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MEU AMOR, MEU INIMIGO
Norte da Inglaterra, começo do outono, 1068
Lady Aelia fez o que podia para manter seus homens calmos antes da batalha iminente. Caminhou pelas ameias e falou com os arqueiros, elogiando sua coragem e habilidade na luta.
— Sobrevivemos nestes últimos meses por causa de sua capacidade contra o inimigo! Vocês são os heróis de Ingelwald! Não temam o bastardo normando, Fitz Autier, que invade nossas terras. Ele não é diferente de Gui de Reviers ou de nenhum dos outros que vocês mataram na luta, não tem poder contra nossa força!
Aelia esperava que fosse verdade. As histórias das conquistas de Mathieu Fitz Autier eram muitas e aterrorizadoras. Tornara-se uma lenda na Nortúmbria por sua impiedade, enviado pelo rei Guilherme para conquistar onde outros guerreiros haviam falhado. Nenhum saxão, homem, mulher ou criança, era poupado quando Fitz Autier vencia.
Aelia se asseguraria de que ele não venceria em Ingelwald. Estava perto do amanhecer e um nevoeiro cobria a terra. Podia mais sentir do que ver a atividade no terreno além das muralhas de pedra de Ingelwald. Sem dúvida Fitz Autier colocava seus homens em posição. Mas Aelia se recusou a temer o inimigo que ainda não vira.
Muitos nobres importantes da Nortúmbria tinham vindo para Ingelwald quando suas mansões foram conquistadas e jurado lealdade a Wallis, pai de Aelia. Agora que Wallis e tantos outros guerreiros saxões estavam mortos, cabia a Aelia salvar seu povo do perigo normando.
Um puxão rápido e forte em seu braço quase a fez cair. Voltou-se e se viu diante de Selwyn, seu noivo. O rosto zangado e a barba grisalha mostravam um homem bem mais velho que Aelia. E agora nem tinha mais as terras que haviam levado Wallis a prometer a filha a este homem.
Wallis quisera se aliar ao vizinho mais próximo, que tinha uma bela propriedade ao sul. Mas o motivo principal da união com Selwyn era manter a filha por perto depois de casada.
— Desça e vá ficar com as mulheres e as crianças!
— Não. Estes são os arqueiros de meu pai. Eles esperam que eu...
— Ingelwald está sob minha responsabilidade agora, como você e Osric.
— Meu pai não tomou providências neste sentido.
Aelia pretendia terminar o noivado que tanto a desagradava assim que a batalha por Ingelwald fosse vencida.
As mulheres e crianças do hall estavam bem guardadas dentro das poderosas paredes, rezando pela liberdade. Aelia não tinha a intenção de se juntar a elas.
— Wallis jamais quis que você se vestisse como homem, no entanto aqui está você, entre os arqueiros prontos para atirar as flechas. O que está pensando, mulher? Que é capaz de lutar contra Fitz Autier?
Nada daria mais alegria a Aelia do que atirar a flecha que mataria o guerreiro normando, mas ficaria satisfeita se qualquer um dos homens de seu pai o fizesse.
—Aelia!
Ela e Selwyn se viraram para ver o menino de cabelos vermelhos que corria em direção a eles. O irmão dela, com apenas 10 anos, tinha a audácia e a coragem de um homem duas vezes mais velho.
— É perigoso aqui em cima, Osric. — disse ela.
— Saia daqui, menino. — exigiu Selwyn.
Para não perturbar os arqueiros, Aelia levou Osric para um lugar mais tranqüilo e lhe falou com suavidade.
— Não lhe dei uma tarefa importante?
— Sim.
— Mas você está aqui com os arqueiros. Não lhe dei instruções para ajudar os cavaleiros com as armaduras?
— Aelia, não posso, sou o senhor de Ingelwald e preciso...
— Bah! — a exclamação gutural de Selwyn soou atrás dela, mas Aelia o ignorou.
— Precisa voltar para os cavaleiros, Osric, eles vão precisar de toda a ajuda para se prepararem para a batalha.
— Eles estão montados e prontos. Meu lugar é aqui com você. Tenho meu arco.
E Osric podia atirar muito bem. Aelia tentou pensar em outra tarefa para o irmão, alguma coisa que parecesse importante para ele.
— Pelos ossos de Cristo, mulher! — rosnou Selwyn. Empurrou Aelia para o lado, agarrou Osric pela gola da túnica e o jogou em direção à escada.
— Vá embora, menino! Aqui não é lugar para crianças.
— Selwyn, pare! Ele não é...
O sol surgiu e a primeira onda de flechas do inimigo chegou. Os arqueiros de Ingelwald responderam, enquanto os cavaleiros em armadura no pátio se preparavam para sair pelos portões.
Aelia esqueceu Osric e tomou seu lugar entre os arqueiros, olhando os normandos que queriam conquistar o hall de seu pai, suas terras, seu lar. Fazendo pontaria, acertou um alvo uma vez, duas, e então uma terceira vez antes de perceber um cavaleiro alto sobre um enorme corcel, encorajando os homens, mantendo-os em posição.
Aelia não podia ver-lhe o rosto, estava de armadura da cabeça aos pés. Quando compreendeu que o cavaleiro devia ser Fitz Autier, Aelia ergueu o arco e mirou.
Mas não havia pontos vulneráveis nele. Ela fechou um dos olhos e manteve a flecha voltada para ele, pronta para disparar se o homem fizesse qualquer movimento que deixasse exposta uma região vital do corpo.
Autier era um guerreiro experiente e não se expunha. Seus movimentos eram poderosos e controlados, sua perícia como cavaleiro, impecável. Mesmo assim, Aelia vigiou-o.
E então, no calor do combate, seu elmo se deslocou e ela viu que era um demônio muito bonito. Mesmo daquela distância, notou os ângulos masculinos do rosto, as linhas fortes do queixo. O cabelo escuro era longo para um normando e descia em mechas sobre a testa, marcada por rugas de raiva... ou frustração.
Ergueu o arco, mas sua pontaria foi perturbada por uma estranha tontura e um súbito tremor que lhe sacudiu os ombros estreitos. Havia esquecido por completo a previsão de sua mãe, feita muitos anos antes, mas quando a visão do guerreiro normando lhe causou um forte calor que lhe percorreu o sangue e os ossos, lembrou-se das palavras:
A terra se moverá e seu corpo estremecerá com a percepção, quando vir pela primeira vez seu verdadeiro e único consorte.
Aelia sempre acreditara na previsão. Acontecera com sua mãe e sua avó, com todas as mulheres de sua estirpe, no entanto... Não podia ser um normando... um normando bastardo.
Fitz Autier não podia ser o homem.
Aelia soltou a flecha e uma eternidade se passou enquanto esperava que atingisse o alvo. E de repente seu coração se encheu de alegria quando um fluxo súbito de sangue surgiu no rosto do normando. Conseguira o que todo nobre saxão da Britânia almejava: a morte e a destruição dos normandos que tinham vindo tomar-lhes as terras.
Mas não... Fitz Autier fora apenas levemente ferido na face pela flecha de Aelia.
Enquanto o olhava, ele voltou os olhos para a ameia em que ela estava. Seus olhares se encontraram e se prenderam e, naquele momento, Aelia compreendeu que Fitz Autier sabia que tinha sido ela que o ferira.
A batalha continuou por toda a manhã e tarde e Aelia conseguiu se livrar da idéia inquietante de que o que sentira ao ver Fitz Autier era o que sua mãe previra. Morta depois do difícil parto de Osric, sua mãe não poderia saber que Aelia um dia se veria diante daquele feroz inimigo normando. E essa era a única explicação para a estranha sensação que experimentara quando o vira.
Aelia não teve outras oportunidades de matar o bastardo normando. Embora os guerreiros de Ingelwald tivessem conseguido defender o portão, muitos arqueiros foram mortos. Os cavaleiros nortumbianos que lutavam fora das muralhas foram os vencedores. Quando o crepúsculo caiu, os normandos se retiraram para seu acampamento, além das florestas do sul, para se prepararem para a batalha do dia seguinte.
Dentro das muralhas de Ingelwald, tochas iluminavam os pátios e o interior de cada edifício. Metade da aldeia ficava no perímetro, mas Ingelwald crescera muito e parte da aldeia se estendia além das muralhas. As casas vulneráveis tinham sido abandonadas e os aldeões se abrigaram na parte murada.
Aelia foi para o grande hall, onde cuidou dos feridos e elogiou os cavalheiros e os nobres que haviam se unido a Wallis quando suas terras haviam sido usurpadas pelos invasores normandos.
Aqueles cujos ferimentos não eram mortais aplaudiram as palavras de Aelia e se aproximaram dela, encorajados por seus elogios. Aelia ficou entre eles até que todos os feridos fossem cuidados e o alimento distribuído, depois fez a ronda das casas, visitando as famílias que se abrigavam no hall.
O alimento estava acabando, mas havia água fresca do poço atrás do grande hall. Se a batalha do dia seguinte fosse vitoriosa, os normandos iriam embora e a vida em Ingelwald voltaria ao normal.
Aelia foi até o poço, tirou água, bebeu e lavou a sujeira da batalha do rosto e das mãos. Então ouviu seu nome, voltou-se e esperou que um dos amigos de Osric se aproximasse.
— Osric saiu!
— Quais eram as ordens dele?
— Ficar no topo do armazém com um grupo e dar o alarme se os normandos tentassem derrubar a muralha.
— E Osric deixou seu posto?
— Sim, mas...
— Quando encontrá-lo, quero que lhe diga para vir falar comigo. — disse Aelia.
Era um menino teimoso, mimado pelo pai nos últimos dois anos, desde a morte do irmão mais velho, Godwin.
— Não! Ele saiu, minha senhora, foi para fora das muralhas!
— Fora? Para onde foi, Grendel?
— Osric passou pelo túnel sob a muralha leste... disse que ele mesmo mataria o bastardo Fitz Autier!
— O que ele disse, qual era o plano dele?
— Nada, além de querer matar Fitz Autier enquanto ele dorme. Osric disse que Selwyn o tratou como se fosse um bebê, mas que mostraria a ele.
Aelia devia saber que Osric reagiria assim. Para ele, tudo era um desafio pessoal e se sentira insultado por Selwyn proibi-lo de tomar parte na batalha.
Precisava dar o alarme e sair com um grupo de homens para salvar Osric. Mas isso significaria lutar no escuro, em território que muitos guerreiros não conheciam. Havia outra maneira, melhor e sem risco para os guerreiros.
Ela dispensou Grendel e foi para a muralha leste, onde havia um túnel estreito, construído muitos anos antes. Decidira ir sozinha, conhecia bem as terras e tentaria encontrar Osric antes que ele chegasse ao acampamento normando.
A ferocidade da defesa de Ingelwald não surpreendeu Mathieu Fitz Autier. Que tivessem enviado uma criança para matá-lo era muito estúpido ou muito brilhante. O menino alegara ser herdeiro de Wallis e, se fosse verdade, seria um ótimo refém.
Mas tudo podia esperar até o dia seguinte, seus homens estavam exaustos e o menino estava amarrado e amordaçado. Se Wallis o quisesse de volta se renderia pela manhã. Então Mathieu levaria o nobre saxão como prisioneiro junto com os filhos e a filha, lady Aelia.
As ordens do rei Guilherme tinham sido claras. Mathieu devia escoltar pessoalmente os prisioneiros saxões até Londres, onde seriam exibidos publicamente e executados.
Tudo estava quieto no acampamento. Mathieu não acreditava que Wallis tentaria um ataque no escuro, mas havia postado sentinelas para dar o alarme caso isso acontecesse. Com uma tocha na mão, caminhou entre as tendas que abrigavam seus homens e dirigiu-se para a sua. Era a maior delas e servia não só para dormir como para se reunir com seus comandantes para planejar seus movimentos e batalhas.
Entrou na tenda, fechou-a e foi até o centro, onde tirou a túnica e pôs água numa bacia, para cuidar de seus ferimentos. Pela primeira vez se permitiu pensar no arqueiro cuja flecha havia arranhado sua face.
Era uma jovem mulher.
Mesmo ao longe, com os cabelos dourados com brilhos avermelhados à luz do sol, era bela e delicada, destacando-se entre os soldados grosseiros nas ameias. Um pressentimento estranho o tomara quando a vira pela primeira vez, como um punho de aço apertando-lhe as costelas. O chão parecera tremer sob seus pés e a sensação o deixara desorientado por tempo suficiente para pôr sua vida em risco.
Um momento mais tarde, quando a flecha lhe arranhara a face, olhou para cima e seus olhos encontraram os dela. Foi como se...
Não, não era um jovem cortesão que ficasse facilmente impressionado por um belo rosto. Além disso, ela era uma mulher saxã, que o mataria se tivesse a oportunidade. Quase o matara pela manhã.
Mathieu lavou o ferimento na face. Provavelmente precisava ser costurado, mas não perturbaria Sir Auvrai agora. Esticou os ombros e as costas, estudando os novos ferimentos. Era o preço da guerra. Mas, desta vez, quando os inimigos de Guilherme fossem vencidos, ele ficaria com os despojos.
A vitória garantiria a Mathieu as terras que desejara por tantos anos e o casamento com a mulher mais bela da Normandia; lady Clarise, filha de lorde Simon de Vilot.
Mathieu servira Guilherme por anos. Como filho bastardo de um nobre, tinha menos direitos que seus meio-irmãos legítimos e, como posses, apenas seu cavalo e armadura. Mas conquistara o respeito e a afeição de seu senhor feudal, que agora era rei da Inglaterra.
Em breve Mathieu teria sua recompensa. Como senhor de Ingelwald e de todas as terras vizinhas e como genro de Simon de Vilot, Mathieu seria igual a seus irmãos. Não, seria mais importante que eles.
Aelia desprezou os normandos ignorantes por montarem o acampamento bem ao lado do rio. Não sabiam que o barulho das águas esconderia os sons de um intruso que quisesse invadir o acampamento?
Havia arbustos em torno e foi fácil para ela se esconder enquanto observava os homens se deitarem para dormir.
Não vira Osric no campo mal iluminado, mas tudo estava quieto. Se o irmão tivesse matado Fitz Autier, haveria uma comoção, a menos que o corpo do normando ainda não tivesse sido encontrado.
Um momento mais tarde, Fitz Autier surgiu e aquele sentimento estranho acometeu-a de novo. Desta vez, Aelia pensou que devia ser o temor pela segurança de Osric que causara a sensação. O bastardo caminhou pelo acampamento e passou diante dela. Este normando, cuja reputação o precedera a Ingelwald, era apenas um homem, não um deus guerreiro com poderes superiores aos dos mortais.
No entanto, sua estatura era maior que a de qualquer saxão que conhecia. Sem a armadura, seu peito parecia uma muralha de granito e os braços eram musculosos. As mãos se ocupavam com as fivelas e fitas de sua túnica e calções enquanto caminhava. Aelia esperou que ele não se despisse antes de chegar à tenda. Não tinha interesse em ver seu corpo nu.
Ele entrou na tenda e Aelia o teria seguido, mas duas sentinelas se aproximaram. Estaria Osric esperando por Fitz Autier dentro da tenda? Conseguiria matar o normando sem ajuda?
Osric sabia usar uma faca, mas não venceria um homem adulto, especialmente um como Fitz Autier, que não hesitaria em matar um menino saxão ou tomá-lo como refém.
Aelia queria tirar Osric do acampamento antes que ele se ferisse ou morresse, mas não podia se mover enquanto as sentinelas estivessem de guarda. Esperando pelo melhor momento para entrar sem ser vista na tenda do normando, observou os movimentos no acampamento. Se Osric não estivesse na tenda, ela mesma mataria o normando.
Finalmente os guardas se afastaram com suas tochas e Aelia deixou seu esconderijo e se arrastou até a tenda. Ficou completamente imóvel, tentando ouvir algo, mas o silêncio era total.
Aelia deslizou sob a lona praticamente sem movê-la e ficou imóvel por mais uns instantes, para os olhos se acostumarem com a quase total escuridão. As fogueiras externas lançavam um pouco de luz através do tecido e os olhos de Aelia foram atraídos para a figura deitada sobre peles estendidas no chão.
Ele estava imóvel mas não morto, e Osric não se encontrava ali. Ouviu a respiração tranqüila e profunda do normando que dormia. Tirou a faca da bainha e arrastou-se em direção a ele.
Quando chegou perto o bastante para enxergar-lhe as feições, ergueu o braço e atacou.
Mathieu SE moveu com grande rapidez, agarrou o pulso da mulher e a segurou sob seu corpo. Ironicamente, fora o ferimento de sua flecha que o impedira de dormir, tornando-o consciente da presença dela no momento em que se arrastara para dentro da tenda.
— Lady Aelia, suponho.
— Solte-me, seu... seu porco normando!
—Vejo que sua pontaria é melhor do que suas maneiras. Felizmente, suas habilidades são maiores do que seu tamanho, ou eu teria alguma coisa com que me preocupar.
Ela o empurrou e se moveu sob ele, mas Mathieu não a soltou.
— Vocês saxões planejam me atacar um por um até que eu derrote todos vocês?
— Um por um? — arquejou. — Meu irmão... ele está aqui?
Havia algum tempo que não tinha uma mulher sob seu corpo, mas, embora estivesse excitado, Mathieu não era um estuprador. Sentia desprezo pela técnica favorita do pai, preferia uma parceira entusiasmada.
— Você se refere ao moleque de cabelo vermelho que tentou me ferir com a faca? Se Wallis está reduzido a mandar crianças para vencer o inimigo, então perdi todo o respeito pelo homem.
— Meu p... pai está morto.
A informação o surpreendeu. Então quem liderava a defesa de Ingelwald? Seu filho mais velho?
— Então é Godwin quem comanda Ingelwald?
Lady Aelia não respondeu e renovou os esforços para se libertar. Atirou o joelho para cima, atingindo Mathieu sem piedade entre as pernas. Ele gemeu e rolou para o lado, ainda segurando-lhe os pulsos.
— Já me causou dano suficiente, mademoiselle. — disse entredentes enquanto ela continuava a atacá-lo — Pare, você não vai a lugar algum.
Ele se deitou sobre ela, prendendo-lhe as pernas e as mãos e se perguntou como conseguira passar pelas sentinelas.
— Onde está meu irmão?
— Muito bem guardado. — disse, áspero.
O rosto estava tão perto do dela que podia ver algumas sardas muito pálidas em sua pele lisa e branca. Os dentes eram brancos, pequenos e bem espaçados, os lábios cheios e rosados, levemente abertos. Quase podia sentir-lhe o gosto. Apesar de muito tentadora, ele resistiu.
— Meus homens devem esperar também por Godwin?
— Solte-me!
Isto era uma coisa que Mathieu não pretendia fazer, pelo menos não até que ela estivesse seguramente amarrada. Num movimento rápido, virou-a de rosto para a pele que constituía sua cama. Pondo um joelho no centro de suas costas, afastou a longa e loura trança e segurou-lhe os pulsos com uma das mãos; com a outra, pegou um pedaço de corda, virou-a de novo e amarrou-lhe as mãos diante do corpo.
Não era um homem cruel. Sua reputação tinha sido exagerada, mas servira bem ao seu objetivo enquanto lutava pelo rei. Se Wallis tivesse ouvido o que se dizia de Fitz Autier, o lorde saxão ainda estaria de posse do hall. Mas se rebelara contra a autoridade de Guilherme e se recusara a aceitá-lo como rei. Guilherme não tivera escolha e enviara um exército para combater a rebelião.
Quando a mulher estava amarrada, Mathieu permitiu que ela se sentasse e olhasse para ele.
— Godwin negociaria pela sua libertação?
Ela pressionou os lábios fechados e olhou para o lado, recusando-se a responder. Mas Mathieu viu sua garganta se mover convulsivamente e observou o leve tremor da boca. Não era apenas teimosa; se não estava enganado, era dor que a fazia tremer.
Seu irmão estava morto.
Ignorou a piedade que sentiu. Era uma guerra. Soldados e inocentes perdiam a vida, especialmente os que não se entregavam aos conquistadores. Mathieu fizera da guerra seu negócio e não estava nele para salvar ninguém, particularmente esta mulher saxã que se inseria entre ele e suas ambições mais profundas.
Mathieu ficou em pé e pôs a faca da mulher em cima da cota de malha enquanto pensava no que fazer com ela. Não seria bom que ficasse junto do irmão.
— Quem está no comando em Ingelwald?
Ela ergueu o queixo e se recusou a olhar para ele.
— Não tem importância. — jogou uma pele no chão, ao lado da outra onde a mulher se sentava. — Amanhã de manhã, quando chegar ao portão de Ingelwald com você amarrada ao meu cavalo, alguém negociará comigo.
— Onde está meu irmão?
Mathieu riu.
— Você não está em posição de exigir respostas, mademoiselle.
— Ele é apenas uma criança. Mande-o para casa.
Mathieu pegou a faca.
— Você ainda não compreendeu, lady Aelia. O menino não tem mais uma casa. Nem você.
Ela deixou escapar um som como se a tivesse golpeado. Se houvesse compaixão nele, teria sentido alguma por esta mulher orgulhosa que enfrentara a escuridão da floresta e uma legião de soldados inimigos para salvar o irmão. E se fosse de natureza baixa, ficaria tentado por sua beleza e curvas femininas.
Mas nada disso lhe importava agora. Tinha um objetivo, conquistar Ingelwald para Guilherme que, por sua vez, o daria a ele, como um vassalo fiel. Era uma grande e rica propriedade, muito maior e mais rica que as dos irmãos. O rei Guilherme até já lhe dera o título de barão de Ingelwald.
Ele pegou outro pedaço de corda, passou-a duas vezes pela cintura da mulher, amarrou-a atrás e depois as pontas soltas nos próprios pulsos. Então se deitou sobre a segunda pele.
Aelia virou o corpo para tentar se livrar.
— Se acha que vou me deitar aqui...
— Estou cansado, mulher. — resmungou enquanto ela continuava a lutar.
Ela o chutou e tentou bater-lhe com os punhos, mas Mathieu a jogou no chão mais uma vez e pegou-lhe a trança na nuca. Debruçou-se e falou suavemente.
— Posso chamar meus homens e, se preferir a companhia deles à minha, passará a noite com eles.
— Faria isso, normando, entregar uma mulher inocente...
— Inocente. — puxou o rosto dela para junto do seu — Este corte na minha face nada tem de inocente. As flechas que caíram sobre meus soldados não foram presentes de boas-vindas, mademoiselle. Agradeça por eu ser mais civilizado que você e fique quieta. Durma ou não, mas saiba que sua boa saúde e a do seu irmão dependem de sua conduta esta noite!
Aelia não via saída. Fitz Autier se virará de costas para ela e se acomodara para dormir, mas ela não conseguia descansar.
Nem podia fugir.
Um leve puxão na corda que a amarrava o acordaria e ele era ainda mais formidável de perto. Era terrível de admitir, mas tinha medo dele.
Achara-o bonito de longe, mas agora que podia ver suas feições e os braços maciços e peito nus admitiu que havia mais em Fitz Autier do que um rosto bonito. O nariz tinha uma leve saliência, o que indicava que fora quebrado. Uma cicatriz fina marcava sua testa e, a partir daquele dia, teria para sempre uma lembrança de sua flecha na face.
Pena não ter sido um golpe para matar! Então não estaria nesta situação.
Tentou afrouxar a corda nos punhos, mas não conseguiu e os nós nas costas da cintura eram inalcançáveis.
E mesmo se conseguisse se livrar das cordas, não havia como sair da tenda; ao lado do leito, estava presa no chão com firmeza. Olhou em torno, procurando alguma coisa que pudesse usar como arma ou para cortar as cordas. Não havia nada.
Naturalmente, Fitz Autier tinha colocado sua faca do outro lado e ela não conseguiria alcançá-la sem passar por cima dele.
E, mesmo se conseguisse sair da tenda, não sabia onde estava Osric e não podia ir embora sem ele. Mas se não o levasse de volta para Ingelwald, o normando o mataria.
Frustrada, Aelia se deitou atrás de Fitz Autier, percebendo sua respiração profunda e regular. Estava muito relaxado para um homem deitado ao lado de uma prisioneira decidida a destruí-lo.
Estava descoberto, no entanto seu corpo irradiava calor. Os fortes músculos dos ombros se moviam a cada respiração e Aelia ficou ainda mais inquieta ao perceber seu tamanho e lembrar-se da força de suas mãos nos pulsos dela.
Ele podia esmagar Osric — ou mesmo ela — entre suas mãos enormes.
Não conseguia relaxar, nunca dormira ao lado de um homem antes e não ia começar com este normando. Afastou-se o mais que pôde, puxando inadvertidamente a corda e acordando-o.
Ela amaldiçoou os rápidos reflexos dele quando uma das mãos de Autier a agarrou, puxou-a, e ele a envolveu nos braços.
— Por tudo de mais sagrado, mulher, é a última vez que lhe digo para ficar quieta, do contrário eu a mando para os guardas. Deite-se!
Aelia sabia que seria idiotice tentar lutar com ele, sua vida e a de Osric estavam em risco.
Deitou-se na pele, presa entre seu peito largo e o tecido da tenda.
Quando a respiração dele se tornou de novo tranqüila, os pensamentos de Aelia se voltaram para a manhã seguinte. Tinha de pensar no que aconteceria quando fosse oferecida em troca de Ingelwald.
Selwyn não aceitaria a troca, queria a propriedade para si. Tivera de lembrar a ele muitas vezes, desde a morte de seu pai, que o herdeiro era Osric.
Aelia estremeceu sem saber se era de frio ou de apreensão. Mas seu corpo se aproximou do calor de Mathieu e ele jogou um braço sobre sua cintura, a respiração calma. Ela relaxou e as pálpebras ficaram pesadas, os pensamentos incoerentes.
Os guerreiros de Ingelwald lutariam até a morte contra os normandos. Selwyn não se entregaria até que as muralhas fossem derrubadas e todos os homens, mulheres e crianças morressem. Mas, e se Selwyn pudesse ser eliminado primeiro? Os homens de seu pai certamente trocariam Aelia e Osric pela propriedade.
Quantas vidas seriam salvas se Ingelwald aceitasse os termos do normando?
Fitz Autier apertou-a, como se ouvisse seus pensamentos dolorosos e quisesse confortá-la. Ele a puxou para mais perto e um dos joelhos poderosos se introduziu entre suas coxas macias. Receando acordá-lo, não se afastou, mas segurou a respiração quando a mão dele lhe acariciou as costas, descendo, descendo...
Os olhos de Aelia se fecharam e não resistiu quando ele aumentou o contato íntimo. Não tinha energia para lutar contra ele e o calor de seu corpo a atraía, assim como a sensação de ser acolhida num casulo de segurança. Havia tanto tempo que não se sentia segura. Perdera o irmão, depois o pai, e agora só havia Selwyn, que queria tomar Ingelwald de Osric.
Fitz Autier emitiu um som suave no sono e mudou de leve a posição. Embora ele não percebesse o que estava fazendo, Aelia sentia o sangue pulsar em cada parte sensível do corpo. E quando o joelho dele subiu ainda mais e tocou-a entre as pernas, não conseguiu respirar. Estava mais cansada do que nunca, mas a pressão da coxa dele sobre ela tomou o sono impossível.
Sua sensação de segurança e repouso foi substituída por uma estranha tensão e um prazer tão grande que teve de se esforçar para não gemer alto. Apertou as pernas com força em torno dele e moveu-se de leve, a parte mais sensível de seu corpo apertada contra Autier.
Temia acordá-lo, mas não conseguia parar. Cada nervo parecia centrando naquele ponto extraordinário e, quando sensações urgentes se uniram e atingiram o clímax, Aelia pensou que seu coração explodiria. Fechou os olhos e deixou que a estranha euforia a tomasse.
Sentiu a respiração de Fitz Autier em seu cabelo, ouviu a batida de seu coração, percebeu os cachos finos dos cabelos do peito contra sua face. Ele cheirava como um homem que acabara de tomar banho, a pele quente e firme contra a dela, e mais uma vez experimentou o tremor que sentira quando o vira no terreno abaixo das ameias de Ingelwald.
Mas ele era o inimigo!
Estas estranhas sensações não tinham relação com as previsões de sua mãe, feitas tantos anos atrás, quando Eduardo era rei e Guilherme apenas um normando criador de problemas. Sua mãe nunca soubera das desgraças do futuro, do preço terrível que os normandos cobrariam de Ingelwald, nunca pensara que um normando pudesse ser o único e verdadeiro consorte de Aelia, o corpo dela reconhecendo-o mesmo quando fazia tudo para matá-lo. Era ridículo.
Mathieu nunca sonhava, mas decidiu que gostaria que todos os sonhos fossem tão excitantes como o que acabara de ter. Sem dúvida, a proximidade da mulher saxã durante a noite fora responsável. Acordara num emaranhado de braços e pernas macios, sentindo o aroma da excitação feminina.
O sonho fora apenas uma peça que sua mente lhe pregara. Se ela estivesse excitada, seria por pensamentos homicidas.
A mulher saxã ainda dormia, parecendo surpreendentemente inocente. Mas Mathieu não se arriscaria. Ela o mataria, se pudesse.
Sem acordá-la, cortou a corda que a unia a ele. As pálpebras se mexeram, mas ela não acordou quando ele se levantou.
Os acontecimentos da noite anterior não podiam ter sido melhores. A captura de lady Aelia fora um presente de Deus; era óbvio que os saxões não lutariam quando a vida de sua senhora estava em jogo. Ingelwald pertenceria ao rei Guilherme antes do fim da manhã.
Mathieu se despiu e, enquanto tirava roupas limpas da arca, pensou na melhor maneira de se aproximar de Ingelwald. Se levasse todo seu exército, certamente haveria luta porque ninguém perceberia que tinha lady Aelia. Os arqueiros de Ingelwald certamente estavam prontos, como na manhã anterior. Talvez fosse melhor chegar apenas com um arauto e um pequeno grupo de guerreiros.
Ou podia amarrar a mulher num cavalo e enviá-la primeiro, para que...
Um arquejo atrás dele o fez se voltar para a cama.
— Como ousa! — disse ela, indignada.
Ficou desavergonhadamente nu, em pé diante dela, mas a presunção de Aelia irritou-o. Era a tenda dele e ela era a intrusa.
— Você se esquece, mademoiselle, que não foi convidada a vir aqui.
— A simples decência...
— Teria impedido que você entrasse em minha tenda com propósitos assassinos.
Com as faces vermelhas, ela se voltou de repente, dando-lhe as costas, as cordas que ainda a amarravam tornando seus movimentos desajeitados. Era difícil acreditar que fosse a mesma mulher macia que se aninhara a ele durante a noite, buscando seu calor.
Mathieu vestiu os calções curtos e justos, depois sentou-se, fitando os olhos da mulher.
— Quero ver meu irmão, normando.
Mathieu não tinha intenção de deixar os dois juntos, não até que lhe fosse conveniente. Vestiu a túnica e, quando pegou a cota de malha, a mulher se voltou para ele de novo.
À luz da manhã, pôde ver que os olhos dela eram verdes e brilhavam de raiva. Ou desespero. Mathieu passou a mão na nuca, tentando dissipar o estranho sentimento que o acometia quando olhava para ela. Viu-a se erguer nos joelhos.
— Solte-me e irei até Selwyn.
— Você insulta minha inteligência, mademoiselle.
Mathieu guardou no cinto a faca que lhe tomara e pegou a espada. Virou-se e abriu a tenda.
— Posso persuadi-lo a se render. — acrescentou ela.
— Quem é Selwyn?
— Meu noivo.... Ele deve ter assumido o comando de Ingelwald na minha ausência.
— E por que agora você quer me entregar Ingelwald?
Ela olhou para o chão.
— Meu povo... Não quero que mais ninguém morra por minha causa. — disse enquanto ele saía da tenda.
Soldados normandos cumprimentaram seu senhor enquanto ele passava e parecia que Fitz Autier lhes dava ordens. Aelia se sentiu grata a padre Ambrosius por lhe ter ensinado a língua normanda.
Ela se levantou e saiu, mas foi impedida de ir adiante por uma muralha de cotas de malha. Perdeu o equilíbrio e teria caído se um cavaleiro de guarda não lhe tivesse segurado o braço. Seu rosto era duro e frio, sua ação apenas de utilidade, sem gentileza.
Era alto e grande como Fitz Autier e tinha cabelo tão louro que parecia branco. Seu rosto era amedrontador, com cicatrizes e um olho cego, mas Aelia se recusou a se sentir intimidada.
Ele a soltou e deu um passo de lado, permitindo a passagem de outro soldado que levava diversos objetos nos braços. Deixou tudo na tenda de Fitz Autier, pegou a armadura e virou-se para sair.
— Comida e bebida. — disse.
— Não estou com fome nem com sede, — disse, desafiadora — Preciso de... — olhou para a mata além do acampamento —...um momento de privacidade.
O grande cavaleiro louro empurrou-a de volta à tenda enquanto o outro se retirava.
— O barão Fitz Autier lhe enviou tudo de que precisa.
O homem fechou a tenda e Aelia viu um balde de metal que fora deixado para ela, ao lado de uma bacia, um pedaço de pão e um copo de cerveja. Desajeitada, pegou o balde com as duas mãos e, com um grito de frustração, jogou-o contra a tenda, provocando um barulho alto de metal contra a terra e a risada dos soldados do lado de fora.
O calor da humilhação lhe queimava as faces. Sabia que sua situação ficaria pior com o passar das horas. Suas mãos ainda estavam amarradas e preferia morrer a pedir a estes normandos que a soltassem. Tentou se livrar movendo as mãos, depois tentou com os dentes.
— Despreza nossa magra ração, mademoiselle!
A cabeça de Aelia se ergueu à voz de Fitz Autier e seus olhos encontraram os dele, azuis e frios como o céu sem nuvens. Parecia formidável sem roupas. Só de pensar em seu corpo musculoso e sua impressionante masculinidade, que exibira com tanta calma, a boca de Aelia ficava seca. Mas de armadura era um adversário arrasador.
Aelia decidiu que podia ser tão intimidadora como ele. Afinal, era a filha de um conde, não teria medo de um cavaleiro normando.
Ergueu as mãos.
— É dia, certamente não teme que eu fuja agora, com todos os seus homens de guarda.
Ele pegou a faca, cortou as cordas e ficou um momento olhando-a, depois se afastou e guardou a faca no cinto.
— Posso ver meu irmão hoje? — pediu ela.
Ele abriu a tenda e Osric foi jogado. Estava com as mãos amarradas para trás, amordaçado e com uma corda no pescoço, um pedaço solto como se fosse uma coleira.
Aelia correu para ele, ajoelhando-se. Começou a tirar o pedaço de corda do pescoço, mas a bota de Fitz Autier pisou no pedaço solto que se arrastava pelo chão antes que ela pudesse libertar Osric.
— Você é um bárbaro! Ele é apenas uma criança!
O rosto de Fitz Autier endureceu.
— Esta criança quase arrancou os dedos de um dos meus homens com os dentes! Chutou a virilha de Raoul de Moreton com tanta força que o homem não poderá lutar hoje! Além disso...
— Ele estava apenas se defendendo! — protestou. Quando lhe tirou a mordaça, Osric soltou uma torrente de pragas saxãs — Deixe-me desamarrá-lo!
Fitz Autier desembainhou a espada.
— Faça isto a seu risco, mademoiselle.
O normando estava mortalmente sério. Aelia tirou os cabelos que caíam no rosto sujo de Osric. Era importante ficar calma, não permitir que o normando visse como estava com medo.
— Aelia. — disse Osric na língua saxã — Quando eu der o sinal, caia para o lado e eu agarrarei...
— Não seja idiota. Primeiro, ele pode muito bem entender nossa língua. Segundo, você está amarrado! Não temos chance contra eles, estão armados e nós não, são muitos e nós apenas dois. Teremos que deixar que nos troquem pela paz em Ingelwald.
Osric rolou para o lado e se levantou.
— Nunca! Ingelwald nos pertence! Nós...
— Silêncio antes que nos matem. — admoestou ela, fazendo do corpo um escudo para proteger o irmão do normando.
Sabia que Osric nunca se renderia. Não era uma criança fácil, o pai e o irmão o haviam mimado demais, fazendo-o se sentir um rei. Era um menino brilhante, mas muito jovem e teimoso. Podia imaginar o estrago que causara no acampamento normando durante a noite.
—Apronte-se para cavalgar, mulher. — disse Fitz Autier — O menino vai esperar do lado de fora.
Mathieu pegou Osric pelo pescoço e puxou-o para longe da irmã.
— Você cavalgará com Sir Auvrai d' Evreux. — disse, sabendo que o menino falava francês.
O pequeno demônio se virou de repente e chutou o calcanhar de Mathieu e correu. Como a perna de Mathieu estava coberta pela armadura, não ficou ferido, mas também não o seguiu.
Permitiu que Osric corresse até a extremidade da floresta, onde dois soldados o pegaram e trouxeram de volta ao acampamento. Jogaram-no sem cerimônia aos pés de Mathieu, onde ele disse as únicas palavras saxãs que Mathieu aprendera e que não eram adequadas para a boca de uma criança.
—Todos os saxões se comportam tão mal como você, menino? — perguntou, sem esperar resposta.
Queria fazer logo a troca da vida da mulher e do menino pela rendição pacífica de Ingelwald. Virou-se para Auvrai, o guerreiro alto e louro que era seu segundo em comando.
— Levarei lady Aelia e você o menino. Quero dez homens de cada lado de nós e o resto de...
Toda a atividade e todas as conversas em torno de Mathieu e Auvrai cessaram de repente. Mathieu olhou na direção do olhar de seus homens e viu que Aelia saíra da tenda.
Ela podia estar usando um vestido da mais fina seda, com um aro de ouro na testa, mas sua roupa eram apenas uma túnica e calções comuns de homem. Arrumara as roupas simples e fizera alguma coisa com o cabelo. Agora era uma gloriosa massa de cachos dourados, caindo em cascata por seus ombros e costas.
Lavara o rosto e Mathieu pode apreciar cada feição feminina, desde as sobrancelhas em delicados arcos até o queixo suave que denotava sua coragem.
Mas recusou-se a se comover por sua beleza. Era uma refém e sua vida seria tirada se Selwyn se recusasse a negociar. Não sentia pena.
Com total comando de suas emoções, lady Aelia se aproximou e parou onde Osric estava deitado.
— Estou pronta, normando. — disse ela, estendendo a mão para ajudar o irmão a se levantar.
Falou suavemente com o menino na língua saxã, depois olhou para Mathieu sem medo, com os olhos verdes claros como os campos férteis da Inglaterra.
Mathieu endureceu o queixo e se virou, mal notando o escudeiro que trazia seu corcel. Não se deixaria seduzir por seu belo corpo ou se enganar por sua maneira submissa. Havia mulheres muito mais belas na Normandia, uma das quais se tornaria sua esposa quando voltasse para Londres.
Mathieu montou e Auvrai ergueu lady Aelia, sentando-a na sela diante de Mathieu. Ela se sentiu pequena e insignificante e estremeceu contra o peito dele.
Tinha motivos para estar nervosa. A menos que Selwyn tivesse motivos fortes para salvar a vida de Aelia, não negociaria a perda de Ingelwald. Como o escolhido por Wallis para se casar com a filha, tornara-se líder legítimo de Ingelwald. Saberia em pouco o que o saxão preferia: perder Aelia e seu irmão intratável ou desistir de Ingelwald.
Aelia era, sem dúvida, uma mulher desejável. Passara a noite sonhando com seu despertar sensual, depois observando a maneira nobre como se aproximara dele. Mathieu não conseguia imaginar um só homem em toda a Inglaterra que não a quisesse.
Mathieu abaixou o visor e esperou que Auvrai montasse e pusesse Osric na sela em frente a ele. Um momento depois, os soldados que os acompanhariam estavam prontos e Mathieu liderou o grupo para fora do acampamento.
Pensou no que faria se Selwyn se recusasse a negociar. Havia diversas árvores em frente às muralhas de Ingelwald. Se Selwyn não se rendesse, Mathieu poria estes dois saxões sobre um cavalo, amarraria cordas em torno de seus pescoços e faria o cavalo galopar. Os dois prisioneiros seriam enforcados diante de toda Ingelwald.
Mathieu respirou profundamente e sentiu o perfume de Aelia, sua maciez, e endureceu a alma contra a misericórdia. Era sua prisioneira, nada mais. E não havia justificativa para seus pensamentos voltarem sempre para o sonho erótico ou imaginar se poderia tornar reais os suspiros de prazer com que sonhara. Melhor pensar em lady Aelia com uma grossa corda em torno do belo pescoço. Ou não pensar nela.
Mathieu e Auvrai seguiram pelo caminho principal enquanto os homens que os franqueavam iam pela floresta. Mathieu decidira se aproximar de Ingelwald com apenas alguns homens visíveis. O resto ficaria além da linha de árvores perto do hall saxão, esperando os resultados da negociação com Selwyn. Instruirá o arauto, Gilbert de Bosc, sobre o que dizer.
— Vai permitir que eu fale com Selwyn? — perguntou a prisioneira.
—Não sou idiota, lady Aelia. Ou ele concorda ou não, estou preparado para qualquer uma das decisões.
— Se ele concordar, nos tornaremos seus escravos, se recusar você nos executará.
Era muito cedo quando chegaram às muralhas de Ingelwald. A manhã era fria e sem nevoeiro, permitindo que Selwyn e os outros a vissem sentada no grande corcel do normando.
Aelia não se moveu. Uma brisa leve tocou-lhe os cabelos e seus músculos endureceram, apesar de sua decisão de parecer serena. O corpo estava tenso de ódio por este canalha normando.
O arauto normando cavalgou à frente e tocou sua trompa de osso e gritou para os que esperavam além das muralhas.
