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MIL NOITES DE PAIXÃO
MIL NOITES DE PAIXÃO

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

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CAPÍTULO 18


– É essa a mensagem tal como vos foi dada? – Palavra por palavra. Sir Morvan disse que devo aguardar e levar a vossa resposta.
Ian repetiu a mensagem para si próprio. Não uma ordem, mas um pedido. Havia sido uma forma de Morvan reconhecer que Ian estava agora na posse do castelo de Black Lyne através de Reyna, e ainda não jurara fidelidade a nenhum homem.
– Dizei-lhe que irei amanhã. Agora ide comer alguma coisa, e dizei a Gregory que trate de vos providenciar um cavalo descansado.
O homem saiu, e Ian foi até às janelas do quarto. Uma brisa fresca corria por elas na noite. Desejou que Reyna ali estivesse para lhe poder falar imediatamente daquilo.
Ele sabia que a chamada podia dar-se. Até ficara ressentido por não ter acontecido logo a seguir à conquista de Black Lyne. Fora como se recusar a sua ajuda em Harclow tivesse sido uma reflexão silenciosa de Morvan sobre a opinião do salteador que lhe salvara a vida.
Agora, porém, a situação em Harclow havia-se tornado crítica, e todas as espadas eram necessárias. Morvan estava a organizar ataques agressivos há algum tempo, e a quinzena seguinte provavelmente decidiria as coisas. Maccus Armstrong não mostrava inclinação alguma para se render, por isso a fortaleza teria de ser tomada pela força.
Desejou que Reyna ali estivesse. Amanhã ver-se-iam separados indefinidamente, porventura para sempre. Ele não tinha nenhuma ilusão de invulnerabilidade. Escalar muralhas e lutar em torres de assalto era muito diferente do confronto em campo aberto, e homens melhores do que ele haviam caído durante a carnificina que se seguia. O estranho desassossego que experimentara quando saíra a cavalo para se defrontar com Thomas Armstrong atormentava-o novamente, despoletando nele uma necessidade sentida de ficar perto do calor de Reyna nas horas que antecediam a separação.
Ele desejou que ela lá estivesse, mas ela não estava, e ele sabia onde ela se encontrava. Sem rodeios, Reyna convidara Edmund a visitar a sepultura de Robert com ela quando a refeição da noite se aproximava do fim. Ian observara-os saírem do salão juntos, mal conseguindo resistir ao impulso de o proibir. Eles tinham saído antes da chegada do mensageiro de Harclow.
Afastando-se abruptamente da janela, desceu ao salão e saiu para o pátio. Subiu os degraus que conduziam ao adarve e prosseguiu até à curva sul de onde se via o pequeno cemitério no sopé da colina.
O que importava se ela passasse tempo com este homem que, de todos os homens, não deveria representar ameaça alguma?
Pensava seriamente que ocorria uma sedução, que o pio cavaleiro tentaria tomá-la naquele chão consagrado? Acreditava ele que Reyna o permitiria? A sua mente racional dizia que não, o que não impediu que imagens mentais da união deles lhe invadissem a mente, alimentando o ressentimento e o ciúme que, durante o dia, vinham ganhando um travo amargo e irado.
Olhou atentamente para o cemitério, mal distinguindo as sombras das cruzes acima da pequena cerca de madeira, pensando ter visto dois vultos sentados ao luar ao lado da campa central.
Edmund, o hospitalário. Nobre e estudado e casto. Sem marcas no corpo ou na alma, fomes inultrapassáveis, pecados ímpios a esconder. Para todos os efeitos, ele era uma versão mais jovem de Robert de Kelso. Não admirava que Reyna se sentisse cativada por ele desde o início.
Também era, e de muitas formas, o oposto perfeito de Ian de Guilford. Ela não deixaria de reparar no contraste absoluto.
Primeiro o rei Alfredo, e agora Santo Edmund. Uma coisa fora competir com a memória de um homem morto. Este aqui vivia e respirava.
Ela não se deita com ele, mas dá-lhe partes de si própria que aparta de mim.
Ficou ali de pé, à espera de movimento no cemitério, resistindo ao impulso de ir lá buscá-la. O tempo passava, e cada momento lhe via crescer as reações irracionais e recuar os pensamentos sensatos. Amanhã ele deixá-la-ia sabe lá Deus durante quanto tempo, e ela desbaratava o tempo que lhes restava lá em baixo com aquele homem. Na ira dele, que ela o fizesse inconscientemente deixara de contar grande coisa.
Quando lhe parecera ter passado uma eternidade e ele continuava sem os ver surgir ao portão do cemitério, deu meia-volta e regressou aos seus aposentos.

Reyna terminou as suas orações e voltou a sentar-se nos calcanhares, olhando para as mãos cruzadas e os olhos fechados do cavaleiro que estava ajoelhado do outro lado da sepultura. A noite ventosa conferia-lhe um aspeto algo misterioso.
– É bom vir aqui – disse ela, arrastando os dedos pelo longo monte de terra. Tinha o coração cheio da memória de Robert, e sentiu o conforto do seu amor e carinho chegarem-lhe através da eternidade. – É bom estar aqui com alguém que o conhecia como eu conhecia.
Edmund mudou de posição e sentou-se no chão com a sepultura ainda entre eles, uma ligação mais do que uma separação. –
Trouxe-vos um manuscrito. Uma cópia de um dos Diálogos de Platão, no grego original. Está diferente das traduções e não penso que o tenhais.
– Trouxestes? Ó, Edmund, obrigada. Não, não temos nenhum Platão. Deveis deixar-me pagar-vos por ele.
– Não me custou nada. O precetor tinha-o na sua biblioteca e um dos irmãos copiou-o para mim. Além disso, não penso que o vosso novo marido gostasse de gastar dinheiro dessa forma.
Reyna sabia que Edmund desviava educadamente a conversa para o casamento dela, mas ela ainda não queria discuti-lo. – Será uma alegria ter algo novo para ler.
Ele aceitou a achega e falaram sobre os livros que ele lera e os eruditos com quem se encontrara desde a sua última visita. Ela invejava-lhe a variedade de experiências que o facto de ser homem e viver perto da cidade lhe possibilitava. Ian desfrutara de uma vida semelhante, e ela perguntava-se como alguma vez poderia encontrar contentamento emparedada no isolamento de Black Lyne.

– Fico contente por saber que ainda continuais com os vossos estudos – disse Edmund. – Ao jantar vi que sim, pois as vossas ideias mostraram-se provocadoras. Não notei, quando estive de visita no ano passado, o quanto a vossa mente havia evoluído.
– Era uma rapariga quando nos conhecemos. Cinco anos é muito tempo numa vida jovem. Já não sou uma rapariga.
– Não, não sois. – A cabeça dele descaiu. – Falai-me da morte dele, Reyna. Ouvi dizer que…
– Sei bem o que ouvistes dizer. Quão longe viajou essa história?
Não até Edimburgo, espero.
– Não até Edimburgo.
Ela descreveu a doença abrupta de Robert e a sua morte célere, entrecortando-se-lhe a voz quando descreveu o sofrimento dele.
– Poderia ter-se tratado de uma morte natural, Reyna? O corpo humano é complexo, e ele era idoso.
– Poderia ter sido, mas não pareceu. Seja como for, agora ninguém acreditará que o foi.
– Não há indicação nenhuma de quem o fez? Nenhuma prova além das que apontam para vós?
– Ian pergunta-me sempre sobre isso. Ele quer descobrir, para deixar definitivamente de haver suspeitas sobre mim. Eu também tenho tentado descobrir a verdade.
– E o que descobristes?
– Nada. Revistei os quartos daqueles que na altura viviam na torre, sem saber sequer o que procurava. Contas feitas, tudo foi em vão.
– E o vosso marido? Não descobriu nada?
– Não me parece. Ele prometeu lutar por mim em julgamento por combate, se necessário. Confio que não se chegará a tanto.

– Acreditais que ele o fará?
Ela ouviu o ceticismo na voz dele. – Ele prometeu-me que sim.
Um suspiro grave atravessou a sepultura. – Reyna, um homem daqueles vive apenas para si próprio e o seu próprio ganho. Se colocardes nele a vossa confiança, temo que vos dececioneis terrivelmente.
– Não o conheceis. Não é o que dizeis.
– Acreditais verdadeiramente que ele vos protegerá? Que ele arriscará a própria vida para salvar uma mulher que pode ser facilmente substituída e cujo valor já lhe está assegurado?
– Não tive valor algum para ele. Morvan dá-lhe estas terras de qualquer forma.
– Morvan pode falhar em Harclow. Tudo pode acontecer.
Ela não necessitava que Edmund lhe recordasse as conveniências que o casamento tivera para Ian. Uma semana atrás ela encarara os factos de frente e aceitara-os como realidades com as quais ela simplesmente teria de viver.
– Tendes a certeza de que ele procura verdadeiramente provar a vossa inocência, Reyna? – A voz dele saiu lenta e silenciosa.
– O que quereis dizer com isso?
– Porque não vos tirou ele daqui? Porque não atender à vossa segurança até tudo estar assente? Então, se ele não saísse vitorioso do combate, vós continuaríeis protegida.
– Se houver um julgamento, devo cá estar para falar por mim própria.
– Muito claro, e presumindo que Morvan virá a deter estas terras talvez tudo corra bem, mas e se isso não se der? Se Harclow não for tomada, Morvan e o seu exército deixarão esta região, e o castelo de Black Lyne não conseguirá, por si só, deter os Armstrong durante muito tempo. Talvez seja essa a razão pela qual Sir Ian precisa de vós aqui. A lealdade dele é para consigo próprio, penso eu, e ele serviria o maior licitador, até o velho Maccus, se isso lhe garantisse o que ele deseja. Abrir mão de uma mulher que já serviu o seu propósito seria um preço pequeno para reter aquilo que lhe proporcionastes.
A sugestão dele continha uma possibilidade implacavelmente prática que a mente dela não podia ignorar, mas o seu espírito rebelava-se contra as acusações. – Não lhe fazeis justiça, meu amigo. Nunca me teria casado com ele se o considerasse capaz do que descreveis.
– Penso que tivestes pouca escolha.
– Estais errado nisso também. Tive escolha, sem dúvida alguma.
Várias, em verdade. Podia ter regressado para o meu pai. Podia ter concordado em ir com Reginald.
– A escolha de Reginald deu-se antes da de Ian, e tomastes cada decisão independentemente. Dizeis que se vos tivessem sido apresentadas em conjunto, ir para Edimburgo como mulher de Reginald ou ficar aqui como a de Ian, vós teríeis escolhido a última, com todos os perigos que encerra?
Era uma pergunta devastadora, de formas que ele nem conseguiria começar a imaginar. De facto, ela havia feito as suas escolhas à medida que se apresentavam, uma de cada vez. Ela dissera a si própria que seria ou Ian ou Duncan, e a escolha fora inevitável a partir do momento em que Ian concordou manter o segredo de Robert.
Agora Edmund forçava-a a encarar uma nova realidade. A sua exposição de uma escolha que nunca existira revelava as emoções dela com uma clareza surpreendente. A segurança ao lado de Reginald teria sido o rumo lógico, sensato.
Mas nunca teria sido aquele que ela tomou.
Edmund interpretou mal o seu silêncio surpreso. – Ian manipulou a vossa situação para vos coagir. Não é necessário que um casamento feito sob tal constrangimento perdure.
– Ninguém forçou a minha mão a assinar o acordo, Edmund.
Não me deram drogas nem me bateram para que o fizesse.
– Não é necessário bater numa mulher para a vergar. O perigo em que estáveis foi coercivo por si próprio. Este casamento pode ser desconsiderado. – Ele pegou na mão dela. Uma mão fria, seca, reparou, e nem de perto tão áspera como a de Ian. Mais como haviam sido as mãos de Robert. A mão de um homem bom, mas com menos vida e sangue a correr dentro dela do que a palma e dedos de Ian de Guilford. – Sou conhecido do bispo de Edimburgo, Reyna. Quando ele souber como isto aconteceu, sem dúvida anulará os votos.
– E depois, Edmund? Ofereceis-me agora a escolha que eu nunca tive entre Ian e Reginald?
– O meu irmão está fora disto. Ofereço-vos liberdade e segurança, e a minha proteção, que existiu para vós desde o início.
Agora que as defesas do castelo afrouxaram, não será difícil tirar-vos daqui. Vireis comigo, Reyna, e nunca mais sentireis medo.
Ela ficou a olhar para o monte de terra. A sua última frase evocou memórias nítidas da primeira vez em que vira Robert, e das primeiras palavras que ele lhe dissera. Ele chegara à casa de Duncan para o casamento um dia mais cedo do que o esperado.
Ela não estava no pátio para o cumprimentar porque Aymer, irritado com uma suposta desobediência da parte dela, a tinha arrastado para a cripta e a tinha deixado trancada lá dentro para guerrear o terror e a escuridão.
Exigindo vê-la, Robert fora levado até lá. Por um instante, ali a olhar para a sepultura, ela era de novo aquela criança de doze anos, encolhida contra a parede da cripta, lutando pela sua sanidade. E aí, subitamente, soaram passos na escadas de pedra, o fulgor de um archote rompeu a eternidade negra, e uma mão veio até ela por entre o clarão. Vireis comigo, criança, e nunca mais vos sentireis assim assustada.
A memória desvaneceu e ela estava de olhos fitos na mão que Edmund agarrava. De súbito, sentiu a presença de Robert, de uma forma assombrosamente viva, como se ele estivesse ao seu lado, ainda vivo. Ela fechou os olhos e deleitou-se com a consciência pungente da sua essência, e sentiu o seu espírito tentando falar com o dela.
Talvez no Céu as almas conhecessem o futuro. Estaria a oferta de Edmund, pronunciada em palavras tão semelhantes à promessa de Robert, destinada a ser um sinal? Estaria o espírito de Robert a incitá-la a aceitar o amigo deles e a segurança que ele conferia?
Saberia ele que, se ela não o fizesse, seria como Edmund predissera, e Ian a abandonaria?
A imagem dos seus pesadelos, a sua face lívida e o seu pescoço esticado, assaltou-a. Ian era um salteador e um oportunista, e ela podia definitivamente ser substituída sem dificuldade pelo belo e excitante homem conhecido como o Senhor das Mil Noites.
– Eu tratarei de tudo e não interpreto mal o meu dever como o meu irmão. Estareis muito longe daqui antes do vosso marido se aperceber – instigou Edmund num sussurro.
Ela sabia que tinha de tomar a decisão agora, pois eles podiam não voltar a ter oportunidade para falar a sós. Ela vacilava, o seu coração cheio de emoções confusas. O pânico apoderou-se dela, e a sua mente turvou-se com dúvidas e medo.
Depois a brisa fez-se mais forte e acariciou-lhe o cabelo, à semelhança do afago que a mão de Robert fazia às suas tranças quando ele partia em viagem. Os seu olhos lacrimejaram quando a memória e a presença dele a invadiram por completo, levando-lhe reconforto, mitigando a confusão. Ela suspirou com o alívio que ele lhe proporcionava, e permaneceu naquela segurança invisível que lhe reordenava as ideias.
Quando acalmou, sentiu a presença dele recuar, assumindo o controlo de toda a confusão e transportando-a com ele na sua partida, afastando as nuvens que lhe obscureciam o coração para ela ver com mais clareza o que estava no seu interior.
Com uma relutância dolorosa, ela deixou o espírito dele partir lentamente, volvendo depois a sua mente para aquilo que havia descoberto. Outra emoção luzia no seu coração, amedrontada e hesitante, mas emanando um calor forte, magnético. Ela reconheceu a sua existência, e esta aceitação foi como combustível que fez dela fogo.
Mas não é como o amor que eu tinha por vós, Robert, debateu silenciosamente. Poderá trazer muita dor e pouco contentamento.
De novo a brisa lhe afagou o cabelo naquele gesto familiar e reconfortante. Em seguida, as memórias e a essência desvanecentes foram tragadas pela noite.
Reyna retirou cuidadosamente a sua mão das de Edmund. Toda a lógica do mundo, todas as análises do perigo que corria e da sua potencial deceção, perdiam a força face ao que ela acabava de constatar. Não duvidaria de Ian, e se ele, por fim, a abandonasse, que assim fosse.
– Ele é meu marido, Edmund. Aceitei-o como tal no meu coração e não há decreto de bispo nenhum que possa reverter isso.
Ela viu o corpo dele fazer-se tenso e direito e sentiu os seus olhos a espiá-la na escuridão. – Reginald disse-me que assim era, mas eu não consegui acreditar nele.
– Eu não sei o que Reginald vos disse, mas…
– Ele disse que este cavaleiro havia jogado com a vossa dor e a vossa solidão. Que vos havia seduzido. Uma coerção muito mais insidiosa, mas, se a mulher estiver vulnerável, muito mais persuasiva do que a violência.
Talvez ele estivesse certo, mas isso não vinha mudar nada. A sua decisão derivava das suas próprias emoções e motivos, não dos de Ian. – Ele não me seduziu. Não me deitei com ele antes do nosso casamento. No entanto, existiu uma afeição peculiar entre nós, e eu não fingirei que assim não foi.
– Reyna, o que interpretais como afeição não passa de volúpia.
Essas fomes da carne passam, especialmente nos homens, especialmente nos homens como ele.
– Não conheceis o meu marido e contudo falais sobre o seu caráter e intenções com muita certeza.
– Informei-me sobre ele hoje de manhã. Os criados conhecem-me e não se coibiram de falar.
Sim, não lhe devem ter dado descanso, Reyna não tinha a menor dúvida. – Pode bem tratar-se apenas de volúpia entre nós, mas ele agora é meu marido, aceite por mim de livre vontade. Eu não mentiria a um bispo para desfazer isto. Considerais-me tão desmerecedora de afeição que seja impossível a um homem senti-la por mim, Edmund?

– Sabeis que isso é um disparate. Robert tinha por vós uma afeição sem limites e um amor profundo. Impressionava quem o testemunhava.
Robert amava-me como a uma filha, quis Reyna dizer.
– Partirei de manhã, Reyna. Se mudardes de ideias, tendes de mo fazer chegar esta noite. Há aqui alguém em quem possais confiar?
– Alice, mas eu não mudarei de ideias. Tendes de partir tão cedo?
– Devo atender ao trabalho do precetor e, apesar da sua hospitalidade, Ian não gosta da minha presença.
Enquanto se encaminhavam para a torre, Reyna sentiu uma nova distância interpor-se entre ela e Edmund. Ele era tão parecido com Robert que lhe despedaçava o coração saber que ele reavaliava a opinião que tinha dela, e não para melhor.
Detiveram-se do lado de fora do portão. – Perdi-vos como amigo agora, como perdi Reginald? – perguntou calmamente.
Ele pegou nas mãos dela e beijou-as. – Não, senhora minha, estarei sempre aqui para vós. Ainda assim, parece-me provável que passe bastante tempo até voltarmos a ver-nos. Ian não aprecia a nossa amizade.
– Ele não me negará os meus amigos.
À luz do archote, Edmund baixou os olhos para ela. – Se convier aos seus intentos, negar-vos-á tudo. Receio que, se for forçado a uma escolha, chegue a negar-vos a vossa própria vida.
Um silêncio retumbante envolvia a torre. Era muito tarde, todos dormiam, constatou Reyna. Ela e Edmund haviam falado durante mais tempo do que ela pensara.
Subiu até ao quinto piso e deteve-se no corredor. Um archote iluminava o espaço, e ela adivinhou que Ian havia ordenado que lá o deixassem para ela. Provavelmente ele já dormiria, mas ela estava desejosa de se deitar ao lado dele. Precisava da segurança da força dele a aquecê-la agora mesmo.
Aproximando-se da porta do quarto, esta abriu-se facilmente e um vulto de saia saiu. Uma cabeça com um lenço volveu-se com um sorriso radioso que se desvaneceu perante Reyna. Eva corou profundamente, esgueirou-se e desceu apressada as escadas.
Reyna ficou de olhos cravados na porta do quarto principal. Um entorpecimento varreu-lhe os braços e pernas até aos dedos, como se alguém lhe tivesse despejado um balde de água gelada pela cabeça abaixo.
O canalha.
Fervilhando de mágoa e fúria, foi imediatamente para o seu quarto. À pálida luz do luar que entrava pelas janelas, procurou um pau na lareira. Esbarrando na mesa e na cama, volveu a sair e foi acendê-lo ao archote do corredor, para ter luz no quarto.
Preparou-se para se deitar com a cabeça cheia de insultos cumulados sobre a alma negra de Ian de Guilford. Quando tirava o guarda-cós azul, o seu olhar recaiu sobre os pergaminhos amontoados na escrivaninha. A carta para Lady Hildegard não avançara muito. Demasiados dias se sentara empunhando a pena, tentando formar as suas frases em latim, apenas para constatar que as horas haviam decorrido em devaneios com o homem que lhe consumia os pensamentos.
Um erro, era óbvio. O filho de uma égua. Desejou subitamente ser tão grande e forte como Lady Anna. Desejou que, usando os seus punhos num homem, ele o sentisse. Ela poderia não ser capaz de tocar o coração deste salteador, mas se ele a insultava desta maneira, seria muito gratificante pelo menos maltratar-lhe o corpo.
Com movimentos abruptos tirou as meias e a combinação e atirou para trás a roupa da cama. Deu socos na almofada e remexeu-se para encontrar algum conforto na cama fria e estreita.
Talvez devesse ir dizer a Edmund que mudara de ideias. Eles poderiam até conseguir partir esta noite. Sem dúvida que Ian tinha boas razões para dormir profundamente a noite inteira.
O amor que tão recentemente reconhecera infiltrava-se na sua indignação, dizendo-lhe que decerto não faria tal coisa. Ela confrontou a emoção como se esta fosse um corpo estranho que lhe invadisse o espírito. Não me controlareis, avisou-a perigosamente. Não vos deixarei fazê-lo. Sois uma forma de tortura e continuarei a negar alimento ao vosso fogo porque se vos alimentar sereis o fogo do próprio Inferno.
Perguntou-se se Anna ainda estaria acordada. Anna também não gostava de Ian e elas podiam ir buscar vinho e, embriagadas, desfazê-lo com insultos…
– Que raio fazeis aqui? – A voz grave e ríspida vinha da porta.
Reyna virou a cabeça, deparando com Ian. Estava tão absorta nos seus pensamentos furiosos que não ouvira a porta abrir-se.
– A dormir. Foi rude da vossa parte acordardes-me.
– Não estáveis a dormi. Ouvi-vos entrar.
Ele avançou pelo quarto adentro e lançou-lhe um olhar furioso.
Ela sentou-se contra a parede e devolveu-lhe o olhar, absorvendo a firmeza do seu corpo e a luz profunda dos seus olhos. Ele parecia tão irritado quanto ela se sentia. Pensou que era preciso muito descaramento da parte dele.

– Estivestes acordada metade da noite com aquele homem –
disse ele secamente.
– É um amigo que raramente vejo, e tínhamos muito de que falar.
– Aposto que sim. Debatestes filosofia todas estas horas, Reyna?
A insinuação dele fez o seu sangue pulsar com força. Ele acabava de se deitar com a peituda Eva e atrevia-se a atirar-lhe com acusações, a ela. A tensão de controlar a fúria que sentia era-lhe custosa e o esforço fê-la perder o controlo. Decidindo que falar não lhe serviria de nada, limitou-se a olhar para ele, recebendo a sua pergunta com o mesmo silêncio frio que ele havia consagrado a uma das dela.
Com um movimento abrupto, ele virou-se para a escrivaninha, agarrou-a, ergueu os braços e atirou-a violentamente contra a parede. Uma tábua partiu com a força do impacto. Pergaminhos e penas esvoaçaram em todas as direções e flutuaram até ao chão como destroços de uma tempestade de outono.
O frágil controlo de Reyna desfez-se com a mesa. Enrolando o lençol no corpo, ergueu-se como um raio. – Desprezível filho do Cornudo. Com que direito é que vós…
– Sois minha mulher. Se vos pergunto o que estivestes a fazer durante metade da noite com um homem, vós respondeis.
– Passámos a maior parte da noite a amaldiçoar-vos.
– E o resto do tempo?
Emoções complexas e ameaçadoras extravasavam dele, abalando o ar do quarto como relâmpagos, mas ela não queria saber. – É disso que se trata? É essa a razão desta cena de raiva, agora? Ainda vos agarrais à ideia de que eu e Edmund partilhamos esse tipo de amor? Seu louco. Ele é um cavaleiro celibatário. Não julgueis todos os homens pelos vossos vis padrões, filho de uma égua inglês!
– Os meus padrões podem ser vis, mas deteto um homem que trama alguma coisa quando o vejo. O que queria Santo Edmund de vós, mulher?
Uma paz perigosa, fria, varreu-lhe o calor da fúria. Ela não se tinha realmente acalmado, apenas encontrara o centro da sua tempestade. Estavam frente a frente à mera distância de um braço, dois corpos tensos travados no espaço por olhos resolutos.
– Ele queria levar-me embora – disse ela. – Ele não confia que vós me protejais se achardes que isso não vos beneficia. E eu, idiota, recusei, mas bastou subir estas escadas para me arrepender da decisão.
Ele cerrou os dentes. – E viestes para aqui para o vosso escritório de filósofa para reconsiderar? Para sujeitar essa decisão obediente à frieza da lógica e pesar as vossas opções?
– Vim para aqui porque a vossa rameira saía da vossa cama quando passei pela porta do vosso quarto.
Ele não atendeu à acusação dela mas, a bem ver, o que poderia dizer? Ventos de fúria recomeçaram a levantar-se dentro dela. –
Tencionáveis que vos encontrasse juntos, ou teríeis ficado satisfeito se eu soubesse amanhã pela coscuvilhice dos criados? Dizei-me, seu galo com cio, havei-la chamado porque eu não estava lá para satisfazer uma fome passageira, ou planeaste-lo como vingança ou castigo porque me atrevi a demorar-me com o meu amigo e não estive aqui para vós, como é costume?
Os olhos dele exaltaram-se, mas ela não recuou. A mágoa e a raiva eram demasiadas para que sentisse medo. Uma tensão horrível retesava-se entre eles. Ela quase desejou que ele lhe batesse, para ela própria poder desferir alguns golpes, nem que fosse para aliviar a pressão que a atormentava.
Ele deu meia-volta, de mãos nas ancas. – Se tivesse sido como dizeis, não teria ido além do que mereceis. Devíeis ter estado aqui, e não com ele.
– Raios vos partam. Edmund é um amigo que me ama como vós nunca amareis. Idiota, escolhi contra toda a lógica confiar mais em vós do que nele, e, como uma criança rancorosa, vós soltais-me os cães porque por uma noite não tivestes a atenção toda.
Ele virou-se para a encarar com uma expressão de surpresa, mas o seu rosto rapidamente recuperou a rigidez. – Não é nem infantil nem rancoroso um homem querer a sua mulher com ele antes de sair para a guerra, Reyna.
Um golpe físico não a teria chocado tanto. O impacto das palavras dele derrubou imediatamente a raiva de Reyna.
Ela sentiu a investida violenta das emoções que irrompiam dele.
À raiva e ao desejo, reconheceu-as, mas havia ali outras correntes também, que não lhe eram conhecidas. Rajadas de necessidades e anseios que não tinham nome pareciam alimentar o seu humor proceloso.
– Quando soubestes? – inquiriu ela.
– O mensageiro chegou logo após saírdes do salão. Partirei de manhã. – A sua voz tinha uma inflexão amarga.
– Porque não viestes dizer-me, ou mandastes alguém fazê-lo?
– Era claro que estáveis desejosa de falar com o vosso cavaleiro e conversar sobre a vossa má sorte. Eu senti que ele queria algo de vós, mas não achei que fosse atrevido ao ponto de violar a minha hospitalidade tentando roubar-me a mulher.
– Isso implica que… não foi… – Deixou morrer as explicações.

Ela não queria continuar a falar de Edmund. Preocupação e medo haviam-se substituído à raiva. Os avisos de Edmund, o sorriso de Eva, até mesmo esta discussão dolorosa, haviam-se tornado imediatamente insignificantes.
Dentro de algumas horas Ian estaria de saída. Partiria, e não para uma guerra insignificante na fronteira, mas para um cerco perigoso onde todos os dias morriam homens a escalar muralhas nas quais o inimigo aguardava com setas e fogo.
Ainda estavam, rígidos, um em frente ao outro, como estátuas de pedra que decorassem um edifício varado por uma ventania silenciosa.
– Quanto tempo estareis fora?
– Duas semanas. Um mês. Até acabar.
Duas semanas. Um mês. Para sempre. – Ides só?
– Levarei o grosso da companhia comigo. O vosso hospitalário terá de sair de manhã, porque o portão será fechado quando nós partirmos e ninguém entrará sem o meu consentimento. – Ele não olhava diretamente para ela, mas Reyna conseguia ver a luz férrea que brilhava nas profundezas dos seus olhos.
Ela desejava transpor o espaço entre eles, mas a postura e o rosto dele diziam que os poucos passos no chão de madeira podiam bem ser um quilómetro de penhascos. Ainda assim, ela deu um passo em frente e ergueu uma mão hesitante como que para lhe tocar. A mão ficou ali a pairar, sem completar o seu curso, uma ordem inconsequente, frágil, para o furacão se acalmar. – Então viveremos como num cerco até vós regressardes?
– Vós não. Morvan ordenou que a sua mulher e irmã fossem levadas para Carlisle. Vós ides com elas.
Ir para Carlisle parecia tão permanente, como se ele a enviasse para o outro lado do mundo. – Este é o meu lar, Ian. Não compreendo.
– Lá estareis em segurança.
– Ficarei em segurança aqui.
– Não se Morvan falhar e eu morrer.
Uma angústia avassaladora repleta de medo e arrependimento e amor crescera dentro dela, arrebatando-a agora de tal forma que a sua garganta se apertava e os seus olhos queimavam. Procurando manter a compostura, refugiou-se em praticidades. – Tendes razão.
Eu devia ter estado aqui. Contáveis que eu atendesse aos preparativos, e agora a vossa partida ver-se-á atrasada. Acordarei os criados dentro de poucas horas e…
– Quero lá saber dos preparativos. – Ele esticou um braço e agarrou-a, puxando-a para o outro lado do fosso, para a turbulência dele. O movimento violento assustou-a tanto que ela gritou. Dedos de ferro agarravam-lhe os braços, praticamente levantando-lhe os pés do chão, e ele olhava para ela com olhos intensos, sombrios. – Para uma viúva que foi casada doze anos, há muito que não sabeis sobre ser mulher de alguém.
O perigo nos olhos dele e o aperto brutal das suas mãos deviam tê-la assustado, mas não o fizeram. Havia muito que não compreendia daquele estado de espírito, mas reconheceu alguma coisa.
– Então cabe-vos a vós guiar-me – sussurrou ela.
Com um movimento brusco, ele puxou-a para um beijo urgente num abraço vigoroso. Dedos cruéis aprisionavam-lhe a cabeça, por isso ela não conseguiu evitar que a boca lhe magoasse os lábios, devorando os receios dela, exigindo os seus direitos. Braços de aço dobravam o seu corpo contra o dele com tanta força que as suas mãos, agarradas ao lençol, se converteram em pequenas pedras, entrando na carne e osso que contra elas pressionavam.
Não havia exigência de submissão consentida neste ataque selvagem. O seu corpo respondeu com uma espantosa onda de calor e o seu amor resplandeceu com a prova de que, o que quer que fosse que o impelisse, ele claramente precisava dela e queria-a.
Ele ergueu a cabeça e o sangue regressou à sua boca violentada, picando-lhe a pele tenra. Com olhos líquidos, ela viu a sua expressão inflexível. Ele apertou mais o seu corpo arqueado, com uma mão esticada aberta sobre as suas nádegas para o cume duro da sua excitação lhe pressionar o ventre. – Sim, é isto que a ideia de nos separarmos me faz – murmurou com rudeza, examinando o rosto dela como se procurasse memorizá-lo. – Se eu não for meigo, culpai-vos a vós própria por me deixardes demasiado tempo entre as mãos.
– Não penso culpar ninguém.
– Podeis pensar de forma diferente antes de esta noite acabar. –
Voltou a beijá-la, apenas um pouco menos violentamente. –
Certificar-me-ei de que não esqueçais depressa que sois minha. Se outro homem olhar para vós, serão os meus olhos que vereis no rosto dele, e à noite nos vossos sonhos não será nenhum espectro que vos toma, mas sim eu. Se o vosso santo cavaleiro se atrever a seguir-vos até Carlisle, sentireis estas mãos de diabo no vosso corpo enquanto ele vos tenta, e a respiração deste salteador na vossa orelha enquanto ele vos persuade.
Ela mal o ouvia. A tempestade absorvera-a e ela girava no seu centro com o corpo moldado ao dele, pendurada nele, sem peso, com a força dele como única ligação sólida ao mundo.
Ele ergueu-a nos seus braços, abrasando-lhe a boca e o pescoço com os seus beijos quentes enquanto o quarto dela, o corredor, o quarto principal passavam, turvos. Ele deixou-a cair na cama deles e arrancou o lençol que ela ainda cingia ao corpo.
Completamente vestido, colocou-se por cima dela, afastando-lhe as pernas, assentando-se nelas. Uma mão áspera subiu-lhe firme pela coxa num trajeto que findou na humidade que revestia aquele centro secreto.
O braço dele passou-lhe por detrás do ombro, e a sua mão entrelaçou-se no cabelo, segurando-lhe a cabeça para ela ficar de frente para ele. Ela viu a sua expressão de triunfo quando descobriu a sua excitação, mas não se importou. Ela ansiava penosamente pelo preenchimento dele, e gemeu de alívio quando ele investiu dentro dela com um movimento vigoroso.
Não foi nada meigo. Numa posse primitiva, o corpo dele embatia contra ela uma vez e outra, numa fúria da paixão que os envolvia. Ele dobrou-lhe as pernas para a poder penetrar mais profundamente, e a força das suas acometidas violentas faziam-lhe subir as ancas. Ele observava a reação dela a esta violenta reivindicação de direitos, e relâmpagos faiscaram naqueles poços negros quando a resposta dela se soltou e os seus frenesins mútuos colidiram em combate. Ela tornou-se impotente contra uma invasão espiritual à medida que o êxtase começou a cerrar e avolumar-se e a puxá-la para ele.
– Pois, Reyna – disse a sua voz grave enquanto o sabor da completude vibrava e corria por todo o seu corpo. – Robert ainda pode ter o vosso coração, e o vosso monge pode inspirar-vos a mente, mas nisto sois completamente minha. Não me negareis nada esta noite.
Ela sabia que ele não falava apenas de coisas físicas, mas não encontrou vontade de convocar resistência. O reconhecimento do amor que sentia sabotara as frágeis muralhas com que ela, a medo, protegia o seu coração. Agora estas abanavam e abriam fendas e caíam na investida violenta daquela intensidade.
Na paixão febril daquela unificação maior, a posse agressiva converteu-se numa partilha arrasadora. Ela fazia por o absorver com todo o seu ser enquanto o prazer turbulento ascendia ao seu ápice frenético. Vieram um para o outro numa libertação longa e feroz repleta de mordidas e gritos e mãos como garras, fundindo-se num arrebatamento violento.
Ficaram, exaustos, entrelaçados um no outro, corpos selados com suor e abraços. Ela apercebeu-se lentamente da respiração na orelha dela com que ele prometera marcar-lhe a memória. O som recordava-lhe a sua separação iminente. Fechou os olhos, atenta ao seu ritmo, e tentou suprimir a tristeza que queria invadir a perfeição daquele abraço.

CAPÍTULO 19


Reyna acariciou-lhe as costas, e ele sentiu o toque dela a aperceber-se do tecido da sua túnica. Ela moveu a mão para lá do lençol amarfanhado por baixo deles e tocou na colcha.
Ian ergueu-se nos antebraços para olhar para ela. Viu-a considerar que ele ainda estava vestido e que a cama não fora usada antes de ele a atirar para lá.
Sentiu uma nova irritação por ela não ter feito perguntas sobre Eva antes de o acusar. A maior parte da sua raiva ferida havia sido absorvida pela paixão, mas não toda. – Talvez a tenha tomado no chão ou contra a parede.
Ela desviou o olhar com uma expressão de desalento, fazendo-o sentir-se culpado por a ter magoado de propósito, especialmente agora, depois disto.
– Foi grosseiro da minha parte – sussurrou ele, roçando-lhe a orelha com o nariz. – Eu não a chamei. Ela veio sozinha, para concluir o pedido que começara no pátio na semana passada. Há um jovem arqueiro na minha companhia que se amigou dela, mas que não lhe tocava por minha causa.
– Ela pediu-vos permissão para dormir com outro homem?
– Algo assim. Duvido que Eva se preocupe com tais formalidades, mas o homem pensou que era prudente. Ele quer casar-se com ela. O pai dela não tem filhos e iriam ambos para a sua quinta.
– Ela quer ir-se embora?
– Eu disse-lhe que teria de vos perguntar se podíeis passar sem ela.
A fronte dela enrugou-se, pensativa. – Não sei se posso. Ela é uma excelente costureira. E se o meu marido decidir brutalizar uma mulher com alguma regularidade, pode ser útil tê-la por aqui.
Ele baixou os olhos para a prova da sua violência. Viam-se marcas de dedos onde ele lhe agarrara os ombros e um chupão luzia rubro no seu pescoço, onde amanhã seria visível para o mundo. Ele beijou-o suavemente, sabendo que, se pudesse torná-lo permanente, como uma marca gravada a ferro, o faria. – Pediria desculpa, mas não o lastimo.
– Nem eu.
Ele ficou quieto um instante, grato por ela não lamentar nem ficar ressentida com aquilo que ele forçara.
Saiu da cama e tirou a roupa, indo depois até à lareira onde um balde de água aquecia para a limpeza matinal. Molhando um pano, regressou e deitou-se ao lado dela, passando-o pelas marcas que havia feito.
Ele desceu o braço para lhe passar a compressa quente entre as coxas. Na sua mente, ouvia o eco das palavras de Morvan, ditas neste aposento: Bolas, Ian. Elizabeth não vos ensinou nada?
Sim, ensinara-lhe muito, mas enquanto esperava por Reyna, esta noite, aquelas lições e os anos que passara a aperfeiçoá-las haviam sido esquecidas. Voltara a ser um jovem imaturo, consumido por necessidades desesperantes e dores cruas, e todas elas se haviam centrado em Reyna. A ideia de que ela partilhava qualquer parte dela com outro homem enlouquecera-o. Ele entrara no quarto dela cheiro de emoções furiosas, desvairadas, e a própria raiva e paixão dela haviam-no feito perder o controlo.
Depois, vendo o que estava nele, ela simplesmente se abrira para o absorver.
Ele passou-lhe o pano pelo corpo, atento à pele por baixo da sua mão, gravando as memórias na mente. Coisas inomináveis ainda se revolviam dentro dele, mitigadas mas não destruídas pela paixão deles, desassossegando-o com o seu poder. Pensar em deixá-la entristecia-o de forma surpreendente, cobrindo o seu coração com o temor e a dor que uma criança sentiria ao ver-se separada da mãe. Porventura tivesse sido melhor tê-la evitado esta noite e nunca lhe ter exigido que atravessasse aquelas fronteiras. O
preço podia ser muito alto, especialmente se ela alguma vez voltasse a recuar.
Ele voltou a cabeça e os seus olhares encontraram-se. O rosto dela tinha um aspeto muito jovem e doce, mas os seus olhos mostravam o saber de uma mulher.
– O vosso pai, que procurou fazer de vós padre, ainda vive? –
Fez a pergunta como se nunca a houvesse pronunciado, mas o seu olhar compreendia um desafio.
Sim, teria o seu preço. Tratava-se de Reyna. Nunca seria tão estúpida que permitisse que a entrega ocorresse apenas numa direção.
– Não, não vive.
Preparou-se para a próxima pergunta, e a seguinte, e começou a sentir o travo de a perder depois de todas terem sido perguntadas e respondidas. Por isso, quase gemeu de alívio quando ela escolheu desviar-se da questão principal.

– Ele morreu quando ainda éreis jovem?
– Morreu quando eu tinha dezanove anos, logo depois de eu ser armado cavaleiro, mesmo antes de ir para a corte. Ele havia tratado de me enviar para lá para um parente. – Era a verdade, apesar de incompleta.
– O vosso parente servia o rei?
– Era um funcionário menor. Levou-me para a casa dele. –
Nada disto era mentira, na verdade.
– Vivestes com ele durante todo o tempo que lá ficastes?
Sim, uma pergunta levaria a outra, e ele viu para onde estas se encaminhavam. Ela limitava-se a seguir os pensamentos enquanto construía formas de substância dentro do profundo mas indefinível conhecimento que tinham um do outro.
Ele não podia negar-se a ela sem perder o que acabava de lutar para reaver, mas sentia alguma angústia com a ideia do julgamento que o aguardava. – A peste chegou não muito depois de eu chegar.
O meu parente estava fora, e dela morreu. As pessoas da casa mudaram-se para uma das propriedades da mulher, no Sussex, até a peste passar.
Fez uma pausa, perguntando-se se poderia ficar por ali.
Provavelmente não. A sós com Christiana em Carlisle, ela podia vir a saber deste pecado menor. – Fiquei com a mulher dele durante dois anos, vivendo principalmente de ganhos em torneios.
– E depois partistes para França?
– Depois vivi sozinho por um ano antes de procurar a minha sorte em França.
Ela identificou imediatamente as lacunas. – Porquê?
Desentendeste-vos com a vossa parente? – Na falta de resposta dele, as sobrancelhas dela ergueram-se e ele viu as peças encaixarem. – A mulher de que me falastes no outro dia… a troca com Morvan… era a mulher do vosso parente?
– Sim. – Ficou aliviado por ela não parecer mais chocada.
– Ela devia ser muito mais velha do que vós ou Morvan.
– Era a segunda mulher do meu parente, e muito mais jovem do que ele. Mesmo assim, tinha quase idade para ser minha mãe.
– Amávei-la?
Ela queria que ele dissesse que a amara loucamente. Elizabeth não era parente de sangue, mas pelo casamento. Embora tais relações não fossem inauditas, não eram aceitáveis. Afirmar que estivera perdido de amores tornaria o facto mais palatável, mas ele constatou que não conseguia mentir-lhe.
– Amava-a tanto quanto conseguia, o que não era muito. Menos do que devia. Mais do que ela queria.
– Porque acabou?
Porque deixei de ser fiel, que era tudo o que ela alguma vez exigia dos seus amantes. Porque sabia que ela amava outra pessoa e ressentia-me disso, apesar de eu nem sequer saber o que fazer com tal amor se ele me fosse dirigido. Porque havíamos sanado a pior dor um do outro, e era altura de vivermos as vidas que nos restavam.
– Elizabeth tinha muito de mãe e era tentador ficar para sempre no conforto do seu seio. Mas, tal como uma mãe, também chegou a altura de partir.
– Penso que consigo compreendê-lo. Foi algo parecido com Robert e eu.
De todas as reações que ele esperara, a última seria esta calma compreensão. Ela surpreendeu-o ainda mais quando acrescentou: –
Fico contente por ela ter lá estado se vós precisáveis da sua amizade.
Ela agarrou na ponta das cobertas, empurrou-as para trás e depois puxou-as para cima dos seus corpos. – Tendo em conta a caçada e o resto, deveis estar muito cansado. Tendes uma longa cavalgada à vossa frente. Dormi, Ian. Acordar-vos-ei ao amanhecer.
– Vós também deveis estar cansada.
– Não estou. Daqui a alguma horas devo acordar os criados para os preparativos da vossa partida. Não acredito que durma.
– Então eu também não. Aprendi há muito a descansar em cima de uma sela. Não planeio desperdiçar horas com sonhos quando o melhor sonho está deitado a meu lado. – Voltou a afastar as cobertas, expondo o corpo de Reyna, e apoiou-se num braço para olhar para ela. – Além do mais, quem sabe quando voltarei a ter oportunidade de vos ministrar outra lição?
Beijou-a, memorizando a suavidade dos seus lábios e o contorno afiado dos seus dentes, e as profundezas de veludo da sua boca. Juntando-lhe as mãos, segurou-lhas acima da cabeça para ela ficar esticada e completamente vulnerável a ele. Ele não a queria a abraçá-lo ou a fazer qualquer outra coisa que pudesse acelerar a sua resposta. Ele iria deixá-la louca, desesperada e suplicante, e talvez o som dos seus gritos o sustivesse durante os dias e as semanas seguintes.
Acariciou-a lentamente, observando a sua mão bronzeada mover-se em torno dos volumes da sua pequena forma feminina, procurando não provocar nela mais do que um prazer lânguido.
Ainda assim, os seios dela avolumaram-se e os mamilos endureceram. A resposta rápida fê-lo sorrir, mas não se deixaria distrair.

– Sois tão adorável, Reyna. A vossa pele tem sempre este vago rubor, e é suave e húmida, como se estivesse coberta de um orvalho invisível. – Ela ficou sem fôlego quando ele baixou a cabeça e primeiro beijou e depois lambeu o vale entre os seus apelativos seios.
Ela arqueou-se convidativamente, mas ele ergueu-se mais para poder acariciar e memorizar as linhas elegantes das suas pernas. As suas coxas leitosas estremeceram e retesaram-se quando ele se encaminhou mais para cima, para o odor e a humidade que já aguardavam entre as pernas dela. Ele tocou-lhe ao de leve, como se a testar se ela estaria demasiado dorida para mais, grato pela prova de que não estava quando o seu corpo estremeceu elegantemente em resposta.
Ela enrugou a fronte quando ele retirou a mão.
– Ainda não, Reyna. É um castigo por voltardes a chamar-me canalha e filho de uma égua. Avisei-vos que não o fizésseis. – Na verdade, aquela diatribe havia sido música para os seus ouvidos.
Ele passou os dedos pelo lábio inferior, retirando a humidade da sua respiração travada, estudando o desejo diáfano dos seus olhos.
Sentiu-se inexplicavelmente lisonjeado por esta mulher sequer o querer, ainda por cima com tanta intensidade e tanta prontidão.
Ele desenhou-lhe uma linha do queixo ao peito e depois andou à volta da elevação de um pequeno seio. Ela contorcia-se e gemia, e ele esticou a mão para roçar suavemente o seu mamilo ereto. – É
isto o que quereis, Reyna?
Ela tentou soltar as mãos da dele.
– É?
– Sim, diabos vos levem.
– Outra maldição? Pode durar até de madrugada. – Ele provocava-a com as pontas dos dedos, roçando ao de leve o botão rosa, e ela sacudiu novamente os braços.
– Largai-me, seu filho de uma égua, e veremos quem mais grita.
– Continuai assim e poderemos não partir antes do meio-dia. –
Ele baixou os lábios até ao outro botão. – Sois tão suave, como veludo. A primeira vez que vos beijei, quase esqueci todo o sentido do dever. – Ele lambia e sorvia lentamente, perdido no gosto e no toque deliciosos dela, maravilhosamente alerta aos gritos e movimentos de abandono que a sua língua e mão extraíam dela.
As suas ancas balançavam lentamente enquanto ele fazia amor com os seus seios, e ele deixou que o ritmo do desejo titilasse a sua própria fome tensa. Saboreava cada reação apaixonada, guardando a memória como uma posse preciosa.
Libertou-lhe as mãos e virou-a de costas. Pairando acima dela, desceu lentamente beijando-lhe as costas e depois virou-se para lhe observar o corpo, enquanto lhe acariciava a parte de trás das pernas e coxas. Ela enterrou a cabeça nos braços, para abafar os arquejos de surpresa que soltava. Quando o toque e o olhar dele subiram, as elevações suaves das suas nádegas contraíram-se e as suas costas arquearam. Ela tinha um aspeto incrivelmente erótico nesta posição, e ele inclinou-se para lhe beijar o fundo das costas enquanto os seus dedos corriam para a fenda ensombrada.
O grito abafado que ela soltou quase o tirou de si. A tormenta, apaziguada mas não saciada, entrou novamente em erupção. Ela afastou as pernas para ele prosseguir, e as suas ancas ergueram-se quando o dedo dele encontrou a passagem estreita e afagou as suas profundezas escaldantes. Ela ergueu a cabeça e olhou para ele com olhos desconfiados. – Ides….
Ele imaginou as ancas dela a erguerem-se em direção a ele, e atravessou-o um estremecimento de calor. Mas ele duvidava que conseguisse manter algum controlo se a tomasse daquela forma, e tudo o que não fosse meiguice desta vez seria imperdoável.
Virou-a para cima. – Para a próxima, Reyna, e ides gostar, prometo-vos. Mas hoje quero o vosso rosto contra o meu e os vossos braços à minha volta.
Ela tentou estreitá-lo, mas ele escapou-lhe dos braços e percorreu-lhe a pele sedosa com beijos quentes. Outra memória e posse de que não abdicaria. Pôs-lhe as pernas em cima dos seus ombros e beijou-lhe a parte de dentro das coxas. Uma nova febre assomou aos olhos dela. O seu corpo parecia saber o que ele ia fazer, ainda que a sua mente não.
Ele acariciou-a intimamente, procurando os pontos que a levavam à loucura, e ela reagia com movimentos involuntários. Ele dirigiu os beijos mais para cima, para o centro da sua paixão. Ela gritou o nome dele e ele, erguendo os olhos, viu a sua expressão selvagem, de assombro.
– Vou fazê-lo, Reyna. Se não gostardes, paro.
Ela ficou tesa como uma tábua quando a boca dele se substituiu aos dedos, mas o prazer demoliu imediatamente a sua resistência. –
Sim – sussurrou ela, e logo a afirmação se tornou um grito repetido vezes sem conta, e o som deste cântico ofegante e os espasmos da paixão dela empurraram-no para um olvido resplandecente.
Quando ele se colocou por cima dela, ela agarrou-se a ele, chamando-o para si, erguendo as pernas num abraço, tentando unir o seu desespero. – O que quereis, Reyna? – Mal lhe restava juízo sequer, mas queria ouvi-la dizê-lo. Precisava de a ouvir dizê-lo.
Os dedos dela cravaram-se-lhe nos ombros. Ela ergueu os olhos e pestanejou para afastar a paixão atordoante.

– O que quereis? – repetiu.
Uma luz feroz perpassou-lhe o olhar. – Vós. Vós todo. Bem dentro de mim e por mim toda.
Uma fome ardente atravessou-o com uma força perigosa. Se ele seguisse o seu sangue, seria como antes. Rolando no seu abraço, colocou-a em cima dele. – Então tomai o que quiserdes. O mais ou o menos que precisardes.
Ela mexeu-se para o absorver profundamente, curvando-se para lhe acariciar e beijar o peito, puxando o espírito dele para ela tão seguramente como ele havia forçado o dela a ir até si. Ela era maravilhosa e ardente no amor, e as emoções caóticas dele rodopiavam sob a sua agressão urgente. Os gritos dela regressaram e ela começou a pedir mais. Ele agarrou-lhe nas ancas e respondeu com acometidas, impaciente agora pela conclusão que retrasara, tentando conter as complexas necessidades para que o não dominassem desta vez.
Ela gemeu com o movimento dele e enterrou o rosto no seu pescoço. – Mais força – sussurrou trémula. – Bem dentro de mim e por mim toda.
– Vou magoar-vos. Estais dorida.
– Não, meu amor. Se devemos separar-nos, quero sentir-vos durante dias. Semanas. Para sempre.
A sua voz abafada continha um tremor. Acariciando-lhe o rosto, sentiu uma lágrima. Uma ternura formidável verteu-se sobre ele, repleta de espanto por ela se importar ao ponto de sentir uma tal tristeza pela separação deles e o perigo que ele corria.
De súbito, ele não queria absolutamente nada dela, mas apenas dar o que quer que ela procurasse. Imerso com ela numa harmonia impregnada de prazer e alegria e dor, cingiu-a mais. Pressionando-a contra o seu coração desgovernado, sussurrou mentiras tranquilizadoras enquanto entrava nela.

CAPÍTULO 20


Ian olhou para o desenho preciso que David fizera no solo de terra da tenda. Mostrava uma imagem pormenorizada de Harclow como se vista por uma ave em pleno voo. Havia a torre de menagem quadrada com as suas outras quatro torres em cada um dos cantos, e a muralha interna que a rodeava. A alguma distância, corria a linha espessa da muralha exterior. De dois lados flutuava o lago, e David indicara mesmo a localização dos acampamentos que faziam o cerco no terreno circundante. Ian nunca vira algo semelhante, com todos os objetos vistos de cima e à escala. A maioria dos mapas não estavam desenhados desta forma.
– Esqueci alguma coisa? – perguntou David a Morvan, que também estudava a imagem.
Morvan abanou a cabeça. – Está mais do que exato.
– Ainda bem. Agora peço-vos que me ouçais. É provável que esta chuva dure alguns dias, por isso há tempo de o fazer agora, se concordardes.
Ian foi até à entrada da tenda e espreitou para a chuva miudinha que durante dois dias sofreara os ataques. Atrás dele, David começou a explicar o elaborado plano que haviam engendrado.
Sentindo-se desassossegado, Ian saiu da tenda para a chuva e atravessou o acampamento até onde conseguia avistar a muralha de Harclow. Espalhados ao longo desta estavam soldados de vigia, em menor número do que o normal por conta da chuva. A lama e a humidade só vinham tornar mais arriscado os perigosos trabalhos, e, de qualquer forma, o exército de Morvan precisava do descanso.
Durante semanas as investidas haviam continuado, as torres de assalto haviam avançado, as máquinas lançado os seus mísseis.
Dentro de Harclow, os homens não paravam de cair, como os de Morvan, e deviam estar muito reduzidos em número, mas o velho Maccus não se rendia.
Ian comandava em pessoa uma das torres de assalto desde que chegara. Era uma grande honra, e ter-lhe sido destinada surpreendera-o. Mas não fora honra que sentira ao aguardar lá em cima, de espada pronta, enquanto a alta construção de madeira era empurrada sobre rodas até à muralha. Outra coisa fervia-lhe no sangue então, tão premente que o seu nome não podia continuar escondido.
Medo. O seu poder insidioso surpreendera-o e ele não tinha experiência de lidar com aquilo. Mas sabia o que era, sabia-o na alma desde o dia em que saíra para defrontar Thomas Armstrong.
Quando tinha dezoito anos, conhecera um medo assim, tendo-lhe sucumbido completamente. Mas depois morrera nele, e a sua perícia em combate vira-se reforçada por esta liberdade. Outros podiam ficar acordados antes de uma batalha, antevendo a morte que aguardava, mas não Ian de Guilford. Outros podiam pesar o preço de acorrer em ajuda de um estranho em desvantagem na Batalha de Poitiers, mas ele nunca se dera a tais cálculos.
Até agora. Ao seu redor estavam veteranos que há muito haviam aprendido a controlar o medo, mas de repente ele voltava a ser um mancebo, manchado de sangue pela primeira vez, calculando riscos em que nunca reparara, dependendo de instintos nos quais já não confiava.
Deu a volta em direção ao lago, passando pelo trilho que conduzia à periferia do acampamento. Espreitou para as tendas que continham os mercadores, lavadeiras e rameiras que formavam a pequena cidade que despontara para servir os soldados.
Normalmente, num dia vazio como este, iria até lá e passaria uma moeda a uma mulher para quebrar a monotonia. Hoje, a noção de seguir esse caminho parecia-lhe de alguma forma obscena.
Por causa de Reyna.
Reyna. Ela estava no âmago daquilo tudo. Estava na sua cabeça mais do que nunca, e o medo ancorava-se firme àquelas imagens e pensamentos. Não o admitia a si próprio com qualquer rancor ou culpabilização. Apenas reconhecia a verdade enquanto caminhava pela lama até à margem do lago.
Para lá da extensão de água, viu o buraco na muralha exterior que David fizera com as suas bombardas. Haviam sido necessárias muitas tentativas até encontrar o ângulo que cuspiria as pedras redondas para lá do lago, mas depois David disparara projéteis para um dia inteiro, até a muralha fender e desabar. Fora uma experiência mais do que qualquer outra coisa, para ver se o impacto repetido afetava uma estrutura daquelas a tal distância.
Mas hoje, deitados nas enxergas na tenda que partilhavam, ele e David haviam descoberto uma forma de dar mais substância àquele feito.
Imagens de Reyna voltaram a apoderar-se dos seus pensamentos daquela forma insistente. Perguntou-se o que ela faria naquela mesma altura em Carlisle. Voltariam os pensamentos dela para as últimas horas que haviam passado juntos tantas vezes como os dele?
Meu amor. Parecera tão certo quando ela o dissera, apenas mais um cordão na intimidade perfeita que haviam partilhado naquela noite. Talvez ele não devesse dar demasiado peso a um simples carinho, mas naquela noite outra emoção exigira também ser nomeada, e o jovem temeroso, esperançoso, que ressuscitara dentro dele, queria a qualquer custo acreditar que estavam juntos naquilo.
Haviam sido palavras dela, não dele. Porque não as tinha ele pronunciado para ela, se não naquela noite, pelo menos no dia seguinte, antes de se separarem? Tê-las-ia deixado por dizer para se assegurar de que sobreviveria para as pronunciar mais tarde?
Estava o medo tão enlaçado no amor?
Medo. Era constante. O amor e o medo eram os dois lados de uma moeda transparente – impossível ver um lado sem que o outro interferisse na visão. De que tinha medo? De morrer, isso era certo.
De a perder, claro, fosse pela morte ou pela desilusão. De a amar?
Regressou pelo mesmo caminho. Ardia uma pequena fogueira do lado de fora da sua tenda por baixo de um toldo alto, e ele sentou-se num toco que estava próximo. Morvan saiu e acercou-se dele.
– Pensais que devemos tentar este plano, Ian?
– Não é mais perigoso para os homens do que qualquer outra tentativa de assalto. As muralhas do lago poucos homens têm. Se a surpresa for suficientemente rápida, pode resultar.
– Para isso nos prepararemos, então, e se a oportunidade se der, fá-lo-emos. Quero-vos junto de David nisto, contudo.

Ian lançou-lhe um olhar incisivo. Aparentemente, o medo não passara desapercebido a Morvan. Ele procurava uma forma discreta de o retirar da torre.
Morvan apanhou o olhar. – Não é isso – disse ele, mostrando ter reconhecido tanto a suspeita de Ian como o próprio medo. –
Sois engenhoso em termos de construção e estratégia, e, no seguimento do plano, pode haver lugar a mudanças súbitas. Entre David e vós, se algo correr mal, ainda pode haver recobro.
Eles nunca tinham desenvolvido uma amizade fácil, por isso ficou surpreendido quando Morvan voltou a falar. – Quanto à outra questão, não penso menos de vós. Todos os cavaleiros devem enfrentá-lo, mais cedo ou mais tarde, exceto aqueles a quem faltarem entendimento ou imaginação. Costumáveis lutar como um homem sem nada por que viver. Agora lutais como um homem com tudo a perder. Dos dois, prefiro ter o último a meu lado. – Morvan saiu para o acampamento antes de Ian poder responder, mas também não havia nada que dizer.
Ian regressou à tenda. Encontrou David sentado no catre, desenhando cálculos na terra com o seu ramo pontiagudo. – Vinte jangadas, diria, cada uma com tamanho para dez homens. Melhor um número bom de tamanho mais pequeno, para haver a possibilidade de mais chegarem ao outro lado.
Ian atirou-se para a sua própria cama. – Se as chuvas continuarem, as jangadas ficarão húmidas o suficiente para não serem incendiadas por setas de fogo. Ainda assim, é inevitável que algumas pereçam, por isso estais certo. – Estudou o mapa rabiscado no chão. – Isto só nos permitirá passar a primeira muralha, claro.
– Quantas vezes vistes fortalezas aguentarem-se depois de o inimigo passar a muralha?
Nunca, Ian teve de admitir. Mas o velho Maccus revelava-se um inimigo tenaz.
Ian tentou entregar-se ao descanso, mas ele não chegava.
Exasperado, levantou-se e dirigiu-se outra vez à entrada da tenda.
Talvez reunisse alguns homens para começar a trabalhar nas jangadas.
– Ela sabe? – perguntou a voz suave de David.
Ian virou-se, surpreso. Presumiu que David se referia aos seus sentimentos por Reyna. Sem dúvida os percebera, como ao medo.
– Não.
David continuou calmamente as suas cogitações. – Será inevitável ela saber. A história é mais conhecida do que pensais. Os homens da vossa companhia, por exemplo, estão cientes da maior parte dos pormenores. Se nunca o deram a entender, é porque receiam a vossa reação e a vossa espada.
Ian sentiu o sangue correr-lhe um pouco mais devagar. Com os seus modos impávidos e serenos, David acabava de abordar um assunto a respeito do qual Ian nunca falava. Talvez ele sempre tivesse suspeitado que a companhia sabia. Talvez fosse essa a razão pela qual ele evitava uma amizade próxima com qualquer um dos homens. Aí as perguntas seriam inevitáveis. E por fim o julgamento. Podia-se ser indiferente às opiniões de pessoas que não importavam verdadeiramente.
– Christiana. Falaria ela disso com Reyna? – perguntou Ian.
– Não, quanto mais não seja porque ela própria o ignora. Não estávamos em Londres quando se espalharam os rumores.
– Mas vós ouviste-los de qualquer forma.
– Soube antes disso. Quando vi o interesse de Elizabeth, empenhei-me em saber mais de vós. Corre todo o tipo de informação entre mercadores.
Ian sentiu um rancor frio. – E dissestes-lhe?
– Só o suficiente para ela saber a verdade quando a história vos seguisse para a corte, como acabaria por acontecer.
– Pensais que sabeis a verdade?
– Sei que éreis um rapaz que não queria morrer. Sei que o vosso pai devia ter colocado de lado orgulho e raiva. – Fez uma pausa. –
Sei que uma mulher má jogou um jogo elaborado e perigoso, e que ganhou. Qualquer mulher destas, em qualquer idade, é mais impressionante do que qualquer homem. Quando são jovens, nem sequer compreendem a destruição que causarão com os seus esquemas. – Bateu com o pau na bota. – Ela tem um filho, decerto sabeis, de nove anos de idade.
– Não é meu.
– Não, não é vosso. É a imagem do pai.
– O pai dele era ignorante e inocente.
– Se o dizeis. Não retirei conclusão nenhuma de qualquer destas coisas.
– Decerto sois o único que não o fez. As conclusões típicas são sórdidas e condenatórias.
– Percebi a verdade a primeira vez que ouvi a história.
Certamente que outros também.
– Vós tendes conhecimento do mundo. Tendes experiência daquilo que as pessoas podem ser.
– E pensais que a vossa mulher não? Talvez a subestimeis. Vejo-me continuamente surpreendido pela capacidade que as mulheres têm de ser compreensivas no que respeita aos seus homens. –
Voltou aos seus cálculos. – Penso que precisamos de cinco homens a trabalhar em cada jangada. Visto que dais provas de me enlouquecer com a vossa inquietude, talvez devêsseis ir escolhê-los.
Ian achou a ideia excelente. Voltou-se para sair, mas deparou com a figura imponente de Morvan a preencher a entrada. O
corpulento cavaleiro passou por Ian, trazendo um homem pelo cachaço. Com um movimento largo, atirou o homem para o chão. –
Vede quem encontrei de volta das tendas da vossa mesnada, Ian.
O homem encolheu-se aos pés de Morvan. Era Paul, um membro da sua companhia que fora enviado para Carlisle para proteger as mulheres.
– Que raio fazeis vós aqui? – inquiriu Ian.
– Só vim ver os rapazes um bocado, não foi? Nada de muito grave, a meu ver.
– O vosso lugar é em Carlisle.
– Estava a ficar aborrecido.
– Aborrecido – trovejou Morvan. – Por Deus, se alguma coisa aconteceu à minha mulher ou à minha irmã por causa da vossa negligência…
– Se aconteceu, não é culpa minha. – Paul ergueu um braço para aplacar o golpe que a raiva de Morvan prometia. – Não consegui impedi-las de partir, não com todas tão determinadas, e a grande, bem, mostrai-me o homem que quer tentar dizer-lhe a ela o que fazer. E pelo menos levaram Gregory com elas, e insistiram que não seria por muito tempo. E eu sugeri que talvez devia vir dizer a Sir Ian pelo menos, mas Lady Reyna foi muito insistente, que eu não devia incomodar ninguém por uma coisa tão pequena, e a mais morena concordou, e a grande, bem, quando foram embora ela praticamente me ameaçou, ficou especada a olhar para mim com má cara e pôs a mão no punhal e disse-me para obedecer às ordens delas que tudo correria bem.
A expressão de Morvan fez-se mais sombria. – Dizeis que as senhoras saíram de Carlisle?
– Sim, é isso que estou a tentar explicar. Meteram-se num barco e ordenaram-me que ficasse em casa, mas comecei a ficar muito aborrecido de estar ali parado naquele sítio vazio só com aquela megera daquela criada. Então decidi que uma visitinha rápida até aqui não faria mal.
– Isto é obra de Lady Anna – disse Ian. – Ela não queria ir para Carlisle, e só lhe faltou insultar-me quando lhe transmiti as vossas instruções, Morvan.
– Não acuseis a minha mulher de incitar isto, Ian.
– Sugeris que Reyna forçou Anna a partir? C’os diabos, Morvan, a vossa mulher podia pegar nela com um braço.
– Talvez devêssemos descobrir para onde foram todas –
interrompeu David. Pôs Paul em pé e limpou-lhe a roupa com algumas sacudidelas solícitas. – Sabeis para onde se dirigiram?
– Penso que ouvi falar em Glasgow. Uma viagem rápida na sua maior parte por mar, garantiram-me.
Dois maridos olharam para Ian com irritação. Apenas Reyna teria interesse ou razão em ir para Glasgow.
– Sem dúvida que Anna alinhou para se distrair e Christiana foi a reboque para olhar pelas duas – disse David secamente.
– Irei atrás delas – atalhou Ian. – Não podeis sair daqui, Morvan, e com esta chuva não precisareis de mim durante alguns dias.
Morvan assentiu com a cabeça. – Levai mais alguns cavalos convosco, Ian, e pelo menos dois homens. Quando as encontrardes, enviai-me um homem asinha com novas da sua segurança.
– Irei convosco – disse David.
– Não, David, ficareis aqui – rebateu Morvan. – Convencestes-me deste vosso plano e agora ganhei-lhe gosto. É necessário que vigieis os preparativos. Ian, quando encontrardes Anna, dizei-lhe por mim que estou muito desagradado e que deve regressar imediatamente convosco. Quanto a Lady Reyna, deixo-a a vós.
Agarrando Paul pela ombreira, Ian arrastou-o até à fogueira. –
Quando partiram elas de Carlisle?
– Há sete dias.
Sete dias. Visto que haviam rumado a norte de barco, estariam brevemente em Glasgow. Demoraria tempo de mais ir por Carlisle e pelo mar. Ele teria de atravessar terras dos Armstrong. A toda a brida, podia chegar a Glasgow antes de elas partirem.
– Gregory ia ficar com elas a viagem toda?
– Sim. E Lady Anna levou um arco e uma espada. Vestiu-se como um homem, também, mas também ela faz sempre isso, o que é estranho numa mulher, não que ela pareça assim tão peculiar, por qualquer razão…
– Por que raio não viestes imediatamente avisar-me disto, Paul?
Ainda que não pense que lhes tenha acontecido alguma coisa, se sim, não posso proteger-vos de Morvan.
Paul olhou cauteloso por cima do ombro. – Teria explicado dentro da tenda, mas ele estava pronto a matar, não estava? E não melhorava nada atirar achas para a fogueira.
– Falai claro, homem.
– Bom, eu presumi que já sabíeis que elas tinham ido para Glasgow. Mandei o vosso homem dizer-vos na volta, não foi? Não havia razão para eu vir logo para vos dizer, se ele o ia fazer.

Um arrepio correu pela espinha de Ian. – O meu homem? que homem?
– O que veio há cinco dias com uma mensagem vossa para Lady Reyna. Não era da nossa companhia, mas imaginei que Morvan o tinha dado a vós. Ele apareceu a perguntar por ela, disse que tinha uma mensagem e um presente para ela da vossa parte.
– Eu não mandei homem nenhum, Paul.
– Não? Então quem…
– Que lhe dissestes?
– O mesmo que vos disse agora a vós, aonde tinham ido e quando.
A cabeça de Ian quase explodiu quando amor e medo se fundiram e se transformaram numa fúria dilacerante.
– Descrevei este homem.
– Cabelo claro, altura média e entroncado, é tudo o que lembro.
Escocês, diria pela fala dele, mas os «erres» não eram tão carregados, por isso achei que fosse das terras fronteiriças, e um dos homens de Sir Morvan.
Talvez tivesse sido Edmund, seguindo Reyna até Carlisle para continuar a persuadi-la, mas nem Edmund nem Reginald, que Ian soltara antes da partida, correspondiam à descrição de Paul. Nem Thomas Armstrong tinha o cabelo louro. Mas tanto Thomas como Edmund poderiam ter feito chegar por alguém a mensagem que conduziria Reyna às suas mãos.
A constatação de que Reyna poderia correr um perigo real quase lhe desarranjou os pensamentos, mas ele forçou-se a uma análise cuidadosa. Provavelmente devia informar Morvan disto, mas se o fizesse, Morvan conduziria o exército para Glasgow.
Tudo aqui se desfaria e na fronteira seria um inferno. Nem diria a David. O estranho aparecera em Carlisle a perguntar por Reyna, porque era Reyna quem procurava. Edmund empenhado na sua causa? Ou Thomas procurando vingança pela morte de Robert?
Avançou determinado para o acampamento da sua companhia.
Levaria mais do que dois homens, e cavalos e armas que bastassem. Se cavalgassem a sério, poderiam chegar a Glasgow antes de que quem perseguia Reyna a encontrasse.

CAPÍTULO 21


Reyna aguardava num banco na antecâmara do gabinete do bispo, aguilhoada por um presságio inquietante. A decisão de vir até Glasgow parecera-lhe muito sensata quando a tomara.
Permanecer em Carlisle tornara-se entediante, e factos importantes a respeito dos últimos meses de Robert podiam ser conhecidos neste sítio. Porém, agora, na iminência da reunião, perguntava-se se investigar as intenções privadas de Robert seria avisado.
Abriu-se uma porta lateral e um clérigo jovem entrou. Direito e rígido nas vestimentas largas, tinha cabelo escuro e olhos castanhos, toldados por uma expressão leniente. – Sou Anselm, um dos escriturários do bispo, senhora. O padre Rupert disse que vós insististes que tínheis assuntos urgentes.
Reyna nunca se apercebera de como era difícil ver um bispo, e as suas diligências junto dos vários oficiais tinham-se tornado algo exageradas durante a última hora. – É urgente para mim, já que não posso ficar muito tempo em Glasgow.
– Então lamento desapontar-vos. Como vos informaram, o bispo não está cá, mas sim a norte, onde contamos que permaneça durante algum tempo por assuntos da igreja.
– O padre Rupert pensou que talvez vós pudésseis ajudar-me. É
informação o que procuro, não a dispensa ou decisão de um bispo.

Anselm acomodou-se numa cadeira próxima, olhando-a enquanto alisava as vestes com dedos fastidiosos. – Ouvir-vos-ei, mas a maior parte dos assuntos do bispo são confidenciais.
– Espero que este não o seja. O meu nome é Reyna Graham. O
meu marido era Robert de Kelso, que detinha as terras fronteiriças de Black Lyne através de Maccus Armstrong. O meu marido morreu há vários meses. Pouco depois da sua morte, chegou uma carta do bispo. – Reyna descreveu a carta e a referência ao pedido de conselho de Robert.
– Lembro-me bem dela, já que a escrevi para Sua Excelência –
disse Anselm.
– Ninguém sabe a que se referia – explicou Reyna. – Se o meu marido tinha algum desejo ou vontade antes da sua morte, gostaria de saber, para que a sua vontade seja feita.
Anselm ignorou-a durante um pronunciado período de contemplação. Reyna começou a sentir-se ansiosa. Talvez o secretário hesitasse por o pedido de Robert de facto lhe dizer respeito. Era possível que tivesse conhecido tão pouco da mente e do coração do seu marido?
– É provável que vo-lo consiga explicar, Lady Reyna, mas primeiro tenho uma pergunta. Como dispõe o testamento do vosso marido das suas posses?
– As terras foram-me deixadas, embora seja questionável se o suserano aceitará que assim o seja – explicou ela, decidindo que falar da tomada do castelo e do seu casamento com Ian não serviria nenhum propósito.
– Não as terras, as suas posses pessoais.
– Também isso ficou para mim.
– Nesse caso, não vejo objeção em falar convosco. – Pôs-se mais confortável na cadeira, se se pode falar de conforto num homem com uma postura tão rígida. – O vosso marido escreveu uma carta que recebemos faz cinco meses. Nela, explicava que tinha posses que não eram dele por direito, e das quais pretendia desobrigar-se de forma honrada antes de morrer, para não interferirem com a propriedade. Queria dar estas posses a um mosteiro envolvido na educação dos jovens. O bispo tinha intenção de falar com os padres dominicanos aqui de Glasgow para tomar as disposições necessárias, mas outros assuntos o afastaram daqui.
– O meu marido descreveu estas posses?
– Não, mas ficou claro que não se tratava de terra. Referia-se a
«estas» em diversos pontos da carta. Sentia que lhe aliviaria a consciência ter o assunto tratado, com a morte tão próxima na sua idade avançada.
«Estas». Não era terra, mas sim objetos. – Indicou ele o valor destas posses?
– A sua carta indicava alguns milhares de libras, três ou quatro.
Objetos. Úteis na educação.
Livros.
Ela sabia que a biblioteca era valiosa, mas não tão valiosa.
– O meu marido mencionou como ficou na posse destes objetos?
– Não, mas o pedido não é incomum. Os homens ganham em piedade e sabedoria à medida que envelhecem. Procuram redimir-se de transgressões da juventude.
Reyna olhou-o nos olhos. – Pensais que essas posses são resultado de roubo, não pensais?
– O mais certo é terem sido obtidas no seguimento de um cerco ou batalha. Poucos cavaleiros ou soldados se ficam pelo pouco que os senhores pagam, e muitas vezes o pagamento nem chega a dar-se porque estes presumem que os primeiros enriquecerão o suficiente dessa forma sem custo para eles. Na verdade, a maioria dos barões reclama um terço desses despojos.
– Mesmo assim, dizeis que o meu marido era ladrão. Pouco melhor do que um salteador – rebateu ela veementemente.
– O que é roubo numa circunstância são despojos de guerra noutra – disse Anselm. – A Igreja urge os homens a absterem-se de o fazer, mas é um pecado pequeno se a guerra for justa. Até os Cruzados… E o vosso marido, contrariamente à maioria, procurou a restituição. Seria impossível devolver estas posses aos donos após tantos anos, por isso quis dá-la à Igreja, pelo seu trabalho.
– Não sabia que a Igreja havia decidido que o pecado estava condicionado às circunstâncias. Devo lembrá-lo no futuro. Sem dúvida se revelará conveniente.
Anselm suspirou. – Procuro apenas aliviar-vos da vossa óbvia aflição.
Aflição não bastava para descrever a reação dela. Robert, querido, bom, honesto Robert, vivera uma vida muito diferente antes de chegar à fronteira escocesa e entrar ao serviço de Maccus Armstrong. Havia ocorrido uma vida antes de ela o conhecer, e ele pusera-a para trás das costas, exceto a prova da qual não conseguia separar-se, os livros que tanto amava.
Livros roubados. O que pensara ele enquanto estudava os imperativos morais que eles continham, quando a própria posse deles desafiava aquelas verdades?
As desculpas de Anselm podiam ter-lhe servido. Tal como lhe poderiam servir a ela agora, se chegasse a convencer-se de que aqueles livros haviam sido saque de uma guerra justa. Mas pairava a possibilidade de Robert ter de facto sido ladrão ou salteador enquanto jovem. Exatamente como Ian de Guilford, ou até pior.
Perante a ironia, ela fez uma careta. Andava a comparar Ian com um homem idoso que, na sua juventude, fora igualmente implacável.
– Penso que sei a que posses se referia o meu marido. Se era desejo de Robert que estes itens fossem dados à Igreja, diligenciarei para que isso aconteça. – Levantou-se para se retirar.
– Dar-me-íeis uma carta explicando o assunto? Seria mais fácil concretizar a doação se o pedido dele estivesse clarificado.
– Se vós herdastes…
– Voltei a casar recentemente.
As sobrancelhas negras do jovem ergueram-se, compreensivas.
Foi até à mesa. – Se voltastes a casar-vos, os bens já não são vossos – disse enquanto escrevia. – Se algum bem pode trazer, aqui está. Não deixeis isto converter-se num ponto de discórdia no vosso casamento, contudo. Raro é o homem que se desfaria da riqueza que lhe coube através da mulher.
Reyna agarrou o pergaminho que provava que Robert nunca procurara pô-la de parte. Quanto ao último comentário de Anselm, não tinha ideia alguma da reação de Ian à concretização da última vontade de Robert. Provavelmente recusaria, depois de saber o valor dos livros.
Pensando melhor, talvez um bandido sentisse especial simpatia pela busca de salvação de outro bandido.
– Deus está a punir-nos por desobedecermos aos nossos maridos e termos saído de Carlisle – murmurou Christiana, espreitando pela janela do quarto de dormir. – Esta chuva há dias que corre, e parece que vai durar para sempre. – Dirigiu-se a Reyna. – Quando Anna voltar, temos de lhe dizer que partiremos de manhã. O que é de mais é erro.
Reyna deu uma volta na cama e fitou o teto. Esta viagem só se dera porque Anna, procurando um interregno de atividade e aventura, apoiara a sua decisão de a fazer. Atendendo às circunstâncias, parecera justo conceder a Anna mais um dia em Glasgow.
Por si, Reyna teria partido satisfeita no dia anterior, depois de regressar da casa do bispo. Tendo cumprido a missão, ansiava regressar a Carlisle. Talvez pudesse enviar uma carta a Ian, dizendo-lhe o que havia descoberto. Talvez, se a chuva tivesse travado as movimentações em Harclow, ele pudesse ir vê-la. A ideia de que ele pudesse já ter tentado fazê-lo, chegando a uma casa em que não se encontrava ninguém a não ser Paul e a criada, entristecia-a, e ela já se sentia abatida devido à recente descoberta sobre Robert.
Ele nunca a enganara, lembrou-se novamente. Ela nunca fizera perguntas sobre aquela história antiga e ele não lhe contara mentiras. Porventura só uma rapariga que confiava num homem como confiaria num pai teria aceitado a presença de todos aqueles belos livros sem questionar, mas assim havia sido.
– Aqui estão eles – anunciou Christiana. – Parecem dois pintos encharcados, e o rosto de Gregory está verde de raiva, mas Anna parece radiante. Tendes de me apoiar. Se não a encurralarmos agora, estará a levar-nos para as Terras Altas antes da semana terminar.
Encurralar uma Anna rebelde revelou-se tudo menos fácil.
Recordou a Reyna que deviam tirar o maior partido dos apuros que as aguardavam com os maridos, e, de facto, propôs uma viagem até Argyle. Christiana repreendeu-a e tentou persuadi-la, mas foi a sugestão de Reyna, da chuva poder possibilitar a visita dos maridos, que venceu a discussão. Passaram o serão em preparativos para regressar à costa.
No dia seguinte, saíram da cidade de Glasgow, Anna assemelhando-se tanto a um guarda como Gregory, envergando túnica, e capuz, e com uma espada presa à sela. A chuva parara, mas nuvens pesadas prometiam mais. Christiana mantinha uma conversa amena, aligeirando a disposição que ameaçava afundar-se sob o desconforto da humidade e da lama.
A cinco quilómetros da cidade, a conversa aquietou-se e, no silêncio súbito, resmungou um trovão distante. Anna sofreou o cavalo e escutou com uma atenção alerta. O trovão aproximava-se com demasiada rapidez, e ela deu a volta ao cavalo, gritou um aviso a Gregory, e desembainhou a espada. Reyna olhou por cima do ombro e deparou com uma tropa de homens galopando na direção deles.
– Para a berma da estrada – ordenou Anna, pousando a espada na sela. – Deixai-os passar.
Infelizmente, a companhia não manteve o ritmo. Os homens detiveram-se, continuando depois a trote. Quando estavam a cem passos de distância, Reyna reconheceu o homem à cabeça e a surpresa deixou-a sem fôlego.
Ele avançou e parou à distância de um cavalo. – Então, irmãzinha. Que fazeis tão afastada da proteção do vosso marido?
– Fui visitar Glasgow. E vós, Aymer? É um sítio bizarro para vos encontrar de imprevisto.
– Tenho andando à vossa procura. Busquei-vos em Carlisle e, sabendo que fizéreis esta viagem, preocupei-me com a vossa segurança.
– Que fraterno.
Os doze homens de Aymer fecharam-se à volta deles, impossibilitando a fuga. Anna segurava a sua arma com firmeza.
Pelo canto do olho, Reyna viu Gregory a medir a situação e a não gostar do que via.
Um dos cavaleiros de Aymer acercou-se de Anna, semicerrando os olhos. A ponta da espada dela seguiu-lhe o movimento.
– Por Deus, é uma mulher – exclamou ele, arrancando-lhe o capuz. Caracóis louros caíram-lhe pelos ombros. – Já vistes alguma assim tão grande? Bonita que chegue, embora de estranha maneira.
Os outros homens riram. – Sim, mulher que chegue para todos nós, talvez – casquinou um.
– Mulher que chegue para cortar a virilidade a quem quer que toque em nós – disse Christiana com frieza.
– Parai imediatamente com isto, irmão – disse Reyna. – Se mal algum recai sobre alguma delas, Morvan entra com o exército nos montes, e a fortaleza do meu pai não é Harclow.
Anna arremetera a ponta da espada contra o pescoço do cavaleiro, fitando-o pelo seu comprimento.
– Nós somos muitos mais, cabra – rosnou ele, inclinando cabeça e pescoço para longe da ameaçadora arma.
– Porventura. Mas vós ides afastar-vos ou vós ides seguramente morrer – respondeu ela.
Uma comoção súbita viu Gregory acometendo na direção deles, espada no ar, expressão determinada. Um dos cavaleiros lançou-lhe o cavalo no caminho e, com um movimento largo, fez bater a face da espada na fonte de Gregory. O guarda afundou-se na sela e depois caiu desamparado ao chão.
O ataque fez Aymer decidir-se a concluir o pequeno drama. –
Condessa, tenho assuntos com a minha irmã que requerem que ela me acompanhe. Vós e Lady Anna sois livres de continuar o vosso caminho.
– Se ela vai, nós também – disse Christiana. – Completamos esta viagem como a encetámos, juntas.
– É assunto de família, senhora, e não respeita a nenhuma de vós. Se insistirdes nesse disparate, farei que vos amarrem ambas a uma árvore.
– E deixadas aos ladrões ou aos animais? Ou Reyna continua connosco, ou nós convosco. E seria avisado da vossa parte tomar o maior cuidado com as nossas pessoas e a nossa saúde. O meu irmão tem dois mil em Harclow, e se vier atrás de vós não haverá piedade. Quanto ao meu marido, os seus métodos são mais subtis.
Não sabereis sequer que ele lá está até lhe sentirdes a bota em cima do pescoço. – O tom gélido que cristalizou estas palavras serenas foi tanto mais eficaz quanto a figura que as proferia era cortês e delicada.
Reyna estava impressionada. Aymer também. Fitou Christiana, rubro, depois deu furiosamente a volta ao cavalo. – Trazei-las todas – ordenou. – Deixai o homem.
Reyna e Anna puseram-se ao lado de Christiana. – Foi muito corajoso, minha amiga, mas é desnecessário – disse Reyna. – Não me farão mal.
– Certamente pensará duas vezes agora, se planeara fazê-lo –
murmurou Anna. – Pensais que aquele guarda estólido, Paul, guardou de facto segredo sobre a nossa partida?
Christiana revirou os olhos. – Dado que só vos faltou ameaçar cortar-lhe a garganta…
– Ainda assim, podia ter chegado um mensageiro.
– Mesmo que os nossos maridos tenham descoberto que saímos de Carlisle, não saberão para onde viemos agora. Não, irmã, podemos estar sozinhas nisto.
– Voltai para trás – incitou Reyna.
Christiana abanou a cabeça. – Não confio neste vosso irmão.
Estareis mais segura connosco presentes. Seria útil saber para onde vamos e porque vos quer ele, porém.
Reyna instigou o cavalo ao trote e deslocou-se pela pequena tropa até ao lado de Aymer.
– Regressamos a Glasgow? – inquiriu.
– Não, mas iremos para oeste e depois para sul. Levo-vos para casa.
– Para Black Lyne?
– Para casa. Não pertenceis junto dos Armstrong e dos Fitzwaryn, Reyna. Regressareis para a vossa família.
– O meu pai tem assim tantas saudades de mim?
– Duncan é um velho. Uma doença já lhe come as entranhas. Ele não tem determinação para fazer o que tem de ser feito, por isso cabe-me a mim.
– E o que é, Aymer? O que se passa?
– Terra, pequena Reyna. Não é sempre a terra? O Diabo deve ter possuído Duncan para ele dar o que deu como vosso dote.
Durante anos esperei que o velho Robert morresse para que voltasse para vós como arras, e através de vós para nós.
Ela suspirou com a previsibilidade de Aymer. – Quão impaciente estáveis, Aymer? Arranjastes maneira de apressar o seu falecimento?

– Tivesse eu meio de o fazer. Interessante perguntardes, Reyna.
Sempre presumi que o havíeis matado vós.
– Não tinha por que o fazer.
– Ai não? – perguntou Aymer, manhoso. – Ele era velho quando vos casastes com ele e mais velho quando chegastes à idade adulta.
A vossa mãe era uma rameira, e tal é provavelmente a vossa natureza também. Aquelas mãos frias contentavam-vos? Penso que não, se com tanta brevidade achastes forma de entrar na cama daquele cavaleiro.
O tom e o olhar dele fizeram-na sentir-se muito desconfortável.
– É bom que mencioneis Ian, já que as arras que pensais controlar através de mim agora lhe pertencem.
– Não se ele estiver morto.
Ela rodou na sela. – Vós não…
– Ainda não. Conto que venha atrás de vós, porém. Deixai-lo trazer a mesnada inteira, ou até mesmo metade do exército que Fitzwaryn reuniu, desde que ele próprio venha. – Inclinou-se e acariciou-lhe o rosto. Ela afastou-se enojada. – Tendes sangue de rameira, Reyna. Conto que lhe tenhais agradado o bastante para ele vir de facto resgatar-vos.
– Sois nojento por falardes assim da vossa irmã.
A mão ficou-lhe no rosto e voltou a afagar. – Porventura. Mas, afinal, vós não sois realmente minha irmã.

CAPÍTULO 22


Frio. Frio húmido e escuridão eterna. Vozes murmurando nas pedras, e mãos estendidas para ela, espicaçando-a. Risadas sumidas, agora mais baixas, próximas, e outras mãos, não a espicaçar mas a acariciá-la, convocando um novo terror que ela não compreendia. Uma nova voz, não a voz etérea de um espectro mas uma voz viva, rindo de prazer face ao seu medo. Não sois realmente minha irmã.
Ela encostava-se às pedras, sentindo tudo, ouvindo tudo, mas era diferente desta vez. A sua alma não experimentava nenhum do terror. Uma minúscula parte dela desta vez permanecia racional, observando o velho medo desdobrar-se à sua volta, dentro dela, como se observasse um espetáculo.
Pernas encostaram-se às suas e mãos seguraram nas dela.
Pernas reais e mãos reais, ancorando-a a um espaço e a um tempo, evitando que os seus sentidos escapassem ao seu controlo.
– Ele não pode manter-nos aqui para sempre – interferiu uma voz. Uma voz real. De quem? Ah! de Anna. – Nem sequer uma vela. Qual o propósito?
– Guarda-me aqui até Ian vir – Reyna ouviu-se dizer.
Certamente havia explicado isto antes, da primeira vez que acamparam e dormiram juntas com a espada de Anna no meio delas. Fazia uma eternidade, antes de a viagem as trazer até aqui uma noite, e Aymer as aprisionar a todas. Tinham-lhes trazido comida, parecia recordar-se, mas Aymer não havia regressado.
– Ainda assim, podia dar-nos velas. Esta cripta desassossega-me.
Sim, a cripta. Era onde estavam, aninhadas no chão de pedra, encostadas à parede fria. Se o sítio desassossegava até a corajosa Anna, talvez ela não precisasse de se sentir assim tão infantil.
A mão de Christiana segurou com mais força as dela. – Estais a portar-vos bem, Reyna – sossegou.
As vozes das pedras responderam com os seus murmúrios inaudíveis. Riso agudo feria-lhe os ouvidos. Ela agarrou-se à mão delicada de Christiana, lembrando-se vagamente desta a bater-lhe no rosto enquanto gritos de alguém enchiam a câmara pequena.
Ela reuniu coragem, a pouca que havia, e a sua alma escutou as vozes. Houvera algo familiar nelas da última vez, algo humano. Ela incitou-as a acometerem novamente sobre ela, e encostou as pernas às das amigas. Vinde, c’um raio.
E vieram. As pedras ecoando os seus murmúrios, o som convocando memórias há muito fragmentadas sob o terror.
Ela estava num sítio escuro e coisas invisíveis e pontiagudas tocavam-lhe uma e outra vez. Um dedo invisível contornava o seu corpo e um riso de rapaz comprazia-se com o seu medo. As próprias pedras ganharam mãos e braços, e sempre que ela se voltava estes estavam por trás dela, espetando-a até um aterrorizado frenesim. A sua própria voz gritava baixinho por ajuda e depois aquela voz jovem falou, subitamente entediada. Agora ficai aqui, ou os demónios apanham-vos. Vou lá fora ver.
Mas ela não ficou. Corria pela escuridão, atrás dos passos em retirada…
– Há quanto tempo achais que estamos aqui? – perguntou Anna.
Desde sempre, talvez. Não havia tempo, aqui. Uma hora podia ser uma semana, uma semana não mais que uma hora. A escuridão engolia o tempo.
– Pelas refeições, vários dias, mas durmo a espaços, e não sei dizer se é noite ou dia – respondeu Christiana.
Reyna ouvia as vozes suaves das suas companheiras. Ambas lhe agarravam ainda nas mãos e aquele aperto suave era muito real agora.
O espaço e o tempo haviam-se acertado. O espetáculo terminara, mas ela vira a fonte e a causa daquele horror. Talvez houvesse sido apenas uma brincadeira de crianças para Aymer, a princípio, mas o gosto do medo alimentara-lhe a crueldade ao longo dos anos. Não admirava que a sua alma se encolhesse perante a mera presença dele.
Contudo, ela sabia que havia mais. Algo provocava a sua mente, tentando-a como um dente doído em que se mexe apesar da dor.
Tratarei disto hoje, decidiu ferozmente. Verei tudo o que há e isto deixará de me governar.
Ela cravou os olhos na escuridão, incitando-a a avançar.
Libertando as mãos que seguravam as dela, abstraiu a sua mente da presença das companheiras.
A princípio, a escuridão saudou-a benignamente, um vazio oco, mas depois, lentamente, subtilmente, ganhou vida. As vozes surgiram de novo, baixas e distantes e não tão ameaçadoras. Até os gritos, que pareciam os seus, estavam longe. Ela corria, corria, na direção dos sons, seguindo o raspar de passadas.
Subitamente o medo era novo e fresco, e o coração que sentia dentro dela não era de mulher mas sim de criança. Ela corria como um raio, aliviada, em direção a uma qualquer luz na distância.
Arquejou quando o sol quase lhe cegou os olhos e a imagem horrível lhe preencheu a mente. Por um átimo, a imagem dela, inerte e morta, mãos pendendo ao lado do corpo, rosto contorcido e roxo, acendeu-se à sua frente. Não é isto. Este é o outro pesadelo, não é este.
Mãos esticaram-se para ela, afastando-a, de volta à escuridão.
Abanavam-na com dureza, e agarraram-lhe o rosto. – Estamos aqui. Estamos aqui – sossegou uma voz firme.
Anna apertava-a contra si e Christiana falava-lhe suavemente ao ouvido. Ela ficou assim por breves momentos, e depois afastou-se.
– Estou bem. Acabou. Não tornará a acontecer.
– Temos de a tirar daqui – disse Christiana.
– Sim, tendes de me tirar daqui, mas não por causa disto – disse Reyna. – Talvez Aymer procurasse pôr-me louca. Assim seria fácil fechar-me e esquecer-me, e quem se importaria? Mas não funcionou, nem funcionará. Acabou, digo-vos.
– Visto que isso é mais do que haveis dito desde que nos atiraram para aqui, sinto-me inclinada a acreditar em vós – replicou Anna.
– Mas, de todo o modo, temos de sair – repetiu Reyna. – Ele pretende matar Ian. O mais provável é ser um desafio para combate individual, mas ele terá um plano para assegurar a vitória, e não será uma luta justa. – Ela contemplou a situação precária delas. – A cripta fica por baixo da capela, que fica fora da muralha e perto da floresta. Pergunto-me se Duncan sabe sequer o que Aymer anda a fazer.
– Não importa. Se sairmos, corremos – atalhou Anna. –

Lembrais-vos destes montes, Reyna? Conseguis levar-nos para oeste?
– Penso que sim. Passou muito tempo, mas os caminhos não podem ter mudado muito.
– Como saímos? – perguntou Christiana. – Tentastes a porta depois de eles nos trazerem para aqui, Anna, e vistes que estava trancada. Sem dúvida há pelo menos um guarda lá fora, e eles tiraram-vos a espada.
– Esperemos que haja de facto um guarda – disse Anna. – Não mais do que um se tivermos sorte, porém. Se conseguirmos que ele abra a porta… Isto é uma cripta. Deve haver algo com que lhe bater. Um crucifixo, uma placa de pedra, alguma coisa…
Ergueu-se
e
começou
a
deambular
pelo
pequeno
compartimento. – Aqui está alguma coisa. Uma cruz de pedra. –
Grunhiu com o esforço e depois blasfemou. – É pesada de mais para mim. Detesto dizê-lo, mas bem nos fazia jeito um homem forte agora.
– Já que não cuidámos de trazer um, parece que estamos presas aqui – concluiu Christiana.
– Não. Atiramo-nos a ele todas de uma vez. Mas precisamos da porta aberta. Sois vós quem vais fazê-lo, Christiana. Oferecei-lhe um beijo ou algo assim. A oportunidade de ter uma condessa deve fazê-lo esquecer o dever.
– Ó, santos me acudam – murmurou Christiana. – Tomai tento para derrubar este guarda antes de chegar a um beijo que seja, quanto mais ou algo assim.
Elas juntaram-se e lá subiram as escadas. Christiana assumiu a sua posição, e Reyna e Anna encolheram-se contra a parede ao lado da escadaria.

Christiana arranhou a porta. – Por favor abri a porta por um breve momento, gentil senhor. Não me sinto bem de todo. As minhas companheiras perderam já os sentidos, e temo que todas morramos se não tivermos de imediato algum ar fresco.
A porta de carvalho abriu uma frincha, e uma luz ténue escorreu pelas escadas. A cabeça do guarda bloqueava parte dela.
– Podíeis abri-la apenas um pouco mais? Estou certa de que elas recobrarão com um pouco mais de ar. Se fordes generoso nisto, ficarei grata.
– Lamento condessa, mas as minhas ordens foram…
– Ficarei imensamente grata.
– Bom… se as senhoras estão assim tão mal – murmurou o guarda. – Não era intenção causar-vos dano.
O vulto do guarda desapareceu da frincha. Momentos depois, a porta abriu-se completamente e a sua forma escura encheu a entrada.
Elas investiram.

CAPÍTULO 23


Deitaram-no por terra, soterrado num emaranhado de corpos tenros, imerso num caos de mãos a agarrá-lo e membros a contorcerem-se e sussurros femininos excitados.
– Agarrai-lhe no braço da espada… não, esse é o meu, agarrai o dele.
– Alguém se sente no peito dele.
– Raios, este filho de uma égua é grande.
– Senhoras…
– Apanhei-lhe a espada…
– Senhoras.
O furação estacou a meio fôlego. Surpresas, três cabeças enluaradas viraram-se de rompante.
– Ian?
Ian identificou as várias mulheres esparramadas em cima dele. –
A pequena agarrada ao meu braço é minha mulher, e a grande que me encosta a espada à garganta deve ser Anna. Quer dizer que o traseiro que me esmaga o peito pertence à condessa de Senlis.
Quiçá, condessa, possais ter a amabilidade de…
O traseiro deslocou-se rapidamente. As mãos cerradas apartaram-se. Puseram-se todas em pé.
Anna devolveu-lhe a espada, e uma luz pálida refletiu-se nela.

