Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Miguel Strogoff - Vol. I / Julio Verne
Miguel Strogoff - Vol. I / Julio Verne

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Miguel Strogoff

Volume I

 

     Um baile na Corte

      - Sire, um novo despacho.

      - De que ponto?

      - De Tomsk.

      - O telégrafo já não trabalha para além dessa cidade?

      - Desde ontem que está cortado, Sire.

      - General, faça expedir telegramas para Tomsk de hora a hora e dê-me conta do que suceder.

      - Assim se fará, Sire - respondeu o general Kissoff.

      Eram duas horas da manhã quando, no meio da maior animação de um baile, se trocavam estas rápidas palavras.

      Durante toda a noite as bandas dos regimentos de Preobrajensky e de Paulowsky não tinham cessado um instante de tocar o seu vasto repertório de polcas, valsas, mazurcas e scottischs. Nas salas, de uma riqueza oriental, sucediam-se e multiplicavam-se os grupos dos convidados.

      O baile realizava-se no Palácio Novo, construído a curta distância da “velha casa de pedras” onde tantos dramas tenebrosos se tinham consumado noutros tempos.

      O grão-marechal da corte não deixara de ter quem o auxiliasse no desempenho das suas elevadas funções. Os grãos-duques e seus ajudantes de campo, os camaristas e os oficiais-mores caprichavam em assistir pessoalmente à organização das quadrilhas. As grãs-duquesas, resplendentes de diamantes, e as damas da corte, com os seus trajos de gala, davam com desenvoltura o exemplo a todas as senhoras dos altos funcionários civis e militares, pertencentes à antiga “cidade de pedra branca”.

      Por isso, quando chegou o momento de se dançar a polaca, era indescritível o efeito produzido por este passeio cadenciado, que nos actos solenes assume as proporções de uma dança nacional. A agradável confusão de tantos uniformes aparatosos, de tantos vestidos de cauda e de tantas jóias de preço formava um vistoso caleidoscópio, a que davam maior realce os lumes de cem lustres reflectidos nos espelhos.

      Era deslumbrante o quadro! O salão nobre por onde deslizavam os pares - o mais sumptuoso de todos os que há no Palácio Novo - servia admiravelmente de moldura a este cortejo de príncipes, embaixadores e damas vestidas com a mais assombrosa opulência. O seu riquíssimo tecto, já com as douraduras suavizadas pela acção do tempo, parecia como que estrelado de palhetas luminosas. As cortinas e os reposteiros de brocado purpuravam-se dos tons quentes que as fartas pregas deste pesadíssimo estofo produziam.

      A luz, coada pelos vidros, projectava-se como um reflexo de incêndio que viesse perturbar a profundidade da treva. Este contraste era tão intenso que atraía as atenções dos convidados que não dançavam. Se alguns deles se aproximavam das janelas, podiam distinguir ao longe, confusamente esfumadas na sombra, as torres das igrejas, destacando-se aqui e acolá os seus aprumados perfis. Se olhavam para baixo, viam, perpassando em silêncio e com a espingarda horizontalmente deitada sobre o ombro, as numerosas sentinelas, em cujos capacetes pontiagudos oscilavam como chispas as reverberações de milhares de luzes. Ouviam também o sussurro das patrulhas marcando melhor o passo sobre os passeios de laje que os pares, à mesma hora, sobre o pavimento das salas. De vez em quando, a voz das sentinelas, repetindo o grito de alerta, e o som longínquo do clarim, preludiando o toque da alvorada, vinham contrapor a sua nota aguda às doces harmonias das músicas festivas.

      Em frente da fachada principal divisavam-se ainda outras massas escuras, tocadas levemente pelos cones luminosos que as janelas do Palácio Novo projectavam. Eram barcas voando ao sabor da corrente de um rio cujas águas, batidas pela frouxa luz de alguns candeeiros, vinham brandamente espreguiçar-se sob as muralhas do cais.

      A principal personagem do baile, aquele que oferecera a festa e que o general Kissoff designara por um tratamento só concedido a monarcas, trajava simplesmente um uniforme de oficial de caçadores da Guarda.

      Não se apresentava assim por cálculo, mas por hábito de quem tinha em pouca monta a satisfação da própria vaidade. A sua farda contrastava com as fardas agaloadas dos que o cercavam, e esta simplicidade era raro desampará-lo, mesmo quando aparecia entre a sua escolta de georgianos, cossacos e lésguios, garbosos esquadrões sempre fardados com os mais belos uniformes do Cáucaso.

      Este oficial de caçadores da Guarda, de estatura elevada, ar afável e fisionomia tranquila, se bem que pensativa, passava de um para outro grupo, falando pouco, parecendo reparar nas expansões ruidosas de muitos dos seus jovens convidados e nas frases palacianas dos diferentes diplomatas que representavam junto dele os principais estados da Europa. Somente dois ou três perspicazes homens políticos - fisionomistas por experiência - poderiam ter notado sobre a fronte do seu anfitrião alguns sintomas de estranho desassossego, mas nenhum se atrevia a interrogá-lo a tal respeito. Era manifesto que o oficial dos caçadores da Guarda não queria perturbar o baile com as suas íntimas preocupações, e, como ele fosse um desses poucos soberanos a cuja vontade todos se têm habituado a obedecer, os pares continuavam a doidejar nas salas, sem que as músicas afrouxassem as alegrias da festa.

      Entretanto, o general Kissoff esperava que o oficial de caçadores da Guarda a quem entregara o despacho expedido de Tomsk lhe desse as suas últimas ordens.

      Este, porém, continuava silencioso. Tinha aberto o telegrama e lera-o - e a sua fronte alta ainda mais se ensombrara depois da leitura. Chegou mesmo a levar maquinalmente a mão aos copos da espada, mas, levantando-a de pronto, tapara com ela os olhos um momento. Dir-se-ia que o brilho de tantas luzes lhe feria a vista e que procurava a obscuridade para melhor concentrar as suas ideias.

      - É então verdade - disse ele, depois de ter conduzido o general Kissoff para o vão de uma janela -, que desde ontem não podemos corresponder-nos com o grão-duque meu irmão?

      - É verdade, Sire, e chega a recear-se que dentro em pouco os despachos não possam ir além da fronteira da Sibéria.

      - Mas as tropas das províncias do Amur, de Yakutsk e da Transbaicál receberam ordem para marchar imediatamente sobre Irkutsk?

      - Receberam, Sire. Foram prevenidas pelo último telegrama que se expediu em direcção ao lago Baical.

      - E conservamos ainda, como desde o começo da invasão, as nossas comunicações directas com os governos do Yeniseisk, de Omsk, de Semipalatinsk e de Tobolsk?

      - Todos esses governos têm recebido até agora os nossos despachos, e sabemos que, por enquanto, os tártaros ainda não avançaram além dos rios Irtyche e Obi.

      - E que se sabe do traidor Ivan Ogareff?

      - Nada, Sire - respondeu o general Kissoff. - O director da polícia não se atreve a afirmar se ele passou ou não a fronteira.

      - Que sejam imediatamente enviados os seus sinais a Nijni-Novgorod, a Perm, a Ekaterinburgo, a Kassimow, a Tiumen, a Ichim, a Omsk, a Elamsk, a Kolyvan, a Tomsk, enfim, a todas as estações telegráficas onde o serviço ainda não esteja interrompido.

      - Vão ser cumpridas as ordens de Vossa Majestade – respondeu o general Kissoff.

      - Nem uma palavra a este respeito.

      O general, fazendo um gesto de respeitosa aquiescência, afastou-se do seu interlocutor, confundindo-se por entre a multidão e desaparecendo rapidamente, sem que a sua ausência fosse notada.

      O oficial de caçadores da Guarda, esse ficou ainda ali, absorto por alguns instantes, e quando voltou às salas, onde os militares e os políticos formavam diversos grupos, o seu rosto já tinha recuperado toda a serenidade que perdera. Contudo, o acontecimento grave a que aludira o recente e misterioso diálogo não era tão desconhecido como o oficial dos caçadores da Guarda e o general, Kissoff podiam suspeitá-lo. É certo que nada se dizia oficialmente, nem mesmo oficiosamente, porque as línguas sabiam ser discretas quando não tinham licença para falar, entretanto, alguns homens de estado e alguns membros do corpo diplomático haviam já recebido informações mais ou menos exactas sobre o que se passava além da fronteira. O que, porém, eles só vagamente presumiam, o que eles não se arriscariam a avançar com fundamento, sabiam-no bem de perto - e disso davam testemunho numa conversação em voz baixa - dois modestos convidados, cuja presença neste baile não era assinalada nem por uniformes brilhantes nem pela mais simples condecoração.

      Como, por que via e graças a que intervenção estes dois simples mortais se mostravam tão conhecedores de um assunto de que tantos homens importantes só possuíam ligeiras indicações? Ninguém poderia dizê-lo. Teriam eles o dom da presciência ou o dom da previsão? Disporiam, porventura, de algum sexto sentido que lhes permitisse ver além dos limites marcados a todos os olhares do homem? Seriam eles dotados de faro especial para desencantar as notícias de carácter reservado? Não faltavam realmente motivos para admitir semelhante hipótese.

      Um destes homens era inglês, o outro francês, ambos altos e magros. O primeiro, ruivo como um gentleman do Lancashire, o segundo, moreno como um autêntico filho da Provença: O anglo-normando, frio, compassado, fleumático, sóbrio de gestos e palavras, parecia que só falava e gesticulava sob a pressão de alguma mola oculta. O galo-romano, pelo contrário, vivo, alegre, impetuoso, falava ao mesmo tempo com os olhos, com as mãos e com a boca, e tinha vinte maneiras de exprimir uma ideia, enquanto o seu companheiro só tinha uma, invariavelmente estereotipada no seu cérebro.

      Estas desigualdades físicas teriam facilmente dado na vista do mais vulgar observador, mas um fisionomista que examinasse com atenção os dois estrangeiros acabaria por determinar o contraste fisiológico que os caracterizava, dizendo que se o francês era todo olhos, o inglês era todo ouvidos. De facto, o aparelho óptico do primeiro estava extraordinariamente aperfeiçoado pelo exercício.

      Nele a sensibilidade da retina devia ser tão instantânea como a de certos prestidigitadores, que reconhecem uma determinada carta simplesmente por um rápido movimento do baralho, ou por qualquer outro sinal imperceptível a todos que o observam. Este francês tinha, pois, desenvolvido em extremo o que se chama vulgarmente “a memória visual”.

      O inglês, pelo contrário, parecia especialmente organizado para ouvir e compreender. Quando o seu aparelho auditivo era ferido pelo som de uma voz, podiam passar-se dez ou vinte anos depois disso que ele iria sem esforço reconhecer entre mil aquele som. As suas orelhas não tinham decerto a facilidade de se mover como as dos animais que dispõem de grandes pavilhões auditivos, mas, visto alguns homens de ciência já terem assentado que as orelhas humanas não são “totalmente imóveis”, era então lícito supor que as orelhas deste inglês, dobrando-se, torcendo-se e retesando-se simultaneamente, Pudessem absorver todos os sons, embora o meio para isso empregado fosse desconhecido dos naturalistas.

      Convém notar que a perfeição da vista e do ouvido nestes dois homens auxiliava-os maravilhosamente nas suas ocupações, porque o inglês era correspondente do Daily Telegraph e o francês do... De que jornal ou de que jornais não o dizia ele, e, se alguém lho perguntava, respondia sempre, gracejando, que se correspondia com «sua prima Madalena». De resto, era muito fino e perspicaz este francês, mau-grado a sua aparência despreocupada. Falando atrevidamente a torto e a direito - talvez para assim poder melhor chegar aos seus fins -, nem por isso era capaz de dizer o que não queria. A sua própria loquacidade servia-lhe para se calar, e sabia ser mais discreto e reservado que o seu colega do Daily Telegraph.

      E se eles assistiam a este baile, na noite de 15 para 16 de Julho, era na sua qualidade de jornalistas e para maior edificação dos seus leitores.

      Escusado será dizer que estes dois homens tinham verdadeiro amor pela sua profissão, que exultavam de alegria quando se viam obrigados a seguir o rasto de algum acontecimento importante, que nada os assustava para atingirem os seus objectivos e que possuíam o imperturbável sangue-frio e a necessária tenacidade que devem ser o apanágio de um correspondente de jornal. Verdadeiros jóqueis deste novo steeple-chase - uma caça à informação -, galgavam as sebes, atravessavam as valas, saltavam as barreiras com o incomparável ardor desses cavaleiros entusiastas que desejam a todo o transe, nas corridas em que participam, chegar em primeiro lugar ou então morrer.

      Além disso, as empresas dos seus jornais não lhes regateavam o dinheiro - o melhor, o mais rápido e o mais perfeito elemento de informações que se conhece. Deve-se ainda acrescentar, em homenagem aos seus sentimentos de delicadeza, que ambos respeitavam a intimidade do lar e que só se punham em campo quando se tratava de descobrir o fim intrincado de algum sucesso político ou social. Numa palavra, eram dois correspondentes aperfeiçoados, como os que modernamente se encontram, quer nas grandes capitais, quer nos grandes acampamentos.

      Observando-os miudamente, apenas se lhes poderia notar uma singular maneira de encarar os factos e as suas consequências, por serem diferentes em ambos as qualidades de ver e apreciar.

      Entretanto, como se não poupavam às mais espinhosas diligências para se tornarem dignos da confiança dos seus jornais, seria injustiça verdadeira não lhes aplaudir as respectivas aptidões.

      Chamava-se Alcide Jolivet o correspondente francês. Harry Blount era o nome do correspondente inglês: Acabavam de se encontrar pela primeira vez num baile, cujos pormenores estavam encarregados de enviar às suas redacções. A dissemelhança de carácter, aliada a uma certa rivalidade de profissão, devia torná-los pouco simpáticos um ao outro. Não sucedera assim, tinham até procurado aproximar-se para trocarem impressões sobre os acontecimentos do dia: Eram dois caçadores que caçavam sobre o mesmo terreno, empregando as mesmas armas. O que faltava a um podia ser vantajosamente compensado pelo outro, e o Próprio interesse lhes segredava que se pusessem de acordo.

      Neste baile andavam ambos em observação. E havia motivos para isso.

      Os dois correspondentes tinham, pois, começado a conversar, apenas se retirara o general Kissoff, se bem que, de parte a parte, com estudada reserva.

      - Está animadíssimo o baile - disse com amabilidade Alcide Jolivet, encetando o diálogo por meio desta frase banal.

      - Já telegrafei: «esplêndido!» - respondeu laconicamente Harry Blount, empregando este adjectivo especialmente consagrado para exprimir a admiração de todo o legítimo filho do Reino Unido.

      - Contudo - acrescentou Alcide Jolivet -, julguei conveniente indicar a minha prima...

      - Sua prima? - repetiu Harry Blount com ar de surpresa, interrompendo o seu colega.

      - Sim - replicou Alcide Jolivet -, minha prima Madalena. É com ela que me correspondo pelo telégrafo.

      A boa da senhora interessa-se muito por ser bem informada e depressa!... Como ia dizendo, julguei conveniente indicar-lhe que durante o baile a fisionomia do monarca parecia obscurecida por uma espécie de inquietação.

      - Pela minha parte achei-o radiante - respondeu Harry Blount, que pretendia talvez ocultar a este respeito a sua verdadeira opinião.

      - E naturalmente fê-lo também “radiar” nas colunas do “Daily Telegraph”!

      - Decerto.

      - Está lembrado, Sr. Blount - disse Alcide Jolivet -, do que se passou em Zakret em 1812?

      - Como se lá tivesse estado - respondeu o correspondente inglês.

      - Nesse caso - retorquiu Alcide Jolivet -, não ignora que, no meio de uma festa oferecida ao imperador Alexandre, vieram preveni-lo de que Napoleão acabava de passar o Niémen com a vanguarda do exército francês. O imperador nem por isso deixou a festa, e apesar da gravidade de uma tal notícia, que podia privá-lo de um Império, conservou nas aparências tamanha serenidade...

      - Como o oficial que dá este baile quando o general Kissoff lhe veio dizer que estavam cortados os fios do telégrafo entre a fronteira e o governo de Irkutsk.

      - Ah! Então, pelo que vejo, teve notícia desse acontecimento?

      - Tive.

      - Também eu já o conhecia, visto o meu último telegrama ter ido até Udinsk - replicou Jolivet com certo ar de satisfação.

      - E o meu até Krasnoiarsk - respondeu Harry Blount de um modo vitorioso.

      - Então sabe também que se enviaram ordens às tropas de Nikolaevsk?

      - Sei ainda mais: que os cossacos do governo de Tobolsk foram intimados a concentrar-se.

      - Perfeitamente exacto, Sr. Blount. Eram-me igualmente conhecidas essas disposições, e tanto assim que a minha adorada prima já deve amanhã estar ao facto delas.

      - Como também os leitores do Daily Telegraph, Sr. Jolivet.

      - Veja o que é uma pessoa ousar ver o que se passa.

      - E ouvir o que se diz.

      - Que excelente mina para explorar que se está aqui preparando, Sr. Blount.

      - E hei-de explorá-la.

      - Nesse caso é possível que nos tornemos a encontrar sobre um terreno decerto menos plano que o sobrado destas salas.

      - Menos plano, decerto, mas também...

      - Menos escorregadio - acrescentou Alcide Jolivet, segurando o seu colega, que ia perdendo o equilíbrio no momento de se voltar.

      Em seguida, os dois correspondentes separaram-se, satisfeitos por terem visto que um não excedera o outro.

      Efectivamente estavam ambos em igualdade no que dizia respeito a informações.

      Neste momento abriram-se de par em par as portas das salas contíguas ao salão nobre. Viram-se então, enfileiradas, extensas mesas, sumptuosamente preparadas para a ceia e profusamente guarnecidas de preciosas porcelanas e de ricas baixelas de ouro. Na mesa principal, reservada à corte e ao corpo diplomático, refulgia, magnífico, um centro de mesa de valor inestimável, saído das ourivesarias de Londres, e em redor deste primor artístico e opulento brilhavam, à luz dos lustres, as mil diferentes peças do mais admirável, do mais rico serviço de loiça de Sèvres.

      Os convidados do Palácio Novo começaram então a dirigir-se para os seus lugares.

      Neste mesmo tempo o general Kissoff, que tornara a entrar, aproximou-se novamente do oficial de caçadores da Guarda.

      - Que temos? - perguntou-lhe este com mal contida curiosidade.

      - Sire, os telegramas já não chegam a Tomsk.

      - Um correio, imediatamente!

      O oficial deixou o salão nobre e dirigiu-se para um vasto compartimento que lhe ficava próximo. Era o seu gabinete particular de trabalho, situado num dos ângulos do Palácio Novo, guarnecido, com muita simplicidade por uma mobília de carvalho do Norte e apresentando pelas paredes diferentes quadros, em cujo número se contavam algumas telas de Horácio Vernet.

      O oficial abriu apressadamente uma janela, como se o oxigénio lhe faltasse nos pulmões, e foi respirar, sobre uma espaçosa varanda, o ar puro daquela linda noite de Julho. Lançando os olhos para baixo, viu, banhado pela claridade do luar, um recinto fortificado, no qual se erguiam para o céu duas catedrais, três palácios e um arsenal. Em redor deste recinto desenhavam-se ainda três cidades distintas: Kitai-Gorod, Beloi-Gorod e Zemlianoi-Gorod, formando três imensos bairros povoados de europeus, tártaros ou chineses, a que serviam de remate as torres e os minaretes de trezentas igrejas, com os seus zimbórios verdes sobrepujados por cruzes de prata. Um rio de curso irregular reflectia num e noutro ponto os raios da Lua. Todo este conjunto formava um variado mosaico de casas diversamente coloridas que largamente se encaixilhava numa enorme moldura de dez léguas.

      Este rio era o Moscova, a cidade era Moscovo, o recinto fortificado era o Kremlin, e o oficial de caçadores da Guarda que, de braços cruzados e olhar cismador, prestava tão pouca atenção aos ecos daquela festa principesca era o czar de todas as Rússias.

 

     Russos e tártaros

      Se o czar deixara tão inopinadamente as salas do Palácio Novo, quando mais brilhava a festa por ele oferecida à primeira sociedade de Moscovo, é porque se estavam passando grandes acontecimentos além das fronteiras do Ural. Já não restava a menor dúvida: uma tremenda invasão ameaçava subtrair à soberania da Rússia as províncias siberianas.

      A Rússia asiática, ou Sibéria, abrangendo uma área de quinhentas e sessenta mil léguas quadradas e contando aproximadamente dois milhões de habitantes, dilata-se desde os montes Urais, que a separam da Rússia europeia, até ao litoral do oceano Pacífico. Ao sul, é o Turquestão e o império chinês que lhe servem de limites, seguindo uma linha de fronteira bastante indeterminada, ao norte, é o oceano Glacial, desde o mar de Kara, até ao estreito de Behring. Divide-se em cinco governos ou províncias, que são Tobolsk, Yeniseisk, Irkutsk, Omsk e Yakutsk, compreende dois distritos: os de Okhotsk e Kamtschatka. e possui dois territórios actualmente sujeitos ao domínio moscovita: o país dos quirguizes e o país dos tchuktchos.

      Esta imensa região de estepes (Estepes, charnecas extensíssimas e de aspecto uniforme. (N. do T.), contando mais de cento e dez graus de oeste a leste, é simultaneamente uma terra de deportação para criminosos e um lugar de exílio para aqueles que ucasse imperial sujeitou á expulsão.

      Dois governadores-gerais representam neste vasto país a suprema autoridade dos czares. Um reside em Irkutsk, capital da Sibéria oriental, outro em Tobolsk, capital da Sibéria ocidental. O Tchuna, afluente do Yenisei, separa as duas Sibérias.

      Nenhum caminho de ferro percorre ainda estas imensas planícies, entre as quais se notam algumas de extrema fertilidade. Nenhuma estrada especial auxilia o trabalho importante das minas, que tornam o solo da Sibéria mais rico nas camadas interiores do que na sua superfície. Em consequência disto, as viagens ali fazem-se no Verão em tarentass (Espécie de carro sem molas feito de travessas de pinho com uma capa de couro, um estribo, um guarda-lama e dois pares de rodas, separados um do outro nove a dez pés) e no Inverno em trenó.

      O único meio de comunicação que reúne as duas fronteiras, oriental e ocidental, é um fio eléctrico medindo oito mil verstas de comprimento (A versta equivale a 1067 metros pouco mais de 1 quilómetro). Este fio, partindo do rio Ural, passa por Ekaterinburgo, Kassimow, Tiumen, Ichim, Omsk, Elamsk, Kolyvan, Tomsk, Krasnoiarsk, Nijni-Udinsk, Irkutsk, Verkne-Nertschink, Strelink, Albazine, Blagowstenks, Radde, Orlomskaya, Alexandrowtskoe, Nikolaevsk e, pela transmissão de cada palavra até ao seu extremo limite, paga-se seis rublos e dezanove kopeks (O rublo, moeda de prata, valia 675 réis. O kopek, moeda de cobre, valia aproximadamente 10 réis). De Irkutsk segue uma ramificação deste fio para Kiatka, na fronteira da Mongólia, e dali o correio expede os despachos para Pequim, mediante trinta kopeks por cada palavra.

      Era este fio, desde Ekaterinburgo até Nikolaevsk, que fora cortado, primeiramente adiante de Tomsk e algumas horas depois entre Tomsk e Kolyvan.

      Aqui está porque o czar, depois da segunda participação que lhe fizera o general Kissoff, só tinha respondido por estas palavras: «Um correio, imediatamente!»

      O czar havia alguns instantes que se conservava impassível à janela do seu gabinete, quando um dos guardas levantou o reposteiro para anunciar o grão-mestre da polícia.

      - Entre, general - disse o czar com um tom de voz sacudido -, e diga-me o que sabe acerca de Ivan Ogareff.

      - É um homem extremamente perigoso, Sire - respondeu o grão-mestre da polícia.

      - Não tinha a patente de coronel?

      - Tinha, Sire.

      - Era oficial inteligente?

      - Muito inteligente, mas de um génio indomável e com uma ambição que não recuava diante de nenhum obstáculo. Daí proveio envolver-se em maquinações secretas, que obrigaram Sua Alteza o grão-duque a destituí-lo do posto que tinha. Pouco depois foi desterrado para a Sibéria.

      - Em que época?

      - Há dois anos. Seis meses depois do desterro, por graça especial de Vossa Majestade, tornou a entrar na Rússia.

      - E desde então nunca mais voltou à Sibéria?

      - Voltou, voltou, mas desta vez por vontade própria - respondeu o grão-mestre da polícia.

      E acrescentou, baixando um pouco a voz:

      - H ouve um tempo, Sire, em que não regressavam da Sibéria aqueles que para lá iam.

      - Pois enquanto eu viver a Sibéria é e será sempre um país donde se possa regressar.

      O czar estava em condições de poder pronunciar com orgulho estas palavras, porque tinha mostrado muitas vezes, pela sua clemência, que a justiça moscovita sabe perdoar.

      O grão-mestre da polícia conservou-se silencioso, mas via-se bem que não era partidário de procedimentos brandos. Segundo a sua opinião, todo o homem que tivesse atravessado os montes Urais entre uma escolta de soldados não devia tornar a transpô-los. Não sucedia, porém, assim no novo reinado e o grão-mestre da polícia lastimava profundamente tal modificação. Pois não há-de aplicar-se mais a pena de degredo perpétuo senão para os crimes de direito comum! Pois é crível que os deportados políticos possam regressar de Tobolsk, de Yakutsk e de Irkutsk!

      O grão-mestre da polícia, habituado na verdade às decisões autocráticas dos ucasses que dantes nunca perdoavam, não podia conformar-se com esta maneira de governar. Calou-se, porém, esperando que o czar o interrogasse de novo.

      Não se fizeram esperar as perguntas.

      - É certo que Ivan Ogareff - prosseguiu o czar -, voltou uma segunda vez à Rússia depois dessa viagem às províncias da Sibéria, viagem cujo objectivo ainda está por conhecer?

      - É certo.

      - E desde que voltou a polícia perdeu-lhe o rasto?

      - Não perdeu, Sire, porque um condenado nunca se torna tão perigoso como depois do u indulto.

      A fronte do czar enrugou-se por um instante. Talvez que o grão-mestre da polícia tivesse motivo para lastimar o alcance das palavras que empregara - se bem que a sua obstinação igualasse o afecto que dedicava ao soberano. No entanto, o czar, desprezando as censuras indirectas em relação à sua política interna, levou por diante a série das suas perguntas.

      - Onde estava ultimamente Ivan Ogareff?

      - No governo de Perm.

      - Em que cidade?

      - Na própria capital.

      - Que fazia lá?

      - Nada que motivasse desconfianças.

      - Nesse caso, não era vigiado particularmente pela polícia?

      - Não era, Sire.

      - E quando foi que saiu de Perm?

      - No mês de Março.

      - Para onde?

      - Ignora-se.

      - E não se sabe o que foi feito dele desde esse tempo?

      - Não se sabe.

      - Pois sei-o eu! - ajuntou o czar. - Diferentes avisos anónimos, que não passaram pelas relações da polícia, me têm sido ultimamente dirigidas Em vista dos factos que se estão a passar além fronteiras, sou levado a crer que esses avisos dizem a verdade.

      - Acreditará Vossa Majestade - replicou o grão-mestre da polícia - que Ivan Ogareff não é estranho à invasão dos tártaros?

      - Acredito, general, e vou informá-lo agora do que não sabe. Ivan Ogareff, depois de ter saído do governo de Perm, atravessou os montes Urais, penetrou na Sibéria, lançou-se nas estepes dos quirguizes e procurou ali, não sem êxito, sublevar as populações nómadas. Em seguida dirigiu-se mais para o sul e foi até o Turquestão livre, encontrando nos canados de Bucara, de Khokland e de Kunduza chefes dispostos a arremessarem as suas hordas tártaras sobre as províncias da Sibéria e a provocarem uma invasão geral por todo o império russo na Ásia. O movimento, preparado em segredo, acaba de explodir e, como primeira consequência, aí aparecem já cortados todos os meios de comunicação entre a Sibéria oriental e a Sibéria ocidental! Além disso, Ivan Ogareff, sequioso de vingança, deseja atentar contra a vida de meu irmão!

      O czar animava-se à medida que ia falando e passeava agora a passos largos. O grão-mestre da polícia permanecia calado, mas dizia de si para si que os planos de Ivan Ogareff não poderiam ter sido levados a efeito se ainda se estivesse no tempo em que os imperadores da Rússia não costumavam indultar os deportados políticos.

      Decorreram alguns instantes, durante os quais nem o czar nem o oficial quebraram o silêncio. Depois, o grão-mestre da polícia, aproximando-se do imperador, que se tinha lançado numa poltrona, disse:

      - Vossa Majestade deu as ordens necessárias para conjurar quanto antes essa Invasão?

      - Dei - respondeu o czar. - O último telegrama que pôde chegar a Nijni-Udinsk deve ter posto em movimento as tropas dos governos de Yeniselsk, de Irkutsk, de Yakutsk e as das províncias do Amur e do lago Baical. Ao mesmo tempo, os regimentos de Perm e de Nijni-Novgorod e os cossacos da fronteira caminham a marchas forçadas em direcção aos montes Urais. Por infelicidade, ainda terão de decorrer muitas semanas antes que os meus soldados se possam encontrar frente a frente com as colunas dos tártaros!

      - E o irmão de Vossa Majestade, Sua Alteza o grão-duque, presentemente isolado no governo de Irkutsk, não está em comunicação directa com Moscovo?

      - Não está.

      - Mas deve saber certamente pelos últimos despachos quais são as medidas tomadas por Vossa Majestade e quais os socorros que poderá esperar dos governos mais próximos de Irkutsk?

      - Sabe-o, é certo - respondeu o czar -, mas o que ele ignora é que Ivan Ogareff, além de traidor, é seu Inimigo implacável.

      Foi ao grão-duque que Ivan Ogareff deveu a sua primeira condenação, e o que há de pior é que o grão-duque não conhece esse homem. Ivan Ogareff tem por fim introduzir-se em Irkùtsk para, depois de lá estar, se apresentar ao grão-duque e oferecer-lhe os seus serviços debaixo de um nome suposto.

      Conseguido isto, e logo que os tártaros comecem a sitiar Irkutsk, Ivan propõe-se entregar a cidade e com ela meu irmão, cuja vida se acha directamente ameaçada. Aqui está o que eu sei pelas minhas informações, aqui está o que o grão-duque ignora e o que é urgentíssimo que ele conheça.

      - E se houvesse um correio inteligente e corajoso...

      - Sim...

      - E que não perdesse tempo no caminho - acrescentou o grão-mestre da polícia -, pois seja-me permitido dizer a Vossa Majestade, que a Sibéria é uma terra bastante propícia para rebeliões.

      - Suspeita, general, que os deportados façam causa comum com os invasores - replicou o czar, sem poder reprimir um movimento de cólera diante desta insinuação disfarçada do grão-mestre da polícia.

      - Desculpe-me Vossa Majestade - respondeu, a balbuciar, o grão-mestre da polícia, pois com efeito fora esse o pensamento que lhe passara pela mente.

      - Faço mais justiça ao patriotismo dos deportados.

      - Não são unicamente deportados políticos os que se acham na Sibéria - esclareceu o grão-mestre da polícia.

      - Alude aos criminosos? Ah!, general, esses entrego-lhos. São o refugo da espécie humana. Não pertencem a nenhum país. Mas a revolta, ou, para melhor dizer, a invasão não é feita contra mim, é contra a Rússia, contra a pátria, que os deportados ainda não perderam a esperança de tornar a ver e que hão-de ver! Não... não é possível, um russo jamais poderá ligar-se com um tártaro, quando dessa ligação resultasse o enfraquecimento, por uma hora que fosse, do predomínio moscovita.

      O czar tinha razão para não descrer do patriotismo de todos aqueles que a sua política momentaneamente conservava afastados. A clemência, que era a base da sua justiça quando ele podia vigiar-lhe a aplicação, e a sensível brandura que adoptara nos seus ucasses, tão diferentes dos anteriores, serviam-lhe de pleníssima garantia às palavras que proferira.

      Admitindo, porém, mesmo que os deportados não auxiliassem a invasão, as circunstâncias nem por isso eram menos graves e ficava sempre de pé a desconfiança de que uma grande parte da população dos quirguizes se unisse aos invasores. Os quirguizes dividem-se em três hordas: a grande, a média e a pequena, e contam aproximadamente quatrocentas mil “tendas”, com uma população de dois milhões de almas. Destas diversas tribos, umas são independentes, outras reconhecem a soberania, quer da Rússia, quer dos canados de Khiva, de Khokhand e de Bucara, isto é, dos mais poderosos chefes do Turquestão. A horda média, a mais rica das três, é também a mais considerável, e os seus acampamentos ocupam todo o espaço compreendido entre as correntes do Sara-Su, do Irtyche, do Ichim superior e os lagos Hadisang e Aksakal. A grande horda, que ocupa as regiões situadas a leste da média, estende-se até aos governos de Omsk e de Tobolsk. Se todas estas populações se sublevassem, era, pois, inevitável a invasão Rússia asiática e sobretudo a falta absoluta de comunicações com toda a zona da Sibéria a leste do rio Yenisei.

      Verdade é que os quirguizes, leigos na arte da guerra, estão mais aptos a pilhar caravanas e a fazer ataques nocturnos do que a constituir um grupo de soldados regulares. Como bem disse Levchine, basta uma coluna cerrada ou um quadrado de boa infantaria para resistir a uma massa de quirguizes dez vezes maior, e basta uma peça de artilharia para lhes causar espantosa mortandade.

      Mas para isso conviria que a coluna cerrada se achasse no país ameaçado e que as armas de fogo não estivessem ainda nos parques das províncias russas - distantes do lugar da invasão perto de três mil verstas.

      Ora, exceptuando a estrada que liga Ekaterinburgo a Irkutsk, as estepes, repetidas vezes alagadiças, não se prestavam facilmente aos movimentos militares, e primeiro que as forças russas pudessem repelir as hordas tártaras, muitas semanas ainda teriam de decorrer.

      Omsk é o centro da organização militar da Sibéria ocidental, que tem por fim conservar em respeito as populações dos quirguizes. Estes nómadas, guerreando contra a vassalagem que a Rússia lhes impõe, mais de uma vez têm atacado aquela cidade, e no Ministério da Guerra havia razões para supor que Omsk já estivesse correndo perigo. A linha das defesas militares, formada por diferentes postos de cossacos escalonados desde Omsk até Semipalatinsk, devia ter sido forçada em vários pontos. Finalmente, havia a recear que os “grandes sultões”, que governam os distritos quirguizes, se tivessem já, voluntária ou involuntariamente, deixado dominar pelos tártaros, muçulmanos como eles, juntando-se nesse caso ao ódio derivado da sua posição de vassalos da Rússia, o ódio resultante do antagonismo de duas religiões: a grega e a muçulmana.

      Há muito tempo que os tártaros do Turquestão, e principalmente os que formam os canados de Bucara, de Khokhand e de Kunduza, procuravam afastar, tanto pela força como pela persuasão, as hordas quirguizes do domínio moscovita.

      Algumas palavras acerca dos tártaros:

      Estes povos compreendem especialmente duas raças distintas: a raça caucásica e a raça mongólica. A raça caucásica, que, segundo a opinião de Abel de Remusat, é considerada na Europa como o principal tipo de beleza humana, porque todos os povos desta região são dela descendentes, reúne debaixo da mesma designação os turcos e os indígenas de origem persa.

      A raça puramente mongólica compreende os mongóis, os manchus e os tibetanos.

      Os tártaros que ameaçavam agora o império russo eram de raça caucásica e habitavam mais particularmente o Turquestão.

      Esta vasta região divide-se em diferentes estados, governados por cãs, donde procede a designação de canados. Os principais canados são os de Bucara, de Khiva, de Khokhand, de Kunduza, etc.

      Neste tempo, o canado mais importante e mais para temer era o de Bucara. A Rússia já por várias vezes tivera de lutar com os seus chefes, que protegiam a independência dos quirguizes, unicamente com o fim de substituir pela sua a Preponderância moscovita. O chefe actual, Féofar-Cã, seguia nesse ponto a política dos seus antecessores.

      O canado de Bucara estende-se de norte a sul entre trinta e sete e quarenta e um graus de latitude e de leste a oeste entre sessenta e um e sessenta e seis graus de longitude, isto é, ocupa uma superfície de dez mil léguas quadradas aproximadamente.

      Há neste estado uma população de dois milhões e quinhentos mil habitantes, um exército de sessenta mil homens, que se eleva ao triplo em tempo de guerra, e trinta mil cavalos. É um país rico, varia nas suas produções animais, vegetais e minerais, e que se engrandeceu bastante com a aquisição dos territórios de Balkh, Aukoi e Meimaneh. Possui dezanove cidades consideráveis: Bucara, cercada de muralhas que medem para cima de oito milhas inglesas, flanqueada de torres, ilustrada pelos Avicena e outros sábios do século X, considerada como centro da ciência muçulmana e apontada entre as mais célebres da Ásia central, Samarcanda, defendida por uma forte cidadela e possuindo o túmulo de Tamerlão e o célebre palácio onde se guarda a pedra azul sobre a qual se sentam os novos cãs no acto da sua aclamação, Karschi, quase inexpugnável, com o seu tríplice contorno de muralhas, situada num oásis cercado por um pântano coberto de tartarugas e lagartos, Tscharui, defendida por uma população de perto de vinte mil almas, enfim, Katta-Kurgan, Nurata, Djizah, Paikanda, Karakul, Khuzar, formando um conjunto de cidades difíceis de conquistar. O canado de Bucara, protegido pelas suas montanhas, isolado pelas suas estepes, é, pois, um estado verdadeiramente perigoso, e a Rússia ver-se-ia obrigada a opor-lhe forças Importantes.

      Ora, como se disse, era o ambicioso e feroz Féofar quem governava então este canto da Tartária. Apoiado pelos outros cãs, principalmente pelos de Khokhand e de Kunduza, guerreiros piratas e sanguinários, sempre inclinados a todas as empresas que pudessem lisonjear o instinto tártaro, e auxiliado pelos chefes que comandavam as hordas da Ásia central, Féofar-Cã sentia-se satisfeito por se pôr à frente desta invasão, de que Ivan Ogareff dirigia os fios. Este traidor, dominado tanto pelo ódio como pela ambição, combinara o movimento de maneira a poder cortar a principal estrada siberiana. Louco na verdade se pensava que era bastante forte para abalar o colosso moscovita! Debaixo da sua direcção, o emir - é o título que tomam os cãs de Bucara - tinha lançado as suas hordas para além da fronteira russa. Invadira o governo de Semipalatinsk, e os cossacos, que não estavam em força neste ponto, tinham-se visto obrigados a recuar. Avançara para o lago Balrache, levando consigo as populações de quirguizes por onde passava.

      Pilhando, devastando, alistando os que se submetiam, capturando os que se lhe opunham, tudo isto com a audácia de um moderno Gengis-Cã, era assim que o emir seguia a sua marcha, de cidade em cidade, acompanhado por um séquito de soberano oriental, composto de mulheres, fâmulos e escravos.

      Onde estava ele agora? A que ponto já teriam chegado os seus soldados, quando se recebeu em Moscovo a notícia da invasão? Até onde as forças russas teriam sido obrigadas a recuar?

      Ninguém o sabia. As comunicações estavam interrompidas. O telégrafo entre Kolyvane Tomsk teria sido cortado pelos exploradores do exército tártaro, ou o próprio emir estaria já nas províncias de Yeniseisk? Achar-se-ia a luta já dilatada a toda a Baixa Sibéria ocidental? Acaso a revolta já se teria estendido até às regiões de leste? Ninguém podia sabê-lo. O único agente que não teme o frio nem o calor, que nunca suspende a sua carreira, nem com os gelos do Inverno nem com os ardores do Estio, que voa e fende o espaço com a rapidez do raio, o fio eléctrico, enfim, estava de todo mudo. Era, pois, impossível prevenir o grão-duque, encerrado em Irkutsk, do perigo iminente em que o havia colocado a traição de Ivan Ogareff.

      Só um correio poderia substituir o telégrafo, E se homem precisaria ainda assim de um certo número de dias a fim de vencer as cinco mil e duzentas verstas (5523 quilómetros) que separam Irkutsk de Moscovo. Para conseguir atravessar impunemente as fileiras dos rebeldes e dos invasores, ele teria de desenvolver uma coragem e uma inteligência fora do vulgar. Mas com uma cabeça para os grandes expedientes e um coração para os grandes lances, não há distância que se não encurte.

      - Acharei eu esse coração e essa cabeça? - perguntava a si próprio o czar.

     

     Miguel Strogoff

       A porta do gabinete imperial tornara-se a abrir para anunciar o general Kissoff.

      - E o correio? - Perguntou com vivacidade o czar.

      - Está lá fora, Sire - respondeu o general Kissoff.

      - É homem de confiança?

      - Respondo por ele a Vossa Majestade.

      - Estava aqui de serviço?

      - Estava, Sire.

      - O general conhece-o?

      - Perfeitamente, Sire, já tem desempenhado com êxito muitas comissões difíceis.

      - No estrangeiro?

      - Na própria Sibéria.

      - De que país é ele?

      - De Omsk. É siberiano.

      - Tem sangue-frio, é inteligente e corajoso?

      - Reúne todas as qualidades necessárias para uma empresa arriscada.

      - Que idade tem?

      - Trinta anos.

      - É forte?

      - Capaz de suportar até aos últimos limites o frio, a fome, a sede e a fadiga.

      - Tem então um corpo de ferro?

      - Tem, Sire.

      - E o coração?

      - De ouro.

      - Como se chama?

      - Miguel Strogoff.

      - Está pronto para marchar?

      - Só espera na sala dos guardas as ordens de Vossa Majestade.

      - Que entre - disse o czar.

      Passados alguns instantes o correio Miguel Strogoff entrava no gabinete imperial. Miguel Strogoff era alto, vigoroso, largo de ombros e de peito. A cabeça, bem desenvolvida, apresentava sinais característicos da raça caucásica. As pernas e os braços, ligados com solidez ao tronco, pareciam quatro alavancas mecanicamente dispostas para auxiliar todos os trabalhos que dependessem de força. Este garboso rapaz, bem acabado de formas, não era daqueles que facilmente se deixam mover contra sua vontade. Onde ele assentava os pés, dir-se-ia que criava raízes. Na sua cabeça, quadrada no alto, ampla na fronte, encrespavam-se, abundantes, os cabelos, caindo-lhe em anéis sobre as orelhas. O seu rosto, ordinariamente pálido, só se ruborizava quando o coração lhe batia fortemente ou quando o sangue, circulando com mais rapidez, lhe provocava a vermelhidão arterial. Os olhos de um azul-escuro em que se lia a franqueza e a lealdade, brilhavam sob o arco formado pelas sobrancelhas, cujos músculos, ligeiramente contraídos, exprimiam “a coragem sem cólera dos heróis”, segundo a expressão dos fisiologistas. O nariz, correcto e largo na base, dominava um farto bigode, a que servia de complemento uma boca regular com os lábios salientes do homem bom e generoso.

      Miguel Strogoff tinha o temperamento enérgico de quem não perde o tempo em combinações, de quem não se entrega às alternativas da incerteza, de quem sabia sem hesitar pôr em prática uma resolução. Sóbrio de gestos e de palavras, era diante de um superior impassível como um soldado, mas, se andava, a sua maneira de pisar denunciava grande desassombro e facilidade de movimentos, que punham em relevo a muita confiança e determinação do seu espírito. Era um destes homens cuja mão parecia estar sempre “cheia dos cabelos da oportunidade”, imagem um pouco forçada, mas que reproduz de um traço os homens de acção.

      Miguel Strogoff vestia um elegante uniforme militar, muito parecido com o dos oficiais de caçadores a cavalo em campanha: botas, esporas, calça meio justa à perna, peliça bem guarnecida e bordada de cordão amarelo sobre fundo de cor castanha. Sobre o peito via-se-lhe uma cruz e muitas medalhas.

