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Existem apenas umas poucas clínicas independentes para pacientes psiquiátricos ambulatoriais em Londres, e é óbvio que essas unidades, com uma mesma especialização médica e todas elas organizadas no âmbito do Departamento Nacional de Saúde, inevitavelmente têm alguns métodos de tratamento e alguns procedimentos administrativos comuns. Vários deles são adotados pela Clínica Steen. É extremamente importante esclarecer que a Steen é uma clínica imaginária situada numa praça imaginária de Londres; que nenhum de seus pacientes ou funcionários — tanto da equipe médica como da equipe de apoio — corresponde a pessoas reais; e que os acontecimentos deploráveis que se desenrolaram no subsolo da clínica têm sua origem exclusivamente naquele estranho fenômeno psicológico que é a imaginação do autor de romances policiais.
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O dr. Paul Steiner, psiquiatra clínico da Clínica Steen, estava sentado no consultório da frente, no andar térreo, ouvindo a explicação altamente racionalizada de seu paciente sobre o colapso de seu terceiro casamento. O sr. Burge estava deitado confortavelmente num divã: isso lhe dava melhores condições de explicar as complicações de sua psique. O dr. Steiner estava sentado junto da cabeça dele, numa cadeira do tipo cuidadosamente documentado que o Comitê Administrativo Hospitalar determinara que deveria ser usado pelo corpo médico. Era uma cadeira funcional e não totalmente desprovida de beleza, mas que não oferecia apoio para a nuca. De vez em quando uma pinçada aguda nos músculos do pescoço fazia com que o dr. Steiner deixasse o limbo provisório em que se encontrava para voltar à realidade de sua clínica psicoterápica de sexta-feira à noite. Fora um dia muito quente de outubro. Depois de dois ou três dias de frio e geada durante os quais os profissionais da clínica haviam tiritado e insistido para que as medidas disponíveis fossem tomadas, a data oficial para o início do aquecimento central coincidira com um daqueles dias perfeitos de outono em que a praça da frente da clínica se mostrara sob uma linda luz dourada e as últimas dálias do jardim gradeado, coloridas como uma caixa de tintas, haviam cintilado, vistosas como se fosse alto verão. Eram quase sete horas; no exterior, fazia muito que o calor do dia dera lugar primeiro à névoa, depois a uma escuridão gelada. Mas ali, no interior da clínica, o calor do meio-dia fora aprisionado, e a atmosfera, pesada e imóvel, dava a impressão de ter se desgastado com o alento de tantas falas. O sr. Burge discorria sobre a imaturidade, frieza e ausência de sensibilidade de suas esposas numa voz aguda e beligerante. A avaliação clínica do dr. Steiner, não isenta da influência dos efeitos tardios de um farto almoço e do consumo pouco prudente de um bolinho de creme com o chá da tarde, dizia-lhe que ainda não era hora de comunicar a seu paciente que o único defeito partilhado pelas três senhoras Burge fora uma singular ausência de tirocínio na escolha do marido. O sr. Burge não estava preparado para encarar a verdade de suas próprias lacunas. O dr. Steiner não sentia indignação moral diante do comportamento do sr. Burge. Sem dúvida, seria uma enorme falta de ética de sua parte permitir que uma emoção assim inadequada obscurecesse sua percepção. Poucas coisas na vida despertavam a indignação moral do dr. Steiner, e a maioria delas dizia respeito a seu próprio conforto. Muitas delas, de fato, estavam relacionadas à Clínica Steen e a sua administração. Ele tinha sérias críticas quanto à gerente administrativa, srta. Bolam, cuja preocupação com o número de pacientes que ele recebia por turno e com a acurácia de suas prestações de contas sempre que viajava ele via como parte de uma política sistemática de perseguição. Lamentava o fato de que sua clínica de sexta-feira à noite coincidisse com a terapia de eletrochoque do dr. James Baguley, de modo que seus pacientes da psicoterapia, todos altamentes inteligentes e sensíveis ao privilégio de estarem sendo atendidos por ele, eram obrigados a aguardar na sala de espera na companhia do conjunto heterogêneo formado por donas-de-casa suburbanas deprimidas e psicóticos mal-educados que Baguley parecia ter prazer em colecionar. O dr. Steiner se recusara a usar um dos consultórios do terceiro andar, formados mediante a compartimentação com divisórias das amplas e elegantes salas georgianas, e desprezava-as por serem cubículos de péssimas proporções, inadequados para uma pessoa de seu nível e para a importância de seu trabalho. Ao mesmo tempo, considerara inviável alterar o horário de sua sessão. Baguley, conseqüentemente, seria obrigado a alterar o seu. Mas o dr. Baguley fincara pé e também nisso o dr. Steiner vira a influência da srta. Bolam. Sua reivindicação, de que os consultórios do térreo tivessem isolamento acústico, fora rejeitada pelo Comitê Administrativo Hospitalar com o argumento de que era preciso conter gastos. Por outro lado, todos haviam achado normal fornecer a Baguley um equipamento novo e extremamente oneroso para que aplicasse choques em seus pacientes, fazendo-os perder as poucas luzes que ainda possuíam. É evidente que o assunto fora examinado pelo Comitê Médico-clínico, mas a srta. Bolam não se preocupara em disfarçar de que lado estavam suas simpatias. Em suas diatribes contra a gerente administrativa, o dr. Steiner considerara conveniente esquecer que a influência dela sobre o Comitê Médico era inexistente. Era difícil esquecer as irritações da sessão de eletrochoque. O prédio em que funcionava a clínica fora construído na época em que os homens construíam para durar, mas nem a porta de carvalho maciço do consultório conseguia abafar as idas e vindas das noites de sexta-feira. A porta da frente era fechada às seis da tarde, e os pacientes das clínicas noturnas tinham suas entradas e saídas monitoradas desde o tempo em que, mais de cinco anos antes, uma paciente entrara sem que ninguém percebesse e se esgueirara até o banheiro do subsolo, escolhendo aquele lugar insalubre para suicidar-se. As sessões psicoterápicas do dr. Steiner eram pontuadas pela campainha da porta da frente, pelo ruído de passos diante da porta à medida que os pacientes iam e vinham, pelas vozes enfáticas dos familiares e acompanhantes insistindo para que o paciente fizesse alguma coisa ou despedindo-se ruidosamente da irmã Ambrose. O dr. Steiner não entendia por que os familiares achavam necessário gritar com os pacientes como se eles fossem surdos, além de psicóticos. Bem, quem sabe depois de uma sessão com Baguley e sua máquina diabólica eles se tornassem mesmo surdos. O pior de tudo era a auxiliar de serviços gerais da clínica, a sra. Shorthouse. O lógico seria que Amy Shorthouse fizesse a faxina cedinho de manhã, sem dúvida a prática usual em qualquer lugar que se preze. Seria uma maneira de criar o mínimo de perturbação para a equipe médica. Só que a sra. Shorthouse afirmava que não conseguia acabar o trabalho sem duas horas suplementares à noite, e a srta. Bolam concordara. Lógico, só podia concordar. Na opinião do dr. Steiner, em matéria de faxina não acontecia quase nada nas noites de sexta-feira. A sra. Shorthouse era fanática pelos pacientes do eletrochoque — na verdade seu marido já fora tratado pelo dr. Baguley —, e era comum vê-la circulando pelo corredor e pelo salão do térreo durante a realização da sessão. O dr. Steiner mencionara o fato mais de uma vez ao Comitê Médico e ficara muito irritado com o desinteresse generalizado de seus colegas pelo assunto. A sra. Shorthouse deveria ser mantida longe da vista, alguém tinha de dizer a ela que cuidasse do seu trabalho; seria preciso proibi-la de ficar de conversinha com os pacientes. A srta. Bolam, tão desnecessariamente rigorosa com o resto do pessoal, não parecia inclinada a enquadrar a sra. Shorthouse. Todos sabiam como era difícil encontrar bons empregados domésticos, mas uma funcionária administrativa competente saberia o que fazer para recrutá-los. Uma atitude vacilante não resolvia nada. Mas era impossível convencer Baguley a fazer queixa da sra. Shorthouse, e Bolam jamais criticaria Baguley. A pobre mulher provavelmente era apaixonada por ele. Cabia a Baguley assumir uma atitude firme, em vez de andar pela clínica com aquele avental branco ridiculamente comprido que o fazia parecer um dentista de segunda categoria. Francamente, o sujeito não tinha noção da dignidade de que um médico devia investirse em sua prática clínica. Plonc, plonc, plonc fizeram as botinas de alguém passando pelo corredor. Provavelmente o velho Tippett, um paciente esquizofrênico crônico de Baguley que, nos últimos nove anos, dedicara regularmente suas noites de sexta-feira à escultura em madeira, no departamento de arte-terapia. Só de pensar em Tippett, o dr. Steiner ficava ainda mais exasperado. O sujeito era completamente inadequado para a Clínica Steen. Se estava suficientemente bem para viver fora de um hospital, coisa que o dr. Steiner achava muito duvidosa, deveria freqüentar um hospital-dia, ou uma das oficinas dirigidas do Conselho do Condado. Pacientes como Tippett é que davam à clínica sua má reputação e obscureciam sua real função de centro de psicoterapia com orientação analítica. O dr. Steiner sentia-se francamente constrangido quando um de seus pacientes, selecionados com tanto cuidado, encontrava Tippett andando pela clínica com ar furtivo numa noite de sexta-feira. Tippett não tinha condições de andar solto. Algum dia ainda ocorreria algum incidente, Baguley ia acabar arranjando encrenca. A agradável contemplação do próprio colega encrencado, fonte de delícias para o dr. Steiner, foi interrompida pelo som da campainha da porta da frente. Assim não dava! Dessa vez, aparentemente, era o motorista de um dos veículos do hospital em busca de um paciente. A sra. Shorthouse foi até a porta para acompanhar a saída dos dois. Seus guinchos sinistros ecoaram pelo corredor. “Tchau, meus queridos! Até a semana que vem. Comportem-se!” O dr. Steiner fez uma careta e fechou os olhos. Seu paciente, porém, absorto em seu passatempo predileto de falar sobre si mesmo, aparentemente não ouvira nada. Na verdade, as queixas altissonantes do sr. Burge já duravam mais de vinte minutos, sem interrupção. “Não vou dizer que sou uma pessoa fácil, não sou mesmo. Sou um sujeito complicado, coisa que a Theda e a Sylvia jamais entenderam. Claro, as raízes disso vão longe. Você se lembra daquela nossa sessão em junho? Fiquei com a sensação de que um material extremamente básico veio à tona naquela ocasião.” O terapeuta do sr. Burge não estava lembrado do fato, mas não se preocupou com isso. Tratando-se do sr. Burge, um material extremamente básico só podia estar muito próximo da superfície e fatalmente viria à tona. Uma paz indizível envolveu o dr. Steiner. Ele rabiscou em sua caderneta, depois contemplou os rabiscos com interesse e preocupação, olhou novamente para ela segurando-a de cabeça para baixo, e por um momento preocupou-se mais com seu próprio subconsciente do que com o de seu analisando. De súbito, registrou um outro som vindo do exterior, primeiro fraquinho e depois cada vez mais alto. Em algum lugar uma mulher estava gritando. Era um barulho horrível, alto, contínuo e completamente animalesco. Seu efeito sobre o dr. Steiner foi estranhamente desagradável. Ele tinha uma natureza timorata e impessoal. Embora seu trabalho às vezes o envolvesse em crises emocionais muito esporádicas, preferia esquivar-se a ter de enfrentar uma crise. O medo deu lugar à irritação, e ele saltou de sua cadeira exclamando: “Não, francamente, assim não dá! Onde anda a senhorita Bolam? Será que não tem ninguém nesta clínica para supervisionar as coisas?” “O que está acontecendo?”, perguntou o sr. Burge, sentando-se no divã feito uma mola e descendo o tom de voz em uma oitava, para ficar com uma voz mais normal. “Nada. Nada. Deve ser alguma mulher tendo um ataque de histeria, só isso. Fique aí que eu já volto”, ordenou o dr. Steiner. O sr. Burge desabou novamente no divã, mas com os olhos e ouvidos voltados para a porta. O dr. Steiner foi até o vestíbulo. Na mesma hora um grupinho de pessoas virou-se na direção dele. Jennifer Priddy, a datilógrafa assistente, estava pendurada num dos porteiros, Peter Nagle, que dava tapinhas no ombro dela muito embaraçado e com ar interrogativo. A sra. Shorthouse fazia parte do grupo. Os gritos da moça estavam se transformando em vagidos, mas seu corpo inteiro trepidava e ela estava
mortalmente pálida. “Qual é o problema?”, perguntou o dr. Steiner, ríspido. “O que ela está sentindo?” Antes que alguém tivesse tempo de responder, a porta da sala de eletrochoques se abriu e o dr. Baguley apareceu, acompanhado de irmã Ambrose e da anestesista, a dra. Mary Ingram. De repente o vestíbulo parecia repleto de gente. “Calma, menina, calma!”, disse o dr. Baguley com voz suave. “Estamos tentando trabalhar numa clínica!” Depois, voltando-se para Peter Nagle, perguntou em voz baixa: “O que houve, afinal?” Nagle parecia a ponto de falar quando de repente a srta. Priddy recuperou o autocontrole. Soltando-se, ela se virou para o dr. Baguley e disse com absoluta clareza: “É a senhorita Bolam. Ela está morta. Alguém a matou. Está no depósito do subsolo, foi assassinada. Eu a encontrei. Enid foi assassinada!” Em seguida a moça se pendurou novamente em Nagle e voltou a chorar, só que de forma mais contida. O tremor terrível cessara. O dr. Baguley disse ao porteiro: “Vá com ela até a enfermaria. Faça com que ela se deite. Melhor dar-lhe alguma coisa para beber. Aqui está a chave. Já volto.” Em seguida, dirigiu-se para as escadas que levavam ao subsolo e as outras pessoas foram atrás, aos empurrões, abandonando a moça aos cuidados de Nagle. O subsolo da clínica era bem iluminado; todos os seus aposentos eram aproveitados, já que a Clínica Steen, como a maioria das instituições psiquiátricas, sofria de uma falta de espaço crônica. Lá, depois de um lanço de escadas, além da sala da caldeira, da sala com a central telefônica e do quartinho dos porteiros, estava instalado o departamento de arte-terapia, um depósito de registros médicos e, na parte fronteira do edifício, uma sala de tratamento para os pacientes de ácido lisérgico. Quando o grupinho atingiu a base da escada, a porta dessa sala se abriu e a enfermeira Bolam, prima da srta. Bolam, lançou um olhar para fora — um espectro envolto em sombras, em seu uniforme branco, contra a escuridão do aposento atrás dela. “Algum problema? Tive a impressão de ouvir um grito alguns minutos atrás...” Irmã Ambrose falou, com súbita autoridade: “Não há nada errado, enfermeira. Volte para junto de sua paciente.” A figura branca desapareceu e a porta se fechou. Virando-se para a sra. Shorthouse, a irmã Ambrose continuou: “E a senhora não tem nada que fazer aqui, senhora Shorthouse. Por favor, fique lá em cima. Talvez a senhorita Priddy queira tomar um chazinho.” A sra. Shorthouse emitiu alguns murmúrios rebeldes, mas bateu em relutante retirada. Os três médicos, com a irmã atrás, foram em frente. O depósito de registros médicos ficava à direita, entre o quartinho dos porteiros e o departamento de arte-terapia. A porta estava entreaberta e a luz acesa. O dr. Steiner, que fora tomado por um estado de percepção ampliada e se dava conta dos detalhes mais imperceptíveis, notou que a chave estava na fechadura. Não havia ninguém por perto. As estantes de aço, com suas fileiras compactas de envelopes pardos, subiam até o teto perpendicularmente à porta, formando uma série de corredores estreitos, cada um deles iluminado por uma lâmpada fluorescente. As quatro altas janelas eram providas de barras; as estantes, dispostas perpendicularmente às janelas, cortavam-nas ao meio; aquela era uma saleta sem ar, pouco freqüentada e raramente espanada. O pequeno grupo avançou pelo primeiro corredor e virou à esquerda, na direção de um pequeno espaço sem janelas desprovido de estantes e equipado com uma mesa e uma cadeira onde era possível manipular os arquivos, fosse
para consultá-los fosse para classificá-los, e anotar as informações desejadas sem que se fizesse necessário retirar a pasta dali. O local estava um caos. A cadeira estava caída no chão, em meio a uma profusão de pastas jogadas para todos os lados. Algumas capas haviam sido arrancadas e páginas rasgadas, outras formavam pilhas desiguais embaixo de espaços vazios nas estantes, espaços que pareciam pequenos demais para ter abrigado um volume tão grande de papel. E, no meio da confusão, como uma Ofélia balofa e incongruente flutuando numa maré de papel, estava o corpo de Enid Bolam. Sobre seu peito repousava uma imagem pesada e tosca esculpida em madeira; as mãos da srta. Bolam prendiam-se à base dessa estatueta de modo que a horrível impressão resultante era a de que ela era uma paródia da maternidade com seu rebento pousado ritualmente sobre o colo. Não podia haver dúvida quanto ao fato de que ela estava morta. Mesmo tomado pelo medo e pela repugnância, o dr. Steiner não tinha como se equivocar quanto a esse diagnóstico final. Ao ver a figura de madeira, exclamou: “Tippett! Olhem, é a estátua do Tippett! É a talha de que ele tanto se orgulha. Onde está ele? Baguley, ele é seu paciente! É melhor você se encarregar do assunto!” O dr. Steiner olhou para os lados, nervoso, como se achasse que Tippett ia se materializar, de braço erguido para o ataque, a própria personificação da violência. O dr. Baguley, ajoelhado ao lado do corpo, declarou em voz baixa: “Tippett não está aqui esta noite.” “Mas ele sempre vem à clínica nas noites de sexta-feira! E aquilo é a estátua dele! A arma do crime!” O dr. Steiner não se conformava com o fato de que seu colega parecia não ver o que estava diante de seus olhos. Delicadamene, o dr. Baguley ergueu a pálpebra esquerda da srta. Bolam com o polegar. Sem olhar para os outros, falou: “Esta manhã recebemos um telefonema do hospital St. Luke. Tippett foi internado com pneumonia. Segunda-feira passada, parece-me. Seja como for, ele não estava aqui esta noite.” De repente, soltou uma exclamação. As duas mulheres se inclinaram para ver melhor o corpo. O dr. Steiner, que não conseguia obrigar-se a acompanhar o exame que o colega estava fazendo, ouviuo dizer: “Ela também foi apunhalada. Com um formão de cabo preto. Pelo jeito, o golpe atingiu o coração. Esse formão não é do Nagle, irmã?”. Depois de uma pausa, o dr. Steiner ouviu a voz da irmã: “Pelo menos é muito parecido, doutor. Todas as ferramentas dele têm o cabo preto. Ele as guarda no quartinho dos porteiros.” Depois acrescentou, em tom defensivo: “Qualquer um podia pegar”. “Pelo jeito, alguém pegou.” O dr. Baguley levantou-se. Ainda de olhos fixos no cadáver, disse: “Irmã, por favor, chame o Cully na portaria. Não o assuste, mas diga-lhe que não deixe ninguém entrar no prédio ou sair dele. Inclusive os pacientes. Depois se comunique com o doutor Etherege e peça-lhe que desça até aqui. Imagino que esteja em seu consultório”. “Não deveríamos chamar a polícia?” A dra. Ingram estava tensa; seu rosto rosado, tão ridiculamente parecido com o de um coelho angorá, corou e ficou mais rosado ainda. Não era apenas nos momentos de grande intensidade dramática que as pessoas tendiam a não dar importância à presença da dra. Ingram, e o dr. Baguley voltou os olhos para ela sem entender, como se por um momento tivesse se esquecido de sua existência. “Vamos esperar pelo diretor médico”, disse.
A irmã Ambrose sumiu da sala num ruge-ruge de linho engomado. O telefone mais próximo ficava ao lado da porta do arquivo, mas, isolado dos ruídos externos por fileiras sucessivas de papel, foi em vão que o dr. Steiner fez o que pôde para ouvir o fone sendo retirado do gancho ou o murmúrio da voz da irmã. Obrigou-se a olhar mais uma vez para o corpo da srta. Bolam. Em vida ele a considerava sem graça e sem atrativos — e a morte não melhorara as coisas. Estava deitada de costas e tinha os joelhos erguidos e afastados, o que deixava perfeitamente visível uma boa área da calçola de lã cor-de-rosa que lhe descia até metade da coxa — cena bem mais indecente do que se as pernas estivessem descobertas. Suas feições redondas, sem delicadeza, estavam perfeitamente tranqüilas. Os dois bandós espessos com que recobria parte da testa estavam no lugar. É preciso reconhecer, contudo, que não havia registro de que algo tivesse perturbado o penteado arcaico da srta. Bolam algum dia. O dr. Steiner lembrou-se de sua fantasia particular, de que os bandós espessos, sem vida, exsudavam sua própria secreção misteriosa e estavam fixados para sempre, imutavelmente, sobre aquele cenho plácido. Contemplando-a na indignidade inerme da morte, o dr. Steiner tentou sentir piedade e admitiu que sentia medo. Contudo, o único sentimento de que estava plenamente consciente era a repugnância. Impossível sentir alguma ternura por uma coisa tão ridícula, tão chocante, tão obscena. A palavra feia emergiu à superfície de seu pensamento sem ser convidada. Obscena! Sentiu uma necessidade ridícula de puxar a saia dela para baixo, de cobrir aquele rosto balofo, patético, de reposicionar os óculos que haviam escorregado do nariz e pendiam, tortos, da orelha esquerda. Os olhos dela estavam semicerrados e sua boca pequena estava franzida como se ela desaprovasse um fim revestido de tão pouca compostura, tão pouco mérito. O dr. Steiner conhecia bem aquela expressão, pois a vira em seu rosto enquanto ela ainda vivia. Pensou: “Até parece que ela está na minha frente contestando minha prestação de despesas de viagem”. De repente foi tomado por uma intolerável necessidade de rir. O volume do riso contido foi aumentando incontrolavelmente. Entendeu que aquela necessidade horrível resultava de seu nervosismo, do choque sofrido, mas o fato de entender não contribuía para lhe dar autodomínio. Desamparado, deu as costas aos colegas e tentou com todas as forças manter a compostura, agarrando-se à beirada de uma estante de arquivos e comprimindo a testa de encontro ao metal frio, a boca e as narinas asfixiadas com o cheiro de mofo das pastas antigas. Ele não registrou a volta de irmã Ambrose, mas de repente ouviu-a falar. “O doutor Etherege está vindo para cá. Cully está tomando conta da porta; falei para ele não deixar ninguém sair. Seu paciente está bastante agitado, doutor Steiner.” “Talvez seja melhor eu subir para vê-lo.” Confrontado com a necessidade de tomar uma decisão, o dr. Steiner recuperou o autocontrole. Sentia que era importante permanecer com os outros e estar ali quando o diretor médico chegasse; que seria de bom alvitre agir de modo que nada de importante fosse dito ou feito sem o seu conhecimento. Por outro lado, não estava muito entusiasmado com a idéia de ficar ao lado do cadáver. O depósito de arquivos, profusamente iluminado como um teatro de operações, claustrofóbico e superaquecido, fazia-o sentir-se como um animal apanhado na armadilha. As estantes sobrecarregadas pareciam fazer peso sobre ele, forçando-o a voltar os olhos a todo momento para aquele vulto que jazia sobre seu esquife de papel. “Vou ficar aqui”, resolveu. “O senhor Burge vai ter de esperar, como todo mundo.” Todos continuaram agrupados, em silêncio. O dr. Steiner viu que irmã Ambrose, pálida mas em tudo o mais aparentemente impassível, mantinha-se calma, com as mãos suavemente cruzadas sobre o avental. Quantas vezes não teria ficado naquela posição em seus quase quarenta anos de
enfermeira, vigilante ao pé da cama de um paciente, silenciosamente prestativa, à espera das ordens do médico. O dr. Baguley tirou o maço de cigarros do bolso, olhou para ele por um instante, como que surpreso com o fato de vê-lo na própria mão, e tornou a guardá-lo no bolso. A dra. Ingram parecia estar chorando em silêncio. Em certo momento o dr. Steiner teve a impressão de ouvi-la murmurar: “Pobre mulher... pobre mulher...”. Não demorou, e ouviram passos; o diretor médico entrou no aposento, acompanhado pela psicóloga-chefe, Fredrica Saxon. O dr. Etherege se ajoelhou junto ao corpo. Não o tocou, mas aproximou o rosto do da srta. Bolam como se estivesse prestes a beijá-la. Os olhinhos argutos do dr. Steiner não perderam o olhar que a srta. Saxon dirigiu ao dr. Baguley nem o modo instintivo como os dois se aproximaram e em seguida, rapidamente, se afastaram. “O que aconteceu?”, perguntou ela. “A senhorita Bolam morreu?” “Sim. Aparentemente foi assassinada.” A voz de Baguley estava inexpressiva. A srta. Saxon fez um gesto súbito. Durante um inacreditável instante o dr. Steiner achou que ela ia fazer o sinal-da-cruz. “Quem fez isso? Espero que não tenha sido o coitado do Tippett... Aquilo não é a estátua dele?” “É, mas ele não está na clínica. Está internado no St. Luke com pneumonia.” “Ah, meu Deus! Então quem foi?” Dessa vez ela se aproximou bastante do dr. Baguley e nenhum dos dois se afastou. O dr. Etherege, que estava agachado, levantou-se. “Você tem razão, é claro. Ela está morta. Ao que tudo indica, primeiro foi nocauteada e depois teve o coração perfurado por aquele instrumento. Vou subir para telefonar para a polícia e informar o resto do pessoal. Acho melhor que todos fiquem reunidos enquanto nós três damos uma busca no prédio. É claro que ninguém deve tocar em nada.” O dr. Steiner não ousava encontrar o olhar do dr. Baguley. O dr. Etherege, em seu papel de administrador calmo e em perfeito domínio da situação, sempre lhe parecera levemente ridículo. Tinha a sensação de que Baguley pensava como ele. De repente ouviram-se passos e a chefe dos assistentes sociais psiquiátricos, srta. Ruth Kettle, surgiu de detrás das estantes de pastas e fitou-os com seu olhar míope. “Ah, o senhor está aqui, diretor”, disse a srta. Kettle com voz anasalada, ofegante. (Ela era o único membro da equipe que chamava o dr. Etherege por aquele título ridículo, sabe-se lá por quê, pensou o dr. Steiner. O lugar ficava parecendo uma clínica naturalista.) “Cully me disse que o senhor estava aqui embaixo. Espero que não esteja muito ocupado... Estou tão aborrecida... Não quero criar problemas, mas o assunto é realmente grave. A senhorita Bolam agendou um paciente novo para mim para as dez da manhã de segunda-feira. Acabo de ver a consulta anotada em minha agenda. Só que não tenho condições de fazer essa consulta. Ela sabe muito bem que sempre recebo os Worriker às segundas-feiras. Foi de propósito, tenho certeza. O senhor sabe, diretor, alguém precisa tomar uma providência com relação à senhorita Bolam.” O dr. Baguley deu um passo para o lado e falou, soturno: “Alguém já tomou.”
Do outro lado da praça, o inspetor Adam Dalgliesh, do Departamento de Investigações Criminais, participava do xerez ritual de outono oferecido por seus editores. A data coincidira com a terceira reimpressão de seu primeiro livro de poemas. Ele não superestimava seu talento nem o sucesso do livro. Os poemas, que refletiam seu espírito independente, irônico e
fundamentalmente inquieto, por acaso haviam caído no gosto do público. Não acreditava que mais do que meia dúzia deles conquistasse um lugar definitivo no afeto geral, inclusive no dele próprio. Enquanto isso, via-se jogado na praia de um mar desconhecido em que agentes, royalties e resenhas eram agradáveis pontos de referência. E agora ali estava sua festa. Pensara nela sem entusiasmo, como em algo que teria obrigação de encarar, mas, para sua surpresa, ela estava muito agradável. Os srs. Hearne e Illingworth eram tão incapazes de oferecer xerez de segunda qualidade quanto de publicar títulos ruins; Dalgliesh tinha certeza de que a cota que cabia a seu editor nos lucros de seu livro havia sido bebida nos primeiros dez minutos. O velho Sir Hubert Illingworth fizera sua brevíssima entrada no local no decorrer desse período, apertara a mão de Dalgliesh com expressão triste e depois se escafedera, murmurando alguma coisa, como se deplorasse que outro dos escritores do catálogo da editora estivesse se expondo, bem como a seu editor, às gratificações duvidosas do sucesso. Para ele todos os escritores eram crianças precoces; criaturas que era preciso tolerar e estimular, mas sem maiores agitações, para que não chorassem na hora de ir para a cama. Além da breve passagem do sr. Hubert, raras foram as surpresas da festa. Poucos dos presentes tinham conhecimento do fato de que Dalgliesh era policial e, desses, nem todos alimentavam a expectativa de que ele falasse sobre sua profissão. Como era inevitável, porém, algumas pessoas achavam inadequado que um homem que caçava assassinos também escrevesse versos, e afirmavam isso com graus variáveis de tato. Supostamente elas desejavam que os assassinos fossem apanhados, por mais que não chegassem a uma conclusão quanto ao que deveria ser feito com eles depois de apanhados; ao mesmo tempo, porém, exibiam uma ambivalência típica em relação àqueles que se ocupavam da captura. Dalgliesh estava acostumado com essa atitude e achava-a menos ofensiva do que a suposição bastante freqüente de que havia um encanto especial em fazer parte de uma equipe especializada em assassinatos. Na festa, porém, embora tivesse encontrado a dose habitual de curiosidade furtiva e tivesse ouvido as idiotices de praxe em ocasiões do tipo, também encontrara pessoas agradáveis dizendo coisas agradáveis. Nenhum escritor, por mais despreocupado que pareça em relação ao próprio talento, está imune ao sutil sentimento de segurança que resulta de elogios desinteressados, e Dalgliesh, resistindo à suspeita de que raros dos que admiravam seus poemas haviam-nos de fato lido e mais raros ainda haviam comprado o livro, constatou que passava momentos agradáveis, e foi suficientemente sincero para reconhecer a razão desse fato. A primeira hora fora caótica mas, pouco depois das sete, vira-se em pé sozinho de copo na mão ao lado da rebuscada lareira estilo James Wyatt. Alguns gravetos ardiam, dando à sala um odor suave de campo. Foi um desses momentos inexplicáveis, em que a pessoa se vê completamente só no meio de uma multidão, quando o barulho fica em surdina e os corpos circundantes parecem recuar e tornar-se tão remotos e misteriosos quanto atores num palco longínquo. Dalgliesh apoiou a nuca no consolo da lareira, saboreando aquela intimidade efêmera e registrando com satisfação as proporções elegantes do aposento. De repente viu Deborah Riscoe. Ela devia ter entrado muito discretamente na sala. Tentou imaginar quanto tempo fazia que ela estava ali. Na mesma hora sua sensação difusa de paz e felicidade deu lugar a um prazer tão agudo e doloroso quanto o de um garoto que vive seu primeiro amor. Ela o viu na mesma hora e, de copo na mão, esgueirou-se entre as pessoas e andou em sua direção. Era uma presença totalmente inesperada, e ele não tentou se enganar dizendo para si mesmo que ela estava ali por causa dele. Considerando-se o último encontro dos dois, essa hipótese seria altamente improvável. Disse:
“É um grande prazer encontrar você aqui”. “Eu teria vindo de todo jeito”, ela respondeu. “Mas acontece que trabalho aqui. Felix Hearne me conseguiu o emprego depois da morte de mamãe. Até que sou útil. Sou a faz-tudo de todo mundo. Estenografia, datilografia... Fiz um curso.” Ele sorriu. “Do jeito que você fala, parece que fez uma cura, e não um curso...” “Bom, de certo modo é verdade.” Ele não tentou se fazer de desentendido. Os dois ficaram em silêncio. Dalgliesh sabia que era morbidamente sensível a toda e qualquer alusão ao caso que propiciara o encontro dos dois, quase três anos antes. Era uma ferida que incomodava mesmo com a mais gentil das alusões. Ele lera o anúncio da morte da mãe dela no jornal cerca de seis meses antes, mas na época considerara impossível e até impertinente mandar-lhe uma mensagem ou pronunciar as palavras habituais de condolências. Afinal, era parcialmente responsável por aquela morte. De lá para cá, as coisas não tinham ficado mais fáceis. Assim, os dois falaram de outra coisa: da poesia dele e do trabalho dela. Enquanto desempenhava sua parte nessa conversinha sem maiores ambições, ele tentava adivinhar qual seria a reação dela se ele a convidasse para jantar. Se ela não o dispensasse na hora — coisa que provavelmente faria —, sentia que talvez estivesse à beira de um envolvimento amoroso. Não se iludiu dizendo para si mesmo que não desejava mais do que uma refeição agradável com uma mulher que por acaso achava bonita. Não tinha a mínima idéia da opinião dela a seu respeito, mas, desde o último encontro dos dois, sabia que estava a um passo de apaixonar-se. Se ela aceitasse — para aquela mesma noite ou para outra qualquer —, sua vida solitária estaria em perigo. Ele sabia disso com absoluta certeza, e essa certeza o amedrontava. Depois que sua mulher morrera durante o parto, ele se isolara cuidadosamente para não sofrer; o sexo se tornara pouco mais que um exercício de perícia; os casos não passavam de pavanas emocionais formalizadas, dançadas de acordo com as regras, sem o menor compromisso com coisa alguma. Mas claro que ela não ia aceitar. Ele não tinha absolutamente nenhuma razão para achar que ela estava interessada nele. Somente essa certeza lhe dava a confiança necessária para ficar imaginando tudo aquilo. Mesmo assim, estava inclinado a tentar a sorte. Enquanto conversavam, ensaiou mentalmente o que diria, perversamente divertido ao reconhecer, depois de tantos anos, as incertezas da adolescência. O toque leve em seu ombro sobressaltou-o. Era a secretária do presidente dizendo que ele estava sendo chamado ao telefone. “É da Scotland Yard, senhor Dalgliesh”, disse ela, tratando de disfarçar a curiosidade, como se os autores da Hearne e Illingworth estivessem acostumados a receber telefonemas da Scotland Yard. Ele sorriu para Deborah Riscoe desculpando-se, e ela, resignada, encolheu de leve os ombros. “Já volto”, disse. Contudo, avançando entre os grupos que conversavam, deu-se conta de que não voltaria. Atendeu à ligação num pequeno escritório ao lado da sala do conselho editorial, chegando ao telefone com dificuldade por entre cadeiras com manuscritos empilhados, rolos de provas e arquivos empoeirados. Hearne e Illingworth adotavam um estilo de despreocupação à antiga e desordem generalizada que ocultava — muitas vezes para desconcerto de seus autores — formidável eficiência e atenção para o detalhe. A voz conhecida ecoou em sua orelha: “É você, Adam? A festa está boa? Ótimo. Desculpe atrapalhar, mas eu gostaria que na saída você
passasse na Clínica Steen, no número 31. Você sabe onde é. Uma que só trata de neuroses de elite. Pelo jeito a secretária, ou gerente administrativa, sei lá, foi assassinada. No subsolo. Levou uma pancada na cabeça e depois uma estocada no coração. Negócio de mestre. Os rapazes estão a caminho. Claro, mandei o Martin para ajudar você. Ele está levando o seu equipamento.” “Obrigado. Quando o crime foi comunicado?” “Há três minutos. O diretor médico telefonou. Me fez um relatório resumido sobre os álibis de praticamente todo mundo no momento em que se supõe que o assassinato tenha sido cometido e explicou as razões pelas quais não era possível que o culpado fosse um dos pacientes. Também falei com um médico chamado Steiner. Ele me explicou que há cerca de cinco anos nos encontramos num jantar oferecido pelo cunhado dele. O dr. Steiner me explicou as razões pelas quais seria impossível que o culpado fosse ele e me brindou com sua interpretação do perfil psicológico do assassino. Aqueles sujeitos leram tudo o que há de melhor em matéria de romance policial. Ninguém tocou no corpo, não estão permitindo a entrada ou a saída de ninguém e estão todos reunidos numa sala para poder vigiar-se uns aos outros. É melhor você ir depressa para lá, Adam, do contrário eles vão resolver o crime antes de você chegar.” “Quem é o diretor médico?”, perguntou Dalgliesh. “O doutor Henry Etherege. Você já deve tê-lo visto na televisão. É o psiquiatra modelo, tem a missão de tornar a profissão algo respeitável. Aparência distinta, ortodoxo e rigoroso.” “Já o vi no tribunal”, disse Dalgliesh. “Claro. Você se lembra dele no caso Routledge? Teve a capacidade de praticamente me fazer chorar feito criança, e isso que eu conhecia Routledge melhor que ninguém. Etherege é a opção natural de todo advogado de defesa — isso se você conseguir que ele deponha. Sabe como eles são. Veja se descobre um psiquiatra de ar respeitável, que fale bem e que não choque o júri nem provoque a irritação do juiz. Resposta, Etherege. Enfim... Boa sorte para você!” Era muito otimismo do delegado imaginar que sua mensagem teria o poder de atrapalhar a festa. Fazia tempo que ela chegara ao estágio em que ninguém estranhava a partida de um convidado solitário. Dalgliesh agradeceu ao anfitrião, deu um aceno casual de despedida para as poucas pessoas com quem cruzou o olhar e saiu do prédio praticamente sem que ninguém notasse. Não voltou a ver Deborah Riscoe e não fez nenhum esforço para encontrá-la. Já estava com a cabeça no trabalho que tinha pela frente, sentindo que fora salvo, na melhor das hipóteses de um fora e na pior do desvario. Fora um encontro breve, absorvente, inconclusivo e perturbador, mas agora já pertencia ao passado. Enquanto cruzava a praça na direção do alto edifício georgiano que abrigava a Clínica Steen, Dalgliesh lembrou-se de uma das poucas informações sobre o lugar a que tivera acesso. Era arquisabido que o sujeito precisava ser excepcionalmente bom da cabeça para ser aceito na Clínica Steen para um tratamento. Claro, o lugar tinha a fama — provavelmente imerecida, achava Dalgliesh — de selecionar seus pacientes levando mais em conta sua inteligência e classe social do que sua situação mental, sujeitando-os a procedimentos diagnósticos que visavam afastar todos os candidatos com exceção dos mais entusiásticos, e depois deixá-los numa fila de espera para o tratamento, uma fila suficientemente demorada para garantir que os efeitos curativos do tempo exercessem o máximo de influência antes que o paciente comparecesse efetivamente a sua primeira sessão psicoterápica. Dalgliesh lembrou-se de que a Clínica Steen possuía um Modigliani. Não era um quadro muito conhecido, tampouco um dos melhores do artista, mas era, inquestionavelmente, um Modigliani. Estava pendurado na sala do conselho, no primeiro andar; fora uma doação de um antigo paciente agradecido e representava em boa medida o que a clínica
significava aos olhos do público. Outras clínicas do Sistema Nacional de Saúde povoavam suas paredes com reproduções da biblioteca iconográfica da Cruz Vermelha. A equipe da Clínica Steen não fazia segredo do fato de que preferia de longe um original de segunda linha a uma reprodução de primeira. E possuía um original de segunda linha para provar isso. O edifício em si fazia parte de um conjunto de prédios georgianos. Ficava na esquina sul da praça, confortável, despretensioso e agradável de todos os pontos de vista. Nos fundos, uma passagem estreita dava para a Lincoln Square Mews. A clínica tinha um subsolo gradeado; na fachada da casa, as grades formavam curvas dos dois lados dos largos degraus que conduziam à porta de entrada e sustentavam duas lâmpadas de ferro batido. À direita da porta uma placa singela de bronze ostentava o nome do Comitê Administrativo Hospitalar e, embaixo, as palavras “Clínica Steen”. Nenhuma outra informação era oferecida. A Clínica Steen não apregoava sua função a um mundo vulgar nem estava disposta a propiciar um influxo dos psicóticos locais em busca de tratamento ou reforço psíquico. Havia quatro carros estacionados do lado de fora, mas por enquanto nem sinal da polícia. O edifício parecia muito quieto. A porta estava fechada, mas uma luz brilhava através da elegante bandeira semicircular no alto da porta e por entre as dobras das cortinas fechadas das salas do térreo. A porta se abriu praticamente antes de ele afastar o dedo da campainha. Estavam à sua espera. Um jovem reforçado vestindo uniforme de porteiro abriu a porta e deixou-o entrar sem dizer nada. O vestíbulo lhe pareceu quente demais, depois do frio da noite outonal. À esquerda da porta estava a recepção — um compartimento com paredes de vidro e uma mesa telefônica. Um segundo porteiro, este muito mais velho do que o primeiro, estava sentado à mesa numa atitude de profunda infelicidade. Depois de olhar em volta, deu uma espiadela rápida para o lado de Dalgliesh com seus olhos lacrimejantes e voltou à contemplação da mesa telefônica. Era como se a chegada do inspetor fosse a última palha de um peso intolerável que ele tinha de carregar e que, se ignorado, talvez fosse retirado de suas costas. No espaço principal do vestíbulo, a comissão de recepção avançava; o diretor médico vinha com a mão estendida como se recebesse um convidado. “Inspetor Dalgliesh? Que alegria vê-lo. Gostaria de apresentar meu colega, o doutor James Baguley, e o secretário do Comitê Administrativo Hospitalar, senhor Lauder.” “O senhor chegou depressa ao hospital!”, disse Dalgliesh a Lauder. O secretário do grupo respondeu: “Só tomei conhecimento do assassinato depois que cheguei aqui, dois minutos atrás. Hoje na hora do almoço a senhorita Bolam me telefonou e disse que precisava falar comigo com urgência. Estava acontecendo alguma coisa na clínica e ela queria que eu a aconselhasse. Vim assim que pude e descobri que ela havia sido assassinada. Nas circunstâncias, eu tinha mais de uma razão para ficar por aqui. Pelo jeito ela estava mais necessitada de conselhos do que ela própria sabia.” “Fosse o que fosse, parece que você chegou tarde demais”, disse o dr. Etherege. Dalgliesh viu que ele era bem mais baixo do que parecia quando visto pela televisão. A cabeça grande, de cocoruto alto, com sua auréola de cabelo branco macio e fino como o de um bebê, parecia muito pesada para o corpo, que dava a impressão de ter envelhecido independentemente, deixando-o com uma aparência esquisita, desconjuntada. Era difícil adivinhar sua idade, mas Dalgliesh achou que ele devia estar mais para setenta do que para sessenta e cinco, a idade normal de aposentadoria para um consultor. Possuía um rosto de gnomo indestrutível; as bochechas coradas pareciam pintadas; as sobrancelhas se moviam acima de olhos de um azul penetrante. Dalgliesh sentia que aqueles olhos, assim como a voz macia, convincente, eram
ferramentas profissionais importantes do diretor médico. O dr. James Baguley, em compensação, tinha um metro e oitenta e três de altura, só um pouco menos que Dalgliesh, e a impressão imediata que ele transmitia era de intensa fadiga. Vestia um avental branco comprido que lhe caía descuidadamente dos ombros encurvados. Embora fosse bem mais jovem do que o diretor médico, ficava muito aquém deste em matéria de vitalidade. Seu cabelo liso estava ficando cinza-chumbo. De vez em quando ele o afastava dos olhos com os dedos compridos manchados de nicotina. Seu rosto era atraente, ossudo, mas tinha a pele e os olhos opacos como se sofressem de cansaço permanente. O diretor médico disse: “Imagino que o senhor queira ver o corpo imediatamente. Vou pedir a Peter Nagle, nosso segundo porteiro, que vá até lá embaixo conosco, se o senhor não vir inconveniente. O formão dele foi uma das armas utilizadas — não que tivessem pedido a opinião dele a respeito, coitado — e sem dúvida o senhor vai querer interrogá-lo.” “No momento oportuno vou querer interrogar todo mundo aqui dentro”, replicou Dalgliesh. Dava para perceber que o diretor médico assumira a liderança. O dr. Baguley, que ainda não abrira a boca, parecia contente em aceitar esse fato. Lauder, aparentemente, optara pelo papel de observador. Enquanto o grupo se dirigia para as escadas que levavam ao subsolo, seu olhar encontrou o de Dalgliesh. Foi só por um instante e Dalgliesh não soube bem como analisar sua expressão, mas pareceu-lhe ter percebido um lampejo de humor e um certo distanciamento oblíquo. Todos ficaram parados em silêncio olhando Dalgliesh de joelhos ao lado do cadáver. Ele só o tocou para entreabrir o casaco e a blusa, ambos desabotoados, e expor o cabo do formão. Este fora enterrado até a empunhadura. Os tecidos quase não estavam contundidos e não havia sangue. A camiseta da mulher fora enrolada até acima de seus seios para expor a pele àquele golpe cruel, calculado. A providência sugeria que o assassino confiava em seus conhecimentos de anatomia. Havia maneiras mais fáceis de matar do que perfurar o coração com um único golpe — mas para quem tivesse o conhecimento e a força física necessários, poucas eram mais seguras do que aquela. Dalgliesh se levantou e virou-se para Peter Nagle. “Esse formão é seu?” “Aparentemente é. É igual ao meu e o meu não está na caixa.” Apesar da omissão do “senhor” de praxe, a voz, educada e não enfática, era desprovida de insolência ou ressentimento. Dalgliesh peguntou: “Alguma idéia sobre o modo como ele veio parar aqui?” “Absolutamente nenhuma. Mesmo que tivesse, é provável que não falasse nada, não é mesmo?” O diretor médico franziu as sobrancelhas por um momento, olhando para Nagle como se o advertisse ou repreendesse, e apoiou a mão por um segundo no ombro do porteiro. Sem consultar Dalgliesh, disse gentilmente: “Não precisamos mais de você por enquanto, Nagle. Espere lá fora, por favor.” Dalgliesh não opôs objeção ao ver o porteiro afastar-se do grupo sem alarde e sair em silêncio. “Pobre rapaz! Dá para perceber que está chocado com o uso de seu formão. A impressão que se tem, bastante desagradável, é de que alguém tentou comprometê-lo. Mas o senhor irá verificar, inspetor, que Nagle é um dos poucos membros da equipe com um álibi completo para a suposta hora da morte.” Dalgliesh não chamou a atenção para o fato de que isso, em si, já era altamente suspeito.
“Temos uma estimativa da hora da morte?”, perguntou. O dr. Etherege respondeu: “Achei que deve ter ocorrido muito recentemente. Essa é, também, a opinião do doutor Baguley. A clínica está muito aquecida hoje — o aquecimento central foi ligado há pouco tempo —, por isso o resfriamento do corpo seria um bocado lento. Não examinei a presença de rigor mortis. Claro, sou pouco mais do que um leigo nesses assuntos. Depois fiquei sabendo que ela deve ter morrido há menos de uma hora. Claro que discutimos o assunto enquanto esperávamos pelo senhor, e parece que irmã Ambrose foi a última pessoa a ver a senhorita Bolam com vida. Isso foi às seis e vinte. Cully, nosso porteiro sênior, me disse que a senhorita Bolam falou com ele pelo interfone mais ou menos às seis e quinze para dizer que ia descer ao subsolo e que se o senhor Lauder chegasse deveria esperá-la em seu escritório. Poucos minutos depois, segundo seus cálculos, a irmã saiu da sala de eletrochoque, no térreo, e atravessou o vestíbulo na direção da sala de espera dos pacientes para informar a um senhor que podia levar a mulher para casa. A irmã viu quando a senhorita Bolam cruzou o vestíbulo na direção das escadas que descem para o subsolo. Depois disso, ninguém tornou a vê-la com vida.” “A não ser o assassino”, disse Dalgliesh. O dr. Etherege pareceu surpreso. “Claro, o assassino viu. O que estou querendo dizer é que nenhum de nós voltou a vê-la com vida. Perguntei à irmã Ambrose sobre a hora e a irmã tem certeza...” “Vou conversar com a irmã Ambrose e o outro porteiro.” “Claro. Sem dúvida, o senhor vai querer conversar com todo mundo. Já havíamos previsto. Enquanto esperávamos, telefonamos para nossas casas para avisar que chegaríamos atrasados hoje à noite, mas não adiantamos nenhuma explicação. Já havíamos dado uma busca no edifício e verificado que tanto a porta que dá para o subsolo como a porta dos fundos do térreo estavam bem trancadas. Ninguém mexeu em nada aqui dentro, óbvio. Dei ordens para que o pessoal do hospital permanecesse reunido no consultório da frente, com exceção da irmã Ambrose e da enfermeira Bolam, que ficaram na sala de espera com os pacientes que ainda estavam por aqui. Ninguém teve permissão para entrar, com exceção do senhor e do senhor Lauder.” “Pelo jeito o senhor pensou em tudo, doutor”, disse Dalgliesh. O detetive, que ainda estava ajoelhado, ergueu-se e, em pé, continuou a olhar para o corpo. “Quem a encontrou?” “Uma de nossas secretárias médicas, Jennifer Priddy. O porteiro sênior, Cully, passou quase o dia inteiro se queixando de dor de estômago, e a senhorita Priddy foi procurar a senhorita Bolam para lhe perguntar se ele podia ir para casa mais cedo. A senhorita Priddy está muito abalada, mas conseguiu me informar que...” “Acho que seria melhor que ela me informasse diretamente. Esta porta costumava ficar trancada a chave?” A pergunta foi feita num tom de perfeita cortesia, mas ele percebeu a surpresa dos outros. O tom do diretor médico não se alterou quando ele respondeu: “Em geral, sim. A chave fica num painel, com outras chaves da clínica, no quartinho dos porteiros, aqui no subsolo. O formão também era guardado lá.” “E esta estátua?” “Retirada da sala de arte-terapia, no subsolo, do outro lado do corredor. Foi esculpida por um de nossos pacientes.” Quem respondia era sempre o diretor médico. Até aquele momento o dr. Baguley não dissera
uma só palavra. De repente, ele falou: “Ela foi nocauteada com a estátua e depois teve o coração trespassado por alguém que, das duas uma: ou tinha conhecimentos especializados ou teve muita sorte. Até aí, a coisa é óbvia. O que não é óbvio é a razão pela qual armaram essa esculhambação nos arquivos médicos. Ela está caída por cima das pastas, portanto deve ter acontecido antes do assassinato.” “O resultado de uma briga, quem sabe”, sugeriu o dr. Etherege. “Não é o que me parece. As pastas foram puxadas das estantes e espalhadas deliberadamente pelo chão. Deve ter havido uma razão. Não houve nada de impulsivo nesse assassinato.” Nesse momento Peter Nagle, que aparentemente estava do lado de fora da porta, entrou no aposento. “Alguém tocou a campainha, senhor. Será que são os outros policiais?” Dalgliesh observou que a sala dos arquivos era quase à prova de som. A campainha da porta de entrada era estridente, mas ele não ouvira nada. “Talvez”, disse. “Vamos subir.” Enquanto o grupo se aproximava da escada, o dr. Etherege falou: “Inspetor... Será que o senhor poderia ver os pacientes assim que possível? São apenas dois — um em psicoterapia com meu colega doutor Steiner e uma mulher que está fazendo um tratamento de ácido lisérgico aqui embaixo, no subsolo, na sala de tratamento da frente. O doutor Baguley poderá lhe explicar o tratamento — ela é paciente dele —, mas pode ter certeza de que ela não teria condições de se levantar da cama até alguns minutos atrás, e certamente não tem a menor noção de que aqui houve um assassinato. Esses pacientes ficam muito desorientados durante o tratamento. A enfermeira Bolam passou a tarde inteira ao lado dela.” “Enfermeira Bolam? Parente da morta?” “Prima”, disse o dr. Baguley, lacônico. “E a sua paciente desorientada, doutor? Perceberia, caso a enfermeira Bolam saísse do lado dela no decorrer do tratamento?” A resposta foi quase ríspida: “A enfermeira Bolam nunca sairia do lado dela.” Subiram a escada juntos, na direção do rumor de vozes do vestíbulo.
A campainha da porta introduziu na Clínica Steen a parafernália e os conhecimentos de um mundo estranho. Silenciosamente e sem alarde, os especialistas em morte violenta entraram em ação. Dalgliesh desapareceu na sala dos arquivos com o legista e o fotógrafo da polícia. O homem das digitais, miúdo e rechonchudo como um hâmster, de mãos esguias e delicadas, passou a cuidar das maçanetas das portas, das fechaduras, da caixa de ferramentas e da estátua de Tippett. Homens à paisana desconcertantemente parecidos com atores de televisão no papel de homens à paisana revistaram meticulosamente todos os aposentos e todos os armários da clínica, verificando se de fato não havia nenhuma pessoa não autorizada no local e se as portas dos fundos tanto do térreo como do subsolo estavam trancadas pelo lado de dentro com toda a segurança. O pessoal da clínica, excluído dessas atividades e concentrado no consultório da frente, no térreo — equipado às pressas com poltronas adicionais trazidas da sala de espera dos pacientes —, tinha a sensação de que seu território familiar fora tomado por estranhos e de que estava enredado na maquinaria inexorável da justiça, sendo empurrado para diante ao encontro de Deus sabe que dificuldades e
desventuras. A única pessoa que parecia serena era o secretário do Comitê Administrativo Hospitalar. Ele se acomodara no vestíbulo como um cão de guarda, sentado paciente e solitário à espera de que chegasse sua vez de ser interrogado. Dalgliesh se instalou no escritório da srta. Bolam. Era uma saleta no térreo, situada entre a ampla secretaria, na parte da frente do edifício, e as salas de eletrochoque e de recuperação, ao fundo. Do outro lado do corredor havia um conjunto de dois consultórios e a sala de espera dos pacientes. O escritório fora construído dentro de uma sala maior com o uso de divisórias, razão pela qual suas proporções eram esquisitas: desagradavelmente estreito para seu pé-direito. O mobiliário era escasso; o único toque pessoal era um vaso com um grande ramo de crisântemos sobre um dos arquivos. Encostado numa das paredes havia um cofre antiquado, enquanto a outra estava coberta por arquivos de metal verde. Sobre a escrivaninha, muito simples, viam-se unicamente uma agenda de mesa, um bloco de anotações e uma pequena pilha de envelopes pardos. Dalgliesh examinou-os rapidamente e disse: “Estranho. Aparentemente são fichas funcionais do pessoal da clínica, mas só das mulheres. Aliás, a ficha dela não está entre as outras. Me pergunto por que ela havia retirado essas fichas...” “Vai ver que estava conferindo as férias anuais das pessoas ou alguma coisa do tipo...”, sugeriu o sargento Martin. “Quem sabe. Mas por que só das mulheres? Enfim... Não tem maior importância no momento. Vamos dar uma olhada nesse bloco.” Aparentemente a srta. Bolam era um desses funcionários administrativos que preferem não confiar na memória. A primeira página do bloco, com a data anotada no alto, estava repleta de anotações feitas numa letra inclinada, um tanto infantil. Comitê Médico — falar Dr. s/proposta de dep. adolescentes. Falar Nagle — correia arrebentada janela quarto srta. Kallinski. Sra. Shorthouse — ? folga. Essas anotações eram no mínimo auto-explicativas, mas os rabiscos logo abaixo — aparentemente escritos às pressas — eram menos explícitos. Mulher. Oito anos aqui. Chega 1 segunda. Dalgliesh disse: “Isto parece um lembrete escrito durante um telefonema. Claro, talvez fosse um telefonema particular, sem nada a ver com a clínica.Talvez fosse um médico tentando localizar uma paciente, ou vice-versa. Aparentemente alguma coisa, ou alguém, deve chegar na primeira segunda-feira ou na segunda-feira dia primeiro. Há uma dúzia de interpretações possíveis, nenhuma delas relevante para o assassinato. Mas uma coisa é certa: alguém telefonou recentemente para falar de uma mulher, e a senhorita Bolam estava sem sombra de dúvida examinando os dossiês de todas as mulheres da equipe, exceto o dela própria. Por quê? Para verificar qual delas havia estado aqui oito anos atrás? Como saber? Deixemos de lado por enquanto os prazeres da conjectura e vamos tratar de entrevistar essas pessoas. Eu gostaria de começar pela datilógrafa, a garota que encontrou o corpo. Etherege disse que estava abalada. Esperemos que tenha se acalmado, do contrário vamos passar metade da noite aqui.” Mas Jennifer Priddy estava perfeitamente calma. Era óbvio que andara bebendo, e seu pesar estava recoberto por mal-disfarçada excitação. Seu rosto, ainda inchado de chorar, tinha manchas vermelhas, enquanto seus olhos mostravam um brilho pouco natural. A bebida, contudo, não confundira suas idéias, e ela contou sua história com clareza. Passara praticamente a tarde inteira ocupada na secretaria do térreo e vira a srta. Bolam pela última vez mais ou menos às cinco e
quarenta e cinco, quando entrara no escritório dela com uma dúvida sobre uma consulta de paciente. Na ocasião, não vira nada de estranho na srta. Bolam. Logo depois voltara para a secretaria, onde Peter Nagle se apresentara mais ou menos às seis e dez. Nagle estava de casaco e viera recolher a correspondência que devia ser despachada. A srta. Priddy registrara as últimas poucas cartas no livro do correio e as entregara a ele. Às seis e quinze ou vinte a sra. Shorthouse se unira a eles. A sra. Shorthouse mencionara que tinha acabado de sair do escritório da srta. Bolam, onde fora acertar um assunto relativo a suas férias anuais. Peter Nagle saíra com a correspondência e ela e a sra. Shorthouse haviam permanecido juntas até ele voltar, cerca de dez minutos mais tarde. Em seguida Nagle descera para o quartinho dos porteiros, no subsolo, para pendurar o casaco e alimentar Tigger, o gato da clínica, e ela o seguira quase imediatamente. Ajudara-o a dar comida a Tigger e os dois haviam voltado juntos para a secretaria. Mais ou menos às sete horas o porteiro sênior, Cully, voltara a queixar-se da dor de estômago que o atormentara o dia inteiro. Fora preciso que a srta. Priddy, a sra. Bostock, a outra secretária médica e Peter Nagle se revezassem ao longo do dia ocupando o lugar de Cully na recepção por causa da tal dor de estômago, mas ele se recusara a ir para casa. Agora, porém, estava disposto a se retirar, e a srta. Priddy fora até o escritório da gerente administrativa para perguntar à srta. Bolam se ele podia sair mais cedo. A srta. Bolam não estava em seu escritório, de modo que ela dera uma olhada na sala das enfermeiras, no térreo, onde irmã Ambrose a informara que havia visto a gerente atravessando o vestíbulo na direção da escada que levava ao subsolo cerca de trinta minutos antes. A srta. Priddy descera até o subsolo para ver se encontrava a srta. Bolam. A sala dos arquivos costumava ficar trancada, mas a chave estava na fechadura e a porta entreaberta, por isso entrara para ver se achava a outra. A luz estava acesa. Encontrara o corpo — neste ponto a voz da srta. Priddy fraquejara — e correra imediatamente para o andar de cima em busca de ajuda. Não, não tocara em nada. Não sabia por que as pastas médicas estavam espalhadas. Não sabia como tinha chegado à conclusão de que a srta. Bolam estava morta. Era que a srta. Bolam estava com um jeito de estar completamente morta. Não sabia por que tinha tanta certeza de que fora assassinada. Achava que havia visto um ferimento na cabeça da srta. Bolam. Além disso, vira a estátua de Tippett caída sobre o corpo. Ficara com medo de que Tippett estivesse escondido entre as prateleiras com as pastas e que fosse pular em cima dela. Todo mundo dizia que ele não era perigoso — isto é, todo mundo fora o dr. Steiner —, mas ele estivera internado num hospital psiquiátrico e afinal de contas não dá para ter cem por cento de certeza, não é mesmo? Não, ela não sabia que Tippett não se encontrava na clínica. Peter Nagle recebera o recado do hospital e o comunicara à srta. Bolam, mas não contara a ela. Não vira o formão no peito da srta. Bolam, mas o dr. Etherege contara ao pessoal do hospital sobre o golpe no coração da gerente administrativa quando todos estavam reunidos no consultório da frente à espera da polícia. Achava que quase todos os empregados da clínica sabiam onde Peter Nagle guardava suas ferramentas e também qual era a chave que abria a porta da sala dos arquivos, no subsolo. Ficava pendurada no gancho número doze e era mais brilhante do que as outras chaves, mas não tinha etiqueta. Dalgliesh falou: “Vou lhe pedir que se concentre, que pense bem, e me diga: Quando a senhora desceu para ajudar o senhor Nagle a dar comida ao gato, a porta da sala dos arquivos estava entreaberta e a luz acesa, como estavam mais tarde, quando voltou a descer e encontrou a senhorita Bolam?” A garota ajeitou o cabelo louro para trás e disse, subitamente exausta: “Eu... não me lembro. Não passei por aquela porta, entende? Fui direto para o quartinho dos porteiros, ao pé da escada. Peter estava esvaziando a tigela de Tigger. Como ele não havia comido
tudo o que fora servido na refeição anterior, raspamos os restos e lavamos a tigela na pia. Não fomos até a sala dos arquivos.” “Mas quem desce a escada consegue ver a porta, não é mesmo? Será que teria notado se a porta estivesse entreaberta? Aquela sala é pouco usada, não?” “É pouco usada, mas qualquer pessoa podia entrar lá, se precisasse de alguma ficha. Quer dizer, se a porta estivesse aberta eu não iria até lá verificar quem estava lá dentro ou algo do tipo. Acho que teria notado se a porta estivesse bem aberta, por isso suponho que não estava, mas não consigo me lembrar, sinceramente, não consigo.” Para concluir, Dalgliesh perguntou sobre a srta. Bolam. Constava que a srta. Bolam a conhecia de fora da clínica, que a família Priddy freqüentava a mesma igreja e que a srta. Bolam a incentivara a aceitar o emprego na clínica. “Eu não teria conseguido este emprego se não fosse a Enid. Claro, eu nunca a chamava assim aqui na clínica. Ela não teria gostado.” A srta. Priddy dava a impressão de que tivera dificuldade de usar o nome de batismo da srta. Bolam mesmo fora da clínica. Prosseguiu: “Não é que ela tenha me indicado, exatamente. Fui entrevistada pelo senhor Lauder e pelo doutor Etherege, mas sei que ela me apoiou. Na época, minha taquigrafia e minha datilografia não eram grande coisa — já faz quase dois anos que estou aqui —, e tive sorte de ser aceita. Era raro eu encontrar Enid dentro da clínica, mas ela sempre era muito amável comigo e me animava a crescer. Queria que eu fizesse o curso do Instituto de Administração Hospitalar, para não ser estenodatilógrafa pelo resto da vida.” Dalgliesh estranhou um pouco essa preocupação com o futuro profissional da srta. Priddy. A garota não parecia ambiciosa e sem dúvida não demoraria a achar marido. O diploma do Instituto — fosse lá o que fosse — não era as-sim tão fundamental para que ela não passasse o resto da vida como estenodatilógrafa. O inspetor sentiu uma certa pena da srta. Bolam, que dificilmente poderia ter escolhido uma protegida menos promissora. Ela era bonita, sincera e ingênua, mas não particularmente inteligente, achava ele. Teve de lembrar a si mesmo que ela dissera ter vinte e dois anos, não dezessete. Tinha um corpo bonito e incongruentemente amadurecido, mas o rosto fino, com sua moldura de cabelo comprido e liso, era o rosto de uma criança. Ela pouco lhe disse sobre a gerente administrativa. Não registrara nenhuma mudança recente na srta. Bolam. Não sabia que ela pedira ao senhor Lauder que fosse conversar com ela e não tinha a menor idéia de quais pudessem ser as preocupações da srta. Bolam na clínica. Tudo estava mais ou menos como sempre. Que ela soubesse, a srta. Bolam não tinha inimigos. Pelo menos não alguém que alimentasse o desejo de matá-la. “Quer dizer que, na sua opinião, ela era feliz aqui? Eu estava imaginando se por acaso ela não teria pedido uma transferência. Deve ser muito trabalhoso administrar uma clínica psiquiátrica...” “Ah, não é mesmo! Não sei como Enid agüentava, às vezes. Mas tenho certeza de que jamais pediria para ser transferida. Alguém deve ter lhe dado uma impressão errônea. Ela jamais desistia das coisas. Se achasse que as pessoas estavam querendo que ela fosse embora, ia se agarrar mais ainda. Para ela, a clínica era uma espécie de desafio.” Provavelmente essa foi a coisa mais esclarecedora que ela disse a respeito da srta. Bolam. Enquanto agradecia à moça e lhe pedia que aguardasse com o resto do pessoal da clínica até que as entrevistas preliminares estivessem concluídas, Dalgliesh tentava adivinhar quais seriam os possíveis inconvenientes provocados por uma administradora que via seu trabalho como um desafio, um campo de batalha do qual jamais se retiraria de livre e espontânea vontade. Logo depois, pediu para ver Peter Nagle.
Se o segundo porteiro estava preocupado com o fato de o assassino ter escolhido seu formão para arma do crime, não o deixou transparecer. Respondeu às perguntas de Dalgliesh calma e educadamente, mas com tanta frieza que até parecia que os dois estavam discutindo algum aspecto de menor importância da rotina da clínica, algo que só lhe dissesse respeito indiretamente. Disse que tinha vinte e sete anos de idade e forneceu um endereço em Pimlico, depois confirmou que estava trabalhando na clínica havia pouco mais de dois anos, e que antes era professor de artes numa escola do interior. Sua voz era regular e educada, e os olhos castanhos eram grandes, quase inexpressivos. Dalgliesh observou que seus braços eram anormalmente longos e que, pendurados no corpo baixo e vigoroso, davam uma impressão de força simiesca. Seu cabelo era negro, muito encaracolado e curto. Um rosto interessante; reservado mas inteligente. Era gritante o contraste com o coitado do velho Cully — mandado para casa para tratar da dor de estômago e da indignação por ter sido retido na clínica até mais tarde. Nagle confirmou o relato da srta. Priddy. Voltou a identificar seu formão, limitando-se a manifestar seus sentimentos com uma leve expressão de repugnância. Disse que vira a ferramenta pela última vez às oito da manhã naquele mesmo dia, ao chegar ao trabalho e — por nenhuma razão especial — fazer uma vistoria na caixa de ferramentas. Na ocasião, estava tudo em ordem. Dalgliesh perguntou se todo mundo sabia onde a caixa costumava ser guardada. Nagle respondeu: “Eu seria um idiota se respondesse negativamente, não é mesmo?” “Você seria um idiota se dissesse qualquer coisa que não fosse a verdade, agora ou mais adiante.” “Acho que quase toda a equipe do hospital sabia. E os que não sabiam poderiam descobrir com a maior facilidade. O quartinho dos porteiros costuma ficar destrancado.” “Não é uma imprudência? E os pacientes?” “Eles nunca descem sozinhos ao subsolo. Os pacientes do ácido lisérgico andam acompanhados e sempre tem alguém de olho nos da arte-terapia. Faz pouco tempo que o departamento foi instalado no subsolo. A luz não é boa, o lugar não é adequado. O departamento só vai ficar lá enquanto for necessário.” “Onde ele funcionava até agora?” “No terceiro andar. Depois o Comitê Médico da clínica chegou à conclusão de que precisava da sala grande do terceiro andar para as discussões de grupo sobre problemas conjugais, e a sra. Baumgarten — a arte-terapeuta — teve de sair. Ela anda fazendo barulho para conseguir o lugar de volta, mas os pacientes da terapia de casal dizem que seria psicologicamente perturbador para eles que seus encontros fossem no subsolo.” “Quem é o terapeuta de casal?” “O doutor Steiner, ajudado por uma assistente social da área psiquiátrica, a senhorita Kallinski. São encontros onde os divorciados e os solteiros explicam aos pacientes como ser feliz mesmo sendo casado. Não vejo como isso possa ter alguma conexão com o assassinato.” “Nem eu. Só perguntei por curiosidade, vendo que o departamento de arte-terapia estava tão mal instalado. Aliás, quando você ficou sabendo que Tippett não viria à clínica hoje?” “Mais ou menos às nove da manhã. Parece que nosso amigo não descansou enquanto o hospital St. Luke não telefonou para cá para contar o que tinha acontecido. Informei à senhorita Bolam e à irmã.” “Mais alguém?” “Acho que mencionei o fato a Cully quando ele reassumiu a portaria. Ele passou a maior parte
do dia com cólica.” “É, me disseram. O que ele tem?” “Cully? A senhorita Bolam mandou ele fazer uma consulta no hospital, mas não encontraram nada. Ele sempre fica com cólica quando tem alguma incomodação. Parece que é psicossomático.” “Qual foi a incomodação esta manhã?” “Eu que causei. Ele chegou aqui antes de mim e começou a classificar a correspondência. Essa tarefa é minha. Eu disse a ele que fizesse o trabalho dele e não se metesse no meu.” Pacientemente, Dalgliesh ouviu-o discorrer sobre os acontecimentos da noite. Seu relato coincidiu com o da srta. Priddy e, tal como ela, ele não soube dizer se a porta da sala dos arquivos no subsolo estava entreaberta quando ele voltara do correio. Admitiu que tinha passado pela porta quando fora perguntar à enfermeira Bolam se a roupa lavada já tinha sido separada. Normalmente estaria fechada, já que ninguém costumava ir lá, e ele achava que teria notado se estivesse aberta. O fato de que esse ponto fundamental não pudesse ser determinado era frustrante, enlouquecedor, mas Nagle ficou firme. Não tinha percebido. Não sabia dizer. Tampouco notara se a chave da sala dos arquivos estava no quadro, no quartinho dos porteiros. Isso já era mais fácil de entender. Havia vinte e dois ganchos no quadro, e a maioria das chaves estava fora, em uso. Dalgliesh perguntou: “Você se dá conta de que o corpo da senhorita Bolam estava quase certamente caído na sala dos arquivos enquanto você e a senhorita Priddy davam comida ao gato? Percebe a importância de se lembrar se a porta estava aberta ou fechada?” “Quando Jenny Priddy desceu, um pouco mais tarde, ela estava entreaberta. É o que Jenny diz, e ela não é nenhuma mentirosa. Se estava fechada quando voltei do correio, alguém deve tê-la aberto entre as seis e vinte e cinco e as sete horas. Não vejo nada de tão impossível nisso. Seria melhor para mim se eu conseguisse me lembrar dessa história da porta, mas não me lembro. Pendurei o casaco no meu armário e fui direto falar com a enfermeira Bolam sobre a questão da roupa, depois voltei para o quartinho dos porteiros. Jenny me encontrou ao pé da escada.” Nagle falava sem se alterar, quase sem emoção. Era como se dissesse: “O que aconteceu foi tal e tal. Gostem ou não gostem, foi assim que as coisas se passaram”. Ele era muito inteligente para não perceber que estava correndo algum perigo. Talvez também fosse suficientemente inteligente para saber que o perigo era irrelevante para um homem inocente que ficasse de cabeça fria e falasse só a verdade. Dalgliesh lhe disse que informasse a polícia imediatamente caso se lembrasse de alguma outra coisa, depois deixou-o ir. A próxima pessoa a ser interrogada foi a irmã Ambrose. Ela entrou na saleta em passo marcial, em sua armadura de linho branco, belicosa como um navio de guerra. O peitilho do avental, duro feito uma tábua de tão engomado, recobria um busto de proporções formidáveis, sobre o qual ela usava seus distintivos de enfermeira como se fossem medalhas de guerra. O cabelo grisalho saía pelos dois lados da touca, que ela usava bem enterrada na cabeça, sobre um rosto de traços perfeitamente comuns. Estava afogueada; Dalgliesh teve a impressão de que ela estava com dificuldade de controlar seu ressentimento e sua falta de confiança. Tratou-a com gentileza, mas suas perguntas foram respondidas num clima de rígida desaprovação. Lacônica, ela confirmou que havia visto a srta. Bolam pela última vez no momento em que ela atravessava o vestíbulo na direção da escada que levava ao subsolo, mais ou menos às seis e vinte da tarde. Não haviam dito nada uma à outra, e a gerente administrativa estava com seu aspecto usual. Antes que a srta. Bolam sumisse na escada, a irmã Ambrose já estava de volta à sala de eletrochoque, onde
permanecera, na companhia da dra. Ingram, até o corpo ser encontrado. Quando Dalgliesh quis saber se o dr. Baguley também permanecera com elas pelo resto do tempo, irmã Ambrose sugeriu que ele perguntasse diretamente ao doutor. Dalgliesh respondeu com suavidade que sua intenção era exatamente essa. Sabia que a irmã, se quisesse, poderia lhe fornecer muitas informações úteis sobre a clínica, mas, exceto umas poucas perguntas sobre as relações pessoais da srta. Bolam que não deram em nada, não a pressionou. Ele achava que era muito provável que ela estivesse mais chocada com o assassinato, com a violência calculada da morte da srta. Bolam, do que qualquer um com quem ele já conversara. Como às vezes acontece com as pessoas de pouco expediente e escassa imaginação, esse choque gerava mau humor. Ela estava furiosa; com Dalgliesh, porque o trabalho dele lhe dava o direito de fazer perguntas impertinentes e embaraçosas; consigo mesma, porque não conseguia disfarçar seus sentimentos; e até com a vítima, por ter envolvido a clínica naquela situação bizarra. Não era a primeira vez que Dalgliesh encontrava aquela reação, e ele sabia que não adiantava tentar forçar a testemunha a cooperar. Mais adiante talvez fosse possível convencer a irmã Ambrose a se abrir mais; no momento, era perda de tempo fazer mais do que colher os fatos que ela estava disposta a comunicar. Um deles, pelo menos, era importantíssimo. A srta. Bolam estava viva e andando na direção da escada do subsolo às seis e vinte, mais ou menos. Às sete, seu corpo fora encontrado. Aqueles quarenta minutos eram cruciais, e todo membro da equipe da clínica que conseguisse oferecer um álibi que os cobrisse poderia ser eliminado da investigação. Assim sendo, o caso parecia apresentar poucas dificuldades. Dalgliesh não acreditava que uma pessoa de fora tivesse dado um jeito de entrar na clínica para ficar à espera da srta. Bolam. Era quase certo que o assassino ainda se encontrava no interior do edifício. Agora, tudo se resumia em fazer interrogatórios cuidadosos, verificar metodicamente os álibis, encontrar um motivo. Dalgliesh resolveu falar com o único homem cujo álibi parecia inatacável. Ele poderia lhe fornecer uma visão externa e imparcial da clínica e de seus diversos protagonistas. Agradeceu a irmã Ambrose por sua valiosa cooperação — um lampejo nos olhos por trás dos óculos de aros de aço deu a entender que ela captara a ironia — e pediu ao policial que montava guarda junto à porta que chamasse o sr. Lauder.
2
Era a primeira vez que Dalgliesh tinha a oportunidade de observar o secretário do Comitê Administrativo Hospitalar de perto. Viu um homem reforçado, de feições roliças, olhos amáveis por trás dos pesados óculos quadrados, que mais parecia, em seu terno bem cortado de tweed, um médico do interior ou um advogado de cidade pequena do que um burocrata. Estava inteiramente à vontade e se comportava como um homem que conhece a própria importância, não aceitando ser forçado a dar respostas rápidas, sempre ocultando algum trunfo; inclusive, achava Dalgliesh, uma inteligência mais aguda do que seu aspecto sugeria. Sentou-se diante do inspetor, puxou a cadeira tranqüilamente para a frente e, sem pedir licença nem se desculpar, tirou um cachimbo de um dos bolsos e o invólucro com o tabaco de outro. Balançando a cabeça na direção de Martin e de sua caderneta de anotações aberta, disse, numa voz lenta que guardava traços de sotaque do norte do país: “Reginald Iven Lauder. Data de nascimento, 21 de abril de 1905. Endereço, avenida Makepeace número 42, Chigwell, Essex. Profissão, secretário do Comitê Administrativo do Hospital Central do Leste. E agora, inspetor, o que deseja saber?” “Muitas coisas, infelizmente”, disse Dalgliesh. “Em primeiro lugar, o senhor faz alguma idéia de quem possa ser o assassino da senhorita Bolam?” “Antes tivesse. E já teria vindo aqui lhe dizer, pode ter certeza. Mas não. Não tenho como ajudálo nesse ponto.” “Até onde o senhor sabe, a senhorita Bolam não tinha inimigos?” “Inimigos? Bem, inspetor, essa é uma palavra muito forte. Havia pessoas que não gostavam dela, assim como há pessoas que não gostam de mim. E do senhor também, sem dúvida. Mas nem por isso andamos por aí com medo de ser assassinados. Não, eu não diria que a senhorita Bolam tinha inimigos. Mas lembre-se de que não tenho nenhuma informação sobre sua vida particular, que não é da minha conta.” “O senhor poderia me contar alguma coisa sobre a Clínica Steen e a posição que a vítima ocupava? Conheço um pouco a reputação da clínica, é claro, mas seria útil se eu tivesse um quadro claro do que acontece aqui.” “Um quadro claro do que acontece?” Talvez fosse imaginação sua, mas Dalgliesh achou que tinha visto a boca do secretário estremecer. “Bem, o diretor médico seria a pessoa mais indicada para lhe explicar isso — do ponto de vista médico, quero dizer. Mas posso fazer um apanhado geral. A instituição foi fundada entre as duas guerras pela família de um certo senhor Hyman Stein. Dizem que o velho sofria de impotência, fez uma psicoterapia e posteriormente engendrou cinco filhos. Em vez de pesar nas finanças paternas, os cinco progrediram na vida, e quando o pai morreu os filhos fizeram investimentos sólidos na clínica em homenagem à memória dele. Afinal de contas, julgavam, bem que tinham uma dívida a saldar. Os filhos mudaram de nome, passando a chamar-se Steen — pelas razões de sempre, eu suponho —, e a clínica foi batizada com o nome anglicizado. Fico pensando qual teria sido a reação do velho Hyman.” “A clínica tem um bom fundo social?” “Tinha. O estado encampou, claro, com base na Lei de 1946. Houve algumas doações posteriores, mas não tantas. As pessoas não se sentem muito inclinadas a ser generosas com
instituições gerenciadas pelo governo. Mas até 1948 o lugar era próspero. A clínica tinha ótimos equipamentos e instalações. O Comitê Administrativo Hospitalar teve que se virar do avesso para restaurar o padrão a que a clínica estava habituada.” “É difícil administrar a clínica? Imagino que surjam choques de personalidade.” “Não mais difícil do que qualquer outra instituição de pequeno porte. Choques de personalidade aparecem em todo lugar. Prefiro lidar com um psiquiatra complicado do que com um cirurgião complicado, toda vida. Os cirurgiões são verdadeiras prima-donas!” “O senhor considerava a senhorita Bolam uma funcionária administrativa bem-sucedida?” “Bem... Ela era eficiente. Na verdade, eu não tinha queixas. Acho que ela era um pouco rígida. Afinal de contas, as circulares ministeriais não chegam a ter força de lei, e não se justifica que elas sejam vistas como ordens ditadas pessoalmente por Deus Todo-poderoso. A senhorita Bolam gostava de ser rigorosa. Mas na verdade era uma funcionária competente, metódica e altamente conscienciosa. Acho que ela jamais enviou um relatório com alguma inexatidão.” “Coitada!”, pensou Dalgliesh, tocado pela fria impessoalidade daquele epitáfio oficial. Perguntou: “Ela era querida, aqui? Pela equipe médica, por exemplo?” “Bem, inspetor... O senhor vai ter de perguntar a eles. Não vejo nenhuma razão para não gostarem dela.” “Quer dizer que o senhor não estava sendo pressionado pelo comitê médico a transferi-la da clínica?” Os suaves olhos cinzentos ficaram subitamente opacos. Houve uma pequena pausa antes que o secretário do Comitê Administrativo Hospitalar respondesse com toda a calma: “Não recebi nenhuma reivindicação oficial nesse sentido.” “E extra-oficial?” “Acredito que esporadicamente circulasse por aqui um sentimento de que talvez uma mudança de trabalho fosse útil para a senhorita Bolam. A idéia até que não é má, inspetor. Todo funcionário de uma instituição de pequeno porte, particularmente uma clínica psiquiátrica, pode beneficiar-se de uma mudança de experiência. Mas eu não transfiro meu pessoal ao sabor das opiniões de comitês médicos. Deus me livre. E, como já falei, não recebi nenhuma reivindicação oficial. Se a própria senhorita Bolam tivesse pedido para ser transferida, o assunto mudava de figura. Mesmo assim, não teria sido fácil. Ela era uma funcionária administrativa geral e não dispomos de muitos postos nesse nível.” Dalgliesh voltou a indagar sobre o telefonema da srta. Bolam, e Lauder confirmou que falara com ela mais ou menos às dez para a uma. Lembrava-se da hora porque estava de saída para o almoço. A srta. Bolam pedira para falar com ele pessoalmente, e a secretária transferira a ligação. Ela lhe disse que queria vê-lo com urgência. “O senhor se lembra dos termos exatos dessa conversa?” “Mais ou menos. Ela disse: ‘Podemos marcar um encontro para o mais breve possível? Acho que talvez esteja acontecendo uma coisa aqui na clínica que o senhor precisa saber. Quero ver o que o senhor acha. Uma coisa que começou bem antes de minha chegada aqui’. Respondi que hoje à tarde não seria possível porque às duas e meia tinha uma reunião com a Comissão de Finanças e Objetivos Gerais e logo em seguida uma reunião com a Comissão Consultiva. Perguntei se ela podia me dar uma idéia do assunto e se a coisa não podia esperar até segunda-feira. Ela hesitou, de modo que antes que ela respondesse eu disse que daria uma passadinha hoje à noite quando estivesse voltando para casa. Eu sabia que às sextas-feiras havia consultas até mais tarde. Ela disse
que daria um jeito de ficar sozinha em seu escritório a partir das seis e meia, agradeceu e desligou. Minha reunião demorou mais do que o previsto — isso sempre acontece — e só cheguei aqui um pouco antes das sete e meia. Mas isso o senhor já sabe. Quando o corpo foi encontrado eu ainda estava em reunião, como o senhor facilmente poderá verificar.” “O senhor ficou preocupado com o que a senhorita Bolam lhe disse? Ela era o tipo de pessoa que corria para o senhor com qualquer ninharia ou uma solicitação de entrevista realmente significava que alguma coisa séria estava acontecendo?” O secretário refletiu um instante antes de responder: “Fiquei preocupado. Por isso passei aqui hoje à noite.” “E não faz a menor idéia do que poderia ser?” “Nenhuma, infelizmente. Deve ter sido alguma coisa que ela ficou sabendo depois de quartafeira, porque no fim da tarde de quarta-feira encontrei a senhorita Bolam na reunião do comitê e ela me disse que as coisas estavam muito calmas por aqui. Foi a última vez que a vi, aliás. Achei que ela estava com ótimo aspecto. Melhor do que há muito tempo.” Dalgliesh perguntou ao secretário se ele sabia alguma coisa sobre a vida particular da srta. Bolam. “Pouquíssimo. Acho que ela não tem nenhum parente próximo e que mora sozinha num apartamento em Kensington. A enfermeira Bolam poderá lhe dar mais informações. As duas são primas, e provavelmente a enfermeira Bolam é sua parente viva mais próxima. Parece que tinha algumas posses. O senhor poderá encontrar todas as informações oficiais sobre a vida funcional no dossiê dela. Conhecendo a senhorita Bolam, aposto que a ficha dela é tão meticulosa quanto as dos outros membros da equipe. Deve estar aqui.” Sem se mover de sua cadeira ele se inclinou para um lado, abriu a gaveta de cima do arquivo com um gesto brusco e enfiou a mão gorducha entre os envelopes pardos. “Aqui está. Bolam, Enid Constance. Vejo que ela começou a trabalhar na clínica em 1949, como estenodatilógrafa. Passou dezoito meses no escritório central, foi transferida para uma de nossas clínicas de pulmão em 19 de abril de 1951 no nível B e se candidatou à vaga de assistente administrativa aqui na clínica em 14 de maio de 1957. Na época o posto era de nível D, e ela teve sorte de consegui-lo. Lembro-me de que não tínhamos um campo muito grande. Todos os cargos administrativos e burocráticos foram reclassificados em 1958 de acordo com o relatório Noel Hall e, depois de alguma discussão com o Conselho Regional, conseguimos reclassificar o cargo aqui na clínica como de gerente administrativo. Está tudo aqui. Data de nascimento, 12 de dezembro de 1922. Endereço, Ballantyne Mansions, 37a, sw8. Depois vêm detalhes como número no imposto de renda, inscrição na previdência social e datas de aumentos salariais. Ela só tirou uma semana por motivo de doença desde que veio para cá, e isso foi em 1959, quando teve uma gripe. Basicamente, é isso o que há aqui. O original do requerimento e os documentos de nomeação devem estar no seu dossiê principal, no escritório central do Comitê.” Entregou a pasta a Dalgliesh, que a folheou e depois disse: “Consta aqui que o emprego anterior dela era no Instituto de Pesquisa Botley. Não era aquele negócio de Sir Mark Etherege? Uma coisa de pesquisa aeronáutica... Ele por acaso é irmão do doutor Etherege?” “Tenho a impressão de que uma vez, quando foi nomeada para cá, a senhorita Bolam me disse que conhecia um pouco o irmão do dr. Etherege. Mas veja bem, não pode ter sido mais do que isso. Ela era apenas uma estenodatilógrafa do Instituto. Admito que há uma certa dose de coincidência, mas ela precisava vir de algum lugar, não é mesmo? Me parece que foi Sir Mark
quem a recomendou, quando de sua candidatura ao cargo aqui. A carta, naturalmente, deve estar no dossiê dela no Comitê.” “O senhor poderia me dizer que providências pretende tomar aqui, agora que ela morreu?” O secretário recolocou a pasta no arquivo. “Claro, nenhum problema. Vou ter de consultar meu Comitê, evidentemente, visto que as circunstâncias são incomuns, mas tenho a intenção de recomendar que a estenógrafa sênior daqui, a senhora Bostock, assuma o cargo em caráter provisório. Se ela demonstrar que dá conta do trabalho — e penso que dá —, é uma forte candidata ao cargo, mas a vaga será preenchida por concurso, como de praxe.” Dalgliesh não fez comentários, mas estava interessado. Uma decisão assim tão rápida quanto à sucessora da srta. Bolam só podia significar que Lauder já pensara no assunto antes. Por mais que as reivindicações da equipe médica tivessem sido oficiosas, pelo jeito haviam sido mais eficazes do que o secretário estava disposto a admitir. Dalgliesh voltou à questão do telefonema que levara o sr. Lauder à clínica. Disse: “As palavras utilizadas pela senhorita Bolam parecem-me significativas. Ela disse que talvez houvesse algo de muito sério em andamento aqui, uma coisa sobre a qual o senhor deveria ser informado, e que esse algo teria começado antes de ela entrar na clínica. Isso sugere, em primeiro lugar, que ela ainda não tinha certeza de nada; que eram apenas suspeitas; e em segundo, que não estava preocupada com nenhum incidente em especial, mas com alguma situação já antiga. Como uma política sistemática de roubo, por exemplo, e não com um episódio isolado de roubo.” “Bem, inspetor... É curioso o senhor falar em roubo. Tivemos um roubo recentemente, mas foi um episódio isolado, o primeiro que tivemos na casa em muitos anos, e não consigo imaginar de que maneira ele poderia estar relacionado a esse assassinato. Foi há apenas uma semana, na última terça-feira, se não me falha a memória. Cully e Nagle foram os últimos a sair da clínica, como de hábito, e Cully convidou Nagle para tomar alguma coisa com ele no Queen’s Head. Imagino que o senhor conheça o lugar. É o último bar da Beefsteak Street. A história tem alguns detalhes esquisitos, e um dos mais esquisitos é o fato de Cully convidar Nagle para tomar alguma coisa. Os dois jamais me deram a impressão de ser amigos. Seja como for, Nagle aceitou e mais ou menos às sete da noite os dois chegaram ao Queen’s Head. Meia hora depois apareceu um amigo de Cully dizendo que não esperava encontrá-lo no bar, pois acabara de passar pela clínica e vira uma luzinha fraca em uma das janelas — como se alguém estivesse andando lá dentro com uma lanterna, explicou. Nagle e Cully foram até lá dar uma olhada e viram que uma das janelas dos fundos do subsolo estava quebrada, ou melhor, recortada. Um trabalhinho para lá de esperto. Cully achou que não era o caso de prosseguirem com a investigação sem reforços, e acho que tinha razão. Não se esqueça que ele tem sessenta e cinco anos de idade e que não é um homem forte. Sussurrando, os dois debateram a situação. Nagle disse que ia entrar e que Cully podia telefonar para a polícia da cabine da esquina. A polícia chegou num instante, mas não conseguiu pegar o intruso, que deu um jeito de escapar de Nagle dentro do edifício, e, quando Cully voltou depois de telefonar, chegou bem na hora de ver o homem fugindo.” “Vou verificar os resultados da investigação”, disse Dalgliesh. “Mas estou de acordo com o senhor, quando diz que parece improvável haver uma relação entre os dois crimes. Levaram muita coisa?” “Quinze libras, retiradas de uma gaveta do escritório dos assistentes sociais da psiquiatria. A porta estava trancada, mas o ladrão arrombou. O dinheiro estava num envelope sobrescritado em tinta verde e dirigido à administração da clínica, e fora recebido uma semana antes. Não havia
nenhuma carta no envelope, apenas uma nota dizendo que o dinheiro fora mandado por um paciente agradecido. As outras coisas que estavam na gaveta foram espalhadas por ali, mas nada mais foi roubado. Aparentemente haviam tentado forçar os arquivos de documentos na secretaria e as gavetas da escrivaninha da senhorita Bolam haviam sido arrombadas, mas nada foi roubado.” Dalgliesh perguntou se as quinze libras não deveriam ter sido guardadas no cofre da parede. “Bem, inspetor... Claro que o senhor tem razão. Deveriam. Quando o dinheiro chegou, a senhorita Bolam me telefonou para informar-me do fato e disse que achava que ele deveria ser imediatamente depositado na poupança da clínica, para ser usado quando necessário segundo as instruções do Comitê Administrativo. Essa era uma conduta muito conveniente, e foi o que eu disse a ela. Pouco tempo depois, o diretor médico me telefonou para perguntar se eu o autorizava a gastar o dinheiro na compra de novos vasos de flores para a sala de espera dos pacientes. Os vasos eram uma necessidade, de fato, e aquele parecia um uso correto para a verba em questão; telefonei para o presidente do Comitê Administrativo e obtive sua anuência. Parece que o doutor Etherege queria que a senhorita Kettle escolhesse os vasos, e pediu à senhorita Bolam que lhe entregasse o dinheiro. Eu já comunicara a decisão à senhorita Bolam, de modo que ela entregou o dinheiro, imaginando que os vasos seriam comprados imediatamente. No entanto alguma coisa aconteceu, e a senhorita Kettle alterou seus planos. E aí, em vez de devolver o dinheiro à gerente administrativa para que o guardasse no cofre, ela o guardou em sua gaveta.” “O senhor sabe quantas pessoas da equipe sabiam que o dinheiro estava lá?” “A polícia perguntou exatamente isso. Acho que a maioria das pessoas sabia que os vasos não haviam sido comprados, do contrário a senhorita Kettle teria mostrado sua compra aos colegas. Provavelmente as pessoas imaginaram que depois de receber aquele dinheiro ela não iria devolvêlo, nem que fosse temporariamente. Sei lá. A chegada daquelas quinze libras foi um mistério. Só criou confusão — e seu desaparecimento foi igualmente misterioso. Seja como for, ninguém aqui o roubou. Cully só viu o ladrão por um segundo, mas tem certeza de que não conhece o sujeito. Ele disse, porém, que o cara tinha jeito de cavalheiro. Não me pergunte como ele sabia isso nem quais foram seus critérios. Mas foi o que ele disse.” Dalgliesh achou o episódio bizarro; em sua opinião, deveria ser mais bem investigado. Contudo, não via nenhuma conexão aparente entre os dois crimes. Não se sabia nem mesmo se o telefonema da srta. Bolam pedindo conselho ao secretário estava relacionado com sua morte, mas parecia muito provável que sim. Era importante descobrir, se possível, de que ela suspeitava. O inspetor pediu novamente a ajuda do sr. Lauder. “Eu já lhe disse, inspetor. Não faço idéia do que ela queria me dizer. Se desconfiasse que havia alguma coisa errada, não teria esperado que ela me telefonasse. Nós, do escritório central, não estamos tão distantes assim das unidades quanto as pessoas pensam, e costumo ficar sabendo de tudo o que necessito saber. Se o assassinato está relacionado àquele telefonema, algo de muito grave deve estar acontecendo aqui. Afinal, ninguém sai matando as pessoas só para evitar que o secretário do conselho fique sabendo que você manipulou seu relatório de viagem ou estendeu indevidamente seu período de férias. Não que alguém tenha feito isso, até onde eu sei.” “É verdade”, disse Dalgliesh. Depois de fitar atentamente o rosto do secretário, disse, em voz neutra: “Deve ser alguma coisa capaz de arruinar uma pessoa profissionalmente. Um relacionamento sexual com um paciente — algo tão grave quanto isso”. A expressão do sr. Lauder não se alterou. “Imagino que todo médico está ciente da gravidade de uma coisa dessas, especialmente os
psiquiatras. Eles precisam ter imenso cuidado com algumas das mulheres neuróticas de que tratam. Francamente, não acredito nessa hipótese. Todos os médicos da clínica são homens eminentes, alguns deles conhecidos no mundo inteiro. Você não tem esse tipo de reputação se for um tolo, e homens dessa eminência não cometem assassinato.” “E o resto da equipe? Talvez não sejam pessoas eminentes, mas suponho que o senhor os julgue honestos...” Tranqüilo, o secretário respondeu: “Faz quase vinte anos que irmã Ambrose trabalha aqui. A enfermeira Bolam está na clínica há cinco anos. Confio plenamente nas duas. Todo o pessoal administrativo veio com boas referências, assim como os dois porteiros, Cully e Nagle.” Depois acrescentou, com certa acidez: “Confesso que não me informei se eles haviam cometido assassinato, mas nenhum dos dois me parece um maníaco homicida. Cully bebe um pouco e é um pobre tonto que daqui a quatro meses se aposenta. Duvido que seja capaz de matar um rato sem armar o maior fuzuê. Nagle tem mais nível que o típico porteiro de hospital. Parece que é estudante de arte e que trabalha aqui para ganhar algum dinheiro. Está conosco há poucos anos, ou seja, não estava aqui antes do tempo da senhorita Bolam. Mesmo que ele tivesse se dedicado a seduzir todas as funcionárias, o que parece improvável, o pior que poderia acontecer com ele seria perder o emprego, e isso, nas circunstâncias, não lhe causaria maiores preocupações. Sabemos que a arma do crime foi o formão de Nagle, mas qualquer pessoa poderia ter apanhado aquele formão”. “Estou achando que o assassino é alguém aqui de dentro, sabe?”, disse Dalgliesh com tato. “O assassino sabia onde encontrar a estátua de Tippett e o formão de Nagle; sabia qual era a chave que abria a velha sala dos arquivos; sabia onde a chave estava pendurada, no quadro do aposento dos porteiros; provavelmente usou um dos aventais de borracha da sala de arte-terapia como proteção; certamente tinha noções de medicina. Acima de tudo, naturalmente, o assassino não teve como sair da clínica depois do crime. A porta do subsolo estava fechada com a tranca, assim como a porta dos fundos do térreo. Cully vigiava a porta da frente.” “Cully estava com dor de estômago. Alguém pode ter saído sem ele perceber.” “Seria mesmo possível?”, perguntou Dalgliesh. O secretário não respondeu.
À primeira vista, Marion Bolam poderia ser considerada bonita. De compleição clara, tinha aparência agradável, clássica, realçada pelo uniforme de enfermeira. Produzia uma impressão imediata de mulher serenamente encantadora. O cabelo louro, repartido sobre a testa larga e enrolado sobre a nuca, era mantido no lugar unicamente pelo chapeuzinho branco. A um segundo olhar, porém, a ilusão se desfazia e a beleza perdia intensidade. As feições, analisadas individualmente, eram comuns; o nariz um pouco comprido demais, os lábios um pouco finos demais. Vestindo trajes comuns, voltando apressada para casa no fim do dia, ela seria uma mulher insignificante. Era a combinação do tecido branco engomado do avental com a pele clara e o cabelo louro que seduzia os olhos. Somente na testa larga e no nariz anguloso Dalgliesh conseguia perceber alguma semelhança entre a enfermeira Bolam e sua prima morta. Mas não havia nada de comum nos grandes olhos cinzentos que fixaram os dele sem vacilar durante um breve segundo antes de ela baixar os olhos e contemplar com determinação as próprias mãos cruzadas sobre o regaço. “Que eu saiba, a senhora é a parente mais próxima da senhorita Bolam. Imagino que tenha sido um choque terrível.”
“Sim, foi. Ah, se foi! Enid era minha prima.” “O mesmo sobrenome... Os pais de vocês eram irmãos?” “Eram. Nossas mães também eram irmãs. Dois irmãos casaram com duas irmãs, de modo que éramos duplamente parentes.” “Ela não possuía outros familiares vivos?” “Só mamãe e eu.” “Suponho que terei de conversar com o advogado dela”, disse Dalgliesh, “mas seria muito útil se a senhora me dissesse tudo o que sabe sobre a situação econômica de sua prima. Lamento, mas sou obrigado a fazer essas perguntas pessoais. Em geral elas não esclarecem nada sobre o crime, mas é preciso estar tão informado quanto possível sobre todas as pessoas envolvidas. A senhorita Bolam tinha alguma fonte de renda fora seu salário?” “Ah, tinha. Enid estava muito bem de vida. Tio Sydney deixou umas 25 mil libras para a mãe dela, e Enid herdou tudo. Não sei quanto restava, mas acho que ela recebia mais ou menos mil libras por ano de rendas, além do salário aqui. Continuou morando no apartamento de titia em Ballantyne Mansions e... sempre foi muito generosa conosco.” “De que maneira, senhorita Bolam? Dava uma mesada a vocês?” “Não, nada disso! Enid não faria uma coisa dessas. Dava-nos presentes. Trinta libras no Natal, cinqüenta em julho para nossas férias de verão. Mamãe tem esclerose generalizada, por isso não podemos nos hospedar em hotéis comuns.” “E o que vai acontecer agora com o dinheiro da senhorita Bolam?” Os olhos cinzentos se ergueram para fitar os dele, sem nenhum sinal de embaraço. Ela respondeu simplesmente: “Passará a ser meu e de mamãe. Não havia mais ninguém para quem deixá-lo, não? Enid sempre disse que o dinheiro seria nosso se ela morresse primeiro. Só que evidentemente parecia improvável que ela morresse primeiro; em todo caso, não antes de mamãe.” De fato era improvável, no curso normal dos acontecimentos, que a sra. Bolam chegasse a beneficiar-se daquelas 25 mil libras ou do que restava delas, pensou Dalgliesh. Ali estava o motivo óbvio, tão compreensível, tão universal, tão caro a qualquer promotoria. Todo jurado entende a atração do dinheiro. Seria verdade que a enfermeira Bolam não se dava conta do alcance da informação que estava lhe oferecendo com tanta franqueza? Seria possível que a inocência fosse tão ingênua ou a culpa tão confiante? Dalgliesh perguntou, num impulso: “Sua prima era popular, senhorita Bolam?” “Ela não tinha muitos amigos. Não acredito que ela própria se considerasse popular. Ela não gostaria de ser. Tinha suas atividades na igreja e com as bandeirantes. Era uma pessoa muito discreta, na verdade.” “Tinha algum inimigo, que a senhorita saiba?” “Ah, não! Nenhum inimigo. Enid era muito respeitada.” O epíteto formal, antiquado, foi quase inaudível. Dalgliesh disse: “Nesse caso, a impressão que se tem é que o crime não teve um motivo, que não foi premeditado. Normalmente isso apontaria para um dos pacientes, o que parece altamente improvável — e todos vocês insistem que não pode ter sido um deles.” “Ah, não foi nenhum paciente! Tenho absoluta certeza de que nenhum dos nossos pacientes faria uma coisa dessas. Eles não são violentos.” “Nem Tippett?” “Mas não pode ter sido ele. Ele está no hospital.”
“É, me disseram. Quantas pessoas aqui sabiam que Tippett não viria à clínica nesta sexta-feira?” “Não sei. Nagle, porque foi ele quem recebeu o recado. Nagle contou a Enid e à irmã, e a irmã me disse. É que eu sempre procuro ficar de olho no Tippett quando estou tratando dos pacientes de lsd, nas sextas. Tenho de ficar ao lado deles o tempo todo, claro, mas de vez em quando dou uma fugidinha para ver se Tippett está bem. Esta noite não seria preciso. Coitado do Tippett, gosta tanto de suas sessões de arte-terapia! Já faz seis meses que a senhora Baumgarten está de licença por problemas de saúde, mas não conseguimos evitar que Tippett continuasse vindo. Ele seria incapaz de fazer mal a uma mosca. É crueldade sugerir que poderia ter alguma coisa a ver com o crime. Crueldade!” A enfermeira se tornara veemente. Dalgliesh tratou de acalmá-la: “Ninguém está dizendo nada do tipo. Se Tippett está no hospital — e não tenho a menor dúvida de que esse fato será confirmado —, não poderia ter vindo até aqui.” “Mas alguém pôs a estátua sobre o corpo, não é mesmo? Se Tippett estivesse aqui na clínica, o senhor teria suspeitado dele na hora, e ele teria ficado muito aborrecido e confuso. Foi uma crueldade terem feito isso. Realmente, uma crueldade!” Sua voz fraquejou, ela estava à beira das lágrimas. Dalgliesh viu os dedos finos crispados em seu regaço. Disse, com delicadeza: “Acho que não precisamos nos preocupar com o senhor Tippett. Agora vou lhe pedir que reflita com cuidado e me conte tudo o que sabe que aconteceu na clínica desde a hora em que chegou para seu turno, esta noite. Não se preocupe com os outros, quero saber apenas o que a senhora fez.” A enfermeira Bolam lembrava-se com clareza do que havia feito e, depois de alguns segundos de hesitação, fez um relatório atento e lógico. Nas noites de sexta era responsável pelo atendimento de todos os pacientes que estivessem fazendo tratamento com ácido lisérgico. Explicou que se tratava de um método de liberar inibições muito entranhadas, de modo que o paciente ficasse habilitado a recordar e relatar os incidentes que estavam sendo reprimidos em seu subconsciente e que eram responsáveis por sua enfermidade. Enquanto falava sobre o tratamento, a enfermeira Bolam deixou de demonstrar nervosismo e pareceu esquecer que estava falando com um leigo. Mas Dalgliesh não a interrompeu. “É uma droga notável, e o doutor Baguley a utiliza muito. O nome é ácido lisérgico dietilamida; se não me engano, foi descoberta por um alemão em 1942. Nós a ministramos por via oral, a dose habitual é de um quarto de miligrama. A droga é produzida em ampolas de um miligrama e misturada com quinze a trinta centímetros cúbicos de água destilada. Os pacientes são instruídos a não tomar café-da-manhã. Os primeiros efeitos aparecem depois de meia hora, e as experiências subjetivas mais perturbadoras ocorrem entre uma hora e uma hora e meia depois da medicação. É nesse momento que o doutor Baguley desce para ficar ao lado do paciente. Os efeitos podem durar até quatro horas; o paciente fica agitado, emocionado e fora da realidade. Eles nunca são deixados sozinhos, evidentemente. Usamos a sala do subsolo porque é isolada e tranqüila, e os outros pacientes não são perturbados pelo barulho. Costumamos fazer os tratamentos com lsd nas tardes e noites de sexta-feira, e sempre acompanho o paciente.” “Imagino que se alguém ouvisse algum barulho no subsolo numa noite de sexta-feira, um grito, por exemplo, o pessoal da clínica pensaria que era o paciente do lsd, não?” A enfermeira Bolam não estava segura. “Possivelmente... Não há dúvida de que esses pacientes podem ser muito ruidosos. Minha paciente de hoje estava mais agitada do que de costume; foi por isso que não saí do lado dela. Em
geral, assim que o paciente ultrapassa a fase mais difícil, passo algum tempo na rouparia, que fica ao lado da sala de tratamento, separando a roupa lavada. Claro, deixo aberta a porta que separa os dois aposentos para poder dar uma olhada no paciente de vez em quando.” Dalgliesh perguntou o que exatamente acontecera naquela tarde. “Bem, o tratamento começou logo depois das três e meia e o doutor Baguley deu uma passadinha pouco depois das quatro para ver como iam as coisas. Fiquei com a paciente até as quatro e meia, quando a senhora Shorthouse veio me dizer que o chá estava pronto. A irmã desceu enquanto eu subi para a sala das enfermeiras para tomar meu chá. Desci novamente às quinze para as cinco e liguei para o doutor Baguley às cinco. Ele passou mais ou menos quarenta e cinco minutos com a paciente, depois saiu para voltar a sua clínica de eletrochoque. Fiquei com a paciente, e como ela estava muito inquieta resolvi deixar a lavanderia para mais tarde. Mais ou menos às vinte para as sete Peter Nagle bateu na porta e pediu a roupa limpa. Falei que não tinha separado a roupa e ele pareceu um pouco surpreso, mas não disse nada. Pouco depois, tive a impressão de ouvir um grito. No começo não dei maior importância ao fato, pois o ruído parecia vir de longe e achei que eram as crianças brincando na praça. Depois resolvi verificar e fui até a porta. Vi o doutor Baguley e o doutor Steiner chegando ao subsolo com a irmã Ambrose e a doutora Ingram. A irmã me disse que não era nada, que eu voltasse para junto de minha paciente, e foi o que eu fiz.” “A senhora se afastou da sala de tratamento em alguma ocasião depois que o doutor Baguley saiu, mais ou menos às quinze para as seis?” “Não, não. Não houve necessidade. Se eu quisesse ir ao lavatório ou qualquer coisa assim (a enfermeira Bolam corou de leve), teria telefonado para a irmã para que ela assumisse meu posto.” “A senhora fez algum telefonema da sala de tratamento no decorrer da tarde e da noite?” “Só um, às cinco, para chamar o doutor Baguley na sala de eletrochoque.” “Tem certeza de que não telefonou para a senhorita Bolam?” “Para a Enid? Ah, não! Não haveria razão para telefonar para Enid. Ela... isto é, nós não tínhamos maior contato na clínica. Minha chefe é irmã Ambrose, entende? Enid não se ocupava do pessoal da enfermagem.” “Mas fora da clínica vocês se viam bastante?” “Ah, não! Não foi isso que eu quis dizer. Fui ao apartamento dela uma ou duas vezes para buscar o cheque — no Natal, depois outra vez no verão. Mas não é fácil, para mim, deixar mamãe sozinha. Além disso, Enid tinha sua própria vida para viver. E é bem mais velha do que eu. Na verdade, eu não a conhecia muito bem.” Sua voz fraquejou, e Dalgliesh percebeu que ela estava chorando. Enquanto procurava um lenço desajeitadamente no bolso do uniforme de enfermeira, por baixo do avental, ela soluçou: “É horrível... Coitada da Enid! E ainda puseram aquela estátua em cima do corpo dela como se quisessem fazer troça, dando a impressão de que ela estava amamentando um bebê!” Dalgliesh não tinha se dado conta de que ela havia visto o corpo, e disse-lhe isso. “Mas eu não vi! O doutor Etherege e a irmã não me deixaram entrar para vê-la. Mas todos nós ficamos sabendo do acontecido.” Era verdade que a senhorita Bolam parecia estar amamentando um bebê. Mas o inspetor se surpreendeu com o fato de que isso fosse declarado por alguém que não havia visto o corpo. Sem dúvida o diretor médico fizera uma descrição gráfica da cena. De repente a enfermeira Bolam encontrou seu lenço e o puxou do bolso. Com ele, veio um par de finas luvas cirúrgicas. Elas caíram aos pés de Dalgliesh. Erguendo-as do chão, ele observou:
“Eu não tinha me dado conta de que vocês usam luvas cirúrgicas aqui.” A enfermeira Bolam pareceu não se surpreender com seu interesse. Contendo os soluços com notável autocontrole, respondeu: “Não usamos com freqüência, mas temos alguns pares. Agora todo o setor médico adotou as luvas descartáveis, mas há alguns pares do modelo antigo por aí — este, por exemplo. Utilizamos para eventuais serviços de limpeza.” “Obrigado”, disse Dalgliesh. “Vou ficar com estas luvas, se não se importa. E acho que por enquanto não preciso mais da senhora.” Sussurrando uma palavra que talvez fosse “obrigada”, a enfermeira saiu da sala praticamente andando de costas.
O pessoal da clínica, reunido no consultório da frente, esperava para ser entrevistado. Os minutos se arrastavam; Fredrica Saxon fora buscar alguns papéis em sua sala no terceiro andar e estava fazendo a contagem de um teste de inteligência. Houvera alguma discussão sobre se ela devia ou não subir sozinha, mas a srta. Saxon declarara com determinação que não pretendia ficar ali sentada jogando tempo fora e roendo as unhas até a polícia resolver falar com ela, que não havia escondido o assassino no andar de cima, que não estava com a intenção de destruir provas comprometedoras e que se algum membro da equipe quisesse acompanhá-la para verificar se tudo isso era verdade, não se opunha absolutamente. Essa franqueza desarmante provocara um murmúrio de protestos e declarações de confiança, mas a sra. Bostock dissera num rompante que gostaria de apanhar um livro na biblioteca médica e as duas mulheres haviam saído juntas do aposento, voltando juntas algum tempo depois. Cully fora entrevistado logo, tendo conquistado o direito de ser visto como paciente, e em seguida liberado para ir tratar do estômago em casa. A única paciente restante, a sra. King, já fora entrevistada e autorizada a ir embora na companhia do marido, que a esperava. O sr. Burge também se fora, reclamando ruidosamente da interrupção de sua sessão e do trauma provocado pela experiência como um todo. “Não se iludam, ele está se divertindo, dá para perceber”, comentou a sra. Shorthouse para os funcionários reunidos. “Garanto a vocês que o inspetor teve a maior dificuldade para se ver livre dele.” Aparentemente, havia muitas coisas que a sra. Shorthouse podia explicar ao grupo. Ela recebera permissão para passar um café e preparar sanduíches na sua pequena cozinha do térreo, nos fundos do edifício, e isso lhe fornecera uma desculpa para percorrer o corredor de um lado para o outro vezes sem fim. Os sanduíches foram trazidos praticamente um por um. As xícaras foram retiradas individualmente para serem lavadas. Esse vaivém lhe deu a oportunidade de relatar os últimos sucessos ao resto da equipe, que esperava pelas novidades com uma ansiedade e uma avidez muito maldisfarçadas. A sra. Shorthouse não era a emissária que teriam escolhido, mas toda e qualquer notícia, independentemente de como tivesse sido obtida ou da pessoa que a transmitisse, ajudava a aliviar o peso da dúvida — e ela estava demonstrando uma inesperada familiaridade com a rotina policial. “Neste momento, vários policiais estão revistando o edifício e um deles está de guarda na porta. Claro que não encontraram ninguém. Bom, basta raciocinar. Sabemos muito bem que o assassino não teria como sair do prédio. Nem como entrar nele, aliás. Falei para o inspetor: ‘Fiz uma limpeza em regra nesta clínica hoje, de modo que diga aos seus amigos que prestem atenção e não façam sujeira’.”
“O médico legista já viu o corpo. O homem das impressões digitais ainda está lá embaixo, estão tirando as impressões digitais de todo mundo. Vi o fotógrafo. Ele passou pelo corredor carregando um tripé e uma caixa grande, branca em cima e preta embaixo...” “Vejam que coisa engraçada. Estão procurando impressões digitais no elevador do subsolo. Também estão medindo ele inteiro...” Fredrica Saxon ergueu a cabeça, deu a impressão de que ia dizer alguma coisa, depois voltou ao trabalho. O elevador do subsolo, que media mais ou menos um metro e meio quadrado e que subia e descia graças a uma corda e uma roldana, era usado para transportar comida da cozinha do subsolo para a sala de jantar do primeiro andar na época em que a clínica era uma residência particular. Nunca fora desmontado. De vez em quando algum dossiê médico do arquivo do subsolo era içado para os consultórios do primeiro ou do segundo andar pelo elevador, mas fora isso era raríssimo ele ser usado. Ninguém aventou alguma possível razão para a polícia examiná-lo em busca de impressões digitais. A sra. Shorthouse saiu com duas xícaras, que pretendia lavar. Cinco minutos depois, estava de volta. “O senhor Lauder está na secretaria telefonando para o presidente do conselho. Provavelmente está contando a ele sobre o assassinato. Aposto que não vai faltar assunto nos escritórios do conselho. A irmã está conferindo todas as peças da rouparia com um dos policiais. Parece que falta um dos aventais de borracha da sala de arte-terapia. Ah, tem outra coisa. Desligaram a caldeira. Imagino que queiram examiná-la por dentro. Isto aqui vai estar simplesmente gélido na segunda-feira...” “O rabecão chegou. É assim que eles chamam a caminhonete que transporta o morto. Não usam ambulância, entendem? Se a vítima morreu, não usam. Vocês devem ter ouvido, quando ele chegou. Aposto que, se puxarem um pouco as cortinas, poderão ver o corpo sendo retirado.” Mas ninguém teve vontade de puxar as cortinas, e quando as passadas leves e cuidadosas dos padioleiros passaram junto da porta do aposento onde estavam, ninguém falou. Fredrica Saxon largou o lápis e inclinou a cabeça como se estivesse rezando. Quando se ouviu a porta da frente fechar, o alívio do grupo foi perceptível no suspiro geral. A sra. Shorthouse foi a única a falar. “Coitadinha! Quando eu penso que estava convencida de que ela não ficava mais do que seis meses por aqui, do jeito que as coisas iam... Mas nunca imaginei que ela fosse embora de rabecão!” Jennifer Priddy estava sentada longe dos outros, na borda do divã do paciente. Sua entrevista com o inspetor fora inesperadamente fácil. Ela não sabia bem o que tinha imaginado que ia acontecer, mas sem dúvida não pensara encontrar aquele homem tranqüilo, gentil, de voz grave. Ele não se dera ao trabalho de manifestar comiseração para com ela pelo trauma de ter encontrado o cadáver. Não sorrira para ela. Não fora paternal nem compreensivo. Dava a impressão de estar interessado unicamente em descobrir a verdade o mais depressa possível, e de acreditar que todos os outros alimentavam os mesmos sentimentos. Jennifer achava que seria difícil mentir para ele e não tentara fazê-lo. Fora muito fácil lembrar-se de tudo, sem rodeios. O inspetor a interrogara detalhadamente sobre os dez minutos que passara no subsolo com Peter. Normal. Era óbvio que estava tentando descobrir se Peter poderia ter matado a srta. Bolam depois de ter voltado do correio e antes de ela ir ter com ele. Muito bem; isso não teria sido possível. Ela descera para o subsolo logo atrás dele, fato que a sra. Shorthouse poderia confirmar. Provavelmente matar Enid não fora uma coisa demorada — ela fazia força para não pensar naquela violência súbita, selvagem, calculada —, mas, por mais rápida que tivesse sido, Peter não
tivera tempo. Pensou em Peter. Pensar nele ocupava a maior parte de suas raras horas solitárias. Naquela noite, porém, as fantasias amorosas de sempre estavam impregnadas de ansiedade. Será que ele ia ficar bravo com o modo como ela se comportara? Ela se lembrava, envergonhada, de seu grito de terror ao encontrar o corpo; da forma como se jogara nos braços dele. Naturalmente ele fora muito gentil, muito afetuoso, mas ele sempre era afetuoso quando não estava trabalhando e se lembrava que ela existia. Ela sabia que ele tinha horror de confusão e que ficava irritado com toda manifestação de afeto. Aprendera que o amor dos dois — e já não ousava duvidar de que era amor — tinha de ser vivido nos termos dele. Desde o curto espaço de tempo que haviam passado juntos na sala das enfermeiras depois que a srta. Bolam fora encontrada, ela mal falara com ele. Não tinha como saber o que ele estava sentindo. Só de uma coisa tinha certeza. Naquela noite não poderia posar para ele. Não tinha nada a ver com vergonha ou culpa; fazia muito que ele a libertara dessas incomodações que costumam andar juntas. Ele estaria à espera dela no ateliê, como planejado. Afinal de contas, ela contava com uma desculpa: seus pais imaginariam que estava no curso noturno. Ele não veria justificativa lógica para alterar o que haviam combinado, e, em se tratando de lógica, Peter era mestre. Mas ela não tinha condições de posar — não naquela noite. Não tanto pelo ato de posar em si, como pelo que viria depois. Não teria forças para rechaçá-lo. Não teria vontade de rechaçá-lo. E naquela noite, com Enid morta, sentia que não toleraria ser tocada. No fim de sua conversa com o inspetor, o dr. Steiner viera sentar-se ao lado dela e fora muito gentil. Era o jeito dele. Era fácil criticar sua indolência ou fazer troça de seus pacientes esquisitos. Mas ele se preocupava com as pessoas, enquanto o dr. Baguley, que trabalhava tanto e ficava esgotado com o trabalho na clínica, na verdade não gostava das pessoas, só tinha vontade de gostar. Jenny não sabia bem por que via essas coisas com tanta clareza. Para falar a verdade, não havia pensado no assunto antes. Naquela noite, porém, agora que o impacto de encontrar o corpo se acalmara, sua mente estava anormalmente clara. E não só sua mente. Todas as suas percepções estavam aguçadas. Os objetos tangíveis em torno dela, o forro de chintz do divã, o cobertor vermelho dobrado ao pé do divã, os verdes e dourados vivos dos crisântemos sobre a escrivaninha, tudo para ela estava mais claro, mais cintilante, mais real do que nunca antes. Via o contorno do braço da srta. Saxon apoiado na escrivaninha, fazendo uma curva em torno do livro que ela estava lendo, e a maneira como os pelinhos de seu antebraço brilhavam, iluminados pela luz do abajur. Perguntou-se se Peter sempre via a vida que o cercava com aquele deslumbramento, aquela clareza, como alguém que tivesse nascido num mundo desconhecido, com todas as cores da criação ainda frescas. Talvez fosse assim que os pintores se sentiam. “Deve ser o conhaque”, pensou, e deu uma risadinha. Lembrou-se de ouvir irmã Ambrose resmungando baixinho, meia hora antes. “Que será que Nagle deu a Priddy? A garota está meio bêbada.” Mas não estava bêbada e não acreditava que fosse o conhaque. O dr. Steiner puxara a cadeira para perto dela e pusera a mão em seu ombro por um instante. Sem pensar, a srta. Priddy dissera: “Ela era gentil comigo e eu não gostava dela.” Mas já não sentia tristeza nem culpa por causa disso. Era apenas um reconhecimento objetivo dos fatos. “Você não deve se preocupar com isso”, ele disse com delicadeza, dando tapinhas no joelho dela.
Ela não se incomodou com os tapinhas. Peter teria dito: “Bode velho sem-vergonha! Diga a ele para tirar as patas de cima de você”. Mas Peter estaria enganado. Jenny sabia que aquele era um gesto amável. Por um momento sentiu-se tentada a pôr a mão em cima da do dr. Steiner para mostrar que entendia isso. As mãos dele eram pequenas e muito brancas para um homem, muito diferentes dos dedos compridos, ossudos e manchados de tinta de Peter. Ela viu como os pêlos se enrolavam sob os punhos da camisa dele, viu os pelinhos curtos e negros junto aos nós de seus dedos. No dedo mínimo ele usava um anel de ouro de sinete, pesado como uma arma. “É natural que você se sinta assim”, disse ele. “Quando as pessoas morrem, sempre pensamos que poderíamos ter sido mais amáveis com elas, ter gostado mais delas. Não há o que fazer quanto a isso. Não devemos fingir que sentimos o que não sentimos. Se entendemos nossos sentimentos, o tempo nos ensina a aceitá-los e a viver com eles.” Mas Jenny já não estava escutando. A porta se abrira silenciosamente e Peter Nagle entrara no recinto. Cansado de ficar na recepção trocando observações idiotas com o lacônico policial que montava guarda junto à porta, Nagle fora para o consultório da frente em busca de novidade. Embora sua entrevista formal já estivesse concluída, ele ainda não recebera permissão para retirarse da clínica. Dava para perceber que o secretário do grupo esperava que ele ficasse no local até que fosse possível trancar o prédio para a noite — e caberia a ele, também, voltar a abri-lo na segunda-feira de manhã. Do jeito que as coisas iam, estava parecendo que ele teria de ficar por ali mais umas duas horas, pelo menos. Naquela manhã planejara ir para casa cedo para trabalhar no quadro, mas não adiantava pensar nisso agora. Pelo jeito só poderia ir embora depois das onze da noite. Mas, mesmo que os dois conseguissem ir juntos para o apartamento em Pimlico, Jenny não ia querer posar para ele naquela noite. Estava escrito no rosto dela. Ela não cruzou o aposento ao seu encontro ao vê-lo entrar, e ele ficou grato por essa mínima contenção da parte dela. Contudo, voltara para ele um olhar tímido, elíptico, em parte conspirativo e em parte implorante. Era seu jeito de pedir compreensão, de desculpar-se. Pois bem, ele estava frustrado. Imaginara trabalhar umas três horas naquela noite, e o tempo estava ficando escasso. Mas se ela estivesse apenas querendo fazê-lo entender que naquela noite não estava com vontade de fazer amor, bem... por ele tudo bem. Aliás, se ela soubesse! Tudo bem na maioria das noites. Ele gostaria de fazer amor com ela — já que ela parecia fazer tanta questão disso — com a simplicidade e a rapidez com que se faz uma refeição: satisfazendo um apetite do qual não havia por que envergonhar-se, mas que tampouco era algo importante. Só que para Jenny era diferente. Ele não fora tão inteligente quanto imaginava, e Jenny estava apaixonada. Sem esperança, insegura e fervorosamente apaixonada, exigindo reiterações constantes, ternura fácil e uma técnica primorosa, que tomava tempo e o deixava exausto e apenas saciado. Ela entrava em pânico com a idéia de engravidar, de modo que as preliminares ao ato eram irritantemente clínicas, e a conclusão a deixava quase sempre soluçando desesperada em seus braços. Como pintor, ele estava obcecado pelo corpo dela. Não podia admitir a idéia de trocar de modelo àquela altura dos acontecimentos; além disso, não tinha meios para fazê-lo. Mas o preço de Jenny estava ficando muito alto. Peter estava praticamente indiferente diante da morte da srta. Bolam. Desconfiava que ela sempre soubera como ele trabalhava pouco em troca do salário que recebia. Os outros membros da equipe, induzidos pela comparação entre ele e aquele coitado do Cully, achavam-no um expoente de inventividade e inteligência. Mas Enid Bolam não era boba. Não que ele fosse preguiçoso. Era possível levar a vida numa boa na Clínica Steen — e a maioria das pessoas, inclusive alguns dos psiquiatras, fazia exatamente isso — sem correr o risco de ouvir esse epíteto.