— Ouçam, homens de Ingelwald!
Aelia crispou os punhos e olhou para as altas ameias. Sem armas, sem esperanças de fugir, nada podia fazer a não ser esperar a decisão de Selwyn.
Sentiu a respiração de Fitz Autier em seu cabelo, seus braços poderosos em torno dela. As coxas dele envolviam-lhe os quadris, fazendo-a sentir-se pequena e inadequada. Fitz Autier estava pronto para a batalha, mas e ela e Osric? Estavam desprotegidos, e se Selwyn ordenasse que os arqueiros atirassem, ela e o irmão poderiam ser mortos ou feridos.
Estavam condenados, sabia que Selwyn jamais trocaria Ingelwald por ela. Se vencesse esta batalha, a rica propriedade do pai dela pertenceria a ele. Os normandos os matariam e Selwyn não teria rivais pela posse da propriedade.
— Selwyn não entregará Ingelwald por mim.
Fitz Autier nada disse, mas Aelia sentiu que prendia a respiração. Devia ter esperado uma troca pacífica, a vida dela por Ingelwald. Agora teria que conquistar o hall em luta. E executá-la por princípio.
— Depois que meu pai morreu, eu disse a Selwyn que não me casaria com ele. Só tem direito a Ingelwald se eu morrer.
O normando segurou as rédeas com forca e virou o cavalo, fazendo sinal a Sir Auvrai para segui-lo.
— Podia ter dito isto antes, mademoiselle.
O tom era áspero, raivoso.
Aelia ouviu a primeira flecha atingir a armadura de Fitz Autier, mas não o feriu. Cavalgou tão depressa que ela não conseguiu ver se o outro cavaleiro o seguira para a segurança das árvores. Estavam sob ataque e sentiu o normando se debruçar para protegê-la da chuva de flechas.
Não compreendeu o que estava fazendo. Por que apenas não a jogara na linha de fogo e ficara livre dela?
Os regimentos montados de Fitz Autier avançavam, mas os cavaleiros abriam caminho para seu líder enquanto ele recuava da linha de batalha. Chamou um de seus soldados de infantaria.
— Leve esta mulher e o irmão dela de volta ao acampamento! — ela sentiu suas mãos envolverem-lhe os braços e ele a deixou no chão — Amarre-os com segurança e não tire os olhos deles.
Então voltou em direção a Ingelwald, enquanto Sir Auvrai deixava Osric cair ao lado dela.
Os sons da batalha cresceram. Ela mal notou que suas mãos eram amarradas pelos guardas normandos, nem prestou atenção às pragas e queixas de Osric. Ouviu vozes zangadas de homens à distância e a batida de aço contra aço.
Um dos guardas a empurrou e começaram a voltar para o acampamento.
Ingelwald cairia diante de Fitz Autier. A certeza absoluta que sentiu abalou Aelia e ela caminhou cegamente pelo terreno irregular da floresta. Sua vida como a conhecera acabara, mas talvez a de seu povo pudesse continuar como antes. Eles não eram ameaça para estes bastardos normandos. A guerra era entre os nobres saxões e os invasores.
O povo de Ingelwald voltaria a suas choupanas e campos, mas Aelia temia pensar no que aconteceria a ela e Osric. Seriam vendidos como escravos aos escoceses que atacavam as terras de Ingelwald quando precisavam de gado ou de trabalhadores? Talvez Fitz Autier os mandasse para a Normandia, para um futuro de escravidão.
Ou talvez mandasse matá-los como um exemplo para seu povo conquistado.
A luta agora estava confinada ao terceiro nível do hall. Mathieu combateu ao lado de Auvrai até chegarem ao último reduto de resistência, defendido por apenas cinco homens.
Mathieu sabia que o homem que dava as ordens era Selwyn, o noivo desprezado de lady Aelia.
— Este é o verme que não quis negociar para salvar a vida de sua senhora. —gritou Mathieu para Auvrai — Preferiu roubar dela a propriedade a cuidar de sua segurança.
Auvrai não respondeu nem Mathieu esperava resposta, enquanto lutavam contra os saxões. A batalha foi dura e terrível, os golpes de espada e machado ressoando no hall.
Mathieu achou que chegara à hora de parar. Muitos de seus homens estavam mortos ou feridos, havia incêndios nas choupanas, as mulheres e crianças entravam em pânico, e ele perdeu a paciência.
— Entreguem-se! — gritou.
Selwyn respondeu, mas não era uma rendição.
— Último aviso, saxão! Renda-se e eu talvez poupe sua vida!
Selwyn atacou, mas Mathieu se protegeu e o feriu fatalmente. O saxão ainda tentou atingir Mathieu, mas caiu antes de levantar o braço.
Ainda havia dois guerreiros saxões em pé, mas quando viram Selwyn morto entregaram as armas.
— Peguem-no.
O maior dos dois jogou o corpo de Selwyn no ombro e desceu com ele as escadas até o hall principal, onde cavaleiros normandos ainda lutavam com seus oponentes saxões.
As lutas cessaram quando os homens de Ingelwald viram que Selwyn estava morto. Logo todos foram dominados pelos normandos, que lhes tomaram as armas e os levaram para fora.
A embriaguez da vitória dominou os soldados normandos e Mathieu sabia o que aconteceria se não tomasse providências para proteger o que não fora destruído.
—Auvrai, Gilbert! Controlem esses homens! Osbern! Procure cerveja... e comida. Quero a aldeia e todos os seus residentes a salvo! — ordenou Mathieu. Não começaria seu domínio como um lorde odiado.
Só muitas horas depois Ingelwald se tornou segura. Seus guerreiros estavam ocupados retirando destroços e apagando incêndios. As mulheres e crianças foram poupadas, assim como os homens que entregaram voluntariamente as armas. Mathieu fez a ronda, verificando os danos, tomando nota de tudo o que podia ser salvo. Caminhou pelo hall de Wallis e deu instruções sobre as posses pessoais do antigo lorde.
Entrou num quarto com janela para o pátio e percebeu que estava nos aposentos de lady Aelia. Não havia outra pessoa cujo tamanho fosse adequado para a cuir-bouilli, a armadura de couro endurecido, que estava sobre o estreito leito de penas. Quando pegou uma das luvas, viu como era pequena e ficou abalado ao pensar que poderia ter lutado com ela, se não tivesse ido ao acampamento na noite anterior e se tornado sua prisioneira. Teria presumido que combatia um adolescente, não uma mulher.
Ainda não decidira o que fazer com ela. Devia enforcar os dois para mostrar seu poder aos aldeões? Ou levá-la para Guilherme, para humilhação pública antes da execução?
As duas opções eram difíceis de aceitar, embora não soubesse por que se incomodava. Lady Aelia e o irmão não eram mais obstáculos para o que Mathieu desejava de todo o coração — esta terra e o prestígio de ser um dos campeões conquistadores de Guilherme — e o orgulho de trazer uma noiva bela e bem-nascida para cá, para sua rica propriedade.
Havia um instrumento de cordas encostado a uma das paredes do quarto e uma flauta de madeira belamente entalhada sobre uma arca aos pés da cama. Como gostava de entalhar, Mathieu percebeu que a peça era muito bem-feita e imaginou os lábios de Aelia no instrumento.
Abriu a arca e tirou diversas peças de roupa, pôs a flauta sobre a pilha, fez uma trouxa e levou-a para fora.
— Descubra um lugar para guardar isto — disse ele, entregando a trouxa a um de seus homens. — Guarde junto com a bagagem que vou levar para Londres.
Horas se passaram sem notícias do que ocorria no lar de Aelia, com seu povo. Quando sentiu o cheiro acre de fumaça, soube o que estaria acontecendo e jurou vingança.
— A aldeia! — disse a Osric — Eles incendiaram a aldeia!
Tantas choupanas, as lojas, os animais. Tudo seria destruído pelo bastardo normando, que tomaria as terras de seu pai e escravizaria seu povo.
— Eu o matarei. — disse Osric, erguendo-se. Mas um dos guardas normandos jogou-o de novo no chão. — E matarei você também!
— Cuidado, irmãozinho. — disse Aelia, segurando as lágrimas.
A vingança seria dela. De alguma forma, mataria o bastardo e lhe tomaria Ingelwald.
No fim da tarde, cavaleiros se aproximaram e desmontaram.
— Vamos levantar acampamento e levar estes dois de volta ao hall. — disse um deles.
Ninguém respondeu às perguntas de Aelia nem se incomodou com as pragas de Osric enquanto voltavam ao hall.
A fumaça densa só lhes permitiu ver o que acontecera quando chegaram ao caminho que levava à aldeia.
— Ainda está aqui! — exclamou Osric.
Aelia viu que quase todas as choupanas continuavam intactas, o curtume, a loja do tecelão, a taverna, nada fora destruído. Porcos e galinhas estavam soltos entre os edifícios e as pessoas a saudavam das portas.
Estava emocionada demais para responder e caminhou com dificuldade pela aldeia até o portão derrubado de Ingelwald. Dentro das muralhas, ouviu o som de choro. Ali estava a prova da brutalidade dos normandos.
O menor dos edifícios dentro das muralhas fora destruído pelo fogo. O hall permanecia em pé, porque fora construído com pedras, mas Aelia não tinha dúvidas de que o normando a derrubaria quando lhe fosse conveniente.
Osric apontou em direção à área ao lado da oficina do armeiro, onde havia uma longa fila de corpos no chão. Diversas mulheres se abraçavam e choravam junto deles.
Sem se incomodar com o cavaleiro que gritava com da, Aelia se encaminhou em direção às mulheres. Normandos e saxões mortos estavam dispostos lado a lado, como se não tivessem passado os últimos dias tentando matar uns aos outros.
As mulheres a chamavam, chorando seus mortos. O ódio de Aelia cresceu ainda mais, seu desejo de vingança tomando-lhe a mente.
— Uma arma. — disse ao irmão — Precisamos achar alguma coisa para usar contra esses estrangeiros.
— Nos corpos. — respondeu Osric — Um deles deve ter uma faca ou... Aelia, veja, é Selwyn.
Sim, o homem que fora escolhido para ser seu marido estava entre os mortos. Aelia sofreu por ele apenas por ser um saxão.
Escondendo o ódio, Aelia passou lentamente pelos corpos, parando diante de cada um para rezar e procurar uma arma. Chegou junto ao corpo de uma mulher, a única entre os guerreiros, e arquejou. Era Erlina Uma-Orelha, uma pobre velha que vivia numa choupana pequena no fim da aldeia. Nos últimos anos ficara louca, mas não perigosa.
— Foi assassinato. — disse a Osric.
— Não há ferimentos nela.
Aelia se virou para enfrentar Fitz Autier, que a olhava e se aproximou.
— Sei que está pensando o pior sobre mim e meus homens, mas não matamos esta mulher.
— Então como ela morreu?
— Talvez deva examinar o corpo e me dizer.
— Não sou médico, normando, mas ela também não era um soldado.
Ele vestia uma cota de malha longa, a cabeça descoberta. Com a barba de um dia e o corte na face, parecia imponente e ameaçador.
Mesmo assim, Aelia se sentiu perigosamente atraída por ele.
Mathieu tirou a faca do cinto e cortou a corda que a prendia a Osric.
— Leve-o aos alojamentos dos prisioneiros.
— Não! — gritou Aelia, segurando o irmão — Ele é apenas uma criança!
— Não sou criança, Aelia! — reagiu Osric com raiva — Ficarei com nossos homens até chegar a hora.
— Hora de quê, menino? — perguntou Fitz Autier, a voz perigosa.
Osric olhou o líder normando desafiador, depois falou entre dentes:
— Da minha execução, bastardo.
— Osric, não!
Mas, ao contrário de matar o menino, Fitz Autier fez um gesto ao guarda para levá-lo.
— O que vai fazer com ele?
Fitz Autier pegou a corda que amarrava as mãos de Aelia e a puxou.
— Melhor pensar no que vou fazer com você, mademoiselle.
Aelia seguiu-o até o grande hall, onde a enorme lareira estava acesa e proporcionava a única iluminação na grande e escura sala. Diversos normandos feridos estavam deitados em catres no chão, dormindo ou gemendo de dor.
Fitz Autier continuou a caminhar, puxando Aelia até chegar às escadas, e a fez subir na frente.
— Para onde está me levando?
— Continue a andar.
— Eu... eu estou com fome.
— Gilbert! — não parou de andar enquanto gritava — Mande comida.
— Você... você não pode... eu...
— Diga o que tem a dizer, mademoiselle. Até agora não teve dificuldade de dizer o que pensa.
Subiram até o andar mais alto e chegaram ao aposento no alto da torre, que era o quarto de seu pai.
Fitz Autier libertou-lhe as mãos.
Aelia sentiu o sangue lhe fugir do cérebro enquanto olhava o quarto antes tão familiar. Os objetos de Wallis tinham desaparecido, os cortinados da cama de penas haviam sido tirados e as arcas de Wallis não estavam mais lá. Um cobertor fino se encontrava nos pés da cama e uma grande armadura se erguia no canto mais distante, ao lado de um tamborete de três pernas.
O usurpador se mudara para o quarto de seu pai, como se tivesse o direito de estar lá, como se o seu pai nunca tivesse sido o senhor do lugar.
— Nada disso é seu!
—Acha que não, minha senhora? — tomou-lhe o braço e levou-a rudemente até a janela — Observe. Tudo o que vê é meu. Foi conquistada, saxã.
Aelia se voltou para golpear-lhe o rosto arrogante, mas ele segurou a mão e a pressionou contra o metal frio da cota de malha. Era o lugar onde não pulsava um coração normal, mas um coração frio e cruel.
Mas não a agrediu. Abaixou a cabeça até que os lábios ficassem a um milímetro de distância dos dela.
E então a beijou.
Queria puni-la por sua impertinência, seu total desprezo pela autoridade dele. Lady Aelia precisava compreender quem estava no controle em Ingelwald, e não era ela.
Luxúria não fazia parte de suas ações. Estava apenas afirmando seu domínio quando obrigou a boca a se abrir sob a dele, quando sua língua tocou a dela, quando virou a cabeça para ter melhor acesso aos lábios.
No entanto, odiou a cota de malha que o impedia de sentir-lhe os seios macios apertados contra o peito, as batidas apressadas do coração. Os ombros de Aelia eram pequenos e submissos sob suas mãos endurecidas pela guerra. As costas eram estreitas, a estatura surpreendentemente delicada para uma natureza tão feroz.
E Mathieu queria consumi-la. Passou-lhe as mãos pela cintura, tocando-lhe os quadris quando a boca desceu para seu queixo, depois a orelha e o pescoço, bebendo, sentindo seu gosto. Era um elixir poderoso que o drogava, dissolvia seu bom senso.
E quando percebeu isso, afastou-se.
Mathieu soltou Aelia tão subitamente que ela perdeu o equilíbrio e deu um passo para trás. O rosto estava afogueado e ele viu confusão nos olhos verdes, mas Gilbert de Bosc abriu a porta e entrou antes que qualquer um dos dois dissesse uma palavra.
— Seu jantar, Sir Mathieu.
— Ponha sobre a cama. — disse Mathieu, enquanto outros dois homens entravam. Carregavam uma grande arca e um lavatório, que deixaram nos cantos do quarto.
Mathieu sentou na cama e se voltou deliberadamente para a comida. O beijo nada significara, fora apenas um meio de demonstrar seu total domínio sobre ela.
— Há saxões lá embaixo prontos para jurar-lhe lealdade, Sir Mathieu.
— Não!
Choque e indignação eram evidentes na voz de Aelia, mas Mathieu cuidadosamente evitou olhar para ela. Serviu-se de cerveja e bebeu com gosto.
— Dê-lhes alimento e diga-lhes que esperem por mim.
— Você os suborna por lealdade! Você conquistou uma fidelidade muito precária, normando.
Mathieu se levantou abruptamente.
— O que lhe dá tanta certeza, lady Aelia? O que mudou para essas pessoas, além do nome do senhor feudal?
— Elas...
— Nada. Eles continuarão a viver como antes, mas no futuro terão um senhor que os protegerá.
— Que ficará rico com o trabalho deles.
— Como seu pai?
— Nosso povo respeitava e reverenciava Wallis! Era um homem justo e generoso...
— Que mimava os filhos. Pare de tagarelar agora e coma antes que o alimento seja levado!
Ele saiu e deixou a porta bater.
— Ela não poderá deixar este quarto. — disse aos guardas.
— Sim, barão.
Não conseguia descer as escadas rápido como desejava. A mulher era impossível e ele tinha coisas mais importantes a fazer enquanto permanecia em Ingelwald.
Aelia procurou armas, mas não achou nenhuma. Abriu a porta, mas os dois guardas não a deixaram passar.
— Sou prisioneira aqui? — perguntou, altiva.
— Sim, minha senhora. — respondeu um deles.
Aelia voltou indignada ao quarto e bateu a porta com força. Podia apenas andar de um lado para o outro, amaldiçoando seu captor normando repetidamente.
Estava com fome antes, mas o beijo lhe tirara o apetite. O que estava pensando quando lhe permitira tanta intimidade? O homem massacrara seu povo e lhe roubara o lar. Amarrara e aprisionara seu irmão e se apropriara do quarto de seu pai.
A verdade é que não estava pensando. O beijo tinha sido pura sensação... um calor que gelara sua mente e aquecera seu corpo. Não pensava que um simples beijo pudesse fazer uma coisa assim e se perguntou se Fitz Autier sentira a mesma coisa.
Não, provavelmente não, ou não teria se afastado quando ela começava a sentir as mesmas sensações arrebatadoras que experimentara na noite anterior.
Aelia decidiu pensar em coisas mais produtivas, como uma forma de derrotar o cavaleiro normando.
Seu exército era mais poderoso do que qualquer um que conseguiria reunir, mas se morresse seus homens se renderiam e lhe devolveriam Ingelwald. Mas como o mataria sem armas?
Aelia se sentou na cama, lembrando-se das contradições entre o comportamento do normando e sua reputação. Havia menos mortos do que esperava, todas as mulheres e crianças haviam sido poupadas, a aldeia não fora destruída. E ela e Osric não tinham sido mortos depois que Selwyn se recusara a se render.
Nada disso teria acontecido se Guilherme não tivesse enviado seus cavaleiros para todos os cantos da Inglaterra para consolidar sua conquista e fortalecer seu trono.
Seu pai estaria vivo. Nunca sentira tanta necessidade de seu conselho e da segurança que lhe dava. Sentia-se como uma criança perdida, frágil e vulnerável.
Pressionou as mãos contra o peito e caiu de joelhos ao lado da cama. Não tivera tempo para chorar a morte do pai, ocupada com as providências para defesa do hall. Agora, deitava o rosto na cama e chorava por seu pai, por Godwin e por tudo que havia sido perdido.
Mathieu estava cansado da guerra. Depois de dois anos de morte e destruição, queria apenas instalar-se em Ingelwald e viver em paz. Não era tolo, porém, e sabia que os saxões de Wallis, que juraram lealdade a ele e a Guilherme, queriam apenas continuar vivos.
Auvrai d'Evreux ficaria em Ingelwald para manter a ordem quando Mathieu fosse para Londres e cuidaria do reforço das muralhas e das melhorias no hall. Quando Mathieu se casasse com lady Clarise, ela teria um belo lar em Ingelwald.
Pegou uma lamparina e começou a subir as escadas para o quarto principal. Seria bom dormir, mas não sabia se seria capaz de descansar com lady Aelia no quarto...
O som de aço desembainhado fez Mathieu se voltar rapidamente e pegar a espada. A figura no corredor estava nas sombras, mas sua lâmina brilhava, pronta para atingir seu peito. Com um gesto de resignação, Mathieu ergueu a espada e esperou. O atacante se moveu e Mathieu viu que era um adolescente. Mas sua idade não o impediria de matar.
—A senhora... — disse o rapaz — Não tem o direito.
Falava francês razoavelmente, com um forte sotaque, e a mão que segurava a espada tremia.
— Quer proteger lady Aelia de mim?
— Ela é a senhora de Ingelwald. Todos os homens aqui a protegem... e a honram...
— Sua devoção é admirável. Não tenho intenção de ferir a senhora.
— Solte-a! — exigiu o jovem.
Mathieu sentiu a espada feri-lo e controlou a dor.
— Isto não será possível.
E então se virou para a direita e, com um golpe súbito, arrancou-lhe a espada das mãos. Dois guardas chegaram, mas a situação já estava sob o controle de Mathieu.
— A lealdade é uma grande virtude e por isto sua vida será poupada. — Mathieu virou os braços do jovem para trás.
Pálido de raiva ou medo, o saxão não respondeu.
— Qual é o seu nome?
— Halig.
Mathieu entregou-o aos guardas.
— Prendam-no com os outros.
— Lady Aelia é uma boa mulher, normando. Você a prendeu...
— Ela não será ferida se souber como se comportar.
Mathieu não culpava Halig por tentar proteger Aelia, era o que faria se a rainha Mathilda ou outra mulher inocente estivesse em perigo. Mas Aelia não era inocente, vestira armadura e erguera o arco contra seus homens. O próprio Mathieu tinha um grande corte na face feito por uma flecha lançada por ela.
Mas tinha a lealdade e o amor de seu povo. Mathieu percebera a homenagem que prestaram a ela quando caminhara até Ingelwald. Velhos e jovens a reverenciavam. Fora a derrota de Aelia, e não a de Selwyn, que entregara Ingelwald a Mathieu.
Continuou a subir as escadas, mais cuidadoso quando se aproximou da porta do quarto principal. Um dos guardas ainda estava de sentinela. Mathieu passou por ele e entrou no quarto esperando um ataque, embora soubesse que lady Aelia não tinha arma.
E então a viu, a cabeça sobre os braços cruzados na cama, o corpo no chão. Os olhos fechados, a respiração lenta e regular. O alimento na bandeja estava intocado, embora tivesse reclamado de fome antes.
Não era problema dele. Se não quisesse comer, nada faria, apenas a observaria morrer de fome.
Mas ele a poria na cama e depois cuidaria de seu novo ferimento.
Mathieu se curvou para pegá-la e ouviu o pequeno som que ela emitiu, um som de desespero. E suas faces estavam úmidas.
Mathieu tomou-a nos braços, deitou-a na cama, tirou a bandeja e a colocou sobre a arca, cobrindo Aelia com o cobertor. Depois se afastou, deixou a cota de malha escorregar dos ombros e desatou a túnica, caminhando em direção à lamparina.
Toda a parte inferior do lado direito estava coberta de sangue.
Com uma praga sussurrada, tirou a peça de tecido que usava sob a túnica e estudou o ferimento. Era bastante profundo e precisava ser costurado.
Abriu a porta e mandou que o guarda fosse procurar Sir Auvrai, que sabia mais sobre cura do que qualquer cirurgião que Mathieu conhecia. Então fechou a porta e foi até o lavatório, onde havia uma bacia de água e diversas toalhas limpas.
— O que aconteceu?
Mathieu se voltou e viu Aelia se levantar. Mesmo à distância percebeu que seus olhos estavam vermelhos e cansados.
— Está sangrando. O poderoso cavaleiro normando se feriu com a própria espada?
— Foi um golpe de sorte de um admirador seu. — ele lhe virou as costas, mas ouviu o som de seus passos se aproximando — Por que não está dormindo?
— Não tinha a intenção de dormir.
Mathieu prendeu a respiração quando ela tocou o corte.
— Precisa ser costurado.
— E o que sabe sobre isso?
— Mais do que gostaria. Dê-me isto. — ela lhe tomou a toalha e limpou o ferimento com cuidado.
— Você não comeu.
— Ver um normando no quarto do meu pai me embrulhou o estômago.
Mathieu segurou a respiração quando ela uniu as duas partes do ferimento. O toque era delicado e habilidoso.
— Você sabe o que está fazendo, mademoiselle.
— Não por minha escolha, normando. Meu pai disse que era dever de uma senhora cuidar dos doentes e feridos da propriedade. Aprendi tudo o que sei de Erlina, a velha senhora que encontrei morta no pátio. Era uma boa curandeira antes de enlouquecer. — Aelia pegou uma toalha limpa e molhou-a na água. — O ferimento não é grave.
— Foi feito por um de seus admiradores, defendendo sua honra.
A mão de Aelia se imobilizou e ela olhou para Mathieu com desprezo.
— Você o matou?
— Era apenas um menino, é claro que não o matei...
Uma batida forte na porta interrompeu-o.
— Entre!
Era o arauto, Gilbert de Bosc, carregando a bolsa de couro na qual Sir Auvrai guardava seus remédios. Gilbert não era um guerreiro, mas tinha fluência na língua saxã, tinha capacidade administrativa a ajudava a cuidar dos doentes e feridos.
— Sir Auvrai estará aqui dentro em pouco.
— Diga a ele que não se incomode, lady Aelia cuidará de mim.
Mathieu pegou a bolsa e entregou-a a Aelia.
— Barão, tem certeza...
— Auvrai tem deveres mais urgentes e a senhora me convenceu de que é competente.
Parecia quente demais no quarto. Aelia abriu as janelas para deixar entrar o ar da noite antes de se voltar mais uma vez para o peito nu e os músculos poderosos do normando. Não seria possível dominá-lo. Mesmo assim, a espada estava de lado e ele deixara a adaga sobre o lavatório. Se pudesse...
— Se está pensando em me ferir, mademoiselle, aconselho-a a reconsiderar.
Aelia mordeu o lábio e suspendeu as mangas.
— Será mais fácil se você se deitar na cama.
Ele puxou o tamborete para perto da lamparina e se sentou, os joelhos separados.
— Assim está bem.
— Espera que eu me ajoelhe diante de você?
— Faça o que quiser, mademoiselle, mas costure o ferimento.
Ele ergueu o braço direito e descansou-o no lavatório, dando a Aelia acesso melhor ao ferimento e uma visão também melhor de seu peito e ombros musculosos. Aelia não tinha dúvida de que a exibição tinha a intenção de intimidá-la.
Olhou o ferimento e a agulha em sua mão. Seriam necessários cinco pontos para ficar fechado, mas sabia como transformá-los em dez. Havia mais de uma forma de matar um normando e ela a descobriria antes do fim da noite.
Mathieu fechou a mão esquerda e pressionou-a contra o quadril, enquanto Aelia costurava sua pele. Concentrou-se em sua boca enquanto ela trabalhava, naqueles lábios macios e rosados que haviam respondido tão intensamente ao seu beijo.
Sabia que seria melhor se pensasse em outra coisa, mas ela estava tão perto que podia ver as sardas leves em seu nariz e a fina linha de uma pequena cicatriz que saía do canto do olho esquerdo. Podia sentir sua respiração quente e ver os mamilos firmes contra a lã macia de sua túnica.
Ele respirou fundo.
— Coragem, normando. — disse ela, sem perceber que ele mal notara os pontos que dava. Ela se debruçou mais e diversas mechas de seus cabelos roçaram-lhe o peito. — Ainda não acabei.
Mathieu cerrou os dentes. Seria tão fácil beijá-la de novo, erguê-la e levá-la para a cama, deitá-la de costas e fazê-la esquecer que era o inimigo.
Mas sabia que seria melhor se concentrar na agulha que lhe perfurava a pele. Deitar-se com lady Aelia seria sua pior decisão, a situação já era complicada demais.
— Chega, mulher! — empurrou Aelia e se levantou.
Gritos do lado de fora lhe chamaram a atenção e Mathieu foi à janela ver o que acontecia.
— Deus do céu! O armazém de grãos está em chamas!
O local onde os prisioneiros eram mantidos. Ele vestiu a túnica rapidamente, agarrou a espada e, tomando a mão de Aelia, correu para fora.
— Para o armazém! — gritou ao guarda enquanto passava.
— Osric! — gritou Aelia enquanto desciam correndo a escada — Meu irmão está naquele prédio!
— E você vai ficar aqui, no bali, com Sir Gilbert e os feridos; enquanto eu o tiro de lá.
Mathieu sabia que ela resistiria, mas não deixaria que ela se juntasse ao caos do lado de fora. Precisaria de todos os seus homens para apagar o fogo e salvar os prisioneiros. Não havia tempo para cuidar de lady Aelia.
Enquanto fechava o cinto da espada, empurrou-a para uma cadeira contra a parede e ela caiu sentada. Estava vermelha, indignada.
— Vou para fora!
Tentou se levantar, mas ele ficou em pé diante dela, os joelhos prendendo os dela. Tentou empurrá-lo, mas Mathieu impediu, debruçando-se sobre ela e pondo uma das mãos em cada braço da cadeira. Abaixou-se mais.
— Mademoiselle, você ficará aqui e não dará trabalho a Gilbert. Encontrarei seu irmão e o salvarei.
— Não! Não pode me deixar aqui!
— Sim, eu posso. Gilbert! Amarre lady Aelia e não a deixe sair.
Um momento depois, desceu as escadas e correu em direção ao armazém.
Aelia não perdeu tempo e correu também, perseguida por Sir Gilbert, que precisou parar para atender um dos feridos. Ela se aproveitou da situação, correu para a porta e saiu.
Uma fumaça densa enchia o pátio, sufocando Aelia. Mas, sem se preocupar, foi em direção à fonte da fumaça, o armazém onde Osric e os outros saxões estavam presos. Já havia uma fileira de homens, mulheres e crianças passando baldes com água em direção ao estábulo, que ficava ao lado do armazém, e outra que levava os baldes vazios até o poço.
Normandos e saxões trabalhavam juntos para impedir que o fogo se alastrasse. O calor era insuportável.
O fogo chegara ao telhado do estábulo e homens tiravam os cavalos. Deram o armazém como perdido, o lugar em que Osric estava preso.
Aelia correu até a frente da fila de água, enquanto um normando pegava o balde vazio do telhado do estábulo e o entregava ao primeiro da fila.
— Todos saíram do armazém?
— Quem sabe? Pelo menos alguns saíram, mas não sei se ainda tem alguém lá.
— E um menino, pequeno, de cabelo vermelho?
O normando pegou o balde com água e o entregou ao homem sobre o telhado. Aelia agarrou-lhe o braço.
— O menino! Você viu um menino sair do armazém?
— Não. Saia ou ajude, senhora, aqui não há lugar para quem não está fazendo nada.
O coração de Aelia quase parou. Se Osric ainda estivesse dentro do armazém, morreria queimado.
Ouviu Fitz Autier gritando ordens e olhou em direção à voz. Ele tirara a túnica e estava em pé sobre o telhado do estábulo, jogando a água dos baldes que lhe eram entregues.
Aelia fugiu antes que ele a visse, pegou um pano do chão, cobriu a cabeça e a boca, rezou em silêncio e correu para o prédio em chamas.
O calor era pior lá dentro. Sua garganta queimava e os olhos se encheram de lágrimas enquanto procurava nos espaços tomados pela fumaça.
— Osric!
O armazém estava quase vazio, mas as pilhas de destroços dificultavam-lhe a passagem. Pressionou o pano contra a boca e o nariz. Uma viga caiu e ela tropeçou.
— Osric!
A voz de Aelia estava rouca e temia que Osric não a ouvisse. Precisava seguir em frente, ele poderia estar desmaiado.
Ouviu um gemido e se aproximou.
— Onde você está?
—Aqui!
Não era Osric, mas um homem velho chamado Leof, que fora guerreiro de seu pai. Aelia arrastou-se até o homem e o ajudou a se sentar.
— Viu Osric?
— Não, minha senhora.
— Precisa sair daqui!
— Não posso caminhar, minha perna está quebrada.
O fogo aumentava em torno deles. Não havia esperanças de achar Osric e Aelia sabia que teria sorte se conseguisse sair com Leof do armazém.
— Vou ajudá-lo, apóie-se em mim!
Outra viga caiu perto e Aelia sabia que o telhado desabaria a qualquer momento. De alguma forma, conseguiu ajudar Leof a ficar de pé. Pôs o braço dele em torno de seus ombros e segurou-o, suportando-lhe o peso enquanto ele mancava em direção à porta. Mas Aelia mal sabia para onde estava levando-o.
— Não consigo respirar. — disse Leof.
— Continue andando!
Aelia ouviu uma voz masculina chamar seu nome e se perguntou se fora imaginação. Outra viga caída a fez mover-se.
— Venha, Leof, falta pouco!
—Aelia!
O rosto de Fitz Autier surgiu diante dela. Não perdeu tempo, abaixou-se, jogou Leof sobre um dos ombros e correu, gritando para Aelia:
— Venha!
Ela o seguiu, confiando em que ele soubesse como sair. Mas estava desesperada pela perda de Osric. O prédio estava prestes a desabar e seria impossível voltar. O fogo era insuportável e provavelmente Osric já estava morto.
— Ande, Aelia! Não posso carregar vocês dois!
Aelia se indignou. Fitz Autier jamais teria de carregá-la. Apressou-se e ficou ao lado dele, evitando os destroços que caíam.
Uma parede de chamas se erguia atrás deles e Fitz Autier agarrou-lhe a mão, puxando-a até que estivessem fora do prédio e em segurança. Aelia deixou-se cair no chão, tossindo e tentando respirar.
Segundos depois, o armazém desabou.
Fitz Autier deitou Leof no chão e se ajoelhou ao lado de Aelia, também tentando recuperar a respiração. Seus braços nus brilhavam de suor e o rosto estava coberto de cinzas.
— De todas as idiotices... Em que estava pensando, quando foi até lá?
— Osric! Ele...
O impacto total da perda a atingiu e Aelia começou a chorar. Falhara em seu dever para com Ingelwald e não conseguira salvar Osric. O que acontecesse com ela agora não tinha importância. Se Fitz Autier quisesse matá-la ali, naquele momento, seria apenas o que ela merecia.
Aelia se levantou e contemplou o lugar da morte do irmão. Depois se virou, desesperada, as lágrimas correndo pelo rosto sujo, e se afastou dos destroços ainda em chamas. E então, a visão nublada pelas lágrimas, percebeu o grande e louro cavaleiro avançando em direção à multidão, arrastando com uma das mãos um menino que esperneava e gritava. Osric!
— Digam ao bastardo para me soltar! — gritava, como se fosse o senhor, como se não tivesse acabado de escapar da morte.
Tonta, Aelia ficou de pé apenas porque alguém lhe passou o braço pela cintura e a segurou por trás.
— Osric!
O rosto sem expressão, Auvrai d'Evreux segurava Osric pela nuca enquanto o puxava em direção a Aelia, jogando-o sem cerimônia aos pés dela.
— Foi ele quem pôs fogo no armazém.
— Você mente, normando, meu irmão nunca...
Osric ficou em pé num pulo e se afastou de Sir Auvrai.
— Eu sabia que eles tinham que nos libertar se o prédio pegasse fogo!
— Osric, não! Você podia ter matado tantas... — Tentou engolir, mas a garganta estava seca. Certamente Osric compreendia o perigo de um incêndio no centro da aldeia. E agora se arriscava a uma retaliação imediata dos normandos. — Leof quase morreu lá dentro.
— Como sua irmã, menino — disse Fitz Autier. Ele manteve uma das mãos na cintura de Aelia enquanto confrontava Osric. — Prenda-o de novo com os outros prisioneiros, Auvrai. O menino é uma ameaça, precisa ser vigiado dia e noite.
— Por favor, deixe-me ficar com ele! — pediu Aelia, aliviada por mais uma vez Fitz Autier evitar matar os dois.
— Não, ele ficará sob guarda até eu decidir o contrário.
Com pouco esforço, Auvrai ergueu Osric e jogou-o sobre o ombro. O cavaleiro parecia indiferente aos pontapés e socos do menino enquanto o levava para longe de Aelia, que de repente se sentiu sem peso e teria caído se Fitz Autier não a segurasse.
— Mas posso fazer com que ele não cause mais danos.
— Não, mademoiselle, ele não é mais sua responsabilidade.
— Ele é meu irmão, eu...
— Chega! Olhe em torno!
As pessoas estavam quietas agora, todas olhando com desprezo enquanto Sir Auvrai carregava Osric para longe. Ouviram o menino admitir que pusera fogo no armazém, arriscando a vida de muitos saxões e dos prédios da aldeia. O armazém estava destruído e o estábulo em estado lastimável.
Os saxões deviam considerar Osric o inimigo agora, não Fitz Autier, que arriscara a vida sobre o telhado do estábulo, lutando para apagar as chamas.
Mathieu estava furioso e não sabia o que o deixava com mais raiva, saber que o moleque saxão tinha intencionalmente começado o incêndio ou ver Aelia correr para o prédio em chamas.
Podia ter morrido.
Forçou-se a soltá-la. O que quer que sentira quando a viu correr para o armazém em chamas fora apenas um desvio momentâneo de seu objetivo. Precisa dos prisioneiros vivos e bem para viajar para Londres, era o que o rei Guilherme queria.
— Para onde seu cavaleiro vai levar Osric?
O rosto e as roupas de Aelia estavam muito sujos. Uma das mangas da túnica se rasgara no ombro, onde havia uma grande queimadura. Diversos dos pontos que dera no ferimento de Mathieu tinham se rompido, mas ele achava que ainda havia o suficiente para manter a ferida fechada.
— Espero que Auvrai encontre uma gaiola para prendê-lo.
Os olhos de Aelia passaram pelas pessoas em torno.
— Nosso povo... eles estão olhando para Osric como se ele fosse um demônio.
— De que você chamaria alguém que tentasse queimar cinqüenta homens vivos?
— Ele não pretendia ferir ninguém — refutou.
— Diga isso ao velho, tenho certeza de que ficará feliz em saber.
Mathieu estava abalado pelo desastre. Todos os homens no armazém poderiam ter morrido queimados; todos os prédios de madeira no interior das muralhas de Ingelwald poderiam ter sido destruídos. Seria um mau começo para a soberania de Mathieu sobre a região. E diversos animais valiosos tinham morrido no incêndio do estábulo.
Devia ter tornado real sua ameaça de executar Aelia e o menino. Nada disso teria acontecido desde o ataque de Halig na escada, que resultará no ferimento que o incomodava tanto, até o imenso anseio de arrastar Aelia para seu quarto e mergulhar nela até que não soubesse mais onde ela acabava e ele começava.
— Ele ainda é muito jovem, não compreende que...
— O menino não tem disciplina nem bom senso, é irresponsável.
— O que vai fazer com ele?
— Ele não é mais assunto seu, mademoiselle.
Mathieu puxou Aelia em direção ao hall. Auvrai encontraria um lugar adequado para prender o menino durante a noite, e cabia a Mathieu fazer a mesma coisa com Aelia.
— Ele é assunto meu. — Aelia parou diante dele, voltando-se para pôr as mãos em seus braços. Ele não deveria ter sentido o desejo intenso que seu toque lhe despertara.
Mas a sentira uma vez e seu corpo faminto queria mais.
— Hugh! Durand! — chamou dois cavaleiros que haviam chegado a Ingelwald antes, com Gui de Reviers, ignorou o suplicante olhar de Aelia e entregou-a a eles — Descubram um lugar seguro no hall e tranquem-na, não a deixem sem vigia.
Cada homem segurou um de seus braços e eles a levaram, sem ter cuidado com seu ombro ferido. Esses dois não a deixariam escapar, como Gilbert fizera.
Mathieu voltou ao estábulo, subiu ao telhado e ajudou a apagar as últimas chamas antes de mudar de idéia sobre o que deveria ser feito com Aelia.
O pequeno quarto em que Aelia estava presa cheirava mal, por falta de uso e por seu corpo e suas roupas sujas. A vela que haviam lhe deixado queimara quase até o fim e, embora não houvesse janelas na pequena despensa, sabia que já amanhecera por que podia ouvir o som distante de pássaros cantando.
Eles tinham que deixá-la sair.
A única coisa que havia na despensa eram os quatro sacos vazios de estopa que usara como cama quando a exaustão prevalecera sobre a tristeza e a preocupação. Agora que estava acordada de novo, voltou a temer por Osric. Foi até a porta e bateu com os punhos fechados, ignorando a dor no ombro.
— Abram a porta!
Não houve resposta e Aelia voltou a caminhar como fizera na noite anterior, quando fora trancada.
Não entendera a expressão nos olhos de Fitz Autier quando a mandara embora com seus homens, mas temia já ter decidido condenar seu irmão à morte.
O que mais poderia fazer? Osric fizera o impensável. Em seu anseio por libertar os prisioneiros saxões, inclusive ele mesmo, pusera todos em perigo em Ingelwald.
Era uma criança tola e tinha que convencer Fitz Autier a levar isto em consideração, se ainda não mandara executar o menino.
Limpou as lágrimas e bateu de novo na porta.
— Levem-me até Fitz Autier! Preciso falar com ele! — se houvesse algum normando capaz de matar uma criança, este seria Fitz Autier. A reputação dele por impiedade o precedera. Durante meses ouviram boatos sobre suas ações, sobre o preço terrível que cobrara dos lordes saxões que vencera.
E de repente ouviu o som das trancas sendo retiradas. A porta se abriu e Durand agarrou-lhe o braço, puxou e jogou-a para a frente. O homem era moreno como Fitz Autier, tinha uma cicatriz na face e uma expressão de crueldade nos olhos cinzentos que Aelia nunca vira nos olhos de Fitz Autier. Era musculoso como o normando que matara seu pai na batalha contra Gui de Reviers, mas o cavaleiro usara elmo e Aelia não vira seu rosto. Ela se encolheu ao toque de Durand e puxou o braço, enquanto o outro guarda dizia:
— Fitz Autier quer vê-la.
— Onde está meu irmão? O que fizeram com ele?
Durand golpeou-a no rosto, jogando-a no chão. Aelia ficou atônita com a brutalidade do homem, embora não devesse.
— De pé, mulher!
Em silêncio, ela fez o que lhe ordenavam e os homens a flanquearam enquanto se encaminhavam para o grande hall, onde Gilbert ainda cuidava dos feridos.
