estamos todos aqui, no meio do mato, feito bichos! Agora você, cujo único crime são essas asas de rola, está com a gente. Comeu nossa comida, descansou em minha barraca. É dos nossos.
Encarou Menino de Asas, o olhar iluminado por uma idéia espetacular.
— Com essas asas do nosso lado, podemos fazer misérias. Assaltar no Pão de Açúcar, roubar o relógio da Central!
E Pilão antegozava, com um amplo sorriso boçal e vingador, as perspectivas que se abriam para o bando com aquela adesão imprevista e importante. Menino de Asas negaceou.
— Vocês foram amigos, mas eu sou direito. Não vim para o Rio roubar, não. Vim trabalhar, ganhar dinheiro, ajudar meu pai e minha velha. Roubar não é direito, não, Pilão.
— Direito! Fala assim porque ainda não conhece a cana aqui no Rio. Se não quer, está bem, pode ir embora. Mas quem garante que você não vai nos denunciar?
— Não sou traidor, Pilão; nem ingrato. Vocês me ajudaram, pago na mesma moeda, assim que puder. Mas não entro para o bando, não. Preciso arranjar trabalho. Começarei a procurar amanhã cedo.
— Aqui no mato? — chacoteou Pilão.
— Não, lá embaixo, na cidade.
— Emprego voador ou emprego a pé?
— Emprego a pé. Prometi a meu pai nunca mais voar. E não voarei. Ontem quebrei a promessa, mas foi porque não tive outro jeito.
— Boboca! — disse Pilão dando um bocejo e virando-se para o outro lado.
Quase em seguida começou a ressonar. Exausto, Menino de Asas seguiu-lhe o exemplo.
Acordou com o sol batendo-lhe no rosto.
No acampamento a vida começara. O grupo tomava café em canecas de matéria plástica, discutindo os prós c contras da deserção de Menino de Asas.
Pilão, no meio deles, impunha a ordem, defendendo--lhe a retirada.
— Garanto que o passarinho não abrirá o bico. Ele me deu a palavra de honra.
Graveto aparteou, cético:
— Feito Azulão? Aquele moleque sujo também jurou não dar o serviço sobre o nosso esconderijo de Jacarepaguá. Depois nos traiu, o miserável.
— Cala a boca, Orelha de Inspetor! O assunto já está resolvido. Eu respondo por ele — disse Pilão encerrando a discussão.
Voltou-se para Menino de Asas, que aguardava o desfecho do conselho, a capa cobrindo-lhe os ombros.
— Tomou café?
— Já.
— Então cai fora. E bico calado lá embaixo, senão eu vou te arrancar as penas, uma por uma, onde você estiver.
— Não sou delator — disse Menino de Asas. Ensaiou uma despedida a todos.
— Bem, pessoal, até algum dia. Muito obrigado por tudo.
Tico-Tico, o negrinho que avançara de canivete aberto contra ele, aproximou-se.
— Deixa que eu tire uma lembrança de você?
— Que lembrança? — perguntou Menino de Asas.
— Uma pena da asa.
— Pode tirar.
O negrinho escolheu uma da ponta, alva e lustrosa, batida de sol. Deu um safanão, ela despregou-se. Ficou a mirá-la.
— Parece pena de pato.
— Mas é de homem! — disse Menino de Asas orgulhoso, encaminhando-se para a vereda que conduzia ao pé do morro.
— Adeus, pessoal.
Sumiu na primeira quebra do caminho. Reapareceu lá embaixo, pequenino, pulando desajeitadamente sobre as pedras, a maleta sacolejando a tiracolo, a ponta da asa feito o bico de uma espada, catucando-lhe a capa com jeito de espadachim.
Quando Menino de Asas desapareceu definitivamente, Pilão teve uma frase pequena, lúcida e inflexível:
— Ele volta.
O negrinho escolheu uma pena da ponta. Deu um safanão, ela despregou-se.
Ficou a mirá-la.
Caminhou o dia inteiro. O Jornal do Brasil era sua bússola. Dez, vinte quadrinhos de papel na página de anúncios, informavam-no das necessidades mais urgentes da grande cidade: lavador de automóveis, garçom, datilografo, vendedor de balcão, vigia noturno.
Muitas daquelas atividades, sabia por auto-exclusão que lhe eram proibidas. Restavam as mais sujas e mal pagas. Concentrou-se nelas e iniciou a peregrinação.
Mas aqui também a sorte lhe era adversa. Como copeirar no boteco da Rua General Pedra com aquelas asas grandalhonas e desajeitadas, que mal cabiam na cozinha?
Ainda tentou a experiência. Mas o português dono do bar, que cedera boquiaberto, numa súbita piedade mesclada de oportunismo, àquela aparição alada e faminta, logo desistiu de seu intento.
Um garçom daqueles podia, sozinho, canalizar para o frege todos os moradores do bairro, que viriam, a pretexto de comer um bife com batatas fritas, espiar tão estranho personagem de gibi. O português assim pensou, rápido e generoso. E admitiu-o.
Mas quando a experiência, meia hora depois, resultou apenas no aglomerado de moleques curiosos à porta, sem o consumo sequer de um guaraná, e vários pratos quebrados por Menino de Asas no seu açodamento para servir os poucos fregueses, sujos e habituais em seus macacões operários, o português desesperou.
Amainou-se-lhe a piedade, prevaleceram as razões do negócio.
— Cos raios, que isto cá não é gaiola de pássaros!
Pelo fim da tarde, lá estava de novo Menino de Asas no meio da rua, maleta grudada no corpo, a capa cobrindo-lhe as asas chamuscadas de gordura.
Almoçara no boteco da Rua General Pedra, última generosidade do lusitano. Mas onde jantar? Teria que fazer hora, esgueirar-se pelas ruas, misturado às últimas sombras da tarde. Até que, noite feita, pudesse encontrar algum albergue solitário, suficientemente escuro para comer alguma coisa e dormir cm sossego. No dia seguinte, recomeçaria a luta com os recortes de jornal.
Metido na capa e de maleta a tiracolo, Menino de Asas caminhava pela Avenida Rio Branco às seis horas da tarde. À espera de que o sinal abrisse, integrou-se na massa parada ao pé do poste de sinalização. Então, pela primeira vez, ele, pasto de curiosidade de toda a cidade, pôs-se a olhar em torno, a analisar as pessoas que passavam apressadas ou se acotovelavam no meio-fio, à espera de que o sinal abrisse.
Aqueles pés são centenas. Lembram ratos molhados disputando uma nesga de terra enxuta, pensa Menino de Asas. Atravessando a rua ululante de buzinas, sentem-se humilhados, degradados na sua condição de pés humanos. Lutam. E conseguem manter certo ritmo interior que preserva neles essa condição. Contudo, sofrem, acuados no vai daquele rio seco onde estacaram, frenéticos, os sáurios de cento e vinte cavalos, os répteis de roda dupla.
Imprensado entre uma praga e duas cotoveladas, adivinha Menino de Asas, doridamente, que essa é uma nova idade de perdição do carioca. E que os automóveis, ônibus, táxis, com seus gritos roucos, são outros tantos inimigos que ele volta a enfrentar no lodaçal endurecido do asfalto. E essa luta é sem grandeza porque aflige e apequena o pedestre, que deles foge sem lhes dar combate.
A mola que impele o transeunte para a frente é gasta e velha e chama-se medo. Um medo despojado de qualquer ímpeto defensivo, um medo apenas medo. Medo mesquinho, mesquinho medo que faz do carioca no meio da rua, às seis horas da tarde, uma figura ridiculamente evadida de si mesma.
Difícil acreditar que ali, naquele momento, estejam circulando homens com toda a implicação de conduta e herança que essa palavra sugere.
Aquela torrente de bichos aflitos que esguicham por entre os automóveis paralisados, aqueles pés devastados pela luz encardida que salta dos faróis, são apenas uma peça secundária e mal tolerada na mecânica do tráfego: o pedestre.
Palavra odiosa essa, pensa Menino de Asas, no meio da multidão os pés cedendo à sua força, imantados já daquele aflito correr, daquele entrechocar de bicos de sapatos, daquele carregar de ombros uns contra os outros, enquanto o inimigo comum, de olhos acesos, assiste entre impaciente e divertido à atropelada dos filhos do Senhor.
O tráfego. Ele desabrocha como uma flor de fumo, entre o estrupir de motores, àquela hora antiga cheia de perdida doçura que vinha na voz dos pássaros cantores, no badalar dos sinos pregoeiros. Esse vasto inferno impessoal e desagregado de agora, esse tumulto de rostos sem claridade, acontece àquela hora antiga em que a noite começava a lamber silenciosamente a forma das coisas, e o homem, vencedor de mais um dia na terra, recolhia o pensamento para dentro de si mesmo, como um pássaro de vôo autônomo esquadrinhando as regiões de sua própria conquista. A pequenez do homem no meio da rua, evadido dos escritórios e fábricas às seis horas da tarde, sua face chupada, seu olho doloroso e remoto, como ressalta nesta hora dita crepuscular pelos habitantes do outrora!
Faz ainda tão pouco tempo que se esboroou esse continente de demarcação entre o homem e as coisas, entre o homem e outros homens, entre o homem e as dobras de si mesmo; faz ainda tão pouco tempo que seus ouvidos captavam o dobrar dos sinos na tarde azulada, e seus olhos se enchiam da claridade agônica do sol resistindo na faixa de luz elétrica dos primeiros postes acesos; faz ainda tão pouco tempo que tudo isto aconteceu, que o homem no meio da rua, escravo entre buzinas e jogos de luz, ainda carrega no olho derrotado uma sombra caleidoscópica desse mundo morto.
Daí, pensa Menino de Asas, o vinco doloroso que marca seu rosto, a saudade que o devasta às seis horas da tarde e faz dele um ser escuro de poeira, um noturno morcego saltivoando desengonçado e infeliz no pretume do asfalto.