Tudo o que se exigia dele estava dentro de sua capacidade, e ele não dava nada que não lhe fosse exigido. Enid Bolam sabia disso, mas o fato não preocupava a nenhum dos dois. Ela sabia que, se ele deixasse de trabalhar lá, só poderia substituí-lo por um porteiro menos capacitado e menos eficiente. E ele era educado, apresentável e gentil. Isso era muito importante para a srta. Bolam. Sorriu ao lembrar-se de quanto era importante. Não, Enid Bolam jamais o incomodara. Sentia-se menos confiante ao pensar na pessoa que a sucederia. Dirigiu o olhar para o outro lado da sala, para o lugar onde a sra. Bostock estava sentada sozinha, graciosamente relaxada numa das mais confortáveis cadeiras para uso dos pacientes que ele trouxera da sala de espera. Sua cabeça se inclinava aplicadamente sobre um livro, mas Nagle tinha certeza de que seus pensamentos estavam em outro lugar. Provavelmente calculava quanto passaria a ganhar como gerente administrativa da clínica. Aquele assassinato era uma oportunidade que se abria para ela. É fácil reconhecer a ambição compulsiva numa mulher: uma chama que a consome. Quase era possível sentir o cheiro que ela produzia, fritando a carne dela. Por baixo daquele ar de calma impassibilidade a sra. Bostock estava tão inquieta e nervosa quanto uma gata no cio. Peter atravessou o aposento na direção dela e se encostou na parede, ao lado de sua cadeira, com o braço roçando de leve seu ombro. “Bem na horinha, hein?”, falou. Ela continuou fitando a página, mas Peter sabia que ela teria de responder. Ela não conseguia deixar de se defender, mesmo quando a defesa só servia para deixá-la mais vulnerável. Ela é como os outros, pensou ele. Não consegue manter a maldita boca fechada. “Não sei o que você está querendo dizer, Nagle.” “Sem essa! Faz seis meses que admiro o seu show. Sim, doutor. Não, doutor. Como o senhor quiser, doutor. Claro, eu gostaria de ajudar, doutor, mas o caso apresenta certas complicações... Quanto a isso, nenhuma dúvida! Ela não ia desistir sem luta. E agora está morta. Muito conveniente para você. Eles não vão precisar procurar muito para encontrar a nova gerente administrativa.” “Não seja impertinente e ridículo. E por que você não está ajudando a senhora Shorthouse com o café?” “Porque não estou com vontade. Não se esqueça que ainda não é a gerente administrativa.” “Tenho certeza de que a polícia ficará interessada em saber onde você esteve esta tarde. Afinal de contas, o formão era seu, não é mesmo?” “Saí para ir ao correio e comprar meu jornal da tarde. Decepcionante, não é? E você, onde será que estava às seis e vinte e dois?” “Como sabe que ela morreu às seis e vinte e dois?” “Não sei. Mas a irmã viu quando ela desceu para o subsolo às seis e vinte e, que eu saiba, não havia nada para retê-la por lá. A não ser que seu querido doutor Etherege estivesse lá embaixo, é claro. Mas ele não ia se dar ao trabalho de dar em cima da senhorita Bolam. Imagino que ela não fosse o tipo dele. Mas você conhece os gostos dele melhor do que eu, claro.” De repente ela se levantou de sua cadeira, girou o braço direito e deu uma bofetada no rosto dele com uma força que por um instante o desequilibrou. O estalo seco do golpe ecoou pela sala. Todos olharam para eles. Nagle ouviu a respiração ofegante de Jennifer Priddy, viu as sobrancelhas franzidas de preocupação do dr. Steiner, que olhava para um e para outro com ar interrogativo e intrigado, viu a expressão desdenhosa com que Fredrica Saxon os considerou brevemente, antes que seus olhos se voltassem outra vez para o livro que estava lendo. A sra. Shorthouse, que empilhava pratos sobre uma bandeja numa mesinha lateral, olhou em volta com
um segundo de atraso. Seus olhinhos atentos fuzilaram um e outro, frustrados por terem perdido uma coisa que valia a pena ver. A sra. Bostock, afogueada, afundou na sua cadeira e apanhou seu livro. Nagle, de mão no rosto, soltou uma gargalhada sonora. “Temos algum problema?”, perguntou o dr. Steiner. “O que aconteceu?” Nesse momento a porta se abriu e um policial uniformizado enfiou a cabeça no aposento, dizendo: “Agora o inspetor gostaria de falar com a senhora Shorthouse, por favor.”
A sra. Amy Shorthouse não vira nenhuma razão para continuar com o uniforme de trabalho enquanto esperava para ser interrogada, de modo que quando Dalgliesh a chamou ela estava pronta para ir para casa. A metamorfose era impressionante. As sapatilhas confortáveis que ela usava na clínica haviam sido substituídas por um par de sapatos altos da última moda, o avental branco por um casaco de pele e o lenço que cobria seus cabelos pela bobagem mais recente em matéria de chapéus. O efeito geral era estranhamente antiquado. A sra. Shorthouse parecia uma relíquia da alegre década de 20, efeito realçado pela saia curta e pelo esmero dos cachos oxigenados que lhe cobriam a testa e as faces. Mas não havia nada de falso em sua voz e, na opinião de Dalgliesh, muito pouco em sua personalidade. Os olhinhos cinzentos eram perspicazes e maliciosos. Ela não estava nem amedrontada nem aflita. Dalgliesh tinha a impressão de que Amy Shorthouse necessitava de uma dose maior de agitação do que sua vida cotidiana lhe proporcionava, e de que estava se divertindo com os acontecimentos. Não que achasse graça em morte violenta, mas, já que o fato acontecera, por que não aproveitar a oportunidade para distrair-se um pouco? Encerrados os prolegômenos, os acontecimentos da tarde foram abordados e a sra. Shorthouse apresentou sua informação mais impactante. “Não vou lhe dizer que sei quem fez aquilo porque não sei. Não que não tenha meus palpites. Mas uma coisa posso lhe dizer. Fui a última pessoa a falar com ela, quanto a isso não há dúvida. Espere, deixe eu explicar melhor. Fui a última pessoa a falar com ela frente a frente. Fora o assassino, claro.” “A senhora está me dizendo que depois de falar com a senhora ela usou o telefone? Não é melhor me explicar a coisa com clareza? Hoje eu já tive uma dose suficiente de mistério.” “Espertinho, hein?”, disse a sra. Shorthouse de bom humor. “Pois bem, foi nesta sala mesmo. Entrei aqui mais ou menos às seis e dez para perguntar quantos dias de férias ainda tenho para gozar, porque estava querendo tirar um dia de folga na semana que vem. A srta. Bolam tirou minha pasta do arquivo — na verdade, pensando bem, acho que a pasta já estava fora do arquivo — e combinamos o que havia a combinar, depois conversamos um pouco sobre o trabalho. Eu já ia saindo, estava em pé na porta terminando o que estava dizendo, quando o telefone tocou.” “Quero que a senhora pense com muito cuidado, senhora Shorthouse”, disse Dalgliesh. “Isso pode ser muito importante. Será que a senhora consegue se lembrar do que a senhorita Bolam falou?” “O senhor acha que era alguém dizendo para ela descer para o subsolo para ser assassinada?”, disse a sra. Shorthouse, encantada. “Pensando bem, até que pode ser...” Dalgliesh pensou consigo que aquela testemunha estava longe de ser tola. Observou enquanto ela contraía o rosto num esforço simulado de concentração. Não tinha dúvida de que ela se lembrava muito bem do que fora dito.
Depois de um intervalo bem calibrado para criar suspense, a sra. Shorthouse disse: “Bem, como eu já falei, o telefone tocou. Deviam ser umas seis e quinze. A senhora Bolam pegou o fone e disse: ‘Pois não, gerente administrativa’. Ela sempre atendia assim. Tinha orgulho de seu cargo. Peter Nagle costumava dizer: ‘Quem será que ela imagina que a gente pensa que vai atender o telefone? Kruchov?’. Claro que ele não disse isso a ela. Nem pensar. Seja como for, foi isso que ela falou. Depois houve uma pequena pausa, ela olhou para mim e disse: ‘Sim, estou’. Acho que estava dizendo que estava sozinha, como se eu não estivesse ali. Depois houve uma pausa um pouco maior, enquanto o cara do outro lado da linha falava. Aí ela disse: ‘Está bem, fique onde está. Vou descer’. Depois me disse para levar o senhor Lauder até a sala dela, se visse ele chegar. Eu disse que faria isso e saí.” “A senhora tem certeza sobre o que foi dito ao telefone?” “Tanta certeza quanto a de que estou sentada aqui. Foi exatamente o que ela falou.” “A senhora mencionou ‘o cara do outro lado da linha’. Como sabia que era um homem?” “Eu não disse que sabia. Acho que simplesmente imaginei que era um cara. Se eu estivesse mais perto dela, até poderia saber. Às vezes dá para ter uma idéia de quem está falando porque o telefone faz um barulho meio distorcido. Mas eu estava parada perto da porta.” “E não dava para ouvir absolutamente nada da outra voz?” “Exatamente. Vai ver que ele estava falando baixo.” “E o que aconteceu depois, senhora Shorthouse?” “Me despedi e fui cuidar das minhas tarefas na secretaria. Peter Nagle estava lá, tirando a concentração da jovem Priddy, como de hábito, e Cully estava no compartimento da recepção, de modo que não foi nenhum deles. Peter saiu com a correspondência assim que eu entrei. Ele sempre sai para o correio às seis e quinze.” “A senhora viu a senhorita Bolam sair da sala dela?” “Não, não vi. Já lhe disse. Estava na secretaria com Nagle e a senhorita Priddy. Mas a irmã viu. Pergunte a ela. A irmã viu quando ela passou pelo corredor.” “É, já sei. A irmã Ambrose me disse. É que eu queria saber se a senhorita Bolam tinha saído da sala dela logo atrás da senhora.” “Não, não saiu. Pelo menos não imediatamente. Talvez tenha achado uma boa idéia deixar o cara esperar um pouco.” “Talvez”, disse Dalgliesh. “Mas imagino que teria descido imediatamente se fosse um médico ao telefone.” A sra. Shorthouse soltou uma risada. “É possível. Mas sei lá. O senhor não conheceu a senhorita Bolam.” “Como ela era, senhora Shorthouse?” “Tranqüila. A gente se dava bem. Ela gostava de quem trabalha direito, e eu trabalho direito. Bom... O senhor pode ver como este lugar é bem cuidado.” “É mesmo.” “Com ela era pão, pão, queijo, queijo. Ponto a favor dela. Todas as cartas na mesa, sempre. Se a pessoa não se cuidasse podia passar momentos bem desagradáveis com ela. Mas ainda prefiro assim. Ela e eu nos entendíamos.” “Algum inimigo? Alguém com um ressentimento?” “Acho que sim, não é mesmo? Aquela pancada na cabeça dela não foi nenhuma brincadeirinha. Na minha opinião, é levar um ressentimento um pouquinho longe demais...” Plantando bem os pés no chão e inclinando-se para Dalgliesh em tom de confidência, continuou. “Veja, meu bem”,
disse. “A senhorita Bolam irritava as pessoas. Algumas pessoas são assim. Sem jogo de cintura. Certo é certo, errado é errado. Nada de mais ou menos. Rígida. Ela era rígida.” O tom da sra. Shorthouse e seus lábios contraídos exprimiam o máximo em matéria de inflexibilidade virtuosa. “Por exemplo aquela besteira sobre o livro de presença. Todos os médicos precisam assinar quando chegam, para depois a senhorita Bolam fazer o relatório mensal ao Conselho. Tudo organizadinho. Bom, primeiro o livro ficava em cima de uma mesa no vestiário dos médicos, ficava cômodo para todo mundo. Aí a senhorita Bolam repara que o doutor Steiner e o doutor McBain estão chegando atrasados e muda o livro para a sala dela. Todos tinham de vir até aqui para assinar. Só que o doutor Steiner nunca ia aceitar uma coisa dessas. ‘Ela sabe que estou aqui’, dizia ele. ‘E sou um médico, não um operário.’ ‘Se ela quer que eu assine aquele livro idiota, ela que o ponha de volta no vestiário dos médicos.’ Estou informada de que faz mais de um ano que os médicos estão fazendo o possível para que ela seja transferida daqui.” “Como a senhora sabe?” “Digamos que sei, e pronto. O doutor Steiner não podia nem ver a cara dela. Ele é adepto da psicoterapia. Da psicoterapia intensiva. Já ouviu falar?” Dalgliesh disse que sim. A senhora Shorthouse olhou para ele num misto de desconfiança e dúvida, depois se inclinou para a frente, conspirativa, como se estivesse a ponto de comunicar uma das idiossincrasias mais indignas do doutor Steiner. “Com orientação psicanalítica. Terapeuta com orientação psicanalítica. Sabe o que isso significa?” “Faço uma idéia.” “Então deve saber que ele não recebe muitos pacientes. Dois por dia, três no máximo, e novos pacientes só de dois em dois meses. Isso não contribui para as estatísticas.” “Que estatísticas?” “As estatísticas de atendimento. Elas são encaminhadas quinzenalmente ao Comitê Administrativo Hospitalar. A senhorita Bolam adorava empurrar as estatísticas para cima.” “Então ela devia ser fã do doutor Baguley. Ouvi dizer que as sessões de eletrochoque dele são muito concorridas.” “Era mesmo. Só não aprovava a história do divórcio dele.” “Mas que diferença isso fazia para as estatísticas?”, perguntou Dalgliesh, fazendo-se de inocente. A sra. Shorthouse olhou para ele com infinita piedade. “Quem falou em estatísticas? Estávamos comentando o casal Baguley. Eles iam se divorciar por causa do caso do doutor Baguley com a senhorita Saxon. Todos os jornais comentaram. Mulher de psiquiatra processa psicóloga. Daí, de repente, a senhora Baguley retira a queixa. Nunca disse a razão. Ninguém disse a razão. Mas aqui na clínica isso não fez a menor diferença. O doutor Baguley e a senhorita Saxon continuaram trabalhando juntos sem o menor problema. E ainda trabalham.” “E o doutor Baguley e a esposa fizeram as pazes?” “Quem falou em fazer as pazes? Só sei que continuam casados. Mas depois desses acontecimentos a senhorita Bolam fechou o tempo com a senhorita Saxon. Não que ela costumasse comentar o assunto; uma coisa boa a respeito dela era que não gostava de fofoca. Mas deixava a senhorita Saxon perceber o que ela achava. A senhorita Bolam era contra esse tipo de coisa. Com ela, não tinha conversa, eu lhe garanto!” Dalgliesh perguntou se alguém já tinha tentado alguma coisa com ela. Era uma pergunta que costumava formular com o máximo de tato, mas sutileza com a senhora Shorthouse era pura
perda de tempo, achava. Ela soltou uma risada divertida. “O que o senhor acha? Ela não gostava de homem. Não que eu saiba, pelo menos. Olhe, alguns dos casos aqui da clínica fariam o senhor nunca mais pensar em sexo na vida. Uma vez a senhorita Bolam foi se queixar com o diretor médico de alguns dos relatórios que a senhorita Priddy recebia para datilografar. Falou que eram indecentes. Claro, ela era meio esquisita com a Priddy. Passava o tempo tentando se meter na vida dela. Quando era pequena, Priddy estava no grupo de bandeirantes da senhorita Bolam ou coisa assim, e suponho que Bolam quisesse ficar de olho nela para que ela não se esquecesse da antiga guia. Dava para perceber que a garota ficava constrangida. Mas não havia nada de errado na coisa. Não vá acreditar, se alguém lhe der a entender que havia. Tem gente aqui com a cabeça muito suja, eu lhe garanto.” Dalgliesh perguntou o que a srta. Bolam achava da amizade entre a srta. Priddy e Nagle. “Ah, quer dizer que o senhor está sabendo? Pois ela não aprovava. Nagle é um sujeito frio, avarento como o diabo. Tente fazer ele lhe pagar um chá! Ele e Priddy gostam de se divertir por aí e tenho a impressão de que se os gatos soubessem falar, o Tigger poderia contar algumas coisas bem interessantes. Só que eu acho que a senhorita Bolam não percebia. Passava muito tempo fechada na sala dela. Seja como for, não é para o Nagle ficar circulando pela secretaria, e as estenógrafas médicas estão sempre muito ocupadas, de modo que não resta muito tempo para conversa mole. Depois, Nagle se encarregava de ficar sempre numa boa com a senhorita Bolam. Dava uma de garotinho bonitinho de olhos azuis. Nunca falta, nunca se atrasa — esse é o nosso Peter. Precisava ver como ele ficou, uma segunda-feira que ficou preso no metrô. Chegou a passar mal! O fato estragava a ficha dele, entende? Ele chegou a vir trabalhar gripado num primeiro de maio porque o duque de Edimburgo ia fazer uma visita à clínica e, evidentemente, Peter Nagle tinha de estar aqui para garantir que tudo saísse direitinho. Estava com uma febre braba, mais de quarenta graus. A irmã mediu a temperatura dele. A senhorita Bolam mandou-o logo para casa. O doutor Steiner levou-o de carro.” “Todo mundo sabe que o senhor Nagle guarda suas ferramentas na salinha dos porteiros?” “Lógico! É só parar para pensar. As pessoas estão sempre querendo que ele conserte isto ou aquilo, e onde mais ele ia guardar as ferramentas? E ele é cheio de coisa com aquelas ferramentas. Cricri. Cully está proibido de pôr a mão nelas. Inclusive, as ferramentas não pertencem à clínica. Pertencem ao Nagle. Deu o maior rolo umas seis semanas atrás, quando o doutor Steiner pegou uma chave de fenda emprestada para consertar alguma coisa no carro. Claro que o doutor Steiner tinha de se atrapalhar todo e entortar a chave de fenda. Foi a maior encrenca. Nagle achou que tinha sido o Cully, e os dois tiveram uma discussão tremenda; o coitado do Cully até ficou com a tal dor de estômago que costuma ter. Depois o Nagle descobriu que alguém tinha visto o doutor Steiner sair da salinha dos porteiros com a chave de fenda na mão e foi se queixar com a senhorita Bolam, que falou com o doutor Steiner e o obrigou a comprar outra chave de fenda para o Nagle. Muita coisa acontece aqui dentro, inspetor, posso lhe garantir. Ninguém se entedia. Mas assassinato é a primeira vez. Uma novidade. E agora, o que será que vem por aí?” “É verdade. E agora, senhora Shorthouse, se a senhora tiver alguma idéia de quem foi o autor desse assassinato, está na hora de dizer.” A sra. Shorthouse lambeu um dos dedos e ajeitou um cacho na testa, remexeu-se dentro do casaco em busca de maior conforto e ergueu-se da cadeira, dando a entender que, em sua opinião, a conversa tinha chegado ao fim. “Não se preocupe. Seu trabalho é apanhar assassinos, companheiro; portanto, mãos à obra. Só vou lhe dizer uma coisa. Não foi um dos médicos. Nenhum deles teria coragem. Esses psiquiatras
são muito assustados. Diga o que quiser sobre esse assassino, mas é preciso admitir que o cara tem coragem.”
Dalgliesh resolveu que em seguida interrogaria os médicos. Estava surpreso e curioso com a paciência deles, com a rapidez com que haviam aceitado seu papel ali. Fizera-os esperar porque achava mais importante para a investigação falar com outras pessoas primeiro, mesmo pessoas aparentemente tão desimportantes quanto a faxineira. A impressão que dava era de que achavam que ele não tinha a intenção de irritá-los ou deixá-los desnecessariamente inquietos. Não hesitaria em fazer nenhuma das duas coisas se tivessem alguma utilidade para seus objetivos, mas a experiência já lhe demonstrara que é mais fácil obter informações importantes quando uma testemunha ainda não teve tempo para pensar e pode ser induzida, pelo medo ou pelo choque, a falar demais e ser indiscreta. Os médicos tinham ficado reunidos, esperando no consultório da frente junto com os outros, calmamente e sem reclamar. Davam-lhe o crédito de saber o que estava fazendo e deixavam que tomasse conta dos acontecimentos. Dalgliesh se perguntou se cirurgiões ou clínicos seriam igualmente cooperativos, e concordou com o secretário do grupo em sua afirmação de que havia gente mais difícil de lidar do que psiquiatras. A pedido do diretor médico, a primeira a ser chamada foi a dra. Mary Ingram. Com três filhos pequenos em casa, era importante que fosse tomar conta deles tão logo possível. Enquanto esperava, chorava espasmodicamente, para embaraço dos colegas, que sentiam dificuldade em consolá-la de um sofrimento que lhes parecia tão absurdo quanto deslocado. A enfermeira Bolam estava reagindo bem, e afinal de contas era parente da morta. As lágrimas da dra. Ingram aumentavam a tensão e provocavam uma culpa irracional naqueles cujas emoções eram menos descomplicadas. Havia um sentimento generalizado de que ela deveria receber permissão para ir para casa sem demora ao encontro dos filhos. Ela pouco tinha a dizer a Dalgliesh. Comparecia à clínica apenas duas vezes por semana, para ajudar com as sessões de eletrochoque, e mal conhecia a srta. Bolam. Durante todo o período crucial, das seis e vinte até as sete horas, permanecera na sala de eletrochoque com a irmã Ambrose. Respondendo a uma pergunta de Dalgliesh, admitiu que talvez o dr. Baguley tivesse saído da sala por um curto período depois das seis e quinze, mas não conseguia se lembrar a que horas exatamente, ou por quanto tempo. No fim da entrevista ela olhou para Dalgliesh com olhos vermelhos e disse: “O senhor vai descobrir quem fez isso, não vai? Pobrezinha, pobrezinha da moça...” “Sim, vamos descobrir”, respondeu Dalgliesh. Em seguida ele entrevistou o dr. Etherege, que forneceu os detalhes pessoais necessários sem esperar que lhe perguntassem e prosseguiu: “No que diz respeito a meus próprios movimentos esta tarde, temo não poder ser de grande ajuda. Cheguei à clínica logo antes das cinco e entrei na sala da senhorita Bolam para falar com ela antes de subir. Conversamos um pouco sobre temas genéricos. Ela me pareceu perfeitamente bem e não me contou que havia marcado uma entrevista com o secretário do comitê. Telefonei para a secretaria para chamar a senhora Bostock mais ou menos às cinco e quinze, e ela ficou comigo anotando o que eu lhe ditava até as dez para as seis mais ou menos, quando desceu com a correspondência. Voltou uns dez minutos depois e continuamos com o ditado até pouco antes das seis e meia, quando ela entrou na sala ao lado para datilografar o material. Algumas das minhas sessões de tratamento são gravadas e o material depois é datilografado para fins de pesquisa ou para registro médico. Fiquei trabalhando sozinho no consultório; só saí uma vez, rapidamente,
para ir até a biblioteca médica — não lembro a hora, mas foi logo depois que a senhora Bostock saiu —, e voltei para o consultório quando ela veio tirar uma dúvida. Isso deve ter sido logo antes das sete, porque estávamos juntos quando a irmã me telefonou para contar da srta. Bolam. A srta. Saxon desceu de seu consultório no terceiro andar para ir para casa e nos encontrou nas escadas, de modo que ela e eu descemos juntos até o subsolo. O senhor sabe o que encontramos e as medidas que tomei em seguida para garantir que ninguém saísse da clínica.” “O senhor parece ter agido com grande presença de espírito, doutor”, disse Dalgliesh. “O resultado é que o campo de investigação pôde ser consideravelmente reduzido. Está parecendo que o criminoso continua no interior deste prédio, não é mesmo?” “O que eu sei é que Cully me garantiu que ninguém passou por ele depois das cinco da tarde sem que ele anotasse o nome em seu registro. É esse o sistema, aqui. As implicações daquela porta dos fundos trancada são perturbadoras, mas tenho certeza de que o senhor é um policial suficientemente tarimbado para não chegar a conclusões apressadas. Nenhum prédio é inexpugnável. A... a pessoa responsável pode ter entrado em qualquer momento, talvez hoje de manhã cedo, e depois se escondido no subsolo.” “O senhor poderia me dar uma idéia de onde essa pessoa poderia ter se escondido ou de como ela teria saído do prédio?” O diretor médico não respondeu. “O senhor tem alguma idéia de quem possa ser essa pessoa?” O doutor Etherege percorreu lentamente com o dedo médio a linha de sua sobrancelha direita. Dalgliesh já o vira fazer aquilo na televisão, e refletiu, agora como então, que o objetivo era chamar a atenção para a mão elegante e o belo desenho da sobrancelha, embora o gesto, mesmo indicando uma atividade reflexiva séria, parecesse levemente cabotino. “Não faço a menor idéia. A tragédia toda é incompreensível. Não vou lhe dizer que a senhorita Bolam fosse uma pessoa totalmente fácil de lidar. Às vezes ela despertava ressentimentos.” Abriu um sorriso compassivo. “Nem sempre é fácil lidar conosco, e é provável que os mais competentes administradores de instituições psiquiátricas sejam muito mais tolerantes do que a senhorita Bolam, menos obsessivos, talvez. Mas estamos falando de assassinato! Não posso imaginar quem, entre os pacientes ou os membros da nossa equipe, pudesse ter o desejo de assassiná-la. Para mim, como diretor médico, é horrível pensar que talvez haja alguém perturbado a esse ponto trabalhando na Clínica Steen sem que eu tivesse chegado a desconfiar.” “Perturbado ou cruel”, disse Dalgliesh, incapaz de resistir à tentação. O dr. Etherege sorriu outra vez, como quem explica pacientemente um aspecto difícil a um membro um tanto obtuso da equipe de entrevistadores de um canal de televisão. “Cruel? Não tenho competência para discutir o que aconteceu em termos teológicos.” “Nem eu, doutor”, replicou Dalgliesh. “Mas esse crime não parece obra de um louco. Existe uma inteligência por trás dele.” “Alguns psicopatas são altamente inteligentes, inspetor. Não que eu entenda grande coisa de psicopatia. É um campo muito interessante, mas não é a minha área. Aqui na Steen, nunca nos apresentamos como capacitados a tratar essa condição.” Então a Steen estava em boa companhia, pensou Dalgliesh. A Lei da Doença Mental de 1959 podia definir “psicopatia” como um distúrbio que necessita de tratamento, mas os médicos pareciam pouco entusiasmados em tratá-la. A palavra parecia pouco mais que um termo psiquiátrico para contravenção, e foi isso que o inspetor disse ao médico. O dr. Etherege sorriu, indulgente, sem aceitar a provocação.
“Nunca aceitei uma entidade clínica pelo mero fato de ela estar definida em uma lei do Parlamento. No entanto, psicopatia existe. Neste momento, não estou convencido de que ela seja suscetível a tratamento médico. De uma coisa, porém, tenho certeza: ela não é suscetível a uma sentença de prisão. Contudo, não temos certeza de estar em busca de um psicopata.” Dagliesh perguntou ao dr. Etherege se ele sabia onde Nagle guardava suas ferramentas e que chave abria a porta da sala dos arquivos. “Eu estava informado sobre a chave. Quando trabalho até mais tarde e fico sozinho aqui na clínica, às vezes preciso consultar algum arquivo antigo e vou buscá-lo eu mesmo. Faço um pouco de pesquisa e, naturalmente, dou aulas e escrevo, e é importante ter acesso aos arquivos médicos. A última vez que estive lá embaixo em busca de uma pasta foi há dez dias. Acho que nunca vi a caixa de ferramentas na sala dos porteiros, mas sabia que Nagle tinha as dele e que não gostava que ninguém mexesse nelas. Acho que se eu quisesse um formão teria procurado na sala dos porteiros. Dificilmente haveria ferramentas guardadas em outro lugar. E é claro que teria noção de que a estátua de Tippett poderia ser encontrada no departamento de arte-terapia. Que estranho conjunto de armas! O que eu acho interessante é o aparente cuidado com que o assassino dirigiu as suspeitas para o pessoal da clínica.” “Considerando-se as portas trancadas, dificilmente as suspeitas poderiam recair em outro lugar.” “Foi isso que eu quis dizer, inspetor. Se um membro do pessoal presente esta tarde na clínica tiver assassinado a senhorita Bolam, sem dúvida teria tentado afastar as suspeitas das relativamente poucas pessoas que sabidamente estariam no prédio na hora do crime. A maneira mais fácil de fazer isso teria sido destrancar uma das portas. A pessoa teria de calçar luvas, claro, mas parece-me que o assassino efetivamente calçava luvas.” “De fato, não há impressões digitais em nenhuma das armas. Elas foram limpas, mas é provável que o assassino usasse luvas.” “E mesmo assim as portas permaneceram trancadas, forte indício de que o assassino continuava no prédio. Por quê? Seria arriscado destrancar a porta dos fundos do térreo. Como o senhor sabe, essa porta fica entre a sala de eletrochoque e a sala dos médicos e dá para uma rua bem iluminada. Seria difícil destrancá-la sem correr o risco de ser visto, e um assassino dificilmente escolheria aquele caminho para escapar. Mas há duas saídas de emergência no segundo e no terceiro andar, além da porta que leva ao subsolo. Por que não destrancar uma delas? Evidentemente, talvez isso tenha acontecido porque o assassino não teve oportunidade de fazê-lo no período entre a hora do crime e a descoberta do corpo. Outra possibilidade é que ele quisesse deliberadamente jogar as suspeitas sobre o pessoal da clínica, mesmo com o risco inevitável de correr mais perigo.” “O senhor fala ‘ele’, doutor. Como psiquiatra, acredita que estamos atrás de um homem?” “Sim, sem dúvida. Penso que esse crime foi obra de um homem.” “Embora não tenha sido necessário empregar muita força?”, perguntou Dalgliesh. “Basicamente eu não estava pensando na força necessária, mas no método e na arma escolhida. Claro, é apenas minha opinião, e não sou criminologista. Para mim, parece crime de homem. Mas é óbvio que uma mulher poderia tê-lo cometido. Psicologicamente, é pouco provável. Fisicamente, não haveria a menor dificuldade.” De fato, não haveria, pensou Dalgliesh. Só precisava conhecimento e coragem. Imaginou por um momento um rosto concentrado, bonito, inclinando-se sobre o cadáver da srta. Bolam; uma mão esguia, de menina, abrindo os botões do suéter e suspendendo a blusa de fino cashmere. E
depois, a escolha clínica do lugar exato onde cravar o formão, e o grunhido de esforço enquanto a lâmina acertava o alvo. E, por fim, o suéter puxado um pouco para baixo para esconder o cabo do formão, a feia estátua posicionada sobre o corpo que ainda estremecia num último gesto de desprezo e desafio. Dalgliesh contou ao diretor médico sobre o que a sra. Shorthouse dissera a respeito do telefonema. “Ninguém admitiu a autoria do telefonema. Está parecendo que ela foi atraída até o subsolo.” “Mera suposição, inspetor.” Delicadamente, Dalgliesh lembrou o médico que também era uma questão de bom senso, base de todo trabalho policial sólido. O diretor médico disse: “Ao lado do telefone, do lado de fora da sala dos arquivos, há um cartão com todos os números de telefone da clínica. Qualquer um, mesmo um estranho, poderia descobrir o número da senhorita Bolam.” “Mas qual teria sido a reação dela ao receber um telefonema interno feito por um estranho? Ela desceu para o subsolo sem vacilar. Deve ter reconhecido a voz.” “Então foi alguém que ela não tinha razão para temer. Isso não combina com a idéia de que estivesse de posse de alguma informação perigosa e de que o assassinato teve o objetivo de impedir que ela transmitisse essa informação ao Lauder. Ela desceu ao encontro da própria morte sem medo nem desconfiança. Só posso esperar que tenha morrido rapidamente e sem dor.” Dalgliesh disse que teria mais informações depois que recebesse o resultado da necropsia, mas que a morte fora quase certamente instantânea. E acrescentou: “Deve ter havido um momento pavoroso, quando ela ergueu os olhos e viu seu assassino com a estátua erguida, mas tudo aconteceu muito depressa. Depois de nocauteada, não sentiu mais nada. Duvido que tenha tido tempo até para gritar. Se gritou, o som foi abafado pelas estantes carregadas de pastas; por outro lado, pelo que me disseram, a senhora King estava se comportando de forma bastante ruidosa durante seu tratamento.” Depois de um intervalo, Dalgliesh prosseguiu com tranqüilidade: “O que o fez descrever para a equipe a maneira como a senhorita Bolam havia morrido? O senhor contou ao grupo, não é mesmo?”. “Claro. Reuni todo mundo no consultório da frente — os pacientes estavam na sala de espera — e fiz um breve relato. O senhor está sugerindo que eu não devia ter contado a eles?” “Estou sugerindo que não era preciso que eles fossem informados dos detalhes. Teria sido útil para mim se o senhor não tivesse mencionado o formão. O assassino poderia ter se traído, demonstrando mais conhecimento do que uma pessoa inocente poderia deter.” O diretor médico sorriu. “Sou um psiquiatra, não um investigador. Por estranho que o senhor possa achar, minha reação a esse crime foi partir do princípio de que os outros membros da equipe ficariam tão horrorizados e consternados quanto eu, em lugar de preparar armadilhas para eles. Eu queria dar a notícia a eles pessoalmente, com calma e sinceridade. Eles sempre mereceram minha confiança, e não vi razão para retirar essa confiança naquele momento.” Estava tudo muito bem, pensou Dalgliesh, mas sem dúvida um homem inteligente teria percebido a importância de contar o mínimo possível. E o diretor médico era um homem muito inteligente. Enquanto o inspetor agradecia o depoimento de sua testemunha e encerrava a entrevista, sua mente examinava o problema. Será que o dr. Etherege refletira sobre a situação antes de conversar com o pessoal da clínica? Será que suas revelações sobre o assassinato haviam sido tão impensadas quanto parecia? A verdade era que teria sido impossível enganar a maioria dos membros da equipe. O dr. Steiner, o dr. Baguley, Nagle, a dra. Ingram e a irmã Ambrose haviam visto o corpo. A srta. Priddy também, mas aparentemente se afastara correndo, sem um
segundo olhar. Sobravam a enfermeira Bolam, a sra. Bostock, a sra. Shorthouse, a srta. Saxon, a srta. Kettle e Cully. Talvez Etherege estivesse convencido de que nenhum desses era o assassino. Tanto Cully como Shorthouse tinham um álibi. Será que o diretor médico sentira relutância em preparar uma armadilha para a enfermeira Bolam, para a sra. Bostock ou para a srta. Saxon? Ou será que estava tão profundamente convencido de que o assassino só podia ser um homem que todo e qualquer subterfúgio para enganar as mulheres lhe parecera uma perda de tempo que só podia resultar em embaraço e ressentimento? Não havia dúvida de que o diretor médico fora muito insistente ao sugerir que todas as pessoas que trabalhavam no segundo ou no terceiro andar do prédio podiam ser eliminadas, já que teriam tido a oportunidade de abrir uma das portas de emergência. Mas era preciso lembrar que ele próprio estava em seu consultório no segundo andar. Fosse como fosse, era evidente que a porta que o assassino deveria ter aberto era a porta do subsolo, e era difícil acreditar que ele não tivera essa oportunidade. Bastaria um segundo para destravar aquele cadeado e deixar em aberto a possibilidade de que o assassino tivesse deixado a clínica por ali. Com tudo isso, a porta do subsolo estava bem trancada. Por quê? O dr. Steiner entrou em seguida, baixo, elegante, composto. À luz do abajur da escrivaninha da srta. Bolam sua pele macia e pálida dava a impressão de ser levemente luminosa. Apesar da calma, havia transpirado muito. O cheiro denso impregnava sua roupa, seu paletó preto convencional, bem cortado. Dalgliesh ficou surpreso quando ele disse que tinha quarenta e dois anos de idade. Parecia mais velho. A pele lisa, os olhos negros penetrantes, o passo vigoroso davam uma impressão superficial de juventude, mas seu corpo já começava a ficar pesado, e seu cabelo preto bem alisado para trás não conseguia ocultar perfeitamente a clareira em forma de tonsura no topo de seu crânio. Aparentemente o dr. Steiner decidira tratar aquele encontro com um policial como um acontecimento social. Estendendo uma mão roliça, bem tratada, disse “Como vai?” com um sorriso e indagou se estava falando com o escritor Adam Dalgliesh. “Já li seus poemas”, declarou com complacência. “Meus parabéns. Uma simplicidade tão perfeitamente enganadora! Comecei pelo primeiro poema e fui direto até o fim. É meu jeito de viver a poesia. Na página dez comecei a achar que talvez um novo poeta estivesse surgindo.” Dalgliesh admitiu para si mesmo que o dr. Steiner não apenas lera o livro como mostrava uma certa percepção crítica. Era na página dez que ele também achava, às vezes, que talvez um novo poeta estivesse surgindo. O dr. Steiner perguntou se ele já encontrara Ernie Bales, o jovem dramaturgo de Nottingham. Parecia tão esperançoso que Dalgliesh sentiu-se francamente descortês ao dizer que não conhecia o sr. Bales e ao desviar a conversa da crítica literária para trazê-la de volta para o propósito da entrevista. No mesmo instante o dr. Steiner assumiu um ar de gravidade chocada. “Tudo nesse caso é horrível, francamente horrível. Fui um dos primeiros a ver o corpo, como talvez o senhor já saiba, e fiquei muito abalado. Sempre tive horror de violência. É uma história lamentável. O doutor Etherege, nosso diretor médico, deve se aposentar no fim deste ano. Que coisa mais lamentável isso acontecer nos últimos meses que ele passa aqui.” Balançou tristemente a cabeça, mas Dalgliesh teve a impressão de que os olhinhos escuros exibiam algo muito semelhante a satisfação. A estátua de Tippett já revelara seus segredos ao técnico em impressões digitais, e Dalgliesh a posicionara sobre a escrivaninha à sua frente. O dr. Steiner estendeu a mão para tocá-la, depois recuou e disse: “Imagino que seja melhor não tocar nessa estátua por causa das impressões digitais.” Lançou
um olhar rápido na direção de Dalgliesh e, ao ver que ele não respondia, prosseguiu: “É uma escultura interessante, não é mesmo? Bastante notável. O senhor já reparou, inspetor, que as pessoas mentalmente enfermas, mesmo pacientes sem nenhum treinamento ou experiência, podem produzir uma arte de excelente qualidade? Isso suscita questões sobre a natureza da realização artística. Quando esses pacientes se recuperam, sua obra declina. A força e a originalidade desaparecem. Quando o processo de recuperação se completa, as coisas que eles produzem já não têm o menor interesse. Temos diversos exemplos interessantes de trabalhos de pacientes no departamento de arte-terapia, mas esta estátua se destaca. Tippett estava muito doente quando a esculpiu, e veio para o hospital pouco tempo depois. Ele é esquizofrênico. A estátua tem a fisionomia típica da enfermidade crônica: olhos saltados e narinas achatadas. Houve um tempo em que Tippett não era muito diferente dessa estátua”. “Suponho que todo mundo soubesse onde encontrar esse objeto...”, disse Dalgliesh. “Sim, claro. A estátua ficava na prateleira do departamento de arte-terapia. Tippett tinha muito orgulho dela, e o doutor Baguley gostava de mostrá-la aos membros do comitê em suas visitas de inspeção. A senhora Baumgarten, a arte-terapeuta, gosta de ter alguns dos melhores trabalhos em exposição. Foi para isso que mandou fazer as prateleiras. No momento está de licença médica, mas imagino que tenham lhe mostrado o departamento!” Dalgliesh disse que tinham. “Alguns de meus colegas acham que arte-terapia é dinheiro jogado fora”, confidenciou o dr. Steiner. “Claro que nunca utilizo a senhora Baumgarten. Mas precisamos ser tolerantes. O doutor Baguley manda alguns pacientes para ela de vez em quando, e provavelmente é menos nocivo para eles ficar brincando lá embaixo do que serem submetidos a eletrochoques. Mas supor que os esforços artísticos dos pacientes possam contribuir para formar um diagnóstico parece-me uma idéia muito forçada. Claro que essa afirmação faz parte do esforço para conseguir que a senhora Baumgarten receba o título de psicoterapeuta leiga, o que não tem a menor validade, sinto muito. Ela não tem treinamento analítico.” “E o formão? O senhor sabia onde ele era guardado, doutor?” “Bem, não exatamente, inspetor. Quer dizer, eu sabia que Nagle tinha algumas ferramentas e supunha que as guardasse na sala de descanso dos porteiros, mas não sabia direito onde.” “A caixa de ferramentas é grande, tem uma etiqueta claríssima e fica sobre a mesinha da sala dos porteiros. Seria difícil não vê-la.” “Claro, não tenho a menor dúvida. Acontece que não tenho o menor motivo para freqüentar a sala dos porteiros. E isso vale para todos os médicos. Agora vai ser preciso arranjar uma chave para a tal caixa e providenciar para que fique guardada num lugar seguro. A senhorita Bolam estava muito errada ao permitir que Nagle deixasse a caixa em cima da mesa. Afinal, ocasionalmente temos pacientes perturbados, e certas ferramentas podem ser letais.” “É o que parece.” “Esta clínica não foi criada para atender pacientes muito psicóticos, claro. Foi fundada para oferecer um centro de psicoterapia com orientação analítica, especialmente para a classe média e pacientes especialmente inteligentes. Tratamos de pessoas que nunca sonhariam em entrar num hospital para doentes mentais — e que estariam igualmente deslocadas nas alas psiquiátricas dos hospitais abertos. Além disso, evidentemente, existe um forte elemento de pesquisa em nosso trabalho.” “Onde o senhor estava entre as seis e as sete horas da noite de hoje, doutor?”, perguntou Dalgliesh.
O dr. Steiner pareceu ficar triste com essa súbita intrusão da curiosidade sórdida numa discussão tão interessante, mas respondeu, obediente, que estava realizando sua sessão de psicoterapia das noites de sexta-feira. “Cheguei à clínica às cinco e meia, horário de meu primeiro paciente, que infelizmente não apareceu. O tratamento dele chegou a um estágio em que é previsível que ele deixe de comparecer com uma certa freqüência. O senhor Burge tinha consulta marcada para as seis e quinze, e costuma ser muito pontual. Enquanto ele não chegava, permaneci no segundo consultório do térreo; depois fui encontrá-lo em meu próprio consultório, às seis e dez. O senhor Burge não gosta de esperar junto com os pacientes do doutor Baguley na sala de espera comum, e entendo como ele se sente. Imagino que o senhor já tenha ouvido falar em Burge. Ele escreveu aquele interessante romance As almas dos justos, um relato brilhante sobre os conflitos sexuais que se ocultam por baixo do convencionalismo de um respeitável subúrbio da Inglaterra. Mas eu já ia esquecendo. Sem dúvida o senhor entrevistou o senhor Burge.” Dalgliesh o entrevistara, de fato. A experiência fora tediosa e pouco esclarecedora. E ele já ouvira falar do livro do sr. Burge, obra de cerca de duas mil palavras em que os episódios escabrosos eram inseridos com uma deliberação de tal modo meticulosa que bastava um exercício de simples aritmética para calcular em que página ocorreria o episódio seguinte. Dalgliesh não considerava Burge suspeito de coisa alguma naquele assassinato. Um escritor capaz de produzir tamanha mistura de sexo e sadismo provavelmente era impotente e sem dúvida era tímido, mas não era necessariamente um mentiroso. Dalgliesh disse: “Está seguro desses horários, doutor? O senhor Burge diz que chegou à clínica às seis e quinze, e Cully registrou a chegada dele nesse horário. Burge diz que foi direto para seu consultório depois que Cully lhe disse que o senhor não estava atendendo, e que o senhor só apareceu dez minutos depois. Ele estava ficando impaciente e tinha a intenção de sair para perguntar onde o senhor estava.” O dr. Steiner não pareceu amedrontado nem bravo ao ser informado da perfídia de seu paciente. Contudo, ficou com um ar embaraçado. “É interessante que o senhor Burge tenha dito isso. É possível que ele tenha razão. Achei que ele estava um pouco irritado quando demos início à sessão. Se ele diz que eu só apareci às seis e vinte e cinco, sem dúvida está dizendo a verdade. Coitado, esta noite a sessão dele foi muito curta e conturbada. Pena isso acontecer no estágio atual de seu tratamento.” “Mas, se o senhor não estava no consultório da frente quando seu paciente chegou, onde estava então?”, insistiu Dalgliesh delicadamente. O rosto do doutor Steiner passou por uma mudança estarrecedora. De repente ele ficou com a expressão envergonhada de um menino apanhado no meio de uma traquinagem. Não parecia amedrontado, mas parecia extremamente culpado. A metamorfose de psiquiatra clínico para delinqüente constrangido chegava a ser cômica. “Mas eu já lhe disse, inspetor! Estava no consultório número dois, aquele situado entre o consultório da frente e a sala de espera dos pacientes.” “Fazendo o quê, doutor?” Realmente, era quase risível. O que Steiner estaria fazendo para ficar tão monumentalmente constrangido? A imaginação de Dalgliesh brincou com as possibilidades mais bizarras. Lendo material pornográfico? Fumando maconha? Seduzindo a sra. Shorthouse? Certamente não seria uma coisa tão convencional quanto planejar um assassinato. Mas dava para perceber que o médico havia chegado à conclusão de que era necessário contar a verdade. Com franqueza
desarmante, explicou: “Parece tolice, eu sei, mas... bem... estava quente, meu dia tinha sido trabalhoso e o divã estava ali na minha frente.” Soltou uma risadinha. “Na verdade, inspetor, no momento em que se imagina que a senhorita Bolam tenha sido morta eu estava, como se costuma dizer, tirando uma soneca!” Depois de aliviar a consciência com sua confissão embaraçosa, o dr. Steiner ficou alegre e volúvel e não foi fácil ver-se livre dele. Mas no fim ele foi convencido de que não tinha mais nenhuma contribuição a fazer no momento, e seu lugar foi ocupado pelo dr. Baguley.
Tal como seus colegas, o dr. Baguley não se queixou da longa espera, mas ela cobrara seu preço. Ele ainda vestia o avental branco, que ajeitou em torno do corpo ao puxar a cadeira para sentar-se. Parecia estar sentindo dificuldade para se instalar confortavelmente, encolhendo os ombros esguios e cruzando e descruzando as pernas. Os sulcos que desciam de seu nariz para os cantos de sua boca pareciam mais marcados, seu cabelo estava úmido, seus olhos pareciam lagos negros à luz da lâmpada da escrivaninha. Acendeu um cigarro, depois remexeu no bolso do paletó e puxou um pedaço de papel que entregou a Martin. “Anotei meus detalhes pessoais. Assim a gente ganha tempo.” “Obrigado, doutor”, disse Martin, impassível. “É bom que o senhor fique sabendo desde já que não tenho álibi para cerca de vinte minutos a partir das seis e quinze. Imagino que tenha ficado sabendo que saí da sala de eletrochoque alguns minutos antes que a irmã visse a senhorita Bolam pela última vez. Entrei no vestiário dos médicos, no fim do corredor, e fumei um cigarro. O lugar estava vazio e ninguém apareceu. Não me preocupei em voltar correndo para a clínica, de modo que acho que já eram mais ou menos vinte para as sete quando me reuni à doutora Ingram e à irmã. As duas haviam ficado todo aquele tempo juntas, claro.” “Foi o que a irmã me disse.” “É ridículo imaginar que alguma delas pudesse estar envolvida, mas fico feliz que estivessem juntas. Imagino que do seu ponto de vista quanto maior o número de pessoas eliminadas, melhor. Lamento não ter condições de fornecer um álibi. Também não posso ajudar de outras maneiras, infelizmente. Não vi nem ouvi nada.” Dalgliesh perguntou ao médico como ele passara a tarde e o início da noite. “Foi o de sempre. Quer dizer, até as sete horas. Cheguei pouco antes das quatro e passei pela sala da senhorita Bolam para assinar o livro de presença dos médicos. Até recentemente o livro ficava no vestiário dos médicos, mas depois foi transferido para o escritório dela. Conversamos um pouco — ela queria me fazer algumas perguntas sobre as providências relativas a meu novo equipamento de eletrochoque —, depois fui dar início a minha clínica. Ficamos bastante ocupados até pouco depois das seis; além disso eu precisava fazer visitas periódicas a minha paciente de ácido lisérgico. Ela estava sendo acompanhada pela enfermeira Bolam na sala de tratamento do subsolo. Mas que bobagem, o senhor já conversou com a senhora King.” A sra. King e o marido estavam sentados na sala de espera dos pacientes quando Dalgliesh chegara, e em pouquíssimo tempo este se convencera de que era impossível eles terem alguma coisa a ver com o assassinato. A mulher ainda estava fraca e um pouco desorientada, segurando com força a mão do marido. Ele só chegara à clínica para levá-la para casa alguns minutos depois da chegada de Martin e sua equipe. Dalgliesh fizera algumas perguntas à mulher e delicadamente lhe dera permissão para retirar-se. Não fora necessário que o diretor médico lhe garantisse que
sua paciente não teria condições de levantar-se de sua cama para assassinar ninguém. Mas ele também tinha certeza de que ela não estava em condições de oferecer um álibi a quem quer que fosse. Perguntou ao dr. Baguley em que momento visitara sua paciente pela última vez. “Fui ver como ela estava pouco depois de chegar; na verdade, antes de começar o tratamento com eletrochoque. A droga fora ministrada às três e meia, e a paciente estava começando a reagir. Devo esclarecer que o lsd tem a função de tornar o paciente mais acessível à psicoterapia, ao liberar algumas de suas inibições mais arraigadas. Só é ministrado sob rigorosa supervisão, e o paciente nunca é deixado sozinho. Às cinco horas a enfermeira Bolam voltou a chamar-me; fiquei lá embaixo durante aproximadamente quarenta minutos. Depois subi e apliquei meu último tratamento de choque, mais ou menos às vinte para as seis. O último paciente de eletrochoque saiu da clínica alguns minutos depois que a senhorita Bolam foi vista pela última vez. Das seis e meia em diante fiquei organizando minhas coisas e fazendo minhas anotações.” “A porta da sala dos arquivos estava aberta quando o senhor passou por ela, às cinco horas?” O dr. Baguley refletiu um instante, depois disse: “Acho que estava fechada. É difícil ter certeza absoluta, mas tenho a impressão de que teria notado se ela estivesse aberta ou entreaberta.” “E às vinte para as seis, quando deixou sua paciente?” “A mesma coisa.” Dalgliesh tornou a fazer as perguntas de sempre — as perguntas inevitáveis, óbvias. A senhorita Bolam tinha inimigos? O doutor tinha conhecimento de algum motivo para que alguém pudesse desejar vê-la morta? Ultimamente ela dera a impressão de estar preocupada? Ele fazia idéia da razão pela qual ela pedira ao secretário do grupo que fosse falar com ela? Conseguia decifrar as anotações que ela fizera no bloco sobre a mesa? Mas o dr. Baguley não tinha como ajudar. Falou: “Ela era uma mulher curiosa sob diversos aspectos. Tímida, um pouco agressiva, um tanto insatisfeita aqui. Mas era perfeitamente inofensiva, a última pessoa que eu imaginaria que pudesse atrair a violência. Não podemos passar o resto da vida dizendo a que ponto esse crime nos chocou. As palavras muito repetidas parecem perder o sentido. Mas imagino que todos estejamos sentindo a mesma coisa. Tudo isso é fantástico! Inacreditável!” “O senhor disse que ela não estava feliz aqui. É difícil administrar esta clínica? Pelo que ouvi dizer, a senhorita Bolam não era muito competente no trato com personalidades difíceis.” O dr. Baguley não deu maior importância à pergunta: “Ah, o senhor não deve acreditar em tudo o que lhe dizem. Somos individualistas, mas no fim das contas nos entendemos muito bem uns com os outros. Steiner e eu temos alguns atritos, mas tudo muito amistoso. Ele quer que este lugar se transforme numa unidade de treinamento para psicoterapeutas, com técnicos e profissionais leigos correndo de um lado para o outro como camundongos; além disso haveria atividades de pesquisa. Um desses lugares onde se gasta muito tempo e dinheiro com muitas coisas, menos com o tratamento de pacientes — especialmente os psicóticos. Mas ele não vai conseguir. Duvido que o Comitê Regional aprove esse projeto.” “E qual era a opinião da senhorita Bolam, doutor?” “Estritamente falando, ela não tinha competência para opinar — o que não a inibia. Era antifreudiana e pró-ecletismo. Anti-Steiner e a meu favor, se quiser. Mas isso não significava coisa alguma. Nem o doutor Steiner nem eu íamos afundar o crânio dela por causa das diferenças doutrinais. Como vê, ainda nem chegamos ao ponto de nos esfaquear. Tudo isso é profundamente irrelevante.” “Tendo a concordar com o senhor”, disse Dalgliesh. “A senhorita Bolam foi morta com grande
deliberação e considerável perícia. Acho que o motivo foi bem mais consistente e importante do que uma simples diferença de opinião ou um choque de personalidades. Por falar nisso, o senhor sabe qual é a chave que abre a sala dos arquivos?” “Claro que sei. Quando quero consultar um dos antigos registros, costumo apanhá-lo pessoalmente. Se for de alguma ajuda para o senhor, também estou informado de que Nagle guarda sua caixa de ferramentas na saleta dos porteiros. Além disso, esta tarde, quando cheguei à clínica, a senhorita Bolam me contou a história do Tippett. Mas isso não vem ao caso, não é mesmo? Não dá para acreditar que o assassino tenha tentado envolver o Tippett.” “Talvez não. Me diga, doutor. Pelo que o senhor sabe a respeito da senhorita Bolam, como ela reagiria ao encontrar aquelas pastas médicas espalhadas pelo chão?” Por um segundo o dr. Baguley pareceu surpreso, depois soltou uma risada seca. “Enid Bolam? Essa pergunta é fácil de responder! Ela era obsessivamente ordeira. É claro que na mesma hora começaria a recolhê-las.” “Não seria mais provável ela chamar um dos porteiros para fazer o serviço, ou deixar as pastas onde estavam como prova de acusação até o responsável ser identificado?” O dr. Baguley pensou por um instante e pareceu arrepender-se de sua primeira opinião categórica. “Não dá para saber com certeza o que ela faria. É tudo conjectura. Vai ver que o senhor tem razão e que ela chamaria o Nagle. Ela não tinha medo do trabalho, mas era muito consciente da importância de seu cargo. Só tenho certeza de uma coisa: ela jamais deixaria o lugar naquele caos. Era incapaz de passar por um tapete ou um quadro sem endireitá-los.” “E a prima, se parece com ela? Me disseram que a enfermeira Bolam trabalha mais para o senhor do que para os outros médicos.” Dalgliesh registrou a breve contração de contrariedade provocada pela pergunta. Por mais cooperativo e franco que fosse a respeito das próprias motivações, o dr. Baguley não estava disposto a comentar as dos outros. Ou será que a meiga vulnerabilidade da enfermeira Bolam despertara seus instintos protetores? Dalgliesh esperou por uma resposta. Um minuto depois, o doutor disse, secamente: “Eu não diria que as primas se pareciam. O senhor deve ter formado sua própria impressão da enfermeira Bolam. Só posso dizer que confio integralmente nela, como enfermeira e como pessoa.” “Ela é a herdeira da prima. Ou será que o senhor não sabia?” A inferência era óbvia, e o dr. Baguley estava cansado demais para resistir à provocação. “Não, não sabia. Mas faço votos de que seja uma quantia bem grande e que ela e a mãe tenham oportunidade de desfrutar tranqüilamente desse dinheiro. E também espero que o senhor pare de gastar seu tempo suspeitando de pessoas inocentes. Quanto mais depressa esse assassinato for esclarecido, melhor. É uma posição intolerável para todos nós.” Ou seja, o dr. Baguley estava informado sobre a mãe da enfermeira Bolam. Nesse caso, era provável que a maioria dos empregados da clínica também soubesse. Dalgliesh formulou sua última pergunta: “Doutor, o senhor disse que ficou sozinho no vestiário dos médicos entre seis e quinze e vinte para as sete. O que o senhor estava fazendo?” “Fui ao banheiro. Lavei as mãos. Fumei um cigarro. Refleti.” “Foi só isso que o senhor fez durante aqueles vinte e cinco minutos?” “Só isso, inspetor.”
O dr. Baguley não sabia mentir. A hesitação foi apenas momentânea; seu rosto não mudou de cor; os dedos que seguravam o cigarro não tremeram nem um pouco. Mas sua voz estava um pouco displicente demais, o desinteresse parecia forçado. E foi com um esforço palpável que ele se obrigou a olhar Dalgliesh nos olhos. Era muito inteligente para reforçar a declaração, mas seus olhos pareciam transmitir aos de Dalgliesh o desejo de que o inspetor repetisse a pergunta, pois agora estaria preparado para respondê-la. “Obrigado, doutor”, disse Dalgliesh, calmamente. “Não tenho mais perguntas por enquanto.”
3
E assim continuou o assunto: os pacientes interrogatórios, as anotações meticulosas, a observação atenta dos olhos e das mãos dos suspeitos em busca de um lampejo de medo, da contração muscular diante de uma mudança indesejável de ênfase. Fredrica Saxon veio depois do dr. Baguley. Quando os dois se cruzaram no umbral da porta, Dalgliesh percebeu que ambos tiveram o cuidado de não deixar que seus olhares se encontrassem. Ela era uma mulher de vinte e nove anos, morena, vital, vestida com informalidade, que se limitava a oferecer respostas breves mas diretas a suas perguntas e que parecia sentir um prazer perverso em declarar que havia ficado sozinha em sua própria sala analisando um teste psicológico entre seis e sete horas, e que não dispunha de álibi para si própria nem podia fornecê-lo a terceiros. Em matéria de informações e de ajuda em geral, Fredrica Saxon pouco contribuiu para os trabalhos, mas nem por isso Dalgliesh concluiu que ela não tinha nada a oferecer. Em seguida foi a vez de uma testemunha muito diferente. Aparentemente a srta. Ruth Kettle concluíra que não tinha nada a ver com aquele assassinato e assim, embora disposta a responder às perguntas de Dalgliesh, fez isso com uma vaga ausência de interesse que dava a entender que seus pensamentos estavam dedicados a temas mais elevados. Não existem muitas palavras para expressar horror e surpresa, e o pessoal da clínica já utilizara a maioria delas no decorrer daquela noite. A reação da srta. Kettle foi menos ortodoxa. Na opinião dela, o assassinato fora esquisito... realmente muito estranho. Feita essa declaração, ficou olhando para Dalgliesh, piscando atrás dos óculos de lentes grossas, numa atitude de tranqüilo espanto, como se de fato achasse o crime esquisito, mas não a ponto de justificar maiores discussões. Mas pelo menos duas informações fornecidas por ela eram interessantes. Dalgliesh só podia esperar que fossem confiáveis. Ela não fora muito precisa quanto a seus próprios movimentos durante aquela tarde e início de noite, mas, graças a sua persistência, Dalgliesh ficou sabendo que entrevistara a esposa de um dos pacientes do eletrochoque até cerca de vinte para as seis, quando a irmã lhe telefonara para dizer que o paciente estava pronto para ser levado para casa. A srta. Kettle descera acompanhando seu paciente, dissera “boa noite” no vestíbulo e depois fora direto para a sala dos arquivos para apanhar uma pasta. Encontrara o aposento na mais perfeita ordem e trancara-o a chave ao sair. Com toda sua suave incerteza com relação a quase todas as atividades daquela noite, ela não tinha dúvidas quanto aos horários. Fosse como fosse, pensou Dalgliesh, provavelmente a irmã Ambrose poderia corroborá-los. A segunda pista era mais nebulosa, e a srta. Kettle a mencionou com aparente indiferença quanto a sua importância. Cerca de meia hora depois de voltar para sua sala no segundo andar ela ouvira o barulho inconfundível do elevador de serviço parando com uma guinada. Dalgliesh estava cansado. Apesar do aquecimento central, sentia calafrios e reconhecia o malestar que costumava preceder uma de suas crises de nevralgia. Estava com a sensação de que o lado direito de seu rosto já estava rígido e pesado, e as ferroadas de dor começavam a atingir espasmodicamente a parte de trás de seus globos oculares. Mas ali estava a última testemunha. A sra. Bostock, estenógrafa sênior, não partilhava a aceitação tolerante com que os médicos haviam suportado a longa espera. Estava zangada, e sua irritação entrou com ela na sala como um vento gelado. Sentou-se sem dizer palavra, cruzou um par de pernas longas e fantasticamente
bem torneadas, e olhou para Dalgliesh com franco antagonismo nos olhos pálidos. Sua cabeça era notável e incomum. O cabelo comprido, dourado como o pêlo de um porquinho-da-índia, estava arranjado em pregas complexas no alto de um rosto pálido, arrogante, de nariz pontudo. Com seu pescoço comprido, a cabeça altaneira e chamativa e os olhos levemente protuberantes, parecia um pássaro exótico. Dalgliesh teve dificuldade para disfarçar o impacto que sentiu ao ver suas mãos. Eram tão grandes, vermelhas e ossudas quanto as mãos de um açougueiro, e davam a impressão de terem sido incongruentemente implantadas nos pulsos finos por alguma fatalidade maligna. Eram quase uma deformidade. A sra. Bostock não procurava escondê-las, mas suas unhas eram curtas e ela não usava esmalte. Tinha uma bela estampa e estava bem vestida, com roupas caras — verdadeiro exemplo na arte de minimizar os próprios defeitos e enfatizar os próprios trunfos. Dalgliesh pensou que era provável que ela vivesse sua vida a partir do mesmo princípio. A estenógrafa forneceu detalhes objetivos sobre seus movimentos a partir das seis daquela tarde. Não parecia relutante. Vira a srta. Bolam pela última vez às seis horas, quando, como de hábito, levara a correspondência do dia para que a gerente administrativa assinasse. Havia apenas cinco cartas. A maioria da correspondência consistia em relatórios médicos e cartas dos psiquiatras a clínicos gerais, e evidentemente a srta. Bolam não tinha nada a ver com isso. Toda a correspondência que saía era registrada no livro do correio pela sra. Bostock ou pela srta. Priddy, e em seguida levada por Nagle até a caixa do correio situada do outro lado da rua, a tempo de pegar a coleta das seis e meia. A srta. Bolam havia lhe parecido perfeitamente normal às seis da tarde. Assinara suas cartas, e a sra. Bostock voltara para a secretaria, entregara-as à srta. Priddy juntamente com a correspondência dos médicos, depois subira para tomar ditado do dr. Etherege durante a última hora da jornada de trabalho. Estava combinado que nas noites de sexta-feira ela passaria uma hora com o dr. Etherege ajudando-o em seu projeto de pesquisa. Ela e o diretor médico haviam permanecido juntos, com exceção de períodos muito breves. A irmã ligara às sete horas mais ou menos para informá-los da morte da srta. Bolam. Ao sair do consultório, ela e o dr. Etherege haviam encontrado a srta. Saxon, que ia para casa e que fora até o subsolo com o diretor médico. Quanto a ela, a pedido do dr. Etherege, fora ao encontro de Cully na portaria para garantir que as instruções que ele recebera, de que ninguém podia sair do prédio, seriam obedecidas. Ficara ao lado de Cully até o grupo do subsolo subir, e em seguida todos — exceto os dois porteiros, que continuaram de guarda na portaria — haviam se dirigido para a sala de espera para aguardar a chegada da polícia. “A senhora disse que permaneceu com o doutor Etherege das seis e pouco em diante, exceto por curtos períodos. O que vocês ficaram fazendo?” “Ambos estávamos trabalhando, óbvio.” A sra. Bostock dera um jeito de insinuar que a pergunta fora idiota e levemente vulgar. “O doutor Etherege está escrevendo um artigo sobre o tratamento de duas gêmeas esquizofrênicas por meio da psicanálise. Como eu falei, existe um acerto de que toda sexta-feira à noite eu passo uma hora com ele, ajudando-o em seu trabalho. É insuficiente para as necessidades dele, mas a srta. Bolam assumiu a posição de que a rigor o trabalho do dr. Etherege não diz respeito à clínica e que ele deveria realizá-lo em seu próprio consultório, auxiliado por sua secretária particular. Evidentemente, isso é impossível. Todo o material, parte dele registrado em fita, está aqui na clínica. Minha participação nesse trabalho varia. Durante uma parte do tempo, tomo ditado. Às vezes trabalho no pequeno escritório, datilografando diretamente da fita gravada. Às vezes localizo referências na biblioteca da clínica.” “E o que fez esta noite?”
“Tomei ditado durante cerca de meia hora. Depois fui para o escritório ao lado e trabalhei a partir da fita. O dr. Etherege ligou, pedindo que eu fosse ao consultório, mais ou menos às dez para as sete. Estávamos trabalhando juntos quando o telefone tocou.” “Ou seja: a senhora tomou ditado do doutor Etherege até as seis e trinta e cinco, mais ou menos.” “Suponho que sim.” “E durante esse período vocês permaneceram juntos?” “Acho que o doutor Etherege saiu por um ou dois minutos para verificar uma referência.” “Por que ‘acho’, senhora Bostock? Ou ele saiu ou não saiu!” “Evidentemente, inspetor. Como o senhor diz, ou ele saiu ou não saiu. Mas não há nenhuma razão para que eu me lembre especificamente desse detalhe. Esta noite não aconteceu nada de excepcional. Tenho a impressão de que ele saiu durante um breve período, mas na verdade não consigo me lembrar exatamente quando. Espero que ele possa ajudá-lo.” De repente Dalgliesh mudou o rumo do interrogatório. Depois de ficar em silêncio durante meio minuto, perguntou baixinho: “A senhora gostava da senhorita Bolam?” A pergunta não foi bem recebida. Sob a camada de maquiagem, Dalgliesh viu uma onda de fúria ou de constrangimento tingir o pescoço da mulher. “Não era fácil gostar dela. Tentei ser leal a ela.” “Com ‘leal’ a senhora quer dizer, sem dúvida, que tentou aplainar, em lugar de exacerbar, as dificuldades entre ela e a equipe médica, e que se absteve de fazer críticas explícitas ao trabalho dela como administradora?” O tom de sarcasmo na voz de Dalgliesh despertou, como pretendia, toda a hostilidade latente da estenógrafa. Por trás da máscara altiva e desdenhosa ele vislumbrou a menina insegura. Sabia que ela teria necessidade de justificar-se diante da menor das críticas. Não gostava dele, mas não tolerava que ele a ignorasse ou subestimasse. “De fato, a senhorita Bolam não era a administradora adequada para uma instituição psiquiátrica. Não tinha a menor empatia com o que estamos tentando fazer aqui.” “Que formas assumia essa ausência de empatia?” “Bem. Para começar, ela não gostava de neuróticos.” Nem eu, Deus que me perdoe, pensou Dalgliesh. Nem eu. Mas não disse nada, e a sra. Bostock prosseguiu: “Por exemplo, ela não gostava de pagar as despesas de viagem de alguns pacientes. Eles só têm direito a ser ressarcidos se estiverem cobertos pela Previdência Social, mas costumamos recorrer ao Fundo do Bom Samaritano para ajudar outros casos. Temos uma garota, uma pessoa muito inteligente, que mora em Surrey e vem à clínica duas vezes por semana para trabalhar no departamento de arte-terapia. A senhorita Bolam achava que ela devia obter tratamento mais perto de casa — ou abrir mão do tratamento. Na verdade deixou perfeitamente claro que, na opinião dela, a paciente deveria receber alta e ir atrás de um emprego, como ela disse.” “Imagino que não tenha dito esse tipo de coisa para a paciente.” “Não, não. Ela tomava cuidado com o que dizia. Mas dava para perceber que as pessoas mais sensíveis não ficavam à vontade com ela. Depois, ela era muito contrária à terapia intensiva. Trata-se de um procedimento que exige muito tempo. É da natureza do processo. A senhorita Bolam tinha uma tendência a avaliar a qualidade de um psiquiatra pelo número de pacientes que ele atendia diariamente. Mas o pior era sua atitude com os pacientes. Havia uma razão para isso,
evidentemente. A mãe dela sofria de uma doença mental e passou anos em análise antes de morrer. Pelo que eu sei, ela se matou. Deve ter sido um período difícil para a senhorita Bolam. É claro que ela não podia se permitir odiar a mãe, de modo que projetava seu ressentimento nos pacientes da clínica. Em seu subconsciente, estava com medo da própria neurose. Isso era bastante óbvio.” Dalgliesh não se sentia qualificado a tecer comentários sobre essas teorias. Estava disposto a acreditar que havia verdade nelas, mas não que a sra. Bostock as formulara sozinha. Talvez a srta. Bolam tivesse irritado os psiquiatras por sua ausência de empatia, mas na sra. Bostock, pelo menos, eles encontravam uma adepta. “Sabe me dizer quem era o médico da senhora Bolam?”, perguntou. A sra. Bostock descruzou as pernas elegantes e se acomodou mais confortavelmente na cadeira antes de dignar-se a responder. “Na verdade, sei. Mas não percebo qual é a relevância dessa informação para o inquérito.” “Quem sabe a senhora me deixa decidir isso? É uma informação que posso obter facilmente. Se não sabe ou não tem certeza, seria mais simples dizer-me.” “Era o doutor Etherege.” “E quem a senhora acha que será escolhido para substituir a senhorita Bolam?” “No cargo de gerente administrativa? Pois não faço a menor idéia”, respondeu a sra. Bostock com frieza.
Finalmente as principais tarefas da noite chegavam ao fim para Dalgliesh e Martin. O corpo fora removido e a sala dos arquivos lacrada. Todo o pessoal da clínica fora interrogado e a maioria já voltara para casa. O dr. Etherege fora o último médico a sair, depois de circular algum tempo pela clínica com ar tenso, mesmo tendo sido liberado por Dalgliesh. O sr. Lauder e Peter Nagle continuavam por lá, esperando juntos no vestíbulo onde dois policiais uniformizados montavam guarda. Com tranqüila determinação, o secretário do grupo afirmara que preferia permanecer no local enquanto a polícia não se retirasse, e Nagle só podia sair depois que a porta da frente fosse trancada e lhe entregassem a chave, já que era tarefa sua abrir a clínica, às oito da manhã de segunda-feira. Juntos, Dalgliesh e Martin percorreram todo o prédio uma última vez. Vendo-os trabalhar, um observador eventual poderia chegar à conclusão errônea de que Martin não passava de um instrumento nas mãos do homem mais jovem e mais bem-sucedido. Os colegas da Scotland Yard, porém, que conheciam os dois, tinham uma opinião bem diferente. Na aparência, não havia dúvida de que eram muito diferentes. Martin era um homem grande, de ombros largos e quase um metro e noventa, de expressão franca e rosto corado, que mais parecia um próspero fazendeiro do que um investigador. Dalgliesh era ainda mais alto, moreno, esguio e ágil. Ao lado dele, Martin parecia um titã. Todo aquele que visse Dalgliesh em ação perceberia na hora sua inteligência. Com Martin isso era menos óbvio. Com dez anos mais que seu chefe, àquela altura era pouco provável que avançasse na carreira. Contudo, suas qualidades faziam dele um investigador fantástico. Ele nunca era atormentado pela dúvida em relação a suas próprias motivações. O certo e o errado, para ele, eram tão imutáveis quanto os dois pólos. Nunca percorrera aquele país crepuscular onde as nuances do bem e do mal projetam suas sombras inquietantes. Tinha enorme determinação e uma paciência infinita. Era gentil sem ser sentimental e meticuloso quanto aos detalhes sem perder o todo de vista. Quem olhasse para sua carreira não
o consideraria um homem brilhante. Mas, assim como ele era incapaz de praticar altos vôos de inteligência, era igualmente incapaz de ser obtuso. Quase todo o trabalho policial consiste em verificação de detalhes, uma tarefa aborrecida, repetitiva e meticulosa. Em geral os assassinatos são crimes sórdidos decorrentes da ignorância e do desespero. O trabalho de Martin era ajudar a esclarecê-los e, paciente e tolerantemente, era isso mesmo que ele fazia. Diante do assassinato cometido na Clínica Steen, com seus inquietantes subtons que apontavam para uma inteligência altamente capacitada, ele não se deixava impressionar. A atenção metódica para o detalhe já esclarecera outros assassinatos antes e sem dúvida esclareceria esse também. E os criminosos, inteligentes ou retardados, tortuosos ou impulsivos, precisavam ser apanhados. Como de hábito ele andava um ou dois passos atrás de Dalgliesh e pouco falava. Mas quando falava suas palavras costumavam ser certeiras. Os dois percorreram o prédio pela última vez naquela noite, começando pelo terceiro andar. Lá os aposentos do século xviii haviam sido divididos para acomodar trabalhadores sociais psiquiátricos, psicólogos e terapeutas leigos. Também havia duas salas de tratamento maiores, para uso dos psiquiatras. Na parte fronteira do prédio, uma sala não fora adaptada. Era agradável e estava confortavelmente mobiliada com diversas poltronas e mesinhas. Ali, aparentemente, era o local onde se realizavam as terapias de grupo para problemas conjugais. Os participantes podiam desfrutar de uma vista agradável da praça entre uma e outra análise das incompatibilidades domésticas e sexuais. Dalgliesh entendia perfeitamente a mágoa da sra. Baumgarten, no momento ausente da clínica por problemas de saúde. O aposento era perfeito para o departamento de arte-terapia. As salas mais importantes ficavam no andar de baixo, onde o projeto original fora mantido praticamente intato, de modo que tetos, portas e janelas podiam constribuir com sua própria graciosidade para a atmosfera de calma e elegância. O Modigliani estava fora de lugar na sala da diretoria, mas não de maneira agressiva. A pequena biblioteca médica, na peça ao lado, com suas estantes antigas, cada uma com o nome de um doador, poderia ter sido a biblioteca de um cavalheiro do século xviii — isso enquanto não se olhassem os títulos dos livros. Havia tigelas com flores sobre as estantes e diversas poltronas que formavam um conjunto harmonioso, embora tivessem vindo de meia dúzia de casas diferentes. Era também naquele andar que o diretor médico tinha seu consultório, um dos mais elegantes da clínica. O divã do paciente, posicionado ao longo da parede do fundo, tinha a mesma estampa dos divãs existentes nas salas dos outros psiquiatras. Era um divã baixo forrado de chintz, munido de uma almofada e, aos pés, de uma manta vermelha dobrada. O resto da mobília não fora fornecido pelo Conselho Hospitalar. A escrivaninha do século xviii não estava atravancada com calendários de cartolina nem agendas de escritório e ostentava simplesmente um mata-borrão recoberto com couro, um tinteiro de prata e uma bandeja para papéis. Havia duas poltronas de couro e um armário de canto em mogno. Tinha-se a impressão de que o diretor médico colecionava gravuras antigas e estava especialmente interessado em meias-tintas e gravuras do século xviii. Dalgliesh examinou um conjunto de obras de James MacArdell e Valentine Green, dispostos dos dois lados da lareira, e percebeu que os pacientes do dr. Etherege aliviavam seus inconscientes debaixo de um par de excelentes litografias de Hullmandel. Refletiu que o ladrão desconhecido da clínica podia até ser um cavalheiro — caso se confiasse na opinião de Cully —, mas não entendia nada de arte. Parecia mais coisa de ladrãozinho vulgar, preferir quinze libras em dinheiro a dois Hullmandels autênticos. Sem dúvida aquela era uma sala agradável, que mostrava que seu do-no
era um homem de bom gosto e com meios para tal; a sala de um homem que não vê razão para que sua vida profissional transcorra em locais menos agradáveis do que sua vida particular. Com tudo isso, a sala não era perfeita. Faltava alguma coisa em algum lugar. A elegância era um pouco forçada, o bom gosto um pouco ortodoxo demais. Dalgliesh achava que talvez o paciente se sentisse mais feliz na saleta cálida, desarrumada, de formato esdrúxulo do andar de cima, onde Fredrica Saxon trabalhava em meio a uma montoeira de papéis, vasos de plantas e a parafernália necessária para a confecção e o consumo de chá. Mesmo com as gravuras, as nuances da personalidade não estavam presentes naquela sala. Nesse ponto, ela era até certo ponto típica de seu ocupante. Dalgliesh lembrou-se de uma conferência sobre as relações entre justiça e doença mental a que comparecera recentemente e na qual o dr. Etherege fora um dos palestrantes. Na ocasião, seu ensaio lhe parecera um modelo de sabedoria e equilíbrio; mais tarde Dalgliesh percebeu que não conseguia lembrar-se de uma única palavra pronunciada pelo especialista. Os dois desceram até o térreo, onde o secretário do grupo e Nagle, que conversavam tranqüilamente com os policiais, viraram-se para observar seus movimentos mas não fizeram menção de se aproximar. As quatro figuras à espera estavam em pé, juntas, formando um triste grupinho que dava a impressão de ser constituído por enlutados depois de um sepultamento, indecisos e desorganizados no vazio que vem depois da dor. Quando eles falavam, suas vozes soavam em surdina no silêncio do vestíbulo. A planta do térreo era muito simples. Imediatamente depois da porta de entrada e à esquerda de quem chegasse estava o balcão envidraçado da recepção. Dalgliesh reparou novamente que dali era possível ver muito bem todo o vestíbulo, inclusive a grande escadaria curva ao fundo. Mesmo assim, as observações de Cully no decorrer da noite haviam sido curiosamente seletivas. Ele afirmara que todas as pessoas que haviam entrado ou saído da clínica depois das cinco horas tinham sido vistas por ele e registradas em seu livro, mas muitas das idas e vindas no vestíbulo haviam passado despercebidas. Ele vira a sra. Shorthouse sair da sala da srta. Bolam e entrar na secretaria, mas não vira a gerente administrativa cruzar o vestíbulo para descer as escadas que levavam ao subsolo. Vira o dr. Baguley saindo do vestiário dos médicos, mas não o vira entrar lá. De um modo geral, a movimentação dos pacientes e seus familiares não lhe escapara, e ele tinha condições de corroborar as idas e vindas da sra. Bostock. Tinha certeza de que o dr. Etherege, a srta. Saxon e a srta. Kettle não haviam passado pelo vestíbulo depois das seis horas. Se passaram, não percebera. Dalgliesh estaria mais seguro a respeito do depoimento de Cully se não fosse tão óbvio que o patético homenzinho estava aterrorizado. Quando a polícia chegara à clínica ele estava apenas deprimido e um pouco irritado. Quando recebeu autorização para ir para casa, estava em pânico. Em algum momento da investigação, pensou Dalgliesh, seria preciso descobrir por quê. Atrás do cubículo da recepção, com janelas voltadas para a praça, ficava a secretaria, parte da qual fora subdividida para formar uma pequena sala de arquivo para os registros médicos em uso. Ao lado da secretaria ficava a sala da srta. Bolam, e em seguida o conjunto de salas do eletrochoque, composto pela sala de tratamento, pela saleta das enfermeiras e pelas baias de recuperação, uma feminina e outra masculina. Esse conjunto era separado do vestiário dos médicos por um pequeno hall com portas para os banheiros dos funcionários e a copa da auxiliar de serviços gerais. Ao fundo desse hall ficava a porta lateral, sempre fechada e raramente usada, exceto por quem ficasse trabalhando até tarde e quisesse poupar Nagle do trabalho de abrir as fechaduras, cadeados e ferrolhos da porta da frente, bem mais complicados. Do outro lado do vestíbulo principal havia dois consultórios, a sala de espera dos pacientes e os
banheiros. A sala da frente fora dividida para formar duas salas bastante amplas para psicoterapia, separadas da sala de espera por um corredor. Isso permitia ao dr. Steiner passar de uma para outra sem entrar no campo de visão de Cully, embora fosse difícil ele atravessar o vestíbulo para chegar às escadas que levavam ao subsolo sem correr o risco de ser visto. Será que ele fora visto? Será que Cully estava escondendo alguma coisa — e por quê? Juntos, Dalgliesh e Martin examinaram as salas do subsolo uma última vez naquela noite. Nos fundos ficava a porta que dava para os degraus do pátio. O dr. Etherege dissera que aquela porta estava trancada quando ele e o dr. Steiner a examinaram, depois da descoberta do corpo. E continuava trancada. Fora testada em busca de impressões digitais, mas as únicas decifráveis encontradas haviam sido as de Peter Nagle. Nagle dissera que provavelmente fora ele a última pessoa a tocar na maçaneta, pois costumava certificar-se de que a porta estava bem trancada antes de fechar a clínica, à noite. Era raro que ele ou qualquer outro membro da equipe usasse a saída do subsolo, e a porta só costumava ser aberta quando chegava um suprimento de carvão ou de alguma outra mercadoria pesada. Dalgliesh correu o ferrolho. Fora, alguns degraus de ferro levavam aos gradis do fundo. Também ali a porta de ferro batido estava trancada e reforçada com cadeado e corrente. Mas um intruso não teria dificuldade para entrar no pátio do subsolo, especialmente porque o beco do fundo era mal iluminado e deserto. Já na clínica propriamente dita seria muito difícil entrar. Todas as janelas do subsolo, com exceção da janelinha do banheiro, eram gradeadas. Fora por aquela janelinha que o ladrão da clínica conseguira entrar. Dalgliesh trancou novamente a porta e entrou com Martin na sala dos porteiros, que ocupava quase toda a parte dos fundos do prédio. Nada se alterara desde a primeira vez em que os dois a haviam examinado. Contra uma das paredes havia dois armários para roupas. O centro do piso era ocupado por uma pesada mesa quadrada. Num canto havia um antiquado fogão a gás e, do lado, um armário guardava xícaras, pires e latas com chá, açúcar e biscoitos. Duas cadeiras de couro já bastante gastas estavam encostadas na parede dos dois lados de um aquecedor a gás. À esquerda da porta ficava o quadro das chaves, com os ganchos numerados mas sem identificação. Nesse quadro é que antes se encontrava, no meio das outras chaves, a que abria a porta da sala dos arquivos do subsolo. Agora aquela chave estava com a polícia. Um grande gato rajado dormia enroscado numa cesta, diante do aquecedor apagado. Quando a luz foi acesa ele se mexeu e, erguendo a pesada cabeça listrada, voltou os imensos olhos amarelos para os recém-chegados e lhes dirigiu um olhar opaco e sem expressão. Dalgliesh se ajoelhou ao lado da cesta e acariciou-lhe a cabeça. O gato estremeceu e se sentou, imóvel, enquanto Dalgliesh o afagava. De repente deitou-se de costas e esticou as patas, rígidas como ripas de madeira, oferecendo os pêlos macios da barriga aos cuidados de Dalgliesh. O inspetor acariciava o gato e falava com ele enquanto Martin, que preferia cachorros, contemplava a cena com tolerante paciência. Martin falou: “A senhora Shorthouse tinha me falado desse gato. É Tigger, o gato da senhorita Bolam.” “Podemos deduzir que a senhorita Bolam leu A. A. Milne quando criança. Os gatos são noturnos. Por que não o deixam sair à noite?” “Também me explicaram isso. A senhorita Bolam achava que se ele ficasse trancado aqui no subsolo evitaria a presença de camundongos. Nagle costuma sair na hora do almoço para tomar uma cerveja e comer um sanduíche, mas Cully traz um lanche e o come aqui mesmo, e a senhorita Bolam não lhe dava sossego por causa dos farelos. Todas as noites o gato é trancado aqui; durante o dia, pode sair. Deixam comida para ele, e também a caixa de areia.” “Estou vendo. Forrada com cinzas da caldeira.”
“Pena que ele não possa falar, não é mesmo? Passou a maior parte da noite aqui, esperando por sua comida. Provavelmente estava aqui quando o assassino entrou para pegar a chave da sala dos arquivos.” “E o formão também. Ah, Tigger viu tudo com certeza. Mas por que você acha que ele lhe contaria a verdade?” Martin não respondeu. As pessoas que gostavam de gatos costumavam ser assim, evidentemente. Infantis, de certo modo. Tagarela como raramente costumava ser, Martin disse: “A senhorita Bolam mandou castrá-lo às próprias expensas. A senhora Shorthouse contou ao detetive Holliday que o doutor Steiner tinha ficado furioso. Aparentemente ele gosta de gatos. Os dois discutiram por causa disso. O doutor Steiner disse à senhora Bostock que a senhorita Bolam gostaria de mandar castrar todos os machos da clínica, se tivesse esse poder. Parece que ele disse isso em termos bem rudes. Claro, não era para a senhorita Bolam ficar sabendo que ele tinha dito isso, mas a senhora Bostock se encarregou de informá-la.” “Claro”, disse Dalgliesh, lacônico. “Bem ao estilo dela.” Os dois policiais foram adiante com a inspeção. Até que a sala dos porteiros não era desconfortável. Cheirava a comida, a couro e, levemente, a gás. Havia alguns quadros que davam a impressão de terem encontrado um lar junto aos porteiros depois que seus proprietários anteriores enjoaram deles. Um mostrava o fundador da Clínica Steen devidamente rodeado pelos cinco filhos. Era uma fotografia em sépia bastante desbotada numa moldura dourada que se adequava melhor à personalidade do velho Hyman do que o óleo comemorativo mais ortodoxo pendurado no vestíbulo da clínica. Sobre uma mesa menor encostada na parede do fundo estava a caixa de ferramentas de Nagle. Dalgliesh ergueu a tampa. As ferramentas, meticulosamente cuidadas, estavam dispostas cada uma em seu lugar. Só faltava uma, que provavelmente nunca mais voltaria a ocupar seu lugar na caixa de ferramentas de Nagle. “Ele poderia ter entrado por aquela porta dos fundos se a tivesse deixado destrancada”, disse Martin, dando voz aos pensamentos de Dalgliesh. “Claro. Reconheço alimentar uma tendência perversa a suspeitar da única pessoa que aparentemente nem estava no prédio no momento em que o crime foi cometido. Não há como duvidar, porém, que Nagle estava com a senhorita Priddy na secretaria quando a senhora Shorthouse saiu da sala da senhorita Bolam. Cully confirma isso. E a senhorita Priddy afirma que não se afastou da secretaria em nenhum momento, exceto por uma ausência de um instante para apanhar uma ficha na sala ao lado. A propósito, o que achou da senhora Shorthouse?” “Achei que ela estava dizendo a verdade. Eu não diria que ela não aplica umas mentiras de vez em quando, se for de seu interesse. É do tipo que gosta que as coisas aconteçam e que não se furta a dar um empurrãozinho na direção desejável. Mas tinha muito para nos dizer, nem foi preciso enfeitar.” “Tinha mesmo”, concordou Dalgliesh. “Não há razão para duvidar que a senhorita Bolam desceu ao subsolo em decorrência do telefonema, o que determina muito satisfatoriamente a hora aproximada da morte. Além disso, coincide com a opinião do legista, mas teremos mais informações a respeito quando recebermos o resultado da autópsia. Também é possível que o telefonema tenha sido genuíno, claro. Talvez alguém tenha telefonado do subsolo e conversado com ela em algum lugar aqui embaixo, afastando-se em seguida para voltar para sua própria sala, e agora esteja com medo de admitir que deu o telefonema. Como eu digo, é possível, mas não acredito que seja provável.”
“Se o telefonema foi genuíno, talvez fosse alguém querendo que ela descesse para dar uma olhada na zorra da sala dos arquivos. Não há dúvida de que aquelas pastas foram espalhadas antes do assassinato. Algumas estavam por baixo do corpo. Tive a impressão de que ela foi atingida no momento em que se inclinava para recolhê-las do chão.” “Foi o que me pareceu”, disse Dalgliesh. “Bem, vamos tocar o barco.” Passaram pela porta do elevador de serviço sem comentários e entraram na sala de tratamento do subsolo, na parte fronteira do prédio. Fora ali que a enfermeira Bolam passara as primeiras horas da tarde sentada ao lado de sua paciente. Dalgliesh acendeu as luzes. As pesadas cortinas haviam sido abertas, mas as janelas eram recobertas por uma tela fina, provavelmente para garantir a privacidade durante o dia. A sala estava mobiliada com simplicidade. Havia uma cama baixa num dos cantos, com um biombo de hospital junto aos pés e uma pequena poltrona à cabeceira. Encostadas na parede em frente havia uma mesinha e uma cadeira, aparentemente para uso da enfermeira de plantão. Sobre a mesa, uma pilha de formulários para os relatórios da enfermagem e fichas médicas em branco. A parede da esquerda era recoberta por armários onde a roupa lavada da clínica ficava guardada. Quanto à parede da direita, percebia-se que houvera uma tentativa de torná-la à prova de som. Ela fora forrada com painéis acústicos e a porta, reforçada e bem construída, estava protegida por uma pesada cortina. Dalgliesh disse: “Se a paciente era ruidosa, duvido que a enfermeira Bolam tivesse conseguido ouvir alguma coisa que acontecesse fora da sala. Por favor, Martin, ande pelo corredor e faça uma ligação naquele telefone que está logo ao lado da sala de registros médicos.” Martin fechou a porta atrás de si e Dalgliesh ficou sozinho com o silêncio denso. Sua audição era acurada e mal dava para ouvir os passos pesados de Martin. Duvidava que teria conseguido ouvir alguma coisa se estivesse ao lado de um paciente agitado. Não conseguiu ouvir o som discreto da campainha quando Martin ergueu o fone do gancho nem o ruído de discar. Poucos segundos depois, ouviu novamente os passos. Martin entrou na sala e disse: “Havia um cartão com todos os números dos ramais e disquei 004. É o número da sala da senhorita Bolam. Gozado: a campainha do telefone faz um barulho assustador quando não há ninguém para atender. Mas alguém atendeu. Levei o maior susto quando a campainha deixou de tocar. Era o senhor Lauder, evidentemente. Pareceu-me um pouco surpreso, também. Eu disse a ele que não íamos demorar.” “E não vamos mesmo. Não consegui ouvir você, para seu governo. No entanto, a enfermeira Bolam ouviu o grito da jovem Priddy. Pelo menos é o que ela diz.” “Mas foi bastante lenta quanto a tomar providências, não é mesmo? E tem mais: aparentemente ela ouviu quando os doutores e a irmã desceram para o subsolo.” “Até que é plausível. Eram quatro pessoas fazendo barulho. Ela é a suspeita óbvia, evidentemente. Podia ter telefonado de sua sala para a prima, talvez dizendo que alguém fizera a maior bagunça na sala dos arquivos. Sua paciente estaria muito desorientada para ouvir ou compreender alguma coisa. Vi-a com o doutor Baguley, e era óbvio que não estava em condições de fornecer um álibi a quem quer que fosse. A enfermeira Bolam podia ter saído da sala de tratamento para esperar pela prima na sala dos arquivos com uma dose razoável de segurança. Foi ela quem teve a melhor oportunidade para matar, dispõe dos conhecimentos médicos necessários, tem um motivo óbvio. Se for a assassina, provavelmente o crime não teve nada a ver com o telefonema a Lauder. Vamos ter de descobrir o que Bolam achava que estava acontecendo aqui, mas talvez o assunto não tivesse a menor ligação com sua morte. Se a enfermeira Bolam
sabia que o secretário do grupo estava a caminho da clínica, pode ter resolvido matar naquele momento pensando em disfarçar o real motivo do crime.” “Não acho que ela é suficientemente inteligente para esse tipo de planejamento, senhor.” “Tenho a impressão de que ela não é uma assassina, Martin, mas já tivemos surpresas antes. Se ela for inocente, o fato de ter estado aqui embaixo sozinha foi muito conveniente para o assassino. E tem aquela história das luvas de borracha. Claro, havia uma explicação para elas. Há muitos pares de luvas por aí, e é perfeitamente razoável que um membro da equipe de enfermagem ande com um par de luvas usadas no bolso do avental. Mas resta o fato de não termos encontrado impressões digitais em nenhuma das armas do crime nem na chave da porta — nem mesmo impressões antigas. Alguém as limpou, depois manuseou-as calçando luvas. E há algo mais adequado do que as finas luvas cirúrgicas? Cravar aquele formão foi praticamente uma operação cirúrgica.” “Se ela teve o bom senso de usar luvas, também teria tido o bom senso de destruí-las depois. A caldeira estava acesa. E o que dizer do avental de borracha que desapareceu do departamento de arte-terapia? Se o assassino tiver se servido dele para proteger-se e se depois o jogou na caldeira, seria absurdo que tivesse guardado as luvas.” “Tão absurdo que provavelmente deveríamos pensar que uma pessoa não faria isso se estivesse em seu juízo perfeito. Seja como for, estou na dúvida quanto ao avental. Aparentemente há um faltando, e é possível que tenha sido usado pelo assassino. Mas essa foi uma morte limpa, planejada para ser. Seja como for, amanhã, quando a caldeira estiver fria e puder ser examinada, teremos condições de chegar a uma conclusão. Aqueles aventais têm tachas de metal nas tiras dos ombros, e com alguma sorte poderemos encontrá-las.” Fecharam a porta da sala de tratamento e subiram. Dalgliesh começou a tomar consciência do próprio cansaço; a dor excruciante atrás do olho era praticamente contínua. A semana não fora fácil e a festa do xerez, que prometia um fecho relaxante e agradável para um dia trabalhoso, acabara sendo uma preliminar perturbadora para uma noite ainda mais trabalhosa. Por um instante tentou imaginar onde Deborah Riscoe teria jantado, e com quem. Agora o encontro dos dois parecia fazer parte de um outro mundo. Talvez por estar cansado, não sentia a autoconfiança com que costumava assumir um caso. Não acreditava para valer que aquele caso fosse derrotá-lo. Profissionalmente, jamais conhecera o gosto do fracasso. Isso tornava ainda mais irritante o fato de ser tomado por aquela vaga sensação de incompetência e ansiedade. Pela primeira vez na vida sentia-se inseguro quanto à própria mestria, como se estivesse se medindo com uma inteligência que agisse diretamente contra ele, uma inteligência equivalente à sua. E não acreditava que a enfermeira Bolam tivesse essa inteligência. O secretário de grupo e Nagle continuavam à espera deles no vestíbulo. Dalgliesh entregou as chaves da clínica e obteve a promessa de que no dia seguinte a polícia receberia o conjunto reserva de chaves que no momento se encontrava nos escritórios do Conselho. Martin e ele, juntamente com os dois policiais, esperaram enquanto Nagle verificava se todas as luzes haviam sido apagadas. Pouco depois a clínica foi envolvida pela escuridão e os seis homens mergulharam na névoa gelada da noite de outubro e seguiram cada um seu caminho.
4
O dr. Baguley sabia que não tinha como deixar de oferecer uma carona para casa à srta. Kettle. Ela morava em Richmond, justamente no caminho que levava ao povoado de Baguley em Surrey. Em geral ele dava um jeito de evitá-la; sua presença na clínica era tão errática que era raro os dois saírem ao mesmo tempo: quase sempre ele conseguia dirigir para casa sozinho, sem culpa. Gostava de dirigir. Mesmo as frustrações de atravessar a cidade na hora do pico pareciam-lhe um pequeno preço a pagar diante daqueles poucos quilômetros de estrada reta que o levavam até sua casa: ali podia sentir a potência do carro como uma força empurrando suas costas, e as tensões do dia se desprendiam dele no ar vibrante. Pouco antes de chegar a Stalling ele costumava fazer uma parada num bar sossegado para tomar uma cerveja. Uma única: nunca bebia mais, nem menos. Esse ritual noturno, a divisão formal entre dia e noite, tornara-se necessário para ele desde que perdera Fredrica. A noite não lhe proporcionava alívio da tensão de enfrentar a neurose. Estava se acostumando a uma vida em que sua paciência e seus conhecimentos profissionais eram postos à prova com mais intensidade ainda em sua própria casa. Mas era gostoso sentar-se sozinho e em paz, saboreando o breve intervalo entre dois mundos diferentes mas essencialmente parecidos. Começou dirigindo devagar, pois sabia que a srta. Kettle não gostava de velocidade. Ela estava sentada ao lado dele, bem agasalhada num grosso casaco de lã, a cabeça grisalha de cabelos curtos incongruentemente coberta por um gorro vermelho de tricô. Como muitos assistentes sociais, ela não entendia direito as pessoas, característica que lhe valera a reputação imerecida de ser insensível. Claro, a coisa mudava de figura em se tratando de seus clientes — e como Baguley detestava essa palavra! Depois que eles estavam enjaulados em segurança atrás das grades de uma relação profissional, ela lhes dedicava uma intensa e minuciosa atenção, que invadia quase completamente suas vidas íntimas. Eles eram compreendidos, quisessem ou não quisessem; suas fraquezas eram expostas e toleradas, seus esforços aplaudidos e encorajados, os pecados redimidos. Fora seus clientes, o resto da Clínica Steen praticamente inexistia para a srta. Kettle. Baguley até que gostava dela. Fazia um bom tempo que chegara à melancólica conclusão de que a assistência social psiquiátrica exercia forte atração sobre as pessoas menos indicadas para exercêla, e a srta. Kettle era melhor do que a maioria. Os relatórios que ela lhe entregava eram desnecessariamente extensos e escritos no jargão típico da área, mas pelo menos ela os elaborava. A Clínica Steen tinha sua cota de assistentes sociais psiquiátricos que, impulsionados pela incontida necessidade de tratar os pacientes, não sossegavam enquanto não recebiam o título de psicoterapeutas leigos e deixavam para trás empreendimentos menores, como a elaboração de relatórios sociais e a organização de excursões curativas. Não, ele não desgostava de Ruth Kettle, mas naquela noite, entre todas as outras, ficaria mais feliz se tivesse podido voltar para casa sozinho. Ela só abriu a boca depois de passarem por Knightsbridge, quando sua voz aguda e ciciante penetrou em seus ouvidos. “Que assassinato mais complicado, não é mesmo? E num horário tão esquisito... O que o senhor achou do inspetor Dalgliesh?” “Eficiente, imagino...”, respondeu o dr. Baguley. “Minha atitude com ele é um pouco ambivalente, talvez porque não tenho um álibi. Estava sozinho no vestiário dos médicos no momento em que se supõe
que a senhorita Bolam foi atacada.” Ele sabia que queria ser tranqüilizado, que esperava que ela afirmasse com empenho que era óbvio que ninguém ia suspeitar dele. Desprezando-se, acrescentou rapidamente: “Complica as coisas, claro, mas não é importante. Espero que ele resolva o assunto em pouco tempo.” “Ah, o senhor acha que vai ser rápido? Sei lá... Achei que ele estava meio perdido. Fiquei quase a tarde inteira sozinha em minha sala, de modo que imagino que também não tenho álibi. Só que não sei a que horas estão dizendo que ela morreu.” “Provavelmente pelas seis e vinte”, disse Baguley, sem mais conversa. “Ah, é? Então efetivamente não tenho álibi.” A srta. Kettle falava com satisfação evidente. Um momento depois, disse: “Agora tenho certeza de que vou conseguir a verba para o passeio ao campo dos Worriker. A senhorita Bolam não gostava de soltar dinheiro para os pacientes. O doutor Steiner e eu achamos que se os Worriker puderem passar alguns dias tranqüilos juntos em alguma simpática pousada do interior, talvez consigam resolver seus problemas. Talvez isso salve o casamento deles.” O dr. Baguley ficou tentado a dizer que o casamento dos Worriker estava em crise havia tantos anos que sua salvação ou o que fosse dificilmente aconteceria num prazo de alguns dias, por mais agradável que fosse a pousada. O casamento instável era a principal preocupação emocional dos Worriker, por isso era improvável que aceitassem abrir mão dele sem luta. Indagou: “O senhor Worriker está desempregado?” “Não. Está empregado”, respondeu a srta. Kettle, como se esse fato não tivesse a menor relevância para a possibilidade de os Worriker pagarem pelas próprias férias. “Mas infelizmente a mulher dele é caótica como administradora, por mais que se esforce. Assim, sem o financiamento da clínica eles não têm meios para viajar. Sinto dizer que a senhorita Bolam não era muito favorável à idéia. E tinha outra coisa. Ela gostava de marcar consultas para mim sem me avisar. Hoje mesmo aconteceu isso. Quando fui olhar na minha agenda, pouco antes de sair da clínica, vi que tenho uma consulta marcada com um novo paciente às dez da manhã de segunda-feira. A senhora Bostock é que anotou, claro, mas escreveu ao lado ‘de acordo com as instruções da senhorita Bolam’. A senhora Bostock nunca faria uma coisa dessas por conta própria. É uma secretária muito agradável e eficiente.” O dr. Baguley achava a sra. Bostock uma encrenqueira ambiciosa, mas não viu motivo para manifestar sua opinião. Em vez disso, perguntou à srta. Kettle como tinha transcorrido sua entrevista com Dalgliesh. “Não fui de grande ajuda, infelizmente, mas ele estava interessado em saber sobre o elevador.” “O que é que tem o elevador?” “É que hoje alguém usou o elevador. Sabe como ele range quando é usado, depois pára no segundo andar com um baque? Pois bem, ouvi aquele baque. Não sei exatamente a hora, porque na ocasião aquilo não me pareceu importante. Já tinha escurecido. Acho que foi lá pelas seis e meia.” “Imagino que Dalgliesh não esteja considerando seriamente a hipótese de que alguém tenha usado o elevador para descer até o subsolo. Ele é suficientemente grande, eu sei, mas essa ação envolveria duas pessoas.” “É mesmo. Ninguém conseguiria içar-se a si mesmo. Seria preciso um cúmplice.” Pronunciou a palavra com ar conspiratório, como se ela fizesse parte de algum dialeto criminal: uma expressão típica de infratores, que estava tendo a coragem de usar. E prosseguiu: “Não consigo imaginar o
doutor Etherege encolhido dentro do elevador como um pequeno Buda rechonchudo com a senhora Bostock pendurada nas cordas com suas vigorosas mãos vermelhas... E o senhor?” “Também não consigo”, disse o dr. Baguley laconicamente. A descrição o surpreendera por sua vivacidade. Para afastar aquela cena, ele disse: “Seria interessante saber quem foi a última pessoa a entrar nos arquivos médicos. Antes do assassinato, quero dizer. Não me lembro de quando estive lá pela última vez.” “É mesmo? Que estranho! Aquela salinha poeirenta é tão claustrofóbica que sempre me lembro das ocasiões em que sou obrigada a visitá-la. Estive lá esta noite às quinze para as seis.” O dr. Baguley ficou tão surpreso que quase parou o carro. “Às quinze para as seis? Hoje? Ou seja, apenas trinta e cinco minutos antes da hora do crime?” “É, deve ter sido, não é mesmo, se o assassinato foi às seis e vinte mais ou menos... O inspetor não me informou sobre isso. Mas ficou interessado quando soube que eu havia estado no subsolo. Fui apanhar uma pasta antiga dos Worriker. Acho que desci às quinze para as seis e logo em seguida subi. Eu sabia exatamente onde a pasta estava guardada.” “E a sala estava como de costume? As pastas não estavam espalhadas pelo chão?” “Não, encontrei tudo na mais perfeita ordem. A sala estava trancada, evidentemente, por isso apanhei a chave na sala dos porteiros. Ao sair, tranquei-a novamente e pus a chave no lugar.” “E não viu ninguém?” “Não, acho que não. Mas ouvi sua paciente de ácido lisérgico. Achei que estava fazendo muito barulho. Até parecia que estava sozinha.” “Mas não estava. Ela nunca é deixada sozinha. Na verdade eu mesmo fiquei ao lado dela até as vinte para as seis, mais ou menos. Se tivesse descido alguns minutos antes, teríamos nos encontrado.” “Só se por acaso nos cruzássemos na escada ou se o senhor tivesse entrado na sala dos arquivos. Mas tenho a impressão de que não vi ninguém. O inspetor ficou insistindo nesse ponto. Me pergunto se ele é uma pessoa competente. Parecia muito intrigado com o assunto todo. É o que eu achei.” Nada mais foi dito sobre o assassinato, embora o dr. Baguley tivesse a sensação de que a atmosfera do automóvel estava carregada de perguntas não formuladas. Vinte minutos depois, estacionava na calçada fronteira ao apartamento da srta. Kettle, em Richmond Green, e, com um sentimento de alívio, debruçava-se para abrir a porta do carro para ela descer. Assim que ela desapareceu da vista, saiu do carro e, desafiando a umidade gélida, abriu a capota. Os quilômetros seguintes desfiaram-se numa sucessão dourada de olhos de gato que piscavam assinalando os contornos da estrada numa lufada de frio ar outonal. Ao chegar a Stalling, saiu da estrada principal e se dirigiu ao local onde o barzinho escuro e pouco convidativo se escondia entre os olmos. Os rapazes abonados de Stalling Coombe nunca o haviam descoberto, ou então suas preferências haviam recaído sobre os bares da moda, ao longo do cinturão verde; seus Jaguares nunca eram vistos estacionados junto às paredes negras de tijolo. O salão estava às moscas, como sempre, mas havia um murmúrio de vozes do outro lado da divisória de madeira que o separava do recinto do bar. Instalou-se perto da lareira, acesa inverno e verão e visivelmente alimentada com pedaços malcheirosos de mobília velha do proprietário. Não era uma sala acolhedora. Quando havia vento leste, a fumaça da lareira entrava; o piso de pedra não tinha tapetes e os bancos de madeira dispostos junto às paredes eram muito duros e estreitos para oferecer algum conforto. Mas a cerveja era boa e fresca, os copos limpos, e o lugar tinha uma espécie de paz nascida da solidão e do despojamento.
George trouxe sua cerveja. “O senhor está atrasado hoje, doutor.” George chamava-o assim desde sua segunda visita. O dr. Baguley não sabia nem se preocupava em saber como George descobrira sua profissão. “É mesmo”, disse. “Fiquei retido na clínica.” Nada mais disse, e o homem voltou para trás do balcão. Depois ficou se perguntando se não teria sido melhor fazer algum comentário. No dia seguinte, o caso estaria em todos os jornais. Provavelmente seria comentado no bar. Seria natural que George dissesse: “O doutor esteve aqui na sexta-feira, como sempre, só que não disse uma única palavra sobre o assassinato. Parecia aborrecido...” Seria suspeito não dizer nada? Não seria mais natural que um homem inocente tivesse vontade de falar sobre um caso de assassinato em que estivesse envolvido? De repente a saleta tornou-se intoleravelmente sufocante, a paz se dissolveu numa onda de ansiedade e dor. Seria preciso achar uma maneira de contar a Helen, e quanto antes ela soubesse, melhor. Mas, embora ele dirigisse depressa, já eram mais de dez horas quando chegou em casa e viu através da alta cerca viva de faias que havia luz no quarto de Helen. Isso significava que ela fora se deitar sem esperar por ele; sempre um mau sinal. Depois de guardar o carro na garage, tratou de preparar-se para enfrentar o que viesse. Stalling Coombe estava imerso no silêncio. Era um pequeno condomínio com casas projetadas por arquitetos, construídas à maneira tradicional, cada uma com seu espaçoso jardim. Tinham pouco contato com o vizinho povoado de Stalling: aquele era um verdadeiro oásis de prosperidade suburbana cujos habitantes, unidos por vínculos de preconceitos e esnobismos partilhados, viviam como exilados, preservando com determinação os hábitos decentes da civilização em meio a uma cultura alienígena. Baguley comprara aquela casa quinze anos antes, pouco depois de casar-se. Na época sentira aversão pelo lugar, e os anos que se seguiram haviam demonstrado a insensatez de desconsiderar as primeiras impressões. Mas Helen gostava; e na época Helen estava grávida, de modo que havia uma razão adicional para tentar fazê-la feliz. Para Helen, a casa — uma espaçosa imitação do estilo Tudor — fora uma promessa. Tinha um carvalho gigantesco no gramado da frente (“o lugar ideal para o carrinho do bebê, nos dias quentes”), um vasto hall de entrada (“no futuro as crianças vão gostar de dar festas nesse salão”), a tranqüilidade do condomínio (“tão sossegado para você, meu bem, depois de Londres e de todos aqueles pacientes horrorosos”). Mas a gravidez acabara em interrupção espontânea e fora preciso abandonar a esperança de um dia ter filhos. A existência de filhos teria feito alguma diferença? A casa teria deixado de se transformar num oneroso repositório de esperanças perdidas? Sentado em silêncio no carro e contemplando o retângulo atemorizante da janela iluminada, o dr. Baguley refletiu que todos os casamentos infelizes eram basicamente iguais. Ele e Helen não eram diferentes dos Worriker. Continuavam juntos porque achavam que seriam menos infelizes casados do que separados. Se o desgaste e as misérias do casamento ficassem maiores do que o custo, a inconveniência e o trauma de uma separação legal, eles se separariam. Nenhuma pessoa em seu juízo perfeito teima em manter o intolerável. Para ele só houvera um motivo válido e preponderante para divorciar-se: sua esperança de casar-se com Fredrica Saxon. Agora que essa esperança deixara de existir, não via problema em continuar suportando um casamento que, com todas as tensões que acarretava, pelo menos lhe dava a ilusão reconfortante de ser necessitado. Sentia desprezo por sua imagem privada, exemplo típico do psiquiatra incapaz de gerenciar os próprios relacionamentos pessoais. Mas pelo menos uma coisa restava do casamento: uma onda fugidia de ternura e compaixão que
quase sempre lhe permitia ser amável. Trancou as portas da garage e atravessou o amplo gramado para chegar à porta da frente. O jardim estava malcuidado. Era caro mantê-lo, e Helen pouco se interessava pelo assunto. Seria muito melhor, em todos os sentidos, vender aquela casa e comprar uma menor. Mas Helen não queria nem ouvir falar no assunto. Era tão feliz em Stalling Coombe quanto poderia esperar ser em outro lugar qualquer. A vida social limitada e pouco exigente do lugar lhe dava pe-lo menos um arremedo de segurança. Aquela existência de coquetel-e-canapé, as conversas superficiais das mulheres magras, elegantes e aquisitivas que moravam ali, os mexericos em torno das baixezas cometidas pelas criadas imigrantes e as garotas au-pair, as reclamações quanto às mensalidades escolares, as notas recebidas pelos filhos e a ingratidão da juventude eram preocupações com as quais tinha condições de solidarizar-se ou que podia partilhar. Fazia muito tempo que Baguley sofria com o conhecimento de que era em sua relação com ele que ela se sentia menos à vontade. Refletiu sobre a melhor maneira de contar a Helen que a srta. Bolam fora assassinada. Helen só estivera com ela uma vez, naquela quarta-feira, na clínica, e ele jamais ficara sabendo o que as duas haviam conversado. Mas aquele encontro breve e catalítico estabelecera algum tipo de intimidade entre as duas. Ou, quem sabe, se tratava de uma aliança ofensiva dirigida contra ele? Não da parte de Enid Bolam, certamente... sua atitude com ele nunca se modificara. Até seria possível acreditar que ela gostava mais dele que dos outros psiquiatras. Sempre a achara cooperante, prestativa e correta. Fora sem madade, sem espírito de vingança, sem nenhuma hostilidade especial em relação a ele que ela pedira a Helen que a procurasse em seu escritório naquela tarde de quarta-feira e, em menos de meia hora de conversa, destruíra a maior felicidade que ele já conhecera na vida. Nesse momento Helen apareceu no alto da escada. “É você, James?”, exclamou. Fazia quinze anos que era recebido todas as noites com aquela pergunta desnecessária. “Sim, sou eu. Desculpe o atraso. Desculpe também por não ter podido conversar melhor com você pelo telefone. Mas aconteceu uma coisa terrível na Steen e Etherege achou melhor falar tão pouco quanto possível sobre o assunto. Enid Bolam foi assassinada.” Mas a mente de Helen se fixara no nome do diretor médico. “Henry Etherege! Típico dele. Mora na Harley Street, numa casa cheia de empregados, e ganha o dobro do que nós ganhamos. Ele devia ter pensado um pouco em mim, quando resolveu segurar você na clínica até esta hora. A mulher dele não vive enfiada no campo sozinha até a hora em que ele resolve voltar para casa.” “Não foi por culpa do Henry que eu fiquei retido. Já lhe falei. Enid Bolam foi assassinada. A polícia passou a maior parte da noite na clínica.” Daquela vez ela escutou. O marido percebeu sua respiração entrecortada, viu seus olhos se apertarem enquanto ela descia a escada em sua direção, apertando o penhoar em torno do corpo. “A senhorita Bolam? Assassinada?” “É, assassinada.” Ela ficou imóvel, como quem pensa no assunto, depois perguntou calmamente: “Como?”. Ouviu em silêncio enquanto ele lhe contava. Em seguida, ficaram olhando um para o outro. Ele não conseguia decidir se devia abraçá-la ou fazer algum outro gesto de consolo ou solidariedade. Mas solidariedade por quê? O que, afinal, Helen havia perdido? Quando ela falou, sua voz estava fria como metal. “Nenhum de vocês gostava dela, não é mesmo? Nenhum de vocês!” “Isso é ridículo, Helen! A maioria de nós mal tinha contato com ela; isso só acontecia de vez em quando, em sua qualidade de gerente administrativa.”
“Está parecendo que foi alguém de dentro da clínica, não?” Ele piscou ao ouvi-la utilizar o rude jargão policial, mas respondeu sem rodeios: “Aparentemente, sim. Não sei o que a polícia está pensando.” Ela soltou uma risada amarga. “Ah, posso imaginar muito bem o que a polícia está pensando.” Helen ficou em silêncio uns instantes, depois fez uma pergunta brusca: “Aonde você estava?”. “Já lhe disse. No vestiário dos médicos.” “E Fredrica Saxon?” Era inútil, agora, esperar por aquele impulso de compaixão ou ternura. Era inútil, inclusive, tentar controlar-se. Mortalmente calmo, Baguley respondeu: “Estava na sala dela analisando um Rorscharch. Se isso lhe dá alguma satisfação, saiba que nenhum de nós tem álibi. Mas se está pensando em pôr a culpa desse assassinato em Fredrica ou em mim, vai precisar de mais inteligência do que acredito que tem. Acho pouco provável que o inspetor esteja disposto a ouvir o que uma mulher neurótica e despeitada tem a dizer. Já viu muitas desse tipo. Mas faça um esforço! Quem sabe você dá sorte? Por que não examina minhas roupas para ver se encontra manchas de sangue?” Estendeu as mãos para ela, o corpo inteiro trepidando de fúria. Aterrorizada, ela lançou um último olhar na direção dele, depois se virou e subiu novamente a escada aos tropeções, pisando na barra do penhoar e chorando feito criança. Ele olhou-a afastar-se, o corpo gelado de cansaço, fome e desprezo por si mesmo. Precisava falar com ela. Dar um jeito de endireitar as coisas. Mas não naquele momento. Não imediatamente. Primeiro precisava de um drinque. Apoiou-se por um instante no corrimão e disse com infinito cansaço: “Ah, Fredrica. Querida Fredrica. Por que você foi fazer isso? Por quê? Por quê?”
A irmã Ambrose vivia com uma amiga, uma enfermeira já idosa que estudara com ela trinta e cinco anos antes e que recentemente se aposentara. As duas haviam comprado em sociedade uma casa em Gidea Park, onde viviam juntas havia vinte anos dos proventos das duas, confortavelmente e em feliz harmonia. Nenhuma delas se casara e nenhuma lamentava esse fato. No passado acontecera de desejarem filhos, mas observando a vida familiar de parentes e conhecidos haviam concluído que o casamento, embora em geral se acreditasse o contrário, tinha o propósito de beneficiar os homens às expensas das mulheres, e que mesmo a maternidade não era uma bênção inquestionável. É verdade que essa convicção nunca fora posta à prova, visto que nenhuma das duas recebera uma proposta de casamento. Como todos os profissionais de clínicas psiquiátricas, a irmã Ambrose tinha consciência dos perigos da repressão sexual, mas nunca lhe ocorrera que eles pudessem aplicar-se a ela própria e, na verdade, seria difícil imaginar alguém menos reprimido do que ela. É possível que ela tivesse rejeitado a maioria das teorias psiquiátricas como perigosos absurdos se alguma vez as tivesse considerado criticamente. Mas a irmã Ambrose fora treinada a considerar os psiquiatras como estando apenas um estágio abaixo de Deus. Como Deus, eles escolhiam estranhas maneiras para realizar seus prodígios, mas, como Deus, não se sujeitavam à crítica frontal. Alguns, inclusive, eram mais misteriosos em suas atitudes do que outros, mas isso não diminuía o fato de que era um privilégio para as enfermeiras atender a essas divindades menores e estimular os pacientes a confiar no tratamento que eles prescreviam, especialmente quando seu sucesso parecia mais duvidoso, além de praticar a virtude profissional máxima da lealdade absoluta.
“Sempre fui leal aos médicos” era uma afirmação que se ouvia freqüentemente em Acacia Road, Gidea Park. A irmã Ambrose muitas vezes observara que as jovens enfermeiras que de vez em quando estagiavam na Clínica Steen tinham formação diferente, menos tradicional, mas sua opinião sobre as jovens enfermeiras costumava ser desfavorável. Aliás, sua opinião sobre o treinamento profissional moderno era ainda mais desfavorável. Como sempre, tomou o Central Line até a Liverpool Street, depois trocou para um trem elétrico da linha suburbana leste e vinte minutos depois chegava à casa bem cuidada onde vivia com a srta. Beatrice Sharpe. Naquela noite, contudo, enfiou a chave na fechadura sem a costumeira inspeção do jardim, sem percorrer com olhar crítico a pintura da porta e mesmo sem refletir, como de hábito, sobre a aparência preponderantemente satisfatória da propriedade e o acerto do investimento financeiro que sua aquisição mostrara ser. “É você, Dot?”, gritou, da cozinha, a srta. Sharpe. “Você está atrasada!” “É um milagre eu não estar ainda mais atrasada. Houve um assassinato na clínica e a polícia passou a maior parte da noite lá. Até onde eu sei, ainda está lá. Tiraram minhas impressões digitais e também as do resto do pessoal.” Deliberadamente, a irmã Ambrose não erguera a voz, mas o efeito das notícias foi altamente satisfatório. Ela não esperava outra coisa. Não é todos os dias que a pessoa tem esse tipo de notícia a relatar, e no trem ela passara algum tempo ensaiando qual era a maneira mais eficaz de contar as novidades. As frases escolhidas expressavam concisamente os principais detalhes. O jantar foi temporariamente esquecido. Murmurando que um empadão sempre pode esperar, a srta. Sharpe serviu para a amiga e para si mesma um copo de xerez, tratamento específico para estados de choque, e foi se instalar na sala com o copo na mão para ouvir a história toda. A irmã Ambrose, que na clínica tinha reputação de ser uma pessoa discreta e taciturna, era muito mais comunicativa em casa, e em pouco tempo a srta. Sharpe estava tão informada sobre o assassinato quanto a amiga era capaz de lhe contar. “Mas quem você acha que fez isso, Dot?” A srta. Sharpe voltou a encher os copos — extravagância sem precedentes — e dedicou sua mente à análise dos fatos. “Na minha opinião, o assassinato deve ter sido cometido entre as seis e vinte, quando você viu a senhorita Bolam avançar para a escada do subsolo, e sete horas, quando o corpo foi descoberto.” “Ora, isso é óbvio! Foi por isso que o inspetor ficou me perguntando se eu tinha certeza da hora. Fui a última pessoa a vê-la com vida, quanto a isso não há dúvida. A senhora Belling tinha acabado seu tratamento e estava pronta para ir para casa às seis e quinze. Aí fui até a sala de espera para avisar o marido dela. Ele está sempre preocupado com o horário porque trabalha à noite e precisa jantar para chegar no emprego às oito horas. De modo que olhei para meu relógio e vi que eram exatamente seis e vinte. Eu estava saindo da sala de eletrochoque quando a senhorita Bolam passou por mim e andou na direção da escada do subsolo. O inspetor me perguntou com que cara ela estava e se falamos uma com a outra. Bom, não falamos e, pelo que pude ver, ela estava com a cara de sempre.” “Como ele é?”, perguntou a srta. Sharpe, com a cabeça locupletada de imagens de Maigret e do inspetor Barlow. “O inspetor? Muito educado, devo dizer. Um desses rostos magros, ossudos. Muito moreno. Não falei grande coisa. Dava para perceber que ele está acostumado a arrancar coisas das pessoas. A senhora Shorthouse passou horas com ele, e aposto que falou uma porção de coisas. Bom, eu não ia fazer o jogo dele. Sempre fui leal à clínica.”