      Miguel Strogoff pertencia ao corpo especial dos correios do czar e tinha o posto de oficial entre estes homens escolhidos.

      O que se notava como particularidade no seu andar, na sua fisionomia, em toda a sua figura, o que também não passou despercebido ao czar, é que Miguel Strogoff era um homem feito para executar as ordens de um superior. Possuía, pois, uma das mais recomendadas qualidades na Rússia para, segundo a observação do célebre romancista Turguenev, se poder chegar às altas posições do império.

      Efectivamente, se havia um homem com os requisitos necessários para esta viagem de Moscovo a Irkutsk, através de um país invadido, capaz de vencer obstáculos e de arrostar perigos, esse homem era, não havia dúvida, Miguel Strogoff.

      Como circunstância favorável ao bom êxito da empresa, Miguel Strogoff conhecia a fundo o país que ia atravessar e compreendia os seus diferentes idiomas, não só por tê-lo habitado, como por ser também filho de pais siberianos.

      O velho Pedro Strogoff, seu pai, falecido havia dez anos, residira na cidade de Omsk, e sua mãe, Marfa Strogoff, ainda lá vivia.

      Fora naqueles sítios meio selvagens, naquelas estepes sem fim das províncias de Omsk e de Tobolsk, que o afamado caçador siberiano habituara o filho às duras provações da vida.

      Pedro Strogoff era, como se disse, caçador de profissão. De Verão e de Inverno, tanto pelos calores sufocantes como pelos frios que descem muitas vezes a cinquenta graus abaixo de zero, Pedro Strogoff percorria a planície endurecida, as matas de larícios e de bétulas, as florestas de pinheiros, dispondo as suas armadilhas, espreitando a caça miúda de espingarda engatilhada e a caça grossa de forquilha ou faca de mato.

      E a caça grossa era nada menos que o urso siberiano, animal feroz e perigoso, cuja grandeza iguala a dos seus congéneres dos mares glaciais.

      Pedro Strogoff matara mais de trinta e nove ursos, quer dizer que o último que faltava para os quarenta caíra também ferido por ele mortalmente - e, a dar crédito às lendas cinegéticas da Rússia, é raro que um caçador, quando chega a matar trinta e nove ursos, não tenha de sucumbir diante do quadragésimo.

      Pedro Strogoff tinha, pois, ido além do número fatal sem receber sequer uma arranhadura. Desde então, seu filho Miguel, que contava só doze anos, não deixava de o acompanhar a estas caçadas perigosas, levando sempre a “ragatina”, isto é, a forquilha, para com ela auxiliar o pai, armado só da faca.

      Aos catorze anos, Miguel Strogoff já tinha morto, sozinho, o seu primeiro urso, o que não era pouco, mas, depois de arrancar a pele ao agigantado animal, levara-o de rastos até casa, o que denunciava no rapaz um vigor pouco vulgar.

      Estes exercícios eram-lhe vantajosos e serviram-lhe para, quando chegou à idade de homem feito, poder suportar sem esforço o frio, a fome, o calor, a sede e a fadiga. Era, como o yakute das regiões setentrionais, um homem verdadeiramente de ferro.

      Podia estar vinte e quatro horas sem comer, dez noites sem dormir, e tinha artes Para saber achar um refúgio no meio das estepes frias, em que outros menos previdentes se deixavam enregelar. Com os sentidos muito afinados, e graças a um instinto especial, nunca se enganava no caminho que tinha de percorrer, e sabia guiar-se através das brancas planícies, quer o nevoeiro interceptasse os horizontes, quer, nos países das elevadas latitudes, a noite polar se prolongasse durante dias intermináveis. Eram-lhe familiares todos os segredos de seu pai.

      Aprendera a orientar-se nas estepes por meio de sintomas quase imperceptíveis. A projecção das agulhas de gelo, a disposição dos mais pequenos ramos das árvores, as emanações trazidas dos confins do horizonte, o rasto dos animais na floresta, os sons vagos que atravessam o ar, as longínquas detonações, a passagem das aves pela atmosfera caliginosa, todas estas particularidades finalmente lhe serviam de proveitoso indício no meio daqueles páramos sem fim. Além disso, ensopado muitas vezes pelas neves, de que lhe resultara uma têmpera semelhante à de uma lâmina de Damasco mergulhada nas águas da Síria, a sua saúde, como dissera sem favor o general Kissoff, era de ferro, e de ouro o seu coração.

      A única paixão de Miguel Strogoff concentrara-se em sua mãe, a velha Marfa, que nunca tinha querido abandonar a antiga casinha dos Strogoff sobre as margens do Irtyche, onde ela e o falecido caçador siberiano haviam passado juntos os melhores dias da sua vida. Quando Miguel teve de a deixar, foi com as lágrimas da saudade que se despediu da boa mulher, prometendo-lhe ainda assim ir abraçá-la sempre que pudesse, promessa que o brioso rapaz não deixava de cumprir religiosamente.

      Resolvera-se que Miguel Strogoff, aos vinte anos, fosse empregado no serviço particular do imperador da Rússia, alistando-se no corpo dos correios do czar. O moço siberiano, corajoso, inteligente, cheio de zelo e bem comportado, não tardou que mostrasse o muito que valia numa viagem ao Cáucaso, país naquele tempo ainda perigoso para transitar por causa dos irrequietos sucessores de Shamyl. Posteriormente, acentuara melhor os seus merecimentos noutra missão a Petropaulowsky, no Kamtschatka, último limite do império russo na Ásia oriental. No cumprimento destas melindrosas comissões mostrara tanta prudência e coragem que os seus chefes não se cansaram de o elogiar, tornando-se por isso rápida a sua promoção.

      As licenças que lhe pertenciam por direito aproveitava-as sempre para visitar sua mãe, ainda que o Inverno tornasse os caminhos intransitáveis ou fosse enorme a distância a que estivesse da casa materna.

      Pela primeira vez, porém, depois de decorridos três anos - três séculos! -, não pudera cumprir a sua filial peregrinação, distraído pelo serviço do seu cargo, que o retivera no Sul do império.

      A sua licença regulamentar ia-lhe ser concedida agora, e já tinha feito alguns preparativos para a viagem a Omsk quando ocorreram os acontecimentos que chamaram o correio do czar ao gabinete do imperador. Miguel Strogoff, levado à presença do soberano, desconhecia completamente o que iam exigir dele.

      O czar, sem lhe dirigir a palavra, fitou-o por alguns instantes com olhar penetrante. Miguel Strogoff conservava-se absolutamente imóvel.

      Satisfeito deste exame, o czar aproximou-se da sua mesa de trabalho, indicando ao grão-mestre da polícia que se sentasse, e ditou-lhe em voz baixa uma carta que poucas linhas continha.

      Concluída a carta, o czar leu-a com extrema atenção, assinando-a depois e fazendo preceder a sua assinatura das seguintes palavras: Byt po semou, que significam “Assim seja” e constituem a fórmula sacramental dos imperadores da Rússia.

      Em seguida, a carta foi encerrada num sobrescrito, afixando-se sobre este o selo das armas imperiais.

      O czar, levantando-se então, fez sinal a Miguel Strogoff, que se aproximou.

      Miguel Strogoff deu alguns passos à frente e ficou novamente imóvel.

      O czar tornou a fitá-lo ainda uma segunda vez, sem retirar os olhos de cima dos dele. Depois inquiriu em voz rápida:

      - O teu nome?

      - Miguel Strogoff, Sire.

      - O teu posto?

      - Capitão.

      - Conheces a Sibéria?

      - Sou filho dela.

      - E nasceste?...

      - Em Omsk.

      - Tens aí família?

      - Tenho, Sire.

      - Que pessoas?

      - A minha mãe.

      O czar suspendeu por um momento a série das suas perguntas. Depois, mostrando a carta que tinha na mão:

      - Vês este ofício? - disse ele. - Encarrego-te de o entregar em mão própria ao grão-duque meu Irmão. Em mão própria, percebeste?

      - Entregá-lo-ei, Sire.

      - O grão-duque está em Irkutsk.

      - Irei a Irkutsk.

      - Será preciso que atravesses um país agitado pelos rebeldes e invadido pelos tártaros, que teriam todo o interesse em interceptar este ofício.

      - Não importa, Sire.

      - Deverás sobretudo acautelar-te contra um traidor, Ivan Ogareff, que é de supor que venhas a encontrar no caminho.

      - Estarei acautelado, Sire.

      - Vais por Omsk?

      - É o caminho mais directo, Sire.

      - Mas em Omsk está tua mãe; se tu fosses vê-la poderias ser reconhecido. Convém, portanto, que não a vejas.

      Miguel Strogoff, em presença desta nova recomendação, teve um segundo de hesitação.

      - Deixarei de a ver, Sire.

      - Jura-me que nada neste mundo te obrigará a dizer quem és, nem ao que vais.

      - Assim o juro!

      - Miguel Strogoff - disse então o czar, entregando-lhe o sobrescrito -, toma este ofício, de que depende a salvação de toda a Sibéria e talvez a vida do grão-duque meu irmão.

      - Será entregue pessoalmente nas mãos de Sua Alteza.

      - Contas passar as linhas dos insurrectos?

      - Hei-de passá-las ou ficarei morto no caminho.

      - Quero que vivas.

      - Pois viverei, sem deixar de cumprir as ordens de Vossa Majestade - respondeu Miguel Strogoff.

      O czar pareceu satisfeito da serena e singela confiança com que Miguel Strogoff lhe respondera.

      - Agora, a caminho, Miguel Strogoff, e que Deus proteja a Rússia!

      Miguel Strogoff perfilou-se rigidamente, fez uma continência ao Imperador, saiu do gabinete e alguns instantes depois já estava longe do Palácio Novo.

      - Parece-me que foi feliz a sua escolha, general.

      - Assim o creio - respondeu o general Kissoff - e Vossa Majestade pode estar certo de que Miguel Strogoff há-de fazer tudo quanto um homem enérgico e corajoso é capaz de fazer.

      - É um homem, na verdade - concordou o czar.

     

     De Moscovo a Nijni-Novgorod

      A distância que Miguel Strogoff ia percorrer entre Moscovo e Irkutsk era de cinco mil e duzentas verstas (5523 quilómetros). Enquanto o fio telegráfico não fora colocado entre os montes Urais e a fronteira oriental da Sibéria, o serviço dos despachos fazia-se por intermédio dos correios, gastando os que eram mais diligentes dezoito dias de jornada. Isto, porém, era a excepção, a viagem através da Rússia asiática durava ordinariamente quatro a cinco semanas, apesar de todos os meios de transporte que se punham à disposição destes funcionários imperiais.

      Na qualidade de homem que não se arreceia do frio nem da neve, Miguel Strogoff teria preferido viajar na estação invernosa, por lhe ser mais fácil organizar o serviço de trenós em toda a extensão do percurso. No Inverno as dificuldades inerentes aos diversos géneros de locomoção acham-se em parte diminuídas pelo nivelamento das neves sobre as extensas estepes. Não há correntes caudalosas a transpor. Vê-se de todos os lados um imenso lençol de neve, por onde os trenós deslizam com facilidade e rapidez. Existem, é certo, alguns fenómenos naturais, que são perigosos, tais como a permanência e intensidade dos nevoeiros, os frios excessivos, os ventos sinistros e glaciais, cujos turbilhões envolvem às vezes caravanas inteiras, fazendo-as sucumbir. Sucede também que os lobos, acossados pela fome, descem aos milhares às planícies. Ainda assim, Miguel Strogoff teria preferido correr todos estes riscos, pois a inclemência do tempo, obrigando os tártaros a irem aquartelar-se nas cidades, deixar-lhe-ia o caminho completamente livre de tropas e de exploradores. O correio do czar não estava, porém, no caso de poder seguir as suas preferências. O dever obrigava-o a partir sem demora, aceitando as circunstâncias tal como se lhe apresentavam.

      Eis, portanto, a situação que Miguel Strogoff encarou desassombradamente, propondo-se arrostá-la com ânimo decidido.

      Em primeiro lugar, ele não se achava precisamente nas condições ordinárias de um correio do czar. Convinha mesmo que na sua viagem ninguém pudesse suspeitar-lhe essa qualidade. Nos países Invadidos abundam sempre os espiões. Se, porventura, o reconhecessem, perder-se-ia de todo o fim da sua empresa. Por isso, o general Kissoff, quando lhe entregou uma vultosa quantia para as despesas da comissão que ia desempenhar, não lhe deu nenhuma ordem por escrito onde se lesse a fórmula “Serviço do Imperador”, palavras singelas que tinham o condão de destruir todos os obstáculos. Miguel Strogoff ia munido somente de um podaroshna.

      Este podaroshna era passado em nome de Nicolau Korpanoff, negociante de Irkutsk, e autorizava o portador a fazer-se acompanhar, caso fosse necessário, de uma ou mais pessoas. Além disso, graças a uma indicação especial, era válido mesmo quando o Governo moscovita, por qualquer razão, entendesse dever proibir aos seus súbditos que abandonassem a Rússia.

      O podaroshna é uma espécie de licença ou autorização para se obterem cavalos de posta, porém, Miguel Strogoff só devia servir-se dele quando não corresse perigo de ser reconhecido. Daqui resultava que a licença lhe era unicamente proveitosa no território europeu, sucedendo que, ao penetrar nas províncias siberianas, cessava a faculdade de poder requisitar cavalos para seu uso nas estações de muda, ou qualquer outro meio de transporte que lhe desse vantagens especiais sobre o comum dos viajantes. Miguel Strogoff não devia, pois, esquecer-se que era simplesmente um negociante - Nicolau Kórpanoff -, que ia de Moscovo para Irkutsk, e, como tal, sujeito às eventualidades de uma viagem ordinária.

      Transportar-se desapercebidamente, mais ou menos depressa, eis a que se resumia o seu programa.

      Há trinta anos a escolta de um viajante de distinção compunha-se de duzentos cossacos a cavalo, duzentos soldados de infantaria, vinte e cinco cavaleiros baskirs, trezentos camelos, quatrocentos cavalos, vinte e cinco carros, dois barcos portáteis e duas peças de artilharia. Tal era o material indispensável para uma viagem na Sibéria.

      Miguel Strogoff, viajando mais modestamente, não tinha à sua disposição nem camelos, nem cavalaria, nem bocas de fogo, nem infantaria, nem bestas de carga. Restava-lhe o recurso, apenas, de ir a cavalo, de carro, ou mesmo a pé, se o caso assim o exigisse.

      A distância compreendida entre Moscovo e a fronteira russa, medindo mil e quatrocentas verstas (1498 quilómetros), não oferecia nenhuma dificuldade, porque não faltavam em toda a sua extensão caminhos de ferro, diligências, barcos a vapor e cavalos de posta.

      Na manhã, pois, do dia 16 de Julho, vestido simplesmente com um trajo russo - túnica unida ao corpo, a tradicional cinta do mujique, largos calções e botas apertadas na curva da perna -, sem o menor vestígio do seu uniforme, e com um saco de viagem preso aos ombros à guisa de mochila, Miguel Strogoff encaminhava-se para a estação do caminho de ferro, a fim de partir no primeiro comboio. Ostensivamente, não levava armas, porém, debaixo da cinta disfarçava-se um revólver e na algibeira dissimulava-se uma navalha, misto de faca e de latagã - arma apreciável e temível com que os caçadores siberianos abrem um urso sem lhe danificar a pele, de grande valor.

      Havia muitos passageiros na gare de Moscovo. As gares dos caminhos de ferro na Rússia servem de ponto de reunião tanto para os que partem como para os que ficam. São uma espécie de clube, onde se colhem novidades e se estabelecem conversações.

      O comboio em que entrou Miguel Strogoff devia largá-lo em Nijni-Novgorod.

      Ali terminava nesta época a linha férrea que, ligando Moscovo a São Petersburgo, há-de prolongar-se até à fronteira russa.

      Era uma viagem de perto de quatrocentas verstas (426 quilómetros) e o comboio percorrê-las-ia apenas em dez horas. Chegando a Nijni-Novgorod, Miguel Strogoff seguiria, conforme as circunstâncias, quer pela estrada ordinária, quer pelos barcos a vapor do Volga, a fim de se aproximar dos montes Urais o mais depressa que pudesse.

      Miguel Strogoff colocou-se, pois, a um canto da carruagem, como qualquer pacato burguês a quem os negócios não correm desajeitadamente e que busca matar o tempo chamando pelo sono.

      Todavia, como ele não estava só, contentou-se em fingir que dormia, dispondo-se a ouvir tudo que se dissesse.

      De facto, a notícia da invasão tártara e da revolta dos quirguizes tinha transpirado um pouco. Os passageiros que iam no mesmo compartimento de Miguel Strogoff já aventuravam algumas palavras a esse respeito, se bem que debaixo de certa reserva.

      Estes passageiros, como quase todos os que iam no comboio, eram mercadores que se dirigiam à célebre feira de Nijni-Novgorod, grupo de indivíduos muito mesclado: judeus, turcos, cossacos, russos, georgianos e calmucos, mas que falavam, na maior parte, a língua nacional.

      Discutiam eles os prós e os contras dos graves acontecimentos que se estavam passando além dos Urais e, na sua qualidade de mercadores, pareciam recear que o Governo russo se visse obrigado a tomar algumas medidas restritivas, sobretudo nas províncias situadas próximo da fronteira - medidas de que o comércio viria a ressentir-se com certeza.

      Deve dizer-se que estes homens, egoístas, só encaravam a repressão da revolta e a luta contra a invasão do ponto de vista dos seus interesses ameaçados. A presença de um simples soldado envergando o seu uniforme - e todos sabem a grande importância que têm na Rússia os uniformes - bastaria para obrigar ao silêncio estes palradores casuais. Mas no compartimento em que ia Miguel Strogoff ninguém imaginaria a presença de um militar, e o correio imperial, empenhado em guardar o incógnito, não era homem capaz de se trair.

      Ouvia pois.

      - Diz-se que os transportes do chá subiram de preço - afirmou um persa, que se reconhecia facilmente pelo seu gorro debruado de astracã e pela sua túnica de cor castanha, de largas pregas, já desbotada pelo uso.

      - Ora! O chá não tem nada a recear da baixa - informava um velho judeu mal encarado. - O que existe no mercado de Nijni-Novgorod expedir-se-á facilmente pelo oeste. Outro tanto se não poderá dizer dos tapetes de Bucara.

      - Como assim?! Esperava alguma remessa de Bucara? - perguntou-lhe o persa.

      - Esperava-a de Samarcanda, o que ainda é pior! Vá lá a gente fiar-se nas exportações de um país sublevado pelos cãs, desde Khiva até à fronteira chinesa.

      - Bom! - respondeu o persa. - Se os tapetes não podem passar, também as letras não, portanto, não se aflija.

      - E o que eu deixo de ganhar, Deus de Israel? O que eu deixo de ganhar, não se conta?

      - Tem razão - disse um novo interlocutor -, os diferentes artigos da Ásia central podem de um momento para o outro faltar no mercado. O que se deu com os tapetes de Bucara talvez se dê também com as lãs, o sebo e os xales do Oriente.

      - Tome cuidado, meu amigo - recomendou um passageiro russo, de aspecto jovial. - Olhe que assim corre o risco de engordurar os xales se os mistura com o sebo...

      - O caso não é para rir - replicou acremente o mercador, que não folgara muito com o gracejo.

      - E o que pode ganhar o senhor com essas lamentações? - Porventura pesam elas de alguma forma na balança dos acontecimentos? Tanto como na balança das suas mercadorias.

      - Bem se vê que não é um mercador que está falando - resmungou o velho judeu.

      - Não sou mercador, meu ilustre descendente de Abraão. Não vendo lúpulo, nem mel, nem cera, nem penas de aves, nem linho, nem linhaça, nem lãs, nem madeiras, nem carnes salgadas, nem conservas, nem fitas, nem peles, nem marroquins!...

      - Mas talvez queira fornecer-se dessas cousas... - disse o persa, interrompendo a interminável nomenclatura do alegre passageiro.

      - O menos possível e unicamente para meu uso particular - respondeu este, piscando-lhe o olho.

      - É um brincalhão - disse o judeu para o persa.

      - Ou um espião - respondeu este, baixando a voz. – Cuidado com a língua! A polícia não é para graças e nós não sabemos com quem estamos.

      Do outro lado da carruagem falava-se menos em assuntos mercantis e mais da invasão tártara e das suas desagradáveis consequências.

      - Vão ser requisitados os cavalos da Sibéria - informou um passageiro - e consta que estão cortadas as comunicações com as províncias da Ásia central.

      - Sempre será verdade - perguntou-lhe o companheiro - que os quirguizes da horda média fizeram causa comum com os tártaros?

      - Assim se diz - respondeu o passageiro, baixando a voz. - Mas pode alguém saber o que se passa numa terra como a nossa?

      - Ouvi falar em concentração de tropas na fronteira. Os cossacos do Don já estão reunidos no litoral do Volga e parece que vão marchar contra os quirguizes insurreccionados.

      - Se os quirguizes seguiram o curso do Irtyche, o caminho para Irkutsk não deve estar lá muito seguro - acrescentou o primeiro. - Já ontem eu quis mandar um telegrama para Krasnoiarsk e não mo receberam. A ser certa a invasão dos tártaros, podemos contar como totalmente isolada a Sibéria oriental.

      - Nesse caso, têm razão estes mercadores para se queixar do mau aspecto que vai tomando o comércio. Se vão ser requisitados os cavalos, não admira que depois se requisitem os barcos, as carruagens e todos os outros meios de transporte, ficando as gentes impossibilitadas de se moverem em toda a extensão do império.

      - Parece-me que a feira de Nijni-Novgorod não há-de acabar tão animada como principiou - respondeu o segundo interlocutor, abanando a cabeça. - Mas primeiro que tudo a integridade do território russo. Os negócios são uma coisa secundária.

      Se neste compartimento o assunto das conversações oferecia pouca variedade, o mesmo sucedia nas outras carruagens. Entretanto, qualquer observador teria notado que em todas estas apreciações havia a mais discreta circunspecção. Quando algum dos passageiros se adiantava sob o domínio dos factos era sempre de maneira que não chegasse a criticar as intenções do Governo.

      Foi por isso justamente que um dos passageiros duma carruagem da frente deu nas vistas.

      Este passageiro, evidentemente de nação estrangeira, olhava para tudo com desusada atenção e a propósito de qualquer coisa fazia vinte perguntas, que só obtinham respostas evasivas. Debruçando-se a todos os momentos pela janela da carruagem, cuja vidraça conservava aberta, o que desagradava aos companheiros, não perdia um único pormenor do horizonte, à direita. Perguntava o nome das mais insignificantes povoações, a sua posição, qual o seu comércio, a sua indústria, o número de habitantes, a média da mortalidade por sexos, etc., e tudo isto ele apontava cuidadosamente num bloco-notas, já bastante recheado de outros apontamentos.

      Era o nosso correspondente Alcide Jolivet, que, por entre as numerosas perguntas que fazia, esperava obter alguma notícia importante para transmitir a “sua prima”. Como, porém, o tomavam por espião, ninguém junto dele dizia uma palavra que se referisse aos acontecimentos do dia.

      Assim, vendo que nada podia colher relativamente à invasão tártara, escrevera no bloco:

      «Passageiros de uma discrição absoluta. Em política parecem-se com as armas enferrujadas: têm o gatilho muito perro.» E enquanto Alcide Jolivet apontava minuciosamente as suas Impressões de viagem, o seu colega, instalado, como ele, no mesmo comboio e viajando com um fito semelhante, dedicava-se, noutro compartimento, a idêntico trabalho de observação. À saída do comboio não se tinham visto na gare de Moscovo. Ignoravam, portanto, que cada um deles, por seu lado, tomara a resolução de partir para o teatro da guerra.

      Havia, porém, uma diferença: é que Harry Blount, falando pouco e escutando muito, não tinha inspirado aos seus companheiros de viagem as mesmas desconfianças que Alcide Jolivet. Por isso, eles conversavam descuidadamente, chegando até a ir mais longe nos seus comentários do que a própria circunspecção lhes aconselhava. O correspondente do Daily Telegraph tinha, pois, sem dificuldade, podido observar como os últimos acontecimentos preocupavam em geral os passageiros e de que perigos estava ameaçado no seu trânsito todo o comércio com a Ásia central.

      E então, Harry Blount não hesitou em lançar no seu livro de apontamentos a seguinte observação, a todos os títulos justa:

      «Passageiros extremamente inquietos. Só tratam da guerra e falam sobre este assunto com uma liberdade pouco usual entre o Volga e o Vístula.» Os leitores do Daily Telegraph não podiam deixar de ser tão bem informados como a “prima Madalena” de Alcide Jolivet.

      Demais a mais, como Harry Blount, sentado do lado esquerdo da carruagem, via uma parte da paisagem, que era muito acidentada, sem se dar ao incómodo de olhar para a do lado direito, formada de extensas planícies, não hesitou em acrescentar, com a fleuma de um bom inglês:

      «País montanhoso entre Moscovo e Wladimir.» Entretanto, era manifesto que o Governo russo, em presença dos graves acontecimentos ocorridos, se propunha tomar algumas medidas preventivas, mesmo no interior do império. A insurreição ainda não tinha transposto a fronteira da Sibéria, mas as suas consequências podiam ser fatais em todas as províncias do Volga, tão vizinhas dos quirguizes.

      A polícia também não tinha podido até agora descobrir o paradeiro de Ivan Ogareff. O traidor, ao chamar os tártaros para se vingar dos seus despeitos pessoais, estaria actualmente com eles, ou andaria fomentando a revolta no governo de Nijni-Novgorod, que nesta quadra do ano se compunha de uma população tão matizada de elementos diversos? Não haveria efectivamente entre estes persas, arménios e calmucos, que afluíam à grande feira, alguns agentes de confiança encarregados de provocar um movimento no interior? Todas estas hipóteses eram admissíveis, sobretudo num país como a Rússia.

      De facto, o vasto império moscovita, contando doze milhões de quilómetros quadrados, não pode ter a homogeneidade dos estados da Europa ocidental. Entre os variados povos que o compõem, existem forçosamente diferenças mais ou menos acentuadas. O território russo - na Europa, :na Ásia e na América - prolonga-se desde o décimo quinto grau de longitude leste até ao centésimo trigésimo terceiro grau de longitude oeste e desde o trigésimo oitavo grau de latitude sul até ao octogésimo primeiro grau de latitude norte, quer dizer que se dilata numa extensão de perto de duzentos graus de longitude (2500 léguas aproximadamente) e de quarenta e três graus de latitude (1000 léguas). Encerra uma população de mais de setenta milhões de habitantes e possui trinta idiomas diversos. A raça eslava é, sem dúvida, a que predomina, e compreende, além dos russos, os polacos, os lituanos e os curlandeses. Juntem-se a estes os finlandeses, os estónios, os lapões, os tcheremissos, os tchuvachos, os permiaks, os alemães, os gregos, os tártaros, as tribos caucásicas, as hordas mongóis, calmucas, samoiedas, kamtschadalas e aleutianas, e ver-se-á que a unidade de tão grande colosso, devida à elaboração do tempo e ao tino dos governos, há-de ser sobremaneira difícil de sustentar.

      O certo, porém, é que Ivan Ogareff tinha sabido até aqui furtar-se a todas as investigações, devendo naturalmente achar-se nos arraiais do exército tártaro. Entretanto, o comboio não parava em nenhuma estação sem que diversos agentes viessem, em nome do grão-mestre da polícia, revistar os passageiros com escrupulosa minuciosidade, a fim de ver se Ivan Ogareff se acharia entre eles. O Governo julgava-se habilitado a acreditar que este homem perigoso ainda não teria saído da Rússia europeia. Se, por consequência, algum passageiro se tornava suspeito, era logo levado, para confrontações, ao posto de polícia, e, entretanto, o comboio seguia a sua marcha, deixando para trás a vítima das desconfianças.

      Com a polícia russa é escusado argumentar, porque não admite réplicas nem dilações. Os seus agentes, desfrutando de largos poderes, agem sob as regras militares. Verdade é também que não há meio de reagir contra as ordens de um soberano que tem o direito de empregar à cabeça dos seus ucasses a fórmula seguinte: «Nós, por graça de Deus, imperador e autocrata de todas as Rússias, de Moscovo, Kief, Wladimir e Novgorod, czar de Kazan, de Astracã, czar da Polónia, czar da Sibéria, czar do Quersoneso Táurico, senhor de Pskof, grão-príncipe de Smolensko, da Lituânia, da Volínia, da Padólia e da Finlândia, príncipe da Estónia, da Livónia, da Curlândia e de Semigália, de Bialystok, da Carélia, da Hungria, de Perm, de Vlatka, da Bulgária e de muitos outros países, senhor e grão-príncipe do território de Nijni-Novgorod, de Tchernigof, de Riazan, de Polotsk, de Rostof, de Jaroslavk, de Bierlozersk, de Udoria, de Obdoria, de Kondinia, de Vitepsk, de Mstislaf, dominador das regiões hiperbóreas, senhor dos países da Ivéria, da Kamtalínia, da Gruzínia, de Kabardínia, da Arménia, senhor hereditário e suserano dos príncipes tcherkessos, dos das montanhas e outros, herdeiro da Noruega, duque de Schleswig-Holstein, de Stormarn, de Dittmarsen e de Oldemburgo.» Poderoso monarca na verdade aquele que apresenta por armas a águia imperial com duas cabeças, sustentando entre as garras um ceptro e um globo! - águia a que formam cortejo os brasões de Novgorod, de Wladimir, de Kief, de Kazan, de Astracã e da Sibéria, e que tem a envolvê-la o colar de Santo André, encimado por uma coroa real!

      Pela sua parte, Miguel Strogoff não tinha nada que recear da polícia, porque trazia em regra os seus poucos documentos.

      O comboio parou na estação de Wladimir por alguns minutos, tempo que pareceu de sobra ao correspondente do Daily Telegraph para tirar um apontamento completo, do duplo ponto de vista físico e moral, acerca desta velha capital da Rússia.

      Na estação de Wladimir entraram novos passageiros para o comboio. Entre eles via-se uma rapariga, que assomou à porta da carruagem onde ia Miguel Strogoff.

      Diante do correio do czar achava-se um lugar vago. Sentou-se nele a recém-chegada, colocando ao seu lado um modesto saco de viagem de couro vermelho, que parecia constituir toda a sua bagagem. Depois, baixando os olhos, e sem mesmo procurar ver os companheiros que a rodeavam, acomodou-se, disposta a continuar assim todo o caminho.

      Miguel Strogoff não pôde esquivar-se ao desejo de examinar com atenção a nova passageira. Como o lugar que ela ocupava não fosse dos melhores, Miguel Strogoff ofereceu-lhe o seu, que foi delicadamente rejeitado.

      A recém-chegada teria dezasseis para dezassete anos. A sua cabeça, realmente bela, apresentava o tipo eslavo em toda a sua pureza - tipo um tanto severo, que devia, passados alguns anos, quando as suas feições estivessem de todo acentuadas, torná-la mais formosa do que bonita. De uma espécie de toucado que trazia soltavam-se-lhe em profusão os finos cabelos cor de ouro. Os seus olhos castanhos exprimiam uma suavidade indefinida. O nariz, delicado e fino, prendia-se às faces pálidas por meio de asas que se moviam ligeiramente. A boca desenhava-se-lhe correctamente, mas parecia que tinha há muito perdido o hábito de sorrir.

      Era alta e de formas graciosas, tanto quanto se podia julgar sob as dobras de uma ampla e simples peliça que a cobria. Se bem que fosse ainda uma “menina”, em toda a acepção do termo, a sua fronte desenvolvida e a parte inferior do rosto muito pronunciada denotavam nela uma grande energia moral, particularidade que não passou despercebida a Miguel Strogoff. De facto, esta rapariga devia ter tido um passado tormentoso e o futuro não se lhe apresentava talvez debaixo de cores auspiciosas, contudo, era também evidente que tinha sabido lutar e que saberia lutar ainda contra as adversidades da vida. Mostrava ter uma vontade decidida e firme e uma serenidade inalterável, capaz de resistir às próprias circunstâncias em que um homem se deixa abater ou irritar.

      Tal era a impressão que produzia à primeira vista a recém-chegada. Miguel Strogoff, dotado de uma organização enérgica, devia sentir-se impressionado com as linhas características daquela fisionomia. E tanto assim foi que não pôde deixar de ir examinando a recém-chegada com visível interesse, procurando todavia não a importunar com a insistência do olhar.

      A nova companheira de viagem trajava com tanta simplicidade como asseio. Não era rica, Isso logo se adivinhava, mas também seria inútil querer encontrar nas suas roupas o menor vestígio de desalinho. A sua bagagem limitava-se ao saco já descrito, que ela trazia fechado à chave e que, por falta de espaço, conservava sobre os joelhos.

      A sua peliça, comprida, sem mangas, de cor escura e debruada de azul, abotoava-se-lhe graciosamente no pescoço. Por baixo desta peliça via-se uma meia saia, também escura, caindo sobre um vestido que terminava no artelho, e cuja barra era guarnecida de bordados pouco vistosos. Finalmente, calçavam-lhe os pés, bem feitos e pequenos, umas botinas de couro lavrado e de solas grossas, como se tivessem sido escolhidas com o fito de empreender uma longa e demorada viagem.

      Miguel Strogoff pareceu reconhecer nesta maneira de vestir o trajo das livonianas, e pensou de si para si que a sua companheira de viagem devia ser filha das províncias bálticas.

      Mas para onde iria esta rapariga completamente só e numa idade em que a protecção de um pai ou de um irmão se torna de todo indispensável? Viria ela já das províncias ocidentais da Rússia? Tencionaria ficar em Nijni-Novgorod, ou o termo da sua viagem só se completaria para além das fronteiras orientais do império?

      Que parente ou que amigo estaria esperando por ela à chegada do comboio? E se nem parente nem amigo viessem procurá-la, que situação seria a sua num país desconhecido? Não se acharia então mais isolada do que dentro daquele compartimento, onde ninguém - devia assim julgá-lo - parecia interessar-se por ela? Tantas interrogações e tantas incertezas.

      Contudo, nos movimentos da recém-chegada era fácil observar os hábitos contraídos numa vida de isolamento.

      A maneira como entrou no vagão e se preparou para a viagem, o pouco ruído que fez em redor de si, o cuidado que teve em não incomodar os outros passageiros, tudo Isto indicava que aquela criança, feita mulher antes de tempo, estava acostumada a viver só e só também a contar consigo.

      Miguel Strogoff, que não cessava de a fitar com interesse, embora debaixo de toda a reserva, não tentou sequer um pretexto para lhe dirigir a palavra, e, contudo, deviam ainda passar-se muitas horas antes que o comboio chegasse a Nijni-Novgorod.

      Só uma vez Miguel Strogoff interveio a favor da sua companheira de viagem. Foi quando um dos passageiros, aquele notável mercador que misturava tão imprudentemente os xales com o sebo, se deixara adormecer, ameaçando esmagar a pobre rapariga com o peso da sua volumosa cabeça, oscilante de um ombro para o outro. Miguel Strogoff, vendo isto, acordara-o desabridamente, fazendo-lhe compreender que devia conservar-se direito e ser mais atencioso.

      O mercador, grosseiro por índole, resmungara algumas palavras contra aquele que se metera onde não era chamado. Miguel Strogoff encarou-o, porém, de tal forma  que o mercador achou prudente calar-se, e, encostando-se para o lado oposto, deixou a jovem viajante liberta da má vizinhança que ele lhe fazia.

      Esta olhou por um instante para Miguel Strogoff, como se lhe quisesse transmitir um agradecimento no seu mudo e singelo olhar.

      Estava, porém, escrito que Miguel Strogoff poderia dentro em pouco formar uma ideia justa do carácter desta rapariga.

      Doze verstas antes de chegar à estação de Nijni-Novgorod, no ponto onde a linha férrea fazia uma curva brusca, sentiu-se no comboio um choque violento.

      Passageiros mais ou menos pisados e caídos, gritos e confusão dentro das carruagens, tal foi a primeira impressão do choque. Receando-se, porém, que algum sinistro maior sobreviesse, as portinholas das carruagens foram-se abrindo antes mesmo de o comboio parar, e todos, assustados, só tiveram um pensamento: abandonar o comboio e procurar um abrigo ao longo da linha.

      Miguel Strogoff pensou, antes de tudo, na sua companheira de viagem, mas, enquanto os passageiros do compartimento onde ambos estavam fugiam, gritando e atropelando-se, ela, a formosa desconhecida, ficara tranquilamente sentada no seu lugar, apenas com o parecer alterado por ligeira palidez.

      Ela parecia esperar, Miguel Strogoff também.

      Ela não fizera um movimento para sair, Miguel Strogoff também não.

      Ambos se conservavam impassíveis.

      «Que energia a desta mulher!», pensava consigo mesmo Miguel Strogoff.

      Entretanto, desaparecera o perigo. O choque resultara de se ter partido o aro de uma roda do vagão destinado às bagagens. O comboio parara em seguida, mas se, porventura, chegasse a descarrilar, ter-se-ia precipitado por um barranco. O atraso foi apenas de uma hora. Desembaraçada a linha, o comboio continuou a marcha e chegou à estação de Nijni-Novgorod às oito horas e meia da noite.

      Ainda ninguém tinha saído das carruagens e já os agentes de polícia se apresentavam às portinholas para examinar os passageiros.

      Miguel Strogoff, apresentando o seu podaroshna, passado em nome de Nicolau Korpanoff, não encontrou dificuldades em sair.

      Quanto aos outros passageiros do compartimento, como ficavam todos em Nijni-Novgorod, não pareceram suspeitos à polícia, o que foi uma fortuna para eles.

      Faltava a jovem desconhecida. Essa apresentou, não um passaporte, porque na Rússia já não se exigem passaportes, mas um documento selado com um selo especial, e que parecia destinar-se a um determinado fim.

      Um inspector da polícia leu-o com atenção. Depois, examinando escrupulosamente aquela cujas feições vinham descritas no papel:

      - És de Riga? - perguntou ele.

      - Sou - respondeu a rapariga.

      - Vais para Irkutsk?

      - Vou.

      - por que estrada?

      - Pela de Perm.

      - Está bem - respondeu o inspector. - Não te esqueças de visar este documento na estação de Nijni-Novgorod.

      A rapariga baixou a cabeça em sinal de assentimento.

      Miguel Strogoff, ouvindo as perguntas e respostas que acabavam de se trocar, teve ao mesmo tempo um sentimento de surpresa e de piedade. Seria possível que uma rapariga tão nova empreendesse sozinha uma viagem tão longa! E então naquele momento, em que aos perigos habituais vinham juntar-se também os de uma invasão! Como atravessaria ela a Sibéria, se acaso lá chegasse?

      Concluída a inspecção, abriram-se as portas das carruagens e, antes que Miguel Strogoff tivesse tido tempo para se dirigir à jovem livoniana, já ela desaparecia por entre os grupos aglomerados à saída da estação.

     

     Laconismo de um Edital

      Nijni-Novcood, ou Novgorod a Pequena, situada na confluência do Volga com o Oka, é a capital do governo do mesmo nome.

      Acabava ali para Miguel Strogoff a viagem em caminho de ferro. A linha, que deveria chegar até à fronteira, não ia mais para diante neste tempo.

      À medida, pois, que ele avançava, cada vez os meios de comunicação se lhe tornavam menos rápidos e seguros.

      Nijni-Novgorod, que ordinariamente conta só trinta a trinta e cinco mil habitantes, possuía agora dez vezes esse número. Tamanho excesso de população provinha da célebre feira, que ali se faz todos os anos durante um período de seis semanas. Antigamente era Makariew que tirava o imenso proveito deste concurso de comerciantes, porém, desde 1817, a feira fora transferida para Nijni-Novgorod.

      A cidade, geralmente silenciosa, apresentava, pois, uma animação extraordinária. Dez raças diferentes de negociantes europeus e asiáticos estavam ali reunidas fraternalmente sob a mágica influência das transacções comerciais.

      Se bem que já não fosse muito cedo quando Miguel Strogoff saiu da gare, ainda havia, contudo, grande movimento e animação nas duas partes da cidade, que a corrente do Volga divide, a mais elevada das quais, construída sobre um rochedo escarpado, apresenta para defendê-las um desses fortes que na Rússia se chamam kremlin.

      Se Miguel Strogoff pretendesse demorar-se em Nijni-Novgorod, ser-lhe-ia difícil encontrar um hotel ou uma pousada onde pudesse alojar-se. Tudo estava cheio.

      Porém, o seu plano era diferente.

      Constando-lhe que no dia seguinte devia partir um vapor da carreira do Volga, dirigiu-se ao escritório da companhia a fim de lhe indicarem a hora exacta da sua partida. Soube aí com desgosto que o Cáucaso - era o nome do barco -, em viagem de Nijni-Novgorod para Perm, só largaria ao meio-dia. Dezassete horas de espera! Semelhante contrariedade não podia deixar de ser extremamente desagradável para um homem que não queria perder um minuto. Que devia, porém, fazer Miguel Strogoff senão esperar?

      Demais, nas circunstâncias actuais, nenhuma carruagem, berlinda ou cabriolé de posta conseguiria transportá-lo com maior velocidade, quer para Perm, quer para Kazan. Era portanto preferível esperar pelo vapor, meio de transporte mais rápido que os outros e que lhe faria em poucas horas recuperar o tempo perdido.

      Estava, portanto, Miguel Strogoff condenado a passear pelas ruas a sua ociosidade forçada, sem se preocupar muito com o local onde havia de pernoitar. E, se não fora a fome que principiava a importuná-lo, teria decerto continuado o seu passeio ao ar livre até romper a manhã. O que ele, pois, se decidiu a procurar foi mais uma ceia que uma cama. Ora, casualmente, achou ambas as coisas numa hospedaria que tinha por tabuleta: Cidade de Constantinopla.

      Aqui, o hospedeiro ofereceu-lhe um quarto bastante decente, com pouca mobília, mas a que não faltava a imagem da Virgem nem os painéis de alguns santos emoldurados em papel dourado. Trouxeram-lhe para cear um pato com recheio de sabor picante e molho de creme, pão de cevada, leite coalhado, canela misturada com açúcar e uma caneca de kwass, qualidade de cerveja muito vulgar na Rússia. Nem tanto era preciso para constituir uma ceia abundante. Miguel Strogoff ceou, pois, fartamente e muito melhor que o seu comensal do lado, que, na qualidade de “velho crente da seita dos Raskolniks”, tinha feito voto de abstinência e tirava as batatas para fora do prato, privando-se também de beber o chá com açúcar.

      Terminada a ceia, Miguel Strogoff, em vez de se ir deitar, preferiu continuar maquinalmente o seu passeio pela cidade. A multidão começava a dissipar-se, as ruas Iam pouco a pouco ficando desertas e cada um tratava de voltar para sua casa.

      Porque seria que Miguel Strogoff não foi meter-se na cama, como é natural que se faça depois de um dia inteiro passado num comboio? Pensaria ele na jovem livoniana que tinha sido durante algumas horas sua companheira de viagem? Pensava. Recearia ele que a pobre menina, perdida no meio daquela multidão, fosse vítima de algum insulto? Receava, e tinha razão para isso. Esperaria tornar a encontrá-la para, em caso de necessidade, se mostrar seu protector? Não. Encontrá-la outra vez era difícil. E, quanto a protegê-la, com que direito?

      «Só - reflectia ele -, só no meio destes nómadas! E ainda os perigos de agora não são nada em vista dos perigos de amanhã! A Sibéria! Irkutsk! O que eu vou arrostar pela Rússia e pelo imperador vai ela tentar por... Por quem? Para quê? Traz uma guia que lhe permite transpor a fronteira. Com que fim? E além da fronteira o país está revoltado! Os tártaros correm pelas estepes siberianas!».

      Miguel Strogoff parava por um momento e ficava pensativo.