Contudo, esse homem ainda carrega nas narinas entupidas de fumaça o perfume daquelas tardes lentas arrumadas de propósito para seu refrigério; ainda lhe varam as ouças os amáveis rumores que presidiram à sua infância; ainda coaxam em seus ouvidos o silvo dos ventos, o mugir das águas de sua terra; ainda dorme nele uma faixa de solidão não contaminada, uma zona sensível à simplicidade dos elementos, aos sons de outrora, à vida de outrora.
Menino de Asas marcha pelos pés dos outros. Arrastado ele vai, empoeirado, triste, nodoso. O sinal vermelho adverte-o de que seu tempo no meio da rua está findo. A manada, impaciente com a sua lerdeza, dribla-o, fustiga-o, pisoteia-o, acotovela-o à altura do rim.
Quer ficar ainda, recuperar a certeza da rua sobre seus pés. Mas não pode. Recomeçou a rechinada dos sáurios de patas redondas. As buzinas advertem-no de que está transgredindo a lei dos sáurios.
De um salto alcança o meio-fio, os pés ganham a calçada, rumo a canto nenhum; enquanto a massa, dócil e acostumada, retoma o sentido e o terminal de cada dia: a fila do trem ou do ônibus de retorno ao lar.
Muito tempo vagou Menino de Asas pelas ruas estreitas do Centro e da zona portuária. A vizinhança do mar perturbava-o. Até ele chegavam os rumores da baía salpicada de luzes da ponte e de apitos. Odores estranhos, navegando na brisa, penetravam-lhe as narinas sensíveis de camponês. Sentia náuseas.
Um rebocador passava ao largo, chato e feio, a quilha abrindo-se num V de espumas que vinham morrer docemente no paredão do cais.
Nas vizinhanças de um supermercado, um grupo se acotovelava diante dos grandes títulos do jornal. Aproximou-se o suficiente para dominar as letras, leu os títulos. Uma pancada de sangue estalou-lhe nas têmporas. O jornal contava em letras de escândalo a
GAZETA POPULAR Notícias Policiais
REAPARIÇÃO DO MONSTRO DE ASAS NUM FREGE DA RUA GENERAL PEDRA
Uma cara balofa, no meio da página, despertou-lhe a atenção. Era o português que o despedira contando ao repórter como, por um triz, ele não fora apanhado. A radiopatrulha chamada pelo telefone chegara vinte minutos depois que Menino de Asas abandonara o restaurante.
O monstro — completava o jornal — está sendo procurado não só por causa do conflito da Central mas também como suspeito de um roubo ocorrido em Laranjeiras.
Era o cúmulo. Ele transformado em "monstro" e "ladrão"!
Teve um ímpeto de furar a massa humana, chegaria à banca de jornal, queimar o pasquim exposto e mais a pilha que ia sendo adquirida vorazmente pela multidão.
Conteve-se. Seria agarrado, na certa.
Seguiu pela Rua Faroux até o Mercado. O cheiro familiar das frutas, substituindo aquele odor enjoado de maresia e peixe morto, acalmou-o. Sentiu fome.
Aproximou-se de uma barraca de frutas, pediu meia dúzia de bananas. Temendo ser identificado, instruiu o barraqueiro:
— Faz favor de retirar o dinheiro do bolso da capa e aí deixar o embrulho. Caí do ônibus, não posso mexer o braço.
Atendido, afastou-se, afetando naturalidade. Enveredou à esquerda, e tudo que o deprimia e angustiava amainou dentro dele.
Estava frente a frente com o mar. O mar tão longamente sonhado, que conhecia apenas das estampas em livros e folhas de revistas. Um grande mar parado, riscado por uma réstia de luar que começava na linha do horizonte e vinha morrer, decomposta em salpicos de luz, nas pedras do cais.
Sentado no último degrau da escadaria de pedra, teve um pensamento lírico e feliz: "Estou ao nível do mar; mais um passo e estarei abaixo do nível do mar".
A idéia excitava-o. Esteve para pô-la em prática. Contentou-se em sentar no degrau, libertar os pés dos sapatos e chapinhar na água.
Uma sensação fresca subiu-lhe pelo corpo. A brisa batia-lhe no rosto. A preamar penetrava pelos interstícios das lajes num gemido longo de água aprisionada.
Ratazanas saíam dos refúgios, vinham espiar a subida da maré.
Lentas e luzidias, arrastavam as grandes caudas molhadas sobre as pedras, guinchando miudamente, excitadas com a presença daquele intruso, que comia bananas e ia deixando de lado um montinho de cascas, esperança de um iminente repasto.
Dormir ali não podia, raciocinou Menino de Asas. Seria notado, logo identificado, preso, talvez. Perto, um pequeno batelão coberto com um encerado e amarrado por um cabo à pilastra do cais, subia e descia molemente na correnteza. Seria seu dormitório aquela noite.
Utilizando-se dos pés, deu dois ou três puxões na corda e o batelão aproximou-se do cais. Um pulo, estava a bordo. Outro empurrão, o batelão afastou-se. Na popa a maleta por travesseiro, a capa cobrindo-lhe o corpo, Menino de Asas adormeceu.
Acordou com a barra do céu tingindo-se das cores da madrugada. Abandonou o barco c, de novo no cais, partiu na perseguição de uma idéia. Ela dando certo, estaria salvo.
A idéia era esta.
Estudando certo dia a lição dos pássaros, falara assim ao professor:
— Eu não queria ter asas, sabe, professor? Preferia ter braços como os seus, como os de meu pai, como os de todo mundo.
Fizera a confissão num momento de desalento, desabafo de um anormal, de um mutilado.
O professor tratara-o com a didática c passiva solidariedade que usaria com um cego ou com um estropiado.
— Não diga isso, menino. Suas asas são muito bonitas. Deus lhas deu como um privilégio especial. Todos nós o invejamos. Queríamos poder voar, como você. Às vezes sonhamos que temos asas. E que grande felicidade nos dá este sonho!
— Pois eu amaldiçôo estas asas, professor. Só me têm trazido desgostos e proibições.
Imitou a voz do pai, advertindo-o:
— Voar é perigoso, sô. Trate de fazer uso das pernas, como os outros meninos!
Suspirou, desalentado.
— Se eu pudesse substituir estas asas por braços, faria a troca imediatamente. Há alguma probabilidade disso, professor?
— Não, não há nenhuma.
— Absolutamente nenhuma?
— Talvez um bom cirurgião possa, mediante uma operação, cortar as asas e substituí-las por braços artificiais, de platina ou qualquer outro metal.
A conversa morrera aí.
Às oito horas da manhã, Menino de Asas estava diante da placa. Leu-a devagar, saboreando as palavras, pondo uma fé muito grande em cada uma delas.
Subindo a escada, ia cogitando se recorrer àquela placa não representava uma queda: a decisão de se tornar igual aos outros naquela imperfeição congênita de todos possuírem braços em vez de asas.
Ele, que era portador de alguma coisa inatingida pelo comum dos homens, ali comparecia para despojar-se de sua parte melhor. A cidade o derrotara; sua vontade prevalecera.
Lembrou-se da mãe opondo-se valorosamente ao professor, naquele dia longínquo em que ele fora a sua casa anunciar o ultimato dos pais da vila: que suas asas fossem cortadas. Na cidade considerara muitas vezes se a mãe estaria certa naquela decisão. Se não teria sido melhor o sacrifício de suas asas, em nome da tranqüilidade sua e dos demais.
No primeiro andar uma luz se fez dentro dele. Não. A mãe ignorante estava certa na misteriosa sabedoria do seu amor.
Amputado de uma parte de si mesmo, ele seria um molambo humano, igual àqueles que vira ao longo da Avenida vendendo bilhetes de loteria. Uma triste sucata humana que mal camuflava, no ato de oferecer gasparinhos aos passantes, o gesto alegórico da mão estendida à esmola.
Contudo, na integridade das asas brancas com que viera ao mundo, sua figura inspirava um mal-estar maior do que a dos mutilados da Avenida. Onde, pois, a lógica da decisão materna? Onde a compensação moral àquele gesto de poupá-lo à deturpação de si mesmo, em nome de Deus?
Criança, fora obrigado à segregação. Adolescente, tornara-se pasto da curiosidade malévola de toda uma cidade.
Na sua lucidez cheia de orgulhoso sofrimento, Menino de Asas se reconhecia um ser superior. Possuía asas, em vez de braços, para conversar com o infinito. E sólidos pés, como o comum dos homens, para com eles conviver na servidão às leis da terra.
Nunca, porém, aceitaria em si mesmo, como não aceitava nos mutilados da Avenida, o espetáculo horrível das carnes dilaceradas e dos cotocos à mostra.
Que vinha fazer então no edifício da Rua México, às oito horas da manhã?
Estacou no meio da escada, cheio de indecisão e perplexidade. Mas os pés, puxando-o para cima, continuavam galgando os degraus.
No segundo andar, uma luz clara e inteiriça como a do sol matinal que se estirava, doméstico, no piso do corredor, fez-se síntese e verdade dentro dele.
Recorrendo à placa ele não tinha que reascender à condição humana, como os mutilados da Avenida.
A si bastava descer até o comum das pessoas. Demitir-se da condição de elo entre o homem e as nuvens. Recuar até o meio deles. Ser um deles.
A idéia, clara e pacífica agora, brotara-lhe na véspera, tumultuosa e obscura, quando percorria com os olhos as páginas do Jornal do Brasil. Deparara com os dizeres do anúncio, os mesmos que tinha diante dos olhos, na porta de vidro fosco: Dr. Pacheco Fernandes – Cirurgia Plastica.
Entrou numa ante-sala luxuosa. Lá dentro, ninguém.
Uma segunda porta, de vaivém. Pregada nela a advertência: "Entre sem bater".