“Mesmo assim, Dot, estamos falando de assassinato.” “Está bem, Bea, mas você sabe como é a clínica. Muita fofoca, mesmo sem essa história... Nenhum dos médicos gostava dela. Aliás, até onde eu sei, ninguém gostava. Mas isso não é razão para matá-la. Seja como for, fiquei de boca fechada, e se os outros tiverem um pouco de bom senso farão a mesma coisa.” “Está certo, você tem razão. E se você e a doutora Ingram ficaram o tempo todo juntas na sala de eletrochoque, você tem um álibi.” “Ah, sim, não temos problema. A senhora Shorthouse, Cully, Nagle e a senhorita Priddy também estão cobertos. Nagle tinha saído para o correio às seis e quinze e os outros estavam todos juntos. Porém não tenho certeza quanto aos médicos, e é uma pena que o doutor Baguley tenha saído da sala de eletrochoque depois do tratamento da senhora Belling. Imagine, ninguém em sã consciência poderia suspeitar dele, mas assim mesmo é lamentável. Enquanto esperávamos pela polícia, a doutora Ingram apareceu com a idéia de que era melhor a gente não mencionar o assunto. Imagine, a gente ia arrumar a maior encrenca para o doutor Baguley com esse tipo de trapaça. Fiz de conta que não estava entendendo. Olhei para ela com um daqueles meus olhares e disse: ‘Tenho certeza de que se todos nós dissermos a verdade, doutora, os inocentes não terão nada a temer’. Com isso ela calou a boca. E foi isso que eu fiz. Falei a verdade. Mas só o que me perguntaram. Se a polícia está atrás de fofoca, que converse com a senhora Shorthouse.” “E a enfermeira Bolam?”, perguntou a srta. Sharpe. “É com ela que estou preocupada. Ela estava ao lado da sala onde o crime foi cometido e não se pode dizer que uma pessoa em tratamento com lsd tenha condições de oferecer um álibi. O inspetor foi para cima dela ligeirinho. Ele bem que tentou me fazer falar. Ela e a prima eram amigas? Sem dúvida as duas trabalhavam na Steen para ficar perto uma da outra? Agora conte outra, pensei, mas não abri a boca. Ele não tirou muita coisa de mim, mas dava para perceber para que lado iam os pensamentos dele. E dá para entender, na verdade. Todos nós sabemos que a senhorita Bolam tinha dinheiro; se ela não tiver feito um testamento deixando tudo para um asilo de gatos, quem herda é a prima. Não tem mais ninguém.” “Não consigo imaginar a senhorita Bolam deixando tudo para um asilo de gatos”, disse a srta. Sharpe, que tinha uma cabeça literal. “Eu estava só falando por falar. Na verdade ela nunca ligou muito para o Tigger, embora supostamente o gato fosse dela. Sempre achei aquilo típico da Enid. Ela encontrou o Tigger na praça, praticamente morto de fome, e levou-o para a clínica. Daquele dia em diante, toda semana comprava três latas de ração para o gato. Mas jamais fez um carinho nele, jamais foi levar comida, jamais deixou-o entrar nas salas de cima. Por outro lado, aquela tonta da Priddy passa o dia na sala dos porteiros com o Nagle inventando histórias com o Tigger, mas nunca vi nenhum dos dois levar comida para ele. Acho que a senhorita Bolam só comprava a comida porque achava que era seu dever. Na verdade não tinha o menor interesse por animais. Mas talvez ela deixe o dinheiro dela para aquela igreja de que gostava tanto, ou para as bandeirantes, sei lá.” “E por que não deixaria o dinheiro para seus familiares?”, perguntou a srta. Sharpe. Não que ela tivesse uma opinião muito boa de seus parentes; aliás, tinha muito a criticar no comportamento dos sobrinhos e sobrinhas. Mesmo assim, seu pequeno capital, amealhado muito devagar, fora meticulosamente dividido entre eles. Estava além de sua compreensão que alguém quisesse deixar seu dinheiro para alguém que não pertencesse à família. Bebericaram o xerez em silêncio. As duas barras do aquecedor elétrico estavam incandescentes e o carvão artificial cintilava e soltava faíscas sempre que a luzinha atrás dele girava. A irmã
Ambrose percorreu a sala com o olhar e achou-a muito agradável. O abajur projetava uma luz suave sobre o tapete, o sofá e as acolhedoras poltronas. O aparelho de televisão estava a um canto, com as antenas gêmeas disfarçadas em flores de caule comprido. O telefone repousava embaixo da saia armada de uma boneca de plástico. Na parede oposta, acima do piano, via-se um cesto de bambu contendo uma planta de interior que, com sua cascata verdejante, quase ocultava a fotografia de casamento da sobrinha mais velha da senhorita Sharpe, que ocupava um lugar de honra sobre o piano. A irmã Ambrose sentia-se amparada pelo conforto imutável daqueles objetos familiares. Eles, pelo menos, continuavam iguais. Agora que a excitação de contar as novidades chegara ao fim, sentia-se muito cansada. Plantando as pernas fortes no chão, com os pés bem afastados, agachou-se para desamarrar os cordões dos sapatos pretos de trabalho, soltando um pequeno grunhido com o esforço. Em geral ela tirava o uniforme assim que chegava em casa. Naquela noite, porém, tivera coisas mais importantes a fazer. De repente, disse: “Não é fácil saber qual é a melhor maneira de agir. O inspetor disse que qualquer coisa, por mais insignificante que fosse, podia ser importante. Está muito bem. Mas suponha que a coisa é importante na direção errada. Suponha que ela dê idéias erradas à polícia!” A srta. Sharpe não era imaginativa nem sensível, mas não vivera vinte anos ao lado da amiga para deixar de reconhecer um pedido de socorro. “É melhor me dizer o que está preocupando você, Dot.” “Bem, foi na quarta-feira. Você já entrou no vestiário feminino da Steen? Tem a grande sala externa com a pia e os armários e depois tem dois banheiros. A clínica estava com as consultas um pouco atrasadas. Acho que já passava bastante das sete quando entrei no vestiário para me preparar. Bem, estava no banheiro quando a senhorita Bolam entrou na sala externa. Estava acompanhada da enfermeira Bolam. Eu achava que as duas já tinham ido para casa, mas suponho que a senhorita Bolam tenha querido apanhar alguma coisa em seu armário e que a enfermeira simplesmente entrou no vestiário com ela. Deviam estar vindo do escritório da senhorita Bolam, porque estavam no meio de uma conversa e não haviam interrompido a discussão. Não tive outro jeito senão ouvir o que elas estavam dizendo. Sabe como é. Eu podia ter tossido ou puxado a descarga para que elas vissem que eu estava ali, mas tive a idéia tarde demais.” “Qual era o assunto da discussão?”, perguntou a amiga. “Dinheiro?” Na experiência da srta. Sharpe, dinheiro era a causa mais freqüente das discussões familiares. “Foi o que me pareceu. Elas não estavam falando alto e também não fiz força para escutar. Acho que estavam discutindo por causa da mãe da enfermeira Bolam — ela é doente, sabe, quase não sai da cama —, porque Enid disse que sentia muito, mas que estava fazendo tudo o que podia, e que seria melhor Marion se conformar com a situação e inscrever a mãe na lista de espera de um hospital para interná-la assim que aparecesse uma vaga.” “Parece muito sensato. Não dá para manter esses pacientes indefinidamente em casa. Só abrindo mão do trabalho externo e passando o tempo todo em casa.” “Imagino que Marion Bolam não tivesse condições de fazer isso. Seja como for, ela começou a discutir e a dizer que se fizesse isso a mãe ia acabar numa enfermaria geriátrica com um monte de velhas senis e que Enid tinha o dever de ajudá-las porque se sua mãe estivesse viva teria gostado que ela fizesse isso. Depois falou alguma coisa sobre o fato de que quando Enid morresse ela é que haveria de herdar o dinheiro, e que seria muito melhor que recebesse parte do dinheiro logo, já que faria tanta diferença para ela e a mãe.” “E qual foi a resposta da senhorita Bolam?” “É isso que me preocupa”, disse a irmã Ambrose. “Não me lembro das palavras exatas, mas era
alguma coisa no sentido de que Marion não devia ficar contando com o dinheiro porque ela ia mudar seu testamento. Disse que pretendia informar a prima desse fato assim que tivesse chegado a uma conclusão definitiva sobre o assunto. Falou que o dinheiro era uma enorme responsabilidade e que já tinha rezado muito para que Deus a inspirasse a fazer a coisa certa.” Beatrice Sharpe fungou. Achava impossível acreditar que o Todo-poderoso pudesse aconselhar alguém a legar dinheiro a uma pessoa que não pertencesse à família, ou a uma instituição. Das duas uma: ou a srta. Bolam não sabia formular seus pedidos de orientação ou intencionalmente distorcera as instruções divinas. A srta. Sharpe nem sequer estava segura de aprovar aquelas orações. Há algumas coisas que a pessoa tem de ser capaz de resolver sozinha. Mas compreendia a aflição da amiga. “Se ficassem sabendo, seria um problema”, admitiu. “Sem dúvida.” “Acho que conheço a Marion muito bem, Bea; aquela menina não faria mal a uma mosca. A idéia de que ela pudesse assassinar alguém é ridícula. Você conhece minha opinião sobre as jovens enfermeiras de um modo geral. Pois bem, eu não me incomodaria se a Marion assumisse meu lugar quando eu me aposentar, no ano que vem. Por aí você pode julgar o que eu acho dela. Teria absoluta confiança nela.” “Talvez você tivesse, mas a polícia não teria. Por que haveria de ter? É provável que ela já seja a primeira pessoa na lista de suspeitos. Estava no local do crime; não tem álibi; tem conhecimento médico e saberia qual é o ponto mais vulnerável do crânio; também saberia onde cravar aquele formão. Estava informada de que Tippett não estaria na clínica. E agora isso!” “E não vá pensar que é uma quantia pequena.” A irmã Ambrose inclinou o corpo para a frente e baixou o tom de voz. “Acho que ouvi a senhorita Bolam mencionar trinta mil libras. Trinta mil, Bea! É o mesmo que ganhar nas apostas!” Mesmo a contragosto, a srta. Sharpe ficou impressionada. Declarou, simplesmente, que as pessoas que continuavam trabalhando embora possuíssem trinta mil libras deviam ser internadas. “O que você faria, Bea? Acha que eu devia falar alguma coisa?” A irmã Ambrose, resoluta e independente, acostumada a tomar conta dos próprios assuntos, percebeu que a decisão independia dela e jogou metade do fardo sobre os ombros da amiga. As duas sabiam que aquele era um momento único. Nunca duas pessoas amigas haviam exigido tão pouco uma da outra. A srta. Sharpe ficou sentada em silêncio durante alguns segundos, depois disse: “Não. Não fale. Pelo menos por enquanto. Afinal de contas, ela é sua colega e você confia nela. Não foi sua culpa se você ouviu a conversa — ou melhor, apenas entreouviu. Foi puro acaso, você estar no banheiro quando elas entraram. Eu, no seu lugar, tentaria esquecer. Seja como for, a polícia vai descobrir para quem Enid deixou seu dinheiro e se o testamento foi alterado. De qualquer maneira, Marion é suspeita. E caso haja um julgamento — repare que estou só dizendo ‘se’ —, bom, você não vai querer se envolver caso não seja necessário. Lembre-se daquelas enfermeiras do caso Eastbourne: as horas que elas passaram no banco das testemunhas. Você não ia gostar desse tipo de publicidade.” De fato, não ia gostar, pensou a irmã Ambrose. Sua imaginação visualizava perfeitamente a cena. O advogado de acusação, dr. Fulano ou dr. Sicrano, alto, nariz adunco, fitando-a com seu olhar aterrorizante, os polegares enganchados nas pregas da toga. “E agora, irmã Ambrose, talvez a senhora queira contar ao meritíssimo e ao júri o que estava fazendo quando entreouviu esse diálogo entre a acusada e sua prima.” Risadinhas no tribunal. O juiz, apavorante, vestido de vermelho e com uma peruca branca na
cabeça, inclina-se do alto de seu assento. “Se esses risos continuarem, mandarei evacuar a sala.” Silêncio. Dr. Fulano ou dr. Sicrano retoma a palavra. “E então, irmã Ambrose...?” Não, ela certamente não ia querer esse tipo de publicidade. “Acho que você tem razão, Bea”, disse. “Afinal de contas, não é que o inspetor tenha me perguntado se alguma vez ouvi as duas discutirem...” Não, ele não lhe perguntara. Com um pouco de sorte, nunca perguntaria. A srta. Sharpe achou que estava na hora de mudar de assunto. “Qual foi a reação do doutor Steiner?”, perguntou. “Você sempre disse que ele estava agindo para conseguir que Enid fosse transferida para outra unidade.” “Essa é outra coisa extraordinária! Ele ficou tremendamente abalado. Como eu lhe disse, estava conosco quando fomos ver o corpo. Sabe que ele mal conseguia se controlar? Foi obrigado a ficar de costas para nós e dava para ver como seus ombros sacudiam. Acho que estava chorando. Nunca o vi tão abalado antes. As pessoas não são extraordinárias, Bea?” Aquele era um brado veemente de ressentimento e protesto. As pessoas eram extraordinárias! Você acha que conhece alguém. Trabalha com a pessoa, às vezes por anos a fio. Fica mais tempo com ela do que com sua família ou seus amigos queridos. Está familiarizada com cada detalhe de seu rosto. E o tempo todo essa pessoa permanece desconhecida. Tão desconhecida quanto o dr. Steiner, que chorara ao ver o cadáver de uma mulher de quem nunca gostara. Tão desconhecida quanto o dr. Baguley, que tivera um caso com Fredrica Saxon durante vários anos sem ninguém saber, até a srta. Bolam descobrir e contar para a mulher dele. Tão desconhecida quanto a srta. Bolam, que levara incontáveis segredos para o túmulo. A srta. Bolam, a comum, trivial e desinteressante Enid Bolam, que provocara tanto ódio em alguém que acabara com um formão cravado no peito. Tão desconhecida quanto aquele que ninguém sabia quem era, aquele que estaria na clínica segunda-feira de manhã com a roupa de sempre, com o mesmo aspecto de sempre, falando e sorrindo como sempre — e que era um assassino. “Maldito canalha sorridente!”, exclamou irmã Ambrose de repente. Achava que a frase era uma citação desta ou daquela peça. Shakespeare provavelmente. Quase todas as citações eram de Shakespeare. Mas sua malevolência contida combinava com seu estado de espírito. “Você precisa se alimentar”, disse a srta. Sharpe, otimista. “Alguma coisa leve e nutritiva. Que tal deixar o empadão para amanhã e comer apenas uns ovos mexidos na frente da televisão?”
Ela estava à espera dele junto à entrada do St. James Park, exatamente como ele esperava que estivesse. Quando atravessou o Mall e viu a figura esguia, de cabeça baixa e ar desconsolado junto ao monumento aos mortos na guerra, Nagle quase sentiu pena dela. A noite estava muito fria para alguém ficar parado na rua. Mas as primeiras palavras dela acabaram com todo impulso de piedade que ele pudesse estar sentindo. “Devíamos ter nos encontrado em algum outro lugar. Aqui está bom para você, claro. Está no caminho de sua casa.” Ela parecia rabugenta como uma esposa mal-amada. “Então vamos para o seu apartamento”, provocou ele em voz baixa. “Podemos tomar um ônibus até lá.” “Não. O apartamento não. Hoje não dá.”
Ele sorriu na escuridão e os dois avançaram lado a lado para a sombra negra das árvores. Andavam um pouquinho separados, e ela não fez menção de aproximar-se. Ele olhou de esguela para o perfil sereno, erguido, em que já não havia vestígios de choro. Ela dava a impressão de estar mortalmente cansada. De repente, ela falou: “Aquele inspetor é muito atraente, não é mesmo? Acha que ele suspeita de nós?” Então era isso. A busca de segurança, a necessidade infantil de ser protegida. E, com tudo isso, no início ela parecera quase despreocupada. Ele disse, brusco: “Pelo amor de Deus, por que ia suspeitar de nós? Eu nem estava na clínica quando ela morreu. Você sabe tão bem quanto eu.” “Mas eu não estava. Eu estava lá.” “Ninguém vai suspeitar de você por muito tempo. Os médicos vão se encarregar de resolver a questão. Já passamos por isso antes. Nada pode dar errado se você se controlar e ouvir o que eu lhe digo. Vou lhe dizer o que quero que você faça.” Ela ouviu, cordata como uma criança, mas ao olhar para aquele rosto cansado, sem expressão, ele teve a sensação de estar na companhia de uma estranha. Ficou pensando se algum dia se veriam livres um do outro novamente. E de repente concluiu que a vítima não era ela. Quando chegaram ao lago, ela parou e contemplou a água. Do escuro vinham o grasnado dos patos e os sons que eles faziam ao movimentar-se. Ele sentia o cheiro da brisa noturna, salgada como um vento marinho, e estremeceu. Virando-se para observar o rosto dela, devastado pelo cansaço, viu, na imaginação, uma outra imagem: uma testa larga por baixo de uma touca de enfermeira, uma mecha de cabelo claro, imensos olhos cinzentos impossíveis de decifrar. Hesitante, considerou uma nova idéia. Talvez não desse em nada, claro. Era muito fácil que não desse em nada. Mas em breve o quadro ficaria pronto e ele poderia ver-se livre de Jenny. Dentro de um mês estaria em Paris, mas Paris ficava a apenas uma hora de vôo e ele voltaria muitas vezes. E sem Jenny para atrapalhar e uma vida nova ao alcance da mão, valia a pena tentar. Havia destinos piores do que casar com a herdeira de trinta mil libras.
A enfermeira Bolam entrou na casa estreita e com sacadas da Rettinger Street, número 17, e foi recebida pelo cheiro tão seu conhecido do térreo, composto de óleo de fritura, lustra-móveis e urina azeda. O carrinho dos gêmeos estava atrás da porta, com o cobertor manchado por cima. O cheiro de comida era menos forte que de hábito. Chegava muito atrasada, naquela noite, e os moradores do térreo já deviam ter acabado de comer havia muito tempo. O choro de um dos bebês ecoou fracamente nos fundos da casa, quase recoberto pelo som da televisão. Ouviu o hino nacional. A bbc concluía as transmissões daquele dia. Subiu até o primeiro andar. Lá o cheiro de comida era bem fraco, disfarçado pelo odor penetrante de um desinfentante doméstico. O morador do primeiro andar era tão viciado em limpeza quanto o do térreo em bebida. Como sempre, havia um bilhete no rebordo da janela do patamar da escada. Naquela noite, dizia: “Não largue suas imundas garrafas de leite aqui. Este parapeito é particular. Estou falando com você”. Atrás da porta marrom envernizada, mesmo àquela hora tardia, ouvia-se o rugido de um aspirador em plena atividade. E agora para o terceiro andar, onde morava com a mãe. Parou por um instante no degrau de baixo do último lance da escada e viu, como se fosse através dos olhos de um estranho, o esforço patético que fizera para melhorar o aspecto do lugar. As paredes haviam sido pintadas de branco. As escadas eram forradas com um carpete cinzento. A porta, pintada num tom vibrante de
amarelo cítrico, exibia uma aldrava de bronze em forma de cabeça de sapo. Na escada, cuidadosamente posicionadas uma acima da outra, estavam as três estampas de flores que comprara na feira da Berwick Street. Até aquela noite sentira prazer ao ver o resultado de seu trabalho. Achava que a entrada do apartamento tinha mudado de figura. Em certas ocasiões, chegara a pensar que não haveria problema em convidar alguém para tomar um café, por exemplo a sra. Bostock, da clínica, ou mesmo a irmã Ambrose. Achara que poderia fazer isso sem necessidade de pedir desculpas ou explicar a situação. Naquela noite, porém, libertada, gloriosamente libertada para sempre da auto-ilusão da pobreza, via perfeitamente que o apartamento era sórdido, escuro, abafado, malcheiroso e patético. Naquela noite, pela primeira vez, sentia-se suficientemente segura para admitir a que ponto odiava cada tijolo da Rettinger Street número 17. Avançou bem devagar, ainda sem disposição para entrar. Tinha tão pouco tempo para pensar, para planejar... Sabia exatamente o que veria quando abrisse a porta do quarto da mãe. A cama embaixo da janela. Nas noites de verão a mãe podia ver, da cama, o sol se pôr atrás de uma sucessão de telhados e chaminés tortas, ao fundo as torres da estação de St. Pancras delineadas contra um céu ardente. Naquela noite, porém, as cortinas estariam fechadas. A enfermeira do serviço de atendimento municipal teria se encarregado de pôr sua mãe na cama, deixando o telefone e o rádio na mesinha-de-cabeceira, junto com a sineta que, se necessário, poderia atrair a atenção do morador do apartamento de baixo. A lâmpada de cabeceira da mãe estaria acesa, formando um pequeno círculo de luz na penumbra circundante. Na outra ponta do aposento, uma das barras do aquecedor elétrico estaria acesa, apenas uma das barras, a dose de conforto cuidadosamente calculada para aquecer uma noite de outubro. Assim que abrisse a porta os olhos da mãe viriam ao encontro dos dela, iluminados de prazer e expectativa. Seria recebida pelas mesmas palavras intoleravelmente animadas, as mesmas perguntas sobre as atividades do dia. “Passou um bom dia na clínica, meu bem? Por que está atrasada? Aconteceu alguma coisa?” Como responder? “Nada de importante, mamãe, só que alguém trespassou o coração da prima Enid com um formão e finalmente vamos ficar ricas.” E o que isso significava? Deus do céu, o que isso não significava? Não ia mais sentir cheiro de verniz e fraldas. Não seria mais obrigada a atender às ordens da bruxa do segundo andar toda vez que ela precisasse de alguém para abrir a porta. Já não precisaria controlar o medidor de eletricidade, debatendo consigo mesma se o frio era suficiente para regular a estufa um ponto acima. Fim dos agradecimentos à prima Enid pelo generoso cheque que ela mandava duas vezes por ano — o de dezembro, que fazia tanta diferença na época do Natal, e o do fim de julho, que pagava o carro alugado e o hotel dispendioso que fornecia refeições para os inválidos que tivessem condições de pagar pelo fato de serem um estorvo. Já não seria preciso contar os dias, acompanhar o calendário, preocupar-se em saber se Enid não ia esquecer de mandar o cheque. Nunca mais precisaria receber o cheque com a expressão agradecida que ocultava, por trás dos olhos baixos, o ódio e o ressentimento que a faziam ter vontade de rasgar o cheque em pedaços e jogá-lo naquele rosto sem graça, presunçoso, condescendente. E já não precisaria subir aquelas escadas. Ela e a mãe podiam ter a casa no subúrbio, de que a mãe tanto falava. Um dos subúrbios mais favorecidos, claro, perto que chegue de Londres para que as viagens diárias à clínica não fossem um problema — não seria aconselhável abrir mão do emprego enquanto não fosse realmente necessário —, mas suficientemente longe para terem um jardinzinho, quem sabe, ou até uma paisagem campestre. Teriam condições, inclusive, de possuir um carrinho. Podia aprender a dirigir. E depois, quando a mãe não pudesse mais ser deixada sozinha, as duas ficariam juntas.
Agora não precisava mais se torturar, pensando no futuro. Já não havia razão para imaginar a mãe numa enfermaria de doentes crônicos, atendida por estranhos exauridos de tanto trabalhar, cercada de pacientes senis e incontinentes, à espera da chegada inevitável do fim. E, além disso, o dinheiro podia comprar prazeres menos vitais, porém importantes. Poderia comprar algumas roupas. Já não seria preciso esperar pelas liquidações semestrais quando quisesse comprar uma roupa de alguma qualidade. Seria possível vestir-se bem, bem mesmo, com metade da quantia que Enid gastava em saias e paletós horrorosos. Os armários do apartamento de Enid em Kesington deviam estar cheios deles. Alguém teria de se ocupar de distribuí-los. Mas quem haveria de querer aquilo? Quem ia querer alguma coisa que tivesse pertencido a prima Enid? Exceto o dinheiro. Exceto o dinheiro. Exceto o dinheiro. E se ela já tivesse escrito ao advogado para alterar o testamento? Mas isso não era possível! A enfermeira Bolam controlou o pânico e se obrigou uma vez mais a avaliar a possibilidade racionalmente. Já refletira tantas vezes sobre o assunto... Enid podia ter escrito ao advogado na quarta-feira à noite. Tudo bem, suponhamos que tivesse escrito. Teria sido tarde para alcançar a coleta de correspondência do fim da tarde, de modo que a carta só teria sido recebida naquela manhã. Todo mundo sabe como os advogados são lentos para fazer as coisas. Mesmo que Enid tivesse mandado uma carta expressa, mesmo que tivesse conseguido alcançar a coleta de quarta-feira, era impossível que o novo testamento já estivesse pronto para ser assinado. E mesmo que estivesse, que repousasse em seu envelope de papel grosso, de aspecto oficial, à espera de ser posto no correio, qual era o problema? Prima Enid já não podia assiná-lo, com aquela sua letra redonda, empertigada, infantil, que sempre parecera tão característica de sua pessoa. Prima Enid nunca mais voltaria a assinar o que quer que fosse. Voltou a pensar no dinheiro. Não na parte que lhe competia: dificilmente ela lhe proporcionaria alguma felicidade àquela altura. Mas mesmo que a prendessem por assassinato, não poderiam impedir a mãe de herdar sua parte. Ninguém poderia impedir isso. Mas ela precisava dar um jeito de arrumar algum dinheiro com urgência. Todo mundo sabe que demora meses para validar um testamento. Seria muito suspeito ou impiedoso se fosse falar com o advogado de Enid para explicar como elas eram pobres e perguntar se seria possível fazer algum arranjo? Ou quem sabe fosse melhor pedir um empréstimo ao banco? Talvez o advogado a chamasse. Sim, claro que ele faria isso. Ela e a mãe eram os parentes mais próximos. E assim que o testamento fosse lido ela poderia, com tato, levantar o assunto do adiantamento. Será que essa atitude seria uma coisa natural? Não seria nenhum exagero um adiantamento de cem libras para uma pessoa que ia herdar trinta mil libras. De repente, não agüentou mais. A longa tensão se rompeu. Ela não tinha registro de ter vencido a parte final da escada, de enfiar sua chave na fechadura. Assim que entrou no apartamento, dirigiu-se ao quarto da mãe. Uivando de medo e infelicidade, chorando como não chorava desde a infância, jogou-se sobre a mãe e sentiu em torno de si o conforto e o vigor inesperado daqueles braços trêmulos, frágeis. Os braços a embalaram como se ela fosse um bebê. A voz querida murmurou palavras de consolo. Por baixo da camisola barata, sentiu o cheiro tão conhecido do corpo da mãe. “Calma, meu bem. Filhinha. Calma. O que foi? O que aconteceu? Me conte, meu bem.” E a enfermeira Bolam contou.
Desde seu divórcio, dois anos antes, o dr. Steiner dividia uma casa em Hampstead com a irmã viúva. Tinha suas próprias sala de estar e cozinha, e graças a esse arranjo Rosa e ele pouco se
viam, podendo alimentar a ilusão de que se davam muito bem. Rosa era uma esnobe cultural. Sua casa era o ponto de encontro de uma corte de atores sem peça, poetas de um livro só, estetas pomposos vivendo à margem do mundo do balé e escritores mais inclinados a falar de seu ofício numa atmosfera de amigável compreensão do que a praticá-lo. O dr. Steiner não se incomodava com eles — simplesmente ficava atento para que comessem e bebessem às expensas de Rosa, não dele. Percebia que a irmã via sua profissão com um certo fascínio e que apresentar “meu irmão Paul, o famoso psicanalista” era, até certo ponto, uma compensação pelo pequeno aluguel que ele espasmodicamente lhe pagava e pelas miúdas irritações da proximidade. Mesmo que fosse executivo de um banco, dificilmente teria encontrado moradia mais econômica e confortável. Naquela noite, Rosa não estava em casa. Era exasperante, uma grande falta de consideração da parte dela estar ausente na única noite em que ele precisava de sua companhia. Típico de Rosa. A criada alemã também saíra, quem sabe ilicitamente, pois sexta-feira era dia de expediente integral. Encontrou sopa e salada à sua espera na cozinha, mas mesmo o esforço de aquecer a sopa parecia-lhe excessivo. Os sanduíches que comera sem vontade na clínica haviam arruinado seu apetite, mas estava faminto por proteínas, de preferência quentes e preparadas com competência. Mas não queria comer sozinho. Serviu-se de xerez e reconheceu a necessidade de falar com alguém — qualquer pessoa — sobre o assassinato. A necessidade era imperiosa. Pensou em Valda. Seu casamento com Valda estava condenado desde o início, como acontece com os casamentos em que marido e mulher têm uma ignorância básica das necessidades um do outro associada à ilusão de compreenderem-se perfeitamente. O dr. Steiner não ficara arrasado com o divórcio, mas a interferência em sua rotina o perturbara e no início ficara de mau humor, para em seguida ser atormentado por um sentimento irracional de fracasso e culpa. Valda, por outro lado, parecia ter florescido com a liberdade. Sempre que se encontravam ele ficava impressionado com a sensação de bem-estar físico que ela transmitia. Os dois não se evitavam, pois encontrar o ex-marido e os ex-amantes num clima de camaradagem e bom humor era o que Valda tinha na cabeça quando falava em comportamento civilizado. O dr. Steiner não gostava dela nem a admirava. Apreciava a companhia de mulheres informadas, bem-educadas, inteligentes e fundamentalmente sérias. Mas não era com esse tipo de mulher que gostava de ir para a cama. Sabia tudo o que havia a saber sobre essa inconveniente dicotomia. Suas causas haviam consumido muitas sessões dispendiosas com seu analista. Infelizmente, saber é uma coisa e mudar é outra, como alguns de seus pacientes poderiam ter lhe contado. E com Valda (cujo nome de batismo era Millicent) houvera ocasiões em que na verdade ele não desejara ser diferente. O telefone tocou durante quase um minuto até ela atender; contou-lhe sobre a srta. Bolam contra um ruído de fundo de música e tilintar de copos. Aparentemente o apartamento estava cheio de gente. Ele não estava seguro nem mesmo de que ela o escutara. “O que é isso?”, perguntou, irritado. “Você está dando uma festa?” “São só uns amigos. Espere que vou baixar o som. Pronto. O que foi que você disse?” O dr. Steiner repetiu. Dessa vez, a reação de Valda foi inteiramente satisfatória. “Assassinada? Oh, não! Querido, imagino o horror que você viveu! Senhorita Bolam... Não é aquela gerente administrativa horrorosa que você detestava? Aquela que ficava inventando problemas com seus relatórios de viagem?” “Eu não a detestava, Valda. De certo modo, eu a respeitava. Era uma mulher de imensa integridade. Claro, era obsessiva, tinha medo da própria agressividade inconsciente, talvez fosse sexualmente frígida...”
“Foi o que eu falei, querido. Eu sabia que você não suportava aquela mulher. Ah, Paulie... Não vão achar que o culpado é você, vão?” “Claro que não”, disse o dr. Steiner, começando a lamentar o impulso que o levara a fazer confidências. “Mas você sempre disse que alguém devia dar um jeito nela.” A conversa estava começando a virar pesadelo. A vitrola pulsava com seu baixo insistente, marcando o ritmo da cacofonia da festa de Valda, e as têmporas do dr. Steiner latejavam em uníssono com ela. Era o anúncio de uma de suas dores de cabeça. “O que eu dizia era que ela devia ser transferida para outra clínica, e não que tivesse o crânio afundado com um instrumento rombudo.” A frase vulgar aguçou a curiosidade dela. Valda sempre sentira fascínio pela violência. Ele sabia que ela estava imaginando um lago de sangue e matéria cerebral. “Querido, você precisa me contar essa história direitinho. Não quer vir até aqui?” “Bem, eu estava pensando em fazer exatamente isso”, disse o dr. Steiner. Depois acrescentou, com astúcia: “Não posso lhe contar certos detalhes pelo telefone. Mas se você está dando uma festa, fica difícil. Francamente, Valda, não tenho condições de ser sociável neste momento — e está começando uma daquelas minhas dores de cabeça. Tudo isso foi um tremendo choque para mim. Afinal, fui praticamente eu quem descobriu o corpo”. “Ah, coitadinho! Olhe, me dê meia hora que eu mando o pessoal embora.” O dr. Steiner estava com a sensação de que o pessoal não estava com muita vontade de ir embora, e disse isso a Valda. “Na verdade, estávamos todos de saída para o Toni’s. Eles podem se virar sem mim. Vou dar um jeito neles e dentro de meia hora você pode vir. Combinado?” Claro que estava combinado. Ao repor o fone no gancho, o dr. Steiner concluiu que naquela meia hora teria tempo de sobra para tomar uma ducha e trocar de roupa. Hesitou na escolha da gravata. Coisa estranha, a dor de cabeça parecia ter evaporado. Pouco antes que ele saísse, o telefone tocou. A apreensão deixou seu corpo tenso. Talvez Valda tivesse mudado de idéia quanto a mandar o pessoal embora e ficar algum tempo sozinha com ele. Afinal, essa cena se repetira inúmeras vezes durante o casamento dos dois. Ficou irritado ao constatar que a mão que se estendeu para pegar o fone não estava inteiramente firme. Mas o interlocutor era simplesmente o dr. Etherege, avisando que havia convocado uma reunião de emergência do Comitê Médico da clínica para as oito horas da noite seguinte. De tão aliviado, o dr. Steiner, esquecendo-se temporariamente da srta. Bolam, quase cometeu o desatino de perguntar qual era o tema da reunião.
Se Ralfe e Sonia Bostock morassem em Clapham seu apartamento seria considerado um subsolo. Como moravam em Hampstead — aliás a menos de um quilômetro da casa do dr. Steiner —, uma tabuleta de madeira, em letras de gosto impecável, dirigia o visitante ao apartamento “do jardim”. Ali, pagavam quase doze libras por semana para viver num endereço socialmente aceitável e ter o privilégio de ver pela janela da sala um gramado verde em rampa. Haviam salpicado aquele gramado com crocos e narcisos, e na primavera aquelas plantas, que conseguem florescer mesmo em lugares praticamente sem sol, pelo menos criavam a ilusão de que o apartamento tinha acesso a um jardim. No outono, porém, a vista era menos agradável e a umidade do terreno em rampa se filtrava para dentro do aposento. Era um apartamento
barulhento. Havia uma creche a duas casas de distância e uma família jovem no apartamento do térreo. Ralfe Bostock, oferecendo drinques aos amigos cuidadosamente selecionados e erguendo o tom de voz para sobrepor-se aos gritos de crianças que não queriam entrar no banho, costumava dizer: “Peço perdão pela anarquia. Acho que a intelligentsia virou adepta da procriação, mas parece que infelizmente não sabe controlar os filhos.” Ralfe gostava de fazer observações maldosas, algumas das quais inteligentes, mas exagerava. Sua mulher vivia apavorada com a idéia de que ele fizesse a mesma gracinha duas vezes para a mesma pessoa. Poucas coisas são mais fatais para a reputação de um homem que a fama de repetir piadas. Naquela noite ele tinha ido a uma reunião política. Ela apoiava a reunião, que podia ser importante para ele, e não se importava de ficar sozinha. Queria tempo para pensar. Entrou no quarto e despiu o tailleur, sacudindo-o cuidadosamente e pendurando-o no guarda-roupa, depois vestiu um roupão de veludo marrom e sentou-se junto à penteadeira. Amarrou uma faixa de crepe em torno da testa e aplicou um creme demaquiante para retirar a maquiagem do rosto. Estava mais cansada do que havia imaginado e precisava tomar alguma coisa, mas nada no mundo a impediria de executar seu ritual de todas as noites. Havia muito sobre o que pensar, muito a planejar. Os olhos cinza-esverdeados circundados de creme olhavam-na calmamente do espelho. Inclinando-se, inspecionou as dobras delicadas da pele embaixo de cada olho, em busca das primeiras rugas. Afinal de contas, tinha apenas vinte e oito anos. Não precisava preocupar-se. Mas Ralfe faria trinta naquele ano. O tempo estava passando. Se quisessem realizar alguma coisa, não tinham tempo a perder. Considerou a questão da estratégia. Seria preciso muito cuidado ao lidar com a situação: não havia lugar para erros. Já cometera um erro. A tentação de esbofetear Nagle fora irresistível, mas nem por isso seu gesto deixava de ser um erro, provavelmente um erro grave, próximo demais do exibicionismo vulgar para ser seguro. Candidatas a gerente administrativa não podem estapear o rosto de um porteiro, mesmo numa situação de estresse, especialmente se quiserem dar a impressão de competência calma e segura. Relembrou a expressão no rosto da srta. Saxon. Bem, Fredrica Saxon não podia ser dar ao luxo de ser crítica. Pena que o dr. Steiner também estivesse no aposento, mas tudo acontecera tão depressa que ela não estava segura de que ele efetivamente vira alguma coisa. A jovem Priddy não contava. Depois que fosse indicada seria preciso demitir Nagle, claro. Nesse ponto também teria de ser cuidadosa. Ele era um canalha insolente, mas a clínica precisava dele e os membros do comitê sabiam disso. Um porteiro eficiente contava muito para o conforto deles, sobretudo se tivesse disposição e estivesse preparado para executar os inúmeros consertos necessários. A medida não seria popular se os médicos fossem obrigados a esperar por um funcionário da manutenção toda vez que uma cinta de persiana se rompesse ou que fosse preciso trocar um fusível. Seria preciso demitir Nagle, mas antes de tomar qualquer iniciativa trataria de encontrar um bom substituto. Naquele momento, sua principal preocupação devia concentrar-se em obter o apoio dos médicos. Podia contar com o dr. Etherege, e o voto dele era o mais importante de todos. Só que não era o único. Em seis meses ele se aposentaria, e sua influência já estava em declínio. Se lhe oferecessem o posto interinamente e tudo corresse bem, talvez o Comitê Administrativo Hospitalar levasse algum tempo para abrir concurso para o cargo. Era quase certo que esperasse o crime ser resolvido ou a polícia arquivar o caso. Estava nas mãos dela consolidar sua posição nos meses vindouros. Não podia contar com nada, evidentemente. Sempre que apareciam
problemas em alguma unidade, o Comitê tendia a indicar alguém de fora. Era uma medida de segurança introduzir um estranho que não estivesse contaminado pela perturbação ocorrida. Nesse aspecto, o secretário do grupo teria uma influência especial. Fora uma medida acertada ir conversar com ele no mês anterior para pedir sua opinião sobre se devia ou não seguir o curso de administração hospitalar. Ele gostava que sua equipe se aprimorasse e, sendo um homem, sentirase lisonjeado porque ela pedira sua opinião. Mas não era bobo. Nem precisava ser. O Comitê não encontraria candidatos mais preparados do que ela, e ele sabia disso. A sra. Bostock deitou-se, relaxada, em sua cama de solteiro, os pés erguidos sobre um travesseiro, a cabeça tomada por imagens de sucesso. “Minha mulher é gerente administrativa da Clínica Steen.” Tão mais satisfatório que “Na verdade, no momento minha mulher está trabalhando como secretária. Na Clínica Steen, para ser mais exato”. A pouco mais de três quilômetros dali, num necrotério da parte norte de Londres, o corpo da senhorita Bolam, acondicionado como um arenque numa caixa de gelo, lentamente enrijecia no decorrer da noite outonal.
5
Se fosse para haver um assassinato na Steen, sexta-feira era o dia mais indicado para isso. A clínica não abria aos sábados, de modo que a polícia podia trabalhar no prédio sem as complicações decorrentes da presença de pacientes e funcionários. Quanto aos funcionários, é provável que tenham gostado de contar com dois dias de folga para se recuperar do choque, resolver calmamente qual a reação oficial a adotar e buscar o conforto e o aconchego dos amigos. O dia de Dalgliesh começou cedo. Ele havia pedido à polícia do bairro que lhe enviasse um relatório sobre o episódio do roubo na Steen, e o documento, juntamente com as transcrições das entrevistas da véspera, estava à sua espera sobre a escrivaninha. O roubo intrigara os policiais que cuidaram do caso. Não havia a menor dúvida de que alguém entrara na clínica e de que as quinze libras haviam desaparecido. Já não era tão certo que os dois fatos estivessem relacionados. O inspetor encarregado achava estranho um gatuno arrombar a única gaveta onde havia dinheiro, deixando de lado o cofre e desprezando o tinteiro de prata da sala do diretor médico. Por outro lado, era certo que Cully vira um homem se afastando da clínica, e tanto ele como Nagle tinham álibis para a hora da invasão. A polícia local estava inclinada a achar que Nagle tinha se apropriado do dinheiro enquanto estava sozinho no prédio, mas ele fora revistado e o dinheiro não estava com ele — e na verdade não havia provas. Além disso, o porteiro tinha oportunidades de sobra para ser desonesto trabalhando na Steen se fosse essa a sua inclinação, e não havia nada contra ele. A história toda era intrigante. A polícia continuava trabalhando nela, sem grandes esperanças. Dalgliesh pediu para ser informado se alguma coisa fosse descoberta e saiu com Martin para examinar o apartamento da srta. Bolam. Enid Bolam vivia no quinto andar de um sólido edifício de tijolos vermelhos, perto da Kensington High Street. Não houve dificuldade com a chave. A zeladora entregou-a a Dalgliesh com expressões formais e perfunctórias de pesar pela morte da srta. Bolam. Parecia achar indispensável fazer alguma referência ao assassinato, mas conseguiu transmitir a impressão de que os inquilinos do prédio costumavam ter o bom gosto de deixar esta vida de modo mais ortodoxo. “Espero que não haja comentários desagradáveis”, murmurou, enquanto acompanhava Dalgliesh e Martin até o elevador. “Esses apartamentos são muito seletos, e a empresa seleciona cuidadosamente os moradores. Nunca tivemos esse tipo de problema antes.” Dalgliesh resistiu à tentação de dizer que sem dúvida o assassino da srta. Bolam não sabia que sua vítima era inquilina da empresa. “É pouco provável que os comentários afetem a situação dos apartamentos”, declarou. “Afinal, o assassinato não foi cometido aqui.” A zeladora murmurou que ainda bem. Os três subiram juntos até o quinto andar no elevador lento, antiquado, forrado com painéis de madeira. A atmosfera estava carregada de hostilidade. “A senhora conhecia a senhorita Bolam?”, perguntou Dalgliesh. “Parece que fazia alguns anos que ela vivia aqui.” “Conhecia de dar bom-dia, só isso. Era uma moradora muito tranqüila. Como todos os nossos moradores, aliás. Acho que fazia quinze anos que estava no prédio. A mãe dela foi a inquilina anterior; as duas viviam juntas aqui. Quando a senhora Bolam morreu, a filha assumiu a locação.
Foi antes do meu tempo.” “A mãe morreu aqui?” A zeladora apertou os lábios. “A senhora Bolam faleceu num asilo para idosos no interior. Parece que houve algum problema.” “Ela se suicidou?” “Foi o que ouvi dizer. Como já falei, foi antes de eu vir trabalhar aqui. É óbvio que nunca mencionei o fato à senhorita Bolam nem a nenhum dos outros moradores. Não é o tipo de coisa que a pessoa tenha vontade de comentar. Essa família dá a impressão de ser muito infeliz.” “Quanto a senhorita Bolam pagava de aluguel?” A zeladora fez uma pausa antes de responder. Era evidente que a pergunta era uma das primeiras em sua lista de dúvidas que não devem ser formuladas. Depois, como se admitisse com relutância a autoridade da polícia, respondeu: “Nossos apartamentos de dois dormitórios do quarto e do quinto andar estão alugados a quatrocentos e noventa libras, fora os encargos.” Metade do salário de Enid Bolam, pensou Dalgliesh. Era uma proporção muito elevada para uma pessoa desprovida de fortuna pessoal. Ainda não falara com o advogado da vítima, mas tudo indicava que a estimativa de Marion Bolam quanto aos rendimentos da prima não estava longe da verdade. Quando chegaram à porta do apartamento, Dalgliesh dispensou a zeladora e entrou com Martin. Essa intromissão nos resíduos pessoais de uma vida encerrada era uma parte de seu trabalho que Dalgliesh sempre achara um tanto desagradável. Tinha a sensação de estar se prevalecendo da situação do morto. Ao longo de sua carreira, já examinara com interesse e compaixão muitos resíduos insignificantes. Roupas íntimas usadas enfiadas às pressas numa gaveta, cartas pessoais que a prudência teria mandado destruir, refeições inacabadas, contas por pagar, velhas fotografias, quadros e livros que o morto não teria julgado adequados para representar seu gosto diante de um mundo curioso ou vulgar, segredos de família, maquiagem velha em potes engordurados, a desordem de vidas desorganizadas ou infelizes. Hoje em dia ninguém tinha medo de morrer em pecado, mas a maioria das pessoas, se parasse para pensar no assunto, esperava que o tempo dispersasse seus despojos. Relembrou as palavras de uma velha tia dos tempos de criança mandando-o trocar de roupa. “E se você fosse atropelado, Adam? O que as pessoas iam pensar?” A pergunta era menos absurda do que o menino de dez anos julgara. O tempo lhe ensinara que ela expressava uma das maiores preocupações da humanidade: o medo de passar vergonha. Mas era como se Enid Bolam tivesse passado todos os dias de sua vida à espera de uma morte súbita. Dalgliesh nunca examinara um apartamento tão limpo, tão obsessivamente impecável. Mesmo os poucos cosméticos da morta, a escova de cabelo e o pente sobre a penteadeira estavam arrumados com precisão calculada. A pesada cama de casal estava feita. Percebia-se que sextafeira era dia de trocar a roupa de cama. Os lençóis e fronhas usados estavam dobrados no interior de um recipiente para roupa suja aberto sobre uma cadeira. Em cima do criado-mudo, apenas um pequeno relógio de viagem, uma garrafa de água e uma Bíblia acompanhada de um livrinho indicando o trecho a ser lido a cada dia e comentando seu sentido. Na gaveta do criado-mudo apenas um frasco de aspirina e um lenço dobrado. Um quarto com a personalidade de um quarto de hotel.
Toda a mobília era antiga e pesada. A elaborada porta de mogno do roupeiro se abriu sem ruído, revelando uma fileira de cabides bem comprimidos uns contra os outros. Eram roupas caras mas desinteressantes. A srta. Bolam costumava comprar numa loja que até hoje se especializa em abastecer viúvas de proprietários rurais. Havia saias bem cortadas de cor incerta, casacos grossos confeccionados para durar uma dúzia de invernos ingleses, vestidos de lã que não tinham como ofender ninguém. Fechado o roupeiro, era impossível lembrar de uma única peça de vestuário com precisão. No fundo, por trás das roupas para não serem atingidos pela luz do sol, havia potes de plástico, certamente contendo bulbos cujas flores, previstas para a época do Natal, a senhorita Bolam já não veria. Havia tantos anos que Dalgliesh e Martin trabalhavam juntos que não tinham necessidade de muita conversa; quase em silêncio, percorreram o apartamento. Por toda parte a mesma mobília pesada, antiga, a mesma ordem. Era difícil acreditar que até pouco antes alguém vivia naqueles aposentos, alguém preparava suas refeições naquela cozinha impessoal. Era um lugar silencioso. Daquela altura, abafado pelas sólidas paredes vitorianas, o alarido do trânsito na Kensington High Street se transformara numa leve vibração distante. Só o tique-taque insistente de um relógio de pêndulo na entrada perfurava o silêncio impassível. O ar estava frio e quase inodoro, não fosse pelo cheiro das flores. Por toda parte havia flores: um vaso de crisântemos na mesa da entrada e outro na sala de estar. Sobre a lareira do quarto, uma jarrinha de anêmonas. Sobre a cristaleira da cozinha, uma jarra maior, de bronze, com folhagem outonal — quem sabe colhida durante uma caminhada recente no campo. Dalgliesh não gostava de flores de outono — os crisântemos que se recusam teimosamente a morrer, exibindo as cabeças descompostas mesmo sobre um caule em processo de apodrecimento, as dálias sem perfume que só servem para ser plantadas em fileiras retilíneas nos parques municipais. Sua mulher morrera num mês de outubro e fazia muito tempo que ele reconhecia as pequenas derrocadas que se seguem à morte do coração. O outono deixara de ser uma boa época do ano. Para ele, as flores do apartamento da srta. Bolam enfatizavam a melancolia geral do ambiente, como as coroas de flores num enterro. A sala de estar era o aposento mais espaçoso do apartamento; era lá que ficava a escrivaninha da srta. Bolam. Martin alisou a madeira com respeito. “Tudo aqui é sólido e de qualidade, não é mesmo? Tenho uma peça parecida com esta. Era da mãe da minha mulher. Hoje em dia já não se fazem móveis como esses. Só que na hora de vender, eles não valem nada. Grandes demais para os apartamentos modernos, acho. Mas a qualidade é de primeira.” “A gente pode se apoiar, que eles não se desmancham”, disse Dalgliesh. “É isso mesmo que eu quis dizer. Coisa boa. Dá para entender que ela tenha conservado esses móveis. Uma moça sensata, aparentemente, e que sabia se cercar de conforto.” Martin puxou uma segunda cadeira para perto da mesa onde Dalgliesh já estava sentado, instalou nela o maciço traseiro e fez mesmo uma cara de quem estava em casa muito à vontade. A escrivaninha não estava trancada. O tampo rolou para trás sem a menor dificuldade. Dentro havia uma máquina de escrever portátil e uma caixa de metal contendo pastas de cartolina cuidadosamente etiquetadas. As gavetas e compartimentos da escrivaninha continham papel, envelopes e correspondência. Como haviam previsto, tudo estava na mais perfeita ordem. Examinaram juntos as pastas. A srta. Bolam pagava suas contas pontualmente e mantinha um registro de todas as despesas domésticas. Havia muita coisa a verificar. Os detalhes sobre investimentos estavam arquivados na pasta correspondente. Quando a mãe morrera, os títulos de penhora haviam sido resgatados e o capital
reinvestido em aplicações. Tudo muito competente: não havia dúvida de que a srta. Bolam fora bem aconselhada e que aumentara consideravelmente seus bens durante os últimos cinco anos. Dalgliesh anotou os nomes do corretor e do advogado. Seria preciso falar com os dois antes de dar a investigação por encerrada. A falecida guardava poucas cartas de caráter pessoal; talvez não houvesse mesmo muitas que valesse a pena guardar. Mas havia uma bem interessante, arquivada na letra “P”. Escrita em letra caprichada num papel pautado barato, vinha de um endereço em Balham e dizia:
Cara srta. Bolam, Escrevo estas poucas linhas para agradecer por tudo o que a senhora fez pela Jenny. Não foi bem como a gente esperava, era outra coisa que a gente pedia a Deus, mas quando Ele julgar que chegou a hora, conheceremos Seus desígnios. Continuo achando que fizemos bem em deixar que eles se casassem. Acho que a senhora sabe que não foi só para acabar com os comentários. Ele partiu e não volta mais. Foi o que nos escreveu. O pai dela e eu não sabíamos que as coisas entre eles tinham chegado a esse ponto. Ela quase não nos conta nada, mas nós vamos esperar pacientemente porque um dia talvez ela volte a ser a nossa menina. Ela passa os dias calada e se recusa a falar sobre o assunto, de modo que a gente não sabe se ela está sofrendo. Procuro não ficar com raiva dele. O pai dela e eu achamos que seria ótimo se a senhora conseguisse um emprego para a Jenny na área da saúde. A senhora é muito boa de se oferecer para ajudar, depois de tudo o que aconteceu. A senhora conhece a nossa opinião sobre o divórcio, de modo que agora ela vai ter de procurar a felicidade no seu novo emprego. O pai dela e eu rezamos toda noite para que ela encontre mesmo a felicidade.
Agradeço mais uma vez por tudo o que a senhora tem feito. Se a senhora conseguir o emprego para a Jenny, tenho certeza de que ela não vai decepcionar a senhora. Ela aprendeu a lição, que não foi fácil para nenhum de nós. Mas o Senhor é que conhece os caminhos.
Respeitosamente, Emily Priddy
Extraordinário, pensou Dalgliesh, que ainda houvesse pessoas capazes de escrever uma carta como aquela, com sua mistura arcaica de subserviência e dignidade e seu sentimentalismo despudorado que era ao mesmo tempo curiosamente tocante. A história que a carta contava era corriqueira, mas Dalgliesh sentiu-se desvinculado de sua realidade. Poderia ter sido escrita cinqüenta anos antes; ele tinha a sensação de que a qualquer momento veria o papel amarelecer de velho e sentiria seu cheiro de guardado. Sem dúvida o que estava escrito ali não se aplicava à garota linda e ineficaz da Clínica Steen. “Provavelmente isto não tem a menor importância”, disse ele a Martin. “Mas eu gostaria que você desse um pulo até Balham para conversar com essas pessoas. É melhor a gente saber quem é o marido, mas por alguma razão acho que ele não tem nada a ver com o misterioso ladrão do doutor Etherege. O homem — ou mulher — que matou a senhorita Bolam ainda estava no prédio quando nós chegamos. E nós conversamos com ele ou ela.” Nesse momento o telefone tocou, emitindo um terrível som estridente que ecoou no silêncio do apartamento como se invocasse a falecida. Dalgliesh disse: “Eu atendo. Deve ser o doutor Keating com os resultados da autópsia. Pedi a ele que
telefonasse para cá quando concluísse seu trabalho.” Dois minutos depois, estava novamente ao lado de Martin. O relatório fora breve. Dalgliesh disse: “Nenhuma surpresa. Ela era uma mulher saudável. Morta em decorrência de uma perfuração no coração depois de receber um golpe na cabeça e perder os sentidos, fatos que pudemos verificar com nossos próprios olhos, e virgo intacta, fato de que não temos razão para duvidar. O que é isso aí?” “É o álbum de fotografias. Quase todas de acampamentos de bandeirantes. Dá a impressão de que todos os anos ela saía para acampar com as garotas.” Provavelmente transformando a viagem em suas férias anuais, pensou Dalgliesh. Ele nutria um respeito próximo da irrestrita admiração por aqueles que voluntariamente abriam mão de seu lazer para cuidar dos filhos dos outros. Não era um homem que gostasse de crianças e achava a companhia de quase todas elas intolerável depois de um curtíssimo lapso de tempo. Tomou o álbum das mãos de Martin. Eram fotografias pequenas e tecnicamente sofríveis, pelo jeito tiradas com uma pequena câmera, mas estavam dispostas na página com todo o cuidado, e classificadas individualmente com letreiros em tinta branca. Havia bandeirantes marchando, bandeirantes cozinhando em fogareiros, montando barracas, enroladas em cobertores junto à fogueira do acampamento, fazendo fila para a inspeção do equipamento. E em muitas das fotografias aparecia a figura da monitora do grupo, rechonchuda, maternal, sorridente. Era difícil associar aquela pessoa extrovertida, feliz, saudável, ao cadáver patético caído no chão da sala dos arquivos — ou com a administradora obsessiva e autoritária descrita pelo pessoal da Steen. Os comentários embaixo de algumas das fotos eram patéticos em sua evocação da felicidade rememorada: “As Andorinhas servem o rango.” “Valerie ‘deserta’ das Fadinhas.” “As Gaivotas encaram a louça. Foto tirada por Susan.” “A monitora ajuda a maré a subir. Foto tirada por Jean.” Esta última foto mostrava os ombros roliços da srta. Bolam surgindo do meio da espuma da arrebentação. Estava cercada por meia dúzia de meninas. Seu cabelo solto pendia em mechas, molhado e escorrido como alga marinha, dos dois lados de seu rosto sorridente. Os dois detetives contemplaram a fotografia em silêncio. Depois Dalgliesh observou: “Até agora, foram poucas as lágrimas derramadas por ela, não é mesmo? Só as da prima, e essas foram mais de choque do que de tristeza. Me pergunto se as Andorinhas e as Gaivotas vão chorar por ela.” Fecharam o álbum e voltaram ao exame da escrivaninha. Encontraram somente mais um item interessante, porém muitíssimo interessante. Era a cópia em carbono de uma carta da srta. Bolam a seu advogado, datada da véspera de sua morte, e marcando uma entrevista para conversar com ele sobre assuntos “relativos às alterações que pretendo fazer em meu testamento, e que discutimos brevemente pelo telefone ontem à noite”.
* * * Depois da visita a Ballantyne Mansions houve um hiato na investigação, uma daquelas indefectíveis interrupções que Dalgliesh sempre tivera dificuldade em aceitar. Ele gostava de trabalhar em ritmo acelerado. Sua reputação não se apoiava apenas no sucesso obtido, mas também no ritmo que imprimia à busca de solução para seus casos. Ele não se preocupava em analisar as implicações dessa necessidade compulsiva de levar o trabalho adiante: bastava saber que as interrupções o irritavam mais do que à maioria dos homens. Talvez fosse um intervalo previsível. Era pouco provável que um advogado londrino estivesse
em seu escritório num sábado à tarde, contudo foi bem mais desanimador ficar sabendo por telefone que o dr. Babcock, da firma Babcock e Honeywell, embarcara com a mulher num vôo para Genebra na sexta-feira à tarde para acompanhar o enterro de um amigo, e que só estaria de volta em seu escritório da City na terça-feira seguinte. No momento não havia nenhum Honeywell na firma, mas o secretário do dr. Babcock estaria no escritório na segunda-feira cedinho, se pudesse ser de alguma ajuda para o inspetor. Isso fora informado pelo porteiro. Dalgliesh não sabia se o secretário poderia ajudá-lo. Preferia falar com o dr. Babcock. Era provável que o advogado tivesse condições de revelar muitos dados úteis sobre a família da srta. Bolam e também sobre sua situação financeira, mas era provável que boa parte do que ele sabia só fosse comunicado depois de uma cena de resistência — mesmo que simulada — do advogado, e mediante muita diplomacia por parte de Dalgliesh. Seria insensato pôr o sucesso em risco devido a um contato prévio com o secretário. Enquanto os detalhes do testamento não fossem conhecidos, não adiantava voltar a interrogar Marion Bolam. Frustrado em seus planos imediatos, Dalgliesh fez uma visita surpresa a Peter Nagle. Foi sozinho em seu carro, sem Martin. Não tinha nenhum objetivo claro em vista, mas não estava preocupado com isso. Seria tempo bem empregado. Já fizera muita investigação útil com esses encontros não planejados, quase ao sabor do acaso, em que falava, ouvia, observava um suspeito em sua própria casa, ou recolhia os fiapos de informação fornecidos involuntariamente a respeito da única personalidade fundamental em toda investigação de assassinato: a personalidade da vítima. Nagle morava em Pimlico, no quarto andar de um casarão vitoriano pintado de branco, perto de Eccleston Square. A última vez que Dalgliesh estivera naquela rua fora três anos antes, quando ela lhe dera a impressão de ter enveredado irremediavelmente pelo caminho do declínio. Mas a maré havia mudado. A onda de moda e popularidade que rola de forma tão inexplicável em Londres, às vezes deixando de lado um distrito para varrer o bairro ao lado, passara por aquela rua larga deixando ordem e prosperidade em sua esteira. A julgar pelo número de tabuletas, os especuladores imobiliários, sempre os primeiros a farejar a passagem da onda, estavam colhendo os lucros costumeiros. A casa da esquina parecia pintada de novo. A pesada porta de entrada estava aberta. Dentro, um quadro trazia os nomes dos moradores, mas não havia campainhas. Dalgliesh deduziu que durante o dia os apartamentos funcionavam como casas independentes e que em algum lugar devia haver um zelador encarregado de abrir a porta à noite, quando ela era fechada, no caso de alguém tocar a campainha. Como não viu sinal de elevador, preparou-se para subir os quatro andares pela escada, até o apartamento de Nagle. Era um prédio claro, arejado e muito silencioso. Não houve sinal de vida até o terceiro andar, onde alguém tocava piano — e bem. Talvez um músico profissional ensaiando. A cascata sonora envolveu Dalgliesh e em seguida recuou, quando ele alcançava o quarto piso. Lá havia uma porta de madeira sem ornamentos munida de uma pesada aldrava e de um cartão espetado logo acima no qual estava escrita uma só palavra: “Nagle”. O inspetor bateu de leve e na mesma hora ouviu a voz de Nagle dizendo “Entre”. Era um apartamento surpreendente. Dalgliesh não sabia o que, exatamente, havia imaginado, mas certamente não fora aquele loft enorme, imponente, bem ventilado. Ele ocupava toda a parte dos fundos da casa; a janela ampla dava para o norte. Sem cortinas, oferecia uma vista panorâmica de canos tortos de chaminé e telhados de diferentes inclinações. Nagle não estava sozinho. Estava sentado, com os joelhos bem separados, numa cama estreita sobre uma plataforma na parte leste do quarto. Aninhada de encontro a ele, vestindo apenas um roupão,
encontrava-se Jennifer Priddy. Os dois tomavam chá em canecas azuis; sobre uma mesinha ao lado da cama via-se uma bandeja com o bule de chá e uma garrafa de leite. O quadro em que Nagle havia trabalhado recentemente estava sobre um cavalete no meio do aposento. A moça não pareceu constrangida ao ver Dalgliesh: jogou as pernas para fora da cama e dirigiulhe um sorrisinho francamente feliz, quase de boas-vindas, despojado de coqueteria. “Aceita um chazinho?” Nagle falou: “Um policial nunca bebe em serviço, e isso inclui chá. Vá se vestir, menina. Não queremos que o inspetor fique chocado.” A garota sorriu de novo, pegou suas roupas com uma das mãos, segurou a bandeja do chá com a outra e desapareceu por uma porta na outra extremidade do loft. Era difícil reconhecer naquela figura confiante e sensual a menina assustada e chorosa que Dalgliesh conhecera na Steen. Observou-a quando passou a seu lado. Estava obviamente nua por baixo do roupão de Nagle; os mamilos duros apontavam sob o tecido fino de lã. Ocorreu a Dalgliesh que pouco antes eles estavam fazendo amor. Quando ela desapareceu da vista, olhou para Nagle e viu em seus olhos o brilho passageiro de quem se pergunta o que vai acontecer e se diverte com isso. Mas nenhum dos dois falou. Dalgliesh andou pelo loft; Nagle, sentado na cama, observava o que ele fazia. Era um aposento em perfeita ordem. A arrumação quase obsessiva lembrava o apartamento de Enid Bolam, com o qual, no mais, não tinha nada em comum. Era evidente que a plataforma com a cama simples, mesinha e cadeira servia de quarto de dormir. O resto do loft continha a parafernália de um pintor, mas não se via a bagunça indisciplinada que o não-iniciado costuma associar com uma vida de artista. Umas dez telas grandes estavam apoiadas contra a parede sul, e Dalgliesh ficou surpreso com a força que elas tinham. Certamente não eram a obra de um amador utilizando seu parco talento. Aparentemente o único modelo de Nagle era a srta. Priddy. Seu corpo adolescente, de busto farto, reluzia para ele numa série de poses: aqui achatado, ali estranhamente alongado, como se o pintor quisesse exibir sua competência técnica. O último quadro era o do cavalete. Mostrava a garota a cavaleiro sobre uma banqueta, com as mãos infantis e descuidadas pendentes entre as coxas e os seios alteando-se à frente. Alguma coisa naquela ostentação de mestria técnica, no uso audacioso de verdes e malvas e nas minuciosas relações tonais falou à memória de Dalgliesh. “Quem é o seu professor?”, perguntou. “Sugg?” “Exatamente.” Nagle não parecia surpreendido. “Conhece o trabalho dele?” “Tenho um de seus primeiros óleos. Um nu.” “Belo investimento. Não se desfaça dele.” “Não pretendo me desfazer”, disse Dalgliesh calmamente. “Acontece que eu gosto dele. Faz tempo que é aluno dele?” “Dois anos. Em meio período, claro. Mais três anos e ele é que estará aprendendo comigo. Isso se ele tiver capacidade de aprender. Está ficando velho, muito apegado a seus velhos lances.” “Você parece ter imitado alguns deles”, disse Dalgliesh. “Acha? Muito interessante.” Nagle não pareceu incomodar-se. “É por isso que vai ser bom quando eu me afastar. Até o fim do mês, no máximo, viajo para Paris. Me candidatei à bolsa de estudos da Bollinger. O velho deu uma palavrinha a meu favor e na semana passada recebi uma carta dizendo que tinha sido aprovado.” Por mais que tentasse, ele não conseguia eliminar a nota de triunfo da voz. Por baixo da suposta
indiferença havia um lampejo de alegria. E ele tinha razão em estar satisfeito consigo mesmo. A bolsa Bollinger não era uma coisa insignificante. Significava, como Dalgliesh sabia muito bem, dois anos em qualquer cidade da Europa com uma mesada generosa e liberdade para o artista viver e trabalhar como quisesse. A Fundação Bollinger fora criada por um fabricante de remédios que morrera rico e bem-sucedido, mas frustrado. Sua fortuna era produto de pós para o estômago, mas seu coração estava na pintura. Ele próprio dispunha de talento limitado e, a julgar pela coleção de quadros que confiara aos constrangidos curadores da galeria de sua cidade, seu gosto não ficava atrás de seu desempenho. Mas a bolsa Bollinger se encarregara de fazer com que os artistas se lembrassem dele com gratidão. Bollinger não acreditava que a arte pudesse florescer na pobreza ou que águas-furtadas gélidas e barrigas vazias estimulassem os artistas a envidar seus melhores esforços. Fora pobre quando jovem e não gostara da experiência. Na velhice, viajara pelo mundo todo e fora feliz no exterior. A bolsa Bollinger propiciava a jovens artistas promissores o usufruto da viagem sem ter de enfrentar a pobreza, e recebê-la era uma vitória importante. Se Nagle tinha recebido a Bollinger, era pouco provável que estivesse muito preocupado com os problemas da Clínica Steen. “Quando pretende viajar?”, perguntou Dalgliesh. “É só resolver a data. Lá pelo fim do mês. Mas talvez viaje antes, e sem avisar ninguém. Não há razão para chatear as pessoas.” Enquanto falava, fez um gesto com a cabeça na direção da porta e acrescentou: “É por isso que esse assassinato atrapalha tanto a minha vida. Eu estava com medo de não poder viajar por causa dele. Afinal, foi com o meu formão. E essa não foi a única tentativa de me comprometer. Quando eu estava na secretaria esperando pela correspondência, alguém telefonou pedindo para eu ir até o subsolo buscar a roupa limpa. Parecia voz de mulher. Eu já tinha vestido o casaco e estava mais ou menos de saída, de modo que respondi que apanharia a roupa quando voltasse”. “Então foi por isso que ao voltar do correio você foi falar com a enfermeira Bolam para saber se a roupa estava pronta?” “Exato.” “E por que não falou a ela do telefonema que havia recebido?” “Sei lá. Não vi razão para isso. Queria sair logo dali. Não gosto daquela sala do lsd. Aqueles pacientes gemendo e falando sozinhos me deixam meio apavorado. Quando a Bolam disse que a roupa não estava pronta, achei que quem havia telefonado era a outra Bolam e que era melhor não dizer nada. A Enid Bolam tinha uma certa tendência a se meter nas responsabilidades da enfermagem. Pelo menos era o que as enfermeiras achavam. Seja como for, não mencionei o telefonema. Podia ter mencionado, mas não mencionei.” “E na primeira conversa que tivemos você também não tocou no assunto.” “É verdade. O fato é que a história toda estava me parecendo meio esquisita, e eu queria algum tempo para pensar no assunto. Bem, já pensei, e agora já posso lhe contar o que aconteceu. Pode acreditar ou não, como quiser. Para mim, dá no mesmo.” “Você parece muito tranqüilo para um homem convencido de que alguém estava tentando culpá-lo pelo assassinato.” “Não estou preocupado. Para começar, quem estava tentando não conseguiu; por outro, acontece que eu acredito que a probabilidade de um homem inocente ser condenado por assassinato neste país é praticamente nula. Como policial, devia orgulhar-se disso. Por outro lado — por causa do sistema jurídico —, é muito possível que o culpado consiga escapar. É por isso
que, na minha opinião, vocês não vão conseguir solucionar esse assassinato. São muitos suspeitos. Muitas possibilidades.” “Veremos. Me fale mais do telefonema. Quando, exatamente, o recebeu?” “Não me lembro. Uns cinco minutos antes que a Shorthouse entrasse na secretaria, acho. Também pode ter sido mais cedo. Talvez a Jenny se lembre.” “Quando ela voltar, pergunto. O que, exatamente, a voz falou?” “Só ‘A roupa está pronta. Pode fazer o favor de vir buscar agora?’. Achei que era a enfermeira Bolam que estava telefonando. Respondi que estava de saída para o correio e que passaria lá quando voltasse. Depois pus o fone no gancho antes que ela tivesse tempo de dizer alguma coisa.” “Na hora, teve certeza de que era a enfermeira Bolam que estava falando?” “Não tive certeza. Na hora achei que era porque é sempre a enfermeira Bolam quem telefona para falar da roupa lavada. Na verdade a mulher falou baixinho, poderia ter sido qualquer uma.” “Mas era voz de mulher?” “Ah, era. Voz de mulher, com certeza.” “De todo modo era uma instrução falsa porque, como sabemos, a roupa não estava separada.” “É, eu sei. Mas para que pensar nisso? Não acrescenta nada. Se a intenção fosse me fazer descer até o subsolo para me incriminar, o assassino corria o risco de que eu chegasse no momento errado. A enfermeira Bolam, por exemplo, não ia querer que eu aparecesse perguntando pela roupa se tivesse planos de ir até a sala dos arquivos dar uma paulada na prima. Mesmo que a senhorita Bolam já estivesse morta no momento em que o telefonema foi feito, continua não fazendo o menor sentido. E se eu desse uma circulada no subsolo e encontrasse o corpo? Duvido que o assassino quisesse que o corpo fosse encontrado tão cedo. Seja como for, só fui até lá embaixo depois que voltei do correio. Sorte minha, estar fora justo naquele momento. A caixa do correio é logo do outro lado da rua, mas em geral desço até a Beefsteak Street para comprar o Standard. O homem lá deve se lembrar de mim.” Jennifer Priddy havia voltado enquanto ele pronunciava estas últimas palavras. Trajava um vestido discreto, de lã. Enquanto afivelava o cinto na cintura, disse: “Foi aquela discussão por causa do jornal que acabou com o coitado do Cully. Você devia ter emprestado o jornal a ele, querido, quando ele pediu. Ele só queria conferir os resultados das corridas de cavalos.” Sem se irritar, Nagle disse: “O desgraçado daquele velho. Seria capaz de qualquer coisa pra economizar uns centavos. Por que ele não compra o jornal de vez em quando? É eu entrar pela porta e ele já está pedindo o jornal.” “É, mas mesmo assim você foi um pouco indelicado com ele, querido. Você nem estava interessado no jornal. A gente deu uma olhadinha rápida e depois usou para embrulhar a comida do Tigger. Você sabe como é o Cully. A menor incomodação vai direto para o estômago dele.” Nagle exprimiu sua opinião sobre o estômago de Cully com força e originalidade. A srta. Priddy olhou rapidamente para Dalgliesh, como a convocar sua admiração chocada diante das extravagâncias do gênio e murmurou: “Peter! Francamente, querido, você é de morte!” Falou com tímida indulgência: a esposinha fazendo uma suave reprimenda. Dalgliesh olhou para Nagle para ver como ele reagia, mas o pintor pareceu nem ouvir o que a jovem dissera. Continuou sentado na cama, imóvel, olhando para eles. Agora envergava uma calça marrom de
linho, uma blusa azul de malha e sandálias, e mesmo assim parecia tão impecável quanto antes no uniforme de porteiro, os olhos mansos livres de preocupação, os braços compridos e fortes totalmente relaxados. Sob o olhar dele ela andou de um lado para o outro no loft, tocando com possessividade satisfeita a moldura de um quadro, passando os dedos ao longo do parapeito da janela, trocando uma jarra de dálias de uma janela para a outra. Era como se estivesse procurando imprimir as cores suaves da feminilidade àquela disciplinada oficina masculina, com o objetivo de demonstrar que ali era o seu lar, seu lugar natural. Não se sentia minimamente constrangida pelas representações de seu corpo nu. Talvez, inclusive, aquele exibicionismo vicário lhe proporcionasse satisfação. De repente, Dalgliesh perguntou: “Senhorita Priddy, lembra-se de quando alguém telefonou para o senhor Nagle num momento em que ele estava com a senhora no escritório?” A garota fez um ar surpreso mas disse despreocupada para Nagle: “Não foi a enfermeira Bolam, para falar da roupa? Eu vinha voltando da sala dos arquivos — fiquei só um instante fora — e ouvi você dizer que estava de saída e que desceria quando voltasse.” Riu. “Depois que você desligou o telefone, disse uma coisa muito menos educada sobre as enfermeiras, que querem que você fique o tempo todo à disposição delas. Está lembrado?” “Estou”, disse Nagle cortando o assunto. Em seguida, virou-se para Dalgliesh. “Mais alguma pergunta, inspetor? Jenny precisa voltar para casa daqui a pouco e em geral eu a acompanho um pedaço do caminho. Os pais dela não sabem que nos encontramos.” “Só mais uma ou duas. Algum de vocês faz alguma idéia da razão pela qual a senhorita Bolam convocou o secretário do grupo?” A senhorita Priddy negou com a cabeça. Nagle disse: “Fosse lá o que fosse, não tinha nada a ver conosco. Ela não sabia que Jenny posa para mim. Mesmo que descobrisse, não ia mandar chamar o Lauder. Não era boba. Sabia que ele não ia querer se envolver com nada que os funcionários fizessem fora do horário do expediente. Afinal, ela bem que ficou sabendo sobre o caso do doutor Baguley com a senhorita Saxon, mas não fez a besteira de contar para o Lauder.” Dalgliesh não perguntou a quem ela havia contado. Indagou: “Sem dúvida era alguma coisa ligada à administração da clínica. Aconteceu alguma coisa estranha ultimamente?” “Só o nosso famoso roubo e o sumiço das quinze libras. Mas isso o senhor já sabe”, disse Nagle. “Mas aquilo não teve nada a ver com o Peter”, disse a garota depressa, na defensiva. “Ele nem estava na clínica quando as quinze libras chegaram.” Virou-se para Nagle. “Você se lembra, querido? Foi naquela manhã que você ficou preso no metrô. Você nem sabia sobre o dinheiro!” Ela dissera alguma coisa errada. O lampejo de irritação naqueles grandes olhos castanhos foi passageiro, mas Dalgliesh não deixou de registrá-lo. Depois de uma pausa, Nagle falou, com a voz perfeitamente controlada: “Fiquei sabendo logo em seguida. Todo mundo ficou sabendo. Não podia dar outra: com todos querendo adivinhar quem havia mandado o dinheiro e a briga sobre quem iria gastá-lo, o grupo inteiro deve ter ficado sabendo.” Olhou para Dalgliesh. “Mais alguma coisa?” “Sim. Sabe quem matou a senhorita Bolam?” “Felizmente não sei. Mas acho que não foi nenhum dos psiquiatras. Aqueles rapazes são a melhor razão que eu conheço para continuar com a cabeça no lugar. Mesmo assim, não consigo imaginar nenhum deles cometendo um assassinato. Eles não têm coragem.”
Uma pessoa muito diferente havia dito algo muito parecido. Ao chegar à porta, Dalgliesh parou e olhou para trás, para Nagle. Ele e a garota estavam sentados juntos na cama como quando ele chegara; nenhum dos dois fizera a menor menção de acompanhá-lo até a porta, mas Jenny dirigiulhe seu sorriso feliz como despedida. Dalgliesh fez sua última pergunta: “Por que você foi beber alguma coisa com o Cully na noite do roubo?” “Ele me convidou.” “Não foi um convite surpreendente?” “Tão surpreendente que aceitei sair com ele por pura curiosidade, para ver no que ia dar.” “E no que deu?” “Em nada, para falar a verdade. Cully me pediu uma libra emprestada, que eu recusei, e enquanto a clínica era deixada sozinha alguém entrou lá. Não vejo como Cully pudesse ter previsto o que ia acontecer. Vai ver que ele previu, sei lá. Seja como for, não entendo que relação isso pode ter com o assassinato.” Nem Dalgliesh, na verdade. Enquanto descia as escadas, sentiu-se perturbado pela idéia do tempo passando, tempo desperdiçado, horas se arrastando até a manhã de segunda-feira, quando a clínica reabriria e seus suspeitos se reuniriam no local onde estavam mais sujeitos a ser vulneráveis. Mas os últimos quarenta minutos haviam sido bem utilizados. Estava começando a divisar o fio condutor naquele emaranhado caótico. Quando passou pelo terceiro andar, o pianista executava uma peça de Bach. Dalgliesh parou por alguns minutos para escutar. A música em contraponto era o único tipo de música de que ele verdadeiramente gostava. Mas o pianista parou de tocar de repente, com um ruído de acordes dissonantes. Depois, mais nada. Dalgliesh desceu as escadas sem fazer ruído e saiu da casa silenciosa sem que ninguém o visse.
Quando o dr. Baguley chegou à clínica para a reunião do Comitê Médico, o espaço reservado para os médicos no estacionamento já estava todo ocupado. O Bentley do dr. Etherege estava estacionado ao lado do Rolls Royce de Steiner. Do outro lado, um Vauxhall desmantelado apregoava que a dra. Albertine Maddox havia decidido comparecer. Na sala de reuniões do primeiro andar, as cortinas estavam abertas para o céu azul-negro de outubro. No meio da pesada mesa de mogno havia uma jarra com rosas. Baguley se lembrou de que a srta. Bolam sempre providenciava flores para as reuniões do Comitê Médico. Alguém resolvera dar prosseguimento à prática. As rosas eram os botões delicados do outono: produzidas em estufa, rígidas e inodoras em seus caules sem espinhos. Em alguns dias elas se abririam numa floração breve e estéril. Em menos de uma semana estariam mortas. Baguley achava que uma flor tão extravagante e evocativa era inadequada na atmosfera da reunião. Mas a jarra vazia teria sido intoleravelmente triste e embaraçosa. “Quem trouxe as rosas?”, perguntou. “Acho que foi a senhora Bostock”, disse a dra. Ingram. “Quando eu cheguei ela estava aqui em cima preparando a sala.” “Incrível”, disse o dr. Etherege. Estendeu um dedo e tocou um dos botões com tanta delicadeza que o caule nem sequer tremeu. Baguley não sabia se o comentário se referia à qualidade das rosas ou à perspicácia da sra. Bostock em providenciá-las. “A senhorita Bolam gostava muito de flores, muito”, disse o diretor médico. Olhou em torno como se desafiasse os colegas a discordar. “Bem”, continuou. “Vamos começar?”
O dr. Baguley, em sua qualidade de secretário honorário, sentou-se à direita do dr. Etherege. O dr. Steiner ocupou a cadeira ao lado. A dra. Maddox sentou-se à direita de Steiner. Os demais conselheiros não estavam presentes. O dr. McBain e o dr. Mason-Giles se encontravam nos Estados Unidos participando de uma conferência. Os outros médicos da Steen, divididos entre a curiosidade e a pouca disposição a interromper a folga do fim de semana, aparentemente haviam decidido ter paciência e esperar pela segunda-feira. O dr. Etherege achara adequado telefonar para todos avisando da reunião e depois transmitira formalmente ao grupo as desculpas recebidas, e os outros as ouviram com gravidade. Antes de virar psiquiatra, Albertine Maddox era uma cirurgiã de grande sucesso. Talvez fosse típico da ambivalência de seus colegas para com sua especialidade o fato de que a dupla qualificação da dra. Maddox aumentava sua importância aos olhos deles. Ela representava a clínica no Comitê de Assessoria Médica do grupo, onde defendia a Steen contra as críticas ocasionais de médicos e cirurgiões com uma inteligência e um vigor que a tornavam respeitada e temida. Na clínica, não participava da controvérsia entre freudianos e ecléticos, sendo, na visão de Baguley, igualmente desagradável para as duas facções. Era adorada por seus pacientes, mas isso não impressionava os colegas. Eles estavam acostumados a ser adorados por seus pacientes e limitavam-se a observar que Albertine era particularmente habilidosa no trato de situações de transferência maciça. Fisicamente era uma mulher desinteressante, gordinha, grisalha, que parecia o que efetivamente era: uma respeitável mãe de família. Tinha cinco filhos — os rapazes inteligentes e prósperos, as moças bem casadas. O marido de aspecto insignificante e os filhos tratavam-na com uma solicitude tolerante e vagamente gozadora que nunca deixava de surpreender seus colegas da Steen, para quem ela era uma personalidade formidável. Naquele momento tinha sobre os joelhos Hector, seu velho pequinês, que, com ar malévolo, parecia tão confortavelmente ansioso pelos próximos acontecimentos quanto uma dona-de-casa suburbana numa matinê. O dr. Steiner disse, irritado: “Francamente, Albertine, você precisava trazer o Hector? Não quero ser indelicado, mas esse animal está começando a cheirar mal. Você devia mandar sacrificá-lo.” “Obrigada, Paul”, respondeu a dra. Maddox com sua voz profunda, lindamente modulada. “Hector será sacrificado, como você diz, quando deixar de achar a vida agradável. Creio que ele ainda não chegou a esse estágio. Não tenho o hábito de matar seres vivos simplesmente por achar algumas de suas características físicas desagradáveis; nem, devo acrescentar, pelo fato de terem se tornado incômodos.” O dr. Etherege acrescentou depressa: “Que bom que você encontrou tempo para se juntar a nós esta noite, Albertine. Sinto muito que a convocação tenha sido feita num prazo tão curto.” Falava sem ironia, embora estivesse tão consciente quanto seus colegas de que a dra. Maddox só comparecera a uma reunião do comitê em uma série de quatro, com o argumento — que ela não fazia a menor força para mitigar — de que seu contrato com o Conselho Regional não continha nenhuma cláusula que a obrigasse a comparecer a uma sessão mensal de tédio misturado com conversa mole, e que a companhia de mais de um psiquiatra de cada vez fazia Hector ficar doente. A verdade desta última afirmação fora demonstrada suficientes vezes para ser questionada com segurança. “Sou um membro deste comitê, Henry”, replicou a dra. Maddox elegantemente. “Existe alguma razão pela qual eu não devesse fazer um esforço para comparecer?” O olhar que dirigiu à dra. Ingram deixava entender que nem todos os presentes tinham o
mesmo direito. Mary Ingram era casada com um clínico-geral suburbano e comparecia à Steen duas vezes por semana para ministrar anestesia nas sessões de eletrochoque. Não sendo psiquiatra nem terapeuta, não costumava participar das reuniões do Comitê Médico. O dr. Etherege interpretou o olhar corretamente e disse com firmeza: “A doutora Ingram teve a bondade de comparecer esta noite a meu pedido. O assunto principal da reunião, evidentemente, é o assassinato da senhorita Bolam, e a doutora Ingram estava na clínica na noite de sexta-feira.” “Mas não é suspeita, se entendi corretamente”, respondeu a dra. Maddox. “Felicito-a. É tranqüilizador saber que um membro da equipe médica foi capaz de oferecer um álibi satisfatório.” Olhou para a dra. Ingram com severidade. O tom de sua voz dava a entender que a existência de um álibi era, em si mesma, suspeita e inadequada para o membro mais recente da equipe, já que três terapeutas mais antigos haviam sido incapazes de encontrar um. Ninguém perguntou como a dra. Maddox ficara sabendo do álibi. Provavelmente andara conversando com a irmã Ambrose. O dr. Steiner disse, provocador: “É ridículo falar em álibis! Como se a polícia pudesse suspeitar seriamente de um de nós! Para mim, é perfeitamente óbvio o que aconteceu. O assassino estava à espera dela no subsolo. Sabemos que foi assim. Talvez tenha passado horas escondido lá embaixo, talvez mesmo desde a véspera. Pode ter entrado sem que Cully percebesse, quem sabe acompanhando um dos pacientes ou fingindo ser alguém da família ou um atendente de veículo hospitalar. Pode até ter penetrado na clínica durante a noite. Afinal, isso já aconteceu antes. Uma vez no subsolo, havia tempo de sobra para descobrir qual das chaves abria a sala dos arquivos e tempo de sobra para escolher uma arma. Nem a estátua nem o formão estavam escondidos.” “E como você supõe que esse assassino desconhecido tenha saído do prédio?”, perguntou o dr. Baguley. “Demos uma busca meticulosa antes da chegada da polícia — e a polícia olhou tudo de novo. Tanto a porta do subsolo como a do primeiro andar estavam trancadas por dentro, não se esqueça.” “Subiu pelo poço do elevador utilizando as cordas da roldana e saiu por uma das portas que dão para a saída de incêndio”, replicou o dr. Steiner, exibindo seu trunfo com certa galhardia. “Examinei o elevador e vi que essa hipótese é plausível. Um homem — ou uma mulher, claro — de baixa estatura poderia se espremer por cima da tampa da caixa do elevador e ter acesso ao poço. As cordas são suficientemente grossas para suportar um peso considerável, e a subida não seria muito difícil para uma pessoa razoavelmente ágil. Teria de ser uma pessoa magra, lógico”, concluiu, olhando para a própria barriga arredondada com complacência. “É uma teoria atraente”, disse Baguley. “Infelizmente todas as portas que dão para a escada de incêndio também estavam trancadas por dentro.” “Não existe edifício que um homem desesperado e experiente não possa invadir ou de onde não consiga sair”, anunciou o dr. Steiner do alto do que parecia uma vasta experiência. “Ele pode ter saído por uma janela do primeiro andar e se esgueirado pela frisa até chegar à escada de incêndio. Só estou afirmando que o assassino não é necessariamente um de nós, aqui da clínica, que por acaso estivesse trabalhando ontem à noite.” “Poderia ser eu, por exemplo”, disse a dra. Maddox. O dr. Steiner não se abalou. “Essa hipótese é absurda, evidentemente, Albertine. Não estou fazendo nenhuma acusação. Só estou chamando a atenção para o fato de que o círculo de suspeitos é menos restrito do que a
polícia parece imaginar. A polícia deveria investigar a vida particular da senhorita Bolam. É evidente que ela possuía um inimigo.” Mas a dra. Maddox não estava disposta a ser contrariada. “Felizmente para mim”, afirmou, “ontem à noite eu estava assistindo a um concerto de Bach, no Royal Festival Hall, na companhia de meu marido, e jantei lá mesmo, antes do concerto. E, embora o testemunho de Alasdair a meu favor possa ser considerado suspeito, eu também estava na companhia de meu cunhado, que por acaso é bispo. Bispo da igreja anglicana”, acrescentou com complacência, como se incenso e uma casula fossem a chancela da virtude e da veracidade episcopais. O dr. Etherege sorriu gentilmente e disse: “Eu ficaria muito aliviado se conseguisse produzir nem que fosse um cura evangélico para dizer onde eu estava entre as seis e quinze e as sete horas da noite de ontem. Mas será que todas essas teorizações não são uma perda de tempo? O crime está nas mãos da polícia e lá deve permanecer. Nossa principal preocupação é discutir suas implicações do ponto de vista do trabalho da clínica e, especialmente, a sugestão do presidente e do secretário do grupo de que a senhora Bostock assuma interinamente o cargo de gerente administrativa. Mas é melhor manter ordem nos procedimentos. Os senhores gostariam que eu assinasse a ata da última reunião?” Ouviu-se o murmúrio pouco entusiástico mas aquiescente que essa pergunta costuma provocar, e o diretor médico puxou o livro de atas para si e assinou. De repente, a dra. Maddox perguntou: “Como é esse inspetor?” A dra. Ingram, que até aquele momento não abrira a boca, respondeu, para surpresa de todos: “Uns quarenta anos. Alto e moreno. Gostei da voz dele, e tem mãos bonitas.” Logo depois enrubesceu escandalosamente, lembrando-se de que para um psiquiatra a observação mais inocente pode ser uma revelação embaraçosa. Aquele comentário sobre as mãos bonitas talvez tivesse sido um erro. O dr. Steiner, ignorando as características físicas de Dalgliesh, embarcou numa avaliação psicológica do inspetor que os ou-tros psiquiatras receberam com a atenção educada de especialistas interessados nas teorias de um colega. Dalgliesh, se estivesse presente, teria ficado surpreso e intrigado com a acurácia e a sensibilidade do diagnóstico do dr. Steiner. O diretor médico disse: “Concordo quanto à obsessividade e também quanto à inteligência. Isso significa que seus erros serão os erros de um homem inteligente — sempre os mais perigosos. Esperemos, para o bem de todos nós, que não cometa nenhum. O assassinato, com sua inevitável publicidade, sem dúvida terá um efeito sobre os pacientes e sobre o trabalho da clínica. O que nos leva a essa sugestão a respeito da senhora Bostock.” “Sempre preferi a Bolam à Bostock”, disse a dra. Maddox. “Seria uma pena perdermos uma gerente administrativa inadequada — por mais lamentável e fortuita que tenha sido essa perda — apenas para acabar nas mãos de outra.” “Concordo”, disse o dr. Baguley. “Das duas, pessoalmente sempre preferi a Bolam. Mas suponho que seria apenas um arranjo temporário. Vai ser preciso abrir concurso para preencher a vaga. Enquanto isso, alguém tem de assumir o cargo, e a senhora Bostock pelo menos está familiarizada com o trabalho.” O dr. Etherege disse: “Lauder deixou claro que o Comitê Médico Hospitalar não é a favor de trazer um estranho para a clínica enquanto a polícia não tiver concluído as investigações, mesmo que apareça algum candidato adequado. Não queremos complicações adicionais. Já temos perturbações suficientes
com que lidar. E isso me leva à questão da imprensa. Lauder sugeriu, e eu concordei, que todos os contatos com a imprensa fiquem a cargo da direção do grupo, e que ninguém aqui faça declarações. Parece ser a melhor atitude a tomar. É importante, no interesse dos pacientes, que não haja repórteres circulando pela clínica. Mesmo sem isso, a atividade terapêutica já estará bastante prejudicada. Conto com a aprovação formal deste comitê à proposta que acabo de fazer?” Sim, contava. Ninguém manifestou maior entusiasmo por manter contatos com a imprensa. O dr. Steiner não contribuiu para o murmúrio geral de anuência. Seus pensamentos continuavam com o problema da sucessão da srta. Bolam. Em tom belicoso, declarou: “Não entendo por que a doutora Maddox e o doutor Baguley mostram essa hostilidade para com a senhora Bostock. Eu já havia percebido. É ridículo compará-la adversamente com a senhorita Bolam. Todos sabemos qual das duas é — era — é — a administradora mais capaz. A senhora Bostock é uma mulher altamente inteligente, psicologicamente estável, eficiente e com uma real apreciação da importância do trabalho que fazemos aqui. Ninguém poderia dizer o mesmo da senhorita Bolam. Sua atitude para com os pacientes era, por vezes, extremamente infeliz.” “Eu não sabia que ela costumava ter contato com os pacientes”, disse o dr. Baguley. “Seja como for, nenhum dos meus se queixou.” “Às vezes ela marcava consultas e pagava despesas de viagem. Acredito piamente que seus pacientes não tenham reparado na atitude dela. Mas os meus são de outro tipo, mais sensíveis a essas coisas. O senhor Burge, por exemplo, tocou no assunto comigo.” A dra. Maddox riu com descortesia. “Ora, Burge! Ele continua em análise? Fiquei sabendo que a nova obra dele está prometida para dezembro. Vai ser interessante verificar, Paul, se seus esforços contribuíram para melhorar a literatura dele. Se isso tiver acontecido, acho que se trata de dinheiro público bem empregado.” Consternado, o dr. Steiner desencadeou uma série de explicações. Tratava de um bom número de escritores e artistas, alguns dos quais protegidos de Rosa em busca de um pouco de psicoterapia gratuita. Embora fosse sensível às artes, sua percepção crítica, normalmente atilada, falhava completamente quando se tratava de seus clientes. Para ele era intolerável vê-los criticados. Vivia na perpétua esperança de que seus vastos talentos fossem finalmente reconhecidos, e quando eram atacados tomava-o uma ira defensiva instantânea. O dr. Baguley achava que essa era uma das qualidades mais apreciáveis do dr. Steiner; em muitos aspectos, ele era comovedoramente ingênuo. Agora passara a uma confusa defesa tanto do caráter como do estilo literário de seu paciente, concluindo: “O senhor Burge é um homem talentoso e sensível, muito atormentado por sua incapacidade de manter uma relação sexual satisfatória, especialmente com as esposas.” A impropriedade parecia perfeita para provocar novas grosserias por parte da dra. Maddox. Sem dúvida, pensou Baguley, naquela noite ela assumiria uma posição pró-ecléticos. O dr. Etherege disse, cordato: “Quem sabe esquecemos nossas diferenças profissionais por um instante e nos concentramos no assunto em discussão? Doutor Steiner, tem alguma objeção a aceitar a senhora Bostock como gerente administrativa interina?” De mau humor, o dr. Steiner respondeu: “Essa é uma pergunta meramente acadêmica. Se o secretário do grupo deseja que ela seja nomeada, ela será nomeada. Esta consulta de faz-de-conta ao comitê é ridícula. Não temos
autoridade para aprovar nem para deixar de aprovar. Lauder fez com que isso ficasse perfeitamente claro para mim quando o procurei no mês passado para sugerir que a Bolam fosse transferida.” “Eu não sabia dessa conversa”, disse o dr. Etherege. “Falei com ele depois de nossa reunião de setembro. Era apenas uma sugestão.” “Sem dúvida recebida com uma recusa cabal”, disse Baguley. “Teria sido mais prudente manter a boca fechada.” “Ou ter submetido a questão a este comitê”, disse Etherege. “E com que resultado?”, exclamou Steiner. “O que aconteceu na última vez que me queixei de Enid Bolam? Nada! Todos vocês concordaram que ela era uma pessoa inadequada para o cargo de gerente administrativa. Todos vocês concordaram — quer dizer, quase todos — que a senhora Bostock, ou mesmo uma pessoa de fora, seria preferível. Mas na hora de agir, nenhum de vocês estava disposto a assinar uma carta dirigida ao Comitê Administrativo Hospitalar. E vocês sabem muito bem por quê! Todos vocês morriam de medo daquela mulher. Isso mesmo, morriam de medo!” Em meio ao murmúrio de negativas ofendidas, a dra. Maddox disse: “Alguma coisa nela era assustadora. Talvez fosse aquela formidável retidão. Você era tão afetado por ela quanto todos os outros, Paul.” “Talvez. Mas eu tentei fazer alguma coisa a respeito dela. Fui falar com o Lauder.” “Eu também falei com ele”, disse Etherege em voz baixa, “e talvez tenha sido mais eficaz. Deixei claro que este comitê estava consciente de não ter controle sobre a equipe administrativa, mas disse que para mim, como psiquiatra e como membro do Comitê Médico, a senhorita Bolam parecia ser uma pessoa de temperamento inadequado para o cargo que exercia. Sugeri que uma transferência viria atender aos interesses dela própria. Ninguém tinha críticas quanto a sua eficiência, e também não fiz nenhuma. Lauder tirou o corpo fora, é evidente, mas sabia perfeitamente bem que eu tinha direito de dar minha opinião. E acho que a acatou.” A dra. Maddox disse: “Levando em conta sua cautela natural, a desconfiança com que via os psiquiatras e a velocidade habitual de suas decisões administrativas, suponho que teríamos nos desvencilhado da senhorita Bolam no curso dos próximos dois anos. Não há dúvida de que alguém se encarregou de apressar as coisas.” De repente a dra. Ingram falou. Seu rosto rosado um tanto obtuso ficou desagradavelmente vermelho. Estava sentada dura na cadeira, e suas mãos, entrelaçadas diante dela sobre a mesa, tremiam. “Acho que vocês não deviam falar essas coisas. Não... não é direito. A senhorita Bolam morreu, foi brutalmente assassinada. E vocês ficam aí sentados, todos vocês, falando como se não dessem a mínima! Sei que ela era uma pessoa difícil, mas está morta, e acho que este não é o momento de falar mal dela.” A dra. Maddox olhou para a dra. Ingram com ar interessado e uma espécie de espanto, como se estivesse diante de uma criança excepcionalmente medíocre que de alguma maneira tivesse conseguido fazer uma observação inteligente. Disse: “Vejo que comunga da superstição de que nunca devemos falar a verdade sobre os mortos. As origens dessa crença atávica sempre me interessaram. Precisamos ter uma conversa sobre isso uma hora dessas. Eu gostaria de conhecer seus pontos de vista.” A dra. Ingram, vermelha de constrangimento e quase em lágrimas, deu a impressão de achar
que a conversa proposta seria um privilégio a evitar. O dr. Etherege disse: “Falar mal dela? Eu ficaria consternado se imaginasse que alguém aqui estava falando mal dela. Há certas coisas, porém, que nem é preciso dizer. Todos os membros deste comitê estão horrorizados com a brutalidade insensata da morte da senhorita Bolam. Quem não gostaria de têla de novo entre nós, fossem quais fossem seus defeitos como administradora?” A declaração patética constrangeu o grupo. Ao perceber a surpresa e o embaraço dos outros, o médico olhou em torno e perguntou, em tom de desafio: “Alguém discorda do que eu disse? Hein?” “Claro que não”, disse o dr. Steiner. Seu tom era tranqüilizador, mas os olhinhos penetrantes voltaram-se para o lado em busca do olhar de Baguley. Havia constrangimento naquele olhar, mas Baguley também reconheceu um brilho de malícia divertida. O diretor médico não estava levando as coisas muito bem. Deixara Albertine Maddox escapar de seu controle e agora sua liderança sobre o comitê mostrava-se menos firme do que antes. O patético da coisa, pensou Baguley, era que Etherege estava sendo sincero. Ele acreditava em tudo o que dissera. Nutria — como todos eles, aliás — um verdadeiro horror à violência. Era um homem amável, chocado e entristecido pela imagem de uma mulher indefesa sofrendo uma morte brutal. Mas suas palavras haviam soado falso. Buscara refúgio na formalidade, fazendo uma tentativa deliberada de baixar o tom emocional da reunião e impor um clima convencional e previsível, mas só conseguira parecer pouco sincero. Depois do desabafo da dra. Ingram, a reunião se desarticulou. O dr. Etherege fez algumas tentativas espasmódicas de controlá-la, mas a conversa perdeu o vigor e evoluiu sem rumo certo, passando de um assunto para outro e sempre e inexoravelmente voltando ao assassinato. A opinião geral era de que o Comitê Médico deveria manifestar um ponto de vista comum. Depois de tatear de hipótese em hipótese, os presentes acabaram decidindo apoiar a teoria do dr. Steiner. Era evidente que o assassino penetrara na clínica bem mais cedo naquele dia, quando o sistema de registro das pessoas que entravam e saíam não era tão rigoroso. Em seguida se introduzira no subsolo sem que ninguém percebesse, escolhera tranqüilamente suas armas e telefonara para a srta. Bolam pedindo-lhe que descesse, depois de verificar o número de sua extensão na cartela pendurada ao lado do telefone. Cometido o crime, subira para um dos andares superiores sem ser visto e saíra por uma das janelas, dando um jeito de fechá-la atrás de si antes de esgueirar-se pela frisa até chegar à escada de incêndio. O fato de que esse procedimento exigia uma dose considerável de sorte, associada a uma agilidade extraordinária, não foi enfatizado. Sob a liderança do dr. Steiner, a teoria foi detalhada. O telefonema da srta. Bolam para o secretário do grupo foi considerado irrelevante. Sem dúvida ela queria queixar-se de algum problema menor, real ou imaginário, sem conexão com sua morte subseqüente. A hipótese de que o assassino tivesse se içado pela corda da roldana no poço do elevador foi deixada de lado por ser um tanto fantasiosa, embora, como bem observou a dra. Maddox, um homem capaz de fechar uma janela pesada enquanto equilibrado no parapeito pelo lado de fora, depois balançar-se no espaço até alcançar a escada de incêndio a uma distância de um metro e meio, certamente não consideraria o poço do elevador um problema insolúvel. Cansado de tomar parte na fabricação daquele assassino mítico, o dr. Baguley entrecerrou os olhos e fitou o vaso de rosas pela fresta entre as pálpebras. As pétalas iam se abrindo devagar, quase visivelmente, na sala aquecida. Agora o vermelho, o verde e o rosa fundiam-se numa sobreposição amorfa de cores que se refletia na mesa envernizada. De repente abriu
completamente os olhos e viu o dr. Etherege olhando fixamente para ele. O olhar penetrante, analítico, mostrava preocupação; o dr. Baguley teve a impressão de que também mostrava piedade. O diretor médico disse: “Alguns dos membros deste comitê estão cansados. Acho que também estou. Se ninguém mais tem assuntos urgentes a tratar, declaro a reunião encerrada.” O dr. Baguley achou que não era inteiramente por acaso que ele e o diretor médico haviam ficado sozinhos na sala, sendo os últimos a sair. Enquanto testava as janelas para verificar se estavam bem fechadas, o dr. Etherege disse: “Bem, James, você já decidiu se quer ocupar meu lugar como diretor médico?” “É mais uma questão de decidir se vou ou não me candidatar ao cargo quando a vaga for aberta, não é mesmo? E Mason-Giles? E McBain?” “Mason-Giles não está interessado. O regime de dedicação integral o impediria de continuar dando aulas no hospital. McBain está comprometido com a nova unidade regional para adolescentes.” Era típico da ocasional falta de sensibilidade do diretor médico ele não tentar disfarçar o fato de que já sondara outros candidatos antes. Ele está raspando o tacho, pensou Baguley.” “E o Steiner?”, perguntou. “Suponho que ele vai se candidatar!” O diretor médico sorriu. “Ah, tenho a impressão de que o Conselho Regional não vai escolher o doutor Steiner. Esta clínica é multidisciplinar. Precisamos de alguém que exerça um papel hegemônico. E talvez grandes mudanças venham por aí. Você conhece meu ponto de vista. Se for para haver uma integração maior entre a psiquiatria e a clínica geral, talvez, para benefício de todos, um lugar como este tenha de desaparecer. Teríamos de dispor de leitos. Talvez a Steen encontre seu lugar natural no setor de pacientes-dia de algum hospital geral. Não estou afirmando que isso seja provável. Mas é possível.” Então era isso que o conselho estava querendo? Pelo jeito o dr. Etherege estava bem informado. Um pequeno hospital atendendo unicamente pacientes-dia, sem registros, sem programa de estágios e sem vínculo com um hospital geral podia muito bem parecer anacrônico aos olhos dos planejadores... O dr. Baguley disse: “Para mim dá no mesmo o lugar onde recebo meus pacientes, desde que me dêem paz e tranqüilidade, que mostrem uma certa tolerância e que não compliquem minha vida com muita hierarquia e muita camisa engomada. Estou de acordo com a idéia de criar setores psiquiátricos nos hospitais gerais — desde que o hospital nos proporcione o que vamos precisar em matéria de pessoal e espaço. Estou cansado demais para lutar.” Olhou para o diretor médico. “Na verdade eu tinha mais ou menos decidido não me candidatar. Liguei para sua sala ontem à noite da sala dos médicos para lhe perguntar se você queria conversar um pouco sobre o assunto na saída da clínica.” “É mesmo? A que horas?” “Mais ou menos às seis e vinte ou seis e vinte e cinco. Ninguém respondeu. Depois, evidentemente, tivemos outras questões com que nos preocupar.” “Eu devia estar na biblioteca”, disse o diretor médico. “E ainda bem que não estava em minha sala — se isso significa que você teve tempo para reconsiderar sua decisão. E espero que a reconsidere, James.” Apagou as luzes e os dois desceram juntos. Estacando ao pé da escada, o diretor médico virouse para Baguley e disse:
“Eram seis e vinte quando você telefonou? Isso é muito interessante. Interessantíssimo.” “Bem, acho que foi mais ou menos nesse horário.” Surpreso e irritado, o dr. Baguley percebeu que era ele, e não o diretor médico, quem parecia culpado e constrangido. Foi tomado por um intenso desejo de ir embora da clínica, de escapar do olhar azul, inquisidor, que estava tão habituado a colocá-lo em segundo plano. Mas faltava dizer uma coisa. Ao chegar à porta, obrigou-se a parar e encarar o dr. Etherege. Só que, embora tentasse parecer despreocupado, sua voz saiu forçada, quase beligerante: “Talvez fosse o caso de fazermos alguma coisa pela enfermeira Bolam.” “Em que sentido?”, perguntou o diretor médico, gentilmente. Como não obtivesse resposta, prosseguiu: “Todos os funcionários sabem que podem solicitar uma entrevista comigo no momento que quiserem. Mas eu não estou propriamente inclinado a receber confidências. Esta é uma investigação de assassinato, James, e está fora de meu controle. Totalmente fora de meu controle. Na minha opinião, você faria bem em assumir a mesma atitude. Passe bem”.
6
Segunda de manhã cedinho, aniversário da morte de sua mulher, Dalgliesh foi até uma pequena igreja católica atrás do Strand para acender uma vela. Sua mulher era católica. Ele não. Ela morrera antes de ele começar a entender o que o catolicismo significava para ela ou que importância essa diferença fundamental entre os dois poderia ter no seu casamento. Acendera a primeira vela no dia em que ela morrera, resultado da necessidade de formalizar uma dor intolerável e, quem sabe, com a esperança infantil de proporcionar algum conforto à alma dela. Aquela era a décima quarta vela que acendia. Para ele aquele ato extremamente íntimo que cultivava na privacidade de sua vida pessoal não estava ligado a superstição nem a piedade: era um hábito que agora não tinha condições de interromper, nem que quisesse. Sonhava raramente com a mulher, mas quando sonhava era com perfeita nitidez; ao acordar, já não conseguia se lembrar bem de seu rosto. Empurrou a moeda pela fenda e aproximou o pavio de sua vela da chama vacilante de um toco derretido. O fogo pegou na mesma hora, brilhante e claro. Para ele sempre fora importante que o pavio pegasse fogo na mesma hora. Contemplou a chama por um momento sem sentir nada, nem mesmo raiva. Depois se afastou. A igreja estava quase vazia, mas para ele aquela era uma atmosfera de intensa e silenciosa atividade que podia sentir, mas não partilhar. Enquanto andava na direção da porta reconheceu uma mulher de casaco vermelho, com o cabelo coberto por uma echarpe verde-escura, que parara para mergulhar os dedos na pia de água benta. Era Fredrica Saxon, psicóloga sênior da Clínica Steen. Os dois chegaram juntos à porta externa; ele empurrou a porta e segurou-a para que a srta. Saxon saísse ao encontro de uma rajada repentina de vento outonal. Ela sorriu amistosamente para ele, sem o menor embaraço. “Oi! Nunca o vi por aqui antes!” “Só venho uma vez por ano”, respondeu Dalgliesh. Não ofereceu nenhuma explicação, e ela não perguntou nada. Em vez de perguntar, disse: “Eu queria vê-lo. Tem uma coisa que acho que deveria saber. Está de folga? Se não estiver, será que poderia agir contra a ortodoxia, conversando com uma suspeita enquanto toma um café? Prefiro não ir a seu escritório, e não é fácil marcar um encontro na clínica. Seja como for, estou precisando de um café. Está frio!” “Acho que havia uma cafeteria virando aquela esquina”, disse Dalgliesh. “O café é tolerável e o lugar tranqüilo.” O estabelecimento mudara bastante em um ano. Dalgliesh se lembrava de uma cafeteria limpa mas sem graça; uma fileira de mesas cobertas com toalhas de plástico e um balcão comprido decorado com um samovar e pilhas de sanduíches substanciais debaixo de redomas de vidro. Mas o lugar subira na vida. As paredes haviam sido revestidas com uma imitação de carvalho antigo; pendurado nas paredes havia um formidável sortimento de adagas, pistolas antigas e alfanjes de autenticidade incerta. As garçonetes pareciam debutantes avant-garde ganhando um dinheirinho para seus caprichos, e a iluminação era discreta a ponto de parecer positivamente sinistra. A srta. Saxon dirigiu-se para uma mesa no canto mais afastado e Dalgliesh a seguiu. “Só café?”, perguntou Dalgliesh. “Só café, por favor.” Ela esperou que ele fizesse o pedido, depois disse:
“É sobre o doutor Baguley.” “Imaginei que fosse.” “Era previsível que ficasse sabendo. Prefiro contar-lhe agora a esperar que me pergunte, e prefiro que seja eu a contar-lhe do que Amy Shorthouse.” Ela falava sem o menor rancor e também sem embaraço. Dalgliesh respondeu: “Eu não havia perguntado nada porque achei que não fosse relevante, mas se quiser me contar, pode ser que venha a ser útil.” “Só não quero que faça uma idéia errada do assunto. Seria fácil que imaginasse que nós havíamos ficado magoados com a senhorita Bolam. Mas não ficamos, sabe? Houve um momento em que até nos sentimos gratos a ela.” Dalgliesh não precisava perguntar a quem ela estava se referindo com aquele “nós”. A garçonete, desinteressada, se aproximou com o café, uma espuma descorada servida em pequenas xícaras transparentes. A srta. Saxon fez com que o casaco lhe escorregasse dos ombros e desamarrou a echarpe da cabeça. Os dois envolveram suas xícaras quentes com os dedos. Ela se serviu de açúcar, depois empurrou o açucareiro de plástico para Dalgliesh, do outro lado da mesa. Não estava tensa nem constrangida. Era direta como uma escolar tomando café com um amigo. Ele a achou uma companhia estranhamente tranqüilizadora, talvez por não se sentir fisicamente atraído por ela. Mas gostava dela. Era difícil acreditar que aquela fosse apenas a segunda vez que se viam e que o assunto que os aproximara tivesse sido um assassinato. Ela sorveu a espuma de seu café e depois disse, sem erguer os olhos: “James Baguley e eu nos apaixonamos há mais ou menos três anos. Não houve maiores dilemas morais. Não fomos em busca do amor, mas confesso que não o combatemos. Afinal de contas, ninguém desiste voluntariamente da felicidade, a não ser que se trate de um masoquista ou de um santo, e não somos nenhuma das duas coisas. Eu sabia que James tinha uma esposa neurótica porque esse é o tipo de coisa que a pessoa acaba sabendo, mas ele não falava muito sobre ela. Os dois aceitávamos o fato de que a esposa precisava dele e de que um divórcio estava fora de questão. Tratamos de nos convencer de que não estávamos fazendo nenhum mal a ela e de que ela não precisava ficar sabendo. James costumava dizer que o fato de me amar tornava seu casamento mais feliz para ele e para ela. Claro, é mais fácil ser amável e paciente quando se está feliz, de modo que talvez ele tivesse razão. Não sei. Essa é uma racionalização que deve ser usada por milhares de amantes. “Não podíamos nos encontrar com muita freqüência, mas eu tinha meu apartamento e em geral conseguíamos ficar juntos duas tardes por semana. Uma vez Helen — esse é o nome da esposa dele — foi para a casa da irmã e tivemos uma noite inteira para nós. Era preciso tomar cuidado na clínica, claro, mas na verdade não nos encontrávamos tanto assim por lá.” “E como a senhorita Bolam ficou sabendo?”, perguntou Dalgliesh. “Foi uma bobagem, na verdade. Fomos ao teatro ver uma peça de Anouilh e ela estava sentada sozinha na fileira de trás. Afinal, quem ia imaginar que Enid Bolam pudesse ter vontade de assistir Anouilh? Imagino que alguém tenha lhe mandado um ingresso gratuito. Estávamos completando dois anos de namoro e ficamos a peça inteira de mãos dadas. Talvez estivéssemos um pouco altos. Depois saímos do teatro ainda de mãos dadas. Qualquer pessoa da clínica, qualquer dos nossos conhecidos, poderia ter nos visto. Estávamos ficando descuidados e mais cedo ou mais tarde alguém acabaria nos vendo juntos. Foi puro acaso que esse alguém tivesse sido a Enid. É provável que se fosse alguma outra pessoa ela tivesse achado melhor cuidar da própria vida.” “Mas sendo Enid Bolam, ela foi correndo contar para a senhora Baguley? Parece uma atitude
oficiosa e cruel...” “Na verdade não foi. Enid não via as coisas por esse prisma. Era uma dessas pessoas raras e afortunadas que nem por um momento duvidam de que sabem a diferença entre o certo e o errado. Não tinha imaginação, de modo que era incapaz de penetrar nos sentimentos dos outros. Se fosse a esposa de um marido infiel, tenho certeza de que gostaria de ser informada a respeito. Para ela, nada seria pior do que não saber. Tinha o tipo de força que sente prazer no confronto. Suponho que tenha achado que tinha o dever de contar. Seja como for, numa quarta-feira à tarde Helen apareceu na Steen inesperadamente para falar com o marido, e a senhorita Bolam chamoua até sua sala e lhe contou. Muitas vezes fico me perguntando o que, exatamente, teria dito. Imagino que tenha dito que estávamos ‘tendo um caso’. Era capaz de fazer quase tudo parecer vulgar.” “Mas estava correndo um risco, não estava?”, disse Dalgliesh. “Dispunha de pouquíssimos indícios e de nenhuma prova...” A srta. Saxon riu. “Está falando como um policial. Tinha provas suficientes, sim. Mesmo Enid Bolam sabia reconhecer o amor, quando deparava com ele. Além disso, estávamos nos divertindo juntos sem autorização, e só isso já era infidelidade que chegue...” As palavras eram amargas, mas ela não parecia ressentida nem sarcástica. Tomava seu café com prazer evidente. Dalgliesh teve a sensação de que ela poderia estar falando sobre um dos pacientes da clínica, discutindo os caprichos da natureza humana com um vago e remoto interesse profissional. Mas nem por isso achava que ela amasse facilmente ou que suas emoções fossem superficiais. Perguntou-lhe qual havia sido a reação da sra. Baguley. “Isso é que foi extraordinário. Pelo menos assim nos pareceu na ocasião. Ela aceitou a coisa muito bem. Retrospectivamente, pergunto-me se nós três não estávamos loucos de atar, vivendo em algum tipo de mundo imaginário que dois minutos de pensamento racional teriam mostrado que não podia existir. Helen vive sua vida encarnando esta ou aquela atitude, e a atitude que resolveu adotar na ocasião foi a pose da esposa valente e compreensiva. Insistiu que queria o divórcio. Seria um desses divórcios amistosos, do tipo que só é possível, em minha opinião, quando as pessoas deixaram de gostar uma da outra, ou nunca gostaram, ou nunca foram capazes de gostar. Houve muita discussão. A felicidade de todo mundo precisava ser salvaguardada. Helen ia abrir uma butique de roupas — ela falava nisso havia um bom tempo. Os três nos envolvemos com o assunto e começamos a procurar um local adequado. Uma coisa patética, na verdade. O que aconteceu é que nos enganamos, como se tudo pudesse dar certo. É por isso que eu disse que James e eu nos sentíamos gratos para com Enid Bolam. As pessoas da clínica começaram a saber que ia haver um divórcio e que Helen ia deixar o James para que ele ficasse comigo — tudo parte da política de franqueza e transparência —, mas quase nada nos foi dito. Enid Bolam nunca mencionou o divórcio a quem quer que fosse. Não era fofoqueira nem maldosa. Desta ou daquela maneira, as pessoas ficaram sabendo da participação dela no assunto. Acho que talvez Helen tenha contado a alguém, mas a senhorita Bolam e eu jamais tocamos no assunto. “Então o inevitável aconteceu. Helen começou a surtar. James tinha deixado a casa de Surrey para ela e estava vivendo comigo em meu apartamento, mas era obrigado a vê-la com bastante freqüência. No começo quase não falava sobre o assunto, mas eu sabia o que estava acontecendo. Ela estava doente, claro, e nós dois sabíamos disso. Ela desempenhara o papel da esposa paciente e generosa e, como nos romances e nos filmes, agora o marido tinha de voltar para ela. E James não voltava. Ele quase não me contava essas coisas, mas eu imaginava as conseqüências da situação para ele: as cenas, as lágrimas, as súplicas, as ameaças de suicídio... Num momento ela
aceitava o divórcio e no momento seguinte se recusava a deixá-lo livre. Claro, não tinha como. Hoje eu percebo. Estava acima de suas forças. É degradante falar de um marido como se ele fosse um cachorro amarrado no quintal. E, enquanto isso acontecia, eu me dava conta cada vez mais claramente de que não podia continuar. Um processo que se desenvolvera lentamente ao longo dos anos chegou ao fim. Não adianta falar sobre o assunto nem tentar explicá-lo. Não é importante para sua investigação, não é mesmo? Nove anos antes eu começara a me preparar, com a intenção de ser aceita pela igreja católica. Quando isso aconteceu, Helen retirou a petição e James voltou para ela. Acho que ele já não se importava com o que lhe acontecesse ou com o lugar para onde ia. Mas dá para perceber que ele não tinha razões para odiar Enid Bolam, não é mesmo? O inimigo era eu.” Dalgliesh refletiu consigo mesmo que naquele caso o combate provavelmente fora curto. O rosto rosado e saudável de Fredrica, com seu nariz largo e levemente arrebitado e a boca ampla e otimista, não combinava com tragédias. Relembrou o aspecto do dr. Baguley à luz do abajur sobre a escrivaninha da srta. Bolam. Era tolo e presunçoso tentar avaliar o sofrimento de alguém pelas rugas em seu rosto ou pela expressão de seu olhar. Provavelmente a inteligência da srta. Saxon era tão sólida e exuberante quanto seu corpo. O fato de ela ser capaz de resistir melhor não significava que sentisse menos. Sentiu muita pena de Baguley, rejeitado pela amante no momento mais crucial para ser substituído por uma alegria pessoal que não podia partilhar nem compreender. Provavelmente ninguém era capaz de entender a magnitude daquela traição. Dalgliesh não fez de conta que entendia a srta. Saxon. Não era difícil imaginar o que algumas pessoas da clínica diriam daquilo. Era muito fácil encontrar explicações simplistas. Mas Dalgliesh era incapaz de acreditar que Fredrica Saxon se encastelara na religião para fugir da própria sexualidade ou para não ter de encarar a realidade. Em seguida, pensou em algumas das coisas que ela lhe dissera a respeito de Enid Bolam: “Quem ia imaginar que Enid Bolam pudesse ter vontade de assistir Anouilh? Imagino que alguém tenha lhe mandado um ingresso gratuito. Mesmo Enid Bolam sabia reconhecer o amor, quando deparava com ele... Era capaz de fazer quase tudo parecer vulgar.” As pessoas não ficam automaticamente generosas só porque abraçaram uma religião. Mas Fredrica não havia falado aquelas coisas com maldade... Simplesmente dissera o que pensava; se fosse discorrer sobre seus próprios motivos seria igualmente objetiva. Talvez fosse a melhor juíza de caráter da clínica. De repente, desafiando a ortodoxia, Dalgliesh perguntou: “Em sua opinião, quem é o assassino, senhorita Saxon?” “Considerando o caráter e a natureza do crime e sem levar em conta os misteriosos telefonemas feitos do subsolo, os rangidos do elevador e os aparentes álibis?” “Sim, considerando o caráter e a natureza do crime. Sem hesitar e sem relutância aparente, declarou: “Eu diria que foi Peter Nagle.” Dalgliesh sentiu uma fisgada de desapontamento. Sua idéia de que ela talvez soubesse fora irracional. “Por que Nagle?”, perguntou. “Em parte porque eu acho que esse crime foi cometido por um homem. A estocada é significativa. Não consigo ver uma mulher assassinando alguém desse modo. Diante de uma vítima inconsciente, acho que uma mulher optaria pelo estrangulamento. E tem o formão. O fato de ele ter sido usado com tanta perícia poderia significar que havia uma identificação da arma com o assassino. Se não fosse assim, para que o formão? Era só golpear a vítima várias vezes com a
estátua.” “Muita desordem, muito barulho e menos segurança”, disse Dalgliesh. “Mas o formão só era seguro nas mãos de um homem que tivesse confiança em sua capacidade de usá-lo, alguém que literalmente ‘soubesse usar as mãos’. Não consigo imaginar o doutor Steiner matando alguém daquele jeito, por exemplo. Ele seria incapaz até mesmo de cravar um prego sem quebrar o martelo.” Dalgliesh também estava inclinado a achar que o dr. Steiner era inocente. Mais de um dos membros da equipe da clínica mencionara o fato de que ele era desajeitado com as ferramentas. Era verdade que ele mentira ao negar que sabia onde o formão costumava ser guardado, mas Dalgliesh achava que fizera isso por medo, e não por culpa. E sua confissão descarada de que adormecera enquanto esperava pelo sr. Burge tinha um tom de verdade. Dalgliesh disse: “A identificação do formão com Nagle é tão evidente que tenho a impressão de que houve a intenção de induzir-nos a suspeitar dele. E sua opinião é essa mesmo?” “Ah, não! Sei que não poderia ter sido o Nagle. Só dei aquela resposta porque a pergunta foi formulada do jeito que foi. Fiz um julgamento a partir do caráter e da natureza do crime.” Haviam terminado o café; Dalgliesh achou que ela haveria de querer ir embora. Mas pelo jeito Fredrica não estava com pressa. Depois de um intervalo, disse: “Tenho uma confissão a fazer — na verdade, em nome de outra pessoa. É o Cully. Nada muito importante, mas é uma coisa que o senhor precisa saber e que prometi lhe contar. O coitado do velho Cully está aterrorizado, fora de si de medo.” “Eu sabia que ele estava me escondendo alguma coisa”, disse Dalgliesh. “Suponho que tenha visto alguém atravessar o vestíbulo.” “Não, não. Nada assim tão útil. É sobre o avental de borracha que desapareceu do departamento de arte-terapia. Imagino que tenha concluído que foi usado pelo assassino. Bem, na verdade Cully levou o avental emprestado na segunda-feira passada. Queria usá-lo para pintar a cozinha de sua casa. Sabe a sujeira que é, pintar uma parede... Ele não pediu licença à senhorita Bolam porque sabia que ela não autorizaria, e não tinha como falar com a senhora Baumgarten porque ela está de licença. Cully pretendia devolver o avental na sexta-feira, mas a irmã estava conferindo o inventário com o policial, e quando os dois perguntaram se ele sabia do avental o coitado perdeu a cabeça e falou que não sabia. Não é muito inteligente, e entrou em pânico pensando que, se admitisse ter levado o avental, seria acusado de assassinato.” Dalgliesh quis saber quando Cully contara esses fatos. “Eu sabia que ele estava com o avental porque casualmente vi quando ele o pegou. Imaginei que devia estar muito nervoso com a história e fui falar com ele ontem de manhã. Quando ele se preocupa com alguma coisa, fica com dor de estômago, e achei que alguém precisava ajudá-lo.” “Onde se encontra o avental neste momento?”, perguntou Dalgliesh. A srta. Saxon riu. “Espalhado por Londres inteira, dentro de meia dúzia de latas de lixo — isso se as latas não tiverem sido esvaziadas. O coitado do velho Cully não teve coragem de jogá-lo na lixeira do edifício onde mora porque achou que a polícia daria uma busca por lá, e não teve como queimá-lo porque mora num apartamento da municipalidade equipado com aquecimento elétrico, sem caldeira — e o fogão é elétrico. De modo que esperou a mulher ir se deitar e ficou acordado até as onze da noite picando o avental em pedacinhos com a tesoura da cozinha. Pôs os pedaços em vários sacos de papel, enfiou os sacos numa mala de lona e tomou o ônibus 36, que sobe a
Harrow Road, até um ponto bem afastado do lugar onde mora. Depois enfiou um saco de papel em cada lata de lixo que encontrou e jogou os botões de metal dentro de um bueiro. Foi um empreendimento de grandes proporções, e o pobre sujeito mal conseguiu se arrastar para casa de tanto medo, cansaço — acabou perdendo o último ônibus — e, para arrematar, de dor de estômago. Quando passei por lá ontem de manhã ele estava acabado, mas consegui convencê-lo de que não era uma questão de vida ou morte — principalmente morte. Falei pra ele que lhe contaria o que tinha acontecido.” “Obrigado”, disse Dalgliesh com gravidade. “Suponho que não tenha outras confissões a me transmitir... Ou será que tem alguma objeção de consciência ao fato de entregar um pobre psicopata à justiça?” Ela riu, enquanto vestia o casaco e amarrava a echarpe sobre o cabelo escuro e encaracolado. “Não, não! Se soubesse quem foi, lhe contaria. Não gosto de assassinatos e sou muito respeitadora da lei. Mas não sabia que estávamos falando sobre justiça. O senhor é que utilizou a palavra. Como Portia, sinto que no rumo da justiça nenhum de nós encontraria salvação. Deixe, por favor! Prefiro pagar eu mesma por meu café.” “Ela não quer ter a sensação de que comprei informações dela”, pensou Dalgliesh, “nem que fosse por um shilling.” Resistiu à tentação de dizer que o café podia ser incluído nas despesas da investigação, refletindo por um momento sobre aquele impulso de ser sarcástico que ela despertava nele. Gostava dela, mas alguma coisa o irritava em sua segurança, em sua autosuficiência. Vai ver que era inveja. Quando saíram da cafeteria ele perguntou se ela estava a caminho da Clínica Steen. “Hoje, não. Não tenho pacientes nas manhãs de segunda-feira. Mas amanhã estarei lá.” Agradeceu formalmente o café e os dois se despediram. Ele foi andando para leste, na direção da Steen, e ela desapareceu na direção da Strand. Enquanto olhava a silhueta escura e esguia afastar-se, imaginou Cully esgueirando-se no meio da noite com sua bagagem patética, semipetrificado de pavor. Não estava surpreso com o fato de que o velho porteiro confiasse tão cegamente em Fredrica Saxon; no lugar de Cully, provavelmente teria feito a mesma coisa. Ela lhe fornecera muitas informações interessantes, pensou. Só não conseguira lhe fornecer uma coisa: um álibi para si própria e para o dr. Baguley.
A sra. Bostock, caderneta de taquigrafia em punho, estava sentada ao lado da cadeira do dr. Etherege com as pernas elegantes cruzadas e a cabeça de flamingo erguida para receber, com graciosa seriedade, as instruções do diretor médico. “O inspetor Dalgliesh telefonou para dizer que em breve estará aqui. Quer falar outra vez com alguns membros da equipe e pediu para conversar comigo antes do almoço.” “Não vejo como encaixá-lo antes do almoço, doutor”, disse a sra. Bostock com ar de censura. “Tem a reunião com o Comitê Médico às duas e meia, e o senhor ainda não teve tempo de dar uma olhada na agenda. O doutor Talmage, dos Estados Unidos, marcou hora para meio-dia e meia e eu estava contando com uma hora de ditado a partir das onze.” “Isso vai ter de ficar para depois. Desconfio que o inspetor vai ocupar boa parte de seu tempo, também. Tem algumas perguntas a lhe fazer sobre a rotina da clínica.” “Acho que não estou entendendo, doutor. O senhor está me dizendo que ele está interessado nos procedimentos administrativos da clínica?” O tom de voz da sra. Bostock era uma bela mistura de surpresa e desaprovação.
“Tudo indica”, respondeu o dr. Etherege. “Ele mencionou a agenda de consultas, o fichário dos diagnósticos, as providências para o registro de chegada e saída da correspondência e o sistema de fichamentos médicos. É melhor a senhora falar pessoalmente com ele. Se eu quiser ditar, mando chamar a senhorita Priddy.” “Claro que vou colaborar em tudo o que estiver ao meu alcance”, disse a sra. Bostock. “É uma pena que ele tenha escolhido justamente uma das nossas manhãs mais ocupadas. Se eu soubesse o que ele está pretendendo, teria podido organizar um roteiro de atividades para ele!” “Todos gostaríamos de saber!”, retrucou o diretor médico. “Acho que deve simplesmente responder da melhor maneira possível ao que ele lhe perguntar. E, por favor, diga ao Cully que ligue para mim assim que quiser subir.” “Está bem, doutor”, disse a sra. Bostock, admitindo a derrota. E se retirou. Embaixo, na sala de eletrochoque, o dr. Baguley vestia o avental branco, ajudado pela enfermeira Bolam. “Na quarta-feira, como de costume, a senhora King virá para seu tratamento com lsd. Acho que será melhor utilizarmos uma das salas de assistêcia social psiquiátrica do terceiro andar. Nas tardes de quarta-feira a senhorita Kettle não vem à clínica, não é mesmo? Troque uma palavrinha com ela. Como alternativa, podemos usar a sala da senhora Kallinski ou uma das saletas de entrevista, nos fundos.” A enfermeira Bolam disse: “Não vai ser muito confortável para o senhor, doutor. Significa subir dois lances de escada quando eu chamar.” “Não vou morrer por causa disso. Posso parecer senil, mas ainda tenho o uso das minhas pernas.” “Tem a questão da cama, doutor. Acho que podemos subir uma das macas de recuperação da clínica de eletrochoque.” “Peça ao Nagle para se ocupar disso. Não quero vê-la sozinha naquele subsolo.” “Não estou nem um pouco assustada, doutor Baguley, acredite.” O dr. Baguley perdeu a paciência. “Pelo amor de Deus, use a cabeça, enfermeira. Claro que está assustada! Existe um assassino à solta em algum lugar desta clínica, e ninguém — com exceção de uma pessoa — vai se sentir tranqüilo estando sozinho no subsolo, mesmo que por pouco tempo. Se é verdade que não está assustada, pelo menos tenha o bom senso de esconder esse fato, especialmente da polícia. Onde está a irmã? Na secretaria?” Perturbado, o dr. Baguley pegou o telefone e discou. “Irmã? Baguley falando. Acabo de dizer à enfermeira Bolam que esta semana não estou inclinado a usar a sala do subsolo para o tratamento com lsd.” A voz da irmã Ambrose respondeu com nitidez: “Como quiser, doutor. Sem dúvida. Mas se a sala do subsolo for mais conveniente e conseguirmos que um dos hospitais gerais do grupo empreste uma enfermeira substituta para a clínica de eletrochoque, terei muito prazer em fazer companhia à enfermeira Bolam lá embaixo. Podemos dar assistência à senhora King juntas.” O dr. Baguley disse, sem encompridar o assunto: “Quero que permaneça na clínica de eletrochoque co-mo sempre, irmã. A paciente do lsd será atendida no andar de cima. Espero ter sido claro.”