      «É de supor - dizia ele - que esta viagem a Irkutsk fosse projectada antes da invasão. Talvez a minha desconhecida ignore ainda o que se passa. Porém, não, toda aquela gente que vinha no comboio falou da revolta da Sibéria diante dela. E não pareceu assustar-se! Nem mesmo pediu o menor esclarecimento. Mas então sabia já o que a esperava e, mesmo assim, persiste em partir!... Pobre menina! Está provado que só um imperioso motivo a levaria a esta viagem. Mas, por mais corajosa que seja - e é corajosa, lá isso é! -, hão-de escassear-lhe as forças no caminho, sem contar os perigos e os obstáculos que de todos os lados lhe surgirão. Oh! Não chegará, não poderá chegar a Irkutsk!»

      Miguel Strogoff continuava sempre o seu passeio ao acaso, mas, como conhecia perfeitamente a cidade, não lhe era fácil perder-se nas diferentes ruas.

      Depois de ter andado assim uma hora, foi sentar-se num banco encostado a uma grande barraca de madeira, levantada entre muitas outras sobre uma praça vastíssima.

      Estava ali haveria cinco minutos quando sentiu que a mão de um homem se lhe apoiava com força sobre o ombro.

      - Que fazes aí? - perguntou-lhe esse homem, de estatura elevada e voz áspera, que Miguel Strogoff não vira aproximar-se.

      - Estou descansando - respondeu Miguel Strogoff.

      - Tencionarás tu passar a noite nesse banco? - ajuntou o desconhecido.

      - Talvez, se isso me convier - replicou Miguel Strogoff com um tom de voz que desdizia do seu trajo de simples mercador.

      - Aproxima-te. Quero ver-te a cara.

        Miguel Strogoff, lembrando-se de que lhe convinha ser prudente primeiro que tudo, recuou instintivamente.

      - Não preciso que me vejam - retorquiu.

      E, com sangue-frio,. tratou de estabelecer um intervalo de dez passos entre ele e o seu interlocutor.

      Observando melhor, pareceu-lhe então que o desconhecido era uma espécie de boémio, como os que se encontram pelas feiras, cujo contacto não se tornava agradável, nem física nem moralmente. E, olhando com toda a sua atenção, auxiliado pela claridade do luar, pôde distinguir, junto da barraca, um grande carro, morada habitual e ambulante destes zíngaros, ou tziganos, que se encontram por todos os pontos da Rússia onde haja alguns kopeks a ganhar. Entretanto o boémio avançara dois a três passos e dispunha-se a provocar mais directamente Miguel Strogoff quando a porta da barraca se abriu. Surgiu uma mulher, que, adiantando-se, falou com vivacidade e num idioma bárbaro que Miguel Strogoff reconheceu como uma mistura de mongol e siberiano:

      - Mais um espião! - disse ela. - Deixa-o lá e vem cear. O papiuka (Espécie de bolo folhado) está na mesa.

      Miguel Strogoff não pôde deixar de sorrir do nome que lhe davam, quando ele, sobretudo, o que mais temia eram os espiões.

      O boémio, respondendo na mesma linguagem, se bem que o seu modo de se expressar fosse diferente do da mulher, disse algumas palavras que significavam:

      - Tens razão, Sangarra. Demais a mais, partimos amanhã.

      - Amanhã? - replicou a mulher a meia voz, parecendo surpreendida com a notícia.

      - Sim, amanhã, Sangarra - respondeu o boémio. - É o Pai em pessoa quem nos manda... para onde nós queremos ir.

      Depois disto, o homem e a mulher entraram para a barraca, sendo a porta logo em seguida cuidadosamente fechada.

      - Bom! - comentou Miguel Strogoff. - Se estes boémios desejam falar de maneira que eu os não entenda, aconselho-os a que se sirvam de outra língua.

      Efectivamente Miguel Strogoff, na sua qualidade de siberiano, e por ter passado entre as estepes os anos da infância, compreendia quase todos os idiomas usados desde a Tartária até o oceano Glacial. Quanto à significação precisa que poderiam ter as palavras trocadas entre o boémio e a sua companheira, mostrou-se absolutamente indiferente. Em que podia isso interessá-lo?

      Como já fosse tarde, pensou em voltar para a hospedaria, a fim de repousar algumas horas. Seguiu depois o curso do Volga, cujas águas desapareciam sob a massa compacta das embarcações. E tomando-o como ponto de referência pôde então reconhecer qual era o sítio que deixava. Aquela aglomeração de carros e barracas ocupava precisamente a vasta praça onde todos os anos se efectua a grande feira de Nijni-Novgorod, o que explicava também o agrupamento dos pelotiqueiros e boémios, que se reúnem ali vindos de diferentes pontos do Mundo.

      Uma hora depois Miguel Strogoff dormia, talvez um pouco agitadamente, sobre uma dessas camas russas que parecem tão duras aos estrangeiros. No dia seguinte, 17 de Julho, mal rompia a manhã, já Miguel Strogoff estava acordado.

      Tinha ainda de passar cinco horas em Nijni-Novgorod, o que para ele era um século. Para preencher a manhã só lhe restava o recurso de passear pelas ruas da cidade, como fizera na véspera. As suas ocupações até ao momento da partida limitavam-se a almoçar, a fechar o seu saco de viagem e a ir ao posto da polícia para visar o seu podaroshna. Como não era homem que ficasse na cama depois do Sol nado, levantou-se, vestiu-se, meteu cuidadosamente o ofício com as armas imperiais no fundo de um bolso praticado entre o forro da véstia, apertou esta à cintura com a sua cinta de mujique e fechou o saco de viagem, tornando a prendê-lo aos ombros. Feito isto, e não querendo voltar à Cidade de Constantinopla, pagou a sua conta e saiu da hospedaria, dispondo-se a almoçar nas proximidades do cais de embarque.

      Por excesso de precaução, Miguel Strogoff foi novamente informar-se no escritório da companhia se o Cáucaso partiria à hora já indicada. Lembrou-se então pela primeira vez que, visto a jovem livoniana seguir a estrada de Perm, seria muito possível embarcar ela também a bordo do Cáucaso, devendo nesse caso seguirem juntos na mesma direcção.

      A parte elevada da cidade com o seu kremlin, que tem duas verstas de circunferência e que se parece muito com o de Moscovo, estava a este tempo quase de todo abandonada. O próprio governador deixara de residir nela. Em compensação, a parte baixa apresentava o movimento e a vida que faltavam àquela.

      Miguel Strogoff, depois de ter atravessado o Volga sobre uma ponte de barcos guardada por cossacos a cavalo, achou-se no mesmo lugar onde na véspera tinha tido o seu encontro com o boémio.

      Era um pouco fora da cidade que se fazia esta feira de Nijni-Novgorod, com a qual não chega mesmo a poder competir a célebre feira de Leipzig. Numa vasta planície, situada além do Volga, levantava-se o palácio provisório do governador-geral, onde, por ordem superior, este alto funcionário tem de residir durante todo o tempo da feira, a fim de vigiar de perto os diversos elementos que a ela acorrem.

      Esta planície estava agora coberta de casas de madeira simetricamente dispostas em ruas espaçosas para não embaraçar os movimentos da multidão.

      Estas casas, de todos os tamanhos e de todos os feitios, formavam vários arruamentos, cada um deles, destinado a um género especial de comércio. Havia o arruamento dos tecidos, o arruamento das peles, o arruamento das lãs, o das madeiras, dos artigos de ferro, etc. Algumas destas casas ou barracas eram mesmo construídas com materiais desusados: umas com pequenas caixas de conservas em forma de tijolos, e outras com grandes pilastras de carne salgada, isto é, com as variadas amostras dos diferentes produtos que os seus donos vendiam ao público. Singular maneira de fazer publicidade!

      A afluência nestas ruas era já considerável, atendendo a que o Sol resplandecia desde as quatro horas da manhã. Russos, siberianos, alemães, cossacos, turcos, persas, georgianos, gregos, otomanos, índios e chineses - espécie de xadrez variado, composto de europeus e asiáticos - andavam havia muito discutindo e traficando. Tudo o que é susceptível de venda e de compra parecia estar empilhado nesta praça imensa. Moços de fretes, cavalos, camelos, burros, barcos e carroças, tudo que pode servir de transporte ás mercadorias, achava-se acumulado neste espantoso mercado. Pedras preciosas, peles, estofos de seda, caxemira das índias, tapetes turcos, armas do Cáucaso, tecidos de Esmirna e de Ispaão, armaduras de Tiflis, chá das caravanas, bronzes da Europa, relojoaria da Suíça, veludos e sedas de Lião, algodões de Inglaterra, molas e arreios para carruagens, frutos, legumes, minérios do Ural, malaquites, lápis-lazúli, plantas aromáticas, perfumarias, plantas medicinais, madeiras de construção, alcatrão, cordame, abóboras, melancias, etc., todos os produtos da Índia, da China e da Pérsia, os do mar Cáspio e do mar Negro, os da América e da Europa, estavam reunidos em comum sobre este ponto do Globo.

      Era um movimento, um burburinho, um tumulto, e uma vozearia difíceis de descrever, e para o que tanto contribuía a animação ruidosa dos indígenas, como a nota discorde dos estrangeiros. Achavam-se ali mercadores da Ásia central, que tinham levado um ano para atravessarem longas planícies com as suas mercadorias e que, acabada a feira, passariam outro ano ainda antes de tornarem a ver os seus depósitos ou armazéns. Enfim, a importância desta feira de Nijni-Novgorod é tal que a cifra das suas transacções não se eleva a menos de cem milhões de rublos (Aproximadamente setenta mil setecentos e quarenta contos de réis).

      Sobre as praças, contíguas aos arruamentos desta cidade improvisada, ficavam as diferentes barracas dos arlequins: eram saltimbancos e acrobatas, ensurdecendo quem passava com as desafinações das suas músicas destemperadas e com a inferneira das suas buliçosas palhaçadas, boémias, vindas das montanhas, lendo a buena-dicha aos papalvos, que se sucediam, zíngaros ou tziganas - nome que os russos dão aos egípcios, antigos descendentes dos coptas - cantando as suas canções mais animadas e dançando as suas danças mais originais, comediantes de teatro de feira, representando os dramas de Shakespeare acomodados ao gosto do público, que afluía em massa. Depois seguiam-se, nas grandes avenidas, a exposição dos ursos, que trabalhavam em liberdade, e a exibição das feras, que atroavam os ares com os seus rugidos, estimuladas pelo chicote cortante ou pelo ferro em brasa do domador. Finalmente, no centro da grande praça, onde havia um quádruplo círculo de apreciadores de música, ouvia-se um coro imenso de “marinheiros do Volga”, sentados no chão como se estivessem a bordo dos seus botes - coro simulando a acção de remar, e que tinha a dirigi-lo um chefe de orquestra, verdadeiro timoneiro desta barca imaginária.

      Por cima de toda a multidão agitada - costume caprichoso e encantador! - uma nuvem de pássaros, soltos das gaiolas onde os tinham trazido, cobria o céu de vez em quando. Em troco de alguns kopeks oferecidos caridosamente pelas boas almas, é uso antigo nesta feira abrirem os passarinheiros as portas aos seus alados cativos, que, vendo-se em liberdade, vão voando e chilreando nos seus gorjeios alegres. Tal era o aspecto da notável feira de Nijni-Novgorod, tal devia sempre conservar-se por espaço de seis semanas.

      Acabado este período vertiginoso, todo o tumultuar cessa como por encanto, a parte da cidade alta reassume o seu carácter oficial, a parte baixa recai na sua monotonia ordinária, e daquela enorme afluência de mercadores e feirantes, pertencendo a diversos países da Europa e da Ásia central, não resta um só vendedor que tenha que vender, nem um único comprador que tenha que comprar.

      Convém ainda notar que desta vez a França e a Inglaterra tinham tido como representantes na grande feira de Nijni-Novgorod dois dos mais distintos produtos da moderna civilização: os Srs. Harry Blount e Alcide Jolivet.

      Os dois correspondentes tinham vindo aqui buscar impressões em benefício dos seus leitores e empregavam da melhor forma que podiam as poucas horas de que dispunham, pois não restava dúvida de que eles também iam embarcar no Cáucaso.

      Encontraram-se naturalmente nos arruamentos da feira, e não se maravilharam do encontro, uma vez que ambos tinham por fim andar colhendo notícias para os seus jornais. Desta vez, porém, não se demoraram a conversar, limitando-se apenas a trocar um ligeiro cumprimento.

      Alcide Jolivet, optimista por índole, julgava que tudo corria regularmente, e, como o acaso lhe tinha feito encontrar cama e mesa sem dificuldade, anotou o facto na sua carteira com algumas frases muito lisonjeiras para a cidade de Nijni-Novgorod.

      Harry Blount, pelo contrário, que não encontrara ceia nem cama, vira-se obrigado a passar a noite ao relento. Daqui resultou que ele encarava as coisas sob um aspecto menos benigno e já meditava num artigo furibundo contra uma cidade onde as hospedarias rejeitam os hóspedes, apesar de estes não se oporem a ser explorados material e moralmente.

      Miguel Strogoff, com uma das mãos na algibeira e segurando com a outra o seu cachimbo de cerejeira, parecia ser o mais indiferente e o menos apressado de todos os homens. Contudo, certas contracções dos seus músculos superciliares revelariam a qualquer observador atento que ele dominava a custo a sua impaciência.

      Havia perto de duas horas que percorria as ruas da cidade, para voltar invariavelmente aos arruamentos da feira.

      Girando por entre os diversos grupos, tinha já notado visível inquietação em todos os feirantes vindos das regiões vizinhas da Ásia. O movimento comercial ressentia-se dessa inquietação. Que os pelotiqueiros, ginastas e equilibristas fizessem muita bulha para atrair concorrência, compreende-se, porque estes pobres diabos nada tinham que perder com o êxito bom ou mau do giro comercial. Outro tanto não sucedia aos negociantes russos, cujas transacções com os seus colegas da Ásia central corriam perigo de se anular por causa da invasão tártara.

      Outro sintoma que não devia passar despercebido. Na Rússia, o uniforme militar aparece em toda a parte. Os soldados confundem-se voluntariamente com a multidão. Especialmente nesta feira de Nijni-Novgorod, os agentes da polícia são em geral auxiliados por numerosos cossacos, que, de lança em punho, mantêm a ordem nesta aglomeração de trezentos mil estrangeiros.

      Ora, neste dia, os militares e  cossacos não apareciam na feira. Prevendo-se talvez alguma ordem de marcha repentina, tinham ficado todos nos quartéis.

      Contudo, se faltavam os soldados, sobravam os oficiais. Viam-se por todos os lados, e desde a véspera que os ajudantes de campo, saindo do palácio do governador-geral, se espalhavam em diferentes direcções. Havia, pois, um movimento desusado, que só a gravidade dos acontecimentos poderia explicar. Os estafetas sucediam-se nas estradas da província, quer do lado de Wladimir, quer do lado dos montes Urais. A troca de despachos telegráficos com Moscovo e São Petersburgo era incessante: A situação de Nijni-Novgorod, pouco afastada da fronteira siberiana, exigia, portanto, sérias precauções. Era preciso não esquecer que já por duas vezes, no século XIV, a cidade fora tomada pelos antepassados destes mesmos tártaros que a ambição de Féofar-Cã arremessava em direcção às estepes da Sibéria.

      Um funcionário importante, não menos ocupado que o governador-geral, era agora o chefe da polícia. Tanto ele como os seus agentes, encarregados de manter a ordem, de atender as reclamações e de fiscalizar a fiel observância dos regulamentos, não descansavam um minuto. As suas  repartições, abertas de dia e de noite, estavam constantemente cercadas, tanto pelos habitantes da cidade como pelos estrangeiros da Europa e da Ásia.

      Sucedeu que Miguel Strogoff se achava precisamente na praça central quando correu o boato de que o chefe da polícia fora chamado à presença do governador da  província.

      Segundo se dizia, acabara de receber-se de Moscovo um despacho importantíssimo.

      Efectivamente, o chefe da polícia fora chamado ao palácio do governo, e, como que por um pressentimento geral, começara a circular a notícia de que se iam tomar providências de grande alcance.

      Miguel Strogoff ouvia todos os comentários que se faziam para deles tirar depois o proveito que pudesse.

      - Diz-se que mandam desarmar a feira! - dizia um.

      - O regimento de Nijni-Novgorod recebeu ordem para marchar - acrescentava outro.

      - Parece que os tártaros ameaçam Omsk.

      - Lá vem o chefe da polícia! - gritaram diferentes indivíduos ao mesmo tempo.

      A vozearia que se levantara subitamente foi-se dissipando pouco a pouco, dando lugar a um silêncio absoluto. Era evidente que todos esperavam alguma comunicação grave por parte do Governo.

      O chefe da polícia, precedido dos seus agentes, voltava do palácio do governador-geral. Acompanhava-o um destacamento de cossacos, que iam obrigando o povo a fazer alas à força de golpes de lança, tão energicamente distribuídos como resignadamente aceites.

      O chefe da polícia chegou ao centro da praça e todos puderam ver que trazia um papel na mão.

      Reinava o silêncio em toda a praça. Ele então, levantando a voz, leu pausadamente o seguinte:

      EDITAL DO GOVERNADOR DE NIJNI-NOVGOROD

      “Artigo 1.” Fica proibido a todos os súbditos da Rússia ausentarem-se desta província, seja qual for o motivo para isso alegado.

       “Artigo 2.” São intimados todos os estrangeiros de origem asiática a saírem da província no prazo de vinte e quatro horas.

     

     Irmão e irmã

      Estas medidas, prejudiciais para os interesses particulares, eram perfeitamente justificadas pelas circunstâncias.

      “Proibição a todos os súbditos russos de se ausentarem da província” correspondia a impedir que Ivan Ogareff, dado o caso de ele ainda estar na Rússia, se pudesse reunir a Féofar-Cã, a não ser com grandes dificuldades, privando assim o chefe tártaro de um perigoso auxiliar.

      “Intimação a todos os estrangeiros de origem asiática para saírem da província no prazo de vinte e quatro horas” equivalia a limpar completamente a província desses feirantes vindos da Ásia central e desses bandos de boémios, de egípcios e de tziganos, que sempre estão mais ou menos em contacto com as populações tártaras ou mongólicas. Tantos eram os indivíduos daquela raça, tantos poderiam ser os espiões. A sua expulsão, portanto, era um acto de justificada previdência.

      Compreende-se, porém, o efeito que deveriam produzir estes dois artigos, em especial sobre a cidade de Nijni-Novgorod, mais directamente lesada pelo rigor do edital.

      Assim, pois, os nacionais que tivessem negócios a tratar para lá da fronteira siberiana viam-se impossibilitados de sair da província, pelo menos momentaneamente. A redacção do primeiro artigo era formal. Não admitia a mínima excepção. O interesse dos particulares devia desaparecer em presença do interesse geral.

      Quanto ao segundo artigo, as suas disposições eram também terminantes. Não abrangia outros estrangeiros que não fossem de origem asiática, mas para estes não se mostrara a menor contemplação. Urgia que emalassem as suas fazendas e que partissem de novo com elas a caminho de suas terras.

      Para os saltimbancos e boémios, que tinham afluído em grande número e que se achavam a mil verstas de distância da fronteira mais próxima, esta ordem de expulsão representava a fome e a miséria num prazo limitadíssimo.

      Por isso, contra semelhante medida de rigor não faltaram murmurações e gritos de cólera, que só a presença dos cossacos e dos polícias conseguiu a custo reprimir.

      Pouco tempo depois desta prevenção oficial, começava como por encanto o desmanchar de tão vastíssima feira. A lona que guarnecia as barracas era cuidadosamente dobrada; apagavam-se os fogões das improvisadas casas de pasto; as danças e os cantares cessavam de repente; desprendiam-se as cordas dos exercícios de ginástica; emudeciam os discursos dos palhaços palradores; os teatros dos arlequins desfaziam-se aos bocados, e os velhos e lazarentos cavalos, que puxam estas moradas ambulantes, saíam das cocheiras. Polícias e soldados, de chicote na mão ou espada em punho, não tinham escrúpulos em derrubar as barracas dos pobres saltimbancos, ainda antes de eles haverem entrouxado as suas roupas. Sob a influência destas enérgicas medidas era evidente que a feira de Nijni-Novgorod estaria levantada antes da noite, devendo ao movimento da turba suceder-se o silêncio da imobilidade.

      Como consequência agravante da expulsão, acrescente-se ainda que os diversos grupos de nómadas se viam obrigados a emigrar, quer para o sul do mar Cáspio, quer para a Pérsia, para a Turquia ou para as planícies afastadas do Turquestão. As próprias estepes da Sibéria não lhes eram franqueadas!

      Os postos militares do Ural e das montanhas, que formam como que um prolongamento deste rio, opor-se-iam à sua passagem. Era, pois, uma distância de mil verstas que estes desgraçados tinham de percorrer antes de pisarem um solo que lhes fosse mais hospitaleiro.

      No momento em que o chefe da polícia acabava de ler o edital, Miguel Strogoff sentiu-se Impressionado por uma circunstância que subitamente lhe ocorreu.

      «Singular coincidência - pensava ele -, entre esta intimação que expulsa os estrangeiros de origem asiática e as palavras trocadas a noite passada por aqueles dois boémios de raça tzigana. «É o Pai em pessoa que nos manda para onde nós queremos ir», disse o homem à sua companheira. Mas esse Pai não pode ser outro senão o czar. É assim que lhe chamam entre o povo. Como podiam aqueles boémios prever a medida tomada contra a sua raça? Como foi que a conheceram com tamanha antecipação? Onde será que eles pretendem ir? Aqui está uma gente que não me parece andar de boa fé e que talvez lucre mais do que perca em ser expulsa da feira.»

      Estas reflexões, que não deixavam de ser justas, foram contudo prejudicadas por outra, que avassalou o espírito de Miguel Strogoff. Esqueceu pois os tziganos, as suas ambíguas expressões da véspera e a estranha coincidência que daí resultava com a promulgação do edital. A lembrança da jovem livoniana viera apagar todas as outras impressões.

      - Pobre criança! - exclamou ele de repente. - Como há-de ela agora transpor a fronteira da Sibéria?

      Efectivamente, a companheira de viagem de Miguel Strogoff era de Riga, na Livónia, e russa por consequência. Não podia, pois, abandonar o solo da Rússia. A guia que lhe fora concedida antes das recentes medidas já decerto não tinha validade. Os caminhos da Sibéria acabavam de lhe ser fatalmente fechados, e, qualquer que fosse o motivo da sua viagem a Irkutsk, semelhante viagem tornava-se de todo impraticável. Era nisto que estava pensando Miguel Strogoff.

      Antes de se publicar o edital, Miguel Strogoff tinha-se habituado à Ideia de que, sem denunciar a sua verdadeira posição, sem prejudicar o fim delicado da sua empresa, poderia talvez prestar alguns serviços a esta corajosa rapariga. Conhecendo os perigos que pessoalmente o esperavam a ele, homem forte e vigoroso, num país que lhe era familiar, calculara os perigos ainda maiores que deviam cercar a pobre menina. Pois não ia para Irkutsk, vendo-se obrigada, como ele, Miguel Strogoff, a atravessar também territórios invadidos? E se trouxesse consigo apenas os recursos necessários para viajar em condições ordinárias, como chegaria ao seu destino, agora que as circunstâncias exigiam maior volume de despesas?

      «Uma vez que toma a estrada de Perm, tinha dito Miguel Strogoff a si mesmo, é quase impossível que a não encontre no caminho. Poderei, portanto, vigiá-la a distância, sem lho dar a perceber. E como ela parece ter empenho igual ao meu em chegar depressa a Irkutsk, a sua presença não me causaria decerto a mínima demora.»

      Tinham sido estes os cálculos que Miguel Strogoff fizera anteriormente. Ele vira a possibilidade de se tornar útil e servil, e desde este momento ficara esperando com impaciência que o acaso lhe deparasse o ensejo de praticar uma boa acção.

      O primeiro artigo do edital, vindo agora cerrar à jovem livoniana as portas da Sibéria, tinha de todo prejudicado as íntimas combinações de Miguel Strogoff. Ele pendera a cabeça, triste e desanimado, sentindo com profunda mágoa o obstáculo que se levantava.

      De repente, como que dominado por um novo pensa mento, começou a encarar a situação de modo inteiramente diverso.

      «Mas agora reparo! - disse ele. - Tudo se pode conciliar ainda, e, apreciando melhor as nossas recíprocas condições, reconheço que preciso eu mais da formosa livoniana do que ela precisa de mim. A sua presença pode servir até para afastar todas as desconfianças sobre o verdadeiro fim da minha missão. No homem que fosse encontrado a percorrer sozinho as estepes siberianas era fácil suspeitar o correio do imperador. Mas se, pelo contrário, esse homem levar a seu lado uma companheira, quem deixará de ver nele o negociante Nicolau Korpanoff que o podaroshna menciona? É tão conveniente, pois, que a formosa desconhecida me acompanhe, como é necessário que eu a torne a ver sem demora. Não é natural que de ontem à noite para cá ela encontrasse alguma carruagem que saísse de Nijni-Novgorod. Procuremo-la, portanto, e que Deus me tenha na sua guarda.»

      Miguel Strogoff deixou a praça principal da cidade, onde o tumulto, provocado pelas últimas medidas, tinha chegado ao auge. Era uma confusão espantosa! - gritos de feirantes e boémios, repentinamente proscritos, Intimações de cossacos e polícias, que se viam obrigados a expulsá-los.

      Davam nove horas neste momento e o vapor só largava ao meio-dia. Miguel Strogoff podia ainda dispor aproximadamente de duas horas. Era tempo de sobejo para procurar a jovem livoniana e convidá-la a ser sua companheira de viagem.

      Atravessou de novo a ponte do Volga e penetrou nos bairros da outra parte da cidade, onde a concorrência não era tamanha. Percorreu cada rua de per si, introduziu-se nas travessas e entrou nas igrejas, refúgio natural de todos os que choram e padecem. Em nenhum destes pontos encontrou aquela que buscava!

      «E, contudo - repetia ele -, é impossível que já tenha saído de Nijni-Novgorod. Continuemos a procurar.»

      Miguel Strogoff andou assim ao acaso durante duas horas. Não andava, corria sem descansar, obedecendo a um sentimento imperioso que o impelia. Tudo sem resultado!

      Lembrou-se então que a sua desconhecida talvez ignorasse ainda a publicação do edital, circunstância pouco admissível, porque os ecos daquela violenta e inesperada determinação deviam ter-se logo espalhado pela cidade. Interessada em conhecer as diversas particularidades que se prendessem com a sua viagem, como se poderia admitir que desconhecesse ainda as medidas tomadas pelo governador de Nijni-Novgorod, medidas que tão directamente lhe diziam respeito?

      Mas se, porventura, as ignorasse, era certo que se dirigiria dentro em pouco para embarcar, expondo-se nesse caso a que algum agente menos delicado lhe proibisse brutalmente a saída. Urgia, portanto, que Miguel Strogoff a encontrasse para lhe evitar aquele violento abalo.

      As suas indagações foram, porém, inúteis, e não tardou que ele perdesse toda a esperança de a tornar a ver.

      Davam então onze horas. Miguel Strogoff, atendendo a circunstâncias especiais em que se achava a cidade por efeito do recente edital, julgou conveniente ir apresentar o seu podaroshna à repartição da polícia. O edital não podia entender-se com ele, visto que a sua missão estava acima de todos os editais, entretanto, quis certificar-se de que nenhum obstáculo se opunha à continuação da viagem.

      Miguel Strogoff tornou, pois, à parte da cidade onde ficavam as repartições da polícia.

      Havia ali grande afluência e confusão, porque os próprios estrangeiros, que deviam ausentar-se, eram previamente obrigados a um certo número de formalidades. Sem esta precaução, qualquer russo que estivesse mais ou menos envolvido na insurreição tártara, por meio de un disfarce, poderia atravessar a fronteira, o que o edital, sobretudo, pretendia evitar.

      Expulsavam os estrangeiros, mas ainda assim era preciso que se lhes desse licença para saírem.

      Os boémios, os zíngaros, os tziganos, os arlequins e os saltimbancos, juntamente com os mercadores da Pérsia, da Turquia, da Índia, do Turquestão e da China, inundavam, pois, a entrada e as escadas das repartições da polícia.

      Todos se apressavam, porque os meios de transporte iam escassear decerto, em vista da sua imensa procura por parte destes proscritos de diversos países, e aqueles que não andassem com diligência corriam o risco de não se acharem em condições de sair da cidade dentro do curto prazo que lhes fora marcado, circunstância que decerto os exporia depois a alguma intervenção brutal por parte dos agentes da autoridade.

      Miguel Strogoff, graças ao vigor dos seus pulsos, pôde atravessar sem muito custo a porta da entrada. Mas penetrar nas salas e chegar à fala com os agentes era operação muito mais difícil. Contudo, algumas palavras que disse ao ouvido de um polícia e alguns rublos oferecidos a propósito tiveram o condão de o deixar passar sem obstáculos.

      O polícia, depois de ter introduzido Miguel Strogoff na sala de espera, fora prevenir um seu superior, não passaria, pois o correio do czar não passaria, .pois, muitos minutos sem que pudesse regularizar a sua identidade e seguir viagem.

      Enquanto esperava, lançou os olhos em redor. E que viu ele?

      Adiante de si, entregue a uma dor silenciosa, e mais desfalecida do que sentada sobre um banco, uma rapariga, de que só divisava o rosto, cujo perfil ia desenhar-se na parede.

      Miguel Strogoff não se enganava. Tinha acabado de reconhecer nessa rapariga a jovem livoniana que procurava.

      Ignorando as determinações do governador, ela viera à repartição da polícia para visar a sua guia! Não lha tinham querido receber. Era certo que esta guia autorizava a sua portadora a ir até Irkutsk, mas o implacável edital, anulando todas as autorizações anteriores, cortava à pobre livoniana os meios de se dirigir à Sibéria.

      Miguel Strogoff, satisfeito do feliz encontro que tivera, dirigiu-se para ela.

      O rosto desta iluminara-se de um fugitivo raio de luz ao tornar a ver o seu companheiro de viagem. Levantara-se como por instinto, e à semelhança dos náufragos que quando se julgam perdidos, lançam mão sôfrega de tudo para evitarem a morte, ela ia pedir auxílio a Miguel Strogoff, quando neste momento...

      Quando neste momento o polícia que fora transmitir a recomendação de Miguel Strogoff, se aproximava dele, pondo-lhe a mão sobre o ombro:

      - O senhor chefe está à sua espera.

      - Bem - respondeu Miguel Strogoff.

      E sem dizer uma palavra àquela que havia tantas horas procurava, sem a tranquilizar sequer por meio de um gesto ou sinal, que seria arriscar a posição de ambos em semelhante conjuntura, Miguel Strogoff apressou-se a seguir o polícia por entre a compacta multidão.

      A jovem livoniana, vendo desaparecer o único homem em que poderia ter esperança de socorro, deixou-se cair novamente sobre o banco.

      Não se tinham passado três minutos quando Miguel tornou a aparecer na sala, acompanhado de um polícia. Trazia na mão o podaroshna que lhe franqueava o caminho da Sibéria. Aproximou-se então da jovem livoniana e, estendendo-lhe a mão, disse:

      - Minha irmã...

      A desconhecida compreendera o alcance daquelas duas vrases! Levantara-se, portanto, sem hesitar, como se obedecesse a súbita inspiração.

      - Minha irmã - repetiu Miguel Strogoff -, temos licença para continuar a nossa viagem até Irkutsk. Quer vir?

      - Quero, meu irmão - respondeu ela, colocando a mão entre as de Miguel Strogoff. E ambos saíram da repartição da polícia.

     

     A bordo do Cáucaso

      Um pouco antes do meio-dia, a sineta do vapor atraía para o cais de embarque um numeroso grupo de pessoas. Esta multidão era formada tanto pelos que partiam como pelos que desejariam acompanhá-los.

      As caldeiras do Cáucaso já tinham bastante pressão. Da sua chaminé saía apenas um fumo imperceptível, em compensação, as válvulas de segurança e o tubo de descarga coroavam-se suavemente de um alvíssimo vapor.

      Escusado é dizer que a polícia vigiava a partida do Cáucaso e que não tinha contemplações com os passageiros cujos documentos, por qualquer circunstância, deixassem de estar em forma.

      Diferentes patrulhas de cossacos estavam de guarda ao cais, para, em caso de necessidade, auxiliarem o serviço dos polícias. Não foi, porém, necessário recorrer à força, porque tudo se passou sem a menor resistência.

      À hora anunciada deu-se o último toque de sineta, largaram-se as amarras, puseram-se em movimento as possantes rodas do vapor, que fenderam as águas tranquilas com as suas pás articuladas, e o Cáucaso, logo em seguida, começou a navegar serenamente deixando atrás de si as duas margens da cidade banhada pelo Volga.

      Miguel Strogoff e a jovem livoniana tinham seguido viagem a bordo do Cáucaso. O seu embarque realizara-se sem o menor inconveniente. Como se sabe, o podaroshna, passado em nome de Nicolau Korpanoff, dava autorização a este para levar na sua companhia as pessoas que julgasse necessárias. Eram, pois, dois irmãos que viajavam juntos sob a garantia da polícia imperial.

      Ambos sentados na tolda, iam vendo desaparecer a cidade tão profundamente abalada pelo súbito encerramento da sua importantíssima feira.

      Miguel Strogoff conservava-se calado, e ainda não havia dirigido uma palavra à sua companheira de viagem.

      Por uma questão de delicadeza não queria ser o primeiro a encetar a conversação.

      A jovem livoniana por enquanto só concentrava o seu interesse em se ver longe de uma terra donde não teria conseguido sair se não fora a intervenção providencial do seu inesperado protector. Conservava-se também silenciosa, porém, o seu olhar, voltado para ele, traduzia profundo reconhecimento.

      O Volga, o Rha dos antigos, que passa por ser o rio mais importante da Europa, tem um curso aproximadamente de quatro mil verstas de extensão (4300 quilómetros). As suas águas, insalubres na parte mais alta da corrente, purificam-se em Nijni-Novgorod pelo concurso das do Oka, um dos seus afluentes, que nasce nas províncias centrais da Rússia.

      Os diferentes rios e canais da Rússia têm sido, com propriedade, comparados, no seu conjunto, a uma árvore gigantesca, cujos ramos se espalham pelas numerosas províncias do Império. É o Volga que forma o tronco desta árvore, a que servem de raízes as suas setenta bocas disseminadas pelo litoral do mar Cáspio. Este rio principia a ser navegável em Rjef, cidade do governo de Tver: quer dizer que é navegável em quase todo o seu curso, Os vapores da companhia de transportes entre Perm e Nijni-Novgorod vencem com rapidez as trezentas e cinquenta verstas (873 quilómetros) que separam esta cidade de Kazan. É verdade que a circunstância de seguirem a corrente do Volga dá-lhes mais duas milhas de velocidade do que a sua força ordinária. Só quando eles chegam ao ponto de confluência do Volga com o Kama, um pouco abaixo de Kazan, é que essa velocidade diminui, porque então, para tocarem em Perm, são obrigados a subir o curso deste último rio.

      Feitas, pois, bem as contas, o Cáucaso, apesar da sua excelente máquina, não poderia deitar mais de dezasseis verstas por hora. Descontando ainda uma hora de escala em Kazan, a viagem de Nijni-Novgorod a Perm deveria andar aproximadamente por sessenta a sessenta e duas horas.

      Este vapor estava muito bem dividido, e os passageiros, segundo a sua condição e recursos, ocupavam a bordo dele três classes distintas. Miguel Strogoff mandara reservar dois camarotes de primeira classe, de sorte que a sua companheira de viagem poderia recolher-se quando bem lhe aprouvesse.

      O Cáucaso ia completamente cheio de passageiros de todas as categorias. Grande número de mercadores asiáticos tinha julgado ser conveniente sair logo de Nijni-Novgorod. Na parte do vapor reservada à primeira classe viam-se arménios, de compridas túnicas e trazendo na cabeça uma espécie de mitra, judeus, fáceis de reconhecer pelos seus gorros de forma cónica, opulentos chineses, com o traje tradicional, composto de uma cabaia muito larga, azul-violeta ou escura, aberta adiante e atrás, sobre a qual descia uma segunda de fartas mangas, semelhante pela forma às túnicas dos sacerdotes russos, turcos, trazendo ainda o turbante nacional, índios, com o seu barrete quadrangular e um simples cordão a servir-lhes de cinta, entre os quais alguns há designados pelo nome de shikarpuris, que detêm na sua mão todo o comércio da Ásia central, e tártaros, finalmente, com os seus fatos cobertos de bordaduras no peito e as suas botas pespontadas de retroses de muitas cores. Todos estes negociantes se tinham visto obrigados a amontoar no porão e no convés extraordinário número de fardos, cujo transporte devia sair-lhes caro, visto que ordinariamente cada passageiro só pode levar consigo vinte libras de bagagem.

      À proa do Cáucaso viam-se também numerosos grupos, que se compunham de estrangeiros expulsos de Nijni-Novgorod e de russos, a quem o edital não proibia que voltassem para as terras da sua residência:

      Havia ali mujiques, vestindo camisas de quadradinhos por baixo das suas largas peliças, e camponeses do Volga, com calças azuis por dentro das botas, camisas de algodão cor-de-rosa, presas por uma corda, e bonés largos ou gorros de feltro. Algumas mulheres, com vestidos de ramagens, traziam aventais de cores brilhantes e, na cabeça, lenços de grandes barras encarnadas. Eram principalmente passageiros da terceira classe, a quem a perspectiva de uma viagem prolongada não causava inquietações. Esta parte do convés, que tinha por limites o tambor do leme, achava-se também literalmente cheia. Os passageiros da primeira classe não se atreviam a ir até ali para se não envolverem com aqueles grupos de duvidosa confiança.

      Entretanto, o Cáucaso continuava a vogar entre as duas margens do Volga com toda a velocidade das suas rodas. Cruzava-se repetidas vezes com outros barcos, que venciam a corrente do rio por meio de rebocadores e que transportavam diferentes géneros de mercadorias para Nijni-Novgorod. Depois, eram jangadas que passavam cheias de lenha, sucedendo-se umas às outras como essas intermináveis enfiadas de sargaços no Atlântico, mais além, bateiras custando-lhes a moverem-se e quase debaixo de água devido ao peso da carga. Viagens actualmente inúteis, porque a feira, apenas começada, acabara de se desmanchar por determinação superior.

      Das margens do Volga, salpicadas pelas rodas do vapor, levantavam-se bandos de patos, que fugiam lançando gritos estrepitosos. Mais ao longe, sobre as planícies guarnecidas de amieiros, faias e salgueiros, destacavam-se as vacas de um vermelho-carregado, rebanhos de carneiros com os seus velos de cor castanha e varas de porcos e leitões, brancos e escuros. Alguns campos, semeados de mourisco e de centeio, estendiam-se até aos últimos planos das colinas meio cultivadas, sem oferecerem nenhum ponto de vista notável. Nestas paisagens o lápis do desenhador mal poderia encontrar um único sítio pitoresco digno de ser reproduzido.

      Duas horas depois da partida do Cáucaso, a jovem livoniana, dirigindo-se a Miguel Strogoff, perguntou-lhe:

      - Vais a Irkutsk, meu irmão?

      - Vou - respondeu Miguel Strogoff. - Temos a percorrer ambos o mesmo caminho. Por conseguinte, onde eu chegar, hás-de tu chegar também.

      - Amanhã te direi, meu irmão, porque deixei as praias do Báltico para transpor os montes Urais.

      - Nada te pergunto, minha irmã.

      - Saberás tudo - tornou a livoniana, em cujos lábios se esboçou um sorriso amargo. - Uma irmã não deve ter segredos para seu irmão, Hoje, porém, não posso...

      A fadiga e o desalento esgotaram-me as forças.

      - Queres ir para o teu camarote?

      - Quero, sim, e amanhã...

      - Vem, pois, daí...

      E Miguel Strogoff não acabou a frase, como se esperasse que a sua jovem companheira lhe dissesse o nome, que ele ignorava ainda.

      - Nadia - acrescentou ela, estendendo a mão a Miguel Strogoff.

      - Vem, pois, Nadia, e não poupes teu irmão Nicolau Korpanoff todas as vezes que precises dele.

      E, dizendo isto, Miguel Strogoff acompanhou Nadia ao camarote que lhe fora destinado na câmara da ré.

      Miguel Strogoff voltou depois para a tolda e, desejoso de colher Informações que poderiam talvez modificar o seu itinerário, confundiu-se entre os grupos dos passageiros, ouvindo o que diziam, sem tomar parte nas suas discussões. De resto, se as circunstâncias o obrigassem a falar, apresentar-se-ia como sendo o negociante Nicolau Korpanoff, que tomara passagem a bordo do Cáucaso para se dirigir à fronteira da Sibéria. Em caso nenhum se deveria suspeitar que ele tinha uma autorização especial para viajar.

      Os passageiros que iam a bordo do Cáucaso conversavam só num assunto: o que se prendia com os últimos acontecimentos e suas consequências.

      Esta pobre gente, mal refeita das fadigas de uma longa viagem através da Ásia central, vira-se de repente obrigada a voltar para os seus países, e se não manifestava claramente o seu despeito é porque temia que a estivessem observando. Uma respeitosa reserva lhe refreava a língua. Podia muito bem ser que alguns agentes de polícia se achassem disfarçados a bordo do Cáucaso para espiar os movimentos dos estrangeiros expulsos, e, no fim de contas, era muito melhor ter cobro nas palavras do que ver a pena de expulsão substituída por um encarceramento nas fortalezas do império.

      Por isso os passageiros ou se conservavam calados ou sorriam com tamanha discrição que se tornava difícil poder por eles saber alguma coisa.

      Mas se Miguel Strogoff perdeu por este lado o seu tempo, se chegou mesmo a suceder que muitas bocas se calavam quando ele se aproximava, porque, enfim, ninguém o conhecia, pôde contudo ouvir perto de si os sons abertos e rasgados de uma voz que não mostrava importar-se de ser ou não escutada.

      O possuidor desta voz falava alegremente em russo, mas com acento estrangeiro, e a pessoa que lhe respondia Via-se também que se estava servindo de uma língua que não era a sua.

      - Como assim! - dizia o primeiro. - Como é que venho encontrar a bordo do Cáucaso o meu caro colega, a quem tive o prazer de falar no baile de Moscovo e de cumprimentar na feira de Nijni-Novgorod?

      - Coincidência de viagem - dizia o segundo, com um tom de voz extremamente frio.

      - Palavra de honra! Não podia julgar que fosse seguido tão de perto pelo preclaro correspondente do Daily Telegraph.

      - Eu não o sigo, Sr. Jolivet, precedo-o.

      - Precede-me, precede-me! Convenha que vamos no mesmo passo, a par, como dois soldados de piquete. E para ser generoso, Sr. Blount, suponha, ao menos provisoriamente, que nenhum de nós leva a palma ao outro.

      - Levo-a eu.

      - Veremos, veremos, sobretudo quando nos acharmos ambos no teatro da guerra. Mas até lá, que demónio!, sejamos bons companheiros de viagem. Depois teremos tempo de nos tornarmos rivais.

      - Rivais, não, inimigos.

      - Pois seja, inimigos. O meu caro confrade tem nas suas palavras uma tal concisão que me é sobremodo agradável.

      - Que mal há nisso?

      - Nenhum. Agora permita-me, por meu turno, que lhe trate de definir a nossa situação.

      - Defina.

      - O Sr. Blount vai para Perm, como eu.

      - Como o senhor.

      - E de Perm naturalmente dirigir-se-á a Ekaterinburgo, visto ser o melhor caminho e o mais seguro que se encontra para atravessar os montes Urais.

      - É possível.

      - Passada a fronteira, estaremos na Sibéria, isto é, em frente mesmo da invasão.

      - Perfeitamente exacto.

      - Pois bem, guardemos para então, e só para então, o momento de dizer: cada um por si e Deus por...

      - E Deus por mim.