Aelia mordeu o lábio para impedir que o queixo tremesse enquanto caminhavam para fora. Era uma manhã úmida e chuvosa, mas estava contente de sair de seu confinamento.
Fitz Autier estava de pé diante da casa de pães da aldeia, parecendo limpo e descansado, um manto negro sobre a cota de malha e calções escuros e apertados nas pernas. Parecia não se importar com a chuva enquanto conversava com o cavaleiro que levara Osric na noite anterior. Fitz Autier se voltou de leve, seu olhar encontrou o de Aelia e pareceu ter parado de falar.
Um momento depois Aelia compreendeu que devia ter se enganado, porque ele continuou a conversa com Sir Auvrai como se não tivesse notado sua presença. Ela tropeçou e quase caiu, mas seus guardas eram impiedosos e a empurraram em direção ao estábulo, onde havia uma égua encilhada.
— Monte.
Aelia estremeceu. Não podia deixar Ingelwald sem perguntar por Osric nem cavalgar sem saber seu destino, mas receava questionar, sabia que levaria outra pancada.
— Maldita saxã inútil, com certeza nem sabe cavalgar.
Ela evitou uma resposta e montou. Sir Hugh segurou o freio e os dois a levaram para junto de Fitz Autier, ainda diante da casa de pães. O barão normando não tomou conhecimento dela e montou seu corcel. Diversos homens cavalgaram até o portão e esperaram por ele... e por ela. Aelia lutou contra as lágrimas e tentou se compor, para perguntar por Osric... e por seu destino.
— Durand! Hugh! Minhas ordens incluíram maus-tratos à prisioneira?
Sua voz era baixa e ameaçadora. Ele mantinha disciplina rígida em seu exército e estava claro que haviam ido além de suas ordens.
À pergunta de Mathieu, Hugh pareceu envergonhado, mas a expressão de Durand se tornou sombria. Mathieu não prestara atenção no homem antes, mas percebia agora sua atitude de desafio e superioridade, o que não seria tolerada.
— Não, meu senhor. — respondeu Hugh, mas Durand ficou calado.
— Entreguem-se a Sir Auvrai. Terão a tarefa de cuidar do estábulo, do estrume ao teto.
Mathieu sentiu os olhos de lady Aelia sobre ele enquanto dava a ordem, depois se voltou e cavalgou através do portão de Ingelwald para os campos além.
— S... senhor... — ela gaguejou.
O vergão em sua face não o preocupava. Não era mais uma nobre, mas simplesmente sua prisioneira, tomada na batalha pela propriedade. Era sua escrava e, se o rei Guilherme não mandasse executá-la em Londres, sem dúvida a mandaria para a Normandia, onde seria obrigada a servir em uma de suas muitas propriedades.
Ela o alcançou.
— Meu irmão...?
— Ficará sob custódia aguardando minha vontade, mademoiselle. — evitou perceber a preocupação nos olhos dela, seus problemas não lhe interessavam — E sua cooperação compra a permanente boa saúde do menino.
Quando Mathieu a entregasse aos homens do rei em Londres, seria o fim de qualquer ligação entre eles. Pretendia se ocupar com as celebrações de seu noivado e de sua vitória em Ingelwald e não teria tempo para pensar em lady Aelia ou em seu destino.
— É hora de me mostrar Ingelwald.
— Mas eu...
— Mademoiselle, você é qualificada para fazer isto, e com você não há problemas de linguagem. Quero avaliar a propriedade antes de voltar a Londres.
— Ingelwald é grande demais. — disse finalmente, sem dúvida pensando na perigosa posição de Osric — Seu limite ao sul fica a dois dias de distância do hall.
— Ótimo, vamos para o norte.
— Como quiser, senhor.
As palavras eram curtas, a postura rígida enquanto cavalgava ao lado dele. A chuva da manhã se transformara num chuvisco tedioso e as roupas sujas e rasgadas de Aelia logo ficaram ensopadas. Embora o clima fosse ameno, Mathieu sabia que ela ficaria gelada.
— Pegue isto. — disse ele, tirando a capa dos ombros — Vista-a.
Ela a pegou e a enrolou nos ombros como um xale, cobrindo a cabeça.
— Obrigada. O caminho se encontra com o rio além daquelas árvores.
— Ele flui para o sul?
— Em partes. Tem uma rota sinuosa, mas flui principalmente para leste.
— Pelo caminho do moinho e da muralha norte de Ingelwald?
— Sim.
— E o que fica a oeste, além daqueles campos?
— As colinas no horizonte são de Ingelwald e para lá são levados os carneiros para pastar. Além das colinas já é Grantham, propriedade de Fugol o Ousado.
Não mais. Fugol fora levado para Londres quando o Barão Richard Louvet conquistara a propriedade do lorde saxão. Mathieu vira o homem ser enforcado em Londres um ano antes. Ele limpou a garganta.
— Quantos carneiros?
— Centenas.
Estava explicado por que Wallis lutara tanto pela propriedade. Era muito mais rica do que Mathieu esperava, mais rica do que a de seu pai na Normandia. Autier de Burbage não gostaria quando soubesse que um de seus muitos bastardos era mais rico que ele.
— E os ataques dos escoceses? Eles atravessam os limites para pilhar?
— Não, meu pai mantém... mantinha patrulhas que impediam sua entrada nas terras.
— E sem essas patrulhas?
— Enquanto vocês, normandos, nos sitiavam, provavelmente os escoceses vieram das colinas e roubaram todo o gado que estava pastando. Provavelmente agora você é dono de dez carneiros e cinco bois.
Mathieu ignorou o tom satisfeito e olhou em direção às colinas. As nuvens tinham se afastado e o dia estava quente e limpo, porém mal podia ver os pontos brancos, os carneiros de Ingelwald. Precisavam ser vigiados a começar de hoje. Mas era problemático, tinha planejado voltar a Londres com um grande contingente de homens. Agora esses homens seriam obrigados a ficar em Ingelwald e defendê-la dos ataques escoceses.
Se pelo menos não precisasse voltar a Londres... Talvez fosse melhor viajar com menos homens, assim poderiam se mover mais depressa e atrairiam menos atenção, mas teria de ser cauteloso. Havia saxões escondidos nas florestas, prontos para atacar viajantes descuidados. Havia também dinamarqueses sem terras, que não gostavam dos normandos.
O grupo de Mathieu cavalgou para o norte à margem do rio até ele ficar mais largo e se tornar uma torrente, com águas rápidas e abundantes.
— Onde é a cachoeira?
Aelia olhou-o, atônita.
— Nunca é bom subestimar o inimigo, mademoiselle. É claro que há uma cachoeira perto, com o rio mais largo e as corredeiras. E o terreno sobe muito à frente. A que distância fica?
Aelia apertou os calcanhares na égua e saiu a galope. Seu movimento foi inesperado e Mathieu não sabia se era uma tentativa de escapar ou de levá-lo a uma armadilha.
Ela saberia se havia escoceses esperando na próxima curva? Ou talvez saxões acampados nas imediações? Não, muito improvável, ninguém sabia que viria aqui hoje, decidira na última hora.
— Raoul, fique no caminho. Eu me encontrarei com você em pouco tempo.
Cavalgou atrás de Aelia, seguindo os traços que ela deixara na lama da terra até ouvir o som alto da cachoeira. A trilha subia e se afastava do rio por algum tempo, mas Mathieu nunca perdia rastros; ela não estava a grande distância.
Rochas ásperas se tornaram visíveis além do topo das árvores e ele viu o alto da cachoeira. Os traços de Aelia indicavam o leste, na direção da cachoeira, mas não subira mais. Dirigira-se diretamente para o rio.
Mathieu desmontou e levou o cavalo pela floresta. O som da cachoeira e do rio caudaloso bloqueava qualquer barulho, inclusive os que Aelia podia fazer fugindo. Mas havia sinais recentes de passagem e tinha certeza de que não a perdera.
Aelia sabia que tinha sido tolice fugir daquele jeito, mas esses poucos momentos de liberdade, longe da maldita despensa e de Ingelwald lhe subiram à cabeça.
Assim como a vontade de manter Fitz Autier desequilibrado.
Ele não esperara que ela fugisse e tirara toda a vantagem da surpresa. Só esperava que não a encontrasse logo. Não havia um caminho claro para a caverna em que ela e Godwin tinham ido quando crianças com sua mãe, até o profundo, plácido lago atrás da cachoeira, ideal para nadar. Ele precisaria de pelo menos uma hora para chegar ali.
Sentando-se numa rocha atrás da cachoeira, deixou cair a capa do normando e tirou os sapatos. Precisava clarear a cabeça e o coração dos terríveis acontecimentos das últimas semanas, de seu medo por Osric e por si mesma. A água fria podia não salvá-la, mas certamente a refrescaria. Além disso, não suportava mais sua pele suja que cheirava mal. Pulou na água mesmo vestida.
Era maravilhoso. De alguma forma, conseguiu lavar a sujeira de dois dias... eram apenas dois dias? Parecia que várias semanas decorreram desde que os homens de Fitz Autier tinham conquistado Ingelwald.
Aelia não conseguia imaginar o que aconteceria. Fitz Autier ameaçara executar Osric e ela caso Selwyn não negociasse. A batalha ocorrera e terminara, mas ela e Osric ainda estavam vivos. O normando planejava levar ela e o irmão para Londres. Fitz Autier seria frio o bastante para entregá-los ao rei para serem executados?
Aelia nadou até o fundo do lago e deixou de lado esses pensamentos. Eram inúteis, não tinham objetivo e não mudariam o curso de ação que decidira seguir.
Como era impossível matar Fitz Autier, decidira encontrar Osric, libertá-lo e fugir com ele de Ingelwald para o hall de um vizinho a três dias de distância a cavalo.
A água fria amenizou a dor no ombro machucado e lavou o sangue e o desespero dos últimos dias. Ela se sentiu refrescada e renovada quando se afastou da rocha e mergulhou, sentindo a paz das águas em torno de si. Era boa nadadora e demorou a voltar à tona.
Quando chegou à superfície, olhou em torno e não viu movimentos perto da cachoeira, o que significava que Fitz Autier ainda não a alcançara. Deitou-se de costas na água e flutuou, deixando a mente livre enquanto olhava as águas da cachoeira. Seria tão fácil acreditar que estava tudo bem, que ela...
Um tentáculo agarrou-lhe o tornozelo e a puxou para baixo. Era forte e implacável e Aelia estava certa de que chegara sua hora. Não poderia ficar submersa mais um segundo morreria afogada se não se livrasse deste...
O que a pegara? Não havia plantas no fundo do lago. Lutou contra a corrente e se dobrou para tentar se livrar do que quer que a puxava.
E, de repente, estava livre. Nadou para cima como uma seta. Até descobrir o que a agarrara, não podia ficar na água. Com um grande esforço, Aelia saiu do lago e se deitou na rocha ao lado de... uma pilha de roupas de lã e uma fria cota de malha, ao lado de seus sapatos.
Indignação, aborrecimento, constrangimento... todas essas emoções lutavam por domínio no coração de Aelia.
Fitz Autier! O bandido quase a afogara! Entrara no lago escondido e a puxara, mantendo-a sob a água até que ela entrasse em pânico!
Aelia pegou os sapatos e começou a se afastar, mas quando ouviu a risada do maldito normando ficou furiosa. Precisava achar alguma coisa para jogar nele — uma pedra grande que lhe arrebentasse o crânio e pusesse um fim a todos os seus problemas. Deixou os sapatos caírem e pegou uma pedra. Mostraria a ele que não podia brincar com ela.
Mas quando se voltou, ele estava saindo do lago, o corpo nu, Aelia arquejou quando ele caminhou em sua direção, a água escorrendo de seu corpo musculoso enquanto se movia com a tranqüilidade de um animal poderoso que conhece a própria força. Aelia engoliu e recuou um passo, não podia tirar os olhos dele. Era belo.
Devia se sentir gelada, mas um calor vagamente familiar surgiu dentro dela, subiu-lhe ao rosto, mas não pôde desviar os olhos. Este homem a beijara, tomara-a nos braços e a fizera esquecer o próprio nome.
E queria que ele fizesse isso de novo.
Horrorizada com seus pensamentos e temendo que ele os lesse em seus olhos, Aelia deixou a pedra cair e virou-lhe as costas.
— O senhor não tem pudor.
— E você está usando roupas demais, mademoiselle, estão molhadas e vai se resfriar. — ele estava perto demais.
Aelia sentiu-lhe a respiração na nuca, a água formando uma poça a seus pés. Não sabia o que faria se a tocasse. Duas noites atrás, enquanto dormia, ele a tomara nos braços, acariciara-a sem perceber, lhe produzira uma sensação extraordinária, diferente de tudo o que conhecia.
Os joelhos de Aelia enfraqueceram e seu coração disparou quando pensou no que poderia ter acontecido se estivesse acordado e consciente do que estava fazendo com ela. Seu prazer teria sido maior? E aqui estava ele, em toda a sua gloriosa nudez... grande e ameaçador, mas tão tentador.
Ela se aproximou mais da parede da caverna, cruzando os braços sobre os seios, impedindo-se de se virar para ele. Não estava realmente tentada, era apenas a novidade da intimidade que a confundia.
Talvez agora fosse uma boa hora de descobrir seus planos para ela e Osric.
— O que vai fazer?
— Fazer? — ele a seguira e estava perto demais.
Aelia se assustou quando ele lhe tocou o ombro. Delicadamente ele a virou, mas ela se encostou à parede da caverna enquanto ele abaixava a cabeça.
— O que quer que eu faça, mademoiselle.
As bocas estavam próximas demais e o espaço entre elas diminuía rapidamente. Podia sentir a respiração dele em seus lábios e o calor do corpo nu contra o seu. Foi tomada pelo pânico. Se a beijasse de novo, estaria perdida.
Ela o empurrou e pulou no lago, deixando que as águas esfriassem seu sangue em fogo.
Mathieu não sabia o que acontecia com sua razão quando Aelia estava por perto. Reagia a ela com o corpo, uma reação rija, selvagem, que lhe percorria o sangue e exigia satisfação. E ela não era indiferente a ele.
Uma combinação incandescente.
Pulou no lago para extinguir o fogo.
Aelia já estava montada quando Raoul e o resto da escolta chegaram. Fazendo sinal a Raoul de Moreton para seguir sem ele, Mathieu deixou-a ir, precisava manter alguma distância de Aelia.
Mesmo suja e molhada, ela o fazia perder todo senso de propósito. Tinha apenas um objetivo quando saíram de Ingelwald: avaliar sua nova propriedade, e Aelia era a pessoa mais adequada para lhe mostrar as terras, porém conseguira transtorná-lo mais uma vez.
Mathieu mergulhou na água fria. Seria capaz de voltar a este lugar sem ver o rosto de Aelia, sem se lembrar que quase a deitara sobre a pedra molhada para satisfazer seu desejo?
Seria apenas uma questão de tempo até tirá-la da mente. Havia questões muito mais importantes que exigiam sua atenção, como o que fazer para proteger Ingelwald antes de partir para Londres e quantos cavaleiros precisariam ficar para defender suas terras e seu gado.
Planejara voltar com pelo menos a metade dos homens que liderara até Ingelwald. Agora, parecia que o grupo que viajaria com ele ficaria reduzido a uma simples escolta.
Planejara deixar Ingelwald sob os cuidados de Auvrai d'Evreux, um velho e competente amigo.
Nadando tranqüilamente, Mathieu considerou todas as possibilidades. Quando a noite caísse, teria que decidir quem iria e quem ficaria. Pretendia partir cedo na manhã seguinte. Havia muito a fazer, não podia perder tempo no lago.
Saiu da água e olhou o ferimento de espada. Estava melhor, mais limpo.
Vestindo as roupas, Mathieu observou o local. Jamais teria percebido a caverna atrás da cachoeira se não tivesse visto Aelia no lago. Era um lugar perfeito para um encontro amoroso e, quando voltasse de Londres com Clarise, ele a traria aqui. Seria a melhor maneira de expulsar lady Aelia de sua mente.
Os sapatos dela tinham sido esquecidos à margem do lago e Mathieu pensou em seus pés nus, tão pequenos e delicados para uma guerreira tão feroz. Não desnudara nenhuma outra parte do corpo, mas sua imaginação percorreu as curvas suaves escondidas sob as roupas rasgadas.
Sacudiu a cabeça para se livrar dessas imagens provocadoras, que apenas aumentavam sua já enorme frustração. Talvez fosse a hora de encontrar uma mulher disposta na aldeia para aliviar sua tensão. Não havia nada de especial em lady Aelia, qualquer mulher serviria.
Seus homens já estavam bem distantes quando Mathieu começou a seguir a trilha que subia a colina e era um excelente ponto de observação. Parou por um momento, olhando suas terras.
Era uma grande conquista para o filho bastardo de uma criada. O rei confiara na vitória de Mathieu onde outros haviam fracassado.
A conquista de Ingelwald não só agradaria a Guilherme e daria mais honras a Mathieu, como também garantiria seu noivado com a filha de Simon de Vilot. Agora não havia dúvidas de que lady Clarise seria sua mulher.
A cerimônia de noivado seria realizada quando Mathieu chegasse a Londres e o casamento se seguiria logo. Quando voltasse para Ingelwald, sua mulher viria com ele.
Mathieu ainda não fora apresentado a lady Clarise, vira-a apenas uma vez em Ruão e à distância. Na ocasião, era apenas um guerreiro bastardo no exército de Guilherme e certamente não era um pretendente adequado para a filha de Simon de Vilot. Mas agora que tinha esta rica propriedade, a bela lady Clarise, com seus olhos e cabelos negros, seria sua mulher. Ficara honrado por ter sido escolhido pelo pai dela e pelo rei para ser seu marido, quando muitos nobres normandos teriam sido escolhas de mais prestígio. O casamento estava muito além do que um bastardo poderia sonhar. O rei concedera a Mathieu honrarias muito superiores às que dera a seus irmãos legítimos.
Mathieu podia ver claramente seus homens cavalgando em fila dupla, com Aelia no meio, a cabeça loura descoberta, com uma postura altiva que contrastava com sua condição de prisioneira.
Estava ansioso para se livrar dela. Quando chegassem a Londres, ele a entregaria aos guardas do rei e não teria mais que se preocupar com ela, o que seria um alívio.
Colinas cobertas de florestas cercavam seus homens enquanto atravessavam um vale profundo, sem vegetação. Mathieu percebeu movimentos nas árvores a leste de suas tropas e viu que eram homens de emboscada, talvez escoceses ou saxões. Se atacassem de surpresa, seus homens estariam em grande desvantagem.
Precisava fazer alguma coisa; estudou a área por alguns momentos e depois desceu a colina. Sua melhor estratégia seria desviar a atenção dos homens à espera.
Dirigiu-se para o nordeste da região de floresta onde os bandidos estavam escondidos, atormentado pela preocupação com o que poderia acontecer a Aelia se não avisasse seus homens. Era uma guerreira de grande coragem, mas estava desarmada e, se fossem atacados, não teria como se proteger.
Mathieu continuou em direção nordeste, escondido pela floresta. Cavalgava devagar e com cuidado, prestando atenção a sons que lhe indicariam a posição dos homens escondidos. Então ouviu som de metal contra metal e percebeu que estava perto deles. Desmontou e continuou a pé, seguindo os sons sem se deixar ver.
Conseguiu chegar perto o bastante para observar o grupo. Eram saxões, vestidos em peles e lã rasgadas, um exército de maltrapilhos. Mas tinham armas, eram muitos e certamente desesperados, homens que haviam perdido suas terras para os normandos. Estavam se preparando para lutar e seriam capazes, pelo grande número, de cercar seus homens e destruí-los.
Mathieu voltou para onde deixara o cavalo, montou, e subiu uma pequena colina que ficava a leste dos saxões. Quando estava escondido e distante deles, pegou a trompa e tocou. A reação foi a que esperava, uma imediata confusão entre os saxões, que pensavam estar sendo atacados por trás. Antes que percebessem a realidade, Raoul de Moreton estaria avisado e preparado para a batalha.
Os pensamentos de Aelia eram tumultuosos enquanto cavalgava. Não sabia onde Fitz Autier estava e não olharia para trás para ver se ele se juntara ao grupo.
Esperava que estivesse de roupas. O homem era perturbador o bastante quando estava vestido, mas quando viu o poder físico que havia sob as roupas quase perdeu o juízo.
Por que seu pai não escolhera um guerreiro como Fitz Autier para seu marido? Talvez, se tivesse um marido assim, não seria tão suscetível a ele.
Parecia que não se incomodava nem um pouco de exibir-lhe o corpo... como se ela fosse alguma escrava ansiosa por seus favores.
Os normandos cavalgavam silenciosamente em direção norte, através de um vale profundo cercado por florestas e rochedos.
De repente, Aelia sentiu os cabelos da nuca se arrepiarem e soube que alguma coisa estava errada.
— Sir Raoul...
Nada era visível, mas seu senso de perigo era cada vez mais aguçado.
— Acho que seria melhor voltarmos.
Raul levou-a a sério.
— O que é, mademoiselle. — olhou em torno, como se avaliasse os riscos de continuarem — Minhas ordens são para...
O forte e ressoante toque da trompa se fez ouvir ao longe. Todos os cavalos reagiram e a égua de Aelia empinou, derrubou-a e fugiu. Os normandos não lhe deram atenção e desembainharam as espadas, enquanto gritos de batalha eram ouvidos entre as árvores. Machucada e descalça, Aelia correu para trás da linha de guerreiros enquanto eles se preparavam para o ataque.
Mas alguma coisa estranha aconteceu. As vozes na floresta se dispersaram, algumas se movendo para o norte e outras para o sul, acompanhadas pelo som de patas de cavalos, espadas e armaduras. A trompa soou de novo, mas pareceu mais distante.
— É o barão! — gritou Raoul — Ele está afastando os atacantes!
Os normandos deixaram Aelia para trás quando avançaram para a floresta. Ela ficou tensa, mas apenas com receio por Fitz Autier. Que tipo de idiota tentaria sozinho afastar um exército?
E por que se incomodava?
Na verdade, não se incomodava, estava pensando na própria segurança, como escaparia dos perigos que se escondiam na floresta, como voltaria para Ingelwald, para Osric. O destino de Fitz Autier não a preocupava.
No entanto, viu-se procurando sinais dele.
Ouviu o som dos combates com espadas e se perguntou se devia fugir e tentar voltar para Ingelwald sem a escolta normanda. Mas, se virasse para oeste, poderia chegar ao vizinho saxão, onde estaria em segurança.
Mas seu cavalo fugira e não conseguiria caminhar até o hall vizinho sem sapatos. E, se fugisse, jamais veria Osric de novo.
Fitz Autier mataria seu irmão se ela desaparecesse? Era um guerreiro impiedoso, mas nunca o vira ferir mulheres ou crianças. No entanto, depois da noite passada, ninguém consideraria Osric uma criança inocente.
Não tinha escolha, precisava ficar e esperar o fim da batalha. Estava muito exposta, assim caminhou cautelosamente à frente, usando árvores e arbustos para se esconder até alcançar um ponto em que podia ver a batalha à distância. A luta era desorganizada, mas os normandos eram em número muito menor que o grupo maltrapilho de guerreiros saxões.
Aelia sentiu profunda tristeza. Embora numerosos, os saxões não tinham chance contra os normandos. Com os olhos cheios de lágrimas, viu Fitz Autier chegar de repente, lançando-se com fúria à batalha, a espada erguida.
Não conseguia tirar os olhos de sua figura poderosa. Ele se movia como um orgulhoso cervo macho da floresta, rápido e perigoso, leve e ágil. Aelia experimentou o mesmo estranho calor que sentia sempre que o via de longe. Era difícil respirar quando o via assim, em pleno domínio do inimigo... seu povo.
Fitz Autier gritou ordens a seus homens e eles começaram a cercar os saxões num amplo círculo, sem lhes deixar espaço para manobra. Aelia não suportou olhar e recuou. Sua mãe tinha de estar errada sobre as estranhas sensações que experimentava ao vê-lo, Fitz Autier não podia ser seu único e verdadeiro consorte, mesmo se seu coração disparasse e os ossos se tornassem cinzas quando a tocava. Com imensa tristeza, voltou-se e começou a correr. Mas alguém veio por trás, derrubou-a e, antes que pudesse se mover ou gritar, um saxão levantou o machado e atacou.
Aelia gritou e rolou de lado, escapando do golpe, então se levantou e correu.
— Agora vai morrer, prostituta normanda!
As palavras a assustaram e ela tropeçou, o saxão bem atrás. Recuperou-se e continuou a correr, mas o saxão saltou sobre ela e a agarrou. Soltou o machado, segurou-lhe o cabelo, puxou sua cabeça para trás e encostou em seu pescoço a lâmina de uma faca.
Aelia ficou completamente imóvel, mesmo quando ele continuou a insultá-la. Dizer a ele que era saxã não adiantaria, o homem a veria como traidora. Sentiu a faca cortar-lhe a carne e o sangue escorrer pelo pescoço. E, antes que pudesse reagir, o saxão a soltou.
— Aelia!
Ela correu, mas a voz enfurecida de Fitz Autier e o som de espadas em luta fizeram-na se voltar. Abalada, viu quando o barão matou o homem que a teria matado.
Fitz Autier não lhe deu tempo de se recuperar. Com um dedo sob seu queixo, ele lhe dobrou a cabeça para trás e observou o ferimento.
— Felizmente não é profundo, não corre perigo.
Aelia não podia falar e se indignou consigo mesma por ficar tremendo diante do normando.
— Fique quieta. — disse ele, arrancando a manga rasgada de sua túnica, dobrando-a e pressionando contra o ferimento.
Aelia desejou que ele não fosse tão gentil. Queria que o ódio que sentia por ele fosse uma coisa limpa e clara, sem as complicações de demonstrações de compaixão. Ao mesmo tempo, desejou que a abraçasse até o tremor passar.
Um momento depois, viu-se erguida e atirada sobre um cavalo com Fitz Autier montado atrás dela.
— Posso cavalgar.
— Não desta vez.
— Já vi batalhas, senhor. Eu nunca...
— Eu sei, mademoiselle. Vou carregar para sempre a cicatriz que sua flecha deixou no meu rosto. — ele se moveu na sela, então deixou alguma coisa quente cair sobre os ombros dela. Era a capa que usara antes e ficou grata pelo calor.
— Você... salvou minha vida. — disse ela. Teria que lhe agradecer.
— Não pense nisto, não foi mais do que faria para qualquer um sob minha proteção.
— Você afastou os saxões de seus homens, avisou-os com sua trompa.
Ele a puxou para mais para junto de si. Aelia não entendeu por que fazia um gesto tão confortador, mas como estava quente e ela gelada, não reclamou.
As vozes de normandos e saxões ficaram para trás enquanto Fitz Autier guiava o corcel para fora da floresta e para a trilha.
— Está deixando a batalha?
— Já vi matanças demais. Raoul vencerá e os saxões que se entregarem serão prisioneiros.
Aelia sentiu a garganta apertar.
— O que fará com eles?
— Há lugar para eles em Ingelwald.
— Mais saxões que o odiarão?
Aelia poderia ter mordido a língua por falar assim com o homem que acabara de lhe salvar a vida.
Mas Fitz Autier apenas riu, um som mais amargo do que alegre, e continuou a cavalgar.
Homens e mulheres trabalhavam dentro das muralhas de Ingelwald quando chegaram. Os destroços do armazém queimado haviam desaparecido e o telhado do estábulo fora consertado. Normandos e saxões limpavam as ruas enquanto o cavalheiro louro e grande conversava com um saxão dono de uma loja. Aproximou-se quando viu Mathieu.
— Falando a língua saxã agora, Auvrai?
O cavaleiro deu de ombros.
— O que houve?
Mathieu lhe contou sobre o ataque enquanto desmontava e ajudava Aelia. Ele a mandaria para onde estavam os demais prisioneiros, mas ainda não estava pronto para se afastar dela.
— A senhora precisa de um pouco de seu ungüento, Auvrai.
Mathieu pegou a capa e os sapatos dela.
— E você? Ainda não vi seu último ferimento.
— Parecia limpo esta tarde.
Auvrai deu de ombros de novo.
— Você encontrará o ungüento em minha bagagem, com Gilbert, no hall.
Aelia não esperou por Mathieu e andou em direção ao hall como se ainda fosse a filha do lorde, embora estivesse vestida como a mais pobre das mendigas. Mathieu a seguiu.
Ela não olhou para trás e subiu as escadas. Mathieu pegou a bolsa de couro na qual Auvrai guardava seus remédios e foi atrás dela. Subiu até o quarto principal, mas Aelia não estava lá.
Mathieu encontrou-a em seu antigo quarto, agora despido de todo o conforto. Ela estava de pé junto à janela, olhando para fora, os braços caídos junto ao corpo, o cabelo solto.
— Quero ver meu irmão. — disse ela sem se voltar. Mathieu deixou os sapatos caírem no chão.
— Não.
Ela se virou e, embora tentasse manter a expressão neutra, não conseguiu esconder o ódio nos olhos.
— Minha cooperação garante o bem-estar de Osric, você disse.
Ele passou uma das mãos no rosto.
—Até certo ponto, mademoiselle, mas o comportamento dele também ajuda a determinar como será tratado.
Ela se aproximou e pôs uma das mãos sobre o braço dele.
— É apenas uma criança! Não pode ser considerado responsável...
— Ele não tem disciplina.
— Mas é um bom menino.
Mathieu encontrou o ungüento numa pequena sacola dentro da bolsa, abriu-a e, tomando o queixo de Aelia com os dedos, levantou-o para ter acesso ao corte no pescoço.
Ela não olhou para ele, manteve as pálpebras abaixadas.
Mathieu observou os cílios longos que lhe sombreavam as faces. O pulso no pescoço batia apressado e ele podia sentir a sensação contra seus lábios. Limpou a garganta e ignorou a delicada curva do pescoço. Não pensaria em como estivera perto de morrer.
— Volte-se em direção à luz.
Ela se voltou e ele passou o ungüento no ferimento. Quando parou, ela se afastou. Ele lhe tomou a mão.
— Ainda não acabei.
Ela esperou que ele lhe envolvesse o pescoço com uma tira de linho branco, depois ficou quieta enquanto ele examinava o ferimento no ombro.
— O ungüento será bom, mas sairá na roupa.
— Isto não parece ser um problema, senhor — disse ela, mostrando a roupa rasgada que lhe deixava o ombro e o braço nus.
— Vou mandar alguém procurar roupas para você.
— Não se incomode. O que uma escrava faria com roupas decentes?
— Você não é uma escrava.
— Uma prisioneira, então. Diga-me, Fitz Autier, o que fará com Osric e comigo?
Quisera neutralizar o momento íntimo entre eles e teve sucesso.
— Tenho ordens de levar vocês para o rei em Londres.
Aelia não iria para Londres. A idéia de enfrentar aquele normando assassino, Guilherme, lhe causava náuseas. Não tinha medo do homem, mas não podia negar que as ordens de Fitz Autier a abalavam.
Estava deitada em seu quarto, tentando pensar. Como poderia se recusar a ir com Fitz Autier? Não tinha poder, sua vontade de nada valia.
Pelo menos tivera mais um dia, Fitz Autier não pudera deixar Ingelwald quando queria. Muitos de seus homens tinham ficado feridos na luta com os saxões e agora havia ainda mais prisioneiros.
Passara uma noite inquieta, trancada em seu quarto,e acordou com uma batida à porta. Mandou entrar. Era Rowena, uma das criadas.
Era muito mais jovem que Aelia, uma menina muito bonita que atraía a atenção dos rapazes de Ingelwald. Carregava uma trouxa de roupa e disse, sem expressão.
— O normando me mandou trazer isto.
Aelia pegou as roupas, observando a palidez da jovem e os círculos negros sob seus olhos.
— Você não está se sentindo bem, Rowena?
A menina mordeu o lábio e sacudiu a cabeça, amedrontada pelo guarda normando que estava de pé ao lado da porta, vigiando todos os movimentos delas.
— Então o que é? O que você está...
— Nada, minha senhora, não quero falar sobre isso.
Aelia franziu as sobrancelhas, observando um corte vermelho no pescoço... não, era a marca de uma mordida!
— Você foi atacada. Um desses normandos bastardos... a estuprou?
Rowena estremeceu e as lágrimas rolaram. Aelia tentou puxá-la para o quarto, mas o guarda normando impediu.
— Afaste-se, normando idiota! Falarei com ela em particular!
Aelia se jogou entre Rowena e o guarda, puxou a menina e fechou a porta.
— Sinto tanto, Rowena. — disse Aelia, tomada pela fiaria. Por que o homem não podia ter escolhido uma mulher mais velha, mais experiente e mais disposta? Nelda, talvez, que se entregava com prazer. — O que posso fazer para ajudar?
— Posso estar grávida, minha senhora.... — sua voz era trêmula.
— Este porco será castigado. Quem é?
Rowena sacudiu a cabeça e chorou.
— Não há nada que possa fazer! Já foi feito...
— Se há uma criança, vou garantir que o patife cuide de vocês.
— Não! Nunca mais quero vê-lo!
— Diga-me quem é.
— Um normando! A senhora o conhece... grande, moreno. Com cicatriz no rosto.
A raiva de Aelia cresceu como uma onda vermelha. Abriu a porta do quarto e passou por ele arrastando a chorosa Rowena. Em poucos segundos, subiu a escada até o quarto principal, fez o guarda se afastar e abriu a porta.
— Fitz Autier! — ele estava abotoando o cinto sobre uma túnica azul muito escura — Como ousa!
Ele olhou para ela e disse alguma coisa, uma ruga entre as sobrancelhas, mas Aelia mal ouviu o guarda pedindo desculpas ou Fitz Autier mandando-o sair.
— Como ouso fazer o quê? Rowena ainda é uma criança, nem tem 13 anos!
A ruga se aprofundou.
— Rowena?
— Sabe muito bem, senhor!
Sua adaga estava sobre a cama, ao lado de suas luvas.
A mão de Aelia foi como um relâmpago ao agarrá-la. Segurou-a de forma ameaçadora e esperava que ele viesse tirá-la. Godwin lhe ensinara como lidar com um homem do tamanho de Fitz Autier.
— Devo entender que alguém chamada Rowena foi atacada? — não se moveu, apenas cruzou os braços sobre o peito.
A fúria fazia o coração de Aelia bater com força, a respiração difícil.
— Você nem sabia o nome dela, não é?
— Como poderia, mademoiselle.
— É exatamente como um normando, tirar dos outros... roubar o que é precioso, sem se incomodar com...
— Estamos falando de uma mulher?
— De uma menina! Uma criança inocente!
E então Aelia atacou.
Fitz Autier se moveu com tanta rapidez que ela errou e, antes que pudesse golpeá-lo de novo, ele lhe pegou o punho e apertou, fazendo-a deixar cair a faca. Puxou-lhe o braço para trás, jogou-a sobre a cama, de rosto para baixo, e se deitou ao lado dela, segurando-a.
— Explique sobre o que está falando.
— Largue-me!
— Fale!
— Não vai adiantar nada! Vocês, normandos, nunca admitiriam ter estuprado uma menina, só quando querem se exibir para seus companheiros desprezíveis. — ela tentou se erguer, mas não conseguiu afastá-lo.
— Estupro?
— Sim, tenho certeza de que já ouviu falar nisto. — disse, sarcástica — É quando um homem sem honra toma uma mulher contra a vontade dela, segurando-a e...
Ele a libertou de repente e ficou de pé. Aelia também se ergueu e teria ido para a porta se ele não ficasse em seu caminho.
— Ela me acusou? Esta Rowena?
— Quem mais é alto e moreno... e tem uma cicatriz na face?
— Muitos de nós, mademoiselle. Lutamos em muitas batalhas. Quem, entre nós, não tem cicatrizes?
— Então nega? — havia mais confusão do que ameaça em seu tom, e ambos sabiam disso. Os olhos dele, de um azul gelado, observavam-na com atenção, mas ela não sentiu medo. Poderia Rowena ter se enganado sobre seu atacante... ou teria ela, Aelia, chegado à conclusão errada?
— Há apenas uma mulher em Ingelwald que me interessa. — disse Fitz Autier, a voz baixa e ameaçadora — E o único motivo de sua virtude permanecer intacta é que não desejo forçar uma mulher que não me quer.
O significado de suas palavras era claro e Aelia não conseguiu responder. Viu que os olhos dele lhe percorriam o corpo como se estivesse faminto. A garganta se apertou. Ela ficou imóvel por um tempo que lhe pareceu interminável, e então fugiu do quarto.
Aelia entrou em seu quarto, fechou a porta e ficou encostada nela, o coração batendo forte. Só estava agitada assim por causa de Rowena e, agora que sabia que não tinha sido Fitz Autier, descobriria quem a havia estuprado e garantiria que ele seria punido.
Água fresca fora levada para seu quarto, assim como um pente e uma tira de couro para amarrar o cabelo. Lavou-se, penteou-se e vestiu-se com as roupas que Rowena trouxera e saiu do quarto.
Aelia esperava que o guarda em sua porta a impedisse de sair e ficou surpresa quando ele lhe permitiu descer para o hall. Sir Gilbert ainda cuidava dos feridos, ao lado do cavaleiro alto e louro, mas ela observou com alívio que Fitz Autier não estava presente.
Foi para a cozinha, que ficava num prédio separado do hall, e encontrou Grendel e a mãe.
— Estou procurando Rowena.
— Não está com a senhora? Eu a mandei a seu quarto com as roupas que o barão normando me deu.
— Não, eu a vi há pouco, mas... — correra pelas escadas para matar Fitz Autier por uma coisa que ele não fizera.
Mesmo assim, era responsável pelas ações de seus homens. E se um deles violara Rowena, Aelia garantiria que ele pagaria muito caro.
— Esperava que ela estivesse em segurança com você depois do que...
Um grito penetrante fez Aelia sair correndo da cozinha. Não era o grito alegre de uma criança brincando, mas o de uma mulher desesperada.
Homens e mulheres chegaram às portas de suas lojas e choupanas. Uma mulher apontou para a loja de velas e outro grito veio daquela direção. Aelia não parou para pensar, apenas correu para socorrer quem gritava.
Mathieu olhou pela janela e viu Aelia. Embora estivesse entre seu povo, sua postura era a de um guerreiro pronto para batalha. Usava roupas femininas e seu cabelo estava penteado, uma suave cascata dourada que lhe descia até os quadris.
Ela se voltou de repente e correu. Mathieu imitou sua ação. Era claro que alguma coisa estava errada e a senhora de Ingelwald pretendia consertá-la. Desceu as escadas correndo, atravessou o hall e, quando chegou ao pátio, ouviu gritos aterrorizados de vozes femininas misturados aos brados furiosos de outra mulher. Um barulho forte de queda levou Mathieu correndo à loja de velas.
Estava deserta e havia pouca luz, mas conseguiu enxergar três mesas de trabalho e, atrás delas, Aelia.
Mathieu se aproximou enquanto ela erguia um porrete de madeira.
— Você é um demônio! — gritou, descendo o porrete sobre alguma coisa que grunhiu, um homem agachado no assoalho no canto.
Quando o homem caiu, uma criança que estava sob ele correu, chorando, quase incapaz de respirar. Sem tirar os olhos de sua presa, Aelia gritou em inglês para a menina, que tropeçou em direção à porta e parou de repente ao ver Mathieu. Era uma menina bonita, pouco mais que uma criança. A visão do lábio partido e sangrando e o terror nos olhos deixou Mathieu doente, fazendo-o se lembrar do estado de sua mãe depois de uma das visitas de seu nobre pai.
— Se você se mover, normando, vou arrebentar-lhe a cabeça e espalhar seus miolos pelo chão. — ameaçou Aelia furiosa, fazendo com que a atenção de Mathieu se voltasse para ela. A menina aproveitou para correr da loja.
— Você vai sé arrepender, mulher saxã. — a voz do homem era baixa e ameaçadora. Mathieu sabia que era a de Durand o Negro, o homem que golpeara Aelia quando fora designado para guardá-la.
Mathieu deu um passo à frente.
— Aelia.
— Este animal estuprou Rowena. — disse ela, o rosto coberto de lágrimas — É esta a maneira dos normandos?
Durand se levantou e tentou tirar o porrete de Aelia, que o atacou de novo com força, mas errou o alvo.
Mathieu passou por Aelia e, segurando a túnica de Durand, deu-lhe um murro no rosto, jogando-o no chão.
— Vá para os portões e ajude os carpinteiros. E fique pronto para viajar pela manhã. Vai para Londres comigo.
O homem se levantou e saiu da loja, resmungando. Mathieu se voltou para Aelia e viu que seu rosto estava totalmente sem cor, a não ser pelo hematoma na face, e ela tremia. Quando as pernas dela amoleceram, ele a tomou nos braços.
— Respire fundo.
Era leve e frágil quando a carregou, aninhando-a com cuidado como se pudesse quebrar.
Mathieu levou-a até o fundo da loja e sentou-se numa cadeira de madeira ao lado da lareira. Apertou Aelia junto ao peito e esperou que o tremor passasse. Tocou-lhe os cabelos, acariciou-lhe o ombro e o braço... queria enxugar-lhe as lágrimas com beijos.
— A menina está em segurança. Vou providenciar para que Durand nunca mais se aproxime dela.
Ela acenou, movendo a cabeça contra seu peito.
— Eu acusei você, in... injustamente.
— Sim. — ele acomodou a cabeça de Aelia sob seu queixo, segurando-a até que o tremor passasse e os batimentos do coração voltassem ao normal.
— Se ele se aproximar de Rowena de novo, eu o matarei.
— Garanto que ele nunca mais fará isto.
Mathieu deixaria Ingelwald à primeira luz do dia, com Durand entre os homens que o acompanhariam. Até então, seria mantido ocupado com trabalho duro ou confinado, não criaria mais problemas.
Mas a viagem para Londres seria outra coisa. Mathieu já decidira quem o acompanharia e o número era pequeno. Aelia e Durand ficariam muito perto por diversos dias e Mathieu teria de mantê-los separados.
Passara uma noite difícil lidando com os novos prisioneiros saxões e discutindo com Auvrai, que ficaria em Ingelwald, todas as providências que teria que tomar para restaurar a propriedade e mantê-la segura durante sua ausência. Quando Mathieu se deitara, tivera dificuldade em dormir enquanto pensava em como evitar ter que levar Aelia para o rei Guilherme. Mas não havia saída.
Além de sua enorme atração por ela, percebia como era amada por seu povo, que nunca aceitaria o domínio normando enquanto sua senhora saxã vivesse ali. Sabia o que Guilherme queria com ela e o irmão e se sentia muito mal. Ele os exibiria a multidões que debochariam deles, os humilharia diante do povo saxão e dos conquistadores normandos. Era um procedimento mais do que cruel. E depois ela seria executada.
Uma dor súbita no queixo o fez perceber que estava cerrando fortemente os dentes. Não tinha escolha, precisava levar Aelia e o irmão para Londres, mas tentaria convencer Guilherme a tratá-los com compaixão. Afinal, tinha alguma influência sobre o rei, que o favorecera tanto.
— Você foi muito... gentil. — disse Aelia, a voz muito baixa — Não pensei que se incomodasse com o que acontece a uma mulher saxã.
— Ela é pouco mais que uma criança, Aelia.
— E por que se preocupa com o bem-estar de uma criança saxã?
Era muito mais complicado. Nunca revelara o que sentia por ser o resultado de um estupro cruel e não ia começar agora.
— Todos os que vivem em Ingelwald estão sob minha autoridade e proteção. Caos e injustiça não servem a ninguém.
— Que compensação dará a Rowena por sua virgindade perdida? Para a criança que pode ter?
— Durand pagará o que a família dela exigir.
— Ela não tem família.
Aelia se afastou e se levantou. Ainda não parecia muito firme, mas seria melhor deixar algum espaço entre eles.
— Ele lhe pagará a indenização costumeira, então.
— Através de mim. — exigiu Aelia. Sua postura era nobre, embora usasse um vestido simples. Seu rosto recuperara a cor e havia um rosado suave em suas faces, mais intenso nos lábios. — E aquele bruto não se aproximará de Rowena, nunca mais.
— De acordo.
Mathieu se levantou e deu-lhe as costas. Precisava de distância. Quilômetros de distância.
Aelia ficou surpresa quando Sir Auvrai a levou para ver Osric. O irmão era mantido num prédio grande que servia como alojamento para serviçais, junto com guerreiros de seu pai que se recusaram a jurar lealdade ao conquistador normando.
— Você parece bem para uma prisioneira. — disse o menino com desprezo.
— Osric... sei que tem sido difícil para você.
— Sabe o que o normando pretende fazer conosco? Vai nos enforcar?
— Não, vamos para Londres em breve.
Osric deu-lhe as costas e cruzou os braços sobre o peito estreito, os cabelos vermelhos sujos.
— Por que vai nos levar para lá?
Aelia ficou em frente a ele.
— Fitz Autier não diz.
— Então parece que não vai ser bom para nós, não é?
— Não sei o que significa para nós, mas não temos escolha. Fitz Autier ordenou, temos de ir.
— Eu me recuso.
— Então ele o amarrará a um cavalo e o levará.
— Nosso pai a repudiaria, Aelia.
— Você é uma criança, Osric. Algum dia compreenderá nossa situação. Mas agora, deve ficar contente por estar vivo e fazer o que for necessário para continuar assim.
Ela se dirigiu aos homens que se sentavam no chão, ouvindo a conversa deles.
— Fomos derrotados e Fitz Autier disse que será leniente com qualquer saxão que jurar lealdade a ele. Wallis se foi, o dia do domínio saxão acabou. Façam o que precisarem, mas pensem em suas famílias... em suas mulheres e filhos que não querem perder vocês.
— Você fala como uma covarde. — gritou Osric.
— Falo como uma pessoa que viu mortes demais.
Nada conseguira e voltou-se para sair. E então dois dos prisioneiros a chamaram.
— Minha senhora... jurarei fidelidade a Fitz Autier.
— Você está certa, não adianta resistir mais. Fomos derrotados, minha senhora.
— Temos mulheres e filhos de quem precisamos cuidar.
— Plantações para colher.
Outros acrescentaram suas vozes e logo apenas Osric e quatro ou cinco outros continuaram em silêncio.
As emoções de Aelia estavam à flor da pele quando um grupo de cavaleiros normandos caminhou com ela e os saxões até o hall. Osric ficou com os prisioneiros que se recusaram a aceitar Fitz Autier. Ela os deixou e caminhou pelo pátio até as muralhas, onde subiu e atingiu as ameias no momento em que o sol se punha.
Aelia sentia o outono no ar frio do começo da noite. Partiriam para Londres de manhã, este seria seu último dia aqui. Nunca mais veria Ingelwald.
Apenas um guarda normando estava na ameia e não prestou atenção a Aelia. Fitz Autier devia pensar que ela não era mais uma ameaça, já que permitira que visitasse Osric e os outros prisioneiros saxões e agora podia caminhar livremente dentro das muralhas. Talvez Osric estivesse certo, talvez fosse covarde, indo para Londres sem reclamar, sem saber o que aconteceria a ela.
Aelia olhou a aldeia e as terras além das muralhas, os ricos campos de ouro e verde. Era o domínio de seu pai e ela o estava entregando ao inimigo. Lutara incessantemente contra os normandos nos últimos meses, derrotando o líder normando anterior. Mas fora vencida por Fitz Autier.
A dor pela morte do pai a dominou. Morrera de forma súbita e violenta e Aelia nunca esqueceria o momento em que o vira cair, a armadura de couro incapaz de protegê-lo da espada normanda. Nenhuma de suas flechas conseguira penetrar a armadura do normando e nenhum dos homens fora capaz de vingar Wallis.
Aelia precisava tanto dele agora, quando seu mundo desaparecia. Nada era como devia ser, seu povo fora derrotado.
Osric estava furioso e Aelia... coisas demais estavam erradas em seu coração. Fitz Autier era o conquistador de Ingelwald, não o valente campeão de Rowena. Tomá-la nos braços, sentar-se com ela no colo depois do terrível confronto com Durand fora apenas o gesto de um cavaleiro cristão consolando uma donzela em desespero.
Mas seu abraço e suas carícias tinham lhe causado sensações estranhas e poderosas como as que ela experimentara quando dormira em sua tenda.
E, para sua consternação, quisera mais. Seu pai teria um terrível desgosto se soubesse o que ela sentira.
— Muito do que está aqui permanecerá, mademoiselle.
Aelia se virou para olhar Fitz Autier, que se aproximara tão silenciosamente que não o ouvira. Mas suas palavras não a tranqüilizaram.
— Por que preciso ir para Londres?
Fitz Autier não respondeu logo. Foi até o parapeito e olhou para baixo, descansando os braços na muralha como se estivesse calmo. Mas Aelia viu um músculo em seu queixo endurecer e percebeu que sua pergunta não tinha uma resposta simples.
— Por que não me executar aqui?
Fitz Autier se afastou do parapeito e segurou-lhe os braços. Seu movimento foi tão súbito que a surpreendeu e desequilibrou, mas ele a segurou com firmeza.
— Pela cruz sagrada, mulher! Qual seria o objetivo de sua morte?
— Não sabia que a morte de um saxão tem um objetivo.
Ele a virou para que olhasse para a aldeia abaixo, onde tochas tinham sido acesas e as pessoas trabalhavam para descansar quando a noite caísse.
— É isto que importa, Ingelwald.
— Com você como seu senhor. Um normando bastardo.
Ele a soltou.
— Sim.
Aelia sentiu frio e passou as mãos pelos braços enquanto Fitz Autier a olhava com uma expressão que não conseguiu decifrar.
—A mulher que foi morta... Erlina... tinha uma choupana fora dos muros, a alguma distância daqui. Osric e eu poderíamos... nós poderíamos ficar aqui e Guilherme nunca saberia...
O normando se virou e começou a se afastar, mas Aelia o seguiu, passando-lhe a frente para impedir seu avanço.
— Por favor, senhor, não deixe seu rei nos escravizar. Eu prometo...
— E eu dei minha palavra, mademoiselle. Estou preso a ela. Tenho de levá-la para o rei Guilherme.
Ela procurou um pouco de bondade no homem, algum indício da benevolência que mostrara antes. Mas nada havia. Era um guerreiro endurecido, um homem que cumpriria suas ordens sem se importar com o custo.
Mathieu andou em direção ao portão que os homens estavam consertando. O trabalho terminaria no dia seguinte e ele poderia viajar sabendo que a propriedade estava bem protegida.
— Onde está Durand? — perguntou aos homens. Muitos disseram que não sabiam. Um dos cavaleiros não respondeu.
— Sir Hugh, onde está seu companheiro?
— Não o vi nas últimas horas, barão. Sua resposta não parecia verdadeira.
— Eu lhe dei a tarefa de trabalhar aqui. Quando ele saiu?
Os olhos de Hugh evitaram os de Mathieu e o normando percebeu que alguma coisa estava errada.
— Uma resposta, Hugh, agora.
O homem limpou a garganta.
— Ele passou todo o dia zangado e falou em deixar Ingelwald, barão. Não o vi partir.
Mathieu formaria uma patrulha para procurar Durand, mas era tarde e havia muito a ser feito antes de partir no dia seguinte.
— Qual era seu destino?
— Não sei, provavelmente oeste, onde há alguma chance de ele... ha...
As terras do barão Richard Louvet ficam a oeste de Ingelwald. Durand iria para lá?
— Talvez Durand quer terras, barão, ou um posto. Depois que matou o lorde de Ingelwald, pensou que Gui de Reviers o recompensaria com generosidade. Quando o senhor chegou para tomar o lugar de lorde Gui...
— Ele percebeu que eu não o favoreceria, assim decidiu procurar uma oportunidade em outro lugar?
— Sim, especialmente depois do incidente hoje com a mulher saxã.
Mathieu se despediu e foi para os alojamentos dos cavaleiros, onde encontrou Auvrai e os homens que o acompanhariam a Londres.
Contou a Auvrai sobre a deserção de Durand.
— Hugh acha que ele foi para o oeste, para o hall de Richard Louvet, mas ele pode ficar por aqui.
— Ficaremos vigilantes, ele não causará perturbações.
Mas Mathieu não gostou da possibilidade de Durand ficar na vizinhança, esperando que ele viajasse.
— Vou atrás dele assim que o dia amanhecer.
— Vai mudar seus planos por causa disso?
— Sim, prefiro lidar eu mesmo com o vilão.
Mathieu não gostava do que vira de Durand até agora.
Deixou Auvrai com suas tarefas e saiu, olhando para as ameias onde deixara Aelia. Se ainda estivesse lá, não podia vê-la, o que era melhor. Bastava olhar para ela e seu corpo acendia. Conseguira evitá-la quase todo o dia e seu confronto na ameia não fora agradável.
Mas nada mudara, ainda a queria em sua cama.
Mathieu passou os dedos pelo cabelo. Não tinha escolha, precisava levá-la para Guilherme. Jamais mentiria ao rei e suas ordens tinham sido muito claras. Devia levar Wallis e sua família para Londres, se sobrevivessem à luta por Ingelwald.
Não acreditava que Guilherme mandaria executar Aelia e seu irmão. Não podia acreditar, ou se sentiria compelido a desobedecer às ordens do rei. Não levaria Aelia a Londres para ser executada. Como Ingelwald parecia aceitar com resignação sua soberania normanda, ela não seria necessária como refém. Mais provavelmente Guilherme a casaria com um soldado normando como recompensa por seus serviços.
Fechou os dentes com força e pensou que talvez a choupana fosse uma alternativa viável. Guilherme estava interessado em Wallis, mas o lorde saxão estava morto. Não havia objetivo em levar Aelia e o menino, e sua presença apenas tornaria a viagem mais difícil. Mathieu não poderia viajar tão depressa como gostaria e alguém teria de vigiá-los o tempo todo. E sua escolta até Londres seria pequena, apenas oito homens, porque precisava deixar guerreiros suficientes para proteger a propriedade.
Mathieu atravessou o portão de Ingelwald, cruzou a aldeia e continuou por uma trilha estreita até chegar a uma choupana isolada, certamente a casa em que a mulher vivera, onde Aelia pedira para ficar com o irmão.
Aporta estava entreaberta e Mathieu entrou. À luz declinante do dia, encontrou uma vela, acendeu-a e olhou em torno. Estava tudo muito sujo, cheirava mal e havia ratos por toda parte e praticamente nenhuma mobília,
Não era um lugar adequado para ninguém, muito menos para sua senhora saxã.
Sentiu-se tomado por grande frustração. Sabia que Aelia não podia ficar em Ingelwald. Uma noiva fora escolhida para ele e não começaria sua vida de casado aqui, pensando em Aelia tão perto, nesta choupana lastimável.
Clarise podia ser a mulher mais desejável do reino, mas Mathieu não sabia por quanto tempo resistiria a sua atração por Aelia. Mal podia evitar o anseio de tomá-la nos braços, de beijá-la, profunda e completamente. Queria sentir o gosto dela, de seu espírito selvagem, queria possuí-la. Suas mãos estavam ansiosas pela sensação dos seios redondos e macios, seus olhos queriam mergulhar nos olhos dela e seu corpo doía com a urgência de romper a barreira de sua inocência e reclamá-la como sua.
Abalado, Mathieu apagou a vela. Nunca sentira um desejo tão intenso, tão. constante por uma mulher, nem mesmo por Clarise. Se pudesse mandar Auvrai para Londres com Aelia e o menino...
Mas tinha que estar presente à cerimônia do noivado formal com Clarise. Não podia deixar Aelia em Ingelwald, tinha de levá-la e deixá-la em Londres.
Uma chuva mansa começara a cair quando Mathieu deixou a choupana e passou pelo portão. O pátio estava vazio, havia apenas duas mulheres caminhando juntas à frente dele. Uma delas era Aelia. Curioso, Mathieu seguiu-as até uma das oficinas, a do mestre carpinteiro.
Mathieu visitara todas as moradias e oficinas mais cedo e falara com os artesãos, tendo Sir Gilbert como intérprete, menos com o carpinteiro, que estava doente.
Ele entrou na oficina, que continha todos os itens necessários ao trabalho com madeira e diversas peças, como cadeiras e armários. Mas Mathieu se interessou mais pelas peças entalhadas, dispostas em prateleiras pregadas à parede. Eram obras finas, feitas por um artista que conhecia bem seu oficio.
Mathieu gostaria de ficar mais tempo estudando as peças, mas as vozes na área residencial o atraíram. Aproximou-se e viu que era um quarto confortável, a lareira acesa, peças de mobília sólida. O padre estava presente, ao lado da cama do carpinteiro, rezando as preces para os moribundos. A mulher do carpinteiro estava ajoelhada ao lado das filhas adolescentes e Aelia se sentara num tamborete baixo, segurando a mão do carpinteiro.
Quando as preces formais acabaram, o carpinteiro falou com Aelia, as palavras saindo com dificuldade. Aelia ouviu com paciência e depois respondeu. Mathieu não compreendia as palavras, mas a voz dela era gentil e bondosa, o rosto com a expressão chocada que vira tantas vezes.
Quando Aelia se levantou, levou a mulher até o marido moribundo, depois se ajoelhou junto às filhas e abaixou a cabeça, rezando até o quarto ficar em silêncio. O carpinteiro morrera.
Seguiu-se um choro manso e o sacerdote ergueu a mão, abençoando enquanto rezava pelos mortos. Aelia pôs um braço sobre os ombros de cada uma das filhas, então se levantou a abraçou a mulher. E aí viu Mathieu, de pé junto à porta.
Aproximou-se dele, limpando as lágrimas com as costas da mão.
— Veio receber seu primeiro imposto da morte, normando?
— Você sempre pensa o pior de mim, mademoiselle. Por favor, dê meus pêsames à mulher e peça ao padre para rezar uma missa pelo carpinteiro toda semana durante um ano.
— Farei isso, senhor. — respondeu o padre em francês perfeito.
— Padre Ambrosius foi meu professor. — explicou Aelia.
— E Beorn, o carpinteiro, lhe deu a música. — acrescentou o padre.
— Sim. — sussurrou Aelia, e então voltou às mulheres que choravam. Manteve os olhos em Mathieu enquanto lhes falava, então cobriu a cabeça e os ombros com o xale e saiu.
— Não preciso de guarda para me levar ao meu quarto. — disse, passando por ele.
Devia tê-la deixado ir. Acabara de decidir que era necessário manter uma distância segura entre eles, mas não pôde evitar e seguiu-a sob a chuva. Alcançou-a com facilidade.
— Já lhe disse, estou bem sozinha.
Desmentindo suas palavras, tropeçou e teria caído se Mathieu não a tivesse segurado pelo braço. A chuva ensopara seu xale e se misturava com as lágrimas no rosto de Aelia.
— Permita-me escoltá-la, minha senhora.
— Tem medo que eu fuja durante a noite, Fitz Autier? Que de alguma forma escape ao jugo normando?
A coisa mais prudente a fazer seria deixá-la ir. Numa noite como esta, só um tolo tentaria fugir do calor e do abrigo e Aelia não era tola.
— O que disse à família do carpinteiro? Disse a elas que exigi o pagamento do imposto antes mesmo de o corpo do homem esfriar?
— Não.
— Então o quê? Que elas têm que deixar a casa imediatamente?
—Apenas lhes ofereci minha solidariedade e lhes disse que vou partir de Ingelwald pela manhã.
— E foi tudo?
O queixo dela tremeu.
— Disse que provavelmente nunca mais voltarei... e que deviam confiar em você. Disse-lhes que você é um homem honrado.
Acabava de amanhecer e Mathieu estava selando seu cavalo quando os guardas lhe trouxeram o irmão de Aelia.
— Ah, Osric o Terrível.
Os pulsos do menino estavam amarrados, mesmo assim ele lutava com os guardas que o levaram ao estábulo.
— Prefiro a prisão, normando!
Mathieu terminou a tarefa.
— Você me acompanhará na busca por um desertor.
Osric cuspiu no chão.
— Que todos eles desertem!
— Presumo que você conhece o território do hall de seu pai.
A irmã conhecia, mas Mathieu queria ficar longe dela.
— Isso será de pouco uso para você.
Mathieu montou e um dos guardas ergueu Osric e o entregou a ele, mas o menino começou a gritar como se estivesse sendo torturado. Mathieu acomodou-o na sela diante dele e amarrou suas mãos ao arcão.
— Não pense em pular, você pode morrer.
Não era um grande feito dominar um menino, mas os sons da luta chamaram a atenção da única pessoa que Mathieu não queria ver.
— O que está fazendo com Osric? — gritou Aelia, correndo pelo pátio em direção a ele — Para onde o está levando?
O menino gritou, mas Mathieu logo o fez parar.
— Fique quieto ou vai se arrepender.
Aelia se aproximou e ficou de pé ao lado do cavalo. Quando descansou uma das mãos na perna de Osric, Mathieu olhou para o outro lado. Não queria vê-la confortando o pequeno demônio, preferia sentir a mão delicada em sua pele em fogo.
— Onde, senhor?
— Uma busca, mademoiselle, o menino não estará em perigo... pelo menos não de nós. O que ele faz a si mesmo é outra questão.
— Por favor, barão, deixe que ele fique comigo, cuidarei para que ele...
— Ele cavalga conosco. Afaste-se, mademoiselle.
Mathieu não lhe dirigiu um só olhar e cavalgou para o portão, com sete homens seguindo-o. O que ela pensaria dele não tinha importância. Decidira procurar Durand antes de partir de Ingelwald, o que significava que precisava do menino para guiá-lo. Aelia poderia ter ido, mas Mathieu não pretendia ficar perto dela o dia todo. Além disso, precisava passar algum tempo com o menino para avaliar os problemas que ele causaria durante a viagem para Londres.
Osric finalmente parou de lutar e se limitou a fazer comentários insultuosos sobre os normandos e o rei Guilherme. Depois se calou, mas se recusou a responder às perguntas sobre o terreno ou sobre as trilhas que cruzavam a estrada. Mathieu não tinha experiência com crianças, mas lembrava-se da própria infância e de seu orgulho vulnerável.
— É uma pena que seu pai não tenha permitido que conhecesse as terras. Devia ter trazido sua irmã.
— Andei por aqui tanto quanto Aelia! Mais do que ela!
— Não acredito, você não sabe nada sobre os caminhos da região.
— Este caminho circula o alto da ravina. — Osric apontou para a direita — Ninguém vai lá, só os pastores dos carneiros.
— E este aqui? Tenho certeza de que nunca descobriu até onde vai.
— É claro que viajei por ele, vai dar numa floresta densa.
Mathieu aprendeu muito com Osric sobre a região oeste e os caminhos que Durand poderia ter tomado. Mathieu dividiu os homens em três grupos e cada um tomou uma direção diferente. Ele seguiu a rota oeste e cavalgou muito tempo, com a intenção de alcançar Durand se os rastros que via tivessem sido feitos por ele.
Mas a chuva da noite anterior apagara a maioria das pistas e, ao meio-dia, não havia sinal do vilão. O pequeno grupo de Mathieu parou junto a algumas árvores e desmontou.
— Menino, você está com fome?
Osric deu de ombros.
— Posso comer.
Osric comeu em silêncio e seu comportamento parecia ter melhorado, porém Mathieu percebeu que ele se aproximava devagar de uma adaga que ficara junto a um tronco de árvore. Permitiu que a pegasse e a escondesse em seu calção e esperou que o menino tentasse usá-la.
O momento chegou quando Mathieu estendeu a mão para pegar Osric e colocá-lo na sela. Em movimento rápido, ele puxou a faca e atacou Mathieu, que se desviou do golpe e desarmou o menino.
— Foi inteligente de sua parte pegar uma arma adequada a seu tamanho, mas precisa aprender a usá-la com mais eficácia. Raoul, dê-me seu espadim.
Era uma arma com lâmina mais curta que uma espada e mais longa que uma faca, um tamanho mais adequado ao menino. Mathieu entregou-a a ele, mostrando-lhe como segurar.
— Sei segurar uma espada, normando!
— Posso ver, pequeno saxão. — Mathieu escondeu um sorriso. O temperamento do menino era feroz e corajoso. Precisava apenas de disciplina e treinamento para se tornar um guerreiro formidável no futuro. — Agora, use-a como se quisesse me ferir.
— Eu quero ferir você. — gritou Osric, atacando-o uma vez, duas, embora Mathieu se desviasse com facilidade de cada ataque.
—Aqui... é assim que precisa fazer. — disse Mathieu.
A idéia de Mathieu, de provar quem estava no comando, transformou-se numa lição de esgrima, enquanto Raoul e Guillaume aplaudiam e davam instruções. O menino fez o que pôde para ferir Mathieu, que lhe ensinava como fazê-lo. Era absurdo.
Mas depois Osric ficou menos agressivo.
— Já foi a Grantham?
— Uma vez, quando Fugol, o Ousado, era lorde. Mas era pequeno demais e não me lembro.
— Então não sabe a que distância fica.
— É claro que sei, mais de dois dias a cavalo.
Havia sinais de que alguém fora recentemente em direção a Grantham, mas Mathieu só teria certeza se era Durand caso fosse até à propriedade.
— O que acha? — perguntou a Raoul. — Durand pretende ir até Grantham?
— Parece que sim, barão.
Com a viagem para Londres e a necessidade de manter Ingelwald segura, Mathieu não podia designar ninguém para ir a Grantham. Teria que aceitar a evidência de que Durand realmente se fora. Agora que o portão estava consertado, Ingelwald estava segura de vilões como ele.
Mathieu tocou a trompa para reunir os homens e todos voltaram para o hall. Em pouco tempo Osric estava re-costado ao peito de Mathieu, dormindo profundamente.
Enquanto o segurava, Mathieu admitiu sentir uma admiração relutante pelo menino, que nunca desistira de lutar pelas terras de seu pai e ainda acreditava que tinha uma chance de recuperar Ingelwald.
O corpo de Osric estava totalmente relaxado no sono, seguro nos braços de Mathieu, as mãos sujas em torno das luvas do normando, como se ele fosse capaz de protegê-lo dos rigores da vida.
Aelia se levantou da cadeira, atravessou o grande hall e foi de novo até a porta. Fitz Autier ainda não voltara com Osric e estava anoitecendo. E se tivessem sido atacados como antes?
—Acho que devemos sair e procurar por eles. — disse a Sir Gilbert.
O homem respondeu apenas com um grunhido e continuou a cuidar do ferimento na cabeça de um normando.
Frustrada, Aelia deixou o hall e foi à procura de Sir Auvrai. Talvez ele concordasse em mandar homens procurarem seu irmão e Fitz Autier.
Aelia foi ao estábulo, onde Auvrai e alguns normandos estavam consertando os estragos feitos pelo incêndio. Parecia que ninguém mais estava preocupado com Fitz Autier, a atmosfera era alegre enquanto normandos e saxões se preparavam para uma festa.
Um dos porcos da aldeia se afogara no rio e Auvrai dera permissão para que fosse assado, um desperdício de carne que devia ter sido cortada e preservada. Mas não poderia se preocupar. Teria que deixar Ingelwald e não se incomodaria se os normandos morressem de fome.
Visitou a família do carpinteiro morto e, ao sair, viu Fitz Autier deixando o estábulo, carregando o corpo relaxado do irmão. Osric estava morto!
— O menino dormiu na volta.
Ela piscou e olhou de novo.
— D... dormiu?
— Sim, mademoiselle. Alguma coisa errada? O que aconteceu?
— Não, nada, apenas sua demora.
— Venha comigo e abra a porta para eu levá-lo para dentro.
O alívio que Aelia sentiu foi substituído pela raiva. Como ousava deixá-la preocupada a tarde inteira?
— Senhor, não tinha o direito...
— Este cheiro é de porco assado?
— Para onde levou Osric?
— Mademoiselle, eu faço as perguntas.
— Terá sorte se receber alguma resposta. Ele está exausto!
— Ele é muito saudável, vai se recuperar logo. — Viu os saxões e normandos conversando no pátio. — O que está acontecendo?
— Um de seus porcos se afogou e você deu permissão para que ele fosse desperdiçado numa festa.
Ele não comentou e continuou a andar em direção ao alojamento dos criados.
— Deixe que ele fique no hall esta noite.
— Não.
— Mas, senhor...
Ela sabia perfeitamente que Fitz Autier não permitiria que Osric passasse a noite no quarto dela, mas isto não diminuía sua frustração.
Zangada, arrumou o catre do irmão e observou enquanto Fitz Autier deitava Osric nele. Mathieu a surpreendeu quando estendeu o cobertor sobre o menino e o prendeu perto do pescoço antes de sair. Mas os cuidados dele não amenizaram sua ira. Por que o homem tinha de ser tão obstinado?
Aelia saiu furiosa e foi para o hall, ignorando os homens e as mulheres reunidos no pátio. Mas viu as tochas acesas, as mesas armadas, as travessas de comida sendo postas sobre elas enquanto Modig, o açougueiro, fatiava a carne. Não podia negar que estava aliviada não só pela segurança de Osric, mas pela de Fitz Autier também.
Foi para o quarto, em busca de solidão. Era desconcertante descobrir que se preocupava com o que acontecia com o conquistador de Ingelwald. O homem era um invasor normando, nada mais.
Mas não podia esquecer como a ajudara a lidar com Durand ou que não mandara executar os saxões que se recusavam a jurar lealdade a ele.
Aelia se deitou e fechou os olhos, mas o som de música no pátio e uma batida na porta a fizeram se levantar. Era Rowena com uma travessa de comida,
— Pensei que estaria com fome, minha senhora.
Aelia ficou comovida com a consideração da menina e, na verdade, estava faminta.
— Venha e sente-se comigo. — disse Aelia.
A menina sentou na cama ao lado dela.
— Eu... eu não queria ficar lá fora. Todos aqueles normandos...
Aelia acenou e as duas começaram a comer. Embora o homem que atacara Rowena tivesse ido embora, entendia a inquietação da menina.
— Estão dançando, nossas mulheres e os normandos. — revelou Rowena.
— E tomando barris de cerveja, certamente.
Aelia foi até a janela e olhou o pátio. Era doloroso ver toda a Ingelwald em festa, em paz com seus inimigos.
Chorou enquanto ouvia a música e via as mulheres dançando e rindo com os normandos. Sabia que era melhor assim, mas nem por isso sentia menos dor. E então viu Fitz Autier, observando a dança, uma caneca de cerveja numa das mãos, o outro braço nos ombros de Nelda.
— Então o bastardo quer celebrar? — resmungou.
— Perdão, minha senhora?
Aelia pegou a travessa vazia e se dirigiu para a porta.
— Estou com mais fome do que pensei, vou descer e pegar mais um pouco.
Mathieu pensou que devia ir dormir. Começaria uma longa e difícil viagem pela manhã e precisaria de todas as suas faculdades para cuidar da senhora e do irmão dela — não apenas para vigiá-los, mas para mantê-los em segurança.
— Mademoiselle, não estou interessado. — disse à jovem mulher que lhe abraçara o pescoço. Sabia que ela não entendia as palavras, mas entenderia as ações.
Mas ela persistiu. Era uma bela mulher chamada Nelda, com roupas decoladas. Porém a exibição dos seios muito brancos não o excitou.
Mathieu se afastou e Nelda o seguiu. Então viu Aelia, que lhe lançou um olhar severo e se afastou.
Com menos cuidado do que tivera antes, afastou Nelda e seguiu Aelia, mas ela se aproximou dos músicos, pegou uma lira e começou a tocar. Mathieu ficou de longe, observando-a, uma caneca de cerveja na mão.
Ela começou a cantar e todos os saxões pararam de dançar, rodeando-a, ouvindo como se estivessem enfeitiçados por sua voz. Era pura e linda, mas Mathieu mal notou. Olhava seu pescoço elegante, os movimentos da boca, os longos cílios. Seu cabelo dourado caía em ondas sobre os ombros, os dedos ágeis nas cordas da lira, e Mathieu pensou em outras atividades para aqueles dedos finos.
Aelia terminou a canção e a dança recomeçou, numa atmosfera alegre, saxões e normandos comendo e bebendo juntos. A decisão de Sir Auvrai de assar o porco tinha sido muito boa. Podiam usar a força bruta para subjugar o povo saxão, mas assim era muito melhor.
Logo haveria a colheita, os artesãos tomariam de novo seus instrumentos de trabalho e a vida continuaria como antes.
Para todos, menos para Aelia e seu irmão.
Os olhos de Mathieu encontraram-na de novo e se fixaram em seu corpo delicado. Ela olhava a multidão, mas de repente seu corpo pareceu enrijecer e ela se voltou para olhar em sua direção.
Uma onda quente lhe tomou o sangue quando seus olhos encontraram os dela. Era uma sensação semelhante ao estranho pressentimento que tivera quando a vira pela primeira vez, de pé nas ameias, pouco antes de sua seta lhe arranhar o rosto.
Mas a sensação era mais intensa agora, percorria-lhe o peito e a virilha, desequilibrava-o. Ao mesmo tempo, a lira escorregou das mãos de Aelia e quase caiu. No rosto dela estampou-se uma expressão de total confusão e ela oscilou um pouco antes de deixar o instrumento e se afastar dos músicos. Mathieu a seguiu sem pensar, induzido por uma força maior que ele.
Tonta, Aelia se dirigiu para a cozinha. Certamente, quando ficasse longe de Fitz Autier, seu coração e sua mente voltariam a funcionar normalmente.
Puxou a porta da cozinha, abriu-a, mas, antes de poder entrar, a porta bateu. Não precisou olhar para saber de quem era a mão que a fechara. Sentiu-lhe o braço sobre seu ombro e não queria se voltar, relutante em ver-lhe o rosto.
Prendeu a respiração quando ele a enlaçou pela cintura e a puxou contra o corpo. Não usava cota de malha, mas não havia maciez em seu corpo. Sua respiração era difícil e não disse palavra. As pernas de Aelia amoleceram e seu coração disparou, enquanto tentava entender as incríveis sensações que seu toque lhe despertava.
Fechou os olhos e cerrou os dentes. Nada mudara. Ele era o inimigo, e a levaria para longe de Ingelwald. Não sucumbiria à sedução de seu toque, ao calor dos lábios em sua nuca, às carícias dos dedos em sua cintura. Precisava empurrá-lo, impedi-lo de fazê-la esquecer de que era o inimigo.
Mas ele a virou lentamente e sua resolução desapareceu quando sentiu o calor de sua boca sobre a dela. O sangue lhe fugiu da cabeça e se concentrou na virilha quando ele lhe abriu os lábios e as línguas se encontraram.
Ele emitiu um som baixo que lhe incendiou o sangue e Aelia beijou-o também, passou as mãos por seus braços poderosos, deitou a cabeça para trás, saqueando-o como ele a saqueava. Os dedos dele lhe tocaram os seios e a sensação cresceu, tomando-a toda, e ela quis se entregar, se render...
Não.
Aelia se afastou tão abruptamente que Fitz Autier cambaleou. Os olhos dele brilhavam com uma intensidade tão grande quanto o fogo de seu beijo. Aelia estremeceu com uma emoção faminta que não conhecia. Poderia ter falado, poderia ter encontrado palavras... Mas empurrou-o e correu.
Mathieu precisou de tempo para recuperar a compostura. Não se lembrava de ter se sentido tão confuso com uma mulher, ou tão excitado.
Ele se afastou do pátio e do hall e de qualquer outro lugar em que pudesse se encontrar com Aelia. Logo se viu à porta da oficina do carpinteiro. Havia luz dentro e Mathieu bateu de leve.
Padre Ambrosius abriu.
— Barão? É uma honra... inesperada...
Inesperada e muito pouco bem-vinda, percebeu Mathieu. Entrou mesmo assim e acenou com a cabeça para a viúva e as duas filhas, que estavam ajoelhadas rezando. Elas se ergueram, mas ele não se aproximou.
— Diga a elas que fiquem tranqüilas, padre, não pretendo aborrecê-las ou amedrontá-las.
O padre se virou e falou com as mulheres, enquanto Mathieu olhava em torno da loja. Queria... não, precisava... deve estar por aqui.
— Milorde, há alguma... veio receber o imposto de morte?
— Fero? Não... Bem, sim.
A oficina estava muito limpa e arrumada. Os instrumentos tinham sido dispostos com cuidado e muitos estavam pendurados em ganchos sobre a mesa de trabalho. Dominado pela vela do padre, Mathieu viu pilhas muito bem arranjadas de madeira. Estava certo de que encontraria uma peça adequada para entalhar.
— Pergunte à viúva se há um bloco de madeira de árvore frutífera. — pediu ao padre.
Padre Ambrosius fez a pergunta, a mulher acenou, pegou uma lamparina e fez sinal a Mathieu para segui-la. Saiu da oficina, rodeou-a e abriu a porta de um pequeno galpão de madeira.
Mathieu pegou a lamparina e entrou. O carpinteiro tinha estocado peças terminadas e materiais que ainda seriam trabalhados. Mathieu encontrou diversos blocos da madeira que queria. Escolheu as peças e voltou-se para a viúva.
— Heríot. — disse.
A mulher olhou de Mathieu para o padre, sem compreender. Os dois conversaram por um momento e o padre se voltou para Mathieu.
— Milorde, estas... estas peças de madeira são para pagar o heríot!
Mathieu acenou.
— Sim, mais uma faca de talhar e uma goiva ou duas.
Eles pareceram atônitos, e com razão, mas era disso que Mathieu precisava. Entalhar madeira lhe tiraria da mente pensamentos que não devia ter sobre Aelia e manteria suas mãos ocupadas durante a viagem. Era um passatempo que desenvolvera durante as longas horas que antecediam as batalhas. Conseguira alguma habilidade e tencionava entalhar um presente de noivado para lady Clarise. Isto manteria seus pensamentos centrados na mulher que seria sua noiva.
A viúva pegou uma bolsa de couro com as ferramentas do marido e entregou-a a Mathieu.
— Dê a ela meus pêsames. Beorn era um homem muito habilidoso e Ingelwald ficou mais pobre sem ele.
Mathieu saiu da oficina do carpinteiro pensando no que entalharia para lady Clarise, e imediatamente se sentiu mais calmo. Logo se casaria com a bela senhora normanda e nunca mais pensaria em Aelia de novo, nunca mais experimentaria aquela total falta de controle.
Parou no estábulo, onde estavam prontos os fardos para a viagem, e deixou lá a madeira e os instrumentos. Então foi até o cárcere em que estavam os prisioneiros saxões.
— Robert — disse a um dos guardas —, vá buscar o rapaz chamado Halig, quero falar com ele aqui fora.
Um momento depois, o rapaz que o atacara nas escadas foi retirado da pequena prisão. Estava sujo e desarrumado.
— Sua senhora vai viajar amanhã para Londres e preciso de alguém que a proteja na estrada.
— E os normandos não são capazes?
— São, mas você se mostrou muito leal à senhora, acredito que vai desempenhar o dever melhor do que todos.
A garganta de Halig se moveu e ele engoliu em seco. Era uma tarefa honrosa e útil, proteger Aelia na viagem e em Londres.
Mathieu pretendia fazer isso pessoalmente, mas uma espada extra, devotada ao bem-estar de Aelia, era muito necessária. Como só podia levar oito cavaleiros normandos, decidira que Halig poderia ser um protetor adequado.
O rapaz concordou com um curto aceno de cabeça.
— Aceitarei seu voto de lealdade. — disse Mathieu.
— Não.
— É o que exijo, rapaz. Se não puder me dar sua palavra de que será leal a mim e obedecerá minhas ordens, então ficará preso aqui até eu decidir o que fazer com você. Compreendeu?
Emoções contraditórias cruzaram o rosto do rapaz, mas Mathieu sabia que ele lhe daria o voto. A lealdade a Aelia era profunda demais.
Aelia acordou bem antes do amanhecer. Hoje deixaria Ingelwald para nunca mais voltar. Chorou até a cabeça doer, então limpou as lágrimas e foi até a janela.
Observou o pátio, onde dormiam guerreiros normandos, alguns ao lado de mulheres saxãs. Depois olhou em torno, guardando a imagem do quarto onde passara todas as noites de seus 20 anos. Lembrou-se de como sua mãe costumava vir lhe contar histórias de sua juventude, de como a primeira visão do futuro marido, Wallis, embora escolhido pelos pais dela, lhe causara a sensação de intensa consciência dele, de conhecimento profundo de que era seu único e verdadeiro consorte.
Aelia tinha certeza de que nunca experimentara uma sensação assim e não sabia se algum dia a sentiria. Certamente não era igual a que a visão de Fitz Autier lhe causava. Precisava lembrar a si mesma de que tudo o que sentia ao ver seu conquistador e captor era aversão.
O dia era frio e claro quando Aelia desceu e caminhou até o portão que os normandos haviam destruído e depois consertado. Estava aberto e os guardas não a impediram de passar por ele e andar pela área de Ingelwald que ficava além das muralhas.
Respirou profundamente para sentir os cheiros do outono, da terra fértil que logo produziria ricas colheitas. Cobriu a cabeça com o xale e entrou na pequena igreja, iluminada apenas pelas velas acesas no altar. Ajoelhou-se e rezou, pedindo proteção na viagem que levaria, a ela e Osric, a um destino desconhecido.
Fitz Autier dizia apenas que eram prisioneiros da coroa, à mercê do rei. Na melhor das hipóteses, isso significava que ela e Osric se tornariam escravos dos normandos; na pior, que ela e Osric seriam executados.
Fechou os olhos e pediu que o rei normando lhes poupasse a vida. Quando terminou a oração, levantou os olhos e encontrou o azul profundo dos olhos de Fitz Autier.
Estava ajoelhado entre diversos de seus soldados e de muitos saxões, mas não havia dúvidas sobre a intensidade de seu olhar.
Aelia desviou os olhos e tentou se concentrar na missa, mas cada músculo, cada osso de seu corpo estava consciente dele e sua pele parecia queimar quando os olhos dele a tocavam.
Quando se aproximou do altar para receber a comunhão, Aelia sentiu Fitz Autier atrás dela. Diante de Deus e de todo o povo reunido na igreja para rezar, ele a tocou nas costas como se tivesse o direito de fazê-lo.
Ficou ao lado dela, diante de padre Ambrosius, que fez uma pausa no ritual da comunhão para pedir uma bênção especial e depois disse a Fitz Autier:
— Meu filho, é realmente necessário levar lady Aelia para Londres?
A pergunta pareceu abalar Fitz Autier, que limpou a garganta antes de responder.
— Sim, padre, é a ordem do rei.
— Então o aconselho a mantê-la em segurança, porque vida dela é preciosa para nós em Ingelwald.
— Você cavalgará comigo. — disse Mathieu a Osric, cujo comportamento continuava tão deplorável como quando tinham começado a viagem no dia anterior.
Mathieu cavalgava à frente do grupo e Aelia e seu guarda, Halig, tinham ordens de ficar no meio. Ele conseguira de Halig o voto de lealdade e não tinha motivos para duvidar da integridade do jovem.
Mas Aelia não lhe fizera promessas. Se decidisse fugir, Halig a seguiria. E quem sabia o que poderia acontecer?
— Tenha uma viagem segura, barão. — disse Auvrai na partida — Tudo estará pronto para sua esposa quando voltar.
Antes que pudesse responder, Aelia batera os calcanhares nos flancos do cavalo e cavalgara até o portão. Estava fechado e Mathieu sabia que seus homens não o abririam até que ele desse a ordem.
— Dois meses, Auvrai, pretendo voltar antes do inverno.
— Sim.
Os homens de Mathieu seguiram-no até o portão, onde se juntaram a Aelia e Halig. Saíram em meio às despedidas dos soldados normandos de guarda, mas Mathieu sentiu a muralha de silêncio gelado que emanava da senhora quando deixou seu lar.
O dia estava bom e cobriram muitos quilômetros com rapidez. Mathieu ignorou o ressentimento de Aelia, consciente de que fora causado pelas palavras de Auvrai. Acreditara que tinha uma esposa.
— Vai nos matar de fome, normando? — perguntou Osric no meio da manhã.
— Está com fome, pequeno saxão?
Pararam ao lado de um rochedo baixo, e Mathieu observou Aelia tirar seu farnel da sela e se afastar do grupo. Não olhou na direção dele, mas seguiu a rocha até chegar a um pequeno grupo de árvores e desaparecer. Ele lhe daria a privacidade de que ela precisava... a menos que demorasse mais do que julgava necessário.
— Devo... quer que eu vá com ela? — perguntou Halig.
Mathieu negou com a cabeça.
— Deixe-a sozinha por enquanto.
Entregou a Osric o cantil de pele e o menino bebeu enquanto Mathieu tirava alimento do famel e o colocava num degrau da rocha. Então se afastou, mantendo os olhos na direção que Aelia tomara.
— Quero praticar de novo com a espada de Sir Raoul. — disse Osric — Você me mostra como atingir meu oponente?
— Com uma condição. — disse Mathieu, satisfeito por ter um motivo para parar de andar enquanto esperava a volta de Aelia — Tem de prometer nunca usar o que aprender contra mim ou meus homens.
— Como posso fazer uma promessa dessas? Você é meu inimigo! Farei todo...
— Então não há necessidade de continuar esta conversa.
Mathieu voltou a andar, olhando novamente em direção às árvores, mas não viu sinal de Aelia. Osric parou em frente a ele, impedindo-o de prosseguir.
— Prometo! Normando, disse que prometo não ferir você nem seus homens com minha habilidade.
— Sua palavra, pequeno saxão. Vai cumpri-la como um homem de honra?
— É claro. Agora ensine-me.
Mathieu tomou emprestado de novo o espadim de Raoul e entregou-o a Osric.
— Seria melhor ficar longe de batalhas.
— Não sou covarde, Fitz Autier!
— Enquanto for pequeno, é uma estratégia melhor ficar longe de lutas individuais. Aprenda a usar um arco.
— Já sei atirar. — disse Osric enquanto atacava com a arma.
Mathieu se desviou.
— Está vendo? É improvável que consiga dominar um adulto tão de perto.
— E se eu atacá-lo enquanto dorme?
Mathieu riu.
— Então não precisa de instruções. Teria apenas que ferir entre as costelas.
— Ou cortar-lhe o pescoço...
— Sim.
— Quero estar preparado se formos atacados.
— Viajamos com oito guerreiros experientes e um cavaleiro saxão, menino. — disse Mathieu, olhando de novo para as árvores — Não precisará lutar.
— Mas eu...
— Fique aqui.
Aelia se sentou no chão, as costas contra a rocha. Ergueu a cabeça, deixando que o sol lhe aquecesse o rosto, enxugasse suas lágrimas.
Deixar Ingelwald fora a coisa mais difícil que já fizera. Enquanto os normandos aprontavam os cavalos e se preparavam para a viagem, caminhara pela área, parando em cada oficina e cada choupana, imprimindo na lembrança as visões de seu lar, tudo o que teria dele no futuro.
Descobrir que Fitz Autier tinha uma esposa fora o golpe final. Ele a rebaixara como se fosse uma leviana barata, beijando-a, excitando-a como se fosse livre para fazê-lo, como se não tivesse uma esposa normanda esperando por ele.
Estaria ela em Londres? O sangue de Aelia fugiu-lhe da cabeça quando compreendeu a urgência de Fitz Autier em voltar para lá. Tinha uma mulher esperando por ele.
— Por que a demora?
A voz de Fitz Autier assustou-a e Aelia se afastou da rocha, pegando seu farnel.
— Hora de ir, suponho.
— Você se alimentou?
— Não estou com fome.
— Estará antes de pararmos de novo, deve comer agora.
— Não tenho vontade de comer, Fitz Autier.
Ela manteve o rosto virado contra ele enquanto tomava a direção da clareira.
Fitz Autier segurou-lhe o braço e a fez parar.
— Não vou deixar que fique doente.
— Isto não lhe diz respeito.
— Sim, diz sim. Temos um longo caminho à frente e não aceitarei atrasos.
Aelia olhou para ele, tendo de admitir que qualquer que fosse o motivo que a atraía não desaparecera ao saber que era casado.
— Deixe que eu pegue meu irmão e vá embora.
— Sabe que não posso.
— Dê-nos dois cavalos e iremos para Thrydburgh. Lorde Caelin nos dará...
Fitz Autier segurou-lhe os dois braços.
— Aelia, Thrydburgh não existe mais, é uma propriedade normanda.
— Suponho que você fez parte dessa conquista.
— Não, mas teria feito se o rei me mandasse lá.
Ele a segurava com força.
— O que acontecerá conosco em Londres? Comigo e Osric?
Um músculo em seu queixo se moveu e ele lhe apertou os braços antes de libertá-la.
— É uma decisão do rei Guilherme.
— O que ele pode fazer? O que fez antes com outros prisioneiros saxões?
— É hora de partir. — ele começou a se afastar e Aelia o seguiu.
— Ele vai mandar nos executar?
Ele se virou para ela, a expressão feroz.
— Sangue de Deus, mulher, acha que a levaria para Londres para ser morta?
— O quê, então? Vamos para a Normandia como escravos?
Aelia observou enquanto ele passava os dedos de uma das mãos pelo cabelo, um gesto que o vira fazer muitas vezes quando estava zangado.
— Não. Provavelmente ele a dará a um de seus cavaleiros em casamento.
Aelia respirou profundamente e se afastou.
— Nunca me casarei com um normando.
Ela parou quando viu Osric montando o cavalo de Fitz Autier e segurando as rédeas quando o cavalo partiu velozmente.
Seguia a direção norte, de volta a Ingelwald, e o cavalo galopava com grande rapidez. Osric não conseguiria controlá-lo e certamente cairia!
Fitz Autier passou correndo por ela, gritou algumas ordens a seus homens, montou a égua de Aelia e partiu atrás de Osric.
— Lady Aelia... — Sir Raoul segurou-lhe o braço e a levou de volta ao grupo — Tenho ordens de mantê-la aqui.
— Meu irmão. — sussurrou.
— É um terror, mas o barão o alcançará e o trará de volta.
— Não podemos segui-los? Prometo...
— Não, minha senhora. As ordens do barão foram claras.
O menino teria sorte se sobrevivesse. Mathieu não sabia por que não deixava que a irresponsabilidade de Osric tivesse seu fim natural e o matasse. Mas se lembrava de alguns incidentes constrangedores de sua juventude e era grato à paciência do velho cavaleiro que vira potencial nele e o formara como um guerreiro honesto e cavalheiresco. Além disso, queria poupar Aelia da dor de perder o irmão. Já perdera o pai e o lar e, quando chegassem a Londres, não tinha dúvidas de que Osric seria afastado dela.
O menino estava bem à frente, mas não tinha controle sobre o cavalo. As rédeas haviam escorregado de suas mãos, os pés estavam soltos, bem acima dos estribos, e segurava com dificuldade o arção com as duas mãos. Uma cerca viva atravessava o caminho e Osric não conseguiria se segurar quando o cavalo a pulasse.
Mathieu conseguiu ficar ao lado dele e gritou:
— Osric!
O menino não olhou para ele, mas Mathieu percebeu que o ouvira.
— Depressa, menino! Vou agarrá-lo pela cintura e, quando o fizer, jogue seu peso em minha direção!
Estavam se movendo muito depressa, já chegando à cerca, Mathieu se debruçou com cuidado e agarrou a túnica de Osric.
— Debruce em minha direção!
Quando o menino debruçou, Mathieu o segurou com firmeza pela cintura.
— Agarre meu braço!
Assim que Osric o segurou, Mathieu puxou-o da sela e diminuiu o passo da égua. Mas o outro animal continuou a galopar, deixando o menino pendurado. Mathieu levantou-o e colocou-o na sela enquanto o outro cavalo chegava à cerca e pulava. Ouviu-se um barulho forte, seguido de um relincho alto quando o cavalo perdeu o equilíbrio e caiu.
Osric pressionou o corpo trêmulo contra Mathieu.
— Onde ele está?
Mathieu ficou quieto até a própria respiração voltar ao normal e a raiva ficar sob controle. Gostaria de estrangular o menino, mas decidiu por uma punição maior. Cavalgou até a cerca, ouvindo os relinchos dolorosos do animal ferido. Quando encontrou uma passagem, desmontou e puxou Osric. Segurando o menino pela nuca, Mathieu caminhou até onde o animal se debatia de dor, as patas dianteiras quebradas.
— O que vai fazer?
— Eu não, você. Vai cuidar do dano que causou.
— Eu? É... é apenas um cavalo. É...
— Assuma a responsabilidade pelo que faz, menino!
A raiva de Mathieu queimava. Tirou a espada e entregou-a a Osric.
— Ponha a ponta aqui.
— Não, eu... eu...
— Pode levar um belo corcel à morte... o mínimo que pode fazer é garantir que a morte seja rápida e sem dor.
Osric empalideceu, mas Mathieu não cedeu. Só a respiração difícil do cavalo e seus relinchos ocasionais de dor rompiam o silêncio.
— Aqui.
Tremendo, o menino fez o que lhe foi ordenado, mas Mathieu também pôs as mãos sobre o punho da espada para tornar mais forte o golpe necessário para matar o cavalo.
— Agora.
Osric estremeceu, mas fez o que era necessário para matar com rapidez o animal que sofria. Quando acabou, deixou a espada cair e se virou para enfrentar Mathieu. Suas faces estavam cobertas de lágrimas, mas gritou como se ele tivesse o direito de estar zangado.
— Para que foi isso? Você me fez matar um cavalo em perfeitas condições!
Mathieu pegou Osric pelos ombros e o fez se voltar para o cavalo, esperando que o menino se sentisse tão mal como ele.
— Olhe aquelas pernas quebradas! Acha que o cavalo estaria assim agora se não tivesse tentado fugir com ele? Acha que você ainda estaria vivo se tivesse pulado com ele? Haverá conseqüências muito duras para suas ações.
— Você não é meu pai, normando, para me punir! — gritou o menino, mas havia menos raiva em seu tom e ele parecia quase arrependido.
— Sou a única autoridade que conhece, menino. — disse Mathieu, a voz baixa e perigosa —Até chegarmos a Londres, está sob meu comando e não fará um só movimento sem minha aprovação.
— Você não pode...
— Sim, eu posso. — deu um pequeno empurrão em Osric em direção à passagem na cerca — Ande.
Mathieu jogou Osric sobre a sela da égua, montou atrás dele e tomou o caminho de volta ao acampamento.
— Teria deixado sua irmã enfrentar sozinha o rei Guilherme?
Sua raiva não diminuíra e ainda não decidira que punição seria adequada, mas começaria envergonhando-o por desertar a irmã.
— Deixei Halig para cuidar dela.
— Você é o filho de Wallis, mas deixou sua irmã aos cuidados de um homem que nem é filho de um nobre?
— Ele...
— O filho de um nobre não foge ao dever.
— Mas eu...
— Fugiu como um covarde.
— Não sou covarde!
— Sua família o mimou demais. Comigo, vai aprender a ter disciplina.
— Não sou...
— Chega.
Mathieu ficou surpreso, mas grato, quando Osric se calou. Voltaram em silêncio, enquanto Mathieu controlava a fúria.
A primeira pessoa que viu foi Aelia. Quando os viu, ela correu para eles. Mas Mathieu não se comoveu com sua preocupação.
— Osric! Onde está o corcel?
Osric ficou calado e Mathieu respondeu:
— Morto.
Ele diminuiu o passo do cavalo para permitir que Aelia caminhasse ao lado deles.
— O que aconteceu?
Osric não respondeu.
— Conte a ela. — disse Mathieu.
— Ele caiu. — disse o garoto finalmente.
— Caiu? Como?
— Pulando uma cerca.
Aelia pôs a outra mão no peito e ficou imóvel. Ela parecia tão consternada que Mathieu teria desmontado e a tomado nos braços se não estivesse tão zangado. E prometido a lady Clarise.
— Como... de alguma forma você escapou sem ferimentos.
— O normando me tirou da sela antes do pulo.
— O pulo o matou?
— Não, Fitz Autier me fez cortar-lhe a garganta.
Os joelhos de Aelia amoleceram e ela andou mais devagar, enquanto a égua que levava Osric e o barão normando continuava em direção ao grupo de cavaleiros.
Nunca vira Fitz Autier tão zangado, e tinha todo o direito de estar. Certamente puniria Osric, surpreendentemente calado enquanto Fitz Autier lhe amarrava as mãos com uma corda e o montava no cavalo de Sir Raoul.
Não havia dúvidas de que Fitz Autier salvara a vida do irmão, com grande risco para si mesmo. Devia-lhe gratidão, mas as palavras ficavam presas na garganta quando pensava no desrespeito a ela.
Fitz Autier entregou o farnel de Aelia a Sir Gerrard, então amarrou o seu à sela da égua.
— Monte. — disse a Aelia.
— Cavalgarei com Halig.
— Acho que não, mademoiselle.
Ela não tinha escolha, então pôs o pé no estribo. Ele a pegou pela cintura e ergueu-a, depois montou atrás dela. Aelia ficou entre seus braços e pernas quando ele pegou as rédeas.
— Eu... eu peço desculpas pelo comportamento de Osric. Ele...
— Não aceito. — disse Fitz Autier — Você já pediu desculpas demais por ele, e ele assumirá a responsabilidade por suas ações e receberá punição. Provavelmente será a primeira vez que isso acontece.
Mathieu decidiu que o menino cuidaria de todos os cavalos e os alimentaria antes de ter permissão de comer e dormir. Começaria esta noite e continuaria até chegarem a Londres.
Não se surpreendeu quando Aelia deixou seu alimento para ajudá-lo.
— Aelia. — ele lhe segurou o braço e a fez parar.
— Ele é pequeno demais para fazer um trabalho tão pesado. — protestou quando ele a levou de volta.
Mathieu ficaria surpreso se Osric tentasse fugir de novo. O menino era abusado, mas não estúpido. Sabia como chegara perto da morte e não tentaria o mesmo truque de novo.
— Você o está tratando com crueldade.
Mathieu olhou para seus homens.
— O que vocês acham? Sou um senhor cruel?
— Não, milorde.
— É o que o menino merece.
— O que você acha, Halig?
O jovem saxão respondeu com calma.
— Meu pai me chicotearia se fizesse o que Osric fez.
Mathieu sentiu Aelia ficar tensa, mas continuou a comer.
— Vamos montar as tendas esta noite? — perguntou Gerrard a Mathieu.
Ele pretendia manter Aelia e Osric separados, mas não permitiria que Aelia dormisse sozinha numa tenda. Seria fácil para ela sair da tenda sem ser vista para tentar alguma coisa.
— Não, vamos dormir a céu aberto.
Temia a noite em que seria obrigado a montar as tendas. Enquanto dormissem entre os homens, Mathieu não ficaria tentado a tocar Aelia, a beijar-lhe a boca, a fazer amor com ela, como seu corpo exigia há tanto tempo. Mas não poderia deixá-la sozinha numa tenda, teria que dormir com ela.
Levantou-se abruptamente e deixou o círculo em torno da fogueira. Pegou seu alforge, tirou os instrumentos de entalhar e o sólido bloco de madeira que recebera da viúva de Beorn. Levou um tronco pesado até a fogueira, sentou-se e começou a entalhar. Era uma ótima distração e o impediria de pensar nas noites que teria de passar com Aelia.
Como o primeiro lorde normando de Ingelwald, decidira que o símbolo de sua casa seria um poderoso cervo macho, a imagem de força, velocidade e resistência. Ele o entalharia como um símbolo de tudo o que era, de tudo o que possuía.
Enquanto talhava, pensou que daria toda a atenção ao trabalho, sem se deixar comover pelas lágrimas que Aelia tentara esconder dele, nem se lembrar de como o corpo dela se aninhara no seu enquanto cavalgavam até o acampamento.
— Terminei.
Mathieu olhou para Osric, pequeno e sujo, os ombros tremendo de tanto cansaço que mal conseguia ficar em pé. No entanto, seu tom continuava desafiador. Cruzou os braços e esperou que Mathieu respondesse.
— Há comida....
Mathieu fez sinal com a cabeça em direção ao lado oposto do fogo, onde Raoul e os outros se sentavam. Tinham terminado de comer e Aelia estava encostada ao tronco de uma árvore, tentando combater o sono.
O menino nada disse, apenas se virou e reuniu-se aos homens, pegando o alimento que lhe deram. Mathieu parou de entalhar, enrolou a madeira num pedaço de couro e guardou seus instrumentos. Então esticou uma pele perto do fogo e jogou sobre ela um cobertor de lã.
Aelia dormia no chão quando se aproximou dela. Agachou-se junto a ela e se voltou para falar baixo com seus homens.
— Gerrard, veja se os cavalos estão presos. Raoul, quando o menino acabar de comer, amarre-o a você. Fico com a primeira vigília, e depois é você, Gerrard.
— Não! Não tentarei fugir.
Mathieu ignorou o menino e tocou o ombro de Aelia, mas ela não acordou. Ele a ergueu nos braços e carregou-a até a pele que preparara, depois a cobriu com o cobertor. Suas mãos se demoraram mais do que deviam ajeitando o cobertor sobre os ombros, passando por seus braços.
Quando ela virou a cabeça, Mathieu viu o ferimento no pescoço, o corte que quase a matara. Havia trazido um pouco do ungüento de Auvrai e passou no ferimento.
Ela abriu os olhos cheios de sono, olhou-o, ergueu uma das mãos e passou-a pelo cabelo dele, atrás da orelha. Seus lábios se abriram de leve e ela fixou intensamente os olhos nos dele.
Mathieu não conseguia respirar. Embora soubesse que Aelia não estava acordada, o leve toque de sua mão excitou-o a ponto de sentir dor. Fechou os olhos para sentir a caricia dos dedos dela, então se controlou, tomou-lhe a mão e abaixou-a, cobrindo-a.
Ela se virou de lado e dormiu de novo. Mathieu respirou fundo e voltou ao tronco onde se sentara antes, enquanto seus homens se preparavam para dormir. Até Osric ficou quieto, cansado demais para protestar por ter sido amarrado a Raoul. Então Mathieu esticou as pernas e se preparou para velar, por ela e por todos, durante seu turno de vigília.
Os dias se passaram da mesma forma até o quarto dia, quando Fitz Autier pareceu mais alerta do que o normal, mais cauteloso.
— O que é? — perguntou Aelia — O que está errado?
— Gerrard! — chamou ele.
O cavaleiro se aproximou quando chegavam perto de uma inclinação rochosa na trilha. Era tão íngreme que teriam que desmontar para descer.
— Fique aqui com Roger e Guillaume.
— Sim, barão.
Aelia se inclinou para o lado, a fim de olhar para trás deles. Não havia nada, apenas árvores e o terreno áspero que tinham trilhado por todo o dia.
— Fiquem de vigia até o anoitecer, depois nos sigam. — disse Fitz Autier a Gerrard.
— Há alguém lá? — perguntou Aelia.
— Estou apenas sendo cauteloso.
Ele a ajudou a desmontar e, quando desembainhou a espada, os outros fizeram o mesmo.
Até Osric ficou quieto enquanto os homens levavam os cavalos pela escarpa e Aelia percebeu que o caminho era muito vulnerável, aberto, onde um ataque seria difícil de repelir. Embora ainda não tivessem encontrado problemas, Aelia sabia que os homens da escolta estavam sempre prontos para um encontro hostil.
Mas isso era diferente. Não fez mais perguntas e caminhou ao lado de Fitz Autier até chegarem ao fundo da ravina e entrarem numa floresta densa.
Ao cair da noite, quando Gerrard e os outros chegaram ao campo, disseram não ter visto nada de ameaçador.
Mas Aelia percebeu que Fitz Autier não relaxou, embora devesse estar cansado porque ficara de vigília grande parte da noite anterior. Ele caminhava pelo perímetro do campo e, quando começou a chover, ordenou que as tendas fossem montadas. Osric já terminara suas tarefas e dormia sob uma árvore.
O barão se aproximou, ajoelhou-se num só joelho ao lado do menino e lhe falou em voz baixa. Osric acordou e sentou-se. Sua atitude obediente e calma surpreendeu Aelia.
Fitz Autier sempre os mantinha separados, mas esta noite levou Osric para junto de Aelia.
— Fique ao lado de sua irmã e coma. Não quero movimentos no campo esta noite.
— Por quê? O que está acontecendo?
Fitz Autier sacudiu a cabeça.
— Nada, apenas precaução normal.
Ele estivera quieto o dia todo, cavalgando tão perto dela. Sentia sua respiração no cabelo e na orelha, mas mesmo este contato tão leve a fizera sentir dor na virilha.
Por dias ela se sentara junto dele, seu corpo se encostando ao dele a cada movimento, suas coxas musculosas ou o metal quente da cota de malha em sua face... e ela pensou em seu beijo, lembrou-se de como ele a fazia se desmanchar até quando dormia.
Aelia não sabia por quanto tempo mais seria capaz de viajar assim... tão perto o dia todo, depois observando suas mãos habilidosas entalharem a madeira macia.
Ele tinha uma esposa esperando por ele em algum lugar, talvez em Londres.
Sentia dificuldade em imaginar Fitz Autier e esta mulher desconhecida que era sua esposa, a mulher que tinha o direito de tocá-lo sempre que quisesse, a mulher que dormia ao lado dele.
Quando Osric terminou de comer, foi para a tenda onde passaria a noite. Aelia sabia que Fitz Autier não confiava nele e, que certamente um dos soldados o guardaria.
Finalmente Aelia também foi para sua tenda, para escapar de Fitz Autier e de todas as emoções confusas que ele despertava nela. Sabia que não tinha mais consideração por ela do que por uma leviana qualquer.
Mas não podia esquecer seu beijo... ou seu toque.
A noite estava fria e Aelia se enrolou num cobertor. Tentou dormir, mas a inquietação de Fitz Autier a afetara e ficou acordada, ouvindo a chuva cair e deixando o pensamento vagar, até que Fitz Autier entrou na tenda.
Ela se sentou, abrupta.
— Não pode entrar aqui!
Ignorando-a, ele enrolou seu cobertor e se deitou com a cabeça sobre ele.
— Tenho apenas algumas horas para dormir, mademoiselle. — disse ele, acomodando-se.
Ela sentiu o calor de seu corpo e precisou fazer grande esforço para não se aproximar.
— Deite-se e durma, amanhã será um longo dia se esta chuva continuar.
— Pensei que tinha feito seu turno de vigília ontem à noite.
— Estamos dobrando hoje.
— O que aconteceu?
— Nada, apenas sigo meus instintos e eles me avisam para ser particularmente cauteloso.
Ficaram deitados por um longo tempo, mas Aelia sabia que ele não dormia. Perguntou-se se o coração dele batia tão depressa quanto o dela.
— Você tem filhos?
A pergunta foi feita num sussurro. Ele não respondeu de imediato e Aelia se perguntou se estaria dormindo.
— Será melhor não falarmos sobre isto.
As perguntas a queimavam há dias.
— Você teria feito de mim sua amante. Você me beijou, me tocou, me tratou como um homem casado trata uma... uma prostituta.
Ele ficou completamente imóvel, sem nem sequer respirar. Depois de um longo momento sem resposta, Aelia pensou em falar de novo quando subitamente ele se moveu e pressionou a mão contra sua boca, impedindo-a de falar.
Ele se moveu em total silêncio e encostou os lábios no ouvido dela, sussurrando quase inaudivelmente:
— Fique quieta.
Ajoelhou-se e abriu uma pequena brecha na entrada da tenda. Então Aelia ouviu um passo muito leve no chão molhado. Não teria percebido se Fitz Autier não a tivesse alertado. Ele pôs uma coisa fria e dura em sua mão e Aelia percebeu que era uma faca. Então ele olhou para fora, pegou a espada e saiu em total silêncio.
Aelia o seguiu e viu-o se mover em torno do acampamento. Não havia ninguém, nem mesmo os homens designados para a primeira vigília.
Fitz Autier se dirigiu para as árvores e desapareceu. Aelia ouviu um barulho atrás de si e se voltou abruptamente, mas nada viu na escuridão.
Esgueirou-se até a tenda mais próxima e a abriu no momento em que se ouviu um som de espadas em luta à distância.
— Socorro! Venham depressa!
Aelia não esperou que os homens saíssem da tenda e seguiu os sons do duelo. Logo todos os cavaleiros normandos estavam armados e entravam na floresta, onde Fitz Autier lutava com um atacante à luz fraca da fogueira. Os homens se espalharam e Aelia pensou que eles iriam ajudar Mathieu, mas continuaram escondidos enquanto ele lutava sozinho e apenas Halig e Sir Gerrard ficaram com ela.
O atacante de Fitz Autier usava elmo e cota de malha e manejava uma espada como um soldado experiente — como o homem que matara seu pai. Aelia observou o homem enquanto ele lutava com Fitz Autier. Não havia dúvida, era o elmo do assassino de seu pai e ele usava a espada da mesma maneira.
Fitz Autier não estava com a cabeça protegida e seu oponente girou a espada num movimento mortal que lhe teria partido a cabeça até os ombros se não tivesse se desviado em tempo. A manobra que matara seu pai.
— Há oito de nós, Durand — gritou Mathieu — Espera vencer todos nós?
— Sua conta está errada, bastardo.
Durand? O homem que estuprara Rowena?
— Façam alguma coisa! — gritou Aelia.
— Ele é capaz de lidar com o vilão, lady Aelia. — disse Gerrard.
— Mas...
Osric se insinuara entre Aelia e Halig exatamente quando Fitz Autier tomou a ofensiva, segurando sua espada com as duas mãos e golpeando o outro homem. O oponente recuou diversos passos e conseguiu atingir o ombro de Fitz Autier, fazendo-o deixar cair a espada.
Mesmo então, Fitz Autier não se rendeu nem seus homens se moveram para ajudá-lo. Aelia nada podia fazer a não ser observar enquanto ele se desviava dos golpes do adversário, movendo-se com rapidez e agilidade.
— Eu o vencerei sem arma, Durand! Você não é um homem, é um covarde, um estuprador de meninas. Venha!
— Por que o provoca? Vai apenas irritá-lo e torná-lo ainda mais perigoso. — observou Aelia.
— Não se preocupe, minha senhora. — disse Gerrard.
— Não seja idiota, Aelia. Fitz Autier é muito melhor do que ele.
Aelia mal ouviu o insulto do irmão. Sua boca estava seca e o coração batia com forca enquanto observava o duelo que continuava. Fitz Autier se movia bem, o corpo poderoso se desviando de cada golpe da espada, mas não podia recuar indefinidamente. Durand logo lhe daria um golpe mortal.
— E se houver outros lá? E se...
— Raoul e nossos homens já verificaram que não há outros. Tudo ficará bem, lady Aelia. — Gerrard segurou o queixo de Osric e virou-lhe o rosto para si — E você, menino, vai falar com respeito com as pessoas mais velhas, particularmente com a senhora sua irmã.
A luta parecia interminável enquanto Fitz Autier evitava cada golpe do oponente. Os dois respiravam com dificuldade, mas nenhum cedia, e Aelia se lembrou de todos os ferimentos de Fitz Autier... e rezou silenciosamente para que ele vencesse.
Fitz Autier fez um movimento súbito que derrubou o adversário. Lançou-se ao chão e pegou sua espada, enquanto Durand conseguia se ajoelhar e atacar mais uma vez.
— De pé, Durand! Eu o matarei numa luta justa!
— Não é provável, bastardo!
Recomeçou a atacar, mas Fitz Autier se defendeu habilmente, depois tomou a ofensiva. Seus golpes fizeram Durand recuar, tentando evitar os obstáculos no chão que o fariam tropeçar. Deu um golpe poderoso, do qual o barão se defendeu e aplicou-lhe o golpe fatal, atravessando-lhe o corpo com a espada.
Reinava o silêncio enquanto Fitz Autier ficava em pé diante do corpo de Durand, segurando a espada ao lado do corpo. Seus homens saíram de suas posições na floresta e se aproximaram.
— Ele feriu Osbern e Hugh — disse Raoul —, mas eles viverão.
Pareceu a Aelia que a voz do cavaleiro vinha até ela por um longo e profundo túnel.
— Não há outros, Durand veio sozinho. — disse Sir Guatier, sua voz também estranhamente distante.
— Segurem lady Aelia!
Ela ouviu o grito de Raoul quando tudo ficou negro.
Mathieu se moveu rapidamente e tomou Aelia de Halig, que conseguira segurá-la antes que atingisse o chão. Não sabia por que era tão importante que fosse ele a levá-la da floresta, mas carregou-a até a tenda.
— Preciso de água e uma toalha limpa.
— Ela ficará bem. — disse Osric.
— O que não acontecerá com você a menos que volte para a tenda com Raoul. — disse Mathieu — Agora.
— Você o venceu, mesmo sem sua espada!
— Não... ele me desarmou, mas consegui me defender até recuperar a espada.
— Mas...
— Vá!
O menino resmungou, mas saiu, assim como os outros homens, menos Halig.
— Gostaria de aprender, senhor.... Gostaria de treinar e me tornar um cavaleiro... como o senhor.
Mathieu não se orgulhava da maneira como lutara. Quase deixara o cansaço dominá-lo e Durand nunca deveria ter chegado perto.
— Sim, quando voltarmos a Ingelwald, você aprenderá.
Mathieu foi ver Hugh e Osbem, que tinham sido feridos na cabeça. Durand se aproximara sem ser visto e os atacara pelas costas, golpeando-os na cabeça de um modo que poderia tê-los matado. Os dois homens sobreviveriam, mas talvez não pudessem viajar no dia seguinte.
Desgostoso com os acontecimentos da noite, Mathieu tirou a cota de malha e entrou na tenda. Durante todo o dia, tivera a sensação de estar sendo vigiado. Devia ter pensado em Durand e, como não havia previsto um ataque do vilão, Hugh e Osbern tinham sofrido.
Ele derramou água na toalha e limpou o rosto de Aelia. Ela fez um som leve e virou a cabeça.
—Aelia. — limpou-lhe o rosto de novo para acordá-la. Suas roupas estavam ensopadas e ela certamente não podia passar a noite assim.
— Uh... frio.
— Sim, está. Acorde.
Ela abriu os olhos.
— O que aconteceu?
— Você desmaiou.
Ela sentou de repente e teria caído se Mathieu não a segurasse pelos ombros e não a deitasse com gentileza.
— Não desmaiei.
— Está bem, você não desmaiou.
Atirou a toalha num canto e se deitou sobre sua pele, tão longe dela quanto possível.
De qualquer maneira, era absurdo pensar que tivesse se preocupado com ele. Mal o tolerava, mal haviam se falado nos quatro dias de viagem, e nem mesmo olhara para ele depois que tirara seu irmão do cavalo em disparada.
— Era Durand?
— Sim, eu o pressenti nos seguindo durante todo o dia.
— Sabia que era Durand?
— Não. Alguém, um homem, não um grupo.
Ela ficou quieta por alguns momentos, mas ele a sentia tremer e ouvia seus dentes baterem.
— Durand matou meu pai.
— Sim.
Ele se voltou e olhou para ela à luz fraca da fogueira. Embora não pudesse vê-la bem, conhecia suas feições, sabia que sua boca tinha o gosto de framboesas doces, a pele firme e macia. Foi atingido por uma onda súbita e intensa de desejo.
— Você sabia?
— Ouvi falar. Por que desmaiou? Porque percebeu que Durand havia matado Wallis?
— Nunca desmaiei.
— Então talvez estivesse preocupada comigo.
— É claro que não. Não me importa o que acontece com o marido de uma francesa.
Mas Aelia se importava. Não podia negar seu terror enquanto observava Fitz Autier enfrentar Durand sem uma espada. O que sentira não tinha relação com a gratidão por ele ter salvado a vida de Osric ou ter matado Durand. Era um magnetismo amedrontador que a atraía para Mathieu e estava ligado ao seu toque, ao seu beijo.
Aelia tremia e resistiu ao impulso de se aproximar do calor dele. Sabia que seu toque lhe aqueceria a pele, mas não era uma prostituta. Fitz Autier não só pertencia à outra mulher, como era ainda o inimigo de Aelia. Ela apertou mais o cobertor em tomo do corpo e tentou parar de tremer.
— Obrigado por vingar a morte de meu pai, senhor. Minha dívida para com você aumenta.
Seria melhor se o tivesse insultado ou saído da tenda para dormir do lado de fora. Mas sabia que ele não deixaria, que amarraria suas mãos e tornozelos e a prenderia a ele.
Ele estava perto demais. Seus ombros ocupavam quase todo o espaço e Aelia se lembrava de como seu peito era sólido e forte quando se recostava nele ao cavalgarem, como seus braços musculosos a seguravam.
Era seu inimigo, não devia sentir conforto com sua presença. Mas quando ele se voltou para ela, o rosto perto demais, Aelia não conseguiu recuar. Não havia espaço nem ela queria, especialmente quando ele lhe tomou o rosto nas mãos e tocou seus lábios com os dele.
Tentou se lembrar do motivo por que isto era impossível, mas não conseguia pensar, não com os lábios dele se movendo sobre os seus. Ela suspirou e ele aprofundou o beijo, separando-lhe os lábios e invadindo-lhe a boca, seduzindo-a com a língua enquanto abria os laços da blusa.
Aelia se derreteu quando ele emitiu um som baixo e tomou-lhe os seios nas mãos. Os lábios dele traçaram uma trilha de fogo em seu pescoço, descendo para os seios. Quando a língua tocou um mamilo sensível, ela segurou a respiração.
Num movimento rápido, ele pegou a camisa e rasgou-a, deixando-a nua para si. Sentiu a aspereza de sua barba na pele macia e sua boca no seio. Aelia arqueou e ergueu as mãos até os cabelos de Fitz Autier, mantendo-lhe a cabeça onde estava. Ele se acariciou os mamilos com os lábios, a língua e os dedos, e ela desejou que aliviasse a tensão que se estendia dos seios ao seu centro mais íntimo, que ele a tocasse como homem nenhum a tocara antes.
Mas não por muito tempo. Ela o empurrou e se sentou de repente, lutando com a camisa rasgada, tentando cobrir o corpo.
Fitz Autier se ergueu sobre os joelhos e ela o viu passar os dedos pelos cabelos.
— Bom Deus, devo ter ficado louco.
Ficou parado um momento, então lhe entregou o cobertor e saiu.
Sem pensar, ela se cobriu com o cobertor de Fitz Autier e se deitou, entorpecida de corpo e mente. Tremia de frio, mas desta vez o frio estava dentro dela.
Pela manhã a chuva passara, mas a atmosfera no acampamento era sombria. A pancada que Durand dera na cabeça de Sir Osbern o deixara doente demais para viajar.
— Aquele canalha do Durand deve ter quebrado o crânio de Osbern. — disse Gerrard — Pelo menos Hugh parece bem.
— Osbern também ficará. — respondeu Raoul — Já vi ferimentos muito piores melhorarem depois de alguns dias.
Aelia não se deixaria preocupar com o que acontecia com estes normandos. Ela e Osric eram apenas seus prisioneiros.
— Onde está meu irmão? — perguntou aos dois cavaleiros.
— Com o barão.
— Por quê? O que há de errado?
— Eu não me preocuparia com ele. — Raoul pegou uma sacola de lona e a entregou a Aelia — O barão deixou isto para a senhora.
Ela a pegou, mas estava mais preocupada com Osric na companhia de Fitz Autier do que com o conteúdo da sacola.
— Para onde Fitz Autier levou meu irmão?
— Para junto dos cavalos. — disse Raoul — Acho que o barão está inspecionando...
Aelia não esperou para ouvir o resto. Era evidente que Osric estava com problemas de novo. Correu em direção à extremidade do acampamento, depois pela floresta, até chegar a um campo raso. Parou atônita diante do que viu.
Os cavalos tinham sido cuidados e estavam soltos no campo para pastar. De pé no meio do campo estavam Osric e Fite Autier, um diante do outro, as espadas cruzadas. O coração de Aelia parou até ouvir as palavras de Fitz Autier.
—Não, pequeno saxão, deveria ter tirado vantagem e atacado. Tente de novo.
Aelia não podia acreditar. Fitz Autier estava ensinando Osric a esgrimir.
Viu Fitz Autier se defender de cada um dos ataques de Osric e depois demonstrar as melhores técnicas para ferir o inimigo.
— Se ele usar armadura e elmo, você precisa contar com a velocidade, porque esta é toda a força que tem enquanto é pequeno.
Aelia sentou num galho quebrado à margem da floresta, observando sem ser vista enquanto Fitz Autier ensinava a Osric os rudimentos de uma luta. Riam juntos e, em dado momento, Fitz Autier passou as mãos no cabelo vermelho de Osric.
O mundo virou de cabeça para baixo. Não era possível que seu irmão tivesse ficado amigo de Fitz Autier. Ele odiava os normandos, especialmente seu líder, desde que Ingelwald fora conquistada. O barão tivera razão sobre Osric. Ele se comportava sem disciplina e sem pensar nas conseqüências de suas ações. Seria possível que Fitz Autier tivesse perdoado tudo isso e que Osric estivesse aprendendo esgrima com o normando?
Não. Aelia percebeu que era muito mais provável que Osric tivesse planejado conquistar a confiança de Fitz Autier. Assim, poderia conseguir uma arma e... Aelia ficou de pé quando Fitz Autier derrubou Osric. Mas, em vez de atacá-lo, furioso, o irmão apenas riu. O combate era de brincadeira.
— Você nunca vai me vencer assim, pequeno saxão.
O tom do normando era diferente, assim como a expressão de seu rosto. Parecia mais jovem, mais relaxado.
— Aposto que vencerei a próxima luta, normando.
— Você não tem nada de valor para apostar, pequeno saxão.
— Sim, tenho... posso falar bem de você com minha irmã!
Aelia prendeu a respiração. Observou Fitz Autier enquanto ele abaixava a mão para ajudar Osric a se levantar e sua expressão, até então jovial e alegre, mudou, ficou séria.
— O que o faz pensar que quero o favor de sua irmã?
— Ora! Embora ainda não seja adulto, vi como você olha para ela.
Fitz Autier se afastou e se debruçou para pegar a espada de Osric. Aelia esperou que ele negasse o que Osric dissera, mas apenas entregou a espada ao menino.
— E qual seria seu prêmio se você ganhar?
— A adaga de Aelia. — respondeu Osric sem hesitação — Eu a devolveria a ela.
— De acordo.
Aelia cobriu a boca com a mão. Emoções intensas enchiam seu peito... amor pelo irmão, confusão sobre o que sentia por Fitz Autier. Era o inimigo, no entanto a protegera, salvara sua vida. O que sentia estava além de sua compreensão e temia examinar seus sentimentos, temia descobrir que não era ódio que lhe enchia o coração.
A luta recomeçou, mas Aelia não receou pelo irmão, era evidente que o barão usava apenas uma tração de sua força enquanto atacava e se defendia. Dava instruções ao menino enquanto esgrimiam e Aelia sentiu que havia uma ligação forte entre eles.
Mas não teve tempo de avaliar o pensamento, pois um grupo de viajantes maltrapilhos chegou ao campo. Um homem, duas mulheres e três crianças. Quando chegaram mais perto, percebeu que uma das mulheres carregava um bebê.
Fitz Autier protegeu Osric com o corpo e tomou posição de luta. Aelia percebeu que tinha a trompa pendurada num ombro, assim podia pedir ajuda se fosse necessário, mas ele disse alguma coisa em voz baixa a Osric e então falou com os intrusos.
Eles pareciam não compreendê-lo. Aelia se levantou quando se aproximaram. Fitz Autier falou-lhes de novo, mas eles responderam em inglês. Eram saxões. Desarmados, sujos e cansados, pareciam totalmente sem esperanças.
Os olhos das crianças eram fundos e sem brilho. Fitz Autier se debruçou de leve sobre Osric, sem tirar os olhos do grupo, e falou com o menino.
— Quem são vocês? — perguntou Osric em inglês.
— Sou Cuthbert de Bruenwald. — respondeu o homem — Nossos campos foram queimados, nossa choupana destruída, minha oficina derrubada. Não temos para onde ir... Meus filhos estão morrendo de fome. — Cauteloso, o saxão observava Fitz Autier enquanto falava, como se soubesse que o guerreiro com a espada não o compreenderia. — Esta é minha mulher, Odelia, e minha irmã, Wilda.
Osric traduziu.
— Você tinha uma oficina? Qual é seu ofício?
— Sou carpinteiro.
— Diga a ele para vir ao acampamento conosco. — disse Fitz Autier — Diga que temos alimentos a oferecer.
Osric seguiu as instruções de Fitz Autier e o grupo seguiu Osric, com Mathieu na retaguarda. Não se surpreendeu ao ver Aelia na floresta, mas a intensidade do desejo que o tomou foi sem precedentes. Conhecia seu gosto e a sensação do seio dela em suas mãos, em sua boca.
E queria mais.
Ela jamais saberia como tinha sido difícil para ele deixá-la na tenda, tão bela e tão excitada. Mas não a tomaria para depois entregá-la ao rei Guilherme.
Até o menino se tornara alguma coisa mais do que apenas um prisioneiro. Era um menino brilhante, ansioso por aprender tudo o que Mathieu pudesse lhe ensinar. Mathieu crispou os punhos e caminhou atrás dos saxões, evitando olhar para o corpo de Aelia quando ela se juntou ao grupo e começou a conversar com eles.