Empurrou-a, sentou-se e esperou.
Cirurgia plástica. Menino de Asas lera também sobre os milagres que ela vinha operando. Ali estava um de seus magos, de jaleca e sapatos brancos, óculos reluzentes, rosto escanhoado, instruindo pelo telefone a cliente cujo nariz operara na véspera.
Doutor Pacheco Fernandes, cirurgião plástico. Era uma figura popular em toda a cidade, com fotografias e largo noticiário nos "a pedidos" dos jornais.
Uma rede de publicidade espontânea c calorosa, de iniciativa de seus ex-clientes, alimentava o fogo sagrado em torno de sua pessoa, que destilava otimismo e sabedoria.
Menino de Asas simpatizou com ele. Entregar-se-ia à sua ciência e bondade, decidiu-se ao primeiro exame.
Seus conhecimentos, a segurança da técnica operatória de que falavam os jornais, por ele recém-introduzida no Rio, fariam o resto.
Voltaria a ser igual aos outros. Seria um daqueles muitos seres impessoais e agitados que vira circulando na cidade, rua acima, rua abaixo, inteiramente a salvo da curiosidade cáustica da multidão.
Fundir-se na massa anódina da metrópole! Integrar-se na grande rotina feita das pequenas alegrias e frustrações diárias — trabalhar, dormir, transportar-se, queixar-se da vida cara, xingar a administração pública, ler jornais, escutar rádio, ver televisão, torcer nos campos de futebol, brincar no carnaval, ir à praia.
Principalmente ir à praia! — sonhava Menino de Asas. Vestir o calção de banho, meter-se no meio dos outros banhistas sem ser incomodado, nadar como um peixe. Seria a compensação que a ciência lhe daria por aquele ato de renúncia ás suas asas brancas.
Ainda meditou frouxamente que nadar, do ponto de vista dos homens, era tão absurdo como voar. Os homens nasciam com braços e mãos para manipular coisas, seres predatórios que eram. Se a natureza não os dotara de nadadeiras é porque não os queria dentro da água.
Contudo, aqui eles tiveram coragem para a rebelião. Largavam-se do mundo bruto e áspero feito de areias e pedras, e faziam-se ao mar. Sendo assim, por que aquela celeuma em torno de sua pessoa munida de asas?
Afinal, a ele acontecera apenas isto: dominara os caminhos do céu, balizados pelas nuvens e proibidos ao comum dos homens.
Vinha daí a sua condenação, concluiu. A saudade era a grande lei do homem e a sua fuga para o mar uma lei instintiva, de eterno retorno. Já a escalada do céu era a aventura sagrada que o homem não ousava nem perdoava a seu semelhante. Salvo, munido das feias máquinas de metal subtraído à terra que ele dominava: aquelas engrenagens rumorosas e atordoantes que contemplara ao sobrevoar o aeroporto adormecido.
Coberta de asas de aviões, riscada pelo jato dos holofotes, ali acabava a fronteira dos homens em suas relações com o infinito.
Transpô-la era incidir em crime de lesa-tordesilhas, quebrar a lei que os punha a salvo dos ventos, trovões e raios celestes, deuses que o homem não ousava freqüentar.
Ainda assim ele queria ser como os homens. Queria ser um deles. Daí a fé alta e inteiriça e a funda esperança que pusera naquela visita matinal ao consultório médico. Daí a timidez que o imobilizou de repente, fazendo-o tropeçar nas palavras, quando o doutor Pacheco Fernandes, colocando o telefone no gancho, perguntou-' -lhe numa voz amável e bem construída:
— Que deseja, rapaz?
— Queria que o doutor me atendesse, desse um jeito no meu caso.
— Qual é o seu caso, rapaz? — perguntou o doutor Pacheco Fernandes, intrigado. Aquele tipo de cliente não combinava bem com o verniz dos móveis nem com a elegância e os achaques de sua clientela de bom gosto.
Menino de Asas abriu a capa, mostrou as asas.
— Meu caso é este, doutor.
— Essa, não! — exclamou o cirurgião, espantado. Mas logo se refez. Pensou em trote ou gozação de algum colega malicioso, inconformado com o seu sucesso. Cerrou o cenho. — Quem o mandou aqui? A porta está aberta, retire-se. Em meu consultório não tolero brincadeiras de mau gosto.
— Brincadeira não, doutor! Verdade verdadeira. Nasci com essas asas e não as suporto mais. O doutor não leu os jornais? Me perseguem como a um monstro, um criminoso. Só o senhor pode me salvar, doutor!
E Menino de Asas chorava, patético, em seu pranto.
— Acalme-se, por favor, rapaz. Nada li nos jornais, mas agora me lembro de que ontem à noite, lá em casa, minha filha falou qualquer coisa sobre um caso assim, publicado na imprensa.
— O Monstro de Asas sou eu! Mas juro que não por minha culpa, doutor!
— Basta, rapaz. Acredito em você. Não precisa chorar.
O doutor Pacheco Fernandes profissionalizou-se.
— Seu caso é muito interessante. Mas comecemos pelo princípio. Quem o enviou a mim?
— Ninguém. Li seu anúncio no jornal, vi a placa à entrada do consultório e me agarrei a ela como um náufrago.
— Quer dizer que pretende ser homem em vez de anjo?
— Isso mesmo, doutor.
— Seja — disse majestosamente o doutor Pacheco Fernandes.
Ia para um mês que Menino de Asas se entregara às mãos do doutor Pacheco Fernandes. Progresso em sua reconversão humana ainda não havia. Mas a lentidão do tratamento era fato previsto.
Naquele tom bem humorado, que era um dos segredos de seu sucesso, o doutor Pacheco Fernandes advertira-o:
— Milagre não prometo, rapaz. Meu trabalho consiste mais em desfazer um, do que cm operar outro. Levará tempo. Até lá prepararemos o terreno.
O terreno, como o doutor Pacheco Fernandes o revolvia! Apaixonado pelo caso extraordinário que lhe caíra às mãos, não tinha sossego, nem o concedia a Menino de Asas. Eram exames de laboratório, testes, radiografias, um cerrado bombardeio de perguntas.
— Sabe de algum caso de lues em sua família?
Menino de Asas não sabia. O pai era homem saudável. A mãe, também. Os parentes, até onde a memória os alcançava, eram pessoas simples e normais, ligadas à terra desde que o mundo era mundo.
— Seus pais bebiam?
— A velha só água, leite e garapa de cana. O velho, vez por outra, tomava uma abrideira.
Afastada a possibilidade de tara sifilítica ou herança alcoólica, o doutor Pacheco Fernandes refugiava-se noutras hipóteses, sem se fixar em nenhuma.
Lia livros de Medicina, corria às livrarias especializadas para adquirir novidades científicas, passava manhãs inteiras na Biblioteca Nacional exumando velhos trata-distas.
Atirava-se aos cronistas medievais, fuçava histórias de feitiçaria e de homens-morcego, refugiava-se nos autos da Inquisição, na mitologia, no folclore, no lendário.
Munido do melhor espírito científico, cheio de paciência e obstinação, lia tudo que pudesse ter uma ligação direta ou remota com o caso daquele raio de cliente que lhe entrara consultório adentro.
Remexia todos os ângulos do problema, e se desesperava. Aquele caso chegava a ser uma provocação à ciência e a ele próprio, seu luminar. Desabafava num humor reto e seco de especialista:
— Se os evolucionistas tivessem construído sua teoria partindo da escala alada, tudo estaria resolvido. Mas com essas asas em vez de uma bela cauda de macaco, você botou tudo a perder.
Menino de Asas divertia-se e sofria também, solidário com o desespero meio cômico do doutor Pacheco Fernandes. Lembrava-lhe maliciosamente a simplicidade com que a mãe resolvera a questão:
— Minha mãe dizia que estas asas eram um aviso de Deus.
Doutor Pacheco Fernandes discordava:
— Seu caso, meu filho, é uma das muitas verdades que se verificam na Natureza, mas cuja razão a ciência desconhece.
E dissertava sobre as leis mendelianas, sobre os caracteres predominantes e retroativos que, volta e meia, numa curva do século^ pregavam surpresas como esta.
Há gente que nasce com seis dedos em cada mão. Há gigantes e anões. Há xifópagos, e os que nascem unidos pela cabeça. Talvez tenha havido um tempo, milhões de anos atrás, em que os seres humanos possuíssem asas. Vinham de outros planetas, talvez, o que daria origem ao simbolismo dos anjos. E mesmo que isso não fosse científico há certos indícios de que, antes de nos tornarmos humanos, passamos por etapas de seres alados.
Doutor Pacheco Fernandes organizara um fichário completo para aquele caso. Eram centenas de fichas com anotações curiosas. Nas horas de cansaço, elas lhes serviam de distração.
Acendia um cigarro, abria o arquivo, começava a repassar:
Minotauro — Monstro com cabeça de touro e corpo de homem.
Polifeno — Gigante de um olho só no meio da testa.
Quimera — Monstro com três cabeças, corpo meio cabra meio leão, cauda de dragão, que vomitava chamas. Foi morto por Belerofonte, cavalgando Pégaso, o cavalo de asas.
Seguia em frente, o cigarro evolando-se no cinzeiro, as fichas sucedendo-se entre as mãos, recordando quantos seres fabulosos fingira a fantasia dos séculos ou impregnara a memória dos povos: esfinges, sátiros, faunos, unicórnios, hidras, pássaros metálicos de Estinfália, grifos, hipogrifos, centauros. . . Seres humanos raros como os blemeyes, com cabeça na barriga; os cinocéfalos, com cabeça de cachorro; os unípodos, de um pé, apenas, mas gigantesco. Seguiam-se as teogonias de deuses híbridos, legião inumerável; o abundante marulho alado — anjos, arcanjos, querubins, serafins; e animais simbólicos de que nos falam patriarcas, profetas e evangelistas.
