Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
MENSAGEM
O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles.
A primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme vou citando, e cito por graus de simplicidade. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar.
A segunda a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, por menos criá-la. Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se sente o que está alma do símbolo, sem que se veja.
A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe, reconstrói noutro nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está embaixo. Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não tiver estabelecido. Então a inteligência, de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado.
A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma síntese; e a compreensão é uma vida. Assim certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houver antes, ou no mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes.
A quinta é a menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e a Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo.
Primeira Parte / Brasão
I . Os Campos
Primeiro / Os Castelos
A Europa jaz, posta nos cotovelos: De Oriente a Ocidente jaz, fitando, E toldam-lhe românticos cabelos Olhos gregos, lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado; O direito é em ângulo disposto. Aquele diz Itália onde é pousado; Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto. Fita, com olhar sphyngico e fatal, O Ocidente, futuro do passado. O rosto com que fita é Portugal.
Segundo / O das Quinas
Os Deuses vendem quando dão. Compra-se a glória com desgraça. Ai dos felizes, porque são Só o que passa!
Baste a quem baste o que lhe basta O bastante de lhe bastar! A vida é breve, a alma é vasta: Ter é tardar.
Foi com desgraça e com vileza Que Deus ao Cristo definiu: Assim o opôs à Natureza E Filho o ungiu.
Primeiro / Ulisses
O mito é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mito brilhante e mudo-- O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo. Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo E nos criou. Assim a lenda se escorre A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre. Em baixo, a vida, metade De nada, morre.
Segundo / Viriato
Se a alma que sente e faz conhece Só porque lembra o que esqueceu, Vivemos, raça, porque houvesse Memória em nós do instinto teu.
Nação porque reencarnaste, Povo porque ressuscitou Ou tu, ou o de que eras a haste-- Assim se Portugal formou.
Teu ser é como aquela fria Luz que precede a madrugada, E é ja o ir a haver o dia Na antemanhã, confuso nada.
Terceiro / O Conde D. Henrique
Todo começo é involuntário. Deus é o agente. O herói a si assiste, vário E inconsciente.
A espada em tuas mãos achada Teu olhar desce. «Que farei eu com esta espada?» Ergueste-a, e fez-se.
Quarto / D. Tareja
As nações todas são mistérios. Cada uma é todo o mundo a sós. Ó mãe de reis e avó de impérios, Vela por nós!
Teu seio augusto amamentou Com bruta e natural certeza O que, imprevisto, Deus fadou. Por ele reza!
Dê tua prece outro destino A quem fadou o instinto teu! O homem que foi o teu menino Envelheceu.
Mas todo vivo é eterno infante Onde estás e não há o dia. No antigo seio, vigilante, De novo o cria!
Quinto / D. Afonso Henriques
Pai, foste cavaleiro. Hoje a vigília é nossa. Dá-nos o exemplo inteiro E a tua inteira força!
Dá, contra a hora em que, errada, Novos infiéis vençam, A bênção como espada, A espada como benção!
Sexto / D. Dinis
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo O plantador de naus a haver, E ouve um silêncio múrmuro consigo: É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver. Arroio, esse cantar, jovem e puro, Busca o oceano por achar; E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro, É a voz da terra ansiando pelo mar.
Sétimo (I) / D. João, O Primeiro
O homem e a hora são um só Quando Deus faz e a história é feita. O mais é carne, cujo pó A terra espreita.
Mestre, sem o saber, do Templo Que Portugal foi feito ser, Que houveste a glória e deste o exemplo De o defender.
Teu nome, eleito em sua fama, É, na ara da nossa alma interna, A que repele, eterna chama, A sombra eterna.
Sétimo (II) / D. Filipa de Lencastre
Que enigma havia em teu seio Que só génios concebia? Que arcanjo teus sonhos veio Velar, maternos, um dia?
Volve a nós teu rosto sério, Princesa do Santo Gral, Humano ventre do Império, Madrinha de Portugal!
III. As Quinas
Primeira / D. Duarte, Rei de Portugal
Meu dever fez-me, como Deus ao mundo. A regra de ser Rei almou meu ser, Em dia e letra escrupuloso e fundo. Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever. Inutilmente? Não, porque o cumpri.
Segunda / D. Fernando, Infante de Portugal
Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça A sua santa guerra. Sagrou-me seu em honra e em desgraça, As horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra. Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me A fronte com o olhar; E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome Dentro em mim a vibrar. E eu vou, e a luz do gládio erguido dá Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá, Pois venha o que vier, nunca será Maior do que a minha alma.