      - E Deus pelo Sr. Blount, só pelo Sr. Blount! Concedido. Mas como ainda temos oito dias de paz adiante de nós, e como é de supor que as novidades não nos caiam do céu durante este período, sejamos amigos até ao momento de nos tornarmos rivais.

      - Rivais, não, inimigos.

      - É isso, é isso: inimigos. Mas até lá marchemos de comum acordo e não nos estejamos a odiar. De resto, eu prometo que guardarei só para meu uso tudo que o acaso me deixe ver.

      - E eu tudo o que o acaso me deixe ouvir.

      - Combinado?

      - Combinado.

      - A sua mão.

      - Aqui a tem.

      E a mão do primeiro interlocutor - cinco dedos francamente abertos apertou expansivamente os dois únicos dos que o segundo lhe estendeu fleumaticamente.

      - A propósito - disse o primeiro -, telegrafei esta manhã a minha prima comunicando-lhe o edital do governador de Nijni-Novgorod.

      - Também mandei igual telegrama para o Daily Telegraph.

      - Eram dez horas e dezassete minutos quando fui ao telégrafo.

      - Eram dez e catorze minutos quando eu de lá voltava.

      - Bravo, Sr. Blount.

      - Muito bem, Sr. Jolivet.

      - Leva-me um ponto de ganho. Eu tirarei a desforra.

      - Há-de ser difícil.

      - Far-se-á a diligência.

      E, dizendo isto, o correspondente francês cumprimentou familiarmente o correspondente inglês, que, sem perder a sua aprumada solenidade britânica, apenas retribuiu o cumprimento com um ligeiro aceno de cabeça.

      As medidas restritivas do governador de Nijni-Novgorod não tinham abrangido estes dois caçadores de novidades, porque nenhum deles era russo ou estrangeiro de origem asiática. Se haviam saído da cidade é porque  o seu instinto lhes aconselhara essa deliberação: Não era de estranhar, pois, que ambos adoptassem igual meio de transporte e que ambos se propusessem seguir igual caminho para chegar à Sibéria.

      Companheiros de viagem, amigos ou inimigos, tinham adiante de si oito dias antes que para eles começasse a “estação de caça”. Só passado esse período poderia cantar vitória o que se mostrasse mais hábil caçador. Até então, Alcide Jolivet propusera tréguas, e, apesar da sua frieza Harry Blount não as tinha rejeitado.

      Nesse dia, à hora do jantar, o francês, sempre jovial, sempre falador, e o inglês, sempre grave, sempre circunspecto, comiam à mesma mesa bebendo um champanhe “autêntico”, a seis rublos a garrafa, generosamente fabricado com a seiva fresca das bétulas das cercanias.

      Ouvindo assim conversar Alcide Jolivet e Harry Blount, Miguel Strogoff dissera de si para si:

      «Aqui estão dois jornalistas, curiosos e indiscretos que eu hei-de provavelmente encontrar no meu caminho. Será prudente que me conserve sempre a distância deles.»

      Nadia não veio jantar. Estava a dormir no seu camarote, e Miguel Strogoff não quis acordá-la. A noite desceu, pois, sem que a interessante livoniana aparecesse na tolda do vapor.

      O crepúsculo prolongado impregnava a atmosfera de uma agradável viração, que os passageiros gozavam com avidez depois do calor excessivo do dia. Apesar de as horas irem correndo, ninguém pensava em voltar para os camarotes. Todos procuravam, sentados, respirar com delícia a brisa, que a velocidade do vapor mais aumentava. Nesta época do ano, debaixo desta latitude, o Sol poucas horas estava ausente, e o céu, alumiado pela luz crepuscular, permitia ao homem do leme governar sem custo o barco por entre as numerosas embarcações que passavam rio a baixo e rio a cima.

      Contudo, das onze horas da noite para as duas da manhã, a escuridão tornou-se completa. Dormiam quase todos os passageiros da coberta, e o silêncio era apenas interrompido pelo ruído compassado das rodas do vapor.

      Uma espécie de inquietação conservava Miguel Strogoff acordado. Passeava de um para outro lado na tolda do Cáucaso. De uma das vezes, porém, sucedeu-lhe passar para lá da câmara das máquinas: Achou-se então na parte do convés reservada aos passageiros de segunda e terceira classe.

      Por ali dormia-se de todas as formas: sobre fardos, sobre as malas, e mesmo ao comprido sobre as pranchas. Só os homens de quarto se conservavam de pé no castelo da proa. Duas luzes, uma verde, outra vermelha, projectadas pelos faróis de estibordo e de bombordo, enviavam alguns raios oblíquos sobre a amurada do Cáucaso.

      Era preciso andar com cautela para não pisar toda aquela gente, que dormia numa completa confusão e que se compunha na maior parte de mujiques, habituados a passar a noite ao ar livre e para quem as pranchas de um convés já representavam um conforto relativo. No entanto, nenhum deles teria recebido com um sorriso nos lábios o desastrado que por qualquer motivo o pisasse, mesmo sem querer.

      Miguel Strogoff procurava, pois, com cuidado não se aproximar de nenhum deles. No seu passeio até à extremidade do vapor tinha tido só em vista afugentar o sono com a distracção de um exercício mais prolongado.

      Ora, numa dessas voltas, ia ele a subir a escada do castelo da proa quando ouviu falar junto de si. Parou.

      As vozes pareciam partir de um grupo de passageiros, embuçados em xales e mantas, que as sombras da noite não deixavam distinguir. Sucedia, porém, que às vezes, quando a chaminé do vapor, por entre os seus rolos de fumo, se coroava de chamas avermelhadas, algumas fagulhas caíam em cima daquele grupo silencioso, como se milhares de lantejoulas subitamente brilhassem sob a influência de uma luz fantástica.

      Miguel Strogoff pensava em ir para diante quando ouviu distintamente algumas palavras, pronunciadas na mesma língua extravagante que já na véspera o impressionara na feira de Nijni-Novgorod.

      Ocorreu-lhe instintivamente a ideia de escutar. Protegido pela sombra do castelo da proa, ninguém podia ali descobri-lo. Quanto a ver passageiros que falavam, isso era-lhe também impossível. Teve, pois, de se contentar em ouvi-los.

      As primeiras palavras que trocaram não tinham para ele importância, mas permitiram-lhe reconhecer perfeitamente as duas vozes, de homem e de mulher, que ouvira na feira. Tornava-se-lhe agora mais necessária toda a sua atenção.

      Não era de estranhar que aqueles tziganos, a quem surpreendera algumas poucas frases, se achassem a bordo do Cáucaso. Proscritos, como todos os seus congéneres, seguiam a sorte deles.

      Empregou bem a sua atenção porque foi distintamente que Miguel Strogoff ouviu formular em língua tártara a seguinte pergunta e a seguinte resposta:

      - Diz-se que partiu de Moscovo um correio para Irkutsk?

      - Assim se diz, Sangarra, mas ou esse correio chegará tarde, ou nunca poderá chegar!

      Miguel Strogoff estremeceu involuntariamente. Não admitia dúvida que aquela resposta lhe dizia respeito muito de perto. Diligenciou ver se o homem e a mulher que acabavam de falar seriam os mesmos que ele supunha, mas a escuridão era grande e os dois vultos não se moviam.

      Pouco depois Miguel Strogoff, sem fazer o menor ruído, voltava a sentar-se num banco da tolda e, com a cabeça entre as mãos, deixava-se ficar em perfeita imobilidade.

      Quem passasse junto dele poderia suspeitar que dormia.

      Não dormia nem sonhava. Estava meditando e, visivelmente preocupado, dizia consigo mesmo:

      «Quem será aquela gente para quem a minha viagem já não é um segredo?»

     

     A narração de Nadia

      No dia seguinte, 18 de Julho, às seis horas e quarenta minutos da manhã, dava o Cáucaso entrada no ancoradouro de Kazan, que fica a dezassete verstas (17 quilómetros e meio) distante da cidade.

      Kazan está situada na confluência do Volga e do Kazanka. É capital de um governo importante, sede de uma universidade e de um arcebispado grego.

      A população variada deste governo compõe-se de tcheremissos, de mordvianos, de tchuvachos, de volsalks, de vigulitchos e de tártaros, conservando esta última raça mais especialmente o carácter asiático.

      Se bem que a cidade ficasse bastante afastada do ancoradouro, numerosa multidão se acumulava no cais. Vinham todos em busca de novidades. O governador da província tinha adoptado providências idênticas às do seu colega de Nijni-Novgorod. Viam-se tártaros vestidos com o seu cafetã de mangas curtas e trazendo na cabeça chapéus de copa bicuda, capazes de competir na largura das abas com o tradicional feltro de pierrot. Outros, envolvidos nos seus largos casacões, ,tinham a cabeça coberta por pequenos gorros e pareciam judeus polacos. Mulheres, com vestidos bordados no peito a ouropel, traziam nos cabelos um diadema levantado em forma de crescente. Era geral a animação por entre os diversos grupos.

      Agentes da polícia, movendo-se a custo nestas ondas da multidão, e alguns cossacos, de lança em punho, mantinham a ordem e davam lugar tanto aos que desembarcavam como àqueles que se dirigiam para bordo, não escapando à sua minuciosa fiscalização qualquer destas duas categorias de passageiros. Os que ficavam em Kazan eram mujiques pertencentes àquela cidade, os que iam para bordo eram asiáticos obrigados a sair do império, como sucedera aos que residiam em Nijni-Novgorod.

      Miguel Strogoff observava com absoluta indiferença todo este movimento particular que se nota num porto quando chega qualquer vapor.

      O Cáucaso devia demorar-se uma hora em Kazan, o tempo necessário para encher os seus paióis de combustível.

      Miguel Strogoff não pensava sequer em desembarcar. Que iria ele fazer a terra? Além disso, não desejava deixar só a bordo a formosa Nadia, que ainda não aparecera na tolda.

      Os dois jornalistas, esses, tinham-se levantado ao romper do dia, como convém a todo o caçador diligente. Aproveitando a demora do vapor, meteram-se nos escaleres, e, chegados ao cais, cada um tomou por seu lado diferente. Miguel Strogoff pôde ver da tolda Harry Blount de carteira na mão, tomando notas ou esboçando alguns tipos, e Alcide Jolivet falando por quatro, certo de que a sua memória lhe não seria infiel em relação ao que ouvisse.

      Por toda a fronteira oriental da Rússia corria já o boato de que a invasão e a revolta iam tomando gravíssima importância. As comunicações entre a Sibéria e o império de hora para hora se tornavam mais difíceis.

      Foi isto que Miguel Strogoff, sem sair de bordo do Cáucaso, pôde saber por parte dos novos passageiros que chegavam.

      Ora estas novidades não deixavam de lhe causar verdadeira inquietação e mostravam-lhe a necessidade imperiosa de transpor quanto antes os montes Urais, a fim de melhor poder apreciar a gravidade dos acontecimentos e de se prevenir pessoalmente contra eles.

      Entre os passageiros que desembarcavam, Miguel Strogoff pôde reconhecer os bandos de tziganos que na véspera ainda figuravam na feira de Nijni-Novgorod.

      Sobre o convés também se viam o boémio e a mulher que tratara por espião o correio do czar. Com eles, e talvez debaixo da sua direcção, desembarcava igualmente um grupo de vinte raparigas dançarinas e cantoras, de quinze a vinte anos, envolvidas em velhas mantas, que lhes cobriam as saias de gaze, recamadas de brilhantes lantejoulas.

      Estes fatos, sobre os quais batiam agora os primeiros raios de sol, lembraram a Miguel Strogoff o efeito extravagante e fantástico que tinha observado a noite anterior. Fora toda aquela amálgama de trajos enfeitados com talcos e galões dourados que ele vira brilhar na sombra quando a chaminé do Cáucaso vomitava algumas faúlhas.

      «É evidente - pensava Miguel Strogoff -, que este bando de tziganos, depois de ter passado o dia inteiro metido nas últimas cobertas, aproveitou as sombras da noite para vir acaçapar-se junto do castelo da proa. Que empenho teriam eles em não ser vistos? Semelhante afastamento não é muito próprio da sua raça!»

      Miguel Strogoff não hesitou em acreditar que as palavras que ouvira durante a noite tivessem partido deste grupo negro, por momentos frouxamente iluminado com as faíscas do navio. Convenceu-se até de que os dois interlocutores deveriam ter sido o tzigano e a companheira, a quem ele dera o nome de Sangarra.

      Miguel Strogoff, quase involuntariamente, dirigiu-se para junto do portaló na ocasião em que o bando de tziganos saía do Cáucaso para não tornar a ele.

      O boémio achava-se ali numa postura humilde, que desdizia da petulância habitual dos seus congéneres. Dir-se-ia que procurava mais esconder-se que dar nas vistas. O seu coçado chapéu, com a cor perdida pelo sol de muitas estações, enterrava-se-lhe na cabeça, ocultando-lhe o rosto enrugado pelo tempo. Por debaixo de uma capa muito velha, em que se embuçava sofregamente, apesar do calor, denunciavam-se-lhe as costas extremamente arqueadas. Com este miserável vestuário seria tão difícil calcular-lhe a altura como observar-lhe as feições.

      Junto dele caminhava, com passo decidido e soberbo donaire, a tzigana Sangarra, mulher de trinta anos, trigueira, alta, bem feita de corpo, olhos rasgados e louros cabelos.

      Entre as dançarinas e cantoras algumas havia de notável formosura, sem contudo deixarem de apresentar as feições características da sua raça. As tziganas são tentadoras, geralmente, e não é raro ver alguns desses grandes fidalgos russos, que fazem gala de competir em excentricidade com os ingleses, irem escolher entre elas as suas legítimas mulheres.

      Uma delas ia garganteando uma canção de um ritmo desusado, cujos primeiros versos se podiam traduzir assim:

      Os meus olhos cristalinos Roubaram do céu a cor,

      E em meus lábios purpurinos Brincam sorrisos de amor.

      A buliçosa rapariga continuou a cantar, mas Miguel Strogoff já não a ouvia.

      Tinha-lhe parecido que a tzigana Sangarra não despregava os olhos dele. Dir-se-ia que esta boémia desejava gravar para sempre na memória as feições de Miguel Strogoff.

      Alguns momentos depois Sangarra desembarcava atrás das suas companheiras, que na companhia do boémio já tinham ido para terra.

      «Que mulher tão insolente! - disse para si Miguel Strogoff.

      - Ter-me-ia reconhecido como o homem que ela alcunhou de espião em Nijni-Novgorod? As malditas tziganas têm olhos de gato, vêem tanto de noite como de dia, e quem sabe se esta desconfiará...»

      Miguel Strogoff esteve a ponto de seguir Sangarra, mas conteve-se.

      «Não - pensou ele -, nada de passos irreflectidos. Se faço prender o leitor da buena-dicha e a sua companheira, corro perigo de denunciar o meu incógnito. Demais a mais já desembarcaram, e, antes que eles cheguem à fronteira, estarei eu longe do Ural. É verdade que podem tomar o caminho de Kazan a Ichim, mas a estrada é má e sem comodidades, e um tarentass, puxado por bons cavalos siberianos, sempre há-de andar mais depressa que uma carroça de boémios. Vamos, vamos, amigo Korpanoff, não te inquietes sem motivo.»

      Enquanto Miguel Strogoff fazia estas reflexões já o boémio e a sua companheira Sangarra tinham desaparecido na multidão.

      Se chamam com justiça a Kazan “a porta da Ásia”, se esta cidade está considerada como centro do movimento em relação ao comércio siberiano e bucariano, é porque se encontram nela duas estradas, ambas dando comunicação para os países além dos montes Urais.

      Miguel Strogoff tinha, porém, escolhido com muito acerto a estrada que, passando por Perm e Ekaterinburgo, ia ter a Tiumen. Era a estrada principal do correio, que depois se prolongava desde Ichim até Irkutsk, onde o serviço das estações de posta por conta do Estado se achava completamente organizado.

      É certo que uma segunda estrada, aquela de que Miguel Strogoff acabava de falar, evitando o pequeno desvio de Perm, liga da mesma forma Kazan com Ichim, passando por Ielabuga, Menzelinsk, Birsk, Zlatoústa, onde deixa a Europa, Tchelabinsk, Chadrinsk e Kurganna. Talvez seja até um pouco mais curta do que a outra, mas essa vantagem é destruída pela falta de estações de posta, pela raridade das aldeias e pelas más condições do terreno. Miguel Strogoff, como hábil conhecedor do país, tinha motivos para se aplaudir pela escolha que fizera. Se, como parecia provável, aqueles boémios seguiam a segunda estrada de Kazan a Ichim, era muito de supor que Miguel Strogoff chegasse primeiro do que eles.

      Uma hora depois a sineta do vapor chamava os novos passageiros do Cáucaso e lembrava aos antigos que voltassem para bordo. Os paióis de combustível acabavam de renovar o seu abastecimento. As chapas das caldeiras estremeciam sob a pressão do vapor. O Cáucaso estava prestes a largar.

      Os passageiros que iam de Kazan para Perm tinham já tomado os seus lugares.

      Neste momento Miguel Strogoff observou que, dos dois jornalistas, só um - Harry Blount - voltara para bordo.

      Não chegaria Alcide Jolivet a horas de alcançar o vapor?

      Qual! Quando se largavam as amarras apareceu ele, correndo à desfilada. O vapor começava a mover-se, a prancha por onde tinham entrado os passageiros estava já levantada, porém, Alcide Jolivet, sem fazer caso disso, e dando um salto formidável com a ligeireza de um clown, deixou-se cair sobre o convés, mesmo nos braços do seu confrade britânico.

      - Pensei que o vapor seguiria viagem sem o meu amigo – disse Harry Blount com um tom de voz agridoce.

      - Era o que faltava! - respondeu Alcide Jolivet. - Ainda que eu tivesse de fretar um barco por conta de minha prima, ou tomar cavalos de posta a vinte kopeks por hora, creia, meu caro colega, que o havia de tornar a apanhar. Que quer? Do ancoradouro ao telégrafo a distância não é pequena.

      - Pois foi ao telégrafo? - perguntou Harry Blount, mordendo os beiços.

      - Fui - respondeu Alcide Jolivet, com extrema amabilidade.

      - Funciona ainda até Kolyvan?

      - Isso não sei eu dizer. Mas posso garantir-lhe que funciona perfeitamente de Kazan até Paris.

      - Mandou então um despacho a... à sua prima?

      - Pudera, não havia de mandar!

      - E que novidades soube para transmitir?

      - Olhe, paizinho, para falar como os russos - volveu Alcide Jolivet -, eu sou bom rapaz, e não quero ter segredos para o colega. Os tártaros, com Féofar-Cã à frente, já passaram além de Semipalatinsk e descem a corrente do Irtyche. Faça da notícia o uso que quiser.

      Harry Blount ficara como petrificado! Uma notícia tão importante ignorada por ele! Era para perder a cabeça! E o seu rival, que a tinha colhido provavelmente em Kazan, telegrafara-a logo para Paris! O jornal inglês fora derrotado!

      Harry Blount, cruzando as mãos atrás das costas, cabisbaixo, afastara-se de Alcide Jolivet, indo espairecer para longe o seu despeito.

      Pelas dez horas da manhã Nadia deixara o seu beliche e subira para a tolda.

      Miguel Strogoff, correndo para ela, estendeu-lhe a mão.

      - Repara, minha irmã - disse ele, depois de a ter feito olhar pela proa do vapor.

      E com efeito o local merecia a pena ser olhado com atenção.

      O Cáucaso aproximava-se neste momento da confluência do Volga com o Kama. Era ali que o barco ia largar o grande rio, que percorrera durante mais de quatrocentas verstas, para penetrar noutro, onde tinha de andar quatrocentas e sessenta verstas (490 quilómetros).

      Neste ponto as duas correntes confundiam as suas águas de cor um pouco diversa, fazendo o Kama ao Volga, sobre a sua margem esquerda, o mesmo serviço de saneamento que o Oka lhe faz na margem direita, quando passa por Nijni-Novgorod.

      O Kama rasgava-se aqui profundamente e as suas margens, cobertas de arvoredo, produziam, vistas de bordo do Cáucaso, um efeito encantador. Algumas velas sulcavam as suas límpidas águas, onde o sol se espelhava num círculo luminoso. As colinas, plantadas de faias e amieiros e ostentando nalguns pontos agigantados carvalhos, fechavam o horizonte por uma linha harmoniosa, que a esplêndida luz do meio-dia se encarregava de confundir com o fundo transparente do céu.

      Porém, estas belezas naturais não pareciam desviar, nem por um instante, a formosa livoniana dos seus íntimos pensamentos. Ela só tinha um fito: chegar depressa a Irkutsk, e o Kama, com todos os encantos das suas margens, representava para ela unicamente um meio rápido de transporte. Os seus olhos, fixando-se com extraordinário brilho na direcção oriente, pareciam querer penetrar os mistérios daquele cerrado horizonte.

      Nadia conservava ainda a sua mão entre as de Miguel Strogoff, e, voltando-se para ele, perguntou-lhe:

      - A que distância estamos nós de Moscovo?

      - A novecentas verstas - respondeu Miguel Strogoff.

      - E o que são novecentas verstas para sete mil que devemos percorrer! - murmurou Nadia por entre os lábios.

      Era a hora do almoço, que fora anunciada por um toque de sineta. Nadia seguiu Miguel Strogoff à coberta da primeira classe. Não quis tocar nos diferentes pratos que guarneciam a mesa, como arenques cortados em postinhas, caviar! (Caviar é um prato russo que se compõe de ovas salgadas de esturjão) e aguardente de centeio anisada, acepipes que se usam para provocar a vontade de comer em todos os países do Norte, tanto na Rússia como na Suécia e na Noruega. Nadia comeu pouco, talvez por querer poupar quanto possível os seus limitados recursos. Miguel Strogoff por seu lado, entendeu dever contentar-se com uma refeição igual à da sua companheira, isto é, um bocado de kulbat, espécie de empadão feito com gemas de ovos, arroz e carne desfiada, umas couves encarnadas com recheio de caviar e algum chá por única bebida.

      O almoço não foi, portanto, nem demorado nem dispendioso, e apenas vinte minutos depois de terem ido para a mesa Miguel Strogoff e a sua companheira de viagem regressavam novamente à tolda do Cáucaso.

      Então foram sentar-se à ré, e Nadia, logo em seguida, sem o mínimo preâmbulo, baixando a voz a ponto de poder unicamente ser ouvida por Miguel, falou:

      - Meu irmão - disse ela -, sou filha de um deportado. Chamo-me Nadia Orlik. Minha mãe faleceu há um mês em Riga, e eu vou agora para Irkutsk, a fim de compartilhar com meu pai as penas do exílio.

      - Vou também para Irkutsk - respondeu Miguel Strogoff – e tomarei como favor da Providência o poder entregar Nadia Orlik sã e salva nas mãos de seu pai.

      - Obrigada, meu irmão.

      Miguel Strogoff explicou então a Nadia que tinha obtido um podaroshna especial para entrar na Sibéria e que da parte das autoridades russas não podia sobrevir o menor Impedimento à sua viagem.

      Era o que desejava Nadia. Na sua aproximação com Miguel Strogoff ela só vira um meio providencial para, utilizando os oferecimentos deste franco e bom rapaz, se aproximar mais rapidamente de seu pai.

      - Tinha uma guia - disse ela -, que me autorizava a ir a Irkutsk, mas o edital promulgado em Nijni-Novgorod anulou-mo completamente. Se não foras tu, meu Irmão, ver-me-ia impossibilitada de continuar a minha viagem, e essa grande fatalidade seria a morte para mim.

      - E atrevias-te, Nadia - inquiriu Miguel Strogoff -, a realizar sozinha essa viagem?

      - Era um dever.

      - Mas acaso ignoravas que a Sibéria, invadida e revoltada, se tornava para ti “mais intransitável”?

      - Quando saí de Riga ainda a invasão tártara não era conhecida. Foi só em Moscovo que me deram essa notícia.

      - E apesar disso não desististe da tua ideia?

      - Era um dever.

      Estas simples palavras definiam o carácter enérgico da formosa livoniana. O que ela considerava como dever havia por força de cumprir-se.

      Nadia falou então de seu pai, Wassili Orlik. Era um médico muito considerado em Riga. Exercia com fortuna a sua clínica e vivia feliz no meio dos seus. Um dia o Governo soube que ele fazia parte de uma sociedade secreta no estrangeiro, e isso bastou para que fosse deportado, não lhe deixando a escolta que o veio prender tempo sequer de dispor dos seus negócios.

      Wassili Orlik mal pôde abraçar sua mulher, já enferma, e sua filha, que Ia ficar talvez desamparada, e, chorando pela sorte destes dois entes, que ele estremecia com tanto afecto, partiu imediatamente para Irkutsk.

      Havia dois anos já que ele estava na capital da Sibéria oriental, exercendo quase sem proveito a sua profissão de médico. Ainda assim ter-se-ia considerado feliz, tanto quanto pode sê-lo um desterrado, se tivesse junto de si a família que perdera. Sua mulher, já bastante enfraquecida pela doença, não podia sair de Riga. Vinte meses depois do exílio de seu marido, morria ela nos braços de Nadia, que a fatalidade deixara só e quase sem recursos. Foi então que esta corajosa rapariga pediu e obteve licença do Governo russo para ir juntar-se a seu pai. Escreveu-lhe, prevenindo-o da sua resolução. Os meios não lhe sobravam para uma viagem tão longa, porém, não hesitou em efectuá-la. Pela sua parte, fazia o que lhe era possível!... Deus se encarregaria do resto.

      Durante a narração de Nadia, o Cáucaso continuava a sua viagem rio acima. A noite começava a cair e o ar ia-se impregnando de uma suavíssima viração. Milhares de faúlhas se perdiam no ar, expelidas pela chaminé do vapor, e ao murmúrio uniforme das águas, rasgadas pela sua proa, respondia o rugido dos lobos que infestavam, entre as sombras, a margem direita do Kama.

     

     A caminho da Sibéria

      No dia seguinte, 18 de Julho, o Cáucaso dava entrada no ancoradouro de Perm, ponto extremo da sua derrota no Kama.

      O governo que tem Perm por capital constitui um dos mais vastos do império russo e, galgando os montes Urais, ainda se estende pelo território da Sibéria. Abundam nele as pedreiras de mármore, as salinas, os jazigos de platina e de ouro e as minas de carvão, tornando-se todas estas riquezas do solo elementos de grande actividade industrial. Todavia, enquanto Perm se não tornar pela sua posição um centro de primeira ordem, não passa de uma cidade sem recursos, muito suja e muito enlameada. Para quem do interior da Rússia se dirige à Sibéria torna-se indiferente semelhante circunstância, porque pode trazer nas suas malas tudo o que precisa um viajante. Mas para quem volta da Ásia central, depois de uma longa e penosa marcha, não seria desagradável que a primeira cidade da Rússia europeia, junto da fronteira asiática, se achasse mais abastecida de provisões e de conforto.

      É em Perm que os viajantes se desfazem, por meio de venda, dos veículos mais ou menos deteriorados com que percorreram durante alguns meses as intermináveis estepes siberianas. E ali também que todos, que da Europa vão para a Ásia, costumam comprar os seus tarentass ou as telegas, se é de Verão, ou os trenós, se é de Inverno.

      Miguel Strogoff já combinara o plano da viagem. Faltava-lhe só começar a pô-lo em prática.

      Existe um serviço de mala-posta que atravessa rapidamente a cadeia dos montes Urais, mas, devido às consequências da invasão, esse serviço achava-se agora desorganizado. E ainda mesmo que o não estivesse, como Miguel Strogoff tinha empenho de ir depressa e sem dependências de quem quer que fosse, não era a mala-posta que ele escolheria com certeza. Era-lhe mais útil comprar um carro e servir-se das estações de posta para mudar de cavalos, activando o zelo dos postilhões, que neste país se chamam iemschiks, por meio de navodkou (Gorjetas) suplementares.

      Infelizmente, já tinha saído de Perm grande número de viajantes de origem asiática, em consequência das últimas medidas tomadas contra eles. Esta retirada imediata vinha dificultar muitíssimo a obtenção de meios de transporte. Miguel Strogoff via-se, pois, obrigado a lançar mão dos poucos recursos que porventura ainda houvessem na cidade.

      Relativamente a cavalos, enquanto o correio do czar não penetrasse na Sibéria, bastaria apresentar o seu podaroshna para que todos os feitores de posta se empenhassem em servi-lo com zelo e diligência. Fora da Rússia europeia é que Miguel Strogoff só poderia contar com a influência dos seus rublos.

      Que espécie de veículo, porém, deveria ele escolher? Uma telega ou um tarentass?

      A telega é simplesmente um carro descoberto com quatro rodas, toscamente feito de madeira. Rodas, eixos, cavilhas, caixa e varais, todas as diferentes peças de um veículo, são as árvores mais próximas que as fornecem com largueza. Estas peças ligam-se umas às outras apenas por meio de grosseiras cordas. Nada mais primitivo e menos cómodo, mas também nada mais fácil de consertar se porventura ocorre algum acidente no caminho. Os pinheiros abundam em toda a fronteira oriental da Rússia, e os eixos de tais veículos crescem espontaneamente nas florestas. É por intermédio da telega que se faz o serviço da posta extraordinária, conhecido pelo nome de perekladnoi. Para a telega todas as estradas são boas.

      Sucede às vezes, diga-se a verdade, que as cordas que prendem todo o maquinismo se partem e que o jogo dianteiro continua a sua marcha até à próxima estação de muda, enquanto o jogo traseiro fica atolado nalgum charco. Este resultado, porém, já deve considerar-se como regularmente satisfatório.

      Miguel Strogoff ter-se-ia visto obrigado a recorrer a uma telega, se o acaso lhe não deparasse, como felizmente lhe deparou, o achado de um tarentass.

      Isto não quer dizer que o tarentass represente a última palavra do progresso na indústria das carruagens. Não tem molas como a telega e supre a falta de ferragens pela abundância da madeira. As suas quatro rodas, porém, com uma distância de nove a dez pés entre cada um dos seus dois eixos, garantem-lhe um equilíbrio relativo sobre estes caminhos muito pouco nivelados e bastante sujeitos a solavancos. Um guarda-lama protege os viajantes contra os atoleiros da estrada, e uma sólida capa de couro, que se pode fechar hermeticamente, coloca o tarentass em condições de poder resistir aos grandes calores e às grandes trovoadas do Estio. Além disso, o tarentasse é tão fácil de consertar como a telega e não corre tanto perigo de deixar ficar uma metade pelo caminho.

      Ainda assim, não foi sem descer a buscas minuciosas que Miguel Strogoff chegou a descobrir um tarentass. Pode-se mesmo afiançar que, se percorresse toda a cidade de Perm, não encontraria outro. Contudo, para melhor se compenetrar do seu papel de Nicolau Korpanoff, simples negociante de Irkutsk, julgou prudente regatear o preço por que havia de pagá-lo.

      Nadia tinha acompanhado Miguel Strogoff nestas diligências à procura do veículo. Se bem que fosse diverso para cada um deles o fim desta viagem, todavia ambos mostravam igual empenho de a terminar e por consequência de a prosseguir. Parecia que a mesma vontade animava estes dois corpos.

      - Lamento, minha irmã - disse Miguel Strogoff -, que não encontrasse carro melhor para te oferecer.

      - E dizes-me isso, quando eu estava decidida a ir a pé, se assim fosse preciso!

      - Não duvido da tua coragem, Nadia, mas há fadigas físicas difíceis de suportar para uma mulher.

      - Suportá-las-ei eu, quaisquer que sejam - afirmou Nadia. - Se ouvires de meus lábios escapar um queixume, deixa-me no caminho e continua só a tua viagem!

      Meia hora depois, graças à apresentação do podaroshna, eram atrelados três cavalos de posta no tarentass comprado por Miguel Strogoff. Estes animais, de pêlo comprido e abundantíssimo, pareciam ursos. Não eram grandes mas bastante fogosos, porque pertenciam à raça siberiana.

      O iemschik, ou postilhão, tinha-os atrelado da seguinte maneira: o maior deles entre os dois compridos varais, que apresentavam na sua extremidade um arco, chamado duga, todo coberto de borlas e campainhas, e os outros dois presos simplesmente com cordas aos estribos do veículo: Como se vê, ausência completa de arreios e por guias, simplesmente uma corda.

      Nem Miguel Strogoff nem a sua companheira traziam malas. As condições de rapidez que exigia a viagem do primeiro e os recursos mais que limitados da segunda tinham obrigado ambos a ser muito modestos na sua bagagem. Nas actuais circunstâncias fora proveitosa essa abstenção, em consequência de o tarentass, pela sua pequenez, não permitir o transporte simultâneo de malas e passageiros. A caixa do veículo apenas comportava duas pessoas, não incluindo o iemschik, que só por um milagre de equilíbrio conseguiria sustentar-se na almofada.

      O iemschik é substituído em todas as estações de muda. O que tinha de guiar o tarentas durante a primeira corrida era siberiano, como os cavalos, e não menos guedelhudo do que eles. Trazia o cabelo comprido e cortado horizontalmente na testa, chapéu de abas reviradas, cinta vermelha, roupão de alamares sobre o peito, com botões em que se via cunhado o escudo imperial.

      O iemschik, depois de atrelar os cavalos, lançara um olhar investigador sobre os viajantes. Nada de bagagens! E onde é que haviam de levá-las, ainda mesmo que as tivessem? As aparências, portanto, não eram lisonjeiras.

      Isto bastou para que ele deixasse transparecer no olhar uma expressão desdenhosa.

      - Corvos! - disse ele, sem se importar que o ouvissem. - Simples corvos a seis kopeks por versta!

      - Dize antes águias - respondeu-lhe Miguel Strogoff, que percebia perfeitamente a gíria dos iemschiks. - Ouviste? Águias, que te darão nove kopeks por versta, não contando com a gorjeta!

      Um alegre estalar de chicote foi a resposta dada a estas animadoras palavras.

      “Corvo”, na linguagem dos postilhões russos, significa viajante avarento ou pobre, que nas estações de muda só paga os cavalos à razão de dois ou três kopeks por versta. “Águia” é o viajante que não recua diante dos preços elevados nem das pingues gratificações. Por isso o corvo não pode ter pretensão de correr tão depressa como a ave imperial.

      Nadia e Miguel Strogoff tomaram imediatamente lugar no tarentass. Algumas provisões de boca, pouco volumosas e postas de reserva no fundo da caixa, deviam habilitar os viajantes, se houvesse qualquer demora no caminho, a prescindirem das estações de posta, onde contudo não faltam comodidades, graças à fiscalização que exerce sobre elas o Estado.

      Era meio-dia quando o tarentass, puxado pelos seus três impetuosos cavalos, saía de Perm, entre nuvens de poeira. Como o calor fosse insuportável, o veículo levava a capa fechada, para resguardo dos viajantes.

      Outro qualquer que não fosse russo nem siberiano teria estranhado bastante a maneira extravagante como o postilhão ia guiando o tarentass. O cavalo do centro, um pouco maior que os outros, e que servia para regular a marcha, conservava imperturbavelmente um trote largo de perfeita uniformidade, fossem quais fossem os acidentes da estrada. Os outros seus companheiros, pelo contrário, parecendo apenas conhecer o galope como atributo da sua raça, iam exibindo uma colecção de saltos e curvetas que davam vontade de rir. O iemschik, também, não os castigava. Contentava-se em os incitar com os estalos do chicote dados no ar. Mas que prodigalidade de expressões quando os animais não afrouxavam na carreira! Até os nomes dos santos lhes eram aplicados! A corda que substituía as guias, pouca ou nenhuma acção poderia ter sobre cavalos quase desbocados, mas na pravo, para a direita, na levo, para a esquerda, palavras que ele pronunciava com voz gutural, produziam mais efeito que o melhor freio e o melhor bridão.

      E que doçura de termos, segundo as circunstâncias!

      - Vamos, vamos, meus pombinhos - repetia o iemschik. – Vamos lá, meus maganões, galguem-me essa ladeira! Para a frente, meu chibante da direita! Força nessas pernas, meu valente da esquerda!

      Mas também que saraivada de impropérios se, porventura, os pobres animais diminuíam o andamento! Impropérios de que eles pareciam compreender o alcance.

      - Então andas ou não andas, meu calaceirão do inferno! Leve-te a breca a ti, minha lesma de má morte! Deixa estar que te hei-de esfolar vivo para te mandar de presente ao demo!

      Esta maneira de guiar exige com certeza da parte dos iemschik mais força de pulmão do que vigor de pulso. Entretanto, corria a bom correr o tarentass, devorando em cada hora doze a catorze verstas.

      Miguel Strogoff estava havia muito habituado a este género de condução, a este meio de transporte. Nem os saltos nem os solavancos chegavam a incomodá-lo. Ele bem sabia que os carros no seu país não evitam as pedras nem as covas, nem os barrancos nem os fossos, nem as árvores derribadas que obstruem os caminhos. Para eles não existem dificuldades. Nadia, por seu turno, também se não queixava, embora mais de uma vez os balanços do veículo a tivessem magoado.

      Durante os primeiros momentos da viagem, ela viu-se arrebatada com tamanha velocidade que se conservou calada. Depois, voltando-se para Miguel Strogoff, sempre com a mesma preocupação de chegar depressa, disse-lhe:

      - Percorremos já trezentas verstas. Não me enganaria na conta?

      - Não te enganaste, minha irmã - respondeu Miguel Strogoff.

      - Quando chegarmos a Ekaterinburgo, estaremos do lado de lá dos montes Urais, na sua vertente oriental.

      - Quanto tempo será preciso para atravessar a montanha?

      - Quarenta e oito horas, porque havemos de viajar de dia e de noite. Digo de dia e de noite porque não posso perder um instante para chegar a Irkutsk.

      - Não serei eu quem te demore, meu irmão. Dizes bem, é preciso não parar nem de dia nem de noite.

      - E permita Deus que a invasão tártara nos deixe o caminho desembaraçado, porque, nesse caso, antes de vinte dias estaremos em Irkutsk.

      - Não é já a primeira vez que fazes esta viagem? – perguntou Nadia.

      - Não é.

      - Se estivéssemos no Inverno iríamos com mais rapidez e segurança, não é verdade?

      - Com mais rapidez, decerto, o Inverno, porém, seria para ti uma estação fatal por causa da intensidade dos frios e das neves.

      - Que importa? O Inverno é o amigo do russo.

      - Assim será, Nadia, mas que robusta organização não é preciso ter para resistir a semelhante amizade! Já vi nas estepes siberianas a temperatura descer a mais de quarenta graus abaixo de zero! Já senti, apesar do meu fato de pele de rena (Chama-se dakk este fato, é muito leve e, contudo, absolutamente impermeável), gelar-se-me o coração, inteiriçarem-se-me as carnes e enregelarem-se-me os pés, que estavam cuidadosamente envoltos em três pares de meias de lã! Já vi os cavalos do meu trenó cobrirem-se de uma camada de gelo e a sua respiração condensar-se num segundo. Já vi a aguardente do meu frasco transformar-se em pedra tão dura que uma faca não conseguia cortá-la! E contudo o meu trenó corria sempre tão veloz como o tufão. Os obstáculos desapareciam sobre a planície nivelada pela neve. Desapareciam as correntes sem que fosse preciso procurar-lhes os pontos vadeáveis. Desapareciam os lagos, que se atravessavam sem o auxílio de barcos. O gelo por toda a parte! Por toda a parte as estradas ermas, os caminhos desimpedidos! Mas porque preço de torturas! Porque preço de privações! Só poderiam descrevê-las os que lá ficam soterrados, tendo a neve por mortalha!

      - Mas tu não ficaste lá, meu irmão.

      - Não fiquei, porque desde criança me habituei às privações, acompanhando meu pai nas suas perigosas caçadas. Mas quando me disseste, Nadia, que mesmo durante o Inverno te haverias posto a caminho, arcando peito a peito com as inclemências do clima siberiano, pareceu-me ver-te perdida entre os gelos e caindo fatalmente para nunca mais te levantares!

      - Quantas vezes tens percorrido as estepes no Inverno?

      - Três vezes, nas minhas viagens a Omsk.

      - E que ias tu fazer a Omsk?

      - Ver minha mãe, que esperava por mim.

      - E eu vou a Irkutsk, onde meu pai também me espera. Vou levar-lhe as últimas palavras da santa que me morreu nos braços. É como se te dissesse que nada neste mundo me poderia desviar desta piedosa missão.

      - Tens uma boa alma, Nadia - afirmou Miguel Strogoff -, e mereces que a própria divindade te não desampare no cumprimento de tão santo dever.

      Durante este dia o tarentass andou com incrível rapidez, guiado pelos diferentes iemschiks, que se sucediam em cada estação de muda.

      As águias das alturas não teriam de se envergonhar destas “águias” da estrada. O elevado preço por que se pagavam os cavalos e as generosas gratificações que Miguel Strogoff distribuía tornavam os viajantes merecedores de especial consideração. Talvez os feitores de posta achassem extraordinário que, depois das últimas restrições, um rapaz e uma rapariga, ambos evidentemente russos, pudessem atravessar com tanta liberdade os caminhos da Sibéria, fechados a todos os outros viajantes da mesma nação. Todavia, os seus documentos estavam tão em regra que não havia o menor pretexto para lhes dificultar a passagem. Por isso os marcos indicadores das distâncias percorridas iam constantemente ficando para trás do tarentass.

      De resto, Miguel Strogoff e Nadia não eram os únicos a seguir a estrada de Perm a Ekaterinburgo. O correio do czar soubera nas primeiras estações que outro veículo precedia o seu. Mas que lhe poderia isso importar, quando ele ia sempre achando os cavalos de que precisava?

      As pequenas paragens daquele dia, durante as quais o tarentass descansava, eram simplesmente destinadas às refeições dos dois viajantes. Nas estações de posta há sempre o necessário para comer e repousar. E, à falta delas, a habitação do camponês russo não seria menos hospitaleira. Nestas aldeias, de aparência uniforme, todas com as suas paredes brancas e telhados verdes, o viajante pode bater a qualquer hora que nenhuma porta deixará de se lhe abrir. Apresentar-se-á o mujique com a sua franca e alegre fisionomia, estendendo a mão ao recém-chegado e oferecendo-lhe o pão, o sal e o samovar. O hóspede, desde esse momento, ficará ali como em sua casa. Para se lhe dar lugar sairá a própria família, se for preciso. O estrangeiro que chega a estas humildes casas é o parente de todos. É “aquele que Deus enviou”.

      Quando se aproximou a noite, Miguel Strogoff, movido por uma espécie de curiosidade, perguntou numa estação de muda há quantas horas teria passado o carro que lhe levava a dianteira.

      - Há duas - respondeu o feitor.

      - E que espécie de carro é?

      - Uma telega.

      - Com quantos viajantes?

      - Dois.

      - E vão depressa?

      - Como verdadeiras águias.

      - A caminho, sem demora!

      Miguel Strogoff e Nadia, que não queriam perder um só instante, continuaram a viajar durante a noite.

      O tempo conservava-se ainda bom, mas adivinhava-se que a atmosfera, cada vez mais pesada, se ia saturando de electricidade. Nenhuma nuvem interceptava a luz das estrelas e parecia que uma espécie de vapor se levantava da terra. Era para recear que se preparasse alguma dessas trovoadas que nas montanhas se tornam tão terríveis.

      Miguel Strogoff, habituado a distinguir os sintomas atmosféricos, pressentiu iminente uma luta dos elementos, o que sobremodo o preocupou.

      No entanto, a noite passou-se sem novidade. A capa do tarentass, meio levantada, permitia aos dois viajantes que aspirassem o pouco ar de que os seus pulmões tanto precisavam no meio desta atmosfera sufocante.

      Miguel Strogoff velou toda a noite com receio de que os iemschiks se deixassem adormecer sobre a almofada, o que não é raro suceder-lhes. Desta forma nem se perdeu um minuto nas mudas, nem um minuto na estrada. No dia seguinte, 20 de Julho, pelas oito horas da manhã, desenhavam-se na direcção de leste os primeiros contornos dos montes Urais. Contudo, esta enorme cadeia, que separa a Sibéria da Rússia europeia, achava-se ainda a grande distância e só para o fim da tarde se poderia lá chegar. A passagem dos Urais deveria, pois, efectuar-se na noite imediata.