Doutor Pacheco Fernandes cansava-se, acendia outro cigarro, mudava de posição na cadeira. Mas pouco depois, de Bíblia em punho, reduzia a fichas de cartolina azul as visões do profeta Isaías sobre os misteriosos seres que escureciam a Terra antiga com a sombra de suas asas poderosas. Fisgava uma alusão, declamava-a em voz alta:
Os serafins estavam acima dele; cada um tinha seis asas: com duas cobriam seus rostos, e com duas cobriam seus pés e com duas voavam.
Menino de Asas armava uma hipótese, brincalhão:
— Essa visão do profeta Isaías não seria o primeiro anúncio dos aviões de seis motores?
Doutor Pacheco Fernandes soltava uma praga, Menino de Asas consolava-o com outra hipótese mais conciliadora.
— Ainda bem que o meu caso é mais simples. Apenas duas asas, hem doutor?
Acabavam rindo, solidários diante do mesmo problema.
Paralelo às pesquisas, o doutor Pacheco Fernandes preparava um relatório secreto ao Colégio Brasileiro de Cirurgiões, espécie de memória com que esperava abalar o mundo científico e leigo com aquele caso.
A "Operação Menino de Asas", como a batizara ia dar o que falar quando fosse comunicada ao mundo científico e leigo. Seria o coroamento de sua vida de esteta do bisturi. Uma nova etapa estava para ser atingida pela ciência da plástica através daquele ser de exceção. Assim pensava o doutor Pacheco Fernandes. E, se assim pensava, assim agia.
Menino de Asas, informado desses altos planos entregava-se em suas mãos, dócil, crédulo, colaborador.
Muitas razões, a começar pelas do próprio tratamento, tinham sido invocadas pelo doutor Pacheco Fernandes para convencê-lo a vir residir em sua companhia.
Deixara-se convencer. Afinal não tinha para onde ir.
E ali estava instalado, havia cerca de um mês, no pequeno quarto que ficava nos fundos da residência, bela vivenda na praia de Copacabana, cercada de relvados e altos coqueiros.
Para se dedicar melhor ao caso, o doutor Pacheco Fernandes entregara o consultório ao assistente, sob pretexto de tirar umas férias. Às voltas com chapas de raios X e livros de Anatomia Comparada, quase não saía de casa. Laboriosamente ia construindo a teoria científica com que esperava devolver ao cliente a condição humana.
Em síntese, explicava ao Menino de Asas, a operação consistia em localizar na estrutura das omoplatas a última articulação óssea de contextura humana; aí, forçosamente, devia começar a transição do humano para o alado. Simples como água. Isso feito — inflamava-se o doutor Pacheco Fernandes, a piteira branca descrevendo círculos concêntricos no ar — o bisturi, entrando em ação, faria o resto.
Anatomicamente libertados e retificados daquela deformação, os ossos e cartilagens correspondentes aos antebraços, dedos e mãos, enxertados de tiras de carne e de pele roubadas a outras partes do corpo, voltariam a realizar os movimentos mais instintivos e próprios dos membros superiores.
O consultório, o sigilo continuava. As chapas eram tiradas e reveladas ali mesmo.
— Pegar objetos, por exemplo — ilustrava o doutor Pacheco Fernandes, possuído pela visão alta e esplêndida daquele milagre. O seu milagre.
— E depois? — maravilhava-se Menino de Asas.
— Depois, repouso, uma alimentação dirigida, exercícios musculares, aplicações de raios cicatrizantes e massagens fariam o resto. Até lá — acautelava o doutor — era repousar, comer bem e ocultar-se. A notícia de sua rápida passagem pelo boteco da General Pedra ainda anda pelos jornais.
Dando o exemplo, o médico cercava-se de toda prudência, quando a necessidade de bater novas chapas de raios X os levava, noite feita, ao consultório da cidade.
No automóvel, protegido pelo amplo avental de enfermeiro que o doutor Pacheco Fernandes o obrigava a envergar sobre a roupa, Menino de Asas sofria o calor do verão, que se contagiava ao automóvel. Continha-se, porém, suportando a canícula. Só assim estaria em segurança e a salvo da curiosidade das ruas.
No consultório, o sigilo continuava. As chapas eram tiradas e reveladas ali mesmo. Noite alta retornavam à casa, o doutor Pacheco Fernandes sobraçando vitoriosamente os grandes envelopes opacos, onde eram guardadas as chapas de raios X.
Essa vida nova, cheia de significação para Menino de Asas, pouco se modificava no correr do dia. Fazia as refeições no quarto, lia, dormia, passeava um pouco no belo jardim, protegido do olhar da vizinhança pelo elegante renque dos coqueiros que cercavam a residência.
Era o dia da estréia de Rute, filha única do doutor Pacheco Fernandes, como professora primária. Chovia. Metido na capa de gabardina, para não ser reconhecido, Menino de Asas acompanhou-a à escola. Quando chegaram, a turma de principiantes, formada por duas dezenas de crianças entre sete e oito anos, marchava pelo corredor, rumo à sala de aula. Rute seguia-as com uma expressão preocupada.
Acomodados nas carteiras, Rute perguntou:
— Que fizeram vocês durante as férias?
Silêncio completo na sala. Ninguém se arriscava a dialogar com a professora, personagem completamente estranha às suas vidinhas de garotos rurais.
Era o dia da estréia de Rute como professora. Aquele primeiro contato ia indo muito bem.
Rute correu os olhos pela lista de chamada e escolheu uma pequena cobaia humana para estabelecer diálogo e captar a intimidade da turma. Assim recomendava a boa psicologia aprendida no Instituto de Educação.
— Que fez você de bom durante as férias, Francisco?
— Vi o mar e nadei sozinho! — respondeu prontamente o garoto escurinho, de blusa impecavelmente limpa, com as letras EP — Escola Pública — bordadas no peito.
— E você, Odete? Divertiu-se muito no carnaval? — prosseguiu Rute.
— No carnaval, não — esclareceu Odete. — Mas no Natal, fui passear em Caxias com mamãe. Vi Papai Noel na rua e, de noite, ganhei uma boneca.
— E você, Eliane?
— Ganhei mas foi um cachorro. Ele tem o rabo branco e se chama Fiel.
Uma menina magra aparteou a companheira, mas de olhos pretos fitos na professora:
— No Natal, só ganhei um tombo. E mostrou o machucado.
— Como foi isso, garota? — interessou-se Rute.
— Caí da escada! — resumiu dramaticamente a garota magrinha.
Aquele primeiro contato da professora estreante com a classe dos novatos, ia indo muito bem. O tema da conversa voltara a ser cachorro e quase, todas as crianças levantavam as mãos, ao mesmo tempo, pedindo licença para falar. Assim, Menino de Asas, que a tudo assistia, sentado na última fila de carteiras, ficou sabendo que a turma possuía doze cachorros e quatro gatos. Um menino tinha dois totós: Duque, suburbanamente vira-lata e marrom, e Dick, britanicamente branco. Quanto a Rute, interpelada, esclareceu que era dona de uma bassê chamada Brigite, e de um canzarrão chamado Skindô.
Quando o assunto canino esfriou, um garoto, sentado na primeira fila, levantou a mão e pediu, timidamente:
— Professora, quero ir lá fora, beber água. . . Outro, despachado como ele só, completou:
— E eu, quero fazer pipi.
Aquele era o momento culminante do batismo de fogo de Rute. Mas ela estava preparada para enfrentar os hábitos dos garotinhos da Zona Rural. Calmamente, invocou uma entidade meio abstrata chamada Regulamento e passou a explicar que os alunos tinham licença para ir "lá fora" na hora do recreio. Depois, abriu a pasta que trouxera consigo, retirou uma gravura de dentro e perguntou à classe:
— Que é isto?
— Uma escova de dentes — responderam muitos, mas não todos os alunos. Alguns nunca tinham visto um objeto daqueles, nem sabiam qual era sua utilidade.
— E isto? — continuou Rute apontando, sucessivamente, a gravura de um sabonete, de uma pasta de dentes, um pente, etc. Muitos alunos estavam completamente por fora. Não desconfiavam, sequer, da existência, quanto mais da utilidade daqueles objetos. Mas logo ficaram sabendo, e prometeram à professora fazer uso diário deles, a seco, como o pente, ou no banho, como o sabonete.
A lição de Higiene sofreu uma pausa, enquanto Rute enchia a papeleta pedindo exame de vista para um menino chamado Hildebrando, canhoto de letra e de movimentos, mas simpático e vivo, apesar dos olhinhos atacados de fotofobia. "Ou tracoma", monologou Menino de Asas, lembrando-se de que lera no jornal que a Zona Rural ainda não erradicara completamente essa doença.
A aula de Higiene terminou com a observação de uma garotinha que ouvia atentamente a dissertação de Rute sobre a vantagem imunizadora da vacina.
— Sabe, professora, tomei vacina para não ter febre. Mas aí, eu fiquei com febre. Como é que pode?
Depois do lanche, as crianças voltaram mais uma vez à sala de aula. Rute distribuiu folhas de papel em branco, carimbado com pequenos desenhos, e instruiu-as sobre as duas operações básicas da Aritmética — soma e diminuição. Propôs duas questões.
A primeira era a seguinte: quatro igrejas mais três igrejas, quantas igrejas são? Metade da turma escreveu a soma certa. A outra metade permaneceu calada, na santa mudez da ignorância.
Veio a segunda questão, mais complexa. Dois ursos, menos um urso, quantos ursos são?
A classe em peso respondeu sem titubear que eram três ursos.
Diplomaticamente, a professora ponderou que, assim, era urso demais. Como soasse a sineta, deu por findo aquele primeiro dia de aula.