Duas horas depois, na sala do diretor médico, Dalgliesh depositou três caixas pretas de metal sobre a escrivaninha do dr. Etherege. As caixas, que tinham furos redondos nos dois lados menores, estavam cheias de cartões beges — era o fichário dos diagnósticos da clínica. Dalgliesh disse: “A senhora Bostock me explicou como funciona. Se entendi corretamente, cada um desses cartões representa um paciente. As informações contidas no arquivo são codificadas, e o código do paciente é perfurado no cartão. Os cartões são perfurados com fileiras regulares de furinhos, e o espaço entre cada um deles é numerado. Depois de perfurar um número qualquer com o perfurador manual, recorto a ficha entre os dois furos adjacentes e faço um corte oblongo. Se em seguida esta haste de metal for inserida, por exemplo, no número 20 da parte externa da caixa e depois empurrada de modo a atravessar os cartões, e se a caixa for girada, todos os cartões que tiverem sido perfurados com aquele número vão sobressair. Esse é, na realidade, um dos mais simples dos muitos sistemas de perfuração de cartões existentes no mercado. E um dos mais simples.” “É verdade. Nós o utilizamos principalmente como fichário dos diagnósticos e para pesquisa.” Se o diretor médico ficou surpreso com o interesse de Dalgliesh, absteve-se de fazer comentários. O inspetor continuou: “A senhora Bostock me disse que vocês só codificam os registros dos casos depois que o paciente conclui o tratamento, e que o sistema foi iniciado em 1952. Isso significa que os pacientes atualmente em tratamento ainda não possuem um cartão — a não ser, evidentemente, que tenham estado sob tratamento aqui no passado — e que os que concluíram seus tratamentos antes de 1952 não estão incluídos.” “Isso mesmo. Gostaríamos de incluir os casos anteriores, mas é uma questão de tempo da equipe. A codificação e a perfuração exigem tempo, e é o tipo de trabalho que acaba ficando em segundo plano. Atualmente estamos codificando as altas de fevereiro de 1962, de modo que estamos um pouco atrasados.” “Mas depois que o cartão do paciente foi perfurado, é possível selecionar qualquer diagnóstico ou categoria de paciente que se deseje?” “Sim, claro.” O diretor médico abriu seu sorrisinho lento e suave. “Não vou dizer que conseguimos separar imediatamente todos os depressivos locais cujas avós fossem filhas legítimas e tivessem olhos azuis porque não codificamos os dados relativos aos avós. Mas tudo aquilo que estiver codificado pode ser extraído sem o menor problema.” Dalgliesh pôs sobre a mesa uma pasta fina de cartolina. “A senhora Bostock me emprestou as instruções da codificação. Vejo que vocês registram o sexo, a idade, o estado civil, o endereço, o diagnóstico, o médico que tratou o paciente, as datas da primeira consulta e de todas as subseqüentes, e um número considerável de detalhes sobre sintomas, tratamento e desenvolvimento da situação. Também codificam a classe social. Interessante.” “De fato, não é comum”, respondeu o dr. Etherege. “Principalmente, parece-me, porque pode ser uma avaliação puramente subjetiva. Mas quisemos incluir esse dado porque às vezes ele é útil para a pesquisa. Como vê, usamos as classes definidas pelo censo. Para nossos objetivos, são suficientemente acuradas.” Dalgliesh girou a fina haste de metal entre os dedos. “Quer dizer que eu poderia selecionar, por exemplo, os cartões dos pacientes da classe A
submetidos a tratamento no período entre oito e dez anos atrás, casados, pais de família, e que sofressem, por exemplo, de alguma aberração sexual, ou de cleptomania, ou de qualquer outra desordem de personalidade socialmente inaceitável?” “Poderia”, admitiu o diretor médico calmamente. “Mas não vejo por que faria isso.” “Chantagem, doutor. Me ocorre que temos aqui um equipamento impecável para a pré-seleção de uma vítima. É só introduzir a haste que o cartão desejado pula fora. O cartão tem um número no canto direito superior. E lá embaixo, na sala dos arquivos, a pasta médica está arquivada esperando...” O diretor médico disse: “Pura suposição. Não há nem sombra de prova”. “É verdade, não há prova, mas é uma possibilidade razoável. Considere os fatos. Na quarta-feira à tarde a senhorita Bolam encontrou-se com o secretário do grupo depois da reunião do comitê e lhe disse que tudo ia bem na clínica. Ao meio-dia e quinze da sexta-feira telefonou pedindo para falar com ele urgentemente porque ‘tem uma coisa acontecendo aqui sobre a qual ele precisa ser informado’. Era uma coisa grave e constante, uma coisa que começara antes de seu tempo aqui, ou seja, há mais de três anos.” “Fosse lá o que fosse, não temos por que concluir que tenha sido a razão de sua morte.” “Não.” “Na verdade, se o assassino queria impedir que a senhorita Bolam se encontrasse com Lauder, esperou muito para agir. Nada impedia o secretário do grupo de passar por aqui em qualquer horário a partir da uma da tarde.” Dalgliesh disse: “Ela foi informada pelo telefone de que ele só conseguiria chegar à clínica depois da reunião do Conselho Consultivo, naquela tarde. Isso nos leva a tentar imaginar quem poderia ter ouvido a conversa telefônica. Oficialmente, Cully estava na mesa, mas como ele não se sentiu bem o dia inteiro, de vez em quando outros membros da equipe assumiam seu lugar, às vezes só por alguns minutos. Nagle, a senhora Bostock, a senhorita Priddy e até a senhora Shorthouse dizem que em algum momento tomaram conta da mesa telefônica. Nagle tem a impressão de ter substituído Cully por um período curto, por volta do meio-dia, antes de sair para tomar sua cerveja da hora do almoço, mas diz que não tem absoluta certeza. Cully também não tem. Ninguém assume a responsabilidade por ter transferido essa ligação específica.” “Vai ver que a pessoa que estava na mesa não sabe que foi ela”, replicou o dr. Etherege. “Sempre insistimos para que o operador não escute os telefonemas. Afinal de contas, isso é importante no nosso trabalho. Talvez a senhorita Bolam só tenha pedido uma ligação para os escritórios do grupo — sem dizer com quem pretendia falar. Ela devia ligar freqüentemente para os departamentos financeiro e de abastecimento, e também para o secretário do grupo. O operador não teria como saber que aquela ligação tinha uma importância especial. Enid pode inclusive ter pedido acesso a uma linha externa e ter ligado ela mesma... Isso é possível, lógico, com o sistema de pabx.” “Mesmo assim, a pessoa que estivesse tomando conta da mesa telefônica poderia ouvir a conversa.” “É, se entrasse na linha, acho que poderia.” Dalgliesh disse: “A senhorita Bolam disse a Cully no fim da tarde que estava esperando o senhor Lauder e pode ter mencionado a visita a outras pessoas. Não sabemos. Ninguém quer admitir que sabia do fato, só o Cully. Nas circunstâncias, talvez isso não seja surpreendente. No momento, não adianta
insistir no assunto. O que preciso fazer agora é descobrir o que a senhorita Bolam queria dizer ao senhor Lauder. Uma das primeiras possibilidades a considerar, ainda mais num lugar como este, é a chantagem. Se for, só Deus sabe se continua — e o assunto é muito sério. O diretor médico ficou um momento sem falar. Dalgliesh tentou adivinhar se ele estava pensando em fazer algum protesto, se escolhia as palavras para exprimir preocupação ou incredulidade. Depois ele disse em voz baixa: “Claro que o assunto é sério. Não há necessidade de desperdiçar tempo discutindo sua seriedade. Evidente, depois de formular essa teoria o senhor tem de levar a investigação adiante. Qualquer outro procedimento seria extremamente injusto com os membros de minha equipe. O que quer que eu faça?” “Que me ajude a selecionar uma vítima. Depois, talvez, a dar alguns telefonemas.” “O senhor está ciente, inspetor, de que os registros médicos são confidenciais?” “Não estou pedindo para ver nenhum registro médico. Se pedisse, porém, tanto o senhor como o paciente não teriam por que preocupar-se. Podemos começar? Podemos separar nossos pacientes da classe A. O senhor poderia ir lendo os códigos para mim?” Um número considerável dos pacientes da Steen pertencia à classe A. “Só atendemos a neuroses da classe dominante”, pensou Dalgliesh. Depois de contemplar os arquivos por um momento, disse: “Se eu fosse o chantagista, escolheria um homem ou uma mulher? É provável que isso dependesse de meu próprio sexo. Uma mulher talvez preferisse uma mulher. Mas se fosse necessário que a vítima tivesse uma renda regular, suponho que fosse preferível um homem. Vamos separar as fichas de pacientes do sexo maxculino. Imagino que nossa vítima viva fora de Londres. Seria arriscado escolher um ex-paciente para quem fosse fácil ceder à tentação de aparecer na clínica e informá-lo sobre o que estava acontecendo. Acho que eu escolheria minha vítima numa cidadezinha ou num vilarejo. O diretor médico disse: “Quando o paciente mora fora de Londres, só codificamos o país. Os pacientes londrinos estão classificados por bairro. Acho que a melhor coisa a fazer é excluir todos os endereços de Londres e examinar os restantes.” Isso foi feito. Ficaram apenas poucas dúzias de cartões. Como seria de esperar, a maioria dos pacientes da Steen vivia no condado de Londres. Dalgliesh disse: “Casado ou solteiro? É difícil concluir quem seria mais vulnerável. Deixemos esse ponto em aberto e passemos ao diagnóstico. Aqui, sua ajuda é fundamental, doutor. Entendo que essas informações são altamente confidenciais. Sugiro que me diga os códigos correspondentes aos diagnósticos ou sintomas que um chantagista pudesse julgar particularmente atraentes. Não quero saber dos detalhes.” Mais uma vez, o diretor médico fez uma pausa. Dalgliesh esperou pacientemente, haste de metal na mão, enquanto o médico contemplava em silêncio o livro de códigos aberto diante dele. Dava a impressão de não vê-lo. Um minuto depois, pareceu acordar e fixou os olhos na página. Disse: “Experimente os códigos 23, 68, 69 e 71.” Agora restavam apenas onze cartões. Cada um deles exibia um número no alto da margem direita — o número do registro médico. Dalgliesh anotou esses números e disse: “É impossível ir mais longe do que isso com o fichário dos diagnósticos. Agora precisamos fazer o que eu imagino que nosso chantagista tenha feito, ou seja, dar uma olhada nos registros médicos
e obter mais informações sobre nossas possíveis vítimas. Vamos até o subsolo?” O diretor médico se ergueu sem dizer palavra. Enquanto desciam para o térreo, cruzaram com a senhorita Kettle, que subia as escadas. Ela cumprimentou o diretor médico com um gesto de cabeça e dirigiu a Dalgliesh um olhar breve e interrogativo, como se tentasse lembrar-se se já o encontrara antes. No vestíbulo, o dr. Baguley falava com irmã Ambrose. Os dois se interromperam e se viraram para observar com ar sério, compenetrado, o dr. Baguley e Dalgliesh a caminho das escadas que levavam ao subsolo. Na outra extremidade do vestíbulo, era possível avistar o contorno grisalho da cabeça de Cully do outro lado do vidro do balcão de recepção. A cabeça não se virou, e Dalgliesh concluiu que Cully, imerso na contemplação da porta de entrada, não os ouvira chegar. A sala dos arquivos estava trancada, mas o lacre fora retirado. No quartinho dos porteiros, Nagle vestia o casaco — evidentemente de saída para o almoço. Não reagiu quando o diretor médico retirou a chave da sala dos arquivos de seu ganchinho, mas Dalgliesh viu o lampejo de interesse que iluminou seus pacatos olhos castanhos. O médico e o inspetor haviam sido devidamente observados. No início da tarde todos os funcionários da clínica estariam sabendo que ele havia examinado o fichário dos diagnósticos na companhia do diretor médico e que depois fora até a sala dos arquivos. A informação interessaria tremendamente a alguém. Dalgliesh esperava que o assassino se assustasse, se desesperasse; o que ele temia era que se tornasse ainda mais perigoso. O dr. Etherege acendeu a luz da sala dos arquivos, e os tubos fluorescentes faiscaram, soltando uma luz amarela para depois emitir uma intensa luz branca. O aposento inteiro ficou visível. Dalgliesh sentiu outra vez seu cheiro característico, composto de mofo, papel velho e metal. Não manifestou nenhuma emoção quando o diretor médico trancou a porta por dentro e guardou a chave no bolso. Nada indicava que ali ocorrera um assassinato. As pastas rasgadas haviam sido restauradas e recolocadas nas estantes; a cadeira e a mesa estavam de pé, em sua posição habitual. As pastas estavam amarradas em maços de dez. Algumas davam a impressão de estar guardadas havia tanto tempo que pareciam grudadas umas nas outras. O barbante abria um sulco nas bordas das capas de cartolina; uma camada fina de pó se acumulara sobre elas. Dalgliesh disse: “Deve ser possível determinar quais desses maços foram desamarrados depois que os registros foram organizados e trazidos aqui para o depósito. Pelo jeito, faz vários anos que ninguém toca em alguns deles. Claro, alguém pode ter desamarrado um maço para extrair uma pasta por razões perfeitamente inocentes, mas isso não nos impede de começar pelas pastas que estão nos maços que visivelmente foram desamarrados neste último ano, ou algo assim. Os dois primeiros números de nossa lista estão na casa dos oito mil. Essas pastas estão na prateleira de cima, aparentemente. O senhor tem uma escada?” O diretor médico desapareceu atrás da primeira fila de prateleiras e reapareceu com uma escadinha que acomodou com dificuldade na passagem estreita. Erguendo os olhos para Dalgliesh enquanto o detetive subia, indagou: “Me diga uma coisa, inspetor: a confiança comovedora que o senhor demonstra ter em mim significa que fui eliminado da lista de suspeitos? Em caso positivo, estou interessado em saber que deduções o levaram a essa conclusão. Não creio que o senhor me julgue incapaz de cometer um assassinato. Acho que nenhum detetive chegaria a essa conclusão com relação a seja quem for.” “Nem nenhum psiquiatra!”, disse Dalgliesh. “Nunca me pergunto se um homem é capaz de
cometer um assassinato, mas se ele é capaz de cometer um assassinato específico. Não acredito que o senhor seja um chantagistazinho qualquer. Não vejo como poderia estar informado sobre a pretensa visita de Lauder. Duvido que o senhor tenha a força ou a habilidade necessárias para assassinar daquela maneira específica. Por último, acho que provavelmente o senhor é a única pessoa aqui da clínica que a senhorita Bolam jamais teria deixado esperando. E mesmo que eu esteja errado, o senhor não teria como recusar-se a colaborar, não é mesmo?” Dalgliesh falara num tom intencionalmente brusco. Os olhos azuis brilhantes ainda fitavam os seus, convidando-o a fazer uma confidência que não estava inclinado a fazer, mas que achava difícil evitar. O diretor médico prosseguiu. “Só encontrei três assassinos na vida. Dois deles foram executados e seus cadáveres recobertos com cal. Um, mal sabia o que fazia; o outro era incapaz de se conter. O senhor está satisfeito com essa solução?” Dalgliesh respondeu: “Nenhum homem em seu juízo perfeito estaria. Mas não vejo o que isso tem a ver com o que estou tentando fazer agora: agarrar esse assassino antes que ele — ou ela — mate novamente.” O diretor médico não disse mais nada. Juntos, localizaram as onze pastas médicas que procuravam e subiram com elas para a sala do dr. Etherege. Se Dalgliesh esperara que o diretor médico criasse dificuldades com relação ao passo seguinte da investigação, ficou agradavelmente surpreso. A sugestão de que aquele assassino talvez não se contentasse com uma vítima atingira o alvo. Quando Dalgliesh explicou o que desejava, o diretor médico não protestou. Dalgliesh disse: “Não estou pedindo que me forneça os nomes desses pacientes. Não estou interessado nos problemas deles. A única coisa que lhe peço é que telefone a cada um deles e pergunte diplomaticamente se por acaso ligou para a clínica há poucos dias, talvez na sexta-feira de manhã. O senhor poderia dizer que está precisando identificar determinado telefonema. Se algum desses pacientes tiver telefonado, quero seu nome e endereço. Não o diagnóstico. Só o nome e o endereço.” “Para que eu lhe forneça essa informação, o paciente precisa autorizar.” “Peça licença, se é preciso”, disse Dalgliesh. “Deixo isso a seu critério. A única coisa que me interessa é obter essa informação.” A condição externada pelo médico era uma formalidade, e os dois sabiam disso. As onze pastas médicas estavam sobre a escrivaninha, e só a força poderia impedir Dalgliesh de obter os endereços, se quisesse. Estava sentado a alguma distância do dr. Etherege, em uma das poltronas grandes, forradas de couro, e pronto para observar, com interesse profissional, seu insólito colaborador em ação. O diretor médico pegou o telefone e pediu uma linha externa. Os números de telefone dos pacientes haviam sido anotados nas pastas médicas, e as duas primeiras tentativas imediatamente reduziram as onze possibilidades a nove. Nos dois casos, o paciente se mudara no período posterior a seu tratamento na clínica. O dr. Etherege se desculpou junto aos novos usuários daqueles telefones e discou o terceiro número. Alguém atendeu, e o diretor médico perguntou se podia falar com o sr. Caldecote. Ouviram-se ruídos do outro lado da linha e o dr. Etherege respondeu condizentemente.” “Não, eu não sabia. Que tristeza. É mesmo? Não, nada de importante. Conheci o senhor Caldecote há muitos anos, e como vou passar por Wiltshire pensei em revê-lo. Não, obrigado, prefiro não falar com a senhora Caldecote. Não quero incomodá-la.” “Morreu?”, perguntou Dalgliesh quando a ligação foi cortada. “Morreu. Há três anos, parece. Câncer, coitado. Preciso fazer uma anotação na ficha dele.”
Fez isso. Dalgliesh esperou. Foi difícil completar a ligação com o número seguinte, mesmo com a ajuda da telefonista. Tudo isso para que, no fim, ninguém atendesse quando o telefone tocou. “Parece que nossa pesquisa não está dando em nada, inspetor. Era uma teoria inteligente, a sua, mas pelo jeito mais engenhosa do que real.” “Ainda temos sete pacientes”, respondeu Dalgliesh, sereno. O diretor médico murmurou alguma coisa a respeito de um certo dr. Talmage, com o qual tinha um encontro marcado na clínica, mas pegou a pasta seguinte e discou novamente. Dessa vez o paciente estava em casa e não pareceu nem um pouco surpreso ao saber que quem estava ao telefone era o diretor médico da Steen. Despejou um longo relatório sobre seu estado psicológico atual, que o dr. Etherege ouviu com paciente simpatia, fazendo comentários adequados. Dalgliesh ouviu com interesse, achando uma certa graça na habilidade com que a ligação era conduzida. Mas o paciente não ligara para a clínica recentemente. O diretor médico pôs o fone no gancho e passou algum tempo registrando na ficha médica as coisas que ele lhe dissera. “Um de nossos sucessos, pelo jeito. Não ficou nem um pouco surpreso com o fato de eu telefonar. Acho tocante a maneira como os pacientes têm certeza de que seus médicos sentem uma enorme preocupação com seu bem-estar e pensam neles pessoalmente em todos os momentos do dia e da noite. Mas ele não telefonou. E não estava mentindo, posso lhe garantir. Isto toma muito tempo, inspetor, mas imagino que precisamos prosseguir.” “Sim, por favor. Sinto muito, mas é preciso.” A ligação seguinte foi um sucesso. No começo, parecia outro fracasso. A julgar pelo que ouviu da conversa, Dalgliesh deduziu que o paciente fora hospitalizado recentemente e que sua mulher é que atendera o telefone. Depois viu a expressão do médico se alterar, e ouviu-o dizer: “Ligou? Sabíamos que alguém tinha telefonado e estávamos tentando descobrir quem era. Imagino que tenha ouvido falar da terrível tragédia acontecida aqui na clínica recentemente. É, está relacionado a isso.” Esperou, enquanto a voz explicava alguma coisa do outro lado da linha. Depois desligou o telefone e fez algumas anotações no bloco sobre sua escrivaninha. Dalgliesh não disse nada. O diretor médico ergueu os olhos para ele com uma expressão ao mesmo tempo intrigada e surpresa. “Era a mulher de um tal coronel Fenton, de Sprigg’s Green, em Kent. Ela telefonou para a senhorita Bolam para tratar de um assunto muito sério, mais ou menos ao meio-dia da última sexta-feira. Não quis falar sobre o assunto pelo telefone com o senhor e achei melhor não insistir. Mas gostaria de vê-lo assim que possível. Anotei o endereço.” “Obrigado, doutor”, disse Dalgliesh, ao receber o papel. Não parecia surpreso nem aliviado, mas seu coração estava feliz. O diretor médico balançou a cabeça, como se a coisa toda estivesse além de sua capacidade de compreensão. Disse: “A senhora Fenton parece uma dama imponente, muito formal. Disse que teria enorme prazer em recebê-lo para tomar chá com ela esta tarde.”
Pouco depois das quatro horas, rodando devagar, Dalgliesh entrou em Sprigg’s Green. O povoado, situado entre as estradas de Maidstone e Canterbury, não tinha nada de especial. Não se lembrava de ter passado por ali antes. Havia poucas pessoas na rua. O povoado ficava muito afastado de Londres para funcionar como cidade-dormitório, pensou Dalgliesh. Além disso, não tinha encanto de época para atrair casais aposentados, ou artistas e escritores em busca de paz rural associada a custo de vida mais baixo. Dava para perceber que muitas das casas eram
ocupadas por trabalhadores agrícolas, com seus jardins atulhados de repolhos e couves-debruxelas, os caules hirsutos mostrando as marcas de coletas recentes, as janelas fechadas para evitar as traições do outono inglês. Dalgliesh passou pela frente da igreja, com sua torre baixa de pedra e as vidraças semiocultas pelas castanheiras que cercavam a edificação. O cemitério estava malcuidado, sem chegar a ser catastrófico. A grama entre os túmulos fora aparada e dava para perceber que houvera um certo esforço no sentido de arrancar as ervas-daninhas dos caminhos de cascalho. Separado do cemitério por uma alta cerca de louros ficava o vicariato, uma casa vitoriana sombria construída para acomodar uma família de dimensões vitorianas e seus apêndices. Depois havia um relvado — um pequeno quadrado cercado por um renque de chalés de madeira — e um pub horroroso, pretensamente moderno, além de um posto de gasolina. Na frente do pub, cujo nome era King’s Head, havia um ponto de ônibus de concreto com um grupo de mulheres desanimadas à espera. Quando Dalgliesh passou, elas lançaram um olhar breve e desinteressado para o lado dele. Na primavera, sem dúvida, os pomares de cerejeiras da região emprestariam um certo encanto até mesmo a Sprigg’s Green. Agora, porém, o ar estava impregnado de uma umidade gélida. Os campos pareciam perpetuamente encharcados, e uma lenta procissão de vacas a caminho do estábulo para a ordenha da tarde pisoteava as poças da estrada transformando-a num lamaçal. Dalgliesh começou a rodar em velocidade de marcha para ultrapassá-las, atento para alguma tabuleta que indicasse Sprigg’s Acre. Não queria pedir informações. Não demorou a encontrar a casa. Ficava um pouco recuada da estrada, protegida do movimento por uma cerca de faias de dois metros de altura, dourada à luz do crepúsculo. Dalgliesh não viu entrada para carro; cuidadosamente, estacionou seu Cooper Bristol sobre o acostamento gramado e depois entrou pelo portão branco do jardim. A casa surgiu diante dele, espalhada, baixa, teto de colmo, transmitindo uma impressão de conforto e simplicidade. Assim que se virou, depois de trancar o portão, viu uma mulher surgir de um dos cantos da casa e aproximar-se dele pela trilha. Era muito baixa. De certa forma, o fato surpreendeu Dalgliesh. Ele imaginara uma esposa de coronel robusta, empertigada, recebendo-o com condescendência na hora e no local determinados por ela. A realidade era menos intimidadora e mais interessante. Havia um tom de gentileza levemente patético no modo como ela viera a seu encontro pela trilha. Vestia saia grossa e casaco de tweed; estava sem chapéu e sua espessa cabeleira branca balançava à brisa da tarde. Calçava luvas de jardinagem incongruentemente grandes, que transformavam a pazinha em sua mão num brinquedo de criança. Quando chegou junto dele, tirou a luva direita e estendeu a mão, erguendo os olhos ansiosos que se iluminaram quase imperceptivelmente de alívio. Sua voz, porém, surpreendeu-o por sua firmeza. “Boa tarde. O senhor deve ser o inspetor Dalgliesh. Meu nome é Louise Fenton. O senhor veio de carro? Tive a impressão de ouvir barulho de motor.” Dalgliesh explicou onde deixara o carro e disse que esperava não atrapalhar a passagem de ninguém. “Ah, não! Fique tranqüilo. Que maneira incômoda de viajar. O senhor podia ter vindo de trem até Marden, que eu mandava a charrete buscá-lo. Não temos carro. Nenhum de nós gosta de carro. Lamento tê-lo feito passar tanto tempo sentado.” “Era o modo mais rápido”, disse Dalgliesh, pensando se era o caso de desculpar-se por viver no século xx. “E eu queria falar com a senhora o mais depressa possível.” Procurou falar sem ansiedade, mas viu os ombros da sra. Fenton ficarem tensos de repente. “Sim, sim, claro. O senhor gostaria de ver o jardim antes de entrarmos? Já não temos muita luz,
mas acho que dá tempo.” Aparentemente ela esperava que ele se interessasse pelo jardim, e Dalgliesh aceitou o convite. Um vento leste suave, erguendo-se à medida que o dia declinava, golpeou desagradavelmente os contornos de seu pescoço e seus tornozelos, mas ele jamais apressava uma entrevista. Aquela prometia ser difícil para a sra. Fenton, que tinha o direito de imprimir seu ritmo à conversa. Analisou a própria impaciência ao mesmo tempo que tratava de ocultá-la. Nos dois últimos dias sentira-se atormentado por um pressentimento de tragédia e fracasso tanto mais perturbador por ser irracional. O caso ainda estava no começo. Sua inteligência lhe dizia que fazia progressos. Naquele momento mesmo estava prestes a descobrir o motivo, e o motivo, sabia, era crucial naquele caso. Em toda a sua carreira na Yard, não tivera nenhum fracasso, e aquele caso, com seu número limitado de suspeitos e o planejamento cuidadoso, era um candidato improvável a primeiro fracasso. Mesmo assim sentia-se preocupado, ansioso com aquele medo irracional de que o tempo estivesse acabando. Talvez fosse o outono. Talvez estivesse cansado. Levantou a gola do casaco e se preparou para fazer um ar interessado e aprovador. Os dois cruzaram juntos um portão de ferro batido ao lado da casa e entraram no jardim principal. A sra. Fenton dizia: “Adoro este jardim, mas não tenho muito jeito para jardinagem. Comigo, as coisas não crescem. Meu marido tem mão verde. Neste momento está no hospital de Maidstone, foi operado de uma hérnia. A cirurgia foi um sucesso, felizmente. O senhor pratica a jardinagem, inspetor?” Dalgliesh explicou que morava num apartamento à beira do Tâmisa, na City, e que recentemente vendera seu chalé em Essex. “Na verdade, sou uma nulidade em matéria de jardinagem”, disse. “Então vai gostar de ver nosso jardim”, respondeu a sra. Fenton, com amável — e ilógica — persistência. Era verdade que havia muito para ver, mesmo à luz declinante do entardecer de um dia de outono. O coronel dera rédea solta a sua imaginação, talvez para compensar todos os regulamentos que tivera de obedecer na vida: era um jardim exuberante, pitoresco e indisciplinado. Um pequeno gramado rodeava um lago de peixes com contorno pavimentado. Uma sucessão de arcos de treliça levava de um canteiro cuidadosamente cultivado a outro. Num roseiral com relógio solar, algumas derradeiras rosas ainda cintilavam na ponta dos caules sem folhas. Cercas de faias, teixos e pilriteiros funcionavam como um fundo verde e ouro para as alas de crisântemos. No fundo do jardim corria um regato, atravessado de cem em cem metros por pontes de madeira que eram um verdadeiro monumento à habilidade — mas não ao gosto — do coronel. Via-se que o apetite crescera com aquilo que o saciava. Depois da primeira ponte sobre o regato, o coronel não conseguira resistir a novos empreendimentos. Em pé sobre uma das pontes, Dalgliesh e a sra. Fenton interromperam por um momento a caminhada. O inspetor viu as iniciais do coronel esculpidas no parapeito de madeira. O regato que corria embaixo, já semi-engasgado com as primeiras folhas caídas, produzia um ruído tristonho. De repente a sra. Fenton disse: “Quer dizer que alguém a matou. Sei que devia sentir pena dela, apesar do que ela fez. Mas não consigo. Pelo menos por enquanto. Eu devia ter me dado conta de que Matthew não seria a única vítima. Essas pessoas nunca param depois da primeira vítima, não é mesmo? Suponho que alguém tenha perdido a capacidade de agüentar e optou por essa saída. É uma coisa terrível de se fazer, mas eu entendo. Li sobre o crime nos jornais, sabe, antes que o diretor médico telefonasse. O senhor sabe, inspetor, que por um momento eu fiquei feliz? Sei que é horrível dizer isso, mas é verdade. Fiquei feliz por ela ter morrido. Achei que as preocupações de Matthew tinham chegado
ao fim.” Dalgliesh disse com delicadeza: “Não acreditamos que a senhorita Bolam estivesse chantageando seu marido. É possível, mas improvável. Achamos que ela foi morta porque descobriu o que estava acontecendo e tinha a intenção de impedir que continuasse. Por isso nossa conversa é tão importante.” Os nós dos dedos da sra. Fenton ficaram lívidos. As mãos que seguravam o parapeito da ponte começaram a tremer. Ela disse: “Acho que fui muito tola. Não devo continuar gastando o seu tempo. Está esfriando, é melhor entrarmos.” Encaminharam-se para a casa sem falar. Dalgliesh encurtou seus passos para acertar o ritmo com o da figura magra e ereta a seu lado. Olhou ansioso para ela. Estava muito pálida, e ele teve a impressão de ver seus lábios movendo-se silenciosamente. Mas andava com determinação. Haveria de ficar bem. Disse para si mesmo que não devia apressar as coisas. Em meia hora, talvez menos, teria o motivo em segurança nas mãos, como uma bomba cuja explosão haveria de abrir o caso ao meio. Mas tinha de ser paciente. Uma vez mais, sentiu uma inquietação indefinida, como se naquele momento de triunfo iminente seu coração guardasse o sentimento do fracasso inevitável. Foram envolvidos pelo crepúsculo. Em algum lugar ardia uma fogueira, enchendo suas narinas de fumaça acre. O gramado era uma esponja molhada debaixo dos pés. A casa os acolheu, abençoadamente quente e com um leve aroma de pão feito em casa. A sra. Fenton se afastou e foi enfiar a cabeça numa peça na outra ponta do corredor. Ele imaginou que estava dando instruções para que o chá fosse servido. Em seguida, conduziu-o até a sala de estar, para o conforto de uma lareira acesa que projetava sombras imensas sobre as cadeiras e o sofá de forro de chintz e o tapete desbotado. Acendendo uma grande lâmpada de pé ao lado da lareira, puxou as cortinas para deixar lá fora a desolação e o declínio. O chá foi servido; a bandeja foi posta sobre uma mesa baixa por uma criada imperturbável, de avental, quase da idade da patroa, que evitava cuidadosamente olhar para Dalgliesh. O chá estava muito bom. Dalgliesh percebeu, com um sentimento muito semelhante à compaixão para ser agradável, que houvera preparativos para recebê-lo. Havia bolinhos recém-assados, dois tipos de sanduíche, bolos feitos em casa e um pãode-ló confeitado. Havia muito de tudo, um chá de gente jovem. Era como se as duas mulheres, diante da idéia de receber aquele visitante desconhecido e indesejado, tivessem procurado alívio para a insegurança providenciando um festim embaraçosamente farto. A própria sra. Fenton parecia surpresa com a variedade à sua frente. Manipulou as xícaras da bandeja como uma anfitriã ansiosa, inexperiente. Só depois de servir chá e sanduíches a Dalgliesh ela voltou a falar sobre o assassinato. “Meu marido freqüentou a Clínica Steen durante cerca de quatro meses, há mais ou menos dez anos, pouco depois de deixar o exército. Na época ele vivia em Londres e eu estava em Nairóbi passando uma temporada com minha nora, que esperava seu primeiro filho. Só fiquei sabendo do tratamento de meu marido quando ele me contou, há uma semana.” Fez uma pausa, e Dalgliesh disse: “Preciso dizer-lhe que evidentemente não estamos interessados em saber o que havia de errado com o coronel Fenton. Isso é assunto médico confidencial e não é da conta da polícia. Não pedi nenhuma informação ao doutor Etherege, e se tivesse pedido ele não teria me dado. O fato de seu marido estar sendo chantageado talvez tenha de vir a público — acho que não vai ser possível evitar isso —, mas a razão pela qual ele procurou a clínica e os detalhes de seu tratamento só
dizem respeito a ele e à senhora.” A sra. Fenton pousou a xícara na bandeja com infinito cuidado. Contemplou o fogo e disse: “Na verdade, acho que não me diz respeito. Não fiquei aborrecida com o fato de ele não ter me contado. É tão fácil dizer agora que eu teria entendido, que teria tentado ajudar, mas não estou segura disso. Acho que ele estava certo em não me dizer nada. As pessoas fazem muita propaganda da franqueza absoluta no casamento, mas não é muito sensato confessar coisas dolorosas — a não ser que se queira agredir o outro. Porém, eu gostaria que Matthew tivesse me falado da chantagem. Porque ali ele estava realmente precisando de ajuda. Juntos, tenho certeza de que teríamos encontrado uma saída.” Dalgliesh perguntou quando a coisa havia começado. “Exatamente há dois anos, segundo Matthew. Ele recebeu um telefonema. A voz lembrou-o de seu tratamento na Steen e chegou a mencionar alguns dos detalhes muito íntimos que Matthew contara ao psiquiatra. Depois a voz sugeriu que talvez ele quisesse ajudar outros pacientes que tentavam vencer dificuldades semelhantes. Seguiu-se um longo discurso sobre as terríveis conseqüências sociais de não conseguir se curar. Tudo muito inteligente e sutil, mas a intenção da voz estava perfeitamente clara. Matthew perguntou o que ela sugeria que ele fizesse e recebeu a instrução de enviar quinze libras em cédulas pelo correio de modo que chegassem no dia primeiro de cada mês. Deveria sobrescritar o envelope com tinta verde e dirigi-lo à gerente administrativa; junto com o dinheiro ele devia mandar um bilhete anônimo dizendo que aquilo era um donativo de um paciente agradecido. A voz disse que ele podia ter certeza de que o dinheiro seria usado exatamente onde era mais necessário.” “Era um plano inteligente”, disse Dalgliesh. “Difícil provar que havia chantagem, e a quantia foi muito bem calculada. Imagino que seu marido teria sido obrigado a tomar outra atitude se o montante solicitado fosse muito exorbitante.” “Ah, teria! Matthew nunca permitiria que ficássemos arruinados. Mas a quantia era tão pequena, não é mesmo? Não estou dizendo que quinze libras por mês não fizessem diferença para nós, mas era uma quantia que Matthew conseguia reunir sem que eu desconfiasse, fazendo economias pessoais. E o montante nunca foi aumentado. Isso é que era extaordinário. Matthew disse que sempre ouviu falar que um chantagista nunca fica satisfeito, que aumenta o montante até a vítima não conseguir mais pagar nem um centavo sequer. E com ele não foi assim. Matthew mandava o dinheiro na data adequada para que chegasse no dia primeiro do mês seguinte e recebia outro telefonema. A voz agradecia pelo amável donativo e deixava perfeitamente claro que a quantia esperada não devia ser maior do que quinze libras. E nunca foi mais do que isso. A voz dizia alguma coisa no sentido de que o sacrifício devia ser partilhado igualmente por todos. Matthew quase se convenceu de que a coisa era genuína. Há seis meses mais ou menos ele resolveu pular um mês para ver o que acontecia. Não foi muito agradável. Houve outro telefonema, e a ameaça foi claríssima. A voz mencionou a necessidade de salvar os pacientes do ostracismo social e disse que os habitantes de Sprigg’s Green ficariam muito sentidos quando ficassem sabendo de como ele fora pouco generoso. Meu marido resolveu pagar. Se o pessoal do povoado ficasse mesmo sabendo, teríamos de deixar esta casa. Minha família viveu aqui por duzentos anos e nós adoramos o lugar. Matthew ficaria de coração partido se tivesse de abandonar o jardim. E, depois, tem o povoado. Claro, o senhor viu o povoado num dia ruim, mas nós adoramos Sprigg’s Green. Meu marido é auxiliar na igreja. Nosso filho mais moço, que morreu num acidente de trânsito, está enterrado lá. Não é fácil cortar as raízes aos setenta anos de idade.” Não, não devia ser fácil. Dalgliesh não discutiu a afirmação da sra. Fenton de que se fossem
expostos teriam de partir. Um casal mais jovem, mais firme, mais sofisticado sem dúvida enfrentaria a publicidade, ignoraria as insinuações e aceitaria a solidariedade constrangida dos amigos, firmemente convencido de que nada dura para sempre e de que poucas coisas na vida do povoado estão mais mortas do que o escândalo do ano anterior. Era mais difícil aceitar a compaixão. Provavelmente a razão pela qual a maioria das vítimas recuava era o medo da compaixão. Perguntou à sra. Fenton por que a história viera à tona. “Duas coisas, na verdade. A primeira foi o fato de que precisaríamos de mais dinheiro. O irmão mais moço de meu marido morreu inesperadamente há um mês e deixou a viúva numa situação financeira muito delicada. Ela é inválida e provavelmente não viverá mais do que um ou dois anos, mas mora tranqüila e feliz numa clínica perto de Norwich e gostaria de continuar lá. Tratava-se de ajudá-la a pagar a clínica. Ela precisava de mais cinco libras por semana, e eu não entendia por que Matthew parecia tão preocupado. Era só uma questão de bom planejamento: eu achava que podíamos muito bem arrumar o dinheiro. Só que ele sabia, evidentemente, que se continuasse mandando as quinze libras da Steen não teríamos condições de ajudar minha cunhada. Depois, teve a questão da cirurgia dele. Não foi nada de muito grave, eu sei, mas qualquer operação significa um risco quando se tem setenta anos, e ele estava com medo de morrer e a história toda vir à tona sem que ele estivesse aqui para explicar. Por isso resolveu me contar. Fiquei muito feliz porque contou. Resulta que ele foi tranqüilo para o hospital e que a cirurgia foi um sucesso. Realmente um sucesso. Posso lhe servir um pouco mais de chá, inspetor?” Dalgliesh estendeu a xícara e perguntou que medidas ela resolvera tomar. Estavam chegando ao ponto crucial da conversa, mas ele tomava cuidado para não apressá-la nem parecer excessivamente ansioso. Seus comentários e perguntas poderiam ter sido os de qualquer outro convidado para o chá, participando educadamente da conversa da anfitriã. Ela era uma senhora de idade que passara por uma ansiedade muito grande e estava enfrentando outra ainda mais grave. Ele fazia idéia de como devia ser difícil para ela fazer aquela revelação a um estranho. Toda manifestação formal de solidariedade seria uma presunção, mas pelo menos ele podia ajudar mostrando paciência e compreensão. “Que medidas eu resolvi tomar? Bem, o problema era todo esse, claro. Uma coisa eu sabia: a chantagem tinha de parar. Mas queria poupar-nos, se possível. Não sou uma mulher muito inteligente — não adianta balançar a cabeça: se eu fosse inteligente, esse assassinato não teria acontecido —, mas planejei tudo direitinho. Cheguei à conclusão de que a melhor coisa a fazer era visitar a Clínica Steen e conversar com algum responsável. Podia explicar o que estava acontecendo, talvez até sem mencionar meu nome, e pedir que a própria clínica investigasse o assunto e acabasse com a chantagem. Afinal, eles conheciam os fatos sobre meu marido, portanto eu não estaria revelando o segredo dele a ninguém que já não o conhecesse, e eles estariam tão ansiosos quanto eu para evitar que o assunto viesse a público. Não seria nada bom para a clínica se isso acontecesse, não é mesmo? Era provável que conseguissem encontrar o chantagista sem maiores dificuldades. Afinal de contas, os psiquiatras supostamente entendem a cabeça das pessoas, e tinha de ser alguém que freqüentasse a clínica na época do tratamento do meu marido. Depois, o fato de ser uma mulher limitava o número de suspeitos.” “A senhora está me dizendo que o chantagista era uma mulher?”, perguntou Dalgliesh, surpreso. “Ah, era! Pelo menos a voz do telefone era de mulher, segundo meu marido.” “Ele está absolutamente seguro?” “Não me pareceu ter dúvidas quanto a isso. Não era só a voz, entende? Também algumas das coisas que ela dizia. Por exemplo, que não era só pessoas do sexo de meu marido que sofriam
dessas doenças; se ele algum dia havia pensado em quanta infelicidade elas podiam causar às mulheres, e assim por diante. Houve referências diretas ao fato de ela ser mulher. Meu marido se lembra muito claramente das conversas telefônicas e poderá lhe contar quais foram essas observações. Imagino que o senhor queira vê-lo tão logo possível, não é mesmo?” Comovido com a visível ansiedade na voz dela, o inspetor respondeu: “Se o médico autorizar o coronel Fenton a ter uma pequena conversa comigo, eu gostaria de falar com ele hoje à noite, quando estiver voltando para Londres. Tem uma ou duas coisinhas — por exemplo essa questão do sexo do chantagista — em que só ele pode me ajudar. Não vou incomodá-lo mais do que o necessário.” “Tenho certeza de que ele pode falar com o senhor. Está sozinho num pequeno quarto, recuperando-se muito bem. Contei a ele que o senhor vinha conversar comigo hoje, portanto ele não ficará surpreso ao vê-lo. Prefiro não acompanhá-lo, se não se incomoda. Acho que ele prefere conversar sozinho com o senhor. Vou escrever um bilhete para o senhor entregar a ele.” Dalgliesh agradeceu e disse: “É interessante que seu marido diga que se trata de uma mulher. Talvez ele tenha razão, claro, mas pode ser um disfarce inteligente do chantagista, uma coisa difícil de desmentir. Alguns homens sabem imitar muito convincentemente a voz feminina, e as referências casuais para indicar o sexo do interlocutor do coronel Fenton funcionariam ainda melhor do que a imitação da voz. Se o coronel tivesse resolvido recorrer à justiça e o caso chegasse aos tribunais, teria sido muito difícil condenar um homem por esse crime específico, a não ser que as evidências fossem indiscutíveis. E, até onde eu posso ver, quase não haveria evidências. Confesso que não estou nem um pouco convencido do sexo do chantagista. Mas — desculpe, interrompi o que a senhora estava dizendo...” “É muito importante chegar a uma conclusão quanto a esse ponto, não é mesmo? Espero que meu marido tenha condições de ajudá-lo. Bem, como eu estava dizendo, cheguei à conclusão de que o melhor a fazer era ir até a clínica. Na sexta-feira de manhã bem cedo, tomei um trem para Londres. Tinha hora no calista, e Matthew estava precisando de algumas coisinhas no hospital. Resolvi começar pelas compras. Devia ter ido direto para a clínica, óbvio. Foi outro erro. Covardia, na verdade. Eu não estava com vontade de ir e tentei encarar a coisa como se na verdade ela não tivesse maior importância. Como se fosse uma visita informal, que podia encaixar entre as compras e o calista. No fim, acabei não indo. Telefonei. Está vendo? Eu lhe disse que não era muito inteligente.” Dalgliesh perguntou o que provocara a mudança de plano. “A Oxford Street. Sei que parece tolice, mas foi o que aconteceu. Fazia algum tempo que eu não ia a Londres desacompanhada e tinha esquecido de como a cidade está horrível. Quando eu era jovem, gostava de Londres. Na época, era uma cidade graciosa. Agora está cheia de edifícios e nas ruas só se vêem malucos e estrangeiros. Não devemos reclamar deles, eu sei. Dos estrangeiros. É só que me sinto tão deslocada... E, depois, tem os carros. Tentei atravessar a Oxford Street e fiquei entalada no meio deles, numa das ilhas entre as duas faixas. Claro, eles não estavam matando ninguém, nem atropelando ninguém. Não conseguiam. Não conseguiam nem se mover. Mas o cheiro dos carros era tão horroroso que tive de tapar o nariz com o lenço e comecei a me sentir mal, com náusea. Quando cheguei à calçada, entrei numa das lojas para ir ao toalete. Era no quinto andar, e levei um tempão para achar o elevador correspondente. Havia uma multidão de gente, todos espremidos. Quando cheguei ao toalete, não havia cadeira onde pudesse me sentar. Estava em pé, encostada na parede, pensando se conseguiria arranjar energia suficiente para
entrar numa fila e comprar meu almoço, quando vi uma fileira de telefones públicos. De repente me dei conta de que podia telefonar para a clínica e me poupar a viagem e a provação de contar minha história frente a frente. Agora vejo que foi burrice, mas na hora parecia uma ótima idéia. Seria mais fácil esconder minha identidade pelo telefone, e tive a sensação de que conseguiria explicar melhor as coisas. Também me senti muito melhor quando pensei que se a conversa ficasse muito difícil, era só desligar o telefone. Como vê, eu estava sendo muito covarde, e minha única desculpa é que estava muito cansada, bem mais cansada do que pensava que fosse possível. Imagino que vá me dizer que eu devia ter ido direto à polícia, à Scotland Yard. Mas a Scotland Yard é um lugar que associo com histórias de detetives e assassinatos. Parece quase impossível que exista realmente, e que a pessoa possa ir até lá relatar seu problema. Além disso, eu continuava muito ansiosa para evitar toda publicidade. Achei que a polícia não ia querer ajudar, e não estava disposta a cooperar, contando a história inteira ou dispondo-me a abrir um processo. A única coisa que eu queria, entende, era que o chantagista parasse de fazer chantagem. Não estava demonstrando muito espírito público, não é mesmo?” “Muito compreensível”, replicou Dalgliesh. “Acho provável que a senhorita Bolam tenha recebido a advertência telefônica. Lembra-se do que disse a ela?” “Não muito bem, infelizmente. Depois que consegui encontrar uma moeda para fazer a ligação e que procurei o número do telefone no catálogo, passei alguns minutos resolvendo o que ia dizer. Uma voz de homem respondeu e pedi para falar com o gerente administrativo. Em seguida ouvi uma voz de mulher dizendo: ‘Gerente administrativa’. Eu não esperava ouvir uma mulher, e de repente enfiei na cabeça que estava falando com a chantagista. Por que não, afinal? Então falei que alguma pessoa da clínica, provavelmente ela própria, estava chantageando meu marido, e que eu estava telefonando para avisar que essa pessoa não receberia mais nem um centavo de agora em diante, e que se houvesse mais algum telefonema iríamos direto à polícia. Saiu tudo de uma vez só. Eu estava com tremedeira e tive de me encostar na parede da cabine telefônica para não cair. Acho que estava um pouco histérica. Quando achou uma brecha para dizer alguma coisa, ela me perguntou se eu era paciente da clínica e quem estava me atendendo, depois disse alguma coisa sobre pedir a um dos médicos que conversasse comigo. Acho que imaginou que eu estava descontrolada. Respondi que nunca fora paciente da clínica e que se algum dia precisasse de tratamento — Deus que me proteja — nunca iria procurar um lugar onde as indiscrições e a infelicidade de um paciente viravam oportunidade para chantagem. Acho que acabei dizendo que havia uma mulher envolvida, que essa mulher devia estar na clínica havia aproximadamente dez anos, e que, se a gerente administrativa não era a pessoa em questão, eu esperava que ela assumisse o compromisso de descobrir quem era. Ela tentou me convencer a deixar meu nome ou a ir até lá falar com ela, mas desliguei.” “A senhora forneceu algum detalhe sobre o funcionamento da chantagem?” “Falei que meu marido costumava mandar quinze libras por mês num envelope sobrescritado com tinta verde. Foi nesse momento que ela ficou muito ansiosa para que eu fosse até a clínica ou para que pelo menos dissesse meu nome. Foi descortês da minha parte desligar sem chegar ao fim da conversa, mas de repente fiquei com medo. Não sei por quê. E além do mais eu já dissera tudo o que pretendia dizer. Àquela altura uma das cadeiras do toalete ficara desocupada; sentei-me durante meia hora, até me sentir melhor. Depois fui direto para Charing Cross e tomei café com sanduíches numa cafeteria da estação enquanto esperava meu trem. No sábado li a notícia do assassinato no jornal e confesso que concluí que uma das outras vítimas — porque com certeza há outras vítimas — havia escolhido essa solução. Não associei o assassinato com meu telefonema,
pelo menos no começo. Depois comecei a pensar que talvez fosse meu dever informar a polícia sobre as coisas que vinham acontecendo naquele lugar horrível. Ontem discuti o assunto com meu marido e resolvemos não fazer nada precipitado. Achamos que talvez fosse melhor esperar para ver se haveria outros telefonemas do chantagista. Eu não estava muito satisfeita com nosso silêncio. Os jornais não deram maiores detalhes sobre o assassinato, por isso não sei o que aconteceu exatamente. Mas me dei conta de que talvez a chantagem estivesse relacionada ao crime e de que a polícia estaria interessada em ter essa informação. Eu ainda não sabia direito o que fazer quando o doutor Etherege telefonou. O resto o senhor sabe. Estou me perguntando até agora como o senhor conseguiu me achar.” “Da mesma maneira utilizada pelo chantagista para selecionar o coronel Fenton no fichário dos diagnósticos e nos arquivos médicos da clínica. Não vá pensar que o pessoal da Steen não vela pelos papéis confidenciais, porque vela. O doutor Etherege está consternado com esse assunto da chantagem. Mas não existe sistema completamente à prova de perversidade inteligente e deliberada.” “O senhor vai encontrá-lo, não vai?”, ela perguntou. “Vai encontrá-lo?” “Graças à senhora, acho que sim”, replicou Dalgliesh. Quando ele lhe estendeu a mão em despedida, ela subitamente perguntou: “Como era ela, inspetor? A mulher assassinada. Me fale da senhorita Bolam.” Dalgliesh disse: “Tinha quarenta e um anos de idade. Solteira. Nunca a vi com vida, mas tinha cabelo castanhoclaro e olhos azuis-acinzentados. Era robusta, testa larga, lábios finos. Filha única, pais já falecidos. Levava uma vida solitária, mas sua igreja significava muito para ela; foi guia de bandeirantes. Gostava de flores e de crianças. Era conscienciosa e eficiente, mas não muito boa para entender as pessoas. Era amável quando via alguém em dificuldades, mas todos a achavam inflexível, desprovida de senso de humor e repressora. Acho que provavelmente estavam certos. Tinha intenso sentimento de dever.” “Sou responsável por sua morte. Tenho de aceitar esse fato.” Dalgliesh disse com delicadeza: “A senhora sabe que é um absurdo pensar assim. Apenas uma pessoa é responsável e, graças à senhora, vamos encontrá-la.” Ela balançou a cabeça. “Se eu tivesse procurado o senhor, ou se houvesse tido a coragem de ir até a clínica em vez de telefonar, ela hoje estaria viva.” Dalgliesh achava que Louise Fenton merecia mais do que ser tranqüilizada com mentiras fáceis que, além do mais, não teriam o poder de consolá-la. Por isso respondeu: “Talvez seja verdade. São tantos ‘ses’... Ela hoje estaria viva se o secretário do grupo tivesse cancelado uma reunião para ir imediatamente até a clínica falar com ela; se ela própria tivesse ido imediatamente falar com ele; se um velho porteiro não sofresse de dor de estômago. A senhora fez o que achou certo e ninguém pode fazer mais.” “Ela também, coitada”, respondeu a sra. Fenton. “E veja só no que se meteu!” Deu algumas palmadinhas no ombro de Dalgliesh, como se fosse ele quem estava precisando de consolo e segurança. “Eu não queria aborrecê-lo. Por favor, me desculpe. O senhor foi muito gentil e paciente. Posso fazer-lhe uma última pergunta? O senhor disse que graças a mim vai capturar o assassino. Sabe quem ele é?”
“Sei”, disse Dalgliesh. “Acho que agora sei quem ele é.”
7
Pouco mais de duas horas depois, de volta a seu escritório na Yard, Dalgliesh discutiu o caso com Martin. Havia uma pasta médica aberta sobre a mesa diante dele. “A história contada pela senhora Fenton pôde ser confirmada?” “Sim, pôde. O coronel foi muito acessível. Agora que está recuperado do duplo sofrimento da operação e da confissão feita à esposa, está inclinado a ver as duas experiências com descontração. Chegou a sugerir que a solicitação de dinheiro pudesse ser genuína, e que era sensato supor que fosse. Tive de dizer a ele que uma mulher fora assassinada para que ele se dispusesse a encarar as coisas como elas são. Depois me contou toda a história. Combinava com o que a senhora Fenton me contara, exceto por um acréscimo muito interessante. Adivinhe! Tem três chances.” “Seria alguma coisa relativa ao roubo das quinze libras? O ladrão foi o próprio Fenton?” “Que diabo, Martin, de vez em quando você podia fazer um esforço para parecer surpreso. Sim, foi o nosso coronel. Mas ele não pegou as quinze libras. Se tivesse pegado, eu não o culparia. Afinal de contas, o dinheiro era dele. Ele próprio admite que teria recuperado o dinheiro se o tivesse visto, mas, naturalmente, não viu. Estava na clínica por uma razão bem diferente. Para apanhar a ficha médica. Estava um pouco desorientado na maioria das coisas, mas se dava conta de que a ficha médica era a única prova efetiva do que acontecera na época em que fora paciente da Steen. Claro que sua tentativa de roubo não deu certo, embora tivesse praticado cortar vidro em sua estufa, e acabou fazendo uma retirada indigna quando ouviu Nagle e Cully chegando. Não chegou nem perto da ficha que procurava. Imaginou que ela estivesse num dos arquivos da secretaria e conseguiu arrombá-los. Quando viu que as fichas estavam numeradas, percebeu que jamais teria sucesso. Fazia muito tempo que esquecera qual era seu número na clínica. Imagino que o tenha empurrado firmemente para fora da memória no momento em que se sentiu curado.” “Bom, pelo menos a clínica fez isso por ele — curou-o.” “Está aí uma coisa que ele não reconhece. Acho que não é incomum, com pacientes psiquiátricos. Deve ser bastante desanimador para os psiquiatras. Afinal, você não encontra pacientes de cirurgia insistindo que se tivessem tido a oportunidade teriam operado a si próprios. Não, o coronel não está se sentindo especialmente grato à Steen, nem inclinado a dar-lhe maiores créditos por cuidar dos seus problemas. Suponho que talvez esteja certo. Acho que o doutor Etherege não afirmaria que é possível fazer muita coisa por um paciente psiquiátrico num período de quatro meses, que foi o tempo que durou o tratamento de Fenton. Sua cura — se quiser chamála assim — provavelmente teve alguma coisa a ver com o fato de ele sair do Exército. É difícil saber se estava ansioso por esse momento ou se o temia. Seja como for, é melhor não cair na tentação de ser psicólogos amadores.” “Que tipo de homem é o coronel, inspetor?” “Baixo. Talvez pareça ainda menor por causa de sua doença. Cabelo cor de areia, sobrancelhas espessas. Parece um animalzinho nervoso olhando para fora da toca. Uma personalidade muito mais fraca que a da mulher, acho eu, apesar da aparente fragilidade da senhora Fenton. Não nego que é difícil parecer em plena forma deitado numa cama de hospital, de pijama listrado e com uma irmã portentosa insistindo para a pessoa se comportar bem e não falar demais. Ele não foi de grande ajuda com a voz ao telefone. Disse que parecia voz de mulher e que nunca tinha pensado
na hipótese de que pudesse não ser. Por outro lado, não ficou surpreso quando eu disse que a voz podia ser disfarçada. Mas é sincero, e dá para ver que não sabe mesmo mais nada. Simplesmente não sabe. Mesmo assim, já temos o motivo. Este é um dos raros casos em que saber ‘por quê’ é o mesmo que saber ‘quem’.” “O senhor vai providenciar um mandado de prisão?” “Ainda não. Não estamos prontos. Se não avançarmos com cuidado agora, o caso inteiro pode se desmanchar nas nossas mãos.” Uma vez mais, foi assaltado pelo pressentimento apavorante do desastre. Quando deu por si, estudava o caso como se já tivesse fracassado. Onde havia errado? Mostrara suas cartas ao assassino no momento em que levara o fichário dos diagnósticos para a sala do diretor médico sem se preocupar em ocultar o fato. Com certeza a notícia circulara rapidamente pela clínica. Era o que ele havia planejado. Chega um momento em que é útil assustar sua presa. Mas será que aquele assassino era do tipo que se deixa assustar a ponto de trair-se? Teria sido um erro de avaliação, agir tão abertamente? De repente o rosto franco e sincero de Martin pareceu-lhe irritantemente bovino, ali parado sem dizer nada, à espera de instruções. Dalgliesh disse: “Suponho que tenha ido à casa de Priddy. Bem, vamos às fofocas. A garota é casada, imagino...” “Quanto a isso não há dúvida. Passei por lá hoje mais cedo e tive uma conversa com os pais. Por sorte a senhorita Priddy não estava, tinha ido comprar peixe e batatinhas para o jantar. É uma família bem pobre.” “O que uma coisa tem a ver com a outra? Mas prossiga.” “Não há muito a contar. Moram numa daquelas casas com terraço que dão para a linha sul da ferrovia, em Balham. Tudo é muito arrumado e confortável, mas não tem televisão nem nada do tipo. Vai ver que a religião deles não permite. O pai e a mãe da senhorita Priddy têm mais de sessenta, acho. Jennifer é filha única, e a mãe já devia ter mais de quarenta anos quando ela nasceu. Quanto ao tal casamento, é o de sempre. Fiquei supreso com o fato de eles me contarem, mas contaram. O marido trabalha num depósito; era colega da moça em seu último emprego. Aí ela engravidou e os dois tiveram de se casar.” “Uma história dolorosamente trivial. A gente imagina que a geração dela, que acha que conhece todas as respostas sobre sexo, devia estar informada sobre certos fatos básicos. No entanto, pelo que dizem, esses pequenos acidentes não preocupam ninguém, nos dias que correm.” Dalgliesh ficou chocado com a amargura da própria voz. Seria realmente necessário reclamar tão veementemente de uma pequena tragédia tão comum quanto aquela?, pensou. O que estaria acontecendo com ele? Martin disse, impassível: “Preocupam pessoas como os Priddy. Essa juventude arruma confusão, mas em geral é a desprezada geração mais velha que tem de resolver as coisas. Os Priddy fizeram o que podiam. Claro, obrigaram os jovens a se casar. A casa não é grande, mas desocuparam o primeiro andar e o transformaram num pequeno apartamento para o jovem casal. Muito bem decorado, aliás. Eles me mostraram.” Dalgliesh pensou que detestava a expressão “jovem casal”, com seus subtons piegas de mansa domesticidade e seu eco de desilusão. “Pelo jeito sua visitinha foi um sucesso”, observou Dalgliesh. “Gostei deles. São boas pessoas. O casamento da filha não durou, evidentemente, e acho que agora eles se perguntam se agiram certo ao forçá-la a casar-se. O cara foi embora de Balham há mais de dois anos e eles não sabem onde está agora. Me disseram o nome dele e mostraram sua fotografia. Não tem nada a ver com a Clínica Steen.”
“Foi o que eu achei. Dificilmente nos passaria pela cabeça que Jennifer Priddy pudesse ser a esposa do doutor Henry Etherege. Nem seus pais nem seu marido têm ligação com o crime.” E não tinham mesmo, só que suas vidas, como tangentes fugidias, haviam feito um breve contato com o círculo da morte. Todo assassinato produzia pessoas como eles. Mais vezes do que era capaz de lembrar-se, Dalgliesh já se sentara em salas de estar, quartos, bares e delegacias conversando com pessoas que haviam mantido contato, mesmo breve, com um assassinato. A morte violenta era um grande liberador de inibições, o chute que estoura o topo de tantos formigueiros. Seu trabalho, em relação ao qual podia enganar-se dizendo a si mesmo que não se envolver era um dever, lhe propiciara muitos olhares intrusivos para as vidas secretas de homens e mulheres a quem talvez só voltasse a ver como rostos identificados de passagem em meio a uma multidão londrina. Às vezes desprezava sua imagem privada, a do inquisidor paciente, distante e não repressivo da miséria e da culpa dos outros. Por quanto tempo a pessoa conseguia manter-se distante, pensou, sem perder a própria alma? “O que aconteceu com a criança?”, perguntou de repente. “Ela teve um aborto”, respondeu Martin. Claro, pensou Dalgliesh. Só podia mesmo ter um aborto. Nada podia dar certo com pessoas como os Priddy. Naquela noite tinha a sensação de também estar contaminado pela má sorte deles. Perguntou a Martin o que averiguara sobre a srta. Bolam. “Pouca coisa que já não soubéssemos. Freqüentavam a mesma igreja, e Jennifer Priddy tinha sido bandeirante no grupo de Enid Bolam. Os velhos se referiram a ela com muito respeito. Ela os ajudara quando o bebê estava a caminho — tive a impressão de que ela havia financiado a reforma da casa —, e quando o casamento fracassou sugerira que Jennifer trabalhasse na Steen. Acho que os velhos ficavam felizes com a idéia de que alguém estava cuidando de Jenny. Não souberam me dizer grande coisa sobre a vida particular da senhorita Bolam, pelo menos nada que já não soubéssemos. Mas aconteceu uma coisa esquisita. Foi quando a garota voltou com o jantar. A senhora Priddy me convidou a ficar para comer com eles, mas eu disse que era melhor voltar. O senhor sabe como é, peixe e batatinhas. A pessoa compra só o número contado de peixes, e é difícil encaixar um convidado de última hora. Seja como for, os pais chamaram a garota para se despedir de mim e ela veio da cozinha para a sala com uma cara péssima. Só ficou um ou dois segundos, e os velhos aparentemente não notaram nada. Mas eu notei. Alguma coisa tinha deixado a garota apavorada.” “Talvez o fato de encontrá-lo em sua casa. Talvez tenha imaginado que os pais tivessem ficado sabendo de sua ligação com Nagle.” “Acho que não era isso. Quando voltou das compras, apareceu na porta da sala e disse ‘boa noite’ com a cara mais satisfeita do mundo. Expliquei que só estava tendo uma conversa com seus pais porque eles eram amigos da senhorita Bolam e talvez pudessem nos contar alguma coisa útil sobre a vida particular da falecida. Ela não pareceu ficar preocupada. Só uns cinco minutos mais tarde é que voltou com aquela expressão tão estranha.” “Ninguém chegou na casa, ninguém telefonou durante esse período?” “Não. De todo modo, não ouvi ninguém. Eles não têm telefone. Acho que foi alguma coisa que aconteceu com ela enquanto estava sozinha na cozinha. Não dava para perguntar. Estava de saída e não tinha como puxar assunto. Simplesmente disse a eles que se pensassem em alguma coisa que pudesse ser útil, avisassem imediatamente.” “Vamos ter de conversar com ela de novo, claro, e quanto antes melhor. O álibi tem de ser desmentido, e ela é a única pessoa que pode fazer isso. Acho que não era uma mentira deliberada
da parte dela, nem que estivesse sonegando indícios deliberadamente. A verdade simplesmente não lhe ocorreu.” “Nem a mim. Só depois que econtramos o motivo. O que quer fazer agora? Dar um suadouro nele?” “Melhor não, Martin. Perigoso demais. Temos de correr. Acho que agora vamos até a casa de Nagle ter uma conversinha com ele.” Mas quando chegaram a Pimlico, vinte minutos mais tarde, encontraram o apartamento trancado e um papelzinho dobrado preso embaixo da aldrava. Dalgliesh desdobrou o papel e leu em voz alta: “Querido, que pena que nos desencontramos. Preciso falar com você. Se não nos encontrarmos esta noite, amanhã cedo estou na clínica. Amor, Jenny”. “Adianta esperar por ele, inspetor?” “Duvido muito. Acho que sei onde ele está. Cully estava na mesa telefônica esta manhã durante nossos telefonemas, mas me certifiquei de que Nagle, e provavelmente todos os outros empregados da Steen, soubessem que eu estava interessado nos registros médicos. Pedi ao doutor Etherege que os guardasse depois que eu saísse. Nagle vai à Steen uma ou duas noites por semana para controlar a caldeira e desligar o forno de cerâmica da sala de arte-terapia. Imagino que esteja lá esta noite, aproveitando a oportunidade para verificar quais arquivos foram retirados. Vamos passar por lá para dar uma olhada.” Enquanto o carro avançava para o norte na direção do rio, Martin disse: “É fácil entender por que ele precisava do dinheiro. Não dava para alugar um apartamento como aquele com um salário de porteiro. Mais o material de pintura...” “É mesmo. O loft é impressionante. Pena que não o viu, Martin. E tinha as aulas com Sugg. Nagle pode ter conseguido um preço especial, mas Sugg não dá aulas de graça. Não acredito que a chantagem fosse especialmente lucrativa. Inteligente da parte dele. Provavelmente havia mais de uma vítima e as quantias eram cuidadosamente calculadas. Mas mesmo que ele só conseguisse quinze ou trinta libras por mês livres de imposto, seria suficiente para ir levando até ele ganhar a bolsa Bollinger ou ficar famoso.” “É bom pintor?”, perguntou Martin. Ele nunca se manifestava a respeito de determinados assuntos, mas estava convencido de que seu chefe era especialista em todos eles. “Pelo menos os membros da Fundação Bollinger acham que é.” “Não restam dúvidas, não é mesmo?” Martin não estava se referindo ao talento de Nagle como pintor. Dalgliesh respondeu, irritado: “Claro que restam dúvidas. Sempre há dúvidas, neste estágio das investigações. Mas pense nas coisas que sabemos. O chantagista exigiu que o dinheiro fosse enviado num envelope sobrescritado de forma específica, supostamente para poder apanhá-lo antes que a correspondência fosse aberta. Nagle chega primeiro na clínica e é responsável pela seleção e distribuição da correspondência. O coronel Fenton tinha de mandar o dinheiro de forma que ele sempre chegasse no dia primeiro. Nagle foi à clínica no dia primeiro de maio mesmo estando doente, e mais tarde teve de ser levado em casa. Acho que não foi a ansiedade com a visita do duque que o levou até lá. A única vez em que não conseguiu ser o primeiro a chegar no trabalho foi no dia em que ficou preso no metrô, justamente o dia em que a senhorita Bolam recebeu quinze libras pelo correio, enviadas por um paciente agradecido anônimo. “E agora chegamos ao assassinato e a teoria substitui os fatos. Naquela manhã, Nagle ajudava na recepção por causa da dor de estômago de Cully. Quando a senhora Fenton telefona, ele
escuta. Sabe qual será a reação da senhorita Bolam e, condizentemente, ela lhe pede que faça uma ligação para a sede do grupo. Escuta mais essa ligação e fica sabendo que o senhor Lauder irá à Steen depois da reunião da Comissão de Finanças. Antes disso, em algum momento, a senhorita Bolam precisa morrer. Mas como? Não há possibilidade de ele conseguir atraí-la para fora da Steen. Que desculpa utilizar, e como obter um álibi? Não, a coisa precisa ser feita na clínica. E, afinal de contas, talvez seja uma boa idéia. A gerente não é popular. Com sorte aparecerão muitos suspeitos para manter a polícia ocupada, alguns dos quais com excelentes motivos para desejar a morte da senhorita Bolam. “Então ele faz seus planos. É óbvio que o telefonema para a senhorita Bolam não precisa necessariamente ter sido feito do subsolo. Quase todas as salas têm telefones. Mas se o assassino não estivesse esperando por ela na sala dos arquivos, como faria para ter certeza de que ela ficaria lá embaixo até ele conseguir descer? Foi por isso que Nagle espalhou as pastas pelo chão. Conhecia suficientemente a senhorita Bolam para saber com boa dose de certeza que ela não conseguiria deixar de apanhá-las. Na opinião do doutor Baguley, talvez sua primeira reação tivesse sido ligar para Nagle para pedir sua ajuda. Mas não foi isso o que ela fez, evidentemente, porque estava esperando por ele a qualquer momento. Em vez disso, começou a arrumar as pastas e deu-lhe os dois ou três minutos de que precisava. “Em minha opinião, foi isso que aconteceu. Mais ou menos às dez para as seis ele desce até a sala dos porteiros para vestir o capote. Nesse momento destranca a sala dos arquivos e joga as pastas no chão. Deixa a luz acesa e fecha a porta, mas não a tranca. Depois destranca a porta dos fundos. Entra na secretaria para apanhar a correspondência para a caixa do correio. A senhorita Priddy está lá, mas periodicamente vai até a sala do arquivo, logo ao lado. Ele só precisa de um minuto para telefonar para a senhorita Bolam e pedir-lhe que desça até a sala dos arquivos porque tem uma coisa muito grave a lhe mostrar. Sabemos qual foi a reação dela a essa mensagem. Antes de Nagle conseguir desligar, Jennifer Priddy está de volta. Ele não perde a cabeça. Corta a ligação sem repor o fone no gancho e finge que está falando com a senhorita Bolam sobre a roupa lavada. Depois, sem desperdiçar mais tempo, sai com a correspondência. Só precisa atravessar a rua para depositá-la na caixa do correio. Em seguida corre pelo beco do fundo, entra no subsolo pela porta dos fundos que havia destrancado, enfia o formão no bolso, busca a estátua de Tippett e entra na sala dos arquivos. A senhorita Bolam está lá, como ele previra, ajoelhada, recolhendo os arquivos rasgados e espalhados. Ergue os olhos para ele, sem dúvida prestes a perguntar-lhe por onde andava. Mas antes que ela tenha tempo de falar, ele a golpeia. Vendo-a inconsciente, pode apunhalá-la com calma. Não pode haver nenhum erro — como não há. Nagle é um pintor de nus, e seu conhecimento de anatomia provavelmente é tão bom quanto o da maioria dos psiquiatras. E sabia usar aquele formão. Para essa parte particularmente importante do empreendimento, escolheu uma ferramenta em que confiava e que sabia como usar.” Martin disse: “Se ele tivesse andado até a esquina da Beefsteak Street para comprar o Standard, não teria chegado ao subsolo a tempo. Mas o jornaleiro não me garantiu que ele tinha aparecido. Levava um jornal na mão ao voltar para a Steen, mas podia tê-lo obtido na hora do almoço e guardado no bolso.” “Acho que foi o que ele fez”, disse Dalgliesh. “Por isso não quis deixar Cully conferir os resultados das corridas. Cully teria percebido imediatamente que aquela era a edição do meio-dia. Em vez de emprestar o jornal, Nagle vai com ele para o subsolo e mais tarde o utiliza para enrolar
a comida do gato antes de queimá-lo na caldeira. Claro que não ficou por muito tempo sozinho no subsolo. Jenny Priddy não lhe dava folga. Mas teve tempo de trancar novamente a porta dos fundos e ir falar com a enfermeira Bolam para saber se a roupa limpa já podia ser levada para os andares superiores. Se Priddy não tivesse descido, Nagle teria ido ao seu encontro na secretaria. Tomaria cuidado para não ficar sozinho no subsolo por mais de um minuto. O horário do assassinato teria de coincidir com o período em que estivera fora da clínica com a correspondência.” Martin disse: “Fiquei pensando por que ele não destrancou a porta do subsolo depois do assassinato, mas decerto não queria chamar a atenção para ela. Afinal, se um estranho podia ter entrado na clínica por ali, não levaria muito tempo para as pessoas começarem a pensar que Nagle também podia ter entrado por ali. Sem dúvida foi ele que pegou aquelas quinze libras depois que o coronel Fenton invadiu o local. O pessoal da polícia sempre achou esquisito o fato de que o ladrão sabia onde encontrar o dinheiro. Imagino que Nagle achasse que tinha direito de ficar com ele.” “O mais provável é que quisesse encobrir a razão para o arrombamento — fazê-lo parecer um roubo comum. Não seria bom a polícia começar a especular por que um intruso desconhecido teria vontade de examinar os registros médicos. O roubo das quinze libras — que ninguém, além de Nagle, teve oportunidade de praticar — só confundiu as coisas. O mesmo vale para a história do elevador. Foi um toque de mestre. Não precisaria de mais do que um minuto para içá-lo até o segundo andar, antes de escapar pela porta dos fundos, e era muito provável que alguém ouvisse o barulho e se lembrasse dele mais tarde.” Martin achou que tudo se encaixava muito bem, mas que seria quase impossível provar alguma coisa. “Foi por isso que mostrei minhas cartas ontem na clínica. Temos de deixá-lo assustado. É por isso que vale a pena dar uma olhada na clínica esta noite. Se ele estiver lá, vamos aplicar pressão. Pelo menos agora sabemos em que direção estamos indo.”
Meia hora antes de Dalgliesh e Martin passarem em seu apartamento em Pimlico, Peter Nagle entrava na Steen pela porta da frente, trancando-a atrás de si. Não acendeu as luzes; dirigiu-se ao subsolo com a ajuda de uma potente lanterna. Não havia muito a fazer: era só desligar o forno de cerâmica e verificar a caldeira. Depois precisava resolver um probleminha pessoal. Teria de entrar na sala dos arquivos, mas aquele lugar quente, cheio de ecos, que abrigara a morte, não lhe provocava terror. Os mortos estavam mortos, acabados, eram impotentes, nunca mais falariam. Num mundo de tantas incertezas, isso pelo menos era certo. Um homem com coragem suficiente para matar podia lhe provocar medo, por várias razões. Dos mortos, porém, não tinha nada a temer. Foi então que ouviu a campainha da entrada. Era um toque hesitante, tentativo, que retiniu no silêncio da clínica como um som sobrenatural. Quando abriu a porta, a silhueta de Jenny deslizou para dentro tão depressa que até parecia um espectro, um fantasma esguio produzido pela escuridão e pela bruma da noite. Ofegante, ela lhe disse: “Desculpe, querido. Eu precisava falar com você. Como você não estava em casa, achei que podia estar aqui.” “Alguém viu você no loft?”, ele perguntou. Sentia que a pergunta era importante mas não sabia muito bem por quê.
Surpresa, ela ergueu os olhos para ele. “Não. Tive a impressão de que o prédio estava vazio. Não encontrei ninguém. Por quê?” “Por nada. Não tem importância. Venha, vamos descer. Vou ligar o aquecedor a gás. Você está tiritando.” Desceram juntos para o subsolo; seus passos ecoavam na calma assustadora, carregada de presságios, daquele prédio que no dia seguinte acordaria para o som de vozes, movimento e rumor incessante de atividades voltadas para fins bem definidos. Ela começou a andar na ponta dos pés, e quando falava era sussurrando. No topo da escada segurou a mão dele, e ele sentiu que a dela tremia. No meio da escada ouviram um pequeno ruído, e ela deu um salto. “O que é isso? Que barulho é esse?” “Nada. Deve ser o Tigger mexendo em sua tigela.” Quando chegaram à salinha dos porteiros e o aquecedor foi ligado, ele se jogou numa das poltronas e sorriu para ela. Era uma enorme incomodação ela aparecer naquele momento, mas tinha de dar um jeito de esconder sua irritação. Com um pouco de sorte, conseguiria ver-se livre de-la num instante. Bem antes das dez, ela já estaria longe da clínica. “E então?”, ele perguntou. De repente ela estava no tapete a seus pés, abraçada a suas pernas. Seus olhos claros buscaram os dele num apelo apaixonado. “Querido, eu preciso saber! Não me importa o que você fez, desde que eu saiba. Amo você e quero ajudar. Querido, você precisa me dizer, se estiver metido em alguma encrenca.” Era pior do que ele temia. De alguma forma ela ficara sabendo de alguma coisa. Mas como, e o quê? Com voz despreocupada, ele perguntou: “Que tipo de encrenca, pelo amor de Deus? Daqui a pouco você vai me dizer que o assassino sou eu!” “Ah, Peter, por favor, não brinque comigo! Estou tão preocupada! Tem alguma coisa errada, sei que tem. Foi o dinheiro, não é? Você apanhou aquelas quinze libras.” Ele poderia ter soltado uma gargalhada de alívio. Num arroubo de emoção, rodeou-a com os braços e puxou-a para si, falando entre seus cabelos: “Que menina bobinha. Se eu quisesse roubar, podia ter me servido de dinheiro sempre que quisesse. Por que você teve essa idéia maluca?” “É o que fiquei repetindo para mim mesma. Por que você haveria de querer apanhar o dinheiro? Ah, querido, não fique zangado comigo. Fiquei tão preocupada. Foi por causa do jornal.” “Que jornal, meu Deus?” Foi só o que conseguiu articular, de tanta vontade de sacudi-la para ver se ela falava coisa com coisa. Estava contente por Jenny não conseguir ver seu rosto. Enquanto pudesse evitar olhá-la nos olhos conseguiria controlar a raiva e o pânico fatal, insidioso. Francamente, o que ela estava querendo lhe dizer? “O Standard. Aquele policial foi lá em casa hoje à tarde. Eu tinha saído para comprar peixe e batatinhas. Quando estava desembrulhando as compras na cozinha, olhei para o jornal em que estavam embrulhadas. Era o Standard de sexta-feira. Toda a primeira página era ocupada por uma foto daquele desastre de avião. Aí me lembrei de que havíamos usado seu Standard para embrulhar a comida do Tigger, e a primeira página era diferente. Eu não havia visto aquela foto antes.” Ele a abraçou com mais força e perguntou baixinho: “Você comentou alguma coisa com o policial?” “Claro que não, meu querido! E se ele suspeitasse de você? Não falei nada para ninguém, mas precisava falar com você. Não me incomodo com as quinze libras. Não me interessa se você afinal
viu o corpo no subsolo. Sei que não a matou. A única coisa que eu quero é que confie em mim. Amo você e quero ajudar. Fico desesperada quando você não me conta as coisas.” Era o que todas diziam, mas não havia uma em um milhão que de fato quisesse saber a verdade sobre um homem. Por um segundo, ficou tentado a contar-lhe tudo, a cuspir aquela história brutal sobre seu rosto tolo, suplicante, e ver como aquele imenso amor, aquela compaixão, desapareceriam num segundo. Provavelmente ela até conseguiria tolerar a verdade sobre Enid Bolam, mas quando soubesse que a chantagem não fora feita por amor a ela, que suas ações não tinham o propósito de preservar o amor dos dois, que não havia amor algum a preservar, que nunca houvera... Seria obrigado a casar-se com ela, claro. Sempre soubera que isso talvez fosse necessário. Só ela poderia incriminá-lo de forma eficaz, e havia um modo seguro de calar sua boca. Mas não havia tempo. Planejava estar em Paris no fim da semana. Pelo jeito, não viajaria sozinho. Pensava velozmente. Transferindo o peso de Jenny para o braço da poltrona, mas sempre com os braços em torno dela, o rosto encostado em sua face, disse baixinho: “Ouça, querida. Tem uma coisa que você precisa saber. Não lhe contei antes porque não queria preocupá-la. É verdade, peguei as quinze libras. Foi uma idiotice, mas agora não adianta me preocupar com isso. Acho que a senhorita Bolam desconfiou que tinha sido eu. Não sei. Ela não me disse nada — e não fui eu quem ligou para ela. Mas estive no subsolo depois que ela foi morta. Eu tinha deixado a porta dos fundos destrancada e entrei por ali quando voltei. Não agüento aquele imbecil do Cully anotando meu nome toda vez que entro ou saio como se eu fosse tão maluco quanto os pacientes e me pedindo o jornal emprestado assim que me vê. Pão-duro! Por que não compra o dele? Eu quis fazê-lo de bobo, por uma vez que fosse. Quando entrei pela porta do subsolo, vi que a luz da sala dos arquivos estava acesa e a porta entreaberta e fui ver quem estava lá. Encontrei o corpo. Sabia que não podia ser encontrado ali, especialmente se alguém descobrisse que eu havia pegado as quinze libras, de modo que não falei nada, saí de novo pela porta dos fundos e entrei pela da frente como faço todo dia. E não disse nada a ninguém. Não tem outro jeito, querida. Preciso me apresentar à Bollinger no fim da semana, e a polícia não me deixaria viajar se começasse a suspeitar de mim. Se não for agora, nunca mais na vida terei outra oportunidade como essa.” Essa parte, pelo menos, era verdade. Ele precisava partir imediatamente. Já virara obsessão. Não era só o dinheiro, a liberdade, o sol e as cores. Era a derradeira vingança dos anos incolores, esquálidos, de luta e humilhação. Tinha de apresentar-se à Bollinger. Outros pintores podiam fracassar agora e ter sucesso no fim. Ele não. E, mesmo agora, talvez fracassasse. Sua história era frágil. Enquanto falava, sentia claramente as inconsistências, as improbabilidades. Mas os fatos se concatenavam — por pouco. Não via de que maneira ela poderia provar que ele estava mentindo. Além disso, ela não tentaria fazer isso. Mas ficou surpreso com sua reação. “No fim da semana! Você está dizendo que viaja em seguida para Paris. E a clínica? E o seu trabalho?” “Pelo amor de Deus, Jenny, que importância tem isso? Vou abandonar o emprego e eles vão encontrar outra pessoa. Vão ter de se virar sem mim.” “E eu?” “Você vai comigo, claro. Sempre tive a intenção de levar você. Não sabia?” “Não”, ela disse, e ele teve a impressão de que sua voz estava impregnada de uma imensa tristeza. “Não, eu nunca soube disso.” Ele tentou assumir um tom confiante com uma ponta de censura.
“Nunca discuti o assunto com você porque achava que havia certas coisas que não era preciso discutir. Sei que temos pouco tempo, mas será mais fácil se você não tiver que passar muito tempo em casa à espera. Iam acabar desconfiando. Você tem passaporte, não tem? Não esteve na França com as bandeirantes naquela Páscoa? Sugiro que a gente se case assim que der, com uma autorização especial — afinal, agora temos o dinheiro —, e que escreva a seus pais quando chegarmos a Paris. Você quer ir, não quer, Jenny?” De repente ela começou a tremer entre os braços dele e ele sentiu a umidade morna de suas lágrimas ardendo em seu rosto. “Achei que você queria partir sem mim. Os dias iam passando e você não falava nada. Claro que eu quero ir. Nada mais me importa, desde que fiquemos juntos. Mas não podemos nos casar. Nunca lhe contei porque tive medo que você se irritasse. Além disso, você nunca me perguntou nada sobre mim. Não posso me casar porque já sou casada.”
O carro virara na Vauxhall Bridge Road, mas o tráfego estava carregado e o avanço era lento. Dalgliesh recostou-se em seu assento como se tivesse o dia inteiro pela frente, mas por dentro se contorcia de ansiedade. Não conseguia descobrir nenhuma causa racional para aquela impaciência. A visita à Steen era meramente especulativa. Se Nagle tinha mesmo ido até lá, o mais provável era que já tivesse ido embora quando eles chegassem. Decerto naquele exato momento estava em algum bar de Pimlico tomando sua cerveja vespertina. Na esquina seguinte o farol fechou e o carro diminuiu a velocidade e parou pela terceira vez numa distância de cem metros. De repente, Martin disse: “Ele não teria conseguido manter o esquema por muito tempo, mesmo matando Enid Bolam. Mais cedo ou mais tarde a senhora Fenton — ou quem sabe outra vítima — teria aparecido na Steen.” Dalgliesh respondeu: “Mas ele podia muito bem ter prosseguido até conseguir a bolsa. E mesmo que a chantagem fosse descoberta antes de ele partir — o que poderíamos provar? Aliás, mesmo agora: o que podemos provar? Com Enid Bolam morta, que tribunal poderia ter absoluta certeza de que o chantagista não era ela? Nagle só precisa dizer que se lembra de ver um envelope esquisito, sobrescritado com tinta verde, e que sempre deixava o envelope no escaninho da gerente administrativa. Fenton confirmará ter pensado que os telefonemas haviam sido feitos por uma mulher. E às vezes acontece de um chantagista encontrar uma morte violenta. Nagle não prosseguiria depois do telefonema da senhora Fenton. Mesmo isso contaria a seu favor. A gerente administrativa morre e a chantagem pára. Ah, conheço todos os argumentos contra isso! Mas o que seria possível provar?” Impassível, Martin respondeu: “Ele vai tentar ser mais inteligente do que todo mundo. Eles sempre fazem isso. A garota faz o que ele mandar, claro, coitadinha. Se ela mantiver sua história, de que ele não ficou tempo suficiente sozinho para dar aquele telefonema...” “Ela vai manter.” “Tenho certeza de que ele desconhece a existência do marido. Se achar que ela é perigosa, provavelmente imagina que pode impedi-la de falar casando-se com ela.” Dalgliesh disse, tranqüilo: “Agora precisamos pressioná-lo antes que ele descubra que é impossível casar-se com ela.”
Na saleta dos porteiros, na Steen, Nagle escrevia uma carta. Escrevia com segurança. As frases fluentes e mentirosas brotavam com inesperada facilidade. Teria preferido morrer a enviar uma carta como aquela. Seria insuportável imaginar alguém lendo aquele jorro de baboseiras e reconhecendo-o como de sua autoria. Mas a carta jamais seria lida por outra pessoa que não fosse Jenny. Dentro de trinta minutos ela seria jogada na caldeira, seus fins teriam sido alcançados e as frases untuosas não seriam mais que uma lembrança desagradável. Enquanto isso, melhor torná-la convincente. Não era difícil imaginar o que Jenny tinha vontade que ele dissesse:
Quando esta carta for lida, estaremos juntos na França. Sei que isso vai provocar muita infelicidade em vocês, mas por favor acreditem quando lhes digo que não podemos viver um sem o outro. Sei que um dia estaremos livres para nos casar. Até esse momento, Jenny estará em segurança comigo e eu dedicarei minha vida a tentar fazê-la feliz. Por favor, tentem entender e perdoar.
O fecho estava ótimo, pensou. Jenny, pelo menos, ia gostar, e seria a única leitora. Chamou-a pelo nome e empurrou o papel para o outro lado da mesa. “Assim está bom?” Ela leu em silêncio. “Acho que está.” “Que droga, menina. Qual é o problema?” Ao ver que o produto de seus esforços era julgado inadequado, ele se encheu de raiva. Havia imaginado que encontraria a gratidão atônita de Jenny. Ela disse em voz baixa: “Problema nenhum.” “Então é melhor você escrever sua parte. Não embaixo do que eu escrevi. Pegue uma folha nova.” Ele empurrou o papel por cima da mesa na direção dela sem cruzar o olhar com o dela. Aquilo estava demorando muito, ele nem sabia direito que horas eram. “Melhor escrever uma coisa curta”, disse. Ela pegou a caneta mas não fez menção de escrever. “Não sei o que dizer.” “Não há muito a dizer. Já falei tudo.” “É”, disse ela muito triste. “Você já disse tudo.” Ele conteve a irritação crescente para que ela não aparecesse em sua voz e disse: “Escreva que sente muito porque vai fazê-los sofrer, mas que não pode fazer outra coisa. Uma coisa desse tipo. Que diabo, você não está indo para o fim do mundo. Eles que resolvam. Se quiserem visitar você, não me oponho. Não complique as coisas. Vou até lá em cima consertar aquela fechadura da sala da senhorita Saxon. Quando descer, vamos celebrar. Só tem cerveja, mas esta noite vamos beber cerveja, minha querida — e gostar.” Ele pegou uma chave de fenda da caixa de ferramentas e subiu depressa, antes que ela tivesse tempo de protestar. A última coisa que viu foi o rosto assustado de Jenny olhando-o sair. Mas ela não o chamou de volta. No andar de cima, bastou um segundo para calçar um par de luvas de borracha e arrombar a porta do armário das drogas perigosas. A porta cedeu com um estalo aterradoramente ruidoso
que o pregou no chão por um momento, esperando que Jenny o chamasse. Mas não ouviu nenhum som. Lembrou-se nitidamente da cena de uns seis meses antes, quando um dos pacientes do dr. Baguley ficara violento e desorientado. Nagle ajudara a controlá-lo enquanto Baguley pedia à irmã que providenciasse paraldeído. Nagle se lembrava das palavras exatas: “Vamos misturar na cerveja. O gosto é horrível, mas a cerveja disfarça. Estranho, não é? Dois gramas, irmã”. Jenny, que não gostava de cerveja, não perceberia. Num gesto rápido, guardou a chave de fenda e o pequeno frasco azul de paraldeído no bolso do casaco e saiu da sala, iluminando o caminho com a lanterna. Todas as cortinas da clínica estavam fechadas, mas era importante que ninguém visse luz lá dentro. Precisava de mais meia hora de sossego. Ela olhou para ele espantada ao vê-lo voltar tão depressa. Ele se aproximou dela e beijou sua nuca. “Desculpe, meu bem. Eu não devia ter deixado você sozinha. Não me lembrei de que você podia ficar nervosa. A fechadura pode esperar. E a carta?” Ela empurrou o papel para ele. Ele se virou de costas para ler as poucas linhas escritas com todo o capricho, demorando-se de propósito. Mas continuava com sorte. Era um bilhete de suicida tão claro e convincente quanto qualquer outro já lido numa sala de tribunal. Teria sido incapaz de ditar um texto melhor. Foi invadido por uma onda de confiança e agitação semelhante à que o tomava quando uma pintura estava avançando bem. Agora nada haveria de dar errado. Jenny escrevera:
Não posso dizer que sinto muito pelo que fiz. Não tenho escolha. Estou tão feliz... Tudo estaria perfeito se eu não soubesse que vou fazer vocês sofrerem muito. Mas não posso fazer outra coisa; é o melhor para mim. Por favor, tentem me entender. Amo muito vocês. Jenny.
Largou a carta na mesa e foi servir a cerveja. A porta aberta do armário ocultava seus gestos. Meu Deus, como fedia aquele negócio! Rapidamente adicionou a cerveja espumante e perguntou a Jenny: “Feliz?” “Você sabe que estou.” “Então vamos comemorar. A nós, querida.” “A nós.” Quando o líquido tocou seus lábios, ela fez uma careta. Ele riu. “Até parece que você está tomando veneno. Coragem, menina! Veja como se faz.” Ele despejou o copo inteiro na goela de uma vez só. Rindo, ela estremeceu e engoliu toda a sua cerveja. Ele recolheu o copo vazio e abraçou-a. Ela se pendurou nele; suas mãos pareciam uma compressa fria na nuca de Nagle. Desprendendo-se, ele a conduziu até a poltrona e puxou-a para baixo a seu lado. Depois, abraçados, os dois escorregaram para o chão e deitaram-se juntos no tapete, diante do aquecedor a gás. Ele apagara a luz, e o rosto dela cintilava ao ardente reflexo rubro do aquecedor como se estivesse deitada em pleno sol. O som sibilante do gás era o único ruído a romper o silêncio. Ele puxou a almofada de uma das poltronas e empurrou-a para debaixo da cabeça dela. Só uma das almofadas — a outra teria outra função. Seria útil no fundo do forno do aquecedor. Era menos provável que ela acordasse se estivesse confortável no derradeiro escorregão da inconsciência para a morte. Ele cingiu o corpo dela com o braço esquerdo e os dois permaneceram deitados sem
falar. De repente ela virou o rosto para ele e ele sentiu sua língua, úmida e escorregadia como um peixe, imiscuir-se entre seus dentes. Os olhos dela, de pupilas negras à luz do gás, estavam pesados de desejo. “Querido”, ela sussurrou. “Querido.” Deus do céu, ele pensou. Tudo menos isso. Não podia ter sexo com ela naquele momento. Seria bom para ela parar quieta, mas não era possível. Não havia tempo. E por certo o patologista forense saberia verificar quanto tempo antes da morte uma mulher havia tido sexo — e com quem. Pela primeira vez, pensou com alívio na obsessão de Jenny com a segurança e murmurou: “Não podemos, querida. Estou sem preservativos. Não podemos correr esse risco.” Ela concordou com um murmúrio e se aconchegou a ele, passando a perna esquerda por cima de suas coxas. A perna ficou ali, pesada e inerte, mas ele não ousava se mexer nem falar, de medo de interromper aquele mergulho insidioso na inconsciência. A respiração dela havia ficado mais pesada, quente e irritante na orelha esquerda de Nagle. Deus, será que ainda ia demorar muito? Retendo o próprio fôlego, ele apurou o ouvido. De repente ela deu um pequeno ronco, como um animal satisfeito. Por baixo de seu braço, ele sentiu uma mudança no ritmo da respiração de Jenny. Houve uma liberação quase física de tensão quando o corpo dela relaxou. Havia adormecido. Melhor esperar mais alguns minutos como garantia, ele pensou. Não tinha muito tempo disponível, mas não ousava apressar-se. Era importante que não houvesse edemas no corpo dela e ele sabia que não podia enfrentar um combate físico. Mas agora não era possível voltar atrás. Mesmo que ela acordasse e resistisse, ele teria de ir em frente. De modo que ele esperou, deitado tão imóvel que os dois poderiam ser cadáveres enrijecendo juntos num último abraço estilizado. Depois de algum tempo ele ergueu o corpo cautelosamente sobre o cotovelo direito e olhou para ela. Tinha o rosto corado e a boca entreaberta, com o lábio superior repuxado sobre os dentes brancos de criança. Dava para sentir o cheiro de paraldeído em seu hálito. Ele olhou para ela por um momento, percebendo seus longos cílios claros, a curva das sobrancelhas e as sombras projetadas pelos malares salientes. Estranho que nunca tivesse chegado a desenhar seu rosto. Mas agora era tarde para pensar nisso. Murmurou para ela enquanto a carregava suavemente para o outro lado do aposento, para a abertura negra do forno a gás. “Está tudo bem, querida Jenny. Sou eu. Estou deitando você para que fique confortável. Está tudo bem, querida.” Mas era a si mesmo que ele tranqüilizava. Havia muito espaço no forno grande e antiquado, mesmo com a almofada. O fundo do forno ficava a menos de vinte centímetros do chão. Com as mãos por baixo das omoplatas dela, ele a empurrou delicadamente para a frente. Quando a almofada recebeu o peso da cabeça dela, ele conferiu se os furinhos por onde saía o gás continuavam desimpedidos. A cabeça dela girou para o lado, de modo que a boca entreaberta, úmida e vulnerável como a de um bebê, ficou posicionada logo acima deles, pronta para sugar a morte. Quando ele retirou as mãos que sustentavam seu corpo, ela soltou um pequeno suspiro, como se por fim se sentisse confortável. Ele lançou um último olhar para ela, satisfeito com sua obra. E agora precisava correr. Apalpando os bolsos em busca das luvas de borracha, moveu-se com incrível velocidade, com passos leves e respiração rasa, como se já não conseguisse suportar o som que produzia ao respirar. O bilhete de suicida estava sobre a mesa. Ele apanhou a chave de fenda e fez com que a mão direita de Jenny a envolvesse, pressionando a palma em torno do cabo brilhante, a ponta do
dedo de encontro à base da lâmina. Era assim que ela a teria segurado? Provavelmente. Depositou a chave de fenda sobre o bilhete de suicida. Em seguida enxaguou o copo em que havia bebido e guardou-o de novo no armário, segurando o pano de prato na frente do aquecedor por um momento até a mancha úmida evaporar. Apagou o fogo. Não precisava preocupar-se com o assunto das impressões digitais no aquecedor propriamente dito. Seria impossível determinar quando ele fora ligado pela última vez. Refletiu por um instante sobre o frasco de paraldeído e o copo de Jenny, mas resolveu deixá-los sobre a mesa junto com o bilhete e a chave de fenda. Por certo o mais lógico seria que ela bebesse sentada à mesa para depois, sentindo os primeiros sinais de entorpecimento, aproximar-se do forno. Limpou o frasco para apagar as próprias impressões digitais, depois apertou a mão esquerda de Jenny em torno dele e o indicador direito e o polegar direito em torno da tampa. Quase tinha medo de tocá-la, mas agora ela estava profundamente adormecida. Sua mão estava muito quente e tão relaxada que dava a impressão de não ter ossos. Ele sentiu repulsa por aquela flacidez inerte, por aquele contato sem comunicação, sem desejo. Depois de tomar providências semelhantes com o copo em que ela bebera e com a garrafa de cerveja, deu-se por satisfeito. Agora só seria preciso tocá-la uma vez mais. Por fim agarrou a carta que escrevera aos Priddy e o par de luvas e jogou-os na caldeira. Só faltava ligar o gás. A torneira ficava à direita do forno, facilmente acessível ao flácido braço direito de Jenny. Levantou o braço dela, pressionou seu indicador e seu polegar contra a torneira e giroua. Ouviu-se o leve assobio do gás que escapava. Quanto tempo seria necessário?, pensou. Não muito, com certeza... Talvez apenas alguns minutos. Apagou a luz e recuou, fechando a porta atrás de si. Nesse momento lembrou-se das chaves da porta da frente. Era preciso que fossem encontradas com ela. Seu coração gelou quando se deu conta de que aquele pequeno erro poderia ter sido fatal. Esgueirou-se novamente para dentro da sala à luz da lanterna. Tirou as chaves do bolso e, prendendo a respiração por causa do cheiro do gás, colocou-as na mão esquerda de Jenny. Chegava à porta quando ouviu o miado de Tigger. O gato devia estar dormindo debaixo do armário. Agora dava lentamente a volta no corpo, estendendo uma pata exploratória na direção do pé direito da garota. Nagle viu que não ia conseguir aproximar-se dela novamente. “Venha cá, Tigger”, murmurou. “Venha cá, meu velho.” O gato olhou para ele com seus grandes olhos cor de âmbar e deu a impressão de estar pensando no assunto sem pressa e sem emoção. Depois andou lentamente na direção da porta. Nagle encaixou o pé esquerdo por baixo da barriga peluda e transportou o gato para o outro lado da porta num único movimento rápido. “Saia daí, seu idiota. Quer perder todas as suas sete vidas de uma vez só? Esse negócio mata.” Fechou a porta, e o gato, subitamente ativo, saiu em disparada no escuro. Nagle aproximou-se da porta dos fundos sem acender nenhuma luz, localizou as trancas, abriu a porta e saiu. Fez uma pausa com as costas apoiadas na porta para verificar se não havia ninguém no beco. Agora que tudo estava acabado tinha tempo para observar os sinais de desgaste. Tinha a testa e as mãos úmidas de suor e estava com dificuldade para respirar. Aspirou profundamente o ar noturno, abençoadamente frio. A névoa não estava muito cerrada; era pouco mais que uma neblina. A luz do poste que assinalava a extremidade do beco atravessava-a como uma nódoa amarela na escuridão. Aquele reflexo, a menos de quarenta metros de onde ele estava, representava a segurança. Mesmo assim, de repente ele lhe pareceu inatingível. Como um animal na toca, fixou com horrorizado fascínio aquela luz e ordenou a suas pernas que se movessem. Mas
seu vigor desaparecera. Agachado no abrigo escuro da moldura da porta, as costas apoiadas na madeira, procurou não entrar em pânico. Afinal, não havia tanta pressa assim. Num momento deixaria aquele santuário espúrio e o beco ficaria para trás. Depois era só voltar à praça pelo outro lado e esperar que passasse alguém para ver como ele golpeava inutilmente a porta da frente. Mesmo as palavras que pronunciaria estavam preparadas. “É a minha namorada. Acho que ela está lá dentro, mas não quer abrir a porta. Estava comigo hoje mais cedo, mas depois que saiu percebi que tinha levado as chaves. Estava esquisita. É melhor chamar a polícia. Vou arrombar esta janela.” Em seguida viria o ruído do vidro quebrado, a carreira até o subsolo e a oportunidade de trancar novamente a porta dos fundos antes que os passos apressados que o seguiam se aproximassem dele. O pior havia passado. De agora em diante tudo era muito fácil. Às dez horas o corpo já teria sido removido e a clínica estaria vazia. Num momento ele passaria ao ato final. Mas não ainda. Não ainda.
Ao longo da margem do rio o tráfego estava quase parado. Aparentemente havia algum tipo de festa no Savoy. De repente, Dalgliesh observou: “Não temos ninguém de guarda na clínica, evidentemente...” “Não. Lembra-se de que esta manhã lhe perguntei se era preciso deixar um homem por lá e que o senhor disse que não?” “Sim, lembro.” “Afinal, não parecia necessário. Já havíamos feito uma revista rigorosa no lugar e não dispomos de tantos homens assim...” “Eu sei, Martin”, retrucou Dalgliesh, brusco. “Por incrível que pareça, foram exatamente essas as razões de minha decisão.” O carro estacou novamente. Dalgliesh pôs a cabeça para fora da janela. “Que diabo ele pensa que está fazendo?” “Acho que está fazendo o que pode, senhor.” “É isso que eu acho tão deprimente. Vamos lá, Martin. Saia do carro. Vamos fazer o resto do caminho a pé. É provável que eu esteja fazendo papel de bobo, mas quando chegarmos à clínica vamos cobrir as duas saídas. Eu cubro a frente, você os fundos.” Se Martin ficou surpreso, não era de sua natureza demonstrá-lo. Parecia que tinha dado um negócio no chefe. O mais provável era que Nagle estivesse de volta em seu apartamento e que a clínica estivesse deserta e trancada. Eles iam parecer uma dupla de bobalhões, esgueirando-se em volta de um prédio vazio. Tudo bem, em breve saberiam. Convocou toda a sua energia para acompanhar os passos do inspetor.
Nagle jamais soube quanto tempo esperou junto à porta, quase dobrado em dois, ofegante como um animal. Mas depois de algum tempo a calma voltou e com ela o uso das pernas. Avançou furtivamente até a grade dos fundos, pulou-a e começou a descer o beco. Andava como um autômato, mãos rígidas pendendo ao lado do corpo, olhos fechados. De repente ouviu as passadas. Abrindo os olhos, viu contra a luz do poste a silhueta corpulenta de uma figura que conhecia. Lenta, inexoravelmente, ela vinha na sua direção em meio à névoa. Sentiu o coração dar um salto em seu peito e depois começar a latejar tumultuadamente, sacudindo todo o seu corpo. Tinha as pernas pesadas e frias como a morte, e conteve o primeiro impulso fatal de correr. Mas
pelo menos sua mente estava funcionando. Enquanto pudesse pensar, havia esperança. Era mais inteligente que eles. Com sorte, não teriam a idéia de entrar na clínica. Por que entrariam? E sem dúvida àquela altura ela já estava morta. Com Jenny morta, podiam fazer as teorias que quisessem. Nunca conseguiriam provar nada. A lanterna iluminou seu rosto em cheio. A voz lenta, neutra, disse: “Boa noite, rapaz. Tínhamos a esperança de encontrá-lo. Saindo ou chegando?” Nagle não respondeu. Esticou os lábios numa imitação de sorriso. Imaginou o aspecto que teria sob aquela luz cruel: expressão de morte, boca aberta de pavor, olhos fixos. Nesse momento sentiu alguma coisa roçar suas pernas de leve. O policial se abaixou e pegou o gato no colo, segurando-o no meio dos dois. Na mesma hora ele começou a ronronar, vibrando de satisfação com o calor daquela mão enorme. “Ah, aqui está o Tigger. Foi você que deixou ele sair, não é mesmo? Você e o gato saíram juntos.” Nesse momento, de golpe, os dois perceberam e seus olhos se encontraram. Do calor dos pêlos do gato ergueu-se entre os dois, fraco mas inconfundível, o cheiro de gás.
A meia hora seguinte, para Nagle, foi um torvelinho confuso de sons e luzes ofuscantes de que às vezes emergia alguma cena nítida, de clareza sobrenatural, que ia fixar-se em sua mente, onde permaneceria pelo resto de sua vida. Não se lembrava de ser arrastado de volta pelo policial, de ter passado novamente por cima da grade de ferro; só se lembrava da mão firme como um torniquete segurando seu braço, deixando seu braço dormente, e do ruído rascante da respiração de Martin em seu ouvido. Depois de um impacto, ouviu o tinido triste, retardado, de vidro partido quando alguém chutou as janelas da sala dos porteiros, o som estridente de um apito, uma confusão de passos correndo pelas escadas da clínica, um clarão de luzes cegando seus olhos. Numa dessas cenas, Dalgliesh está agachado sobre o corpo da garota com a boca, escancarada como a de uma gárgula, colada sobre a boca de Jenny, empurrando o próprio hálito para dentro dos pulmões dela. Os dois corpos parecem estar lutando, presos num abraço obsceno como a violação dos mortos. Nagle não falava. Estava quase aquém do pensamento, mas o instinto lhe dizia para não dizer nada. Imobilizado contra a parede por braços fortes e observando fascinado a ondulação febril dos ombros de Dalgliesh, sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Enid Bolam estava morta, Jenny estava morta e agora ele estava cansado, desesperadamente cansado. Não queria matá-la. Bolam é que o forçara a assumir o risco e a desordem do assassinato. Ela e Jenny, juntas, é que o haviam acuado. E agora ele perdera Jenny. Jenny estava morta. Diante da enormidade, da injustiça do que elas o haviam obrigado a fazer, não se surpreendeu quando as lágrimas de autocomiseração lhe escorreram pelo rosto. De repente a sala ficou cheia de gente. Havia mais homens uniformizados, um deles rechonchudo como um personagem de Holbein, olhos de porco, movimentos lentos. Ouviu-se o assobio do oxigênio, um murmúrio de vozes confabulando. Depois, com mãos delicadas e experientes, depositaram alguma coisa sobre uma maca, uma forma debaixo de um cobertor vermelho, que rolou para um lado quando a maca foi erguida. Por que carregar aquela pessoa com tanto cuidado? Ela já não podia sentir os solavancos. Dalgliesh só falou depois que Jenny foi levada. Depois, sem olhar para Nagle, disse: “Está bem, Martin. Leve-o até a delegacia. Lá ouviremos o que ele tem a dizer.” Nagle moveu os lábios. Sua boca estava tão seca que a pele se partiu. Alguns segundos se
passaram até as palavras saírem, depois não houve como fazê-las cessar. A história cuidadosamente ensaiada jorrou num turbilhão, rala e pouco convincente. “Não há nada a dizer. Ela foi a meu apartamento e passamos a tarde juntos. Eu tive de dizer a ela que ia partir sozinho. Ela teve uma péssima reação, e depois que saiu vi que as chaves da clínica tinham desaparecido. Eu sabia que ela estava um tanto alterada, por isso achei melhor ir atrás dela. Tem um bilhete em cima da mesa. Vi que estava morta, que não havia nada a fazer, por isso fui embora. Não queria me envolver no assunto. Tenho de pensar na bolsa Bollinger. Não seria bom envolver-me num suicídio.” Dalgliesh disse: “É melhor não dizer mais nada por enquanto. Mas você vai ter de melhorar essa história. Veja, não é por causa do que ela nos disse. Aquele bilhete sobre a mesa não é o único que ela deixou.” Com estudada deliberação, o inspetor tirou do bolso do paletó um papelzinho dobrado e segurou-o a alguns centímetros dos olhos de Nagle — olhos fascinados, vidrados de terror: “Se vocês passaram a tarde juntos em seu apartamento, como explica este bilhete, que encontramos embaixo da aldrava de sua porta?” Foi nesse momento que Nagle percebeu, doente de desespero, que os mortos, tão impotentes e desprezados, podiam incriminá-lo, apesar de tudo. Instintivamente, estendeu a mão para agarrar o bilhete, depois baixou o braço. Dalgliesh recolocou o bilhete no bolso. Olhando Nagle atentamente, disse: “Quer dizer que correu até aqui esta noite porque estava preocupado com a segurança dela? Muito tocante. Nesse caso, preciso tranqüilizá-lo. Ela vai sobreviver.” “Ela morreu”, disse Nagle com voz opaca. “Se matou.” “Estava respirando quando saiu daqui. Amanhã, se tudo correr bem, estará em condições de nos contar o que aconteceu. E não só o que aconteceu aqui esta noite. Temos algumas perguntas sobre o assassinato da senhorita Bolam.” Nagle soltou uma risada estridente: “O assassinato de Enid Bolam! Por esse vocês nunca vão conseguir me incriminar! E vou lhes dizer por quê, seus idiotas. Porque não a matei! Se quiserem fazer papel de bobos, podem ir em frente. Não se constranjam por minha causa. Mas estou avisando. Se for preso pelo assassinato de Enid Bolam, vou acabar com a raça de vocês em todos os jornais do país.” Ofereceu os punhos a Dalgliesh: “Vamos, inspetor. Pode me prender. Por que tanta hesitação? Descobriu tudo direitinho, não é mesmo? Só que não foi tão inteligente assim, seu policial pretensioso!” “Não vou prendê-lo”, disse Dalgliesh. “Convido-o a nos acompanhar até a delegacia para responder a algumas perguntas e fazer um depoimento. Se quiser que um advogado esteja presente, tem o direito de requisitá-lo.” “Vou querer um advogado, sim. Mas não agora. Não estou com pressa, inspetor. Sabe, estou esperando uma visita. Combinamos encontrar-nos aqui às dez horas da noite e já está quase na hora. Devo dizer que havíamos imaginado que estaríamos sozinhos na clínica e que acho que minha visita não vai gostar muito de encontrá-los aqui. Mas, se querem encontrar a pessoa que matou a senhorita Bolam, sugiro que fiquem. Não vai demorar muito. A pessoa que estou esperando foi treinada a ser pontual.” De repente pareceu que todo o medo que ele sentia desaparecera. Os grandes olhos castanhos ficaram de novo inexpressivos, lagos lodosos em que a vida ardia apenas nas íris negras. Martin, sempre segurando os braços de Nagle, sentiu os músculos recuperando o tônus, sentiu a volta
física da confiança. Mas, antes que qualquer dos três tivesse tempo para dizer alguma coisa, seus ouvidos captaram simultaneamente o ruído de passos. Alguém entrara pela porta do subsolo e avançava cautelosamente pelo corredor. Com uma passada silenciosa, Dalgliesh foi para junto da porta e se preparou. Os passos, tímidos, hesitantes, pararam do lado de fora. Três pares de olhos fitaram a maçaneta, que girou primeiro para a direita, depois para a esquerda. Uma voz chamou baixinho: “Nagle! Você está aí, Nagle? Abra a porta!” Num único movimento, Dalgliesh pôs-se a um lado e abriu a porta de golpe. A figura esguia moveu-se involuntariamente para a frente e foi iluminada pelo clarão das lâmpadas fluorescentes. Os imensos olhos cinzentos se arregalaram e foram de um rosto para o outro. Eram os olhos de uma criança que não entende o que está acontecendo. Com um gemido, ela apertou uma sacola contra o peito num movimento instintivo de proteção, como quem protege um bebê. Arrancandose das mãos de Martin, Nagle apropriou-se da sacola e jogou-a para Dalgliesh. Ela caiu pesadamente nas mãos do detetive; o plástico barato grudou nos dedos dele. Nagle tentou controlar a voz, que soou em falso, de hesitação e triunfo. “Dê uma olhada no conteúdo da sacola, inspetor. Está tudo aí. Vou lhe dizer o que vai encontrar. Uma confissão assinada da autoria do assassinato de Enid Bolam e cem libras em cédulas, primeiro pagamento para que eu mantenha a boca fechada.” Voltou-se para sua visitante. “Sinto muito, garota. Não era assim que eu havia planejado. Estava disposto a manter segredo sobre o que vi, mas de sexta para cá muita coisa mudou. Agora tenho de me preocupar com meus próprios problemas e não vou deixar ninguém me acusar de assassinato. Acabou nossa combinação.” Mas Marion Bolam desmaiara.
Dois meses depois, Marion Grace Bolam foi indiciada sob a acusação de ter assassinado a prima. Um outono caprichoso virara inverno, e Dalgliesh caminhava sozinho para a delegacia sob o cobertor cinzento de um céu que parecia pender sobre a terra com o peso da neve. Os primeiros flocos úmidos já estavam caindo, derretendo suavemente ao tocar seu rosto. Na sala de seu chefe as luzes estavam acesas e as cortinas puxadas, cortando a visão do rio que cintilava, a faixa de luz ao longo da margem e a inércia gelada da tarde hibernal. Dalgliesh fez um curto relatório. O inspetor-chefe ouviu em silêncio, depois disse: “Vão pedir atenuação de responsabilidade, sem dúvida. Como está a moça?” “Perfeitamente calma, como uma criança que sabe que fez uma traquinagem e que se comporta o melhor possível na esperança de que os adultos acabem esquecendo seu malfeito. Tenho a impressão de que não sente culpa; só a culpa feminina pelo fato de ter sido descoberta.” “Um caso perfeitamente transparente”, disse o inspetor-chefe. “O suspeito óbvio, o motivo óbvio.” “Óbvio demais para mim, pelo jeito”, disse Dalgliesh com amargura. “Se esse caso não me curar da vaidade, sou um caso perdido. Se tivesse prestado mais atenção no óbvio, teria me perguntado por que ela só voltou à Rettinger Street depois das onze, quando as emissões televisivas estavam se encerrando. Claro, estava com Nagle, acertando os pagamentos da chantagem. Parece que se encontraram no St. James Park. Ele soube reconhecer a oportunidade quando entrou na sala dos registros e a encontrou debruçada sobre o corpo da prima. Deve ter se aproximado sem fazer um
som. A partir daquele momento, encarregou-se das providências com a eficácia habitual. Foi ele, claro, quem depositou a estátua cuidadosamente sobre o corpo. Até esse detalhe me induziu ao erro. De alguma maneira, não conseguia imaginar Marion Bolam fazendo esse derradeiro gesto de desprezo. Mas que foi um crime óbvio, isso foi. Ela praticamente não fez nada para dissimular os fatos. Guardou no bolso do avental as luvas de borracha que havia usado; escolheu as armas mais ao alcance da mão; não tentou incriminar outra pessoa. Não estava nem tentando ser inteligente. Aproximadamente às seis horas e doze minutos ela telefonou para a secretaria e disse a Nagle que não descesse para buscar a roupa porque ela não estava pronta. Um detalhe: ele não conseguiu deixar de mentir sobre esse telefonema, o que me ofereceu outra oportunidade de ser excessivamente sutil. Depois ligou para a prima. Não podia ter certeza absoluta de que Enid desceria sozinha, e a desculpa tinha de ficar em pé, por isso espalhou as pastas médicas pelo chão. Depois ficou à espera de sua vítima na sala dos arquivos, de estátua em punho e formão no bolso do avental. Infelizmente para ela, Nagle voltou em segredo para a clínica quando deveria estar fora com a correspondência. Ele entreouvira o telefonema da senhorita Bolam para o secretário do grupo e queria apanhar a pasta do coronel Fenton. O mais simples, aparentemente, seria enfiá-la nas chamas da caldeira. Ao dar com o assassinato, foi obrigado a alterar seus planos e depois, quando o corpo foi descoberto e a sala dos arquivos lacrada, não encontrou outra oportunidade para fazer o que pretendia. Quanto à enfermeira Bolam, essa não teve como planejar melhor o tempo. Descobrira na quarta-feira à noite que Enid pretendia alterar seu testamento. Sexta foi a primeira noite em que haveria uma sessão de tratamento com ácido lisérgico e ela teria o subsolo para si. Não podia agir mais cedo; não ousava agir mais tarde.” “O assassinato veio a calhar para Nagle”, disse o inspetor-chefe. “Você não deve se culpar por ter se concentrado nele. Mas se faz questão de sentir autocomiseração, fique à vontade.” “Talvez tenha vindo a calhar, mas era desnecessário”, replicou Dalgliesh. “E por que razão ele mataria Enid Bolam? A única coisa que ele queria, além de ganhar um dinheiro fácil, era receber a bolsa Bollinger e viajar para a França sem criar confusão. Devia saber que seria difícil acusá-lo de chantagear o coronel Fenton — mesmo que o secretário do grupo decidisse chamar a polícia. Na realidade ainda não temos suficientes provas para incriminá-lo. Mas assassinato é diferente. Todos aqueles que entram em contato com um assassinato podem ter seus projetos pessoais destruídos. Mesmo os inocentes têm dificuldade para se libertar do pó contaminador. Matar a gerente administrativa só aumentava o risco que ele corria. Mas matar Priddy era diferente. Com um único gesto poderia proteger seu álibi, ver-se livre de um estorvo e ter a esperança de casar-se com a herdeira de umas trinta mil libras. Sabia que não teria muita chance com Marion Bolam se ela ficasse sabendo que Priddy fora sua amante. Não por acaso era prima de Enid Bolam.” O inspetor-chefe disse: “Pelo menos conseguimos incriminá-lo como cúmplice do crime, e isso vai mantê-lo fora de circulação por algum tempo. A vantagem é que com isso os Fenton não precisarão prestar testemunho. Mas duvido que a acusação de tentativa de assassinato cole — a não ser que Priddy mude de idéia. Se ela insistir em corroborar o que ele diz, nada feito.” “Ela não vai mudar de idéia”, disse Dalgliesh desencantado. “Nagle não quer vê-la, naturalmente, mas nada faz diferença. Ela só pensa em planejar a vida dos dois quando ele sair da prisão. E Deus tenha misericórdia dela, quando ele sair.” Irritado, o inspetor-chefe ajeitou o corpo enorme na cadeira, fechou a pasta e empurrou-a para o outro lado da mesa na direção de Dalgliesh. Disse: “Não há nada que você ou qualquer outra pessoa possa fazer quanto a isso. Ela é o tipo de
mulher que vai atrás da própria destruição. Aliás, aquele artista, Sugg, esteve falando comigo. É impressionante como as pessoas têm idéias estranhas sobre os procedimentos judiciais! Eu disse a ele que o assunto agora está fora da nossa alçada e encaminhei-o para o setor adequado. Ele quer assumir os custos da defesa de Nagle. Disse que se tivermos cometido um erro, o mundo perderá um talento extraordinário. Faça-me o favor!” “Seja como for, perderá mesmo”, responde Dalgliesh. Pensando alto, acrescentou: “Eu gostaria de saber quão excepcional um artista teria de ser para que o deixassem partir em paz depois de um crime como o de Nagle. Michelangelo? Velásquez? Rembrandt?”. “Ora”, disse o inspetor-chefe sem vacilar. “Se tivéssemos de saber a resposta a essa pergunta não seríamos policiais.”
Na sala de Dalgliesh, Martin organizava papéis. Depois de olhar brevemente para o rosto do inspetor, pronunciou um sucinto “Boa noite, senhor” e saiu. Havia determinadas situações que sua natureza descomplicada achava mais prudente evitar. A porta mal se fechara atrás dele quando o telefone tocou. Era a sra. Shorthouse. “Alô!”, gritou ela. “Inspetor Dalgliesh? Que complicação, para conseguir falar com o senhor! Vi o senhor no tribunal hoje. Imagino que não me viu. Como vai?” “Bem, obrigado, senhora Shorthouse.” “Acho que a gente nunca mais vai se encontrar, por isso tive a idéia de lhe telefonar para dizer oi e contar as novidades. Aconteceram diversas coisas na Steen, o senhor nem imagina. Para começar, a senhorita Saxon vai embora. Vai trabalhar num lar para crianças retardadas na parte norte da cidade. Coisa da Igreja católica. Imagine só, sair da Steen para trabalhar num convento! Nunca tinha acontecido isso na clínica.” Dalgliesh disse que podia imaginar. “A senhorita Priddy foi transferida para uma das clínicas pulmonares do grupo. O senhor Lauder achou que a mudança faria bem a ela. Ela teve uma briga terrível com os pais e está morando sozinha numa pensão em Kilburn. Mas o senhor está sabendo de tudo isso, claro. A senhora Bolam foi internada num hospital caro, perto de Worthing. Tudo financiado com o que herdou da prima Enid. Coitada. Me espanta ela ter conseguido tocar naquele dinheiro.” Dalgliesh não estava espantado, mas não falou nada. A sra. Shorthouse prosseguiu: “E ainda tem o doutor Steiner. Vai se casar com a mulher.” “O que disse, senhora Shorthouse?” “Bem, vai se casar pela segunda vez com ela. Resolveram de repente. Tinham se divorciado e agora vão se casar de novo. O que acha disso?” Dalgliesh respondeu que quem tinha de achar alguma coisa era o doutor Steiner. “Ah, ele está satisfeito como pinto no lixo. Estão falando que o Conselho Regional talvez feche a clínica e transfira todo mundo para o departamento de pacientes-dia de algum hospital. Bem, dá para entender. Primeiro apunhalam uma, depois tentam matar a outra com gás — e agora um julgamento por assassinato. Complicado, realmente. O doutor Etherege diz que isso perturba os pacientes, mas para falar a verdade não percebi nada. O número de pacientes não diminuiu de outubro para cá. A senhorita Bolam é que teria gostado. Sempre preocupada com o número de pacientes. Claro, sempre aparece um para dizer que não teríamos tido que enfrentar aquele problema com o Nagle e a Priddy se a verdadeira assassina tivesse sido apanhada desde o começo. Foi por pouco, não é mesmo? Mas o que eu queria dizer é o seguinte: o senhor fez o que
pôde e no fim deu tudo certo.” No fim deu tudo certo! De modo que eram essas as concomitâncias do fracasso, pensou Dalgliesh com amargura ao desligar o telefone. Como se não bastasse sentir aquela autocomiseração acre e corrosiva! Ainda tinha de enfrentar as lições de vida do inspetor-chefe, o tato de Martin, as condolências de Amy Shorthouse. Se quisesse ver-se livre daquele desânimo que impregnava a sua vida, precisava tirar uma folga do crime e da morte, precisava afastar-se da sombra da chantagem e do assassinato, nem que fosse pelo período breve de uma noite. Lembrou-se de que o que mais desejava era jantar com Deborah Riscoe. Pelo menos, disse para si mesmo com ironia, seria uma mudança de problema. Pôs a mão sobre o fone e estacou, movido pela antiga cautela, as antigas incertezas. Nem mesmo tinha certeza de que ela acharia bom receber um telefonema no escritório. Não sabia qual era seu cargo na Hearne e Illingworth. Depois a imagem de Deborah no último encontro dos dois voltou-lhe à memória e ele levantou o fone. Por que não podia jantar com uma mulher atraente sem fazer toda aquela mórbida autoanálise? O convite não o comprometeria a nada além de cuidar para que ela tivesse uma noite agradável e pagar a conta. E afinal um homem tem o direito de ligar para seus editoreExistem apenas umas poucas clínicas independentes para pacientes psiquiátricos ambulatoriais em Londres, e é óbvio que essas unidades, com uma mesma especialização médica e todas elas organizadas no âmbito do Departamento Nacional de Saúde, inevitavelmente têm alguns métodos de tratamento e alguns procedimentos administrativos comuns. Vários deles são adotados pela Clínica Steen. É extremamente importante esclarecer que a Steen é uma clínica imaginária situada numa praça imaginária de Londres; que nenhum de seus pacientes ou funcionários — tanto da equipe médica como da equipe de apoio — corresponde a pessoas reais; e que os acontecimentos deploráveis que se desenrolaram no subsolo da clínica têm sua origem exclusivamente naquele estranho fenômeno psicológico que é a imaginação do autor de romances policiais. P. D. J.