Infelizmente, isso fez com que os seus homens viessem em seu socorro.
– Para trás! – sussurrou-lhes rispidamente Ian, aproximando-se de Reyna e puxando-a para a proteção do seu corpo.
Reyna derreteu-se de imediato no santuário do seu corpo, apertando-o contra si, enterrando o rosto no peito dele. Ele envolveu-a nos braços, apreciando a sensação da sua forma pequena e do seu calor de mulher. Ela estava aqui, muito viva e real, e o seu venturoso alívio igualava o dela.
Ele beijou-a na cabeça uma vez e outra enquanto encaminhava o grupo para fora da capela, para o abrigo das árvores.
– Agradeço-vos terdes distraído o guarda, Reyna. Debatia-me entre confrontá-lo e ver se vós estaríeis aprisionadas naquela cripta, ou limitar-me a marchar até à torre exigindo a vossa libertação. Em qualquer das hipóteses, teria tido os Graham todos em cima de mim.
– Como nos encontrastes?
– Soube por Paul que havíeis ido para Glasgow e que alguém fora atrás de vós. Quando lá cheguei encontrei Gregory, e ele contou-me o resto.
– Gregory está bem?
– Conseguiu voltar a Glasgow. Como eu não sabia em que estalagem havíeis ficado, decidi localizar-vos procurando por ele nas tavernas e lugares que tais. Encontrei-o no segundo bordel onde fui, esticado na cama como um príncipe, com as rameiras a deleitarem-se com a oportunidade de brincar às mães e enfermeiras.
Anna chegou-se para mais perto. – Imagino que não haveis trazido mais cavalos? Já que há pouco não fomos muito silenciosas, em breve andarão à nossa procura.
– Trouxe, mas deixei-os a caminho. Cavalgámos sem parar e mudámos para os cavalos mais descansados quando os nossos não conseguiam ir mais longe. As senhoras terão de se emparelhar connosco. Os cavalos não estão longe.
– Não é Duncan que está a fazer isto, mas apenas Aymer, tenho quase a certeza – disse Reyna. Se ele vier, pode ter apenas os homens que levou para Glasgow, e não aqueles que ainda são leais ao meu pai.
– Duncan decerto deve ter sabido que vós estáveis ali.
– Aymer nunca nos levou para dentro da muralha, deixou-nos imediatamente na cripta. Duncan pode não estar ao corrente.
A mão dele apertou-se mais no seu ombro. Ele estivera preocupado com maus-tratos físicos, mas dias na cripta podiam tê-
la maltratado de formas que varas e punhos nunca conseguiriam. –
Vós… como…
– Não recordo muito, mas Anna e Christiana ajudaram-me. Por fim, consegui enfrentar tudo. Foi muito o que se tornou claro.
Tenho tanto a dizer-vos.
– E eu tenho muito a dizer-vos, mulher. – Voltou a sentir o travo da preocupação que se apossara dele enquanto corria a toda a brida pelos montes, descuidando segurança e prudência ao cavalgar por terras Armstrong para ganhar tempo. – Foi-vos dito que ficásseis em Carlisle.
Ela aconchegou-se contra ele de forma tão amorosa que o pico de raiva foi pequeno e breve. – Foi idiota, Ian, não o negarei. E, contudo, aprendi tanto. Penso que sei quem matou Robert.
– Aymer?
Um aceno de assentimento. – Perguntei-lhe e ele não o negou.

Admitiu que se tivesse os meios o teria feito. Por dinheiro, um dos criados ou guardas podia ter aplicado o veneno por ele. Planeava matar-vos quando viésseis buscar-me, para que as arras ficassem sob seu controlo.
– Faz sentido. Terra, para mais estratégica. A explicação mais simples, e a mais antiga do mundo.
Quando alcançaram os cavalos, Ian indicou a dois homens que levassem as outras senhoras atrás deles.
– Será mais rápido se formos para oeste, na direção de Black Lyne – disse, erguendo Reyna para a sua própria montada. – Enviei uma mensagem a Morvan, de Glasgow, e se a ajuda chegar, virá por aí. Conheceis estes caminhos suficientemente bem para nos guiar?
– Reconheço o sítio onde estamos. Penso que consigo fazê-lo.
Ele alçou-se para trás dela. Do outro lado da clareira, Christiana agradecia ao seu soldado pela generosidade em partilhar o seu cavalo, e Anna criticava o dela pela forma como se sentava na sela.
Ian pegou nas rédeas e rodeou Reyna com o braço. Apertou-a contra si e beijou-lhe o pescoço. – Tenho muito para vos dizer, mulher, e nem tudo são repreensões – murmurou. – Ficarei sempre em dívida com as senhoras por terem ficado convosco. Agradeço a Deus por vos entregar a mim em segurança.
Ela virou-se para aceitar o beijo que aguardava. – Chamais-me muito isso. Mulher. Sempre me perguntei porquê.
– Sois minha mulher.
– Presumi que era porque precisáveis de vos acostumar à ideia.
Ele riu-se. – Isso também, mas descobri que gosto do som. E é algo que nunca chamei a mulher nenhuma antes. Mas se preferirdes, emprego outros predicados. – Beijou-lhe a face. – Querida. –

Encostou-lhe os lábios à fonte. – Doçura. – A boca dele encontrou-lhe a orelha. – Meu amor.
Ela encostou-se a ele com um suspiro satisfeito. – Sim, mas mulher serve, Ian, especialmente por ser só meu.
– Vamos, Reyna. Devagar, para estardes certa. Não queremos perder-nos nestas colinas.
Viajaram toda a noite sem parar para descansar. Ian notou que Reyna fazia as suas escolhas de caminhos valendo-se mais do instinto do que da certeza, confiando que os seus passeios de infância lhe teriam gravado o trajeto na memória. Na quietude absoluta, prenúncio da madrugada, ouviram por fim o som de cavalos no seu encalço, e puxaram mais pelos seus num esforço de chegar a Black Lyne antes de Aymer os alcançar.
Poderia ter resultado se os caminhos dessem diretamente para o descampado que ficava por detrás de Black Lyne, mas afinal o percurso desembocou mais para sul, perto do velho castelo.
Subitamente, cavalgavam disparados pelo baldio numa velocidade temerária, fugindo da companhia que os perseguia. Os seus cavalos tumultuaram pelo fosso da velha fortaleza abaixo e subiram a colina, quando a cabeça ruiva de Aymer emergiu no topo da elevação do baldio.
Ian espreitou os homens que desciam com Aymer a escarpa.
Não mais de uma dúzia. Reyna estava certa: Aymer fazia isto sozinho.
Saltou do cavalo, desceu Reyna e gritou aos homens que se espalhassem pela circunferência do topo da colina com os seus arcos.

Ao longe, avistava-se o vulto de Black Lyne. Não havia possibilidade de ajuda de lá. Apenas uns poucos homens permaneciam no interior da fortaleza fechada, com ordem expressa de lá ficarem.
Mais abaixo, Aymer também distribuía os seus homens à volta da elevação do velho castelo. Tinha mais com ele, mas também um círculo maior a cobrir.
– Se disserdes a um dos vossos homens para me dar o arco dele, tentarei equilibrar os números – disse Anna.
– São arcos galeses, de mais para uma mulher.
– Há alguns anos que uso um arco galês, Ian. Desta distância, devo acertar no meu alvo três vezes em cinco. Alguns braços e pernas em mau estado farão Aymer pensar duas vezes em atacar.
Ele olhou para aquela mulher, com o seu emaranhado de caracóis a esvoaçar, selvagens, ao redor da cabeça e do corpo. Se ela dizia que acertava no alvo três vezes em cinco, ele acreditava nela. Chamando o homem mais próximo, ordenou-lhe que cedesse o arco.
Reyna aconchegou-se perto dele por trás de uma pedra larga que servia de proteção a ataques semelhantes vindos de baixo.
Aymer e os seus homens, pensando estar fora de alcance, espalharam-se em redor do fosso da paliçada. Anna testou a tensão do arco e depois encaixou nele uma seta. Contornando rapidamente as pedras até à ponta da colina, puxou a corda até à orelha. Um segundo depois, um grito de blasfémia ecoava na neblina da madrugada.
– Ela é verdadeiramente magnífica, não é? – disse Reyna com admiração enquanto Anna transportava o arco para o outro lado da colina. – Devíeis ter visto a reação que os homens de Aymer lhe tiveram. Era um desafio que eles se viam em pulgas para enfrentar.
Consigo compreender a razão pela qual eles… vós…
– Vós constituis um desafio muito mais interessante do que ela alguma vez foi. Para mim, ela foi um meio que serviu um fim, e não um muito nobre, diga-se. Mas ela e eu temos algo em comum, penso eu. Ela nasceu para um homem, e encontrou-o. Eu nasci para uma mulher, e por graça de Deus encontrei-a.
A afirmação foi recebida por uma quietude absoluta. Ele afastou o olhar de Aymer e dos seus homens, e viu a sua expressão perplexa. Sorriu e passou-lhe o dedo pelo queixo. – Bom, ou foi graça de Deus ou foi obra do Diabo, mas se foi do Diabo, ele não contou que me roubásseis o coração, portanto os seus planos para me confinar à perdição saíram gorados.
Ela colocou os braços à volta dele e ele puxou-a mais para si.
Que lugar e altura tão estranhos para ele lho dizer, mas pareceu certo e natural.
– Acho que o meu corpo podia flutuar e o meu coração rebentar neste exato momento – disse ela. – Amo-vos tanto, Ian.
– E eu amo-vos a vós. Absorvestes a minha alma despedaçada com a beleza da vossa, mas é um lugar estimulante para se ser feito prisioneiro. Desde o início que me desafiastes a ser melhor do que sou. Nenhuma outra mulher me poderia ter insultado como vós fizestes, forçando-me a ver no que me havia tornado, e depois ofertado o amor e a amizade necessários para me resgatar.
– Não, Ian, não… Foi só segurança que procurei naquelas palavras… vós não sois…
– Palavras verdadeiras, Reyna. – Mais verdadeiras do que ela sabia. Sobreviveria o seu amor ao conhecimento de tudo? Agora não. Noutra altura. Talvez. – Eu estava rapidamente a caminho de me tornar o pior dos homens, e vós havíeis conhecido o melhor.
Devo avisar-vos, porém, que, por muito que me esforce, nunca serei um Robert de Kelso.
Ela ergueu uns olhos envergonhados. – Pois, Ian, a bem ver, nem Robert de Kelso foi sempre um Robert de Kelso. – Falou-lhe da conversa com Anselm, e a razão da carta de Robert. – Eram os livros, Ian. Foram roubados.
– Tendes a certeza?
– Não pode ser mais nada.
– Não o julgueis com demasiada dureza. É costume haver saque a seguir a batalhas e cercos. Ninguém o considera roubo.
– Mas não se trata de sedas, nem joias, nem prata. São livros.
Quem teria coisas destas a não ser clérigos? Não, não me deixarei enganar. Robert tirou-os à Igreja, um crime sério mesmo em guerra, e procurou devolvê-los para expiar a sua ofensa.
Ele franziu o sobrolho. – David disse que eram muito valiosos.
Pergunto-me quão valiosos.
– Segundo o que soube em Glasgow, pelo menos três ou quatro mil libras.
Quatro mil libras. Não admira que David estivesse hesitante em reconhecer que Reyna tivesse direito a qualquer um deles.
Mudava tudo. O futuro que eles podiam ter e a segurança que conheceriam. Sabê-lo era como descobrir um tesouro escondido.
Não venderiam aqueles de que Reyna gostava, claro, a não ser que a má sorte o comandasse, mas a mera existência daquela proteção contra alguma desdita afetaria muitas outras escolhas.
Olhou para ela com alegria.
Ela respondeu-lhe com olhos bem abertos, inocentes.
Ele adivinhou o significado daquela expressão esperançada, sincera, e esperou verdadeiramente estar enganado. – Quereis mandá-los para o bispo seja como for, não é verdade?
Ela mordeu o lábio inferior e assentiu com a cabeça.
Ele suspirou, e o breve sonho de riqueza foi levado pelo ar. –
Diabos, convosco não é fácil ser bom, Reyna. Quatro mil libras.
Raios.
*
Morvan chegou dois dias depois, quando o sol ia alto no céu.
Os que estavam no cimo da colina viram primeiro a companhia assomar ao horizonte distante, mas o som rapidamente chegou lá a baixo, a Aymer.
Espreitando detrás da pedra grande, Reyna viu o irmão esticar-se para ver a fonte do estrupido e depois ficar muito quieto e rígido quando o paul se encheu de homens, armaduras e cavalos.
Aymer gritou para os seus homens e todos pegaram apressados nos cavalos, montando e levando consigo os feridos. O pequeno grupo da torre gritou zombarias enquanto a cabeça ruiva partia disparada na direção pela qual viera. Em seguida, Ian foi até à ponta da colina e saudou o exército que chegava. Ordenou a um homem que descesse no cavalo mais veloz para lhes dizer que as senhoras estavam a salvo.
O mensageiro chegou ao exército e este deteve-se.
– Morvan está ali. Estou a vê-lo. E David também – disse Christiana. – Ó Céus…
– Devem estar um bocadinho zangados – admitiu Anna.
– Um bocadinho? Por causa da vossa obstinação eles desfizeram o cerco, trouxeram metade do exército, e agora ao que parece nem precisamos de grande salvamento, e pensais que eles podem estar um bocadinho zangados?
– A minha obstinação? Sois…
Ian interrompeu-as com um sorriso endiabrado. – Ah, agora que penso nisso, Morvan transmitiu-me uma mensagem para vós. Com toda a agitação, esqueci-me.
– Que mensagem?
– Devia dizer-vos que ele estava muito desagradado por terdes saído de Carlisle. Estava furioso com a vossa desobediência.
Começou a andar de um lado para o outro com aquele olhar sombrio com que fica, ameaçando trancar-vos de vez, jurando que garantiria que não pudésseis sentar-vos confortavelmente durante um mês…
Vários dos homens trouxeram cavalos. À distância, dois homens altos desmontaram e adiantaram-se ao exército. Morvan cruzou os braços sobre o peito e David colocou as mãos nas ancas, e ambos aguardaram, comunicando eloquentemente o seu desagrado pela postura.
– Não tem nada bom aspeto, irmã – murmurou Christiana quando Ian a ajudava a subir para a sela. – Precisaremos de um estratagema muito ardiloso para nos esquivarmos.
Anna alçou-se para o cavalo. – Não foi realmente obstinação, se pensarmos no assunto, mas sim cavalheirismo. Reyna propôs a viagem. Dificilmente poderíamos deixá-la ir só.
– Oh, eles já sabem disso, mas não aplacou Morvan em nada –
explicou Ian. – Ele pensa que vós devíeis tê-la detido. Além disso, como é próprio, deixou a mim o castigo dela.
Lançou a Reyna um olhar de que ela não gostou muito. Má sorte a dela que, desvanecendo-se o alívio por a ter encontrado sã e salva, aparecessem estes maridos querendo acertar contas e relembrando-lhe que ele tinha o seu próprio livro-mestre para balancear.
Uma vez sentada no cavalo, dirigiu-se a Christiana. – Que ardiloso estratagema tencionais utilizar? – sussurrou.
– Bem, não tenciono cozinhar-lhe uma refeição nem ler-lhe filosofia, Reyna. Talvez tenha de usar aquele jogo sarraceno que vos descrevi naquela noite em que o vinho nos fez tontas em Carlisle.
Fizeram caminho até onde o exército aguardava. As senhoras refrearam os cavalos a cinquenta metros de distância.
Morvan avançou a passos largos. – Vejo que as encontrastes a todas bem, Ian.
– Sim. Acabou por se revelar uma muito pequena aventura, embora a vossa chegada tenha simplificado a última parte. De outra forma, poderia ter tido de matar Aymer, e todos nós gostaríamos de o evitar. – Ian procurava a ligeireza, mas sem sucesso. Os olhos faiscantes de Morvan não haviam arrefecido nem um pouco.
Morvan dispensou a irmã com um olhar afiado. – O vosso marido aguarda.
Christiana olhou lamentosa para Anna antes de se afastar a cavalo, mas Anna não a viu. Tinha o olhar cravado no do marido, desafiante.
Morvan avançou até estar ao lado dela. – Haveis feito por vos divertir?
– Estou completamente ilesa, e agradeço-vos perguntardes. Sem o mínimo desconforto.
A expressão dele respondeu, silenciosa, ainda não. – Imagino que tenhais deixado a fortaleza de Duncan de pé. Ou havei-la deitado por terra?
– Conseguimos escapar sem o fazer. Tanto pior.
Reyna revirou os olhos. De todos os estratagemas que conseguia imaginar, provocar um marido irritado não lhe pareceu o mais engenhoso.
– Voltamos imediatamente para Carlisle? – perguntou Anna. –
Espero que não planeeis aguardar até de manhã em Black Lyne, Morvan. A excitação deste périplo teve em mim o mais surpreendente dos efeitos, e dou por mim muito inquieta. Uma boa cavalgada parece-me o ideal.
Ele não se mexeu e a sua expressão não mudou, mas entrou-lhe uma luz diferente no olhar. – Vindes todas connosco, mas não regressamos a Carlisle. Vamos diretos a Harclow, onde nos espera trabalho que não pode ser adiado. – Pousou-lhe uma mão no joelho. – A longa cavalgada deve tratar da vossa inquietação.
A mão de Anna deslizou sobre a do marido. – Duvido.
Reyna e Ian afastaram os cavalos, na altura exata em que Morvan esticava os braços para puxar Anna para o seu beijo.
Perto do exército, Christiana estava enrolada nos braços de David, com os olhos erguidos para ele, falando-lhe sincera. O amor cru nos olhos azuis do conde sugeria que ele aceitaria o que quer que a mulher lhe dissesse.
A aproximação de Ian e Reyna desfez o abraço. Christiana voltou a montar e um escudeiro trouxe o cavalo a David.
– Morvan disse que vamos diretos para Harclow – anunciou Ian.
– Sim. Teríamos chegado mais cedo, mas o vosso homem chegou mesmo no meio de uma investida, ontem de manhã –
explicou David. – Estamos dentro da primeira muralha, Ian.
– Como…

– Usámos o nosso plano. Lamento não termos podido esperar por vós, mas a oportunidade era boa de mais para que a deixássemos escapar. Rebentou uma tempestade enorme, poucas horas antes do raiar do dia. A muralha quase não tinha homens, e nós estávamos quase a meio do lago quando eles repararam no que estava a acontecer. Os primeiros homens usaram os machados para atravessar a barreira de madeira que tapava o buraco feito pelas armas, enquanto os que estavam nas jangadas usavam os arcos para os protegerem. Uma vez no interior, batemo-nos para abrir caminho até ao portão antes de caírem demasiados dos nossos.
– Maccus render-se-á?
– Quer negociar, e enviou-nos condições. Morvan decidiu deixá-lo em banho-maria enquanto lidávamos com este outro problema.
Morvan e Anna juntaram-se a eles e todos cavalgaram para a cauda do exército. – David contou-vos? – perguntou Morvan.
– Sim. Disse que Maccus tem condições, porém.
– As predizíveis. A segurança dos cavaleiros e soldados e outros que tais. Recusei considerá-las até ele se render, e na sua maior parte ele irá colocá-las de lado e abrirá o portão.
Reyna seguia à distância de dois cavalos. Esticou-se na sua montada até conseguir vê-lo. – Morvan, poderei falar com Maccus Armstrong, depois de ele se render? Tenho algumas perguntas que me ocorreram durante esta viagem, e ele talvez possa responder-lhes.
Morvan olhou para o horizonte a oeste. – O vosso pedido é muito interessante, Reyna. Porque uma das condições de Maccus Armstrong não era de todo previsível, e eu pressenti que é o único ponto em que ele não cederá. – Volveu para ela o olhar. – O velho Maccus não se renderá até lhe entregarmos a viúva de Robert de Kelso.

CAPÍTULO 24


Reyna estava no adarve atrás do corpo couraçado de Ian. David também fazia parte do seu escudo humano, e Anna estava por perto, empunhando o seu arco, para responder a qualquer movimento que os ameaçasse vindo da muralha fronteira. Outros arqueiros estavam dispostos para o mesmo propósito, mas a sua amiga insistira em ficar a seu lado, e Morvan avisara que qualquer seta errante que chegasse à mulher significaria a morte de todos os homens do castelo.
Maccus exigira que Reyna fosse transferida para a sua custódia a bem da segurança dela, mas Morvan recusara. Reyna considerou tudo aquilo muito cavalheiresco, já que este único ponto era o que o impedia de resgatar a honra da família. Visto que Maccus mencionara a segurança dela, Morvan oferecera-se para deixá-lo ver por si próprio que ela estava presente e incólume, apesar de ninguém acreditar que a segurança de Reyna fosse de todo o objetivo de Maccus.
– Ali está ele – disse Ian. Reyna espreitou por cima do ombro dele para o portão ao longe. No cimo de uma das torres, apareceu um homem de cabelos brancos. – Eu afastar-me-ei, mas mantende-vos atrás do escudo de David e do meu.
Ele fê-lo, segurando o escudo ao lado do de David, para ambos formarem um muro de aço. Reyna encostou-se a eles e enfrentou o escrutínio distante do amigo e senhor de Robert. A cabeça branca olhou na direção dela e abateu-se silêncio sobre o castelo. Mais abaixo, Morvan Fitzwaryn estava sozinho no pátio exterior, protegido apenas pela sua armadura.
Maccus Armstrong ergueu o braço num gesto largo. Corpos começaram a deixar as ameias ao seu redor. Em breve, não se via um único soldado ou arqueiro Armstrong. Maccus aguardou até o último sair e depois a sua cabeça desapareceu.
Anna correu para as escadas da muralha. Reyna e os homens seguiram-na e reuniram-se à multidão expectante que se reunia no pátio. Lentamente, a grade subiu.
Ian manteve a mão em cima do ombro dela enquanto esperavam entre o círculo à volta de Morvan. A garganta de Reyna ardia-lhe, e ela sabia que estas emoções eram prova das suas lealdades divididas. Sentia júbilo por Christiana e Morvan, que há tanto tempo haviam sido expulsos do seu lar, mas também angústia pelo próprio Maccus, que fora amigo querido de Robert e instrumento de tudo o que havia sido bom na sua vida.
De súbito, apareceu uma figura solitária no pátio para lá do portão. Maccus avançava sem hesitação. A multidão afastou-se para lhe dar passagem e ele caminhou até Morvan, desembainhou silenciosamente a espada e entregou-lha.
Maccus era um homem robusto e a sua figura ainda impressionava, apesar dos seus mais de sessenta anos. Olhou Morvan de frente, estudando-o com perspicácia. – Tendes os olhos e a cor da vossa mãe, mas lutais como Hugh, isso é certo.
– Eu não o saberia. Ele morreu quando eu era ainda criança.
– É um facto, e ambos sabemos que foi um dos meus arqueiros que o atingiu. Mas é assim que a guerra se faz.
Morvan assentiu com a cabeça. – Sim. Melhor teria sido para vós, a longo prazo, que tivésseis matado também o filho.
– Não mato crianças. Além disso, vós éreis um rapaz promissor.
Teria sido um desperdício. – Olhou em redor e sorriu de pena. –
Embora, dadas as circunstâncias…
Algo parecido a um sorriso aligeirou a expressão de Morvan. –
Visto que fostes generoso na vitória, é o mínimo que posso fazer.
Qualquer homem que jure ficar a norte das fronteiras das nossas terras pode sair imediatamente para ser escoltado até Clivedale.
Vós ficareis aqui até ser pago o resgate que eu definirei.
– E Lady Reyna?
Morvan abanou a cabeça. – Preocupáveis-vos com a sua segurança. Estará em segurança connosco.
– Houve acusações sobre ela.
– Estamos cientes delas.
Reyna sentiu-se corar quando olhares na multidão dispararam na sua direção.
– Não são verdadeiras, essas histórias de ela matar Robert –
atirou Maccus.
– O vosso sobrinho Thomas pensa de outra forma.
– Thomas é um asno. Disparates, tudo. Qualquer pessoa que os conhecesse, a ele e a ela, sabia-o. Preparava-me para lhes pôr um fim quando me apanhastes aqui. Preocupou-me que Thomas fizesse alguma estupidez enquanto eu estava aqui preso. Em todo o caso, é melhor ficardes com ela até o meu resgate ser pago. Depois eu levo-a para Clivedale e ponho tudo em pratos limpos.
Reyna olhava aparvalhada para aquele anúncio público da sua inocência, vindo do homem que ela tivera a certeza de querer enviá-la para a morte.
– Ela não irá para Clivedale – esclareceu Morvan.
– Se não ma derdes, melhor será jurardes pela segurança dela, Fitzwaryn. Não deixarei que a julgueis e ouçais as pessoas tecer as tramas delas, recordando-se de coisas que nunca ouviram e assim.
Ela é uma Graham, sabeis disso, e há sentimentos antigos a respeito disso.
– O interesse de todos pela senhora tem-me deixado perplexo desde o início, Maccus. Qual é a razão do vosso?
– Devo-o a Robert.
– Um homem bom, Robert de Kelso. Mas o seu novo marido também é um homem bom. Ele jurará pela segurança dela, e se vós jurardes pela sua inocência, não sinto inclinação para a apresentar a julgamento.
Maccus parecia tão perplexo com esta declaração como Reyna havia ficado com a dele. Ele perscrutou a multidão até deparar com ela. Virando-se abruptamente, aproximou-se com passadas vigorosas e baixou os olhos, para em seguida estudar Ian. – Desejo falar convosco – disse com brusquidão.
Ian assentiu com a cabeça. – Era o que me parecia. E Reyna deseja falar convosco.
Aqui, alguns cavaleiros levaram Maccus. Morvan foi até ao portão interior e uma nova quietude caiu sobre a multidão.
Detendo-se, olhou para trás e chamou Anna e Christiana para perto de si.
Com a mulher e a irmã a seu lado, voltou a entrar em Harclow.
Reyna virou-se para Ian, enquanto a multidão entrava pelo portão. – Foi surpreendente, Maccus a defender-me daquela maneira.

– Foi?
– Talvez não – admitiu ela. Viu o seu olhar sério. – Há quanto tempo sabeis?
– Não sabia nada. Mas há algum tempo que me pergunto.
– Sois mais rápido do que eu. Passou uma vida inteira até começar a perguntar-me.
– Talvez devais ficar-vos pelas perguntas. Estais certa de que quereis saber de facto? Tudo?
– É o tudo que preciso de saber e penso que só Maccus pode dizer-me a verdade.
– Então falemos com ele, Reyna.
Depararam com Maccus num pequeno quarto. Dera a sua palavra e nenhum homem guardava a porta destrancada.
Estava perto da lareira, numa pose pensativa, mãos atrás das costas, de olhar fito em chamas que não existiam. Ao longo dos anos, Reyna viera a conhecê-lo bastante bem, mas ele sempre se mostrara um pouco distante no tratamento com ela. Era diferente com Robert, e ela ouvira muitas vezes o riso dos dois para lá da porta dos aposentos do marido.
Eles entraram e ele virou-se e examinou-a atentamente. – Não levastes muito tempo, rapariga. Robert mal arrefeceu.
– Bom, ela não teve grande escolha, Maccus. Ou era eu ou voltava para Duncan – disse Ian.
– Uma escolha dos diabos, isso é certo – resmoneou Maccus. –
Soube um pouco de vós dos cavaleiros que me trouxeram até aqui.
Tomastes Black Lyne, dizem eles, e agora está-vos destinado.
Nada mau para um verão de trabalho, Ian de Guilford. Contudo, se está feito, está feito. Eu planeara dá-la a outro homem, mas se ela estiver satisfeita, aceito-o. Um cavaleiro inglês, para mais. Diabos.

– Estou mais do que satisfeita – afirmou Reyna. – E ainda bem que assim é, pois não me teríeis encontrado disposta a ser dada a um qualquer homem por vossa vontade, caso este verão se tivesse desenrolado de forma diferente. Aos vinte e quatro anos, estou cansada de ser movida como uma peça de xadrez e mantida na ignorância.
Maccus mostrou surpresa e em seguida sorriu. – Robert sempre disse que vós tínheis mais espírito do que eu via. Bom, unistes a vossa sorte à destes ingleses e à deste homem, por isso espero que vos convenha. Se assim for, habituar-me-ei à ideia.
– Convir-me-á. Mas agora desejo saber algumas coisas. Sou uma mulher adulta, e tenho direito a saber, penso eu. – Escolheu cuidadosamente as palavras. – Aymer Graham disse que não sou verdadeiramente irmã dele. Não penso que ele se referisse apenas ao facto de sermos meios-irmãos, não pela forma como ele o disse.
– Ela ergueu os ombros e olhou Maccus nos olhos. – Quem era o meu pai?
Ele assumiu uma expressão consternada, parecendo envelhecer subitamente.
– Robert? – sussurrou ela.
– Robert! Diabos, rapariga, quem pensais que o homem era?
Robert nunca se casaria com a própria filha.
– Então quem? Foi mesmo Duncan?
– Duncan Graham devia rezar para conseguir fazer com uma mulher alguém do vosso calibre. Não, não foi Duncan. E nenhum cavaleiro dele, digam o que disserem da vossa mãe naquele lugar.
Foi Jamie. James, o meu rapaz, era vosso pai. Duncan sempre suspeitou mas nunca teve a certeza, mas a vossa mãe sabia, e Jamie também.

– James Armstrong? Eu sei que eles diziam que ele havia sido amante dela mais tarde, mas…
– Muito tempo, quase desde que ela veio para estas partes. Eles conheceram-se logo. Nessa altura, as famílias não eram inimigas. –
Ele virou a cara, o olhar procurando novamente a lareira vazia. –
Avisei-o que não o fizesse. Disse-lhe que de lá só viria mal. Bem, ele era jovem… contudo, podia ter continuado como estava, só que ela viu aonde iam parar as coisas para vós. Consigo própria ela não se importava, mas convosco… Jamie decidiu levar-vos às duas. Duncan descobriu, apanhou-os logo depois do baldio, perto do velho castelo. Enforcou o meu rapaz como um ladrão ali mesmo, e deixou-o lá. Robert encontrou o corpo dele.
Memórias da cripta avançaram subitamente sobre ela, insinuando-se na sua mente. Frio. Frio húmido e medo. Dedos a espicaçá-la e um rapaz a rir. Ficai aqui, ou os demónios apanham-vos. Vou lá fora ver.
– Nós retaliámos, depois eles também, e tudo se agravou, como acontece com estas coisas. Robert por vezes falava comigo, incitando-me a dar tréguas, falando-me do sofrimento do povo, mas eu não o ouvia. Olho por olho, diz a Bíblia, e eu aguardava que Aymer se fizesse homem e recebesse as esporas. Não mato crianças, mas quando ele crescesse, eu planeava acertar contas com Duncan da única forma que podiam finalmente ser acertadas.
Correndo. Correndo. Na direção das vozes e gritos que resvalavam pelo negrume e pelas pedras, seguindo atrás dos passos em retirada.
– Depois soube como se passavam as coisas convosco. Nunca vos vira, mas éreis filha de Jamie. E então comecei a dar ouvidos a Robert, e começámos a pensar em formas de vos tirar de lá.

Luz ali à frente. Mais devagar agora, aproximando-se cuidadosamente.
– Duncan concordou apenas por causa de Aymer. Ele sabia que eu aguardava que o rapaz crescesse. Começou a negociar com vontade quando Aymer fez dezoito anos. Fi-lo dar aquelas terras de dote porque ele não dava realmente uma filha. Ele concordou porque seria Robert quem ficaria na sua posse, e ele sabia que ele era honrado. E assim tivemos alguma paz e livrámo-vos dele…
A imagem dela própria, enforcada…
Reyna fitou Maccus, aturdida, imagens e emoções revoltas toldando-lhe a visão. – E a minha mãe? Onde está ela?
– Ele enfiou-a num convento.
– Não, não me parece. Robert ter-me-ia levado lá quando lhe pedi, se ele o houvesse feito.
Ela aproximou-se de Maccus. – Achais que uma criança esquece tais coisas para sempre? Se uma mão lhe tapou os olhos, que ela não vê? Que se o mundo ficar silencioso ela nunca recorda?
– Cerrou os punhos até as unhas lhe entrarem na carne. – Durante a minha vida inteira, a minha alma lembrou. Nestes últimos meses, quando alguém falava do meu julgamento, via-me a mim própria enforcada, inerte. Pensei que fosse uma premonição da minha própria morte, mas não o era. Não sou eu quem está enforcada naquele pesadelo. Ele matou-a, também, não foi? Não foi?
Ela só reparou que começara a gritar quando sentiu a presença de Ian atrás dela, e o braço dele à volta da sua cintura. – Tende calma, amor – disse ele suavemente.
O semblante de Maccus encheu-se de angústia. – Não soubemos de facto. Robert encontrou apenas Jamie, mas viu indícios de que talvez outra… E ela não está na tal abadia, não a viver, de qualquer forma, porque eu fui até lá ver se poderia ajudá-
la. Penso que Duncan se arrependeu no momento em que o fez.
Antigamente, podia-se punir dessa forma uma mulher infiel, mas agora é considerado crime. Até aos seus foi dito que ele a desterrou em algum lado.
As forças dela deixaram-na. Voltou-se para o amparo de Ian e ouviu-o vagamente sussurrar-lhe palavras de apoio ao ouvido.
– Sois filha de Jamie – disse Maccus. – Minha neta. Se alguma vez precisardes de mim, sabeis onde me encontrar.
Uma nota na voz dele penetrou a sua exaustão. Ela virou-se e viu a esperança fugidia nos olhos dele. Foi até ele e abraçou-o. –
Fizestes o melhor por mim, avô, e foi mais do que alguma vez pensastes.
As mãos dele ampararam-lhe a cabeça. – Bem, rapariga, é bom poder reconhecer-vos. – Pegou nas mãos dela, beijando-as. –
Tende a bondade de nos deixardes agora. Preciso de avisar este cavaleiro inglês para tomar conta de vós se não quiser defrontar o clã Armstrong inteiro.
Ela beijou-o, encaminhando-se depois para a porta. – Vou trazer-vos John, Ian, e encontrar um quarto onde possais retirar a armadura.
Maccus observou-a ir-se embora, ficando alguns momentos mais a olhar para a porta. Quando finalmente se virou para Ian, uma centelha matreira luzia-lhe no olhar. – Bom, Ian de Guilford, este casamento é uma surpresa interessante para mim, e esta conversa é ainda mais interessante para vós, aposto.
– Não é muito surpreendente. É raro os homens tratarem os do seu sangue da forma que Duncan a tratava, e eu ouvira a história da morte do vosso filho. Mas, dado que sois avô dela, é útil que aproveis o nosso casamento.
– Oh, aceito-o. Que escolha tenho eu? – Indicou o quarto com uma risada. – Mas se fosse a vós, não repetiria isto a ninguém.
Quando Fitzwaryn vos ofereceu Black Lyne, não contava que entrásseis numa aliança com os Armstrong pelo casamento, pois não?
– Não. Ainda assim, di-lo-ei a Morvan. Casado com uma Armstrong ou não, sou um homem dele. Ele pode gostar da ideia e baixar-vos o resgate. Quais são as hipóteses de tentardes atacar Harclow se primeiro tendes de tomar o castelo onde vive a vossa neta?
Maccus deu uma risada. – Quem sabe, daqui a vinte anos…
– Daqui a vinte anos vós estareis morto e Duncan estará morto e os Armstrong e os Fitzwaryn estarão todos os dias em cuidados por causa de Aymer Graham. Esta aliança poderá revelar-se muito útil no futuro. Até lá, Black Lyne continuará como era com Robert de Kelso, terras que separam três famílias, na posse de um homem fiel a uma e casado com a filha de outra. Funcionou antes.
Deixemos que volte a funcionar.
Maccus ponderou e assentiu com a cabeça. Depois olhou para a porta, e franziu o sobrolho. – Falando de Robert… onde achais que ela foi buscar aquela ideia absurda de que ele podia ser pai dela?
– Não é assim tão absurda, uma vez que ela ainda era virgem quando ele morreu.
– Não mo digais. Não admira… Bom, Robert nunca teve muitas aventuras com mulheres. Um bom amigo, mas não um daqueles que iam aos prostíbulos e lugares que tais quando éramos novos…
Maldição! As terras dotais. Se ele nunca…

– Muito poucos o sabem, e todos temos as nossas razões para guardar silêncio – aplacou Ian. – Eu gostaria que deixásseis as pessoas saber da vossa relação com Reyna. Ela não será julgada pela morte de Robert, mas muitos ainda suspeitam dela. Também é improvável que o verdadeiro assassino alguma vez enfrente a justiça. Se se souber que ela é vossa neta, terminarão os sussurros.
Ian despediu-se de Maccus e foi procurar Reyna. Encontrou-a, mais John, num quarto, despejando para a lareira a palha de um colchão.
– Há mais de um mês que não havia aqui mulheres ou criados –
resmungou Reyna. – A torre está nojenta, a palha pejada de insetos.
– Tirai-me esta armadura, John. Há dias que vivo dentro dela.
Reyna encontrara uma vassoura e começou a varrer, enquanto malha e placas retiniam no chão. Ian observava o seu pequeno corpo mexer-se nas suas lides, dobrando-se e esticando-se, enquanto ela resmungava acerca dos homens que viviam em condições daquelas. Tinha o vestido sujo por ter estado na cripta e o cabelo solto e emaranhado, mas ele achou que ela estava simplesmente maravilhosa.
– Morvan está à minha procura, John?
– Não. Organiza os soldados, e Sir David regateia provisões com os mercadores como um intendente. Os cavaleiros de Maccus tiveram de deixar cavalos e armaduras, e a nossa companhia ficou com alguns, por isso estão satisfeitos, embora Morvan planeie pagar-lhes e dispensá-los em breve. Não é preciso dois mil para manter um castelo depois de ele ser tomado.
Ian lembrou-se de que devia falar com certos membros da companhia para ver se quereriam ficar em Black Lyne, mas sem desviar nunca o olhar de Reyna. – Há criados por aí, John?
– Alguns, não muitos – disse o escudeiro enquanto inspecionava uma peça de metal que acabava de retirar. Ian desejou que ele se despachasse e retirasse certas outras partes que subitamente se haviam tornado muito desconfortáveis.
John olhou de soslaio para Reyna. – Ela quer que eu encontre palha limpa para o colchão. Como se eu fosse um comum…
– Penso que é uma excelente ideia. Mas primeiro ide buscar alguns homens e trazei um banho.
– Um banho! Vai haver um festim, e há um castelo inteiro a ser explorado, e vós quereis que eu…
– Um banho. E depois o colchão, John.
O semblante de John tornou-se ainda mais carrancudo, e subitamente desapareceu. Olhou de relance para Reyna e corou. –
Ah! – Os seus dedos começaram a tratar mais rapidamente das correias e fivelas. Acabou mesmo quando Reyna empurrava o pó e a terra para a lareira. – Vou tratar do banho agora – balbuciou, saindo a correr e fechando a porta.
Ian dirigiu-se a Reyna, pegou-lhe na vassoura e pô-la de lado. –
Como vos encontrais? Deve ser estranho passar a vida inteira a pensar que somos uma pessoa e saber de repente que somos outra.
Ela franziu os lábios, pensativa. Ele resistiu ao impulso de os mordiscar. – É estranho, mas de uma forma curiosa. Como uma sombra que recebesse luz. Com efeito, sinto-me inusitadamente livre. Duncan nunca me amou, nem eu a ele, e é bom saber a razão.
E a minha mãe… de certa forma também é bom sabê-lo. Não me sinto de todo uma pessoa diferente, sinto apenas que conheço melhor a pessoa que sempre fui. – Ela pousou-lhe uma mão no peito. O coração dele subiu-lhe à garganta. – Pensais que as pessoas me falarão dele se eu perguntar? De James?
– Sim – conseguiu dizer, inclinando-se para lhe beijar a fronte enrugada. Aquele pequeno toque tirou-o de si. Chamou-a para um abraço, beijando-lhe com lábios febris a face, o pescoço, o seio, e soube que não conseguia esperar pelo banho e pelo colchão. –
Não me saístes da cabeça em momento algum, Reyna, dia e noite.
– Puxou-a mais para si, erguendo o corpo dela contra o seu, querendo ter contacto com cada centímetro dela. – Sois a luz que ilumina as minhas sombras, amor, e a necessidade que sinto de vós surpreende-me todas as vezes.
Ela soltou um pequeno arquejo quando as mãos dele se moveram numa carícia demorada, sentida, e depois disto ele não conseguiria dizer mais nenhuma palavra nem que a sua vida dependesse disso. Um desejo delicioso espalhou-se dentro dele como uma inundação, afogando todo o pensamento até só existirem os sentidos, ávidos e vivos, estimulados pelo odor, pelos sons e pelas mãos dela.
Ele encostou-a à parede, levantando-lhe a saia, ansioso pela sensação húmida da pele dela, desesperado por lhe tocar o corpo mas logo arrasado pelo seu calor quando o fez, sabendo imediatamente que nem sequer por isso ele conseguiria esperar. Já sem pensar, pôs-lhe as pernas à volta das ancas e tomou-a ali, com a cabeça enterrada no seu seio, as mãos agarrando-lhe as nádegas, ouvindo a melodia dos seus gemidos suaves, grato pela sua paixão rápida, pois ele não teria conseguido comedimento algum.
Ela arqueou-se contra ele num pequeno grito ao senti-lo finalizar, deixando a cabeça cair no seu ombro. O domínio de si regressou e com ele a consciência do que acabava de fazer.
– Peço desculpa, Reyna – murmurou, apertando-a contra si, amaldiçoando-se, temendo que as pedras lhe tivessem magoado as costas. – Não era minha intenção… quando falei da minha necessidade de vós, não era… mas há muito tempo que…
A mão dela foi até aos lábios dele e silenciou-o. – Que mulher não ficaria lisonjeada? E se passou tanto tempo, sinto-me honrada.
Ele pousou-a e conseguiu compor-lhes as roupas sem a largar. –
Honrada? Deverei sentir-me honrado se me fordes fiel, Reyna? É o que espero. Se fosseis ter com outro homem, eu pensaria que o amáveis e que a melhor parte da minha vida tinha morrido.
– Sim, mas… pensei…
– Sei o que pensastes e tínheis bons motivos para tal. – A sua expressão surpresa, esperançosa, doeu-lhe no fundo da alma. –
Poderia ter satisfação com uma pega qualquer depois de vós?
Contentar-me com um prazer básico? É diferente connosco, tem sido desde o início. Até quando eu ajo como um rapaz desajeitado, como acabo de fazer. Não, mulher, vós sois minha e eu sou vosso, e não haverá outros enquanto o nosso amor viver.
– Mas então será para sempre, Ian – disse ela, como não houvesse como duvidar da eternidade do seu amor. Deus, mas ele rezava para que assim fosse. Ela não conhecia de facto o homem a quem tão inocentemente oferecia o seu amor. E parecia uma coisa tão frágil, esta preciosa euforia que saturava todo o seu ser. Ele não se atrevia a arriscar a sua destruição e, contudo, também o fazia querer abrir o coração com ela, para que a graça dela absorvesse o pior dos seus pecados. Não agora. Não ainda. Que possa durar.
– Sim – disse ele. – O Senhor das Mil Noites retirou-se para sempre do campo. Lá se vai a minha oportunidade de fama imortal.
Ficaram abraçados até o banho chegar. Ele levou-a consigo, embalando-a no seu colo enquanto a lavava, o seu olhar e beijos dando substância às memórias que o haviam sustido e atormentado.
Quando emergiram, ele deparou com o colchão fresco à porta do quarto e levou-a para a cama. Fez amor com ela da maneira que planeara, amando e exaltando cada parte dela, acariciando-a sem a largar muito depois de esgotada a paixão de ambos.
– Encontrareis contentamento aqui na Escócia, Ian? Será muito entediante depois da vida que tivestes – disse ela, brincando com o cabelo dele.
– Um tédio venturoso, espero. Nunca mais serei capaz de ver a guerra como um desporto. Além disso, iremos de vez em quando a Londres. Logo que possamos, com efeito, quando Christiana estiver em casa. Ela fez-me prometer levar-vos. – Fez uma pausa.
– Podeis ficar com ela enquanto eu regresso a Guilford. Penso voltar lá. – Virou-se de lado. – Não posso levar-vos comigo antes de visitar o meu irmão e a sua mulher, e ver como sou recebido.
– A mulher dele não gostaria de ver o irmão do marido?
– Certamente que não gostará, mas são os sentimentos do meu irmão que devo conhecer.
Ele parecia tão sério, a contemplar a possibilidade daquele encontro. Christiana dissera que ele não podia regressar a casa.
– O que se interpõe entre vós e o vosso irmão?
Ele voltou os olhos para ela, e o seu olhar acentuou-se com uma intensidade que parecia raiva. Voltei a fazê-lo, pensou ela, pesarosa, desviando o olhar.
A mão de Ian voltou-lhe o rosto novamente para si. – Podeis amar-me sem saber disso? Amar o homem que conheceis e esquecer o resto?

– O meu amor não começa numa parte de vós e acaba noutra, Ian. O que quer que seja que tenhais enterrado dentro de vós, continuo a amar-vos. Não faleis sobre isso se não escolherdes fazê-lo, mas não por medo de que mate o que sinto. Não há condições no meu amor. É vosso, tal como a minha amizade.
Os lábios dele apartaram-se como se fosse falar. Quando não o fez, ela sentiu desilusão por ele não confiar que ela compreendesse.
Bem, ela aceitaria quanto ele conseguisse dar-lhe, e se ele nunca falasse deste passado que escondia, então que assim fosse.
Ele pousou a cabeça no seio dela, fazendo daquele abraço mais dela do que dele, e ela percebeu que, ali aninhado, o conflito que o dominava se apaziguava. Ele não descansara muito na última semana e ela sabia que ele dormiria profundamente.
Antes de se deixar ir, ele beijou-lhe preguiçosamente a face. –
Sinto que me esqueci de algo. Ah! lembro-me agora. Cabia-me punir-vos pela vossa desobediência.
A consciência emergiu lentamente, mal transpondo aquela paz deliciosa. Chegaram-lhe sons subtis, e depois a constatação de que Reyna não estava a seu lado. Fez menção de procurar por ela, e descobriu que o seu braço não se movia.
Acordou sobressaltado e atirou um olhar fulminante para o braço recalcitrante. Uma corda prendia-o à cabeceira. Voltou-se, perplexo, e viu a outra mão atada do mesmo modo, e baixou o olhar para ver os tornozelos igualmente presos. Estava amarrado, nu, de braços e pernas estendidos, como um sacrifício humano.
Abanou todos os membros num desafio violento. A cama rangeu e bateu com a força.

– Estão bem presos – disse uma voz calma. – Não se soltarão.
Ele voltou-se, num estado de fúria. Reyna encontrava-se a vários passos da cama, envergando uma túnica demasiado grande e comprida que lhe flutuava dos ombros. Algo que desencantara num dos outros quartos, adivinhou.
– Desamarrai-me. Isto é muito inoportuno.
– Não, ainda não. Não durante bastante tempo, acho eu.
– Reyna…
– É apenas o que me haveis feito, Ian. Pensei que pudésseis gostar de o experimentar vós próprio. Como vos sentis, amor?
Indefeso? À minha mercê?
Era exatamente assim que se sentia, maldição. – Reyna, ordeno-vos que desamarreis estas cordas. Porque fizestes isto, para começar?
– Falastes em punir-me.
– Céus, Reyna, apenas gracejava.
– Fico aliviada em ouvi-lo, mas também um pouco desapontada.
Era um estratagema tão bom. Para vos tirar essa ideia.
– Não tendes necessidade de estratagema nenhum. Eu nunca…
– Ainda assim, subitamente o estratagema tem o seu próprio encanto. Talvez deva levá-lo até ao fim.
– Desatai estas cordas, raios, ou precisareis mesmo de um estratagema para me tirar ideias quando me libertar. – Voltou a puxar as cordas com força.
Ela sorriu docemente enquanto a cama saltava e gemia. – Tive horas para os fazer; não se soltarão. – Aproximou-se, suave, e percorreu-o com o olhar. – Realmente tendes um corpo magnífico.
– Passou-lhe um dedo lânguido pelo meio do peito.
Ele cessou a luta e olhou-a nos olhos. O seu corpo inteiro reagiu ao que lá viu. Sorriu o seu melhor sorriso. – Desamarrai as cordas e vinde deitar-vos comigo, amor.
Ela pegou na túnica flutuante e subiu para a cama, com os pés em torno das ancas dele. – Não me parece. Gosto de vós assim. –
Começou a desapertar os laços na frente da túnica. – Surpreende-me o excitante que é. Quero dizer, vós sois tão grande, e eu sou tão pequena.
Muitíssimo devagar, fez a veste deslizar-lhe pelos ombros e pelo corpo inteiro. O tecido agitou-se aos pés dela, roçando a pele dele como uma carícia quando ela o afastou com o pé. Ela baixou os olhos e sorriu. – Vós também pareceis gostar.
Ele gostava tanto que tinha o maxilar cerrado. Por baixo da túnica, ela não estava nua, antes tinha um justilho de pele, uma peça de rapaz um nada demasiado pequena para a sua forma de mulher.
Também amarrava na frente. Os lados estavam separados e apenas cobriam parte de seios que espreitavam através das tiras de couro.
O fundo mal lhe tapava as ancas. O efeito era inacreditavelmente erótico.
– Foi um estratagema maravilhoso, querida. Estou completamente desconcertado.
– Mas mal comecei, Ian. – Ela avançou, um pequeno pé de cada lado até ele a ver toda, e às sugestivas sombras por baixo da orla do justilho. – Retirou uma pena de faisão de dentro deste. –
Deveria ser de pavão, mas claro que aqui não as há. Tereis de imaginar.
Ela curvou-se e começou a acariciar-lhe o corpo. – Oh, pareceis gostar mesmo disto, Ian. – Dirigiu a pena para a prova evidente da excitação dele.
A deliciosa tortura provocou cada centímetro da sua pele.

Uma paixão furiosa fê-lo voltar a puxar violentamente pelas cordas. – Quero que me desamarreis agora.
– Céus, pareceis irritado. Vendo bem, penso que será melhor eu continuar. Parece que afinal preciso deste estratagema. – Baixou-se e ajoelhou-se entre os pés dele. – Além do mais, o que vós quereis não é assim tão importante por agora. Só o que eu quero.
– E o que é isso?
As mãos dela acariciaram-lhe as pernas, para baixo e para cima, enquanto ela o examinava. – Quero olhar para vós enquanto o prazer se avoluma. Quero ver o vosso corpo tremer e implorar o alívio. Quero ouvir os vossos gritos de anseio.
Ele não conseguia acreditar no desejo intenso que as palavras dela provocavam. Pensou que o seu corpo se ia partir ao meio.
Vendo bem, ela conseguira inverter incrivelmente a situação. Afinal, tratavam-se das palavras dele.
– Fazei o vosso pior, mulher, mas lembrai-vos que ides acabar por ter de me libertar, e aí eu planeio reequilibrar a balança.
– Espero deveras que o façais. Mas agora, deitai-vos e submetei-vos, Ian. Isto pode demorar um bocado. Só completei os dois primeiros passos. – Inclinou-se e começou a acariciá-lo com os lábios e a língua tal como a pena havia feito, subindo-lhe lentamente pelas pernas. Muito lentamente.
Ele contemplava aquela progressão vagarosa enquanto o seu corpo tanto bradava pela finalização como se comprazia com a demora. Os beijos e a língua dela chegaram-lhe aos joelhos. As suas nádegas erguidas espreitavam do justilho de couro. – E
quantos passos há?
– Seis – murmurou ela, subindo, subindo. Ia matá-lo. – Na verdade, oito, quando feito à maneira sarracena, mas David recusou-se a falar dos últimos dois a Christiana.
Ele mal a ouvia. A boca dela estava-lhe nas coxas agora e cada fibra dele aguardava e esperava e ansiava. Ela ergueu-se sobre um braço e o seu cabelo tapou-lhe a vista como uma cortina, mas ele retesou o corpo todo quando o dedo dela lhe subiu pelo falo com uma carícia e desenhou um círculo. – É isto que quereis, amor? –
perguntou ela. – É?
– Não.
– Ah, então talvez isto. – Atirou a perna por cima dele, e encavalitou-se nele, de quatro, virada para baixo, o seu odor de mulher a centímetros dele.
– Mexei-vos para trás – instruiu ele.
A respiração dela roçava nele, criando uma agonia de expectativa. – Ainda não. Dizei-me que mais quereis, Ian.
Os músculos dele contraíram-se numa rebelião final antes de sucumbirem, impotentes, ao prazer e ao controlo. Soprou um pedido estrangulado e os lábios dela substituíram-se aos dedos.
Então, toda a resistência e todo o pensamento se toldaram, exceto uma vaga curiosidade quanto ao que poderiam ser os últimos passos.

CAPÍTULO 25


As últimas flores enchiam o jardim de uma profusão de cores e cheiros. A beleza caótica inundava os sentidos de Ian. Ao seu lado no banco de pedra, estava um cesto. Duas rosas espreitavam sobre a orla, as suas pétalas destinadas a algum prato que Reyna planeava cozinhar para a refeição do meio-dia.
Interrogava-se quanto tempo ela estaria fora na peregrinação que fizera naquele dia. Concordara em deixá-la visitar as velhas ruínas sozinha, mas não sem apreensão. Compreendia a sua necessidade de confrontar as memórias enterradas nas pedras escuras do velho castelo, mas quisera ir com ela, não fosse o terror não ter sido vencido tão completamente quanto ela esperava.
Aguardaria que o sol se movesse um pouco mais antes de ir atrás dela. O mais certo era encontrarem-se quando ela estivesse a regressar, mas se ela tivesse sucumbido à escuridão, ele encontrá-
la-ia antes do pior.
Tentou novamente distrair-se da sua preocupação revendo os planos para Black Lyne. O confronto de Reyna com Aymer implicava que os Graham seriam para sempre uma lança apontada às fronteiras oeste destas terras. A ideia de enfrentar Aymer não o inquietava. Ansiava pelo dia em que se fizesse alguma justiça em prol de Reyna e Robert. Mas queria a sua família e a sua gente seguros quando chegasse aquela guerra privada, e tencionava melhorar as fortificações nos anos vindouros.
A sua família e a sua gente. Ainda uma frase estranha, mas agradável. Ele ansiava por aquela família. Os filhos que ele educaria para serem fortes e verdadeiros cavaleiros. As filhas… riu para si próprio. As filhas que provavelmente trancaria para as proteger de homens como Ian de Guilford.
Alisou a terra com a bota e meditou sobre a decisão que tomara na noite anterior. Era necessário construir uma segunda muralha para o castelo no sopé da colina.
Tentou visualizar a fortificação completa e como a afetaria a mudança de sítio do rio. Espetou o pau no chão. Desenhá-la-ia como David desenhara Harclow para ver se dava substância às imagens. O pau arranhou. Aqui o rio, ali a torre quadrada na sua colina circular. Aqui o baldio íngreme e mais abaixo o velho castelo.
Agora, para mover o rio…
Parou abruptamente de desenhar. Erguendo-se, deu um passo para colocar os pés por baixo dos círculos da velha fortaleza.
Olhou atentamente para o desenho do quadrado e círculos e linhas curvas.
Quase duplicava exatamente o desenho pequenino da tira de pergaminho que vira no livro de horas de Reyna.
Faltava alguma coisa, mas não conseguia lembrar-se do que era.
Saiu do jardim, matutando no porquê de alguém desenhar um mapa de Black Lyne e suas terras como se vistas pelos olhos de um pássaro.
Encontrou o pequeno livro de horas na prateleira do quarto principal. Folheando as páginas de devoções e imagens, encontrou a tira de pergaminho. Ainda lhe parecia uma coisa desenhada por um astrólogo.
Percebeu o que o seu mapa não incluíra. Duas linhas retas bissetavam o velho castelo, formando uma cruz.
Examinou o traço ténue e irregular das linhas. Um livro de horas era o tipo de livro que se tinha perto dos mortos, para se lerem orações conhecidas para os reconfortar. Se Robert de Kelso havia desenhado aquilo, o que era tão importante ao ponto de ele utilizar as suas últimas forças para o fazer?
Voltou a colocar o livro na prateleira, mas enfiou o pequeno mapa na manga. Era mais um mistério deixado pelo bom Robert, e de resolução tão improvável como os outros.
Saiu da torre e subiu até às ameias, depois deu a volta para sul, de onde conseguia ver o velho castelo à distância. Semicerrou os olhos e procurou em vão sinais do regresso de Reyna. Esperaria apenas mais um bocadinho e depois partiria em busca dela.
O seu olhar recaiu no cemitério, e na cruz que, ao centro, marcava a campa de Robert. Lembrou-se de estar aqui de pé, a sua fúria a avolumar-se ao imaginar Reyna com Edmund. Aqueles ciúmes pareceram-lhe distantes e infantis, e ele sabia que não voltaria a sentir nada semelhante. Não voltaria a duvidar dela dessa forma, ainda que cem Edmunds por ali passassem para discutir filosofia.
Nem voltaria a ressentir-se das memórias que ela tinha do homem enterrado por baixo daquela cruz. Robert havia-se tornado uma espécie de amigo. Não tinham eles chegado aqui ambos da mesma maneira, desligados da família e do passado, apenas para ficar e construir vidas novas? Ele não era nenhum Robert de Kelso, claro que não, mas, estranhamente, dava por si a seguir os passos daquele homem. Sorriu com a ironia, pois havia sido a semelhança mais óbvia de Edmund com Robert que alimentara o seu tormento naquela noite.
Fez menção de sair dali e depois estacou, suspenso no tempo.
Ideias dispersas acicatavam-lhe a mente em uníssono, setas de numerosas aljavas de memórias que de uma só vez vinham na sua direção. Cravou os olhos na cruz enquanto absorvia aquela investida, surpreso e irritado por não ter reparado em explicações tão óbvias.
Caminhou lentamente para as escadas, cogitando sobre o que acabava de lhe ocorrer. Devia ter razão, e pensava saber como se certificar. Encontraria a prova e depois diria a Reyna o que havia descoberto. Não era um grande mistério, mas ela ficaria contente por saber a verdade, especialmente neste dia, em que reunira toda a sua coragem para enfrentar o que chamava de «tudo aquilo».
Os netos de Alice brincavam no pátio e ele chamou-os. – Vinde comigo. Preciso de corpos pequenos e fortes, e vocês parecem-me o ideal.
Adam e Peter saltitaram ao seu lado até à torre. No salão pegou num archote e subiram até ao quarto principal.
Ian passou a tocha para a mão de Adam e curvou-se para empurrar as pedras que abriam a parede, revelando a escadaria secreta. Devia tê-lo feito há um mês, mas presumiu apenas… bem presumira apenas que era exatamente o que era. – Descei e ficai a dois degraus para nos alumiardes – ordenou ao portador do archote.
A luz desceu e desapareceu na parede, e Ian foi atrás, levando Peter. Virou o pequeno rapaz para o nicho. – Vou levantar-vos e quero que gatinheis lá para dentro e vejais o que lá está. Devo avisar-vos que pode haver aranhas enormes.

A ideia de arrostar aranhas enormes deixou Peter deliciado. Ian ergueu-o até ao início do nicho profundo e depois pegou na tocha para elevar a luz. O traseiro e as pernas de Peter começaram a afastar-se. Logo, só um pequeno pé estava ao alcance.
– O que está aí?
– Montes de teias de aranha e bichos gordos. Quem dera que me tivésseis deixado trazer um saco. Não me parece justo que o Adam perca a melhor parte.
– Além dos bichos, lá atrás, não há uma armadura e um pano?
– Sim.
– Conseguis trazer o pano sem o rasgar muito?
– Está a desfazer-se. E cheira muito mal também. Para que quereis isto?
– Dai-mo. – O traseiro moveu-se um nada para trás e uma mão segurando o pano esfarrapado esticou-se. Ian pegou-lhe, devolveu o archote a Adam, e depois ajudou Peter, muito sujo, a sair do nicho.
De volta ao quarto, os rapazes aguardavam expectantes para saber a natureza do tesouro escondido. Ian não teve coragem para os mandar embora, por isso estava com um de cada lado enquanto desembrulhava cuidadosamente o pano imundo e o abria sobre a cadeira.
– É só um manto de armadura – concluiu Adam, desapontado.
Ian limpou mentalmente o pó e o bolor da veste, e preencheu as partes que o tempo consumira. Este trapo explicava muita coisa.
Peter traçou as linhas cruzadas onde o tecido escuro se encontrava com a luz, no centro. – Parece parte de uma cruz. E isto podia ser vermelho, e isto branco. É o manto de um cruzado.
– Algo assim – avançou uma nova voz.

Ian virou-se e deparou com Andrew Armstrong parado perto da porta.
– Sem dúvida que algum Fitzwaryn o deixou ali há muito tempo
– acrescentou Andrew.
Os rapazes começaram a imaginar o guerreiro antigo, especulando sobre as batalhas que ele havia lutado contra os sarracenos.
Ian sorriu, contando que o cerco de Antioquia povoasse o pátio durante os dias seguintes. – Agora ide ver se a vossa avó ou algum moço precisa de vós para alguma tarefa – disse ele.
Saíram os dois a correr, enchendo o corredor de gritos. Ian e Andrew olhavam um para o outro em silêncio.
– Vós sabíeis – disse Ian.
– Eu era escudeiro dele, quando cá chegou. Não um escudeiro muito bom, mas ele compreendeu que não era a minha natureza, e atendeu a que os outros não troçassem muito de mim. Ambos sabíamos que eu nunca receberia as minhas esporas, por isso convenceu Maccus de que o meu valor residia noutro lado. Acabei por me tornar intendente cá e depois deram-lhe as terras e eu voltei a servi-lo.
– Como soubestes?
Andrew indicou o manto. – Encontrei-o por engano. Um dia, ainda eu era escudeiro dele, decidi limpar a armadura velha que ele tinha em algumas sacas, apesar de ele não ir usá-la novamente. Isso estava junto. Reconheci-o. Qualquer pessoa o teria reconhecido naquela altura. Perguntei-lhe por ele. Ele era um homem bom e eu jurei nunca falar no assunto. A essa altura já sabia alguma coisa acerca de segredos que alguns homens devem manter. Ele sabia os meus e eu sabia os dele, e nenhum de nós julgava.

Ian mexeu no pano vermelho e branco meio desfeito. – Cruz vermelha em fundo branco, o inverso das cores dos cruzados. O
manto de um templário. Escocês?
– Não, não me parece. Ele tinha estado no Oriente enquanto rapaz. Escocês de nascimento, estou certo, mas não viveu lá durante muitos anos e ainda era jovem quando regressou. – Olhou para onde os dedos de Ian repousavam. – O francês dele era impecável.
Ian fez alguns cálculos. – Um dos últimos a serem armados, diria. Talvez o último a morrer.
– Não há necessidade de ninguém saber.
– Ele está morto. Agora não há perigo.
– Ainda assim…
– Reyna precisa de saber. Outros que não ela, talvez não. Se ele escolheu manter segredo enquanto viveu, podemos deixá-lo enterrado com ele.
Andrew meneou a cabeça com gratidão. Fez menção de sair, mas deteve-se. – Nos primeiros anos dele aqui, tive sempre a impressão de que ele aguardava alguma coisa. Mantinha uma distância subtil dos outros e não fez amizades próximas. Nem mesmo com Maccus mostrava tudo.
– Pode ter sido apenas o próprio segredo. Esconder um passado tem o condão de isolar um homem – disse Ian, constatando que ele e Robert tinham ainda mais em comum do que ele pensara.
– Talvez. E, contudo, com o passar dos anos, ele mudou, como se soubesse que aquilo nunca viria, fosse o que fosse. Como se soubesse que estava aqui para ficar. – Encolheu os ombros e caminhou para a porta. – Não é um segredo assim tão mau. Não há pecado nele. Sempre pensei que ele devia dizer a Reyna, pelo menos. Uma vez disse que o faria, que ela precisaria de saber.
Ian dobrou o manto cuidadosamente. Guardou-o num dos seus próprios baús e depois foi até aos livros para investigar mais uma ponta de seta que lhe assomara à memória.
Pouco depois havia feito dois montes, um alto, com os Evangelhos e Aquino e Bernardo, o outro muito mais pequeno e pobre, com o herbário e alguns tratados seculares.
Voltou-se para sair, mas deteve-se. Pegando no livro de horas que estava em cima do monte grande, abriu-o e rasgou-lhe a primeira página, colocando-o depois no monte com o herbário.

CAPÍTULO 26


Reyna estava sentada no chão, encostada à pedra que ela e Ian haviam partilhado no dia em que ela escapou de Aymer, sentindo-lhe o calor nas costas, pensando que devia mesmo acabar com isto antes de Ian começar a preocupar-se e vir atrás dela.
Olhou novamente para o lintel que encimava a antiga entrada para as fundações da torre. Sim, acontecera aqui. Agora tinha a certeza. Parecia, porém, diferente, e não muito ameaçador, possivelmente porque olhava deste ângulo e não como alguém que vinha de lá do fundo, da escuridão.
As memórias e cenas tinham-lhe chegado com clareza, quase demasiada clareza, depois de ela saber o que procurava. Não numa sequência perfeita, mas como lampejos de imagens, sons e emoções.
Dois corpos, não um, mas ela mal vira o segundo depois do horror do primeiro. Duncan a praguejar e a gritar que alguém a levasse de lá. Braços fortes a agarrá-la, arrastando-a de volta à escuridão. Uma mão a tapar-lhe os olhos quando voltaram a trazê-
la para o exterior e desceram a colina com ela.
Esquecera imediatamente? Quando começara a acreditar que a mãe vivia naquela abadia? A sua infância inteira havia-se tornado uma mancha indistinta, a não ser durante aqueles pesadelos e terrores. Se não fosse isso, a sua vida poderia muito bem ter começado no dia em que Robert a encontrou na cripta.
Levantou-se e sacudiu o vestido. Já havia dito as suas orações por aquela pobre mulher cuja infelicidade terminara aqui. Tê-la-ia Duncan obrigado a ver o amante morrer primeiro? Os gritos distantes do seu pesadelo sugeriam que sim.
Aproximou-se do lintel. Um nó retorcia-se no seu estômago. A escuridão não a assustara durante as duas semanas após regressarem de Harclow, mas também a presença tranquilizadora de Ian havia sido quase uma constante. Isto seria diferente. E não se tratava de um corredor, de um quarto ou sequer da cripta, mas do lugar onde tudo começara.
Entrou nas velhas fundações e avançou decidida, com bravura, até a última luz desaparecer e se ver confrontada com a escuridão.
Tinha suor nas palmas das mãos e o coração a bater acelerado, mas o pavor desconcertante permaneceu ao largo. Tateando a parede de pedra, avançou até deparar com uma pequena curva e a entrada desaparecer atrás dela.
E aí parou aterrorizada.
Murmúrios vinham na sua direção, saídos das pedras, através da escuridão… Um riso sumido… A sua mão sobre a pedra sentia os sons tão seguramente quanto o seu espírito os ouvia ecoar silenciosamente ao seu redor.
Não, gritou para dentro, baixando a mão e andando às voltas para as confrontar. Acabou. Já chega!
Preparou-se para correr, mas o choque havia-a desorientado.
Esticou o braço às cegas, procurando a parede, mas a sua mão encontrava apenas escuridão. Aos tropeções, com o pânico a avolumar-se, debatia-se para respirar e rezou que fosse aquela a direção da entrada. De repente, estava estatelada no chão, com o rosto contra a pedra, o corpo dobrado numa posição estranha.
O impacto despertou-a. Tateou à sua volta e compreendeu que caíra num buraco da profundidade de meio homem. A mão bateu num monte de terra e uma pilha de pedras.
As pedras ainda lhe falavam. Não, não as pedras. O som não vinha delas. Os murmúrios sussurrantes estavam mais à frente, mais altos agora do que antes. Dentro dela, alívio. Ian devia ter chegado, trazendo alguém com ele.
Rastejou para fora do buraco e começou a dirigir-se para as vozes. Um pé embateu noutro monte de terra. Desviou-se para a esquerda até encontrar a parede e, encostando-se a ela, avançou lenta e cuidadosa.
Passado um pouco, viu um fiapo de luz. Não fazia sentido. Se ela regressava para a entrada, como podia não bater nos obstáculos que encontrara na vinda?
A passagem fazia uma pequena curva e, subitamente, a luz fez-se mais forte. Uma sombra enorme mexeu-se lá à frente e o susto deixou-a sem fôlego.
Outra sombra mexeu-se, adquirindo forma humana, e olhou diretamente para ela. Ficou tensa e arremessou um braço. –
Apanhai-a.
Pareceu uma ameaça, apesar de não fazer sentido. Ainda assim, ela deu meia-volta e começou a correr.
Passos pesados seguiam no seu encalço. Braços grandes agarraram-na, pegaram nela e levaram-na para a luz. Por fim, deu por si a ser sentada numa pedra grande entre dois archotes.
A passagem alargava-se mais aqui e, confusa, olhou ao seu redor. Lajes de pedra haviam sido movidas e covas não muito profundas haviam sido escavadas. No chão, cruzavam-se pegas de picaretas e pás. Contra uma parede repousavam cobertores enrolados e sacos de couro.
Ergueu os olhos para o peito largo e nu que pairava acima dela, e depois para o rosto preocupado, marcado, de Reginald.
– O que fazeis aqui, Reyna? Robert disse que vós temíeis o escuro – disse uma voz suave. Edmund colocou-se ao lado de Reginald. O archote converteu-lhe o cabelo num halo de fogo.
Edmund também estava despido até à cintura, e o suor reluzia-lhe no corpo.
– O que fazeis vós aqui? Porque escavais? Há quanto tempo aqui estais?
Edmund acomodou-se na pedra ao lado dela. – Tempo de mais.
Está a tornar-se incomodativo e aborrecido, mas devemos terminar em breve. – Ele olhou-a com curiosidade. – Talvez tenha sido bom terdes vindo. Robert tentou dizer-vos, no fim. Reginald ouviu-o falar uma noite, sem saber que vós lá não estáveis. Ouviu o suficiente antes de ele parar, por isso sabemos que está aqui.
Porque não nos dizeis o resto, Reyna, e poupais a todos mais trabalhos? Por esta altura, até estou disponível para partilhar.
– Falais por enigmas – disse ela exasperada, pondo-se em pé. –
É melhor que partais imediatamente, Edmund. Jurastes levar Reginald embora, e se Ian descobre…
Ele voltou a fazê-la sentar-se com um puxão brusco. – Ele está convosco? O vosso cavaleiro inglês também veio?
Ela não gostou do tom ameaçador. Os dedos dele enterraram-se no braço dela. – Não, ele não está aqui. – Mas viria. Ele não quisera que ela fizesse isto sozinha e não aguardaria muito tempo pelo seu regresso.
Edmund olhou para Reginald e indicou a passagem com a cabeça. Pegando num machado de guerra encostado a uma pedra, Reginald entrou desajeitadamente na escuridão.
– O que vai ele fazer? – perguntou Reyna.
– Irá certificar-se de que falais verdade, ou desembaraçar-se de Ian se não o houverdes feito. – Soltou-lhe o braço e desviou o olhar, os olhos semicerrando-se pensativamente, a boca um sulco vermelho. A luz flamante urdia-lhe sombras nas faces e nos olhos.
Ele parecia-lhe muito diferente da forma como o lembrava, e não era só pela luz.
– Para quê estes buracos?
Ele sorriu daquele seu jeito doce mas superior. – Um tesouro.
Por que outra razão viveriam dois homens semanas a fio nas entranhas desta torre? Robert pô-lo aqui. Escondeu-o quando regressou de França, e depois transferiu-o para aqui depois de vos desposar. Ele disse-vos, não disse? Quando estava doente, antes de morrer. Queria que o levásseis ao bispo, como ele planeara fazer. Reginald leu a carta que Robert enviou para Glasgow, compreendeis, por isso sabemos dessa parte.
– Oh, valham-nos todos os santos, Edmund. Não está aqui. Os livros estão onde sempre estiveram, no quarto principal. Era isso que ele queria dar ao bispo. São esses os objetos valiosos que ele trouxe de França.
A expressão estupefacta de Edmund manteve-se um instante, e depois o seu rosto transformou-se num sorriso trocista. – Livros?
Livros? Pensais que se trata daqueles livros? – Ele agarrou-lhe no rosto. – O que está enterrado aqui ultrapassa de longe aqueles poucos livros. É ouro, uma montanha dele, e joias. Riqueza que chegue para comprar centenas de livros.
Ele examinou-a, os olhos com uma expressão exaltada, os dedos apertando-lhe as faces. – Dizei-me o que ele disse, Reyna.
– Ele nunca me falou deste lugar, nem sequer quando estava a morrer. Mal estava consciente a maior parte dos dias.
As mãos dele deixaram-se cair. – Então já não tendes utilidade nenhuma para mim. – O seu tom de voz neutro arrepiou-lhe a pele do pescoço e fez-lhe o sangue pulsar freneticamente. – O que quer que vos tenha trazido aqui, foi obra do Diabo.
– O que dizeis? – perguntou ela, mas uma sensação mórbida espalhou-se dentro dela.
Ele ignorou-a. – E era um plano tão bom – murmurou. – Se Robert ao menos tivesse morrido durante o sono, como fazem a maioria dos velhos, e levado o segredo para a sepultura… se ele tivesse deixado as coisas como estavam, eu teria aguardado satisfeito. Depois vós teríeis vindo para norte e esta terra teria sido vossa e a seguir poderíamos ter procurado à nossa vontade. Mas ele tinha de escrever aquela maldita carta, e o vosso cavaleiro tinha de se casar convosco… bom, agora não há nada a fazer.
Ele pousou uma mão no joelho e deu-lhe pancadinhas na face com a outra. Aquela atitude tão descontraída provocou-lhe arrepios.
– Pensarei numa maneira que não vos faça sofrer, só que terá de parecer acidente ou obra de outra pessoa. Aymer, talvez. Sim, funcionaria. Reginald e eu vimos aquele cercozito ali de cima. Ainda bem que tínhamos saído para buscar mantimentos, mas também nenhum de vós entrou, de qualquer modo. Talvez possamos fazer crer que os Graham vos puniram por terdes casado com aquele inglês…

– Não – ribombou uma voz.
A figura ameaçadora de Reginald surgiu no limiar da luz. – Não lhe fareis mal. Dissestes que se eu fizesse isto ma daríeis.
Edmund pôs-se em pé com um suspiro exasperado. – Já vos expliquei isto mil vezes. Não podemos fazer como tínhamos pensado à partida, pois não? Não com Fitzwaryn a tomar posse das terras e ela casada com Ian.
– Mesmo assim. Jurei a Robert protegê-la.
– Raios, vós envenenastes o homem. Em comparação, repudiar o juramento que lhe fizestes é coisa menor.
Reyna ficou sem fôlego. Reginald? Não Aymer, mas o homem de confiança de Robert?
– Vós obrigastes-me – defendeu-se Reginald.
– Eu não vos obriguei a fazer nada. Vós queríei-la e ao ouro, e convencestes-vos de que ele estava velho e morreria de qualquer maneira. E depois nem sequer seguistes as minhas instruções com a poção corretamente, e todos ficaram a saber que ele tinha sido envenenado. – Edmund virou-se para Reyna como quem pede desculpa. – Teria sido rápido, juro-vos. Devia ter parecido uma morte natural. – Lançou um olhar cáustico ao irmão. – Pelo menos o idiota teve o tento de esconder o herbário quando as pessoas começaram a suspeitar de vós.
A indignação venceu o seu medo escabroso. – Vós fizestes isto?
– arrojou Reyna para Reginald. – Assassinastes o vosso suserano e amigo? Um homem que confiava em vós de forma absoluta?
– Ele era velho e teria morrido sem demora, de qualquer forma –
defendeu-se Reginald. – Mas vós não sois velha e não deixarei que isto aconteça.
Edmund atirou os braços para o alto. – Devemos deixá-la ir embora para dizer ao marido o que descobriu?
– Ela ficará connosco e…
– E ele pegará em cem homens e irá à procura dela. Quando o fizer, deixai-lo encontrá-la, mas incapaz de falar. Se quiserdes tomá-la antes de o fazermos, não me oporei.
Reginald hesitou, olhando para ela, e Reyna sentiu uma náusea.
Voltou a virar-se para o irmão, apertando mais o cabo do machado. – Não.
Um suspiro profundo saiu de Edmund. – Suponho que sei há algum tempo que poderíamos chegar a isto. – Afastou-se, para as sombras, e emergiu de espada na mão. – Pousai o machado, irmão.
Ide ao baldio onde os cavalos estão abrigados, pegai num e ide-vos. Estais fora disto agora e eu tratarei do que for preciso.
– Não posso.
– Não, da forma que vedes o mundo, suponho que não possais
– lamentou Edmund.
Investiu com a espada erguida.
Era um espaço pequeno, e o combate aproximou-se de Reyna enquanto eles arremetiam e golpeavam e contornavam as covas que se lhes atravessavam no caminho. Ela aninhou-se e encolheu-se contra a parede, forçando-se a ver para conseguir evitar alguma arma que rasasse demasiado perto. As pedras estavam tão frias quanto os seus membros, mas temia o fim da disputa, pois, quem quer que ganhasse, ela não estaria em segurança.
Por fim, a vontade de matar um irmão foi maior em Edmund do que em Reginald. Horrorizada, viu a espada lancinante derrubar o maior dos homens, a lâmina a perfurar o peito musculado. Em estado de choque, Reginald não tirou os olhos do irmão quando o seu corpo perdeu a força e caiu redondo no chão.

– Não tínheis de o matar – disse Reyna, quebrando o silêncio gélido que se seguiu.
– É culpa vossa. Por terdes vindo aqui. Devíeis ter ficado na cama do vosso cavaleiro hoje. Já convencera Reginald de que agora não podia ter-vos, não depois de ele ter ficado impaciente e ter arruinado a oportunidade de vos levar embora. Em Edimburgo haveria tempo para vos convencer da lógica disso, mas casada com Ian… Se não tivésseis vindo hoje… – Baixou os olhos para Reginald. – Sempre o avisei de que o seu sentido do dever seria a morte dele.
Assustou-a vê-lo tão desprovido de sentimento. Puxou os joelhos para si para fazer do corpo uma redoma. Edmund foi até ela e ela encolheu-se contra a parede.
Ele sorriu, condescendente. – Não, ainda não. Não aqui. Lá fora nas pedras grandes, penso eu, para o vosso cavaleiro vos encontrar facilmente. Não quero que venha cá dentro procurar.
– Talvez ele nem chegue a procurar. Ele foi forçado a casar-se comigo.
– Procurar-vos-á. Casamento forçado ou não, está bastante arrebatado com a sua noiva virgem.
Os olhos dela arregalaram-se.
Ele riu-se com a reação dela. – Mas claro que eu sabia, pequena Reyna.
– Robert disse-me que não havia dito a ninguém.
– Ele não me disse, mas eu sabia. Naquela primeira visita adivinhei o que ele era. Quem ele era. Soube com certeza depois de ver os livros.
– Os livros? Dissestes que procurais um tesouro, e não os livros.
Se vou morrer, pelo menos explicai-me isto. Que tesouro? Que ouro?
– Ouro templário – respondeu a voz de Ian.
O coração de Reyna saltou de alívio. Ian emergiu das sombras da passagem e a luz fosca iluminou-lhe a expressão dura do rosto.
– Ouro templário, do templo de Paris.
Edmund colocou-se no centro da galeria, entre duas covas, a mão branca no punho da espada.
– Tende cuidado, Ian. Ele acaba de matar Reginald, e também matou Robert.
– Não o matei. Reginald…
– Por instrução vossa, e tão seguramente como se lhe houvésseis enfiado um punhal no pescoço.
Ian desembainhou a espada. – Bom, Edmund, nunca lutei com um monge, mas a ideia não me incomoda nada. Sois um homem muito astuto se bastaram os livros para descobrirdes o segredo de Robert.
– Suspeitei muito antes. O tempo que passou no Oriente e em França. A sua aparição súbita aqui sem história prévia. Os livros apenas vieram confirmá-lo. Todos os precetores têm uma descrição das posses do templo de Paris que nunca foram reavidas.
O ouro e a biblioteca.
– Portanto, quando vistes aqueles tomos ricos marcados com a divisa J. M., não restaram dúvidas. A biblioteca de Jacques Molay, grão-mestre dos Templários. Porque não vos limitastes a confrontar Robert e reivindicar as posses para os Hospitalários?
Edmund riu. – E dá-las à minha ordem se ele as entregasse? Os monges de S. João já são ricos o bastante. Cabiam-me a mim.
Ficaram-me destinadas na noite em que os Templários as enviaram para aqui com aquele jovem cavaleiro.

– Eles não as mandaram para aqui para vós ou para os Hospitalários, e Robert sabia-o. Não é difícil compreender o que se passou há esses anos todos. Ele foi enviado para aguardar o fim da expurgação e que a ordem se renovasse. Mas isso nunca aconteceu, e Robert de Kelso deu por si com um tesouro que não pertencia a ninguém. Ele suspeitava que sabíeis quem ele era?
– Não, eu era cuidadoso, e ele também. Cuidadoso de mais, o que só me espicaçou a curiosidade. Nunca me falou dos Templários, ou fez perguntas. Todos os outros o fazem, tal como vós fizestes. Foi assim que soube que não havíeis adivinhado, apesar da virgindade da vossa mulher e da história vaga de Robert.
– Porque adivinharia eu? A ordem há muito que deixou de existir. Se não fosse a semelhança dele convosco, nunca me teria interrogado. – Ian indicou a passagem com um aceno. – Parti agora. Se fordes rápido, podeis estar no mar antes de eu falar dos vossos crimes ao bispo e ao vosso precetor. Dou-vos a oportunidade de saírdes daqui com vida.
A cabeça loura inclinou-se para trás e Edmund estudou Ian com olhos encobertos. O espírito de Reyna retraiu-se perante a frieza do mal que emanava do homem mais pequeno.
– Vós sabeis onde está – afirmou Edmund.
– Penso que estais enganado a respeito do ouro e que Robert nunca o teve. Ele teria considerado os livros tesouro suficiente para proteger – rebateu Ian.
– Mentis. Planeais ficar com ele para vós. Não espereis que vos deixe fazê-lo. Disse a Reyna que estou disposto a partilhar. Vamos depor as nossas espadas e tornar-nos parceiros nisto. Metade para cada.
Ian olhou para a figura inerte de Reginald. – Vejo como lidais com os vossos parceiros.
– O meu irmão precisou de alardear a honra dele muito depois de a ter abandonado, mas vós não vos iludis. Trabalharemos bem juntos, Ian. Com os outros pecados que temos na alma, o roubo deste ouro é pouca coisa.
As insinuações dele enfureceram Reyna. – Não presumais comparar-vos com ele, Edmund. Sois um assassino cruel, e…
– Não lhe dissestes – interrompeu Edmund, surpreendido. –
Pensastes escondê-la aqui e esperar que ela nunca descobrisse?
Os olhos de Ian queimavam. Edmund ostentava um sorriso irónico. – Devo dizer-lhe? Eu nunca trairia um parceiro, mas… –
deixou a oferta pairar no ar.
– Não há nada que possais dizer-me que faça alguma diferença
– disse Reyna, procurando a atenção de Ian, tentando dizer-lhe que, qualquer que fosse a decisão que tomasse a respeito de Edmund, não deveria dever-se a isto.
– Será que não? – Edmund ergueu uma sobrancelha na direção de Ian. – Será que não?
Ian não se mexeu nem falou, mas tinha os dentes cerrados como um homem que aguarda um soco. Olhava furiosamente para Edmund, mas o seu silêncio expressava a sua resposta.
Edmund abanou a cabeça. – Passastes do Céu para o Inferno na vossa escolha de marido, pequena Reyna. Soube deste por um dos seus próprios homens, um cavaleiro que temia que o meu interesse por vós fosse sensual e que tentou avisar-me explicando o quão perigoso o seu capitão podia ser. – Um maldoso sorriso de desprezo distorcia-lhe o rosto. – Condenais-me por causa de Robert e Reginald? Então o que direis a um homem que matou o próprio pai e se deitou com a própria mãe?

O choque deixou-a sem fôlego. Virou-se para Ian, à espera que o negasse. Uma expressão angustiada passou-lhe pelo rosto e ele recusou-se a devolver-lhe o olhar.
– Pelo menos eu cometi os meus pecados por um objetivo válido – prosseguiu Edmund.
– Um objetivo pelo qual valha a pena morrer, espero – disse Ian. – Deixai-nos, Reyna.
Edmund assumiu uma pose de combate. – Ela fica. Se ela se mexer, corto-a ao meio.
Os olhos de Ian lampejaram. – Então acabemos com isto, monge.
Reyna gritou ao vê-los partir para o confronto e os seus olhos seguiram cada golpe das espadas com um terror que a colava à pedra. A sua mente repetia, tranquilizadora, que Ian era forte e capaz, mas a determinação selvagem de Edmund redobrava-lhe o perigo.
Não acostumado à localização das covas, Ian estava em desvantagem, e tentava também manter a disputa longe da parede onde ela estava encolhida. Depois Edmund foi o primeiro a fazer sangue. Ian praguejou quando um fio vermelho lhe surgiu na túnica.
Ian libertou então todo o seu poder de guerreiro, o que transformou imediatamente o seu desempenho.
Ela nunca o vira lutar, nunca vira a destreza que lhe conferiam aqueles sentidos aguçados, mente incisiva e corpo ágil.
Metodicamente, implacavelmente, Ian parou cada golpe do febril Edmund. Quando Edmund tentou deslocar o combate para a parede dela, um golpe sibilante da arma de Ian roçou-lhe o antebraço, cortando-lhe rente um pedaço de pele. – Aproximai-vos dela e eu corto-vos em pedaços antes de morrerdes – rugiu Ian.

Ian teve várias oportunidades de acabar com o combate, mas recuou em todas elas, renunciando à investida que mataria o seu opositor. Por fim, dois golpes velozes incapacitaram o braço da espada de Edmund e uma perna. Edmund caiu ao lado de uma das covas, comprimindo os ferimentos com as mãos, com sangue a escorrer-lhe pelos dedos.
Ian estava de pé sobre ele, a luz do archote transformando-o num anjo vingador que defrontasse os condenados nas profundezas flamejantes do Inferno. A sua espada pairava alto, pronta a cortar a cabeça de Edmund.
Reyna olhava fixamente, com a pele húmida e pegajosa do pavor infernal que acabava de viver. Observou a decisão oscilar na expressão furiosa de Ian.
Se o fizerdes, fazei-o por Robert, e não pelo que ele me disse, incitou com o coração.
Rogando uma praga, Ian afastou a espada de Edmund com um pontapé e baixou a sua própria arma.
Dirigindo-se a ela, agarrou-lhe na beira da saia e rasgou-a. Com as tiras de pano, voltou para ligar os ferimentos de Edmund.
Depois, com corda que encontrou, atou as mãos e braços do homem.
Olhou para o monge surpreendido. – A tentação de vos matar e enterrar aqui é forte, mas deixarei o bispo tratar de vós. Não terei de explicar o desaparecimento de um hospitalário por estas bandas.
– Baixou-se e pegou numa pá. – E, sim, eu sei onde está. Que não terdes sido capaz de o encontrar seja o vosso inferno.
A boca de Reyna escancarou-se. Ian foi até ela e pegou-lhe no braço. – Cuidado com as covas – alertou ele enquanto a conduzia para a passagem.

– Como descobristes, Ian? – perguntou ela enquanto avançavam, incertos. – Robert, um templário. É demasiado fantástico.
– Tudo encaixa. Um voto de castidade que ele manteve em segredo. A chegada aqui cerca de cinco anos depois de Jacques Molay ser executado e poucos anos depois de a ordem ser dissolvida. Imagino que ele tenha ido primeiro para outros templos para se recolher, mas a ordem papal acabou por fechá-los a todos.
Por isso veio para cá e aguardou o momento de entregar o que havia guardado, mas chegou o dia em que ele soube que tal nunca aconteceria, e o tesouro tornou-se um fardo.
– Porque não limitar-se a dá-lo aos Hospitalários?
– O mais certo era Robert não querer que a Ordem de S. João ficasse com ele. Os Templários suspeitavam que os Hospitalários haviam encorajado a sua supressão para se enriquecerem a eles próprios.
Saíram para a luz do sol. Sob o lintel de pedra, Reyna pestanejou. Não estava ali nenhum fantasma pendurado.
– É verdade? Sabeis onde está?
Ele não olhou para ela. – Penso que sim. Descobriremos rapidamente se estou ou não certo. – Encostou a pá a uma pedra e tirou da manga uma tira de pergaminho. – Estava no vosso livro de horas. Penso que Robert teve alguns momentos de lucidez antes de morrer, e desenhou isto. Planeava dizer-vos o seu significado. Mas no dia em que tentou vós não estáveis lá, e Reginald ouviu em vossa vez.
Ela olhou para as linhas e círculos. – O que é?
– Um mapa. Não da forma como habitualmente se desenham, mas mais preciso à sua maneira. David fá-los assim. Vede, aqui está a colina onde nós estamos, e o quadrado é o castelo de Black Lyne. – Pegando no pedaço de pergaminho, deslocou-se até Black Lyne estar posicionado relativamente a eles como estava em relação à velha torre no mapa. – Ele precisaria de alguns marcos para mais tarde ele próprio saber onde estava. Esta pedra grande, talvez.
Parou em frente da pedra, caminhou até à beira da colina e espreitou para baixo. – Ali – apontou. – A depressão no fosso.
Estas linhas divisórias podem querer dizer que está onde elas se unem, nas ruínas, ou onde atravessam o círculo, no fosso. Edmund anulou a primeira possibilidade.
Pegando na pá, desceu a direito o declive da colina e Reyna apressou-se a ir atrás dele. Tendo verificado a sua posição relativamente à pedra e à torre, começou a cavar.
O buraco já ia bastante profundo quando a pá encontrou resistência. Ian desenterrou uma saca carcomida e içou-a. Pelos buracos, algo brilhava. Reyna ajudou-o a desatar o nó e a sua pulsação acelerou quando a saca se abriu. As suas mãos tremiam ao transferir para o chão o seu conteúdo.
Objetos. Objetos preciosos. Um cálice de outro cravado de pedras azuis, e dois pesados candelabros de ouro. Um tesouro, sem dúvida.
– Da capela – murmurou Ian.
O ouro refulgia à luz do sol. – Oh, Ian, são maravilhosos.
– Sim. E muito, muito valiosos. – Começou a caminhar de mãos nas ancas, pensativo. Ergueu os olhos para a torre, onde Edmund jazia amarrado. – Infernos!
– Ninguém sabe que o tesouro está aqui além dele e de nós –
disse ela. – Mas se quereis ficar com ele, tereis de lhe dar alguma coisa, ou ele dirá que veio aqui para o reivindicar para a sua ordem e que vós forjastes a história do assassinato de Robert.
– Não reivindicará nada se estiver morto.
– Não o matastes no calor do combate. Voltaríeis para o fazer agora?
– Porque não? – respondeu rispidamente. – Ouvistes o que ele disse. Um homem com os meus pecados é capaz de tudo.
Especialmente por um prémio como este.
Ele olhou para ela pela primeira vez depois de saírem da torre.
Os seus olhos gritavam-lhe um desafio, que ela reagisse e questionasse. Que condenasse.
– Não acredito nele – disse ela.
– Devíeis. É a verdade.
– Há muito que não sei a vosso respeito, Ian, mas o homem que amo nunca fez tais coisas, e não foi como ele disse.
– Andou perto.
Ela prometera não perguntar sobre o passado dele. Se ele não tivesse levantado o assunto, ela teria fingido que Edmund nunca tinha dito nada e confiado no amor pelo Ian que agora conhecia.
Mas por baixo da dureza daquele desafio, a sua expressão compreendia uma dor que lhe dilacerava o coração.
– Quão perto?
Ele aproximou-se de um candelabro e deu-lhe um pontapé furioso, que o fez voar e deslizar pelo fosso. Ela foi calmamente apanhá-lo. Quando regressou, ele estava com o cálice aos pés, com amarga resignação estampada no rosto.
– Vou dizer-vos, mas não gostareis do que ides ouvir.
– Começais tão cedo a duvidar do meu amor, Ian? Tendes a certeza daquilo que pensarei?