      Durante este dia, o céu esteve sempre coberto de nuvens, e, por consequência, a temperatura mais suportável, contudo, o tempo continuava a prometer trovoada.

      Em vista destes sintomas, talvez fosse prudente não encetar de noite o caminho das montanhas. Isso teria feito Miguel Strogoff se, porventura, tivesse o tempo todo à sua disposição. Mas quando, na última estação de muda, o iemschik lhe disse que vira já cair alguns raios nas clareiras do bosque, limitou-se a responder-lhe:

      - Há uma telega que vai adiante de nós, não há?

      - Há.

      - Que avanço nos leva?

      - Talvez uma hora.

      - Avante!, sem demora, e gorjeta triplicada se amanhã de manhã chegarmos a Ekaterinburgo.

     

     A trovoada

      Os montes Urais, situados entre a Europa e a Ásia, dilatam-se por uma extensão de perto de três mil verstas (3200 quilómetros). Quer se lhe dê o nome de Urais, que é de origem tártara, quer o de Poyas, que é denominação russa, esta dupla designação tem propriedade, porque em ambas as línguas significa “cintura”.

      Os montes Urais, que nascem no litoral do Árctico, vão morrer no mar Cáspio.

      Era esta a fronteira que Miguel Strogoff tinha a transpor na sua viagem da Rússia para a Sibéria. Tomando, como se disse, a estrada que ia de Perm a Ekaterinburgo, sobre a vertente oriental, Miguel Strogoff seguia nisso os conselhos de uma justificada prudência. Era o caminho mais fácil, mais seguro, e o que serve geralmente de trânsito ao comércio com a Ásia central.

      Se não sobreviesse algum acidente, bastaria uma noite para atravessar estes montes. Por infelicidade, os primeiros estampidos do trovão anunciavam uma tempestade, que pelo estado particular da atmosfera prometia ser medonha. A tensão eléctrica era tal que só um choque violento conseguiria dissipá-la.

      Miguel Strogoff dispôs as coisas para evitar, quanto possível, todos os incómodos à sua companheira de viagem. A capa do tarentass, que a fúria do vento queria arrebatar, foi muito bem presa por meio de cordas que se cruzavam em todas as direcções. Duplicaram-se os tirantes dos cavalos e, por excesso de precaução, o aro do cubo das rodas foi guarnecido de alha, tanto para assegurar a sua solidez, como para diminuir o efeito dos choques, difíceis de evitar numa noite tempestuosa e escura.

      A dianteira e a traseira do tarentass, que estavam unidas à caixa por cavilhas, foram novamente ligadas uma à outra por meio de uma travessa de madeira apertada com parafusos. Esta travessa fazia o mesmo efeito da viga curva que nos antigos coches ligava o jogo dianteiro com o jogo traseiro.

      Miguel Strogoff e Nadia tornaram a sentar-se nos mesmos lugares em que até ali tinham vindo. Da frente da capa do tarentass pendiam duas cortinas de couro, que, numa certa proporção, deviam resguardar os viajantes contra a chuva e as ventanias.

      Duas enormes lanternas, colocadas do lado esquerdo da almofada do iemschik, iam lançando obliquamente sobre a estrada os seus baços clarões. Eram como duas luzes de farol, que, se mal dissipavam as trevas, serviam contudo para evitar o embate de qualquer outro veículo que caminhasse em sentido oposto.

      Como se vê, tinham-se tomado todas as precauções, e, atendendo ao que se esperava, todas eram poucas.

      - Está tudo já pronto, Nadia - anunciou Miguel Strogoff.

      - Partamos - respondeu ela.

      Deu-se ordem ao iemschik para seguir, e o tarentass pôs-se logo em movimento, começando a trepar as primeiras encostas em direcção aos montes Urais.

      Eram oito horas da noite, ia pôr-se o Sol. Apesar, porém, de o crepúsculo ser muito longo nestas latitudes, a atmosfera mostrava-se extremamente carregada. Não se via uma nesga de céu. Nuvens densas, que nenhum vento deslocava, pareciam prestes a abater-se sobre a terra. Todavia, se elas permaneciam imóveis na direcção do horizonte, o mesmo já não sucedia na direcção zénite-nadir - e a distância que as separava do solo diminuía visivelmente. Além disso, algumas das nuvens derramavam uma espécie de luz fosforescente e tomavam a aparência de arcos de sessenta a oitenta graus, que se estreitavam constantemente sobre o dorso da montanha, como se viessem acossadas por feroz tormenta desencadeada nas regiões superiores. A estrada confundia-se já com estes vapores chegados quase ao grau de condensação, e, se eles se não desfizessem, a cerração seria tal que o tarentass não poderia ir para diante sem correr perigo de cair nalgum precipício.

      Contudo, a cadeia dos montes Urais não atinge grandes alturas. A elevação do seu maior pico não excede cinco mil pés. As neves perpétuas são ali desconhecidas e as que o Inverno siberiano acumula nos seus cumes derretem-se completamente aos primeiros raios de sol do Estio. As árvores e as plantas suavizam a paisagem com a sua espessa ramaria e a sua opulenta folhagem. As minas de ferro e de cobre e os jazigos de pedras preciosas ocupam na sua exploração um grande número de trabalhadores, espalhados por muitas aldeias que se chamam zavody. A estrada aberta por entre os desfiladeiros é perfeitamente acessível aos trens de posta.

      Porém, o que não oferece perigo à luz do dia e com bom tempo torna-se difícil e arriscado quando os elementos lutam com violência e os viajantes se acham no meio dessa luta.

      Miguel Strogoff sabia, por experiência própria, o que era uma trovoada na montanha, e tinha razões para julgar este fenómeno atmosférico tão perigoso como os ventos glaciais que flagelam as estepes da Sibéria.

      Quando o tarentass começou a correr, ainda a chuva não caía. Miguel Strogoff tinha levantado as cortinas de couro que protegiam a caixa e olhava para diante, sem deixar contudo de examinar as bermas da estrada, que a luz vacilante das lanternas enchia de sombras fantásticas.

      Nadia, imóvel e com os braços cruzados, olhava também, mas sem se debruçar, enquanto o seu companheiro, com o corpo meio deitado para fora do veículo, parecia interrogar céu e terra ao mesmo tempo.

      A atmosfera conservava-se absolutamente tranquila, mas de uma tranquilidade ameaçadora. Não se deslocava uma única molécula de ar. Dir-se-ia que a natureza, meio sufocada, não respirava, e que os seus pulmões, essas nuvens densas e sombrias, não podiam funcionar por se verem atrofiados. O silêncio teria sido absoluto sem a bulha das rodas, que trituravam o cascalho, sem o ranger dos cubos e das pranchas do veículo, sem a respiração cavernosa dos cavalos, que iam já sem fôlego, e sem o estrépito que eles faziam, ferindo lume com as suas ferraduras sobre as pedras da estrada. Esta estava completamente deserta. Não se avistava um só homem a pé ou a cavalo, não se pressentia sequer o ruído de um só carro.

      Pelos estreitos desfiladeiros reinava a imobilidade.

      Nem uma fogueira de trabalhadores empregados na extracção do carvão, nem uma simples cabana perdida por entre os cabeços! Só um desses imperiosos deveres, que não admitem hesitações ou delongas, poderia obrigar um homem a atravessar os Urais naquela noite assustadora.

      Miguel Strogoff não hesitara. Não podia fazê-lo, nem lho consentia também o seu espírito animoso, E que viajantes seriam aqueles que o precediam numa telega? Que motivos especiais teriam eles para avançar com tempo tão mau? O correio do czar começava a sentir-se seriamente preocupado por semelhante mistério.

      Entretanto Miguel Strogoff permanecia sempre de atalaia. Pelas onze horas os relâmpagos começaram sem interrupção a inundar o céu de clarões sucessivos e ruídos - graças aos quais se via aparecer e desaparecer o perfil dos grandes pinheiros, que se destacavam em diferentes pontos do caminho. Depois, quando o tarentass chegava a roçar a berma da estrada, profundos despenhadeiros, por seu turno, eram iluminados pelos mesmos clarões. De vez em quando um movimento mais surdo do veículo dava a perceber que ele atravessava uma ponte de grossos madeiros mal cortados, lançada talvez sobre algum abismo, em cujas entranhas o trovão repercutia os seus formidáveis rugidos. O espaço começava a encher-se de uns sons vagos e plangentes, cujo diapasão aumentava à medida que eles subiam para o céu. A estes surdos gemidos vinham juntar-se os gritos e as imprecações do iemschik, ora afagando, ora castigando os pobres animais, que se mostravam mais cansados pelos efeitos da atmosfera carregada do que pelas asperezas do caminho.

      As campainhas dos varais já não conseguiam animá-los. Havia até momentos em que chegavam a cair extenuados.

      - A que horas atingiremos nós o alto da estrada? – perguntou Miguel Strogoff ao iemschik.

      - À uma hora da manhã, se chegarmos a deitar lá – informou este, abanando a cabeça.

      - É a primeira vez que a trovoada te colhe por estes sítios?

      - Qual! E Deus permita que não seja a última!

      - Tens medo, meu rapaz?

      - Não tenho, patrão, mas parece-me que não foi acertado meter-se a gente ao caminho com a noite que está.

      - Ainda teria sido pior ficar para trás.

      - Upa, meus valentes! - replicou o iemschik, animando os cavalos, como homem que não viera ali para discutir mas sim para obedecer.

      Neste momento fez-se ouvir ao longe um grande estrondo. Pareciam milhares de silvos agudos e penetrantes cortando a atmosfera. Ao clarão deslumbrante de um relâmpago, seguido quase instantaneamente do fragor do raio, Miguel Strogoff distinguiu alguns pinheiros colossais contorcendo-se desesperadamente sobre as alturas de um cerro. Era o vento que se desencadeava com fúria, revolvendo, por enquanto, só as altas camadas de ar.

      Um estalar seco e repetido denunciava que as árvores mais decrépitas não tinham podido resistir ao embate do tufão. Troncos de todos os tamanhos, atravessando vertiginosamente a estrada depois de terem vindo a rolar de fraga em fraga, iam despenhar-se num precipício do lado esquerdo, aberto a duzentos passos do tarentass.

      Os cavalos estacaram de repente.

      - Então, meus tontinhos! Nada de esmorecer! - gritava-lhes o iemschik, juntando os estalos do seu chicote às detonações do trovão.

        Miguel Strogoff apertava a mão de Nadia.

      - Dormes?

      - Não durmo.

      - Pois prepara-te, que chegou o momento mais perigoso!

      - Estou preparada, meu irmão.

      Miguel Strogoff mal teve tempo de fechar as cortinas do tarentass.

      O tufão aproximara-se, de facto, com todo o ímpeto da sua força destruidora.

      O iemschik, saltando da almofada abaixo, pôs-se à frente dos cavalos para os segurar, porque um perigo imenso ameaçava então o veículo.

      O tarentass chegara a uma volta da estrada pela qual a borrasca irrompia desenfreadamente. Era necessário conservá-lo com a frente para o vento, aliás, tomado de flanco, ter-se-ia voltado infalivelmente, indo precipitar-se numa voragem que ladeava a estrada. Os cavalos, sacudidos pelo tufão, empinavam-se, e o iemschik lutava inutilmente por contê-los em respeito. As expressões de afecto sucediam-se na sua boca, como as palavras furiosas. Era tudo perdido! Os pobres animais, deslumbrados pelas descargas eléctricas, espantados pela voz rouca do trovão, forcejavam por desprender-se dos tirantes e fugir ao acaso.

      O iemschik não podia ser senhor deles.

      Miguel Strogoff, atirando-se de um pulo para fora do tarentass, acudiu em seu auxílio. Dotado de uma força prodigiosa, conseguiu, não sem custo, subjugar os cavalos.

      Mas a fúria dos elementos recrudescia. A estrada neste sítio abria-se em forma de funil, deixando coar-se por ela o vendaval desenfreado.

      - Mas não se pode ficar aqui por muito tempo! - disse Miguel Strogoff com impaciência ao iemschik.

      - Não ficaremos, não - gritou este, assustado, e firmando-se com todas as suas forças contra semelhante deslocação de camadas de ar. - O furacão se encarregará de pregar connosco daqui abaixo. E não há-de tardar muito.

      - Segura no cavalo da direita, poltrão! Eu me encarrego do da esquerda.

      Uma rajada fortíssima veio interromper Miguel Strogoff, que teria ido ao chão com o iemschik se ambos se não dobrassem rapidamente para lhe evitar o choque.

      Mas o carro, apesar dos esforços dos dois homens e da resistência oferecida pelos cavalos, recuou bastantes passos, e sem um tronco providencial, que o susteve na carreira, ter-se-ia precipitado para fora da estrada.

      - Não tenhas medo, Nadia - gritou Miguel Strogoff.

      - Não tenho - assegurou a jovem livoniana sem que a sua voz atraiçoasse a mínima comoção.

      O fuzilar dos relâmpagos tinha cessado um instante, e a horrorosa trovoada, depois de passar por cima do tarentass, ia-se afastando pouco a pouco nas curvas da montanha.

      - O patrão quer descer? - perguntou o iemschik.

      - Não, é melhor ladear a estrada e ganhar o alto do desfiladeiro mais próximo, onde com certeza encontraremos um abrigo.

      - Mas os cavalos recusam-se a andar.

      - Faz como eu: puxa por eles.

      - A tempestade ainda não está dissipada.

      - Queres ou não obedecer?

      - Quererei.

      - É o Pai que o ordena! - afirmou Miguel Strogoff, que pela primeira vez invocava o nome do imperador, esse nome tão omnipotente sobre três partes do universo.

      - A caminho, meus chibantes! - gritou o postilhão, segurando o cavalo da direita, enquanto Miguel Strogoff fazia o mesmo ao da esquerda.

      Os cavalos, assim auxiliados, puseram-se novamente em movimento, se bem que a muito custo.

      Desaparecera o receio de se lançarem para os lados, e o cavalo dos varais, desembaraçado agora dos encontrões dos seus companheiros, seguia pelo centro da estrada sem grande dificuldade. Entretanto, homens e cavalos, perseguidos pelo tufão, não avançavam três passos que não perdessem um pelo menos. Escorregavam, caíam, e levantavam-se para caírem de novo.

      A continuar isto assim, corria perigo de se despedaçar o tarentass. A sua capa, se não fora tão solidamente presa, teria já ido pelos ares.

      Miguel Strogoff e o iemschik, açoitados pelo vento, levaram mais de duas horas a subir uma distância apenas de uma versta. E o que lhes dificultava o caminho não era só a tempestade, era também, e principalmente, o imenso chuveiro de troncos e pedras que as altas montanhas sacudiam e arremessavam contra eles.

      De repente, à luz de um relâmpago, viu-se um desmedido penedo rolando com espantosa rapidez na direcção do tarentass.

      O iemschik soltou um grito. Miguel Strogoff quis obrigar os cavalos a avançar, fustigando-os com o chicote. Eles não se mexeram!

      Miguel Strogoff anteviu que em menos de um minuto o carro seria colhido pela imensa pedra, e a sua companheira esmagada, sem tempo ter de lhe fugir.

      Por isso, largando mão do cavalo da esquerda, com os ombros de encontro às rodas, e especando os pés no chão, obrigou o tarentass a avançar alguns metros para diante.

      A iminência do perigo dotara Miguel Strogoff de novas forças! O penedo, na sua queda, roçou ao de leve pelo peito do generoso rapaz, cortando-lhe momentaneamente a respiração. Depois foi encravar-se no caminho, esmigalhando na sua passagem sílices, que feriram lume com o peso daquele choque.

      - Que foi, meu irmão? - perguntou Nadia, que tinha presenciado tudo, com espanto, à luz de um relâmpago.

      - Nada, não te assustes, minha irmã - recomendou Miguel Strogoff.

      - Não é por mim que me assusto.

      - Deus está connosco, Nadia.

      - Comigo está, decerto, porque me fez encontrar em ti um protector - murmurou Nadia em voz baixa.

      O Impulso que Miguel Strogoff, por um supremo esforço, imprimira ao tarentass, não serviu só para salvá-lo da catástrofe, graças a este movimento, de um arrojo extraordinário, os cavalos, até ali paralisados, puderam continuar a sua marcha. Quase que arrastados por Miguel Strogoff e o iemschik, lá foram subindo a ladeira até chegarem ao extremo do desfiladeiro, onde uma cinta de alterosos rochedos reentrantes servia como que de resguardo natural contra as inclemências da tormenta.

      O vento não fazia ali sentir o terrível efeito de seus turbilhões. Era um abrigo relativamente benigno. Fora dele, nem homens nem veículos, expostos à violência do ciclone, poderiam conservar-se de pé.

      E de facto alguns pinheiros, que naquele ponto se erguiam majestosos, tinham sido despojados das suas copas, como se uma foice enorme os houvesse querido pôr ao nível dos rochedos.

      A procela ia chegando ao seu maior paroxismo. Os relâmpagos iluminavam a montanha e os trovões não cessavam de atroar o espaço. O solo sofria abalos e estremecia como se estivesse dominado por uma espécie de trepidação.

      O tarentass fora abrigado numa quebrada, onde a tormenta o não fustigava com tanta força. Decorridos, porém, alguns minutos, as contracorrentes do tufão, que sopravam obliquamente, acabaram por alcançá-lo, atirando com ele de encontro a uma fraga, em risco de o fazer em pedaços.

      Nadia viu-se, portanto, obrigada a sair dele. Miguel Strogoff, depois de lhe procurar outro refúgio à luz frouxa de uma das lanternas, descobriu enfim uma escavação, talvez feita pela picareta de algum mineiro, onde Nadia conseguiu a custo recolher-se.

      Nesta altura, era uma hora da manhã, a chuva começou a cair torrencialmente, sem que a sua intensidade conseguisse apagar os clarões do céu. Estas complicações cada vez dificultavam mais a viagem.

      Apesar, pois, de toda a impaciência de Miguel Strogoff, e pode-se imaginar se ele estaria ou não impaciente, foi preciso suspender a marcha até abrandar o mau tempo.

      Apenas a tempestade consentisse que alcançassem de novo o alto da estrada de Perm para Ekaterinburgo, restaria só aos viajantes descer os declives dos Urais. Descê-los, porém, com a chuva e o vento pela frente e com o terreno alagado pelas numerosas enxurradas que vinham da montanha, seria expor a vida sem vantagem, seria correr de olhos fechados para um abismo.

      - Esperar, contraria-me - disse Miguel Strogoff -, mas é sem dúvida o mais acertado para evitar riscos maiores. A própria fúria da tempestade faz-me crer que ela não poderá prolongar-se. Sendo três horas deve começar o dia a romper, e o caminho, invisível com as trevas, tornar-se-á, depois do Sol nado, se não fácil, pelo menos praticável.

      - Esperemos - concordou Nadia. - Mas que não seja por minha causa que tu adies o momento de partida. Bem sabes que não há perigos nem fadigas que me façam estremecer.

      - Sei que és corajosa e resoluta, minha irmã, mas, se me fosse assim meter ao caminho, arriscava com isso mais do que as nossas vidas: arriscava o fim da minha viagem, o cumprimento do meu dever.

      - O seu dever! - balbuciou Nadia.

      Nesta ocasião um relâmpago descomunal rasgou o céu, como que parecendo volatilizar a chuva. Sentiu-se um estampido terrível. O ar impregnou-se de um cheiro sulfuroso, quase asfixiante, e um feixe de grandes pinheiros, atingido por um raio, a vinte passos do tarentass, incendiou-se, produzindo à vista o efeito de uma tocha gigantesca.

      O iemschik, que ficara assombrado pelo choque, levantou-se, felizmente sem ferimentos.

      Depois, quando os últimos ecos do trovão já se tinham apagado nas profundezas da montanha, Miguel Strogoff sentiu que Nadia lhe apertava a mão com força, segredando-lhe estas palavras, proferidas rapidamente:

      - Escuta, meu irmão!

      - Que tens?

      - Não ouviste?

      - O quê?

      - Gritos lá ao longe! Que será?

     

     Encontros imprevistos

      Durante o pequeno intervalo que se sucedera à trovoada, tinham-se efectivamente ouvido uns gritos, que pareciam partir da parte superior da estrada, a pouca distância do ponto onde permanecia o tarentass.

      Dir-se-ia que eram alguns viajantes perdidos no caminho, bradando por socorro.

      Miguel Strogoff pusera-se a escutar.

      O iemschik também escutava, mas abanando a cabeça, Como quem supunha ser impossível responder àqueles gritos.

      - São viajantes que pedem auxílio - disse Nadia.

      - Se contam com o nosso, estão servidos - volveu o iemschik.

      - E porque não hão-de contar? - respondeu Miguel Strogoff. - Acaso não devemos fazer por eles o que em idênticas circunstâncias eles talvez fizessem por nós?

      - O patrão não vai decerto arriscar o carro e os cavalos.

      - Irei a pé - atalhou Miguel Strogoff.

      - E eu acompanho-te - declarou a jovem livoniana.

      - Tu fica. O iemschik te fará companhia. Não quero deixá-lo só.

      - Ficarei - aquiesceu Nadia.

      - Suceda o que suceder, não te afastes deste local.

      - Vai descansado, meu irmão.

        Miguel Strogoff apertou as mãos à sua jovem companheira e, atingindo o alto do desfiladeiro, perdeu-se por entre as sombras.

      - O patrão faz mal - afirmou o iemschik.

      - Faz o que deve - respondeu Nadia.

      Entretanto Miguel Strogoff caminhava rapidamente pela estrada. Se tinha pressa de ir em socorro daqueles que pareciam estar em perigo, também tinha desejo de saber quem seriam os viajantes que assim se metiam a caminho com tão má noite. Inclinava-se a supor que talvez fossem os da telega, cuja passagem pela estrada os feitores de posta lhe haviam indicado.

      A chuva continuava a cair e o tufão redobrava de violência. As vozes trazidas pelo vento cada vez se tornavam mais distintas. Do ponto onde Miguel Strogoff deixara Nadia e o iemschik, nada se podia ver. A estrada fazia diferentes curvas e o clarão dos relâmpagos só desenhava a crista dos rochedos. As lufadas violentas, que se quebravam nos ângulos da montanha, formavam diferentes redemoinhos difíceis de transpor e só a força prodigiosa de Miguel Strogoff conseguia resistir-lhes.

      Tornava-se evidente que os viajantes não podiam achar-se longe. Se bem que Miguel Strogoff ainda não os visse, ou porque estivessem fora da estrada, ou porque a escuridão lhos ocultasse, as suas palavras, contudo, já se percebiam distintamente.

      Miguel Strogoff ouviu, pois, o seguinte diálogo, que não deixou de o surpreender sobremaneira:

      - Animal!, Voltas ou não voltas?

      - Hei-de te mandar azorragar na primeira estação de muda.

      - Tu ouves ou não ouves, meu postilhão do inferno!

      - Aqui está como estes patifes servem os passageiros na Rússia!

      - E aqui está ao que eles chamam pomposamente uma telega!

      - Olá, refinadíssimo velhaco! E não vem! Parece que está caçoando connosco!

      - Tratar-me desta maneira... a mim! Um inglês de categoria! Hei-de queixar-me ao embaixador e fazê-lo enforcar!

      Aquele que se expressava assim via-se que tinha chegado ao auge da cólera. Mas de repente Miguel Strogoff pôde perceber que o segundo interlocutor tirava da situação o provento que podia, porque ouviu ecoar uma sonora gargalhada, seguida destas palavras:

      - Sabidas as contas, isto tem graça! Tem muita graça, na verdade!

      - E dá-lhe vontade de rir! - retorquiu com um tom sofrivelmente azedo o cidadão do Reino Unido.

      - Decerto, meu caro colega. É o que tenho de melhor a fazer, e aconselho-o a que me siga o exemplo. Palavra de honra! Acho graça a tudo isto... mas muita graça!

      Neste momento sentiu-se o ribombo de um formidável trovão, que os ecos da montanha foram repercutindo numa escala assustadora. Depois, quando o último som se perdia muito longe, tornou a ouvir-se a voz jovial de um dos dois viajantes:

      - Então não tem muita graça? Isto não apanha uma pessoa em França.

      - Nem em Inglaterra.

      Sobre a estrada, iluminada pelos relâmpagos, Miguel Strogoff distinguiu a vinte passos de distância dois viajantes, empoleirados na parte traseira de um extravagante veículo, que parecia achar-se profundamente enterrado num atoleiro.

      Miguel Strogoff aproximou-se dos dois viajantes, dos quais um continuava a rir e o outro a desesperar-se, e reconheceu neles os dois correspondentes de jornal que vira a bordo do Cáucaso e com quem fizera viagem desde Nijni-Novgorod até Perm.

      - Bom dia, ou, para melhor dizer, péssima noite, meu caro senhor - gritou do seu posto o francês. - Folgo muito de o ver neste lugar. Conceda-me que lhe apresente o meu particular... inimigo, Sr. Harry Blount.

      O jornalista inglês fez um cumprimento, e ia talvez por seu turno apresentar o colega Alcide Jolivet, conforme as práticas da delicadeza, quando Miguel Strogoff o interrompeu.

      - É escusado, meus senhores: nós já nos conhecemos.

        Viajámos juntos no Volga.

      - Perfeitamente respondido, meu caro senhor... senhor?

      - Nicolau Korpanoff, negociante de Irkutsk – respondeu Miguel Strogoff. - Mas poderei saber que circunstância extraordinária lhes sucedeu que tanto penaliza um e tanto faz rir o outro?

      - Eu lha conto, Sr. Korpanoff - volveu Alcide Jolivet. - Imagine que o nosso postilhão safou-se com metade da sua detestável caranguejola, deixando-nos aqui à chuva sobre a outra metade. Temos para os dois só meia telega, achamo-nos sem guia e foram-se-nos os cavalos.

        Isto não será engraçado, imensamente engraçado?

      - Qual engraçado! - resmungou o inglês.

      - É que o colega não sabe encarar as coisas pelo seu melhor lado.

      - E como poderemos nós continuar a viagem? - quis saber Harry Blount.

      - Nada mais fácil - explicou Alcide Jolivet. - O colega vai puxar o que ainda nos resta do carro, eu tomo as guias, chamo-lhe “pombinho”, como se fosse um verdadeiro iemschik, e continuamos deste modo a viagem com uma certa originalidade.

      - Sr. Jolivet - redarguiu o inglês -, esse gracejo ultrapassa todos os limites, e...

      - Descanse, meu caro colega. Quando estiver cansado, irei eu substituí-lo, e então ficar-lhe-á o direito de me chamar “sendeiro lazarento” se porventura o não levar de grande batida por estes caminhos fora.

      Alcide Jolivet dizia tudo isto com uns modos tão prazenteiros que Miguel Strogoff não pôde deixar de rir.

      - Meus senhores - disse ele Então. - Lembra-me um expediente melhor. Nós chegámos ao ponto culminante da cadeia dos Urais, portanto, só nos resta agora descer as vertentes da montanha. O meu tarentass acha-se a quinhentos passos daqui. Ceder-lhes-ei um dos meus cavalos, que será atrelado à caixa da vossa telega e desta forma, se não sobrevier algum novo contratempo, chegaremos amanhã todos juntos a Ekaterinburgo.

      - Sr. Korpanoff, o seu oferecimento deixa-nos sobremaneira penhorados - respondeu Alcide Jolivet.

      - Devo ainda acrescentar - ajuntou Miguel Strogoff -, que se lhes não digo que subam para o meu tarentass é porque ele só tem dois lugares e esses estão ocupados por mim e por minha irmã.

      - Ora essa, Sr. Korpanoff - respondeu Alcide Jolivet -, eu e o meu colega, com um cavalo e com a metade da nossa telega, somos capazes de ir até ao fim do mundo.

      - Pela minha parte agradeço também muito o seu delicado obséquio - disse Harry Blount. - Quanto ao petulante do iemschik...

      - Não lhe queira mal por isso - aconselhou Miguel Strogoff.

      - Não é decerto a primeira vez que lhe sucede um caso destes.

      - Mas porque não voltou ele para trás? O tratante bem devia saber que nos deixava no caminho.

      - Não sabia, nem tal coisa lhe passou pela cabeça!

      - Como assim? Pois aquele pobre diabo ignora que a telega se separou em dois bocados?

      - Ignora, decerto, e é com a melhor boa fé deste mundo que ele continua guiando o seu jogo dianteiro até Ekaterinburgo.

      - Não lhe dizia eu - replicou Alcide Jolivet para Harry Blount - que tudo isto era muito engraçado?

      - Se, portanto, se decidem a seguir-me - ajuntou Miguel Strogoff -, vamos ter com o meu iemschik, e...

      - Mas a telega? - objectou o inglês.

      - Não receie que ela fuja, meu caro Blount - disse a rir Alcide Jolivet. - Está tão bem enraizada no solo, que, se a deixássemos ali ficar, deitaria rebentos para a próxima Primavera.

      - Então venham, meus senhores - convidou Miguel Strogoff. - Voltaremos depois aqui com o tarentass.

      O francês e o inglês, apeando-se dos lugares que ocupavam no fundo da telega, os quais passavam a ser agora lugares da frente, seguiram Miguel Strogoff.

      Mesmo a andar, Alcide Jolivet não perdia o costume de ir falando alegremente de tudo que lhe ocorria.

      - Palavra de honra, Sr. Korpanoff - disse ele a Miguel Strogoff -, sem a sua valiosa intervenção não sei como havíamos de sair daqui.

      - Fiz apenas - respondeu Miguel Strogoff - o que outro qualquer teria feito no meu lugar. De que serviriam as estradas se os viajantes não se protegessem uns aos outros?

      - Se pela nossa parte lhe pudermos também ser úteis alguma vez, Sr. Korpanoff, se por acaso nos encontrarmos nas estepes da Sibéria...

      Alcide Jolivet não perguntava de uma maneira directa a Miguel Strogoff qual era o seu verdadeiro destino, este, porém, não querendo parecer que dissimulava, respondeu prontamente:

      - Vou para Omsk, meus senhores.

      - E o Sr. Blount e eu - declarou Alcide Jolivet - vamos a caminho da Sibéria, sem saber ao certo para que ponto. Vamos talvez ao encontro das balas, mas com toda a certeza ao encontro das notícias.

      - Dirigem-se então às províncias invadidas? – perguntou Miguel Strogoff com certa curiosidade.

      - Precisamente, Sr. Nicolau Korpanoff, e é bem de supor que nos não encontremos por ali.

      - Decerto - concordou Miguel Strogoff. - Sou pouco amigo de combates, e muito pacífico por natureza para me aventurar em sítios onde se precise de lidar com armas de fogo.

      - Tenho pena, muita pena, de sermos obrigados a separar-nos dentro em pouco. Mas talvez que ao sairmos de Ekaterinburgo a nossa boa estrela nos permita ainda viajar juntos por algum tempo.

      - Os senhores dirigem-se para Omsk? - perguntou Miguel Strogoff, depois de alguns momentos de reflexão.

      - Ainda não sabemos - respondeu Alcide Jolivet -, mas é quase positivo que iremos directamente a Ichim. Depois de lá estarmos, veremos o que os acontecimentos nos aconselham.

      - Nesse caso - ajuntou Miguel Strogoff -, seremos companheiros de viagem até Ichim.

      Miguel Strogoff teria preferido ir só, mas, sem que desse nas vistas dos dois correspondentes, não podia sem justificado motivo separar-se deles, uma vez que todos tomavam a mesma estrada. De resto, como Alcide Jolivet e Harry Blount tencionavam ficar em Ichim, como nenhum dos dois seguia logo para Omsk, não havia o menor inconveniente em fazer na companhia de ambos uma parte da viagem.

      - Portanto, meus senhores - disse ele -, está decidido, viajaremos juntos.

      Depois, com o tom de voz mais indiferente, perguntou:

      - Sabem os senhores, com alguns visos de verdade, em que estado se acha a invasão tártara?

      - Sabemos apenas, Sr. Korpanoff, o que se dizia em Perm a esse respeito - respondeu Alcide Jolivet. - Constava ali que os tártaros de Féofar-Cã tinham invadido toda a província de Semipalatinsk e que seguiam a marchas forçadas o curso do Irtyche. Convém, pois, que se não demore, se deseja chegar a Omsk antes deles.

      - Assim é - confirmou Miguel Strogoff.

      - Acrescentava-se também que o coronel Ogareff tinha conseguido passar a fronteira disfarçado, e que não devia tardar muito a reunir-se com as forças do chefe tártaro, no próprio centro do país invadido.

      - Mas como se pôde saber Isso? - perguntou Miguel Strogoff, a quem estas notícias, mais ou menos verdadeiras, interessavam directamente.

      - Ora! Como se sabem todas as coisas - explicou Alcide Jolivet. - São boatos que correm.

      - E o senhor inclina-se a crer que o coronel Ogareff já esteja na Sibéria?

      - Cheguei até a ouvir dizer que ele tinha tomado a estrada de Kazan a Ekaterinburgo.

      - Ah! O Sr. Jolivet sabia isso? - interveio então Harry Blount, que pusera de parte o seu sistemático silêncio ao ouvir aquela resposta do correspondente francês.

      - Sabia - respondeu com simplicidade Alcide Jolivet.

      - E sabia também que esse tal Ogareff devia estar disfarçado de boémio?

      - De boémio! - exclamou quase involuntariamente Miguel Strogoff, que se lembrou do seu encontro com o tzigano em Nijni-Novgorod, da viagem deste a bordo do Cáucaso e do seu desembarque em Kazan.

      - Sabia-o tão bem que julguei o caso digno de ser relatado numa carta a minha prima - respondeu, sorrindo, Alcide Jolivet.

      - Vê-se que não perdeu o tempo em Kazan! - retorquiu o inglês com ar de enfado.

      - Meu caro colega, enquanto o Cáucaso renovava a sua provisão de combustível, eu, imitando-o, renovava a minha provisão de notícias.

      Miguel Strogoff já não prestava atenção aos ditos mais ou menos repassados de ironia que Alcide Jolivet e Harry Blount se dirigiam mutuamente. Só pensava no bando dos boémios que vira a bordo, naquele tzigano, cujas feições não pudera distinguir, e na sua companheira, que não tirara os olhos dele quando ia a desembarcar. O correio do czar procurava reunir mentalmente os diversos pormenores daquele encontro, quando de repente se ouviu um tiro a curta distância.

      - Ouviram, meus senhores?

      E, dizendo isto, Miguel Strogoff deitara a correr na direcção do som.

      - E então! Para um negociante pacífico e pouco amigo de lidar com armas de fogo - comentou Alcide Jolivet -, não parece lá muito fugir delas.

      E, acompanhado pelo seu colega Harry Blount, que não era homem para se deixar ficar atrás, Alcide Jolivet seguiu de perto as pisadas de Miguel Strogoff.

      Poucos momentos depois achavam-se todos três no local do desfiladeiro onde se tinha abrigado o tarentass.

      O feixe de pinheiros que o raio Inflamara ardia ainda. O caminho estava deserto. Contudo, Miguel Strogoff não se podia ter enganado. Fora decerto o detonar de uma arma de fogo que chegara até ele.

      De repente ouviu-se um urro imenso juntamente com um segundo tiro, mais perto ainda.

      - Um urso! - exclamou Miguel Strogoff, que não podia iludir-se sobre a procedência daqueles sons rouquenhos.

      - Nadia!

      E, tirando a navalha da cintura, Miguel Strogoff precipitou-se com a ligeireza de uma corça para o lugar, já próximo, onde a sua companheira de viagem prometera ficar à sua espera.

      Os pinheiros, envolvidos pelas chamas de alto a baixo, alumiavam o quadro com intensos clarões.

      No momento em que Miguel Strogoff se aproximava do tarentass, recuava até junto dele um vulto de formas colossais.

      Era um urso de enormes proporções. A tempestade tinha-o talvez afugentado dos bosques vizinhos, e ele vinha refugiar-se na mesma escavação, o seu covil naturalmente, onde Nadia agora estava.

      Dois dos cavalos, assustados, haviam fugido, quebrando os tirantes. O iemschik, sem se importar com a sorte de Nadia, que ele deixava exposta em frente do animal, pensara só em correr atrás da parelha fugitiva.

      A corajosa rapariga não perdera contudo o sangue frio. O animal, que a não vira de princípio, dispunha-se a atacar o cavalo preso ainda ao tarentass. Nadia, saindo então do seu abrigo, correra à caixa do veículo, empunhara um dos revólveres de Miguel Strogoff e, caminhando afoitamente para o urso, desfechara contra ele à queima-roupa.

      O animal, ferido ligeiramente na espádua, voltara-se contra este imprevisto e repentino ataque. Nadia, entretanto, para se defender, pusera-se atrás do tarentass, do qual procurava loucamente soltar-se o terceiro cavalo.

      Nadia, neste momento, pensando que a perda dos cavalos poderia prejudicar de todo a continuação da viagem, decidiu-se a enfrentar a fera e, com uma presença de espírito admirável, disparou segundo tiro, quando ela ia já a fender a cabeça do cavalo com as suas garras.

      Era este segundo tiro que Miguel Strogoff acabava de ouvir a poucos passos de distância. De um salto, colocou-se entre o urso e a valorosa livoniana. O seu braço fez apenas um rápido movimento de baixo para cima, e a enorme fera caiu no chão, rasgada inteiramente desde o ventre até à garganta.

      Miguel Strogoff dera um desses admiráveis golpes com que os caçadores siberianos matam instantaneamente um urso, sem lhe danificar a preciosa pele, que eles costumam vender por alto preço.

      - Não estás ferida, minha irmã? - perguntou Miguel Strogoff, aproximando-se de Nadia.

      - Não estou.

      Ao mesmo tempo chegavam os dois jornalistas.

      Alcide Jolivet segurou o cavalo pela cabeça, e deve-se acreditar que tinha bom pulso, porque o animal não se mexeu mais. Tanto o francês como o seu companheiro tinham presenciado perfeitamente o rápido e hábil movimento de Miguel Strogoff.

      - Vamos lá! - exclamou Alcide Jolivet -, para um simples negociante, o Sr. Korpanoff maneja perfeitamente uma faca de mato.

      - Muito perfeitamente - acrescentou Harry Blount.

      - Na Sibéria, meus senhores, temos necessidade de saber um pouco de tudo - respondeu Miguel Strogoff.

      Alcide Jolivet olhou então para o valoroso rapaz.

      Visto com a luz de frente, a navalha ainda em punho, tinta de sangue, o rosto enérgico e insinuante, e um dos pés descansando sobre o corpo da fera que acabara de prostrar, Miguel Strogoff tinha a beleza das grandes figuras esculturais.

      - Um homem às direitas! - disse para si mesmo Alcide Jolivet.

      E, avançando com o chapéu na mão, foi cumprimentar respeitosamente a suposta irmã de Miguel Strogoff.

      Nadia respondeu com um ligeiro movimento de cabeça.

      Voltando-se depois para o seu colega, Alcide Jolivet acrescentou:

      - A irmã vale o irmão. Se fosse urso, havia de fazer toda a diligência por nunca me aproximar deste par tão corajoso como simpático.

      Harry Blount, direito como um fuso, conservava-se de chapéu na mão a alguma distância. O desembaraço do seu companheiro ainda punha mais em relevo a sua gravidade britânica.

      Neste momento apareceu o iemschik, seguido dos cavalos, a que por fim conseguira deitar a mão. O seu primeiro impulso foi olhar com sentimento para o soberbo animal estendido a curta distância, que ele tinha de abandonar às aves de rapina, por não poder levá-lo no tarentass. Depois tratou de ir novamente aparelhar os cavalos.

      Miguel Strogoff fez-lhe então conhecer a situação dos dois viajantes e a ideia em que estava de lhes ceder um dos cavalos.

      - Como queira, patrão. Entretanto, dois serviços em vez de um...

      - Exigem paga dobrada! - volveu-lhe Alcide Jolivet. – Fica descansado, hás-de tê-la.

      - Vamos a isto, meus pombinhos - exclamou o iemschik.

      Nadia tornara a subir para o tarentass, que Miguel Strogoff e os dois correspondentes acompanhavam.

      Eram três horas. A trovoada ia amainando, o tufão já não lançava por terra homens nem animais, e a distância do desfiladeiro para a estrada pôde percorrer-se com facilidade e rapidez.

      Aos primeiros fulgores da aurora, achava-se o tarentass junto da telega, que, em boa verdade, ficara atascada até ao cubo das rodas. Compreendia-se perfeitamente, em vista daquela situação, que um arranco mais violento dos cavalos tivesse provocado a separação das duas partes do veículo.

      Um dos cavalos do tarentass foi atrelado por meio de cordas à caixa da telega. Os dois jornalistas sentaram-se como puderam sobre esta metade de carro, e ambos os veículos partiram imediatamente. De resto, o caminho não oferecia agora dificuldades, porque se limitava a descer os declives dos Urais.

      Seis horas depois o tarentass e a meia telega davam entrada em Ekaterinburgo, sem que nenhum inconveniente desagradável interrompesse esta parte da viagem.

      A primeira pessoa que os jornalistas viram à porta da estação de muda foi o seu iemschik, que parecia estar à espera deles.

      O bom do homem, com a sua cara prazenteira e sem mostrar o menor receio, aproximou-se dos viajantes e, estendendo a mão, pediu-lhes a gorjeta.

      A verdade manda dizer que o furor de Harry Blount não conheceu limites, e se o iemschik não toma a prudente resolução de se afastar podia ficar certo de que receberia a sua gorjeta sob a forma de um formidável murro, aplicado airosamente segundo todos os preceitos do boxe inglês.

      Alcide Jolivet, observando estes ímpetos de cólera, ria de tão boa vontade que até lhe rebentavam as lágrimas.

      - Mas o pobre homem tem razão! - exclamava o correspondente francês. - Tem carradas de razão, meu caro colega. Não foi por causa dele que nós deixámos de o seguir.

      E, tirando alguns kopeks da algibeira:

      - Aqui tens, rapaz - disse-lhe com bom modo. - Guarda para ti. Se os não ganhaste melhor, não foi por tua culpa.

      Esta generosidade ainda mais aumentou a irritação de Harry Blount, que desejava voltar-se contra o feitor de posta e intentar-lhe um processo.

      - Um processo na Rússia! - disse Alcide Jolivet. - Mas, se os costumes ainda não mudaram, o colega nunca chegaria a ver o fim do seu! Não sabe a história da ama russa que reclamava doze meses de criação da família de um menino que trouxera ao peito?

      - Não sei.

      - Então ignora também o que já era o tal menino quando os tribunais deram sentença a favor da ama?

      - E o que era ele?

      - Coronel dos hussardos da Guarda!

      À vista desta resposta ninguém pôde deixar de rir.

      Entretanto Alcide Jolivet, contente do efeito que produzira a sua anedota, tirava a carteira do bolso e escrevia, numa das folhas, a seguinte nota, destinada a figurar num dicionário moscovita:

      “Telega”: veículo russo, que tem quatro rodas quando começa uma viagem e só duas quando a acaba.

     

     Uma provocação

      Ekaterinburgo, geograficamente falando, é uma cidade da Ásia, porque fica situada além dos montes Urais, sobre os últimos pendores da serra. Contudo, faz parte do governo de Perm, e por consequência acha-se compreendida numa das grandes divisões da Rússia europeia. É, por assim dizer, um pedaço da Sibéria enxertado no tronco europeu do colosso moscovita. Esta disposição administrativa deve ter algum motivo que a justifique.

      Nem Miguel Strogoff nem os dois correspondentes poderiam recear que lhes faltassem meios de locomoção numa cidade tão considerável, embora a sua fundação só date de 1723. É em Ekaterinburgo que existe a primeira casa da moeda de todo o império, é ali que se encontra fixada a Direcção-Geral das Minas. Esta cidade é, pois, um centro industrial importante, onde abundam as forjas metalúrgicas e outros estabelecimentos destinados à lavagem de platina e de ouro.