Preso voluntário àqueles domínios, Menino de Asas entediava-se. Mas à hora das refeições, a solidão era quebrada por um bater delicado à porta do quarto. Era Rute, trazendo a comida.
O quarto se aclarava. Rute, quieta e linda, sentada a um canto, enquanto ele se punha desajeitadamente a comer. Rute de grandes olhos negros, o cabelo solto sobre os ombros, a saia de colegial deixando entrever a curva da perna bonita.
Rute, pequena abelha destilando uma doçura de mel na voz clara e bem construída que lembrava a do pai. Rute, cujo rosto oval copiava o belo moreno do retrato materno colocado na sala de jantar.
Rute, derramando os líquidos olhos negros, sobre suas asas, obstinando-se nelas com um jeito silencioso de quem tinha alguma coisa a dizer e não a diria agora, nem amanhã, nem nunca!
Rute, que entrava no quarto sob qualquer pretexto, ou a pretexto nenhum, e ficava olhando-o.
Rute, com quem sonhara na noite anterior e o sono, enxotado, fora embora até que a madrugada, como um grande pássaro fresco bem dormido, entrara pelos vidros da janela.
Rute, que ali permanecia, o jornal aberto na mão.
— Quando acabar o lanche leia a notícia do ladrão que fugiu do SAM e foi preso.
Menino de Asas alvoroçou-se. Seria algum conhecido da Mata da Tijuca? Fez menção de largar a comida e passar ao jornal. Rute censurou-o, cheia de dengue.
— Coma primeiro. O jornal não vai fugir, não. Rendido à doçura do argumento, concentrou-se na refeição, os olhos pousados em Rute.
— Por que você me olha tanto? — perguntou a mocinha.
— Porque gosto.
— Eu também gosto de olhar para você.
— Pra mim, não. Você gosta é de contemplar minhas asas. Quero ver quando eu for operado.
— Olharei da mesma maneira. Mas se eu fosse você não operava, não.
— Por quê?
— Porque elas são muito bonitas.
— Bonitos são seus olhos.
— Muito obrigada.
— De nada, Rute. Ficaram em silêncio, um diante do outro, ela de olhos baixos, ele corado.
Depois Rute correu pelo quintal, entrou em casa cantando. Coração aos trancos, Menino de Asas começou a ler o jornal.
"Pilão Preso Como Assaltante", contava o jornal.
Recolhido à delegacia de Copacabana, de onde seria devolvido ao SAM.
A polícia o submetera a vários interrogatórios. Inútil. O prisioneiro concentrava-se num silêncio cru, negando qualquer sociedade com outros menores.
A polícia não dava crédito às negativas. Dentro de horas — calculava o jornal — aquele elo importante da vasta cadeia da delinqüência juvenil que, nos últimos meses, vinha assolando a cidade, cederia à pressão dos métodos policiais.
Que métodos seriam esses? — indagava-se inquieto Menino de Asas. Lembrou-se das histórias horripilantes que Pilão contara no esconderijo da Mata da Tijuca. Temeu por ele. Pilão estaria sendo espancado? O jornal silenciava a esse respeito.
Também quem o mandara roubar? Ele bem que previra aquele desfecho. Pilão trabalhando-se o miolo, cheio de argumentos, ele na defensiva, recusando entrar na quadrilha.
— Entra pro bando, Menino de Asas! Com essas asas, lá embaixo, você não tem vez. Se te pegam é SAM na certa. Ou coisa pior.
Pilão enganara-se. Ali estava ele cercado de todo conforto, protegido da curiosidade pública e a salvo da própria polícia. Lia, comia, dormia, preparando-se em sigilo para a operação que faria dele um rapazote igual a Pilão.
Enquanto isso, o amigo recebia o castigo por sua vida de estripulias.
Pobre Pilão! Fora legal com ele. Protegera-o da ferocidade do bando. Acolhera-o sem perguntar de onde vinha. Aceitara-o como um igual.
No primeiro andar, Rute continuava cantando. Tão bonita a voz de Rute!
Também, que diabo, quem mandara Pilão roubar, meter-se com gente perdida? Ateus, moleques de sarjeta. Quem mandara?
Perdido! Delinqüente! Querendo arrastá-lo para o crime!
Mas também lhe dera comida. Deixara-o dormir em sua própria barraca. Protegera-lhe a retirada. Até lhe ensinara o caminho, morro abaixo.
Quem nasce lá na Vila nem sequer vacila, zumbia Rute dentro de casa, abelhinha carregada de mel, subindo e descendo escadas, a voz morrendo bonita no fim dos versos:
em a-bra-çar o sam-am-ba. . .
Pilão maluco! Pusera-se do seu lado quando o bando se rebelara, temendo ser denunciado por aquela exótica figura de asas que passara a noite com eles mas recusava a integrar-se na comunidade.
— Vocês foram amigos, mas eu sou direito. Não vim para o Rio roubar, não.
Dissera assim e fora embora. Contudo, quando chegara tintando de frio, faminto, perseguido de todos, o pessoal o aceitara como um igual. Se fugia à polícia, como saíra no jornal, era um deles.
Mas ser um deles não era direito, não.
— Direito? — chasqueara Pilão. — Você fala assim porque ainda não conhece a cana aqui do Rio. Pode ir embora. Mas quem garante que você não vai nos denunciar?
Ofendera-se.
— Não sou traidor, não, Pilão. Nem ingrato. Vocês me ajudaram, pago na mesma moeda, assim que puder.
A oportunidade chegara, era aquela! — latia-lhe a consciência como um pequeno cão alertado. Pilão preso, ele perto. Podia salvar o amigo com suas asas possantes. Felizmente ainda as tinha.
Que importava que Rute continuasse a cantar lá em cima? Ela não saberia. E se soubesse, de certo lhe daria razão. Salvar um amigo. Um perdido, um errado. Mas um amigo!
Rapidamente esboçou o plano. O bairro pegando no sono, ia rondar a prisão. Levaria comida, um pedaço de corda.
Protegido pela velha capa de gabardina, ficaria à espreita de uma oportunidade. Ela surgindo, executaria o plano de fuga de Pilão.
Muito tempo rondou a delegacia à espera da oportunidade. Mas esta não aparecia.
O céu, gordo de nuvens e ameaçando tempestade, justificava até certo ponto a capa que lhe escondia o corpo.
Mas o calor que se desprendia do asfalto, trabalhado o dia inteiro pelo sol de dezembro, mortificava-o. Assim mesmo mantinha-se firme na ronda. Pilão bem que merecia o sacrifício.
Os arranha-céus vizinhos iluminados, todo mundo nas sacadas. Enquanto o aguaceiro não desabava, os moradores entretinham-se com o movimento da rua. Era sábado e o vaivém policial recrudescia.
Grupos de curiosos de short ou em mangas de camisa, encostados às árvores, apreciavam o movimento da delegacia. De momento a momento chegavam e partiam carros da radiopatrulha, antenas dialogando com a Central de Polícia.
"Cosme" e "Damião" passavam cônscios e calados tangendo casais modestos pegados fazendo coisa feia, ou simples vagabundos surpreendidos no crime de ir e vir. Deixavam-se conduzir uns excitados, outros quietos, a maioria protestando inocência.
Sob a pressão da tempestade, que já anavalhava o céu com os primeiros rasgões fulgurantes, o mar revolvendo-se na fímbria da praia, um grande calor madurecendo tudo, Copacabana despia-se de seus pudores e freios. E pecava, assaltava, feria, embriagava-se num desabafo de taras e compensações.
Aquela noite de verão desequilibrava os nervos sensíveis do bairro, libertava o baixo instinto das ruas, que vinha desaguar, como um rio de mau gosto, entre protestos de inocência e bossa malandra, à porta da delegacia.
— Nós estávamos só no pega-pega, seu guarda; namoro legal, no escurinho. . .
Nem todos se acomodavam à passividade envergonhada do flagrante. Havia estrebuchos, esboçar de reações. Valentia inútil que ia sendo tocada a sopapos pelo "Cosme" e pelo "Damião".
Os primeiros pingos de chuva caíam quentes no asfalto. O relógio da igreja começou a dar as horas. Duas da madrugada.
Menino de Asas redobrou a vigilância. A chuva dispersara os curiosos. Sua oportunidade chegara.
Engano. Automóveis encostavam no meio-fio, saltavam moças decotadas, rapazes em trajes a rigor. Um guarda fechava o cortejo. Na delegacia a algazarra recomeçou.
Aquela era uma das muitas arruaças inconseqüentes, que começavam nas boates e bailaricos grã-finos e vinham acabar no distrito, entre protestos e risadas, no melhor estilo da gente bem.
Um rapaz estrábico e franzino procurava recompor a dignidade da casta elegante, que se niilizava assim de repente, de mistura com a cambada apanhada nas ruas.
Versões da baderna, bastante atenuadas, começavam a brotar da boca dos foliões. A linguagem desabrida de há pouco desaparecia, como por encanto, substituída pelo pudor de classe, ferido em cheio com o imprevisto daquele comunismo social que dominara a delegacia. O líder do grupo adiantou-se.
— Não foi nada, Senhor Comissário. Viemos espontaneamente esclarecer um mal-entendido com essa senhora.
Alteou a voz.
— Dá licença para usar o telefone?
O telefonema era o grito de socorro, a mobilização da padrinhagem prestigiosa. E uma sutil advertência à autoridade sobre a condição social dos implicados.
Mas o comissário, rapaz de bigodinho ralo e anel de grau no dedo, novo no bairro, ignorando seus costumes e fórmulas, não atinou com a insinuação:
— Deixe o telefonema para depois. Primeiro vamos ao caso.
Então o líder do grupo, magnífico exemplar de Copacabana, fortão e brunhido de sol, levantou a voz com todo o peso de sua importância:
— Sabe com quem está falando, comissário?
O comissário tomava o depoimento do guarda. Pegado de surpresa, claudicou:
— Não tenho o prazer.
— Sou Edu, o sobrinho do Ministro.
Edu era arruaceiro famoso na Zona Sul. Especialista em arrasar boates, sua crônica de valentão jamais pisaria o noticiário policial. Andava de preferência na coluna social, envolta num halo de indisfarçável simpatia. Tratavam-no como uma criança trêfega, vítima daquela perfeita elefantíase muscular sobre a qual se equilibrava a cabecinha redonda como uma garrafa de Old Parr, pequena demais para conter alguma coisa além do litro de uísque que ele mamava todas as noites, valentemente.
Depois vinha invariavelmente o espetáculo de há pouco, numa boate da Rua Rodolfo Dantas.
Edu atirara-se a tudo que se opusera em seu caminho — mesas, piano, garções, paredes.
E ali estava, parrudo e importante, pedindo um telefone para falar com o tio ministro.
Diabo! Sobrinho de ministro! O caso complicava-se. O comissário baqueou. Agora o reconhecia, sim.
— Guarda, uma cadeira para a senhora, o telefone para o cavalheiro.
E uma grande e macia esponja sobre o incidente, propunha o comissário, o bigode abrindo-se num sorriso sobre o beiço cor-de-rosa.
A seu lado o guarda que comboiara o grupo recriminava-se. Azar! Como não vira logo que aquele era o Edu? Acontecer-lhe isso justamente agora que aguardava promoção!
Edu, como adivinhando a desolação que sacudia o guarda, consolou-o com pancadinhas nas costas.
— Da próxima vez que intimidar alguém, veja com quem fala, praça-velha.
O grupo rolava em direção à porta. O caso resolvia--se. Mas um troço de repórteres invadiu a delegacia, fotógrafos à frente, batendo chapas. Edu enfureceu-se:
— Quebro a cara do primeiro que fotografar a senhora!
A senhora, esplêndido exemplar moreno, cobria o rosto com as mãos. Estourou um flash, sua tez mate fez-se verde à luz enérgica da lâmpada.
Edu atirou-se ao fotógrafo. Mas o guarda antecipou-se. Levantou o cassetete, desceu-o sobre a máquina, espatifou-a a borrachadas.
Os repórteres protestavam, ninguém se entendia.
O comissário, a mão à ilharga onde o cano da arma repontava, tentava impor a ordem. Inútil. Novos flashes estouravam, numa batalha de luzes cegantes.
A delegacia transformara-se de repente num amálgama de urros, gritos, punhadas, bafo de uísque, perfume, bodum e sangue pisado.
Pela manhã a confusão sairia nos jornais transformada em notícia, personagens e situações ampliados em fotos de escândalos ou reduzidas ao anonimato, conforme a importância e as amizades dos protagonistas.
E o bairro elegante, acostumado a essas escaramuças, se desfaria em riso e anedotas, sal e mel de Copacabana.
Às quatro horas da manhã tudo cessou. As luzes se apagavam na delegacia. Na rua só a chuva estalava na marquise dos edifícios.
Menino de Asas movimentou-se. Amadurecera o plano de fuga de Pilão. Rondando a delegacia, avistara entre as grades do primeiro andar um par de olhos tristes espiando a rua. Talvez fosse Pilão. Ou não seria?
A cortina de chuva e as barras de ferro dificultavam-lhe a identificação do prisioneiro. De qualquer forma, assobiara, alertando-o. Teria ouvido?
Entrou na garagem do edifício pegado ao distrito, subiu pelo elevador de serviço, saltou no último andar. Dois lances de escada: venceu-os.
No terraço examinou o telhado da delegacia, quinze metros abaixo. Tirou a capa, prendeu-a entre as pernas, mediu a distância, deixou-se escorregar no espaço, as asas abertas em horizontal, como as pás de um helicóptero, freando o impacto do corpo.
Pisou macio na cumeeira do edifício, caminhou equilibrando-se até a sacada do lado da rua, onde avistara a cabeça de Pilão. Agachou-se, removeu uma telha, mais outra, espiou pela brecha.
Um vulto dormia no canto da sala, enrolado em trapos. Seria Pilão? A corda começou a descer devagar, tocou no vulto adormecido. Cutucou-o de leve, depois com mais força. O vulto tinha o sono pesado. Menino de Asas jogou-lhe pedacinhos de caliça arrancados do reboco do parapeito. O vulto mexeu-se. Tocou-o de novo com a corda. O prisioneiro deu um salto assustado, olhou para cima. Era Pilão.
Avistou entre as grades um par de olhos tristes. Talvez fosse Pilão. Ou não seria?
Menino de Asas tranqüilizou-o num cicio.
— Sou eu, Pilão!
Removeu mais duas telhas. O buraco era agora um amplo quadrado, limitado pelos caibros, por onde a chuva despencava.
Um galho de árvore vindo da rua passava rente ao telhado.
Menino de Asas amarrou nele a ponta da corda, experimentou o nó, mergulhou a cabeça pelo buraco, convidou:
— Sobe, Pilão!
Pilão não se fez de rogado. Em poucos minutos estava sobre o telhado.
— Obrigado, Menino de Asas.
Menino de Asas recolheu a corda, lançou-a à rua. Pilão rastejou até o parapeito, espreitou à esquerda, à direita. Ninguém.
— Vou descer. Espero-o na esquina.
— Legal.
Pilão começou a escorregar devagarinho. A corda encharcada facilitava a descida. A chuva recrudescia, afogando os ruídos. Pilão tocou o solo, correu a se abrigar na marquise do edifício próximo.
Menino de Asas prendeu a capa entre as pernas, deu um salto no ar e, com alguns movimentos de asas, pousou ao lado de Pilão. Avisou-o:
— No bolso da capa tem alguns sanduíches. Trouxe-os para você.
Pilão recusou. Comer numa hora daquelas? Melhor era cair fora.
— Vem comigo, Menino de Asas?
— Não. Paguei a dívida que tinha com você. Agora volto para casa.
— Então, até!
— Até um dia, Pilão.
Pilão aproximou-se, abraçou Menino de Asas, este horrorizou-se. À luz do poste, as feições de Pilão saltavam do rosto, inchadas e irreconhecíveis. A cara deformada de equimoses, o peito todo lanhado, as costas cheias de ronchas, a camisa em frangalhos.
Pilão leu o espanto nos olhos de Menino de Asas. O ódio concentrou-se em suas pupilas escuras, escorreu--lhe da boca:
— Foram eles. Queriam saber onde ficava o nosso esconderijo.
Sua voz calou-se humilhada mas logo se ergueu, selvagem, cheia de orgulho:
— Mas eu não dei o serviço, não!
Menino de Asas ainda procurava reconhecer Pilão naquela figura massacrada.
— É você mesmo, Pilão?
— Lógico.
E Pilão sumiu na chuva.
Adormecido, Menino de Asas sentia uma cócega carinhosa percorrer-lhe os lábios. Contraiu-os numa careta inconsciente e a risada divertida de Rute o acordou. Curvada sobre ele, Rute cutucava-o com a ponta de um lápis.
— Levante-se, dorminhoco! — dizia ela, os olhos negros cheios de brilho, o busto sacudido de riso. Menino de Asas sentia-lhe o morno resfolegar da respiração. Um suave perfume de alfazema exalava-se de sua blusa clara.
— Puxa vida! Parece que dormi um bocado. Que horas são, Rutinha? — perguntou desembaraçando-se da capa. Voltara tão cansado da delegacia que adormecera vestido.
Rute aproximou-se da janela, escancarou-a de um golpe. Um jato de sol bateu nos olhos de Menino de Asas. Cego pela claridade, as pestanas irisadas de pingos de luz, dirigiu-se ao banheiro.
— Andou na farra, hem seu malandro? — gritou Rute do quarto, começando a refazer a cama.
Sob o chuveiro, Menino de Asas sorriu, lembrando--se de Pilão.
Àquela hora, rodeado pelo pessoal, estaria contando pela décima vez como conseguira fugir da delegacia auxiliado por ele, Menino de Asas.
Sentiu-se feliz. Prometera pagar a ajuda que recebera de Pilão e cumprira a promessa. Alegre, começou a cantarolar o samba de Rute:
Quem nasce lá na Vila
nem sequer vacila. . .
No quarto, Rute intrigava-se com aquela alegria. Seu rostinho bonito fechou-se amuado; sombras vagas desceram-lhe até os olhos. Fazendo a cama, as mãos esmurravam com força o travesseiro amarfanhado. Quando Menino de Asas saiu do banheiro, enrolado no roupão, a voz de Rute tinha uma inflexão adulta absolutamente nova para ele:
— Foi à boate com ela?
— Ela quem? — espantou-se Menino de Asas. Compreendendo a alusão, protestou molemente, sorriu de jeito dúplice, procurando alimentar o ciúme de Rute.
Agia em parte por vaidade, em parte para despistá-la sobre o motivo de sua ausência na noite anterior.
— Vou contar a papai que você passou a noite fora de casa!
E os olhos de Rute fuzilavam, negros e lindos.
— Conte não, Rutinha.
— Conto, sim, seu farrista, seu. . . seu. . .
Irada, procurava as palavras. Quando as encontrou, lágrimas saltavam-lhe dos olhos:
— ...seu ingrato ... seu traidor ... seu aleijado! Menino de Asas espantava-se daquela violência, nova para ele. Ao impacto cruel da alusão — aleijado! — misturava-se uma sensação deliciosa, que anulava a outra.
Ele era o motivo daquela explosão. Rute gostava dele, descobria. E ele, gostaria de Rute?
Claro que sim. Sonhava com Rute todas as noites e eram sonhos vagos e belos, confusos e inatingíveis como altas montanhas vistas de muito longe.
Inquietou-se.
Traidor, ele? Traidor de quem? Pilão? Ora, Pilão ganhara o meio do mundo, estava livre graças a ele. Traidor de Rute? Era isso. Traíra a Rute. Mas em quê? Talvez por ter ficado na rua toda a noite, deixando intocada a cama branca e gostosa que ela arrumava para ele, cada manhã.
Na certa, antes de dormir, Rute viera a seu quarto com o copo de leite e o pratinho com bolachas, come fazia cada noite; e deparara com a cama vazia. Talvez... E se perdia em hipóteses. Mas aquela idéia do ciúme de Rute rastejava dentro dele, punha-se em pé, enroscava-se-lhe no pensamento. E com ela, uma flor fresca e nova, chamada vaidade, crescia dentro dele.
O corpinho moreno sacudido de soluços, Rute chorava ao pé da janela. O sol batia-lhe no rosto desfeito, escorria-lhe pelos cabelos, desenhava sua figurinha bonita no ladrilho do chão. Menino de Asas chegou-se a ela.
— Que bobagem, Rute. Chorando feito uma garotinha, sem motivo nenhum. . .
— Sem motivo? — soluçou Rute, uma ponta de orgulho e desafio na vozinha molhada de lágrimas.
— Sem motivo nenhum! — reforçou Menino de Asas. — É verdade que passei a noite fora de casa. Mas por um motivo muito diferente.
— Qual foi o motivo? — voltou a circular, como uma cobrinha nova, o ciúme de Rute.
— Você é capaz de guardar um segredo?
— Claro que sou!
— Então traga o café que depois eu conto o que houve.
Contar não era preciso. Rute voltava lá de dentro com a bandeja do café; no meio dela, aberto em letras gordas, vinha o jornal da manhã. Pela fotografia espetacular, cobrindo metade da página, Menino de Asas adivinhou tudo.
O flagrante mostrava um imenso pássaro noturno planando em vôo rasteiro sobre a rua. Era ele.
Seu segredo estava furado.
Primeiro, pelo instantâneo tirado na véspera por algum fotógrafo retardatário que chegara à delegacia depois do imbróglio dos grã-finos; e agora, pela própria Rute, que depunha a bandeja em cima da mesinha, com o jornal bem à vista, sem qualquer comentário.
Menino de Asas ainda procurou afetar desinteresse pelo jornal e concentrar-se na refeição. Mas a evidência era por demais acintosa. Insensivelmente se pôs a rir.
— E daí? — começou a articular, a boca cheia de pão com manteiga. Rute mantinha-se séria.
— A coisa não é pra brincadeira não, sabe? Papai está por conta. Disse que se a polícia localizar você aqui em casa terá que entregá-lo.
— Isso é mau. . . por causa de nós dois. . . Isto é, do tratamento — corrigiu rápido.
— Também acho, pelas duas coisas — disse Rute com decisão. E baixou os olhos, espantada do que dissera. Investiu adultamente contra Menino de Asas:
— Também quem mandou você se meter nessa encrenca? A história está no jornal. Você deu fuga a um criminoso, chefe de uma quadrilha perigosa, com não sei quantos assaltos nas costas.
— Não sei nada disso, não — defendeu-se Menino de Asas. — Ajudei apenas a um perseguido, como eu. Pilão me ajudou quando eu precisava. Estava no dever de socorrê-lo e foi o que fiz. Não tinha outro jeito.
— E agora, Super-Homem, você tem algum plano?
— Depende de seu pai. Se ele me abandonar por causa de Pilão, vou-me embora. Ontem eu vi de perto o que é o mau policial. Estava escrito no corpo de Pilão.
À lembrança das feridas e equimoses que descobrira no amigo, Menino de Asas ia-se exaltando. Um rio de palavras encachoeirou rápido em sua boca.
— A mim não pegam! Pilão é acusado apenas de assaltos a casas comerciais. E fizeram aquele estrago no pobre. Imagine eu!, que sou apontado como autor de tudo quanto é crime insolúvel que acontece na cidade. Se acontece um assalto no Leblon, foi o Monstro de Asas. Esfaqueiam um operário em Deodoro? Foi o Vampiro de Asas. Se os comunistas conspiram, vão ver que a Pomba de Moscou está no meio da trama, sedenta do sangue de não sei quantos figurões. Se a polícia e a reportagem dos jornais e das rádios e tevês conseguem me botar a mão, darão o maior show já visto na cidade. Por isso eu digo! — a mim ninguém pega!
— Não fale assim, Menino de Asas. Papai defenderá você.
— Me entregando à polícia? Se seu pai quer me ajudar, faça logo a operação. Dê certo ou não dê certo. Estou cansado de viver como um morcego, trancado aqui o dia todo, caçado como um criminoso, temido como um monstro. Oh!, Rute, Rutinha. Estou cansado. Cansado a mais não poder.
As últimas palavras vieram sofridas, vizinhas do choro. Rute chegou-se a ele, abraçou-o, ficaram mudos e sérios, corações tocados pela mesma emoção.
— Haja o que houver, só sei de uma coisa — disse Rute. — Estou do seu lado.
Seu rostinho iluminou-se com uma idéia magnífica.
— Serias capaz de me dar a coisa que mais quero?
— Tudo o que pedires.
— Seria magnífico. . . Um sonho delicioso. . . Esta noite, quando todos estiverem dormindo, você me toma em seus ombros e nós vamos voando. . . voando. .. Pode voar comigo?
Menino de Asas se fez galanteador.
— Tu és um raminho de flor, Rute. E um raminho de flor pesa tão pouco! Esta noite, todas as noites, voaremos em excursões maravilhosas. Oh, como agradeço a Deus por me ter concedido estas asas que tantas vezes amaldiçoei!
— Será que vamos cair das nuvens nas mãos da polícia? — disse Rute, trocadilhesca.
— Vamos ensaiar um pouco.
O jogo começou. Menino de Asas acomodou Rute sobre as espáduas, ela se abraçou a seu pescoço com firmeza. Menino de Asas agitou-se como um pássaro, em movimentos ascendentes, e começou a perder terreno sob os pés. Rute gritou assustada.
— Devagar, Menino de Asas! Tenho um medo terrível!
De novo no chão, Menino de Asas ideou nova técnica.
— Vamos evitar qualquer acidente. Tome esta corda, fique colada a minhas espáduas, cinja-a em torno de nós, apertando nossos corpos. Assim não, Rute. Aperte um pouco mais! Agora não tenha mais medo, que não vamos cair.
Bateu as asas com vigor, despregou-se do chão sem maior dificuldade. Revoou pelo quarto entre gritos e risadas de Rute, que pouco a pouco perdia o medo e se entusiasmava.
— Oh! que vôo maravilhoso! Vou pedir a papai que não te corte as asas de maneira nenhuma!
Tão ocupados estavam em seu jogo delicioso que não ouviram a aproximação de passos no saibro do jardim, o ruído da porta abrindo-se. Só ouviram o estalido desagradável da voz do doutor Pacheco Fernandes, decomposta pela surpresa.
— Bonito! Muito bonito!
Aquele metal de voz varou-os como uma dissonância imprevista e má. Desamarraram-se um do outro, culpados e lentos. Rute de olhos no chão, Menino de Asas sombrio de gestos e movimentos.
O metal de voz do doutor Pacheco Fernandes feria a nota baixa do ressentimento.
— É assim que paga a minha confiança? Enquanto procuro fazer do senhor um ser humano, desrespeita minha casa, toma liberdades com minha filha, abusa de minha hospitalidade!
Pausa. O metal de voz caía a zero, numa inflexão de suprema frieza.
— Rute, vá para seu quarto.
— É uma pena. Mas já não sou médico, sou apenas um pai. Esse namoro não podia dar certo.
Olhos no chão, Rute deixou o aposento. Nova ebulição de metal.
— Quanto ao senhor, só tenho um caminho: entregá-lo à polícia.
Refeita finalmente da elevada alquimia emocional a que fora submetida, a voz do doutor Pacheco Fernandes ergueu-se serena, quase triste.
— É uma pena. Essa operação mudaria o rumo de nossas vidas. Mas já não sou médico; sou apenas um pai. Esse namoro não podia dar certo.
— Não disse que ele voltava, pessoal? — gritou Pilão quando Menino de Asas começou a subir o atalho que levava ao quilombo dos meninos.
— Deve ser outro gajo, Pilão! — ponderou Tico-Tico. — Se fosse Menino de Asas ele vinha voando, que não era bobo. Aquele vulto lá embaixo, todo desengonçado parece mais um papagaio na areia quente.
— Então eu sou cego, Tico-Tico? Aquele é Menino de Asas. Tua coleção de penas de passarinho vai aumentar.
— Já tenho uma dele, Pilão — respondeu Tico-Tico, orgulhoso.
Enrolado na capa, a maleta a tiracolo, Menino de Asas avançava desajeitado pelo caminho íngreme, saltando de pedra em pedra.
Desde que deixara a estrada e ganhara a mata, o bando fora avisado da sua presença pelo silvo do espia, um garoto trepado numa árvore que dominava toda a região. O binóculo de Pilão fisgara-o de longe. Era ele, sim.
— Quase que você não pega mais a gente aqui, Menino de Asas! — gritou Pilão quando ele assomou à entrada da clareira. — Estamos de mudança!
— Pra onde? — indagou Menino de Asas.
— Pras Furnas, num lugar que só o papai aqui sabe o caminho.
— Então, vamos embora!
Encaminharam-se para a última barraca ainda armada, aboletaram-se. Lá fora o grupo despistava os sinais do acampamento, cobrindo a clareira com areia e garranchos.
— Esse radiozinho de pilha é o maior! — falou Pilão. — Dá o serviço completo. Antes de você chegar peguei uma conversa pela torre da radiopatrulha. Hoje de noite, Dona Justa vai dar uma batida por estas bandas. Chegou a hora da gente pirar.
— O lugar do novo acampamento é seguro?