— Cuthbert quer saber se pode viajar conosco. — disse Osric — Ele sabe que não pode garantir a segurança da família.
— Pergunte para onde está indo.
— Norte. — disse Aelia, falando diretamente com Mathieu pela primeira vez — Esperavam chegar a uma propriedade saxã a salvo de normandos.
Ela segurava o bebê saxão nos braços e acariciava-lhe o rosto, murmurava palavras suaves. Com seus cachos dourados, poderia ser tomado por um filho de Aelia, o que ela teria um ano ou dois depois que o rei Guilherme a casasse com um cavaleiro normando.
Mathieu se afastou rapidamente e tomou a frente do grupo, levando-os até o acampamento. Osbern estava deitado imóvel perto da fogueira, consciente, mas sentindo muita dor. O corte na parte posterior da cabeça precisava ser costurado, mas não haviam trazido agulhas ou linha, assim apenas amarraram uma tira em torno da cabeça e lhe disseram que ficasse deitado e quieto junto à fogueira.
Mathieu não sabia quanto tempo seria necessário para o homem parar de vomitar a cada vez que se movia. Seu ferimento os faria se demorar ali por muitos dias, mas Mathieu estava impaciente para recomeçar a viagem. Quanto mais cedo levasse Aelia para Londres, melhor.
Depois de uma curta conversa com uma das mulheres, Aelia se voltou para Mathieu.
— Wilda era uma curandeira na aldeia deles. Contei a ela o que aconteceu a Sir Osbern e ela diz que pode fazer uma poção para melhorar seu estado.
Mathieu parou de andar.
— Você conhece essas poções?
— Sim, um chá de casca de árvore diminui a dor. — Mathieu acenou para a mulher, mas falou com Aelia.
— Vigie para que ela não lhe faça mal. Guatier, pegue o seu arco e venha comigo. — pegou o arco de Osbern e se afastou, deixando Raoul no comando. Era o momento certo para caçar e pretendia ficar o mais distante possível de Aelia enquanto ela cuidava do bebê saxão.
Wilda parecia ser uma curandeira habilidosa, pensou Aelia. Apenas uma hora depois de ter tomado a poção, Osbern foi capaz de se sentar sem dor ou náuseas.
Os recém-chegados ficaram quietos no acampamento, temerosos dos guerreiros normandos, inseguros sobre a posição de Aelia e Osric e inquietos com a devoção guerreira de Halig a Aelia.
Aelia abriu a sacola que Raoul lhe dera e encontrou roupas que deu às duas mulheres para substituir os trapos que usavam. Não havia nada para Cuthbert, mas Odelia e Aelia conseguiram vestir as crianças com o tecido de uma túnica velha de Guillaume.
Fitz Autier ficou fora toda a tarde. A cabeça de Osbern parecia melhor a cada hora. Aelia acreditava que recomeçariam a viagem no dia seguinte.
— Vocês vão continuar em direção norte? — perguntou Aelia a Odelia.
Odelia sacudiu a cabeça.
— É perigoso viajar e o inverno logo chegará. Eu... não sei o que será de nós.
— Vamos acampar aqui por mais uma noite. Tenho certeza de que Fitz Autier permitirá que fiquem conosco até levantarmos acampamento.
— Fitz Autier? É aquele demônio do Fitz Autier?
— Ele...
— Soubemos de suas atrocidades, Aelia. Não podemos ficar entre...
— Não, Odelia, você não compreende.
— Ele incendiou Ingelwald e matou todos os homens.
— Não é verdade, Ingelwald nunca...
— Sim, é, fugitivos chegaram a Bruenwald com as notícias. — disse Odelia enquanto reunia seus poucos pertences.
Tomou o bebê dos braços de Aelia. Seu marido, observando sua agitação, aproximou-se.
— Os fugitivos nos contaram que Fitz Autier assassinou o lorde e a lady de Ingelwald e pendurou seus corpos...
— Odelia, pare, eu sou a lady de Ingelwald!
— Então venha conosco! Podemos fugir enquanto o demônio está caçando e encontrar um lugar para nos esconder.
— Por favor, ouça, é verdade que Fitz Autier conquistou Ingelwald, mas não houve atrocidades. Ele não mandou matar ninguém.
— O barão é Fitz Autier? — perguntou Cuthbert. Era claro para Aelia que a reputação de impiedade de Fitz Autier era conhecida por todos, mas sabia não ser verdade.
— Em toda parte dizem que ele é um mercenário impiedoso, um assassino de mulheres e crianças.
— Ele não matou mulheres e crianças em Ingelwald. — disse Aelia — Foi justo e honesto com meu povo. Garanto que Fitz Autier não lhes fará mal, ele os alimentará e permitirá que sigam seu caminho.
Aelia sabia que Mathieu Fitz Autier podia ser um guerreiro feroz, mas não era assassino de inocentes, não merecia a reputação que lhe atribuíam.
Frustrada, afastou-se de Odelia e andou em direção ao campo onde vira os viajantes saxões pela primeira vez. Não sabia por que se incomodava com o que pensavam sobre Fitz Autier. Fora injusto com ela, tomara-lhe o lar e tudo o que lhe era familiar e a fizera sentir coisas que nenhuma mulher honrada devia sentir sobre o marido de outra mulher.
Quando voltou, Mathieu foi recebido pelos saxões com olhares cautelosos. As duas mulheres usavam as roupas que trouxera para Aelia. E ela provavelmente estava com a mesma roupa rasgada que usava desde que tinham começado a viagem e que ficaram piores depois do que ele fizera na noite anterior.
Pelo menos Osbern parecia melhor, pensou Mathieu. Talvez pudessem continuar a viagem na manhã seguinte.
— Henri e Guillaume, vão ajudar Guatier com a carne.
— Você matou um cervo? — perguntou Osric.
— Não, um javali. Pequeno, mas haverá bastante alimento.
— Também quero ir, barão. — disse o menino. Osric não fizera um pedido respeitoso, mas pelo menos o chamara de "barão". Era um progresso.
Mathieu acenou, olhando em torno à procura de Aelia.
— Sim, mas você está sob o comando de Guatier. Se lhe causar qualquer problema, eu lhe darei permissão para amarrar seus pés e mãos e arrastá-lo para cá atrás do cavalo.
— Não vou dar trabalho a ninguém. — disse Osric — Qual foi a última vez que eu...
— Chega, tem a minha permissão. Onde está sua irmã?
— Estava aqui há alguns minutos.
Mathieu não a vira quando voltara ao acampamento, assim foi na direção do campo onde haviam encontrado a família saxã. Não era seguro para ela andar sozinha. Tinha de compreender que havia outros deslocados pela guerra e nem todos seriam tão amistosos como a família Cuthbert. Homens como Durand, por exemplo.
— Está me procurando, senhor?
Ele olhou em torno, mas só a viu quando olhou para cima das árvores. Ela estava sentada num galho alto de um antigo carvalho. Era quase invisível em sua roupa verde.
— Precisa de ajuda para descer?
— Estou mais segura aqui.
— Duvida da minha capacidade de protegê-la?
— De um estranho, não...
Ele desmontou.
— Mas não de mim mesmo?
Seria melhor deixar que Aelia continuasse a acreditar que era casado, já que parecia perder toda a disciplina quando estava perto dela. Mesmo agora, sentia um impulso quase irresistível de subir na árvore atrás dela.
— Você deu as suas roupas.
Ela acenou e começou a descer.
— Elas precisavam mais do que eu.
— Até agora. — resmungou ele quando ouviu alguma coisa se rasgar — Tem certeza de que não precisa de ajuda?
A visão foi encantadora quando Aelia puxava a saia de lado para descer. Mathieu não conseguia deixar de olhar, e uma visão dela sem as saias lhe surgiu na mente. Convenceu-se de que precisava olhar para o outro lado, se queria evitar a repetição do erro da noite anterior. Viera aqui apenas para garantir que ela estava em segurança, não para seduzi-la.
Ela desceu até o galho mais baixo e se sentou, os quadris no mesmo nível que os ombros dele. Ele dominou o impulso de lhe passar os braços pela cintura e ajudá-la a descer e se voltou quando ela pulou para o chão.
— Sua caçada foi bem-sucedida?
— Teremos carne suficiente para alimentar os saxões, e dar-lhes o bastante para a viagem.
— Isto é muito generoso.
— Estou pensando em mandá-los para Ingelwald. Há outro carpinteiro lá, agora que Beorn está morto?
Aelia olhou para ele, o cenho franzido.
— Você mandaria estranhos para o meu lar? — sua voz estava insegura — Expulsou a mim e a Osric de Ingelwald e esses saxões... que você não conhecia até hoje... terão seu consentimento para ir para lá?
Seus olhos se encheram de lágrimas, mas não disse mais nada. Afastou-se dele e começou a correr pela floresta.
Mathieu alcançou-a rapidamente, agarrou-lhe o braço e a fez se voltar para ele. Uma lágrima cristalina lhe descia pela face, mas ele se recusou a se deixar comover. Tinha o coração endurecido por anos de guerra, não se importava com os espólios da vitória.
— Não corra de mim, mademoiselle! Ninguém sabe os perigos que se escondem na floresta.
— Você não se incomoda com o que acontece comigo.
Ela lhe afastou a mão do braço e se virou de costas.
Ele não pôde deixar de notar o movimento trêmulo de seus ombros quando ela respirou fundo.
— Ainda não falhei em meu dever para com o rei e jamais o farei.
Ele lhe tomou o braço e a levou de volta ao lugar onde deixara o cavalo.
Aelia ficou calada até chegarem ao acampamento. Mathieu disse a si mesmo que era melhor assim. Se continuasse zangada e distante, não ficaria tão tentado a levá-la de volta à floresta e deitá-la sobre a grama macia, onde enxugaria suas lágrimas com beijos e a faria esquecer seu nome e o motivo por que iam para Londres.
Mais tarde, viu Osric sentado ao lado de Fitz Autier, imitando-o, entalhando alguma coisa numa peça de madeira. Aelia andava na orla do acampamento, tentando decidir o que fazer. Não suportaria mais um dia com Fitz Autier, o cavaleiro bastardo que pensava nela apenas como uma tarefa a mais que tinha que desempenhar para o rei normando.
— Aelia, veja o que fiz! — Osric lhe mostrou o bloco de madeira que estivera entalhando ao lado do barão normando, trabalhando junto dele como se fossem irmãos... ou pai e filho.
Quando acabara a animosidade entre eles? Nos últimos dias, Osric perdera a raiva dos normandos. Se não tivesse visto, Aelia jamais acreditaria que Fitz Autier estava ensinando esgrima a seu irmão ou lhe dando instruções sobre como entalhar uma figura num bloco de madeira.
Não compreendia por que a atitude de Osric havia mudado. Fitz Autier não cedera, a disciplina e a punição continuavam. Osric ainda tinha de tratar dos cavalos todas as noites antes de cuidar de si mesmo e realizar diversas tarefas durante a viagem. Naquela tarde havia até ajudado os homens a preparar o javali. Era um deles agora.
As longas pernas de Fitz Autier estavam esticadas enquanto trabalhava, os músculos relaxados, os pés cruzados. Mas Aelia sabia que estava alerta como sempre, vigiando e ouvindo, atento a qualquer ameaça a seu pequeno grupo.
— É um belo entalhe, Osric. — disse Aelia, distraída.
— Não, você não olhou direito. Chegue mais perto, é um cavalo, está vendo?
Com relutância, Aelia se aproximou do irmão e pegou o bloco de madeira, onde ele entalhara uma vaga figura de um cavalo. Não pôde deixar de notar o trabalho de Fitz Autier. Teve de admitir que era belo, que o normando tinha o olho de um artista e a habilidade de um mestre.
Entalhara a cabeça e os chifres de um cervo poderoso, fazendo parecer que o animal surgia da madeira. Era uma fera viril, quase um símbolo da força e poder do próprio Fitz Autier.
Ela passou os dedos no cavalo de madeira que tinha nas mãos.
— Gosto muito, Osric.
— Veja o que o barão fez!
— Sim, estou vendo.
— Será o símbolo da casa dele, um poderoso cervo macho.
— Da casa dele! São nossas terras! — virou-se para Fitz Autier — Onde vai pendurá-lo, barão? No hall de meu pai?
Ela se virou e saiu, enfurecida, as lágrimas ameaçando cegá-la.
Mathieu sabia que Aelia não dormira bem. Tinha cedido sua tenda para as crianças e dormira sob um pinheiro na periferia do acampamento. Viu-a acordar, o corpo se esticando, os olhos se abrindo, a consciência voltando.
Sua postura enrijeceu assim que se lembrou de sua situação, olhou em torno e o viu. Seus olhos se encontraram e logo ela se virou, como se queimasse com o olhar dele.
Ele se imaginou junto dela, a perna entre as dela, puxando-a para si. Aqueceria seu corpo gelado com beijos, seu sangue com carícias.
Tentou pensar em outra coisa. Levantou-se e saiu do acampamento. Primeiro verificou como estavam os cavalos, como fazia todas as manhãs, depois foi até a árvore onde a carne da caça tinha sido pendurada para uso futuro. Era a mesma em que Aelia subira no dia anterior, o lugar onde a vira descer de um galho para outro.
Sacudiu a cabeça para espantar a lembrança, depois caminhou até chegar a um pequeno riacho. Tirou a túnica, ajoelhou-se e pegou água com as mãos para lavar o rosto e o cabelo, deixando que um pouco lhe escorresse pelo peito.
Nunca pensara numa mulher por tanto tempo. Poderia jogá-la no chão, abrir-lhe as pernas, possuí-la e ficar livre dela de uma vez por todas?
Levantou e tomou o caminho de volta ao acampamento, em passos decididos. Não seria o primeiro conquistador a ter prazer com uma cativa. Não se incomodaria com as objeções dela, nem com as dele. Enganava-se ao pensar ser melhor que seus irmãos ou seu pai, que tomavam qualquer mulher que queriam e que as conseqüências fossem para o inferno.
A previsão de Mathieu aumentou enquanto cruzava o campo e passava pelas árvores que circundavam o acampamento. Ele a tiraria do grupo, a levaria até o riacho, onde havia grama na margem. E a deitaria e aliviaria o desejo intenso que o queimava.
Ouviu vozes saxãs quando chegou ao acampamento e viu que Osric e os viajantes ingleses conversavam. Aelia estava em pé além do fogo, recolhendo seus objetos com a ajuda de Sir Guatier, enquanto Henri sacudia seu cobertor e o dobrava para ela. Os outros homens selavam e carregavam os cavalos, ignorando a discussão entre Cuthbert e Osric. A atenção deles estava em Aelia.
Mathieu tirou os olhos da mulher e falou com Osric.
— O que é?
— Eles querem que Aelia e eu partamos com eles.
— Não.
Aelia lhe falou com um tom de desprezo.
— Já lhes disse que você não nos deixaria partir.
Mathieu fuzilou-a com o olhar, mas ela não interrompeu o que estava fazendo nem olhou para ele. Havia trançado o cabelo, uma longa e grossa trança que lhe chegava aos quadris, e vestira uma nova túnica rosa, da cor de uma flor silvestre e que lhe tornava o rosto rosado, o único sinal de sua raiva.
Os músculos dele ficaram tensos à visão dela, ao som de sua voz. Cerrou os dentes.
— Por Deus, vocês são meus prisioneiros!
Alguma coisa quebrou perto de Aelia, mas Mathieu não olhou para ver o que era. Ela não era a única pessoa irritada ali.
Seus homens correram para ajudá-la e Mathieu soube que não poderia tomá-la. Cada um de seus guerreiros — e Halig — tinha se tornado seu guardião. Nenhum deles ficaria quieto se ele a arrastasse para o riacho.
Como se pudesse. Era um homem melhor do que seu pai.
— Diga a estes saxões. — disse a Osric, enquanto Raoul trazia os cavalos — Que podem ir para Ingelwald.
— Para Ingelwald? Mas lá...
— É minha propriedade e preciso de um carpinteiro.
Montou e disse a Raoul:
— Desmonte o acampamento, traga os prisioneiros e me siga na estrada para o sul.
— Barão?
— Vejo vocês ao meio-dia.
— Mas lady Aelia...
— Não a deixe sozinha com o menino.
Bateu os calcanhares nos flancos da égua e cavalgou em direção sul. Para Londres.
Fitz Autier estava enviando Cuthbert e sua família para o lar de Aelia, enquanto ela tinha que abandoná-lo para sempre. Fizera isso para magoá-la e conseguira.
Ela cavalgava com Sir Guatier e Osric com Henri, Halig, como sempre, estava ao lado dela.
— Quanto tempo mais até chegarmos a Londres? — perguntou Aelia.
— Pelo menos mais uma semana, se tudo correr bem. Mas acho que o barão quer ficar uma noite ou duas em Rushton.
— Por quê?
— O lorde normando de Rushton é um velho amigo de Fitz Autier.
Cavalgaram em silêncio por algum tempo, mas a pergunta que queimava a mente de Aelia logo foi feita.
— A esposa de Fitz Autier espera por ele em Londres?
— Esposa?
— Sim.
— O barão não é casado.
— Sir Auvrai falou sobre a esposa do barão.
— Ouvi falar de um noivado, mas tenho certeza de que saberia se o barão tivesse se casado antes de sairmos de Ruão ou de Londres.
Aelia estava zangada consigo mesma por se importar se o homem era casado ou não. O fato de não ter uma esposa nada mudava.
— O barão Mathieu tem o favor do rei e se casará bem. — informou o cavaleiro.
Aelia não queria saber mais, assim ficou em silêncio e Guatier também enquanto continuavam a viagem. Começou a chover e eles vestiram as capas.
Pararam para uma refeição, mas o único sinal de que Fitz Autier passara pelo caminho era uma tira de couro que Raoul encontrou num galho baixo de árvore à margem da estrada estreita.
— Ele continuou em frente. — disse Raoul.
— Ele está... tudo está bem? — perguntou Aelia a Raoul. — Quer dizer... não parece que há algum problema....
— Não, é um sinal para nós continuarmos.
— Vocês combinaram esses sinais?
— Sim, se alguma coisa estivesse errada, ele deixaria cair uma espora.
O dia ficou mais frio por causa do vento e da chuva, que ficou mais forte. Guatier protegia Aelia com o corpo, mas mesmo assim ela tremia até quase poder ouvir seus ossos batendo.
A noite seria terrível, ainda pior que a anterior, e Aelia não sabia como fariam uma fogueira para se aquecerem. As pequenas tendas não lhes dariam proteção adequada contra a umidade.
Continuaram a viajar por horas e Aelia tremia cada vez mais, o frio se tornara insuportável. No fim da tarde, Aelia disse:
— Sinto cheiro de fumaça.
Ouviu Guatier respirar fundo.
— Acredito que tenha razão.
Minutos depois, chegaram a um hall à margem do caminho. Havia um estábulo e outra construção menor ao lado, junto a quatro pequenas choupanas.
Aelia não se importava de quem era a casa, pensava apenas no calor que havia lá.
Quando chegaram à entrada principal, dois homens saíram. Um deles era Fitz Autier e Aelia ficou furiosa ao vê-lo. Desviou os olhos e permitiu que Guatier a ajudasse a descer. Suas pernas amoleceram, mas o cavaleiro não a deixou cair. Sentiu o olhar de Fitz Autier nela e amaldiçoou a fraqueza de suas pernas.
— Henri, leve os cavalos para o estábulo. Raoul, traga o menino para dentro. Uma refeição quente logo será servida e há quartos para todos nós. — ele se virou e entrou.
Aelia não hesitou em segui-lo, mas foi parada pela matrona da casa antes de conseguir chegar à lareira.
— Lady Aelia?
— Sim.
— Sou a mulher do estalajadeiro, Diera. — disse ela, levando Aelia para longe dos homens — Sabemos quantos vocês são e que a senhora e seu irmão precisam de calor.
— Sim, estamos gelados até os ossos.
— Nosso melhor quarto está pronto para a senhora. — disse Diera — A lareira está acesa e há um banho quente esperando-a.
— Que Deus a abençoe, Diera. — respondeu Aelia enquanto seguia a mulher que subia a escada. Duas jovens se aproximaram e foram apresentadas como Eda e May, filhas de Diera. — Sabe para onde levaram meu irmão?
— Para a lareira na sala comum. Vamos servir a refeição aos homens lá. Quer tomar a sua com eles ou prefere em seu quarto?
Diera abriu a porta de um quarto, aconchegante com a lareira acesa. Aelia se sentiu ainda melhor quando viu a cama, com um macio colchão de penas.
Havia uma grande tina com água quente no centro do quarto e Aelia esqueceu o jantar.
— Tem alguma roupa seca? — perguntou Diera.
— Não, minha outra túnica está num saco de lona que certamente foi ensopado pela chuva.
— Então tire a que está usando, vou providenciar para que fique seca enquanto Eda e May a ajudam com o banho e a cama.
Com a ajuda das moças saxãs, Aelia despiu as roupas molhadas. O quarto estava aquecido, mas ela continuou a tremer até entrar no banho e mergulhar na água quente.
Eda começou a secar as roupas de Aelia. May acendeu diversas velas para iluminar o quarto.
Diera logo voltou com uma travessa de alimentos: uma sopa quente, pão e queijo e uma caneca de vinho aquecido, que pôs sobre uma mesa ao lado da tina. Enquanto May lhe esfregava as costas e Diera lhe servia o vinho, Aelia suspirou de prazer. Pensara que nunca mais sentiria um conforto assim.
— Obrigada. Agora deixem que eu descanse um pouco na água e então comerei e me deitarei.
— Tem certeza de que não há mais nada que possamos fazer por você?
— Apenas deixe as roupas que estão secando perto de mim.
May mostrou um balde de água quente ao lado da tina.
— Aqui está a água para enxaguar, minha senhora. Use-a quando terminar e tiraremos tudo pela manhã.
Aelia suspirou e sorriu quando as três mulheres saíram.
Pela primeira vez desde que chegara à estalagem, Mathieu descansou em paz. A tensão em suas pernas diminuiu enquanto ele se sentava diante da escada esperando pela refeição.
E por Aelia.
Outra espécie de tensão o dominou ao pensar nela, em como quase caíra quando desmontara. Tivera o impulso de segurá-la, mas podia ver que ainda estava zangada. Ele a magoara, intencionalmente, e o truque funcionara: ela não queria nada com ele.
Quando Osric descera e se encostara sonolentamente em Mathieu, ele se perguntou se o menino conseguiria ficar acordado por tempo bastante para comer. Precisava se lembrar de que Osric ainda era uma criança, embora tivesse a determinação de um adulto.
Mathieu olhou para Raoul, que tirara a capa molhada e se sentara perto do fogo.
— Espero que a viagem até aqui tenha sido tranqüila.
— Sim, exceto pelo frio e a chuva.
— Lady Aelia tremeu a tarde toda. — disse Guatier.
— Ela não tinha uma capa?
— Sim, e eu lhe dei a minha também, mas ela parecia congelada.
Ele olhou as escadas de novo, mas não havia sinal dela.
— Ela estava doente?
— Não sei dizer, barão, apenas que estava com frio, tremendo.
As mulheres começaram a trazer travessas de alimento e cerveja. Os homens estavam aquecidos e começaram a comer, mas Osric dormira. Mathieu acordou-o para comer um pouco, depois o levantou e entregou-o a um de seus homens para que o levasse para a cama.
— Bata na porta de lady Aelia e diga-lhe que quero que venha se juntar a nós. — queria apenas se assegurar de que ela se sentia bem. Estava pálida demais quando chegara à estalagem.
— Sim, barão. — disse Henri enquanto saía com o menino.
Mathieu começou a comer, mas não sentiu muito prazer com a refeição.
Ouviu o vento uivando e a chuva batendo nas janelas. O clima avassalador seria um sofrimento até para seus soldados experientes e principalmente para a senhora e seu irmão.
Queria vê-la. Henri desceu a escada.
— Onde ela está?
— Desculpe, barão, ela disse que não vai descer.
— Você disse a ela que quero que se junte nós?
— Sim, e ela, ha... recusou.
A mulher ainda tinha o poder de enfurecê-lo. Mathieu pensara ter-se livrado da raiva e dá frustração durante o longo dia de cavalgada, mas se enganara.
— Raoul, suba e diga à senhora que ordeno que desça e se junte a nós.
Mathieu serviu vinho, bebeu e se forçou a relaxar de novo enquanto esperava por ela. Não permitiria que ela visse sua agitação.
— Barão? — disse Halig.
— O que é? — perguntou com irritação, parando de bater os dedos na mesa.
— Se minha senhora está fatigada... talvez seja melhor ela, ha... dormir.
— Estou no comando aqui e todos, mulheres e crianças inclusive, fariam bem em entender isto.
Halig se calou e, quando Raoul desceu sozinho, Mathieu soube o que iria dizer antes que abrisse a boca. Aelia o desafiara.
— Milorde...
Mathieu se levantou, o sangue queimando de raiva. Subiu a escada sem dizer palavra. Escarnecera dele diante de seus homens. Chegou ao quarto dela e abriu a porta.
O quarto estava banhado numa luz macia e tremulante e Aelia se encontrava de pé, dentro de uma tina de água que se erguia até seus joelhos. Tinha um balde sobre a cabeça e a água caía sobre seu corpo nu.
Mathieu ficou parado. Sua raiva desapareceu e foi substituída por alguma coisa totalmente diferente, selvagem e primitiva. Fechou a porta e, com o barulho da água sobre sua cabeça, ela não ouviu.
Ele tinha uma visão total de seu flanco, uma expansão macia de curvas femininas marcadas por um hematoma púrpura no quadril e diversos outros em suas costelas e braços. Mas nada diminuía a beleza de seu corpo.
Ou seu desejo intenso.
De repente ela se virou e gritou, assustada com sua presença. Tentou se cobrir, mas o que deixou descoberto era ainda mais excitante.
— Fora!
Mathieu se aproximou enquanto ela se agachava e parecia pensar o que seria melhor: sentar-se na tina ou pegar a toalha que estava dobrada numa cadeira ao lado. Estendeu a mão para ela e Aelia quase caiu, mas Mathieu segurou-a.
Os lábios dela se abriram ligeiramente quando ele a tomou nos braços e puxou-a contra o corpo.
— Você é tão bela....
— Precisa ir embora.
— Devo?
Ela estremeceu e ele pegou a toalha, passou-a por seus ombros e suas mãos desceram por suas costas.
— Por favor, não faça isto.
Ela continuou a tremer enquanto ele a acariciava, sentia o cheiro de sua pele limpa e mergulhava os olhos azuis nos brilhantes olhos verdes. Estava além da excitação e totalmente pronto para deitá-la na cama e possuí-la.
Ergueu-a nos braços e sentiu-a enrijecer contra ele.
— Não tenha medo. — disse ele, os lábios roçando sua têmpora.
Carregou-a até a cama e deixou-a escorregar até o chão.
— Será seu prazer tanto quanto o meu.
— Todas as escravas recebem a atenção de seus senhores?
Ele ignorou a pergunta e enxugou-lhe os cabelos, as costas. Ela ficou imóvel, os olhos fechados, permitindo que cuidasse dela e a visse toda. Ele passou a toalha com delicadeza por seus ombros, desceu-a até os quadris, usando-a para puxá-la contra seu corpo. Então abaixou a cabeça e beijou-a na boca.
— Você tem gosto de vinho. — murmurou contra sua boca.
Tremia como um jovem inexperiente. Ergueu o copo dela e bebeu, depois o levou à boca de Aelia, mas ela virou a cabeça.
— Você não comeu.
—Não tenho fome.
— Eu tenho, de você.
Ela abaixou a cabeça e respirou profunda e tremulamente.
— Faça o que quiser, senhor, estou sob suas ordens.
— Nunca ordenei a uma mulher que se submetesse a mim.
— Sou sua prisioneira, sua escrava. Farei o que mandar. Só peço que seja... paciente. É a primeira vez... eu... eu nunca...
Sua respiração era difícil e, quando Mathieu lhe viu as lágrimas, soltou-a. Deixou cair a toalha, fechando os punhos. Não era assim que imaginava sua união de amor.
— Você não é escrava.
Ela o olhou, o corpo nu coberto pela cortina de cabelos que lhe descia pelas costas.
— Então tenho escolha?
Ele a silenciou com a boca sobre a dela. Aelia tentou se afastar, mas Mathieu não permitiu, acariciou-lhe os lábios e separou-os com a língua. E então se afastou.
— Chegará um dia, Aelia, em que não terá vontade de me recusar.
Não sabia que esse dia já chegara.
Aelia ficou em pé, imóvel e trêmula, quando a porta se fechou depois da saída de Fitz Autier. Fechou os olhos e se deixou cair na cama, cobrindo-se com o cobertor.
O que fizera? Mandara embora o homem que lhe acendia o corpo com um fogo que não conseguia identificar. Era mais do que tudo o que sua mãe previra. Embora sentisse o tremor que sua presença sempre lhe causava, alguma outra força, igualmente poderosa, a atraía para Fitz Autier.
Sem conseguir dormir, ouviu os barulhos no corredor até tudo ficar em silêncio.
Nada do que diziam sobre o homem era verdade. Não era um assassino bárbaro. Fitz Autier poupara todas as vidas que pudera em Ingelwald e começara a reconstruir e restaurar o hall de seu pai, permitindo que as pessoas voltassem a seu trabalho e seus lares. Poupara até as vidas dos saxões que haviam encontrado no dia anterior, mandando-os para a segurança de Ingelwald. Fora paciente com Osric quando outro normando provavelmente teria matado o menino e ficado livre dele depois do incidente com o cavalo.
E Aelia temia estar se apaixonando por Mathieu Fitz Autier.
Seu corpo doía de desejo por ele, estremecia com o poder de seu beijo. Queria mais, mas não se submeteria a ele como sua cativa, não era uma prostituta.
Levantou-se, vestiu-se e saiu do quarto em busca de Osric. Resolveu descer até a sala comum, na esperança de encontrar alguém que lhe dissesse onde ele dormia.
A sala estava mal iluminada e silenciosa, parecia vazia. Então ouviu um gemido. Era Fitz Autier, sentado numa cadeira, os pés sobre uma das mesas. Havia duas canecas sobre a mesa e outra pendurada em seus dedos, bem perto do chão.
— Senhor. — disse Aelia.
— Ah, é a bela Aelia. — as palavras de Mathieu Fitz Autier eram indistintas e Aelia percebeu que estava bêbado.
— Barão, é tarde, vá dormir.
— Sozinho? Não. Preciso da companhia de uma bela dama.
— O senhor precisa dormir.
— Mas não de qualquer bela dama. — disse ele, tomando-lhe a mão e beijando-lhe a palma — Há apenas uma cujos lábios quero sentir....
O coração de Aelia bateu mais forte, mas sabia que era a bebida falando. Segurou-lhe um braço e tentou tirá-lo da cadeira, mas ele não se moveu. Segurou um punhado de seus cabelos e aproximou-o do rosto.
— Cheira a flores do campo.
Ela lhe tirou o cabelo da mão.
— Consegue se levantar?
— É claro que consigo.
— Então venha.
— É um convite?
— Não, senhor, eu apenas...
Ele a puxou para seu colo.
— Você tem uma boca maravilhosa.
Ela tentou se levantar, mas ele a segurou com firmeza, debruçou a cabeça e a beijou, um beijo delicado e doce.
— Barão...
— Mathieu. Meu nome é Mathieu. — sua voz era suave e sedutora e, quando lhe tocou o queixo e as orelhas com os lábios, e traçou-lhe a linha do pescoço com beijos intensos, ela mal pôde respirar.
— M... Mathieu...
— É um doce som em seus lábios. Muito melhor que o choque que sinto cada vez que a vejo.
— Choque?
— Sim. — ele beijou um ponto particularmente sensível sob sua orelha — Quando a vi pela primeira vez, senti o chão se mover sob meus pés.
— O chão se moveu?
Mal conseguia pensar quando ele lhe acariciou os seios.
— Mathieu, você precisa parar...
— Não. Você é minha, jamais pertencerá a outro.
Um prazer intenso a dominou ao sentir seu toque, ouvir suas palavras. Teria realmente sentido a mesma força de reconhecimento que sua mãe previra, ou era apenas o delírio da bebida? Como poderia afastá-lo se ele era realmente seu consorte?
— Cada vez que a vejo, é como se alguém incendiasse meu sangue.
Ele a puxou mais para si e a beijou. Os lábios acariciavam os dela, a língua em sua boca, e ela não resistiu mais.
A chuva continuou no dia seguinte, porém Mathieu não podia culpá-la por sua dor de cabeça ou mau humor. Tinha apenas uma vaga lembrança dos excessos da noite anterior. Sem dúvida bebera demais e por isto imaginara que Aelia estivera na sala com ele, sentada em seu colo enquanto a beijava e acariciava.
Dissera a seus homens que ficariam mais um dia se a chuva continuasse. Pelo som na janela, a chuva não diminuíra. Mas ficar mais um dia no conforto e no calor da estalagem seria bom, especialmente porque viajavam com Aelia e o menino. Uma batida na porta do quarto obrigou Mathieu a se levantar da cama. Abriu e Osric entrou.
— É tarde, barão! Vamos para o estábulo praticar com as espadas hoje?
A voz do menino foi como uma facada no cérebro de Mathieu, que se encolheu.
— Mais tarde, menino, talvez mais tarde.
Então viu Aelia e teve que se segurar ao portal para se equilibrar. Ela parecia diferente.
— Fique quieto, Osric, o barão não se sente bem e sua conversa o faz se sentir pior. Eu lhe trouxe isto, a mesma poção que Wilda usou para a dor de cabeça de Osbern.
Ele pegou a caneca e ergueu-a, enquanto tentava descobrir o que havia mudado. As roupas eram as mesmas que usara no dia anterior, mas agora limpas como seu rosto e cabelo.
Eram os olhos que estavam diferentes.
— Beba tudo, senhor. Não lhe fará mal, prometo.
Ele teve um pensamento dos mais perturbadores... ou seria uma lembrança?... de Aelia com a cabeça para trás enquanto ele lhe beijava o pescoço. Seus olhos estavam suaves então, como agora.
Mathieu tomou todo o remédio amargo. Como podia ter uma lembrança tão forte das mãos de Aelia passando por trás de seu pescoço para acariciá-lo quando sabia que a deixara sozinha no quarto?
— Posso praticar com Guatier, barão? — pediu Osric — Sir Raoul certamente me emprestará seu espadim!
— Vá embora, Osric, e deixe o barão descansar.
— Mas eu...
— Agora.
Osric começou a protestar, mas Aelia o virou e o levou para fora, enquanto Mathieu se sentava numa cadeira e abaixava a cabeça nas mãos, grato por ser deixado sozinho com seu sofrimento. Havia anos que não se sentia tão deprimido.
— Encoste-se.
Mathieu ergueu a cabeça subitamente.
— Desculpe, não tive a intenção de assustá-lo. —Aelia ficou de pé atrás dele e pôs as mãos em seus ombros.
— Seria melhor me deixar sofrer em paz.
— A poção fará efeito logo, mas isto ajudará.
— Não, eu...
Uma feiticeira seria incapaz de mágica mais poderosa. Ela massageou seus ombros e nuca, passou os dedos entre os cabelos e pressionou as partes de seu crânio que pulsavam. A dor diminuiu.
O toque era bom demais para ser verdade. Mathieu poderia ter deixado que ela continuasse indefinidamente, mas a razão prevaleceu. Ele se levantou e foi para a porta.
— Esta é uma péssima idéia. — disse para si mesmo. Era estranho que ela subitamente estivesse disposta a agir como sua escrava, mas seu cérebro não estava funcionando bem o bastante para compreender.
Em uma hora, porém, a dor de cabeça havia melhorado e ele passou grande parte do dia longe da estalagem, longe de Aelia. A maioria dos homens ficou na sala comum, jogando dados ou xadrez. Mathieu foi para o estábulo, onde encontrou um lugar confortável para se sentar e entalhar. Isso ajudaria a melhorar a inquietação que o atormentava há dias.
— Barão, vamos partir amanhã? — perguntou Osric, sentado a seu lado e entalhando sua pequena imagem.
— Sim.
— E se ainda estiver chovendo?
— Jamais conheci um guerreiro que tivesse medo de chuva.
— Então por que paramos aqui?
A faca de Mathieu escorregou.
— Era hora de um descanso.
— Então seus homens se cansam de viajar?
— Você insulta meus homens. É claro que não se cansam. — disse, consciente de que estava se contradizendo.
— Bem, não compreendo...
Mathieu se levantou e foi até a porta aberta do estábulo.
— Há muitas coisas que não compreenderá até crescer, menino.
— Você parou por causa da minha irmã. — disse Osric, com um indício de brincadeira no tom.
Mathieu cerrou os dentes.
— Viajamos na velocidade que decido. Paramos por uma boa razão.
Irritava-o saber que o menino estava certo e que seus motivos eram tão transparentes. Nunca Mathieu alterara seus planos por uma mulher e era hora de levar seu dever em consideração.
— Partimos amanhã, qualquer que seja o clima.
A chuva parou durante a noite e Aelia ficou grata, mas não havia muito para lhe dar alegria.
Mathieu se ausentara durante todo o dia anterior e, quando voltou para o jantar, acompanhado por Osric, comera e se retirara para o quarto, sem olhar para ela.
Os cavalos estavam encilhados e prontos para a viagem quando Aelia saiu da estalagem e descobriu que o barão já se fora, deixando ordens para o grupo segui-lo. Ele ficou à frente pelos dois dias seguintes, parando com eles para as refeições e o descanso. Era evidente que a estava evitando.
No terceiro dia, chegaram a uma grande propriedade chamada Rushton, que tinha sido conquistada no ano anterior.
Estava sob o comando do barão Roger de Saye e, quando seguiram o caminho que levava ao portão, Aelia pode ver que havia um grande número de soldados normandos aquartelados ali.
— O que vamos fazer aqui? — perguntou Aelia.
— O barão Fitz Autier nos espera, provavelmente vamos passar a noite e continuar amanhã.
Aelia se sentiu inquieta quando passaram pelo portão. Soldados e trabalhadores pareciam estar em toda parte e diversos dos prédios dentro das muralhas haviam sido reconstruídos recentemente. O maior era uma estrutura baixa e longa, que parecia ser o alojamento dos soldados, acomodação para centenas deles.
No centro estava o hall do lorde, um edifício grandioso, feito principalmente de pedra, com estandartes coloridos pendurados nos pontos mais altos.
— Lá está o barão. — disse Guatier.
Fitz Autier saíra de um dos prédios com outro homem. Um tremor familiar de atração abalou Aelia ao vê-lo. Era seu captor e devia sentir apenas ódio por ele. Mas não conseguia.
Sir Guatier e os outros desmontaram em frente ao grande hall. Quando Aelia pôs as mãos nos ombros de Guatier para desmontar, viu que Fitz Autier a olhava e depois desviava o olhar, como se ela não lhe interessasse.
Aelia perdeu o equilíbrio e escorregou, mas Guatier impediu que ela caísse e pegou-lhe o braço.
—Alguma coisa errada, lady Aelia?
Ela sacudiu a cabeça, sem confiar na voz, mas não teve oportunidade de pensar no desprezo do barão quando uma matrona apareceu no topo da larga escada de madeira que levava ao hall e gritou para eles.
— Por aqui! Por aqui! — chamou, impaciente. Flanqueada por dois guardas, a mulher fez sinal para Aelia e sua escolta subirem para o hall, depois desapareceu, esperando que eles a seguissem.
Aelia olhou na direção de Fitz Autier, mas ele parecia absorvido na conversa e não retribuiu seu olhar.
Ela subiu as escadas, temerosa, mas achou que não podia ser tão ruim se fossem abrigados no grande hall. De qualquer maneira, seria apenas por uma noite.
— Por que Fitz Autier não está aqui para ver se estamos bem abrigados? — perguntou Osric.
Aelia não respondeu e entrou no grande hall de Rushton, um salão nobre, bem mobiliado, muito mais luxuoso que o de seu pai. Diversos criados o arrumavam.
Ela viu a mulher que os recebera esperando-os com evidente aborrecimento e, segurando o ombro de Osric, seguiu-a até o ponto mais distante do hall, perto da imensa lareira onde uma mulher jovem esperava por eles.
Era bonita e se vestia com luxo, mas seus olhos eram frios e avaliadores.
— Lady Helene, aqui estão os saxões.
— Um par de mendigos, não é?
Aelia ficou ruborizada com a descortesia de lady Helene. Certamente achava que ela e Osric não a entenderiam.
Osric começou a falar, mas Aelia apertou-lhe o ombro, esperando que ele compreendesse a necessidade de ficar calado, de não revelar que conheciam a língua normanda.
— Quero que seja minha criada hoje, antes das festas da noite. Gostarei de ter uma escrava saxã. — disse Helene — Uma mulher de nascimento nobre capaz de prever minhas necessidades, não como uma dessas camponesas ignorantes que Bernard manda para mim.
A mulher mais velha chamou um dos homens.
— Beauvais, leve o menino para os estábulos. — então fez um gesto a Aelia, mostrando que devia segui-la.
—Vá com ele, Osric. — disse Aelia — Provavelmente você se encontrará lá com Raoul e os outros homens.
— Mas e você?
Aelia fitou os olhos orgulhosos de lady Helene.
— Eu sobreviverei.
— Está inquieto, Mathieu. — disse Roger de Saye — Planejando ir à guerra de novo?
— Espero que não, nunca mais.
— Sim, agora que tem Ingelwald e lady Clarise. Recebeu notícias dela desde que deixou Londres?
— Não.
Caminharam pelo pátio, à luz do anoitecer.