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O dr. Paul Steiner, psiquiatra clínico da Clínica Steen, estava sentado no consultório da frente, no andar térreo, ouvindo a explicação altamente racionalizada de seu paciente sobre o colapso de seu terceiro casamento. O sr. Burge estava deitado confortavelmente num divã: isso lhe dava melhores condições de explicar as complicações de sua psique. O dr. Steiner estava sentado junto da cabeça dele, numa cadeira do tipo cuidadosamente documentado que o Comitê Administrativo Hospitalar determinara que deveria ser usado pelo corpo médico. Era uma cadeira funcional e não totalmente desprovida de beleza, mas que não oferecia apoio para a nuca. De vez em quando uma pinçada aguda nos músculos do pescoço fazia com que o dr. Steiner deixasse o limbo provisório em que se encontrava para voltar à realidade de sua clínica psicoterápica de sexta-feira à noite. Fora um dia muito quente de outubro. Depois de dois ou três dias de frio e geada durante os quais os profissionais da clínica haviam tiritado e insistido para que as medidas disponíveis fossem tomadas, a data oficial para o início do aquecimento central coincidira com um daqueles dias perfeitos de outono em que a praça da frente da clínica se mostrara sob uma linda luz dourada e as últimas dálias do jardim gradeado, coloridas como uma caixa de tintas, haviam cintilado, vistosas como se fosse alto verão. Eram quase sete horas; no exterior, fazia muito que o calor do dia dera lugar primeiro à névoa, depois a uma escuridão gelada. Mas ali, no interior da clínica, o calor do meio-dia fora aprisionado, e a atmosfera, pesada e imóvel, dava a impressão de ter se desgastado com o alento de tantas falas. O sr. Burge discorria sobre a imaturidade, frieza e ausência de sensibilidade de suas esposas numa voz aguda e beligerante. A avaliação clínica do dr. Steiner, não isenta da influência dos efeitos tardios de um farto almoço e do consumo pouco prudente de um bolinho de creme com o chá da tarde, dizia-lhe que ainda não era hora de comunicar a seu paciente que o único defeito partilhado pelas três senhoras Burge fora uma singular ausência de tirocínio na escolha do marido. O sr. Burge não estava preparado para encarar a verdade de suas próprias lacunas. O dr. Steiner não sentia indignação moral diante do comportamento do sr. Burge. Sem dúvida, seria uma enorme falta de ética de sua parte permitir que uma emoção assim inadequada obscurecesse sua percepção. Poucas coisas na vida despertavam a indignação moral do dr. Steiner, e a maioria delas dizia respeito a seu próprio conforto. Muitas delas, de fato, estavam relacionadas à Clínica Steen e a sua administração. Ele tinha sérias críticas quanto à gerente administrativa, srta. Bolam, cuja preocupação com o número de pacientes que ele recebia por turno e com a acurácia de suas prestações de contas sempre que viajava ele via como parte de uma política sistemática de perseguição. Lamentava o fato de que sua clínica de sexta-feira à noite coincidisse com a terapia de eletrochoque do dr. James Baguley, de modo que seus pacientes da psicoterapia, todos altamentes inteligentes e sensíveis ao privilégio de estarem sendo atendidos por ele, eram obrigados a aguardar na sala de espera na companhia do conjunto heterogêneo formado por donas-de-casa suburbanas deprimidas e psicóticos mal-educados que Baguley parecia ter prazer em colecionar. O dr. Steiner se recusara a usar um dos consultórios do terceiro andar, formados mediante a compartimentação com divisórias das amplas e elegantes salas georgianas, e desprezava-as por serem cubículos de péssimas proporções, inadequados para uma pessoa de seu nível e para a importância de seu trabalho. Ao mesmo tempo, considerara inviável alterar o horário de sua sessão. Baguley, conseqüentemente, seria obrigado a alterar o seu. Mas o
dr. Baguley fincara pé e também nisso o dr. Steiner vira a influência da srta. Bolam. Sua reivindicação, de que os consultórios do térreo tivessem isolamento acústico, fora rejeitada pelo Comitê Administrativo Hospitalar com o argumento de que era preciso conter gastos. Por outro lado, todos haviam achado normal fornecer a Baguley um equipamento novo e extremamente oneroso para que aplicasse choques em seus pacientes, fazendo-os perder as poucas luzes que ainda possuíam. É evidente que o assunto fora examinado pelo Comitê Médico-clínico, mas a srta. Bolam não se preocupara em disfarçar de que lado estavam suas simpatias. Em suas diatribes contra a gerente administrativa, o dr. Steiner considerara conveniente esquecer que a influência dela sobre o Comitê Médico era inexistente. Era difícil esquecer as irritações da sessão de eletrochoque. O prédio em que funcionava a clínica fora construído na época em que os homens construíam para durar, mas nem a porta de carvalho maciço do consultório conseguia abafar as idas e vindas das noites de sexta-feira. A porta da frente era fechada às seis da tarde, e os pacientes das clínicas noturnas tinham suas entradas e saídas monitoradas desde o tempo em que, mais de cinco anos antes, uma paciente entrara sem que ninguém percebesse e se esgueirara até o banheiro do subsolo, escolhendo aquele lugar insalubre para suicidar-se. As sessões psicoterápicas do dr. Steiner eram pontuadas pela campainha da porta da frente, pelo ruído de passos diante da porta à medida que os pacientes iam e vinham, pelas vozes enfáticas dos familiares e acompanhantes insistindo para que o paciente fizesse alguma coisa ou despedindo-se ruidosamente da irmã Ambrose. O dr. Steiner não entendia por que os familiares achavam necessário gritar com os pacientes como se eles fossem surdos, além de psicóticos. Bem, quem sabe depois de uma sessão com Baguley e sua máquina diabólica eles se tornassem mesmo surdos. O pior de tudo era a auxiliar de serviços gerais da clínica, a sra. Shorthouse. O lógico seria que Amy Shorthouse fizesse a faxina cedinho de manhã, sem dúvida a prática usual em qualquer lugar que se preze. Seria uma maneira de criar o mínimo de perturbação para a equipe médica. Só que a sra. Shorthouse afirmava que não conseguia acabar o trabalho sem duas horas suplementares à noite, e a srta. Bolam concordara. Lógico, só podia concordar. Na opinião do dr. Steiner, em matéria de faxina não acontecia quase nada nas noites de sexta-feira. A sra. Shorthouse era fanática pelos pacientes do eletrochoque — na verdade seu marido já fora tratado pelo dr. Baguley —, e era comum vê-la circulando pelo corredor e pelo salão do térreo durante a realização da sessão. O dr. Steiner mencionara o fato mais de uma vez ao Comitê Médico e ficara muito irritado com o desinteresse generalizado de seus colegas pelo assunto. A sra. Shorthouse deveria ser mantida longe da vista, alguém tinha de dizer a ela que cuidasse do seu trabalho; seria preciso proibi-la de ficar de conversinha com os pacientes. A srta. Bolam, tão desnecessariamente rigorosa com o resto do pessoal, não parecia inclinada a enquadrar a sra. Shorthouse. Todos sabiam como era difícil encontrar bons empregados domésticos, mas uma funcionária administrativa competente saberia o que fazer para recrutá-los. Uma atitude vacilante não resolvia nada. Mas era impossível convencer Baguley a fazer queixa da sra. Shorthouse, e Bolam jamais criticaria Baguley. A pobre mulher provavelmente era apaixonada por ele. Cabia a Baguley assumir uma atitude firme, em vez de andar pela clínica com aquele avental branco ridiculamente comprido que o fazia parecer um dentista de segunda categoria. Francamente, o sujeito não tinha noção da dignidade de que um médico devia investirse em sua prática clínica. Plonc, plonc, plonc fizeram as botinas de alguém passando pelo corredor. Provavelmente o velho Tippett, um paciente esquizofrênico crônico de Baguley que, nos últimos nove anos, dedicara regularmente suas noites de sexta-feira à escultura em madeira, no departamento de
arte-terapia. Só de pensar em Tippett, o dr. Steiner ficava ainda mais exasperado. O sujeito era completamente inadequado para a Clínica Steen. Se estava suficientemente bem para viver fora de um hospital, coisa que o dr. Steiner achava muito duvidosa, deveria freqüentar um hospital-dia, ou uma das oficinas dirigidas do Conselho do Condado. Pacientes como Tippett é que davam à clínica sua má reputação e obscureciam sua real função de centro de psicoterapia com orientação analítica. O dr. Steiner sentia-se francamente constrangido quando um de seus pacientes, selecionados com tanto cuidado, encontrava Tippett andando pela clínica com ar furtivo numa noite de sexta-feira. Tippett não tinha condições de andar solto. Algum dia ainda ocorreria algum incidente, Baguley ia acabar arranjando encrenca. A agradável contemplação do próprio colega encrencado, fonte de delícias para o dr. Steiner, foi interrompida pelo som da campainha da porta da frente. Assim não dava! Dessa vez, aparentemente, era o motorista de um dos veículos do hospital em busca de um paciente. A sra. Shorthouse foi até a porta para acompanhar a saída dos dois. Seus guinchos sinistros ecoaram pelo corredor. “Tchau, meus queridos! Até a semana que vem. Comportem-se!” O dr. Steiner fez uma careta e fechou os olhos. Seu paciente, porém, absorto em seu passatempo predileto de falar sobre si mesmo, aparentemente não ouvira nada. Na verdade, as queixas altissonantes do sr. Burge já duravam mais de vinte minutos, sem interrupção. “Não vou dizer que sou uma pessoa fácil, não sou mesmo. Sou um sujeito complicado, coisa que a Theda e a Sylvia jamais entenderam. Claro, as raízes disso vão longe. Você se lembra daquela nossa sessão em junho? Fiquei com a sensação de que um material extremamente básico veio à tona naquela ocasião.” O terapeuta do sr. Burge não estava lembrado do fato, mas não se preocupou com isso. Tratando-se do sr. Burge, um material extremamente básico só podia estar muito próximo da superfície e fatalmente viria à tona. Uma paz indizível envolveu o dr. Steiner. Ele rabiscou em sua caderneta, depois contemplou os rabiscos com interesse e preocupação, olhou novamente para ela segurando-a de cabeça para baixo, e por um momento preocupou-se mais com seu próprio subconsciente do que com o de seu analisando. De súbito, registrou um outro som vindo do exterior, primeiro fraquinho e depois cada vez mais alto. Em algum lugar uma mulher estava gritando. Era um barulho horrível, alto, contínuo e completamente animalesco. Seu efeito sobre o dr. Steiner foi estranhamente desagradável. Ele tinha uma natureza timorata e impessoal. Embora seu trabalho às vezes o envolvesse em crises emocionais muito esporádicas, preferia esquivar-se a ter de enfrentar uma crise. O medo deu lugar à irritação, e ele saltou de sua cadeira exclamando: “Não, francamente, assim não dá! Onde anda a senhorita Bolam? Será que não tem ninguém nesta clínica para supervisionar as coisas?” “O que está acontecendo?”, perguntou o sr. Burge, sentando-se no divã feito uma mola e descendo o tom de voz em uma oitava, para ficar com uma voz mais normal. “Nada. Nada. Deve ser alguma mulher tendo um ataque de histeria, só isso. Fique aí que eu já volto”, ordenou o dr. Steiner. O sr. Burge desabou novamente no divã, mas com os olhos e ouvidos voltados para a porta. O dr. Steiner foi até o vestíbulo. Na mesma hora um grupinho de pessoas virou-se na direção dele. Jennifer Priddy, a datilógrafa assistente, estava pendurada num dos porteiros, Peter Nagle, que dava tapinhas no ombro dela muito embaraçado e com ar interrogativo. A sra. Shorthouse fazia parte do grupo. Os gritos da moça estavam se transformando em vagidos, mas seu corpo inteiro trepidava e ela estava
mortalmente pálida. “Qual é o problema?”, perguntou o dr. Steiner, ríspido. “O que ela está sentindo?” Antes que alguém tivesse tempo de responder, a porta da sala de eletrochoques se abriu e o dr. Baguley apareceu, acompanhado de irmã Ambrose e da anestesista, a dra. Mary Ingram. De repente o vestíbulo parecia repleto de gente. “Calma, menina, calma!”, disse o dr. Baguley com voz suave. “Estamos tentando trabalhar numa clínica!” Depois, voltando-se para Peter Nagle, perguntou em voz baixa: “O que houve, afinal?” Nagle parecia a ponto de falar quando de repente a srta. Priddy recuperou o autocontrole. Soltando-se, ela se virou para o dr. Baguley e disse com absoluta clareza: “É a senhorita Bolam. Ela está morta. Alguém a matou. Está no depósito do subsolo, foi assassinada. Eu a encontrei. Enid foi assassinada!” Em seguida a moça se pendurou novamente em Nagle e voltou a chorar, só que de forma mais contida. O tremor terrível cessara. O dr. Baguley disse ao porteiro: “Vá com ela até a enfermaria. Faça com que ela se deite. Melhor dar-lhe alguma coisa para beber. Aqui está a chave. Já volto.” Em seguida, dirigiu-se para as escadas que levavam ao subsolo e as outras pessoas foram atrás, aos empurrões, abandonando a moça aos cuidados de Nagle. O subsolo da clínica era bem iluminado; todos os seus aposentos eram aproveitados, já que a Clínica Steen, como a maioria das instituições psiquiátricas, sofria de uma falta de espaço crônica. Lá, depois de um lanço de escadas, além da sala da caldeira, da sala com a central telefônica e do quartinho dos porteiros, estava instalado o departamento de arte-terapia, um depósito de registros médicos e, na parte fronteira do edifício, uma sala de tratamento para os pacientes de ácido lisérgico. Quando o grupinho atingiu a base da escada, a porta dessa sala se abriu e a enfermeira Bolam, prima da srta. Bolam, lançou um olhar para fora — um espectro envolto em sombras, em seu uniforme branco, contra a escuridão do aposento atrás dela. “Algum problema? Tive a impressão de ouvir um grito alguns minutos atrás...” Irmã Ambrose falou, com súbita autoridade: “Não há nada errado, enfermeira. Volte para junto de sua paciente.” A figura branca desapareceu e a porta se fechou. Virando-se para a sra. Shorthouse, a irmã Ambrose continuou: “E a senhora não tem nada que fazer aqui, senhora Shorthouse. Por favor, fique lá em cima. Talvez a senhorita Priddy queira tomar um chazinho.” A sra. Shorthouse emitiu alguns murmúrios rebeldes, mas bateu em relutante retirada. Os três médicos, com a irmã atrás, foram em frente. O depósito de registros médicos ficava à direita, entre o quartinho dos porteiros e o departamento de arte-terapia. A porta estava entreaberta e a luz acesa. O dr. Steiner, que fora tomado por um estado de percepção ampliada e se dava conta dos detalhes mais imperceptíveis, notou que a chave estava na fechadura. Não havia ninguém por perto. As estantes de aço, com suas fileiras compactas de envelopes pardos, subiam até o teto perpendicularmente à porta, formando uma série de corredores estreitos, cada um deles iluminado por uma lâmpada fluorescente. As quatro altas janelas eram providas de barras; as estantes, dispostas perpendicularmente às janelas, cortavam-nas ao meio; aquela era uma saleta sem ar, pouco freqüentada e raramente espanada. O pequeno grupo avançou pelo primeiro corredor e virou à esquerda, na direção de um pequeno espaço sem janelas desprovido de estantes e equipado com uma mesa e uma cadeira onde era possível manipular os arquivos, fosse
para consultá-los fosse para classificá-los, e anotar as informações desejadas sem que se fizesse necessário retirar a pasta dali. O local estava um caos. A cadeira estava caída no chão, em meio a uma profusão de pastas jogadas para todos os lados. Algumas capas haviam sido arrancadas e páginas rasgadas, outras formavam pilhas desiguais embaixo de espaços vazios nas estantes, espaços que pareciam pequenos demais para ter abrigado um volume tão grande de papel. E, no meio da confusão, como uma Ofélia balofa e incongruente flutuando numa maré de papel, estava o corpo de Enid Bolam. Sobre seu peito repousava uma imagem pesada e tosca esculpida em madeira; as mãos da srta. Bolam prendiam-se à base dessa estatueta de modo que a horrível impressão resultante era a de que ela era uma paródia da maternidade com seu rebento pousado ritualmente sobre o colo. Não podia haver dúvida quanto ao fato de que ela estava morta. Mesmo tomado pelo medo e pela repugnância, o dr. Steiner não tinha como se equivocar quanto a esse diagnóstico final. Ao ver a figura de madeira, exclamou: “Tippett! Olhem, é a estátua do Tippett! É a talha de que ele tanto se orgulha. Onde está ele? Baguley, ele é seu paciente! É melhor você se encarregar do assunto!” O dr. Steiner olhou para os lados, nervoso, como se achasse que Tippett ia se materializar, de braço erguido para o ataque, a própria personificação da violência. O dr. Baguley, ajoelhado ao lado do corpo, declarou em voz baixa: “Tippett não está aqui esta noite.” “Mas ele sempre vem à clínica nas noites de sexta-feira! E aquilo é a estátua dele! A arma do crime!” O dr. Steiner não se conformava com o fato de que seu colega parecia não ver o que estava diante de seus olhos. Delicadamene, o dr. Baguley ergueu a pálpebra esquerda da srta. Bolam com o polegar. Sem olhar para os outros, falou: “Esta manhã recebemos um telefonema do hospital St. Luke. Tippett foi internado com pneumonia. Segunda-feira passada, parece-me. Seja como for, ele não estava aqui esta noite.” De repente, soltou uma exclamação. As duas mulheres se inclinaram para ver melhor o corpo. O dr. Steiner, que não conseguia obrigar-se a acompanhar o exame que o colega estava fazendo, ouviuo dizer: “Ela também foi apunhalada. Com um formão de cabo preto. Pelo jeito, o golpe atingiu o coração. Esse formão não é do Nagle, irmã?”. Depois de uma pausa, o dr. Steiner ouviu a voz da irmã: “Pelo menos é muito parecido, doutor. Todas as ferramentas dele têm o cabo preto. Ele as guarda no quartinho dos porteiros.” Depois acrescentou, em tom defensivo: “Qualquer um podia pegar”. “Pelo jeito, alguém pegou.” O dr. Baguley levantou-se. Ainda de olhos fixos no cadáver, disse: “Irmã, por favor, chame o Cully na portaria. Não o assuste, mas diga-lhe que não deixe ninguém entrar no prédio ou sair dele. Inclusive os pacientes. Depois se comunique com o doutor Etherege e peça-lhe que desça até aqui. Imagino que esteja em seu consultório”. “Não deveríamos chamar a polícia?” A dra. Ingram estava tensa; seu rosto rosado, tão ridiculamente parecido com o de um coelho angorá, corou e ficou mais rosado ainda. Não era apenas nos momentos de grande intensidade dramática que as pessoas tendiam a não dar importância à presença da dra. Ingram, e o dr. Baguley voltou os olhos para ela sem entender, como se por um momento tivesse se esquecido de sua existência. “Vamos esperar pelo diretor médico”, disse.
A irmã Ambrose sumiu da sala num ruge-ruge de linho engomado. O telefone mais próximo ficava ao lado da porta do arquivo, mas, isolado dos ruídos externos por fileiras sucessivas de papel, foi em vão que o dr. Steiner fez o que pôde para ouvir o fone sendo retirado do gancho ou o murmúrio da voz da irmã. Obrigou-se a olhar mais uma vez para o corpo da srta. Bolam. Em vida ele a considerava sem graça e sem atrativos — e a morte não melhorara as coisas. Estava deitada de costas e tinha os joelhos erguidos e afastados, o que deixava perfeitamente visível uma boa área da calçola de lã cor-de-rosa que lhe descia até metade da coxa — cena bem mais indecente do que se as pernas estivessem descobertas. Suas feições redondas, sem delicadeza, estavam perfeitamente tranqüilas. Os dois bandós espessos com que recobria parte da testa estavam no lugar. É preciso reconhecer, contudo, que não havia registro de que algo tivesse perturbado o penteado arcaico da srta. Bolam algum dia. O dr. Steiner lembrou-se de sua fantasia particular, de que os bandós espessos, sem vida, exsudavam sua própria secreção misteriosa e estavam fixados para sempre, imutavelmente, sobre aquele cenho plácido. Contemplando-a na indignidade inerme da morte, o dr. Steiner tentou sentir piedade e admitiu que sentia medo. Contudo, o único sentimento de que estava plenamente consciente era a repugnância. Impossível sentir alguma ternura por uma coisa tão ridícula, tão chocante, tão obscena. A palavra feia emergiu à superfície de seu pensamento sem ser convidada. Obscena! Sentiu uma necessidade ridícula de puxar a saia dela para baixo, de cobrir aquele rosto balofo, patético, de reposicionar os óculos que haviam escorregado do nariz e pendiam, tortos, da orelha esquerda. Os olhos dela estavam semicerrados e sua boca pequena estava franzida como se ela desaprovasse um fim revestido de tão pouca compostura, tão pouco mérito. O dr. Steiner conhecia bem aquela expressão, pois a vira em seu rosto enquanto ela ainda vivia. Pensou: “Até parece que ela está na minha frente contestando minha prestação de despesas de viagem”. De repente foi tomado por uma intolerável necessidade de rir. O volume do riso contido foi aumentando incontrolavelmente. Entendeu que aquela necessidade horrível resultava de seu nervosismo, do choque sofrido, mas o fato de entender não contribuía para lhe dar autodomínio. Desamparado, deu as costas aos colegas e tentou com todas as forças manter a compostura, agarrando-se à beirada de uma estante de arquivos e comprimindo a testa de encontro ao metal frio, a boca e as narinas asfixiadas com o cheiro de mofo das pastas antigas. Ele não registrou a volta de irmã Ambrose, mas de repente ouviu-a falar. “O doutor Etherege está vindo para cá. Cully está tomando conta da porta; falei para ele não deixar ninguém sair. Seu paciente está bastante agitado, doutor Steiner.” “Talvez seja melhor eu subir para vê-lo.” Confrontado com a necessidade de tomar uma decisão, o dr. Steiner recuperou o autocontrole. Sentia que era importante permanecer com os outros e estar ali quando o diretor médico chegasse; que seria de bom alvitre agir de modo que nada de importante fosse dito ou feito sem o seu conhecimento. Por outro lado, não estava muito entusiasmado com a idéia de ficar ao lado do cadáver. O depósito de arquivos, profusamente iluminado como um teatro de operações, claustrofóbico e superaquecido, fazia-o sentir-se como um animal apanhado na armadilha. As estantes sobrecarregadas pareciam fazer peso sobre ele, forçando-o a voltar os olhos a todo momento para aquele vulto que jazia sobre seu esquife de papel. “Vou ficar aqui”, resolveu. “O senhor Burge vai ter de esperar, como todo mundo.” Todos continuaram agrupados, em silêncio. O dr. Steiner viu que irmã Ambrose, pálida mas em tudo o mais aparentemente impassível, mantinha-se calma, com as mãos suavemente cruzadas sobre o avental. Quantas vezes não teria ficado naquela posição em seus quase quarenta anos de
enfermeira, vigilante ao pé da cama de um paciente, silenciosamente prestativa, à espera das ordens do médico. O dr. Baguley tirou o maço de cigarros do bolso, olhou para ele por um instante, como que surpreso com o fato de vê-lo na própria mão, e tornou a guardá-lo no bolso. A dra. Ingram parecia estar chorando em silêncio. Em certo momento o dr. Steiner teve a impressão de ouvi-la murmurar: “Pobre mulher... pobre mulher...”. Não demorou, e ouviram passos; o diretor médico entrou no aposento, acompanhado pela psicóloga-chefe, Fredrica Saxon. O dr. Etherege se ajoelhou junto ao corpo. Não o tocou, mas aproximou o rosto do da srta. Bolam como se estivesse prestes a beijá-la. Os olhinhos argutos do dr. Steiner não perderam o olhar que a srta. Saxon dirigiu ao dr. Baguley nem o modo instintivo como os dois se aproximaram e em seguida, rapidamente, se afastaram. “O que aconteceu?”, perguntou ela. “A senhorita Bolam morreu?” “Sim. Aparentemente foi assassinada.” A voz de Baguley estava inexpressiva. A srta. Saxon fez um gesto súbito. Durante um inacreditável instante o dr. Steiner achou que ela ia fazer o sinal-da-cruz. “Quem fez isso? Espero que não tenha sido o coitado do Tippett... Aquilo não é a estátua dele?” “É, mas ele não está na clínica. Está internado no St. Luke com pneumonia.” “Ah, meu Deus! Então quem foi?” Dessa vez ela se aproximou bastante do dr. Baguley e nenhum dos dois se afastou. O dr. Etherege, que estava agachado, levantou-se. “Você tem razão, é claro. Ela está morta. Ao que tudo indica, primeiro foi nocauteada e depois teve o coração perfurado por aquele instrumento. Vou subir para telefonar para a polícia e informar o resto do pessoal. Acho melhor que todos fiquem reunidos enquanto nós três damos uma busca no prédio. É claro que ninguém deve tocar em nada.” O dr. Steiner não ousava encontrar o olhar do dr. Baguley. O dr. Etherege, em seu papel de administrador calmo e em perfeito domínio da situação, sempre lhe parecera levemente ridículo. Tinha a sensação de que Baguley pensava como ele. De repente ouviram-se passos e a chefe dos assistentes sociais psiquiátricos, srta. Ruth Kettle, surgiu de detrás das estantes de pastas e fitou-os com seu olhar míope. “Ah, o senhor está aqui, diretor”, disse a srta. Kettle com voz anasalada, ofegante. (Ela era o único membro da equipe que chamava o dr. Etherege por aquele título ridículo, sabe-se lá por quê, pensou o dr. Steiner. O lugar ficava parecendo uma clínica naturalista.) “Cully me disse que o senhor estava aqui embaixo. Espero que não esteja muito ocupado... Estou tão aborrecida... Não quero criar problemas, mas o assunto é realmente grave. A senhorita Bolam agendou um paciente novo para mim para as dez da manhã de segunda-feira. Acabo de ver a consulta anotada em minha agenda. Só que não tenho condições de fazer essa consulta. Ela sabe muito bem que sempre recebo os Worriker às segundas-feiras. Foi de propósito, tenho certeza. O senhor sabe, diretor, alguém precisa tomar uma providência com relação à senhorita Bolam.” O dr. Baguley deu um passo para o lado e falou, soturno: “Alguém já tomou.”
Do outro lado da praça, o inspetor Adam Dalgliesh, do Departamento de Investigações Criminais, participava do xerez ritual de outono oferecido por seus editores. A data coincidira com a terceira reimpressão de seu primeiro livro de poemas. Ele não superestimava seu talento nem o sucesso do livro. Os poemas, que refletiam seu espírito independente, irônico e
fundamentalmente inquieto, por acaso haviam caído no gosto do público. Não acreditava que mais do que meia dúzia deles conquistasse um lugar definitivo no afeto geral, inclusive no dele próprio. Enquanto isso, via-se jogado na praia de um mar desconhecido em que agentes, royalties e resenhas eram agradáveis pontos de referência. E agora ali estava sua festa. Pensara nela sem entusiasmo, como em algo que teria obrigação de encarar, mas, para sua surpresa, ela estava muito agradável. Os srs. Hearne e Illingworth eram tão incapazes de oferecer xerez de segunda qualidade quanto de publicar títulos ruins; Dalgliesh tinha certeza de que a cota que cabia a seu editor nos lucros de seu livro havia sido bebida nos primeiros dez minutos. O velho Sir Hubert Illingworth fizera sua brevíssima entrada no local no decorrer desse período, apertara a mão de Dalgliesh com expressão triste e depois se escafedera, murmurando alguma coisa, como se deplorasse que outro dos escritores do catálogo da editora estivesse se expondo, bem como a seu editor, às gratificações duvidosas do sucesso. Para ele todos os escritores eram crianças precoces; criaturas que era preciso tolerar e estimular, mas sem maiores agitações, para que não chorassem na hora de ir para a cama. Além da breve passagem do sr. Hubert, raras foram as surpresas da festa. Poucos dos presentes tinham conhecimento do fato de que Dalgliesh era policial e, desses, nem todos alimentavam a expectativa de que ele falasse sobre sua profissão. Como era inevitável, porém, algumas pessoas achavam inadequado que um homem que caçava assassinos também escrevesse versos, e afirmavam isso com graus variáveis de tato. Supostamente elas desejavam que os assassinos fossem apanhados, por mais que não chegassem a uma conclusão quanto ao que deveria ser feito com eles depois de apanhados; ao mesmo tempo, porém, exibiam uma ambivalência típica em relação àqueles que se ocupavam da captura. Dalgliesh estava acostumado com essa atitude e achava-a menos ofensiva do que a suposição bastante freqüente de que havia um encanto especial em fazer parte de uma equipe especializada em assassinatos. Na festa, porém, embora tivesse encontrado a dose habitual de curiosidade furtiva e tivesse ouvido as idiotices de praxe em ocasiões do tipo, também encontrara pessoas agradáveis dizendo coisas agradáveis. Nenhum escritor, por mais despreocupado que pareça em relação ao próprio talento, está imune ao sutil sentimento de segurança que resulta de elogios desinteressados, e Dalgliesh, resistindo à suspeita de que raros dos que admiravam seus poemas haviam-nos de fato lido e mais raros ainda haviam comprado o livro, constatou que passava momentos agradáveis, e foi suficientemente sincero para reconhecer a razão desse fato. A primeira hora fora caótica mas, pouco depois das sete, vira-se em pé sozinho de copo na mão ao lado da rebuscada lareira estilo James Wyatt. Alguns gravetos ardiam, dando à sala um odor suave de campo. Foi um desses momentos inexplicáveis, em que a pessoa se vê completamente só no meio de uma multidão, quando o barulho fica em surdina e os corpos circundantes parecem recuar e tornar-se tão remotos e misteriosos quanto atores num palco longínquo. Dalgliesh apoiou a nuca no consolo da lareira, saboreando aquela intimidade efêmera e registrando com satisfação as proporções elegantes do aposento. De repente viu Deborah Riscoe. Ela devia ter entrado muito discretamente na sala. Tentou imaginar quanto tempo fazia que ela estava ali. Na mesma hora sua sensação difusa de paz e felicidade deu lugar a um prazer tão agudo e doloroso quanto o de um garoto que vive seu primeiro amor. Ela o viu na mesma hora e, de copo na mão, esgueirou-se entre as pessoas e andou em sua direção. Era uma presença totalmente inesperada, e ele não tentou se enganar dizendo para si mesmo que ela estava ali por causa dele. Considerando-se o último encontro dos dois, essa hipótese seria altamente improvável. Disse:
“É um grande prazer encontrar você aqui”. “Eu teria vindo de todo jeito”, ela respondeu. “Mas acontece que trabalho aqui. Felix Hearne me conseguiu o emprego depois da morte de mamãe. Até que sou útil. Sou a faz-tudo de todo mundo. Estenografia, datilografia... Fiz um curso.” Ele sorriu. “Do jeito que você fala, parece que fez uma cura, e não um curso...” “Bom, de certo modo é verdade.” Ele não tentou se fazer de desentendido. Os dois ficaram em silêncio. Dalgliesh sabia que era morbidamente sensível a toda e qualquer alusão ao caso que propiciara o encontro dos dois, quase três anos antes. Era uma ferida que incomodava mesmo com a mais gentil das alusões. Ele lera o anúncio da morte da mãe dela no jornal cerca de seis meses antes, mas na época considerara impossível e até impertinente mandar-lhe uma mensagem ou pronunciar as palavras habituais de condolências. Afinal, era parcialmente responsável por aquela morte. De lá para cá, as coisas não tinham ficado mais fáceis. Assim, os dois falaram de outra coisa: da poesia dele e do trabalho dela. Enquanto desempenhava sua parte nessa conversinha sem maiores ambições, ele tentava adivinhar qual seria a reação dela se ele a convidasse para jantar. Se ela não o dispensasse na hora — coisa que provavelmente faria —, sentia que talvez estivesse à beira de um envolvimento amoroso. Não se iludiu dizendo para si mesmo que não desejava mais do que uma refeição agradável com uma mulher que por acaso achava bonita. Não tinha a mínima idéia da opinião dela a seu respeito, mas, desde o último encontro dos dois, sabia que estava a um passo de apaixonar-se. Se ela aceitasse — para aquela mesma noite ou para outra qualquer —, sua vida solitária estaria em perigo. Ele sabia disso com absoluta certeza, e essa certeza o amedrontava. Depois que sua mulher morrera durante o parto, ele se isolara cuidadosamente para não sofrer; o sexo se tornara pouco mais que um exercício de perícia; os casos não passavam de pavanas emocionais formalizadas, dançadas de acordo com as regras, sem o menor compromisso com coisa alguma. Mas claro que ela não ia aceitar. Ele não tinha absolutamente nenhuma razão para achar que ela estava interessada nele. Somente essa certeza lhe dava a confiança necessária para ficar imaginando tudo aquilo. Mesmo assim, estava inclinado a tentar a sorte. Enquanto conversavam, ensaiou mentalmente o que diria, perversamente divertido ao reconhecer, depois de tantos anos, as incertezas da adolescência. O toque leve em seu ombro sobressaltou-o. Era a secretária do presidente dizendo que ele estava sendo chamado ao telefone. “É da Scotland Yard, senhor Dalgliesh”, disse ela, tratando de disfarçar a curiosidade, como se os autores da Hearne e Illingworth estivessem acostumados a receber telefonemas da Scotland Yard. Ele sorriu para Deborah Riscoe desculpando-se, e ela, resignada, encolheu de leve os ombros. “Já volto”, disse. Contudo, avançando entre os grupos que conversavam, deu-se conta de que não voltaria. Atendeu à ligação num pequeno escritório ao lado da sala do conselho editorial, chegando ao telefone com dificuldade por entre cadeiras com manuscritos empilhados, rolos de provas e arquivos empoeirados. Hearne e Illingworth adotavam um estilo de despreocupação à antiga e desordem generalizada que ocultava — muitas vezes para desconcerto de seus autores — formidável eficiência e atenção para o detalhe. A voz conhecida ecoou em sua orelha: “É você, Adam? A festa está boa? Ótimo. Desculpe atrapalhar, mas eu gostaria que na saída você
passasse na Clínica Steen, no número 31. Você sabe onde é. Uma que só trata de neuroses de elite. Pelo jeito a secretária, ou gerente administrativa, sei lá, foi assassinada. No subsolo. Levou uma pancada na cabeça e depois uma estocada no coração. Negócio de mestre. Os rapazes estão a caminho. Claro, mandei o Martin para ajudar você. Ele está levando o seu equipamento.” “Obrigado. Quando o crime foi comunicado?” “Há três minutos. O diretor médico telefonou. Me fez um relatório resumido sobre os álibis de praticamente todo mundo no momento em que se supõe que o assassinato tenha sido cometido e explicou as razões pelas quais não era possível que o culpado fosse um dos pacientes. Também falei com um médico chamado Steiner. Ele me explicou que há cerca de cinco anos nos encontramos num jantar oferecido pelo cunhado dele. O dr. Steiner me explicou as razões pelas quais seria impossível que o culpado fosse ele e me brindou com sua interpretação do perfil psicológico do assassino. Aqueles sujeitos leram tudo o que há de melhor em matéria de romance policial. Ninguém tocou no corpo, não estão permitindo a entrada ou a saída de ninguém e estão todos reunidos numa sala para poder vigiar-se uns aos outros. É melhor você ir depressa para lá, Adam, do contrário eles vão resolver o crime antes de você chegar.” “Quem é o diretor médico?”, perguntou Dalgliesh. “O doutor Henry Etherege. Você já deve tê-lo visto na televisão. É o psiquiatra modelo, tem a missão de tornar a profissão algo respeitável. Aparência distinta, ortodoxo e rigoroso.” “Já o vi no tribunal”, disse Dalgliesh. “Claro. Você se lembra dele no caso Routledge? Teve a capacidade de praticamente me fazer chorar feito criança, e isso que eu conhecia Routledge melhor que ninguém. Etherege é a opção natural de todo advogado de defesa — isso se você conseguir que ele deponha. Sabe como eles são. Veja se descobre um psiquiatra de ar respeitável, que fale bem e que não choque o júri nem provoque a irritação do juiz. Resposta, Etherege. Enfim... Boa sorte para você!” Era muito otimismo do delegado imaginar que sua mensagem teria o poder de atrapalhar a festa. Fazia tempo que ela chegara ao estágio em que ninguém estranhava a partida de um convidado solitário. Dalgliesh agradeceu ao anfitrião, deu um aceno casual de despedida para as poucas pessoas com quem cruzou o olhar e saiu do prédio praticamente sem que ninguém notasse. Não voltou a ver Deborah Riscoe e não fez nenhum esforço para encontrá-la. Já estava com a cabeça no trabalho que tinha pela frente, sentindo que fora salvo, na melhor das hipóteses de um fora e na pior do desvario. Fora um encontro breve, absorvente, inconclusivo e perturbador, mas agora já pertencia ao passado. Enquanto cruzava a praça na direção do alto edifício georgiano que abrigava a Clínica Steen, Dalgliesh lembrou-se de uma das poucas informações sobre o lugar a que tivera acesso. Era arquisabido que o sujeito precisava ser excepcionalmente bom da cabeça para ser aceito na Clínica Steen para um tratamento. Claro, o lugar tinha a fama — provavelmente imerecida, achava Dalgliesh — de selecionar seus pacientes levando mais em conta sua inteligência e classe social do que sua situação mental, sujeitando-os a procedimentos diagnósticos que visavam afastar todos os candidatos com exceção dos mais entusiásticos, e depois deixá-los numa fila de espera para o tratamento, uma fila suficientemente demorada para garantir que os efeitos curativos do tempo exercessem o máximo de influência antes que o paciente comparecesse efetivamente a sua primeira sessão psicoterápica. Dalgliesh lembrou-se de que a Clínica Steen possuía um Modigliani. Não era um quadro muito conhecido, tampouco um dos melhores do artista, mas era, inquestionavelmente, um Modigliani. Estava pendurado na sala do conselho, no primeiro andar; fora uma doação de um antigo paciente agradecido e representava em boa medida o que a clínica
significava aos olhos do público. Outras clínicas do Sistema Nacional de Saúde povoavam suas paredes com reproduções da biblioteca iconográfica da Cruz Vermelha. A equipe da Clínica Steen não fazia segredo do fato de que preferia de longe um original de segunda linha a uma reprodução de primeira. E possuía um original de segunda linha para provar isso. O edifício em si fazia parte de um conjunto de prédios georgianos. Ficava na esquina sul da praça, confortável, despretensioso e agradável de todos os pontos de vista. Nos fundos, uma passagem estreita dava para a Lincoln Square Mews. A clínica tinha um subsolo gradeado; na fachada da casa, as grades formavam curvas dos dois lados dos largos degraus que conduziam à porta de entrada e sustentavam duas lâmpadas de ferro batido. À direita da porta uma placa singela de bronze ostentava o nome do Comitê Administrativo Hospitalar e, embaixo, as palavras “Clínica Steen”. Nenhuma outra informação era oferecida. A Clínica Steen não apregoava sua função a um mundo vulgar nem estava disposta a propiciar um influxo dos psicóticos locais em busca de tratamento ou reforço psíquico. Havia quatro carros estacionados do lado de fora, mas por enquanto nem sinal da polícia. O edifício parecia muito quieto. A porta estava fechada, mas uma luz brilhava através da elegante bandeira semicircular no alto da porta e por entre as dobras das cortinas fechadas das salas do térreo. A porta se abriu praticamente antes de ele afastar o dedo da campainha. Estavam à sua espera. Um jovem reforçado vestindo uniforme de porteiro abriu a porta e deixou-o entrar sem dizer nada. O vestíbulo lhe pareceu quente demais, depois do frio da noite outonal. À esquerda da porta estava a recepção — um compartimento com paredes de vidro e uma mesa telefônica. Um segundo porteiro, este muito mais velho do que o primeiro, estava sentado à mesa numa atitude de profunda infelicidade. Depois de olhar em volta, deu uma espiadela rápida para o lado de Dalgliesh com seus olhos lacrimejantes e voltou à contemplação da mesa telefônica. Era como se a chegada do inspetor fosse a última palha de um peso intolerável que ele tinha de carregar e que, se ignorado, talvez fosse retirado de suas costas. No espaço principal do vestíbulo, a comissão de recepção avançava; o diretor médico vinha com a mão estendida como se recebesse um convidado. “Inspetor Dalgliesh? Que alegria vê-lo. Gostaria de apresentar meu colega, o doutor James Baguley, e o secretário do Comitê Administrativo Hospitalar, senhor Lauder.” “O senhor chegou depressa ao hospital!”, disse Dalgliesh a Lauder. O secretário do grupo respondeu: “Só tomei conhecimento do assassinato depois que cheguei aqui, dois minutos atrás. Hoje na hora do almoço a senhorita Bolam me telefonou e disse que precisava falar comigo com urgência. Estava acontecendo alguma coisa na clínica e ela queria que eu a aconselhasse. Vim assim que pude e descobri que ela havia sido assassinada. Nas circunstâncias, eu tinha mais de uma razão para ficar por aqui. Pelo jeito ela estava mais necessitada de conselhos do que ela própria sabia.” “Fosse o que fosse, parece que você chegou tarde demais”, disse o dr. Etherege. Dalgliesh viu que ele era bem mais baixo do que parecia quando visto pela televisão. A cabeça grande, de cocoruto alto, com sua auréola de cabelo branco macio e fino como o de um bebê, parecia muito pesada para o corpo, que dava a impressão de ter envelhecido independentemente, deixando-o com uma aparência esquisita, desconjuntada. Era difícil adivinhar sua idade, mas Dalgliesh achou que ele devia estar mais para setenta do que para sessenta e cinco, a idade normal de aposentadoria para um consultor. Possuía um rosto de gnomo indestrutível; as bochechas coradas pareciam pintadas; as sobrancelhas se moviam acima de olhos de um azul penetrante. Dalgliesh sentia que aqueles olhos, assim como a voz macia, convincente, eram
ferramentas profissionais importantes do diretor médico. O dr. James Baguley, em compensação, tinha um metro e oitenta e três de altura, só um pouco menos que Dalgliesh, e a impressão imediata que ele transmitia era de intensa fadiga. Vestia um avental branco comprido que lhe caía descuidadamente dos ombros encurvados. Embora fosse bem mais jovem do que o diretor médico, ficava muito aquém deste em matéria de vitalidade. Seu cabelo liso estava ficando cinza-chumbo. De vez em quando ele o afastava dos olhos com os dedos compridos manchados de nicotina. Seu rosto era atraente, ossudo, mas tinha a pele e os olhos opacos como se sofressem de cansaço permanente. O diretor médico disse: “Imagino que o senhor queira ver o corpo imediatamente. Vou pedir a Peter Nagle, nosso segundo porteiro, que vá até lá embaixo conosco, se o senhor não vir inconveniente. O formão dele foi uma das armas utilizadas — não que tivessem pedido a opinião dele a respeito, coitado — e sem dúvida o senhor vai querer interrogá-lo.” “No momento oportuno vou querer interrogar todo mundo aqui dentro”, replicou Dalgliesh. Dava para perceber que o diretor médico assumira a liderança. O dr. Baguley, que ainda não abrira a boca, parecia contente em aceitar esse fato. Lauder, aparentemente, optara pelo papel de observador. Enquanto o grupo se dirigia para as escadas que levavam ao subsolo, seu olhar encontrou o de Dalgliesh. Foi só por um instante e Dalgliesh não soube bem como analisar sua expressão, mas pareceu-lhe ter percebido um lampejo de humor e um certo distanciamento oblíquo. Todos ficaram parados em silêncio olhando Dalgliesh de joelhos ao lado do cadáver. Ele só o tocou para entreabrir o casaco e a blusa, ambos desabotoados, e expor o cabo do formão. Este fora enterrado até a empunhadura. Os tecidos quase não estavam contundidos e não havia sangue. A camiseta da mulher fora enrolada até acima de seus seios para expor a pele àquele golpe cruel, calculado. A providência sugeria que o assassino confiava em seus conhecimentos de anatomia. Havia maneiras mais fáceis de matar do que perfurar o coração com um único golpe — mas para quem tivesse o conhecimento e a força física necessários, poucas eram mais seguras do que aquela. Dalgliesh se levantou e virou-se para Peter Nagle. “Esse formão é seu?” “Aparentemente é. É igual ao meu e o meu não está na caixa.” Apesar da omissão do “senhor” de praxe, a voz, educada e não enfática, era desprovida de insolência ou ressentimento. Dalgliesh peguntou: “Alguma idéia sobre o modo como ele veio parar aqui?” “Absolutamente nenhuma. Mesmo que tivesse, é provável que não falasse nada, não é mesmo?” O diretor médico franziu as sobrancelhas por um momento, olhando para Nagle como se o advertisse ou repreendesse, e apoiou a mão por um segundo no ombro do porteiro. Sem consultar Dalgliesh, disse gentilmente: “Não precisamos mais de você por enquanto, Nagle. Espere lá fora, por favor.” Dalgliesh não opôs objeção ao ver o porteiro afastar-se do grupo sem alarde e sair em silêncio. “Pobre rapaz! Dá para perceber que está chocado com o uso de seu formão. A impressão que se tem, bastante desagradável, é de que alguém tentou comprometê-lo. Mas o senhor irá verificar, inspetor, que Nagle é um dos poucos membros da equipe com um álibi completo para a suposta hora da morte.” Dalgliesh não chamou a atenção para o fato de que isso, em si, já era altamente suspeito.
“Temos uma estimativa da hora da morte?”, perguntou. O dr. Etherege respondeu: “Achei que deve ter ocorrido muito recentemente. Essa é, também, a opinião do doutor Baguley. A clínica está muito aquecida hoje — o aquecimento central foi ligado há pouco tempo —, por isso o resfriamento do corpo seria um bocado lento. Não examinei a presença de rigor mortis. Claro, sou pouco mais do que um leigo nesses assuntos. Depois fiquei sabendo que ela deve ter morrido há menos de uma hora. Claro que discutimos o assunto enquanto esperávamos pelo senhor, e parece que irmã Ambrose foi a última pessoa a ver a senhorita Bolam com vida. Isso foi às seis e vinte. Cully, nosso porteiro sênior, me disse que a senhorita Bolam falou com ele pelo interfone mais ou menos às seis e quinze para dizer que ia descer ao subsolo e que se o senhor Lauder chegasse deveria esperá-la em seu escritório. Poucos minutos depois, segundo seus cálculos, a irmã saiu da sala de eletrochoque, no térreo, e atravessou o vestíbulo na direção da sala de espera dos pacientes para informar a um senhor que podia levar a mulher para casa. A irmã viu quando a senhorita Bolam cruzou o vestíbulo na direção das escadas que descem para o subsolo. Depois disso, ninguém tornou a vê-la com vida.” “A não ser o assassino”, disse Dalgliesh. O dr. Etherege pareceu surpreso. “Claro, o assassino viu. O que estou querendo dizer é que nenhum de nós voltou a vê-la com vida. Perguntei à irmã Ambrose sobre a hora e a irmã tem certeza...” “Vou conversar com a irmã Ambrose e o outro porteiro.” “Claro. Sem dúvida, o senhor vai querer conversar com todo mundo. Já havíamos previsto. Enquanto esperávamos, telefonamos para nossas casas para avisar que chegaríamos atrasados hoje à noite, mas não adiantamos nenhuma explicação. Já havíamos dado uma busca no edifício e verificado que tanto a porta que dá para o subsolo como a porta dos fundos do térreo estavam bem trancadas. Ninguém mexeu em nada aqui dentro, óbvio. Dei ordens para que o pessoal do hospital permanecesse reunido no consultório da frente, com exceção da irmã Ambrose e da enfermeira Bolam, que ficaram na sala de espera com os pacientes que ainda estavam por aqui. Ninguém teve permissão para entrar, com exceção do senhor e do senhor Lauder.” “Pelo jeito o senhor pensou em tudo, doutor”, disse Dalgliesh. O detetive, que ainda estava ajoelhado, ergueu-se e, em pé, continuou a olhar para o corpo. “Quem a encontrou?” “Uma de nossas secretárias médicas, Jennifer Priddy. O porteiro sênior, Cully, passou quase o dia inteiro se queixando de dor de estômago, e a senhorita Priddy foi procurar a senhorita Bolam para lhe perguntar se ele podia ir para casa mais cedo. A senhorita Priddy está muito abalada, mas conseguiu me informar que...” “Acho que seria melhor que ela me informasse diretamente. Esta porta costumava ficar trancada a chave?” A pergunta foi feita num tom de perfeita cortesia, mas ele percebeu a surpresa dos outros. O tom do diretor médico não se alterou quando ele respondeu: “Em geral, sim. A chave fica num painel, com outras chaves da clínica, no quartinho dos porteiros, aqui no subsolo. O formão também era guardado lá.” “E esta estátua?” “Retirada da sala de arte-terapia, no subsolo, do outro lado do corredor. Foi esculpida por um de nossos pacientes.” Quem respondia era sempre o diretor médico. Até aquele momento o dr. Baguley não dissera
uma só palavra. De repente, ele falou: “Ela foi nocauteada com a estátua e depois teve o coração trespassado por alguém que, das duas uma: ou tinha conhecimentos especializados ou teve muita sorte. Até aí, a coisa é óbvia. O que não é óbvio é a razão pela qual armaram essa esculhambação nos arquivos médicos. Ela está caída por cima das pastas, portanto deve ter acontecido antes do assassinato.” “O resultado de uma briga, quem sabe”, sugeriu o dr. Etherege. “Não é o que me parece. As pastas foram puxadas das estantes e espalhadas deliberadamente pelo chão. Deve ter havido uma razão. Não houve nada de impulsivo nesse assassinato.” Nesse momento Peter Nagle, que aparentemente estava do lado de fora da porta, entrou no aposento. “Alguém tocou a campainha, senhor. Será que são os outros policiais?” Dalgliesh observou que a sala dos arquivos era quase à prova de som. A campainha da porta de entrada era estridente, mas ele não ouvira nada. “Talvez”, disse. “Vamos subir.” Enquanto o grupo se aproximava da escada, o dr. Etherege falou: “Inspetor... Será que o senhor poderia ver os pacientes assim que possível? São apenas dois — um em psicoterapia com meu colega doutor Steiner e uma mulher que está fazendo um tratamento de ácido lisérgico aqui embaixo, no subsolo, na sala de tratamento da frente. O doutor Baguley poderá lhe explicar o tratamento — ela é paciente dele —, mas pode ter certeza de que ela não teria condições de se levantar da cama até alguns minutos atrás, e certamente não tem a menor noção de que aqui houve um assassinato. Esses pacientes ficam muito desorientados durante o tratamento. A enfermeira Bolam passou a tarde inteira ao lado dela.” “Enfermeira Bolam? Parente da morta?” “Prima”, disse o dr. Baguley, lacônico. “E a sua paciente desorientada, doutor? Perceberia, caso a enfermeira Bolam saísse do lado dela no decorrer do tratamento?” A resposta foi quase ríspida: “A enfermeira Bolam nunca sairia do lado dela.” Subiram a escada juntos, na direção do rumor de vozes do vestíbulo.
A campainha da porta introduziu na Clínica Steen a parafernália e os conhecimentos de um mundo estranho. Silenciosamente e sem alarde, os especialistas em morte violenta entraram em ação. Dalgliesh desapareceu na sala dos arquivos com o legista e o fotógrafo da polícia. O homem das digitais, miúdo e rechonchudo como um hâmster, de mãos esguias e delicadas, passou a cuidar das maçanetas das portas, das fechaduras, da caixa de ferramentas e da estátua de Tippett. Homens à paisana desconcertantemente parecidos com atores de televisão no papel de homens à paisana revistaram meticulosamente todos os aposentos e todos os armários da clínica, verificando se de fato não havia nenhuma pessoa não autorizada no local e se as portas dos fundos tanto do térreo como do subsolo estavam trancadas pelo lado de dentro com toda a segurança. O pessoal da clínica, excluído dessas atividades e concentrado no consultório da frente, no térreo — equipado às pressas com poltronas adicionais trazidas da sala de espera dos pacientes —, tinha a sensação de que seu território familiar fora tomado por estranhos e de que estava enredado na maquinaria inexorável da justiça, sendo empurrado para diante ao encontro de Deus sabe que dificuldades e
desventuras. A única pessoa que parecia serena era o secretário do Comitê Administrativo Hospitalar. Ele se acomodara no vestíbulo como um cão de guarda, sentado paciente e solitário à espera de que chegasse sua vez de ser interrogado. Dalgliesh se instalou no escritório da srta. Bolam. Era uma saleta no térreo, situada entre a ampla secretaria, na parte da frente do edifício, e as salas de eletrochoque e de recuperação, ao fundo. Do outro lado do corredor havia um conjunto de dois consultórios e a sala de espera dos pacientes. O escritório fora construído dentro de uma sala maior com o uso de divisórias, razão pela qual suas proporções eram esquisitas: desagradavelmente estreito para seu pé-direito. O mobiliário era escasso; o único toque pessoal era um vaso com um grande ramo de crisântemos sobre um dos arquivos. Encostado numa das paredes havia um cofre antiquado, enquanto a outra estava coberta por arquivos de metal verde. Sobre a escrivaninha, muito simples, viam-se unicamente uma agenda de mesa, um bloco de anotações e uma pequena pilha de envelopes pardos. Dalgliesh examinou-os rapidamente e disse: “Estranho. Aparentemente são fichas funcionais do pessoal da clínica, mas só das mulheres. Aliás, a ficha dela não está entre as outras. Me pergunto por que ela havia retirado essas fichas...” “Vai ver que estava conferindo as férias anuais das pessoas ou alguma coisa do tipo...”, sugeriu o sargento Martin. “Quem sabe. Mas por que só das mulheres? Enfim... Não tem maior importância no momento. Vamos dar uma olhada nesse bloco.” Aparentemente a srta. Bolam era um desses funcionários administrativos que preferem não confiar na memória. A primeira página do bloco, com a data anotada no alto, estava repleta de anotações feitas numa letra inclinada, um tanto infantil. Comitê Médico — falar Dr. s/proposta de dep. adolescentes. Falar Nagle — correia arrebentada janela quarto srta. Kallinski. Sra. Shorthouse — ? folga. Essas anotações eram no mínimo auto-explicativas, mas os rabiscos logo abaixo — aparentemente escritos às pressas — eram menos explícitos. Mulher. Oito anos aqui. Chega 1 segunda. Dalgliesh disse: “Isto parece um lembrete escrito durante um telefonema. Claro, talvez fosse um telefonema particular, sem nada a ver com a clínica.Talvez fosse um médico tentando localizar uma paciente, ou vice-versa. Aparentemente alguma coisa, ou alguém, deve chegar na primeira segunda-feira ou na segunda-feira dia primeiro. Há uma dúzia de interpretações possíveis, nenhuma delas relevante para o assassinato. Mas uma coisa é certa: alguém telefonou recentemente para falar de uma mulher, e a senhorita Bolam estava sem sombra de dúvida examinando os dossiês de todas as mulheres da equipe, exceto o dela própria. Por quê? Para verificar qual delas havia estado aqui oito anos atrás? Como saber? Deixemos de lado por enquanto os prazeres da conjectura e vamos tratar de entrevistar essas pessoas. Eu gostaria de começar pela datilógrafa, a garota que encontrou o corpo. Etherege disse que estava abalada. Esperemos que tenha se acalmado, do contrário vamos passar metade da noite aqui.” Mas Jennifer Priddy estava perfeitamente calma. Era óbvio que andara bebendo, e seu pesar estava recoberto por mal-disfarçada excitação. Seu rosto, ainda inchado de chorar, tinha manchas vermelhas, enquanto seus olhos mostravam um brilho pouco natural. A bebida, contudo, não confundira suas idéias, e ela contou sua história com clareza. Passara praticamente a tarde inteira ocupada na secretaria do térreo e vira a srta. Bolam pela última vez mais ou menos às cinco e
quarenta e cinco, quando entrara no escritório dela com uma dúvida sobre uma consulta de paciente. Na ocasião, não vira nada de estranho na srta. Bolam. Logo depois voltara para a secretaria, onde Peter Nagle se apresentara mais ou menos às seis e dez. Nagle estava de casaco e viera recolher a correspondência que devia ser despachada. A srta. Priddy registrara as últimas poucas cartas no livro do correio e as entregara a ele. Às seis e quinze ou vinte a sra. Shorthouse se unira a eles. A sra. Shorthouse mencionara que tinha acabado de sair do escritório da srta. Bolam, onde fora acertar um assunto relativo a suas férias anuais. Peter Nagle saíra com a correspondência e ela e a sra. Shorthouse haviam permanecido juntas até ele voltar, cerca de dez minutos mais tarde. Em seguida Nagle descera para o quartinho dos porteiros, no subsolo, para pendurar o casaco e alimentar Tigger, o gato da clínica, e ela o seguira quase imediatamente. Ajudara-o a dar comida a Tigger e os dois haviam voltado juntos para a secretaria. Mais ou menos às sete horas o porteiro sênior, Cully, voltara a queixar-se da dor de estômago que o atormentara o dia inteiro. Fora preciso que a srta. Priddy, a sra. Bostock, a outra secretária médica e Peter Nagle se revezassem ao longo do dia ocupando o lugar de Cully na recepção por causa da tal dor de estômago, mas ele se recusara a ir para casa. Agora, porém, estava disposto a se retirar, e a srta. Priddy fora até o escritório da gerente administrativa para perguntar à srta. Bolam se ele podia sair mais cedo. A srta. Bolam não estava em seu escritório, de modo que ela dera uma olhada na sala das enfermeiras, no térreo, onde irmã Ambrose a informara que havia visto a gerente atravessando o vestíbulo na direção da escada que levava ao subsolo cerca de trinta minutos antes. A srta. Priddy descera até o subsolo para ver se encontrava a srta. Bolam. A sala dos arquivos costumava ficar trancada, mas a chave estava na fechadura e a porta entreaberta, por isso entrara para ver se achava a outra. A luz estava acesa. Encontrara o corpo — neste ponto a voz da srta. Priddy fraquejara — e correra imediatamente para o andar de cima em busca de ajuda. Não, não tocara em nada. Não sabia por que as pastas médicas estavam espalhadas. Não sabia como tinha chegado à conclusão de que a srta. Bolam estava morta. Era que a srta. Bolam estava com um jeito de estar completamente morta. Não sabia por que tinha tanta certeza de que fora assassinada. Achava que havia visto um ferimento na cabeça da srta. Bolam. Além disso, vira a estátua de Tippett caída sobre o corpo. Ficara com medo de que Tippett estivesse escondido entre as prateleiras com as pastas e que fosse pular em cima dela. Todo mundo dizia que ele não era perigoso — isto é, todo mundo fora o dr. Steiner —, mas ele estivera internado num hospital psiquiátrico e afinal de contas não dá para ter cem por cento de certeza, não é mesmo? Não, ela não sabia que Tippett não se encontrava na clínica. Peter Nagle recebera o recado do hospital e o comunicara à srta. Bolam, mas não contara a ela. Não vira o formão no peito da srta. Bolam, mas o dr. Etherege contara ao pessoal do hospital sobre o golpe no coração da gerente administrativa quando todos estavam reunidos no consultório da frente à espera da polícia. Achava que quase todos os empregados da clínica sabiam onde Peter Nagle guardava suas ferramentas e também qual era a chave que abria a porta da sala dos arquivos, no subsolo. Ficava pendurada no gancho número doze e era mais brilhante do que as outras chaves, mas não tinha etiqueta. Dalgliesh falou: “Vou lhe pedir que se concentre, que pense bem, e me diga: Quando a senhora desceu para ajudar o senhor Nagle a dar comida ao gato, a porta da sala dos arquivos estava entreaberta e a luz acesa, como estavam mais tarde, quando voltou a descer e encontrou a senhorita Bolam?” A garota ajeitou o cabelo louro para trás e disse, subitamente exausta: “Eu... não me lembro. Não passei por aquela porta, entende? Fui direto para o quartinho dos porteiros, ao pé da escada. Peter estava esvaziando a tigela de Tigger. Como ele não havia comido
tudo o que fora servido na refeição anterior, raspamos os restos e lavamos a tigela na pia. Não fomos até a sala dos arquivos.” “Mas quem desce a escada consegue ver a porta, não é mesmo? Será que teria notado se a porta estivesse entreaberta? Aquela sala é pouco usada, não?” “É pouco usada, mas qualquer pessoa podia entrar lá, se precisasse de alguma ficha. Quer dizer, se a porta estivesse aberta eu não iria até lá verificar quem estava lá dentro ou algo do tipo. Acho que teria notado se a porta estivesse bem aberta, por isso suponho que não estava, mas não consigo me lembrar, sinceramente, não consigo.” Para concluir, Dalgliesh perguntou sobre a srta. Bolam. Constava que a srta. Bolam a conhecia de fora da clínica, que a família Priddy freqüentava a mesma igreja e que a srta. Bolam a incentivara a aceitar o emprego na clínica. “Eu não teria conseguido este emprego se não fosse a Enid. Claro, eu nunca a chamava assim aqui na clínica. Ela não teria gostado.” A srta. Priddy dava a impressão de que tivera dificuldade de usar o nome de batismo da srta. Bolam mesmo fora da clínica. Prosseguiu: “Não é que ela tenha me indicado, exatamente. Fui entrevistada pelo senhor Lauder e pelo doutor Etherege, mas sei que ela me apoiou. Na época, minha taquigrafia e minha datilografia não eram grande coisa — já faz quase dois anos que estou aqui —, e tive sorte de ser aceita. Era raro eu encontrar Enid dentro da clínica, mas ela sempre era muito amável comigo e me animava a crescer. Queria que eu fizesse o curso do Instituto de Administração Hospitalar, para não ser estenodatilógrafa pelo resto da vida.” Dalgliesh estranhou um pouco essa preocupação com o futuro profissional da srta. Priddy. A garota não parecia ambiciosa e sem dúvida não demoraria a achar marido. O diploma do Instituto — fosse lá o que fosse — não era as-sim tão fundamental para que ela não passasse o resto da vida como estenodatilógrafa. O inspetor sentiu uma certa pena da srta. Bolam, que dificilmente poderia ter escolhido uma protegida menos promissora. Ela era bonita, sincera e ingênua, mas não particularmente inteligente, achava ele. Teve de lembrar a si mesmo que ela dissera ter vinte e dois anos, não dezessete. Tinha um corpo bonito e incongruentemente amadurecido, mas o rosto fino, com sua moldura de cabelo comprido e liso, era o rosto de uma criança. Ela pouco lhe disse sobre a gerente administrativa. Não registrara nenhuma mudança recente na srta. Bolam. Não sabia que ela pedira ao senhor Lauder que fosse conversar com ela e não tinha a menor idéia de quais pudessem ser as preocupações da srta. Bolam na clínica. Tudo estava mais ou menos como sempre. Que ela soubesse, a srta. Bolam não tinha inimigos. Pelo menos não alguém que alimentasse o desejo de matá-la. “Quer dizer que, na sua opinião, ela era feliz aqui? Eu estava imaginando se por acaso ela não teria pedido uma transferência. Deve ser muito trabalhoso administrar uma clínica psiquiátrica...” “Ah, não é mesmo! Não sei como Enid agüentava, às vezes. Mas tenho certeza de que jamais pediria para ser transferida. Alguém deve ter lhe dado uma impressão errônea. Ela jamais desistia das coisas. Se achasse que as pessoas estavam querendo que ela fosse embora, ia se agarrar mais ainda. Para ela, a clínica era uma espécie de desafio.” Provavelmente essa foi a coisa mais esclarecedora que ela disse a respeito da srta. Bolam. Enquanto agradecia à moça e lhe pedia que aguardasse com o resto do pessoal da clínica até que as entrevistas preliminares estivessem concluídas, Dalgliesh tentava adivinhar quais seriam os possíveis inconvenientes provocados por uma administradora que via seu trabalho como um desafio, um campo de batalha do qual jamais se retiraria de livre e espontânea vontade. Logo depois, pediu para ver Peter Nagle.
Se o segundo porteiro estava preocupado com o fato de o assassino ter escolhido seu formão para arma do crime, não o deixou transparecer. Respondeu às perguntas de Dalgliesh calma e educadamente, mas com tanta frieza que até parecia que os dois estavam discutindo algum aspecto de menor importância da rotina da clínica, algo que só lhe dissesse respeito indiretamente. Disse que tinha vinte e sete anos de idade e forneceu um endereço em Pimlico, depois confirmou que estava trabalhando na clínica havia pouco mais de dois anos, e que antes era professor de artes numa escola do interior. Sua voz era regular e educada, e os olhos castanhos eram grandes, quase inexpressivos. Dalgliesh observou que seus braços eram anormalmente longos e que, pendurados no corpo baixo e vigoroso, davam uma impressão de força simiesca. Seu cabelo era negro, muito encaracolado e curto. Um rosto interessante; reservado mas inteligente. Era gritante o contraste com o coitado do velho Cully — mandado para casa para tratar da dor de estômago e da indignação por ter sido retido na clínica até mais tarde. Nagle confirmou o relato da srta. Priddy. Voltou a identificar seu formão, limitando-se a manifestar seus sentimentos com uma leve expressão de repugnância. Disse que vira a ferramenta pela última vez às oito da manhã naquele mesmo dia, ao chegar ao trabalho e — por nenhuma razão especial — fazer uma vistoria na caixa de ferramentas. Na ocasião, estava tudo em ordem. Dalgliesh perguntou se todo mundo sabia onde a caixa costumava ser guardada. Nagle respondeu: “Eu seria um idiota se respondesse negativamente, não é mesmo?” “Você seria um idiota se dissesse qualquer coisa que não fosse a verdade, agora ou mais adiante.” “Acho que quase toda a equipe do hospital sabia. E os que não sabiam poderiam descobrir com a maior facilidade. O quartinho dos porteiros costuma ficar destrancado.” “Não é uma imprudência? E os pacientes?” “Eles nunca descem sozinhos ao subsolo. Os pacientes do ácido lisérgico andam acompanhados e sempre tem alguém de olho nos da arte-terapia. Faz pouco tempo que o departamento foi instalado no subsolo. A luz não é boa, o lugar não é adequado. O departamento só vai ficar lá enquanto for necessário.” “Onde ele funcionava até agora?” “No terceiro andar. Depois o Comitê Médico da clínica chegou à conclusão de que precisava da sala grande do terceiro andar para as discussões de grupo sobre problemas conjugais, e a sra. Baumgarten — a arte-terapeuta — teve de sair. Ela anda fazendo barulho para conseguir o lugar de volta, mas os pacientes da terapia de casal dizem que seria psicologicamente perturbador para eles que seus encontros fossem no subsolo.” “Quem é o terapeuta de casal?” “O doutor Steiner, ajudado por uma assistente social da área psiquiátrica, a senhorita Kallinski. São encontros onde os divorciados e os solteiros explicam aos pacientes como ser feliz mesmo sendo casado. Não vejo como isso possa ter alguma conexão com o assassinato.” “Nem eu. Só perguntei por curiosidade, vendo que o departamento de arte-terapia estava tão mal instalado. Aliás, quando você ficou sabendo que Tippett não viria à clínica hoje?” “Mais ou menos às nove da manhã. Parece que nosso amigo não descansou enquanto o hospital St. Luke não telefonou para cá para contar o que tinha acontecido. Informei à senhorita Bolam e à irmã.” “Mais alguém?” “Acho que mencionei o fato a Cully quando ele reassumiu a portaria. Ele passou a maior parte
do dia com cólica.” “É, me disseram. O que ele tem?” “Cully? A senhorita Bolam mandou ele fazer uma consulta no hospital, mas não encontraram nada. Ele sempre fica com cólica quando tem alguma incomodação. Parece que é psicossomático.” “Qual foi a incomodação esta manhã?” “Eu que causei. Ele chegou aqui antes de mim e começou a classificar a correspondência. Essa tarefa é minha. Eu disse a ele que fizesse o trabalho dele e não se metesse no meu.” Pacientemente, Dalgliesh ouviu-o discorrer sobre os acontecimentos da noite. Seu relato coincidiu com o da srta. Priddy e, tal como ela, ele não soube dizer se a porta da sala dos arquivos no subsolo estava entreaberta quando ele voltara do correio. Admitiu que tinha passado pela porta quando fora perguntar à enfermeira Bolam se a roupa lavada já tinha sido separada. Normalmente estaria fechada, já que ninguém costumava ir lá, e ele achava que teria notado se estivesse aberta. O fato de que esse ponto fundamental não pudesse ser determinado era frustrante, enlouquecedor, mas Nagle ficou firme. Não tinha percebido. Não sabia dizer. Tampouco notara se a chave da sala dos arquivos estava no quadro, no quartinho dos porteiros. Isso já era mais fácil de entender. Havia vinte e dois ganchos no quadro, e a maioria das chaves estava fora, em uso. Dalgliesh perguntou: “Você se dá conta de que o corpo da senhorita Bolam estava quase certamente caído na sala dos arquivos enquanto você e a senhorita Priddy davam comida ao gato? Percebe a importância de se lembrar se a porta estava aberta ou fechada?” “Quando Jenny Priddy desceu, um pouco mais tarde, ela estava entreaberta. É o que Jenny diz, e ela não é nenhuma mentirosa. Se estava fechada quando voltei do correio, alguém deve tê-la aberto entre as seis e vinte e cinco e as sete horas. Não vejo nada de tão impossível nisso. Seria melhor para mim se eu conseguisse me lembrar dessa história da porta, mas não me lembro. Pendurei o casaco no meu armário e fui direto falar com a enfermeira Bolam sobre a questão da roupa, depois voltei para o quartinho dos porteiros. Jenny me encontrou ao pé da escada.” Nagle falava sem se alterar, quase sem emoção. Era como se dissesse: “O que aconteceu foi tal e tal. Gostem ou não gostem, foi assim que as coisas se passaram”. Ele era muito inteligente para não perceber que estava correndo algum perigo. Talvez também fosse suficientemente inteligente para saber que o perigo era irrelevante para um homem inocente que ficasse de cabeça fria e falasse só a verdade. Dalgliesh lhe disse que informasse a polícia imediatamente caso se lembrasse de alguma outra coisa, depois deixou-o ir. A próxima pessoa a ser interrogada foi a irmã Ambrose. Ela entrou na saleta em passo marcial, em sua armadura de linho branco, belicosa como um navio de guerra. O peitilho do avental, duro feito uma tábua de tão engomado, recobria um busto de proporções formidáveis, sobre o qual ela usava seus distintivos de enfermeira como se fossem medalhas de guerra. O cabelo grisalho saía pelos dois lados da touca, que ela usava bem enterrada na cabeça, sobre um rosto de traços perfeitamente comuns. Estava afogueada; Dalgliesh teve a impressão de que ela estava com dificuldade de controlar seu ressentimento e sua falta de confiança. Tratou-a com gentileza, mas suas perguntas foram respondidas num clima de rígida desaprovação. Lacônica, ela confirmou que havia visto a srta. Bolam pela última vez no momento em que ela atravessava o vestíbulo na direção da escada que levava ao subsolo, mais ou menos às seis e vinte da tarde. Não haviam dito nada uma à outra, e a gerente administrativa estava com seu aspecto usual. Antes que a srta. Bolam sumisse na escada, a irmã Ambrose já estava de volta à sala de eletrochoque, onde
permanecera, na companhia da dra. Ingram, até o corpo ser encontrado. Quando Dalgliesh quis saber se o dr. Baguley também permanecera com elas pelo resto do tempo, irmã Ambrose sugeriu que ele perguntasse diretamente ao doutor. Dalgliesh respondeu com suavidade que sua intenção era exatamente essa. Sabia que a irmã, se quisesse, poderia lhe fornecer muitas informações úteis sobre a clínica, mas, exceto umas poucas perguntas sobre as relações pessoais da srta. Bolam que não deram em nada, não a pressionou. Ele achava que era muito provável que ela estivesse mais chocada com o assassinato, com a violência calculada da morte da srta. Bolam, do que qualquer um com quem ele já conversara. Como às vezes acontece com as pessoas de pouco expediente e escassa imaginação, esse choque gerava mau humor. Ela estava furiosa; com Dalgliesh, porque o trabalho dele lhe dava o direito de fazer perguntas impertinentes e embaraçosas; consigo mesma, porque não conseguia disfarçar seus sentimentos; e até com a vítima, por ter envolvido a clínica naquela situação bizarra. Não era a primeira vez que Dalgliesh encontrava aquela reação, e ele sabia que não adiantava tentar forçar a testemunha a cooperar. Mais adiante talvez fosse possível convencer a irmã Ambrose a se abrir mais; no momento, era perda de tempo fazer mais do que colher os fatos que ela estava disposta a comunicar. Um deles, pelo menos, era importantíssimo. A srta. Bolam estava viva e andando na direção da escada do subsolo às seis e vinte, mais ou menos. Às sete, seu corpo fora encontrado. Aqueles quarenta minutos eram cruciais, e todo membro da equipe da clínica que conseguisse oferecer um álibi que os cobrisse poderia ser eliminado da investigação. Assim sendo, o caso parecia apresentar poucas dificuldades. Dalgliesh não acreditava que uma pessoa de fora tivesse dado um jeito de entrar na clínica para ficar à espera da srta. Bolam. Era quase certo que o assassino ainda se encontrava no interior do edifício. Agora, tudo se resumia em fazer interrogatórios cuidadosos, verificar metodicamente os álibis, encontrar um motivo. Dalgliesh resolveu falar com o único homem cujo álibi parecia inatacável. Ele poderia lhe fornecer uma visão externa e imparcial da clínica e de seus diversos protagonistas. Agradeceu a irmã Ambrose por sua valiosa cooperação — um lampejo nos olhos por trás dos óculos de aros de aço deu a entender que ela captara a ironia — e pediu ao policial que montava guarda junto à porta que chamasse o sr. Lauder.
2
Era a primeira vez que Dalgliesh tinha a oportunidade de observar o secretário do Comitê Administrativo Hospitalar de perto. Viu um homem reforçado, de feições roliças, olhos amáveis por trás dos pesados óculos quadrados, que mais parecia, em seu terno bem cortado de tweed, um médico do interior ou um advogado de cidade pequena do que um burocrata. Estava inteiramente à vontade e se comportava como um homem que conhece a própria importância, não aceitando ser forçado a dar respostas rápidas, sempre ocultando algum trunfo; inclusive, achava Dalgliesh, uma inteligência mais aguda do que seu aspecto sugeria. Sentou-se diante do inspetor, puxou a cadeira tranqüilamente para a frente e, sem pedir licença nem se desculpar, tirou um cachimbo de um dos bolsos e o invólucro com o tabaco de outro. Balançando a cabeça na direção de Martin e de sua caderneta de anotações aberta, disse, numa voz lenta que guardava traços de sotaque do norte do país: “Reginald Iven Lauder. Data de nascimento, 21 de abril de 1905. Endereço, avenida Makepeace número 42, Chigwell, Essex. Profissão, secretário do Comitê Administrativo do Hospital Central do Leste. E agora, inspetor, o que deseja saber?” “Muitas coisas, infelizmente”, disse Dalgliesh. “Em primeiro lugar, o senhor faz alguma idéia de quem possa ser o assassino da senhorita Bolam?” “Antes tivesse. E já teria vindo aqui lhe dizer, pode ter certeza. Mas não. Não tenho como ajudálo nesse ponto.” “Até onde o senhor sabe, a senhorita Bolam não tinha inimigos?” “Inimigos? Bem, inspetor, essa é uma palavra muito forte. Havia pessoas que não gostavam dela, assim como há pessoas que não gostam de mim. E do senhor também, sem dúvida. Mas nem por isso andamos por aí com medo de ser assassinados. Não, eu não diria que a senhorita Bolam tinha inimigos. Mas lembre-se de que não tenho nenhuma informação sobre sua vida particular, que não é da minha conta.” “O senhor poderia me contar alguma coisa sobre a Clínica Steen e a posição que a vítima ocupava? Conheço um pouco a reputação da clínica, é claro, mas seria útil se eu tivesse um quadro claro do que acontece aqui.” “Um quadro claro do que acontece?” Talvez fosse imaginação sua, mas Dalgliesh achou que tinha visto a boca do secretário estremecer. “Bem, o diretor médico seria a pessoa mais indicada para lhe explicar isso — do ponto de vista médico, quero dizer. Mas posso fazer um apanhado geral. A instituição foi fundada entre as duas guerras pela família de um certo senhor Hyman Stein. Dizem que o velho sofria de impotência, fez uma psicoterapia e posteriormente engendrou cinco filhos. Em vez de pesar nas finanças paternas, os cinco progrediram na vida, e quando o pai morreu os filhos fizeram investimentos sólidos na clínica em homenagem à memória dele. Afinal de contas, julgavam, bem que tinham uma dívida a saldar. Os filhos mudaram de nome, passando a chamar-se Steen — pelas razões de sempre, eu suponho —, e a clínica foi batizada com o nome anglicizado. Fico pensando qual teria sido a reação do velho Hyman.” “A clínica tem um bom fundo social?” “Tinha. O estado encampou, claro, com base na Lei de 1946. Houve algumas doações posteriores, mas não tantas. As pessoas não se sentem muito inclinadas a ser generosas com
instituições gerenciadas pelo governo. Mas até 1948 o lugar era próspero. A clínica tinha ótimos equipamentos e instalações. O Comitê Administrativo Hospitalar teve que se virar do avesso para restaurar o padrão a que a clínica estava habituada.” “É difícil administrar a clínica? Imagino que surjam choques de personalidade.” “Não mais difícil do que qualquer outra instituição de pequeno porte. Choques de personalidade aparecem em todo lugar. Prefiro lidar com um psiquiatra complicado do que com um cirurgião complicado, toda vida. Os cirurgiões são verdadeiras prima-donas!” “O senhor considerava a senhorita Bolam uma funcionária administrativa bem-sucedida?” “Bem... Ela era eficiente. Na verdade, eu não tinha queixas. Acho que ela era um pouco rígida. Afinal de contas, as circulares ministeriais não chegam a ter força de lei, e não se justifica que elas sejam vistas como ordens ditadas pessoalmente por Deus Todo-poderoso. A senhorita Bolam gostava de ser rigorosa. Mas na verdade era uma funcionária competente, metódica e altamente conscienciosa. Acho que ela jamais enviou um relatório com alguma inexatidão.” “Coitada!”, pensou Dalgliesh, tocado pela fria impessoalidade daquele epitáfio oficial. Perguntou: “Ela era querida, aqui? Pela equipe médica, por exemplo?” “Bem, inspetor... O senhor vai ter de perguntar a eles. Não vejo nenhuma razão para não gostarem dela.” “Quer dizer que o senhor não estava sendo pressionado pelo comitê médico a transferi-la da clínica?” Os suaves olhos cinzentos ficaram subitamente opacos. Houve uma pequena pausa antes que o secretário do Comitê Administrativo Hospitalar respondesse com toda a calma: “Não recebi nenhuma reivindicação oficial nesse sentido.” “E extra-oficial?” “Acredito que esporadicamente circulasse por aqui um sentimento de que talvez uma mudança de trabalho fosse útil para a senhorita Bolam. A idéia até que não é má, inspetor. Todo funcionário de uma instituição de pequeno porte, particularmente uma clínica psiquiátrica, pode beneficiar-se de uma mudança de experiência. Mas eu não transfiro meu pessoal ao sabor das opiniões de comitês médicos. Deus me livre. E, como já falei, não recebi nenhuma reivindicação oficial. Se a própria senhorita Bolam tivesse pedido para ser transferida, o assunto mudava de figura. Mesmo assim, não teria sido fácil. Ela era uma funcionária administrativa geral e não dispomos de muitos postos nesse nível.” Dalgliesh voltou a indagar sobre o telefonema da srta. Bolam, e Lauder confirmou que falara com ela mais ou menos às dez para a uma. Lembrava-se da hora porque estava de saída para o almoço. A srta. Bolam pedira para falar com ele pessoalmente, e a secretária transferira a ligação. Ela lhe disse que queria vê-lo com urgência. “O senhor se lembra dos termos exatos dessa conversa?” “Mais ou menos. Ela disse: ‘Podemos marcar um encontro para o mais breve possível? Acho que talvez esteja acontecendo uma coisa aqui na clínica que o senhor precisa saber. Quero ver o que o senhor acha. Uma coisa que começou bem antes de minha chegada aqui’. Respondi que hoje à tarde não seria possível porque às duas e meia tinha uma reunião com a Comissão de Finanças e Objetivos Gerais e logo em seguida uma reunião com a Comissão Consultiva. Perguntei se ela podia me dar uma idéia do assunto e se a coisa não podia esperar até segunda-feira. Ela hesitou, de modo que antes que ela respondesse eu disse que daria uma passadinha hoje à noite quando estivesse voltando para casa. Eu sabia que às sextas-feiras havia consultas até mais tarde. Ela disse
que daria um jeito de ficar sozinha em seu escritório a partir das seis e meia, agradeceu e desligou. Minha reunião demorou mais do que o previsto — isso sempre acontece — e só cheguei aqui um pouco antes das sete e meia. Mas isso o senhor já sabe. Quando o corpo foi encontrado eu ainda estava em reunião, como o senhor facilmente poderá verificar.” “O senhor ficou preocupado com o que a senhorita Bolam lhe disse? Ela era o tipo de pessoa que corria para o senhor com qualquer ninharia ou uma solicitação de entrevista realmente significava que alguma coisa séria estava acontecendo?” O secretário refletiu um instante antes de responder: “Fiquei preocupado. Por isso passei aqui hoje à noite.” “E não faz a menor idéia do que poderia ser?” “Nenhuma, infelizmente. Deve ter sido alguma coisa que ela ficou sabendo depois de quartafeira, porque no fim da tarde de quarta-feira encontrei a senhorita Bolam na reunião do comitê e ela me disse que as coisas estavam muito calmas por aqui. Foi a última vez que a vi, aliás. Achei que ela estava com ótimo aspecto. Melhor do que há muito tempo.” Dalgliesh perguntou ao secretário se ele sabia alguma coisa sobre a vida particular da srta. Bolam. “Pouquíssimo. Acho que ela não tem nenhum parente próximo e que mora sozinha num apartamento em Kensington. A enfermeira Bolam poderá lhe dar mais informações. As duas são primas, e provavelmente a enfermeira Bolam é sua parente viva mais próxima. Parece que tinha algumas posses. O senhor poderá encontrar todas as informações oficiais sobre a vida funcional no dossiê dela. Conhecendo a senhorita Bolam, aposto que a ficha dela é tão meticulosa quanto as dos outros membros da equipe. Deve estar aqui.” Sem se mover de sua cadeira ele se inclinou para um lado, abriu a gaveta de cima do arquivo com um gesto brusco e enfiou a mão gorducha entre os envelopes pardos. “Aqui está. Bolam, Enid Constance. Vejo que ela começou a trabalhar na clínica em 1949, como estenodatilógrafa. Passou dezoito meses no escritório central, foi transferida para uma de nossas clínicas de pulmão em 19 de abril de 1951 no nível B e se candidatou à vaga de assistente administrativa aqui na clínica em 14 de maio de 1957. Na época o posto era de nível D, e ela teve sorte de consegui-lo. Lembro-me de que não tínhamos um campo muito grande. Todos os cargos administrativos e burocráticos foram reclassificados em 1958 de acordo com o relatório Noel Hall e, depois de alguma discussão com o Conselho Regional, conseguimos reclassificar o cargo aqui na clínica como de gerente administrativo. Está tudo aqui. Data de nascimento, 12 de dezembro de 1922. Endereço, Ballantyne Mansions, 37a, sw8. Depois vêm detalhes como número no imposto de renda, inscrição na previdência social e datas de aumentos salariais. Ela só tirou uma semana por motivo de doença desde que veio para cá, e isso foi em 1959, quando teve uma gripe. Basicamente, é isso o que há aqui. O original do requerimento e os documentos de nomeação devem estar no seu dossiê principal, no escritório central do Comitê.” Entregou a pasta a Dalgliesh, que a folheou e depois disse: “Consta aqui que o emprego anterior dela era no Instituto de Pesquisa Botley. Não era aquele negócio de Sir Mark Etherege? Uma coisa de pesquisa aeronáutica... Ele por acaso é irmão do doutor Etherege?” “Tenho a impressão de que uma vez, quando foi nomeada para cá, a senhorita Bolam me disse que conhecia um pouco o irmão do dr. Etherege. Mas veja bem, não pode ter sido mais do que isso. Ela era apenas uma estenodatilógrafa do Instituto. Admito que há uma certa dose de coincidência, mas ela precisava vir de algum lugar, não é mesmo? Me parece que foi Sir Mark
quem a recomendou, quando de sua candidatura ao cargo aqui. A carta, naturalmente, deve estar no dossiê dela no Comitê.” “O senhor poderia me dizer que providências pretende tomar aqui, agora que ela morreu?” O secretário recolocou a pasta no arquivo. “Claro, nenhum problema. Vou ter de consultar meu Comitê, evidentemente, visto que as circunstâncias são incomuns, mas tenho a intenção de recomendar que a estenógrafa sênior daqui, a senhora Bostock, assuma o cargo em caráter provisório. Se ela demonstrar que dá conta do trabalho — e penso que dá —, é uma forte candidata ao cargo, mas a vaga será preenchida por concurso, como de praxe.” Dalgliesh não fez comentários, mas estava interessado. Uma decisão assim tão rápida quanto à sucessora da srta. Bolam só podia significar que Lauder já pensara no assunto antes. Por mais que as reivindicações da equipe médica tivessem sido oficiosas, pelo jeito haviam sido mais eficazes do que o secretário estava disposto a admitir. Dalgliesh voltou à questão do telefonema que levara o sr. Lauder à clínica. Disse: “As palavras utilizadas pela senhorita Bolam parecem-me significativas. Ela disse que talvez houvesse algo de muito sério em andamento aqui, uma coisa sobre a qual o senhor deveria ser informado, e que esse algo teria começado antes de ela entrar na clínica. Isso sugere, em primeiro lugar, que ela ainda não tinha certeza de nada; que eram apenas suspeitas; e em segundo, que não estava preocupada com nenhum incidente em especial, mas com alguma situação já antiga. Como uma política sistemática de roubo, por exemplo, e não com um episódio isolado de roubo.” “Bem, inspetor... É curioso o senhor falar em roubo. Tivemos um roubo recentemente, mas foi um episódio isolado, o primeiro que tivemos na casa em muitos anos, e não consigo imaginar de que maneira ele poderia estar relacionado a esse assassinato. Foi há apenas uma semana, na última terça-feira, se não me falha a memória. Cully e Nagle foram os últimos a sair da clínica, como de hábito, e Cully convidou Nagle para tomar alguma coisa com ele no Queen’s Head. Imagino que o senhor conheça o lugar. É o último bar da Beefsteak Street. A história tem alguns detalhes esquisitos, e um dos mais esquisitos é o fato de Cully convidar Nagle para tomar alguma coisa. Os dois jamais me deram a impressão de ser amigos. Seja como for, Nagle aceitou e mais ou menos às sete da noite os dois chegaram ao Queen’s Head. Meia hora depois apareceu um amigo de Cully dizendo que não esperava encontrá-lo no bar, pois acabara de passar pela clínica e vira uma luzinha fraca em uma das janelas — como se alguém estivesse andando lá dentro com uma lanterna, explicou. Nagle e Cully foram até lá dar uma olhada e viram que uma das janelas dos fundos do subsolo estava quebrada, ou melhor, recortada. Um trabalhinho para lá de esperto. Cully achou que não era o caso de prosseguirem com a investigação sem reforços, e acho que tinha razão. Não se esqueça que ele tem sessenta e cinco anos de idade e que não é um homem forte. Sussurrando, os dois debateram a situação. Nagle disse que ia entrar e que Cully podia telefonar para a polícia da cabine da esquina. A polícia chegou num instante, mas não conseguiu pegar o intruso, que deu um jeito de escapar de Nagle dentro do edifício, e, quando Cully voltou depois de telefonar, chegou bem na hora de ver o homem fugindo.” “Vou verificar os resultados da investigação”, disse Dalgliesh. “Mas estou de acordo com o senhor, quando diz que parece improvável haver uma relação entre os dois crimes. Levaram muita coisa?” “Quinze libras, retiradas de uma gaveta do escritório dos assistentes sociais da psiquiatria. A porta estava trancada, mas o ladrão arrombou. O dinheiro estava num envelope sobrescritado em tinta verde e dirigido à administração da clínica, e fora recebido uma semana antes. Não havia
nenhuma carta no envelope, apenas uma nota dizendo que o dinheiro fora mandado por um paciente agradecido. As outras coisas que estavam na gaveta foram espalhadas por ali, mas nada mais foi roubado. Aparentemente haviam tentado forçar os arquivos de documentos na secretaria e as gavetas da escrivaninha da senhorita Bolam haviam sido arrombadas, mas nada foi roubado.” Dalgliesh perguntou se as quinze libras não deveriam ter sido guardadas no cofre da parede. “Bem, inspetor... Claro que o senhor tem razão. Deveriam. Quando o dinheiro chegou, a senhorita Bolam me telefonou para informar-me do fato e disse que achava que ele deveria ser imediatamente depositado na poupança da clínica, para ser usado quando necessário segundo as instruções do Comitê Administrativo. Essa era uma conduta muito conveniente, e foi o que eu disse a ela. Pouco tempo depois, o diretor médico me telefonou para perguntar se eu o autorizava a gastar o dinheiro na compra de novos vasos de flores para a sala de espera dos pacientes. Os vasos eram uma necessidade, de fato, e aquele parecia um uso correto para a verba em questão; telefonei para o presidente do Comitê Administrativo e obtive sua anuência. Parece que o doutor Etherege queria que a senhorita Kettle escolhesse os vasos, e pediu à senhorita Bolam que lhe entregasse o dinheiro. Eu já comunicara a decisão à senhorita Bolam, de modo que ela entregou o dinheiro, imaginando que os vasos seriam comprados imediatamente. No entanto alguma coisa aconteceu, e a senhorita Kettle alterou seus planos. E aí, em vez de devolver o dinheiro à gerente administrativa para que o guardasse no cofre, ela o guardou em sua gaveta.” “O senhor sabe quantas pessoas da equipe sabiam que o dinheiro estava lá?” “A polícia perguntou exatamente isso. Acho que a maioria das pessoas sabia que os vasos não haviam sido comprados, do contrário a senhorita Kettle teria mostrado sua compra aos colegas. Provavelmente as pessoas imaginaram que depois de receber aquele dinheiro ela não iria devolvêlo, nem que fosse temporariamente. Sei lá. A chegada daquelas quinze libras foi um mistério. Só criou confusão — e seu desaparecimento foi igualmente misterioso. Seja como for, ninguém aqui o roubou. Cully só viu o ladrão por um segundo, mas tem certeza de que não conhece o sujeito. Ele disse, porém, que o cara tinha jeito de cavalheiro. Não me pergunte como ele sabia isso nem quais foram seus critérios. Mas foi o que ele disse.” Dalgliesh achou o episódio bizarro; em sua opinião, deveria ser mais bem investigado. Contudo, não via nenhuma conexão aparente entre os dois crimes. Não se sabia nem mesmo se o telefonema da srta. Bolam pedindo conselho ao secretário estava relacionado com sua morte, mas parecia muito provável que sim. Era importante descobrir, se possível, de que ela suspeitava. O inspetor pediu novamente a ajuda do sr. Lauder. “Eu já lhe disse, inspetor. Não faço idéia do que ela queria me dizer. Se desconfiasse que havia alguma coisa errada, não teria esperado que ela me telefonasse. Nós, do escritório central, não estamos tão distantes assim das unidades quanto as pessoas pensam, e costumo ficar sabendo de tudo o que necessito saber. Se o assassinato está relacionado àquele telefonema, algo de muito grave deve estar acontecendo aqui. Afinal, ninguém sai matando as pessoas só para evitar que o secretário do conselho fique sabendo que você manipulou seu relatório de viagem ou estendeu indevidamente seu período de férias. Não que alguém tenha feito isso, até onde eu sei.” “É verdade”, disse Dalgliesh. Depois de fitar atentamente o rosto do secretário, disse, em voz neutra: “Deve ser alguma coisa capaz de arruinar uma pessoa profissionalmente. Um relacionamento sexual com um paciente — algo tão grave quanto isso”. A expressão do sr. Lauder não se alterou. “Imagino que todo médico está ciente da gravidade de uma coisa dessas, especialmente os
psiquiatras. Eles precisam ter imenso cuidado com algumas das mulheres neuróticas de que tratam. Francamente, não acredito nessa hipótese. Todos os médicos da clínica são homens eminentes, alguns deles conhecidos no mundo inteiro. Você não tem esse tipo de reputação se for um tolo, e homens dessa eminência não cometem assassinato.” “E o resto da equipe? Talvez não sejam pessoas eminentes, mas suponho que o senhor os julgue honestos...” Tranqüilo, o secretário respondeu: “Faz quase vinte anos que irmã Ambrose trabalha aqui. A enfermeira Bolam está na clínica há cinco anos. Confio plenamente nas duas. Todo o pessoal administrativo veio com boas referências, assim como os dois porteiros, Cully e Nagle.” Depois acrescentou, com certa acidez: “Confesso que não me informei se eles haviam cometido assassinato, mas nenhum dos dois me parece um maníaco homicida. Cully bebe um pouco e é um pobre tonto que daqui a quatro meses se aposenta. Duvido que seja capaz de matar um rato sem armar o maior fuzuê. Nagle tem mais nível que o típico porteiro de hospital. Parece que é estudante de arte e que trabalha aqui para ganhar algum dinheiro. Está conosco há poucos anos, ou seja, não estava aqui antes do tempo da senhorita Bolam. Mesmo que ele tivesse se dedicado a seduzir todas as funcionárias, o que parece improvável, o pior que poderia acontecer com ele seria perder o emprego, e isso, nas circunstâncias, não lhe causaria maiores preocupações. Sabemos que a arma do crime foi o formão de Nagle, mas qualquer pessoa poderia ter apanhado aquele formão”. “Estou achando que o assassino é alguém aqui de dentro, sabe?”, disse Dalgliesh com tato. “O assassino sabia onde encontrar a estátua de Tippett e o formão de Nagle; sabia qual era a chave que abria a velha sala dos arquivos; sabia onde a chave estava pendurada, no quadro do aposento dos porteiros; provavelmente usou um dos aventais de borracha da sala de arte-terapia como proteção; certamente tinha noções de medicina. Acima de tudo, naturalmente, o assassino não teve como sair da clínica depois do crime. A porta do subsolo estava fechada com a tranca, assim como a porta dos fundos do térreo. Cully vigiava a porta da frente.” “Cully estava com dor de estômago. Alguém pode ter saído sem ele perceber.” “Seria mesmo possível?”, perguntou Dalgliesh. O secretário não respondeu.
À primeira vista, Marion Bolam poderia ser considerada bonita. De compleição clara, tinha aparência agradável, clássica, realçada pelo uniforme de enfermeira. Produzia uma impressão imediata de mulher serenamente encantadora. O cabelo louro, repartido sobre a testa larga e enrolado sobre a nuca, era mantido no lugar unicamente pelo chapeuzinho branco. A um segundo olhar, porém, a ilusão se desfazia e a beleza perdia intensidade. As feições, analisadas individualmente, eram comuns; o nariz um pouco comprido demais, os lábios um pouco finos demais. Vestindo trajes comuns, voltando apressada para casa no fim do dia, ela seria uma mulher insignificante. Era a combinação do tecido branco engomado do avental com a pele clara e o cabelo louro que seduzia os olhos. Somente na testa larga e no nariz anguloso Dalgliesh conseguia perceber alguma semelhança entre a enfermeira Bolam e sua prima morta. Mas não havia nada de comum nos grandes olhos cinzentos que fixaram os dele sem vacilar durante um breve segundo antes de ela baixar os olhos e contemplar com determinação as próprias mãos cruzadas sobre o regaço. “Que eu saiba, a senhora é a parente mais próxima da senhorita Bolam. Imagino que tenha sido um choque terrível.”
“Sim, foi. Ah, se foi! Enid era minha prima.” “O mesmo sobrenome... Os pais de vocês eram irmãos?” “Eram. Nossas mães também eram irmãs. Dois irmãos casaram com duas irmãs, de modo que éramos duplamente parentes.” “Ela não possuía outros familiares vivos?” “Só mamãe e eu.” “Suponho que terei de conversar com o advogado dela”, disse Dalgliesh, “mas seria muito útil se a senhora me dissesse tudo o que sabe sobre a situação econômica de sua prima. Lamento, mas sou obrigado a fazer essas perguntas pessoais. Em geral elas não esclarecem nada sobre o crime, mas é preciso estar tão informado quanto possível sobre todas as pessoas envolvidas. A senhorita Bolam tinha alguma fonte de renda fora seu salário?” “Ah, tinha. Enid estava muito bem de vida. Tio Sydney deixou umas 25 mil libras para a mãe dela, e Enid herdou tudo. Não sei quanto restava, mas acho que ela recebia mais ou menos mil libras por ano de rendas, além do salário aqui. Continuou morando no apartamento de titia em Ballantyne Mansions e... sempre foi muito generosa conosco.” “De que maneira, senhorita Bolam? Dava uma mesada a vocês?” “Não, nada disso! Enid não faria uma coisa dessas. Dava-nos presentes. Trinta libras no Natal, cinqüenta em julho para nossas férias de verão. Mamãe tem esclerose generalizada, por isso não podemos nos hospedar em hotéis comuns.” “E o que vai acontecer agora com o dinheiro da senhorita Bolam?” Os olhos cinzentos se ergueram para fitar os dele, sem nenhum sinal de embaraço. Ela respondeu simplesmente: “Passará a ser meu e de mamãe. Não havia mais ninguém para quem deixá-lo, não? Enid sempre disse que o dinheiro seria nosso se ela morresse primeiro. Só que evidentemente parecia improvável que ela morresse primeiro; em todo caso, não antes de mamãe.” De fato era improvável, no curso normal dos acontecimentos, que a sra. Bolam chegasse a beneficiar-se daquelas 25 mil libras ou do que restava delas, pensou Dalgliesh. Ali estava o motivo óbvio, tão compreensível, tão universal, tão caro a qualquer promotoria. Todo jurado entende a atração do dinheiro. Seria verdade que a enfermeira Bolam não se dava conta do alcance da informação que estava lhe oferecendo com tanta franqueza? Seria possível que a inocência fosse tão ingênua ou a culpa tão confiante? Dalgliesh perguntou, num impulso: “Sua prima era popular, senhorita Bolam?” “Ela não tinha muitos amigos. Não acredito que ela própria se considerasse popular. Ela não gostaria de ser. Tinha suas atividades na igreja e com as bandeirantes. Era uma pessoa muito discreta, na verdade.” “Tinha algum inimigo, que a senhorita saiba?” “Ah, não! Nenhum inimigo. Enid era muito respeitada.” O epíteto formal, antiquado, foi quase inaudível. Dalgliesh disse: “Nesse caso, a impressão que se tem é que o crime não teve um motivo, que não foi premeditado. Normalmente isso apontaria para um dos pacientes, o que parece altamente improvável — e todos vocês insistem que não pode ter sido um deles.” “Ah, não foi nenhum paciente! Tenho absoluta certeza de que nenhum dos nossos pacientes faria uma coisa dessas. Eles não são violentos.” “Nem Tippett?” “Mas não pode ter sido ele. Ele está no hospital.”
“É, me disseram. Quantas pessoas aqui sabiam que Tippett não viria à clínica nesta sexta-feira?” “Não sei. Nagle, porque foi ele quem recebeu o recado. Nagle contou a Enid e à irmã, e a irmã me disse. É que eu sempre procuro ficar de olho no Tippett quando estou tratando dos pacientes de lsd, nas sextas. Tenho de ficar ao lado deles o tempo todo, claro, mas de vez em quando dou uma fugidinha para ver se Tippett está bem. Esta noite não seria preciso. Coitado do Tippett, gosta tanto de suas sessões de arte-terapia! Já faz seis meses que a senhora Baumgarten está de licença por problemas de saúde, mas não conseguimos evitar que Tippett continuasse vindo. Ele seria incapaz de fazer mal a uma mosca. É crueldade sugerir que poderia ter alguma coisa a ver com o crime. Crueldade!” A enfermeira se tornara veemente. Dalgliesh tratou de acalmá-la: “Ninguém está dizendo nada do tipo. Se Tippett está no hospital — e não tenho a menor dúvida de que esse fato será confirmado —, não poderia ter vindo até aqui.” “Mas alguém pôs a estátua sobre o corpo, não é mesmo? Se Tippett estivesse aqui na clínica, o senhor teria suspeitado dele na hora, e ele teria ficado muito aborrecido e confuso. Foi uma crueldade terem feito isso. Realmente, uma crueldade!” Sua voz fraquejou, ela estava à beira das lágrimas. Dalgliesh viu os dedos finos crispados em seu regaço. Disse, com delicadeza: “Acho que não precisamos nos preocupar com o senhor Tippett. Agora vou lhe pedir que reflita com cuidado e me conte tudo o que sabe que aconteceu na clínica desde a hora em que chegou para seu turno, esta noite. Não se preocupe com os outros, quero saber apenas o que a senhora fez.” A enfermeira Bolam lembrava-se com clareza do que havia feito e, depois de alguns segundos de hesitação, fez um relatório atento e lógico. Nas noites de sexta era responsável pelo atendimento de todos os pacientes que estivessem fazendo tratamento com ácido lisérgico. Explicou que se tratava de um método de liberar inibições muito entranhadas, de modo que o paciente ficasse habilitado a recordar e relatar os incidentes que estavam sendo reprimidos em seu subconsciente e que eram responsáveis por sua enfermidade. Enquanto falava sobre o tratamento, a enfermeira Bolam deixou de demonstrar nervosismo e pareceu esquecer que estava falando com um leigo. Mas Dalgliesh não a interrompeu. “É uma droga notável, e o doutor Baguley a utiliza muito. O nome é ácido lisérgico dietilamida; se não me engano, foi descoberta por um alemão em 1942. Nós a ministramos por via oral, a dose habitual é de um quarto de miligrama. A droga é produzida em ampolas de um miligrama e misturada com quinze a trinta centímetros cúbicos de água destilada. Os pacientes são instruídos a não tomar café-da-manhã. Os primeiros efeitos aparecem depois de meia hora, e as experiências subjetivas mais perturbadoras ocorrem entre uma hora e uma hora e meia depois da medicação. É nesse momento que o doutor Baguley desce para ficar ao lado do paciente. Os efeitos podem durar até quatro horas; o paciente fica agitado, emocionado e fora da realidade. Eles nunca são deixados sozinhos, evidentemente. Usamos a sala do subsolo porque é isolada e tranqüila, e os outros pacientes não são perturbados pelo barulho. Costumamos fazer os tratamentos com lsd nas tardes e noites de sexta-feira, e sempre acompanho o paciente.” “Imagino que se alguém ouvisse algum barulho no subsolo numa noite de sexta-feira, um grito, por exemplo, o pessoal da clínica pensaria que era o paciente do lsd, não?” A enfermeira Bolam não estava segura. “Possivelmente... Não há dúvida de que esses pacientes podem ser muito ruidosos. Minha paciente de hoje estava mais agitada do que de costume; foi por isso que não saí do lado dela. Em
geral, assim que o paciente ultrapassa a fase mais difícil, passo algum tempo na rouparia, que fica ao lado da sala de tratamento, separando a roupa lavada. Claro, deixo aberta a porta que separa os dois aposentos para poder dar uma olhada no paciente de vez em quando.” Dalgliesh perguntou o que exatamente acontecera naquela tarde. “Bem, o tratamento começou logo depois das três e meia e o doutor Baguley deu uma passadinha pouco depois das quatro para ver como iam as coisas. Fiquei com a paciente até as quatro e meia, quando a senhora Shorthouse veio me dizer que o chá estava pronto. A irmã desceu enquanto eu subi para a sala das enfermeiras para tomar meu chá. Desci novamente às quinze para as cinco e liguei para o doutor Baguley às cinco. Ele passou mais ou menos quarenta e cinco minutos com a paciente, depois saiu para voltar a sua clínica de eletrochoque. Fiquei com a paciente, e como ela estava muito inquieta resolvi deixar a lavanderia para mais tarde. Mais ou menos às vinte para as sete Peter Nagle bateu na porta e pediu a roupa limpa. Falei que não tinha separado a roupa e ele pareceu um pouco surpreso, mas não disse nada. Pouco depois, tive a impressão de ouvir um grito. No começo não dei maior importância ao fato, pois o ruído parecia vir de longe e achei que eram as crianças brincando na praça. Depois resolvi verificar e fui até a porta. Vi o doutor Baguley e o doutor Steiner chegando ao subsolo com a irmã Ambrose e a doutora Ingram. A irmã me disse que não era nada, que eu voltasse para junto de minha paciente, e foi o que eu fiz.” “A senhora se afastou da sala de tratamento em alguma ocasião depois que o doutor Baguley saiu, mais ou menos às quinze para as seis?” “Não, não. Não houve necessidade. Se eu quisesse ir ao lavatório ou qualquer coisa assim (a enfermeira Bolam corou de leve), teria telefonado para a irmã para que ela assumisse meu posto.” “A senhora fez algum telefonema da sala de tratamento no decorrer da tarde e da noite?” “Só um, às cinco, para chamar o doutor Baguley na sala de eletrochoque.” “Tem certeza de que não telefonou para a senhorita Bolam?” “Para a Enid? Ah, não! Não haveria razão para telefonar para Enid. Ela... isto é, nós não tínhamos maior contato na clínica. Minha chefe é irmã Ambrose, entende? Enid não se ocupava do pessoal da enfermagem.” “Mas fora da clínica vocês se viam bastante?” “Ah, não! Não foi isso que eu quis dizer. Fui ao apartamento dela uma ou duas vezes para buscar o cheque — no Natal, depois outra vez no verão. Mas não é fácil, para mim, deixar mamãe sozinha. Além disso, Enid tinha sua própria vida para viver. E é bem mais velha do que eu. Na verdade, eu não a conhecia muito bem.” Sua voz fraquejou, e Dalgliesh percebeu que ela estava chorando. Enquanto procurava um lenço desajeitadamente no bolso do uniforme de enfermeira, por baixo do avental, ela soluçou: “É horrível... Coitada da Enid! E ainda puseram aquela estátua em cima do corpo dela como se quisessem fazer troça, dando a impressão de que ela estava amamentando um bebê!” Dalgliesh não tinha se dado conta de que ela havia visto o corpo, e disse-lhe isso. “Mas eu não vi! O doutor Etherege e a irmã não me deixaram entrar para vê-la. Mas todos nós ficamos sabendo do acontecido.” Era verdade que a senhorita Bolam parecia estar amamentando um bebê. Mas o inspetor se surpreendeu com o fato de que isso fosse declarado por alguém que não havia visto o corpo. Sem dúvida o diretor médico fizera uma descrição gráfica da cena. De repente a enfermeira Bolam encontrou seu lenço e o puxou do bolso. Com ele, veio um par de finas luvas cirúrgicas. Elas caíram aos pés de Dalgliesh. Erguendo-as do chão, ele observou:
“Eu não tinha me dado conta de que vocês usam luvas cirúrgicas aqui.” A enfermeira Bolam pareceu não se surpreender com seu interesse. Contendo os soluços com notável autocontrole, respondeu: “Não usamos com freqüência, mas temos alguns pares. Agora todo o setor médico adotou as luvas descartáveis, mas há alguns pares do modelo antigo por aí — este, por exemplo. Utilizamos para eventuais serviços de limpeza.” “Obrigado”, disse Dalgliesh. “Vou ficar com estas luvas, se não se importa. E acho que por enquanto não preciso mais da senhora.” Sussurrando uma palavra que talvez fosse “obrigada”, a enfermeira saiu da sala praticamente andando de costas.
O pessoal da clínica, reunido no consultório da frente, esperava para ser entrevistado. Os minutos se arrastavam; Fredrica Saxon fora buscar alguns papéis em sua sala no terceiro andar e estava fazendo a contagem de um teste de inteligência. Houvera alguma discussão sobre se ela devia ou não subir sozinha, mas a srta. Saxon declarara com determinação que não pretendia ficar ali sentada jogando tempo fora e roendo as unhas até a polícia resolver falar com ela, que não havia escondido o assassino no andar de cima, que não estava com a intenção de destruir provas comprometedoras e que se algum membro da equipe quisesse acompanhá-la para verificar se tudo isso era verdade, não se opunha absolutamente. Essa franqueza desarmante provocara um murmúrio de protestos e declarações de confiança, mas a sra. Bostock dissera num rompante que gostaria de apanhar um livro na biblioteca médica e as duas mulheres haviam saído juntas do aposento, voltando juntas algum tempo depois. Cully fora entrevistado logo, tendo conquistado o direito de ser visto como paciente, e em seguida liberado para ir tratar do estômago em casa. A única paciente restante, a sra. King, já fora entrevistada e autorizada a ir embora na companhia do marido, que a esperava. O sr. Burge também se fora, reclamando ruidosamente da interrupção de sua sessão e do trauma provocado pela experiência como um todo. “Não se iludam, ele está se divertindo, dá para perceber”, comentou a sra. Shorthouse para os funcionários reunidos. “Garanto a vocês que o inspetor teve a maior dificuldade para se ver livre dele.” Aparentemente, havia muitas coisas que a sra. Shorthouse podia explicar ao grupo. Ela recebera permissão para passar um café e preparar sanduíches na sua pequena cozinha do térreo, nos fundos do edifício, e isso lhe fornecera uma desculpa para percorrer o corredor de um lado para o outro vezes sem fim. Os sanduíches foram trazidos praticamente um por um. As xícaras foram retiradas individualmente para serem lavadas. Esse vaivém lhe deu a oportunidade de relatar os últimos sucessos ao resto da equipe, que esperava pelas novidades com uma ansiedade e uma avidez muito maldisfarçadas. A sra. Shorthouse não era a emissária que teriam escolhido, mas toda e qualquer notícia, independentemente de como tivesse sido obtida ou da pessoa que a transmitisse, ajudava a aliviar o peso da dúvida — e ela estava demonstrando uma inesperada familiaridade com a rotina policial. “Neste momento, vários policiais estão revistando o edifício e um deles está de guarda na porta. Claro que não encontraram ninguém. Bom, basta raciocinar. Sabemos muito bem que o assassino não teria como sair do prédio. Nem como entrar nele, aliás. Falei para o inspetor: ‘Fiz uma limpeza em regra nesta clínica hoje, de modo que diga aos seus amigos que prestem atenção e não façam sujeira’.”
“O médico legista já viu o corpo. O homem das impressões digitais ainda está lá embaixo, estão tirando as impressões digitais de todo mundo. Vi o fotógrafo. Ele passou pelo corredor carregando um tripé e uma caixa grande, branca em cima e preta embaixo...” “Vejam que coisa engraçada. Estão procurando impressões digitais no elevador do subsolo. Também estão medindo ele inteiro...” Fredrica Saxon ergueu a cabeça, deu a impressão de que ia dizer alguma coisa, depois voltou ao trabalho. O elevador do subsolo, que media mais ou menos um metro e meio quadrado e que subia e descia graças a uma corda e uma roldana, era usado para transportar comida da cozinha do subsolo para a sala de jantar do primeiro andar na época em que a clínica era uma residência particular. Nunca fora desmontado. De vez em quando algum dossiê médico do arquivo do subsolo era içado para os consultórios do primeiro ou do segundo andar pelo elevador, mas fora isso era raríssimo ele ser usado. Ninguém aventou alguma possível razão para a polícia examiná-lo em busca de impressões digitais. A sra. Shorthouse saiu com duas xícaras, que pretendia lavar. Cinco minutos depois, estava de volta. “O senhor Lauder está na secretaria telefonando para o presidente do conselho. Provavelmente está contando a ele sobre o assassinato. Aposto que não vai faltar assunto nos escritórios do conselho. A irmã está conferindo todas as peças da rouparia com um dos policiais. Parece que falta um dos aventais de borracha da sala de arte-terapia. Ah, tem outra coisa. Desligaram a caldeira. Imagino que queiram examiná-la por dentro. Isto aqui vai estar simplesmente gélido na segunda-feira...” “O rabecão chegou. É assim que eles chamam a caminhonete que transporta o morto. Não usam ambulância, entendem? Se a vítima morreu, não usam. Vocês devem ter ouvido, quando ele chegou. Aposto que, se puxarem um pouco as cortinas, poderão ver o corpo sendo retirado.” Mas ninguém teve vontade de puxar as cortinas, e quando as passadas leves e cuidadosas dos padioleiros passaram junto da porta do aposento onde estavam, ninguém falou. Fredrica Saxon largou o lápis e inclinou a cabeça como se estivesse rezando. Quando se ouviu a porta da frente fechar, o alívio do grupo foi perceptível no suspiro geral. A sra. Shorthouse foi a única a falar. “Coitadinha! Quando eu penso que estava convencida de que ela não ficava mais do que seis meses por aqui, do jeito que as coisas iam... Mas nunca imaginei que ela fosse embora de rabecão!” Jennifer Priddy estava sentada longe dos outros, na borda do divã do paciente. Sua entrevista com o inspetor fora inesperadamente fácil. Ela não sabia bem o que tinha imaginado que ia acontecer, mas sem dúvida não pensara encontrar aquele homem tranqüilo, gentil, de voz grave. Ele não se dera ao trabalho de manifestar comiseração para com ela pelo trauma de ter encontrado o cadáver. Não sorrira para ela. Não fora paternal nem compreensivo. Dava a impressão de estar interessado unicamente em descobrir a verdade o mais depressa possível, e de acreditar que todos os outros alimentavam os mesmos sentimentos. Jennifer achava que seria difícil mentir para ele e não tentara fazê-lo. Fora muito fácil lembrar-se de tudo, sem rodeios. O inspetor a interrogara detalhadamente sobre os dez minutos que passara no subsolo com Peter. Normal. Era óbvio que estava tentando descobrir se Peter poderia ter matado a srta. Bolam depois de ter voltado do correio e antes de ela ir ter com ele. Muito bem; isso não teria sido possível. Ela descera para o subsolo logo atrás dele, fato que a sra. Shorthouse poderia confirmar. Provavelmente matar Enid não fora uma coisa demorada — ela fazia força para não pensar naquela violência súbita, selvagem, calculada —, mas, por mais rápida que tivesse sido, Peter não
tivera tempo. Pensou em Peter. Pensar nele ocupava a maior parte de suas raras horas solitárias. Naquela noite, porém, as fantasias amorosas de sempre estavam impregnadas de ansiedade. Será que ele ia ficar bravo com o modo como ela se comportara? Ela se lembrava, envergonhada, de seu grito de terror ao encontrar o corpo; da forma como se jogara nos braços dele. Naturalmente ele fora muito gentil, muito afetuoso, mas ele sempre era afetuoso quando não estava trabalhando e se lembrava que ela existia. Ela sabia que ele tinha horror de confusão e que ficava irritado com toda manifestação de afeto. Aprendera que o amor dos dois — e já não ousava duvidar de que era amor — tinha de ser vivido nos termos dele. Desde o curto espaço de tempo que haviam passado juntos na sala das enfermeiras depois que a srta. Bolam fora encontrada, ela mal falara com ele. Não tinha como saber o que ele estava sentindo. Só de uma coisa tinha certeza. Naquela noite não poderia posar para ele. Não tinha nada a ver com vergonha ou culpa; fazia muito que ele a libertara dessas incomodações que costumam andar juntas. Ele estaria à espera dela no ateliê, como planejado. Afinal de contas, ela contava com uma desculpa: seus pais imaginariam que estava no curso noturno. Ele não veria justificativa lógica para alterar o que haviam combinado, e, em se tratando de lógica, Peter era mestre. Mas ela não tinha condições de posar — não naquela noite. Não tanto pelo ato de posar em si, como pelo que viria depois. Não teria forças para rechaçá-lo. Não teria vontade de rechaçá-lo. E naquela noite, com Enid morta, sentia que não toleraria ser tocada. No fim de sua conversa com o inspetor, o dr. Steiner viera sentar-se ao lado dela e fora muito gentil. Era o jeito dele. Era fácil criticar sua indolência ou fazer troça de seus pacientes esquisitos. Mas ele se preocupava com as pessoas, enquanto o dr. Baguley, que trabalhava tanto e ficava esgotado com o trabalho na clínica, na verdade não gostava das pessoas, só tinha vontade de gostar. Jenny não sabia bem por que via essas coisas com tanta clareza. Para falar a verdade, não havia pensado no assunto antes. Naquela noite, porém, agora que o impacto de encontrar o corpo se acalmara, sua mente estava anormalmente clara. E não só sua mente. Todas as suas percepções estavam aguçadas. Os objetos tangíveis em torno dela, o forro de chintz do divã, o cobertor vermelho dobrado ao pé do divã, os verdes e dourados vivos dos crisântemos sobre a escrivaninha, tudo para ela estava mais claro, mais cintilante, mais real do que nunca antes. Via o contorno do braço da srta. Saxon apoiado na escrivaninha, fazendo uma curva em torno do livro que ela estava lendo, e a maneira como os pelinhos de seu antebraço brilhavam, iluminados pela luz do abajur. Perguntou-se se Peter sempre via a vida que o cercava com aquele deslumbramento, aquela clareza, como alguém que tivesse nascido num mundo desconhecido, com todas as cores da criação ainda frescas. Talvez fosse assim que os pintores se sentiam. “Deve ser o conhaque”, pensou, e deu uma risadinha. Lembrou-se de ouvir irmã Ambrose resmungando baixinho, meia hora antes. “Que será que Nagle deu a Priddy? A garota está meio bêbada.” Mas não estava bêbada e não acreditava que fosse o conhaque. O dr. Steiner puxara a cadeira para perto dela e pusera a mão em seu ombro por um instante. Sem pensar, a srta. Priddy dissera: “Ela era gentil comigo e eu não gostava dela.” Mas já não sentia tristeza nem culpa por causa disso. Era apenas um reconhecimento objetivo dos fatos. “Você não deve se preocupar com isso”, ele disse com delicadeza, dando tapinhas no joelho dela.
Ela não se incomodou com os tapinhas. Peter teria dito: “Bode velho sem-vergonha! Diga a ele para tirar as patas de cima de você”. Mas Peter estaria enganado. Jenny sabia que aquele era um gesto amável. Por um momento sentiu-se tentada a pôr a mão em cima da do dr. Steiner para mostrar que entendia isso. As mãos dele eram pequenas e muito brancas para um homem, muito diferentes dos dedos compridos, ossudos e manchados de tinta de Peter. Ela viu como os pêlos se enrolavam sob os punhos da camisa dele, viu os pelinhos curtos e negros junto aos nós de seus dedos. No dedo mínimo ele usava um anel de ouro de sinete, pesado como uma arma. “É natural que você se sinta assim”, disse ele. “Quando as pessoas morrem, sempre pensamos que poderíamos ter sido mais amáveis com elas, ter gostado mais delas. Não há o que fazer quanto a isso. Não devemos fingir que sentimos o que não sentimos. Se entendemos nossos sentimentos, o tempo nos ensina a aceitá-los e a viver com eles.” Mas Jenny já não estava escutando. A porta se abrira silenciosamente e Peter Nagle entrara no recinto. Cansado de ficar na recepção trocando observações idiotas com o lacônico policial que montava guarda junto à porta, Nagle fora para o consultório da frente em busca de novidade. Embora sua entrevista formal já estivesse concluída, ele ainda não recebera permissão para retirarse da clínica. Dava para perceber que o secretário do grupo esperava que ele ficasse no local até que fosse possível trancar o prédio para a noite — e caberia a ele, também, voltar a abri-lo na segunda-feira de manhã. Do jeito que as coisas iam, estava parecendo que ele teria de ficar por ali mais umas duas horas, pelo menos. Naquela manhã planejara ir para casa cedo para trabalhar no quadro, mas não adiantava pensar nisso agora. Pelo jeito só poderia ir embora depois das onze da noite. Mas, mesmo que os dois conseguissem ir juntos para o apartamento em Pimlico, Jenny não ia querer posar para ele naquela noite. Estava escrito no rosto dela. Ela não cruzou o aposento ao seu encontro ao vê-lo entrar, e ele ficou grato por essa mínima contenção da parte dela. Contudo, voltara para ele um olhar tímido, elíptico, em parte conspirativo e em parte implorante. Era seu jeito de pedir compreensão, de desculpar-se. Pois bem, ele estava frustrado. Imaginara trabalhar umas três horas naquela noite, e o tempo estava ficando escasso. Mas se ela estivesse apenas querendo fazê-lo entender que naquela noite não estava com vontade de fazer amor, bem... por ele tudo bem. Aliás, se ela soubesse! Tudo bem na maioria das noites. Ele gostaria de fazer amor com ela — já que ela parecia fazer tanta questão disso — com a simplicidade e a rapidez com que se faz uma refeição: satisfazendo um apetite do qual não havia por que envergonhar-se, mas que tampouco era algo importante. Só que para Jenny era diferente. Ele não fora tão inteligente quanto imaginava, e Jenny estava apaixonada. Sem esperança, insegura e fervorosamente apaixonada, exigindo reiterações constantes, ternura fácil e uma técnica primorosa, que tomava tempo e o deixava exausto e apenas saciado. Ela entrava em pânico com a idéia de engravidar, de modo que as preliminares ao ato eram irritantemente clínicas, e a conclusão a deixava quase sempre soluçando desesperada em seus braços. Como pintor, ele estava obcecado pelo corpo dela. Não podia admitir a idéia de trocar de modelo àquela altura dos acontecimentos; além disso, não tinha meios para fazê-lo. Mas o preço de Jenny estava ficando muito alto. Peter estava praticamente indiferente diante da morte da srta. Bolam. Desconfiava que ela sempre soubera como ele trabalhava pouco em troca do salário que recebia. Os outros membros da equipe, induzidos pela comparação entre ele e aquele coitado do Cully, achavam-no um expoente de inventividade e inteligência. Mas Enid Bolam não era boba. Não que ele fosse preguiçoso. Era possível levar a vida numa boa na Clínica Steen — e a maioria das pessoas, inclusive alguns dos psiquiatras, fazia exatamente isso — sem correr o risco de ouvir esse epíteto.