– Tenho, mas dir-vos-ei de qualquer forma, porque não foi como ele disse, e quando vos perder, pelo menos que seja pela verdade.
Olhou na direção do baldio, como se organizasse as memórias e as forçasse a vir aos lábios. – Disse-vos uma vez que parti para ser escudeiro de um lorde vizinho. Ele tinha uma filha jovem. Ela tinha cabelo como fogo e pele como neve, e eu venerava-a. Durante todos aqueles anos raramente nos falámos e nunca estivemos sós, porque a mantinham perto das mulheres, e protegida. Por isso, nunca cheguei a conhecê-la, mas, ainda assim, amava-a com uma dor ardente. Quando fiquei mais velho, tomava outras, criadas e rameiras, e fingia que estava com ela, e depois odiava-me a mim próprio por a ter desonrado na minha mente. Chegada a altura em que contava ganhar as minhas esporas, ela já estava em idade de casar, mas eu sabia que era impossível. Eu era um filho mais novo, e ela não era para mim.
Ele não dissera o nome dela, pensou Reyna. Nem o faria.
– Naquele último ano, o meu pai e o meu irmão mais velho passaram de visita quando regressavam de Windsor. As propriedades não ficavam muito longe uma da outra, mas até então eles não tinham visto que ela se tornara tão bela. A minha mãe estava morta, e o meu pai ainda não tinha quarenta anos. Ele propôs desposá-la logo na primeira noite.
– Oh, Ian…
– Sim, um momento de puro inferno, quando soube. A família dela estava encantada com o casamento. Eu engoli-o, mas a ideia de ter a rapariga que amava como mãe, a ideia de ela partilhar a cama do meu pai, fazia-me náuseas.
– Mas não fizestes nada de mal. Não podemos ser culpabilizados por aquilo que o nosso coração sente.
– Credo, mas sois tão inocente, Reyna. Se isto fosse tudo… –
As palavras dele quase não se ouviam. – O meu pai ficou. O
noivado foi planeado para dali a uma semana. Fingi estar contente por ele, mas foi angustiante. Em primeiro lugar, porque a rapariga que nunca me falara de repente passou a falar-me muito. Os olhos que raramente reparavam em mim pareciam encontrar-se sempre com os meus. Por fim, um dia, quando os nossos pais estavam fora numa falcoaria, ela enviou uma mensagem a pedir que nos encontrássemos no jardim por trás da torre.
– Vós fostes?
– Mesmo com a minha cabeça a dizer-me para me afastar, as minhas pernas levaram-me até lá. Não sei o que esperava, mas sei pelo que rezava secretamente o meu coração, e aquelas orações foram respondidas, mas pelo Diabo. Ela beijou-me, e depois disso perdi a razão.
Ele olhou para ela, e o olhar disse tudo. Ela não teve de perguntar o que tinha acontecido.
– Encontraram-nos lá. Quando os homens voltaram o salão estava num tumulto e a mãe dela a chorar. A minha amada tão assustada que não conseguia falar. – Baixou as pálpebras. –
Mesmo quando fui acusado de violação, ela não disse uma palavra.
– Como pôde ela ficar em silêncio enquanto vós éreis acusado?
Não me importa o quão assustada ela estava, devia ter falado. Um choque tão grande não faz sentido.
– Irá fazer. – Infiltrou-se amargura na sua voz. – O meu pai tinha um temperamento intempestivo, e perdeu as estribeiras quando ouviu. Ali mesmo, em frente da casa inteira, desafiou-me. Eu invoquei a inocência que podia, mas uma hora depois de ter aquela rapariga nos braços dei por mim no pátio com uma espada na mão, defrontando o meu próprio pai.
Um peso terrível alojou-se no fundo do estômago de Reyna. Ela adivinhou o fim da história e quase lhe disse que se calasse para o poupar à dor de a contar.
– Ela assistiu. Todos assistiram. Nunca sentira tanto medo e tanta confusão na minha vida. Era o meu pai, e ele veio para mim cheio de fúria e eu tive a certeza de que ia morrer. Mas eu era jovem e capaz, e estávamos mais equilibrados do que eu esperava.
Eu não sei durante quanto tempo lutámos, mas por fim ele recuou por um momento. Nessa pausa, eu olhei para ela e, na expressão dela, vi que havia planeado tudo, que ela não queria o casamento, que procurava vê-lo mutilado ou morto para se ver livre dele, e que me havia usado para esse fim.
– Porquê vós? Porque não um dos outros que lá estavam?
– Talvez ela soubesse que ele seria mais precipitado com o seu próprio sangue. Talvez tenha ouvido que, entre os escudeiros, o meu braço era o melhor. O mais certo é ela saber reconhecer um idiota. Virei-me e vi o meu pai também a olhar para ela. Quando os olhos dele voltaram a encontrar-se com os meus, eu soube que ele tinha visto o mesmo que eu. E também vi que ambos fôramos idiotas, que ele também se apaixonara por ela. Aí, algo o abandonou. Quase se viu aquilo voar para fora dele. Eu tentei que ele terminasse com o combate, mas ele não o fez. Talvez fosse orgulho, mas eu penso que era desespero. Eu esperava conseguir acabar num empate. Mas estávamos os dois a ficar cansados, e os nossos golpes descuidados. A guarda dele baixou, e só lhe faltou pôr-se à frente da minha lâmina.
O maxilar dele contraiu-se e semicerrou os olhos. Reyna ansiava por dizer algo que o apaziguasse e aliviasse a culpa que lhe estava inscrita no rosto.
– Ele não morreu imediatamente. Eu fiquei com ele, e nunca chegámos a falar dela. Perdoou-me e fez o meu irmão fazer o mesmo, e chamou o meu amo para me armar cavaleiro na presença dele. Depois deu-me algum dinheiro e disse-me para ir para a terra da minha mãe, para longe dos sussurros que já diziam que eu havia desejado a minha nova mãe e que matara o meu pai para a ter.
– Mas não foi assim. Ela ainda não estava ligada a ele.
– De somenos importância, Reyna.
– De muita importância. Nunca teríeis… se se tivesse celebrado o noivado…
Ele virou para ela uns olhos consumidos. – Estais assim tão certa? Eu confesso que não estou.
– Eu estou. Nem vós procurastes matar o vosso pai. Como podem as pessoas dizer tais disparates?
– As pessoas só sabem o que viram. Esta história poderá parecer muito diferente vinda de outra boca – disse rispidamente, mas a raiva não se dirigia a ela. – Primeiro tentei desculpá-la. Tentei convencer-me de que ela procurara a minha morte, não a dele.
Talvez ela não fosse donzela, e tê-la violado serviria de explicação para isso. Foi-me impossível aceitar que alguém tão jovem pudesse ser tão malévolo. Mas quando estava em Londres, ouvi dizer que ela se casara com o meu irmão. O velho lorde ou o secundogénito não lhe serviam, mas o jovem herdeiro… era diferente. Penso que ela o quis desde o início, e que ficou desconsolada ao saber que a oferta havia sido não do filho mas do pai. Por isso precisava do meu pai morto antes dos esponsais, ou o verdadeiro prémio estaria para sempre fora de alcance. Um filho não pode casar-se com a viúva do pai que morreu.
– O vosso irmão sabe?
– Durante um tempo perguntei-me se não teria sido cúmplice, mas não consigo imaginá-lo nessa situação. Mas quando for a Guilford descobrirei. E fá-la-ei perceber que sei que é tão responsável pela morte do meu pai quanto eu.
– Vós, na verdade, não…
– Fi-lo, Reyna. Há muito que aceitei essa verdade. Agradeço que tenteis defender-me, porém. Pensei que me condenásseis.
Ele parecia cansado, como se contar a história lhe tivesse sugado a maior parte da força. Ela abraçou-o e desejou que ele conseguisse sentir o seu amor. – Como podia condenar-vos?
Fostes acusado injustamente. Deveríeis ter esticado o pescoço para a espada do vosso pai?
– Ele deu-me vida. A maioria diria que é seu direito tirar-ma.
Não fui isento de culpa, e parricídio é imperdoável em qualquer situação.
– Nada é imperdoável – afirmou ela. – No entanto, parece-me que nunca vos perdoastes. Penso que acreditastes que o que fizestes havia revelado e determinado a vossa natureza e deixastes a vossa alma ser arrastada sem refletir para onde ia. Mas em verdade, a vossa natureza é afável e boa, Ian. Nunca poderia amar-vos se não o intuísse.
– Não, meu amor, nem tão boa assim. Vós fazeis-me melhor do que sou. – Ele entregou-se ao seu abraço e encostou o rosto ao pescoço dela, como se se socorresse no seu calor. – Eu devia ter mostrado mais força, e calculado o que ela queria de mim. Foi uma lição dura, mas tenho constatado que a aprendi bem de mais.
Por fim, apartou-se dela e pegou no cálice. – Há mais, penso eu.

Há quatro linhas que atravessam o círculo do fosso. Isto é apenas uma parte. Pensei que fossem algumas centenas de libras de ouro.
Nada como isto.
– Não me importa o que decidirdes fazer. Não pertence a ninguém.
– Se entregar Edmund à Igreja, provavelmente nunca será feita justiça. Os tribunais eclesiásticos tomam conta dos seus, e nunca executam os seus clérigos. Ele alegará autodefesa para com o irmão e não há provas com relação a Robert. Engendrará uma história na qual eles ficarão satisfeitos por acreditar, em vez de condenar um hospitalário.
– Mais fácil é, então, dar-lhe algum ouro e expulsá-lo daqui. Ele sairá da Escócia se vós o exigirdes.
– Foi a vós que ele prejudicou, Reyna. O vosso marido e amigo que ele matou. A vossa vida que ele colocou em perigo. Este ouro far-vos-á sentir compensada?
Faria? O metal amarelo reluzia, oferecendo-se para aplacar toda a dor com luxo inimaginável. Urdia nela, insidioso, a sua sedutora magia, e desculpas e racionalizações pareciam literalmente vogar na sua direção com o seu brilho. Se tinha este efeito nela, o que faria a Ian, que durante anos perseguira saques e pilhagens?
– Vós decidis, Ian. Eu não posso. Vós descobriste-lo.
Ele passou-lhe o dedo pela face e ergueu-lhe o queixo. –
Asseguraria o futuro dos nossos filhos.
– Sim, é verdade. Tendes razão.
– Tornar este castelo humilde forte e seguro, e comprar uma casa em York ou até Londres.
– Robert teria querido que ficássemos em segurança.
Ele fitou o ouro que segurava. – Então porque sinto que seria um roubo pior do que qualquer resgate que pedi a alguma cidade para pagar? Ficar com ele, especialmente se implicar dar algum ao seu assassino: não há justiça nenhuma para Robert e não era o que ele planeou para este tesouro.
Ela sentiu a batalha que ia dentro dele. Ao seu amor, não importava o caminho que ele escolhesse, mas perguntou-se se lhe importaria a ele de formas que ela só poderia adivinhar. – Então, o que fazemos, Ian?
Passou o polegar por uma pedra azul. – Safiras, acho eu. –
Suspirou, abanou a cabeça, e sorriu, pesaroso. – Daqui a dez anos, se passardes dificuldades, vou amaldiçoar-me a mim próprio.
Pequenas asas de alegria bateram-lhe no peito. – Aqui haverá que me baste. Haverá que vos baste a vós?
Ele virou-se para ela e olhou-a nos olhos. O ouro que tinha na mão deixara de existir. – Amo-vos de todo o coração, Reyna.
Haverá sempre que me baste se vós fordes minha.
Voltou a colocar o cálice e os candelabros no saco. –
Levaremos isto para o castelo. Mais tarde, depois de mandar alguns homens buscar Edmund, voltarei para desenterrar o resto.
Enviaremos Edmund e o ouro e os livros, para Glasgow. Diremos ao bispo que os livros são para a escola de alguma abadia, mas que o ouro deve ser usado para ajudar os pobres e os deslocados pela guerra. Se faço este sacrifício, quero expiar alguns dos meus pecados passados.
Subiram a colina até aos cavalos. – Sentirei mais falta dos livros do que do ouro – admitiu Reyna.
– Enviaremos apenas os que têm as iniciais de Jacques Molay.
Assim não são todos.
Ela fez má cara. – É a filosofia toda.

– Sabei-la de cor. Podeis passar os invernos a explicar-ma toda, e eu argumentarei contra a sua lógica. O debate deve manter-vos a memória fresca.
– O meu livro de horas terá de ir. Também o sei de cor, mas irei sentir-lhe a falta.
– Esse fica, acho eu.
– Tem as iniciais, tenho a certeza.
– Eu verifiquei antes de vir para aqui. Não vi iniciais nenhumas.
– Na primeira página…
– Penso que não. – Ergueu-a para a sela.
– Ian – disse ela, olhando para ele desconfiada.
Ele olhou para ela com um sorriso.
Santo Deus, que sorriso.
– Existe algo como ser-se demasiado bom, Reyna.

CAPÍTULO 27


– Terei saudades disto – disse Reyna preguiçosamente. Alongou o corpo contra o de Ian, e as flores que ele lhe entrelaçara no cabelo caíram-lhe pelo rosto e o peito. O sol de fim de verão cintilava-lhe na pele com calor. Ela deixou-se imergir na sensação, sabendo que podiam passar-se meses até voltarem a estar assim deitados perto do rio. Em alguns dias já se sentia um friozinho de inverno, e na água que as noites arrefeceram Ian e ela só se atreveram a um banho breve.
– O inverno tem os seus próprios prazeres – avançou Ian. –
Peles à lareira. Vinho quente. Noites muito longas.
– E poderei vestir os meus vestidos novos. Foi gentil da parte de David trazer o tecido de Carlisle.
– São adoráveis. Embora neste instante não estivesse a imaginar-vos à lareira dentro de um deles.
Ela deu uma risadinha e içou-se para cima do peito dele. –
Ainda bem que vos livrastes daqueles livros sobre filosofia, Ian.
Lembro-me de haver secções que alertavam para o prazer carnal.
Nunca prestei muita atenção a essas partes, visto não ter tido experiência nessas coisas, mas agora… e aqueles penitenciais!
Sabíeis que um deles proíbe a cópula às segundas e quintas, além dos domingos, para não mencionar o Advento e a Quaresma e dúzias de feriados sagrados?
– Sou afortunado por nunca vos terdes deixado levar por uma lógica tão desajustada.
– Bem, nunca fui muito lógica no que vos diz respeito. Tendes certo talento para fazer da filosofia a última coisa na cabeça de uma mulher.
Ele puxou-a para si, deitando-a a par dele, os dedos dos pés dela nas suas canelas e os seios apertados contra o calor firme do seu peito. Com beijos e carícias, atraiu-a de volta para o sonho sensual do qual recentemente tinham saído.
Abruptamente, as suas mãos pararam e a sua expressão tornou-se alerta e concentrada. – Um cavalo. Vem aí alguém. – Afastou-a e ajoelhou-se. – Cobri-vos, Reyna. Temos uma visita.
Ela acabava de enfiar a camisa quando o cavalo se acercou.
Esticou-a para baixo e sentiu-se corar ao ver o rosto sorridente do conde de Senlis.
– Incomodo – disse David enquanto Ian enfiava as velhas calças à camponês. – Peço desculpa, Reyna. No castelo disseram que encontraria Ian aqui, e estou só de passagem.
– Sou eu quem devia pedir-vos desculpa, mas é bom ver-vos. E
é um sítio estranho para se estar de passagem, David, visto que estamos a caminho de sítio nenhum – disse Ian.
David desmontou e Ian lançou um olhar muito claro para o vestido de Reyna. Ela curvou-se e agarrou-o.
David fez um gesto descontraído. – Não vos incomodeis, senhora. Ficarei apenas um segundo, e depois podem voltar os dois ao vosso entretenimento. – Sentou-se na erva ao lado de Ian. –
Estou a caminho de Harclow e depois Carlisle. Christiana e eu partiremos em breve de barco para Londres, e de lá para França.

Quando regressava de Glasgow, fiz um desvio para ver Duncan.
Venho agora de lá. Foi uma visita agradável. Informei-o do estado das coisas entre Morvan e os Armstrong, e disse algumas palavras sobre Aymer ter raptado as senhoras. Duncan não sabia de nada e eu achei que as vigas do salão iam cair com tanta fúria que mostrou ao filho. – Sorriu. – Não penso que tenhais problemas daqueles lados durante alguns anos, enquanto Duncan viver.
– Fostes até lá de Glasgow? Está feito, então? – inquiriu Reyna.
– Muito feito. O bispo recebeu os livros e o ouro, tendo aceitado de bom grado as vossas indicações quanto ao seu uso.
Parece ser um homem bom e penso que nenhum daquele ouro acabará a pagar comodidades privadas, o que é sempre um perigo quando se trata de bispos.
Ela sabia que se a intuição dele não tivesse sido aquela, ele poderia não ter sequer entregado o tesouro àquele bispo em particular. Nem ela nem Ian se teriam oposto. Ao confiar-lhe aquele dever, tinham aceitado o seu parecer.
– E Edmund? – perguntou Ian.
– Ah! Bom, aí houve alguma dificuldade. Edmund está morto. –
Olhou diretamente para Ian, com uma expressão inescrutável. –
Aconteceu quando seguíamos para norte. Por causa do ouro, tomámos percursos menos utilizados, caminhos altos, no geral.
Num troço particularmente perigoso, o cavalo dele perdeu o pé.
Foi uma valente queda. – Fez uma pausa. – Uma tragédia. Dadas as circunstâncias, contudo, não me pareceu sequer importante mencionar nenhum dos seus crimes ao bispo, por isso a história toda de Robert e dos Templários e da origem do ouro nunca foi explicada. Penso que o bispo ficará grato por isso. Teria sido difícil derrotar os Hospitalários na reivindicação daqueles bens se Edmund tivesse decidido contar tudo e negociar a sua vida.
Reyna olhou para Ian, que estudava cuidadosamente o convidado deles.
– Devemos agradecer-vos a vossa ajuda nisto, David – disse Ian. – Atrasou o vosso regresso a Londres em várias semanas e fez-vos percorrer todo o Sul da Escócia.
– Os mercadores estão acostumados a viajar. – Voltou-se para Reyna. – Christiana encarregou-me de vos lembrar que nós regressamos a Londres na primavera. Espera ver-vos lá. E Lady Anna insistiu que eu acrescentasse que, a não ser que algum parto estivesse iminente, não devíeis deixar Ian impedir-vos de ir se estivésseis de esperanças.
Ian resmungou. – Aquela mulher. Juro que é propósito dela subjugar todos os homens.
– Não. Apenas sabe a força e o valor que tem, tal como a vossa ninfa sabe do dela. Duvido que Reyna precise de alguma instrução de Anna.
Reyna corou ao ouvir este cumprimento em particular. David levantou-se e sacudiu a roupa. – Devo ir. Morvan e Anna ficarão em Harclow pelo menos mais um mês antes de rumarem à Bretanha. Estou certo de que vos visitará antes de ir embora.
Deixará um dos cavaleiros como senescal, mas contará convosco para manter tudo debaixo de olho.
Eles acompanharam-no até ao cavalo e ele abriu uma das bolsas da sela. – Isto foi arrumado num cavalo diferente, e quando estive em Glasgow esqueci-me dele. Tereis de o guardar até mais alguém ir para norte. – Puxou a espessa Summa de Aquino e colocou-a nos braços de Reyna.
Perplexa, Reyna ficou a olhar para o enorme tomo aninhado no seu seio. – Devíamos mesmo…
– É uma obra que decerto a escola da abadia já tem, senhora.
Não lhe será sentida a falta. – Alçou-se para a sela e curvou-se para apertar a mão de Ian. – Até à primavera, então.
Ficaram a vê-lo trotar até aos homens e estandartes que aguardavam ao longe. – Interrogo-me se terá realmente sido acidente. Aquilo de Edmund, quero dizer – comentou Reyna.
O olhar de Ian não se desviara do grupo que se dirigia agora para o paul. – Estou certo de que o foi.
– Obra do acaso, então.
– Alguma justiça, pelo menos. – Olhou para o livro. – Pode demorar algum tempo até viajar até Glasgow. Anos.
– Algo mais que fazer nas noites longas de inverno.
– Sim, podemos discutir filosofia parte da noite e fazer amor no restante. Eu poderia até nem ter desistido se me esperasse tal recompensa na minha juventude. Deverei acabar de o reler, porém, se quero fazer-vos frente.
Conduziu-a de novo ao leito de ervas. Ela sentou-se de pernas cruzadas e abriu o livro no colo.
– Metade do tempo para a mente, e metade para as paixões.
Parece uma divisão justa, Ian.
– Eu disse parte, não metade. Não tenho intenção de ser justo.
Especialmente agora, já que me parece ser altura de reequilibrar a balança que vós fizestes pender para o vosso lado em Harclow.
Ele estava de pé ao lado dela. Ela ergueu os olhos. Por detrás daquelas pestanas copiosas, o senhor das Mil Noites olhava para ela. A expressão dele fê-la fervilhar de expectativa. Não, ele não ia ser justo de todo.
Ele tirou-lhe o livro dos braços e pousou-o no chão. Segurando-lhe a mão, fê-la pôr-se em pé. Afastou-se para conseguir vê-la por inteiro.
– Despi a combinação, Reyna.

CAPÍTULO 18


– É essa a mensagem tal como vos foi dada? – Palavra por palavra. Sir Morvan disse que devo aguardar e levar a vossa resposta.
Ian repetiu a mensagem para si próprio. Não uma ordem, mas um pedido. Havia sido uma forma de Morvan reconhecer que Ian estava agora na posse do castelo de Black Lyne através de Reyna, e ainda não jurara fidelidade a nenhum homem.
– Dizei-lhe que irei amanhã. Agora ide comer alguma coisa, e dizei a Gregory que trate de vos providenciar um cavalo descansado.
O homem saiu, e Ian foi até às janelas do quarto. Uma brisa fresca corria por elas na noite. Desejou que Reyna ali estivesse para lhe poder falar imediatamente daquilo.
Ele sabia que a chamada podia dar-se. Até ficara ressentido por não ter acontecido logo a seguir à conquista de Black Lyne. Fora como se recusar a sua ajuda em Harclow tivesse sido uma reflexão silenciosa de Morvan sobre a opinião do salteador que lhe salvara a vida.
Agora, porém, a situação em Harclow havia-se tornado crítica, e todas as espadas eram necessárias. Morvan estava a organizar ataques agressivos há algum tempo, e a quinzena seguinte provavelmente decidiria as coisas. Maccus Armstrong não mostrava inclinação alguma para se render, por isso a fortaleza teria de ser tomada pela força.
Desejou que Reyna ali estivesse. Amanhã ver-se-iam separados indefinidamente, porventura para sempre. Ele não tinha nenhuma ilusão de invulnerabilidade. Escalar muralhas e lutar em torres de assalto era muito diferente do confronto em campo aberto, e homens melhores do que ele haviam caído durante a carnificina que se seguia. O estranho desassossego que experimentara quando saíra a cavalo para se defrontar com Thomas Armstrong atormentava-o novamente, despoletando nele uma necessidade sentida de ficar perto do calor de Reyna nas horas que antecediam a separação.
Ele desejou que ela lá estivesse, mas ela não estava, e ele sabia onde ela se encontrava. Sem rodeios, Reyna convidara Edmund a visitar a sepultura de Robert com ela quando a refeição da noite se aproximava do fim. Ian observara-os saírem do salão juntos, mal conseguindo resistir ao impulso de o proibir. Eles tinham saído antes da chegada do mensageiro de Harclow.
Afastando-se abruptamente da janela, desceu ao salão e saiu para o pátio. Subiu os degraus que conduziam ao adarve e prosseguiu até à curva sul de onde se via o pequeno cemitério no sopé da colina.
O que importava se ela passasse tempo com este homem que, de todos os homens, não deveria representar ameaça alguma?
Pensava seriamente que ocorria uma sedução, que o pio cavaleiro tentaria tomá-la naquele chão consagrado? Acreditava ele que Reyna o permitiria? A sua mente racional dizia que não, o que não impediu que imagens mentais da união deles lhe invadissem a mente, alimentando o ressentimento e o ciúme que, durante o dia, vinham ganhando um travo amargo e irado.
Olhou atentamente para o cemitério, mal distinguindo as sombras das cruzes acima da pequena cerca de madeira, pensando ter visto dois vultos sentados ao luar ao lado da campa central.
Edmund, o hospitalário. Nobre e estudado e casto. Sem marcas no corpo ou na alma, fomes inultrapassáveis, pecados ímpios a esconder. Para todos os efeitos, ele era uma versão mais jovem de Robert de Kelso. Não admirava que Reyna se sentisse cativada por ele desde o início.
Também era, e de muitas formas, o oposto perfeito de Ian de Guilford. Ela não deixaria de reparar no contraste absoluto.
Primeiro o rei Alfredo, e agora Santo Edmund. Uma coisa fora competir com a memória de um homem morto. Este aqui vivia e respirava.
Ela não se deita com ele, mas dá-lhe partes de si própria que aparta de mim.
Ficou ali de pé, à espera de movimento no cemitério, resistindo ao impulso de ir lá buscá-la. O tempo passava, e cada momento lhe via crescer as reações irracionais e recuar os pensamentos sensatos. Amanhã ele deixá-la-ia sabe lá Deus durante quanto tempo, e ela desbaratava o tempo que lhes restava lá em baixo com aquele homem. Na ira dele, que ela o fizesse inconscientemente deixara de contar grande coisa.
Quando lhe parecera ter passado uma eternidade e ele continuava sem os ver surgir ao portão do cemitério, deu meia-volta e regressou aos seus aposentos.

Reyna terminou as suas orações e voltou a sentar-se nos calcanhares, olhando para as mãos cruzadas e os olhos fechados do cavaleiro que estava ajoelhado do outro lado da sepultura. A noite ventosa conferia-lhe um aspeto algo misterioso.
– É bom vir aqui – disse ela, arrastando os dedos pelo longo monte de terra. Tinha o coração cheio da memória de Robert, e sentiu o conforto do seu amor e carinho chegarem-lhe através da eternidade. – É bom estar aqui com alguém que o conhecia como eu conhecia.
Edmund mudou de posição e sentou-se no chão com a sepultura ainda entre eles, uma ligação mais do que uma separação. –
Trouxe-vos um manuscrito. Uma cópia de um dos Diálogos de Platão, no grego original. Está diferente das traduções e não penso que o tenhais.
– Trouxestes? Ó, Edmund, obrigada. Não, não temos nenhum Platão. Deveis deixar-me pagar-vos por ele.
– Não me custou nada. O precetor tinha-o na sua biblioteca e um dos irmãos copiou-o para mim. Além disso, não penso que o vosso novo marido gostasse de gastar dinheiro dessa forma.
Reyna sabia que Edmund desviava educadamente a conversa para o casamento dela, mas ela ainda não queria discuti-lo. – Será uma alegria ter algo novo para ler.
Ele aceitou a achega e falaram sobre os livros que ele lera e os eruditos com quem se encontrara desde a sua última visita. Ela invejava-lhe a variedade de experiências que o facto de ser homem e viver perto da cidade lhe possibilitava. Ian desfrutara de uma vida semelhante, e ela perguntava-se como alguma vez poderia encontrar contentamento emparedada no isolamento de Black Lyne.

– Fico contente por saber que ainda continuais com os vossos estudos – disse Edmund. – Ao jantar vi que sim, pois as vossas ideias mostraram-se provocadoras. Não notei, quando estive de visita no ano passado, o quanto a vossa mente havia evoluído.
– Era uma rapariga quando nos conhecemos. Cinco anos é muito tempo numa vida jovem. Já não sou uma rapariga.
– Não, não sois. – A cabeça dele descaiu. – Falai-me da morte dele, Reyna. Ouvi dizer que…
– Sei bem o que ouvistes dizer. Quão longe viajou essa história?
Não até Edimburgo, espero.
– Não até Edimburgo.
Ela descreveu a doença abrupta de Robert e a sua morte célere, entrecortando-se-lhe a voz quando descreveu o sofrimento dele.
– Poderia ter-se tratado de uma morte natural, Reyna? O corpo humano é complexo, e ele era idoso.
– Poderia ter sido, mas não pareceu. Seja como for, agora ninguém acreditará que o foi.
– Não há indicação nenhuma de quem o fez? Nenhuma prova além das que apontam para vós?
– Ian pergunta-me sempre sobre isso. Ele quer descobrir, para deixar definitivamente de haver suspeitas sobre mim. Eu também tenho tentado descobrir a verdade.
– E o que descobristes?
– Nada. Revistei os quartos daqueles que na altura viviam na torre, sem saber sequer o que procurava. Contas feitas, tudo foi em vão.
– E o vosso marido? Não descobriu nada?
– Não me parece. Ele prometeu lutar por mim em julgamento por combate, se necessário. Confio que não se chegará a tanto.

– Acreditais que ele o fará?
Ela ouviu o ceticismo na voz dele. – Ele prometeu-me que sim.
Um suspiro grave atravessou a sepultura. – Reyna, um homem daqueles vive apenas para si próprio e o seu próprio ganho. Se colocardes nele a vossa confiança, temo que vos dececioneis terrivelmente.
– Não o conheceis. Não é o que dizeis.
– Acreditais verdadeiramente que ele vos protegerá? Que ele arriscará a própria vida para salvar uma mulher que pode ser facilmente substituída e cujo valor já lhe está assegurado?
– Não tive valor algum para ele. Morvan dá-lhe estas terras de qualquer forma.
– Morvan pode falhar em Harclow. Tudo pode acontecer.
Ela não necessitava que Edmund lhe recordasse as conveniências que o casamento tivera para Ian. Uma semana atrás ela encarara os factos de frente e aceitara-os como realidades com as quais ela simplesmente teria de viver.
– Tendes a certeza de que ele procura verdadeiramente provar a vossa inocência, Reyna? – A voz dele saiu lenta e silenciosa.
– O que quereis dizer com isso?
– Porque não vos tirou ele daqui? Porque não atender à vossa segurança até tudo estar assente? Então, se ele não saísse vitorioso do combate, vós continuaríeis protegida.
– Se houver um julgamento, devo cá estar para falar por mim própria.
– Muito claro, e presumindo que Morvan virá a deter estas terras talvez tudo corra bem, mas e se isso não se der? Se Harclow não for tomada, Morvan e o seu exército deixarão esta região, e o castelo de Black Lyne não conseguirá, por si só, deter os Armstrong durante muito tempo. Talvez seja essa a razão pela qual Sir Ian precisa de vós aqui. A lealdade dele é para consigo próprio, penso eu, e ele serviria o maior licitador, até o velho Maccus, se isso lhe garantisse o que ele deseja. Abrir mão de uma mulher que já serviu o seu propósito seria um preço pequeno para reter aquilo que lhe proporcionastes.
A sugestão dele continha uma possibilidade implacavelmente prática que a mente dela não podia ignorar, mas o seu espírito rebelava-se contra as acusações. – Não lhe fazeis justiça, meu amigo. Nunca me teria casado com ele se o considerasse capaz do que descreveis.
– Penso que tivestes pouca escolha.
– Estais errado nisso também. Tive escolha, sem dúvida alguma.
Várias, em verdade. Podia ter regressado para o meu pai. Podia ter concordado em ir com Reginald.
– A escolha de Reginald deu-se antes da de Ian, e tomastes cada decisão independentemente. Dizeis que se vos tivessem sido apresentadas em conjunto, ir para Edimburgo como mulher de Reginald ou ficar aqui como a de Ian, vós teríeis escolhido a última, com todos os perigos que encerra?
Era uma pergunta devastadora, de formas que ele nem conseguiria começar a imaginar. De facto, ela havia feito as suas escolhas à medida que se apresentavam, uma de cada vez. Ela dissera a si própria que seria ou Ian ou Duncan, e a escolha fora inevitável a partir do momento em que Ian concordou manter o segredo de Robert.
Agora Edmund forçava-a a encarar uma nova realidade. A sua exposição de uma escolha que nunca existira revelava as emoções dela com uma clareza surpreendente. A segurança ao lado de Reginald teria sido o rumo lógico, sensato.
Mas nunca teria sido aquele que ela tomou.
Edmund interpretou mal o seu silêncio surpreso. – Ian manipulou a vossa situação para vos coagir. Não é necessário que um casamento feito sob tal constrangimento perdure.
– Ninguém forçou a minha mão a assinar o acordo, Edmund.
Não me deram drogas nem me bateram para que o fizesse.
– Não é necessário bater numa mulher para a vergar. O perigo em que estáveis foi coercivo por si próprio. Este casamento pode ser desconsiderado. – Ele pegou na mão dela. Uma mão fria, seca, reparou, e nem de perto tão áspera como a de Ian. Mais como haviam sido as mãos de Robert. A mão de um homem bom, mas com menos vida e sangue a correr dentro dela do que a palma e dedos de Ian de Guilford. – Sou conhecido do bispo de Edimburgo, Reyna. Quando ele souber como isto aconteceu, sem dúvida anulará os votos.
– E depois, Edmund? Ofereceis-me agora a escolha que eu nunca tive entre Ian e Reginald?
– O meu irmão está fora disto. Ofereço-vos liberdade e segurança, e a minha proteção, que existiu para vós desde o início.
Agora que as defesas do castelo afrouxaram, não será difícil tirar-vos daqui. Vireis comigo, Reyna, e nunca mais sentireis medo.
Ela ficou a olhar para o monte de terra. A sua última frase evocou memórias nítidas da primeira vez em que vira Robert, e das primeiras palavras que ele lhe dissera. Ele chegara à casa de Duncan para o casamento um dia mais cedo do que o esperado.
Ela não estava no pátio para o cumprimentar porque Aymer, irritado com uma suposta desobediência da parte dela, a tinha arrastado para a cripta e a tinha deixado trancada lá dentro para guerrear o terror e a escuridão.
Exigindo vê-la, Robert fora levado até lá. Por um instante, ali a olhar para a sepultura, ela era de novo aquela criança de doze anos, encolhida contra a parede da cripta, lutando pela sua sanidade. E aí, subitamente, soaram passos na escadas de pedra, o fulgor de um archote rompeu a eternidade negra, e uma mão veio até ela por entre o clarão. Vireis comigo, criança, e nunca mais vos sentireis assim assustada.
A memória desvaneceu e ela estava de olhos fitos na mão que Edmund agarrava. De súbito, sentiu a presença de Robert, de uma forma assombrosamente viva, como se ele estivesse ao seu lado, ainda vivo. Ela fechou os olhos e deleitou-se com a consciência pungente da sua essência, e sentiu o seu espírito tentando falar com o dela.
Talvez no Céu as almas conhecessem o futuro. Estaria a oferta de Edmund, pronunciada em palavras tão semelhantes à promessa de Robert, destinada a ser um sinal? Estaria o espírito de Robert a incitá-la a aceitar o amigo deles e a segurança que ele conferia?
Saberia ele que, se ela não o fizesse, seria como Edmund predissera, e Ian a abandonaria?
A imagem dos seus pesadelos, a sua face lívida e o seu pescoço esticado, assaltou-a. Ian era um salteador e um oportunista, e ela podia definitivamente ser substituída sem dificuldade pelo belo e excitante homem conhecido como o Senhor das Mil Noites.
– Eu tratarei de tudo e não interpreto mal o meu dever como o meu irmão. Estareis muito longe daqui antes do vosso marido se aperceber – instigou Edmund num sussurro.
Ela sabia que tinha de tomar a decisão agora, pois eles podiam não voltar a ter oportunidade para falar a sós. Ela vacilava, o seu coração cheio de emoções confusas. O pânico apoderou-se dela, e a sua mente turvou-se com dúvidas e medo.
Depois a brisa fez-se mais forte e acariciou-lhe o cabelo, à semelhança do afago que a mão de Robert fazia às suas tranças quando ele partia em viagem. Os seu olhos lacrimejaram quando a memória e a presença dele a invadiram por completo, levando-lhe reconforto, mitigando a confusão. Ela suspirou com o alívio que ele lhe proporcionava, e permaneceu naquela segurança invisível que lhe reordenava as ideias.
Quando acalmou, sentiu a presença dele recuar, assumindo o controlo de toda a confusão e transportando-a com ele na sua partida, afastando as nuvens que lhe obscureciam o coração para ela ver com mais clareza o que estava no seu interior.
Com uma relutância dolorosa, ela deixou o espírito dele partir lentamente, volvendo depois a sua mente para aquilo que havia descoberto. Outra emoção luzia no seu coração, amedrontada e hesitante, mas emanando um calor forte, magnético. Ela reconheceu a sua existência, e esta aceitação foi como combustível que fez dela fogo.
Mas não é como o amor que eu tinha por vós, Robert, debateu silenciosamente. Poderá trazer muita dor e pouco contentamento.
De novo a brisa lhe afagou o cabelo naquele gesto familiar e reconfortante. Em seguida, as memórias e a essência desvanecentes foram tragadas pela noite.
Reyna retirou cuidadosamente a sua mão das de Edmund. Toda a lógica do mundo, todas as análises do perigo que corria e da sua potencial deceção, perdiam a força face ao que ela acabava de constatar. Não duvidaria de Ian, e se ele, por fim, a abandonasse, que assim fosse.
– Ele é meu marido, Edmund. Aceitei-o como tal no meu coração e não há decreto de bispo nenhum que possa reverter isso.
Ela viu o corpo dele fazer-se tenso e direito e sentiu os seus olhos a espiá-la na escuridão. – Reginald disse-me que assim era, mas eu não consegui acreditar nele.
– Eu não sei o que Reginald vos disse, mas…
– Ele disse que este cavaleiro havia jogado com a vossa dor e a vossa solidão. Que vos havia seduzido. Uma coerção muito mais insidiosa, mas, se a mulher estiver vulnerável, muito mais persuasiva do que a violência.
Talvez ele estivesse certo, mas isso não vinha mudar nada. A sua decisão derivava das suas próprias emoções e motivos, não dos de Ian. – Ele não me seduziu. Não me deitei com ele antes do nosso casamento. No entanto, existiu uma afeição peculiar entre nós, e eu não fingirei que assim não foi.
– Reyna, o que interpretais como afeição não passa de volúpia.
Essas fomes da carne passam, especialmente nos homens, especialmente nos homens como ele.
– Não conheceis o meu marido e contudo falais sobre o seu caráter e intenções com muita certeza.
– Informei-me sobre ele hoje de manhã. Os criados conhecem-me e não se coibiram de falar.
Sim, não lhe devem ter dado descanso, Reyna não tinha a menor dúvida. – Pode bem tratar-se apenas de volúpia entre nós, mas ele agora é meu marido, aceite por mim de livre vontade. Eu não mentiria a um bispo para desfazer isto. Considerais-me tão desmerecedora de afeição que seja impossível a um homem senti-la por mim, Edmund?

– Sabeis que isso é um disparate. Robert tinha por vós uma afeição sem limites e um amor profundo. Impressionava quem o testemunhava.
Robert amava-me como a uma filha, quis Reyna dizer.
– Partirei de manhã, Reyna. Se mudardes de ideias, tendes de mo fazer chegar esta noite. Há aqui alguém em quem possais confiar?
– Alice, mas eu não mudarei de ideias. Tendes de partir tão cedo?
– Devo atender ao trabalho do precetor e, apesar da sua hospitalidade, Ian não gosta da minha presença.
Enquanto se encaminhavam para a torre, Reyna sentiu uma nova distância interpor-se entre ela e Edmund. Ele era tão parecido com Robert que lhe despedaçava o coração saber que ele reavaliava a opinião que tinha dela, e não para melhor.
Detiveram-se do lado de fora do portão. – Perdi-vos como amigo agora, como perdi Reginald? – perguntou calmamente.
Ele pegou nas mãos dela e beijou-as. – Não, senhora minha, estarei sempre aqui para vós. Ainda assim, parece-me provável que passe bastante tempo até voltarmos a ver-nos. Ian não aprecia a nossa amizade.
– Ele não me negará os meus amigos.
À luz do archote, Edmund baixou os olhos para ela. – Se convier aos seus intentos, negar-vos-á tudo. Receio que, se for forçado a uma escolha, chegue a negar-vos a vossa própria vida.
Um silêncio retumbante envolvia a torre. Era muito tarde, todos dormiam, constatou Reyna. Ela e Edmund haviam falado durante mais tempo do que ela pensara.
Subiu até ao quinto piso e deteve-se no corredor. Um archote iluminava o espaço, e ela adivinhou que Ian havia ordenado que lá o deixassem para ela. Provavelmente ele já dormiria, mas ela estava desejosa de se deitar ao lado dele. Precisava da segurança da força dele a aquecê-la agora mesmo.
Aproximando-se da porta do quarto, esta abriu-se facilmente e um vulto de saia saiu. Uma cabeça com um lenço volveu-se com um sorriso radioso que se desvaneceu perante Reyna. Eva corou profundamente, esgueirou-se e desceu apressada as escadas.
Reyna ficou de olhos cravados na porta do quarto principal. Um entorpecimento varreu-lhe os braços e pernas até aos dedos, como se alguém lhe tivesse despejado um balde de água gelada pela cabeça abaixo.
O canalha.
Fervilhando de mágoa e fúria, foi imediatamente para o seu quarto. À pálida luz do luar que entrava pelas janelas, procurou um pau na lareira. Esbarrando na mesa e na cama, volveu a sair e foi acendê-lo ao archote do corredor, para ter luz no quarto.
Preparou-se para se deitar com a cabeça cheia de insultos cumulados sobre a alma negra de Ian de Guilford. Quando tirava o guarda-cós azul, o seu olhar recaiu sobre os pergaminhos amontoados na escrivaninha. A carta para Lady Hildegard não avançara muito. Demasiados dias se sentara empunhando a pena, tentando formar as suas frases em latim, apenas para constatar que as horas haviam decorrido em devaneios com o homem que lhe consumia os pensamentos.
Um erro, era óbvio. O filho de uma égua. Desejou subitamente ser tão grande e forte como Lady Anna. Desejou que, usando os seus punhos num homem, ele o sentisse. Ela poderia não ser capaz de tocar o coração deste salteador, mas se ele a insultava desta maneira, seria muito gratificante pelo menos maltratar-lhe o corpo.
Com movimentos abruptos tirou as meias e a combinação e atirou para trás a roupa da cama. Deu socos na almofada e remexeu-se para encontrar algum conforto na cama fria e estreita.
Talvez devesse ir dizer a Edmund que mudara de ideias. Eles poderiam até conseguir partir esta noite. Sem dúvida que Ian tinha boas razões para dormir profundamente a noite inteira.
O amor que tão recentemente reconhecera infiltrava-se na sua indignação, dizendo-lhe que decerto não faria tal coisa. Ela confrontou a emoção como se esta fosse um corpo estranho que lhe invadisse o espírito. Não me controlareis, avisou-a perigosamente. Não vos deixarei fazê-lo. Sois uma forma de tortura e continuarei a negar alimento ao vosso fogo porque se vos alimentar sereis o fogo do próprio Inferno.
Perguntou-se se Anna ainda estaria acordada. Anna também não gostava de Ian e elas podiam ir buscar vinho e, embriagadas, desfazê-lo com insultos…
– Que raio fazeis aqui? – A voz grave e ríspida vinha da porta.
Reyna virou a cabeça, deparando com Ian. Estava tão absorta nos seus pensamentos furiosos que não ouvira a porta abrir-se.
– A dormir. Foi rude da vossa parte acordardes-me.
– Não estáveis a dormi. Ouvi-vos entrar.
Ele avançou pelo quarto adentro e lançou-lhe um olhar furioso.
Ela sentou-se contra a parede e devolveu-lhe o olhar, absorvendo a firmeza do seu corpo e a luz profunda dos seus olhos. Ele parecia tão irritado quanto ela se sentia. Pensou que era preciso muito descaramento da parte dele.

– Estivestes acordada metade da noite com aquele homem –
disse ele secamente.
– É um amigo que raramente vejo, e tínhamos muito de que falar.
– Aposto que sim. Debatestes filosofia todas estas horas, Reyna?
A insinuação dele fez o seu sangue pulsar com força. Ele acabava de se deitar com a peituda Eva e atrevia-se a atirar-lhe com acusações, a ela. A tensão de controlar a fúria que sentia era-lhe custosa e o esforço fê-la perder o controlo. Decidindo que falar não lhe serviria de nada, limitou-se a olhar para ele, recebendo a sua pergunta com o mesmo silêncio frio que ele havia consagrado a uma das dela.
Com um movimento abrupto, ele virou-se para a escrivaninha, agarrou-a, ergueu os braços e atirou-a violentamente contra a parede. Uma tábua partiu com a força do impacto. Pergaminhos e penas esvoaçaram em todas as direções e flutuaram até ao chão como destroços de uma tempestade de outono.
O frágil controlo de Reyna desfez-se com a mesa. Enrolando o lençol no corpo, ergueu-se como um raio. – Desprezível filho do Cornudo. Com que direito é que vós…
– Sois minha mulher. Se vos pergunto o que estivestes a fazer durante metade da noite com um homem, vós respondeis.
– Passámos a maior parte da noite a amaldiçoar-vos.
– E o resto do tempo?
Emoções complexas e ameaçadoras extravasavam dele, abalando o ar do quarto como relâmpagos, mas ela não queria saber. – É disso que se trata? É essa a razão desta cena de raiva, agora? Ainda vos agarrais à ideia de que eu e Edmund partilhamos esse tipo de amor? Seu louco. Ele é um cavaleiro celibatário. Não julgueis todos os homens pelos vossos vis padrões, filho de uma égua inglês!
– Os meus padrões podem ser vis, mas deteto um homem que trama alguma coisa quando o vejo. O que queria Santo Edmund de vós, mulher?
Uma paz perigosa, fria, varreu-lhe o calor da fúria. Ela não se tinha realmente acalmado, apenas encontrara o centro da sua tempestade. Estavam frente a frente à mera distância de um braço, dois corpos tensos travados no espaço por olhos resolutos.
– Ele queria levar-me embora – disse ela. – Ele não confia que vós me protejais se achardes que isso não vos beneficia. E eu, idiota, recusei, mas bastou subir estas escadas para me arrepender da decisão.
Ele cerrou os dentes. – E viestes para aqui para o vosso escritório de filósofa para reconsiderar? Para sujeitar essa decisão obediente à frieza da lógica e pesar as vossas opções?
– Vim para aqui porque a vossa rameira saía da vossa cama quando passei pela porta do vosso quarto.
Ele não atendeu à acusação dela mas, a bem ver, o que poderia dizer? Ventos de fúria recomeçaram a levantar-se dentro dela. –
Tencionáveis que vos encontrasse juntos, ou teríeis ficado satisfeito se eu soubesse amanhã pela coscuvilhice dos criados? Dizei-me, seu galo com cio, havei-la chamado porque eu não estava lá para satisfazer uma fome passageira, ou planeaste-lo como vingança ou castigo porque me atrevi a demorar-me com o meu amigo e não estive aqui para vós, como é costume?
Os olhos dele exaltaram-se, mas ela não recuou. A mágoa e a raiva eram demasiadas para que sentisse medo. Uma tensão horrível retesava-se entre eles. Ela quase desejou que ele lhe batesse, para ela própria poder desferir alguns golpes, nem que fosse para aliviar a pressão que a atormentava.
Ele deu meia-volta, de mãos nas ancas. – Se tivesse sido como dizeis, não teria ido além do que mereceis. Devíeis ter estado aqui, e não com ele.
– Raios vos partam. Edmund é um amigo que me ama como vós nunca amareis. Idiota, escolhi contra toda a lógica confiar mais em vós do que nele, e, como uma criança rancorosa, vós soltais-me os cães porque por uma noite não tivestes a atenção toda.
Ele virou-se para a encarar com uma expressão de surpresa, mas o seu rosto rapidamente recuperou a rigidez. – Não é nem infantil nem rancoroso um homem querer a sua mulher com ele antes de sair para a guerra, Reyna.
Um golpe físico não a teria chocado tanto. O impacto das palavras dele derrubou imediatamente a raiva de Reyna.
Ela sentiu a investida violenta das emoções que irrompiam dele.
À raiva e ao desejo, reconheceu-as, mas havia ali outras correntes também, que não lhe eram conhecidas. Rajadas de necessidades e anseios que não tinham nome pareciam alimentar o seu humor proceloso.
– Quando soubestes? – inquiriu ela.
– O mensageiro chegou logo após saírdes do salão. Partirei de manhã. – A sua voz tinha uma inflexão amarga.
– Porque não viestes dizer-me, ou mandastes alguém fazê-lo?
– Era claro que estáveis desejosa de falar com o vosso cavaleiro e conversar sobre a vossa má sorte. Eu senti que ele queria algo de vós, mas não achei que fosse atrevido ao ponto de violar a minha hospitalidade tentando roubar-me a mulher.
– Isso implica que… não foi… – Deixou morrer as explicações.

Ela não queria continuar a falar de Edmund. Preocupação e medo haviam-se substituído à raiva. Os avisos de Edmund, o sorriso de Eva, até mesmo esta discussão dolorosa, haviam-se tornado imediatamente insignificantes.
Dentro de algumas horas Ian estaria de saída. Partiria, e não para uma guerra insignificante na fronteira, mas para um cerco perigoso onde todos os dias morriam homens a escalar muralhas nas quais o inimigo aguardava com setas e fogo.
Ainda estavam, rígidos, um em frente ao outro, como estátuas de pedra que decorassem um edifício varado por uma ventania silenciosa.
– Quanto tempo estareis fora?
– Duas semanas. Um mês. Até acabar.
Duas semanas. Um mês. Para sempre. – Ides só?
– Levarei o grosso da companhia comigo. O vosso hospitalário terá de sair de manhã, porque o portão será fechado quando nós partirmos e ninguém entrará sem o meu consentimento. – Ele não olhava diretamente para ela, mas Reyna conseguia ver a luz férrea que brilhava nas profundezas dos seus olhos.
Ela desejava transpor o espaço entre eles, mas a postura e o rosto dele diziam que os poucos passos no chão de madeira podiam bem ser um quilómetro de penhascos. Ainda assim, ela deu um passo em frente e ergueu uma mão hesitante como que para lhe tocar. A mão ficou ali a pairar, sem completar o seu curso, uma ordem inconsequente, frágil, para o furacão se acalmar. – Então viveremos como num cerco até vós regressardes?
– Vós não. Morvan ordenou que a sua mulher e irmã fossem levadas para Carlisle. Vós ides com elas.
Ir para Carlisle parecia tão permanente, como se ele a enviasse para o outro lado do mundo. – Este é o meu lar, Ian. Não compreendo.
– Lá estareis em segurança.
– Ficarei em segurança aqui.
– Não se Morvan falhar e eu morrer.
Uma angústia avassaladora repleta de medo e arrependimento e amor crescera dentro dela, arrebatando-a agora de tal forma que a sua garganta se apertava e os seus olhos queimavam. Procurando manter a compostura, refugiou-se em praticidades. – Tendes razão.
Eu devia ter estado aqui. Contáveis que eu atendesse aos preparativos, e agora a vossa partida ver-se-á atrasada. Acordarei os criados dentro de poucas horas e…
– Quero lá saber dos preparativos. – Ele esticou um braço e agarrou-a, puxando-a para o outro lado do fosso, para a turbulência dele. O movimento violento assustou-a tanto que ela gritou. Dedos de ferro agarravam-lhe os braços, praticamente levantando-lhe os pés do chão, e ele olhava para ela com olhos intensos, sombrios. – Para uma viúva que foi casada doze anos, há muito que não sabeis sobre ser mulher de alguém.
O perigo nos olhos dele e o aperto brutal das suas mãos deviam tê-la assustado, mas não o fizeram. Havia muito que não compreendia daquele estado de espírito, mas reconheceu alguma coisa.
– Então cabe-vos a vós guiar-me – sussurrou ela.
Com um movimento brusco, ele puxou-a para um beijo urgente num abraço vigoroso. Dedos cruéis aprisionavam-lhe a cabeça, por isso ela não conseguiu evitar que a boca lhe magoasse os lábios, devorando os receios dela, exigindo os seus direitos. Braços de aço dobravam o seu corpo contra o dele com tanta força que as suas mãos, agarradas ao lençol, se converteram em pequenas pedras, entrando na carne e osso que contra elas pressionavam.
Não havia exigência de submissão consentida neste ataque selvagem. O seu corpo respondeu com uma espantosa onda de calor e o seu amor resplandeceu com a prova de que, o que quer que fosse que o impelisse, ele claramente precisava dela e queria-a.
Ele ergueu a cabeça e o sangue regressou à sua boca violentada, picando-lhe a pele tenra. Com olhos líquidos, ela viu a sua expressão inflexível. Ele apertou mais o seu corpo arqueado, com uma mão esticada aberta sobre as suas nádegas para o cume duro da sua excitação lhe pressionar o ventre. – Sim, é isto que a ideia de nos separarmos me faz – murmurou com rudeza, examinando o rosto dela como se procurasse memorizá-lo. – Se eu não for meigo, culpai-vos a vós própria por me deixardes demasiado tempo entre as mãos.
– Não penso culpar ninguém.
– Podeis pensar de forma diferente antes de esta noite acabar. –
Voltou a beijá-la, apenas um pouco menos violentamente. –
Certificar-me-ei de que não esqueçais depressa que sois minha. Se outro homem olhar para vós, serão os meus olhos que vereis no rosto dele, e à noite nos vossos sonhos não será nenhum espectro que vos toma, mas sim eu. Se o vosso santo cavaleiro se atrever a seguir-vos até Carlisle, sentireis estas mãos de diabo no vosso corpo enquanto ele vos tenta, e a respiração deste salteador na vossa orelha enquanto ele vos persuade.
Ela mal o ouvia. A tempestade absorvera-a e ela girava no seu centro com o corpo moldado ao dele, pendurada nele, sem peso, com a força dele como única ligação sólida ao mundo.
Ele ergueu-a nos seus braços, abrasando-lhe a boca e o pescoço com os seus beijos quentes enquanto o quarto dela, o corredor, o quarto principal passavam, turvos. Ele deixou-a cair na cama deles e arrancou o lençol que ela ainda cingia ao corpo.
Completamente vestido, colocou-se por cima dela, afastando-lhe as pernas, assentando-se nelas. Uma mão áspera subiu-lhe firme pela coxa num trajeto que findou na humidade que revestia aquele centro secreto.
O braço dele passou-lhe por detrás do ombro, e a sua mão entrelaçou-se no cabelo, segurando-lhe a cabeça para ela ficar de frente para ele. Ela viu a sua expressão de triunfo quando descobriu a sua excitação, mas não se importou. Ela ansiava penosamente pelo preenchimento dele, e gemeu de alívio quando ele investiu dentro dela com um movimento vigoroso.
Não foi nada meigo. Numa posse primitiva, o corpo dele embatia contra ela uma vez e outra, numa fúria da paixão que os envolvia. Ele dobrou-lhe as pernas para a poder penetrar mais profundamente, e a força das suas acometidas violentas faziam-lhe subir as ancas. Ele observava a reação dela a esta violenta reivindicação de direitos, e relâmpagos faiscaram naqueles poços negros quando a resposta dela se soltou e os seus frenesins mútuos colidiram em combate. Ela tornou-se impotente contra uma invasão espiritual à medida que o êxtase começou a cerrar e avolumar-se e a puxá-la para ele.
– Pois, Reyna – disse a sua voz grave enquanto o sabor da completude vibrava e corria por todo o seu corpo. – Robert ainda pode ter o vosso coração, e o vosso monge pode inspirar-vos a mente, mas nisto sois completamente minha. Não me negareis nada esta noite.
Ela sabia que ele não falava apenas de coisas físicas, mas não encontrou vontade de convocar resistência. O reconhecimento do amor que sentia sabotara as frágeis muralhas com que ela, a medo, protegia o seu coração. Agora estas abanavam e abriam fendas e caíam na investida violenta daquela intensidade.
Na paixão febril daquela unificação maior, a posse agressiva converteu-se numa partilha arrasadora. Ela fazia por o absorver com todo o seu ser enquanto o prazer turbulento ascendia ao seu ápice frenético. Vieram um para o outro numa libertação longa e feroz repleta de mordidas e gritos e mãos como garras, fundindo-se num arrebatamento violento.
Ficaram, exaustos, entrelaçados um no outro, corpos selados com suor e abraços. Ela apercebeu-se lentamente da respiração na orelha dela com que ele prometera marcar-lhe a memória. O som recordava-lhe a sua separação iminente. Fechou os olhos, atenta ao seu ritmo, e tentou suprimir a tristeza que queria invadir a perfeição daquele abraço.

CAPÍTULO 19


Reyna acariciou-lhe as costas, e ele sentiu o toque dela a aperceber-se do tecido da sua túnica. Ela moveu a mão para lá do lençol amarfanhado por baixo deles e tocou na colcha.
Ian ergueu-se nos antebraços para olhar para ela. Viu-a considerar que ele ainda estava vestido e que a cama não fora usada antes de ele a atirar para lá.
Sentiu uma nova irritação por ela não ter feito perguntas sobre Eva antes de o acusar. A maior parte da sua raiva ferida havia sido absorvida pela paixão, mas não toda. – Talvez a tenha tomado no chão ou contra a parede.
Ela desviou o olhar com uma expressão de desalento, fazendo-o sentir-se culpado por a ter magoado de propósito, especialmente agora, depois disto.
– Foi grosseiro da minha parte – sussurrou ele, roçando-lhe a orelha com o nariz. – Eu não a chamei. Ela veio sozinha, para concluir o pedido que começara no pátio na semana passada. Há um jovem arqueiro na minha companhia que se amigou dela, mas que não lhe tocava por minha causa.
– Ela pediu-vos permissão para dormir com outro homem?
– Algo assim. Duvido que Eva se preocupe com tais formalidades, mas o homem pensou que era prudente. Ele quer casar-se com ela. O pai dela não tem filhos e iriam ambos para a sua quinta.
– Ela quer ir-se embora?
– Eu disse-lhe que teria de vos perguntar se podíeis passar sem ela.
A fronte dela enrugou-se, pensativa. – Não sei se posso. Ela é uma excelente costureira. E se o meu marido decidir brutalizar uma mulher com alguma regularidade, pode ser útil tê-la por aqui.
Ele baixou os olhos para a prova da sua violência. Viam-se marcas de dedos onde ele lhe agarrara os ombros e um chupão luzia rubro no seu pescoço, onde amanhã seria visível para o mundo. Ele beijou-o suavemente, sabendo que, se pudesse torná-lo permanente, como uma marca gravada a ferro, o faria. – Pediria desculpa, mas não o lastimo.
– Nem eu.
Ele ficou quieto um instante, grato por ela não lamentar nem ficar ressentida com aquilo que ele forçara.
Saiu da cama e tirou a roupa, indo depois até à lareira onde um balde de água aquecia para a limpeza matinal. Molhando um pano, regressou e deitou-se ao lado dela, passando-o pelas marcas que havia feito.
Ele desceu o braço para lhe passar a compressa quente entre as coxas. Na sua mente, ouvia o eco das palavras de Morvan, ditas neste aposento: Bolas, Ian. Elizabeth não vos ensinou nada?
Sim, ensinara-lhe muito, mas enquanto esperava por Reyna, esta noite, aquelas lições e os anos que passara a aperfeiçoá-las haviam sido esquecidas. Voltara a ser um jovem imaturo, consumido por necessidades desesperantes e dores cruas, e todas elas se haviam centrado em Reyna. A ideia de que ela partilhava qualquer parte dela com outro homem enlouquecera-o. Ele entrara no quarto dela cheiro de emoções furiosas, desvairadas, e a própria raiva e paixão dela haviam-no feito perder o controlo.
Depois, vendo o que estava nele, ela simplesmente se abrira para o absorver.
Ele passou-lhe o pano pelo corpo, atento à pele por baixo da sua mão, gravando as memórias na mente. Coisas inomináveis ainda se revolviam dentro dele, mitigadas mas não destruídas pela paixão deles, desassossegando-o com o seu poder. Pensar em deixá-la entristecia-o de forma surpreendente, cobrindo o seu coração com o temor e a dor que uma criança sentiria ao ver-se separada da mãe. Porventura tivesse sido melhor tê-la evitado esta noite e nunca lhe ter exigido que atravessasse aquelas fronteiras. O
preço podia ser muito alto, especialmente se ela alguma vez voltasse a recuar.
Ele voltou a cabeça e os seus olhares encontraram-se. O rosto dela tinha um aspeto muito jovem e doce, mas os seus olhos mostravam o saber de uma mulher.
– O vosso pai, que procurou fazer de vós padre, ainda vive? –
Fez a pergunta como se nunca a houvesse pronunciado, mas o seu olhar compreendia um desafio.
Sim, teria o seu preço. Tratava-se de Reyna. Nunca seria tão estúpida que permitisse que a entrega ocorresse apenas numa direção.
– Não, não vive.
Preparou-se para a próxima pergunta, e a seguinte, e começou a sentir o travo de a perder depois de todas terem sido perguntadas e respondidas. Por isso, quase gemeu de alívio quando ela escolheu desviar-se da questão principal.

– Ele morreu quando ainda éreis jovem?
– Morreu quando eu tinha dezanove anos, logo depois de eu ser armado cavaleiro, mesmo antes de ir para a corte. Ele havia tratado de me enviar para lá para um parente. – Era a verdade, apesar de incompleta.
– O vosso parente servia o rei?
– Era um funcionário menor. Levou-me para a casa dele. –
Nada disto era mentira, na verdade.
– Vivestes com ele durante todo o tempo que lá ficastes?
Sim, uma pergunta levaria a outra, e ele viu para onde estas se encaminhavam. Ela limitava-se a seguir os pensamentos enquanto construía formas de substância dentro do profundo mas indefinível conhecimento que tinham um do outro.
Ele não podia negar-se a ela sem perder o que acabava de lutar para reaver, mas sentia alguma angústia com a ideia do julgamento que o aguardava. – A peste chegou não muito depois de eu chegar.
O meu parente estava fora, e dela morreu. As pessoas da casa mudaram-se para uma das propriedades da mulher, no Sussex, até a peste passar.
Fez uma pausa, perguntando-se se poderia ficar por ali.
Provavelmente não. A sós com Christiana em Carlisle, ela podia vir a saber deste pecado menor. – Fiquei com a mulher dele durante dois anos, vivendo principalmente de ganhos em torneios.
– E depois partistes para França?
– Depois vivi sozinho por um ano antes de procurar a minha sorte em França.
Ela identificou imediatamente as lacunas. – Porquê?
Desentendeste-vos com a vossa parente? – Na falta de resposta dele, as sobrancelhas dela ergueram-se e ele viu as peças encaixarem. – A mulher de que me falastes no outro dia… a troca com Morvan… era a mulher do vosso parente?
– Sim. – Ficou aliviado por ela não parecer mais chocada.
– Ela devia ser muito mais velha do que vós ou Morvan.
– Era a segunda mulher do meu parente, e muito mais jovem do que ele. Mesmo assim, tinha quase idade para ser minha mãe.
– Amávei-la?
Ela queria que ele dissesse que a amara loucamente. Elizabeth não era parente de sangue, mas pelo casamento. Embora tais relações não fossem inauditas, não eram aceitáveis. Afirmar que estivera perdido de amores tornaria o facto mais palatável, mas ele constatou que não conseguia mentir-lhe.
– Amava-a tanto quanto conseguia, o que não era muito. Menos do que devia. Mais do que ela queria.
– Porque acabou?
Porque deixei de ser fiel, que era tudo o que ela alguma vez exigia dos seus amantes. Porque sabia que ela amava outra pessoa e ressentia-me disso, apesar de eu nem sequer saber o que fazer com tal amor se ele me fosse dirigido. Porque havíamos sanado a pior dor um do outro, e era altura de vivermos as vidas que nos restavam.
– Elizabeth tinha muito de mãe e era tentador ficar para sempre no conforto do seu seio. Mas, tal como uma mãe, também chegou a altura de partir.
– Penso que consigo compreendê-lo. Foi algo parecido com Robert e eu.
De todas as reações que ele esperara, a última seria esta calma compreensão. Ela surpreendeu-o ainda mais quando acrescentou: –
Fico contente por ela ter lá estado se vós precisáveis da sua amizade.
Ela agarrou na ponta das cobertas, empurrou-as para trás e depois puxou-as para cima dos seus corpos. – Tendo em conta a caçada e o resto, deveis estar muito cansado. Tendes uma longa cavalgada à vossa frente. Dormi, Ian. Acordar-vos-ei ao amanhecer.
– Vós também deveis estar cansada.
– Não estou. Daqui a alguma horas devo acordar os criados para os preparativos da vossa partida. Não acredito que durma.
– Então eu também não. Aprendi há muito a descansar em cima de uma sela. Não planeio desperdiçar horas com sonhos quando o melhor sonho está deitado a meu lado. – Voltou a afastar as cobertas, expondo o corpo de Reyna, e apoiou-se num braço para olhar para ela. – Além do mais, quem sabe quando voltarei a ter oportunidade de vos ministrar outra lição?
Beijou-a, memorizando a suavidade dos seus lábios e o contorno afiado dos seus dentes, e as profundezas de veludo da sua boca. Juntando-lhe as mãos, segurou-lhas acima da cabeça para ela ficar esticada e completamente vulnerável a ele. Ele não a queria a abraçá-lo ou a fazer qualquer outra coisa que pudesse acelerar a sua resposta. Ele iria deixá-la louca, desesperada e suplicante, e talvez o som dos seus gritos o sustivesse durante os dias e as semanas seguintes.
Acariciou-a lentamente, observando a sua mão bronzeada mover-se em torno dos volumes da sua pequena forma feminina, procurando não provocar nela mais do que um prazer lânguido.
Ainda assim, os seios dela avolumaram-se e os mamilos endureceram. A resposta rápida fê-lo sorrir, mas não se deixaria distrair.

– Sois tão adorável, Reyna. A vossa pele tem sempre este vago rubor, e é suave e húmida, como se estivesse coberta de um orvalho invisível. – Ela ficou sem fôlego quando ele baixou a cabeça e primeiro beijou e depois lambeu o vale entre os seus apelativos seios.
Ela arqueou-se convidativamente, mas ele ergueu-se mais para poder acariciar e memorizar as linhas elegantes das suas pernas. As suas coxas leitosas estremeceram e retesaram-se quando ele se encaminhou mais para cima, para o odor e a humidade que já aguardavam entre as pernas dela. Ele tocou-lhe ao de leve, como se a testar se ela estaria demasiado dorida para mais, grato pela prova de que não estava quando o seu corpo estremeceu elegantemente em resposta.
Ela enrugou a fronte quando ele retirou a mão.
– Ainda não, Reyna. É um castigo por voltardes a chamar-me canalha e filho de uma égua. Avisei-vos que não o fizésseis. – Na verdade, aquela diatribe havia sido música para os seus ouvidos.
Ele passou os dedos pelo lábio inferior, retirando a humidade da sua respiração travada, estudando o desejo diáfano dos seus olhos.
Sentiu-se inexplicavelmente lisonjeado por esta mulher sequer o querer, ainda por cima com tanta intensidade e tanta prontidão.
Ele desenhou-lhe uma linha do queixo ao peito e depois andou à volta da elevação de um pequeno seio. Ela contorcia-se e gemia, e ele esticou a mão para roçar suavemente o seu mamilo ereto. – É
isto o que quereis, Reyna?
Ela tentou soltar as mãos da dele.
– É?
– Sim, diabos vos levem.
– Outra maldição? Pode durar até de madrugada. – Ele provocava-a com as pontas dos dedos, roçando ao de leve o botão rosa, e ela sacudiu novamente os braços.
– Largai-me, seu filho de uma égua, e veremos quem mais grita.
– Continuai assim e poderemos não partir antes do meio-dia. –
Ele baixou os lábios até ao outro botão. – Sois tão suave, como veludo. A primeira vez que vos beijei, quase esqueci todo o sentido do dever. – Ele lambia e sorvia lentamente, perdido no gosto e no toque deliciosos dela, maravilhosamente alerta aos gritos e movimentos de abandono que a sua língua e mão extraíam dela.
As suas ancas balançavam lentamente enquanto ele fazia amor com os seus seios, e ele deixou que o ritmo do desejo titilasse a sua própria fome tensa. Saboreava cada reação apaixonada, guardando a memória como uma posse preciosa.
Libertou-lhe as mãos e virou-a de costas. Pairando acima dela, desceu lentamente beijando-lhe as costas e depois virou-se para lhe observar o corpo, enquanto lhe acariciava a parte de trás das pernas e coxas. Ela enterrou a cabeça nos braços, para abafar os arquejos de surpresa que soltava. Quando o toque e o olhar dele subiram, as elevações suaves das suas nádegas contraíram-se e as suas costas arquearam. Ela tinha um aspeto incrivelmente erótico nesta posição, e ele inclinou-se para lhe beijar o fundo das costas enquanto os seus dedos corriam para a fenda ensombrada.
O grito abafado que ela soltou quase o tirou de si. A tormenta, apaziguada mas não saciada, entrou novamente em erupção. Ela afastou as pernas para ele prosseguir, e as suas ancas ergueram-se quando o dedo dele encontrou a passagem estreita e afagou as suas profundezas escaldantes. Ela ergueu a cabeça e olhou para ele com olhos desconfiados. – Ides….
Ele imaginou as ancas dela a erguerem-se em direção a ele, e atravessou-o um estremecimento de calor. Mas ele duvidava que conseguisse manter algum controlo se a tomasse daquela forma, e tudo o que não fosse meiguice desta vez seria imperdoável.
Virou-a para cima. – Para a próxima, Reyna, e ides gostar, prometo-vos. Mas hoje quero o vosso rosto contra o meu e os vossos braços à minha volta.
Ela tentou estreitá-lo, mas ele escapou-lhe dos braços e percorreu-lhe a pele sedosa com beijos quentes. Outra memória e posse de que não abdicaria. Pôs-lhe as pernas em cima dos seus ombros e beijou-lhe a parte de dentro das coxas. Uma nova febre assomou aos olhos dela. O seu corpo parecia saber o que ele ia fazer, ainda que a sua mente não.
Ele acariciou-a intimamente, procurando os pontos que a levavam à loucura, e ela reagia com movimentos involuntários. Ele dirigiu os beijos mais para cima, para o centro da sua paixão. Ela gritou o nome dele e ele, erguendo os olhos, viu a sua expressão selvagem, de assombro.
– Vou fazê-lo, Reyna. Se não gostardes, paro.
Ela ficou tesa como uma tábua quando a boca dele se substituiu aos dedos, mas o prazer demoliu imediatamente a sua resistência. –
Sim – sussurrou ela, e logo a afirmação se tornou um grito repetido vezes sem conta, e o som deste cântico ofegante e os espasmos da paixão dela empurraram-no para um olvido resplandecente.
Quando ele se colocou por cima dela, ela agarrou-se a ele, chamando-o para si, erguendo as pernas num abraço, tentando unir o seu desespero. – O que quereis, Reyna? – Mal lhe restava juízo sequer, mas queria ouvi-la dizê-lo. Precisava de a ouvir dizê-lo.
Os dedos dela cravaram-se-lhe nos ombros. Ela ergueu os olhos e pestanejou para afastar a paixão atordoante.

– O que quereis? – repetiu.
Uma luz feroz perpassou-lhe o olhar. – Vós. Vós todo. Bem dentro de mim e por mim toda.
Uma fome ardente atravessou-o com uma força perigosa. Se ele seguisse o seu sangue, seria como antes. Rolando no seu abraço, colocou-a em cima dele. – Então tomai o que quiserdes. O mais ou o menos que precisardes.
Ela mexeu-se para o absorver profundamente, curvando-se para lhe acariciar e beijar o peito, puxando o espírito dele para ela tão seguramente como ele havia forçado o dela a ir até si. Ela era maravilhosa e ardente no amor, e as emoções caóticas dele rodopiavam sob a sua agressão urgente. Os gritos dela regressaram e ela começou a pedir mais. Ele agarrou-lhe nas ancas e respondeu com acometidas, impaciente agora pela conclusão que retrasara, tentando conter as complexas necessidades para que o não dominassem desta vez.
Ela gemeu com o movimento dele e enterrou o rosto no seu pescoço. – Mais força – sussurrou trémula. – Bem dentro de mim e por mim toda.
– Vou magoar-vos. Estais dorida.
– Não, meu amor. Se devemos separar-nos, quero sentir-vos durante dias. Semanas. Para sempre.
A sua voz abafada continha um tremor. Acariciando-lhe o rosto, sentiu uma lágrima. Uma ternura formidável verteu-se sobre ele, repleta de espanto por ela se importar ao ponto de sentir uma tal tristeza pela separação deles e o perigo que ele corria.
De súbito, ele não queria absolutamente nada dela, mas apenas dar o que quer que ela procurasse. Imerso com ela numa harmonia impregnada de prazer e alegria e dor, cingiu-a mais. Pressionando-a contra o seu coração desgovernado, sussurrou mentiras tranquilizadoras enquanto entrava nela.

CAPÍTULO 20


Ian olhou para o desenho preciso que David fizera no solo de terra da tenda. Mostrava uma imagem pormenorizada de Harclow como se vista por uma ave em pleno voo. Havia a torre de menagem quadrada com as suas outras quatro torres em cada um dos cantos, e a muralha interna que a rodeava. A alguma distância, corria a linha espessa da muralha exterior. De dois lados flutuava o lago, e David indicara mesmo a localização dos acampamentos que faziam o cerco no terreno circundante. Ian nunca vira algo semelhante, com todos os objetos vistos de cima e à escala. A maioria dos mapas não estavam desenhados desta forma.
– Esqueci alguma coisa? – perguntou David a Morvan, que também estudava a imagem.
Morvan abanou a cabeça. – Está mais do que exato.
– Ainda bem. Agora peço-vos que me ouçais. É provável que esta chuva dure alguns dias, por isso há tempo de o fazer agora, se concordardes.
Ian foi até à entrada da tenda e espreitou para a chuva miudinha que durante dois dias sofreara os ataques. Atrás dele, David começou a explicar o elaborado plano que haviam engendrado.
Sentindo-se desassossegado, Ian saiu da tenda para a chuva e atravessou o acampamento até onde conseguia avistar a muralha de Harclow. Espalhados ao longo desta estavam soldados de vigia, em menor número do que o normal por conta da chuva. A lama e a humidade só vinham tornar mais arriscado os perigosos trabalhos, e, de qualquer forma, o exército de Morvan precisava do descanso.
Durante semanas as investidas haviam continuado, as torres de assalto haviam avançado, as máquinas lançado os seus mísseis.
Dentro de Harclow, os homens não paravam de cair, como os de Morvan, e deviam estar muito reduzidos em número, mas o velho Maccus não se rendia.
Ian comandava em pessoa uma das torres de assalto desde que chegara. Era uma grande honra, e ter-lhe sido destinada surpreendera-o. Mas não fora honra que sentira ao aguardar lá em cima, de espada pronta, enquanto a alta construção de madeira era empurrada sobre rodas até à muralha. Outra coisa fervia-lhe no sangue então, tão premente que o seu nome não podia continuar escondido.
Medo. O seu poder insidioso surpreendera-o e ele não tinha experiência de lidar com aquilo. Mas sabia o que era, sabia-o na alma desde o dia em que saíra para defrontar Thomas Armstrong.
Quando tinha dezoito anos, conhecera um medo assim, tendo-lhe sucumbido completamente. Mas depois morrera nele, e a sua perícia em combate vira-se reforçada por esta liberdade. Outros podiam ficar acordados antes de uma batalha, antevendo a morte que aguardava, mas não Ian de Guilford. Outros podiam pesar o preço de acorrer em ajuda de um estranho em desvantagem na Batalha de Poitiers, mas ele nunca se dera a tais cálculos.
Até agora. Ao seu redor estavam veteranos que há muito haviam aprendido a controlar o medo, mas de repente ele voltava a ser um mancebo, manchado de sangue pela primeira vez, calculando riscos em que nunca reparara, dependendo de instintos nos quais já não confiava.
Deu a volta em direção ao lago, passando pelo trilho que conduzia à periferia do acampamento. Espreitou para as tendas que continham os mercadores, lavadeiras e rameiras que formavam a pequena cidade que despontara para servir os soldados.
Normalmente, num dia vazio como este, iria até lá e passaria uma moeda a uma mulher para quebrar a monotonia. Hoje, a noção de seguir esse caminho parecia-lhe de alguma forma obscena.
Por causa de Reyna.
Reyna. Ela estava no âmago daquilo tudo. Estava na sua cabeça mais do que nunca, e o medo ancorava-se firme àquelas imagens e pensamentos. Não o admitia a si próprio com qualquer rancor ou culpabilização. Apenas reconhecia a verdade enquanto caminhava pela lama até à margem do lago.
Para lá da extensão de água, viu o buraco na muralha exterior que David fizera com as suas bombardas. Haviam sido necessárias muitas tentativas até encontrar o ângulo que cuspiria as pedras redondas para lá do lago, mas depois David disparara projéteis para um dia inteiro, até a muralha fender e desabar. Fora uma experiência mais do que qualquer outra coisa, para ver se o impacto repetido afetava uma estrutura daquelas a tal distância.
Mas hoje, deitados nas enxergas na tenda que partilhavam, ele e David haviam descoberto uma forma de dar mais substância àquele feito.
Imagens de Reyna voltaram a apoderar-se dos seus pensamentos daquela forma insistente. Perguntou-se o que ela faria naquela mesma altura em Carlisle. Voltariam os pensamentos dela para as últimas horas que haviam passado juntos tantas vezes como os dele?
Meu amor. Parecera tão certo quando ela o dissera, apenas mais um cordão na intimidade perfeita que haviam partilhado naquela noite. Talvez ele não devesse dar demasiado peso a um simples carinho, mas naquela noite outra emoção exigira também ser nomeada, e o jovem temeroso, esperançoso, que ressuscitara dentro dele, queria a qualquer custo acreditar que estavam juntos naquilo.
Haviam sido palavras dela, não dele. Porque não as tinha ele pronunciado para ela, se não naquela noite, pelo menos no dia seguinte, antes de se separarem? Tê-las-ia deixado por dizer para se assegurar de que sobreviveria para as pronunciar mais tarde?
Estava o medo tão enlaçado no amor?
Medo. Era constante. O amor e o medo eram os dois lados de uma moeda transparente – impossível ver um lado sem que o outro interferisse na visão. De que tinha medo? De morrer, isso era certo.
De a perder, claro, fosse pela morte ou pela desilusão. De a amar?
Regressou pelo mesmo caminho. Ardia uma pequena fogueira do lado de fora da sua tenda por baixo de um toldo alto, e ele sentou-se num toco que estava próximo. Morvan saiu e acercou-se dele.
– Pensais que devemos tentar este plano, Ian?
– Não é mais perigoso para os homens do que qualquer outra tentativa de assalto. As muralhas do lago poucos homens têm. Se a surpresa for suficientemente rápida, pode resultar.
– Para isso nos prepararemos, então, e se a oportunidade se der, fá-lo-emos. Quero-vos junto de David nisto, contudo.

Ian lançou-lhe um olhar incisivo. Aparentemente, o medo não passara desapercebido a Morvan. Ele procurava uma forma discreta de o retirar da torre.
Morvan apanhou o olhar. – Não é isso – disse ele, mostrando ter reconhecido tanto a suspeita de Ian como o próprio medo. –
Sois engenhoso em termos de construção e estratégia, e, no seguimento do plano, pode haver lugar a mudanças súbitas. Entre David e vós, se algo correr mal, ainda pode haver recobro.
Eles nunca tinham desenvolvido uma amizade fácil, por isso ficou surpreendido quando Morvan voltou a falar. – Quanto à outra questão, não penso menos de vós. Todos os cavaleiros devem enfrentá-lo, mais cedo ou mais tarde, exceto aqueles a quem faltarem entendimento ou imaginação. Costumáveis lutar como um homem sem nada por que viver. Agora lutais como um homem com tudo a perder. Dos dois, prefiro ter o último a meu lado. – Morvan saiu para o acampamento antes de Ian poder responder, mas também não havia nada que dizer.
Ian regressou à tenda. Encontrou David sentado no catre, desenhando cálculos na terra com o seu ramo pontiagudo. – Vinte jangadas, diria, cada uma com tamanho para dez homens. Melhor um número bom de tamanho mais pequeno, para haver a possibilidade de mais chegarem ao outro lado.
Ian atirou-se para a sua própria cama. – Se as chuvas continuarem, as jangadas ficarão húmidas o suficiente para não serem incendiadas por setas de fogo. Ainda assim, é inevitável que algumas pereçam, por isso estais certo. – Estudou o mapa rabiscado no chão. – Isto só nos permitirá passar a primeira muralha, claro.
– Quantas vezes vistes fortalezas aguentarem-se depois de o inimigo passar a muralha?
Nunca, Ian teve de admitir. Mas o velho Maccus revelava-se um inimigo tenaz.
Ian tentou entregar-se ao descanso, mas ele não chegava.
Exasperado, levantou-se e dirigiu-se outra vez à entrada da tenda.
Talvez reunisse alguns homens para começar a trabalhar nas jangadas.
– Ela sabe? – perguntou a voz suave de David.
Ian virou-se, surpreso. Presumiu que David se referia aos seus sentimentos por Reyna. Sem dúvida os percebera, como ao medo.
– Não.
David continuou calmamente as suas cogitações. – Será inevitável ela saber. A história é mais conhecida do que pensais. Os homens da vossa companhia, por exemplo, estão cientes da maior parte dos pormenores. Se nunca o deram a entender, é porque receiam a vossa reação e a vossa espada.
Ian sentiu o sangue correr-lhe um pouco mais devagar. Com os seus modos impávidos e serenos, David acabava de abordar um assunto a respeito do qual Ian nunca falava. Talvez ele sempre tivesse suspeitado que a companhia sabia. Talvez fosse essa a razão pela qual ele evitava uma amizade próxima com qualquer um dos homens. Aí as perguntas seriam inevitáveis. E por fim o julgamento. Podia-se ser indiferente às opiniões de pessoas que não importavam verdadeiramente.
– Christiana. Falaria ela disso com Reyna? – perguntou Ian.
– Não, quanto mais não seja porque ela própria o ignora. Não estávamos em Londres quando se espalharam os rumores.
– Mas vós ouviste-los de qualquer forma.
– Soube antes disso. Quando vi o interesse de Elizabeth, empenhei-me em saber mais de vós. Corre todo o tipo de informação entre mercadores.
Ian sentiu um rancor frio. – E dissestes-lhe?
– Só o suficiente para ela saber a verdade quando a história vos seguisse para a corte, como acabaria por acontecer.
– Pensais que sabeis a verdade?
– Sei que éreis um rapaz que não queria morrer. Sei que o vosso pai devia ter colocado de lado orgulho e raiva. – Fez uma pausa. –
Sei que uma mulher má jogou um jogo elaborado e perigoso, e que ganhou. Qualquer mulher destas, em qualquer idade, é mais impressionante do que qualquer homem. Quando são jovens, nem sequer compreendem a destruição que causarão com os seus esquemas. – Bateu com o pau na bota. – Ela tem um filho, decerto sabeis, de nove anos de idade.
– Não é meu.
– Não, não é vosso. É a imagem do pai.
– O pai dele era ignorante e inocente.
– Se o dizeis. Não retirei conclusão nenhuma de qualquer destas coisas.
– Decerto sois o único que não o fez. As conclusões típicas são sórdidas e condenatórias.
– Percebi a verdade a primeira vez que ouvi a história.
Certamente que outros também.
– Vós tendes conhecimento do mundo. Tendes experiência daquilo que as pessoas podem ser.
– E pensais que a vossa mulher não? Talvez a subestimeis. Vejo-me continuamente surpreendido pela capacidade que as mulheres têm de ser compreensivas no que respeita aos seus homens. –
Voltou aos seus cálculos. – Penso que precisamos de cinco homens a trabalhar em cada jangada. Visto que dais provas de me enlouquecer com a vossa inquietude, talvez devêsseis ir escolhê-los.
Ian achou a ideia excelente. Voltou-se para sair, mas deparou com a figura imponente de Morvan a preencher a entrada. O
corpulento cavaleiro passou por Ian, trazendo um homem pelo cachaço. Com um movimento largo, atirou o homem para o chão. –
Vede quem encontrei de volta das tendas da vossa mesnada, Ian.
O homem encolheu-se aos pés de Morvan. Era Paul, um membro da sua companhia que fora enviado para Carlisle para proteger as mulheres.
– Que raio fazeis vós aqui? – inquiriu Ian.
– Só vim ver os rapazes um bocado, não foi? Nada de muito grave, a meu ver.
– O vosso lugar é em Carlisle.
– Estava a ficar aborrecido.
– Aborrecido – trovejou Morvan. – Por Deus, se alguma coisa aconteceu à minha mulher ou à minha irmã por causa da vossa negligência…
– Se aconteceu, não é culpa minha. – Paul ergueu um braço para aplacar o golpe que a raiva de Morvan prometia. – Não consegui impedi-las de partir, não com todas tão determinadas, e a grande, bem, mostrai-me o homem que quer tentar dizer-lhe a ela o que fazer. E pelo menos levaram Gregory com elas, e insistiram que não seria por muito tempo. E eu sugeri que talvez devia vir dizer a Sir Ian pelo menos, mas Lady Reyna foi muito insistente, que eu não devia incomodar ninguém por uma coisa tão pequena, e a mais morena concordou, e a grande, bem, quando foram embora ela praticamente me ameaçou, ficou especada a olhar para mim com má cara e pôs a mão no punhal e disse-me para obedecer às ordens delas que tudo correria bem.
A expressão de Morvan fez-se mais sombria. – Dizeis que as senhoras saíram de Carlisle?
– Sim, é isso que estou a tentar explicar. Meteram-se num barco e ordenaram-me que ficasse em casa, mas comecei a ficar muito aborrecido de estar ali parado naquele sítio vazio só com aquela megera daquela criada. Então decidi que uma visitinha rápida até aqui não faria mal.
– Isto é obra de Lady Anna – disse Ian. – Ela não queria ir para Carlisle, e só lhe faltou insultar-me quando lhe transmiti as vossas instruções, Morvan.
– Não acuseis a minha mulher de incitar isto, Ian.
– Sugeris que Reyna forçou Anna a partir? C’os diabos, Morvan, a vossa mulher podia pegar nela com um braço.
– Talvez devêssemos descobrir para onde foram todas –
interrompeu David. Pôs Paul em pé e limpou-lhe a roupa com algumas sacudidelas solícitas. – Sabeis para onde se dirigiram?
– Penso que ouvi falar em Glasgow. Uma viagem rápida na sua maior parte por mar, garantiram-me.
Dois maridos olharam para Ian com irritação. Apenas Reyna teria interesse ou razão em ir para Glasgow.
– Sem dúvida que Anna alinhou para se distrair e Christiana foi a reboque para olhar pelas duas – disse David secamente.
– Irei atrás delas – atalhou Ian. – Não podeis sair daqui, Morvan, e com esta chuva não precisareis de mim durante alguns dias.
Morvan assentiu com a cabeça. – Levai mais alguns cavalos convosco, Ian, e pelo menos dois homens. Quando as encontrardes, enviai-me um homem asinha com novas da sua segurança.
– Irei convosco – disse David.
– Não, David, ficareis aqui – rebateu Morvan. – Convencestes-me deste vosso plano e agora ganhei-lhe gosto. É necessário que vigieis os preparativos. Ian, quando encontrardes Anna, dizei-lhe por mim que estou muito desagradado e que deve regressar imediatamente convosco. Quanto a Lady Reyna, deixo-a a vós.
Agarrando Paul pela ombreira, Ian arrastou-o até à fogueira. –
Quando partiram elas de Carlisle?
– Há sete dias.
Sete dias. Visto que haviam rumado a norte de barco, estariam brevemente em Glasgow. Demoraria tempo de mais ir por Carlisle e pelo mar. Ele teria de atravessar terras dos Armstrong. A toda a brida, podia chegar a Glasgow antes de elas partirem.
– Gregory ia ficar com elas a viagem toda?
– Sim. E Lady Anna levou um arco e uma espada. Vestiu-se como um homem, também, mas também ela faz sempre isso, o que é estranho numa mulher, não que ela pareça assim tão peculiar, por qualquer razão…
– Por que raio não viestes imediatamente avisar-me disto, Paul?
Ainda que não pense que lhes tenha acontecido alguma coisa, se sim, não posso proteger-vos de Morvan.
Paul olhou cauteloso por cima do ombro. – Teria explicado dentro da tenda, mas ele estava pronto a matar, não estava? E não melhorava nada atirar achas para a fogueira.
– Falai claro, homem.
– Bom, eu presumi que já sabíeis que elas tinham ido para Glasgow. Mandei o vosso homem dizer-vos na volta, não foi? Não havia razão para eu vir logo para vos dizer, se ele o ia fazer.

Um arrepio correu pela espinha de Ian. – O meu homem? que homem?
– O que veio há cinco dias com uma mensagem vossa para Lady Reyna. Não era da nossa companhia, mas imaginei que Morvan o tinha dado a vós. Ele apareceu a perguntar por ela, disse que tinha uma mensagem e um presente para ela da vossa parte.
– Eu não mandei homem nenhum, Paul.
– Não? Então quem…
– Que lhe dissestes?
– O mesmo que vos disse agora a vós, aonde tinham ido e quando.
A cabeça de Ian quase explodiu quando amor e medo se fundiram e se transformaram numa fúria dilacerante.
– Descrevei este homem.
– Cabelo claro, altura média e entroncado, é tudo o que lembro.
Escocês, diria pela fala dele, mas os «erres» não eram tão carregados, por isso achei que fosse das terras fronteiriças, e um dos homens de Sir Morvan.
Talvez tivesse sido Edmund, seguindo Reyna até Carlisle para continuar a persuadi-la, mas nem Edmund nem Reginald, que Ian soltara antes da partida, correspondiam à descrição de Paul. Nem Thomas Armstrong tinha o cabelo louro. Mas tanto Thomas como Edmund poderiam ter feito chegar por alguém a mensagem que conduziria Reyna às suas mãos.
A constatação de que Reyna poderia correr um perigo real quase lhe desarranjou os pensamentos, mas ele forçou-se a uma análise cuidadosa. Provavelmente devia informar Morvan disto, mas se o fizesse, Morvan conduziria o exército para Glasgow.
Tudo aqui se desfaria e na fronteira seria um inferno. Nem diria a David. O estranho aparecera em Carlisle a perguntar por Reyna, porque era Reyna quem procurava. Edmund empenhado na sua causa? Ou Thomas procurando vingança pela morte de Robert?
Avançou determinado para o acampamento da sua companhia.
Levaria mais do que dois homens, e cavalos e armas que bastassem. Se cavalgassem a sério, poderiam chegar a Glasgow antes de que quem perseguia Reyna a encontrasse.

CAPÍTULO 21


Reyna aguardava num banco na antecâmara do gabinete do bispo, aguilhoada por um presságio inquietante. A decisão de vir até Glasgow parecera-lhe muito sensata quando a tomara.
Permanecer em Carlisle tornara-se entediante, e factos importantes a respeito dos últimos meses de Robert podiam ser conhecidos neste sítio. Porém, agora, na iminência da reunião, perguntava-se se investigar as intenções privadas de Robert seria avisado.
Abriu-se uma porta lateral e um clérigo jovem entrou. Direito e rígido nas vestimentas largas, tinha cabelo escuro e olhos castanhos, toldados por uma expressão leniente. – Sou Anselm, um dos escriturários do bispo, senhora. O padre Rupert disse que vós insististes que tínheis assuntos urgentes.
Reyna nunca se apercebera de como era difícil ver um bispo, e as suas diligências junto dos vários oficiais tinham-se tornado algo exageradas durante a última hora. – É urgente para mim, já que não posso ficar muito tempo em Glasgow.
– Então lamento desapontar-vos. Como vos informaram, o bispo não está cá, mas sim a norte, onde contamos que permaneça durante algum tempo por assuntos da igreja.
– O padre Rupert pensou que talvez vós pudésseis ajudar-me. É
informação o que procuro, não a dispensa ou decisão de um bispo.

Anselm acomodou-se numa cadeira próxima, olhando-a enquanto alisava as vestes com dedos fastidiosos. – Ouvir-vos-ei, mas a maior parte dos assuntos do bispo são confidenciais.
– Espero que este não o seja. O meu nome é Reyna Graham. O
meu marido era Robert de Kelso, que detinha as terras fronteiriças de Black Lyne através de Maccus Armstrong. O meu marido morreu há vários meses. Pouco depois da sua morte, chegou uma carta do bispo. – Reyna descreveu a carta e a referência ao pedido de conselho de Robert.
– Lembro-me bem dela, já que a escrevi para Sua Excelência –
disse Anselm.
– Ninguém sabe a que se referia – explicou Reyna. – Se o meu marido tinha algum desejo ou vontade antes da sua morte, gostaria de saber, para que a sua vontade seja feita.
Anselm ignorou-a durante um pronunciado período de contemplação. Reyna começou a sentir-se ansiosa. Talvez o secretário hesitasse por o pedido de Robert de facto lhe dizer respeito. Era possível que tivesse conhecido tão pouco da mente e do coração do seu marido?
– É provável que vo-lo consiga explicar, Lady Reyna, mas primeiro tenho uma pergunta. Como dispõe o testamento do vosso marido das suas posses?
– As terras foram-me deixadas, embora seja questionável se o suserano aceitará que assim o seja – explicou ela, decidindo que falar da tomada do castelo e do seu casamento com Ian não serviria nenhum propósito.
– Não as terras, as suas posses pessoais.
– Também isso ficou para mim.
– Nesse caso, não vejo objeção em falar convosco. – Pôs-se mais confortável na cadeira, se se pode falar de conforto num homem com uma postura tão rígida. – O vosso marido escreveu uma carta que recebemos faz cinco meses. Nela, explicava que tinha posses que não eram dele por direito, e das quais pretendia desobrigar-se de forma honrada antes de morrer, para não interferirem com a propriedade. Queria dar estas posses a um mosteiro envolvido na educação dos jovens. O bispo tinha intenção de falar com os padres dominicanos aqui de Glasgow para tomar as disposições necessárias, mas outros assuntos o afastaram daqui.
– O meu marido descreveu estas posses?
– Não, mas ficou claro que não se tratava de terra. Referia-se a
«estas» em diversos pontos da carta. Sentia que lhe aliviaria a consciência ter o assunto tratado, com a morte tão próxima na sua idade avançada.
«Estas». Não era terra, mas sim objetos. – Indicou ele o valor destas posses?
– A sua carta indicava alguns milhares de libras, três ou quatro.
Objetos. Úteis na educação.
Livros.
Ela sabia que a biblioteca era valiosa, mas não tão valiosa.
– O meu marido mencionou como ficou na posse destes objetos?
– Não, mas o pedido não é incomum. Os homens ganham em piedade e sabedoria à medida que envelhecem. Procuram redimir-se de transgressões da juventude.
Reyna olhou-o nos olhos. – Pensais que essas posses são resultado de roubo, não pensais?
– O mais certo é terem sido obtidas no seguimento de um cerco ou batalha. Poucos cavaleiros ou soldados se ficam pelo pouco que os senhores pagam, e muitas vezes o pagamento nem chega a dar-se porque estes presumem que os primeiros enriquecerão o suficiente dessa forma sem custo para eles. Na verdade, a maioria dos barões reclama um terço desses despojos.
– Mesmo assim, dizeis que o meu marido era ladrão. Pouco melhor do que um salteador – rebateu ela veementemente.
– O que é roubo numa circunstância são despojos de guerra noutra – disse Anselm. – A Igreja urge os homens a absterem-se de o fazer, mas é um pecado pequeno se a guerra for justa. Até os Cruzados… E o vosso marido, contrariamente à maioria, procurou a restituição. Seria impossível devolver estas posses aos donos após tantos anos, por isso quis dá-la à Igreja, pelo seu trabalho.
– Não sabia que a Igreja havia decidido que o pecado estava condicionado às circunstâncias. Devo lembrá-lo no futuro. Sem dúvida se revelará conveniente.
Anselm suspirou. – Procuro apenas aliviar-vos da vossa óbvia aflição.
Aflição não bastava para descrever a reação dela. Robert, querido, bom, honesto Robert, vivera uma vida muito diferente antes de chegar à fronteira escocesa e entrar ao serviço de Maccus Armstrong. Havia ocorrido uma vida antes de ela o conhecer, e ele pusera-a para trás das costas, exceto a prova da qual não conseguia separar-se, os livros que tanto amava.
Livros roubados. O que pensara ele enquanto estudava os imperativos morais que eles continham, quando a própria posse deles desafiava aquelas verdades?
As desculpas de Anselm podiam ter-lhe servido. Tal como lhe poderiam servir a ela agora, se chegasse a convencer-se de que aqueles livros haviam sido saque de uma guerra justa. Mas pairava a possibilidade de Robert ter de facto sido ladrão ou salteador enquanto jovem. Exatamente como Ian de Guilford, ou até pior.
Perante a ironia, ela fez uma careta. Andava a comparar Ian com um homem idoso que, na sua juventude, fora igualmente implacável.
– Penso que sei a que posses se referia o meu marido. Se era desejo de Robert que estes itens fossem dados à Igreja, diligenciarei para que isso aconteça. – Levantou-se para se retirar.
– Dar-me-íeis uma carta explicando o assunto? Seria mais fácil concretizar a doação se o pedido dele estivesse clarificado.
– Se vós herdastes…
– Voltei a casar recentemente.
As sobrancelhas negras do jovem ergueram-se, compreensivas.
Foi até à mesa. – Se voltastes a casar-vos, os bens já não são vossos – disse enquanto escrevia. – Se algum bem pode trazer, aqui está. Não deixeis isto converter-se num ponto de discórdia no vosso casamento, contudo. Raro é o homem que se desfaria da riqueza que lhe coube através da mulher.
Reyna agarrou o pergaminho que provava que Robert nunca procurara pô-la de parte. Quanto ao último comentário de Anselm, não tinha ideia alguma da reação de Ian à concretização da última vontade de Robert. Provavelmente recusaria, depois de saber o valor dos livros.
Pensando melhor, talvez um bandido sentisse especial simpatia pela busca de salvação de outro bandido.
– Deus está a punir-nos por desobedecermos aos nossos maridos e termos saído de Carlisle – murmurou Christiana, espreitando pela janela do quarto de dormir. – Esta chuva há dias que corre, e parece que vai durar para sempre. – Dirigiu-se a Reyna. – Quando Anna voltar, temos de lhe dizer que partiremos de manhã. O que é de mais é erro.
Reyna deu uma volta na cama e fitou o teto. Esta viagem só se dera porque Anna, procurando um interregno de atividade e aventura, apoiara a sua decisão de a fazer. Atendendo às circunstâncias, parecera justo conceder a Anna mais um dia em Glasgow.
Por si, Reyna teria partido satisfeita no dia anterior, depois de regressar da casa do bispo. Tendo cumprido a missão, ansiava regressar a Carlisle. Talvez pudesse enviar uma carta a Ian, dizendo-lhe o que havia descoberto. Talvez, se a chuva tivesse travado as movimentações em Harclow, ele pudesse ir vê-la. A ideia de que ele pudesse já ter tentado fazê-lo, chegando a uma casa em que não se encontrava ninguém a não ser Paul e a criada, entristecia-a, e ela já se sentia abatida devido à recente descoberta sobre Robert.
Ele nunca a enganara, lembrou-se novamente. Ela nunca fizera perguntas sobre aquela história antiga e ele não lhe contara mentiras. Porventura só uma rapariga que confiava num homem como confiaria num pai teria aceitado a presença de todos aqueles belos livros sem questionar, mas assim havia sido.
– Aqui estão eles – anunciou Christiana. – Parecem dois pintos encharcados, e o rosto de Gregory está verde de raiva, mas Anna parece radiante. Tendes de me apoiar. Se não a encurralarmos agora, estará a levar-nos para as Terras Altas antes da semana terminar.
Encurralar uma Anna rebelde revelou-se tudo menos fácil.
Recordou a Reyna que deviam tirar o maior partido dos apuros que as aguardavam com os maridos, e, de facto, propôs uma viagem até Argyle. Christiana repreendeu-a e tentou persuadi-la, mas foi a sugestão de Reyna, da chuva poder possibilitar a visita dos maridos, que venceu a discussão. Passaram o serão em preparativos para regressar à costa.
No dia seguinte, saíram da cidade de Glasgow, Anna assemelhando-se tanto a um guarda como Gregory, envergando túnica, e capuz, e com uma espada presa à sela. A chuva parara, mas nuvens pesadas prometiam mais. Christiana mantinha uma conversa amena, aligeirando a disposição que ameaçava afundar-se sob o desconforto da humidade e da lama.
A cinco quilómetros da cidade, a conversa aquietou-se e, no silêncio súbito, resmungou um trovão distante. Anna sofreou o cavalo e escutou com uma atenção alerta. O trovão aproximava-se com demasiada rapidez, e ela deu a volta ao cavalo, gritou um aviso a Gregory, e desembainhou a espada. Reyna olhou por cima do ombro e deparou com uma tropa de homens galopando na direção deles.
– Para a berma da estrada – ordenou Anna, pousando a espada na sela. – Deixai-os passar.
Infelizmente, a companhia não manteve o ritmo. Os homens detiveram-se, continuando depois a trote. Quando estavam a cem passos de distância, Reyna reconheceu o homem à cabeça e a surpresa deixou-a sem fôlego.
Ele avançou e parou à distância de um cavalo. – Então, irmãzinha. Que fazeis tão afastada da proteção do vosso marido?
– Fui visitar Glasgow. E vós, Aymer? É um sítio bizarro para vos encontrar de imprevisto.
– Tenho andando à vossa procura. Busquei-vos em Carlisle e, sabendo que fizéreis esta viagem, preocupei-me com a vossa segurança.
– Que fraterno.
Os doze homens de Aymer fecharam-se à volta deles, impossibilitando a fuga. Anna segurava a sua arma com firmeza.
Pelo canto do olho, Reyna viu Gregory a medir a situação e a não gostar do que via.
Um dos cavaleiros de Aymer acercou-se de Anna, semicerrando os olhos. A ponta da espada dela seguiu-lhe o movimento.
– Por Deus, é uma mulher – exclamou ele, arrancando-lhe o capuz. Caracóis louros caíram-lhe pelos ombros. – Já vistes alguma assim tão grande? Bonita que chegue, embora de estranha maneira.
Os outros homens riram. – Sim, mulher que chegue para todos nós, talvez – casquinou um.
– Mulher que chegue para cortar a virilidade a quem quer que toque em nós – disse Christiana com frieza.
– Parai imediatamente com isto, irmão – disse Reyna. – Se mal algum recai sobre alguma delas, Morvan entra com o exército nos montes, e a fortaleza do meu pai não é Harclow.
Anna arremetera a ponta da espada contra o pescoço do cavaleiro, fitando-o pelo seu comprimento.
– Nós somos muitos mais, cabra – rosnou ele, inclinando cabeça e pescoço para longe da ameaçadora arma.
– Porventura. Mas vós ides afastar-vos ou vós ides seguramente morrer – respondeu ela.
Uma comoção súbita viu Gregory acometendo na direção deles, espada no ar, expressão determinada. Um dos cavaleiros lançou-lhe o cavalo no caminho e, com um movimento largo, fez bater a face da espada na fonte de Gregory. O guarda afundou-se na sela e depois caiu desamparado ao chão.
O ataque fez Aymer decidir-se a concluir o pequeno drama. –
Condessa, tenho assuntos com a minha irmã que requerem que ela me acompanhe. Vós e Lady Anna sois livres de continuar o vosso caminho.
– Se ela vai, nós também – disse Christiana. – Completamos esta viagem como a encetámos, juntas.
– É assunto de família, senhora, e não respeita a nenhuma de vós. Se insistirdes nesse disparate, farei que vos amarrem ambas a uma árvore.
– E deixadas aos ladrões ou aos animais? Ou Reyna continua connosco, ou nós convosco. E seria avisado da vossa parte tomar o maior cuidado com as nossas pessoas e a nossa saúde. O meu irmão tem dois mil em Harclow, e se vier atrás de vós não haverá piedade. Quanto ao meu marido, os seus métodos são mais subtis.
Não sabereis sequer que ele lá está até lhe sentirdes a bota em cima do pescoço. – O tom gélido que cristalizou estas palavras serenas foi tanto mais eficaz quanto a figura que as proferia era cortês e delicada.
Reyna estava impressionada. Aymer também. Fitou Christiana, rubro, depois deu furiosamente a volta ao cavalo. – Trazei-las todas – ordenou. – Deixai o homem.
Reyna e Anna puseram-se ao lado de Christiana. – Foi muito corajoso, minha amiga, mas é desnecessário – disse Reyna. – Não me farão mal.
– Certamente pensará duas vezes agora, se planeara fazê-lo –
murmurou Anna. – Pensais que aquele guarda estólido, Paul, guardou de facto segredo sobre a nossa partida?
Christiana revirou os olhos. – Dado que só vos faltou ameaçar cortar-lhe a garganta…
– Ainda assim, podia ter chegado um mensageiro.
– Mesmo que os nossos maridos tenham descoberto que saímos de Carlisle, não saberão para onde viemos agora. Não, irmã, podemos estar sozinhas nisto.
– Voltai para trás – incitou Reyna.
Christiana abanou a cabeça. – Não confio neste vosso irmão.
Estareis mais segura connosco presentes. Seria útil saber para onde vamos e porque vos quer ele, porém.
Reyna instigou o cavalo ao trote e deslocou-se pela pequena tropa até ao lado de Aymer.
– Regressamos a Glasgow? – inquiriu.
– Não, mas iremos para oeste e depois para sul. Levo-vos para casa.
– Para Black Lyne?
– Para casa. Não pertenceis junto dos Armstrong e dos Fitzwaryn, Reyna. Regressareis para a vossa família.
– O meu pai tem assim tantas saudades de mim?
– Duncan é um velho. Uma doença já lhe come as entranhas. Ele não tem determinação para fazer o que tem de ser feito, por isso cabe-me a mim.
– E o que é, Aymer? O que se passa?
– Terra, pequena Reyna. Não é sempre a terra? O Diabo deve ter possuído Duncan para ele dar o que deu como vosso dote.
Durante anos esperei que o velho Robert morresse para que voltasse para vós como arras, e através de vós para nós.
Ela suspirou com a previsibilidade de Aymer. – Quão impaciente estáveis, Aymer? Arranjastes maneira de apressar o seu falecimento?

– Tivesse eu meio de o fazer. Interessante perguntardes, Reyna.
Sempre presumi que o havíeis matado vós.
– Não tinha por que o fazer.
– Ai não? – perguntou Aymer, manhoso. – Ele era velho quando vos casastes com ele e mais velho quando chegastes à idade adulta.
A vossa mãe era uma rameira, e tal é provavelmente a vossa natureza também. Aquelas mãos frias contentavam-vos? Penso que não, se com tanta brevidade achastes forma de entrar na cama daquele cavaleiro.
O tom e o olhar dele fizeram-na sentir-se muito desconfortável.
– É bom que mencioneis Ian, já que as arras que pensais controlar através de mim agora lhe pertencem.
– Não se ele estiver morto.
Ela rodou na sela. – Vós não…
– Ainda não. Conto que venha atrás de vós, porém. Deixai-lo trazer a mesnada inteira, ou até mesmo metade do exército que Fitzwaryn reuniu, desde que ele próprio venha. – Inclinou-se e acariciou-lhe o rosto. Ela afastou-se enojada. – Tendes sangue de rameira, Reyna. Conto que lhe tenhais agradado o bastante para ele vir de facto resgatar-vos.
– Sois nojento por falardes assim da vossa irmã.
A mão ficou-lhe no rosto e voltou a afagar. – Porventura. Mas, afinal, vós não sois realmente minha irmã.

CAPÍTULO 22


Frio. Frio húmido e escuridão eterna. Vozes murmurando nas pedras, e mãos estendidas para ela, espicaçando-a. Risadas sumidas, agora mais baixas, próximas, e outras mãos, não a espicaçar mas a acariciá-la, convocando um novo terror que ela não compreendia. Uma nova voz, não a voz etérea de um espectro mas uma voz viva, rindo de prazer face ao seu medo. Não sois realmente minha irmã.
Ela encostava-se às pedras, sentindo tudo, ouvindo tudo, mas era diferente desta vez. A sua alma não experimentava nenhum do terror. Uma minúscula parte dela desta vez permanecia racional, observando o velho medo desdobrar-se à sua volta, dentro dela, como se observasse um espetáculo.
Pernas encostaram-se às suas e mãos seguraram nas dela.
Pernas reais e mãos reais, ancorando-a a um espaço e a um tempo, evitando que os seus sentidos escapassem ao seu controlo.
– Ele não pode manter-nos aqui para sempre – interferiu uma voz. Uma voz real. De quem? Ah! de Anna. – Nem sequer uma vela. Qual o propósito?
– Guarda-me aqui até Ian vir – Reyna ouviu-se dizer.
Certamente havia explicado isto antes, da primeira vez que acamparam e dormiram juntas com a espada de Anna no meio delas. Fazia uma eternidade, antes de a viagem as trazer até aqui uma noite, e Aymer as aprisionar a todas. Tinham-lhes trazido comida, parecia recordar-se, mas Aymer não havia regressado.
– Ainda assim, podia dar-nos velas. Esta cripta desassossega-me.
Sim, a cripta. Era onde estavam, aninhadas no chão de pedra, encostadas à parede fria. Se o sítio desassossegava até a corajosa Anna, talvez ela não precisasse de se sentir assim tão infantil.
A mão de Christiana segurou com mais força as dela. – Estais a portar-vos bem, Reyna – sossegou.
As vozes das pedras responderam com os seus murmúrios inaudíveis. Riso agudo feria-lhe os ouvidos. Ela agarrou-se à mão delicada de Christiana, lembrando-se vagamente desta a bater-lhe no rosto enquanto gritos de alguém enchiam a câmara pequena.
Ela reuniu coragem, a pouca que havia, e a sua alma escutou as vozes. Houvera algo familiar nelas da última vez, algo humano. Ela incitou-as a acometerem novamente sobre ela, e encostou as pernas às das amigas. Vinde, c’um raio.
E vieram. As pedras ecoando os seus murmúrios, o som convocando memórias há muito fragmentadas sob o terror.
Ela estava num sítio escuro e coisas invisíveis e pontiagudas tocavam-lhe uma e outra vez. Um dedo invisível contornava o seu corpo e um riso de rapaz comprazia-se com o seu medo. As próprias pedras ganharam mãos e braços, e sempre que ela se voltava estes estavam por trás dela, espetando-a até um aterrorizado frenesim. A sua própria voz gritava baixinho por ajuda e depois aquela voz jovem falou, subitamente entediada. Agora ficai aqui, ou os demónios apanham-vos. Vou lá fora ver.
Mas ela não ficou. Corria pela escuridão, atrás dos passos em retirada…
– Há quanto tempo achais que estamos aqui? – perguntou Anna.
Desde sempre, talvez. Não havia tempo, aqui. Uma hora podia ser uma semana, uma semana não mais que uma hora. A escuridão engolia o tempo.
– Pelas refeições, vários dias, mas durmo a espaços, e não sei dizer se é noite ou dia – respondeu Christiana.
Reyna ouvia as vozes suaves das suas companheiras. Ambas lhe agarravam ainda nas mãos e aquele aperto suave era muito real agora.
O espaço e o tempo haviam-se acertado. O espetáculo terminara, mas ela vira a fonte e a causa daquele horror. Talvez houvesse sido apenas uma brincadeira de crianças para Aymer, a princípio, mas o gosto do medo alimentara-lhe a crueldade ao longo dos anos. Não admirava que a sua alma se encolhesse perante a mera presença dele.
Contudo, ela sabia que havia mais. Algo provocava a sua mente, tentando-a como um dente doído em que se mexe apesar da dor.
Tratarei disto hoje, decidiu ferozmente. Verei tudo o que há e isto deixará de me governar.
Ela cravou os olhos na escuridão, incitando-a a avançar.
Libertando as mãos que seguravam as dela, abstraiu a sua mente da presença das companheiras.
A princípio, a escuridão saudou-a benignamente, um vazio oco, mas depois, lentamente, subtilmente, ganhou vida. As vozes surgiram de novo, baixas e distantes e não tão ameaçadoras. Até os gritos, que pareciam os seus, estavam longe. Ela corria, corria, na direção dos sons, seguindo o raspar de passadas.
Subitamente o medo era novo e fresco, e o coração que sentia dentro dela não era de mulher mas sim de criança. Ela corria como um raio, aliviada, em direção a uma qualquer luz na distância.
Arquejou quando o sol quase lhe cegou os olhos e a imagem horrível lhe preencheu a mente. Por um átimo, a imagem dela, inerte e morta, mãos pendendo ao lado do corpo, rosto contorcido e roxo, acendeu-se à sua frente. Não é isto. Este é o outro pesadelo, não é este.
Mãos esticaram-se para ela, afastando-a, de volta à escuridão.
Abanavam-na com dureza, e agarraram-lhe o rosto. – Estamos aqui. Estamos aqui – sossegou uma voz firme.
Anna apertava-a contra si e Christiana falava-lhe suavemente ao ouvido. Ela ficou assim por breves momentos, e depois afastou-se.
– Estou bem. Acabou. Não tornará a acontecer.
– Temos de a tirar daqui – disse Christiana.
– Sim, tendes de me tirar daqui, mas não por causa disto – disse Reyna. – Talvez Aymer procurasse pôr-me louca. Assim seria fácil fechar-me e esquecer-me, e quem se importaria? Mas não funcionou, nem funcionará. Acabou, digo-vos.
– Visto que isso é mais do que haveis dito desde que nos atiraram para aqui, sinto-me inclinada a acreditar em vós – replicou Anna.
– Mas, de todo o modo, temos de sair – repetiu Reyna. – Ele pretende matar Ian. O mais provável é ser um desafio para combate individual, mas ele terá um plano para assegurar a vitória, e não será uma luta justa. – Ela contemplou a situação precária delas. – A cripta fica por baixo da capela, que fica fora da muralha e perto da floresta. Pergunto-me se Duncan sabe sequer o que Aymer anda a fazer.
– Não importa. Se sairmos, corremos – atalhou Anna. –

Lembrais-vos destes montes, Reyna? Conseguis levar-nos para oeste?
– Penso que sim. Passou muito tempo, mas os caminhos não podem ter mudado muito.
– Como saímos? – perguntou Christiana. – Tentastes a porta depois de eles nos trazerem para aqui, Anna, e vistes que estava trancada. Sem dúvida há pelo menos um guarda lá fora, e eles tiraram-vos a espada.
– Esperemos que haja de facto um guarda – disse Anna. – Não mais do que um se tivermos sorte, porém. Se conseguirmos que ele abra a porta… Isto é uma cripta. Deve haver algo com que lhe bater. Um crucifixo, uma placa de pedra, alguma coisa…
Ergueu-se
e
começou
a
deambular
pelo
pequeno
compartimento. – Aqui está alguma coisa. Uma cruz de pedra. –
Grunhiu com o esforço e depois blasfemou. – É pesada de mais para mim. Detesto dizê-lo, mas bem nos fazia jeito um homem forte agora.
– Já que não cuidámos de trazer um, parece que estamos presas aqui – concluiu Christiana.
– Não. Atiramo-nos a ele todas de uma vez. Mas precisamos da porta aberta. Sois vós quem vais fazê-lo, Christiana. Oferecei-lhe um beijo ou algo assim. A oportunidade de ter uma condessa deve fazê-lo esquecer o dever.
– Ó, santos me acudam – murmurou Christiana. – Tomai tento para derrubar este guarda antes de chegar a um beijo que seja, quanto mais ou algo assim.
Elas juntaram-se e lá subiram as escadas. Christiana assumiu a sua posição, e Reyna e Anna encolheram-se contra a parede ao lado da escadaria.

Christiana arranhou a porta. – Por favor abri a porta por um breve momento, gentil senhor. Não me sinto bem de todo. As minhas companheiras perderam já os sentidos, e temo que todas morramos se não tivermos de imediato algum ar fresco.
A porta de carvalho abriu uma frincha, e uma luz ténue escorreu pelas escadas. A cabeça do guarda bloqueava parte dela.
– Podíeis abri-la apenas um pouco mais? Estou certa de que elas recobrarão com um pouco mais de ar. Se fordes generoso nisto, ficarei grata.
– Lamento condessa, mas as minhas ordens foram…
– Ficarei imensamente grata.
– Bom… se as senhoras estão assim tão mal – murmurou o guarda. – Não era intenção causar-vos dano.
O vulto do guarda desapareceu da frincha. Momentos depois, a porta abriu-se completamente e a sua forma escura encheu a entrada.
Elas investiram.

CAPÍTULO 23


Deitaram-no por terra, soterrado num emaranhado de corpos tenros, imerso num caos de mãos a agarrá-lo e membros a contorcerem-se e sussurros femininos excitados.
– Agarrai-lhe no braço da espada… não, esse é o meu, agarrai o dele.
– Alguém se sente no peito dele.
– Raios, este filho de uma égua é grande.
– Senhoras…
– Apanhei-lhe a espada…
– Senhoras.
O furação estacou a meio fôlego. Surpresas, três cabeças enluaradas viraram-se de rompante.
– Ian?
Ian identificou as várias mulheres esparramadas em cima dele. –
A pequena agarrada ao meu braço é minha mulher, e a grande que me encosta a espada à garganta deve ser Anna. Quer dizer que o traseiro que me esmaga o peito pertence à condessa de Senlis.
Quiçá, condessa, possais ter a amabilidade de…
O traseiro deslocou-se rapidamente. As mãos cerradas apartaram-se. Puseram-se todas em pé.
Anna devolveu-lhe a espada, e uma luz pálida refletiu-se nela.

Infelizmente, isso fez com que os seus homens viessem em seu socorro.
– Para trás! – sussurrou-lhes rispidamente Ian, aproximando-se de Reyna e puxando-a para a proteção do seu corpo.
Reyna derreteu-se de imediato no santuário do seu corpo, apertando-o contra si, enterrando o rosto no peito dele. Ele envolveu-a nos braços, apreciando a sensação da sua forma pequena e do seu calor de mulher. Ela estava aqui, muito viva e real, e o seu venturoso alívio igualava o dela.
Ele beijou-a na cabeça uma vez e outra enquanto encaminhava o grupo para fora da capela, para o abrigo das árvores.
– Agradeço-vos terdes distraído o guarda, Reyna. Debatia-me entre confrontá-lo e ver se vós estaríeis aprisionadas naquela cripta, ou limitar-me a marchar até à torre exigindo a vossa libertação. Em qualquer das hipóteses, teria tido os Graham todos em cima de mim.
– Como nos encontrastes?
– Soube por Paul que havíeis ido para Glasgow e que alguém fora atrás de vós. Quando lá cheguei encontrei Gregory, e ele contou-me o resto.
– Gregory está bem?
– Conseguiu voltar a Glasgow. Como eu não sabia em que estalagem havíeis ficado, decidi localizar-vos procurando por ele nas tavernas e lugares que tais. Encontrei-o no segundo bordel onde fui, esticado na cama como um príncipe, com as rameiras a deleitarem-se com a oportunidade de brincar às mães e enfermeiras.
Anna chegou-se para mais perto. – Imagino que não haveis trazido mais cavalos? Já que há pouco não fomos muito silenciosas, em breve andarão à nossa procura.
– Trouxe, mas deixei-os a caminho. Cavalgámos sem parar e mudámos para os cavalos mais descansados quando os nossos não conseguiam ir mais longe. As senhoras terão de se emparelhar connosco. Os cavalos não estão longe.
– Não é Duncan que está a fazer isto, mas apenas Aymer, tenho quase a certeza – disse Reyna. Se ele vier, pode ter apenas os homens que levou para Glasgow, e não aqueles que ainda são leais ao meu pai.
– Duncan decerto deve ter sabido que vós estáveis ali.
– Aymer nunca nos levou para dentro da muralha, deixou-nos imediatamente na cripta. Duncan pode não estar ao corrente.
A mão dele apertou-se mais no seu ombro. Ele estivera preocupado com maus-tratos físicos, mas dias na cripta podiam tê-
la maltratado de formas que varas e punhos nunca conseguiriam. –
Vós… como…
– Não recordo muito, mas Anna e Christiana ajudaram-me. Por fim, consegui enfrentar tudo. Foi muito o que se tornou claro.
Tenho tanto a dizer-vos.
– E eu tenho muito a dizer-vos, mulher. – Voltou a sentir o travo da preocupação que se apossara dele enquanto corria a toda a brida pelos montes, descuidando segurança e prudência ao cavalgar por terras Armstrong para ganhar tempo. – Foi-vos dito que ficásseis em Carlisle.
Ela aconchegou-se contra ele de forma tão amorosa que o pico de raiva foi pequeno e breve. – Foi idiota, Ian, não o negarei. E, contudo, aprendi tanto. Penso que sei quem matou Robert.
– Aymer?
Um aceno de assentimento. – Perguntei-lhe e ele não o negou.

Admitiu que se tivesse os meios o teria feito. Por dinheiro, um dos criados ou guardas podia ter aplicado o veneno por ele. Planeava matar-vos quando viésseis buscar-me, para que as arras ficassem sob seu controlo.
– Faz sentido. Terra, para mais estratégica. A explicação mais simples, e a mais antiga do mundo.
Quando alcançaram os cavalos, Ian indicou a dois homens que levassem as outras senhoras atrás deles.
– Será mais rápido se formos para oeste, na direção de Black Lyne – disse, erguendo Reyna para a sua própria montada. – Enviei uma mensagem a Morvan, de Glasgow, e se a ajuda chegar, virá por aí. Conheceis estes caminhos suficientemente bem para nos guiar?
– Reconheço o sítio onde estamos. Penso que consigo fazê-lo.
Ele alçou-se para trás dela. Do outro lado da clareira, Christiana agradecia ao seu soldado pela generosidade em partilhar o seu cavalo, e Anna criticava o dela pela forma como se sentava na sela.
Ian pegou nas rédeas e rodeou Reyna com o braço. Apertou-a contra si e beijou-lhe o pescoço. – Tenho muito para vos dizer, mulher, e nem tudo são repreensões – murmurou. – Ficarei sempre em dívida com as senhoras por terem ficado convosco. Agradeço a Deus por vos entregar a mim em segurança.
Ela virou-se para aceitar o beijo que aguardava. – Chamais-me muito isso. Mulher. Sempre me perguntei porquê.
– Sois minha mulher.
– Presumi que era porque precisáveis de vos acostumar à ideia.
Ele riu-se. – Isso também, mas descobri que gosto do som. E é algo que nunca chamei a mulher nenhuma antes. Mas se preferirdes, emprego outros predicados. – Beijou-lhe a face. – Querida. –

Encostou-lhe os lábios à fonte. – Doçura. – A boca dele encontrou-lhe a orelha. – Meu amor.
Ela encostou-se a ele com um suspiro satisfeito. – Sim, mas mulher serve, Ian, especialmente por ser só meu.
– Vamos, Reyna. Devagar, para estardes certa. Não queremos perder-nos nestas colinas.
Viajaram toda a noite sem parar para descansar. Ian notou que Reyna fazia as suas escolhas de caminhos valendo-se mais do instinto do que da certeza, confiando que os seus passeios de infância lhe teriam gravado o trajeto na memória. Na quietude absoluta, prenúncio da madrugada, ouviram por fim o som de cavalos no seu encalço, e puxaram mais pelos seus num esforço de chegar a Black Lyne antes de Aymer os alcançar.
Poderia ter resultado se os caminhos dessem diretamente para o descampado que ficava por detrás de Black Lyne, mas afinal o percurso desembocou mais para sul, perto do velho castelo.
Subitamente, cavalgavam disparados pelo baldio numa velocidade temerária, fugindo da companhia que os perseguia. Os seus cavalos tumultuaram pelo fosso da velha fortaleza abaixo e subiram a colina, quando a cabeça ruiva de Aymer emergiu no topo da elevação do baldio.
Ian espreitou os homens que desciam com Aymer a escarpa.
Não mais de uma dúzia. Reyna estava certa: Aymer fazia isto sozinho.
Saltou do cavalo, desceu Reyna e gritou aos homens que se espalhassem pela circunferência do topo da colina com os seus arcos.

Ao longe, avistava-se o vulto de Black Lyne. Não havia possibilidade de ajuda de lá. Apenas uns poucos homens permaneciam no interior da fortaleza fechada, com ordem expressa de lá ficarem.
Mais abaixo, Aymer também distribuía os seus homens à volta da elevação do velho castelo. Tinha mais com ele, mas também um círculo maior a cobrir.
– Se disserdes a um dos vossos homens para me dar o arco dele, tentarei equilibrar os números – disse Anna.
– São arcos galeses, de mais para uma mulher.
– Há alguns anos que uso um arco galês, Ian. Desta distância, devo acertar no meu alvo três vezes em cinco. Alguns braços e pernas em mau estado farão Aymer pensar duas vezes em atacar.
Ele olhou para aquela mulher, com o seu emaranhado de caracóis a esvoaçar, selvagens, ao redor da cabeça e do corpo. Se ela dizia que acertava no alvo três vezes em cinco, ele acreditava nela. Chamando o homem mais próximo, ordenou-lhe que cedesse o arco.
Reyna aconchegou-se perto dele por trás de uma pedra larga que servia de proteção a ataques semelhantes vindos de baixo.
Aymer e os seus homens, pensando estar fora de alcance, espalharam-se em redor do fosso da paliçada. Anna testou a tensão do arco e depois encaixou nele uma seta. Contornando rapidamente as pedras até à ponta da colina, puxou a corda até à orelha. Um segundo depois, um grito de blasfémia ecoava na neblina da madrugada.
– Ela é verdadeiramente magnífica, não é? – disse Reyna com admiração enquanto Anna transportava o arco para o outro lado da colina. – Devíeis ter visto a reação que os homens de Aymer lhe tiveram. Era um desafio que eles se viam em pulgas para enfrentar.
Consigo compreender a razão pela qual eles… vós…
– Vós constituis um desafio muito mais interessante do que ela alguma vez foi. Para mim, ela foi um meio que serviu um fim, e não um muito nobre, diga-se. Mas ela e eu temos algo em comum, penso eu. Ela nasceu para um homem, e encontrou-o. Eu nasci para uma mulher, e por graça de Deus encontrei-a.
A afirmação foi recebida por uma quietude absoluta. Ele afastou o olhar de Aymer e dos seus homens, e viu a sua expressão perplexa. Sorriu e passou-lhe o dedo pelo queixo. – Bom, ou foi graça de Deus ou foi obra do Diabo, mas se foi do Diabo, ele não contou que me roubásseis o coração, portanto os seus planos para me confinar à perdição saíram gorados.
Ela colocou os braços à volta dele e ele puxou-a mais para si.
Que lugar e altura tão estranhos para ele lho dizer, mas pareceu certo e natural.
– Acho que o meu corpo podia flutuar e o meu coração rebentar neste exato momento – disse ela. – Amo-vos tanto, Ian.
– E eu amo-vos a vós. Absorvestes a minha alma despedaçada com a beleza da vossa, mas é um lugar estimulante para se ser feito prisioneiro. Desde o início que me desafiastes a ser melhor do que sou. Nenhuma outra mulher me poderia ter insultado como vós fizestes, forçando-me a ver no que me havia tornado, e depois ofertado o amor e a amizade necessários para me resgatar.
– Não, Ian, não… Foi só segurança que procurei naquelas palavras… vós não sois…
– Palavras verdadeiras, Reyna. – Mais verdadeiras do que ela sabia. Sobreviveria o seu amor ao conhecimento de tudo? Agora não. Noutra altura. Talvez. – Eu estava rapidamente a caminho de me tornar o pior dos homens, e vós havíeis conhecido o melhor.
Devo avisar-vos, porém, que, por muito que me esforce, nunca serei um Robert de Kelso.
Ela ergueu uns olhos envergonhados. – Pois, Ian, a bem ver, nem Robert de Kelso foi sempre um Robert de Kelso. – Falou-lhe da conversa com Anselm, e a razão da carta de Robert. – Eram os livros, Ian. Foram roubados.
– Tendes a certeza?
– Não pode ser mais nada.
– Não o julgueis com demasiada dureza. É costume haver saque a seguir a batalhas e cercos. Ninguém o considera roubo.
– Mas não se trata de sedas, nem joias, nem prata. São livros.
Quem teria coisas destas a não ser clérigos? Não, não me deixarei enganar. Robert tirou-os à Igreja, um crime sério mesmo em guerra, e procurou devolvê-los para expiar a sua ofensa.
Ele franziu o sobrolho. – David disse que eram muito valiosos.
Pergunto-me quão valiosos.
– Segundo o que soube em Glasgow, pelo menos três ou quatro mil libras.
Quatro mil libras. Não admira que David estivesse hesitante em reconhecer que Reyna tivesse direito a qualquer um deles.
Mudava tudo. O futuro que eles podiam ter e a segurança que conheceriam. Sabê-lo era como descobrir um tesouro escondido.
Não venderiam aqueles de que Reyna gostava, claro, a não ser que a má sorte o comandasse, mas a mera existência daquela proteção contra alguma desdita afetaria muitas outras escolhas.
Olhou para ela com alegria.
Ela respondeu-lhe com olhos bem abertos, inocentes.
Ele adivinhou o significado daquela expressão esperançada, sincera, e esperou verdadeiramente estar enganado. – Quereis mandá-los para o bispo seja como for, não é verdade?
Ela mordeu o lábio inferior e assentiu com a cabeça.
Ele suspirou, e o breve sonho de riqueza foi levado pelo ar. –
Diabos, convosco não é fácil ser bom, Reyna. Quatro mil libras.
Raios.
*
Morvan chegou dois dias depois, quando o sol ia alto no céu.
Os que estavam no cimo da colina viram primeiro a companhia assomar ao horizonte distante, mas o som rapidamente chegou lá a baixo, a Aymer.
Espreitando detrás da pedra grande, Reyna viu o irmão esticar-se para ver a fonte do estrupido e depois ficar muito quieto e rígido quando o paul se encheu de homens, armaduras e cavalos.
Aymer gritou para os seus homens e todos pegaram apressados nos cavalos, montando e levando consigo os feridos. O pequeno grupo da torre gritou zombarias enquanto a cabeça ruiva partia disparada na direção pela qual viera. Em seguida, Ian foi até à ponta da colina e saudou o exército que chegava. Ordenou a um homem que descesse no cavalo mais veloz para lhes dizer que as senhoras estavam a salvo.
O mensageiro chegou ao exército e este deteve-se.
– Morvan está ali. Estou a vê-lo. E David também – disse Christiana. – Ó Céus…
– Devem estar um bocadinho zangados – admitiu Anna.
– Um bocadinho? Por causa da vossa obstinação eles desfizeram o cerco, trouxeram metade do exército, e agora ao que parece nem precisamos de grande salvamento, e pensais que eles podem estar um bocadinho zangados?
– A minha obstinação? Sois…
Ian interrompeu-as com um sorriso endiabrado. – Ah, agora que penso nisso, Morvan transmitiu-me uma mensagem para vós. Com toda a agitação, esqueci-me.
– Que mensagem?
– Devia dizer-vos que ele estava muito desagradado por terdes saído de Carlisle. Estava furioso com a vossa desobediência.
Começou a andar de um lado para o outro com aquele olhar sombrio com que fica, ameaçando trancar-vos de vez, jurando que garantiria que não pudésseis sentar-vos confortavelmente durante um mês…
Vários dos homens trouxeram cavalos. À distância, dois homens altos desmontaram e adiantaram-se ao exército. Morvan cruzou os braços sobre o peito e David colocou as mãos nas ancas, e ambos aguardaram, comunicando eloquentemente o seu desagrado pela postura.
– Não tem nada bom aspeto, irmã – murmurou Christiana quando Ian a ajudava a subir para a sela. – Precisaremos de um estratagema muito ardiloso para nos esquivarmos.
Anna alçou-se para o cavalo. – Não foi realmente obstinação, se pensarmos no assunto, mas sim cavalheirismo. Reyna propôs a viagem. Dificilmente poderíamos deixá-la ir só.
– Oh, eles já sabem disso, mas não aplacou Morvan em nada –
explicou Ian. – Ele pensa que vós devíeis tê-la detido. Além disso, como é próprio, deixou a mim o castigo dela.
Lançou a Reyna um olhar de que ela não gostou muito. Má sorte a dela que, desvanecendo-se o alívio por a ter encontrado sã e salva, aparecessem estes maridos querendo acertar contas e relembrando-lhe que ele tinha o seu próprio livro-mestre para balancear.
Uma vez sentada no cavalo, dirigiu-se a Christiana. – Que ardiloso estratagema tencionais utilizar? – sussurrou.
– Bem, não tenciono cozinhar-lhe uma refeição nem ler-lhe filosofia, Reyna. Talvez tenha de usar aquele jogo sarraceno que vos descrevi naquela noite em que o vinho nos fez tontas em Carlisle.
Fizeram caminho até onde o exército aguardava. As senhoras refrearam os cavalos a cinquenta metros de distância.
Morvan avançou a passos largos. – Vejo que as encontrastes a todas bem, Ian.
– Sim. Acabou por se revelar uma muito pequena aventura, embora a vossa chegada tenha simplificado a última parte. De outra forma, poderia ter tido de matar Aymer, e todos nós gostaríamos de o evitar. – Ian procurava a ligeireza, mas sem sucesso. Os olhos faiscantes de Morvan não haviam arrefecido nem um pouco.
Morvan dispensou a irmã com um olhar afiado. – O vosso marido aguarda.
Christiana olhou lamentosa para Anna antes de se afastar a cavalo, mas Anna não a viu. Tinha o olhar cravado no do marido, desafiante.
Morvan avançou até estar ao lado dela. – Haveis feito por vos divertir?
– Estou completamente ilesa, e agradeço-vos perguntardes. Sem o mínimo desconforto.
A expressão dele respondeu, silenciosa, ainda não. – Imagino que tenhais deixado a fortaleza de Duncan de pé. Ou havei-la deitado por terra?
– Conseguimos escapar sem o fazer. Tanto pior.
Reyna revirou os olhos. De todos os estratagemas que conseguia imaginar, provocar um marido irritado não lhe pareceu o mais engenhoso.
– Voltamos imediatamente para Carlisle? – perguntou Anna. –
Espero que não planeeis aguardar até de manhã em Black Lyne, Morvan. A excitação deste périplo teve em mim o mais surpreendente dos efeitos, e dou por mim muito inquieta. Uma boa cavalgada parece-me o ideal.
Ele não se mexeu e a sua expressão não mudou, mas entrou-lhe uma luz diferente no olhar. – Vindes todas connosco, mas não regressamos a Carlisle. Vamos diretos a Harclow, onde nos espera trabalho que não pode ser adiado. – Pousou-lhe uma mão no joelho. – A longa cavalgada deve tratar da vossa inquietação.
A mão de Anna deslizou sobre a do marido. – Duvido.
Reyna e Ian afastaram os cavalos, na altura exata em que Morvan esticava os braços para puxar Anna para o seu beijo.
Perto do exército, Christiana estava enrolada nos braços de David, com os olhos erguidos para ele, falando-lhe sincera. O amor cru nos olhos azuis do conde sugeria que ele aceitaria o que quer que a mulher lhe dissesse.
A aproximação de Ian e Reyna desfez o abraço. Christiana voltou a montar e um escudeiro trouxe o cavalo a David.
– Morvan disse que vamos diretos para Harclow – anunciou Ian.
– Sim. Teríamos chegado mais cedo, mas o vosso homem chegou mesmo no meio de uma investida, ontem de manhã –
explicou David. – Estamos dentro da primeira muralha, Ian.
– Como…

– Usámos o nosso plano. Lamento não termos podido esperar por vós, mas a oportunidade era boa de mais para que a deixássemos escapar. Rebentou uma tempestade enorme, poucas horas antes do raiar do dia. A muralha quase não tinha homens, e nós estávamos quase a meio do lago quando eles repararam no que estava a acontecer. Os primeiros homens usaram os machados para atravessar a barreira de madeira que tapava o buraco feito pelas armas, enquanto os que estavam nas jangadas usavam os arcos para os protegerem. Uma vez no interior, batemo-nos para abrir caminho até ao portão antes de caírem demasiados dos nossos.
– Maccus render-se-á?
– Quer negociar, e enviou-nos condições. Morvan decidiu deixá-lo em banho-maria enquanto lidávamos com este outro problema.
Morvan e Anna juntaram-se a eles e todos cavalgaram para a cauda do exército. – David contou-vos? – perguntou Morvan.
– Sim. Disse que Maccus tem condições, porém.
– As predizíveis. A segurança dos cavaleiros e soldados e outros que tais. Recusei considerá-las até ele se render, e na sua maior parte ele irá colocá-las de lado e abrirá o portão.
Reyna seguia à distância de dois cavalos. Esticou-se na sua montada até conseguir vê-lo. – Morvan, poderei falar com Maccus Armstrong, depois de ele se render? Tenho algumas perguntas que me ocorreram durante esta viagem, e ele talvez possa responder-lhes.
Morvan olhou para o horizonte a oeste. – O vosso pedido é muito interessante, Reyna. Porque uma das condições de Maccus Armstrong não era de todo previsível, e eu pressenti que é o único ponto em que ele não cederá. – Volveu para ela o olhar. – O velho Maccus não se renderá até lhe entregarmos a viúva de Robert de Kelso.

CAPÍTULO 24


Reyna estava no adarve atrás do corpo couraçado de Ian. David também fazia parte do seu escudo humano, e Anna estava por perto, empunhando o seu arco, para responder a qualquer movimento que os ameaçasse vindo da muralha fronteira. Outros arqueiros estavam dispostos para o mesmo propósito, mas a sua amiga insistira em ficar a seu lado, e Morvan avisara que qualquer seta errante que chegasse à mulher significaria a morte de todos os homens do castelo.
Maccus exigira que Reyna fosse transferida para a sua custódia a bem da segurança dela, mas Morvan recusara. Reyna considerou tudo aquilo muito cavalheiresco, já que este único ponto era o que o impedia de resgatar a honra da família. Visto que Maccus mencionara a segurança dela, Morvan oferecera-se para deixá-lo ver por si próprio que ela estava presente e incólume, apesar de ninguém acreditar que a segurança de Reyna fosse de todo o objetivo de Maccus.
– Ali está ele – disse Ian. Reyna espreitou por cima do ombro dele para o portão ao longe. No cimo de uma das torres, apareceu um homem de cabelos brancos. – Eu afastar-me-ei, mas mantende-vos atrás do escudo de David e do meu.
Ele fê-lo, segurando o escudo ao lado do de David, para ambos formarem um muro de aço. Reyna encostou-se a eles e enfrentou o escrutínio distante do amigo e senhor de Robert. A cabeça branca olhou na direção dela e abateu-se silêncio sobre o castelo. Mais abaixo, Morvan Fitzwaryn estava sozinho no pátio exterior, protegido apenas pela sua armadura.
Maccus Armstrong ergueu o braço num gesto largo. Corpos começaram a deixar as ameias ao seu redor. Em breve, não se via um único soldado ou arqueiro Armstrong. Maccus aguardou até o último sair e depois a sua cabeça desapareceu.
Anna correu para as escadas da muralha. Reyna e os homens seguiram-na e reuniram-se à multidão expectante que se reunia no pátio. Lentamente, a grade subiu.
Ian manteve a mão em cima do ombro dela enquanto esperavam entre o círculo à volta de Morvan. A garganta de Reyna ardia-lhe, e ela sabia que estas emoções eram prova das suas lealdades divididas. Sentia júbilo por Christiana e Morvan, que há tanto tempo haviam sido expulsos do seu lar, mas também angústia pelo próprio Maccus, que fora amigo querido de Robert e instrumento de tudo o que havia sido bom na sua vida.
De súbito, apareceu uma figura solitária no pátio para lá do portão. Maccus avançava sem hesitação. A multidão afastou-se para lhe dar passagem e ele caminhou até Morvan, desembainhou silenciosamente a espada e entregou-lha.
Maccus era um homem robusto e a sua figura ainda impressionava, apesar dos seus mais de sessenta anos. Olhou Morvan de frente, estudando-o com perspicácia. – Tendes os olhos e a cor da vossa mãe, mas lutais como Hugh, isso é certo.
– Eu não o saberia. Ele morreu quando eu era ainda criança.
– É um facto, e ambos sabemos que foi um dos meus arqueiros que o atingiu. Mas é assim que a guerra se faz.
Morvan assentiu com a cabeça. – Sim. Melhor teria sido para vós, a longo prazo, que tivésseis matado também o filho.
– Não mato crianças. Além disso, vós éreis um rapaz promissor.
Teria sido um desperdício. – Olhou em redor e sorriu de pena. –
Embora, dadas as circunstâncias…
Algo parecido a um sorriso aligeirou a expressão de Morvan. –
Visto que fostes generoso na vitória, é o mínimo que posso fazer.
Qualquer homem que jure ficar a norte das fronteiras das nossas terras pode sair imediatamente para ser escoltado até Clivedale.
Vós ficareis aqui até ser pago o resgate que eu definirei.
– E Lady Reyna?
Morvan abanou a cabeça. – Preocupáveis-vos com a sua segurança. Estará em segurança connosco.
– Houve acusações sobre ela.
– Estamos cientes delas.
Reyna sentiu-se corar quando olhares na multidão dispararam na sua direção.
– Não são verdadeiras, essas histórias de ela matar Robert –
atirou Maccus.
– O vosso sobrinho Thomas pensa de outra forma.
– Thomas é um asno. Disparates, tudo. Qualquer pessoa que os conhecesse, a ele e a ela, sabia-o. Preparava-me para lhes pôr um fim quando me apanhastes aqui. Preocupou-me que Thomas fizesse alguma estupidez enquanto eu estava aqui preso. Em todo o caso, é melhor ficardes com ela até o meu resgate ser pago. Depois eu levo-a para Clivedale e ponho tudo em pratos limpos.
Reyna olhava aparvalhada para aquele anúncio público da sua inocência, vindo do homem que ela tivera a certeza de querer enviá-la para a morte.
– Ela não irá para Clivedale – esclareceu Morvan.
– Se não ma derdes, melhor será jurardes pela segurança dela, Fitzwaryn. Não deixarei que a julgueis e ouçais as pessoas tecer as tramas delas, recordando-se de coisas que nunca ouviram e assim.
Ela é uma Graham, sabeis disso, e há sentimentos antigos a respeito disso.
– O interesse de todos pela senhora tem-me deixado perplexo desde o início, Maccus. Qual é a razão do vosso?
– Devo-o a Robert.
– Um homem bom, Robert de Kelso. Mas o seu novo marido também é um homem bom. Ele jurará pela segurança dela, e se vós jurardes pela sua inocência, não sinto inclinação para a apresentar a julgamento.
Maccus parecia tão perplexo com esta declaração como Reyna havia ficado com a dele. Ele perscrutou a multidão até deparar com ela. Virando-se abruptamente, aproximou-se com passadas vigorosas e baixou os olhos, para em seguida estudar Ian. – Desejo falar convosco – disse com brusquidão.
Ian assentiu com a cabeça. – Era o que me parecia. E Reyna deseja falar convosco.
Aqui, alguns cavaleiros levaram Maccus. Morvan foi até ao portão interior e uma nova quietude caiu sobre a multidão.
Detendo-se, olhou para trás e chamou Anna e Christiana para perto de si.
Com a mulher e a irmã a seu lado, voltou a entrar em Harclow.
Reyna virou-se para Ian, enquanto a multidão entrava pelo portão. – Foi surpreendente, Maccus a defender-me daquela maneira.

– Foi?
– Talvez não – admitiu ela. Viu o seu olhar sério. – Há quanto tempo sabeis?
– Não sabia nada. Mas há algum tempo que me pergunto.
– Sois mais rápido do que eu. Passou uma vida inteira até começar a perguntar-me.
– Talvez devais ficar-vos pelas perguntas. Estais certa de que quereis saber de facto? Tudo?
– É o tudo que preciso de saber e penso que só Maccus pode dizer-me a verdade.
– Então falemos com ele, Reyna.
Depararam com Maccus num pequeno quarto. Dera a sua palavra e nenhum homem guardava a porta destrancada.
Estava perto da lareira, numa pose pensativa, mãos atrás das costas, de olhar fito em chamas que não existiam. Ao longo dos anos, Reyna viera a conhecê-lo bastante bem, mas ele sempre se mostrara um pouco distante no tratamento com ela. Era diferente com Robert, e ela ouvira muitas vezes o riso dos dois para lá da porta dos aposentos do marido.
Eles entraram e ele virou-se e examinou-a atentamente. – Não levastes muito tempo, rapariga. Robert mal arrefeceu.
– Bom, ela não teve grande escolha, Maccus. Ou era eu ou voltava para Duncan – disse Ian.
– Uma escolha dos diabos, isso é certo – resmoneou Maccus. –
Soube um pouco de vós dos cavaleiros que me trouxeram até aqui.
Tomastes Black Lyne, dizem eles, e agora está-vos destinado.
Nada mau para um verão de trabalho, Ian de Guilford. Contudo, se está feito, está feito. Eu planeara dá-la a outro homem, mas se ela estiver satisfeita, aceito-o. Um cavaleiro inglês, para mais. Diabos.

– Estou mais do que satisfeita – afirmou Reyna. – E ainda bem que assim é, pois não me teríeis encontrado disposta a ser dada a um qualquer homem por vossa vontade, caso este verão se tivesse desenrolado de forma diferente. Aos vinte e quatro anos, estou cansada de ser movida como uma peça de xadrez e mantida na ignorância.
Maccus mostrou surpresa e em seguida sorriu. – Robert sempre disse que vós tínheis mais espírito do que eu via. Bom, unistes a vossa sorte à destes ingleses e à deste homem, por isso espero que vos convenha. Se assim for, habituar-me-ei à ideia.
– Convir-me-á. Mas agora desejo saber algumas coisas. Sou uma mulher adulta, e tenho direito a saber, penso eu. – Escolheu cuidadosamente as palavras. – Aymer Graham disse que não sou verdadeiramente irmã dele. Não penso que ele se referisse apenas ao facto de sermos meios-irmãos, não pela forma como ele o disse.
– Ela ergueu os ombros e olhou Maccus nos olhos. – Quem era o meu pai?
Ele assumiu uma expressão consternada, parecendo envelhecer subitamente.
– Robert? – sussurrou ela.
– Robert! Diabos, rapariga, quem pensais que o homem era?
Robert nunca se casaria com a própria filha.
– Então quem? Foi mesmo Duncan?
– Duncan Graham devia rezar para conseguir fazer com uma mulher alguém do vosso calibre. Não, não foi Duncan. E nenhum cavaleiro dele, digam o que disserem da vossa mãe naquele lugar.
Foi Jamie. James, o meu rapaz, era vosso pai. Duncan sempre suspeitou mas nunca teve a certeza, mas a vossa mãe sabia, e Jamie também.

– James Armstrong? Eu sei que eles diziam que ele havia sido amante dela mais tarde, mas…
– Muito tempo, quase desde que ela veio para estas partes. Eles conheceram-se logo. Nessa altura, as famílias não eram inimigas. –
Ele virou a cara, o olhar procurando novamente a lareira vazia. –
Avisei-o que não o fizesse. Disse-lhe que de lá só viria mal. Bem, ele era jovem… contudo, podia ter continuado como estava, só que ela viu aonde iam parar as coisas para vós. Consigo própria ela não se importava, mas convosco… Jamie decidiu levar-vos às duas. Duncan descobriu, apanhou-os logo depois do baldio, perto do velho castelo. Enforcou o meu rapaz como um ladrão ali mesmo, e deixou-o lá. Robert encontrou o corpo dele.
Memórias da cripta avançaram subitamente sobre ela, insinuando-se na sua mente. Frio. Frio húmido e medo. Dedos a espicaçá-la e um rapaz a rir. Ficai aqui, ou os demónios apanham-vos. Vou lá fora ver.
– Nós retaliámos, depois eles também, e tudo se agravou, como acontece com estas coisas. Robert por vezes falava comigo, incitando-me a dar tréguas, falando-me do sofrimento do povo, mas eu não o ouvia. Olho por olho, diz a Bíblia, e eu aguardava que Aymer se fizesse homem e recebesse as esporas. Não mato crianças, mas quando ele crescesse, eu planeava acertar contas com Duncan da única forma que podiam finalmente ser acertadas.
Correndo. Correndo. Na direção das vozes e gritos que resvalavam pelo negrume e pelas pedras, seguindo atrás dos passos em retirada.
– Depois soube como se passavam as coisas convosco. Nunca vos vira, mas éreis filha de Jamie. E então comecei a dar ouvidos a Robert, e começámos a pensar em formas de vos tirar de lá.

Luz ali à frente. Mais devagar agora, aproximando-se cuidadosamente.
– Duncan concordou apenas por causa de Aymer. Ele sabia que eu aguardava que o rapaz crescesse. Começou a negociar com vontade quando Aymer fez dezoito anos. Fi-lo dar aquelas terras de dote porque ele não dava realmente uma filha. Ele concordou porque seria Robert quem ficaria na sua posse, e ele sabia que ele era honrado. E assim tivemos alguma paz e livrámo-vos dele…
A imagem dela própria, enforcada…
Reyna fitou Maccus, aturdida, imagens e emoções revoltas toldando-lhe a visão. – E a minha mãe? Onde está ela?
– Ele enfiou-a num convento.
– Não, não me parece. Robert ter-me-ia levado lá quando lhe pedi, se ele o houvesse feito.
Ela aproximou-se de Maccus. – Achais que uma criança esquece tais coisas para sempre? Se uma mão lhe tapou os olhos, que ela não vê? Que se o mundo ficar silencioso ela nunca recorda?
– Cerrou os punhos até as unhas lhe entrarem na carne. – Durante a minha vida inteira, a minha alma lembrou. Nestes últimos meses, quando alguém falava do meu julgamento, via-me a mim própria enforcada, inerte. Pensei que fosse uma premonição da minha própria morte, mas não o era. Não sou eu quem está enforcada naquele pesadelo. Ele matou-a, também, não foi? Não foi?
Ela só reparou que começara a gritar quando sentiu a presença de Ian atrás dela, e o braço dele à volta da sua cintura. – Tende calma, amor – disse ele suavemente.
O semblante de Maccus encheu-se de angústia. – Não soubemos de facto. Robert encontrou apenas Jamie, mas viu indícios de que talvez outra… E ela não está na tal abadia, não a viver, de qualquer forma, porque eu fui até lá ver se poderia ajudá-
la. Penso que Duncan se arrependeu no momento em que o fez.
Antigamente, podia-se punir dessa forma uma mulher infiel, mas agora é considerado crime. Até aos seus foi dito que ele a desterrou em algum lado.
As forças dela deixaram-na. Voltou-se para o amparo de Ian e ouviu-o vagamente sussurrar-lhe palavras de apoio ao ouvido.
– Sois filha de Jamie – disse Maccus. – Minha neta. Se alguma vez precisardes de mim, sabeis onde me encontrar.
Uma nota na voz dele penetrou a sua exaustão. Ela virou-se e viu a esperança fugidia nos olhos dele. Foi até ele e abraçou-o. –
Fizestes o melhor por mim, avô, e foi mais do que alguma vez pensastes.
As mãos dele ampararam-lhe a cabeça. – Bem, rapariga, é bom poder reconhecer-vos. – Pegou nas mãos dela, beijando-as. –
Tende a bondade de nos deixardes agora. Preciso de avisar este cavaleiro inglês para tomar conta de vós se não quiser defrontar o clã Armstrong inteiro.
Ela beijou-o, encaminhando-se depois para a porta. – Vou trazer-vos John, Ian, e encontrar um quarto onde possais retirar a armadura.
Maccus observou-a ir-se embora, ficando alguns momentos mais a olhar para a porta. Quando finalmente se virou para Ian, uma centelha matreira luzia-lhe no olhar. – Bom, Ian de Guilford, este casamento é uma surpresa interessante para mim, e esta conversa é ainda mais interessante para vós, aposto.
– Não é muito surpreendente. É raro os homens tratarem os do seu sangue da forma que Duncan a tratava, e eu ouvira a história da morte do vosso filho. Mas, dado que sois avô dela, é útil que aproveis o nosso casamento.
– Oh, aceito-o. Que escolha tenho eu? – Indicou o quarto com uma risada. – Mas se fosse a vós, não repetiria isto a ninguém.
Quando Fitzwaryn vos ofereceu Black Lyne, não contava que entrásseis numa aliança com os Armstrong pelo casamento, pois não?
– Não. Ainda assim, di-lo-ei a Morvan. Casado com uma Armstrong ou não, sou um homem dele. Ele pode gostar da ideia e baixar-vos o resgate. Quais são as hipóteses de tentardes atacar Harclow se primeiro tendes de tomar o castelo onde vive a vossa neta?
Maccus deu uma risada. – Quem sabe, daqui a vinte anos…
– Daqui a vinte anos vós estareis morto e Duncan estará morto e os Armstrong e os Fitzwaryn estarão todos os dias em cuidados por causa de Aymer Graham. Esta aliança poderá revelar-se muito útil no futuro. Até lá, Black Lyne continuará como era com Robert de Kelso, terras que separam três famílias, na posse de um homem fiel a uma e casado com a filha de outra. Funcionou antes.
Deixemos que volte a funcionar.
Maccus ponderou e assentiu com a cabeça. Depois olhou para a porta, e franziu o sobrolho. – Falando de Robert… onde achais que ela foi buscar aquela ideia absurda de que ele podia ser pai dela?
– Não é assim tão absurda, uma vez que ela ainda era virgem quando ele morreu.
– Não mo digais. Não admira… Bom, Robert nunca teve muitas aventuras com mulheres. Um bom amigo, mas não um daqueles que iam aos prostíbulos e lugares que tais quando éramos novos…
Maldição! As terras dotais. Se ele nunca…

– Muito poucos o sabem, e todos temos as nossas razões para guardar silêncio – aplacou Ian. – Eu gostaria que deixásseis as pessoas saber da vossa relação com Reyna. Ela não será julgada pela morte de Robert, mas muitos ainda suspeitam dela. Também é improvável que o verdadeiro assassino alguma vez enfrente a justiça. Se se souber que ela é vossa neta, terminarão os sussurros.
Ian despediu-se de Maccus e foi procurar Reyna. Encontrou-a, mais John, num quarto, despejando para a lareira a palha de um colchão.
– Há mais de um mês que não havia aqui mulheres ou criados –
resmungou Reyna. – A torre está nojenta, a palha pejada de insetos.
– Tirai-me esta armadura, John. Há dias que vivo dentro dela.
Reyna encontrara uma vassoura e começou a varrer, enquanto malha e placas retiniam no chão. Ian observava o seu pequeno corpo mexer-se nas suas lides, dobrando-se e esticando-se, enquanto ela resmungava acerca dos homens que viviam em condições daquelas. Tinha o vestido sujo por ter estado na cripta e o cabelo solto e emaranhado, mas ele achou que ela estava simplesmente maravilhosa.
– Morvan está à minha procura, John?
– Não. Organiza os soldados, e Sir David regateia provisões com os mercadores como um intendente. Os cavaleiros de Maccus tiveram de deixar cavalos e armaduras, e a nossa companhia ficou com alguns, por isso estão satisfeitos, embora Morvan planeie pagar-lhes e dispensá-los em breve. Não é preciso dois mil para manter um castelo depois de ele ser tomado.
Ian lembrou-se de que devia falar com certos membros da companhia para ver se quereriam ficar em Black Lyne, mas sem desviar nunca o olhar de Reyna. – Há criados por aí, John?
– Alguns, não muitos – disse o escudeiro enquanto inspecionava uma peça de metal que acabava de retirar. Ian desejou que ele se despachasse e retirasse certas outras partes que subitamente se haviam tornado muito desconfortáveis.
John olhou de soslaio para Reyna. – Ela quer que eu encontre palha limpa para o colchão. Como se eu fosse um comum…
– Penso que é uma excelente ideia. Mas primeiro ide buscar alguns homens e trazei um banho.
– Um banho! Vai haver um festim, e há um castelo inteiro a ser explorado, e vós quereis que eu…
– Um banho. E depois o colchão, John.
O semblante de John tornou-se ainda mais carrancudo, e subitamente desapareceu. Olhou de relance para Reyna e corou. –
Ah! – Os seus dedos começaram a tratar mais rapidamente das correias e fivelas. Acabou mesmo quando Reyna empurrava o pó e a terra para a lareira. – Vou tratar do banho agora – balbuciou, saindo a correr e fechando a porta.
Ian dirigiu-se a Reyna, pegou-lhe na vassoura e pô-la de lado. –
Como vos encontrais? Deve ser estranho passar a vida inteira a pensar que somos uma pessoa e saber de repente que somos outra.
Ela franziu os lábios, pensativa. Ele resistiu ao impulso de os mordiscar. – É estranho, mas de uma forma curiosa. Como uma sombra que recebesse luz. Com efeito, sinto-me inusitadamente livre. Duncan nunca me amou, nem eu a ele, e é bom saber a razão.
E a minha mãe… de certa forma também é bom sabê-lo. Não me sinto de todo uma pessoa diferente, sinto apenas que conheço melhor a pessoa que sempre fui. – Ela pousou-lhe uma mão no peito. O coração dele subiu-lhe à garganta. – Pensais que as pessoas me falarão dele se eu perguntar? De James?
– Sim – conseguiu dizer, inclinando-se para lhe beijar a fronte enrugada. Aquele pequeno toque tirou-o de si. Chamou-a para um abraço, beijando-lhe com lábios febris a face, o pescoço, o seio, e soube que não conseguia esperar pelo banho e pelo colchão. –
Não me saístes da cabeça em momento algum, Reyna, dia e noite.
– Puxou-a mais para si, erguendo o corpo dela contra o seu, querendo ter contacto com cada centímetro dela. – Sois a luz que ilumina as minhas sombras, amor, e a necessidade que sinto de vós surpreende-me todas as vezes.
Ela soltou um pequeno arquejo quando as mãos dele se moveram numa carícia demorada, sentida, e depois disto ele não conseguiria dizer mais nenhuma palavra nem que a sua vida dependesse disso. Um desejo delicioso espalhou-se dentro dele como uma inundação, afogando todo o pensamento até só existirem os sentidos, ávidos e vivos, estimulados pelo odor, pelos sons e pelas mãos dela.
Ele encostou-a à parede, levantando-lhe a saia, ansioso pela sensação húmida da pele dela, desesperado por lhe tocar o corpo mas logo arrasado pelo seu calor quando o fez, sabendo imediatamente que nem sequer por isso ele conseguiria esperar. Já sem pensar, pôs-lhe as pernas à volta das ancas e tomou-a ali, com a cabeça enterrada no seu seio, as mãos agarrando-lhe as nádegas, ouvindo a melodia dos seus gemidos suaves, grato pela sua paixão rápida, pois ele não teria conseguido comedimento algum.
Ela arqueou-se contra ele num pequeno grito ao senti-lo finalizar, deixando a cabeça cair no seu ombro. O domínio de si regressou e com ele a consciência do que acabava de fazer.
– Peço desculpa, Reyna – murmurou, apertando-a contra si, amaldiçoando-se, temendo que as pedras lhe tivessem magoado as costas. – Não era minha intenção… quando falei da minha necessidade de vós, não era… mas há muito tempo que…
A mão dela foi até aos lábios dele e silenciou-o. – Que mulher não ficaria lisonjeada? E se passou tanto tempo, sinto-me honrada.
Ele pousou-a e conseguiu compor-lhes as roupas sem a largar. –
Honrada? Deverei sentir-me honrado se me fordes fiel, Reyna? É o que espero. Se fosseis ter com outro homem, eu pensaria que o amáveis e que a melhor parte da minha vida tinha morrido.
– Sim, mas… pensei…
– Sei o que pensastes e tínheis bons motivos para tal. – A sua expressão surpresa, esperançosa, doeu-lhe no fundo da alma. –
Poderia ter satisfação com uma pega qualquer depois de vós?
Contentar-me com um prazer básico? É diferente connosco, tem sido desde o início. Até quando eu ajo como um rapaz desajeitado, como acabo de fazer. Não, mulher, vós sois minha e eu sou vosso, e não haverá outros enquanto o nosso amor viver.
– Mas então será para sempre, Ian – disse ela, como não houvesse como duvidar da eternidade do seu amor. Deus, mas ele rezava para que assim fosse. Ela não conhecia de facto o homem a quem tão inocentemente oferecia o seu amor. E parecia uma coisa tão frágil, esta preciosa euforia que saturava todo o seu ser. Ele não se atrevia a arriscar a sua destruição e, contudo, também o fazia querer abrir o coração com ela, para que a graça dela absorvesse o pior dos seus pecados. Não agora. Não ainda. Que possa durar.
– Sim – disse ele. – O Senhor das Mil Noites retirou-se para sempre do campo. Lá se vai a minha oportunidade de fama imortal.
Ficaram abraçados até o banho chegar. Ele levou-a consigo, embalando-a no seu colo enquanto a lavava, o seu olhar e beijos dando substância às memórias que o haviam sustido e atormentado.
Quando emergiram, ele deparou com o colchão fresco à porta do quarto e levou-a para a cama. Fez amor com ela da maneira que planeara, amando e exaltando cada parte dela, acariciando-a sem a largar muito depois de esgotada a paixão de ambos.
– Encontrareis contentamento aqui na Escócia, Ian? Será muito entediante depois da vida que tivestes – disse ela, brincando com o cabelo dele.
– Um tédio venturoso, espero. Nunca mais serei capaz de ver a guerra como um desporto. Além disso, iremos de vez em quando a Londres. Logo que possamos, com efeito, quando Christiana estiver em casa. Ela fez-me prometer levar-vos. – Fez uma pausa.
– Podeis ficar com ela enquanto eu regresso a Guilford. Penso voltar lá. – Virou-se de lado. – Não posso levar-vos comigo antes de visitar o meu irmão e a sua mulher, e ver como sou recebido.
– A mulher dele não gostaria de ver o irmão do marido?
– Certamente que não gostará, mas são os sentimentos do meu irmão que devo conhecer.
Ele parecia tão sério, a contemplar a possibilidade daquele encontro. Christiana dissera que ele não podia regressar a casa.
– O que se interpõe entre vós e o vosso irmão?
Ele voltou os olhos para ela, e o seu olhar acentuou-se com uma intensidade que parecia raiva. Voltei a fazê-lo, pensou ela, pesarosa, desviando o olhar.
A mão de Ian voltou-lhe o rosto novamente para si. – Podeis amar-me sem saber disso? Amar o homem que conheceis e esquecer o resto?

– O meu amor não começa numa parte de vós e acaba noutra, Ian. O que quer que seja que tenhais enterrado dentro de vós, continuo a amar-vos. Não faleis sobre isso se não escolherdes fazê-lo, mas não por medo de que mate o que sinto. Não há condições no meu amor. É vosso, tal como a minha amizade.
Os lábios dele apartaram-se como se fosse falar. Quando não o fez, ela sentiu desilusão por ele não confiar que ela compreendesse.
Bem, ela aceitaria quanto ele conseguisse dar-lhe, e se ele nunca falasse deste passado que escondia, então que assim fosse.
Ele pousou a cabeça no seio dela, fazendo daquele abraço mais dela do que dele, e ela percebeu que, ali aninhado, o conflito que o dominava se apaziguava. Ele não descansara muito na última semana e ela sabia que ele dormiria profundamente.
Antes de se deixar ir, ele beijou-lhe preguiçosamente a face. –
Sinto que me esqueci de algo. Ah! lembro-me agora. Cabia-me punir-vos pela vossa desobediência.
A consciência emergiu lentamente, mal transpondo aquela paz deliciosa. Chegaram-lhe sons subtis, e depois a constatação de que Reyna não estava a seu lado. Fez menção de procurar por ela, e descobriu que o seu braço não se movia.
Acordou sobressaltado e atirou um olhar fulminante para o braço recalcitrante. Uma corda prendia-o à cabeceira. Voltou-se, perplexo, e viu a outra mão atada do mesmo modo, e baixou o olhar para ver os tornozelos igualmente presos. Estava amarrado, nu, de braços e pernas estendidos, como um sacrifício humano.
Abanou todos os membros num desafio violento. A cama rangeu e bateu com a força.

– Estão bem presos – disse uma voz calma. – Não se soltarão.
Ele voltou-se, num estado de fúria. Reyna encontrava-se a vários passos da cama, envergando uma túnica demasiado grande e comprida que lhe flutuava dos ombros. Algo que desencantara num dos outros quartos, adivinhou.
– Desamarrai-me. Isto é muito inoportuno.
– Não, ainda não. Não durante bastante tempo, acho eu.
– Reyna…
– É apenas o que me haveis feito, Ian. Pensei que pudésseis gostar de o experimentar vós próprio. Como vos sentis, amor?
Indefeso? À minha mercê?
Era exatamente assim que se sentia, maldição. – Reyna, ordeno-vos que desamarreis estas cordas. Porque fizestes isto, para começar?
– Falastes em punir-me.
– Céus, Reyna, apenas gracejava.
– Fico aliviada em ouvi-lo, mas também um pouco desapontada.
Era um estratagema tão bom. Para vos tirar essa ideia.
– Não tendes necessidade de estratagema nenhum. Eu nunca…
– Ainda assim, subitamente o estratagema tem o seu próprio encanto. Talvez deva levá-lo até ao fim.
– Desatai estas cordas, raios, ou precisareis mesmo de um estratagema para me tirar ideias quando me libertar. – Voltou a puxar as cordas com força.
Ela sorriu docemente enquanto a cama saltava e gemia. – Tive horas para os fazer; não se soltarão. – Aproximou-se, suave, e percorreu-o com o olhar. – Realmente tendes um corpo magnífico.
– Passou-lhe um dedo lânguido pelo meio do peito.
Ele cessou a luta e olhou-a nos olhos. O seu corpo inteiro reagiu ao que lá viu. Sorriu o seu melhor sorriso. – Desamarrai as cordas e vinde deitar-vos comigo, amor.
Ela pegou na túnica flutuante e subiu para a cama, com os pés em torno das ancas dele. – Não me parece. Gosto de vós assim. –
Começou a desapertar os laços na frente da túnica. – Surpreende-me o excitante que é. Quero dizer, vós sois tão grande, e eu sou tão pequena.
Muitíssimo devagar, fez a veste deslizar-lhe pelos ombros e pelo corpo inteiro. O tecido agitou-se aos pés dela, roçando a pele dele como uma carícia quando ela o afastou com o pé. Ela baixou os olhos e sorriu. – Vós também pareceis gostar.
Ele gostava tanto que tinha o maxilar cerrado. Por baixo da túnica, ela não estava nua, antes tinha um justilho de pele, uma peça de rapaz um nada demasiado pequena para a sua forma de mulher.
Também amarrava na frente. Os lados estavam separados e apenas cobriam parte de seios que espreitavam através das tiras de couro.
O fundo mal lhe tapava as ancas. O efeito era inacreditavelmente erótico.
– Foi um estratagema maravilhoso, querida. Estou completamente desconcertado.
– Mas mal comecei, Ian. – Ela avançou, um pequeno pé de cada lado até ele a ver toda, e às sugestivas sombras por baixo da orla do justilho. – Retirou uma pena de faisão de dentro deste. –
Deveria ser de pavão, mas claro que aqui não as há. Tereis de imaginar.
Ela curvou-se e começou a acariciar-lhe o corpo. – Oh, pareceis gostar mesmo disto, Ian. – Dirigiu a pena para a prova evidente da excitação dele.
A deliciosa tortura provocou cada centímetro da sua pele.

Uma paixão furiosa fê-lo voltar a puxar violentamente pelas cordas. – Quero que me desamarreis agora.
– Céus, pareceis irritado. Vendo bem, penso que será melhor eu continuar. Parece que afinal preciso deste estratagema. – Baixou-se e ajoelhou-se entre os pés dele. – Além do mais, o que vós quereis não é assim tão importante por agora. Só o que eu quero.
– E o que é isso?
As mãos dela acariciaram-lhe as pernas, para baixo e para cima, enquanto ela o examinava. – Quero olhar para vós enquanto o prazer se avoluma. Quero ver o vosso corpo tremer e implorar o alívio. Quero ouvir os vossos gritos de anseio.
Ele não conseguia acreditar no desejo intenso que as palavras dela provocavam. Pensou que o seu corpo se ia partir ao meio.
Vendo bem, ela conseguira inverter incrivelmente a situação. Afinal, tratavam-se das palavras dele.
– Fazei o vosso pior, mulher, mas lembrai-vos que ides acabar por ter de me libertar, e aí eu planeio reequilibrar a balança.
– Espero deveras que o façais. Mas agora, deitai-vos e submetei-vos, Ian. Isto pode demorar um bocado. Só completei os dois primeiros passos. – Inclinou-se e começou a acariciá-lo com os lábios e a língua tal como a pena havia feito, subindo-lhe lentamente pelas pernas. Muito lentamente.
Ele contemplava aquela progressão vagarosa enquanto o seu corpo tanto bradava pela finalização como se comprazia com a demora. Os beijos e a língua dela chegaram-lhe aos joelhos. As suas nádegas erguidas espreitavam do justilho de couro. – E
quantos passos há?
– Seis – murmurou ela, subindo, subindo. Ia matá-lo. – Na verdade, oito, quando feito à maneira sarracena, mas David recusou-se a falar dos últimos dois a Christiana.
Ele mal a ouvia. A boca dela estava-lhe nas coxas agora e cada fibra dele aguardava e esperava e ansiava. Ela ergueu-se sobre um braço e o seu cabelo tapou-lhe a vista como uma cortina, mas ele retesou o corpo todo quando o dedo dela lhe subiu pelo falo com uma carícia e desenhou um círculo. – É isto que quereis, amor? –
perguntou ela. – É?
– Não.
– Ah, então talvez isto. – Atirou a perna por cima dele, e encavalitou-se nele, de quatro, virada para baixo, o seu odor de mulher a centímetros dele.
– Mexei-vos para trás – instruiu ele.
A respiração dela roçava nele, criando uma agonia de expectativa. – Ainda não. Dizei-me que mais quereis, Ian.
Os músculos dele contraíram-se numa rebelião final antes de sucumbirem, impotentes, ao prazer e ao controlo. Soprou um pedido estrangulado e os lábios dela substituíram-se aos dedos.
Então, toda a resistência e todo o pensamento se toldaram, exceto uma vaga curiosidade quanto ao que poderiam ser os últimos passos.

CAPÍTULO 25


As últimas flores enchiam o jardim de uma profusão de cores e cheiros. A beleza caótica inundava os sentidos de Ian. Ao seu lado no banco de pedra, estava um cesto. Duas rosas espreitavam sobre a orla, as suas pétalas destinadas a algum prato que Reyna planeava cozinhar para a refeição do meio-dia.
Interrogava-se quanto tempo ela estaria fora na peregrinação que fizera naquele dia. Concordara em deixá-la visitar as velhas ruínas sozinha, mas não sem apreensão. Compreendia a sua necessidade de confrontar as memórias enterradas nas pedras escuras do velho castelo, mas quisera ir com ela, não fosse o terror não ter sido vencido tão completamente quanto ela esperava.
Aguardaria que o sol se movesse um pouco mais antes de ir atrás dela. O mais certo era encontrarem-se quando ela estivesse a regressar, mas se ela tivesse sucumbido à escuridão, ele encontrá-
la-ia antes do pior.
Tentou novamente distrair-se da sua preocupação revendo os planos para Black Lyne. O confronto de Reyna com Aymer implicava que os Graham seriam para sempre uma lança apontada às fronteiras oeste destas terras. A ideia de enfrentar Aymer não o inquietava. Ansiava pelo dia em que se fizesse alguma justiça em prol de Reyna e Robert. Mas queria a sua família e a sua gente seguros quando chegasse aquela guerra privada, e tencionava melhorar as fortificações nos anos vindouros.
A sua família e a sua gente. Ainda uma frase estranha, mas agradável. Ele ansiava por aquela família. Os filhos que ele educaria para serem fortes e verdadeiros cavaleiros. As filhas… riu para si próprio. As filhas que provavelmente trancaria para as proteger de homens como Ian de Guilford.
Alisou a terra com a bota e meditou sobre a decisão que tomara na noite anterior. Era necessário construir uma segunda muralha para o castelo no sopé da colina.
Tentou visualizar a fortificação completa e como a afetaria a mudança de sítio do rio. Espetou o pau no chão. Desenhá-la-ia como David desenhara Harclow para ver se dava substância às imagens. O pau arranhou. Aqui o rio, ali a torre quadrada na sua colina circular. Aqui o baldio íngreme e mais abaixo o velho castelo.
Agora, para mover o rio…
Parou abruptamente de desenhar. Erguendo-se, deu um passo para colocar os pés por baixo dos círculos da velha fortaleza.
Olhou atentamente para o desenho do quadrado e círculos e linhas curvas.
Quase duplicava exatamente o desenho pequenino da tira de pergaminho que vira no livro de horas de Reyna.
Faltava alguma coisa, mas não conseguia lembrar-se do que era.
Saiu do jardim, matutando no porquê de alguém desenhar um mapa de Black Lyne e suas terras como se vistas pelos olhos de um pássaro.
Encontrou o pequeno livro de horas na prateleira do quarto principal. Folheando as páginas de devoções e imagens, encontrou a tira de pergaminho. Ainda lhe parecia uma coisa desenhada por um astrólogo.
Percebeu o que o seu mapa não incluíra. Duas linhas retas bissetavam o velho castelo, formando uma cruz.
Examinou o traço ténue e irregular das linhas. Um livro de horas era o tipo de livro que se tinha perto dos mortos, para se lerem orações conhecidas para os reconfortar. Se Robert de Kelso havia desenhado aquilo, o que era tão importante ao ponto de ele utilizar as suas últimas forças para o fazer?
Voltou a colocar o livro na prateleira, mas enfiou o pequeno mapa na manga. Era mais um mistério deixado pelo bom Robert, e de resolução tão improvável como os outros.
Saiu da torre e subiu até às ameias, depois deu a volta para sul, de onde conseguia ver o velho castelo à distância. Semicerrou os olhos e procurou em vão sinais do regresso de Reyna. Esperaria apenas mais um bocadinho e depois partiria em busca dela.
O seu olhar recaiu no cemitério, e na cruz que, ao centro, marcava a campa de Robert. Lembrou-se de estar aqui de pé, a sua fúria a avolumar-se ao imaginar Reyna com Edmund. Aqueles ciúmes pareceram-lhe distantes e infantis, e ele sabia que não voltaria a sentir nada semelhante. Não voltaria a duvidar dela dessa forma, ainda que cem Edmunds por ali passassem para discutir filosofia.
Nem voltaria a ressentir-se das memórias que ela tinha do homem enterrado por baixo daquela cruz. Robert havia-se tornado uma espécie de amigo. Não tinham eles chegado aqui ambos da mesma maneira, desligados da família e do passado, apenas para ficar e construir vidas novas? Ele não era nenhum Robert de Kelso, claro que não, mas, estranhamente, dava por si a seguir os passos daquele homem. Sorriu com a ironia, pois havia sido a semelhança mais óbvia de Edmund com Robert que alimentara o seu tormento naquela noite.
Fez menção de sair dali e depois estacou, suspenso no tempo.
Ideias dispersas acicatavam-lhe a mente em uníssono, setas de numerosas aljavas de memórias que de uma só vez vinham na sua direção. Cravou os olhos na cruz enquanto absorvia aquela investida, surpreso e irritado por não ter reparado em explicações tão óbvias.
Caminhou lentamente para as escadas, cogitando sobre o que acabava de lhe ocorrer. Devia ter razão, e pensava saber como se certificar. Encontraria a prova e depois diria a Reyna o que havia descoberto. Não era um grande mistério, mas ela ficaria contente por saber a verdade, especialmente neste dia, em que reunira toda a sua coragem para enfrentar o que chamava de «tudo aquilo».
Os netos de Alice brincavam no pátio e ele chamou-os. – Vinde comigo. Preciso de corpos pequenos e fortes, e vocês parecem-me o ideal.
Adam e Peter saltitaram ao seu lado até à torre. No salão pegou num archote e subiram até ao quarto principal.
Ian passou a tocha para a mão de Adam e curvou-se para empurrar as pedras que abriam a parede, revelando a escadaria secreta. Devia tê-lo feito há um mês, mas presumiu apenas… bem presumira apenas que era exatamente o que era. – Descei e ficai a dois degraus para nos alumiardes – ordenou ao portador do archote.
A luz desceu e desapareceu na parede, e Ian foi atrás, levando Peter. Virou o pequeno rapaz para o nicho. – Vou levantar-vos e quero que gatinheis lá para dentro e vejais o que lá está. Devo avisar-vos que pode haver aranhas enormes.

A ideia de arrostar aranhas enormes deixou Peter deliciado. Ian ergueu-o até ao início do nicho profundo e depois pegou na tocha para elevar a luz. O traseiro e as pernas de Peter começaram a afastar-se. Logo, só um pequeno pé estava ao alcance.
– O que está aí?
– Montes de teias de aranha e bichos gordos. Quem dera que me tivésseis deixado trazer um saco. Não me parece justo que o Adam perca a melhor parte.
– Além dos bichos, lá atrás, não há uma armadura e um pano?
– Sim.
– Conseguis trazer o pano sem o rasgar muito?
– Está a desfazer-se. E cheira muito mal também. Para que quereis isto?
– Dai-mo. – O traseiro moveu-se um nada para trás e uma mão segurando o pano esfarrapado esticou-se. Ian pegou-lhe, devolveu o archote a Adam, e depois ajudou Peter, muito sujo, a sair do nicho.
De volta ao quarto, os rapazes aguardavam expectantes para saber a natureza do tesouro escondido. Ian não teve coragem para os mandar embora, por isso estava com um de cada lado enquanto desembrulhava cuidadosamente o pano imundo e o abria sobre a cadeira.
– É só um manto de armadura – concluiu Adam, desapontado.
Ian limpou mentalmente o pó e o bolor da veste, e preencheu as partes que o tempo consumira. Este trapo explicava muita coisa.
Peter traçou as linhas cruzadas onde o tecido escuro se encontrava com a luz, no centro. – Parece parte de uma cruz. E isto podia ser vermelho, e isto branco. É o manto de um cruzado.
– Algo assim – avançou uma nova voz.

Ian virou-se e deparou com Andrew Armstrong parado perto da porta.
– Sem dúvida que algum Fitzwaryn o deixou ali há muito tempo
– acrescentou Andrew.
Os rapazes começaram a imaginar o guerreiro antigo, especulando sobre as batalhas que ele havia lutado contra os sarracenos.
Ian sorriu, contando que o cerco de Antioquia povoasse o pátio durante os dias seguintes. – Agora ide ver se a vossa avó ou algum moço precisa de vós para alguma tarefa – disse ele.
Saíram os dois a correr, enchendo o corredor de gritos. Ian e Andrew olhavam um para o outro em silêncio.
– Vós sabíeis – disse Ian.
– Eu era escudeiro dele, quando cá chegou. Não um escudeiro muito bom, mas ele compreendeu que não era a minha natureza, e atendeu a que os outros não troçassem muito de mim. Ambos sabíamos que eu nunca receberia as minhas esporas, por isso convenceu Maccus de que o meu valor residia noutro lado. Acabei por me tornar intendente cá e depois deram-lhe as terras e eu voltei a servi-lo.
– Como soubestes?
Andrew indicou o manto. – Encontrei-o por engano. Um dia, ainda eu era escudeiro dele, decidi limpar a armadura velha que ele tinha em algumas sacas, apesar de ele não ir usá-la novamente. Isso estava junto. Reconheci-o. Qualquer pessoa o teria reconhecido naquela altura. Perguntei-lhe por ele. Ele era um homem bom e eu jurei nunca falar no assunto. A essa altura já sabia alguma coisa acerca de segredos que alguns homens devem manter. Ele sabia os meus e eu sabia os dele, e nenhum de nós julgava.

Ian mexeu no pano vermelho e branco meio desfeito. – Cruz vermelha em fundo branco, o inverso das cores dos cruzados. O
manto de um templário. Escocês?
– Não, não me parece. Ele tinha estado no Oriente enquanto rapaz. Escocês de nascimento, estou certo, mas não viveu lá durante muitos anos e ainda era jovem quando regressou. – Olhou para onde os dedos de Ian repousavam. – O francês dele era impecável.
Ian fez alguns cálculos. – Um dos últimos a serem armados, diria. Talvez o último a morrer.
– Não há necessidade de ninguém saber.
– Ele está morto. Agora não há perigo.
– Ainda assim…
– Reyna precisa de saber. Outros que não ela, talvez não. Se ele escolheu manter segredo enquanto viveu, podemos deixá-lo enterrado com ele.
Andrew meneou a cabeça com gratidão. Fez menção de sair, mas deteve-se. – Nos primeiros anos dele aqui, tive sempre a impressão de que ele aguardava alguma coisa. Mantinha uma distância subtil dos outros e não fez amizades próximas. Nem mesmo com Maccus mostrava tudo.
– Pode ter sido apenas o próprio segredo. Esconder um passado tem o condão de isolar um homem – disse Ian, constatando que ele e Robert tinham ainda mais em comum do que ele pensara.
– Talvez. E, contudo, com o passar dos anos, ele mudou, como se soubesse que aquilo nunca viria, fosse o que fosse. Como se soubesse que estava aqui para ficar. – Encolheu os ombros e caminhou para a porta. – Não é um segredo assim tão mau. Não há pecado nele. Sempre pensei que ele devia dizer a Reyna, pelo menos. Uma vez disse que o faria, que ela precisaria de saber.
Ian dobrou o manto cuidadosamente. Guardou-o num dos seus próprios baús e depois foi até aos livros para investigar mais uma ponta de seta que lhe assomara à memória.
Pouco depois havia feito dois montes, um alto, com os Evangelhos e Aquino e Bernardo, o outro muito mais pequeno e pobre, com o herbário e alguns tratados seculares.
Voltou-se para sair, mas deteve-se. Pegando no livro de horas que estava em cima do monte grande, abriu-o e rasgou-lhe a primeira página, colocando-o depois no monte com o herbário.

CAPÍTULO 26


Reyna estava sentada no chão, encostada à pedra que ela e Ian haviam partilhado no dia em que ela escapou de Aymer, sentindo-lhe o calor nas costas, pensando que devia mesmo acabar com isto antes de Ian começar a preocupar-se e vir atrás dela.
Olhou novamente para o lintel que encimava a antiga entrada para as fundações da torre. Sim, acontecera aqui. Agora tinha a certeza. Parecia, porém, diferente, e não muito ameaçador, possivelmente porque olhava deste ângulo e não como alguém que vinha de lá do fundo, da escuridão.
As memórias e cenas tinham-lhe chegado com clareza, quase demasiada clareza, depois de ela saber o que procurava. Não numa sequência perfeita, mas como lampejos de imagens, sons e emoções.
Dois corpos, não um, mas ela mal vira o segundo depois do horror do primeiro. Duncan a praguejar e a gritar que alguém a levasse de lá. Braços fortes a agarrá-la, arrastando-a de volta à escuridão. Uma mão a tapar-lhe os olhos quando voltaram a trazê-
la para o exterior e desceram a colina com ela.
Esquecera imediatamente? Quando começara a acreditar que a mãe vivia naquela abadia? A sua infância inteira havia-se tornado uma mancha indistinta, a não ser durante aqueles pesadelos e terrores. Se não fosse isso, a sua vida poderia muito bem ter começado no dia em que Robert a encontrou na cripta.
Levantou-se e sacudiu o vestido. Já havia dito as suas orações por aquela pobre mulher cuja infelicidade terminara aqui. Tê-la-ia Duncan obrigado a ver o amante morrer primeiro? Os gritos distantes do seu pesadelo sugeriam que sim.
Aproximou-se do lintel. Um nó retorcia-se no seu estômago. A escuridão não a assustara durante as duas semanas após regressarem de Harclow, mas também a presença tranquilizadora de Ian havia sido quase uma constante. Isto seria diferente. E não se tratava de um corredor, de um quarto ou sequer da cripta, mas do lugar onde tudo começara.
Entrou nas velhas fundações e avançou decidida, com bravura, até a última luz desaparecer e se ver confrontada com a escuridão.
Tinha suor nas palmas das mãos e o coração a bater acelerado, mas o pavor desconcertante permaneceu ao largo. Tateando a parede de pedra, avançou até deparar com uma pequena curva e a entrada desaparecer atrás dela.
E aí parou aterrorizada.
Murmúrios vinham na sua direção, saídos das pedras, através da escuridão… Um riso sumido… A sua mão sobre a pedra sentia os sons tão seguramente quanto o seu espírito os ouvia ecoar silenciosamente ao seu redor.
Não, gritou para dentro, baixando a mão e andando às voltas para as confrontar. Acabou. Já chega!
Preparou-se para correr, mas o choque havia-a desorientado.
Esticou o braço às cegas, procurando a parede, mas a sua mão encontrava apenas escuridão. Aos tropeções, com o pânico a avolumar-se, debatia-se para respirar e rezou que fosse aquela a direção da entrada. De repente, estava estatelada no chão, com o rosto contra a pedra, o corpo dobrado numa posição estranha.
O impacto despertou-a. Tateou à sua volta e compreendeu que caíra num buraco da profundidade de meio homem. A mão bateu num monte de terra e uma pilha de pedras.
As pedras ainda lhe falavam. Não, não as pedras. O som não vinha delas. Os murmúrios sussurrantes estavam mais à frente, mais altos agora do que antes. Dentro dela, alívio. Ian devia ter chegado, trazendo alguém com ele.
Rastejou para fora do buraco e começou a dirigir-se para as vozes. Um pé embateu noutro monte de terra. Desviou-se para a esquerda até encontrar a parede e, encostando-se a ela, avançou lenta e cuidadosa.
Passado um pouco, viu um fiapo de luz. Não fazia sentido. Se ela regressava para a entrada, como podia não bater nos obstáculos que encontrara na vinda?
A passagem fazia uma pequena curva e, subitamente, a luz fez-se mais forte. Uma sombra enorme mexeu-se lá à frente e o susto deixou-a sem fôlego.
Outra sombra mexeu-se, adquirindo forma humana, e olhou diretamente para ela. Ficou tensa e arremessou um braço. –
Apanhai-a.
Pareceu uma ameaça, apesar de não fazer sentido. Ainda assim, ela deu meia-volta e começou a correr.
Passos pesados seguiam no seu encalço. Braços grandes agarraram-na, pegaram nela e levaram-na para a luz. Por fim, deu por si a ser sentada numa pedra grande entre dois archotes.
A passagem alargava-se mais aqui e, confusa, olhou ao seu redor. Lajes de pedra haviam sido movidas e covas não muito profundas haviam sido escavadas. No chão, cruzavam-se pegas de picaretas e pás. Contra uma parede repousavam cobertores enrolados e sacos de couro.
Ergueu os olhos para o peito largo e nu que pairava acima dela, e depois para o rosto preocupado, marcado, de Reginald.
– O que fazeis aqui, Reyna? Robert disse que vós temíeis o escuro – disse uma voz suave. Edmund colocou-se ao lado de Reginald. O archote converteu-lhe o cabelo num halo de fogo.
Edmund também estava despido até à cintura, e o suor reluzia-lhe no corpo.
– O que fazeis vós aqui? Porque escavais? Há quanto tempo aqui estais?
Edmund acomodou-se na pedra ao lado dela. – Tempo de mais.
Está a tornar-se incomodativo e aborrecido, mas devemos terminar em breve. – Ele olhou-a com curiosidade. – Talvez tenha sido bom terdes vindo. Robert tentou dizer-vos, no fim. Reginald ouviu-o falar uma noite, sem saber que vós lá não estáveis. Ouviu o suficiente antes de ele parar, por isso sabemos que está aqui.
Porque não nos dizeis o resto, Reyna, e poupais a todos mais trabalhos? Por esta altura, até estou disponível para partilhar.
– Falais por enigmas – disse ela exasperada, pondo-se em pé. –
É melhor que partais imediatamente, Edmund. Jurastes levar Reginald embora, e se Ian descobre…
Ele voltou a fazê-la sentar-se com um puxão brusco. – Ele está convosco? O vosso cavaleiro inglês também veio?
Ela não gostou do tom ameaçador. Os dedos dele enterraram-se no braço dela. – Não, ele não está aqui. – Mas viria. Ele não quisera que ela fizesse isto sozinha e não aguardaria muito tempo pelo seu regresso.
Edmund olhou para Reginald e indicou a passagem com a cabeça. Pegando num machado de guerra encostado a uma pedra, Reginald entrou desajeitadamente na escuridão.
– O que vai ele fazer? – perguntou Reyna.
– Irá certificar-se de que falais verdade, ou desembaraçar-se de Ian se não o houverdes feito. – Soltou-lhe o braço e desviou o olhar, os olhos semicerrando-se pensativamente, a boca um sulco vermelho. A luz flamante urdia-lhe sombras nas faces e nos olhos.
Ele parecia-lhe muito diferente da forma como o lembrava, e não era só pela luz.
– Para quê estes buracos?
Ele sorriu daquele seu jeito doce mas superior. – Um tesouro.
Por que outra razão viveriam dois homens semanas a fio nas entranhas desta torre? Robert pô-lo aqui. Escondeu-o quando regressou de França, e depois transferiu-o para aqui depois de vos desposar. Ele disse-vos, não disse? Quando estava doente, antes de morrer. Queria que o levásseis ao bispo, como ele planeara fazer. Reginald leu a carta que Robert enviou para Glasgow, compreendeis, por isso sabemos dessa parte.
– Oh, valham-nos todos os santos, Edmund. Não está aqui. Os livros estão onde sempre estiveram, no quarto principal. Era isso que ele queria dar ao bispo. São esses os objetos valiosos que ele trouxe de França.
A expressão estupefacta de Edmund manteve-se um instante, e depois o seu rosto transformou-se num sorriso trocista. – Livros?
Livros? Pensais que se trata daqueles livros? – Ele agarrou-lhe no rosto. – O que está enterrado aqui ultrapassa de longe aqueles poucos livros. É ouro, uma montanha dele, e joias. Riqueza que chegue para comprar centenas de livros.
Ele examinou-a, os olhos com uma expressão exaltada, os dedos apertando-lhe as faces. – Dizei-me o que ele disse, Reyna.
– Ele nunca me falou deste lugar, nem sequer quando estava a morrer. Mal estava consciente a maior parte dos dias.
As mãos dele deixaram-se cair. – Então já não tendes utilidade nenhuma para mim. – O seu tom de voz neutro arrepiou-lhe a pele do pescoço e fez-lhe o sangue pulsar freneticamente. – O que quer que vos tenha trazido aqui, foi obra do Diabo.
– O que dizeis? – perguntou ela, mas uma sensação mórbida espalhou-se dentro dela.
Ele ignorou-a. – E era um plano tão bom – murmurou. – Se Robert ao menos tivesse morrido durante o sono, como fazem a maioria dos velhos, e levado o segredo para a sepultura… se ele tivesse deixado as coisas como estavam, eu teria aguardado satisfeito. Depois vós teríeis vindo para norte e esta terra teria sido vossa e a seguir poderíamos ter procurado à nossa vontade. Mas ele tinha de escrever aquela maldita carta, e o vosso cavaleiro tinha de se casar convosco… bom, agora não há nada a fazer.
Ele pousou uma mão no joelho e deu-lhe pancadinhas na face com a outra. Aquela atitude tão descontraída provocou-lhe arrepios.
– Pensarei numa maneira que não vos faça sofrer, só que terá de parecer acidente ou obra de outra pessoa. Aymer, talvez. Sim, funcionaria. Reginald e eu vimos aquele cercozito ali de cima. Ainda bem que tínhamos saído para buscar mantimentos, mas também nenhum de vós entrou, de qualquer modo. Talvez possamos fazer crer que os Graham vos puniram por terdes casado com aquele inglês…

– Não – ribombou uma voz.
A figura ameaçadora de Reginald surgiu no limiar da luz. – Não lhe fareis mal. Dissestes que se eu fizesse isto ma daríeis.
Edmund pôs-se em pé com um suspiro exasperado. – Já vos expliquei isto mil vezes. Não podemos fazer como tínhamos pensado à partida, pois não? Não com Fitzwaryn a tomar posse das terras e ela casada com Ian.
– Mesmo assim. Jurei a Robert protegê-la.
– Raios, vós envenenastes o homem. Em comparação, repudiar o juramento que lhe fizestes é coisa menor.
Reyna ficou sem fôlego. Reginald? Não Aymer, mas o homem de confiança de Robert?
– Vós obrigastes-me – defendeu-se Reginald.
– Eu não vos obriguei a fazer nada. Vós queríei-la e ao ouro, e convencestes-vos de que ele estava velho e morreria de qualquer maneira. E depois nem sequer seguistes as minhas instruções com a poção corretamente, e todos ficaram a saber que ele tinha sido envenenado. – Edmund virou-se para Reyna como quem pede desculpa. – Teria sido rápido, juro-vos. Devia ter parecido uma morte natural. – Lançou um olhar cáustico ao irmão. – Pelo menos o idiota teve o tento de esconder o herbário quando as pessoas começaram a suspeitar de vós.
A indignação venceu o seu medo escabroso. – Vós fizestes isto?
– arrojou Reyna para Reginald. – Assassinastes o vosso suserano e amigo? Um homem que confiava em vós de forma absoluta?
– Ele era velho e teria morrido sem demora, de qualquer forma –
defendeu-se Reginald. – Mas vós não sois velha e não deixarei que isto aconteça.
Edmund atirou os braços para o alto. – Devemos deixá-la ir embora para dizer ao marido o que descobriu?
– Ela ficará connosco e…
– E ele pegará em cem homens e irá à procura dela. Quando o fizer, deixai-lo encontrá-la, mas incapaz de falar. Se quiserdes tomá-la antes de o fazermos, não me oporei.
Reginald hesitou, olhando para ela, e Reyna sentiu uma náusea.
Voltou a virar-se para o irmão, apertando mais o cabo do machado. – Não.
Um suspiro profundo saiu de Edmund. – Suponho que sei há algum tempo que poderíamos chegar a isto. – Afastou-se, para as sombras, e emergiu de espada na mão. – Pousai o machado, irmão.
Ide ao baldio onde os cavalos estão abrigados, pegai num e ide-vos. Estais fora disto agora e eu tratarei do que for preciso.
– Não posso.
– Não, da forma que vedes o mundo, suponho que não possais
– lamentou Edmund.
Investiu com a espada erguida.
Era um espaço pequeno, e o combate aproximou-se de Reyna enquanto eles arremetiam e golpeavam e contornavam as covas que se lhes atravessavam no caminho. Ela aninhou-se e encolheu-se contra a parede, forçando-se a ver para conseguir evitar alguma arma que rasasse demasiado perto. As pedras estavam tão frias quanto os seus membros, mas temia o fim da disputa, pois, quem quer que ganhasse, ela não estaria em segurança.
Por fim, a vontade de matar um irmão foi maior em Edmund do que em Reginald. Horrorizada, viu a espada lancinante derrubar o maior dos homens, a lâmina a perfurar o peito musculado. Em estado de choque, Reginald não tirou os olhos do irmão quando o seu corpo perdeu a força e caiu redondo no chão.

– Não tínheis de o matar – disse Reyna, quebrando o silêncio gélido que se seguiu.
– É culpa vossa. Por terdes vindo aqui. Devíeis ter ficado na cama do vosso cavaleiro hoje. Já convencera Reginald de que agora não podia ter-vos, não depois de ele ter ficado impaciente e ter arruinado a oportunidade de vos levar embora. Em Edimburgo haveria tempo para vos convencer da lógica disso, mas casada com Ian… Se não tivésseis vindo hoje… – Baixou os olhos para Reginald. – Sempre o avisei de que o seu sentido do dever seria a morte dele.
Assustou-a vê-lo tão desprovido de sentimento. Puxou os joelhos para si para fazer do corpo uma redoma. Edmund foi até ela e ela encolheu-se contra a parede.
Ele sorriu, condescendente. – Não, ainda não. Não aqui. Lá fora nas pedras grandes, penso eu, para o vosso cavaleiro vos encontrar facilmente. Não quero que venha cá dentro procurar.
– Talvez ele nem chegue a procurar. Ele foi forçado a casar-se comigo.
– Procurar-vos-á. Casamento forçado ou não, está bastante arrebatado com a sua noiva virgem.
Os olhos dela arregalaram-se.
Ele riu-se com a reação dela. – Mas claro que eu sabia, pequena Reyna.
– Robert disse-me que não havia dito a ninguém.
– Ele não me disse, mas eu sabia. Naquela primeira visita adivinhei o que ele era. Quem ele era. Soube com certeza depois de ver os livros.
– Os livros? Dissestes que procurais um tesouro, e não os livros.
Se vou morrer, pelo menos explicai-me isto. Que tesouro? Que ouro?
– Ouro templário – respondeu a voz de Ian.
O coração de Reyna saltou de alívio. Ian emergiu das sombras da passagem e a luz fosca iluminou-lhe a expressão dura do rosto.
– Ouro templário, do templo de Paris.
Edmund colocou-se no centro da galeria, entre duas covas, a mão branca no punho da espada.
– Tende cuidado, Ian. Ele acaba de matar Reginald, e também matou Robert.
– Não o matei. Reginald…
– Por instrução vossa, e tão seguramente como se lhe houvésseis enfiado um punhal no pescoço.
Ian desembainhou a espada. – Bom, Edmund, nunca lutei com um monge, mas a ideia não me incomoda nada. Sois um homem muito astuto se bastaram os livros para descobrirdes o segredo de Robert.
– Suspeitei muito antes. O tempo que passou no Oriente e em França. A sua aparição súbita aqui sem história prévia. Os livros apenas vieram confirmá-lo. Todos os precetores têm uma descrição das posses do templo de Paris que nunca foram reavidas.
O ouro e a biblioteca.
– Portanto, quando vistes aqueles tomos ricos marcados com a divisa J. M., não restaram dúvidas. A biblioteca de Jacques Molay, grão-mestre dos Templários. Porque não vos limitastes a confrontar Robert e reivindicar as posses para os Hospitalários?
Edmund riu. – E dá-las à minha ordem se ele as entregasse? Os monges de S. João já são ricos o bastante. Cabiam-me a mim.
Ficaram-me destinadas na noite em que os Templários as enviaram para aqui com aquele jovem cavaleiro.

– Eles não as mandaram para aqui para vós ou para os Hospitalários, e Robert sabia-o. Não é difícil compreender o que se passou há esses anos todos. Ele foi enviado para aguardar o fim da expurgação e que a ordem se renovasse. Mas isso nunca aconteceu, e Robert de Kelso deu por si com um tesouro que não pertencia a ninguém. Ele suspeitava que sabíeis quem ele era?
– Não, eu era cuidadoso, e ele também. Cuidadoso de mais, o que só me espicaçou a curiosidade. Nunca me falou dos Templários, ou fez perguntas. Todos os outros o fazem, tal como vós fizestes. Foi assim que soube que não havíeis adivinhado, apesar da virgindade da vossa mulher e da história vaga de Robert.
– Porque adivinharia eu? A ordem há muito que deixou de existir. Se não fosse a semelhança dele convosco, nunca me teria interrogado. – Ian indicou a passagem com um aceno. – Parti agora. Se fordes rápido, podeis estar no mar antes de eu falar dos vossos crimes ao bispo e ao vosso precetor. Dou-vos a oportunidade de saírdes daqui com vida.
A cabeça loura inclinou-se para trás e Edmund estudou Ian com olhos encobertos. O espírito de Reyna retraiu-se perante a frieza do mal que emanava do homem mais pequeno.
– Vós sabeis onde está – afirmou Edmund.
– Penso que estais enganado a respeito do ouro e que Robert nunca o teve. Ele teria considerado os livros tesouro suficiente para proteger – rebateu Ian.
– Mentis. Planeais ficar com ele para vós. Não espereis que vos deixe fazê-lo. Disse a Reyna que estou disposto a partilhar. Vamos depor as nossas espadas e tornar-nos parceiros nisto. Metade para cada.
Ian olhou para a figura inerte de Reginald. – Vejo como lidais com os vossos parceiros.
– O meu irmão precisou de alardear a honra dele muito depois de a ter abandonado, mas vós não vos iludis. Trabalharemos bem juntos, Ian. Com os outros pecados que temos na alma, o roubo deste ouro é pouca coisa.
As insinuações dele enfureceram Reyna. – Não presumais comparar-vos com ele, Edmund. Sois um assassino cruel, e…
– Não lhe dissestes – interrompeu Edmund, surpreendido. –
Pensastes escondê-la aqui e esperar que ela nunca descobrisse?
Os olhos de Ian queimavam. Edmund ostentava um sorriso irónico. – Devo dizer-lhe? Eu nunca trairia um parceiro, mas… –
deixou a oferta pairar no ar.
– Não há nada que possais dizer-me que faça alguma diferença
– disse Reyna, procurando a atenção de Ian, tentando dizer-lhe que, qualquer que fosse a decisão que tomasse a respeito de Edmund, não deveria dever-se a isto.
– Será que não? – Edmund ergueu uma sobrancelha na direção de Ian. – Será que não?
Ian não se mexeu nem falou, mas tinha os dentes cerrados como um homem que aguarda um soco. Olhava furiosamente para Edmund, mas o seu silêncio expressava a sua resposta.
Edmund abanou a cabeça. – Passastes do Céu para o Inferno na vossa escolha de marido, pequena Reyna. Soube deste por um dos seus próprios homens, um cavaleiro que temia que o meu interesse por vós fosse sensual e que tentou avisar-me explicando o quão perigoso o seu capitão podia ser. – Um maldoso sorriso de desprezo distorcia-lhe o rosto. – Condenais-me por causa de Robert e Reginald? Então o que direis a um homem que matou o próprio pai e se deitou com a própria mãe?

O choque deixou-a sem fôlego. Virou-se para Ian, à espera que o negasse. Uma expressão angustiada passou-lhe pelo rosto e ele recusou-se a devolver-lhe o olhar.
– Pelo menos eu cometi os meus pecados por um objetivo válido – prosseguiu Edmund.
– Um objetivo pelo qual valha a pena morrer, espero – disse Ian. – Deixai-nos, Reyna.
Edmund assumiu uma pose de combate. – Ela fica. Se ela se mexer, corto-a ao meio.
Os olhos de Ian lampejaram. – Então acabemos com isto, monge.
Reyna gritou ao vê-los partir para o confronto e os seus olhos seguiram cada golpe das espadas com um terror que a colava à pedra. A sua mente repetia, tranquilizadora, que Ian era forte e capaz, mas a determinação selvagem de Edmund redobrava-lhe o perigo.
Não acostumado à localização das covas, Ian estava em desvantagem, e tentava também manter a disputa longe da parede onde ela estava encolhida. Depois Edmund foi o primeiro a fazer sangue. Ian praguejou quando um fio vermelho lhe surgiu na túnica.
Ian libertou então todo o seu poder de guerreiro, o que transformou imediatamente o seu desempenho.
Ela nunca o vira lutar, nunca vira a destreza que lhe conferiam aqueles sentidos aguçados, mente incisiva e corpo ágil.
Metodicamente, implacavelmente, Ian parou cada golpe do febril Edmund. Quando Edmund tentou deslocar o combate para a parede dela, um golpe sibilante da arma de Ian roçou-lhe o antebraço, cortando-lhe rente um pedaço de pele. – Aproximai-vos dela e eu corto-vos em pedaços antes de morrerdes – rugiu Ian.

Ian teve várias oportunidades de acabar com o combate, mas recuou em todas elas, renunciando à investida que mataria o seu opositor. Por fim, dois golpes velozes incapacitaram o braço da espada de Edmund e uma perna. Edmund caiu ao lado de uma das covas, comprimindo os ferimentos com as mãos, com sangue a escorrer-lhe pelos dedos.
Ian estava de pé sobre ele, a luz do archote transformando-o num anjo vingador que defrontasse os condenados nas profundezas flamejantes do Inferno. A sua espada pairava alto, pronta a cortar a cabeça de Edmund.
Reyna olhava fixamente, com a pele húmida e pegajosa do pavor infernal que acabava de viver. Observou a decisão oscilar na expressão furiosa de Ian.
Se o fizerdes, fazei-o por Robert, e não pelo que ele me disse, incitou com o coração.
Rogando uma praga, Ian afastou a espada de Edmund com um pontapé e baixou a sua própria arma.
Dirigindo-se a ela, agarrou-lhe na beira da saia e rasgou-a. Com as tiras de pano, voltou para ligar os ferimentos de Edmund.
Depois, com corda que encontrou, atou as mãos e braços do homem.
Olhou para o monge surpreendido. – A tentação de vos matar e enterrar aqui é forte, mas deixarei o bispo tratar de vós. Não terei de explicar o desaparecimento de um hospitalário por estas bandas.
– Baixou-se e pegou numa pá. – E, sim, eu sei onde está. Que não terdes sido capaz de o encontrar seja o vosso inferno.
A boca de Reyna escancarou-se. Ian foi até ela e pegou-lhe no braço. – Cuidado com as covas – alertou ele enquanto a conduzia para a passagem.

– Como descobristes, Ian? – perguntou ela enquanto avançavam, incertos. – Robert, um templário. É demasiado fantástico.
– Tudo encaixa. Um voto de castidade que ele manteve em segredo. A chegada aqui cerca de cinco anos depois de Jacques Molay ser executado e poucos anos depois de a ordem ser dissolvida. Imagino que ele tenha ido primeiro para outros templos para se recolher, mas a ordem papal acabou por fechá-los a todos.
Por isso veio para cá e aguardou o momento de entregar o que havia guardado, mas chegou o dia em que ele soube que tal nunca aconteceria, e o tesouro tornou-se um fardo.
– Porque não limitar-se a dá-lo aos Hospitalários?
– O mais certo era Robert não querer que a Ordem de S. João ficasse com ele. Os Templários suspeitavam que os Hospitalários haviam encorajado a sua supressão para se enriquecerem a eles próprios.
Saíram para a luz do sol. Sob o lintel de pedra, Reyna pestanejou. Não estava ali nenhum fantasma pendurado.
– É verdade? Sabeis onde está?
Ele não olhou para ela. – Penso que sim. Descobriremos rapidamente se estou ou não certo. – Encostou a pá a uma pedra e tirou da manga uma tira de pergaminho. – Estava no vosso livro de horas. Penso que Robert teve alguns momentos de lucidez antes de morrer, e desenhou isto. Planeava dizer-vos o seu significado. Mas no dia em que tentou vós não estáveis lá, e Reginald ouviu em vossa vez.
Ela olhou para as linhas e círculos. – O que é?
– Um mapa. Não da forma como habitualmente se desenham, mas mais preciso à sua maneira. David fá-los assim. Vede, aqui está a colina onde nós estamos, e o quadrado é o castelo de Black Lyne. – Pegando no pedaço de pergaminho, deslocou-se até Black Lyne estar posicionado relativamente a eles como estava em relação à velha torre no mapa. – Ele precisaria de alguns marcos para mais tarde ele próprio saber onde estava. Esta pedra grande, talvez.
Parou em frente da pedra, caminhou até à beira da colina e espreitou para baixo. – Ali – apontou. – A depressão no fosso.
Estas linhas divisórias podem querer dizer que está onde elas se unem, nas ruínas, ou onde atravessam o círculo, no fosso. Edmund anulou a primeira possibilidade.
Pegando na pá, desceu a direito o declive da colina e Reyna apressou-se a ir atrás dele. Tendo verificado a sua posição relativamente à pedra e à torre, começou a cavar.
O buraco já ia bastante profundo quando a pá encontrou resistência. Ian desenterrou uma saca carcomida e içou-a. Pelos buracos, algo brilhava. Reyna ajudou-o a desatar o nó e a sua pulsação acelerou quando a saca se abriu. As suas mãos tremiam ao transferir para o chão o seu conteúdo.
Objetos. Objetos preciosos. Um cálice de outro cravado de pedras azuis, e dois pesados candelabros de ouro. Um tesouro, sem dúvida.
– Da capela – murmurou Ian.
O ouro refulgia à luz do sol. – Oh, Ian, são maravilhosos.
– Sim. E muito, muito valiosos. – Começou a caminhar de mãos nas ancas, pensativo. Ergueu os olhos para a torre, onde Edmund jazia amarrado. – Infernos!
– Ninguém sabe que o tesouro está aqui além dele e de nós –
disse ela. – Mas se quereis ficar com ele, tereis de lhe dar alguma coisa, ou ele dirá que veio aqui para o reivindicar para a sua ordem e que vós forjastes a história do assassinato de Robert.
– Não reivindicará nada se estiver morto.
– Não o matastes no calor do combate. Voltaríeis para o fazer agora?
– Porque não? – respondeu rispidamente. – Ouvistes o que ele disse. Um homem com os meus pecados é capaz de tudo.
Especialmente por um prémio como este.
Ele olhou para ela pela primeira vez depois de saírem da torre.
Os seus olhos gritavam-lhe um desafio, que ela reagisse e questionasse. Que condenasse.
– Não acredito nele – disse ela.
– Devíeis. É a verdade.
– Há muito que não sei a vosso respeito, Ian, mas o homem que amo nunca fez tais coisas, e não foi como ele disse.
– Andou perto.
Ela prometera não perguntar sobre o passado dele. Se ele não tivesse levantado o assunto, ela teria fingido que Edmund nunca tinha dito nada e confiado no amor pelo Ian que agora conhecia.
Mas por baixo da dureza daquele desafio, a sua expressão compreendia uma dor que lhe dilacerava o coração.
– Quão perto?
Ele aproximou-se de um candelabro e deu-lhe um pontapé furioso, que o fez voar e deslizar pelo fosso. Ela foi calmamente apanhá-lo. Quando regressou, ele estava com o cálice aos pés, com amarga resignação estampada no rosto.
– Vou dizer-vos, mas não gostareis do que ides ouvir.
– Começais tão cedo a duvidar do meu amor, Ian? Tendes a certeza daquilo que pensarei?

– Tenho, mas dir-vos-ei de qualquer forma, porque não foi como ele disse, e quando vos perder, pelo menos que seja pela verdade.
Olhou na direção do baldio, como se organizasse as memórias e as forçasse a vir aos lábios. – Disse-vos uma vez que parti para ser escudeiro de um lorde vizinho. Ele tinha uma filha jovem. Ela tinha cabelo como fogo e pele como neve, e eu venerava-a. Durante todos aqueles anos raramente nos falámos e nunca estivemos sós, porque a mantinham perto das mulheres, e protegida. Por isso, nunca cheguei a conhecê-la, mas, ainda assim, amava-a com uma dor ardente. Quando fiquei mais velho, tomava outras, criadas e rameiras, e fingia que estava com ela, e depois odiava-me a mim próprio por a ter desonrado na minha mente. Chegada a altura em que contava ganhar as minhas esporas, ela já estava em idade de casar, mas eu sabia que era impossível. Eu era um filho mais novo, e ela não era para mim.
Ele não dissera o nome dela, pensou Reyna. Nem o faria.
– Naquele último ano, o meu pai e o meu irmão mais velho passaram de visita quando regressavam de Windsor. As propriedades não ficavam muito longe uma da outra, mas até então eles não tinham visto que ela se tornara tão bela. A minha mãe estava morta, e o meu pai ainda não tinha quarenta anos. Ele propôs desposá-la logo na primeira noite.
– Oh, Ian…
– Sim, um momento de puro inferno, quando soube. A família dela estava encantada com o casamento. Eu engoli-o, mas a ideia de ter a rapariga que amava como mãe, a ideia de ela partilhar a cama do meu pai, fazia-me náuseas.
– Mas não fizestes nada de mal. Não podemos ser culpabilizados por aquilo que o nosso coração sente.
– Credo, mas sois tão inocente, Reyna. Se isto fosse tudo… –
As palavras dele quase não se ouviam. – O meu pai ficou. O
noivado foi planeado para dali a uma semana. Fingi estar contente por ele, mas foi angustiante. Em primeiro lugar, porque a rapariga que nunca me falara de repente passou a falar-me muito. Os olhos que raramente reparavam em mim pareciam encontrar-se sempre com os meus. Por fim, um dia, quando os nossos pais estavam fora numa falcoaria, ela enviou uma mensagem a pedir que nos encontrássemos no jardim por trás da torre.
– Vós fostes?
– Mesmo com a minha cabeça a dizer-me para me afastar, as minhas pernas levaram-me até lá. Não sei o que esperava, mas sei pelo que rezava secretamente o meu coração, e aquelas orações foram respondidas, mas pelo Diabo. Ela beijou-me, e depois disso perdi a razão.
Ele olhou para ela, e o olhar disse tudo. Ela não teve de perguntar o que tinha acontecido.
– Encontraram-nos lá. Quando os homens voltaram o salão estava num tumulto e a mãe dela a chorar. A minha amada tão assustada que não conseguia falar. – Baixou as pálpebras. –
Mesmo quando fui acusado de violação, ela não disse uma palavra.
– Como pôde ela ficar em silêncio enquanto vós éreis acusado?
Não me importa o quão assustada ela estava, devia ter falado. Um choque tão grande não faz sentido.
– Irá fazer. – Infiltrou-se amargura na sua voz. – O meu pai tinha um temperamento intempestivo, e perdeu as estribeiras quando ouviu. Ali mesmo, em frente da casa inteira, desafiou-me. Eu invoquei a inocência que podia, mas uma hora depois de ter aquela rapariga nos braços dei por mim no pátio com uma espada na mão, defrontando o meu próprio pai.
Um peso terrível alojou-se no fundo do estômago de Reyna. Ela adivinhou o fim da história e quase lhe disse que se calasse para o poupar à dor de a contar.
– Ela assistiu. Todos assistiram. Nunca sentira tanto medo e tanta confusão na minha vida. Era o meu pai, e ele veio para mim cheio de fúria e eu tive a certeza de que ia morrer. Mas eu era jovem e capaz, e estávamos mais equilibrados do que eu esperava.
Eu não sei durante quanto tempo lutámos, mas por fim ele recuou por um momento. Nessa pausa, eu olhei para ela e, na expressão dela, vi que havia planeado tudo, que ela não queria o casamento, que procurava vê-lo mutilado ou morto para se ver livre dele, e que me havia usado para esse fim.
– Porquê vós? Porque não um dos outros que lá estavam?
– Talvez ela soubesse que ele seria mais precipitado com o seu próprio sangue. Talvez tenha ouvido que, entre os escudeiros, o meu braço era o melhor. O mais certo é ela saber reconhecer um idiota. Virei-me e vi o meu pai também a olhar para ela. Quando os olhos dele voltaram a encontrar-se com os meus, eu soube que ele tinha visto o mesmo que eu. E também vi que ambos fôramos idiotas, que ele também se apaixonara por ela. Aí, algo o abandonou. Quase se viu aquilo voar para fora dele. Eu tentei que ele terminasse com o combate, mas ele não o fez. Talvez fosse orgulho, mas eu penso que era desespero. Eu esperava conseguir acabar num empate. Mas estávamos os dois a ficar cansados, e os nossos golpes descuidados. A guarda dele baixou, e só lhe faltou pôr-se à frente da minha lâmina.
O maxilar dele contraiu-se e semicerrou os olhos. Reyna ansiava por dizer algo que o apaziguasse e aliviasse a culpa que lhe estava inscrita no rosto.
– Ele não morreu imediatamente. Eu fiquei com ele, e nunca chegámos a falar dela. Perdoou-me e fez o meu irmão fazer o mesmo, e chamou o meu amo para me armar cavaleiro na presença dele. Depois deu-me algum dinheiro e disse-me para ir para a terra da minha mãe, para longe dos sussurros que já diziam que eu havia desejado a minha nova mãe e que matara o meu pai para a ter.
– Mas não foi assim. Ela ainda não estava ligada a ele.
– De somenos importância, Reyna.
– De muita importância. Nunca teríeis… se se tivesse celebrado o noivado…
Ele virou para ela uns olhos consumidos. – Estais assim tão certa? Eu confesso que não estou.
– Eu estou. Nem vós procurastes matar o vosso pai. Como podem as pessoas dizer tais disparates?
– As pessoas só sabem o que viram. Esta história poderá parecer muito diferente vinda de outra boca – disse rispidamente, mas a raiva não se dirigia a ela. – Primeiro tentei desculpá-la. Tentei convencer-me de que ela procurara a minha morte, não a dele.
Talvez ela não fosse donzela, e tê-la violado serviria de explicação para isso. Foi-me impossível aceitar que alguém tão jovem pudesse ser tão malévolo. Mas quando estava em Londres, ouvi dizer que ela se casara com o meu irmão. O velho lorde ou o secundogénito não lhe serviam, mas o jovem herdeiro… era diferente. Penso que ela o quis desde o início, e que ficou desconsolada ao saber que a oferta havia sido não do filho mas do pai. Por isso precisava do meu pai morto antes dos esponsais, ou o verdadeiro prémio estaria para sempre fora de alcance. Um filho não pode casar-se com a viúva do pai que morreu.
– O vosso irmão sabe?
– Durante um tempo perguntei-me se não teria sido cúmplice, mas não consigo imaginá-lo nessa situação. Mas quando for a Guilford descobrirei. E fá-la-ei perceber que sei que é tão responsável pela morte do meu pai quanto eu.
– Vós, na verdade, não…
– Fi-lo, Reyna. Há muito que aceitei essa verdade. Agradeço que tenteis defender-me, porém. Pensei que me condenásseis.
Ele parecia cansado, como se contar a história lhe tivesse sugado a maior parte da força. Ela abraçou-o e desejou que ele conseguisse sentir o seu amor. – Como podia condenar-vos?
Fostes acusado injustamente. Deveríeis ter esticado o pescoço para a espada do vosso pai?
– Ele deu-me vida. A maioria diria que é seu direito tirar-ma.
Não fui isento de culpa, e parricídio é imperdoável em qualquer situação.
– Nada é imperdoável – afirmou ela. – No entanto, parece-me que nunca vos perdoastes. Penso que acreditastes que o que fizestes havia revelado e determinado a vossa natureza e deixastes a vossa alma ser arrastada sem refletir para onde ia. Mas em verdade, a vossa natureza é afável e boa, Ian. Nunca poderia amar-vos se não o intuísse.
– Não, meu amor, nem tão boa assim. Vós fazeis-me melhor do que sou. – Ele entregou-se ao seu abraço e encostou o rosto ao pescoço dela, como se se socorresse no seu calor. – Eu devia ter mostrado mais força, e calculado o que ela queria de mim. Foi uma lição dura, mas tenho constatado que a aprendi bem de mais.
Por fim, apartou-se dela e pegou no cálice. – Há mais, penso eu.

Há quatro linhas que atravessam o círculo do fosso. Isto é apenas uma parte. Pensei que fossem algumas centenas de libras de ouro.
Nada como isto.
– Não me importa o que decidirdes fazer. Não pertence a ninguém.
– Se entregar Edmund à Igreja, provavelmente nunca será feita justiça. Os tribunais eclesiásticos tomam conta dos seus, e nunca executam os seus clérigos. Ele alegará autodefesa para com o irmão e não há provas com relação a Robert. Engendrará uma história na qual eles ficarão satisfeitos por acreditar, em vez de condenar um hospitalário.
– Mais fácil é, então, dar-lhe algum ouro e expulsá-lo daqui. Ele sairá da Escócia se vós o exigirdes.
– Foi a vós que ele prejudicou, Reyna. O vosso marido e amigo que ele matou. A vossa vida que ele colocou em perigo. Este ouro far-vos-á sentir compensada?
Faria? O metal amarelo reluzia, oferecendo-se para aplacar toda a dor com luxo inimaginável. Urdia nela, insidioso, a sua sedutora magia, e desculpas e racionalizações pareciam literalmente vogar na sua direção com o seu brilho. Se tinha este efeito nela, o que faria a Ian, que durante anos perseguira saques e pilhagens?
– Vós decidis, Ian. Eu não posso. Vós descobriste-lo.
Ele passou-lhe o dedo pela face e ergueu-lhe o queixo. –
Asseguraria o futuro dos nossos filhos.
– Sim, é verdade. Tendes razão.
– Tornar este castelo humilde forte e seguro, e comprar uma casa em York ou até Londres.
– Robert teria querido que ficássemos em segurança.
Ele fitou o ouro que segurava. – Então porque sinto que seria um roubo pior do que qualquer resgate que pedi a alguma cidade para pagar? Ficar com ele, especialmente se implicar dar algum ao seu assassino: não há justiça nenhuma para Robert e não era o que ele planeou para este tesouro.
Ela sentiu a batalha que ia dentro dele. Ao seu amor, não importava o caminho que ele escolhesse, mas perguntou-se se lhe importaria a ele de formas que ela só poderia adivinhar. – Então, o que fazemos, Ian?
Passou o polegar por uma pedra azul. – Safiras, acho eu. –
Suspirou, abanou a cabeça, e sorriu, pesaroso. – Daqui a dez anos, se passardes dificuldades, vou amaldiçoar-me a mim próprio.
Pequenas asas de alegria bateram-lhe no peito. – Aqui haverá que me baste. Haverá que vos baste a vós?
Ele virou-se para ela e olhou-a nos olhos. O ouro que tinha na mão deixara de existir. – Amo-vos de todo o coração, Reyna.
Haverá sempre que me baste se vós fordes minha.
Voltou a colocar o cálice e os candelabros no saco. –
Levaremos isto para o castelo. Mais tarde, depois de mandar alguns homens buscar Edmund, voltarei para desenterrar o resto.
Enviaremos Edmund e o ouro e os livros, para Glasgow. Diremos ao bispo que os livros são para a escola de alguma abadia, mas que o ouro deve ser usado para ajudar os pobres e os deslocados pela guerra. Se faço este sacrifício, quero expiar alguns dos meus pecados passados.
Subiram a colina até aos cavalos. – Sentirei mais falta dos livros do que do ouro – admitiu Reyna.
– Enviaremos apenas os que têm as iniciais de Jacques Molay.
Assim não são todos.
Ela fez má cara. – É a filosofia toda.

– Sabei-la de cor. Podeis passar os invernos a explicar-ma toda, e eu argumentarei contra a sua lógica. O debate deve manter-vos a memória fresca.
– O meu livro de horas terá de ir. Também o sei de cor, mas irei sentir-lhe a falta.
– Esse fica, acho eu.
– Tem as iniciais, tenho a certeza.
– Eu verifiquei antes de vir para aqui. Não vi iniciais nenhumas.
– Na primeira página…
– Penso que não. – Ergueu-a para a sela.
– Ian – disse ela, olhando para ele desconfiada.
Ele olhou para ela com um sorriso.
Santo Deus, que sorriso.
– Existe algo como ser-se demasiado bom, Reyna.

CAPÍTULO 27


– Terei saudades disto – disse Reyna preguiçosamente. Alongou o corpo contra o de Ian, e as flores que ele lhe entrelaçara no cabelo caíram-lhe pelo rosto e o peito. O sol de fim de verão cintilava-lhe na pele com calor. Ela deixou-se imergir na sensação, sabendo que podiam passar-se meses até voltarem a estar assim deitados perto do rio. Em alguns dias já se sentia um friozinho de inverno, e na água que as noites arrefeceram Ian e ela só se atreveram a um banho breve.
– O inverno tem os seus próprios prazeres – avançou Ian. –
Peles à lareira. Vinho quente. Noites muito longas.
– E poderei vestir os meus vestidos novos. Foi gentil da parte de David trazer o tecido de Carlisle.
– São adoráveis. Embora neste instante não estivesse a imaginar-vos à lareira dentro de um deles.
Ela deu uma risadinha e içou-se para cima do peito dele. –
Ainda bem que vos livrastes daqueles livros sobre filosofia, Ian.
Lembro-me de haver secções que alertavam para o prazer carnal.
Nunca prestei muita atenção a essas partes, visto não ter tido experiência nessas coisas, mas agora… e aqueles penitenciais!
Sabíeis que um deles proíbe a cópula às segundas e quintas, além dos domingos, para não mencionar o Advento e a Quaresma e dúzias de feriados sagrados?
– Sou afortunado por nunca vos terdes deixado levar por uma lógica tão desajustada.
– Bem, nunca fui muito lógica no que vos diz respeito. Tendes certo talento para fazer da filosofia a última coisa na cabeça de uma mulher.
Ele puxou-a para si, deitando-a a par dele, os dedos dos pés dela nas suas canelas e os seios apertados contra o calor firme do seu peito. Com beijos e carícias, atraiu-a de volta para o sonho sensual do qual recentemente tinham saído.
Abruptamente, as suas mãos pararam e a sua expressão tornou-se alerta e concentrada. – Um cavalo. Vem aí alguém. – Afastou-a e ajoelhou-se. – Cobri-vos, Reyna. Temos uma visita.
Ela acabava de enfiar a camisa quando o cavalo se acercou.
Esticou-a para baixo e sentiu-se corar ao ver o rosto sorridente do conde de Senlis.
– Incomodo – disse David enquanto Ian enfiava as velhas calças à camponês. – Peço desculpa, Reyna. No castelo disseram que encontraria Ian aqui, e estou só de passagem.
– Sou eu quem devia pedir-vos desculpa, mas é bom ver-vos. E
é um sítio estranho para se estar de passagem, David, visto que estamos a caminho de sítio nenhum – disse Ian.
David desmontou e Ian lançou um olhar muito claro para o vestido de Reyna. Ela curvou-se e agarrou-o.
David fez um gesto descontraído. – Não vos incomodeis, senhora. Ficarei apenas um segundo, e depois podem voltar os dois ao vosso entretenimento. – Sentou-se na erva ao lado de Ian. –
Estou a caminho de Harclow e depois Carlisle. Christiana e eu partiremos em breve de barco para Londres, e de lá para França.

Quando regressava de Glasgow, fiz um desvio para ver Duncan.
Venho agora de lá. Foi uma visita agradável. Informei-o do estado das coisas entre Morvan e os Armstrong, e disse algumas palavras sobre Aymer ter raptado as senhoras. Duncan não sabia de nada e eu achei que as vigas do salão iam cair com tanta fúria que mostrou ao filho. – Sorriu. – Não penso que tenhais problemas daqueles lados durante alguns anos, enquanto Duncan viver.
– Fostes até lá de Glasgow? Está feito, então? – inquiriu Reyna.
– Muito feito. O bispo recebeu os livros e o ouro, tendo aceitado de bom grado as vossas indicações quanto ao seu uso.
Parece ser um homem bom e penso que nenhum daquele ouro acabará a pagar comodidades privadas, o que é sempre um perigo quando se trata de bispos.
Ela sabia que se a intuição dele não tivesse sido aquela, ele poderia não ter sequer entregado o tesouro àquele bispo em particular. Nem ela nem Ian se teriam oposto. Ao confiar-lhe aquele dever, tinham aceitado o seu parecer.
– E Edmund? – perguntou Ian.
– Ah! Bom, aí houve alguma dificuldade. Edmund está morto. –
Olhou diretamente para Ian, com uma expressão inescrutável. –
Aconteceu quando seguíamos para norte. Por causa do ouro, tomámos percursos menos utilizados, caminhos altos, no geral.
Num troço particularmente perigoso, o cavalo dele perdeu o pé.
Foi uma valente queda. – Fez uma pausa. – Uma tragédia. Dadas as circunstâncias, contudo, não me pareceu sequer importante mencionar nenhum dos seus crimes ao bispo, por isso a história toda de Robert e dos Templários e da origem do ouro nunca foi explicada. Penso que o bispo ficará grato por isso. Teria sido difícil derrotar os Hospitalários na reivindicação daqueles bens se Edmund tivesse decidido contar tudo e negociar a sua vida.
Reyna olhou para Ian, que estudava cuidadosamente o convidado deles.
– Devemos agradecer-vos a vossa ajuda nisto, David – disse Ian. – Atrasou o vosso regresso a Londres em várias semanas e fez-vos percorrer todo o Sul da Escócia.
– Os mercadores estão acostumados a viajar. – Voltou-se para Reyna. – Christiana encarregou-me de vos lembrar que nós regressamos a Londres na primavera. Espera ver-vos lá. E Lady Anna insistiu que eu acrescentasse que, a não ser que algum parto estivesse iminente, não devíeis deixar Ian impedir-vos de ir se estivésseis de esperanças.
Ian resmungou. – Aquela mulher. Juro que é propósito dela subjugar todos os homens.
– Não. Apenas sabe a força e o valor que tem, tal como a vossa ninfa sabe do dela. Duvido que Reyna precise de alguma instrução de Anna.
Reyna corou ao ouvir este cumprimento em particular. David levantou-se e sacudiu a roupa. – Devo ir. Morvan e Anna ficarão em Harclow pelo menos mais um mês antes de rumarem à Bretanha. Estou certo de que vos visitará antes de ir embora.
Deixará um dos cavaleiros como senescal, mas contará convosco para manter tudo debaixo de olho.
Eles acompanharam-no até ao cavalo e ele abriu uma das bolsas da sela. – Isto foi arrumado num cavalo diferente, e quando estive em Glasgow esqueci-me dele. Tereis de o guardar até mais alguém ir para norte. – Puxou a espessa Summa de Aquino e colocou-a nos braços de Reyna.
Perplexa, Reyna ficou a olhar para o enorme tomo aninhado no seu seio. – Devíamos mesmo…
– É uma obra que decerto a escola da abadia já tem, senhora.
Não lhe será sentida a falta. – Alçou-se para a sela e curvou-se para apertar a mão de Ian. – Até à primavera, então.
Ficaram a vê-lo trotar até aos homens e estandartes que aguardavam ao longe. – Interrogo-me se terá realmente sido acidente. Aquilo de Edmund, quero dizer – comentou Reyna.
O olhar de Ian não se desviara do grupo que se dirigia agora para o paul. – Estou certo de que o foi.
– Obra do acaso, então.
– Alguma justiça, pelo menos. – Olhou para o livro. – Pode demorar algum tempo até viajar até Glasgow. Anos.
– Algo mais que fazer nas noites longas de inverno.
– Sim, podemos discutir filosofia parte da noite e fazer amor no restante. Eu poderia até nem ter desistido se me esperasse tal recompensa na minha juventude. Deverei acabar de o reler, porém, se quero fazer-vos frente.
Conduziu-a de novo ao leito de ervas. Ela sentou-se de pernas cruzadas e abriu o livro no colo.
– Metade do tempo para a mente, e metade para as paixões.
Parece uma divisão justa, Ian.
– Eu disse parte, não metade. Não tenho intenção de ser justo.
Especialmente agora, já que me parece ser altura de reequilibrar a balança que vós fizestes pender para o vosso lado em Harclow.
Ele estava de pé ao lado dela. Ela ergueu os olhos. Por detrás daquelas pestanas copiosas, o senhor das Mil Noites olhava para ela. A expressão dele fê-la fervilhar de expectativa. Não, ele não ia ser justo de todo.
Ele tirou-lhe o livro dos braços e pousou-o no chão. Segurando-lhe a mão, fê-la pôr-se em pé. Afastou-se para conseguir vê-la por inteiro.
– Despi a combinação, Reyna.

CAPÍTULO 18


– É essa a mensagem tal como vos foi dada? – Palavra por palavra. Sir Morvan disse que devo aguardar e levar a vossa resposta.
Ian repetiu a mensagem para si próprio. Não uma ordem, mas um pedido. Havia sido uma forma de Morvan reconhecer que Ian estava agora na posse do castelo de Black Lyne através de Reyna, e ainda não jurara fidelidade a nenhum homem.
– Dizei-lhe que irei amanhã. Agora ide comer alguma coisa, e dizei a Gregory que trate de vos providenciar um cavalo descansado.
O homem saiu, e Ian foi até às janelas do quarto. Uma brisa fresca corria por elas na noite. Desejou que Reyna ali estivesse para lhe poder falar imediatamente daquilo.
Ele sabia que a chamada podia dar-se. Até ficara ressentido por não ter acontecido logo a seguir à conquista de Black Lyne. Fora como se recusar a sua ajuda em Harclow tivesse sido uma reflexão silenciosa de Morvan sobre a opinião do salteador que lhe salvara a vida.
Agora, porém, a situação em Harclow havia-se tornado crítica, e todas as espadas eram necessárias. Morvan estava a organizar ataques agressivos há algum tempo, e a quinzena seguinte provavelmente decidiria as coisas. Maccus Armstrong não mostrava inclinação alguma para se render, por isso a fortaleza teria de ser tomada pela força.
Desejou que Reyna ali estivesse. Amanhã ver-se-iam separados indefinidamente, porventura para sempre. Ele não tinha nenhuma ilusão de invulnerabilidade. Escalar muralhas e lutar em torres de assalto era muito diferente do confronto em campo aberto, e homens melhores do que ele haviam caído durante a carnificina que se seguia. O estranho desassossego que experimentara quando saíra a cavalo para se defrontar com Thomas Armstrong atormentava-o novamente, despoletando nele uma necessidade sentida de ficar perto do calor de Reyna nas horas que antecediam a separação.
Ele desejou que ela lá estivesse, mas ela não estava, e ele sabia onde ela se encontrava. Sem rodeios, Reyna convidara Edmund a visitar a sepultura de Robert com ela quando a refeição da noite se aproximava do fim. Ian observara-os saírem do salão juntos, mal conseguindo resistir ao impulso de o proibir. Eles tinham saído antes da chegada do mensageiro de Harclow.
Afastando-se abruptamente da janela, desceu ao salão e saiu para o pátio. Subiu os degraus que conduziam ao adarve e prosseguiu até à curva sul de onde se via o pequeno cemitério no sopé da colina.
O que importava se ela passasse tempo com este homem que, de todos os homens, não deveria representar ameaça alguma?
Pensava seriamente que ocorria uma sedução, que o pio cavaleiro tentaria tomá-la naquele chão consagrado? Acreditava ele que Reyna o permitiria? A sua mente racional dizia que não, o que não impediu que imagens mentais da união deles lhe invadissem a mente, alimentando o ressentimento e o ciúme que, durante o dia, vinham ganhando um travo amargo e irado.
Olhou atentamente para o cemitério, mal distinguindo as sombras das cruzes acima da pequena cerca de madeira, pensando ter visto dois vultos sentados ao luar ao lado da campa central.
Edmund, o hospitalário. Nobre e estudado e casto. Sem marcas no corpo ou na alma, fomes inultrapassáveis, pecados ímpios a esconder. Para todos os efeitos, ele era uma versão mais jovem de Robert de Kelso. Não admirava que Reyna se sentisse cativada por ele desde o início.
Também era, e de muitas formas, o oposto perfeito de Ian de Guilford. Ela não deixaria de reparar no contraste absoluto.
Primeiro o rei Alfredo, e agora Santo Edmund. Uma coisa fora competir com a memória de um homem morto. Este aqui vivia e respirava.
Ela não se deita com ele, mas dá-lhe partes de si própria que aparta de mim.
Ficou ali de pé, à espera de movimento no cemitério, resistindo ao impulso de ir lá buscá-la. O tempo passava, e cada momento lhe via crescer as reações irracionais e recuar os pensamentos sensatos. Amanhã ele deixá-la-ia sabe lá Deus durante quanto tempo, e ela desbaratava o tempo que lhes restava lá em baixo com aquele homem. Na ira dele, que ela o fizesse inconscientemente deixara de contar grande coisa.
Quando lhe parecera ter passado uma eternidade e ele continuava sem os ver surgir ao portão do cemitério, deu meia-volta e regressou aos seus aposentos.

Reyna terminou as suas orações e voltou a sentar-se nos calcanhares, olhando para as mãos cruzadas e os olhos fechados do cavaleiro que estava ajoelhado do outro lado da sepultura. A noite ventosa conferia-lhe um aspeto algo misterioso.
– É bom vir aqui – disse ela, arrastando os dedos pelo longo monte de terra. Tinha o coração cheio da memória de Robert, e sentiu o conforto do seu amor e carinho chegarem-lhe através da eternidade. – É bom estar aqui com alguém que o conhecia como eu conhecia.
Edmund mudou de posição e sentou-se no chão com a sepultura ainda entre eles, uma ligação mais do que uma separação. –
Trouxe-vos um manuscrito. Uma cópia de um dos Diálogos de Platão, no grego original. Está diferente das traduções e não penso que o tenhais.
– Trouxestes? Ó, Edmund, obrigada. Não, não temos nenhum Platão. Deveis deixar-me pagar-vos por ele.
– Não me custou nada. O precetor tinha-o na sua biblioteca e um dos irmãos copiou-o para mim. Além disso, não penso que o vosso novo marido gostasse de gastar dinheiro dessa forma.
Reyna sabia que Edmund desviava educadamente a conversa para o casamento dela, mas ela ainda não queria discuti-lo. – Será uma alegria ter algo novo para ler.
Ele aceitou a achega e falaram sobre os livros que ele lera e os eruditos com quem se encontrara desde a sua última visita. Ela invejava-lhe a variedade de experiências que o facto de ser homem e viver perto da cidade lhe possibilitava. Ian desfrutara de uma vida semelhante, e ela perguntava-se como alguma vez poderia encontrar contentamento emparedada no isolamento de Black Lyne.

– Fico contente por saber que ainda continuais com os vossos estudos – disse Edmund. – Ao jantar vi que sim, pois as vossas ideias mostraram-se provocadoras. Não notei, quando estive de visita no ano passado, o quanto a vossa mente havia evoluído.
– Era uma rapariga quando nos conhecemos. Cinco anos é muito tempo numa vida jovem. Já não sou uma rapariga.
– Não, não sois. – A cabeça dele descaiu. – Falai-me da morte dele, Reyna. Ouvi dizer que…
– Sei bem o que ouvistes dizer. Quão longe viajou essa história?
Não até Edimburgo, espero.
– Não até Edimburgo.
Ela descreveu a doença abrupta de Robert e a sua morte célere, entrecortando-se-lhe a voz quando descreveu o sofrimento dele.
– Poderia ter-se tratado de uma morte natural, Reyna? O corpo humano é complexo, e ele era idoso.
– Poderia ter sido, mas não pareceu. Seja como for, agora ninguém acreditará que o foi.
– Não há indicação nenhuma de quem o fez? Nenhuma prova além das que apontam para vós?
– Ian pergunta-me sempre sobre isso. Ele quer descobrir, para deixar definitivamente de haver suspeitas sobre mim. Eu também tenho tentado descobrir a verdade.
– E o que descobristes?
– Nada. Revistei os quartos daqueles que na altura viviam na torre, sem saber sequer o que procurava. Contas feitas, tudo foi em vão.
– E o vosso marido? Não descobriu nada?
– Não me parece. Ele prometeu lutar por mim em julgamento por combate, se necessário. Confio que não se chegará a tanto.

– Acreditais que ele o fará?
Ela ouviu o ceticismo na voz dele. – Ele prometeu-me que sim.
Um suspiro grave atravessou a sepultura. – Reyna, um homem daqueles vive apenas para si próprio e o seu próprio ganho. Se colocardes nele a vossa confiança, temo que vos dececioneis terrivelmente.
– Não o conheceis. Não é o que dizeis.
– Acreditais verdadeiramente que ele vos protegerá? Que ele arriscará a própria vida para salvar uma mulher que pode ser facilmente substituída e cujo valor já lhe está assegurado?
– Não tive valor algum para ele. Morvan dá-lhe estas terras de qualquer forma.
– Morvan pode falhar em Harclow. Tudo pode acontecer.
Ela não necessitava que Edmund lhe recordasse as conveniências que o casamento tivera para Ian. Uma semana atrás ela encarara os factos de frente e aceitara-os como realidades com as quais ela simplesmente teria de viver.
– Tendes a certeza de que ele procura verdadeiramente provar a vossa inocência, Reyna? – A voz dele saiu lenta e silenciosa.
– O que quereis dizer com isso?
– Porque não vos tirou ele daqui? Porque não atender à vossa segurança até tudo estar assente? Então, se ele não saísse vitorioso do combate, vós continuaríeis protegida.
– Se houver um julgamento, devo cá estar para falar por mim própria.
– Muito claro, e presumindo que Morvan virá a deter estas terras talvez tudo corra bem, mas e se isso não se der? Se Harclow não for tomada, Morvan e o seu exército deixarão esta região, e o castelo de Black Lyne não conseguirá, por si só, deter os Armstrong durante muito tempo. Talvez seja essa a razão pela qual Sir Ian precisa de vós aqui. A lealdade dele é para consigo próprio, penso eu, e ele serviria o maior licitador, até o velho Maccus, se isso lhe garantisse o que ele deseja. Abrir mão de uma mulher que já serviu o seu propósito seria um preço pequeno para reter aquilo que lhe proporcionastes.
A sugestão dele continha uma possibilidade implacavelmente prática que a mente dela não podia ignorar, mas o seu espírito rebelava-se contra as acusações. – Não lhe fazeis justiça, meu amigo. Nunca me teria casado com ele se o considerasse capaz do que descreveis.
– Penso que tivestes pouca escolha.
– Estais errado nisso também. Tive escolha, sem dúvida alguma.
Várias, em verdade. Podia ter regressado para o meu pai. Podia ter concordado em ir com Reginald.
– A escolha de Reginald deu-se antes da de Ian, e tomastes cada decisão independentemente. Dizeis que se vos tivessem sido apresentadas em conjunto, ir para Edimburgo como mulher de Reginald ou ficar aqui como a de Ian, vós teríeis escolhido a última, com todos os perigos que encerra?
Era uma pergunta devastadora, de formas que ele nem conseguiria começar a imaginar. De facto, ela havia feito as suas escolhas à medida que se apresentavam, uma de cada vez. Ela dissera a si própria que seria ou Ian ou Duncan, e a escolha fora inevitável a partir do momento em que Ian concordou manter o segredo de Robert.
Agora Edmund forçava-a a encarar uma nova realidade. A sua exposição de uma escolha que nunca existira revelava as emoções dela com uma clareza surpreendente. A segurança ao lado de Reginald teria sido o rumo lógico, sensato.
Mas nunca teria sido aquele que ela tomou.
Edmund interpretou mal o seu silêncio surpreso. – Ian manipulou a vossa situação para vos coagir. Não é necessário que um casamento feito sob tal constrangimento perdure.
– Ninguém forçou a minha mão a assinar o acordo, Edmund.
Não me deram drogas nem me bateram para que o fizesse.
– Não é necessário bater numa mulher para a vergar. O perigo em que estáveis foi coercivo por si próprio. Este casamento pode ser desconsiderado. – Ele pegou na mão dela. Uma mão fria, seca, reparou, e nem de perto tão áspera como a de Ian. Mais como haviam sido as mãos de Robert. A mão de um homem bom, mas com menos vida e sangue a correr dentro dela do que a palma e dedos de Ian de Guilford. – Sou conhecido do bispo de Edimburgo, Reyna. Quando ele souber como isto aconteceu, sem dúvida anulará os votos.
– E depois, Edmund? Ofereceis-me agora a escolha que eu nunca tive entre Ian e Reginald?
– O meu irmão está fora disto. Ofereço-vos liberdade e segurança, e a minha proteção, que existiu para vós desde o início.
Agora que as defesas do castelo afrouxaram, não será difícil tirar-vos daqui. Vireis comigo, Reyna, e nunca mais sentireis medo.
Ela ficou a olhar para o monte de terra. A sua última frase evocou memórias nítidas da primeira vez em que vira Robert, e das primeiras palavras que ele lhe dissera. Ele chegara à casa de Duncan para o casamento um dia mais cedo do que o esperado.
Ela não estava no pátio para o cumprimentar porque Aymer, irritado com uma suposta desobediência da parte dela, a tinha arrastado para a cripta e a tinha deixado trancada lá dentro para guerrear o terror e a escuridão.
Exigindo vê-la, Robert fora levado até lá. Por um instante, ali a olhar para a sepultura, ela era de novo aquela criança de doze anos, encolhida contra a parede da cripta, lutando pela sua sanidade. E aí, subitamente, soaram passos na escadas de pedra, o fulgor de um archote rompeu a eternidade negra, e uma mão veio até ela por entre o clarão. Vireis comigo, criança, e nunca mais vos sentireis assim assustada.
A memória desvaneceu e ela estava de olhos fitos na mão que Edmund agarrava. De súbito, sentiu a presença de Robert, de uma forma assombrosamente viva, como se ele estivesse ao seu lado, ainda vivo. Ela fechou os olhos e deleitou-se com a consciência pungente da sua essência, e sentiu o seu espírito tentando falar com o dela.
Talvez no Céu as almas conhecessem o futuro. Estaria a oferta de Edmund, pronunciada em palavras tão semelhantes à promessa de Robert, destinada a ser um sinal? Estaria o espírito de Robert a incitá-la a aceitar o amigo deles e a segurança que ele conferia?
Saberia ele que, se ela não o fizesse, seria como Edmund predissera, e Ian a abandonaria?
A imagem dos seus pesadelos, a sua face lívida e o seu pescoço esticado, assaltou-a. Ian era um salteador e um oportunista, e ela podia definitivamente ser substituída sem dificuldade pelo belo e excitante homem conhecido como o Senhor das Mil Noites.
– Eu tratarei de tudo e não interpreto mal o meu dever como o meu irmão. Estareis muito longe daqui antes do vosso marido se aperceber – instigou Edmund num sussurro.
Ela sabia que tinha de tomar a decisão agora, pois eles podiam não voltar a ter oportunidade para falar a sós. Ela vacilava, o seu coração cheio de emoções confusas. O pânico apoderou-se dela, e a sua mente turvou-se com dúvidas e medo.
Depois a brisa fez-se mais forte e acariciou-lhe o cabelo, à semelhança do afago que a mão de Robert fazia às suas tranças quando ele partia em viagem. Os seu olhos lacrimejaram quando a memória e a presença dele a invadiram por completo, levando-lhe reconforto, mitigando a confusão. Ela suspirou com o alívio que ele lhe proporcionava, e permaneceu naquela segurança invisível que lhe reordenava as ideias.
Quando acalmou, sentiu a presença dele recuar, assumindo o controlo de toda a confusão e transportando-a com ele na sua partida, afastando as nuvens que lhe obscureciam o coração para ela ver com mais clareza o que estava no seu interior.
Com uma relutância dolorosa, ela deixou o espírito dele partir lentamente, volvendo depois a sua mente para aquilo que havia descoberto. Outra emoção luzia no seu coração, amedrontada e hesitante, mas emanando um calor forte, magnético. Ela reconheceu a sua existência, e esta aceitação foi como combustível que fez dela fogo.
Mas não é como o amor que eu tinha por vós, Robert, debateu silenciosamente. Poderá trazer muita dor e pouco contentamento.
De novo a brisa lhe afagou o cabelo naquele gesto familiar e reconfortante. Em seguida, as memórias e a essência desvanecentes foram tragadas pela noite.
Reyna retirou cuidadosamente a sua mão das de Edmund. Toda a lógica do mundo, todas as análises do perigo que corria e da sua potencial deceção, perdiam a força face ao que ela acabava de constatar. Não duvidaria de Ian, e se ele, por fim, a abandonasse, que assim fosse.
– Ele é meu marido, Edmund. Aceitei-o como tal no meu coração e não há decreto de bispo nenhum que possa reverter isso.
Ela viu o corpo dele fazer-se tenso e direito e sentiu os seus olhos a espiá-la na escuridão. – Reginald disse-me que assim era, mas eu não consegui acreditar nele.
– Eu não sei o que Reginald vos disse, mas…
– Ele disse que este cavaleiro havia jogado com a vossa dor e a vossa solidão. Que vos havia seduzido. Uma coerção muito mais insidiosa, mas, se a mulher estiver vulnerável, muito mais persuasiva do que a violência.
Talvez ele estivesse certo, mas isso não vinha mudar nada. A sua decisão derivava das suas próprias emoções e motivos, não dos de Ian. – Ele não me seduziu. Não me deitei com ele antes do nosso casamento. No entanto, existiu uma afeição peculiar entre nós, e eu não fingirei que assim não foi.
– Reyna, o que interpretais como afeição não passa de volúpia.
Essas fomes da carne passam, especialmente nos homens, especialmente nos homens como ele.
– Não conheceis o meu marido e contudo falais sobre o seu caráter e intenções com muita certeza.
– Informei-me sobre ele hoje de manhã. Os criados conhecem-me e não se coibiram de falar.
Sim, não lhe devem ter dado descanso, Reyna não tinha a menor dúvida. – Pode bem tratar-se apenas de volúpia entre nós, mas ele agora é meu marido, aceite por mim de livre vontade. Eu não mentiria a um bispo para desfazer isto. Considerais-me tão desmerecedora de afeição que seja impossível a um homem senti-la por mim, Edmund?

– Sabeis que isso é um disparate. Robert tinha por vós uma afeição sem limites e um amor profundo. Impressionava quem o testemunhava.
Robert amava-me como a uma filha, quis Reyna dizer.
– Partirei de manhã, Reyna. Se mudardes de ideias, tendes de mo fazer chegar esta noite. Há aqui alguém em quem possais confiar?
– Alice, mas eu não mudarei de ideias. Tendes de partir tão cedo?
– Devo atender ao trabalho do precetor e, apesar da sua hospitalidade, Ian não gosta da minha presença.
Enquanto se encaminhavam para a torre, Reyna sentiu uma nova distância interpor-se entre ela e Edmund. Ele era tão parecido com Robert que lhe despedaçava o coração saber que ele reavaliava a opinião que tinha dela, e não para melhor.
Detiveram-se do lado de fora do portão. – Perdi-vos como amigo agora, como perdi Reginald? – perguntou calmamente.
Ele pegou nas mãos dela e beijou-as. – Não, senhora minha, estarei sempre aqui para vós. Ainda assim, parece-me provável que passe bastante tempo até voltarmos a ver-nos. Ian não aprecia a nossa amizade.
– Ele não me negará os meus amigos.
À luz do archote, Edmund baixou os olhos para ela. – Se convier aos seus intentos, negar-vos-á tudo. Receio que, se for forçado a uma escolha, chegue a negar-vos a vossa própria vida.
Um silêncio retumbante envolvia a torre. Era muito tarde, todos dormiam, constatou Reyna. Ela e Edmund haviam falado durante mais tempo do que ela pensara.
Subiu até ao quinto piso e deteve-se no corredor. Um archote iluminava o espaço, e ela adivinhou que Ian havia ordenado que lá o deixassem para ela. Provavelmente ele já dormiria, mas ela estava desejosa de se deitar ao lado dele. Precisava da segurança da força dele a aquecê-la agora mesmo.
Aproximando-se da porta do quarto, esta abriu-se facilmente e um vulto de saia saiu. Uma cabeça com um lenço volveu-se com um sorriso radioso que se desvaneceu perante Reyna. Eva corou profundamente, esgueirou-se e desceu apressada as escadas.
Reyna ficou de olhos cravados na porta do quarto principal. Um entorpecimento varreu-lhe os braços e pernas até aos dedos, como se alguém lhe tivesse despejado um balde de água gelada pela cabeça abaixo.
O canalha.
Fervilhando de mágoa e fúria, foi imediatamente para o seu quarto. À pálida luz do luar que entrava pelas janelas, procurou um pau na lareira. Esbarrando na mesa e na cama, volveu a sair e foi acendê-lo ao archote do corredor, para ter luz no quarto.
Preparou-se para se deitar com a cabeça cheia de insultos cumulados sobre a alma negra de Ian de Guilford. Quando tirava o guarda-cós azul, o seu olhar recaiu sobre os pergaminhos amontoados na escrivaninha. A carta para Lady Hildegard não avançara muito. Demasiados dias se sentara empunhando a pena, tentando formar as suas frases em latim, apenas para constatar que as horas haviam decorrido em devaneios com o homem que lhe consumia os pensamentos.
Um erro, era óbvio. O filho de uma égua. Desejou subitamente ser tão grande e forte como Lady Anna. Desejou que, usando os seus punhos num homem, ele o sentisse. Ela poderia não ser capaz de tocar o coração deste salteador, mas se ele a insultava desta maneira, seria muito gratificante pelo menos maltratar-lhe o corpo.
Com movimentos abruptos tirou as meias e a combinação e atirou para trás a roupa da cama. Deu socos na almofada e remexeu-se para encontrar algum conforto na cama fria e estreita.
Talvez devesse ir dizer a Edmund que mudara de ideias. Eles poderiam até conseguir partir esta noite. Sem dúvida que Ian tinha boas razões para dormir profundamente a noite inteira.
O amor que tão recentemente reconhecera infiltrava-se na sua indignação, dizendo-lhe que decerto não faria tal coisa. Ela confrontou a emoção como se esta fosse um corpo estranho que lhe invadisse o espírito. Não me controlareis, avisou-a perigosamente. Não vos deixarei fazê-lo. Sois uma forma de tortura e continuarei a negar alimento ao vosso fogo porque se vos alimentar sereis o fogo do próprio Inferno.
Perguntou-se se Anna ainda estaria acordada. Anna também não gostava de Ian e elas podiam ir buscar vinho e, embriagadas, desfazê-lo com insultos…
– Que raio fazeis aqui? – A voz grave e ríspida vinha da porta.
Reyna virou a cabeça, deparando com Ian. Estava tão absorta nos seus pensamentos furiosos que não ouvira a porta abrir-se.
– A dormir. Foi rude da vossa parte acordardes-me.
– Não estáveis a dormi. Ouvi-vos entrar.
Ele avançou pelo quarto adentro e lançou-lhe um olhar furioso.
Ela sentou-se contra a parede e devolveu-lhe o olhar, absorvendo a firmeza do seu corpo e a luz profunda dos seus olhos. Ele parecia tão irritado quanto ela se sentia. Pensou que era preciso muito descaramento da parte dele.

– Estivestes acordada metade da noite com aquele homem –
disse ele secamente.
– É um amigo que raramente vejo, e tínhamos muito de que falar.
– Aposto que sim. Debatestes filosofia todas estas horas, Reyna?
A insinuação dele fez o seu sangue pulsar com força. Ele acabava de se deitar com a peituda Eva e atrevia-se a atirar-lhe com acusações, a ela. A tensão de controlar a fúria que sentia era-lhe custosa e o esforço fê-la perder o controlo. Decidindo que falar não lhe serviria de nada, limitou-se a olhar para ele, recebendo a sua pergunta com o mesmo silêncio frio que ele havia consagrado a uma das dela.
Com um movimento abrupto, ele virou-se para a escrivaninha, agarrou-a, ergueu os braços e atirou-a violentamente contra a parede. Uma tábua partiu com a força do impacto. Pergaminhos e penas esvoaçaram em todas as direções e flutuaram até ao chão como destroços de uma tempestade de outono.
O frágil controlo de Reyna desfez-se com a mesa. Enrolando o lençol no corpo, ergueu-se como um raio. – Desprezível filho do Cornudo. Com que direito é que vós…
– Sois minha mulher. Se vos pergunto o que estivestes a fazer durante metade da noite com um homem, vós respondeis.
– Passámos a maior parte da noite a amaldiçoar-vos.
– E o resto do tempo?
Emoções complexas e ameaçadoras extravasavam dele, abalando o ar do quarto como relâmpagos, mas ela não queria saber. – É disso que se trata? É essa a razão desta cena de raiva, agora? Ainda vos agarrais à ideia de que eu e Edmund partilhamos esse tipo de amor? Seu louco. Ele é um cavaleiro celibatário. Não julgueis todos os homens pelos vossos vis padrões, filho de uma égua inglês!
– Os meus padrões podem ser vis, mas deteto um homem que trama alguma coisa quando o vejo. O que queria Santo Edmund de vós, mulher?
Uma paz perigosa, fria, varreu-lhe o calor da fúria. Ela não se tinha realmente acalmado, apenas encontrara o centro da sua tempestade. Estavam frente a frente à mera distância de um braço, dois corpos tensos travados no espaço por olhos resolutos.
– Ele queria levar-me embora – disse ela. – Ele não confia que vós me protejais se achardes que isso não vos beneficia. E eu, idiota, recusei, mas bastou subir estas escadas para me arrepender da decisão.
Ele cerrou os dentes. – E viestes para aqui para o vosso escritório de filósofa para reconsiderar? Para sujeitar essa decisão obediente à frieza da lógica e pesar as vossas opções?
– Vim para aqui porque a vossa rameira saía da vossa cama quando passei pela porta do vosso quarto.
Ele não atendeu à acusação dela mas, a bem ver, o que poderia dizer? Ventos de fúria recomeçaram a levantar-se dentro dela. –
Tencionáveis que vos encontrasse juntos, ou teríeis ficado satisfeito se eu soubesse amanhã pela coscuvilhice dos criados? Dizei-me, seu galo com cio, havei-la chamado porque eu não estava lá para satisfazer uma fome passageira, ou planeaste-lo como vingança ou castigo porque me atrevi a demorar-me com o meu amigo e não estive aqui para vós, como é costume?
Os olhos dele exaltaram-se, mas ela não recuou. A mágoa e a raiva eram demasiadas para que sentisse medo. Uma tensão horrível retesava-se entre eles. Ela quase desejou que ele lhe batesse, para ela própria poder desferir alguns golpes, nem que fosse para aliviar a pressão que a atormentava.
Ele deu meia-volta, de mãos nas ancas. – Se tivesse sido como dizeis, não teria ido além do que mereceis. Devíeis ter estado aqui, e não com ele.
– Raios vos partam. Edmund é um amigo que me ama como vós nunca amareis. Idiota, escolhi contra toda a lógica confiar mais em vós do que nele, e, como uma criança rancorosa, vós soltais-me os cães porque por uma noite não tivestes a atenção toda.
Ele virou-se para a encarar com uma expressão de surpresa, mas o seu rosto rapidamente recuperou a rigidez. – Não é nem infantil nem rancoroso um homem querer a sua mulher com ele antes de sair para a guerra, Reyna.
Um golpe físico não a teria chocado tanto. O impacto das palavras dele derrubou imediatamente a raiva de Reyna.
Ela sentiu a investida violenta das emoções que irrompiam dele.
À raiva e ao desejo, reconheceu-as, mas havia ali outras correntes também, que não lhe eram conhecidas. Rajadas de necessidades e anseios que não tinham nome pareciam alimentar o seu humor proceloso.
– Quando soubestes? – inquiriu ela.
– O mensageiro chegou logo após saírdes do salão. Partirei de manhã. – A sua voz tinha uma inflexão amarga.
– Porque não viestes dizer-me, ou mandastes alguém fazê-lo?
– Era claro que estáveis desejosa de falar com o vosso cavaleiro e conversar sobre a vossa má sorte. Eu senti que ele queria algo de vós, mas não achei que fosse atrevido ao ponto de violar a minha hospitalidade tentando roubar-me a mulher.
– Isso implica que… não foi… – Deixou morrer as explicações.

Ela não queria continuar a falar de Edmund. Preocupação e medo haviam-se substituído à raiva. Os avisos de Edmund, o sorriso de Eva, até mesmo esta discussão dolorosa, haviam-se tornado imediatamente insignificantes.
Dentro de algumas horas Ian estaria de saída. Partiria, e não para uma guerra insignificante na fronteira, mas para um cerco perigoso onde todos os dias morriam homens a escalar muralhas nas quais o inimigo aguardava com setas e fogo.
Ainda estavam, rígidos, um em frente ao outro, como estátuas de pedra que decorassem um edifício varado por uma ventania silenciosa.
– Quanto tempo estareis fora?
– Duas semanas. Um mês. Até acabar.
Duas semanas. Um mês. Para sempre. – Ides só?
– Levarei o grosso da companhia comigo. O vosso hospitalário terá de sair de manhã, porque o portão será fechado quando nós partirmos e ninguém entrará sem o meu consentimento. – Ele não olhava diretamente para ela, mas Reyna conseguia ver a luz férrea que brilhava nas profundezas dos seus olhos.
Ela desejava transpor o espaço entre eles, mas a postura e o rosto dele diziam que os poucos passos no chão de madeira podiam bem ser um quilómetro de penhascos. Ainda assim, ela deu um passo em frente e ergueu uma mão hesitante como que para lhe tocar. A mão ficou ali a pairar, sem completar o seu curso, uma ordem inconsequente, frágil, para o furacão se acalmar. – Então viveremos como num cerco até vós regressardes?
– Vós não. Morvan ordenou que a sua mulher e irmã fossem levadas para Carlisle. Vós ides com elas.
Ir para Carlisle parecia tão permanente, como se ele a enviasse para o outro lado do mundo. – Este é o meu lar, Ian. Não compreendo.
– Lá estareis em segurança.
– Ficarei em segurança aqui.
– Não se Morvan falhar e eu morrer.
Uma angústia avassaladora repleta de medo e arrependimento e amor crescera dentro dela, arrebatando-a agora de tal forma que a sua garganta se apertava e os seus olhos queimavam. Procurando manter a compostura, refugiou-se em praticidades. – Tendes razão.
Eu devia ter estado aqui. Contáveis que eu atendesse aos preparativos, e agora a vossa partida ver-se-á atrasada. Acordarei os criados dentro de poucas horas e…
– Quero lá saber dos preparativos. – Ele esticou um braço e agarrou-a, puxando-a para o outro lado do fosso, para a turbulência dele. O movimento violento assustou-a tanto que ela gritou. Dedos de ferro agarravam-lhe os braços, praticamente levantando-lhe os pés do chão, e ele olhava para ela com olhos intensos, sombrios. – Para uma viúva que foi casada doze anos, há muito que não sabeis sobre ser mulher de alguém.
O perigo nos olhos dele e o aperto brutal das suas mãos deviam tê-la assustado, mas não o fizeram. Havia muito que não compreendia daquele estado de espírito, mas reconheceu alguma coisa.
– Então cabe-vos a vós guiar-me – sussurrou ela.
Com um movimento brusco, ele puxou-a para um beijo urgente num abraço vigoroso. Dedos cruéis aprisionavam-lhe a cabeça, por isso ela não conseguiu evitar que a boca lhe magoasse os lábios, devorando os receios dela, exigindo os seus direitos. Braços de aço dobravam o seu corpo contra o dele com tanta força que as suas mãos, agarradas ao lençol, se converteram em pequenas pedras, entrando na carne e osso que contra elas pressionavam.
Não havia exigência de submissão consentida neste ataque selvagem. O seu corpo respondeu com uma espantosa onda de calor e o seu amor resplandeceu com a prova de que, o que quer que fosse que o impelisse, ele claramente precisava dela e queria-a.
Ele ergueu a cabeça e o sangue regressou à sua boca violentada, picando-lhe a pele tenra. Com olhos líquidos, ela viu a sua expressão inflexível. Ele apertou mais o seu corpo arqueado, com uma mão esticada aberta sobre as suas nádegas para o cume duro da sua excitação lhe pressionar o ventre. – Sim, é isto que a ideia de nos separarmos me faz – murmurou com rudeza, examinando o rosto dela como se procurasse memorizá-lo. – Se eu não for meigo, culpai-vos a vós própria por me deixardes demasiado tempo entre as mãos.
– Não penso culpar ninguém.
– Podeis pensar de forma diferente antes de esta noite acabar. –
Voltou a beijá-la, apenas um pouco menos violentamente. –
Certificar-me-ei de que não esqueçais depressa que sois minha. Se outro homem olhar para vós, serão os meus olhos que vereis no rosto dele, e à noite nos vossos sonhos não será nenhum espectro que vos toma, mas sim eu. Se o vosso santo cavaleiro se atrever a seguir-vos até Carlisle, sentireis estas mãos de diabo no vosso corpo enquanto ele vos tenta, e a respiração deste salteador na vossa orelha enquanto ele vos persuade.
Ela mal o ouvia. A tempestade absorvera-a e ela girava no seu centro com o corpo moldado ao dele, pendurada nele, sem peso, com a força dele como única ligação sólida ao mundo.
Ele ergueu-a nos seus braços, abrasando-lhe a boca e o pescoço com os seus beijos quentes enquanto o quarto dela, o corredor, o quarto principal passavam, turvos. Ele deixou-a cair na cama deles e arrancou o lençol que ela ainda cingia ao corpo.
Completamente vestido, colocou-se por cima dela, afastando-lhe as pernas, assentando-se nelas. Uma mão áspera subiu-lhe firme pela coxa num trajeto que findou na humidade que revestia aquele centro secreto.
O braço dele passou-lhe por detrás do ombro, e a sua mão entrelaçou-se no cabelo, segurando-lhe a cabeça para ela ficar de frente para ele. Ela viu a sua expressão de triunfo quando descobriu a sua excitação, mas não se importou. Ela ansiava penosamente pelo preenchimento dele, e gemeu de alívio quando ele investiu dentro dela com um movimento vigoroso.
Não foi nada meigo. Numa posse primitiva, o corpo dele embatia contra ela uma vez e outra, numa fúria da paixão que os envolvia. Ele dobrou-lhe as pernas para a poder penetrar mais profundamente, e a força das suas acometidas violentas faziam-lhe subir as ancas. Ele observava a reação dela a esta violenta reivindicação de direitos, e relâmpagos faiscaram naqueles poços negros quando a resposta dela se soltou e os seus frenesins mútuos colidiram em combate. Ela tornou-se impotente contra uma invasão espiritual à medida que o êxtase começou a cerrar e avolumar-se e a puxá-la para ele.
– Pois, Reyna – disse a sua voz grave enquanto o sabor da completude vibrava e corria por todo o seu corpo. – Robert ainda pode ter o vosso coração, e o vosso monge pode inspirar-vos a mente, mas nisto sois completamente minha. Não me negareis nada esta noite.
Ela sabia que ele não falava apenas de coisas físicas, mas não encontrou vontade de convocar resistência. O reconhecimento do amor que sentia sabotara as frágeis muralhas com que ela, a medo, protegia o seu coração. Agora estas abanavam e abriam fendas e caíam na investida violenta daquela intensidade.
Na paixão febril daquela unificação maior, a posse agressiva converteu-se numa partilha arrasadora. Ela fazia por o absorver com todo o seu ser enquanto o prazer turbulento ascendia ao seu ápice frenético. Vieram um para o outro numa libertação longa e feroz repleta de mordidas e gritos e mãos como garras, fundindo-se num arrebatamento violento.
Ficaram, exaustos, entrelaçados um no outro, corpos selados com suor e abraços. Ela apercebeu-se lentamente da respiração na orelha dela com que ele prometera marcar-lhe a memória. O som recordava-lhe a sua separação iminente. Fechou os olhos, atenta ao seu ritmo, e tentou suprimir a tristeza que queria invadir a perfeição daquele abraço.

CAPÍTULO 19


Reyna acariciou-lhe as costas, e ele sentiu o toque dela a aperceber-se do tecido da sua túnica. Ela moveu a mão para lá do lençol amarfanhado por baixo deles e tocou na colcha.
Ian ergueu-se nos antebraços para olhar para ela. Viu-a considerar que ele ainda estava vestido e que a cama não fora usada antes de ele a atirar para lá.
Sentiu uma nova irritação por ela não ter feito perguntas sobre Eva antes de o acusar. A maior parte da sua raiva ferida havia sido absorvida pela paixão, mas não toda. – Talvez a tenha tomado no chão ou contra a parede.
Ela desviou o olhar com uma expressão de desalento, fazendo-o sentir-se culpado por a ter magoado de propósito, especialmente agora, depois disto.
– Foi grosseiro da minha parte – sussurrou ele, roçando-lhe a orelha com o nariz. – Eu não a chamei. Ela veio sozinha, para concluir o pedido que começara no pátio na semana passada. Há um jovem arqueiro na minha companhia que se amigou dela, mas que não lhe tocava por minha causa.
– Ela pediu-vos permissão para dormir com outro homem?
– Algo assim. Duvido que Eva se preocupe com tais formalidades, mas o homem pensou que era prudente. Ele quer casar-se com ela. O pai dela não tem filhos e iriam ambos para a sua quinta.
– Ela quer ir-se embora?
– Eu disse-lhe que teria de vos perguntar se podíeis passar sem ela.
A fronte dela enrugou-se, pensativa. – Não sei se posso. Ela é uma excelente costureira. E se o meu marido decidir brutalizar uma mulher com alguma regularidade, pode ser útil tê-la por aqui.
Ele baixou os olhos para a prova da sua violência. Viam-se marcas de dedos onde ele lhe agarrara os ombros e um chupão luzia rubro no seu pescoço, onde amanhã seria visível para o mundo. Ele beijou-o suavemente, sabendo que, se pudesse torná-lo permanente, como uma marca gravada a ferro, o faria. – Pediria desculpa, mas não o lastimo.
– Nem eu.
Ele ficou quieto um instante, grato por ela não lamentar nem ficar ressentida com aquilo que ele forçara.
Saiu da cama e tirou a roupa, indo depois até à lareira onde um balde de água aquecia para a limpeza matinal. Molhando um pano, regressou e deitou-se ao lado dela, passando-o pelas marcas que havia feito.
Ele desceu o braço para lhe passar a compressa quente entre as coxas. Na sua mente, ouvia o eco das palavras de Morvan, ditas neste aposento: Bolas, Ian. Elizabeth não vos ensinou nada?
Sim, ensinara-lhe muito, mas enquanto esperava por Reyna, esta noite, aquelas lições e os anos que passara a aperfeiçoá-las haviam sido esquecidas. Voltara a ser um jovem imaturo, consumido por necessidades desesperantes e dores cruas, e todas elas se haviam centrado em Reyna. A ideia de que ela partilhava qualquer parte dela com outro homem enlouquecera-o. Ele entrara no quarto dela cheiro de emoções furiosas, desvairadas, e a própria raiva e paixão dela haviam-no feito perder o controlo.
Depois, vendo o que estava nele, ela simplesmente se abrira para o absorver.
Ele passou-lhe o pano pelo corpo, atento à pele por baixo da sua mão, gravando as memórias na mente. Coisas inomináveis ainda se revolviam dentro dele, mitigadas mas não destruídas pela paixão deles, desassossegando-o com o seu poder. Pensar em deixá-la entristecia-o de forma surpreendente, cobrindo o seu coração com o temor e a dor que uma criança sentiria ao ver-se separada da mãe. Porventura tivesse sido melhor tê-la evitado esta noite e nunca lhe ter exigido que atravessasse aquelas fronteiras. O
preço podia ser muito alto, especialmente se ela alguma vez voltasse a recuar.
Ele voltou a cabeça e os seus olhares encontraram-se. O rosto dela tinha um aspeto muito jovem e doce, mas os seus olhos mostravam o saber de uma mulher.
– O vosso pai, que procurou fazer de vós padre, ainda vive? –
Fez a pergunta como se nunca a houvesse pronunciado, mas o seu olhar compreendia um desafio.
Sim, teria o seu preço. Tratava-se de Reyna. Nunca seria tão estúpida que permitisse que a entrega ocorresse apenas numa direção.
– Não, não vive.
Preparou-se para a próxima pergunta, e a seguinte, e começou a sentir o travo de a perder depois de todas terem sido perguntadas e respondidas. Por isso, quase gemeu de alívio quando ela escolheu desviar-se da questão principal.

– Ele morreu quando ainda éreis jovem?
– Morreu quando eu tinha dezanove anos, logo depois de eu ser armado cavaleiro, mesmo antes de ir para a corte. Ele havia tratado de me enviar para lá para um parente. – Era a verdade, apesar de incompleta.
– O vosso parente servia o rei?
– Era um funcionário menor. Levou-me para a casa dele. –
Nada disto era mentira, na verdade.
– Vivestes com ele durante todo o tempo que lá ficastes?
Sim, uma pergunta levaria a outra, e ele viu para onde estas se encaminhavam. Ela limitava-se a seguir os pensamentos enquanto construía formas de substância dentro do profundo mas indefinível conhecimento que tinham um do outro.
Ele não podia negar-se a ela sem perder o que acabava de lutar para reaver, mas sentia alguma angústia com a ideia do julgamento que o aguardava. – A peste chegou não muito depois de eu chegar.
O meu parente estava fora, e dela morreu. As pessoas da casa mudaram-se para uma das propriedades da mulher, no Sussex, até a peste passar.
Fez uma pausa, perguntando-se se poderia ficar por ali.
Provavelmente não. A sós com Christiana em Carlisle, ela podia vir a saber deste pecado menor. – Fiquei com a mulher dele durante dois anos, vivendo principalmente de ganhos em torneios.
– E depois partistes para França?
– Depois vivi sozinho por um ano antes de procurar a minha sorte em França.
Ela identificou imediatamente as lacunas. – Porquê?
Desentendeste-vos com a vossa parente? – Na falta de resposta dele, as sobrancelhas dela ergueram-se e ele viu as peças encaixarem. – A mulher de que me falastes no outro dia… a troca com Morvan… era a mulher do vosso parente?
– Sim. – Ficou aliviado por ela não parecer mais chocada.
– Ela devia ser muito mais velha do que vós ou Morvan.
– Era a segunda mulher do meu parente, e muito mais jovem do que ele. Mesmo assim, tinha quase idade para ser minha mãe.
– Amávei-la?
Ela queria que ele dissesse que a amara loucamente. Elizabeth não era parente de sangue, mas pelo casamento. Embora tais relações não fossem inauditas, não eram aceitáveis. Afirmar que estivera perdido de amores tornaria o facto mais palatável, mas ele constatou que não conseguia mentir-lhe.
– Amava-a tanto quanto conseguia, o que não era muito. Menos do que devia. Mais do que ela queria.
– Porque acabou?
Porque deixei de ser fiel, que era tudo o que ela alguma vez exigia dos seus amantes. Porque sabia que ela amava outra pessoa e ressentia-me disso, apesar de eu nem sequer saber o que fazer com tal amor se ele me fosse dirigido. Porque havíamos sanado a pior dor um do outro, e era altura de vivermos as vidas que nos restavam.
– Elizabeth tinha muito de mãe e era tentador ficar para sempre no conforto do seu seio. Mas, tal como uma mãe, também chegou a altura de partir.
– Penso que consigo compreendê-lo. Foi algo parecido com Robert e eu.
De todas as reações que ele esperara, a última seria esta calma compreensão. Ela surpreendeu-o ainda mais quando acrescentou: –
Fico contente por ela ter lá estado se vós precisáveis da sua amizade.
Ela agarrou na ponta das cobertas, empurrou-as para trás e depois puxou-as para cima dos seus corpos. – Tendo em conta a caçada e o resto, deveis estar muito cansado. Tendes uma longa cavalgada à vossa frente. Dormi, Ian. Acordar-vos-ei ao amanhecer.
– Vós também deveis estar cansada.
– Não estou. Daqui a alguma horas devo acordar os criados para os preparativos da vossa partida. Não acredito que durma.
– Então eu também não. Aprendi há muito a descansar em cima de uma sela. Não planeio desperdiçar horas com sonhos quando o melhor sonho está deitado a meu lado. – Voltou a afastar as cobertas, expondo o corpo de Reyna, e apoiou-se num braço para olhar para ela. – Além do mais, quem sabe quando voltarei a ter oportunidade de vos ministrar outra lição?
Beijou-a, memorizando a suavidade dos seus lábios e o contorno afiado dos seus dentes, e as profundezas de veludo da sua boca. Juntando-lhe as mãos, segurou-lhas acima da cabeça para ela ficar esticada e completamente vulnerável a ele. Ele não a queria a abraçá-lo ou a fazer qualquer outra coisa que pudesse acelerar a sua resposta. Ele iria deixá-la louca, desesperada e suplicante, e talvez o som dos seus gritos o sustivesse durante os dias e as semanas seguintes.
Acariciou-a lentamente, observando a sua mão bronzeada mover-se em torno dos volumes da sua pequena forma feminina, procurando não provocar nela mais do que um prazer lânguido.
Ainda assim, os seios dela avolumaram-se e os mamilos endureceram. A resposta rápida fê-lo sorrir, mas não se deixaria distrair.

– Sois tão adorável, Reyna. A vossa pele tem sempre este vago rubor, e é suave e húmida, como se estivesse coberta de um orvalho invisível. – Ela ficou sem fôlego quando ele baixou a cabeça e primeiro beijou e depois lambeu o vale entre os seus apelativos seios.
Ela arqueou-se convidativamente, mas ele ergueu-se mais para poder acariciar e memorizar as linhas elegantes das suas pernas. As suas coxas leitosas estremeceram e retesaram-se quando ele se encaminhou mais para cima, para o odor e a humidade que já aguardavam entre as pernas dela. Ele tocou-lhe ao de leve, como se a testar se ela estaria demasiado dorida para mais, grato pela prova de que não estava quando o seu corpo estremeceu elegantemente em resposta.
Ela enrugou a fronte quando ele retirou a mão.
– Ainda não, Reyna. É um castigo por voltardes a chamar-me canalha e filho de uma égua. Avisei-vos que não o fizésseis. – Na verdade, aquela diatribe havia sido música para os seus ouvidos.
Ele passou os dedos pelo lábio inferior, retirando a humidade da sua respiração travada, estudando o desejo diáfano dos seus olhos.
Sentiu-se inexplicavelmente lisonjeado por esta mulher sequer o querer, ainda por cima com tanta intensidade e tanta prontidão.
Ele desenhou-lhe uma linha do queixo ao peito e depois andou à volta da elevação de um pequeno seio. Ela contorcia-se e gemia, e ele esticou a mão para roçar suavemente o seu mamilo ereto. – É
isto o que quereis, Reyna?
Ela tentou soltar as mãos da dele.
– É?
– Sim, diabos vos levem.
– Outra maldição? Pode durar até de madrugada. – Ele provocava-a com as pontas dos dedos, roçando ao de leve o botão rosa, e ela sacudiu novamente os braços.
– Largai-me, seu filho de uma égua, e veremos quem mais grita.
– Continuai assim e poderemos não partir antes do meio-dia. –
Ele baixou os lábios até ao outro botão. – Sois tão suave, como veludo. A primeira vez que vos beijei, quase esqueci todo o sentido do dever. – Ele lambia e sorvia lentamente, perdido no gosto e no toque deliciosos dela, maravilhosamente alerta aos gritos e movimentos de abandono que a sua língua e mão extraíam dela.
As suas ancas balançavam lentamente enquanto ele fazia amor com os seus seios, e ele deixou que o ritmo do desejo titilasse a sua própria fome tensa. Saboreava cada reação apaixonada, guardando a memória como uma posse preciosa.
Libertou-lhe as mãos e virou-a de costas. Pairando acima dela, desceu lentamente beijando-lhe as costas e depois virou-se para lhe observar o corpo, enquanto lhe acariciava a parte de trás das pernas e coxas. Ela enterrou a cabeça nos braços, para abafar os arquejos de surpresa que soltava. Quando o toque e o olhar dele subiram, as elevações suaves das suas nádegas contraíram-se e as suas costas arquearam. Ela tinha um aspeto incrivelmente erótico nesta posição, e ele inclinou-se para lhe beijar o fundo das costas enquanto os seus dedos corriam para a fenda ensombrada.
O grito abafado que ela soltou quase o tirou de si. A tormenta, apaziguada mas não saciada, entrou novamente em erupção. Ela afastou as pernas para ele prosseguir, e as suas ancas ergueram-se quando o dedo dele encontrou a passagem estreita e afagou as suas profundezas escaldantes. Ela ergueu a cabeça e olhou para ele com olhos desconfiados. – Ides….
Ele imaginou as ancas dela a erguerem-se em direção a ele, e atravessou-o um estremecimento de calor. Mas ele duvidava que conseguisse manter algum controlo se a tomasse daquela forma, e tudo o que não fosse meiguice desta vez seria imperdoável.
Virou-a para cima. – Para a próxima, Reyna, e ides gostar, prometo-vos. Mas hoje quero o vosso rosto contra o meu e os vossos braços à minha volta.
Ela tentou estreitá-lo, mas ele escapou-lhe dos braços e percorreu-lhe a pele sedosa com beijos quentes. Outra memória e posse de que não abdicaria. Pôs-lhe as pernas em cima dos seus ombros e beijou-lhe a parte de dentro das coxas. Uma nova febre assomou aos olhos dela. O seu corpo parecia saber o que ele ia fazer, ainda que a sua mente não.
Ele acariciou-a intimamente, procurando os pontos que a levavam à loucura, e ela reagia com movimentos involuntários. Ele dirigiu os beijos mais para cima, para o centro da sua paixão. Ela gritou o nome dele e ele, erguendo os olhos, viu a sua expressão selvagem, de assombro.
– Vou fazê-lo, Reyna. Se não gostardes, paro.
Ela ficou tesa como uma tábua quando a boca dele se substituiu aos dedos, mas o prazer demoliu imediatamente a sua resistência. –
Sim – sussurrou ela, e logo a afirmação se tornou um grito repetido vezes sem conta, e o som deste cântico ofegante e os espasmos da paixão dela empurraram-no para um olvido resplandecente.
Quando ele se colocou por cima dela, ela agarrou-se a ele, chamando-o para si, erguendo as pernas num abraço, tentando unir o seu desespero. – O que quereis, Reyna? – Mal lhe restava juízo sequer, mas queria ouvi-la dizê-lo. Precisava de a ouvir dizê-lo.
Os dedos dela cravaram-se-lhe nos ombros. Ela ergueu os olhos e pestanejou para afastar a paixão atordoante.

– O que quereis? – repetiu.
Uma luz feroz perpassou-lhe o olhar. – Vós. Vós todo. Bem dentro de mim e por mim toda.
Uma fome ardente atravessou-o com uma força perigosa. Se ele seguisse o seu sangue, seria como antes. Rolando no seu abraço, colocou-a em cima dele. – Então tomai o que quiserdes. O mais ou o menos que precisardes.
Ela mexeu-se para o absorver profundamente, curvando-se para lhe acariciar e beijar o peito, puxando o espírito dele para ela tão seguramente como ele havia forçado o dela a ir até si. Ela era maravilhosa e ardente no amor, e as emoções caóticas dele rodopiavam sob a sua agressão urgente. Os gritos dela regressaram e ela começou a pedir mais. Ele agarrou-lhe nas ancas e respondeu com acometidas, impaciente agora pela conclusão que retrasara, tentando conter as complexas necessidades para que o não dominassem desta vez.
Ela gemeu com o movimento dele e enterrou o rosto no seu pescoço. – Mais força – sussurrou trémula. – Bem dentro de mim e por mim toda.
– Vou magoar-vos. Estais dorida.
– Não, meu amor. Se devemos separar-nos, quero sentir-vos durante dias. Semanas. Para sempre.
A sua voz abafada continha um tremor. Acariciando-lhe o rosto, sentiu uma lágrima. Uma ternura formidável verteu-se sobre ele, repleta de espanto por ela se importar ao ponto de sentir uma tal tristeza pela separação deles e o perigo que ele corria.
De súbito, ele não queria absolutamente nada dela, mas apenas dar o que quer que ela procurasse. Imerso com ela numa harmonia impregnada de prazer e alegria e dor, cingiu-a mais. Pressionando-a contra o seu coração desgovernado, sussurrou mentiras tranquilizadoras enquanto entrava nela.

CAPÍTULO 20


Ian olhou para o desenho preciso que David fizera no solo de terra da tenda. Mostrava uma imagem pormenorizada de Harclow como se vista por uma ave em pleno voo. Havia a torre de menagem quadrada com as suas outras quatro torres em cada um dos cantos, e a muralha interna que a rodeava. A alguma distância, corria a linha espessa da muralha exterior. De dois lados flutuava o lago, e David indicara mesmo a localização dos acampamentos que faziam o cerco no terreno circundante. Ian nunca vira algo semelhante, com todos os objetos vistos de cima e à escala. A maioria dos mapas não estavam desenhados desta forma.
– Esqueci alguma coisa? – perguntou David a Morvan, que também estudava a imagem.
Morvan abanou a cabeça. – Está mais do que exato.
– Ainda bem. Agora peço-vos que me ouçais. É provável que esta chuva dure alguns dias, por isso há tempo de o fazer agora, se concordardes.
Ian foi até à entrada da tenda e espreitou para a chuva miudinha que durante dois dias sofreara os ataques. Atrás dele, David começou a explicar o elaborado plano que haviam engendrado.
Sentindo-se desassossegado, Ian saiu da tenda para a chuva e atravessou o acampamento até onde conseguia avistar a muralha de Harclow. Espalhados ao longo desta estavam soldados de vigia, em menor número do que o normal por conta da chuva. A lama e a humidade só vinham tornar mais arriscado os perigosos trabalhos, e, de qualquer forma, o exército de Morvan precisava do descanso.
Durante semanas as investidas haviam continuado, as torres de assalto haviam avançado, as máquinas lançado os seus mísseis.
Dentro de Harclow, os homens não paravam de cair, como os de Morvan, e deviam estar muito reduzidos em número, mas o velho Maccus não se rendia.
Ian comandava em pessoa uma das torres de assalto desde que chegara. Era uma grande honra, e ter-lhe sido destinada surpreendera-o. Mas não fora honra que sentira ao aguardar lá em cima, de espada pronta, enquanto a alta construção de madeira era empurrada sobre rodas até à muralha. Outra coisa fervia-lhe no sangue então, tão premente que o seu nome não podia continuar escondido.
Medo. O seu poder insidioso surpreendera-o e ele não tinha experiência de lidar com aquilo. Mas sabia o que era, sabia-o na alma desde o dia em que saíra para defrontar Thomas Armstrong.
Quando tinha dezoito anos, conhecera um medo assim, tendo-lhe sucumbido completamente. Mas depois morrera nele, e a sua perícia em combate vira-se reforçada por esta liberdade. Outros podiam ficar acordados antes de uma batalha, antevendo a morte que aguardava, mas não Ian de Guilford. Outros podiam pesar o preço de acorrer em ajuda de um estranho em desvantagem na Batalha de Poitiers, mas ele nunca se dera a tais cálculos.
Até agora. Ao seu redor estavam veteranos que há muito haviam aprendido a controlar o medo, mas de repente ele voltava a ser um mancebo, manchado de sangue pela primeira vez, calculando riscos em que nunca reparara, dependendo de instintos nos quais já não confiava.
Deu a volta em direção ao lago, passando pelo trilho que conduzia à periferia do acampamento. Espreitou para as tendas que continham os mercadores, lavadeiras e rameiras que formavam a pequena cidade que despontara para servir os soldados.
Normalmente, num dia vazio como este, iria até lá e passaria uma moeda a uma mulher para quebrar a monotonia. Hoje, a noção de seguir esse caminho parecia-lhe de alguma forma obscena.
Por causa de Reyna.
Reyna. Ela estava no âmago daquilo tudo. Estava na sua cabeça mais do que nunca, e o medo ancorava-se firme àquelas imagens e pensamentos. Não o admitia a si próprio com qualquer rancor ou culpabilização. Apenas reconhecia a verdade enquanto caminhava pela lama até à margem do lago.
Para lá da extensão de água, viu o buraco na muralha exterior que David fizera com as suas bombardas. Haviam sido necessárias muitas tentativas até encontrar o ângulo que cuspiria as pedras redondas para lá do lago, mas depois David disparara projéteis para um dia inteiro, até a muralha fender e desabar. Fora uma experiência mais do que qualquer outra coisa, para ver se o impacto repetido afetava uma estrutura daquelas a tal distância.
Mas hoje, deitados nas enxergas na tenda que partilhavam, ele e David haviam descoberto uma forma de dar mais substância àquele feito.
Imagens de Reyna voltaram a apoderar-se dos seus pensamentos daquela forma insistente. Perguntou-se o que ela faria naquela mesma altura em Carlisle. Voltariam os pensamentos dela para as últimas horas que haviam passado juntos tantas vezes como os dele?
Meu amor. Parecera tão certo quando ela o dissera, apenas mais um cordão na intimidade perfeita que haviam partilhado naquela noite. Talvez ele não devesse dar demasiado peso a um simples carinho, mas naquela noite outra emoção exigira também ser nomeada, e o jovem temeroso, esperançoso, que ressuscitara dentro dele, queria a qualquer custo acreditar que estavam juntos naquilo.
Haviam sido palavras dela, não dele. Porque não as tinha ele pronunciado para ela, se não naquela noite, pelo menos no dia seguinte, antes de se separarem? Tê-las-ia deixado por dizer para se assegurar de que sobreviveria para as pronunciar mais tarde?
Estava o medo tão enlaçado no amor?
Medo. Era constante. O amor e o medo eram os dois lados de uma moeda transparente – impossível ver um lado sem que o outro interferisse na visão. De que tinha medo? De morrer, isso era certo.
De a perder, claro, fosse pela morte ou pela desilusão. De a amar?
Regressou pelo mesmo caminho. Ardia uma pequena fogueira do lado de fora da sua tenda por baixo de um toldo alto, e ele sentou-se num toco que estava próximo. Morvan saiu e acercou-se dele.
– Pensais que devemos tentar este plano, Ian?
– Não é mais perigoso para os homens do que qualquer outra tentativa de assalto. As muralhas do lago poucos homens têm. Se a surpresa for suficientemente rápida, pode resultar.
– Para isso nos prepararemos, então, e se a oportunidade se der, fá-lo-emos. Quero-vos junto de David nisto, contudo.

Ian lançou-lhe um olhar incisivo. Aparentemente, o medo não passara desapercebido a Morvan. Ele procurava uma forma discreta de o retirar da torre.
Morvan apanhou o olhar. – Não é isso – disse ele, mostrando ter reconhecido tanto a suspeita de Ian como o próprio medo. –
Sois engenhoso em termos de construção e estratégia, e, no seguimento do plano, pode haver lugar a mudanças súbitas. Entre David e vós, se algo correr mal, ainda pode haver recobro.
Eles nunca tinham desenvolvido uma amizade fácil, por isso ficou surpreendido quando Morvan voltou a falar. – Quanto à outra questão, não penso menos de vós. Todos os cavaleiros devem enfrentá-lo, mais cedo ou mais tarde, exceto aqueles a quem faltarem entendimento ou imaginação. Costumáveis lutar como um homem sem nada por que viver. Agora lutais como um homem com tudo a perder. Dos dois, prefiro ter o último a meu lado. – Morvan saiu para o acampamento antes de Ian poder responder, mas também não havia nada que dizer.
Ian regressou à tenda. Encontrou David sentado no catre, desenhando cálculos na terra com o seu ramo pontiagudo. – Vinte jangadas, diria, cada uma com tamanho para dez homens. Melhor um número bom de tamanho mais pequeno, para haver a possibilidade de mais chegarem ao outro lado.
Ian atirou-se para a sua própria cama. – Se as chuvas continuarem, as jangadas ficarão húmidas o suficiente para não serem incendiadas por setas de fogo. Ainda assim, é inevitável que algumas pereçam, por isso estais certo. – Estudou o mapa rabiscado no chão. – Isto só nos permitirá passar a primeira muralha, claro.
– Quantas vezes vistes fortalezas aguentarem-se depois de o inimigo passar a muralha?
Nunca, Ian teve de admitir. Mas o velho Maccus revelava-se um inimigo tenaz.
Ian tentou entregar-se ao descanso, mas ele não chegava.
Exasperado, levantou-se e dirigiu-se outra vez à entrada da tenda.
Talvez reunisse alguns homens para começar a trabalhar nas jangadas.
– Ela sabe? – perguntou a voz suave de David.
Ian virou-se, surpreso. Presumiu que David se referia aos seus sentimentos por Reyna. Sem dúvida os percebera, como ao medo.
– Não.
David continuou calmamente as suas cogitações. – Será inevitável ela saber. A história é mais conhecida do que pensais. Os homens da vossa companhia, por exemplo, estão cientes da maior parte dos pormenores. Se nunca o deram a entender, é porque receiam a vossa reação e a vossa espada.
Ian sentiu o sangue correr-lhe um pouco mais devagar. Com os seus modos impávidos e serenos, David acabava de abordar um assunto a respeito do qual Ian nunca falava. Talvez ele sempre tivesse suspeitado que a companhia sabia. Talvez fosse essa a razão pela qual ele evitava uma amizade próxima com qualquer um dos homens. Aí as perguntas seriam inevitáveis. E por fim o julgamento. Podia-se ser indiferente às opiniões de pessoas que não importavam verdadeiramente.
– Christiana. Falaria ela disso com Reyna? – perguntou Ian.
– Não, quanto mais não seja porque ela própria o ignora. Não estávamos em Londres quando se espalharam os rumores.
– Mas vós ouviste-los de qualquer forma.
– Soube antes disso. Quando vi o interesse de Elizabeth, empenhei-me em saber mais de vós. Corre todo o tipo de informação entre mercadores.
Ian sentiu um rancor frio. – E dissestes-lhe?
– Só o suficiente para ela saber a verdade quando a história vos seguisse para a corte, como acabaria por acontecer.
– Pensais que sabeis a verdade?
– Sei que éreis um rapaz que não queria morrer. Sei que o vosso pai devia ter colocado de lado orgulho e raiva. – Fez uma pausa. –
Sei que uma mulher má jogou um jogo elaborado e perigoso, e que ganhou. Qualquer mulher destas, em qualquer idade, é mais impressionante do que qualquer homem. Quando são jovens, nem sequer compreendem a destruição que causarão com os seus esquemas. – Bateu com o pau na bota. – Ela tem um filho, decerto sabeis, de nove anos de idade.
– Não é meu.
– Não, não é vosso. É a imagem do pai.
– O pai dele era ignorante e inocente.
– Se o dizeis. Não retirei conclusão nenhuma de qualquer destas coisas.
– Decerto sois o único que não o fez. As conclusões típicas são sórdidas e condenatórias.
– Percebi a verdade a primeira vez que ouvi a história.
Certamente que outros também.
– Vós tendes conhecimento do mundo. Tendes experiência daquilo que as pessoas podem ser.
– E pensais que a vossa mulher não? Talvez a subestimeis. Vejo-me continuamente surpreendido pela capacidade que as mulheres têm de ser compreensivas no que respeita aos seus homens. –
Voltou aos seus cálculos. – Penso que precisamos de cinco homens a trabalhar em cada jangada. Visto que dais provas de me enlouquecer com a vossa inquietude, talvez devêsseis ir escolhê-los.
Ian achou a ideia excelente. Voltou-se para sair, mas deparou com a figura imponente de Morvan a preencher a entrada. O
corpulento cavaleiro passou por Ian, trazendo um homem pelo cachaço. Com um movimento largo, atirou o homem para o chão. –
Vede quem encontrei de volta das tendas da vossa mesnada, Ian.
O homem encolheu-se aos pés de Morvan. Era Paul, um membro da sua companhia que fora enviado para Carlisle para proteger as mulheres.
– Que raio fazeis vós aqui? – inquiriu Ian.
– Só vim ver os rapazes um bocado, não foi? Nada de muito grave, a meu ver.
– O vosso lugar é em Carlisle.
– Estava a ficar aborrecido.
– Aborrecido – trovejou Morvan. – Por Deus, se alguma coisa aconteceu à minha mulher ou à minha irmã por causa da vossa negligência…
– Se aconteceu, não é culpa minha. – Paul ergueu um braço para aplacar o golpe que a raiva de Morvan prometia. – Não consegui impedi-las de partir, não com todas tão determinadas, e a grande, bem, mostrai-me o homem que quer tentar dizer-lhe a ela o que fazer. E pelo menos levaram Gregory com elas, e insistiram que não seria por muito tempo. E eu sugeri que talvez devia vir dizer a Sir Ian pelo menos, mas Lady Reyna foi muito insistente, que eu não devia incomodar ninguém por uma coisa tão pequena, e a mais morena concordou, e a grande, bem, quando foram embora ela praticamente me ameaçou, ficou especada a olhar para mim com má cara e pôs a mão no punhal e disse-me para obedecer às ordens delas que tudo correria bem.
A expressão de Morvan fez-se mais sombria. – Dizeis que as senhoras saíram de Carlisle?
– Sim, é isso que estou a tentar explicar. Meteram-se num barco e ordenaram-me que ficasse em casa, mas comecei a ficar muito aborrecido de estar ali parado naquele sítio vazio só com aquela megera daquela criada. Então decidi que uma visitinha rápida até aqui não faria mal.
– Isto é obra de Lady Anna – disse Ian. – Ela não queria ir para Carlisle, e só lhe faltou insultar-me quando lhe transmiti as vossas instruções, Morvan.
– Não acuseis a minha mulher de incitar isto, Ian.
– Sugeris que Reyna forçou Anna a partir? C’os diabos, Morvan, a vossa mulher podia pegar nela com um braço.
– Talvez devêssemos descobrir para onde foram todas –
interrompeu David. Pôs Paul em pé e limpou-lhe a roupa com algumas sacudidelas solícitas. – Sabeis para onde se dirigiram?
– Penso que ouvi falar em Glasgow. Uma viagem rápida na sua maior parte por mar, garantiram-me.
Dois maridos olharam para Ian com irritação. Apenas Reyna teria interesse ou razão em ir para Glasgow.
– Sem dúvida que Anna alinhou para se distrair e Christiana foi a reboque para olhar pelas duas – disse David secamente.
– Irei atrás delas – atalhou Ian. – Não podeis sair daqui, Morvan, e com esta chuva não precisareis de mim durante alguns dias.
Morvan assentiu com a cabeça. – Levai mais alguns cavalos convosco, Ian, e pelo menos dois homens. Quando as encontrardes, enviai-me um homem asinha com novas da sua segurança.
– Irei convosco – disse David.
– Não, David, ficareis aqui – rebateu Morvan. – Convencestes-me deste vosso plano e agora ganhei-lhe gosto. É necessário que vigieis os preparativos. Ian, quando encontrardes Anna, dizei-lhe por mim que estou muito desagradado e que deve regressar imediatamente convosco. Quanto a Lady Reyna, deixo-a a vós.
Agarrando Paul pela ombreira, Ian arrastou-o até à fogueira. –
Quando partiram elas de Carlisle?
– Há sete dias.
Sete dias. Visto que haviam rumado a norte de barco, estariam brevemente em Glasgow. Demoraria tempo de mais ir por Carlisle e pelo mar. Ele teria de atravessar terras dos Armstrong. A toda a brida, podia chegar a Glasgow antes de elas partirem.
– Gregory ia ficar com elas a viagem toda?
– Sim. E Lady Anna levou um arco e uma espada. Vestiu-se como um homem, também, mas também ela faz sempre isso, o que é estranho numa mulher, não que ela pareça assim tão peculiar, por qualquer razão…
– Por que raio não viestes imediatamente avisar-me disto, Paul?
Ainda que não pense que lhes tenha acontecido alguma coisa, se sim, não posso proteger-vos de Morvan.
Paul olhou cauteloso por cima do ombro. – Teria explicado dentro da tenda, mas ele estava pronto a matar, não estava? E não melhorava nada atirar achas para a fogueira.
– Falai claro, homem.
– Bom, eu presumi que já sabíeis que elas tinham ido para Glasgow. Mandei o vosso homem dizer-vos na volta, não foi? Não havia razão para eu vir logo para vos dizer, se ele o ia fazer.

Um arrepio correu pela espinha de Ian. – O meu homem? que homem?
– O que veio há cinco dias com uma mensagem vossa para Lady Reyna. Não era da nossa companhia, mas imaginei que Morvan o tinha dado a vós. Ele apareceu a perguntar por ela, disse que tinha uma mensagem e um presente para ela da vossa parte.
– Eu não mandei homem nenhum, Paul.
– Não? Então quem…
– Que lhe dissestes?
– O mesmo que vos disse agora a vós, aonde tinham ido e quando.
A cabeça de Ian quase explodiu quando amor e medo se fundiram e se transformaram numa fúria dilacerante.
– Descrevei este homem.
– Cabelo claro, altura média e entroncado, é tudo o que lembro.
Escocês, diria pela fala dele, mas os «erres» não eram tão carregados, por isso achei que fosse das terras fronteiriças, e um dos homens de Sir Morvan.
Talvez tivesse sido Edmund, seguindo Reyna até Carlisle para continuar a persuadi-la, mas nem Edmund nem Reginald, que Ian soltara antes da partida, correspondiam à descrição de Paul. Nem Thomas Armstrong tinha o cabelo louro. Mas tanto Thomas como Edmund poderiam ter feito chegar por alguém a mensagem que conduziria Reyna às suas mãos.
A constatação de que Reyna poderia correr um perigo real quase lhe desarranjou os pensamentos, mas ele forçou-se a uma análise cuidadosa. Provavelmente devia informar Morvan disto, mas se o fizesse, Morvan conduziria o exército para Glasgow.
Tudo aqui se desfaria e na fronteira seria um inferno. Nem diria a David. O estranho aparecera em Carlisle a perguntar por Reyna, porque era Reyna quem procurava. Edmund empenhado na sua causa? Ou Thomas procurando vingança pela morte de Robert?
Avançou determinado para o acampamento da sua companhia.
Levaria mais do que dois homens, e cavalos e armas que bastassem. Se cavalgassem a sério, poderiam chegar a Glasgow antes de que quem perseguia Reyna a encontrasse.

CAPÍTULO 21


Reyna aguardava num banco na antecâmara do gabinete do bispo, aguilhoada por um presságio inquietante. A decisão de vir até Glasgow parecera-lhe muito sensata quando a tomara.
Permanecer em Carlisle tornara-se entediante, e factos importantes a respeito dos últimos meses de Robert podiam ser conhecidos neste sítio. Porém, agora, na iminência da reunião, perguntava-se se investigar as intenções privadas de Robert seria avisado.
Abriu-se uma porta lateral e um clérigo jovem entrou. Direito e rígido nas vestimentas largas, tinha cabelo escuro e olhos castanhos, toldados por uma expressão leniente. – Sou Anselm, um dos escriturários do bispo, senhora. O padre Rupert disse que vós insististes que tínheis assuntos urgentes.
Reyna nunca se apercebera de como era difícil ver um bispo, e as suas diligências junto dos vários oficiais tinham-se tornado algo exageradas durante a última hora. – É urgente para mim, já que não posso ficar muito tempo em Glasgow.
– Então lamento desapontar-vos. Como vos informaram, o bispo não está cá, mas sim a norte, onde contamos que permaneça durante algum tempo por assuntos da igreja.
– O padre Rupert pensou que talvez vós pudésseis ajudar-me. É
informação o que procuro, não a dispensa ou decisão de um bispo.

Anselm acomodou-se numa cadeira próxima, olhando-a enquanto alisava as vestes com dedos fastidiosos. – Ouvir-vos-ei, mas a maior parte dos assuntos do bispo são confidenciais.
– Espero que este não o seja. O meu nome é Reyna Graham. O
meu marido era Robert de Kelso, que detinha as terras fronteiriças de Black Lyne através de Maccus Armstrong. O meu marido morreu há vários meses. Pouco depois da sua morte, chegou uma carta do bispo. – Reyna descreveu a carta e a referência ao pedido de conselho de Robert.
– Lembro-me bem dela, já que a escrevi para Sua Excelência –
disse Anselm.
– Ninguém sabe a que se referia – explicou Reyna. – Se o meu marido tinha algum desejo ou vontade antes da sua morte, gostaria de saber, para que a sua vontade seja feita.
Anselm ignorou-a durante um pronunciado período de contemplação. Reyna começou a sentir-se ansiosa. Talvez o secretário hesitasse por o pedido de Robert de facto lhe dizer respeito. Era possível que tivesse conhecido tão pouco da mente e do coração do seu marido?
– É provável que vo-lo consiga explicar, Lady Reyna, mas primeiro tenho uma pergunta. Como dispõe o testamento do vosso marido das suas posses?
– As terras foram-me deixadas, embora seja questionável se o suserano aceitará que assim o seja – explicou ela, decidindo que falar da tomada do castelo e do seu casamento com Ian não serviria nenhum propósito.
– Não as terras, as suas posses pessoais.
– Também isso ficou para mim.
– Nesse caso, não vejo objeção em falar convosco. – Pôs-se mais confortável na cadeira, se se pode falar de conforto num homem com uma postura tão rígida. – O vosso marido escreveu uma carta que recebemos faz cinco meses. Nela, explicava que tinha posses que não eram dele por direito, e das quais pretendia desobrigar-se de forma honrada antes de morrer, para não interferirem com a propriedade. Queria dar estas posses a um mosteiro envolvido na educação dos jovens. O bispo tinha intenção de falar com os padres dominicanos aqui de Glasgow para tomar as disposições necessárias, mas outros assuntos o afastaram daqui.
– O meu marido descreveu estas posses?
– Não, mas ficou claro que não se tratava de terra. Referia-se a
«estas» em diversos pontos da carta. Sentia que lhe aliviaria a consciência ter o assunto tratado, com a morte tão próxima na sua idade avançada.
«Estas». Não era terra, mas sim objetos. – Indicou ele o valor destas posses?
– A sua carta indicava alguns milhares de libras, três ou quatro.
Objetos. Úteis na educação.
Livros.
Ela sabia que a biblioteca era valiosa, mas não tão valiosa.
– O meu marido mencionou como ficou na posse destes objetos?
– Não, mas o pedido não é incomum. Os homens ganham em piedade e sabedoria à medida que envelhecem. Procuram redimir-se de transgressões da juventude.
Reyna olhou-o nos olhos. – Pensais que essas posses são resultado de roubo, não pensais?
– O mais certo é terem sido obtidas no seguimento de um cerco ou batalha. Poucos cavaleiros ou soldados se ficam pelo pouco que os senhores pagam, e muitas vezes o pagamento nem chega a dar-se porque estes presumem que os primeiros enriquecerão o suficiente dessa forma sem custo para eles. Na verdade, a maioria dos barões reclama um terço desses despojos.
– Mesmo assim, dizeis que o meu marido era ladrão. Pouco melhor do que um salteador – rebateu ela veementemente.
– O que é roubo numa circunstância são despojos de guerra noutra – disse Anselm. – A Igreja urge os homens a absterem-se de o fazer, mas é um pecado pequeno se a guerra for justa. Até os Cruzados… E o vosso marido, contrariamente à maioria, procurou a restituição. Seria impossível devolver estas posses aos donos após tantos anos, por isso quis dá-la à Igreja, pelo seu trabalho.
– Não sabia que a Igreja havia decidido que o pecado estava condicionado às circunstâncias. Devo lembrá-lo no futuro. Sem dúvida se revelará conveniente.
Anselm suspirou. – Procuro apenas aliviar-vos da vossa óbvia aflição.
Aflição não bastava para descrever a reação dela. Robert, querido, bom, honesto Robert, vivera uma vida muito diferente antes de chegar à fronteira escocesa e entrar ao serviço de Maccus Armstrong. Havia ocorrido uma vida antes de ela o conhecer, e ele pusera-a para trás das costas, exceto a prova da qual não conseguia separar-se, os livros que tanto amava.
Livros roubados. O que pensara ele enquanto estudava os imperativos morais que eles continham, quando a própria posse deles desafiava aquelas verdades?
As desculpas de Anselm podiam ter-lhe servido. Tal como lhe poderiam servir a ela agora, se chegasse a convencer-se de que aqueles livros haviam sido saque de uma guerra justa. Mas pairava a possibilidade de Robert ter de facto sido ladrão ou salteador enquanto jovem. Exatamente como Ian de Guilford, ou até pior.
Perante a ironia, ela fez uma careta. Andava a comparar Ian com um homem idoso que, na sua juventude, fora igualmente implacável.
– Penso que sei a que posses se referia o meu marido. Se era desejo de Robert que estes itens fossem dados à Igreja, diligenciarei para que isso aconteça. – Levantou-se para se retirar.
– Dar-me-íeis uma carta explicando o assunto? Seria mais fácil concretizar a doação se o pedido dele estivesse clarificado.
– Se vós herdastes…
– Voltei a casar recentemente.
As sobrancelhas negras do jovem ergueram-se, compreensivas.
Foi até à mesa. – Se voltastes a casar-vos, os bens já não são vossos – disse enquanto escrevia. – Se algum bem pode trazer, aqui está. Não deixeis isto converter-se num ponto de discórdia no vosso casamento, contudo. Raro é o homem que se desfaria da riqueza que lhe coube através da mulher.
Reyna agarrou o pergaminho que provava que Robert nunca procurara pô-la de parte. Quanto ao último comentário de Anselm, não tinha ideia alguma da reação de Ian à concretização da última vontade de Robert. Provavelmente recusaria, depois de saber o valor dos livros.
Pensando melhor, talvez um bandido sentisse especial simpatia pela busca de salvação de outro bandido.
– Deus está a punir-nos por desobedecermos aos nossos maridos e termos saído de Carlisle – murmurou Christiana, espreitando pela janela do quarto de dormir. – Esta chuva há dias que corre, e parece que vai durar para sempre. – Dirigiu-se a Reyna. – Quando Anna voltar, temos de lhe dizer que partiremos de manhã. O que é de mais é erro.
Reyna deu uma volta na cama e fitou o teto. Esta viagem só se dera porque Anna, procurando um interregno de atividade e aventura, apoiara a sua decisão de a fazer. Atendendo às circunstâncias, parecera justo conceder a Anna mais um dia em Glasgow.
Por si, Reyna teria partido satisfeita no dia anterior, depois de regressar da casa do bispo. Tendo cumprido a missão, ansiava regressar a Carlisle. Talvez pudesse enviar uma carta a Ian, dizendo-lhe o que havia descoberto. Talvez, se a chuva tivesse travado as movimentações em Harclow, ele pudesse ir vê-la. A ideia de que ele pudesse já ter tentado fazê-lo, chegando a uma casa em que não se encontrava ninguém a não ser Paul e a criada, entristecia-a, e ela já se sentia abatida devido à recente descoberta sobre Robert.
Ele nunca a enganara, lembrou-se novamente. Ela nunca fizera perguntas sobre aquela história antiga e ele não lhe contara mentiras. Porventura só uma rapariga que confiava num homem como confiaria num pai teria aceitado a presença de todos aqueles belos livros sem questionar, mas assim havia sido.
– Aqui estão eles – anunciou Christiana. – Parecem dois pintos encharcados, e o rosto de Gregory está verde de raiva, mas Anna parece radiante. Tendes de me apoiar. Se não a encurralarmos agora, estará a levar-nos para as Terras Altas antes da semana terminar.
Encurralar uma Anna rebelde revelou-se tudo menos fácil.
Recordou a Reyna que deviam tirar o maior partido dos apuros que as aguardavam com os maridos, e, de facto, propôs uma viagem até Argyle. Christiana repreendeu-a e tentou persuadi-la, mas foi a sugestão de Reyna, da chuva poder possibilitar a visita dos maridos, que venceu a discussão. Passaram o serão em preparativos para regressar à costa.
No dia seguinte, saíram da cidade de Glasgow, Anna assemelhando-se tanto a um guarda como Gregory, envergando túnica, e capuz, e com uma espada presa à sela. A chuva parara, mas nuvens pesadas prometiam mais. Christiana mantinha uma conversa amena, aligeirando a disposição que ameaçava afundar-se sob o desconforto da humidade e da lama.
A cinco quilómetros da cidade, a conversa aquietou-se e, no silêncio súbito, resmungou um trovão distante. Anna sofreou o cavalo e escutou com uma atenção alerta. O trovão aproximava-se com demasiada rapidez, e ela deu a volta ao cavalo, gritou um aviso a Gregory, e desembainhou a espada. Reyna olhou por cima do ombro e deparou com uma tropa de homens galopando na direção deles.
– Para a berma da estrada – ordenou Anna, pousando a espada na sela. – Deixai-os passar.
Infelizmente, a companhia não manteve o ritmo. Os homens detiveram-se, continuando depois a trote. Quando estavam a cem passos de distância, Reyna reconheceu o homem à cabeça e a surpresa deixou-a sem fôlego.
Ele avançou e parou à distância de um cavalo. – Então, irmãzinha. Que fazeis tão afastada da proteção do vosso marido?
– Fui visitar Glasgow. E vós, Aymer? É um sítio bizarro para vos encontrar de imprevisto.
– Tenho andando à vossa procura. Busquei-vos em Carlisle e, sabendo que fizéreis esta viagem, preocupei-me com a vossa segurança.
– Que fraterno.
Os doze homens de Aymer fecharam-se à volta deles, impossibilitando a fuga. Anna segurava a sua arma com firmeza.
Pelo canto do olho, Reyna viu Gregory a medir a situação e a não gostar do que via.
Um dos cavaleiros de Aymer acercou-se de Anna, semicerrando os olhos. A ponta da espada dela seguiu-lhe o movimento.
– Por Deus, é uma mulher – exclamou ele, arrancando-lhe o capuz. Caracóis louros caíram-lhe pelos ombros. – Já vistes alguma assim tão grande? Bonita que chegue, embora de estranha maneira.
Os outros homens riram. – Sim, mulher que chegue para todos nós, talvez – casquinou um.
– Mulher que chegue para cortar a virilidade a quem quer que toque em nós – disse Christiana com frieza.
– Parai imediatamente com isto, irmão – disse Reyna. – Se mal algum recai sobre alguma delas, Morvan entra com o exército nos montes, e a fortaleza do meu pai não é Harclow.
Anna arremetera a ponta da espada contra o pescoço do cavaleiro, fitando-o pelo seu comprimento.
– Nós somos muitos mais, cabra – rosnou ele, inclinando cabeça e pescoço para longe da ameaçadora arma.
– Porventura. Mas vós ides afastar-vos ou vós ides seguramente morrer – respondeu ela.
Uma comoção súbita viu Gregory acometendo na direção deles, espada no ar, expressão determinada. Um dos cavaleiros lançou-lhe o cavalo no caminho e, com um movimento largo, fez bater a face da espada na fonte de Gregory. O guarda afundou-se na sela e depois caiu desamparado ao chão.
O ataque fez Aymer decidir-se a concluir o pequeno drama. –
Condessa, tenho assuntos com a minha irmã que requerem que ela me acompanhe. Vós e Lady Anna sois livres de continuar o vosso caminho.
– Se ela vai, nós também – disse Christiana. – Completamos esta viagem como a encetámos, juntas.
– É assunto de família, senhora, e não respeita a nenhuma de vós. Se insistirdes nesse disparate, farei que vos amarrem ambas a uma árvore.
– E deixadas aos ladrões ou aos animais? Ou Reyna continua connosco, ou nós convosco. E seria avisado da vossa parte tomar o maior cuidado com as nossas pessoas e a nossa saúde. O meu irmão tem dois mil em Harclow, e se vier atrás de vós não haverá piedade. Quanto ao meu marido, os seus métodos são mais subtis.
Não sabereis sequer que ele lá está até lhe sentirdes a bota em cima do pescoço. – O tom gélido que cristalizou estas palavras serenas foi tanto mais eficaz quanto a figura que as proferia era cortês e delicada.
Reyna estava impressionada. Aymer também. Fitou Christiana, rubro, depois deu furiosamente a volta ao cavalo. – Trazei-las todas – ordenou. – Deixai o homem.
Reyna e Anna puseram-se ao lado de Christiana. – Foi muito corajoso, minha amiga, mas é desnecessário – disse Reyna. – Não me farão mal.
– Certamente pensará duas vezes agora, se planeara fazê-lo –
murmurou Anna. – Pensais que aquele guarda estólido, Paul, guardou de facto segredo sobre a nossa partida?
Christiana revirou os olhos. – Dado que só vos faltou ameaçar cortar-lhe a garganta…
– Ainda assim, podia ter chegado um mensageiro.
– Mesmo que os nossos maridos tenham descoberto que saímos de Carlisle, não saberão para onde viemos agora. Não, irmã, podemos estar sozinhas nisto.
– Voltai para trás – incitou Reyna.
Christiana abanou a cabeça. – Não confio neste vosso irmão.
Estareis mais segura connosco presentes. Seria útil saber para onde vamos e porque vos quer ele, porém.
Reyna instigou o cavalo ao trote e deslocou-se pela pequena tropa até ao lado de Aymer.
– Regressamos a Glasgow? – inquiriu.
– Não, mas iremos para oeste e depois para sul. Levo-vos para casa.
– Para Black Lyne?
– Para casa. Não pertenceis junto dos Armstrong e dos Fitzwaryn, Reyna. Regressareis para a vossa família.
– O meu pai tem assim tantas saudades de mim?
– Duncan é um velho. Uma doença já lhe come as entranhas. Ele não tem determinação para fazer o que tem de ser feito, por isso cabe-me a mim.
– E o que é, Aymer? O que se passa?
– Terra, pequena Reyna. Não é sempre a terra? O Diabo deve ter possuído Duncan para ele dar o que deu como vosso dote.
Durante anos esperei que o velho Robert morresse para que voltasse para vós como arras, e através de vós para nós.
Ela suspirou com a previsibilidade de Aymer. – Quão impaciente estáveis, Aymer? Arranjastes maneira de apressar o seu falecimento?

– Tivesse eu meio de o fazer. Interessante perguntardes, Reyna.
Sempre presumi que o havíeis matado vós.
– Não tinha por que o fazer.
– Ai não? – perguntou Aymer, manhoso. – Ele era velho quando vos casastes com ele e mais velho quando chegastes à idade adulta.
A vossa mãe era uma rameira, e tal é provavelmente a vossa natureza também. Aquelas mãos frias contentavam-vos? Penso que não, se com tanta brevidade achastes forma de entrar na cama daquele cavaleiro.
O tom e o olhar dele fizeram-na sentir-se muito desconfortável.
– É bom que mencioneis Ian, já que as arras que pensais controlar através de mim agora lhe pertencem.
– Não se ele estiver morto.
Ela rodou na sela. – Vós não…
– Ainda não. Conto que venha atrás de vós, porém. Deixai-lo trazer a mesnada inteira, ou até mesmo metade do exército que Fitzwaryn reuniu, desde que ele próprio venha. – Inclinou-se e acariciou-lhe o rosto. Ela afastou-se enojada. – Tendes sangue de rameira, Reyna. Conto que lhe tenhais agradado o bastante para ele vir de facto resgatar-vos.
– Sois nojento por falardes assim da vossa irmã.
A mão ficou-lhe no rosto e voltou a afagar. – Porventura. Mas, afinal, vós não sois realmente minha irmã.

CAPÍTULO 22


Frio. Frio húmido e escuridão eterna. Vozes murmurando nas pedras, e mãos estendidas para ela, espicaçando-a. Risadas sumidas, agora mais baixas, próximas, e outras mãos, não a espicaçar mas a acariciá-la, convocando um novo terror que ela não compreendia. Uma nova voz, não a voz etérea de um espectro mas uma voz viva, rindo de prazer face ao seu medo. Não sois realmente minha irmã.
Ela encostava-se às pedras, sentindo tudo, ouvindo tudo, mas era diferente desta vez. A sua alma não experimentava nenhum do terror. Uma minúscula parte dela desta vez permanecia racional, observando o velho medo desdobrar-se à sua volta, dentro dela, como se observasse um espetáculo.
Pernas encostaram-se às suas e mãos seguraram nas dela.
Pernas reais e mãos reais, ancorando-a a um espaço e a um tempo, evitando que os seus sentidos escapassem ao seu controlo.
– Ele não pode manter-nos aqui para sempre – interferiu uma voz. Uma voz real. De quem? Ah! de Anna. – Nem sequer uma vela. Qual o propósito?
– Guarda-me aqui até Ian vir – Reyna ouviu-se dizer.
Certamente havia explicado isto antes, da primeira vez que acamparam e dormiram juntas com a espada de Anna no meio delas. Fazia uma eternidade, antes de a viagem as trazer até aqui uma noite, e Aymer as aprisionar a todas. Tinham-lhes trazido comida, parecia recordar-se, mas Aymer não havia regressado.
– Ainda assim, podia dar-nos velas. Esta cripta desassossega-me.
Sim, a cripta. Era onde estavam, aninhadas no chão de pedra, encostadas à parede fria. Se o sítio desassossegava até a corajosa Anna, talvez ela não precisasse de se sentir assim tão infantil.
A mão de Christiana segurou com mais força as dela. – Estais a portar-vos bem, Reyna – sossegou.
As vozes das pedras responderam com os seus murmúrios inaudíveis. Riso agudo feria-lhe os ouvidos. Ela agarrou-se à mão delicada de Christiana, lembrando-se vagamente desta a bater-lhe no rosto enquanto gritos de alguém enchiam a câmara pequena.
Ela reuniu coragem, a pouca que havia, e a sua alma escutou as vozes. Houvera algo familiar nelas da última vez, algo humano. Ela incitou-as a acometerem novamente sobre ela, e encostou as pernas às das amigas. Vinde, c’um raio.
E vieram. As pedras ecoando os seus murmúrios, o som convocando memórias há muito fragmentadas sob o terror.
Ela estava num sítio escuro e coisas invisíveis e pontiagudas tocavam-lhe uma e outra vez. Um dedo invisível contornava o seu corpo e um riso de rapaz comprazia-se com o seu medo. As próprias pedras ganharam mãos e braços, e sempre que ela se voltava estes estavam por trás dela, espetando-a até um aterrorizado frenesim. A sua própria voz gritava baixinho por ajuda e depois aquela voz jovem falou, subitamente entediada. Agora ficai aqui, ou os demónios apanham-vos. Vou lá fora ver.
Mas ela não ficou. Corria pela escuridão, atrás dos passos em retirada…
– Há quanto tempo achais que estamos aqui? – perguntou Anna.
Desde sempre, talvez. Não havia tempo, aqui. Uma hora podia ser uma semana, uma semana não mais que uma hora. A escuridão engolia o tempo.
– Pelas refeições, vários dias, mas durmo a espaços, e não sei dizer se é noite ou dia – respondeu Christiana.
Reyna ouvia as vozes suaves das suas companheiras. Ambas lhe agarravam ainda nas mãos e aquele aperto suave era muito real agora.
O espaço e o tempo haviam-se acertado. O espetáculo terminara, mas ela vira a fonte e a causa daquele horror. Talvez houvesse sido apenas uma brincadeira de crianças para Aymer, a princípio, mas o gosto do medo alimentara-lhe a crueldade ao longo dos anos. Não admirava que a sua alma se encolhesse perante a mera presença dele.
Contudo, ela sabia que havia mais. Algo provocava a sua mente, tentando-a como um dente doído em que se mexe apesar da dor.
Tratarei disto hoje, decidiu ferozmente. Verei tudo o que há e isto deixará de me governar.
Ela cravou os olhos na escuridão, incitando-a a avançar.
Libertando as mãos que seguravam as dela, abstraiu a sua mente da presença das companheiras.
A princípio, a escuridão saudou-a benignamente, um vazio oco, mas depois, lentamente, subtilmente, ganhou vida. As vozes surgiram de novo, baixas e distantes e não tão ameaçadoras. Até os gritos, que pareciam os seus, estavam longe. Ela corria, corria, na direção dos sons, seguindo o raspar de passadas.
Subitamente o medo era novo e fresco, e o coração que sentia dentro dela não era de mulher mas sim de criança. Ela corria como um raio, aliviada, em direção a uma qualquer luz na distância.
Arquejou quando o sol quase lhe cegou os olhos e a imagem horrível lhe preencheu a mente. Por um átimo, a imagem dela, inerte e morta, mãos pendendo ao lado do corpo, rosto contorcido e roxo, acendeu-se à sua frente. Não é isto. Este é o outro pesadelo, não é este.
Mãos esticaram-se para ela, afastando-a, de volta à escuridão.
Abanavam-na com dureza, e agarraram-lhe o rosto. – Estamos aqui. Estamos aqui – sossegou uma voz firme.
Anna apertava-a contra si e Christiana falava-lhe suavemente ao ouvido. Ela ficou assim por breves momentos, e depois afastou-se.
– Estou bem. Acabou. Não tornará a acontecer.
– Temos de a tirar daqui – disse Christiana.
– Sim, tendes de me tirar daqui, mas não por causa disto – disse Reyna. – Talvez Aymer procurasse pôr-me louca. Assim seria fácil fechar-me e esquecer-me, e quem se importaria? Mas não funcionou, nem funcionará. Acabou, digo-vos.
– Visto que isso é mais do que haveis dito desde que nos atiraram para aqui, sinto-me inclinada a acreditar em vós – replicou Anna.
– Mas, de todo o modo, temos de sair – repetiu Reyna. – Ele pretende matar Ian. O mais provável é ser um desafio para combate individual, mas ele terá um plano para assegurar a vitória, e não será uma luta justa. – Ela contemplou a situação precária delas. – A cripta fica por baixo da capela, que fica fora da muralha e perto da floresta. Pergunto-me se Duncan sabe sequer o que Aymer anda a fazer.
– Não importa. Se sairmos, corremos – atalhou Anna. –

Lembrais-vos destes montes, Reyna? Conseguis levar-nos para oeste?
– Penso que sim. Passou muito tempo, mas os caminhos não podem ter mudado muito.
– Como saímos? – perguntou Christiana. – Tentastes a porta depois de eles nos trazerem para aqui, Anna, e vistes que estava trancada. Sem dúvida há pelo menos um guarda lá fora, e eles tiraram-vos a espada.
– Esperemos que haja de facto um guarda – disse Anna. – Não mais do que um se tivermos sorte, porém. Se conseguirmos que ele abra a porta… Isto é uma cripta. Deve haver algo com que lhe bater. Um crucifixo, uma placa de pedra, alguma coisa…
Ergueu-se
e
começou
a
deambular
pelo
pequeno
compartimento. – Aqui está alguma coisa. Uma cruz de pedra. –
Grunhiu com o esforço e depois blasfemou. – É pesada de mais para mim. Detesto dizê-lo, mas bem nos fazia jeito um homem forte agora.
– Já que não cuidámos de trazer um, parece que estamos presas aqui – concluiu Christiana.
– Não. Atiramo-nos a ele todas de uma vez. Mas precisamos da porta aberta. Sois vós quem vais fazê-lo, Christiana. Oferecei-lhe um beijo ou algo assim. A oportunidade de ter uma condessa deve fazê-lo esquecer o dever.
– Ó, santos me acudam – murmurou Christiana. – Tomai tento para derrubar este guarda antes de chegar a um beijo que seja, quanto mais ou algo assim.
Elas juntaram-se e lá subiram as escadas. Christiana assumiu a sua posição, e Reyna e Anna encolheram-se contra a parede ao lado da escadaria.

Christiana arranhou a porta. – Por favor abri a porta por um breve momento, gentil senhor. Não me sinto bem de todo. As minhas companheiras perderam já os sentidos, e temo que todas morramos se não tivermos de imediato algum ar fresco.
A porta de carvalho abriu uma frincha, e uma luz ténue escorreu pelas escadas. A cabeça do guarda bloqueava parte dela.
– Podíeis abri-la apenas um pouco mais? Estou certa de que elas recobrarão com um pouco mais de ar. Se fordes generoso nisto, ficarei grata.
– Lamento condessa, mas as minhas ordens foram…
– Ficarei imensamente grata.
– Bom… se as senhoras estão assim tão mal – murmurou o guarda. – Não era intenção causar-vos dano.
O vulto do guarda desapareceu da frincha. Momentos depois, a porta abriu-se completamente e a sua forma escura encheu a entrada.
Elas investiram.

CAPÍTULO 23


Deitaram-no por terra, soterrado num emaranhado de corpos tenros, imerso num caos de mãos a agarrá-lo e membros a contorcerem-se e sussurros femininos excitados.
– Agarrai-lhe no braço da espada… não, esse é o meu, agarrai o dele.
– Alguém se sente no peito dele.
– Raios, este filho de uma égua é grande.
– Senhoras…
– Apanhei-lhe a espada…
– Senhoras.
O furação estacou a meio fôlego. Surpresas, três cabeças enluaradas viraram-se de rompante.
– Ian?
Ian identificou as várias mulheres esparramadas em cima dele. –
A pequena agarrada ao meu braço é minha mulher, e a grande que me encosta a espada à garganta deve ser Anna. Quer dizer que o traseiro que me esmaga o peito pertence à condessa de Senlis.
Quiçá, condessa, possais ter a amabilidade de…
O traseiro deslocou-se rapidamente. As mãos cerradas apartaram-se. Puseram-se todas em pé.
Anna devolveu-lhe a espada, e uma luz pálida refletiu-se nela.

Infelizmente, isso fez com que os seus homens viessem em seu socorro.
– Para trás! – sussurrou-lhes rispidamente Ian, aproximando-se de Reyna e puxando-a para a proteção do seu corpo.
Reyna derreteu-se de imediato no santuário do seu corpo, apertando-o contra si, enterrando o rosto no peito dele. Ele envolveu-a nos braços, apreciando a sensação da sua forma pequena e do seu calor de mulher. Ela estava aqui, muito viva e real, e o seu venturoso alívio igualava o dela.
Ele beijou-a na cabeça uma vez e outra enquanto encaminhava o grupo para fora da capela, para o abrigo das árvores.
– Agradeço-vos terdes distraído o guarda, Reyna. Debatia-me entre confrontá-lo e ver se vós estaríeis aprisionadas naquela cripta, ou limitar-me a marchar até à torre exigindo a vossa libertação. Em qualquer das hipóteses, teria tido os Graham todos em cima de mim.
– Como nos encontrastes?
– Soube por Paul que havíeis ido para Glasgow e que alguém fora atrás de vós. Quando lá cheguei encontrei Gregory, e ele contou-me o resto.
– Gregory está bem?
– Conseguiu voltar a Glasgow. Como eu não sabia em que estalagem havíeis ficado, decidi localizar-vos procurando por ele nas tavernas e lugares que tais. Encontrei-o no segundo bordel onde fui, esticado na cama como um príncipe, com as rameiras a deleitarem-se com a oportunidade de brincar às mães e enfermeiras.
Anna chegou-se para mais perto. – Imagino que não haveis trazido mais cavalos? Já que há pouco não fomos muito silenciosas, em breve andarão à nossa procura.
– Trouxe, mas deixei-os a caminho. Cavalgámos sem parar e mudámos para os cavalos mais descansados quando os nossos não conseguiam ir mais longe. As senhoras terão de se emparelhar connosco. Os cavalos não estão longe.
– Não é Duncan que está a fazer isto, mas apenas Aymer, tenho quase a certeza – disse Reyna. Se ele vier, pode ter apenas os homens que levou para Glasgow, e não aqueles que ainda são leais ao meu pai.
– Duncan decerto deve ter sabido que vós estáveis ali.
– Aymer nunca nos levou para dentro da muralha, deixou-nos imediatamente na cripta. Duncan pode não estar ao corrente.
A mão dele apertou-se mais no seu ombro. Ele estivera preocupado com maus-tratos físicos, mas dias na cripta podiam tê-
la maltratado de formas que varas e punhos nunca conseguiriam. –
Vós… como…
– Não recordo muito, mas Anna e Christiana ajudaram-me. Por fim, consegui enfrentar tudo. Foi muito o que se tornou claro.
Tenho tanto a dizer-vos.
– E eu tenho muito a dizer-vos, mulher. – Voltou a sentir o travo da preocupação que se apossara dele enquanto corria a toda a brida pelos montes, descuidando segurança e prudência ao cavalgar por terras Armstrong para ganhar tempo. – Foi-vos dito que ficásseis em Carlisle.
Ela aconchegou-se contra ele de forma tão amorosa que o pico de raiva foi pequeno e breve. – Foi idiota, Ian, não o negarei. E, contudo, aprendi tanto. Penso que sei quem matou Robert.
– Aymer?
Um aceno de assentimento. – Perguntei-lhe e ele não o negou.

Admitiu que se tivesse os meios o teria feito. Por dinheiro, um dos criados ou guardas podia ter aplicado o veneno por ele. Planeava matar-vos quando viésseis buscar-me, para que as arras ficassem sob seu controlo.
– Faz sentido. Terra, para mais estratégica. A explicação mais simples, e a mais antiga do mundo.
Quando alcançaram os cavalos, Ian indicou a dois homens que levassem as outras senhoras atrás deles.
– Será mais rápido se formos para oeste, na direção de Black Lyne – disse, erguendo Reyna para a sua própria montada. – Enviei uma mensagem a Morvan, de Glasgow, e se a ajuda chegar, virá por aí. Conheceis estes caminhos suficientemente bem para nos guiar?
– Reconheço o sítio onde estamos. Penso que consigo fazê-lo.
Ele alçou-se para trás dela. Do outro lado da clareira, Christiana agradecia ao seu soldado pela generosidade em partilhar o seu cavalo, e Anna criticava o dela pela forma como se sentava na sela.
Ian pegou nas rédeas e rodeou Reyna com o braço. Apertou-a contra si e beijou-lhe o pescoço. – Tenho muito para vos dizer, mulher, e nem tudo são repreensões – murmurou. – Ficarei sempre em dívida com as senhoras por terem ficado convosco. Agradeço a Deus por vos entregar a mim em segurança.
Ela virou-se para aceitar o beijo que aguardava. – Chamais-me muito isso. Mulher. Sempre me perguntei porquê.
– Sois minha mulher.
– Presumi que era porque precisáveis de vos acostumar à ideia.
Ele riu-se. – Isso também, mas descobri que gosto do som. E é algo que nunca chamei a mulher nenhuma antes. Mas se preferirdes, emprego outros predicados. – Beijou-lhe a face. – Querida. –

Encostou-lhe os lábios à fonte. – Doçura. – A boca dele encontrou-lhe a orelha. – Meu amor.
Ela encostou-se a ele com um suspiro satisfeito. – Sim, mas mulher serve, Ian, especialmente por ser só meu.
– Vamos, Reyna. Devagar, para estardes certa. Não queremos perder-nos nestas colinas.
Viajaram toda a noite sem parar para descansar. Ian notou que Reyna fazia as suas escolhas de caminhos valendo-se mais do instinto do que da certeza, confiando que os seus passeios de infância lhe teriam gravado o trajeto na memória. Na quietude absoluta, prenúncio da madrugada, ouviram por fim o som de cavalos no seu encalço, e puxaram mais pelos seus num esforço de chegar a Black Lyne antes de Aymer os alcançar.
Poderia ter resultado se os caminhos dessem diretamente para o descampado que ficava por detrás de Black Lyne, mas afinal o percurso desembocou mais para sul, perto do velho castelo.
Subitamente, cavalgavam disparados pelo baldio numa velocidade temerária, fugindo da companhia que os perseguia. Os seus cavalos tumultuaram pelo fosso da velha fortaleza abaixo e subiram a colina, quando a cabeça ruiva de Aymer emergiu no topo da elevação do baldio.
Ian espreitou os homens que desciam com Aymer a escarpa.
Não mais de uma dúzia. Reyna estava certa: Aymer fazia isto sozinho.
Saltou do cavalo, desceu Reyna e gritou aos homens que se espalhassem pela circunferência do topo da colina com os seus arcos.

Ao longe, avistava-se o vulto de Black Lyne. Não havia possibilidade de ajuda de lá. Apenas uns poucos homens permaneciam no interior da fortaleza fechada, com ordem expressa de lá ficarem.
Mais abaixo, Aymer também distribuía os seus homens à volta da elevação do velho castelo. Tinha mais com ele, mas também um círculo maior a cobrir.
– Se disserdes a um dos vossos homens para me dar o arco dele, tentarei equilibrar os números – disse Anna.
– São arcos galeses, de mais para uma mulher.
– Há alguns anos que uso um arco galês, Ian. Desta distância, devo acertar no meu alvo três vezes em cinco. Alguns braços e pernas em mau estado farão Aymer pensar duas vezes em atacar.
Ele olhou para aquela mulher, com o seu emaranhado de caracóis a esvoaçar, selvagens, ao redor da cabeça e do corpo. Se ela dizia que acertava no alvo três vezes em cinco, ele acreditava nela. Chamando o homem mais próximo, ordenou-lhe que cedesse o arco.
Reyna aconchegou-se perto dele por trás de uma pedra larga que servia de proteção a ataques semelhantes vindos de baixo.
Aymer e os seus homens, pensando estar fora de alcance, espalharam-se em redor do fosso da paliçada. Anna testou a tensão do arco e depois encaixou nele uma seta. Contornando rapidamente as pedras até à ponta da colina, puxou a corda até à orelha. Um segundo depois, um grito de blasfémia ecoava na neblina da madrugada.
– Ela é verdadeiramente magnífica, não é? – disse Reyna com admiração enquanto Anna transportava o arco para o outro lado da colina. – Devíeis ter visto a reação que os homens de Aymer lhe tiveram. Era um desafio que eles se viam em pulgas para enfrentar.
Consigo compreender a razão pela qual eles… vós…
– Vós constituis um desafio muito mais interessante do que ela alguma vez foi. Para mim, ela foi um meio que serviu um fim, e não um muito nobre, diga-se. Mas ela e eu temos algo em comum, penso eu. Ela nasceu para um homem, e encontrou-o. Eu nasci para uma mulher, e por graça de Deus encontrei-a.
A afirmação foi recebida por uma quietude absoluta. Ele afastou o olhar de Aymer e dos seus homens, e viu a sua expressão perplexa. Sorriu e passou-lhe o dedo pelo queixo. – Bom, ou foi graça de Deus ou foi obra do Diabo, mas se foi do Diabo, ele não contou que me roubásseis o coração, portanto os seus planos para me confinar à perdição saíram gorados.
Ela colocou os braços à volta dele e ele puxou-a mais para si.
Que lugar e altura tão estranhos para ele lho dizer, mas pareceu certo e natural.
– Acho que o meu corpo podia flutuar e o meu coração rebentar neste exato momento – disse ela. – Amo-vos tanto, Ian.
– E eu amo-vos a vós. Absorvestes a minha alma despedaçada com a beleza da vossa, mas é um lugar estimulante para se ser feito prisioneiro. Desde o início que me desafiastes a ser melhor do que sou. Nenhuma outra mulher me poderia ter insultado como vós fizestes, forçando-me a ver no que me havia tornado, e depois ofertado o amor e a amizade necessários para me resgatar.
– Não, Ian, não… Foi só segurança que procurei naquelas palavras… vós não sois…
– Palavras verdadeiras, Reyna. – Mais verdadeiras do que ela sabia. Sobreviveria o seu amor ao conhecimento de tudo? Agora não. Noutra altura. Talvez. – Eu estava rapidamente a caminho de me tornar o pior dos homens, e vós havíeis conhecido o melhor.
Devo avisar-vos, porém, que, por muito que me esforce, nunca serei um Robert de Kelso.
Ela ergueu uns olhos envergonhados. – Pois, Ian, a bem ver, nem Robert de Kelso foi sempre um Robert de Kelso. – Falou-lhe da conversa com Anselm, e a razão da carta de Robert. – Eram os livros, Ian. Foram roubados.
– Tendes a certeza?
– Não pode ser mais nada.
– Não o julgueis com demasiada dureza. É costume haver saque a seguir a batalhas e cercos. Ninguém o considera roubo.
– Mas não se trata de sedas, nem joias, nem prata. São livros.
Quem teria coisas destas a não ser clérigos? Não, não me deixarei enganar. Robert tirou-os à Igreja, um crime sério mesmo em guerra, e procurou devolvê-los para expiar a sua ofensa.
Ele franziu o sobrolho. – David disse que eram muito valiosos.
Pergunto-me quão valiosos.
– Segundo o que soube em Glasgow, pelo menos três ou quatro mil libras.
Quatro mil libras. Não admira que David estivesse hesitante em reconhecer que Reyna tivesse direito a qualquer um deles.
Mudava tudo. O futuro que eles podiam ter e a segurança que conheceriam. Sabê-lo era como descobrir um tesouro escondido.
Não venderiam aqueles de que Reyna gostava, claro, a não ser que a má sorte o comandasse, mas a mera existência daquela proteção contra alguma desdita afetaria muitas outras escolhas.
Olhou para ela com alegria.
Ela respondeu-lhe com olhos bem abertos, inocentes.
Ele adivinhou o significado daquela expressão esperançada, sincera, e esperou verdadeiramente estar enganado. – Quereis mandá-los para o bispo seja como for, não é verdade?
Ela mordeu o lábio inferior e assentiu com a cabeça.
Ele suspirou, e o breve sonho de riqueza foi levado pelo ar. –
Diabos, convosco não é fácil ser bom, Reyna. Quatro mil libras.
Raios.
*
Morvan chegou dois dias depois, quando o sol ia alto no céu.
Os que estavam no cimo da colina viram primeiro a companhia assomar ao horizonte distante, mas o som rapidamente chegou lá a baixo, a Aymer.
Espreitando detrás da pedra grande, Reyna viu o irmão esticar-se para ver a fonte do estrupido e depois ficar muito quieto e rígido quando o paul se encheu de homens, armaduras e cavalos.
Aymer gritou para os seus homens e todos pegaram apressados nos cavalos, montando e levando consigo os feridos. O pequeno grupo da torre gritou zombarias enquanto a cabeça ruiva partia disparada na direção pela qual viera. Em seguida, Ian foi até à ponta da colina e saudou o exército que chegava. Ordenou a um homem que descesse no cavalo mais veloz para lhes dizer que as senhoras estavam a salvo.
O mensageiro chegou ao exército e este deteve-se.
– Morvan está ali. Estou a vê-lo. E David também – disse Christiana. – Ó Céus…
– Devem estar um bocadinho zangados – admitiu Anna.
– Um bocadinho? Por causa da vossa obstinação eles desfizeram o cerco, trouxeram metade do exército, e agora ao que parece nem precisamos de grande salvamento, e pensais que eles podem estar um bocadinho zangados?
– A minha obstinação? Sois…
Ian interrompeu-as com um sorriso endiabrado. – Ah, agora que penso nisso, Morvan transmitiu-me uma mensagem para vós. Com toda a agitação, esqueci-me.
– Que mensagem?
– Devia dizer-vos que ele estava muito desagradado por terdes saído de Carlisle. Estava furioso com a vossa desobediência.
Começou a andar de um lado para o outro com aquele olhar sombrio com que fica, ameaçando trancar-vos de vez, jurando que garantiria que não pudésseis sentar-vos confortavelmente durante um mês…
Vários dos homens trouxeram cavalos. À distância, dois homens altos desmontaram e adiantaram-se ao exército. Morvan cruzou os braços sobre o peito e David colocou as mãos nas ancas, e ambos aguardaram, comunicando eloquentemente o seu desagrado pela postura.
– Não tem nada bom aspeto, irmã – murmurou Christiana quando Ian a ajudava a subir para a sela. – Precisaremos de um estratagema muito ardiloso para nos esquivarmos.
Anna alçou-se para o cavalo. – Não foi realmente obstinação, se pensarmos no assunto, mas sim cavalheirismo. Reyna propôs a viagem. Dificilmente poderíamos deixá-la ir só.
– Oh, eles já sabem disso, mas não aplacou Morvan em nada –
explicou Ian. – Ele pensa que vós devíeis tê-la detido. Além disso, como é próprio, deixou a mim o castigo dela.
Lançou a Reyna um olhar de que ela não gostou muito. Má sorte a dela que, desvanecendo-se o alívio por a ter encontrado sã e salva, aparecessem estes maridos querendo acertar contas e relembrando-lhe que ele tinha o seu próprio livro-mestre para balancear.
Uma vez sentada no cavalo, dirigiu-se a Christiana. – Que ardiloso estratagema tencionais utilizar? – sussurrou.
– Bem, não tenciono cozinhar-lhe uma refeição nem ler-lhe filosofia, Reyna. Talvez tenha de usar aquele jogo sarraceno que vos descrevi naquela noite em que o vinho nos fez tontas em Carlisle.
Fizeram caminho até onde o exército aguardava. As senhoras refrearam os cavalos a cinquenta metros de distância.
Morvan avançou a passos largos. – Vejo que as encontrastes a todas bem, Ian.
– Sim. Acabou por se revelar uma muito pequena aventura, embora a vossa chegada tenha simplificado a última parte. De outra forma, poderia ter tido de matar Aymer, e todos nós gostaríamos de o evitar. – Ian procurava a ligeireza, mas sem sucesso. Os olhos faiscantes de Morvan não haviam arrefecido nem um pouco.
Morvan dispensou a irmã com um olhar afiado. – O vosso marido aguarda.
Christiana olhou lamentosa para Anna antes de se afastar a cavalo, mas Anna não a viu. Tinha o olhar cravado no do marido, desafiante.
Morvan avançou até estar ao lado dela. – Haveis feito por vos divertir?
– Estou completamente ilesa, e agradeço-vos perguntardes. Sem o mínimo desconforto.
A expressão dele respondeu, silenciosa, ainda não. – Imagino que tenhais deixado a fortaleza de Duncan de pé. Ou havei-la deitado por terra?
– Conseguimos escapar sem o fazer. Tanto pior.
Reyna revirou os olhos. De todos os estratagemas que conseguia imaginar, provocar um marido irritado não lhe pareceu o mais engenhoso.
– Voltamos imediatamente para Carlisle? – perguntou Anna. –
Espero que não planeeis aguardar até de manhã em Black Lyne, Morvan. A excitação deste périplo teve em mim o mais surpreendente dos efeitos, e dou por mim muito inquieta. Uma boa cavalgada parece-me o ideal.
Ele não se mexeu e a sua expressão não mudou, mas entrou-lhe uma luz diferente no olhar. – Vindes todas connosco, mas não regressamos a Carlisle. Vamos diretos a Harclow, onde nos espera trabalho que não pode ser adiado. – Pousou-lhe uma mão no joelho. – A longa cavalgada deve tratar da vossa inquietação.
A mão de Anna deslizou sobre a do marido. – Duvido.
Reyna e Ian afastaram os cavalos, na altura exata em que Morvan esticava os braços para puxar Anna para o seu beijo.
Perto do exército, Christiana estava enrolada nos braços de David, com os olhos erguidos para ele, falando-lhe sincera. O amor cru nos olhos azuis do conde sugeria que ele aceitaria o que quer que a mulher lhe dissesse.
A aproximação de Ian e Reyna desfez o abraço. Christiana voltou a montar e um escudeiro trouxe o cavalo a David.
– Morvan disse que vamos diretos para Harclow – anunciou Ian.
– Sim. Teríamos chegado mais cedo, mas o vosso homem chegou mesmo no meio de uma investida, ontem de manhã –
explicou David. – Estamos dentro da primeira muralha, Ian.
– Como…

– Usámos o nosso plano. Lamento não termos podido esperar por vós, mas a oportunidade era boa de mais para que a deixássemos escapar. Rebentou uma tempestade enorme, poucas horas antes do raiar do dia. A muralha quase não tinha homens, e nós estávamos quase a meio do lago quando eles repararam no que estava a acontecer. Os primeiros homens usaram os machados para atravessar a barreira de madeira que tapava o buraco feito pelas armas, enquanto os que estavam nas jangadas usavam os arcos para os protegerem. Uma vez no interior, batemo-nos para abrir caminho até ao portão antes de caírem demasiados dos nossos.
– Maccus render-se-á?
– Quer negociar, e enviou-nos condições. Morvan decidiu deixá-lo em banho-maria enquanto lidávamos com este outro problema.
Morvan e Anna juntaram-se a eles e todos cavalgaram para a cauda do exército. – David contou-vos? – perguntou Morvan.
– Sim. Disse que Maccus tem condições, porém.
– As predizíveis. A segurança dos cavaleiros e soldados e outros que tais. Recusei considerá-las até ele se render, e na sua maior parte ele irá colocá-las de lado e abrirá o portão.
Reyna seguia à distância de dois cavalos. Esticou-se na sua montada até conseguir vê-lo. – Morvan, poderei falar com Maccus Armstrong, depois de ele se render? Tenho algumas perguntas que me ocorreram durante esta viagem, e ele talvez possa responder-lhes.
Morvan olhou para o horizonte a oeste. – O vosso pedido é muito interessante, Reyna. Porque uma das condições de Maccus Armstrong não era de todo previsível, e eu pressenti que é o único ponto em que ele não cederá. – Volveu para ela o olhar. – O velho Maccus não se renderá até lhe entregarmos a viúva de Robert de Kelso.

CAPÍTULO 24


Reyna estava no adarve atrás do corpo couraçado de Ian. David também fazia parte do seu escudo humano, e Anna estava por perto, empunhando o seu arco, para responder a qualquer movimento que os ameaçasse vindo da muralha fronteira. Outros arqueiros estavam dispostos para o mesmo propósito, mas a sua amiga insistira em ficar a seu lado, e Morvan avisara que qualquer seta errante que chegasse à mulher significaria a morte de todos os homens do castelo.
Maccus exigira que Reyna fosse transferida para a sua custódia a bem da segurança dela, mas Morvan recusara. Reyna considerou tudo aquilo muito cavalheiresco, já que este único ponto era o que o impedia de resgatar a honra da família. Visto que Maccus mencionara a segurança dela, Morvan oferecera-se para deixá-lo ver por si próprio que ela estava presente e incólume, apesar de ninguém acreditar que a segurança de Reyna fosse de todo o objetivo de Maccus.
– Ali está ele – disse Ian. Reyna espreitou por cima do ombro dele para o portão ao longe. No cimo de uma das torres, apareceu um homem de cabelos brancos. – Eu afastar-me-ei, mas mantende-vos atrás do escudo de David e do meu.
Ele fê-lo, segurando o escudo ao lado do de David, para ambos formarem um muro de aço. Reyna encostou-se a eles e enfrentou o escrutínio distante do amigo e senhor de Robert. A cabeça branca olhou na direção dela e abateu-se silêncio sobre o castelo. Mais abaixo, Morvan Fitzwaryn estava sozinho no pátio exterior, protegido apenas pela sua armadura.
Maccus Armstrong ergueu o braço num gesto largo. Corpos começaram a deixar as ameias ao seu redor. Em breve, não se via um único soldado ou arqueiro Armstrong. Maccus aguardou até o último sair e depois a sua cabeça desapareceu.
Anna correu para as escadas da muralha. Reyna e os homens seguiram-na e reuniram-se à multidão expectante que se reunia no pátio. Lentamente, a grade subiu.
Ian manteve a mão em cima do ombro dela enquanto esperavam entre o círculo à volta de Morvan. A garganta de Reyna ardia-lhe, e ela sabia que estas emoções eram prova das suas lealdades divididas. Sentia júbilo por Christiana e Morvan, que há tanto tempo haviam sido expulsos do seu lar, mas também angústia pelo próprio Maccus, que fora amigo querido de Robert e instrumento de tudo o que havia sido bom na sua vida.
De súbito, apareceu uma figura solitária no pátio para lá do portão. Maccus avançava sem hesitação. A multidão afastou-se para lhe dar passagem e ele caminhou até Morvan, desembainhou silenciosamente a espada e entregou-lha.
Maccus era um homem robusto e a sua figura ainda impressionava, apesar dos seus mais de sessenta anos. Olhou Morvan de frente, estudando-o com perspicácia. – Tendes os olhos e a cor da vossa mãe, mas lutais como Hugh, isso é certo.
– Eu não o saberia. Ele morreu quando eu era ainda criança.
– É um facto, e ambos sabemos que foi um dos meus arqueiros que o atingiu. Mas é assim que a guerra se faz.
Morvan assentiu com a cabeça. – Sim. Melhor teria sido para vós, a longo prazo, que tivésseis matado também o filho.
– Não mato crianças. Além disso, vós éreis um rapaz promissor.
Teria sido um desperdício. – Olhou em redor e sorriu de pena. –
Embora, dadas as circunstâncias…
Algo parecido a um sorriso aligeirou a expressão de Morvan. –
Visto que fostes generoso na vitória, é o mínimo que posso fazer.
Qualquer homem que jure ficar a norte das fronteiras das nossas terras pode sair imediatamente para ser escoltado até Clivedale.
Vós ficareis aqui até ser pago o resgate que eu definirei.
– E Lady Reyna?
Morvan abanou a cabeça. – Preocupáveis-vos com a sua segurança. Estará em segurança connosco.
– Houve acusações sobre ela.
– Estamos cientes delas.
Reyna sentiu-se corar quando olhares na multidão dispararam na sua direção.
– Não são verdadeiras, essas histórias de ela matar Robert –
atirou Maccus.
– O vosso sobrinho Thomas pensa de outra forma.
– Thomas é um asno. Disparates, tudo. Qualquer pessoa que os conhecesse, a ele e a ela, sabia-o. Preparava-me para lhes pôr um fim quando me apanhastes aqui. Preocupou-me que Thomas fizesse alguma estupidez enquanto eu estava aqui preso. Em todo o caso, é melhor ficardes com ela até o meu resgate ser pago. Depois eu levo-a para Clivedale e ponho tudo em pratos limpos.
Reyna olhava aparvalhada para aquele anúncio público da sua inocência, vindo do homem que ela tivera a certeza de querer enviá-la para a morte.
– Ela não irá para Clivedale – esclareceu Morvan.
– Se não ma derdes, melhor será jurardes pela segurança dela, Fitzwaryn. Não deixarei que a julgueis e ouçais as pessoas tecer as tramas delas, recordando-se de coisas que nunca ouviram e assim.
Ela é uma Graham, sabeis disso, e há sentimentos antigos a respeito disso.
– O interesse de todos pela senhora tem-me deixado perplexo desde o início, Maccus. Qual é a razão do vosso?
– Devo-o a Robert.
– Um homem bom, Robert de Kelso. Mas o seu novo marido também é um homem bom. Ele jurará pela segurança dela, e se vós jurardes pela sua inocência, não sinto inclinação para a apresentar a julgamento.
Maccus parecia tão perplexo com esta declaração como Reyna havia ficado com a dele. Ele perscrutou a multidão até deparar com ela. Virando-se abruptamente, aproximou-se com passadas vigorosas e baixou os olhos, para em seguida estudar Ian. – Desejo falar convosco – disse com brusquidão.
Ian assentiu com a cabeça. – Era o que me parecia. E Reyna deseja falar convosco.
Aqui, alguns cavaleiros levaram Maccus. Morvan foi até ao portão interior e uma nova quietude caiu sobre a multidão.
Detendo-se, olhou para trás e chamou Anna e Christiana para perto de si.
Com a mulher e a irmã a seu lado, voltou a entrar em Harclow.
Reyna virou-se para Ian, enquanto a multidão entrava pelo portão. – Foi surpreendente, Maccus a defender-me daquela maneira.

– Foi?
– Talvez não – admitiu ela. Viu o seu olhar sério. – Há quanto tempo sabeis?
– Não sabia nada. Mas há algum tempo que me pergunto.
– Sois mais rápido do que eu. Passou uma vida inteira até começar a perguntar-me.
– Talvez devais ficar-vos pelas perguntas. Estais certa de que quereis saber de facto? Tudo?
– É o tudo que preciso de saber e penso que só Maccus pode dizer-me a verdade.
– Então falemos com ele, Reyna.
Depararam com Maccus num pequeno quarto. Dera a sua palavra e nenhum homem guardava a porta destrancada.
Estava perto da lareira, numa pose pensativa, mãos atrás das costas, de olhar fito em chamas que não existiam. Ao longo dos anos, Reyna viera a conhecê-lo bastante bem, mas ele sempre se mostrara um pouco distante no tratamento com ela. Era diferente com Robert, e ela ouvira muitas vezes o riso dos dois para lá da porta dos aposentos do marido.
Eles entraram e ele virou-se e examinou-a atentamente. – Não levastes muito tempo, rapariga. Robert mal arrefeceu.
– Bom, ela não teve grande escolha, Maccus. Ou era eu ou voltava para Duncan – disse Ian.
– Uma escolha dos diabos, isso é certo – resmoneou Maccus. –
Soube um pouco de vós dos cavaleiros que me trouxeram até aqui.
Tomastes Black Lyne, dizem eles, e agora está-vos destinado.
Nada mau para um verão de trabalho, Ian de Guilford. Contudo, se está feito, está feito. Eu planeara dá-la a outro homem, mas se ela estiver satisfeita, aceito-o. Um cavaleiro inglês, para mais. Diabos.

– Estou mais do que satisfeita – afirmou Reyna. – E ainda bem que assim é, pois não me teríeis encontrado disposta a ser dada a um qualquer homem por vossa vontade, caso este verão se tivesse desenrolado de forma diferente. Aos vinte e quatro anos, estou cansada de ser movida como uma peça de xadrez e mantida na ignorância.
Maccus mostrou surpresa e em seguida sorriu. – Robert sempre disse que vós tínheis mais espírito do que eu via. Bom, unistes a vossa sorte à destes ingleses e à deste homem, por isso espero que vos convenha. Se assim for, habituar-me-ei à ideia.
– Convir-me-á. Mas agora desejo saber algumas coisas. Sou uma mulher adulta, e tenho direito a saber, penso eu. – Escolheu cuidadosamente as palavras. – Aymer Graham disse que não sou verdadeiramente irmã dele. Não penso que ele se referisse apenas ao facto de sermos meios-irmãos, não pela forma como ele o disse.
– Ela ergueu os ombros e olhou Maccus nos olhos. – Quem era o meu pai?
Ele assumiu uma expressão consternada, parecendo envelhecer subitamente.
– Robert? – sussurrou ela.
– Robert! Diabos, rapariga, quem pensais que o homem era?
Robert nunca se casaria com a própria filha.
– Então quem? Foi mesmo Duncan?
– Duncan Graham devia rezar para conseguir fazer com uma mulher alguém do vosso calibre. Não, não foi Duncan. E nenhum cavaleiro dele, digam o que disserem da vossa mãe naquele lugar.
Foi Jamie. James, o meu rapaz, era vosso pai. Duncan sempre suspeitou mas nunca teve a certeza, mas a vossa mãe sabia, e Jamie também.

– James Armstrong? Eu sei que eles diziam que ele havia sido amante dela mais tarde, mas…
– Muito tempo, quase desde que ela veio para estas partes. Eles conheceram-se logo. Nessa altura, as famílias não eram inimigas. –
Ele virou a cara, o olhar procurando novamente a lareira vazia. –
Avisei-o que não o fizesse. Disse-lhe que de lá só viria mal. Bem, ele era jovem… contudo, podia ter continuado como estava, só que ela viu aonde iam parar as coisas para vós. Consigo própria ela não se importava, mas convosco… Jamie decidiu levar-vos às duas. Duncan descobriu, apanhou-os logo depois do baldio, perto do velho castelo. Enforcou o meu rapaz como um ladrão ali mesmo, e deixou-o lá. Robert encontrou o corpo dele.
Memórias da cripta avançaram subitamente sobre ela, insinuando-se na sua mente. Frio. Frio húmido e medo. Dedos a espicaçá-la e um rapaz a rir. Ficai aqui, ou os demónios apanham-vos. Vou lá fora ver.
– Nós retaliámos, depois eles também, e tudo se agravou, como acontece com estas coisas. Robert por vezes falava comigo, incitando-me a dar tréguas, falando-me do sofrimento do povo, mas eu não o ouvia. Olho por olho, diz a Bíblia, e eu aguardava que Aymer se fizesse homem e recebesse as esporas. Não mato crianças, mas quando ele crescesse, eu planeava acertar contas com Duncan da única forma que podiam finalmente ser acertadas.
Correndo. Correndo. Na direção das vozes e gritos que resvalavam pelo negrume e pelas pedras, seguindo atrás dos passos em retirada.
– Depois soube como se passavam as coisas convosco. Nunca vos vira, mas éreis filha de Jamie. E então comecei a dar ouvidos a Robert, e começámos a pensar em formas de vos tirar de lá.

Luz ali à frente. Mais devagar agora, aproximando-se cuidadosamente.
– Duncan concordou apenas por causa de Aymer. Ele sabia que eu aguardava que o rapaz crescesse. Começou a negociar com vontade quando Aymer fez dezoito anos. Fi-lo dar aquelas terras de dote porque ele não dava realmente uma filha. Ele concordou porque seria Robert quem ficaria na sua posse, e ele sabia que ele era honrado. E assim tivemos alguma paz e livrámo-vos dele…
A imagem dela própria, enforcada…
Reyna fitou Maccus, aturdida, imagens e emoções revoltas toldando-lhe a visão. – E a minha mãe? Onde está ela?
– Ele enfiou-a num convento.
– Não, não me parece. Robert ter-me-ia levado lá quando lhe pedi, se ele o houvesse feito.
Ela aproximou-se de Maccus. – Achais que uma criança esquece tais coisas para sempre? Se uma mão lhe tapou os olhos, que ela não vê? Que se o mundo ficar silencioso ela nunca recorda?
– Cerrou os punhos até as unhas lhe entrarem na carne. – Durante a minha vida inteira, a minha alma lembrou. Nestes últimos meses, quando alguém falava do meu julgamento, via-me a mim própria enforcada, inerte. Pensei que fosse uma premonição da minha própria morte, mas não o era. Não sou eu quem está enforcada naquele pesadelo. Ele matou-a, também, não foi? Não foi?
Ela só reparou que começara a gritar quando sentiu a presença de Ian atrás dela, e o braço dele à volta da sua cintura. – Tende calma, amor – disse ele suavemente.
O semblante de Maccus encheu-se de angústia. – Não soubemos de facto. Robert encontrou apenas Jamie, mas viu indícios de que talvez outra… E ela não está na tal abadia, não a viver, de qualquer forma, porque eu fui até lá ver se poderia ajudá-
la. Penso que Duncan se arrependeu no momento em que o fez.
Antigamente, podia-se punir dessa forma uma mulher infiel, mas agora é considerado crime. Até aos seus foi dito que ele a desterrou em algum lado.
As forças dela deixaram-na. Voltou-se para o amparo de Ian e ouviu-o vagamente sussurrar-lhe palavras de apoio ao ouvido.
– Sois filha de Jamie – disse Maccus. – Minha neta. Se alguma vez precisardes de mim, sabeis onde me encontrar.
Uma nota na voz dele penetrou a sua exaustão. Ela virou-se e viu a esperança fugidia nos olhos dele. Foi até ele e abraçou-o. –
Fizestes o melhor por mim, avô, e foi mais do que alguma vez pensastes.
As mãos dele ampararam-lhe a cabeça. – Bem, rapariga, é bom poder reconhecer-vos. – Pegou nas mãos dela, beijando-as. –
Tende a bondade de nos deixardes agora. Preciso de avisar este cavaleiro inglês para tomar conta de vós se não quiser defrontar o clã Armstrong inteiro.
Ela beijou-o, encaminhando-se depois para a porta. – Vou trazer-vos John, Ian, e encontrar um quarto onde possais retirar a armadura.
Maccus observou-a ir-se embora, ficando alguns momentos mais a olhar para a porta. Quando finalmente se virou para Ian, uma centelha matreira luzia-lhe no olhar. – Bom, Ian de Guilford, este casamento é uma surpresa interessante para mim, e esta conversa é ainda mais interessante para vós, aposto.
– Não é muito surpreendente. É raro os homens tratarem os do seu sangue da forma que Duncan a tratava, e eu ouvira a história da morte do vosso filho. Mas, dado que sois avô dela, é útil que aproveis o nosso casamento.
– Oh, aceito-o. Que escolha tenho eu? – Indicou o quarto com uma risada. – Mas se fosse a vós, não repetiria isto a ninguém.
Quando Fitzwaryn vos ofereceu Black Lyne, não contava que entrásseis numa aliança com os Armstrong pelo casamento, pois não?
– Não. Ainda assim, di-lo-ei a Morvan. Casado com uma Armstrong ou não, sou um homem dele. Ele pode gostar da ideia e baixar-vos o resgate. Quais são as hipóteses de tentardes atacar Harclow se primeiro tendes de tomar o castelo onde vive a vossa neta?
Maccus deu uma risada. – Quem sabe, daqui a vinte anos…
– Daqui a vinte anos vós estareis morto e Duncan estará morto e os Armstrong e os Fitzwaryn estarão todos os dias em cuidados por causa de Aymer Graham. Esta aliança poderá revelar-se muito útil no futuro. Até lá, Black Lyne continuará como era com Robert de Kelso, terras que separam três famílias, na posse de um homem fiel a uma e casado com a filha de outra. Funcionou antes.
Deixemos que volte a funcionar.
Maccus ponderou e assentiu com a cabeça. Depois olhou para a porta, e franziu o sobrolho. – Falando de Robert… onde achais que ela foi buscar aquela ideia absurda de que ele podia ser pai dela?
– Não é assim tão absurda, uma vez que ela ainda era virgem quando ele morreu.
– Não mo digais. Não admira… Bom, Robert nunca teve muitas aventuras com mulheres. Um bom amigo, mas não um daqueles que iam aos prostíbulos e lugares que tais quando éramos novos…
Maldição! As terras dotais. Se ele nunca…

– Muito poucos o sabem, e todos temos as nossas razões para guardar silêncio – aplacou Ian. – Eu gostaria que deixásseis as pessoas saber da vossa relação com Reyna. Ela não será julgada pela morte de Robert, mas muitos ainda suspeitam dela. Também é improvável que o verdadeiro assassino alguma vez enfrente a justiça. Se se souber que ela é vossa neta, terminarão os sussurros.
Ian despediu-se de Maccus e foi procurar Reyna. Encontrou-a, mais John, num quarto, despejando para a lareira a palha de um colchão.
– Há mais de um mês que não havia aqui mulheres ou criados –
resmungou Reyna. – A torre está nojenta, a palha pejada de insetos.
– Tirai-me esta armadura, John. Há dias que vivo dentro dela.
Reyna encontrara uma vassoura e começou a varrer, enquanto malha e placas retiniam no chão. Ian observava o seu pequeno corpo mexer-se nas suas lides, dobrando-se e esticando-se, enquanto ela resmungava acerca dos homens que viviam em condições daquelas. Tinha o vestido sujo por ter estado na cripta e o cabelo solto e emaranhado, mas ele achou que ela estava simplesmente maravilhosa.
– Morvan está à minha procura, John?
– Não. Organiza os soldados, e Sir David regateia provisões com os mercadores como um intendente. Os cavaleiros de Maccus tiveram de deixar cavalos e armaduras, e a nossa companhia ficou com alguns, por isso estão satisfeitos, embora Morvan planeie pagar-lhes e dispensá-los em breve. Não é preciso dois mil para manter um castelo depois de ele ser tomado.
Ian lembrou-se de que devia falar com certos membros da companhia para ver se quereriam ficar em Black Lyne, mas sem desviar nunca o olhar de Reyna. – Há criados por aí, John?
– Alguns, não muitos – disse o escudeiro enquanto inspecionava uma peça de metal que acabava de retirar. Ian desejou que ele se despachasse e retirasse certas outras partes que subitamente se haviam tornado muito desconfortáveis.
John olhou de soslaio para Reyna. – Ela quer que eu encontre palha limpa para o colchão. Como se eu fosse um comum…
– Penso que é uma excelente ideia. Mas primeiro ide buscar alguns homens e trazei um banho.
– Um banho! Vai haver um festim, e há um castelo inteiro a ser explorado, e vós quereis que eu…
– Um banho. E depois o colchão, John.
O semblante de John tornou-se ainda mais carrancudo, e subitamente desapareceu. Olhou de relance para Reyna e corou. –
Ah! – Os seus dedos começaram a tratar mais rapidamente das correias e fivelas. Acabou mesmo quando Reyna empurrava o pó e a terra para a lareira. – Vou tratar do banho agora – balbuciou, saindo a correr e fechando a porta.
Ian dirigiu-se a Reyna, pegou-lhe na vassoura e pô-la de lado. –
Como vos encontrais? Deve ser estranho passar a vida inteira a pensar que somos uma pessoa e saber de repente que somos outra.
Ela franziu os lábios, pensativa. Ele resistiu ao impulso de os mordiscar. – É estranho, mas de uma forma curiosa. Como uma sombra que recebesse luz. Com efeito, sinto-me inusitadamente livre. Duncan nunca me amou, nem eu a ele, e é bom saber a razão.
E a minha mãe… de certa forma também é bom sabê-lo. Não me sinto de todo uma pessoa diferente, sinto apenas que conheço melhor a pessoa que sempre fui. – Ela pousou-lhe uma mão no peito. O coração dele subiu-lhe à garganta. – Pensais que as pessoas me falarão dele se eu perguntar? De James?
– Sim – conseguiu dizer, inclinando-se para lhe beijar a fronte enrugada. Aquele pequeno toque tirou-o de si. Chamou-a para um abraço, beijando-lhe com lábios febris a face, o pescoço, o seio, e soube que não conseguia esperar pelo banho e pelo colchão. –
Não me saístes da cabeça em momento algum, Reyna, dia e noite.
– Puxou-a mais para si, erguendo o corpo dela contra o seu, querendo ter contacto com cada centímetro dela. – Sois a luz que ilumina as minhas sombras, amor, e a necessidade que sinto de vós surpreende-me todas as vezes.
Ela soltou um pequeno arquejo quando as mãos dele se moveram numa carícia demorada, sentida, e depois disto ele não conseguiria dizer mais nenhuma palavra nem que a sua vida dependesse disso. Um desejo delicioso espalhou-se dentro dele como uma inundação, afogando todo o pensamento até só existirem os sentidos, ávidos e vivos, estimulados pelo odor, pelos sons e pelas mãos dela.
Ele encostou-a à parede, levantando-lhe a saia, ansioso pela sensação húmida da pele dela, desesperado por lhe tocar o corpo mas logo arrasado pelo seu calor quando o fez, sabendo imediatamente que nem sequer por isso ele conseguiria esperar. Já sem pensar, pôs-lhe as pernas à volta das ancas e tomou-a ali, com a cabeça enterrada no seu seio, as mãos agarrando-lhe as nádegas, ouvindo a melodia dos seus gemidos suaves, grato pela sua paixão rápida, pois ele não teria conseguido comedimento algum.
Ela arqueou-se contra ele num pequeno grito ao senti-lo finalizar, deixando a cabeça cair no seu ombro. O domínio de si regressou e com ele a consciência do que acabava de fazer.
– Peço desculpa, Reyna – murmurou, apertando-a contra si, amaldiçoando-se, temendo que as pedras lhe tivessem magoado as costas. – Não era minha intenção… quando falei da minha necessidade de vós, não era… mas há muito tempo que…
A mão dela foi até aos lábios dele e silenciou-o. – Que mulher não ficaria lisonjeada? E se passou tanto tempo, sinto-me honrada.
Ele pousou-a e conseguiu compor-lhes as roupas sem a largar. –
Honrada? Deverei sentir-me honrado se me fordes fiel, Reyna? É o que espero. Se fosseis ter com outro homem, eu pensaria que o amáveis e que a melhor parte da minha vida tinha morrido.
– Sim, mas… pensei…
– Sei o que pensastes e tínheis bons motivos para tal. – A sua expressão surpresa, esperançosa, doeu-lhe no fundo da alma. –
Poderia ter satisfação com uma pega qualquer depois de vós?
Contentar-me com um prazer básico? É diferente connosco, tem sido desde o início. Até quando eu ajo como um rapaz desajeitado, como acabo de fazer. Não, mulher, vós sois minha e eu sou vosso, e não haverá outros enquanto o nosso amor viver.
– Mas então será para sempre, Ian – disse ela, como não houvesse como duvidar da eternidade do seu amor. Deus, mas ele rezava para que assim fosse. Ela não conhecia de facto o homem a quem tão inocentemente oferecia o seu amor. E parecia uma coisa tão frágil, esta preciosa euforia que saturava todo o seu ser. Ele não se atrevia a arriscar a sua destruição e, contudo, também o fazia querer abrir o coração com ela, para que a graça dela absorvesse o pior dos seus pecados. Não agora. Não ainda. Que possa durar.
– Sim – disse ele. – O Senhor das Mil Noites retirou-se para sempre do campo. Lá se vai a minha oportunidade de fama imortal.
Ficaram abraçados até o banho chegar. Ele levou-a consigo, embalando-a no seu colo enquanto a lavava, o seu olhar e beijos dando substância às memórias que o haviam sustido e atormentado.
Quando emergiram, ele deparou com o colchão fresco à porta do quarto e levou-a para a cama. Fez amor com ela da maneira que planeara, amando e exaltando cada parte dela, acariciando-a sem a largar muito depois de esgotada a paixão de ambos.
– Encontrareis contentamento aqui na Escócia, Ian? Será muito entediante depois da vida que tivestes – disse ela, brincando com o cabelo dele.
– Um tédio venturoso, espero. Nunca mais serei capaz de ver a guerra como um desporto. Além disso, iremos de vez em quando a Londres. Logo que possamos, com efeito, quando Christiana estiver em casa. Ela fez-me prometer levar-vos. – Fez uma pausa.
– Podeis ficar com ela enquanto eu regresso a Guilford. Penso voltar lá. – Virou-se de lado. – Não posso levar-vos comigo antes de visitar o meu irmão e a sua mulher, e ver como sou recebido.
– A mulher dele não gostaria de ver o irmão do marido?
– Certamente que não gostará, mas são os sentimentos do meu irmão que devo conhecer.
Ele parecia tão sério, a contemplar a possibilidade daquele encontro. Christiana dissera que ele não podia regressar a casa.
– O que se interpõe entre vós e o vosso irmão?
Ele voltou os olhos para ela, e o seu olhar acentuou-se com uma intensidade que parecia raiva. Voltei a fazê-lo, pensou ela, pesarosa, desviando o olhar.
A mão de Ian voltou-lhe o rosto novamente para si. – Podeis amar-me sem saber disso? Amar o homem que conheceis e esquecer o resto?

– O meu amor não começa numa parte de vós e acaba noutra, Ian. O que quer que seja que tenhais enterrado dentro de vós, continuo a amar-vos. Não faleis sobre isso se não escolherdes fazê-lo, mas não por medo de que mate o que sinto. Não há condições no meu amor. É vosso, tal como a minha amizade.
Os lábios dele apartaram-se como se fosse falar. Quando não o fez, ela sentiu desilusão por ele não confiar que ela compreendesse.
Bem, ela aceitaria quanto ele conseguisse dar-lhe, e se ele nunca falasse deste passado que escondia, então que assim fosse.
Ele pousou a cabeça no seio dela, fazendo daquele abraço mais dela do que dele, e ela percebeu que, ali aninhado, o conflito que o dominava se apaziguava. Ele não descansara muito na última semana e ela sabia que ele dormiria profundamente.
Antes de se deixar ir, ele beijou-lhe preguiçosamente a face. –
Sinto que me esqueci de algo. Ah! lembro-me agora. Cabia-me punir-vos pela vossa desobediência.
A consciência emergiu lentamente, mal transpondo aquela paz deliciosa. Chegaram-lhe sons subtis, e depois a constatação de que Reyna não estava a seu lado. Fez menção de procurar por ela, e descobriu que o seu braço não se movia.
Acordou sobressaltado e atirou um olhar fulminante para o braço recalcitrante. Uma corda prendia-o à cabeceira. Voltou-se, perplexo, e viu a outra mão atada do mesmo modo, e baixou o olhar para ver os tornozelos igualmente presos. Estava amarrado, nu, de braços e pernas estendidos, como um sacrifício humano.
Abanou todos os membros num desafio violento. A cama rangeu e bateu com a força.

– Estão bem presos – disse uma voz calma. – Não se soltarão.
Ele voltou-se, num estado de fúria. Reyna encontrava-se a vários passos da cama, envergando uma túnica demasiado grande e comprida que lhe flutuava dos ombros. Algo que desencantara num dos outros quartos, adivinhou.
– Desamarrai-me. Isto é muito inoportuno.
– Não, ainda não. Não durante bastante tempo, acho eu.
– Reyna…
– É apenas o que me haveis feito, Ian. Pensei que pudésseis gostar de o experimentar vós próprio. Como vos sentis, amor?
Indefeso? À minha mercê?
Era exatamente assim que se sentia, maldição. – Reyna, ordeno-vos que desamarreis estas cordas. Porque fizestes isto, para começar?
– Falastes em punir-me.
– Céus, Reyna, apenas gracejava.
– Fico aliviada em ouvi-lo, mas também um pouco desapontada.
Era um estratagema tão bom. Para vos tirar essa ideia.
– Não tendes necessidade de estratagema nenhum. Eu nunca…
– Ainda assim, subitamente o estratagema tem o seu próprio encanto. Talvez deva levá-lo até ao fim.
– Desatai estas cordas, raios, ou precisareis mesmo de um estratagema para me tirar ideias quando me libertar. – Voltou a puxar as cordas com força.
Ela sorriu docemente enquanto a cama saltava e gemia. – Tive horas para os fazer; não se soltarão. – Aproximou-se, suave, e percorreu-o com o olhar. – Realmente tendes um corpo magnífico.
– Passou-lhe um dedo lânguido pelo meio do peito.
Ele cessou a luta e olhou-a nos olhos. O seu corpo inteiro reagiu ao que lá viu. Sorriu o seu melhor sorriso. – Desamarrai as cordas e vinde deitar-vos comigo, amor.
Ela pegou na túnica flutuante e subiu para a cama, com os pés em torno das ancas dele. – Não me parece. Gosto de vós assim. –
Começou a desapertar os laços na frente da túnica. – Surpreende-me o excitante que é. Quero dizer, vós sois tão grande, e eu sou tão pequena.
Muitíssimo devagar, fez a veste deslizar-lhe pelos ombros e pelo corpo inteiro. O tecido agitou-se aos pés dela, roçando a pele dele como uma carícia quando ela o afastou com o pé. Ela baixou os olhos e sorriu. – Vós também pareceis gostar.
Ele gostava tanto que tinha o maxilar cerrado. Por baixo da túnica, ela não estava nua, antes tinha um justilho de pele, uma peça de rapaz um nada demasiado pequena para a sua forma de mulher.
Também amarrava na frente. Os lados estavam separados e apenas cobriam parte de seios que espreitavam através das tiras de couro.
O fundo mal lhe tapava as ancas. O efeito era inacreditavelmente erótico.
– Foi um estratagema maravilhoso, querida. Estou completamente desconcertado.
– Mas mal comecei, Ian. – Ela avançou, um pequeno pé de cada lado até ele a ver toda, e às sugestivas sombras por baixo da orla do justilho. – Retirou uma pena de faisão de dentro deste. –
Deveria ser de pavão, mas claro que aqui não as há. Tereis de imaginar.
Ela curvou-se e começou a acariciar-lhe o corpo. – Oh, pareceis gostar mesmo disto, Ian. – Dirigiu a pena para a prova evidente da excitação dele.
A deliciosa tortura provocou cada centímetro da sua pele.

Uma paixão furiosa fê-lo voltar a puxar violentamente pelas cordas. – Quero que me desamarreis agora.
– Céus, pareceis irritado. Vendo bem, penso que será melhor eu continuar. Parece que afinal preciso deste estratagema. – Baixou-se e ajoelhou-se entre os pés dele. – Além do mais, o que vós quereis não é assim tão importante por agora. Só o que eu quero.
– E o que é isso?
As mãos dela acariciaram-lhe as pernas, para baixo e para cima, enquanto ela o examinava. – Quero olhar para vós enquanto o prazer se avoluma. Quero ver o vosso corpo tremer e implorar o alívio. Quero ouvir os vossos gritos de anseio.
Ele não conseguia acreditar no desejo intenso que as palavras dela provocavam. Pensou que o seu corpo se ia partir ao meio.
Vendo bem, ela conseguira inverter incrivelmente a situação. Afinal, tratavam-se das palavras dele.
– Fazei o vosso pior, mulher, mas lembrai-vos que ides acabar por ter de me libertar, e aí eu planeio reequilibrar a balança.
– Espero deveras que o façais. Mas agora, deitai-vos e submetei-vos, Ian. Isto pode demorar um bocado. Só completei os dois primeiros passos. – Inclinou-se e começou a acariciá-lo com os lábios e a língua tal como a pena havia feito, subindo-lhe lentamente pelas pernas. Muito lentamente.
Ele contemplava aquela progressão vagarosa enquanto o seu corpo tanto bradava pela finalização como se comprazia com a demora. Os beijos e a língua dela chegaram-lhe aos joelhos. As suas nádegas erguidas espreitavam do justilho de couro. – E
quantos passos há?
– Seis – murmurou ela, subindo, subindo. Ia matá-lo. – Na verdade, oito, quando feito à maneira sarracena, mas David recusou-se a falar dos últimos dois a Christiana.
Ele mal a ouvia. A boca dela estava-lhe nas coxas agora e cada fibra dele aguardava e esperava e ansiava. Ela ergueu-se sobre um braço e o seu cabelo tapou-lhe a vista como uma cortina, mas ele retesou o corpo todo quando o dedo dela lhe subiu pelo falo com uma carícia e desenhou um círculo. – É isto que quereis, amor? –
perguntou ela. – É?
– Não.
– Ah, então talvez isto. – Atirou a perna por cima dele, e encavalitou-se nele, de quatro, virada para baixo, o seu odor de mulher a centímetros dele.
– Mexei-vos para trás – instruiu ele.
A respiração dela roçava nele, criando uma agonia de expectativa. – Ainda não. Dizei-me que mais quereis, Ian.
Os músculos dele contraíram-se numa rebelião final antes de sucumbirem, impotentes, ao prazer e ao controlo. Soprou um pedido estrangulado e os lábios dela substituíram-se aos dedos.
Então, toda a resistência e todo o pensamento se toldaram, exceto uma vaga curiosidade quanto ao que poderiam ser os últimos passos.

CAPÍTULO 25


As últimas flores enchiam o jardim de uma profusão de cores e cheiros. A beleza caótica inundava os sentidos de Ian. Ao seu lado no banco de pedra, estava um cesto. Duas rosas espreitavam sobre a orla, as suas pétalas destinadas a algum prato que Reyna planeava cozinhar para a refeição do meio-dia.
Interrogava-se quanto tempo ela estaria fora na peregrinação que fizera naquele dia. Concordara em deixá-la visitar as velhas ruínas sozinha, mas não sem apreensão. Compreendia a sua necessidade de confrontar as memórias enterradas nas pedras escuras do velho castelo, mas quisera ir com ela, não fosse o terror não ter sido vencido tão completamente quanto ela esperava.
Aguardaria que o sol se movesse um pouco mais antes de ir atrás dela. O mais certo era encontrarem-se quando ela estivesse a regressar, mas se ela tivesse sucumbido à escuridão, ele encontrá-
la-ia antes do pior.
Tentou novamente distrair-se da sua preocupação revendo os planos para Black Lyne. O confronto de Reyna com Aymer implicava que os Graham seriam para sempre uma lança apontada às fronteiras oeste destas terras. A ideia de enfrentar Aymer não o inquietava. Ansiava pelo dia em que se fizesse alguma justiça em prol de Reyna e Robert. Mas queria a sua família e a sua gente seguros quando chegasse aquela guerra privada, e tencionava melhorar as fortificações nos anos vindouros.
A sua família e a sua gente. Ainda uma frase estranha, mas agradável. Ele ansiava por aquela família. Os filhos que ele educaria para serem fortes e verdadeiros cavaleiros. As filhas… riu para si próprio. As filhas que provavelmente trancaria para as proteger de homens como Ian de Guilford.
Alisou a terra com a bota e meditou sobre a decisão que tomara na noite anterior. Era necessário construir uma segunda muralha para o castelo no sopé da colina.
Tentou visualizar a fortificação completa e como a afetaria a mudança de sítio do rio. Espetou o pau no chão. Desenhá-la-ia como David desenhara Harclow para ver se dava substância às imagens. O pau arranhou. Aqui o rio, ali a torre quadrada na sua colina circular. Aqui o baldio íngreme e mais abaixo o velho castelo.
Agora, para mover o rio…
Parou abruptamente de desenhar. Erguendo-se, deu um passo para colocar os pés por baixo dos círculos da velha fortaleza.
Olhou atentamente para o desenho do quadrado e círculos e linhas curvas.
Quase duplicava exatamente o desenho pequenino da tira de pergaminho que vira no livro de horas de Reyna.
Faltava alguma coisa, mas não conseguia lembrar-se do que era.
Saiu do jardim, matutando no porquê de alguém desenhar um mapa de Black Lyne e suas terras como se vistas pelos olhos de um pássaro.
Encontrou o pequeno livro de horas na prateleira do quarto principal. Folheando as páginas de devoções e imagens, encontrou a tira de pergaminho. Ainda lhe parecia uma coisa desenhada por um astrólogo.
Percebeu o que o seu mapa não incluíra. Duas linhas retas bissetavam o velho castelo, formando uma cruz.
Examinou o traço ténue e irregular das linhas. Um livro de horas era o tipo de livro que se tinha perto dos mortos, para se lerem orações conhecidas para os reconfortar. Se Robert de Kelso havia desenhado aquilo, o que era tão importante ao ponto de ele utilizar as suas últimas forças para o fazer?
Voltou a colocar o livro na prateleira, mas enfiou o pequeno mapa na manga. Era mais um mistério deixado pelo bom Robert, e de resolução tão improvável como os outros.
Saiu da torre e subiu até às ameias, depois deu a volta para sul, de onde conseguia ver o velho castelo à distância. Semicerrou os olhos e procurou em vão sinais do regresso de Reyna. Esperaria apenas mais um bocadinho e depois partiria em busca dela.
O seu olhar recaiu no cemitério, e na cruz que, ao centro, marcava a campa de Robert. Lembrou-se de estar aqui de pé, a sua fúria a avolumar-se ao imaginar Reyna com Edmund. Aqueles ciúmes pareceram-lhe distantes e infantis, e ele sabia que não voltaria a sentir nada semelhante. Não voltaria a duvidar dela dessa forma, ainda que cem Edmunds por ali passassem para discutir filosofia.
Nem voltaria a ressentir-se das memórias que ela tinha do homem enterrado por baixo daquela cruz. Robert havia-se tornado uma espécie de amigo. Não tinham eles chegado aqui ambos da mesma maneira, desligados da família e do passado, apenas para ficar e construir vidas novas? Ele não era nenhum Robert de Kelso, claro que não, mas, estranhamente, dava por si a seguir os passos daquele homem. Sorriu com a ironia, pois havia sido a semelhança mais óbvia de Edmund com Robert que alimentara o seu tormento naquela noite.
Fez menção de sair dali e depois estacou, suspenso no tempo.
Ideias dispersas acicatavam-lhe a mente em uníssono, setas de numerosas aljavas de memórias que de uma só vez vinham na sua direção. Cravou os olhos na cruz enquanto absorvia aquela investida, surpreso e irritado por não ter reparado em explicações tão óbvias.
Caminhou lentamente para as escadas, cogitando sobre o que acabava de lhe ocorrer. Devia ter razão, e pensava saber como se certificar. Encontraria a prova e depois diria a Reyna o que havia descoberto. Não era um grande mistério, mas ela ficaria contente por saber a verdade, especialmente neste dia, em que reunira toda a sua coragem para enfrentar o que chamava de «tudo aquilo».
Os netos de Alice brincavam no pátio e ele chamou-os. – Vinde comigo. Preciso de corpos pequenos e fortes, e vocês parecem-me o ideal.
Adam e Peter saltitaram ao seu lado até à torre. No salão pegou num archote e subiram até ao quarto principal.
Ian passou a tocha para a mão de Adam e curvou-se para empurrar as pedras que abriam a parede, revelando a escadaria secreta. Devia tê-lo feito há um mês, mas presumiu apenas… bem presumira apenas que era exatamente o que era. – Descei e ficai a dois degraus para nos alumiardes – ordenou ao portador do archote.
A luz desceu e desapareceu na parede, e Ian foi atrás, levando Peter. Virou o pequeno rapaz para o nicho. – Vou levantar-vos e quero que gatinheis lá para dentro e vejais o que lá está. Devo avisar-vos que pode haver aranhas enormes.

A ideia de arrostar aranhas enormes deixou Peter deliciado. Ian ergueu-o até ao início do nicho profundo e depois pegou na tocha para elevar a luz. O traseiro e as pernas de Peter começaram a afastar-se. Logo, só um pequeno pé estava ao alcance.
– O que está aí?
– Montes de teias de aranha e bichos gordos. Quem dera que me tivésseis deixado trazer um saco. Não me parece justo que o Adam perca a melhor parte.
– Além dos bichos, lá atrás, não há uma armadura e um pano?
– Sim.
– Conseguis trazer o pano sem o rasgar muito?
– Está a desfazer-se. E cheira muito mal também. Para que quereis isto?
– Dai-mo. – O traseiro moveu-se um nada para trás e uma mão segurando o pano esfarrapado esticou-se. Ian pegou-lhe, devolveu o archote a Adam, e depois ajudou Peter, muito sujo, a sair do nicho.
De volta ao quarto, os rapazes aguardavam expectantes para saber a natureza do tesouro escondido. Ian não teve coragem para os mandar embora, por isso estava com um de cada lado enquanto desembrulhava cuidadosamente o pano imundo e o abria sobre a cadeira.
– É só um manto de armadura – concluiu Adam, desapontado.
Ian limpou mentalmente o pó e o bolor da veste, e preencheu as partes que o tempo consumira. Este trapo explicava muita coisa.
Peter traçou as linhas cruzadas onde o tecido escuro se encontrava com a luz, no centro. – Parece parte de uma cruz. E isto podia ser vermelho, e isto branco. É o manto de um cruzado.
– Algo assim – avançou uma nova voz.

Ian virou-se e deparou com Andrew Armstrong parado perto da porta.
– Sem dúvida que algum Fitzwaryn o deixou ali há muito tempo
– acrescentou Andrew.
Os rapazes começaram a imaginar o guerreiro antigo, especulando sobre as batalhas que ele havia lutado contra os sarracenos.
Ian sorriu, contando que o cerco de Antioquia povoasse o pátio durante os dias seguintes. – Agora ide ver se a vossa avó ou algum moço precisa de vós para alguma tarefa – disse ele.
Saíram os dois a correr, enchendo o corredor de gritos. Ian e Andrew olhavam um para o outro em silêncio.
– Vós sabíeis – disse Ian.
– Eu era escudeiro dele, quando cá chegou. Não um escudeiro muito bom, mas ele compreendeu que não era a minha natureza, e atendeu a que os outros não troçassem muito de mim. Ambos sabíamos que eu nunca receberia as minhas esporas, por isso convenceu Maccus de que o meu valor residia noutro lado. Acabei por me tornar intendente cá e depois deram-lhe as terras e eu voltei a servi-lo.
– Como soubestes?
Andrew indicou o manto. – Encontrei-o por engano. Um dia, ainda eu era escudeiro dele, decidi limpar a armadura velha que ele tinha em algumas sacas, apesar de ele não ir usá-la novamente. Isso estava junto. Reconheci-o. Qualquer pessoa o teria reconhecido naquela altura. Perguntei-lhe por ele. Ele era um homem bom e eu jurei nunca falar no assunto. A essa altura já sabia alguma coisa acerca de segredos que alguns homens devem manter. Ele sabia os meus e eu sabia os dele, e nenhum de nós julgava.

Ian mexeu no pano vermelho e branco meio desfeito. – Cruz vermelha em fundo branco, o inverso das cores dos cruzados. O
manto de um templário. Escocês?
– Não, não me parece. Ele tinha estado no Oriente enquanto rapaz. Escocês de nascimento, estou certo, mas não viveu lá durante muitos anos e ainda era jovem quando regressou. – Olhou para onde os dedos de Ian repousavam. – O francês dele era impecável.
Ian fez alguns cálculos. – Um dos últimos a serem armados, diria. Talvez o último a morrer.
– Não há necessidade de ninguém saber.
– Ele está morto. Agora não há perigo.
– Ainda assim…
– Reyna precisa de saber. Outros que não ela, talvez não. Se ele escolheu manter segredo enquanto viveu, podemos deixá-lo enterrado com ele.
Andrew meneou a cabeça com gratidão. Fez menção de sair, mas deteve-se. – Nos primeiros anos dele aqui, tive sempre a impressão de que ele aguardava alguma coisa. Mantinha uma distância subtil dos outros e não fez amizades próximas. Nem mesmo com Maccus mostrava tudo.
– Pode ter sido apenas o próprio segredo. Esconder um passado tem o condão de isolar um homem – disse Ian, constatando que ele e Robert tinham ainda mais em comum do que ele pensara.
– Talvez. E, contudo, com o passar dos anos, ele mudou, como se soubesse que aquilo nunca viria, fosse o que fosse. Como se soubesse que estava aqui para ficar. – Encolheu os ombros e caminhou para a porta. – Não é um segredo assim tão mau. Não há pecado nele. Sempre pensei que ele devia dizer a Reyna, pelo menos. Uma vez disse que o faria, que ela precisaria de saber.
Ian dobrou o manto cuidadosamente. Guardou-o num dos seus próprios baús e depois foi até aos livros para investigar mais uma ponta de seta que lhe assomara à memória.
Pouco depois havia feito dois montes, um alto, com os Evangelhos e Aquino e Bernardo, o outro muito mais pequeno e pobre, com o herbário e alguns tratados seculares.
Voltou-se para sair, mas deteve-se. Pegando no livro de horas que estava em cima do monte grande, abriu-o e rasgou-lhe a primeira página, colocando-o depois no monte com o herbário.

CAPÍTULO 26


Reyna estava sentada no chão, encostada à pedra que ela e Ian haviam partilhado no dia em que ela escapou de Aymer, sentindo-lhe o calor nas costas, pensando que devia mesmo acabar com isto antes de Ian começar a preocupar-se e vir atrás dela.
Olhou novamente para o lintel que encimava a antiga entrada para as fundações da torre. Sim, acontecera aqui. Agora tinha a certeza. Parecia, porém, diferente, e não muito ameaçador, possivelmente porque olhava deste ângulo e não como alguém que vinha de lá do fundo, da escuridão.
As memórias e cenas tinham-lhe chegado com clareza, quase demasiada clareza, depois de ela saber o que procurava. Não numa sequência perfeita, mas como lampejos de imagens, sons e emoções.
Dois corpos, não um, mas ela mal vira o segundo depois do horror do primeiro. Duncan a praguejar e a gritar que alguém a levasse de lá. Braços fortes a agarrá-la, arrastando-a de volta à escuridão. Uma mão a tapar-lhe os olhos quando voltaram a trazê-
la para o exterior e desceram a colina com ela.
Esquecera imediatamente? Quando começara a acreditar que a mãe vivia naquela abadia? A sua infância inteira havia-se tornado uma mancha indistinta, a não ser durante aqueles pesadelos e terrores. Se não fosse isso, a sua vida poderia muito bem ter começado no dia em que Robert a encontrou na cripta.
Levantou-se e sacudiu o vestido. Já havia dito as suas orações por aquela pobre mulher cuja infelicidade terminara aqui. Tê-la-ia Duncan obrigado a ver o amante morrer primeiro? Os gritos distantes do seu pesadelo sugeriam que sim.
Aproximou-se do lintel. Um nó retorcia-se no seu estômago. A escuridão não a assustara durante as duas semanas após regressarem de Harclow, mas também a presença tranquilizadora de Ian havia sido quase uma constante. Isto seria diferente. E não se tratava de um corredor, de um quarto ou sequer da cripta, mas do lugar onde tudo começara.
Entrou nas velhas fundações e avançou decidida, com bravura, até a última luz desaparecer e se ver confrontada com a escuridão.
Tinha suor nas palmas das mãos e o coração a bater acelerado, mas o pavor desconcertante permaneceu ao largo. Tateando a parede de pedra, avançou até deparar com uma pequena curva e a entrada desaparecer atrás dela.
E aí parou aterrorizada.
Murmúrios vinham na sua direção, saídos das pedras, através da escuridão… Um riso sumido… A sua mão sobre a pedra sentia os sons tão seguramente quanto o seu espírito os ouvia ecoar silenciosamente ao seu redor.
Não, gritou para dentro, baixando a mão e andando às voltas para as confrontar. Acabou. Já chega!
Preparou-se para correr, mas o choque havia-a desorientado.
Esticou o braço às cegas, procurando a parede, mas a sua mão encontrava apenas escuridão. Aos tropeções, com o pânico a avolumar-se, debatia-se para respirar e rezou que fosse aquela a direção da entrada. De repente, estava estatelada no chão, com o rosto contra a pedra, o corpo dobrado numa posição estranha.
O impacto despertou-a. Tateou à sua volta e compreendeu que caíra num buraco da profundidade de meio homem. A mão bateu num monte de terra e uma pilha de pedras.
As pedras ainda lhe falavam. Não, não as pedras. O som não vinha delas. Os murmúrios sussurrantes estavam mais à frente, mais altos agora do que antes. Dentro dela, alívio. Ian devia ter chegado, trazendo alguém com ele.
Rastejou para fora do buraco e começou a dirigir-se para as vozes. Um pé embateu noutro monte de terra. Desviou-se para a esquerda até encontrar a parede e, encostando-se a ela, avançou lenta e cuidadosa.
Passado um pouco, viu um fiapo de luz. Não fazia sentido. Se ela regressava para a entrada, como podia não bater nos obstáculos que encontrara na vinda?
A passagem fazia uma pequena curva e, subitamente, a luz fez-se mais forte. Uma sombra enorme mexeu-se lá à frente e o susto deixou-a sem fôlego.
Outra sombra mexeu-se, adquirindo forma humana, e olhou diretamente para ela. Ficou tensa e arremessou um braço. –
Apanhai-a.
Pareceu uma ameaça, apesar de não fazer sentido. Ainda assim, ela deu meia-volta e começou a correr.
Passos pesados seguiam no seu encalço. Braços grandes agarraram-na, pegaram nela e levaram-na para a luz. Por fim, deu por si a ser sentada numa pedra grande entre dois archotes.
A passagem alargava-se mais aqui e, confusa, olhou ao seu redor. Lajes de pedra haviam sido movidas e covas não muito profundas haviam sido escavadas. No chão, cruzavam-se pegas de picaretas e pás. Contra uma parede repousavam cobertores enrolados e sacos de couro.
Ergueu os olhos para o peito largo e nu que pairava acima dela, e depois para o rosto preocupado, marcado, de Reginald.
– O que fazeis aqui, Reyna? Robert disse que vós temíeis o escuro – disse uma voz suave. Edmund colocou-se ao lado de Reginald. O archote converteu-lhe o cabelo num halo de fogo.
Edmund também estava despido até à cintura, e o suor reluzia-lhe no corpo.
– O que fazeis vós aqui? Porque escavais? Há quanto tempo aqui estais?
Edmund acomodou-se na pedra ao lado dela. – Tempo de mais.
Está a tornar-se incomodativo e aborrecido, mas devemos terminar em breve. – Ele olhou-a com curiosidade. – Talvez tenha sido bom terdes vindo. Robert tentou dizer-vos, no fim. Reginald ouviu-o falar uma noite, sem saber que vós lá não estáveis. Ouviu o suficiente antes de ele parar, por isso sabemos que está aqui.
Porque não nos dizeis o resto, Reyna, e poupais a todos mais trabalhos? Por esta altura, até estou disponível para partilhar.
– Falais por enigmas – disse ela exasperada, pondo-se em pé. –
É melhor que partais imediatamente, Edmund. Jurastes levar Reginald embora, e se Ian descobre…
Ele voltou a fazê-la sentar-se com um puxão brusco. – Ele está convosco? O vosso cavaleiro inglês também veio?
Ela não gostou do tom ameaçador. Os dedos dele enterraram-se no braço dela. – Não, ele não está aqui. – Mas viria. Ele não quisera que ela fizesse isto sozinha e não aguardaria muito tempo pelo seu regresso.
Edmund olhou para Reginald e indicou a passagem com a cabeça. Pegando num machado de guerra encostado a uma pedra, Reginald entrou desajeitadamente na escuridão.
– O que vai ele fazer? – perguntou Reyna.
– Irá certificar-se de que falais verdade, ou desembaraçar-se de Ian se não o houverdes feito. – Soltou-lhe o braço e desviou o olhar, os olhos semicerrando-se pensativamente, a boca um sulco vermelho. A luz flamante urdia-lhe sombras nas faces e nos olhos.
Ele parecia-lhe muito diferente da forma como o lembrava, e não era só pela luz.
– Para quê estes buracos?
Ele sorriu daquele seu jeito doce mas superior. – Um tesouro.
Por que outra razão viveriam dois homens semanas a fio nas entranhas desta torre? Robert pô-lo aqui. Escondeu-o quando regressou de França, e depois transferiu-o para aqui depois de vos desposar. Ele disse-vos, não disse? Quando estava doente, antes de morrer. Queria que o levásseis ao bispo, como ele planeara fazer. Reginald leu a carta que Robert enviou para Glasgow, compreendeis, por isso sabemos dessa parte.
– Oh, valham-nos todos os santos, Edmund. Não está aqui. Os livros estão onde sempre estiveram, no quarto principal. Era isso que ele queria dar ao bispo. São esses os objetos valiosos que ele trouxe de França.
A expressão estupefacta de Edmund manteve-se um instante, e depois o seu rosto transformou-se num sorriso trocista. – Livros?
Livros? Pensais que se trata daqueles livros? – Ele agarrou-lhe no rosto. – O que está enterrado aqui ultrapassa de longe aqueles poucos livros. É ouro, uma montanha dele, e joias. Riqueza que chegue para comprar centenas de livros.
Ele examinou-a, os olhos com uma expressão exaltada, os dedos apertando-lhe as faces. – Dizei-me o que ele disse, Reyna.
– Ele nunca me falou deste lugar, nem sequer quando estava a morrer. Mal estava consciente a maior parte dos dias.
As mãos dele deixaram-se cair. – Então já não tendes utilidade nenhuma para mim. – O seu tom de voz neutro arrepiou-lhe a pele do pescoço e fez-lhe o sangue pulsar freneticamente. – O que quer que vos tenha trazido aqui, foi obra do Diabo.
– O que dizeis? – perguntou ela, mas uma sensação mórbida espalhou-se dentro dela.
Ele ignorou-a. – E era um plano tão bom – murmurou. – Se Robert ao menos tivesse morrido durante o sono, como fazem a maioria dos velhos, e levado o segredo para a sepultura… se ele tivesse deixado as coisas como estavam, eu teria aguardado satisfeito. Depois vós teríeis vindo para norte e esta terra teria sido vossa e a seguir poderíamos ter procurado à nossa vontade. Mas ele tinha de escrever aquela maldita carta, e o vosso cavaleiro tinha de se casar convosco… bom, agora não há nada a fazer.
Ele pousou uma mão no joelho e deu-lhe pancadinhas na face com a outra. Aquela atitude tão descontraída provocou-lhe arrepios.
– Pensarei numa maneira que não vos faça sofrer, só que terá de parecer acidente ou obra de outra pessoa. Aymer, talvez. Sim, funcionaria. Reginald e eu vimos aquele cercozito ali de cima. Ainda bem que tínhamos saído para buscar mantimentos, mas também nenhum de vós entrou, de qualquer modo. Talvez possamos fazer crer que os Graham vos puniram por terdes casado com aquele inglês…

– Não – ribombou uma voz.
A figura ameaçadora de Reginald surgiu no limiar da luz. – Não lhe fareis mal. Dissestes que se eu fizesse isto ma daríeis.
Edmund pôs-se em pé com um suspiro exasperado. – Já vos expliquei isto mil vezes. Não podemos fazer como tínhamos pensado à partida, pois não? Não com Fitzwaryn a tomar posse das terras e ela casada com Ian.
– Mesmo assim. Jurei a Robert protegê-la.
– Raios, vós envenenastes o homem. Em comparação, repudiar o juramento que lhe fizestes é coisa menor.
Reyna ficou sem fôlego. Reginald? Não Aymer, mas o homem de confiança de Robert?
– Vós obrigastes-me – defendeu-se Reginald.
– Eu não vos obriguei a fazer nada. Vós queríei-la e ao ouro, e convencestes-vos de que ele estava velho e morreria de qualquer maneira. E depois nem sequer seguistes as minhas instruções com a poção corretamente, e todos ficaram a saber que ele tinha sido envenenado. – Edmund virou-se para Reyna como quem pede desculpa. – Teria sido rápido, juro-vos. Devia ter parecido uma morte natural. – Lançou um olhar cáustico ao irmão. – Pelo menos o idiota teve o tento de esconder o herbário quando as pessoas começaram a suspeitar de vós.
A indignação venceu o seu medo escabroso. – Vós fizestes isto?
– arrojou Reyna para Reginald. – Assassinastes o vosso suserano e amigo? Um homem que confiava em vós de forma absoluta?
– Ele era velho e teria morrido sem demora, de qualquer forma –
defendeu-se Reginald. – Mas vós não sois velha e não deixarei que isto aconteça.
Edmund atirou os braços para o alto. – Devemos deixá-la ir embora para dizer ao marido o que descobriu?
– Ela ficará connosco e…
– E ele pegará em cem homens e irá à procura dela. Quando o fizer, deixai-lo encontrá-la, mas incapaz de falar. Se quiserdes tomá-la antes de o fazermos, não me oporei.
Reginald hesitou, olhando para ela, e Reyna sentiu uma náusea.
Voltou a virar-se para o irmão, apertando mais o cabo do machado. – Não.
Um suspiro profundo saiu de Edmund. – Suponho que sei há algum tempo que poderíamos chegar a isto. – Afastou-se, para as sombras, e emergiu de espada na mão. – Pousai o machado, irmão.
Ide ao baldio onde os cavalos estão abrigados, pegai num e ide-vos. Estais fora disto agora e eu tratarei do que for preciso.
– Não posso.
– Não, da forma que vedes o mundo, suponho que não possais
– lamentou Edmund.
Investiu com a espada erguida.
Era um espaço pequeno, e o combate aproximou-se de Reyna enquanto eles arremetiam e golpeavam e contornavam as covas que se lhes atravessavam no caminho. Ela aninhou-se e encolheu-se contra a parede, forçando-se a ver para conseguir evitar alguma arma que rasasse demasiado perto. As pedras estavam tão frias quanto os seus membros, mas temia o fim da disputa, pois, quem quer que ganhasse, ela não estaria em segurança.
Por fim, a vontade de matar um irmão foi maior em Edmund do que em Reginald. Horrorizada, viu a espada lancinante derrubar o maior dos homens, a lâmina a perfurar o peito musculado. Em estado de choque, Reginald não tirou os olhos do irmão quando o seu corpo perdeu a força e caiu redondo no chão.

– Não tínheis de o matar – disse Reyna, quebrando o silêncio gélido que se seguiu.
– É culpa vossa. Por terdes vindo aqui. Devíeis ter ficado na cama do vosso cavaleiro hoje. Já convencera Reginald de que agora não podia ter-vos, não depois de ele ter ficado impaciente e ter arruinado a oportunidade de vos levar embora. Em Edimburgo haveria tempo para vos convencer da lógica disso, mas casada com Ian… Se não tivésseis vindo hoje… – Baixou os olhos para Reginald. – Sempre o avisei de que o seu sentido do dever seria a morte dele.
Assustou-a vê-lo tão desprovido de sentimento. Puxou os joelhos para si para fazer do corpo uma redoma. Edmund foi até ela e ela encolheu-se contra a parede.
Ele sorriu, condescendente. – Não, ainda não. Não aqui. Lá fora nas pedras grandes, penso eu, para o vosso cavaleiro vos encontrar facilmente. Não quero que venha cá dentro procurar.
– Talvez ele nem chegue a procurar. Ele foi forçado a casar-se comigo.
– Procurar-vos-á. Casamento forçado ou não, está bastante arrebatado com a sua noiva virgem.
Os olhos dela arregalaram-se.
Ele riu-se com a reação dela. – Mas claro que eu sabia, pequena Reyna.
– Robert disse-me que não havia dito a ninguém.
– Ele não me disse, mas eu sabia. Naquela primeira visita adivinhei o que ele era. Quem ele era. Soube com certeza depois de ver os livros.
– Os livros? Dissestes que procurais um tesouro, e não os livros.
Se vou morrer, pelo menos explicai-me isto. Que tesouro? Que ouro?
– Ouro templário – respondeu a voz de Ian.
O coração de Reyna saltou de alívio. Ian emergiu das sombras da passagem e a luz fosca iluminou-lhe a expressão dura do rosto.
– Ouro templário, do templo de Paris.
Edmund colocou-se no centro da galeria, entre duas covas, a mão branca no punho da espada.
– Tende cuidado, Ian. Ele acaba de matar Reginald, e também matou Robert.
– Não o matei. Reginald…
– Por instrução vossa, e tão seguramente como se lhe houvésseis enfiado um punhal no pescoço.
Ian desembainhou a espada. – Bom, Edmund, nunca lutei com um monge, mas a ideia não me incomoda nada. Sois um homem muito astuto se bastaram os livros para descobrirdes o segredo de Robert.
– Suspeitei muito antes. O tempo que passou no Oriente e em França. A sua aparição súbita aqui sem história prévia. Os livros apenas vieram confirmá-lo. Todos os precetores têm uma descrição das posses do templo de Paris que nunca foram reavidas.
O ouro e a biblioteca.
– Portanto, quando vistes aqueles tomos ricos marcados com a divisa J. M., não restaram dúvidas. A biblioteca de Jacques Molay, grão-mestre dos Templários. Porque não vos limitastes a confrontar Robert e reivindicar as posses para os Hospitalários?
Edmund riu. – E dá-las à minha ordem se ele as entregasse? Os monges de S. João já são ricos o bastante. Cabiam-me a mim.
Ficaram-me destinadas na noite em que os Templários as enviaram para aqui com aquele jovem cavaleiro.

– Eles não as mandaram para aqui para vós ou para os Hospitalários, e Robert sabia-o. Não é difícil compreender o que se passou há esses anos todos. Ele foi enviado para aguardar o fim da expurgação e que a ordem se renovasse. Mas isso nunca aconteceu, e Robert de Kelso deu por si com um tesouro que não pertencia a ninguém. Ele suspeitava que sabíeis quem ele era?
– Não, eu era cuidadoso, e ele também. Cuidadoso de mais, o que só me espicaçou a curiosidade. Nunca me falou dos Templários, ou fez perguntas. Todos os outros o fazem, tal como vós fizestes. Foi assim que soube que não havíeis adivinhado, apesar da virgindade da vossa mulher e da história vaga de Robert.
– Porque adivinharia eu? A ordem há muito que deixou de existir. Se não fosse a semelhança dele convosco, nunca me teria interrogado. – Ian indicou a passagem com um aceno. – Parti agora. Se fordes rápido, podeis estar no mar antes de eu falar dos vossos crimes ao bispo e ao vosso precetor. Dou-vos a oportunidade de saírdes daqui com vida.
A cabeça loura inclinou-se para trás e Edmund estudou Ian com olhos encobertos. O espírito de Reyna retraiu-se perante a frieza do mal que emanava do homem mais pequeno.
– Vós sabeis onde está – afirmou Edmund.
– Penso que estais enganado a respeito do ouro e que Robert nunca o teve. Ele teria considerado os livros tesouro suficiente para proteger – rebateu Ian.
– Mentis. Planeais ficar com ele para vós. Não espereis que vos deixe fazê-lo. Disse a Reyna que estou disposto a partilhar. Vamos depor as nossas espadas e tornar-nos parceiros nisto. Metade para cada.
Ian olhou para a figura inerte de Reginald. – Vejo como lidais com os vossos parceiros.
– O meu irmão precisou de alardear a honra dele muito depois de a ter abandonado, mas vós não vos iludis. Trabalharemos bem juntos, Ian. Com os outros pecados que temos na alma, o roubo deste ouro é pouca coisa.
As insinuações dele enfureceram Reyna. – Não presumais comparar-vos com ele, Edmund. Sois um assassino cruel, e…
– Não lhe dissestes – interrompeu Edmund, surpreendido. –
Pensastes escondê-la aqui e esperar que ela nunca descobrisse?
Os olhos de Ian queimavam. Edmund ostentava um sorriso irónico. – Devo dizer-lhe? Eu nunca trairia um parceiro, mas… –
deixou a oferta pairar no ar.
– Não há nada que possais dizer-me que faça alguma diferença
– disse Reyna, procurando a atenção de Ian, tentando dizer-lhe que, qualquer que fosse a decisão que tomasse a respeito de Edmund, não deveria dever-se a isto.
– Será que não? – Edmund ergueu uma sobrancelha na direção de Ian. – Será que não?
Ian não se mexeu nem falou, mas tinha os dentes cerrados como um homem que aguarda um soco. Olhava furiosamente para Edmund, mas o seu silêncio expressava a sua resposta.
Edmund abanou a cabeça. – Passastes do Céu para o Inferno na vossa escolha de marido, pequena Reyna. Soube deste por um dos seus próprios homens, um cavaleiro que temia que o meu interesse por vós fosse sensual e que tentou avisar-me explicando o quão perigoso o seu capitão podia ser. – Um maldoso sorriso de desprezo distorcia-lhe o rosto. – Condenais-me por causa de Robert e Reginald? Então o que direis a um homem que matou o próprio pai e se deitou com a própria mãe?

O choque deixou-a sem fôlego. Virou-se para Ian, à espera que o negasse. Uma expressão angustiada passou-lhe pelo rosto e ele recusou-se a devolver-lhe o olhar.
– Pelo menos eu cometi os meus pecados por um objetivo válido – prosseguiu Edmund.
– Um objetivo pelo qual valha a pena morrer, espero – disse Ian. – Deixai-nos, Reyna.
Edmund assumiu uma pose de combate. – Ela fica. Se ela se mexer, corto-a ao meio.
Os olhos de Ian lampejaram. – Então acabemos com isto, monge.
Reyna gritou ao vê-los partir para o confronto e os seus olhos seguiram cada golpe das espadas com um terror que a colava à pedra. A sua mente repetia, tranquilizadora, que Ian era forte e capaz, mas a determinação selvagem de Edmund redobrava-lhe o perigo.
Não acostumado à localização das covas, Ian estava em desvantagem, e tentava também manter a disputa longe da parede onde ela estava encolhida. Depois Edmund foi o primeiro a fazer sangue. Ian praguejou quando um fio vermelho lhe surgiu na túnica.
Ian libertou então todo o seu poder de guerreiro, o que transformou imediatamente o seu desempenho.
Ela nunca o vira lutar, nunca vira a destreza que lhe conferiam aqueles sentidos aguçados, mente incisiva e corpo ágil.
Metodicamente, implacavelmente, Ian parou cada golpe do febril Edmund. Quando Edmund tentou deslocar o combate para a parede dela, um golpe sibilante da arma de Ian roçou-lhe o antebraço, cortando-lhe rente um pedaço de pele. – Aproximai-vos dela e eu corto-vos em pedaços antes de morrerdes – rugiu Ian.

Ian teve várias oportunidades de acabar com o combate, mas recuou em todas elas, renunciando à investida que mataria o seu opositor. Por fim, dois golpes velozes incapacitaram o braço da espada de Edmund e uma perna. Edmund caiu ao lado de uma das covas, comprimindo os ferimentos com as mãos, com sangue a escorrer-lhe pelos dedos.
Ian estava de pé sobre ele, a luz do archote transformando-o num anjo vingador que defrontasse os condenados nas profundezas flamejantes do Inferno. A sua espada pairava alto, pronta a cortar a cabeça de Edmund.
Reyna olhava fixamente, com a pele húmida e pegajosa do pavor infernal que acabava de viver. Observou a decisão oscilar na expressão furiosa de Ian.
Se o fizerdes, fazei-o por Robert, e não pelo que ele me disse, incitou com o coração.
Rogando uma praga, Ian afastou a espada de Edmund com um pontapé e baixou a sua própria arma.
Dirigindo-se a ela, agarrou-lhe na beira da saia e rasgou-a. Com as tiras de pano, voltou para ligar os ferimentos de Edmund.
Depois, com corda que encontrou, atou as mãos e braços do homem.
Olhou para o monge surpreendido. – A tentação de vos matar e enterrar aqui é forte, mas deixarei o bispo tratar de vós. Não terei de explicar o desaparecimento de um hospitalário por estas bandas.
– Baixou-se e pegou numa pá. – E, sim, eu sei onde está. Que não terdes sido capaz de o encontrar seja o vosso inferno.
A boca de Reyna escancarou-se. Ian foi até ela e pegou-lhe no braço. – Cuidado com as covas – alertou ele enquanto a conduzia para a passagem.

– Como descobristes, Ian? – perguntou ela enquanto avançavam, incertos. – Robert, um templário. É demasiado fantástico.
– Tudo encaixa. Um voto de castidade que ele manteve em segredo. A chegada aqui cerca de cinco anos depois de Jacques Molay ser executado e poucos anos depois de a ordem ser dissolvida. Imagino que ele tenha ido primeiro para outros templos para se recolher, mas a ordem papal acabou por fechá-los a todos.
Por isso veio para cá e aguardou o momento de entregar o que havia guardado, mas chegou o dia em que ele soube que tal nunca aconteceria, e o tesouro tornou-se um fardo.
– Porque não limitar-se a dá-lo aos Hospitalários?
– O mais certo era Robert não querer que a Ordem de S. João ficasse com ele. Os Templários suspeitavam que os Hospitalários haviam encorajado a sua supressão para se enriquecerem a eles próprios.
Saíram para a luz do sol. Sob o lintel de pedra, Reyna pestanejou. Não estava ali nenhum fantasma pendurado.
– É verdade? Sabeis onde está?
Ele não olhou para ela. – Penso que sim. Descobriremos rapidamente se estou ou não certo. – Encostou a pá a uma pedra e tirou da manga uma tira de pergaminho. – Estava no vosso livro de horas. Penso que Robert teve alguns momentos de lucidez antes de morrer, e desenhou isto. Planeava dizer-vos o seu significado. Mas no dia em que tentou vós não estáveis lá, e Reginald ouviu em vossa vez.
Ela olhou para as linhas e círculos. – O que é?
– Um mapa. Não da forma como habitualmente se desenham, mas mais preciso à sua maneira. David fá-los assim. Vede, aqui está a colina onde nós estamos, e o quadrado é o castelo de Black Lyne. – Pegando no pedaço de pergaminho, deslocou-se até Black Lyne estar posicionado relativamente a eles como estava em relação à velha torre no mapa. – Ele precisaria de alguns marcos para mais tarde ele próprio saber onde estava. Esta pedra grande, talvez.
Parou em frente da pedra, caminhou até à beira da colina e espreitou para baixo. – Ali – apontou. – A depressão no fosso.
Estas linhas divisórias podem querer dizer que está onde elas se unem, nas ruínas, ou onde atravessam o círculo, no fosso. Edmund anulou a primeira possibilidade.
Pegando na pá, desceu a direito o declive da colina e Reyna apressou-se a ir atrás dele. Tendo verificado a sua posição relativamente à pedra e à torre, começou a cavar.
O buraco já ia bastante profundo quando a pá encontrou resistência. Ian desenterrou uma saca carcomida e içou-a. Pelos buracos, algo brilhava. Reyna ajudou-o a desatar o nó e a sua pulsação acelerou quando a saca se abriu. As suas mãos tremiam ao transferir para o chão o seu conteúdo.
Objetos. Objetos preciosos. Um cálice de outro cravado de pedras azuis, e dois pesados candelabros de ouro. Um tesouro, sem dúvida.
– Da capela – murmurou Ian.
O ouro refulgia à luz do sol. – Oh, Ian, são maravilhosos.
– Sim. E muito, muito valiosos. – Começou a caminhar de mãos nas ancas, pensativo. Ergueu os olhos para a torre, onde Edmund jazia amarrado. – Infernos!
– Ninguém sabe que o tesouro está aqui além dele e de nós –
disse ela. – Mas se quereis ficar com ele, tereis de lhe dar alguma coisa, ou ele dirá que veio aqui para o reivindicar para a sua ordem e que vós forjastes a história do assassinato de Robert.
– Não reivindicará nada se estiver morto.
– Não o matastes no calor do combate. Voltaríeis para o fazer agora?
– Porque não? – respondeu rispidamente. – Ouvistes o que ele disse. Um homem com os meus pecados é capaz de tudo.
Especialmente por um prémio como este.
Ele olhou para ela pela primeira vez depois de saírem da torre.
Os seus olhos gritavam-lhe um desafio, que ela reagisse e questionasse. Que condenasse.
– Não acredito nele – disse ela.
– Devíeis. É a verdade.
– Há muito que não sei a vosso respeito, Ian, mas o homem que amo nunca fez tais coisas, e não foi como ele disse.
– Andou perto.
Ela prometera não perguntar sobre o passado dele. Se ele não tivesse levantado o assunto, ela teria fingido que Edmund nunca tinha dito nada e confiado no amor pelo Ian que agora conhecia.
Mas por baixo da dureza daquele desafio, a sua expressão compreendia uma dor que lhe dilacerava o coração.
– Quão perto?
Ele aproximou-se de um candelabro e deu-lhe um pontapé furioso, que o fez voar e deslizar pelo fosso. Ela foi calmamente apanhá-lo. Quando regressou, ele estava com o cálice aos pés, com amarga resignação estampada no rosto.
– Vou dizer-vos, mas não gostareis do que ides ouvir.
– Começais tão cedo a duvidar do meu amor, Ian? Tendes a certeza daquilo que pensarei?

– Tenho, mas dir-vos-ei de qualquer forma, porque não foi como ele disse, e quando vos perder, pelo menos que seja pela verdade.
Olhou na direção do baldio, como se organizasse as memórias e as forçasse a vir aos lábios. – Disse-vos uma vez que parti para ser escudeiro de um lorde vizinho. Ele tinha uma filha jovem. Ela tinha cabelo como fogo e pele como neve, e eu venerava-a. Durante todos aqueles anos raramente nos falámos e nunca estivemos sós, porque a mantinham perto das mulheres, e protegida. Por isso, nunca cheguei a conhecê-la, mas, ainda assim, amava-a com uma dor ardente. Quando fiquei mais velho, tomava outras, criadas e rameiras, e fingia que estava com ela, e depois odiava-me a mim próprio por a ter desonrado na minha mente. Chegada a altura em que contava ganhar as minhas esporas, ela já estava em idade de casar, mas eu sabia que era impossível. Eu era um filho mais novo, e ela não era para mim.
Ele não dissera o nome dela, pensou Reyna. Nem o faria.
– Naquele último ano, o meu pai e o meu irmão mais velho passaram de visita quando regressavam de Windsor. As propriedades não ficavam muito longe uma da outra, mas até então eles não tinham visto que ela se tornara tão bela. A minha mãe estava morta, e o meu pai ainda não tinha quarenta anos. Ele propôs desposá-la logo na primeira noite.
– Oh, Ian…
– Sim, um momento de puro inferno, quando soube. A família dela estava encantada com o casamento. Eu engoli-o, mas a ideia de ter a rapariga que amava como mãe, a ideia de ela partilhar a cama do meu pai, fazia-me náuseas.
– Mas não fizestes nada de mal. Não podemos ser culpabilizados por aquilo que o nosso coração sente.
– Credo, mas sois tão inocente, Reyna. Se isto fosse tudo… –
As palavras dele quase não se ouviam. – O meu pai ficou. O
noivado foi planeado para dali a uma semana. Fingi estar contente por ele, mas foi angustiante. Em primeiro lugar, porque a rapariga que nunca me falara de repente passou a falar-me muito. Os olhos que raramente reparavam em mim pareciam encontrar-se sempre com os meus. Por fim, um dia, quando os nossos pais estavam fora numa falcoaria, ela enviou uma mensagem a pedir que nos encontrássemos no jardim por trás da torre.
– Vós fostes?
– Mesmo com a minha cabeça a dizer-me para me afastar, as minhas pernas levaram-me até lá. Não sei o que esperava, mas sei pelo que rezava secretamente o meu coração, e aquelas orações foram respondidas, mas pelo Diabo. Ela beijou-me, e depois disso perdi a razão.
Ele olhou para ela, e o olhar disse tudo. Ela não teve de perguntar o que tinha acontecido.
– Encontraram-nos lá. Quando os homens voltaram o salão estava num tumulto e a mãe dela a chorar. A minha amada tão assustada que não conseguia falar. – Baixou as pálpebras. –
Mesmo quando fui acusado de violação, ela não disse uma palavra.
– Como pôde ela ficar em silêncio enquanto vós éreis acusado?
Não me importa o quão assustada ela estava, devia ter falado. Um choque tão grande não faz sentido.
– Irá fazer. – Infiltrou-se amargura na sua voz. – O meu pai tinha um temperamento intempestivo, e perdeu as estribeiras quando ouviu. Ali mesmo, em frente da casa inteira, desafiou-me. Eu invoquei a inocência que podia, mas uma hora depois de ter aquela rapariga nos braços dei por mim no pátio com uma espada na mão, defrontando o meu próprio pai.
Um peso terrível alojou-se no fundo do estômago de Reyna. Ela adivinhou o fim da história e quase lhe disse que se calasse para o poupar à dor de a contar.
– Ela assistiu. Todos assistiram. Nunca sentira tanto medo e tanta confusão na minha vida. Era o meu pai, e ele veio para mim cheio de fúria e eu tive a certeza de que ia morrer. Mas eu era jovem e capaz, e estávamos mais equilibrados do que eu esperava.
Eu não sei durante quanto tempo lutámos, mas por fim ele recuou por um momento. Nessa pausa, eu olhei para ela e, na expressão dela, vi que havia planeado tudo, que ela não queria o casamento, que procurava vê-lo mutilado ou morto para se ver livre dele, e que me havia usado para esse fim.
– Porquê vós? Porque não um dos outros que lá estavam?
– Talvez ela soubesse que ele seria mais precipitado com o seu próprio sangue. Talvez tenha ouvido que, entre os escudeiros, o meu braço era o melhor. O mais certo é ela saber reconhecer um idiota. Virei-me e vi o meu pai também a olhar para ela. Quando os olhos dele voltaram a encontrar-se com os meus, eu soube que ele tinha visto o mesmo que eu. E também vi que ambos fôramos idiotas, que ele também se apaixonara por ela. Aí, algo o abandonou. Quase se viu aquilo voar para fora dele. Eu tentei que ele terminasse com o combate, mas ele não o fez. Talvez fosse orgulho, mas eu penso que era desespero. Eu esperava conseguir acabar num empate. Mas estávamos os dois a ficar cansados, e os nossos golpes descuidados. A guarda dele baixou, e só lhe faltou pôr-se à frente da minha lâmina.
O maxilar dele contraiu-se e semicerrou os olhos. Reyna ansiava por dizer algo que o apaziguasse e aliviasse a culpa que lhe estava inscrita no rosto.
– Ele não morreu imediatamente. Eu fiquei com ele, e nunca chegámos a falar dela. Perdoou-me e fez o meu irmão fazer o mesmo, e chamou o meu amo para me armar cavaleiro na presença dele. Depois deu-me algum dinheiro e disse-me para ir para a terra da minha mãe, para longe dos sussurros que já diziam que eu havia desejado a minha nova mãe e que matara o meu pai para a ter.
– Mas não foi assim. Ela ainda não estava ligada a ele.
– De somenos importância, Reyna.
– De muita importância. Nunca teríeis… se se tivesse celebrado o noivado…
Ele virou para ela uns olhos consumidos. – Estais assim tão certa? Eu confesso que não estou.
– Eu estou. Nem vós procurastes matar o vosso pai. Como podem as pessoas dizer tais disparates?
– As pessoas só sabem o que viram. Esta história poderá parecer muito diferente vinda de outra boca – disse rispidamente, mas a raiva não se dirigia a ela. – Primeiro tentei desculpá-la. Tentei convencer-me de que ela procurara a minha morte, não a dele.
Talvez ela não fosse donzela, e tê-la violado serviria de explicação para isso. Foi-me impossível aceitar que alguém tão jovem pudesse ser tão malévolo. Mas quando estava em Londres, ouvi dizer que ela se casara com o meu irmão. O velho lorde ou o secundogénito não lhe serviam, mas o jovem herdeiro… era diferente. Penso que ela o quis desde o início, e que ficou desconsolada ao saber que a oferta havia sido não do filho mas do pai. Por isso precisava do meu pai morto antes dos esponsais, ou o verdadeiro prémio estaria para sempre fora de alcance. Um filho não pode casar-se com a viúva do pai que morreu.
– O vosso irmão sabe?
– Durante um tempo perguntei-me se não teria sido cúmplice, mas não consigo imaginá-lo nessa situação. Mas quando for a Guilford descobrirei. E fá-la-ei perceber que sei que é tão responsável pela morte do meu pai quanto eu.
– Vós, na verdade, não…
– Fi-lo, Reyna. Há muito que aceitei essa verdade. Agradeço que tenteis defender-me, porém. Pensei que me condenásseis.
Ele parecia cansado, como se contar a história lhe tivesse sugado a maior parte da força. Ela abraçou-o e desejou que ele conseguisse sentir o seu amor. – Como podia condenar-vos?
Fostes acusado injustamente. Deveríeis ter esticado o pescoço para a espada do vosso pai?
– Ele deu-me vida. A maioria diria que é seu direito tirar-ma.
Não fui isento de culpa, e parricídio é imperdoável em qualquer situação.
– Nada é imperdoável – afirmou ela. – No entanto, parece-me que nunca vos perdoastes. Penso que acreditastes que o que fizestes havia revelado e determinado a vossa natureza e deixastes a vossa alma ser arrastada sem refletir para onde ia. Mas em verdade, a vossa natureza é afável e boa, Ian. Nunca poderia amar-vos se não o intuísse.
– Não, meu amor, nem tão boa assim. Vós fazeis-me melhor do que sou. – Ele entregou-se ao seu abraço e encostou o rosto ao pescoço dela, como se se socorresse no seu calor. – Eu devia ter mostrado mais força, e calculado o que ela queria de mim. Foi uma lição dura, mas tenho constatado que a aprendi bem de mais.
Por fim, apartou-se dela e pegou no cálice. – Há mais, penso eu.

Há quatro linhas que atravessam o círculo do fosso. Isto é apenas uma parte. Pensei que fossem algumas centenas de libras de ouro.
Nada como isto.
– Não me importa o que decidirdes fazer. Não pertence a ninguém.
– Se entregar Edmund à Igreja, provavelmente nunca será feita justiça. Os tribunais eclesiásticos tomam conta dos seus, e nunca executam os seus clérigos. Ele alegará autodefesa para com o irmão e não há provas com relação a Robert. Engendrará uma história na qual eles ficarão satisfeitos por acreditar, em vez de condenar um hospitalário.
– Mais fácil é, então, dar-lhe algum ouro e expulsá-lo daqui. Ele sairá da Escócia se vós o exigirdes.
– Foi a vós que ele prejudicou, Reyna. O vosso marido e amigo que ele matou. A vossa vida que ele colocou em perigo. Este ouro far-vos-á sentir compensada?
Faria? O metal amarelo reluzia, oferecendo-se para aplacar toda a dor com luxo inimaginável. Urdia nela, insidioso, a sua sedutora magia, e desculpas e racionalizações pareciam literalmente vogar na sua direção com o seu brilho. Se tinha este efeito nela, o que faria a Ian, que durante anos perseguira saques e pilhagens?
– Vós decidis, Ian. Eu não posso. Vós descobriste-lo.
Ele passou-lhe o dedo pela face e ergueu-lhe o queixo. –
Asseguraria o futuro dos nossos filhos.
– Sim, é verdade. Tendes razão.
– Tornar este castelo humilde forte e seguro, e comprar uma casa em York ou até Londres.
– Robert teria querido que ficássemos em segurança.
Ele fitou o ouro que segurava. – Então porque sinto que seria um roubo pior do que qualquer resgate que pedi a alguma cidade para pagar? Ficar com ele, especialmente se implicar dar algum ao seu assassino: não há justiça nenhuma para Robert e não era o que ele planeou para este tesouro.
Ela sentiu a batalha que ia dentro dele. Ao seu amor, não importava o caminho que ele escolhesse, mas perguntou-se se lhe importaria a ele de formas que ela só poderia adivinhar. – Então, o que fazemos, Ian?
Passou o polegar por uma pedra azul. – Safiras, acho eu. –
Suspirou, abanou a cabeça, e sorriu, pesaroso. – Daqui a dez anos, se passardes dificuldades, vou amaldiçoar-me a mim próprio.
Pequenas asas de alegria bateram-lhe no peito. – Aqui haverá que me baste. Haverá que vos baste a vós?
Ele virou-se para ela e olhou-a nos olhos. O ouro que tinha na mão deixara de existir. – Amo-vos de todo o coração, Reyna.
Haverá sempre que me baste se vós fordes minha.
Voltou a colocar o cálice e os candelabros no saco. –
Levaremos isto para o castelo. Mais tarde, depois de mandar alguns homens buscar Edmund, voltarei para desenterrar o resto.
Enviaremos Edmund e o ouro e os livros, para Glasgow. Diremos ao bispo que os livros são para a escola de alguma abadia, mas que o ouro deve ser usado para ajudar os pobres e os deslocados pela guerra. Se faço este sacrifício, quero expiar alguns dos meus pecados passados.
Subiram a colina até aos cavalos. – Sentirei mais falta dos livros do que do ouro – admitiu Reyna.
– Enviaremos apenas os que têm as iniciais de Jacques Molay.
Assim não são todos.
Ela fez má cara. – É a filosofia toda.

– Sabei-la de cor. Podeis passar os invernos a explicar-ma toda, e eu argumentarei contra a sua lógica. O debate deve manter-vos a memória fresca.
– O meu livro de horas terá de ir. Também o sei de cor, mas irei sentir-lhe a falta.
– Esse fica, acho eu.
– Tem as iniciais, tenho a certeza.
– Eu verifiquei antes de vir para aqui. Não vi iniciais nenhumas.
– Na primeira página…
– Penso que não. – Ergueu-a para a sela.
– Ian – disse ela, olhando para ele desconfiada.
Ele olhou para ela com um sorriso.
Santo Deus, que sorriso.
– Existe algo como ser-se demasiado bom, Reyna.

CAPÍTULO 27


– Terei saudades disto – disse Reyna preguiçosamente. Alongou o corpo contra o de Ian, e as flores que ele lhe entrelaçara no cabelo caíram-lhe pelo rosto e o peito. O sol de fim de verão cintilava-lhe na pele com calor. Ela deixou-se imergir na sensação, sabendo que podiam passar-se meses até voltarem a estar assim deitados perto do rio. Em alguns dias já se sentia um friozinho de inverno, e na água que as noites arrefeceram Ian e ela só se atreveram a um banho breve.
– O inverno tem os seus próprios prazeres – avançou Ian. –
Peles à lareira. Vinho quente. Noites muito longas.
– E poderei vestir os meus vestidos novos. Foi gentil da parte de David trazer o tecido de Carlisle.
– São adoráveis. Embora neste instante não estivesse a imaginar-vos à lareira dentro de um deles.
Ela deu uma risadinha e içou-se para cima do peito dele. –
Ainda bem que vos livrastes daqueles livros sobre filosofia, Ian.
Lembro-me de haver secções que alertavam para o prazer carnal.
Nunca prestei muita atenção a essas partes, visto não ter tido experiência nessas coisas, mas agora… e aqueles penitenciais!
Sabíeis que um deles proíbe a cópula às segundas e quintas, além dos domingos, para não mencionar o Advento e a Quaresma e dúzias de feriados sagrados?
– Sou afortunado por nunca vos terdes deixado levar por uma lógica tão desajustada.
– Bem, nunca fui muito lógica no que vos diz respeito. Tendes certo talento para fazer da filosofia a última coisa na cabeça de uma mulher.
Ele puxou-a para si, deitando-a a par dele, os dedos dos pés dela nas suas canelas e os seios apertados contra o calor firme do seu peito. Com beijos e carícias, atraiu-a de volta para o sonho sensual do qual recentemente tinham saído.
Abruptamente, as suas mãos pararam e a sua expressão tornou-se alerta e concentrada. – Um cavalo. Vem aí alguém. – Afastou-a e ajoelhou-se. – Cobri-vos, Reyna. Temos uma visita.
Ela acabava de enfiar a camisa quando o cavalo se acercou.
Esticou-a para baixo e sentiu-se corar ao ver o rosto sorridente do conde de Senlis.
– Incomodo – disse David enquanto Ian enfiava as velhas calças à camponês. – Peço desculpa, Reyna. No castelo disseram que encontraria Ian aqui, e estou só de passagem.
– Sou eu quem devia pedir-vos desculpa, mas é bom ver-vos. E
é um sítio estranho para se estar de passagem, David, visto que estamos a caminho de sítio nenhum – disse Ian.
David desmontou e Ian lançou um olhar muito claro para o vestido de Reyna. Ela curvou-se e agarrou-o.
David fez um gesto descontraído. – Não vos incomodeis, senhora. Ficarei apenas um segundo, e depois podem voltar os dois ao vosso entretenimento. – Sentou-se na erva ao lado de Ian. –
Estou a caminho de Harclow e depois Carlisle. Christiana e eu partiremos em breve de barco para Londres, e de lá para França.

Quando regressava de Glasgow, fiz um desvio para ver Duncan.
Venho agora de lá. Foi uma visita agradável. Informei-o do estado das coisas entre Morvan e os Armstrong, e disse algumas palavras sobre Aymer ter raptado as senhoras. Duncan não sabia de nada e eu achei que as vigas do salão iam cair com tanta fúria que mostrou ao filho. – Sorriu. – Não penso que tenhais problemas daqueles lados durante alguns anos, enquanto Duncan viver.
– Fostes até lá de Glasgow? Está feito, então? – inquiriu Reyna.
– Muito feito. O bispo recebeu os livros e o ouro, tendo aceitado de bom grado as vossas indicações quanto ao seu uso.
Parece ser um homem bom e penso que nenhum daquele ouro acabará a pagar comodidades privadas, o que é sempre um perigo quando se trata de bispos.
Ela sabia que se a intuição dele não tivesse sido aquela, ele poderia não ter sequer entregado o tesouro àquele bispo em particular. Nem ela nem Ian se teriam oposto. Ao confiar-lhe aquele dever, tinham aceitado o seu parecer.
– E Edmund? – perguntou Ian.
– Ah! Bom, aí houve alguma dificuldade. Edmund está morto. –
Olhou diretamente para Ian, com uma expressão inescrutável. –
Aconteceu quando seguíamos para norte. Por causa do ouro, tomámos percursos menos utilizados, caminhos altos, no geral.
Num troço particularmente perigoso, o cavalo dele perdeu o pé.
Foi uma valente queda. – Fez uma pausa. – Uma tragédia. Dadas as circunstâncias, contudo, não me pareceu sequer importante mencionar nenhum dos seus crimes ao bispo, por isso a história toda de Robert e dos Templários e da origem do ouro nunca foi explicada. Penso que o bispo ficará grato por isso. Teria sido difícil derrotar os Hospitalários na reivindicação daqueles bens se Edmund tivesse decidido contar tudo e negociar a sua vida.
Reyna olhou para Ian, que estudava cuidadosamente o convidado deles.
– Devemos agradecer-vos a vossa ajuda nisto, David – disse Ian. – Atrasou o vosso regresso a Londres em várias semanas e fez-vos percorrer todo o Sul da Escócia.
– Os mercadores estão acostumados a viajar. – Voltou-se para Reyna. – Christiana encarregou-me de vos lembrar que nós regressamos a Londres na primavera. Espera ver-vos lá. E Lady Anna insistiu que eu acrescentasse que, a não ser que algum parto estivesse iminente, não devíeis deixar Ian impedir-vos de ir se estivésseis de esperanças.
Ian resmungou. – Aquela mulher. Juro que é propósito dela subjugar todos os homens.
– Não. Apenas sabe a força e o valor que tem, tal como a vossa ninfa sabe do dela. Duvido que Reyna precise de alguma instrução de Anna.
Reyna corou ao ouvir este cumprimento em particular. David levantou-se e sacudiu a roupa. – Devo ir. Morvan e Anna ficarão em Harclow pelo menos mais um mês antes de rumarem à Bretanha. Estou certo de que vos visitará antes de ir embora.
Deixará um dos cavaleiros como senescal, mas contará convosco para manter tudo debaixo de olho.
Eles acompanharam-no até ao cavalo e ele abriu uma das bolsas da sela. – Isto foi arrumado num cavalo diferente, e quando estive em Glasgow esqueci-me dele. Tereis de o guardar até mais alguém ir para norte. – Puxou a espessa Summa de Aquino e colocou-a nos braços de Reyna.
Perplexa, Reyna ficou a olhar para o enorme tomo aninhado no seu seio. – Devíamos mesmo…
– É uma obra que decerto a escola da abadia já tem, senhora.
Não lhe será sentida a falta. – Alçou-se para a sela e curvou-se para apertar a mão de Ian. – Até à primavera, então.
Ficaram a vê-lo trotar até aos homens e estandartes que aguardavam ao longe. – Interrogo-me se terá realmente sido acidente. Aquilo de Edmund, quero dizer – comentou Reyna.
O olhar de Ian não se desviara do grupo que se dirigia agora para o paul. – Estou certo de que o foi.
– Obra do acaso, então.
– Alguma justiça, pelo menos. – Olhou para o livro. – Pode demorar algum tempo até viajar até Glasgow. Anos.
– Algo mais que fazer nas noites longas de inverno.
– Sim, podemos discutir filosofia parte da noite e fazer amor no restante. Eu poderia até nem ter desistido se me esperasse tal recompensa na minha juventude. Deverei acabar de o reler, porém, se quero fazer-vos frente.
Conduziu-a de novo ao leito de ervas. Ela sentou-se de pernas cruzadas e abriu o livro no colo.
– Metade do tempo para a mente, e metade para as paixões.
Parece uma divisão justa, Ian.
– Eu disse parte, não metade. Não tenho intenção de ser justo.
Especialmente agora, já que me parece ser altura de reequilibrar a balança que vós fizestes pender para o vosso lado em Harclow.
Ele estava de pé ao lado dela. Ela ergueu os olhos. Por detrás daquelas pestanas copiosas, o senhor das Mil Noites olhava para ela. A expressão dele fê-la fervilhar de expectativa. Não, ele não ia ser justo de todo.
Ele tirou-lhe o livro dos braços e pousou-o no chão. Segurando-lhe a mão, fê-la pôr-se em pé. Afastou-se para conseguir vê-la por inteiro.
– Despi a combinação, Reyna.

CAPÍTULO 18


– É essa a mensagem tal como vos foi dada? – Palavra por palavra. Sir Morvan disse que devo aguardar e levar a vossa resposta.
Ian repetiu a mensagem para si próprio. Não uma ordem, mas um pedido. Havia sido uma forma de Morvan reconhecer que Ian estava agora na posse do castelo de Black Lyne através de Reyna, e ainda não jurara fidelidade a nenhum homem.
– Dizei-lhe que irei amanhã. Agora ide comer alguma coisa, e dizei a Gregory que trate de vos providenciar um cavalo descansado.
O homem saiu, e Ian foi até às janelas do quarto. Uma brisa fresca corria por elas na noite. Desejou que Reyna ali estivesse para lhe poder falar imediatamente daquilo.
Ele sabia que a chamada podia dar-se. Até ficara ressentido por não ter acontecido logo a seguir à conquista de Black Lyne. Fora como se recusar a sua ajuda em Harclow tivesse sido uma reflexão silenciosa de Morvan sobre a opinião do salteador que lhe salvara a vida.
Agora, porém, a situação em Harclow havia-se tornado crítica, e todas as espadas eram necessárias. Morvan estava a organizar ataques agressivos há algum tempo, e a quinzena seguinte provavelmente decidiria as coisas. Maccus Armstrong não mostrava inclinação alguma para se render, por isso a fortaleza teria de ser tomada pela força.
Desejou que Reyna ali estivesse. Amanhã ver-se-iam separados indefinidamente, porventura para sempre. Ele não tinha nenhuma ilusão de invulnerabilidade. Escalar muralhas e lutar em torres de assalto era muito diferente do confronto em campo aberto, e homens melhores do que ele haviam caído durante a carnificina que se seguia. O estranho desassossego que experimentara quando saíra a cavalo para se defrontar com Thomas Armstrong atormentava-o novamente, despoletando nele uma necessidade sentida de ficar perto do calor de Reyna nas horas que antecediam a separação.
Ele desejou que ela lá estivesse, mas ela não estava, e ele sabia onde ela se encontrava. Sem rodeios, Reyna convidara Edmund a visitar a sepultura de Robert com ela quando a refeição da noite se aproximava do fim. Ian observara-os saírem do salão juntos, mal conseguindo resistir ao impulso de o proibir. Eles tinham saído antes da chegada do mensageiro de Harclow.
Afastando-se abruptamente da janela, desceu ao salão e saiu para o pátio. Subiu os degraus que conduziam ao adarve e prosseguiu até à curva sul de onde se via o pequeno cemitério no sopé da colina.
O que importava se ela passasse tempo com este homem que, de todos os homens, não deveria representar ameaça alguma?
Pensava seriamente que ocorria uma sedução, que o pio cavaleiro tentaria tomá-la naquele chão consagrado? Acreditava ele que Reyna o permitiria? A sua mente racional dizia que não, o que não impediu que imagens mentais da união deles lhe invadissem a mente, alimentando o ressentimento e o ciúme que, durante o dia, vinham ganhando um travo amargo e irado.
Olhou atentamente para o cemitério, mal distinguindo as sombras das cruzes acima da pequena cerca de madeira, pensando ter visto dois vultos sentados ao luar ao lado da campa central.
Edmund, o hospitalário. Nobre e estudado e casto. Sem marcas no corpo ou na alma, fomes inultrapassáveis, pecados ímpios a esconder. Para todos os efeitos, ele era uma versão mais jovem de Robert de Kelso. Não admirava que Reyna se sentisse cativada por ele desde o início.
Também era, e de muitas formas, o oposto perfeito de Ian de Guilford. Ela não deixaria de reparar no contraste absoluto.
Primeiro o rei Alfredo, e agora Santo Edmund. Uma coisa fora competir com a memória de um homem morto. Este aqui vivia e respirava.
Ela não se deita com ele, mas dá-lhe partes de si própria que aparta de mim.
Ficou ali de pé, à espera de movimento no cemitério, resistindo ao impulso de ir lá buscá-la. O tempo passava, e cada momento lhe via crescer as reações irracionais e recuar os pensamentos sensatos. Amanhã ele deixá-la-ia sabe lá Deus durante quanto tempo, e ela desbaratava o tempo que lhes restava lá em baixo com aquele homem. Na ira dele, que ela o fizesse inconscientemente deixara de contar grande coisa.
Quando lhe parecera ter passado uma eternidade e ele continuava sem os ver surgir ao portão do cemitério, deu meia-volta e regressou aos seus aposentos.

Reyna terminou as suas orações e voltou a sentar-se nos calcanhares, olhando para as mãos cruzadas e os olhos fechados do cavaleiro que estava ajoelhado do outro lado da sepultura. A noite ventosa conferia-lhe um aspeto algo misterioso.
– É bom vir aqui – disse ela, arrastando os dedos pelo longo monte de terra. Tinha o coração cheio da memória de Robert, e sentiu o conforto do seu amor e carinho chegarem-lhe através da eternidade. – É bom estar aqui com alguém que o conhecia como eu conhecia.
Edmund mudou de posição e sentou-se no chão com a sepultura ainda entre eles, uma ligação mais do que uma separação. –
Trouxe-vos um manuscrito. Uma cópia de um dos Diálogos de Platão, no grego original. Está diferente das traduções e não penso que o tenhais.
– Trouxestes? Ó, Edmund, obrigada. Não, não temos nenhum Platão. Deveis deixar-me pagar-vos por ele.
– Não me custou nada. O precetor tinha-o na sua biblioteca e um dos irmãos copiou-o para mim. Além disso, não penso que o vosso novo marido gostasse de gastar dinheiro dessa forma.
Reyna sabia que Edmund desviava educadamente a conversa para o casamento dela, mas ela ainda não queria discuti-lo. – Será uma alegria ter algo novo para ler.
Ele aceitou a achega e falaram sobre os livros que ele lera e os eruditos com quem se encontrara desde a sua última visita. Ela invejava-lhe a variedade de experiências que o facto de ser homem e viver perto da cidade lhe possibilitava. Ian desfrutara de uma vida semelhante, e ela perguntava-se como alguma vez poderia encontrar contentamento emparedada no isolamento de Black Lyne.

– Fico contente por saber que ainda continuais com os vossos estudos – disse Edmund. – Ao jantar vi que sim, pois as vossas ideias mostraram-se provocadoras. Não notei, quando estive de visita no ano passado, o quanto a vossa mente havia evoluído.
– Era uma rapariga quando nos conhecemos. Cinco anos é muito tempo numa vida jovem. Já não sou uma rapariga.
– Não, não sois. – A cabeça dele descaiu. – Falai-me da morte dele, Reyna. Ouvi dizer que…
– Sei bem o que ouvistes dizer. Quão longe viajou essa história?
Não até Edimburgo, espero.
– Não até Edimburgo.
Ela descreveu a doença abrupta de Robert e a sua morte célere, entrecortando-se-lhe a voz quando descreveu o sofrimento dele.
– Poderia ter-se tratado de uma morte natural, Reyna? O corpo humano é complexo, e ele era idoso.
– Poderia ter sido, mas não pareceu. Seja como for, agora ninguém acreditará que o foi.
– Não há indicação nenhuma de quem o fez? Nenhuma prova além das que apontam para vós?
– Ian pergunta-me sempre sobre isso. Ele quer descobrir, para deixar definitivamente de haver suspeitas sobre mim. Eu também tenho tentado descobrir a verdade.
– E o que descobristes?
– Nada. Revistei os quartos daqueles que na altura viviam na torre, sem saber sequer o que procurava. Contas feitas, tudo foi em vão.
– E o vosso marido? Não descobriu nada?
– Não me parece. Ele prometeu lutar por mim em julgamento por combate, se necessário. Confio que não se chegará a tanto.

– Acreditais que ele o fará?
Ela ouviu o ceticismo na voz dele. – Ele prometeu-me que sim.
Um suspiro grave atravessou a sepultura. – Reyna, um homem daqueles vive apenas para si próprio e o seu próprio ganho. Se colocardes nele a vossa confiança, temo que vos dececioneis terrivelmente.
– Não o conheceis. Não é o que dizeis.
– Acreditais verdadeiramente que ele vos protegerá? Que ele arriscará a própria vida para salvar uma mulher que pode ser facilmente substituída e cujo valor já lhe está assegurado?
– Não tive valor algum para ele. Morvan dá-lhe estas terras de qualquer forma.
– Morvan pode falhar em Harclow. Tudo pode acontecer.
Ela não necessitava que Edmund lhe recordasse as conveniências que o casamento tivera para Ian. Uma semana atrás ela encarara os factos de frente e aceitara-os como realidades com as quais ela simplesmente teria de viver.
– Tendes a certeza de que ele procura verdadeiramente provar a vossa inocência, Reyna? – A voz dele saiu lenta e silenciosa.
– O que quereis dizer com isso?
– Porque não vos tirou ele daqui? Porque não atender à vossa segurança até tudo estar assente? Então, se ele não saísse vitorioso do combate, vós continuaríeis protegida.
– Se houver um julgamento, devo cá estar para falar por mim própria.
– Muito claro, e presumindo que Morvan virá a deter estas terras talvez tudo corra bem, mas e se isso não se der? Se Harclow não for tomada, Morvan e o seu exército deixarão esta região, e o castelo de Black Lyne não conseguirá, por si só, deter os Armstrong durante muito tempo. Talvez seja essa a razão pela qual Sir Ian precisa de vós aqui. A lealdade dele é para consigo próprio, penso eu, e ele serviria o maior licitador, até o velho Maccus, se isso lhe garantisse o que ele deseja. Abrir mão de uma mulher que já serviu o seu propósito seria um preço pequeno para reter aquilo que lhe proporcionastes.
A sugestão dele continha uma possibilidade implacavelmente prática que a mente dela não podia ignorar, mas o seu espírito rebelava-se contra as acusações. – Não lhe fazeis justiça, meu amigo. Nunca me teria casado com ele se o considerasse capaz do que descreveis.
– Penso que tivestes pouca escolha.
– Estais errado nisso também. Tive escolha, sem dúvida alguma.
Várias, em verdade. Podia ter regressado para o meu pai. Podia ter concordado em ir com Reginald.
– A escolha de Reginald deu-se antes da de Ian, e tomastes cada decisão independentemente. Dizeis que se vos tivessem sido apresentadas em conjunto, ir para Edimburgo como mulher de Reginald ou ficar aqui como a de Ian, vós teríeis escolhido a última, com todos os perigos que encerra?
Era uma pergunta devastadora, de formas que ele nem conseguiria começar a imaginar. De facto, ela havia feito as suas escolhas à medida que se apresentavam, uma de cada vez. Ela dissera a si própria que seria ou Ian ou Duncan, e a escolha fora inevitável a partir do momento em que Ian concordou manter o segredo de Robert.
Agora Edmund forçava-a a encarar uma nova realidade. A sua exposição de uma escolha que nunca existira revelava as emoções dela com uma clareza surpreendente. A segurança ao lado de Reginald teria sido o rumo lógico, sensato.
Mas nunca teria sido aquele que ela tomou.
Edmund interpretou mal o seu silêncio surpreso. – Ian manipulou a vossa situação para vos coagir. Não é necessário que um casamento feito sob tal constrangimento perdure.
– Ninguém forçou a minha mão a assinar o acordo, Edmund.
Não me deram drogas nem me bateram para que o fizesse.
– Não é necessário bater numa mulher para a vergar. O perigo em que estáveis foi coercivo por si próprio. Este casamento pode ser desconsiderado. – Ele pegou na mão dela. Uma mão fria, seca, reparou, e nem de perto tão áspera como a de Ian. Mais como haviam sido as mãos de Robert. A mão de um homem bom, mas com menos vida e sangue a correr dentro dela do que a palma e dedos de Ian de Guilford. – Sou conhecido do bispo de Edimburgo, Reyna. Quando ele souber como isto aconteceu, sem dúvida anulará os votos.
– E depois, Edmund? Ofereceis-me agora a escolha que eu nunca tive entre Ian e Reginald?
– O meu irmão está fora disto. Ofereço-vos liberdade e segurança, e a minha proteção, que existiu para vós desde o início.
Agora que as defesas do castelo afrouxaram, não será difícil tirar-vos daqui. Vireis comigo, Reyna, e nunca mais sentireis medo.
Ela ficou a olhar para o monte de terra. A sua última frase evocou memórias nítidas da primeira vez em que vira Robert, e das primeiras palavras que ele lhe dissera. Ele chegara à casa de Duncan para o casamento um dia mais cedo do que o esperado.
Ela não estava no pátio para o cumprimentar porque Aymer, irritado com uma suposta desobediência da parte dela, a tinha arrastado para a cripta e a tinha deixado trancada lá dentro para guerrear o terror e a escuridão.
Exigindo vê-la, Robert fora levado até lá. Por um instante, ali a olhar para a sepultura, ela era de novo aquela criança de doze anos, encolhida contra a parede da cripta, lutando pela sua sanidade. E aí, subitamente, soaram passos na escadas de pedra, o fulgor de um archote rompeu a eternidade negra, e uma mão veio até ela por entre o clarão. Vireis comigo, criança, e nunca mais vos sentireis assim assustada.
A memória desvaneceu e ela estava de olhos fitos na mão que Edmund agarrava. De súbito, sentiu a presença de Robert, de uma forma assombrosamente viva, como se ele estivesse ao seu lado, ainda vivo. Ela fechou os olhos e deleitou-se com a consciência pungente da sua essência, e sentiu o seu espírito tentando falar com o dela.
Talvez no Céu as almas conhecessem o futuro. Estaria a oferta de Edmund, pronunciada em palavras tão semelhantes à promessa de Robert, destinada a ser um sinal? Estaria o espírito de Robert a incitá-la a aceitar o amigo deles e a segurança que ele conferia?
Saberia ele que, se ela não o fizesse, seria como Edmund predissera, e Ian a abandonaria?
A imagem dos seus pesadelos, a sua face lívida e o seu pescoço esticado, assaltou-a. Ian era um salteador e um oportunista, e ela podia definitivamente ser substituída sem dificuldade pelo belo e excitante homem conhecido como o Senhor das Mil Noites.
– Eu tratarei de tudo e não interpreto mal o meu dever como o meu irmão. Estareis muito longe daqui antes do vosso marido se aperceber – instigou Edmund num sussurro.
Ela sabia que tinha de tomar a decisão agora, pois eles podiam não voltar a ter oportunidade para falar a sós. Ela vacilava, o seu coração cheio de emoções confusas. O pânico apoderou-se dela, e a sua mente turvou-se com dúvidas e medo.
Depois a brisa fez-se mais forte e acariciou-lhe o cabelo, à semelhança do afago que a mão de Robert fazia às suas tranças quando ele partia em viagem. Os seu olhos lacrimejaram quando a memória e a presença dele a invadiram por completo, levando-lhe reconforto, mitigando a confusão. Ela suspirou com o alívio que ele lhe proporcionava, e permaneceu naquela segurança invisível que lhe reordenava as ideias.
Quando acalmou, sentiu a presença dele recuar, assumindo o controlo de toda a confusão e transportando-a com ele na sua partida, afastando as nuvens que lhe obscureciam o coração para ela ver com mais clareza o que estava no seu interior.
Com uma relutância dolorosa, ela deixou o espírito dele partir lentamente, volvendo depois a sua mente para aquilo que havia descoberto. Outra emoção luzia no seu coração, amedrontada e hesitante, mas emanando um calor forte, magnético. Ela reconheceu a sua existência, e esta aceitação foi como combustível que fez dela fogo.
Mas não é como o amor que eu tinha por vós, Robert, debateu silenciosamente. Poderá trazer muita dor e pouco contentamento.
De novo a brisa lhe afagou o cabelo naquele gesto familiar e reconfortante. Em seguida, as memórias e a essência desvanecentes foram tragadas pela noite.
Reyna retirou cuidadosamente a sua mão das de Edmund. Toda a lógica do mundo, todas as análises do perigo que corria e da sua potencial deceção, perdiam a força face ao que ela acabava de constatar. Não duvidaria de Ian, e se ele, por fim, a abandonasse, que assim fosse.
– Ele é meu marido, Edmund. Aceitei-o como tal no meu coração e não há decreto de bispo nenhum que possa reverter isso.
Ela viu o corpo dele fazer-se tenso e direito e sentiu os seus olhos a espiá-la na escuridão. – Reginald disse-me que assim era, mas eu não consegui acreditar nele.
– Eu não sei o que Reginald vos disse, mas…
– Ele disse que este cavaleiro havia jogado com a vossa dor e a vossa solidão. Que vos havia seduzido. Uma coerção muito mais insidiosa, mas, se a mulher estiver vulnerável, muito mais persuasiva do que a violência.
Talvez ele estivesse certo, mas isso não vinha mudar nada. A sua decisão derivava das suas próprias emoções e motivos, não dos de Ian. – Ele não me seduziu. Não me deitei com ele antes do nosso casamento. No entanto, existiu uma afeição peculiar entre nós, e eu não fingirei que assim não foi.
– Reyna, o que interpretais como afeição não passa de volúpia.
Essas fomes da carne passam, especialmente nos homens, especialmente nos homens como ele.
– Não conheceis o meu marido e contudo falais sobre o seu caráter e intenções com muita certeza.
– Informei-me sobre ele hoje de manhã. Os criados conhecem-me e não se coibiram de falar.
Sim, não lhe devem ter dado descanso, Reyna não tinha a menor dúvida. – Pode bem tratar-se apenas de volúpia entre nós, mas ele agora é meu marido, aceite por mim de livre vontade. Eu não mentiria a um bispo para desfazer isto. Considerais-me tão desmerecedora de afeição que seja impossível a um homem senti-la por mim, Edmund?

– Sabeis que isso é um disparate. Robert tinha por vós uma afeição sem limites e um amor profundo. Impressionava quem o testemunhava.
Robert amava-me como a uma filha, quis Reyna dizer.
– Partirei de manhã, Reyna. Se mudardes de ideias, tendes de mo fazer chegar esta noite. Há aqui alguém em quem possais confiar?
– Alice, mas eu não mudarei de ideias. Tendes de partir tão cedo?
– Devo atender ao trabalho do precetor e, apesar da sua hospitalidade, Ian não gosta da minha presença.
Enquanto se encaminhavam para a torre, Reyna sentiu uma nova distância interpor-se entre ela e Edmund. Ele era tão parecido com Robert que lhe despedaçava o coração saber que ele reavaliava a opinião que tinha dela, e não para melhor.
Detiveram-se do lado de fora do portão. – Perdi-vos como amigo agora, como perdi Reginald? – perguntou calmamente.
Ele pegou nas mãos dela e beijou-as. – Não, senhora minha, estarei sempre aqui para vós. Ainda assim, parece-me provável que passe bastante tempo até voltarmos a ver-nos. Ian não aprecia a nossa amizade.
– Ele não me negará os meus amigos.
À luz do archote, Edmund baixou os olhos para ela. – Se convier aos seus intentos, negar-vos-á tudo. Receio que, se for forçado a uma escolha, chegue a negar-vos a vossa própria vida.
Um silêncio retumbante envolvia a torre. Era muito tarde, todos dormiam, constatou Reyna. Ela e Edmund haviam falado durante mais tempo do que ela pensara.
Subiu até ao quinto piso e deteve-se no corredor. Um archote iluminava o espaço, e ela adivinhou que Ian havia ordenado que lá o deixassem para ela. Provavelmente ele já dormiria, mas ela estava desejosa de se deitar ao lado dele. Precisava da segurança da força dele a aquecê-la agora mesmo.
Aproximando-se da porta do quarto, esta abriu-se facilmente e um vulto de saia saiu. Uma cabeça com um lenço volveu-se com um sorriso radioso que se desvaneceu perante Reyna. Eva corou profundamente, esgueirou-se e desceu apressada as escadas.
Reyna ficou de olhos cravados na porta do quarto principal. Um entorpecimento varreu-lhe os braços e pernas até aos dedos, como se alguém lhe tivesse despejado um balde de água gelada pela cabeça abaixo.
O canalha.
Fervilhando de mágoa e fúria, foi imediatamente para o seu quarto. À pálida luz do luar que entrava pelas janelas, procurou um pau na lareira. Esbarrando na mesa e na cama, volveu a sair e foi acendê-lo ao archote do corredor, para ter luz no quarto.
Preparou-se para se deitar com a cabeça cheia de insultos cumulados sobre a alma negra de Ian de Guilford. Quando tirava o guarda-cós azul, o seu olhar recaiu sobre os pergaminhos amontoados na escrivaninha. A carta para Lady Hildegard não avançara muito. Demasiados dias se sentara empunhando a pena, tentando formar as suas frases em latim, apenas para constatar que as horas haviam decorrido em devaneios com o homem que lhe consumia os pensamentos.
Um erro, era óbvio. O filho de uma égua. Desejou subitamente ser tão grande e forte como Lady Anna. Desejou que, usando os seus punhos num homem, ele o sentisse. Ela poderia não ser capaz de tocar o coração deste salteador, mas se ele a insultava desta maneira, seria muito gratificante pelo menos maltratar-lhe o corpo.
Com movimentos abruptos tirou as meias e a combinação e atirou para trás a roupa da cama. Deu socos na almofada e remexeu-se para encontrar algum conforto na cama fria e estreita.
Talvez devesse ir dizer a Edmund que mudara de ideias. Eles poderiam até conseguir partir esta noite. Sem dúvida que Ian tinha boas razões para dormir profundamente a noite inteira.
O amor que tão recentemente reconhecera infiltrava-se na sua indignação, dizendo-lhe que decerto não faria tal coisa. Ela confrontou a emoção como se esta fosse um corpo estranho que lhe invadisse o espírito. Não me controlareis, avisou-a perigosamente. Não vos deixarei fazê-lo. Sois uma forma de tortura e continuarei a negar alimento ao vosso fogo porque se vos alimentar sereis o fogo do próprio Inferno.
Perguntou-se se Anna ainda estaria acordada. Anna também não gostava de Ian e elas podiam ir buscar vinho e, embriagadas, desfazê-lo com insultos…
– Que raio fazeis aqui? – A voz grave e ríspida vinha da porta.
Reyna virou a cabeça, deparando com Ian. Estava tão absorta nos seus pensamentos furiosos que não ouvira a porta abrir-se.
– A dormir. Foi rude da vossa parte acordardes-me.
– Não estáveis a dormi. Ouvi-vos entrar.
Ele avançou pelo quarto adentro e lançou-lhe um olhar furioso.
Ela sentou-se contra a parede e devolveu-lhe o olhar, absorvendo a firmeza do seu corpo e a luz profunda dos seus olhos. Ele parecia tão irritado quanto ela se sentia. Pensou que era preciso muito descaramento da parte dele.

– Estivestes acordada metade da noite com aquele homem –
disse ele secamente.
– É um amigo que raramente vejo, e tínhamos muito de que falar.
– Aposto que sim. Debatestes filosofia todas estas horas, Reyna?
A insinuação dele fez o seu sangue pulsar com força. Ele acabava de se deitar com a peituda Eva e atrevia-se a atirar-lhe com acusações, a ela. A tensão de controlar a fúria que sentia era-lhe custosa e o esforço fê-la perder o controlo. Decidindo que falar não lhe serviria de nada, limitou-se a olhar para ele, recebendo a sua pergunta com o mesmo silêncio frio que ele havia consagrado a uma das dela.
Com um movimento abrupto, ele virou-se para a escrivaninha, agarrou-a, ergueu os braços e atirou-a violentamente contra a parede. Uma tábua partiu com a força do impacto. Pergaminhos e penas esvoaçaram em todas as direções e flutuaram até ao chão como destroços de uma tempestade de outono.
O frágil controlo de Reyna desfez-se com a mesa. Enrolando o lençol no corpo, ergueu-se como um raio. – Desprezível filho do Cornudo. Com que direito é que vós…
– Sois minha mulher. Se vos pergunto o que estivestes a fazer durante metade da noite com um homem, vós respondeis.
– Passámos a maior parte da noite a amaldiçoar-vos.
– E o resto do tempo?
Emoções complexas e ameaçadoras extravasavam dele, abalando o ar do quarto como relâmpagos, mas ela não queria saber. – É disso que se trata? É essa a razão desta cena de raiva, agora? Ainda vos agarrais à ideia de que eu e Edmund partilhamos esse tipo de amor? Seu louco. Ele é um cavaleiro celibatário. Não julgueis todos os homens pelos vossos vis padrões, filho de uma égua inglês!
– Os meus padrões podem ser vis, mas deteto um homem que trama alguma coisa quando o vejo. O que queria Santo Edmund de vós, mulher?
Uma paz perigosa, fria, varreu-lhe o calor da fúria. Ela não se tinha realmente acalmado, apenas encontrara o centro da sua tempestade. Estavam frente a frente à mera distância de um braço, dois corpos tensos travados no espaço por olhos resolutos.
– Ele queria levar-me embora – disse ela. – Ele não confia que vós me protejais se achardes que isso não vos beneficia. E eu, idiota, recusei, mas bastou subir estas escadas para me arrepender da decisão.
Ele cerrou os dentes. – E viestes para aqui para o vosso escritório de filósofa para reconsiderar? Para sujeitar essa decisão obediente à frieza da lógica e pesar as vossas opções?
– Vim para aqui porque a vossa rameira saía da vossa cama quando passei pela porta do vosso quarto.
Ele não atendeu à acusação dela mas, a bem ver, o que poderia dizer? Ventos de fúria recomeçaram a levantar-se dentro dela. –
Tencionáveis que vos encontrasse juntos, ou teríeis ficado satisfeito se eu soubesse amanhã pela coscuvilhice dos criados? Dizei-me, seu galo com cio, havei-la chamado porque eu não estava lá para satisfazer uma fome passageira, ou planeaste-lo como vingança ou castigo porque me atrevi a demorar-me com o meu amigo e não estive aqui para vós, como é costume?
Os olhos dele exaltaram-se, mas ela não recuou. A mágoa e a raiva eram demasiadas para que sentisse medo. Uma tensão horrível retesava-se entre eles. Ela quase desejou que ele lhe batesse, para ela própria poder desferir alguns golpes, nem que fosse para aliviar a pressão que a atormentava.
Ele deu meia-volta, de mãos nas ancas. – Se tivesse sido como dizeis, não teria ido além do que mereceis. Devíeis ter estado aqui, e não com ele.
– Raios vos partam. Edmund é um amigo que me ama como vós nunca amareis. Idiota, escolhi contra toda a lógica confiar mais em vós do que nele, e, como uma criança rancorosa, vós soltais-me os cães porque por uma noite não tivestes a atenção toda.
Ele virou-se para a encarar com uma expressão de surpresa, mas o seu rosto rapidamente recuperou a rigidez. – Não é nem infantil nem rancoroso um homem querer a sua mulher com ele antes de sair para a guerra, Reyna.
Um golpe físico não a teria chocado tanto. O impacto das palavras dele derrubou imediatamente a raiva de Reyna.
Ela sentiu a investida violenta das emoções que irrompiam dele.
À raiva e ao desejo, reconheceu-as, mas havia ali outras correntes também, que não lhe eram conhecidas. Rajadas de necessidades e anseios que não tinham nome pareciam alimentar o seu humor proceloso.
– Quando soubestes? – inquiriu ela.
– O mensageiro chegou logo após saírdes do salão. Partirei de manhã. – A sua voz tinha uma inflexão amarga.
– Porque não viestes dizer-me, ou mandastes alguém fazê-lo?
– Era claro que estáveis desejosa de falar com o vosso cavaleiro e conversar sobre a vossa má sorte. Eu senti que ele queria algo de vós, mas não achei que fosse atrevido ao ponto de violar a minha hospitalidade tentando roubar-me a mulher.
– Isso implica que… não foi… – Deixou morrer as explicações.

Ela não queria continuar a falar de Edmund. Preocupação e medo haviam-se substituído à raiva. Os avisos de Edmund, o sorriso de Eva, até mesmo esta discussão dolorosa, haviam-se tornado imediatamente insignificantes.
Dentro de algumas horas Ian estaria de saída. Partiria, e não para uma guerra insignificante na fronteira, mas para um cerco perigoso onde todos os dias morriam homens a escalar muralhas nas quais o inimigo aguardava com setas e fogo.
Ainda estavam, rígidos, um em frente ao outro, como estátuas de pedra que decorassem um edifício varado por uma ventania silenciosa.
– Quanto tempo estareis fora?
– Duas semanas. Um mês. Até acabar.
Duas semanas. Um mês. Para sempre. – Ides só?
– Levarei o grosso da companhia comigo. O vosso hospitalário terá de sair de manhã, porque o portão será fechado quando nós partirmos e ninguém entrará sem o meu consentimento. – Ele não olhava diretamente para ela, mas Reyna conseguia ver a luz férrea que brilhava nas profundezas dos seus olhos.
Ela desejava transpor o espaço entre eles, mas a postura e o rosto dele diziam que os poucos passos no chão de madeira podiam bem ser um quilómetro de penhascos. Ainda assim, ela deu um passo em frente e ergueu uma mão hesitante como que para lhe tocar. A mão ficou ali a pairar, sem completar o seu curso, uma ordem inconsequente, frágil, para o furacão se acalmar. – Então viveremos como num cerco até vós regressardes?
– Vós não. Morvan ordenou que a sua mulher e irmã fossem levadas para Carlisle. Vós ides com elas.
Ir para Carlisle parecia tão permanente, como se ele a enviasse para o outro lado do mundo. – Este é o meu lar, Ian. Não compreendo.
– Lá estareis em segurança.
– Ficarei em segurança aqui.
– Não se Morvan falhar e eu morrer.
Uma angústia avassaladora repleta de medo e arrependimento e amor crescera dentro dela, arrebatando-a agora de tal forma que a sua garganta se apertava e os seus olhos queimavam. Procurando manter a compostura, refugiou-se em praticidades. – Tendes razão.
Eu devia ter estado aqui. Contáveis que eu atendesse aos preparativos, e agora a vossa partida ver-se-á atrasada. Acordarei os criados dentro de poucas horas e…
– Quero lá saber dos preparativos. – Ele esticou um braço e agarrou-a, puxando-a para o outro lado do fosso, para a turbulência dele. O movimento violento assustou-a tanto que ela gritou. Dedos de ferro agarravam-lhe os braços, praticamente levantando-lhe os pés do chão, e ele olhava para ela com olhos intensos, sombrios. – Para uma viúva que foi casada doze anos, há muito que não sabeis sobre ser mulher de alguém.
O perigo nos olhos dele e o aperto brutal das suas mãos deviam tê-la assustado, mas não o fizeram. Havia muito que não compreendia daquele estado de espírito, mas reconheceu alguma coisa.
– Então cabe-vos a vós guiar-me – sussurrou ela.
Com um movimento brusco, ele puxou-a para um beijo urgente num abraço vigoroso. Dedos cruéis aprisionavam-lhe a cabeça, por isso ela não conseguiu evitar que a boca lhe magoasse os lábios, devorando os receios dela, exigindo os seus direitos. Braços de aço dobravam o seu corpo contra o dele com tanta força que as suas mãos, agarradas ao lençol, se converteram em pequenas pedras, entrando na carne e osso que contra elas pressionavam.
Não havia exigência de submissão consentida neste ataque selvagem. O seu corpo respondeu com uma espantosa onda de calor e o seu amor resplandeceu com a prova de que, o que quer que fosse que o impelisse, ele claramente precisava dela e queria-a.
Ele ergueu a cabeça e o sangue regressou à sua boca violentada, picando-lhe a pele tenra. Com olhos líquidos, ela viu a sua expressão inflexível. Ele apertou mais o seu corpo arqueado, com uma mão esticada aberta sobre as suas nádegas para o cume duro da sua excitação lhe pressionar o ventre. – Sim, é isto que a ideia de nos separarmos me faz – murmurou com rudeza, examinando o rosto dela como se procurasse memorizá-lo. – Se eu não for meigo, culpai-vos a vós própria por me deixardes demasiado tempo entre as mãos.
– Não penso culpar ninguém.
– Podeis pensar de forma diferente antes de esta noite acabar. –
Voltou a beijá-la, apenas um pouco menos violentamente. –
Certificar-me-ei de que não esqueçais depressa que sois minha. Se outro homem olhar para vós, serão os meus olhos que vereis no rosto dele, e à noite nos vossos sonhos não será nenhum espectro que vos toma, mas sim eu. Se o vosso santo cavaleiro se atrever a seguir-vos até Carlisle, sentireis estas mãos de diabo no vosso corpo enquanto ele vos tenta, e a respiração deste salteador na vossa orelha enquanto ele vos persuade.
Ela mal o ouvia. A tempestade absorvera-a e ela girava no seu centro com o corpo moldado ao dele, pendurada nele, sem peso, com a força dele como única ligação sólida ao mundo.
Ele ergueu-a nos seus braços, abrasando-lhe a boca e o pescoço com os seus beijos quentes enquanto o quarto dela, o corredor, o quarto principal passavam, turvos. Ele deixou-a cair na cama deles e arrancou o lençol que ela ainda cingia ao corpo.
Completamente vestido, colocou-se por cima dela, afastando-lhe as pernas, assentando-se nelas. Uma mão áspera subiu-lhe firme pela coxa num trajeto que findou na humidade que revestia aquele centro secreto.
O braço dele passou-lhe por detrás do ombro, e a sua mão entrelaçou-se no cabelo, segurando-lhe a cabeça para ela ficar de frente para ele. Ela viu a sua expressão de triunfo quando descobriu a sua excitação, mas não se importou. Ela ansiava penosamente pelo preenchimento dele, e gemeu de alívio quando ele investiu dentro dela com um movimento vigoroso.
Não foi nada meigo. Numa posse primitiva, o corpo dele embatia contra ela uma vez e outra, numa fúria da paixão que os envolvia. Ele dobrou-lhe as pernas para a poder penetrar mais profundamente, e a força das suas acometidas violentas faziam-lhe subir as ancas. Ele observava a reação dela a esta violenta reivindicação de direitos, e relâmpagos faiscaram naqueles poços negros quando a resposta dela se soltou e os seus frenesins mútuos colidiram em combate. Ela tornou-se impotente contra uma invasão espiritual à medida que o êxtase começou a cerrar e avolumar-se e a puxá-la para ele.
– Pois, Reyna – disse a sua voz grave enquanto o sabor da completude vibrava e corria por todo o seu corpo. – Robert ainda pode ter o vosso coração, e o vosso monge pode inspirar-vos a mente, mas nisto sois completamente minha. Não me negareis nada esta noite.
Ela sabia que ele não falava apenas de coisas físicas, mas não encontrou vontade de convocar resistência. O reconhecimento do amor que sentia sabotara as frágeis muralhas com que ela, a medo, protegia o seu coração. Agora estas abanavam e abriam fendas e caíam na investida violenta daquela intensidade.
Na paixão febril daquela unificação maior, a posse agressiva converteu-se numa partilha arrasadora. Ela fazia por o absorver com todo o seu ser enquanto o prazer turbulento ascendia ao seu ápice frenético. Vieram um para o outro numa libertação longa e feroz repleta de mordidas e gritos e mãos como garras, fundindo-se num arrebatamento violento.
Ficaram, exaustos, entrelaçados um no outro, corpos selados com suor e abraços. Ela apercebeu-se lentamente da respiração na orelha dela com que ele prometera marcar-lhe a memória. O som recordava-lhe a sua separação iminente. Fechou os olhos, atenta ao seu ritmo, e tentou suprimir a tristeza que queria invadir a perfeição daquele abraço.

CAPÍTULO 19


Reyna acariciou-lhe as costas, e ele sentiu o toque dela a aperceber-se do tecido da sua túnica. Ela moveu a mão para lá do lençol amarfanhado por baixo deles e tocou na colcha.
Ian ergueu-se nos antebraços para olhar para ela. Viu-a considerar que ele ainda estava vestido e que a cama não fora usada antes de ele a atirar para lá.
Sentiu uma nova irritação por ela não ter feito perguntas sobre Eva antes de o acusar. A maior parte da sua raiva ferida havia sido absorvida pela paixão, mas não toda. – Talvez a tenha tomado no chão ou contra a parede.
Ela desviou o olhar com uma expressão de desalento, fazendo-o sentir-se culpado por a ter magoado de propósito, especialmente agora, depois disto.
– Foi grosseiro da minha parte – sussurrou ele, roçando-lhe a orelha com o nariz. – Eu não a chamei. Ela veio sozinha, para concluir o pedido que começara no pátio na semana passada. Há um jovem arqueiro na minha companhia que se amigou dela, mas que não lhe tocava por minha causa.
– Ela pediu-vos permissão para dormir com outro homem?
– Algo assim. Duvido que Eva se preocupe com tais formalidades, mas o homem pensou que era prudente. Ele quer casar-se com ela. O pai dela não tem filhos e iriam ambos para a sua quinta.
– Ela quer ir-se embora?
– Eu disse-lhe que teria de vos perguntar se podíeis passar sem ela.
A fronte dela enrugou-se, pensativa. – Não sei se posso. Ela é uma excelente costureira. E se o meu marido decidir brutalizar uma mulher com alguma regularidade, pode ser útil tê-la por aqui.
Ele baixou os olhos para a prova da sua violência. Viam-se marcas de dedos onde ele lhe agarrara os ombros e um chupão luzia rubro no seu pescoço, onde amanhã seria visível para o mundo. Ele beijou-o suavemente, sabendo que, se pudesse torná-lo permanente, como uma marca gravada a ferro, o faria. – Pediria desculpa, mas não o lastimo.
– Nem eu.
Ele ficou quieto um instante, grato por ela não lamentar nem ficar ressentida com aquilo que ele forçara.
Saiu da cama e tirou a roupa, indo depois até à lareira onde um balde de água aquecia para a limpeza matinal. Molhando um pano, regressou e deitou-se ao lado dela, passando-o pelas marcas que havia feito.
Ele desceu o braço para lhe passar a compressa quente entre as coxas. Na sua mente, ouvia o eco das palavras de Morvan, ditas neste aposento: Bolas, Ian. Elizabeth não vos ensinou nada?
Sim, ensinara-lhe muito, mas enquanto esperava por Reyna, esta noite, aquelas lições e os anos que passara a aperfeiçoá-las haviam sido esquecidas. Voltara a ser um jovem imaturo, consumido por necessidades desesperantes e dores cruas, e todas elas se haviam centrado em Reyna. A ideia de que ela partilhava qualquer parte dela com outro homem enlouquecera-o. Ele entrara no quarto dela cheiro de emoções furiosas, desvairadas, e a própria raiva e paixão dela haviam-no feito perder o controlo.
Depois, vendo o que estava nele, ela simplesmente se abrira para o absorver.
Ele passou-lhe o pano pelo corpo, atento à pele por baixo da sua mão, gravando as memórias na mente. Coisas inomináveis ainda se revolviam dentro dele, mitigadas mas não destruídas pela paixão deles, desassossegando-o com o seu poder. Pensar em deixá-la entristecia-o de forma surpreendente, cobrindo o seu coração com o temor e a dor que uma criança sentiria ao ver-se separada da mãe. Porventura tivesse sido melhor tê-la evitado esta noite e nunca lhe ter exigido que atravessasse aquelas fronteiras. O
preço podia ser muito alto, especialmente se ela alguma vez voltasse a recuar.
Ele voltou a cabeça e os seus olhares encontraram-se. O rosto dela tinha um aspeto muito jovem e doce, mas os seus olhos mostravam o saber de uma mulher.
– O vosso pai, que procurou fazer de vós padre, ainda vive? –
Fez a pergunta como se nunca a houvesse pronunciado, mas o seu olhar compreendia um desafio.
Sim, teria o seu preço. Tratava-se de Reyna. Nunca seria tão estúpida que permitisse que a entrega ocorresse apenas numa direção.
– Não, não vive.
Preparou-se para a próxima pergunta, e a seguinte, e começou a sentir o travo de a perder depois de todas terem sido perguntadas e respondidas. Por isso, quase gemeu de alívio quando ela escolheu desviar-se da questão principal.

– Ele morreu quando ainda éreis jovem?
– Morreu quando eu tinha dezanove anos, logo depois de eu ser armado cavaleiro, mesmo antes de ir para a corte. Ele havia tratado de me enviar para lá para um parente. – Era a verdade, apesar de incompleta.
– O vosso parente servia o rei?
– Era um funcionário menor. Levou-me para a casa dele. –
Nada disto era mentira, na verdade.
– Vivestes com ele durante todo o tempo que lá ficastes?
Sim, uma pergunta levaria a outra, e ele viu para onde estas se encaminhavam. Ela limitava-se a seguir os pensamentos enquanto construía formas de substância dentro do profundo mas indefinível conhecimento que tinham um do outro.
Ele não podia negar-se a ela sem perder o que acabava de lutar para reaver, mas sentia alguma angústia com a ideia do julgamento que o aguardava. – A peste chegou não muito depois de eu chegar.
O meu parente estava fora, e dela morreu. As pessoas da casa mudaram-se para uma das propriedades da mulher, no Sussex, até a peste passar.
Fez uma pausa, perguntando-se se poderia ficar por ali.
Provavelmente não. A sós com Christiana em Carlisle, ela podia vir a saber deste pecado menor. – Fiquei com a mulher dele durante dois anos, vivendo principalmente de ganhos em torneios.
– E depois partistes para França?
– Depois vivi sozinho por um ano antes de procurar a minha sorte em França.
Ela identificou imediatamente as lacunas. – Porquê?
Desentendeste-vos com a vossa parente? – Na falta de resposta dele, as sobrancelhas dela ergueram-se e ele viu as peças encaixarem. – A mulher de que me falastes no outro dia… a troca com Morvan… era a mulher do vosso parente?
– Sim. – Ficou aliviado por ela não parecer mais chocada.
– Ela devia ser muito mais velha do que vós ou Morvan.
– Era a segunda mulher do meu parente, e muito mais jovem do que ele. Mesmo assim, tinha quase idade para ser minha mãe.
– Amávei-la?
Ela queria que ele dissesse que a amara loucamente. Elizabeth não era parente de sangue, mas pelo casamento. Embora tais relações não fossem inauditas, não eram aceitáveis. Afirmar que estivera perdido de amores tornaria o facto mais palatável, mas ele constatou que não conseguia mentir-lhe.
– Amava-a tanto quanto conseguia, o que não era muito. Menos do que devia. Mais do que ela queria.
– Porque acabou?
Porque deixei de ser fiel, que era tudo o que ela alguma vez exigia dos seus amantes. Porque sabia que ela amava outra pessoa e ressentia-me disso, apesar de eu nem sequer saber o que fazer com tal amor se ele me fosse dirigido. Porque havíamos sanado a pior dor um do outro, e era altura de vivermos as vidas que nos restavam.
– Elizabeth tinha muito de mãe e era tentador ficar para sempre no conforto do seu seio. Mas, tal como uma mãe, também chegou a altura de partir.
– Penso que consigo compreendê-lo. Foi algo parecido com Robert e eu.
De todas as reações que ele esperara, a última seria esta calma compreensão. Ela surpreendeu-o ainda mais quando acrescentou: –
Fico contente por ela ter lá estado se vós precisáveis da sua amizade.
Ela agarrou na ponta das cobertas, empurrou-as para trás e depois puxou-as para cima dos seus corpos. – Tendo em conta a caçada e o resto, deveis estar muito cansado. Tendes uma longa cavalgada à vossa frente. Dormi, Ian. Acordar-vos-ei ao amanhecer.
– Vós também deveis estar cansada.
– Não estou. Daqui a alguma horas devo acordar os criados para os preparativos da vossa partida. Não acredito que durma.
– Então eu também não. Aprendi há muito a descansar em cima de uma sela. Não planeio desperdiçar horas com sonhos quando o melhor sonho está deitado a meu lado. – Voltou a afastar as cobertas, expondo o corpo de Reyna, e apoiou-se num braço para olhar para ela. – Além do mais, quem sabe quando voltarei a ter oportunidade de vos ministrar outra lição?
Beijou-a, memorizando a suavidade dos seus lábios e o contorno afiado dos seus dentes, e as profundezas de veludo da sua boca. Juntando-lhe as mãos, segurou-lhas acima da cabeça para ela ficar esticada e completamente vulnerável a ele. Ele não a queria a abraçá-lo ou a fazer qualquer outra coisa que pudesse acelerar a sua resposta. Ele iria deixá-la louca, desesperada e suplicante, e talvez o som dos seus gritos o sustivesse durante os dias e as semanas seguintes.
Acariciou-a lentamente, observando a sua mão bronzeada mover-se em torno dos volumes da sua pequena forma feminina, procurando não provocar nela mais do que um prazer lânguido.
Ainda assim, os seios dela avolumaram-se e os mamilos endureceram. A resposta rápida fê-lo sorrir, mas não se deixaria distrair.