Terceira / D. Pedro, Regente de Portugal
Claro em pensar, e claro no sentir, É claro no querer; Indiferente ao que há em conseguir Que seja só obter;
Dúplice dono, sem me dividir, De dever e de ser - Não me podia a Sorte dar guarida Por não ser eu dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida, Calmo sob mudos céus, Fiel à palavra dada e à ideia tida. Tudo o mais é com Deus!
Quarta / D. João, Infante de Portugal
Não fui alguém. Minha alma estava estreita Entre tão grandes almas minhas pares, Inutilmente eleita, Virgemmente parada;
Porque é do português, pai de amplos mares, Querer, poder só isto: O inteiro mar, ou a orla vã desfeita - O todo, ou o seu nada.
Quinta / D. Sebastião, Rei de Portugal
Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há. Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria?
Nun’Álvares Pereira
Que auréola te cerca? É a espada que, volteando. Faz que o ar alto perca Seu azul negro e brando.
Mas que espada é que, erguida, Faz esse halo no céu? É Excalibur, a ungida, Que o Rei Artur te deu.
'Sperança consumada, S. Portugal em ser, Ergue a luz da tua espada Para a estrada se ver!
A Cabeça do Grifo / O Infante D. Henrique
Em seu trono entre o brilho das esferas, Com seu manto de noite e solidão, Tem aos pés o mar novo e as mortas eras-- O único imperador que tem, deveras,
O globo mundo em sua mão.
Uma asa do grifo / D. João, O Segundo
Braços cruzados, fita além do mar. Parece em promontório uma alta serra-- O limite da terra a dominar O mar que possa haver além da terra.
Seu formidável vulto solitário Enche de estar presente o mar e o céu E parece temer o mundo vário Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu.
A outra asa do grifo / Afonso Henriques
De pé, sobre os países conquistados Desce os olhos cansados De ver o mundo e a injustiça e a sorte. Não pensa em vida ou morte
Tão poderoso que não quere o quanto Pode, que o querer tanto Calcara mais do que o submisso mundo Sob o seu passo fundo.
Três impérios do chão lhe a Sorte apanha. Criou-os como quem desdenha.
Segunda Parte / Mar Portuguez
I . O Infante
Deus quere, o homem sonha, a obra nasce. Deus quis que a terra fosse toda uma, Que o mar unisse, já não separasse. Sagroute, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente, Clareou, correndo, até ao fim do mundo, E viu-se a terra inteira, de repente, Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português. Do mar e nós em ti nos deu sinal. Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal!
O mar anterior a nós, teus medos Tinham coral e praias e arvoredos. Desvendadas a noite e a cerração, As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério 'Splendia sobre as naus da iniciação. Linha severa da longínqua costa- Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha; Mais perto, abre-se a terra em sons e cores: E, no desembarcar, há aves, flores, Onde era só, de longe a abstracta linha
O sonho é ver as formas invisíveis Da distância imprecisa, e, com sensíveis Movimentos da esp'rança e da vontade, Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte - Os beijos merecidos da Verdade.
III. Padrão
O esforço é grande e o homem é pequeno. Eu, Diogo Cão, navegador, deixei Este padrão ao pé do areal moreno E para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita. Este padrão sinala ao vento e aos céus Que, da obra ousada, é minha a parte feita: O por fazer é só com Deus.
E ao imenso e possível oceano Ensinam estas Quinas, que aqui vês, Que o mar com fim será grego ou romano: O mar sem fim é português.
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma E faz a febre em mim de navegar Só encontrará de Deus na eterna calma O porto sempre por achar.
O mostrengo que está no fim do mar Na noite de breu ergueu-se a voar; A roda da nau voou três vezes, Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo, Meus tectos negros do fim do mundo?» E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!» «De quem são as velas onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço?» Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso. «Quem vem poder o que só eu posso, Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse: «El-Rei D. João Segundo!» Três vezes do leme as mãos ergueu, Três vezes ao leme as repreendeu,
E disse no fim de tremer três vezes: «Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um povo que quer o mar que é teu; E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo, Manda a vontade, que me ata ao leme, De El-Rei D. João Segundo!»
Jaz aqui, na pequena praia extrema, O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro, O mar é o mesmo: já ninguém o tema! Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro.
Outros haverão de ter O que houvermos de perder. Outros poderão achar O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado, Segundo o destino dado. Mas o que a eles não toca É a Magia que evoca
O Longe e faz dele história. E por isso a sua glória É justa auréola dada Por uma luz emprestada.
VII. Ocidente
Com duas mãos - o Acto e o Destino - Desvendámos. No mesmo gesto, ao céu Uma ergue o fecho trémulo e divino E a outra afasta o véu.