      Presentemente, a população de Ekaterinburgo estava muitíssimo aumentada. Grande número de russos e siberianos tinham afluído para ali, fugindo não só das províncias, já invadidas, como também de todo o país dos quirguizes, que se estende desde a parte sudoeste do rio Irtyche até às fronteiras do Turquestão.

      Se, portanto, os meios de locomoção deviam ter escasseado para chegar a Ekaterinburgo, não sucedia assim para sair desta cidade. Nas actuais condições, poucos seriam efectivamente os viajantes que se aventurassem a percorrer as estradas da Sibéria.

      Deste concurso de circunstâncias resultou que Alcide Jolivet e Harry Blount acharam sem dificuldade uma telega completa para substituir a meia telega com que tinham dado entrada em Ekaterinburgo.

      A situação de Miguel Strogoff ainda era mais simples. O seu tarentass pouco tinha sofrido com aquela trabalhosa viagem nos montes Urais, e, para continuar a correr até Irkutsk, só esperava que lhe atrelassem três novos e possantes cavalos.

      Até Tiumen, ou, para melhor dizer, até Novo-Zaimskoé, a estrada para Irkutsk é bastante acidentada porque se estende ainda sobre as caprichosas ondulações de terreno em que assentam os declives dos Urais. Mas para lá de Novo-Zaimskóe começam as estepes infinitas, que só acabam nas proximidades de Krasnoiarsk, estendendo-se numa extensão de mil e setecentas verstas aproximadamente (1815 quilómetros).

      Era para Ichim, como se sabe, que tencionavam dirigir-se os dois correspondentes, isto é, para uma cidade que ficava distante ainda de Ekaterinburgo seiscentas e trinta verstas. Chegados ali, deviam informar-se do que se passava, a fim de penetrarem nas províncias invadidas, quer juntos, quer separados, conforme o seu próprio instinto lhes aconselhasse.

      A estrada de Ekaterinburgo para Ichim, que depois segue para Irkutsk, era a única por onde Miguel Strogoff poderia continuar a sua viagem. Havia, porém, uma diferença entre Miguel Strogoff e os dois correspondentes: é que ele, como não corria atrás de notícias, estava bem decidido a não perder um só instante, evitando por todos os modos qualquer encontro com as forças invasoras de Féofar-Cã.

      - Meus senhores - disse Miguel Strogoff aos seus novos companheiros -, ser-me-á muito agradável viajar na vossa companhia por mais algum tempo, mas devo preveni-los de que tenho imensa pressa de chegar a Omsk, onde eu e minha irmã vamos ver nossa mãe. Quem sabe até se não encontraremos a cidade já invadida pelos tártaros? Por consequência, não tenciono demorar-me nas estações de posta senão o tempo indispensável para mudar de cavalos, continuando a viajar de noite e de dia.

      - Também nós temos as mesmas ideias - respondeu Harry Blount.

      - Muito bem - acrescentou Miguel Strogoff. - Mas nesse caso conviria que alugassem ou comprassem um veículo mais sólido para...

      - Para que as suas duas metades - atalhou Alcide Jolivet - possam chegar a Ichim ao mesmo tempo.

      Meia hora depois o jovial correspondente achava, sem grande dificuldade, um tarentass quase semelhante ao de Miguel Strogoff e para o qual tanto ele como o colega subiram imediatamente.

      Miguel Strogoff e Nadia tomaram também lugar no seu veículo e ao meio-dia em ponto os dois carros saíam de Ekaterinburgo, um atrás do outro.

      Nadia achava-se finalmente na Sibéria, percorrendo a imensa estrada que se estendia até Irkutsk! Que pensamentos deveriam então assaltar o espírito da jovem livoniana? Três cavalos, correndo à desfilada, iam de hora em hora encurtando a distância que a separava desse lugar de exílio, onde seu pai jazia tão longe da terra natal! A sua atenção mal se fixava nas imensas estepes que se desenvolviam diante dela. O seu olhar, penetrando muito para lá do horizonte, procurava com avidez o rosto venerando do exilado! Que lhe importava a estrada que ia percorrendo a uma velocidade de quinze verstas por hora? Que lhe importavam estas regiões da Sibéria ocidental, tão diversas daquelas onde nascera? O seu fito, o seu empenho, concentrava-se unicamente em se lançar dentro em pouco nos braços do estremecido pai.

      Efectivamente o caminho percorrido não oferecia variedade à vista: os campos, na maior parte, sem cultura e o solo muito pobre à superfície, porque é só nas suas entranhas que ele encerra o ferro, o cobre, o ouro e a platina. Como se encontrariam braços para cultivar os terrenos, semear os campos, ceifar o trigo, quando é mais proveitoso o trabalho que extrai do seio da terra os seus metais preciosos? Aqui, o agricultor cedeu o lugar ao mineiro, o alvião substituiu a enxada.

      Entretanto, o pensamento de Nadia afastava-se algumas vezes das longínquas províncias do lago Baical para se aproximar dos objectos que a rodeavam. A imagem do desterrado apagava-se então, e ela só via o seu generoso protector, que encontrara pela primeira vez no comboio, em Wladimir. Lembrava-se das suas atenções durante a viagem, da sua aparição no gabinete do chefe da polícia em Nijni-Novgorod, da delicada simplicidade com que lhe falara, dando-lhe o nome de irmã, do carinho que lhe prodigalizara a bordo do Cáucaso, e finalmente da generosa temeridade com que a defendera, mesmo a custo da própria vida, naquela noite de tempestade, ao passar os montes Urais.

      Nadia pensava, pois, em Miguel Strogoff. Não podia deixar de atribuir a um desígnio providencial o seu encontro com ele, e do fundo do coração agradecia a Deus ter-lhe concedido um amigo tão discreto e previdente, um protector tão nobre e decidido. Junto dele e sob a sua guarda, Nadia sentia renascer a confiança. Um verdadeiro irmão não teria tido para ela mais carinhos. A filha do pobre exilado, sem recear novos obstáculos, estava agora segura de realizar o fim que se propusera.

      Miguel Strogoff, por seu lado, falava pouco e reflectia muito. Agradecia também a Deus ter-lhe proporcionado, ao encontrar a jovem livoniana, o meio não só de ocultar a sua verdadeira identidade, como também de praticar uma boa acção. A sua alma varonil lisonjeava-se profundamente ao ver tão serena afoiteza numa rapariga de tão pouca idade. Porque não havia ela de ser de facto sua irmã? Pois não lhe dedicava ele já tanto respeito como interesse? tudo lhe dizia que estava ali um desses corações de fina têmpera em que se pode ter plena confiança.

      Entretanto os perigos para Miguel Strogoff só principiavam realmente ao pisar o solo da Sibéria. Se os dois jornalistas se não enganavam, se Ivan Ogareff tinha atravessado a fronteira, convinha andar com a mais extrema circunspecção. As circunstâncias agora eram diversas, porque os espiões tártaros deviam encontrar-se a cada passo. Desde o momento em que o seu incógnito fosse denunciado, em que a sua qualidade de correio do czar fosse descoberta, a sua missão ficaria de todo sacrificada, e quem sabe mesmo se a sua vida!

      Miguel Strogoff percebeu quão enorme era a responsabilidade que pesava sobre ele.

      Enquanto Miguel Strogoff e Nadia iam assim divagando mentalmente, que se passava no segundo tarentass? Nada de extraordinário. Alcide Jolivet falava empregando muitas palavras, Harry Blount respondia-lhe apenas por monossílabos. Ambos iam encarando as coisas a seu modo e tomando as notas que os incidentes de viagem lhes forneciam, incidentes na verdade pouco variados nestas primeiras províncias da Sibéria ocidental.

      Em todas as estações de muda os dois correspondentes apeavam-se e iam ter com Miguel Strogoff. Quando não havia que tomar alguma refeição, Nadia deixava-se ficar no tarentass, e se, nas horas de almoço e de jantar, vinha sentar-se à mesa, mostrava-se extremamente reservada, evitando quanto possível conversas com os outros viajantes.

      Alcide Jolivet, sem ultrapassar os limites de uma perfeita civilidade, tinha, porém, todas as devidas atenções com a jovem livoniana, que ele achava formosíssima. Sobretudo o que mais admirava nela o correspondente francês era a resignada energia com que suportava as enormes fadigas de uma viagem tão penosa.

      As demoras indispensáveis, que ocorriam no caminho, contrariavam sempre bastante o correio do czar. Por isso não havia estação de muda onde ele não apressasse os trabalhos, animando os feitores de posta e indo pessoalmente auxiliar os iemschiks. Depois, mal acabava o almoço ou o jantar, refeições que decorriam com rapidez muito do agrado de Harry Blount, que era um comensal metódico, partia-se de novo, sendo os jornalistas, pela sua parte, conduzidos também como “águias”, visto pagarem generosamente e, segundo afirmava Alcide Jolivet, como verdadeiras “águias da Rússia” (Moeda de ouro russa, que valia 5 rublos, 3525 réis).

      Escusado é dizer que Harry Blount não prestava a menor atenção à irmã do negociante com quem viajava.

      Era um dos raros assuntos de conversação em que não discutia com o seu colega. Este ilustre cidadão mostrava a mais completa indiferença por tudo o que não se prendesse com a sua profissão de jornalista.

      E uma das vezes, tendo-lhe Alcide Jolivet perguntado que idade supunha ter a formosa livoniana:

      - De que formosa livoniana me fala? - respondeu-lhe Harry Blount com a maior seriedade deste mundo, cerrando um pouco os olhos.

      - Ora, de quem há-de ser! Da irmã de Nicolau Korpanoff.

      - Ah! É sua irmã?

      - Não, é sua avó! - exclamou Alcide Jolivet, descoroçoado por tamanha dose de indiferença. - Quantos anos lhe dá?

      - Se soubesse a data do seu nascimento poder-lhe-ia responder - replicou gravemente Harry Blount, como homem que não queria arriscar uma resposta positiva.

      A estrada percorrida pelos dois tarentass apresentava-se quase deserta. O dia estava bom, o céu meio encoberto e a temperatura mais suportável. Se houvesse molas nos veículos, os viajantes não teriam motivo para se queixar do caminho. Entretanto, o que eles perdiam em comodidade ganhavam-no em ligeireza.

      Mas se a estrada parecia deserta, dependia isso da invasão tártara. Nos campos mal se avistavam alguns desses aldeões de rosto pálido e olhar grave, que uma viajante célebre comparou, com propriedade, a castelhanos, menos na arrogância. Num ou noutro ponto viam-se algumas aldeias já abandonadas, o que indicava a aproximação das forças de Féofar-Cã. Os seus habitantes, levando adiante os rebanhos, os camelos e os cavalos, tinham-se refugiado nas planícies do Norte. Algumas tribos da grande horda dos quirguizes nómadas, que permaneciam fiéis à Rússia, também já tinham transportado as suas tendas para além dos rios Irtyche e Obi, a fim de se acautelarem contra a pilhagem dos invasores.

      Por fortuna, o serviço de posta continuava a fazer-se com regularidade, bem como o serviço do telégrafo, nos pontos onde o fio não tinha sido cortado. Nas estações de muda, os chefes ainda apresentavam os cavalos que se lhes exigiam, e nas estações telegráficas os empregados ainda transmitiam os despachos recebidos, demorando-lhes apenas a transmissão quando se interpunham alguns telegramas oficiais. Resultava disto que tanto Alcide Jolivet como Harry Blount utilizavam largamente semelhante meio de comunicação para seu serviço particular.

      Até aqui, portanto, a viagem de Miguel Strogoff ia-se efectuando em condições vantajosas. O correio do czar não tinha experimentado nenhum atraso, e se pudesse evitar qualquer encontro com as guardas avançadas dos tártaros até Krasnoiarsk era certo que chegaria antes deles a Irkutsk, vencendo tão grande distância no menor espaço de tempo que até então se tinha visto.

      Pelas sete horas da manhã do dia seguinte àquele em que os dois tarentass haviam saído de Ekaterinburgo, entravam eles na povoação de Tuluguisk, depois de terem percorrido duzentas e vinte verstas sem que ocorresse Incidente digno de menção.

      Em Tuluguisk demoraram-se os viajantes meia hora para almoçar. Feito isto, continuaram a viagem com tal velocidade que só a promessa de um certo número de kopeks, oferecidos aos iemschiks, poderia justificar.

      À uma hora da tarde do mesmo dia 22 de Julho, depois de vencidas mais sessenta verstas, os dois tarentass chegavam a Tiumen.

      Tiumen, cuja população normal é de dez mil habitantes, contava agora o dobro. Esta cidade, primeiro centro industrial que os russos criaram na Sibéria, onde se encontram excelentes forjas metalúrgicas e oficinas para fundição de sinos, apresentava uma animação que lhe não era natural.

      Os dois correspondentes puseram-se logo em busca de novidades. As que os fugitivos traziam do teatro da guerra não eram tranquilizadoras.

      Dizia-se, entre outras coisas, que o exército de Féofar-Cã se aproximava rapidamente do vale do Ichim, e acrescentava-se que o chefe tártaro não tardaria a encontrar-se com o coronel Ivan Ogareff, se é que já se não tinha reunido a ele, pelo que se concluía que as operações militares visando a ocupação da parte oriental da Sibéria iam ser intensificadas. Em relação às forças russas, tinha sido preciso chamar à pressa as que permaneciam nas províncias europeias da Rússia, porém, essas tropas, achando-se ainda muito distantes, não podiam opor-se às primeiras consequências da invasão. Contudo, os cossacos do governo de Tobolsk dirigiam-se a marchas forçadas sobre Tomsk, a fim de interceptarem as colunas de Féofar-Cã.

      Às oito horas da tarde, os dois tarentass tinham percorrido mais setenta e cinco verstas e davam entrada em Yalutorowsk.

      Mudaram rapidamente de cavalos e, ao sair da povoação, atravessaram o rio Tobol numa barcaça. A corrente deste rio, muito branda, facilitou esta operação, que no decurso da viagem, e naturalmente em condições menos favoráveis, tinha de se repetir mais de uma vez.

      À meia-noite, depois de terem andado mais cinquenta e cinco verstas (58 quilómetros e meio), chegavam os viajantes à aldeia de Novo-Saimsk, ficando-lhes definitivamente para trás esse terreno acidentado, com colinas cobertas de arvoredo, que são por assim dizer as últimas raízes da cadeia dos Urais.

      Era aqui, verdadeiramente, que principiava a estepe siberiana, essa imensa planície que se estende até próximo de Krasnoiarsk, esse vasto deserto ervoso em cuja circunferência a terra e o céu se confundem numa curva que parece feita a compasso.

      A uniformidade da estepe só era interrompida pelos postes do telégrafo, cujos fios, ligeiramente feridos pela brisa, vibravam como se fossem cordas de uma harpa. Mesmo a estrada não se diferençava da planície senão pela finíssima poeira levantada debaixo das rodas dos tarentass. Sem esta fita esbranquiçada, que se estendia até perder de vista, poderiam os viajantes julgar-se num deserto.

      Miguel Strogoff e os seus companheiros ainda caminharam com maior velocidade através da estepe. Os cavalos, excitados pelos iemschiks, devoravam o espaço. Os tarentass corriam em direcção a Ichim, onde os dois correspondentes tinham a intenção de se apear, se algum acontecimento não viesse modificar o seu Itinerário.

      Duzentas verstas separam Novo-Saizusk de Ichim. Esta distância devia e podia estar vencida no dia seguinte antes das oito horas da tarde se no caminho se não perdesse um só instante. Segundo a opinião dos iemschiks, se os viajantes não eram personagens de elevada posição, ou funcionários de primeira categoria, mereciam sê-lo decerto, visto a generosidade senhoril com que distribuíam as gorjetas.

      No dia seguinte, 28 de Julho, os dois tarentass achavam-se efectivamente a trinta verstas de Ichim.

      Foi então que Miguel Strogoff distinguiu ao longe na estrada, entre rolos de poeira, um veículo caminhando adiante dele. Não lhe devia decerto ser difícil alcançá-lo, porque os seus cavalos, muito menos fatigados, corriam com maior velocidade:

      Não era tarentass nem telega: era uma berlinda de posta extremamente empoeirada, que parecia vir já de muito longe. O postilhão fustigava sem descanso os cavalos, e só à força de pragas e chicotadas conseguia levá-los a galope. A berlinda não tinha com certeza passado por Novo-Saimsk, e para aparecer agora na estrada de Irkutsk é porque tomara naturalmente por algum atalho aberto na estepe.

      Miguel Strogoff e os seus companheiros, vendo esta berlinda correndo precipitadamente para Ichim, tiveram logo o mesmo pensamento: passarem-lhe adiante, para que, chegando antes dela à estação de muda, pudessem lançar mão dos cavalos indispensáveis à continuação da sua viagem. Disseram, portanto, algumas palavras nesse sentido aos iemschiks, e estes não tardaram a aproximar-se da berlinda.

      Foi o tarentass de Miguel Strogoff que primeiro chegou.

      Ao mesmo tempo mostrou-se uma cabeça à portinhola da berlinda.

      Miguel Strogoff mal teve tempo de a ver. Apesar, porém, da rapidez com que passou, ouviu distintamente estas palavras, que lhe foram dirigidas com ar imperioso:

      - Pare já!

      Como é bem de supor, a intimação não foi atendida, e não tardou que a berlinda ficasse para trás dos dois tarentass.

      Estabeleceu-se então uma espécie de corrida entre os três veículos, e os cavalos da berlinda, excitados sem dúvida pela presença e ligeireza dos outros, cobraram ainda novo alento para correr por mais alguns minutos. Os três veículos desapareciam numa nuvem de poeira. No meio desta nuvem, que deixava os objectos como que indefinidos, ouviam-se as Imprecações de raiva e os estalos dos chicotes dos iemschiks.

      A vantagem de tal luta coube, porém, a Miguel Strogoff e aos seus companheiros, vantagem que podia ser importantíssima se a próxima estação de muda não estivesse bem provida de cavalos.

      Meia hora depois a berlinda, que tinha ficado para trás, era quase um ponto invisível no horizonte da estepe.

      Eram oito horas da tarde quando os dois tarentass chegavam à estação de muda de Ichim.

      As notícias relativas à invasão cada vez tinham mais importância. A cidade estava directamente ameaçada pela vanguarda das colunas tártaras, e havia dois dias que todas as autoridades se tinham retirado para Tobolsk. Em Ichim não se via um único empregado nem um único militar.

      Miguel Strogoff, apenas chegou à estação, pediu logo cavalos para o seu tarentass.

      Fora-lhe proveitoso chegar antes da berlinda. Só havia três cavalos que estivessem em condições de partir. Os outros, que voltavam de um serviço prolongado, estavam cansadíssimos.

      O chefe de posta deu ordem para atrelar.

      Os dois correspondentes, por seu lado, como não tencionavam seguir viagem imediatamente, não se preocuparam com a falta de cavalos, e mandaram guardar o seu tarentass.

      Dez minutos depois, Miguel Strogoff era prevenido de que estava tudo pronto para marchar.

      - Bem - respondeu ele.

        Em seguida, dirigindo-se aos dois jornalistas:

      - Meus senhores, é chegado o momento de nos separarmos.

      - Pois quê, Sr. Korpanoff - disse Alcide Jolivet -, nem ao menos passará uma hora na nossa companhia!

      - Não posso, meus senhores, e desejo até pôr-me a caminho antes que chegue à estação de muda a berlinda que deixámos para trás.

      - Receia, porventura, que aquele viajante lhe queira disputar os cavalos?

      - Pretendo, sobretudo, evitar qualquer discussão a esse respeito.

      - Nesse caso - volveu Alcide Jolivet -, só nos resta agradecer-lhe de novo, Sr. Korpanoff, o serviço que nos prestou e o prazer que nos concedeu viajando connosco.

      - É possível - ajuntou Harry Blount - que dentro de alguns dias nos tornemos a encontrar em Omsk.

      - Não digo que não - admitiu Miguel Strogoff -, uma vez que vou directamente para ali.

      - Portanto, boa viagem, Sr. Korpanoff - desejou Alcide Jolivet -, e Deus o livre de ser alguma vez obrigado a viajar em telegas.

      Os dois correspondentes estenderam a mão a Miguel Strogoff, com a intenção de lha apertarem o mais cordialmente possível, quando se sentiu o rodar de um trem.

      Quase de repente abriu-se a porta da estação e um homem apareceu à entrada.

      Era o viajante da berlinda, indivíduo de quarenta anos, aspecto militar, alto, robusto, espadaúdo, cabeça levantada e grandes bigodes, que se iam prender a umas fartas suíças ruivas. Vestia à militar, mas sem insígnias, e pendia-lhe do lado esquerdo um sabre de cavalaria. Na mão trazia um chicote de rabo curto.

      - Já, já, três cavalos! - disse ele, com a voz imperiosa de quem estava habituado ao comando.

      - Não tenho cavalos disponíveis - respondeu o chefe de posta, inclinando-se respeitosamente.

      - Não admito observações! Preciso deles imediatamente!

      - É impossível!

      - Impossível! A quem pertencem os que eu vi lá fora num tarentass?

      - Àquele viajante - respondeu, apontando para Miguel Strogoff.

      - Que lhos tirem - ordenou o recém-chegado com um tom de voz que não admitia réplicas.

      Miguel Strogoff adiantou-se também.

      - Esses cavalos paguei-os eu - disse ele.

      - Que me importa! Preciso deles! E depressa! Não tenho tempo a perder.

      - Também eu não - replicou Miguel Strogoff, que já mal podia conter-se, apesar dos esforços que fazia para se conservar tranquilo.

      Nadia estava junto dele, serena também, mas assustada interiormente pelas consequências que poderia ter aquele conflito.

      - Basta! - ajuntou o desconhecido.

       Depois, dirigindo-se ao chefe de posta com um gesto de ameaça:

      - Tirem os cavalos ao tarentass, já disse, e atrelem-nos depois à minha berlinda.

      Aquele, extremamente embaraçado, não sabia como obedecer, e olhava para Miguel Strogoff, a quem assistia evidentemente o direito de se opor a estas insolentes pretensões.

      Miguel Strogoff hesitou um momento. Não pretendia fazer uso do podaroshna para não chamar sobre si as atenções, mas também não queria que a hora da sua partida fosse adiada pela cedência dos cavalos.

      E, sobretudo, o que ele mais desejava era evitar qualquer conflito que desse a conhecer o fim da sua missão.

      Os dois jornalistas olhavam para Miguel Strogoff, prestes a auxiliá-lo, se ele, porventura, o exigisse.

      - Os cavalos hão-de seguir com o meu tarentass – declarou Miguel Strogoff, mas sem levantar a voz mais do que convinha a um negociante de Irkutsk.

      O desconhecido aproximou-se então de Miguel Strogoff, pondo-lhe descortesmente a mão sobre o ombro:

      - Toma cuidado! - gritou ele com voz ameaçadora. – Não queres ceder-me os cavalos?

      - Não quero.

      - Pois nós veremos então qual dos dois há-de ficar com eles. Defende-te, vilão, se não queres que te mate como um covarde.

      E, acompanhando com o gesto a palavra, o desconhecido desembainhava o sabre e punha-se em guarda.

      Nadia colocou-se adiante de Miguel Strogoff.

      Harry Blount e Alcide Jolivet também correram para ele.

      - Não me baterei - afirmou unicamente Miguel Strogoff, que, para melhor reprimir a sua indignação, cruzara os braços sobre o peito.

      - Não queres bater-te?

      - Não.

      - Nem mesmo assim? - gritou o desconhecido.

      E, antes que tivesse havido tempo de o segurarem, batia com o cabo do chicote sobre o ombro de Miguel Strogoff.

      A este novo insulto, o correio do czar empalideceu horrivelmente. As suas mãos levantaram-se numa convulsão febril, como se quisessem esmagar de um só impulso o atrevido agressor.

      Todavia, por um supremo esforço, conseguiu dominar-se. Um duelo era mais que um atraso, era talvez o malogro da sua missão. Antes perder algumas horas do que arriscar o bom êxito da viagem. Mas seria admissível que ele suportasse calado tamanha afronta?

      - E agora quererás bater-te, miserável? - insistiu o desconhecido, ajuntando o tom desprezador àquela brutal provocação.

      - Não quero! - respondeu Miguel Strogoff,. que se não movia, mas que devorava com o olhar as feições do desconhecido.

      Este, então, gritou:

      - Os cavalos pertencem-me!

      E, dizendo isto, retirou-se rapidamente.

      O chefe de posta saiu em seguida, encolhendo os ombros e lançando sobre Miguel Strogoff um olhar manifestamente desdenhoso.

      O efeito que sobre os dois jornalistas produziu semelhante incidente não podia ser favorável para Miguel Strogoff. O desapontamento destes era manifesto. Espantavam-se de ver um homem tão robusto deixar-se brutalmente insultar sem pedir satisfação da ofensa. Limitaram-se, pois, a cumprimentar Miguel Strogoff e saíram logo, dizendo Alcide Jolivet pelo caminho ao seu colega:

      - Nunca esperei Isto da parte de um homem que rasga um urso com tanta perfeição. Será, pois, verdade que coragem também, como a fortuna, tem as suas horas propícias? É possível. Para compreendermos o caso, o que nos falta, talvez, é mentalidade de servo.

      Alguns momentos depois, o rodar de uma carruagem e os estalos de um chicote indicavam que a berlinda, com os cavalos do tarentass atrelados, saía com toda a rapidez da estação de muda.

      Nadia, impassível, e Miguel Strogoff, ainda trémulo de raiva, foram as únicas pessoas que se tinham deixado ficar no mesmo local.

      O correio do czar sentara-se, conservando ainda os braços cruzados. Parecia uma estátua. Contudo, uma vermelhidão, que não era decerto a da vergonha, tingia-lhe o rosto profundamente.

      Nadia estava, de si para si, convencida de que só motivos muito poderosos poderiam ter obrigado aquele homem a aceitar em silêncio semelhante humilhação.

      Por isso, dirigindo-se para Miguel Strogoff, como ele se lhe dirigira a ela na repartição de polícia de Nijni-Novgorod, disse-lhe com voz afectuosa:

      - A tua mão, meu irmão.

      E ao mesmo tempo limpou, com um carinho quase maternal, duas lágrimas que borbulhavam nos olhos do seu protector.

     

     O dever acima de tudo

      Nadia tinha já percebido que um móbil oculto dirigia todos os actos de Miguel Strogoff, que este, por qualquer circunstância desconhecida para ela, nem dispunha da sua vontade nem das suas acções, e que se tivera o heroísmo de calar uma injúria tão grave é porque antepunha o dever aos seus próprios agravos.

      De resto, Nadia abstinha-se de pedir explicações. A mão que estendera a Miguel Strogoff não correspondia antecipadamente a tudo que pudesse dizer-lhe?

      Miguel Strogoff não proferiu uma palavra. Uma vez que o feitor só na manhã seguinte lhe podia fornecer cavalos, era evidente que tinha de se passar aquela noite na estação de posta. Em consequência desta demora imprevista, mandou preparar um quarto para Nadia repousar algumas horas.

      A pobre menina teria preferido não desamparar Miguel Strogoff, mas, vendo que ele desejava ficar só, deliberou recolher-se ao quarto que lhe fora destinado.

      Contudo, no momento em que ia a retirar-se, não se conteve e foi dizer adeus a Miguel Strogoff.

      - Meu irmão... - balbuciou ela.

      Um gesto imperioso de Miguel Strogoff não a deixou prosseguir. Foi com as lágrimas nos olhos que ela se separou do seu companheiro de viagem.

      Miguel Strogoff não quis deitar-se. Poderia ele, porventura, conciliar o sono uma hora só que fosse? No sítio onde lhe tocara o chicote do brutal desconhecido, Miguel Strogoff sentia como que a impressão de um ferro em brasa.

      - Pela Pátria e pelo Pai! - Murmurou ele por fim, ao acabar a sua oração da noite.

      Entretanto, Miguel Strogoff ardia em desejos de saber quem fora o seu insultador, donde vinha ele e para onde ia. Quanto às suas feições, tinha-as por tal forma gravadas na memória que era impossível esquecê-las jamais.  Miguel Strogoff mandou chamar o chefe de posta.

      Este, siberiano de antes quebrar que torcer, apresentou-se pouco depois, medindo com certa sobranceria o seu jovem hóspede e esperando que ele o interrogasse.

      - És daqui? - perguntou Miguel Strogoff.

      - Sou.

      - Conheces então o homem que se apoderou dos meus cavalos?

      - Não.

      - Nunca o viste?

      - Nunca.

      - Quem supões tu que seja?

      - Um militar valente, que sabe impor aos outros a sua vontade.

      O olhar de Miguel Strogoff atravessou como um punhal o siberiano, porém, as pálpebras do chefe de posta não se cerraram.

      - Julgas-te com o direito de me censurar? - exclamou.

      - Julgo - respondeu o siberiano. - Há coisas que mesmo um comerciante, por mais modesto que seja, não deve receber sem logo lhes dar troco.

      - As chicotadas?

      - As chicotadas, pois então! tenho carácter e idade para te falar com esta franqueza. Quiseste ouvir-me, aí tens.

      Miguel Strogoff aproximou-se do seu interlocutor e agarrou-o pelos ombros com as suas mãos hercúleas.

      Depois, com um tom de voz perfeitamente sossegado:

      - Deixa-me em paz - disse ele -, deixa-me em paz, se não queres que te desfaça.

      O chefe de posta desta vez ficara convencido de que tinha diante de si um homem.

      - Gosto muito mais de o ver assim.

      E sem acrescentar uma palavra, retirou-se do quarto de Miguel Strogoff.

      No dia seguinte, 24 de Julho, ás oito horas da manhã, estavam atrelados ao tarentass os três vigorosos cavalos.

      Miguel Strogoff e Nadia subiram para ele, e a cidade de Ichim, de que ambos deviam conservar tão cruel recordação, desapareceu rapidamente numa curva da estrada.

      Nas diferentes mudas que houve naquele dia Miguel Strogoff pôde certificar-se de que a berlinda o precedia sempre na estrada para Irkutsk, e que o desconhecido, tão apressado talvez como o correio do czar, não perdia um só instante no caminho.

      Às quatro horas da tarde, depois de setenta e cinco verstas de jornada, foi preciso em Abatskaia atravessar o Ichim, que é um dos principais afluentes do Irtyche.

      A passagem realizou-se em condições menos favoráveis que a do rio Tobol. A corrente do Ichim era neste ponto fortíssima. Durante o Inverno siberiano todos os rios e riachos, por apresentarem uma espessura de gelo de alguns pés, são perfeitamente acessíveis, e o viajante pode atravessá-los sem o saber, porque o seu leito desaparece debaixo do extenso e branco lençol em que a estepe está envolvida. No Estio, porém, as dificuldades em transpô-los tornam-se graves na verdade.

      Efectivamente, foram precisas duas horas para atravessar agora o Ichim, circunstância que bastante desagradou a Miguel Strogoff, muito mais por serem de mau carácter as novas que lhe davam os barqueiros, com referência à invasão dos tártaros.

      Eis o que eles diziam:

      Alguns exploradores de Féofar-Cã tinham sido já vistos sobre as duas margens do Ichim inferior e nas povoações meridionais do governo de Tobolsk. A cidade de Omsk estava seriamente ameaçada. Falava-se de um combate que se travara entre as forças russas e tártaras na fronteira do território dos quirguizes, combate que não fora vantajoso para as primeiras em consequência do seu número limitado. Que a isto se seguira a retirada dos russos em boa ordem, e a necessidade de os homens dos campos se verem obrigados a emigrar para longe da província. Corria também que os invasores, segundo o seu bárbaro sistema de guerra, cometiam toda a casta de atrocidades: saques, roubos, incêndios e morticínios. Finalmente, era geral o terror, e de todos os lados se fugia diante da vanguarda de Féofar-Cã.

      Em vista desta fuga precipitada, que deixava desertos os lugares e as aldeias, o maior receio de Miguel Strogoff era que lhe viessem a faltar os meios de transporte. Compreende-se, pois, que fosse grande o seu desejo de chegar a Omsk. talvez, ao sair desta cidade, se pudesse antecipar aos invasores tártaros, que, marchando pelo vale do Irtyche, lhe deixavam livre a estrada para Irkutsk.

      No próprio lugar onde Miguel Strogoff e Nadia tinham atravessado o rio é que acabava, segundo a expressão militar, a cadeia do Ichim. Esta cadeia, formada por torres e fortins de madeira, ocupava, desde os limites meridionais da Sibéria até aqui, uma extensão de quatrocentas verstas aproximadamente (427 quilómetros). Antigamente eram os seus fortins defendidos por destacamentos de cossacos, que protegiam o país tanto contra os quirguizes como contra os tártaros. Mas tais obras de defesa, desguarnecidas desde que o Governo moscovita julgara estas hordas completamente pacificadas, achavam-se agora desmanteladas, justamente quando poderiam ser de maior utilidade. Muitas delas tinham sido ainda recentemente reduzidas a cinzas, e aquela fumarada que os barqueiros indicavam a Miguel Strogoff, levantando-se acima do horizonte, era sinistro prenúncio de que vinha já ali perto a vanguarda de Féofar-Cã.

      Logo que a barcaça depôs o tarentass e os cavalos na margem direita do Ichim, tornaram os viajantes a desaparecer pela estepe com a maior velocidade.

      Eram sete horas da tarde. O céu estava encoberto.

      Caía repetidas vezes uma chuva de trovoada, que trazia a vantagem de assentar a poeira e tornar o caminho mais suave. Miguel Strogoff mantinha-se taciturno desde que saíra de Ichim. Contudo, não era menos cuidadoso por isso em evitar, quanto possível, à sua companheira de viagem as enormes fadigas desta carreira sem tréguas nem descanso. Ela, porém, não se queixava. Por sua parte folgaria que os cavalos tivessem asas para correrem com maior ímpeto. Alguma coisa lhe dizia que o seu companheiro desejava, ainda mais do que ela, chegar depressa a Irkutsk.

      E todavia quantas e quantas verstas ainda tinham ambos de percorrer!

      Lembrou-se também de que se Omsk estivesse já em poder dos tártaros a mãe de Miguel Strogoff deveria achar-se talvez numa situação arriscada. Era, pois, natural que o filho mostrasse o maior empenho em chegar quanto antes a esta cidade.

      Nadia julgou oportuno falar da velha Marfa e dos perigos que ela poderia correr no meio de tão graves acontecimentos.

      - Nunca mais recebeste notícias da tua mãe desde que rebentou a guerra, meu irmão? - perguntou Nadia a Miguel Strogoff.

      - Nunca mais. A última carta que tenho dela foi escrita há dois meses e só continha boas novas. Marfa é uma siberiana de rija têmpera, dotada de grande energia. Apesar dos anos, conserva ainda toda a sua força moral. Sabe padecer.

      - Hei-de ir vê-la - afirmou Nadia com ar alegre. - Uma vez que me dás o doce nome de irmã, não é muito que eu também queira ser filha de Marfa.

      E como Miguel Strogoff não lhe respondesse:

      - Talvez - acrescentou ela -, talvez que tua mãe já não esteja em Omsk.

      - É possível. A boa Marfa conserva pelos tártaros o velho ódio que não cansa. Sabe andar pela estepe, não é medrosa, e, arrumada ao seu bordão de viagem, é de supor que se tenha dirigido para Tobolsk. Não há um só lugar na província que lhe seja desconhecido. Quantas e quantas vezes andou a santa da mulher por todos os cantos do nosso país em companhia de meu velho pai! E quantas e quantas vezes os segui eu também, criança ainda, através do deserto siberiano! tens razão, Nadia, é impossível que minha mãe não tenha saído de Omsk.

      - E quando esperas vê-la?

      - Quando?... Na volta.

      - Na volta! Mas, se ela estiver em Omsk, irás por certo abraçá-la?

      - Não irei!

      - Não irás?

      - Não, minha irmã! - exclamou Miguel Strogoff, sentindo estalar-lhe o peito de dor e percebendo que não poderia continuar a responder por mais tempo às perguntas da sua companheira.

      - Que dizes, meu amigo? Que motivo pode haver para que um filho deixe de abraçar sua mãe?

      - Que motivo? Perguntas-me que motivo? - exclamou Miguel Strogoff, com voz tão profundamente comovida que Nadia estremeceu. - O mesmo que me obrigou a passar ontem por covarde diante daquele miserável que...

      E não pôde acabar a frase.

      - Tranquiliza-te, meu irmão - respondeu Nadia com toda a suavidade da sua voz. - Eu sei apenas uma coisa, ou, para melhor dizer, não a sei, adivinho-a. É que tens presentemente um dever imperioso a cumprir, um desses deveres mais fortes do que os laços afectuosos que prendem um filho a sua mãe.

      Nadia calou-se, e desde então evitou cuidadosamente qualquer assunto que pudesse referir-se à especialíssima situação de Miguel Strogoff. Havia ali decerto um segredo a respeitar. Nadia soube respeitá-lo.  No dia seguinte, 25 de Julho, às três horas da manhã, o tarentass entrava na estação de posta de Tiukalinsk, depois de ter percorrido uma distância de cento e vinte verstas, desde que se afastara das margens do Ichim. O serviço de muda fez-se com prontidão, mas pela primeira vez o iemschik pôs dificuldades em partir, afirmando que alguns destacamentos tártaros já batiam a estepe e que viajantes, cavalos e veículos não deixariam de ser boa presa para tais bandidos.  Miguel Strogoff só à força de dinheiro decidiu o iemschik a segui-lo. tanto nesta como noutras ocasiões anteriores não lhe conveio aproveitar-se do seu podaroshna. O último ucasse, transmitido pelo telégrafo, era conhecido nas províncias siberianas, e todo o russo que se apresentasse agora a viajar com uma permissão especial expunha-se, por isso mesmo, a chamar sobre si as atenções, o que Miguel Strogoff queria evitar a todo o custo.

      Quanto à repugnância do iemschik, seria porque ele desejava especular com a impaciência do viajante, ou porque na realidade receasse algum mau encontro no caminho?

      Enfim, o tarentass partiu e andou com tal rapidez que às três horas da tarde passava por Kulatsinskoe, oitenta verstas adiante de Tiukalinsk. Uma hora depois chegavam os viajantes às margens do Irtyche.

      Omsk ficava apenas a uma distância de vinte verstas.

      O Irtyche, uma das principais artérias siberianas, é um grande rio, que dirige as suas águas para o norte da Ásia. Nascendo nos montes Altai, corre obliquamente de sudoeste a noroeste, e vai precipitar-se no Obi, depois de um curso de perto de sete mil verstas.

      Nesta época do ano, que é a das cheias de todos os rios da bacia siberiana, o nível das águas do Irtyche era excessivamente elevado. Por consequência, a sua corrente impetuosa e torrencial não permitia que se passasse agora com facilidade de uma para a outra margem. Um nadador, por mais hábil que fosse, hesitaria em se abalançar a semelhante empresa e, mesmo com o auxílio de um barco extremamente sólido, essa passagem não deixava de oferecer sérios inconvenientes.

      Miguel Strogoff nem por sombras imaginou que pudesse por esse motivo atrasar a sua viagem.

      Contudo, pretendeu ser o primeiro a atravessar o rio com o tarentass e os cavalos, por temer que o grande peso destes tornasse o barco menos seguro. Depois de desembarcados os cavalos e o carro, voltaria a buscar a sua jovem companheira.

      Nadia recusou. Esta dupla passagem levaria mais de uma hora, e ela não queria de forma alguma ser a causa involuntária de um novo atraso.

      O embarque realizou-se a custo, porque as margens do rio, inundadas, opunham-se a que a barcaça encalhasse na areia para fazer assim um ponto de apoio.

      Entretanto, passada meia hora de trabalhosa faina, os barqueiros conseguiram meter o tarentass e os três cavalos dentro da sua pesada embarcação, que largou apenas para ela entraram Miguel Strogoff, Nadia e o iemschik.

      Durante os primeiros minutos foi tudo bem. A corrente do rio, cujo forte ímpeto era quebrado por uma língua de terra, formava uns turbilhões que o barco ia atravessando sem dificuldade. Os dois barqueiros serviam-se com muita destreza das suas compridas varas, porém, à medida que se avançava para o largo, o rio era cada vez mais fundo e as varas desapareciam, deixando apenas fora de água as suas extremidades. Os barqueiros não podiam, portanto, apoiar os ombros sobre elas.  Esta circunstância tornava mais difícil e penoso o serviço.

      Miguel Strogoff e Nadia, sentados à popa do barco, observavam com inquietação a manobra dos barqueiros, sempre receando que lhes sobreviesse algum novo obstáculo.

      - Atenção! - gritou um deles para o outro.

      É que o barco tomara de súbito uma nova direcção, e, dominado pela força da corrente, descia agora o rio com incrível rapidez. tratava-se, pois, de manejar as varas com agilidade e acerto, a fim de inclinar o barco para a margem direita. Os barqueiros, metendo-as então nuns toletes que havia na borda do barco, principiaram a servir-se delas como de remos, conseguindo assim desviar-se pouco a pouco da corrente.  Resultava disto que o desembarque só se poderia realizar cinco ou seis verstas a baixo do ponto de partida. Mas pouco importaria esse pequeno atraso se passageiros e cavalos chegassem a terra sem incidente.  Os dois barqueiros, homens vigorosos e estimulados além disso pela promessa de uma boa paga, supunham acabar em breve o serviço que lhes fora destinado. Mas é que eles não contavam com uma circunstância difícil de prever, e que nem a sua habilidade nem o seu zelo poderiam debelar.

      O barco achava-se então mais ou menos a meio do rio, pendendo já sensivelmente para a margem direita e correndo com uma velocidade de duas verstas por hora.  Ao mesmo tempo, Miguel Strogoff, impressionado por um certo rumor, punha-se em pé, e começava a olhar com excessiva atenção para a parte superior do rio.  E que viu ele? Uma flotilha de barcas, movidas pela acção da corrente e pela força dos remadores, descia o rio.

      O rosto de Miguel Strogoff contraiu-se de repente, saindo-lhe da boca um grito de raiva.

      - Que é? - perguntou-lhe Nadia.

      Mas, antes que Miguel Strogoff tivesse tido tempo de lhe responder, um dos barqueiros exclamava com verdadeiro terror:

      - Os tártaros! São os tártaros!

      Eram efectivamente diversas barcas tripuladas por tártaros, que seguiam rapidamente rio a baixo, e que não tardariam a estar junto da barcaça, muito pesada para lhes poder fugir com vantagem.

      Os barqueiros, aterrados por esta aparição, puseram-se a gritar desesperadamente e largaram de mão as varas.

      - Coragem, meus amigos! - exclamou Miguel Strogoff. - Coragem! Cinquenta rublos se chegarmos à margem direita antes de aquelas barcas nos alcançarem.

      Os barqueiros, cobrando ânimo com estas palavras, deitaram-se novamente ao trabalho, continuando a lutar com a corrente, mas reconheceu-se bem depressa que seria impossível evitar a abordagem dos tártaros. Estes acaso passariam sem maltratar os passageiros? Não era muito provável. Devia-se, pelo contrário, esperar tudo que há de pior da parte de semelhantes bárbaros.

      - Não tenhas medo, Nadia - recomendou Miguel Strogoff -, mas prepara-te para o que possa acontecer.

      - Estou preparada.

      - Mesmo a deitares-te ao rio, se assim for preciso?

      - Sim, meu irmão.

      - Tem, pois, confiança em mim.

      - Tenho, decerto.

      As barcas dos tártaros achavam-se apenas a trinta braças de distância. Conduziam um destacamento de soldados bucarianos, que iam tentar um reconhecimento sobre Omsk.

      A pesada barcaça ainda não chegara à margem direita, de que estava, contudo, próximo. Os barqueiros redobravam de actividade. Miguel Strogoff juntou-se a eles, e, pegando também numa vara, começou a servir-se dela com um vigor sobrenatural. Se o desembarque se fizesse de pronto e se o tarentass partisse logo a toda a brida, haveria ainda algumas probabilidades a favor dos viajantes, porque os tártaros não traziam cavalos a bordo. Mas estava escrito que deveriam ser baldados tantos esforços!