Tudo o que se exigia dele estava dentro de sua capacidade, e ele não dava nada que não lhe fosse exigido. Enid Bolam sabia disso, mas o fato não preocupava a nenhum dos dois. Ela sabia que, se ele deixasse de trabalhar lá, só poderia substituí-lo por um porteiro menos capacitado e menos eficiente. E ele era educado, apresentável e gentil. Isso era muito importante para a srta. Bolam. Sorriu ao lembrar-se de quanto era importante. Não, Enid Bolam jamais o incomodara. Sentia-se menos confiante ao pensar na pessoa que a sucederia. Dirigiu o olhar para o outro lado da sala, para o lugar onde a sra. Bostock estava sentada sozinha, graciosamente relaxada numa das mais confortáveis cadeiras para uso dos pacientes que ele trouxera da sala de espera. Sua cabeça se inclinava aplicadamente sobre um livro, mas Nagle tinha certeza de que seus pensamentos estavam em outro lugar. Provavelmente calculava quanto passaria a ganhar como gerente administrativa da clínica. Aquele assassinato era uma oportunidade que se abria para ela. É fácil reconhecer a ambição compulsiva numa mulher: uma chama que a consome. Quase era possível sentir o cheiro que ela produzia, fritando a carne dela. Por baixo daquele ar de calma impassibilidade a sra. Bostock estava tão inquieta e nervosa quanto uma gata no cio. Peter atravessou o aposento na direção dela e se encostou na parede, ao lado de sua cadeira, com o braço roçando de leve seu ombro. “Bem na horinha, hein?”, falou. Ela continuou fitando a página, mas Peter sabia que ela teria de responder. Ela não conseguia deixar de se defender, mesmo quando a defesa só servia para deixá-la mais vulnerável. Ela é como os outros, pensou ele. Não consegue manter a maldita boca fechada. “Não sei o que você está querendo dizer, Nagle.” “Sem essa! Faz seis meses que admiro o seu show. Sim, doutor. Não, doutor. Como o senhor quiser, doutor. Claro, eu gostaria de ajudar, doutor, mas o caso apresenta certas complicações... Quanto a isso, nenhuma dúvida! Ela não ia desistir sem luta. E agora está morta. Muito conveniente para você. Eles não vão precisar procurar muito para encontrar a nova gerente administrativa.” “Não seja impertinente e ridículo. E por que você não está ajudando a senhora Shorthouse com o café?” “Porque não estou com vontade. Não se esqueça que ainda não é a gerente administrativa.” “Tenho certeza de que a polícia ficará interessada em saber onde você esteve esta tarde. Afinal de contas, o formão era seu, não é mesmo?” “Saí para ir ao correio e comprar meu jornal da tarde. Decepcionante, não é? E você, onde será que estava às seis e vinte e dois?” “Como sabe que ela morreu às seis e vinte e dois?” “Não sei. Mas a irmã viu quando ela desceu para o subsolo às seis e vinte e, que eu saiba, não havia nada para retê-la por lá. A não ser que seu querido doutor Etherege estivesse lá embaixo, é claro. Mas ele não ia se dar ao trabalho de dar em cima da senhorita Bolam. Imagino que ela não fosse o tipo dele. Mas você conhece os gostos dele melhor do que eu, claro.” De repente ela se levantou de sua cadeira, girou o braço direito e deu uma bofetada no rosto dele com uma força que por um instante o desequilibrou. O estalo seco do golpe ecoou pela sala. Todos olharam para eles. Nagle ouviu a respiração ofegante de Jennifer Priddy, viu as sobrancelhas franzidas de preocupação do dr. Steiner, que olhava para um e para outro com ar interrogativo e intrigado, viu a expressão desdenhosa com que Fredrica Saxon os considerou brevemente, antes que seus olhos se voltassem outra vez para o livro que estava lendo. A sra. Shorthouse, que empilhava pratos sobre uma bandeja numa mesinha lateral, olhou em volta com
um segundo de atraso. Seus olhinhos atentos fuzilaram um e outro, frustrados por terem perdido uma coisa que valia a pena ver. A sra. Bostock, afogueada, afundou na sua cadeira e apanhou seu livro. Nagle, de mão no rosto, soltou uma gargalhada sonora. “Temos algum problema?”, perguntou o dr. Steiner. “O que aconteceu?” Nesse momento a porta se abriu e um policial uniformizado enfiou a cabeça no aposento, dizendo: “Agora o inspetor gostaria de falar com a senhora Shorthouse, por favor.”
A sra. Amy Shorthouse não vira nenhuma razão para continuar com o uniforme de trabalho enquanto esperava para ser interrogada, de modo que quando Dalgliesh a chamou ela estava pronta para ir para casa. A metamorfose era impressionante. As sapatilhas confortáveis que ela usava na clínica haviam sido substituídas por um par de sapatos altos da última moda, o avental branco por um casaco de pele e o lenço que cobria seus cabelos pela bobagem mais recente em matéria de chapéus. O efeito geral era estranhamente antiquado. A sra. Shorthouse parecia uma relíquia da alegre década de 20, efeito realçado pela saia curta e pelo esmero dos cachos oxigenados que lhe cobriam a testa e as faces. Mas não havia nada de falso em sua voz e, na opinião de Dalgliesh, muito pouco em sua personalidade. Os olhinhos cinzentos eram perspicazes e maliciosos. Ela não estava nem amedrontada nem aflita. Dalgliesh tinha a impressão de que Amy Shorthouse necessitava de uma dose maior de agitação do que sua vida cotidiana lhe proporcionava, e de que estava se divertindo com os acontecimentos. Não que achasse graça em morte violenta, mas, já que o fato acontecera, por que não aproveitar a oportunidade para distrair-se um pouco? Encerrados os prolegômenos, os acontecimentos da tarde foram abordados e a sra. Shorthouse apresentou sua informação mais impactante. “Não vou lhe dizer que sei quem fez aquilo porque não sei. Não que não tenha meus palpites. Mas uma coisa posso lhe dizer. Fui a última pessoa a falar com ela, quanto a isso não há dúvida. Espere, deixe eu explicar melhor. Fui a última pessoa a falar com ela frente a frente. Fora o assassino, claro.” “A senhora está me dizendo que depois de falar com a senhora ela usou o telefone? Não é melhor me explicar a coisa com clareza? Hoje eu já tive uma dose suficiente de mistério.” “Espertinho, hein?”, disse a sra. Shorthouse de bom humor. “Pois bem, foi nesta sala mesmo. Entrei aqui mais ou menos às seis e dez para perguntar quantos dias de férias ainda tenho para gozar, porque estava querendo tirar um dia de folga na semana que vem. A srta. Bolam tirou minha pasta do arquivo — na verdade, pensando bem, acho que a pasta já estava fora do arquivo — e combinamos o que havia a combinar, depois conversamos um pouco sobre o trabalho. Eu já ia saindo, estava em pé na porta terminando o que estava dizendo, quando o telefone tocou.” “Quero que a senhora pense com muito cuidado, senhora Shorthouse”, disse Dalgliesh. “Isso pode ser muito importante. Será que a senhora consegue se lembrar do que a senhorita Bolam falou?” “O senhor acha que era alguém dizendo para ela descer para o subsolo para ser assassinada?”, disse a sra. Shorthouse, encantada. “Pensando bem, até que pode ser...” Dalgliesh pensou consigo que aquela testemunha estava longe de ser tola. Observou enquanto ela contraía o rosto num esforço simulado de concentração. Não tinha dúvida de que ela se lembrava muito bem do que fora dito.
Depois de um intervalo bem calibrado para criar suspense, a sra. Shorthouse disse: “Bem, como eu já falei, o telefone tocou. Deviam ser umas seis e quinze. A senhora Bolam pegou o fone e disse: ‘Pois não, gerente administrativa’. Ela sempre atendia assim. Tinha orgulho de seu cargo. Peter Nagle costumava dizer: ‘Quem será que ela imagina que a gente pensa que vai atender o telefone? Kruchov?’. Claro que ele não disse isso a ela. Nem pensar. Seja como for, foi isso que ela falou. Depois houve uma pequena pausa, ela olhou para mim e disse: ‘Sim, estou’. Acho que estava dizendo que estava sozinha, como se eu não estivesse ali. Depois houve uma pausa um pouco maior, enquanto o cara do outro lado da linha falava. Aí ela disse: ‘Está bem, fique onde está. Vou descer’. Depois me disse para levar o senhor Lauder até a sala dela, se visse ele chegar. Eu disse que faria isso e saí.” “A senhora tem certeza sobre o que foi dito ao telefone?” “Tanta certeza quanto a de que estou sentada aqui. Foi exatamente o que ela falou.” “A senhora mencionou ‘o cara do outro lado da linha’. Como sabia que era um homem?” “Eu não disse que sabia. Acho que simplesmente imaginei que era um cara. Se eu estivesse mais perto dela, até poderia saber. Às vezes dá para ter uma idéia de quem está falando porque o telefone faz um barulho meio distorcido. Mas eu estava parada perto da porta.” “E não dava para ouvir absolutamente nada da outra voz?” “Exatamente. Vai ver que ele estava falando baixo.” “E o que aconteceu depois, senhora Shorthouse?” “Me despedi e fui cuidar das minhas tarefas na secretaria. Peter Nagle estava lá, tirando a concentração da jovem Priddy, como de hábito, e Cully estava no compartimento da recepção, de modo que não foi nenhum deles. Peter saiu com a correspondência assim que eu entrei. Ele sempre sai para o correio às seis e quinze.” “A senhora viu a senhorita Bolam sair da sala dela?” “Não, não vi. Já lhe disse. Estava na secretaria com Nagle e a senhorita Priddy. Mas a irmã viu. Pergunte a ela. A irmã viu quando ela passou pelo corredor.” “É, já sei. A irmã Ambrose me disse. É que eu queria saber se a senhorita Bolam tinha saído da sala dela logo atrás da senhora.” “Não, não saiu. Pelo menos não imediatamente. Talvez tenha achado uma boa idéia deixar o cara esperar um pouco.” “Talvez”, disse Dalgliesh. “Mas imagino que teria descido imediatamente se fosse um médico ao telefone.” A sra. Shorthouse soltou uma risada. “É possível. Mas sei lá. O senhor não conheceu a senhorita Bolam.” “Como ela era, senhora Shorthouse?” “Tranqüila. A gente se dava bem. Ela gostava de quem trabalha direito, e eu trabalho direito. Bom... O senhor pode ver como este lugar é bem cuidado.” “É mesmo.” “Com ela era pão, pão, queijo, queijo. Ponto a favor dela. Todas as cartas na mesa, sempre. Se a pessoa não se cuidasse podia passar momentos bem desagradáveis com ela. Mas ainda prefiro assim. Ela e eu nos entendíamos.” “Algum inimigo? Alguém com um ressentimento?” “Acho que sim, não é mesmo? Aquela pancada na cabeça dela não foi nenhuma brincadeirinha. Na minha opinião, é levar um ressentimento um pouquinho longe demais...” Plantando bem os pés no chão e inclinando-se para Dalgliesh em tom de confidência, continuou. “Veja, meu bem”,
disse. “A senhorita Bolam irritava as pessoas. Algumas pessoas são assim. Sem jogo de cintura. Certo é certo, errado é errado. Nada de mais ou menos. Rígida. Ela era rígida.” O tom da sra. Shorthouse e seus lábios contraídos exprimiam o máximo em matéria de inflexibilidade virtuosa. “Por exemplo aquela besteira sobre o livro de presença. Todos os médicos precisam assinar quando chegam, para depois a senhorita Bolam fazer o relatório mensal ao Conselho. Tudo organizadinho. Bom, primeiro o livro ficava em cima de uma mesa no vestiário dos médicos, ficava cômodo para todo mundo. Aí a senhorita Bolam repara que o doutor Steiner e o doutor McBain estão chegando atrasados e muda o livro para a sala dela. Todos tinham de vir até aqui para assinar. Só que o doutor Steiner nunca ia aceitar uma coisa dessas. ‘Ela sabe que estou aqui’, dizia ele. ‘E sou um médico, não um operário.’ ‘Se ela quer que eu assine aquele livro idiota, ela que o ponha de volta no vestiário dos médicos.’ Estou informada de que faz mais de um ano que os médicos estão fazendo o possível para que ela seja transferida daqui.” “Como a senhora sabe?” “Digamos que sei, e pronto. O doutor Steiner não podia nem ver a cara dela. Ele é adepto da psicoterapia. Da psicoterapia intensiva. Já ouviu falar?” Dalgliesh disse que sim. A senhora Shorthouse olhou para ele num misto de desconfiança e dúvida, depois se inclinou para a frente, conspirativa, como se estivesse a ponto de comunicar uma das idiossincrasias mais indignas do doutor Steiner. “Com orientação psicanalítica. Terapeuta com orientação psicanalítica. Sabe o que isso significa?” “Faço uma idéia.” “Então deve saber que ele não recebe muitos pacientes. Dois por dia, três no máximo, e novos pacientes só de dois em dois meses. Isso não contribui para as estatísticas.” “Que estatísticas?” “As estatísticas de atendimento. Elas são encaminhadas quinzenalmente ao Comitê Administrativo Hospitalar. A senhorita Bolam adorava empurrar as estatísticas para cima.” “Então ela devia ser fã do doutor Baguley. Ouvi dizer que as sessões de eletrochoque dele são muito concorridas.” “Era mesmo. Só não aprovava a história do divórcio dele.” “Mas que diferença isso fazia para as estatísticas?”, perguntou Dalgliesh, fazendo-se de inocente. A sra. Shorthouse olhou para ele com infinita piedade. “Quem falou em estatísticas? Estávamos comentando o casal Baguley. Eles iam se divorciar por causa do caso do doutor Baguley com a senhorita Saxon. Todos os jornais comentaram. Mulher de psiquiatra processa psicóloga. Daí, de repente, a senhora Baguley retira a queixa. Nunca disse a razão. Ninguém disse a razão. Mas aqui na clínica isso não fez a menor diferença. O doutor Baguley e a senhorita Saxon continuaram trabalhando juntos sem o menor problema. E ainda trabalham.” “E o doutor Baguley e a esposa fizeram as pazes?” “Quem falou em fazer as pazes? Só sei que continuam casados. Mas depois desses acontecimentos a senhorita Bolam fechou o tempo com a senhorita Saxon. Não que ela costumasse comentar o assunto; uma coisa boa a respeito dela era que não gostava de fofoca. Mas deixava a senhorita Saxon perceber o que ela achava. A senhorita Bolam era contra esse tipo de coisa. Com ela, não tinha conversa, eu lhe garanto!” Dalgliesh perguntou se alguém já tinha tentado alguma coisa com ela. Era uma pergunta que costumava formular com o máximo de tato, mas sutileza com a senhora Shorthouse era pura
perda de tempo, achava. Ela soltou uma risada divertida. “O que o senhor acha? Ela não gostava de homem. Não que eu saiba, pelo menos. Olhe, alguns dos casos aqui da clínica fariam o senhor nunca mais pensar em sexo na vida. Uma vez a senhorita Bolam foi se queixar com o diretor médico de alguns dos relatórios que a senhorita Priddy recebia para datilografar. Falou que eram indecentes. Claro, ela era meio esquisita com a Priddy. Passava o tempo tentando se meter na vida dela. Quando era pequena, Priddy estava no grupo de bandeirantes da senhorita Bolam ou coisa assim, e suponho que Bolam quisesse ficar de olho nela para que ela não se esquecesse da antiga guia. Dava para perceber que a garota ficava constrangida. Mas não havia nada de errado na coisa. Não vá acreditar, se alguém lhe der a entender que havia. Tem gente aqui com a cabeça muito suja, eu lhe garanto.” Dalgliesh perguntou o que a srta. Bolam achava da amizade entre a srta. Priddy e Nagle. “Ah, quer dizer que o senhor está sabendo? Pois ela não aprovava. Nagle é um sujeito frio, avarento como o diabo. Tente fazer ele lhe pagar um chá! Ele e Priddy gostam de se divertir por aí e tenho a impressão de que se os gatos soubessem falar, o Tigger poderia contar algumas coisas bem interessantes. Só que eu acho que a senhorita Bolam não percebia. Passava muito tempo fechada na sala dela. Seja como for, não é para o Nagle ficar circulando pela secretaria, e as estenógrafas médicas estão sempre muito ocupadas, de modo que não resta muito tempo para conversa mole. Depois, Nagle se encarregava de ficar sempre numa boa com a senhorita Bolam. Dava uma de garotinho bonitinho de olhos azuis. Nunca falta, nunca se atrasa — esse é o nosso Peter. Precisava ver como ele ficou, uma segunda-feira que ficou preso no metrô. Chegou a passar mal! O fato estragava a ficha dele, entende? Ele chegou a vir trabalhar gripado num primeiro de maio porque o duque de Edimburgo ia fazer uma visita à clínica e, evidentemente, Peter Nagle tinha de estar aqui para garantir que tudo saísse direitinho. Estava com uma febre braba, mais de quarenta graus. A irmã mediu a temperatura dele. A senhorita Bolam mandou-o logo para casa. O doutor Steiner levou-o de carro.” “Todo mundo sabe que o senhor Nagle guarda suas ferramentas na salinha dos porteiros?” “Lógico! É só parar para pensar. As pessoas estão sempre querendo que ele conserte isto ou aquilo, e onde mais ele ia guardar as ferramentas? E ele é cheio de coisa com aquelas ferramentas. Cricri. Cully está proibido de pôr a mão nelas. Inclusive, as ferramentas não pertencem à clínica. Pertencem ao Nagle. Deu o maior rolo umas seis semanas atrás, quando o doutor Steiner pegou uma chave de fenda emprestada para consertar alguma coisa no carro. Claro que o doutor Steiner tinha de se atrapalhar todo e entortar a chave de fenda. Foi a maior encrenca. Nagle achou que tinha sido o Cully, e os dois tiveram uma discussão tremenda; o coitado do Cully até ficou com a tal dor de estômago que costuma ter. Depois o Nagle descobriu que alguém tinha visto o doutor Steiner sair da salinha dos porteiros com a chave de fenda na mão e foi se queixar com a senhorita Bolam, que falou com o doutor Steiner e o obrigou a comprar outra chave de fenda para o Nagle. Muita coisa acontece aqui dentro, inspetor, posso lhe garantir. Ninguém se entedia. Mas assassinato é a primeira vez. Uma novidade. E agora, o que será que vem por aí?” “É verdade. E agora, senhora Shorthouse, se a senhora tiver alguma idéia de quem foi o autor desse assassinato, está na hora de dizer.” A sra. Shorthouse lambeu um dos dedos e ajeitou um cacho na testa, remexeu-se dentro do casaco em busca de maior conforto e ergueu-se da cadeira, dando a entender que, em sua opinião, a conversa tinha chegado ao fim. “Não se preocupe. Seu trabalho é apanhar assassinos, companheiro; portanto, mãos à obra. Só vou lhe dizer uma coisa. Não foi um dos médicos. Nenhum deles teria coragem. Esses psiquiatras
são muito assustados. Diga o que quiser sobre esse assassino, mas é preciso admitir que o cara tem coragem.”
Dalgliesh resolveu que em seguida interrogaria os médicos. Estava surpreso e curioso com a paciência deles, com a rapidez com que haviam aceitado seu papel ali. Fizera-os esperar porque achava mais importante para a investigação falar com outras pessoas primeiro, mesmo pessoas aparentemente tão desimportantes quanto a faxineira. A impressão que dava era de que achavam que ele não tinha a intenção de irritá-los ou deixá-los desnecessariamente inquietos. Não hesitaria em fazer nenhuma das duas coisas se tivessem alguma utilidade para seus objetivos, mas a experiência já lhe demonstrara que é mais fácil obter informações importantes quando uma testemunha ainda não teve tempo para pensar e pode ser induzida, pelo medo ou pelo choque, a falar demais e ser indiscreta. Os médicos tinham ficado reunidos, esperando no consultório da frente junto com os outros, calmamente e sem reclamar. Davam-lhe o crédito de saber o que estava fazendo e deixavam que tomasse conta dos acontecimentos. Dalgliesh se perguntou se cirurgiões ou clínicos seriam igualmente cooperativos, e concordou com o secretário do grupo em sua afirmação de que havia gente mais difícil de lidar do que psiquiatras. A pedido do diretor médico, a primeira a ser chamada foi a dra. Mary Ingram. Com três filhos pequenos em casa, era importante que fosse tomar conta deles tão logo possível. Enquanto esperava, chorava espasmodicamente, para embaraço dos colegas, que sentiam dificuldade em consolá-la de um sofrimento que lhes parecia tão absurdo quanto deslocado. A enfermeira Bolam estava reagindo bem, e afinal de contas era parente da morta. As lágrimas da dra. Ingram aumentavam a tensão e provocavam uma culpa irracional naqueles cujas emoções eram menos descomplicadas. Havia um sentimento generalizado de que ela deveria receber permissão para ir para casa sem demora ao encontro dos filhos. Ela pouco tinha a dizer a Dalgliesh. Comparecia à clínica apenas duas vezes por semana, para ajudar com as sessões de eletrochoque, e mal conhecia a srta. Bolam. Durante todo o período crucial, das seis e vinte até as sete horas, permanecera na sala de eletrochoque com a irmã Ambrose. Respondendo a uma pergunta de Dalgliesh, admitiu que talvez o dr. Baguley tivesse saído da sala por um curto período depois das seis e quinze, mas não conseguia se lembrar a que horas exatamente, ou por quanto tempo. No fim da entrevista ela olhou para Dalgliesh com olhos vermelhos e disse: “O senhor vai descobrir quem fez isso, não vai? Pobrezinha, pobrezinha da moça...” “Sim, vamos descobrir”, respondeu Dalgliesh. Em seguida ele entrevistou o dr. Etherege, que forneceu os detalhes pessoais necessários sem esperar que lhe perguntassem e prosseguiu: “No que diz respeito a meus próprios movimentos esta tarde, temo não poder ser de grande ajuda. Cheguei à clínica logo antes das cinco e entrei na sala da senhorita Bolam para falar com ela antes de subir. Conversamos um pouco sobre temas genéricos. Ela me pareceu perfeitamente bem e não me contou que havia marcado uma entrevista com o secretário do comitê. Telefonei para a secretaria para chamar a senhora Bostock mais ou menos às cinco e quinze, e ela ficou comigo anotando o que eu lhe ditava até as dez para as seis mais ou menos, quando desceu com a correspondência. Voltou uns dez minutos depois e continuamos com o ditado até pouco antes das seis e meia, quando ela entrou na sala ao lado para datilografar o material. Algumas das minhas sessões de tratamento são gravadas e o material depois é datilografado para fins de pesquisa ou para registro médico. Fiquei trabalhando sozinho no consultório; só saí uma vez, rapidamente,
para ir até a biblioteca médica — não lembro a hora, mas foi logo depois que a senhora Bostock saiu —, e voltei para o consultório quando ela veio tirar uma dúvida. Isso deve ter sido logo antes das sete, porque estávamos juntos quando a irmã me telefonou para contar da srta. Bolam. A srta. Saxon desceu de seu consultório no terceiro andar para ir para casa e nos encontrou nas escadas, de modo que ela e eu descemos juntos até o subsolo. O senhor sabe o que encontramos e as medidas que tomei em seguida para garantir que ninguém saísse da clínica.” “O senhor parece ter agido com grande presença de espírito, doutor”, disse Dalgliesh. “O resultado é que o campo de investigação pôde ser consideravelmente reduzido. Está parecendo que o criminoso continua no interior deste prédio, não é mesmo?” “O que eu sei é que Cully me garantiu que ninguém passou por ele depois das cinco da tarde sem que ele anotasse o nome em seu registro. É esse o sistema, aqui. As implicações daquela porta dos fundos trancada são perturbadoras, mas tenho certeza de que o senhor é um policial suficientemente tarimbado para não chegar a conclusões apressadas. Nenhum prédio é inexpugnável. A... a pessoa responsável pode ter entrado em qualquer momento, talvez hoje de manhã cedo, e depois se escondido no subsolo.” “O senhor poderia me dar uma idéia de onde essa pessoa poderia ter se escondido ou de como ela teria saído do prédio?” O diretor médico não respondeu. “O senhor tem alguma idéia de quem possa ser essa pessoa?” O doutor Etherege percorreu lentamente com o dedo médio a linha de sua sobrancelha direita. Dalgliesh já o vira fazer aquilo na televisão, e refletiu, agora como então, que o objetivo era chamar a atenção para a mão elegante e o belo desenho da sobrancelha, embora o gesto, mesmo indicando uma atividade reflexiva séria, parecesse levemente cabotino. “Não faço a menor idéia. A tragédia toda é incompreensível. Não vou lhe dizer que a senhorita Bolam fosse uma pessoa totalmente fácil de lidar. Às vezes ela despertava ressentimentos.” Abriu um sorriso compassivo. “Nem sempre é fácil lidar conosco, e é provável que os mais competentes administradores de instituições psiquiátricas sejam muito mais tolerantes do que a senhorita Bolam, menos obsessivos, talvez. Mas estamos falando de assassinato! Não posso imaginar quem, entre os pacientes ou os membros da nossa equipe, pudesse ter o desejo de assassiná-la. Para mim, como diretor médico, é horrível pensar que talvez haja alguém perturbado a esse ponto trabalhando na Clínica Steen sem que eu tivesse chegado a desconfiar.” “Perturbado ou cruel”, disse Dalgliesh, incapaz de resistir à tentação. O dr. Etherege sorriu outra vez, como quem explica pacientemente um aspecto difícil a um membro um tanto obtuso da equipe de entrevistadores de um canal de televisão. “Cruel? Não tenho competência para discutir o que aconteceu em termos teológicos.” “Nem eu, doutor”, replicou Dalgliesh. “Mas esse crime não parece obra de um louco. Existe uma inteligência por trás dele.” “Alguns psicopatas são altamente inteligentes, inspetor. Não que eu entenda grande coisa de psicopatia. É um campo muito interessante, mas não é a minha área. Aqui na Steen, nunca nos apresentamos como capacitados a tratar essa condição.” Então a Steen estava em boa companhia, pensou Dalgliesh. A Lei da Doença Mental de 1959 podia definir “psicopatia” como um distúrbio que necessita de tratamento, mas os médicos pareciam pouco entusiasmados em tratá-la. A palavra parecia pouco mais que um termo psiquiátrico para contravenção, e foi isso que o inspetor disse ao médico. O dr. Etherege sorriu, indulgente, sem aceitar a provocação.
“Nunca aceitei uma entidade clínica pelo mero fato de ela estar definida em uma lei do Parlamento. No entanto, psicopatia existe. Neste momento, não estou convencido de que ela seja suscetível a tratamento médico. De uma coisa, porém, tenho certeza: ela não é suscetível a uma sentença de prisão. Contudo, não temos certeza de estar em busca de um psicopata.” Dagliesh perguntou ao dr. Etherege se ele sabia onde Nagle guardava suas ferramentas e que chave abria a porta da sala dos arquivos. “Eu estava informado sobre a chave. Quando trabalho até mais tarde e fico sozinho aqui na clínica, às vezes preciso consultar algum arquivo antigo e vou buscá-lo eu mesmo. Faço um pouco de pesquisa e, naturalmente, dou aulas e escrevo, e é importante ter acesso aos arquivos médicos. A última vez que estive lá embaixo em busca de uma pasta foi há dez dias. Acho que nunca vi a caixa de ferramentas na sala dos porteiros, mas sabia que Nagle tinha as dele e que não gostava que ninguém mexesse nelas. Acho que se eu quisesse um formão teria procurado na sala dos porteiros. Dificilmente haveria ferramentas guardadas em outro lugar. E é claro que teria noção de que a estátua de Tippett poderia ser encontrada no departamento de arte-terapia. Que estranho conjunto de armas! O que eu acho interessante é o aparente cuidado com que o assassino dirigiu as suspeitas para o pessoal da clínica.” “Considerando-se as portas trancadas, dificilmente as suspeitas poderiam recair em outro lugar.” “Foi isso que eu quis dizer, inspetor. Se um membro do pessoal presente esta tarde na clínica tiver assassinado a senhorita Bolam, sem dúvida teria tentado afastar as suspeitas das relativamente poucas pessoas que sabidamente estariam no prédio na hora do crime. A maneira mais fácil de fazer isso teria sido destrancar uma das portas. A pessoa teria de calçar luvas, claro, mas parece-me que o assassino efetivamente calçava luvas.” “De fato, não há impressões digitais em nenhuma das armas. Elas foram limpas, mas é provável que o assassino usasse luvas.” “E mesmo assim as portas permaneceram trancadas, forte indício de que o assassino continuava no prédio. Por quê? Seria arriscado destrancar a porta dos fundos do térreo. Como o senhor sabe, essa porta fica entre a sala de eletrochoque e a sala dos médicos e dá para uma rua bem iluminada. Seria difícil destrancá-la sem correr o risco de ser visto, e um assassino dificilmente escolheria aquele caminho para escapar. Mas há duas saídas de emergência no segundo e no terceiro andar, além da porta que leva ao subsolo. Por que não destrancar uma delas? Evidentemente, talvez isso tenha acontecido porque o assassino não teve oportunidade de fazê-lo no período entre a hora do crime e a descoberta do corpo. Outra possibilidade é que ele quisesse deliberadamente jogar as suspeitas sobre o pessoal da clínica, mesmo com o risco inevitável de correr mais perigo.” “O senhor fala ‘ele’, doutor. Como psiquiatra, acredita que estamos atrás de um homem?” “Sim, sem dúvida. Penso que esse crime foi obra de um homem.” “Embora não tenha sido necessário empregar muita força?”, perguntou Dalgliesh. “Basicamente eu não estava pensando na força necessária, mas no método e na arma escolhida. Claro, é apenas minha opinião, e não sou criminologista. Para mim, parece crime de homem. Mas é óbvio que uma mulher poderia tê-lo cometido. Psicologicamente, é pouco provável. Fisicamente, não haveria a menor dificuldade.” De fato, não haveria, pensou Dalgliesh. Só precisava conhecimento e coragem. Imaginou por um momento um rosto concentrado, bonito, inclinando-se sobre o cadáver da srta. Bolam; uma mão esguia, de menina, abrindo os botões do suéter e suspendendo a blusa de fino cashmere. E
depois, a escolha clínica do lugar exato onde cravar o formão, e o grunhido de esforço enquanto a lâmina acertava o alvo. E, por fim, o suéter puxado um pouco para baixo para esconder o cabo do formão, a feia estátua posicionada sobre o corpo que ainda estremecia num último gesto de desprezo e desafio. Dalgliesh contou ao diretor médico sobre o que a sra. Shorthouse dissera a respeito do telefonema. “Ninguém admitiu a autoria do telefonema. Está parecendo que ela foi atraída até o subsolo.” “Mera suposição, inspetor.” Delicadamente, Dalgliesh lembrou o médico que também era uma questão de bom senso, base de todo trabalho policial sólido. O diretor médico disse: “Ao lado do telefone, do lado de fora da sala dos arquivos, há um cartão com todos os números de telefone da clínica. Qualquer um, mesmo um estranho, poderia descobrir o número da senhorita Bolam.” “Mas qual teria sido a reação dela ao receber um telefonema interno feito por um estranho? Ela desceu para o subsolo sem vacilar. Deve ter reconhecido a voz.” “Então foi alguém que ela não tinha razão para temer. Isso não combina com a idéia de que estivesse de posse de alguma informação perigosa e de que o assassinato teve o objetivo de impedir que ela transmitisse essa informação ao Lauder. Ela desceu ao encontro da própria morte sem medo nem desconfiança. Só posso esperar que tenha morrido rapidamente e sem dor.” Dalgliesh disse que teria mais informações depois que recebesse o resultado da necropsia, mas que a morte fora quase certamente instantânea. E acrescentou: “Deve ter havido um momento pavoroso, quando ela ergueu os olhos e viu seu assassino com a estátua erguida, mas tudo aconteceu muito depressa. Depois de nocauteada, não sentiu mais nada. Duvido que tenha tido tempo até para gritar. Se gritou, o som foi abafado pelas estantes carregadas de pastas; por outro lado, pelo que me disseram, a senhora King estava se comportando de forma bastante ruidosa durante seu tratamento.” Depois de um intervalo, Dalgliesh prosseguiu com tranqüilidade: “O que o fez descrever para a equipe a maneira como a senhorita Bolam havia morrido? O senhor contou ao grupo, não é mesmo?”. “Claro. Reuni todo mundo no consultório da frente — os pacientes estavam na sala de espera — e fiz um breve relato. O senhor está sugerindo que eu não devia ter contado a eles?” “Estou sugerindo que não era preciso que eles fossem informados dos detalhes. Teria sido útil para mim se o senhor não tivesse mencionado o formão. O assassino poderia ter se traído, demonstrando mais conhecimento do que uma pessoa inocente poderia deter.” O diretor médico sorriu. “Sou um psiquiatra, não um investigador. Por estranho que o senhor possa achar, minha reação a esse crime foi partir do princípio de que os outros membros da equipe ficariam tão horrorizados e consternados quanto eu, em lugar de preparar armadilhas para eles. Eu queria dar a notícia a eles pessoalmente, com calma e sinceridade. Eles sempre mereceram minha confiança, e não vi razão para retirar essa confiança naquele momento.” Estava tudo muito bem, pensou Dalgliesh, mas sem dúvida um homem inteligente teria percebido a importância de contar o mínimo possível. E o diretor médico era um homem muito inteligente. Enquanto o inspetor agradecia o depoimento de sua testemunha e encerrava a entrevista, sua mente examinava o problema. Será que o dr. Etherege refletira sobre a situação antes de conversar com o pessoal da clínica? Será que suas revelações sobre o assassinato haviam sido tão impensadas quanto parecia? A verdade era que teria sido impossível enganar a maioria dos membros da equipe. O dr. Steiner, o dr. Baguley, Nagle, a dra. Ingram e a irmã Ambrose haviam visto o corpo. A srta. Priddy também, mas aparentemente se afastara correndo, sem um
segundo olhar. Sobravam a enfermeira Bolam, a sra. Bostock, a sra. Shorthouse, a srta. Saxon, a srta. Kettle e Cully. Talvez Etherege estivesse convencido de que nenhum desses era o assassino. Tanto Cully como Shorthouse tinham um álibi. Será que o diretor médico sentira relutância em preparar uma armadilha para a enfermeira Bolam, para a sra. Bostock ou para a srta. Saxon? Ou será que estava tão profundamente convencido de que o assassino só podia ser um homem que todo e qualquer subterfúgio para enganar as mulheres lhe parecera uma perda de tempo que só podia resultar em embaraço e ressentimento? Não havia dúvida de que o diretor médico fora muito insistente ao sugerir que todas as pessoas que trabalhavam no segundo ou no terceiro andar do prédio podiam ser eliminadas, já que teriam tido a oportunidade de abrir uma das portas de emergência. Mas era preciso lembrar que ele próprio estava em seu consultório no segundo andar. Fosse como fosse, era evidente que a porta que o assassino deveria ter aberto era a porta do subsolo, e era difícil acreditar que ele não tivera essa oportunidade. Bastaria um segundo para destravar aquele cadeado e deixar em aberto a possibilidade de que o assassino tivesse deixado a clínica por ali. Com tudo isso, a porta do subsolo estava bem trancada. Por quê? O dr. Steiner entrou em seguida, baixo, elegante, composto. À luz do abajur da escrivaninha da srta. Bolam sua pele macia e pálida dava a impressão de ser levemente luminosa. Apesar da calma, havia transpirado muito. O cheiro denso impregnava sua roupa, seu paletó preto convencional, bem cortado. Dalgliesh ficou surpreso quando ele disse que tinha quarenta e dois anos de idade. Parecia mais velho. A pele lisa, os olhos negros penetrantes, o passo vigoroso davam uma impressão superficial de juventude, mas seu corpo já começava a ficar pesado, e seu cabelo preto bem alisado para trás não conseguia ocultar perfeitamente a clareira em forma de tonsura no topo de seu crânio. Aparentemente o dr. Steiner decidira tratar aquele encontro com um policial como um acontecimento social. Estendendo uma mão roliça, bem tratada, disse “Como vai?” com um sorriso e indagou se estava falando com o escritor Adam Dalgliesh. “Já li seus poemas”, declarou com complacência. “Meus parabéns. Uma simplicidade tão perfeitamente enganadora! Comecei pelo primeiro poema e fui direto até o fim. É meu jeito de viver a poesia. Na página dez comecei a achar que talvez um novo poeta estivesse surgindo.” Dalgliesh admitiu para si mesmo que o dr. Steiner não apenas lera o livro como mostrava uma certa percepção crítica. Era na página dez que ele também achava, às vezes, que talvez um novo poeta estivesse surgindo. O dr. Steiner perguntou se ele já encontrara Ernie Bales, o jovem dramaturgo de Nottingham. Parecia tão esperançoso que Dalgliesh sentiu-se francamente descortês ao dizer que não conhecia o sr. Bales e ao desviar a conversa da crítica literária para trazê-la de volta para o propósito da entrevista. No mesmo instante o dr. Steiner assumiu um ar de gravidade chocada. “Tudo nesse caso é horrível, francamente horrível. Fui um dos primeiros a ver o corpo, como talvez o senhor já saiba, e fiquei muito abalado. Sempre tive horror de violência. É uma história lamentável. O doutor Etherege, nosso diretor médico, deve se aposentar no fim deste ano. Que coisa mais lamentável isso acontecer nos últimos meses que ele passa aqui.” Balançou tristemente a cabeça, mas Dalgliesh teve a impressão de que os olhinhos escuros exibiam algo muito semelhante a satisfação. A estátua de Tippett já revelara seus segredos ao técnico em impressões digitais, e Dalgliesh a posicionara sobre a escrivaninha à sua frente. O dr. Steiner estendeu a mão para tocá-la, depois recuou e disse: “Imagino que seja melhor não tocar nessa estátua por causa das impressões digitais.” Lançou
um olhar rápido na direção de Dalgliesh e, ao ver que ele não respondia, prosseguiu: “É uma escultura interessante, não é mesmo? Bastante notável. O senhor já reparou, inspetor, que as pessoas mentalmente enfermas, mesmo pacientes sem nenhum treinamento ou experiência, podem produzir uma arte de excelente qualidade? Isso suscita questões sobre a natureza da realização artística. Quando esses pacientes se recuperam, sua obra declina. A força e a originalidade desaparecem. Quando o processo de recuperação se completa, as coisas que eles produzem já não têm o menor interesse. Temos diversos exemplos interessantes de trabalhos de pacientes no departamento de arte-terapia, mas esta estátua se destaca. Tippett estava muito doente quando a esculpiu, e veio para o hospital pouco tempo depois. Ele é esquizofrênico. A estátua tem a fisionomia típica da enfermidade crônica: olhos saltados e narinas achatadas. Houve um tempo em que Tippett não era muito diferente dessa estátua”. “Suponho que todo mundo soubesse onde encontrar esse objeto...”, disse Dalgliesh. “Sim, claro. A estátua ficava na prateleira do departamento de arte-terapia. Tippett tinha muito orgulho dela, e o doutor Baguley gostava de mostrá-la aos membros do comitê em suas visitas de inspeção. A senhora Baumgarten, a arte-terapeuta, gosta de ter alguns dos melhores trabalhos em exposição. Foi para isso que mandou fazer as prateleiras. No momento está de licença médica, mas imagino que tenham lhe mostrado o departamento!” Dalgliesh disse que tinham. “Alguns de meus colegas acham que arte-terapia é dinheiro jogado fora”, confidenciou o dr. Steiner. “Claro que nunca utilizo a senhora Baumgarten. Mas precisamos ser tolerantes. O doutor Baguley manda alguns pacientes para ela de vez em quando, e provavelmente é menos nocivo para eles ficar brincando lá embaixo do que serem submetidos a eletrochoques. Mas supor que os esforços artísticos dos pacientes possam contribuir para formar um diagnóstico parece-me uma idéia muito forçada. Claro que essa afirmação faz parte do esforço para conseguir que a senhora Baumgarten receba o título de psicoterapeuta leiga, o que não tem a menor validade, sinto muito. Ela não tem treinamento analítico.” “E o formão? O senhor sabia onde ele era guardado, doutor?” “Bem, não exatamente, inspetor. Quer dizer, eu sabia que Nagle tinha algumas ferramentas e supunha que as guardasse na sala de descanso dos porteiros, mas não sabia direito onde.” “A caixa de ferramentas é grande, tem uma etiqueta claríssima e fica sobre a mesinha da sala dos porteiros. Seria difícil não vê-la.” “Claro, não tenho a menor dúvida. Acontece que não tenho o menor motivo para freqüentar a sala dos porteiros. E isso vale para todos os médicos. Agora vai ser preciso arranjar uma chave para a tal caixa e providenciar para que fique guardada num lugar seguro. A senhorita Bolam estava muito errada ao permitir que Nagle deixasse a caixa em cima da mesa. Afinal, ocasionalmente temos pacientes perturbados, e certas ferramentas podem ser letais.” “É o que parece.” “Esta clínica não foi criada para atender pacientes muito psicóticos, claro. Foi fundada para oferecer um centro de psicoterapia com orientação analítica, especialmente para a classe média e pacientes especialmente inteligentes. Tratamos de pessoas que nunca sonhariam em entrar num hospital para doentes mentais — e que estariam igualmente deslocadas nas alas psiquiátricas dos hospitais abertos. Além disso, evidentemente, existe um forte elemento de pesquisa em nosso trabalho.” “Onde o senhor estava entre as seis e as sete horas da noite de hoje, doutor?”, perguntou Dalgliesh.
O dr. Steiner pareceu ficar triste com essa súbita intrusão da curiosidade sórdida numa discussão tão interessante, mas respondeu, obediente, que estava realizando sua sessão de psicoterapia das noites de sexta-feira. “Cheguei à clínica às cinco e meia, horário de meu primeiro paciente, que infelizmente não apareceu. O tratamento dele chegou a um estágio em que é previsível que ele deixe de comparecer com uma certa freqüência. O senhor Burge tinha consulta marcada para as seis e quinze, e costuma ser muito pontual. Enquanto ele não chegava, permaneci no segundo consultório do térreo; depois fui encontrá-lo em meu próprio consultório, às seis e dez. O senhor Burge não gosta de esperar junto com os pacientes do doutor Baguley na sala de espera comum, e entendo como ele se sente. Imagino que o senhor já tenha ouvido falar em Burge. Ele escreveu aquele interessante romance As almas dos justos, um relato brilhante sobre os conflitos sexuais que se ocultam por baixo do convencionalismo de um respeitável subúrbio da Inglaterra. Mas eu já ia esquecendo. Sem dúvida o senhor entrevistou o senhor Burge.” Dalgliesh o entrevistara, de fato. A experiência fora tediosa e pouco esclarecedora. E ele já ouvira falar do livro do sr. Burge, obra de cerca de duas mil palavras em que os episódios escabrosos eram inseridos com uma deliberação de tal modo meticulosa que bastava um exercício de simples aritmética para calcular em que página ocorreria o episódio seguinte. Dalgliesh não considerava Burge suspeito de coisa alguma naquele assassinato. Um escritor capaz de produzir tamanha mistura de sexo e sadismo provavelmente era impotente e sem dúvida era tímido, mas não era necessariamente um mentiroso. Dalgliesh disse: “Está seguro desses horários, doutor? O senhor Burge diz que chegou à clínica às seis e quinze, e Cully registrou a chegada dele nesse horário. Burge diz que foi direto para seu consultório depois que Cully lhe disse que o senhor não estava atendendo, e que o senhor só apareceu dez minutos depois. Ele estava ficando impaciente e tinha a intenção de sair para perguntar onde o senhor estava.” O dr. Steiner não pareceu amedrontado nem bravo ao ser informado da perfídia de seu paciente. Contudo, ficou com um ar embaraçado. “É interessante que o senhor Burge tenha dito isso. É possível que ele tenha razão. Achei que ele estava um pouco irritado quando demos início à sessão. Se ele diz que eu só apareci às seis e vinte e cinco, sem dúvida está dizendo a verdade. Coitado, esta noite a sessão dele foi muito curta e conturbada. Pena isso acontecer no estágio atual de seu tratamento.” “Mas, se o senhor não estava no consultório da frente quando seu paciente chegou, onde estava então?”, insistiu Dalgliesh delicadamente. O rosto do doutor Steiner passou por uma mudança estarrecedora. De repente ele ficou com a expressão envergonhada de um menino apanhado no meio de uma traquinagem. Não parecia amedrontado, mas parecia extremamente culpado. A metamorfose de psiquiatra clínico para delinqüente constrangido chegava a ser cômica. “Mas eu já lhe disse, inspetor! Estava no consultório número dois, aquele situado entre o consultório da frente e a sala de espera dos pacientes.” “Fazendo o quê, doutor?” Realmente, era quase risível. O que Steiner estaria fazendo para ficar tão monumentalmente constrangido? A imaginação de Dalgliesh brincou com as possibilidades mais bizarras. Lendo material pornográfico? Fumando maconha? Seduzindo a sra. Shorthouse? Certamente não seria uma coisa tão convencional quanto planejar um assassinato. Mas dava para perceber que o médico havia chegado à conclusão de que era necessário contar a verdade. Com franqueza
desarmante, explicou: “Parece tolice, eu sei, mas... bem... estava quente, meu dia tinha sido trabalhoso e o divã estava ali na minha frente.” Soltou uma risadinha. “Na verdade, inspetor, no momento em que se imagina que a senhorita Bolam tenha sido morta eu estava, como se costuma dizer, tirando uma soneca!” Depois de aliviar a consciência com sua confissão embaraçosa, o dr. Steiner ficou alegre e volúvel e não foi fácil ver-se livre dele. Mas no fim ele foi convencido de que não tinha mais nenhuma contribuição a fazer no momento, e seu lugar foi ocupado pelo dr. Baguley.
Tal como seus colegas, o dr. Baguley não se queixou da longa espera, mas ela cobrara seu preço. Ele ainda vestia o avental branco, que ajeitou em torno do corpo ao puxar a cadeira para sentar-se. Parecia estar sentindo dificuldade para se instalar confortavelmente, encolhendo os ombros esguios e cruzando e descruzando as pernas. Os sulcos que desciam de seu nariz para os cantos de sua boca pareciam mais marcados, seu cabelo estava úmido, seus olhos pareciam lagos negros à luz da lâmpada da escrivaninha. Acendeu um cigarro, depois remexeu no bolso do paletó e puxou um pedaço de papel que entregou a Martin. “Anotei meus detalhes pessoais. Assim a gente ganha tempo.” “Obrigado, doutor”, disse Martin, impassível. “É bom que o senhor fique sabendo desde já que não tenho álibi para cerca de vinte minutos a partir das seis e quinze. Imagino que tenha ficado sabendo que saí da sala de eletrochoque alguns minutos antes que a irmã visse a senhorita Bolam pela última vez. Entrei no vestiário dos médicos, no fim do corredor, e fumei um cigarro. O lugar estava vazio e ninguém apareceu. Não me preocupei em voltar correndo para a clínica, de modo que acho que já eram mais ou menos vinte para as sete quando me reuni à doutora Ingram e à irmã. As duas haviam ficado todo aquele tempo juntas, claro.” “Foi o que a irmã me disse.” “É ridículo imaginar que alguma delas pudesse estar envolvida, mas fico feliz que estivessem juntas. Imagino que do seu ponto de vista quanto maior o número de pessoas eliminadas, melhor. Lamento não ter condições de fornecer um álibi. Também não posso ajudar de outras maneiras, infelizmente. Não vi nem ouvi nada.” Dalgliesh perguntou ao médico como ele passara a tarde e o início da noite. “Foi o de sempre. Quer dizer, até as sete horas. Cheguei pouco antes das quatro e passei pela sala da senhorita Bolam para assinar o livro de presença dos médicos. Até recentemente o livro ficava no vestiário dos médicos, mas depois foi transferido para o escritório dela. Conversamos um pouco — ela queria me fazer algumas perguntas sobre as providências relativas a meu novo equipamento de eletrochoque —, depois fui dar início a minha clínica. Ficamos bastante ocupados até pouco depois das seis; além disso eu precisava fazer visitas periódicas a minha paciente de ácido lisérgico. Ela estava sendo acompanhada pela enfermeira Bolam na sala de tratamento do subsolo. Mas que bobagem, o senhor já conversou com a senhora King.” A sra. King e o marido estavam sentados na sala de espera dos pacientes quando Dalgliesh chegara, e em pouquíssimo tempo este se convencera de que era impossível eles terem alguma coisa a ver com o assassinato. A mulher ainda estava fraca e um pouco desorientada, segurando com força a mão do marido. Ele só chegara à clínica para levá-la para casa alguns minutos depois da chegada de Martin e sua equipe. Dalgliesh fizera algumas perguntas à mulher e delicadamente lhe dera permissão para retirar-se. Não fora necessário que o diretor médico lhe garantisse que
sua paciente não teria condições de levantar-se de sua cama para assassinar ninguém. Mas ele também tinha certeza de que ela não estava em condições de oferecer um álibi a quem quer que fosse. Perguntou ao dr. Baguley em que momento visitara sua paciente pela última vez. “Fui ver como ela estava pouco depois de chegar; na verdade, antes de começar o tratamento com eletrochoque. A droga fora ministrada às três e meia, e a paciente estava começando a reagir. Devo esclarecer que o lsd tem a função de tornar o paciente mais acessível à psicoterapia, ao liberar algumas de suas inibições mais arraigadas. Só é ministrado sob rigorosa supervisão, e o paciente nunca é deixado sozinho. Às cinco horas a enfermeira Bolam voltou a chamar-me; fiquei lá embaixo durante aproximadamente quarenta minutos. Depois subi e apliquei meu último tratamento de choque, mais ou menos às vinte para as seis. O último paciente de eletrochoque saiu da clínica alguns minutos depois que a senhorita Bolam foi vista pela última vez. Das seis e meia em diante fiquei organizando minhas coisas e fazendo minhas anotações.” “A porta da sala dos arquivos estava aberta quando o senhor passou por ela, às cinco horas?” O dr. Baguley refletiu um instante, depois disse: “Acho que estava fechada. É difícil ter certeza absoluta, mas tenho a impressão de que teria notado se ela estivesse aberta ou entreaberta.” “E às vinte para as seis, quando deixou sua paciente?” “A mesma coisa.” Dalgliesh tornou a fazer as perguntas de sempre — as perguntas inevitáveis, óbvias. A senhorita Bolam tinha inimigos? O doutor tinha conhecimento de algum motivo para que alguém pudesse desejar vê-la morta? Ultimamente ela dera a impressão de estar preocupada? Ele fazia idéia da razão pela qual ela pedira ao secretário do grupo que fosse falar com ela? Conseguia decifrar as anotações que ela fizera no bloco sobre a mesa? Mas o dr. Baguley não tinha como ajudar. Falou: “Ela era uma mulher curiosa sob diversos aspectos. Tímida, um pouco agressiva, um tanto insatisfeita aqui. Mas era perfeitamente inofensiva, a última pessoa que eu imaginaria que pudesse atrair a violência. Não podemos passar o resto da vida dizendo a que ponto esse crime nos chocou. As palavras muito repetidas parecem perder o sentido. Mas imagino que todos estejamos sentindo a mesma coisa. Tudo isso é fantástico! Inacreditável!” “O senhor disse que ela não estava feliz aqui. É difícil administrar esta clínica? Pelo que ouvi dizer, a senhorita Bolam não era muito competente no trato com personalidades difíceis.” O dr. Baguley não deu maior importância à pergunta: “Ah, o senhor não deve acreditar em tudo o que lhe dizem. Somos individualistas, mas no fim das contas nos entendemos muito bem uns com os outros. Steiner e eu temos alguns atritos, mas tudo muito amistoso. Ele quer que este lugar se transforme numa unidade de treinamento para psicoterapeutas, com técnicos e profissionais leigos correndo de um lado para o outro como camundongos; além disso haveria atividades de pesquisa. Um desses lugares onde se gasta muito tempo e dinheiro com muitas coisas, menos com o tratamento de pacientes — especialmente os psicóticos. Mas ele não vai conseguir. Duvido que o Comitê Regional aprove esse projeto.” “E qual era a opinião da senhorita Bolam, doutor?” “Estritamente falando, ela não tinha competência para opinar — o que não a inibia. Era antifreudiana e pró-ecletismo. Anti-Steiner e a meu favor, se quiser. Mas isso não significava coisa alguma. Nem o doutor Steiner nem eu íamos afundar o crânio dela por causa das diferenças doutrinais. Como vê, ainda nem chegamos ao ponto de nos esfaquear. Tudo isso é profundamente irrelevante.” “Tendo a concordar com o senhor”, disse Dalgliesh. “A senhorita Bolam foi morta com grande
deliberação e considerável perícia. Acho que o motivo foi bem mais consistente e importante do que uma simples diferença de opinião ou um choque de personalidades. Por falar nisso, o senhor sabe qual é a chave que abre a sala dos arquivos?” “Claro que sei. Quando quero consultar um dos antigos registros, costumo apanhá-lo pessoalmente. Se for de alguma ajuda para o senhor, também estou informado de que Nagle guarda sua caixa de ferramentas na saleta dos porteiros. Além disso, esta tarde, quando cheguei à clínica, a senhorita Bolam me contou a história do Tippett. Mas isso não vem ao caso, não é mesmo? Não dá para acreditar que o assassino tenha tentado envolver o Tippett.” “Talvez não. Me diga, doutor. Pelo que o senhor sabe a respeito da senhorita Bolam, como ela reagiria ao encontrar aquelas pastas médicas espalhadas pelo chão?” Por um segundo o dr. Baguley pareceu surpreso, depois soltou uma risada seca. “Enid Bolam? Essa pergunta é fácil de responder! Ela era obsessivamente ordeira. É claro que na mesma hora começaria a recolhê-las.” “Não seria mais provável ela chamar um dos porteiros para fazer o serviço, ou deixar as pastas onde estavam como prova de acusação até o responsável ser identificado?” O dr. Baguley pensou por um instante e pareceu arrepender-se de sua primeira opinião categórica. “Não dá para saber com certeza o que ela faria. É tudo conjectura. Vai ver que o senhor tem razão e que ela chamaria o Nagle. Ela não tinha medo do trabalho, mas era muito consciente da importância de seu cargo. Só tenho certeza de uma coisa: ela jamais deixaria o lugar naquele caos. Era incapaz de passar por um tapete ou um quadro sem endireitá-los.” “E a prima, se parece com ela? Me disseram que a enfermeira Bolam trabalha mais para o senhor do que para os outros médicos.” Dalgliesh registrou a breve contração de contrariedade provocada pela pergunta. Por mais cooperativo e franco que fosse a respeito das próprias motivações, o dr. Baguley não estava disposto a comentar as dos outros. Ou será que a meiga vulnerabilidade da enfermeira Bolam despertara seus instintos protetores? Dalgliesh esperou por uma resposta. Um minuto depois, o doutor disse, secamente: “Eu não diria que as primas se pareciam. O senhor deve ter formado sua própria impressão da enfermeira Bolam. Só posso dizer que confio integralmente nela, como enfermeira e como pessoa.” “Ela é a herdeira da prima. Ou será que o senhor não sabia?” A inferência era óbvia, e o dr. Baguley estava cansado demais para resistir à provocação. “Não, não sabia. Mas faço votos de que seja uma quantia bem grande e que ela e a mãe tenham oportunidade de desfrutar tranqüilamente desse dinheiro. E também espero que o senhor pare de gastar seu tempo suspeitando de pessoas inocentes. Quanto mais depressa esse assassinato for esclarecido, melhor. É uma posição intolerável para todos nós.” Ou seja, o dr. Baguley estava informado sobre a mãe da enfermeira Bolam. Nesse caso, era provável que a maioria dos empregados da clínica também soubesse. Dalgliesh formulou sua última pergunta: “Doutor, o senhor disse que ficou sozinho no vestiário dos médicos entre seis e quinze e vinte para as sete. O que o senhor estava fazendo?” “Fui ao banheiro. Lavei as mãos. Fumei um cigarro. Refleti.” “Foi só isso que o senhor fez durante aqueles vinte e cinco minutos?” “Só isso, inspetor.”
O dr. Baguley não sabia mentir. A hesitação foi apenas momentânea; seu rosto não mudou de cor; os dedos que seguravam o cigarro não tremeram nem um pouco. Mas sua voz estava um pouco displicente demais, o desinteresse parecia forçado. E foi com um esforço palpável que ele se obrigou a olhar Dalgliesh nos olhos. Era muito inteligente para reforçar a declaração, mas seus olhos pareciam transmitir aos de Dalgliesh o desejo de que o inspetor repetisse a pergunta, pois agora estaria preparado para respondê-la. “Obrigado, doutor”, disse Dalgliesh, calmamente. “Não tenho mais perguntas por enquanto.”
3
E assim continuou o assunto: os pacientes interrogatórios, as anotações meticulosas, a observação atenta dos olhos e das mãos dos suspeitos em busca de um lampejo de medo, da contração muscular diante de uma mudança indesejável de ênfase. Fredrica Saxon veio depois do dr. Baguley. Quando os dois se cruzaram no umbral da porta, Dalgliesh percebeu que ambos tiveram o cuidado de não deixar que seus olhares se encontrassem. Ela era uma mulher de vinte e nove anos, morena, vital, vestida com informalidade, que se limitava a oferecer respostas breves mas diretas a suas perguntas e que parecia sentir um prazer perverso em declarar que havia ficado sozinha em sua própria sala analisando um teste psicológico entre seis e sete horas, e que não dispunha de álibi para si própria nem podia fornecê-lo a terceiros. Em matéria de informações e de ajuda em geral, Fredrica Saxon pouco contribuiu para os trabalhos, mas nem por isso Dalgliesh concluiu que ela não tinha nada a oferecer. Em seguida foi a vez de uma testemunha muito diferente. Aparentemente a srta. Ruth Kettle concluíra que não tinha nada a ver com aquele assassinato e assim, embora disposta a responder às perguntas de Dalgliesh, fez isso com uma vaga ausência de interesse que dava a entender que seus pensamentos estavam dedicados a temas mais elevados. Não existem muitas palavras para expressar horror e surpresa, e o pessoal da clínica já utilizara a maioria delas no decorrer daquela noite. A reação da srta. Kettle foi menos ortodoxa. Na opinião dela, o assassinato fora esquisito... realmente muito estranho. Feita essa declaração, ficou olhando para Dalgliesh, piscando atrás dos óculos de lentes grossas, numa atitude de tranqüilo espanto, como se de fato achasse o crime esquisito, mas não a ponto de justificar maiores discussões. Mas pelo menos duas informações fornecidas por ela eram interessantes. Dalgliesh só podia esperar que fossem confiáveis. Ela não fora muito precisa quanto a seus próprios movimentos durante aquela tarde e início de noite, mas, graças a sua persistência, Dalgliesh ficou sabendo que entrevistara a esposa de um dos pacientes do eletrochoque até cerca de vinte para as seis, quando a irmã lhe telefonara para dizer que o paciente estava pronto para ser levado para casa. A srta. Kettle descera acompanhando seu paciente, dissera “boa noite” no vestíbulo e depois fora direto para a sala dos arquivos para apanhar uma pasta. Encontrara o aposento na mais perfeita ordem e trancara-o a chave ao sair. Com toda sua suave incerteza com relação a quase todas as atividades daquela noite, ela não tinha dúvidas quanto aos horários. Fosse como fosse, pensou Dalgliesh, provavelmente a irmã Ambrose poderia corroborá-los. A segunda pista era mais nebulosa, e a srta. Kettle a mencionou com aparente indiferença quanto a sua importância. Cerca de meia hora depois de voltar para sua sala no segundo andar ela ouvira o barulho inconfundível do elevador de serviço parando com uma guinada. Dalgliesh estava cansado. Apesar do aquecimento central, sentia calafrios e reconhecia o malestar que costumava preceder uma de suas crises de nevralgia. Estava com a sensação de que o lado direito de seu rosto já estava rígido e pesado, e as ferroadas de dor começavam a atingir espasmodicamente a parte de trás de seus globos oculares. Mas ali estava a última testemunha. A sra. Bostock, estenógrafa sênior, não partilhava a aceitação tolerante com que os médicos haviam suportado a longa espera. Estava zangada, e sua irritação entrou com ela na sala como um vento gelado. Sentou-se sem dizer palavra, cruzou um par de pernas longas e fantasticamente
bem torneadas, e olhou para Dalgliesh com franco antagonismo nos olhos pálidos. Sua cabeça era notável e incomum. O cabelo comprido, dourado como o pêlo de um porquinho-da-índia, estava arranjado em pregas complexas no alto de um rosto pálido, arrogante, de nariz pontudo. Com seu pescoço comprido, a cabeça altaneira e chamativa e os olhos levemente protuberantes, parecia um pássaro exótico. Dalgliesh teve dificuldade para disfarçar o impacto que sentiu ao ver suas mãos. Eram tão grandes, vermelhas e ossudas quanto as mãos de um açougueiro, e davam a impressão de terem sido incongruentemente implantadas nos pulsos finos por alguma fatalidade maligna. Eram quase uma deformidade. A sra. Bostock não procurava escondê-las, mas suas unhas eram curtas e ela não usava esmalte. Tinha uma bela estampa e estava bem vestida, com roupas caras — verdadeiro exemplo na arte de minimizar os próprios defeitos e enfatizar os próprios trunfos. Dalgliesh pensou que era provável que ela vivesse sua vida a partir do mesmo princípio. A estenógrafa forneceu detalhes objetivos sobre seus movimentos a partir das seis daquela tarde. Não parecia relutante. Vira a srta. Bolam pela última vez às seis horas, quando, como de hábito, levara a correspondência do dia para que a gerente administrativa assinasse. Havia apenas cinco cartas. A maioria da correspondência consistia em relatórios médicos e cartas dos psiquiatras a clínicos gerais, e evidentemente a srta. Bolam não tinha nada a ver com isso. Toda a correspondência que saía era registrada no livro do correio pela sra. Bostock ou pela srta. Priddy, e em seguida levada por Nagle até a caixa do correio situada do outro lado da rua, a tempo de pegar a coleta das seis e meia. A srta. Bolam havia lhe parecido perfeitamente normal às seis da tarde. Assinara suas cartas, e a sra. Bostock voltara para a secretaria, entregara-as à srta. Priddy juntamente com a correspondência dos médicos, depois subira para tomar ditado do dr. Etherege durante a última hora da jornada de trabalho. Estava combinado que nas noites de sexta-feira ela passaria uma hora com o dr. Etherege ajudando-o em seu projeto de pesquisa. Ela e o diretor médico haviam permanecido juntos, com exceção de períodos muito breves. A irmã ligara às sete horas mais ou menos para informá-los da morte da srta. Bolam. Ao sair do consultório, ela e o dr. Etherege haviam encontrado a srta. Saxon, que ia para casa e que fora até o subsolo com o diretor médico. Quanto a ela, a pedido do dr. Etherege, fora ao encontro de Cully na portaria para garantir que as instruções que ele recebera, de que ninguém podia sair do prédio, seriam obedecidas. Ficara ao lado de Cully até o grupo do subsolo subir, e em seguida todos — exceto os dois porteiros, que continuaram de guarda na portaria — haviam se dirigido para a sala de espera para aguardar a chegada da polícia. “A senhora disse que permaneceu com o doutor Etherege das seis e pouco em diante, exceto por curtos períodos. O que vocês ficaram fazendo?” “Ambos estávamos trabalhando, óbvio.” A sra. Bostock dera um jeito de insinuar que a pergunta fora idiota e levemente vulgar. “O doutor Etherege está escrevendo um artigo sobre o tratamento de duas gêmeas esquizofrênicas por meio da psicanálise. Como eu falei, existe um acerto de que toda sexta-feira à noite eu passo uma hora com ele, ajudando-o em seu trabalho. É insuficiente para as necessidades dele, mas a srta. Bolam assumiu a posição de que a rigor o trabalho do dr. Etherege não diz respeito à clínica e que ele deveria realizá-lo em seu próprio consultório, auxiliado por sua secretária particular. Evidentemente, isso é impossível. Todo o material, parte dele registrado em fita, está aqui na clínica. Minha participação nesse trabalho varia. Durante uma parte do tempo, tomo ditado. Às vezes trabalho no pequeno escritório, datilografando diretamente da fita gravada. Às vezes localizo referências na biblioteca da clínica.” “E o que fez esta noite?”
“Tomei ditado durante cerca de meia hora. Depois fui para o escritório ao lado e trabalhei a partir da fita. O dr. Etherege ligou, pedindo que eu fosse ao consultório, mais ou menos às dez para as sete. Estávamos trabalhando juntos quando o telefone tocou.” “Ou seja: a senhora tomou ditado do doutor Etherege até as seis e trinta e cinco, mais ou menos.” “Suponho que sim.” “E durante esse período vocês permaneceram juntos?” “Acho que o doutor Etherege saiu por um ou dois minutos para verificar uma referência.” “Por que ‘acho’, senhora Bostock? Ou ele saiu ou não saiu!” “Evidentemente, inspetor. Como o senhor diz, ou ele saiu ou não saiu. Mas não há nenhuma razão para que eu me lembre especificamente desse detalhe. Esta noite não aconteceu nada de excepcional. Tenho a impressão de que ele saiu durante um breve período, mas na verdade não consigo me lembrar exatamente quando. Espero que ele possa ajudá-lo.” De repente Dalgliesh mudou o rumo do interrogatório. Depois de ficar em silêncio durante meio minuto, perguntou baixinho: “A senhora gostava da senhorita Bolam?” A pergunta não foi bem recebida. Sob a camada de maquiagem, Dalgliesh viu uma onda de fúria ou de constrangimento tingir o pescoço da mulher. “Não era fácil gostar dela. Tentei ser leal a ela.” “Com ‘leal’ a senhora quer dizer, sem dúvida, que tentou aplainar, em lugar de exacerbar, as dificuldades entre ela e a equipe médica, e que se absteve de fazer críticas explícitas ao trabalho dela como administradora?” O tom de sarcasmo na voz de Dalgliesh despertou, como pretendia, toda a hostilidade latente da estenógrafa. Por trás da máscara altiva e desdenhosa ele vislumbrou a menina insegura. Sabia que ela teria necessidade de justificar-se diante da menor das críticas. Não gostava dele, mas não tolerava que ele a ignorasse ou subestimasse. “De fato, a senhorita Bolam não era a administradora adequada para uma instituição psiquiátrica. Não tinha a menor empatia com o que estamos tentando fazer aqui.” “Que formas assumia essa ausência de empatia?” “Bem. Para começar, ela não gostava de neuróticos.” Nem eu, Deus que me perdoe, pensou Dalgliesh. Nem eu. Mas não disse nada, e a sra. Bostock prosseguiu: “Por exemplo, ela não gostava de pagar as despesas de viagem de alguns pacientes. Eles só têm direito a ser ressarcidos se estiverem cobertos pela Previdência Social, mas costumamos recorrer ao Fundo do Bom Samaritano para ajudar outros casos. Temos uma garota, uma pessoa muito inteligente, que mora em Surrey e vem à clínica duas vezes por semana para trabalhar no departamento de arte-terapia. A senhorita Bolam achava que ela devia obter tratamento mais perto de casa — ou abrir mão do tratamento. Na verdade deixou perfeitamente claro que, na opinião dela, a paciente deveria receber alta e ir atrás de um emprego, como ela disse.” “Imagino que não tenha dito esse tipo de coisa para a paciente.” “Não, não. Ela tomava cuidado com o que dizia. Mas dava para perceber que as pessoas mais sensíveis não ficavam à vontade com ela. Depois, ela era muito contrária à terapia intensiva. Trata-se de um procedimento que exige muito tempo. É da natureza do processo. A senhorita Bolam tinha uma tendência a avaliar a qualidade de um psiquiatra pelo número de pacientes que ele atendia diariamente. Mas o pior era sua atitude com os pacientes. Havia uma razão para isso,
evidentemente. A mãe dela sofria de uma doença mental e passou anos em análise antes de morrer. Pelo que eu sei, ela se matou. Deve ter sido um período difícil para a senhorita Bolam. É claro que ela não podia se permitir odiar a mãe, de modo que projetava seu ressentimento nos pacientes da clínica. Em seu subconsciente, estava com medo da própria neurose. Isso era bastante óbvio.” Dalgliesh não se sentia qualificado a tecer comentários sobre essas teorias. Estava disposto a acreditar que havia verdade nelas, mas não que a sra. Bostock as formulara sozinha. Talvez a srta. Bolam tivesse irritado os psiquiatras por sua ausência de empatia, mas na sra. Bostock, pelo menos, eles encontravam uma adepta. “Sabe me dizer quem era o médico da senhora Bolam?”, perguntou. A sra. Bostock descruzou as pernas elegantes e se acomodou mais confortavelmente na cadeira antes de dignar-se a responder. “Na verdade, sei. Mas não percebo qual é a relevância dessa informação para o inquérito.” “Quem sabe a senhora me deixa decidir isso? É uma informação que posso obter facilmente. Se não sabe ou não tem certeza, seria mais simples dizer-me.” “Era o doutor Etherege.” “E quem a senhora acha que será escolhido para substituir a senhorita Bolam?” “No cargo de gerente administrativa? Pois não faço a menor idéia”, respondeu a sra. Bostock com frieza.
Finalmente as principais tarefas da noite chegavam ao fim para Dalgliesh e Martin. O corpo fora removido e a sala dos arquivos lacrada. Todo o pessoal da clínica fora interrogado e a maioria já voltara para casa. O dr. Etherege fora o último médico a sair, depois de circular algum tempo pela clínica com ar tenso, mesmo tendo sido liberado por Dalgliesh. O sr. Lauder e Peter Nagle continuavam por lá, esperando juntos no vestíbulo onde dois policiais uniformizados montavam guarda. Com tranqüila determinação, o secretário do grupo afirmara que preferia permanecer no local enquanto a polícia não se retirasse, e Nagle só podia sair depois que a porta da frente fosse trancada e lhe entregassem a chave, já que era tarefa sua abrir a clínica, às oito da manhã de segunda-feira. Juntos, Dalgliesh e Martin percorreram todo o prédio uma última vez. Vendo-os trabalhar, um observador eventual poderia chegar à conclusão errônea de que Martin não passava de um instrumento nas mãos do homem mais jovem e mais bem-sucedido. Os colegas da Scotland Yard, porém, que conheciam os dois, tinham uma opinião bem diferente. Na aparência, não havia dúvida de que eram muito diferentes. Martin era um homem grande, de ombros largos e quase um metro e noventa, de expressão franca e rosto corado, que mais parecia um próspero fazendeiro do que um investigador. Dalgliesh era ainda mais alto, moreno, esguio e ágil. Ao lado dele, Martin parecia um titã. Todo aquele que visse Dalgliesh em ação perceberia na hora sua inteligência. Com Martin isso era menos óbvio. Com dez anos mais que seu chefe, àquela altura era pouco provável que avançasse na carreira. Contudo, suas qualidades faziam dele um investigador fantástico. Ele nunca era atormentado pela dúvida em relação a suas próprias motivações. O certo e o errado, para ele, eram tão imutáveis quanto os dois pólos. Nunca percorrera aquele país crepuscular onde as nuances do bem e do mal projetam suas sombras inquietantes. Tinha enorme determinação e uma paciência infinita. Era gentil sem ser sentimental e meticuloso quanto aos detalhes sem perder o todo de vista. Quem olhasse para sua carreira não
o consideraria um homem brilhante. Mas, assim como ele era incapaz de praticar altos vôos de inteligência, era igualmente incapaz de ser obtuso. Quase todo o trabalho policial consiste em verificação de detalhes, uma tarefa aborrecida, repetitiva e meticulosa. Em geral os assassinatos são crimes sórdidos decorrentes da ignorância e do desespero. O trabalho de Martin era ajudar a esclarecê-los e, paciente e tolerantemente, era isso mesmo que ele fazia. Diante do assassinato cometido na Clínica Steen, com seus inquietantes subtons que apontavam para uma inteligência altamente capacitada, ele não se deixava impressionar. A atenção metódica para o detalhe já esclarecera outros assassinatos antes e sem dúvida esclareceria esse também. E os criminosos, inteligentes ou retardados, tortuosos ou impulsivos, precisavam ser apanhados. Como de hábito ele andava um ou dois passos atrás de Dalgliesh e pouco falava. Mas quando falava suas palavras costumavam ser certeiras. Os dois percorreram o prédio pela última vez naquela noite, começando pelo terceiro andar. Lá os aposentos do século xviii haviam sido divididos para acomodar trabalhadores sociais psiquiátricos, psicólogos e terapeutas leigos. Também havia duas salas de tratamento maiores, para uso dos psiquiatras. Na parte fronteira do prédio, uma sala não fora adaptada. Era agradável e estava confortavelmente mobiliada com diversas poltronas e mesinhas. Ali, aparentemente, era o local onde se realizavam as terapias de grupo para problemas conjugais. Os participantes podiam desfrutar de uma vista agradável da praça entre uma e outra análise das incompatibilidades domésticas e sexuais. Dalgliesh entendia perfeitamente a mágoa da sra. Baumgarten, no momento ausente da clínica por problemas de saúde. O aposento era perfeito para o departamento de arte-terapia. As salas mais importantes ficavam no andar de baixo, onde o projeto original fora mantido praticamente intato, de modo que tetos, portas e janelas podiam constribuir com sua própria graciosidade para a atmosfera de calma e elegância. O Modigliani estava fora de lugar na sala da diretoria, mas não de maneira agressiva. A pequena biblioteca médica, na peça ao lado, com suas estantes antigas, cada uma com o nome de um doador, poderia ter sido a biblioteca de um cavalheiro do século xviii — isso enquanto não se olhassem os títulos dos livros. Havia tigelas com flores sobre as estantes e diversas poltronas que formavam um conjunto harmonioso, embora tivessem vindo de meia dúzia de casas diferentes. Era também naquele andar que o diretor médico tinha seu consultório, um dos mais elegantes da clínica. O divã do paciente, posicionado ao longo da parede do fundo, tinha a mesma estampa dos divãs existentes nas salas dos outros psiquiatras. Era um divã baixo forrado de chintz, munido de uma almofada e, aos pés, de uma manta vermelha dobrada. O resto da mobília não fora fornecido pelo Conselho Hospitalar. A escrivaninha do século xviii não estava atravancada com calendários de cartolina nem agendas de escritório e ostentava simplesmente um mata-borrão recoberto com couro, um tinteiro de prata e uma bandeja para papéis. Havia duas poltronas de couro e um armário de canto em mogno. Tinha-se a impressão de que o diretor médico colecionava gravuras antigas e estava especialmente interessado em meias-tintas e gravuras do século xviii. Dalgliesh examinou um conjunto de obras de James MacArdell e Valentine Green, dispostos dos dois lados da lareira, e percebeu que os pacientes do dr. Etherege aliviavam seus inconscientes debaixo de um par de excelentes litografias de Hullmandel. Refletiu que o ladrão desconhecido da clínica podia até ser um cavalheiro — caso se confiasse na opinião de Cully —, mas não entendia nada de arte. Parecia mais coisa de ladrãozinho vulgar, preferir quinze libras em dinheiro a dois Hullmandels autênticos. Sem dúvida aquela era uma sala agradável, que mostrava que seu do-no
era um homem de bom gosto e com meios para tal; a sala de um homem que não vê razão para que sua vida profissional transcorra em locais menos agradáveis do que sua vida particular. Com tudo isso, a sala não era perfeita. Faltava alguma coisa em algum lugar. A elegância era um pouco forçada, o bom gosto um pouco ortodoxo demais. Dalgliesh achava que talvez o paciente se sentisse mais feliz na saleta cálida, desarrumada, de formato esdrúxulo do andar de cima, onde Fredrica Saxon trabalhava em meio a uma montoeira de papéis, vasos de plantas e a parafernália necessária para a confecção e o consumo de chá. Mesmo com as gravuras, as nuances da personalidade não estavam presentes naquela sala. Nesse ponto, ela era até certo ponto típica de seu ocupante. Dalgliesh lembrou-se de uma conferência sobre as relações entre justiça e doença mental a que comparecera recentemente e na qual o dr. Etherege fora um dos palestrantes. Na ocasião, seu ensaio lhe parecera um modelo de sabedoria e equilíbrio; mais tarde Dalgliesh percebeu que não conseguia lembrar-se de uma única palavra pronunciada pelo especialista. Os dois desceram até o térreo, onde o secretário do grupo e Nagle, que conversavam tranqüilamente com os policiais, viraram-se para observar seus movimentos mas não fizeram menção de se aproximar. As quatro figuras à espera estavam em pé, juntas, formando um triste grupinho que dava a impressão de ser constituído por enlutados depois de um sepultamento, indecisos e desorganizados no vazio que vem depois da dor. Quando eles falavam, suas vozes soavam em surdina no silêncio do vestíbulo. A planta do térreo era muito simples. Imediatamente depois da porta de entrada e à esquerda de quem chegasse estava o balcão envidraçado da recepção. Dalgliesh reparou novamente que dali era possível ver muito bem todo o vestíbulo, inclusive a grande escadaria curva ao fundo. Mesmo assim, as observações de Cully no decorrer da noite haviam sido curiosamente seletivas. Ele afirmara que todas as pessoas que haviam entrado ou saído da clínica depois das cinco horas tinham sido vistas por ele e registradas em seu livro, mas muitas das idas e vindas no vestíbulo haviam passado despercebidas. Ele vira a sra. Shorthouse sair da sala da srta. Bolam e entrar na secretaria, mas não vira a gerente administrativa cruzar o vestíbulo para descer as escadas que levavam ao subsolo. Vira o dr. Baguley saindo do vestiário dos médicos, mas não o vira entrar lá. De um modo geral, a movimentação dos pacientes e seus familiares não lhe escapara, e ele tinha condições de corroborar as idas e vindas da sra. Bostock. Tinha certeza de que o dr. Etherege, a srta. Saxon e a srta. Kettle não haviam passado pelo vestíbulo depois das seis horas. Se passaram, não percebera. Dalgliesh estaria mais seguro a respeito do depoimento de Cully se não fosse tão óbvio que o patético homenzinho estava aterrorizado. Quando a polícia chegara à clínica ele estava apenas deprimido e um pouco irritado. Quando recebeu autorização para ir para casa, estava em pânico. Em algum momento da investigação, pensou Dalgliesh, seria preciso descobrir por quê. Atrás do cubículo da recepção, com janelas voltadas para a praça, ficava a secretaria, parte da qual fora subdividida para formar uma pequena sala de arquivo para os registros médicos em uso. Ao lado da secretaria ficava a sala da srta. Bolam, e em seguida o conjunto de salas do eletrochoque, composto pela sala de tratamento, pela saleta das enfermeiras e pelas baias de recuperação, uma feminina e outra masculina. Esse conjunto era separado do vestiário dos médicos por um pequeno hall com portas para os banheiros dos funcionários e a copa da auxiliar de serviços gerais. Ao fundo desse hall ficava a porta lateral, sempre fechada e raramente usada, exceto por quem ficasse trabalhando até tarde e quisesse poupar Nagle do trabalho de abrir as fechaduras, cadeados e ferrolhos da porta da frente, bem mais complicados. Do outro lado do vestíbulo principal havia dois consultórios, a sala de espera dos pacientes e os
banheiros. A sala da frente fora dividida para formar duas salas bastante amplas para psicoterapia, separadas da sala de espera por um corredor. Isso permitia ao dr. Steiner passar de uma para outra sem entrar no campo de visão de Cully, embora fosse difícil ele atravessar o vestíbulo para chegar às escadas que levavam ao subsolo sem correr o risco de ser visto. Será que ele fora visto? Será que Cully estava escondendo alguma coisa — e por quê? Juntos, Dalgliesh e Martin examinaram as salas do subsolo uma última vez naquela noite. Nos fundos ficava a porta que dava para os degraus do pátio. O dr. Etherege dissera que aquela porta estava trancada quando ele e o dr. Steiner a examinaram, depois da descoberta do corpo. E continuava trancada. Fora testada em busca de impressões digitais, mas as únicas decifráveis encontradas haviam sido as de Peter Nagle. Nagle dissera que provavelmente fora ele a última pessoa a tocar na maçaneta, pois costumava certificar-se de que a porta estava bem trancada antes de fechar a clínica, à noite. Era raro que ele ou qualquer outro membro da equipe usasse a saída do subsolo, e a porta só costumava ser aberta quando chegava um suprimento de carvão ou de alguma outra mercadoria pesada. Dalgliesh correu o ferrolho. Fora, alguns degraus de ferro levavam aos gradis do fundo. Também ali a porta de ferro batido estava trancada e reforçada com cadeado e corrente. Mas um intruso não teria dificuldade para entrar no pátio do subsolo, especialmente porque o beco do fundo era mal iluminado e deserto. Já na clínica propriamente dita seria muito difícil entrar. Todas as janelas do subsolo, com exceção da janelinha do banheiro, eram gradeadas. Fora por aquela janelinha que o ladrão da clínica conseguira entrar. Dalgliesh trancou novamente a porta e entrou com Martin na sala dos porteiros, que ocupava quase toda a parte dos fundos do prédio. Nada se alterara desde a primeira vez em que os dois a haviam examinado. Contra uma das paredes havia dois armários para roupas. O centro do piso era ocupado por uma pesada mesa quadrada. Num canto havia um antiquado fogão a gás e, do lado, um armário guardava xícaras, pires e latas com chá, açúcar e biscoitos. Duas cadeiras de couro já bastante gastas estavam encostadas na parede dos dois lados de um aquecedor a gás. À esquerda da porta ficava o quadro das chaves, com os ganchos numerados mas sem identificação. Nesse quadro é que antes se encontrava, no meio das outras chaves, a que abria a porta da sala dos arquivos do subsolo. Agora aquela chave estava com a polícia. Um grande gato rajado dormia enroscado numa cesta, diante do aquecedor apagado. Quando a luz foi acesa ele se mexeu e, erguendo a pesada cabeça listrada, voltou os imensos olhos amarelos para os recém-chegados e lhes dirigiu um olhar opaco e sem expressão. Dalgliesh se ajoelhou ao lado da cesta e acariciou-lhe a cabeça. O gato estremeceu e se sentou, imóvel, enquanto Dalgliesh o afagava. De repente deitou-se de costas e esticou as patas, rígidas como ripas de madeira, oferecendo os pêlos macios da barriga aos cuidados de Dalgliesh. O inspetor acariciava o gato e falava com ele enquanto Martin, que preferia cachorros, contemplava a cena com tolerante paciência. Martin falou: “A senhora Shorthouse tinha me falado desse gato. É Tigger, o gato da senhorita Bolam.” “Podemos deduzir que a senhorita Bolam leu A. A. Milne quando criança. Os gatos são noturnos. Por que não o deixam sair à noite?” “Também me explicaram isso. A senhorita Bolam achava que se ele ficasse trancado aqui no subsolo evitaria a presença de camundongos. Nagle costuma sair na hora do almoço para tomar uma cerveja e comer um sanduíche, mas Cully traz um lanche e o come aqui mesmo, e a senhorita Bolam não lhe dava sossego por causa dos farelos. Todas as noites o gato é trancado aqui; durante o dia, pode sair. Deixam comida para ele, e também a caixa de areia.” “Estou vendo. Forrada com cinzas da caldeira.”
“Pena que ele não possa falar, não é mesmo? Passou a maior parte da noite aqui, esperando por sua comida. Provavelmente estava aqui quando o assassino entrou para pegar a chave da sala dos arquivos.” “E o formão também. Ah, Tigger viu tudo com certeza. Mas por que você acha que ele lhe contaria a verdade?” Martin não respondeu. As pessoas que gostavam de gatos costumavam ser assim, evidentemente. Infantis, de certo modo. Tagarela como raramente costumava ser, Martin disse: “A senhorita Bolam mandou castrá-lo às próprias expensas. A senhora Shorthouse contou ao detetive Holliday que o doutor Steiner tinha ficado furioso. Aparentemente ele gosta de gatos. Os dois discutiram por causa disso. O doutor Steiner disse à senhora Bostock que a senhorita Bolam gostaria de mandar castrar todos os machos da clínica, se tivesse esse poder. Parece que ele disse isso em termos bem rudes. Claro, não era para a senhorita Bolam ficar sabendo que ele tinha dito isso, mas a senhora Bostock se encarregou de informá-la.” “Claro”, disse Dalgliesh, lacônico. “Bem ao estilo dela.” Os dois policiais foram adiante com a inspeção. Até que a sala dos porteiros não era desconfortável. Cheirava a comida, a couro e, levemente, a gás. Havia alguns quadros que davam a impressão de terem encontrado um lar junto aos porteiros depois que seus proprietários anteriores enjoaram deles. Um mostrava o fundador da Clínica Steen devidamente rodeado pelos cinco filhos. Era uma fotografia em sépia bastante desbotada numa moldura dourada que se adequava melhor à personalidade do velho Hyman do que o óleo comemorativo mais ortodoxo pendurado no vestíbulo da clínica. Sobre uma mesa menor encostada na parede do fundo estava a caixa de ferramentas de Nagle. Dalgliesh ergueu a tampa. As ferramentas, meticulosamente cuidadas, estavam dispostas cada uma em seu lugar. Só faltava uma, que provavelmente nunca mais voltaria a ocupar seu lugar na caixa de ferramentas de Nagle. “Ele poderia ter entrado por aquela porta dos fundos se a tivesse deixado destrancada”, disse Martin, dando voz aos pensamentos de Dalgliesh. “Claro. Reconheço alimentar uma tendência perversa a suspeitar da única pessoa que aparentemente nem estava no prédio no momento em que o crime foi cometido. Não há como duvidar, porém, que Nagle estava com a senhorita Priddy na secretaria quando a senhora Shorthouse saiu da sala da senhorita Bolam. Cully confirma isso. E a senhorita Priddy afirma que não se afastou da secretaria em nenhum momento, exceto por uma ausência de um instante para apanhar uma ficha na sala ao lado. A propósito, o que achou da senhora Shorthouse?” “Achei que ela estava dizendo a verdade. Eu não diria que ela não aplica umas mentiras de vez em quando, se for de seu interesse. É do tipo que gosta que as coisas aconteçam e que não se furta a dar um empurrãozinho na direção desejável. Mas tinha muito para nos dizer, nem foi preciso enfeitar.” “Tinha mesmo”, concordou Dalgliesh. “Não há razão para duvidar que a senhorita Bolam desceu ao subsolo em decorrência do telefonema, o que determina muito satisfatoriamente a hora aproximada da morte. Além disso, coincide com a opinião do legista, mas teremos mais informações a respeito quando recebermos o resultado da autópsia. Também é possível que o telefonema tenha sido genuíno, claro. Talvez alguém tenha telefonado do subsolo e conversado com ela em algum lugar aqui embaixo, afastando-se em seguida para voltar para sua própria sala, e agora esteja com medo de admitir que deu o telefonema. Como eu digo, é possível, mas não acredito que seja provável.”
“Se o telefonema foi genuíno, talvez fosse alguém querendo que ela descesse para dar uma olhada na zorra da sala dos arquivos. Não há dúvida de que aquelas pastas foram espalhadas antes do assassinato. Algumas estavam por baixo do corpo. Tive a impressão de que ela foi atingida no momento em que se inclinava para recolhê-las do chão.” “Foi o que me pareceu”, disse Dalgliesh. “Bem, vamos tocar o barco.” Passaram pela porta do elevador de serviço sem comentários e entraram na sala de tratamento do subsolo, na parte fronteira do prédio. Fora ali que a enfermeira Bolam passara as primeiras horas da tarde sentada ao lado de sua paciente. Dalgliesh acendeu as luzes. As pesadas cortinas haviam sido abertas, mas as janelas eram recobertas por uma tela fina, provavelmente para garantir a privacidade durante o dia. A sala estava mobiliada com simplicidade. Havia uma cama baixa num dos cantos, com um biombo de hospital junto aos pés e uma pequena poltrona à cabeceira. Encostadas na parede em frente havia uma mesinha e uma cadeira, aparentemente para uso da enfermeira de plantão. Sobre a mesa, uma pilha de formulários para os relatórios da enfermagem e fichas médicas em branco. A parede da esquerda era recoberta por armários onde a roupa lavada da clínica ficava guardada. Quanto à parede da direita, percebia-se que houvera uma tentativa de torná-la à prova de som. Ela fora forrada com painéis acústicos e a porta, reforçada e bem construída, estava protegida por uma pesada cortina. Dalgliesh disse: “Se a paciente era ruidosa, duvido que a enfermeira Bolam tivesse conseguido ouvir alguma coisa que acontecesse fora da sala. Por favor, Martin, ande pelo corredor e faça uma ligação naquele telefone que está logo ao lado da sala de registros médicos.” Martin fechou a porta atrás de si e Dalgliesh ficou sozinho com o silêncio denso. Sua audição era acurada e mal dava para ouvir os passos pesados de Martin. Duvidava que teria conseguido ouvir alguma coisa se estivesse ao lado de um paciente agitado. Não conseguiu ouvir o som discreto da campainha quando Martin ergueu o fone do gancho nem o ruído de discar. Poucos segundos depois, ouviu novamente os passos. Martin entrou na sala e disse: “Havia um cartão com todos os números dos ramais e disquei 004. É o número da sala da senhorita Bolam. Gozado: a campainha do telefone faz um barulho assustador quando não há ninguém para atender. Mas alguém atendeu. Levei o maior susto quando a campainha deixou de tocar. Era o senhor Lauder, evidentemente. Pareceu-me um pouco surpreso, também. Eu disse a ele que não íamos demorar.” “E não vamos mesmo. Não consegui ouvir você, para seu governo. No entanto, a enfermeira Bolam ouviu o grito da jovem Priddy. Pelo menos é o que ela diz.” “Mas foi bastante lenta quanto a tomar providências, não é mesmo? E tem mais: aparentemente ela ouviu quando os doutores e a irmã desceram para o subsolo.” “Até que é plausível. Eram quatro pessoas fazendo barulho. Ela é a suspeita óbvia, evidentemente. Podia ter telefonado de sua sala para a prima, talvez dizendo que alguém fizera a maior bagunça na sala dos arquivos. Sua paciente estaria muito desorientada para ouvir ou compreender alguma coisa. Vi-a com o doutor Baguley, e era óbvio que não estava em condições de fornecer um álibi a quem quer que fosse. A enfermeira Bolam podia ter saído da sala de tratamento para esperar pela prima na sala dos arquivos com uma dose razoável de segurança. Foi ela quem teve a melhor oportunidade para matar, dispõe dos conhecimentos médicos necessários, tem um motivo óbvio. Se for a assassina, provavelmente o crime não teve nada a ver com o telefonema a Lauder. Vamos ter de descobrir o que Bolam achava que estava acontecendo aqui, mas talvez o assunto não tivesse a menor ligação com sua morte. Se a enfermeira Bolam
sabia que o secretário do grupo estava a caminho da clínica, pode ter resolvido matar naquele momento pensando em disfarçar o real motivo do crime.” “Não acho que ela é suficientemente inteligente para esse tipo de planejamento, senhor.” “Tenho a impressão de que ela não é uma assassina, Martin, mas já tivemos surpresas antes. Se ela for inocente, o fato de ter estado aqui embaixo sozinha foi muito conveniente para o assassino. E tem aquela história das luvas de borracha. Claro, havia uma explicação para elas. Há muitos pares de luvas por aí, e é perfeitamente razoável que um membro da equipe de enfermagem ande com um par de luvas usadas no bolso do avental. Mas resta o fato de não termos encontrado impressões digitais em nenhuma das armas do crime nem na chave da porta — nem mesmo impressões antigas. Alguém as limpou, depois manuseou-as calçando luvas. E há algo mais adequado do que as finas luvas cirúrgicas? Cravar aquele formão foi praticamente uma operação cirúrgica.” “Se ela teve o bom senso de usar luvas, também teria tido o bom senso de destruí-las depois. A caldeira estava acesa. E o que dizer do avental de borracha que desapareceu do departamento de arte-terapia? Se o assassino tiver se servido dele para proteger-se e se depois o jogou na caldeira, seria absurdo que tivesse guardado as luvas.” “Tão absurdo que provavelmente deveríamos pensar que uma pessoa não faria isso se estivesse em seu juízo perfeito. Seja como for, estou na dúvida quanto ao avental. Aparentemente há um faltando, e é possível que tenha sido usado pelo assassino. Mas essa foi uma morte limpa, planejada para ser. Seja como for, amanhã, quando a caldeira estiver fria e puder ser examinada, teremos condições de chegar a uma conclusão. Aqueles aventais têm tachas de metal nas tiras dos ombros, e com alguma sorte poderemos encontrá-las.” Fecharam a porta da sala de tratamento e subiram. Dalgliesh começou a tomar consciência do próprio cansaço; a dor excruciante atrás do olho era praticamente contínua. A semana não fora fácil e a festa do xerez, que prometia um fecho relaxante e agradável para um dia trabalhoso, acabara sendo uma preliminar perturbadora para uma noite ainda mais trabalhosa. Por um instante tentou imaginar onde Deborah Riscoe teria jantado, e com quem. Agora o encontro dos dois parecia fazer parte de um outro mundo. Talvez por estar cansado, não sentia a autoconfiança com que costumava assumir um caso. Não acreditava para valer que aquele caso fosse derrotá-lo. Profissionalmente, jamais conhecera o gosto do fracasso. Isso tornava ainda mais irritante o fato de ser tomado por aquela vaga sensação de incompetência e ansiedade. Pela primeira vez na vida sentia-se inseguro quanto à própria mestria, como se estivesse se medindo com uma inteligência que agisse diretamente contra ele, uma inteligência equivalente à sua. E não acreditava que a enfermeira Bolam tivesse essa inteligência. O secretário de grupo e Nagle continuavam à espera deles no vestíbulo. Dalgliesh entregou as chaves da clínica e obteve a promessa de que no dia seguinte a polícia receberia o conjunto reserva de chaves que no momento se encontrava nos escritórios do Conselho. Martin e ele, juntamente com os dois policiais, esperaram enquanto Nagle verificava se todas as luzes haviam sido apagadas. Pouco depois a clínica foi envolvida pela escuridão e os seis homens mergulharam na névoa gelada da noite de outubro e seguiram cada um seu caminho.
4
O dr. Baguley sabia que não tinha como deixar de oferecer uma carona para casa à srta. Kettle. Ela morava em Richmond, justamente no caminho que levava ao povoado de Baguley em Surrey. Em geral ele dava um jeito de evitá-la; sua presença na clínica era tão errática que era raro os dois saírem ao mesmo tempo: quase sempre ele conseguia dirigir para casa sozinho, sem culpa. Gostava de dirigir. Mesmo as frustrações de atravessar a cidade na hora do pico pareciam-lhe um pequeno preço a pagar diante daqueles poucos quilômetros de estrada reta que o levavam até sua casa: ali podia sentir a potência do carro como uma força empurrando suas costas, e as tensões do dia se desprendiam dele no ar vibrante. Pouco antes de chegar a Stalling ele costumava fazer uma parada num bar sossegado para tomar uma cerveja. Uma única: nunca bebia mais, nem menos. Esse ritual noturno, a divisão formal entre dia e noite, tornara-se necessário para ele desde que perdera Fredrica. A noite não lhe proporcionava alívio da tensão de enfrentar a neurose. Estava se acostumando a uma vida em que sua paciência e seus conhecimentos profissionais eram postos à prova com mais intensidade ainda em sua própria casa. Mas era gostoso sentar-se sozinho e em paz, saboreando o breve intervalo entre dois mundos diferentes mas essencialmente parecidos. Começou dirigindo devagar, pois sabia que a srta. Kettle não gostava de velocidade. Ela estava sentada ao lado dele, bem agasalhada num grosso casaco de lã, a cabeça grisalha de cabelos curtos incongruentemente coberta por um gorro vermelho de tricô. Como muitos assistentes sociais, ela não entendia direito as pessoas, característica que lhe valera a reputação imerecida de ser insensível. Claro, a coisa mudava de figura em se tratando de seus clientes — e como Baguley detestava essa palavra! Depois que eles estavam enjaulados em segurança atrás das grades de uma relação profissional, ela lhes dedicava uma intensa e minuciosa atenção, que invadia quase completamente suas vidas íntimas. Eles eram compreendidos, quisessem ou não quisessem; suas fraquezas eram expostas e toleradas, seus esforços aplaudidos e encorajados, os pecados redimidos. Fora seus clientes, o resto da Clínica Steen praticamente inexistia para a srta. Kettle. Baguley até que gostava dela. Fazia um bom tempo que chegara à melancólica conclusão de que a assistência social psiquiátrica exercia forte atração sobre as pessoas menos indicadas para exercêla, e a srta. Kettle era melhor do que a maioria. Os relatórios que ela lhe entregava eram desnecessariamente extensos e escritos no jargão típico da área, mas pelo menos ela os elaborava. A Clínica Steen tinha sua cota de assistentes sociais psiquiátricos que, impulsionados pela incontida necessidade de tratar os pacientes, não sossegavam enquanto não recebiam o título de psicoterapeutas leigos e deixavam para trás empreendimentos menores, como a elaboração de relatórios sociais e a organização de excursões curativas. Não, ele não desgostava de Ruth Kettle, mas naquela noite, entre todas as outras, ficaria mais feliz se tivesse podido voltar para casa sozinho. Ela só abriu a boca depois de passarem por Knightsbridge, quando sua voz aguda e ciciante penetrou em seus ouvidos. “Que assassinato mais complicado, não é mesmo? E num horário tão esquisito... O que o senhor achou do inspetor Dalgliesh?” “Eficiente, imagino...”, respondeu o dr. Baguley. “Minha atitude com ele é um pouco ambivalente, talvez porque não tenho um álibi. Estava sozinho no vestiário dos médicos no momento em que se supõe
que a senhorita Bolam foi atacada.” Ele sabia que queria ser tranqüilizado, que esperava que ela afirmasse com empenho que era óbvio que ninguém ia suspeitar dele. Desprezando-se, acrescentou rapidamente: “Complica as coisas, claro, mas não é importante. Espero que ele resolva o assunto em pouco tempo.” “Ah, o senhor acha que vai ser rápido? Sei lá... Achei que ele estava meio perdido. Fiquei quase a tarde inteira sozinha em minha sala, de modo que imagino que também não tenho álibi. Só que não sei a que horas estão dizendo que ela morreu.” “Provavelmente pelas seis e vinte”, disse Baguley, sem mais conversa. “Ah, é? Então efetivamente não tenho álibi.” A srta. Kettle falava com satisfação evidente. Um momento depois, disse: “Agora tenho certeza de que vou conseguir a verba para o passeio ao campo dos Worriker. A senhorita Bolam não gostava de soltar dinheiro para os pacientes. O doutor Steiner e eu achamos que se os Worriker puderem passar alguns dias tranqüilos juntos em alguma simpática pousada do interior, talvez consigam resolver seus problemas. Talvez isso salve o casamento deles.” O dr. Baguley ficou tentado a dizer que o casamento dos Worriker estava em crise havia tantos anos que sua salvação ou o que fosse dificilmente aconteceria num prazo de alguns dias, por mais agradável que fosse a pousada. O casamento instável era a principal preocupação emocional dos Worriker, por isso era improvável que aceitassem abrir mão dele sem luta. Indagou: “O senhor Worriker está desempregado?” “Não. Está empregado”, respondeu a srta. Kettle, como se esse fato não tivesse a menor relevância para a possibilidade de os Worriker pagarem pelas próprias férias. “Mas infelizmente a mulher dele é caótica como administradora, por mais que se esforce. Assim, sem o financiamento da clínica eles não têm meios para viajar. Sinto dizer que a senhorita Bolam não era muito favorável à idéia. E tinha outra coisa. Ela gostava de marcar consultas para mim sem me avisar. Hoje mesmo aconteceu isso. Quando fui olhar na minha agenda, pouco antes de sair da clínica, vi que tenho uma consulta marcada com um novo paciente às dez da manhã de segunda-feira. A senhora Bostock é que anotou, claro, mas escreveu ao lado ‘de acordo com as instruções da senhorita Bolam’. A senhora Bostock nunca faria uma coisa dessas por conta própria. É uma secretária muito agradável e eficiente.” O dr. Baguley achava a sra. Bostock uma encrenqueira ambiciosa, mas não viu motivo para manifestar sua opinião. Em vez disso, perguntou à srta. Kettle como tinha transcorrido sua entrevista com Dalgliesh. “Não fui de grande ajuda, infelizmente, mas ele estava interessado em saber sobre o elevador.” “O que é que tem o elevador?” “É que hoje alguém usou o elevador. Sabe como ele range quando é usado, depois pára no segundo andar com um baque? Pois bem, ouvi aquele baque. Não sei exatamente a hora, porque na ocasião aquilo não me pareceu importante. Já tinha escurecido. Acho que foi lá pelas seis e meia.” “Imagino que Dalgliesh não esteja considerando seriamente a hipótese de que alguém tenha usado o elevador para descer até o subsolo. Ele é suficientemente grande, eu sei, mas essa ação envolveria duas pessoas.” “É mesmo. Ninguém conseguiria içar-se a si mesmo. Seria preciso um cúmplice.” Pronunciou a palavra com ar conspiratório, como se ela fizesse parte de algum dialeto criminal: uma expressão típica de infratores, que estava tendo a coragem de usar. E prosseguiu: “Não consigo imaginar o
doutor Etherege encolhido dentro do elevador como um pequeno Buda rechonchudo com a senhora Bostock pendurada nas cordas com suas vigorosas mãos vermelhas... E o senhor?” “Também não consigo”, disse o dr. Baguley laconicamente. A descrição o surpreendera por sua vivacidade. Para afastar aquela cena, ele disse: “Seria interessante saber quem foi a última pessoa a entrar nos arquivos médicos. Antes do assassinato, quero dizer. Não me lembro de quando estive lá pela última vez.” “É mesmo? Que estranho! Aquela salinha poeirenta é tão claustrofóbica que sempre me lembro das ocasiões em que sou obrigada a visitá-la. Estive lá esta noite às quinze para as seis.” O dr. Baguley ficou tão surpreso que quase parou o carro. “Às quinze para as seis? Hoje? Ou seja, apenas trinta e cinco minutos antes da hora do crime?” “É, deve ter sido, não é mesmo, se o assassinato foi às seis e vinte mais ou menos... O inspetor não me informou sobre isso. Mas ficou interessado quando soube que eu havia estado no subsolo. Fui apanhar uma pasta antiga dos Worriker. Acho que desci às quinze para as seis e logo em seguida subi. Eu sabia exatamente onde a pasta estava guardada.” “E a sala estava como de costume? As pastas não estavam espalhadas pelo chão?” “Não, encontrei tudo na mais perfeita ordem. A sala estava trancada, evidentemente, por isso apanhei a chave na sala dos porteiros. Ao sair, tranquei-a novamente e pus a chave no lugar.” “E não viu ninguém?” “Não, acho que não. Mas ouvi sua paciente de ácido lisérgico. Achei que estava fazendo muito barulho. Até parecia que estava sozinha.” “Mas não estava. Ela nunca é deixada sozinha. Na verdade eu mesmo fiquei ao lado dela até as vinte para as seis, mais ou menos. Se tivesse descido alguns minutos antes, teríamos nos encontrado.” “Só se por acaso nos cruzássemos na escada ou se o senhor tivesse entrado na sala dos arquivos. Mas tenho a impressão de que não vi ninguém. O inspetor ficou insistindo nesse ponto. Me pergunto se ele é uma pessoa competente. Parecia muito intrigado com o assunto todo. É o que eu achei.” Nada mais foi dito sobre o assassinato, embora o dr. Baguley tivesse a sensação de que a atmosfera do automóvel estava carregada de perguntas não formuladas. Vinte minutos depois, estacionava na calçada fronteira ao apartamento da srta. Kettle, em Richmond Green, e, com um sentimento de alívio, debruçava-se para abrir a porta do carro para ela descer. Assim que ela desapareceu da vista, saiu do carro e, desafiando a umidade gélida, abriu a capota. Os quilômetros seguintes desfiaram-se numa sucessão dourada de olhos de gato que piscavam assinalando os contornos da estrada numa lufada de frio ar outonal. Ao chegar a Stalling, saiu da estrada principal e se dirigiu ao local onde o barzinho escuro e pouco convidativo se escondia entre os olmos. Os rapazes abonados de Stalling Coombe nunca o haviam descoberto, ou então suas preferências haviam recaído sobre os bares da moda, ao longo do cinturão verde; seus Jaguares nunca eram vistos estacionados junto às paredes negras de tijolo. O salão estava às moscas, como sempre, mas havia um murmúrio de vozes do outro lado da divisória de madeira que o separava do recinto do bar. Instalou-se perto da lareira, acesa inverno e verão e visivelmente alimentada com pedaços malcheirosos de mobília velha do proprietário. Não era uma sala acolhedora. Quando havia vento leste, a fumaça da lareira entrava; o piso de pedra não tinha tapetes e os bancos de madeira dispostos junto às paredes eram muito duros e estreitos para oferecer algum conforto. Mas a cerveja era boa e fresca, os copos limpos, e o lugar tinha uma espécie de paz nascida da solidão e do despojamento.
George trouxe sua cerveja. “O senhor está atrasado hoje, doutor.” George chamava-o assim desde sua segunda visita. O dr. Baguley não sabia nem se preocupava em saber como George descobrira sua profissão. “É mesmo”, disse. “Fiquei retido na clínica.” Nada mais disse, e o homem voltou para trás do balcão. Depois ficou se perguntando se não teria sido melhor fazer algum comentário. No dia seguinte, o caso estaria em todos os jornais. Provavelmente seria comentado no bar. Seria natural que George dissesse: “O doutor esteve aqui na sexta-feira, como sempre, só que não disse uma única palavra sobre o assassinato. Parecia aborrecido...” Seria suspeito não dizer nada? Não seria mais natural que um homem inocente tivesse vontade de falar sobre um caso de assassinato em que estivesse envolvido? De repente a saleta tornou-se intoleravelmente sufocante, a paz se dissolveu numa onda de ansiedade e dor. Seria preciso achar uma maneira de contar a Helen, e quanto antes ela soubesse, melhor. Mas, embora ele dirigisse depressa, já eram mais de dez horas quando chegou em casa e viu através da alta cerca viva de faias que havia luz no quarto de Helen. Isso significava que ela fora se deitar sem esperar por ele; sempre um mau sinal. Depois de guardar o carro na garage, tratou de preparar-se para enfrentar o que viesse. Stalling Coombe estava imerso no silêncio. Era um pequeno condomínio com casas projetadas por arquitetos, construídas à maneira tradicional, cada uma com seu espaçoso jardim. Tinham pouco contato com o vizinho povoado de Stalling: aquele era um verdadeiro oásis de prosperidade suburbana cujos habitantes, unidos por vínculos de preconceitos e esnobismos partilhados, viviam como exilados, preservando com determinação os hábitos decentes da civilização em meio a uma cultura alienígena. Baguley comprara aquela casa quinze anos antes, pouco depois de casar-se. Na época sentira aversão pelo lugar, e os anos que se seguiram haviam demonstrado a insensatez de desconsiderar as primeiras impressões. Mas Helen gostava; e na época Helen estava grávida, de modo que havia uma razão adicional para tentar fazê-la feliz. Para Helen, a casa — uma espaçosa imitação do estilo Tudor — fora uma promessa. Tinha um carvalho gigantesco no gramado da frente (“o lugar ideal para o carrinho do bebê, nos dias quentes”), um vasto hall de entrada (“no futuro as crianças vão gostar de dar festas nesse salão”), a tranqüilidade do condomínio (“tão sossegado para você, meu bem, depois de Londres e de todos aqueles pacientes horrorosos”). Mas a gravidez acabara em interrupção espontânea e fora preciso abandonar a esperança de um dia ter filhos. A existência de filhos teria feito alguma diferença? A casa teria deixado de se transformar num oneroso repositório de esperanças perdidas? Sentado em silêncio no carro e contemplando o retângulo atemorizante da janela iluminada, o dr. Baguley refletiu que todos os casamentos infelizes eram basicamente iguais. Ele e Helen não eram diferentes dos Worriker. Continuavam juntos porque achavam que seriam menos infelizes casados do que separados. Se o desgaste e as misérias do casamento ficassem maiores do que o custo, a inconveniência e o trauma de uma separação legal, eles se separariam. Nenhuma pessoa em seu juízo perfeito teima em manter o intolerável. Para ele só houvera um motivo válido e preponderante para divorciar-se: sua esperança de casar-se com Fredrica Saxon. Agora que essa esperança deixara de existir, não via problema em continuar suportando um casamento que, com todas as tensões que acarretava, pelo menos lhe dava a ilusão reconfortante de ser necessitado. Sentia desprezo por sua imagem privada, exemplo típico do psiquiatra incapaz de gerenciar os próprios relacionamentos pessoais. Mas pelo menos uma coisa restava do casamento: uma onda fugidia de ternura e compaixão que
quase sempre lhe permitia ser amável. Trancou as portas da garage e atravessou o amplo gramado para chegar à porta da frente. O jardim estava malcuidado. Era caro mantê-lo, e Helen pouco se interessava pelo assunto. Seria muito melhor, em todos os sentidos, vender aquela casa e comprar uma menor. Mas Helen não queria nem ouvir falar no assunto. Era tão feliz em Stalling Coombe quanto poderia esperar ser em outro lugar qualquer. A vida social limitada e pouco exigente do lugar lhe dava pe-lo menos um arremedo de segurança. Aquela existência de coquetel-e-canapé, as conversas superficiais das mulheres magras, elegantes e aquisitivas que moravam ali, os mexericos em torno das baixezas cometidas pelas criadas imigrantes e as garotas au-pair, as reclamações quanto às mensalidades escolares, as notas recebidas pelos filhos e a ingratidão da juventude eram preocupações com as quais tinha condições de solidarizar-se ou que podia partilhar. Fazia muito tempo que Baguley sofria com o conhecimento de que era em sua relação com ele que ela se sentia menos à vontade. Refletiu sobre a melhor maneira de contar a Helen que a srta. Bolam fora assassinada. Helen só estivera com ela uma vez, naquela quarta-feira, na clínica, e ele jamais ficara sabendo o que as duas haviam conversado. Mas aquele encontro breve e catalítico estabelecera algum tipo de intimidade entre as duas. Ou, quem sabe, se tratava de uma aliança ofensiva dirigida contra ele? Não da parte de Enid Bolam, certamente... sua atitude com ele nunca se modificara. Até seria possível acreditar que ela gostava mais dele que dos outros psiquiatras. Sempre a achara cooperante, prestativa e correta. Fora sem madade, sem espírito de vingança, sem nenhuma hostilidade especial em relação a ele que ela pedira a Helen que a procurasse em seu escritório naquela tarde de quarta-feira e, em menos de meia hora de conversa, destruíra a maior felicidade que ele já conhecera na vida. Nesse momento Helen apareceu no alto da escada. “É você, James?”, exclamou. Fazia quinze anos que era recebido todas as noites com aquela pergunta desnecessária. “Sim, sou eu. Desculpe o atraso. Desculpe também por não ter podido conversar melhor com você pelo telefone. Mas aconteceu uma coisa terrível na Steen e Etherege achou melhor falar tão pouco quanto possível sobre o assunto. Enid Bolam foi assassinada.” Mas a mente de Helen se fixara no nome do diretor médico. “Henry Etherege! Típico dele. Mora na Harley Street, numa casa cheia de empregados, e ganha o dobro do que nós ganhamos. Ele devia ter pensado um pouco em mim, quando resolveu segurar você na clínica até esta hora. A mulher dele não vive enfiada no campo sozinha até a hora em que ele resolve voltar para casa.” “Não foi por culpa do Henry que eu fiquei retido. Já lhe falei. Enid Bolam foi assassinada. A polícia passou a maior parte da noite na clínica.” Daquela vez ela escutou. O marido percebeu sua respiração entrecortada, viu seus olhos se apertarem enquanto ela descia a escada em sua direção, apertando o penhoar em torno do corpo. “A senhorita Bolam? Assassinada?” “É, assassinada.” Ela ficou imóvel, como quem pensa no assunto, depois perguntou calmamente: “Como?”. Ouviu em silêncio enquanto ele lhe contava. Em seguida, ficaram olhando um para o outro. Ele não conseguia decidir se devia abraçá-la ou fazer algum outro gesto de consolo ou solidariedade. Mas solidariedade por quê? O que, afinal, Helen havia perdido? Quando ela falou, sua voz estava fria como metal. “Nenhum de vocês gostava dela, não é mesmo? Nenhum de vocês!” “Isso é ridículo, Helen! A maioria de nós mal tinha contato com ela; isso só acontecia de vez em quando, em sua qualidade de gerente administrativa.”
“Está parecendo que foi alguém de dentro da clínica, não?” Ele piscou ao ouvi-la utilizar o rude jargão policial, mas respondeu sem rodeios: “Aparentemente, sim. Não sei o que a polícia está pensando.” Ela soltou uma risada amarga. “Ah, posso imaginar muito bem o que a polícia está pensando.” Helen ficou em silêncio uns instantes, depois fez uma pergunta brusca: “Aonde você estava?”. “Já lhe disse. No vestiário dos médicos.” “E Fredrica Saxon?” Era inútil, agora, esperar por aquele impulso de compaixão ou ternura. Era inútil, inclusive, tentar controlar-se. Mortalmente calmo, Baguley respondeu: “Estava na sala dela analisando um Rorscharch. Se isso lhe dá alguma satisfação, saiba que nenhum de nós tem álibi. Mas se está pensando em pôr a culpa desse assassinato em Fredrica ou em mim, vai precisar de mais inteligência do que acredito que tem. Acho pouco provável que o inspetor esteja disposto a ouvir o que uma mulher neurótica e despeitada tem a dizer. Já viu muitas desse tipo. Mas faça um esforço! Quem sabe você dá sorte? Por que não examina minhas roupas para ver se encontra manchas de sangue?” Estendeu as mãos para ela, o corpo inteiro trepidando de fúria. Aterrorizada, ela lançou um último olhar na direção dele, depois se virou e subiu novamente a escada aos tropeções, pisando na barra do penhoar e chorando feito criança. Ele olhou-a afastar-se, o corpo gelado de cansaço, fome e desprezo por si mesmo. Precisava falar com ela. Dar um jeito de endireitar as coisas. Mas não naquele momento. Não imediatamente. Primeiro precisava de um drinque. Apoiou-se por um instante no corrimão e disse com infinito cansaço: “Ah, Fredrica. Querida Fredrica. Por que você foi fazer isso? Por quê? Por quê?”
A irmã Ambrose vivia com uma amiga, uma enfermeira já idosa que estudara com ela trinta e cinco anos antes e que recentemente se aposentara. As duas haviam comprado em sociedade uma casa em Gidea Park, onde viviam juntas havia vinte anos dos proventos das duas, confortavelmente e em feliz harmonia. Nenhuma delas se casara e nenhuma lamentava esse fato. No passado acontecera de desejarem filhos, mas observando a vida familiar de parentes e conhecidos haviam concluído que o casamento, embora em geral se acreditasse o contrário, tinha o propósito de beneficiar os homens às expensas das mulheres, e que mesmo a maternidade não era uma bênção inquestionável. É verdade que essa convicção nunca fora posta à prova, visto que nenhuma das duas recebera uma proposta de casamento. Como todos os profissionais de clínicas psiquiátricas, a irmã Ambrose tinha consciência dos perigos da repressão sexual, mas nunca lhe ocorrera que eles pudessem aplicar-se a ela própria e, na verdade, seria difícil imaginar alguém menos reprimido do que ela. É possível que ela tivesse rejeitado a maioria das teorias psiquiátricas como perigosos absurdos se alguma vez as tivesse considerado criticamente. Mas a irmã Ambrose fora treinada a considerar os psiquiatras como estando apenas um estágio abaixo de Deus. Como Deus, eles escolhiam estranhas maneiras para realizar seus prodígios, mas, como Deus, não se sujeitavam à crítica frontal. Alguns, inclusive, eram mais misteriosos em suas atitudes do que outros, mas isso não diminuía o fato de que era um privilégio para as enfermeiras atender a essas divindades menores e estimular os pacientes a confiar no tratamento que eles prescreviam, especialmente quando seu sucesso parecia mais duvidoso, além de praticar a virtude profissional máxima da lealdade absoluta.
“Sempre fui leal aos médicos” era uma afirmação que se ouvia freqüentemente em Acacia Road, Gidea Park. A irmã Ambrose muitas vezes observara que as jovens enfermeiras que de vez em quando estagiavam na Clínica Steen tinham formação diferente, menos tradicional, mas sua opinião sobre as jovens enfermeiras costumava ser desfavorável. Aliás, sua opinião sobre o treinamento profissional moderno era ainda mais desfavorável. Como sempre, tomou o Central Line até a Liverpool Street, depois trocou para um trem elétrico da linha suburbana leste e vinte minutos depois chegava à casa bem cuidada onde vivia com a srta. Beatrice Sharpe. Naquela noite, contudo, enfiou a chave na fechadura sem a costumeira inspeção do jardim, sem percorrer com olhar crítico a pintura da porta e mesmo sem refletir, como de hábito, sobre a aparência preponderantemente satisfatória da propriedade e o acerto do investimento financeiro que sua aquisição mostrara ser. “É você, Dot?”, gritou, da cozinha, a srta. Sharpe. “Você está atrasada!” “É um milagre eu não estar ainda mais atrasada. Houve um assassinato na clínica e a polícia passou a maior parte da noite lá. Até onde eu sei, ainda está lá. Tiraram minhas impressões digitais e também as do resto do pessoal.” Deliberadamente, a irmã Ambrose não erguera a voz, mas o efeito das notícias foi altamente satisfatório. Ela não esperava outra coisa. Não é todos os dias que a pessoa tem esse tipo de notícia a relatar, e no trem ela passara algum tempo ensaiando qual era a maneira mais eficaz de contar as novidades. As frases escolhidas expressavam concisamente os principais detalhes. O jantar foi temporariamente esquecido. Murmurando que um empadão sempre pode esperar, a srta. Sharpe serviu para a amiga e para si mesma um copo de xerez, tratamento específico para estados de choque, e foi se instalar na sala com o copo na mão para ouvir a história toda. A irmã Ambrose, que na clínica tinha reputação de ser uma pessoa discreta e taciturna, era muito mais comunicativa em casa, e em pouco tempo a srta. Sharpe estava tão informada sobre o assassinato quanto a amiga era capaz de lhe contar. “Mas quem você acha que fez isso, Dot?” A srta. Sharpe voltou a encher os copos — extravagância sem precedentes — e dedicou sua mente à análise dos fatos. “Na minha opinião, o assassinato deve ter sido cometido entre as seis e vinte, quando você viu a senhorita Bolam avançar para a escada do subsolo, e sete horas, quando o corpo foi descoberto.” “Ora, isso é óbvio! Foi por isso que o inspetor ficou me perguntando se eu tinha certeza da hora. Fui a última pessoa a vê-la com vida, quanto a isso não há dúvida. A senhora Belling tinha acabado seu tratamento e estava pronta para ir para casa às seis e quinze. Aí fui até a sala de espera para avisar o marido dela. Ele está sempre preocupado com o horário porque trabalha à noite e precisa jantar para chegar no emprego às oito horas. De modo que olhei para meu relógio e vi que eram exatamente seis e vinte. Eu estava saindo da sala de eletrochoque quando a senhorita Bolam passou por mim e andou na direção da escada do subsolo. O inspetor me perguntou com que cara ela estava e se falamos uma com a outra. Bom, não falamos e, pelo que pude ver, ela estava com a cara de sempre.” “Como ele é?”, perguntou a srta. Sharpe, com a cabeça locupletada de imagens de Maigret e do inspetor Barlow. “O inspetor? Muito educado, devo dizer. Um desses rostos magros, ossudos. Muito moreno. Não falei grande coisa. Dava para perceber que ele está acostumado a arrancar coisas das pessoas. A senhora Shorthouse passou horas com ele, e aposto que falou uma porção de coisas. Bom, eu não ia fazer o jogo dele. Sempre fui leal à clínica.”