Fosse a hora que haver ou a que havia A mão que ao Ocidente o véu rasgou, Foi a alma a Ciência e corpo a Ousadia Da mão que desvendou.
Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal A mão que ergueu o facho que luziu, Foi Deus a alma e o corpo Portugal Da mão que o conduziu.
VIII. Fernão de Magalhães
No vale clareia uma fogueira. Uma dança sacode a terra inteira. E sombras desformes e descompostas Em clarões negros do vale vão
Subitamente pelas encostas, Indo perder-se na escuridão. De quem é a dança que a noite aterra? São os Titãs, os filhos da Terra,
Que dançam na morte do marinheiro Que quis cingir o materno vulto - Cingi-lo, dos homens, o primeiro -, Na praia ao longe por fim sepulto.
Dançam, nem sabem que a alma ousada Do morto ainda comanda a armada, Pulso sem corpo ao leme a guiar As naus no resto do fim do espaço:
Que até ausente soube cercar A terra inteira com seu abraço. Violou a Terra. Mas eles não O sabem, e dançam na solidão;
E sombras desformes e descompostas, Indo perder-se nos horizontes, Galgam do vale pelas encostas Dos mudos montes.
Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra Suspendem de repente o ódio da sua guerra E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,
Primeiro um movimento e depois um assombro. Ladeia-mo, ao durar, os medos, ombro a ombro, E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões. Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta
Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões, O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.
Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.
Levando a bordo El-Rei D. Sebastião, E erguendo, como um nome, alto o pendão Do Império, Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de ânsia e de presago Mistério. Não voltou mais. A que ilha indescoberta Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve? Deus guarda o corpo e a forma do futuro, Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro E breve.
Ah, quanto mais ao povo a alma falta, Mais a minha alma atlântica se exalta E entorna, E em mim, num mar que não tem tempo ou 'spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço Que torna. Não sei a hora, mas sei que há a hora, Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério. Surges ao sol em mim, e a névoa finda: A mesma, e trazes o pendão ainda Do Império.
XII. Prece
Senhor, a noite veio e a alma é vil. Tanta foi a tormenta e a vontade! Restam-nos hoje, no silêncio hostil, O mar universal e a saudade.
Mas a chama, que a vida em nós criou, Se ainda há vida ainda não é finda. O frio morto em cinzas a ocultou: A mão do vento pode erguê-la ainda.
Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia - Com que a chama do esforço se remoça, E outra vez conquistaremos a Distância - Do mar ou outra, mas que seja nossa!
Terceira parte / O Encoberto
I - Símbolos
Primeiro / D. Sebastião
'Sperai! Cai no areal e na hora adversa Que Deus concede aos seus Para o intervalo em que esteja a alma imersa Em sonhos que são Deus.
Que importa o areal e a morte e a desventura Se com Deus me guardei? É O que eu me sonhei que eterno dura É Esse que regressarei.
Segundo / O Quinto Império
Triste de quem vive em casa, Contente com o seu lar, Sem que um sonho, no erguer de asa Faça até mais rubra a brasa Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz! Vive porque a vida dura. Nada na alma lhe diz Mais que a lição da raiz Ter por vida a sepultura.
Eras sobre eras se somem No tempo que em eras vem. Ser descontente é ser homem. Que as forças cegas se domem Pela visão que a alma tem!
E assim, passados os quatro Tempos do ser que sonhou, A terra será teatro Do dia claro, que no atro Da erma noite começou.
Grécia, Roma, Cristandade, Europa-- os quatro se vão Para onde vai toda idade. Quem vem viver a verdade Que morreu D. Sebastião?
Terceiro / O Desejado
Onde quer que, entre sombras e dizeres, Jazas, remoto, sente-te sonhado, E ergue-te do fundo de não seres Para teu novo fado!
Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo, Mas já no auge da suprema prova, A alma penitente do teu povo À Eucaristia Nova.
Mestre da Paz, ergue teu gládio ungido, Excalibur do Fim, em jeito tal Que sua Luz ao mundo dividido Revele o Santo Gral!
Quarto / As Ilhas Afortunadas
Que voz vem no som das ondas Que não é a voz do mar? E a voz de alguém que nos fala, Mas que, se escutarmos, cala,
Por ter havido escutar. E só se, meio dormindo, Sem saber de ouvir ouvimos Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança Dormente, a dormir sorrimos. São ilhas afortunadas São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando. Mas, se vamos despertando Cala a voz. e há só o mar.
Quinto / O Encoberto
Que símbolo fecundo Vem na aurora ansiosa? Na Cruz Morta do Mundo A Vida, que é a Rosa.
Que símbolo divino Traz o dia já visto? Na Cruz, que é o Destino, A Rosa que é o Cristo.