      - Saryn na kitchou - gritaram os soldados da primeira barca.

      Miguel Strogoff reconheceu este grito de guerra, espécie de intimação formal, que manda lançar por terra aqueles a quem é dirigido.

      E como nem os barqueiros nem Miguel Strogoff tivessem obedecido a semelhante ordem, uma descarga cerrada caiu logo sobre eles, deixando feridos mortalmente dois dos cavalos.

      Ao mesmo tempo sentiu-se um choque. Eram as barcas dos tártaros que abordavam a barcaça de través.

      - Vem, Nadia - exclamou Miguel Strogoff, prestes a precipitar-se na água.

      Nadia ia para segui-lo quando Miguel Strogoff, ferido por um golpe de lança, caiu no rio. A corrente arrebatou-o. Viu-se-lhe ainda uma das mãos agitando-se ao lume da água. Depois desapareceu de todo.

      Nadia lançou um grito de aflição, mas, antes que tivesse tempo de se precipitar atrás de Miguel Strogoff, sentiu-se agarrada com violência por um soldado, que a passou para uma das barcas.

      Momentos depois os barqueiros e o iemschik eram mortos barbaramente, a barcaça boiava sem direcção à tona de água e os tártaros seguiam rio a baixo, alegres e contentes pela proeza que tinham cometido.

     

     Coração de mãe

      Omsk é oficialmente a capital da Sibéria ocidental.

      Não é decerto a cidade mais considerável do governo do mesmo nome: Tomsk excede-a em população e importância, contudo, é em Omsk que reside o governador-geral desta primeira metade da Rússia asiática.  Omsk, propriamente falando, compõe-se de duas cidades distintas: uma, habitada pelas autoridades e pelos funcionários, outra, em que residem os comerciantes siberianos, embora este centro de população se não imponha pelo seu movimento comercial.

      Esta cidade conta aproximadamente doze a treze mil habitantes. Cingida por uma cortina de muralhas e bastiões, mal podiam agora semelhantes obras de defesa, que são de terra, protegê-la contra as consequências da invasão. Os tártaros, que não ignoravam esta circunstância, procuraram tomá-la à força, e chegaram a consegui-lo, depois de alguns dias de cerco.

      A guarnição de Omsk, reduzida a dois mil homens, resistira com a mais louvável energia. Mas, dominada pela superioridade das forças inimigas e obrigada a bater em retirada, tivera de abandonar a cidade baixa ou comercial, para se recolher à cidade alta.  Era ali que o governador-geral, os oficiais e os soldados se haviam por último entrincheirado. Esta parte de Omsk achava-se transformada numa verdadeira cidadela. As casas e as igrejas tinham sido revestidas de ameias e a guarnição aguentava-se, por enquanto com vantagem, nesta espécie de kremlin improvisado, sem contudo esperar que a viessem a tempo socorrer. Efectivamente, as tropas tártaras, que se estendiam pelas margens do Irtyche, estavam a receber todos os dias novos reforços, e - circunstância mais grave ainda - tinham a comandá-las um oficial traidor ao seu país, mas homem de grande merecimento militar e de uma audácia extraordinária.

      Era o coronel Ivan Ogareff.

      Ivan Ogareff, tão déspota como esses chefes tártaros que ele atirava sobre as províncias siberianas, era um cabo de guerra instruído. Correndo-lhe ainda nas veias sangue mongol, por parte de sua mãe, que era de origem asiática, Ivan Ogareff adorava a astúcia, deleitava-se em dispor os fios de uma emboscada, e não hesitava diante de nenhum meio quando queria surpreender um segredo ou armar uma cilada. Ardiloso por índole, recorria voluntariamente aos mais abjectos disfarces, e mostrava-se insigne e eminente na arte do embuste e da doblez. Como remate a qualidades tão repugnantes, era cruel e capaz até de se transformar em algoz se as circunstâncias assim o exigissem. Féofar-Cã tinha, pois, em Ivan Ogareff um lugar-tenente digno de o secundar nesta guerra de selvagens.

      Ora, quando Miguel Strogoff chegou às margens do Irtyche, já Ivan Ogareff, senhor da parte baixa de Omsk, apressava, por todos os meios ao seu alcance, o assédio à parte alta da cidade, a fim de poder quanto antes marchar para Tomsk, onde o grosso do exército invasor se achava concentrado.

       Tomsk tinha sido efectivamente tomada por Féofar-Cã havia já alguns dias, e era dali que o emir, senhor da Sibéria central, se propunha marchar sobre Irkutsk.

      Esta última cidade tornava-se, pois, o verdadeiro objectivo de Ivan Ogareff.

      O plano do traidor consistia em se apresentar ao grão-duque debaixo de um nome suposto, empregando depois todos os meios para lhe captar a confiança, a fim de entregar a cidade e o próprio grão-duque no momento que julgasse oportuno.

      O plano era arrojado, temerário até, mas desde que tão importante cidade e tão importante refém caíssem em poder de Féofar-Cã não tardaria que toda a Sibéria se tornasse presa dos invasores. chegara ao conhecimento do czar, como se sabe, esta conspiração, e fora unicamente para fazê-la abortar que se tinha confiado a Miguel Strogoff o importante ofício de que ele era portador. Por igual motivo se tinham também dado importantes e severas instruções ao correio do czar para que ele atravessasse debaixo do mais rigoroso incógnito os pontos invadidos.  Esta missão tinha-a Miguel Strogoff desempenhado até aqui religiosamente. Mas poderia ele agora levá-la por diante? O ferimento que recebera não fora mortal. tentando sem que ninguém o visse, aproximar-se da terra, Miguel Strogoff pusera-se a nadar até à margem direita do rio, onde caíra desfalecido entre uma espessa moita de arbustos.

      Quando voltou a si achou-se na cabana de um mujique caridoso, a quem o ferido devia o benefício de não estar morto. Há quanto tempo era ele hóspede deste bom siberiano? Como e quando fora recolhido na sua choupana? Miguel Strogoff não saberia dizê-lo. Ao abrir de novo os olhos à vida, viu diante de si a figura simpática de um velho de longas barbas que, inclinado sobre ele, o estava contemplando com ar afável e compassivo.  Ia para perguntar o que lhe acontecera quando o mujique se lhe antecipou, dizendo:

      - Não fales por enquanto, não fales. Achas-te ainda muito fraco. Eu te direi onde estás e o que se tem passado depois que vieste para aqui.

      E o mujique explicou a Miguel Strogoff os diversos incidentes da luta que ele pudera presenciar da margem direita do rio: a abordagem feita pelas barcas tártaras, o roubo do tarentass e o morticínio dos barqueiros e do iemschik.

      Mas Miguel Strogoff não o ouvia, e, levando a mão ao peito, encontrou o ofício imperial, que ainda se conservava no mesmo lugar.  Respirou melhor. Havia, porém, outra coisa que também o afligia.

      - Comigo vinha uma rapariga. Que lhe fizeram? – Perguntou ele ao mujique.

      - Os tártaros não a mataram - respondeu este, procurando tranquilizar o seu hóspede, em cujo rosto se lia a mais cruel inquietação. - Levaram-na para uma das suas barcas e depois continuaram a descer o rio. É mais uma prisioneira para juntar às outras, que vão a caminho de Tomsk.

      Miguel Strogoff não pôde responder. Levou a mão ao peito, como para reprimir as pulsações do coração.

      Mas, apesar de tantas provações, o sentimento do dever ainda nele era superior a tudo.

      - Onde estou? - perguntou.

      - A cinco verstas de Omsk, na margem direita do Irtyche.

      - Que ferimento recebi eu que assim me deixou sem alento? Foi algum tiro de espingarda?

      - Não, foi uma lançada que já cicatrizou - elucidou o mujique. - Descansa agora alguns dias e poderás continuar depois o teu caminho. Caíste ao rio, o que foi para ti melhor do que se caísses nas mãos dos tártaros. Se aqueles bárbaros te recolhessem, não te deixariam decerto a bolsa que ainda conservas na algibeira.

      Miguel Strogoff estendeu a mão ao mujique. Depois levantou-se com esforço e perguntou:

      - Meu amigo, há quantos dias estou na tua cabana?

      - Há três.

      - Três dias perdidos!

      - Três dias que se passaram sem tu dares acordo de ti.

      - Tens um cavalo que me possas vender?

      - Queres partir?

      - Imediatamente!

      - Não tenho cavalos, não tenho nada! Bem sabes que, por onde passam os tártaros, só fica a devastação e a miséria!

      - Pois irei para Omsk mesmo a pé.

      - Demora-te ainda algum tempo. Não vás expor-te assim a perderes no caminho as poucas forças que tens.

      - Não posso perder um só minuto, meu amigo!

      - Então acompanhar-te-ei - replicou o mujique, percebendo que nada ganhava em lutar contra a inabalável decisão do seu hóspede. - Vou eu mesmo contigo. Em Omsk ainda estão muitos russos e ser-te-á fácil passar despercebido entre eles.

      - Deus te recompense o bem que por mim tens feito.

      - Recompensas! Os loucos são os únicos entes que as podem esperar na terra! - acrescentou o mujique.

      Miguel Strogoff saiu da cabana. Quando quis começar a andar, sentiu-se de tal forma enfraquecido que, se não fosse o mujique, teria caído no chão. O ar livre conseguiu, porém, reanimá-lo dentro em pouco. Certificou-se então de que o golpe, o qual fora dirigido à cabeça, o teria talvez morto se o seu gorro de peles lhe não tivesse diminuído a violência. Dispondo da energia que se lhe conhece, Miguel Strogoff não era homem para se deixar abater facilmente. Um único pensamento se apossou dele: chegar a Irkutsk, embora a custo de mil sacrifícios. Mas para isso era-lhe necessário atravessar Omsk sem ali se demorar.

      «Deus proteja minha mãe e Nadia - disse ele para si. – Por enquanto não me pertenço, não tenho direito de pensar nelas.»

      Miguel Strogoff e o mujique não levaram muito tempo a chegar ao bairro comercial da cidade baixa, onde penetraram sem dificuldade, apesar de ela estar ocupada militarmente. As muralhas de terra tinham sido destruídas em vários pontos, que serviam agora de brechas pelas quais saíam para as suas correrias de pilhagem alguns dos soldados tártaros.

      No interior de Omsk, pelas ruas e pelas praças, abundavam os militares do exército inimigo, mas percebia-se distintamente que mão de ferro lhes impunha o rigor da disciplina, a que não estavam habituados. Efectivamente, oficiais e soldados só andavam aos grupos e armados, a fim de se defenderem contra qualquer agressão.

      Na praça principal, que fora transformada em acampamento, guardado por numerosas sentinelas, estavam alojados em boa ordem dois mil homens da cavalaria tártara. Os cavalos, presos a estacas mas selados, estavam sempre prontos para marchar à primeira voz.

      Omsk não podia passar de uma estação intermediária para esta soldadesca, desejosa de se ver quanto antes no meio das ricas planícies da Sibéria oriental, onde as cidades são mais opulentas, os campos mais férteis, e por consequência a rapina mais proveitosa.

      Na parte superior da cidade comercial estendia-se o sector de que Ivan Ogareff ainda não tinha podido assenhorear-se, apesar de sucessivos assaltos, tão vigorosamente lançados como corajosamente repelidos.

      Nas suas improvisadas ameias flutuava ainda a bandeira nacional com as cores da Rússia.

      Não foi sem um certo orgulho que Miguel Strogoff e o seu companheiro a saudaram intimamente, formulando os mais ardentes votos pelo seu triunfo.

      Miguel Strogoff conhecia perfeitamente a cidade de Omsk, e, sem deixar de seguir o mujique, ia, contudo, evitando as ruas mais concorridas. Não era por medo de ser reconhecido. Nesta cidade, só Marfa Strogoff poderia chamá-lo pelo seu verdadeiro nome, ele, porém, tinha jurado não ver sua mãe, e havia de cumprir à risca o juramento que fizera. De resto, o mais natural era que Marfa Strogoff tivesse tido tempo de fugir de Omsk, o que seu filho bem desejava do fundo do coração.

      O mujique, felizmente, conhecia um encarregado de posta que, mediante boa paga, não se recusaria a vender ou a alugar, quer um veículo, quer um cavalo. Restava só ver o meio de sair da cidade, porém, as brechas feitas na muralha deveriam auxiliar Miguel Strogoff nessa empresa.

      O mujique ia encaminhando o seu hóspede para a estação de posta, quando, numa rua estreita, Miguel Strogoff parou de repente, obrigando o mujique a esconder-se com ele atrás de um muro.

      - Que é? - perguntou o mujique, muito admirado deste rápido movimento.

      - Silêncio! - apressou-se a responder Miguel Strogoff, levando à boca o dedo indicador.

      Ao mesmo tempo desembocava da praça principal um destacamento de tártaros a cavalo, seguindo pela rua onde Miguel Strogoff e o mujique tinham estado momentos antes.

      A frente do destacamento, composto por uns vinte soldados, cavalgava um oficial trajando com muita simplicidade. Se bem que fosse olhando para ambos os lados, era-lhe impossível decerto dar com Miguel Strogoff, que tivera tempo de se ocultar.

      O destacamento e o seu comandante corriam a trote largo, sem fazerem caso das pessoas que passavam. Estas, para não serem atropeladas, apenas tiveram tempo de se encostarem às paredes, ouvindo-se mal reprimidas vociferações, a que logo responderam as lanças dos soldados. Assim não causou estranheza que a rua ficasse desimpedida em pouco tempo.

      Quando a escolta desapareceu, Miguel Strogoff, voltando-se para o mujique, perguntou-lhe, ao mesmo tempo que o seu rosto empalidecia mortalmente:

      - Quem é aquele oficial?

      - É Ivan Ogareff - respondeu em voz baixa e repassada de ódio o guia de Miguel Strogoff.

      - Ogareff! - exclamou este com um acento rancoroso, que não pôde reprimir.

      Acabava de reconhecer naquele oficial o desconhecido que o insultara na estação de Ichim.

      E, fosse embora uma alucinação do seu espírito, aquele desconhecido que mal vira uma vez pareceu-lhe ser também o tzigano cujas palavras surpreendera na feira de Nijni-Novgorod.

      Miguel Strogoff não se enganava. Aqueles dois homens formavam apenas um. Fora com o disfarce de tzigano que, envolvido no bando de Sangarra, Ivan Ogareff conseguira sair de Nijni-Novgorod, aonde tinha ido procurar, entre aqueles diferentes estrangeiros da Ásia central atraídos pela feira, os confidentes indispensáveis para levar a cabo a sua obra maldita. Sangarra e as suas tziganas, verdadeiras espias pagas por ele, eram-lhe absolutamente dedicadas. Fora ele quem durante a noite pronunciara na feira aquelas singulares palavras, cujo sentido Miguel Strogoff compreendia agora perfeitamente, fora ele quem viera a bordo do Cáucaso com aquele grupo de boémios, fora ele, finalmente, quem pela estrada de Kazan a Ichim, através dos Urais, pudera chegar a Omsk, onde agora ditava a lei como conquistador.

      Havia três dias que Ivan Ogareff estava em Omsk.

      Se não se tivesse dado aquele funesto encontro em Ichim e aquele deplorável ferimento na passagem do Irtyche, Miguel Strogoff achar-se-ia primeiro do que ele no caminho que ia dar a Irkutsk!

      E quantas desgraças se teriam talvez assim evitado no futuro! Em todo o caso, Miguel Strogoff precisava agora mais do que nunca tomar a dianteira a Ivan Ogareff, empregando todos os meios para não ser visto por aquele homem. Quando chegasse o momento de o poder defrontar cara a cara, ele saberia procurá-lo, ainda mesmo que a Sibéria inteira estivesse então em seu poder.

      O mujique e Miguel Strogoff continuavam a atravessar as ruas de Omsk até chegarem à estação de posta. Sair de Omsk por uma das brechas, quando caísse a noite, não era difícil. Porém, comprar um veículo qualquer para substituir o tarentass, Isso é que era impossível. Em toda a cidade não havia um único transporte disponível. Mas que necessidade tinha agora Miguel Strogoff de um veículo! Não ia ele, infelizmente, continuar sozinho a viagem? Bastar-lhe-ia, portanto, um cavalo, e por fortuna pôde obtê-lo sem grande dificuldade. Era um cavalo de carreira, capaz de suportar grandes fadigas, e de que Miguel Strogoff, excelente cavaleiro, poderia tirar óptimo partido.

      O cavalo foi pago por uma soma elevada e alguns minutos depois estava selado e pronto a partir.

      Eram então quatro horas da tarde.

      Miguel Strogoff, obrigado a esperar pela noite para transpor as muralhas e não querendo percorrer as ruas da cidade, deixara-se ficar na estação de posta, onde  pediu que lhe trouxessem alguma coisa de comer.

      Havia grande afluência na sala comum. Como nas gares das linhas russas, os habitantes de Omsk, ansiosos por notícias, vinham aqui saber o que se passava. Falava-se da chegada próxima a Tomsk de um corpo de tropas moscovitas, com o fim de reconquistar aquela cidade aos tártaros de Féofar-Cã.

      Miguel Strogoff prestava a maior atenção ao que se dizia, evitando, porém, envolver-se nas conversações.

      De repente, chegou-lhe aos ouvidos um grito que o fez estremecer, um grito que o penetrou até ao íntimo da alma, um grito que em poucas e rápidas palavras encerrava um mundo inteiro de afectos:

      - És tu, meu filho!

      Achava-se diante dele a velha Marfa. A extremosa mãe, trémula e comovida, estendia para ele os braços! Miguel Strogoff levantou-se. Ia também para abraçá-la...

      Porém, o sentimento do dever e o perigo iminente que poderia resultar para ambos daquele deplorável encontro fizeram-no parar. E foi tal o domínio que teve sobre si mesmo que nem um só músculo do rosto se lhe contraiu.

      Na sala de espera da estação achavam-se reunidas vinte pessoas. Entre elas talvez houvesse mais de um espião, além disso, não se sabia na cidade que o filho de Marfa Strogoff pertencia ao corpo dos correios do czar?

      Miguel Strogoff não se moveu.

      - Miguel! - exclamou Marfa Strogoff.

      - Quem és tu e que me queres?... - balbuciou com esforço Miguel Strogoff.

      - Quem sou eu, ainda mo perguntas?! Dar-se-á o caso, meu filho, que já não reconheças a tua pobre mãe?

      - Enganas-te! - respondeu com afectada frieza Miguel Strogoff. - Alguma extraordinária semelhança te ilude.

      A velha Marfa caminhou para ele e fitou-o de frente.

      - Não serás tu o filho de Pedro e de Marfa Strogoff? - perguntou.

      Miguel Strogoff daria todo o seu sangue para poder estreitar nos braços aquela que assim lhe falava. Mas, se o fizesse, perder-se-ia a si, sacrificando simultaneamente a sua missão, o seu juramento, a sua própria mãe!

      Contendo-se a custo, fechando os olhos para não ver a angústia que se lia no rosto de sua mãe, e afastando-se rapidamente para não apertar nas suas as mãos convulsas que o buscavam, disse, recuando alguns passos:

      - Não sei, na verdade, o que pretendes de mim, boa mulher...

      - Miguel! - exclamou ainda a pobre mãe.

      - Não sou Miguel. Nunca fui teu filho. Chamo-me Nicolau Korpanoff, negociante de Irkutsk.

      E, dizendo isto, saiu da sala arrebatadamente, enquanto ressoavam ainda pela última vez estas palavras:

      - Meu filho! Meu filho!

      Miguel Strogoff, quebrado de forças, afastara-se finalmente. Não teve, pois, possibilidades de ver a sua pobre mãe cair quase desfalecida sobre um banco. Porém, no momento em que o chefe de posta ia para socorrê-la, já ela estava de pé. Acabava de se fazer luz no seu espírito. Ela renegada por seu filho, podia lá ser! Também não era admissível que se tivesse enganado a ponto de tomar outro homem por ele. Não restava a menor dúvida de que tinha sido seu filho que lhe falara, e, se Miguel afirmara que não a conhecia, é porque não devia conhecê-la, porque tinha razões imperiosas que a isso o obrigavam.

      E então, recalcando no fundo do coração todos os seus sentimentos maternos, só teve um único pensamento:

      «Acaso perderia eu, sem querer, o meu pobre filho?»

      - Sou uma louca! - disse ela aos que a rodeavam. – Aquele rapaz não é meu filho, não é, não pode ser meu filho. Enganaram-me estes meus cansados olhos. Nem a voz nem as feições eram as do meu Miguel. Hei-de acabar por ver em todos que encontro o meu filho. Saudades de mãe! Saudades! Tristezas da ausência!

      Dez minutos depois apresentava-se um oficial tártaro na estação de posta.

      - Marfa Strogoff? - perguntou ele.

      - Sou eu - respondeu a mãe de Miguel Strogoff com tanta serenidade na voz e no olhar que todos os presentes dificilmente poderiam ver nela a mulher que tão pouco tempo antes quase desfalecera vencida pela comoção.

      - Acompanha-me - ordenou o oficial.

      Mara Strogoff, poucos minutos depois, achava-se no acampamento, em presença de Ivan Ogareff, a quem todos os pormenores da cena anterior tinham sido imediatamente relatados.

      Ivan Ogareff, desconfiando da verdade, tinha querido interrogar pessoalmente a velha siberiana.

      - O teu nome? - perguntou-lhe o traidor com modos ásperos.

      - Marfa Strogoff.

      - Tens filhos?

      - Tenho um.

      - O que é ele?

      - Correio do czar.

      - Onde está?

      - Em Moscovo.

      - E que faz?

      - Não sei.

      - Há quanto tempo não recebes notícias dele?

      - Há dois meses.

      - Quem era então esse rapaz a quem há pouco chamavas teu filho?

      - Um siberiano que tomei por ele - respondeu Marfa Strogoff.

      - Todos me parecem o meu Miguel!... É já a décima vez que julgo ver meu filho num estranho.

      - Nesse caso, aquele homem não era Miguel Strogoff?

      - Não era.

      - Sabes que te posso obrigar a dizer a verdade mandando-te torturar.

      - Disse-te só a verdade. Os teus suplícios não me assustam.

      - Aquele siberiano não era, pois, teu filho? – perguntou pela segunda vez Ivan Ogareff.

      - Não, não era meu filho, posso afirmá-lo - respondeu também pela segunda vez Marfa Strogoff. - Jamais poderia renegar um filho como aquele que a Providência me concedeu...

      Ivan Ogareff deitou sobre a velha siberiana um olhar cheio de raiva, que esta suportou sem baixar os olhos.

      E o traidor não duvidou de que a mãe de Miguel Strogoff tivesse reconhecido seu filho naquele negociante de Irkutsk. Ora, se o filho renegara a mãe e se a mãe agora renegava o filho é porque algum motivo poderoso os obrigava a esse procedimento.

      Para Ivan Ogareff ficou, pois, assente que o pretendido Nicolau Korpanoff não era outro senão o próprio Miguel Strogoff, correio do czar, que se ocultava sob um nome suposto a fim de desempenhar alguma missão cujo segredo lhe era indispensável conhecer rapidamente.

      Levado por esta convicção, deu ordem para que se fosse imediatamente no encalço de Miguel Strogoff. . Depois ordenou:

      - Que esta mulher seja transferida para Tomsk - ordenou ele, apontando para Marfa Strogoff.

      E enquanto os soldados a conduziam brutalmente, acrescentou por entre os dentes.

      - Quando for tempo, eu te obrigarei a falar, minha bruxa do inferno!

     

     Sempre a galope!

      Miguel Strogoff tivera razão em se ausentar precipitadamente, depois daquele aflitivo encontro com sua mãe. Ivan Ogareff, para evitar que ele se escapasse de Omsk, mandara transmitir os seus sinais a todas as portas da cidade, a todos os chefes de posta. Mas quando se tomavam estas providências, já Miguel Strogoff tinha transposto uma das muralhas. O seu cavalo corria a bom correr pela imensidade da estepe. Como não fora imediatamente perseguido, havia agora todas as probabilidades de que não chegassem a alcançá-lo.

      Eram oito horas da tarde de 29 de Julho quando Miguel Strogoff saiu de Omsk. Esta cidade acha-se aproximadamente a meio caminho entre Moscovo e Irkutsk.

      Para que Miguel Strogoff pudesse chegar a Irkutsk antes dos tártaros era preciso que realizasse o resto da viagem no espaço de dez dias. Evidentemente aquele deplorável acaso, que o tinha colocado em frente de sua mãe, denunciara-lhe o incógnito. Ivan Ogareff já não podia ignorar que um correspondente imperial acabava de passar por Omsk em direcção a Irkutsk. Deviam ter extraordinária importância os despachos de que era portador este correio. Miguel Strogoff sabia, pois, que haviam de empregar todos os meios para se apoderarem dele.

      Mas o que Miguel Strogoff não sabia, o que não podia saber, é que Marfa Strogoff se achava entre as mãos de Ivan Ogareff, e que talvez fosse pagar com a vida o grito de maternidade que não conseguira reprimir em presença de seu filho.

      E bom era que seu filho ignorasse esta nova desgraça: Como teria ele ainda forças para resistir a tão cruel provação?

      Miguel Strogoff incitava, pois, o seu cavalo, comunicando-lhe a impaciência febril que o devorava, para ver se assim poderia chegar mais depressa à primeira estação de muda. O seu intento era comprar um veículo que lhe oferecesse melhores condições de rapidez.

      À meia-noite já levava setenta verstas percorridas, quando chegou à estação de Kolikovo. Mas, como era de supor, não encontrou aqui nenhum meio de transporte. Os destacamentos dos tártaros, que atravessavam a estrada, iam roubando tudo o que havia, tanto nas aldeias como nas estações de posta. Miguel Strogoff apenas conseguiu, com dificuldade, que lhe cedessem algum alimento para ele e uma ração para o cavalo.

      Convinha, por conseguinte, poupar este animal, uma vez que se não sabia ainda quando e como seria possível substituí-lo. Miguel Strogoff, desejando, porém, estabelecer uma grande barreira entre si e os soldados que Ivan Ogareff devia ter mandado no seu encalço deliberou não afrouxar a marcha. Descansou, pois, uma hora somente, finda a qual se pôs de novo a galopar.

      Até aqui as circunstâncias atmosféricas tinham felizmente favorecido a viagem do correio do czar. A temperatura estava suportável. A noite muito curta, como todas nesta época do ano, e alumiada além disso pela meia claridade do luar, coado por entre as nuvens, tornava a estrada acessível.

      Miguel Strogoff caminhava, de resto, como homem seguro de si mesmo, a quem nada neste mundo poderia afastar do cumprimento de um dever. Apesar dos pensamentos dolorosos que o assaltavam, conservava extrema lucidez de ideias e seguia em linha recta o fito que se propusera, como se o estivesse distinguindo no fundo do horizonte. Se se demorava alguns minutos nas curvas da estrada, era só para permitir que o cavalo tomasse fôlego, apeando-se para lhe dar algum descanso e pondo o ouvido no chão, à escuta, com o fim de verificar se os seus eventuais perseguidores já se teriam posto em marcha, através da estepe. Depois, satisfeito com a observação, continuava com mais confiança a interrompida carreira.

      Ah! Se toda a região siberiana fosse agora invadida pela noite polar!... Por essa noite enorme, que se prolonga durante meses consecutivos! Miguel Strogoff chegava a desejá-la para poder transpor a estepe sem ser visto.

      A 30 de Julho, às nove horas da manhã, Miguel Strogoff passava além da estação de Turumoff e metia-se afoitamente pelos terrenos pantanosos da Baraba.

      Dali por diante, num espaço de trezentas verstas, as dificuldades naturais iam tornar-se extremamente perigosas. Miguel Strogoff sabia-o, mas também sabia que havia de vencê-las.

      Estes vastos pântanos da Baraba, que se estendem de norte a sul, entre o sexagésimo e o quinquagésimo segundo grau de latitude, servem de reservatório a todas as águas pluviais que não acham derivação para os rios Obi e Irtyche. O solo desta enorme depressão é completamente argiloso e por consequência Impermeável, de sorte que as águas depositam-se nele, transformando-o numa região dificílima de percorrer durante o Estio.

      É contudo por ali que segue a estrada para Irkutsk, e é por entre estes meandros de pântanos, lagoas, charcos e pauis, onde o sol provoca e desenvolve terríveis e insalubres exalações, que essa estrada se prolonga, para tormento e suplício dos viajantes que a seguem.

      Durante o Inverno, quando o frio solidifica as águas e a neve e condensa os miasmas, podem os trenós fácil e impunemente deslizar sobre a crusta endurecida da Baraba. Os caçadores aparecem então com assiduidade nestes sítios, abundantes de caça, em procura das martas, das zibelinas e dessas preciosas raposas, cujas peles são tidas em tamanha estimação. Mas durante a estação calmosa, quando o nível das águas está muito elevado, o terreno aqui torna-se lodoso, pestilencial e até mesmo inacessível.

      Miguel Strogoff atirou com o cavalo por entre um campo turfoso inteiramente despido daquela relva meio rasa da estepe, que serve de única pastagem a todos os rebanhos da Sibéria. Já não eram as ilimitadas planícies que Miguel Strogoff atravessava, mas sim uma espécie de grande mata, composta de vegetais arborescentes.

      A relva aqui eleva-se a cinco e a seis pés de altura.

      As plantas gramíneas desapareciam para darem lugar às plantas paludosas. Estas, auxiliadas pela humidade e pelo calor do Verão, tomavam proporções extraordinárias.

      Eram principalmente os juncos simples e os juncos floridos que formavam uma rede inextricável, um emaranhado labirinto, coberto de numerosas flores de admiráveis cambiantes, entre as quais brilhavam os lírios e as íris, casando os seus perfumes com os tépidos vapores que se espargiam da terra.

      Miguel Strogoff, galopando entre estes juncais, não podia ser visto da parte dos pântanos que ladeavam a estrada. Havia ali plantas mais altas do que ele, e a sua passagem só era assinalada pelo voo de infinitas aves aquáticas, que se levantavam num e noutro ponto do caminho, sumindo-se nas alturas em bandos clamorosos.

      A estrada, porém, continuava a desenhar-se com perfeita nitidez, dilatando-se aqui por entre uma compacta moita de plantas nocivas, contornando acolá as beiras sinuosas dos extensos pauis, em cujo número alguns há que, pelo seu comprimento e largura, já mereceram classificação de lagos.

      Em vários sítios não era possível evitar as águas estagnadas, que o caminho cortava, não sobre pontes, mas sobre estrados de madeira, de duzentos e trezentos pés de extensão, sustidos por grossas camadas de argila e feitos de pranchas que oscilavam como se fossem ligeiras e frágeis tábuas lançadas por cima de um abismo.

      A oscilação destes estrados é tal que produz em muitos viajantes de tarentass um enjoo igual ao que se sofre a bordo dos navios.

      Miguel Strogoff, quer o terreno fosse firme, quer cedesse debaixo dos pés do seu cavalo, corria sempre sem parar, saltando as frequentes aberturas que nos estrados faziam as pranchas apodrecidas pelo tempo.

      Mas, por mais acelerada que fosse a carreira, cavalo e cavaleiro não podiam esquivar-se às ferroadas violentas dos insectos dípteros, que assolam esta região paludosa.

      Os viajantes que são obrigados a atravessar a Baraba no Estio têm o cuidado de se prevenir com máscaras de crina e cotas de malhas de fio de ferro muito delgado, que lhes caem sobre os ombros. Apesar de semelhantes precauções, poucos há que saiam destes pântanos sem trazer a cara, o pescoço e as mãos crivados de nódoas vermelhas. A atmosfera parece estar ali cercada de agulhas finíssimas, e poderia talvez supor-se que até uma armadura completa não bastasse para proteger quem a vestisse contra o ferrão destes insectos. Nesta sinistra região, o homem tem de lutar contra as moscas aquáticas, os mosquitos, os moscardos, os tavões e outros milhares e milhares de insectos microscópicos, invisíveis a olho nu, mas que se fazem sentir pelas suas intoleráveis mordeduras, a que os próprios caçadores siberianos, ainda os mais calejados, se não podem habituar.

      O cavalo de Miguel Strogoff, perseguido por estes venenosos dípteros, pulava como se lhe estivessem cravando nos ilhais as rosetas de mil esporas. Louco de raiva e de desespero, o pobre animal corria, espumava, enfurecia-se, inflamava-se, e transpunha o caminho num galope vertiginoso, igual à velocidade de um expresso, fustigando com a cauda os flancos, e buscando na rapidez da carreira um alívio ao seu insuportável suplício.

      Só um cavaleiro da força de Miguel Strogoff poderia resistir a estes saltos violentos, a estes súbitos sacões, sem ser cuspido da sela. Insensível às dores do corpo, como se estivesse debaixo da influência de uma anestesia permanente, vivendo unicamente pelo desejo imperioso de chegar ao termo da sua empresa, custasse o que custasse, Miguel Strogoff não podia ver senão uma coisa: a estrada ficando-lhe para trás neste galopar temerário.

      Quem se atreveria a supor que a região da Baraba, tão insalubre durante o Verão, servisse de asilo a criaturas humanas?

      Pois servia. Alguns lugarejos se destacavam de longe a longe, entre estes extensíssimos juncais. Homens e mulheres, crianças e velhos, com o corpo coberto de peles, com a cara cheia de bolhas impregnadas de pez, pastoreavam enfezados rebanhos de carneiros. Esta miserável população via-se obrigada a conservar acesas dia e noite grandes fogueiras de troncos verdes, a fim de proteger com o acre fumo delas os seus rebanhos contra os ataques terríveis dos insectos.

      Quando Miguel Strogoff sentia que o seu cavalo, extenuado de fadiga, estava a ponto de cair, parava numa destas desgraçadas moradas, e ali, esquecendo o seu próprio cansaço, era ele em pessoa que ia curar as picadas do pobre animal, esfregando-lhas com unto quente, segundo a prática siberiana. Depois dava-lhe uma boa ração de forragem, e só, quando o deixava bem conchegado é que ia tratar de si, reparando as forças com um pedaço de pão, de carne e um copo de kzuass. Passada uma hora, o máximo duas, ei-lo que partia de novo à desfilada pelo caminho para Irkutsk.

      Noventa verstas foram assim percorridas para lá de Turumoff, e no dia 31 de Julho, pelas quatro horas da tarde, Miguel Strogoff, insensível a toda a espécie de fadiga, dava entrada em Elamsk.

      Ali foi preciso sacrificar a noite ao repouso do cavalo. O corajoso animal dificilmente poderia continuar por mais tempo a galopar.

      Em Elamsk, da mesma forma que nas outras povoações, escasseavam os meios de transporte. O receio da invasão ia despovoando completamente toda a imensa Sibéria.

      Elamsk, pequena cidade que ainda não fora atacada pelos tártaros, achava-se quase deserta, em consequência de poder ser invadida pelo sul e dificilmente socorrida pelo norte. As estações de posta, as repartições públicas e o edifício dos correios estavam fechados por ordem superior, e tanto os funcionários como os habitantes em condições de emigrar já se tinham retirado para Kamsk, povoação que situa mesmo ao centro da Baraba.

      Miguel Strogoff resignou-se, pois, a ficar aquela noite em Elamsk, a fim de o seu cavalo ter algumas horas de descanso. Passaram-lhe então pela memória as recomendações que lhe haviam sido feitas em Moscovo: atravessar a Sibéria incógnito, chegar por todos os meios a Irkutsk, mas de maneira que o bom êxito da empresa não fosse sacrificado à rapidez da viagem. Era por isso que ele se mostrava tão cuidadoso com o seu cavalo.

      No dia seguinte, Miguel Strogoff saía de Elamsk justamente quando principiavam a aparecer os primeiros exploradores tártaros a dez verstas de distância sobre a estrada de Baraba. O correio do czar lançou-se de novo a galope.

      A estrada era plana, o que a tornava fácil, mas muito cheia de curvas, o que a tornava extensa. Sair dela para seguir em linha recta pela interminável rede de pântanos e juncais era impossível.

      No dia 1 de Agosto, ao meio-dia, depois de ter andado mais de cento e vinte verstas, Miguel Strogoff chegava ao lugar de Spaskóe, e às duas horas da tarde parava no lugar de Pokrowskóe.

      O cavalo, obrigado a um esforço excessivo desde a sua saída de Elamsk, não se achava em condições de dar mais um passo.

      Miguel Strogoff, em consequência desta demora obrigatória, teve de perder o resto do dia, bem como toda a noite, porém, na manhã seguinte, 2 de Agosto, punha-se de novo a caminho, correndo sempre através de um terreno meio alagado. Às quatro horas desse dia, depois de vencidas mais setenta e cinco verstas, Miguel Strogoff chegava a Kamsk.

      O terreno aqui mudava de aspecto. A pequena povoação de Kamsk é uma espécie de Ilha habitável e situada no meio de um país inabitável. Kamsk fica mesmo no centro da Baraba. Graças aos saneamentos que lhe advieram da canalização do Tom, afluente do Irtyche, que por aqui passa, as lagoas pestilenciais transformaram-se em ubérrimas pastagens. Entretanto, estes melhoramentos ainda não conseguiram triunfar completamente das febres que, durante o Outono, convertem Kamsk numa residência perigosa. Ainda assim é neste ponto que os indígenas da Baraba costumavam refugiar-se quando os miasmas palustres os afugentam das outras localidades da província.

      A emigração, provocada pela invasão tártara, ainda não tinha despovoado Kamsk. Os seus habitantes julgavam-se talvez em segurança no centro da Baraba, ou pensavam pelo menos que teriam tempo de fugir, se se vissem directamente ameaçados.

      Por maiores que fossem os seus desejos, Miguel Strogoff não pôde colher aqui a mais insignificante informação. Seria pelo contrário a ele que se teria dirigido o governador, se, porventura, suspeitasse qual era a verdadeira qualidade do suposto negociante de Irkutsk. De facto, Kamsk, pela sua própria situação, parecia achar-se fora do mundo siberiano e dos graves acontecimentos que se estavam agora dando.

      Miguel Strogoff também pouco se mostrou enquanto aí permaneceu. Passar despercebido já lhe não bastava, o seu desejo era tornar-se invisível. A experiência do passado obrigava-o a ser mais cauteloso no presente e no futuro. Por isso não pensou em andar pelas ruas da povoação, nem mesmo em sair da pousada onde se alojara.

      Miguel Strogoff poderia ter achado em Kamsk um veículo para suprir o cavalo que vinha com ele desde Omsk. Mas, depois de aturada reflexão, receou que a compra de um tarentass pudesse chamar sobre si as atenções, e, enquanto não conseguisse atravessar a linha ocupada agora pelos tártaros, linha que cortava a Sibéria pouco mais ou menos pelo vale do Irtyche, era-lhe conveniente evitar desconfianças e suspeitas.

      De resto, para realizar a difícil passagem dos terrenos pantanosos da Baraba, para correr por entre aquele enxame de charcos e de pauis, dado o caso de que algum perigo iminente o ameaçasse, para tomar dianteira aos destacamentos mandados em seu alcance, para se lançar, se assim fosse preciso, nas mais espessas moitas dos juncais, um cavalo faria evidentemente muito melhor serviço que um veículo qualquer. Quando estivesse além de Tomsk, ou mesmo de Krasnoiarsk, nalgum centro importante da Sibéria ocidental, então veria com mais sossego o que lhe convinha fazer.

      Quanto ao seu cavalo, nem mesmo pensou em substituí-lo. Tinha-se habituado ao corajoso animal, e sabia o partido que poderia tirar dele. Aplaudia-se da aquisição que fizera, e agradecia também a Deus o ter-lhe deparado aquele generoso mujique, de quem dependera a continuação da sua viagem.

      Além disso, se Miguel Strogoff se interessava já pelo seu cavalo, este parecia também conformar-se com as fadigas de semelhante carreira.

      Desde que, no decurso do dia, lhe concedessem algumas horas de repouso, o seu cavaleiro podia estar certo de que tinha ali um animal para o transportar rapidamente além das províncias invadidas.

      Durante a noite de 2 para 3 de Agosto, Miguel Strogoff não saiu da pousada onde se recolhera à entrada de Kamsk, pousada pouquíssimo concorrida e por conseguinte completamente livre de importunos e curiosos.

      Quebrado pela fadiga, Miguel Strogoff, depois de examinar se nada faltaria ao seu cavalo, foi deitar-se. Não conseguiu, porém, de modo algum conciliar o sono. Afligiam-no muitas inquietações e desgostos para que pudesse dormir tranquilamente. A imagem da sua velha mãe e a da sua jovem e intrépida companheira de viagem, entes queridos por quem ele agora não podia velar, passavam-lhe alternadamente por diante dos olhos, confundindo-se amiúde no mesmo pensamento.

      Depois tornara a lembrar-se da missão de que jurara desempenhar-se. O que ele vira, desde a sua partida de Moscovo, mais lhe fazia sentir a importância desse encargo. O movimento das forças invasoras era extremamente grave e a cumplicidade de Ivan Ogareff ainda o tornava mais perigoso. E quando os seus olhos se fixavam sobre o ofício selado com as armas imperiais, ofício que seguramente encerrava o remédio de tantos males e a salvação de tão vasto país devastado pela guerra, sentia em si como que um desejo impetuoso de se precipitar pelas estepes fora, de transpor de um só movimento a distância que o separava de Irkutsk, de ser águia para se elevar acima dos obstáculos, de ser tufão para correr com a velocidade de cem verstas por hora, a fim de chegar instantaneamente à presença do grão-duque e de lhe dizer:

      «Alteza, da parte de Sua Majestade o czar!»

      Na manhã seguinte, às seis horas, Miguel Strogoff começou novamente a galopar com a intenção de percorrer nesse dia as oitenta verstas (85 quilómetros) que separavam Kamsk do lugar de Ubinsk.

      Para lá de uma distância de vinte verstas achou-se outra vez nos terrenos alagadiços da Baraba, que, por falta de escoadouros, se conservavam agora um pé de baixo de água. A estrada dificilmente se conhecia, mas, graças à sua extrema prudência, Miguel Strogoff ia avançando por ela sem que algo lhe acontecesse.

      Miguel Strogoff, apenas chegou a Ubinsk, deixou que o cavalo descansasse toda a noite, porque tencionava no dia seguinte caminhar sem repouso as cem verstas que ficam entre Ubinsk e Ikulskóe. Partiu, pois, ao romper da manhã, mas neste ponto, infelizmente, o solo da Baraba cada vez se mostrava mais intransitável.

      De facto, entre Ubinsk e Kamakova tinham, algumas semanas antes, caído abundantissimas chuvas, que ainda se conservavam nesta estreita depressão, como que depositadas num receptáculo impermeável. Chegava a não haver solução de continuidade em tão extensa aglomeração de charcos, pântanos, lagoas e lagos. Um desses lagos, bastante considerável para merecer a sua admissão na nomenclatura geográfica, o Tchang, chinês pelo nome, teve de ser costeado com enormes dificuldades numa largura de mais de vinte verstas. Deste inesperado embaraço resultaram alguns estorvos, que Miguel Strogoff, por maior que fosse a sua impaciência, não pôde evitar.

      Viu-se igualmente nesta ocasião que ele tinha feito bem em não mudar de meio de transporte quando saiu de Kamsk, porque o seu cavalo passava agora por onde nenhum trem poderia ter passado.

      À noite, depois das nove horas, Miguel Strogoff chegava a Ikulskóe, onde se decidiu a pernoitar. Este lugar, perdido nos confins da Baraba, não lhe pôde fornecer a respeito dos tártaros quaisquer informações. A sua própria posição tinha-o até agora protegido contra os horrores por que estavam passando muitas outras povoações siberianas.

      Entretanto, as dificuldades naturais iam finalmente diminuindo, e, se não surgisse algum novo obstáculo, Miguel Strogoff deveria no dia seguinte achar-se fora da Baraba. Depois a estrada tornar-se-lhe-ia favorável, logo que estivessem vencidas as cento e vinte e cinco verstas (135 quilómetros) que ainda o separavam de Kolyvan.