— Bem, acho que não é surpreendente. Ninguém veio a Rushton desde que você esteve aqui, para tristeza de minha mulher.
De Saye havia feito muita coisa em Rushton desde que tomara posse da propriedade um ano antes. Aumentara o bali, fortificara as muralhas e construíra alojamentos para os cavaleiros que protegiam as terras. Mathieu faria mudanças semelhantes em Ingelwald.
Roger lhe mostrara os novos prédios e discutiram os planos de Mathieu para administrar sua propriedade.
Mas quando seus cavaleiros entraram pelo portão, Mathieu procurou por lady Aelia entre eles.
— Seus homens, não é? — perguntou Roger.
Ele acenou, enquanto o amigo falava sobre acomodações para os cavaleiros que chegavam. Aelia cavalgava entre eles, abrigada pela capa negra de Mathieu. Montada no cavalo de Sir Guatier, parecia pequena e cansada.
Roger percebeu que Mathieu não estava ouvindo o que dizia.
— Alguma coisa errada?
Mathieu lutou contra a torrente de sensações que o acometia sempre que a via.
— Não... o que estava dizendo?
Roger franziu o cenho.
— O que estava dizendo sobre os alojamentos dos cavaleiros?
— Tem certeza de que quer manter o menino saxão no alojamento de seus cavaleiros?
— Sim.
— E a filha de Wallis? Estará segura num quarto de hóspedes?
— Está resignada a ir para Londres, não criará problemas.
— Estou com sede. — disse Roger — Vamos à taverna antes de voltar para o hall.
Mathieu seguiu Roger até a estalagem e um saxão levou-lhes canecas de cerveja. Uma jovem saxã pôs sobre a mesa uma travessa com pão e queijo.
— Bela mulher, não é?
Mathieu olhou a moça.
— Saxã? — perguntou Mathieu.
— Sim. O velho não criará problemas se você quiser levá-la para cima.
Era bonita o bastante para tentar qualquer homem, mas Mathieu não se interessou.
— Vai lhe fazer bem, Mathieu. — disse Roger.
— Vou recusar esta noite, está quase na hora de ir ao encontro de sua senhora no hall.
Roger riu.
— Não o compreendo, velho amigo.
Mathieu sabia que não havia explicação para sua falta de interesse na mulher.
— Foi um dia muito longo.
— Então talvez eu mesmo faça as honras. Não espere por mim.
— Sim, se a moça quer...
Roger parou e riu, desapontado.
— Não, ainda há muito a lhe mostrar, e depois temos que voltar juntos para o hall.
Caminharam até os portões enquanto Roger explicava as fortificações adicionais na muralha.
— Helene ainda tem medo, tão longe de... bem, de Ruão. Ela não gosta de Londres e esta propriedade é remota....
— Sua mulher não está contente em Rushton?
— Mulheres. — disse Roger, sacudindo a cabeça — Elas gostam do conforto, das diversões. Helene está longe da mãe, dos amigos. E... ela gosta mais deles do que de mim e de Rushton.
— Sem dúvida logo se acostumará à Inglaterra e a você.
— Bem, pelo menos agora está feliz supervisionando os preparativos para uma festa em sua honra.
Mathieu não estava com disposição para celebrações, mas quando voltaram ao grande hall percebeu que a mulher de Roger preparara uma grande festa.
A senhora recebeu-o calorosamente e tomou-lhe o braço para levá-lo ao hall. Era bela e estava luxuosamente vestida e penteada. No entanto, pensou Mathieu, Roger se sentira tentado pela mulher na taverna e era claro que freqüentava muito o lugar.
Mathieu não pensou muito a respeito quando se aproximaram da mesa, onde se sentaram junto aos servidores de mais alta categoria de Roger e algumas senhoras. Não viu seus homens nem seus cativos saxões.
Mathieu observou que havia poucas senhoras e que os cavaleiros eram grosseiros e mal-educados, que bebiam muito e se comportavam rudemente, falando muito alto.
— Tome um pouco de vinho. — disse lady Helene, dando as costas a eles.
Mathieu pegou um cálice.
— Onde estão meus homens?
— Estarão aqui em breve.
— E meus prisioneiros?
Lady Helene lhe deu um sorriso brilhante.
— Cuidei deles, não precisa se preocupar, barão. — mas ele não estava tranqüilo.
— Preparou um quarto seguro para lady Aelia?
— Claro, ela ficará em meu quarto esta noite. Não é sempre que uma mulher saxã de sangue nobre vem a Rushton.
As palavras dela deixaram-no ainda mais intranqüilo.
— O que acontecerá a seus prisioneiros quando vocês chegarem a Londres? — perguntou lady Helene.
— Eu não...
— Certamente a mesma coisa que o rei fez com os saxões de Wessex. — disse Sir Bernard, o principal funcionário de Roger — Eles tiveram que ficar nus, subir em carroças e foram exibidos pela cidade.
— Eu me lembro que a multidão lhes jogou vegetais e pedras. — acrescentou Roger, rindo — Foi engraçado.
—A refeição vai ser servida. — disse Helene, pondo a mão sobre a de Roger.
A senhora se sentou entre Roger e Mathieu e os homens de Mathieu chegaram logo depois, sentaram-se a uma das mesas próximas.
— O que acha de Ingelwald, barão? — perguntou Helene — Precisará fazer muitos melhoramentos lá?
— Sim, houve danos severos nos portões e muralhas na batalha. E o hall é primitivo, precisa ser ampliado e melhorado. Mas minha esposa decidirá o resto.
— Ah, sim... Clarise de Vilot... é minha prima, você sabe.
Mathieu quase engasgou com o vinho, e não soube se foi por causa das palavras de lady Helene ou da visão de Aelia, usando um avental como uma empregada, servindo travessas de alimentos aos homens de Roger.
Mathieu precisou de extremo autocontrole para não tirar Aelia do hall. Lembrou a si mesmo de que era apenas sua prisioneira, nada mais. Então disse a lady Helene:
— Presumi que havia confinado lady Aelia a seu quarto.
A lady riu.
— Ela é uma escrava e precisei de ajuda esta noite.
— Minha senhora, creio que ultrapassou os limites.
As faces de Helene ficaram vermelhas.
— Ela é apenas uma saxã, milorde, e provavelmente será executada por ordem do rei Guilherme.
Mathieu cerrou os dentes. Não era adequado fazer objeções à forma como Aelia era tratada. Helene estava certa, não passava de uma escrava, sujeita aos caprichos da nobreza normanda. Mas descobriu que não gostava da companhia de seus pares normandos.
Seria melhor deixar que Aelia fizesse o que lhe era ordenado. Mas Mathieu não conseguia tirar os olhos dela, observando-a se mover entre as mesas com bandejas de alimento e canecas de cerveja.
Mathieu bebeu pouco, ao contrário de Roger, que bebia sem parar, rindo e aplaudindo os acrobatas. Helene estava imóvel, olhando sem interesse.
— Onde está o menino saxão?
— Nos estábulos... varrendo o chão, imagino.
— É um convite a problemas. — resmungou Mathieu.
— Perdão, milorde? — disse Helene.
— Nada.
Aelia não olhou em direção à mesa principal. Sabia que ele estava lá, mas se recusava a olhar a mesa onde todos os nobres normandos se sentavam.
A atenção de Mathieu se voltou para um som alto de risadas entre alguns homens e viu que atormentavam uma criada loura com suas brincadeiras brutas. Sua longa trança balançava quando ela lhes empurrava as mãos, mas eles a agarravam e tentavam acariciá-la.
De repente ela deixou cair a bandeja que carregava, virou-se e correu. Era Aelia. Lady Helene riu e fez sinal a alguns dos soldados de Rushton para correr atrás dela.
— A prisioneira saxã parece pensar que servir nossos homens está abaixo dela — disse Helene aos homens — Vão atrás dela e mostrem-lhe o seu lugar.
Roger riu alto e beijou a mão da esposa.
— Boa decisão, minha querida.
Com lágrimas de raiva enevoando-lhe a visão, Aelia correu pelo pátio frio até o estábulo. Não queria pensar no bastardo normando que a abandonara, que nada fizera para impedir a humilhação a que fora submetida, sentado à mesa principal com os outros nobres.
Sua única túnica decente lhe fora tomada e agora usava um trapo de lã que lhe tinham dado. Fora obrigada a ajudar Helene a se vestir e depois mandada à cozinha para ajudar outros criados saxões a preparar a festa para os normandos.
Não devia ter vontade de chorar só porque Mathieu Fitz Autier não tomara medidas para ajudá-la, não podia negar que não passava de uma escrava. E então ouviu uma voz.
— Lá está ela. — disse um homem no fim do corredor.
Três normandos bêbados se aproximaram, um deles carregando uma tocha. Aelia correu para o prédio vizinho e bateu a porta pouco antes que chegassem. Correu para o fundo do prédio enquanto os homens atacavam a porta.
Os normandos arrebentaram a porta e entraram, rindo e correndo para ela. Aelia recuou, tentando encontrar uma porta ou uma janela para fugir dos brutos bêbados. Mas não havia saída.
— Pensou que fugiria de nós? — perguntou um deles.
Aelia fingiu que não o entendia e continuou a se mover, mas os homens a perseguiram.
— Você vai gostar. — disse outro, jogando de lado a tocha para entrar no jogo. Porque era apenas isto para eles, um jogo. Ela seria usada como Rowena e depois descartada.
Os homens a cercaram e um deles lhe agarrou o braço, desequilibrando-a. Outro a puxou para si e Aelia lhe deu um murro no olho. Ele gritou e bateu-lhe, jogando-a no chão. Os outros riam enquanto ela o chutava e esmurrava, tentando afastá-lo.
— É isto, tire-lhe a saia, Hervé!
Ela conseguiu se virar e começou a engatinhar para longe deles, mas um os homens a agarrou pelo tornozelo e a puxou de volta.
— Não! — gritou, chutando de novo.
As mãos deles estavam em suas roupas e de repente um deles rasgou-lhe a túnica. Ela gritou, embora soubesse que ninguém ouviria e, se ouvisse, não se importaria.
Agora tinha sobre o corpo apenas a camisa puída que lhe deram.
— Vejam o que temos aqui! — disse um deles, rindo. Estavam determinados a dominá-la. Prenderam suas mãos, mas quando Hervé se deitou sobre ela, o pânico lhe deu forças e ela conseguiu livrar uma das mãos. Empurrou Hervé e deu-lhe uma joelhada na virilha. Ele gritou de dor e, quando rolou para o lado, Aelia tirou-lhe a adaga e atingiu o primeiro homem que a tocou.
— Ela me cortou! — gritou o normando enquanto ela se erguia brandindo a faca.
Mantendo a faca diante de si, o olhar preso ao homem que ainda não fora ferido, Aelia recuou para a porta. O homem fez um movimento súbito para agarrá-la e ela o atacou. Ele se desviou, dando um passo para trás.
Aelia manteve os olhos nele enquanto recuava, mas quando saía, um obstáculo impediu sua passagem. Era uma muralha de músculos e ossos, outro normando.
— Já a segurei, Aelia. — disse Mathieu, com as mãos em seus braços, tanto para equilibrá-la como para impedir que ela destruísse aqueles três imbecis.
Estava gelada e tremia, mas ele sentiu seu suspiro profundo quando a puxou para trás do próprio corpo e enfrentou os atacantes.
— Vou providenciar para que vocês sejam chicoteados.
— Barão, ela teria me matado!
— Ela me castrou!
— Ela não é uma mulher indefesa, milorde. — disse o terceiro homem, o único que não fora ferido — Sua reação foi exagerada, estávamos apenas brincando. A prostituta não entende um jogo inocente!
Mathieu esmurrou o engraçadinho, cortando-lhe o lábio e derrubando-o no chão.
— Vocês três se apresentem ao barão. Digam a ele que atacaram minha prisioneira e...
— Mas foi lady Helene que nos enviou.
— Disse que devíamos ensinar à mulher o lugar dela!
Mathieu deu as costas aos homens, tomou Aelia nos braços e jogou-a sobre um dos ombros. Apesar de furioso, sabia que tinham que se afastar antes que matassem aqueles homens.
A faca caiu das mãos de Aelia e ela o chutou e bateu-lhe com os punhos enquanto ele a carregava pelo hall e subia a primeira escada que encontrou. Deu-lhe uma palmada forte.
— Chute de novo, mademoiselle, e serei obrigado a usar de violência.
Já estava muito perto de fazê-lo. Ela não parou de lutar, mas quando chegou à porta de seu quarto, Mathieu abriu-a com um pontapé, entrou e jogou Aelia sem cerimônia no chão.
— Não tinha o direito!
— De não deixar você matar aqueles homens? Sim, tinha o dever.
Ela tentou passar, mas ele lhe barrou o caminho. A lareira estava acesa e pela primeira vez Mathieu a viu claramente. Usava apenas uma camisa rasgada e manchada e o ferimento no ombro recomeçou a sangrar. Parecia uma princesa guerreira, orgulhosa e feroz.
— Dever! — ela tremia de raiva.
— Sabe o que Roger de Saye teria feito se matasse um daqueles homens? — ele a sacudiu, depois a tomou nos braços. — Jesus, Aelia...
Sua boca desceu sobre a dela, mas Aelia resistiu, empurrando-o mesmo enquanto lhe segurava a túnica. Ela virou a cabeça, mas suas mãos permaneceram em seu peito.
— Não quero isto, normando!
— Nem eu!
Ela não o libertou. Com fogo nos olhos, puxou-lhe a cabeça e o beijou com uma ferocidade que o fez perder a respiração. Ele virou a cabeça para aprofundar o contato, sentindo o gosto de sua raiva e de sua paixão. Ele interrompeu o beijo e encostou a testa na dela enquanto recuperava a respiração.
— Você não pertence a nenhum outro, Aelia.
Ela mergulhou os dedos nos cabelos dele e Mathieu sentiu que a excitação de Aelia era igual à dele. Mas não pretendia apressar o ato de amor. Seu desejo era imenso demais e o atormentara por tempo demais. Ele a cortejaria e a seduziria até que seus nervos estivessem tão tensos como os dele.
O gosto dela era embriagador, mais sensual que qualquer beijo que já experimentara. Ele desatou as fitas nas costas de sua túnica e tirou-a, depois abriu a camisa e tomou-lhe o seio na boca. O mamilo respondeu ao toque e enrijeceu.
Ela deixou escapar um leve gemido e enlaçou-o pela nuca, segurando-lhe a cabeça junto ao peito. As mãos de Mathieu passearam pelo seu corpo, os dedos tocando seu núcleo. Estava quente e úmida, o botão de sua excitação pronto para o toque dele. Seus joelhos dobraram quando ele a acariciou, mas ela se firmou em seus ombros, acolhendo o toque íntimo.
Mathieu voltou à atenção para o outro seio, beijando-o, mordendo-o, acariciando-o com a língua até ela soluçar de desejo. Sentiu-se mais excitado ao saber que era o único a tocá-la assim, o único a excitá-la tanto, e a levaria para além do limite, a tomaria, ia torná-la sua de coração, corpo e alma.
Tomando-lhe a mão, ele a pressionou contra sua virilidade rija e estremeceu com o doloroso prazer de seu toque. Era inexperiente e hesitante, mas antes que a noite terminasse saberia como lhe dar prazer e aprenderia os limites do próprio prazer.
Os olhos de Aelia brilhavam a luz da lareira e ela o olhou com desejo. Mathieu sabia que nunca vira mulher nenhuma tão bela ou tão inocente. Ela tremia de antecipação e temor.
— Não precisa ter medo de mim, ma belle.
—Não estou com medo de você, senhor. — despiu-o, mas quando ele ficou completamente nu, seus olhos se arregalaram e ela recomeçou a tremer.
Mathieu não lhe deu tempo para pensar, tomou-a nos braços e levou-a para a cama, deitando-a gentilmente.
— Tão bela! — beijou-a profundamente, enquanto uma de suas mãos lhe percorria o corpo, do pescoço às coxas.
Nunca sentira nada tão macio ou tão delicado como a pele dela. Traçou cada linha, cada curva do corpo com beijos, depois sua boca tomou-lhe o seio, beijando e acariciando, circulando os mamilos com a língua, com os dentes, com os lábios, as mãos passeando por todo o corpo, a carne estremecendo ao toque dele.
Ela lhe tomou a cabeça e puxou-a para seu rosto, a boca de Mathieu sobre a dela. Apesar de inexperiente, deixou que o corpo agisse com a sabedoria natural. Sua língua era quente e doce quando penetrou a boca de Mathieu, suas mãos sabiam como acariciá-lo, apertá-lo contra o corpo que o esperava, que se erguia ao encontro do dele e se movia inquieto, ansioso por mais, pela plenitude que ainda não alcançara. Mathieu tomou-lhe uma das mãos e a colocou sobre ele, sobre sua rigidez.
— Toque-me, Aelia.
Ela fechou a mão em torno dele e, quando o ouviu gemer, retirou-a.
— Eu o machuquei?
— Não.
Hesitante, ela tentou de novo e Mathieu pôs a mão sobre a dela, guiando-a, ensinando-lhe como lhe dar prazer.
A respiração de Aelia se acelerou quando percebeu que ele queimava, a carne pulsando de desejo. Ele tomou o seio com a boca de novo, sugando, mordendo, beijando. Queria estar dentro dela... agora. Mas o prazer de Aelia era tão importante quanto o dele, queria deixá-la ansiosa por ele.
Sua boca escorregou para o ventre de Aelia, beijando a pele macia e quente, descendo cada vez mais. Quando beijou seu núcleo, ela arquejou e se abriu para ele.
— Mathieu... — a voz era baixa e rouca e o som de seu nome nos lábios dela encontrou o caminho para o seu coração.
— Sim, repita meu nome.
— Mathieu!
Estava quente e úmida, pronta para ele. Mathieu ergueu o corpo, ficou entre suas coxas macias enquanto ela agarrava seus ombros. Ele era grande e estava impaciente, tudo o que queria era possuí-la. Segurando-lhe a cabeça com as duas mãos, ele a beijou profundamente enquanto mergulhava nela, sem querer lhe causar mais dor do que era necessário.
Mas ela fez um movimento súbito e Mathieu se viu profundamente imerso nela, tão apertado que pensou que seu coração explodiria.
Ela emitiu um pequeno som e Mathieu soltou-lhe os quadris.
— Aelia...
— Mais.
Ela suspirou e rodeou-lhe a cintura com as pernas. Seu olhar queimava no dele, marcando-o com sua paixão, seu desejo. Nunca experimentara uma intimidade tão completa, tão intensa, como se tivesse se tornado parte do corpo dele e de sua alma.
As mãos de Aelia lhe tomaram o rosto e ele fechou os olhos, beijou-lhe as palmas, e as mãos escorregaram para seus ombros e peito, descobrindo-lhe os mamilos, eretos e ansiosos por seu toque. Mathieu quase desmaiou quando ela os acariciou com a ponta dos dedos.
Mergulhou mais profundamente e Aelia arqueou sob ele, gritando quando os espasmos percorreram-lhe o corpo. Atingiram juntos o clímax, uma plenitude incomparável.
Mathieu deitou-se de lado, aliviando-a de seu peso, mas não se separou dela. Beijou-a e levou-a com ele, ela se ajustava a ele como se tivesse sido feita sob medida.
— Você está bem?
— Sim. — disse, a voz pouco mais que um suspiro.
Aelia acordou durante a noite e não viu luz entrando pela janela. Não sabia quanto tempo dormira, nem se importava.
Estava deitada de lado, Mathieu enrascado em suas costas, a cabeça sobre o braço dele, as mãos dele sobre seus seios.
Jamais quisera se importar com Mathieu, apenas odiá-lo. Mas se apaixonara por ele.
Mathieu suspirou, a respiração movendo-lhe o cabelo. Aelia estremeceu e ele a apertou mais, movendo a perna até ficar entre as dela, e sussurrou-lhe o nome no sono. Nada na vida dela era garantido, apenas o que sentia por Mathieu.
Ele se moveu, a mão tomando-lhe o seio, brincando com o mamilo, descendo para o lugar sensível entre as pernas de Aelia.
— Mmm. Tão doce. — murmurou ele.
Aelia se virou para ele, pronta para seu toque, para seu amor. Fizeram amor lenta e gentilmente, cada toque lhes dando mais prazer. Beijaram-se com paixão, com ternura, e ele lhe mostrou como era ser amada. Com os olhos presos aos dela, ele demonstrou a profundidade da intimidade entre os dois a cada caricia, a cada investida.
— Você foi feita para mim, ma belle.
E Aelia sabia que era verdade.
Mas duvidou da realidade do que sentia quando Mathieu saiu da cama de repente.
— Enquanto você dormia, mandei alguém pegar seus pertences. Já está amanhecendo e precisamos sair de Rushton.
A túnica rosa que lhe fora tomada estava sobre um banco de madeira e os sapatos no chão. Quando Mathieu começou a se vestir, Aelia se levantou e fez a mesma coisa, sentindo-se gelada e abandonada.
Ele não era mais o amante atencioso, mas um guerreiro com uma tarefa.
— Osric e os homens também estarão prontos? — perguntou.
— Não. Raoul e os outros trarão Osric e seguirão logo depois. Quanto mais cedo sairmos daqui, melhor.
— Por quê? Aconteceu alguma coisa...
— Não, apenas que a senhora de Roger mandou seus vassalos perseguirem você. E vesti-la em trapos para servir aos homens dele.
Ele se voltou para ela e a vestiu.
— Depressa! É dia, já está amanhecendo.
A raiva de Mathieu era intensa. Estava determinado a decidir o destino de Aelia, que não seria o de ser estuprada por três soldados bêbados num canto escuro da propriedade de Roger de Saye.
Passaram tão cedo pelo portão que a única pessoa acordada era o guarda. Mathieu segurava Aelia junto ao peito enquanto tomavam a estrada para o sul.
Ao meio-dia, pararam junto a algumas árvores para comer. Mathieu estendeu o cobertor no chão e eles se sentaram.
Aelia estava quieta, os olhos evitando os dele, um rubor colorindo suas faces. Mathieu se debruçou em direção a ela, tomando uma mecha de cabelo nos dedos.
— Você é muito bela.
Aelia afastou-lhe a mão.
— Você me deixa constrangida, milorde.
— Não é minha intenção fazê-la se sentir desconfortável, Aelia.
Não compreendia sua necessidade de ficar perto dela, de tocá-la. Nunca precisara da companhia de mulheres.
Mathieu olhou Aelia. Ele a queria. Podia sentir-lhe o gosto, a maciez de sua pele contra a dela, ouvir seus gritos de prazer. Mesmo agora, depois das horas que passara fazendo amor com ela, ainda a desejava como nunca desejara mulher alguma.
Debruçou-se em direção a ela e lhe tocou o canto da boca com o polegar, no momento em que a língua de Aelia saía para pegar um farelo de pão. Uma onda de calor o tomou ao leve contato e ele segurou seu rosto com as duas mãos antes de descer sua boca sobre a dela.
Devia estar louco por continuar este caso quando não havia futuro nele. Voltaria para Ingelwald sem ela.
A expressão no rosto de Aelia foi de confusão quando ele se afastou abruptamente.
— É hora de continuarmos. Quero montar acampamento antes da chuva cair.
Aelia não compreendia o afastamento de Mathieu. Continuaram a cavalgar, mas ele não a abraçava, seus lábios não a tocavam. Era como se nada tivesse acontecido, como se não houvesse se entregado a ele de corpo e alma..
Tinha de estar enganada. Talvez ele estivesse mais vigilante porque viajavam sem escolta. Perguntou se percebera sinais de alguém os seguindo e ele respondeu que não.
— Seus homens e Osric estão muito distantes?
— Pelo menos duas horas ou mais.
— Osric poderá ficar comigo quando chegarmos a Londres?
— Não sei o que Guilherme decidirá.
— Mas até ele decidir... você acha...
— Aelia, não sei o que o rei pensa, não posso dizer o que vai acontecer.
Ela se voltou para fitá-lo, para pedir conforto, mas suas expressão era dura e insensível.
— É claro que você não tem irmãos, do contrário seria mais...
— Tenho dois irmãos, pelo menos dois que são legítimos.
— Pode haver outros?
— Suponho que sim, meu pai tomava qualquer mulher, quisessem elas ou não.
A amargura de seu tom a impressionou e ela se perguntou se a mãe dele teria sido uma das que não quiseram. Todos sabiam que Mathieu era um bastardo e claramente tinha pouca afeição pelos irmãos que mencionara.
— Sua família é diferente da minha.
— Sim. —a voz era áspera, a expressão tensa.
— E sua mãe? Espera pela sua volta?
— Está morta.
— Sinto muito.
— Não precisa, foi há muito tempo.
— Quantos anos tinha quando ela morreu?
— Sete anos.
— Seu pai... O que aconteceu com você depois que sua mãe morreu?
— Tive muitos problemas. E quando meu pai percebeu que eu era um lutador, mandou-me para Cartaret, para ser treinado como soldado.
Aelia sorriu.
— Você gostava de lutar?
— Os filhos de meu pai gostavam de infernizar minha vida. E eu gostava de fazê-los pagar.
Não era de espantar que ele não entendesse a aliança dela com Osric.
— Vire-se, Aelia, enquanto cruzamos este riacho.
Ela obedeceu e sentiu o braço dele passar por sua cintura, segurando-a com firmeza enquanto atravessavam um rio raso mas com águas turbulentas, e chegaram ao outro lado em segurança.
Alguma coisa mudara no comportamento de Mathieu. Ele a segurara como um captor segura uma prisioneira, não como um homem segura a amada. Aelia compreendeu o que devia ter sabido desde o começo.
Não era uma cativa especial, sendo levada para o rei Guilherme em Londres. Era apenas um objeto de Fitz Autier, uma saxã sem direitos ou privilégios. Fora uma tola ao pensar que seus sentimentos eram correspondidos, o homem tinha interesse nela apenas como uma companhia na cama.
Pararam pouco antes do anoitecer, mas a chuva ainda não caíra.
— Vamos montar acampamento aqui.
Ela se sentia doente e queria o conforto e a segurança de seu lar, mas não tinha lar, nem família, nem amigos.
— Segure esta corda. — disse Fitz Autier. Estava pendurando uma pele como um telhado sobre um espaço aberto, assim, se chovesse, teriam onde se sentar e acender uma fogueira.
Aelia se sentia entorpecida enquanto trabalhava ao lado dele. A conversa era limitada às ordens que Mathieu lhe dava, não havia palavras temas ou carícias entre eles. Era como se tivesse imaginado as intimidades da noite anterior e da manhã.
Abalada por seu erro e suas conseqüências, Aelia deixou o local onde Fitz Autier trabalhava e saiu, tropeçando, para tentar recuperar a compostura longe dele, chorar sem que ele visse.
Ouviu-o chamando por ela, mas ignorou-o e caminhou por algum tempo, até chegar a um pequeno lago cercado de árvores. Sentou-se sobre um tronco caído e chorou até não ter mais lágrimas.
Mathieu olhou na direção que Aelia tomara e se perguntou se devia ir buscá-la. Não via perigo, pelo menos não ali e agora. Não sabia como seria quando chegassem a Londres.
Perguntou-se quanto tempo levaria para Raoul e os outros chegarem. Seria muito melhor não ficar sozinho com Aelia, quando ela precisava tanto de um conforto que ele não poderia lhe dar.
Mathieu tinha alguma influência sobre o rei. Certamente Guilherme aceitaria a sugestão de Mathieu e escolheria um bom marido para Aelia, em vez de mandá-la para Ruão como escrava.
Um dos normandos poderia ser um marido adequado para Aelia, e Mathieu pretendia escolhê-lo. Começou a preparar o fogo e de repente se queimou. Jogou água sobre o ferimento, mas não sentiu alívio. Como poderia, se em breve seria obrigado a entregar Aelia ao rei, que a daria a outro homem?
A queimadura em sua mão era parecida à que sentia em suas entranhas. A tarde fora um tormento sem fim, tendo que se manter frio com Aelia. Ela quase conseguira esconder a dor que lhe infligira, mas conhecia-a bem demais, sua indiferença a magoara profundamente.
Mathieu deixou cair o cantil de pele e saiu do acampamento, na direção que Aelia tomara. Não suportava a confusão e a dor que lhe causara. Jesus, ela lhe pertencia e não a daria a nenhum outro homem. Era sua prisioneira e exigiria que lhe fosse entregue.
O caminho que ela tomara era visível e Mathieu seguiu-o até um poço, onde a viu sentada num tronco caído, o rosto nas mãos. Ela o ouviu e se ergueu de repente, virando-se de costas. Mas ele percebeu seus ombros trêmulos e o soluço que lhe escapou dos lábios.
— Aelia.
— Vá embora. Eu... eu já vou voltar.
Ela começou a andar, mas Mathieu a alcançou e abraçou-a por trás.
— Não vá.
— Por favor, Mathieu... eu...
— Não vá. — repetiu ele.
Passou as mãos sobre o peito dela, acima dos seios. A cabeça de Aelia se aninhava bem abaixo do queixo dele e Mathieu a apertou. Mas sentia seus soluços, sua rigidez contra si.
— Compreendo o que tem de fazer.... Eu imploro, deixe-me ir. Deixe que eu pegue Osric e...
Rapidamente, ele mudou de posição e ficou em frente a ela, apertando-lhe o corpo contra o seu. Baixou a cabeça e beijou-a, marcando-a como dele. Ergueu-a e deitou-a na grama macia, o coração batendo com força enquanto lhe sufocava os soluços com beijos.
— Não chore, Aelia. — sussurrou, enxugando-lhe as lágrimas com beijos — Você é minha, nunca a deixarei partir.
Aelia estava chocada quando voltou ao acampamento. Pensara que nada se comparava à intensidade do amor de Mathieu na noite anterior, mas estava errada. Fizera amor com ela ao lado do poço com uma possessividade tão feroz que sua alma ficara abalada. Certamente se enganara sobre sua indiferença naquela tarde.
Mesmo agora, só de olhar para ele, sentia o corpo tremer. Desconfortável, sentou-se junto à fogueira. Mathieu tomou-lhe as mãos e caiu sobre um joelho diante dela.
— Eu a feri. — disse ele.
Aelia se debruçou e beijou-o.
— Você não pode me ferir, Mathieu. Eu... eu simplesmente não estou acostumada com essas atividades.
Ele lhe tocou o rosto, passando os dedos sobre sua boca e faces.
— Não tive tempo de me barbear esta manhã. Minha barba foi áspera demais para você.
Ela lhe cobriu as mãos com as suas e puxou-as para o peito.
— Eu o amo. Quando o vi pela primeira vez, mesmo enquanto lhe atirava a flecha, sabia que você mudaria minha vida. — tocou o corte em sua face — Sinto muito por isto... e por...
— Escute. — disse ele, voltando-se — Cavaleiros. Ele se levantou e tomou-a pela mão, levando-a para um lugar protegido além da luz do fogo.
— Espere aqui. — disse, desembainhando a espada.
Mas eram seus homens. Raoul foi o primeiro a chegar com Osric e os outros os seguiram, menos Halig, Guillaume e Foque.
Mathieu perguntou pelos homens que faltavam.
— Eles ficaram doentes depois da festa. — disse um dos cavaleiros.
O que os deixava com apenas seis homens na escolta, e dois deles não pareciam bem, estavam pálidos e macilentos. Hugh e Guatier não perderam tempo, tiraram os fardos das selas e prepararam as camas sob a cobertura perto do fogo.
Aelia saiu das sombras e segurou os ombros do irmão. Tinha um corte no lábio inferior e um olho inchado.
— Osric, você está bem?
— Sim. — disse ele, afastando-se dela — Não comi codornas. Eles me mantiveram preso no estábulo, limpando esterco.
Aelia olhou para Raoul, que se virou de costas, tirando a sela do cavalo e dando ordens aos homens. Era como se evitasse falar com ela.
— Viu algum sinal de viajantes?
— Não, barão, foi um dia tranqüilo,
— Mesmo assim, quero dois de vocês de guarda o tempo todo. Osbern e Henri, depois de cuidarem dos cavalos fiquem na primeira vigília.
Instalaram-se sob a cobertura e começaram a preparar a refeição. Raoul, que geralmente era muito cordial, estava calado e decididamente hostil. Até Osric estava quieto.
Aelia estava esgotada, fisicamente exausta, e havia muito que nada fora dito entre ela e Mathieu. Talvez, quando ele se juntasse a ela na tenda...
Terminou a refeição, levantou-se e deixou o grupo, levando um cobertor para arrumar o interior da tenda. Quando a cama estava pronta, Aelia foi até o poço, para alguns minutos de privacidade antes de se deitar.
Estava inquieta. Não sabia se por causa do comportamento diferente de Raoul e dos outros... ou pelo conhecimento de que o intenso amor de Mathieu naquela tarde nada havia mudado entre eles...
Encheu o cantil de pele e começou a voltar para o acampamento e parou quando ouviu vozes discutindo em tom baixo. Os homens estavam junto aos cavalos e não perceberam sua presença.
— Sempre fui seu amigo, Mathieu. — disse Sir Raoul — E preciso lhe falar francamente agora. Seu insulto a Roger de Saye lhe causará problemas no futuro.
— É assunto meu, Raoul.
— O bem-estar de sua amante é mais importante do que uma afronta a um barão poderoso?
— Ela é minha escrava, Raoul, minha amante. Minhas ações não são de sua conta.
— Mas você está errado, Mathieu. O rei a tomará de você. Sabe tanto quanto eu que ele a mandará para Ruão depois de exibi-la como uma inimiga conquistada. Ele...
As palavras de Raoul foram interrompidas por um grito e o som de espadas em luta. Aelia correu para o acampamento à procura de Osric.
Homens a cavalo, pelo menos uma dúzia deles, invadiram o campo, atacando. Os homens de Mathieu os enfrentaram com suas espadas, mas não tinham chance contra os atacantes dinamarqueses com seus machados e espadas. Mathieu e Raoul se juntaram à luta, mas Aelia não viu Osric.
— Aelia! Corra!
Os invasores destruíram as tendas, gritando em sua língua desconhecida enquanto combatiam os homens de Mathieu. Aelia não podia seguir a ordem de Mathieu sem antes encontrar seu irmão, não enquanto Fitz Autier lutava contra tantos inimigos. Gritou quando viu Henri cair e de novo quando o sangue de Gerrard se espalhou no chão sob ele. Viu com horror quando Mathieu puxou um homem do cavalo e o matou com a espada. Sem parar, foi atrás de outro enquanto os demais guerreiros normandos lutavam por suas vidas.
— Osric! — gritou, ainda mais aterrorizada.
Não podia pensar no que ouvira momentos antes, era mais importante encontrar Osric e então os dois poderiam fugir. Ficou fora do centro da batalha, correndo de uma árvore a um arbusto, procurando desesperadamente o irmão quando a chuva finalmente caiu.
— Fuja, Aelia! Não temos chance aqui! — gritou Mathieu.
Hugh e Guatier mal conseguiam ficar de pé, mas desembainharam as espadas e enfrentaram com bravura os guerreiros. De repente, Aelia ouviu o grito de batalha de Osric e o viu de pé entre os dinamarqueses montados, atacando com o espadim.
Não conseguia chegar a ele em meio aos cavalos dos atacantes.
Viu quando ele conseguiu derrubar o cavaleiro, mas perdeu-o de vista e correu em direção a ele. Um dos dinamarqueses notou-a e virou o cavalo em sua direção. Aelia correu para a floresta, mas o dinamarquês alcançou-a, ergueu-a e a jogou sobre o cavalo. Aelia gritou e lutou para se libertar, mas o guerreiro era forte demais para ela.
Ele cavalgou em direção ao grupo em luta, erguendo Aelia pelos cabelos, gritando aos companheiros como se lhes mostrasse o que tinha capturado.
— Mathieu! — gritou ela, inutilmente. Puxou a faca, mas o dinamarquês a tirou de suas mãos, então a golpeou.
Viu Mathieu ser atingido por um golpe forte e cair. Eles o haviam matado.
Aelia lutou para se libertar, mas o bárbaro a segurou com força, machucando-lhe os braços e as pernas. Quando ele bateu de novo, ficou tonta demais para continuar a lutar.
Mathieu se levantou com dificuldade. Estava escuro e silencioso. A chuva apagara a fogueira e... Jesus. Aelia! Ele a vira ser levada por um dos dinamarqueses.
Quando seus olhos se ajustaram à escuridão, viu corpos em tomo, de seus homens, de dinamarqueses. Onde estaria o menino? E, mais importante, como conseguiria salvar Aelia?
Rapidamente voltou a acender a fogueira, ignorando o sangue que jorrava de um ferimento na cabeça e a dor intensa no ombro esquerdo. Quando havia luz suficiente, começou a tarefa pavorosa de verificar se algum de seus homens estava vivo.
Apenas Raoul e Osbern sobreviveram, e Osbern provavelmente morreria de seus muitos ferimentos. Mathieu disse a Raoul:
— Tente encontrar Osric, ele deve estar entre os mortos.
Fez o que pôde para amenizar o sofrimento de Osbern e se juntou a Raoul na busca por Osric. Mathieu vira o menino se juntar à luta, usando o espadin de Raoul, usando seu pequeno tamanho e sua velocidade para atacar o inimigo.
Eles o encontraram sob o corpo de um dos dinamarqueses, inconsciente, mas sem ferimentos. Mathieu despertou-o.
— Aelia. Onde está minha irmã?
— Eles a levaram.
— Muitos dos cavalos desapareceram, Mathieu. — disse Raoul — Há apenas três e um deles é dos dinamarqueses.
Mathieu pegou sua espada e a embainhou.
— Fique aqui com Osbern. Quando puder, leve Osric para Londres. Vou procurar Aelia.
— Você não pode. — disse Raoul, observando enquanto Mathieu segurava as rédeas do cavalo do dinamarquês, selado e carregado por grandes fardos — Está ferido e ela se foi, não há nada que possa fazer por ela.
Mathieu montou.
— Ela é uma escrava, Mathieu. É uma perda de...
— Conte ao rei o que aconteceu aqui. Peça a ele que mantenha Osric em sua casa. O menino será um guerreiro formidável algum dia.
Mathieu apertou os calcanhares nos flancos do cavalo e seguiu a trilha dos dinamarqueses.
Oito deles estavam mortos no acampamento, porém Mathieu não sabia quantos haviam sobrevivido ou quantos faziam parte do grupo que levara Aelia. Tinham deixado uma trilha clara na floresta e ele a seguiu por horas até chegar a um rio de águas turbulentas.
Desmontando, Mathieu viu traços na margem lodosa. Apesar da chuva, podia ver que diversos cavalos tinham se reunido ali e atravessado o rio.
Apesar do risco e da escuridão, Mathieu entrou na água. Mas a corrente era forte e o rio mais profundo do que gostaria. Podia ver a outra margem, mas era difícil para o cavalo manter o equilíbrio.
E então o cavalo escorregou e Mathieu caiu na água turbulenta. O peso de sua cota de malha o fez afundar e a correnteza o jogou em outra direção. Conseguiu se livrar do cinto da espada e da cota de malha e voltar à tona. Então, com braçadas poderosas, venceu a corrente e chegou à margem oposta.
Tinha sido carregado rio abaixo, distante do ponto a que pretendera chegar. Começou pela margem do rio e logo ouviu o canto dos pássaros que anunciava o nascer do dia. De repente ouviu um relincho. Era o cavalo que pensara ter perdido.
Segurou as rédeas do animal e continuou a andar, puxando o cavalo e procurando traços dos dinamarqueses. Afinal encontrou-os e seguiu-os.
Quando o dia amanheceu, montou e imprimiu velocidade ao cavalo, seguindo a trilha com mais facilidade. Os dinamarqueses não esperavam ser seguidos e não haviam encoberto sua trilha. Mathieu usaria sua arrogância contra eles e lhes tomaria Aelia.
O captor de Aelia arrancou-a do cavalo e jogou-a ao chão, rindo e gritando com os outros quando chegaram ao acampamento na base de uma inclinação íngreme, cercada por rochedos por todos os lados.
Aelia mostrou por sinais que precisava de privacidade e, quando entenderam, os dinamarqueses apenas riram e a deixaram entrar na floresta. Então, ouviu que a procuravam e decidiu que não se submeteria sem luta. Preferia morrer. Perdera Mathieu e Osric. A vida não significava mais nada.
Pegou uma pedra que cabia bem na palma de sua mão e guardou-a na blusa. Dois dos brutos vieram buscá-la e levaram-na de volta ao acampamento.
Após a divisão das pilhagens, o líder dos dinamarqueses a agarrou e começou a levá-la, mas um dos homens o desafiou, segurando-lhe o braço e fazendo-o se voltar. Houve uma discussão, seguida de uma briga, e Aelia se viu livre. Outro a segurou, mas ela conseguiu lhe dar uma pancada na cabeça com a pedra. Ele caiu e ela correu, enquanto os demais se juntavam à peleja. Aelia pretendia se esconder antes que voltassem a se lembrar dela.
Mathieu perdeu o rastro dos dinamarqueses num terreno rochoso. Mas os captores de Aelia se dirigiam sempre para o leste, e ele se manteve nesta direção. Ao meio-dia parou, abriu o fardo que estava amarrado à sela e encontrou alimentos e água entre objetos de ouro e bronze, frutos de saques.
Também pegou o machado amarrado à sela. Enquanto se alimentava, olhava do alto do rochedo e percebeu uma linha de fumaça que subia de entre as árvores no vale. Esperava que fosse o acampamento dos dinamarqueses.
Mathieu desceu fazendo o mínimo possível de barulho. Amarrou o cavalo na base da colina e seguiu a pé, mantendo-se escondido pelas árvores. Logo ouviu gritos e os sons de luta. Parecia que os integrantes do grupo estavam brigando pelos espólios ou por Aelia.