— Seguro? É uma toca da melhor qualidade. Tirando eu, o único que sabe o endereço são os morcegos. E por falar em morcego, você veio para ficar com a gente, Menino de Asas?
— Que jeito?
— Não te disse, velhinho? Lá embaixo, fora o SAM, não tem lugar pra nós, não. Conheço a batida. Não há um que não volte.
— Tenho pena do meu pessoal, quando souber. Afinal eu vim para o Rio me virar, dar gosto aos velhos, mandar um dinheirinho para casa todo fim de mês.
— Grana se arranja.
— Dinheiro roubado não serve.
Pilão armou-se de uma grande dignidade:
— Nosso trabalho é legal, passarinho. E muito mais duro do que o deles, lá embaixo. Você vai ver.
— Legal coisa nenhuma, Pilão. É trabalho sujo. Roubo, assalto, tiro.
— Não, passarinho, nós não trabalhamos na pesada. Tiro é outro negócio.
— E esse revólver aí no quarto? É pra matar mosquito?
— É pra me defender. Só puxo o queimante quando não há outro jeito.
— E quando não há outro jeito?
— Aí eu puxo o queimante.
Aquela conversa de fundo moralista estava desagradando a Pilão. Afinal ele era o chefe; um chefe tem mais o que fazer.
— Escuta aqui, Menino de Asas, o negócio é pegar ou largar. Ninguém te chamou aqui pra cima. Veio porque quis. Se não quer aceitar a gente como a gente é, vá logo descendo o morro.
Cocou o queixo com as costas da mão, num tique definitivo:
— Que é que resolve? Vai pras Furnas com o pessoal ou desce o morro de uma vez?
— Vou com vocês.
— Então me ajuda a arrumar a tralha! Partiram pelo fim da tarde, morro abaixo, morro acima. Os maiores na frente, a miuçalha fechando a marcha.
Ao lado de Pilão, combinando planos para o futuro, caminhava Menino de Asas.
Pilão apontou as letras gordas na página do jornal: — Leste a história do enguiço do bondinho do Pão de Açúcar? Diz que tem muita criança enganchada lá dentro.
Claro que Menino de Asas lera o vespertino, espécie de diário oficial, leitura obrigatória dos fora-da-lei. Mas preferia não dar trela ao assunto.
— E eu com isso?
— Nem eu — solidarizou-se Pilão. — É que o trabalho hoje ficou prejudicado na Zona Sul. De Botafogo pra cima o movimento é grande. Tem bombeiro, holofote, fotógrafo, ambulância, "Cosme e Damião", radiopatrulha, "Patrulha da Cidade", televisão, o diabo! Fora dessa área — concluiu Pilão, estratégico — podemos trabalhar à vontade. A cidade tá toda voltada pro caso do bondinho.
— Lá isso é — concordou Menino de Asas. Mas não havia entusiasmo na voz.
— Tá ficando frouxo, Menino de Asas?
— Volte a ler seu jornal e faça o favor de não bagunçar o meu coreto.
— Calma, manfrém, sou teu chapinha. É que a coisa lá embaixo hoje tá fácil. Tudo o que é tira ocupado na Zona Sul, viração na Zona Norte ficou fácil de dar na canela.
— Bobagem, Pilão. Nós andamos mais marcados do que Pele. É dar as caras e os tiras puxam o berro, dão no pino e metem um pijama-de-madeira na gente.
— Tem razão, meu chapa. Precisamos meter uma folga neles, outra na gente. Sabe do mais? Noite tá boa mesmo é pra passear com a escurinha. Vou descer, muito do meu, telefono, espero ela na curva do Maraca, pego um trans e só volto quando o céu começar a se pintar.
— Vê lá onde vais te meter! — advertiu Menino de Asas.
— Ora, prós lado que eu vou Dona Justa não me apanha.
— E pra onde vais? — quis saber Menino de Asas. Pilão apontou a lua subindo direita no céu:
— Eu e minha chapinha vamos tomar um banho de prata.
O programa de Pilão era inofensivo e lírico.
Já o de Menino de Asas (ele também fizera o seu) era simplesmente suicida.
Menino de Asas decidira deixar o esconderijo, misturar-se com a multidão, infiltrada de policiais, que se aglomerara entre a Urca e a Praia Vermelha.
Entre os passageiros aprisionados lá em cima — lera no jornal — estava uma jovem chamada Rute, filha do conhecido cirurgião Pacheco Fernandes.
Manjou o motivo, meu chapa?
O Monstro de Asas foi preso em circunstâncias bastante suspeitas. Com os bolsos cheios de sanduíches, tentava levantar vôo de um descampado próximo à praia da Urca, rumo ao bondinho enguiçado.
Os sanduíches — explicou na polícia com simplicidade — eram para Rute e as crianças aprisionadas lá em cima.
Fizera uma primeira viagem levando água mineral, coca-cola e guaraná. Na segunda, transportara alguns cobertores distraídos de uma loja nas proximidades. Na terceira, fora em cana.
A versão era um péssimo álibi, disse o delegado. Mas os sanduíches eram bons. Os policiais comeram à farta. Estavam famintos e fatigados. O Monstro de Asas foi o único que dormiu com fome. Entre os passageiros aprisionados no bondinho, estava uma jovem chamadaRute.
Disse o jornal da oposição, no dia seguinte, que ele levara também algumas borrachadas. Outro, órgão governamental, replicou que não, ele até dormira muito bem. Enquanto a controvérsia tomava corpo, a Casa do Disco lançou um compacto que vendeu milhões. A letra, simples e bem plagiada, dizia assim:
Menino de Asas
É do lagamar
A asinha dele
É que me faz chorar
Dias depois, o Diário Oficial do Estado publicava o decreto da nomeação de um certo João Batista Voador para o cargo de Zelador Aéreo da cidade, nível 14.
O jornal da oposição, farejando grosso favoritismo no ato, designou seu mais atilado repórter para investigar os antecedentes da nomeação. Este, em poucas horas, revelou à opinião pública uma série de indícios altamente comprometedores.
Primeiro, o nomeado não fora concursado nem pela ESPEG nem pelo DASP. Segundo, não apresentara o certificado militar: Finalmente, uma prestigiosa figura do meio jurídico — o próprio titular do Juizado de Menores — intercedera por ele junto ao governador.
Estava assim caracterizado mais um vergonhoso caso de nepotismo, concluía o jornalista, agravado "pelo fato de o empistolado ter sido aproveitado numa função inexistente no serviço público — a de Zelador Aéreo, nível 14".
Mas o caso tomaria cores de verdadeira comoção nacional quando o novo servidor, cumpridas as praxes legais, entrou em exercício.
Da noite para o dia, verdadeiras multidões, vindas de todos os pontos da cidade, acudiam em romaria para assistir a esse absoluto ato de rotina: ver um funcionário público trabalhar.
Também não era para menos. O Zelador Aéreo, mal os relógios de ponto marcavam a hora do início do expediente, começava a executar diligentemente as tarefas que lhe cabiam.
Como se tratava de trabalho a céu aberto, gracioso e agradável de olhar, daí o ajuntamento de povo.
A primeira intervenção funcional do Zelador Aéreo ocorreu no bairro da Glória. O relógio inglês de quatro faces, velho de mais de cinqüenta anos, parou de repente. O Zelador Aéreo voou até ele, e, num átimo, os vetustos ponteiros voltaram a funcionar, para alegria dos namorados que costumam marcar encontro no Parque do Flamengo.
Mas o campo de ação do Zelador Aéreo não ficaria restrito a esse episódio. Dia a dia sua jurisdição ia se ampliando, até cobrir, praticamente, toda a rede aérea de serviços públicos da cidade. Cumulativamente, zelava também pelos fios elétricos, causa de muitos acidentes fatais entre os operários da Light, tradicionalmente ocupados em sua manutenção. Aqui, verificou-se também que o trabalho do Zelador Aéreo era praticamente insubstituível.
Alado e leve como o beija-flor, seu corpo não dava terra, por não tocar o solo. Não dando terra, como os operários comuns, economizava tempo e baixas fatais entre estes.
Quando havia necessidade de pintura nova em arranha-céu, monumento público ou próprio estadual, a presença do Zelador Aéreo era mais do que necessária. Aqui, também, segundo uma pesquisa do Ibope, encomendada pelo governador, "o índice de acidentados tornou--se nulo, com real economia de vidas e de pecúnia para os cofres públicos". Tudo por obra e graça do novo Zelador Aéreo que, sem reclamar horas extras, ainda prestava serviços suplementares. Nos domingos e feriados, ia fazer acrobacias para distrair as crianças e os turistas que se aglomeravam na pista de aeromodelismo do Aterro.
Zelava também pelos fios elétricos, causa de muitos acidentes fatais entre os
operários.
A garotada procedia dos quatro cantos da cidade. Os turistas, de todas as partes do mundo.
Da noite para o dia, graças ao Zelador Aéreo, a cidade passara a vedete absoluta no noticiário internacional.
Era a única que possuía um Zelador Aéreo, nível 14.
Precisamente no dia da entrega deste livro ao editor, «3«3 vários telegramas da Associated Press, publicados nos jornais e procedentes de Amsterdã, de Quemói, do Crato (no Ceará), e de Albuquerque (nos Estados Unidos), informavam ao mundo o surto de uma esquisita raça humana híbrida de criança e pássaro.
Também no Rio circularam rumores de que uma jovem mãe primípara chamada Rute, que casara secretamente com Menino de Asas, dera à luz não a um, mas a dois meninos alados.
Boato ou emulação nacional, degenerescência da espécie ou degrau ascendente para um novo tipo de homem, fique este capítulo quase um pós-escrito, que o livro vai pela primeira vez à impressão nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, ano da graça de 1968, terceiro do Quinto Centenário e vigésimo primeiro da natividade do primeiro Menino de Asas.
Homero Homem
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