Que símbolo final Mostra o sol já desperto? Na Cruz morta e fatal A Rosa do Encoberto.
Primeiro / O Bandarra
Sonhava, anónimo e disperso, O Império por Deus mesmo visto, Confuso como o Universo E plebeu como Jesus Cristo.
Não foi nem santo nem herói, Mas Deus sagrou com Seu sinal Este, cujo coração foi Não português, mas Portugal.
Segundo / António Vieira
O céu 'strela o azul e tem grandeza. Este, que teve a fama e à glória tem, Imperador da língua portuguesa, Foi-nos um céu também.
No imenso espaço seu de meditar, Constelado de forma e de visão, Surge, prenúncio claro do luar, El Rei D. Sebastião.
Mas não, não é luar: é luz do etéreo. É um dia, e, no céu amplo de desejo, A madrugada irreal do Quinto Império Doira as margens do Tejo.
Terceiro
'Screvo meu livro à beira-mágoa. Meu coração não tem que ter. Tenho meus olhos quentes de água. Só tu, Senhor, me dás viver.
Só te sentir e te pensar Meus dias vácuos enche e doura. Mas quando quererás voltar? Quando é o Rei? Quando é a Hora?
Quando virás a ser o Cristo De a quem morreu o falso Deus, E a despertar do mal que existo A Nova Terra e os Novos Céus?
Quando virás, ó Encoberto, Sonho das eras português, Tornar-me mais que o sopro incerto De um grande anseio que Deus fez?
Ah, quando quererás voltando, Fazer minha esperança amor? Da névoa e da saudade quando? Quando, meu Sonho e meu Senhor?
III. Os Tempos
Primeiro / Noite
A nau de um deles tinha-se perdido No mar indefinido. O segundo pediu licença ao Rei De, na fé e na lei
Da descoberta, ir em procura Do irmão no mar sem fim e a névoa escura. Tempo foi. Nem primeiro nem segundo Volveu do fim profundo
Do mar ignoto à pátria por quem dera O enigma que fizera. Então o terceiro a ElRei rogou Licença de os buscar, e El-Rei negou.
Como a um cativo, o ouvem a passar Os servos do solar. E, quando o vêem, vêem a figura Da febre e da amargura,
Com fixos olhos rasos de ânsia Fitando a proibida azul distância. Senhor, os dois irmãos do nosso Nome - O Poder e o Renome
Ambos se foram pelo mar da idade À tua eternidade; E com eles de nós se foi O que faz a alma poder ser de herói.
Queremos ir buscá-los, desta vil Nossa prisão servil: É a busca de quem somos, na distância De nós; e, em febre de ânsia,
A Deus as mãos alçamos. Mas Deus não dá licença que partamos.
Segundo / Tormenta
Que jaz no abismo sob o mar que se ergue? Nós, Portugal, o poder ser. Que inquietação do fundo nos soergue? O desejar poder querer.
Isto, e o mistério de que a noite é o fausto... Mas súbito, onde o vento ruge, O relâmpago, farol de Deus, um hausto Brilha e o mar 'scuro 'struge.
Terceiro / Calma
Que costa é que as ondas contam E se não pode encontrar Por mais naus que haja no mar? O que é que as ondas encontram
E nunca se vê surgindo? Este som de o mar praiar Onde é que está existindo? lha próxima e remota,
Que nos ouvidos persiste, Para a vista não existe. Que nau, que armada, que frota Pode encontrar o caminho
A praia onde o mar insiste, Se à vista o mar é sozinho? Haverá rasgões no espaço Que dêem para outro lado,
E que, um deles encontrado, Aqui, onde há só sargaço, Surja uma ilha velada, O país afortunado
Que guarda o Rei desterrado Em sua vida encantada?
Quarto / Antemanha
O mostrengo que está no fim do mar Veio das trevas a procurar A madrugada do novo dia Do novo dia sem acabar
E disse: Que desvendou o Segundo Mundo Nem o Terceiro quere desvendar» E o som na treva de ele rodar Faz mau o sono, triste o sonhar,
Rodou e foi-se o mostrengo servo Que seu senhor veio aqui buscar. Que veio aqui seu senhor chamar-- Chamar Aquele que está dormindo
E foi outrora Senhor do Mar.
Quinto / Nevoeiro
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra, Define com perfil e ser Este fulgor baço da terra Que é Portugal a entristecer
Brilho sem luz e sem arder, Como o que o fogo fátuo encerra. Ninguém sabe que coisa quere. Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem. (Que ânsia distante perto chora?) Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro... É a Hora!
Fernando Pessoa
O melhor da literatura para todos os gostos e idades