Com mais urgência do que antes, Mathieu ergueu o machado e se preparou para lutar. Aproximou-se do acampamento com cautela, disposto a matar quem o impedisse de chegar a ela.
Quando entrou na clareira, não havia ninguém, apenas alguns espólios sobre o chão. Mathieu pegou uma adaga e uma espada, deixando o machado, e voltou para as árvores.
Foi diretamente aos cavalos e soltou-os, menos um, que montou. Então seguiu em direção ao som da briga, que acontecia a pouca distância.
Mathieu pegou de surpresa os sete dinamarqueses, matando dois antes que o vissem, e preparou-se para os outros cinco. Procurando por Aelia, enfrentou todos os que tentavam derrubá-lo do cavalo.
Um dos dinamarqueses tentou puxá-lo, mas Mathieu o empurrou com força, com um pontapé no peito, e o homem caiu.
— Mathieu, atrás de você!
Nem teve tempo de se alegrar com o som da voz de Aelia, apenas se voltou rapidamente e matou o guerreiro que o atacava por trás. Três deles ainda estavam de pé — até Aelia derrubar um deles com uma pedra. O homem caiu e Mathieu cavalgou em direção a ela. Aelia levantou os braços e ele a segurou, erguendo-a para a sela atrás dele. Ela montou, depois abraçou Mathieu pela cintura, encostando o rosto em suas costas, e Mathieu saiu a galope entre as árvores, enquanto os dinamarqueses gritavam e corriam para seus cavalos.
O corpo de Aelia tremia contra o dele e Mathieu queria, acima de tudo, tomá-la nos braços, segurá-la, tocá-la, aspirar seu perfume, sentir-lhe as batidas do coração. Mas não podia, não até estar a muitos quilômetros dos dinamarqueses.
Nenhum deles falou até chegarem à base da colina onde Mathieu deixara o primeiro cavalo. Ele desmontou e ergueu as mãos para Aelia e, um momento depois, ela estava em seus braços. Ele se sentia completamente abalado. Quase a perdera. Beijou-a, depois segurou-a com força contra o peito enquanto ela chorava.
— Pensei que eles o tinham matado! Vi quando você caiu!
— Não é muito fácil me matar.
— E Osric...
— Está vivo e a caminho de Londres com Raoul. Ele lutou como um guerreiro saxão. Aelia, você não está ferida, está?
— Apenas mais alguns arranhões, acho.
— Precisamos ir. Soltei seus cavalos, mas logo os encontrarão e virão atrás de nós.
Montaram e seguiram em direção sul. Mathieu queria estar bem distante quando os dinamarqueses começassem a perseguição. Mas precisava levar Aelia a um lugar seguro, ela estava exausta e seus "arranhões" pareciam graves.
Encontraram um riacho raso e subiram por ele, para apagar seus rastros, até chegarem a um terreno rochoso, onde diversos riachos se encontravam. Mathieu desceu e ajudou Aelia a desmontar.
— Se os dinamarqueses ainda estiverem nos seguindo, podemos despistá-los aqui. Não acharão nossos rastros quando sairmos da água. Vamos por aqui.
Continuaram a caminhar em direção sul e finalmente saíram da água. Mathieu viu que Aelia estava prestes a desmaiar, não podiam continuar por muito mais tempo.
Ele a ergueu para seu cavalo e montou atrás dela, fazendo-a se recostar em seu peito, enquanto segurava as rédeas do cavalo dela.
— Durma um pouco, ma belle. Eu a segurarei. Mathieu também estava cansado e logo teriam que parar. Cruzaram um campo e chegaram a um vale, onde havia uma igreja ao longe. Ficava em meio a um pomar e havia diversos prédios de pedra e madeira nas imediações.
Aelia acordou quando ele parou.
— É uma abadia. Vamos parar aqui para passar a noite.
Monges se aproximaram e, como era uma abadia saxã, Mathieu conversou com eles em latim.
— Fomos atacados por dinamarqueses. Minha esposa e eu escapamos, mas ela está exausta. Há algum lugar aqui onde possamos dormir por algumas horas?
O abade acenou, depois conversou com diversos monges. Mathieu desmontou e estendeu os braços para Aelia. Mas ela não tinha mais forças, assim ele a carregou e seguiu dois monges até uma choupana atrás da igreja. Quando abriram a porta e entraram, um dos monges acendeu um lampião.
— Pode deitá-la aqui. — disse o outro, puxando os cobertores do único leito na sala.
— Obrigado. — murmurou Mathieu quando dois outros monges entraram com os fardos das selas.
— Nós lhes traremos alimentos mais tarde, mas você deve cuidar de sua mulher agora. — disse um deles.
— Sim, vou fazer isso.
Eles saíram, fecharam a porta e Mathieu fechou as janelas. Então foi até Aelia, que não se mexeu quando ele se ajoelhou ao lado dela e lhe tirou os sapatos, depois as roupas sujas e molhadas. Mathieu também se despiu e se deitou ao lado, tomou-a nos braços e segurou-a enquanto ela dormia.
Ele a chamara de esposa. O que sentia por Aelia ameaçava tudo que esperava ganhar quando viera para a Inglaterra com Guilherme. Pressionou o rosto no cabelo de Aelia e desejou que houvesse algum modo de mantê-la consigo.
Cada músculo do corpo de Aelia doía. Ela acordou com a dor e sentiu o braço de Mathieu em torno de sua cintura, o calor do corpo dele aquecendo-a. Não sabia onde estavam, mas parecia um lugar seguro, aquecido e seco. E, principalmente, estavam juntos.
A fome a acordara. Com cuidado para não incomodar Mathieu, saiu da cama e vestiu a túnica, que estava seca e dobrada sobre uma cadeira. Então acendeu a lareira.
Havia uma grande cesta sobre a mesa, onde encontrou alimento, duas canecas de cerveja e uma de água. Aelia se sentou à mesa e se serviu de pão e carne enquanto pensava no que devia fazer.
Não tinha mais nada, apenas Mathieu, pelo menos por algum tempo. Olhou para ele, que dormia profundamente. Cavalgara a noite toda para salvá-la dos dinamarqueses e tremeu à perspectiva de deixá-lo. Amava-o mais do que julgara possível. Não podia partir. Ficaria com ele o tempo que ainda tivessem e seria feliz por alguns dias... ou horas.
Aelia se despiu e se lavou com a água do balde. Depois voltou para a cama, para o lado de Mathieu.
Desta vez pretendia acordá-lo. Puxou o cobertor e observou seu peito nu, largo e musculoso, com cabelos ondulados e escuros.
Imaginou que seus mamilos eram tão sensíveis como os dela. Debruçou-se e acariciou um deles com a língua. Houve uma reação imediata na virilha dele. Seu coração bateu mais depressa ao ver a resposta tão intensa e continuou a carícia com a língua, enquanto a mão lhe percorria a rija extensão.
— Aelia.
Ela o sentiu tocar-lhe a nuca e continuou a acariciar-lhe o mamilo enquanto descobria seu tamanho e extensão com a mão. Nunca fizera isso antes, mas quando os músculos dele ficaram tensos em reação ao toque, soube que lhe dava prazer. E a ela mesma.
Ele começou a se erguer, mas Aelia lhe pressionou o ombro contra o colchão e deitou-se sobre ele, os joelhos de cada lado de seu corpo. Ele não resistiu, deixou que ela fizesse com ele o que quisesse. Ela lhe beijou a boca, depois desceu os lábios por seu pescoço e peito. Sentiu os músculos rijos de seu abdome se contraírem quando os tocou com os lábios, depois sua boca desceu mais.
Sentiu e ouviu quando ele arquejou ao toque de seus lábios na ponta macia de sua masculinidade.
— Aelia!
— Devo parar?
— Não!
Aelia se sentiu poderosa e tão excitada quanto Mathieu, ansiosa por deixar nele sua marca. Ficou mais audaciosa, envolveu-o com a língua, mordeu-o de leve. Ergueu a cabeça e fitou-o nos olhos, vendo a febre que provocara.
Ele arqueou sob ela e o sangue de Aelia incandesceu. Tornou-se afoita quando ele cresceu sob suas carícias. Sentiu-lhe os dedos em seu cabelo num pedido silencioso para que continuasse, e Aelia o acariciou até se sentir fraca com o próprio desejo.
Mathieu se moveu de súbito, virando-se e prendendo-a sob ele, o corpo entre as pernas dela.
— Minha bela Aelia. — disse, enquanto a possuía.
Ela o segurou com força, latejando enquanto ele se aprofundava. Aelia tentou proferir seu nome, mas o poder daquela união deixou-a sem fala. Ele a deixou, depois a tomou de novo, mergulhando nela, puxando-lhe os quadris com força. Ela se segurou em seus braços enquanto ele aumentava o ritmo, as sensações intensas de sua união dominando-a.
Mathieu não foi gentil com ela. Era um guerreiro feroz, tinha a intenção de conquistá-la e conseguiu. Mergulhou profundamente, levando Aelia a um pico intenso de prazer. Ela enlaçou as pernas em torno de seus quadris, como se quisesse ancorá-lo nela. Quando ela estremeceu com o clímax, Mathieu gemeu e estremeceu, encontrando a própria satisfação.
Ele se ergueu sobre ela e olhou-a, então abaixou a cabeça e beijou-a enquanto pulsava dentro dela. Os nervos de Aelia ficaram tensos quando aprofundou o beijo e seu corpo estremeceu de novo, quando uma nova onda de prazer a sacudiu, atingindo-lhe a profundidade da alma.
Segurando-a, Mathieu rolou para o lado e lhe acariciou os cabelos.
— Eu a machuquei?
— Não. — suspirou.
Sabia que isto aconteceria mais tarde.
A exaustão voltou a dominá-la, fazendo suas pálpebras caírem e seu corpo ficar pesado. Mathieu beijou-lhe a testa.
— Durma agora.
Aelia suspirou, trêmula.
— Promete uma coisa, quando chegarmos a Londres? — pediu, sonolenta — Não quero me casar com um dos soldados. Você usará sua influência com o rei para que eu seja dada a uma casa que não precise de uma esposa?
Mathieu não conseguiu comer. Ficara sentado perto do fogo por algum tempo, olhando as chamas e se perguntando quanto tempo poderia atrasar sua partida para Londres. Ouviu Aelia se mover na cama, viu-a estender a mão para ele no sono. Quando não o encontrou, acordou e se sentou.
Enrolando o cobertor no corpo, ela se aproximou, tomou-lhe a mão e apertou-a contra a face.
— Venha para a cama.
— Não, sente-se aqui comigo um pouco.
Ele a tomou nos braços e sentou-a no colo, tocando-lhe o cabelo, acariciando-lhe o ombro até ela dormir deitada no peito dele à luz fraca do fogo. Passara por um grande sofrimento que ainda não acabara, Mathieu não sabia o que aconteceria quando chegassem a Londres, nem a extensão da influência que teria sobre Guilherme.
Mas de uma coisa tinha certeza. Não daria Aelia a outro homem. Alguma coisa lhe acontecia sempre que ela estava perto dele. Parecia que eram as duas metades de um todo, e Mathieu sabia que seria impossível separar-se dela.
Não suportaria o casamento com Clarise. Era praticamente desconhecida e, se fosse parecida com a prima, lady Helene de Saye, Mathieu preferia não se casar. Queria uma esposa virtuosa, que administrasse sua casa com graciosidade e justiça. Que entendesse as leis da propriedade e que, mais do que tudo, fosse leal a ele. Deveria fazer seu sangue ferver de desejo quando olhasse para ela e recebê-lo com prazer na cama. Não queria uma amante fora de casa, queria uma amante em sua casa, sob seu teto, tendo seus filhos.
Os monges lhes arranjaram roupas e, por três dias nada fizeram além de comer, dormir, e fazer amor na pequena choupana atrás da abadia. Cuidaram dos ferimentos um do outro e evitaram falar sobre Londres e o que os esperava lá.
O abade pediu que Mathieu o visitasse na tarde do terceiro dia. Como um sacerdote saxão, estava preocupado com as intenções do rei em relação aos monastérios. Mathieu passou uma hora conversando, assegurando ao abade que o rei era piedoso e fiel, e dando à abadia alguns dos objetos de valor que encontrara nos fardos dos dinamarqueses. Quando deixou a abadia, o sol aparecera e Mathieu se sentiu bem, até chegar à choupana e encontrá-la vazia.
A lareira estava fria, quase não havia sinais da ocupação deles, e a visão de seu paraíso vazio fez seu coração apertar. Saiu, viu um dos monges e lhe perguntou se vira lady Aelia. O monge apontou para uma colina coberta de árvores atrás da choupana.
— Ela foi caminhar, milorde.
Mathieu sabia aonde ela fora. Tinham andado por aquele caminho juntos na manhã anterior e do alto da colina podia-se ver todas as terras em torno. Era um lugar de descanso.
Ele chegou ao topo e viu Aelia sentada no chão, imóvel, recostada em uma das pedras. O olhar estava nas terras abaixo e ela não percebeu sua presença até ele se aproximar.
Assustou-se quando ele falou, levantando-se e dando-lhe as costas. Quando finalmente se voltou, o coração de Mathieu se partiu.
— Você estava chorando.
— Não seja tolo, é apenas o vento que fez meus olhos arderem.
Mas ele sabia que não era verdade. O tempo deles na pequena choupana estava chegando ao fim. E, enquanto a vida dele continuaria como planejara, a de Aelia seria diferente de tudo o que conhecia.
— Tente me pegar! — gritou, enquanto corria. Mathieu foi apanhado desprevenido e ela teve um bom começo, dirigindo-se para o ponto mais distante do topo da colina. Ele correu atrás dela, mas permitiu que o enganasse diversas vezes e gritou quando ele quase a pegou. Então levantou a saia e correu mais uma vez.
Era linda, com o cabelo brilhando ao sol, as faces rosadas pelo exercício e o ar frio. Mathieu não conseguia pensar em nada que quisesse mais do que Aelia.
Ele a alcançou e segurou-a pelo xale, então puxou-a para si. Ela se aninhou em seus braços e pressionou o rosto contra seu peito, abraçando-o pela cintura.
Ele não se deixou enganar por sua maneira alegre. Era tudo fingimento, para impedir que soubesse que estivera chorando, sozinha. Mas não havia nada que pudesse dizer para lhe dar esperanças. Não podia lhe prometer que o rei lhe permitiria ficar solteira nem que Mathieu cuidaria dela. Estava realmente sozinha.
— Vai chover de novo, e logo. — disse ele.
Mathieu não queria, não podia, soltá-la ainda. Não quando se segurava a ele como se o vento pudesse levá-la se tirasse as mãos dela.
O AR da noite era frio, mas Mathieu e Aelia estavam aquecidos e contentes em seu quarto. Depois do jantar, sentaram-se juntos, como de hábito. Aelia fechou os olhos e sentiu a força sólida do peito de Mathieu sob sua cabeça, e sufocou o nó de emoção que se formou em suas garganta. Partiriam na manhã seguinte e ela não estragaria sua última noite juntos com lágrimas. Já fora ruim o bastante tê-la surpreendido chorando à tarde. Isso não aconteceria de novo.
Com um toque delicado, ele desamarrou os laços da túnica e a deixou escorregar de seus ombros. Debruçou-se e beijou a pele macia e nua. Aelia fechou os olhos e saboreou o momento, sabendo que nunca haveria outro igual. Não tinham falado de novo sobre Londres ou sobre o que aconteceria lá, e Aelia rezou para que Mathieu convencesse o rei a permitir que ficasse solteira. Jamais poderia ser a esposa de outro homem. Em silêncio, Mathieu levou-a para a cama e fez amor com ela, enquanto seu coração e alma sofriam.
Pela manhã, despediram-se do abade e dos monges, agradeceram a hospedagem e partiram, Aelia embrulhada na capa para se proteger do vento gelado.
A chegada a Londres veio cedo demais para Mathieu. Desmontou em frente ao hall do rei e foi recebido por um guarda.
— O rei está fora, em Barking, milorde.
Mathieu ajudou Aelia a desmontar.
— Quando é esperado de volta?
— Esta tarde, barão. Há uma festa em honra de...
— Mathieu!
— Milorde. — Mathieu se virou para ver Robert, conde de Mortain, descendo as escadas. Como irmão do rei, estava ricamente vestido, mas suas roupas pareciam ainda mais luxuosas. Mathieu enrijeceu ao ver o pai, Autier de Burbage, igualmente bem vestido, descendo com arrogância a escadaria, como se acabasse de voltar vitorioso de uma guerra.
— Então... conseguiu salvar a mulher saxã. Raoul de Moreton nos contou o que aconteceu com os bandidos dinamarqueses. — disse Autier.
— Sim. Ficou surpreso por eu ter voltado a Londres?
— Não, apenas por você ter perdido tempo e arriscado a vida para ir atrás da mulher saxã.
Robert fez sinal a um dos guardas.
— Leve-a para Billingsgate.
Mathieu viu a expressão de pânico de Aelia.
— Milorde — disse, dirigindo-se a Robert —, a senhora tem esperança de ver o irmão.
— O menino que Raoul trouxe?
Mathieu acenou.
— Certamente eles se encontrarão. — disse Robert, rindo.
Robert deu uma palmada nas costas de Mathieu e começou a levá-lo em direção às escadas, onde muitos nobres normandos se reuniram para cumprimentar Mathieu. Mas ele parou e se voltou para Aelia, apesar do olhar crítico de seu pai.
O guarda segurava o braço de Aelia, mas não a tratava rudemente. Mesmo assim, Mathieu não tinha a intenção de deixá-la ir.
— Lady Aelia ficará comigo.
Foi à vez de Autier rir.
— Acho que não, meu caro Mathieu. Ela é filha de Wallis, não é? O rei se vingará da rebelião do pai dela.
— Não! Ela...
— Venha, Mathieu, seus pares esperam por você.
— Perdão, milorde, estarei logo com vocês.
Mathieu deixou o irmão do rei na escada e alcançou o guarda, que começara a levar Aelia. Mathieu não tinha escolha, precisava acompanhar lorde Robert agora e não podia levar Aelia consigo. Mas não a deixaria assim, com medo e insegura. Ignorando a desaprovação do pai, segurou-lhe os ombros e fitou-a nos olhos.
— Tudo ficará bem, Aelia. Encontrarei Osric e providenciarei para que tudo se resolva.
Aelia ergueu a cabeça, mas não olhou para ele. Observando sua tentativa de se controlar, Mathieu soltou-a e recuou. Não a constrangeria ali, não diante de todos esses homens, ou tornaria mais difícil a separação.
Mas ele a encontraria assim que pudesse deixar a mansão do rei, e Guilherme teria de lidar com os dois juntos.
— Você é responsável pelo tratamento que der a ela. — disse ao guarda, que não respondeu.
Robert, Autier e todos os homens que estavam no alto da escada observaram as ações de Mathieu com grande interesse. Mas ele não lhes deu explicações quando se juntou a eles e entrou. Parecia que uma grande festa estava sendo preparada. Mathieu conhecia quase todos os homens reunidos no hall, entre eles Simon de Vilot, pai de Clarise, e seus dois irmãos, Geoffroi e Thierri.
A enormidade de tudo o que acontecera atingiu Mathieu imediatamente. Perdera os homens que haviam viajado com ele, todos menos Raoul e os dois que haviam ficado em Rushton. Conquistara Ingelwald e a noiva de sua escolha, a adorável Clarise de Vilot. Tudo o que tinha a fazer era reclamá-la.
Mas o preço era alto demais se tivesse que perder Aelia. Billingsgate não ficava longe e, assim que pudesse falar em particular com Simon de Vilot, deixaria o hall e iria à procura de Aelia. Juntos encontrariam Raoul e Osric e então pediria a Guilherme permissão para se casar com Aelia. Não queria outra esposa.
— Precisamos beber a meu filho, o conquistador da Nortúmbria! — gritou Autier, entregando a Mathieu um copo.
Os mais importantes nobres do reino beberam ao sucesso de Mathieu enquanto ele cerrava os dentes. De alguma forma, precisava resolver o problema de seu acordo com Simon de Vilot e levar Aelia de volta a Ingelwald. Ela seria sua senhora, ninguém mais.
— Posso falar com você, Mathieu? — perguntou lorde Simon.
Mathieu seguiu-o até a sala ao lado, onde mesas estavam sendo arrumadas para a festa. Mathieu se preparou para lidar com a raiva de lorde Simon quando rejeitasse seu acordo. Não podia culpar o homem, mas não se casaria com a filha dele.
— Vamos até a ante-sala.
Mathieu seguiu o pai de Clarise e ficou calado enquanto ele acendia diversas velas.
— Soube que vocês foram atacados por bandidos na estrada. — disse Simon.
— Sim, dinamarqueses, atacaram propriedades normandas. Provavelmente o rei terá de lidar com eles em breve.
— Quantos dias de viagem de Ingelwald a Londres?
Mathieu respondeu a esta e muitas outras perguntas enquanto pensava qual queria a melhor maneira de anular seu acordo de casamento. Decidiu que a abordagem direta era a melhor, mas o pai de Clarise mais uma vez desviou o assunto.
— Conhece Martin d'Ivry? — perguntou Simon.
— Sim, não acabei de ver...
— Sim, conversando com as senhoras. O rei deu a d'Ivry uma propriedade perto de Windsor.
— Ele é afortunado, milorde.
— É muito perto de Londres.
— É verdade. — Mathieu respondeu, mal escondendo sua impaciência.
— Fitz Autier, tenho algumas preocupações sobre o bem-estar de minha filha numa viagem tão longa até Nortúmbria. E, quando estiver lá, o isolamento de Ingelwald...
— Sim, é um lugar muito distante e isolado — respondeu Mathieu, finalmente compreendendo o rumo da conversa. Subitamente sentiu como se uma nuvem negra tivesse se afastado de seu coração e alma. — Ingelwald é um lugar remoto, as propriedades mais próximas ficam a dois ou três dias de distância.
Simon passou a mão no rosto e olhou para o outro lado.
— Estou num dilema, Fitz Autier. Minha filha... ha, detesta a idéia de viver tão longe da... civilização. E d'Ivry pediu sua mão. Não foi culpa dele, não sabia do nosso acordo.
— Compreendo. — seu alívio era palpável — Entendo suas preocupações, milorde. Mas temos um acordo, embora os documentos não tenham sido assinados.
— Sim, temos. — disse Simon, olhando para Mathieu — Eu gostaria de fazer uma troca com você, Fitz Autier. O rei tinha tanta confiança na sua vitória em Ingelwald que já o escolheu como seu lorde. Há pouco mais que possa desejar, mas para a paz de espírito de um homem velho, tente pensar em alguma coisa. Usarei toda a minha influência para convencer o rei a lhe conceder o que quiser.
— De acordo.
— O quê, então? Diga o que quer.
— Peça ao rei que me conceda um favor, por menos convencional que pareça.
Aelia não compreendeu por que o guarda recebera ordens de levá-la a uma casa à margem do rio e não para Billingsgate, o lugar onde Mathieu pensava que ela estaria. Sentia mais medo agora do que quando estava com os dinamarqueses. O alto lorde normando de olhos azuis mudara a ordem do primeiro lorde por algum motivo e seu olhar penetrante a fizera estremecer. Ela conseguiu libertar o braço da mão do guarda e se virou para lhe falar.
— Por favor, senhor. — disse, obrigando-se a falar em voz firme — Pode dizer ao barão Fitz Autier para onde está me levando?
O lorde ricamente vestido ficou em silêncio, olhando-a com evidente curiosidade. Então sacudiu a cabeça de leve e resmungou algumas palavras:
— Livre o bastardo de sua prostituta saxã.
Os guardas a levaram antes que pudesse reagir. Sabia que não podia esperar piedade desses normandos, apenas de Mathieu, se ele pudesse encontrá-la.
Perguntou aos guardas sobre Raoul e Osric, mas eles não responderam, nem concordaram em levar uma mensagem a Mathieu. Deixaram-na numa grande casa, onde dois outros guardas normandos a trancaram num quarto.
Não havia mobília no quarto, apenas uma cadeira, junto à janela. Aelia abriu-a, mas era alta demais e não poderia pular, não poderia fugir.
Aelia se sentou no chão, os braços em torno do corpo, os joelhos junto ao peito, sem esperança. Mathieu cumprira a ordem: ela e Osric estavam em Londres, à mercê do rei, e Mathieu nem mesmo sabia onde encontrá-la.
Passou muitas horas no quarto frio até que alguns guardas chegaram para levá-la. Amarraram-lhe as mãos e a conduziram a outro edifício menor, de onde ela e outros prisioneiros foram levados para uma carroça, que partiu para um local desconhecido. No fundo do coração, ainda tinha esperanças de que Mathieu viria buscá-la.
No fim da tarde, Aelia e os outros chegaram a um porto no qual havia grandes barcos. E de repente ela soube qual seria seu destino.
— Isto é o mar? — perguntou a um dos prisioneiros.
— Não, é o rio, mas leva ao mar. Estão nos mandando para a França.
Aelia pensou que se Mathieu quisesse encontrá-la, já o teria feito.
— Não posso ir! Soltem-me. — gritou, tentando sair da carroça. Mathieu a abandonara, mas ela não abandonaria Osric.
— Volte! — gritou o guarda, empurrando-a.
Aelia caiu, mas se levantou.
— Preciso encontrar meu irmão!
Os guardas fizeram os prisioneiros descerem.
— Por favor! Fui trazida aqui para ver o rei, exijo...
Os guardas riram e a empurraram.
— Quando o rei voltar, nós lhe diremos que esteve aqui.
Só depois de bastante tempo Mathieu conseguiu licença do irmão do rei para sair, e só após ter prometido voltar para a festa. Foi diretamente a Billingsgate à procura de Aelia, mas não a encontrou.
— Deve haver algum engano, ouvi as ordens de lorde Robert para ela ser trazida para cá!
— Sim, milorde, mas as ordens foram mudadas.
— Descubra alguém que saiba para onde lady Aelia foi levada.
Todos os cavaleiros de Billingsgate esforçaram-se para descobrir a resposta, mas nenhum havia visto a senhora, sabiam apenas que Fitz Autier chegara a Londres com uma bela escrava saxã.
Mathieu decidiu procurar Raoul. Talvez ele soubesse para onde ela tinha sido levada e onde poderia encontrar Osric.
Havia uma taverna à margem do rio na qual Mathieu e seus homens haviam se hospedado antes de partir para a Nortumbia e Mathieu acreditava que lá encontraria o cavaleiro.
Ao entrar na taverna viu Raoul descendo a escada principal. Sua separação após o ataque dos dinamarqueses fora tensa, mas se abraçaram como irmãos.
— Preciso de sua ajuda. — disse Mathieu.
— Mathieu, quero me desculpar por tudo o que disse. Quando eles levaram a senhora saxã, percebi...
— Vamos para fora.
Atravessaram a multidão que enchia a sala comum e saíram da taverna.
— Preciso de sua ajuda para encontrar Aelia.
— Sabia que devia ter ido com você naquele dia. Quando partimos?
— Você não compreende. Ela está aqui em Londres.
— Então conseguiu alcançar os dinamarqueses e libertá-la?
— Sim, mas os guardas de Robert de Mortain a prenderam antes que pudesse impedi-los. Fui um idiota por ter deixado que a levassem.
— E desobedecer às ordens de lorde Robert? Mathieu, você pode ter boas relações com ele, mas ele é o irmão do rei.
— Para onde eles a levariam?
— Billingsgate.
— Não, já estive lá.
— Alguns prisioneiros estão sendo levados para a nova fortaleza do rei junto ao rio, talvez ela esteja lá.
O alívio de Mathieu durou pouco tempo quando chegaram à torre e conversaram com os guardas e souberam que Aelia não estava lá.
— Isso é um absurdo. — disse Mathieu aos cavaleiros de guarda — Lorde Robert de Mortain ordenou que a levassem para Billingsgate, mas não está lá. Quem é o responsável pelos prisioneiros do rei?
— É... seu pai, milorde, o barão Autier de Burbage. — disse um guarda.
— Meu pai?
— Sim.
Mathieu, cheio de raiva, compreendeu que o pai havia mudado a ordem de lorde Robert. Não sabia o motivo, mas podia adivinhar.
Ele e Raoul voltaram aos cavalos.
— Onde está Osric? — perguntou Mathieu.
— Está comigo na estalagem, com a família que é proprietária. São saxões.
— Raoul... não tenho escolha. Tenho de encontrar meu pai no hall do rei e você continua a procurar Aelia. Leve-a até Osric e diga-lhe que estarei com ela assim que puder.
— Sim, milorde.
Raoul se dirigiu para a estalagem enquanto Mathieu ia diretamente para o grande hall. Sabia que sua posição agora era superior à do pai. Ingelwald era maior que qualquer propriedade de Autier de Burbage, assim como eram superiores as vitórias de Mathieu em batalhas. Autier não tinha o direito de decidir o destino de Aelia.
Mathieu chegou ao hall do rei pouco depois da volta de Guilherme, cercado por um grande número de acompanhantes. Havia música, barulho e alegria. Mathieu viu o rei no centro do grande salão, um homem alto que se dirigia ao trono sobre um tablado. Estavam celebrando alguma coisa, mas Mathieu não se interessava, tudo o que queria era encontrar o pai e descobrir o que fizera com Aelia.
De repente, o rei o viu e chamou-o:
— Venha até aqui, Fitz Autier! Lorde de Ingelwald!
Mathieu cerrou os dentes. Não podia ignorar o chamado do rei. Pela primeira vez recebia uma honraria maior do que as atribuídas a seus irmãos, mas não sentiu alegria. Caminhou pelo hall em meio a cavaleiros e damas e se juntou ao rei e aos seus conselheiros mais próximos. Os ricos espólios que encontrara nos fardos nos cavalos dos dinamarqueses estavam sobre uma mesa ao lado.
Guilherme ordenou silêncio e publicamente congratulou Mathieu por suas vitórias na Nortúmbria.
— Eu lhe concedo Ingelwald, Mathieu Fitz Autier, e o declaro conde. — disse o rei.
— Obrigado, senhor. — disse Mathieu, procurando o pai em meio à multidão — Vossa majestade me concede uma grande honra.
— Seus feitos na Nortúmbria o precederam. — continuou o rei — Eu o honrarei acima de todos esta noite. Permita que lhe conceda o favor do rei.
Lançando um olhar rápido em direção a Simon de Vilot, que lhe deu um leve aceno, Mathieu falou diretamente ao rei.
— Como fui liberado de meu acordo de noivado com a filha de Simon de Vilot, peço apenas que me conceda Aelia de Ingelwald como esposa.
— Uma senhora saxã?
— Sim.
— Para garantir melhor seu domínio sobre Ingelwald, Mathieu?
— Sim.
Se o rei queria acreditar que era o interesse que movia suas ações, Mathieu não revelaria o que sentia por Aelia. Não considerou necessário dizer ao rei que a amava mais do que a própria vida, embora estivesse disposto a fazê-lo se a situação exigisse.
— Você é um dos meus melhores comandantes e agora eu o considero um dos meus mais nobres lordes, Mathieu de Ingelwald. — disse o rei — Concedo seu pedido, traga a senhora e se case com ela agora, diante da corte.
— Senhor, não posso. Ela está sendo mantida como prisioneira....
— Onde? Podemos mandar homens libertá-la.
— Preciso encontrar meu pai, senhor, e lhe perguntar. Ele é o carcereiro dela.
Autier de Burbage não gostou da interrupção, mas a jovem criada que perseguia não escondeu o alívio. Fugiu assim que Mathieu e lorde Robert se aproximaram de Autier.
— Para onde mandou a mulher saxã? — perguntou Robert.
Autier não tentou esconder sua irritação, olhando com raiva para Mathieu.
— Vi como você olhava para a mulher, ouvi o que disse. E apenas impedi que você desgraçasse meu nome com seu...
— Tarde demais, Autier. Você já desgraçou o nome. Onde está ela?
— Já foi para a Normandia.
— Como?
— De navio, há pouco tempo.
— Sei onde é. — disse Robert — Talvez ainda dê tempo, vamos.
Robert reuniu diversos de seus homens e ele e Mathieu voltaram ao hall, enquanto Robert ordenava que os cavalos fossem selados e levados para a entrada da frente. Então Robert subiu ao tablado e conversou com o rei.
Mathieu não esperou por Robert. Seu cavalo estava selado e esperando por ele. Deixou o hall, montou e se dirigiu rapidamente para o porto.
Encontrou Raoul na rua.
— Não consegui encontrá-la...
— Ela está sendo embarcada num navio que vai para a Normandia.
Raoul seguiu com Mathieu até o porto e viram três navios se preparando para partir.
— Qual deles? — perguntou Raoul.
— Você fique com este. — disse Mathieu, indicando o primeiro navio que parecia ser o mais preparado para velejar — Vou para o próximo.
Mathieu se aproximou do navio e parou o cavalo onde dois homens estavam recolhendo a prancha de desembarque.
— Parem! Vocês têm prisioneiros saxões a bordo?
— Sim. — disse um deles, cauteloso.
Mathieu não tinha insígnias de sua posição e, sem armadura ou elmo, não tinha autoridade visível com os homens.
— Quem comanda este navio? — perguntou.
— E quem é você, fazendo todas estas perguntas? — replicou um dos oficiais do navio.
Mathieu subiu a prancha.
— Quem comanda este navio?
— E quem é você, que faz todas estas perguntas? — perguntou outro oficial.
— Sou Mathieu Fitz Autier, da corte do rei Guilherme. — disse ele, desembainhando a espada.
Havia um grupo de pessoas na proa e, embora Mathieu não pudesse ver Aelia, percebeu que havia um distúrbio.
— Não pode subir aqui. — disse um dos homens, mas Mathieu ignorou-o, empurrando-o para passar.
— Sim, ele pode. — gritou uma voz do cais.
Era o conde Robert de Mortain, que foi reconhecido pelos tripulantes.
— Milorde. — gritou Mathieu para ele — Pode ir até o último navio?
Robert acenou e se afastou, deixando dois homens à espera do comando de Mathieu.
Ele correu para a extremidade do navio e passou empurrando pela multidão de guardas e amedrontados prisioneiros saxões ali reunidos.
—Aelia! — gritou.
Um dos guardas estava prestes a chicotear uma prisioneira com um chicote de couro, mas Mathieu segurou-lhe a mão e percebeu que era Aelia deitada de bruços nas tábuas do navio.
— O que...?
— Se golpear, responderá com a vida! — disse Mathieu, furioso.
Debruçou-se sobre Aelia e a chamou.
Ela ficou deitada, imóvel.
—Aelia, vim buscar você.
Os ombros dela sacudiram uma vez e Mathieu segurou-a e a virou com delicadeza. Seu alívio foi tão grande como quando a salvara dos dinamarqueses.
— Aelia.
Ele cortou as cordas que lhe prendiam as mãos, então a tomou nos braços, querendo apenas beijar as lágrimas que lhe enchiam os olhos.
— É isto, ma belle, segure-se em mim com força. Osric está com Raoul, ele está seguro. — com os braços de Aelia em torno do pescoço, Mathieu carregou-a por todo o navio, depois desceu a rampa, sentindo-lhe os soluços contra o peito.
Carregou-a até o cavalo, colocou-a na sela e montou atrás dela.
— Vejo que encontrou sua senhora, Mathieu. — disse Robert de Mortain — Ela está bem?
— Sim. — disse Mathieu, segurando-a junto ao peito.
— Então é vontade do rei que você se junte a nós em uma hora.
— De acordo.
Mathieu recebera a permissão do rei para seu casamento com Aelia e queria que todos os normandos fossem testemunhas de seus votos. Voltaria em uma hora ao hall do rei com Aelia.
Cavalgou para longe do porto e parou numa rua deserta. Girou Aelia em seus braços e beijou-a suavemente.
— Perdoe-me por permitir que a levassem, fui um idiota.
O queixo dela tremeu e as lágrimas rolaram, mas ela nada disse, apenas o abraçou com força pela cintura como se nunca mais fosse capaz de soltá-lo. Aelia nunca sentira nada tão bom: o peito maciço de Mathieu contra seu rosto, seus braços em torno dela. Ele dissera que Osric estava a salvo, assim podia saborear plenamente o momento. Mas ela o teria por apenas uma hora, pois ele teria que se apresentar ao rei. Eles se abraçaram por alguns minutos até que alguém lhe falou.
— Mathieu... — era Sir Raoul. Mathieu não a soltou quando Raoul continuou a falar — Devemos ir para a estalagem. Lady Aelia pode ver o irmão lá e tenho certeza de que as mulheres conseguirão encontrar algumas roupas para ela.
Aelia sabia qual era sua aparência. Estava tão suja como seus trapos, mas Mathieu não parecia se importar. Na verdade, não estava muito melhor que ela, há dias não fazia a barba e suas roupas também estavam sujas e rasgadas. Mathieu concordou em ir para a estalagem e Raoul foi primeiro para preparar tudo para eles.
Mathieu não deixou Aelia se afastar um centímetro enquanto cavalgavam pelas ruas de Londres e, antes de chegarem, ela ouviu os gritos de uma criança à distância, chamando-a.
— É Osric!
Aelia soltou Mathieu e desceu, abraçando Osric que corria a seu encontro. Ouviu Mathieu desmontar enquanto segurava o irmão com lágrimas de alegria e alívio.
— Aelia! Nunca pensei que escaparia daqueles dinamarqueses bas...
Aelia riu e o puxou para mais perto, beijando-lhe os cabelos desalinhados.
— Você está me apertando demais!
Ela o soltou enquanto Mathieu lhe punha o braço na cintura e os levava pela rua, puxando a cavalo pelas rédeas.
— Então, você matou todos os dinamarqueses? — perguntou Osric a Mathieu.
— Não foi necessário.
— Mas você tomou minha irmã deles?
— Sim, mas esta é uma história que contarei mais tarde.
— Não! Conte agora!
O coração de Aelia se alegrou com a exigência de Osric, tão típica do temperamento de seu corajoso irmão, e com a paciência de Mathieu com o menino. Não sabia o que o futuro guardava para ela e Osric, mas por enquanto queria apenas saborear esses momentos em que estavam juntos.
Quando chegaram à taverna, foram recebidos por Raoul e duas mulheres saxãs.
— Lady Aelia. — disse uma delas — Tudo está pronto para a senhora... ou quase pronto.
Começaram a levá-la, mas Mathieu continuou a segurar-lhe a mão.
— Não sem mim. — disse ele.
Sentindo-se prestes a chorar de novo, Aelia apertou-lhe a mão. Raoul ficou com Osric enquanto ela subia a escada com Mathieu e entrava num quarto indicado pela mulher saxã.
Mathieu agradeceu e a fez sair, fechando a porta. Um segundo depois, Aelia estava em seus braços. A boca de Mathieu desceu sobre a dela, como se tivessem ficados separados por dias e não por algumas horas.
— Quanto tempo terá que ficar com o rei? — perguntou ela enquanto ele lhe desamarrava o vestido e o tirava. Beijou-lhe o ombro ferido e circundou sua cintura com as mãos.
— Boa parte da noite. — respondeu.
— Ele ficará zangado se você se atrasar? — perguntou Aelia, virando a cabeça para lhe dar mais acesso à pele sensível de seu pescoço.
— Não posso me atrasar... para o meu casamento.
A emoção pura e dolorosa encheu o peito de Aelia. Nunca imaginara que se sentiria tão devastada quando ele se casasse.
— Então precisa ir.
— O que é isto? Lágrimas?
— Por favor, não me peça para lhe desejar felicidades, Mathieu.
— O que aconteceu com minha destemida senhora saxã? — perguntou, segurando-a pelos ombros e puxando-a para si.
— Nunca vi você ser cruel, mas...
— Venha comigo, Aelia, e seja minha noiva, diante do rei e de todos os nobres do reino.
Ele a enlaçou pela cintura e beijou-lhe a nuca.
— Não aceitarei outra esposa, Aelia.
— Não compreendo... sua noiva normanda...
— O pai dela me liberou do nosso acordo.
O coração de Aelia disparou.
— É realmente verdade, você quer uma esposa saxã?
— Sim, ma belle, mas apenas você.
Ela se atirou nos braços de Mathieu e chorou.
— Espero que estas sejam lágrimas de alegria. — disse ele, apertando-a.
Ela acenou contra seu peito.
— Você é tudo para mim, Aelia. — ele lhe aninhou a cabeça sob o queixo — Volte comigo para Ingelwald, fique a meu lado como minha senhora, tenha meus filhos. Vamos reconstruir tudo o que foi perdido na batalha.
Mathieu se levantou da cama e se aproximou de Aelia, sentada perto da lareira de seu quarto nupcial. Ainda se sentia tonta com os acontecimentos da tarde, o corpo vibrando com a intensidade de seu amor neste quarto de taverna.
Mathieu se sentou atrás dela e a puxou para o peito.
— Você promete me honrar e me obedecer, esposa? — disse, a voz suave.
— Sim. — sentiu quando ele pegou um cacho de cabelo e o enrolou no dedo.
— Meus homens me honram e me obedecem.
Aelia sorriu.
— É claro que sim... como eu.
— Gostaria de ter mais de minha esposa do que obediência.
Ela lhe tomou as mãos e beijou cada palma.
— Eu o amo, Mathieu. Você conquistou mais do que minhas terras quando foi a Ingelwald. Você é senhor do meu coração, do meu corpo e da minha alma.
Ele fechou os olhos e se inclinou, tocando-lhe a testa com a dele.
— E você, Aelia... Eu a amo com tudo o que sou, com tudo o que espero ser.
Ele se levantou e tomou-lhe a mão, erguendo-a. Quando lhe segurou o rosto com as mãos e curvou-lhe a cabeça para beijá-la, Aelia soube que sua mãe estava certa.
Esta senhora saxã reconhecera seu único e verdadeiro consorte à primeira vista.
Margo Maguire
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