Almeida Garrett
PESSOAS - MÉROPE, EGITO, POLIFONTE, POLIDORO, O SUMO SACERDOTE
POVO - Sacerdotes, sacrificadores, soldados, séquito do rei
Lugar da Cena: Messênia.
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ATO I No fundo, um peristilo de templo cujas portas devem ser espaçosas de modo que, abortas, se veja claramente o interior do templo; à direita, um mausoléu; à esquerda, o palácio real. – É a mesma vista em todos os atos.
CENA I
O SACERDOTE (abrem-se as portas do templo: por elas sai e desce gravemente as escadas do peristilo até meio da cena, antes de falar) Enfim aprouve ao Céu colmar de todo Nossas desditas já. – Prostrou-se o trono, Sucumbiram as leis, o altar vacila, E o crime triunfou... – Os deuses justos O quiseram assim! Oh, não me atrevo A perscrutar seus eternais decretos... É culpado o mortal se o Céu castiga: Sim, mas não veda ao triste o lastimar-se: As lágrimas do aflito não são crime, Nem sacrilégio do infeliz os rogos. Tu os ouves, suprema divindade, E permites que ao trono omnipotente As coxas preces do infeliz que chora Cheguem a apiedar tua justiça Ah! do teu sacerdote ouve hoje o rogo, Deus da Terra e dos Céus, deus meu, atende, Por mim de um povo inteiro ouve o gemido. De Messênia infeliz escuta o brado, Sobre ela estende a destra poderosa. Volve os olhos de pai a seus flagelos. De sobejo correu o sangue a jorros, A milhares as vítimas caíram De tuas iras. – Mísero Cresfontes Ele era nosso rei; mais que monarca, Foi também nosso pai terno e piedoso. Nada o salvou das sanguinosas garras De ingrata rebelião. Viu moribundo, Por entre as sombras da vizinha morte, Punhais traidores a rasgar-lhe os selos Dos filhinhos sem culpa... Viu – e a morte Esperou com o golpe derradeiro Que a vista horrível lhe ferisse os olhos! – Viu à frente dos súbditos rebeldes Polifonte, o traidor, o ingrato, o monstro A quem fizera grande entre o seu povo, A quem de honras e dádivas colmara, Lançar aos nobres pulsos da consorte Afrontosos grilhões em vez do cetro. Oh rainha infeliz, mísera esposa. Mais desgraçada mãe, Mérope... – Aí triste, Ei-la aí a mesquinha em seu fadário De gemer e chorar – sobre esse túmulo Do esposo, que, não sei por que milagre Do Céu, ou por que engano de piedade No tirano, inda aí lhe deixam, inda Essa última memória das virtudes Passadas, esse extremo monumento Da realeza proscrita – o não sovertem Na voragem que tudo o que era santo, Ilustre, nobre aí tem devorado Nesta votada terra de Messênia. Ela chega. Deixemo-la à vontade
Desafogar suas mágoas.
(Retira-se para dentro do templo, e cerra meia porta).
CENA II
MÉROPE (entra cautelosamente, e não vendo ninguém, vai direita ao sepulcro) Ai! ainda Me ficou este último refúgio! Posso inda a furto vir aqui sozinha Minhas mágoas carpir, desabafá-las Com estas frias lajes, menos duras Que o duro coração do meu tirano Sulcadas estão já por minhas lágrimas, Que, três contínuos lustros, fio a fio, Me tem corrido o pranto destes olhos... Sombra adorada do infeliz consorte, Não te aplaquei ainda... As tuas cinzas Bem as sinto volverem-se no túmulo... Ah, sim, mais do que pranto exige o esposo. Sangue? – Sangue terás, – não de vingança: Vedam-me esse prazer os Céus mesquinhos; Mas o meu, o meu sangue neste mármore, Em sacrifício extremo derramado. Há de ir em breve saciar-te os manes, E unir aos teus meu fado eternamente. Há muito... mas sou mãe. Oh! tu, que foste Tão estremoso pai, tu bem me entendes. Sou mãe, e esta lembrança me conserva O débil fio que me prende à vida. Meu filho! minha esperança derradeira, (Assustada e abafando a voa) Meu filho!... Oh! se me ouvisse alguém agora... Se Polifonte... oh Céus! Eu rodeada De espias, delatores ando sempre.
Se me ouviriam?... –Vejo ali um vulto... Um homem... É um homem. Santos deuses. Agora sim, que a minha hora extrema De desgraça chegou!
(Cai de bruços sobre o túmulo)
CENA III Mérope, o Sacerdote (caminhando para ela).
SACERDOTE Não, ó rainha, Sossega, não te ouviram os espias Do tirano. Viúva de Cresfontes, Tuas lágrimas caíram no meu peito; E neste coração jazida eterna Teus segredos terão, enquanto os deuses Me não derem que possa quebrantá-los, Que possa a este povo de Messênia Liberdade bradar, mostrar-te a eles, Mostrar-lhes o seu rei, teu filho...
MÉROPE Filho! Filho meu! – Ah, ouviste-me, e conheces O meu segredo.
SACERDOTE Sei-o há muito, Mérope.
MÉROPE Oh! mas tu és ministro dos altares, Não hás de... Bem o sei, sei que não hás de Atraiçoar-me: oh sei, – Tenho inda um filho, É verdade, é verdade: existo ainda Nesse último resto do meu sangue.
Oh, quisera encobrir este mistério De mim própria – de mim, que tenho medo. Medo de meu amor não me atraiçoe, Não me revele num suspiro o filho. Temo que os olhos do tirano astuto No pranto maternal me não descubram. Oh! quantas vezes sufoquei no peito, Nos olhos me enxugou a mesma causa Que o fizera nascer! É o meu filho, O último, vês tu? – E o esposo e os outros Filhos, e tudo o que perdi... aí neste, Tudo torno a perder se o perco agora.
SACERDOTE Tem bom ânimo, é Mérope, confia Na demência dos deuses sua cólera Há de abrandar-se enfim; espera neles.
MÉROPE Ah, que posso esperar dos Céus ainda? Persegue-me a sua ira injusta, há tanto, Sempre, sempre! Tiraram-me o esposo, Os filhos!...
SACERDOTE Inda um filho te deixaram, Ainda te conservam.
MÉROPE E é demência; Da piedade do Céu são benefícios Os males que não fez?
SACERDOTE Rainha, escuta, Ouve a amizade cândida e sincera Que te fala sem vás hipocrisias.
Eu nunca fiz troar por minha boca Os deuses, a quem sirvo na humildade Deste meu coração onde não tenho Menos o amor dos homens que o dos numes. Mas no Céu, é rainha, não se medem Pela nossa medida os bens e os males. Da eterna justiça não sabemos Avaliar nós as razões. Sofre, geme, Resigna-te, suplica, e tem bom ânimo: Talvez não tarde seu favor celeste; Porventura...
MÉROPE Oh! Conservem-me o meu filho, Não lhes peço mais nada.
SACERDOTE E já te ouviram: Salvaram-te das garras do tirano. Foi um prodígio seu. Nem eu concebo Como, no denso horror daquela noite. Por entre os ferros da ímpia soldadesca, Como pudeste subtrai-lo à morte.
MÉROPE Ah! que ainda o coração me estala s sangra Coa lembrança de horror! Tenho presentes, Volvem-me na alma as pavorosas cenas Inda tintas no sangue dessa noite. Vejo-o... E já três lustros são passados. Vejo em meus braços semimorto o esposo... Do peito inda a bolhões lhe salta o sangue... Vejo das roxas, hórridas feridas A pouco e pouco a vida esvaecer-lhe, Ouço-o balbuciar no último arranco: “Esposa, os filhos...” E ao dizer que os salve, Cortou-lhe a morte a voz. – Sobre o cadáver
Que me esfria nos braços, e entre os tristes Os lastimados beijos com que o cubro, Queria ali morrer. Mas dentro na alma Me brada que sou mãe a natureza. Corro aos filhos... Ai triste! sinto ainda O que não podem nem dizer palavras Nem conceber o espírito. – Ímpios ferros Os membros infantis lhe atassalharam. Abraço-os um e um... Já não respiram. Um tinha ainda o punhal cravado No seio. Arranco-lhe... E já curvo o braço Para morrer ali... Mas inda quero Cevar os olhos outra vez, fartar-me, No espetáculo horrível. Fito-os, vejo... Grandes deuses, que vi! Um de meus filhos Com um gemido de dor me estende os braços. Como aquele gemido me entrou na alma! Como outra dor, tamanha mas diversa, Me revirou o coração no peito... Não sei; mas um apego tal à vida, Um medo de morrer tamanho, nunca O sentira jamais. Acudo ao filho; Inda respira, fora leve o golpe: Penso-lhe a chaga pouco funda e tênue, Com ele em meus braços à ventura corro Pelas desertas salas do palácio. Guia-me um deus: encontro Polidoro, Do meu Cresfontes o mais fiel amigo: O tempo foge... eu debulhada em pranto O precioso penhor nas mãos lhe entrego; E: “Foge, foge (sé lhe disse) longe De Messênia, vai, leva-o, corre, parte, Guarda-o à triste mãe...” – Ia por diante, Mas o amigo fiel já me não ouve; Voava: protegeu-o o Céu propicio, Os passos lhe escudou, salvou-me o filho; E em tida ambos vivem, – Eu...
SACERDOTE Silêncio, Que aí vem o tirano. Vejo os guardas E o numeroso séquito que sempre O rodeia
MÉROPE Não posso já fugir-lhe.
CENA IV Mérope, o Sacerdote, Polifonte, séquito, guarda.
POLIFONTE Lá está junto ao sepulcro. E eu que inda sofro Essa fatal memória do meu crime Aí a recordá-lo, e a suscitar-me Os remorsos que afogo em vão no meu peito! Eu tolero estes prantos de contínuo, Este carpir de viúva inconsolável Que me afronta e me pesa! – Acabou hoje Minha longa paciência. (Aproxima-se de Mérope) Mérope, ouve As palavras de paz com que hoje venho Pela última vez... (Vendo o sacerdote) Tu que fazias Aqui? – Para o teu templo, sacerdote, E deixa-nos em paz. – Vós todos ide.
CENA V Mérope, Polifonte.
POLIFONTE
Pela última vez, dizia eu, Mérope. Venho a ti. Basta enfim de inúteis prantos, Deixa vãos preconceitos. Foste esposa, Reinaste; e eu reino agora: tal do mundo Foi sempre a sorte. Do meu novo império, Fruto de tantas lidas tão cansadas, E a que o sangue de Alcides me não dava Menos direitos do que ao teu Cresfontes, Do império a que me ergueu minha vitória, Bem vês que não abuso. Como outrora, És respeitada e vives; livre o passo A toda a parte tens. Já com justiça Me poderás chamar tirano?
MÉROPE Chamo. E que és tu mais? Não vês este sepulcro? Não vês nele gravado o teu delito? Não te diz que és um súbdito rebelde? Não vês naquelas lajes esculpidos. Um por um, teus nefandos atentados? E aqui, neste lugar, aqui ousaste Vir, sem pejo, ante mim fazer alarde De teus hórridos crimes! E um tirano Não és tu, monstro?
POLIFONTE Sou teu rei, ó Mérope Basta para punir-te um meu aceno; Posso prostrar de um sopro esse moimento Em que aos manes do esposo cada dia Trazes de oferenda imprecações inúteis Contra mim, contra o Céu que te não vinga. E sei-o e sofro-o. E sei que o sacerdote Teu consócio no crime...
MÉROPE Que proferes! Nem dos altares o ministro poupam Tuas negras suspeitas?
POLIFONTE Eu conheço Os ministros do altar. Mas dos seus numes Só imito a demência: perdoei-lhe, E as tuas injúrias, e o contínuo Maquinar de teus cegos partidários, E tudo o mais que sei... tudo perdoo, Talvez minha piedade excede os termos Da justiça real... – Messênia sabe Quanto à sua ventura sacrifico Meu interesse próprio; e quero dar-lhe Hoje solene prova de clemência. É necessário, pede o bem do Estado Que neste império enfim se ponha termo Aos bandos, aos partidos. Fácil meio Tinha na espada ou no rigor severo Da bipene das leis...
MÉROPE Em leis tu falas! Existem leis onde um tirano impera?
POLIFONTE Sossega as iras um momento; escuta: Demos a paz aos povos; de nós ambos Ela depende só. Esposo e reino, Tudo perdeste, recupera tudo: Consorte e cetro te ofereço.
MÉROPE O cetro Manchado por tuas mãos, torpe, calcado Da plebe, a cujos pés o arremessaste
Quando eras seu escravo, e no delírio Da popular soltura preparavas Tua atroz tirania... guarda-o, guarda-o: Está bem nas tuas mãos, – Ah! e em consorte Falaste! – Esposo, a mim? e tu me ofereces! Esposo a mim! – E quem é?
POLIFONTE Sou eu mesmo.
MÉROPE Tu!
POLIFONTE Eu, sim, eu, teu rei.
MÉROPE Deuses, faltava Esta última injúria, esta ignomínia Derradeira à viúva de Cresfontes! E ousaste pensá-lo, e atreveu-se Tua boca a preferi-lo? O assassino De meu esposo! O monstro inda coberto Do inocente sangue de meus filhos...
POLIFONTE Teus filhos! – Nessa noite sanguinosa, Em que eu tive decerto menos culpa Do que tu me atribuía, – nessa noite Teus filhos todos... todos pereceram? Um amigo fiel não pôde acaso Salvar?...
MÉROPE Que dizes tu?
POLIFONTE
Não digo nada.
MÉROPE Tu sabes?...
POLIFONTE Não...
MÉROPE Não sabes. E que havias. De saber tu? Morreram, todos, todos. Do sangue de Cresfontes já não resta Quem te assombre. Que temes tu?...
POLIFONTE Não temo... Nem tu deves temer. Mas ouve, ó Mérope: Se algum dos teus... dos teus fiéis, precisa Amparo e proteção, com pranto e lágrimas Não é que lhe hás de dar. Ofereci-te Metade do meu trono... Pensa, é Mérope, Pensa e resolve.
CENA VI Mérope, depois o Sacerdote.
MÉROPE Estou, estou traída. Quem foi, quem me perdeu? – Oh filho, filho! Oh desgraçada mãe! Por toda a parte Tem o bárbaro espias, tem algozes. Ai de mim! se o descobrem... santos deuses! Resolve, o quê? Morrer – só morte...
SACERDOTE (abrindo as portas do templo, diz com voz solene.) Vive:
É preciso viver.
MÉROPE Viver eu como, Para quê?
SACERDOTE Para o filho e para a pátria..
ATO II
CENA I Polifonte, séquito, guardas.
POLIFONTE Já não duvido mais: Mérope ainda Tem um filho. – Um filho de Cresfontes! Como escapou, aonde me ocultaram? Não sei; mas uma esperança nos seus olhos, Aquele suspirar como em segredo, Me diz que não é só carpim de viúva O seu carpir: não me enganei, é certo: Vi-a ao nome de mãe esmorecer-se... Eu sempre o suspeitei: quase em certeza Minhas suspeitas se volveram hoje. Mas onde existe o desgraçado resto Dessa proscrita, mísera progênie? (Aos do séquito) Cumpre sabê-lo, e morra. – Oh lá, chamai-me O sacerdote: é o confidente certo O movedor destas intrigas todas. Vejamos se... Dissimulado e astuto É o sacerdote. Sim, mas não me excede: Já reino há muito, – Oh, abre-se a porta, Ele chega; finjamos.
CENA II O Sacerdote, Polifonte, séquito, guardas
POLIFONTE Venerando Ministro dos altares, como amigo. Não como rei, a ti venho. Merecem Tuas virtudes esta deferência, Posso mandar...
SACERDOTE E eu hei de obedecer-te: Do poder que te deixam sobre a Terra. Os deuses julgarão.
POLIFONTE Mas eu quisera, Exijo... peço muito mais do que isso: Quero a tua amizade,
SACERDOTE Eu amo os deuses.
POLIFONTE Não proíbem os Céus que os homens se amem.
SACERDOTE Antes o mandam.
POLIFONTE Bem; conheço agora Que de teu ministério augusto és digno: Quero do teu amor hoje uma prova: Mérope... tem ainda um filho.
SACERDOTE (à parte) Um filho! Oh Céus! – Filho de...
POLIFONTE Sim; já de que existe Tenho certeza.
SACERDOTE Como! Pois não foram Nessa noite de horror extintos todos? Do infeliz régio sangue uma só gota Ficou por derramar?
POLIFONTE Esse mistério Sabes melhor do que eu. Fala.
SACERDOTE Encerrado No sagrado recinto desse templo, Do santuário à sombra veneranda. Vivo só, ignorado, e tão remoto Do bulício das cortes, do tumulto Dos homens e de seus tão vãos cuidados, Que, indiferente a essas lutas e contendas, Apenas ergo aos Céus súplices palmas Rogando peio bem da minha pátria.
POLIFONTE Bem sei... E que fazia hoje contigo Mérope nestes sítios?
SACERDOTE Soluçava, Gemia, suspirava a desgraçada. É o seu viver: clamava pelo esposo,
E bradava piedade aos Céus.
POLIFONTE Com ela Eu bem te vi falar: que lhe dizias?
SACERDOTE Eu na sua aflição a consolava, E na chaga da dor vertia o bálsamo Da santa religião.
POLIFONTE Ah! já não posso Tanta impostura suportar. Um filho Tem Mérope; sei-o eu: onde está ele? Fala.
SACERDOTE Não posso.
POLIFONTE Teme...
SACERDOTE Eu temo os deuses,
POLIFONTE Morrerás.
SACERDOTE Não receia o justo a morte.
POLIFONTE Posso...
SACERDOTE Que mais do que tirar-me a vida?
POLIFONTE O templo prostrarei donde me insultas, De donde, com teus pérfidos sequazes, Domas rebeldes pelo povo espalhas... Teu santuário, foco de discórdias, Patentearei à irrisão das gentes; Cairá sobre ti o altar e o templo; E hão de ficar teus numes nesse opróbrio, Sem incensos, sem aras, sem ministros...
SACERDOTE Templo é dos numes toda a natureza: Nos corações virtuosos dos humanos Têm vítimas, altar, incenso e votos, Extingue o lume da razão nos homens, E o culto extinguirás do deus que odeias.
POLIFONTE Estremeço de raiva. Oh lá, soldados! Férreos grilhões aos pulsos desse pérfido; Ao mais horrendo cárcere se arraste... E nas trevas de lúgubre masmorra Aprenda a obedecer.
(Lançam-lhe os grilhões)
SACERDOTE Eis-me. É tirano: Que mais queres de mim? Olha os teus ferros, Vê quanto podem! Sopear-me es braços. Quão pouco sois, ó déspotas da Terra! Tens para o coração também algemas? Tens grilhões que a razão ferrolhem na alma? Débil punhado de coroada cinza, Quem és tu?
POLIFONTE Apartai-o de meus olhos.
SACERDOTE Corro, ó tirano, satisfeito à morte: Há muito que aprendi a não temê-la. Tu, déspota, no trono mal seguro Treme, que um vingador dos Céus não tarda, Treme, perverso.
CENA III Mérope, o Sacerdote, Polifonte, séquito, soldados.
MÉROPE Augusto sacerdote, Que vejo! agrilhoado! – Onde te arrastam?
SACERDOTE A morte.
MÉROPE Oh Céus! por quê?
SACERDOTE Não sei.
POLIFONTE Não sabes? Porque é rebelde,
MÉROPE A quem?
POLIFONTE Ao seu monarca.
SACERDOTE Monarca tu! Deliras, Polifonte. Rei quem te fez, quem te sentou no trono, Quem nas malvadas mãos te pés o cetro? O cetro ainda tome e maculado Do régio sangue que esparziu teu ferro... Basta para ser rei o crime, a intriga, Os direitos dos povos nada valem, As armas são as leis que ao sólio chamam, E...
POLIFONTE Levai-o.
MÉROPE (a Polifonte) Ah, senhor, ah! tem piedade De seus anos tão velhos, tão cansados, Movam-te aquelas cãs, respeita ao menos No ministro do altar o altar e os numes, Nele venera o povo o deus que adora: Excitado talvez...
POLIFONTE Pois, que obedeça.
SACERDOTE Não posso.
POLIFONTE Parte.
MÉROPE (ao sacerdote) Não: modera um pouco Tua severa, rígida virtude: Obedece: ele manda... ele governa...
SACERDOTE
Soldados, ao meu cárcere.
MÉROPE E mais duro, Mais férreo coração terás do que ele! Não vês o triste estado em que nos deixas? Que será deste povo desgraçado? Quem na sua aflição há de valer-lhe, Quem as vozes de Céu?...
SACERDOTE O Céu e os numes Dentro do coração terá se é justo.
MÉROPE Movam-te ao menos minhas desventuras, De mim tem dó.
SACERDOTE De ti!... – Sobejo o tenho. Rainha, adeus,
MÉROPE Espera... oh Céus! Quem há de Ao meu triste...
SACERDOTE (interrompendo-a vivamente) Que dizes, desgraçada!... Deixa-me.
MÉROPE Ah!... por piedade... E que motivo? (A Polifonte) Dele que exiges tu?
POLIFONTE Tênue serviço
Mas importante a mim.
SACERDOTE Tênue, malvado? Bem importante a ti? – Assaz o creio. Ouve, ó rainha: quer esse tirano...
POLIFONTE Suspende.
MÉROPE O quê?
SACERDOTE Que lhe descubra...
MÉROPE Oh deuses!
SACERDOTE Se um filho...
MÉROPE Um filho!
POLIFONTE Para.
SACERDOTE Teu...
MÉROPE Meu filho!
POLIFONTE Pérfido!
MÉROPE Um filho meu! – Tu mos deixaste?
POLIFONTE Sim, tens um filho: suspeitei-o há muito, Sei-o agora. Se és mãe, inda te resta Um meio de o salvar.
MÉROPE Qual?
POLIFONTE Inda há pouco Te disse.
MÉROPE A infâmia!
POLIFONTE Oh! quem se aproxima? Entre soldados preso um estrangeiro! Mancebo é inda...
MÉROPE Um estrangeiro? Oh deuses! Bate-me o coração.
POLIFONTE (aos soldados que guardam o sacerdote) Soldados, eia, Esse hipócrita longe de meus olhos: Levai-o ao cárcere: ide.
CENA IV Mérope, Polifonte, Egito, séquito, soldados.
POLIFONTE
Ah! e vós outros, Quem é este mancebo? Que delito, Meu prisioneiro o fez? Falai. – Mas quero Eu perguntá-lo. – Tu quem és?
EGITO Sou filho De humildes, pobres pais, mas não escravos.
POLIFONTE O teu crime qual é?
EGITO Junto dos muros Desta cidade, e em defesa própria, Tive a desgraça de matar um homem,
POLIFONTE E quem era esse homem?
EGITO Estrangeiro Parecia, e o trajar ao medo de Élida Era come este meu.
MÉROPE Élida?
EGITO Ao menos Assim se me antolhou.
POLIFONTE (à parte) De Élida ao nome Estremeceu... Talvez... Aprofundemos (Alto a Egito) Este mistério mais. – Onde nasceste?
EGITO Em Élida, te disse.
POLIFONTE De teu crime Conta mais por miúdo as circunstâncias.
EGITO Ah tu queres, ó rei, dentro em minha alma Renovar minha dor e os meus remorsos! Apraz-te ouvir meu crime? Ouve-me e julga. Verás nesse delito involuntário Toda a minha inocência. – Pelas margens Do suave Pamiso caminhava; E já de longo andar quebrado as forças, No templo entrei do valoroso Alcides Que em solitária encosta de ermo outeiro Junto ao rio se eleva; ali prostrado Súplices mãos tendia ao deus que adoro, Que aprendi a implorar de tenra infância. “Protege, lhe dizia, ó grande Alcides, Protege o sangue teu.” – Tal de menino Me ensinava meu pai...
MÉROPE Teu pai! Quem era?
EGITO Um venerando ancião...
MÉROPE E o seu nome?
EGITO Era...
MÉROPE Como?
EGITO Cefiso se chamava.
MÉROPE Mas talvez... – Continua a tua história.
EGITO Destarte orava: e no fervor das preces Eis me interrompem, súbito me assaltam Armados de punhais dois assassinos: Quem és, clamaram, que tens tu, mendigo, Com o sangue de Alcides?” – Nisto e ferro Já sobre o peito me apontava um deles. Algum deus me ajudou: de um bote rápido Sobre o braço traidor, lhe quebro e talho; Segundo o golpe, e lhe atravesso o peito. Espavorido o companheiro foge: Traidores são cobardes. – Vi-me livre, E atentei no infeliz que aos pés me expira. Era a primeira vez que o sangue humano Tingia minhas mãos: aflito e triste Chorou-me o coração, e gemi sobre ele. Novo no crime, não sabia ainda Os meios de ocultá-lo: arrasto ao rio, E em suas águas sepulto o corpo exangue. Fugi: nem me lembrou minha imprudência De apagar na mesma água o claro indicie Do meu delito. Incerto, horrorizado Corro, inda em sangue esquálidos, fumando O braço, as vestes; chego delirante As portas de Messênia, e os teus soldados Me seguram, me arrastam, – Do meu crime Ouviste as circunstâncias e a verdade: Não sei outra linguagem. Tu me julga.
Mas...
POLIFONTE Basta: saberás o teu destino. (À parte) Grandes suspeitas em minha alma excita Este mancebo; esclarecê-las cumpre. (Alto) Adrasto, oh lá. (Fala em segredo com um do séquito: e depois continua alto) Em segurança o tende. Tu, Mérope, resolve. Adeus.
CENA V Egito, Mérope, soldados.
EGITO É esta A rainha, esta é Mérope? Ah! Senhora Tem piedade de mim: sou desgraçado. Tu só pedes valer-me; és compassiva. Sempre e ouvi a meu pai.
MÉROPE Que te dizia Teu pai? Conhece-me ele?
EGITO De Messênia Foi cidadão outrora.
MÉROPE De Messênia! O seu nome?
EGITO É Cefiso; já te disse.
MÉROPE Talvez outro?...
EGITO Só este lhe conheço.
Mérope E em Élida que faz? Desta cidade Por que fugiu?
EGITO Ai, nunca em tal fugida Nunca lhe ouvi falar sem que agro pranto Pelas rugas das faces lhe corresse.
MÉROPE Chorava ele!... Por quê?
EGITO Eu nunca pude Penetrar de suas lágrimas a causa, De teu esposo a acerba desventura Muitas vezes chorando me contava. E só de ouvir ou pronunciar teu nome Se debulhava em pranto.
MÉROPE Que suspeitas. Que lembranças na mente me revolvem! Diz... em tida... nunca... em Polidoro Falar ouviste..., nunca o conheceste?
EGITO Eu vivia no campo em pobre albergue. Sozinho com meus pais velhos e enfermos; Ninguém mais que eles conheci.
MÉROPE De Egito... O nome... ignoras?
EGITO Nunca ouvi tal nome.
MÉROPE E nunca... em tua mãe?...
EGITO Ai, desgraçada! Se ela me visse agora!
MÉROPE Tu... conheces Bem tua mãe?...
EGITO Não hei de conhecê-la! Ela que tantas vezes me apertava Em seus trêmulos braços, que em suspiros Me chamava e seu filho tão querido! Mísera mãe!
MÉROPE Oh fado, ah, não me deixas Nem a doce ilusão da minha esperança! Quase as vãs aparências me enganavam. (À parte) Aquele som de voz... o mesmo gesto... Parecia-me ver e meu Cresfontes. (Alto) Desgraçado, que queres, que procuras Nestes sítios de horror? Nesta cidade. Aonde reina e crime e habita a morte, A que vinhas?
EGITO Sem fim; só conduzido De ímpeto juvenil, do vão desejo De ver terras e gentes. Quantas vezes Minha imprudência amaldiçoei!
MÉROPE Mas diz: Esse... esse infeliz a quem mataste Era de Élida?
EGITO Sim.
MÉROPE Jovem?
EGITO Seria De meu talhe, come eu, da mesma idade.
MÉROPE Procurava ocultar-se?
EGITO Sim, parece-me Que buscava esconder o reste.
MÉROPE E era Nobre no porte?
EGITO Nobre.
MÉROPE Altivo?
EGITO Altivo.
MÉROPE Fugia?
EGITO Sim, eu creio que fugia; Vinha pálido...
MÉROPE E tu mataste-o, bárbaro?
EGITO Eu defendi-me.
MÉROPE E ele moribundo Nada disse?
EGITO Algum tempo junto dele Chorando estive. – Já no arranco extremo...
MÉROPE Desgraçado!
EGITO Ah sim: – lembro-me agora. O triste nos suspiros derradeiros Chamava por sua mãe...
MÉROPE Sua mãe! Malvado, E tu mataste-o, tu! – E o corpo exangue Sepultaste nas águas! – Céus!... Perdido,
Perdido e para sempre...
EGITO Ai, miserando, Que fiz! Em que te ofende e meu delito? Oh, pune-me, sim pune-me de um crime Que me faz detestar a própria vida. A tua ofensa vinga... Eu ofender-te! Eu que te adorei sempre, que da infância, Nos braços de meu pai que me ensinava, Tantas vezes por ti rogava aos deuses, Eu ofender-te ousei – Bem desgraçado Sou.
MÉROPE Que falar, que lágrimas, que acento! Como ao meu coração seus ditos chegam. Que invisível poder tem na minha alma! Rege-a, mau grado meu, move-me, agita-me... Até me custa a separar-me dele. Que pérfida ilusão! – Oh não é este: É que por toda a parte a doce imagem De meu filho me segue. – Ide, levai-o,
EGITO Ah, tu me desamparas! ó Senhora, Se não rogas por mim... Não abandones Um desgraçado filho...
CENA VI
MÉROPE Filho!... Ai, filho Ia quase a chamar-lhe! – Malfadada! Doce e triste ilusão, suave engano, Perseguidora imagem do conserte,
Saudades do meu filho tão querido, Ah, que do coração, para iludir-me. Aos olhos me vieram. – Não, não era Para mim tal ventura. – E Polifonte?... Polifonte! que horror! – Eu sua esposa! Mas o tirano sabe do meu filho; Polidoro não vem... e vai num ano Sem notícias sequer... Oh, vem trazer mas, Vem, Polidoro, vem trazer-me a vida, Ou libertar-me a tempo com a morte.
ATO III
CENA I Polifonte, séquito, soldados.
POLIFONTE Tragam-me aqui o sacerdote. Ide. (Falando cem um ministro do séquito) Adrasto, de sua rígida constância Vejamos se triunfo. Aos meus intentes É necessário este homem: meios brandos Talvez poderão mais que as ameaças. Careço dele: para o povo rude Sempre é bom rei o amigo dos altares... (Falando consigo) Demais, este mancebo e o seu delito, Não sei que pense dele. – Vinha de Élida; Mérope ao nome de Élida estremece, (Torna a dirigir-se ao ministro) Mil perguntas lhe fez... – Deram-se as ordens Que mandei? (O ministro inclina-se) Um dos deis, ou este ou o morto,
É o filho de Mérope: só resta Saber qual. Deste modo e saberemos. Mas eh, ei-lo que chega e sacerdote.
CENA II O Sacerdote, Polifonte, séquito, soldados.
SACERDOTE Que mais queres de mim, que me pretendes? Por que roubar-me as trevas do meu cárcere, Por que arrastar-me ao dia e à luz que odeio, Que infecta a escura névoa de teus crimes?
POLIFONTE Ouve-me.
SACERDOTE O quê, minha sentença? Oh, venha: Venha a morte. Bendito o deus que os rogos Do seu serve escutou!
POLIFONTE Sossega e julga. Tirai-lhe esses grilhões.
SACERDOTE A mim! Que dizes? Oh Céus! e por que preço? – É novo crime Que exiges? – Não, não quero a liberdade. Volve-me ao cárcere, os tormentos dobra; Porém cúmplice teu nunca hás de ver-me. Vítima posso eu ser de teus furores, Ministro não.
POLIFONTE (à parte) Sê-lo-ás a teu despeito. (Alto)
Ouve, e as minhas tenções verás quão puras, Quão virtuosas são. – Do que é passado, Como eu, te esquece: recupera tudo. Toma ao teu santuário e aos teus altares. De ti, só uni serviço exijo agora; Que a Mérope...
SACERDOTE O quê? atraiçoá-la. Ser-lhe infiel?
POLIFONTE Não, – Cumpre ao bem do Estado Que ao trono de Messênia entra vez suba.
SACERDOTE Ao trono!
POLIFONTE Ao trono, sim: quero que reine Ao meu lado.
SACERDOTE Mérope a teu lado, De Cresfontes a viúva!
POLIFONTE Minha esposa Há de ser, proveitoso a mim e a ela Este consórcio é e a todo o império; São justas as razões que o aconselham. Necessárias me são suas virtudes, E quero-lhe mostrar quanto as venero. Desde hoje será lei sua vontade, O seu menor desejo. Quero dar-lhe Um documento já. Por meus soldados Foi, como viste, há pouco aprisionado Um mancebo estrangeiro.
SACERDOTE Era estrangeiro?
POLIFONTE Sim, e ainda na ingênua flor da idade: Homicida, mas nobre no seu crime, Acusa-se e confessa-o. Viu-o Mérope. E tanto a comoveu sua candura, Tanto se condoeu da sorte dele. Que eu, por lhe comprazer, houve piedade Do jovem, e quisera perdoar-lhe. Mas cumpre examinar as circunstâncias Que alega por desculpa de seu crime. No entanto, e em obséquio da rainha, A tua guarda entrego este mancebo.
SACERDOTE A minha guarda! Para quê?
POLIFONTE Não sabes Quanto se apraz de vê-lo e de falar-lhe Mérope. Assim mais fácil pode tê-la, Essa consolação. Tomara eu, ore-me, Dar maior lenitivo a seus pesares, Mas desejo que, ao menos neste pouco, Comece a ver em mim um rei benigno. E nestas complacências reconheça Um esposo... – Mas ela se aproxima. Em paz vos deixo. Adeus! vê se tirano, Se da pátria opressor é Polifonte.
CENA III O Sacerdote, depois Mérope.
SACERDOTE Um criminoso à minha guarda entrega Polifonte... e de Mérope aos desejos Anui prazenteiro... – Oh, traições grandes, Grande mistério encerram de maldade Desnaturais bondades de um tirano!
MÉROPE (entrando) Santo ministro, ó meu único amigo, Ó meu fiel amparo derradeiro, Correndo apenas soube que eras livre, Venho no seio teu depor meu pranto. Desabafar contigo os meus pesares. Ai triste! – Pois não sabes que meu filho?...
SACERDOTE Que dizes nestes sítios?... espiados Somos por toda a parte...
MÉROPE O quê? escuta-nos O tirano? Ai de mim! que este segredo Do meu amor já me não cabe na alma, E há de matar-me, há de.
SACERDOTE Descoberto, Ó Mérope, já foi o teu segredo.
MÉROPE Descoberto! Ora pois, chegou o termo De tanto padecer. Eternos deuses, Que tendes mais para me dar?
SACERDOTE Já sabe Que tens um filho, mas...
MÉROPE (interrompendo-o com ânsia) Mas onde existe Não o sabe o perverso! Não, nem há de Sabê-lo nunca. Os Céus, os Céus me guardam. Não é assim? Diz: são os Céus que o guardam; Destra invisível lhe protege os dias. Oh sim, meu filho: os deuses vingadores, Os deuses justos – são justos os deuses – A esta triste mãe, aos seus gemidos, Ao pranto maternal, aos ais, às preces (Desanimando) Seu furor abrandaram... – Seus furores. O meu pranto, – ai de mim! Salvou-me o esposo Um mar de minhas lágrimas? salvou-me O fervor de meus rogos, de meus votos? Confundido não vi – lembrança horrível! – Com o sangue do consorte, o dos filhinhos? E são justos os Céus e são piedosos!... Que profiro? ai de mim! – Tende piedade De tia mãe que fizestes desgraçada: Conservai-me este só... que me deixastes, Deuses, e bendirei vossas bondades.
SACERDOTE Sim, rainha infeliz, hão de guardar-te, E salvá-lo das iras do tirano. Encerra-se entre nós o alto segredo De sua habitação. De mim conheces Se poderá sabê-lo. Acautela-te, Receia de ti só, teme às astúcias Do tirano e suas pérfidas bondades. Tão generoso agora se nos mostra, Que alguma traição má tem na alma negra. Vês como os ferros me tirou dos pulsos, E piedoso contigo quer mostrar-se, Entregando-se-me aqui esse estrangeiro Por quem mostraste compaixão, diz ele,
MÉROPE Esse jovem... ah, sim: muito o seu fado Me comoveu por certo.
SACERDOTE E nada sabes Dele, quem é?
MÉROPE Um jovem desgraçado: Vinha de tida.
SACERDOTE Como! E não disseste Que aí estava?...
MÉROPE Sim, disse... o meu filho... E talvez, ai de mim!... Até parecia O gesto, o som de voz, o de Cresfontes.
SACERDOTE Que escuto, oh Céus! Que dizes? – Ah corramos...
MÉROPE Não, não é para mim ver o meu filho: Os invejosos Céus me não consentem. (Fica algum tempo como afogada em dor, e depois continua) E pensavas, amigo, que eu podia, Que podia fia mãe com tais suspeitas Descansar um instante, um só momento? Que mil indagações, que mil perguntas Com ânsia escrupulosa não faria? Que o mais tênue vislumbre de esperança Não fora um raio de prazer, de glória Que as névoas de meu pranto dissipasse?
Ah! não: esse mancebo é um desgraçado Que só veio avivar as minhas dores Com essa parecença enganadora Que decerto não tem, mas que lhe acharam Estes meus olhos cegos de saudades.
SACERDOTE Contudo, esse estrangeiro... Há neste caso O quer que seja de mistério oculto Que é razão profundar. – Quem era o morto?
MÉROPE Outro estrangeiro.
SACERDOTE Estrangeiro... E donde? De que parte?
MÉROPE Era de Élida.
SACERDOTE Que dizes! São ambos estrangeiros, ambos vinham De Élida! –Ah! se ora deles...
MÉROPE É verdade, É certo; o coração bem me dizia. Oh meu filho! – Ai de mim qual será deles? Corramos a indagar... Sim, sim, voemos.
CENA VI Mérope, o Sacerdote; e Polidoro (no fundo do teatro em atitude de grande dor).
MÉROPE (indo a sair encara com Polidora) Mas uru homem, oh deus! – Somos traídos.
SACERDOTE Um homem! Certamente algum espia.
MÉROPE Quem és, que queres tu, a quem procuras? Que fazias aqui? Oh! quem te envia É Polifonte, dize. – Por piedade Não me percas, não, não...
SACERDOTE Sonho... ou me iludo? É ele mesmo, é Polidoro,
MÉROPE Deuses! Polidoro! Que ouvi? – És tu? Meu filho Onde está, que fizeste, onde o deixaste? O que faz que não vem? – Quem o demora? É vivo? Já do pai conhece o nome? Já lhe ensinaste a amar-me, a ser bom filho? Assemelha-se muito ao meu Cresfontes? Fala, diz.
POLIDORO Oh rainha!...
MÉROPE Quê?
POLIDORO Tu vives! Posso ainda beijar a mão augusta Da esposa do meu rei! Podem meus olhos Ainda ver-te, e os meus trementes lábios
Falar-te ainda, ainda bendizer-te! Posso...
MÉROPE (com desabrimento) Podes falar-me de meu filho. Vive? – Dize-me ao menos se ainda vive.
POLIDORO Sim... vive.
MÉROPE Vive? – Oh júbilo, oh prazeres Deste meu coração! – Ai Polidoro, Que amarga existência há sido a minha, Que vida cruelíssima hei vivido, Que azedume, que fel tingiu meu sangue, Que aperturas, que afogo, que saudades, Que dúvida cruel pior que tudo! Oh que agitados sustos, que temores Vida?... E vive na mãe sem ver seu filho? Vida!... Se eu tinha a morte dentro na alma. Mas dize-me: que é dele, onde o deixaste? Que faz, quem o demora?
POLIDORO (à parte) Oh santos deuses! Como lhe hei de dizer que não sei dele?
MÉROPE Emudeceste? – Acaso... oh!
POLIDORO É seguro Este lugar? Ninguém aqui nos ouve?
SACERDOTE (depois de olhar por toda a parte) Ninguém: fala, mas baixo.
POLIDORO (ajoelhando) Tem piedade Destas cãs, destes anos tão cansados. Minha velhice extenuada e débil Não pôde, não bastou a segurá-lo... Forcejei, mas em vão.
MÉROPE O quê... que dizes? Desgraçada de mim!... Pois quê!... meu filho
POLIDORO Oh malfadado velho! Oh que não pude Expirar eu de dor!
MÉROPE Que ouvir! Que escuto! Bárbaro! que me dizes? que fizeste? O meu filho onde está?
POLIDORO Prouvera aos deuses Que eu soubesse onde existe!
MÉROPE Quê!... Não sabes? Mas viver?
POLIDORO Vive... sim...
MÉROPE Ah desgraçado! Levanta-te... Ai de mim!... Sabes ao menos Da sua vida decerto?
POLIDORO (abraçando o túmulo de Cresfontes) Ó campa augusta, Ó do melhor dos reis sagradas cinzas!... O teu filho, e o meu... (meu também era) O teu filho... fugiu: no peito altivo Não lhe cabia o coração, há muito: A nossa habitação era pequena Para a sua grande alma. O despiedado De mim não teve dó, nem dos meus anos: Fugiu-me de repente.
MÉROPE Nem soubeste Para onde os passos dirigiu?
POLIDORO Grão tempo Há que por toda a Grécia o ando buscando, Mas embalde corri.
MÉROPE Oh caro filho! Ai! que será de ti sozinho e fraco, Desgarrado no mundo, sem arrimo, Sem mãe que te acarinhe, que te amime; Talvez mendigo!...
SACERDOTE O espirito sossega: Em teu filho vigia deus piedoso; Do alto dos Céus a destra omnipotente Os passos lhe dirige.
MÉROPE Ah! que aos meus rogos Ao meu pranto contínuo, aos meus suspiros, Se tão piedoso é o Céu, que me conceda.
Tantos dias passados, tantas noites No amargor da saudade, nos tormentos; De tudo receando!... Olha, hoje ainda Ao ver esse mancebo criminoso, Ao ouvir-lhe contar da triste morte Do infeliz estrangeiro...
POLIDORO Um estrangeiro Morto! aonde?
MÉROPE Vizinho da cidade.
POLIDORO Justos deuses, que escuto! Ontem?
MÉROPE Sim, ontem.
POLIDORO Junto do rio?
MÉROPE Submergiu nas águas O assassino cruel o como exangue.
POLIDORO Santos nomes!
MÉROPE Mas quê? tu estremeces! Dize... talvez... minhas suspeitas... fala, Desmaias!... desfaleces... Que pressinto!...
POLIDORO (à parte) Mesquinho que farei, que hei de dizer-lhe?
MÉROPE Que murmuras contigo? fala, dize, Fala comigo... fala... que receias? Em que pensas? que sabes? quero ouvi-lo. Ah! tira-me de dúvida,
POLIDORO Não posso... Falar... a voz... me falta... eu morro...
MÉROPE Tremo... Que aperturas... que horror... lá não me atrevo A perguntar-te... Não quero sabê-lo. Mas quero: fala. A vida que me importa. Se mãe eu já não sou... Que ideia horrível! Ah! tu sabes... O morto?...
POLIDORO Eu... não sei nada.
MÉROPE Fala, que mando eu.
POLIDORO Conheces... mísera... Tu... este... cinto?
MÉROPE Este... oh Céus! que vejo! Que espetáculo horrível!... Tinto ainda Em sangue fresco... Eu morro... eu...
POLIDORO Desgraçado! Ah! quando lhe cingi... quem me diria
Que em tal estado tomaria a vê-lo?
MÉROPE Quem me diria que eras um infame, Indigno do depósito sagrado Que te entreguei por minha desventura. Dize: que é do meu filho! dize, pérfido: Não te dei eu aqui? não me juraste Guardar-me? – Foi aqui, foi neste sítio. Quê dele? Quê da fé que prometeste? E ousaste aparecer-me, e ousaste, louco, Aparecer à mãe sem dar-lhe o filho? O meu filho... o meu filho é morto! – E eu vivo! Vivo, hei de viver para vingá-lo. Onde está esse pérfido estrangeiro, Esse bárbaro onde é que se oculta? Quero vingar-me, quero lacerar-lhe As entranhas, banhar-me no seu sangue, Quero...
SACERDOTE Rainha, vê que...
MÉROPE Nada vejo. Nada mais quero já, senão vingar-me. E depois expirar sobre esta campa. (Partindo)
POLIDORO Sigamo-la.
SACERDOTE Piedade, santos deuses!
ATO IV
CENA I
POLIDORO Que farei, desgraçado, nestes sítios Onde tudo o que vejo me atormenta! Estas mesmas colunas, este templo, As mudas, frias pedras desta campa. Desta campa, ai de mim! onde se escondem As preciosas, venerandas cinzas Do melhor dos monarcas, de Cresfontes, Tudo parece erguer-se a perguntar-me Pela sua esperança derradeira Que lhe eu perdi, eu malfadado, eu mísero! (Pausa) Era aqui. – Vinha o povo alvorotado: E, à frente da ímpia soldadesca, Polifonte, vagando entre o tumulto, Despiedado excitava à mortandade, Passou ali, de sangue vai coberto... Ainda o vejo à negra luz dos fachos; Ouço o tinir dos ferros estridentes, Escuto ainda, vejo-a aqui... oh vista! A triste mãe, nos braços o filhinho Todo escorrendo lágrimas e sangue. Trêmula a voz, os passos vacilantes, Cortada de terror, balbuciando Dizer-me: “Polidoro, corre, voa. Leva-o longe daqui... salva-me, foge Lembra-te que é meu filho e de Cresfontes.” E eu – amaldiçoado! – eu recebi-o, Fugi, pude salvá-lo, pude... oh deuses! Pude ser o maior dos desgraçados: Perdi-o; sim, perdi-o... – Foram com ele As esperanças da mãe e as de um Império. (Pausa) E vivo! – E esta velhice desonrada
Não vem a morte que me livre dela! (Cai como desfalecido sobre o túmulo)
CENA II Egito, Polidoro.
EGITO (sem o ver) Estará decidido o meu destino? Ai, que será de mim, só, desvalido. E culpado num crime – deus! num crime Por que todos me acusam, me detestam, Se inda urna vez ao menos eu pudesse Ver o meu triste pai! vê-lo, abraçá-lo, Ou uma vez sequer! – Porém diviso Junto àquele sepulcro...
POLIDORO (sem o ver) Oh caro filho Tu morreste e eu vivo!
EGITO Céus, que escuto. Que som de voz!
POLIDORO (sem ver Egito ainda) Oh morte!
EGITO É ele mesmo.
POLIDORO (voltando-se) Oh velhice infeliz!
EGITO É ele...
POLIDORO (vendo Egito) Eu sonho!
(Ficam ambos algum tempo olhando-se com espanto; depois correm um para o outro)
EGITO Meu pai...
POLIDORO Meu filho...
(Abraçam-se)
EGITO Oh pai, tu nestes sítios?
POLIDORO Filho, meu filho! E tu que infausto numa Aqui te conduziu? Em que perigos. Em que laço vieste enrevesar-te! Tu és o criminoso quê?...
EGITO Sou esse. Sou esse malfadado.
POLIDORO Ah, foge, foge, Foge, infeliz: não sabes, não, que horrores Te ameaçam aqui.
EGITO Já nada temo. Já te abracei, meu pai, agora venham Sobre mim os castigos, os tormentos. O mesmo rei não temo...
POLIDORO Ah não é dele Que eu temo agora.
EGITO Pois quê, da rainha? Essa julguei que não me aborrecia, Parecia-me...
POLIDORO Sim, mas foge, foge: Ela só, ela quer a tua morte, Talvez não tarde aqui – oh que destino! Se ela soubesse... oh deus!... se tu soubesses. Se... Mas o tempo corre... em breve... Ai foge, Salva-te, filho, foge às iras cruas Da rainha!
EGITO Eu fugi-la, eu que a amo tanto, Fugir sua vingança, o seu castigo Quando ousei ofendê-la! – Não, não quero Ajuntar novo crime aos meus delitos.
POLIDORO Foge, infeliz.
EGITO Não fujo: venha embora, E farte no meu sangue as suas iras, Sacie o seu furor.
POLIDORO Que proferiste! Malfadado, que dizes! tu não sabes Que ela em ti quer vingar o filho.
EGITO E era O que eu matei o filho da rainha? Tão ímpio fui, tamanho foi meu crime!
POLIDORO Não... tu és inocente.
EGITO Eu inocente, Eu coberto do sangue desse filho Que...
POLIDORO Não era seu filho o que mataste.
EGITO Mas... Não posso entender-te.
POLIDORO (à parte) Por mais tempo Já não devo ocultar-lhe o grão mistério. (Alto e abraçando-o a soluçar) Filho, recebe o derradeiro abraço. O abraço paternal de um triste velho Que te chamou... te amou como seu filho, Filho... tão doce, tão querido nome Pela vez derradeira inda te chamo. (Ajoelhando) Sim, e aos pés do meu rei me prostro agora. Minhas lágrimas vê; correm de gosto. O primeiro sou eu que te apelido Por tão sagrado título. – Tu foste O meu filho... Ah, perdoa que me esqueço...
EGITO Levanta-te: que fazes! de joelhos
Tu a meus pés, oh pai!
POLIDORO Já não sou esse, Sou teu vassalo, és o meu rei agora.
EGITO Quê!
POLIDORO Tu és filho do infeliz Cresfontes.
EGITO E Mérope?
POLIDORO É tua mãe.
EGITO E Polifonte?
POLIDORO Usurpador, rebelde.
EGITO E eu?
POLIDORO És Egito. És de Messênia o rei.
EGITO Se sou, qual dizes, Sangue de Alcides... Mas que o sou já creio; Sinto nas veias, sinto aqui no peito, E neste ardor que o coração me inflama... Vamos a castigar esse rebelde,
Vamos.
POLIDORO Senhor, modera-te, ou perdido Para sempre serás. Tua mãe...
EGITO Sim, vamos Abraçá-la primeiro.
POLIDORO Oh Céus! que intentas? Quê, descobrir-te a ela! E Polifonte?... Estás inerme e só...
EGITO Tenho este braço, O meu direito, e os deuses que o protegem.
POLIDORO Não, por deus, não: fujamos destes sítios, Fujamos... – Mas aonde, por que modo? E a rainha que não tarda aqui... e a triste Que julga morto o suspirado filho, E vem vingá-lo em si... – Mas ouve: escuto Ruído... É, é ela – Gente armada... Que aperturas! Aonde hei de esconder-te. Como salvar-te às iras despiedadas De tua própria mãe? – Se lhe descubro, Se lhe digo... perdido és para sempre. Se lhe não digo, a desgraçada mata-te Sem piedade.
EGITO Vai, deixa-me com ela: Deixa-me: eu dobrarei sua crueza, Ou morrerei contente por seu braço.
Vai... Mas, oh não te exponhas tu aos olhos Dos sagazes ministros do tirano; Esconde-te,
POLIDORO Eu? – E tu neste perigo? Daqui não vou.
EGITO Esconde-te, ou eu mesmo A Polifonte corro e vou dizer-lhe, Declarar-lhe quem sou.
POLIDORO Não, não, sossega: Eu me oculto detrás destas colunas, E velarei por ti. Não lhe descubras A Mérope quem és. – E se outro modo Não houver de abrandá-la, eu no perigo te acudirei,
CENA III Mérope, Egito, soldados, sacerdotes, sacrificadores, séquito.
MÉROPE (sem ver Egito que está detrás de uma coluna) Soldados, procurai-o, Cumpri do vosso rei as ordens; ide, E prepare-se o augusto sacrifício Que aos não vingados manes de meu filho. Pretendo oferecer e aos do consorte. O meu filho de lágrimas! a última Esperança que os deuses me deixaram, O despiedado me cortou. – Oh, hei de Sorver estas delícias da vingança Com que me pula o coração tão sôfrego. Hei de vê-lo tremente, de joelhos Suplicar-me piedade... – A ti piedade, Compaixão para ti, monstro! – E o cutelo
A brilhar-lhe nos olhos, e a agonia A apertar-lhe no peito desalmado, Aquele coração... Oh já me tarda. Angustia-me a sede da vingança: Quero saciá-la. Ide, ide buscar-me; Lançai-lhe às mãos traidoras esses ferros. Quero...
EGITO (adiantando-se gravemente para Mérope) Arredai esses grilhões inúteis Para cumprir as ordena da rainha Basto eu só. Dos soldados do tirano Não precisa a viúva de Cresfontes, De sobejo meus braços manietaram O seu pranto, as suas dores. (Ajoelha) De joelhos, Mas sem tremer, aqui me tens: o peito Descoberto aqui está. Fere; não peço, Não suplico piedade; satisfaz, Sacia neste sangue malfadado, Proscrito como o teu, a longa sede Da tardia vingança. Eis, fere: Hei de contente receber o golpe. Como tu ninguém mais, só tu no mundo Sobre mim tens direitos tão sagrados. Sim, vinga o filho, vinga-o no meu sangue, Que eu hei de abençoar a mão piedosa Da mãe que me castiga... Uma só graça Te imploro por mercê: é o derradeiro Favor que pedirei já nesta vida, E não posso morrer sem que me outorgues. Dá que possam meus lábios moribundos Beijar a régia mão que há de imolar-me: Deixa imprimir-lhe o ósculo da morte, E que o suspiro extremo... (Vai a inclinar-se)
MÉROPE (voltando-se para que a não vejam enternecer-se) Desgraçado! A meu pesar o coração se amolga, Enterneço-me... quase, quase o pranto Dos olhos me desliza involuntário. Que poder tem seus ditos na minha alma! Retém-me o pejo só que o não abrace. Infeliz!
EGITO Ah! se ao menos, ó rainha, Te pudesse mover meu triste fado; E que antes de expirar visse em teus olhos O mais leve sinal, um tênue indício De compaixão... de amor...
MÉROPE Que encanto é este! Oh que ilusão, que voz, que gesto aquele!
EGITO Se uma vez, uma só vez... – Muito espero, Muito ouso! – se uma vez o doce nome Te pudesse chamar de mãe...
MÉROPE Perverso! Mãe!... Eu já não sou mãe... e por teu crime.
EGITO Se tu de minha sorte condoída, Vendo-me assim tão só, tão sem amparo, Longe dos meus, dissesses por piedade: “Filho!...”
MÉROPE Que proferiste, desgraçado!
Filho... malvado! – Filho! eu tinha um filho; E tu, tu foste que me assassinaste, Tu de minha piedade agora zombas. Ah! esse nome a fúria me renova; Tua sentença pronunciaste nele. Morre. (Toma o cutelo do sacrifício) Mas que poder me afroixa o braço, Qual invisível mão suspende a minha, Que gelo pelas veias?...
EGITO Ah que esperas? Livra-me desta vida que me pesa: E este sangue que é teu, que em teu serviço Eu quisera verter – derrama-o, expie O involuntário crime de meu braço. Mas ouvir teus queixumes de orfandade, Mas saber que sou eu a causa deles... Oh poupa-me, rainha, esse tormento: Melhor do que ele sofreria a morte.
MÉROPE O que sinto, onde estou!
EGITO Vinga o teu filho.
MÉROPE (com esforço e resolução) Sim, o meu filho, sim o meu esposo Vingados hão de ser. – Manes queixosos, Inultos manes de Cresfontes e Egito, Vinde, vinde, acorrei ao sacrifício, Vinde, sombras queridas, neste sangue Beber a longos tragos a vingança. Este ferro guiai-o àquele peito, Avigorai-me o braço que fraqueia.
Que treme... –Ah! já vos sinto, já não tremo, Ei-los, sim esperai. – Esposo, filho! Filho!... – Tu foste, tu que me mataste: Morre.
CENA IV Polidoro, Egito, Mérope, etc.
POLIDORO Que fazes, mísera! suspende.
MÉROPE Quem ousa interromper o sacrifício?
POLIDORO Desgraçada, que intentas?
MÉROPE Eu, vingar-me.
POLIDORO Cum parricídio?... oh Céus!
MÉROPE Um parricídio Vingar meu filho! – Ah, não: morre, malvado.
POLIDORO Vingar o filho!... o filho!... Este é O teu filho.
MÉROPE Que dizes!
POLIDORO Não morreu: – teu filho é este.
MÉROPE Meu filho! Egito! – Sonho?... A dor, o pranto, O prazer me sufocam... – Filho, corre Aos meus braços.
EGITO Oh mãe! – Posso chamar-te, Já posso proferir tão doce nome.
MÉROPE Sim, és meu filho: neste peito, há muito, Batendo o coração me adivinhava. Filho, querido filho!... Ah, não me cabe O excesso do prazer já dentro na alma: Afogam mais as lágrimas de gosto, – Filho que tantas dores me hás custado, Filho por que hei vertido tanto pranto, Filho, estás nos meus braços, no meu seio: Neles te aperto enfim... – Oh, venha a morte, Venha o tirano, que o não temo agora... Que disse!... Ai de mim se ele viesse, Se ele nos visse agora, se o malvado Pudesse descobrir que eras meu filho... Oh que...
POLIDORO Senhora, Polifonte chega.
MÉROPE Onde esconder-te? que farei...
POLIDORO Já perto Chega...
MÉROPE
Meu filho, filho meu!
EGITO Sossega: Não temas.
MÉROPE Não temer!
POLIDORO Finge, modera... Talvez... – Não é já tempo: desgraçada!
CENA V Mérope, Egito, Polidora, Polifonte, etc.
POLIFONTE Estás vingada enfim, satisfizeste No sangue do malvado os teus furores? – Quê? vivo ainda o vejo! – e nele os olhos Sem rancor me parece que já fitas. Mudaste de tenção – ou meus soldados Não foram diligentes em servir-te, Em cumprir teus decretos? – Oh, lá prestes Executai as ordens da rainha. Segurai-o.
MÉROPE Eu... enganei-me com seu crime; Iludi-me, pensei... Mas ele...
POLIFONTE Morra: Tua muita piedade é que te ilude.
MÉROPE
Suspendei... Não sei, sei que não tem culpa.
POLIFONTE (à parte, alto) Já conheço o mistério. – De teu filho O matador cruel... é inocente?
MÉROPE Não. – Meu filho não era... o morto.
POLIFONTE Como! O cinto, os sinais todos, e esse velho Que a mensagem fatal veio trazer-te, Tuas lágrimas... foi tudo fingimento? Feri.
MÉROPE Senhor!... meu filho... vive ainda. Este...
POLIFONTE É nova traição, é novo engano: Morra.
MÉROPE Oh que aperturas, que agonia! Senhor, piedade...
POLIFONTE Para quem piedade? Um malfeitor, um pérfido assassino! Pela vez derradeira vo-lo ordeno, Soldados!
POLIDORO Grande deus!
POLIFONTE Feri.
MÉROPE Suspende.
POLIFONTE Não.
MÉROPE Compaixão... Senhor!
POLIFONTE Em vão suplicas.
MÉROPE Ele é...
POLIFONTE Feri.
MÉROPE Malvado! ele é meu filho.
(Suspensão geral)
POLIFONTE Teu filho! – É vão fingir: já te não creio. Morrerá, e...
EGITO Seu filho eu sou, tirano: No furor que me anima o reconheço. Solta-me os ferros, e verás.
POLIFONTE Insano,
Que ousaste proferir! – Não vês, não temes Que...
EGITO Desprezo-te: não temo.
MÉROPE Oh tem piedade, Desculpa-lhe, Senhor...
EGITO Não me desculpes Eu não quero a piedade de um tirano.
POLIFONTE Não a terás. – Feri.
MÉROPE (abraçando-se com Egito) Primeiro os ferros Haveis de atravessar por este peito. O coração da mãe rasgai primeiro Para chegar ao coração do filho. Bárbaros, que vos fez este inocente? E tu, cruel, que não fartaste ainda De nosso sangue a insaciável sede, Satisfaze-te em mim, em mim te vinga. – Mas vingar-te de quê?... Senhor, perdoa: (Ajoelha a Polifonte) Vês a teus pés prostrada uma rainha: Minhas lágrimas súplices atende, Escuta estes soluços lastimados, Ouve os meus rogos; movam-te a piedade De tia mísera mãe as desventuras: Oh leva tudo o mais, deixa-me o filho, Deixa-me o filho, deixa-me e eu te juro Que, sem mais pretender ao sólio avito. Iremos ambos longe de Messênia
Ignorados viver: iremos ambos Ainda abençoar tua demência. Vive seguro tu sobre o teu trono, Vive e reina.
EGITO Levanta-te, rainha. Tu prostrada a seus pés! Com essa infâmia Queres comprar a vida de teu filho! Oh minha mãe!
POLIFONTE Pois bem, se ele é teu filho, Em tuas mãos está salvá-lo ainda. Se o não é, se fingidos são teus prantos, Já por tuas ações vou conhecê-lo. Adrasto! (Adianta-se um da comitiva a quem fala em segredo; depois dirigindo-se aos guardas). Vós levai-o em segurança.
MÉROPE Bárbaro, e desta sorte é quê?...
POLIFONTE Sossega. A minha fé te dou que está segura A sua vida, e de ti só pende agora.
MÉROPE Mas como?
POLIFONTE Sabê-lo-ás em breve tempo.
CENA VI
Mérope, Egito, Polidoro, soldados.
MÉROPE Justos deuses, que intenta este malvado? Que será? – Oh meu filho!
EGITO Oh mãe!
MÉROPE Oh filho!
EGITO Consola-te.
MÉROPE Eu! eu consolar-me, filho, Sem ti!
EGITO Adeus!
MÉROPE Adeus filho!... meu filho!
ATO V
CENA I Polidoro, Sacerdote, sacrificadores, etc.
(Polidoro está ajoelhado e suplicaste junto ao túmulo. O Sacerdote sai, acompanhado dos sacrificadores, pela porta principal do templo: para no peristilo, e parece meditar profundamente, Polidoro, vendo-o, ergue-se e vai para ele. Ambos se adiantam para o proscênio tristes e silenciosos).
POLIDORO Aqui neste lugar, aqui à face Daquele monumento!
SACERDOTE Aqui.
POLIDORO Sem pejo Dos homens, sem temor dos deuses, há de Consumar-se o espantoso sacrifício! E tu hás de erguer ao Céu as mãos piedosas Para o abençoar?
SACERDOTE Hei de
POLIDORO E não temes Que surja dessa campa a formidável. A despeitada sombra de Cresfontes, Que a ti, ao filho, à esposa, que a nós todos De horríveis maldições cubra e fulmine?
SACERDOTE Não.
POLIDORO Que dizes!
SACERDOTE Que o filho de Cresfontes É preciso salvar, que há de ser salvo, E que é pequeno todo o sacrifício, Que por tal se fizer.
POLIDORO Supremos deuses! Tu que o conheces, ousas confiar-te Nas dolorosas promessas do tirano! Crés que naquela mão torpe de sangue Gabe a mão virtuosa da rainha, Que há de impedi-lo que não trave logo Do punhal traiçoeiro e despiedado Para matar o filho? – Pura, e honrada Do respeito dos povos, não a acata; Pensas que há de temê-la ou respeitá-la Quando, cheia de opróbrio e vilipêndio, A indigna viúva de Cresfontes Se prostituir de seu algoz no leito? – Coa ignomínia da mãe promete agora Remir a vida do inocente filho. Porquê? Porque inda teme que esse povo. Cansado de o sofrer, erga o terrível, O formidável brado de cem vozes, Que sempre anda no ouvido dos tiranos, Inda nas horas de mais paz. – O grito Que se ergue de repente e soa ao longe. E faz tremer o justo, o rei piedoso. O que fará o déspota! – Não ousa, Na presença do povo de Messênia, Matar o filho de seus reis não pode. Mas o enteado vil de Polifonte, A esse há de impunemente assassiná-lo. Sabe que pode, e há de fazê-lo,
SACERDOTE É Certo.
POLIDORO É certo! E então?...
SACERDOTE
E então, como estas minhas, Não te dizem as raras cãs da fronte Que a prudência e o conselho sossegado. São o valor dos velhos, Polidoro? Que queres, com esse fogo de mancebo No cérebro, – e o gelo da velhice Nas mãos caducas, fazer tu agora?
POLIDORO Quero cair na cova sem opróbrio. A vida sim, a honra não caduca. Os teus conselhos de prudência, guarda-os Para ti, bom conselho deste a Mérope; Que tu só a aceitar a resolveste O infame consórcio do tirano! Pasmo...
SACERDOTE Não pasmes já, que não é tempo Ainda. Vês aqueles que acompanham Armados a rainha?
POLIDORO São soldados De Polifonte que, em fingida pompa De cortejo, arrastada vêm trazendo A vítima infeliz ao sacrifício.
SACERDOTE Mas vêm armados?
POLIDORO Certo, vêm.
SACERDOTE E sabes Se aquelas armas não vêm prontas hoje
A erguer-se contra quem as pôs na destra Dos que supôs escravos, e são homens? Que ordenou e regrou essas falanges De tantos mil para uma só vontade, Sem se lembrar que outra vontade pode Mudar-lhe a direção...
POLIDORO Pois tu!... Perdoa. Ao meu zelo indiscreto. – E sabe Mérope. Sabe o príncipe acaso quê?...
SACERDOTE Não sabem. Não o hão de saber senão no instante Em que estoirar o brado da vingança. Que eu tanto concentro neste peito. Silêncio chega Mérope uru só gesto Podo perder-nos.
CENA II Mérope, Sacerdote, Polidoro, séquito, soldados, etc.
MÉROPE Eis-me resignada; Cumpra-se em ruim segundo for vontade Dos soberanos deuses. – Sacerdote, A vítima aqui está, – e adornada (Dá com os olhos no túmulo, e volta-se para o outro lado) Destas galas fatais... Oh encobri-me. Escondei-me esse mármore implacável Em que a minha vergonha se reflete. Ai! prometi – para salvar o filho, Prometi – consenti nesta vileza, No infame sacrifício: mas já sinto. Sinto de todo que me falta o ânimo;
Não posso...
SACERDOTE Poderás, que a derradeira Esperança da pátria é era ti agora, E em teu ânimo, o ânimo do povo. Tem valor, ó rainha, e salva o filho; Salva o teu filho, deixa o resto aos deuses.
MÉROPE E ele onde está? Meu filho! quero vê-lo.
CENA III Polifonte, Mérope, Sacerdote, Polidoro, Egito, etc.
POLIFONTE Aqui o tens, ó Mérope, o teu filho. E aqui, ó povos de Messênia, vede Que entrego à viúva de Cresfontes, Com este dote, a minha mão – e a parte Do meu império a chamo. Assim confundo Os inimigos de meu trono, e apago Os sanguentos vestígios das passadas Dissensões, o pretexto derradeiro De futuras discórdias. Eia, o fogo No altar acendei, e o sacrifício Celebrai de concórdia e paz.
(O Sacerdote sobe ao peristilio; diante dele colocam no altar Mérope a um lado. Polifonte ao outro, Egito ao pé dele).
SACERDOTE Ouvi-me, Supremos deuses; e nesta hora grande E tremenda, aceitai o juramento Que ante vossos altares venerandos,
E invocando o terrível testemunho De vossa fé, o povo de Messênia Aqui jaz. Ser fiéis juramos todos Ao nosso rei,
POVO Juramos!
SACERDOTE E o castigo Do parricida, do perjuro caia Sobre quem não guardar seu juramento.
POLIFONTE Assim seja. – A tua mão, rainha, e firmem Esta aliança as bênçãos...
EGITO (tomando de repente o cutelo que esta sobre o altar, e colocando-se entre Mérope e Polifonte) Não tem bênçãos O altar para o perjuro, o parricida.
POLIFONTE A mim, soldados, eia!
EGITO A mim, soldados Que sou o vosso rei, e vos liberto, E vos vingo... – e no sangue do tirano (Fere a Polifonte, que logo cai) Lavo a afronta da pátria, a minha e a vossa.
SACERDOTE É o vosso rei, saudai-o!
MÉROPE Defendei-o:
É o meu filho, o filho de Cresfontes;
TODOS Salve!
MÉROPE Meu filho!
EGITO Minha mãe!
POLIDORO Oh dia De triunfo! A teus pós, Senhor, agora Posso morrer em paz e satisfeito, Porque viram meus olhos esta glória,
EGITO Vem a meus braços, pai; vem, tu que foste Meu guia, meu amparo na desgraça Não me abandones; em maior perigo Estou agora: sou feliz – e reino. Vem recordar-me – e vós lembrai-me todos A todo o instante – que subi ao trono Precipitando dele a tirania. Maior obrigação, dobrado encargo Tenho de ser bom rei, maior castigo Mereço, e mais atroz, se for tirano.
Almeida Garrett
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