“Mesmo assim, Dot, estamos falando de assassinato.” “Está bem, Bea, mas você sabe como é a clínica. Muita fofoca, mesmo sem essa história... Nenhum dos médicos gostava dela. Aliás, até onde eu sei, ninguém gostava. Mas isso não é razão para matá-la. Seja como for, fiquei de boca fechada, e se os outros tiverem um pouco de bom senso farão a mesma coisa.” “Está certo, você tem razão. E se você e a doutora Ingram ficaram o tempo todo juntas na sala de eletrochoque, você tem um álibi.” “Ah, sim, não temos problema. A senhora Shorthouse, Cully, Nagle e a senhorita Priddy também estão cobertos. Nagle tinha saído para o correio às seis e quinze e os outros estavam todos juntos. Porém não tenho certeza quanto aos médicos, e é uma pena que o doutor Baguley tenha saído da sala de eletrochoque depois do tratamento da senhora Belling. Imagine, ninguém em sã consciência poderia suspeitar dele, mas assim mesmo é lamentável. Enquanto esperávamos pela polícia, a doutora Ingram apareceu com a idéia de que era melhor a gente não mencionar o assunto. Imagine, a gente ia arrumar a maior encrenca para o doutor Baguley com esse tipo de trapaça. Fiz de conta que não estava entendendo. Olhei para ela com um daqueles meus olhares e disse: ‘Tenho certeza de que se todos nós dissermos a verdade, doutora, os inocentes não terão nada a temer’. Com isso ela calou a boca. E foi isso que eu fiz. Falei a verdade. Mas só o que me perguntaram. Se a polícia está atrás de fofoca, que converse com a senhora Shorthouse.” “E a enfermeira Bolam?”, perguntou a srta. Sharpe. “É com ela que estou preocupada. Ela estava ao lado da sala onde o crime foi cometido e não se pode dizer que uma pessoa em tratamento com lsd tenha condições de oferecer um álibi. O inspetor foi para cima dela ligeirinho. Ele bem que tentou me fazer falar. Ela e a prima eram amigas? Sem dúvida as duas trabalhavam na Steen para ficar perto uma da outra? Agora conte outra, pensei, mas não abri a boca. Ele não tirou muita coisa de mim, mas dava para perceber para que lado iam os pensamentos dele. E dá para entender, na verdade. Todos nós sabemos que a senhorita Bolam tinha dinheiro; se ela não tiver feito um testamento deixando tudo para um asilo de gatos, quem herda é a prima. Não tem mais ninguém.” “Não consigo imaginar a senhorita Bolam deixando tudo para um asilo de gatos”, disse a srta. Sharpe, que tinha uma cabeça literal. “Eu estava só falando por falar. Na verdade ela nunca ligou muito para o Tigger, embora supostamente o gato fosse dela. Sempre achei aquilo típico da Enid. Ela encontrou o Tigger na praça, praticamente morto de fome, e levou-o para a clínica. Daquele dia em diante, toda semana comprava três latas de ração para o gato. Mas jamais fez um carinho nele, jamais foi levar comida, jamais deixou-o entrar nas salas de cima. Por outro lado, aquela tonta da Priddy passa o dia na sala dos porteiros com o Nagle inventando histórias com o Tigger, mas nunca vi nenhum dos dois levar comida para ele. Acho que a senhorita Bolam só comprava a comida porque achava que era seu dever. Na verdade não tinha o menor interesse por animais. Mas talvez ela deixe o dinheiro dela para aquela igreja de que gostava tanto, ou para as bandeirantes, sei lá.” “E por que não deixaria o dinheiro para seus familiares?”, perguntou a srta. Sharpe. Não que ela tivesse uma opinião muito boa de seus parentes; aliás, tinha muito a criticar no comportamento dos sobrinhos e sobrinhas. Mesmo assim, seu pequeno capital, amealhado muito devagar, fora meticulosamente dividido entre eles. Estava além de sua compreensão que alguém quisesse deixar seu dinheiro para alguém que não pertencesse à família. Bebericaram o xerez em silêncio. As duas barras do aquecedor elétrico estavam incandescentes e o carvão artificial cintilava e soltava faíscas sempre que a luzinha atrás dele girava. A irmã
Ambrose percorreu a sala com o olhar e achou-a muito agradável. O abajur projetava uma luz suave sobre o tapete, o sofá e as acolhedoras poltronas. O aparelho de televisão estava a um canto, com as antenas gêmeas disfarçadas em flores de caule comprido. O telefone repousava embaixo da saia armada de uma boneca de plástico. Na parede oposta, acima do piano, via-se um cesto de bambu contendo uma planta de interior que, com sua cascata verdejante, quase ocultava a fotografia de casamento da sobrinha mais velha da senhorita Sharpe, que ocupava um lugar de honra sobre o piano. A irmã Ambrose sentia-se amparada pelo conforto imutável daqueles objetos familiares. Eles, pelo menos, continuavam iguais. Agora que a excitação de contar as novidades chegara ao fim, sentia-se muito cansada. Plantando as pernas fortes no chão, com os pés bem afastados, agachou-se para desamarrar os cordões dos sapatos pretos de trabalho, soltando um pequeno grunhido com o esforço. Em geral ela tirava o uniforme assim que chegava em casa. Naquela noite, porém, tivera coisas mais importantes a fazer. De repente, disse: “Não é fácil saber qual é a melhor maneira de agir. O inspetor disse que qualquer coisa, por mais insignificante que fosse, podia ser importante. Está muito bem. Mas suponha que a coisa é importante na direção errada. Suponha que ela dê idéias erradas à polícia!” A srta. Sharpe não era imaginativa nem sensível, mas não vivera vinte anos ao lado da amiga para deixar de reconhecer um pedido de socorro. “É melhor me dizer o que está preocupando você, Dot.” “Bem, foi na quarta-feira. Você já entrou no vestiário feminino da Steen? Tem a grande sala externa com a pia e os armários e depois tem dois banheiros. A clínica estava com as consultas um pouco atrasadas. Acho que já passava bastante das sete quando entrei no vestiário para me preparar. Bem, estava no banheiro quando a senhorita Bolam entrou na sala externa. Estava acompanhada da enfermeira Bolam. Eu achava que as duas já tinham ido para casa, mas suponho que a senhorita Bolam tenha querido apanhar alguma coisa em seu armário e que a enfermeira simplesmente entrou no vestiário com ela. Deviam estar vindo do escritório da senhorita Bolam, porque estavam no meio de uma conversa e não haviam interrompido a discussão. Não tive outro jeito senão ouvir o que elas estavam dizendo. Sabe como é. Eu podia ter tossido ou puxado a descarga para que elas vissem que eu estava ali, mas tive a idéia tarde demais.” “Qual era o assunto da discussão?”, perguntou a amiga. “Dinheiro?” Na experiência da srta. Sharpe, dinheiro era a causa mais freqüente das discussões familiares. “Foi o que me pareceu. Elas não estavam falando alto e também não fiz força para escutar. Acho que estavam discutindo por causa da mãe da enfermeira Bolam — ela é doente, sabe, quase não sai da cama —, porque Enid disse que sentia muito, mas que estava fazendo tudo o que podia, e que seria melhor Marion se conformar com a situação e inscrever a mãe na lista de espera de um hospital para interná-la assim que aparecesse uma vaga.” “Parece muito sensato. Não dá para manter esses pacientes indefinidamente em casa. Só abrindo mão do trabalho externo e passando o tempo todo em casa.” “Imagino que Marion Bolam não tivesse condições de fazer isso. Seja como for, ela começou a discutir e a dizer que se fizesse isso a mãe ia acabar numa enfermaria geriátrica com um monte de velhas senis e que Enid tinha o dever de ajudá-las porque se sua mãe estivesse viva teria gostado que ela fizesse isso. Depois falou alguma coisa sobre o fato de que quando Enid morresse ela é que haveria de herdar o dinheiro, e que seria muito melhor que recebesse parte do dinheiro logo, já que faria tanta diferença para ela e a mãe.” “E qual foi a resposta da senhorita Bolam?” “É isso que me preocupa”, disse a irmã Ambrose. “Não me lembro das palavras exatas, mas era
alguma coisa no sentido de que Marion não devia ficar contando com o dinheiro porque ela ia mudar seu testamento. Disse que pretendia informar a prima desse fato assim que tivesse chegado a uma conclusão definitiva sobre o assunto. Falou que o dinheiro era uma enorme responsabilidade e que já tinha rezado muito para que Deus a inspirasse a fazer a coisa certa.” Beatrice Sharpe fungou. Achava impossível acreditar que o Todo-poderoso pudesse aconselhar alguém a legar dinheiro a uma pessoa que não pertencesse à família, ou a uma instituição. Das duas uma: ou a srta. Bolam não sabia formular seus pedidos de orientação ou intencionalmente distorcera as instruções divinas. A srta. Sharpe nem sequer estava segura de aprovar aquelas orações. Há algumas coisas que a pessoa tem de ser capaz de resolver sozinha. Mas compreendia a aflição da amiga. “Se ficassem sabendo, seria um problema”, admitiu. “Sem dúvida.” “Acho que conheço a Marion muito bem, Bea; aquela menina não faria mal a uma mosca. A idéia de que ela pudesse assassinar alguém é ridícula. Você conhece minha opinião sobre as jovens enfermeiras de um modo geral. Pois bem, eu não me incomodaria se a Marion assumisse meu lugar quando eu me aposentar, no ano que vem. Por aí você pode julgar o que eu acho dela. Teria absoluta confiança nela.” “Talvez você tivesse, mas a polícia não teria. Por que haveria de ter? É provável que ela já seja a primeira pessoa na lista de suspeitos. Estava no local do crime; não tem álibi; tem conhecimento médico e saberia qual é o ponto mais vulnerável do crânio; também saberia onde cravar aquele formão. Estava informada de que Tippett não estaria na clínica. E agora isso!” “E não vá pensar que é uma quantia pequena.” A irmã Ambrose inclinou o corpo para a frente e baixou o tom de voz. “Acho que ouvi a senhorita Bolam mencionar trinta mil libras. Trinta mil, Bea! É o mesmo que ganhar nas apostas!” Mesmo a contragosto, a srta. Sharpe ficou impressionada. Declarou, simplesmente, que as pessoas que continuavam trabalhando embora possuíssem trinta mil libras deviam ser internadas. “O que você faria, Bea? Acha que eu devia falar alguma coisa?” A irmã Ambrose, resoluta e independente, acostumada a tomar conta dos próprios assuntos, percebeu que a decisão independia dela e jogou metade do fardo sobre os ombros da amiga. As duas sabiam que aquele era um momento único. Nunca duas pessoas amigas haviam exigido tão pouco uma da outra. A srta. Sharpe ficou sentada em silêncio durante alguns segundos, depois disse: “Não. Não fale. Pelo menos por enquanto. Afinal de contas, ela é sua colega e você confia nela. Não foi sua culpa se você ouviu a conversa — ou melhor, apenas entreouviu. Foi puro acaso, você estar no banheiro quando elas entraram. Eu, no seu lugar, tentaria esquecer. Seja como for, a polícia vai descobrir para quem Enid deixou seu dinheiro e se o testamento foi alterado. De qualquer maneira, Marion é suspeita. E caso haja um julgamento — repare que estou só dizendo ‘se’ —, bom, você não vai querer se envolver caso não seja necessário. Lembre-se daquelas enfermeiras do caso Eastbourne: as horas que elas passaram no banco das testemunhas. Você não ia gostar desse tipo de publicidade.” De fato, não ia gostar, pensou a irmã Ambrose. Sua imaginação visualizava perfeitamente a cena. O advogado de acusação, dr. Fulano ou dr. Sicrano, alto, nariz adunco, fitando-a com seu olhar aterrorizante, os polegares enganchados nas pregas da toga. “E agora, irmã Ambrose, talvez a senhora queira contar ao meritíssimo e ao júri o que estava fazendo quando entreouviu esse diálogo entre a acusada e sua prima.” Risadinhas no tribunal. O juiz, apavorante, vestido de vermelho e com uma peruca branca na
cabeça, inclina-se do alto de seu assento. “Se esses risos continuarem, mandarei evacuar a sala.” Silêncio. Dr. Fulano ou dr. Sicrano retoma a palavra. “E então, irmã Ambrose...?” Não, ela certamente não ia querer esse tipo de publicidade. “Acho que você tem razão, Bea”, disse. “Afinal de contas, não é que o inspetor tenha me perguntado se alguma vez ouvi as duas discutirem...” Não, ele não lhe perguntara. Com um pouco de sorte, nunca perguntaria. A srta. Sharpe achou que estava na hora de mudar de assunto. “Qual foi a reação do doutor Steiner?”, perguntou. “Você sempre disse que ele estava agindo para conseguir que Enid fosse transferida para outra unidade.” “Essa é outra coisa extraordinária! Ele ficou tremendamente abalado. Como eu lhe disse, estava conosco quando fomos ver o corpo. Sabe que ele mal conseguia se controlar? Foi obrigado a ficar de costas para nós e dava para ver como seus ombros sacudiam. Acho que estava chorando. Nunca o vi tão abalado antes. As pessoas não são extraordinárias, Bea?” Aquele era um brado veemente de ressentimento e protesto. As pessoas eram extraordinárias! Você acha que conhece alguém. Trabalha com a pessoa, às vezes por anos a fio. Fica mais tempo com ela do que com sua família ou seus amigos queridos. Está familiarizada com cada detalhe de seu rosto. E o tempo todo essa pessoa permanece desconhecida. Tão desconhecida quanto o dr. Steiner, que chorara ao ver o cadáver de uma mulher de quem nunca gostara. Tão desconhecida quanto o dr. Baguley, que tivera um caso com Fredrica Saxon durante vários anos sem ninguém saber, até a srta. Bolam descobrir e contar para a mulher dele. Tão desconhecida quanto a srta. Bolam, que levara incontáveis segredos para o túmulo. A srta. Bolam, a comum, trivial e desinteressante Enid Bolam, que provocara tanto ódio em alguém que acabara com um formão cravado no peito. Tão desconhecida quanto aquele que ninguém sabia quem era, aquele que estaria na clínica segunda-feira de manhã com a roupa de sempre, com o mesmo aspecto de sempre, falando e sorrindo como sempre — e que era um assassino. “Maldito canalha sorridente!”, exclamou irmã Ambrose de repente. Achava que a frase era uma citação desta ou daquela peça. Shakespeare provavelmente. Quase todas as citações eram de Shakespeare. Mas sua malevolência contida combinava com seu estado de espírito. “Você precisa se alimentar”, disse a srta. Sharpe, otimista. “Alguma coisa leve e nutritiva. Que tal deixar o empadão para amanhã e comer apenas uns ovos mexidos na frente da televisão?”
Ela estava à espera dele junto à entrada do St. James Park, exatamente como ele esperava que estivesse. Quando atravessou o Mall e viu a figura esguia, de cabeça baixa e ar desconsolado junto ao monumento aos mortos na guerra, Nagle quase sentiu pena dela. A noite estava muito fria para alguém ficar parado na rua. Mas as primeiras palavras dela acabaram com todo impulso de piedade que ele pudesse estar sentindo. “Devíamos ter nos encontrado em algum outro lugar. Aqui está bom para você, claro. Está no caminho de sua casa.” Ela parecia rabugenta como uma esposa mal-amada. “Então vamos para o seu apartamento”, provocou ele em voz baixa. “Podemos tomar um ônibus até lá.” “Não. O apartamento não. Hoje não dá.”
Ele sorriu na escuridão e os dois avançaram lado a lado para a sombra negra das árvores. Andavam um pouquinho separados, e ela não fez menção de aproximar-se. Ele olhou de esguela para o perfil sereno, erguido, em que já não havia vestígios de choro. Ela dava a impressão de estar mortalmente cansada. De repente, ela falou: “Aquele inspetor é muito atraente, não é mesmo? Acha que ele suspeita de nós?” Então era isso. A busca de segurança, a necessidade infantil de ser protegida. E, com tudo isso, no início ela parecera quase despreocupada. Ele disse, brusco: “Pelo amor de Deus, por que ia suspeitar de nós? Eu nem estava na clínica quando ela morreu. Você sabe tão bem quanto eu.” “Mas eu não estava. Eu estava lá.” “Ninguém vai suspeitar de você por muito tempo. Os médicos vão se encarregar de resolver a questão. Já passamos por isso antes. Nada pode dar errado se você se controlar e ouvir o que eu lhe digo. Vou lhe dizer o que quero que você faça.” Ela ouviu, cordata como uma criança, mas ao olhar para aquele rosto cansado, sem expressão, ele teve a sensação de estar na companhia de uma estranha. Ficou pensando se algum dia se veriam livres um do outro novamente. E de repente concluiu que a vítima não era ela. Quando chegaram ao lago, ela parou e contemplou a água. Do escuro vinham o grasnado dos patos e os sons que eles faziam ao movimentar-se. Ele sentia o cheiro da brisa noturna, salgada como um vento marinho, e estremeceu. Virando-se para observar o rosto dela, devastado pelo cansaço, viu, na imaginação, uma outra imagem: uma testa larga por baixo de uma touca de enfermeira, uma mecha de cabelo claro, imensos olhos cinzentos impossíveis de decifrar. Hesitante, considerou uma nova idéia. Talvez não desse em nada, claro. Era muito fácil que não desse em nada. Mas em breve o quadro ficaria pronto e ele poderia ver-se livre de Jenny. Dentro de um mês estaria em Paris, mas Paris ficava a apenas uma hora de vôo e ele voltaria muitas vezes. E sem Jenny para atrapalhar e uma vida nova ao alcance da mão, valia a pena tentar. Havia destinos piores do que casar com a herdeira de trinta mil libras.
A enfermeira Bolam entrou na casa estreita e com sacadas da Rettinger Street, número 17, e foi recebida pelo cheiro tão seu conhecido do térreo, composto de óleo de fritura, lustra-móveis e urina azeda. O carrinho dos gêmeos estava atrás da porta, com o cobertor manchado por cima. O cheiro de comida era menos forte que de hábito. Chegava muito atrasada, naquela noite, e os moradores do térreo já deviam ter acabado de comer havia muito tempo. O choro de um dos bebês ecoou fracamente nos fundos da casa, quase recoberto pelo som da televisão. Ouviu o hino nacional. A bbc concluía as transmissões daquele dia. Subiu até o primeiro andar. Lá o cheiro de comida era bem fraco, disfarçado pelo odor penetrante de um desinfentante doméstico. O morador do primeiro andar era tão viciado em limpeza quanto o do térreo em bebida. Como sempre, havia um bilhete no rebordo da janela do patamar da escada. Naquela noite, dizia: “Não largue suas imundas garrafas de leite aqui. Este parapeito é particular. Estou falando com você”. Atrás da porta marrom envernizada, mesmo àquela hora tardia, ouvia-se o rugido de um aspirador em plena atividade. E agora para o terceiro andar, onde morava com a mãe. Parou por um instante no degrau de baixo do último lance da escada e viu, como se fosse através dos olhos de um estranho, o esforço patético que fizera para melhorar o aspecto do lugar. As paredes haviam sido pintadas de branco. As escadas eram forradas com um carpete cinzento. A porta, pintada num tom vibrante de
amarelo cítrico, exibia uma aldrava de bronze em forma de cabeça de sapo. Na escada, cuidadosamente posicionadas uma acima da outra, estavam as três estampas de flores que comprara na feira da Berwick Street. Até aquela noite sentira prazer ao ver o resultado de seu trabalho. Achava que a entrada do apartamento tinha mudado de figura. Em certas ocasiões, chegara a pensar que não haveria problema em convidar alguém para tomar um café, por exemplo a sra. Bostock, da clínica, ou mesmo a irmã Ambrose. Achara que poderia fazer isso sem necessidade de pedir desculpas ou explicar a situação. Naquela noite, porém, libertada, gloriosamente libertada para sempre da auto-ilusão da pobreza, via perfeitamente que o apartamento era sórdido, escuro, abafado, malcheiroso e patético. Naquela noite, pela primeira vez, sentia-se suficientemente segura para admitir a que ponto odiava cada tijolo da Rettinger Street número 17. Avançou bem devagar, ainda sem disposição para entrar. Tinha tão pouco tempo para pensar, para planejar... Sabia exatamente o que veria quando abrisse a porta do quarto da mãe. A cama embaixo da janela. Nas noites de verão a mãe podia ver, da cama, o sol se pôr atrás de uma sucessão de telhados e chaminés tortas, ao fundo as torres da estação de St. Pancras delineadas contra um céu ardente. Naquela noite, porém, as cortinas estariam fechadas. A enfermeira do serviço de atendimento municipal teria se encarregado de pôr sua mãe na cama, deixando o telefone e o rádio na mesinha-de-cabeceira, junto com a sineta que, se necessário, poderia atrair a atenção do morador do apartamento de baixo. A lâmpada de cabeceira da mãe estaria acesa, formando um pequeno círculo de luz na penumbra circundante. Na outra ponta do aposento, uma das barras do aquecedor elétrico estaria acesa, apenas uma das barras, a dose de conforto cuidadosamente calculada para aquecer uma noite de outubro. Assim que abrisse a porta os olhos da mãe viriam ao encontro dos dela, iluminados de prazer e expectativa. Seria recebida pelas mesmas palavras intoleravelmente animadas, as mesmas perguntas sobre as atividades do dia. “Passou um bom dia na clínica, meu bem? Por que está atrasada? Aconteceu alguma coisa?” Como responder? “Nada de importante, mamãe, só que alguém trespassou o coração da prima Enid com um formão e finalmente vamos ficar ricas.” E o que isso significava? Deus do céu, o que isso não significava? Não ia mais sentir cheiro de verniz e fraldas. Não seria mais obrigada a atender às ordens da bruxa do segundo andar toda vez que ela precisasse de alguém para abrir a porta. Já não precisaria controlar o medidor de eletricidade, debatendo consigo mesma se o frio era suficiente para regular a estufa um ponto acima. Fim dos agradecimentos à prima Enid pelo generoso cheque que ela mandava duas vezes por ano — o de dezembro, que fazia tanta diferença na época do Natal, e o do fim de julho, que pagava o carro alugado e o hotel dispendioso que fornecia refeições para os inválidos que tivessem condições de pagar pelo fato de serem um estorvo. Já não seria preciso contar os dias, acompanhar o calendário, preocupar-se em saber se Enid não ia esquecer de mandar o cheque. Nunca mais precisaria receber o cheque com a expressão agradecida que ocultava, por trás dos olhos baixos, o ódio e o ressentimento que a faziam ter vontade de rasgar o cheque em pedaços e jogá-lo naquele rosto sem graça, presunçoso, condescendente. E já não precisaria subir aquelas escadas. Ela e a mãe podiam ter a casa no subúrbio, de que a mãe tanto falava. Um dos subúrbios mais favorecidos, claro, perto que chegue de Londres para que as viagens diárias à clínica não fossem um problema — não seria aconselhável abrir mão do emprego enquanto não fosse realmente necessário —, mas suficientemente longe para terem um jardinzinho, quem sabe, ou até uma paisagem campestre. Teriam condições, inclusive, de possuir um carrinho. Podia aprender a dirigir. E depois, quando a mãe não pudesse mais ser deixada sozinha, as duas ficariam juntas.
Agora não precisava mais se torturar, pensando no futuro. Já não havia razão para imaginar a mãe numa enfermaria de doentes crônicos, atendida por estranhos exauridos de tanto trabalhar, cercada de pacientes senis e incontinentes, à espera da chegada inevitável do fim. E, além disso, o dinheiro podia comprar prazeres menos vitais, porém importantes. Poderia comprar algumas roupas. Já não seria preciso esperar pelas liquidações semestrais quando quisesse comprar uma roupa de alguma qualidade. Seria possível vestir-se bem, bem mesmo, com metade da quantia que Enid gastava em saias e paletós horrorosos. Os armários do apartamento de Enid em Kesington deviam estar cheios deles. Alguém teria de se ocupar de distribuí-los. Mas quem haveria de querer aquilo? Quem ia querer alguma coisa que tivesse pertencido a prima Enid? Exceto o dinheiro. Exceto o dinheiro. Exceto o dinheiro. E se ela já tivesse escrito ao advogado para alterar o testamento? Mas isso não era possível! A enfermeira Bolam controlou o pânico e se obrigou uma vez mais a avaliar a possibilidade racionalmente. Já refletira tantas vezes sobre o assunto... Enid podia ter escrito ao advogado na quarta-feira à noite. Tudo bem, suponhamos que tivesse escrito. Teria sido tarde para alcançar a coleta de correspondência do fim da tarde, de modo que a carta só teria sido recebida naquela manhã. Todo mundo sabe como os advogados são lentos para fazer as coisas. Mesmo que Enid tivesse mandado uma carta expressa, mesmo que tivesse conseguido alcançar a coleta de quarta-feira, era impossível que o novo testamento já estivesse pronto para ser assinado. E mesmo que estivesse, que repousasse em seu envelope de papel grosso, de aspecto oficial, à espera de ser posto no correio, qual era o problema? Prima Enid já não podia assiná-lo, com aquela sua letra redonda, empertigada, infantil, que sempre parecera tão característica de sua pessoa. Prima Enid nunca mais voltaria a assinar o que quer que fosse. Voltou a pensar no dinheiro. Não na parte que lhe competia: dificilmente ela lhe proporcionaria alguma felicidade àquela altura. Mas mesmo que a prendessem por assassinato, não poderiam impedir a mãe de herdar sua parte. Ninguém poderia impedir isso. Mas ela precisava dar um jeito de arrumar algum dinheiro com urgência. Todo mundo sabe que demora meses para validar um testamento. Seria muito suspeito ou impiedoso se fosse falar com o advogado de Enid para explicar como elas eram pobres e perguntar se seria possível fazer algum arranjo? Ou quem sabe fosse melhor pedir um empréstimo ao banco? Talvez o advogado a chamasse. Sim, claro que ele faria isso. Ela e a mãe eram os parentes mais próximos. E assim que o testamento fosse lido ela poderia, com tato, levantar o assunto do adiantamento. Será que essa atitude seria uma coisa natural? Não seria nenhum exagero um adiantamento de cem libras para uma pessoa que ia herdar trinta mil libras. De repente, não agüentou mais. A longa tensão se rompeu. Ela não tinha registro de ter vencido a parte final da escada, de enfiar sua chave na fechadura. Assim que entrou no apartamento, dirigiu-se ao quarto da mãe. Uivando de medo e infelicidade, chorando como não chorava desde a infância, jogou-se sobre a mãe e sentiu em torno de si o conforto e o vigor inesperado daqueles braços trêmulos, frágeis. Os braços a embalaram como se ela fosse um bebê. A voz querida murmurou palavras de consolo. Por baixo da camisola barata, sentiu o cheiro tão conhecido do corpo da mãe. “Calma, meu bem. Filhinha. Calma. O que foi? O que aconteceu? Me conte, meu bem.” E a enfermeira Bolam contou.
Desde seu divórcio, dois anos antes, o dr. Steiner dividia uma casa em Hampstead com a irmã viúva. Tinha suas próprias sala de estar e cozinha, e graças a esse arranjo Rosa e ele pouco se
viam, podendo alimentar a ilusão de que se davam muito bem. Rosa era uma esnobe cultural. Sua casa era o ponto de encontro de uma corte de atores sem peça, poetas de um livro só, estetas pomposos vivendo à margem do mundo do balé e escritores mais inclinados a falar de seu ofício numa atmosfera de amigável compreensão do que a praticá-lo. O dr. Steiner não se incomodava com eles — simplesmente ficava atento para que comessem e bebessem às expensas de Rosa, não dele. Percebia que a irmã via sua profissão com um certo fascínio e que apresentar “meu irmão Paul, o famoso psicanalista” era, até certo ponto, uma compensação pelo pequeno aluguel que ele espasmodicamente lhe pagava e pelas miúdas irritações da proximidade. Mesmo que fosse executivo de um banco, dificilmente teria encontrado moradia mais econômica e confortável. Naquela noite, Rosa não estava em casa. Era exasperante, uma grande falta de consideração da parte dela estar ausente na única noite em que ele precisava de sua companhia. Típico de Rosa. A criada alemã também saíra, quem sabe ilicitamente, pois sexta-feira era dia de expediente integral. Encontrou sopa e salada à sua espera na cozinha, mas mesmo o esforço de aquecer a sopa parecia-lhe excessivo. Os sanduíches que comera sem vontade na clínica haviam arruinado seu apetite, mas estava faminto por proteínas, de preferência quentes e preparadas com competência. Mas não queria comer sozinho. Serviu-se de xerez e reconheceu a necessidade de falar com alguém — qualquer pessoa — sobre o assassinato. A necessidade era imperiosa. Pensou em Valda. Seu casamento com Valda estava condenado desde o início, como acontece com os casamentos em que marido e mulher têm uma ignorância básica das necessidades um do outro associada à ilusão de compreenderem-se perfeitamente. O dr. Steiner não ficara arrasado com o divórcio, mas a interferência em sua rotina o perturbara e no início ficara de mau humor, para em seguida ser atormentado por um sentimento irracional de fracasso e culpa. Valda, por outro lado, parecia ter florescido com a liberdade. Sempre que se encontravam ele ficava impressionado com a sensação de bem-estar físico que ela transmitia. Os dois não se evitavam, pois encontrar o ex-marido e os ex-amantes num clima de camaradagem e bom humor era o que Valda tinha na cabeça quando falava em comportamento civilizado. O dr. Steiner não gostava dela nem a admirava. Apreciava a companhia de mulheres informadas, bem-educadas, inteligentes e fundamentalmente sérias. Mas não era com esse tipo de mulher que gostava de ir para a cama. Sabia tudo o que havia a saber sobre essa inconveniente dicotomia. Suas causas haviam consumido muitas sessões dispendiosas com seu analista. Infelizmente, saber é uma coisa e mudar é outra, como alguns de seus pacientes poderiam ter lhe contado. E com Valda (cujo nome de batismo era Millicent) houvera ocasiões em que na verdade ele não desejara ser diferente. O telefone tocou durante quase um minuto até ela atender; contou-lhe sobre a srta. Bolam contra um ruído de fundo de música e tilintar de copos. Aparentemente o apartamento estava cheio de gente. Ele não estava seguro nem mesmo de que ela o escutara. “O que é isso?”, perguntou, irritado. “Você está dando uma festa?” “São só uns amigos. Espere que vou baixar o som. Pronto. O que foi que você disse?” O dr. Steiner repetiu. Dessa vez, a reação de Valda foi inteiramente satisfatória. “Assassinada? Oh, não! Querido, imagino o horror que você viveu! Senhorita Bolam... Não é aquela gerente administrativa horrorosa que você detestava? Aquela que ficava inventando problemas com seus relatórios de viagem?” “Eu não a detestava, Valda. De certo modo, eu a respeitava. Era uma mulher de imensa integridade. Claro, era obsessiva, tinha medo da própria agressividade inconsciente, talvez fosse sexualmente frígida...”
“Foi o que eu falei, querido. Eu sabia que você não suportava aquela mulher. Ah, Paulie... Não vão achar que o culpado é você, vão?” “Claro que não”, disse o dr. Steiner, começando a lamentar o impulso que o levara a fazer confidências. “Mas você sempre disse que alguém devia dar um jeito nela.” A conversa estava começando a virar pesadelo. A vitrola pulsava com seu baixo insistente, marcando o ritmo da cacofonia da festa de Valda, e as têmporas do dr. Steiner latejavam em uníssono com ela. Era o anúncio de uma de suas dores de cabeça. “O que eu dizia era que ela devia ser transferida para outra clínica, e não que tivesse o crânio afundado com um instrumento rombudo.” A frase vulgar aguçou a curiosidade dela. Valda sempre sentira fascínio pela violência. Ele sabia que ela estava imaginando um lago de sangue e matéria cerebral. “Querido, você precisa me contar essa história direitinho. Não quer vir até aqui?” “Bem, eu estava pensando em fazer exatamente isso”, disse o dr. Steiner. Depois acrescentou, com astúcia: “Não posso lhe contar certos detalhes pelo telefone. Mas se você está dando uma festa, fica difícil. Francamente, Valda, não tenho condições de ser sociável neste momento — e está começando uma daquelas minhas dores de cabeça. Tudo isso foi um tremendo choque para mim. Afinal, fui praticamente eu quem descobriu o corpo”. “Ah, coitadinho! Olhe, me dê meia hora que eu mando o pessoal embora.” O dr. Steiner estava com a sensação de que o pessoal não estava com muita vontade de ir embora, e disse isso a Valda. “Na verdade, estávamos todos de saída para o Toni’s. Eles podem se virar sem mim. Vou dar um jeito neles e dentro de meia hora você pode vir. Combinado?” Claro que estava combinado. Ao repor o fone no gancho, o dr. Steiner concluiu que naquela meia hora teria tempo de sobra para tomar uma ducha e trocar de roupa. Hesitou na escolha da gravata. Coisa estranha, a dor de cabeça parecia ter evaporado. Pouco antes que ele saísse, o telefone tocou. A apreensão deixou seu corpo tenso. Talvez Valda tivesse mudado de idéia quanto a mandar o pessoal embora e ficar algum tempo sozinha com ele. Afinal, essa cena se repetira inúmeras vezes durante o casamento dos dois. Ficou irritado ao constatar que a mão que se estendeu para pegar o fone não estava inteiramente firme. Mas o interlocutor era simplesmente o dr. Etherege, avisando que havia convocado uma reunião de emergência do Comitê Médico da clínica para as oito horas da noite seguinte. De tão aliviado, o dr. Steiner, esquecendo-se temporariamente da srta. Bolam, quase cometeu o desatino de perguntar qual era o tema da reunião.
Se Ralfe e Sonia Bostock morassem em Clapham seu apartamento seria considerado um subsolo. Como moravam em Hampstead — aliás a menos de um quilômetro da casa do dr. Steiner —, uma tabuleta de madeira, em letras de gosto impecável, dirigia o visitante ao apartamento “do jardim”. Ali, pagavam quase doze libras por semana para viver num endereço socialmente aceitável e ter o privilégio de ver pela janela da sala um gramado verde em rampa. Haviam salpicado aquele gramado com crocos e narcisos, e na primavera aquelas plantas, que conseguem florescer mesmo em lugares praticamente sem sol, pelo menos criavam a ilusão de que o apartamento tinha acesso a um jardim. No outono, porém, a vista era menos agradável e a umidade do terreno em rampa se filtrava para dentro do aposento. Era um apartamento
barulhento. Havia uma creche a duas casas de distância e uma família jovem no apartamento do térreo. Ralfe Bostock, oferecendo drinques aos amigos cuidadosamente selecionados e erguendo o tom de voz para sobrepor-se aos gritos de crianças que não queriam entrar no banho, costumava dizer: “Peço perdão pela anarquia. Acho que a intelligentsia virou adepta da procriação, mas parece que infelizmente não sabe controlar os filhos.” Ralfe gostava de fazer observações maldosas, algumas das quais inteligentes, mas exagerava. Sua mulher vivia apavorada com a idéia de que ele fizesse a mesma gracinha duas vezes para a mesma pessoa. Poucas coisas são mais fatais para a reputação de um homem que a fama de repetir piadas. Naquela noite ele tinha ido a uma reunião política. Ela apoiava a reunião, que podia ser importante para ele, e não se importava de ficar sozinha. Queria tempo para pensar. Entrou no quarto e despiu o tailleur, sacudindo-o cuidadosamente e pendurando-o no guarda-roupa, depois vestiu um roupão de veludo marrom e sentou-se junto à penteadeira. Amarrou uma faixa de crepe em torno da testa e aplicou um creme demaquiante para retirar a maquiagem do rosto. Estava mais cansada do que havia imaginado e precisava tomar alguma coisa, mas nada no mundo a impediria de executar seu ritual de todas as noites. Havia muito sobre o que pensar, muito a planejar. Os olhos cinza-esverdeados circundados de creme olhavam-na calmamente do espelho. Inclinando-se, inspecionou as dobras delicadas da pele embaixo de cada olho, em busca das primeiras rugas. Afinal de contas, tinha apenas vinte e oito anos. Não precisava preocupar-se. Mas Ralfe faria trinta naquele ano. O tempo estava passando. Se quisessem realizar alguma coisa, não tinham tempo a perder. Considerou a questão da estratégia. Seria preciso muito cuidado ao lidar com a situação: não havia lugar para erros. Já cometera um erro. A tentação de esbofetear Nagle fora irresistível, mas nem por isso seu gesto deixava de ser um erro, provavelmente um erro grave, próximo demais do exibicionismo vulgar para ser seguro. Candidatas a gerente administrativa não podem estapear o rosto de um porteiro, mesmo numa situação de estresse, especialmente se quiserem dar a impressão de competência calma e segura. Relembrou a expressão no rosto da srta. Saxon. Bem, Fredrica Saxon não podia ser dar ao luxo de ser crítica. Pena que o dr. Steiner também estivesse no aposento, mas tudo acontecera tão depressa que ela não estava segura de que ele efetivamente vira alguma coisa. A jovem Priddy não contava. Depois que fosse indicada seria preciso demitir Nagle, claro. Nesse ponto também teria de ser cuidadosa. Ele era um canalha insolente, mas a clínica precisava dele e os membros do comitê sabiam disso. Um porteiro eficiente contava muito para o conforto deles, sobretudo se tivesse disposição e estivesse preparado para executar os inúmeros consertos necessários. A medida não seria popular se os médicos fossem obrigados a esperar por um funcionário da manutenção toda vez que uma cinta de persiana se rompesse ou que fosse preciso trocar um fusível. Seria preciso demitir Nagle, mas antes de tomar qualquer iniciativa trataria de encontrar um bom substituto. Naquele momento, sua principal preocupação devia concentrar-se em obter o apoio dos médicos. Podia contar com o dr. Etherege, e o voto dele era o mais importante de todos. Só que não era o único. Em seis meses ele se aposentaria, e sua influência já estava em declínio. Se lhe oferecessem o posto interinamente e tudo corresse bem, talvez o Comitê Administrativo Hospitalar levasse algum tempo para abrir concurso para o cargo. Era quase certo que esperasse o crime ser resolvido ou a polícia arquivar o caso. Estava nas mãos dela consolidar sua posição nos meses vindouros. Não podia contar com nada, evidentemente. Sempre que apareciam
problemas em alguma unidade, o Comitê tendia a indicar alguém de fora. Era uma medida de segurança introduzir um estranho que não estivesse contaminado pela perturbação ocorrida. Nesse aspecto, o secretário do grupo teria uma influência especial. Fora uma medida acertada ir conversar com ele no mês anterior para pedir sua opinião sobre se devia ou não seguir o curso de administração hospitalar. Ele gostava que sua equipe se aprimorasse e, sendo um homem, sentirase lisonjeado porque ela pedira sua opinião. Mas não era bobo. Nem precisava ser. O Comitê não encontraria candidatos mais preparados do que ela, e ele sabia disso. A sra. Bostock deitou-se, relaxada, em sua cama de solteiro, os pés erguidos sobre um travesseiro, a cabeça tomada por imagens de sucesso. “Minha mulher é gerente administrativa da Clínica Steen.” Tão mais satisfatório que “Na verdade, no momento minha mulher está trabalhando como secretária. Na Clínica Steen, para ser mais exato”. A pouco mais de três quilômetros dali, num necrotério da parte norte de Londres, o corpo da senhorita Bolam, acondicionado como um arenque numa caixa de gelo, lentamente enrijecia no decorrer da noite outonal.
5
Se fosse para haver um assassinato na Steen, sexta-feira era o dia mais indicado para isso. A clínica não abria aos sábados, de modo que a polícia podia trabalhar no prédio sem as complicações decorrentes da presença de pacientes e funcionários. Quanto aos funcionários, é provável que tenham gostado de contar com dois dias de folga para se recuperar do choque, resolver calmamente qual a reação oficial a adotar e buscar o conforto e o aconchego dos amigos. O dia de Dalgliesh começou cedo. Ele havia pedido à polícia do bairro que lhe enviasse um relatório sobre o episódio do roubo na Steen, e o documento, juntamente com as transcrições das entrevistas da véspera, estava à sua espera sobre a escrivaninha. O roubo intrigara os policiais que cuidaram do caso. Não havia a menor dúvida de que alguém entrara na clínica e de que as quinze libras haviam desaparecido. Já não era tão certo que os dois fatos estivessem relacionados. O inspetor encarregado achava estranho um gatuno arrombar a única gaveta onde havia dinheiro, deixando de lado o cofre e desprezando o tinteiro de prata da sala do diretor médico. Por outro lado, era certo que Cully vira um homem se afastando da clínica, e tanto ele como Nagle tinham álibis para a hora da invasão. A polícia local estava inclinada a achar que Nagle tinha se apropriado do dinheiro enquanto estava sozinho no prédio, mas ele fora revistado e o dinheiro não estava com ele — e na verdade não havia provas. Além disso, o porteiro tinha oportunidades de sobra para ser desonesto trabalhando na Steen se fosse essa a sua inclinação, e não havia nada contra ele. A história toda era intrigante. A polícia continuava trabalhando nela, sem grandes esperanças. Dalgliesh pediu para ser informado se alguma coisa fosse descoberta e saiu com Martin para examinar o apartamento da srta. Bolam. Enid Bolam vivia no quinto andar de um sólido edifício de tijolos vermelhos, perto da Kensington High Street. Não houve dificuldade com a chave. A zeladora entregou-a a Dalgliesh com expressões formais e perfunctórias de pesar pela morte da srta. Bolam. Parecia achar indispensável fazer alguma referência ao assassinato, mas conseguiu transmitir a impressão de que os inquilinos do prédio costumavam ter o bom gosto de deixar esta vida de modo mais ortodoxo. “Espero que não haja comentários desagradáveis”, murmurou, enquanto acompanhava Dalgliesh e Martin até o elevador. “Esses apartamentos são muito seletos, e a empresa seleciona cuidadosamente os moradores. Nunca tivemos esse tipo de problema antes.” Dalgliesh resistiu à tentação de dizer que sem dúvida o assassino da srta. Bolam não sabia que sua vítima era inquilina da empresa. “É pouco provável que os comentários afetem a situação dos apartamentos”, declarou. “Afinal, o assassinato não foi cometido aqui.” A zeladora murmurou que ainda bem. Os três subiram juntos até o quinto andar no elevador lento, antiquado, forrado com painéis de madeira. A atmosfera estava carregada de hostilidade. “A senhora conhecia a senhorita Bolam?”, perguntou Dalgliesh. “Parece que fazia alguns anos que ela vivia aqui.” “Conhecia de dar bom-dia, só isso. Era uma moradora muito tranqüila. Como todos os nossos moradores, aliás. Acho que fazia quinze anos que estava no prédio. A mãe dela foi a inquilina anterior; as duas viviam juntas aqui. Quando a senhora Bolam morreu, a filha assumiu a locação.
Foi antes do meu tempo.” “A mãe morreu aqui?” A zeladora apertou os lábios. “A senhora Bolam faleceu num asilo para idosos no interior. Parece que houve algum problema.” “Ela se suicidou?” “Foi o que ouvi dizer. Como já falei, foi antes de eu vir trabalhar aqui. É óbvio que nunca mencionei o fato à senhorita Bolam nem a nenhum dos outros moradores. Não é o tipo de coisa que a pessoa tenha vontade de comentar. Essa família dá a impressão de ser muito infeliz.” “Quanto a senhorita Bolam pagava de aluguel?” A zeladora fez uma pausa antes de responder. Era evidente que a pergunta era uma das primeiras em sua lista de dúvidas que não devem ser formuladas. Depois, como se admitisse com relutância a autoridade da polícia, respondeu: “Nossos apartamentos de dois dormitórios do quarto e do quinto andar estão alugados a quatrocentos e noventa libras, fora os encargos.” Metade do salário de Enid Bolam, pensou Dalgliesh. Era uma proporção muito elevada para uma pessoa desprovida de fortuna pessoal. Ainda não falara com o advogado da vítima, mas tudo indicava que a estimativa de Marion Bolam quanto aos rendimentos da prima não estava longe da verdade. Quando chegaram à porta do apartamento, Dalgliesh dispensou a zeladora e entrou com Martin. Essa intromissão nos resíduos pessoais de uma vida encerrada era uma parte de seu trabalho que Dalgliesh sempre achara um tanto desagradável. Tinha a sensação de estar se prevalecendo da situação do morto. Ao longo de sua carreira, já examinara com interesse e compaixão muitos resíduos insignificantes. Roupas íntimas usadas enfiadas às pressas numa gaveta, cartas pessoais que a prudência teria mandado destruir, refeições inacabadas, contas por pagar, velhas fotografias, quadros e livros que o morto não teria julgado adequados para representar seu gosto diante de um mundo curioso ou vulgar, segredos de família, maquiagem velha em potes engordurados, a desordem de vidas desorganizadas ou infelizes. Hoje em dia ninguém tinha medo de morrer em pecado, mas a maioria das pessoas, se parasse para pensar no assunto, esperava que o tempo dispersasse seus despojos. Relembrou as palavras de uma velha tia dos tempos de criança mandando-o trocar de roupa. “E se você fosse atropelado, Adam? O que as pessoas iam pensar?” A pergunta era menos absurda do que o menino de dez anos julgara. O tempo lhe ensinara que ela expressava uma das maiores preocupações da humanidade: o medo de passar vergonha. Mas era como se Enid Bolam tivesse passado todos os dias de sua vida à espera de uma morte súbita. Dalgliesh nunca examinara um apartamento tão limpo, tão obsessivamente impecável. Mesmo os poucos cosméticos da morta, a escova de cabelo e o pente sobre a penteadeira estavam arrumados com precisão calculada. A pesada cama de casal estava feita. Percebia-se que sextafeira era dia de trocar a roupa de cama. Os lençóis e fronhas usados estavam dobrados no interior de um recipiente para roupa suja aberto sobre uma cadeira. Em cima do criado-mudo, apenas um pequeno relógio de viagem, uma garrafa de água e uma Bíblia acompanhada de um livrinho indicando o trecho a ser lido a cada dia e comentando seu sentido. Na gaveta do criado-mudo apenas um frasco de aspirina e um lenço dobrado. Um quarto com a personalidade de um quarto de hotel.
Toda a mobília era antiga e pesada. A elaborada porta de mogno do roupeiro se abriu sem ruído, revelando uma fileira de cabides bem comprimidos uns contra os outros. Eram roupas caras mas desinteressantes. A srta. Bolam costumava comprar numa loja que até hoje se especializa em abastecer viúvas de proprietários rurais. Havia saias bem cortadas de cor incerta, casacos grossos confeccionados para durar uma dúzia de invernos ingleses, vestidos de lã que não tinham como ofender ninguém. Fechado o roupeiro, era impossível lembrar de uma única peça de vestuário com precisão. No fundo, por trás das roupas para não serem atingidos pela luz do sol, havia potes de plástico, certamente contendo bulbos cujas flores, previstas para a época do Natal, a senhorita Bolam já não veria. Havia tantos anos que Dalgliesh e Martin trabalhavam juntos que não tinham necessidade de muita conversa; quase em silêncio, percorreram o apartamento. Por toda parte a mesma mobília pesada, antiga, a mesma ordem. Era difícil acreditar que até pouco antes alguém vivia naqueles aposentos, alguém preparava suas refeições naquela cozinha impessoal. Era um lugar silencioso. Daquela altura, abafado pelas sólidas paredes vitorianas, o alarido do trânsito na Kensington High Street se transformara numa leve vibração distante. Só o tique-taque insistente de um relógio de pêndulo na entrada perfurava o silêncio impassível. O ar estava frio e quase inodoro, não fosse pelo cheiro das flores. Por toda parte havia flores: um vaso de crisântemos na mesa da entrada e outro na sala de estar. Sobre a lareira do quarto, uma jarrinha de anêmonas. Sobre a cristaleira da cozinha, uma jarra maior, de bronze, com folhagem outonal — quem sabe colhida durante uma caminhada recente no campo. Dalgliesh não gostava de flores de outono — os crisântemos que se recusam teimosamente a morrer, exibindo as cabeças descompostas mesmo sobre um caule em processo de apodrecimento, as dálias sem perfume que só servem para ser plantadas em fileiras retilíneas nos parques municipais. Sua mulher morrera num mês de outubro e fazia muito tempo que ele reconhecia as pequenas derrocadas que se seguem à morte do coração. O outono deixara de ser uma boa época do ano. Para ele, as flores do apartamento da srta. Bolam enfatizavam a melancolia geral do ambiente, como as coroas de flores num enterro. A sala de estar era o aposento mais espaçoso do apartamento; era lá que ficava a escrivaninha da srta. Bolam. Martin alisou a madeira com respeito. “Tudo aqui é sólido e de qualidade, não é mesmo? Tenho uma peça parecida com esta. Era da mãe da minha mulher. Hoje em dia já não se fazem móveis como esses. Só que na hora de vender, eles não valem nada. Grandes demais para os apartamentos modernos, acho. Mas a qualidade é de primeira.” “A gente pode se apoiar, que eles não se desmancham”, disse Dalgliesh. “É isso mesmo que eu quis dizer. Coisa boa. Dá para entender que ela tenha conservado esses móveis. Uma moça sensata, aparentemente, e que sabia se cercar de conforto.” Martin puxou uma segunda cadeira para perto da mesa onde Dalgliesh já estava sentado, instalou nela o maciço traseiro e fez mesmo uma cara de quem estava em casa muito à vontade. A escrivaninha não estava trancada. O tampo rolou para trás sem a menor dificuldade. Dentro havia uma máquina de escrever portátil e uma caixa de metal contendo pastas de cartolina cuidadosamente etiquetadas. As gavetas e compartimentos da escrivaninha continham papel, envelopes e correspondência. Como haviam previsto, tudo estava na mais perfeita ordem. Examinaram juntos as pastas. A srta. Bolam pagava suas contas pontualmente e mantinha um registro de todas as despesas domésticas. Havia muita coisa a verificar. Os detalhes sobre investimentos estavam arquivados na pasta correspondente. Quando a mãe morrera, os títulos de penhora haviam sido resgatados e o capital
reinvestido em aplicações. Tudo muito competente: não havia dúvida de que a srta. Bolam fora bem aconselhada e que aumentara consideravelmente seus bens durante os últimos cinco anos. Dalgliesh anotou os nomes do corretor e do advogado. Seria preciso falar com os dois antes de dar a investigação por encerrada. A falecida guardava poucas cartas de caráter pessoal; talvez não houvesse mesmo muitas que valesse a pena guardar. Mas havia uma bem interessante, arquivada na letra “P”. Escrita em letra caprichada num papel pautado barato, vinha de um endereço em Balham e dizia:
Cara srta. Bolam, Escrevo estas poucas linhas para agradecer por tudo o que a senhora fez pela Jenny. Não foi bem como a gente esperava, era outra coisa que a gente pedia a Deus, mas quando Ele julgar que chegou a hora, conheceremos Seus desígnios. Continuo achando que fizemos bem em deixar que eles se casassem. Acho que a senhora sabe que não foi só para acabar com os comentários. Ele partiu e não volta mais. Foi o que nos escreveu. O pai dela e eu não sabíamos que as coisas entre eles tinham chegado a esse ponto. Ela quase não nos conta nada, mas nós vamos esperar pacientemente porque um dia talvez ela volte a ser a nossa menina. Ela passa os dias calada e se recusa a falar sobre o assunto, de modo que a gente não sabe se ela está sofrendo. Procuro não ficar com raiva dele. O pai dela e eu achamos que seria ótimo se a senhora conseguisse um emprego para a Jenny na área da saúde. A senhora é muito boa de se oferecer para ajudar, depois de tudo o que aconteceu. A senhora conhece a nossa opinião sobre o divórcio, de modo que agora ela vai ter de procurar a felicidade no seu novo emprego. O pai dela e eu rezamos toda noite para que ela encontre mesmo a felicidade.
Agradeço mais uma vez por tudo o que a senhora tem feito. Se a senhora conseguir o emprego para a Jenny, tenho certeza de que ela não vai decepcionar a senhora. Ela aprendeu a lição, que não foi fácil para nenhum de nós. Mas o Senhor é que conhece os caminhos.
Respeitosamente, Emily Priddy
Extraordinário, pensou Dalgliesh, que ainda houvesse pessoas capazes de escrever uma carta como aquela, com sua mistura arcaica de subserviência e dignidade e seu sentimentalismo despudorado que era ao mesmo tempo curiosamente tocante. A história que a carta contava era corriqueira, mas Dalgliesh sentiu-se desvinculado de sua realidade. Poderia ter sido escrita cinqüenta anos antes; ele tinha a sensação de que a qualquer momento veria o papel amarelecer de velho e sentiria seu cheiro de guardado. Sem dúvida o que estava escrito ali não se aplicava à garota linda e ineficaz da Clínica Steen. “Provavelmente isto não tem a menor importância”, disse ele a Martin. “Mas eu gostaria que você desse um pulo até Balham para conversar com essas pessoas. É melhor a gente saber quem é o marido, mas por alguma razão acho que ele não tem nada a ver com o misterioso ladrão do doutor Etherege. O homem — ou mulher — que matou a senhorita Bolam ainda estava no prédio quando nós chegamos. E nós conversamos com ele ou ela.” Nesse momento o telefone tocou, emitindo um terrível som estridente que ecoou no silêncio do apartamento como se invocasse a falecida. Dalgliesh disse: “Eu atendo. Deve ser o doutor Keating com os resultados da autópsia. Pedi a ele que
telefonasse para cá quando concluísse seu trabalho.” Dois minutos depois, estava novamente ao lado de Martin. O relatório fora breve. Dalgliesh disse: “Nenhuma surpresa. Ela era uma mulher saudável. Morta em decorrência de uma perfuração no coração depois de receber um golpe na cabeça e perder os sentidos, fatos que pudemos verificar com nossos próprios olhos, e virgo intacta, fato de que não temos razão para duvidar. O que é isso aí?” “É o álbum de fotografias. Quase todas de acampamentos de bandeirantes. Dá a impressão de que todos os anos ela saía para acampar com as garotas.” Provavelmente transformando a viagem em suas férias anuais, pensou Dalgliesh. Ele nutria um respeito próximo da irrestrita admiração por aqueles que voluntariamente abriam mão de seu lazer para cuidar dos filhos dos outros. Não era um homem que gostasse de crianças e achava a companhia de quase todas elas intolerável depois de um curtíssimo lapso de tempo. Tomou o álbum das mãos de Martin. Eram fotografias pequenas e tecnicamente sofríveis, pelo jeito tiradas com uma pequena câmera, mas estavam dispostas na página com todo o cuidado, e classificadas individualmente com letreiros em tinta branca. Havia bandeirantes marchando, bandeirantes cozinhando em fogareiros, montando barracas, enroladas em cobertores junto à fogueira do acampamento, fazendo fila para a inspeção do equipamento. E em muitas das fotografias aparecia a figura da monitora do grupo, rechonchuda, maternal, sorridente. Era difícil associar aquela pessoa extrovertida, feliz, saudável, ao cadáver patético caído no chão da sala dos arquivos — ou com a administradora obsessiva e autoritária descrita pelo pessoal da Steen. Os comentários embaixo de algumas das fotos eram patéticos em sua evocação da felicidade rememorada: “As Andorinhas servem o rango.” “Valerie ‘deserta’ das Fadinhas.” “As Gaivotas encaram a louça. Foto tirada por Susan.” “A monitora ajuda a maré a subir. Foto tirada por Jean.” Esta última foto mostrava os ombros roliços da srta. Bolam surgindo do meio da espuma da arrebentação. Estava cercada por meia dúzia de meninas. Seu cabelo solto pendia em mechas, molhado e escorrido como alga marinha, dos dois lados de seu rosto sorridente. Os dois detetives contemplaram a fotografia em silêncio. Depois Dalgliesh observou: “Até agora, foram poucas as lágrimas derramadas por ela, não é mesmo? Só as da prima, e essas foram mais de choque do que de tristeza. Me pergunto se as Andorinhas e as Gaivotas vão chorar por ela.” Fecharam o álbum e voltaram ao exame da escrivaninha. Encontraram somente mais um item interessante, porém muitíssimo interessante. Era a cópia em carbono de uma carta da srta. Bolam a seu advogado, datada da véspera de sua morte, e marcando uma entrevista para conversar com ele sobre assuntos “relativos às alterações que pretendo fazer em meu testamento, e que discutimos brevemente pelo telefone ontem à noite”.
* * * Depois da visita a Ballantyne Mansions houve um hiato na investigação, uma daquelas indefectíveis interrupções que Dalgliesh sempre tivera dificuldade em aceitar. Ele gostava de trabalhar em ritmo acelerado. Sua reputação não se apoiava apenas no sucesso obtido, mas também no ritmo que imprimia à busca de solução para seus casos. Ele não se preocupava em analisar as implicações dessa necessidade compulsiva de levar o trabalho adiante: bastava saber que as interrupções o irritavam mais do que à maioria dos homens. Talvez fosse um intervalo previsível. Era pouco provável que um advogado londrino estivesse
em seu escritório num sábado à tarde, contudo foi bem mais desanimador ficar sabendo por telefone que o dr. Babcock, da firma Babcock e Honeywell, embarcara com a mulher num vôo para Genebra na sexta-feira à tarde para acompanhar o enterro de um amigo, e que só estaria de volta em seu escritório da City na terça-feira seguinte. No momento não havia nenhum Honeywell na firma, mas o secretário do dr. Babcock estaria no escritório na segunda-feira cedinho, se pudesse ser de alguma ajuda para o inspetor. Isso fora informado pelo porteiro. Dalgliesh não sabia se o secretário poderia ajudá-lo. Preferia falar com o dr. Babcock. Era provável que o advogado tivesse condições de revelar muitos dados úteis sobre a família da srta. Bolam e também sobre sua situação financeira, mas era provável que boa parte do que ele sabia só fosse comunicado depois de uma cena de resistência — mesmo que simulada — do advogado, e mediante muita diplomacia por parte de Dalgliesh. Seria insensato pôr o sucesso em risco devido a um contato prévio com o secretário. Enquanto os detalhes do testamento não fossem conhecidos, não adiantava voltar a interrogar Marion Bolam. Frustrado em seus planos imediatos, Dalgliesh fez uma visita surpresa a Peter Nagle. Foi sozinho em seu carro, sem Martin. Não tinha nenhum objetivo claro em vista, mas não estava preocupado com isso. Seria tempo bem empregado. Já fizera muita investigação útil com esses encontros não planejados, quase ao sabor do acaso, em que falava, ouvia, observava um suspeito em sua própria casa, ou recolhia os fiapos de informação fornecidos involuntariamente a respeito da única personalidade fundamental em toda investigação de assassinato: a personalidade da vítima. Nagle morava em Pimlico, no quarto andar de um casarão vitoriano pintado de branco, perto de Eccleston Square. A última vez que Dalgliesh estivera naquela rua fora três anos antes, quando ela lhe dera a impressão de ter enveredado irremediavelmente pelo caminho do declínio. Mas a maré havia mudado. A onda de moda e popularidade que rola de forma tão inexplicável em Londres, às vezes deixando de lado um distrito para varrer o bairro ao lado, passara por aquela rua larga deixando ordem e prosperidade em sua esteira. A julgar pelo número de tabuletas, os especuladores imobiliários, sempre os primeiros a farejar a passagem da onda, estavam colhendo os lucros costumeiros. A casa da esquina parecia pintada de novo. A pesada porta de entrada estava aberta. Dentro, um quadro trazia os nomes dos moradores, mas não havia campainhas. Dalgliesh deduziu que durante o dia os apartamentos funcionavam como casas independentes e que em algum lugar devia haver um zelador encarregado de abrir a porta à noite, quando ela era fechada, no caso de alguém tocar a campainha. Como não viu sinal de elevador, preparou-se para subir os quatro andares pela escada, até o apartamento de Nagle. Era um prédio claro, arejado e muito silencioso. Não houve sinal de vida até o terceiro andar, onde alguém tocava piano — e bem. Talvez um músico profissional ensaiando. A cascata sonora envolveu Dalgliesh e em seguida recuou, quando ele alcançava o quarto piso. Lá havia uma porta de madeira sem ornamentos munida de uma pesada aldrava e de um cartão espetado logo acima no qual estava escrita uma só palavra: “Nagle”. O inspetor bateu de leve e na mesma hora ouviu a voz de Nagle dizendo “Entre”. Era um apartamento surpreendente. Dalgliesh não sabia o que, exatamente, havia imaginado, mas certamente não fora aquele loft enorme, imponente, bem ventilado. Ele ocupava toda a parte dos fundos da casa; a janela ampla dava para o norte. Sem cortinas, oferecia uma vista panorâmica de canos tortos de chaminé e telhados de diferentes inclinações. Nagle não estava sozinho. Estava sentado, com os joelhos bem separados, numa cama estreita sobre uma plataforma na parte leste do quarto. Aninhada de encontro a ele, vestindo apenas um roupão,
encontrava-se Jennifer Priddy. Os dois tomavam chá em canecas azuis; sobre uma mesinha ao lado da cama via-se uma bandeja com o bule de chá e uma garrafa de leite. O quadro em que Nagle havia trabalhado recentemente estava sobre um cavalete no meio do aposento. A moça não pareceu constrangida ao ver Dalgliesh: jogou as pernas para fora da cama e dirigiulhe um sorrisinho francamente feliz, quase de boas-vindas, despojado de coqueteria. “Aceita um chazinho?” Nagle falou: “Um policial nunca bebe em serviço, e isso inclui chá. Vá se vestir, menina. Não queremos que o inspetor fique chocado.” A garota sorriu de novo, pegou suas roupas com uma das mãos, segurou a bandeja do chá com a outra e desapareceu por uma porta na outra extremidade do loft. Era difícil reconhecer naquela figura confiante e sensual a menina assustada e chorosa que Dalgliesh conhecera na Steen. Observou-a quando passou a seu lado. Estava obviamente nua por baixo do roupão de Nagle; os mamilos duros apontavam sob o tecido fino de lã. Ocorreu a Dalgliesh que pouco antes eles estavam fazendo amor. Quando ela desapareceu da vista, olhou para Nagle e viu em seus olhos o brilho passageiro de quem se pergunta o que vai acontecer e se diverte com isso. Mas nenhum dos dois falou. Dalgliesh andou pelo loft; Nagle, sentado na cama, observava o que ele fazia. Era um aposento em perfeita ordem. A arrumação quase obsessiva lembrava o apartamento de Enid Bolam, com o qual, no mais, não tinha nada em comum. Era evidente que a plataforma com a cama simples, mesinha e cadeira servia de quarto de dormir. O resto do loft continha a parafernália de um pintor, mas não se via a bagunça indisciplinada que o não-iniciado costuma associar com uma vida de artista. Umas dez telas grandes estavam apoiadas contra a parede sul, e Dalgliesh ficou surpreso com a força que elas tinham. Certamente não eram a obra de um amador utilizando seu parco talento. Aparentemente o único modelo de Nagle era a srta. Priddy. Seu corpo adolescente, de busto farto, reluzia para ele numa série de poses: aqui achatado, ali estranhamente alongado, como se o pintor quisesse exibir sua competência técnica. O último quadro era o do cavalete. Mostrava a garota a cavaleiro sobre uma banqueta, com as mãos infantis e descuidadas pendentes entre as coxas e os seios alteando-se à frente. Alguma coisa naquela ostentação de mestria técnica, no uso audacioso de verdes e malvas e nas minuciosas relações tonais falou à memória de Dalgliesh. “Quem é o seu professor?”, perguntou. “Sugg?” “Exatamente.” Nagle não parecia surpreendido. “Conhece o trabalho dele?” “Tenho um de seus primeiros óleos. Um nu.” “Belo investimento. Não se desfaça dele.” “Não pretendo me desfazer”, disse Dalgliesh calmamente. “Acontece que eu gosto dele. Faz tempo que é aluno dele?” “Dois anos. Em meio período, claro. Mais três anos e ele é que estará aprendendo comigo. Isso se ele tiver capacidade de aprender. Está ficando velho, muito apegado a seus velhos lances.” “Você parece ter imitado alguns deles”, disse Dalgliesh. “Acha? Muito interessante.” Nagle não pareceu incomodar-se. “É por isso que vai ser bom quando eu me afastar. Até o fim do mês, no máximo, viajo para Paris. Me candidatei à bolsa de estudos da Bollinger. O velho deu uma palavrinha a meu favor e na semana passada recebi uma carta dizendo que tinha sido aprovado.” Por mais que tentasse, ele não conseguia eliminar a nota de triunfo da voz. Por baixo da suposta
indiferença havia um lampejo de alegria. E ele tinha razão em estar satisfeito consigo mesmo. A bolsa Bollinger não era uma coisa insignificante. Significava, como Dalgliesh sabia muito bem, dois anos em qualquer cidade da Europa com uma mesada generosa e liberdade para o artista viver e trabalhar como quisesse. A Fundação Bollinger fora criada por um fabricante de remédios que morrera rico e bem-sucedido, mas frustrado. Sua fortuna era produto de pós para o estômago, mas seu coração estava na pintura. Ele próprio dispunha de talento limitado e, a julgar pela coleção de quadros que confiara aos constrangidos curadores da galeria de sua cidade, seu gosto não ficava atrás de seu desempenho. Mas a bolsa Bollinger se encarregara de fazer com que os artistas se lembrassem dele com gratidão. Bollinger não acreditava que a arte pudesse florescer na pobreza ou que águas-furtadas gélidas e barrigas vazias estimulassem os artistas a envidar seus melhores esforços. Fora pobre quando jovem e não gostara da experiência. Na velhice, viajara pelo mundo todo e fora feliz no exterior. A bolsa Bollinger propiciava a jovens artistas promissores o usufruto da viagem sem ter de enfrentar a pobreza, e recebê-la era uma vitória importante. Se Nagle tinha recebido a Bollinger, era pouco provável que estivesse muito preocupado com os problemas da Clínica Steen. “Quando pretende viajar?”, perguntou Dalgliesh. “É só resolver a data. Lá pelo fim do mês. Mas talvez viaje antes, e sem avisar ninguém. Não há razão para chatear as pessoas.” Enquanto falava, fez um gesto com a cabeça na direção da porta e acrescentou: “É por isso que esse assassinato atrapalha tanto a minha vida. Eu estava com medo de não poder viajar por causa dele. Afinal, foi com o meu formão. E essa não foi a única tentativa de me comprometer. Quando eu estava na secretaria esperando pela correspondência, alguém telefonou pedindo para eu ir até o subsolo buscar a roupa limpa. Parecia voz de mulher. Eu já tinha vestido o casaco e estava mais ou menos de saída, de modo que respondi que apanharia a roupa quando voltasse”. “Então foi por isso que ao voltar do correio você foi falar com a enfermeira Bolam para saber se a roupa estava pronta?” “Exato.” “E por que não falou a ela do telefonema que havia recebido?” “Sei lá. Não vi razão para isso. Queria sair logo dali. Não gosto daquela sala do lsd. Aqueles pacientes gemendo e falando sozinhos me deixam meio apavorado. Quando a Bolam disse que a roupa não estava pronta, achei que quem havia telefonado era a outra Bolam e que era melhor não dizer nada. A Enid Bolam tinha uma certa tendência a se meter nas responsabilidades da enfermagem. Pelo menos era o que as enfermeiras achavam. Seja como for, não mencionei o telefonema. Podia ter mencionado, mas não mencionei.” “E na primeira conversa que tivemos você também não tocou no assunto.” “É verdade. O fato é que a história toda estava me parecendo meio esquisita, e eu queria algum tempo para pensar no assunto. Bem, já pensei, e agora já posso lhe contar o que aconteceu. Pode acreditar ou não, como quiser. Para mim, dá no mesmo.” “Você parece muito tranqüilo para um homem convencido de que alguém estava tentando culpá-lo pelo assassinato.” “Não estou preocupado. Para começar, quem estava tentando não conseguiu; por outro, acontece que eu acredito que a probabilidade de um homem inocente ser condenado por assassinato neste país é praticamente nula. Como policial, devia orgulhar-se disso. Por outro lado — por causa do sistema jurídico —, é muito possível que o culpado consiga escapar. É por isso
que, na minha opinião, vocês não vão conseguir solucionar esse assassinato. São muitos suspeitos. Muitas possibilidades.” “Veremos. Me fale mais do telefonema. Quando, exatamente, o recebeu?” “Não me lembro. Uns cinco minutos antes que a Shorthouse entrasse na secretaria, acho. Também pode ter sido mais cedo. Talvez a Jenny se lembre.” “Quando ela voltar, pergunto. O que, exatamente, a voz falou?” “Só ‘A roupa está pronta. Pode fazer o favor de vir buscar agora?’. Achei que era a enfermeira Bolam que estava telefonando. Respondi que estava de saída para o correio e que passaria lá quando voltasse. Depois pus o fone no gancho antes que ela tivesse tempo de dizer alguma coisa.” “Na hora, teve certeza de que era a enfermeira Bolam que estava falando?” “Não tive certeza. Na hora achei que era porque é sempre a enfermeira Bolam quem telefona para falar da roupa lavada. Na verdade a mulher falou baixinho, poderia ter sido qualquer uma.” “Mas era voz de mulher?” “Ah, era. Voz de mulher, com certeza.” “De todo modo era uma instrução falsa porque, como sabemos, a roupa não estava separada.” “É, eu sei. Mas para que pensar nisso? Não acrescenta nada. Se a intenção fosse me fazer descer até o subsolo para me incriminar, o assassino corria o risco de que eu chegasse no momento errado. A enfermeira Bolam, por exemplo, não ia querer que eu aparecesse perguntando pela roupa se tivesse planos de ir até a sala dos arquivos dar uma paulada na prima. Mesmo que a senhorita Bolam já estivesse morta no momento em que o telefonema foi feito, continua não fazendo o menor sentido. E se eu desse uma circulada no subsolo e encontrasse o corpo? Duvido que o assassino quisesse que o corpo fosse encontrado tão cedo. Seja como for, só fui até lá embaixo depois que voltei do correio. Sorte minha, estar fora justo naquele momento. A caixa do correio é logo do outro lado da rua, mas em geral desço até a Beefsteak Street para comprar o Standard. O homem lá deve se lembrar de mim.” Jennifer Priddy havia voltado enquanto ele pronunciava estas últimas palavras. Trajava um vestido discreto, de lã. Enquanto afivelava o cinto na cintura, disse: “Foi aquela discussão por causa do jornal que acabou com o coitado do Cully. Você devia ter emprestado o jornal a ele, querido, quando ele pediu. Ele só queria conferir os resultados das corridas de cavalos.” Sem se irritar, Nagle disse: “O desgraçado daquele velho. Seria capaz de qualquer coisa pra economizar uns centavos. Por que ele não compra o jornal de vez em quando? É eu entrar pela porta e ele já está pedindo o jornal.” “É, mas mesmo assim você foi um pouco indelicado com ele, querido. Você nem estava interessado no jornal. A gente deu uma olhadinha rápida e depois usou para embrulhar a comida do Tigger. Você sabe como é o Cully. A menor incomodação vai direto para o estômago dele.” Nagle exprimiu sua opinião sobre o estômago de Cully com força e originalidade. A srta. Priddy olhou rapidamente para Dalgliesh, como a convocar sua admiração chocada diante das extravagâncias do gênio e murmurou: “Peter! Francamente, querido, você é de morte!” Falou com tímida indulgência: a esposinha fazendo uma suave reprimenda. Dalgliesh olhou para Nagle para ver como ele reagia, mas o pintor pareceu nem ouvir o que a jovem dissera. Continuou sentado na cama, imóvel, olhando para eles. Agora envergava uma calça marrom de
linho, uma blusa azul de malha e sandálias, e mesmo assim parecia tão impecável quanto antes no uniforme de porteiro, os olhos mansos livres de preocupação, os braços compridos e fortes totalmente relaxados. Sob o olhar dele ela andou de um lado para o outro no loft, tocando com possessividade satisfeita a moldura de um quadro, passando os dedos ao longo do parapeito da janela, trocando uma jarra de dálias de uma janela para a outra. Era como se estivesse procurando imprimir as cores suaves da feminilidade àquela disciplinada oficina masculina, com o objetivo de demonstrar que ali era o seu lar, seu lugar natural. Não se sentia minimamente constrangida pelas representações de seu corpo nu. Talvez, inclusive, aquele exibicionismo vicário lhe proporcionasse satisfação. De repente, Dalgliesh perguntou: “Senhorita Priddy, lembra-se de quando alguém telefonou para o senhor Nagle num momento em que ele estava com a senhora no escritório?” A garota fez um ar surpreso mas disse despreocupada para Nagle: “Não foi a enfermeira Bolam, para falar da roupa? Eu vinha voltando da sala dos arquivos — fiquei só um instante fora — e ouvi você dizer que estava de saída e que desceria quando voltasse.” Riu. “Depois que você desligou o telefone, disse uma coisa muito menos educada sobre as enfermeiras, que querem que você fique o tempo todo à disposição delas. Está lembrado?” “Estou”, disse Nagle cortando o assunto. Em seguida, virou-se para Dalgliesh. “Mais alguma pergunta, inspetor? Jenny precisa voltar para casa daqui a pouco e em geral eu a acompanho um pedaço do caminho. Os pais dela não sabem que nos encontramos.” “Só mais uma ou duas. Algum de vocês faz alguma idéia da razão pela qual a senhorita Bolam convocou o secretário do grupo?” A senhorita Priddy negou com a cabeça. Nagle disse: “Fosse lá o que fosse, não tinha nada a ver conosco. Ela não sabia que Jenny posa para mim. Mesmo que descobrisse, não ia mandar chamar o Lauder. Não era boba. Sabia que ele não ia querer se envolver com nada que os funcionários fizessem fora do horário do expediente. Afinal, ela bem que ficou sabendo sobre o caso do doutor Baguley com a senhorita Saxon, mas não fez a besteira de contar para o Lauder.” Dalgliesh não perguntou a quem ela havia contado. Indagou: “Sem dúvida era alguma coisa ligada à administração da clínica. Aconteceu alguma coisa estranha ultimamente?” “Só o nosso famoso roubo e o sumiço das quinze libras. Mas isso o senhor já sabe”, disse Nagle. “Mas aquilo não teve nada a ver com o Peter”, disse a garota depressa, na defensiva. “Ele nem estava na clínica quando as quinze libras chegaram.” Virou-se para Nagle. “Você se lembra, querido? Foi naquela manhã que você ficou preso no metrô. Você nem sabia sobre o dinheiro!” Ela dissera alguma coisa errada. O lampejo de irritação naqueles grandes olhos castanhos foi passageiro, mas Dalgliesh não deixou de registrá-lo. Depois de uma pausa, Nagle falou, com a voz perfeitamente controlada: “Fiquei sabendo logo em seguida. Todo mundo ficou sabendo. Não podia dar outra: com todos querendo adivinhar quem havia mandado o dinheiro e a briga sobre quem iria gastá-lo, o grupo inteiro deve ter ficado sabendo.” Olhou para Dalgliesh. “Mais alguma coisa?” “Sim. Sabe quem matou a senhorita Bolam?” “Felizmente não sei. Mas acho que não foi nenhum dos psiquiatras. Aqueles rapazes são a melhor razão que eu conheço para continuar com a cabeça no lugar. Mesmo assim, não consigo imaginar nenhum deles cometendo um assassinato. Eles não têm coragem.”
Uma pessoa muito diferente havia dito algo muito parecido. Ao chegar à porta, Dalgliesh parou e olhou para trás, para Nagle. Ele e a garota estavam sentados juntos na cama como quando ele chegara; nenhum dos dois fizera a menor menção de acompanhá-lo até a porta, mas Jenny dirigiulhe seu sorriso feliz como despedida. Dalgliesh fez sua última pergunta: “Por que você foi beber alguma coisa com o Cully na noite do roubo?” “Ele me convidou.” “Não foi um convite surpreendente?” “Tão surpreendente que aceitei sair com ele por pura curiosidade, para ver no que ia dar.” “E no que deu?” “Em nada, para falar a verdade. Cully me pediu uma libra emprestada, que eu recusei, e enquanto a clínica era deixada sozinha alguém entrou lá. Não vejo como Cully pudesse ter previsto o que ia acontecer. Vai ver que ele previu, sei lá. Seja como for, não entendo que relação isso pode ter com o assassinato.” Nem Dalgliesh, na verdade. Enquanto descia as escadas, sentiu-se perturbado pela idéia do tempo passando, tempo desperdiçado, horas se arrastando até a manhã de segunda-feira, quando a clínica reabriria e seus suspeitos se reuniriam no local onde estavam mais sujeitos a ser vulneráveis. Mas os últimos quarenta minutos haviam sido bem utilizados. Estava começando a divisar o fio condutor naquele emaranhado caótico. Quando passou pelo terceiro andar, o pianista executava uma peça de Bach. Dalgliesh parou por alguns minutos para escutar. A música em contraponto era o único tipo de música de que ele verdadeiramente gostava. Mas o pianista parou de tocar de repente, com um ruído de acordes dissonantes. Depois, mais nada. Dalgliesh desceu as escadas sem fazer ruído e saiu da casa silenciosa sem que ninguém o visse.
Quando o dr. Baguley chegou à clínica para a reunião do Comitê Médico, o espaço reservado para os médicos no estacionamento já estava todo ocupado. O Bentley do dr. Etherege estava estacionado ao lado do Rolls Royce de Steiner. Do outro lado, um Vauxhall desmantelado apregoava que a dra. Albertine Maddox havia decidido comparecer. Na sala de reuniões do primeiro andar, as cortinas estavam abertas para o céu azul-negro de outubro. No meio da pesada mesa de mogno havia uma jarra com rosas. Baguley se lembrou de que a srta. Bolam sempre providenciava flores para as reuniões do Comitê Médico. Alguém resolvera dar prosseguimento à prática. As rosas eram os botões delicados do outono: produzidas em estufa, rígidas e inodoras em seus caules sem espinhos. Em alguns dias elas se abririam numa floração breve e estéril. Em menos de uma semana estariam mortas. Baguley achava que uma flor tão extravagante e evocativa era inadequada na atmosfera da reunião. Mas a jarra vazia teria sido intoleravelmente triste e embaraçosa. “Quem trouxe as rosas?”, perguntou. “Acho que foi a senhora Bostock”, disse a dra. Ingram. “Quando eu cheguei ela estava aqui em cima preparando a sala.” “Incrível”, disse o dr. Etherege. Estendeu um dedo e tocou um dos botões com tanta delicadeza que o caule nem sequer tremeu. Baguley não sabia se o comentário se referia à qualidade das rosas ou à perspicácia da sra. Bostock em providenciá-las. “A senhorita Bolam gostava muito de flores, muito”, disse o diretor médico. Olhou em torno como se desafiasse os colegas a discordar. “Bem”, continuou. “Vamos começar?”
O dr. Baguley, em sua qualidade de secretário honorário, sentou-se à direita do dr. Etherege. O dr. Steiner ocupou a cadeira ao lado. A dra. Maddox sentou-se à direita de Steiner. Os demais conselheiros não estavam presentes. O dr. McBain e o dr. Mason-Giles se encontravam nos Estados Unidos participando de uma conferência. Os outros médicos da Steen, divididos entre a curiosidade e a pouca disposição a interromper a folga do fim de semana, aparentemente haviam decidido ter paciência e esperar pela segunda-feira. O dr. Etherege achara adequado telefonar para todos avisando da reunião e depois transmitira formalmente ao grupo as desculpas recebidas, e os outros as ouviram com gravidade. Antes de virar psiquiatra, Albertine Maddox era uma cirurgiã de grande sucesso. Talvez fosse típico da ambivalência de seus colegas para com sua especialidade o fato de que a dupla qualificação da dra. Maddox aumentava sua importância aos olhos deles. Ela representava a clínica no Comitê de Assessoria Médica do grupo, onde defendia a Steen contra as críticas ocasionais de médicos e cirurgiões com uma inteligência e um vigor que a tornavam respeitada e temida. Na clínica, não participava da controvérsia entre freudianos e ecléticos, sendo, na visão de Baguley, igualmente desagradável para as duas facções. Era adorada por seus pacientes, mas isso não impressionava os colegas. Eles estavam acostumados a ser adorados por seus pacientes e limitavam-se a observar que Albertine era particularmente habilidosa no trato de situações de transferência maciça. Fisicamente era uma mulher desinteressante, gordinha, grisalha, que parecia o que efetivamente era: uma respeitável mãe de família. Tinha cinco filhos — os rapazes inteligentes e prósperos, as moças bem casadas. O marido de aspecto insignificante e os filhos tratavam-na com uma solicitude tolerante e vagamente gozadora que nunca deixava de surpreender seus colegas da Steen, para quem ela era uma personalidade formidável. Naquele momento tinha sobre os joelhos Hector, seu velho pequinês, que, com ar malévolo, parecia tão confortavelmente ansioso pelos próximos acontecimentos quanto uma dona-de-casa suburbana numa matinê. O dr. Steiner disse, irritado: “Francamente, Albertine, você precisava trazer o Hector? Não quero ser indelicado, mas esse animal está começando a cheirar mal. Você devia mandar sacrificá-lo.” “Obrigada, Paul”, respondeu a dra. Maddox com sua voz profunda, lindamente modulada. “Hector será sacrificado, como você diz, quando deixar de achar a vida agradável. Creio que ele ainda não chegou a esse estágio. Não tenho o hábito de matar seres vivos simplesmente por achar algumas de suas características físicas desagradáveis; nem, devo acrescentar, pelo fato de terem se tornado incômodos.” O dr. Etherege acrescentou depressa: “Que bom que você encontrou tempo para se juntar a nós esta noite, Albertine. Sinto muito que a convocação tenha sido feita num prazo tão curto.” Falava sem ironia, embora estivesse tão consciente quanto seus colegas de que a dra. Maddox só comparecera a uma reunião do comitê em uma série de quatro, com o argumento — que ela não fazia a menor força para mitigar — de que seu contrato com o Conselho Regional não continha nenhuma cláusula que a obrigasse a comparecer a uma sessão mensal de tédio misturado com conversa mole, e que a companhia de mais de um psiquiatra de cada vez fazia Hector ficar doente. A verdade desta última afirmação fora demonstrada suficientes vezes para ser questionada com segurança. “Sou um membro deste comitê, Henry”, replicou a dra. Maddox elegantemente. “Existe alguma razão pela qual eu não devesse fazer um esforço para comparecer?” O olhar que dirigiu à dra. Ingram deixava entender que nem todos os presentes tinham o
mesmo direito. Mary Ingram era casada com um clínico-geral suburbano e comparecia à Steen duas vezes por semana para ministrar anestesia nas sessões de eletrochoque. Não sendo psiquiatra nem terapeuta, não costumava participar das reuniões do Comitê Médico. O dr. Etherege interpretou o olhar corretamente e disse com firmeza: “A doutora Ingram teve a bondade de comparecer esta noite a meu pedido. O assunto principal da reunião, evidentemente, é o assassinato da senhorita Bolam, e a doutora Ingram estava na clínica na noite de sexta-feira.” “Mas não é suspeita, se entendi corretamente”, respondeu a dra. Maddox. “Felicito-a. É tranqüilizador saber que um membro da equipe médica foi capaz de oferecer um álibi satisfatório.” Olhou para a dra. Ingram com severidade. O tom de sua voz dava a entender que a existência de um álibi era, em si mesma, suspeita e inadequada para o membro mais recente da equipe, já que três terapeutas mais antigos haviam sido incapazes de encontrar um. Ninguém perguntou como a dra. Maddox ficara sabendo do álibi. Provavelmente andara conversando com a irmã Ambrose. O dr. Steiner disse, provocador: “É ridículo falar em álibis! Como se a polícia pudesse suspeitar seriamente de um de nós! Para mim, é perfeitamente óbvio o que aconteceu. O assassino estava à espera dela no subsolo. Sabemos que foi assim. Talvez tenha passado horas escondido lá embaixo, talvez mesmo desde a véspera. Pode ter entrado sem que Cully percebesse, quem sabe acompanhando um dos pacientes ou fingindo ser alguém da família ou um atendente de veículo hospitalar. Pode até ter penetrado na clínica durante a noite. Afinal, isso já aconteceu antes. Uma vez no subsolo, havia tempo de sobra para descobrir qual das chaves abria a sala dos arquivos e tempo de sobra para escolher uma arma. Nem a estátua nem o formão estavam escondidos.” “E como você supõe que esse assassino desconhecido tenha saído do prédio?”, perguntou o dr. Baguley. “Demos uma busca meticulosa antes da chegada da polícia — e a polícia olhou tudo de novo. Tanto a porta do subsolo como a do primeiro andar estavam trancadas por dentro, não se esqueça.” “Subiu pelo poço do elevador utilizando as cordas da roldana e saiu por uma das portas que dão para a saída de incêndio”, replicou o dr. Steiner, exibindo seu trunfo com certa galhardia. “Examinei o elevador e vi que essa hipótese é plausível. Um homem — ou uma mulher, claro — de baixa estatura poderia se espremer por cima da tampa da caixa do elevador e ter acesso ao poço. As cordas são suficientemente grossas para suportar um peso considerável, e a subida não seria muito difícil para uma pessoa razoavelmente ágil. Teria de ser uma pessoa magra, lógico”, concluiu, olhando para a própria barriga arredondada com complacência. “É uma teoria atraente”, disse Baguley. “Infelizmente todas as portas que dão para a escada de incêndio também estavam trancadas por dentro.” “Não existe edifício que um homem desesperado e experiente não possa invadir ou de onde não consiga sair”, anunciou o dr. Steiner do alto do que parecia uma vasta experiência. “Ele pode ter saído por uma janela do primeiro andar e se esgueirado pela frisa até chegar à escada de incêndio. Só estou afirmando que o assassino não é necessariamente um de nós, aqui da clínica, que por acaso estivesse trabalhando ontem à noite.” “Poderia ser eu, por exemplo”, disse a dra. Maddox. O dr. Steiner não se abalou. “Essa hipótese é absurda, evidentemente, Albertine. Não estou fazendo nenhuma acusação. Só estou chamando a atenção para o fato de que o círculo de suspeitos é menos restrito do que a
polícia parece imaginar. A polícia deveria investigar a vida particular da senhorita Bolam. É evidente que ela possuía um inimigo.” Mas a dra. Maddox não estava disposta a ser contrariada. “Felizmente para mim”, afirmou, “ontem à noite eu estava assistindo a um concerto de Bach, no Royal Festival Hall, na companhia de meu marido, e jantei lá mesmo, antes do concerto. E, embora o testemunho de Alasdair a meu favor possa ser considerado suspeito, eu também estava na companhia de meu cunhado, que por acaso é bispo. Bispo da igreja anglicana”, acrescentou com complacência, como se incenso e uma casula fossem a chancela da virtude e da veracidade episcopais. O dr. Etherege sorriu gentilmente e disse: “Eu ficaria muito aliviado se conseguisse produzir nem que fosse um cura evangélico para dizer onde eu estava entre as seis e quinze e as sete horas da noite de ontem. Mas será que todas essas teorizações não são uma perda de tempo? O crime está nas mãos da polícia e lá deve permanecer. Nossa principal preocupação é discutir suas implicações do ponto de vista do trabalho da clínica e, especialmente, a sugestão do presidente e do secretário do grupo de que a senhora Bostock assuma interinamente o cargo de gerente administrativa. Mas é melhor manter ordem nos procedimentos. Os senhores gostariam que eu assinasse a ata da última reunião?” Ouviu-se o murmúrio pouco entusiástico mas aquiescente que essa pergunta costuma provocar, e o diretor médico puxou o livro de atas para si e assinou. De repente, a dra. Maddox perguntou: “Como é esse inspetor?” A dra. Ingram, que até aquele momento não abrira a boca, respondeu, para surpresa de todos: “Uns quarenta anos. Alto e moreno. Gostei da voz dele, e tem mãos bonitas.” Logo depois enrubesceu escandalosamente, lembrando-se de que para um psiquiatra a observação mais inocente pode ser uma revelação embaraçosa. Aquele comentário sobre as mãos bonitas talvez tivesse sido um erro. O dr. Steiner, ignorando as características físicas de Dalgliesh, embarcou numa avaliação psicológica do inspetor que os ou-tros psiquiatras receberam com a atenção educada de especialistas interessados nas teorias de um colega. Dalgliesh, se estivesse presente, teria ficado surpreso e intrigado com a acurácia e a sensibilidade do diagnóstico do dr. Steiner. O diretor médico disse: “Concordo quanto à obsessividade e também quanto à inteligência. Isso significa que seus erros serão os erros de um homem inteligente — sempre os mais perigosos. Esperemos, para o bem de todos nós, que não cometa nenhum. O assassinato, com sua inevitável publicidade, sem dúvida terá um efeito sobre os pacientes e sobre o trabalho da clínica. O que nos leva a essa sugestão a respeito da senhora Bostock.” “Sempre preferi a Bolam à Bostock”, disse a dra. Maddox. “Seria uma pena perdermos uma gerente administrativa inadequada — por mais lamentável e fortuita que tenha sido essa perda — apenas para acabar nas mãos de outra.” “Concordo”, disse o dr. Baguley. “Das duas, pessoalmente sempre preferi a Bolam. Mas suponho que seria apenas um arranjo temporário. Vai ser preciso abrir concurso para preencher a vaga. Enquanto isso, alguém tem de assumir o cargo, e a senhora Bostock pelo menos está familiarizada com o trabalho.” O dr. Etherege disse: “Lauder deixou claro que o Comitê Médico Hospitalar não é a favor de trazer um estranho para a clínica enquanto a polícia não tiver concluído as investigações, mesmo que apareça algum candidato adequado. Não queremos complicações adicionais. Já temos perturbações suficientes
com que lidar. E isso me leva à questão da imprensa. Lauder sugeriu, e eu concordei, que todos os contatos com a imprensa fiquem a cargo da direção do grupo, e que ninguém aqui faça declarações. Parece ser a melhor atitude a tomar. É importante, no interesse dos pacientes, que não haja repórteres circulando pela clínica. Mesmo sem isso, a atividade terapêutica já estará bastante prejudicada. Conto com a aprovação formal deste comitê à proposta que acabo de fazer?” Sim, contava. Ninguém manifestou maior entusiasmo por manter contatos com a imprensa. O dr. Steiner não contribuiu para o murmúrio geral de anuência. Seus pensamentos continuavam com o problema da sucessão da srta. Bolam. Em tom belicoso, declarou: “Não entendo por que a doutora Maddox e o doutor Baguley mostram essa hostilidade para com a senhora Bostock. Eu já havia percebido. É ridículo compará-la adversamente com a senhorita Bolam. Todos sabemos qual das duas é — era — é — a administradora mais capaz. A senhora Bostock é uma mulher altamente inteligente, psicologicamente estável, eficiente e com uma real apreciação da importância do trabalho que fazemos aqui. Ninguém poderia dizer o mesmo da senhorita Bolam. Sua atitude para com os pacientes era, por vezes, extremamente infeliz.” “Eu não sabia que ela costumava ter contato com os pacientes”, disse o dr. Baguley. “Seja como for, nenhum dos meus se queixou.” “Às vezes ela marcava consultas e pagava despesas de viagem. Acredito piamente que seus pacientes não tenham reparado na atitude dela. Mas os meus são de outro tipo, mais sensíveis a essas coisas. O senhor Burge, por exemplo, tocou no assunto comigo.” A dra. Maddox riu com descortesia. “Ora, Burge! Ele continua em análise? Fiquei sabendo que a nova obra dele está prometida para dezembro. Vai ser interessante verificar, Paul, se seus esforços contribuíram para melhorar a literatura dele. Se isso tiver acontecido, acho que se trata de dinheiro público bem empregado.” Consternado, o dr. Steiner desencadeou uma série de explicações. Tratava de um bom número de escritores e artistas, alguns dos quais protegidos de Rosa em busca de um pouco de psicoterapia gratuita. Embora fosse sensível às artes, sua percepção crítica, normalmente atilada, falhava completamente quando se tratava de seus clientes. Para ele era intolerável vê-los criticados. Vivia na perpétua esperança de que seus vastos talentos fossem finalmente reconhecidos, e quando eram atacados tomava-o uma ira defensiva instantânea. O dr. Baguley achava que essa era uma das qualidades mais apreciáveis do dr. Steiner; em muitos aspectos, ele era comovedoramente ingênuo. Agora passara a uma confusa defesa tanto do caráter como do estilo literário de seu paciente, concluindo: “O senhor Burge é um homem talentoso e sensível, muito atormentado por sua incapacidade de manter uma relação sexual satisfatória, especialmente com as esposas.” A impropriedade parecia perfeita para provocar novas grosserias por parte da dra. Maddox. Sem dúvida, pensou Baguley, naquela noite ela assumiria uma posição pró-ecléticos. O dr. Etherege disse, cordato: “Quem sabe esquecemos nossas diferenças profissionais por um instante e nos concentramos no assunto em discussão? Doutor Steiner, tem alguma objeção a aceitar a senhora Bostock como gerente administrativa interina?” De mau humor, o dr. Steiner respondeu: “Essa é uma pergunta meramente acadêmica. Se o secretário do grupo deseja que ela seja nomeada, ela será nomeada. Esta consulta de faz-de-conta ao comitê é ridícula. Não temos
autoridade para aprovar nem para deixar de aprovar. Lauder fez com que isso ficasse perfeitamente claro para mim quando o procurei no mês passado para sugerir que a Bolam fosse transferida.” “Eu não sabia dessa conversa”, disse o dr. Etherege. “Falei com ele depois de nossa reunião de setembro. Era apenas uma sugestão.” “Sem dúvida recebida com uma recusa cabal”, disse Baguley. “Teria sido mais prudente manter a boca fechada.” “Ou ter submetido a questão a este comitê”, disse Etherege. “E com que resultado?”, exclamou Steiner. “O que aconteceu na última vez que me queixei de Enid Bolam? Nada! Todos vocês concordaram que ela era uma pessoa inadequada para o cargo de gerente administrativa. Todos vocês concordaram — quer dizer, quase todos — que a senhora Bostock, ou mesmo uma pessoa de fora, seria preferível. Mas na hora de agir, nenhum de vocês estava disposto a assinar uma carta dirigida ao Comitê Administrativo Hospitalar. E vocês sabem muito bem por quê! Todos vocês morriam de medo daquela mulher. Isso mesmo, morriam de medo!” Em meio ao murmúrio de negativas ofendidas, a dra. Maddox disse: “Alguma coisa nela era assustadora. Talvez fosse aquela formidável retidão. Você era tão afetado por ela quanto todos os outros, Paul.” “Talvez. Mas eu tentei fazer alguma coisa a respeito dela. Fui falar com o Lauder.” “Eu também falei com ele”, disse Etherege em voz baixa, “e talvez tenha sido mais eficaz. Deixei claro que este comitê estava consciente de não ter controle sobre a equipe administrativa, mas disse que para mim, como psiquiatra e como membro do Comitê Médico, a senhorita Bolam parecia ser uma pessoa de temperamento inadequado para o cargo que exercia. Sugeri que uma transferência viria atender aos interesses dela própria. Ninguém tinha críticas quanto a sua eficiência, e também não fiz nenhuma. Lauder tirou o corpo fora, é evidente, mas sabia perfeitamente bem que eu tinha direito de dar minha opinião. E acho que a acatou.” A dra. Maddox disse: “Levando em conta sua cautela natural, a desconfiança com que via os psiquiatras e a velocidade habitual de suas decisões administrativas, suponho que teríamos nos desvencilhado da senhorita Bolam no curso dos próximos dois anos. Não há dúvida de que alguém se encarregou de apressar as coisas.” De repente a dra. Ingram falou. Seu rosto rosado um tanto obtuso ficou desagradavelmente vermelho. Estava sentada dura na cadeira, e suas mãos, entrelaçadas diante dela sobre a mesa, tremiam. “Acho que vocês não deviam falar essas coisas. Não... não é direito. A senhorita Bolam morreu, foi brutalmente assassinada. E vocês ficam aí sentados, todos vocês, falando como se não dessem a mínima! Sei que ela era uma pessoa difícil, mas está morta, e acho que este não é o momento de falar mal dela.” A dra. Maddox olhou para a dra. Ingram com ar interessado e uma espécie de espanto, como se estivesse diante de uma criança excepcionalmente medíocre que de alguma maneira tivesse conseguido fazer uma observação inteligente. Disse: “Vejo que comunga da superstição de que nunca devemos falar a verdade sobre os mortos. As origens dessa crença atávica sempre me interessaram. Precisamos ter uma conversa sobre isso uma hora dessas. Eu gostaria de conhecer seus pontos de vista.” A dra. Ingram, vermelha de constrangimento e quase em lágrimas, deu a impressão de achar
que a conversa proposta seria um privilégio a evitar. O dr. Etherege disse: “Falar mal dela? Eu ficaria consternado se imaginasse que alguém aqui estava falando mal dela. Há certas coisas, porém, que nem é preciso dizer. Todos os membros deste comitê estão horrorizados com a brutalidade insensata da morte da senhorita Bolam. Quem não gostaria de têla de novo entre nós, fossem quais fossem seus defeitos como administradora?” A declaração patética constrangeu o grupo. Ao perceber a surpresa e o embaraço dos outros, o médico olhou em torno e perguntou, em tom de desafio: “Alguém discorda do que eu disse? Hein?” “Claro que não”, disse o dr. Steiner. Seu tom era tranqüilizador, mas os olhinhos penetrantes voltaram-se para o lado em busca do olhar de Baguley. Havia constrangimento naquele olhar, mas Baguley também reconheceu um brilho de malícia divertida. O diretor médico não estava levando as coisas muito bem. Deixara Albertine Maddox escapar de seu controle e agora sua liderança sobre o comitê mostrava-se menos firme do que antes. O patético da coisa, pensou Baguley, era que Etherege estava sendo sincero. Ele acreditava em tudo o que dissera. Nutria — como todos eles, aliás — um verdadeiro horror à violência. Era um homem amável, chocado e entristecido pela imagem de uma mulher indefesa sofrendo uma morte brutal. Mas suas palavras haviam soado falso. Buscara refúgio na formalidade, fazendo uma tentativa deliberada de baixar o tom emocional da reunião e impor um clima convencional e previsível, mas só conseguira parecer pouco sincero. Depois do desabafo da dra. Ingram, a reunião se desarticulou. O dr. Etherege fez algumas tentativas espasmódicas de controlá-la, mas a conversa perdeu o vigor e evoluiu sem rumo certo, passando de um assunto para outro e sempre e inexoravelmente voltando ao assassinato. A opinião geral era de que o Comitê Médico deveria manifestar um ponto de vista comum. Depois de tatear de hipótese em hipótese, os presentes acabaram decidindo apoiar a teoria do dr. Steiner. Era evidente que o assassino penetrara na clínica bem mais cedo naquele dia, quando o sistema de registro das pessoas que entravam e saíam não era tão rigoroso. Em seguida se introduzira no subsolo sem que ninguém percebesse, escolhera tranqüilamente suas armas e telefonara para a srta. Bolam pedindo-lhe que descesse, depois de verificar o número de sua extensão na cartela pendurada ao lado do telefone. Cometido o crime, subira para um dos andares superiores sem ser visto e saíra por uma das janelas, dando um jeito de fechá-la atrás de si antes de esgueirar-se pela frisa até chegar à escada de incêndio. O fato de que esse procedimento exigia uma dose considerável de sorte, associada a uma agilidade extraordinária, não foi enfatizado. Sob a liderança do dr. Steiner, a teoria foi detalhada. O telefonema da srta. Bolam para o secretário do grupo foi considerado irrelevante. Sem dúvida ela queria queixar-se de algum problema menor, real ou imaginário, sem conexão com sua morte subseqüente. A hipótese de que o assassino tivesse se içado pela corda da roldana no poço do elevador foi deixada de lado por ser um tanto fantasiosa, embora, como bem observou a dra. Maddox, um homem capaz de fechar uma janela pesada enquanto equilibrado no parapeito pelo lado de fora, depois balançar-se no espaço até alcançar a escada de incêndio a uma distância de um metro e meio, certamente não consideraria o poço do elevador um problema insolúvel. Cansado de tomar parte na fabricação daquele assassino mítico, o dr. Baguley entrecerrou os olhos e fitou o vaso de rosas pela fresta entre as pálpebras. As pétalas iam se abrindo devagar, quase visivelmente, na sala aquecida. Agora o vermelho, o verde e o rosa fundiam-se numa sobreposição amorfa de cores que se refletia na mesa envernizada. De repente abriu
completamente os olhos e viu o dr. Etherege olhando fixamente para ele. O olhar penetrante, analítico, mostrava preocupação; o dr. Baguley teve a impressão de que também mostrava piedade. O diretor médico disse: “Alguns dos membros deste comitê estão cansados. Acho que também estou. Se ninguém mais tem assuntos urgentes a tratar, declaro a reunião encerrada.” O dr. Baguley achou que não era inteiramente por acaso que ele e o diretor médico haviam ficado sozinhos na sala, sendo os últimos a sair. Enquanto testava as janelas para verificar se estavam bem fechadas, o dr. Etherege disse: “Bem, James, você já decidiu se quer ocupar meu lugar como diretor médico?” “É mais uma questão de decidir se vou ou não me candidatar ao cargo quando a vaga for aberta, não é mesmo? E Mason-Giles? E McBain?” “Mason-Giles não está interessado. O regime de dedicação integral o impediria de continuar dando aulas no hospital. McBain está comprometido com a nova unidade regional para adolescentes.” Era típico da ocasional falta de sensibilidade do diretor médico ele não tentar disfarçar o fato de que já sondara outros candidatos antes. Ele está raspando o tacho, pensou Baguley.” “E o Steiner?”, perguntou. “Suponho que ele vai se candidatar!” O diretor médico sorriu. “Ah, tenho a impressão de que o Conselho Regional não vai escolher o doutor Steiner. Esta clínica é multidisciplinar. Precisamos de alguém que exerça um papel hegemônico. E talvez grandes mudanças venham por aí. Você conhece meu ponto de vista. Se for para haver uma integração maior entre a psiquiatria e a clínica geral, talvez, para benefício de todos, um lugar como este tenha de desaparecer. Teríamos de dispor de leitos. Talvez a Steen encontre seu lugar natural no setor de pacientes-dia de algum hospital geral. Não estou afirmando que isso seja provável. Mas é possível.” Então era isso que o conselho estava querendo? Pelo jeito o dr. Etherege estava bem informado. Um pequeno hospital atendendo unicamente pacientes-dia, sem registros, sem programa de estágios e sem vínculo com um hospital geral podia muito bem parecer anacrônico aos olhos dos planejadores... O dr. Baguley disse: “Para mim dá no mesmo o lugar onde recebo meus pacientes, desde que me dêem paz e tranqüilidade, que mostrem uma certa tolerância e que não compliquem minha vida com muita hierarquia e muita camisa engomada. Estou de acordo com a idéia de criar setores psiquiátricos nos hospitais gerais — desde que o hospital nos proporcione o que vamos precisar em matéria de pessoal e espaço. Estou cansado demais para lutar.” Olhou para o diretor médico. “Na verdade eu tinha mais ou menos decidido não me candidatar. Liguei para sua sala ontem à noite da sala dos médicos para lhe perguntar se você queria conversar um pouco sobre o assunto na saída da clínica.” “É mesmo? A que horas?” “Mais ou menos às seis e vinte ou seis e vinte e cinco. Ninguém respondeu. Depois, evidentemente, tivemos outras questões com que nos preocupar.” “Eu devia estar na biblioteca”, disse o diretor médico. “E ainda bem que não estava em minha sala — se isso significa que você teve tempo para reconsiderar sua decisão. E espero que a reconsidere, James.” Apagou as luzes e os dois desceram juntos. Estacando ao pé da escada, o diretor médico virouse para Baguley e disse:
“Eram seis e vinte quando você telefonou? Isso é muito interessante. Interessantíssimo.” “Bem, acho que foi mais ou menos nesse horário.” Surpreso e irritado, o dr. Baguley percebeu que era ele, e não o diretor médico, quem parecia culpado e constrangido. Foi tomado por um intenso desejo de ir embora da clínica, de escapar do olhar azul, inquisidor, que estava tão habituado a colocá-lo em segundo plano. Mas faltava dizer uma coisa. Ao chegar à porta, obrigou-se a parar e encarar o dr. Etherege. Só que, embora tentasse parecer despreocupado, sua voz saiu forçada, quase beligerante: “Talvez fosse o caso de fazermos alguma coisa pela enfermeira Bolam.” “Em que sentido?”, perguntou o diretor médico, gentilmente. Como não obtivesse resposta, prosseguiu: “Todos os funcionários sabem que podem solicitar uma entrevista comigo no momento que quiserem. Mas eu não estou propriamente inclinado a receber confidências. Esta é uma investigação de assassinato, James, e está fora de meu controle. Totalmente fora de meu controle. Na minha opinião, você faria bem em assumir a mesma atitude. Passe bem”.
6
Segunda de manhã cedinho, aniversário da morte de sua mulher, Dalgliesh foi até uma pequena igreja católica atrás do Strand para acender uma vela. Sua mulher era católica. Ele não. Ela morrera antes de ele começar a entender o que o catolicismo significava para ela ou que importância essa diferença fundamental entre os dois poderia ter no seu casamento. Acendera a primeira vela no dia em que ela morrera, resultado da necessidade de formalizar uma dor intolerável e, quem sabe, com a esperança infantil de proporcionar algum conforto à alma dela. Aquela era a décima quarta vela que acendia. Para ele aquele ato extremamente íntimo que cultivava na privacidade de sua vida pessoal não estava ligado a superstição nem a piedade: era um hábito que agora não tinha condições de interromper, nem que quisesse. Sonhava raramente com a mulher, mas quando sonhava era com perfeita nitidez; ao acordar, já não conseguia se lembrar bem de seu rosto. Empurrou a moeda pela fenda e aproximou o pavio de sua vela da chama vacilante de um toco derretido. O fogo pegou na mesma hora, brilhante e claro. Para ele sempre fora importante que o pavio pegasse fogo na mesma hora. Contemplou a chama por um momento sem sentir nada, nem mesmo raiva. Depois se afastou. A igreja estava quase vazia, mas para ele aquela era uma atmosfera de intensa e silenciosa atividade que podia sentir, mas não partilhar. Enquanto andava na direção da porta reconheceu uma mulher de casaco vermelho, com o cabelo coberto por uma echarpe verde-escura, que parara para mergulhar os dedos na pia de água benta. Era Fredrica Saxon, psicóloga sênior da Clínica Steen. Os dois chegaram juntos à porta externa; ele empurrou a porta e segurou-a para que a srta. Saxon saísse ao encontro de uma rajada repentina de vento outonal. Ela sorriu amistosamente para ele, sem o menor embaraço. “Oi! Nunca o vi por aqui antes!” “Só venho uma vez por ano”, respondeu Dalgliesh. Não ofereceu nenhuma explicação, e ela não perguntou nada. Em vez de perguntar, disse: “Eu queria vê-lo. Tem uma coisa que acho que deveria saber. Está de folga? Se não estiver, será que poderia agir contra a ortodoxia, conversando com uma suspeita enquanto toma um café? Prefiro não ir a seu escritório, e não é fácil marcar um encontro na clínica. Seja como for, estou precisando de um café. Está frio!” “Acho que havia uma cafeteria virando aquela esquina”, disse Dalgliesh. “O café é tolerável e o lugar tranqüilo.” O estabelecimento mudara bastante em um ano. Dalgliesh se lembrava de uma cafeteria limpa mas sem graça; uma fileira de mesas cobertas com toalhas de plástico e um balcão comprido decorado com um samovar e pilhas de sanduíches substanciais debaixo de redomas de vidro. Mas o lugar subira na vida. As paredes haviam sido revestidas com uma imitação de carvalho antigo; pendurado nas paredes havia um formidável sortimento de adagas, pistolas antigas e alfanjes de autenticidade incerta. As garçonetes pareciam debutantes avant-garde ganhando um dinheirinho para seus caprichos, e a iluminação era discreta a ponto de parecer positivamente sinistra. A srta. Saxon dirigiu-se para uma mesa no canto mais afastado e Dalgliesh a seguiu. “Só café?”, perguntou Dalgliesh. “Só café, por favor.” Ela esperou que ele fizesse o pedido, depois disse:
“É sobre o doutor Baguley.” “Imaginei que fosse.” “Era previsível que ficasse sabendo. Prefiro contar-lhe agora a esperar que me pergunte, e prefiro que seja eu a contar-lhe do que Amy Shorthouse.” Ela falava sem o menor rancor e também sem embaraço. Dalgliesh respondeu: “Eu não havia perguntado nada porque achei que não fosse relevante, mas se quiser me contar, pode ser que venha a ser útil.” “Só não quero que faça uma idéia errada do assunto. Seria fácil que imaginasse que nós havíamos ficado magoados com a senhorita Bolam. Mas não ficamos, sabe? Houve um momento em que até nos sentimos gratos a ela.” Dalgliesh não precisava perguntar a quem ela estava se referindo com aquele “nós”. A garçonete, desinteressada, se aproximou com o café, uma espuma descorada servida em pequenas xícaras transparentes. A srta. Saxon fez com que o casaco lhe escorregasse dos ombros e desamarrou a echarpe da cabeça. Os dois envolveram suas xícaras quentes com os dedos. Ela se serviu de açúcar, depois empurrou o açucareiro de plástico para Dalgliesh, do outro lado da mesa. Não estava tensa nem constrangida. Era direta como uma escolar tomando café com um amigo. Ele a achou uma companhia estranhamente tranqüilizadora, talvez por não se sentir fisicamente atraído por ela. Mas gostava dela. Era difícil acreditar que aquela fosse apenas a segunda vez que se viam e que o assunto que os aproximara tivesse sido um assassinato. Ela sorveu a espuma de seu café e depois disse, sem erguer os olhos: “James Baguley e eu nos apaixonamos há mais ou menos três anos. Não houve maiores dilemas morais. Não fomos em busca do amor, mas confesso que não o combatemos. Afinal de contas, ninguém desiste voluntariamente da felicidade, a não ser que se trate de um masoquista ou de um santo, e não somos nenhuma das duas coisas. Eu sabia que James tinha uma esposa neurótica porque esse é o tipo de coisa que a pessoa acaba sabendo, mas ele não falava muito sobre ela. Os dois aceitávamos o fato de que a esposa precisava dele e de que um divórcio estava fora de questão. Tratamos de nos convencer de que não estávamos fazendo nenhum mal a ela e de que ela não precisava ficar sabendo. James costumava dizer que o fato de me amar tornava seu casamento mais feliz para ele e para ela. Claro, é mais fácil ser amável e paciente quando se está feliz, de modo que talvez ele tivesse razão. Não sei. Essa é uma racionalização que deve ser usada por milhares de amantes. “Não podíamos nos encontrar com muita freqüência, mas eu tinha meu apartamento e em geral conseguíamos ficar juntos duas tardes por semana. Uma vez Helen — esse é o nome da esposa dele — foi para a casa da irmã e tivemos uma noite inteira para nós. Era preciso tomar cuidado na clínica, claro, mas na verdade não nos encontrávamos tanto assim por lá.” “E como a senhorita Bolam ficou sabendo?”, perguntou Dalgliesh. “Foi uma bobagem, na verdade. Fomos ao teatro ver uma peça de Anouilh e ela estava sentada sozinha na fileira de trás. Afinal, quem ia imaginar que Enid Bolam pudesse ter vontade de assistir Anouilh? Imagino que alguém tenha lhe mandado um ingresso gratuito. Estávamos completando dois anos de namoro e ficamos a peça inteira de mãos dadas. Talvez estivéssemos um pouco altos. Depois saímos do teatro ainda de mãos dadas. Qualquer pessoa da clínica, qualquer dos nossos conhecidos, poderia ter nos visto. Estávamos ficando descuidados e mais cedo ou mais tarde alguém acabaria nos vendo juntos. Foi puro acaso que esse alguém tivesse sido a Enid. É provável que se fosse alguma outra pessoa ela tivesse achado melhor cuidar da própria vida.” “Mas sendo Enid Bolam, ela foi correndo contar para a senhora Baguley? Parece uma atitude
oficiosa e cruel...” “Na verdade não foi. Enid não via as coisas por esse prisma. Era uma dessas pessoas raras e afortunadas que nem por um momento duvidam de que sabem a diferença entre o certo e o errado. Não tinha imaginação, de modo que era incapaz de penetrar nos sentimentos dos outros. Se fosse a esposa de um marido infiel, tenho certeza de que gostaria de ser informada a respeito. Para ela, nada seria pior do que não saber. Tinha o tipo de força que sente prazer no confronto. Suponho que tenha achado que tinha o dever de contar. Seja como for, numa quarta-feira à tarde Helen apareceu na Steen inesperadamente para falar com o marido, e a senhorita Bolam chamoua até sua sala e lhe contou. Muitas vezes fico me perguntando o que, exatamente, teria dito. Imagino que tenha dito que estávamos ‘tendo um caso’. Era capaz de fazer quase tudo parecer vulgar.” “Mas estava correndo um risco, não estava?”, disse Dalgliesh. “Dispunha de pouquíssimos indícios e de nenhuma prova...” A srta. Saxon riu. “Está falando como um policial. Tinha provas suficientes, sim. Mesmo Enid Bolam sabia reconhecer o amor, quando deparava com ele. Além disso, estávamos nos divertindo juntos sem autorização, e só isso já era infidelidade que chegue...” As palavras eram amargas, mas ela não parecia ressentida nem sarcástica. Tomava seu café com prazer evidente. Dalgliesh teve a sensação de que ela poderia estar falando sobre um dos pacientes da clínica, discutindo os caprichos da natureza humana com um vago e remoto interesse profissional. Mas nem por isso achava que ela amasse facilmente ou que suas emoções fossem superficiais. Perguntou-lhe qual havia sido a reação da sra. Baguley. “Isso é que foi extraordinário. Pelo menos assim nos pareceu na ocasião. Ela aceitou a coisa muito bem. Retrospectivamente, pergunto-me se nós três não estávamos loucos de atar, vivendo em algum tipo de mundo imaginário que dois minutos de pensamento racional teriam mostrado que não podia existir. Helen vive sua vida encarnando esta ou aquela atitude, e a atitude que resolveu adotar na ocasião foi a pose da esposa valente e compreensiva. Insistiu que queria o divórcio. Seria um desses divórcios amistosos, do tipo que só é possível, em minha opinião, quando as pessoas deixaram de gostar uma da outra, ou nunca gostaram, ou nunca foram capazes de gostar. Houve muita discussão. A felicidade de todo mundo precisava ser salvaguardada. Helen ia abrir uma butique de roupas — ela falava nisso havia um bom tempo. Os três nos envolvemos com o assunto e começamos a procurar um local adequado. Uma coisa patética, na verdade. O que aconteceu é que nos enganamos, como se tudo pudesse dar certo. É por isso que eu disse que James e eu nos sentíamos gratos para com Enid Bolam. As pessoas da clínica começaram a saber que ia haver um divórcio e que Helen ia deixar o James para que ele ficasse comigo — tudo parte da política de franqueza e transparência —, mas quase nada nos foi dito. Enid Bolam nunca mencionou o divórcio a quem quer que fosse. Não era fofoqueira nem maldosa. Desta ou daquela maneira, as pessoas ficaram sabendo da participação dela no assunto. Acho que talvez Helen tenha contado a alguém, mas a senhorita Bolam e eu jamais tocamos no assunto. “Então o inevitável aconteceu. Helen começou a surtar. James tinha deixado a casa de Surrey para ela e estava vivendo comigo em meu apartamento, mas era obrigado a vê-la com bastante freqüência. No começo quase não falava sobre o assunto, mas eu sabia o que estava acontecendo. Ela estava doente, claro, e nós dois sabíamos disso. Ela desempenhara o papel da esposa paciente e generosa e, como nos romances e nos filmes, agora o marido tinha de voltar para ela. E James não voltava. Ele quase não me contava essas coisas, mas eu imaginava as conseqüências da situação para ele: as cenas, as lágrimas, as súplicas, as ameaças de suicídio... Num momento ela
aceitava o divórcio e no momento seguinte se recusava a deixá-lo livre. Claro, não tinha como. Hoje eu percebo. Estava acima de suas forças. É degradante falar de um marido como se ele fosse um cachorro amarrado no quintal. E, enquanto isso acontecia, eu me dava conta cada vez mais claramente de que não podia continuar. Um processo que se desenvolvera lentamente ao longo dos anos chegou ao fim. Não adianta falar sobre o assunto nem tentar explicá-lo. Não é importante para sua investigação, não é mesmo? Nove anos antes eu começara a me preparar, com a intenção de ser aceita pela igreja católica. Quando isso aconteceu, Helen retirou a petição e James voltou para ela. Acho que ele já não se importava com o que lhe acontecesse ou com o lugar para onde ia. Mas dá para perceber que ele não tinha razões para odiar Enid Bolam, não é mesmo? O inimigo era eu.” Dalgliesh refletiu consigo mesmo que naquele caso o combate provavelmente fora curto. O rosto rosado e saudável de Fredrica, com seu nariz largo e levemente arrebitado e a boca ampla e otimista, não combinava com tragédias. Relembrou o aspecto do dr. Baguley à luz do abajur sobre a escrivaninha da srta. Bolam. Era tolo e presunçoso tentar avaliar o sofrimento de alguém pelas rugas em seu rosto ou pela expressão de seu olhar. Provavelmente a inteligência da srta. Saxon era tão sólida e exuberante quanto seu corpo. O fato de ela ser capaz de resistir melhor não significava que sentisse menos. Sentiu muita pena de Baguley, rejeitado pela amante no momento mais crucial para ser substituído por uma alegria pessoal que não podia partilhar nem compreender. Provavelmente ninguém era capaz de entender a magnitude daquela traição. Dalgliesh não fez de conta que entendia a srta. Saxon. Não era difícil imaginar o que algumas pessoas da clínica diriam daquilo. Era muito fácil encontrar explicações simplistas. Mas Dalgliesh era incapaz de acreditar que Fredrica Saxon se encastelara na religião para fugir da própria sexualidade ou para não ter de encarar a realidade. Em seguida, pensou em algumas das coisas que ela lhe dissera a respeito de Enid Bolam: “Quem ia imaginar que Enid Bolam pudesse ter vontade de assistir Anouilh? Imagino que alguém tenha lhe mandado um ingresso gratuito. Mesmo Enid Bolam sabia reconhecer o amor, quando deparava com ele... Era capaz de fazer quase tudo parecer vulgar.” As pessoas não ficam automaticamente generosas só porque abraçaram uma religião. Mas Fredrica não havia falado aquelas coisas com maldade... Simplesmente dissera o que pensava; se fosse discorrer sobre seus próprios motivos seria igualmente objetiva. Talvez fosse a melhor juíza de caráter da clínica. De repente, desafiando a ortodoxia, Dalgliesh perguntou: “Em sua opinião, quem é o assassino, senhorita Saxon?” “Considerando o caráter e a natureza do crime e sem levar em conta os misteriosos telefonemas feitos do subsolo, os rangidos do elevador e os aparentes álibis?” “Sim, considerando o caráter e a natureza do crime. Sem hesitar e sem relutância aparente, declarou: “Eu diria que foi Peter Nagle.” Dalgliesh sentiu uma fisgada de desapontamento. Sua idéia de que ela talvez soubesse fora irracional. “Por que Nagle?”, perguntou. “Em parte porque eu acho que esse crime foi cometido por um homem. A estocada é significativa. Não consigo ver uma mulher assassinando alguém desse modo. Diante de uma vítima inconsciente, acho que uma mulher optaria pelo estrangulamento. E tem o formão. O fato de ele ter sido usado com tanta perícia poderia significar que havia uma identificação da arma com o assassino. Se não fosse assim, para que o formão? Era só golpear a vítima várias vezes com a
estátua.” “Muita desordem, muito barulho e menos segurança”, disse Dalgliesh. “Mas o formão só era seguro nas mãos de um homem que tivesse confiança em sua capacidade de usá-lo, alguém que literalmente ‘soubesse usar as mãos’. Não consigo imaginar o doutor Steiner matando alguém daquele jeito, por exemplo. Ele seria incapaz até mesmo de cravar um prego sem quebrar o martelo.” Dalgliesh também estava inclinado a achar que o dr. Steiner era inocente. Mais de um dos membros da equipe da clínica mencionara o fato de que ele era desajeitado com as ferramentas. Era verdade que ele mentira ao negar que sabia onde o formão costumava ser guardado, mas Dalgliesh achava que fizera isso por medo, e não por culpa. E sua confissão descarada de que adormecera enquanto esperava pelo sr. Burge tinha um tom de verdade. Dalgliesh disse: “A identificação do formão com Nagle é tão evidente que tenho a impressão de que houve a intenção de induzir-nos a suspeitar dele. E sua opinião é essa mesmo?” “Ah, não! Sei que não poderia ter sido o Nagle. Só dei aquela resposta porque a pergunta foi formulada do jeito que foi. Fiz um julgamento a partir do caráter e da natureza do crime.” Haviam terminado o café; Dalgliesh achou que ela haveria de querer ir embora. Mas pelo jeito Fredrica não estava com pressa. Depois de um intervalo, disse: “Tenho uma confissão a fazer — na verdade, em nome de outra pessoa. É o Cully. Nada muito importante, mas é uma coisa que o senhor precisa saber e que prometi lhe contar. O coitado do velho Cully está aterrorizado, fora de si de medo.” “Eu sabia que ele estava me escondendo alguma coisa”, disse Dalgliesh. “Suponho que tenha visto alguém atravessar o vestíbulo.” “Não, não. Nada assim tão útil. É sobre o avental de borracha que desapareceu do departamento de arte-terapia. Imagino que tenha concluído que foi usado pelo assassino. Bem, na verdade Cully levou o avental emprestado na segunda-feira passada. Queria usá-lo para pintar a cozinha de sua casa. Sabe a sujeira que é, pintar uma parede... Ele não pediu licença à senhorita Bolam porque sabia que ela não autorizaria, e não tinha como falar com a senhora Baumgarten porque ela está de licença. Cully pretendia devolver o avental na sexta-feira, mas a irmã estava conferindo o inventário com o policial, e quando os dois perguntaram se ele sabia do avental o coitado perdeu a cabeça e falou que não sabia. Não é muito inteligente, e entrou em pânico pensando que, se admitisse ter levado o avental, seria acusado de assassinato.” Dalgliesh quis saber quando Cully contara esses fatos. “Eu sabia que ele estava com o avental porque casualmente vi quando ele o pegou. Imaginei que devia estar muito nervoso com a história e fui falar com ele ontem de manhã. Quando ele se preocupa com alguma coisa, fica com dor de estômago, e achei que alguém precisava ajudá-lo.” “Onde se encontra o avental neste momento?”, perguntou Dalgliesh. A srta. Saxon riu. “Espalhado por Londres inteira, dentro de meia dúzia de latas de lixo — isso se as latas não tiverem sido esvaziadas. O coitado do velho Cully não teve coragem de jogá-lo na lixeira do edifício onde mora porque achou que a polícia daria uma busca por lá, e não teve como queimá-lo porque mora num apartamento da municipalidade equipado com aquecimento elétrico, sem caldeira — e o fogão é elétrico. De modo que esperou a mulher ir se deitar e ficou acordado até as onze da noite picando o avental em pedacinhos com a tesoura da cozinha. Pôs os pedaços em vários sacos de papel, enfiou os sacos numa mala de lona e tomou o ônibus 36, que sobe a
Harrow Road, até um ponto bem afastado do lugar onde mora. Depois enfiou um saco de papel em cada lata de lixo que encontrou e jogou os botões de metal dentro de um bueiro. Foi um empreendimento de grandes proporções, e o pobre sujeito mal conseguiu se arrastar para casa de tanto medo, cansaço — acabou perdendo o último ônibus — e, para arrematar, de dor de estômago. Quando passei por lá ontem de manhã ele estava acabado, mas consegui convencê-lo de que não era uma questão de vida ou morte — principalmente morte. Falei pra ele que lhe contaria o que tinha acontecido.” “Obrigado”, disse Dalgliesh com gravidade. “Suponho que não tenha outras confissões a me transmitir... Ou será que tem alguma objeção de consciência ao fato de entregar um pobre psicopata à justiça?” Ela riu, enquanto vestia o casaco e amarrava a echarpe sobre o cabelo escuro e encaracolado. “Não, não! Se soubesse quem foi, lhe contaria. Não gosto de assassinatos e sou muito respeitadora da lei. Mas não sabia que estávamos falando sobre justiça. O senhor é que utilizou a palavra. Como Portia, sinto que no rumo da justiça nenhum de nós encontraria salvação. Deixe, por favor! Prefiro pagar eu mesma por meu café.” “Ela não quer ter a sensação de que comprei informações dela”, pensou Dalgliesh, “nem que fosse por um shilling.” Resistiu à tentação de dizer que o café podia ser incluído nas despesas da investigação, refletindo por um momento sobre aquele impulso de ser sarcástico que ela despertava nele. Gostava dela, mas alguma coisa o irritava em sua segurança, em sua autosuficiência. Vai ver que era inveja. Quando saíram da cafeteria ele perguntou se ela estava a caminho da Clínica Steen. “Hoje, não. Não tenho pacientes nas manhãs de segunda-feira. Mas amanhã estarei lá.” Agradeceu formalmente o café e os dois se despediram. Ele foi andando para leste, na direção da Steen, e ela desapareceu na direção da Strand. Enquanto olhava a silhueta escura e esguia afastar-se, imaginou Cully esgueirando-se no meio da noite com sua bagagem patética, semipetrificado de pavor. Não estava surpreso com o fato de que o velho porteiro confiasse tão cegamente em Fredrica Saxon; no lugar de Cully, provavelmente teria feito a mesma coisa. Ela lhe fornecera muitas informações interessantes, pensou. Só não conseguira lhe fornecer uma coisa: um álibi para si própria e para o dr. Baguley.
A sra. Bostock, caderneta de taquigrafia em punho, estava sentada ao lado da cadeira do dr. Etherege com as pernas elegantes cruzadas e a cabeça de flamingo erguida para receber, com graciosa seriedade, as instruções do diretor médico. “O inspetor Dalgliesh telefonou para dizer que em breve estará aqui. Quer falar outra vez com alguns membros da equipe e pediu para conversar comigo antes do almoço.” “Não vejo como encaixá-lo antes do almoço, doutor”, disse a sra. Bostock com ar de censura. “Tem a reunião com o Comitê Médico às duas e meia, e o senhor ainda não teve tempo de dar uma olhada na agenda. O doutor Talmage, dos Estados Unidos, marcou hora para meio-dia e meia e eu estava contando com uma hora de ditado a partir das onze.” “Isso vai ter de ficar para depois. Desconfio que o inspetor vai ocupar boa parte de seu tempo, também. Tem algumas perguntas a lhe fazer sobre a rotina da clínica.” “Acho que não estou entendendo, doutor. O senhor está me dizendo que ele está interessado nos procedimentos administrativos da clínica?” O tom de voz da sra. Bostock era uma bela mistura de surpresa e desaprovação.
“Tudo indica”, respondeu o dr. Etherege. “Ele mencionou a agenda de consultas, o fichário dos diagnósticos, as providências para o registro de chegada e saída da correspondência e o sistema de fichamentos médicos. É melhor a senhora falar pessoalmente com ele. Se eu quiser ditar, mando chamar a senhorita Priddy.” “Claro que vou colaborar em tudo o que estiver ao meu alcance”, disse a sra. Bostock. “É uma pena que ele tenha escolhido justamente uma das nossas manhãs mais ocupadas. Se eu soubesse o que ele está pretendendo, teria podido organizar um roteiro de atividades para ele!” “Todos gostaríamos de saber!”, retrucou o diretor médico. “Acho que deve simplesmente responder da melhor maneira possível ao que ele lhe perguntar. E, por favor, diga ao Cully que ligue para mim assim que quiser subir.” “Está bem, doutor”, disse a sra. Bostock, admitindo a derrota. E se retirou. Embaixo, na sala de eletrochoque, o dr. Baguley vestia o avental branco, ajudado pela enfermeira Bolam. “Na quarta-feira, como de costume, a senhora King virá para seu tratamento com lsd. Acho que será melhor utilizarmos uma das salas de assistêcia social psiquiátrica do terceiro andar. Nas tardes de quarta-feira a senhorita Kettle não vem à clínica, não é mesmo? Troque uma palavrinha com ela. Como alternativa, podemos usar a sala da senhora Kallinski ou uma das saletas de entrevista, nos fundos.” A enfermeira Bolam disse: “Não vai ser muito confortável para o senhor, doutor. Significa subir dois lances de escada quando eu chamar.” “Não vou morrer por causa disso. Posso parecer senil, mas ainda tenho o uso das minhas pernas.” “Tem a questão da cama, doutor. Acho que podemos subir uma das macas de recuperação da clínica de eletrochoque.” “Peça ao Nagle para se ocupar disso. Não quero vê-la sozinha naquele subsolo.” “Não estou nem um pouco assustada, doutor Baguley, acredite.” O dr. Baguley perdeu a paciência. “Pelo amor de Deus, use a cabeça, enfermeira. Claro que está assustada! Existe um assassino à solta em algum lugar desta clínica, e ninguém — com exceção de uma pessoa — vai se sentir tranqüilo estando sozinho no subsolo, mesmo que por pouco tempo. Se é verdade que não está assustada, pelo menos tenha o bom senso de esconder esse fato, especialmente da polícia. Onde está a irmã? Na secretaria?” Perturbado, o dr. Baguley pegou o telefone e discou. “Irmã? Baguley falando. Acabo de dizer à enfermeira Bolam que esta semana não estou inclinado a usar a sala do subsolo para o tratamento com lsd.” A voz da irmã Ambrose respondeu com nitidez: “Como quiser, doutor. Sem dúvida. Mas se a sala do subsolo for mais conveniente e conseguirmos que um dos hospitais gerais do grupo empreste uma enfermeira substituta para a clínica de eletrochoque, terei muito prazer em fazer companhia à enfermeira Bolam lá embaixo. Podemos dar assistência à senhora King juntas.” O dr. Baguley disse, sem encompridar o assunto: “Quero que permaneça na clínica de eletrochoque co-mo sempre, irmã. A paciente do lsd será atendida no andar de cima. Espero ter sido claro.”