      Alcançada esta cidade, igual distância lhe ficaria ainda a percorrer para chegar a Tomsk.

      Era em Kolyvan que Miguel Strogoff poderia efectivamente saber se Féofar-Cã já estava em Tomsk, sendo muito provável, em caso afirmativo, que torneasse aquela cidade, para evitar quanto possível qualquer encontro com os tártaros.

      Mas se lugares tais como Ikulskóe e Karguinsk, este último atravessado na manhã seguinte por Miguel Strogoff, se mostravam relativamente tranquilos, em virtude da sua posição na Baraba, que os protegia contra as manobras das colunas tártaras, poder-se-ia esperar a mesma tranquilidade sobre as férteis margens do Obi? Miguel Strogoff, livre por um lado de todos os obstáculos físicos, não teria de recear os obstáculos humanos? Era bem de supor que sim. Todavia, o correio do czar estava bem decidido, se a isso o obrigassem, a deixar a estrada de Irkutsk, embora tivesse de continuar a viagem através das estepes, onde evidentemente os recursos lhe faltariam. Efectivamente, nas imensas planícies da estepe nem havia caminhos traçados, nem cidades, nem vilas, nem aldeias. Apenas alguns casais de espaço a espaço, ou simples choças de pobres moradores, hospitaleiros decerto, mas onde a custo se poderia encontrar o necessário!

      Miguel Strogoff, todavia, não teria hesitado, antes a estepe com as suas privações do que a estrada com os seus perigos.

      Enfim, pelas três horas e meia da tarde, depois de ter atravessado a estação de Kargatsk, deixava de todo atrás de si as últimas depressões da Baraba, e debaixo dos pés do seu cavalo começava a ressoar o solo seco e duro do território siberiano.

      Fora a 15 de Julho que Miguel Strogoff saíra de Moscovo. Estava-se a 5 de Agosto. Incluindo umas setenta horas perdidas na cabana do mujique, a sua viagem durava pois há vinte e um dias.

      E, contudo, mil e quinhentas verstas separavam ainda o correio do czar de Irkutsk.

     

     Um derradeiro esforço

      As extensas planícies situadas além dos pântanos da Baraba apresentavam alguns indícios que não podiam deixar de ser inquietantes para Miguel Strogoff. Os campos, em geral pisados pelos pés dos cavalos, denunciavam que os tártaros já tinham por ali passado, e, a respeito destes bárbaros, podia-se dizer o que se diz dos turcos: “por onde um turco passa nunca mais a erva cresce”.

      Convinha, pois, que Miguel Strogoff tomasse as maiores precauções para se não encontrar com os invasores. Alguns rolos de fumo, levantando-se em espiral acima do horizonte, indicavam-lhe as aldeias e casais que ainda não tinham acabado de arder. Estes incêndios seriam obra unicamente dos exploradores do emir, ou do seu próprio exército, que tivesse avançado até aos últimos limites da província? Féofar-Cã achar-se-ia já em pessoa no governo do Yeniseisk? Miguel Strogoff não o sabia, nem podia tomar resolução alguma definitiva enquanto não fosse bem informado a tal respeito. Os habitantes dos campos teriam todos abandonado as suas casas, a ponto de que não restasse um único siberiano para lhe ministrar alguns esclarecimentos?

      Miguel Strogoff andou duas verstas sem encontrar ninguém pela estrada. Em vão procurava com a vista, de um e outro lado, alguma casa que tivesse moradores. Todas que apareciam estavam completamente desertas!

      Uma cabana, porém, que ele divisou entre as árvores, fumegava ainda. Quando se aproximou viu, a pequena distância daquela habitação destruída pelas chamas, um velho rodeado de crianças que choravam. Uma mulher ainda nova, sua filha decerto, a mãe dessas crianças, ajoelhada no chão, fitava com um olhar espantado este quadro de devastação. Estava a amamentar um inocentinho de peito, a quem talvez o leite faltasse dentro em pouco.

      Em redor desta família tudo eram ruínas e miséria.

      Miguel Strogoff dirigiu-se ao velho:

      - Amigo - disse-lhe ele com gravidade -, podes responder às minhas perguntas?

      - Fala - replicou-lhe o velho.

      - Os tártaros já passaram por aqui?

      - Passaram, infelizmente! Pois não vês em chamas a minha casa?

      - Formavam um exército ou um destacamento?

      - Estende os olhos quanto possas pelos nossos campos talados, e os estragos te dirão que era um exército.

      - Comandado pelo emir?

      - Quem senão ele poderia tingir de vermelho as límpidas águas do Obi?

      - E Féofar-Cã já entrou em Tomsk?

      - Já

      - Sabes se os tártaros se apoderaram de Kolyvan?

      - Por enquanto não, que as suas casas ainda não estão em chamas.

      - Obrigado, amigo. Pretendes de mim alguma coisa?

      - Não.

      - Deus seja contigo e com os teus.

      - Que Deus vá na tua companhia.

      E Miguel Strogoff, depois de ter lançado vinte e cinco rublos no regaço da infeliz mulher, que nem forças teve para lhos agradecer, montou de novo a cavalo, e continuou a sua marcha interrompida por um momento.

      Uma coisa sabia já: é que lhe não convinha por forma alguma ir a Tomsk.

      O que lhe restava então fazer? Dirigir-se a Kolyvan, onde os tártaros ainda não tinham chegado, prover-se lá do necessário para uma longa viagem e arremessar-se depois através da estepe, por caminhos não trilhados, a fim de tornear Tomsk.

      Assente este novo itinerário, Miguel Strogoff não podia hesitar um momento. Assim fez e, obrigando o cavalo a um passo rápido e regular, seguiu a estrada directa que ia dar à margem esquerda do Obi, de que estava afastado quarenta verstas. Acharia ainda algum barco de passagem ou, dado o caso de os tártaros já terem destruído todas as embarcações, ver-se-ia obrigado a passar o rio a nado? Dentro em pouco o saberia.

      Em relação ao seu cavalo, já muito extenuado, Miguel Strogoff estava resolvido a utilizar-lhe as ultimas forças, trocando-o por outro, quando chegasse a Kolyvan.

      Kolyvan devia ser, portanto, uma espécie de novo ponto de partida, porque, a contar desta cidade, a viagem teria de se encarar sob um aspecto diferente. Enquanto Miguel Strogoff não saísse do território devastado, as dificuldades seriam grandes, mas logo que se achasse para lá de Tomsk, percorrendo de novo a estrada pela província de Yeniseisk, até agora livre de exploradores, a conclusão da sua empresa não demoraria muitos dias.

      Caíra a noite depois de um dia extremamente calmoso. Uma espessa obscuridade ia cercando a estepe, à medida que as horas avançavam. A ventania, que desaparecera com o pôr do Sol, deixara a atmosfera numa tranquilidade absoluta. Ouvia-se apenas o ruído do galopar do cavalo sobre a estrada deserta e as palavras com que Miguel Strogoff o incitava a correr. No meio de tão densas trevas, era precisa uma grande atenção para não sair do leito da estrada, que era ladeada por ribeiras e lagoas tributárias do rio Obi.

      Miguel Strogoff ia avançando com a maior rapidez, mas sempre com extrema cautela. Confiava para isso tanto na agudeza do seu olhar, que penetrava pelas sombras, como na prudência do seu cavalo, cuja sagacidade já conhecia.

      Entretanto, Miguel Strogoff tinha-se apeado para verificar a direcção do caminho quando lhe pareceu ouvir um ruído vago para o lado de oeste. Era como o rumor de uma cavalgada muito ao longe. Não restava dúvida. A uma ou duas verstas de distância sentia-se um pisar cadenciado e regular sobre o solo.

      Miguel Strogoff duplicou de atenção, indo pôr o ouvido à escuta mesmo no centro da estrada.

      «É um destacamento de cavalaria que vem pela estrada de Omsk - disse ele. - E avança com rapidez, porque a bulha vai aumentando. Serão russos ou tártaros?»

      Miguel Strogoff tornou a escutar.

      «Não há dúvida - repetiu ele -, são cavalos que vêm a todo o trote. Devem estar aqui antes de dez minutos. O meu cavalo não está em condições de lhes tomar o passo. Se é um destacamento de russos, juntar-me-ei a eles. Se são tártaros, convém bastante que me não vejam. Mas como? Onde poderei esconder-me?»

      Miguel Strogoff olhou em redor de si, e o seu olhar penetrante descobriu a cem passos de distância, do lado esquerdo da estrada, uma massa confusamente esfumada nas sombras.

      «É talvez algum bosque - supôs ele. - Procurar ali um refúgio é perigoso. Mas posso eu, porventura, escolher agora o que mais me convém? Ei-los!... Ei-los que chegam!»

      Alguns minutos depois Miguel Strogoff, levando o cavalo pela rédea, acercava-se de uma frondosa mata de larícios perfeitamente acessível pela estrada.

      Mas a estrada, antes de chegar a esta mata, e para lá dela, era completamente desguarnecida de árvores, e prolongava-se entre barrancos e lameiros, separados uns dos outros por algumas pequenas moitas de estevas e de tojo. O terreno era, pois, impraticável de ambos os lados, e o destacamento, que parecia dirigir-se para Tomsk, devia forçosamente passar por diante daquela mata.

      Miguel Strogoff precipitou-se para o ponto onde os larícios estavam mais compactos, e, entranhando-se por eles dentro num espaço de quarenta passos, teve repentinamente de parar. Na sua frente encontrara um grande veio de água, que servia de limite semicircular a este espesso arvoredo.

      Mas a escuridão era tão cerrada que Miguel Strogoff não corria o menor perigo de ser descoberto, a não ser que o destacamento se lembrasse de ir bater aquele terreno.

      Miguel Strogoff levou, pois, o cavalo até junto da ribeira e prendeu-o a uma árvore. Depois foi deitar-se de bruços à entrada da mata, com o fim de ver quem seriam os cavaleiros que se aproximavam.

      Apenas ele tivera tempo de se esconder atrás de um grupo de larícios, começou a diferençar-se um confuso clarão, do qual se destacavam por entre as sombras alguns pontos luminosos.

      «São archotes!» - pensou Miguel Strogoff.

      E recuou imediatamente, arrastando-se como um selvagem até ao ponto em que a mata era mais fechada.

      À medida que se acercavam da mata, os cavaleiros iam afrouxando o passo dos cavalos. Viriam eles alumiando a estrada com a intenção de lhe observarem os seus menores recantos?

      Miguel Strogoff assim o supôs, e instintivamente foi recuando até à margem da ribeira, decidido a precipitar-se dentro dela, se assim fosse preciso.

      O destacamento, ao chegar às primeiras árvores do bosque, fez alto. Os soldados apearam-se. Eram cinquenta pouco mais ou menos. Dez de entre eles traziam archotes que deitavam agora bastante luz sobre a estrada.

      Em vista de certos preparativos, Miguel Strogoff pôde reconhecer que, por uma felicidade inesperada, o destacamento não pensava de forma alguma em explorar a mata, mas simplesmente em acampar neste local para descanso dos cavalos e dar tempo a que os soldados tomassem algum alimento.

      Efectivamente, os cavalos, depois de lhes tirarem os freios, puseram-se a pastar a erva abundante que atapetava o solo, e os soldados estenderam-se à beira da estrada, repartindo entre si as provisões que traziam.

      Miguel Strogoff não perdera de modo algum a calma, e, escondendo-se atrás das plantas mais altas, foi assim avançando quanto possível, a fim de ver e de ouvir o que se passava.

      Era um destacamento que vinha de Omsk. Compunha-se de cavaleiros usbeques, raça dominante na Tartária, cujo tipo se aproxima sensivelmente dos mongóis.

      Estes homens, de uma robusta constituição, altura acima da mediana, feições enérgicas e selvagens, traziam na cabeça o talpak, espécie de gorro de pele de carneiro preto, e nos pés botas amarelas, de tacões muito altos e com os bicos revirados, à semelhança dos sapatos da Idade Média. As peliças, feitas de um estofo enchumaçado com algodão em rama, eram presas ao corpo por meio de cinturões de couro, bordados de vermelho. Vinham armados defensivamente de um escudo e ofensivamente de um sabre curvo, de uma adaga e de uma espingarda de pederneira, suspensa do arção da sela. Das costas pendiam-lhes umas capas de feltro de cores brilhantes.

      Os cavalos, que pastavam à entrada da mata em plena liberdade, também eram de raça usbeque. Denunciava-o perfeitamente o clarão dos archotes, que projectava um brilho vivíssimo sobre a ramada dos larícios. Estes animais, um pouco mais pequenos que os cavalos turcomanos, mas dotados de uma robustez admirável, são cavalos de carreira, que só andam a galope.

      À frente do destacamento vinha um pendja-baschi, comandante de cinquenta homens, tendo por imediato um deh-baschi, simples comandante de dez homens. Estes oficiais traziam capacete e meia cota de malha. Uns clarins, presos ao arção das selas, serviam para designar a sua patente.

      O pendja-baschi mandara descansar os seus soldados, que, depois de uma prolongada marcha, bem precisavam de repouso. Os dois oficiais, conversando em língua tártara e fumando o beng, folha de cânhamo, de que tanto uso fazem os asiáticos, passeavam de um para outro lado à entrada da mata, de sorte que Miguel Strogoff, sem ser visto, podia ouvir e compreender o que eles diziam.

      Logo às primeiras palavras do diálogo, Miguel Strogoff teve justificados motivos para lhe prestar toda a sua atenção.

      Era efectivamente dele que falavam.

      - O tal correio não podia trazer-nos uma dianteira tão considerável - disse o pendja-baschi. - Por outro lado, também era impossível que ele tomasse outro qualquer caminho que não fosse o da Baraba.

      - Quem sabe mesmo se o não andamos a procurar inutilmente - respondeu o deh-baschi. - Talvez ele esteja ainda escondido nalguma casa de Omsk.

      - Isso era excelente. O coronel Ogareff escusaria então de se inquietar sobre a viagem do tal correio, visto que os despachos, levados por ele, não poderiam chegar ao seu destino com certeza.

      - Ouvi dizer - acrescentou o deh-baschi - que o homem é siberiano. Sendo assim, deve conhecer bem o país, e talvez se afastasse da estrada principal para só tornar a entrar nela quando se julgue de todo em segurança.

      - Mas, nesse caso, somos nós que lhe levamos dianteira - replicou o pendja-baschi -, porque saímos de Omsk logo depois da sua evasão, e temos sempre vindo pelo caminho mais curto com toda a velocidade dos nossos cavalos. De duas uma: ou esse correio ficou em Omsk, e a sua missão está prejudicada, ou nós chegamos a Tomsk antes dele, e a sua viagem fica interrompida. Em qualquer dos casos pode-se ter a certeza de que não chegará a Irkutsk.

      - Tem que se lhe diga aquela velha siberiana, que não deixa naturalmente de ser mãe do nosso homem - afirmou o deh-baschi.

      A estas palavras o coração de Miguel Strogoff pulsava com tanta força que parecia querer sair-lhe do peito.

      - Decerto - concordou o pendja-baschi. - Sustentou com firmeza que não era seu filho o suposto negociante de Irkutsk. Perdeu, porém, o seu tempo. O coronel Ogareff não é homem para se deixar assim lograr, e, segundo as suas próprias palavras, ele obrigará a velha bruxa a falar quando for ocasião oportuna.

      Tantas eram as palavras, tantas as punhaladas para o pobre Miguel Strogoff. Já ninguém ignorava a sua qualidade de correio imperial! Um destacamento de cavalaria, lançado atrás dele, acabaria, tarde ou cedo, por lhe cortar o caminho! E - dor suprema! - sua infeliz mãe estava em poder dos tártaros, e o coronel Ogareff, esse infame traidor, gabava-se de que a obrigaria a falar quando a ocasião fosse oportuna!

      Miguel Strogoff bem sabia que a corajosa siberiana não era mulher para fazer revelações, mas sabia também que o silêncio dela poderia custar-lhe a vida.

      Miguel Strogoff julgava que lhe fosse impossível odiar mais do que já odiava o Ignóbil Ivan Ogareff, contudo, sentiu inundar-lhe o peito uma nova onda de rancor. O miserável, que tinha atraiçoado a pátria, pensava agora em martirizar-lhe a mãe!

      A conversação entre os dois oficiais foi-se prolongando, e Miguel Strogoff julgou ouvir que estava iminente um combate nos arredores de Kolyvan entre as forças tártaras e as forças moscovitas, vindas do norte. Um pequeno corpo russo de dois mil homens, avistado sobre a parte inferior do rio Obi, dirigira-se para Tomsk a marchas forçadas. Se isto assim era, esse punhado de soldados, que ia ver-se a braços com o grosso das tropas de Féofar-Cã, seria inevitavelmente derrotado, ficando a estrada para Irkutsk absolutamente em poder dos invasores.

      Em relação a si próprio, Miguel Strogoff percebeu, por algumas palavras do pendja-baschi, que a sua cabeça estava posta a prémio e que se tinham dado as mais terminantes ordens para se apoderarem dele, vivo ou morto.

      Havia, portanto, urgente necessidade de passar adiante destes soldados, e de transpor antes deles a corrente do Obi. Mas para isso convinha não perder um segundo.

      Tomada esta resolução, Miguel Strogoff dispôs-se a fugir imediatamente.

      O repouso concedido aos soldados não poderia exceder muito mais de uma hora, se bem que o pendja-baschi reconhecesse que os cavalos do destacamento estavam extremamente cansados, em consequência das suas prolongadas marchas.

      Não havia, pois, que hesitar. Já passava muito da meia-noite. Para sair da mata e entrar de novo na estrada urgia aproveitar a treva, que a luz da alvorada não tardaria a dissipar. Se bem que a hora favorecesse Miguel Strogoff, o bom êxito de tal fuga parecia quase impossível.

      Miguel Strogoff, não querendo confiar-se no acaso, reflectiu primeiro e pesou maduramente as probabilidades pró e contra, a fim de se inclinar pelo plano que oferecesse mais vantagens.

      Da disposição do lugar resultava o seguinte: que Miguel Strogoff não podia retirar-se pelo fundo da mata, fechado por um arco de larícios, de que a estrada traçava a corda. A ribeira que orlava este arco não só era profunda como também muito larga e lodosa. A acumulação de tojos tornava a sua passagem absolutamente impossível. Debaixo desta água turva existia um terreno lodoso, onde os pés não poderiam encontrar pontos de apoio. Além disso, para lá desta ribeira, o solo, entrecortado de moitas, dificilmente se prestaria às operações indispensáveis de uma rápida evasão. Se o alarme chegasse a dar-se, Miguel Strogoff, perseguido a todo o transe e cercado por todos os lados, acabaria irremediavelmente por cair nas mãos dos seus perseguidores.

      Havia, portanto, só um caminho aberto para esta tentativa, um só: a estrada. Procurar alcançá-la, contornando a saída da mata sem despertar as atenções, caminhar um quarto de versta antes de ser descoberto, exigir do cavalo as suas últimas forças, embora ele caísse morto ao chegar às margens do Obi, atravessar por fim este importante rio, quer a nado, quer num barco, tal era a empresa desesperada que Miguel Strogoff ia tentar.

      A sua energia e a sua coragem tinham-se decuplicado em frente do perigo. Dependia delas o bom resultado da sua missão, a honra do seu país, a salvação talvez de sua própria mãe. Era impossível hesitar.

      E não havia um só instante a perder. Percebia-se já uma agitação entre os soldados usbeques. Muitos deles começavam a mover-se no ponto da estrada contíguo ao princípio da mata. Outros conservavam-se ainda deitados debaixo das árvores, mas os cavalos iam-se juntando pouco a pouco, a fim de recomeçarem dentro em breve a sua carreira.

      Miguel Strogoff pensou primeiro em se apoderar de um dos cavalos do destacamento, mas lembrou-se, e com razão, que estes animais deveriam estar tão cansados como o seu. Era, portanto, muito melhor continuar a servir-se do que já tinha prestado tão bons serviços. Este brioso animal, oculto por uma extensa moita de estevas, tinha escapado às vistas dos usbeques. Verdade é também que os soldados não se tinham aventurado até ao extremo limite da mata.

      Miguel Strogoff, arrastando-se pela erva, aproximou-se do cavalo, que estava deitado. Afagou-o com a mão, falou-lhe muito devagar, e conseguiu assim pô-lo de pé sem fazer barulho.

      A este tempo, circunstância favorável, tinham os archotes acabado já inteiramente de arder, e a escuridão tornara-se outra vez profunda, pelo menos sobre a espessura dos larícios.

      Miguel Strogoff, depois de ter enfreado o cavalo, apertado a cilha do selim e experimentado as correias dos estribos, começou a puxá-lo brandamente pela rédea. De resto, o inteligente animal, parecendo compreender o que se exigia dele, seguia com docilidade o dono.

      Entretanto, alguns cavalos usbeques levantaram a cabeça, como se tivessem pressentido a presença de um estranho.

      Miguel Strogoff segurava com a mão direita o seu revólver, pronto a desfechar contra o primeiro soldado que se lhe deparasse no caminho, mas pôde facilmente dar os primeiros passos sem ser notado, chegando assim a um ângulo que a mata fazia antes de desembocar na estrada.

      A intenção de Miguel Strogoff era, para não ser visto, só montar a cavalo quando tivesse chegado a uma curva que havia na estrada a duzentos passos de distância da mata.

      Infelizmente, no momento em que Miguel Strogoff ia a transpor a saída da mata, o cavalo de um dos usbeques, sentindo rumor, começou a relinchar e a correr para a estrada.

      O seu cavaleiro ia para segurá-lo, quando, distinguindo uma sombra, que se movia confusamente entre os primeiros alvores da madrugada, gritou:

      - Alerta!

      A esta voz de alarme todos os soldados se levantaram precipitadamente.

      Miguel Strogoff só teve tempo de saltar para cima do cavalo.

      Os dois oficiais correram logo para a frente, incitando os soldados a montar sem demora.

      Miguel Strogoff já se tinha firmado sobre a sela quando ouviu uma detonação, e reconheceu que uma bala acabava de lhe atravessar a peliça.

      Sem voltar a cabeça, chegou as esporas ao cavalo e, galgando com um salto admirável a distância que o separava da estrada, partiu a todo o galope na direcção do rio Obi.

      Os cavalos usbeques estavam desaparelhados, o que dava um certo avanço aos primeiros movimentos de Miguel Strogoff, mas os soldados do destacamento não podiam demorar-se muito a segui-lo, e efectivamente, dois minutos depois de ter saído da mata, Miguel Strogoff ouviu atrás de si o tropel de vários cavalos que lhe iam no encalço.

      Começava a romper o dia, e os objectos iam-se tornando visíveis numa área muito mais larga.

      Miguel Strogoff, voltando a cabeça, verificou que um dos cavaleiros o seguia já muito de perto.

      Era o deh-baschi. Este oficial, montando um cavalo de raça apurada, corria à frente do destacamento e ganhava terreno sobre o fugitivo.

      Miguel Strogoff, sem deixar de correr à desfilada, puxou do revólver e, com mão firme e segura, desfechou contra o seu perseguidor.

      O oficial usbeque, atingido pela bala no meio do peito, baqueou instantaneamente.

      Os outros cavaleiros, que vinham em seguida, excitados pela audácia daquele tiro tão certeiro, e sem sequer pararem um instante para verificar a morte do deh-baschi, carregaram com mais ímpeto sobre Miguel Strogoff, vencendo pouco a pouco a distância que pôde ganhar Durante meia hora, contudo, pôde conservar-se fora do alcance das armas dos usbeques, mas ele bem via que o seu cavalo ia fraquejando e receava a todo o instante que o generoso animal, tropeçando nalgum obstáculo, caísse para nunca mais se levantar.

      Os fulgores da aurora começavam a iluminar o caminho, se bem que o Sol ainda se não tivesse mostrado acima do horizonte.

      A uma distância de duas verstas desenhava-se na frente uma linha esbranquiçada, que algumas árvores cortavam num ou noutro ponto.

      Era o rio Obi, que corria de sueste a nordeste, quase ao nível do caminho, tendo por vale a própria estepe.

      Miguel Strogoff era o alvo de repetidos tiros, que felizmente lhe não acertavam, e muitas vezes teve também de disparar o revólver contra aqueles que mais de perto o perseguiam.

      Esta luta desesperada não podia, contudo, acabar com vantagem para o fugitivo. O seu cavalo, que estava estafadíssimo, conseguiu ainda assim aproximar-se das margens do Obi.

       A este tempo, o destacamento dos usbeques, já reduzido pelos tiros disparados por Miguel Strogoff, achava-se apenas a cinquenta passos de distância.

      Junto do Obi, completamente deserto, nem um só barco de passagem, nem um só frágil batel em que se pudesse atravessar o rio!

      - Coragem, meu brioso animal! - gritou-lhe Miguel Strogoff.

      - Vamos!... Um derradeiro esforço!

      E precipitou-se no rio, que media neste sítio meia versta de largura.

      A corrente do rio, muito forte, opunha-se aos movimentos do cavalo, que não achava pé em parte alguma. Sem ponto de apoio, o pobre animal só a nado conseguia fender estas águas, que se precipitavam com a violência de uma cachoeira. Era um verdadeiro milagre de coragem o que Miguel Strogoff tentava agora! Os soldados usbeques tinham chegado ao pé do rio, porém, hesitavam manifestamente em se lançarem nele.

      Em dado momento, o pendja-baschi, pegando numa espingarda, apontou cuidadosamente ao fugitivo, que já ia a meio do rio.

      O tiro partiu! O cavalo de Miguel, ferido no flanco, não tardou a desaparecer nas ondulações da corrente.

      Miguel Strogoff, com a grande energia que o não desamparava nos maiores perigos, desprendeu-se rapidamente dos estribos. Depois, como homem experimentado, mergulhou debaixo de um chuveiro de balas e pôs-se a nadar para a margem direita do Obi, sumindo-se por entre os canaviais que cresciam em grande quantidade nesta margem do rio.

      Estava mais uma vez salvo!

     

     Versículos e canções

      Apesar de salva, a situação de Miguel Strogoff continuava ainda a ser terrível.  Agora que o fiel animal que até ali o tinha tão corajosamente auxiliado acabava de encontrar a morte nas águas do Obi, como poderia ele prosseguir a viagem?

      Via-se a pé, sem víveres, num país devastado pela invasão, batido pelos exploradores do emir, e demais a mais a grande distância ainda do seu objectivo.

      «Por Deus, que hei-de chegar! - exclamou ele, como que respondendo a todas as hesitações e fraquezas que o seu espírito antevia. - Deus proteja a santa Rússia!

      Miguel Strogoff encontrava-se completamente fora do alcance do destacamento que o perseguira. O pendja-baschi e os seus soldados não se tinham atrevido a lançar-se ao rio por causa dele. De resto, deviam supor que Miguel Strogoff se afogara, porque, depois da sua desaparição sob as águas, não o tinham visto abordar a margem direita do Obi.

      Entretanto, Miguel Strogoff, dissimulando-se entre os enormes canaviais que marginavam o rio, fora-se aproximando da parte superior da margem, aliás com algumas dificuldades devido ao imenso nateiro que a última cheia do Obi havia ali depositado.

      Logo que se viu num terreno mais sólido, Miguel Strogoff pensou no que lhe convinha fazer. Cumpria-lhe em primeiro lugar afastar-se quanto possível de Tomsk, uma vez que ali já estavam acampadas as tropas de Féofar-Cã, e depois precisava de dirigir-se a qualquer aldeia, lugar ou estação de posta, onde pudesse obter um cavalo para continuar a viagem fora da estrada principal. Essa estrada só a deveria tomar de novo quando estivesse perto de Krasnoiarsk. Dali em diante, Miguel Strogoff esperava achar os caminhos seguros, tornando-se-lhe então fácil penetrar por sudoeste nas províncias do lago Baical.

      A primeira coisa de que Miguel Strogoff tratou foi de se orientar.

      A duas verstas para diante, seguindo a corrente do Obi, distinguia-se uma pequena e bonita cidade, pitorescamente assente sobre uma ligeira elevação de terreno. No fundo cinzento do céu destacavam-se algumas igrejas com as suas cúpulas bizantinas de verde e ouro.

      Era Kolyvan, para onde os funcionários e os habitantes de Kamsk e doutras localidades costumam retirar-se no Verão, fugindo às febres palustres da Baraba. Kolyvan, a julgar pelo diálogo que Miguel Strogoff ouvira aos dois oficiais usbeques, não devia ainda ter caído em poder dos invasores. As tropas tártaras, divididas em duas colunas, tinham avançado pela esquerda sobre Omsk e pela direita sobre Tomsk, deixando as localidades intermediárias fora da sua linha de operações.

      O projecto lógico e simples de Miguel Strogoff consistia em chegar a Kolyvan antes de ali dar entrada o destacamento dos soldados usbeques, que seguia pela margem esquerda do Obi. Em Kolyvan, fosse por que preço fosse, deveria mudar de fato, comprar um cavalo e caminhar na direcção de Irkutsk, através da estepe meridional.

      Eram três horas da manhã. Os arredores de Kolyvan, profundamente silenciosos, pareciam estar desabitados. Naturalmente, a população dos campos, fugindo à invasão, contra a qual não ia reagir, tinha Ido refugiar-se ao norte, nas províncias do Yeniseisk.

      Miguel Strogoff caminhava a passos largos na direcção de Kolyvan quando lhe chegaram aos ouvidos os sons de longínquas detonações.

      Parando de repente, distinguiu nitidamente que era um ribombar surdo e pesado, seguido de crepitações secas e repetidas.

      «São tiros de canhão!... É a fuzilaria!... - exclamou ele, contrariado. - Os dois mil russos já estão em luta com as colunas tártaras? Se assim é, permita Deus que eu possa chegar a Kolyvan antes dos combatentes!

      Miguel Strogoff não se tinha enganado. As detonações tornavam-se cada vez mais distintas e sobre o lado esquerdo de Kolyvan iam-se condensando, acima do horizonte, muitos vapores, que não eram nuvens de fumo mas espessas volutas esbranquiçadas, produzidas pelas sucessivas descargas da artilharia.

      Sobre a margem esquerda do Obi o destacamento dos usbeques tinha suspendido a marcha, esperando pelo resultado da batalha.

      Deste lado, Miguel Strogoff nada tinha que temer. Podia, portanto, apressar o passo, que não corria perigo de ser descoberto.

      Contudo, as detonações não cessavam e iam-se aproximando sensivelmente. Já não era apenas um estampido confuso ao longe, :mas o ribombar atroador do canhão. Ao mesmo tempo, o fumo trazido pelo vento elevava-se no ar, mostrando que os combatentes se anunciavam na direcção do sul. Kolyvan ia decerto ser atacada pelo norte.

      Mas seriam os russos que a protegiam contra os soldados tártaros, ou estes que, já senhores da cidade, repeliam algum contra-ataque dos primeiros?

      Como sabê-lo? Que angustiosa incerteza para Miguel Strogoff! Estava ele então só meia versta distante de Kolyvan quando viu, serpenteando, uma língua de fogo pelas ruas da cidade e, logo depois, abaterem-se com enorme estrondo as torres de uma igreja, no meio de intensas labaredas e de espessos rolos de poeira.

      Travar-se-ia a luta mesmo dentro dos muros de Kolyvan? Miguel Strogoff assim o devia supor, e nesse caso era evidente que russos e tártaros se estavam a bater agora nas próprias ruas da cidade.

      Miguel Strogoff, que se dispunha a ir ali procurar refúgio, correria o risco de ser envolvido no tumulto?

      E, admitindo que o não fosse, conseguiria ele ainda assim escapar-se de Kolyvan, como se tinha escapado de Omsk?

      Todas estas eventualidades lhe passavam pela mente. Hesitou e deteve-se um instante. Não lhe seria mais vantajoso dirigir-se, mesmo a pé, em busca doutra povoação, quer para o sul, quer para o leste, Diachinsk, por exemplo, onde, custasse o que custasse, lhe cedessem um cavalo?

      Era a única solução admissível. Miguel Strogoff, portanto, afastando-se das margens do Obi, começou a andar resolutamente sobre a direita de Kolyvan.

      Neste momento as detonações tinham-se tornado extremamente violentas. Viam-se as chamas irromper do lado esquerdo da cidade. O incêndio devorava, sem dúvida, um bairro inteiro de Kolyvan.

      Miguel Strogoff caminhava apressadamente pela estepe, procurando ganhar a sombra de algumas árvores disseminadas num e noutro ponto, quando ao longe distinguiu um destacamento de cavalaria tártara.

      Miguel Strogoff não podia, evidentemente, continuar a fugir na mesma direcção, porque o destacamento, avançando rapidamente para a cidade, não deixaria de se encontrar com ele no caminho.

      De repente, num ângulo de um espesso arvoredo, Miguel Strogoff distinguiu uma casa isolada, donde poderia acercar-se sem ser visto pelos tártaros.

      Miguel Strogoff não tinha, pois, outro recurso de que lançar mão. Era necessário dirigir-se quanto antes àquela casa, esconder-se nalgum dos seus quartos, e aí solicitar a quem lá estivesse que lhe proporcionasse os meios de restaurar as forças esgotadas pela fome e pela fadiga.

      Precipitou-se, pois, na direcção da casa, que lhe ficava, quanto muito, a meia versta de distância. Ao aproximar-se, reconheceu que era uma estação telegráfica. Partiam dali três fios: um para oeste, outro para leste e o terceiro para Kolyvan.

      Nas actuais circunstâncias tudo levava a crer que a estação estivesse abandonada, mas ainda assim Miguel Strogoff poderia ali refugiar-se e esperar que viesse a noite para de novo se lançar na estepe, que estava a ser agora percorrida pelos exploradores tártaros.

      Miguel Strogoff encaminhou-se para a porta da estação e empurrou-a com violência.

      Na sala, onde se expediam os telegramas, estava apenas uma pessoa.

      Era o telegrafista, homem fleumático e de todo indiferente ao que se passava fora dali. Fiel ao dever, esperava, sentado à mesa de trabalho, que o público viesse reclamar os seus serviços.

      Miguel Strogoff correu para ele e, com a voz quase extinta pelo cansaço, perguntou-lhe:

      - Que há de novo?

      - Nada, que eu saiba - respondeu-lhe o telegrafista com ar prazenteiro.

      - Não são os russos que se estão a bater com os tártaros?

      - Parece que sim.

      - Mas quem vence?

      - Não sei.

        Custava a conceber tanta indiferença e placidez no meio de tão terrível conjuntura.

      - E o telégrafo não está cortado? - perguntou Miguel Strogoff.

      - Está cortado entre Kolyvan e Krasnoiarsk. Só funciona ainda entre Kolyvan e a fronteira russa.

      - Por conta do Governo?

      - Por conta do Governo quando é ele que expede os seus despachos, por conta dos particulares quando são estes que pagam os seus telegramas. São dez kopeks cada palavra. Se quiser começar... estou ás suas ordens.

      Miguel Strogoff ia a responder a este singular empregado que não tinha telegramas para expedir, mas que lhe vinha pedir um pedaço de pão e uma gota de água quando a porta se abriu com estrondo.

      Miguel Strogoff, receando que a estação fosse invadida pelos tártaros, dispunha-se já a saltar pela janela quando reparou que só haviam entrado dois homens, cuja aparência nada tinha de comum com os soldados de Féofar-Cã.

      Um deles trazia na mão um telegrama escrito a lápis e, adiantando-se sobre o outro, aproximou-se com extrema rapidez do impassível empregado.

      Nestes dois homens, Miguel Strogoff reconheceu com espanto duas personagens em que já não pensava e que supusera nunca mais tornar a ver.

      Eram os correspondentes Harry Blount e Alcide Jolivet, não como companheiros de viagem, mas sim como rivais, como inimigos declarados, visto que ambos agora operavam no campo de batalha.

      Tinham saído de Ichim poucas horas depois de Miguel Strogoff, e se chegaram antes dele a Kolyvan é porque não haviam perdido três dias no caminho, como sucedera ao correio do czar.

      Ambos acabavam de presenciar a luta travada entre russos e tártaros em frente de Kolyvan, ambos tinham saído da cidade quando a batalha se desenrolava já dentro das suas ruas, e ambos corriam agora ao telégrafo, a fim de expedirem para a Europa as suas informações, procurando, cada um deles, roubar ao outro a glória de ser o primeiro a noticiar aquele combate.

      Miguel Strogoff tinha-se afastado para um ponto mais escuro, donde, sem ser visto, ia ver e ouvir tudo. Ia finalmente informar-se do que se passava e saber se lhe conviria ou não entrar em Kolyvan.

      Harry Blount, mais rápido que o seu colega, aproximara-se primeiro da mesa do telegrafista, estendendo-lhe o despacho, enquanto Alcide Jolivet, em oposição aos seus hábitos joviais, se mordia de impaciência.

      - São dez kopeks cada palavra - preveniu o telegrafista, pegando no telegrama.

      Harry Blount colocou sobre a mesa um punhado de rublos, o que não deixou de causar certa admiração ao correspondente francês.

      - Muito bem - disse o empregado.

      E, com o maior sangue-frio deste mundo, começou a telegrafar o seguinte despacho:

     

      «Daily Telegraph. Londres.

      De Kolyvan, governo de Omsk, Sibéria. Agosto 6. Encontro das tropas russas com as tártaras.»

     

      Como a leitura fosse feita em voz alta, Miguel Strogoff ouviu tudo o que o correspondente inglês se apressava a enviar ao seu jornal:

     

      «Russos repelidos, grandes perdas. Tártaros vitoriosos ocupam Kolyvan.»

     

      Estas palavras terminavam o telegrama.

      - Agora eu - exclamou imediatamente Alcide Jolivet, que também queria transmitir notícias semelhantes, à sua “prima Madalena”.

      Isto, porém, não convinha de forma alguma ao correspondente inglês, que desejava ter o telégrafo por sua conta para ir transmitindo os acontecimentos à medida que eles se fossem dando. Por conseguinte, não cedeu o lugar ao colega.

      - Mas o Sr. Blount já acabou, penso eu - disse com impaciência Alcide Jolivet.

      - Engana-se, não acabei ainda - respondeu laconicamente Harry Blount.

      E continuou a escrever uma série de palavras, que passou depois ao empregado. Este leu com a sua voz pausada o seguinte:

      «No princípio, criou Deus o céu e a terra.»

       Eram os versículos da Bíblia que Harry Blount agora transmitia para matar o tempo e impedir que o seu rival se servisse do telégrafo. Semelhante capricho ia decerto gastar alguns milhares de rublos ao proprietário do Daily Telegraph, mas o jornal inglês seria o primeiro a ser informado. A França que esperasse!

      Concebe-se o furor de Alcide Jolivet, que noutra ocasião teria achado esse expediente engraçadíssimo. Chegou até a querer obrigar o telegrafista a receber de preferência o seu telegrama.

      - Este senhor está no seu direito - respondeu tranquilamente o empregado, apontando para Harry Blount com modos delicados.

      E continuou a transmitir fielmente para o Daily Telegraph o primeiro versículo do livro santo.

      Enquanto o empregado movia o transmissor, Harry Blount dirigiu-se placidamente para a janela e, puxando dos seus binóculos, tratou de ver o que se passava nas proximidades de Kolyvan, a fim de poder completar as suas informações.

      Passados instantes, voltou para junto da mesa do aparelho e acrescentou ao seu despacho:

      «Em chamas duas igrejas. Incêndio parece lavrar sobre a esquerda. A terra era informe e nua, as trevas cobriam a face do abismo, e o espírito de Deus era levado sobre as águas.»

      Alcide Jolivet só teve um fervoroso e ardentíssimo desejo: o de estrangular ali mesmo o honrado correspondente do Daily Telegraph.

      Tornou a protestar contra o abuso que Harry Blount fazia do telégrafo, mas o empregado, sempre risonho e impassível, respondeu-lhe:

      - Está no seu direito, perfeitamente no seu direito... a dez kopeks cada palavra.

      E continuou a telegrafar a nova notícia que lhe trouxe Harry Blount:

      «População russa foge da cidade. E disse Deus: Faça-se a luz, e foi feita a luz.»

      Alcide Jolivet espumava de raiva.

      Entretanto, Harry Blount voltava à janela da estação, mas desta vez, distraído naturalmente pelo interesse do espectáculo que tinha diante dos olhos, demorou-se mais do que devia para continuar a sua transmissão.

      Por isso, mal o telegrafista acabava de expedir o terceiro versículo da Bíblia, já Alcide Jolivet estava junto dele, tomando, sem fazer barulho, o lugar de Harry Blount. E, para seguir em tudo a atitude do colega, colocou também um punhado de rublos sobre a mesa e estendeu ao empregado o seu despacho, que era assim concebido:

      «Madalena Jolivet 10, Faubourg Montmartre (Paris).

      De Kolyvan, governo de Omsk, Sibéria, Agosto 6.

      Russos batidos. Carga impetuosa da cavalaria tártara. População Kolyvan foge precipitadamente.»

      

      E quando Harry Blount quis novamente ocupar o seu lugar, ouviu Alcide Jolivet, que prolongava o seu telegrama, cantarolando com voz zombeteira:

      «Que pequena tão gentil Pela rua agora passa, Que pezinho tão subtil Quando as saias arregaça.»

      Julgando impróprio misturar o sagrado com o profano, como fizera o seu colega, Alcide Jolivet respondia aos versículos da Bíblia com um trecho muito conhecido das canções de Béranger.

      - Ah! - Exclamou estupefacto Harry Blount.

      - É como vê - respondeu Alcide Jolivet.

      A situação, porém, complicava-se em redor de Kolyvan. O combate parecia aproximar-se e as detonações sucediam-se umas atrás das outras.

      Ao mesmo tempo, um abalo violento fez estremecer a casa toda. Um projéctil acabava de atravessar a parede de lado a lado, enchendo de caliça a estação.

      Alcide Jolivet escrevia então estes versos:

      «E que tesouros de graça no seu porte juvenil.»

      Porém, calar-se de repente, precipitar-se sobre o projéctil, pegar-lhe com ambas as mãos antes que ele rebentasse, deitá-lo pela janela fora e voltar outra vez ao mesmo sítio onde estava foi obra de um instante.

      Passados cinco segundos o projéctil explodia fora da estação, levantando montes de terra.

      E, continuando a preencher o seu telegrama com o mais admirável sangue-frio, Alcide Jolivet acrescentou:

      «Projéctil calibre seis entrou no telégrafo, destruindo paredes. Esperam-se mais projécteis.»

      Para Miguel Strogoff já não restava dúvida de que os russos tinham sido derrotados neste combate. O correio do czar só tinha um derradeiro recurso: fugir pela estepe na sua direcção meridional.

      Entretanto, rompia um furioso tiroteio junto da estação. As balas começam a entrar no compartimento, quebrando os vidros da janela.

      Harry Blount, ferido no ombro por um estilhaço de metralha, caiu no chão.

      Alcide Jolivet ia a transmitir este suplemento de telegrama:

      «Harry Blount, correspondente do Daily Telegraph, cai a meu lado, ferido estilhaço metralha...»

      Quando o impassível empregado, virando-se para ele, lhe disse com a sua inalterável placidez:

      - Não é possível. O fio está partido.

      E, deixando o seu lugar, pegou tranquilamente no chapéu, Limpou-o com o lenço e retirou-se por uma porta em que Miguel Strogoff, muito preocupado com a difícil posição em que se achava, ainda não tinha reparado.

      A estação foi, acto contínuo, cercada por soldados tártaros, e nem Miguel Strogoff nem os jornalistas tiveram tempo de se retirar.

      Alcide Jolivet, com o suplemento do seu telegrama ainda na mão, precipitara-se sobre Harry Blount, que jazia no sobrado sem acordo. Dotado de sentimentos generosos, o correspondente francês levantara o colega e, pondo-o às costas, preparou-se para fugir com ele.

      Demasiado tarde, porém!

      Ambos estavam feitos prisioneiros. Por sua vez, Miguel Strogoff, surpreendido quando se aprestava para saltar por uma das janelas da estação, caía também, como os jornalistas, em poder dos tártaros.

 

                                                                                            Julio Verne

 

                          II Volume

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades