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Series & Trilogias Literarias
O que faria se o noivo de toda sua vida a abandonasse diante do altar no dia que deveriam dizer o sim?
Provavelmente lançar objetos que estejam por perto, de preferência quebradiços e lançá-los contra o altar, ou planejar um lento e cruel assassinato do noivo fugitivo com formigas carnívoras no Amazonas...
Seria o lógico, mas nossa heroína de hoje, assiste impassível,
indiferente ao abandono de seu noivo, sem lançar objetos, sem cortar cabeças, sem reclamar para ninguém sobre sua desgraça, o que me leva a lhes expor esta pergunta: não lhes parece um tanto suspeito?
Aqui há gato escondido. Esta mulher não está tão despeitada como deveria.
Capítulo 1
Mayfair, Londres, 1814
O enlace Boscastle-Welsham teria sido o casamento do ano se o noivo tivesse o trabalho de se apresentar. Sir Nigel Boscastle brilhava tanto por sua ausência em suas núpcias que o pai da noiva se viu obrigado a acompanhá-la até o altar, onde esperava à sofrida lady Jane a comitiva para o casamento com a exceção de seu noivo. E onde continuaram esperando.
- Me encarregarei desse bobo depois da cerimônia - resmungou o distinto sétimo conde de Belshire, quando parou ao lado de sua filha, de costas aos desconcertados convidados. - Esse idiota vai chegar atrasado a seu próprio funeral.
Passados vários minutos de confusão, o padre e os pais da noiva decidiram que enquanto esperavam a chegada do noivo, seu lugar junto à Jane seria ocupado por seu irmão mais velho, Simon, visconde de Tarleton. Assim, seu irmão foi colocar-se junto à noiva. E ali continuaram.
No princípio ninguém duvidava que finalmente Nigel aparecesse e salvaria Jane da vergonha. Se é que se lembrava que dia era, comentou um convidado no terceiro banco.
Afinal, sir Nigel não tinha fama na cidade por ter um intelecto superior, mesmo que sua generosidade tivesse conquistado muitos e leais amigos.
A noiva não quis que o casamento se celebrasse na popular igreja Saint George de Hanover Square. Sendo uma jovenzinha respeitável cujo nome jamais esteve envolvido em um escândalo, evitava por norma os acontecimentos grandiosos de muito alvoroço e pompa. De todos os modos, nesse dia os membros da alta sociedade abarrotavam o interior da capela particular de Park Lane, a mansão do marquês de Sedgecroft em Londres, para assistir a um casamento que aparentemente não se celebraria.
Lady Jane Welsham estava, de acordo com os convidados, como uma princesa. Resplandecia com seu vestido de cetim branco que caía sobre um corpete interior de tule marfim. A barra do vestido parecia flutuar delicadamente como espuma sobre seus sapatos recobertos por diminutas pérolas. Um vaporoso véu de renda Honiton lhe emoldurava e cobria o rosto, deixando nas sombras qualquer emoção que pudesse revelar para grande desilusão das rivais.
Em sua mão brilhava o ramo de botões de rosas brancas com as bordas das pétalas com pó de ouro. Luvas de pelica branca lhe cobriam as esbeltas mãos, mãos que se mostravam extraordinariamente firmes, se levasse em conta que sua proprietária estava passando a pior humilhação que pode sofrer uma jovem em sua vida: ficar plantada no altar. O que pode ter acontecido?
Toda Londres sabia que os pais de Jane e Nigel tinham planejado esse casamento desde que ambos começaram a dar seus primeiros passos, em fraldas.
Os jornais que publicavam os ecos da sociedade tinham comentado várias vezes que raramente se viu um casal de noivos tão compatíveis.
O que poderia ter saído errado?
- Se Nigel demorar um pouco mais, essas rosas ficarão tão murchas que se poderá encher com elas uma almofadinha - comentou amargamente lady Caroline, uma das irmãs da noiva. - Vou estrangulá-
lo.
- Pobre Nigel - disse lady Miranda, a irmã mais nova, balançando a cabeça compassiva. - Não acha que pode ter se perdido? Jane disse que precisava de um mapa para achar sua carruagem.
Caroline estreitou seus olhos castanhos dourados, contemplado sua irmã abandonada.
- Está levando bastante bem a humilhação, não lhe parece?
- Esperaria menos de uma Welsham? - sussurrou Miranda.
-Não sei, mas me parece que este comportamento tão horroroso é típico dos homens Boscastle. Deve ter em conta que Nigel, com toda sua amabilidade e doçura, descende de uma das linhagens mais notórias da Inglaterra. Olhe se não, para nosso anfitrião Sedgecroft, que está ajeitado aí em seu banco como o senhor dos leões com seus papagaios ao redor.
- Seus o que? — perguntou Miranda, horrorizada.
- Não posso gritar a palavra, Miranda. Essa mulher de vestido rosa escuro é lady Greenhall, a última de suas amantes.
- E a trouxe aqui, ao casamento de Jane?
- Salta à vista.
- Bom, dizem que seus irmãos não são melhores - acrescentou Miranda. - Todos eles deveriam levar o "S" de sem vergonha marcado na testa.
- Eu gostaria de saber o que pensa Sedgecroft de tudo isto -
murmurou Caroline. - Não parece o que se diria feliz, não é?
O dito anfitrião, o dono da capela, Grayson Boscastle, quinto marquês de Sedgecroft, estava pensando que a noiva tinha o traseiro mais atraente que tinha visto desde há muitíssimo tempo. E não que fosse aficionado a olhar com cobiça a jovenzinhas vestidas de noiva, não, mas levava mais de duas horas olhando suas costas. Era impossível que não despertasse a curiosidade própria de um homem normal. Que outra coisa tinha para olhar? Adoraria saber se o resto dela seria igualmente atraente.
Além disso, de propósito evitava olhar para os convidados sentados nos bancos reservados para seus familiares: diversos primos e tios meio adormecidos; duas ex-amantes, uma das quais estava com seus filhos e seus três irmãos, que estavam meio tombados no banco, sem mostrar o menor respeito pela sacrossanta cerimônia.
Se é que a cerimônia chegaria a sua normal conclusão desgraçada,
quer dizer, outro homem preso aos grilhões do matrimônio.
Nesse momento, um de seus irmãos, o tenente coronel lorde Heath Boscastle, que estava sentado no banco de trás, inclinou-se para ele e lhe disse, divertido:
- O que lhe parece? Começamos a fazer apostas sobre se aparecerá ou não?
- Será melhor que se apresente, ou responderá ante mim -
respondeu Grayson em tom lúgubre. - Já passei meio-dia olhando....
bom, digamos que olhando algo que normalmente está reservado para os olhos de um marido.
Nigel era seu primo, um Boscastle que, por casualidade, lhe agradava muito, em realidade, embora nesse momento desejasse lhe dar uma surra, por bobo.
No formoso rosto de Heath se desenhou um largo sorriso.
- A última vez que vi uma coleção igual de familiares Boscastle em uma igreja foi no funeral de nosso pai. Quem convidou às amantes?
- Acredito que eu - respondeu Grayson, reprimindo um bocejo. -
Estou a tanto tempo sentado aqui que me endureceu o cérebro.
- Você as convidou para o casamento?
- Não é meu casamento, graças a Deus.
- Bom, é sua capela.
- Portanto, convido quem me dá vontade.
- A alguém poderia ter ocorrido convidar o noivo.
Grayson cruzou os braços sobre seu terno cinza pérola.
- Isto está durando tanto que estou tentado a me casar com a noiva.
- É melhor que não.
Grayson soltou uma risada rouca.
- Não.
- Por certo - disse Heath, reprimindo a risada. - Ontem à noite tive que declinar um convite por você para jantar na casa de Audrey. Onde
diabos estava quando vim buscá-lo?
- Tirando Drake e Devon de um antro de jogo, para que nesta manhã pudéssemos estar nesta reunião familiar para o casamento.
- Pensei que casamentos o deixassem nervoso.
Os olhos azuis de Grayson brilharam diabólicos.
- O solteiro jurado que há em mim está morrendo minuto a minuto.
Desvaneceu-se o sorriso de Heath.
- E o soldado que há em mim pressente que o problema só começou. Como está à apaixonada e ardente Helene?
- Grandemente mais fria que a última vez que a vi pelo menos para mim. Não conseguimos chegar a um acordo.
- Ah, assim seus olhos estão em outra?
- Não.
- Não, Gray? Ainda não?
Grayson olhou dissimuladamente ao redor. Suas duas ex-amantes pareciam estar em uma batalha de olhares glaciais. Era possível que houvesse hostilidades.
Seus irmãos mais novos, Drake e Devon, e um dos escandalosos amigos de Drake, conversavam sobre certa jovem de reputação duvidosa que conheceram na noite anterior. A conversa se converteu em uma acalorada discussão quando os três descobriram que ela estava com os três. Uma briga a murros parecia inevitável.
Chloe, a mais nova de suas duas irmãs, estava inclinada em seu banco falando em sussurros com as damas de honra da noiva, que pareciam muito mais aflitas que a noiva.
Como granadas no meio desses três campos perigosos estava um grupo pequeno, mas seleto de pessoas do belo mundo. Políticos, aristocratas, jovenzinhas debutantes e senhoras mais velhas casamenteiras que o contemplavam mais ou menos como se ele fosse uma fortaleza que deveria ser conquistar.
Sem querer passou os dedos por dentro da gravata, para proteger o pescoço da corda do matrimônio. Sentia-se abafado, sufocado, por esse ar de sacrossanto matrimônio, as amantes em guerra, as militantes damas de honra, as responsabilidades que tinha herdado quase da noite para o dia. Ninguém, e muito menos ele, esperava a repentina morte de seu pai no ano anterior quando soube que tinham matado seu filho mais novo, Brandon, no Nepal. Ele continuava sentindo-se culpado por não ter estado lá para lhe dar a notícia.
O peso das obrigações familiares tinha caído sobre seus largos ombros como uma mortalha. Eram muitíssimas as perguntas que tinha desejado fazer a seu pai, e já era muito tarde. Os afãs egoístas dos quais tanto desfrutou antes já não tinham nenhum atrativo para ele.
Encontrava pouco prazer em sua vida anterior.
Não gostava do homem em que se converteu, e ultimamente tinha começado a pensar se poderia mudar alguma vez.
E agora esse desastre, sua primeira prova pública como patriarca do clã Boscastle. Como deveria agir ante o abandono da noiva por seu primo idiota?
- O que se faz nesta situação? - resmungou em voz baixa, para si mesmo.
Heath balançou a cabeça, desconcertado.
- É uma lástima que nossa Emma esteja tão longe na Escócia. Ela saberia exatamente o que fazer.
Emma, sua irmã mais velha, ficou viúva há pouco tempo e dava aulas de etiqueta à flor e nata da aristocracia de Edimburgo para ocupar suas horas de ócio.
Voltou à atenção ao ocioso e mais prazeroso exame do traseiro em forma de coração da noiva. Muito, muito bonito, pensou. Não estava mal como escolha de esposa, no caso de ter que escolher uma. Claro que Nigel já a tinha pedido para ele; uma lástima que não se apresentara
para agarrar o pacote. De todos os modos, quem poderia saber o que espreitava debaixo desse véu? Uma bela ou uma besta? Uma sereia ou uma arpía?
Um tapinha no ombro de seu irmão e Heath pôs fim a seu sugestivo devaneio de libertino.
- A noiva é muito bonita, não é verdade? - comentou Heath.
- Mmm - murmurou, juntando as pontas dos dedos das duas mãos sob seu queixo com covinha. - Não fiz um exame detalhado. Suponho que poderia ser. Não foi algo em que me fixei.
- Que mentiroso é, Grayson - disse Heath, abafando uma risada. -
Esses olhos azuis seus a estão devorando em todos seus detalhes, até as ligas.
Bom, uma de suas qualidades menos admiráveis não tinha mudado; continuava sendo um homem, mesmo que não estivesse seguro de nenhuma outra coisa.
- É muito grosseiro fazer um comentário como esse em uma capela, Heath - disse, com fingida piedade, olhando com a extremidade do olho para sua ex-amante, a senhora Parks, que estava sentada no outro extremo do banco entre seus dois rebeldes filhos, resultado de um romance anterior ao que teve com ele. Quando se envolveu com ele era uma próspera estilista; graças a sua generosa pensão já não teria que trabalhar nunca mais em sua vida, e tinha uma relação de amizade com ele. - Tenho que lhe recordar Heath, que estamos em um recinto sagrado?
- É a primeira vez que vem aqui, Grayson? - perguntou-lhe seu irmão, divertido.
- A segunda - respondeu ele, pigarreando para limpar a garganta.
Novamente passou o olhar pela capela. Uma das damas de honra começou a chorar e a noiva a estava consolando. Os convidados estavam decididamente inquietos, movendo-se nervosos em seus
assentos, perguntando-se em sussurros o que iria acontecer. Ele teria que atuar logo, inventar alguma ridícula desculpa para explicar o comportamento de Nigel. Começou a ensaiar mentalmente.
Embora fosse muito improvável, não poderia descartar a possibilidade de que o maldito imbecil de seu primo tivesse caído da escada ao escorregar em uma de suas sapatilhas de cetim e bateu a cabeça ficando inconsciente. Aos convidados que conheciam Nigel não custaria nada acreditar nisso.
Voltou à atenção à atraente mulher que estava em pé ante o altar com seus brancos ombros muito erguidos. Um homem teria que ter um coração de pedra para não sentir compaixão por ela, o desejo de protegê-la do sofrimento infligido por seu parente.
- É digna de admiração - disse a Heath em voz baixa - não se se pôs a chorar nem fez pó às flores do ramo em um ataque de histeria, como teriam feito algumas mulheres que conheço.
Dizendo isso franziu o cenho em brincadeira fazendo um gesto para lady Greenhall e a senhora Parks, que não tinham fama de ser precisamente submissas.
Em um dos bancos desse mesmo lado da nave, um velho membro do Parlamento foi despertado por sua mulher, e com uma exclamação algo confusa perguntou se já tinha terminado o maldito casamento.
- Não começou - lhe sussurrou a senhora Parks, sobressaltada. -
Parece que o noivo se perdeu.
O cavalheiro moveu a cabeça de lado a lado, olhando compassivo à abandonada heroína que estava ante o altar.
- Esta encarando bem a situação, parece-me - comentou, com voz baixa. - Estoica, como seu pai. Essas são as mulheres firmes e resistentes de antigamente. Sua coluna Welsham é inquebrável.
- A pobre inocente deve estar destroçada - murmurou à senhora Parks, sorvendo pelo nariz para conter as lágrimas. - Ser abandonada
pelo homem a quem amou toda sua vida. Eu gostaria de saber o que pensa disto a pobrezinha.
***
O que estava pensando lady Jane Welsham não se poderia repetir ante pessoas educadas. Em primeiro e principal lugar, ansiava correr para casa para tirar o espartilho de seda e a pequena anquinha; a armação de aço de sustentação a rodeava como um fole, impedindo-a de respirar. Já levava um bom tempo sofrendo. Era verdade que já era evidente para todo mundo que a tinham abandonada.
Sua segunda preocupação girava em torno de sua mãe, uma delicada flor de feminilidade que não descendia da linhagem saxã mais forte de seu pai. Sua mãe parecia estar fora de si; parecia incapaz de acreditar que uma jovem e muito menos sua própria filha, fosse capaz de suportar esse tipo de humilhação pública.
- A única explicação é Nigel tenha sido assassinado - dizia lady Belshire veementemente a quem quisesse ouvi-la.
Ao que respondia o conde com igual veemência:
- E assassinado será, não tenha dúvida, quando eu conseguir colocar as mãos nele.
- Mais sempre estiveram comprometidos - dizia sua mulher, chorosa.
- No dia em que nasceram todos concordamos estavam destinados para este... este desastre.
Jane exalou um longo suspiro e afundou o nariz em seu ramo de noiva. Era capaz de suportar a humilhação ante a sociedade, mas detestava ver tão aflita sua mãe porque o conto de fadas que tinha planejado não teria o príncipe eleito no final.
A maioria dos convidados supôs, logicamente, que o desanimado suspiro da noiva indicava que sua fortaleza tinha chegado a seu limite.
Seu terno coração de donzela estava partido; quase era possível ouvi-lo romper-se em seu peito. Quem poderia não compreendê-la? Como foi
capaz sir Nigel de infligir essa indignidade a jovem que tinha sido sua constante acompanhante e defensora desde que era criança?
Claro que algumas opiniões maliciosas apareciam em suas feias cabeças aqui e ali, principalmente entre as jovens debutantes que sempre tinham invejado a posição social de Jane e suas tendências intelectuais, sua negativa de seguir ao rebanho. E aí...
O coração partido de Jane deu um salto e lhe subiu até a garganta.
Seu olhar acabava de conectar-se com um par de sedutores olhos azuis que lhe fizeram descer um muito inquietante estremecimento pelas costas. Fazendo um esforço para recuperar o fôlego, contemplou avaliadora o resto de sua irresistível pessoa, olhando dissimuladamente por entre as pétalas com pontas douradas de seu ramalhete. Vá, caramba, caramba, caramba. Assim esse era o escandaloso Sedgecroft.
Esse magnífico e perigoso espécime de virilidade só podia ser o infame primo de quem Nigel costumava falar com tanto desprezo. Ela sempre teve o secreto desejo de conhecê-lo, mas claro, não em uma situação como essa.
- Aguente-se - sussurrou seu pai ao seu ouvido. - Sobreviveremos a isto.
- Os Welsham suportaram coisas muito piores - acrescentou seu irmão, lhe dando um torpe golpe no ombro com o braço.
- Não neste século - demarcou Caroline, olhando-o zangada.
Jane assentiu solenemente, sem ter ouvido nenhuma só palavra.
Era a primeira vez que via em carne e osso e tão de perto seu anfitrião, o notório marquês de Sedgecroft. E ah, se não era impressionante o corpo de carne e osso também, nada menos que de uns seis pés e umas quantas polegadas de altura. Seria o fato de vê-lo o que lhe produziu esse ligeiro enjoo ou seria que o espartilho não lhe deixava chegar o sangue ao cérebro?
- É Sedgecroft quem está sentado aí no primeiro banco, não é? -
perguntou à Caroline em um sussurro, ocultando a boca atrás do ramalhete.
O delicado rosto de Caroline ficou sombrio de preocupação.
- Bom Deus, Jane, faça o que for não o olhe nos olhos. Poderia cair sob a maldição dos Azuis Boscastle.
Jane se atreveu a lhe lançar outro olhar.
- O que quer dizer?
- Dizem - sussurrou Caroline - que quando uma mulher olha esses olhos azuis pela primeira vez se... ah, vamos, mas o que estou dizendo.
Já se apaixonou por um Boscastle e sua sorte não poderia ser pior do que é agora. Estou sofrendo por você, Jane. Devo dizer que suporta admiravelmente.
- É uma prova, Caroline.
- Tem que sê-lo. Caramba há três dos irmãos de Sedgecroft aqui e ainda não houve nenhum duelo. É um milagre que não tenham derrubado as paredes da capela. Não sei onde se poderia achar uma coleção assim de entidades imponentes e bagunceiras fora do Monte Olimpo.
Jane sorriu, ela e suas irmãs tendiam a ficar muito teatrais nos momentos difíceis. Mas era verdade; pelo visto estavam reunidos ali à maioria dos Boscastle para presenciar sua humilhação pública. Os quatro bonitos irmãos destacavam-se sobressaindo por cabeça e ombros entre os convidados menos dotados fisicamente. Conversando e rindo
a
intervalos,
os
três
mais
novos
estavam
ajeitados
preguiçosamente nos bancos, presididos pelo marquês em toda sua glória leonina.
Engoliu a saliva ao sentir descer outro estremecimento pela coluna.
O semblante e todo o corpo de Sedgecroft falava claramente de irritação, e não era de se estranhar. Fazia alarde da hospitalidade oferecendo sua mansão e sua capela para a celebração do casamento de seu primo, e,
a julgar pela expressão de seu rosto deveria pagar um inferno por pô-lo nessa situação. Ela esperava estar já longe e escondida antes que ele perdesse a paciência. Sua ideia era escapar assim que possível.
- Quer que lhe consiga vinagre? - perguntou-lhe Miranda, preocupada.
Jane se obrigou a desviar o olhar de seu amedrontador anfitrião de cabelo dourado.
- Para que?
- De repente tenho a impressão de que poderia desmaiar - disse Caroline, compassiva.
A culpa disso tinha Sedgecroft, pensou Jane, sentindo uma pontada de aborrecimento. Inclusive a essa distância, separados por quase a metade da capela, percebia que era um homem a quem não gostava que o incomodassem. O céu a amparasse se a ele lhe ocorresse investigar pessoalmente o desaparecimento de Nigel, mesmo que isso não parecesse provável.
Dava a impressão de que ele já estava bastante ocupado controlando seu próprio clã; para não dizer nada das duas mulheres muito atraentes que a cada momento se aproximavam dele para conversar em sussurros, de uma maneira que sugeria uma forte relação pessoal.
- Reservem o vinagre para a mãe de Nigel - sussurrou a suas irmãs, e de repente notou que lhe ardiam às faces, ao pensar que Sedgecroft e suas amantes eram testemunhas de seu fracassado casamento. -
Acredito que desmaiou pelo menos cinco vezes na última hora.
- Acho que leva pior que você este desastre, Jane - disse Caroline, pensativa.
- Jane simplesmente é melhor na hora de ocultar seus sentimentos -
murmurou Miranda.
A isso seguiu um momento de silêncio. Jane o aproveitou para
lançar outro olhar dissimulado para Sedgecroft. Parecia estar tão desassossegado como ela.
- Bom - disse Simon então - quanto tempo mais temos que esperar?
Jane abaixou uma mão para puxar a saia e tirar a bainha debaixo do pé de seu pai. Sentia-se como se o peso de todo seu vestido de noiva a estivesse afundando. No aspecto social, claro, já estava afundada.
Depois disso era improvável que algum homem que valesse a pena quisesse se casar com ela. A menos que encontrasse um homem cuja valentia superasse em muito a razão. Seus pais não se atreveriam jamais a lhe arrumar outro matrimônio. O mais provável era que inclusive tivessem medo de intrometer-se nos assuntos de suas irmãs, com o que Caroline e Miranda se salvariam de uniões desgraçadas. As três teriam que buscar maridos sozinhas.
Com dificuldade conseguiu reprimir o impulso de lançar o ramalhete ao ar e soltar um grito de alegria.
Começava a dissipar-se a nuvem de desespero que tinha escurecido esses longos meses de noivado. Já aparecia o sol. Tinha conseguido. Tinha conseguido de verdade evitar o destino que tanto tinha temido.
- Passaram três horas - murmurou seu pai, olhando seu relógio de ouro de bolso. - É tempo suficiente. Simon me ajude a levá-la à carruagem. Ficaremos um de cada lado se por acaso desmaiar pela humilhação.
Lady Belshire olhou ao redor horrorizada.
- Não em público, Howard. Pense na multidão de plebeus que estarão do lado de fora, à espera de ver a comitiva das bodas. Quão único verão será... uma noiva desmaiada.
- Sairei sozinha - disse Jane, sentindo uma pontada de culpa pela morte do sonho deles.
Mesmo que isso significasse o renascer de suas esperanças
secretas.
Esse casamento nunca foi o sonho dela. Nem tampouco o de Nigel.
De fato, era possível que nesse mesmo momento Nigel estivesse fazendo suas promessas nupciais à mulher a quem tinha desejado apaixonadamente nesses últimos quatro anos: a robusta preceptora dos Boscastle, que tinha consagrado dez anos de sua juventude a governar ao desmamado clã em sua propriedade de campo.
Ela invejava o futuro dos dois; mesmo que certamente o pai de Nigel o deserdasse, deixando-o sem um centavo, ele passaria sua vida com a mulher que amava.
E essa mulher nunca tinha sido ela. Tampouco ela nunca o tinha amado, embora lhe tivesse muitíssimo carinho, afeto. Casar-se com o Nigel teria sido o equivalente a casar-se com um irmão, uma união que nenhum dos dois desejava, mesmo que nunca conseguissem convencer disso a seus respectivos pais.
- O que poderia estar fazendo Nigel enquanto nós estamos aqui como um grupo de idiotas rematados? - resmungou seu irmão, lhe agarrando o braço para animá-la a escapar para a carruagem.
- Me solte Simon - disse ela em um brusco sussurro. - Jamais em minha vida fui que tipo de mulher que desmaia.
Uma imensa sombra caiu sobre o altar e repentinamente se apagaram todos os murmúrios e um profundo silêncio envolveu a capela.
Um terrível calafrio de premonição percorreu todo o delgado e flexível corpo de Jane. As expressões de espanto que viu nos rostos de suas irmãs intensificaram seu mau pressentimento.
- Oh, é ele - murmurou Caroline, com o rosto tão branco como o vestido de noiva. - Céu santo.
- Que ele? — perguntou Jane em um sussurro, abrindo seus olhos verdes.
Seu irmão se afastou, lhe soltando o braço como se fosse uma
pistola carregada. Ele também estava olhando para a sombra, com uma fascinante expressão de medo combinado com "respeito".
Sem pensar, ela esmagou como um escudo protetor o ramalhete sobre o decote ladeado por seda com rendas, e se virou para enfrentar seu destino. E então se encontrou ante o rosto mais indecentemente belo que tinha visto em sua vida.
Ele. O muito honorável marquês de Sedgecroft.
Sedgecroft, que projetava uma sombra que a cobria toda, do véu da cabeça até as pontas de seus sapatos. Sedgecroft, com os tormentosos olhos azuis e o corpo de músculos de aço, o de fama de descarado e estilo de vida libertino, o patife mais encantador para divertir à aristocracia amante de escândalos.
O homem em cuja capela ela tinha desejado levar a cabo seu plano.
Sedgecroft, que se via envergonhado, capaz e...
Que demônios pretendia fazer aí no altar?
Sentiu as desbocadas palpitações do coração que faziam vibrar as pétalas de rosas do ramalhete que tinha segurado tão forte que lhe doía a mão. Por sua cabeça passaram-se os pensamentos mais estranhos.
Imaginou que um escultor estaria encantado de esculpir o rosto de Sedgecroft, toda essa soberba estrutura óssea de ângulos marcados, esse queixo com covinha...
Para não dizer essa boca pecaminosamente modelada e seus ombros varonis. Tentou calcular quanto tecido necessitaria seu alfaiate para lhe cobrir as longas e musculosas costas. E seria verdade que ele e sua última amante fizeram amor uma vez na Torre?
Sua voz profunda a sobressaltou, tirando-a de seu vergonhoso devaneio:
- Sinto-me profundamente envergonhado.
Envergonhado? Ele estava envergonhado? Bom, talvez tivesse centenas de motivos para confessar isso, mais, por desgraça, nenhum
no qual tivesse tomado parte ela.
Suas irmãs e ela se olharam desconcertadas.
- Perdão, disse que se sente...?
- Envergonhado. Por meu primo. Há algo que eu possa fazer?
- Fazer?
- Sim, com respeito a este... - moveu sua enorme mão varrendo o ar
- este lamentável assunto.
- Acredito que me posso dar um jeito — respondeu Jane, e se apressou a acrescentar: - mas é muito amável de sua parte oferecer ajuda.
Sua agradável voz grave fez percorrer uma estranha onda de calor pelas veias. Imaginou-se que um homem de sua reputação se negaria a assumir qualquer responsabilidade no assunto, e não que se oferecesse para ajudar. Então lhe ocorreu pensar se empregaria essa encantadora solicitude com sua manada de apaixonadas amantes e admiradoras.
Que maneira mais eficaz de derreter o coração de uma mulher.
Imediatamente interveio seu pai, ficando entre eles.
- Estamos ante um problema tático, Sedgecroft. Como levá-la até a carruagem no meio da multidão aí fora.
Sedgecroft a olhou avaliando, com um olhar de perito que parecia lhe penetrar até a medula dos ossos, e ver todos seus perversos segredos, até suas esperanças e temores mais íntimos.
- Isso não é nenhum problema. Poderia sair pela porta da sacristia e usar uma de minhas carruagens. A não ser que por algum motivo prefira ir em sua carruagem. - Calou-se um momento, olhando-a atentamente outra vez. - Eu poderia acompanhá-la na carruagem até além das portas.
Poderia levá-la nos braços, se fosse necessário. Isso daria motivo ao povo para falar.
Caroline afogou uma exclamação e Miranda arregalou os olhos, desconfiada e divertida. Jane estendeu a mão para o braço de Simon e
lhe apertou o pulso com tanta força que ele se virou para olhá-la carrancudo.
- Socorro - lhe disse em um sussurro apenas audível.
- Acho que a ouvi dizer que nunca em sua vida desmaiou -
resmungou ele.
Ela cobriu a boca com o ramalhete para lhe sussurrar:
- Este poderia ser o dia que faria uma exceção. Disse a sério?
Um brilho de admiração iluminou os olhos de Simon.
- Com Sedgecroft nunca se sabe. Vi-o ganhar uma fortuna no jogo com seus faróis.
Ela voltou a olhar dissimuladamente esse magnífico rosto e viu leves sulcos indicadores de um bom humor que talvez o marquês tivesse controlado por respeito a seus sentimentos. Novamente se sentiu agradavelmente surpresa. Rumores sobre o temerário comportamento de seus familiares tinham circulado durante anos pelos salões da alta sociedade.
- Não acredito que seja necessário me levar nos braços - disse, embora compreendesse que em outras circunstâncias uma mulher sem dúvida cairia na tentação de aceitar esse oferecimento.
- Não?
Horrorizou-a o rubor que sentiu subir ardente pelo pescoço quando olhou seus olhos azuis e se achou cativada por essa atração sensual que emanava dele quase como se fosse uma segunda natureza. Poderia sentir-se totalmente avassalada por esse descarado encanto masculino se não estivesse tão resolvida a pôr fim a essa situação.
Levá-la nos braços até a carruagem, certamente. Falar de criar um escândalo. Embora devesse reconhecer que esses soberbos ombros pareciam muito capazes dessa tarefa... caramba, no que estava pensando? Esse não era nem o momento nem o lugar para descontrolar-se por causa de um desconhecido bonito.
- Estou disposta a caminhar até a carruagem e fazer frente à multidão - disse.
- Sim, claro - disse ele, em tom amável e indiferente.
Lorde Belshire olhou ao marquês um pouco nervoso.
- Suponho que não sabe absolutamente nada sobre o paradeiro de Nigel - disse.
No rosto de Grayson apareceu uma expressão de fria resolução.
Sua resposta golpeou como um raio o centro do coração de Jane.
- É minha intenção averiguar o que aconteceu hoje, acredite - disse, e então olhou para ela, como tentando transpassar o véu de noiva que lhe cobria o rosto.
- Sei que este é um momento difícil para senhorita, mas, por favor, me diga, houve entre a senhorita e Nigel algum desacordo, por acaso?
Ela negou lentamente com a cabeça. Despediram-se sendo os melhores amigos, totalmente de acordo de que não foram feitos um para o outro como marido e mulher.
- Não, nenhuma briga - disse.
Sedgecroft franziu os lábios, como se suspeitasse que ela tivesse omitido algo muito importante em sua resposta.
- Nenhuma rixa de apaixonados que talvez esquecesse com todos os preparativos para as bodas? Nenhum mal-entendido?
Jane levou um momento para responder.
- Nigel e eu nos entendemos à perfeição - murmurou.
- Deve ter morrido - disse lady Belshire, olhando desconsolada para todos os lados da capela. - Jane, acredito que seria judicioso aceitar o amável oferecimento de Sedgecroft.
Jane a olhou horrorizada.
- Mamãe, não vou permitir que me levasse no meio da multidão como a... a uma bola.
Lady Belshire abanou as faces ruborizadas pela vergonha.
- Refiro-me a seu oferecimento de acompanhá-la até a carruagem, Jane. Bom Deus, não há nenhuma necessidade de que a plebe fofoque sobre isto.
Lorde Belshire dirigiu um pesaroso sorriso a sua mulher.
- Prepare-se, Athena. Isto vai aparecer como um escândalo com todos seus feios detalhes nos jornais da tarde. Não podemos fazer outra coisa que nos defender o melhor que pudermos. Sedgecroft?
O marquês pareceu despertar, como se o tivesse sobressaltado pensar como tinha conseguido envolver-se pessoalmente nesse drama familiar.
- Um de meus irmãos acompanhará sua filha a casa enquanto eu me ocupo dos assuntos aqui - respondeu. - Os convidados bem poderiam desfrutar do café da manhã de bodas que se preparou. -
Endireitou seus impressionantes ombros, e seus olhos brilharam com um resplendor azul que a Jane cortou o fôlego. - Eu já resolverei isto -
acrescentou em voz baixa, matizada com toda a arrogância de sua educação aristocrática.
Por um perigoso instante, Jane esteve a ponto de soltar uma gargalhada. Aí estava junto ao altar com um infame libertino que não lhe tinha dirigido mais de duas palavras em toda sua vida e prometia vingar uma afronta que em realidade não tinha ocorrido.
Sem dúvida essa promessa tinha a intenção de tranquilizá-la e a fazia um homem que provavelmente nunca foi rejeitado na vida. Mais a promessa produziu o efeito contrário. Em lugar de sentir-se consolada ou tranquilizada, afloraram todos os instintos de amparo que possuía para adverti-la.
Tinha pensado que ao sabotar seu próprio casamento ficaria a salvo. Mas em lugar disso se encontrava ante um perigo muito mais insidioso que nenhum que pudesse ter imaginado. Na realidade, seu plano para esse dia bem poderia tê-la levado às próprias portas do
inferno, e o próprio demônio estava aí esperando para apoderar-se de sua alma enganosa.
Capítulo 2
Ainda não tinha transcorrido uma hora da saída da capela onde se celebraria o casamento quando Weed, o empregado decano da residência de Sedgecroft em Londres, apresentou-se ante seu senhor no imenso salão de recepção.
Aí, sob um teto em forma de cúpula, dispôs-se o convite de casamento com todo o esplendor de taças de cristal, porcelana de Sèvres e brilhante faqueiro de prata sobre mesas cobertas por toalhas de linho branco engomado. Passado um momento de vacilação, os convidados se lançaram ao ataque na salada de lagosta e o champanha como se tudo estivesse perfeitamente normal.
Como se as cadeiras Chippendale de espaldar alto reservadas para os recém casados não estivessem tristemente vazias.
Como se seu elevadíssimo anfitrião não estivesse presidindo a celebração como um senhor guerreiro medieval que ordenou a seus vassalos que desfrutassem enquanto ele faz planos para sua vingança.
- Fiz o que me pediu - disse Weed em voz baixa, inclinando-se ao lado de Grayson, simulando que o fazia para voltar a lhe encher a taça de champanha. - Nosso pombo voou da jaula.
O rosto de Grayson se retesou em uma expressão perigosa. Não tolerava que um homem carecesse de coragem para cumprir uma promessa que tinha sido tão idiota para fazer, e muito menos quando esse homem era um parente que utilizou sua própria capela para cometer esse delito social.
- Está seguro?
- Seu roupeiro e sua cômoda estão vazios, milorde. Os criados asseguram que não tinham a menor ideia de seus planos. Seu criado de quarto informou que viu a cama sem nenhum sinal de que tivesse sido
ocupada quando subiu a água quente para barbeá-lo a primeira hora nesta manhã. Ao ver a carruagem de sir Nigel no recinto todos supuseram que tinha saído para fazer uma caminhada para acalmar os nervos.
- E não voltou - disse Grayson, depreciativo.
A opinião que tinha de seu primo ia diminuindo minuto a minuto.
Talvez fosse melhor para todos que Nigel fosse atropelado por uma carruagem de aluguel ou que houvesse alguma outra explicação tão ridícula como essa para que tivesse deixado plantada essa jovem ante o altar.
- Suponho que ainda cabe a possibilidade de que tenha ocorrido algo mau - disse Weed, duvidoso.
Apareceu Heath, o irmão de Grayson, pelo outro lado da cadeira.
- O que aconteceu? - perguntou, sorrindo às convidadas que o estavam observando.
Eram senhoras que o consideravam um objeto desejável para suas filhas solteiras, caso fosse possível cativar seu esquivo coração. Claro que o marquês estaria no primeiro lugar de suas listas, mais para este, tampouco tinha atraído sua atenção nenhuma jovem, mesmo que muitas tinham chegado a extremos ridículos para conseguir esse fim.
A domesticação do clã Boscastle e a conseguinte captura para núpcias era um desafio para muitíssimas mães da sociedade obcecadas por casar a suas filhas. Toda essa riqueza, essa beleza excessiva, sua generosidade para as poucas pessoas que consideravam queridas...
- Nigel desapareceu - disse Grayson rodeando com seus longos dedos o pé esculpido em forma de espiral de sua alta taça.
Heath riu cético.
- Desaparecido? No meio de Londres no dia de seu casamento?
Não acredito.
- Eu tampouco - respondeu Grayson, arqueando uma sobrancelha -
O assunto é que não o encontram. Fica a pergunta, por quê?
Heath cruzou os braços.
- Vamos necessitar um agente de Bow Street.
- Não - disse Grayson em voz baixa.
Estava afligido por sentimentos desencontrados: por um lado a lealdade a sua família e por outro essa estranha sensação de responsabilidade que o impulsionava a atuar para remediar esse desgraçado assunto. Se a filha de Belshire tivesse feito uma manha de criança ou tivesse chorado lastimosamente, talvez não o tivesse comovido tanto seu abandono. Mas sua serena resignação o impulsionava a defendê-la. Por quê? Não sabia. Talvez devido a que não via nenhuma outra pessoa disposta a assumir esse papel.
- Se o malandro fugiu - acrescentou - e não está morto em alguma sarjeta, continuaria sendo um assunto da família.
- Sim - murmurou Heath - e, portanto o cobriremos. Bom, cobriremos tudo o que seja possível, tomando em conta que a metade de Londres já sabe o que fez.
Grayson estreitou os olhos. Nunca tinha suportado o critério estreito da sociedade. Este lhe produzia o intenso desejo de atuar seguindo seus impulsos mais chocantes e escandalosos simplesmente para demonstrar que não lhe importava. O problema era que já não era o filho pródigo que pode se levar como muito deseja.
- A melhor maneira de fazer frente às fofocas é ignora-las - disse. -
Seus pais estão absolutamente destroçados, para não dizer nada da noiva. Suponho que me corresponde resolver as coisas com a família.
- Você, Gray, um pacificador? Bom, isso é como um raio caído do céu. Acho que gosto.
Nenhum dos seis irmãos Boscastle que restavam tinham se acostumado ainda à drástica mudança na hierarquia familiar ocorrida no ano anterior. Seu pai parecia gozar de excelente saúde até dois meses
antes de sua morte. Todos imaginavam que o velho tirano continuaria vivendo umas quantas décadas mais. E quando mataram seu irmão mais novo, Brandon, enquanto trabalhava para proteger os interesses britânicos no Nepal, a todos foi impossível pensar que um jovem tão são e vigoroso não fosse voltar jamais.
Ninguém na família se recuperou da comoção. As rédeas da responsabilidade recaíram nas mãos de Grayson antes que ele percebesse o que tinha acontecido. De fato, ele ia de caminho a China quando chegou a notícia da prematura morte de seu pai.
Quase da noite para o dia se viu obrigado a abandonar seus passatempos para pôr sua abundante energia na administração de suas vastas propriedades. Teve que deixar para depois suas afeições como o box, a bebida, as corridas de cavalos com obstáculos e as viagens a países exóticos, para dedicar-se ao trabalho. E seu tempo ficou totalmente ocupado pelas finanças, os assuntos familiares, a pensão para suas tias doentes e as incontáveis obras de beneficência com as quais tinham colaborado seus pais.
Para não dizer nada do clã Boscastle: três irmãos desmamados e bagunceiros, uma irmã que adoraria seguir esses mesmos passos; outra irmã na Escócia que virtualmente se desligou da família, e numerosos primos, entre eles o desaparecido Nigel, a maioria dos quais pareciam não ter nem um só osso sensato em seu corpo.
Ser um Boscastle equivalia a desentender-se dos limites.
Claro que se um ano antes alguém lhe houvesse dito que estaria contemplando o mundo com os olhos de seu pai e não com os de seu habitual hedonismo momento a momento, teria caído na risada.
Se sua família deveria sobreviver, estava claro que isso dependia dele. E há umas semanas, chegou-lhe, saída de turvas ondas emocionais que não gostava de explorar, a compreensão de que sua maldita família lhe importava muitíssimo. A dupla perda, de seu irmão e
de seu pai, tinha-o feito compreender essa surpreendente verdade. De todos os modos, a responsabilidade produzia uma comoção horrível em seu organismo de libertino.
- O que fazemos, então? - perguntou-lhe Heath, sorrindo a uma jovem que estava sentada do outro lado da mesa.
Grayson se afastou, divertido.
- Não pode se desentender das mulheres o tempo suficiente para ser útil?
- Eu? E me diz isso o homem que tinha duas ex-amantes esperando para lhe saltar em cima de seus bancos? - Heath ficou sério e seus olhos azuis escuro brilharam de resolução - Mas sim. Ajudarei.
Grayson assentiu. Poucas pessoas sabiam do trabalho de Heath no Serviço de Inteligência Britânico durante a guerra. Ele ignorava os detalhes e tampouco queria pressioná-lo para que lhe revelasse o que tinha feito. O importante era que sob o calado encanto e o atrativo de Heath havia um intelecto agudo e uma quase temível indiferença ante o perigo. Secretamente ele desejava ser mais parecido a seu irmão mais novo e calcular seus passos em lugar de agir precipitadamente e logo lamentá-lo.
- Encontre-me Nigel.
Heath terminou de beber sua taça de ponche.
- Considere feito. E o que acontecerá depois?
- Arrastaremos o desertor arrependido até o altar para que conclua o assunto. Leva com você Devon, se quiser. Isso lhe impedirá de meter-se em dificuldades.
Passeou o olhar pela mesa, acabava de ver que os dois assentos reservados para seus irmãos mais novos estavam desocupados. Drake que tinha acompanhado a noiva á casa ainda não tinha voltado.
- Onde está Devon?
Heath esticou os punhos da camisa.
- Partiu com uns amigos que conheceu na semana passada em Covent Garden. Convenceram-no a ir procurar um tesouro de piratas em Penzance. Uma cigana o viu em sua bola de cristal.
- Deus nos ajude - exclamou Grayson. - Esta família vai ao inferno em uma cesta.
- E você é nosso chefe supremo - disse lady Chloe Boscastle, de cabelo negro azeviche, que todo esse tempo esteve bebendo champanha sentada muito perto. - Só seguimos seu exemplo, querido irmão.
Grayson exalou um suspiro. A família estava perdida se seguissem seu exemplo. Embora não pudesse negar que sua influência era um fato.
O que devia fazer? Arrepender-se? Pecar em segredo? Quanto tempo pode um homem fingir que seus atos não afetam a outros?
Ah, Por Deus, estava em grave perigo de converter-se em um ser moral?
Por cima do ombro olhou ao empregado que estava apoiado na parede. De repente lhe parecia mais fácil pensar nos pecados de outros que considerar os seus. A distração lhe serviria para desviar a atenção de seu turvo caráter.
- Voltou minha carruagem, Weed?
- Faz uns minutos, milorde.
- Como estava nossa noiva abandonada?
- Impaciente para chegar em casa, me disseram, e suplicando que a deixassem sozinha.
- Aguentou extraordinariamente bem - comentou Heath. - Isso sim admiro.
Grayson tentou imaginar ao medíocre Nigel com a encantadora jovem cuja confiança acabava de trair. Resultou-lhe difícil imaginá-los juntos, e estranhamento perturbador, em realidade.
Chloe moveu a cabeça de lado a lado, compassiva.
- É provável que nunca volte a aventurar-se a sair de seu quarto. Se eu estivesse em seu lugar, consolaria-me percorrendo o Continente e arrumando amantes bonitos para sarar meu coração.
Grayson olhou sua bela irmã de olhos azuis com expressão reprovadora.
- Esperemos que a dama não leve sua vingança a um extremo tão ridículo.
- Digo a sério, Gray - disse ela, veemente. - O que lhe aconteceu hoje é tão horrível que não se pode suportar nem a metade. Uma amiga minha do colégio jogou-se no Tâmisa por um homem que a deixou abandonada no altar. Uma mulher não se recupera de uma traição tão horrenda. Isso deve deixar uma ferida muito dolorosa.
Em sua imaginação, Grayson viu umas graciosas costas, umas mãos delicadas ocultas por luvas com botões de pérola e um rosto misteriosamente coberto pelas dobras de um véu de casamento. Um rosto sereno de traços clássicos, um elegante nariz e uma boca de lábios cheios e tentadores. Uns olhos verdes felizmente não cheios de dramáticas lágrimas que o olhavam com uma resignação que quase o desafiava a expiar uma ofensa que ele não tinha cometido.
Franziu o cenho quase juntando suas grossas sobrancelhas.
- A dama não me pareceu o tipo de mulher que faria algo tão desesperado como tirar a vida - disse. E muito menos por um imbecil como Nigel, acrescentou para si mesmo.
- Mais isto significa sua morte na sociedade educada - insistiu Chloe, levantando levemente seus ombros nus. - Tem que fazer algo para consertar isto, já que é o cabeça de família. Se não o fizer, Jane nunca poderá voltar a mostrar sua cara em público.
Grayson imaginou a sedutora donzela de cabelo mel sentada sozinha e suportando estoicamente sua desgraça o resto de sua vida.
Que deplorável desperdício de feminilidade.
- É minha intenção fazer algo - disse.
Mais o que faria, não sabia dizer. Não permitisse Deus que sua intervenção piorasse as coisas. Não era precisamente famoso por sua capacidade de fazer boas obras. Entretanto, sempre havia sentido um curioso impulso por defender aos oprimidos ou pisoteados, talvez porque se sentia culpado de sua imerecida boa sorte.
Levantou os olhos.
- Heath?
- Porei-me a caminho dentro de uma hora.
- Dê-lhe uma surra até que não fique nem um ápice do solteiro que leva dentro, mais não lhe deixe nenhuma marca visível.
- Por que não?
Grayson sorriu lugubremente.
- Não quero que pareça horroroso quando o levarmos arrastado até o altar.
Capítulo 3
Três quartos de hora depois, Grayson entrava cavalgando pelas ornamentadas portas da mansão do conde de Belshire em Grosvenor Square. Quando o cavalariço já levava seu cavalo ao estábulo, observou que as cortinas das janelas salientes do andar de baixo estavam fechadas. Um empregado de aspecto taciturno o fez passar a uma das cinco salas formais de visitas. Em sua visita à casa da cidade de Nigel não tinha encontrado nenhuma pista útil a respeito de seu desaparecimento.
Teve que esperar vários minutos ali, durante os quais observou os criados passarem ante a porta nas pontas dos pés, como se não quisessem romper o triste e profundo silêncio. Na realidade, a mansão parecia estar envolta em um pano mortuário, como se houvesse falecido inesperadamente um familiar.
Como receberiam os pais a impulsiva ideia que o tinha levado ali?
Pensou. O que pareceria à noiva abandonada seu oferecimento de agir como seu protetor temporário, uma espécie de substituto de seu estúpido primo ante a sociedade? Se tivesse sorte, Nigel apareceria antes que ele pudesse pôr em marcha seu plano. Não tinha ideia de como o levaria a cabo, logicamente, mas alguém tinha que proteger ela e a sua família do inevitável escândalo.
Sendo o membro de status mais elevado de sua família, recaía nele essa duvidosa honra. Afinal, tinha o poder e a popularidade para dar esse amparo e lhe oferecia algo novo ser o cavalheiro branco para variar.
A verdadeira surpresa do dia era que não tinha sido ele o causador do escândalo.
Seus motivos não eram de todo generosos; havia neles um certo egoísmo. Em primeiro lugar, com isso esperava evitar que o sobrenome de sua família se visse envolvido em um pleito. Em segundo lugar, pretendia pôr fim ao comportamento auto destrutivo pelo que sentiam uma atração natural tanto ele como seus irmãos.
Não pôde deixar de notar que sua aparição no salão principal desconcertou bastante lorde e lady Belshire. De fato, lady Belshire já bebera a metade de uma garrafa de xerez. O conde, por sua parte, tinha seu cabelo negro grisalho muito revolto, com mechas em ponta aqui e ali, e levava a gravata inclinada, mas, além disso, conseguiu apresentar seu habitual ar distinto ante o visitante inesperado.
- Sedgecroft. Sirva-se de uma taça. Encontrou esse canalha?
- Ainda não.
Olhando por cima do ombro, Grayson viu as duas gentis damas que estavam sentadas no sofá simulando estar absortas em seus bordados.
Os arrepiantes olhares carrancudos que lhe dirigiam entre ponto e ponto poderiam lhe ter petrificado todo o corpo. Como se por parentesco ele fosse o responsável pelo abandono de sua irmã.
- Heath vai se encarregar da busca, e será discreto - acrescentou. -
Se Nigel estiver vivo, o trará para que cumpra seu dever.
Lady Belshire cobriu a boca com uma mão para ocultar um soluço e logo disse:
- Confesso que preferiria que o encontrassem morto. Isso pelo menos seria uma desculpa aceitável pelo que fez a minha filha hoje.
- Libertino - resmungou uma das filhas.
- Cafajeste - acrescentou a outra em voz baixa e dura.
Grayson as observou atentamente pela extremidade do olho. Tinha a clara impressão de que não se referiam exclusivamente a Nigel, embora, pelo amor de Deus, pudesse acusar seu primo de muitos defeitos, sendo a estupidez o principal, mas do que não lhe podia acusar era de mulherengo. Jamais tinha se destacado nessa habilidade.
E isso deixava ainda mais preocupante que esse idiota tivesse deixado abandonada no altar a uma beldade como lady Jane. Mais claro, era possível que a elegante dignidade da dama o tivesse assustado.
Igual, pelo pouco que sabia dele, até teria fugido com um homem.
Coisas mais estranhas estavam ocorrendo. Sem ir mais longe, sua própria atuação tentando reparar uma ofensa na qual nada tinha que ver.
Carrancudo, voltou a olhar para o conde, que tinha desabado em uma poltrona e tinha a um gordo spaniel sobre os joelhos.
- Queria falar com sua filha, Belshire. Em privado, por favor. Alguém tem que fazer emendas em nome dos Boscastle.
Não tinha a menor intenção de pedir permissão a Belshire para fazer o que fosse que tinha pensado enquanto não tivesse apresentado seu plano à noiva abandonada.
Se Jane pusesse objeções, bom, ao menos poderia dizer que tinha tentado. Não tinha nenhum sentido explicar o plano a seus pais. Nem Athena nem Howard pareciam capazes de tomar decisões nesse momento, destroçados como estavam pelo desastre sem precedentes
desse dia.
As duas damas se levantaram do sofá como movidas por uma mola de preocupação fraterna. Ele as observou. Uma tinha o cabelo mogno dourado, a outra era uma atraente morena. Ao que parecia a beleza era uma característica nas mulheres dessa família.
E outra, sem dúvida, uma desconcertante segurança em si mesmas.
- Para que quer ver Jane? - perguntou-lhe a de cabelo moreno.
- Não está de humor para uma visita social, considerando o que lhe fez seu primo hoje - acrescentou a outra.
- Isso compreendo - respondeu ele tranquilamente.
- Duvido que queira vê-lo - disse a morena.
Grayson encolheu os ombros; tinha a impressão de que ela estava errada.
- Não há nenhum mal em tentar - disse.
- Sua aparição aqui é inoportuna, Sedgecroft - disse lorde Belshire, irritado. - Talvez pudesse lhe apresentar suas desculpas outro dia.
- Quando se cai de um cavalo - disse Grayson, cauteloso - o melhor conselho é que volte a montar imediatamente.
Lady Belshire deixou bruscamente sua taça na mesinha lateral e o olhou com os olhos brilhantes de interesse.
- Que sentido lhe damos para voltar a montar, Sedgecroft?
Grayson titubeou um momento, e teve que escolher com supremo cuidado as palavras, não fossem interpretá-lo mau.
- O pior que pode fazer sua filha é retirar-se da sociedade. No caso de não encontrarmos Nigel ou não consigamos convencê-lo, seria conveniente encontrar-lhe outro marido.
Preferivelmente, pensou, um que tenha pelo menos meio cérebro, para apreciar o que seu primo desprezou tão misteriosamente.
- Está se oferecendo para se casar com minha irmã? - perguntou-lhe a mais alta das duas irmãs, em um tom a meio caminho entre a
esperança e o espanto.
- Nãoo! - se apressou a dizer ele, horrorizado por essa ideia. - Não.
Minha intenção é ajudá-la a reincorporar-se na sociedade o mais depressa possível. Quanto mais tempo esperar, mais difícil lhe será voltar.
-Tem um ponto de razão, Howard - murmurou lady Belshire. - Se Jane se retirar indefinidamente, vai passar a ser solteirona e finalmente deixará de existir. E Sedgecroft é bem considerado na alta sociedade.
O conde voltou a pôr na fronte o pano com vinagre que tirara.
- Vamos, que diabo, Sedgecroft. Faça o que possa para ajudá-la.
Jane não me dirigiu uma palavra educada há meses. Muitas vezes me expressou suas dúvidas a respeito de casar-se com Nigel, mas não ignorei? Eu achava que se adoravam secretamente. Os jovens de hoje em dia são totalmente... ah, puxa. O que sei eu do amor?
- Não sabe ninguém? - disse Grayson.
Ao voltar descobriu que as duas irmãs o estavam olhando como se de repente lhe tivessem brotado chifres e uma cauda bífida.
- Quanto tempo acha que levaria este... relançamento? - perguntou lady Belshire.
Grayson levantou seus largos ombros.
- Não muito. Minha intenção é acompanhar Jane em saídas pela cidade somente até que comece a atrair o interesse sério de alguns pretendentes aceitáveis. Espero que com o tempo se recupere o suficiente para reatar sua vida.
- O fato de que um marquês a ache desejável sem dúvida vai despertar o interesse da alta sociedade - disse Athena, pensativa. - Vejo possibilidades nisto, Sedgecroft. É amável de sua parte considerar seu futuro. Sem ajuda, é provável que Jane passe a ser uma causa perdida.
- É minha intenção dar um exemplo ao resto de minha família -
respondeu ele. Embora Deus soubesse que essa abnegação não lhe era
natural, como tampouco as complicações de um galanteio, embora este fosse superficial. - Pode ser que nunca tenha pedido a uma mulher que me acompanhe ao altar, mas tampouco deixei abandonada a nenhuma.
Não careço totalmente de moralidade, como parecem acreditar algumas pessoas.
Lorde Belshire abriu um olho.
- Dar um exemplo está muito bem, meu amigo, mas eu tenho certas dúvidas. Tem fama de ser um pouco libertino.
- Um pouco? - exclamaram as duas irmãs ao uníssono.
- O que poderia fazê-lo um pretendente atraente para Jane - disse lady Belshire, pensativa. - Só uma mulher de considerável encanto pode atrair a atenção de um homem como Sedgecroft. Talvez não faça nenhum mal a sua irmã que a considerem dessa maneira. É possível inclusive que isso eleve seu valor social, que hoje caiu horrorosamente baixo.
Lorde Belshire franziu os lábios.
- E como melhorará a reputação de Jane ser acompanhada a todas as partes por um libertino? Perdoe-me outra vez, Sedgecroft.
Sua mulher negou com a cabeça, resignada.
- Não acredito que se possa reparar jamais sua reputação. Nossa única esperança é que passado um tempo ela conheça um jovem a quem não importe este escândalo.
- Exatamente - disse Grayson, sorrindo. - Não podemos desfazer o que aconteceu.
Athena lhe sorriu também.
- Mais podemos tirar proveito.
- O que importa minha opinião? - grunhiu lorde Belshire. - Pergunte a ela, Sedgecroft. Está na galeria vermelha com todas essas odiosas estátuas romanas. Mais não se surpreenda se rejeitar seu oferecimento.
É uma garota de caráter forte.
Grayson se dirigiu à porta sorrindo para si mesmo pela advertência.
Claro que se surpreenderia se ela recusasse. Jamais nenhuma mulher tinha rejeitado um Boscastle se ele estava decidido a consegui-la. Afinal, a proposta que iria fazer beneficiaria aos dois. Que mal podia haver nisso?
Capítulo 4
A galeria ocupava todo o espaço do primeiro andar. Era uma enorme sala iluminada pelo sol e decorada com cortinas e laços de seda vermelha e uma coleção de valiosas estátuas italianas. Toda uma parede lateral estava ocupada por uma imensa lareira esculpida em mármore, cujo lar poderia albergar a uma família de quatro pessoas. Não estava aceso o fogo, mas sobre a lareira se viam pedaços de cartas rasgadas, aparentemente preparadas para serem queimadas.
Em um canto estava Jane, recostada em um sofá estofado em veludo carmesim e com um pêssego de estufa meio comido na mão.
Sobre o colo tinha uma pasta aberta com cartas.
Cartas
de
amor
pensou
Grayson,
parado
na
porta,
momentaneamente distraído de sua missão pela lânguida sensualidade de sua postura. Com certeza esteve lendo os insípidos poemas que lhe teria enviado Nigel ao longo dos anos. Tinha a cabeça apoiada em seu branco braço dobrado, postura que lhe levantava os exuberantes seios formando uma sedutora silhueta. Seus pés descalços pendiam do outro braço do sofá. A beldade de coração partido não trocou de vestido; ainda usava o do casamento.
Levou um tempo para observá-la nesse momento de distraído descuido. Tinha os olhos fechados; suas sedosas pestanas negras projetavam sombras em sua bem formada face; esticava e flexionava os finos dedos dos pés, como se tentasse relaxar. Os ondulados e brilhantes cabelos mel lhe passavam pelos ombros e caíam até o chão.
Imaginou-se afundando o rosto nesse cabelo e seguindo as curvas de
seu corpo com as mãos. Essa inesperada fantasia lhe esquentou o sangue.
E pensar que nesse momento Nigel poderia estar gozando de todas essas possibilidades sensuais em sua cama. Que imbecil mais rematado. Mais claro, pensou, ele não a conhecia absolutamente. Talvez tivesse algum defeito oculto. Bom, o defeito deveria estar muito oculto, a verdade; em apenas estar aí a olhando sentia as perigosas revoadas do desejo.
- Permita-me uma breve interrupção?
Essa voz grave sobressaltou Jane, tirando-a de seu transe. Sentou-se tão repentinamente que as cartas saíram voando e caíram no chão. O
sol da tarde e os nervos da manhã a tinham deixado sonolenta. Estava sonhando acordada, pensando na maneira de pôr em ação a seguinte fase de seu plano.
Estava contemplando a deliciosa liberdade que lhe tinha dado Nigel.
A liberdade de escolher seu par; a liberdade de paquerar ao gosto de seu coração. De apaixonar-se perdidamente tal como se apaixonara Nigel por sua preceptora. Ou de não apaixonar-se nem casar-se se não aparecesse o homem perfeito.
Estava imaginando como seria experimentar uma verdadeira paixão, esse tipo de paixão espantosa, veemente, impulsiva, violenta, que produz formigamentos da cabeça aos pés, quando essa voz rouca, grave, interrompeu-a.
Acelerou-lhe o coração e começou a retumbar, por uma muito explicável espera. Acabava de ver uma sombra vagamente conhecida no lugar onde estava reclinada, envolta em uma névoa de satisfação, felicitando-se.
Era uma sombra que recordava ter visto na capela e que lhe produziu um estremecimento de premonição. Não! Não podia ser de maneira nenhuma. Não podia ser, aí em sua casa, em seu refúgio...
- Lorde Sedgecroft, isto é um prazer inesperado.
"Prazer inesperado" nem sequer começava a descrever as inquietantes sensações que lhe causava sua aparição. A luz do sol formava claros e sombras nos bem cinzelados planos de seu rosto e criava reflexos dourados como trigo amadurecido em seu cabelo, como o pincel de um pintor.
E seu corpo... bom, esse torso de ombros largos e esbelto talhe tão soberbamente marcado pela jaqueta cinza pérola e a calça negra justa superava muito em beleza às estátuas de deuses romanos que os rodeavam.
Levantou-se e, tardiamente, percebeu que seu aspecto não era absolutamente o que corresponderia a uma deusa. Tinha uma mancha de suco de pêssego muito visível na saia; tinha colocado as meias debaixo de uma almofada. E o que podia estar fazendo ele aí, por certo?
Sentiu ressecada a garganta. Não era possível que esse diabo já tivesse descoberto sobre o casamento secreto de Nigel, não é?
- No que lhe posso servir milorde? - perguntou tranquilamente, colocando todas suas preocupações atrás de uma fachada recatada.
Pegou-lhe o cotovelo e a fez retroceder um passo.
- Sou eu que vim servi-la.
Jane se sentou de repente no sofá, tão assombrada que foi incapaz de dissimular. Ele se sentou a seu lado, com um movimento muito mais elegante que o seu surpreso e ruidoso desabamento. Apenas sua presença a avassalava totalmente, além da dura coxa que lhe pressionava o joelho; não conseguiu imaginar por que seu pai o teria enviado ali e por quê?
- Acho que não entendo.
- Todo este assunto deve ser terrivelmente penoso para você.
- Muito.
Embora não tão penoso como teria sido casar-se com Nigel, disse a
si mesma silenciosamente.
- Tenho que reconhecer que admirei sua serenidade na capela.
Se ele tivesse a mínima ideia do por que estava tão serena; duvidava que estivessem tendo essa conversa, pensou ela.
- Obrigada - disse.
- Deve ter sido difícil.
Interessante. Parecia ser bastante simpático, na realidade. O que poderia querer lhe dizer?
- Não se pode fazer uma ideia.
- Ter todas essas pessoas com a atenção fixa na senhorita -
continuou ele, balançando a cabeça, compassivo.
- Nem percebi.
- Todo mundo sussurrando enquanto a senhorita estava absolutamente humilhada.
- Não foi agradável, mais continuo viva.
- Tss, tss. Ser o objeto de desonra universal. De brincadeiras, de lástima.
Jane franziu o cenho e o olhou reprovadora.
- Com isso pretende me fazer sentir melhor?
- Tem que enfrentar a realidade.
Por quê? Desejou perguntar ela, mas estava tão imersa nesse drama que não tinha a energia para manifestar seu desacordo. Era difícil tratar com ele se não tivesse ideia de suas intenções.
- Sim, terá que enfrentar. Terá que pagar um preço por humilhar a uma jovem.
- Sim, terá que... a que tipo de preço nos referimos? - perguntou já bastante impaciente.
- Deixe isso comigo. Apenas saiba que Nigel responderá pelo que lhe fez.
- Talvez tenha uma desculpa.
- Não se atreva a defender ante mim a essa bicha de merda.
Jane tossiu
- Sua linguagem, milorde.
- Perdoe. Às vezes me deixo levar por minhas paixões.
- Claro - murmurou ela.
Tinha ouvido falar mais de uma vez a respeito de suas paixões, mais jamais imaginou que ela viesse a ser a receptora.
Ele tirou as luvas de couro cinza de montar.
- Sabe, suponho que os jornais vão especificar todos os vergonhosos detalhes do acontecimento do dia?
Jane demorou para responder, distraída olhando suas fortes e elegantes mãos. Mas a distração ficou em nada comparada com a comoção que sentiu quando uma dessas fortes mãos envolveu a sua.
- Os jornais... o que...? Por favor, o que faz?
Tinha lhe dado um aperto na mão que pretendia ser tranquilizador, mas cujo efeito foi uma forte onda de prazer que lhe percorreu todo o corpo em ardentes espirais.
- Os jornais dirão que outro libertino Boscastle rompeu o coração de uma dama - disse ele, pensativo. - E darão muitíssima importância ao fato de que eu estava rodeado por duas de minhas ex-amantes na capela.
Jane arqueou uma sobrancelha para expressar uma delicada recriminação, para dizer "Bom, não é de estranhar", mas pensando bem, dado que ela tinha frustrado seu próprio casamento e lhe estava friccionando o dorso da mão com o polegar, e de uma maneira tão prazerosamente desconcertante, decidiu ficar calada.
Ele soltou um suspiro.
- Neste momento um de meus irmãos está repousando para recuperar-se de uma briga em que se meteu durante o pedido de casamento por uma jovem de duvidosa reputação.
- Ah, por Deus.
Cada vez que seus olhos azuis se cravavam nos dela, sentia uma revoada muito estranha na boca do estômago. Parecia estar transformando-se em algo indescritível, como se levasse asas mágicas nos pulsos e tornozelos, que a faziam flutuar dentro de uma agradável névoa escura.
- Minha irmã Chloe disse que irá ser cortesã no Continente -
acrescentou ele.
Jane recordou à formosa jovenzinha de cabelo negro azeviche consagrada a colaborar em numerosas obras beneficentes.
- Sim? Não, não pode ser.
Não, pensou ele. Provavelmente não. Mais tinha que deixar claro um ponto, e embelezar um pouco a verdade não faria nenhum dano, posto que ele tivesse segurado o maior bem de Jane em seu coração. E
pensar que Nigel poderia estar fazendo amor a essa interessante beldade nesse mesmo momento. Nunca tinha conhecido uma mulher como ela. Tinha umas mãos muito suaves, e o vestido de noiva com todas as rendas enrugadas, deveria lhe dar um aspecto recatado, mais nele produzia o efeito contrário. Ao demônio que havia nele, adoraria saber o que ocultavam essas rendas.
- Devon, outro de meus irmãos - continuou lugubremente - foi-se com uns amigos inúteis em busca de um tesouro escondido.
- Um tesouro escondido? - repetiu ela sem poder reprimir um sorriso ante essa ideia encantadora embora frívola.
Ele viu seu sorriso e sorriu também.
- Suponho que ganhamos nossa reputação - continuou - embora em sua maior parte nossos pecados não são irredimíveis. Quer dizer, até hoje, com o que fez Nigel. Nunca humilhamos a uma dama assim.
Jane ia flutuando muito alto nessa estratosfera indescritível, totalmente enfeitiçada por esse homem endemoniadamente atraente. A
que quereria chegar com essa conversa? Os patifes descarados como Sedgecroft andavam à espreita fora do círculo social das jovens decentes como ela, mesmo que entre estas despertassem certa curiosidade.
Nigel costumava lhe aconselhar todo o tempo que evitasse aos outros rapazes Boscastle, e Nigel era seu melhor amigo. Naturalmente ela nunca tinha julgado esse conselho. Na realidade se achava bastante inteligente para resistir à sedução. Mas claro, jamais tinha tentado seduzi-la um homem verdadeiramente atraente. Seria isso...? Passou-lhe pela mente uma ideia espantosamente aduladora.
- É sua intenção me seduzir? - perguntou-lhe muito séria.
- Não, claro que não.
- Ah, não, claro que não.
Brilharam chispas de maliciosa diversão nos olhos azuis.
- Não se ofenda. Na realidade minha intenção era felicitá-la. Inteirar-se por experiência própria de quão cruel pode ser o mundo é uma lição que não é fácil para ninguém, mas a senhorita recebeu uma lição hoje.
Querida minha, se isto fosse sedução, não estaríamos aqui sentados de mãos dadas.
O que estariam fazendo se estivesse ocorrendo uma típica sedução Boscastle? pensou ela. A busca de respostas a essa interessante pergunta a deixaria acordada até a madrugada, com certeza. Tinha uma imaginação muito fértil, e Sedgecroft era capaz de mantê-la estimulada durante vários meses.
- Lorde Sedgecroft, se isto não é sedução - disse, em tom mais educado possível - o que é exatamente? Outra desculpa pessoal de sua família?
- Isso e muito mais. - Levantou-lhe as mãos até o queixo dele e sorriu, com um sorriso cálido e um pouco travesso. - É uma proposta.
- Uma proposta.
- Não, não é o que pensa. Compreendo como se sente depois da humilhação que sofreu hoje. Jamais em minha vida havia me sentido tão envergonhado por minha família.
- A verdade era que nunca tinha prestado muita atenção aos pecados que cometiam seus familiares; estava muito ocupado pecando ele. - Permita que seja franco Jane.
- Parece-me que não posso impedir.
- Uma mulher em sua lamentável posição está em perigo de converter-se em uma ária, em uma proscrita. Seria preciso ser um homem de caráter para casar-se com a senhorita agora. Um homem bastante forte para desentender-se das opiniões de outros. Não quero dizer que esse homem não exista, mas são poucos, muito, muito escassos.
Jane sentiu arder o rosto de aborrecimento. Ele acabava de descrever o homem de seus sonhos, o homem que talvez não encontrasse nunca nas águas superficiais da alta sociedade. Existiria esse homem ou morreria de solidão esperando que aparecesse?
- Bom, não foi minha culpa.
- Exatamente. E por isso não é a senhorita quem deve ser castigada, e por isso é minha intenção te cortejar, quer dizer, visivelmente, ostensivamente, para demonstrar que continua sendo uma mulher desejável, uma boa escolha.
Jane ficou sem fala. Que confusão. Que consequência mais cruel e inesperada. Logicamente, ela tinha previsto um tempo de isolamento social; tinha suposto que haveria brincadeiras, pena, que seria ignorada durante um tempo.
Mais que um conhecido descarado como Sedgecroft abraçasse sua causa? Que esse homem indecentemente bonito patrocinasse sua volta ao mercado do matrimônio do qual ela tinha pretendido escapar? Isso era o último que teria imaginado. Achava-o horrorosamente presunçoso
e ao mesmo tempo encantador por sugerir uma coisa assim. Oferecia-se para protegê-la das consequências de suas próprias maquinações.
Como devia reagir?
- Vejo que isto foi uma comoção - disse ele, sorrindo, esquadrinhando-a com seus olhos azuis. - Me acha muito pouco atraente para que te corteje?
Vamos, ele não tinha ideia; achava-o tão aniquiladoramente atraente que quase não conseguia pensar direito. O que, em sua opinião, apresentava um problema.
- Bom, é bastante... bom...
- Mais experiente que você.
- Entre outras coisas.
Ele se aproximou mais e lhe apertou as mãos, alentador.
- Minha experiência só será uma vantagem para a senhorita.
- Por que será que duvido disso?
- Conheço todos os jogos de amor que se jogam em nosso mundo, Jane - disse ele, olhando-a nos olhos.
- Não me cabe dúvida.
- Se Nigel não voltar para emendar esta situação casando-se com a senhorita, a ajudarei a encontrar outro jovem que esteja bem disposto.
Investigarei-o pessoalmente antes de lhe dar minha aprovação. - Deu-lhe uma piscada e adotou um tom amistoso. - O selo pessoal Boscastle, mmm?
Isso era a última, a última coisa que desejava ela: outro casamenteiro para lhe aborrecer a vida. Limpou a garganta, procurando as palavras para frustrar essa desastrosa conspiração.
- É muito amável de sua parte, mais...
Essa boca belamente modelada se curvou em outro sedutor sorriso:
- Há um certo egoísmo em meus motivos, não são de todo generosos. Quero fazer isto para ser um exemplo para minha família.
Deus sabe que já é hora de que pelo menos um Boscastle se comporte com maturidade. - Fez uma pausa e seus olhos brilharam de travessura.
- Claro que nunca imaginei que seria eu.
Ela começou a sentir-se atordoada, girava-lhe a cabeça. No que se colocara? Cortejada por Sedgecroft. Bom, para ele só seria um jogo, um plano para inculcar uma aparência de ordem a seus revoltosos irmãos, mais para ela... Não sabia se suas emoções poderiam com... esse homem tão homem. Igualmente morria de palpitações depois de uma noite em sua presença, e os problemas que poderiam surgir mais valia não tentar predizer.
Por um perigoso instante considerou a possibilidade de confessar-lhe tudo. Mas isso significaria faltar ao juramento que fizera a Nigel sobre a Bíblia. Provavelmente destroçaria a vida de Nigel; seus pais tentariam obrigá-lo a declarar nulo seu matrimônio; sua flamejante esposa ficaria desonrada, e também o filho que estava esperando.
A ele seus pais deserdariam por desonrá-los. E a ela, que tinha idealizado esse plano com a melhor das intenções, fariam-na sentir-se muito malvada e seu pecado seria exposto a um mundo cruel. Quem compreenderia seu desejo de forjar seu próprio destino?
- Lorde Sedgecroft...
- Ah, vamos, Jane. Não me olhe tão carrancuda como uma preceptora. Isto será divertido. Saiba ou não, é uma mulher muito formosa.
- Sim?
- Ah, sim.
Ela suspirou. Esse homem respirava e gotejava sedução, sem sequer saber. Com certeza paquerava dormindo e o fazia muito bem, além disso. Só estar sentada a seu lado a fazia estremecer, debilitava-lhe as pernas. E lhe debilitava o cérebro também. Por que não lhe ocorria nenhuma desculpa para rejeitar sua proposta?
Ninguém acreditaria que ela tinha atraído a atenção de um homem como esse marquês.
- Acredito... a verdade é que sou tão tímida que não serei capaz de levar isto de maneira convincente.
Ele a olhou nos olhos.
- Eu serei convincente pelos dois.
Ela reteve o fôlego quando lhe pôs as mãos nos ombros e os pressionou com firmeza, embora muito suave. Se Nigel se atrevesse a lhe fazer isso, ela teria caído na risada. Mais ante essa pressão das mãos de Grayson, atuou seu instinto natural e fechou os olhos, submeteu-se e o desfrutou.
Estremeceu quando lhe roçou uma maçã do rosto com o dorso da mão. Fazia-a sentir-se atraente, o que, supôs, era parte da atração dele.
- O que faz? - perguntou, mais curiosa que desconcertada.
- Convencê-la - respondeu ele, com a voz grave, rouca.
Então ela não soube o que pensar quando lhe emoldurou o rosto entre as mãos. Mas se sua mente estava suspensa em uma espécie de paralisada curiosidade, seu ser físico estava muito ativo, derretendo-se em uma mescla de intensas necessidades e ardentes vermelhidões.
Estava virtualmente ardendo quando lhe roçou o lábio inferior com a boca, com intencional sensualidade. Os batimentos de seu coração se converteram em retumbos que ressoavam por todo seu corpo até converter-se em angustiosas vibrações.
- Me convencer - disse, e sua voz lhe soou estranha, longe, como um eco, algo parecido ao gorjeio de um canário ao qual tiraram de sua gaiola. - De que?
- Mmm.
Grayson estava desconcertado por sua própria reação ao beijo.
Esteve vários minutos sem saber o que dizer, o que era uma novidade em seu amplo domínio de si mesmo. A situação tinha tomado um desvio
revigorante, estimulante. Ela parecia muito engenhosa para uma mulher de sua posição social. Não conseguia decidir se isso seria uma vantagem para ela ou não. Não lhe importava nem em um nem em outro sentido. Talvez outros percebessem isso de uma maneira totalmente diferente.
- Me escute, Jane. Não era minha intenção fazer valer minhas razões desta maneira, mais não se pode esperar que um tigre troque de pele em um abrir e fechar de olhos. Há alguma coisa em sua natureza que provoca ao homem primitivo que há em mim. O que quero dizer -
continuou em voz baixa - é que se sua experiência de hoje danificou sua fé de que é desejável, conheço várias maneiras mutuamente satisfatórias para lhe restaurar isso.
- Isto...
- Mesmo que só seja um jogo.
- Um jogo? - repetiu ela, trêmula.
- Um jogo não exclui um pouco de prazer, não é? - disse ele docemente. - Seu futuro não chegou a seu fim por ter sido abandonada ante o altar.
Além disso, seu exuberante corpo foi feito para fazer amor, para deixar em migalhas o julgamento de um homem, pensou, sentindo acelerado o pulso por um desejo que já raiava ao perigo.
Ela mudou de postura e ele sentiu todo o corpo se endurecer. O
sensual roce de seu cabelo em sua mão, a turgente suavidade de seus lábios, desencadeavam-lhe um desejo que embotava a razão. Sem sequer tentar, excitava-o. Uma rajada de espera erótica lhe desceu como um raio de energia por toda a coluna. Todas as terminações nervosas de seu corpo reagiram, levadas para a relação sexual.
- Ooh - murmurou ela, assombrada, e levantou uma mão para afastá-lo empurrando-lhe o ombro, mas deteve o movimento e a deixou cair flácida sobre a saia.
Passou a língua por todo o carnudo lábio inferior. Entrecortou-se a respiração dela, excitando-o mais ainda.
- Não se atreva a mover-se - advertiu-a, amavelmente. - Inclusive não terminei.
Atraiu-a mais para ele, e lhe escapou um gemido ao sentir no peito a pressão de seus seios redondos e cheios. Deslizou-lhe suavemente a mão livre pelas costas, seguindo com os dedos a forma de suas costelas. Isso não lhe bastava, de maneira nenhuma. Todos seus ferozes instintos masculinos o impulsionavam a lhe descer o corpo para afundá-la no sofá.
- Lorde Sedgecroft...
- Shss. Não é educado me interromper quando a estou beijando.
Ela emitiu uma risada nervosa.
- Atreve-se a falar de educação quando...
- Volta a me interromper.
- Um dos dois tem que demonstrar autodomínio.
- Ah, sim - disse ele, sorrindo. - Os convidados do casamento faziam comentários sobre o extraordinário autodomínio de que fez demonstração hoje.
- Suspeito que também fizeram comentários a respeito do senhor. E
provavelmente não disseram nada relativo ao autodomínio.
Ele começou a rir, encantado por sua franqueza. Assim a dama não era tudo o que parecia. Isso sim era uma agradável surpresa, que fazia tudo isso muito mais prazeroso. Livrasse-o Deus de ter que acompanhar pelas festas da cidade uma senhorita tímida. Voltou a lhe roçar os lábios com os seus, conseguindo uma suave exclamação. Introduziu-lhe a ponta da língua por entre os lábios, e sentiu arder a chama do desejo nas mais profundas curvas do ventre. Ela não se mostrava o que se diz, complacente, mais tampouco resistia. Gostou de seu sabor, o suave néctar de pêssego. Também gostava dos contornos de seu corpo; a
cálida pressão de seus seios em seu ombro: turgentes, incitantes. Teve que apertar a mão em um punho para evitar acariciá-los.
- Não terminou ainda, não é? - disse ela, com voz fraca.
- Não de tudo.
- Muito bem. Continua.
Dizendo isso se reclinou no espaldar. Olhando-a com seus ardentes olhos azuis, ele seguiu seu movimento e a deixou cravada entre as almofadas com seu peso todos os músculos duros. Fria como a névoa, pensou, embora não lhe escapou o pulso acelerado dela na garganta.
Saboreou a forma e a textura de seus lábios úmidos e dóceis; absorveu os suspiros que lhe escapavam; devorou-lhe a boca com implacável habilidade até que sentiu seus involuntários estremecimentos de excitação.
Ela o excitava também, mais do que teria imaginado que o excitaria essa fatalista jovem em seu vestido de noiva enrugado e os pés descalços. Gostava que não estivesse chorando desconsolada ou clamando vingança. Exalando um suspiro, reuniu o que ficava de autodomínio; desceu a mão por seu braço e ao chegar à curva do cotovelo a passou a sua cintura e a fechou firmemente aí.
- Bom - disse ela, quando começou a respirar outra vez. - Bom.
- Há momentos na vida em que alguém deve esquecer um plano em favor de um impulso - disse ele tranquilamente, tentando aplacar o desejo que tomou conta dele.
Jane o olhou com reprovação.
- O que não significa que terei que agir agressivamente seguindo qualquer impulso que surja.
- Se isso fosse assim não estaríamos aqui falando sobre o assunto.
- O que estar...? Não, nada. Não devo perguntar.
- Não me importa - disse ele sorrindo.
- Não, com certeza não - suspirou ela. Viu que seus olhos se
escureceram a um azul meia-noite, e em suas profundidades se via o desejo, nu. A essência mesma de diabólica sedução. - Não me vai pedir desculpas tampouco, não é?
- Do que? - perguntou ele, divertido.
- Se tiver que explicar, suponho que não tem nenhum sentido continuar com o assunto.
Que assunto? pensou Grayson, e quase perguntou. Não sabia se a tinha ofendido ou não. Sua reação aos acontecimentos do dia não eram exatamente a que teria esperado.
Disse a si mesmo que sua resignação era um alívio: não o obrigava a enfrentar emoções incômodas. Talvez a tinha sobressaltado, afligido.
Sim, tinha que ser isso. A família Boscastle tendia a intimidar às almas mais fracas.
- Isto é exatamente o que faz a um homem como você um perfeito libertino - murmurou ela, pensativa.
- Perdão?
- Sua desavergonhada busca pelo prazer.
- Ah, isso. - Olhou-lhe a boca molhada pelo beijo. Era difícil saber como estava; não parecia particularmente aflita pelo que acabava de ocorrer. - Ofendi sua sensibilidade?
- Ofendeu? Não, milorde. Arrasou, sim. Suponho que vou necessitar vários dias para me recuperar. Por que me beijou, por certo?
Ele bateu no joelho com a luva, um pouco desconcertado pela acuidade mental que revelava essa pergunta.
- Por vários motivos, na realidade. O primeiro, é que não suporto ver uma mulher formosa aflita por um bobo como meu primo.
- Sim, mais...
- O segundo, é que queria lhe demonstrar quão atraente é. -
Percorreu-lhe todo o corpo com o olhar. - O terceiro, senti desejo de beijá-la e obedeci ao impulso.
Ela se levantou, com o corpo algo instável.
- Acho que vou retirar-me a meu quarto para desmaiar da devida forma.
Ele se reclinou apoiando-se no espaldar, e passou o polegar por seu fino lábio superior, onde ficava o sabor dela lhe atormentando os sentidos. A cada instante que passava, parecia-lhe uma alma menos e menos fraca.
- Muito justo. Virei visitá-la quando estiver se recuperado.
- Tudo isto é muito avassalador, Sedgecroft.
Ele a olhou atentamente com as pálpebras estreitas. Avassalar a uma mulher era algo que entendia. Sentiu um vago alívio; isso podia entender.
- Ao que parece meu primo não tem a menor ideia de quão estupenda é a mulher que perdeu, mais quando eu tiver terminado, vai dar cabeçadas, certamente.
Ela se voltou para a janela, para ocultar sua consternação, e ele se levantou e ficou a seu lado.
- Não sei o que aconteceu - murmurou ela. - Nos levar como se...
bom, este beijo não posso comparar com nada que tenha experimentado.
- Não? - brincou ele, curiosamente contente ao saber que não tinha perdido sua capacidade de avassalar.
- A experiência mais parecida que consigo recordar é aquela vez que desobedeci a meu pai e às escondidas montei seu garanhão não domado. A dor do golpe quando caí me deixou sem fôlego. Seu beijo me deixou em um estado similar.
Grayson franziu o cenho. Havia uma grande diferencia entre avassalar a uma mulher e imaginá-la sem fôlego pela dor no chão.
- Não sei se devo me sentir adulado ou não.
Ela se voltou pela metade e se desconcertou ao ver que ele estava
mais perto, e não onde o tinha deixado.
- Agradeço sua intenção de me ajudar. São seus métodos que me incomodam.
Ele encolheu os ombros.
- Como disse, ofereço esta ajuda tanto pelo bem de minha família como da sua.
- O que diria se me negasse a aceitá-la?
- Pois, teria que fazer outras tentativas para persuadi-la mais acredito que já aceitou, não é verdade?
- Isso é uma hipótese arrogante de sua parte.
- É um fato histórico, Jane - disse ele, sem o menor indício de querer pedir desculpas em seu tom. - Desde a época feudal nenhuma mulher foi capaz de negar-se a um homem Boscastle uma vez que ele pôs sua marca nela.
Ela arqueou as sobrancelhas.
- Sua marca? Ah, fantástico. Uma marca no proverbial traseiro da vaca.
Ele passou por seu lado para recolher as luvas do sofá, ocultando um sorriso. Alma fraca tinha achado? Bom, talvez estivesse emocionada.
Talvez não era ela mesma.
- Virei amanhã.
- Tão logo? - disse ela alarmada, meio consciente de que essa pergunta equivalia a fechar um trato entre eles.
- Não tem nenhum sentido que se acabe convertendo em uma solteirona - disse ele, implacável. - Além disso, já se derrubou bastante na auto compaixão. Fora o luto do casamento, por favor.
- Como disse? - balbuciou Jane, desconcertada por sua brusca franqueza.
- Luto, como a roupa de luto - disse ele, em tom mais grave - A esperança do dia morreu; vivam os loucos caprichos do amanhã.
Queime suas cartas, encanto. Amanhã vista-se para mim com algo atrevido.
Ela o olhou desdenhosa.
- Não tenho nada atrevido em meu guarda-roupa, Sedgecroft.
- Isso terá que mudar - disse ele, olhando-a fixamente nos olhos.
Ela plantou as mãos nos quadris.
- E se eu não quiser mudá-lo?
- Toda mulher quer ser desejável - disse ele, encolhendo outra vez seus largos ombros.
- Talvez as mulheres com quem se relaciona. Vi o harém na capela.
- Só foi boa educação convidá-las.
- Foi a boa educação o que as levou a sua cama? - perguntou ela, sem poder evitar.
Ele sorriu, mostrando seus brancos dentes.
- Minhas boas maneiras me impedem de responder essa pergunta.
- Imagino - disse ela, enquanto por sua mente passava um desfile de imagens dele em seus momentos de mais libertinagem, pulando com suas amantes. Movida por uma repentina curiosidade, perguntou: - Não vai incomodar suas amantes me servir de acompanhante por toda parte?
- Felizmente para você, Jane, no momento estou livre de confusões românticas.
- Felizmente para mim - resmungou ela.
Do outro lado da porta rangeu uma tábua do chão. Jane se ruborizou ao pensar que alguém pudesse ouvido essa conversa.
- Não se parece em nada a Nigel - disse em voz baixa.
Ele emitiu uma risada rouca e se virou para a porta.
- Espero que isso resulte em seu benefício.
Capítulo 5
Em um primeiro instante, Grayson considerou a possibilidade de agir como se não tivesse visto as duas jovens ajoelhadas fora da porta. Mas
quando elas se levantaram e começaram a correr, não pôde se conter.
Tinha que enfrentar esse par se iria ser visitante frequente nessa casa.
- Perdão - disse, limpando a garganta para fingir um tom severo. -
Sempre escutam às escondidas as conversas de sua irmã ou sou eu o foco de seu doentio interesse?
- Estávamos... - respondeu Caroline, agachando-se para recolher um livro que lhe tinha caído no chão - isto... estávamos perseguindo uma aranha...
- Uma enorme arranha marrom que vimos subir pela escada - se apressou a acrescentar Miranda.
Caroline moveu o livro debaixo do nariz dele, para dar ênfase.
- Parecia que ia direto à galeria. Queríamos agarrá-la... Jane tem um medo de morte às aranhas.
- E o que pensavam fazer quando pegassem esse inseto? -
perguntou ele detendo com a mão o movimento do livro, não fosse lhe golpear o queixo. - Ler uma história para que dormisse?
- Simplesmente queríamos proteger os interesses de Jane - disse Caroline, deixando cair a máscara.
Grayson se inclinou para olhá-la nos olhos.
- Há algum motivo em particular que a faça pensar que eu sou um obstáculo no caminho de suas nobres intenções?
- Bom, é um Boscastle - disse Miranda em voz baixa.
Caroline assentiu.
- Um Boscastle lhe rompeu o coração.
- Justamente por isso - disse ele - é um Boscastle quem deve lhe levantar o ânimo.
- Como pensa fazer isso? - perguntou Caroline.
- Acredito que isso não é seu assunto. Conto com a aprovação de seus pais.
- Nossos pais não têm a menor ideia do que é melhor para nós -
disse Miranda com muito sentimento. - Deveriam ter feito caso à Jane quando ela expressou suas dúvidas com respeito a casar-se com Nigel.
Grayson titubeou, pensando se haveria alguma alma débil nessa casa.
- Tinha a impressão de que era Nigel quem tinha suas dúvidas a respeito do matrimônio.
- Talvez isso também seja uma característica Boscastle - disse Caroline antes de perceber o que dizia. - Os homens de sua família são notórios solteiros.
A ele lhe curvaram os lábios em um sorriso amedrontador.
- Talvez, as formosas jovens, poderiam dedicar seus encantos a remediar esse desconcertante problema. Em lugar de escutar atrás das portas.
Miranda ruborizou, e ficou a considerar a sugestão, até que Caroline lhe deu uma cotovelada no flanco.
- O problema - disse Caroline, secamente - é que Jane está muito, muito vulnerável, e o senhor é...
- Sim? - perguntou ele, pestanejando, com cara de absoluta inocência.
- Bom - continuou Caroline, agarrando o fio - um pouco embromador para uma mulher nesse estado tão vulnerável.
Que preciosas eram as duas jovens, pensou ele, entretido. Um par de gatinhas justiceiras que não se aventuraram jamais no mundo cruel.
Poderia ter que lhes dar um bom susto, pelo bem delas.
- Não sei o que quer dizer.
Caroline pôs o livro sobre o peito.
- Como se pode expressar isto de um modo delicado? Verá, no senhor há uma força perigosa que atrai às jovens.
- Uma força perigosa? - exclamou ele, fingindo modéstia. - Jamais o teria sonhado possível.
- E nossa irmã, em seu estado vulnerável - acrescentou Miranda, movendo-se incômoda - poderia não ser capaz de resistir a essa força sua.
Grayson simulou refletir sobre esse ridículo problema. Força perigosa? Pelo menos isso era original.
- Entendo algo da natureza emotiva de uma mulher.
- Isso ouvimos - disse Caroline, com claro sarcasmo.
Ele conseguiu fazer uma expressão de horror.
- Não acreditarão, suponho, que eu seduziria a sua irmã depois da humilhação que sofreu hoje?
- Não, claro que não! - exclamou Miranda.
- Santo céu, não! - disse Caroline, embora isso fosse exatamente o que tinha pensado. - Não quisemos dar a entender isso.
Ele apoiou um ombro na porta e estreitou os olhos, pensativo.
- O que queriam dizer então?
Caroline franziu os lábios.
- Bom, para começar, poderia tentar ser ligeiramente menos...
menos atraente para os sentidos femininos quando estiver em sua companhia.
Ele arqueou bruscamente suas grossas sobrancelhas.
- E como devo fazer isso?
- Iria bem - atravessou Miranda, timidamente - se conseguisse não parecer tão masculino quando se apresenta.
Ele simulou preocupação.
- Não tinha ideia de que fosse tão extremamente ofensivo para o sexo oposto - disse em voz muito baixa. - É alarmante isto.
- Entendeu-o mal - disse Caroline, depois de olhar para sua irmã.
- Sim?
- Sim. Embora suas qualidades masculinas sejam envolventes, não são necessariamente ofensivas.
- Ah, bom - disse ele, exalando um suspiro de alívio.
- Na realidade - acrescentou Miranda - suas qualidades são exatamente o contrário de ofensivas.
Caroline assentiu energicamente.
- E aí está o problema - disse.
- Compreendo - disse ele, reprimindo o louco desejo de soltar uma gargalhada. - Parece que terei que procurar um remédio para minha...
para minha... minha espantosa "masculinidade".
- Eu acredito que o problema não é sua "masculinidade" - disse uma voz pela fresta da porta. - Acredito que é sua forma de usar esse atributo que o desonra.
Grayson afastou o ombro da porta para que Jane pudesse abri-la e sair ao corredor. Caroline e Miranda ficaram imóveis pelo sentimento de culpa quando ela as enfrentou, Caroline se apressou a dizer:
- Estávamos...
- Já ouvi o que estavam dizendo - disse Jane - mas não houve já muitos problemas por um dia?
- Para toda uma vida, diria eu - acrescentou Grayson, assentindo.
Jane o olhou aborrecida. Por desgraça, suas irmãs tinham seu ponto de razão. A virilidade desse homem aniquilava uma mulher normal. Por sorte, ela controlava muito bem seus impulsos. Ao menos até a uns minutos.
- Se já acabaram de solucionar os problemas de sua senhoria, acho que me retirarei a meu quarto para tirar uma agradável sesta - disse.
- Necessita de ajuda? - perguntou Grayson, com a voz muito suave.
Jane o olhou séria. Já estava outra vez. Não podia evitá-lo. O
próprio ar que respirava emanava sedução.
- Só me abandonaram, milorde. Não me feriram mortalmente.
- Ai, Jane - disse Miranda, com os olhos cheios de lágrimas. -
Quanto deve lhe doer isto. É muito valente.
Valente e misteriosa, disse a si mesmo em silencio Grayson, com o corpo excitado ao recordar o beijo e a reação desconcertantemente enigmática dela. Não deveria ser difícil ajudá-la a esquecer o canalha do Nigel se este não retornasse. Quanto antes melhor. A aflição por um amor não correspondido só a faria menos atraente para outro possível marido.
- Jane - disse, solenemente, inclinando a cabeça. - Deixo-a, então, para que se recupere da terrível experiência de hoje.
Ela exalou um suspiro. O desastre do casamento não a tinha aniquilado nem a metade do que a tinha aniquilado ele.
- Obrigada - murmurou. - É excessivamente amável. E
excessivamente
encantador.
E
excessivamente
sedutor.
E
excessivamente bonito. E...
- Descanse - disse ele, em tom ditatorial. - Os resultados de nosso plano valerão a pena, mas vou ser um acompanhante exigente.
Imaginar o que poderia lhe exigir lhe acelerou o pulso.
- Ainda não aceitei, milorde - disse, bastante revoltada, quando lhe deu as costas para partir.
Ele olhou para trás, piscando os olhos; um homem tão seguro de si mesmo que era uma façanha ofendê-lo.
- Dá a impressão de ser uma mulher inteligente. Aceitará.
- Poderia se surpreender - resmungou ela.
- Sempre estou disposto a aceitar um desafio - respondeu ele.
Ela dilatou os olhos.
- Acredito que não entendo o que quer dizer.
Ele soltou uma risada diabólica.
- Contribuir para restabelecer a reputação de uma mulher será uma experiência totalmente nova para um homem Boscastle.
E tão logo fez essa surpreendente confissão, pôs-se a andar, deixando Jane e suas irmãs pensando que tipo de desafio esperava ele
desse galanteio. Deixou-as olhando-o com horrorizada admiração, e o poder de sua presença ficou flutuando no silêncio.
***
Já era bem passada a meia-noite quando Jane molhou a pena no tinteiro para escrever uma furtiva carta em sua escrivaninha à luz de uma só vela.
Meu querido N:
Suponho que já é o momento apropriado para felicitar a você e a sua flamejante esposa. Nosso "casamento" foi, ou não foi, tal como o esperávamos além de que se apresentou um pequeno obstáculo em nosso plano.
Chama-se Sedgecroft.
Preciso dizer mais?
Não se preocupe por mim. Saberei arrumar-me com ele.
- Ao menos espero isso - resmungou, deixando cair a pena, agitada.
Levantou-se e começou a passear pelo tapete Axminster, com seus olhos verdes escurecidos pela preocupação. O som da bainha de seu penhoar ao roçar o tapete era a única coisa que perturbava o silêncio do quarto iluminado por uma só vela.
Não era uma choramingona. Tinha participado desse plano com o ânimo bem disposto, mas achava um pouco injusto ter sido ela a ficar e enfrentar as consequências do frustrado casamento enquanto Nigel estava longe desfrutando da sorte conjugal com sua mulher.
As consequências, na forma de um pasmoso exemplar de beleza masculina, o marquês, pareciam-lhe um destino mais terrível que o que tinha desejado evitar.
O que se podia fazer para frustrar Sedgecroft adiantando-se a ele?
Aparentemente, isso era impossível. Ao menos sem pagar um preço. Só o sorriso desse homem tinha o efeito de um disparo nas sensibilidades de uma mulher. Debaixo de sua fachada cortês pulsava o
coração de um conquistador consumado. De todas as moças aflitas que poderia ter escolhido para defender, por que a escolheu a ela? Se queria expiar suas maldades, por que não se dedicava a resgatar órfãos ou construía um hospital? Por culpa de Nigel, logicamente.
- Jane? - sussurrou uma voz atrás dela.
Virou-se no meio do tapete e viu Caroline na porta. Quase imaginou que Sedgecroft se materializaria, saído de seus pensamentos.
- Que susto me deu - sussurrou.
Caroline fechou silenciosamente a porta.
- Sabia que não poderia dormir esta noite. Estava preocupada com você.
Jane se lembrou de mudar sua expressão para pôr a máscara de abatimento, ferida de amor, que tinha levado todo o dia.
- Tenho muitas coisas na cabeça. Com Nigel compartilhávamos muitas lembranças.
- Entre outras coisas.
Jane se endireitou alarmada ao ver que Caroline se aproximava da escrivaninha.
- O que quer dizer?
- Tinham segredos, não é verdade?
- Bom, uns poucos. - Correu a resgatar a reveladora carta das mãos de sua irmã. - Iria queimar essa.
Caroline levantou lentamente a cabeça e a olhou, seus olhos brilhantes de compreensão.
- É uma carta para o Nigel, não é?
- Sim, mais não deve se inquietar por mim - respondeu, arrojando a carta sobre as brasas da lareira. Já não havia intimidade nessa casa. -
Meu coração sarará a seu devido tempo.
- Eu diria que tem uma extraordinária capacidade de recuperação -
disse Caroline, sarcástica.
Jane levantou os olhos da carta que já ardia consumida pelas chamas.
- Conhece-me. Nunca fui boa em demonstrar minha aflição.
- Chorou um mês inteiro quando morreu seu spaniel.
- Bom, era um cão. Isto é por Nigel. Uma dama não exibe seus sentimentos em público.
Os olhos castanhos dourados de Caroline a perfuraram.
- Eu não sou público. Sou eu, Jane.
- Prefiro guardar a pena para mim se não se importar.
Caroline lhe deu uns golpes no braço com as pontas dos dedos.
- Vomita a sopa.
- Sopa? O que...?
- Vi a carta. Mencionava Sedgecroft, ao que conheceu hoje.
Portanto, era uma carta atual.
- Que não pensava enviar - disse Jane, com a voz aguda e nada convincente.
- Mentirosa.
Caroline olhou ao redor, desconfiada. Sobre a cômoda cama de quatro postes de Jane havia um prato com frutas, além de uma pilha de revistas para mulheres e algumas novelas.
- Quanto tempo pensa representar à heroína trágica? - perguntou-lhe em tom malicioso.
Jane pestanejou, horrorizada, embora na realidade bastante aliviada também por ter a alguém em quem confiar. Nunca em sua vida tinha sido capaz de ocultar um segredo a suas irmãs. Elas a acossavam com sua incessante curiosidade e intromissão, sempre bisbilhotando onde não deviam. Era um milagre que tivesse conseguido lhes ocultar a verdade todo esse tempo.
- Fiz isso por nós - disse depressa. - Fiz para que nenhuma de nós tivesse que aceitar outro matrimônio arrumado.
- Você... - Caroline arregalou os olhos admirada. - Foi um complô!
Céus, caramba. Sabia. Sabia que você e Nigel planejavam algo durante essas conversas tão secretas.
Miranda achava que estavam... bom, o que importa no que acreditasse. É evidente que estava equivocada.
Jane se sentou na cama, esgotada emocionalmente.
- Foi um complô, de acordo, e tudo poderia ter resultado às mil maravilhas se esse descarado de Sedgecroft não tivesse sofrido uma mudança oceânica em sua moralidade e decidido ser um exemplo para sua família.
Caroline a olhou preocupada, aparentemente muito bem disposta a participar da conspiração.
- O que vai fazer?
- O que posso fazer? Não posso lhe dizer a verdade. Ficaria furioso.
Eu não poderia voltar a me mostrar em público nunca mais.
- Suponho que o único que se pode fazer é lhe seguir o jogo até que ele se convença de que conseguiu o que quer. Não pode durar eternamente. Dizem que uma certa francesa chamada Helene Renard será sua próxima conquista.
- É provável que tenha uma coleção de conquistas - disse Jane, movendo a cabeça desgostosa. - Não vou sobreviver.
- Vamos, Jane, não é tão ruim.
- Não. É muito bom. Como descarado, quero dizer.
- Tem uma vontade tremendamente forte, mais forte que qualquer mulher que conheço, bom, talvez depois de mim - disse Caroline, com a testa enrugada. - Nunca soube que tenha caído na tentação, desde essa vez que montou o garanhão de nosso pai.
- A tentação nunca... bom, nunca me tentou antes.
Caroline pestanejou, e finalmente pareceu horrorizada por essa revelação.
- Sedgecroft a provoca?
- Não, claro que não - se apressou a responder, mas tão rápido que não convenceu a nenhuma das duas. - mais não importaria se me tentasse. Sacrifiquei minha reputação para conseguir minha liberdade.
Não vou jogá-la ao vento pelos beijos de um malandro.
Mesmo que seus beijos sejam muito eróticos e a atormentassem o resto de sua vida.
- Beijou-a?
- Pois claro que me beijou. Não pode evitar.
- E você?
- Eu não pude evitar tampouco - respondeu Jane tristemente, cobrindo o rosto com as duas mãos como se assim pudesse apagar a lembrança.
- Ai, Deus. Suponho que você não gostou.
- Pois sim, eu gostei - disse Jane, descendo as mãos e suspirando.
- Bom - disse Caroline, passado um longo silencio. - Suponho que tem razão. Sedgecroft não parece ser o tipo de homem que se interessa por uma mulher eternamente. Quero dizer, em uma mulher que não...
- Sim, acredito que sei o que quer dizer. Não sou o tipo de mulher que mantenha seu interesse.
- Isso não significa que não possa se converter em uma mulher dessas - disse Caroline, esforçando-se por ser útil.
- Converter-me em uma mulher dessas não é o que me propunha quando urdi este enredo - disse Jane, voltando a suspirar.
- O que pensaria Nigel de tudo isto? - perguntou Caroline, pensando em voz alta. - Sedgecroft é seu primo.
- Duvido que Nigel esteja pensando muito neste momento - disse Jane, secamente. - Está feliz desfrutando sua lua de mel.
- Sua lua de mel? - exclamou Caroline assombrada.
- Com Esther Chasteberry.
- Sua preceptora? - exclamou Caroline erguendo a voz. - A robusta, casta e castigadora senhorita Chasteberry? A antipática com a varinha?
- Robusta continua sendo, segundo Nigel. Casta parece que já não.
- Bom - exclamou Caroline desabando na cama ao lado de Jane. -
Quem teria imaginado?
- Amam-se - disse Jane sorrindo. - É bastante comovedor, na realidade, ouvi-lo falar dela.
- Bom, tudo isso está muito bem para Nigel, mas e você? -
perguntou Caroline, muito leal, com os olhos preocupados. - Como vai consertar isso na sociedade?
- Não se preocupe com a sociedade - disse Jane, veemente. - Como vou consertar isso com Sedgecroft? Ouviu o que disse? Prometeu ser um acompanhante exigente. Tem uma ideia do que significa isso?
Caroline fechou os olhos, fascinada.
- Por minha cabeça passam todo tipo de ideias indecentes. O que vai fazer com ele?
Jane se estendeu de costas na cama, com o rosto preocupado.
- Inclusive não urdi essa parte - sussurrou.
Capítulo 6
Na manhã seguinte, como Sedgecroft não foi visitá-la, Jane se atreveu a ter esperança de que ele tivesse reconsiderado seu oferecimento. Talvez já tivesse se esquecido dela, arrastado por seus assuntos. Afinal, ele mesmo tinha reconhecido que em seu comportamento se deixava levar por seus impulsos. Uma boa noite de sono poderia ter devolvido a sensatez a sua arrogante cabeça.
E uma boa noite de sono poderia ter feito muitíssimo bem a ela também, se não a tivesse despertado um sonho muito nítido. Nesse sonho ela estava descansando no sofá da galeria quando uma das estátuas tomou vida e se inclinou sobre ela, totalmente nua da cabeça aos pés. Era Sedgecroft.
"Vista-se para mim com algo atrevido", sussurrou-lhe, com seus firmes lábios apenas a uns dedos dos seus.
Ela tentou sentar-se, com o rosto aceso de indignação e curiosidade.
"Você poderia vestir algo. Está nu!"
"Sim? Alegra-me que tenha notado..."
Não soube que mais disse, porque já tinha jogado seus braços no pescoço e atraído seu corpo nu sobre o seu, absorvendo seu calor e peso com todas as fibras de seu ser.
Logicamente, depois de despertar desse sonho não conseguiu dormir. Cada vez que fechava os olhos via o descarado nu inclinado sobre ela, seus sedutores olhos azuis, seu peito e seu ventre todo ondulante de músculos. Um malandro imaginário que atormentava seus sonhos.
Agitando a cabeça para tirar essa perturbadora imagem, levantou-se e não se incomodou em chamar sua empregada. Depois de assear-se levando todo o tempo do mundo, foi ao roupeiro olhar seus vestidos.
Finalmente se decidiu por um muito recatado de seda cinza com botões de ônix nas mangas e a blusa coberta por babados franzidos. Tinha que parecer abatida algumas semanas pelo menos. De repente lhe chamou a atenção um charmoso e vaporoso vestido de tule rosa com finas fitas sob a cintura. Tirou-o e imediatamente ficou imóvel, sentindo subir o rubor às faces.
Por sua mente passou um rosto magro de cinzeladas feições e uns sedutores olhos azuis. Não, por favor, outra vez não, pensou aterrada.
Os brancos dentes relampejavam atrás de seu sorriso lupino. Olhou dentro do roupeiro, quase esperando que aparecesse.
"Vista-se para mim com algo atrevido."
Sacudiu-se para tirar essa ideia da cabeça e pegou o insípido vestido cinza. E de repente percebeu que a casa estava tão silenciosa
como uma tumba. Não, isso não estava bem, não era o normal.
Uma vez vestida saiu e desceu a escada sorrindo alegremente aos criados que estavam no vestíbulo de ladrilhos de mármore, até que seus tristes suspiros e penalizadas expressões lhe recordaram que uma noiva abandonada não vai saltando pela casa como se fosse um petardo.
Diminuiu o passo, desceu a cabeça e pensou no cão que tinha morrido, com a intenção de parecer aflita.
- Onde estão todos, Bate? - perguntou ao alto e sério mordomo que estava fiscalizando a limpeza dos adornos de bronze do vestíbulo.
- Suas irmãs estão em suas aulas no pavilhão do verão - respondeu ele gravemente. - Sua senhoria tinha uma reunião em Saint James Street. Lady Belshire está trabalhando no jardim como gosta de fazer.
- Obrigada, Bate - disse ela, virando-se sobre os calcanhares.
- Em nome do pessoal, lady Jane - disse ele a suas costas, em tom solene, como se estivesse recitando uma elegia - quero expressar minha mais profunda compaixão por sua perda.
Ela parou, tentando ignorar o estremecimento de culpa que lhe desceu pelas costas.
- Obrigada, Bate, muito amável.
Desnecessário, mas amável de todo modo.
- O mesmo digo eu, lady Jane - acrescentou a diminuta mulher grisalha que estava no outro extremo do vestíbulo.
Jane se virou, tensa, e sorriu à governanta baixa, que estava limpando as lágrimas com a fita do avental. Ai, Deus, essa era uma vergonha que não tinha previsto.
- Anime-se, senhora Bee. Somos os Belshire.
- Sim, efetivamente, milady - disse a senhora Bee, sorvendo pelo nariz.
Com seu bom humor bastante minguado, deu meia volta e continuou seu caminho até sair ao exuberante jardim todo verde pelo excesso de
más ervas e se encontrou com sua mãe, que com seu chapéu de palha e um vestido de cor verde mar estava cortando as más ervas no meio de um muro de tremoceiros com umas tesouras de costura. Encontrava bastante consolo nessa conhecida cena doméstica. A vida no jardim tendia a continuar apesar das complicações do mundo exterior.
- Olá, minha pobrezinha - saudou-a lady Belshire, lhe escrutinando o rosto em busca de algum sinal de que tinha o coração partido. Pôde dormir algo? Adverti a todos que guardassem o maior silêncio possível.
- Dormi...
Interrompeu-se, ao recordar o sonho que a despertou. Consternada comprovou que a imagem cheia de vida do marquês nu já começava a ficar imprecisa. Com certeza nunca voltaria a ser capaz de admirar uma estátua romana, mas se não conseguia recordar a Sedgecroft despido tampouco poderia excitar-se de tanto em tanto.
- Querida, sente-se mau?
Jane pestanejou, observando que sua mãe estava agitando um caule de tremoceiro diante de seus olhos.
- Estou muito bem. Isto... Sedgecroft enviou algum recado por acaso? Quer dizer, não é que eu queira que...
Lady Belshire exalou um suspiro.
- Não pôde vir esta manhã, Jane. Espero que isso não seja outra decepção para você, embora depois do ocorrido ontem imagino que não há muitas coisas que possam mais machucar seu sofredor coração.
Sedgecroft foi retido por um assunto familiar. Enviou uma mensagem dizendo que...
- Não tem importância, mamãe. Na realidade não esperava que cumprisse sua palavra. É provável que já esteja arrependido de ter feito seu oferecimento, e de maneira nenhuma quero que o cumpra.
Correndo deu a volta ao banco de pedra, enjoada de alívio. Uma pausa. Uma oportunidade de recuperar o equilíbrio. Claro que
Sedgecroft não viria. O que poderia querer ele com a insípida lady Jane abandonada? Embora durante uns minutos a tinha feito sentir-se mais desejável do que jamais sonhou possível. Bom, isso demonstrava que tinha razão com respeito a ele.
- Minhas irmãs continuam na aula com madame Dumas? -
perguntou, afastando-se.
- Sim, mas... - Lady Belshire olhou consternada para sua filha que se afastava correndo. - Bom Deus, Jane, nem sequer terminei de lhe dizer a mensagem.
***
Jane freou a tempo para não entrar correndo no pavilhão do verão para dar a boa notícia à Caroline. Caroline e Miranda estavam lendo em voz alta o Tartuffe de Moer, com sua horrorosa pronúncia francesa, enquanto madame Dumas escutava, beliscando o nariz com seus fracos dedos, como se estivesse sofrendo horrorosamente.
- Posso interromper? - perguntou Jane, divertida.
Madame Dumas estremeceu e fechou o livro.
- Sim, é claro, por favor. Suas irmãs estão assassinando minha língua materna.
Miranda se levantou e foi abraçar meigamente Jane.
- Caroline me contou tudo - lhe disse em voz baixa. - Estou a arrebentar de admiração - acrescentou passado um instante. - Ui, Jane, o que fez?
- Até aí chegou o de guardar um segredo - comentou Jane, levando suas duas irmãs à curta escadaria para sair à luz do sol. - Proíbo-as de dizer a alguém mais.
- Nem a uma só alma - prometeram as duas, muito sérias.
- E espero que não falem de mim diante de madame Dumas. Já me considera uma causa perdida porque preferi estudar italiano em lugar de francês, em protesto por todos os amigos que morreram na guerra.
Caroline afugentou uma mariposa que posou sobre seus abundantes cabelos mogno dourado.
- Ouvi Dumas dizer à senhora Bee que poderia ter que te casar com um francês, posto que é improvável que algum aristocrata inglês queira casar-se com você.
Antes que Jane pudesse responder a esse comentário, chegou até elas lady Belshire, sem fôlego pela pressa de correr pelo jardim.
- Chegou! - exclamou, e, com uma brusquidão muito atípica nela, pegou Jane pelo braço e a afastou de suas irmãs. - E nem sequer está bem vestida.
- Bem, para que? - perguntou Jane, desconcertada, olhando ao redor.
Além dos dois jardineiros que estavam podando os álamos, não havia ninguém à vista, nem nenhum motivo para que sua mãe estivesse tão agitada. E isso lhe produziu outra dessas terríveis sensações de premonição.
- Quem chegou, mamãe?
- Sedgecroft, quem, se não ele? - Ao ver a espantada expressão de sua filha, lady Belshire levou a mão ao coração. - Ai, querida, acreditou que me referia a Nigel, não é verdade? Que descuidada sou. Que absolutamente estúpida. É evidente que continua com a esperança de que esse patife se apresente com alguma explicação compreensível de sua abominável crueldade.
Jane olhou para sua mãe, dominando o infantil desejo de lhe arrancar chapéu de palha adornado com fitas, atirando-o no chão e saltando em cima pisoteando-o.
- Sabe que reputação tem Sedgecroft, mamãe. Não teme, embora seja um pouco, que me manche?
- Não seja idiota - respondeu lady Belshire, agachando-se para arrancar uma má erva que crescia entre as lajes. - Todas minhas filhas
estão acima da tentação. Seu irmão, pelo contrário, é outra história. Há um momento tentei dizer-lhe que Sedgecroft não pôde vir esta manhã porque estava retido por um assunto familiar. Disse que viria mais tarde.
- Esta tarde?
- Agora, Jane - exclamou sua mãe, exasperada. - Era sua carruagem que passou pela rua.
- Que carruagem?
- Já não tem importância - sussurrou sua mãe a toda pressa e, agarrando-a pelos ombros, virou-a para a casa. - Já está aqui e, ui, olhe o que vestido pôs.
Jane olhou para a enorme figura que vinha avançando pela grama, com os duros planos de seu rosto iluminados pelo sol. A jaqueta azul marinho de manhã e calça bege, de cara confecção, realçavam sua elegante masculinidade. E não era que necessitasse de algum realce nesse aspecto. Podia estar totalmente nu e de todo modos ai, não, por favor, essa imagem outra vez. E justo quando tinha que olhá-lo no rosto.
Ele diminuiu o passo e lhe dirigiu um sorriso sensual que lhe fez passar vibrações de terror por todo o organismo. Toda essa virilidade, a plena luz do dia; cativava a uma mulher como envolvendo-a em um furacão. Quando começava a recuperar-se, seu primeiro impulso foi esconder-se covardemente atrás da sebe de arbustos.
Mas como era bem educada, manteve-se bravamente firme onde estava, e ele reatou a marcha.
- Ah, está aqui - disse ele, lhe pegando as duas mãos sem a menor vacilação. - Temi que tivesse se escondido. Não podemos permitir isso.
E isso era exatamente o que tinha desejado fazer ela. Começou a sentir formigamento nos dedos com a pressão das mãos dele. Fez vários esforços sutis de livrar-se da pressão. Ele nem o notou. Sobressaltada, olhou para sua mãe e suas irmãs, que, de modo nada convincente, simulavam que não estavam observando cada movimento dele.
- Me escute, Sedgecroft - disse em voz baixa, resolvida a fazer entrar em razão esse cabeçudo.
- Escuto-a.
Ai, esses olhos, tão intensos, tão vivos, tão convidativos. Que importava que fosse o homem mais arrogante do mundo? Sua alegria era contagiosa.
- Pensei em seu generoso oferecimento, por assim dizer, para recuperar a aceitação social.
Ele sorriu de orelha a orelha, lhe dando a impressão de que deveria sentir-se adulada por essa oferta sua.
- Estupendo - disse, fazendo um elegante gesto, como se com isso ficasse tudo dito.
- E decidi...
Enredaram-lhe os pensamentos e esqueceu o que iria dizer por que passou sua enorme mão pela cintura e começou a levá-la para a porta de madeira oculta na parede de tijolos. Sentiu nas costas o delicioso apoio de seu corpo duro como a pedra.
- Acredito que por aqui podemos sair à rua, não é? - disse ele, e continuou sem lhe dar a possibilidade de responder: - Minha carruagem está estacionada aí. Havia tal congestionamento no tráfego que me custou chegar aqui, entre vacas e vendedores ambulantes.
- Acho que terei de declinar - disse ela, quase gritando, já presa pelo terror.
Ele continuou levando-a por entre os álamos, e repentinamente olhou para cima, aos dois jardineiros que acabavam de deixar imóveis as bordadeiras. Seu cenho ligeiramente franzido os fez reatar o trabalho imediatamente. Era um homem a quem os outros obedeciam instintivamente.
- Podemos falar disso no caminho - disse. - Em privado.
A seu pesar, ela o olhou com respeito e temor em partes iguais,
pensando como pode um ser humano andar pelo mundo com essa inesgotável arrogância.
- Sedgecroft, não estou preparada para me expor ao público.
- Tolices. - parou para examiná-la em todo detalhe. - Está muito bem para levá-la a um passeio pela tarde, embora tenha de reconhecer...
Interrompeu-se.
- Reconhecer o que?
- Não tem importância. - Olhou para trás, pensativo, às três mulheres que os seguiam a uma discreta distância. - Suponho que não importa - murmurou, encolhendo os ombros. - Já é tarde para fazer outra coisa.
Ela afundou os saltos de seus sapatos de seda. Tinha-lhe picado a vaidade feminina com sua insinuação de que algo não estava bem em sua aparência. Deveria lhe dizer como aparecia ele em seu sonho nessa noite passada.
- Importa - disse com voz firme. - Ao menos sei que me importaria se tivesse a amabilidade de me explicar o que o desagrada em minha aparência.
Ele golpeou com os dedos um lado de seu queixo com covinha, pensativo. Olhou-a nos olhos um momento.
- É só que... não, não quero ofendê-la, não, depois do ocorrido ontem.
Ela arqueou as sobrancelhas e estreitou seus olhos verdes.
- Me ofender.
- Bom, é esta sua ideia de um vestido atrevido? - perguntou-lhe em voz baixa, e como se sentisse vergonha dela.
Aaahh.
- O que tem de mau meu vestido? - perguntou, desejando ser indiferente ao que pensava ele.
- Não mostra nada. Nada além de babados franzidos e... é cinza.
Todos esses franzidos no peitilho... - Fez um gesto e apontou o peito, remedando-a, e horrorizando-a. - Traz à mente a imagem de uma pomba. Uma pomba atraente - se apressou a acrescentar ao ver o olhar dela.
Ela apertou os dentes.
- Foi feito para não mostrar nada, Sedgecroft.
- E isso por quê? - perguntou o demônio.
Ela cruzou os braços, cobrindo os seios com babados franzidos.
- Não sou uma de suas mulheres de duvidosa reputação.
Ele pigarreou, era evidente que estava desfrutando muito.
- Certamente não o é.
Por que esse comentário lhe soava como um insulto? Pensou ela.
Uma jovem decente se sentiria orgulhosa de sua aparência de pomba.
- Acontece que este é meu vestido favorito.
- Minha avó tinha um par de cortinas exatamente dessa cor em sua sala de estar.
- Também ela recordava a uma pomba?
- Não exatamente, mas não vou desfrutar de nossa tarde se cada vez que lhe olhar me lembrar de minha avó.
- Este é um vestido recatado, Sedgecroft. Um vestido na moda.
- Talvez, se fosse octogésima. Mmm. - virou-se para olhar às damas que os seguiam. - Lady Belshire, qual é sua sincera opinião sobre este vestido?
Jane revirou os olhos. O maldito, pediu a sua mãe sua sincera opinião. Era o mesmo que pedir a uma reformadora que fizesse um discurso ante o Parlamento.
- Não tem importância, mamãe - disse, com voz glacial. - Não temos por que incomodá-la.
Mas sua mãe parecia adulada, desejosa de intervir.
- Querida, não me incomoda.
- Volte para suas flores, mamãe - murmurou Jane em voz baixa. - O
jardim precisa da senhora.
- O vestido, Athena - disse Grayson, convidando-a a aproximar-se com um preguiçoso gesto dobrando os dedos. - O que lhe parece? Nos ofereça o benefício de sua sabedoria.
Sua senhoria avançou uns passos e observou atentamente sua filha em silêncio.
- Para ser totalmente sincera, nunca gostei do cinza para as garotas, a não ser que a situação exija gravidade, é claro. O cinza, a não ser nos tons muito claros, deveriam ser usados por preceptoras e as governantas. Agora bem, o prateado...
- É isto uma conspiração? - atravessou Jane, situando-se entre eles.
- Não - disse Grayson. Guardou silêncio um momento e não pôde evitar sorrir de orelha a orelha ao ver a indignada expressão de Jane. -
Mas parece que há consenso na opinião. Acho que deveria se trocar, se tomarmos em conta que se celebrará um baile na festa a que vamos participar.
Jane agitou a cabeça, desconfiada. Tinha a clara impressão de que tinha caído em uma armadilha posta por um caçador muito esperto e muito bonito. Ao que parecia, se não quisesse provocar outra cena desagradável, era muito pouco o que poderia fazer, estando sua mãe conspirando com o demônio. Que homem mais irritante, francamente.
Que confusão.
- Baile? - Franziu os lábios. - No dia seguinte ao ter sido...? Muito bem, Sedgecroft, irei me trocar. Quer escolher o tamanho dos botões?
Examinar a costura interior de minhas luvas? Prefere alguma determinada cor, além de proibir as cores pomba?
Faiscaram-lhe de travessura os olhos, sedutores, irresistíveis.
- Prefiro o rosa, mas, logicamente, a decisão é sua.
- Não, não é - grunhiu ela, virando sobre seus calcanhares e pondo-
se a andar para a casa - porque a pura verdade é que prefiro o cinza.
***
Grayson quase lamentou sua sugestão de que se trocasse de vestido quando ela reapareceu meia hora depois. O diáfano vestido de tule rosa cobria um corpo curvilíneo que tentava a todos seus demônios adormecidos. Sabia muito bem que ela o tinha feito esperar de propósito, embora de maneira nenhuma ele se queixaria por isso.
Não poderia queixar-se, quando o resultado final lhe acendia os sentidos; quando o único que podia fazer era simplesmente respirar e dizer-se que deveria sentir-se culpado por desejá-la. Sabia muito bem que ela era vulnerável à sedução depois de ter sido tão cruelmente abandonada por seu primo. Não iria se aproveitar dela, não é?
Escureceram-lhe os olhos com franca aprovação masculina quando, cedendo a seus instintos, permitiu-se lançar um largo e ávido olhar de cima abaixo. A espera havia valido a pena. Suas curvas lhe faziam água na boca: seus seios cheios e elevados, esses quadris arredondados, e suas ágeis pernas longas e magras. Apoiado despreocupadamente na parede de tijolo, lhe oprimiu a garganta quando, ao estar ela mais perto, passou o olhar a seu rosto. Sedutor, doce, mas não enjoativo. Ela deveria ter feito em picadinho Nigel, não ele a ela.
Reconhecia secretamente que ao menos uma parte de seu plano para ajudá-la estava inspirado em algo mais que nobres intenções.
Embora, logicamente, não iria agir segundo essas vis motivações Boscastle. Mas tampouco tinha nenhum sentido enganar-se. Achava Jane atraente, achava-a fascinante de uma maneira que nem sequer conseguia compreender. Isso lhe faria mais fácil ajudá-la; inclusive acrescentava um elemento de perigo à relação entre eles.
- Isso está muitíssimo melhor - disse amavelmente.
Em sua voz não se detectou nenhum sinal que em sua imaginação acabava de despi-la e deitar-se com ela; que por um momento ela o
tinha enfeitiçado com uma inevitável atração, e que não sabia o que fazer com isso.
- Sim? - perguntou ela.
O cenho com que ela manifestava seu aborrecimento não destruiu absolutamente as imagens sensuais que desfilavam por sua mente, a visão de seus corpos unidos no prazer.
Sua reação o assustou um pouco; era um golpe emocional que quase o fez cambalear. Por sorte, fazia tempo que tinha aprendido a ocultar seus sentimentos, se não, o susto teria sido de morte.
- Nunca minto, Jane - disse, lhe oferecendo o braço.
Ela o olhou fixamente um momento e logo passou a mão pela curva de seu cotovelo.
- Pode ser que não minta, mas é dominador.
- Isso também é verdade - murmurou ele, atraindo-a para ele para abrir a porta oculta na parede.
Quando se tocaram seus corpos ela conseguiu com muita dificuldade reprimir um suspiro de prazer. Mas ao inspirar aspirou os aromas que emanavam dele, a lã e sabão da Castilla, o masculino aroma de sua pele, essa virilidade que a fazia sentir-se tão protegida e vulnerável ao mesmo tempo. Uma parte dela desejou aproximar-se mais para saciar seus sentidos. A outra parte desejou afastar-se, proteger-se desse assalto a seu juízo. O fato de que tivesse cometido um enorme pecado não significava que estivesse destinada a cair no vício do hedonismo e perdição, não é? Tinha que pensar, sopesar as coisas.
No fundo de seu ser se sentia como uma vela de cera suspensa sobre uma chama, derretendo-se ao calor que emanava dele. Levantou os olhos e os olhos dele apanharam os seus, sedutores, sem ocultar sua sensualidade. Então, com a maior despreocupação, ele levantou o fecho, abriu a porta e a guiou pelo estreito atalho de paralelepípedos que levava a rua. Ela expulsou o fôlego em um suspiro. Só Deus sabia o que
estava pensando ele e por que lhe seguia o jogo aceitando seu plano, fosse o que fosse.
Parou bruscamente, ao perceber que estava tão encantada por ele que não tinha prestado atenção ao caminho que levavam.
- O que acontece a porta principal? Achei que convinha que nos vissem.
- E convém - disse ele, arrumando a gravata branca e olhando-a com uma expressão de cumplicidade. - Mais acontece que na porta está um repórter particularmente detestável a quem provavelmente vou acabar matando algum dia. E você, querida minha, não vai servir de cordeirinho a homens de sua índole.
A ela nem tinha ocorrido ler os jornais.
- Ah. - Titubeou um momento. - É muito horrível o que dizem os jornais?
- Brutal - disse ele, com seus duros trasços ligeiramente suavizados.
- Então me nego a fazer isto.
Segurou-lhe firmemente o braço com uma mão, para impedi-la de retornar, e com a outra fez um gesto para o empregado que esperava na calçada.
- Volte, Jane.
- Volte para que? - perguntou ela, exasperada. - Solte-me, Sedgecroft, se não, vou bater em você.
- Isto o faço por seu bem - disse ele, obrigando-a a passar perto de um crescente grupo de curiosos que iam se aglomerando para ver a noiva abandonada e a seu infame acompanhante.
Golpeou seu ombro, sussurrando:
- Todos estão nos olhando.
- Então deixa de resistir - sussurrou ele, sorrindo preguiçosamente.
- Então me solte.
- Mas, meu desonrado anjinho, e se cair?
- Cair ?
- No meio-fio, no meio de todos esses feios montões de esterco de vaca e lixo.
- Suponho que esse é um risco que devo correr.
- Não em minha presença. Jamais permitiria que uma mulher que vai comigo sofresse algum dano.
- E permitiria a ela machucá-lo?
Ele piscou os olhos, encantado.
- Depende. O que tinha pensado?
- Acredito que não no que está pensando.
Ele soltou uma risada rouca e a aproximou mais a ele para lhe sussurrar:
- Sorria ante nosso público, Jane. Recorda que eu substituí Nigel em seu coração. Não ficaria bem começarmos a brigar na rua no primeiro dia que nos veem juntos.
Mesmo que ela não tivesse aceitado nada disso, não pôde evitar reagir ante essa segurança dele. Falava como se fizesse esse tipo de coisas todos os dias. Fazia com que parecesse uma maravilhosa aventura.
- Não posso acreditar que minha mãe tenha permitido que saia com você sem acompanhante - balbuciou.
- Pois, temos acompanhante - respondeu ele, levando-a para a elegante carruagem negra que parou atrás deles, com expressão satisfeita por lhe obedecer. - Seu irmão nos está esperando ali.
- Simon vai conosco?
Então ele se aproximou mais e inclinou a cabeça, e a brincalhona expressão de seus olhos se escureceu com sedutoras promessas.
Olhou-o no rosto, atordoada; sentiu subir um ardente rubor pela nuca e lhe abrandou o corpo, de pecaminosa espera.
- O que vai fazer? - murmurou.
- Não olhe agora, querida, mas esse repórter acaba de aparecer na esquina.
- Posso desmaiar?
- Depois que subir à carruagem - disse ele, aproximando mais a cabeça à dela e lhe falando em um tom tranqüilizador que lhe recordou que ele não era alheio ao escândalo. - Ah, estupendo, tomou a direção contrária. Esperemos um momento para ter certeza.
Ela sentiu sua respiração na borda do maxilar, quente, uma tortura para seus sentidos. Seus largos ombros lhe bloqueavam a vista. Em uma fração de segundo, estava ardendo, confusa, consumida pela embriagadora presença dele. Ele levantou o braço, para protegê-la e lhe roçou a pele com a boca. O contato foi breve, um toque fortuito de seus lábios na sensível curva da sua maçã do rosto. Qualquer um que estivesse olhando poderia ter suposto que simplesmente lhe sussurrou algo ao ouvido. Mas ela sentiu seu poder sensual em todos os irregulares batimentos de seu coração.
Subiu-lhe a temperatura corporal, fazendo-a formigar de prazer, de espera. Meio esperava que ele voltasse a beijá-la, aí mesmo, na rua.
- Não... Jane - disse ele e sua voz rouca a sobressaltou.
Pestanejou duas vezes.
- O que acontece?
- Suba à carruagem - lhe ordenou, rindo. - Acredito que está chamando a atenção.
- Eu estou chamando a atenção?
Ele a olhou nos olhos, sorrindo.
- Sim. Acredito que convém que suba à carruagem.
Ela sacudiu a cabeça, para romper o feitiço.
- A carruagem.
Ele parecia divertido.
- Passa-se algo?
- Bom, é que por um momento pensei... achei...
Ele simulou estar horrorizado.
- Não me diga que acreditou que iria beijá-la aqui, aqui, diante de sua casa?
Ela fez uma brusca inspiração, humilhada por sua perspicácia.
- Nunca acredi...
- É uma dama, Jane - interrompeu, lhe roçando o queixo com um dedo enluvado - e quero restabelecer seu bom nome. Mas se de verdade quer que a beije, estarei encantado de satisfazê-la dentro da carruagem.
Que ele estivesse zombando não lhe diminuiu em nada o estremecimento de prazer que lhe produziu seu contato por todo o corpo.
- Acredito que não será necessário.
- Uma lástima - murmurou ele, penalizado.
- Vamos, você é a lástima - replicou ela, recuperada por fim sua serenidade. - Por que me olham assim essas pessoas da calçada de frente?
Ele fez um gesto ao empregado, dobrando o dedo.
- Não sei. Talvez desejam poder beijá-la também.
Abafou uma exclamação de surpresa quando sentiu sua enorme e impertinente mão lhe empurrando o traseiro para que pusesse um pé no degrau. Sobressaltada, não pôde reagir e olhou aos empregados que a flanqueavam
como
duas
estátuas
de
pedra,
aparentemente
acostumados às maldades de seu amo.
- Ninguém me beijou em público nunca - sussurrou por cima do ombro, resolvida a deixar as coisas claras. - E não desejava que o fizesse.
- Bom, se mudar de opinião...
Ela teve que esmagar o espantoso desejo de rir.
- Se Simon ouvir esta conversa, vai repreendê-lo.
O brilho diabólico que viu cintilar em seus olhos azuis deveria havê-
la advertido. Quando entrou na espaçosa carruagem, viu consternada o corpo inerte deitado no assento de frente. Grande vigilante. Seu irmão estava dormindo os excessos da noite passada, absolutamente ignorante de seu problema; parecia estar morto para o mundo, além de algum ou outro ronco que saíam dele como de um javali.
- Isto não é um acompanhante - exclamou - isto é um cadáver.
Grayson lhe deu um suave empurrão para que se sentasse, e sorriu levemente.
- Vai bem para nosso propósito.
***
Grayson a observou divertido enquanto ela tentava sentar-se a um lado do corpo escarranchado de seu irmão. Passado um momento, ao compreender que isso era impossível, ela renunciou, sentando-se ao lado dele, resignada a contra gosto. Ele começava a sentir-se desequilibrado e não conseguia discernir por que.
Tinha desfrutado de sua justa cota de mulheres bonitas e nunca se havia sentido tão desassossegado em companhia delas. Talvez estivesse desequilibrado porque lhe era desconhecido o papel de cavaleiro branco. Ou talvez se devesse a que era a primeira vez em sua vida que tinha que meditar cada passo que dava. E isso o levava de volta ao assunto de Jane. O que deveria fazer, sabendo que ela o achava atraente? Simular que isso não o adulava? Esmagar todos seus conhecidos instintos masculinos?
Sim, teria que vigiar seus passos. Não só para não alertar à opinião pública. Deus sabia que muitas vezes tinha sido tema de fofocas. Faria muito bem se enganasse os traficantes de intrigas e escândalos. Os falatórios maus intencionados tinham feito mal a sua família mais de uma
vez. Que o pendurassem se permitisse que Jane sofresse mais indignidades do que já tinha sofrido.
Jane o roçou ao mover-se e a sensação o levou imediatamente ao terreno físico. Por muito decidido que estivesse em sua conspiração para ajudá-la, suspeitava que sua aspiração ao cavalheirismo não duraria eternamente.
Seguir o ensolarado caminho da respeitabilidade não lhe era natural.
Dançar na escuridão era outra história muito diferente.
Jane tinha razão. Tinha desejado beijá-la na rua, mas duvidava que ela pudesse chegar a imaginar muito além de um beijo que desejava chegar.
Capítulo 7
Um momento depois, quando a carruagem já ia estralando pela rua, Jane disse:
- Decidi uma coisa.
- O que, Jane? - perguntou ele, amavelmente.
- Vou fingir que a conversa na rua não ocorreu nunca. - Limpou a garganta. - Nem tampouco esse incidente entre nós na galeria vermelha ontem.
Ele pegou o jornal que tinha ficado metido entre eles, tirando-o de baixo do traseiro dela.
- Como quiser. - Por seu rosto passou um indício de sorriso. - Se puder.
Ela juntou recatadamente as mãos na saia.
- Já está esquecido.
Ele deixou o jornal de lado, claramente descontente de deixar em paz o assunto.
- Quer que lhe refresque a memória?
- Talvez devesse primeiro refrescar suas maneiras.
Acabava de decidir como tratá-lo. Enfrentar assuntos difíceis não
arrepiava as penas de um cisne Welsham muito tempo. Esta filha de um conde se dava tão naturalmente com o autodomínio como a paquera a Sedgecroft. Essa situação exigia simplesmente que ela combatesse sua masculinidade com etiqueta.
- Assim, milorde. Parece bem descansado esta manhã. Suponho que passou uma noite aprazível?
Ficou em silêncio. De repente lhe ocorreu que ele poderia aproveitar sua pergunta para lhe explicar suas atividades noturnas com todos seus sedutores detalhes. Preparou-se para ouvir uma recitação de maliciosas aventuras.
Ele a olhou, e o brilho que viu em seus olhos a fez reter o fôlego.
- Me deixe pensar. Umas horas depois de sair de sua casa surpreendi Chloe saindo furtivamente com as damas de sua sociedade de reforma social. Virtualmente me atacaram quando me neguei a lhe dar permissão para sair a desaconselhável missão que tinha pensado.
Tive que prendê-la com chave em seu quarto.
- Mmm, essa me parece uma atividade muito perigosa para a noite -
concordou Jane.
- Isso só foi o começo. Depois tive que percorrer Vauxhall Gardens de cabo a rabo em busca de meu irmão.
- Que irmão seria esse? - perguntou ela, visualizando o grupo de malandros bonitos de olhos azuis que tinha visto no dia anterior na capela.
- Procurava Drake, que andava procurando um par de botas para comprar para um duelo que tinha esta manhã.
- Bateu-se em duelo hoje? - perguntou ela, alarmada.
- Por sorte não - respondeu ele, sorrindo tristemente. - Seu adversário apresentou uma desculpa pública uns minutos antes de ter lugar o duelo.
- Santo céu, Sedgecroft.
Ele jogou atrás a cabeça e seu cabelo loiro lhe roçou o pescoço da camisa.
- Não teve nada de noite descansada. A responsabilidade suporta um preço.
Também o engano, pensou ela, sentindo uma pontada de inquietação, enquanto ele se acomodava no assento, deixando o joelho pressionando o dela. Seu potente corpo lhe intensificou a consciência de como era precária a relação entre eles. Pensou em quão diferente era de seu primo Nigel, e por que não pôde havê-lo conhecido primeiro. Embora claro, ele nem teria se fixado nela tendo uma amante em cada braço; nem ela teria feito nenhum esforço para atrair sua atenção.
Olhou pela janela, pensando nos estranhos caprichos do destino.
A carruagem parou, entupida no congestionado tráfego da primeira hora da tarde: carretas puxadas por bois, diligências, transeuntes cruzando de uma calçada a outra, varredores tirando o esterco dos animais do meio-fio. Ficou preso o ar na garganta quando Sedgecroft se levantou, pegou-lhe o braço e a pôs em pé.
Ela olhou desesperada para seu irmão adormecido.
- Simon, desperta imediatamente, horror de acompanhante.
Simon emitiu um grunhido parecido ao de um porco e se voltou para o outro lado.
- Aonde me vai levar, Sedgecroft? Há pessoas lá fora, olhando sua carruagem.
- Sei - disse ele, com a maior tranquilidade. - Esses que estão na esquina são um de meus banqueiros e sua mulher. Acontece que a mulher é uma fofoqueira de dar medo.
- O que devo fazer?
Ele a ajudou a descer à calçada.
- Desfrutar - disse, e acrescentou em voz baixa: - Deixe que a mime.
Para começar, deixe de franzir o cenho como um mocho. Finja que está
encantada.
- Encantada? Pelo que?
- Por nosso florescente romance, querida.
Chamou com um gesto a um par de floristas que estavam na esquina e jogou um punhado de moedas em seus cestos. As duas mulheres idosas, com seus rostos emoldurados por chapéus de palha, ruborizaram-se e lhe agradeceram, chamando-o por seu nome. Antes que Jane pudesse lhe perguntar algo, encontrou-se afogada por um montão de ramalhetes de flores, dadas de presente ao que a menina que havia nela não pôde deixar de reagir.
Mordeu o lábio e repentinamente sentiu molhadas as mãos dentro das luvas. A mulher do banqueiro a reconheceu, claro. Notou como o olhar da mulher posava nela, escandalizada ao reconhecê-la. Ui, que vergonha; como se não tivesse bastado o ocorrido no dia anterior.
Embora fosse agradável ser mimada em público.
- O que vão pensar todos? - sussurrou.
- Provavelmente que estou apaixonado por você - respondeu ele, imperturbável.
- Por quê? - perguntou ela, sem querer curiosa ante essa ideia.
- Bom, é bonita e doce.
- Pois não. Sou bastante comum e antipática.
Ele riu.
- Bom, então, é modesta.
- E toda Londres vai acreditar que me compra flores para honrar minha extraordinária modéstia?
O preguiçoso e sedutor sorriso que lhe lançou lhe produziu estremecimentos.
- Todos vão pensar que há algo mais entre nós.
- Algo...
- Um cortejo sério - disse ele, encolhendo um ombro.
- Ah, vamos, Sedgecroft. Ninguém acreditaria que você... que eu...
bom.
- Por que não? - perguntou-lhe ele, tão sério que ela quase se derreteu.
Pôs-lhe a mão sob o queixo e a ela lhe acelerou o coração esperando. Bem podia não ter toda a experiência prática que tinha ele, mas não lhe era difícil imaginar uma mulher desejando secretamente que a cortejasse esse homem. E todo o prazer e angústias que entranharia isso.
- Sedgecroft, tolo, tem meu rosto agarrado.
- Estou esperando que me agradeça.
- Ah, obrigada.
- Isso não é muito convincente.
- Não?
Ele negou com a cabeça.
- Procure fazê-lo com algo mais de entusiasmo. Por casualidade sou um pretendente generoso. Estas flores só são um prelúdio das pérolas que lhe deixarão esta noite. Convém que a aristocracia comente isso.
Pérolas, e o que viria depois? Pensou ela. Surpreendeu a si mesma ficando nas pontas dos pés e lhe dando um rápido beijo na face.
- Obrigada - sussurrou.
Ruborizou-se até a raiz do cabelo com o contato de sua cálida e firme pele. Que demônios acabava de fazer? Beijá-lo depois do alvoroço que tinha armado só uns minutos antes.
Seus olhos faiscaram, olhando-a.
- Isso foi muito agradável, Jane, mas, não sei, faltou-lhe entusiasmo.
Sorriu-lhe artificiosamente e apertou os ramalhetes contra o peito.
- Ooh! Oh, Sedgecroft! - exclamou, com voz teatral. - Que surpresa!
Pérolas! E flores! Para mim?
Ele fez uma careta e tossiu, sobressaltado, e logo lhe pegou o braço
e a levou de volta à carruagem.
- Necessita mais prática. Vi atuar melhor os patos de minha lagoa.
Ela afundou o rosto no monte de ramalhetes para abafar a risada.
- Primeiro uma pomba, depois um mocho. Agora sou um pato. Que ave vou lhe recordar depois?
- Um ganso, acredito.
Instalaram-se no assento. Simon estava deitado de costas, com os braços dobrados sobre o peito e as mãos agarradas. Os olhos azuis de Grayson a percorreram inteira, preguiçosos, apreciativos, lhe fazendo subir novamente o rubor às faces.
- A que lhe recordo eu?
Ela espalhou os ramalhetes sobre o assento, e a fragrância das violetas inundou a carruagem.
- A um leão, acredito. Uma besta senhorial.
- Uma besta? - repetiu ele, arqueando uma sobrancelha. - É valente para me chamar assim na cara. Sente-se mais perto de mim.
- Mais perto? - perguntou ela, quase rindo - Estamos em Brook Street, Sedgecroft, não em um bordel.
- Eu gosto da sensação de tê-la junto a mim - disse ele, tranquilamente. - Além disso, não tenho fama de santo, Jane.
- Significa isso que é um demônio?
Ele tirou uma margarida de um ramalhete e a pôs entre as mãos de Simon.
- Isso terá que descobrir você. - Levantou lentamente a cabeça e a olhou nos olhos. - E se o for, serei seu demônio, Jane. Ao menos durante todo o tempo que levar para corrigir esta situação. Bom ou mau, combaterei a seu lado.
***
A carruagem virou à direita, entrando na Davies Street, e ao chegar a Berkeley Square diminuiu a marcha diante de uma mansão georgiana
com fileiras e fileiras de brilhantes janelas com peitoril saliente. Até eles chegavam os sons de uma alegre melodia, procedentes dos jardins na ladeira cobertos por um bosque de frondosos plátanos orientais. Mais à frente se erguiam campos de morangos, onde os grupos de frutos vermelhos brilhavam ao sol. Então o cocheiro dirigiu a carruagem para as portas de ferro forjado da garagem.
Um grupo de jovens dandies que estavam passando ociosamente o momento na escadaria de entrada interromperam a conversa quando viram se aproximar a elegante carruagem negra puxada por cavalos brancos.
- É Sedgecroft - gritou um.
- Vai uma mulher com ele - observou outro, esticando o pescoço para ver melhor.
- Seria estranho que não - exclamou seu amigo, agarrando seu monóculo.
- Quem é ela?
- Está vestida de rosa, isso é a única coisa que consigo distinguir.
- Meu irmão viu o secretário de Sedgecroft escolhendo pérolas em Ludgate Hill esta manhã.
- Ah, então é algo sério. Estarão em negociações?
- Não tem lido os jornais? Tudo sobre a noiva Belshire abandonada ontem no altar por Nigel Boscastle.
- Quem diabos é Nigel Boscastle?
- O aborrecido primo de Sedgecroft. Acha que...?
Todos desceram juntos a escadaria para examinar mais de perto à misteriosa mulher que se via pela janela da carruagem. O marquês de Sedgecroft tinha estabelecido certas pautas que tendiam a emular muitos aspirantes a libertinos. Considerava-se um êxito ser visto em uma festa conversando com alguma de suas ex-amantes.
Em geral, as mulheres desse seleto círculo continuavam
extraordinária e ostensivamente leais a seu nobre ex-amante, e não soltavam palavra a respeito de suas passadas relações com ele. Os porquês dessa lealdade ofereciam um constante tema de deliciosas elucubrações.
Sedgecroft lhes pagava seu silêncio? Era um amante tão perito que as apaixonadas amantes esperavam reatar sua relação com ele? Ou já o tinha reatado secretamente? O homem fazia malabarismos com três ou quatro apaixonadas beldades ao mesmo tempo em sua cama?
Suas proezas sexuais, fossem realidade ou fantasia, despertavam a admiração dos mais jovens.
- Por que acha que gosta tanto da cor rosa? - perguntou um indiscreto cavalheiro. - Porque se parece com a cor da pele nua da mulher?
- Não, idiota, porque recorda os cravos - respondeu seu irmão, rindo grosseiramente.
***
Jane sentiu subir um ardente rubor às faces, e isso só porque tinha ouvido poucas palavras dessa conversa.
- Percebe que esses jovens estão falando de mim e em termos nada aduladores? - comentou a ele em tom resignado.
Embora, na realidade, depois do plano levado a cabo por ela e Nigel no dia anterior, já supunha que seria melhor que se acostumasse às fofocas. Mas, bom Deus, jamais lhe tinha ocorrido pensar que ela poderia ser de interesse para as pessoas do belo mundo. O pobre Nigel tinha aborrecido de morte à alta sociedade com seu amor pelos cães e pela literatura francesa antiga.
Grayson olhou pela janela observando com os olhos estreitos o grupo de olheiros.
- Deixe comigo , Jane. Não demorarei para endireitá-los.
Ela tragou saliva para passar o nó de nervosismo que lhe tinha
formado na garganta.
- Acabo de decidir que não vou descer desta carruagem.
Sorriu-lhe, com esse sorriso tranquilo de um homem que nunca em sua vida teve que levantar um dedo para atrair a uma mulher; o sorriso de um homem a quem não importa um rabanete o número de escândalos que provocou.
- Então, trago-lhe o café da manhã na carruagem? Com um quarteto de corda para que nos entretenha enquanto comemos?
Ela respondeu esboçando um sorriso; a picardia que viu em seus olhos obscurecidos lhe fez passar uma onda de calor por toda ela. A espera lhe fez formigar as costas quando lhe pegou a mão enluvada e lhe esfregou a palma.
- Nunca em minha vida atraí a uma multidão - grunhiu.
- Está preparada para atrair uma agora? - perguntou-lhe ele, como a desafiando.
Preparada? Preparada para enfrentar o escândalo e os sorrisos de afetada compaixão? Virou-se, dando as costas à janela e exalou um suspiro.
- Se for necessário. Você é o tirano, não?
- Venha, Jane. Nos divertiremos um pouco com eles. Deixaremos eles meio loucos pensando o que somos um para o outro.
- Eu estive pensando nisso.
Deslizou-lhe a mão até o cotovelo, atraindo-a para ele até quase tê-
la em seu colo. Acelerou-lhe mais o coração e o surpreendeu a intensidade de sua reação.
No que se colocara? Talvez não lhe conviesse sabê-lo. Já era muito tarde para retirar seu oferecimento, mesmo que o caminho ao inferno estivesse pavimentado de boas intenções.
- Espere - lhe ordenou, sem saber por que.
Talvez para ganhar tempo, ou simplesmente porque era um prazer
para ele falar com ela.
- Mais nos estão olhando. Vão pensar que estamos nos beijando, ou talvez algo pior ainda.
Ele golpeou levemente com o indicador o botão de madrepérola do cotovelo dela.
- Isso iria muito bem, agora que o sugere. Por desgraça, não posso agradar seus luxuriosos interesses. Nem os meus.
- Eu não o sugeri... demônio irresistível.
- Demônio irresistível - repetiu ele, com ar satisfeito, arregalando os olhos para zombar dela. - Isso soou quase como um elogio.
Ela sorriu a seu pesar.
- Suponho que a sua maneira só quer me ajudar.
- Exatamente. - Por incrível que parecesse a si mesmo. - Agora faça o que lhe peço. Deixarei muito claro a esses malandros sua categoria e dignidade.
- Um libertino com consciência - disse ela, em tom meditabundo. -
Um libertino com uma veia de bondade em seu podre coração.
Ele riu. Não se sentia cômodo nesse papel.
- Bom, não corra a voz, não quero que chegue a conhecimento público. Tenho uma bem ganha reputação de corrupção, que vou reatar uma vez que tenha devolvido a normalidade a sua vida.
Ela cruzou os braços e se afastou para examiná-lo.
- Falando sério, Sedgecroft, alguma vez considerou a possibilidade de se casar?
Ele franziu exageradamente o cenho.
- Falando sério, Jane, não.
- Por que não?
- Para que teria que me casar? - perguntou ele mansamente.
- Não se pode ser um libertino eternamente. Tendo suas obrigações.
- Mas sem dúvida posso tentar - replicou ele, mesmo que essa
maldita ideia o tivesse atormentado ultimamente. - Nos velhos tempos, meus antepassados tiveram a sensatez de não submeter-se ao matrimônio até que ficassem aleijados e tivessem estado a um cabelo de morrer no campo de batalha, e não serviam para nada mais.
- Suas esposas devem ter estado fora de si de gratidão - disse ela, sarcástica. - Que imensa honra cuidar de um Boscastle incapacitado.
O sorriso dele era diabólico. Ficou em silêncio um instante, desconcertado ao perceber que já tinha revelado mais de si mesmo à Jane do que jamais tinha revelado a nenhuma de suas amantes nem velhos amigos.
- A finalidade, minha insolente dama, era engendrar outra geração de Boscastle de má conduta quando já estavam esgotadas todas as demais opções de aventura. Meus antepassados demonstraram ser muito capazes de cumprir esse prazeroso dever até seu último fôlego no leito de morte.
- Sim? - perguntou ela, com uma vozinha débil.
- Sim, Jane - disse ele, encantado por sua reação. - E suas mulheres nunca se queixaram. Cumpriam.
- Cumpriam?
- Seus deveres conjugais. Os quais...
- Não é preciso mais explicação.
Ele ficou em silêncio, pensando até onde poderia atrever-se a chegar e por que gostava tanto de provocá-la.
- Perdoe. Pensei que poderia sentir curiosidade.
Ela sentiu subir um revelador rubor às faces. A ideia de engendrar um herdeiro Boscastle fazia passar inexprimíveis imagens terrestres pela mente. Como demônios chegou a isso a conversa?
- É provável que meu irmão nos esteja ouvindo - sussurrou, em tom de advertência.
- Com toda sua atenção de cadáver.
Ela se agachou para dar uma boa sacudida em Simon. Grayson a observou sorrindo enquanto ela tentava despertar seu irmão virtualmente a golpes. Sob toda essa reserva tinha batido os dentes deliciosamente penetrantes.
- Acorde, idiota - disse ela, severa. - Faça-se útil ao mundo.
Simon se moveu, abriu os olhos injetados de sangue e olhou ao redor, desconfiado.
- Sedgecroft, Jane, e... e todas essas flores. - endireitou-se um pouco, apoiado no cotovelo. - Morreu alguém? Foi...? Deus santo, acharam Nigel? Não me diga que vamos a caminho a seu funeral.
Desgostosa, Jane observou sua roupa enrugada, enquanto ele pestanejava, deslumbrado pela luz do sol.
- Não morreu ninguém, Simon - disse, com a voz mais clara possível. - Está aqui para ser meu acompanhante , mesmo que esteja incapacitado para fazê-lo.
Ele passou a mão por seu revolto cabelo castanho.
- Eu não falaria de aparências. Esse vestido é bastante revelador para... -Se interrompeu ante o olhar de advertência que lhe dirigiu Grayson. - Alguém soube algo de Nigel?
- Nenhuma sílaba - respondeu Grayson, com a mandíbula tensa pelo aviso. - Continuo fazendo averiguações, é claro, mas parece que partiu de Londres sem deixar rastro.
Simon exalou um suspiro.
- E aonde vamos, por certo?
- Ao café da manhã que oferece o duque de Wenderfield -
respondeu Grayson.
Jane se inclinou para tirar uma meia de seda branca do bolso do colete.
- Bom Deus, Simon, onde esteve ontem à noite?
Ele encolheu os ombros, indeciso.
- Não me lembro. Nem sequer sei como cheguei aqui.
- Esteve em um baile de máscaras à meia-noite - disse Grayson irônico estendendo a mão para ajudar Jane a levantar-se. - Seu cocheiro o encontrou meio inconsciente entre uma monja e a criada de Cleópatra.
- Estávamos...?
Grayson o interrompeu limpando a garganta. O brilho travesso de seus olhos dizia muitíssimo.
- Acredito que podemos terminar esta conversa em privado, Simon.
Jane atirou a meia no chão, enojada.
- E acredito que a resposta a essa pergunta é infelizmente óbvia.
***
Grayson não se incomodou em responder às saudações dos jovens dandies que estavam reunidos na escadaria. A ávida curiosidade que viu em seus olhos quando olharam para Jane o enfureceu. Um deles a tinha reconhecido.
- Sedgecroft - disse ela, com a voz serena, mas que delatava confusão.
- Calma, Jane - disse ele em tom resistente. - Sorria mas não pare.
Não demorarão para captar a indireta.
Eles lhe gritavam, adotando posturas afetadas, como macacos vestidos elegantes, brigando por uma migalha de sua atenção. Malditos, pensou ele, sem revelar nada em seu olhar. Maldito seu descaramento, ao atreverem-se a olhá-la como se de repente se convertera em uma mulher de duvidosa reputação. Retesaram-lhe os músculos dos ombros aos dedos, pelo feroz desejo de lhes apagar a murros suas expressões maliciosas.
- Disse - falou ela, olhando à frente.
Ele a olhou de esguelha. Apesar de sua voz trêmula, parecia totalmente serena. Ele estava tão acostumado a desentender-se da opinião pública que não lhe teria importado a notoriedade se tivesse
estado com qualquer outra mulher. A senhora Parks teria reagido alegremente a todo esse alvoroço lhes fazendo um grosseiro gesto com um dedo.
- Poderia lhe fazer muitíssimo bem, Jane - sussurrou - se deixasse deslizar sua reserva só uma vez.
- Não acredito que o mundo esteja preparado para o tipo de deslize de que sou capaz - respondeu ela, enigmática.
Um dos dandies levantou seu monóculo para examiná-la, e o desceu imediatamente ao ver o olhar letal que lhe dirigiu Grayson.
Considerou brevemente a possibilidade de agir, de arrastar o insolente cachorrinho escadaria abaixo e dar um bom exemplo com ele.
Mas outro escândalo não faria nenhum bem à Jane, pelo que, pela primeira vez desde que se lembrava, obrigou-se a engolir a raiva e considerar as conseqüências de sua conduta.
Custar-lhe-ia, pensou, guiá-la no meio desses estreitos critérios da aristocracia até pô-la a salvo. Teria que ficar em guarda para protegê-la dos insultos e insinuações e propostas importunas. Isso já sabia quando se ofereceu para ajudá-la.
O que não sabia era com que facilidade poderia levá-la ao mau caminho.
- O que está pensando, Jane? - perguntou-lhe em voz baixa.
-Não lhe direi, Sedgecroft. Ficaria escandalizado.
- Eu não, querida. - Isso era ridículo, com a vida que levava ele.
Como se uma dama decente como Jane pudesse ter algo em seu passado. - Nada que fizesse poderia me escandalizar.
Capítulo 8
Os donos da casa os acompanharam pelos jardins apresentando-os aos distintos convidados estrangeiros que honravam a festa com sua presença. Simon achou uma taça de champanha e se perdeu em meio da multidão acompanhado por lady Damaris Hill, cujo sussurrado
comentário sobre uma meia perdida explicou o mistério da identidade da monja no baile de máscaras.
A orquestra estava tocando sobre a erva ao lado de um pavilhão clássico ao final do parque de grama em pendente. Tinham construído uma plataforma que servia de pista de baile; vários jovens se dispersaram pela parte leste do parque. Os vestidos de cores pastel das damas balançavam como asas de mariposa enquanto passeavam de um lado a outro com seu elegante andar.
- Tem fome? - perguntou Grayson à Jane, com a mão pousada sobre seu ombro, de modo suave mas possessivo.
- Uma fome canina - respondeu ela, e ao cabo de um momento acrescentou: - Embora tenha que ter nervos de aço para comer quando todo mundo nos está olhando.
- Eu os esqueci.
- Como pode?
- Talvez porque não me importa - disse ele, muito convincente.
- Muito bem, então tampouco me importará.
Ele parou para olhá-la com um sorriso levemente malicioso.
- Sim que lhe importa. A todas as mulheres importa.
- Só a aquelas que andam procurando marido - suspirou ela.
- O que poderíamos estar fazendo.
- Não, estamos... - Mordeu a língua ao recordar como devia parecer.
- Não estou preparada para voltar para o mercado do matrimônio.
Não o estou agora e talvez não o estarei nunca, desejou acrescentar.
- Volte a montar, Jane - disse ele, sorrindo sem piedade. - Uma queda do cavalo não faz uma solteirona.
Ela o teria beliscado por reduzir a essa simples frase as complicações de sua vida.
- Eu gostaria que deixasse de comparar minha situação com a
atividade eqüestre.
Ele a olhou como pedindo desculpas.
- Me esqueço quão sensível está sobre esse tema.
- Sedgecroft! - exclamou uma voz feminina.
Essa exclamação, indicava que a mulher estava encantada de vê-lo, impediu Jane de responder, mesmo porque não sabia o que responder a esse comentário sem mentir descaradamente.
Os dois se viraram ao mesmo tempo e se acharam ante uma mulher miúda com um vestido de seda marrom, sustentando graciosamente uma taça de champanha na mão. Jane a contemplou surpresa, sem poder acreditar que pudesse ser a senhora Audrey Watson, a popular cortesã e ex-atriz cujos jantares intelectuais em que oferecia a tinham convertido em uma celebridade entre as pessoas mundanas e os aristocratas. Segundo os rumores, o duque de Wenderfield desejava fazê-la sua amante.
- Audrey - a saudou Grayson, afetuoso.
Talvez muito afetuoso, pensou Jane enquanto os dois se davam um breve abraço.
- Sedgecroft, faz séculos que não... - Audrey se interrompeu e olhou para Jane com um sorriso tão verdadeiramente amistoso que esta não pôde deixar de abrandar-se. - A formosa filha de Belshire, a mais velha, não é? O que faz ela com um homem como você, Sedgecroft? -
perguntou, perplexa.
Grayson olhou para Jane com um olhar tão ardente que a fez ruborizar-se até as pontas de seus cabelos. Se não soubesse a verdade, teria acreditado que ele estava apaixonado por ela. Ah, era excelente nisso, o muito demônio. Sentiu-se como se devesse aplaudir sua atuação.
Então ele a fez avançar um passo.
- Teve a honra de que a apresentassem, Audrey?
- Não - respondeu Audrey, olhando-a preocupada, sem a menor dissimulação, sem esforçar-se para impressionar. Seu caráter espontâneo e franco, sem fingimentos, tinha conquistado partidários leais, desde políticos a poetas pouco reconhecidos, sua franqueza costumava ofender. - Mais, minha querida senhora, tem que ser muito valente para sair tão cedo, depois de ontem. E você, Sedgecroft, não perdeu nem um segundo em se lançar ao ataque, não é?
Lançar-se ao ataque? Pensou Jane, divertida e indignada ao mesmo tempo. Que maneira de expressar, reduzir sua relação com Sedgecroft a de predador e presa.
- Na realidade - disse, quando se fez evidente que o dito descarado não iria corrigir Audrey - lorde Sedgecroft só est...
- É um homem enfeitiçado - disse ele em voz baixa, tão cortês e seguro de si mesmo como qualquer consumado predador.
Oooh. Que talento o do maldito, fazê-la formigar inteira com essa escandalosa atuação, quando sabia muito bem que não deveria acreditar nele.
Cravou-lhe as costas.
- Para ser sincera, nossa relação não tem por que convidar a pensar nada. Nigel e Grayson são...
- Rivais - interrompeu ele, pegando sua mão e apertando-a com tanta força que lhe fez ranger os dedos, até que ela o olhou indignada. -
A perda de um homem é o ganho de outro, não? Digamos simplesmente que admirei em silencio Jane de longe. Não iria permitir que outro me adiantasse.
Audrey bebeu um longo gole de seu champanha, olhando da jovem de beleza clássica ao descarado pecaminosamente bonito que, observou, tinha apertada fortemente a mão em seu possessivo punho.
- Faça o que quiser, Sedgecroft, mais... - iluminou-lhe o rosto - isto significa que posso convidá-los juntos a um jantar.
- Ah, isso seria muito agradável, com certeza - respondeu ele.
Enquanto isso Jane estava pensando o que opinariam seus pais dessa novidade. Sem dúvida sua mãe de critério amplo desaprovaria que sua filha alternasse com mulheres mundanas. Ou talvez não. O
plano tinha dado um giro muito imprevisível. Já começava a pensar que tinha dado o proverbial salto das chamas às brasas.
E Sedgecroft decididamente atiçava as vermelhas chamas do fogo do inferno em sua alma.
- Acredito que vejo uma amiga minha nessa mesa - disse, tentando soltar a mão. - Me desculpariam um momento?
Grayson lhe levantou a mão enluvada e lhe beijou as pontas dos dedos, murmurando com voz de apaixonado:
- Só um momento muito curto?
Era uma representação. Isso sabia ela com o intelecto, mas todos seus sentidos femininos reagiram ao sedutor timbre de sua voz.
- Sim - disse, confusa ao compreender que ele era muito consciente do desconcertante efeito que produzia nela. - Mais só vou à mesa.
Ele a atraiu para si puxando as pontas dos dedos, até que ficaram tocando os joelhos. Ela sentiu um pecaminoso revôo no profundo do ventre. O que se propunha?
- Volte logo - disse ele, olhando-a nos olhos.
E então lhe soltou a mão. Expulsando o ar retido, ela se apressou a virar sobre seus calcanhares, e pôs-se a andar no meio da multidão.
Grayson a observou afastar-se pensativo, só meio consciente de que era observado pela mulher que estava a seu lado. Fazer o papel de pretendente apaixonado era mais fácil do que tinha esperado. Só estar na presença dela o fazia ansiar uma relação sexual desenfreada e lhe recordava que não tinha uma amante há mais tempo de que queria reconhecer.
Talvez fosse sua inacessibilidade o que o desafiava, embora
suspeitasse que havia algo mais. Ela era inteligente, prática, sua igual na conversa. Divertia-o com sua afetada dignidade, e estava seguro de que nela havia profundidades que jamais se atrevera a revelar a ninguém.
Poderia desfrutar explorando essas profundidades se não fosse por sua tarefa de inseri-la novamente e suavemente na alta sociedade.
Seu ardente olhar seguiu os movimentos de seu corpo ao afastar-se pela cuidada erva em sua teimosa pressa por escapar. Sua maneira de caminhar como um soldado não tirava de maneira nenhuma a atração do meneio de seu arredondado traseiro debaixo de seu vestido de tule rosa., pensou, sentindo uma onda de excitação que lhe endureceu e abrasou o corpo. Seria rosa e branco toda inteira. Rosas com nata. Tão doce para desfrutá-la em um bocado. Mas não a devoraria de uma vez.
Saborearia com lentas e tenras dentadas...
Santo céu. Jane lhe alvoroçava os pensamentos fazendo-os correr um após o outro em círculos. Sua intenção era lhe restabelecer a respeitabilidade, não desonrá-la.
- É possível, Sedgecroft? - perguntou-lhe Audrey em voz baixa. -
Está você por trás desse escândalo no casamento de ontem?
Ele sorriu peralta, pensando o que podia responder. Esse era um momento crucial, uma prova a sua capacidade para dissimular. Audrey o conhecia há muito tempo. Não queria mentir, mas sabia que algo que lhe dissesse nesse momento já correria por todo Londres essa noite.
- Sabe que não deve me perguntar isso. Reconheceria se estivesse por trás?
- Este é um comportamento muito insólito. Acredito que estou preocupada. Sabe que já a chamam lady Jane Plantão?
Ele sentiu uma onda de raiva.
- Não em minha cara.
- É a primeira vez que o vejo com uma mulher decente - continuou ela em voz baixa caminhando a seu lado já que ele voltava a meter-se
entre a multidão. - Tome cuidado, Sedgecroft.
- Cuidado como o que? - perguntou ele, encolhendo os ombros despreocupadamente, desviando o olhar dela para voltá-lo para Jane. -
Sou um homem de honra. Conhece alguma mulher que lamente uma relação comigo?
Pôs-lhe a mão no pulso.
- É você que me preocupa. Pode ser que esse seu coração não seja fácil de cativar, mas quando estiver cativado, suspeito que a perda poderia ser fatal. Face ao que aconteceu ontem, ela é uma mulher feita para o casamento.
- Essa maldita palavra outra vez. Sim, sei que está é para o casamento.
Franziu o cenho ao ver que uns quantos conhecidos seus se agruparam ao redor da mesa de café da manhã para apresentar-se a Jane. Uns pirralhos, pensou, depreciativo.
Virtualmente estavam chupando os dedos. E ela iria comer enquanto todos estavam babando a seu redor?
- Ouça, teremos que deixar para mais tarde esta agradável conversa. Os lobos estão se reunindo e ela não está em condições de defender-se.
Audrey se virou para olhar a que se referia ele.
- Esse lado possessivo seu é fascinante. Acredito que nunca o tinha visto antes. Isso não quer dizer que...
Ele passou por seu lado, vexado. Não tinha prometido protegê-la?
- Não é o que pensa - disse e se afastou.
***
Audrey ficou olhando sua alta figura de ombros largos e o viu passar por entre a fileira de amigos com sua habitual arrogância Boscastle. O
coração lhe deu um inquietante salto, mesmo que já fizesse tempo que se resignara a uma relação platônica com o interessante marquês.
- Poderia não ser tampouco o que você pensa, querido - disse, tristemente.
***
As mesas estavam dispostas sobre a grama na parte sudoeste do parque, cobertas por toalhas de brocado e sobre elas jarras de limonada e café, chá e chocolate sobre o aquecedor de pratos. Um dos amigos de Sedgecroft tinha levado para Jane um prato com morangos e amêndoas açucaradas.
Ela acabava de levar um morango à boca quando o viu abrindo caminho como uma espada no meio dos convidados. Enroscou a língua sobre a azeda fruta. Observou que as mulheres que a rodeavam interrompiam suas conversas para olhá-lo. E não era de estranhar. Sua masculina vitalidade arrojava um feitiço tão potente que era impossível não senti-lo. Quem não se deixaria arrastar pelo redemoinho de sua pasmosa atração? Era uma rajada de ar fresco que desafiava as rançosas censuras da alta sociedade.
Seus
amigos
lhe
deram
tapinhas
nas
costas,
olhando
significativamente dele para ela, como se esperassem uma apresentação formal. E ele se negou a apresentá-los por motivos que ela não conseguiu discernir. Já conhecia vários dos jovens, através de seu irmão. E Sedgecroft os olhava zangado. E a ela. Que excelente ator.
Que aborrecimento.
- Ah, está aí - lhe disse ele do outro lado da mesa, em voz alta e possessiva, que não fez outra coisa que atrair a atenção. - Procurei-a por toda parte. Não volte a me deixar sozinho.
Jane sentiu os olhares das pessoas, notou o silêncio ao interromper-se todas as conversas. Não conseguiu tirar a voz; tinha ficado presa na garganta ao engolir inteiro o morango. Sentiu subir a cor às faces. Não era tão perita nisso como ele. Seu primeiro impulso foi esconder-se debaixo da mesa.
- Bom, estava aqui. - O que ele já sabia. - Com seus amigos.
- Amigos? Meus amigos?
Olhou impassível aos quatro homens que estavam atrás dela. O
quarteto se afastou imediatamente, advertidos pelo tom de Grayson de que se colocaram em território privado.
- Bom, quem o teria imaginado? - murmurou um deles. - A abandonada por Nigel acompanhada por Sedgecroft?
- Talvez não foi um plantão, depois de tudo. Talvez Nigel não teve nenhuma opção no assunto.
Os quatro pararam e se viraram para a mesa, com a mesma ambiciosa idéia. É que a bela filha de Belshire estava a ponto de converter-se em uma amante?
Quem poderia ter suposto que estaria disponível para esse delicioso acerto? Ou a situação entranhava algo mais sério? Seu ídolo estava a ponto de acorrentar-se?
Quando o malandro chegou a seu lado, Jane franziu os lábios.
- Isso foi uma atuação dramática bastante desnecessária a esta hora do dia.
- Foi convincente, não é? - disse ele, sorrindo timidamente. -
Perdoe-me, mas tive a intuição de que necessitava que a salvasse.
- De comer algo no café da manhã?
Pegou seu cotovelo e com a outra mão pegou o prato.
- Não se aceitam as atenções de um cavalheiro sem endividar-se -
disse, com fingida severidade. - Tome o café da manhã hoje, cama amanhã.
- Vamos, Sedgecroft, francamente. Só uma mente como a sua poderia fazer essa associação. Café da manhã e... esporte de cama.
- São compatíveis, acredite.
- Em seu mundo, talvez.
- Tão diferentes somos você e eu? - brincou ele.
- É claro.
- Bom, não permita Deus que eu te corrompa.
- Não acredito que seja tão corrupto.
De repente ele levantou os olhos e os estreitou. Algo que havia atrás tinha captado sua atenção.
- Não? - perguntou distraído. - Isso significa que há esperanças para mim?
Ela olhou para trás. Não conseguiu ver o que ou a quem tinha olhado ele com tanta atenção. A outra mulher?
- Eu não contaria com isso - disse.
- Sei como pensam os homens - disse ele em voz baixa, em tom presunçoso - em especial esses homens.
- Esses homens - sussurrou ela, tentando agarrar outro morango antes que ele devolvesse o prato à mesa - são de sua classe e têm um histórico similar. Admiram-no, emulam-no.
Ele a afastou da mesa para o atalho principal, e passado um momento começou a descer por uma suave ladeira toda coberta de camomila.
- Justamente por isso sei como pensam - disse, retornando o fio da conversa. - E por isso me preocupei com você.
- Isso não fala muito bem de seu caráter.
- Não, não é? - Repentinamente começou a rir; achava muito agradável, embora também bastante difícil discutir com ela. - Talvez devesse ter deixado que viesse com o vestido cinza.
- Tentei adverti-la.
Continuaram caminhando em silêncio um momento. Jane não soube como conseguiu ele para lhe deslizar a mão pelas costas e deixá-la à altura da cintura, onde a sentia de forma possessiva; a pressão de seus dedos fazia descer estremecimentos por toda a coluna. Tampouco sabia para onde iam. A única coisa que sabia era que ele parecia preocupado
e que ela estava desfrutando mais do que deveria.
- Acho que desejo que me leve de volta ao circo social o mais breve possível.
- Sim, mas não ao fosso dos gladiadores. E não sozinha. Fizeram-lhe alguma pergunta pessoal?
Ela parou para olhá-lo. Já começava a falar muito parecido a seus pais.
- Na realidade, sim.
- O que, por exemplo?
- Por exemplo, se preferia café ou chocolate.
Cansaram-lhe os olhos de risada.
- E o que respondeu?
- Que nem o um nem o outro.
- Uma mulher misteriosa - disse ele fingindo um suspiro de decepção. Eles interpretarão isso como um convite à intimidade.
- Disse-lhes que eu gostava de chá - replicou ela asperamente. -
Não vejo como se poderia interpretar isso como um convite a nada, e muito menos a um ato íntimo.
- A um homem em busca de presa, só a insinuação dê um sorriso nos lábios de uma mulher basta para inspirá-lo -disse ele, em tom autoritário. - Acredite. Essa realidade está tão firmemente estabelecida como qualquer principio científico.
- Meus lábios estavam ocupados em comer, Sedgecroft, até que você me confiscou o prato em meu próprio nariz. Por casualidade tenho fome.
Ele riu e voltou a lhe agarrar o braço para que continuassem avançando pela ladeira.
- Alguém lhe disse que sua franqueza a meterá em dificuldades algum dia?
Rugiu-lhe o estômago, e virou a cabeça para olhar nostálgica as
mesas de café da manhã.
- Só minha mãe, pelo menos dez vezes na semana durante toda minha vida. Aonde vamos? As pessoas vão falar de nós.
- Estou seguro de que causou uma impressão favorável, Jane.
- Eu não. Disse-lhe que era muito cedo para fazer ato de presença.
Com Nigel nunca provocamos este tipo de cena em público.
- Não, até ontem. - parou para olhá-la, percebendo que acabava de dizer; fazer-lhe brincadeiras era uma coisa, ser cruel, outra muito diferente. - Não quis dizer o que pareceu.
- Bom, mas é verdade - disse ela, sentindo uma pontada de culpa.
Desconcertava-a que a tratasse como a uma frágil figura de porcelana; tomara o merecese. - Tenho certa fortaleza interior, Sedgecroft.
- A única coisa que queria dizer é que a alta sociedade se fixou em nós -disse ele, com mais cautela. - Esse era nosso primeiro objetivo. Me dê o braço outra vez.
Por que não se negou? Pensou ela, desgostosa. Se ele fosse um capitão pirata que lhe ordenasse caminhar pela tábua e jogar-se na água, quase certo que o obedeceria. A verdade era que se sentia feliz de aferrar-se a seu musculoso antebraço, fosse qual fosse o desastre que se abatesse mais à frente. Talvez por isso seus pais lhe tinham aconselhado que se casasse com Nigel. Para protegê-la de si mesma.
- Sedgecroft, não darei nem um só passo mais. Este pavilhão é famoso pela quantidade de mulheres seduzidas aqui.
Ele continuou fazendo-a avançar, como um homem exposto a uma missão se é que ela tinha visto um.
- Isso sei muito bem.
Ela pestanejou.
- Então sabe que não vou entrar.
Ele virou a cabeça e lhe cravou o olhar, com um imperioso cenho.
- Deixa de perder tempo, Jane. Preciso de você. Venha aqui
imediatamente.
- Perdão, o que disse?
- Se não me enganaram meus olhos, minha irmã Chloe acaba de desaparecer no pavilhão com um jovem oficial de cavalaria que é muito atrevido para seu bem. Talvez precise de você para que me impeça de cometer um ato de violência.
- Tem certeza de que era Chloe?
- Não.
Não, porque estava tão ocupado tentando pôr Jane a salvo dos famintos lobos que não pôde prestar muita atenção a outra coisa. Não, porque Chloe não tinha por que estar aí nesse dia, e se tinha entrado no pavilhão, tinha desobedecido descaradamente suas ordens.
- Não estou certo de que seja ela - disse, notando o tom de terror em sua voz. - Mas não quero correr nenhum risco.
Jane contemplou o pavilhão de tijolos vermelhos com seus quatro esbeltos torreões brancos que se erguiam ao céu em comemoração a um castelo de contos de fadas de antigamente.
- Contam que os corredores secretos deste pavilhão oferecem ao duque lugares perfeitos para estar com suas convidadas mais amorosas.
- Sim, Jane - respondeu ele, em um tom levemente altivo, paternalista. - Duvido que Chloe tenha entrado para admirar os bancos esculpidos em pedra.
- Espera um momento - disse ela, olhando-o com clara desconfiança. - Pensei ouvi-lo dizer que a tinha deixado encerrada com chave em seu quarto.
- Um aposento com chave não é nenhum obstáculo para um Boscastle - disse ele, pesaroso, no instante em que acabava a fragrante erva e começava um largo caminho ladrilhado. - É um desafio, um degrau para a aventura imprudente.
- Sempre me pareceu uma garota muito sensata - disse ela,
balançando a cabeça. - Eu gostei muito dela aquela vez que nos encontramos no orfanato.
- Sensata? - grunhiu ele. - Nunca se sabe o que se esconde sob a superfície.
Jane mordeu o interior da face. Não se atreveu a olhar esses perspicazes olhos azuis, depois do segredo que lhe ocultava.
- Mmm, não. Suponho que não.
- Esse é um dos motivos que eu gosto de você, Jane. É uma mulher muito franca e sensata.
Ai, Deus. Se ele soubesse o sinuosa, insensata que tinha demonstrado ser nesses dois últimos dias.
- Tomara pudesse exercer certa influência em Chloe - acrescentou ele.
- Estou certa de que é sensata em seu coração - murmurou ela, mordendo o lábio inferior.
- Isso o diz por que você é sensata.
- Deixa de me fazer parecer um modelo de virtudes. - Gritaria se ele continuasse lhe acumulando elogios sobre a cabeça. - Me envergonha.
- Isso é justamente o que quero dizer - disse ele, assentindo aprovador. - Não recordo ter visto essa sinceridade em uma mulher, e acontece que valorizo a sinceridade - continuou, como se ainda não lhe tivesse brocado o coração; seu mentiroso e pérfido coração.
- Não sabia que a sinceridade fosse uma qualidade que um homem como você admirasse no sexo oposto - disse, com uma voz débil.
- Bom, entre outras coisas - disse ele, e os dois souberam que outras coisas valorizava pelo sorriso malicioso que passou por seu rosto.
- Talvez pudesse ser um exemplo para minha irmã.
- Não acredito que isso seja conveniente.
- Não tem nenhuma mulher a quem buscar, sabe? Desde que nossa Emma partiu para Escócia, não tem ninguém. Temo que eu não lhe dei
muito bom exemplo no que a moralidade se refere.
- Mmm. - Não havia nada que discutir a isso.
- Simplesmente não posso deixar que a dinastia familiar se estrague
-continuou ele, consciente de que voltava a confiar nela. - O problema é que achava que ficavam uns quantos anos mais de liberdade antes de me estabelecer.
- Que crueldade que deva pôr fim a sua vida de pecado.
Ele riu e ela sentiu deslizar deliciosamente por sua pele o rouco som de sua risada.
- Sim, não é verdade?
Até eles chegava fracamente a música que estava tocando a orquestra na parte alta do parque. Uma fileira de salgueiros dava sombra ao caminho e ocultava essa parte da vista. Um par de toninhas de mármore ladeava a entrada do pavilhão, com jorros de água que ao cair em arco se esfumavam convertendo-se em garoa muito fina.
Grayson olhou ao redor. Já não via nenhum dos convidados da festa. Além disso, o duque mantinha uma multidão de criados indo e vindo por fora para dar uma aparência de decoro ao lugar.
- Disseram-me que o chamam Pavilhão do Prazer - murmurou Jane-. Sempre me perguntei como seria.
- Bom, já pode deixar de perguntar - respondeu ele, e sem nenhuma cerimônia a fez entrar no interior em sombras. - Já está. Acredito que não nos viu ninguém.
- Sedgecroft, acredito que não...
- Vigie onde põe os pés - disse ele, e sua voz pareceu propagar-se pela desorientadora penumbra. - O chão está molhado e o interior escuro como o mundo de além túmulo.
O mundo de além túmulo, pensou ela, estremecendo ligeiramente, sentindo-se mais ou menos como Perséfone quando seguiu a seu escuro senhor aos infernos. Como tinha acontecido tudo isso? Só no dia
anterior estava contemplando sua liberdade arduamente ganha e agora, quem podia saber os giros que continha o futuro? De que maneira poderia frustrar esse plano dele sem delatar-se? - Observo que esteve aqui antes -comentou, sarcástica.
- Só quando acabaram o pavilhão e o duque nos fez um percurso.
- Nós?
- A meu pai e a mim. - virou-se para ela e seu formoso rosto ocupou todo seu campo de visão. - Bom Deus, Jane, eu tinha pouco mais de três anos.
- Seriamente?
Ele tossiu.
- Bom, talvez treze.
- Isso imaginei. O que poderia haver-se apoderado de sua irmã para vir aqui hoje?
- Ver o que acontece a você.
- Talvez tivesse dor de cabeça e necessitasse de um momento de paz.
Ele respondeu à sugestão com um grunhido bastante insultante.
- Só um idiota acreditaria nisso. Agora, silêncio, Jane. Vem alguém.
Dito isso inclinou distraidamente a cabeça para saudar o cavalheiro e a dama que acabavam de sair de um estreito corredor. Os dois pareceram surpreendidos e com aspecto de sentir-se culpados por terem sido descobertos.
- Simon! -exclamou Jane, horrorizada, parando bruscamente.
- Jane - gaguejou ele, arregalando os olhos ao reconhecê-la. - O que faz aqui?
- Isto...
- Tem dor de cabeça e necessita um momento de paz - respondeu Grayson, muito sério.
- Ah, bom - disse Simon, sem ver a expressão indignada de sua
irmã. - Este pavilhão sempre me acalma as dores de cabeça.
Experimenta molhar os pés no Lago das Pléyades. Eu os esperarei fora, não é?
- Fabulosa ideia - disse Grayson, olhando para Jane de esguelha. -
nos espere ao final do atalho.
- Bom, até aqui chegamos com minha acompanhante - comentou Jane, brincalhona, depois que Simon deu um amistoso tapinha a Grayson no braço e se afastou com a risonha lady Damaris Hill na outra direção.
- Pelo menos parecerá que estávamos todos juntos aqui - disse Grayson, agitando a cabeça. Fez um gesto para o escuro corredor que se abria do lado direito. - Ah, esse parece ser um lugar idôneo para uns momentos de paixão, não é?
- Pois não saberia dizê-lo.
- Não? - brincou ele.
Em seguida começou a caminhar por outro estreito corredor e ela seguiu sua alta figura, carrancuda. Inesperadamente o corredor deu lugar a um espaço em que havia uma série de borbulhantes lagos em forma de concha.
Ele se voltou para ela e olhou atentamente para seu rosto um bom tempo.
- O que está pensando, Jane? - perguntou-lhe com voz grave, irresistível.
Ela suspirou. A umidade do lugar deve ter subido à cabeça porque antes de perceber, disse:
- Nenhum jovem me trouxe jamais a um lugar como este. Jamais.
Ele esboçou seu sorriso preguiçoso e a olhou nos olhos.
- Não acredito. Um ou dois devem ter tentado.
Ela sentiu arder o rosto. Tinha o vestido úmido e grudado ao corpo pelo vapor da água. O calor do rubor foi se estendendo por toda a pele.
- Não, de verdade, ninguém tentou nunca.
- Então me permita que eu o faça - disse ele, lhe estendendo a mão, todo seu potente corpo envolvido pelo vapor. - Venha aqui.
Essa imperiosa ordem lhe acelerou o coração. Surpreendeu a si mesma aproximando-se dele, obedecendo a sua aveludada voz.
- O que quer? - sussurrou, com o fôlego retido.
- Complementar sua educação. -Inclinou a cabeça para a dela e seu cabelo loiro lhe roçou a face. - Dado que há deficiências evidentes, tomarei um momento para que viva a experiência que lhe faltou.
- Que cavalheiresco.
- Não é necessário que me agradeça - disse ele, olhando-a com os olhos brilhantes como chamas.
Ela sentiu arder-se até os ossos com o calor de seu olhar.
- Isto não é... prudente.
Deslizou-lhe o indicador pelo contorno da mandíbula, lhe produzindo vibrações na pele.
- Há um tempo para ser prudentes e um tempo para ser imprudentes. Qual acha que é agora?
Seus olhos azuis de pálpebras entreabertas a enfraqueciam, aceleravam-lhe o coração.
- Acredito que...
Nos olhos dele ardeu uma chama de desejo e ela não pôde desviar o olhar. Sua sedosa voz a adormecia.
- Seja um pouquinho imprudente, Jane, só por uma vez. Só por um momento.
Pegou-a em seus braços, toda trêmula, e desceu o rosto para o seu.
Antes que sua firme boca a tocasse sequer, sentiu-se totalmente desorientada, como se estivesse virando como um pião. Ele desceu mais a cabeça e ela sentiu a carícia de seu fôlego no pescoço. O fogo do inferno, pensou vagamente, arqueando as costas. São as chamas do
tentador e eu vou entrando bem disposta em seu centro de calor branco.
Percorreu-lhe os lábios com a língua, com uma delicadeza tão sensual que lhe enroscaram os dedos dos pés dentro dos sapatos de seda. Então lhe pegou suavemente o lábio inferior com os dentes e quase lhe dobraram as pernas. Sentiu um estremecimento de desejo no fundo dela. Ele introduziu a língua em sua boca e a ela lhe escapou um gemido de prazer. Através da camisa de linho sentia os fortes batimentos de seu coração, semelhantes aos seus. O calor de seu duro corpo lhe acendeu uma chama no ventre, que se foi estendendo em ardentes círculos.
Assim isso era o que fazia com que Nigel e sua preceptora desafiassem o mundo. Isso era o que convertia mulheres sensatas em insensatas e imprudentes.
- Bom - murmurou ele, com a voz rouca e sedutora. - Não tinha ideia de quão boa é para a imprudência.
- Como se eu estivesse no comando, demônio.
Ele riu sem poder evitar, e a estreitou com mais força, aumentando a pressão de suas mãos ao redor dela. Muito esperta para seu bem, pensou. Ou para o bem dele. Ela nunca acreditaria que ele não tinha tido a intenção de fazer isso.
- Diga e pararei - lhe sussurrou ao ouvido.
- Não, ainda não.
- Ainda não? - brincou ele, atormentando-a. - Minha escrupulosa pombinha alberga paixão em alguma parte? Mostre-me Jane. Conte-me seus segredos.
Voltou a beijá-la e, gemendo de prazer, a fez retroceder até deixar as costas apoiada na parede, esmagando seus pulsos na parede com os antebraços. Sua boca era doce, gosto de morangos. Sua pele ardia com o calor sensual de uma mulher excitada, e de repente se surpreendeu pensando quando, se alguma vez, viu-se obrigado a refrear tanto o
libertino que havia nele, que maquinava seduções, que ansiava liberar a tensão sexual que lhe enroscava por todo o corpo. Surpreendia-o o intenso e doloroso desejo que lhe provocava.
Essa situação era vergonhosa. Sua intenção era lhe restabelecer a reputação e lhe roubava beijos às escondidas. Grande herói era. Mas...
Mas o fazia sentir algo. Não tinha muito claro o que. Emaranhava-lhe os sentidos. Fazia-o impossível conter-se.
- Desejo devorá-la - lhe sussurrou.
- Sim, Sedgecroft? - murmurou ela, apertando os ombros à parede, para afirmar-se, para combater a sensação de ir caindo em um vazio negro, ardente.
- Estou perdido - disse ele com a boca junto à sua. - Salve-me, Jane.
- Salvá-lo? - sussurrou ela.
Sentiu mover-se brilhantes arcos de cor atrás dos olhos; suspirou quando o fôlego dele lhe produziu vibrações de desejo ao longo da clavícula e logo seguiu pela elevação de seus seios por cima do decote, até que seus rosados mamilos se endureceram e esticaram o fino tule.
Olhou sua cabeça. Ele levantou lentamente o rosto e a olhou nos olhos, olhos nublados pelo desejo.
- Sou eu a quem necessitam que salvem - disse então ela, suspirando. - Me sinto...
- Melhor que tudo o que acariciei em minha vida. Querida Jane, não duvide nunca, nem por um momento, de que é desejável.
Ela escrutinou seu formoso rosto, o rosto que provocava sua queda, fascinada. Esses olhos azuis a escrutinavam com descarada sensualidade. Azul, a cor do céu de meia-noite, a cor do pecado.
- Feche os olhos - murmurou ele, peralta, lhe esfregando o molhado lábio inferior com o indicador.
Ela os fechou, e ele voltou a beijá-la na boca, absorvendo avidamente seu suspiro de excitação, seduzindo com a língua todo seu
corpo, até o último fôlego.
Sentiu passar por toda ela a excitação e o despertar sensual, em vibrantes ondas. Suas a pernas enfraqueceram e lhe dobraram os joelhos, que estavam presos e seguros pelas pernas dele, duras como o ferro. Combateu o desejo de apertar todo o corpo ao dele. Arqueou ligeiramente as costas.
Grayson não pôde evitar reagir a isso, mesmo que percebesse que ela estava em dificuldades. Investiu com os quadris, em um movimento instintivo. Em sua mente, já estava dentro dela. Sentiu o involuntário estremecimento que desceu pela coluna dela. Em seu duro peito sentia a pressão de seus seios ao mover-se com sua agitada respiração.
Desceu as mãos pelas incitantes curvas de seu corpo, seguindo os contornos de suas costelas, pressionando, apalpando, esculpindo esse corpo maduro que o tentava sem piedade. Desejou lhe arrancar o vestido com os dentes.
Não achava que houvesse muitas jovens capazes de converter um beijo furtivo em uma crise de autodomínio. Na realidade não poderia nomear nem a uma sozinha.
E não era que outras damas não se entregassem ao prazer atrás de portas fechadas. Mas Jane contribuía com uma atraente novidade e frescor ao proibido.
- Sedgecroft - disse ela, fazendo uma profunda inspiração.
Ele se afastou ligeiramente, exalando um suspiro de autêntico desejo em seus cabelos.
- Sim?
- O que estamos fazendo? - perguntou ela, com a voz trêmula.
Sua primeira finalidade, disse a si mesmo, tinha sido fazê-la sentir-se uma mulher desejável, lhe demonstrar que a rejeição de Nigel não fazia com que deixasse de ser atraente para um homem.
E o tinha conseguido até um extremo humilhante. Ardia-lhe o corpo
de desejo; fervia-lhe o sangue nas veias de um desejo tão intenso que não recordava haver sentido nunca antes. Seria possível, pensou, que a dama albergasse um pouco de boa travessa picardia debaixo de sua carapaça de decoro? Não. Descartou essa sugestiva consideração. Os motivos mais negros eram próprios de homens como ele e suas mundanas amantes, não de jovens de pele rosada com nata de impecável criação. Uma lástima, para os dois.
- Acredito que ouço vozes acima - sussurrou ela. - Escute.
Esse sussurro rompeu o feitiço.
Inclinou a cabeça e franziu o cenho, aborrecido consigo mesmo.
Céu santo, em seu ataque de luxúria se esqueceu completamente de Chloe.
- Tem razão, e uma dessas vozes parece ser a de minha irmã.
Jane alisou e arrumou o enrugado vestido, sentindo-se arder por toda parte. Não estava bastante serena e composta para apresentar-se ante ninguém. Jamais em sua vida havia sentido essas tempestuosas emoções. Necessitava tempo para recuperar-se.
- Vamos nos apressar - disse ele, lhe agarrando a mão, já recuperada sua habitual arrogância. - Este é um momento muito importante.
- Não a ouço gritar pedindo auxílio - sussurrou ela, aborrecida.
- Por isso é muito importante - respondeu ele, levando-a quase a rastros pelo corredor em direção a uma estreita escada iluminada por tochas. - O silêncio indica submissão.
- Terei presente isso no futuro.
Ele virou a cabeça e olhou o rosto oval ruborizado. Duvidava que ela tivesse uma idéia do muito que tinha desejado possuí-la.
- Isso não foi uma crítica a sua conduta. Nós dois sabemos que é bastante sensata para decidir quando parar.
- Sou? - balbuciou ela.
Nesse momento chegavam ao último degrau e se acharam ante uma acolhedora saleta de teto elevado, tão pequena que só continha um banco em forma de divã e...
Ali estava sentado um jovem com casaca militar azul e botas hessianas, e a seu lado uma conhecida jovem de cabelo negro azeviche, com a cabeça apoiada em seu ombro.
- Perdão, interrompemos algo? - disse Grayson, com uma voz tranqüila, controlada, que ficou vibrando no silêncio.
O oficial se levantou de um salto e ficou olhando, com o rosto sombrio de medo, a alta e imponente figura que parecia gigantesca ante ele.
- Milorde, me permita que explique.
- Acredito que entendo muito bem o que estava acontecendo -
respondeu Grayson, afastando com uma mão o apavorado tenente como se fosse uma mosca. Seus olhos azuis brilhavam de fúria. - Falava com minha endemoniada irmã.
Chloe se levantou graciosamente e o rosto foi se cobrindo de rubor ao ver Jane atrás de seu irmão.
- O que faz aqui, Grayson?
- O que faz você aqui?
- Poderíamos falar disto depois? - propôs ela, em um tom que revelava arrependimento e rebeldia.
O oficial deu um passo para interpor-se entre eles. Justo antes que Grayson girasse para ele, Chloe lhe fez um dissimulado gesto indicando o divã, dizendo:
- Deixe comigo, William.
- Não quero que a castiguem - disse ele, torpemente, sentando-se, e engoliu saliva ao ver que Grayson dava um passo para ele.
Jane passou junto à rígida figura de Grayson e se sentou ao lado do oficial.
- Não lhe diga nenhuma só palavra mais - lhe aconselhou em um sussurro.
Esse lado de Sedgecroft era muito diferente do que tinha visto nele.
Ah, que gênio tinha.
- Mais é que eu desejo me casar com ela - disse o oficial, retorcendo seu colete entre as mãos. - Quero lhe pedir sua permissão.
Jane não pôde deixar de sorrir ante essa romântica coragem. O
grande idiota não tinha a menor possibilidade ante a indignação de Grayson.
- Quanto tempo faz que se conhecem? - perguntou-lhe em voz baixa.
- Alguns dias - respondeu ele, olhando para Chloe com angustiosa adoração - Nunca em minha vida estive tão apaixonado. Entende o que quero dizer?
- Bom - Jane desviou os olhos para o marquês, sentindo o corpo ainda quente pelo contato com seu muito musculoso corpo. Entendia? -
Perguntou-se, sentindo preso o ar na garganta. Seria possível que uma pessoa entregasse o coração sem sequer saber? Teria algum controle sobre isso a pessoa, ou simplesmente acontecia?
Grayson e Chloe estavam encetados em uma acalorada discussão, os dois com suas emoções a flor da pele. Grayson a ameaçou enviá-la para viver com uns tios no campo se não controlasse seu comportamento.
- Você também poderia partir. Não posso dizer que esteja vivendo tendo dia e noite seu fôlego no pescoço.
Jane não soube decidir a qual dos dois defender, nem se atreveria a intervir. Grayson era francamente eficiente em sua fúria protetora, passeando ao redor de sua irmã ao mesmo tempo em que a exortava.
E Chloe era ou muito valente ou muito idiota ao enfrentá-lo. Ele parecia muito capaz de cumprir sua ameaça.
Aproximou a cabeça ao jovem tenente e lhe sussurrou:
- Eu em seu lugar sairia sigilosamente daqui enquanto ainda tem tempo. Parece que está terrivelmente zangado.
O jovem contemplou os largos ombros de Grayson e seu rosto furioso, e aparentemente reconsiderou sua situação.
- Acredita que Chloe compreenderá?
A opinião de Jane era que Chloe estava tão confusa que nem sequer sabia o que pensava ou queria.
- Acredito que ela pode levar melhor isto sozinha - disse amavelmente. - Também acredito que não desejaria vê-lo morto por...
por um momento de imprudência.
O jovem se levantou, calculando qual seria o lado mais seguro para passar junto aos irmãos.
- Seguirei seu conselho então - disse, e a olhou como se a visse pela primeira vez. - Que estranho é achar a uma mulher como você, formosa e sensata ao mesmo tempo. Posso me atrever a esperar que apresentará minhas desculpas a lady Chloe?
- Vá - sussurrou-lhe Jane - O marquês o dobra em tamanho.
E é dez vezes mais imponente, pensou.
Sem necessitar mais advertências, ele desapareceu pela escada. E
muito a tempo, por certo. Grayson tinha terminado sua furiosa diatribe; Chloe estava de frente à parede, com seus brancos braços cruzados sobre o peito e seus olhos azuis brilhantes de lágrimas de humilhação contidas.
Que o jovem oficial se apaixonara tão impulsivamente por Chloe não surpreendia a Jane absolutamente. Aparentemente, todos os Boscastle viviam com paixão cada momento de suas vidas, e era evidente que estimulavam a fazer o mesmo a aqueles que cruzavam em seu caminho.
Uma família muito apaixonada, pensou, olhando para Grayson avaliadora. O furioso olhar dele se encontrou com o seu, e o coração lhe
deu um salto ao ver as fortes emoções que expressavam seus olhos.
Não se atreveu a dizer nenhuma palavra, por medo dele explodir.
Bom, podia lhe criticar muitas coisas, mas teria que elogiá-lo por tentar proteger a sua irmã, mesmo que tivesse passado um pouco dos limites. Talvez sua paixão pela vida se transbordava sobre outros aspectos de seu caráter.
- E o que foi feito de nosso don Juan? - perguntou ele, olhando o espaço desocupado ao lado doe Jane no divã. Parecia decepcionado por não ter a ninguém a quem assassinar.
- Lembrou-se que tinha uma entrevista - respondeu ela tranqüilamente.
- Bom, melhor para ele, porque sua próxima entrevista teria sido com o encarregado da funerária.
Jane limpou a garganta.
- Acalme-se, milorde. Já partiu.
Então Chloe se virou e seus chorosos olhos se fixaram em Jane.
- E o que faz ela aqui, por certo, depois de ontem? Vamos, Grayson, não me diga que a escolheu para convertê-la em sua próxima vítima.
Isso é tão típico de você que não o suporto.
Jane se levantou, certa de que tinha o rosto de todos os matizes de vermelho.
- Há uma explicação muito lógica.
- Que não daremos a ela - disse Grayson, em tom abrupto. - O fato é que me desobedeceu, Chloe, e demonstrou uma absoluta falta de juízo com seu comportamento de ontem à noite como de hoje. A nenhuma mulher decente surpreenderiam neste pavilhão com um homem.
Jane abriu a boca assombrada. Tinha ouvido mal o muito descarado?
- Vá procurar a um empregado e lhe diga para trazer a carruagem, Chloe - continuou ele, em tom severo, com as mãos em seus magros
quadris. - Já teve sua aventura do mês.
Chloe passou por seu lado e parou para olhar Jane compassiva.
- Eu em seu lugar fugiria dele e não olharia atrás.
- Esta dama só está aqui para proteger sua virtude - disse ele com voz acerada. - Não lhe ocorra voltar a insultá-la.
- Bom, é que é verdade, Grayson - replicou Chloe, levantando os ombros. - Jane é uma jovem decente e não tem idéia no que se converterá quando você dizer...
- Basta, Chloe - interrompeu ele, com os olhos ardentes como brasas.
- É verdade - insistiu ela, obstinada.
Jane balançou a cabeça de lado a lado, penalizada pelos dois, e disse, olhando para o chão:
- Chega disso, por favor, os dois. Estão muito zangados para falar de maneira racional.
- Fuja dele, Jane - sussurrou Chloe, limpando a face com o dorso de sua mão enluvada.
Escureceu-se o rosto dele. Jane teve a impressão de que estava tão magoado como sua irmã mas não sabia o que fazer. Um par de temperamentos titânicos.
- Desta vez me levou ao limite - resmungou ele.
- Sinto muito, Jane - murmurou Chloe, lhe tocando a mão. - Lamento tê-la insultado, mas lamento mais ainda que tenha caído nas garras de meu irmão.
- Chloe! - rugiu ele.
Ela passou a toda pressa a seu lado e desapareceu na estreita escada, e seus passos ressoaram nas paredes de pedra do pavilhão.
Grayson ficou olhando o vazio da escada por onde tinha desaparecido, com uma expressão tão desconcertada que Jane teria sentido lástima se ele soubesse levar melhor a situação.
Capítulo 9
Grayson passou a mão pelo cabelo, com expressão confusa, e algo tímida, considerando o resultado do enfrentamento.
- Bom, Ah, que cena - disse, tentando brincar. - Não percebem as jovens quanto custa mantê-las afastadas dos problemas?
- Tanto como custa a homens como você nos trazer aqui?
Ele franziu o cenho.
- E o que quer dizer com isso?
- Nada. Nada absolutamente.
Ele entrecerrou os olhos, desconfiado.
- Defende essa diabinha?
Ela mordeu o lábio, ansiando lhe dizer que se comportava como um valentão.
- Não sei - disse por fim.
- Defende-a - disse ele, absolutamente atônito. - Não é verdade?
- De acordo, suponho que sim - respondeu ela, também olhando-o carrancuda.
Ele parecia verdadeiramente perplexo.
- Por quê?
Ela passou a seu lado e começou a descer a escada. Adulava-a que lhe importasse sua opinião, mesmo que fosse a pior pessoa do mundo para lhe pedir uma opinião sincera.
- Foi muito duro com Chloe, não acha? - disse, parando para olhá-lo por cima do ombro. - Toda essa tolice de que eu estava aqui só para proteger sua virtude e sua ameaça de enviá-la fora da cidade. Assustou-nos de morte aos três.
Ela seguiu seu enorme corpo quente e agradavelmente amedrontador na penumbra. Estava zangado com ela também, compreendeu Jane, embora tivesse dominado muito a raiva.
- Me perdoe Jane - lhe disse friamente - por tentar proteger a minha
irmã de atraí-la a desonra.
- Continuo pensando que poderia ter levado o assunto com um pouco mais de tato - respondeu ela.
Estava resolvida a manter-se em sua opinião, por escorregadio que fosse o terreno que pisava. Mas então vacilou, comovida pela expressão de confusão que viu em seus olhos. Pode-se culpar a um homem por tentar ser pai e mãe de seus irmãos e fracassar infelizmente na tarefa?
- Estou preocupado com Chloe - disse ele então. - Éramos os melhores amigos do mundo antes da morte de nosso pai, e após isso tenho a impressão de que nem sequer a conheço.
- Talvez ela sente o mesmo.
- O que quer dizer?
- Talvez ela tampouco a entende, Grayson. Talvez devesse lhe dar um pouco mais de liberdade.
Um cenho escureceu suas angulosas feições.
- Jane, acho que é você quem não entende. - Pegou-lhe o queixo e levantou seu rosto para o seu, lhe acariciando por debaixo com o polegar. - Teriam surpreendido você sentada em um sofá beijando um homem a quem mal conhece?
Sua carícia lhe fez descer um ardente estremecimento até os dedos dos pés. Fez uma lenta inspiração.
- Até ontem, poderia ter respondido essa pergunta com muita convicção - respondeu. - Sedgecroft, que hipócrita é.
Ele piscou, totalmente desconcertado.
- Sou um hipócrita?
- Sim!
- Não sou - disse ele, sobressaltado e divertido ao mesmo tempo.
- Ah, não? O que acha que estávamos fazendo há uns minutos? Ou a conduta imprudente é tão normal para você que nem sequer percebe?
Ele desceu seu belo rosto para o dela.
- Não esqueci. Acredito que você tampouco. Foi algo, não?
- Teria a bondade de não se desviar do assunto? Isso é uma regra muito importante da conversa.
Ele curvou as comissuras da boca, nesse sorriso que tinha feito fraquejar os joelhos de mulheres muito mais fortes que ela.
Retirou-lhe a mão do queixo, mas sua sensual boca continuou a só uns dedos da sua. Seu magnetismo a distraía.
- Não era beijar o assunto?
- Essa é uma tática de distração para me desviar do verdadeiro assunto.
- Sim? E no que a desviei se pode saber?
- O verdadeiro assunto - disse ela energicamente, desejando ter força para resistir a tentação de entregar-se aos prazeres que prometia sua incitante boca - você e eu somos culpados do mesmo pecado pelo qual repreendeu Chloe e seu oficial.
Toma, já está. Tinha conseguido expor seu argumento e resistir a ele ao mesmo tempo, esforço que a deixou totalmente esgotada. A ver se podia ele refutar essa lógica.
- Isso foi diferente - disse ele alegremente.
Ela abriu sozinha a boca, afogando uma exclamação de surpresa.
- Como se chega a essa surpreendente conclusão?
- Para começar - disse ele, com uma tranqüilidade que a enfurecia -
meus motivos não são duvidosos. Assumo toda a responsabilidade de meus pecados. Contrariamente à crença generalizada, não tenho o costume de seduzir todas as mulheres que conheço.
- É um descarado casto?
- Casto não, seletivo - replicou ele. - Não tenho a menor ideia de por que minhas poucas indiscrições despertam tanto interesse em todo mundo.
- Levou duas de suas amantes ao meu casamento!
- Mais alguém me viu nos braços dessas mulheres?
- Não, claro que não. Era uma capela, afinal.
- Bom, então. Ninguém pode apresentar nenhuma prova de que sou um réprobo.
- O que o mundo civilizado tenha medo de confrontar a respeito de seus pecados não absolve eles de maneira nenhuma.
- As provas, Jane? - disse ele rindo, e o rouco som de sua risada lhe fez descer um estremecimento pelas costas - as testemunhas?
- Voltemos para ponto em que estávamos, Sedgecroft - disse ela, consciente de que a tinha distraído. - Ao tema da conversa. Se quiser que Chloe se comporte de maneira decorosa, não basta que a ataque com sermões e ameaças. Deve lhe dar exemplo.
Ele fechou e abriu seus formosos olhos azuis.
- Esse é justamente o motivo de querer emendar sua situação, Jane.
Por isso a estou ajudando a corrigir o escândalo em que meu primo converteu sua vida. Para demonstrar a minha família como deve comportar um Boscastle.
- E de que maneira o demonstra me beijando neste pavilhão?
- De acordo, reconheço. Isso foi um ligeiro desvio no caminho de minhas decentes intenções. Danificou algo?
- Bom.
Ele sorriu. Sua intenção tinha sido ajudá-la, sará-la. Era uma mulher muito especial, e talvez sua personalidade fosse muito forte para Nigel.
Talvez a traição de seu primo lhe tinha alterado a percepção. Havia se sentido impotente e delicada em seus braços. Mas em sua mente não estava indefesa. Ah, não, absolutamente; tinha armas escondidas que atacavam um homem antes que este pudesse levantar um escudo.
Levaria tempo para voltar a confiar em um homem. Podia confiar nele?
Disso não estava certo.
- Poderia ter continuado beijando-a dias e dias - murmurou,
pesaroso. Movendo a cabeça lhe seguiu com o polegar a proeminente curva da maçã do rosto. - Não se importaria, não é verdade?
A sensação lhe penetrou nos músculos, uma deliciosa vibração que propagou aos braços e pernas.
- Dias e dias? Não é um pouco exagerado isso?
Ele riu suavemente, lhe deslizando as pontas dos dedos pela curva da garganta até parar no branquíssimo ombro.
- Meses, inclusive. Anos.
Ficou preso o fôlego dela na garganta ao sentir o contato dos botões de sua jaqueta nos seios, lhe roçando os desejosos mamilos. Ele deslizou a mão por seu ombro em lentas e incitantes espirais, em lentas carícias capazes de aniquilar e liquidificar o corpo de uma mulher, e ela descobriu que tratando-se de resistir à paixão Boscastle não era muito mais forte que o resto dos mortais.
- Tem uma pele muito suave - murmurou ele - Acredito que nunca havia sentido uma tentação tão forte. Desde o momento em que a vi ante o altar não fui totalmente eu mesmo. Fora de meu papel habitual me sinto torpe, inseguro de minhas palavras, pelo que se espera de mim. Nem sequer sei se pode confiar em mim, Jane.
Tinha a boca tão perto da sua que quase a tocava. Sentia em seus lábios o entrar e sair seu quente fôlego, o poder de seu musculoso corpo apertado ao dela. O desejo lhe percorreu os lugares secretos de seu corpo. Com que facilidade a poderia levar pelo mau caminho, pensou.
Que sedutor era ao lhe falar de seus sentimentos. E torpe? Vamos, isso nem por um segundo.
Engoliu saliva.
- Isto é o que quer dizer dando exemplo?
- Sim - disse ele, fazendo uma inspiração, com sua firme boca curvada nas comissuras.
- Ouvi bem?
- Se fôssemos Chloe e seu oficial - disse ele em voz baixa, olhando-a nos olhos - ainda estaríamos nesse divã. Você não estaria me fazendo perguntas. Muito possivelmente estaríamos a ponto de fazer amor.
Ela desceu os olhos, pensando se de verdade podia acreditar nessa tolice. Aparentemente seu corpo achava, a julgar pelos rápidos retumbos de seu coração.
- Penso que não...
- Não. Duvido que esteja pensando, Jane. Nem falando. Estaria muito ocupada me deixando que lhe desse prazer.
Ela levantou os olhos e olhou atentamente seu rosto anguloso, de planos fortes. Se antes a diversão dava a suas feições uma beleza de sátiro, nesse momento a estava olhando um rosto com os olhos escurecidos pelo desejo. Não tinha idéia se falava a sério ou simplesmente repetia frases usuais, de alguma de suas famosas seduções. Mas sabia que desejava tanto que a beijasse que todas as veias de seu corpo vibravam pelas correntes do desejo e a necessidade.
Lhe abrandaram os lábios, lhe incharam os seios, e seus turgentes contornos pressionaram ligeiramente os fortes músculos do peito dele.
- Não – ela disse, falando como quando uma dama decente se desespera por conservar a sensatez. - Está equivocado.
Agitaram-se as narinas dele, o macho aspirando o aroma do desejo da fêmea.
- Estou equivocado?
Então desceu a boca à dela, e sentiu a rajada de sensações, que ela certamente estava experimentando com a mesma intensidade que ele.
Sentiu-a abrandar-se apertada contra seu corpo e notou que lhe dobravam os joelhos. Soltando uma maldição em voz baixa, segurou-a, lhe agarrando os antebraços. No escuro lugar de seu cérebro que não estava excitado por ela compreendeu que estava se desviando de sua finalidade. Teria que parar se não quisesse fazer mais mal que bem.
Sim, aí estava o defeito em sua forma de raciocinar. Não tinha previsto que as melhores intenções podem causar problemas maiores dos que se pretende resolver.
A contra gosto se afastou e disse, tristemente:
- aí está a diferença.
Jane fez um esforço para recuperar embora só fosse uma aparência de normalidade. Sentia-se como uma fruta madura arrancada da árvore e atirada no chão. Teria desejado que ele continuasse? Não. Sim. Sim.
- A diferença? - perguntou, confusa. - Ah, compreendo. Quer dizer entre Chloe e seu oficial e nós?
Saiu-lhe a voz trêmula. Perceberia ele? Tremia-lhe todo o corpo.
Notaria ele? Claro que sim. Tinha produzido esse vergonhoso desequilíbrio, e não havia mais que olhá-lo aí, tão indiferente como um poste para amarrar os cavalos.
- A diferença entre nós e eles - continuou ele, em tom algo pomposo
- está no caráter.
Ela se virou e continuou descendo o resto dos degraus, afirmando-se na parede para não cair na escuridão. Como podia ele falar de caráter quando esteve a ponto de agir seguindo seus impulsos mais básicos, escapava a sua compreensão. Com certeza até as pedras desse pavilhão estavam impregnadas com alguma beberagem para incitar a paixão. Tomara quando estivesse fora limpasse sua cabeça.
- Somos discretos - acrescentou ele, seguindo-a. - Chloe me desobedeceu e me enganou para encontrar-se com esse homem hoje.
Não poderia imaginar você, Jane, chegando a esses extremos. Não consigo imaginar implicada em um engano. Você sim?
Ela conseguiu gaguejar uma resposta evasiva e começou a correr para sair do pavilhão sem ouvir a resposta dele. Estava surda a sua voz.
Quão único ouvia eram os sinos tangendo lugubremente sua perdição no futuro.
Ele não podia imaginá-la implicada em um engano.
Jamais poderia lhe dizer a verdade.
***
Grayson não estava tão indiferente ao ocorrido entre eles como parecia. Saiu com ela do pavilhão ao calor da tarde, observando-a em cauteloso silêncio.
Vá, vá, quem o teria imaginado? A respeitável lady Jane confundindo-o e pondo-o nervoso até o fundo da alma. O que pensaria ela se tivesse uma mínima idéia de como o tinha desarmado, do interessante e incitante que achava essa situação? Ela tinha que ser um dos segredos melhor guardados da alta sociedade. Que outras surpresas teria reservadas? Jamais em sua vida o tinham excitado e repreendido com tanta profundidade em uma mesma tarde. Agitou a cabeça, estreitando os olhos para acostumá-los à luz, mantendo na visão periférica sua figura vestida em rosa.
Recordou o sabor doce de seus lábios, o brando e dócil que sentiu seu curvilíneo corpo apertado contra o seu. Olhando-a nesse momento, toda escrupulosa e distante dignidade, ninguém adivinharia que era capaz de reagir assim. Morria por saber que mais teria descoberto se a tivesse explorado um pouquinho mais. Que momento mais terrível para descobrir que continuava tendo consciência.
Olhou ao redor e o satisfez ver Simon e Damaris no final do atalho, esperando-os. Isso dava certo ar de respeitabilidade a seu breve desaparecimento, e ninguém poderia acusá-los de amores ilícitos. O de Chloe era outro assunto.
Quando foram chegando ao final do atalho pararam para lhe falar.
Com que era um hipócrita, não é? Esse comentário lhe magoou pouco, talvez porque era verdadeiro.
- Estará bem uns minutos se a deixar sozinha? - perguntou-lhe, nervoso. - Quero comprovar se Chloe já partiu para casa.
Ela o olhou nos olhos, e ele voltou a sentir outra onda de excitação pelas mais profundas curvas de seu corpo. Tinha o rosto colorido por um favorecedor rosa, e não parecia tão reservada nem tão digna como imaginara.
- Jane, está bem?
- Pois claro que estou bem. Por que não iria estar?
Sua arrepiada resposta o fez sorrir. Apesar de seu empenho em parecer serena, sabia que lhe tinha dado algo no que pensar. Com toda sua inteligência, ela tinha muito pouco conhecimento dos assuntos sensuais. O que tinham feito ela e Nigel todos esses anos juntos, pelo amor de Deus? Ao que parecia, não tinham se beijado.
Ridiculamente, esse pensamento lhe animou, embora tivesse que vigiar-se quando estivesse com ela no futuro.
- Fique com seu irmão - lhe ordenou amavelmente, olhando por cima da cabeça dela para os grupos de pessoas no parque. - Que ele cuide de você enquanto eu não estou.
- Posto que até agora fez tão bem seu trabalho de acompanhante?
Ele a olhou no rosto.
- Talvez devesse pedir que você o vigiasse. Parece ser a mais responsável.
- Não em algumas coisas.
- O que aconteceu no pavilhão não foi sua culpa. Foi minha.
- Apesar de tudo - disse ela em voz baixa - é impossível estar zangada com você. Suponho que é gastar saliva em vão tentar corrigir um homem que se acha superior ao mundo em geral. - Exalou um suspiro de desgosto - vá arrumar as coisas com sua irmã. Eu estarei muito bem, mas tente não voltar a perder a calma.
- Experimente controlar o clã Boscastle sem perder os nervos - disse ele, reatando a marcha pelo atalho. - No dia de Natal em nossa família quase se tem que pendurar no lustre para obter um momento de
atenção.
- Isso me disse Nigel.
Já estavam na borda da parte superior de grama, a só umas jardas das mesas de café da manhã. Simon e Damaris já se iam se afastando.
Grayson lançou um olhar feroz ao grupo de dandies que simulavam não estarem olhando para Jane. Isso era o que o impulsionava a reformar-se. Proteger jovens desejáveis dos jogos que em outro tempo jogava tão bem ele. Jogos que não lhe importaria jogar com ela nesse momento, por certo.
- Uma coisa mais - disse, cauteloso. - Observei com que frequência sai Nigel em nossas conversas, o que é totalmente compreensível, mas acredito que deve aceitar que se dentro da próxima semana mais ou menos não voltou para reparar as coisas, é possível que não volte nunca mais.
- Isso sei - disse ela, arrumando-se para evitar olhá-lo nos olhos. -
Estou... muito resignada.
- Não é preciso que se resigne a nada ainda - disse ele. Talvez tivesse sido muito franco - Encontraremos outro marido.
- Mas eu não quero... Ah, olhe. Aí está minha amiga Cecily, na última mesa, me fazendo gestos. Estarei bastante a salvo com ela, não acha?
A salvo de mim? Pensou ele, sorrindo, irônico. Será que a tinha assustado? Perdoaria a ele? Talvez tudo fosse melhor se não o perdoasse. Os sentimentos que lhe provocava lhe eram desconhecidos, e uma provocação mais que difícil a seu autodomínio.
Antes que ele pudesse lhe responder ela já ia se afastando a toda pressa. Sua expressão se tornou reflexiva observando-a reunir-se com o pequeno grupo de jovens que se viraram para saudá-la. Por um estúpido instante sentiu a tentação de lhe dizer que tomasse cuidado. Mas ela já o enfrentara a favor de Chloe, e saiu totalmente ilesa disso. Novamente
a maravilhou a estupidez de Nigel por abandoná-la. Havia mistérios em Jane que esse bobo jamais tinha detectado.
Capítulo 10
Jane voltou a recordar o velho provérbio: "Sair das chamas para cair nas brasas". Ainda um pouco aturdida por sua experiência com Sedgecroft, sentia-se sufocada no círculo de suas quatro fofoqueiras amigas. Teriam uma idéia de como lhe ardia o rosto? Perceberiam que ainda lhe formigavam os lábios por seus beijos?
Claro que todas sabiam o que lhe tinha acontecido no dia anterior.
Sua melhor e mais querida amiga, a honorável Cecily Brunsdale, filha de um visconde, tinha sido uma de suas damas de honra, testemunha presencial do fiasco. Não sabia que reação podia esperar das outras.
Compaixão, sobressalto, a generosa cortesia de fingir que o horrível acontecimento não tinha ocorrido jamais?
Mas o que certamente não tinha esperado era que o interesse delas por sua fracassada tentativa de matrimônio fosse tão fugaz. Sim, comentaram sua perda, mas só um breve momento. Isso era notícia de ontem, algo digno de compaixão, e de uns poucos sorrisos bem intencionados embora falsos. Muitíssimo mais interessante para essas quatro mariposas sociais eram os detalhes de seu romance deliciosamente surpreendente com o muito adorado marquês de Sedgecroft.
- Romance? - perguntou, aparentando não entender, ante o insistente cravejar de perguntas. Bom, agora sim tinha o rosto ardendo, como em um incêndio. - O que as faz pensar que tenho um romance com ele?
- Que outra coisa poderia ser? - murmurou uma delas.
- Uma mulher não entra em uma sala em que está Sedgecroft sem cair presa de seus encantos - disse a senhorita Priscilla Armstrong, auto proclamada perita nesses assuntos depois de três infrutíferas
temporadas.
Imediatamente saltou em defesa de Jane sua amiga Cecily, esbelta jovem de cabelo loiro cinza e olhos cinza claro.
- Tenho que lhe recordar, Priscilla, que Sedgecroft é primo de Nigel?
É seu dever ocupar seu lugar como acompanhante até que Nigel...
Até que Nigel o que? Perguntaram-se todas, olhando para Jane com os olhos dilatados, esperando alguma insinuação do que se poderia esperar.
Mas ela resistiu obstinadamente a revelar algo mais, ignorando a advertência de Grayson, de que um pequeno mistério a faria mais atraente ante a sociedade.
Não é que desejasse ser atraente, mas desejava não chatear Sedgecroft. Se seu comportamento durante as vinte e quatro horas passadas era um indício de sua pertinaz perseverança, não tinha o menor desejo de provocar sua raiva. Bom Deus, se já lhe era difícil tratá-
lo como amigo, como seria tê-lo como inimigo.
- Não tenho nada mais a dizer sobre o assunto - disse, sentindo uma aflição que se ia fazendo mais e mais real hora a hora.
Mas as quatro jovens quase não a ouviram; três delas estavam encantadas escutando a opinião da senhorita Evelyn Hutchinson sobre o tema Sedgecroft, homem ao qual evidentemente tinha observado e analisado com ardor acadêmico desde há bastante tempo.
- Sabem o que disse a criada de uma de suas ex-amantes?
- De qual? - perguntou lady Alice Pfeiffer, demonstrando que não era o que se diz ignorante sobre o tema.
- A senhora Parks - respondeu Evelyn.
- Diga-nos. - Ordenou Priscilla. - Jane tem direito de saber.
- Bom, eu... - começou a protestar Jane.
- Precisa saber a verdade - disse Cecily em voz baixa.
Jane não tinha muita certeza de querer saber a verdade. Sem
perceber estendeu o pescoço olhando à multidão, se por acaso via sinais de seu perturbador patife de olhos azuis. Era de esperar que não estivesse repreendendo outra vez sua corajosa irmã. Sentia-se atraída pela paixão de Chloe pela vida, e percebia um coração ferido debaixo de sua tenaz rebeldia. Deus santo, se ela fosse alguma vez o objeto dessa fúria leonina. E o seria, se ele descobrisse quão boa era para urdir diabruras.
Evelyn apoiou o leque no queixo.
- Uma noite a criada ouviu a senhora Parks confidenciar a alguém que Sedgecroft era como uma orgia para os sentidos femininos.
Jane pestanejou, atraída.
- Com certeza entendeu mal - disse; embora não lhe custasse acreditar.
Evelyn assentiu, com expressão ladina.
- Também disse que é melhor que não ocorra a uma mulher ir cavalgar no parque pelo menos até duas semanas depois.
- Oh, vamos, francamente - exclamou Cecily, desaprovadora, enquanto as outras assimilavam encantadas essa fascinante fofoca. -
Esse não é o tipo de revelação que eu tinha pensado quando a animei a dizê-lo.
- E lê o jornal da manhã enquanto executa certas atividades físicas com suas amantes - acrescentou Evelyn.
Priscilla se aproximou mais com os lábios entreabertos.
- Executa essas atividades pela manhã?
- Pela manhã, ao meio-dia e de noite - respondeu Evelyn, maliciosa.
- Satisfaz todos os caprichos de uma mulher.
Vários suspiros precederam ao silêncio que desceu sobre elas, até que Evelyn se sentiu obrigada a continuar:
- Passar um tempo em sua companhia é cair sob seu feitiço.
Sedgecroft é um homem que reflete bem antes de atuar. Uma vez que
decide fazer a jogada, é o fim.
- O fim do que? - perguntou Jane, com o pêlo da nuca arrepiado.
- O fim da virtude. O começo do vício. Já iniciou sua estratégia muito antes que sua vítima perceba o que ocorreu.
- Basta, Evelyn - advertiu Cecily, carrancuda.
- Embora nenhuma mulher que ele ame se consideraria uma vítima -
acrescentou Evelyn, passado um momento. - Um tesouro seria a palavra mais apropriada.
Voltou a cair o silêncio sobre o grupo.
Jane aproveitou um espaço que se abriu no grupo e afastar-se; já tinha experimentado bastante da perícia de Sedgecroft por um dia.
- Desculpam-me, sim? Pareceu-me ver meu irmão me chamando.
Cecily a seguiu, lhe falando em penalizado sussurro.
- Fui vê-la ontem à noite, mais seus pais a tinham encerrada. Como vai sobreviver a isto, Jane?
Jane olhou para o imenso parque de grama. Cecily era uma de suas mais velhas amigas e confidentes, quase tão íntima como Caroline e Miranda. Cecily só tinha três aninhos quando anunciou a todos os reunidos na igreja que tinha surpreendido o padre na sacristia com sua tia. Aos cinco anos cortou seu brilhante cabelo, que lhe chegava à cintura, para brincar de Robin Hood com seus irmãos. Aos onze cometeu o mesmo delito porque planejou fugir de casa disfarçada e converter-se em cavaleiro de corridas.
Não era de estranhar que ela a adorasse. Cecily tinha garra, e o duque com quem estava a ponto de casar-se, agradava-a muito. Mas nem sequer sua querida amiga conhecia seu plano com Nigel para frustrar o curso de um falso amor.
Por isso desejou poder ser sincera quando Cecily lhe pegou a mão e lhe sussurrou:
- Estava doente de preocupação por você. Se tivesse uma pistola
teria procurado Nigel para matá-lo. Acredite ou não, compreendo exatamente como deve se sentir. Foi muito valente ao dar a cara hoje, mais, Jane, é prudente isto?
"Há um tempo para ser prudente e um tempo para ser temerário".
- De todo modo vão falar de mim na alta sociedade, Cecily. Quanto antes enfrente isso, melhor.
- Não me referia à alta sociedade.
- Então...?
- A Sedgecroft.
- Ah.
Desviou o olhar para o parque e viu o homem extremamente bonito que vinha caminhando para ela, movendo todos seus músculos com graça natural. O coração lhe deu um salto quando ele a olhou. Ai, que monstro mais lindo. A seu pesar, voltou o olhar para o rosto angustiado de Cecily.
- Acredito que não tem por que preocupar-se por mim.
- É Sedgecroft, Jane. Um libertino consumado.
- Simplesmente vim tomar o café da manhã com ele. Nada mais.
- Sedgecroft não se limita a "fazer uma refeição" com uma mulher. A não ser que ela seja o prato principal.
"Café da manhã e esporte de cama", pensou ela, recordando suas próprias palavras, que voltavam para acossá-la.
- Tolice - disse firmemente.
Cecily olhou ao redor, ao perceber que não tinha toda a atenção de sua amiga. Arqueou as sobrancelhas ao ver aproximar-se o bonito marquês.
- Ah, falando do ruim de Roma... - resmungou. - Jane, por favor, me faça caso, suplico-lhe. Por favor. Está muito vulnerável. Sei o muito que a feriu Nigel, mais se associar com Sedgecroft... Bom, não se parece um pouco a caminhar com os olhos enfaixados pela borda de um penhasco?
- Olá, Cecily - saudou Grayson, olhando para Jane e situando-se entre as duas. - Como está seu pai? Ultimamente não o vi no clube.
Cecily o submeteu ao mais glacial de seus olhares. Sendo uma das amigas íntimas de Chloe, conhecia muito bem o encanto letal Boscastle, e sempre estava em guarda.
- Está muito bem, obrigada. E sua família? Todos pareciam muito saudáveis ontem na capela.
- Sãos e endemoniados, se me permite empregar essa palavra. -
Passou os olhos dela para Jane, e seus penetrantes olhos a olharam com um solícito interesse que ela sabia que era pura representação. -
Gostaria de dançar, Jane?
Cecily olhou intencionalmente a mão que roçou o ombro de Jane, e esticou os lábios, desaprovando.
- Agora não, obrigada - respondeu Jane, negando com a cabeça.
- Vamos buscar umas taças de champanha, então? - propôs ele, afastando-a de Cecily com a maior sutileza.
- Ah, champanha, isso iria fabuloso - exclamou Cecily, negando-se a captar a indireta. - Nos faria o favor de trazer aqui as taças, Sedgecroft?
Ele a olhou com a maior candura.
- Mais isso significaria deixar sozinha Jane outra vez, e não poderia ser tão grosseiro. Seja boa e vá nos buscar um empregado. Uma duquesa deve exercitar-se em dar ordens, não lhe parece?
Jane abaixou os olhos, por temor a pôr-se a rir, se não a chorar. Ai, Deus, a expressão de horror no rosto de Cecily. E Sedgecroft, o demônio, provocando assim sua pobre amiga.
Cecily sorriu, embora o sorriso lhe saísse frágil.
- Ah, isso me recorda, Jane. Na terça-feira à tarde irei cavalgar no parque com Hudson, e nos acompanharão suas sobrinhas e sobrinhos.
Viria conosco?
Grayson lhe sorriu.
- Nós adoraríamos, não é verdade, Jane?
Cecily o olhou boquiaberta.
- Quis dizer...
- Não estive com Hudson desde que fomos caçar nas Terras Altas -
continuou ele. - Talvez os quatro poderíamos ir à ópera mais avançada a semana.
Cecily não soube o que pensar de sua atitude. Era difícil achar um homem mais arrogante que Sedgecroft, e o pior era que Hudson gostava dele. Em incontáveis ocasiões tinha comentado que adorava Sedgecroft, um verdadeiro homem. Mas que intenções tinha por sua amiga? Seria possível que houvesse uma migalha de honra nele?
- Pensando bem, seriamente acha que Jane deve reatar suas atividades sociais tão cedo depois de... bom, depois de ontem? -
perguntou, com a voz afogada.
Ele sorriu levemente e virou Jane para o outro lado, para protegê-la.
- Acredito que sou muito capaz de cuidar de Jane, embora admire sua lealdade durante este... digamos, este momento difícil. E agora, antes de partir, os dois iremos buscar-lhe esse champanha, Cecily. Tem o aspecto de necessitar algo forte.
- Não poderíamos ir os três? -propôs Jane em voz baixa, olhando por cima do ombro a sua pasmada amiga.
Passados uns minutos se despediram, acharam Simon e sua bonita acompanhante e tirou Jane da festa sem que tivesse provado outro bocado.
- Sedgecroft, sua maneira de tratar Cecily foi muito... muito...
- Não é necessário que fique me agradecendo - murmurou ele, levando-a quase pela força para sua carruagem. - Sua gratidão se subentende.
- Sim, Sedgecroft? Não sabe quanto me alivia isso.
Ele parou e franziu os lábios.
- Livre-me Deus de criticar o comportamento de ninguém que não seja um familiar, mas comecei a me perguntar se essa sua tendência à mordacidade não terá intimidado meu primo.
Ela não soube como reagir.
Ele pareceu desconfortável.
- Não deveria ter dito nada. Acontece que acho muito atraente essa tendência.
Atraente. Que ela enfrentasse a ele.
- O que? - disse, uma vez recuperada a fala.
- Até certo ponto. Lamento ter puxado o assunto. - Olhou-a sorrindo contrito. - Também o lamento se tiver parecido desatento hoje.
Jane lhe deu as costas, novamente estupefata. Uma amostra mais de sua atenção e estaria derretida dentro de seus sapatos.
A voz profunda dele por cima de seu ombro a fez dar outro salto.
- Tudo se deve a esta rebelião de Chloe - confessou, revelando o que evidentemente pesava em sua mente. - Não posso controlar todos seus atos, e tenho medo de que esteja empenhada em seguir um caminho para a autodestruição. A verdade é que em geral não venho a estas insípidas festas durante o dia. Estou em melhor forma de noite.
- Não é isso o que ouvi.
- Perdão?
Sentiu seu enorme corpo atrás dela, recordando envergonhada o que comentara Evelyn.
- Foi só uma fofoca - se apressou a dizer. - Diziam que de manhã...
bom Deus, esqueça que disse algo.
Seria verdade? Seria verdade que Sedgecroft lia o jornal enquanto fazia amor?
Ele a seguiu de perto até que subiram o degrau e estiveram dentro da carruagem; olhou-a brincalhão:
- Não faça caso das fofocas, querida.
Ela se virou para olhar para seu irmão, que ainda não tinha subido.
Começava a compreender que havia mais nesse homem do que viam os olhos.
- O que quer dizer?
- Descubra você mesma a verdade. - Esperou que ela se sentasse para sentar-se ele a seu lado e se inclinou para trás, escrutinando-a com seu ardente olhar. - Se tiver curiosidade a respeito de meus costumes pessoais, a única coisa que tem de fazer é me perguntar.
- Acredito que não me atreveria.
- Então não saberá nunca.
- Talvez em alguns casos, é melhor continuar felizmente ignorante.
- Mais não você, Jane. - Deu-lhe um brincalhão empurrão com o ombro. - Tenho a impressão de que sua curiosidade não começou a ser saciada.
Capítulo 11
Mal chegou a sua casa, Jane foi fechar-se em seu quarto, desentendendo-se da chuva de perguntas de suas curiosas irmãs.
Precisava refletir, sopesar.
Claro que só podia pensar em Grayson. Pensar em todos os detalhes, devagar, tranqüila. Quando estava com ele o cérebro deixava de funcionar, e só lhe permitia realizar as atividades mais elementares.
Nessa tarde teria pensado menos nele se não a tivessem comovido tão estranhamente todas as emoções que ele revelou quando gritava com sua irmã. Eram o carinho e o medo de um homem que por fim compreende que não pode controlar o mundo.
Pomposo Grayson. Tinha boa intenção, mesmo que seus torpes métodos, de mão dura, deixavam bastante a desejar. Não entendia por que se sentia tão cômoda com ele. Talvez se devesse ao fato dele não se escandalizar ou horrorizar facilmente pelas coisas que ela dizia ou fazia, e tinha feito algo muito horroroso.
Horrorizaria-o seu segredo?
Provavelmente sim, se pudesse julgar por sua maneira de tratar Chloe. Aparentemente, seu critério liberal se limitava somente à prerrogativa masculina de comportar-se mau.
Mas acontecesse o que acontecesse no final, no momento ele a fazia sentir-se valorizada, e nunca ninguém, além de seus cães, a tinham valorizado por si mesma.
Embora claro, na realidade Grayson não sabia quem era ela; nem o que tinha feito. O que pensaria se descobrisse a verdade?
***
Mesmo
que
o
dia
passado
com
Jane
tivesse
sido
surpreendentemente prazeroso para ele, Grayson não tinha a menor ilusão de que evitaria o enfrentamento que devia ter com Chloe essa noite. De todos seus irmãos, era sua irmã mais nova que o preocupava mais e com quem mais choque tinha. Possivelmente isso se devia ao fato de em muitos sentidos se parecerem.
Arrogantes. Aventureiros. Sempre inclinados a fazer suas as causas perdidas.
Atraíam-nos os problemas; estavam resolvidos a fazer das suas e aceitar as conseqüências.
Parou ante a porta de seu dormitório, preparando-se para outra batalha. Nessas ocasiões desejava que estivesse aí sua forte e férrea irmã Emma para fazer as honras. Ou pelo menos Heath, cuja força amável e flexível ao mesmo tempo desarmava eficazmente às mulheres.
Também lhe seria muito útil ter Jane a seu lado, embora depois o repreendesse. Ele era consciente de que para os assuntos pessoais tinha todo o tato de um aríete. Mas havia certas coisas nas quais devia manter-se firme. Gostasse ou não, era o cabeça da família. Devia ser obedecido.
Por que Chloe o desafiava a cada passo? O que podia fazer com
ela?
Abriu a porta. Não tinha a menor ideia do que devia dizer.
Ela estava sentada ante sua escrivaninha, com seu ondulado cabelo negro esparso sobre os ombros como a asa de um corvo. Parecia muito menina e vulnerável, embora adulta ao mesmo tempo. Ela endireitou as costas ao ouvi-lo entrar, mas não se voltou para olhá-lo.
- Ah, vem meu carcereiro. Faça o favor de deixar o pão e a água junto à porta.
- Chloe.
- Grayson.
Ele abriu a boca para falar, mas a fechou ao ver um desenho de Brandon sobre a escrivaninha. Brandon tinha sido o bebê da família, e o fervente defensor e companheiro de Chloe em suas travessuras de crianças. Sua morte, e logo a de seu pai, tinha-a deixado destroçada justo no momento em que deveria estar se preparando para se casar.
Novamente se culpou por não ter estado com seu pai e Chloe quando receberam a notícia de que tinham matado Brandon. Durante meses seu pai, Royden Boscastle, tinha suplicado, a ele, seu filho mais velho, que fosse passar uma semana na casa de campo e sair de caça e encontrar-se com seus amigos. E ele foi deixando para depois, prometendo que iria, sem saber que estava acabando o tempo para essa reunião familiar.
Acaso seu pai pressentiu sua própria morte? Não podia deixar de perguntar-se se teria continuado vivo se ele tivesse estado a seu lado para suavizar o golpe da notícia do assassinato de Brandon. Chloe e seu pai estavam sozinhos quando chegou a carta, e foi ela quem o segurou em seus braços, impotente e assustada, quando ele morreu. A comoção e a surpresa a fizeram mudar.
- O que pretendia fazer hoje? - perguntou-lhe tranquilamente.
- Não quero falar sobre isso.
Ele se sentou na borda do divã.
- Chloe, vire-se para mim e converse comigo. Vamos falar sobre disso.
Ela vacilou um momento, mas ao final se virou, com seus olhos azuis frios e magoados. Ele suspirou, com o coração aflito por ela.
- O que esperava que fizesse? - perguntou, aborrecido. - Era um soldado, pelo amor de Deus.
Ela golpeou a escrivaninha com a pena.
- Assim, se eu estivesse beijando um duque, teria dado sua aprovação?
- Não, claro que não. Mas pelo menos com alguém de sua classe, bom, se de verdade estivesse apaixonada, haveria uma opção de matrimônio.
Ela enterrou seus brancos dentes na borda do lábio inferior.
- E o que pretendia conseguir levando Jane para que presenciasse minha vergonha?
- Na realidade, Jane a defendeu.
- Alguém deveria defendê-la de você - exclamou Chloe, com seus olhos azuis, tão parecidos com os dele, como chamas.
- Chloe - disse ele, fazendo uma inspiração e passando por cima o insulto - não pode me dizer que de verdade está apaixonada por esse homem.
- Poderia.
- Eu não gosto deste giro insensato que deu - disse ele, negando com a cabeça, aborrecido. - Tampouco aprovo seu trabalho no Orfanato nem na Penitenciária para mulheres, com essas jovens desonradas e prostitutas.
- Ninguém se preocupa com elas, Grayson - disse ela, veemente, sua voz impregnada de paixão. - Não têm pais que delas cuidem.
Não têm pais. Seria tão aguda, tão forte, sua sensação de perda
pela morte de seu pai que se sentia mais confortável com esses seres angustiados que com seus familiares?
- Eu lhe quero bem , Chloe - disse, confuso, sem saber que outra coisa dizer. - Todos lhe queremos.
- Então me deixe viver minha vida como me agrada.
- Não, enquanto o que lhe agrada não receba minha aprovação. -
levantou-se, colocou suas enormes mãos nos bolsos e começou a passear por trás dela. - Talvez deveríamos lhe procurar um marido. Não sei. Alguém que nosso pai tivesse escolhido.
Uma sombra de pena lhe escureceu os olhos azuis, mas desapareceu antes que ele pudesse decifrá-la.
- Meu pai me teria deixado escolher.
- Nós dois sabemos que isso não é verdade - se apressou a dizer ele. - Era um tirano, Chloe, por muito que o quiséssemos. Sabia ser muito irritante às vezes.
Ela se levantou, com as faces acesas.
- Não diga isso - falou, aflita.
- Bom, é verdade. Isso não quer dizer que eu não o amasse. Nem que não sinta falta dele tanto como você.
- Quero ir ao Nepal - disse ela, inesperadamente.
- O que? -perguntou ele, atônito.
- Quero achar o cadáver de Brandon.
Ele exalou um longo suspiro. Não podia lhe dizer que era muito provável que os animais carniceiros não tivessem deixado nem um resto de seu corpo; que Brandon e seus companheiros tinham morrido em uma ravina ao caírem em uma emboscada dos rebeldes. Que ele soubesse, ninguém tinha revelado a ela esses horrorosos detalhes. Na realidade, ninguém sabia ao certo o que ocorreu, apesar dos esforços de Heath e Drake para descobrir a verdade.
- Isso de maneira nenhuma, Chloe - disse, negando com a cabeça
para dar mais ênfase.
- Isso é o que queria fazer nosso pai.
- Sim, ir ele.
- Devon disse que me levaria.
- Então vou retorcer o pescoço desse diabo quando chegar em casa
-disse ele, erguendo a voz simplesmente ao pensar no perigo que entranhava essa viagem.
Ela o olhou fixamente, tentando conter as lágrimas de desafio e de aflição.
- Algum dia farei exatamente o que quiser.
- Não se eu tiver opinião e voto no assunto.
Pôs-lhe firmemente as mãos nos ombros; ela ficou rígida e não o olhou nos olhos.
- Não volte a ver esse soldado - acrescentou, e a voz lhe saiu tão parecida com a de seu pai que fez um mau gesto.
- Em todo caso, com certeza o afugentou para sempre - resmungou ela.
- Isso espero.
Então ela o olhou nos olhos, com uma chispa de diversão.
- É possível que tenha afugentado Jane também.
Grayson reprimiu o desejo de rir, recordando a repreensão que jogou Jane em defesa de Chloe. Será que todos a subestimavam?
- Ficou do seu lado, se quer saber.
- Me agrada, Grayson - disse ela, exalando um longo suspiro. - Há alguma coisa terna, encantadora, nela. Por favor, não faça nada que possa piorar sua situação.
Ele a olhou surpreso.
- Chloe, em parte se deve a ti que eu me tenha convertido em seu amigo. Você me convenceu, durante o café da manhã depois do casamento frustrado, que o correto seria ajudá-la, e isso me fez pensar.
E sabe? É bastante curioso: também me agrada. É muito fácil falar com ela.
- Simplesmente não leve muito longe essa amizade - disse ela, em voz baixa.
Ele respirou aliviado, sentindo a tentação de estreitá-la em seus braços como à irmã pequena que sempre seria para ele. Assim Jane ia ser o terreno comum entre ambos, o elo para restabelecer sua danificada relação. Jane, sua sensata pacificadora e sedutora sem sabê-
lo.
- Acredito que Jane é muito capaz de cuidar de si mesma - disse. —
Em especial se continuarmos leais a ela.
- Isso espero - disse Chloe, sorrindo tímida. - Talvez ela faça aflorar o melhor que há em você.
- Não à besta?
Ela riu, a seu pesar, sem poder resistir a seu encanto.
- Pelo bem dela, espero que não.
Capítulo 12
Nos cinco dias seguintes, Grayson representou o papel de um atento pretendente, acompanhando Jane a festas ao anoitecer, a bate-papos e conferências, e inclusive a um jantar tardio com várias pessoas amigas no Clarendon. Introduziu-a nos sofisticados prazeres de seu mundo, um mundo rutilante ao qual só aparecia raramente.
Em lugar de estabelecer-se na aprazível escuridão que tinha desejado, bebiam a sua saúde libertinos e reformadores; fez amizade com atrizes, jogadores e pintores exilados de Paris. Fez uma visita cais para ver descarregar o último navio de Grayson que chegou da China, e em todo tempo estava muito consciente de que logo chegariam a seu fim esses prazeres ilegítimos.
E não desejava que acabassem.
Tinha começado a viver para os momentos em que gozaria de sua
maliciosa companhia. Jamais em toda sua vida riu tanto. Ele era arrogante, e considerado. Sentia-se tão atraída por ele que temia não ser capaz de dissimulá-lo.
Nesse dia tinham ido ver a subida de um balão no Green Park, e durante o trajeto de volta a casa, esteve perigosamente perto de confessar-lhe tudo. Era-lhe quase impossível suportar a tensão que lhe causava ocultar um segredo de um homem de sua experiência.
Especialmente, porque lhe confiava seus desejos, esperanças e medos.
Pensar que confiava nela lhe contando segredos de sua família enquanto ela continuava enganando-o. Não deveria ser o contrário? Não era o descarado quem enganava à dama?
Suspeitava que se ele não estivesse tão envolvido pessoalmente com ela, adotando o papel de herói, tão impróprio dele, poderia ser o tipo de homem que valorizasse o que tinham feito Nigel e ela.
O irônico era que, em outras circunstâncias, Grayson Boscastle seria justamente a pessoa a qual recorrer em busca de conselho. Seria o amigo mais leal e compreensivo que se poderia desejar. E ela desejava com todo seu coração merecê-lo.
Caroline e Miranda entraram silenciosamente no dormitório em penumbra e se aproximaram nas pontas dos pés para contemplar a esbelta figura de sua irmã estendida na cama de quatro postes.
Jane estava imóvel como uma efígie de pedra com um pano molhado em água fria sobre a testa e o cabelo esparramado sobre o travesseiro. Simulou estar dormindo até que seus nervos não lhe permitiram suportar nem um segundo mais essa silenciosa intrusão. Não podia continuar dessa maneira. Sua consciência não o permitia.
- Fora, as duas - disse entre dentes.
- Vamos, Jane - suspirou Miranda, compassiva - parece estar absolutamente angustiada.
- Muito possivelmente porque estou.
Caroline se sentou na cama.
- Eu tinha razão, então - disse, aflita. - Sedgecroft é horroroso.
- Não - protestou Jane, tirando o pano da testa e abrindo os olhos. -
É maravilhoso. É o mais maravilhoso que tive a desgraça de experimentar em toda minha vida.
Suas irmãs se olharam surpresas.
- Nos conte - disse Miranda, sentando-se ao lado de Caroline.
- Não lhes contarei nada.
- Se com isso quer dizer que a seduziu - sussurrou Miranda - na primeira semana...
- Não, não me seduziu - disse Jane, irritada. - Pode ser que me tenha beijado. Uma ou duas vezes.
- E por isso está deitada aqui às escuras? - perguntou Caroline, carrancuda.
- Se a tivesse beijado Sedgecroft, não faria essa pergunta tão estúpida. Talvez fosse incapaz de dizer algo coerente.
- Acredito que o julgamos mal - disse Miranda, passado um longo tempo de silêncio. - Pode ser muito encantador, se tiver a oportunidade.
- E alguém duvidava? - suspirou Jane, recordando muito claramente quão potente podia ser esse encanto. Isso é o que o faz um descarado de êxito.
- E como pensa resistir a ele? - perguntou Caroline.
- Com a maior dificuldade, asseguro-lhe. Pelo visto não sou tão imune a seu encanto como tinha esperado. Ainda tenho que me recuperar de nossa saída de hoje.
- Bom, será melhor que comece a se recuperar - disse Miranda, olhando o relógio da mesinha de noite. - Seu empregado Weed veio dizer que o marquês virá a pegá-la dentro de uma hora.
Jane se sentou alarmada.
- Para que?
- O baile anual na casa Southwick - respondeu Caroline. - É um dos principais eventos da temporada. Só a uns poucos favorecidos convidam a chegar cedo. Vamos, Jane, vamos todos os anos.
Jane olhou para o roupeiro, aterrada. Jamais se tinha visto tão desafiada sua aptidão para vestir-se na moda como nesses cinco dias passados. Não lhe tinha importado nada parecer uma pomba até que Sedgecroft jogou a luva, desafiando-a a sua diabólica maneira.
- De fato, seria agradável se tivesse tido a amabilidade de dizer- me
- grunhiu. - O que posso vestir?
- O de organza rosa claro com o xale de franjas - respondeu Caroline. - O de seu enxoval feito para o pedido de casamento.
- O pedido de casamento? - repetiu Jane, pensando vagamente se o rosa claro se consideraria rosa, e, portanto agradaria os gostos de réprobo de Sedgecroft. - Que recepção?
- O pedido que foi celebrar com Nigel - respondeu Miranda, brincalhona. - Nigel, o homem pelo qual chegou a extremos maquiavélicos para não se casar.
Com o cenho franzido, Jane desceu da cama e se dirigiu ao roupeiro sem calçar os sapatos, só com as meias.
- Sei muito bem quem é Nigel, obrigada.
- O vestido rosa claro não está no roupeiro - disse Caroline, olhando travessa a sua irmã. - Viemos com Miranda tirá-lo quando estava se recuperando, para que o arejassem e o engomassem.
Jane virou sobre seus calcanhares, irritada.
- A ninguém ocorreu que eu tenho direito a opinar nesta casa?
- Claro que tem - respondeu Miranda, em tom malicioso. - E isso foi o que a meteu neste problema com Sedgecroft.
- Não tem problemas com Sedgecroft - disse Caroline, olhando para Jane preocupada. - Ainda.
- Deveria chamar Amélia para que a penteie e lhe arrume o rosto.
Ficou pálida e magra.
- Não provei nem um só bocado em toda a semana, além de um morango! - exclamou Jane, sentindo que lhe escapava até o último vestígio de controle que tinha sobre sua vida. - Necessito sustento para tratar com esse homem. Não ocorreu isso a Sua Perversidade?
Caroline mordeu o lábio para reprimir um sorriso.
- Pois lhe ocorreu. Disse que haveria um jantar antes do baile.
Sugeriu que comesse uma maçã para a sustentar. O chef austríaco dos Southwick é divino, um absoluto gênio na cozinha. Sedgecroft disse que temos que chegar com apetite.
Jane olhou zangada sua imagem no espelho. Jantar e baile. Uma maçã. E outra ronda de resistir a Sedgecroft. A lembrança desse arrogante Adonis de olhos azuis beijando-a tirava-lhe o fôlego, debilitava-lhe as pernas. Ele era implacável em sua busca pelo prazer, e ela, com seu sentimento de culpa e essa sensação de iminente desastre, danificaria o que poderia ser uma noite de sonho. Por que não puderam seus pais procurar Grayson como genro desde o começo?
- E se não quiser ir? - perguntou, sem dirigir-se a ninguém em particular. - Certamente, dadas as circunstâncias, ninguém vai notar minha ausência.
Nesse preciso momento ressoaram umas pegadas no corredor e um instante depois se abriu a porta e lady Belshire apareceu. Tinha recolhido seu cabelo castanho prateado no alto da cabeça, seguro com forquilhas com cabeça de diamante. O vestido de tafetá dourado que mostrava sua juvenil figura brilhava como pó de estrelas na semi escuridão.
- Ainda não está preparada, querida? Bom Deus, por que estão as três aqui sussurrando na escuridão? Parecem ratinhos travessos em um quarto de crianças
- Miranda e eu já estamos preparadas, mamãe - disse Caroline.
- Bom, apresse-se, Jane - disse lady Belshire, ofegante, arrumando o lenço cruzado sobre o peito. - Sedgecroft acaba de chegar. Está todo de branco, elegante até os dentes. Devo reconhecer que faz muito boa imagem. Parece-me que os dois irão causar rebuliço.
- Fantástico - resmungou Jane. - Justo o que necessito, causar outro rebuliço.
Com a aparência de uma abatida rainha das fadas, Athena, lady Belshire, exalou um longo suspiro de desespero ante o rebelde comentário de sua filha mais velha.
Claro que o abatimento de Jane, pensou, não tinha nada que ver com o adorável marquês a quem ela, evidentemente, tinha julgado mal.
A triste verdade era que Jane não esqueceria seu amado Nigel em tão poucos dias, e o melhor que podia fazer sua família era distraí-la e lhe demonstrar que sua vida não tinha acabado.
- Quando fala dessa maneira tão imprópria - disse - mataria Nigel pelo que lhe fez. Mas deve ter presente o título Belshire, querida minha. -
Fez uma profunda inspiração, satisfeita pela forma como tinha decidido levar isso. - E agora tem Sedgecroft do seu lado.
- Sedgecroft - gemeu Jane, deixando-se cair na cama.
- Uma dama não poderia pedir melhor paladino - disse lady Belshire, esquecendo que não fazia muito tempo o considerava um libertino irresponsável. Mas claro, o que importava isso se ele aplicava toda essa avassaladora virilidade em ajudar a sua filha a sair da desonra. - Na realidade - acrescentou, pensando em voz alta - Estremece-me pensar o que fará quando achar Nigel.
- E não estremecem todas? - disse Miranda em voz baixa quando sua mãe desapareceu da porta.
Capítulo 13
Os jornais dessa tarde já sugeriam um interessante giro no escândalo do casamento Boscastle: Sir N realmente plantou a lady J ou
foi ameaçado pelo ramo dominante da família? Será que um certo marquês estaria esperando nos bastidores para atuar? Ou talvez foi esse belo conspirador que dispôs o cenário?
Isto expunha um mistério a respeito de quando começou realmente esse drama. Ou a respeito de como acabaria. Por que os pais de lady J
aceitavam tão publicamente esse assunto? Sir N teria desaparecido totalmente da face da terra? E a pergunta mais sugestiva de todas: Estava preparando-se outro matrimônio entre essas duas ilustres famílias?
Em poucas horas já não se falava de outra coisa entre os membros da aristocracia. As conversas se interromperam na casa Southwick quando os convidados viram Grayson e Jane juntos, embora ela não estivesse convencida de que não fora sua audácia para apresentar-se repetidamente em público e a popularidade de Sedgecroft o que gerava essa reação.
As damas decididamente tinham seus olhos postos em seu atraente acompanhante. Sua esbelta e elegante figura, e seu andar pausado quando atravessaram o salão de recepção fizeram voltar cabeças e agitar leques por toda parte.
A opinião de Grayson a respeito do interesse que causava sua aparição era diferente.
Sim, notava que as pessoas os olhavam; em especial os homens, e o desejo mal velado que via em seus olhos ao olhá-la, ratificavam-no em seu temor de que lady Jane Plantão fosse considerada uma mulher fácil.
Mas os ardentes olhares que dirigiam a Jane se apagavam imediatamente quando ele fixava seu esmagador olhar nos homens que se atreviam a degradá-la. Então se desviavam os olhares, e havia perguntas sussurradas e gestos de resignação. Ninguém tinha a coragem de desafiá-lo, nem por palavra nem por obra. Seu temperamento acomodado lhe tinha granjeado muito poucos inimigos,
mas era famosa sua lealdade para as pessoas que queria.
Naturalmente tinha visto os jornais. Não lhe incomodavam absolutamente as elucubrações de que estava cortejando Jane como uma possível noiva. Tal como predisse lady Belshire, isso parecia elevar o valor social de Jane, e ele estava contente por ser útil. De fato, tinha ordenado a seu secretário que não negasse nem confirmasse nada quando o interrogassem.
Bastaria um sorriso enigmático.
Farto de sua reputação de libertino, não lhe importava se os aristocratas achavam que estava considerando a possibilidade de casar-se com Jane. Um matrimônio entre eles era acreditável. Que importava que alguém pensasse que ele estava atrás do escândalo no casamento?
Que o apelidassem demônio, muito bem.
Na realidade, se tivesse conhecido Jane uns meses antes, teria...o que? Franziu o cenho, pensativo, escurecendo o rosto. Era provável que tivessem assistido a vários eventos ao mesmo tempo.
Entretanto, nunca se tinham cruzado seus caminhos. Por que não?
Em sua nebulosa memória viu Nigel se aproximado a ela, protegendo-a de um malandro como ele, para depois poder feri-la. Isso lhe recordou que só há duas horas tinha recebido uma mensagem de Heath a respeito do desaparecimento de Nigel e que teria que achar um momento para falar com ela a sós. Detestava danificar um agradável serão, mas ela tinha o direito de saber a verdade a respeito de seu primo.
- O grande idiota - resmungou.
Jane virou a cabeça e o olhou surpresa.
- O que disse?
- Nada. Que passe bem.
- Como? - murmurou ela, olhando os grupos de convidados que abarrotavam o iluminado salão. - Isto é uma tortura absoluta para mim.
- Ninguém a incomodará estando eu aqui. Ignore.
- Sempre é tão cegadoramente arrogante?
- Acredito que sim.
Instintivamente se aproximou mais a ela. Até o dia de sua morte seria um mistério para ele por que jovens inteligentes como Jane e Chloe podiam ver-se tão facilmente prejudicadas pelas opiniões de pessoas virtualmente desconhecidas.
Escapou-lhe o ar dos pulmões quando um convidado, sem querer, os fez chocarem-se. O corpo lhe acendeu de desejo ao sentir esse contato muito breve com o lado de seu peito e seu cotovelo. Desejou saber aí mesmo e nesse momento como era ela debaixo de seu vestido rosa claro, de que cor era sua pele em todos os lugares secretos.
O desejo de tê-la em sua cama foi tão intenso e terrível que teve que apertar fortemente as mandíbulas para evitar agarrá-la em seus braços.
Desviou o olhar, perplexo; não entendia como podia sentir esse desejo tão potente de seduzir uma mulher de quem assegurava ser amigo. Mas os ocultos indícios da sexualidade dela o desassossegavam mais e mais cada vez que a via. Ou seria seu caráter o que o atraía?
Que curioso que não soubesse discernir isso. Talvez uma característica realçava à outra.
Voltou a olhá-la. Tinha o aspecto de sentir-se tão absolutamente desgraçada que não pôde conter a risada.
- Sempre resiste tanto a desfrutar?
- Como devo desfrutar?
- Dance um pouco. Beba um pouco. - Fez um gesto a um empregado para que trouxesse para Jane uma taça de champanha. -
Converse comigo. Além disso - acrescentou alegremente, protegendo com seu alto e robusto corpo o dela - já que estamos aqui, bem poderíamos tentar passá-lo o melhor possível.
Sorriu-lhe e ele sentiu outro temerário desejo de pegar sua mão e
tirá-la dali para tê-la exclusivamente para ele. Só o trajeto em carruagem com ela o tinha posto de humor para uma noite de amor. Claro que ela era a única mulher do mundo que não devia possuir, o que poderia ter algo que ver com seu desejo de seduzi-la acariciando-a por toda parte.
E agora teria que afligi-la ainda mais lhe revelando o que dizia a breve mensagem de Heath. Teria que fazê-la chorar lhe explicando que, ao que parecia, Nigel tinha planejado sua escapada. Ah, bom, melhor deixá-la desfrutar de uma hora mais antes de lhe dar a notícia que lhe estragaria a noite.
Tinha descoberto que gostava muitíssimo de fazer Jane rir. Também gostava de irritá-la, só um pouco, o justo para ver brilhar esses olhos verdes com tantas e interessantes emoções. Talvez não fosse amável fazer isso, mas ao que parecia seus demônios não conseguiam resistir a ela. Seus demônios se sentiam atraídos por Jane de um modo inexplicável, desconcertante.
***
Jane estava passeando o olhar pela multidão de elegantes convidados em busca de suas irmãs quando Grayson lhe pegou suavemente o braço e a fez virar-se para ele.
- Procura Nigel? - perguntou-lhe.
- A Ni...? Ah, não, não! - respondeu, sentindo um nó na garganta.
- Não se preocupe - disse ele, sem sorrir. - Não tenho dúvida de que no seu devido tempo responderá ante os dois. Eu terei uma satisfação pessoal quando voltar a me encontrar com ele.
Escureceram os olhos dela ao ver a desumana resolução de seu rosto. Deus santo, muito em breve teria que responder ela ante ele.
- A não ser que tenha morrido - acrescentou ele, quase iludido.
- Eu... isto... espero que não tenha morrido.
- Ah, claro - disse ele, com um tom de desaprovação em sua voz grave. - Ama-o, por incrível que comece a me parecer essa idéia.
E amava Nigel, de certo modo; tinha-lhe carinho, tal como sentia carinho por Simon, ao tio Giles ou aos cães da família.
- Conheço Nigel desde sempre. Pôs um sapo em meu berço quatro dias depois que eu nasci, ao menos isso contam. Quando crianças éramos inseparáveis.
- Tem uma ideia de onde poderia ter ido?
- Ido? Bom, ouvi-o falar da Escócia uma ou duas vezes.
E falou, sim, como do último lugar bárbaro do mundo que gostaria de visitar. Nigel era o tipo de homem capaz de ficar sentado em uma poltrona junto à lareira o resto de sua vida. Ai, quanto detestava ser tão mentirosa.
-Escócia? - repetiu Grayson, carrancudo. - É curioso. Mais passarei essa informação a Heath.
Ela sentiu descer um calafrio, como gelo, pela coluna.
- Por quê?
- Porque Heath tem o instinto rastreador de um lobo. Tinha muitas aptidões para o trabalho que fazia no serviço de inteligência secreto.
Lobos. Serviço de inteligência. A envolvente sensualidade que brilhava nos olhos de Sedgecroft. Isso bastaria para que uma mulher com menos coragem se deixasse cair em um sofá. Jane sentiu que ia apertando mais e mais ao redor a rede de seu engano, afogando o senso comum, frustrando-lhe a escapada.
O baile era uma festa grandiosa. O mestre de cerimônias entregou uma rosa vermelha a todas as damas assistentes. Uma banda de músicos italianos deu um concerto durante o jantar, e depois se dispuseram três salas de jogo para os que queriam jogar cartas. Apesar do elegante ambiente, Jane não conseguiu relaxar nem um só momento, simulando que não se fixava nos olhares curiosos que lhe dirigiam todo o tempo.
Nunca lhe tinha acontecido isso antes. A verdade era que se não
tivesse Sedgecroft a seu lado não a considerariam uma pessoa tão interessante para continuar gerando rumores. E não era que não tivesse amizades, pois as tinha. Mas o escárnio que a rodeava se teria acabado logo. Teria passado feliz ao esquecimento antes que terminasse a temporada.
Mas ninguém se desentendia do marquês.
Era-lhe impossível não estar consciente dele, nem sequer um segundo, e o ter a seu lado tão atento e vigilante não fazia nada para lhe acalmar a ansiedade.
Sentia-se como se estivesse acompanhada por um enorme leão dourado que poderia tornar-se feroz a qualquer momento. Quem podia saber o que pensava realmente ele de tudo isso? Esses olhos azuis de pálpebras entreabertas não revelavam nada, e continuava tendo a terrível sensação de que pagaria caro seu engano.
Ele dançou com ela duas vezes. E depois, com a maior naturalidade, levou-a dançando a valsa pelas portas de vidro que davam ao jardim. Ali um grupo de jovens tinham improvisado o jogo da galinha cega.
- O que vamos fazer? - perguntou, divertida resistindo a descer a escadaria do terraço que levava ao jardim de grama, iluminado por lanternas.
- Seriamente quer dançar com todos esses presunçosos que nos observam? -brincou ele. - Agora sei de onde vem esse cenho esquivo.
Seu irmão me olhava carrancudo como se quisesse atirar-se sobre mim para me bater a qualquer momento.
Jane sorriu.
- O Cenho Belshire não pode ser tão perigoso como os Azuis Boscastle.
Ele parou ao pé da escadaria de pedra, pestanejando com ar inocente.
- Os Azuis Boscastle? Isso é uma espécie de regimento?
Ela contemplou seu anguloso rosto travesso. Continuava tendo-a presa pela mão, bom, seus dedos estavam enluvados mais essa cálida pressão lhe produzia uma revoada de excitação proibida no mais profundo do ventre. Era forte a tentação de apertar-se a esse corpo forte e duro e simular que o resto do mundo não existia.
- A maldição dos Azuis Boscastle - disse. - E não faça como se não soubesse o que é.
Ele encolheu os ombros, perplexo.
- Pois, não sei. É algo horrível?
- Só para a vítima, para uma dessas almas desafortunadas que cai sob o feitiço desses olhos azuis.
- Bom, lamento que minha família a tenha escolhido como vítima.
- Não parece que o lamente muito.
Ele a olhou curioso.
- Não quis dizer "minha" vítima, querida. Referia-me a Nigel.
- Aah.
Poderiam lhe arder mais ainda as faces? Como pôde esquecer que deveria estar derrubando-se de pena pelo abandono de Nigel e não combatendo a atração por seu primo pecaminosamente desejável?
- Ele tem os olhos verdes, em todo caso - disse.
- Então talvez se possa anular a maldição - disse ele, aproximando-se mais para lhe afastar um cacho solto do ombro.
Ela captou o aroma de seu sabão de barbear e estremeceu involuntariamente.
- Mmm, é possível.
- Ei, vocês dois, jogam? - gritou uma voz amistosa, e um jovem tirou a atadura dos olhos um instante antes de saltar sobre o degrau para subir. - Ah, olá, Sedgecroft. Surpreendi-os?
- Ainda não - respondeu Grayson, levando-a firmemente pelo atalho
ladrilhado, entrando-a no jardim onde titilavam bonitas lanternas de fantasia. - Dê-nos uma oportunidade.
- Mais eu não quero jogar - protestou Jane.
- Bom, nem eu, mas tampouco tenho o menor desejo de que me acusem de trazê-la fora para um encontro amoroso. - Percorreu estes jardins à luz da lua?
Ela o olhou desconfiada.
- Parecem-se em algo ao Pavilhão do Prazer.
- Preciso falar com você.
- Isso acho bastante detestável, Grayson. Por que este secretismo tão de repente?
- Não quero que nos ouçam. Separemo-nos e encontremo-nos no centro do labirinto.
- Mais o labirinto não está iluminado.
- Sei. Não tenha medo. Eu estarei com você.
- E é necessário que nos ocultemos como espiões?
- Só porque quero proteger seu nome. Venha.
Sorrindo, observou-a entrar no labirinto de sebes de alfena; imediatamente se equivocou e teve que virar-se para lhe pedir ajuda.
- Pode ser que tenha bom senso, Jane, mas não tem o menor sentido de orientação - disse através da sebe. - Não, toma o da direita.
Eu me reunirei com você do outro lado.
- Todos nos viram chegar juntos - sussurrou ela, olhando na direção de onde vinha a voz. - O que acha que vão pensar?
Ele não respondeu, pelo que supôs que estava falando sozinha, até que um forte par de mãos lhe pegou os ombros e a virou. Reprimiu o grito ao olhar e ver seu rosto sorridente.
- Talvez vão pensar que estamos presos em um amor maior que jamais viu o mundo - respondeu ele, tão atraente na penumbra que ela meio desejou que isso fosse verdade. - Que você é uma mulher fatal a
quem não pode resistir nenhum homem.
- Ah, sim? E não lhe ocorreu escrever para os folhetins de intrigas?
Espere, entrou-me uma pedra no sapato.
- Aqui. Sente-se neste banco. Eu a ajudarei. Acredito que não nos viu ninguém.
Ela se sentou obedientemente no banco esculpido em pedra e ele se ajoelhou, tirou-lhe o sapato de baile e lhe passou os longos dedos pela planta coberta com a meia, até que ela suspirou.
- Melhor?
- Muito melhor. - Pela perna ia subindo um traiçoeiro calor. - Agora posso pôr o sapato?
- Não sei - disse ele, lhe movendo o pé a um lado e outro. - Tem um pé muito bonito. Talvez o acrescente a minha coleção. Há homens assim, sabe? Não, provavelmente não sabe. Vejo que ninguém se colocou em seus sapatos antes.
Sorriu-lhe pesarosa.
- Esse é seu prazer secreto, Sedgecroft? Os pés?
Ele se endireitou, rindo.
- Não. Eu prefiro o todo em lugar de umas poucas partes.
- Que democrático.
Ele se levantou e se sentou a seu lado.
- Em seu caso - disse, lhe produzindo vibrações por toda a pele com sua voz grave e profunda - um homem teria dificuldade para decidir que parte é mais desejável.
- Isso era o que queria me dizer?
- Não. - Desvaneceu-se seu sorriso travesso, pegou-lhe a mão e deslizou o indicador pelas pontas dos dedos enluvados. - Não são muitas as pessoas que sabem que meu irmão Heath trabalhou como espião para a Coroa há um tempo.
Jane ficou muito quieta, sonolenta por sua carícia. O que quereria
lhe dizer?
- Não tinha nem ideia - disse.
- Heath é muito inteligente.
E um sedutor também, pensou ela, ao menos isso asseguravam suas irmãs.
- O que quer dizer?
- Encarreguei-o de procurar Nigel - disse ele, passado um momento.
- Falei disto em privado com seu pai, Jane, e os dois estivemos de acordo em que isso era preferível a contratar a um agente de Bow Street.
Formou-se um nó de nervos no estômago dela.
- Ah, mais não tinha por que...
- Não o fiz só por você. A conduta de Nigel fez uma irreparável trinca no sobrenome Boscastle. - Ao ver que ela ia dizer algo, pô-lhe o polegar nos lábios para impedir. - Sim, sei que os outros não são, como dizer, um exemplo de virtudes, mas normalmente somos mais discretos e não humilhamos uma mulher em público.
Ela expulsou o fôlego quando lhe tirou o polegar dos lábios.
- Heath o achou, então?
- Não, mais descobriu que viram Nigel subindo a uma diligência em Brighton. Para onde ia, ainda não descobrimos, mas não demoraremos muito em dar com ele - acrescentou, em tom mais resoluto ainda, zangado. - Heath é muito perseverante.
Brighton, pensou Jane, tentando pôr uma expressão impassível para ocultar seu alarme. Nigel tinha uma tia em Brighton, pelo que era muito possível que tivesse feito uma parada aí com Esther, para logo continuar até a pitoresca aldeia de Hampshire que tinham escolhido para estabelecer sua casa.
Mas Sedgecroft não sabia isso. Afinal, com toda sua arrogância e ares senhoriais, só era um ser humano, não uma deidade onisciente.
Não poderia seguir a pista de Nigel até uma aldeia rural quase invisível.
Ele se levantou, esticando com seus largos ombros o tecido de seu elegante fraque negro. Seu cabelo loiro, que levava algo longo, brilhou à luz da lua quando puxou o golpe seguinte:
- Acredito que deveria saber que Nigel tem uma tia em Brighton, a mulher de um advogado aposentado.
Ela se levantou bruscamente, sentindo que lhe amontoava o sangue na cabeça, enquanto ele continuava:
- É muito possível que passasse a noite aí para logo continuar viagem a... - Se interrompeu para agarrá-la pelos ombros. - Meu Deus, Jane, não vai desmaiar, não é verdade?
- Não sei - disse ela, com uma voz fraca. O que faria ele agora?
Tirar Nigel do bolso de seu colete. - Continuar viagem a... para onde?
- Só Deus sabe. Mas acredite, descobrirei. - Apertou-lhe suavemente os ombros, olhando-a com rosto compassivo, mas resoluto.
- Sei que isto não resolve seu problema, mas espero que pelo menos faça-a sentir um pouco melhor.
- Evitam-me as palavras. Não consigo nem começar a explicar como me sinto.
- Então, volte a sentar-se. Parece-me que se sente algo indisposta.
Ela se sentou no banco, engolindo a saliva.
- Não me passará nada.
- Claro que vai a...
O som de pegadas sigilosas ao outro lado da sebe interrompeu a conversa. Até eles chegaram sussurros e risadas; era evidente que um homem e uma mulher estavam desfrutando de prazeres clandestinos.
Jane olhou para Grayson consternada, levantando-se com a intenção de escapar. Em sua opinião, era quase tão vergonhoso ouvir furtivamente uma conversa durante uma entrevista amorosa como ser surpreendida em uma, mas, a verdade, essa interrupção foi um
verdadeiro alívio.
- O que fazemos agora? - perguntou em um sussurro.
- Esperar - sussurrou ele, olhando para a sebe.
Ela obedeceu, embora a contra gosto, e só passado um momento compreendeu o motivo porque ele estava com o cenho franzido.
- Me diga, pois, Helene - disse a voz do homem - antes que eu pereça pela incerteza, acabou-se seu romance com Sedgecroft?
Jane reteve o fôlego, engolindo uma exclamação de surpresa. Era Helene Renard, a bela e jovem viúva francesa cujo marido inglês tinha morrido ainda não fazia três meses, a mulher a que, supostamente, Sedgecroft esteve cortejando com o fim de fazê-la sua seguinte amante.
Sem dúvida era um escândalo que se apresentasse em público tão cedo, durante seu período de luto, e nem sequer com roupa negra ou cinza. Vestia-se de rosa.
Sim, através da sebe se via parte do vestido de cetim rosa forte de Helene. Rosa forte, a cor da pele de certas partes de uma mulher. A cor que satisfazia o gosto de certo réprobo.
Em nome do sexo feminino em geral, olhou carrancuda ao homem que estava sentado a seu lado.
- Se acabou meu romance com Sedgecroft? - murmurou Helene, asperamente. - É impossível dizer isso, posto que nunca começou. E
agora ele anda por aqui com essa ratinha abandonada, Janet.
- Jane - emendou seu acompanhante.
Jane pareceu reconhecer a voz do corado lorde Buckley, o herdeiro de uma imensa fortuna que não demoraria para esbanjar em jogo e mulheres. Não lhe agradava, imaginou suas bochechudas faces avermelhadas.
- Eu não a acho nada ratinha, Helene - continuou ele, em tom vacilante. - Na realidade, a acho muito atraente, de certo modo distante, fria, isso sim - se apressou a acrescentar.
Bom, pensou Jane, talvez tivesse que revisar sua opinião dele. Mas se recuperou de ter sido chamada "essa ratinha abandonada".
Seriamente se parecia com um camundongo? Teria isso algo que ver com sua predileção pelo cinza?
Olhou para Sedgecroft, e ante seu meditabundo silêncio se esqueceu de tudo o que estava pensando a respeito de si mesma. Se em realidade era Helene a mulher que, segundo os rumores, ele desejava converter em sua amante seguinte, tinha que lhe ser doloroso ouvir essa conversa. Ela não sabia se lhe importava tanto Helene para desafiar em duelo a Buckley. Que escândalo se armaria se a acusassem de ter provocado um duelo. Claro que a possibilidade de que houvesse um duelo dependia da reação de Grayson ante essa reveladora conversa.
Indiferente, despreocupado, magoado? Era impossível tirar alguma conclusão desses olhos azuis entreabertos nem do leve sorriso que esboçavam esses lábios tão bem modelados. A julgar pela emoção que expressava seu rosto igualmente poderia estar escutando um recital de poemas. A maioria dos homens estariam lívidos de fúria por ouvir-se trair pela mulher que inspirava seu interesse amoroso.
- Vai considerar minha proposta? - perguntou Buckley, depois de um silêncio durante o qual Jane só pôde supor que estiveram se beijando. -
Já fiz redigir o contrato, e não lhe faltará nada.
- Pergunte-me isso pela manhã. Esta noite estou de péssimo humor.
- E sobre Sedgecroft?
- O que acontece com ele? - perguntou Helene, em tom cortante.
- Bom, quero dizer, tem uma certa reputação, não só como amante, mas sim como lutador.
- Quer muitíssimo a si mesmo.
- Mais me disseram...
- É um aborrecido - exclamou Helene, veemente. - Sim, aborrece-me
de morte; faz-me saltar as lágrimas de aborrecimento.
- Inclusive na cama? - perguntou Buckley, em tom de incredulidade.
Helene exalou um suspiro tão melancólico que Jane não pôde evitar olhar para Grayson com as sobrancelhas arqueadas. Ele encolheu os ombros, e teve inclusive a elegância de parecer sobressaltado.
- O que quero dizer - continuou Buckley em voz baixa - é que talvez devesse lhe pedir permissão para se relacionar comigo. Não me faz nenhuma graça a idéia de enfrentá-lo em um duelo.
- Se quiser sua opinião, pergunte-lhe você, Buckley - disse Helene, e sua voz soou mais apagada, pois já tinham voltado para centro do caminho. - Quer dizer, se consegue arrancá-lo das garras dessa patética ratinha. Não consigo imaginar o que vê nela.
- Essa elegância Belshire é muito impressionante - disse seu acompanhante, imprudentemente.
- Oh, vamos, Buckley, cale-se - replicou Helene. - Os britânicos são insuportáveis com essa obsessão por suas linhagens. Eu digo que é lady Ratinha, a princesa dos ratos. O mais provável é que grite quando Sedgecroft se deita com ela.
Jane afogou uma exclamação, indignada, e já quase se levantava quando Grayson lhe pegou o braço e voltou a sentá-la a seu lado.
Embora provocasse um escândalo, não vacilaria em sacudir essa mulher até deixá-la inconsciente...
- Não grite, minha adorável ratinha - sussurrou ele, travesso -
Espere.
Ela cruzou os braços e jogando atrás a cabeça ficou a contemplar o céu estrelado. Sobressaltou-se quando, passado um minuto de silêncio, ouviu-o rir em voz baixa.
Olhou-o por cima do nariz.
- Ficou totalmente louco?
Ele a apontou com o indicador.
- Seu rosto... deveria se ter visto quando disse...
- Não é necessário que repita nada - disse ela, indignada - Ouvi cada palavra insultante.
Ele estava zombando dela, e nem sequer tentava dissimular sua diversão. Que tipo de homem era? Sentiu arder o rosto. Em que tipo de mulher se converteu ela?
- Bom - disse ele, emitindo uma rouca risada travessa, e inchando as faces, em um ridículo esforço de parecer controlado.
- Bom o que?
- Tem que reconhecer que foi uma conversa interessante -
murmurou ele, com os olhos dançando pela risada.
- Para você é fácil dizer isso - disse ela, afastando os pés dos seus.
- Ninguém o acusou que parecer um roedor.
- Bom, essas não foram minhas palavras - respondeu ele, negando com a cabeça - nem meus pensamentos.
- Por que ri, então?
- Você também está rindo.
- Agora rio, mas a princípio não, homem cruel. Senti-me muito ofendida.
Ofendida pela quase amante do malandro que a estava protegendo das conseqüências de sua arrevesada obra. Já via quase impossível sair do enredo que tinha armado.
Ele sorriu.
- Não se zangue comigo. Jamais te acusaria de parecer uma ratinha.
-Ah, não, só uma pomba. Ou um mocho.
Ele a olhou nos olhos profundamente, de uma maneira que ela supôs era uma tentativa de parecer sincero.
- Jane, só é risível porque é ridículo. É uma mulher desejável, como já lhe disse.
- Não me sinto absolutamente desejável, obrigada. Sinto-me com
vontades de roer um pedaço de queijo. Acha que ao chef austríaco lhe sobrou algo do queijo de Cheshire?
Pôs a mão sob seu queixo e lhe virou a rosto para o seu. Já não estava rindo. Na realidade, estava muito sério.
- Disse-lhe que é desejável. Acha que só o digo para fazê-la sentir-se melhor?
- Não, porque se desejasse me fazer sentir melhor iria procurar um pedaço desse queijo. E um pão-doce bem rangente para...
O escuro brilho de desejo não dissimulado que viu nos olhos dele fez expulsar todos os pensamentos da cabeça. Nenhum homem a tinha olhado jamais com esse desejo tão nu. Claro que ela nunca se pôs em uma situação que a fizesse tão vulnerável à sedução. Que professor nessa arte, Deus santo.
Seria possível que visse nela algo que ninguém mais via? Quando a olhava assim sentia a tentação de acreditar nele. Embora não fosse sincero, produzia-lhe uma sensação muito agradável. Os dois poderiam continuar sentados sozinhos em meio desse labirinto escuro, e isso já seria estímulo suficiente para encher toda sua noite.
A Jane sensata disse a si mesma que deveria lhe pedir que a levasse de volta ao salão, mas estava cravada no banco. Aparentemente o escândalo do casamento não tinha satisfeito sua capacidade de buscar problemas. Mas a tinha desatado.
- Talvez nos dois vamos ser desafortunados no amor esta temporada - disse ele, pensativo, inclinando a cabeça para a dela.
Ela reteve o fôlego, esperando em desesperado suspense. Essa Jane desatada não tinha nem o mais mínimo sentido de vergonha.
- Não lhe importa ter dito que a aborrece de morte?
Ele esboçou um leve sorriso.
- Aborreço a você?
- Ah, não.
- Bem, pois.
Ela sentia no corpo o calor que emanava do corpo dele. Penetrava-lhe a pele, entrava-lhe no sangue e nos ossos, lhe roubando a força.
- Não vai fazer nada a respeito de Buckley? - perguntou, lhe olhando o rosto, fascinada.
Ele se aproximou outro pouquinho ao rosto. O pulso de Jane acelerou até um rápido galope.
- Para que? - disse ele. - Parece que tem bom gosto com as mulheres.
- Helene é muito bonita - murmurou ela, embora secretamente pensava que a mulher merecia cair em uma toca de coelhos e não sair nunca mais daí.
- Ao dizer sobre seu gosto com as mulheres se referia a você, Jane.
Essa elegância Belshire "é" impressionante.
- Bom...
Emoldurou-lhe o rosto entre as mãos e a beijou, profundamente, lhe devorando os lábios como se sua vida dependesse de reduzi-la a uma ofegante rendição. Ela apoiou a mão em seu peito, e seus dedos se acharam com uma parede granítica de músculos sob a qual pulsava seu coração com o forte ritmo do desejo. Forte. Quente. Masculino até a última polegada.
- Sim, me acaricie, Jane - sussurrou. - Deixe que eu lhe faça o mesmo favor. -Deslizou as pontas dos dedos desde seu ombro até o vale entre os seios e então passou a mão de um a outro lado lhe roçando os dilatados mamilos até que ela gemeu. - Você e eu traçaremos nossa própria sorte - murmurou, lhe agarrando a borda da orelha entre os dentes.
Daí desceu a boca pela curva do pescoço. Ela não tinha idéia do que quis dizer com "sorte", só podia tentar controlar os estremecimentos de excitação que lhe percorriam todo o corpo como raios. Suas capazes
mãos não demoraram para subir e descer por todo seu esbelto corpo, em evidente gesto de posse, lhe acariciando as curvas da cintura, a leve elevação do ventre, o quente espaço entre as coxas. Incrível. Em um segundo já conhecia seu corpo melhor que ela. Arqueou-lhe as costas, ao sentir correr por suas veias a excitação. Quando ele a acariciava se convertia na Jane desatada, diferente, exuberante e viva, muito preparada para ser seduzida, ardendo com os desejos mais escandalosos que poderia imaginar-se. Cada roce de sua firme e formosa boca, cada exploração com suas mãos e dedos, sensibilizava-lhe a pele.
- Aproxime-se mais - disse ele, com a voz rouca, atraindo-a para si até que ficou virtualmente sentada entre suas coxas, com a mão dele colocada sob suas nádegas. - Assim está melhor, não é verdade?
- Melhor para que? - perguntou ela em um sussurro, sentindo um desejo tão intenso por dentro que lhe doía.
Na capela ele percebeu que Jane tinha um corpo sensual, a fantasia secreta de um homem. Entregou-se, pois, a essa fantasia, explorando suas voluptuosas curvas, seus bem arredondados seios, seu bem formado traseiro, tendo-a sentada tão comodamente entre suas coxas.
- Desejei fazer isto no dia de seu casamento - disse, afundando o rosto entre os brancos montículos de seus seios, e aumentando a pressão ao redor de sua caixa torácica.
- Me senti enfeitiçado por você enquanto esperava ante o altar.
Ela arqueou as costas, rindo de surpresa e prazer.
- Bom, levando em conta o escândalo que causei, fez bem em não atuar segundo seus impulsos.
Desceu-lhe as mangas pelos ombros até deixar a descoberto seus tentadores seios. Fechou a boca sobre um escuro mamilo e pegou entre os dentes a ponta já dura para atormentar-lhe com a língua. Chateava-lhe ter entre eles o vestido, e não estar em um lugar que lhe permitisse
uma exploração ininterrupta. O que estava fazendo era impetuoso, temerário, imprudente, uma loucura, mas estava desfrutando encantado de cada momento. Claro que não se permitiria chegar muito longe. Mas no momento estava tão excitado que não conseguia raciocinar.
Descendo a mão esquerda lhe achou o tornozelo e lhe levantou as saias até o joelho e ali fechou a mão, lhe acariciando a sedosa curva.
Um segundo depois lhe estava acariciando a sedosa pele por cima da meia, subindo a mão até o quente triângulo de pele úmida entre as pernas. Imaginou o prazer de saboreá-la ali, de estar dentro dela, e o desejo passou como uma faca por todo seu corpo.
Ela estremeceu quando ele enredou o indicador em seu ninho de cachos, mas a comoção foi substituída imediatamente por um desejo tão intenso que não pôde mover-se.
Tinha desejado libertar-se de Nigel, para ter a oportunidade de achar seu próprio amor, e era isso o que tinha conseguido em troca?
Crepitava-lhe o sangue com essas carícias íntimas e, embora sentisse medo, a espera lhe eletrizava todas as terminações nervosas. Estar assim com Grayson superava tudo o que tinha experimentado em sua vida, e em suas fantasias pessoais.
Ele gemeu com a boca junto à sua.
- Ui, Jane, está tremendo. Relaxe, e deixe que lhe dê prazer.
- Relaxar? Sinto-me como se fosse morrer.
- Não vai morrer. Bom, talvez de certo modo, mas, confie em mim, será muito agradável.
- Confiar em você? -sussurrou ela, em um fôlego. - Olhe aonde me levou confiar em você.
Então me ordene que pare, pensou ele, porque não conseguia achar a força de vontade para pôr fim a esse exercício de auto tortura. A ela nunca tinham acariciado assim, e de maneira nenhuma podia deflorá-la ali, em um banco de jardim. Embora o desejasse. Desejava enterrar-se
até o fundo nesse sedutor calor, mergulhar nessa ardente paixão ainda não despertada. Seu aroma lhe enchia a mente lhe produzindo uma negra e egoísta paixão. Uma paixão tão intensa que fazia tremer todo o corpo.
Jane afundou o rosto em seu pescoço, tentando combater essa deliciosa neblina sensual que se abatia sobre ela. Quando lhe afastou as molhadas dobras da vulva e lhe introduziu um dedo na vagina, surpreendeu-se tanto que não foi capaz de resistir, e a distraiu tanto a insuportável onda de prazer que não pôde montar uma defesa. Já tinha bastante tentando aferrar-se à prudência quando suas carícias a levaram ao limite e mais à frente, até lhe liberar a crescente tensão da excitação em rajadas de sensações incríveis. Ah, maravilha de maravilhas. Que prazer tão intenso, vertiginoso. Sua cabeça descontrolou-se, mergulhada em um borrão de cores.
Ele a tinha abraçada com tanta força que lhe custou fazer uma inspiração para voltar, a contra gosto, à terra. Na distância se ouviram risadas e vozes, que foram aumentando em volume, como o zumbido de abelhas. Era evidente que um grupo de convidados vinham aproximando-se do labirinto. Girou a cabeça, assustada.
- Acho que...
- Ouço-os - murmurou ele com voz rouca, com o rosto afundado em seu cabelo. - Não se passa nada. Vamos recompô-la, querida. Não se danificou nada.
Dissimuladamente ela arrumou a blusa e alisou a saia.
- A você não, talvez - disse com a voz trêmula. - A mim... acredito que nunca voltarei a ser a mesma. Céu santo, tremem-me as mãos, Grayson. Tenho todas as partes de meu corpo no lugar que corresponde?
Ele a examinou dos pés à cabeça e deteve seu sagaz olhar em seu rosto. O cavalheiro branco havia voltado a fracassar rotundamente em
suas intenções cavalheirescas. O que tinha feito a ela essa noite? Que loucura tomou conta dele?
- Umas partes muito formosas, por certo - disse, docemente. - Me parece uma lástima escondê-las. - Colocou-a em pé e a reteve um momento entre seus braços, pensando se depois disso ela fugiria dele e não voltaria jamais. Como encaixava o seduzi-la em seu plano de ajudá-
la. - Parece inclusive melhor que antes - acrescentou em voz baixa. -
Sou eu o que vou voltar para a festa com meu ruibarbo inchado e tudo levantado.
- Seu Rui...
- Nos apressemos, Jane, antes que sintam nossa falta. Não devem nos ver sair juntos do labirinto. - brincadeiras aparte, de maneira nenhuma iria correr o risco de envolvê-la em outro escândalo. - Vamos procurar esse pedaço de queijo que tanto deseja, não é?
Capítulo 14
Quando chegaram ao jardim caminharam juntos pela erva, inspirando o ar noturno para esfriar a paixão. Tinha segurado sua mão mas a soltou quando chegaram à parte iluminada por uma lanterna e se mesclaram com o grupo de convidados que estavam fora como se nunca se tivessem partido daí. A verdade era que ele não desejava lhe soltar a mão. Tinha agido mal se aproveitando de sua vulnerabilidade. Mas, por sua vida, era-lhe impossível resistir a ela.
O que tinha Jane que o descontrolava dessa maneira, quando tinha conhecido todos os tipos de ardis femininos que existiam sob o sol?
Pensou. E então compreendeu.
Jane era simplesmente ela mesma. Não se dava ares, não estava empenhada em apanhá-lo nem impressioná-lo. Era Jane e isso era mais que suficiente.
Felizmente, ninguém tinha sentido sua falta. Pelo que todos sabiam, bem poderiam ter estado todo esse tempo conversando nessa parte do
jardim. Mas de todo modo isso não devia continuar. Ele tinha que refrear-se, se não Jane acabaria pior do que estava antes.
- Me vai tornar insensata cada vez que estejamos juntos? -
perguntou-lhe ela, sem olhá-lo.
Ele a olhou com um triste sorriso.
- Suponho que mereço isso.
- Isso não era parte de seu plano para me redimir ante a sociedade, não é verdade?
- Nunca faço planos com muitos detalhes, ao menos se tratando de mulheres. Sendo seres imprevisíveis, deve lhes dar certa liberdade de expressão se a pessoa quer conservar a paz.
- Essa não é uma resposta, Grayson.
- Sentiria-se melhor se programássemos estas "atuações"?
Ela exalou um suspiro.
- Eu tive tanta culpa como você, mas acredito que me sentiria melhor se controlássemos o desejo de cometê-las.
- Cometê-las? Como se fossem pecados mortais ou assassinatos. -
parou junto a um canteiro, com o rosto às escuras, já que a luz da lanterna estava atrás. - É por Nigel, não é verdade?
- Nigel não tem nada a ver com isto - disse ela, tentando dizê-lo em tom muito convincente.
- Sim, tem que ver. Entendo um pouco de mulheres, Jane. No fundo de seu coração tem a esperança de que retorne. Sendo uma mulher leal, uma mulher íntegra, quer lhe demonstrar que não caiu na tentação enquanto ele estava em sua peregrinação de solteiro.
- Que peregrinação de solteiro?
- Parece que no desaparecimento de Nigel não houve nenhum tipo de violência. Por desgraça acredito que está vivo.
-Lamenta que seu primo não esteja morto?
- Isso teria economizado o problema... quer que descubra a verdade
ou não?
Um mau pressentimento passou por ela ardendo como um rastro de pólvora. Até que ponto da verdade se aproximaria ele? Nigel tinha prometido não deixar rastros e manter-se oculto até que os dois decidissem que já não havia perigo em dar a conhecer seu matrimônio com Esther.
Nenhum dos dois tinha contado com a intervenção de Sedgecroft, nem com a de Heath. Em que jogo mais complicado se converteu tudo.
Fez uma inspiração lenta e profunda, para reunir toda sua coragem.
- Falando da verdade, acredito que deveria saber o que sinto por Nigel.
- Sei - disse ele, carrancudo.
- Não pode saber.
- É uma mulher inteligente, especial, Jane, mas não é tão perita em ocultar seus sentimentos como poderia acreditar.
- E você, Grayson? -perguntou ela, timidamente.
Ele a olhou sorrindo, perplexo.
- O que quer dizer?
- Não lamenta sobre Helene?
- Deve estar brincando.
- Não, não é brincadeira. Deve ter lhe ferido os sentimentos.
- Nem um pouco.
- É sincero comigo, ou isso é orgulho?
- Acho a situação muito divertida e iluminadora.
- Mmm. Alguém quer dar uma boa imagem.
- Vamos, quem poderia ser?
Ela o olhou sorrindo cética.
- Digamos que um de nós é um valente soldado, e não sou eu. A mulher que devia ser sua amante anda exibindo-se por aí com outro homem.
- Minha querida Jane, se Helene significasse algo para mim, acha que você e eu estaríamos a sós nesse labirinto?
Ela vacilou, e a salvou de responder a aparição de seu irmão, que vinha caminhando para eles. Ainda nem começava a entender esse interlúdio mágico ocorrido no labirinto. Uma complicação parecia levar a outra, até que sua vida se converteu em um verdadeiro nó.
- Ah - disse - aí aparece Simon, por fim; só se atrasou vinte minutos em investigar o que estávamos fazendo.
Grayson começou a rir.
- Vamos, Jane, volta a aparecer esse lado sensato teu.
- Sim - disse ela, passando pela frente dele a passo enérgico. - E se atrasou vinte minutos para me ser útil.
***
Jane se sentia absolutamente desgraçada, dançando com jovens que ou eram tão estúpidos que não entendiam que ela era um escândalo ambulante, ou estavam tão desconectados socialmente que não lhes importava. Como ia poder concentrar-se em uma verdadeira conversa quando ainda tinha o coração acelerado pelo acontecido com Grayson?
Como pôde meter-se em um jogo no qual não tinha a menor esperança de ganhar? Quanto mais conhecia Grayson, mais enfeitiçada se sentia por ele. E essa maneira de acariciá-la, Oh, ainda lhe tremia o corpo.
- Vamos, basta de olhá-lo - resmungou. - Aí como um leão.
- Perdão, o que disse? - perguntou-lhe seu par, quando os últimos passos da dança os reuniram.
Ela abriu o leque.
- Disse que estava cansada de ficar na fila.
- Ah, sim, é uma dança tola, não? Gostaria de uma limonada?
- Sim, se não se importar. Tenho muita sede.
Dizendo isso pôs-se a andar pela pista de baile em direção à Cecily, que estava dando audiência ante um grupo de amizades aristocráticas.
Não podia desentender-se de Sedgecroft, pelo que lhe fez um dissimulado gesto com a mão. O sorriso que lhe dirigiu ele foi francamente presunçoso, enlouquecedor, um aviso de que nunca lhe permitiria esquecer o que acabava de ocorrer entre eles.
Estranhava sua facilidade para aceitar o que tinham feito, por que não se sentia mais horrorizada e arrependida, em lugar de sentir prazer na sensação de bem-estar produzida por seu glorioso pecado. Sabia tudo a respeito da reputação dele com as mulheres, mas ninguém lhe tinha explicado nunca quão maravilhoso era ser objeto de suas atenções. Ninguém lhe tinha explicado tampouco que embora pudesse planejar sua vida com métodos retorcidos, o que ocorria a seu coração era outro assunto totalmente diferente.
***
Grayson esteve observando Jane dançar com dois ou três jovens galãs, que sem dúvida se sentiam atraídos pelo radiante rubor de suas faces. Bom, pensou cinicamente, com o ombro apoiado em um dos enormes pilares do salão de baile, ele podia atribuir a si a responsabilidade de pôr esse rubor em suas faces. Deveria lhe ter pedido desculpas em lugar de brincar. Mas nesse momento lamentava mais não ter estado em posição de levar algo mais longe as carícias. A verdade era que talvez já tinha feito mal suficiente por uma noite e não devia continuar sua relação com ela. Maldição, como lhe pôde ocorrer fazer isso, no que estava pensando? Longe estava a sua capacidade para raciocinar.
Mas adoraria atraí-la a sua cama; desejava lhe fazer amor de todas as maneiras conhecidas como as que não. Entretanto, esse prazer não seria dele jamais. As obrigações familiares eram sua prioridade, disse a si mesmo. E isso também lhe recordou que Chloe se mostrou francamente desdenhosa ante sua ameaça de enviá-la ao campo se lhe desse um só motivo mais para desconfiar dela. Sua infelicidade, sua
rebeldia, preocupavam-no tremendamente. Só era questão de tempo que sua atitude desafiante o obrigasse a fazê-lo.
Seus pensamentos voltaram para Jane. Seu aroma, a suave textura de sua pele, a tímida e ousada exploração de seu corpo quando o acariciou; essas carícias tímidas o levaram a ponto de ebulição. Não sabia o que fazer consigo mesmo fora estar ali, tremendo por dentro, como um adolescente.
- Vai jogar cartas? - perguntou-lhe um amigo.
Ele encolheu os ombros, pensando que lhe viria bem um descanso de seu exercício de auto tortura.
- Por que não?
Enquanto se voltava para ir à sala de jogo, viu um jovem alto de cabelo moreno afastar-se do grupo de Cecily para olhar para Jane com uma expressão que ele reconhecia muito bem.
- Denville, quem é esse homem, que está olhando para Jane como um falcão?
- Ah, o barão Brentford, não?
- Parece algo veemente.
- Veemente é a palavra. O ano passado tentou matar-se quando Porcia Hunt o deixou por seu irmão. Vem ou não?
- Sim, dentro de um minuto.
Observou com os olhos estreitos. Jane estava olhando nos olhos do sinistro barão, assentindo muito séria ao que fosse que lhe estava dizendo. De repente desviou os olhos e se encontrou com o pétreo olhar dele, como se tivesse percebido sua desaprovação.
Sorriu-lhe indecisa, não correspondeu ao sorriso. Era muito provável que ao barão o considerasse um bom partido, mas a um espírito alegre como Jane não fazia nenhuma falta um pretendente emocionalmente instável para somar a suas penas. Levando em conta quão bem tinha aceitado o abandono de Nigel, ele tinha que elogiar sua fortaleza interior.
Fez-lhe um firme gesto negativo com a cabeça. Ela podia achar a alguém melhor. Mas quem seria um homem digno dela? Pensou.
Não sabia o que fazer; sentia-se desconcertado. Isso era estranho.
No banco do labirinto ele e Jane tinham estado mais perto de fazer amor do que ele jamais teria sonhado, e de qualquer modo ele continuava ali, espreitando nas sombras, sentindo-se carregado de culpa, enquanto ela dançava e fazia todo o possível por desentender-se dele. Seria isso uma simples representação para demonstrar ao mundo que sobreviveria ao abandono de Nigel? Bom, não podia culpá-la por seguir seu conselho.
- Já o abandonou sua última conquista, Sedgecroft? - disse uma voz glacial junto a seu ombro.
No sugestivo sotaque francês reconheceu a voz de Helene, a mulher a quem durante um breve espaço de tempo pensou em converter em sua amante; nas últimas semanas seus encantos tinham adquirido um decidido deslustre. A contra gosto se virou para olhá-la.
- Não vejo Buckley a seu lado. Soltamos sua cadeia, não é?
- Foi me buscar uma bebida - disse ela. Observou-lhe o formoso perfil em silêncio e, graças a sua considerável experiência, compreendeu que seu ardor esfriara. - Na realidade, tem medo de você.
- Por quê?
- Porque você e eu...
Sorriu-lhe com o educado desinteresse de um desconhecido. Não era um homem cruel, mas desejava que se esfumasse.
- Sim?
Ela se ruborizou ante essa indiferente frieza.
- Sua conquista está em animada conversa com Brentford, não?
Ele voltou o olhar para Jane e o rosto ficou duro , com ironia.
- Bom, já sabe o que dizem, Helene. "Quando o gato está longe os ratos aproveitam para jogar." E falando de roedores, não é Buckley que está escondido atrás do vaso de barro com a samambaia do canto?
Riu ao ouvir a obscenidade que ela resmungou em francês antes de desculpar-se para ir reunir-se com seu novo protetor. Não lhe guardava nenhum rancor; na realidade, agradecia não ter se relacionado mais a fundo com ela antes de perceber o quão incompatíveis eram. Claro que antes, antes da morte de seu pai, teria se arrojado de cabeça no romance bem como nas conseqüências.
O que não queria dizer que teria renunciado para sempre a esse tipo de prazeres. Só até que tivesse controlado o clã e se arrumasse o desastre da desafortunada Jane a satisfação de todo o mundo.
Mas, o que tinha sido feito de Jane? Seu triste barão também brilhava por sua ausência.
- Perdão, lorde Sedgecroft, poderíamos falar um momento?
Grayson se virou para olhar e se encontrou ante o penetrante olhar do barão Brentford. Ao fundo conseguiu divisar Jane, que estava com suas duas irmãs, a nenhuma das quais lhe faltava seu número de admiradores.
- Com respeito a lady Jane, suponho?
Brentford inclinou sua morena cabeça.
- Está disponível para cortejá-la?
- Isso depende - respondeu Grayson, cauteloso.
- Do que, milorde?
- De quais sejam suas intenções, e se Nigel... - Interrompeu-se. Não tinha falado com Jane a respeito de nenhuma possibilidade para o futuro. Que diabos devia dizer? A metade dos aristocratas achavam que ele se casaria com Jane; talvez fosse benéfico para ela respirar essa ilusão. - Não é esta uma pergunta que deveria fazer a seu pai ou a seu irmão?
- O visconde enviou-me a você, milorde. Ele estava ocupado em um debate político.
- Não o conheço tão bem para falar de meus assuntos pessoais -
disse Grayson ao fim.
- Compreendo.
Ficaram em silêncio, cada um esforçando-se para não olhar para Jane, sem consegui-lo. Grayson havia se sentido cômodo com ela desde o começo, como se ela tivesse sido uma velha amiga, mas depois do ocorrido essa noite temia que houvesse algo mais. O que, não conseguia imaginar. O barão foi o primeiro a romper o silêncio.
- Entendo a dor do amor não correspondido - disse, inesperadamente. - Conheço a humilhação da traição que ela sofreu.
Grayson o olhou surpreso. Será que repentinamente se converteu em uma tia solteirona que dava conselhos aos feridos de amor?
- Pensei que não poderia continuar vivendo - acrescentou Brentford.
- Sim, bom, não nos ponhamos tristes em uma festa, Brentford. Jane veio aqui para distrair-se.
- Então, me proíbe que fale com ela?
Grayson deixou de olhar para Jane. Deus sabia que não era dono dela. Não tinha o direito proibir a um homem que a cortejasse, e muito menos quando esperava restabelecer sua disponibilidade no mercado do matrimônio. Mas tampouco podia entregá-la ao primeiro indesejável que se apresentasse. Devia-lhe no mínimo esse grau de amparo.
- Sim - disse, sem saber que outra coisa dizer - suponho que sim.
E que o homem entendesse o que quisesse.
Novamente ficaram em silêncio. Os dois observaram Jane dançando na pista com um dos amigos íntimos de seu irmão. Estava rindo, aparentemente passando-o muito bem, até que na metade de um giro olhou para os dois homens tão diferentes que estavam observando-a com melancólica intensidade, nublou-lhe o rosto, perdeu o ritmo e se equivocou no passo.
- Isso é o que quero dizer - disse Grayson, afastando o ombro do pilar. - Não vai se derrubar na aflição por meu primo se eu puder evitar.
- Não sei como pode parecer tão alegre e despreocupada quando ele a abandonou só faz uma semana mais ou menos - disse Brentford, pensativo. - Aplaudo sua capacidade para atuar. É incrível.
Grayson, que estava escutando pela metade essa triste tolice, olhou-o, perfurando-o com os olhos.
- O que quer dizer?
O barão titubeou.
- Livre me Deus de dar crédito às fofocas. O que acontece é que uma de suas amigas suspeita que ela nunca amou Nigel. Inclusive algumas acreditam que não se sentiu tão desgraçada quando... - Se interrompeu ao ver a expressão de desprezo no rosto de Grayson. -
Fofocas, milorde -se apressou a acrescentar.
- Então não as repita. Jamais.
Brentford arqueou uma sobrancelha.
- Minha avó sempre dizia que a fofoca é uma semente que dá maus frutos.
- Pois, lhe faça caso - disse Grayson, friamente. - Não plante sementes mal engendradas.
Brentford assentiu.
- Deixo-o, então, para que cumpra seu dever de guardião.
- Isso - disse Grayson, cortante, com a esperança de abortar assim qualquer outro rumor malicioso a respeito de Jane que andasse circulando entre os membros da aristocracia.
Capítulo 15
Na manhã seguinte levaram à Jane uma caixinha procedente de Rundell, Bridge & Rundell, os joalheiros de Ludgate Hill. A caixinha continha um broche adornado com um camundongo de diamante e os olhos de ônix. Não o acompanhava nenhum cartão, nenhuma mensagem que fizesse alusão a essa apaixonada sessão de amor no labirinto; só isso, um muito caro aviso de um momento que não poderia
esquecer jamais, nem que quisesse. Enquanto Caroline e Miranda admiravam o insólito presente e faziam elucubrações a respeito de seu significado, Jane desceu sigilosamente à cozinha para falar com a cozinheira.
- Um ruibarbo, disse, milady? - disse a cozinheira, secando-as mãos em seu avental. - Bom, faz séculos que não vejo nenhum, mas há um boticário a quem minha tia visita que vende ervas para beberagens importadas da China. Raízes de ruibarbo seca e coisas dessas.
- Raízes de ruibarbo - murmurou Jane, e um alegre sorriso lhe iluminou o rosto, ao imaginar a maneira de corresponder dignamente ao presente de Sedgecroft.
- Ah, esplêndido. Se encarregue de que ponham uma raiz bem grande em uma caixa bonita e a enviem ao marquês a Park Lane. Com meus melhores desejos. Ah, e que amarrem a raiz com uma fita rosa.
- Ao marquês. Uma raiz de ruibarbo. Com uma fita rosa - repetiu a cozinheira.
- Em uma caixa bonita, isso sim - acrescentou Jane, antes de virar-se e afastar-se.
A cozinheira olhou, perplexa, à criada que ficou imóvel junto à pia.
- Raiz de ruibarbo - murmurou. - Deus nos ajude. O que quer fazer uma dama com uma raiz a não ser que seja uma dessas poções amorosas de abracadabra que vendem as ciganas? Recorrer à magia para conseguir um homem - respondeu ela mesma. - Pobrezinha.
A criada abaixou a vassoura.
- Eu gostaria de comprar um pouco de arsênico para colocar no chá de sir Nigel, de verdade.
- Não gostaríamos às duas? - disse a cozinheira. - Mais o arsênico é muito amável, querida, para o que fez esse miserável. Eu lhe poria as mãos ao redor do pescoço e o retorceria como a um frango.
A criada olhou o pano de cozinha que a cozinheira estava
retorcendo entre suas potentes mãos.
- Acalme-se, senhora Hartley. A dama tem o marquês para que cuide de seus assuntos.
A cozinheira franziu o cenho.
- E lhe enviar uma raiz de ruibarbo, como se eu fosse tão obtusa que não entendesse o que significa "isso". Não há nenhuma sutileza nisto, minha filha. Nenhuma velha como eu pode deixar de ver a atração.
Nessa tarde Grayson chegou a cavalo à mansão do conde de Belshire em Grosvenor Square.
Tinha pensado em Jane toda a noite, as vezes perplexo, as vezes divertido e as vezes apavorado pela atração que sentia por ela. Também tinha pensado nela quando voltou a visitar o clube de Nigel e outros de seus lugares favoritos, sem achar nada em nenhum deles que lhe desse alguma pista sobre seu desaparecimento.
Já começava a pensar se não seria melhor que acompanhasse Heath em sua busca. Mas claro, tinha prometido ficar em Londres para defender Jane da crueldade da sociedade. Defendê-la de si mesmo era outro assunto muito diferente.
Cada vez que a via, desejava-a mais e mais. Sabia que não devia tê-la. Mais a desejava de todo modo.
Entretanto, uma promessa é uma promessa, mesmo que lhe causasse um problema que não tinha esperado quando se lançou ao inverossímil papel de salvador de donzelas.
Sim, lamentava o impulso, mas não pelos motivos que poderia ter previsto. Embora seu traiçoeiro corpo a desejasse com uma perseverança que desafiava suas opiniões morais sobre o galanteio, muito mais perturbador era quanto desfrutava de sua companhia e de sua conversa. Apreciava-a, e a apreciava tanto que não podia deixá-la sozinha a mercê do primeiro barão suicida que a desejasse.
Se não podia proceder com ela da maneira normal para ele, pois
teria simplesmente que idear outra maneira que fosse aceitável para os dois.
Ergueu-lhe o ânimo quando ela apareceu na escadaria da porta principal, seguida por seu irmão. Simon fazia má cara, pela ressaca dos excessos dessa noite passada.
Era provável que nem sequer recordasse que ele o levou a casa essa noite e o depositou justo no lugar onde estava em pé nesse momento.
Sorrindo para Jane desmontou para ajudá-la a montar sua égua, despedindo-se com um dissimulado gesto o cavalariço que tinha aparecido com essa mesma finalidade.
Para falar a verdade, não desejava que ninguém que não fosse ele a tocasse.
- Vejo que pôs meu broche - lhe disse em voz baixa.
- Ah, sim. Todos o admiram, embora ninguém tenha entendido seu significado. Inclusive poderia iniciar a moda de levar um camundongo de diamante pela manhã. - Olhou-o sorrindo maliciosa. - Que gentileza comemorar assim nossa noite de ontem à noite.
- Todo o prazer foi meu. - Olhou de esguelha seu justo traje de montar de veludo cor borgonha, que lhe destacava os exuberantes seios. Seu prazer, certamente. – Simon vem conosco?
Os dois se viraram e viram Simon inclinado sobre o cavalo, cobrindo os olhos com uma mão. Jane começou a rir.
- Não sei se conseguirá chegar até o parque.
- Não se preocupe. Se cair o acharão os varredores.
Cavalgaram em silêncio a curta distância, Grayson afastando as crianças que corriam fazendo rodar seus aros e os cães que passavam ladrando, ao mesmo tempo em que observava o traseiro de Jane expulsando ao ritmo do passo de seu cavalo. Esse sensual meneio de seu corpo fazia-o pensar em um tipo diferente de cavalgada, a qual
explicava seu ardente olhar quando em Upper Brook Street ela se virou para olhá-lo. Por desgraça, não conseguiu disfarçar a tempo seus luxuriosos pensamentos para que ela não os visse no rosto.
- Grayson Boscastle - disse ela em voz baixa, em tom exasperado -
não se atreva a me olhar assim em público.
Ele esboçou seu sorriso preguiçoso.
- Simplesmente estava admirando seu assento.
- O que se pode fazer com você?
- Não posso evitar pensar como um homem.
Nem deixar de recordar como suave e molhada estava ela essa noite, calma e receptiva em sua sensualidade. A lembrança lhe fez arder até os ossos.
- Sim, é essa sua espantosa masculinidade que se mostra outra vez
- disse ela.
Ele não sabia o que pensar dela. Às vezes lhe parecia sofisticada.
Outras vezes vulnerável. Era uma contradição a cada passo. Embora também o fosse ele.
Ela não fazia nada para fazer-se atraente a outro possível marido.
Atraía-o sem o menor esforço, quando outras mulheres tinham maquinado para atrair sua atenção.
Impregnava-o imediatamente sempre que ele cometia um engano ou deslize; atrevia-se a insultá-lo quando ele queria ajudá-la. Esse era um tipo de amizade diferente a tudo o que tinha conhecido, e gostava disso.
- Por certo - disse, aproximando o cavalo ao dela quando chegaram à esquina do parque - foi muito amável de sua parte me enviar a raiz de ruibarbo esta manhã. Deve me perdoar por usá-la.
Ela fingiu sentir-se aflita.
- Você não gostou?
- Ah, sim eu gostei. Quase caí da cama de tanto rir.
A clara luz do sol formava reflexos dourados no ondulado cabelo,
que lhe caía solto às costas, lhe emoldurando o pescoço. Observou a delicada estrutura óssea de seu rosto e sentiu agitar uma estranha emoção no fundo do coração.
Uma emoção desconhecida, que o assustava. Uma emoção a qual não lhe convinha pôr nome. Esperava, contra toda esperança, que fosse o que fosse, partisse sozinha. Teve a horrível sensação de que não seria tão afortunado.
- Acho que enganou ao mundo, Jane.
Ela o olhou em silêncio, apagado o brilho de seus olhos.
- Como? - perguntou por fim, com voz fraca.
- Debaixo de todos esses ares de senhora funciona uma mente de arpía. É um verdadeiro demônio.
- Ah, vamos, olhe quem fala.
Ele sorriu de orelha a orelha, apertando suas potentes coxas para incitar seu garanhão a aproximar-se mais à montaria dela.
- Um demônio reconhece a outro, suponho. Deixamos atrás seu irmão?
Ela assentiu e os dois fizeram entrar seus cavalos no caminho de ferradura. Depois de um breve galope, Grayson diminuiu a marcha e sugeriu desmontar para caminhar um pouco. Vários casais o saudaram agitando as mãos, e observaram furtivamente Jane, aparentemente sem saber se deviam mostrar que sabiam ou não sabiam sobre o escândalo do casamento.
Ela ignorou os olhares e fixou o olhar no lago, sobressaltada por todo o interesse que despertava. E pensar que as pessoas bem poderiam supor que eles estavam destinados a unir-se em matrimônio.
Ela e Grayson, marido e mulher.
- Eu gostaria de saber se Simon esta nos procurando - disse de repente, mais para distrair a imaginação dessa sugestiva possibilidade que por lhe preocupar o paradeiro de seu errante irmão.
Grayson lhe pegou a mão para ajudá-la a desmontar e depois apertou seu duro corpo contra o seu, lhe causando um prazeroso estremecimento.
- Já pode me soltar - sussurrou com a voz algo trêmula.
- Por quê? - murmurou ele, lhe roçando o cabelo com os lábios. -
Sinto-a divina; esse traje de montar se ajusta como uma luva e eu a rodeio melhor ainda. Quanto a Simon - acrescentou, soltando-a lentamente - parece que vai para o Serpentine com um grupo de damas.
- Bom, é de esperar que não caia à água. Veio todo o caminho balançando-se como um bêbado. Tomara encontrasse uma jovem decente para casar-se.
Puseram-se a andar juntos, desviando-se das babás que passavam correndo atrás de crianças, e dos cães, e mais à frente de um duque idoso que tinha saído com seus criados para tomar ar. Grayson viu aparecer o barão Brentford em Rotten Row; muitas cabeças se viraram para olhar aos dois briosos baios que puxavam a elegante carruagem pelo caminho. Imediatamente pegou o braço de Jane e a levou, com certa energia, na direção oposta. Brentford fazia aflorar-lhe uma veia possessiva muito agressiva.
- O que faz? - perguntou-lhe ela, rindo nervosa.
- Protegê-la de um mau vento que está a ponto de soprar para nós.
E voltando para o assunto de Simon. Por que as mulheres sempre pensam que o matrimônio é a cura para todos nossos males?
- O matrimônio é sem dúvida a pedra angular de nossa civilização -
respondeu ela distraída, olhando por cima do ombro dele.
Ele olhou atrás e seu rosto se tornou sombrio de aborrecimento ao ver o barão diminuir a marcha de sua carruagem de excelentes molas de suspensão, luzindo sua perícia em controlar os briosos cavalos. Será que não lhe tinha deixado claro o assunto no baile?
- Está olhando-o, Jane - disse, em tom frio, aborrecido.
Ela deu um pulo.
- Sinto muito. Estava-o olhando, não é verdade?
- Sim. Por quê?
- Não sei. Ele estava me olhando. A gente se sente obrigada a olhar também.
- Jane - disse ele, em tom severo, inflexível, esboçando um tenso sorriso. - Um de nós poderia sentir-se obrigado a pôr fim a esses olhares de uma vez por todas.
- Aqui não, suponho - disse ela horrorizada, temendo que ele fosse tão temerário que cumprisse a ameaça.
- Por que não? -perguntou ele, alegremente. - Já se derramou sangue neste terreno. Afinal provenho de uma família que segue a tradição.
Pegou-lhe o musculoso antebraço e o levou até um aprazível lugar coberto de erva, deixando atrás o cavalariço que os seguia a discreta distância com os cavalos.
- Ao que parece essa é uma tradição saturada de violência e busca de prazer. Em lugar de brigar com Brentford, por que não faz uma boa obra e apresenta a meu irmão alguma dama doce que possa exercer nele certa influência para afastá-lo de sua volúvel conduta?
Achou muita graça esse afã dela de guiá-lo; embora, logicamente, não teria nenhuma influência nele nem em um nem outro sentido. Se o barão se convertesse em um problema grave, ele resolveria com ele, não em um lugar público, claro, mas o faria entrar em razão de todo modo.
- Pressinto outro sermão sobre as virtudes do santo matrimônio -
disse, deixando-se cair sobre a erva como se desabasse, e emitiu um teatral ronco. - Ainda não estou morto?
- Levante-se, Grayson. Os jornais já estão cheios de fofocas sobre nós.
Ele abriu um olho.
- Ah, mais fofocas. O que estivemos fazendo agora?
Ela cruzou os braços e o olhou chateada.
- Vamos nos casar no mês que vem.
- Bom, e o que tem que mau nisso? - perguntou ele, peralta. - Achei que aprovava o matrimônio.
- Só que nosso compromisso é uma mentira, Grayson - respondeu ela, fazendo uma careta. - Não podemos enganar a todos eternamente.
Agora, por favor, deixa essa postura tão pouco digna. Agora mesmo.
Ele rodou até ficar de lado e se apoiou em um cotovelo. Sua postura, estirado sobre a erva brilhante pelo sol, com sua jaqueta de manhã aberta na cintura, voltou a lhe recordar a imagem de um magnífico leão.
- O que fazia com Nigel quando estavam juntos? - perguntou-lhe ele em tom lânguido, percorrendo-a toda com o olhar. - Desenhar naturezas mortas?
- Conversávamos, se quer saber.
Ele arrancou uma folha de erva, com uma expressão de cínica diversão no rosto.
- Do que falavam?
Ela exalou um suspiro.
- Da vida, de livros, do amor. - Concretamente, esse último ano, da crescente paixão de Nigel pela preceptora da família.
- Do amor de Nigel por você?
Ela captou seu olhar e lhe desceu um estremecimento pelas costas.
- Mmm, não exatamente.
Ele se levantou, com o rosto sombreado por um cenho, e sua imensa sombra a cobriu inteiramente.
- Às vezes penso que ele não era realmente um Boscastle.
- O que quer dizer? - perguntou ela, passado um instante de
hesitação.
- Bom, para dizer francamente, um Boscastle não teria passado todos esses anos em sua companhia sem lhe ter dado algo mais que simples conversa, se entende o que quero dizer.
- Temo que o entendo - disse ela, agitando a cabeça, como se não visse esperança para ele, e imediatamente exclamou, em voz bem alta, para distraí-lo - Ah, olhe! Não é Cecily a que vai caminhando pela borda do lago?
- Jane. - Agarrou-lhe a aba da jaqueta de montar e a fez retroceder até lhe deixar as costas apoiada em seu largo corpo. Inclinou-se para lhe murmurar ao ouvido. - Sente-se incômoda ao falar sobre desejo?
Ninguém nos pode ouvir a esta distância.
Formigaram-lhe perigosamente os lugares que ficaram em contato com o corpo dele: as omoplatas, as curvas das nádegas, as panturrilhas.
- É o único homem que se atreveu a me falar desse tema -
respondeu, e se virou bruscamente ao sentir gritar seu nome. - É Cecily, está nos chamando. Vamos? Acredito que Simon está com ela.
- É muito previsível, querida.
- Você também, Grayson.
- Sim?
- É absolutamente transparente.
- Então me diga o que estava pensando.
- Não acredito que minha língua seja capaz de articular as palavras.
- Estava pensando no que aconteceu ontem à noite - disse ele docemente, lhe afastando uma mecha de cabelo do pescoço.
Antes que ela se afastasse, conseguiu ver como lhe agitava o pulso da garganta.
- Então pensa em outra coisa - disse ela, quase retendo o fôlego -
ao menos durante o próximo momento. Não nos convém que caia na água.
Grayson a seguiu, com seu anguloso rosto pensativo. Apesar de todas as táticas evasivas que ela empregava, não podia deixar de pensar em sua calma receptividade essa noite no labirinto, nem em como isso tinha mudado seus sentimentos por ela. Jamais tinha conhecido uma mulher que o desarmasse tão completamente. Recatada um momento, tentadora ao seguinte. Dócil, complacente, deliciosa.
Decorosa, majestosa. Um pouco arpía. Uma mulher que o fazia ansiar possuí-la. E comprometer-se.
Parou seco e fez uma respiração profunda, negando com a cabeça.
De onde lhe veio esse último pensamento?
Mas era verdade. Alguém chegaria a valorizá-la. Tinha descoberto nela muitíssimas qualidades dignas de valorizar-se. E o que se via por fora não deixava de ser convidativo. Por que a estupidez de Nigel tinha que fazê-la indesejável de por toda a vida?
O desejo que ele sentia por ela deixava em ridículo os critérios da alta sociedade. Sua ardilosa ratinha o incitava a segui-la, e para onde o levasse não lhe importava tanto como deveria lhe importar.
"Algumas de suas amigas suspeitam que ela nunca amou Nigel."
Ah, Jane, pensou, sorrindo para si mesmo, necessita de uma ou duas lições em amor. Talvez nós dois necessitamos.
***
Suas amigas estavam reunidas à borda do lago lamentando a perda da cartola de seda de Simon, que um nobre impertinente tinha arrojado à água. Ergueu-se um coro de vivas quando o chapéu se moveu em direção à borda, e logo se ouviu um gemido coletivo quando começou a afundar-se e ficou claro que a alta sociedade não voltaria a vê-lo nunca mais.
- Isto é muito impróprio de você, Jane. Não viu hoje os jornais? -
disse Cecily pela comissura da boca, simulando que não via o marquês bonito que se mantinha a certa distância de outros.
Cecily vestia um traje de montar de seda chocolate e seu pequeno rosto quase desaparecia sob um chapéu, adornado garbosamente por penas de cisne.
Jane se dedicou a contemplar a água, com todas as partículas de seu ser conscientes de que Grayson estava atrás dela, afastado, mas tão presente que não conseguia pensar em ninguém mais. Ainda sentia o contato de seu musculoso corpo apertado ao dela. Pelo visto não era a única que se sentia atraída por ele; a maioria de suas amigas lhe dirigiam encantadores sorrisos e súplicas de que salvasse o chapéu no fundo. Inexplicavelmente, essa atração generalizada por ele a irritava, ao que se somava o nervosismo e o sentimento de culpa pelo segredo que lhe ocultava.
- Sim - respondeu, passado um momento. - Vi-os. Sabe que a metade do que está escrito não é verdade.
Cecily estreitou os olhos, pensativa.
- Ou seja, que a outra metade é? Não, não me responda.
- Não pensava responder.
- Todos dizem que vai lhe propor matrimônio, Jane. Se é que ainda não lhe propôs.
Jane
suspirou.
Nessa
manhã,
quando
viu
unidas
suas
personalidades em letras de imprensa, quando leu que certo marquês se apaixonara por ela, experimentou uma onda de alegria a mais injustificada, que se desinflou mal deixou o jornal sobre a mesa.
- Uma parte de mim admira-a por isso, Jane - acrescentou Cecily, passado um longo momento de vacilação.
Pela extremidade do olho, Jane viu Grayson olhando para o parque; Helene estava passando agarrada ao braço de lorde Buckley, com seu cabelo loiro claro brilhante pelo reflexo do sol. A francesa parou quando viu o alto marquês, e dissimuladamente deu uma leve cotovelada a seu acompanhante. Grayson cobriu sua sensual boca com a mão enluvada e
bocejou.
- Admira-me, por quê? -perguntou, distraída, absorta no silencioso drama que acabava de presenciar.
Que demônios significava isso? Por que seriam tão complicadas as emoções humanas? Então lhe ocorreu pensar se dentro de um mês seria ela que iria pelo braço de outro homem, desesperada por atrair o interesse de Grayson. Alguma vez Grayson teria levado Helene a um labirinto e lhe teria dado prazer até deixá-la sem sentido? Algum dia bocejaria quando a visse?
- Por brincar de amante com Sedgecroft - sussurrou Cecily ao ouvido.
Isso sim lhe captou a atenção. Sentiu um rubor de vergonha, que lhe começou nas solas dos sapatos e foi subindo como uma onda até o rosto. Pior ainda, a julgar pelo brilho diabólico que viu em seus olhos, ele também o tinha ouvido.
- Não é meu amante - sussurrou, embora a voz lhe soou menos convincente do que devia. - É um acompanhante, um amigo da família.
- Esse tipo de amizade - disse Cecily, com voz áspera, mas mais baixa - se chama engordar ao cordeiro para matá-lo. Sim, todo mundo vê esse enorme broche de diamante em seu peito. Todos sabemos de onde procede e que se esta amizade acabar em matrimônio tudo será perdoado. Mas e se ele seguir os passos de Nigel? E se Nigel retornar?
- Tenha a bondade de mudar de assunto, Cecily - sussurrou Jane, segura de ter ouvido Grayson rir.
Cecily a levou mais perto da borda do lago.
- Tem que romper com ele. Ao menos até que esteja bastante calma para pensar.
- Você experimente romper com Sedgecroft.
- Estou muito preocupada com você, Jane, de verdade. Dá toda a impressão do mundo de que desfruta de sua companhia.
- Talvez a desfrute.
- E talvez está tão magoada que não sabe o que faz.
- Pode ser que pela primeira vez em minha vida esteja fazendo o que desejo.
Jane se surpreendeu com seu intenso desejo de defender o malandro. Suas amigas só viam sua fachada. Não percebiam sua bondade nem o carinho por sua família que lhe tinha conquistado o coração. Sim, podia ser um libertino às vezes, mas cuidava dos seus. Se Grayson se apaixonasse alguma vez, pensou tristemente, a mulher que escolhesse não só ficaria sem sentido de prazer, mas também seria amada, mimada.
- Acredito que...
Cecily se interrompeu ao cair uma sombra entre elas.
- Quer cavalgar agora, Jane? - perguntou Grayson, em tom muito agradável, como se não tivesse idéia do tema dessa conversa sussurrada.
Jane o olhou, e sentiu passar uma rajada de prazer por toda ela.
Podia ser um demônio, mas o que a fazia sentir desafiava toda descrição. Cecily esticou os lábios em uma careta de desaprovação e se virou para o lago, onde tinham arrojado um punhado de flores em honra do chapéu de Simon.
- Sim quero - disse Jane, temendo que seus dois amigos iniciassem uma briga por ela a qualquer momento.
Tanto Cecily como Grayson eram seus amigos, duas pessoas diferentes que só queriam protegê-la, cada um a sua teimosa maneira.
Como iria manter a paz entre eles?
Pensou.
- Sim - acrescentou, sorrindo à Cecily a maneira de desculpa -
Acredito que gosta muito de cavalgar.
***
Duas horas depois Jane ia caminhando com Grayson por um atalho do úmido e sombreado jardim de sua casa em Grosvenor Square.
- Agora Cecily está zangada comigo - comentou penalizada. -
Prognosticou que me vão cair sobre minha cabeça todo tipo de desgraças, e é possível que não esteja equivocada.
- Bom, equivoca-se com respeito a mim - disse Grayson, caso evidentemente tivesse acusado a ele de ser a causa de suas iminentes desgraça. - Espero que tenha saído em minha defesa.
- Sim, mais...
Parou junto ao abrigo para as plantas pequenas e olhou para a casa, bem a tempo para ver cair uma cortina na janela de um dormitório.
- A equipe de espionagem nos viu - disse, sorrindo de orelha a orelha.
- Quem é desta vez? - perguntou ele, em um sussurro teatral -
Caroline ou Miranda?
- Acho que as duas. Na realidade, pareceu-me ver uma luneta na mão de Caroline.
Ele a observou com um preguiçoso sorriso.
- Demos-lhe motivo para preocupar-se?
- Vamos, Grayson, que patife é. O que podemos fazer? Temos que pôr fim a esta tolice antes que os aristocratas exijam saber a data de nossas "bodas".
- Quer romper nosso compromisso, Jane?
- Poderia falar sério um momento?
Ele levantou os olhos, distraído pelo claro rangido de uma janela ao abrir-se. Sorrindo divertido, pegou-lhe a mão e a levou até o outro lado do abrigo.
- Agora não podem nos ver, e isso deve alarmá-las de verdade.
Assim, o que será esta noite? Uma festa ou um jantar para dois?
Jane resistiu a tentação de fundir-se com ele apoiando-se em seu
duro peito.
- Alguma vez lhe ocorreu pensar que às vezes uma pessoa normal fica em casa, para ler, ou descansar?
- Não há descanso para os maus, querida minha, algo assim diz a Bíblia.
- Como se a tivesse lido.
- Ah, pois sim, tenho lido-a. - Dançaram-lhe os olhos azuis ao recordar. - Com uma preceptora que tinha virtualmente minha idade, e segurava uma vara junto a meu traseiro. Depois tive certa dificuldade para estudar as Sagradas Escrituras. Às vezes penso o que terá sido dessa mulher, e a quem estará torturando agora.
Jane se obrigou a sorrir para ocultar sua reação a essas palavras.
Não lhe custava imaginar-se que boa peça seria ele de menino. Mas o céu a amparasse. Ao dizer preceptora só podia referir-se à Esther Chasteberry ou, melhor dizendo, lady Boscastle, que já o era, mãe de outra geração de crianças de má conduta. A Preceptora da Luva de Ferro, chamavam-na. Renovava-lhe todas suas ansiedades descobrir que ele a recordava tão bem. Não estaria brincando se soubesse que Esther se casara com seu primo desaparecido.
- Não sei o que dizer - falou. - Provavelmente merecia qualquer castigo que ela lhe infligisse. Acredito que...
Pestanejou surpresa porque lhe pegou o queixo e lhe deu um rápido e forte beijo. Em um instante uma perigosa onda de calor lhe inundou os sentidos, que desapareceu quando ele se afastou, deixando-a um pouco desequilibrada e aborrecida.
- Isso terá que sustentá-la algumas horas - disse ele, pesaroso. -
Vêm os jardineiros.
- Me sustentar algumas horas. Francamente, Grayson, como se uma mulher não pudesse viver nem respirar entre beijo e beijo. Isso é pura arrogância.
Ele riu e, despreocupadamente, a fez sair do atalho para deixar caminho ao carrinho de mão que vinha empurrando um dos jardineiros.
- Isso me disseram mais de uma vez - disse, sem retirar a mão de seu ombro. - Em todo caso, isto só é para me assegurar de que não caia nas garras de nenhum barão melancólico a quem goste.
- Me dá pena - respondeu Jane. - Não deveria zombar dele.
- Um homem em busca de uma presa poderia aproveitar-se dessa compaixão - disse ele, com o mais absoluto cinismo.
- Dito por alguém que conhece todos os salários de seu ofício.
- Mas pode achar a alguém melhor que Brentford, Jane. Só começamos nossa busca.
- Alguma vez partiu-se seu coração?
Ele retrocedeu um passo e desceu a mão a seu flanco. Acabavam de aparecer Caroline e Miranda no jardim, dando um vergonhoso espetáculo ao simular que estavam admirando as malvas.
- Só uma vez. A sensação é horrível - disse, enrugando o nariz e correndo para a porta do jardim. - Passaremos bem esta noite. Traga sua Bíblia ou uma vara. O que preferir.
Capítulo 16
Sua Bíblia ou uma vara.
Jane sentiu passar um calafrio por ela toda quando a alta figura dele desapareceu de sua vista. Iria necessitar todas as orações da Bíblia e uma vara para proteger-se quando Grayson descobrisse a sorte de sua Preceptora Luva de Ferro, e o papel que ela e Nigel tinham tido em sua vida. Quanto tempo poderia continuar com essa farsa sem derrubar-se?
Quanto tempo levaria a ele perceber que esteve enganando-o?
Cruzou os braços quando se aproximaram suas irmãs sigilosas.
- O que ocorreu? -perguntou-lhe Caroline, com um olho posto na porta do jardim.
- Saímos o mais rápido possível quando a vimos - continuou
Miranda, fazendo uma pausa para respirar. - Poderíamos ter chegado antes, mas Caroline não conseguia achar um sapato.
- Não aconteceu nada - respondeu Jane, em tom nada convincente.
Caroline lhe dirigiu seu frio olhar de tigre.
- Escondeu-a atrás do abrigo.
- Ia mostrar os bulbos que enviou a tia Matilde de Bruxelas.
- E por isso estão desabotoados esses três botões de sua jaqueta de montar? - perguntou Miranda, toda inocente. - Porque foi lhe mostrar seus bulbos?
- Estive cavalgando no parque - respondeu Jane indignada. - Fazia muito calor esta tarde.
- Sim, muito calor - suspirou Caroline. - Vamos, Jane, minha sensata, minha respeitável irmã, que nunca se viu metida em um escândalo, como pôde permitir que isto acontecesse?
Ela afastou uma pedra com a ponta do sapato.
- Isso me pergunto a cada hora.
As jovens ficaram uma a cada lado dela sobre o atalho ladrilhado.
- Tudo isto é muito impróprio de você, Jane - disse Miranda, lhe contemplando o perfil. - Sabe como é ele.
- Pois, a verdade é que não sei como é - disse Jane, pensativa. Mas fosse como fosse, gostava muito dele, muitíssimo. - Só sei que não merece que eu o tenha enganado.
- Vai contar? -perguntou Caroline, quase sem fôlego.
- Tenho que contar-lhe não? - respondeu Jane, aflita. - Embora vivo com a esperança de que, por algum milagre, ele diga que já cumpriu com seu dever e não tenha que descobrir nunca a verdade.
- Isso não ocorrerá - disse Caroline, carrancuda - a menos que Nigel parta da Inglaterra e não volte jamais. E não a descobrirá enquanto você lhe mostrar seus bulbos.
- Quer que nós contemos? - propôs Miranda, passado um momento
de reflexão.
- Não! - exclamou Jane, energicamente - Isso seria a saída do covarde. - mordeu o lábio inferior - Contarei na sexta-feira.
- Pense muito bem - aconselhou Caroline. - Se Sedgecroft decide trair sua confiança por raiva, outro escândalo atrás do primeiro será seu fim. Não estamos de todo certas de que possamos confiar que ele guardará o segredo.
- Não imagino encolhendo os ombros e esquecendo o assunto sem guardar rancor -acrescentou Miranda, em tom detestável-. Pode ser que um Boscastle seja um amigo excelente, mas eu não quereria ter a nenhum deles como inimigo.
Esse mesmo pensamento tinha passado pela mente de Jane mais de uma vez. Virou-se para olhar o abrigo, sentindo outra arrepiante premonição. Que perspectiva mais insuportável. Todo esse encanto e energia masculinos convertidos em raiva, em desejo de vingança. Todo o delicioso agrado que compartilhavam destruído sob a sombra do engano.
- Terei que correr esse risco, não é? - disse, firmemente.
E outro escândalo não seria seu fim absolutamente. Perder a confiança de Grayson o seria.
***
Grayson percebia que com Jane ia entrando em território traiçoeiro, perigoso, não explorado. Mais de uma vez tinha considerado inclusive a possibilidade de pôr fim ao acerto entre eles, mas não conseguia decidir-se a fazê-lo; seguia inventando montões de pretextos para continuar vendo-a. Afinal decidiu que, no mínimo, devia tentar tirá-la da cabeça quando não estavam juntos. Em todo caso, tinha descuidado seus assuntos. Nunca tinha se sentido a gosto participando dos ociosos passatempos da aristocracia.
Assuntos de negócios o aguardavam no cais. Tinha jurado investigar
o rumor de que Drake queria seguir o malfadado caminho de Brandon e alistar-se nas filas da Companhia das Índias Orientais. De maneira nenhuma podia permitir-se estar pensando em uma mulher todo o dia, por atraente que fosse.
Entretanto, virtualmente não pensava em outra coisa, e constantemente se surpreendia esperando com ilusão voltar a vê-la.
Sentia-se ansioso por assistir com ela a algum evento agradável ou ameno, por lhe falar de suas preocupações pela família ou de lhe pedir conselho.
No que se converteu acerto com ela para ajudá-la?
Não se atrevia a pensar.
***
Passaram rapidamente outros cinco dias, e Jane continuava sem conseguir reunir a coragem para fazer sua confissão. Cinco dias em que Grayson ocupou seu tempo e seduziu seu espírito, os cinco dias mais felizes e mais aterradores de toda sua vida. Felizes porque ele a fazia rir com sua audácia e afável sinceridade; aterradores porque percebeu que estava muito apaixonada por ele, esse homem cujo galanteio só era uma generosa farsa.
Aterradores devido ao segredo que se interpunha entre eles. Ao punhado de esperançados pretendentes que se atreveram a visitá-la, os rejeitou com amáveis desculpas.
Ela inclusive se negou a sair às compras com Cecily, em sua excursão semanal por Bond Street, pois não tinha o menor desejo de suportar outro sermão. Em lugar de sair com ela, foi com Grayson passear de barco pelo Tâmisa em Chelsea, acompanhados por Simon e Chloe; ali fizeram corridas com o barco de Drake e sua buliçosa tripulação. Naturalmente, ganhou o barco de Grayson.
Na noite seguinte assistiram a um baile. Na noite da quinta-feira, a véspera do Dia do Julgamento Final, quer dizer, no dia que tinha fixado
para lhe fazer a confissão, foram ver uma peça de teatro com seus pais, e voltaram para casa sozinhos, pois lorde e lady Belshire decidiram ficar jogando cartas com um amigo idoso em Piccadilly.
- Encarregue-se de que chegue bem em casa, Sedgecroft - disse lorde Belshire, que só aprovava esse acerto porque lhe parecia que Jane estava mais feliz que nunca, bom, na realidade, mais feliz que desde o momento em que começaram a organizar esse malfadado casamento. E
ninguém soube nada desse cruel canalha, Nigel. Portanto, sentia muita pena por sua filha mais velha, e tanto a sentia que a deixava passar o tempo com um homem com fama de libertino que estava demonstrando ser mais confiável que seu primo - Simon e as duas meninas estarão em casa - acrescentou, a modo de precaução - Assim não estarão sozinhos.
Mas resultou que Jane e Grayson se encontraram sozinhos ao chegar à casa, além dos criados que iam e vinham silenciosos pelos corredores mais escuros.
Lorde Belshire tinha esquecido que Simon ia acompanhar Caroline e Miranda a um baile de aniversário.
Assim, acharam-se os dois sozinhos no vestíbulo de ladrilhos de mármore brancos e negros, como duas peças em um tabuleiro de xadrez, cada um experimentando a tensão e tentação que impregnavam o ar. A quem correspondia fazer a primeira jogada?
Ele tirou uma das penas de pavão que lady Belshire mantinha em um vaso de bronze e com ela fez cócegas no nariz de Jane, movendo as sobrancelhas em gesto teatral.
- Por fim sozinho com você - murmurou, lhe roçando o cabelo com os lábios - O que acha que devemos fazer primeiro?
- Deixar de fazer-se de idiota, para começar. - Jane tirou o capote de seda ameixa, e ficou preso o ar na garganta ao ver os escurecidos olhos dele ao olhá-la. Desde essa noite no labirinto não tinham caído na tentação - E agora me vai fazer espirrar.
- Deus a guarde - disse ele, lhe dando uns golpes na cabeça com a pena - Falo sério. Onde prefere que a seduza, no salão de damasco rosa ou no dourado?
Ela começou a rir, mais para dissimular a excitação que lhe produziu a pergunta que por outra coisa.
- Bom, em nenhum dos dois, assim parece que a sedução não está escrita nos astros. Mas já é tarde. Suponho que o correto é que parta.
- Por quê?
Atraiu-a suavemente para ele, lhe rodeando a cintura com seus potentes braços. Por cima do ombro dele ela viu o reflexo dos dois no espelho do bengaleiro, seu alto corpo com o traje negro de noite quase ocultando o seu arqueado, apoiado no dele. Por um instante o reflexo criou a ilusão de que eram um só, unidos em um na penumbra. Engoliu em seco, com o coração acelerado por esse pensamento.
Ele soltou a pena, que caiu no chão.
- Não vou deixá-la sozinha - disse, lhe levantando o rosto para o seu.
- Há os criados. Estou segura.
Mais segura que com ele em certo sentido. Embora em outro, bom, no fundo do coração sabia muito bem que ele não permitiria jamais que alguém lhe fizesse mal. Tomara pudesse salvá-la de si mesmo também.
- Podemos ficar até tarde e jogar cartas - disse ele, despreocupadamente, levando-a pelo vestíbulo até o salão principal -
Certamente pode apostar algo que eu deseje.
- Não... ah, não, tinha esquecido. Fiquei de ir tomar o café da manhã com Cecily e Armhurst amanhã cedo.
- Desculpe-se com ela e lhe peça que o deixe para a próxima semana - disse ele firmemente.
- Não posso. Tenho que vê-la antes que parta com sua família para Kent a preparar a propriedade para o casamento.
Ele fechou silenciosamente a porta, sem deixar de olhá-la. O salão estava em penumbra, e ficou observando-a caminhar para o aparador.
Toda essa noite esteve morto de vontade de acariciá-la, mesmo que lorde e lady Belshire estivessem sentados junto a eles no camarote.
Cada roçar de seu suave ombro com o seu lhe tinha feito descer um estremecimento de desejo pela coluna.
A tentação lhe acelerou os batimentos do coração a um ritmo perigoso quando ela se voltou e pôs-se a caminhar para ele. Acelorou-se o sangue e o inundaram violentas ondas de excitação.
Ela bebeu um gole do uísque antes de lhe passar o copo.
- Ah! - exclamou, enrugando o nariz - Se isto não lhe acender o fogo no ventre, nada o fará.
"À exceção de você", pensou ele. Com seus longos dedos rodeou os dela um instante ao pegar o copo, e com a mão livre soltou um pouco a gravata.
"Me ordene que parta, Jane, antes que me esqueça que isto não deve ir mais longe."
Ela deu meia volta e foi sentar se no enorme sofá do centro do salão, fazendo ranger a seda ao afundar-se nele.
- O que lhe pareceu a peça?
- Não a vi - respondeu ele, sentando-se a seu lado - Estava um pouco distraído.
Escrutinou-lhe o rosto, fascinada. Seus olhos pareciam prateados na penumbra, ardentes, faiscantes de pecado.
- Acho que não vou lhe perguntar o que o distraiu.
Tinha sido ela, logicamente. Enquanto fingia estar atento à peça de teatro, estava espremendo o cérebro tentando recordar todas as fofocas que tinha ouvido sobre Jane ao longo dos anos. Todos diziam, é claro que ela pertencia a Nigel, e ele não tinha prestado muita atenção. De bom berço e boa criação; formosa; uma intelectual, uma sabichona. Sim,
de acordo, uma intelectual com um corpo que corresponderia estar em um bordel real. Ninguém tinha mencionado nunca seu malandro humor nem esses sedutores olhos verdes, nem esse atraente indício de insegurança. Nem que com ela todos seus demônios achariam a seus iguais.
- Quem é Armhurst? - perguntou, depois de beber um gole.
- Um amigo de Cecily.
- É jovem?
- Acredito que sim.
- O ano passado um Armhurst esteve envolvido em um duelo por um romance rompido.
Ela fez uma inspiração profunda, para serenar-se. Tinha detectado frieza em sua voz quando falou, e nesse momento via fogo em seu olhar ao aproximar lentamente a cabeça para ela, e seu cabelo dourado longo lhe roçou as lapelas de seu fraque negro. O aroma a uísque de seu fôlego a tentava, e a ardente paixão que expressavam seus olhos a abrasava.
- Não vá - disse ele, em um tom enganosamente alegre.
Deu-lhe um salto o coração, saltando um batimento. Estavam suspensos à beira de algo, de uma queda no desconhecido. Percebia-o, e não conseguia decidir se tinha medo ou não.
- O que?
- Não vai reunir se com esse Armhurst. Proíbo.
- E se for? - perguntou ela, para cravá-lo.
- Então eu estarei lá e Armhurst não se atreverá nem a olhá-la sequer.
- Não me diga que nunca participou de nenhum duelo - disse ela, com o coração acelerado por esse desdobramento de possessivo autoritarismo.
O que tinha mudado entre eles?
- Neste momento o tema não é minha moralidade, Jane.
O que, pensou irônico, era condenadamente conveniente, se levasse em conta as coisas imorais que desejava lhe fazer.
Ela apoiou a cabeça no espaldar do sofá.
- Me diga uma coisa, Grayson. Casaria-se com uma mulher a que não amasse? Se sua família insistisse, ou ela tivesse montões e montões de dinheiro e fosse uma fabulosa beldade?
Ele estendeu o braço para trás para deixar o copo na mesinha lateral que estava a suas costas. Isso era entrar em terreno perigoso, falar com franqueza a uma mulher.
- Jane, para ser totalmente franco, nunca soube se me casaria com uma mulher a que amasse, tivesse montões de dinheiro ou não.
- Não?
- Bom, há um mês mais ou menos, teria preferido torrar em azeite fervendo antes de me submeter a me acorrentar a uma mulher por matrimônio. Mas ultimamente estou olhando a vida de outra maneira.
Ela o sentiu aproximar-se mais, um movimento no tabuleiro de xadrez.
Secou-lhe a boca. Dentro de um momento ela estaria sentada sobre suas coxas; ele apertaria contra ela seu quente e potente corpo e os desonraria aos dois.
- Desde que morreu seu pai, quer dizer? A carga de responsabilidade Boscastle de que me falou?
Roçou-lhe o exuberante lábio inferior com o dorso dos dedos; a responsabilidade era a última coisa que tinha na cabeça. Desejava-a com tanta intensidade que lhe doíam os ossos.
- Isso e outras coisas. Já lhe disse alguém alguma vez que sua boca é muito erótica?
- Não, é claro que não - se apressou a dizer ela - É provável que Nigel nem sequer saiba o que significa essa palavra.
De repente não conseguiu recordar do que estavam falando.
Esqueceu tudo ao sentir essa boca com aroma a uísque a uns dedos da sua; ao ver esses olhos azuis prateados lhe perfurando os seus com sensual posse. O corpo se retesou e vibrou em reação a seu tácito pedido. Desejou lhe dar o que fosse que desejasse, por muito desmandado, escandaloso ou perigoso que pudesse ser.
- Não deveria ter ficado - murmurou ele, com a voz rouca, espessa.
- Sei.
E fechou os olhos quando deslizou as mãos pelos flancos, subindo até seus seios e cavando suavemente as palmas sobre eles.
- Sabe quanto desejei fazer isto no teatro? - perguntou ele, com a voz rouca, lhe beijando o pescoço, por debaixo do queixo, lhe descendo a blusa de seda bronze até deixar descobertos os cimos de seus redondos seios - Que corpo mais formoso tem. Desejo-o, Jane.
Ela estremeceu, de desejo e incredulidade.
- Achei que íamos jogar cartas.
- Joguemos outra coisa.
Agarrou-a pelos ombros e a montou em seu colo, lhe levantando as saias enquanto a beijava e logo afundava o rosto sedutoramente entre seus seios. Sentiu-se enjoada pela enchente de sensações que lhe desencadeava essa postura, com as nádegas presas entre suas musculosas coxas; seus beijos a faziam retorcer-se e gemer de prazer.
Sentiu virar a cabeça como um torvelinho quando lhe subiu a mão pelo interior de uma perna e logo começou a acariciá-la ali, de uma maneira que lhe acendeu todas as terminações nervosas.
- Ooh, ooh - sussurrou ele, enredando os dedos no úmido pelo - Já está molhada. Afogaria-me em você. Não deixei de pensar em você todas as horas, desde essa noite no labirinto.
Sua voz profunda lhe chegava de muito longe, penetrando apenas a névoa de desejo que a envolvia. Estava levada por sua força e
suavidade. Aferrou-se a seus ombros e nas Palmas sentiu ondular seus duros músculos, como aço quente. Nas partes baixas, abriram-se a ele todas as curvas mais íntimas de seu corpo, em uma reação erótica que lhe era impossível controlar, em uma rendição ao macho elementar que tinha capturado sua presa e podia brincar com ela a seu prazer.
A casa estava absolutamente silenciosa. Os suaves sons íntimos do homem dando prazer a sua mulher pareciam amplificar-se no silêncio e eram absorvidos pelas grossas cortinas de damasco e das tapeçarias das paredes. Também absorveram o grito de prazer que escapou a ela quando lhe introduziu o indicador na abertura. O tictac do relógio dourado que estava atrás deles marcava o passar do tempo. Escapou um gemido dele por estar acariciando-a assim.
- Não deveria estar aqui - murmurou com a voz áspera, com os olhos escurecidos, quase negros, pelo desejo e o remorso - Me tenta até me fazer perder a razão. Tenho que partir...
- Não - disse ela, sem poder acreditar no desespero que detectou em sua voz. Acariciou-lhe a face, deslizando as pontas dos dedos por suas bem cinzeladas feições, e o olhou nos olhos - Não quero que parta.
- Vamos, Jane - sussurrou ele, virando o rosto para afundá-lo em sua palma - Não me dê fôlego. Já estou no limite. Sei muito bem a que poderia levar isto.
Ela sentiu pulsar forte o pulso da garganta. Ele parecia a tentação encarnada, com seu cabelo dourado revolto e seu corpo de guerreiro oculto sob seu traje de noite. E a desejava, desejava a esse homem que lhe tinha devotado sua amizade em um momento em que estava humilhada e desonrada ante a sociedade. A que conduziria isso?
- Não me importa - disse, aproximando o rosto para beijar sua firme boca - Desejo que fique.
- Não sabe o que diz - murmurou ele, e sua voz soou angustiada.
Não podia resistir. Nenhuma outra mulher poderia acalmar o torvelinho
que sentia em seu interior.
Ela se sentia igualmente, ou ao menos isso achava ele-. Você nunca fez isto. Tenho uma vantagem injusta.
- Quem melhor para me ensinar, então? -sussurrou ela, fechando os braços ao redor de seu forte pescoço.
Ouviu-o fazer uma inspiração profunda. Não desviou olhos. Lhe brilhavam os lábios, molhados com o beijo dela. Ele era tudo o que tinha desejado em sua vida. Que fizesse o pior.
Ele ficou imóvel como um morto, com as pálpebras entreabertas, seu olhar indecifrável, olhando seu formoso rosto. Agitaram-se as narinas e um formigamento de pressentimento passou ela pelas terminações nervosas. Por um insuportável instante pensou que o tinha escandalizado com seu pedido. Sentiu subir o rubor pelo pescoço, de vergonha. Que tipo de mulher pede a um homem que a seduza?
De repente ele pareceu cobrar vida novamente e sentiu mover-se seu enorme corpo debaixo dela. Seus olhos continuavam tendo-a cativa com sua intensidade. Enfeitiçada, não se moveu. Não teve tempo para pensar se tinha cometido um engano. Com a mão esquerda ele soltou os laços de seu vestido, com tanta perícia que ficou nua até a cintura antes de perceber. Bom, isso era o que tinha desejado, não?
Ele desceu os olhos, para contemplá-la, e sua boca se curvou em um sorriso de sensual espera. O convite tinha soltado os últimos vestígios de reserva.
- Quem melhor, com efeito? - disse, lhe introduzindo outro dedo na vagina molhada - A resposta é ninguém, Jane. Essa reclamação é privilegio meu, com sua permissão.
Ela arqueou as costas; a perita invasão dele no centro mais sensível de seu corpo a deixava absolutamente impotente, enquanto o prazer lhe inundava os sentidos.
Alongava e friccionava a cavidade com uma delicadeza vizinha à
tortura, e seus frescos e longos dedos continuaram introduzindo-se e saindo; a intensidade de sua excitação e prazer era tal que lhe parecia que se estava dissolvendo, convertendo-se em vapor.
Grayson fez uma funda inspiração quando o aroma almiscarada lhe envolveu os sentidos. O salão da família não era o lugar para fazer amor pela primeira vez, mas não conseguia pensar em outra coisa que em enterrar-se em sua estreita passagem. Molhava-lhe toda a mão, movendo-se com uma sensualidade inconsciente que desencadeava o lado diabólico de sua natureza. Isso era o que ele desejava também, e tinha temido que ocorresse. Por que imaginou que ele seria conveniente para ela?
- Grayson - gemeu ela, com o olhar desfocado.
Estava receptiva e bem disposta, a mulher mais desejável que tinha conhecido.
- É prazeroso, não é? – murmurou - e lhe vou fazer isso mais prazeroso ainda dentro de um momento.
Com a mão livre se abriu a jaqueta, ansiando senti-la apertada contra seu peito. Ao ver seu corpo meio nu, seu instinto masculino básico ameaçava jogar ao vento o pouco autodomínio que restava. Dar-lhe prazer não lhe acalmaria a febre que corria por seu sangue; precisava possuí-la totalmente. Retesaram-se os músculos das costas e os ombros com o esforço de esmagar o desejo que vibrava por todo ele.
Com a ponta do polegar lhe acariciou o sensível e pequeno botãozinho de seu sexo até que ela agarrou o tecido engomado de sua camisa, com o corpo duro de tensão. Ele não afastava os olhos de seu rosto, e o coração lhe deu um salto e se alojou na garganta quando viu que ela se ia se aproximando do topo. Olhou para a porta, para assegurar-se de que a tinha fechado com chave. Ela era toda dele nesse momento, e nada ia mudar isso.
Apertando-se contra sua mão ela chegou ao orgasmo, em uma
violenta onda de sensações, tentando respirar, enquanto ele afundava mais os dedos nela para lhe intensificar ainda mais o prazer. Sentiu-se dividida em duas, aliviada e humilhada ao mesmo tempo pelas contrações de prazer que lhe estremeciam o corpo.
Entretanto, uma vez passado tudo, pareceu-lhe o mais natural do mundo estar sentada aí com ele, em um agradável enredo de braços e pernas, com o vestido todo enrugado na cintura. Desejou continuar assim eternamente. Não queria pensar.
Dissimuladamente lhe olhou o bem cinzelado perfil, ouviu sua entrecortada respiração. Estavam sentados juntos, ele com a perna dobrada sobre o delicado arco do pé dela, e a cabeça apoiada no braço dobrado sobre o espaldar. Tinha a roupa indecentemente ordenada, e estava olhando o teto, com o cenho franzido, tão absorto que ela estremeceu. O que tinha feito de seu malandro brincalhão? Estaria aborrecido por não ter sua própria satisfação? Não se atrevia a perguntar-lhe mais parecia... insatisfeito. Ou estaria lamentando a queda de seu modelo de virtudes? Esse pensamento a fez voltar bruscamente para a terra.
- Grayson?
- Me dê só um momento, Jane. Necessito de tempo.
Tempo? Passeou a vista pelo salão em penumbra. Passado um longo momento, que lhe pareceu séculos, esperando que ele fizesse algum movimento, murmurou:
- Deveríamos pôr um pouco de ordem aqui, não vá que nos surpreendam nadando em culpa como Antonio e Cleópatra. O único que nos falta é uns escravos nos abanando com folhas de palma e nos pondo uvas na boca.
Seu esforço de reanimá-lo não deu resultado. Ele exalou um longo suspiro. Não poderia pegar olho em toda a noite, embora lhe dar prazer havia valido a pena. Ele e Jane tinham cruzado um limite essa noite, e
isso levava a pensar a sério a respeito do futuro de ambos.
- De acordo - disse por fim - Levante-se e vá procurar um baralho enquanto eu acendo as velas. Quando chegar sua família estaremos muito compostos.
- Por que estava tão sério? - perguntou-lhe ela, preocupada, quando os dois já se levantaram do sofá e ele estava junto ao aparador acendendo as velas do candelabro.
Ele desviou os olhos do candelabro.
- O que? Estava tentando me dominar. E pensando. Ah, minha doce Jane, há muitíssimas coisas no que pensar.
Ela terminou de amarar os laços do vestido e arrumar a blusa, com as mãos nada firmes.
- Muitíssimas coisas?
A luz das velas criou sombras na perfeita simetria de suas angulosas e fortes feições. Com o cenho franzido se aproximou dela para ajudá-la a alisar as dobras da saia.
- Hoje recebi uma mensagem de Heath dizendo que está a caminho para reunir-se comigo. Suponho que poderia ter notícias.
Ela se virou para a mesa onde iriam jogar cartas e pegou o baralho.
Um frio foi invadindo toda inteira, desvanecendo o vigoroso calor que havia sentido um momento antes.
- Que tipo de notícias? - perguntou.
Embora não desejava sabê-lo. Não queria que nada estragasse sua ilícita felicidade. Ressecou-lhe a boca.
Ele encolheu os ombros e pegou o baralho de suas mãos quando ela se voltou para ele.
- Não tenho nem ideia.
Voltaram a sentar-se no sofá, a uma prudente distancia. Ela o observou embaralhar as cartas com a mesma naturalidade e perícia com que nesse mesmo lugar a tinha acariciado lhe dando um prazer
inimaginável. Olhou fixamente suas fortes e bem cuidadas mãos, fascinada e alagada de ansiedade ao mesmo tempo.
- Algo deve lhe ter dito - falou.
Ele negou com a cabeça.
- Toda sua mensagem era muito detestável e misteriosa, sem dizer uma sílaba do que descobriu, se é que descobriu algo. Mas suponho que isso vem de seu trabalho como espião. Claro que Drake esteve também trabalhando em um assunto misterioso, ao menos isso suspeito eu. Mas são muito diferentes. - Levantou os olhos e lhe sorriu de orelha a orelha.
- A única coisa que sei é que não queria ter por inimigo a nenhum dos dois.
- Não, claro - disse ela, e reteve o fôlego quando se encontraram seus olhos. Desceu os olhos às cartas que ele já tinha repartido. Viu imprecisas as cores vermelhas e negras. Confia em mim, pensou; ainda não sabe. - E se eu lhe confessasse que nunca me importou se Nigel voltasse ou não?
Ele não pôde dissimular sua aprovação.
- Compreenderia totalmente.
Oprimiu-se a garganta dela. Isso era ainda mais difícil do que tinha suposto.
- E se lhe dissesse que nunca desejei me casar com ele?
Escrutinou seu rosto com olhar tranqüilo, objetiva. O que viu?
- Ver as coisas em retrospectiva sempre nos dá a sabedoria que poderíamos desejar.
- Não é ver em retrospectiva - se apressou a dizer ela - Sou muito sincera. Não acredito que o tenha amado jamais. A não ser como a um querido amigo.
Grayson meditou suas palavras enquanto seguia dando as cartas.
Seu tenso sorriso poderia ser o único sinal externo de que essa confissão o agradava, mas no fundo sentia uma ridícula onda de alívio;
não haveria necessidade de competir com Nigel.
- Bom, isso facilita todas as coisas, não é? - disse, com a voz mais tranqüila que pôde.
- Que coisas?
- Outros amores. Não lamentar o que perdemos. Eu sinto o mesmo a respeito e Helene, se quer saber. Agora a olho e me pergunto que demônios via nela que me atraiu.
Em todo caso, a única pergunta que vale é, o que fará se Nigel voltar com seu coração na mão?
- Não sei - respondeu ela, olhando as cartas repartidas sobre a mesa - Nada. O que...?
- Está preparada para perdoá-lo? - perguntou ele, seu sorriso desvanecido.
Ela procurou a força para limpar a consciência.
- Ainda não sabemos se há algo para perdoar - disse, logo depois de titubear um instante.
- Ah, é imperturbável, Jane, querida - disse ele, rindo. - E, como disse antes, extraordinariamente sincera.
- Deixe já de me fazer parecer um modelo de virtudes, por favor -
disse ela, irritada - Sou uma pessoa extraordinariamente imperfeita, se tiver que saber. Como já tem que saber.
- Bom, eu também.
- Não. Você... - Teve que engolir a saliva para passar o nó que lhe oprimia a garganta - Você não é horrendo; não o é no que de verdade importa.
Ele sorriu, com o fim de lhe dissipar a preocupação.
- Costumo sê-lo, quando estou chateado, e é muito improvável que você experimente isso pessoalmente, a não ser que pegue fazendo armadilhas no jogo.
Ela pegou suas cartas, sentindo-se tremendamente abatida. Tinha
que dizer-lhe sabia, e não limitar-se a dar rodeios em torno da verdade, mas tinha medo. Medo que o travesso afeto que via em seu rosto se convertesse em desprezo; medo de que ele saísse desse salão e não voltasse nunca mais; e medo de que em sua relação tivesse chegado a um ponto em que ele já não pudesse perdoá-la se lhe contasse o que tinha feito.
- Grayson, sinto muito, não consigo me concentrar no jogo neste momento.
- Eu sinto muito, Jane. Sabia que deveria ter partido.
- Não, não é por isso.
- Por que, então? - Seus olhos azuis lhe escrutinaram o rosto -
Pensa que traiu Nigel?
- Na verdade, faz-me parecer muito melhor do que sou. Por favor.
Não quer jogar cartas.
- Então podemos...
O som de vozes no vestíbulo o interrompeu. Levantou-se e foi rapidamente virar a chave da porta, voltou a sentar-se e apoiou despreocupadamente o cotovelo no braço do sofá. Quando se abriu a porta do salão, ele e Jane eram um quadro de atividade inocente para as três pessoas que entraram e ficaram olhando-os surpresos.
- Sedgecroft - disse Simon, olhando com olhos experientes sua irmã, e ficou satisfeito ao ver que tudo estava em ordem, além dos sapatos de cetim que ela tirou e estavam debaixo da mesa - Achei que tinham ido ao teatro com meus pais.
- E fomos - respondeu Grayson, que tinha ficado em pé por deferência à Caroline e Miranda - E me ofereci para fazer companhia a sua irmã quando descobrimos que não estavam em casa.
Caroline olhou fixamente para Grayson, como se soubesse, com os mais humilhantes detalhes, o que tinha ocorrido há uns minutos.
- Que gesto tão cavalheiresco, ficar aqui com ela para protegê-la -
disse.
- Sim, não é? - disse Jane, em tom frio, dando a entender que não seguisse com o tema.
Simon pigarreou para limpar a garganta.
- Quer um drinque, Sedgecroft?
Grayson virou a cabeça para olhar para Jane.
- Obrigado, mas fiquei de me encontrar com meu irmão amanhã a primeira hora. Tenho que me pôr a caminho. Senhoras, lhes desejo agradáveis sonhos.
Jane olhou as cartas esparramadas que tinham caído sobre o sofá.
Agradáveis sonhos, e como; não dormiria nem um só segundo enquanto não soubesse o que descobriu Heath a respeito de Nigel.
- Acompanharei você à porta - disse Simon - Soube que é um perito em tiro, e me convidaram...
Caroline se apressou a fechar a porta tão logo saíram os dois homens.
- Não o disse, verdade? - perguntou em um sussurro - Era o momento perfeito, os dois sozinhos na casa.
Jane molhou os lábios.
- Quase disse. Inclusive poderia ter chegado a pior parte se vocês três não tivessem irrompido aqui como o exército troiano. De todo modo, amanhã é sexta-feira. Disse que contaria na sexta-feira.
- Tem medo? - perguntou Miranda, deixando-se cair no sofá, no meio das cartas.
- Terror - reconheceu Jane.
- Poderíamos nos esconder atrás da escrivaninha quando lhe fizer a confissão, se por acaso ficar violento - disse Caroline, pensativa.
- Não seja tola. Sedgecroft não me machucará. - agachou-se para pegar o rei de copas, e acrescentou com a voz embargada pela emoção
- Ao menos não de uma maneira que vocês pudessem evitar.
Capítulo 17
Grayson parou fora da porta de seu dormitório ao ouvir o fraco rangido das molas do estrado de sua cama. Estreitou os olhos e esboçou seu sorriso implacável.
Com certeza sua visita noturna era de uma certa francesa; esperava poder tirá-la daí com um mínimo de gritos histéricos.
E não era que não ansiasse uma noite de relações sexuais desinibidas; o problema era que seus gostos mudaram para uma dama de olhos verdes mais complexa que desafiava suas emoções além de lhe converter o corpo em uma fogueira de frustração pelo desejo reprimido.
E se Helene albergava a esperança de ter a mínima possibilidade de reatar a relação entre eles, bom pois, não havia nenhuma esperança.
Nenhuma absolutamente.
Já não era o homem que foi quando se conheceram.
Além disso, essa noite tinha mudado tudo. Ele e Jane tinham chegado ao ponto em que o acerto entre eles ou era um começo ou um final. E como não tinha a menor intenção de renunciar a ela, compreendia claramente que estava submerso em dificuldades, com a água até o pescoço.
Embora as dificuldades não o preocupassem nada. Aparentemente, formavam parte do estilo de vida Boscastle. Mas como ele era o mais velho dos irmãos, e o primeiro dos homens que entregava oficialmente seu coração, teria que considerar cuidadosamente seus passos seguintes, como pioneiro que era.
Matrimônio? Por que não?
Fazia tempo que tinha compreendido que uma esposa é uma necessidade, mas secretamente tinha abandonado a esperança de encontrá-la no círculo de suas amizades íntimas. Inclusive tinha feito uma vaga imagem dela na mente: a cor do cabelo, o som de sua voz.
E então apareceu Jane e a imagem foi mudando lentamente.
Cobrou outra forma, a forma da mulher mais contraditória do mundo, que o mantinha acordado de noite, que não se parecia absolutamente a que tinha andado procurando.
Mas era tudo o que necessitava.
Não era um estúpido. Tinha visto muitos de seus amigos cair como moscas quando os atacava a enfermidade fatal.
E agora era ele o doente; tinha os Seis Sintomas Mortais de um Homem Apaixonado:
1. Incapacidade para pensar direito.
2. Uma alarmante propensão a sorrir nos momentos mais estranhos.
3. Pensamento constante no objeto de seu desejo.
4. Absolutamente nenhum interesse em outros membros do sexo oposto.
5. Uma surpreendente boa vontade para o mundo em geral.
6. Excitação sexual perpétua.
Já está. Era um começo então. Necessitava-a. Ela tinha aberto caminho até seu coração, e não poderia substituí-la jamais. Invadiu-o uma agradável sensação de que tudo estava bem, correto.
Abriu a porta do dormitório, sem ter a menor ideia de que esse resumo tão claro de sua situação estava a ponto de estalar em chamas.
Entrou, tendo já tudo resolvido em sua mente. Nem sequer olhou para a figura que estava recostada em sua cama, com o fim de lhe economizar a vergonha, e economizar ele o sobressalto.
- Se não está vestida, tenha a bondade de se cobrir antes que eu olhe. Não estou de humor para uma relação fortuita esta noite.
- Eu tampouco - disse Heath, abaixando os pés com botas da cama
- Ao menos não com você.
Grayson começou a rir, deixando a mão imóvel sobre a impecável gravata branca que tinha começado a soltar-se.
- Compreendo que leve a espionagem no sangue, mas é necessário tanto sigilo estando Napoleão bem seguro em sua ilhazinha?
Heath pegou o par de luvas que tinha deixado na mesinha de noite e ficou a examiná-las como se fossem as mais interessantes do mundo.
Grayson o contemplou um momento e logo continuou tirando a gravata e o fraque.
- Nunca se sabe - disse Heath.
- Ah, compreendo. Bom, suponho ao menos que não esperará achar nenhum problema dessa natureza nesta casa.
Heath levantou a cabeça e lhe sorriu, com seu sorriso de menino.
- É pela senhora Cleary, se quer saber. Desde que o mês passado sua governanta me surpreendeu posando como soldado romano para um quadro da senhorita Summers, não fui capaz de olhá-la na cara.
Grayson começou a desabotoar o colete. A pesar do tom brincalhão do Heath, algo ia mal. Percebia e rogou que não fosse algo que fizesse Jane sofrer.
- Achei que nos encontraríamos amanhã no clube.
Heath se levantou e foi sentar se em uma das duas poltronas junto à janela, na qual olhava à porta.
- Tenho que atender outros assuntos na cidade. Espero que não se importe.
- Não - respondeu Grayson, sentando-se na outra poltrona, frente a ele, um pouco confuso por essa mudança de planos. Que revelação poderia exigir esse grau de segredo. - Não me importa. Quer uma taça?
Heath bebia muito raramente. Oferecer-lhe uma taça era simplesmente um gesto de cortesia, e Grayson viu confirmada sua premonição quando o largo sorriso de seu irmão foi dando lugar a uma expressão de preocupação.
- Talvez você necessite de uma quando eu tiver terminado, Grayson.
Grayson coçou o queixo.
- Então o encontrou. Como estava?
- Debaixo de um lençol, quando o deixei.
Os olhos azuis do Heath brilhavam. Na escuridão os dois se pareciam mais que à luz do dia, quando a beleza masculina dourada do Grayson contrastava com o cabelo escuro o ar de perigosa serenidade de seu irmão mais novo.
Grayson demorou uns segundos em reagir.
- Debaixo de... meu Deus, Heath, não me diga que matou esse imbecil. Não é que não compreenda seus motivos, mas tinha a esperança de pelo menos obrigá-lo a desculpar-se publicamente ante Jane antes de estrangulá-lo.
- Está vivo. Muito vivo.
Grayson se surpreendeu pelo imenso alívio que sentiu.
Provavelmente Nigel merecia morrer, mas era um familiar.
- Viu-o, então?
Heath soltou o fôlego em um bufo.
- Em carne e osso. E literalmente em carne, devo reconhecer. Vi muito mais de Nigel do que alguém desejaria ver.
Grayson se inclinou para ele, fascinado.
- Surpreendeu-o no ato... debaixo de um lençol, santo Deus. Não me diga que estava com um homem.
- Não.
- Então... não... não seria com um animal ou com algo tão pervertido que não o possa explicar a Jane?
Heath tirou um charuto do bolso de seu colete.
- Recorda à senhorita Chasteberry?
- É curioso que a mencione. Só há uns dias estive contando a Jane esse detalhe da história de nossa infância. A Preceptora da Luva de Ferro, que convertia em gelatina seus alunos. E não esqueçamos sua vara infernal. Por que...?
- Pelo visto continua levantando varas.
Grayson se inclinou para trás, divertido. Que revelação mais inesperada.
- Nigel estava com transando com a preceptora da família?
- Para ser mais exatos, estava transando com sua esposa. Ou melhor, ela estava transando com ele. Não consegui fazer a distinção.
Grayson riu, inquieto.
- Não acredito em você.
- Acredite. Vi o registro do casamento em Hampshire.
- Casou-se com Chasteberry?
Heath sorriu, olhando seu charuto sem acender.
- Com ela, a dos medos e fantasias de nossa infância. Talvez Nigel seja um desses homens que sente predileção pelas mulheres dominantes. Inclusive há homens que pagam por esse duvidoso prazer.
Transcorreu um longo silencio. Finalmente Grayson balançou a cabeça de um lado a outro.
- Não tenho ideia de como devo explicar isto à Jane.
- Isso será desnecessário.
- Demônios - exclamou Grayson, irritado - Disse a ela antes que a mim?
- Grayson, tão atordoado está? Tenho que lhe explicar todos os detalhes? Pelo amor de Deus, não me faz isso nada fácil. Não será necessário dizer a Jane. Ela sabe, soube-o todo o tempo. Ela e Nigel sabotaram seu casamento. A maioria das jovens chegariam a qualquer extremo para amarrar um homem. Sua Jane fez o contrário. Você e suas nobres intenções interromperam sua engenhosa conspiração.
- Conspiração?
- Isso é o que foi. Nem Jane nem Nigel desejavam casar-se; nunca o desejaram.
Grayson afastou os olhos da janela, absolutamente pasmo, mudo,
sem sequer poder abrir a boca, pelo que acabava de lhe revelar seu irmão. Uma conspiração. Um casamento sabotado. Santo céu, uma conspiração entre Jane e seu primo. Não podia acreditar. Embora ao mesmo tempo, começava a achar sentido a muitos pequenos mistérios.
Lógico, não deixaram Jane plantada. A grande velhaca tinha estado manipulando sua própria vida, e a ele, todo o tempo.
Fez uma longa inspiração, para esmagar a fúria que lhe queimava o peito. Não se atrevia a falar, não podia confiar em si mesmo. Que nobre imaginou que era. Que arrogância e estupidez a sua ao acreditar que seu sacrifício importaria. Condenação, quem era ele para ter chamado bobo a Nigel? Ele era quem tinha demonstrado ser um idiota, o bobo que se deixou tampar os olhos. Uma conspiração, e ele tinha sido um peão.
Não, um obstáculo.
Tentou limpar a névoa vermelha que lhe embotava a cabeça. Por que não viu os sinais? Perguntou-se, furioso consigo mesmo. Desde o começo tinha suspeitado que havia algo estranho na situação. Por que não foi capaz de somar dois mais dois? Por que não o adivinhou?
Porque nenhuma dama decente sabotaria seu próprio casamento.
Nenhuma dama da classe de Jane se atreveria. Seu querido modelo de virtudes burlou a sociedade, fazendo uma zombaria. Burlou-se dele.
Quando pensava lhe dizer a verdade, se é que o pensava? Pensou, mais indignado a cada momento.
Quanto tempo, até quando, teria continuado com essa farsa? Acaso teve medo de lhe confessar o que tinha feito? Medo dele? Estupendo.
Deveria ter. Ele tinha um pouco de medo de si mesmo ao pensar no que lhe faria. Pagaria caro. Ah, como desfrutaria a fazendo pagar.
Contemplou um momento o aposento e emitiu uma risada rouca sem humor. Perplexo pela aparente falta de reação de seu irmão, Heath pegou a caixa de pederneira e fósforos da mesa e acendeu com supremo cuidado seu charuto.
Uma nuvem de fragrante fumaça cinza azulada se ergueu entre eles quando voltou a falar:
- Talvez me entendeu mal - disse, com cautela.
Grayson o olhou esboçando um arrepiante sorriso.
- Por que o diz?
Heath se revolveu incômodo na poltrona.
- Não estaria sorrindo como um sátiro se tivesse entendido o que lhe disse. Esteve enganando-o, Gray, jogando com você, fazendo-o de idiota, enquanto o mundo contemplava maravilhado.
Nos olhos de Grayson brilhou uma chama, uma chama de raiva. De fogo do inferno desatado.
- É você quem entendeu mal -respondeu tranquilamente.
- Sim?
- Este sorriso que vê não é o de um idiota nobre. - Guardou silêncio, e seus longos dedos se aferraram aos braços de sua poltrona - É o de um homem planejando um castigo.
- Vamos, espere um momento - disse Heath, alarmado - Isso é mais do que tinha esperado. É correto castigar Jane?
O sorriso de Grayson se desvaneceu um pouco. Não voltaria a deixar-se manipular por um sentimento de culpa. Tinha cumprido seu dever, e devia ver aonde o tinha levado isso; virtualmente o tinha feito cair de joelhos no chão, humilhado.
- Fazer o correto foi o que me meteu nesta situação. Jane necessita que lhe demonstre que sei corresponder de acordo ao que recebo.
- Isso acho detestável, Gray. Toda essa tolice bíblica de olho por olho e dente por dente.
O olhar de Grayson refletia muito pouca piedade. Jane o tinha ferido de uma maneira que não teria nem sonhado possível.
- Ele faz chover sobre justos e pecadores.
- Sim, mas isto me parece mais um temporal que uma simples chuva
- disse Heath, preocupado - O que vai fazer, exatamente?
- Me casar com ela.
- Casar-se com ela? - exclamou Heath, pasmo.
Grayson riu da expressão desconfiada de seu irmão.
- Depois de fazê-la pagar.
- E como vai fazer isso? - perguntou Heath, cauteloso.
- Vou jogar com ela, Heath, tal como ela jogou comigo. A simples realidade é que a quero. Amo Jane.
Um brilho de afável admiração substituiu a ansiedade nos olhos azuis de Heath. Não pôde ocultar seu alívio.
- Tenho que concluir que esta vingança vai ser doce? Para você, quero dizer?
Grayson cruzou seus musculosos braços atrás da cabeça e fechou os olhos, em atitude contemplativa.
- A sedução sempre é doce, não é verdade? A vingança só acrescentará um pouco de condimento à panela.
Mal Heath saiu de seu quarto, Grayson enviou Weed para procurar seu secretário. Era tarde; mas isso não importava. As melhores conspirações se tramam à hora mais escura da noite.
Seria a essas horas quando sua ratinha traçou os detalhes de seu atrevido plano?
Por que o fez? Já se tinha dissipado bastante sua fúria inicial, o que lhe permitia pensar com mais clareza. Por que o fez?
Refletiu um momento a respeito da resposta mais óbvia. Ela e Nigel, sendo tolos jovens e valentes, seguiam acreditando no conceito do amor acompanhado pelo felizes para sempre. Se ela se negara francamente a aceitar a imposição de seus pais, eles a teriam forçado a fazê-lo, teriam procurado outro marido ou a teriam deserdado.
E Jane, com todas suas fraquezas humanas, adorava a sua família.
assim, de uma maneira inteligente mas desesperada, decidiu e planejou
ter o bolo e comê-lo também. Mas seu plano não resultou, como costuma acontecer a esses planos tão desesperados.
Ele seria muito mais retorcido ao elaborar seu plano de contra-ataque. Utilizaria todos os meios que tinha ao seu dispor: legais, espirituais e financeiros.
E, sim, sexuais, também, não faltaria mais. O engano dela lhe dava carta branca para realizar suas fantasias mais acariciadas, mesmo que já estivesse perigosamente perto de atuar segundo elas mais de uma vez.
Por fim, por fim. O malandro que vivia nele estava novamente no comando. O herói já teve sua oportunidade e seu tempo. Já não se sentia desequilibrado. Que mais importava que o labirinto emocional pelo qual o tinha feito passar Jane o tivesse levado a terreno conhecido.
Finalmente voltava a estar com os dois pés firmes na terra. Pior para Jane.
Não lhe escapava a ironia da situação. Estava planejando casar-se com uma mulher que tinha levado a cabo um temerário plano para evitar a ratoeira do padre, destino que ele tinha evitado durante toda sua vida adulta.
Não era um estúpido. Amava a essa condenada, apesar de seu engano mas também , talvez em parte, devido a ele. Sim, estava furioso com ela por jogar com ele. Mas já estavam voltas as voltas. O jogo já não se jogaria em branco e negro a não ser em todos os nebulosos matizes de cinza.
Um jogo de vingança?
Talvez um pouco. Mas mais que nenhuma outra coisa, seria um jogo de amor.
Porque pressentia que se Jane fosse capaz de sabotar seu próprio casamento, não o respeitaria se ele não reagisse conforme. Uma mulher com sua paixão pela vida, com sua capacidade para planejar seu
destino, esperaria o mesmo de seu parceiro. E quem, se não Jane, era capaz de igualá-lo maldade por maldade, palavra por palavra?
Quem, se não ela, podia contribuir para o matrimônio com essa avidez pela vida, essa ousadia de jogador?
Desejava-a, e não restava outra coisa que submeter-se, mesmo que se negasse a fazê-lo com elegância.
Tinha encontrado sua parceira, sua igual, mas antes de aplaudir sua astúcia, divertiria-se um pouco se vingando dela por enganá-lo. Que suasse, e ganhasse seu perdão.
***
Lorde Belshire abriu os olhos na escuridão, despertado pela espetada de uma mão desconhecida. Vagamente compreendeu que estava no interior de sua carruagem.
- O que? Já chegamos a casa? Não estava roncando, Athena. Nem sequer estava... - Pestanejando olhou ao redor, atônito - Sedgecroft!
Onde...? O que fez com minha mulher?
Grayson golpeou o teto, e a carruagem empreendeu a marcha pelas labirínticas ruas de Londres.
- Está muito bem em casa com o resto da família - respondeu, e acrescentou, franzindo os lábios - Incluída sua filha mais velha.
- Jane - disse o homem mais velho, tirando seu relógio de ouro do bolso de seu colete bordado - Onde...? Aonde diabos vamos a esta hora da noite?
Grayson se acomodou no fofo assento.
- A minha casa, para fazer nosso trabalho em paz. Meus advogados e meu banqueiro já estão lá nos esperando.
- Banqueiro... que tipo de trabalho se faz de maneira tão clandestina a esta hora da noite? - perguntou Belshire, com voz ensurdecedora -
Bom Deus, descarado, se tiver desonrado a minha filha...
Quarenta minutos depois, lorde Belshire já compreendia à perfeição
a natureza do "trabalho" do Sedgecroft, e a contra gosto tinha aceitado as cláusulas detalhadas no contrato de matrimônio que acabava de assinar. As condições impostas para o noivado e matrimônio eram extravagantes para dizer o mínimo, mas também o era o oculto engano de Jane e Nigel a todas as pessoas que os queriam e confiavam neles.
- Não posso acreditar que fez isso – resmungou - De todo modo, insisto em que não sofra a conseqüência deste acordo. Deve jurar ante Deus que respeitará nosso contrato.
- Não tenha dúvida, Belshire - disse Grayson, com os olhos brilhantes como o gelo - Quero bem a sua filha. Amo-a.
- Neste momento não posso dizer que compartilhe esse sentimento.
Isso não quer dizer que deseje vê-la maltratada de maneira nenhuma.
- Confia em mim. Jane será bem tratada. Dentro de um ano ou menos, espero que o presenteie com um neto.
Um brilho de esperança iluminou o rosto de Belshire. Um neto; um futuro marquês.
- Duvido de seus métodos...
- Não vai duvidar dos resultados quando os vir - disse Grayson sem vacilar.
- Suponho que Jane está disposta a ser sua esposa.
- Asseguro-lhe que sim.
- Isso resolve vários problemas de uma vez, Sedgecroft.
- Isso me pareceu.
Meditando lugubremente a respeito da oculta conspiração de Jane durante o trajeto de volta casa, Belshire chegou à conclusão de que talvez sua voluntariosa filha merecia casar-se com um homem como Sedgecroft, que tinha o mesmo tipo de mente fingida e retorcida que ela.
Ao menos isso foi o que tentou explicar a sua mulher quando chegou a casa.
Athena estava lendo na cama quando ele parou em uma pose
teatral na soleira da porta do dormitório.
- Estou pasmo – declarou - total e absolutamente prostrado. Sinto todo o corpo paralisado.
Ela deixou a um lado o livro.
- Isso é o preço que paga por sair para beber com um homem a quem virtualmente dobra em idade. E com isso não quero dizer que alguma vez tenha tido a energia de Sedgecroft. E do que queria falar com você, por certo?
Ele entrou, fechou a porta e explicou tudo. Quando terminou, ela estava passeando furiosa rodeando a cama, sobre a que ele já desabara.
- E aceitou isto? Pôs sua assinatura nesse contrato?
- Passou por cima a essência do assunto, querida. Jane nos enganou. Nunca desejou casar-se com Nigel.
- Como se atreveu a fazer isto! - exclamou ela - Irei a seu quarto imediatamente.
- Não. Vai fazer as malas para que amanhã quando se levantar descubra que partimos todos. Só ficarão Simon e o tio Giles, aos quais pedirei que a acompanhem enquanto Sedgecroft leva a cabo seu... seu cortejo.
Athena parou no pé da cama, melancólica.
- É uma maldade o que fez, sim, mas recorda que nos suplicou que anulássemos seu casamento com Nigel. E deixá-la sozinha aqui a mercê de um homem como Sedgecroft...
- Um homem que vai ser seu marido, querida minha - disse Howard, carrancudo - Sedgecroft a ama apesar de seus enganos, e acredito que ela também o ama. Além disso, acha que haverá um homem decente na Inglaterra que queira casar-se com ela uma vez que se revele sua conspiração?
- Bom, sempre há Escócia ou Gales - respondeu Athena
tranquilamente - E não esqueça os aristocratas exilados da França.
- Digo-lhe, criamos uma jovem Medea - disse ele - É uma sorte que ainda não nos tenha convertido a todos em pedra.
- Está pensando em Medusa. Medea assassinou a seus filhos.
- Medea, Medusa, que importa. Só você sabe a diferença. Isso é o que tirei por me casar com uma sabichona e engendrar uma filha com o intelecto retorcido. Jane terá uma condenada sorte se tiver algum filho para assassinar.
Athena foi sentar-se na banqueta de sua penteadeira, já resignada a seu destino.
- Com Sedgecroft terá filhos, não tenho nenhuma dúvida, e filhos formosos além disso, que terão um montão de tios para mal criá-los quando já não estivermos nós -disse, pensando em voz alta - As coisas poderiam ser pior.
Howard a contemplou da cama.
- Não vejo como, mas não importa. Vai se casar com Grayson Boscastle e aí se acaba tudo. Como vai conseguir ele para dirigi-la, não consigo imaginar, só posso lhe desejar sorte.
- Jane sabe algo sobre isto? - perguntou ela, de repente.
- Não. E Sedgecroft deseja ser ele a dizê-lo. A sós.
- Que homem mais romântico. Espero que Jane mostre bom senso desta vez.
Lorde Belshire franziu o cenho. Romântico não era a palavra que teria empregado ele para descrever o ar de implacável resolução de Grayson quando estava redigindo o contrato de matrimônio.
- Não se parece em nada a Nigel, Athena. Jane não vai encontrar nenhuma maneira de livrar-se desta situação, a não ser que resolva ficar solteirona.
- Podemos pelo menos nos despedir dela antes de enviá-la à batalha?
- É um cortejo, não uma batalha, embora neste caso não se pode ter certeza. E não, felizmente já teremos partido quando ela se levantar. Se Jane teve a astúcia para nos enganar, é mais que capaz de fazer frente a Sedgecroft sozinha.
Capítulo 18
No dia seguinte, Jane despertou muito mais tarde que de costume e imediatamente notou o estranho silêncio que parecia envolver toda a casa. Nove de cada dez manhãs a despertava Miranda com sua lastimosa prática no piano ou uma acalorada discussão no corredor entre sua mãe e Caroline, devido ao traje desta última.
Quando, depois de vestir-se apressadamente, saiu a investigar esse estranho silêncio, a governanta do andar principal a informou:
- Todos partiram para o campo, para Belshire Hall, lady Jane. Só ficou lorde Tarleton, que saiu esta manhã a primeira hora com seu tio, sir Giles, para assistir a uma corrida de cavalos. Disseram que estariam de volta a tempo para o jantar.
- Minha família me deixou aqui sem sequer me perguntar se queria ir? - disse Jane, desconfiada.
- Parece que ficou doente a prima de lady Belshire, e milady considerou desnecessário que a senhorita os acompanhasse -
respondeu a criada, com os olhos fixos no chão, como se acreditasse nessa historia tanto como Jane.
- Suponho que ninguém teve o trabalho de me deixar uma mensagem - disse Jane, irritada, virando sobre seus calcanhares e afastando-se.
Tudo isso era muito misterioso e suspeito, e essa inquietante sensação se confirmou quando, por instinto, entrou no quarto de Caroline e encontrou uma nota escrita apressadamente colocada debaixo do mata-borrão de sua escrivaninha.
Jane:
Levam-nos contra nossa vontade, virtualmente amarradas e amordaçadas. Tome cuidado, o leão escolheu sua parceira.
A seguir havia uma feia mancha de tinta, como se Caroline se visse obrigada a esconder o papel porque alguém entrou em seu quarto.
- Que estranho - disse, falando consigo mesma, sentindo arrepiar o pelo dos braços - "O leão escolheu sua parceira" Quem...?
Deu um salto ao ouvir um forte golpe na porta. Era um empregado.
- Chegou o marquês, lady Jane. Insistiu para que subisse para chamá-la imediatamente.
- Para me chamar? Chamar-me para que?
- Não me ocorreu perguntar-lhe milady.
- É curioso... não acha que acontece algo estranho?
Sem esperar a resposta desceu depressa até o salão principal. Aí estava Grayson, em pé na janela, muito elegante com uma jaqueta de manhã azul marinho, feita à medida, e calça cáqui justa, e dando batidinhas em uma dura coxa com sua vara de montar. Golpes, pensou fugazmente, como o movimento da cauda de um animal que está a ponto de atacar, furioso.
- Bom - disse, tão contente de vê-lo que começou a rir, - pelo menos você não me abandonou. Toda minha família ficou louca. Parece que minha prima ficou doente e meus pais foram para o campo em uma missão caridosa.
Então ele se virou para olhá-la e o ar na garganta ficou preso.
Nenhum homem tem direito a estar tão pecaminosamente bonito a esta hora do dia, tão cedo, pensou.
Desvaneceu-se a risada quando seus olhos se encontraram com os dele, e, pela segunda vez nessa manhã, lhe arrepiou o pêlo dos braços, e a percorreu toda por um mau pressentimento. Não recordava ter visto essa expressão tão sombria em seu rosto.
- Encontrou-se com Heath? - perguntou, com o coração retumbando
no peito.
- Sim.
- Ah.
Sentiu fracas as pernas e lhe escrutinou o rosto, em busca de um sinal a respeito de seu destino.
- Lamento que a notícia não seja boa, Jane - disse ele, pesaroso.
- Não?
- Parece que deve abandonar a esperança de se casar com Nigel.
Tudo indica que é verdade que fugiu.
- Aonde?
- Importa isso?
Ela temeu que ele ouvisse as aceleradas pulsações de seu coração.
- Suponho que não.
- Ouça, livrou-se de boa.
Que fria e reservada se tornou sua expressão. Ou ela imaginava coisas?
- Sim.
- Não o perdoará.
- Isto...
- Seria melhor que o esquecesse, Jane.
- Mais...
Quanto saberia? Desconcertava-a sua atitude. Talvez se sentisse envergonhado por ter que lhe dar essa notícia?
- Ele já não importa, não é verdade? - disse ele, lhe estendendo a mão, convidando-a a aproximar-se.
Ela sentiu passar uma desconcertante onda de calor por todo o corpo.
- Não - disse, olhando-o, pensando se tudo poderia ser assim fácil.
Existiria uma mínima possibilidade de que ele não descobrisse a verdade, ou de que já soubesse e pudessem continuar fingindo que não
sabia? De que ele se contentasse dizendo que Nigel já não estava, que a vida deve continuar e você, Jane, é parte de minha vida?
- Agora vá procurar seu capote - disse ele, em tom grave e tranquilo
- Temos que fazer uma visita.
A misteriosa emoção que lhe escurecia o olhar desapareceu antes que ela conseguisse interpretá-la. Notava uma sutil diferença em sua atitude para com ela. Será que Heath tinha descoberto algo mais do que Grayson lhe dizia? Não. Ninguém sabia da casa de Esther em Hampshire. E se Grayson soubesse não seria capaz de dominar sua raiva. Sentiria-se culpado pelo que fizeram na noite passada? Acelerou-se o sangue ao recordá-lo, inclusive enquanto pensava se ela não teria caído em sua estima.
Diga-lhe tudo. Conte toda a verdade. "Ele já não importa." Agitou a cabeça, para limpá-la.
- Que visita? Disse-lhe que tinha ficado para me encontrar com Cecily...
- Sua carruagem está esperando, milorde - disse o empregado da porta.
- Obrigado - disse Grayson - Traga uma capa leve para lady Jane e nos espere fora.
Passado um momento, Jane se viu virtualmente arrastada pelo vestíbulo, de modo não muito suave, e não demorou para se encontrar fora da porta.
- Grayson, tenha a bondade de me explicar o que vai fazer.
- Suba a carruagem, Jane. Explicarei a seu devido tempo.
Mas continuou em um enlouquecedor silêncio quando a carruagem ia estralando pelas lotadas ruas em direção à zona comercial de Bond Street. Ela não se atreveu a pensar a respeito de suas intenções nem do que significava sua atitude meditabunda. Estava claro que estava pensando em algo. Talvez não tivesse nada a ver com ela.
Embora soubesse que sim.
- Pelo menos me diga aonde vamos.
Ele a olhou de cima abaixo um momento, fazendo lhe subir um quente rubor ao rosto.
- Vamos ver a modista Devine.
- Mas essa modista é para mulheres mundanas, cortesãs, bailarinas.
Ele fechou os olhos, e sua relaxada postura não a enganou absolutamente.
- Seus vestidos são deliciosos - disse.
- Sei - disse ela, carrancuda - O noivo de Cecily lhe exigiu que incluísse alguns de seus escandalosos modelos em seu enxoval. Ah, e isso me recorda que, pelo menos, devo informá-la de que não nos vamos ver hoje.
A carruagem deixou atrás uma galeria de arte e parou diante de uma elegante loja de tijolo marrom, estilo georgiano, a cuja porta esperavam dois empregados para acompanhar as clientes ao pequeno interior iluminado por velas de candelabros. Uma pequena multidão de transeuntes os observava em silêncio, com curiosidade. Em qualquer lugar que fosse, Sedgecroft despertava interesse.
- Cecily não sentirá sua falta - disse ele, levando-a por diante do mostrador para uma escada lateral oculta - Tomei a liberdade de lhe notificar que não estaria disponível. Nem hoje nem no futuro próximo.
- O que? - perguntou ela, certa de que tinha ouvido mal.
Ele a levou escada acima.
- O amigo de Cecily, esse personagem Armhurst, não é um acompanhante conveniente para você. Ah, Jane, perdoe, pensava lhe pedir isso ontem à noite -acrescentou, como se acabasse de recordar. -
Suponho que este é um lugar tão privado como qualquer outro.
Começaram a pulsar as têmporas dela. O que estava acontecendo?
Algo estava errado. Notava algo diferente. Sua família a tinha
abandonado, deixando-a com esse escandaloso malandro que, embora exteriormente agisse com sua habitual arrogância, tinha mudado, e ainda não lhe havia dito...
- Me pedir o que? - perguntou em um sussurro, ao notar movimento no corredor de cima.
- Que seja minha amante - disse ele e olhou para o corredor, na expectativa. - Ah, aí está madame Devine. Pedi-lhe nossa sala de provas privada.
A garganta dela ressecou e esteve um momento tentando recuperar a capacidade para pensar que tinha perdido. Sua amante. Essas duas palavras lhe produziram um calafrio. Desta vez não havia forma de acreditar que tinha ouvido mal. Assim a isso a esteve levando todo o tempo. Que estúpida, que cega tinha sido ao acreditar em sua simulação de amabilidade e responsabilidade. Enquanto ela se apaixonava por ele, ele esteve planejando o que sabia fazer tão bem. A sedução definitiva.
Bom, nunca lhe disse que era um santo? E ela tinha seguido alegremente o mesmo caminho de suas outras mulheres. Passo a passo. Ninguém a tinha obrigado.
Sorriu-lhe, obviamente indiferente a lhe ter lhe partido o coração com sua indecente proposta.
- Querida, não se surpreenda tanto. É improvável que alguém volte a fazer-lhe uma proposta de matrimônio. Sendo minha amante, pelo menos terá satisfeitas por toda a vida suas necessidades econômicas, e as de todos os filhos que me dê.
- Filhos? - balbuciou ela, aturdida.
Ele encolheu os ombros.
- Dada a frequência com que faremos amor, chegarão filhos; são uma parte inevitável da relação sexual. Sempre desejei uma família numerosa.
- Ah, sim?
- Uns doze ou mais pirralhos Boscastle, o começo de minha própria dinastia.
- Livre-me Deus de estorvar suas ambições reprodutoras.
- Logo falaremos com tranquilidade, quer?
Ela o olhou como se acabasse de lhe revelar que era o demônio em pessoa, e antes que pudesse replicar conforme a seu incrível descaramento, ele se voltou e continuou subindo os últimos degraus, assobiando, sem o menor cuidado.
- Venha, vamos - acrescentou alegremente, olhando-a por cima do ombro - Não a terei em minha cama todas as noites. Haverá ocasiões em que terá que se vestir bem para atender visitas. Não mais cinza pomba para minha ratinha.
Sentindo as pernas de chumbo, Jane entrou atrás dele em um pequeno quarto mobiliado por um biombo, duas cômodas poltronas, um espelho de corpo inteiro e uma mesa, sobre a qual havia uma jarra de cristal com xerez e duas taças, além de um amontoado de mostruários de tecidos e modelos.
Sua amante.
Uma das escandalosas mulheres que assistiram a seu casamento sabotado.
Ele pretendia que se convertesse em outra Helene ou senhora Parks. Uma mulher a quem visitaria para obter prazer sexual. Uma mulher a quem pagaria para vê-la em privado. Uma parceira que abandonaria quando minguasse seu interesse nela.
Desejou empurrá-lo escada abaixo e ficar a saltar em cima de sua proposta.
Duas costureiras a levaram a posicionar-se atrás do biombo e procederam lhe tirar eficientemente a roupa para tomar as medidas, enquanto Grayson servia as duas taças de xerez e explicava a elegante madame Devine, que usava óculos, e a sua ajudante, o que desejava
das amostras e modelos que lhe mostraram.
- Esse não - disse, e sua risada rouca e arrogante fez ferver o sangue de Jane - Muitos botões. Sou um homem que prefere levar a mulher à cama com o mínimo de complicações.
Madame Devine emitiu uma risada de menina tola.
-Mas oui, milorde. Compreendo. Estes objetos de roupa interior, talvez?
- Não, a dama não necessita que lhe realcem os seios. A natureza a dotou com tudo o que posso dirigir.
- Ah, bom, então, este de cetim rosa?
- Ah, sim. E o de renda negra também.
A ajudante de madame Devine exalou um suspiro.
- Muito, muito bonito debaixo de um vestido de baile.
- Que vestido? - perguntou ele - Pensei que os poderia levar sem nada mais em cima.
A mulher ruborizou.
- Estes espartilhos com as fitas de laços, milorde?
- Para que incomodar-se? Prefiro o contato natural da pele feminina.
Ante essa declaração, a ajudante se levantou para abrir uma janela; acumulou-se tanto vapor no ar que os óculos de madame estavam embasados. Esse era um homem em uma missão muito perversa, na realidade.
Jane pôs a cabeça por um lado do biombo e o olhou indignada.
- Acredito que já basta de tolices, Grayson.
- Jane, seriamente quer me negar o prazer de gastar meu dinheiro com você? -perguntou ele, placidamente.
Ela viu que as costureiras alertavam os ouvidos ante essa pergunta.
- Grayson – respondeu - não sou uma idiota total. Pode gastar comigo até ficar arruinado. - Fez uma pausa para dar mais efeito - Mais não lhe prometo nada em troca.
Ele a olhou esboçando um enlouquecedor sorriso.
- Famosas últimas palavras, querida minha. Passarei tão bem tirando-lhe estes objetos como comprando. Agora me mostre o que tem na seda mais vaporosa - disse à modista, voltando-se para se acomodar em sua poltrona - Algo que me permita ver através. Sim, esses calções com a rajinha são muito bonitos.
Jane sentiu arder as faces e seu sobressaltado olhar se encontrou com os olhos invejosos das costureiras no espelho. Era um malandro vagabundo até a medula dos ossos.
E o disse, mas as quatro mulheres confusas os deixaram a sós para discutir os detalhes de seu guarda-roupa.
- Está totalmente louco? - disse-lhe, pegando a taça de xerez que lhe oferecia olhando-a com um inocente sorriso.
- Quero cobrir de presentes minha amante - disse, em tom magoado
- O que tem de mal nisso?
- Só que eu não aceitei nada disto - disse ela, entre dentes - Meu pai vai ficar lívido de fúria.
Ele observou atentamente a taça que tinha na mão.
- Encanto - disse amavelmente - seu pai é um homem de mundo.
Compreende.
- Como é possível que diga algo assim?
- Porque ontem à noite ele e eu conversamos longa e extensivamente a respeito de seu futuro - respondeu ele, balançando para um lado e outro a cabeça - Sim, a princípio resistiu, mas ganhou a lógica.
- Não acredito em você. Meu pai morreria de vergonha se acreditasse que eu...
- Sua família já está morrendo de vergonha, querida. Tem que enfrentar a realidade. Seu período de jovem casadoira já se acabou.
- Não se acabou.
- Pois sim - insistiu ele - Ninguém vai se casar com minha amante.
- Não aceito isto.
- Pois, aceitará. - Olhou-a malicioso - Lembra de ontem à noite? Já a fiz subir até meio caminho do céu. Uma pessoa em sua situação deve ser prática. Esta é a solução mais sensata para seu problema.
Ela bebeu outro ardente gole de xerez, tentada a golpeá-lo na cabeça com o a jarra.
- Não desejo ser uma mulher mantida - ferveu, tossindo.
Ele reagiu esboçando um sorriso indulgente.
- Que deseja?
- Desejo... bom, suponho que desejo amor.
- Amor? - repetiu ele, divertido - Tss, tss. Me peça uma arca cheia de diamantes, ou uma mansão palaciana. Um navio carregado de sedas.
- Não tem por que fazê-lo parecer uma obscenidade. - levantou-se bruscamente e se enjoou, pelo potente xerez e a proposta dele -
Algumas pessoas se apaixonam, Grayson.
- Sim? - levantou-se também, gigantesco ante ela - Ah, tinha esquecido seu profundo amor por Nigel. Confio que com o tempo vá minguando seu afeto por ele.
Involuntariamente ela retrocedeu um passo.
- Ontem à noite lhe disse que não o amei nunca.
- Então, isso deixa espaço para mim em seus afetos? - perguntou ele sem vacilar.
Ela o olhou fixamente, e lhe revolveu o estômago ao detectar a tranqüila brincadeira em sua voz.
- De repente me sinto indisposta. Faria-me o favor de me levar para casa?
A escuridão que viu nas profundidades desses olhos azuis a fizeram pensar em nuvens de tormenta.
- É claro, Jane. Agradá-la e protegê-la é parte de nosso trato.
***
Heath arqueou as sobrancelhas quando Grayson terminou de lhe contar os detalhes dessa manhã, estando os dois a sós em seu escritório.
- Em resumo, parece-me que tudo foi bastante bem.
- Não posso acreditar que a tenha levado a loja de Sucedi. A plena luz do dia. E sua reputação?
Grayson o olhou tentando de tirar de cima de si um leve remorso.
- O que acontece com sua reputação? Meu primeiro objetivo era protegê-la do dano causado a sua reputação pelo fictício abandono de Nigel. Mas não lhe importou nada sua reputação quando elaborou seu plano.
- Mais a alta soc...
- Jamais me importou a opinião da alta sociedade - interrompeu Grayson - Em todo caso, bem está o que bem acaba. Uma vez que nos casemos, acabarão-se as fofocas. É incrível como o santo matrimônio restabelece a honra.
Heath conseguiu esboçar um triste sorriso.
- Não lhe ocorreu que algo poderia ir mal seguindo esse raciocínio?
Grayson ficou contemplando o monte de cartas que tinha sobre a escrivaninha, descartando a advertência de seu irmão.
-Tenho um contrato legal de matrimônio assinado por seu pai. Jane ficará zangada quando o souber? Talvez. Mas ao final compreenderá que não tem outra opção. E de verdade acredito que me ama.
Heath exalou um suspiro, preocupado.
- Bom, certamente espero que saiba o que faz. E que nada saia mal neste jogo.
Grayson levantou os olhos e olhou o rosto preocupado de seu irmão.
- Nada sairá mal. Como disse, é um jogo, e não o levarei muito longe. Uns poucos dias no máximo. O que poderia acontecer de ruim?
***
Três horas mais tarde, em seu dormitório, Jane suplicou a Simon em um sussurro:
- Diga-lhe que estou terrivelmente doente. Diga-lhe que tenho uma febre espantosa. Que tenho a peste. A malária, o cólera, a varíola.
Simon lhe tocou a testa, preocupado.
- Disse. Enviou Weed para consultar seu médico para lhe pedir conselho. Esteve esperando aqui toda a tarde.
- Toda a tarde? - perguntou ela, com a voz abafada pelo terror -
Grayson esteve em nossa casa tanto tempo?
- Esteve jogando bilhar com tio Giles. Esse homem está decidido a ter você. -Titubeou, totalmente desconcertado, sem saber o que fazer -
O que fez, Jane? Sei que está em uma confusão terrível por algo.
Ela cobriu o rosto com as duas mãos.
- Não me pergunte. Não posso dizer. Não posso explicar. É uma confusão espantosa que causei eu mesma.
- Então não pode esperar que eu a ajude - disse ele, mais desconcertado ainda.
- De qualquer modo, não poderia fazer nada.
- Tem certeza? Jane, não está... não está grávida?
- Vamos, Simon.
- Bom, então não é tão terrível, não é verdade? - disse ele, esperançoso.
- Cavei minha própria sepultura. É pior que terrível.
- Sedgecroft é um homem poderoso. Talvez já tenha uma solução.
- Será que não entende nada? Meu problema "é" Sedgecroft. Quer que seja sua amante. Sim, Simon, pediu-me isso esta manhã.
Ele abaixou os olhos e a cravou no chão, e o rosto ficou vermelho de raiva.
- Suponho que tudo isto é por culpa de Nigel - disse, desconfortável.
- Poderia matar a esse idiota. O que vamos fazer?
O que Jane queria fazer era esconder-se debaixo das mantas e simular que nunca tinha iniciado esse desastre.
- É meu irmão - disse, desesperada. - Sabe o que faria meu pai em seu lugar. Obriga-o a partir.
A expressão de Simon foi de tal consternação ante a idéia de enfrentar um personagem como Sedgecroft, que Jane se teria posto a rir, se não tivesse desejado morrer.
Então Simon desviou o olhar e ela compreendeu que tinha perdido seu último defensor.
- Esse é o problema - disse ele então, engolindo em seco. - Por muito que eu queira plantar rosto ao marquês, papai me deixou ordens explícitas de que não estorvasse de maneira nenhuma este cortejo. É
estranho, agora que penso.
- Cortejo? - exclamou ela - Isto não é um cortejo. Isto é Wellington tomando Toulouse, os camponeses franceses tomando a Prisão fortificada, empalideceu, toda a cor abandonou seu rosto - Quer dizer que meu pai não põe nenhuma objeção a que eu me converta na amante de Sedgecroft?
- Ah - disse uma voz profunda da porta - nossa doente está bastante bem para discutir. Há esperanças para ela, então.
Jane se encolheu debaixo das mantas, sentindo que essa aveludada voz de barítono lhe penetrava até os ossos.
- Grayson, isto é muito indecoroso. O que faz em meu quarto?
Ele entrou e foi se situar ao lado da cama; seu rosto masculino toda uma máscara de solícita preocupação.
- Simon demorava tanto em voltar que comecei a temer que tivesse piorado. Devo dizer que tem melhor cara do que esperava, Jane.
- Também me pareceu isso - disse Simon, jogando outra pá de terra na sepultura cavada por Jane - Na realidade, em nenhum momento
achei que tivesse algo grave... - Se interrompeu ao ver o olhar zangado que lhe dirigia Jane - Além da febre, claro.
- Me deixe ver - disse Grayson inclinando-se e lhe pondo a fresca mão na testa, com seus olhos azuis perfurando os seus - Ai, Deus.
Ela sentiu uma traiçoeira onda de prazer com seu conhecido contato.
- Ai Deus, o que? - perguntou, desconfiada.
- Está bastante quente. - Inclinou-se outro pouco e lhe disse em um suave e sedutor murmúrio - É febre, ou está pensando no que fizemos ontem à noite?
- Vá embora - sussurrou ela - Meu irmão está olhando.
- Peço-lhe que parta? - sussurrou ele.
- É você quem deve partir - conseguiu balbuciar ela - Simon?
Simon limpou a garganta.
- O que disse seu médico sobre sua enfermidade, Sedgecroft?
- Bom, que sem lhe haver feito um exame completo, o melhor que podia aconselhar era ou uma sangria ou uns dias de férias junto ao mar.
- Não vou submeter-me a uma sangria - disse Jane, estremecendo de repugnância.
Grayson se endireitou e com os olhos percorreu toda sua figura encolhida.
- E isso lhe disse. E por isso organizei as coisas para uma estadia em minha vila de Brighton. Partimos amanhã a primeira hora.
- Bom - disse Simon, sem ver os desesperados olhares de sua irmã
- Não há nada como o ar de mar para reviver o espírito.
- Mas o que vamos fazer será ir nos reunir com a família em Belshire Hall - disse Jane, quase gritando. - Uns dias de férias não planejados são tentadores, mas não práticos.
Grayson a olhou com um brilho de ímpia resolução em seus olhos.
- Tratando-se de sua saúde, Jane - disse em tom doce, mas férrea
resolução - não vamos correr nenhum risco. Insisto em que passe uns dias junto ao mar. Nego-me a lhe permitir que vá ao campo.
- Bem para você - disse Simon; estava claro que era da opinião de que devia manter a paz a qualquer preço - Jamais faz caso de meus conselhos.
Jane se sentou lentamente, sem deixar de olhar Grayson nos olhos.
- Vai me obrigar?
Ele curvou os lábios em um leve sorriso.
- Se for necessário. Prometi a seu pai que a protegeria no lugar dele.
Descuidaria meu dever se não levasse a sério esta sua enfermidade.
- De repente me sinto muito melhor - disse ela, com forçada cordialidade.
Ele negou com a cabeça.
- A tensão nervosa que sofreu ultimamente, no final cobrou seu preço, Jane. Talvez não lhe convenha continuar em Londres.
- Sugere que me refugie em um esconderijo?
- Não podemos permitir que fique na cama e engorde, minha pombinha.
- Não quero ir - disse ela entre dentes, realçando cada palavra.
- Necessita uns dias de férias, Jane. Eu a levarei pelo passeio marítimo empurrando-a na cadeira de rodas junto com outros hipocondríacos.
- Ah que oferta mais tentadora.
- Cavalgará no burro, então.
- Sei quem será esse burro.
Ele sorriu.
- Poderia desfrutar banhando-se e esfregando-se com as algas da praia.
- Poderia desfrutar estrangulando-o com elas.
- Ordenarei a uma criada que a ajude a levantar-se e fazer a
bagagem - disse Grayson em voz baixa, desafiando-a com o olhar.
Ela não afastou os olhos, pensando se a primeira mulher que caiu vítima dos Azuis Boscastle se sentiria como se sentia ela nesse momento. Porque embora estivesse espantada pelo que lhe tinha proposto, no fundo de seu coração desejava ir a qualquer lugar que a levasse esse formoso demônio. Desejava estar em seus braços, entregar-se a ele, ser a mulher que ele desejava. Tolamente tinha se apaixonado por essa ilusão de que se converteria em seu protetor.
- Seu oferecimento é muito generoso, Grayson - disse ao fim, em um último esforço de resistir mas não posso ir de férias só com você.
Ele arqueou suas grossas sobrancelhas, surpreso.
- Claro que não. O tio Giles e Simon estarão ali em nome da decência.
Guardou silêncio e seu endemoniado sorriso a informou que a decência era última coisa que tinha na mente.
Sim, era verdade, tudo tinha mudado entre eles. Ele tinha planejado isso até o último desonroso detalhe. Sobre ele tinha descido uma calculada frieza, uma objetividade que indicava perigo. Sim, estava tão encantador e atento como sempre, mas debaixo dessas qualidades deixava ver a astúcia de um animal da selva esperando o momento oportuno para jogar-se sobre sua presa.
Imaginou toda essa amabilidade, essa amistosa afabilidade que o faziam tão irresistível a uma mulher? Ou foi sua consciência culpada que lhe embotou a capacidade para ver? Sua vida tinha tomado um horroroso desvio do caminho da decência e a viagem de volta seria escura e difícil. Talvez impossível. Talvez inclusive a desfrutasse.
- Não é possível, nem decente, na realidade - disse, com mais coragem. - Uma mulher sozinha com três homens, mesmo que dois sejam familiares seus.
Seu sorriso paternalista a fez suspeitar que ele ia adiantado dois
passos no jogo.
- Jane, conhece-me muito bem para pensar nisso. Naturalmente pedi a Chloe que nos acompanhasse.
- E ela aceitou?
- Sim.
Claro que nem Chloe nem nenhum outro se intrometeria na lição que pretendia dar a sua amada enganadora. Ele simplesmente preparava o cenário com os adequados apontamentos. Ah, com que ilusão esperava essas férias.
- É claro que Chloe aceitou – continuou - Chegou a desfrutar de sua companhia tanto como eu. - Dirigiu-se à porta, tendo já tudo muito claro -
Isto irá francamente bem -acrescentou de improviso - Dessa maneira posso vigiar às duas.
- Quer dizer ter dominado às duas, não é? - gritou Jane a suas costas que se afastavam.
Capítulo 19
Passar um dia inteiro de viagem presa em uma carruagem, estralando pelo caminho às costas com Grayson, Simon, o tio Giles e Chloe não coincidia, exatamente com a ideia que tinha de uma experiência relaxante, por muito boas molas de suspensão que tivesse o carro. Os homens não paravam de falar de corridas de cavalos com obstáculos e reformas parlamentares. Chloe se negava a falar com seu irmão, e inclusive a olhá-lo, e a utilizava como meio de comunicação.
Quando pararam em Cuckfield para almoçar já ninguém falava, de modo que ao anoitecer, o grupo que desceu do carro na vila estilo georgiano de Grayson, situada sobre um terraço com vistas ao mar, estava silencioso e com as pernas duras.
Em receoso silêncio, Jane contemplou a formosa casa de três andares. A elegante fachada de tijolo vermelho impressionava os olhos tanto como seu dono. Entretanto, que surpresas conteria em seu
interior? O que descobriria atrás dessas portas fechadas sobre o homem a quem amava? O que descobriria a respeito de si mesma?
Os acompanhantes se dispersaram mal entraram no vestíbulo com pilares de mármore e elevado teto adornado com molduras barrocas em gesso. Chloe subiu para encerrar-se em seus aposentos, resmungando que desejava banhar-se no mar e uma taça de clarete. Simon e tio Giles saíram imediatamente a caminhar pela orla marítima até avançada a noite, com a esperança de encontrar-se com velhos amigos.
Jane e Grayson ficaram sozinhos, tal como sem dúvida ele tinha planejado. E tal como ela tinha esperado secretamente, se quisesse ser sincera consigo mesma.
- Bom - disse, admirando um vaso Ming que descansava sobre um pedestal em um canto, com o fim de aparentar que não sentia formigamentos de expectativa. - Chegamos. Heath virá nos acompanhar?
- A verdade é que não sei - respondeu ele, observando-a das sombras, divertido por seus esforços de evitar o inevitável - Se sentiria melhor se ele estivesse aqui?
Pulsava-lhe acelerado o coração.
- Por que deveria me sentir melhor?
Ele se aproximou e a pegou em seus braços, murmurando:
- Meu irmão tem um estranho efeito nas mulheres. Algumas se sentem atraídas por ele. Outras o acham bastante amedrontador. Jane, querida, é possível que sinta medo?
Medo? Só de perdê-lo, de estragar sua vida.
- Comecei a pensar que não o conheço, Grayson - disse, com voz apagada.
- Não demonstrei que sou seu amigo? - perguntou ele, subindo uma mão por suas costas até a nuca e lhe acariciando com o polegar a sensível parte detrás da orelha. A carícia lhe fez subir calor à pele.
- Suponho que isso depende da definição que cada um dê à palavra amizade.
- Vamos, Jane - disse ele com voz rouca, sardônica - Sempre tão em guarda. - E lhe soprou suavemente na orelha.
- Ao que parece meu guarda me falhou - disse ela, com uma voz fraca.
- Então talvez a linha de conduta mais judiciosa... mais prazerosa, é a rendição.
- E depois? - perguntou ela, com o fôlego retido.
- Não sei. Para que estragar a surpresa? - perguntou alegremente -
Suponho que teremos que obedecer a nossos instintos e deixar que os dados caiam onde possam.
Ela engoliu a saliva para passar o nó que tinha na garganta.
- Há algo mais em jogo do que acredita. Ao menos para mim.
- Mas é muitíssimo o prazer que ganhará.
- Pare.
Ele encolheu os ombros, como se fosse impotente.
- Não posso parar. Não quero parar. Não pararei até que seja minha de todas as maneiras possíveis.
Ela estremeceu pela reação, a seu pesar.
- Não é assim como eu o desejava.
- Sempre podemos escolher em nossa vida, Jane?
- Isso esperava - respondeu ela, com a voz quase inaudível -
Entretanto, talvez nem sempre.
- Aceitará minha proposta? - sussurrou, começando a lhe desabotoar os botões das costas com uma mão, acariciando-lhe e descendo por sua coluna.
Sua farsa quase tinha chegado a seu fim, pensou. Não atormentaria muito tempo mais sua intrigante bem-amada, e aproveitaria ao máximo o tempo que restava.
Não devia levar muito longe sua lição. Cada vez que olhava seus formosos olhos verdes sentia minguar um pouco mais sua raiva. Muito em breve se acabaria de tudo. Fariam as pazes mutuamente.
- Não me ama nem um pouquinho, Jane?
Sustentou-lhe o olhar, com os olhos nublados pela emoção.
- Sabe que sim - respondeu com voz clara - se não, não estaria aqui.
Nessa resposta ao menos, ele sabia que era sincera. Já conhecia bem Jane. Conhecia seus medos secretos, sua astúcia, conhecia a chave de seus desejos. E por um instante duvidou do benefício de continuar a farsa. Ela o tinha enganado, sim, mas também se apaixonara por um impostor.
Ele não era O Salvador que disse ser quando se apresentou. Não era um herói, mas a amava. Amava-a com um desespero tão imenso que fazia entrar suas forças e suas debilidades no jogo.
E ao final, seriam um do outro. Muito em breve acabaria o jogo e começaria seu futuro como marido e mulher. Ela compreenderia que não poderia voltar a enganá-lo. E que não precisava enganá-lo.
Compreenderia que podia confiar nele, não só lhe confiar seus segredos, mas também sua vida. Toda a paixão e a capacidade de amor de cada um concentrariam um no outro.
- Venha a minha cama, Jane - lhe rogou.
Essa impaciência não fazia parte de seu plano, mas não podia esperar nem um momento mais. Desejava-a tão intensamente, tinha sonhado com isso tantas vezes que queria saborear cada momento.
Deslizou-lhe a mão pelo pescoço até introduzir os dedos no profundo vale entre seus seios.
- Vamos. Deixe sua dignidade na porta.
- Que dignidade? - perguntou ela, em um sussurro.
- Seja indigna comigo - lhe disse em brincadeira.
Ela fechou os olhos, pensando. Como tinha chegado a isso, não
saberia dizer. Tinha cometido um engano, tomado um caminho equivocado em seu desejo de ter um amor escolhido por ela. Marcou-se como uma proscrita. E o que tinha sido real no galanteio simulado dele, se é que tinha sido algo? Só o desejo, o desejo mútuo? Com certeza teria que haver algo mais...
- Seja seu ser mais desenvolvido, Jane - disse ele, interrompendo seus pensamentos-. Não vi todos seus lados, não é?
- O que... o que quer dizer?
- Há outra Jane no fundo de você, não é verdade?
- Você sim está mostrando suas verdadeiras cores - replicou ela -
Como no negro, mais negro. E mais negro.
Rindo ele a levou retrocedendo até a escada e começou a subi-la, sua risada rouca e sedutora. Muito em breve ela estaria rindo com ele.
Ririam um do outro, talvez depois de uma apaixonada briga. Seria agradável voltar a ser ele mesmo com ela.
- Sim ou não, Jane? Estive sonhando com as maneiras de possuí-la.
Morrerei se me disser não.
Ela se sentiu como se de repente todo o espaço estivesse em chamas. Fogo. Havia fogo por toda parte. No contato de seus lábios em sua garganta, no ar que respiravam; o fogo lhe subiu pelas pernas, saltou-lhe ao ventre, às pontas dos dedos. Que amedrontador amar assim. Que emocionante, que fascinante. O que ficaria dela depois dessa noite?
- Sim - murmurou, jogando seus braços ao pescoço para beijá-lo e encher-se dele. Não havia outra resposta - Sim.
Os dois estavam ardendo de desejo, de necessidade.
***
O dormitório dele era enorme e estava na penumbra, o teto de gesso também era adornado com molduras barrocas. Candelabros com duas velas e uma figura em espiral montados na parede projetavam
misteriosas sombras no macio tapete persa, e pelas janelas abertas entrava uma brisa úmida que soprava do mar, agitando as cortinas. A colcha de seda estava sedutoramente dobrada no pé da cama deixando à vista os fragrantes lençóis aromatizados com lavanda.
Jane já estava ofegante de excitação quando ele a depositou na cama e a despiu com uma perícia pausada que poderia tê-la ofendido mais que só lhe aumentou a excitação. Estava ansiosa de prazeres dos quais nem sequer sabia o nome. Foi para trás apoiada no outro braço dele, abrindo-se a ele, convidando-o.
O coração se acelerou olhando o rosto magro. Nunca se havia sentido mais vulnerável nem mais formosa que nesse momento, em que ele estava contemplando seu corpo sem incomodar-se em dissimular seu desejo. Quando ele terminou sua exploração visual, sentiu-se como se a tivesse examinado palmo a palmo e a achado desejável.
- É perfeição pura, Jane - disse ele, com a voz tão rouca que era quase desconcertante. Acariciou-lhe a face - Acredite. Confie em mim, Jane.
Sentiu-se enfeitiçada por sua voz, ansiosa de que a acariciasse.
Quando ele subiu à cama, o coração lhe acelerou e sentiu acumular o líquido do desejo entre as pernas.
Então ele a beijou, profunda, longamente, até que ela começou a mover-se debaixo dele. O desejo que sentia ferver em seu interior aumentou até quase fazer-se insuportável.
- Confie em mim, Jane - repetiu ele, e só um tempo depois ela recordaria o leve tom penalizado de sua voz.
- Confio em você - respondeu, percebendo ser verdade - Nunca confiei tanto em ninguém.
Ele se inclinou até mais sobre ela. Com os olhos ardentes, intensos, banhou-lhe de muito suaves beijos o rosto, a garganta, os seios e continuou descendo pelo ventre até chegar ao triângulo púbico.
Gemendo de prazer, afastou-lhe as coxas e esfregou o maxilar em seu ninho de cachos. Era um leão; seu amante.
Arqueou as costas com a potência desse ato proibido. Afastou as inchadas dobras da vulva com a língua e procurou o pequeno botão até encontrá-lo.
- Grayson, não pode...
- Não pode me negar isto, Jane.
Na penumbra do quarto ele era como um desconhecido, seu sedutor; não o homem no qual tinha chegado a confiar, mas um libertino cuja única finalidade na vida era o prazer, que fazia um pausado rito da sedução. Mas inclusive como um desconhecido, ela não era capaz de resistir. Seu coração o conhecia, sabia seu nome, e seu corpo respondia a sua perícia.
Talvez sua voz lhe soasse mais profunda, mais rouca, diferente. Mas ela o desejava desde o dia do casamento frustrado. Nesse dia já se sentia atraída por sua potente masculinidade, e deveria ver aonde a tinha levado essa atração. Descobrir a ternura e amabilidade que havia debaixo de sua atração sensual a tinha levado a perdição. Já era incapaz de resistir a sua crueldade.
- Não posso acreditar que estamos fazendo isto - murmurou, quando seu corpo começou a reagir, arqueando os quadris, e sentiu a necessidade de lhe acariciar os ondulantes músculos dos ombros.
- Acredito que isto é o progresso natural de uma relação entre homem e mulher - disse ele em voz baixa, rouca.
Ela esqueceu o que fosse que iria dizer quando a vibrante tensão de seu ventre chegou perto do topo. Inundada pelo prazer, gemeu, enquanto ele aproveitava sua desatada sensualidade para lhe introduzir a língua o mais fundo possível.
Era um absoluto prazer, felicidade, humilhante e estimulante ao mesmo tempo, embora não suficiente para nenhum dos dois. Abafou
outro gemido quando se sentiu como se o corpo se dividisse em pedacinhos, e ficou imóvel entre os braços dele. Durante todo um minuto não conseguiu abrir os olhos, e compreendeu que ele tinha demonstrado seu poder sobre ela da mais elementar ou primitiva das maneiras.
- Progresso natural e um fracasso - murmurou para a escuridão -
Quase me convenceu que planejou tudo isto desde o começo.
- Que retorcido seria eu se tivesse feito isso - disse ele, rindo, com uma risada rouca-. Sempre fomos sinceros um com o outro, não é?
Ela não podia responder a isso. Abriu os olhos, com o coração ainda acelerado, enquanto ele se desabotoava lentamente a camisa e a braguilha das calças. Sua silhueta nua lhe esquentou o sangue, como se tivesse estado dormindo muito tempo ao sol. Contemplou-o, descendo o olhar por seu musculoso peito e ventre, até a virilha, onde se levantava seu membro inchado e duro. Voltou lentamente o olhar até seu rosto, sem saber muito bem no que se colocara. Só sabia que o desejava, que desejava que isso pudesse ser para sempre seu destino.
Brilhavam seus olhos azuis prateados na penumbra. Ela ansiou sentir o que via nessas doentias profundidades, a satisfação de seus desejos secretos. Ele tinha seu coração em suas perversas mãos.
Acontecesse o que acontecesse nessa noite, ela participaria com todo seu ser. Nunca seria uma mulher que pudesse separar sua sexualidade de seu ser mais profundo.
- Grayson – murmurou - algum dia alguém vai domar essa arrogância.
- Talvez seja você - disse em brincadeira ele.
- Talvez.
- Acredito que eu gostaria disso, Jane.
- Anseio esse dia.
- Isso exige prática.
Ela o olhou fixamente, pensando como era possível que ele a
cativasse e enfurecesse ao mesmo tempo.
- Sim?
-Meses e meses de prática - disse ele, peralta - A não ser que demonstre possuir um talento natural, e eu suspeito que o tem.
Ela sentiu calor no pescoço e ombros.
- Ensino-lhe como se faz? - perguntou-lhe ele, em um rouco sussurro.
Ela reprimiu um estremecimento, sentindo o corpo mais que disposto para o que lhe prometia.
- Sim, por favor.
Ele desceu o corpo até ficar em cima dela. Por instinto ela pressionou os seios contra o duro plano de seu peito. Ele estremeceu ante o contato, colocou as mãos sob suas costas e as desceu até as nádegas, apalpando-as apertando-as suavemente; voltou a subir e descer deslizando as pontas dos dedos pela curva de sua coluna e novamente cravou as palmas em suas nádegas seguindo com os dedos o contorno da base em forma de coração. E assim continuou acariciando-a com as mãos, tomando posse.
- Dê-me tudo – sussurrou - Quero tudo.
Afirmando-se em um lado, estreitou-a em seus braços. A sensação de seu musculoso corpo apertado ao dela a inundou de desejo.
Arqueou-se, apertando-se mais a ele, ansiosa de mais contato.
Estremecia de espera, sentiu vibrar seu pênis ereto no ventre. Sem poder controlar o instinto, desceu as mãos até tocá-lo e fechou as pontas dos dedos ao redor do sedoso e duro membro. Gemendo, ele se apertou mais a ela.
- Me toque assim e estarei domado - murmurou.
- Tomara fosse verdade isso - sussurrou ela - Acredito que sempre será um selvagem no fundo de seu coração. Custará-me um horror domá-lo.
Estava equivocada, pensou ele. Ela não sabia o que ele sentia; não sabia como lhe tinha mudado a vida, o vazio e superficial que era seu mundo antes de conhecê-la.
Não sabia que só em suas mãos, com seu contato, podia se amansar. Com ela se sentia enfeitiçado, extasiado, duro como ferro; o desejo era tão intenso que lhe doía, estava tão excitado que quase tinha esquecido o papel que devia representar. Não, já não podia haver nada de representação; seu amor por ela era muito real.
-Estou louco por você, Jane - murmurou.
Ela já não podia responder, entregue, rendida totalmente ao instinto.
Subiu-lhe a mão direita pelo quadril até o peito e com o polegar lhe esfregou os rosados mamilos até que a inundou um prazer cego e arqueou o corpo para apertar-se a ele; com a outra mão lhe acariciou a sedosa pele do interior das coxas até que ela abriu as pernas com o ventre brilhante de pérolas de umidade.
- Grayson - disse, com a voz abafada - não estou preparada...
- Ah, sim que está - murmurou ele.
Dizendo isso enredou os dedos no encaracolado pêlo molhado e a acariciou
aí
com
uma
magia
que
lhe
produziu
selvagens
estremecimentos por dentro. Fechou os olhos, drogada pelo prazer, tão apaixonada por ele que lhe era impossível refrear seus instintos. Então lhe introduziu um dedo na vagina e ela sentiu subir a ardente sensação até a base da coluna.
Sedução, pensou. O simples toque das pontas de seus dedos fazia arder a pele como um ferro para marcar. Ela estava se derrubando enquanto ele continuava forte, seguro de si mesmo, um homem que se deleitava na arte da sensualidade. Afundou o rosto em seu forte ombro; a promessa de prazer carnal que viu em seu sorriso a fez ruborizar-se até a alma.
- É prazeroso, não é? - murmurou ele, lhe introduzindo outro dedo
na estreita passagem, com os músculos da mandíbula tensos.
Ela gemeu e se moveu apertando-se contra sua mão, respondendo sem palavras. -Sabia que é um demônio - disse então.
- Não tem ideia de quão diabólico sou -disse ele rindo, e o rouco som lhe vibrou no peito - Mas descobrirá. Esta noite nos faremos coisas muito, muito iníquas.
Ela levantou o rosto para lhe olhar o cinzelado perfil.
- De verdade acha que sou iníqua?
- É claro, Jane. Toda mulher é, se lhe dão a oportunidade.
Ela não pôde deixar de rir.
- Que coisas diz, convertendo o vício em uma virtude.
- Bom, desde meu ponto de vista é.
- Detesto que seja tão experiente.
- E eu adoro que você não.
Mas, na verdade, igualmente poderia estar fazendo amor pela primeira vez, pensou. Quase não conseguia recordar todas as técnicas que tinha aprendido até as dominar, nem às amantes que as tinham ensinado, e, entretanto sentia mais afinados que nunca seus instintos, enfocados totalmente a dar prazer a essa mulher. Sentia pulsar o coração como um tambor de guerra, pelo desejo de possuí-la.
Tudo tinha saído tal como o planejado, à exceção da inesperada erosão de seu autodomínio, a intervenção de suas emoções. Mas Jane era Jane, inclusive no momento de sua queda moral, fazendo-o duvidar quem dos dois sairia vitorioso nesse jogo. Mas a possibilidade de derrota, por remota que fosse, só o estimulava.
Mas ele ganharia essa batalha. Faria-se dono de seu corpo, a marcaria como sua, a faria suplicar que lhe desse mais. Moveu mais rápido os dedos e sentiu neles as contrações de seus delicados músculos ao aproximar-se do orgasmo. Quando a inundaram os estremecimentos de prazer, lhe rodeou o pescoço com os braços e
amoldou seu corpo ao dele, uma sedutora por direito próprio em toda sua glória. Observou-a desfrutar com toda sua desenvoltura. A intensa ternura por ela que o invadiu o fez sentir-se humilde. Nunca antes tinha participado seu coração quando fazia amor.
Então posicionou a ponta do pênis para penetrá-la, deixando aninhados os testículos mais abaixo. Esticou-se todo o corpo dela ante a invasão, pelo que ele tentou fazer mais lenta a penetração, lhe sussurrando palavras tranqüilizadoras e deslizando suas grandes mãos por debaixo de seus quadris para firmá-la.
- Jane - sussurrou com a voz abafada - renda-se a mim.
Estreitou-lhe mais forte o pescoço. Sentia enorme seu membro entrando nela, alongando-a, em um rito de prazer e dor.
- Estou tentando - conseguiu murmurar.
Ele a penetrou um pouco mais, seu desejo e necessidade implacáveis.
- Desejo você, terrivelmente. Não sabe quanto desejo você.
Ela também o desejava. Desejava conhecê-lo assim, introduzi-lo totalmente em seu corpo. Desejava afogar-se nele, sentir seu poder em todas suas partes. Com os olhos dilatados olhou-o no rosto em penumbra, com descarada fascinação. Que belo, seu sedutor. A apaixonada intensidade de seus olhos azuis fazia subir e descer estremecimentos pelas costas, como raios. Notou como lhe esticavam os músculos dos braços ao sustentar-se imóvel em cima dela. Sentindo correr desbocado o sangue pela incerteza, sussurrou:
- Sim. Ah, sim.
Ele jogou atrás a cabeça e ela sentiu que lhe partia o corpo com a primeira investida. Sem saber o que seguiria a esse sensual ataque, enterrou-lhe os dedos nos ombros e se preparou para a seguinte investida. Ainda assim, sentiu-se tomada por assalto quando ele avançou os quadris e enterrou o membro nela até a base.
Sentiu que a força abandonava seu corpo.
- Não... não posso...
Beijou-lhe suavemente a trêmula boca, murmurando.
- Perdoe-me. Compensarei você.
Sua voz a enfeitiçou, penetrando a névoa que lhe envolvia a mente.
Vibraram-lhe os músculos interiores, lhe apertando o membro, adaptando-se ao ritmo imposto por ele. A maneira dele de mover os quadris, as lentas e suaves penetrações e a crua sexualidade de seu rosto lhe tiraram o fôlego.
- Caramba, mulher - murmurou ele - Que deliciosa é.
- Você... você também.
- Como nada, como ninguém que tenha conhecido jamais.
Isso a emocionou.
- De verdade?
Cintilaram seus olhos.
- De verdade, Jane - disse, docemente, como um ronronar. - Nunca abri o coração a outra como abri a você.
Ela estava tão imersa em sua sedução que ignorou a pontada de culpa que lhe produziu essa declaração. Talvez entregar sua virgindade lhe foi mais doloroso do que tinha esperado, mas não podia negar o excitante e bela que era toda essa crueldade primitiva. Simplesmente seguir os misteriosos instintos de seus corpos. Arquear-se, chocar, investir-se mutuamente. Observou que a luz da lua prateava os ondulantes músculos de seu peito. Estremeceu pela violenta beleza de seu relacionamento.
Grayson tinha mantido o corpo absolutamente tenso, controlado, para impedir-se ejacular à primeira investida. As paredes de sua vagina virgem se fecharam sobre seu membro como um punho de seda; teve que apertar os dentes ao sentir o intenso prazer dessa pressão. Se ela fizesse um mais desses rápidos e sedutores estremecimentos explodiria
dentro dela. Só quando a sentiu descontrolar-se pela proximidade do orgasmo, afrouxou a tensão e começou a investir descontrolado, penetrando-a até o fundo, tão fundo que temeu lhe fazer mal.
O orgasmo o deixou reduzido às sensações básicas, apoderando-se de todo ele, da cabeça aos pés. Ouviu-a suspirar seu nome quando se desmoronou sobre ela rodeando-lhe com os braços seus esbeltos e brancos ombros. Tão pequena que era comparada com ele e, entretanto tinha demonstrado ser sua igual na paixão. Passado um momento rodou para um lado, mantendo-a abraçada, e ficaram juntos como dois guerreiros que declararam uma trégua depois da batalha: esgotados, exaustos, exultantes.
Ele tinha planejado seduzi-la, e conseguiu, com a mesma implacável resolução que aplicava ao resto de sua vida. Mas não tinha esperado os sentimentos que acompanharam sua prazerosa vitória. Estreitando em seus braços seu quente corpo, seus corações pulsando ao uníssono, sentia-se avassalado por emoções que não se conciliavam absolutamente com sua pretendida vingança. A ternura lhe arrasava o coração, deixando-lhe nu. Jamais tinha amado ninguém até esse extremo.
Desejava sentir-se ofendido com ela por tê-lo enganado; e se sentia.
Desejava recuperar o comando em sua relação; fisicamente, isso já era um fato, mas no resto, bom, o equilíbrio continuava incerto. A vingança tinha sido doce, sim, em especial pela forma elementar que tomou. Ela já era sua, pertencia-lhe; já não podia lhe permitir que se separasse dele.
Tampouco podia lhe permitir que saísse impune do engano, mesmo que tivesse que pagar um inferno quando ela descobrisse que conhecia seu segredo.
Ela se moveu e abriu os olhos, com seu abundante cabelo mel enredado no pulso dele.
- Vamos, Grayson - disse com a voz rouca, embargada pela emoção
- não me olhe assim.
- Assim como? - perguntou ele, com sua enorme mão aberta sobre seu ventre.
- Como um imenso animal satisfeito que acaba de comer...
- Uma ratinha? - brincou ele docemente, introduzindo o joelho entre suas pernas.
Já não podia deixar de tocá-la, acariciá-la. Sentiu uma pontada de ciúmes ao pensar que ela poderia ter terminado casada com seu primo.
- Talvez devesse voltar para seu quarto.
- Este é meu quarto - respondeu ele, e continuou, peralta - Todas os aposentos são meus.
- Quis dizer... escute, Grayson, apesar de todas as aparências contra, eu não fui feita para ser uma amante.
Isso ele sabia, logicamente. Ela tinha o matrimônio e a maternidade marcado em todos os ossos de seu delicioso corpo. E sua preocupação lhe produzia um intenso sentimento de culpa por dentro. Mas não podia perdoá-la tão facilmente. Primeiro tinha que terminar seu jogo, e então lhe concederia o perdão.
Simulou que pensava.
- Bom, certamente não podemos permitir que se converta em uma solteirona.
Ela se sentou lentamente, e a cor rosada de bem-estar deixado pela relação sexual se foi desvanecendo ante as complicações da realidade.
- Tampouco posso me converter em uma cortesã.
- Volte a se deitar, Jane - lhe disse ele, em tom tranqüilizador - Falta-lhe aprender umas quantas coisas para chegar a essa categoria.
- Não há alternativa, Grayson. Temos que nos casar.
- Nos casar? - exclamou ele, levando uma mão ao coração, fingindo estar horrorizado - Céu santo, que alguém me ponha uma pistola na boca.
Ela o olhou com os olhos estreitos.
- Continue assim e isso não está fora do domínio do possível.
- Sabe o que penso da ratoeira do padre. - Esboçou seu sorriso preguiçoso - Mesmo que você seja uma ratinha deliciosa.
Ela fez uma inspiração profunda.
- Sou uma mulher decente, ou ao menos o era, déspota. Foi você que apresentou-se a meus pais como um homem respeitável.
- Está me propondo matrimônio, Jane? - perguntou ele, peralta.
- Isso me parece - disse ela, aparentemente nada satisfeita por ter que reconhecer.
Ele exalou um triste suspiro.
- Achei que tínhamos chegado a um acerto conveniente.
- Ser uma rameira não vai comigo - disse ela, séria pela indignação.
- Não? Mas acredito que tem um talento natural para ser.
- Onde está essa pistola de qual falou?
Passou-lhe as pontas dos dedos pelo ventre, notando a reação no movimento de seus músculos.
- Matrimônio? Deixe-me pensar um ou dois dias. Talvez possa me persuadir. Enquanto isso, querida, ponha-se de barriga para baixo.
- Boca ab... - Engoliu uma exclamação - O que vai fazer?
- Há um espelho à esquerda se quiser olhar - respondeu ele com sua voz sedosa - Se não, simplesmente feche os olhos e desfrute da experiência.
Passou todo o resto da noite despertando seu corpo. Não tomou nenhuma precaução para acautelar uma gravidez, pela primeira vez em sua vida. Estava absolutamente preparado para ser pai de todos os filhos que lhe desse, para protegê-la e proteger a seus seres queridos.
Amiga, amante, esposa. Continuaria seduzindo a sua formosa malandrinha todo o caminho até o altar. Amaria todo o resto de sua vida.
Capítulo 20
Jane levantou o musculoso braço que lhe aprisionava a cintura e o deixou sobre a cama. O dono do braço, esse imenso animal loiro e nu que a tinha encantado fazendo amor, emitiu um grunhido de satisfação e ficou de lado. Esse movimento permitiu a ela admirar o longo torso e as magras nádegas e as coxas duras como ferro. Enquanto o admirava, ele dobrou o braço sobre a almofada que ela tinha tentado colocar entre eles toda a noite.
Embora essa insignificante barreira não tinha sido absolutamente um impedimento para ele, pensou, sarcástica. Não tinha feito amor de modo poético. Alegremente a tinha seduzido de todas as maneiras imagináveis, e ela, também alegremente, tinha-o animado a elevar-se a novas alturas na sedução.
Olhou maravilhada o desastre em que estava convertido o dormitório. Tinha sido uma noite memorável, inesquecível. Cadeiras derrubadas, as taças de champanha no chão, sua regata pendurada no poste da cama como emblema de sua rendição.
Rendição? Santo céu, no final foi ela quem iniciou o ataque, aproveitando ao máximo, tirando o melhor partido de sua gloriosa queda.
De verdade permitiu que ele a amarrasse à cama com suas próprias meias? E essas mordidas amorosas que deixou marca por todo o corpo dos dois?
Como pôde acontecer isso? Até há pouco ela era uma senhorita decente, muito virtuosa e formal. Sim, a rebelião sempre esteve fervendo a fogo lento sob a superfície, mas as coisas às quais se entregaram ela e Grayson essa noite eram indescritivelmente imorais segundo qualquer critério. Amá-lo havia lhe virado seu mundo totalmente ao contrário. A idéia de que ele pudesse resistir a corresponder seu amor era insuportável.
Ouviu vacilantes passos fora da porta. A isso seguiu um suave golpe na porta. Reteve o fôlego olhando a maçaneta, que não se virou. Esse
só podia ser Simon, pensou, espantada, e se apressou a descer da cama, onde seu companheiro no vício continuava dormindo.
Colocou o vestido de viagem de musselina azul celeste e remexeu no monte de roupa de cama jogada no chão até achar suas botas de cano longo. Quando se vestiu se dirigiu silenciosamente à porta. Ali parou para olhar acusadora no espelho à mulher desonrada em que se converteu. Tinha muito claro que tinha convertido sua vida em um desastre e que necessitaria bules e bules de chá e dias de solidão para pensar.
- Pelo menos poderia ter a aparência de lamentá-lo - sussurrou a sua desonrada imagem - As melhores pessoas da aristocracia lhe advertiram isso, ignorou.
Não, convertera-se em uma amante.
***
Quando ia pela metade da escada se lembrou de que a tia de Nigel vivia em Brighton com seu marido, advogado aposentado. Posto que continuar nessa casa só respiraria sua indecência latente, talvez pudesse lhe pedir refugio até conseguir convencer Simon de que a levasse a casa. Se é que alguém de sua família voltaria a lhe falar, pensou, suspirando pesarosa pelo que tinha feito.
Quando ia passando nas pontas dos pés por entre os pilares de mármore do vestíbulo viu seu capote e sua bolsa no bengaleiro, onde os deixou
um
criado
enquanto
sua
proprietária
revelava
desavergonhadamente seu lado luxurioso no dormitório de cima.
Vestiu o capote e contemplou a porta principal com sua janela em forma de leque transversal, pela qual entravam tênues raios de sol que atravessavam a aprazível penumbra. Pareceria uma prostituta caminhando sozinha pela orla, embora se Grayson fizesse o que queria, esse seria seu destino.
- Meu irmão não me perdoaria jamais se a deixasse escapar - disse
uma voz profunda saída das sombras. Um jovem alto e largo de ombros se afastou de um dos pilares e avançou até posicionar-se diante dela-. E
eu tampouco me perdoaria. Por que não me acompanha para tomar o café da manhã no salão verde? Assim poderei conhecer a dama que tem o cabeça de família comportando-se de forma tão estranha.
Ela detectou uma ordem subjacente a esse convite. Na realidade, já lhe tinha pego o braço e ia levando-a para o lado leste da casa. Este deve ser Heath, pensou, olhando-o dissimuladamente de lado, um representante moreno, mais calado, mais severo, do lado masculino da família Boscastle. Tinha penteado para trás seu cabelo negro liso, deixando livre seu rosto anguloso, de feições bem cinzeladas, e um queixo quadrado que denotava força. Era mais ou menos tão alto como seu irmão, talvez um pouco mais magro, e seu andar revelava o domínio perigoso, sinuoso, de uma pantera. Havia arrogância nele, embora mais moderada. Sentia seu olhar examinando-a enquanto caminhavam pelos ladrilhos de mármore do longo vestíbulo.
- É muito cedo para estar levantada - disse ele, e calou um momento
- Sobre tudo depois de um dia de viagem. Sou Heath, Jane, como provavelmente já o adivinhou. Acredito que nunca nos apresentaram como é devido.
Ela sorriu pesarosa.
- Não sei se poderíamos chamar como é devido a estas circunstâncias.
Os olhos cor azul viva brilharam de circunspeta diversão.
- Não?
- Já sabe como é Grayson.
- Sim - disse ele com voz grave, que convidava a confiar nele - Mais não a conheço, Jane.
- Não estou em meu melhor momento - respondeu ela, com a voz quebrada. Molhou os lábios, consciente de que ele a percorria
rapidamente com seu olhar azul escuro, avaliando todos os detalhes de sua aparência, das olheiras que lhe escureciam os olhos à bolsa que apertava nervosamente na mão direita. Claro que sabia que não estava esgotada pela viagem mas sim por uma noite passada na intimidade com seu irmão mais velho. Essa compreensão lhe fez subir um ardente rubor às faces.
- Não quero tomar o café da manhã - disse, negando com a cabeça.
Ele arqueou uma sobrancelha.
- Talvez eu consiga fazê-la mudar de opinião.
- Sei o que deve pensar de mim - conseguiu dizer ela, com a voz entrecortada.
- Duvido.
Ela engoliu em seco, pensando o que teria ele que a fazia sentir-se cômoda tão imediatamente.
- Foi você que bateu na porta do dormitório, não é?
- Sim - reconheceu ele, esboçando um sorriso de desculpa.
- Então me pegou.
Ele a fez entrar em uma imensa sala em que crepitava alegremente um fogo na lareira e havia uma mesa com toalha de linho que tentava o apetite com um suculento café da manhã para dois.
- Sim, peguei-a saindo para dar um passeio antes de comer. Esse é um pecado terrível. Venha, Jane, sente-se e coma.
- Não entende - disse ela, desgostosa - Minha vida se está desfazendo fio por fio.
- E não há maneira de voltar a unir as partes? - perguntou ele, cauteloso.
Ela pensou no malandro que estava dormindo em cima e sorriu um pouco triste.
- Não vejo como.
O estômago se contraiu de fome quando ele levantou a tampa de
uma bandeja de prata para tentá-la com umas rangentes fatias de bacon frito e ovos quentes. Sentou-se, com as mãos entrelaçadas na saia, e suspirou.
- Não poderia comer depois de...
O perspicaz olhar dele fez desnecessário terminar a frase. Ficou calada.
- De verdade quer tanto a esse monstro? - murmurou ele, como se estivesse pensando em voz alta.
- Não estaria aqui se não o amasse.
Ele abaixou os olhos, reprimindo um sorriso.
- Ah - disse. - Então sinto muito.
Embora por quem dos dois sentia, pensou, inclusive não tinha decidido. Estava claro que Grayson tinha continuado adiante com seu plano de vingança, que há uns dias parecia divertido. Mas nesse momento, sentado cara a cara com Jane, e tendo formado sua opinião pessoal, não via que ela fosse a mulher frívola e fingida que imaginara.
Na realidade, admirava sua iniciativa para escapar de um matrimônio não desejado. Não pôde reprimir o sorriso ao recordar Nigel na cama com Luva de Ferro.
- Acha divertida minha situação, Heath?
Ele negou com a cabeça.
- É a vida que me diverte, Jane. - Levantou-se para pegar o bule do aparador e voltou para a mesa a servir o fumegante chá negro nas xícaras dos dois - Os criados desta casa estão extraordinariamente bem treinados. Não aparecem nunca, a menos que os chame.
Ela rodeou com as mãos a xícara de porcelana.
- Imagino que isso vai muito bem com as necessidades de seu irmão.
Ele voltou para sua cadeira.
- Na realidade, acredito que Grayson não trouxe nunca uma mulher
aqui, embora saiba que está na moda manter uma amante em um balneário junto ao mar. Esta vila sempre se reservou para a família. E
por favor, não o repita, não diga que eu lhe contei isto.
Jane desceu a xícara até o pires, tentando recordar o que lhe tinha contado Grayson a respeito de Heath. Tinha sido espião e soldado, não?
E tinha conseguido achar informação a respeito de Nigel. Levantou os olhos e dissimuladamente observou suas formosas feições. Dava a impressão de ser um homem muito paciente, muito agradável, mas compreendeu que seria perigoso subestimá-lo. Teria adivinhado seu segredo? Aparentemente não, se pudesse julgar pela tranqüila expressão de seu anguloso e muito sedutor rosto. Ou igualmente era um professor ocultando seus pensamentos, valiosa habilidade para um agente do serviço de inteligência. Dava-lhe medo perguntar que descobrimentos tinha feito, mas tinha que saber.
- Grayson disse...
Heath virou a cabeça uma fração de segundo antes que seu irmão mais velho aparecesse na porta. Imediatamente Jane pensou se teria estado todo esse tempo aí escutando a conversa. Ele se dirigiu em linha reta para ela, ágil e muito elegante com uma jaqueta de manhã cinza estanho sobre uma camisa de linho branco e calça bege.
Tinha penteado para trás seu cabelo loiro trigo, deixando limpa a formosa estrutura óssea de seu rosto. Quando ele captou seu olhar, sentiu passar uma rajada de calor por todo o corpo.
Apesar de sua confusão, apesar da incerteza a respeito de seu futuro juntos, notou que se abrandava ao vê-lo. Nessa noite se inclinou ainda mais a balança do equilíbrio entre eles, mas não sabia o que significaria isso. Tinha lhe roubado o coração. Ela tinha compartilhado sua cama. O que seria dela agora?
Tudo, pensou. Desejava tudo para ela, cada pecaminosa polegada dele. Desejava-o para toda a vida. Que casal mais escandaloso
formavam. Como se horrorizaria a alta sociedade com seu comportamento. Repentinamente se ruborizou, sentindo o olhar de Heath sobre ela. Como saber o que pensava ele de tudo isso?
- Ouvi meu nome - disse Grayson, inclinando-se ousadamente para lhe beijar a nuca antes de sentar-se na cabeceira da mesa, ao lado dela
- Falou de mim em termos aduladores?
Ela desejou meter-se debaixo da mesa ao ver seu agradável sorriso, mesmo que o beijo lhe tivesse feito descer um estremecimento pelas costas.
- Você acha?
Ele a olhou com os olhos faiscantes, deixando-a cravada, imóvel.
- Acredito que depois de ontem à noite seria indicado algo adulador.
Heath tossiu e desceu sua xícara.
- Tão modesto como sempre, não é?
- Estou de tão bom humor que não vou me incomodar com a modéstia - disse Grayson, dirigindo a ela um sorriso sensual que a invadiu de calor - Por que não come, querida? - perguntou-lhe, preocupado, pondo a mão sobre a sua. - Meu irmão a intimidou?
Sua atitude era tão masculina, tão possessiva e franca a respeito do que ocorria entre eles que Jane não soube como reagir. Era evidente que não pensava ocultar nada a seu irmão, que dava a impressão de não saber o que fazer ante esse comportamento.
- Não tenho fome - respondeu, tentando libertar sua mão.
- Como é possível que não tenha fome depois do que fizemos... ? -
se interrompeu e olhou para Heath, repentinamente sério e com expressão desaprovadora - Disse-lhe sobre Nigel? Isso é o que lhe tirou o apetite?
Heath se afastou e olhou a seu irmão sorrindo resignado.
- Por que não o diz você, Grayson? Arrebenta-me ser portador de más notícias.
O coração de Jane deu um salto.
- Más notícias? – perguntou - A respeito de Nigel?
- Muito bem - disse Grayson, lhe apertando a mão em gesto protetor.
- Heath enfrentou-o, Jane. Não sei nenhuma maneira fácil de dizer isto, assim serei franco e lhe direi tudo. Meu primo se casou com outra mulher. Ela está grávida dele.
Jane se sentiu sufocada, como se tivesse acabado o ar na sala; os dois homens a estavam olhando com tanta atenção que quase não pôde nem engolir a saliva.
Nunca tinha se siderado boa atriz nem mentirosa. Seu primeiro impulso instintivo foi confessar sua culpa.
- Compreendo. Então já está.
- Que resignação a sua para aceitar - murmurou Grayson - Eu em seu lugar não aceitaria. Jane, isto terá que conseguir.
- Não posso dizer que seja uma surpresa total para mim - disse ela, e levantou a cabeça, obrigando-se a sustentar os olhares de curiosidade dos dois - Disse-lhe que nunca nos amamos dessa maneira.
Grayson lhe soltou a mão e passou a ponta de seu indicador pela afiada folha de uma faca.
- De todo modo - disse, pensativo-, terá que fazê-lo pagar. Seus pais insistirão nisso. Eu insisto. Talvez inclusive o desafie a duelo.
Ela reteve o fôlego.
- Mais é seu primo. Isso causaria um escândalo pior ainda, para não falar da possibilidade de ficar ferido ou morrer. Eu não queria me casar com ele. Eu...
- É uma questão de honra, Jane - interrompeu ele, fazendo virar a faca entre as mãos-. Farei o que for preciso para manter a honra de minha família.
Heath limpou a garganta.
- Eu não sei se estou de acordo - disse.
- De acordo? - repetiu Grayson, perfurando-o com um autoritário olhar - Pois claro que está. Afinal há conseqüências judiciais. Jane poderia pôr um pleito a Nigel por descumprimento de uma promessa, embora eu pessoalmente prefiro lhe colocar uma bala no coração e acabar de uma vez por todas.
Heath arqueou uma sobrancelha, acusador.
- E deixar viúva sua mulher e seu filho órfão de pai? Como pode lhe ocorrer isso?
Grayson deu de ombros, indiferente.
- É preciso vingar Jane.
- Não necessariamente - disse ela, que por fim achou a voz, embora lhe saísse como um feio chiado - Com o tempo se esquecerá todo este escândalo.
- Jamais - exclamou Grayson, e sua voz ressoou pelas paredes como um trovão - Seu comportamento foi deplorável. Nego-me a deixar em paz este assunto, e isso é concludente.
- Falou o Senhor - disse Heath, sorrindo irônico e olhando para Jane.
Jane jogou atrás a cadeira e se levantou. Nesse momento uma retirada de covarde lhe parecia a melhor opção.
- Acho que os deixarei sós para que discutam isto.
Grayson a olhou sério.
- Não se sinta obrigada a se retirar, querida. Tem todo o direito a saber com todos seus detalhes como penso vingar sua honra.
O rosto dela se tornou sombrio.
- Sinceramente, preferiria simular que nada disto aconteceu nunca.
"Isso não me cabe dúvida - pensou Grayson, contemplando a faca que tinha na mão - Mas não se preocupe, meu amor, prometo-lhe o final feliz que merece. Os dois temos uma dívida de gratidão com Nigel por reunimos. A história de nosso romance entreterá a nossos descendentes
nos anos vindouros."
- Você gostaria que Nigel te pedisse desculpas publicamente antes do duelo? -perguntou-lhe, olhando-a muito solícito.
Ela empalideceu.
- Isso não será necessário. Grayson, tem que entender que não me importa que esteja casado. Poderia ter sete esposas, pelo que a mim respeita.
Ele negou com a cabeça, descartando isso.
- As mulheres perdoam com muita facilidade. Além disso, é um Boscastle, e eu assumi o papel de teu protetor. O que pensariam de mim se não o enfrentasse para vingá-la? O que pensaria meu pai se soubesse que falhei a minha família?
Ela fechou os olhos e voltou a abri-los passado um momento.
- Heath, por favor, tenta convencer a seu irmão de que seja sensato.
Pelo visto eu sou incapaz de dissuadi-lo dessa idiotice masculina.
Heath abaixou os olhos, aparentemente sem saber o que fazer.
- Farei tudo o que estiver em meu poder, mas meu irmão não costuma aceitar conselhos.
Ela dirigiu um sombrio olhar Grayson e se afastou da cadeira.
- Sim, sei. Mas tente dissuadi-lo de qualquer modo. Vou subir a meu quarto.
Antes que pudesse dar outro passo, Grayson lhe pegou a mão.
- Convidaram-nos às corridas em Plumpton amanhã, se estiver com ânimo para isso. E esta tarde há um espetáculo de bonecos no passeio marítimo. Pensei que poderíamos ir vê-lo antes do baile desta noite. -
Sorriu-lhe, olhando-a nos olhos, e acrescentou com voz sedutora - A não ser que prefira ficar em casa sozinha comigo. Essa idéia me atrai, Jane.
Então, Jane, horrorizada, sentiu descer essa enorme mão por suas costas, e em lugar de resistir ao malandro vadio, surpreendeu-se a si mesma aproximando-se mais a ele, ansiosa por sentir contra ela esse
corpo quente e duro. Enquanto isso Heath os observava em silêncio, absolutamente fascinado.
- Me solte imediatamente -disse com firmeza.
- Me dê um beijo antes de ir.
- Tire a mão do meu traseiro, idiota animal - lhe sussurrou, dobrando-se para trás pela cintura.
Acariciou-lhe a curva das nádegas.
- Não enquanto não me beijar.
- Seu irmão nos está olhando.
- Não seria a primeira vez.
- Grayson, é um...
- Um beijo - exigiu ele - Heath, olhe para o outro lado.
Ela se inclinou para lhe beijar recatadamente a face recém raspada.
Um segundo depois estava sentada em suas coxas, lhe rodeando o pescoço com os braços, enquanto ele a beijava com uma descarada sensualidade que os deixou aos dois com a respiração agitada.
Brilhavam-lhe os olhos de cru desejo quando finalmente, a contra gosto, pô-la em pé.
Imediatamente ela se dirigiu à porta. A chama de paixão entre eles tinha deixado carregada a sala como a quietude antes de uma tormenta.
Levava a sensação de seu potente corpo gravada até a medula dos ossos, como uma erra.
Saiu depressa ao corredor, sem atrever-se a virar a cabeça para olhar Heath. Mas se tivesse ficado um momento mais, teria captado o significativo olhar que trocaram os dois irmãos. Poderia ter visto o amor e o desejo por ela que Grayson se esforçava tanto em ocultar.
- Fiuuú - soprou Heath, apoiando a mão na mesa. - Depois desta exibição me sinto bastante incapaz. Felicitações. Agora entendo tudo.
Não é preciso acender a lareira no aposento quando estão juntos.
- Não me felicite ainda - disse Grayson, com a voz um pouco rouca,
tentando dominar-se para não sair atrás dela; Jane o debilitava sem sequer tentar. - Ainda não a levei a altar. Poderia achar a maneira de desfazer-se de mim.
Heath o olhou desconfiado uns segundos e depois jogou atrás a cabeça e soltou uma gargalhada. Grayson temia perder à mulher que desejava? Grayson inseguro no papel de sedutor? Brilharam-lhe os olhos de carinho e compreensão.
- Uma primícias na história familiar dos Boscastle, um de nossos homens conspirando para capturar uma esposa.
- Falha-te sua memória legendária, Heath - disse Grayson, irônico -
Nossos antepassados raptavam a suas mulheres como o mais natural do mundo. E não esqueça a vergonha de nossa história recente. Nigel chegou a extremos desesperados para casar-se com o objeto do desejo de seu coração.
Heath sorriu encantado pelo aviso do turbulento passado de sua família.
- Mais alguma vez o consideramos um de nós, não é verdade?
Lembro que fracassou em nosso rito de iniciação no castelo quando completou treze anos.
Grayson sorriu de orelha a orelha.
- Certo. Tinha esquecido isso. Lembra-se da cara que pôs quando nossa leiteira começou a despir-se diante dele?
- E então o resgatou... - Heath pareceu pasmado. - Luva de Ferro.
Anda, caramba. Esse deve ter sido o começo desse infame romance.
Esther o resgatou de nossa corrupção só para corrompê-lo ela anos depois.
- Seriamente nos golpeava com uma vara, ou era com suas mãos?
- Não estou de todo seguro. Mas fosse como fosse, eram golpes tremendamente dolorosos.
- De quem foi a idéia de sabotar o casamento? - perguntou Grayson,
curioso - De Jane ou de Nigel?
- Nigel se negou a dizê-lo, o que foi extraordinariamente valente ou estúpido, dado que eu o estava apontando com duas pistolas.
- Foi de Jane - disse Grayson, com absoluta certeza - Nigel não teria tido jamais nem o engenho para planejá-lo nem a coragem para atrever-se a fazê-lo. Suponho que poderiam ter escapado impunes se eu não tivesse intervindo para salvar a situação. Não é de estranhar que Jane se mostrasse tão consternada quando me ofereci para ajudá-la.
Os dois estiveram um momento em silêncio. Heath foi o primeiro que o rompeu, levantando a cabeça, com o cenho franzido, preocupado.
- Simplesmente não esqueça que os tiros podem sair pela culatra, Grayson. Com todos seus defeitos, Jane é um encanto. Nenhum dos dois é o que poderíamos chamar de uma pessoa dócil. Não é justo que brinque com ela quando está muito claro que o adora.
- Eu também a adoro, Heath - respondeu Grayson em voz baixa - Já tenho em minha escrivaninha a licença especial que obtive em Londres antes de vir. Jane e eu estamos a um dia da respeitabilidade.
- Então lhe diga que sabe o que fez. Cedo ou tarde terá que dizer-lhe.
- E o direi. Quando chegar o momento oportuno.
Estava mais que convencido de que se Jane era capaz de sabotar sua própria cerimônia casamento, não o respeitaria se ele se deixasse enganar. A astúcia de Jane exigia que seu parceiro agisse com os mesmos retorcidos subterfúgios que empregou ela.
- Não quero decepcioná-la, sabe? - acrescentou, pensativo - Não posso permitir que ganhe em engenho minha futura esposa.
- Brinque com ela em uma competição. Poderia ser que não fosse tão inteligente como acha.
- Nosso jogo acabará logo.
- Está certo de que vai ganhar?
- Como poderia perder?
Heath sacudiu a cabeça. O amor tão evidente por seu irmão que viu no rosto de Jane lhe havia tocado algo no fundo do coração. Jane e Grayson formavam um casal perfeito, um casal ideal para uma família que estava à beira do desmoronamento. Antes de conhecê-la não entendia a atração de Grayson por ela. Agora a entendia. Onde acharia seu irmão uma mulher com a garra que tinha demonstrado ter Jane, uma companheira que desafiasse sua teimosa natureza? Complementavam-se à perfeição.
- Diga-lhe Grayson. Confie em meus instintos. Diga-lhe esta noite depois do baile, senão poderia ter mais problemas dos que poderia ter imaginado. - riu em voz baixa - Certamente vou gozar vendo como acaba tudo isto.
Capítulo 21
Jane entrou no dormitório e ficou com a testa apoiada na porta com o coração retumbante de terror. Se Heath tinha encontrado Nigel e Esther, só seria questão de tempo que um dos dois se desmoronasse e revelasse o papel que teve ela no escândalo do casamento.
Nigel era seu amigo; defenderia-a até certo ponto, mas não podia esperar que fosse capaz de fazer frente a um homem da talha do Grayson. E muito menos se este seguisse adiante com sua obstinada idéia de desafiá-lo a duelo. Nigel desmaiava em apenas ver um dedo levantado. Sua mulher tinha mais jeito de estar capacitada de enfrentar Grayson em um duelo. E tal como ia resultando a vida dela, igualmente acabava servindo a Nigel de madrinha no duelo.
Só havia uma solução; era o único que podia fazer. Confessar tudo; pedir desculpas a todos os envolvidos. E depois abandonar o que ficasse dela à mercê de Cecily e seu duque enquanto o mundo a censurava. Talvez pudesse chegar a ser a preceptora de seus filhos e dar surras aos que se comportassem mal para ganhar a vida.
O pior seria a reação de Grayson. De maneira nenhuma demonstraria que seu engano o tinha ferido; simplesmente a mataria.
Não era tão idiota para pensar que podia confessar-lhe tudo na cara e viver para contar. Ele não a perdoaria jamais. O mais seguro era que se risse dela se tentasse lhe explicar com que desespero tinha desejado evitar um matrimônio arrumado. E, francamente, era tão covarde que não se atreveria a dizer-lhe pessoalmente. Escreveria uma carta e a deixaria debaixo do travesseiro.
Quando se virou para a escrivaninha, que estava junto à janela, viu que o aposento já estava limpo e ordenado, sem dúvida o eficiente trabalho de uma das discretas criadas. A um lado do biombo havia uma banheira de assento cheia de água quente, fumegante. Sobre a cama, uma pilha de toalhas limpas e na mesinha de noite um pequeno vaso com fragrantes rosas moscatel.
E sobre a penteadeira, ao lado de seu prezado broche com o camundongo de diamante, havia outra caixinha de joalheiro de veludo azul com um cartão colocado debaixo. Leu-a duas vezes, com os olhos empanados de lágrimas:
Algo para comemorar a primeira de nossas muitas noites juntos.
G.
Dentro da caixa achou um brinco: um enorme brilhante em uma corrente de ouro. Caro, elegante. O presente que faria um homem generoso a uma amante para indicar uma noite de paixão.
- Você gosta? - perguntou Grayson da porta.
A joia deslizou por entre os dedos dela.
- É lindo, e um absoluto esbanjamento. Tomara pudesse aceitar isso.
- Mas claro que pode. Por que não se despe e me mostra como ficaria?
- Perdão, a esta hora do dia?
Ele a contemplou longamente com seu sedutor olhar.
- Amanhã, tarde, meia-noite. Estou totalmente obcecado por você, Jane. - Fechou a porta - É um prazer para mim lhe dar de presente jóias.
Como pode uma mulher montar uma defesa quando o homem faz comentários como esse? Como podia esperar ser capaz de pensar quando lhe rodeou a cintura com os braços e a fez cair com ele na poltrona?
Doeu-lhe o coração quando ele introduziu os dedos em seu cabelo e sossegou seus protestos com o mais terno dos beijos. Deitara-se com ele e não o lamentava.
- Jane - murmurou ele - obrigado por ontem à noite.
Ela fechou os olhos, imaginando a cara que poria ele quando lesse sua carta, tentando agarrar-se ao pensamento do aborrecido e furioso que estaria. Era implacável com a rebeldia de Chloe, absolutamente convencido de que é o dever do homem dominar a vida de uma mulher.
Jamais compreenderia o que ela tinha feito.
- Acontece algo, Jane? - perguntou ele, docemente - Não é de lágrimas esse brilho que vejo em seus olhos, não é?
- Me prometa uma coisa, Grayson.
- O que quiser - disse ele, lhe acariciando a face com o dorso da mão.
- Me prometa que não fará mal a Nigel.
Ele ficou imóvel.
- De verdade é intolerável que mencione seu nome quando está em meus braços.
- Promete-me isso?
Seus olhos azuis lhe perfuraram os seus.
- As pessoas merecem um castigo quando ferem a outras, não lhe parece?
- Não sei; não estou tão certa disso.
Ele continuou perfurando-a com os olhos, com implacável
intensidade. Por muito que o amasse, havia momentos em que alegremente o golpearia até deixá-lo inconsciente.
- Há um tempo para o perdão - acrescentou.
- Não em minha opinião. Falamos de outra coisa?
- Por favor, Grayson. Só lhe peço isso.
- O que me dará em troca?
Ela teria aceitado lhe dar o que fosse que desejasse seu perverso coração se nesse momento não tivessem ressoado fortes passos na escada e logo no corredor em direção a esse aposento.
- Grayson! -gritou uma irreverente voz masculina fora da porta -
Onde diabos está escondido? Acabo de deixar Helene em Londres; a mulher está furiosa amaldiçoando-o daqui ao inferno. Está aí?
- Deus todo-poderoso - resmungou Grayson, olhando irado para a porta - É Drake. Fique aqui enquanto eu me livro dele.
Ela se desprendeu de seus braços.
- Me prometa que não fará nada a Nigel.
Ele se levantou, pensativo, e alisou as abas da jaqueta.
- Terei que pensar, Jane. Tenha presente que Nigel e seus pais dependeram da prodigalidade de minha família durante muitos anos.
Sua conduta é um insulto tanto para mim como para você.
***
As vozes se foram apagando pouco a pouco à medida que os dois homens se afastavam pelo corredor. Jane se despiu e se meteu na banheira revestida de cobre e ficou a contemplar seu futuro como mulher caída.
Mal terminou de assear-se e arrumar-se, escreveria duas cartas, uma para Grayson e a outra para sua família. Embora depois da forma como seu pai virtualmente a jogou ao leão, não tinha a mínima esperança que lhe perdoasse a vergonha e desonra que tinha causado a sua família.
Exalou um longo suspiro, pensando em suas irmãs, na agradável vida que sempre tinha dado como certa, na forma como seu pai a mantinha e protegia, no matrimônio que arrumou porque achava que Nigel seria bom com ela.
Afundou-se mais na água aromatizada, franzindo mais e mais o cenho pela concentração.
Pensando bem, achava muito irracional o comportamento de seu pai. E sua mãe, teria apoiado realmente essa mudança tão brusca em sua moralidade, esse empurrão a sua filha desonrada ante a sociedade arrojando-a a esse estilo de vida? Isso desafinava muitíssimo com a forma de ser de seus pais. Depois de tudo, seus motivos para escolher Nigel foram sua amistosa afabilidade, sua lealdade, sua aparente falta de interesse na libertinagem.
Em resumo, escolheram Nigel porque era exatamente o contrário de Grayson. O que tornava mais inexplicável e misteriosa sua traição. A não ser que...
Caiu-lhe a esponja na água.
A não ser que soubessem. A não ser que uma de suas irmãs desse a língua e lhes tivesse contado o de seu pacto secreto com Nigel. Com o qual, ela ficava como a traidora, não a traída.
E se toda sua família conhecia seu segredo, era muito possível que também soubesse Grayson, e, mmm, essa humilhante situação em que se encontrava cheirava a Boscastle de longe.
Sabe tudo, pensou.
Essa sessão com a modista. A mudança que tinha notado nele.
Esse cruel brilho de seus olhos. Seu repentino desejo de trazê-la a Brighton.
Grayson sabia, com certeza.
Ela era o inconsciente peão em seu diabólico jogo. Mas por quanto tempo? Com que fim?
Sabia, sim, certamente.
Saiu bruscamente da banheira, Vênus de caminho à guerra, jorrando água por todo o elegante e macio tapete Axminster.
- Ai, o grande canalha - resmungou, detendo-se ante a penteadeira, totalmente nua e jorrando água - Esse intrigante filho de Satã! Jogando comigo como jogaria um leão... -seus olhos posaram no broche de diamante - com um camundongo!
Passou-lhe pela cabeça o pensamento de que foi seu plano para sabotar o casamento o causador de todo esse enredo, mas se apressou a colocá-lo debaixo de uma manta de justa indignação. Convertê-la em uma cortesã de classe alta, não é? Exibi-la coberta de diamantes e seda rosa, não é? Jamais, nem em mil anos, seu escrupuloso pai teria aceitado uma coisa assim sem nada em troca.
Bom, era preciso um Boscastle para derrotar a um Boscastle, e não lhe cabia dúvida onde acharia o elo mais fraco da cadeia familiar.
Vestiu-se depressa e, sem calçar os sapatos, saiu ao corredor e se dirigiu pisando forte ao quarto de Chloe. Na porta expulsou à criada que queria voltar a entrar no aposento para continuar ordenando-o.
Ao que parecia, Chloe havia se tornado a entregar a sua paixão pela reforma social depois de descobrir que seu oficial de cavalaria, William, fora enviado a uns novos quartéis em Devon. Estava sentada no divã com as pernas recolhidas, e a saia cheia de cartas a amigos do Parlamento, uma caixa de chocolates meio comida e uma lista dos trabalhos que pensava pôr por obra. Tinha as persianas fechadas, para reforçar o aura de solenidade.
Quando Jane irrompeu em seu quarto, Chloe simplesmente arqueou as sobrancelhas e pôs para trás a negra cabeleira.
- Ah, sua primeira briga com meu bestial irmão, não é? - disse em tom compassivo - Não sei o que vê nele, por certo. Chocolate para a ferida de amor?
- Quero a verdade, Chloe.
Chloe deixou a um lado a pena, captada sua atenção.
- A verdade? É um tirano, um destruidor de tudo o que para alguém é querido. Essa é a verdade. Foi pela cabeça de William e o fez enviar a Devon para ver-se com contrabandistas. Meu irmão cortou toda possibilidade de que eu o volte a ver. E não é que eu o queria vê-lo de novo, mas teria sido agradável me despedir dele.
- Lamento sua perda, Chloe, mas preciso saber uma coisa. Para que me trouxe aqui Grayson?
- Eu diria que isso é evidente - respondeu Chloe, não sem amabilidade - Pobre Jane. Tinha tanta esperança de que resistisse a ele.
- Me responda.
Chloe a contemplou em silêncio um momento, com seus olhos azuis brilhantes de emoções desencontradas.
- Jamais, jamais, nunca em minha vida, traí um segredo Boscastle, mas como você é virtualmente uma Boscastle, e membro de meu sexo, estou obrigada pela honra a traí-lo.
Jane se deixou cair no divã, sentindo formigar a pele pela nota vingativa que detectou na voz de Chloe.
- O que quer dizer?
- Nem Grayson nem Heath sabem que eu sei - disse Chloe, vacilante.
- Que sabe o que?
- Não me disseram.
- Não lhe disseram o que?
- Eu ouvi tudo, sabe? Estava escondida na biblioteca quando Grayson mandou chamar os advogados.
- Chloe, se não me der uma resposta clara imediatamente, terei-a pendurada fora da janela agarrada pelo cabelo até que me conte.
Chloe franziu seus rosados lábios, reprovadora.
- Já fala como um Boscastle.
- Por que Grayson fez chamar a seus advogados?
Chloe se aproximou mais a ela.
- Protegerá-me de sua ira quando descobrir que fui eu que o dedurei?
Jane endireitou as costas, alarmada. Que coisa horrenda teria feito Grayson a suas costas?
- Farei o que puder.
- Nigel disse tudo a Heath, Jane, "tudo". Contou-lhe como conspiraram os dois para frustrar os desejos de seus pais para que ele pudesse casar-se com Esther; sobre o generoso presente de casamento que lhes fez, sobre o mês que levaram planejando tudo.
- Nigel, que me jurou que jamais revelaria nosso pacto nem que o torturassem - exclamou Jane indignada, embora em realidade não tinha por que surpreender-se - Vamos, covarde, fraco sem caráter.
Estrangularei ele por isso. Se é que Esther não o fez já.
- Heath sabe ser muito amedrontador quando quer - disse Chloe.
- Grayson também.
- Parece que é um traço da família.
- Tenha a bondade de voltar para o assunto, Chloe.
- Ah bom, com certeza já adivinhou. Heath o disse a Grayson, e Grayson reagiu a sua típica maneira despótica. Disse-lhe algo?
Enfrentou-a e lhe deu a oportunidade de explicar-lhe. Ah, não. Fez vir seus advogados a meia-noite e teve uma reunião secreta com seu pai.
- Para me colocar um pleito por sabotar meu próprio casamento?
- Não, para arrumar um... Você com ele.
O coração de Jane saltou vários batimentos. Não conseguiu imaginar seu pai metido nessa intriga de meia-noite. O que pretendia fazer esse diabólico amante seu?
- Acredito que a entendi mal. Grayson quer...?
- Casar-se com você.
- Não que me converta em sua amante?
- Ui, santo céu, não. Isso é parte de seu plano para lhe dar uma lição. - jogou um chocolate à boca enquanto Jane a olhava muda pela comoção - Tem certeza que não quer um destes?
- O grande canalha - murmurou Jane.
Deixou sair lentamente o ar e pelo rosto lhe estendeu um sorriso de prazer. Assim tinha estado jogando com ela, não é? Tinha planejado um travesso joguinho para castigá-la pelo engano. De acordo, talvez o merecesse, mas ele não tinha ganhado ainda. Seu espírito de luta pegou a provocação no ar. Teria que pensar com supremo cuidado sua próxima jogada. Essa noite caiu na armadilha quando lhe pediu que se casasse com ela. Quanto desfrutaria ele vendo seu terror.
- Deveria saber que o malandro sem princípios tramava algo -
resmungou.
- Não o odeia? - perguntou-lhe Chloe, compassiva.
Esticou-se o sorriso de Jane.
- Não, como vou odiar. Amo-o, senão não teria permitido que me colocasse nesta horrorosa posição.
- Tomara eu pudesse me colocar em uma posição horrorosa com um homem a quem amasse - disse Chloe, com os olhos brilhantes de melancólica travessura - Cada vez que estou perto de uma, aparece um de meus irmãos e estraga tudo. Desde a morte de meu pai, Grayson e Heath me protegeram até o ponto de que igualmente poderia estar vivendo em uma jaula. Acredito que sou muito parecida com você, Jane.
Jane ficou calada, refletindo sobre o comentário de Grayson ao dizer que sua irmã se desmamou depois da morte de seu pai. Que tipo de homem seria um bom marido para Chloe? Um pretendente muito forte as amável. Entrar na família Boscastle por matrimônio não era para os fracos de coração. Em todo caso, a não ser que alguém interviesse,
tinha a impressão de que irmão e irmã chegariam muito em breve a um choque de vontades.
E ela ia ter que dar-se de murros com Grayson, que se achava tão inteligente por ter planejado seu compromisso em segredo. Só uma mente diabólica chegaria a esses extremos para apanhá-la totalmente.
Poderia sentir-se furiosa com ele por ter jogado com ela se não tivesse iniciado ela mesma todo o assunto.
- O que posso fazer, Chloe?
- Em minha opinião, lhe dar uma lição imediatamente.
Ah, dessa ideia Jane gostou. Ter em estado de alerta a seu amado demônio.
- Sim?
- Talvez pudéssemos pedir conselho à senhora Watson - sugeriu Chloe, entusiasmada pela idéia de criar um problema na vida de seu irmão - Essa mulher é uma perita no macho inglês.
- Senhora Watson... a cortesã por excelência de Londres?
- A cortesã por excelência de Brighton; chegou ontem pela tarde.
Chegam diligências cada meia hora de Londres.
- Importaria de me levar para ver a senhora Watson hoje? Iria bem o conselho de uma mulher experiente.
- Por que iria me importar? Não tenho nada mais que fazer além de adoecer sob a vigilância do Grayson.
- Acha que a incomodaria me ajudar?
- Incomodá-la? Acredito que se sentiria honrada. Audrey sempre sentiu uma especial fraqueza por meu irmão. E adora este tipo de diversão.
Jane se levantou decidida.
- Irei pôr os sapatos e as luvas enquanto você termina de se vestir.
E, por favor, que seus irmãos não descubram aonde vamos.
- Direi- que vamos à biblioteca - disse Chloe, borbulhante de alegria
- para ampliar nossa formação.
***
Quando chegaram as duas jovens, a senhora Watson acabava de voltar de uma caminhada pela orla para tomar ar marinho acompanhada por um grupo de cavalheiros. A carruagem as deixou diante de sua encantadora casinha com janelas salientes e grade de ferro forjado.
Audrey estava muito elegante, com um vestido de talhe alto de popelina amarela e um chapéu de palha adornado com penas de avestruz. Tinha mais aspecto de senhora respeitável que de uma notória cortesã.
Quando reconheceu suas visitantes deu alegres palmadas com suas mãos enluvadas.
- Ah, meus amores, que amabilidade virem me ver. E bem a tempo para comer bolos e tomar conhaque. - Abraçou afetuosamente Chloe, lhe sussurrando: - Menina tola, olhe que ir apaixonar-se por um soldado, com todos esses príncipes estrangeiros que estão a ponto de nos visitar para celebrar nossa vitória. Achava-a com melhor senso. E você, lady Jane, bom, certamente as duas com Sedgecroft estão fazendo a competência a meus pequenos escândalos. Passem, passem, e me iluminem. Estou faminta de fofocas.
Depois de ordenar que lhes levassem refrigérios, Audrey as levou a um salão decorado em tons azul e creme, tons que não se limitavam aos móveis mas sim se estendiam também às cortinas de brocado e o tapete persa. Sentou-se em seu divã com incrustações de marfim a presidir a reunião como uma imperatriz, e Chloe lhe explicou o motivo da visita.
- Oh, como me sinto adulada! - Exclamou Audrey, com uma mão no coração e sustentando na outra sua terceira taça de conhaque - Também estou um pouco bêbada, mas isso é muito melhor para tramar intrigas.
Comodamente reclinada no sofá, Chloe lhe contou o segredo de Jane e o inesperado resultado.
- Meu horrendo irmão a fez acreditar que a deseja como sua amante
quando a suas costas assinou com seu pai um contrato de matrimônio com ela.
- Então, uma amante será - disse Audrey, com os olhos faiscantes de expectativa. - Diga-me, Jane, quer se divertir um pouco? Acredito que é seu dever enfrentar esse menino mau.
- Não sei se tenho a coagem.
Audrey a olhou fixamente.
- Qualquer mulher que é capaz de plantar-se a si mesma tem coragem aos montes, acredite. A pergunta é, está preparada para ganhar Sedgecroft neste jogo?
- Como? - perguntou Jane, repentinamente duvidando de que tamanha façanha fosse possível.
- Convertendo-se em uma cortesã que acaba com todas as cortesãs! - exclamou Audrey, com as faces coloridas por um favorecedor tom rosa forte - Ensinaremos você a seduzir Sedgecroft totalmente, até a medula de seus ossos.
- Bom, não sei se...
- Faremos - disse Chloe, deixando a taça na mesa - Mas teremos que começar esta mesma tarde, porque Heath me vigia como um falcão e vai acreditar que venho aqui para me encontrar com um amante. E não é que a este passo vá ter um amante alguma vez.
- Chloe, meu amor - disse Audrey, em tom de doce repreensão - que eu ensine a ser uma sedutora à futura esposa de Sedgecroft é algo que ele só terá que me agradecer. Profusamente. Mas instruir a sua irmã solteira nas artes sexuais, é outro assunto muito diferente. Volte quando for se casar.
- As artes sexuais? - disse Jane, rindo nervosa - Isso é, mmm, algo bastante simples, não? Quer dizer, o que precisa saber realmente uma mulher?
Audrey se levantou e se dirigiu a sua escrivaninha dizendo, com voz
tão enérgica como a de uma professora de escola.
- Há muito mais nos "pequenos detalhes" da relação sexual, como diríamos, do que nunca chega a saber a típica esposa inglesa. - Desatou a fita de seda azul que fechava uma avultada pasta, tirou um detalhado desenho e o mostrou. - Olhe esta ilustração.
Jane abafou uma exclamação e engasgou ao querer inspirar. Seria
"isso" o que ela pensava que era?
- Ah, caramba.
- Sabe o que é?
Chloe terminou de beber seu conhaque de um só gole.
- Não será um desses novos foguetes a Congreve, não é verdade?
Drake me mostrou o desenho de um no jornal, mas tenho que reconhecer que não prestei muita atenção.
- Chloe - disse Audrey em tom firme - poderia sair do salão e ir entreter-se sozinha em minha biblioteca? Embora por falta de uma palavra mais delicada chamaremos foguete ao que representa este desenho, uma esposa bem informada deve conhecer seu adequado manejo, se não quer que dispare antes de tempo.
- De verdade preciso saber isto? - perguntou Jane, bebendo um longo gole de seu conhaque.
- Quer que um foguete exploda nas suas mãos antes que o tenha levado a seu destino? - perguntou Audrey.
Chloe se virou a meio caminho para a porta.
- Não é justo. Eu a trouxe aqui, Audrey. Deveria poder ouvir o que dizem.
- Já chegará sua vez - respondeu Audrey, lhe fazendo um gesto para que saísse, e então tirou outra ilustração de sua pasta - Agora, Jane, observe isto, por favor.
Jane se inclinou para olhar o desenho e ficou boquiaberta.
- Santo céu! Isso é fisicamente impossível.
- Não só é possível - replicou Audrey - é também muito prazeroso para o homem.
Chloe pôs a cabeça pela porta.
- Aonde foi o foguete?
Jane fechou os olhos e lhe respondeu com a voz trêmula pela risada.
- Não lhe convém sabê-lo.
Capítulo 22
Jane e Chloe voltaram para a vila já avançada a tarde. Por sua aparência eram duas damas bem educadas que tinham passado umas aprazíveis horas na biblioteca.
Fortalecida pelo conhaque e o tesouro de conhecimentos sensuais que tinham feito tremer até seus alicerces suas sensibilidades aristocráticas, Jane parou hesitante no vestíbulo. De cima chegava o som de vozes masculinas. Uma delas era a do homem que iria seduzir até a medula dos ossos.
- O que faço agora? - sussurrou.
Chloe estava tirando o casco.
- Ponha tudo em obra enquanto ainda tem esse conhaque na corrente sangüínea.
- Não posso fazê-lo.
Chloe lhe deu um empurrão para a escada.
- Tome o comando, Belshire.
Fazendo uma inspiração profunda, Jane desabotoou as presilhas de seu capote, passou-o à Chloe e se dirigiu à escada. Um momento depois, viu sair Grayson da sala de estar de seus aposentos, no outro extremo do corredor, acompanhado por Heath e Drake; seguiam conversando animadamente.
Interromperam a conversa ao vê-la aparecer e ela sentiu um leve calafrio de incerteza por esse experimento que ia fazer seguindo as
idéias de Audrey. Talvez, pensou, todas as mulheres se perguntavam secretamente como seria ser uma cortesã se tivessem a oportunidade de sê-lo; debaixo de sua ansiedade estava consciente de que era uma boa provocação seduzir a um homem que tinha feito uma arte da sedução.
- Jane - disse ele, franzindo o cenho, severo. - chegou. - Começava a me preocupar. Tio Giles e Simon saíram para procurá-las. Eu fui duas vezes à biblioteca. Aonde foram?
- Ah, por aqui e por lá.
Avançou para ele, com o andar ondulante que lhe tinha ensinado Audrey ao lhe fazer a demonstração, o que a princípio a fez sentir-se tola, e logo gratificada ao ver que Grayson dilatava os olhos.
- Machucou o pé, Jane?
Ela ficou nas pontas dos pés para lhe agarrar o pescoço entre as mãos.
- Que encanto me perguntar isso. Nenhum beijo de saudação a sua amante?
Desprendeu-lhe as mãos de seu pescoço e sorriu sobressaltado em cima de seu ombro.
- Heath e Drake nos estão olhando.
- Sim? Bom para eles.
- Não está bem - disse ele em voz baixa, desconcertado.
Ela desceu as pontas dos dedos pela musculosa parede de seu peito.
- Mas esteve bem no café da manhã.
- Sim, mas... me tocou onde acredito que me tocou?
- Essa é minha função como amante, não?
- Não diante de minha família, querida - disse ele, com as maçãs do rosto coloridas por um vermelho subido - Jane, seriamente se sente bem? É possível que eu não tenha tomado bastante a sério essa febre.
Talvez abusei muito de suas forças ontem à noite.
- Que tímido é. - Obrigou-o a entrar na sala de estar da qual ele acabava de sair e fechou a porta com o pé - Agora estamos sozinhos.
Jogue-se no sofá.
- Acredito que é você quem precisa se jogar. Servem conhaque na biblioteca, Jane?
- Estive reconsiderando sua proposta.
- Sim?
Ela o levou até o sofá em ângulo ao canto.
- Talvez não seja tão má idéia, depois de tudo.
- Bom...
Ela o sentou a seu lado, segurando as lapelas da jaqueta.
- Necessitarei de prática, isso sim.
Ele a olhou com as sobrancelhas arqueadas, intrigado.
- Prática? No que?
Desabotoou-lhe a jaqueta e continuou com os botões do colete bordado.
- Em lhe dar prazer.
- Dá-me muito prazer.
- Mas sempre se pode fazer melhor - respondeu ela, lhe acariciando o peito.
Pegou-lhe a mão, com um músculo vibrando na face.
- Faz melhor do que ninguém que tenha conhecido. Do que vai isto?
- De desejo.
- Desejo?
- De luxúria, Grayson. De paixão. De fazer explodir foguetes.
Ele limpou a garganta.
- Tudo isto é muito excitante e inesperado, mas... - Levantou as coxas para atraí-la para ele, mas ficou imóvel ao ouvir a voz de Drake fora da porta:
- Vai descer, ou cancelamos nossa reunião?
- Que reunião? - perguntou Jane, agradecendo a interrupção.
A cada momento ia se sentindo mais e mais insegura de ser capaz de pôr em prática o plano de Audrey sem delatar-se. Não estava tratando com um bobo mais com um competidor impetuoso e ladino.
- A reunião sobre o futuro de minha família - disse ele, suspirando.
Deu-lhe um beijo longo e profundo e a soltou - Meus irmãos e eu esperamos achar um marido conveniente para Chloe, antes que se desonre totalmente.
- Que bom é, Grayson, ao tomar essa decisão por ela. Deus sabe que as mulheres são incapazes até de escolher um par de sapatos sozinhas.
Ele se levantou e a observou, sorrindo estranhando.
- Não disse nada disso. Comece a vestir-se para a noite, quer?
Desejo exibi-la.
- Como a sua nova amante?
Ele vacilou, abotoando o colete, e ao final respondeu em tom neutro.
- É claro, querida. Como se não?
Chegaram atrasados ao baile posterior às corridas, e o cocheiro custou achar um lugar para estacionar em meio a quantidade de carruagens que ladeavam o meio-fio em ladeira. Drake tinha se desculpado de assistir no último momento, presumivelmente para ir visitar uma certa dama que acabava de chegar de Londres.
Simon, Heath e tio Giles se separaram deles imediatamente para ir à sala de jogos, onde se estavam fazendo as apostas para as corridas do dia seguinte. Grayson conduziu Jane e sua irmã para o salão de baile totalmente iluminado com velas da casa do visconde Lawson.
Esteve meditando a respeito da advertência de Heath e decidido que talvez fosse melhor fazer caso de sua intuição. Tinha chegado o momento das revelações. Era evidente que Jane estava tramando algo.
Outra vez.
Pensou nas duas Jane que tinha chegado a amar. Uma era a dama pragmática e sensata a que tinha acompanhado pelas festas de Londres, supostamente para sarar seu coração partido. Adorava esse lado dela. Sua respeitável imagem calçava à perfeição com o tipo de mulher que seus pais teriam escolhido para ele. Essa Jane era a esposa ideal para um marquês.
Amável, educada, elegante, uma jóia da coroa da aristocracia.
Mas a outra Jane, ah, sim. A misteriosa beldade coberta por um véu de noiva em pé ante um altar vazio. Essa mulher enigmática e seus misteriosos motivos atraíam seu lado tenebroso. Esse lado dele que desprezava as convenções sociais; esse lado dele que a despojaria de seu último véu e contemplaria sua alma nua em toda sua pecaminosa glória.
A qual das duas preferia?
A nenhuma acima da outra. Era a fusão desses dois seres incongruentes que o enfeitiçava, encantava-o. Era a mulher em sua contraditória totalidade a que amava e ao mesmo tempo desejava superar em engenho.
Já era quase a meia-noite da farsa entre eles.
***
Quando estavam a ponto de separar-se fora do quarto de vestir e toucador, Grayson tocou o rosto de Jane com o dorso de sua mão enluvada.
- Note em quão acalorada está, toda envolta nesse capote. Ninguém adivinharia jamais como se converteu em tentadora. Não vejo as horas para comprovar o que me reservou para esta noite.
Ela abaixou os olhos recatadamente, lhe respondendo em silêncio, divertida: "Espere, meu querido arrogante. Tenho outra surpresa para você".
- É muito entristecedora, Grayson, esta exibição pública de sua amante.
- Que tolice - disse ele, olhando por cima de seu ombro para Chloe, que estava com sua morena cabeça suspeitamente encurvada - Vai causar sensação.
"E essa é minha intenção", disse ela para si mesma.
Ele a olhou sério.
- Disse algo, Jane? Não consigo ouvir, por causa do harpista que está tocando na galeria.
- Não disse nada.
Ele voltou a olhá-la, com os olhos estreitos.
- Vá tirar esse capote, a não ser que queria desmaiar. Aqui estamos tão apertados como arenques em escabeche.
- Como quiser, Grayson. Só existo para lhe agradar.
Isso disse com a voz tranquila mais já começava a lhe retumbar o coração. Estava a ponto de tirar o leão da jaula. Como conseguiria dirigi-lo depois?
- O que disse? - perguntou ele.
- Que espero não desgostá-lo nunca - disse ela, mansamente.
Chloe o afastou com uma cotovelada.
- Nos espere fora do vestiário uma vez que nos tenhamos arrumado, Gray. Não viemos aqui para conversar toda a noite no vestíbulo.
Já na sala toucador e vestiário, Jane tirou o capote forrado em seda e sussurrou:
- Não posso sair e me expor a todas essas pessoas, a todos esses desconhecidos, com o aspecto de uma... de uma prostituta de East End.
- Está francamente linda - respondeu Chloe, examinando o vestido de noite de vaporoso tule cor pêssego, um dos vestidos de seu guarda-roupa secreto, que não usava nunca, e que emprestou para Jane para essa noite - Acredito que deveríamos umedecer mais um pouco para
que se ajuste mais. Necessita um pouco de ruge para...?
- Não! - chiou Jane, horrorizada, atraindo a atenção da jovem criada que estava na porta. Em voz mais baixa acrescentou-: Assim já mostro muito de minhas partes rosadas. Igualmente poderia ir coberta só com um paninho de renda.
Chloe abafou a risada, divertida.
- Tem um corpo que uma deusa invejaria.
- Invejaria, Chloe, não exibiria desta maneira tão horrorosa.
- Não perderia por nada do mundo a cara que vai pôr Grayson quando a vir.
- Vai ficar fora de si de fúria.
- Não se trata disso?
***
Jane demorou mais ou menos um minuto em divisar o homem alto de cabelo dourado que estava em um apertado grupo de convidados; eram damas muito elegantes que desejavam reatar a relação com ele, aristocratas de antigas famílias que alternavam nos mesmos círculos sociais seletos, exclusivos. Grayson parecia confortável , tão a gosto, nesse mundo de riqueza e elegância, que Jane duvidou que fosse possível perturbá-lo.
Ardiam-lhe as faces abrindo caminho para ele. Os jovens a cujo lado passava ficavam totalmente em silêncio, em deferência a essa nova estrela que tinha aparecido em sua rutilante galáxia.
Um deles emitiu um suave assobio apreciativo. Outro passou um bilhete ao mestre de cerimônia para que lhe dissesse sua identidade.
Outro colocou a mão no coração e declarou seu amor eterno. Sem desatender a conversa, Grayson meio se voltou para olhar, com expressão divertida, até que viu a causadora dessa comoção. Seus olhos se encontraram com os dela, e logo desceram por seu corpo tão sedutoramente exposto, e voltou o olhar o seu rosto. A expressão de
surpreendida fúria, controlada mais eloquente, que ela viu em seus olhos, quase a derrubou.
Com esse vestido de tule pêssego umedecido se sentia nua como...
como um pêssego podado. Só um muito fino tecido cor carne protegia seu corpo sem espartilho de olhares luxuriosos. Seus seios pressionavam o tecido muito fino da blusa de forma tão evidente que não se atrevia a arriscar-se a respirar.
- Jane - disse ele sorrindo. Seu sorriso não revelou seu desgosto mais a forma de lhe apertar a mão sim - Esse não é um dos vestidos que escolhi. De onde saiu?
- Emprestou-me uma amiga, Grayson. Você gosta?
- Todos os homens deste salão gostam dele - respondeu em voz baixa, em tom abrupto - Não volte a fazer isto em público.
- Fazer o que?
- Mostrar o que é meu, só meu.
- Pois, eu pensei que este vestido era apropriado para minha estréia como cortesã em formação.
Ele a olhou com os olhos brilhantes de fúria.
- Sim?
- Bom, querido, uma amante não pode permitir-se parecer um camundongo.
Ele a afastou do grupo de convidados, fazendo um gesto de desculpa à anfitriã por cima do ombro.
- Talvez devêssemos dançar - disse.
- Como quiser, querido.
- Quero que deixe de me falar assim - disparou ele.
Ela fingiu sentir-se ferida.
- Posso deixar de falar de tudo se preferir. Embora, claro, eu gostaria de falar de minha atribuição. Acha que deveríamos falar disso antes de prosseguir?
- Com nossa dança? - perguntou ele, sombrio.
- Vamos publicar no jornal nossas negociações? - perguntou ela, quando chegavam à beira da pista de baile.
- Não acredito que isso seja necessário.
Ela mordeu o lábio, pensando até onde poderia atormentá-lo sem que ele perdesse os estribos. Uma vez que tinha começado, era como se não pudesse parar.
- Mais se não me forjou um nome na alta sociedade... - Guardou silêncio enquanto ocupavam seu posto na pista-. Não trouxe papel e pena, não é?
- Papel e pena? - repetiu ele, desconfiado. - Para escrever enquanto dançamos?
- Não, tolo. Para minhas memórias. É muito improvável que você vá ser meu único protetor, Grayson. Vou necessitar outra fonte de ganhos no futuro. Uma mulher deve ser prática.
- Perdão - disse uma voz tímida atrás deles - Poderia interromper esta conversa para lhe pedir esta dança à formosa dama?
- E eu poderia interromper seu rosto com meu punho se atrever a fazê-lo? - replicou Grayson, com expressão feroz.
- Meu rosto...
Pestanejando horrorizado, o jovem retrocedeu vários passos e logo desapareceu no meio da multidão.
Grayson e Jane ocuparam seus postos na pista. A orquestra iniciou uma equipe. Ele fez sua vênia; ela fez sua reverência. Mas nenhum dos dois tinha a mente posta na dança. Ele estava ocupado dirigindo olhares assassinos aos homens que se atreviam a olhá-la, enquanto ela tentava parecer graciosa em seus movimentos ao mesmo tempo em que cobria o corpo com os braços. Em um momento passou Chloe por seu lado e lhe sussurrou:
- Nunca tinha visto uma mulher que se parecesse mais a um
molinete. Agarre a saia e estende-a, pelo amor de Deus.
- Não posso.
- Por que não?
- Porque é transparente e se vê tudo.
Grayson fazia seus passos pela pista com as pernas rígidas e o olhar sombrio, negro, e ameaçador. Depois, quando terminou a dança, levou-a com arrepiante resolução até o canto mais escuro da sala, onde estavam reunidos os convidados idosos sentados em cadeiras.
- Por que estamos aqui como um par de flores do papel de parede? -
perguntou por fim ela, no tom mais inocente - Não deveríamos ser mais sociáveis?
- Não estou de humor sociável - respondeu ele, mordaz.
- Bom, ninguém nos vai ver se continuarmos aqui.
- E esse é meu objetivo, Jane. - Escureceu-lhe mais o rosto, olhando-a de cima abaixo - Se vê muito de você esta noite.
- Talvez pudesse ir jogar cartas - sugeriu ela.
- Talvez fosse - disse ele arrastando a voz - se não estivesse ocupado protegendo-a de todos os aristocratas lascivos de Brighton.
Ela olhou ao redor, porque não se atreveu a olhá-lo nos olhos cheios de fúria.
- Ah, olhe, não é essa sua velha amiga, a senhora Watson?
- Sim.
- Não seria cortês ir saudá-la?
- Não estou de humor para isso tampouco - disse ele, chiando os dentes.
- Bom, para que está de humor, então?
Ele
decidiu
não
responder,
mas
a
resposta
era
enlouquecedoramente simples: para ela. Junto com a maioria dos homens presentes no salão, estava imaginando-a sem o vestido: Jane no altar de sua luxúria com seu exuberante corpo e seus cabelos mel
dourado soltos sobre esses brancos e suaves ombros. Como uma deusa inalcançável, desafiava os mortais que a rodeavam para demonstrar que eram dignos de sua atenção. Bom, Heath o tinha advertido. A Jane tenebrosa estava tendo sua vitória.
Obedecendo a um impulso, pegou-a pelo cotovelo e a levou em direção à porta lateral.
- Por aqui se vai à sala de refrigérios? - perguntou ela, sem poder evitar a nota de medo na voz.
Ele a olhou significativamente.
- Não. Vamos para casa.
- Por quê?
- Para ter essa conversa sobre a qual falou.
- E Chloe e Simon? E tio Giles? Não podemos deixá-los aqui.
- Depois lhes enviarei a carruagem.
Jane virou a cabeça para olhar o abarrotado salão e viu que Audrey fazia um leve gesto de assentimento, aprovadora. O objetivo tinha sido desarmar a certo descarado, mas de repente tinha suas dúvidas, dúvidas que aumentaram vertiginosamente quando, em um corredor escuro, achou-se apertada a um peito de aço, com a boca de Grayson a uns dedos da sua.
- Será que quer me deixar louco? - perguntou-lhe ele em voz baixa -
Se for assim, conseguiu.
Estreitada em seus musculosos braços lhe era muito fácil esquecer que ele tinha decidido todo seu futuro sem lhe pedir o consentimento, e que teria que fazer frente a esse tipo de conduta o resto de sua vida. Só sabia que já lhe pertencia, que seu destino foi selado há pouco tempo por um só olhar entre eles em uma lotada capela preparada para um casamento; no dia em que supostamente ia entregar se a outro homem.
E depois Sedgecroft se apresentara em lugar desse outro, demonstrando ser o melhor aliado e a pior ameaça que podia enfrentar
uma mulher.
- O que aconteceu? - perguntou Chloe atrás deles.
- Jane se sente algo... - Olhou de cima abaixo sua arqueada figura -
pegou um resfriado.
- Ai, Deus - disse Chloe, com os olhos dançando de travessura, aproximando-se deles - Então terá que levá-la a casa, Grayson. Audrey me vigiará.
Se esse comentário pareceu estranho a ele, estava tão obcecado pelos acontecimentos dessa noite que não fez nenhuma pergunta. Jane, logicamente, entendeu o que Chloe quis dizer, e não lhe agradeceu o aviso: que tinha que pôr por em prática a segunda parte de seu plano assim que fosse possível.
Seguia ouvindo a voz de Audrey na cabeça: "Agarre-o despreparado, querida. Nunca é mais vulnerável um homem que no toucador".
Mas era menos vulnerável uma mulher? Pensou Jane então, desejando poder levar Audrey com ela para que lhe desse conselhos a cada momento. Uma coisa é falar de seduzir a um marquês na segurança de um salão e outra muito diferente realizar essa sedução estando cara a cara com o dito marquês. Quando deveria despi-lo; quando deverá abrir caminho em meio de sua fúria para excitá-lo.
Sim, Audrey era uma perita nesses assuntos, e tinha revelado a sua aluna umas técnicas que teriam feito ruborizar-se a proprietária de um bordel. Mas Grayson também era um perito. E ela não.
Olhou-o e sentiu mover-se o chão. Seria possível para alguém deixar impotente um homem assim?
- Não se meta em problemas - disse Grayson secamente a sua irmã, rodeando Jane com o braço e afastando-a firmemente - Eu já tenho bastante trabalho com um problema para uma noite.
- Espere - gritou Chloe - Esqueceu-se do capote.
- Pois, corre a procurá-lo.
Quando ele se virou para continuar caminhando, Chloe se aproximou de Jane e lhe sussurrou ao ouvido:
- Estarei toda a noite pensando nesses foguetes de Congreve. Seja valente. E conte-me tudo pela manhã.
Se vivesse para contá-lo, pensou Jane, estremecendo pela espera da sedução que iria realizar.
Capítulo 23
Durante o curto trajeto de volta à vila, Jane se livrou de fazer frente ao pior do desgosto de Grayson graças à repentina decisão de seu tio de partir do baile com eles. Nunca antes havia sentido essa glacial desaprovação na atitude dele para ela. Nunca antes tinha posto a prova até esse extremo a profundidade dos sentimentos dele. Só podia esperar que tio Giles servisse de amortecedor entre ela e um muito furioso marquês.
- Na minha idade - explicou o ancião, depois de subir atrás deles na carruagem e sentar-se - sou mais uma vergonha que um entretenimento nestas festas. Minha vista já não é a que era. Aí estava eu jogando cartas com um encantador jovem visconde, ao menos isso achava eu, até que um empregado me levou amavelmente para um lado para me dizer que meu competidor era uma viscondessa. Quem ia imaginar, com essa roupa que usa? Galões e botões militares em uma casaca de húsar. Você sempre veste-se como uma dama, Jane, não está de acordo, Sedgecroft?
Grayson afastou os olhos da janela para olhá-la.
- Ninguém discutiria isso - disse, com a voz carregada de sarcasmo.
Jane estremeceu dentro de seu protetor capote. Tinha ouvido alguma vez esse fio de navalha em seu tom?
- Vai pegar um resfriado, querida minha - disse tio Giles, preocupado
- Vá para cama assim que chegarmos.
E há se não seria ela feliz de poder seguir seu conselho. Quando entraram na casa, agradeceu o momento de pausa quando seu tio parou Grayson no vestíbulo para falar das corridas do dia seguinte. Como o cavalheiro que era, ficou a responder amavelmente as perguntas do ancião. Mas não havia a mínima amabilidade em seus olhos de pálpebras entreabertas enquanto a observava subir depressa a escada para escapar a seu quarto.
Sua expressão advertiu a ela que não evitaria sua fúria muito tempo.
A voz de Audrey burlava de sua covarde retirada: "Agarre-o despreparado, querida. Nunca é mais vulnerável um homem que no toucador".
- Não posso fazer isto – resmungou - Não posso, não posso, não posso. Não vou demonstrar nada. Só vou fazer ridículo.
O que tinha feito essa noite? Lhe dar uma lição ou soltar uma besta?
Qualquer um suporia que o escândalo de seu casamento lhe teria ensinado que não se levam a cabo os planos sem que haja conseqüências inesperadas.
Ainda não tinham transcorrido vinte minutos quando o ouviu entrar no quarto contíguo. Já vestida com seu penhoar de seda rosa, sentou-se ante a penteadeira, com o coração palpitante de ansiedade, e começou a escovar o cabelo. Abriu a porta que comunicava os aposentos. Viu sua alta figura no espelho. Segurou com mais força o cabo da escova de armação de prata. A frieza dos olhos dele pareceu descer em vários graus a temperatura do aposento.
- Não se trocou ainda. Não tirou o traje de noite - disse, por dizer algo, e reteve o fôlego enquanto ele avançava. Ele se situou atrás dela, com os ombros rígidos como os de um soldado.
- Falamos desse vestido?
- Não é... só é um vestido.
- Em outra mulher, talvez - disse ele, e sua voz se enroscou ao redor
dela como um suave golpe de advertência de um chicote. - Em você é um escândalo.
- Tinha a impressão de que me queria com roupa... como foi que disse à modista? "Com o mínimo de complicações".
Ele apertou as comissuras da boca.
- Isso não significa que deseje exibir seus encantos ante o mundo.
- Não podemos manter em segredo nossa relação, Grayson.
- Talvez não, mas eu sou um homem reservado, muito e não tenho a mínima intenção de exibi-la nem compartilhá-la com ninguém.
Ela desceu a escova a todo seu cabelo. Captou seu olhar no espelho e o que viu em seus olhos a fez engolir em seco. Como pôde atrever-se a desafiar um professor em seu próprio jogo?
- O que esperava ganhar? - perguntou-lhe ele, lhe tirando a escova e começando a passá-la por seu cabelo, lentamente e com a mão firme -
O que...?
Ela se levantou e abriu o vestido, que deslizou até seus pés em um sibilante frufru, deixando-a totalmente nua, só com o brinco de brilhante.
- O vestido ofendeu-o. Tirei-o. Estou melhor assim?
Grayson ficou em silêncio, sem saber se podia dar crédito a seus olhos. Sua Jane tenebrosa fazia outra espetacular aparição.
Deixou a escova na penteadeira, e desceu lentamente os olhos por seu corpo, deslizando o olhar por seus mamilos encolhidos, rugosos, seu arredondado ventre, e o triângulo de pêlos abaixo. O coração lhe retumbava no peito. Assim novamente estava a um passo em frente a ele, não é? Bom, ele era bom perdedor, e gostava de apostar no jogo.
Se a dama o desejava, fossem quais forem seus motivos, quem era ele para negar-se? E a verdade, não podia negar-se.
- O assunto de seu comportamento desta noite não está encerrado -
disse, começando a soltar a gravata, com os olhos escurecidos pelo desejo - Mas a conversa pode esperar.
Rodeou-lhe o pescoço com as duas mãos.
- Despi-lo é minha tarefa, como amante. Deixe-me.
- Como quiser, mas... céu santo, Jane, mais lento. Vai rasgar a camisa.
Ela franziu os lábios.
- Como posso evitar se estou ansiosa por adorar a meu maravilhoso protetor?
Ele olhou o chão, bastante assombrado.
- Isso foi um botão. Arrancou um botão de minha camisa.
- Importa-se?
- Eu não, mas o meu alfaiate poderia se importar.
Pegou-lhe o rosto entre as mãos e o beijou como se nisso tivesse sua vida, introduzindo-lhe a língua na boca e movendo-a contra a sua, até que lhe rodeou a cintura com os braços e a estreitou fortemente.
Grayson aproveitou o momento para tomar a iniciativa, e retrocedeu com ela até a cama. Caiu-lhe em cima, com seu corpo nu firmemente preso entre as coxas dele.
Ficou quieto estendido de costas, ainda um pouco desconcertado, mas receptivo ao que fazia, equilibrando-se firmada nos joelhos para despi-lo.
- Não é que ponha objeções, mas sinto curiosidade – murmurou - A que vem isto?
Ela jogou a camisa no chão por cima do ombro e passou a lhe desabotoar a braguilha.
- Sedução.
- O que fez hoje com Chloe?
- Não coloque sua irmã no toucador, Grayson.
- Disse toucador?
- Essa é uma palavra mais apropriada que dormitório para uma amante, não lhe parece? Importa-lhe se de ato à cama?
Com sua sensual boca curvada em um sorriso, e seu musculoso corpo nu até os quadris, ele parecia o pecado encarnado.
- O que a inspirou a isto? - perguntou.
- Uma coisa que vi em um livro.
- Ah, um livro. - Subiu as mãos por sua caixa torácica até seus seios e cravou as palmas sobre eles - Não um livro dos que deixam na biblioteca, suponho?
- Não - respondeu ela, sorrindo sedutoramente e estendendo a mão por cima dele para a mesinha de noite.
- Então...
Interrompeu-se ao vê-la segurar suas meias entre os dentes.
Estreitando os olhos, observou-a em silêncio enquanto pegava suas mãos, e lhe atava destramente os pulsos aos postes da cama.
- Interessante mudança de sorte – murmurou - Vai me atar em um bonito pacote, né?
- Esses não são simples laços, Grayson. São os Nós Belshire da Aniquilação. Minhas irmãs e eu os aperfeiçoamos em Simon durante nossa infância. Funcionam especialmente bem em um homem que se orgulha de submeter a outros.
Ele esticou e relaxou os ombros e os bíceps para provar as ataduras.
- Muito bonito. Continue, por favor.
Jane se surpreendeu e descobrir que gostava dessa sensação de ter poder sobre ele. Sentia vibrar todos os pontos de seu corpo ao recordar as instruções de Audrey. Esboçando um sorriso perverso, desceu-lhe lentamente as calças até tirá-las e logo subiu as mãos, deslizando-as suavemente pelo interior de suas coxas até chegar ao denso triângulo de pelo no qual aninhava seu grosso membro masculino.
- Agora não mova nem um só músculo.
- Nem o sonharia - murmurou ele.
Levantaram-se sozinhos os quadris quando ela fechou a mão ao redor da base de seu inchado pênis.
- Querido, fique quieto - murmurou ela, perversamente.
No meio da corrente de sensações que o assaltavam, ele caiu percebeu que na agressiva sensualidade dela havia algo mais do que viam os olhos. Sempre o surpreendia com algo, desafiando-o a planejar várias jogadas adiantado, mas para isso... bom, fosse o que fosse o que pretendia ela, não havia nenhuma estratégia, além de submeter-se.
Não lhe importava um nada o que ela tivesse planejado, enquanto não parasse.
- Não trate de se soltar - disse ela, lhe acariciando o vibrante pênis com as pontas dos dedos, com ligeiros toques, como de pena - Esses nós estão muito firmes. Não quero lhe fazer mal.
Como o cavalheiro que era, não se incomodou em lhe dizer que com um mínimo esforço poderia ter libertado as mãos e já a teria jogado de costas na cama; nesse caso, a mudança de papéis era decididamente jogo limpo. E esteve a ponto de explodir quando ela desceu a cabeça e, lhe roçando as virilhas com seu sedoso cabelo, passou-lhe a rosada e molhada língua da base do pênis até a ponta; lhe esticou todo o corpo com a doce tortura de conter a excitação sexual.
- Como o sente? - perguntou-lhe ela em um sussurro.
- Não é...
Então ela fechou a boca capturando seu inchado membro e ele arqueou o corpo e lhe escapou um gemido.
- Ponha-se em cima - murmurou, arqueando as costas.
- Mais é que não terminei...
Ele soltou os pulsos das ataduras, endireitou-se bruscamente e, agarrando-a por debaixo das axilas, montou-a em cima dele.
- Me mostre que mais aprendeu hoje na casa de Audrey.
Olhou para seu rosto, aflita.
- Como sabe?
- Acha que vou permitir que volte a me enganar, Jane?
- Talvez devesse partir.
- Não brinque. Por fim está justo onde a desejei.
Passado um horroroso momento, Jane conseguiu mover-se, presa entre as enormes mãos de seu torturador sobre seus quadris. Por desgraça, comprovar que seu amado era um patife mais preparado do que tinha suposto não diminuiu em nada sua impotente atração por ele.
Pelo contrário. Seu corpo já estava absolutamente sensível a suas carícias. Quando ele a desceu suavemente para lhe sugar os seios, debilitou-se mais ainda e sentiu acumular o líquido de excitação entre as pernas.
- Eu sou melhor que qualquer livro de consulta, Jane - sussurrou ele, rodando com ela e deixando-a de costas - Algumas coisas terá que experimentar de primeira mão.
Ela não podia discutir isso. Muito menos quando lhe levantou as pernas, passou-as por cima de seus fortes ombros e afundou o rosto em sua ventre. E muito menos quando em poucos segundos chegou ao orgasmo, inundada de vergonha e prazer, com o coração acelerado.
- Que mais aprendeu hoje? - perguntou ele, perfurando-a com seus olhos ardentes, desafiando-a.
- Deixe que lhe demonstre - disse ela docemente, liberando o corpo.
- Sou todo seu.
Ela montou escarranchada em cima dele, posicionou-se e começou a descer introduzindo nela seu membro ereto. Por um instante, de verdade acreditou que seria capaz de controlá-lo. Emitindo um rouco grunhido, ele se endireitou e lhe acariciou os seios com as mãos e com a boca. Arqueando as costas, com o cabelo lhe roçando até o ventre, ela começou a mover-se, a experimentar lhe dar prazer. Ele a deixou fazer isso por um momento e logo lhe pegou os quadris e se arqueou,
penetrando-a até o fundo, mais ao fundo do que ela teria sonhado possível.
Acreditou que ia se dissolver aí mesmo.
- Grayson, Oh, ooohh.
Ele voltou a arquear-se.
- Está fazendo muito bem. Não pare agora.
- Vou a...
- Mais, Jane.
- É... não...
- Mais.
Ela gemeu e começou a mover-se ao ritmo imposto por ele, subindo e descendo, cavalgando-o, notando a dilatação e tensão de seus músculos internos para contê-lo, até que chegou o momento em que não pôde continuar movendo-se. Ele a firmou pelos quadris enquanto seu corpo se descontrolava nas contrações e estremecimentos de outro intenso e potente orgasmo.
- Grayson, tenha piedade.
Mais ele continuou movendo-se ao mesmo ritmo, lhe apertando os seios e as nádegas, investindo e amassando-a até o instante mesmo em que lhe chegou o orgasmo, com o que todo seu musculoso corpo estremeceu de prazer.
- Nunca tive uma relação sexual assim - reconheceu com a voz rouca quando por fim pôde falar.
Jane não conseguiu achar palavras para dizer, e pensou que devia lembrar-se de enviar uma nota de agradecimento à Audrey pela manhã.
Embora claro, isso não era fosse o tipo de coisa que se pudesse expressar facilmente com palavras.
Fechou os olhos e se desmoronou a seu lado, inundando-se no prazeroso negrume que a chamava.
Até que a voz sardônica lhe penetrou a névoa e compreendeu que
tinha chegado a hora de prestar contas.
- Venha, Jane, não acha que chegou o momento de fazer nossas confissões?
Suspirando, ela abriu os olhos e olhou seu anguloso rosto iluminado pelas velas. Os dois estavam finalmente sem suas máscaras, revelado já o último de seus segredos.
Exalou outro suspiro de rendição.
- Parece-me que já era hora.
Capítulo 24
Jane estava sentada na banqueta da penteadeira, novamente envolta em seu penhoar, e em uma mão segurava a taça de borgonha que lhe tinha servido ele. Seu acusador passeava diante dela, somente vestido com a calça negra de seu traje de noite.
Ele jogou para trás a mecha de cabelo revolto que lhe tinha caído sobre o rosto. Tinha a cara séria, mas não expressava a raiva que ela tinha esperado.
- Não amava Nigel - disse lentamente, como se estivesse tentando armar um quebra-cabeças - Ele não a amava, o que é ainda mais difícil de entender. Mas muitíssimos outros casais se vêem obrigados por suas famílias a submeter-se a um matrimônio arrumado. Os dois poderiam ter tido suas aventuras depois do casamento.
Ela o olhou reprovadora.
- Esse é seu estilo, talvez, mais Nigel amava Esther, e ela estava grávida dele. Eu supunha que você não entenderia o sacrifício, nem como se sente uma mulher obrigada a compartilhar sua vida com um homem a quem não ama.
Ele parou para olhá-la.
- É verdade que não entendo como se sente uma mulher. Mas entendo sua relutância a se comprometer em um matrimônio sem paixão.
- Ui, Grayson - suspirou ela - De verdade não me faz sentir melhor que tenha decidido ser tão tolerante.
Ele a olhou em silêncio, com o aspecto de sentir-se vulnerável e magoado.
- O que de verdade me custa entender - disse ao fim, apoiando as mãos na penteadeira, deixando-a entre seus braços - é por que me enganou.
- Não sei muito bem como ocorreu - se apressou a explicar ela - A situação entre você e eu foi evoluindo, e antes que eu percebesse, as coisas se fizeram muito difíceis de explicar. Não é que o enganasse intencionalmente. Uma coisa levou a outra e, então, de repente, descobri que tinha me apaixonado por você.
Ele a estava olhando com os olhos abertos, já oculta sua vulnerabilidade.
- Além disso - continuou ela - você vivia me fazendo parecer um modelo de virtudes, valorizando minhas boas qualidades, até que eu morri de vergonha por dentro.
- Não foi um modelo de virtudes a que atou a essa cama, Jane.
Ela assentiu tristemente.
- Não, foi uma mulher muito perversa.
- Disse-lhe que admiro sua perversidade. E o que esperava demonstrar me seduzindo, por certo?
- Descobri sobre o contrato de matrimônio, que esta tolice de amante era só uma farsa para me disciplinar.
- Ah - disse ele, reprimindo o sorriso.
- "Ah". Isso é o único que lhe ocorre dizer?
O rosto dele voltou à sua habitual arrogância.
- Casaremo-nos, Jane. Que mais tenho que dizer?
- Nego-me a que me imponham outro casamento pela força.
- O que deseja? - perguntou ele, curioso, sem duvidar nem por um
instante que o assunto já estava decidido e prevaleceria sua vontade.
Não tinha chegado a esses extremos em rebater sua estratégia para admitir uma derrota.
Ela fez uma longa inspiração.
- Desejo ser cortejada.
Cortejada. Isso havia dito? Céu santo, de que maneira mais enigmática funcionava o cérebro de uma mulher. Em especial dessa mulher. Cortejada.
- E que diabos acha que estive fazendo estas duas últimas semanas?
- Grayson, se não vê a diferença entre cortejar e seduzir, não sei o que dizer.
Ele levantou as mãos, rindo sem poder evitar.
- Nunca em minha vida me esforcei tanto em conquistar uma mulher.
Ela agitou a cabeça.
- Fala como se me cortejar fosse... fosse uma experiência penosa.
- Bom, houve ocasiões.
- Ninguém me vai permitir jamais decidir com quem e quando me casar?
O sorriso dele gotejava segurança em si mesmo.
- Vai se casar comigo, Jane, isso já está decidido. Se mal não recorda, você já me propôs matrimônio. Pode seguir adiante e comprar um anel se quiser.
- É a maneira como procedeu em tudo isto é o que me magoa. Você e meu pai manipulando minha vida à luz de velas, a porta fechada.
- Como soube? - Ah, claro. Só havia uma pessoa capaz de descobrir isso. Tomou nota mental de prender Chloe na Torre de Londres -
Manipulando sua vida.
Expresso assim soa desagradável. E não é que sua conduta não tenha tomado seus desvios sinuosos.
- Sei. Já pedi perdão...
Tirou-lhe a taça da mão, sorrindo com um leve ar sardônico.
- Não há nenhuma necessidade de pedir perdão. Sua natureza sinuosa é uma das coisas que, estranhamente, acho atraente em você.
Ela se levantou, deu-lhe as costas e o olhou pelo espelho.
- Então entende meu desejo de ser cortejada.
- Cortejei-a - disse ele, fazendo um despreocupado encolhimento de ombros.
-Não - respondeu ela, apoiando as mãos na penteadeira - Me conquistou como a uma cidadela. Eu desejo o romântico, Grayson, flores, cartas de amor, íntimas cavalgadas pelo parque.
- Fomos cavalgar no parque, e comprei-lhe uma carreta inteira de flores - disse ele, divertido, lhe afastando uma mecha do ombro - Quer toda uma pradaria?
- Ninguém me cortejou nunca - disse ela em voz baixa.
Ele contemplou sua imagem iluminada pelas velas no espelho, absorvendo todos os detalhes de seu rosto.
- Deixa de autocompadecer-se. Não lhe faltou atenção masculina.
Pode ser que Nigel seja um bobo, mas a levava a festas e eventos sociais.
Ela sorveu pelo nariz, em um gesto de muito atípica autocompaxão.
- A única coisa de que falava Nigel nessas saídas era de Esther. Isto Esther, Aquilo Esther. Os belos seios e a voz trêmula de Esther.
Ele riu.
- Esther tem a voz de um general prussiano.
- Isso pensava eu também, mas está claro que Nigel era sensível a essa voz. -Guardou silêncio um momento e continuou em tom triste - A única coisa que desejava sempre no fundo de meu coração era que alguém me amasse assim.
- Bom, me dê essa oportunidade - disse ele, em seu tom sedutor -
Acredito que o posso fazer tão bem como Nigel, não?
- Mas tudo isto começou como uma farsa - disse ela, desejosa de que lhe dissolvesse os temores - Como sei que não vou me converter em outra Helene?
- Não há comparação entre você e ela.
- Sempre deu a entender que não se casaria nunca.
- E então a conheci - disse ele, como se isso explicasse tudo.
Oprimiu-se a garganta dela ao ver a emoção em seus olhos.
- Achei que tudo estava perdido, até que você me salvou.
- Correu um risco que muito poucas mulheres se atreveriam a correr.
- E você, malvado, me fazendo acreditar que só me queria como sua amante.
- E cortejá-la me desculpará da cruel brincadeira que lhe aprontei?
Grayson se aferrava à esperança de achar uma maneira simples de lhe aliviar a ansiedade. Deus o liberasse de que Jane decidisse pô-lo a prova com métodos mais sinuosos.
Antes que ela pudesse responder soou um suave golpe na porta.
- Ouça, Jane - sussurrou tio Giles - como está o resfriado?
- Que resfriado? - perguntou ela, distraída, porque ele deixou a taça na penteadeira e a atraiu para seu quente e sedutor corpo.
- O resfriado que contraiu no baile, querida, quando se apresentou meio nua para me dar uma lição - disse Grayson em voz baixa, deslizando suavemente as mãos por seus ombros.
Então lhe roçou a nuca com os lábios, e ela estremeceu involuntariamente.
- Parece que está pior, tio Giles. Baixou-me ao pescoço, a uma velocidade alarmante.
- Pegou-a bem - disse tio Giles, compassivo, através da porta - Não convém que se instale no peito.
- Não, claro que não - respondeu Jane, ruborizando-se pois Grayson
lhe colocou as mãos sob o penhoar para lhe pegar os seios.
- O melhor remédio é uma boa noite na cama - disse tio Giles.
- Não poderia estar mais de acordo - sussurrou Grayson, lhe esticando um rosado e sensível mamilo com as pontas dos dedos.
- Com certeza estarei melhor pela manhã - disse Jane, e sussurrou em um fôlego - Pare. Pode ser que seja velho mais não é um incompetente.
- Não ouvi esse último, Jane - disse tio Giles - Me pediu uma compressa quente? Excelente ideia. Trarei-lhe uma e um copo de leite quente imediatamente.
Quando se apagaram seus fortes passos, Jane se desprendeu dos braços de Grayson.
- Vai me cortejar? - perguntou-lhe, colocando o coração em suas mãos, e não em forma de súplica, porém mais como uma afirmação de uma condição.
- Jane, tomaria a todos os exércitos de Napoleão só para tê-la. -
Uma vez confessado isso, sentiu-se impulsionado a acrescentar, puxando o cinto do penhoar para abri-lo - Embora ache muito estranho, isso de cortejar à própria esposa.
- Ah - exclamou ela, exasperada, segurando os extremos do cinto - o objetivo é que me corteje para que me converta em sua esposa.
Grayson, esse comentário é outro exemplo de sua incrível arrogância.
Vá embora.
Ele exalou um suspiro de prazer ante o contato do corpo dela com o seu.
- Permite-me te recordar que esta é minha casa?
- Poderia me visitar outro dia, quando eu não me sentir indisposta.
- Posso visitá-la quando me der a maldita vontade. - Atraiu-a mais para si com outro puxão do cinto, para lhe demonstrar quem estava no comando; ao menos no momento-. Caramba, Jane, fizemos tudo ao
contrário. Conhecemo-nos no altar, ficamos amigos, tivemos relações íntimas, e agora no final, um cortejo.
- Suponho que bem está o que bem acaba.
- Devo dar-lhe o que deseja seu coração - disse ele docemente -. Se isso for o que faz falta para te demonstrar meu amor, farei-o.
- De verdade, Grayson? - perguntou ela, colocando as mãos em seu peito nu.
- Por você e por nossas famílias. Faremos decentemente desta vez.
Ela mordeu o lábio, e o olhou rindo.
-Decentemente? Você e eu?
- Bom, todo o decentemente que consiga chegar este par formado por você e eu.
***
Grayson entrou na biblioteca iluminada por velas e olhou pensativo a seu irmão Heath, que estava no outro extremo sentado em uma poltrona com os braços cruzados na nuca.
- Venha, ria à vontade. Rejeitou-me.
- Quem acreditaria? - disse Heath, divertido - Uma mulher rejeita a meu irresistível irmão.
- Isto é assunto sério, Heath. Nega-se a casar-se comigo enquanto eu não cumpra certas condições.
- Bom, ninguém o obriga a fazer nada, assim aí se acaba tudo.
Brilharam os olhos de Grayson de diversão.
- Impossível. É provável que minha retorcida dama já leve em seu ventre o herdeiro da família. Acredita que existe a mínima possibilidade de que não nos casemos?
Heath deixou a um lado o livro que estava lendo, bastante divertido pela situação. Não tinha imaginado que Jane lhe caísse tão bem como caía. Secretamente a admirava por resistir a seu irmão.
- Isso propõe um problema interessante. O que vai fazer? Raptá-la?
- Não acredite que não me passou essa ideia pela cabeça - disse Grayson, sombriamente.
- Escócia é bastante agradável nesta época do ano. Seus pais armariam uma confusão se fugisse com ela?
Grayson emitiu um grunhido.
- Belshire está tão furioso com ela que igualmente a jogaria pela janela dentro da carruagem que a estivesse esperando. Mais minha Jane deseja decidir ela mesma, e eu não gostaria de uma esposa que não me dirigisse a palavra durante nossa lua de mel.
- Eu tampouco.
- Você? - Grayson olhou atentamente a seu irmão, cujos atos e emoções pareciam envolvidos em sombras desde há anos; Heath sempre era muito misterioso em todos seus assuntos - Você não gosta de ninguém para esposa, não é verdade?
- Tenho outras obrigações que atender.
- Isso quer dizer que não acabou seu trabalho para o serviço de inteligência.
- Não sei. Ainda não se comunicaram oficialmente comigo.
- Há algum perigo ainda?
- Alguns o consideram evidente - respondeu Heath, cauteloso, escolhendo com supremo cuidado suas palavras. - No exílio, Napoleão só pode esperar que haja discórdia entre as potências mundiais. Na Europa há desassossego. Os parados estão chegando em massa a nossas fronteiras.
- E os erários estão esgotados.
- Mas por que falamos de política quando tem problemas com uma mulher, Grayson? - disse Heath; essa era sua maneira de dizer que não desejava falar mais desse assunto. - Francamente, entre a guerra e o cortejo a uma mulher, não sei o que é mais fácil ganhar.
Grayson sorriu de orelha a orelha. Na verdade, ele esperava com
ilusão esse futuro incerto com Jane.
- Pode ser que tenha razão, embora haja mais prazer em minha batalha. Isso lhe garanto.
- Então só posso lhe desejar...
Heath estava em pé com uma pistola tirada da gaveta da escrivaninha antes que Grayson conseguisse chegar ao aparador. Havia um alvoroço no vestíbulo, ouviam-se ruídos de passos, gritos de uma mulher e relinchos de cavalos na rua.
- Quem diabo poderia ser a esta hora? -disse Grayson, seguindo Heath até a porta.
Já tinham apagado as velas dos candelabros do vestíbulo, pelo que a princípio custou aos dois reconhecer às pessoas que tinham chegado a essa hora inverossímil: uma delas era um jovem de aspecto medíocre todo coberto por um casaco marrom, e a outra uma mulher envolta em uma capa forrada em pele cujo volumoso ventre delatava uma adiantada gravidez.
- Aí está esse canalha, Nigel, espreitando na escuridão como costumam espreitar os canalhas - declarou ela, com voz enérgica, tirando as luvas e jogando-as ao atônito mordomo, que, como bem educado que era, mordeu a língua.
- Ah, caramba, essa é a voz de meus pesadelos - disse Grayson a Heath.
- E dos meus - respondeu Heath, divertido e consternado ao mesmo tempo por essa nova situação - Ocorre-lhe o que poderia querer?
- Bom... - Grayson se interrompeu ao olhar para o patamar da escada, onde estava Jane em camisola de linho. - Bom, aí poderíamos ter nossa resposta.
Esther Chasteberry, já lady Boscastle, a cujos perspicazes olhos jamais tinha escapado nenhuma só aberração social em toda sua carreira como preceptora, emitiu uma exclamação de espanto:
- Está em camisola de dormir, Nigel! O homem nem sequer é sutil. O
mundo se foi ao inferno, digo-lhe. Está absolutamente desonrada!
Nigel estava olhando para Jane boquiaberto de assombro. Em todos os anos de amizade, jamais tinha imaginado que veria chegar a isso a sua bondosa e generosa Jane. Pior ainda, sabia que ele era o responsável. Se tivesse se casado com ela, talvez os dois teriam sido desgraçados, mas pelo menos ela seria respeitável. Com certeza não se teria convertido na amante de um libertino que recebia às pessoas na escada em camisola de dormir.
- Ai, Jane - disse em voz baixa, balançando a cabeça desesperado -
Como pôde? E com meu primo.
- Não é sua culpa - exclamou Esther, indignada, avançando pelo vestíbulo como uma barco real pelo Tâmisa - Aproveitou-se dela esse -
apontou um dedo acusador a Grayson - menino mau.
Heath começou a rir.
- Acredito que houve um mal-entendido - disse Grayson, já recuperado da surpresa.
- Não se deixe intimidar por ele, Nigel - disse ela - Faça algo.
Nigel engoliu em seco, tentando armar-se de coragem para agir. Na realidade, quem o intimidava era sua amada mulher, mas Grayson sempre o tinha assustado um pouco também, com seu temperamento Boscastle respaldado por destreza física. Tinha-o visto deixar fora de combate a um competidor com o primeiro murro.
Nisso estava, preparando-se, quando Esther se virou para ele e lhe pegou o braço.
- Faça algo você ou o faço eu? - perguntou-lhe.
Brilharam de humor os olhos de Heath.
- Cuidado, Gray, que pode ter trazido sua vara.
Nigel deu um passo adiante. Era pelo menos uma cabeça mais baixo que seus primos, de abundante cabelo castanho ondulado e
exibiria o começo de uma dupla papada sob um rosto simpático embora não bonito. Nesse momento tinha mais o aspecto do humilde baronete que era que o de um valente defensor de damas vítimas de pilhagem.
Embora claro, caramba, Jane não era só uma mulher desonrada; era também sua melhor amiga, um espírito valente que tinha sacrificado muitíssimo por ele. A raiva abriu caminho em meio de sua covarde vacilação. Quando conseguiu falar, a voz lhe saiu tão zangada e varonil que quase assustou a ele mesmo.
- Deveria ter vergonha, Sedgecroft – disse - O que significa isto? Me responda imediatamente.
Estava custando a Grayson muitíssimo manter o rosto sério.
Somente um resíduo de medo a preceptora da família lhe permitiu responder sem rir:
- Eu deveria fazer a você essa pergunta, Nigel, não lhe parece?
- Bom, isto...
- Foi um egoísmo incrível de sua parte deixar a sua noiva abandonada aos lobos, querido primo - continuou Grayson, fazendo um leve cenho a Jane, que desapareceu da escada, presumivelmente para vestir um traje mais apresentável - Foi um bom escândalo o que deixou para eu limpar pela família. E não é que me tenha incomodado fazê-lo. E
não é que o escândalo não tenha sido muito, muito divertido. Mas bom, foi um escândalo de todo modo.
Nigel baixou a cabeça, derrotado pela lógica de seu primo.
- Bom...
- Não teria sido tão escandaloso se você não tivesse se intrometido -
disse Esther, quando se fez evidente que a bravata de Nigel se desinflou. - Embora não me surpreende. Seu ramo da família Boscastle sempre tomava a iniciativa.
- Vamos, obrigado, Esther - disse Heath, sorrindo de orelha a orelha a seu irmão mais velho. - Acredito que esta é a primeira vez que nos
elogia.
- Talvez não o fizesse - disse ela, com a voz afogada-, se agora não fôssemos da mesma família. Não tolerarei que ninguém de fora critique a meus.
- O que veio fazer aqui, por certo? - perguntou Grayson, cruzando os braços, resignado.
Esther ergueu o queixo, absolutamente acovardada por um homem cujo traseiro tinha golpeado.
- Viemos salvar o que resta da reputação de Jane.
- Então abaixe a voz - disse Grayson, calmamente. - Seu irmão e seu tio estão dormindo lá em cima.
Nigel olhou para um lado. Jane, com um vestido de musselina e com aspecto muito decente para uma mulher caída, acabava de descer a escada para meter-se na refrega. Sentiu-se culpado por sua feliz vida conjugal, tão em contraste com a triste desonra dela, embora... bom Deus, o que foi esse olhar que trocaram ela e Sedgecroft?
Eletrizante. Fogo branco, como o arco de um raio uma noite de verão. Até o ar chispou com essa fogosa corrente, e aí estava ele no meio, um simples espectador impotente. De repente pensou se existiria uma maneira de persuadir a um homem como Sedgecroft de fazer o honrado.
Grayson limpou a garganta, mais alto, mais corpulento, mais forte do que Nigel recordava.
- Por que não nos retiramos ao salão, senhores, para conversar sobre isto?
Nigel endireitou seus estreitos ombros. Uma conversa podia dirigir.
- Fique aqui, Esther - disse em tom autoritário, e acrescentou docemente ao virar-se para seguir a Grayson - Por favor.
Capítulo 25
- Jamais teria aceito nada disto se soubesse o enredo que ia se
armar - confiou Esther a Jane quando foram abandonadas no vestíbulo.
- Eu tampouco - disse Jane. O que, se pensava nisso, era uma absoluta mentira; tinha desfrutado de cada minuto com seu Boscastle, tanto como Esther tinha desfrutado com o seu - Ninguém poderia ter previsto nada disto - acrescentou; essa parte pelo menos era certa.
- Espero que Nigel saiba defender-se sozinho - disse Esther, séria de preocupação.
Jane apenas pôde responder com um gesto de assentimento nada convencida. Que possibilidades tinha Nigel contra Grayson e Heath?
- Os falatórios sobre vocês correm por toda a cidade - disse Esther, movendo a cabeça de um lado a outro, deixando ver a preceptora que havia nela - Pelo menos Nigel e eu fomos discretos.
- Porque eu os encobri - indicou Jane.
- Sim, sim, certamente. E não ache que não estamos agradecidos.
Claro que o pai de Nigel o vai deixar sem um céntimo agora que nosso matrimônio é de conhecimento público. Mas é você nossa preocupação imediata. Quando corremos a Londres para resgatá-la, sua desonra já era a fofoca em todas as partes. O que pôde tomar conta de você para fazer isto, querida minha?
- O mesmo que se apoderou de você e de Nigel, imagino.
- Nigel e eu nos horrorizamos até a medula dos ossos quando soubemos que seus pais lavaram as mãos, desentendendo-se de você, e partiram ao campo.
- Bom...
- Não tema. Nós não a abandonaremos em sua hora de vergonha e notoriedade como fez sua família - a consolou Esther.
- São muito amáveis - respondeu Jane, nada disposta a que a pusessem sob custódia - mais estou levando bem e tenho comigo tio Giles.
- Não está levando bem absolutamente - insistiu Esther - Engana-a
sua paixão por Sedgecroft.
- Como sabe?
- Porque eu combati tentações similares no curso de minha carreira como preceptora. - Os olhos castanhos claros de Esther se desfocaram, contemplando suas lembranças - Uma vez houve um duque que... ah, não tem importância. O problema é o que fazer com você.
- Sou muito capaz de levar meus assuntos.
- O fato de que esteja nesta casa contradiz isso - suspirou Esther -
Talvez nos ocorra alguma solução durante o trajeto a Londres.
- A Londres?
- Sim, Jane. Nigel e eu devemos enfrentar seus pais juntos e a pôr sob nosso amparo. A não ser, claro, que Nigel consiga persuadir a Sedgecroft de que faça o correto com você.
Jane sorriu.
- Grayson já me pediu a mão.
- Ah, bom. De todo modo deve viver conosco até que se acabem os falatórios.
- Por uma vez, Esther, só por uma vez, quero ter voz e voto em minha vida. Simplesmente uma ou outra palavrinha aqui e ali. Uma oportunidade de dar minha opinião.
Esther a olhou francamente.
- Não deveria ter se apaixonado por um Boscastle.
- Não tive muita opção nisso - respondeu Jane, recordando seu primeiro encontro com Grayson e como a partir de então se produziram muitas interessantes mudanças em sua vida - Na realidade, ainda não entendo muito bem como lhe entreguei o coração.
- Nenhuma mulher entende nunca, Jane. Nem sequer eu, com toda minha sabedoria e experiência em dirigir crianças rebeldes, pude resistir a meu doce Nigel, e cada dia agradeço ao céu que seus primos não conseguissem corrompê-lo.
***
Nigel já bebera duas taças de Porto quando por fim reuniu a coragem para ir ao ponto. A ideia de que o mais provável era que Esther estivesse escutando a conversa na porta o encorajou; embora também o aterrasse. Preferia enfrentar Grayson em um duelo com os olhos enfaixados antes que enfrentar a ira de sua mulher grávida.
- Tal como eu o vejo, só há uma solução - declarou, abanando-se dissimuladamente com a mão para desviar a nuvem de fumaça de charuto que Heath tinha soprado em sua direção.
- Solução a que? - perguntou Grayson, que estava comodamente reclinado no sofá com os olhos entrecerrados.
- A esta... a esta desastrosa situação como amante em que caiu Jane.
Já está, havia dito, e sem acusar Grayson de ser o canalha que a tinha empurrado nessa queda.
- Minha opinião é que deveria casar-se com ela - disse Heath.
- Sim? -perguntou Grayson, endireitando as costas.
- Isso ataria alguns fios soltos - disse Nigel, dissimulando seu alívio.
- Então, acha que isso seria uma solução aceitável? -perguntou Grayson, como se só nesse momento lhe passasse a ideia pela cabeça -
Poderia contar com você para que convença Jane de aceitar a proposta?
Já que é seu melhor amigo, etc..
- Ah, pois sim - respondeu Nigel, tão adulado por participar de uma conspiração com seus primos que perdeu de vista seu primeiro objetivo -
Farei tudo o que estiver em meu poder para persuadi-la, desde que...
- Desde o que? - perguntou Heath, olhando-o com os olhos entrecerrados.
- Antes terei que pedir conselho à Esther, logicamente. É um simples ato de cortesia, dado seu estado.
- Continua brandindo aquela vara? - perguntou Grayson, virando a
cabeça.
Nigel se ruborizou; ainda lhe doía recordar as muitas vezes que o excluíram do buliçoso clã Boscastle.
- Não sei como reagir a essa pergunta - disse, sobressaltado.
- Acredito que ainda a tem - disse Grayson.
- Acredito que tem razão - disse Heath, esboçando seu sorriso diabólico.
Capítulo 26
Assim que a isso tinha ido parar tudo, estava pensando Grayson, na janela de seu dormitório, observando aos criados carregar sua bagagem em uma carruagem.
Voltaria para Londres com a mulher que amava. Os dois retrocederiam em seu escandaloso romance e voltariam a percorrer o caminho de uma maneira socialmente aceitável.
E tudo para terminar onde tinham começado: em um altar para a cerimônia de casamento. E desta vez não escaparia do casamento nenhum dos dois. Casariam-se embora tivessem que realizar a cerimônia acorrentados. Ele não tinha a menor intenção de permitir que Jane o derrotasse outra vez.
Virou-se para contemplar o aposento em que tiveram relações tão íntimas que lhe ardeu a pele ao recordá-las. Só Deus sabia a quantos estúpidos bailes e lanches campestres teria que ir com Jane para por fim poder desfrutar dela em sua cama novamente. Sentia-se mais ou menos como o diabo virando em círculos para agarrar a cauda, mas não tinha nenhuma dúvida de que lhe daria caça.
Duraria esse equilíbrio que tinham encontrado ou flutuaria ao longo de sua vida conjugal? Já se conheciam e compreendiam mutuamente.
Tinha a sensação de que tinham chegado a seu fim os enganos entre eles. De qualquer modo, tinha a certeza de que não existia outra mulher no mundo capaz de desequilibrá-lo como Jane. Estava certa de que
apresentaria desafio após desafio nos anos vindouros.
E não queria de nenhuma outra maneira.
***
Quando o carro empreendeu a marcha, Jane contemplou a elegante vila junto ao mar pela janela; sentiu uma pontada de pesar por deixar a casa onde ela e Grayson tinham posto fim à representação de sua farsa.
De todo modo, gratificava-a saber que ele nunca tinha levado aí nenhuma outra mulher. Se o tivesse feito, ela poderia ter se visto obrigada a insistir em que a vendesse. Não sendo assim, poderiam voltar ali ao longo dos anos para passar nostálgicas férias.
Suspirando, acomodou-se no assento macio e apoiou as costas. Já sentia falta dele, mesmo que ele viesse atrás em seu carro. Desejava viajar com ele, tê-lo a seu lado, em lugar de ir com Nigel e Esther, que a sufocavam com seus cuidados. Tratavam-na como a uma menina abandonada a que acabavam de resgatar de um orfanato.
- Juntos faremos o caminho de volta à respeitabilidade - disse Esther energicamente.
E Jane teve que sorrir. Sim, é agradável ter o consolo de amigos quando se esteve a ponto de estragar a vida.
Quando chegou a Londres com sua comitiva de protetores, foi um alívio para ela comprovar que sua família já estava de volta na casa de Grosvenor Square. Seu pai lhe deu um abraço tão efusivo que lhe fez ranger os ossos, com o rosto enrugado pela emoção. Ela não esperara isso, como tampouco percebeu o muito que sentia falta de seus pais.
Sua sincera preocupação por ela a obrigou a lhes perdoar a má situação em que a jogaram.
Em realidade, o perdão foi o triunfador do dia. Ela os perdoou; eles a perdoaram. Inclusive se mostraram amáveis com Nigel e Esther, agindo como verdadeiros aristocratas, como se nunca tivesse havido um casamento sabotado.
- Muito bem, então - disse lorde Belshire, servindo conhaque e massas para o chá aos hóspedes - só falta Sedgecroft em nossa pequena reunião. Onde está seu noivo, Jane?
Jane parou a meio caminho da boca o biscoito de amêndoas.
- Ainda não estamos comprometidos oficialmente, papai.
Lorde Belshire deu a impressão de que ia desmaiar. Olhou indeciso a sua mulher, que tinha conseguido decodificar o mistério apoiando-se no que lhe tinha contado Simon.
- Tem que haver um período de cortejo, Howard.
Ele empalideceu até um cadavérico matiz de cinza.
- Por quê? Quer dizer, o contrato já está assinado. Já cortejaram.
Sim, cortejaram, nesta cidade, nesta casa. Eu os vi com meus próprios olhos. Eu mesmo... - o frio sorriso que viu no rosto de sua mulher lhe disse que não esperasse ajuda dela - Achei que era cortejo - terminou, sem convicção - Estava equivocado?
Athena apertou os lábios em sinal de advertência. Havia se sentido tão culpada, tinha estado tão preocupada com sua queridíssima filha mais velha durante a estadia desta em Brighton, que estava resolvida a fazer as pazes com ela, embora isso significasse contradizer a Howard pela primeira vez em sua vida conjugal relativamente pacífica.
- Não foi um cortejo decente, Howard.
Ele pestanejou uma, duas, três vezes, como um mocho exposto repentinamente a uma luz muito brilhante.
- Decente? Como se houve algo decente nesta família ultimamente.
Preceptoras grávidas, casamento sabotado conspirações a cada passo.
Nigel baixou os olhos a seu prato; Jane mordiscou seu biscoito de amêndoas com expressão pensativa; Caroline e Miranda, que estavam sentadas no sofá, ficaram imóveis como estátuas, com a cabeça encurvada sobre um álbum de recortes; Esther pegou seu terceiro pastelzinho.
- Um cortejo como é devido - disse Athena, suspirando - porá fim a todos os falatórios de uma vez por todas.
-Só se acabar em matrimônio - disse Howard, e olhou a sua mulher paralisado pelo horror ao passar por sua cabeça outra possibilidade -
Porque isto vai acabar em casamento entre eles, não? Jane não vai voltar a mudar de opinião?
- Sinceramente, querido - disse sua mulher, agitando impaciente a cabeça - não se pode responder a essa pergunta sem estragar todo o romance.
***
Certamente a pergunta tinha sido respondida a inteira satisfação das irmãs mais novas de Jane. As duas estavam no dormitório de Caroline, estendidas de barriga para baixo sobre a cama, examinando pratos e menus de moda à luz de velas, com vista a preparar o grandioso acontecimento.
- Teremos que começar totalmente de zero - disse Caroline - Jane não pode usar o mesmo vestido.
- Deveríamos convidar Nigel? - perguntou Miranda.
- Sim, mas teremos que reservar um banco inteiro para a Chasteberry. Dá a impressão de que vai ter trigêmeos.
- Acha que Grayson vai convidar suas ex-amantes desta vez?
Brilharam de travessura os olhos de Caroline.
- Acho que pelo menos teria que perguntar primeiro à Jane, embora contribuam com um certo condimento.
- E que o diga.
Caroline rodou até ficar de costas, fazendo voar até o chão folhas com listas e desenhos.
- Poderemos contratar ao chef francês de Gunter outra vez?
- Nós vamos precisar de vestidos novos também - murmurou Miranda.
- Eu gostaria de saber se Drake e Devon vão assistir esta vez - disse Caroline, distraída.
- Eu diria que sim. Parecem ser uma família muito unida.
- Uma família escandalosa.
- E apaixonada.
- A nossa também é.
Miranda levantou a cabeça.
- O que? Apaixonada ou escandalosa?
- Acredito que há potencial para ambas as coisas - disse Caroline olhando o teto, contemplando a pintura de cupidos pulando -
Deveríamos ter suspeitado que Jane tinha planejado algo diabólico quando resistia a fazer as provas dos vestidos para seu enxoval. Não desejava atrair Nigel.
Miranda esboçou rapidamente em seu bloco de papel de desenho uma noiva com um ramo de ervas daninhas e rosas murchas.
- Como íamos imaginar? Ocorreria a você sabotar seu próprio bodas?
- Eu vou fugir - disse Caroline - Se chegar a conhecer homem de meus sonhos, eu mesma o levarei direto ao altar.
Capítulo 27
A paciência era uma das poucas virtudes que Grayson tinha cultivado entre vício e vício. Se Jane queria que a cortejasse, pois a cortejaria. Não tinha a menor dúvida a respeito de quem seria vitorioso nesse jogo de amor. Ela podia atormentá-lo quanto quisesse, mas ao final dominaria o homem. Alegremente levaria seu coração na manga para demonstrar a ela e ao mundo que a adorava.
Entretanto, mesmo que tivesse plena confiança em sua capacidade para ganhar, não dava como certo muito mais na vida. Jane o tinha desafiado emocional e intelectualmente desde o momento em que se conheceram. Enquanto não fossem declarados marido e mulher ante
Deus e os homens, continuaria lhe dando caça, embora só fosse para lhe demonstrar seu amor. Para lhe demonstrar que embora seduzi-la tinha sido supremamente prazeroso, isso não tinha sido seu único objetivo.
Falava absolutamente sério quando lhe disse que a necessitava para que o ajudasse a dirigir seus irmãos. Que insensatos e desmamados se tornaram. Na infelicidade tão profunda que manifestava Chloe via uma revolução em potência, que se não se frustrasse logo a levaria a desastre. Heath também parecia ir encaminhado para uma atividade enigmática e sem dúvida perigosa.
Suas preocupações não acabavam aí. Sua escrupulosa e correta irmã Emma tinha perdido seu marido, e em qualidade de viscondessa viúva estava em uma posição vulnerável ante a sociedade, mesmo que ela se negasse a considerar as coisas dessa maneira. Drake e Devon sempre tinham sido almas inquietas, e buscavam problemas uma e outra vez. Ao valente Brandon, o mais novo, já lhe tinha chegado sua hora e não podia voltar a aborrecê-lo metendo-se em dificuldades.
A linhagem Boscastle necessitava a força e a astúcia de Jane para sobreviver aos perigos e chegar ao outro século.
E ele a necessitava para sua própria sobrevivência. Nessa noite, a do mesmo dia de sua chegada, quando Grayson foi em visita formal à casa de Jane para acompanhar toda a família à ópera, ficaram vários minutos a sós no salão, ele com um elegante traje de noite negro e reluzentes botas; ela com um vestido de cetim branco marfim cujo corpete rematava-se em delicados babados que lhe rodeavam seus belos ombros como as pétalas de uma exótica açucena. Pareciam feitos um para o outro. Que outra mulher no mundo o excitava e domava seus demônios ao mesmo tempo?
Deu uma lenta volta ao redor dela, como um leão examinando a sua presa.
- Esse vestido lhe assenta muito bem - disse em voz baixa.
- Você gosta? Deveria. É um dos que escolheu, o único de meu guarda-roupa de amante que poderia usar em público.
Ele parou atrás dela para lhe esfregar a sedutora curva do ombro com o queixo.
- Acredito que o escolhi pensando em uma atividade íntima e secreta. O trajeto de Brighton lhe permitiu dar um descanso a essa tortuosa mente sua?
- Efetivamente, milorde. E deu tempo de repouso a sua mente tortuosa?
Ele posou os lábios na curva de seu pescoço, murmurando:
- Em toda a viagem não fiz outra coisa que arquitetar maneiras de voltar a tê-la toda para mim. Sinto sua falta, Jane. - Sentiu-a estremecer levemente quando lhe pôs as mãos sobre os ombros - Quanto tempo temos que esperar?
- Não podemos nos casar até que se case Cecily. Simplesmente não se podem celebrar dois casamentos na mesma semana.
- Fugimos?
- Mmm, o que acontece, Grayson, é que eu tenho o coração posto em uma cerimônia como é devido, um casamento para recordar...
- Já teve um, se não recordo mal.
- Bom, me ocorreu que desta vez poderia convidar o noivo.
Ele suspirou.
- Quando é o casamento de Cecily?
- Dentro de duas semanas, em Kent, na casa senhorial de seu pai.
Vai assistir?
- Por que não? O último bodas a que assistimos você e eu foi muito divertida.
- Estará toda minha família - disse ela, entusiasmada pela ideia de apresentar seu patife malandro ao resto de seus parentes. - Bem poderia
assustar minhas irmãs com sua espantosa masculinidade.
- Suponho que terei que me acostumar a estas festas familiares -
disse ele.
Virou-a para pô-la de frente a ele, observando suas curvas envoltas em cetim. Estaria grávida? Teria começado a expandir um pouquinho essa estreita cintura? Em Brighton fizeram amor vezes suficientes para que isso fosse uma possibilidade. Deslizou-lhe um dedo pela base da garganta. Repentinamente se sentia muito protetor com ela.
- Quero fixar uma data - disse.
- Uma data para que? - perguntou ela, sorrindo.
Ele deslizou a ponta de um dedo por debaixo de seus seios. Teve a satisfação de ver que a respiração ela acelerava.
- Para pôr a assar o pudim de Natal. O que lhe parece?
Jane levantou o rosto para o dele.
- Não está escrito isso no contrato clandestino?
- Déspota que sou, esqueci esse importante detalhe.
- Surpreende-me que o outro déspota, meu pai, tenha permitido essa omissão.
- Acredito que estava emocionado.
- Vão ficar toda a noite aqui ou nos vão acompanhar à ópera? -
perguntou lorde Belshire da porta, em tom zangado, para ocultar o prazer que sentia por Jane ter encontrado um homem como Sedgecroft para cuidar dela - Não há nada pior que chegar na metade de uma maldita ária.
- Causaremos alvoroço cheguemos à hora que cheguemos - disse Athena atrás dele, esbelta e elegante com um xale de cetim branco sobre um vestido de tafetá azul que formava águas - As pessoas morrem por saber que tipo de acordo fez Grayson com Jane. Passarei toda a noite negando e fazendo gestos de repulsa.
O alvoroço prognosticado por Athena se fez realidade poucos
segundos depois de entrarem no camarote para ocupar seus assentos.
Nem sequer as pessoas inteiradas do assunto conseguiam decidir como interpretar o que viam. Lorde Belshire com toda sua família, e sua vibrante filha mais velha agarrada ao braço de um bonito patife; e esta notória dama parecia radiante, para uma mulher supostamente caída.
Não tinham informado os jornais uma ou duas semanas atrás que um certo marquês foi visto com sua "amante" comprando para esta um guarda-roupa? Além disso, uma indiscreta empregada tinha dado a conhecer a muito suculenta conversa que teve lugar na sala de provas do primeiro andar de uma loja do Bond Street muito conhecida.
Senhoras e filhas passavam binóculos entre elas para lançar um bom olhar ao vestido de cetim branco marfim de Jane, e reconheceram o estilo da modista madame Devine, muito estimada pelas mulheres mundanas. Ninguém recordava ter visto esse determinado vestido antes.
E então, oooh!, O sempre delicioso Sedgecroft lhe deu um beijo na orelha. Típico dele fazer o gosto na multidão. Sim, acabava de lhe dar um beijo em público, justo no momento em que os dois se inclinaram ao mesmo tempo para recolher o programa que tinha caído de Jane.
- Todos o viram - sussurrou Jane, sentindo arder as faces, quando ele levantou os olhos e a olhou sorrindo. - Seu pai não - sussurrou ele. -
É ele unicamente com quem devo me preocupar.
- Os traficantes de intrigas vão dizer que estavam certos, e os jornais vão continuar publicando coisas horrorosas sobre nós.
- As fofocas não nos vão matar, Jane, se não, eu já teria morrido faz muito tempo.
Ela simulou estar lendo o programa, tentada a lhe jogar os braços no pescoço para beijá-lo ela também.
- Pode ser que tenha razão.
Ele voltou a acomodar seu corpulento corpo no assento.
- A verdade, querida, é que todo aquele que seja alguém vai desejar
ser convidado a todos os eventos sociais cuja anfitriã seja a nova lady Sedgecroft. E essa será você.
Ela sorriu, imaginando-se aos dois presidindo uma festa com os membros da aristocracia no salão de baile da casa dele em Park Lane.
- Eu sou o cabeça de família - continuou ele - Como tal, corresponderá a mim desfrutar do privilégio de vigiar os Boscastle solteiros abandonados nas festas com jantar que ofereça minha mulher.
- Aproximou-se mais para lhe sussurrar ao ouvido - E essa será você.
Ela olhou seu belo rosto e sentiu o coração cheio de uma felicidade que quase lhe dava medo. Sim, esse era seu Boscastle. Sua maravilhosa e malandra origem seria formada por filhos dela, seria seu legado também. A perspectiva deveria fazê-la cair em um sofá com um pano com aplicado à fronte, mas ela tinha sido sempre o tipo de mulher que gosta de desafiar o destino.
- Qual acha que será seu irmão seguinte que se casará? - perguntou
- Drake?
Escureceram-se o azul dos olhos dele.
- No momento estou concentrado em conseguir esse estado para mim. Talvez tenha que fazê-la me desejar mais.
- Como? - sussurrou ela, incapaz de imaginar que fosse possível semelhante coisa.
- Depois desta noite não voltarei a tocá-la, Jane. Não haverá nem um só beijo mais até o dia de nosso casamento.
- Você, Grayson, demonstrando autodomínio?
- Veremos quem se enfraquece primeiro - disse ele, presunçoso.
- É um desafio o que acaba de me fazer?
- Acredito que sim.
- O que apostamos?
- Tem algo para oferecer?
- Perdão - disse lorde Belshire, que estava sentado atrás deles,
inclinando-se para dar um tapinha a cada um no ombro - Será que a ópera interrompe sua conversa? Peço a signora Nicola que saia ao beco para cantar sua ária?
- Minhas desculpas, senhor - respondeu Grayson, com o rosto muito sério. - Presta atenção à atuação, Jane, querida - acrescentou, em voz bastante alta para que se escutasse.
-Ah, pois, sim estou atenta - replicou ela, olhando-o com um cenho que poderia ter tido mais efeito se Caroline e Miranda não tivessem soltado uns risinhos atrás dela.
Grayson se virou para obsequiá-las com um encantador sorriso.
- Muito bem, vocês duas. Porei-as na lista de outros membros da família que precisam casar-se para o bem da sociedade.
- Tudo isso está muito bem - grunhiu lorde Belshire, inclinando-se para eles novamente - mas deixemos para depois de vermos vocês casados , mmm?
Capítulo 28
Ao longo das duas semanas seguintes, Grayson se comportou como um perfeito cavalheiro, um perfeito pretendente. Acompanhou Jane e suas irmãs ao museu, ao anfiteatro, a palestras e festas noturnas.
Levava-lhe flores. E não lhe pôs nem um dedo em cima, consciente de que a atormentava, torturava-os aos dois ao cumprir sua promessa de demonstrar autodomínio.
Ela queria um cortejo decente, pois decente o teria, embora só fosse na superfície. Haveria tempo de sobra para indecências na intimidade de sua futura vida conjugal.
Passadas as duas semanas, Cecily celebrou seu casamento com o duque de Hedleigh em uma antiga igreja gótica que estava a uns poucos minutos da sede da família de seu pai em Kent. Jane foi uma de suas damas de honra, e Grayson causou outro escândalo ao sentar-se em um dos primeiros bancos ao lado de lorde Belshire, que não cessava de
comentar como felizes pareciam os noivos, e quanto desejava ver sua filha no altar muito em breve.
Alguns minutos depois de terem feito sua entrada a comitiva dos noivos e a procissão de convidados pelas portas de ferro forjado da propriedade, soltaram uma nuvem de pombas brancas da torre da asa leste da mansão. As pombas se ergueram no céu azul acompanhadas pelos melodiosos repiques de bodas dos sinos da igreja da aldeia.
- Que bonito - exclamou Jane, olhando para o céu fazendo viseira com uma mão.
- Não será tão bonito se decidirem voar por cima do café da manhã de casamento - grunhiu seu pai, enquanto ocupavam seus assentos nas mesas onde bandejas com presunto, perdiz branca, carnes assadas e manjares em gelatina tentavam o apetite dos convidados.
- Por que não podem celebrar estas coisas no interior da casa?
Passado um momento, Jane pegou sua taça de champanha para beber um pouco, e procurou Grayson com os olhos. Onde teria se metido? Ah, aí. Ia caminhando por uma avenida de altos carvalhos, seguido por duas jovens. Franziu o cenho quando os viu os três virarem para um caminho transversal. Fiel a sua palavra, não a havia tocado desde essa noite na ópera, e ela ardia, ardia por estar em seus braços novamente. Ele estava brincando com ela, para lhe demonstrar outro de seus pícaros argumentos.
A alta figura dele desapareceu de sua vista. Passado um momento se ouviram alegres risadas femininas procedentes do arvoredo. O som das risadas fez em migalhas os anos e anos de boa criação de Jane.
- O que estão fazendo? - perguntou, deixando o garfo na mesa.
- O que estão fazendo quem? - perguntou seu pai, trespassando uma fatia de presunto no garfo.
- Grayson e essas garotas.
Lorde Belshire passeou o olhar por toda a mesa.
- Não vejo Grayson com nenhuma garota.
- Exatamente. Não estão à vista, o que faz bastante suspeito seu comportamento.
- Eu acredito que Grayson seria um pouco mais discreto se anunciassem seu compromisso.
- Acha que quer me deixar ciumenta? - perguntou ela, levantando-se.
- Minha querida menina, escapa totalmente a minha compreensão o que fazem vocês dois. O único que me importa neste momento é que fixem uma data para o casamento.
- Declinou uma taça de champanha que lhe oferecia um lacaio -
Uma vez que estejam casados, podem comportar como tiverem vontade.
Ela deixou o guardanapo sobre a mesa e começou a andar depressa pela avenida para o lugar onde tinha visto pela última vez seu patife. Era francamente grosseiro de sua parte que estivesse paquerando em público, durante um café da manhã de casamento, estando todo mundo olhando. E isso enquanto cumpria a risca a bestial promessa de não tocá-la, desde há duas semanas.
Chegou à curva do caminho por onde o viu desaparecer. No meio do largo atalho se erguia um Cupido esculpido em pedra, que estava apontando sua flecha ao coração.
- Dispara se quiser - resmungou - mais chega muito tarde.
- Muito tarde para que? - perguntou uma sonora voz travessa atrás dela.
Virou-se bruscamente e se chocou com o musculoso corpo de Grayson. Uma onda de sangue a esquentou até os dedos dos pés. Isso era o mais perto que estavam desde duas semanas, e mesmo assim, ele não a tocou. Não, simplesmente continuou onde estava, em toda sua potência viril, deixando que ela se derretesse.
- Estava falando com Eros. Onde estão suas tão risonhas garotas?
- Ah, as senhoritas Darlington. Bom, resgatamos uma pomba e elas foram procurar sua mãe.
- Que pomba?
- Uma das pombas que puseram-se a voar para comemorar o casamento que ficou presa nos ramos de uma árvore. Entre o jardineiro e eu montamos um heroico resgate. Será que ficou ciumenta, Jane?
Pôs uma mão em seu peito.
- Horrorosamente, como uma desequilibrada. Grayson, nunca mais se perca entre as árvores com alguma mulher que não seja eu. Queria me pôr ciumenta?
Ele sorriu de orelha a orelha.
- Eu, capaz de um ato tão infantil? Pois claro que sim, querida, e é evidente que meu ardil deu resultado. - Pegou-lhe a mão, rompendo sua promessa-. Vamos anunciar nosso compromisso no baile desta noite.
- Acha que...?
- Sim.
- Eu também - murmurou ela, jogando os braços em seu pescoço e aproximando a cabeça para beijá-lo - Não suporto estar longe de você.
Pareço um desastre, Grayson, por dentro e por fora, pensando em você.
Uma discreta tosse interrompeu o apaixonado momento tão longamente esperado por Jane.
Grayson foi o primeiro a levantar a cabeça e olhar ao redor, irritado pela interrupção a esse momento de intimidade.
- Que dia...?
- Perdoe, andava procurando Chloe - disse Heath, levantando as mãos, reprimindo com muita dificuldade a risada.
Grayson pegou Jane pela mão.
- Perdoado, posto que é você, embora não vejo por que não pôde esperar um minuto. Íamos, por fim, celebrar nosso compromisso.
- Felicitações - disse Heath olhando a ambos os lados da avenida.
- Passa algo? - perguntou Jane em voz baixa.
- Não sei - respondeu Heath voltando a vista para ela. - Chloe desapareceu durante o café da manhã.
- Tem que estar em alguma parte da propriedade - disse Grayson, encolhendo os ombros.
- Já, mas, com quem? - disse Heath em voz baixa - O barão Brentford desapareceu ao mesmo tempo em que ela.
- Esteve-a olhando durante a cerimônia de casamento - disse Jane, preocupada - É um jovem muito veemente.
- Eu pensei que olhava para você - disse Grayson, sério.
- Só até que Chloe captou sua atenção. Ela se sente muito desgraçada por ter perdido seu oficial. Parece-me que esteve falando com Brentford esta manhã.
Um revoo de movimento ao final da avenida lhes atraiu a atenção.
Jane apontou para o casal que se aproximava cavalgando para as portas do parque: eram um cavalheiro vestido de negro da cabeça aos pés, e uma jovem de vestido azul marinho, com a cabeça de negros cachos jogada para trás rindo. Não os acompanhava nenhum cavalariço.
Jane exalou um suspiro, pensando quem era ela para julgar alguém.
Esses Boscastle esgrimiam seus encantos como armas.
Grayson resmungou uma maldição, todo seu encanto brilhando por sua ausência.
- Já é muito tarde. Seja qual for a diabrura em que tenham andado, já aconteceu.
- O que não quer dizer que permitamos que volte a acontecer -disse Heath, com expressão implacável -Estranhei ver Brentford pegar uma garrafa de vinho da mesa. Pensei para que a quereria.
- Agora sabemos - disse Grayson entre dentes, com a mandíbula apertada.
Heath virou sobre seus calcanhares.
- Acredito que é hora de que me apresente. Suponho que também você gostaria de lhe dizer algumas palavras seletas. Pedimos a Drake que nos acompanhe?
Depois de olhar para Jane, Grayson se afastou para acompanhar Heath.
- Não - disse - tem que ficar um de nós para vigiar à rainha. Jane, por favor, tenha a bondade de apresentar nossas desculpas a nossos anfitriões.
- Essa rainha sou eu? Bom, me escutem, os dois, ordeno-lhes que não voltem a envergonhar Chloe.
- Eu sou a sutileza encarnada - disse Heath rindo.
- E essa palavra não está no vocabulário de seu irmão - replicou ela, exasperada.
Ficou olhando enquanto eles se afastavam apressadamente para atormentar a sua irmã, pensando: "Isso será minha vida, meu destino".
Todos seus atos estariam submetidos à aprovação de Grayson, as preocupações e problemas de sua família seriam preocupações e problemas deles. Virou-se a olhar a estátua do Cupido, imaginando-os dias de tormenta que a aguardavam; a única coisa que podia esperar era que algum dia Chloe encontrasse o amor que procurava com tanto desespero e que fosse correspondida em seu amor.
***
Grayson e Jane anunciaram seu compromisso no final do baile de casamento celebrado no salão essa noite. Lorde Belshire estava tão aliviado e contente que dirigiu um brinde e o celebrou bebendo uma garrafa inteira de champanha. De acordo aos peculiares critérios da alta sociedade, o compromisso anulou instantaneamente todos os escândalos das semanas anteriores. De repente todas as consequências do pitoresco comportamento de Grayson adquiriram o brilho rosa de um galanteio romântico.
O correto, o essencial, era fingir que se aprovavam as travessuras do casal.
"O patife deve ter planejado tudo isto desde o começo - sussurrou uma condessa viúva a sua sobrinha - Vá falar com Heath, querida. Agora corresponde a ele começar procurar esposa."
"Formam um casal perfeito, não é verdade?" - diziam as mesmas pessoas que só uns dias antes prediziam o desastre.
"Embora claro, Jane substituiu um vulgar baronete por um marquês."
"Não lhe tirou os olhos de cima em toda a noite", suspirou uma senhora idosa feliz em seu matrimônio.
Jane se achou rodeada por uma multidão de mulheres que lhe expressavam seus bons desejos, Cecily na primeira fila.
- Parece que eu estava equivocada a respeito - sussurrou-lhe Cecily, timidamente - Não é o descarado que todos achavam que era.
Jane deu um forte abraço a sua amiga, em celebração a felicidade das duas. Cecily tinha a grinalda nupcial inclinada de tanto dançar, e seu lindo vestido de cetim branco tinha duas descosturas ou três pontos de linho de seda aqui e lá.
- Bom - disse Jane - não se pode dizer que seja um santo, embora Deus sabe que eu tampouco sou.
Cecily nem sequer fez ameaça de mostrar desacordo.
- Ao menos seu pai parece muito feliz pelo compromisso. Agia como se ele tivesse arrumado o matrimônio.
- Falando de matrimônios arrumados - disse Jane em voz mais baixa-. Tem uma ideia do que ocorreu entre Chloe, seus irmãos e Brentford esta tarde?
Cecily franziu o cenho.
- Minha criada me disse que Brentford partiu da casa pouco depois dessa reunião, com aspecto bastante perturbado, mais vivo. Chloe está jogando cartas com Drake.
- Provavelmente Grayson os assustou de morte outra vez - disse Jane, passeando o olhar pelos grupos de elegantes que abarrotavam o iluminado salão - Onde se colocaram ele e meu pai, por certo?
Os dois homens escaparam para a ala de bilhar. Lorde Belshire estava tão feliz que tinha que refrear-se para não ficar a dançar uma giga ao redor da mesa. Depois de dar uma tragada em seu charuto e expulsar a fumaça, felicitou a seu futuro genro pelo compromisso.
- Bom, conseguiu, Sedgecroft.
Grayson posicionou seu taco e respondeu:
- Ainda me falta levá-la até o altar.
- Estará lá, acredite, se não, eu mesmo me casarei com você. Você estará lá, não? Não se repetirá a história...
Grayson levantou os olhos antes de golpear a bola.
- Estive lá na primeira vez, senhor, não recorda?
Capítulo 29
Nos dias anteriores ao casamento foi tal o frenesi de atividade que Grayson e Jane escassamente achavam um momento para trocar umas poucas palavras, o que excluía de todo a possibilidade de que sucumbissem à tentação.
Para começar, tinha chegado da Escócia a irmã viúva de Grayson, Emma Boscastle, viscondessa Lyons. Toda ela fervente de energia.
Emma se fez encarregada dos preparativos, organizando tudo com um só estalo de seus elegantes dedos.
Famosa por seu comportamento e porte impecáveis e por sua genialidade para oferecer uma festa, também era um verdadeiro manancial de conselhos para aqueles ignorantes dos usos sociais, entre os quais, segundo sua culta opinião, achavam-se por desgraça seus indisciplinados irmãos.
Drake expressou isso muito bem no dia que chegou sua irmã: "Bom, chegou a seu fim a vida incivilizada tal como a conhecemos. Chegou a
Delicada Ditadora. Vai andar em cima de todos. Não estranharia que nos revistasse atrás das orelhas".
Dada a fama de escandalosa que tinha a família Boscastle, a flor e nata da aristocracia esperava com ilusão a cerimônia. A qual, a julgar pelo recente esforço de casamento da noiva, prometia, pelo menos, oferecer a todos um entretenimento inesquecível.
E chegou o dia do casamento.
Nessa manhã Jane despertou com o coração lhe retumbando por todo o corpo, e pensou se Grayson se sentiria igual. Bom Deus, e se decidisse lhe aprontar e não apresentar-se em sua própria capela para o casamento?
Embora claro, havia Emma, que se encarregaria de colocá-lo no caminho certo. A formosa Emma de olhos azuis, em que a predileção Boscastle pelo desmame se investiu, permutando-se em predileção pelo decoro.
Em sua residência de Park Lane, o criado de quarto do marquês terminou de afiar sua navalha na tira de couro e alegremente começou a cobrir de espumoso sabão o belo rosto de seu amo.
- Bom, hoje é o dia, milorde, e, se me permite o atrevimento, direi-lhe que não achava que viveria para vê-lo.
Grayson assentiu, com seu quadrado maxilar já coberto pela espuma.
- Eu tampouco. A verdade é que me custa acreditar que vá acontecer.
Mais ocorreu, exatamente três horas depois. Grayson Boscastle, quinto marquês de Sedgecroft, virou-se para admirar sem disfarces à noiva que, em uma comovedora repetição da cerimônia anterior, fazia sua entrada pelo corredor da nave de sua capela particular. Sabia de certo que tinha um belo traseiro, e que o resto dela era algo, bom... outra história.
Não era que ele tivesse por norma olhar com luxúria jovens vestidas de noiva, mas, por casualidade, essa determinada noiva lhe pertencia.
Ou lhe pertenceria muito em breve. Afinal cabo os dois tinham conseguido fazer ato de presença. Endireitou os ombros quando seu pai chegou com ela até o altar, levando-a firmemente agarrada pelo braço, não fosse escapar antes do "até que a morte nos separe".
- Feito - disse Belshire, simplesmente.
Grayson olhou para o rosto de Jane coberto pelo véu, pegou-lhe a mão e disse:
- Obrigado, do fundo de meu coração. Amarei-a eternamente.
Entre os convidados já sentados nos bancos se ergueu um murmúrio de admiração. A noiva, todos estavam de acordo, não poderia ter estado mais formosa. Levava um toucado de seda bordada sobre o cabelo mel adornado por fileiras de diminutas pérolas trespassadas. Sob um longo véu de muito fina renda de bilros de Valenciennes, seu belo e curvilíneo corpo estava com um vestido de cetim, com a saia e as mangas branco creme, corpete apertado em tom rosa muito claro e um cinto de pequenos discos semelhantes a rosáceas que lhe caía até a bainha guarnecida com babados.
Grayson sentiu oprimida a garganta. Já está. Isso não era um final, era um começo. Assim estaria junto a ela o resto de suas vidas; em nascimentos, batismos, em bailes, até seu último suspiro. Contemplou-a, adorando-a. Não se arrependia de seu passado, não, à exceção daquelas vezes em que descuidou de sua família e dava por certa sua existência. Não repetiria esse engano no futuro. Talvez não fosse tão bom como devia, mas tinha compreendido que tampouco era tão mau.
Do rosto de sua noiva passou o olhar a seus irmãos e irmãs, todos muito bonitos, todos irritantes. Por incrível que fosse, amava a todos esses pesados.
Santo Deus, não, por favor, outra vez as amantes. Parou o olhar no
banco ocupado por duas de suas ex-amantes com os frutos de relações anteriores.
A senhora Parks lhe soprou um beijo amistoso. Seus dois desajeitados filhos de seu primeiro romance lhe sorriram, fazendo gestos para Jane e dando-se cotoveladas para manifestar sua aprovação. No dia seguinte ele teria que fazer as diligências para assegurar comissões militares a esses dois caipiras.
Voltando a atenção a sua noiva deu de ombros.
- Juro-lhe que não as convidei...
- Convidei-as eu - sussurrou ela, mordendo o lábio para reprimir uma risada travessa.
- Ah.
- Não se alegra?
- Devo me alegrar?
- Queria que tudo estivesse igual ao que estava no dia que nos conhecemos.
- Igual?
- Bom, desta vez pensei que devia convidar o noivo.
Ele riu em voz baixa, pensando quantas vezes recordariam rindo em segredo esse momento.
O padre pigarreou e desceu o silêncio sobre a capela. O delicioso perfume das rosas se mesclava com a fragrância da cera de abelha derretida. Os olhos de Jane se encheram de lágrimas de felicidade quando Grayson lhe apertou a mão em gesto possessivo. Era o mesmo lugar e os mesmos convidados, mas o noivo era outro e os sentimentos muito diferentes. Desta vez estava seu coração ante o altar. Iniciou-se a cerimônia e aceitou o coração dele em troca do seu, comprometendo-se a toda uma vida de sua leonina arrogância e amor, pronunciando as promessas com voz firme e clara.
Os convidados esperaram e alongaram os pescoços para ver o beijo
dos recém casados.
- Todos esperavam um escândalo - murmurou ela com a boca muito perto dos frescos lábios dele.
Ele arqueou suas grossas sobrancelhas, estreitou-a em seus braços e lhe deu seu primeiro beijo de casados.
- Dê ao povo o que deseja.
- E isso significa...
Jane se interrompeu voltando a rir porque seu escandaloso bem-amado a levantou nos braços e a pôs no ombro.
- Desejei fazer isto no dia que ia se casar com Nigel - lhe disse ele, em voz alta para fazer-se ouvir por cima dos vivas dos simpatizantes, que se levantaram de seus assentos para vê-los.
Ela arrumou o toucado que lhe tinha caído sobre a testa e lhe golpeou o outro ombro com seu ramalhete.
- Eu também o desejei nesse dia - disse em um fôlego - mais nunca sonhei...
- Grayson Boscastle - disse uma voz grave e culta detrás deles -
Faça o favor de recordar o momento e o lugar. Solta à marquesa agora mesmo.
Até estando de barriga para baixo sobre seu ombro, Jane notou a reação automática no corpo de seu marido, que a desceu lentamente até deixá-la em pé no chão.
- Foi Esther? - perguntou-lhe em um sussurro, com as faces avermelhadas de prazer.
Ui, o que era uma mulher capaz de exercer esse poder sobre essa família de crianças travessas.
- Ah, não - disse ele, esfregando um lado do nariz, com as comissuras dos olhos enrugadas por um ímpio sorriso - Foi sua cunhada Emma, a senhora Desmancha-prazeres.
Emma, sedutora mulher de cabelo dourado damasco e doces olhos
azuis, olhou para Jane compassiva:
- Recorde ao todo-poderoso que terá que acontecer um café da manhã antes de outras coisas.
Com "outras coisas" queria dizer levar sua flamejante esposa à cama. Grayson desceu sua possessiva mão pela curva da coluna de Jane até detê-la na elevação de suas nádegas. Aristocrata até os ossos que era, acataria as normas sociais fazendo ato de presença no café da manhã de casamento e agradeceria amavelmente os brindes e bênçãos que lhes dessem. E depois, que Deus amparasse ao que se atrevesse a interrompê-los.
Pela segunda vez nesse ano se celebrou um café da manhã de casamento no salão de banquetes da mansão de Park Lane. Desta vez o casal de recém casados ocuparam os assentos correspondentes na mesa principal com os pais da noiva.
As lágrimas de vidro esculpido dos lustres brilhavam como estrelas sobre os convidados que conversavam enquanto devoravam a salada de lagosta e bebiam champanha. Emma recordou amavelmente a todos os comensais que reservassem espaço para as sobremesas de abacaxi de estufa e o enorme bolo de muitos andares de Gunter.
De repente, em meio a um dos brindes, a mãe de Nigel olhou para Jane e pôs-se a chorar.
- Durante quase dez anos a considerei minha nora - soluçou.
- Calma, mãe, não tem importância - disse Nigel em tom consolador
- Vem em caminho seu primeiro neto para a consolar.
- Sim - disse ela, fungando e olhando o avultadíssimo ventre de Esther por cima do lenço - Um neto que igualmente vai parecer um gorila pelo tamanho que tem.
Na mesa do lado, Emma deixou o garfo na mesa, alarmada.
- Ai, não, a mãe de Nigel está chorando como um grifo. Sabia que era uma estupidez celebrar um casamento com tanta pompa depois
desse recente desastre.
Caroline a olhou sorrindo.
- Acredito que não devem temer parecer torpes. Grayson e Jane se elevaram por cima do caldo do escândalo como a espuma.
- Suponho que tem razão - disse Emma, sorrindo resignada - Agora tocará a você, não?
Miranda se inclinou para elas e sussurrou:
- Em realidade, ouvimos um rumor a respeito de você, Emma, e um certo homem...
- Isto é exatamente o que me faz detestar casamentos - declarou Drake Boscastle aos convidados sentados a sua mesa, que, como grupo, estavam-se levando com menos educação que os da mesa dos recém casados.
A senhora Parker arrumou o colar de pérolas olhando séria para seus filhos, que estavam colocando muito bolo na boca.
- Isso por quê? - perguntou.
- Toda esta emoção - respondeu Drake - Quer dizer, note na mãe do Nigel derramando lágrimas em seu champanha. Todas estas possibilidades de desastre.
- Não, nada disso. Seu irmão ama de verdade a sua esposa -disse a senhora Parks, melancólica.
E Grayson a amava, francamente, sem dissimulação, dando margem a um consenso de opinião entre seus conhecidos de que o casamento era a prova de que Boscastle era domesticável.
Não obstante, alguns de seus amigos mais ardilosos interpretavam o brilho possessivo que brilhava em seus olhos cada vez que olhava a sua mulher como o sinal de que os sagrados laços do matrimônio não tinham apagado de tudo sua ferocidade.
Duas horas depois ele demonstrou este último.
***
- Champanha na cama em pleno dia - murmurou Jane, admirando os potentes contornos do peito de seu marido enquanto ele tirava o fraque azul - Isto é indecência.
- Não é indecência, é capa de decência o que queria? - perguntou ele lhe tirando das mãos a taça de champanha que já estava na metade.
Ela ficou nas pontas dos pés para beijá-lo, agitando a ponta da língua sobre a dele, sentindo erguer-se a excitação entre eles como vapor.
- Acredito que me conhece muito bem.
- Acredito que tem razão - disse ele com a voz rouca.
Deslizou suas grandes mãos por seus flancos até lhe roçar os exuberantes contornos de seus seios. Ela se afastou, travessa, para tirar as anáguas.
Ele a contemplou de cima abaixo com ardente expectativa. Os lentos movimentos dela ao despir-se, de costas à cama, atormentavam-no. Reclinou-se na cama, apoiado nos travesseiros, e a observou com os olhos entrecerrados, sentindo excitar-se seu corpo, sentindo correr com força o sangue por suas veias.
- Adiante, me atormente - disse, tirando a gravata - Dentro de uns minutos a terei me suplicando.
Revocaram-lhe os cabelos ao redor dos quadris quando se virou para a cama. Não havia nenhuma só polegada de sua mulher que não o excitasse.
- Não sei do que fala - disse, sorrindo travessa.
- Acredito que sabe.
Ela pôs uma perna sobre a cama para que lhe tirasse a liga e as meias brancas. Essa tarefa, a primeira como seu marido, excitou-o, lhe endurecendo tanto o membro que lhe doeu. O coração lhe retumbava no peito ao subir a mão pela curva de sua panturrilha para fazer sua tarefa.
Os detalhes íntimos como esse lhe produziam um imenso prazer.
O aroma feminino que era só seu intensificava seus instintos animais; seu doce sorriso o estimulava. Do fundo da alma se sentia atraído por ela. Lentamente lhe soltou a liga e lhe tirou uma meia e logo a outra. Seus olhos brilhavam de amor e de intenções eróticas enquanto ela esperava nua diante dele.
Levantou-se e começou a desabotoar as calças, com o rosto cheio de desejo. Ela estendeu a mão para ajudá-lo, colocando-a na cintura.
- Me toque assim, tentadora, sob seu risco - disse ele emitindo um suave grunhido de aprovação.
Ela deslizou os dedos a todo o longo de seu sedoso membro.
- Assim?
- Está procurando problemas.
- Não busco isso sempre?
Ele a aproximou, apertando-a a seu duro corpo.
- E eu não lhe dou isso sempre?
- Sim, mas não com a suficiente frequência.
- Isso se conserta facilmente - disse ele, rindo apreciativo.
- Então conserte, Grayson. - Com um sorriso sugestivo, começou a lhe desabotoar o colete bordado e a camisa de linho branco - Ou posso fazer eu as honras?
- Alternamo-nos? - propôs ele, encantado pela reação dela, por sua natureza apaixonada.
Com ela se sentia em paz, aflorava o melhor dele, e o futuro brilhava como um farol de esperança e felicidade. O compromisso para sempre que tinham feito nesse dia só adoçava o mútuo prazer.
Terminou de despir-se e a atraiu a seus braços.
Deslizou as mãos por sua suave e branca pele, lhe acariciando o corpo, esculpindo suas curvas como um escultor; precisava senti-la apertada a ele. Vibrava-lhe todo o corpo de prazer ao pensar que podia lhe fazer amor sempre que quisesse.
- Fizemos - murmurou ela, balançando seus seios como opulentas pérolas contra o quente peito dele - Um casamento completo, sem nenhum escândalo de que se possa falar.
Ele inclinou a cabeça para beijar sua úmida boca rosada.
- Imagine. Tanto a noiva como o noivo se apresentaram ao mesmo tempo.
- Lástima que não ficassem para todo o café da manhã.
- Escandaloso - disse ele, lhe agarrando a mão - Me pareceu que a noiva estava algo frenética. Sei o que fiz mal, mas durante toda a cerimônia, no único que podia pensar era em colocá-la em minha cama.
- Eu tinha os olhos postos no noivo.
- Sim? - Levou-a a cama, com seu membro viril totalmente ereto - E
isso por quê?
- Ardo por ele - murmurou ela, erguendo os olhos para seu rosto.
- É correto isso?
- Mais não o diga a ninguém - disse ela - Com certeza uma mulher decente não deveria arder por um homem durante o café da manhã.
Estreitando-a em seus braços, ele se sentou na cama e a montou em seu colo, com as pernas escarranchadas, deixando o membro pressionando seu ventre e lhe sustentando as nádegas com suas duras coxas.
- Me atrai bastante a indecência.
- Importaria-se de explicar isso?
Fazendo-a virar apertada a seu peito, estendeu-a de costas sobre a colcha de seda azul.
- Talvez deveria demonstrar. Este tipo de coisas exige uma detalhada explicação.
Ela riu, ocultando o rosto na curva da axila dele, pensando nos dias, tardes e noites que estariam juntos; nas promessas nupciais que tinham intercambiado ante Deus e suas famílias. E sim, desta vez o tinha feito
bem, à perfeição.
- Grayson...
- Não me interrompa, querida. Demonstrar a indecência é trabalho sério.
Com as pontas dos dedos lhe roçou os seios cheios com suaves carícias de pena e foi descendo, passando pela concavidade do umbigo, até desaparecer pelos cachos do pelo púbico. Com infalível tino seu polegar achou a pequena protuberância oculta e lhe excitou esses nervos sensitivos com deliciosas carícias.
- Ooh - resfolegou ela, endireitando-se firmada nos cotovelos.
Mais imediatamente se deixou cair novamente quando lhe abriu as pernas deixando exposto a ele seu sexo. Ela sentiu sair o líquido viscoso de seu interior. Arqueou os quadris e lhe rodeou a coxa com a perna.
Com seu sedoso cabelo loiro sobre seus largos ombros, seus olhos azuis humosos de sedutoras promessas, era o amante perverso dos sonhos de uma mulher. E era seu marido.
Voltou a endireitar-se.
- Grayson, por favor...
- A paciência é uma virtude.
- Não me fale de virtude em um momento como este. Desejo-o.
Ele desceu da cama e, agarrando-a pela cintura, posicionou-a na beirada. Em pé, com as pernas separadas, levantou-a e afastou as coxas para abri-la totalmente a ele. Viu brilhar as dobras de seu sexo, rosadas e inchadas.
Introduziu a ponta do pênis por entre essas dobras molhadas e investiu.
Felicidade. Prazer. Excitação. Ao sentir vibrar a molhada carne feminina ao redor do membro,
Começou a lhe ferver o sangue e lhe endureceu todo o corpo.
Começou a mover-se, empurrando os quadris, posicionando bem o
membro em cada investida para lhe intensificar o prazer. Investidas até o fundo de seu fértil centro e lentas retiradas, em um ritmo parecido que a fez apertar os dentes de frustração.
- Mais - sussurrou ela - Mais forte.
Movendo-se por puro instinto, ele a atormentou investindo até levá-
la uma e outra vez até a borda do topo para logo retirar-se no segundo último, até que passados uns minutos ela se arqueou, estremecendo pelas contrações do orgasmo, e ele a seguiu, saboreando o prazer, a satisfação e plenitude que só conhecia no amor dela.
Meia hora depois ainda não se moveram do lugar onde se desmoronaram. Já estava avançada a tarde e o sol que entrava pela janela lhes esquentava o leito nupcial.
Jane estava aconchegada contra seu musculoso corpo, escutando os interessantes sons que chegavam de baixo.
- Ah, Por Deus - disse, tentando sentar-se e libertar-se de braços e pernas nus e dos lençóis - essas vozes são preocupantes. Não sei se vêem da porta ou da rua. O que...?
- Shss - sussurrou ele, agarrando-a em seus braços e voltando-a para apertar contra ele - Emma e Heath podem ocupar-se do que seja que ocorra. Celebra comigo, meu amor. Nos concentremos o um no outro.
Ela fechou os olhos, com a cabeça comodamente apoiada em seu ombro. Um calorzinho de gratidão lhe esquentou o coração e a percorreu toda. Isso era o que tinha desejado, essa intimidade e aceitação, o prêmio pelo qual tinha sacrificado sua reputação. Havia valido a pena correr esse risco, negar-se a aceitar o que outros achavam que era melhor para ela. Talvez seus métodos poderiam ter sido mais refinados, mas ninguém podia pôr em dúvida a recompensa: todos seus medos de uma vida vazia substituídos pelo amor de Grayson.
Como poderia saber que seu ardil acabaria nessa maravilhosa
doçura imerecida? Quem teria imaginado que um libertino seria o mais amante dos maridos, o homem que lhe ensinaria o verdadeiro significado do amor?
- O que desejo - murmurou - é que cada um deles encontre a felicidade e satisfação que temos nós. Não pude deixar de pensar que Emma e Chloe pareciam um pouco tristes hoje. E Drake com essas mulheres, bom, o que posso dizer?
Ele emitiu uma rouca risada.
- Nem acabou com uma intriga, já está tramando outra. Minha marquesa já está fazendo-se de casamenteira. Acha que poderíamos deixar esses planos pelo menos para umas horas depois?
- Tem outra coisa em mente?
- Agora que o pergunta...
Ela meio se virou para lhe acariciar o rosto, esses arrogantes ossos, com as pontas dos dedos.
- Foi o casamento perfeito - disse.
Ele a abraçou e sentiu o coração cheio de felicidade e terna posse.
Sua esposa, sua amante e sua engenhosa estrategista. Sua parceira em prazeres sinuosos, a mulher que o ajudou a achar seu lugar quando estava confuso sem saber o que fazer.
- Amo-a, Jane.
- Eu sempre o amei, patife.
Debaixo chegaram sons de risadas, golpes de portas, um grito que bem podia ser uma provocação ou um viva. Os sons de uma reunião de familiares e amigos para celebrar a chegada de dois corações a seu lar, ao lugar onde lhes correspondia estar.
Jillian Hunter
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