Duas horas depois, na sala do diretor médico, Dalgliesh depositou três caixas pretas de metal sobre a escrivaninha do dr. Etherege. As caixas, que tinham furos redondos nos dois lados menores, estavam cheias de cartões beges — era o fichário dos diagnósticos da clínica. Dalgliesh disse: “A senhora Bostock me explicou como funciona. Se entendi corretamente, cada um desses cartões representa um paciente. As informações contidas no arquivo são codificadas, e o código do paciente é perfurado no cartão. Os cartões são perfurados com fileiras regulares de furinhos, e o espaço entre cada um deles é numerado. Depois de perfurar um número qualquer com o perfurador manual, recorto a ficha entre os dois furos adjacentes e faço um corte oblongo. Se em seguida esta haste de metal for inserida, por exemplo, no número 20 da parte externa da caixa e depois empurrada de modo a atravessar os cartões, e se a caixa for girada, todos os cartões que tiverem sido perfurados com aquele número vão sobressair. Esse é, na realidade, um dos mais simples dos muitos sistemas de perfuração de cartões existentes no mercado. E um dos mais simples.” “É verdade. Nós o utilizamos principalmente como fichário dos diagnósticos e para pesquisa.” Se o diretor médico ficou surpreso com o interesse de Dalgliesh, absteve-se de fazer comentários. O inspetor continuou: “A senhora Bostock me disse que vocês só codificam os registros dos casos depois que o paciente conclui o tratamento, e que o sistema foi iniciado em 1952. Isso significa que os pacientes atualmente em tratamento ainda não possuem um cartão — a não ser, evidentemente, que tenham estado sob tratamento aqui no passado — e que os que concluíram seus tratamentos antes de 1952 não estão incluídos.” “Isso mesmo. Gostaríamos de incluir os casos anteriores, mas é uma questão de tempo da equipe. A codificação e a perfuração exigem tempo, e é o tipo de trabalho que acaba ficando em segundo plano. Atualmente estamos codificando as altas de fevereiro de 1962, de modo que estamos um pouco atrasados.” “Mas depois que o cartão do paciente foi perfurado, é possível selecionar qualquer diagnóstico ou categoria de paciente que se deseje?” “Sim, claro.” O diretor médico abriu seu sorrisinho lento e suave. “Não vou dizer que conseguimos separar imediatamente todos os depressivos locais cujas avós fossem filhas legítimas e tivessem olhos azuis porque não codificamos os dados relativos aos avós. Mas tudo aquilo que estiver codificado pode ser extraído sem o menor problema.” Dalgliesh pôs sobre a mesa uma pasta fina de cartolina. “A senhora Bostock me emprestou as instruções da codificação. Vejo que vocês registram o sexo, a idade, o estado civil, o endereço, o diagnóstico, o médico que tratou o paciente, as datas da primeira consulta e de todas as subseqüentes, e um número considerável de detalhes sobre sintomas, tratamento e desenvolvimento da situação. Também codificam a classe social. Interessante.” “De fato, não é comum”, respondeu o dr. Etherege. “Principalmente, parece-me, porque pode ser uma avaliação puramente subjetiva. Mas quisemos incluir esse dado porque às vezes ele é útil para a pesquisa. Como vê, usamos as classes definidas pelo censo. Para nossos objetivos, são suficientemente acuradas.” Dalgliesh girou a fina haste de metal entre os dedos. “Quer dizer que eu poderia selecionar, por exemplo, os cartões dos pacientes da classe A
submetidos a tratamento no período entre oito e dez anos atrás, casados, pais de família, e que sofressem, por exemplo, de alguma aberração sexual, ou de cleptomania, ou de qualquer outra desordem de personalidade socialmente inaceitável?” “Poderia”, admitiu o diretor médico calmamente. “Mas não vejo por que faria isso.” “Chantagem, doutor. Me ocorre que temos aqui um equipamento impecável para a pré-seleção de uma vítima. É só introduzir a haste que o cartão desejado pula fora. O cartão tem um número no canto direito superior. E lá embaixo, na sala dos arquivos, a pasta médica está arquivada esperando...” O diretor médico disse: “Pura suposição. Não há nem sombra de prova”. “É verdade, não há prova, mas é uma possibilidade razoável. Considere os fatos. Na quarta-feira à tarde a senhorita Bolam encontrou-se com o secretário do grupo depois da reunião do comitê e lhe disse que tudo ia bem na clínica. Ao meio-dia e quinze da sexta-feira telefonou pedindo para falar com ele urgentemente porque ‘tem uma coisa acontecendo aqui sobre a qual ele precisa ser informado’. Era uma coisa grave e constante, uma coisa que começara antes de seu tempo aqui, ou seja, há mais de três anos.” “Fosse lá o que fosse, não temos por que concluir que tenha sido a razão de sua morte.” “Não.” “Na verdade, se o assassino queria impedir que a senhorita Bolam se encontrasse com Lauder, esperou muito para agir. Nada impedia o secretário do grupo de passar por aqui em qualquer horário a partir da uma da tarde.” Dalgliesh disse: “Ela foi informada pelo telefone de que ele só conseguiria chegar à clínica depois da reunião do Conselho Consultivo, naquela tarde. Isso nos leva a tentar imaginar quem poderia ter ouvido a conversa telefônica. Oficialmente, Cully estava na mesa, mas como ele não se sentiu bem o dia inteiro, de vez em quando outros membros da equipe assumiam seu lugar, às vezes só por alguns minutos. Nagle, a senhora Bostock, a senhorita Priddy e até a senhora Shorthouse dizem que em algum momento tomaram conta da mesa telefônica. Nagle tem a impressão de ter substituído Cully por um período curto, por volta do meio-dia, antes de sair para tomar sua cerveja da hora do almoço, mas diz que não tem absoluta certeza. Cully também não tem. Ninguém assume a responsabilidade por ter transferido essa ligação específica.” “Vai ver que a pessoa que estava na mesa não sabe que foi ela”, replicou o dr. Etherege. “Sempre insistimos para que o operador não escute os telefonemas. Afinal de contas, isso é importante no nosso trabalho. Talvez a senhorita Bolam só tenha pedido uma ligação para os escritórios do grupo — sem dizer com quem pretendia falar. Ela devia ligar freqüentemente para os departamentos financeiro e de abastecimento, e também para o secretário do grupo. O operador não teria como saber que aquela ligação tinha uma importância especial. Enid pode inclusive ter pedido acesso a uma linha externa e ter ligado ela mesma... Isso é possível, lógico, com o sistema de pabx.” “Mesmo assim, a pessoa que estivesse tomando conta da mesa telefônica poderia ouvir a conversa.” “É, se entrasse na linha, acho que poderia.” Dalgliesh disse: “A senhorita Bolam disse a Cully no fim da tarde que estava esperando o senhor Lauder e pode ter mencionado a visita a outras pessoas. Não sabemos. Ninguém quer admitir que sabia do fato, só o Cully. Nas circunstâncias, talvez isso não seja surpreendente. No momento, não adianta
insistir no assunto. O que preciso fazer agora é descobrir o que a senhorita Bolam queria dizer ao senhor Lauder. Uma das primeiras possibilidades a considerar, ainda mais num lugar como este, é a chantagem. Se for, só Deus sabe se continua — e o assunto é muito sério. O diretor médico ficou um momento sem falar. Dalgliesh tentou adivinhar se ele estava pensando em fazer algum protesto, se escolhia as palavras para exprimir preocupação ou incredulidade. Depois ele disse em voz baixa: “Claro que o assunto é sério. Não há necessidade de desperdiçar tempo discutindo sua seriedade. Evidente, depois de formular essa teoria o senhor tem de levar a investigação adiante. Qualquer outro procedimento seria extremamente injusto com os membros de minha equipe. O que quer que eu faça?” “Que me ajude a selecionar uma vítima. Depois, talvez, a dar alguns telefonemas.” “O senhor está ciente, inspetor, de que os registros médicos são confidenciais?” “Não estou pedindo para ver nenhum registro médico. Se pedisse, porém, tanto o senhor como o paciente não teriam por que preocupar-se. Podemos começar? Podemos separar nossos pacientes da classe A. O senhor poderia ir lendo os códigos para mim?” Um número considerável dos pacientes da Steen pertencia à classe A. “Só atendemos a neuroses da classe dominante”, pensou Dalgliesh. Depois de contemplar os arquivos por um momento, disse: “Se eu fosse o chantagista, escolheria um homem ou uma mulher? É provável que isso dependesse de meu próprio sexo. Uma mulher talvez preferisse uma mulher. Mas se fosse necessário que a vítima tivesse uma renda regular, suponho que fosse preferível um homem. Vamos separar as fichas de pacientes do sexo maxculino. Imagino que nossa vítima viva fora de Londres. Seria arriscado escolher um ex-paciente para quem fosse fácil ceder à tentação de aparecer na clínica e informá-lo sobre o que estava acontecendo. Acho que eu escolheria minha vítima numa cidadezinha ou num vilarejo. O diretor médico disse: “Quando o paciente mora fora de Londres, só codificamos o país. Os pacientes londrinos estão classificados por bairro. Acho que a melhor coisa a fazer é excluir todos os endereços de Londres e examinar os restantes.” Isso foi feito. Ficaram apenas poucas dúzias de cartões. Como seria de esperar, a maioria dos pacientes da Steen vivia no condado de Londres. Dalgliesh disse: “Casado ou solteiro? É difícil concluir quem seria mais vulnerável. Deixemos esse ponto em aberto e passemos ao diagnóstico. Aqui, sua ajuda é fundamental, doutor. Entendo que essas informações são altamente confidenciais. Sugiro que me diga os códigos correspondentes aos diagnósticos ou sintomas que um chantagista pudesse julgar particularmente atraentes. Não quero saber dos detalhes.” Mais uma vez, o diretor médico fez uma pausa. Dalgliesh esperou pacientemente, haste de metal na mão, enquanto o médico contemplava em silêncio o livro de códigos aberto diante dele. Dava a impressão de não vê-lo. Um minuto depois, pareceu acordar e fixou os olhos na página. Disse: “Experimente os códigos 23, 68, 69 e 71.” Agora restavam apenas onze cartões. Cada um deles exibia um número no alto da margem direita — o número do registro médico. Dalgliesh anotou esses números e disse: “É impossível ir mais longe do que isso com o fichário dos diagnósticos. Agora precisamos fazer o que eu imagino que nosso chantagista tenha feito, ou seja, dar uma olhada nos registros médicos
e obter mais informações sobre nossas possíveis vítimas. Vamos até o subsolo?” O diretor médico se ergueu sem dizer palavra. Enquanto desciam para o térreo, cruzaram com a senhorita Kettle, que subia as escadas. Ela cumprimentou o diretor médico com um gesto de cabeça e dirigiu a Dalgliesh um olhar breve e interrogativo, como se tentasse lembrar-se se já o encontrara antes. No vestíbulo, o dr. Baguley falava com irmã Ambrose. Os dois se interromperam e se viraram para observar com ar sério, compenetrado, o dr. Baguley e Dalgliesh a caminho das escadas que levavam ao subsolo. Na outra extremidade do vestíbulo, era possível avistar o contorno grisalho da cabeça de Cully do outro lado do vidro do balcão de recepção. A cabeça não se virou, e Dalgliesh concluiu que Cully, imerso na contemplação da porta de entrada, não os ouvira chegar. A sala dos arquivos estava trancada, mas o lacre fora retirado. No quartinho dos porteiros, Nagle vestia o casaco — evidentemente de saída para o almoço. Não reagiu quando o diretor médico retirou a chave da sala dos arquivos de seu ganchinho, mas Dalgliesh viu o lampejo de interesse que iluminou seus pacatos olhos castanhos. O médico e o inspetor haviam sido devidamente observados. No início da tarde todos os funcionários da clínica estariam sabendo que ele havia examinado o fichário dos diagnósticos na companhia do diretor médico e que depois fora até a sala dos arquivos. A informação interessaria tremendamente a alguém. Dalgliesh esperava que o assassino se assustasse, se desesperasse; o que ele temia era que se tornasse ainda mais perigoso. O dr. Etherege acendeu a luz da sala dos arquivos, e os tubos fluorescentes faiscaram, soltando uma luz amarela para depois emitir uma intensa luz branca. O aposento inteiro ficou visível. Dalgliesh sentiu outra vez seu cheiro característico, composto de mofo, papel velho e metal. Não manifestou nenhuma emoção quando o diretor médico trancou a porta por dentro e guardou a chave no bolso. Nada indicava que ali ocorrera um assassinato. As pastas rasgadas haviam sido restauradas e recolocadas nas estantes; a cadeira e a mesa estavam de pé, em sua posição habitual. As pastas estavam amarradas em maços de dez. Algumas davam a impressão de estar guardadas havia tanto tempo que pareciam grudadas umas nas outras. O barbante abria um sulco nas bordas das capas de cartolina; uma camada fina de pó se acumulara sobre elas. Dalgliesh disse: “Deve ser possível determinar quais desses maços foram desamarrados depois que os registros foram organizados e trazidos aqui para o depósito. Pelo jeito, faz vários anos que ninguém toca em alguns deles. Claro, alguém pode ter desamarrado um maço para extrair uma pasta por razões perfeitamente inocentes, mas isso não nos impede de começar pelas pastas que estão nos maços que visivelmente foram desamarrados neste último ano, ou algo assim. Os dois primeiros números de nossa lista estão na casa dos oito mil. Essas pastas estão na prateleira de cima, aparentemente. O senhor tem uma escada?” O diretor médico desapareceu atrás da primeira fila de prateleiras e reapareceu com uma escadinha que acomodou com dificuldade na passagem estreita. Erguendo os olhos para Dalgliesh enquanto o detetive subia, indagou: “Me diga uma coisa, inspetor: a confiança comovedora que o senhor demonstra ter em mim significa que fui eliminado da lista de suspeitos? Em caso positivo, estou interessado em saber que deduções o levaram a essa conclusão. Não creio que o senhor me julgue incapaz de cometer um assassinato. Acho que nenhum detetive chegaria a essa conclusão com relação a seja quem for.” “Nem nenhum psiquiatra!”, disse Dalgliesh. “Nunca me pergunto se um homem é capaz de
cometer um assassinato, mas se ele é capaz de cometer um assassinato específico. Não acredito que o senhor seja um chantagistazinho qualquer. Não vejo como poderia estar informado sobre a pretensa visita de Lauder. Duvido que o senhor tenha a força ou a habilidade necessárias para assassinar daquela maneira específica. Por último, acho que provavelmente o senhor é a única pessoa aqui da clínica que a senhorita Bolam jamais teria deixado esperando. E mesmo que eu esteja errado, o senhor não teria como recusar-se a colaborar, não é mesmo?” Dalgliesh falara num tom intencionalmente brusco. Os olhos azuis brilhantes ainda fitavam os seus, convidando-o a fazer uma confidência que não estava inclinado a fazer, mas que achava difícil evitar. O diretor médico prosseguiu. “Só encontrei três assassinos na vida. Dois deles foram executados e seus cadáveres recobertos com cal. Um, mal sabia o que fazia; o outro era incapaz de se conter. O senhor está satisfeito com essa solução?” Dalgliesh respondeu: “Nenhum homem em seu juízo perfeito estaria. Mas não vejo o que isso tem a ver com o que estou tentando fazer agora: agarrar esse assassino antes que ele — ou ela — mate novamente.” O diretor médico não disse mais nada. Juntos, localizaram as onze pastas médicas que procuravam e subiram com elas para a sala do dr. Etherege. Se Dalgliesh esperara que o diretor médico criasse dificuldades com relação ao passo seguinte da investigação, ficou agradavelmente surpreso. A sugestão de que aquele assassino talvez não se contentasse com uma vítima atingira o alvo. Quando Dalgliesh explicou o que desejava, o diretor médico não protestou. Dalgliesh disse: “Não estou pedindo que me forneça os nomes desses pacientes. Não estou interessado nos problemas deles. A única coisa que lhe peço é que telefone a cada um deles e pergunte diplomaticamente se por acaso ligou para a clínica há poucos dias, talvez na sexta-feira de manhã. O senhor poderia dizer que está precisando identificar determinado telefonema. Se algum desses pacientes tiver telefonado, quero seu nome e endereço. Não o diagnóstico. Só o nome e o endereço.” “Para que eu lhe forneça essa informação, o paciente precisa autorizar.” “Peça licença, se é preciso”, disse Dalgliesh. “Deixo isso a seu critério. A única coisa que me interessa é obter essa informação.” A condição externada pelo médico era uma formalidade, e os dois sabiam disso. As onze pastas médicas estavam sobre a escrivaninha, e só a força poderia impedir Dalgliesh de obter os endereços, se quisesse. Estava sentado a alguma distância do dr. Etherege, em uma das poltronas grandes, forradas de couro, e pronto para observar, com interesse profissional, seu insólito colaborador em ação. O diretor médico pegou o telefone e pediu uma linha externa. Os números de telefone dos pacientes haviam sido anotados nas pastas médicas, e as duas primeiras tentativas imediatamente reduziram as onze possibilidades a nove. Nos dois casos, o paciente se mudara no período posterior a seu tratamento na clínica. O dr. Etherege se desculpou junto aos novos usuários daqueles telefones e discou o terceiro número. Alguém atendeu, e o diretor médico perguntou se podia falar com o sr. Caldecote. Ouviram-se ruídos do outro lado da linha e o dr. Etherege respondeu condizentemente.” “Não, eu não sabia. Que tristeza. É mesmo? Não, nada de importante. Conheci o senhor Caldecote há muitos anos, e como vou passar por Wiltshire pensei em revê-lo. Não, obrigado, prefiro não falar com a senhora Caldecote. Não quero incomodá-la.” “Morreu?”, perguntou Dalgliesh quando a ligação foi cortada. “Morreu. Há três anos, parece. Câncer, coitado. Preciso fazer uma anotação na ficha dele.”
Fez isso. Dalgliesh esperou. Foi difícil completar a ligação com o número seguinte, mesmo com a ajuda da telefonista. Tudo isso para que, no fim, ninguém atendesse quando o telefone tocou. “Parece que nossa pesquisa não está dando em nada, inspetor. Era uma teoria inteligente, a sua, mas pelo jeito mais engenhosa do que real.” “Ainda temos sete pacientes”, respondeu Dalgliesh, sereno. O diretor médico murmurou alguma coisa a respeito de um certo dr. Talmage, com o qual tinha um encontro marcado na clínica, mas pegou a pasta seguinte e discou novamente. Dessa vez o paciente estava em casa e não pareceu nem um pouco surpreso ao saber que quem estava ao telefone era o diretor médico da Steen. Despejou um longo relatório sobre seu estado psicológico atual, que o dr. Etherege ouviu com paciente simpatia, fazendo comentários adequados. Dalgliesh ouviu com interesse, achando uma certa graça na habilidade com que a ligação era conduzida. Mas o paciente não ligara para a clínica recentemente. O diretor médico pôs o fone no gancho e passou algum tempo registrando na ficha médica as coisas que ele lhe dissera. “Um de nossos sucessos, pelo jeito. Não ficou nem um pouco surpreso com o fato de eu telefonar. Acho tocante a maneira como os pacientes têm certeza de que seus médicos sentem uma enorme preocupação com seu bem-estar e pensam neles pessoalmente em todos os momentos do dia e da noite. Mas ele não telefonou. E não estava mentindo, posso lhe garantir. Isto toma muito tempo, inspetor, mas imagino que precisamos prosseguir.” “Sim, por favor. Sinto muito, mas é preciso.” A ligação seguinte foi um sucesso. No começo, parecia outro fracasso. A julgar pelo que ouviu da conversa, Dalgliesh deduziu que o paciente fora hospitalizado recentemente e que sua mulher é que atendera o telefone. Depois viu a expressão do médico se alterar, e ouviu-o dizer: “Ligou? Sabíamos que alguém tinha telefonado e estávamos tentando descobrir quem era. Imagino que tenha ouvido falar da terrível tragédia acontecida aqui na clínica recentemente. É, está relacionado a isso.” Esperou, enquanto a voz explicava alguma coisa do outro lado da linha. Depois desligou o telefone e fez algumas anotações no bloco sobre sua escrivaninha. Dalgliesh não disse nada. O diretor médico ergueu os olhos para ele com uma expressão ao mesmo tempo intrigada e surpresa. “Era a mulher de um tal coronel Fenton, de Sprigg’s Green, em Kent. Ela telefonou para a senhorita Bolam para tratar de um assunto muito sério, mais ou menos ao meio-dia da última sexta-feira. Não quis falar sobre o assunto pelo telefone com o senhor e achei melhor não insistir. Mas gostaria de vê-lo assim que possível. Anotei o endereço.” “Obrigado, doutor”, disse Dalgliesh, ao receber o papel. Não parecia surpreso nem aliviado, mas seu coração estava feliz. O diretor médico balançou a cabeça, como se a coisa toda estivesse além de sua capacidade de compreensão. Disse: “A senhora Fenton parece uma dama imponente, muito formal. Disse que teria enorme prazer em recebê-lo para tomar chá com ela esta tarde.”
Pouco depois das quatro horas, rodando devagar, Dalgliesh entrou em Sprigg’s Green. O povoado, situado entre as estradas de Maidstone e Canterbury, não tinha nada de especial. Não se lembrava de ter passado por ali antes. Havia poucas pessoas na rua. O povoado ficava muito afastado de Londres para funcionar como cidade-dormitório, pensou Dalgliesh. Além disso, não tinha encanto de época para atrair casais aposentados, ou artistas e escritores em busca de paz rural associada a custo de vida mais baixo. Dava para perceber que muitas das casas eram
ocupadas por trabalhadores agrícolas, com seus jardins atulhados de repolhos e couves-debruxelas, os caules hirsutos mostrando as marcas de coletas recentes, as janelas fechadas para evitar as traições do outono inglês. Dalgliesh passou pela frente da igreja, com sua torre baixa de pedra e as vidraças semiocultas pelas castanheiras que cercavam a edificação. O cemitério estava malcuidado, sem chegar a ser catastrófico. A grama entre os túmulos fora aparada e dava para perceber que houvera um certo esforço no sentido de arrancar as ervas-daninhas dos caminhos de cascalho. Separado do cemitério por uma alta cerca de louros ficava o vicariato, uma casa vitoriana sombria construída para acomodar uma família de dimensões vitorianas e seus apêndices. Depois havia um relvado — um pequeno quadrado cercado por um renque de chalés de madeira — e um pub horroroso, pretensamente moderno, além de um posto de gasolina. Na frente do pub, cujo nome era King’s Head, havia um ponto de ônibus de concreto com um grupo de mulheres desanimadas à espera. Quando Dalgliesh passou, elas lançaram um olhar breve e desinteressado para o lado dele. Na primavera, sem dúvida, os pomares de cerejeiras da região emprestariam um certo encanto até mesmo a Sprigg’s Green. Agora, porém, o ar estava impregnado de uma umidade gélida. Os campos pareciam perpetuamente encharcados, e uma lenta procissão de vacas a caminho do estábulo para a ordenha da tarde pisoteava as poças da estrada transformando-a num lamaçal. Dalgliesh começou a rodar em velocidade de marcha para ultrapassá-las, atento para alguma tabuleta que indicasse Sprigg’s Acre. Não queria pedir informações. Não demorou a encontrar a casa. Ficava um pouco recuada da estrada, protegida do movimento por uma cerca de faias de dois metros de altura, dourada à luz do crepúsculo. Dalgliesh não viu entrada para carro; cuidadosamente, estacionou seu Cooper Bristol sobre o acostamento gramado e depois entrou pelo portão branco do jardim. A casa surgiu diante dele, espalhada, baixa, teto de colmo, transmitindo uma impressão de conforto e simplicidade. Assim que se virou, depois de trancar o portão, viu uma mulher surgir de um dos cantos da casa e aproximar-se dele pela trilha. Era muito baixa. De certa forma, o fato surpreendeu Dalgliesh. Ele imaginara uma esposa de coronel robusta, empertigada, recebendo-o com condescendência na hora e no local determinados por ela. A realidade era menos intimidadora e mais interessante. Havia um tom de gentileza levemente patético no modo como ela viera a seu encontro pela trilha. Vestia saia grossa e casaco de tweed; estava sem chapéu e sua espessa cabeleira branca balançava à brisa da tarde. Calçava luvas de jardinagem incongruentemente grandes, que transformavam a pazinha em sua mão num brinquedo de criança. Quando chegou junto dele, tirou a luva direita e estendeu a mão, erguendo os olhos ansiosos que se iluminaram quase imperceptivelmente de alívio. Sua voz, porém, surpreendeu-o por sua firmeza. “Boa tarde. O senhor deve ser o inspetor Dalgliesh. Meu nome é Louise Fenton. O senhor veio de carro? Tive a impressão de ouvir barulho de motor.” Dalgliesh explicou onde deixara o carro e disse que esperava não atrapalhar a passagem de ninguém. “Ah, não! Fique tranqüilo. Que maneira incômoda de viajar. O senhor podia ter vindo de trem até Marden, que eu mandava a charrete buscá-lo. Não temos carro. Nenhum de nós gosta de carro. Lamento tê-lo feito passar tanto tempo sentado.” “Era o modo mais rápido”, disse Dalgliesh, pensando se era o caso de desculpar-se por viver no século xx. “E eu queria falar com a senhora o mais depressa possível.” Procurou falar sem ansiedade, mas viu os ombros da sra. Fenton ficarem tensos de repente. “Sim, sim, claro. O senhor gostaria de ver o jardim antes de entrarmos? Já não temos muita luz,
mas acho que dá tempo.” Aparentemente ela esperava que ele se interessasse pelo jardim, e Dalgliesh aceitou o convite. Um vento leste suave, erguendo-se à medida que o dia declinava, golpeou desagradavelmente os contornos de seu pescoço e seus tornozelos, mas ele jamais apressava uma entrevista. Aquela prometia ser difícil para a sra. Fenton, que tinha o direito de imprimir seu ritmo à conversa. Analisou a própria impaciência ao mesmo tempo que tratava de ocultá-la. Nos dois últimos dias sentira-se atormentado por um pressentimento de tragédia e fracasso tanto mais perturbador por ser irracional. O caso ainda estava no começo. Sua inteligência lhe dizia que fazia progressos. Naquele momento mesmo estava prestes a descobrir o motivo, e o motivo, sabia, era crucial naquele caso. Em toda a sua carreira na Yard, não tivera nenhum fracasso, e aquele caso, com seu número limitado de suspeitos e o planejamento cuidadoso, era um candidato improvável a primeiro fracasso. Mesmo assim sentia-se preocupado, ansioso com aquele medo irracional de que o tempo estivesse acabando. Talvez fosse o outono. Talvez estivesse cansado. Levantou a gola do casaco e se preparou para fazer um ar interessado e aprovador. Os dois cruzaram juntos um portão de ferro batido ao lado da casa e entraram no jardim principal. A sra. Fenton dizia: “Adoro este jardim, mas não tenho muito jeito para jardinagem. Comigo, as coisas não crescem. Meu marido tem mão verde. Neste momento está no hospital de Maidstone, foi operado de uma hérnia. A cirurgia foi um sucesso, felizmente. O senhor pratica a jardinagem, inspetor?” Dalgliesh explicou que morava num apartamento à beira do Tâmisa, na City, e que recentemente vendera seu chalé em Essex. “Na verdade, sou uma nulidade em matéria de jardinagem”, disse. “Então vai gostar de ver nosso jardim”, respondeu a sra. Fenton, com amável — e ilógica — persistência. Era verdade que havia muito para ver, mesmo à luz declinante do entardecer de um dia de outono. O coronel dera rédea solta a sua imaginação, talvez para compensar todos os regulamentos que tivera de obedecer na vida: era um jardim exuberante, pitoresco e indisciplinado. Um pequeno gramado rodeava um lago de peixes com contorno pavimentado. Uma sucessão de arcos de treliça levava de um canteiro cuidadosamente cultivado a outro. Num roseiral com relógio solar, algumas derradeiras rosas ainda cintilavam na ponta dos caules sem folhas. Cercas de faias, teixos e pilriteiros funcionavam como um fundo verde e ouro para as alas de crisântemos. No fundo do jardim corria um regato, atravessado de cem em cem metros por pontes de madeira que eram um verdadeiro monumento à habilidade — mas não ao gosto — do coronel. Via-se que o apetite crescera com aquilo que o saciava. Depois da primeira ponte sobre o regato, o coronel não conseguira resistir a novos empreendimentos. Em pé sobre uma das pontes, Dalgliesh e a sra. Fenton interromperam por um momento a caminhada. O inspetor viu as iniciais do coronel esculpidas no parapeito de madeira. O regato que corria embaixo, já semi-engasgado com as primeiras folhas caídas, produzia um ruído tristonho. De repente a sra. Fenton disse: “Quer dizer que alguém a matou. Sei que devia sentir pena dela, apesar do que ela fez. Mas não consigo. Pelo menos por enquanto. Eu devia ter me dado conta de que Matthew não seria a única vítima. Essas pessoas nunca param depois da primeira vítima, não é mesmo? Suponho que alguém tenha perdido a capacidade de agüentar e optou por essa saída. É uma coisa terrível de se fazer, mas eu entendo. Li sobre o crime nos jornais, sabe, antes que o diretor médico telefonasse. O senhor sabe, inspetor, que por um momento eu fiquei feliz? Sei que é horrível dizer isso, mas é verdade. Fiquei feliz por ela ter morrido. Achei que as preocupações de Matthew tinham chegado
ao fim.” Dalgliesh disse com delicadeza: “Não acreditamos que a senhorita Bolam estivesse chantageando seu marido. É possível, mas improvável. Achamos que ela foi morta porque descobriu o que estava acontecendo e tinha a intenção de impedir que continuasse. Por isso nossa conversa é tão importante.” Os nós dos dedos da sra. Fenton ficaram lívidos. As mãos que seguravam o parapeito da ponte começaram a tremer. Ela disse: “Acho que fui muito tola. Não devo continuar gastando o seu tempo. Está esfriando, é melhor entrarmos.” Encaminharam-se para a casa sem falar. Dalgliesh encurtou seus passos para acertar o ritmo com o da figura magra e ereta a seu lado. Olhou ansioso para ela. Estava muito pálida, e ele teve a impressão de ver seus lábios movendo-se silenciosamente. Mas andava com determinação. Haveria de ficar bem. Disse para si mesmo que não devia apressar as coisas. Em meia hora, talvez menos, teria o motivo em segurança nas mãos, como uma bomba cuja explosão haveria de abrir o caso ao meio. Mas tinha de ser paciente. Uma vez mais, sentiu uma inquietação indefinida, como se naquele momento de triunfo iminente seu coração guardasse o sentimento do fracasso inevitável. Foram envolvidos pelo crepúsculo. Em algum lugar ardia uma fogueira, enchendo suas narinas de fumaça acre. O gramado era uma esponja molhada debaixo dos pés. A casa os acolheu, abençoadamente quente e com um leve aroma de pão feito em casa. A sra. Fenton se afastou e foi enfiar a cabeça numa peça na outra ponta do corredor. Ele imaginou que estava dando instruções para que o chá fosse servido. Em seguida, conduziu-o até a sala de estar, para o conforto de uma lareira acesa que projetava sombras imensas sobre as cadeiras e o sofá de forro de chintz e o tapete desbotado. Acendendo uma grande lâmpada de pé ao lado da lareira, puxou as cortinas para deixar lá fora a desolação e o declínio. O chá foi servido; a bandeja foi posta sobre uma mesa baixa por uma criada imperturbável, de avental, quase da idade da patroa, que evitava cuidadosamente olhar para Dalgliesh. O chá estava muito bom. Dalgliesh percebeu, com um sentimento muito semelhante à compaixão para ser agradável, que houvera preparativos para recebê-lo. Havia bolinhos recém-assados, dois tipos de sanduíche, bolos feitos em casa e um pãode-ló confeitado. Havia muito de tudo, um chá de gente jovem. Era como se as duas mulheres, diante da idéia de receber aquele visitante desconhecido e indesejado, tivessem procurado alívio para a insegurança providenciando um festim embaraçosamente farto. A própria sra. Fenton parecia surpresa com a variedade à sua frente. Manipulou as xícaras da bandeja como uma anfitriã ansiosa, inexperiente. Só depois de servir chá e sanduíches a Dalgliesh ela voltou a falar sobre o assassinato. “Meu marido freqüentou a Clínica Steen durante cerca de quatro meses, há mais ou menos dez anos, pouco depois de deixar o exército. Na época ele vivia em Londres e eu estava em Nairóbi passando uma temporada com minha nora, que esperava seu primeiro filho. Só fiquei sabendo do tratamento de meu marido quando ele me contou, há uma semana.” Fez uma pausa, e Dalgliesh disse: “Preciso dizer-lhe que evidentemente não estamos interessados em saber o que havia de errado com o coronel Fenton. Isso é assunto médico confidencial e não é da conta da polícia. Não pedi nenhuma informação ao doutor Etherege, e se tivesse pedido ele não teria me dado. O fato de seu marido estar sendo chantageado talvez tenha de vir a público — acho que não vai ser possível evitar isso —, mas a razão pela qual ele procurou a clínica e os detalhes de seu tratamento só
dizem respeito a ele e à senhora.” A sra. Fenton pousou a xícara na bandeja com infinito cuidado. Contemplou o fogo e disse: “Na verdade, acho que não me diz respeito. Não fiquei aborrecida com o fato de ele não ter me contado. É tão fácil dizer agora que eu teria entendido, que teria tentado ajudar, mas não estou segura disso. Acho que ele estava certo em não me dizer nada. As pessoas fazem muita propaganda da franqueza absoluta no casamento, mas não é muito sensato confessar coisas dolorosas — a não ser que se queira agredir o outro. Porém, eu gostaria que Matthew tivesse me falado da chantagem. Porque ali ele estava realmente precisando de ajuda. Juntos, tenho certeza de que teríamos encontrado uma saída.” Dalgliesh perguntou quando a coisa havia começado. “Exatamente há dois anos, segundo Matthew. Ele recebeu um telefonema. A voz lembrou-o de seu tratamento na Steen e chegou a mencionar alguns dos detalhes muito íntimos que Matthew contara ao psiquiatra. Depois a voz sugeriu que talvez ele quisesse ajudar outros pacientes que tentavam vencer dificuldades semelhantes. Seguiu-se um longo discurso sobre as terríveis conseqüências sociais de não conseguir se curar. Tudo muito inteligente e sutil, mas a intenção da voz estava perfeitamente clara. Matthew perguntou o que ela sugeria que ele fizesse e recebeu a instrução de enviar quinze libras em cédulas pelo correio de modo que chegassem no dia primeiro de cada mês. Deveria sobrescritar o envelope com tinta verde e dirigi-lo à gerente administrativa; junto com o dinheiro ele devia mandar um bilhete anônimo dizendo que aquilo era um donativo de um paciente agradecido. A voz disse que ele podia ter certeza de que o dinheiro seria usado exatamente onde era mais necessário.” “Era um plano inteligente”, disse Dalgliesh. “Difícil provar que havia chantagem, e a quantia foi muito bem calculada. Imagino que seu marido teria sido obrigado a tomar outra atitude se o montante solicitado fosse muito exorbitante.” “Ah, teria! Matthew nunca permitiria que ficássemos arruinados. Mas a quantia era tão pequena, não é mesmo? Não estou dizendo que quinze libras por mês não fizessem diferença para nós, mas era uma quantia que Matthew conseguia reunir sem que eu desconfiasse, fazendo economias pessoais. E o montante nunca foi aumentado. Isso é que era extaordinário. Matthew disse que sempre ouviu falar que um chantagista nunca fica satisfeito, que aumenta o montante até a vítima não conseguir mais pagar nem um centavo sequer. E com ele não foi assim. Matthew mandava o dinheiro na data adequada para que chegasse no dia primeiro do mês seguinte e recebia outro telefonema. A voz agradecia pelo amável donativo e deixava perfeitamente claro que a quantia esperada não devia ser maior do que quinze libras. E nunca foi mais do que isso. A voz dizia alguma coisa no sentido de que o sacrifício devia ser partilhado igualmente por todos. Matthew quase se convenceu de que a coisa era genuína. Há seis meses mais ou menos ele resolveu pular um mês para ver o que acontecia. Não foi muito agradável. Houve outro telefonema, e a ameaça foi claríssima. A voz mencionou a necessidade de salvar os pacientes do ostracismo social e disse que os habitantes de Sprigg’s Green ficariam muito sentidos quando ficassem sabendo de como ele fora pouco generoso. Meu marido resolveu pagar. Se o pessoal do povoado ficasse mesmo sabendo, teríamos de deixar esta casa. Minha família viveu aqui por duzentos anos e nós adoramos o lugar. Matthew ficaria de coração partido se tivesse de abandonar o jardim. E, depois, tem o povoado. Claro, o senhor viu o povoado num dia ruim, mas nós adoramos Sprigg’s Green. Meu marido é auxiliar na igreja. Nosso filho mais moço, que morreu num acidente de trânsito, está enterrado lá. Não é fácil cortar as raízes aos setenta anos de idade.” Não, não devia ser fácil. Dalgliesh não discutiu a afirmação da sra. Fenton de que se fossem
expostos teriam de partir. Um casal mais jovem, mais firme, mais sofisticado sem dúvida enfrentaria a publicidade, ignoraria as insinuações e aceitaria a solidariedade constrangida dos amigos, firmemente convencido de que nada dura para sempre e de que poucas coisas na vida do povoado estão mais mortas do que o escândalo do ano anterior. Era mais difícil aceitar a compaixão. Provavelmente a razão pela qual a maioria das vítimas recuava era o medo da compaixão. Perguntou à sra. Fenton por que a história viera à tona. “Duas coisas, na verdade. A primeira foi o fato de que precisaríamos de mais dinheiro. O irmão mais moço de meu marido morreu inesperadamente há um mês e deixou a viúva numa situação financeira muito delicada. Ela é inválida e provavelmente não viverá mais do que um ou dois anos, mas mora tranqüila e feliz numa clínica perto de Norwich e gostaria de continuar lá. Tratava-se de ajudá-la a pagar a clínica. Ela precisava de mais cinco libras por semana, e eu não entendia por que Matthew parecia tão preocupado. Era só uma questão de bom planejamento: eu achava que podíamos muito bem arrumar o dinheiro. Só que ele sabia, evidentemente, que se continuasse mandando as quinze libras da Steen não teríamos condições de ajudar minha cunhada. Depois, teve a questão da cirurgia dele. Não foi nada de muito grave, eu sei, mas qualquer operação significa um risco quando se tem setenta anos, e ele estava com medo de morrer e a história toda vir à tona sem que ele estivesse aqui para explicar. Por isso resolveu me contar. Fiquei muito feliz porque contou. Resulta que ele foi tranqüilo para o hospital e que a cirurgia foi um sucesso. Realmente um sucesso. Posso lhe servir um pouco mais de chá, inspetor?” Dalgliesh estendeu a xícara e perguntou que medidas ela resolvera tomar. Estavam chegando ao ponto crucial da conversa, mas ele tomava cuidado para não apressá-la nem parecer excessivamente ansioso. Seus comentários e perguntas poderiam ter sido os de qualquer outro convidado para o chá, participando educadamente da conversa da anfitriã. Ela era uma senhora de idade que passara por uma ansiedade muito grande e estava enfrentando outra ainda mais grave. Ele fazia idéia de como devia ser difícil para ela fazer aquela revelação a um estranho. Toda manifestação formal de solidariedade seria uma presunção, mas pelo menos ele podia ajudar mostrando paciência e compreensão. “Que medidas eu resolvi tomar? Bem, o problema era todo esse, claro. Uma coisa eu sabia: a chantagem tinha de parar. Mas queria poupar-nos, se possível. Não sou uma mulher muito inteligente — não adianta balançar a cabeça: se eu fosse inteligente, esse assassinato não teria acontecido —, mas planejei tudo direitinho. Cheguei à conclusão de que a melhor coisa a fazer era visitar a Clínica Steen e conversar com algum responsável. Podia explicar o que estava acontecendo, talvez até sem mencionar meu nome, e pedir que a própria clínica investigasse o assunto e acabasse com a chantagem. Afinal, eles conheciam os fatos sobre meu marido, portanto eu não estaria revelando o segredo dele a ninguém que já não o conhecesse, e eles estariam tão ansiosos quanto eu para evitar que o assunto viesse a público. Não seria nada bom para a clínica se isso acontecesse, não é mesmo? Era provável que conseguissem encontrar o chantagista sem maiores dificuldades. Afinal de contas, os psiquiatras supostamente entendem a cabeça das pessoas, e tinha de ser alguém que freqüentasse a clínica na época do tratamento do meu marido. Depois, o fato de ser uma mulher limitava o número de suspeitos.” “A senhora está me dizendo que o chantagista era uma mulher?”, perguntou Dalgliesh, surpreso. “Ah, era! Pelo menos a voz do telefone era de mulher, segundo meu marido.” “Ele está absolutamente seguro?” “Não me pareceu ter dúvidas quanto a isso. Não era só a voz, entende? Também algumas das coisas que ela dizia. Por exemplo, que não era só pessoas do sexo de meu marido que sofriam
dessas doenças; se ele algum dia havia pensado em quanta infelicidade elas podiam causar às mulheres, e assim por diante. Houve referências diretas ao fato de ela ser mulher. Meu marido se lembra muito claramente das conversas telefônicas e poderá lhe contar quais foram essas observações. Imagino que o senhor queira vê-lo tão logo possível, não é mesmo?” Comovido com a visível ansiedade na voz dela, o inspetor respondeu: “Se o médico autorizar o coronel Fenton a ter uma pequena conversa comigo, eu gostaria de falar com ele hoje à noite, quando estiver voltando para Londres. Tem uma ou duas coisinhas — por exemplo essa questão do sexo do chantagista — em que só ele pode me ajudar. Não vou incomodá-lo mais do que o necessário.” “Tenho certeza de que ele pode falar com o senhor. Está sozinho num pequeno quarto, recuperando-se muito bem. Contei a ele que o senhor vinha conversar comigo hoje, portanto ele não ficará surpreso ao vê-lo. Prefiro não acompanhá-lo, se não se incomoda. Acho que ele prefere conversar sozinho com o senhor. Vou escrever um bilhete para o senhor entregar a ele.” Dalgliesh agradeceu e disse: “É interessante que seu marido diga que se trata de uma mulher. Talvez ele tenha razão, claro, mas pode ser um disfarce inteligente do chantagista, uma coisa difícil de desmentir. Alguns homens sabem imitar muito convincentemente a voz feminina, e as referências casuais para indicar o sexo do interlocutor do coronel Fenton funcionariam ainda melhor do que a imitação da voz. Se o coronel tivesse resolvido recorrer à justiça e o caso chegasse aos tribunais, teria sido muito difícil condenar um homem por esse crime específico, a não ser que as evidências fossem indiscutíveis. E, até onde eu posso ver, quase não haveria evidências. Confesso que não estou nem um pouco convencido do sexo do chantagista. Mas — desculpe, interrompi o que a senhora estava dizendo...” “É muito importante chegar a uma conclusão quanto a esse ponto, não é mesmo? Espero que meu marido tenha condições de ajudá-lo. Bem, como eu estava dizendo, cheguei à conclusão de que o melhor a fazer era ir até a clínica. Na sexta-feira de manhã bem cedo, tomei um trem para Londres. Tinha hora no calista, e Matthew estava precisando de algumas coisinhas no hospital. Resolvi começar pelas compras. Devia ter ido direto para a clínica, óbvio. Foi outro erro. Covardia, na verdade. Eu não estava com vontade de ir e tentei encarar a coisa como se na verdade ela não tivesse maior importância. Como se fosse uma visita informal, que podia encaixar entre as compras e o calista. No fim, acabei não indo. Telefonei. Está vendo? Eu lhe disse que não era muito inteligente.” Dalgliesh perguntou o que provocara a mudança de plano. “A Oxford Street. Sei que parece tolice, mas foi o que aconteceu. Fazia algum tempo que eu não ia a Londres desacompanhada e tinha esquecido de como a cidade está horrível. Quando eu era jovem, gostava de Londres. Na época, era uma cidade graciosa. Agora está cheia de edifícios e nas ruas só se vêem malucos e estrangeiros. Não devemos reclamar deles, eu sei. Dos estrangeiros. É só que me sinto tão deslocada... E, depois, tem os carros. Tentei atravessar a Oxford Street e fiquei entalada no meio deles, numa das ilhas entre as duas faixas. Claro, eles não estavam matando ninguém, nem atropelando ninguém. Não conseguiam. Não conseguiam nem se mover. Mas o cheiro dos carros era tão horroroso que tive de tapar o nariz com o lenço e comecei a me sentir mal, com náusea. Quando cheguei à calçada, entrei numa das lojas para ir ao toalete. Era no quinto andar, e levei um tempão para achar o elevador correspondente. Havia uma multidão de gente, todos espremidos. Quando cheguei ao toalete, não havia cadeira onde pudesse me sentar. Estava em pé, encostada na parede, pensando se conseguiria arranjar energia suficiente para
entrar numa fila e comprar meu almoço, quando vi uma fileira de telefones públicos. De repente me dei conta de que podia telefonar para a clínica e me poupar a viagem e a provação de contar minha história frente a frente. Agora vejo que foi burrice, mas na hora parecia uma ótima idéia. Seria mais fácil esconder minha identidade pelo telefone, e tive a sensação de que conseguiria explicar melhor as coisas. Também me senti muito melhor quando pensei que se a conversa ficasse muito difícil, era só desligar o telefone. Como vê, eu estava sendo muito covarde, e minha única desculpa é que estava muito cansada, bem mais cansada do que pensava que fosse possível. Imagino que vá me dizer que eu devia ter ido direto à polícia, à Scotland Yard. Mas a Scotland Yard é um lugar que associo com histórias de detetives e assassinatos. Parece quase impossível que exista realmente, e que a pessoa possa ir até lá relatar seu problema. Além disso, eu continuava muito ansiosa para evitar toda publicidade. Achei que a polícia não ia querer ajudar, e não estava disposta a cooperar, contando a história inteira ou dispondo-me a abrir um processo. A única coisa que eu queria, entende, era que o chantagista parasse de fazer chantagem. Não estava demonstrando muito espírito público, não é mesmo?” “Muito compreensível”, replicou Dalgliesh. “Acho provável que a senhorita Bolam tenha recebido a advertência telefônica. Lembra-se do que disse a ela?” “Não muito bem, infelizmente. Depois que consegui encontrar uma moeda para fazer a ligação e que procurei o número do telefone no catálogo, passei alguns minutos resolvendo o que ia dizer. Uma voz de homem respondeu e pedi para falar com o gerente administrativo. Em seguida ouvi uma voz de mulher dizendo: ‘Gerente administrativa’. Eu não esperava ouvir uma mulher, e de repente enfiei na cabeça que estava falando com a chantagista. Por que não, afinal? Então falei que alguma pessoa da clínica, provavelmente ela própria, estava chantageando meu marido, e que eu estava telefonando para avisar que essa pessoa não receberia mais nem um centavo de agora em diante, e que se houvesse mais algum telefonema iríamos direto à polícia. Saiu tudo de uma vez só. Eu estava com tremedeira e tive de me encostar na parede da cabine telefônica para não cair. Acho que estava um pouco histérica. Quando achou uma brecha para dizer alguma coisa, ela me perguntou se eu era paciente da clínica e quem estava me atendendo, depois disse alguma coisa sobre pedir a um dos médicos que conversasse comigo. Acho que imaginou que eu estava descontrolada. Respondi que nunca fora paciente da clínica e que se algum dia precisasse de tratamento — Deus que me proteja — nunca iria procurar um lugar onde as indiscrições e a infelicidade de um paciente viravam oportunidade para chantagem. Acho que acabei dizendo que havia uma mulher envolvida, que essa mulher devia estar na clínica havia aproximadamente dez anos, e que, se a gerente administrativa não era a pessoa em questão, eu esperava que ela assumisse o compromisso de descobrir quem era. Ela tentou me convencer a deixar meu nome ou a ir até lá falar com ela, mas desliguei.” “A senhora forneceu algum detalhe sobre o funcionamento da chantagem?” “Falei que meu marido costumava mandar quinze libras por mês num envelope sobrescritado com tinta verde. Foi nesse momento que ela ficou muito ansiosa para que eu fosse até a clínica ou para que pelo menos dissesse meu nome. Foi descortês da minha parte desligar sem chegar ao fim da conversa, mas de repente fiquei com medo. Não sei por quê. E além do mais eu já dissera tudo o que pretendia dizer. Àquela altura uma das cadeiras do toalete ficara desocupada; sentei-me durante meia hora, até me sentir melhor. Depois fui direto para Charing Cross e tomei café com sanduíches numa cafeteria da estação enquanto esperava meu trem. No sábado li a notícia do assassinato no jornal e confesso que concluí que uma das outras vítimas — porque com certeza há outras vítimas — havia escolhido essa solução. Não associei o assassinato com meu telefonema,
pelo menos no começo. Depois comecei a pensar que talvez fosse meu dever informar a polícia sobre as coisas que vinham acontecendo naquele lugar horrível. Ontem discuti o assunto com meu marido e resolvemos não fazer nada precipitado. Achamos que talvez fosse melhor esperar para ver se haveria outros telefonemas do chantagista. Eu não estava muito satisfeita com nosso silêncio. Os jornais não deram maiores detalhes sobre o assassinato, por isso não sei o que aconteceu exatamente. Mas me dei conta de que talvez a chantagem estivesse relacionada ao crime e de que a polícia estaria interessada em ter essa informação. Eu ainda não sabia direito o que fazer quando o doutor Etherege telefonou. O resto o senhor sabe. Estou me perguntando até agora como o senhor conseguiu me achar.” “Da mesma maneira utilizada pelo chantagista para selecionar o coronel Fenton no fichário dos diagnósticos e nos arquivos médicos da clínica. Não vá pensar que o pessoal da Steen não vela pelos papéis confidenciais, porque vela. O doutor Etherege está consternado com esse assunto da chantagem. Mas não existe sistema completamente à prova de perversidade inteligente e deliberada.” “O senhor vai encontrá-lo, não vai?”, ela perguntou. “Vai encontrá-lo?” “Graças à senhora, acho que sim”, replicou Dalgliesh. Quando ele lhe estendeu a mão em despedida, ela subitamente perguntou: “Como era ela, inspetor? A mulher assassinada. Me fale da senhorita Bolam.” Dalgliesh disse: “Tinha quarenta e um anos de idade. Solteira. Nunca a vi com vida, mas tinha cabelo castanhoclaro e olhos azuis-acinzentados. Era robusta, testa larga, lábios finos. Filha única, pais já falecidos. Levava uma vida solitária, mas sua igreja significava muito para ela; foi guia de bandeirantes. Gostava de flores e de crianças. Era conscienciosa e eficiente, mas não muito boa para entender as pessoas. Era amável quando via alguém em dificuldades, mas todos a achavam inflexível, desprovida de senso de humor e repressora. Acho que provavelmente estavam certos. Tinha intenso sentimento de dever.” “Sou responsável por sua morte. Tenho de aceitar esse fato.” Dalgliesh disse com delicadeza: “A senhora sabe que é um absurdo pensar assim. Apenas uma pessoa é responsável e, graças à senhora, vamos encontrá-la.” Ela balançou a cabeça. “Se eu tivesse procurado o senhor, ou se houvesse tido a coragem de ir até a clínica em vez de telefonar, ela hoje estaria viva.” Dalgliesh achava que Louise Fenton merecia mais do que ser tranqüilizada com mentiras fáceis que, além do mais, não teriam o poder de consolá-la. Por isso respondeu: “Talvez seja verdade. São tantos ‘ses’... Ela hoje estaria viva se o secretário do grupo tivesse cancelado uma reunião para ir imediatamente até a clínica falar com ela; se ela própria tivesse ido imediatamente falar com ele; se um velho porteiro não sofresse de dor de estômago. A senhora fez o que achou certo e ninguém pode fazer mais.” “Ela também, coitada”, respondeu a sra. Fenton. “E veja só no que se meteu!” Deu algumas palmadinhas no ombro de Dalgliesh, como se fosse ele quem estava precisando de consolo e segurança. “Eu não queria aborrecê-lo. Por favor, me desculpe. O senhor foi muito gentil e paciente. Posso fazer-lhe uma última pergunta? O senhor disse que graças a mim vai capturar o assassino. Sabe quem ele é?”
“Sei”, disse Dalgliesh. “Acho que agora sei quem ele é.”
7
Pouco mais de duas horas depois, de volta a seu escritório na Yard, Dalgliesh discutiu o caso com Martin. Havia uma pasta médica aberta sobre a mesa diante dele. “A história contada pela senhora Fenton pôde ser confirmada?” “Sim, pôde. O coronel foi muito acessível. Agora que está recuperado do duplo sofrimento da operação e da confissão feita à esposa, está inclinado a ver as duas experiências com descontração. Chegou a sugerir que a solicitação de dinheiro pudesse ser genuína, e que era sensato supor que fosse. Tive de dizer a ele que uma mulher fora assassinada para que ele se dispusesse a encarar as coisas como elas são. Depois me contou toda a história. Combinava com o que a senhora Fenton me contara, exceto por um acréscimo muito interessante. Adivinhe! Tem três chances.” “Seria alguma coisa relativa ao roubo das quinze libras? O ladrão foi o próprio Fenton?” “Que diabo, Martin, de vez em quando você podia fazer um esforço para parecer surpreso. Sim, foi o nosso coronel. Mas ele não pegou as quinze libras. Se tivesse pegado, eu não o culparia. Afinal de contas, o dinheiro era dele. Ele próprio admite que teria recuperado o dinheiro se o tivesse visto, mas, naturalmente, não viu. Estava na clínica por uma razão bem diferente. Para apanhar a ficha médica. Estava um pouco desorientado na maioria das coisas, mas se dava conta de que a ficha médica era a única prova efetiva do que acontecera na época em que fora paciente da Steen. Claro que sua tentativa de roubo não deu certo, embora tivesse praticado cortar vidro em sua estufa, e acabou fazendo uma retirada indigna quando ouviu Nagle e Cully chegando. Não chegou nem perto da ficha que procurava. Imaginou que ela estivesse num dos arquivos da secretaria e conseguiu arrombá-los. Quando viu que as fichas estavam numeradas, percebeu que jamais teria sucesso. Fazia muito tempo que esquecera qual era seu número na clínica. Imagino que o tenha empurrado firmemente para fora da memória no momento em que se sentiu curado.” “Bom, pelo menos a clínica fez isso por ele — curou-o.” “Está aí uma coisa que ele não reconhece. Acho que não é incomum, com pacientes psiquiátricos. Deve ser bastante desanimador para os psiquiatras. Afinal, você não encontra pacientes de cirurgia insistindo que se tivessem tido a oportunidade teriam operado a si próprios. Não, o coronel não está se sentindo especialmente grato à Steen, nem inclinado a dar-lhe maiores créditos por cuidar dos seus problemas. Suponho que talvez esteja certo. Acho que o doutor Etherege não afirmaria que é possível fazer muita coisa por um paciente psiquiátrico num período de quatro meses, que foi o tempo que durou o tratamento de Fenton. Sua cura — se quiser chamála assim — provavelmente teve alguma coisa a ver com o fato de ele sair do Exército. É difícil saber se estava ansioso por esse momento ou se o temia. Seja como for, é melhor não cair na tentação de ser psicólogos amadores.” “Que tipo de homem é o coronel, inspetor?” “Baixo. Talvez pareça ainda menor por causa de sua doença. Cabelo cor de areia, sobrancelhas espessas. Parece um animalzinho nervoso olhando para fora da toca. Uma personalidade muito mais fraca que a da mulher, acho eu, apesar da aparente fragilidade da senhora Fenton. Não nego que é difícil parecer em plena forma deitado numa cama de hospital, de pijama listrado e com uma irmã portentosa insistindo para a pessoa se comportar bem e não falar demais. Ele não foi de grande ajuda com a voz ao telefone. Disse que parecia voz de mulher e que nunca tinha pensado
na hipótese de que pudesse não ser. Por outro lado, não ficou surpreso quando eu disse que a voz podia ser disfarçada. Mas é sincero, e dá para ver que não sabe mesmo mais nada. Simplesmente não sabe. Mesmo assim, já temos o motivo. Este é um dos raros casos em que saber ‘por quê’ é o mesmo que saber ‘quem’.” “O senhor vai providenciar um mandado de prisão?” “Ainda não. Não estamos prontos. Se não avançarmos com cuidado agora, o caso inteiro pode se desmanchar nas nossas mãos.” Uma vez mais, foi assaltado pelo pressentimento apavorante do desastre. Quando deu por si, estudava o caso como se já tivesse fracassado. Onde havia errado? Mostrara suas cartas ao assassino no momento em que levara o fichário dos diagnósticos para a sala do diretor médico sem se preocupar em ocultar o fato. Com certeza a notícia circulara rapidamente pela clínica. Era o que ele havia planejado. Chega um momento em que é útil assustar sua presa. Mas será que aquele assassino era do tipo que se deixa assustar a ponto de trair-se? Teria sido um erro de avaliação, agir tão abertamente? De repente o rosto franco e sincero de Martin pareceu-lhe irritantemente bovino, ali parado sem dizer nada, à espera de instruções. Dalgliesh disse: “Suponho que tenha ido à casa de Priddy. Bem, vamos às fofocas. A garota é casada, imagino...” “Quanto a isso não há dúvida. Passei por lá hoje mais cedo e tive uma conversa com os pais. Por sorte a senhorita Priddy não estava, tinha ido comprar peixe e batatinhas para o jantar. É uma família bem pobre.” “O que uma coisa tem a ver com a outra? Mas prossiga.” “Não há muito a contar. Moram numa daquelas casas com terraço que dão para a linha sul da ferrovia, em Balham. Tudo é muito arrumado e confortável, mas não tem televisão nem nada do tipo. Vai ver que a religião deles não permite. O pai e a mãe da senhorita Priddy têm mais de sessenta, acho. Jennifer é filha única, e a mãe já devia ter mais de quarenta anos quando ela nasceu. Quanto ao tal casamento, é o de sempre. Fiquei supreso com o fato de eles me contarem, mas contaram. O marido trabalha num depósito; era colega da moça em seu último emprego. Aí ela engravidou e os dois tiveram de se casar.” “Uma história dolorosamente trivial. A gente imagina que a geração dela, que acha que conhece todas as respostas sobre sexo, devia estar informada sobre certos fatos básicos. No entanto, pelo que dizem, esses pequenos acidentes não preocupam ninguém, nos dias que correm.” Dalgliesh ficou chocado com a amargura da própria voz. Seria realmente necessário reclamar tão veementemente de uma pequena tragédia tão comum quanto aquela?, pensou. O que estaria acontecendo com ele? Martin disse, impassível: “Preocupam pessoas como os Priddy. Essa juventude arruma confusão, mas em geral é a desprezada geração mais velha que tem de resolver as coisas. Os Priddy fizeram o que podiam. Claro, obrigaram os jovens a se casar. A casa não é grande, mas desocuparam o primeiro andar e o transformaram num pequeno apartamento para o jovem casal. Muito bem decorado, aliás. Eles me mostraram.” Dalgliesh pensou que detestava a expressão “jovem casal”, com seus subtons piegas de mansa domesticidade e seu eco de desilusão. “Pelo jeito sua visitinha foi um sucesso”, observou Dalgliesh. “Gostei deles. São boas pessoas. O casamento da filha não durou, evidentemente, e acho que agora eles se perguntam se agiram certo ao forçá-la a casar-se. O cara foi embora de Balham há mais de dois anos e eles não sabem onde está agora. Me disseram o nome dele e mostraram sua fotografia. Não tem nada a ver com a Clínica Steen.”
“Foi o que eu achei. Dificilmente nos passaria pela cabeça que Jennifer Priddy pudesse ser a esposa do doutor Henry Etherege. Nem seus pais nem seu marido têm ligação com o crime.” E não tinham mesmo, só que suas vidas, como tangentes fugidias, haviam feito um breve contato com o círculo da morte. Todo assassinato produzia pessoas como eles. Mais vezes do que era capaz de lembrar-se, Dalgliesh já se sentara em salas de estar, quartos, bares e delegacias conversando com pessoas que haviam mantido contato, mesmo breve, com um assassinato. A morte violenta era um grande liberador de inibições, o chute que estoura o topo de tantos formigueiros. Seu trabalho, em relação ao qual podia enganar-se dizendo a si mesmo que não se envolver era um dever, lhe propiciara muitos olhares intrusivos para as vidas secretas de homens e mulheres a quem talvez só voltasse a ver como rostos identificados de passagem em meio a uma multidão londrina. Às vezes desprezava sua imagem privada, a do inquisidor paciente, distante e não repressivo da miséria e da culpa dos outros. Por quanto tempo a pessoa conseguia manter-se distante, pensou, sem perder a própria alma? “O que aconteceu com a criança?”, perguntou de repente. “Ela teve um aborto”, respondeu Martin. Claro, pensou Dalgliesh. Só podia mesmo ter um aborto. Nada podia dar certo com pessoas como os Priddy. Naquela noite tinha a sensação de também estar contaminado pela má sorte deles. Perguntou a Martin o que averiguara sobre a srta. Bolam. “Pouca coisa que já não soubéssemos. Freqüentavam a mesma igreja, e Jennifer Priddy tinha sido bandeirante no grupo de Enid Bolam. Os velhos se referiram a ela com muito respeito. Ela os ajudara quando o bebê estava a caminho — tive a impressão de que ela havia financiado a reforma da casa —, e quando o casamento fracassou sugerira que Jennifer trabalhasse na Steen. Acho que os velhos ficavam felizes com a idéia de que alguém estava cuidando de Jenny. Não souberam me dizer grande coisa sobre a vida particular da senhorita Bolam, pelo menos nada que já não soubéssemos. Mas aconteceu uma coisa esquisita. Foi quando a garota voltou com o jantar. A senhora Priddy me convidou a ficar para comer com eles, mas eu disse que era melhor voltar. O senhor sabe como é, peixe e batatinhas. A pessoa compra só o número contado de peixes, e é difícil encaixar um convidado de última hora. Seja como for, os pais chamaram a garota para se despedir de mim e ela veio da cozinha para a sala com uma cara péssima. Só ficou um ou dois segundos, e os velhos aparentemente não notaram nada. Mas eu notei. Alguma coisa tinha deixado a garota apavorada.” “Talvez o fato de encontrá-lo em sua casa. Talvez tenha imaginado que os pais tivessem ficado sabendo de sua ligação com Nagle.” “Acho que não era isso. Quando voltou das compras, apareceu na porta da sala e disse ‘boa noite’ com a cara mais satisfeita do mundo. Expliquei que só estava tendo uma conversa com seus pais porque eles eram amigos da senhorita Bolam e talvez pudessem nos contar alguma coisa útil sobre a vida particular da falecida. Ela não pareceu ficar preocupada. Só uns cinco minutos mais tarde é que voltou com aquela expressão tão estranha.” “Ninguém chegou na casa, ninguém telefonou durante esse período?” “Não. De todo modo, não ouvi ninguém. Eles não têm telefone. Acho que foi alguma coisa que aconteceu com ela enquanto estava sozinha na cozinha. Não dava para perguntar. Estava de saída e não tinha como puxar assunto. Simplesmente disse a eles que se pensassem em alguma coisa que pudesse ser útil, avisassem imediatamente.” “Vamos ter de conversar com ela de novo, claro, e quanto antes melhor. O álibi tem de ser desmentido, e ela é a única pessoa que pode fazer isso. Acho que não era uma mentira deliberada
da parte dela, nem que estivesse sonegando indícios deliberadamente. A verdade simplesmente não lhe ocorreu.” “Nem a mim. Só depois que econtramos o motivo. O que quer fazer agora? Dar um suadouro nele?” “Melhor não, Martin. Perigoso demais. Temos de correr. Acho que agora vamos até a casa de Nagle ter uma conversinha com ele.” Mas quando chegaram a Pimlico, vinte minutos mais tarde, encontraram o apartamento trancado e um papelzinho dobrado preso embaixo da aldrava. Dalgliesh desdobrou o papel e leu em voz alta: “Querido, que pena que nos desencontramos. Preciso falar com você. Se não nos encontrarmos esta noite, amanhã cedo estou na clínica. Amor, Jenny”. “Adianta esperar por ele, inspetor?” “Duvido muito. Acho que sei onde ele está. Cully estava na mesa telefônica esta manhã durante nossos telefonemas, mas me certifiquei de que Nagle, e provavelmente todos os outros empregados da Steen, soubessem que eu estava interessado nos registros médicos. Pedi ao doutor Etherege que os guardasse depois que eu saísse. Nagle vai à Steen uma ou duas noites por semana para controlar a caldeira e desligar o forno de cerâmica da sala de arte-terapia. Imagino que esteja lá esta noite, aproveitando a oportunidade para verificar quais arquivos foram retirados. Vamos passar por lá para dar uma olhada.” Enquanto o carro avançava para o norte na direção do rio, Martin disse: “É fácil entender por que ele precisava do dinheiro. Não dava para alugar um apartamento como aquele com um salário de porteiro. Mais o material de pintura...” “É mesmo. O loft é impressionante. Pena que não o viu, Martin. E tinha as aulas com Sugg. Nagle pode ter conseguido um preço especial, mas Sugg não dá aulas de graça. Não acredito que a chantagem fosse especialmente lucrativa. Inteligente da parte dele. Provavelmente havia mais de uma vítima e as quantias eram cuidadosamente calculadas. Mas mesmo que ele só conseguisse quinze ou trinta libras por mês livres de imposto, seria suficiente para ir levando até ele ganhar a bolsa Bollinger ou ficar famoso.” “É bom pintor?”, perguntou Martin. Ele nunca se manifestava a respeito de determinados assuntos, mas estava convencido de que seu chefe era especialista em todos eles. “Pelo menos os membros da Fundação Bollinger acham que é.” “Não restam dúvidas, não é mesmo?” Martin não estava se referindo ao talento de Nagle como pintor. Dalgliesh respondeu, irritado: “Claro que restam dúvidas. Sempre há dúvidas, neste estágio das investigações. Mas pense nas coisas que sabemos. O chantagista exigiu que o dinheiro fosse enviado num envelope sobrescritado de forma específica, supostamente para poder apanhá-lo antes que a correspondência fosse aberta. Nagle chega primeiro na clínica e é responsável pela seleção e distribuição da correspondência. O coronel Fenton tinha de mandar o dinheiro de forma que ele sempre chegasse no dia primeiro. Nagle foi à clínica no dia primeiro de maio mesmo estando doente, e mais tarde teve de ser levado em casa. Acho que não foi a ansiedade com a visita do duque que o levou até lá. A única vez em que não conseguiu ser o primeiro a chegar no trabalho foi no dia em que ficou preso no metrô, justamente o dia em que a senhorita Bolam recebeu quinze libras pelo correio, enviadas por um paciente agradecido anônimo. “E agora chegamos ao assassinato e a teoria substitui os fatos. Naquela manhã, Nagle ajudava na recepção por causa da dor de estômago de Cully. Quando a senhora Fenton telefona, ele
escuta. Sabe qual será a reação da senhorita Bolam e, condizentemente, ela lhe pede que faça uma ligação para a sede do grupo. Escuta mais essa ligação e fica sabendo que o senhor Lauder irá à Steen depois da reunião da Comissão de Finanças. Antes disso, em algum momento, a senhorita Bolam precisa morrer. Mas como? Não há possibilidade de ele conseguir atraí-la para fora da Steen. Que desculpa utilizar, e como obter um álibi? Não, a coisa precisa ser feita na clínica. E, afinal de contas, talvez seja uma boa idéia. A gerente não é popular. Com sorte aparecerão muitos suspeitos para manter a polícia ocupada, alguns dos quais com excelentes motivos para desejar a morte da senhorita Bolam. “Então ele faz seus planos. É óbvio que o telefonema para a senhorita Bolam não precisa necessariamente ter sido feito do subsolo. Quase todas as salas têm telefones. Mas se o assassino não estivesse esperando por ela na sala dos arquivos, como faria para ter certeza de que ela ficaria lá embaixo até ele conseguir descer? Foi por isso que Nagle espalhou as pastas pelo chão. Conhecia suficientemente a senhorita Bolam para saber com boa dose de certeza que ela não conseguiria deixar de apanhá-las. Na opinião do doutor Baguley, talvez sua primeira reação tivesse sido ligar para Nagle para pedir sua ajuda. Mas não foi isso o que ela fez, evidentemente, porque estava esperando por ele a qualquer momento. Em vez disso, começou a arrumar as pastas e deu-lhe os dois ou três minutos de que precisava. “Em minha opinião, foi isso que aconteceu. Mais ou menos às dez para as seis ele desce até a sala dos porteiros para vestir o capote. Nesse momento destranca a sala dos arquivos e joga as pastas no chão. Deixa a luz acesa e fecha a porta, mas não a tranca. Depois destranca a porta dos fundos. Entra na secretaria para apanhar a correspondência para a caixa do correio. A senhorita Priddy está lá, mas periodicamente vai até a sala do arquivo, logo ao lado. Ele só precisa de um minuto para telefonar para a senhorita Bolam e pedir-lhe que desça até a sala dos arquivos porque tem uma coisa muito grave a lhe mostrar. Sabemos qual foi a reação dela a essa mensagem. Antes de Nagle conseguir desligar, Jennifer Priddy está de volta. Ele não perde a cabeça. Corta a ligação sem repor o fone no gancho e finge que está falando com a senhorita Bolam sobre a roupa lavada. Depois, sem desperdiçar mais tempo, sai com a correspondência. Só precisa atravessar a rua para depositá-la na caixa do correio. Em seguida corre pelo beco do fundo, entra no subsolo pela porta dos fundos que havia destrancado, enfia o formão no bolso, busca a estátua de Tippett e entra na sala dos arquivos. A senhorita Bolam está lá, como ele previra, ajoelhada, recolhendo os arquivos rasgados e espalhados. Ergue os olhos para ele, sem dúvida prestes a perguntar-lhe por onde andava. Mas antes que ela tenha tempo de falar, ele a golpeia. Vendo-a inconsciente, pode apunhalá-la com calma. Não pode haver nenhum erro — como não há. Nagle é um pintor de nus, e seu conhecimento de anatomia provavelmente é tão bom quanto o da maioria dos psiquiatras. E sabia usar aquele formão. Para essa parte particularmente importante do empreendimento, escolheu uma ferramenta em que confiava e que sabia como usar.” Martin disse: “Se ele tivesse andado até a esquina da Beefsteak Street para comprar o Standard, não teria chegado ao subsolo a tempo. Mas o jornaleiro não me garantiu que ele tinha aparecido. Levava um jornal na mão ao voltar para a Steen, mas podia tê-lo obtido na hora do almoço e guardado no bolso.” “Acho que foi o que ele fez”, disse Dalgliesh. “Por isso não quis deixar Cully conferir os resultados das corridas. Cully teria percebido imediatamente que aquela era a edição do meio-dia. Em vez de emprestar o jornal, Nagle vai com ele para o subsolo e mais tarde o utiliza para enrolar
a comida do gato antes de queimá-lo na caldeira. Claro que não ficou por muito tempo sozinho no subsolo. Jenny Priddy não lhe dava folga. Mas teve tempo de trancar novamente a porta dos fundos e ir falar com a enfermeira Bolam para saber se a roupa limpa já podia ser levada para os andares superiores. Se Priddy não tivesse descido, Nagle teria ido ao seu encontro na secretaria. Tomaria cuidado para não ficar sozinho no subsolo por mais de um minuto. O horário do assassinato teria de coincidir com o período em que estivera fora da clínica com a correspondência.” Martin disse: “Fiquei pensando por que ele não destrancou a porta do subsolo depois do assassinato, mas decerto não queria chamar a atenção para ela. Afinal, se um estranho podia ter entrado na clínica por ali, não levaria muito tempo para as pessoas começarem a pensar que Nagle também podia ter entrado por ali. Sem dúvida foi ele que pegou aquelas quinze libras depois que o coronel Fenton invadiu o local. O pessoal da polícia sempre achou esquisito o fato de que o ladrão sabia onde encontrar o dinheiro. Imagino que Nagle achasse que tinha direito de ficar com ele.” “O mais provável é que quisesse encobrir a razão para o arrombamento — fazê-lo parecer um roubo comum. Não seria bom a polícia começar a especular por que um intruso desconhecido teria vontade de examinar os registros médicos. O roubo das quinze libras — que ninguém, além de Nagle, teve oportunidade de praticar — só confundiu as coisas. O mesmo vale para a história do elevador. Foi um toque de mestre. Não precisaria de mais do que um minuto para içá-lo até o segundo andar, antes de escapar pela porta dos fundos, e era muito provável que alguém ouvisse o barulho e se lembrasse dele mais tarde.” Martin achou que tudo se encaixava muito bem, mas que seria quase impossível provar alguma coisa. “Foi por isso que mostrei minhas cartas ontem na clínica. Temos de deixá-lo assustado. É por isso que vale a pena dar uma olhada na clínica esta noite. Se ele estiver lá, vamos aplicar pressão. Pelo menos agora sabemos em que direção estamos indo.”
Meia hora antes de Dalgliesh e Martin passarem em seu apartamento em Pimlico, Peter Nagle entrava na Steen pela porta da frente, trancando-a atrás de si. Não acendeu as luzes; dirigiu-se ao subsolo com a ajuda de uma potente lanterna. Não havia muito a fazer: era só desligar o forno de cerâmica e verificar a caldeira. Depois precisava resolver um probleminha pessoal. Teria de entrar na sala dos arquivos, mas aquele lugar quente, cheio de ecos, que abrigara a morte, não lhe provocava terror. Os mortos estavam mortos, acabados, eram impotentes, nunca mais falariam. Num mundo de tantas incertezas, isso pelo menos era certo. Um homem com coragem suficiente para matar podia lhe provocar medo, por várias razões. Dos mortos, porém, não tinha nada a temer. Foi então que ouviu a campainha da entrada. Era um toque hesitante, tentativo, que retiniu no silêncio da clínica como um som sobrenatural. Quando abriu a porta, a silhueta de Jenny deslizou para dentro tão depressa que até parecia um espectro, um fantasma esguio produzido pela escuridão e pela bruma da noite. Ofegante, ela lhe disse: “Desculpe, querido. Eu precisava falar com você. Como você não estava em casa, achei que podia estar aqui.” “Alguém viu você no loft?”, ele perguntou. Sentia que a pergunta era importante mas não sabia muito bem por quê.
Surpresa, ela ergueu os olhos para ele. “Não. Tive a impressão de que o prédio estava vazio. Não encontrei ninguém. Por quê?” “Por nada. Não tem importância. Venha, vamos descer. Vou ligar o aquecedor a gás. Você está tiritando.” Desceram juntos para o subsolo; seus passos ecoavam na calma assustadora, carregada de presságios, daquele prédio que no dia seguinte acordaria para o som de vozes, movimento e rumor incessante de atividades voltadas para fins bem definidos. Ela começou a andar na ponta dos pés, e quando falava era sussurrando. No topo da escada segurou a mão dele, e ele sentiu que a dela tremia. No meio da escada ouviram um pequeno ruído, e ela deu um salto. “O que é isso? Que barulho é esse?” “Nada. Deve ser o Tigger mexendo em sua tigela.” Quando chegaram à salinha dos porteiros e o aquecedor foi ligado, ele se jogou numa das poltronas e sorriu para ela. Era uma enorme incomodação ela aparecer naquele momento, mas tinha de dar um jeito de esconder sua irritação. Com um pouco de sorte, conseguiria ver-se livre de-la num instante. Bem antes das dez, ela já estaria longe da clínica. “E então?”, ele perguntou. De repente ela estava no tapete a seus pés, abraçada a suas pernas. Seus olhos claros buscaram os dele num apelo apaixonado. “Querido, eu preciso saber! Não me importa o que você fez, desde que eu saiba. Amo você e quero ajudar. Querido, você precisa me dizer, se estiver metido em alguma encrenca.” Era pior do que ele temia. De alguma forma ela ficara sabendo de alguma coisa. Mas como, e o quê? Com voz despreocupada, ele perguntou: “Que tipo de encrenca, pelo amor de Deus? Daqui a pouco você vai me dizer que o assassino sou eu!” “Ah, Peter, por favor, não brinque comigo! Estou tão preocupada! Tem alguma coisa errada, sei que tem. Foi o dinheiro, não é? Você apanhou aquelas quinze libras.” Ele poderia ter soltado uma gargalhada de alívio. Num arroubo de emoção, rodeou-a com os braços e puxou-a para si, falando entre seus cabelos: “Que menina bobinha. Se eu quisesse roubar, podia ter me servido de dinheiro sempre que quisesse. Por que você teve essa idéia maluca?” “É o que fiquei repetindo para mim mesma. Por que você haveria de querer apanhar o dinheiro? Ah, querido, não fique zangado comigo. Fiquei tão preocupada. Foi por causa do jornal.” “Que jornal, meu Deus?” Foi só o que conseguiu articular, de tanta vontade de sacudi-la para ver se ela falava coisa com coisa. Estava contente por Jenny não conseguir ver seu rosto. Enquanto pudesse evitar olhá-la nos olhos conseguiria controlar a raiva e o pânico fatal, insidioso. Francamente, o que ela estava querendo lhe dizer? “O Standard. Aquele policial foi lá em casa hoje à tarde. Eu tinha saído para comprar peixe e batatinhas. Quando estava desembrulhando as compras na cozinha, olhei para o jornal em que estavam embrulhadas. Era o Standard de sexta-feira. Toda a primeira página era ocupada por uma foto daquele desastre de avião. Aí me lembrei de que havíamos usado seu Standard para embrulhar a comida do Tigger, e a primeira página era diferente. Eu não havia visto aquela foto antes.” Ele a abraçou com mais força e perguntou baixinho: “Você comentou alguma coisa com o policial?” “Claro que não, meu querido! E se ele suspeitasse de você? Não falei nada para ninguém, mas precisava falar com você. Não me incomodo com as quinze libras. Não me interessa se você afinal
viu o corpo no subsolo. Sei que não a matou. A única coisa que eu quero é que confie em mim. Amo você e quero ajudar. Fico desesperada quando você não me conta as coisas.” Era o que todas diziam, mas não havia uma em um milhão que de fato quisesse saber a verdade sobre um homem. Por um segundo, ficou tentado a contar-lhe tudo, a cuspir aquela história brutal sobre seu rosto tolo, suplicante, e ver como aquele imenso amor, aquela compaixão, desapareceriam num segundo. Provavelmente ela até conseguiria tolerar a verdade sobre Enid Bolam, mas quando soubesse que a chantagem não fora feita por amor a ela, que suas ações não tinham o propósito de preservar o amor dos dois, que não havia amor algum a preservar, que nunca houvera... Seria obrigado a casar-se com ela, claro. Sempre soubera que isso talvez fosse necessário. Só ela poderia incriminá-lo de forma eficaz, e havia um modo seguro de calar sua boca. Mas não havia tempo. Planejava estar em Paris no fim da semana. Pelo jeito, não viajaria sozinho. Pensava velozmente. Transferindo o peso de Jenny para o braço da poltrona, mas sempre com os braços em torno dela, o rosto encostado em sua face, disse baixinho: “Ouça, querida. Tem uma coisa que você precisa saber. Não lhe contei antes porque não queria preocupá-la. É verdade, peguei as quinze libras. Foi uma idiotice, mas agora não adianta me preocupar com isso. Acho que a senhorita Bolam desconfiou que tinha sido eu. Não sei. Ela não me disse nada — e não fui eu quem ligou para ela. Mas estive no subsolo depois que ela foi morta. Eu tinha deixado a porta dos fundos destrancada e entrei por ali quando voltei. Não agüento aquele imbecil do Cully anotando meu nome toda vez que entro ou saio como se eu fosse tão maluco quanto os pacientes e me pedindo o jornal emprestado assim que me vê. Pão-duro! Por que não compra o dele? Eu quis fazê-lo de bobo, por uma vez que fosse. Quando entrei pela porta do subsolo, vi que a luz da sala dos arquivos estava acesa e a porta entreaberta e fui ver quem estava lá. Encontrei o corpo. Sabia que não podia ser encontrado ali, especialmente se alguém descobrisse que eu havia pegado as quinze libras, de modo que não falei nada, saí de novo pela porta dos fundos e entrei pela da frente como faço todo dia. E não disse nada a ninguém. Não tem outro jeito, querida. Preciso me apresentar à Bollinger no fim da semana, e a polícia não me deixaria viajar se começasse a suspeitar de mim. Se não for agora, nunca mais na vida terei outra oportunidade como essa.” Essa parte, pelo menos, era verdade. Ele precisava partir imediatamente. Já virara obsessão. Não era só o dinheiro, a liberdade, o sol e as cores. Era a derradeira vingança dos anos incolores, esquálidos, de luta e humilhação. Tinha de apresentar-se à Bollinger. Outros pintores podiam fracassar agora e ter sucesso no fim. Ele não. E, mesmo agora, talvez fracassasse. Sua história era frágil. Enquanto falava, sentia claramente as inconsistências, as improbabilidades. Mas os fatos se concatenavam — por pouco. Não via de que maneira ela poderia provar que ele estava mentindo. Além disso, ela não tentaria fazer isso. Mas ficou surpreso com sua reação. “No fim da semana! Você está dizendo que viaja em seguida para Paris. E a clínica? E o seu trabalho?” “Pelo amor de Deus, Jenny, que importância tem isso? Vou abandonar o emprego e eles vão encontrar outra pessoa. Vão ter de se virar sem mim.” “E eu?” “Você vai comigo, claro. Sempre tive a intenção de levar você. Não sabia?” “Não”, ela disse, e ele teve a impressão de que sua voz estava impregnada de uma imensa tristeza. “Não, eu nunca soube disso.” Ele tentou assumir um tom confiante com uma ponta de censura.
“Nunca discuti o assunto com você porque achava que havia certas coisas que não era preciso discutir. Sei que temos pouco tempo, mas será mais fácil se você não tiver que passar muito tempo em casa à espera. Iam acabar desconfiando. Você tem passaporte, não tem? Não esteve na França com as bandeirantes naquela Páscoa? Sugiro que a gente se case assim que der, com uma autorização especial — afinal, agora temos o dinheiro —, e que escreva a seus pais quando chegarmos a Paris. Você quer ir, não quer, Jenny?” De repente ela começou a tremer entre os braços dele e ele sentiu a umidade morna de suas lágrimas ardendo em seu rosto. “Achei que você queria partir sem mim. Os dias iam passando e você não falava nada. Claro que eu quero ir. Nada mais me importa, desde que fiquemos juntos. Mas não podemos nos casar. Nunca lhe contei porque tive medo que você se irritasse. Além disso, você nunca me perguntou nada sobre mim. Não posso me casar porque já sou casada.”
O carro virara na Vauxhall Bridge Road, mas o tráfego estava carregado e o avanço era lento. Dalgliesh recostou-se em seu assento como se tivesse o dia inteiro pela frente, mas por dentro se contorcia de ansiedade. Não conseguia descobrir nenhuma causa racional para aquela impaciência. A visita à Steen era meramente especulativa. Se Nagle tinha mesmo ido até lá, o mais provável era que já tivesse ido embora quando eles chegassem. Decerto naquele exato momento estava em algum bar de Pimlico tomando sua cerveja vespertina. Na esquina seguinte o farol fechou e o carro diminuiu a velocidade e parou pela terceira vez numa distância de cem metros. De repente, Martin disse: “Ele não teria conseguido manter o esquema por muito tempo, mesmo matando Enid Bolam. Mais cedo ou mais tarde a senhora Fenton — ou quem sabe outra vítima — teria aparecido na Steen.” Dalgliesh respondeu: “Mas ele podia muito bem ter prosseguido até conseguir a bolsa. E mesmo que a chantagem fosse descoberta antes de ele partir — o que poderíamos provar? Aliás, mesmo agora: o que podemos provar? Com Enid Bolam morta, que tribunal poderia ter absoluta certeza de que o chantagista não era ela? Nagle só precisa dizer que se lembra de ver um envelope esquisito, sobrescritado com tinta verde, e que sempre deixava o envelope no escaninho da gerente administrativa. Fenton confirmará ter pensado que os telefonemas haviam sido feitos por uma mulher. E às vezes acontece de um chantagista encontrar uma morte violenta. Nagle não prosseguiria depois do telefonema da senhora Fenton. Mesmo isso contaria a seu favor. A gerente administrativa morre e a chantagem pára. Ah, conheço todos os argumentos contra isso! Mas o que seria possível provar?” Impassível, Martin respondeu: “Ele vai tentar ser mais inteligente do que todo mundo. Eles sempre fazem isso. A garota faz o que ele mandar, claro, coitadinha. Se ela mantiver sua história, de que ele não ficou tempo suficiente sozinho para dar aquele telefonema...” “Ela vai manter.” “Tenho certeza de que ele desconhece a existência do marido. Se achar que ela é perigosa, provavelmente imagina que pode impedi-la de falar casando-se com ela.” Dalgliesh disse, tranqüilo: “Agora precisamos pressioná-lo antes que ele descubra que é impossível casar-se com ela.”
Na saleta dos porteiros, na Steen, Nagle escrevia uma carta. Escrevia com segurança. As frases fluentes e mentirosas brotavam com inesperada facilidade. Teria preferido morrer a enviar uma carta como aquela. Seria insuportável imaginar alguém lendo aquele jorro de baboseiras e reconhecendo-o como de sua autoria. Mas a carta jamais seria lida por outra pessoa que não fosse Jenny. Dentro de trinta minutos ela seria jogada na caldeira, seus fins teriam sido alcançados e as frases untuosas não seriam mais que uma lembrança desagradável. Enquanto isso, melhor torná-la convincente. Não era difícil imaginar o que Jenny tinha vontade que ele dissesse:
Quando esta carta for lida, estaremos juntos na França. Sei que isso vai provocar muita infelicidade em vocês, mas por favor acreditem quando lhes digo que não podemos viver um sem o outro. Sei que um dia estaremos livres para nos casar. Até esse momento, Jenny estará em segurança comigo e eu dedicarei minha vida a tentar fazê-la feliz. Por favor, tentem entender e perdoar.
O fecho estava ótimo, pensou. Jenny, pelo menos, ia gostar, e seria a única leitora. Chamou-a pelo nome e empurrou o papel para o outro lado da mesa. “Assim está bom?” Ela leu em silêncio. “Acho que está.” “Que droga, menina. Qual é o problema?” Ao ver que o produto de seus esforços era julgado inadequado, ele se encheu de raiva. Havia imaginado que encontraria a gratidão atônita de Jenny. Ela disse em voz baixa: “Problema nenhum.” “Então é melhor você escrever sua parte. Não embaixo do que eu escrevi. Pegue uma folha nova.” Ele empurrou o papel por cima da mesa na direção dela sem cruzar o olhar com o dela. Aquilo estava demorando muito, ele nem sabia direito que horas eram. “Melhor escrever uma coisa curta”, disse. Ela pegou a caneta mas não fez menção de escrever. “Não sei o que dizer.” “Não há muito a dizer. Já falei tudo.” “É”, disse ela muito triste. “Você já disse tudo.” Ele conteve a irritação crescente para que ela não aparecesse em sua voz e disse: “Escreva que sente muito porque vai fazê-los sofrer, mas que não pode fazer outra coisa. Uma coisa desse tipo. Que diabo, você não está indo para o fim do mundo. Eles que resolvam. Se quiserem visitar você, não me oponho. Não complique as coisas. Vou até lá em cima consertar aquela fechadura da sala da senhorita Saxon. Quando descer, vamos celebrar. Só tem cerveja, mas esta noite vamos beber cerveja, minha querida — e gostar.” Ele pegou uma chave de fenda da caixa de ferramentas e subiu depressa, antes que ela tivesse tempo de protestar. A última coisa que viu foi o rosto assustado de Jenny olhando-o sair. Mas ela não o chamou de volta. No andar de cima, bastou um segundo para calçar um par de luvas de borracha e arrombar a porta do armário das drogas perigosas. A porta cedeu com um estalo aterradoramente ruidoso
que o pregou no chão por um momento, esperando que Jenny o chamasse. Mas não ouviu nenhum som. Lembrou-se nitidamente da cena de uns seis meses antes, quando um dos pacientes do dr. Baguley ficara violento e desorientado. Nagle ajudara a controlá-lo enquanto Baguley pedia à irmã que providenciasse paraldeído. Nagle se lembrava das palavras exatas: “Vamos misturar na cerveja. O gosto é horrível, mas a cerveja disfarça. Estranho, não é? Dois gramas, irmã”. Jenny, que não gostava de cerveja, não perceberia. Num gesto rápido, guardou a chave de fenda e o pequeno frasco azul de paraldeído no bolso do casaco e saiu da sala, iluminando o caminho com a lanterna. Todas as cortinas da clínica estavam fechadas, mas era importante que ninguém visse luz lá dentro. Precisava de mais meia hora de sossego. Ela olhou para ele espantada ao vê-lo voltar tão depressa. Ele se aproximou dela e beijou sua nuca. “Desculpe, meu bem. Eu não devia ter deixado você sozinha. Não me lembrei de que você podia ficar nervosa. A fechadura pode esperar. E a carta?” Ela empurrou o papel para ele. Ele se virou de costas para ler as poucas linhas escritas com todo o capricho, demorando-se de propósito. Mas continuava com sorte. Era um bilhete de suicida tão claro e convincente quanto qualquer outro já lido numa sala de tribunal. Teria sido incapaz de ditar um texto melhor. Foi invadido por uma onda de confiança e agitação semelhante à que o tomava quando uma pintura estava avançando bem. Agora nada haveria de dar errado. Jenny escrevera:
Não posso dizer que sinto muito pelo que fiz. Não tenho escolha. Estou tão feliz... Tudo estaria perfeito se eu não soubesse que vou fazer vocês sofrerem muito. Mas não posso fazer outra coisa; é o melhor para mim. Por favor, tentem me entender. Amo muito vocês. Jenny.
Largou a carta na mesa e foi servir a cerveja. A porta aberta do armário ocultava seus gestos. Meu Deus, como fedia aquele negócio! Rapidamente adicionou a cerveja espumante e perguntou a Jenny: “Feliz?” “Você sabe que estou.” “Então vamos comemorar. A nós, querida.” “A nós.” Quando o líquido tocou seus lábios, ela fez uma careta. Ele riu. “Até parece que você está tomando veneno. Coragem, menina! Veja como se faz.” Ele despejou o copo inteiro na goela de uma vez só. Rindo, ela estremeceu e engoliu toda a sua cerveja. Ele recolheu o copo vazio e abraçou-a. Ela se pendurou nele; suas mãos pareciam uma compressa fria na nuca de Nagle. Desprendendo-se, ele a conduziu até a poltrona e puxou-a para baixo a seu lado. Depois, abraçados, os dois escorregaram para o chão e deitaram-se juntos no tapete, diante do aquecedor a gás. Ele apagara a luz, e o rosto dela cintilava ao ardente reflexo rubro do aquecedor como se estivesse deitada em pleno sol. O som sibilante do gás era o único ruído a romper o silêncio. Ele puxou a almofada de uma das poltronas e empurrou-a para debaixo da cabeça dela. Só uma das almofadas — a outra teria outra função. Seria útil no fundo do forno do aquecedor. Era menos provável que ela acordasse se estivesse confortável no derradeiro escorregão da inconsciência para a morte. Ele cingiu o corpo dela com o braço esquerdo e os dois permaneceram deitados sem
falar. De repente ela virou o rosto para ele e ele sentiu sua língua, úmida e escorregadia como um peixe, imiscuir-se entre seus dentes. Os olhos dela, de pupilas negras à luz do gás, estavam pesados de desejo. “Querido”, ela sussurrou. “Querido.” Deus do céu, ele pensou. Tudo menos isso. Não podia ter sexo com ela naquele momento. Seria bom para ela parar quieta, mas não era possível. Não havia tempo. E por certo o patologista forense saberia verificar quanto tempo antes da morte uma mulher havia tido sexo — e com quem. Pela primeira vez, pensou com alívio na obsessão de Jenny com a segurança e murmurou: “Não podemos, querida. Estou sem preservativos. Não podemos correr esse risco.” Ela concordou com um murmúrio e se aconchegou a ele, passando a perna esquerda por cima de suas coxas. A perna ficou ali, pesada e inerte, mas ele não ousava se mexer nem falar, de medo de interromper aquele mergulho insidioso na inconsciência. A respiração dela havia ficado mais pesada, quente e irritante na orelha esquerda de Nagle. Deus, será que ainda ia demorar muito? Retendo o próprio fôlego, ele apurou o ouvido. De repente ela deu um pequeno ronco, como um animal satisfeito. Por baixo de seu braço, ele sentiu uma mudança no ritmo da respiração de Jenny. Houve uma liberação quase física de tensão quando o corpo dela relaxou. Havia adormecido. Melhor esperar mais alguns minutos como garantia, ele pensou. Não tinha muito tempo disponível, mas não ousava apressar-se. Era importante que não houvesse edemas no corpo dela e ele sabia que não podia enfrentar um combate físico. Mas agora não era possível voltar atrás. Mesmo que ela acordasse e resistisse, ele teria de ir em frente. De modo que ele esperou, deitado tão imóvel que os dois poderiam ser cadáveres enrijecendo juntos num último abraço estilizado. Depois de algum tempo ele ergueu o corpo cautelosamente sobre o cotovelo direito e olhou para ela. Tinha o rosto corado e a boca entreaberta, com o lábio superior repuxado sobre os dentes brancos de criança. Dava para sentir o cheiro de paraldeído em seu hálito. Ele olhou para ela por um momento, percebendo seus longos cílios claros, a curva das sobrancelhas e as sombras projetadas pelos malares salientes. Estranho que nunca tivesse chegado a desenhar seu rosto. Mas agora era tarde para pensar nisso. Murmurou para ela enquanto a carregava suavemente para o outro lado do aposento, para a abertura negra do forno a gás. “Está tudo bem, querida Jenny. Sou eu. Estou deitando você para que fique confortável. Está tudo bem, querida.” Mas era a si mesmo que ele tranqüilizava. Havia muito espaço no forno grande e antiquado, mesmo com a almofada. O fundo do forno ficava a menos de vinte centímetros do chão. Com as mãos por baixo das omoplatas dela, ele a empurrou delicadamente para a frente. Quando a almofada recebeu o peso da cabeça dela, ele conferiu se os furinhos por onde saía o gás continuavam desimpedidos. A cabeça dela girou para o lado, de modo que a boca entreaberta, úmida e vulnerável como a de um bebê, ficou posicionada logo acima deles, pronta para sugar a morte. Quando ele retirou as mãos que sustentavam seu corpo, ela soltou um pequeno suspiro, como se por fim se sentisse confortável. Ele lançou um último olhar para ela, satisfeito com sua obra. E agora precisava correr. Apalpando os bolsos em busca das luvas de borracha, moveu-se com incrível velocidade, com passos leves e respiração rasa, como se já não conseguisse suportar o som que produzia ao respirar. O bilhete de suicida estava sobre a mesa. Ele apanhou a chave de fenda e fez com que a mão direita de Jenny a envolvesse, pressionando a palma em torno do cabo brilhante, a ponta do
dedo de encontro à base da lâmina. Era assim que ela a teria segurado? Provavelmente. Depositou a chave de fenda sobre o bilhete de suicida. Em seguida enxaguou o copo em que havia bebido e guardou-o de novo no armário, segurando o pano de prato na frente do aquecedor por um momento até a mancha úmida evaporar. Apagou o fogo. Não precisava preocupar-se com o assunto das impressões digitais no aquecedor propriamente dito. Seria impossível determinar quando ele fora ligado pela última vez. Refletiu por um instante sobre o frasco de paraldeído e o copo de Jenny, mas resolveu deixá-los sobre a mesa junto com o bilhete e a chave de fenda. Por certo o mais lógico seria que ela bebesse sentada à mesa para depois, sentindo os primeiros sinais de entorpecimento, aproximar-se do forno. Limpou o frasco para apagar as próprias impressões digitais, depois apertou a mão esquerda de Jenny em torno dele e o indicador direito e o polegar direito em torno da tampa. Quase tinha medo de tocá-la, mas agora ela estava profundamente adormecida. Sua mão estava muito quente e tão relaxada que dava a impressão de não ter ossos. Ele sentiu repulsa por aquela flacidez inerte, por aquele contato sem comunicação, sem desejo. Depois de tomar providências semelhantes com o copo em que ela bebera e com a garrafa de cerveja, deu-se por satisfeito. Agora só seria preciso tocá-la uma vez mais. Por fim agarrou a carta que escrevera aos Priddy e o par de luvas e jogou-os na caldeira. Só faltava ligar o gás. A torneira ficava à direita do forno, facilmente acessível ao flácido braço direito de Jenny. Levantou o braço dela, pressionou seu indicador e seu polegar contra a torneira e giroua. Ouviu-se o leve assobio do gás que escapava. Quanto tempo seria necessário?, pensou. Não muito, com certeza... Talvez apenas alguns minutos. Apagou a luz e recuou, fechando a porta atrás de si. Nesse momento lembrou-se das chaves da porta da frente. Era preciso que fossem encontradas com ela. Seu coração gelou quando se deu conta de que aquele pequeno erro poderia ter sido fatal. Esgueirou-se novamente para dentro da sala à luz da lanterna. Tirou as chaves do bolso e, prendendo a respiração por causa do cheiro do gás, colocou-as na mão esquerda de Jenny. Chegava à porta quando ouviu o miado de Tigger. O gato devia estar dormindo debaixo do armário. Agora dava lentamente a volta no corpo, estendendo uma pata exploratória na direção do pé direito da garota. Nagle viu que não ia conseguir aproximar-se dela novamente. “Venha cá, Tigger”, murmurou. “Venha cá, meu velho.” O gato olhou para ele com seus grandes olhos cor de âmbar e deu a impressão de estar pensando no assunto sem pressa e sem emoção. Depois andou lentamente na direção da porta. Nagle encaixou o pé esquerdo por baixo da barriga peluda e transportou o gato para o outro lado da porta num único movimento rápido. “Saia daí, seu idiota. Quer perder todas as suas sete vidas de uma vez só? Esse negócio mata.” Fechou a porta, e o gato, subitamente ativo, saiu em disparada no escuro. Nagle aproximou-se da porta dos fundos sem acender nenhuma luz, localizou as trancas, abriu a porta e saiu. Fez uma pausa com as costas apoiadas na porta para verificar se não havia ninguém no beco. Agora que tudo estava acabado tinha tempo para observar os sinais de desgaste. Tinha a testa e as mãos úmidas de suor e estava com dificuldade para respirar. Aspirou profundamente o ar noturno, abençoadamente frio. A névoa não estava muito cerrada; era pouco mais que uma neblina. A luz do poste que assinalava a extremidade do beco atravessava-a como uma nódoa amarela na escuridão. Aquele reflexo, a menos de quarenta metros de onde ele estava, representava a segurança. Mesmo assim, de repente ele lhe pareceu inatingível. Como um animal na toca, fixou com horrorizado fascínio aquela luz e ordenou a suas pernas que se movessem. Mas
seu vigor desaparecera. Agachado no abrigo escuro da moldura da porta, as costas apoiadas na madeira, procurou não entrar em pânico. Afinal, não havia tanta pressa assim. Num momento deixaria aquele santuário espúrio e o beco ficaria para trás. Depois era só voltar à praça pelo outro lado e esperar que passasse alguém para ver como ele golpeava inutilmente a porta da frente. Mesmo as palavras que pronunciaria estavam preparadas. “É a minha namorada. Acho que ela está lá dentro, mas não quer abrir a porta. Estava comigo hoje mais cedo, mas depois que saiu percebi que tinha levado as chaves. Estava esquisita. É melhor chamar a polícia. Vou arrombar esta janela.” Em seguida viria o ruído do vidro quebrado, a carreira até o subsolo e a oportunidade de trancar novamente a porta dos fundos antes que os passos apressados que o seguiam se aproximassem dele. O pior havia passado. De agora em diante tudo era muito fácil. Às dez horas o corpo já teria sido removido e a clínica estaria vazia. Num momento ele passaria ao ato final. Mas não ainda. Não ainda.
Ao longo da margem do rio o tráfego estava quase parado. Aparentemente havia algum tipo de festa no Savoy. De repente, Dalgliesh observou: “Não temos ninguém de guarda na clínica, evidentemente...” “Não. Lembra-se de que esta manhã lhe perguntei se era preciso deixar um homem por lá e que o senhor disse que não?” “Sim, lembro.” “Afinal, não parecia necessário. Já havíamos feito uma revista rigorosa no lugar e não dispomos de tantos homens assim...” “Eu sei, Martin”, retrucou Dalgliesh, brusco. “Por incrível que pareça, foram exatamente essas as razões de minha decisão.” O carro estacou novamente. Dalgliesh pôs a cabeça para fora da janela. “Que diabo ele pensa que está fazendo?” “Acho que está fazendo o que pode, senhor.” “É isso que eu acho tão deprimente. Vamos lá, Martin. Saia do carro. Vamos fazer o resto do caminho a pé. É provável que eu esteja fazendo papel de bobo, mas quando chegarmos à clínica vamos cobrir as duas saídas. Eu cubro a frente, você os fundos.” Se Martin ficou surpreso, não era de sua natureza demonstrá-lo. Parecia que tinha dado um negócio no chefe. O mais provável era que Nagle estivesse de volta em seu apartamento e que a clínica estivesse deserta e trancada. Eles iam parecer uma dupla de bobalhões, esgueirando-se em volta de um prédio vazio. Tudo bem, em breve saberiam. Convocou toda a sua energia para acompanhar os passos do inspetor.
Nagle jamais soube quanto tempo esperou junto à porta, quase dobrado em dois, ofegante como um animal. Mas depois de algum tempo a calma voltou e com ela o uso das pernas. Avançou furtivamente até a grade dos fundos, pulou-a e começou a descer o beco. Andava como um autômato, mãos rígidas pendendo ao lado do corpo, olhos fechados. De repente ouviu as passadas. Abrindo os olhos, viu contra a luz do poste a silhueta corpulenta de uma figura que conhecia. Lenta, inexoravelmente, ela vinha na sua direção em meio à névoa. Sentiu o coração dar um salto em seu peito e depois começar a latejar tumultuadamente, sacudindo todo o seu corpo. Tinha as pernas pesadas e frias como a morte, e conteve o primeiro impulso fatal de correr. Mas
pelo menos sua mente estava funcionando. Enquanto pudesse pensar, havia esperança. Era mais inteligente que eles. Com sorte, não teriam a idéia de entrar na clínica. Por que entrariam? E sem dúvida àquela altura ela já estava morta. Com Jenny morta, podiam fazer as teorias que quisessem. Nunca conseguiriam provar nada. A lanterna iluminou seu rosto em cheio. A voz lenta, neutra, disse: “Boa noite, rapaz. Tínhamos a esperança de encontrá-lo. Saindo ou chegando?” Nagle não respondeu. Esticou os lábios numa imitação de sorriso. Imaginou o aspecto que teria sob aquela luz cruel: expressão de morte, boca aberta de pavor, olhos fixos. Nesse momento sentiu alguma coisa roçar suas pernas de leve. O policial se abaixou e pegou o gato no colo, segurando-o no meio dos dois. Na mesma hora ele começou a ronronar, vibrando de satisfação com o calor daquela mão enorme. “Ah, aqui está o Tigger. Foi você que deixou ele sair, não é mesmo? Você e o gato saíram juntos.” Nesse momento, de golpe, os dois perceberam e seus olhos se encontraram. Do calor dos pêlos do gato ergueu-se entre os dois, fraco mas inconfundível, o cheiro de gás.
A meia hora seguinte, para Nagle, foi um torvelinho confuso de sons e luzes ofuscantes de que às vezes emergia alguma cena nítida, de clareza sobrenatural, que ia fixar-se em sua mente, onde permaneceria pelo resto de sua vida. Não se lembrava de ser arrastado de volta pelo policial, de ter passado novamente por cima da grade de ferro; só se lembrava da mão firme como um torniquete segurando seu braço, deixando seu braço dormente, e do ruído rascante da respiração de Martin em seu ouvido. Depois de um impacto, ouviu o tinido triste, retardado, de vidro partido quando alguém chutou as janelas da sala dos porteiros, o som estridente de um apito, uma confusão de passos correndo pelas escadas da clínica, um clarão de luzes cegando seus olhos. Numa dessas cenas, Dalgliesh está agachado sobre o corpo da garota com a boca, escancarada como a de uma gárgula, colada sobre a boca de Jenny, empurrando o próprio hálito para dentro dos pulmões dela. Os dois corpos parecem estar lutando, presos num abraço obsceno como a violação dos mortos. Nagle não falava. Estava quase aquém do pensamento, mas o instinto lhe dizia para não dizer nada. Imobilizado contra a parede por braços fortes e observando fascinado a ondulação febril dos ombros de Dalgliesh, sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Enid Bolam estava morta, Jenny estava morta e agora ele estava cansado, desesperadamente cansado. Não queria matá-la. Bolam é que o forçara a assumir o risco e a desordem do assassinato. Ela e Jenny, juntas, é que o haviam acuado. E agora ele perdera Jenny. Jenny estava morta. Diante da enormidade, da injustiça do que elas o haviam obrigado a fazer, não se surpreendeu quando as lágrimas de autocomiseração lhe escorreram pelo rosto. De repente a sala ficou cheia de gente. Havia mais homens uniformizados, um deles rechonchudo como um personagem de Holbein, olhos de porco, movimentos lentos. Ouviu-se o assobio do oxigênio, um murmúrio de vozes confabulando. Depois, com mãos delicadas e experientes, depositaram alguma coisa sobre uma maca, uma forma debaixo de um cobertor vermelho, que rolou para um lado quando a maca foi erguida. Por que carregar aquela pessoa com tanto cuidado? Ela já não podia sentir os solavancos. Dalgliesh só falou depois que Jenny foi levada. Depois, sem olhar para Nagle, disse: “Está bem, Martin. Leve-o até a delegacia. Lá ouviremos o que ele tem a dizer.” Nagle moveu os lábios. Sua boca estava tão seca que a pele se partiu. Alguns segundos se
passaram até as palavras saírem, depois não houve como fazê-las cessar. A história cuidadosamente ensaiada jorrou num turbilhão, rala e pouco convincente. “Não há nada a dizer. Ela foi a meu apartamento e passamos a tarde juntos. Eu tive de dizer a ela que ia partir sozinho. Ela teve uma péssima reação, e depois que saiu vi que as chaves da clínica tinham desaparecido. Eu sabia que ela estava um tanto alterada, por isso achei melhor ir atrás dela. Tem um bilhete em cima da mesa. Vi que estava morta, que não havia nada a fazer, por isso fui embora. Não queria me envolver no assunto. Tenho de pensar na bolsa Bollinger. Não seria bom envolver-me num suicídio.” Dalgliesh disse: “É melhor não dizer mais nada por enquanto. Mas você vai ter de melhorar essa história. Veja, não é por causa do que ela nos disse. Aquele bilhete sobre a mesa não é o único que ela deixou.” Com estudada deliberação, o inspetor tirou do bolso do paletó um papelzinho dobrado e segurou-o a alguns centímetros dos olhos de Nagle — olhos fascinados, vidrados de terror: “Se vocês passaram a tarde juntos em seu apartamento, como explica este bilhete, que encontramos embaixo da aldrava de sua porta?” Foi nesse momento que Nagle percebeu, doente de desespero, que os mortos, tão impotentes e desprezados, podiam incriminá-lo, apesar de tudo. Instintivamente, estendeu a mão para agarrar o bilhete, depois baixou o braço. Dalgliesh recolocou o bilhete no bolso. Olhando Nagle atentamente, disse: “Quer dizer que correu até aqui esta noite porque estava preocupado com a segurança dela? Muito tocante. Nesse caso, preciso tranqüilizá-lo. Ela vai sobreviver.” “Ela morreu”, disse Nagle com voz opaca. “Se matou.” “Estava respirando quando saiu daqui. Amanhã, se tudo correr bem, estará em condições de nos contar o que aconteceu. E não só o que aconteceu aqui esta noite. Temos algumas perguntas sobre o assassinato da senhorita Bolam.” Nagle soltou uma risada estridente: “O assassinato de Enid Bolam! Por esse vocês nunca vão conseguir me incriminar! E vou lhes dizer por quê, seus idiotas. Porque não a matei! Se quiserem fazer papel de bobos, podem ir em frente. Não se constranjam por minha causa. Mas estou avisando. Se for preso pelo assassinato de Enid Bolam, vou acabar com a raça de vocês em todos os jornais do país.” Ofereceu os punhos a Dalgliesh: “Vamos, inspetor. Pode me prender. Por que tanta hesitação? Descobriu tudo direitinho, não é mesmo? Só que não foi tão inteligente assim, seu policial pretensioso!” “Não vou prendê-lo”, disse Dalgliesh. “Convido-o a nos acompanhar até a delegacia para responder a algumas perguntas e fazer um depoimento. Se quiser que um advogado esteja presente, tem o direito de requisitá-lo.” “Vou querer um advogado, sim. Mas não agora. Não estou com pressa, inspetor. Sabe, estou esperando uma visita. Combinamos encontrar-nos aqui às dez horas da noite e já está quase na hora. Devo dizer que havíamos imaginado que estaríamos sozinhos na clínica e que acho que minha visita não vai gostar muito de encontrá-los aqui. Mas, se querem encontrar a pessoa que matou a senhorita Bolam, sugiro que fiquem. Não vai demorar muito. A pessoa que estou esperando foi treinada a ser pontual.” De repente pareceu que todo o medo que ele sentia desaparecera. Os grandes olhos castanhos ficaram de novo inexpressivos, lagos lodosos em que a vida ardia apenas nas íris negras. Martin, sempre segurando os braços de Nagle, sentiu os músculos recuperando o tônus, sentiu a volta
física da confiança. Mas, antes que qualquer dos três tivesse tempo para dizer alguma coisa, seus ouvidos captaram simultaneamente o ruído de passos. Alguém entrara pela porta do subsolo e avançava cautelosamente pelo corredor. Com uma passada silenciosa, Dalgliesh foi para junto da porta e se preparou. Os passos, tímidos, hesitantes, pararam do lado de fora. Três pares de olhos fitaram a maçaneta, que girou primeiro para a direita, depois para a esquerda. Uma voz chamou baixinho: “Nagle! Você está aí, Nagle? Abra a porta!” Num único movimento, Dalgliesh pôs-se a um lado e abriu a porta de golpe. A figura esguia moveu-se involuntariamente para a frente e foi iluminada pelo clarão das lâmpadas fluorescentes. Os imensos olhos cinzentos se arregalaram e foram de um rosto para o outro. Eram os olhos de uma criança que não entende o que está acontecendo. Com um gemido, ela apertou uma sacola contra o peito num movimento instintivo de proteção, como quem protege um bebê. Arrancandose das mãos de Martin, Nagle apropriou-se da sacola e jogou-a para Dalgliesh. Ela caiu pesadamente nas mãos do detetive; o plástico barato grudou nos dedos dele. Nagle tentou controlar a voz, que soou em falso, de hesitação e triunfo. “Dê uma olhada no conteúdo da sacola, inspetor. Está tudo aí. Vou lhe dizer o que vai encontrar. Uma confissão assinada da autoria do assassinato de Enid Bolam e cem libras em cédulas, primeiro pagamento para que eu mantenha a boca fechada.” Voltou-se para sua visitante. “Sinto muito, garota. Não era assim que eu havia planejado. Estava disposto a manter segredo sobre o que vi, mas de sexta para cá muita coisa mudou. Agora tenho de me preocupar com meus próprios problemas e não vou deixar ninguém me acusar de assassinato. Acabou nossa combinação.” Mas Marion Bolam desmaiara.
Dois meses depois, Marion Grace Bolam foi indiciada sob a acusação de ter assassinado a prima. Um outono caprichoso virara inverno, e Dalgliesh caminhava sozinho para a delegacia sob o cobertor cinzento de um céu que parecia pender sobre a terra com o peso da neve. Os primeiros flocos úmidos já estavam caindo, derretendo suavemente ao tocar seu rosto. Na sala de seu chefe as luzes estavam acesas e as cortinas puxadas, cortando a visão do rio que cintilava, a faixa de luz ao longo da margem e a inércia gelada da tarde hibernal. Dalgliesh fez um curto relatório. O inspetor-chefe ouviu em silêncio, depois disse: “Vão pedir atenuação de responsabilidade, sem dúvida. Como está a moça?” “Perfeitamente calma, como uma criança que sabe que fez uma traquinagem e que se comporta o melhor possível na esperança de que os adultos acabem esquecendo seu malfeito. Tenho a impressão de que não sente culpa; só a culpa feminina pelo fato de ter sido descoberta.” “Um caso perfeitamente transparente”, disse o inspetor-chefe. “O suspeito óbvio, o motivo óbvio.” “Óbvio demais para mim, pelo jeito”, disse Dalgliesh com amargura. “Se esse caso não me curar da vaidade, sou um caso perdido. Se tivesse prestado mais atenção no óbvio, teria me perguntado por que ela só voltou à Rettinger Street depois das onze, quando as emissões televisivas estavam se encerrando. Claro, estava com Nagle, acertando os pagamentos da chantagem. Parece que se encontraram no St. James Park. Ele soube reconhecer a oportunidade quando entrou na sala dos registros e a encontrou debruçada sobre o corpo da prima. Deve ter se aproximado sem fazer um
som. A partir daquele momento, encarregou-se das providências com a eficácia habitual. Foi ele, claro, quem depositou a estátua cuidadosamente sobre o corpo. Até esse detalhe me induziu ao erro. De alguma maneira, não conseguia imaginar Marion Bolam fazendo esse derradeiro gesto de desprezo. Mas que foi um crime óbvio, isso foi. Ela praticamente não fez nada para dissimular os fatos. Guardou no bolso do avental as luvas de borracha que havia usado; escolheu as armas mais ao alcance da mão; não tentou incriminar outra pessoa. Não estava nem tentando ser inteligente. Aproximadamente às seis horas e doze minutos ela telefonou para a secretaria e disse a Nagle que não descesse para buscar a roupa porque ela não estava pronta. Um detalhe: ele não conseguiu deixar de mentir sobre esse telefonema, o que me ofereceu outra oportunidade de ser excessivamente sutil. Depois ligou para a prima. Não podia ter certeza absoluta de que Enid desceria sozinha, e a desculpa tinha de ficar em pé, por isso espalhou as pastas médicas pelo chão. Depois ficou à espera de sua vítima na sala dos arquivos, de estátua em punho e formão no bolso do avental. Infelizmente para ela, Nagle voltou em segredo para a clínica quando deveria estar fora com a correspondência. Ele entreouvira o telefonema da senhorita Bolam para o secretário do grupo e queria apanhar a pasta do coronel Fenton. O mais simples, aparentemente, seria enfiá-la nas chamas da caldeira. Ao dar com o assassinato, foi obrigado a alterar seus planos e depois, quando o corpo foi descoberto e a sala dos arquivos lacrada, não encontrou outra oportunidade para fazer o que pretendia. Quanto à enfermeira Bolam, essa não teve como planejar melhor o tempo. Descobrira na quarta-feira à noite que Enid pretendia alterar seu testamento. Sexta foi a primeira noite em que haveria uma sessão de tratamento com ácido lisérgico e ela teria o subsolo para si. Não podia agir mais cedo; não ousava agir mais tarde.” “O assassinato veio a calhar para Nagle”, disse o inspetor-chefe. “Você não deve se culpar por ter se concentrado nele. Mas se faz questão de sentir autocomiseração, fique à vontade.” “Talvez tenha vindo a calhar, mas era desnecessário”, replicou Dalgliesh. “E por que razão ele mataria Enid Bolam? A única coisa que ele queria, além de ganhar um dinheiro fácil, era receber a bolsa Bollinger e viajar para a França sem criar confusão. Devia saber que seria difícil acusá-lo de chantagear o coronel Fenton — mesmo que o secretário do grupo decidisse chamar a polícia. Na realidade ainda não temos suficientes provas para incriminá-lo. Mas assassinato é diferente. Todos aqueles que entram em contato com um assassinato podem ter seus projetos pessoais destruídos. Mesmo os inocentes têm dificuldade para se libertar do pó contaminador. Matar a gerente administrativa só aumentava o risco que ele corria. Mas matar Priddy era diferente. Com um único gesto poderia proteger seu álibi, ver-se livre de um estorvo e ter a esperança de casar-se com a herdeira de umas trinta mil libras. Sabia que não teria muita chance com Marion Bolam se ela ficasse sabendo que Priddy fora sua amante. Não por acaso era prima de Enid Bolam.” O inspetor-chefe disse: “Pelo menos conseguimos incriminá-lo como cúmplice do crime, e isso vai mantê-lo fora de circulação por algum tempo. A vantagem é que com isso os Fenton não precisarão prestar testemunho. Mas duvido que a acusação de tentativa de assassinato cole — a não ser que Priddy mude de idéia. Se ela insistir em corroborar o que ele diz, nada feito.” “Ela não vai mudar de idéia”, disse Dalgliesh desencantado. “Nagle não quer vê-la, naturalmente, mas nada faz diferença. Ela só pensa em planejar a vida dos dois quando ele sair da prisão. E Deus tenha misericórdia dela, quando ele sair.” Irritado, o inspetor-chefe ajeitou o corpo enorme na cadeira, fechou a pasta e empurrou-a para o outro lado da mesa na direção de Dalgliesh. Disse: “Não há nada que você ou qualquer outra pessoa possa fazer quanto a isso. Ela é o tipo de
mulher que vai atrás da própria destruição. Aliás, aquele artista, Sugg, esteve falando comigo. É impressionante como as pessoas têm idéias estranhas sobre os procedimentos judiciais! Eu disse a ele que o assunto agora está fora da nossa alçada e encaminhei-o para o setor adequado. Ele quer assumir os custos da defesa de Nagle. Disse que se tivermos cometido um erro, o mundo perderá um talento extraordinário. Faça-me o favor!” “Seja como for, perderá mesmo”, responde Dalgliesh. Pensando alto, acrescentou: “Eu gostaria de saber quão excepcional um artista teria de ser para que o deixassem partir em paz depois de um crime como o de Nagle. Michelangelo? Velásquez? Rembrandt?”. “Ora”, disse o inspetor-chefe sem vacilar. “Se tivéssemos de saber a resposta a essa pergunta não seríamos policiais.”
Na sala de Dalgliesh, Martin organizava papéis. Depois de olhar brevemente para o rosto do inspetor, pronunciou um sucinto “Boa noite, senhor” e saiu. Havia determinadas situações que sua natureza descomplicada achava mais prudente evitar. A porta mal se fechara atrás dele quando o telefone tocou. Era a sra. Shorthouse. “Alô!”, gritou ela. “Inspetor Dalgliesh? Que complicação, para conseguir falar com o senhor! Vi o senhor no tribunal hoje. Imagino que não me viu. Como vai?” “Bem, obrigado, senhora Shorthouse.” “Acho que a gente nunca mais vai se encontrar, por isso tive a idéia de lhe telefonar para dizer oi e contar as novidades. Aconteceram diversas coisas na Steen, o senhor nem imagina. Para começar, a senhorita Saxon vai embora. Vai trabalhar num lar para crianças retardadas na parte norte da cidade. Coisa da Igreja católica. Imagine só, sair da Steen para trabalhar num convento! Nunca tinha acontecido isso na clínica.” Dalgliesh disse que podia imaginar. “A senhorita Priddy foi transferida para uma das clínicas pulmonares do grupo. O senhor Lauder achou que a mudança faria bem a ela. Ela teve uma briga terrível com os pais e está morando sozinha numa pensão em Kilburn. Mas o senhor está sabendo de tudo isso, claro. A senhora Bolam foi internada num hospital caro, perto de Worthing. Tudo financiado com o que herdou da prima Enid. Coitada. Me espanta ela ter conseguido tocar naquele dinheiro.” Dalgliesh não estava espantado, mas não falou nada. A sra. Shorthouse prosseguiu: “E ainda tem o doutor Steiner. Vai se casar com a mulher.” “O que disse, senhora Shorthouse?” “Bem, vai se casar pela segunda vez com ela. Resolveram de repente. Tinham se divorciado e agora vão se casar de novo. O que acha disso?” Dalgliesh respondeu que quem tinha de achar alguma coisa era o doutor Steiner. “Ah, ele está satisfeito como pinto no lixo. Estão falando que o Conselho Regional talvez feche a clínica e transfira todo mundo para o departamento de pacientes-dia de algum hospital. Bem, dá para entender. Primeiro apunhalam uma, depois tentam matar a outra com gás — e agora um julgamento por assassinato. Complicado, realmente. O doutor Etherege diz que isso perturba os pacientes, mas para falar a verdade não percebi nada. O número de pacientes não diminuiu de outubro para cá. A senhorita Bolam é que teria gostado. Sempre preocupada com o número de pacientes. Claro, sempre aparece um para dizer que não teríamos tido que enfrentar aquele problema com o Nagle e a Priddy se a verdadeira assassina tivesse sido apanhada desde o começo. Foi por pouco, não é mesmo? Mas o que eu queria dizer é o seguinte: o senhor fez o que pôde e no fim deu tudo certo.” No fim deu tudo certo! De modo que eram essas as concomitâncias do fracasso, pensou Dalgliesh com amargura ao desligar o telefone. Como se não bastasse sentir aquela autocomiseração acre e corrosiva! Ainda tinha de enfrentar as lições de vida do inspetor-chefe, o tato de Martin, as condolências de Amy Shorthouse. Se quisesse ver-se livre daquele desânimo que impregnava a sua vida, precisava tirar uma folga do crime e da morte, precisava afastar-se da sombra da chantagem e do assassinato, nem que fosse pelo período breve de uma noite. Lembrou-se de que o que mais desejava era jantar com Deborah Riscoe. Pelo menos, disse para si mesmo com ironia, seria uma mudança de problema. Pôs a mão sobre o fone e estacou, movido pela antiga cautela, as antigas incertezas. Nem mesmo tinha certeza de que ela acharia bom receber um telefonema no escritório. Não sabia qual era seu cargo na Hearne e Illingworth. Depois a imagem de Deborah no último encontro dos dois voltou-lhe à memória e ele levantou o fone. Por que não podia jantar com uma mulher atraente sem fazer toda aquela mórbida autoanálise? O convite não o comprometeria a nada além de cuidar para que ela tivesse uma noite agradável e pagar a conta. E afinal um homem tem o direito de ligar para seus editores!
P. D. James
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