– Sois tão adorável, Reyna. A vossa pele tem sempre este vago rubor, e é suave e húmida, como se estivesse coberta de um orvalho invisível. – Ela ficou sem fôlego quando ele baixou a cabeça e primeiro beijou e depois lambeu o vale entre os seus apelativos seios.
Ela arqueou-se convidativamente, mas ele ergueu-se mais para poder acariciar e memorizar as linhas elegantes das suas pernas. As suas coxas leitosas estremeceram e retesaram-se quando ele se encaminhou mais para cima, para o odor e a humidade que já aguardavam entre as pernas dela. Ele tocou-lhe ao de leve, como se a testar se ela estaria demasiado dorida para mais, grato pela prova de que não estava quando o seu corpo estremeceu elegantemente em resposta.
Ela enrugou a fronte quando ele retirou a mão.
– Ainda não, Reyna. É um castigo por voltardes a chamar-me canalha e filho de uma égua. Avisei-vos que não o fizésseis. – Na verdade, aquela diatribe havia sido música para os seus ouvidos.
Ele passou os dedos pelo lábio inferior, retirando a humidade da sua respiração travada, estudando o desejo diáfano dos seus olhos.
Sentiu-se inexplicavelmente lisonjeado por esta mulher sequer o querer, ainda por cima com tanta intensidade e tanta prontidão.
Ele desenhou-lhe uma linha do queixo ao peito e depois andou à volta da elevação de um pequeno seio. Ela contorcia-se e gemia, e ele esticou a mão para roçar suavemente o seu mamilo ereto. – É
isto o que quereis, Reyna?
Ela tentou soltar as mãos da dele.
– É?
– Sim, diabos vos levem.
– Outra maldição? Pode durar até de madrugada. – Ele provocava-a com as pontas dos dedos, roçando ao de leve o botão rosa, e ela sacudiu novamente os braços.
– Largai-me, seu filho de uma égua, e veremos quem mais grita.
– Continuai assim e poderemos não partir antes do meio-dia. –
Ele baixou os lábios até ao outro botão. – Sois tão suave, como veludo. A primeira vez que vos beijei, quase esqueci todo o sentido do dever. – Ele lambia e sorvia lentamente, perdido no gosto e no toque deliciosos dela, maravilhosamente alerta aos gritos e movimentos de abandono que a sua língua e mão extraíam dela.
As suas ancas balançavam lentamente enquanto ele fazia amor com os seus seios, e ele deixou que o ritmo do desejo titilasse a sua própria fome tensa. Saboreava cada reação apaixonada, guardando a memória como uma posse preciosa.
Libertou-lhe as mãos e virou-a de costas. Pairando acima dela, desceu lentamente beijando-lhe as costas e depois virou-se para lhe observar o corpo, enquanto lhe acariciava a parte de trás das pernas e coxas. Ela enterrou a cabeça nos braços, para abafar os arquejos de surpresa que soltava. Quando o toque e o olhar dele subiram, as elevações suaves das suas nádegas contraíram-se e as suas costas arquearam. Ela tinha um aspeto incrivelmente erótico nesta posição, e ele inclinou-se para lhe beijar o fundo das costas enquanto os seus dedos corriam para a fenda ensombrada.
O grito abafado que ela soltou quase o tirou de si. A tormenta, apaziguada mas não saciada, entrou novamente em erupção. Ela afastou as pernas para ele prosseguir, e as suas ancas ergueram-se quando o dedo dele encontrou a passagem estreita e afagou as suas profundezas escaldantes. Ela ergueu a cabeça e olhou para ele com olhos desconfiados. – Ides….
Ele imaginou as ancas dela a erguerem-se em direção a ele, e atravessou-o um estremecimento de calor. Mas ele duvidava que conseguisse manter algum controlo se a tomasse daquela forma, e tudo o que não fosse meiguice desta vez seria imperdoável.
Virou-a para cima. – Para a próxima, Reyna, e ides gostar, prometo-vos. Mas hoje quero o vosso rosto contra o meu e os vossos braços à minha volta.
Ela tentou estreitá-lo, mas ele escapou-lhe dos braços e percorreu-lhe a pele sedosa com beijos quentes. Outra memória e posse de que não abdicaria. Pôs-lhe as pernas em cima dos seus ombros e beijou-lhe a parte de dentro das coxas. Uma nova febre assomou aos olhos dela. O seu corpo parecia saber o que ele ia fazer, ainda que a sua mente não.
Ele acariciou-a intimamente, procurando os pontos que a levavam à loucura, e ela reagia com movimentos involuntários. Ele dirigiu os beijos mais para cima, para o centro da sua paixão. Ela gritou o nome dele e ele, erguendo os olhos, viu a sua expressão selvagem, de assombro.
– Vou fazê-lo, Reyna. Se não gostardes, paro.
Ela ficou tesa como uma tábua quando a boca dele se substituiu aos dedos, mas o prazer demoliu imediatamente a sua resistência. –
Sim – sussurrou ela, e logo a afirmação se tornou um grito repetido vezes sem conta, e o som deste cântico ofegante e os espasmos da paixão dela empurraram-no para um olvido resplandecente.
Quando ele se colocou por cima dela, ela agarrou-se a ele, chamando-o para si, erguendo as pernas num abraço, tentando unir o seu desespero. – O que quereis, Reyna? – Mal lhe restava juízo sequer, mas queria ouvi-la dizê-lo. Precisava de a ouvir dizê-lo.
Os dedos dela cravaram-se-lhe nos ombros. Ela ergueu os olhos e pestanejou para afastar a paixão atordoante.

– O que quereis? – repetiu.
Uma luz feroz perpassou-lhe o olhar. – Vós. Vós todo. Bem dentro de mim e por mim toda.
Uma fome ardente atravessou-o com uma força perigosa. Se ele seguisse o seu sangue, seria como antes. Rolando no seu abraço, colocou-a em cima dele. – Então tomai o que quiserdes. O mais ou o menos que precisardes.
Ela mexeu-se para o absorver profundamente, curvando-se para lhe acariciar e beijar o peito, puxando o espírito dele para ela tão seguramente como ele havia forçado o dela a ir até si. Ela era maravilhosa e ardente no amor, e as emoções caóticas dele rodopiavam sob a sua agressão urgente. Os gritos dela regressaram e ela começou a pedir mais. Ele agarrou-lhe nas ancas e respondeu com acometidas, impaciente agora pela conclusão que retrasara, tentando conter as complexas necessidades para que o não dominassem desta vez.
Ela gemeu com o movimento dele e enterrou o rosto no seu pescoço. – Mais força – sussurrou trémula. – Bem dentro de mim e por mim toda.
– Vou magoar-vos. Estais dorida.
– Não, meu amor. Se devemos separar-nos, quero sentir-vos durante dias. Semanas. Para sempre.
A sua voz abafada continha um tremor. Acariciando-lhe o rosto, sentiu uma lágrima. Uma ternura formidável verteu-se sobre ele, repleta de espanto por ela se importar ao ponto de sentir uma tal tristeza pela separação deles e o perigo que ele corria.
De súbito, ele não queria absolutamente nada dela, mas apenas dar o que quer que ela procurasse. Imerso com ela numa harmonia impregnada de prazer e alegria e dor, cingiu-a mais. Pressionando-a contra o seu coração desgovernado, sussurrou mentiras tranquilizadoras enquanto entrava nela.

CAPÍTULO 20


Ian olhou para o desenho preciso que David fizera no solo de terra da tenda. Mostrava uma imagem pormenorizada de Harclow como se vista por uma ave em pleno voo. Havia a torre de menagem quadrada com as suas outras quatro torres em cada um dos cantos, e a muralha interna que a rodeava. A alguma distância, corria a linha espessa da muralha exterior. De dois lados flutuava o lago, e David indicara mesmo a localização dos acampamentos que faziam o cerco no terreno circundante. Ian nunca vira algo semelhante, com todos os objetos vistos de cima e à escala. A maioria dos mapas não estavam desenhados desta forma.
– Esqueci alguma coisa? – perguntou David a Morvan, que também estudava a imagem.
Morvan abanou a cabeça. – Está mais do que exato.
– Ainda bem. Agora peço-vos que me ouçais. É provável que esta chuva dure alguns dias, por isso há tempo de o fazer agora, se concordardes.
Ian foi até à entrada da tenda e espreitou para a chuva miudinha que durante dois dias sofreara os ataques. Atrás dele, David começou a explicar o elaborado plano que haviam engendrado.
Sentindo-se desassossegado, Ian saiu da tenda para a chuva e atravessou o acampamento até onde conseguia avistar a muralha de Harclow. Espalhados ao longo desta estavam soldados de vigia, em menor número do que o normal por conta da chuva. A lama e a humidade só vinham tornar mais arriscado os perigosos trabalhos, e, de qualquer forma, o exército de Morvan precisava do descanso.
Durante semanas as investidas haviam continuado, as torres de assalto haviam avançado, as máquinas lançado os seus mísseis.
Dentro de Harclow, os homens não paravam de cair, como os de Morvan, e deviam estar muito reduzidos em número, mas o velho Maccus não se rendia.
Ian comandava em pessoa uma das torres de assalto desde que chegara. Era uma grande honra, e ter-lhe sido destinada surpreendera-o. Mas não fora honra que sentira ao aguardar lá em cima, de espada pronta, enquanto a alta construção de madeira era empurrada sobre rodas até à muralha. Outra coisa fervia-lhe no sangue então, tão premente que o seu nome não podia continuar escondido.
Medo. O seu poder insidioso surpreendera-o e ele não tinha experiência de lidar com aquilo. Mas sabia o que era, sabia-o na alma desde o dia em que saíra para defrontar Thomas Armstrong.
Quando tinha dezoito anos, conhecera um medo assim, tendo-lhe sucumbido completamente. Mas depois morrera nele, e a sua perícia em combate vira-se reforçada por esta liberdade. Outros podiam ficar acordados antes de uma batalha, antevendo a morte que aguardava, mas não Ian de Guilford. Outros podiam pesar o preço de acorrer em ajuda de um estranho em desvantagem na Batalha de Poitiers, mas ele nunca se dera a tais cálculos.
Até agora. Ao seu redor estavam veteranos que há muito haviam aprendido a controlar o medo, mas de repente ele voltava a ser um mancebo, manchado de sangue pela primeira vez, calculando riscos em que nunca reparara, dependendo de instintos nos quais já não confiava.
Deu a volta em direção ao lago, passando pelo trilho que conduzia à periferia do acampamento. Espreitou para as tendas que continham os mercadores, lavadeiras e rameiras que formavam a pequena cidade que despontara para servir os soldados.
Normalmente, num dia vazio como este, iria até lá e passaria uma moeda a uma mulher para quebrar a monotonia. Hoje, a noção de seguir esse caminho parecia-lhe de alguma forma obscena.
Por causa de Reyna.
Reyna. Ela estava no âmago daquilo tudo. Estava na sua cabeça mais do que nunca, e o medo ancorava-se firme àquelas imagens e pensamentos. Não o admitia a si próprio com qualquer rancor ou culpabilização. Apenas reconhecia a verdade enquanto caminhava pela lama até à margem do lago.
Para lá da extensão de água, viu o buraco na muralha exterior que David fizera com as suas bombardas. Haviam sido necessárias muitas tentativas até encontrar o ângulo que cuspiria as pedras redondas para lá do lago, mas depois David disparara projéteis para um dia inteiro, até a muralha fender e desabar. Fora uma experiência mais do que qualquer outra coisa, para ver se o impacto repetido afetava uma estrutura daquelas a tal distância.
Mas hoje, deitados nas enxergas na tenda que partilhavam, ele e David haviam descoberto uma forma de dar mais substância àquele feito.
Imagens de Reyna voltaram a apoderar-se dos seus pensamentos daquela forma insistente. Perguntou-se o que ela faria naquela mesma altura em Carlisle. Voltariam os pensamentos dela para as últimas horas que haviam passado juntos tantas vezes como os dele?
Meu amor. Parecera tão certo quando ela o dissera, apenas mais um cordão na intimidade perfeita que haviam partilhado naquela noite. Talvez ele não devesse dar demasiado peso a um simples carinho, mas naquela noite outra emoção exigira também ser nomeada, e o jovem temeroso, esperançoso, que ressuscitara dentro dele, queria a qualquer custo acreditar que estavam juntos naquilo.
Haviam sido palavras dela, não dele. Porque não as tinha ele pronunciado para ela, se não naquela noite, pelo menos no dia seguinte, antes de se separarem? Tê-las-ia deixado por dizer para se assegurar de que sobreviveria para as pronunciar mais tarde?
Estava o medo tão enlaçado no amor?
Medo. Era constante. O amor e o medo eram os dois lados de uma moeda transparente – impossível ver um lado sem que o outro interferisse na visão. De que tinha medo? De morrer, isso era certo.
De a perder, claro, fosse pela morte ou pela desilusão. De a amar?
Regressou pelo mesmo caminho. Ardia uma pequena fogueira do lado de fora da sua tenda por baixo de um toldo alto, e ele sentou-se num toco que estava próximo. Morvan saiu e acercou-se dele.
– Pensais que devemos tentar este plano, Ian?
– Não é mais perigoso para os homens do que qualquer outra tentativa de assalto. As muralhas do lago poucos homens têm. Se a surpresa for suficientemente rápida, pode resultar.
– Para isso nos prepararemos, então, e se a oportunidade se der, fá-lo-emos. Quero-vos junto de David nisto, contudo.

Ian lançou-lhe um olhar incisivo. Aparentemente, o medo não passara desapercebido a Morvan. Ele procurava uma forma discreta de o retirar da torre.
Morvan apanhou o olhar. – Não é isso – disse ele, mostrando ter reconhecido tanto a suspeita de Ian como o próprio medo. –
Sois engenhoso em termos de construção e estratégia, e, no seguimento do plano, pode haver lugar a mudanças súbitas. Entre David e vós, se algo correr mal, ainda pode haver recobro.
Eles nunca tinham desenvolvido uma amizade fácil, por isso ficou surpreendido quando Morvan voltou a falar. – Quanto à outra questão, não penso menos de vós. Todos os cavaleiros devem enfrentá-lo, mais cedo ou mais tarde, exceto aqueles a quem faltarem entendimento ou imaginação. Costumáveis lutar como um homem sem nada por que viver. Agora lutais como um homem com tudo a perder. Dos dois, prefiro ter o último a meu lado. – Morvan saiu para o acampamento antes de Ian poder responder, mas também não havia nada que dizer.
Ian regressou à tenda. Encontrou David sentado no catre, desenhando cálculos na terra com o seu ramo pontiagudo. – Vinte jangadas, diria, cada uma com tamanho para dez homens. Melhor um número bom de tamanho mais pequeno, para haver a possibilidade de mais chegarem ao outro lado.
Ian atirou-se para a sua própria cama. – Se as chuvas continuarem, as jangadas ficarão húmidas o suficiente para não serem incendiadas por setas de fogo. Ainda assim, é inevitável que algumas pereçam, por isso estais certo. – Estudou o mapa rabiscado no chão. – Isto só nos permitirá passar a primeira muralha, claro.
– Quantas vezes vistes fortalezas aguentarem-se depois de o inimigo passar a muralha?
Nunca, Ian teve de admitir. Mas o velho Maccus revelava-se um inimigo tenaz.
Ian tentou entregar-se ao descanso, mas ele não chegava.
Exasperado, levantou-se e dirigiu-se outra vez à entrada da tenda.
Talvez reunisse alguns homens para começar a trabalhar nas jangadas.
– Ela sabe? – perguntou a voz suave de David.
Ian virou-se, surpreso. Presumiu que David se referia aos seus sentimentos por Reyna. Sem dúvida os percebera, como ao medo.
– Não.
David continuou calmamente as suas cogitações. – Será inevitável ela saber. A história é mais conhecida do que pensais. Os homens da vossa companhia, por exemplo, estão cientes da maior parte dos pormenores. Se nunca o deram a entender, é porque receiam a vossa reação e a vossa espada.
Ian sentiu o sangue correr-lhe um pouco mais devagar. Com os seus modos impávidos e serenos, David acabava de abordar um assunto a respeito do qual Ian nunca falava. Talvez ele sempre tivesse suspeitado que a companhia sabia. Talvez fosse essa a razão pela qual ele evitava uma amizade próxima com qualquer um dos homens. Aí as perguntas seriam inevitáveis. E por fim o julgamento. Podia-se ser indiferente às opiniões de pessoas que não importavam verdadeiramente.
– Christiana. Falaria ela disso com Reyna? – perguntou Ian.
– Não, quanto mais não seja porque ela própria o ignora. Não estávamos em Londres quando se espalharam os rumores.
– Mas vós ouviste-los de qualquer forma.
– Soube antes disso. Quando vi o interesse de Elizabeth, empenhei-me em saber mais de vós. Corre todo o tipo de informação entre mercadores.
Ian sentiu um rancor frio. – E dissestes-lhe?
– Só o suficiente para ela saber a verdade quando a história vos seguisse para a corte, como acabaria por acontecer.
– Pensais que sabeis a verdade?
– Sei que éreis um rapaz que não queria morrer. Sei que o vosso pai devia ter colocado de lado orgulho e raiva. – Fez uma pausa. –
Sei que uma mulher má jogou um jogo elaborado e perigoso, e que ganhou. Qualquer mulher destas, em qualquer idade, é mais impressionante do que qualquer homem. Quando são jovens, nem sequer compreendem a destruição que causarão com os seus esquemas. – Bateu com o pau na bota. – Ela tem um filho, decerto sabeis, de nove anos de idade.
– Não é meu.
– Não, não é vosso. É a imagem do pai.
– O pai dele era ignorante e inocente.
– Se o dizeis. Não retirei conclusão nenhuma de qualquer destas coisas.
– Decerto sois o único que não o fez. As conclusões típicas são sórdidas e condenatórias.
– Percebi a verdade a primeira vez que ouvi a história.
Certamente que outros também.
– Vós tendes conhecimento do mundo. Tendes experiência daquilo que as pessoas podem ser.
– E pensais que a vossa mulher não? Talvez a subestimeis. Vejo-me continuamente surpreendido pela capacidade que as mulheres têm de ser compreensivas no que respeita aos seus homens. –
Voltou aos seus cálculos. – Penso que precisamos de cinco homens a trabalhar em cada jangada. Visto que dais provas de me enlouquecer com a vossa inquietude, talvez devêsseis ir escolhê-los.
Ian achou a ideia excelente. Voltou-se para sair, mas deparou com a figura imponente de Morvan a preencher a entrada. O
corpulento cavaleiro passou por Ian, trazendo um homem pelo cachaço. Com um movimento largo, atirou o homem para o chão. –
Vede quem encontrei de volta das tendas da vossa mesnada, Ian.
O homem encolheu-se aos pés de Morvan. Era Paul, um membro da sua companhia que fora enviado para Carlisle para proteger as mulheres.
– Que raio fazeis vós aqui? – inquiriu Ian.
– Só vim ver os rapazes um bocado, não foi? Nada de muito grave, a meu ver.
– O vosso lugar é em Carlisle.
– Estava a ficar aborrecido.
– Aborrecido – trovejou Morvan. – Por Deus, se alguma coisa aconteceu à minha mulher ou à minha irmã por causa da vossa negligência…
– Se aconteceu, não é culpa minha. – Paul ergueu um braço para aplacar o golpe que a raiva de Morvan prometia. – Não consegui impedi-las de partir, não com todas tão determinadas, e a grande, bem, mostrai-me o homem que quer tentar dizer-lhe a ela o que fazer. E pelo menos levaram Gregory com elas, e insistiram que não seria por muito tempo. E eu sugeri que talvez devia vir dizer a Sir Ian pelo menos, mas Lady Reyna foi muito insistente, que eu não devia incomodar ninguém por uma coisa tão pequena, e a mais morena concordou, e a grande, bem, quando foram embora ela praticamente me ameaçou, ficou especada a olhar para mim com má cara e pôs a mão no punhal e disse-me para obedecer às ordens delas que tudo correria bem.
A expressão de Morvan fez-se mais sombria. – Dizeis que as senhoras saíram de Carlisle?
– Sim, é isso que estou a tentar explicar. Meteram-se num barco e ordenaram-me que ficasse em casa, mas comecei a ficar muito aborrecido de estar ali parado naquele sítio vazio só com aquela megera daquela criada. Então decidi que uma visitinha rápida até aqui não faria mal.
– Isto é obra de Lady Anna – disse Ian. – Ela não queria ir para Carlisle, e só lhe faltou insultar-me quando lhe transmiti as vossas instruções, Morvan.
– Não acuseis a minha mulher de incitar isto, Ian.
– Sugeris que Reyna forçou Anna a partir? C’os diabos, Morvan, a vossa mulher podia pegar nela com um braço.
– Talvez devêssemos descobrir para onde foram todas –
interrompeu David. Pôs Paul em pé e limpou-lhe a roupa com algumas sacudidelas solícitas. – Sabeis para onde se dirigiram?
– Penso que ouvi falar em Glasgow. Uma viagem rápida na sua maior parte por mar, garantiram-me.
Dois maridos olharam para Ian com irritação. Apenas Reyna teria interesse ou razão em ir para Glasgow.
– Sem dúvida que Anna alinhou para se distrair e Christiana foi a reboque para olhar pelas duas – disse David secamente.
– Irei atrás delas – atalhou Ian. – Não podeis sair daqui, Morvan, e com esta chuva não precisareis de mim durante alguns dias.
Morvan assentiu com a cabeça. – Levai mais alguns cavalos convosco, Ian, e pelo menos dois homens. Quando as encontrardes, enviai-me um homem asinha com novas da sua segurança.
– Irei convosco – disse David.
– Não, David, ficareis aqui – rebateu Morvan. – Convencestes-me deste vosso plano e agora ganhei-lhe gosto. É necessário que vigieis os preparativos. Ian, quando encontrardes Anna, dizei-lhe por mim que estou muito desagradado e que deve regressar imediatamente convosco. Quanto a Lady Reyna, deixo-a a vós.
Agarrando Paul pela ombreira, Ian arrastou-o até à fogueira. –
Quando partiram elas de Carlisle?
– Há sete dias.
Sete dias. Visto que haviam rumado a norte de barco, estariam brevemente em Glasgow. Demoraria tempo de mais ir por Carlisle e pelo mar. Ele teria de atravessar terras dos Armstrong. A toda a brida, podia chegar a Glasgow antes de elas partirem.
– Gregory ia ficar com elas a viagem toda?
– Sim. E Lady Anna levou um arco e uma espada. Vestiu-se como um homem, também, mas também ela faz sempre isso, o que é estranho numa mulher, não que ela pareça assim tão peculiar, por qualquer razão…
– Por que raio não viestes imediatamente avisar-me disto, Paul?
Ainda que não pense que lhes tenha acontecido alguma coisa, se sim, não posso proteger-vos de Morvan.
Paul olhou cauteloso por cima do ombro. – Teria explicado dentro da tenda, mas ele estava pronto a matar, não estava? E não melhorava nada atirar achas para a fogueira.
– Falai claro, homem.
– Bom, eu presumi que já sabíeis que elas tinham ido para Glasgow. Mandei o vosso homem dizer-vos na volta, não foi? Não havia razão para eu vir logo para vos dizer, se ele o ia fazer.

Um arrepio correu pela espinha de Ian. – O meu homem? que homem?
– O que veio há cinco dias com uma mensagem vossa para Lady Reyna. Não era da nossa companhia, mas imaginei que Morvan o tinha dado a vós. Ele apareceu a perguntar por ela, disse que tinha uma mensagem e um presente para ela da vossa parte.
– Eu não mandei homem nenhum, Paul.
– Não? Então quem…
– Que lhe dissestes?
– O mesmo que vos disse agora a vós, aonde tinham ido e quando.
A cabeça de Ian quase explodiu quando amor e medo se fundiram e se transformaram numa fúria dilacerante.
– Descrevei este homem.
– Cabelo claro, altura média e entroncado, é tudo o que lembro.
Escocês, diria pela fala dele, mas os «erres» não eram tão carregados, por isso achei que fosse das terras fronteiriças, e um dos homens de Sir Morvan.
Talvez tivesse sido Edmund, seguindo Reyna até Carlisle para continuar a persuadi-la, mas nem Edmund nem Reginald, que Ian soltara antes da partida, correspondiam à descrição de Paul. Nem Thomas Armstrong tinha o cabelo louro. Mas tanto Thomas como Edmund poderiam ter feito chegar por alguém a mensagem que conduziria Reyna às suas mãos.
A constatação de que Reyna poderia correr um perigo real quase lhe desarranjou os pensamentos, mas ele forçou-se a uma análise cuidadosa. Provavelmente devia informar Morvan disto, mas se o fizesse, Morvan conduziria o exército para Glasgow.
Tudo aqui se desfaria e na fronteira seria um inferno. Nem diria a David. O estranho aparecera em Carlisle a perguntar por Reyna, porque era Reyna quem procurava. Edmund empenhado na sua causa? Ou Thomas procurando vingança pela morte de Robert?
Avançou determinado para o acampamento da sua companhia.
Levaria mais do que dois homens, e cavalos e armas que bastassem. Se cavalgassem a sério, poderiam chegar a Glasgow antes de que quem perseguia Reyna a encontrasse.

CAPÍTULO 21


Reyna aguardava num banco na antecâmara do gabinete do bispo, aguilhoada por um presságio inquietante. A decisão de vir até Glasgow parecera-lhe muito sensata quando a tomara.
Permanecer em Carlisle tornara-se entediante, e factos importantes a respeito dos últimos meses de Robert podiam ser conhecidos neste sítio. Porém, agora, na iminência da reunião, perguntava-se se investigar as intenções privadas de Robert seria avisado.
Abriu-se uma porta lateral e um clérigo jovem entrou. Direito e rígido nas vestimentas largas, tinha cabelo escuro e olhos castanhos, toldados por uma expressão leniente. – Sou Anselm, um dos escriturários do bispo, senhora. O padre Rupert disse que vós insististes que tínheis assuntos urgentes.
Reyna nunca se apercebera de como era difícil ver um bispo, e as suas diligências junto dos vários oficiais tinham-se tornado algo exageradas durante a última hora. – É urgente para mim, já que não posso ficar muito tempo em Glasgow.
– Então lamento desapontar-vos. Como vos informaram, o bispo não está cá, mas sim a norte, onde contamos que permaneça durante algum tempo por assuntos da igreja.
– O padre Rupert pensou que talvez vós pudésseis ajudar-me. É
informação o que procuro, não a dispensa ou decisão de um bispo.

Anselm acomodou-se numa cadeira próxima, olhando-a enquanto alisava as vestes com dedos fastidiosos. – Ouvir-vos-ei, mas a maior parte dos assuntos do bispo são confidenciais.
– Espero que este não o seja. O meu nome é Reyna Graham. O
meu marido era Robert de Kelso, que detinha as terras fronteiriças de Black Lyne através de Maccus Armstrong. O meu marido morreu há vários meses. Pouco depois da sua morte, chegou uma carta do bispo. – Reyna descreveu a carta e a referência ao pedido de conselho de Robert.
– Lembro-me bem dela, já que a escrevi para Sua Excelência –
disse Anselm.
– Ninguém sabe a que se referia – explicou Reyna. – Se o meu marido tinha algum desejo ou vontade antes da sua morte, gostaria de saber, para que a sua vontade seja feita.
Anselm ignorou-a durante um pronunciado período de contemplação. Reyna começou a sentir-se ansiosa. Talvez o secretário hesitasse por o pedido de Robert de facto lhe dizer respeito. Era possível que tivesse conhecido tão pouco da mente e do coração do seu marido?
– É provável que vo-lo consiga explicar, Lady Reyna, mas primeiro tenho uma pergunta. Como dispõe o testamento do vosso marido das suas posses?
– As terras foram-me deixadas, embora seja questionável se o suserano aceitará que assim o seja – explicou ela, decidindo que falar da tomada do castelo e do seu casamento com Ian não serviria nenhum propósito.
– Não as terras, as suas posses pessoais.
– Também isso ficou para mim.
– Nesse caso, não vejo objeção em falar convosco. – Pôs-se mais confortável na cadeira, se se pode falar de conforto num homem com uma postura tão rígida. – O vosso marido escreveu uma carta que recebemos faz cinco meses. Nela, explicava que tinha posses que não eram dele por direito, e das quais pretendia desobrigar-se de forma honrada antes de morrer, para não interferirem com a propriedade. Queria dar estas posses a um mosteiro envolvido na educação dos jovens. O bispo tinha intenção de falar com os padres dominicanos aqui de Glasgow para tomar as disposições necessárias, mas outros assuntos o afastaram daqui.
– O meu marido descreveu estas posses?
– Não, mas ficou claro que não se tratava de terra. Referia-se a
«estas» em diversos pontos da carta. Sentia que lhe aliviaria a consciência ter o assunto tratado, com a morte tão próxima na sua idade avançada.
«Estas». Não era terra, mas sim objetos. – Indicou ele o valor destas posses?
– A sua carta indicava alguns milhares de libras, três ou quatro.
Objetos. Úteis na educação.
Livros.
Ela sabia que a biblioteca era valiosa, mas não tão valiosa.
– O meu marido mencionou como ficou na posse destes objetos?
– Não, mas o pedido não é incomum. Os homens ganham em piedade e sabedoria à medida que envelhecem. Procuram redimir-se de transgressões da juventude.
Reyna olhou-o nos olhos. – Pensais que essas posses são resultado de roubo, não pensais?
– O mais certo é terem sido obtidas no seguimento de um cerco ou batalha. Poucos cavaleiros ou soldados se ficam pelo pouco que os senhores pagam, e muitas vezes o pagamento nem chega a dar-se porque estes presumem que os primeiros enriquecerão o suficiente dessa forma sem custo para eles. Na verdade, a maioria dos barões reclama um terço desses despojos.
– Mesmo assim, dizeis que o meu marido era ladrão. Pouco melhor do que um salteador – rebateu ela veementemente.
– O que é roubo numa circunstância são despojos de guerra noutra – disse Anselm. – A Igreja urge os homens a absterem-se de o fazer, mas é um pecado pequeno se a guerra for justa. Até os Cruzados… E o vosso marido, contrariamente à maioria, procurou a restituição. Seria impossível devolver estas posses aos donos após tantos anos, por isso quis dá-la à Igreja, pelo seu trabalho.
– Não sabia que a Igreja havia decidido que o pecado estava condicionado às circunstâncias. Devo lembrá-lo no futuro. Sem dúvida se revelará conveniente.
Anselm suspirou. – Procuro apenas aliviar-vos da vossa óbvia aflição.
Aflição não bastava para descrever a reação dela. Robert, querido, bom, honesto Robert, vivera uma vida muito diferente antes de chegar à fronteira escocesa e entrar ao serviço de Maccus Armstrong. Havia ocorrido uma vida antes de ela o conhecer, e ele pusera-a para trás das costas, exceto a prova da qual não conseguia separar-se, os livros que tanto amava.
Livros roubados. O que pensara ele enquanto estudava os imperativos morais que eles continham, quando a própria posse deles desafiava aquelas verdades?
As desculpas de Anselm podiam ter-lhe servido. Tal como lhe poderiam servir a ela agora, se chegasse a convencer-se de que aqueles livros haviam sido saque de uma guerra justa. Mas pairava a possibilidade de Robert ter de facto sido ladrão ou salteador enquanto jovem. Exatamente como Ian de Guilford, ou até pior.
Perante a ironia, ela fez uma careta. Andava a comparar Ian com um homem idoso que, na sua juventude, fora igualmente implacável.
– Penso que sei a que posses se referia o meu marido. Se era desejo de Robert que estes itens fossem dados à Igreja, diligenciarei para que isso aconteça. – Levantou-se para se retirar.
– Dar-me-íeis uma carta explicando o assunto? Seria mais fácil concretizar a doação se o pedido dele estivesse clarificado.
– Se vós herdastes…
– Voltei a casar recentemente.
As sobrancelhas negras do jovem ergueram-se, compreensivas.
Foi até à mesa. – Se voltastes a casar-vos, os bens já não são vossos – disse enquanto escrevia. – Se algum bem pode trazer, aqui está. Não deixeis isto converter-se num ponto de discórdia no vosso casamento, contudo. Raro é o homem que se desfaria da riqueza que lhe coube através da mulher.
Reyna agarrou o pergaminho que provava que Robert nunca procurara pô-la de parte. Quanto ao último comentário de Anselm, não tinha ideia alguma da reação de Ian à concretização da última vontade de Robert. Provavelmente recusaria, depois de saber o valor dos livros.
Pensando melhor, talvez um bandido sentisse especial simpatia pela busca de salvação de outro bandido.
– Deus está a punir-nos por desobedecermos aos nossos maridos e termos saído de Carlisle – murmurou Christiana, espreitando pela janela do quarto de dormir. – Esta chuva há dias que corre, e parece que vai durar para sempre. – Dirigiu-se a Reyna. – Quando Anna voltar, temos de lhe dizer que partiremos de manhã. O que é de mais é erro.
Reyna deu uma volta na cama e fitou o teto. Esta viagem só se dera porque Anna, procurando um interregno de atividade e aventura, apoiara a sua decisão de a fazer. Atendendo às circunstâncias, parecera justo conceder a Anna mais um dia em Glasgow.
Por si, Reyna teria partido satisfeita no dia anterior, depois de regressar da casa do bispo. Tendo cumprido a missão, ansiava regressar a Carlisle. Talvez pudesse enviar uma carta a Ian, dizendo-lhe o que havia descoberto. Talvez, se a chuva tivesse travado as movimentações em Harclow, ele pudesse ir vê-la. A ideia de que ele pudesse já ter tentado fazê-lo, chegando a uma casa em que não se encontrava ninguém a não ser Paul e a criada, entristecia-a, e ela já se sentia abatida devido à recente descoberta sobre Robert.
Ele nunca a enganara, lembrou-se novamente. Ela nunca fizera perguntas sobre aquela história antiga e ele não lhe contara mentiras. Porventura só uma rapariga que confiava num homem como confiaria num pai teria aceitado a presença de todos aqueles belos livros sem questionar, mas assim havia sido.
– Aqui estão eles – anunciou Christiana. – Parecem dois pintos encharcados, e o rosto de Gregory está verde de raiva, mas Anna parece radiante. Tendes de me apoiar. Se não a encurralarmos agora, estará a levar-nos para as Terras Altas antes da semana terminar.
Encurralar uma Anna rebelde revelou-se tudo menos fácil.
Recordou a Reyna que deviam tirar o maior partido dos apuros que as aguardavam com os maridos, e, de facto, propôs uma viagem até Argyle. Christiana repreendeu-a e tentou persuadi-la, mas foi a sugestão de Reyna, da chuva poder possibilitar a visita dos maridos, que venceu a discussão. Passaram o serão em preparativos para regressar à costa.
No dia seguinte, saíram da cidade de Glasgow, Anna assemelhando-se tanto a um guarda como Gregory, envergando túnica, e capuz, e com uma espada presa à sela. A chuva parara, mas nuvens pesadas prometiam mais. Christiana mantinha uma conversa amena, aligeirando a disposição que ameaçava afundar-se sob o desconforto da humidade e da lama.
A cinco quilómetros da cidade, a conversa aquietou-se e, no silêncio súbito, resmungou um trovão distante. Anna sofreou o cavalo e escutou com uma atenção alerta. O trovão aproximava-se com demasiada rapidez, e ela deu a volta ao cavalo, gritou um aviso a Gregory, e desembainhou a espada. Reyna olhou por cima do ombro e deparou com uma tropa de homens galopando na direção deles.
– Para a berma da estrada – ordenou Anna, pousando a espada na sela. – Deixai-os passar.
Infelizmente, a companhia não manteve o ritmo. Os homens detiveram-se, continuando depois a trote. Quando estavam a cem passos de distância, Reyna reconheceu o homem à cabeça e a surpresa deixou-a sem fôlego.
Ele avançou e parou à distância de um cavalo. – Então, irmãzinha. Que fazeis tão afastada da proteção do vosso marido?
– Fui visitar Glasgow. E vós, Aymer? É um sítio bizarro para vos encontrar de imprevisto.
– Tenho andando à vossa procura. Busquei-vos em Carlisle e, sabendo que fizéreis esta viagem, preocupei-me com a vossa segurança.
– Que fraterno.
Os doze homens de Aymer fecharam-se à volta deles, impossibilitando a fuga. Anna segurava a sua arma com firmeza.
Pelo canto do olho, Reyna viu Gregory a medir a situação e a não gostar do que via.
Um dos cavaleiros de Aymer acercou-se de Anna, semicerrando os olhos. A ponta da espada dela seguiu-lhe o movimento.
– Por Deus, é uma mulher – exclamou ele, arrancando-lhe o capuz. Caracóis louros caíram-lhe pelos ombros. – Já vistes alguma assim tão grande? Bonita que chegue, embora de estranha maneira.
Os outros homens riram. – Sim, mulher que chegue para todos nós, talvez – casquinou um.
– Mulher que chegue para cortar a virilidade a quem quer que toque em nós – disse Christiana com frieza.
– Parai imediatamente com isto, irmão – disse Reyna. – Se mal algum recai sobre alguma delas, Morvan entra com o exército nos montes, e a fortaleza do meu pai não é Harclow.
Anna arremetera a ponta da espada contra o pescoço do cavaleiro, fitando-o pelo seu comprimento.
– Nós somos muitos mais, cabra – rosnou ele, inclinando cabeça e pescoço para longe da ameaçadora arma.
– Porventura. Mas vós ides afastar-vos ou vós ides seguramente morrer – respondeu ela.
Uma comoção súbita viu Gregory acometendo na direção deles, espada no ar, expressão determinada. Um dos cavaleiros lançou-lhe o cavalo no caminho e, com um movimento largo, fez bater a face da espada na fonte de Gregory. O guarda afundou-se na sela e depois caiu desamparado ao chão.
O ataque fez Aymer decidir-se a concluir o pequeno drama. –
Condessa, tenho assuntos com a minha irmã que requerem que ela me acompanhe. Vós e Lady Anna sois livres de continuar o vosso caminho.
– Se ela vai, nós também – disse Christiana. – Completamos esta viagem como a encetámos, juntas.
– É assunto de família, senhora, e não respeita a nenhuma de vós. Se insistirdes nesse disparate, farei que vos amarrem ambas a uma árvore.
– E deixadas aos ladrões ou aos animais? Ou Reyna continua connosco, ou nós convosco. E seria avisado da vossa parte tomar o maior cuidado com as nossas pessoas e a nossa saúde. O meu irmão tem dois mil em Harclow, e se vier atrás de vós não haverá piedade. Quanto ao meu marido, os seus métodos são mais subtis.
Não sabereis sequer que ele lá está até lhe sentirdes a bota em cima do pescoço. – O tom gélido que cristalizou estas palavras serenas foi tanto mais eficaz quanto a figura que as proferia era cortês e delicada.
Reyna estava impressionada. Aymer também. Fitou Christiana, rubro, depois deu furiosamente a volta ao cavalo. – Trazei-las todas – ordenou. – Deixai o homem.
Reyna e Anna puseram-se ao lado de Christiana. – Foi muito corajoso, minha amiga, mas é desnecessário – disse Reyna. – Não me farão mal.
– Certamente pensará duas vezes agora, se planeara fazê-lo –
murmurou Anna. – Pensais que aquele guarda estólido, Paul, guardou de facto segredo sobre a nossa partida?
Christiana revirou os olhos. – Dado que só vos faltou ameaçar cortar-lhe a garganta…
– Ainda assim, podia ter chegado um mensageiro.
– Mesmo que os nossos maridos tenham descoberto que saímos de Carlisle, não saberão para onde viemos agora. Não, irmã, podemos estar sozinhas nisto.
– Voltai para trás – incitou Reyna.
Christiana abanou a cabeça. – Não confio neste vosso irmão.
Estareis mais segura connosco presentes. Seria útil saber para onde vamos e porque vos quer ele, porém.
Reyna instigou o cavalo ao trote e deslocou-se pela pequena tropa até ao lado de Aymer.
– Regressamos a Glasgow? – inquiriu.
– Não, mas iremos para oeste e depois para sul. Levo-vos para casa.
– Para Black Lyne?
– Para casa. Não pertenceis junto dos Armstrong e dos Fitzwaryn, Reyna. Regressareis para a vossa família.
– O meu pai tem assim tantas saudades de mim?
– Duncan é um velho. Uma doença já lhe come as entranhas. Ele não tem determinação para fazer o que tem de ser feito, por isso cabe-me a mim.
– E o que é, Aymer? O que se passa?
– Terra, pequena Reyna. Não é sempre a terra? O Diabo deve ter possuído Duncan para ele dar o que deu como vosso dote.
Durante anos esperei que o velho Robert morresse para que voltasse para vós como arras, e através de vós para nós.
Ela suspirou com a previsibilidade de Aymer. – Quão impaciente estáveis, Aymer? Arranjastes maneira de apressar o seu falecimento?

– Tivesse eu meio de o fazer. Interessante perguntardes, Reyna.
Sempre presumi que o havíeis matado vós.
– Não tinha por que o fazer.
– Ai não? – perguntou Aymer, manhoso. – Ele era velho quando vos casastes com ele e mais velho quando chegastes à idade adulta.
A vossa mãe era uma rameira, e tal é provavelmente a vossa natureza também. Aquelas mãos frias contentavam-vos? Penso que não, se com tanta brevidade achastes forma de entrar na cama daquele cavaleiro.
O tom e o olhar dele fizeram-na sentir-se muito desconfortável.
– É bom que mencioneis Ian, já que as arras que pensais controlar através de mim agora lhe pertencem.
– Não se ele estiver morto.
Ela rodou na sela. – Vós não…
– Ainda não. Conto que venha atrás de vós, porém. Deixai-lo trazer a mesnada inteira, ou até mesmo metade do exército que Fitzwaryn reuniu, desde que ele próprio venha. – Inclinou-se e acariciou-lhe o rosto. Ela afastou-se enojada. – Tendes sangue de rameira, Reyna. Conto que lhe tenhais agradado o bastante para ele vir de facto resgatar-vos.
– Sois nojento por falardes assim da vossa irmã.
A mão ficou-lhe no rosto e voltou a afagar. – Porventura. Mas, afinal, vós não sois realmente minha irmã.

CAPÍTULO 22


Frio. Frio húmido e escuridão eterna. Vozes murmurando nas pedras, e mãos estendidas para ela, espicaçando-a. Risadas sumidas, agora mais baixas, próximas, e outras mãos, não a espicaçar mas a acariciá-la, convocando um novo terror que ela não compreendia. Uma nova voz, não a voz etérea de um espectro mas uma voz viva, rindo de prazer face ao seu medo. Não sois realmente minha irmã.
Ela encostava-se às pedras, sentindo tudo, ouvindo tudo, mas era diferente desta vez. A sua alma não experimentava nenhum do terror. Uma minúscula parte dela desta vez permanecia racional, observando o velho medo desdobrar-se à sua volta, dentro dela, como se observasse um espetáculo.
Pernas encostaram-se às suas e mãos seguraram nas dela.
Pernas reais e mãos reais, ancorando-a a um espaço e a um tempo, evitando que os seus sentidos escapassem ao seu controlo.
– Ele não pode manter-nos aqui para sempre – interferiu uma voz. Uma voz real. De quem? Ah! de Anna. – Nem sequer uma vela. Qual o propósito?
– Guarda-me aqui até Ian vir – Reyna ouviu-se dizer.
Certamente havia explicado isto antes, da primeira vez que acamparam e dormiram juntas com a espada de Anna no meio delas. Fazia uma eternidade, antes de a viagem as trazer até aqui uma noite, e Aymer as aprisionar a todas. Tinham-lhes trazido comida, parecia recordar-se, mas Aymer não havia regressado.
– Ainda assim, podia dar-nos velas. Esta cripta desassossega-me.
Sim, a cripta. Era onde estavam, aninhadas no chão de pedra, encostadas à parede fria. Se o sítio desassossegava até a corajosa Anna, talvez ela não precisasse de se sentir assim tão infantil.
A mão de Christiana segurou com mais força as dela. – Estais a portar-vos bem, Reyna – sossegou.
As vozes das pedras responderam com os seus murmúrios inaudíveis. Riso agudo feria-lhe os ouvidos. Ela agarrou-se à mão delicada de Christiana, lembrando-se vagamente desta a bater-lhe no rosto enquanto gritos de alguém enchiam a câmara pequena.
Ela reuniu coragem, a pouca que havia, e a sua alma escutou as vozes. Houvera algo familiar nelas da última vez, algo humano. Ela incitou-as a acometerem novamente sobre ela, e encostou as pernas às das amigas. Vinde, c’um raio.
E vieram. As pedras ecoando os seus murmúrios, o som convocando memórias há muito fragmentadas sob o terror.
Ela estava num sítio escuro e coisas invisíveis e pontiagudas tocavam-lhe uma e outra vez. Um dedo invisível contornava o seu corpo e um riso de rapaz comprazia-se com o seu medo. As próprias pedras ganharam mãos e braços, e sempre que ela se voltava estes estavam por trás dela, espetando-a até um aterrorizado frenesim. A sua própria voz gritava baixinho por ajuda e depois aquela voz jovem falou, subitamente entediada. Agora ficai aqui, ou os demónios apanham-vos. Vou lá fora ver.
Mas ela não ficou. Corria pela escuridão, atrás dos passos em retirada…
– Há quanto tempo achais que estamos aqui? – perguntou Anna.
Desde sempre, talvez. Não havia tempo, aqui. Uma hora podia ser uma semana, uma semana não mais que uma hora. A escuridão engolia o tempo.
– Pelas refeições, vários dias, mas durmo a espaços, e não sei dizer se é noite ou dia – respondeu Christiana.
Reyna ouvia as vozes suaves das suas companheiras. Ambas lhe agarravam ainda nas mãos e aquele aperto suave era muito real agora.
O espaço e o tempo haviam-se acertado. O espetáculo terminara, mas ela vira a fonte e a causa daquele horror. Talvez houvesse sido apenas uma brincadeira de crianças para Aymer, a princípio, mas o gosto do medo alimentara-lhe a crueldade ao longo dos anos. Não admirava que a sua alma se encolhesse perante a mera presença dele.
Contudo, ela sabia que havia mais. Algo provocava a sua mente, tentando-a como um dente doído em que se mexe apesar da dor.
Tratarei disto hoje, decidiu ferozmente. Verei tudo o que há e isto deixará de me governar.
Ela cravou os olhos na escuridão, incitando-a a avançar.
Libertando as mãos que seguravam as dela, abstraiu a sua mente da presença das companheiras.
A princípio, a escuridão saudou-a benignamente, um vazio oco, mas depois, lentamente, subtilmente, ganhou vida. As vozes surgiram de novo, baixas e distantes e não tão ameaçadoras. Até os gritos, que pareciam os seus, estavam longe. Ela corria, corria, na direção dos sons, seguindo o raspar de passadas.
Subitamente o medo era novo e fresco, e o coração que sentia dentro dela não era de mulher mas sim de criança. Ela corria como um raio, aliviada, em direção a uma qualquer luz na distância.
Arquejou quando o sol quase lhe cegou os olhos e a imagem horrível lhe preencheu a mente. Por um átimo, a imagem dela, inerte e morta, mãos pendendo ao lado do corpo, rosto contorcido e roxo, acendeu-se à sua frente. Não é isto. Este é o outro pesadelo, não é este.
Mãos esticaram-se para ela, afastando-a, de volta à escuridão.
Abanavam-na com dureza, e agarraram-lhe o rosto. – Estamos aqui. Estamos aqui – sossegou uma voz firme.
Anna apertava-a contra si e Christiana falava-lhe suavemente ao ouvido. Ela ficou assim por breves momentos, e depois afastou-se.
– Estou bem. Acabou. Não tornará a acontecer.
– Temos de a tirar daqui – disse Christiana.
– Sim, tendes de me tirar daqui, mas não por causa disto – disse Reyna. – Talvez Aymer procurasse pôr-me louca. Assim seria fácil fechar-me e esquecer-me, e quem se importaria? Mas não funcionou, nem funcionará. Acabou, digo-vos.
– Visto que isso é mais do que haveis dito desde que nos atiraram para aqui, sinto-me inclinada a acreditar em vós – replicou Anna.
– Mas, de todo o modo, temos de sair – repetiu Reyna. – Ele pretende matar Ian. O mais provável é ser um desafio para combate individual, mas ele terá um plano para assegurar a vitória, e não será uma luta justa. – Ela contemplou a situação precária delas. – A cripta fica por baixo da capela, que fica fora da muralha e perto da floresta. Pergunto-me se Duncan sabe sequer o que Aymer anda a fazer.
– Não importa. Se sairmos, corremos – atalhou Anna. –

Lembrais-vos destes montes, Reyna? Conseguis levar-nos para oeste?
– Penso que sim. Passou muito tempo, mas os caminhos não podem ter mudado muito.
– Como saímos? – perguntou Christiana. – Tentastes a porta depois de eles nos trazerem para aqui, Anna, e vistes que estava trancada. Sem dúvida há pelo menos um guarda lá fora, e eles tiraram-vos a espada.
– Esperemos que haja de facto um guarda – disse Anna. – Não mais do que um se tivermos sorte, porém. Se conseguirmos que ele abra a porta… Isto é uma cripta. Deve haver algo com que lhe bater. Um crucifixo, uma placa de pedra, alguma coisa…
Ergueu-se
e
começou
a
deambular
pelo
pequeno
compartimento. – Aqui está alguma coisa. Uma cruz de pedra. –
Grunhiu com o esforço e depois blasfemou. – É pesada de mais para mim. Detesto dizê-lo, mas bem nos fazia jeito um homem forte agora.
– Já que não cuidámos de trazer um, parece que estamos presas aqui – concluiu Christiana.
– Não. Atiramo-nos a ele todas de uma vez. Mas precisamos da porta aberta. Sois vós quem vais fazê-lo, Christiana. Oferecei-lhe um beijo ou algo assim. A oportunidade de ter uma condessa deve fazê-lo esquecer o dever.
– Ó, santos me acudam – murmurou Christiana. – Tomai tento para derrubar este guarda antes de chegar a um beijo que seja, quanto mais ou algo assim.
Elas juntaram-se e lá subiram as escadas. Christiana assumiu a sua posição, e Reyna e Anna encolheram-se contra a parede ao lado da escadaria.

Christiana arranhou a porta. – Por favor abri a porta por um breve momento, gentil senhor. Não me sinto bem de todo. As minhas companheiras perderam já os sentidos, e temo que todas morramos se não tivermos de imediato algum ar fresco.
A porta de carvalho abriu uma frincha, e uma luz ténue escorreu pelas escadas. A cabeça do guarda bloqueava parte dela.
– Podíeis abri-la apenas um pouco mais? Estou certa de que elas recobrarão com um pouco mais de ar. Se fordes generoso nisto, ficarei grata.
– Lamento condessa, mas as minhas ordens foram…
– Ficarei imensamente grata.
– Bom… se as senhoras estão assim tão mal – murmurou o guarda. – Não era intenção causar-vos dano.
O vulto do guarda desapareceu da frincha. Momentos depois, a porta abriu-se completamente e a sua forma escura encheu a entrada.
Elas investiram.

CAPÍTULO 23


Deitaram-no por terra, soterrado num emaranhado de corpos tenros, imerso num caos de mãos a agarrá-lo e membros a contorcerem-se e sussurros femininos excitados.
– Agarrai-lhe no braço da espada… não, esse é o meu, agarrai o dele.
– Alguém se sente no peito dele.
– Raios, este filho de uma égua é grande.
– Senhoras…
– Apanhei-lhe a espada…
– Senhoras.
O furação estacou a meio fôlego. Surpresas, três cabeças enluaradas viraram-se de rompante.
– Ian?
Ian identificou as várias mulheres esparramadas em cima dele. –
A pequena agarrada ao meu braço é minha mulher, e a grande que me encosta a espada à garganta deve ser Anna. Quer dizer que o traseiro que me esmaga o peito pertence à condessa de Senlis.
Quiçá, condessa, possais ter a amabilidade de…
O traseiro deslocou-se rapidamente. As mãos cerradas apartaram-se. Puseram-se todas em pé.
Anna devolveu-lhe a espada, e uma luz pálida refletiu-se nela.

Infelizmente, isso fez com que os seus homens viessem em seu socorro.
– Para trás! – sussurrou-lhes rispidamente Ian, aproximando-se de Reyna e puxando-a para a proteção do seu corpo.
Reyna derreteu-se de imediato no santuário do seu corpo, apertando-o contra si, enterrando o rosto no peito dele. Ele envolveu-a nos braços, apreciando a sensação da sua forma pequena e do seu calor de mulher. Ela estava aqui, muito viva e real, e o seu venturoso alívio igualava o dela.
Ele beijou-a na cabeça uma vez e outra enquanto encaminhava o grupo para fora da capela, para o abrigo das árvores.
– Agradeço-vos terdes distraído o guarda, Reyna. Debatia-me entre confrontá-lo e ver se vós estaríeis aprisionadas naquela cripta, ou limitar-me a marchar até à torre exigindo a vossa libertação. Em qualquer das hipóteses, teria tido os Graham todos em cima de mim.
– Como nos encontrastes?
– Soube por Paul que havíeis ido para Glasgow e que alguém fora atrás de vós. Quando lá cheguei encontrei Gregory, e ele contou-me o resto.
– Gregory está bem?
– Conseguiu voltar a Glasgow. Como eu não sabia em que estalagem havíeis ficado, decidi localizar-vos procurando por ele nas tavernas e lugares que tais. Encontrei-o no segundo bordel onde fui, esticado na cama como um príncipe, com as rameiras a deleitarem-se com a oportunidade de brincar às mães e enfermeiras.
Anna chegou-se para mais perto. – Imagino que não haveis trazido mais cavalos? Já que há pouco não fomos muito silenciosas, em breve andarão à nossa procura.
– Trouxe, mas deixei-os a caminho. Cavalgámos sem parar e mudámos para os cavalos mais descansados quando os nossos não conseguiam ir mais longe. As senhoras terão de se emparelhar connosco. Os cavalos não estão longe.
– Não é Duncan que está a fazer isto, mas apenas Aymer, tenho quase a certeza – disse Reyna. Se ele vier, pode ter apenas os homens que levou para Glasgow, e não aqueles que ainda são leais ao meu pai.
– Duncan decerto deve ter sabido que vós estáveis ali.
– Aymer nunca nos levou para dentro da muralha, deixou-nos imediatamente na cripta. Duncan pode não estar ao corrente.
A mão dele apertou-se mais no seu ombro. Ele estivera preocupado com maus-tratos físicos, mas dias na cripta podiam tê-
la maltratado de formas que varas e punhos nunca conseguiriam. –
Vós… como…
– Não recordo muito, mas Anna e Christiana ajudaram-me. Por fim, consegui enfrentar tudo. Foi muito o que se tornou claro.
Tenho tanto a dizer-vos.
– E eu tenho muito a dizer-vos, mulher. – Voltou a sentir o travo da preocupação que se apossara dele enquanto corria a toda a brida pelos montes, descuidando segurança e prudência ao cavalgar por terras Armstrong para ganhar tempo. – Foi-vos dito que ficásseis em Carlisle.
Ela aconchegou-se contra ele de forma tão amorosa que o pico de raiva foi pequeno e breve. – Foi idiota, Ian, não o negarei. E, contudo, aprendi tanto. Penso que sei quem matou Robert.
– Aymer?
Um aceno de assentimento. – Perguntei-lhe e ele não o negou.

Admitiu que se tivesse os meios o teria feito. Por dinheiro, um dos criados ou guardas podia ter aplicado o veneno por ele. Planeava matar-vos quando viésseis buscar-me, para que as arras ficassem sob seu controlo.
– Faz sentido. Terra, para mais estratégica. A explicação mais simples, e a mais antiga do mundo.
Quando alcançaram os cavalos, Ian indicou a dois homens que levassem as outras senhoras atrás deles.
– Será mais rápido se formos para oeste, na direção de Black Lyne – disse, erguendo Reyna para a sua própria montada. – Enviei uma mensagem a Morvan, de Glasgow, e se a ajuda chegar, virá por aí. Conheceis estes caminhos suficientemente bem para nos guiar?
– Reconheço o sítio onde estamos. Penso que consigo fazê-lo.
Ele alçou-se para trás dela. Do outro lado da clareira, Christiana agradecia ao seu soldado pela generosidade em partilhar o seu cavalo, e Anna criticava o dela pela forma como se sentava na sela.
Ian pegou nas rédeas e rodeou Reyna com o braço. Apertou-a contra si e beijou-lhe o pescoço. – Tenho muito para vos dizer, mulher, e nem tudo são repreensões – murmurou. – Ficarei sempre em dívida com as senhoras por terem ficado convosco. Agradeço a Deus por vos entregar a mim em segurança.
Ela virou-se para aceitar o beijo que aguardava. – Chamais-me muito isso. Mulher. Sempre me perguntei porquê.
– Sois minha mulher.
– Presumi que era porque precisáveis de vos acostumar à ideia.
Ele riu-se. – Isso também, mas descobri que gosto do som. E é algo que nunca chamei a mulher nenhuma antes. Mas se preferirdes, emprego outros predicados. – Beijou-lhe a face. – Querida. –

Encostou-lhe os lábios à fonte. – Doçura. – A boca dele encontrou-lhe a orelha. – Meu amor.
Ela encostou-se a ele com um suspiro satisfeito. – Sim, mas mulher serve, Ian, especialmente por ser só meu.
– Vamos, Reyna. Devagar, para estardes certa. Não queremos perder-nos nestas colinas.
Viajaram toda a noite sem parar para descansar. Ian notou que Reyna fazia as suas escolhas de caminhos valendo-se mais do instinto do que da certeza, confiando que os seus passeios de infância lhe teriam gravado o trajeto na memória. Na quietude absoluta, prenúncio da madrugada, ouviram por fim o som de cavalos no seu encalço, e puxaram mais pelos seus num esforço de chegar a Black Lyne antes de Aymer os alcançar.
Poderia ter resultado se os caminhos dessem diretamente para o descampado que ficava por detrás de Black Lyne, mas afinal o percurso desembocou mais para sul, perto do velho castelo.
Subitamente, cavalgavam disparados pelo baldio numa velocidade temerária, fugindo da companhia que os perseguia. Os seus cavalos tumultuaram pelo fosso da velha fortaleza abaixo e subiram a colina, quando a cabeça ruiva de Aymer emergiu no topo da elevação do baldio.
Ian espreitou os homens que desciam com Aymer a escarpa.
Não mais de uma dúzia. Reyna estava certa: Aymer fazia isto sozinho.
Saltou do cavalo, desceu Reyna e gritou aos homens que se espalhassem pela circunferência do topo da colina com os seus arcos.

Ao longe, avistava-se o vulto de Black Lyne. Não havia possibilidade de ajuda de lá. Apenas uns poucos homens permaneciam no interior da fortaleza fechada, com ordem expressa de lá ficarem.
Mais abaixo, Aymer também distribuía os seus homens à volta da elevação do velho castelo. Tinha mais com ele, mas também um círculo maior a cobrir.
– Se disserdes a um dos vossos homens para me dar o arco dele, tentarei equilibrar os números – disse Anna.
– São arcos galeses, de mais para uma mulher.
– Há alguns anos que uso um arco galês, Ian. Desta distância, devo acertar no meu alvo três vezes em cinco. Alguns braços e pernas em mau estado farão Aymer pensar duas vezes em atacar.
Ele olhou para aquela mulher, com o seu emaranhado de caracóis a esvoaçar, selvagens, ao redor da cabeça e do corpo. Se ela dizia que acertava no alvo três vezes em cinco, ele acreditava nela. Chamando o homem mais próximo, ordenou-lhe que cedesse o arco.
Reyna aconchegou-se perto dele por trás de uma pedra larga que servia de proteção a ataques semelhantes vindos de baixo.
Aymer e os seus homens, pensando estar fora de alcance, espalharam-se em redor do fosso da paliçada. Anna testou a tensão do arco e depois encaixou nele uma seta. Contornando rapidamente as pedras até à ponta da colina, puxou a corda até à orelha. Um segundo depois, um grito de blasfémia ecoava na neblina da madrugada.
– Ela é verdadeiramente magnífica, não é? – disse Reyna com admiração enquanto Anna transportava o arco para o outro lado da colina. – Devíeis ter visto a reação que os homens de Aymer lhe tiveram. Era um desafio que eles se viam em pulgas para enfrentar.
Consigo compreender a razão pela qual eles… vós…
– Vós constituis um desafio muito mais interessante do que ela alguma vez foi. Para mim, ela foi um meio que serviu um fim, e não um muito nobre, diga-se. Mas ela e eu temos algo em comum, penso eu. Ela nasceu para um homem, e encontrou-o. Eu nasci para uma mulher, e por graça de Deus encontrei-a.
A afirmação foi recebida por uma quietude absoluta. Ele afastou o olhar de Aymer e dos seus homens, e viu a sua expressão perplexa. Sorriu e passou-lhe o dedo pelo queixo. – Bom, ou foi graça de Deus ou foi obra do Diabo, mas se foi do Diabo, ele não contou que me roubásseis o coração, portanto os seus planos para me confinar à perdição saíram gorados.
Ela colocou os braços à volta dele e ele puxou-a mais para si.
Que lugar e altura tão estranhos para ele lho dizer, mas pareceu certo e natural.
– Acho que o meu corpo podia flutuar e o meu coração rebentar neste exato momento – disse ela. – Amo-vos tanto, Ian.
– E eu amo-vos a vós. Absorvestes a minha alma despedaçada com a beleza da vossa, mas é um lugar estimulante para se ser feito prisioneiro. Desde o início que me desafiastes a ser melhor do que sou. Nenhuma outra mulher me poderia ter insultado como vós fizestes, forçando-me a ver no que me havia tornado, e depois ofertado o amor e a amizade necessários para me resgatar.
– Não, Ian, não… Foi só segurança que procurei naquelas palavras… vós não sois…
– Palavras verdadeiras, Reyna. – Mais verdadeiras do que ela sabia. Sobreviveria o seu amor ao conhecimento de tudo? Agora não. Noutra altura. Talvez. – Eu estava rapidamente a caminho de me tornar o pior dos homens, e vós havíeis conhecido o melhor.
Devo avisar-vos, porém, que, por muito que me esforce, nunca serei um Robert de Kelso.
Ela ergueu uns olhos envergonhados. – Pois, Ian, a bem ver, nem Robert de Kelso foi sempre um Robert de Kelso. – Falou-lhe da conversa com Anselm, e a razão da carta de Robert. – Eram os livros, Ian. Foram roubados.
– Tendes a certeza?
– Não pode ser mais nada.
– Não o julgueis com demasiada dureza. É costume haver saque a seguir a batalhas e cercos. Ninguém o considera roubo.
– Mas não se trata de sedas, nem joias, nem prata. São livros.
Quem teria coisas destas a não ser clérigos? Não, não me deixarei enganar. Robert tirou-os à Igreja, um crime sério mesmo em guerra, e procurou devolvê-los para expiar a sua ofensa.
Ele franziu o sobrolho. – David disse que eram muito valiosos.
Pergunto-me quão valiosos.
– Segundo o que soube em Glasgow, pelo menos três ou quatro mil libras.
Quatro mil libras. Não admira que David estivesse hesitante em reconhecer que Reyna tivesse direito a qualquer um deles.
Mudava tudo. O futuro que eles podiam ter e a segurança que conheceriam. Sabê-lo era como descobrir um tesouro escondido.
Não venderiam aqueles de que Reyna gostava, claro, a não ser que a má sorte o comandasse, mas a mera existência daquela proteção contra alguma desdita afetaria muitas outras escolhas.
Olhou para ela com alegria.
Ela respondeu-lhe com olhos bem abertos, inocentes.
Ele adivinhou o significado daquela expressão esperançada, sincera, e esperou verdadeiramente estar enganado. – Quereis mandá-los para o bispo seja como for, não é verdade?
Ela mordeu o lábio inferior e assentiu com a cabeça.
Ele suspirou, e o breve sonho de riqueza foi levado pelo ar. –
Diabos, convosco não é fácil ser bom, Reyna. Quatro mil libras.
Raios.
*
Morvan chegou dois dias depois, quando o sol ia alto no céu.
Os que estavam no cimo da colina viram primeiro a companhia assomar ao horizonte distante, mas o som rapidamente chegou lá a baixo, a Aymer.
Espreitando detrás da pedra grande, Reyna viu o irmão esticar-se para ver a fonte do estrupido e depois ficar muito quieto e rígido quando o paul se encheu de homens, armaduras e cavalos.
Aymer gritou para os seus homens e todos pegaram apressados nos cavalos, montando e levando consigo os feridos. O pequeno grupo da torre gritou zombarias enquanto a cabeça ruiva partia disparada na direção pela qual viera. Em seguida, Ian foi até à ponta da colina e saudou o exército que chegava. Ordenou a um homem que descesse no cavalo mais veloz para lhes dizer que as senhoras estavam a salvo.
O mensageiro chegou ao exército e este deteve-se.
– Morvan está ali. Estou a vê-lo. E David também – disse Christiana. – Ó Céus…
– Devem estar um bocadinho zangados – admitiu Anna.
– Um bocadinho? Por causa da vossa obstinação eles desfizeram o cerco, trouxeram metade do exército, e agora ao que parece nem precisamos de grande salvamento, e pensais que eles podem estar um bocadinho zangados?
– A minha obstinação? Sois…
Ian interrompeu-as com um sorriso endiabrado. – Ah, agora que penso nisso, Morvan transmitiu-me uma mensagem para vós. Com toda a agitação, esqueci-me.
– Que mensagem?
– Devia dizer-vos que ele estava muito desagradado por terdes saído de Carlisle. Estava furioso com a vossa desobediência.
Começou a andar de um lado para o outro com aquele olhar sombrio com que fica, ameaçando trancar-vos de vez, jurando que garantiria que não pudésseis sentar-vos confortavelmente durante um mês…
Vários dos homens trouxeram cavalos. À distância, dois homens altos desmontaram e adiantaram-se ao exército. Morvan cruzou os braços sobre o peito e David colocou as mãos nas ancas, e ambos aguardaram, comunicando eloquentemente o seu desagrado pela postura.
– Não tem nada bom aspeto, irmã – murmurou Christiana quando Ian a ajudava a subir para a sela. – Precisaremos de um estratagema muito ardiloso para nos esquivarmos.
Anna alçou-se para o cavalo. – Não foi realmente obstinação, se pensarmos no assunto, mas sim cavalheirismo. Reyna propôs a viagem. Dificilmente poderíamos deixá-la ir só.
– Oh, eles já sabem disso, mas não aplacou Morvan em nada –
explicou Ian. – Ele pensa que vós devíeis tê-la detido. Além disso, como é próprio, deixou a mim o castigo dela.
Lançou a Reyna um olhar de que ela não gostou muito. Má sorte a dela que, desvanecendo-se o alívio por a ter encontrado sã e salva, aparecessem estes maridos querendo acertar contas e relembrando-lhe que ele tinha o seu próprio livro-mestre para balancear.
Uma vez sentada no cavalo, dirigiu-se a Christiana. – Que ardiloso estratagema tencionais utilizar? – sussurrou.
– Bem, não tenciono cozinhar-lhe uma refeição nem ler-lhe filosofia, Reyna. Talvez tenha de usar aquele jogo sarraceno que vos descrevi naquela noite em que o vinho nos fez tontas em Carlisle.
Fizeram caminho até onde o exército aguardava. As senhoras refrearam os cavalos a cinquenta metros de distância.
Morvan avançou a passos largos. – Vejo que as encontrastes a todas bem, Ian.
– Sim. Acabou por se revelar uma muito pequena aventura, embora a vossa chegada tenha simplificado a última parte. De outra forma, poderia ter tido de matar Aymer, e todos nós gostaríamos de o evitar. – Ian procurava a ligeireza, mas sem sucesso. Os olhos faiscantes de Morvan não haviam arrefecido nem um pouco.
Morvan dispensou a irmã com um olhar afiado. – O vosso marido aguarda.
Christiana olhou lamentosa para Anna antes de se afastar a cavalo, mas Anna não a viu. Tinha o olhar cravado no do marido, desafiante.
Morvan avançou até estar ao lado dela. – Haveis feito por vos divertir?
– Estou completamente ilesa, e agradeço-vos perguntardes. Sem o mínimo desconforto.
A expressão dele respondeu, silenciosa, ainda não. – Imagino que tenhais deixado a fortaleza de Duncan de pé. Ou havei-la deitado por terra?
– Conseguimos escapar sem o fazer. Tanto pior.
Reyna revirou os olhos. De todos os estratagemas que conseguia imaginar, provocar um marido irritado não lhe pareceu o mais engenhoso.
– Voltamos imediatamente para Carlisle? – perguntou Anna. –
Espero que não planeeis aguardar até de manhã em Black Lyne, Morvan. A excitação deste périplo teve em mim o mais surpreendente dos efeitos, e dou por mim muito inquieta. Uma boa cavalgada parece-me o ideal.
Ele não se mexeu e a sua expressão não mudou, mas entrou-lhe uma luz diferente no olhar. – Vindes todas connosco, mas não regressamos a Carlisle. Vamos diretos a Harclow, onde nos espera trabalho que não pode ser adiado. – Pousou-lhe uma mão no joelho. – A longa cavalgada deve tratar da vossa inquietação.
A mão de Anna deslizou sobre a do marido. – Duvido.
Reyna e Ian afastaram os cavalos, na altura exata em que Morvan esticava os braços para puxar Anna para o seu beijo.
Perto do exército, Christiana estava enrolada nos braços de David, com os olhos erguidos para ele, falando-lhe sincera. O amor cru nos olhos azuis do conde sugeria que ele aceitaria o que quer que a mulher lhe dissesse.
A aproximação de Ian e Reyna desfez o abraço. Christiana voltou a montar e um escudeiro trouxe o cavalo a David.
– Morvan disse que vamos diretos para Harclow – anunciou Ian.
– Sim. Teríamos chegado mais cedo, mas o vosso homem chegou mesmo no meio de uma investida, ontem de manhã –
explicou David. – Estamos dentro da primeira muralha, Ian.
– Como…

– Usámos o nosso plano. Lamento não termos podido esperar por vós, mas a oportunidade era boa de mais para que a deixássemos escapar. Rebentou uma tempestade enorme, poucas horas antes do raiar do dia. A muralha quase não tinha homens, e nós estávamos quase a meio do lago quando eles repararam no que estava a acontecer. Os primeiros homens usaram os machados para atravessar a barreira de madeira que tapava o buraco feito pelas armas, enquanto os que estavam nas jangadas usavam os arcos para os protegerem. Uma vez no interior, batemo-nos para abrir caminho até ao portão antes de caírem demasiados dos nossos.
– Maccus render-se-á?
– Quer negociar, e enviou-nos condições. Morvan decidiu deixá-lo em banho-maria enquanto lidávamos com este outro problema.
Morvan e Anna juntaram-se a eles e todos cavalgaram para a cauda do exército. – David contou-vos? – perguntou Morvan.
– Sim. Disse que Maccus tem condições, porém.
– As predizíveis. A segurança dos cavaleiros e soldados e outros que tais. Recusei considerá-las até ele se render, e na sua maior parte ele irá colocá-las de lado e abrirá o portão.
Reyna seguia à distância de dois cavalos. Esticou-se na sua montada até conseguir vê-lo. – Morvan, poderei falar com Maccus Armstrong, depois de ele se render? Tenho algumas perguntas que me ocorreram durante esta viagem, e ele talvez possa responder-lhes.
Morvan olhou para o horizonte a oeste. – O vosso pedido é muito interessante, Reyna. Porque uma das condições de Maccus Armstrong não era de todo previsível, e eu pressenti que é o único ponto em que ele não cederá. – Volveu para ela o olhar. – O velho Maccus não se renderá até lhe entregarmos a viúva de Robert de Kelso.

CAPÍTULO 24


Reyna estava no adarve atrás do corpo couraçado de Ian. David também fazia parte do seu escudo humano, e Anna estava por perto, empunhando o seu arco, para responder a qualquer movimento que os ameaçasse vindo da muralha fronteira. Outros arqueiros estavam dispostos para o mesmo propósito, mas a sua amiga insistira em ficar a seu lado, e Morvan avisara que qualquer seta errante que chegasse à mulher significaria a morte de todos os homens do castelo.
Maccus exigira que Reyna fosse transferida para a sua custódia a bem da segurança dela, mas Morvan recusara. Reyna considerou tudo aquilo muito cavalheiresco, já que este único ponto era o que o impedia de resgatar a honra da família. Visto que Maccus mencionara a segurança dela, Morvan oferecera-se para deixá-lo ver por si próprio que ela estava presente e incólume, apesar de ninguém acreditar que a segurança de Reyna fosse de todo o objetivo de Maccus.
– Ali está ele – disse Ian. Reyna espreitou por cima do ombro dele para o portão ao longe. No cimo de uma das torres, apareceu um homem de cabelos brancos. – Eu afastar-me-ei, mas mantende-vos atrás do escudo de David e do meu.
Ele fê-lo, segurando o escudo ao lado do de David, para ambos formarem um muro de aço. Reyna encostou-se a eles e enfrentou o escrutínio distante do amigo e senhor de Robert. A cabeça branca olhou na direção dela e abateu-se silêncio sobre o castelo. Mais abaixo, Morvan Fitzwaryn estava sozinho no pátio exterior, protegido apenas pela sua armadura.
Maccus Armstrong ergueu o braço num gesto largo. Corpos começaram a deixar as ameias ao seu redor. Em breve, não se via um único soldado ou arqueiro Armstrong. Maccus aguardou até o último sair e depois a sua cabeça desapareceu.
Anna correu para as escadas da muralha. Reyna e os homens seguiram-na e reuniram-se à multidão expectante que se reunia no pátio. Lentamente, a grade subiu.
Ian manteve a mão em cima do ombro dela enquanto esperavam entre o círculo à volta de Morvan. A garganta de Reyna ardia-lhe, e ela sabia que estas emoções eram prova das suas lealdades divididas. Sentia júbilo por Christiana e Morvan, que há tanto tempo haviam sido expulsos do seu lar, mas também angústia pelo próprio Maccus, que fora amigo querido de Robert e instrumento de tudo o que havia sido bom na sua vida.
De súbito, apareceu uma figura solitária no pátio para lá do portão. Maccus avançava sem hesitação. A multidão afastou-se para lhe dar passagem e ele caminhou até Morvan, desembainhou silenciosamente a espada e entregou-lha.
Maccus era um homem robusto e a sua figura ainda impressionava, apesar dos seus mais de sessenta anos. Olhou Morvan de frente, estudando-o com perspicácia. – Tendes os olhos e a cor da vossa mãe, mas lutais como Hugh, isso é certo.
– Eu não o saberia. Ele morreu quando eu era ainda criança.
– É um facto, e ambos sabemos que foi um dos meus arqueiros que o atingiu. Mas é assim que a guerra se faz.
Morvan assentiu com a cabeça. – Sim. Melhor teria sido para vós, a longo prazo, que tivésseis matado também o filho.
– Não mato crianças. Além disso, vós éreis um rapaz promissor.
Teria sido um desperdício. – Olhou em redor e sorriu de pena. –
Embora, dadas as circunstâncias…
Algo parecido a um sorriso aligeirou a expressão de Morvan. –
Visto que fostes generoso na vitória, é o mínimo que posso fazer.
Qualquer homem que jure ficar a norte das fronteiras das nossas terras pode sair imediatamente para ser escoltado até Clivedale.
Vós ficareis aqui até ser pago o resgate que eu definirei.
– E Lady Reyna?
Morvan abanou a cabeça. – Preocupáveis-vos com a sua segurança. Estará em segurança connosco.
– Houve acusações sobre ela.
– Estamos cientes delas.
Reyna sentiu-se corar quando olhares na multidão dispararam na sua direção.
– Não são verdadeiras, essas histórias de ela matar Robert –
atirou Maccus.
– O vosso sobrinho Thomas pensa de outra forma.
– Thomas é um asno. Disparates, tudo. Qualquer pessoa que os conhecesse, a ele e a ela, sabia-o. Preparava-me para lhes pôr um fim quando me apanhastes aqui. Preocupou-me que Thomas fizesse alguma estupidez enquanto eu estava aqui preso. Em todo o caso, é melhor ficardes com ela até o meu resgate ser pago. Depois eu levo-a para Clivedale e ponho tudo em pratos limpos.
Reyna olhava aparvalhada para aquele anúncio público da sua inocência, vindo do homem que ela tivera a certeza de querer enviá-la para a morte.
– Ela não irá para Clivedale – esclareceu Morvan.
– Se não ma derdes, melhor será jurardes pela segurança dela, Fitzwaryn. Não deixarei que a julgueis e ouçais as pessoas tecer as tramas delas, recordando-se de coisas que nunca ouviram e assim.
Ela é uma Graham, sabeis disso, e há sentimentos antigos a respeito disso.
– O interesse de todos pela senhora tem-me deixado perplexo desde o início, Maccus. Qual é a razão do vosso?
– Devo-o a Robert.
– Um homem bom, Robert de Kelso. Mas o seu novo marido também é um homem bom. Ele jurará pela segurança dela, e se vós jurardes pela sua inocência, não sinto inclinação para a apresentar a julgamento.
Maccus parecia tão perplexo com esta declaração como Reyna havia ficado com a dele. Ele perscrutou a multidão até deparar com ela. Virando-se abruptamente, aproximou-se com passadas vigorosas e baixou os olhos, para em seguida estudar Ian. – Desejo falar convosco – disse com brusquidão.
Ian assentiu com a cabeça. – Era o que me parecia. E Reyna deseja falar convosco.
Aqui, alguns cavaleiros levaram Maccus. Morvan foi até ao portão interior e uma nova quietude caiu sobre a multidão.
Detendo-se, olhou para trás e chamou Anna e Christiana para perto de si.
Com a mulher e a irmã a seu lado, voltou a entrar em Harclow.
Reyna virou-se para Ian, enquanto a multidão entrava pelo portão. – Foi surpreendente, Maccus a defender-me daquela maneira.

– Foi?
– Talvez não – admitiu ela. Viu o seu olhar sério. – Há quanto tempo sabeis?
– Não sabia nada. Mas há algum tempo que me pergunto.
– Sois mais rápido do que eu. Passou uma vida inteira até começar a perguntar-me.
– Talvez devais ficar-vos pelas perguntas. Estais certa de que quereis saber de facto? Tudo?
– É o tudo que preciso de saber e penso que só Maccus pode dizer-me a verdade.
– Então falemos com ele, Reyna.
Depararam com Maccus num pequeno quarto. Dera a sua palavra e nenhum homem guardava a porta destrancada.
Estava perto da lareira, numa pose pensativa, mãos atrás das costas, de olhar fito em chamas que não existiam. Ao longo dos anos, Reyna viera a conhecê-lo bastante bem, mas ele sempre se mostrara um pouco distante no tratamento com ela. Era diferente com Robert, e ela ouvira muitas vezes o riso dos dois para lá da porta dos aposentos do marido.
Eles entraram e ele virou-se e examinou-a atentamente. – Não levastes muito tempo, rapariga. Robert mal arrefeceu.
– Bom, ela não teve grande escolha, Maccus. Ou era eu ou voltava para Duncan – disse Ian.
– Uma escolha dos diabos, isso é certo – resmoneou Maccus. –
Soube um pouco de vós dos cavaleiros que me trouxeram até aqui.
Tomastes Black Lyne, dizem eles, e agora está-vos destinado.
Nada mau para um verão de trabalho, Ian de Guilford. Contudo, se está feito, está feito. Eu planeara dá-la a outro homem, mas se ela estiver satisfeita, aceito-o. Um cavaleiro inglês, para mais. Diabos.

– Estou mais do que satisfeita – afirmou Reyna. – E ainda bem que assim é, pois não me teríeis encontrado disposta a ser dada a um qualquer homem por vossa vontade, caso este verão se tivesse desenrolado de forma diferente. Aos vinte e quatro anos, estou cansada de ser movida como uma peça de xadrez e mantida na ignorância.
Maccus mostrou surpresa e em seguida sorriu. – Robert sempre disse que vós tínheis mais espírito do que eu via. Bom, unistes a vossa sorte à destes ingleses e à deste homem, por isso espero que vos convenha. Se assim for, habituar-me-ei à ideia.
– Convir-me-á. Mas agora desejo saber algumas coisas. Sou uma mulher adulta, e tenho direito a saber, penso eu. – Escolheu cuidadosamente as palavras. – Aymer Graham disse que não sou verdadeiramente irmã dele. Não penso que ele se referisse apenas ao facto de sermos meios-irmãos, não pela forma como ele o disse.
– Ela ergueu os ombros e olhou Maccus nos olhos. – Quem era o meu pai?
Ele assumiu uma expressão consternada, parecendo envelhecer subitamente.
– Robert? – sussurrou ela.
– Robert! Diabos, rapariga, quem pensais que o homem era?
Robert nunca se casaria com a própria filha.
– Então quem? Foi mesmo Duncan?
– Duncan Graham devia rezar para conseguir fazer com uma mulher alguém do vosso calibre. Não, não foi Duncan. E nenhum cavaleiro dele, digam o que disserem da vossa mãe naquele lugar.
Foi Jamie. James, o meu rapaz, era vosso pai. Duncan sempre suspeitou mas nunca teve a certeza, mas a vossa mãe sabia, e Jamie também.

– James Armstrong? Eu sei que eles diziam que ele havia sido amante dela mais tarde, mas…
– Muito tempo, quase desde que ela veio para estas partes. Eles conheceram-se logo. Nessa altura, as famílias não eram inimigas. –
Ele virou a cara, o olhar procurando novamente a lareira vazia. –
Avisei-o que não o fizesse. Disse-lhe que de lá só viria mal. Bem, ele era jovem… contudo, podia ter continuado como estava, só que ela viu aonde iam parar as coisas para vós. Consigo própria ela não se importava, mas convosco… Jamie decidiu levar-vos às duas. Duncan descobriu, apanhou-os logo depois do baldio, perto do velho castelo. Enforcou o meu rapaz como um ladrão ali mesmo, e deixou-o lá. Robert encontrou o corpo dele.
Memórias da cripta avançaram subitamente sobre ela, insinuando-se na sua mente. Frio. Frio húmido e medo. Dedos a espicaçá-la e um rapaz a rir. Ficai aqui, ou os demónios apanham-vos. Vou lá fora ver.
– Nós retaliámos, depois eles também, e tudo se agravou, como acontece com estas coisas. Robert por vezes falava comigo, incitando-me a dar tréguas, falando-me do sofrimento do povo, mas eu não o ouvia. Olho por olho, diz a Bíblia, e eu aguardava que Aymer se fizesse homem e recebesse as esporas. Não mato crianças, mas quando ele crescesse, eu planeava acertar contas com Duncan da única forma que podiam finalmente ser acertadas.
Correndo. Correndo. Na direção das vozes e gritos que resvalavam pelo negrume e pelas pedras, seguindo atrás dos passos em retirada.
– Depois soube como se passavam as coisas convosco. Nunca vos vira, mas éreis filha de Jamie. E então comecei a dar ouvidos a Robert, e começámos a pensar em formas de vos tirar de lá.

Luz ali à frente. Mais devagar agora, aproximando-se cuidadosamente.
– Duncan concordou apenas por causa de Aymer. Ele sabia que eu aguardava que o rapaz crescesse. Começou a negociar com vontade quando Aymer fez dezoito anos. Fi-lo dar aquelas terras de dote porque ele não dava realmente uma filha. Ele concordou porque seria Robert quem ficaria na sua posse, e ele sabia que ele era honrado. E assim tivemos alguma paz e livrámo-vos dele…
A imagem dela própria, enforcada…
Reyna fitou Maccus, aturdida, imagens e emoções revoltas toldando-lhe a visão. – E a minha mãe? Onde está ela?
– Ele enfiou-a num convento.
– Não, não me parece. Robert ter-me-ia levado lá quando lhe pedi, se ele o houvesse feito.
Ela aproximou-se de Maccus. – Achais que uma criança esquece tais coisas para sempre? Se uma mão lhe tapou os olhos, que ela não vê? Que se o mundo ficar silencioso ela nunca recorda?
– Cerrou os punhos até as unhas lhe entrarem na carne. – Durante a minha vida inteira, a minha alma lembrou. Nestes últimos meses, quando alguém falava do meu julgamento, via-me a mim própria enforcada, inerte. Pensei que fosse uma premonição da minha própria morte, mas não o era. Não sou eu quem está enforcada naquele pesadelo. Ele matou-a, também, não foi? Não foi?
Ela só reparou que começara a gritar quando sentiu a presença de Ian atrás dela, e o braço dele à volta da sua cintura. – Tende calma, amor – disse ele suavemente.
O semblante de Maccus encheu-se de angústia. – Não soubemos de facto. Robert encontrou apenas Jamie, mas viu indícios de que talvez outra… E ela não está na tal abadia, não a viver, de qualquer forma, porque eu fui até lá ver se poderia ajudá-
la. Penso que Duncan se arrependeu no momento em que o fez.
Antigamente, podia-se punir dessa forma uma mulher infiel, mas agora é considerado crime. Até aos seus foi dito que ele a desterrou em algum lado.
As forças dela deixaram-na. Voltou-se para o amparo de Ian e ouviu-o vagamente sussurrar-lhe palavras de apoio ao ouvido.
– Sois filha de Jamie – disse Maccus. – Minha neta. Se alguma vez precisardes de mim, sabeis onde me encontrar.
Uma nota na voz dele penetrou a sua exaustão. Ela virou-se e viu a esperança fugidia nos olhos dele. Foi até ele e abraçou-o. –
Fizestes o melhor por mim, avô, e foi mais do que alguma vez pensastes.
As mãos dele ampararam-lhe a cabeça. – Bem, rapariga, é bom poder reconhecer-vos. – Pegou nas mãos dela, beijando-as. –
Tende a bondade de nos deixardes agora. Preciso de avisar este cavaleiro inglês para tomar conta de vós se não quiser defrontar o clã Armstrong inteiro.
Ela beijou-o, encaminhando-se depois para a porta. – Vou trazer-vos John, Ian, e encontrar um quarto onde possais retirar a armadura.
Maccus observou-a ir-se embora, ficando alguns momentos mais a olhar para a porta. Quando finalmente se virou para Ian, uma centelha matreira luzia-lhe no olhar. – Bom, Ian de Guilford, este casamento é uma surpresa interessante para mim, e esta conversa é ainda mais interessante para vós, aposto.
– Não é muito surpreendente. É raro os homens tratarem os do seu sangue da forma que Duncan a tratava, e eu ouvira a história da morte do vosso filho. Mas, dado que sois avô dela, é útil que aproveis o nosso casamento.
– Oh, aceito-o. Que escolha tenho eu? – Indicou o quarto com uma risada. – Mas se fosse a vós, não repetiria isto a ninguém.
Quando Fitzwaryn vos ofereceu Black Lyne, não contava que entrásseis numa aliança com os Armstrong pelo casamento, pois não?
– Não. Ainda assim, di-lo-ei a Morvan. Casado com uma Armstrong ou não, sou um homem dele. Ele pode gostar da ideia e baixar-vos o resgate. Quais são as hipóteses de tentardes atacar Harclow se primeiro tendes de tomar o castelo onde vive a vossa neta?
Maccus deu uma risada. – Quem sabe, daqui a vinte anos…
– Daqui a vinte anos vós estareis morto e Duncan estará morto e os Armstrong e os Fitzwaryn estarão todos os dias em cuidados por causa de Aymer Graham. Esta aliança poderá revelar-se muito útil no futuro. Até lá, Black Lyne continuará como era com Robert de Kelso, terras que separam três famílias, na posse de um homem fiel a uma e casado com a filha de outra. Funcionou antes.
Deixemos que volte a funcionar.
Maccus ponderou e assentiu com a cabeça. Depois olhou para a porta, e franziu o sobrolho. – Falando de Robert… onde achais que ela foi buscar aquela ideia absurda de que ele podia ser pai dela?
– Não é assim tão absurda, uma vez que ela ainda era virgem quando ele morreu.
– Não mo digais. Não admira… Bom, Robert nunca teve muitas aventuras com mulheres. Um bom amigo, mas não um daqueles que iam aos prostíbulos e lugares que tais quando éramos novos…
Maldição! As terras dotais. Se ele nunca…

– Muito poucos o sabem, e todos temos as nossas razões para guardar silêncio – aplacou Ian. – Eu gostaria que deixásseis as pessoas saber da vossa relação com Reyna. Ela não será julgada pela morte de Robert, mas muitos ainda suspeitam dela. Também é improvável que o verdadeiro assassino alguma vez enfrente a justiça. Se se souber que ela é vossa neta, terminarão os sussurros.
Ian despediu-se de Maccus e foi procurar Reyna. Encontrou-a, mais John, num quarto, despejando para a lareira a palha de um colchão.
– Há mais de um mês que não havia aqui mulheres ou criados –
resmungou Reyna. – A torre está nojenta, a palha pejada de insetos.
– Tirai-me esta armadura, John. Há dias que vivo dentro dela.
Reyna encontrara uma vassoura e começou a varrer, enquanto malha e placas retiniam no chão. Ian observava o seu pequeno corpo mexer-se nas suas lides, dobrando-se e esticando-se, enquanto ela resmungava acerca dos homens que viviam em condições daquelas. Tinha o vestido sujo por ter estado na cripta e o cabelo solto e emaranhado, mas ele achou que ela estava simplesmente maravilhosa.
– Morvan está à minha procura, John?
– Não. Organiza os soldados, e Sir David regateia provisões com os mercadores como um intendente. Os cavaleiros de Maccus tiveram de deixar cavalos e armaduras, e a nossa companhia ficou com alguns, por isso estão satisfeitos, embora Morvan planeie pagar-lhes e dispensá-los em breve. Não é preciso dois mil para manter um castelo depois de ele ser tomado.
Ian lembrou-se de que devia falar com certos membros da companhia para ver se quereriam ficar em Black Lyne, mas sem desviar nunca o olhar de Reyna. – Há criados por aí, John?
– Alguns, não muitos – disse o escudeiro enquanto inspecionava uma peça de metal que acabava de retirar. Ian desejou que ele se despachasse e retirasse certas outras partes que subitamente se haviam tornado muito desconfortáveis.
John olhou de soslaio para Reyna. – Ela quer que eu encontre palha limpa para o colchão. Como se eu fosse um comum…
– Penso que é uma excelente ideia. Mas primeiro ide buscar alguns homens e trazei um banho.
– Um banho! Vai haver um festim, e há um castelo inteiro a ser explorado, e vós quereis que eu…
– Um banho. E depois o colchão, John.
O semblante de John tornou-se ainda mais carrancudo, e subitamente desapareceu. Olhou de relance para Reyna e corou. –
Ah! – Os seus dedos começaram a tratar mais rapidamente das correias e fivelas. Acabou mesmo quando Reyna empurrava o pó e a terra para a lareira. – Vou tratar do banho agora – balbuciou, saindo a correr e fechando a porta.
Ian dirigiu-se a Reyna, pegou-lhe na vassoura e pô-la de lado. –
Como vos encontrais? Deve ser estranho passar a vida inteira a pensar que somos uma pessoa e saber de repente que somos outra.
Ela franziu os lábios, pensativa. Ele resistiu ao impulso de os mordiscar. – É estranho, mas de uma forma curiosa. Como uma sombra que recebesse luz. Com efeito, sinto-me inusitadamente livre. Duncan nunca me amou, nem eu a ele, e é bom saber a razão.
E a minha mãe… de certa forma também é bom sabê-lo. Não me sinto de todo uma pessoa diferente, sinto apenas que conheço melhor a pessoa que sempre fui. – Ela pousou-lhe uma mão no peito. O coração dele subiu-lhe à garganta. – Pensais que as pessoas me falarão dele se eu perguntar? De James?
– Sim – conseguiu dizer, inclinando-se para lhe beijar a fronte enrugada. Aquele pequeno toque tirou-o de si. Chamou-a para um abraço, beijando-lhe com lábios febris a face, o pescoço, o seio, e soube que não conseguia esperar pelo banho e pelo colchão. –
Não me saístes da cabeça em momento algum, Reyna, dia e noite.
– Puxou-a mais para si, erguendo o corpo dela contra o seu, querendo ter contacto com cada centímetro dela. – Sois a luz que ilumina as minhas sombras, amor, e a necessidade que sinto de vós surpreende-me todas as vezes.
Ela soltou um pequeno arquejo quando as mãos dele se moveram numa carícia demorada, sentida, e depois disto ele não conseguiria dizer mais nenhuma palavra nem que a sua vida dependesse disso. Um desejo delicioso espalhou-se dentro dele como uma inundação, afogando todo o pensamento até só existirem os sentidos, ávidos e vivos, estimulados pelo odor, pelos sons e pelas mãos dela.
Ele encostou-a à parede, levantando-lhe a saia, ansioso pela sensação húmida da pele dela, desesperado por lhe tocar o corpo mas logo arrasado pelo seu calor quando o fez, sabendo imediatamente que nem sequer por isso ele conseguiria esperar. Já sem pensar, pôs-lhe as pernas à volta das ancas e tomou-a ali, com a cabeça enterrada no seu seio, as mãos agarrando-lhe as nádegas, ouvindo a melodia dos seus gemidos suaves, grato pela sua paixão rápida, pois ele não teria conseguido comedimento algum.
Ela arqueou-se contra ele num pequeno grito ao senti-lo finalizar, deixando a cabeça cair no seu ombro. O domínio de si regressou e com ele a consciência do que acabava de fazer.
– Peço desculpa, Reyna – murmurou, apertando-a contra si, amaldiçoando-se, temendo que as pedras lhe tivessem magoado as costas. – Não era minha intenção… quando falei da minha necessidade de vós, não era… mas há muito tempo que…
A mão dela foi até aos lábios dele e silenciou-o. – Que mulher não ficaria lisonjeada? E se passou tanto tempo, sinto-me honrada.
Ele pousou-a e conseguiu compor-lhes as roupas sem a largar. –
Honrada? Deverei sentir-me honrado se me fordes fiel, Reyna? É o que espero. Se fosseis ter com outro homem, eu pensaria que o amáveis e que a melhor parte da minha vida tinha morrido.
– Sim, mas… pensei…
– Sei o que pensastes e tínheis bons motivos para tal. – A sua expressão surpresa, esperançosa, doeu-lhe no fundo da alma. –
Poderia ter satisfação com uma pega qualquer depois de vós?
Contentar-me com um prazer básico? É diferente connosco, tem sido desde o início. Até quando eu ajo como um rapaz desajeitado, como acabo de fazer. Não, mulher, vós sois minha e eu sou vosso, e não haverá outros enquanto o nosso amor viver.
– Mas então será para sempre, Ian – disse ela, como não houvesse como duvidar da eternidade do seu amor. Deus, mas ele rezava para que assim fosse. Ela não conhecia de facto o homem a quem tão inocentemente oferecia o seu amor. E parecia uma coisa tão frágil, esta preciosa euforia que saturava todo o seu ser. Ele não se atrevia a arriscar a sua destruição e, contudo, também o fazia querer abrir o coração com ela, para que a graça dela absorvesse o pior dos seus pecados. Não agora. Não ainda. Que possa durar.
– Sim – disse ele. – O Senhor das Mil Noites retirou-se para sempre do campo. Lá se vai a minha oportunidade de fama imortal.
Ficaram abraçados até o banho chegar. Ele levou-a consigo, embalando-a no seu colo enquanto a lavava, o seu olhar e beijos dando substância às memórias que o haviam sustido e atormentado.
Quando emergiram, ele deparou com o colchão fresco à porta do quarto e levou-a para a cama. Fez amor com ela da maneira que planeara, amando e exaltando cada parte dela, acariciando-a sem a largar muito depois de esgotada a paixão de ambos.
– Encontrareis contentamento aqui na Escócia, Ian? Será muito entediante depois da vida que tivestes – disse ela, brincando com o cabelo dele.
– Um tédio venturoso, espero. Nunca mais serei capaz de ver a guerra como um desporto. Além disso, iremos de vez em quando a Londres. Logo que possamos, com efeito, quando Christiana estiver em casa. Ela fez-me prometer levar-vos. – Fez uma pausa.
– Podeis ficar com ela enquanto eu regresso a Guilford. Penso voltar lá. – Virou-se de lado. – Não posso levar-vos comigo antes de visitar o meu irmão e a sua mulher, e ver como sou recebido.
– A mulher dele não gostaria de ver o irmão do marido?
– Certamente que não gostará, mas são os sentimentos do meu irmão que devo conhecer.
Ele parecia tão sério, a contemplar a possibilidade daquele encontro. Christiana dissera que ele não podia regressar a casa.
– O que se interpõe entre vós e o vosso irmão?
Ele voltou os olhos para ela, e o seu olhar acentuou-se com uma intensidade que parecia raiva. Voltei a fazê-lo, pensou ela, pesarosa, desviando o olhar.
A mão de Ian voltou-lhe o rosto novamente para si. – Podeis amar-me sem saber disso? Amar o homem que conheceis e esquecer o resto?

– O meu amor não começa numa parte de vós e acaba noutra, Ian. O que quer que seja que tenhais enterrado dentro de vós, continuo a amar-vos. Não faleis sobre isso se não escolherdes fazê-lo, mas não por medo de que mate o que sinto. Não há condições no meu amor. É vosso, tal como a minha amizade.
Os lábios dele apartaram-se como se fosse falar. Quando não o fez, ela sentiu desilusão por ele não confiar que ela compreendesse.
Bem, ela aceitaria quanto ele conseguisse dar-lhe, e se ele nunca falasse deste passado que escondia, então que assim fosse.
Ele pousou a cabeça no seio dela, fazendo daquele abraço mais dela do que dele, e ela percebeu que, ali aninhado, o conflito que o dominava se apaziguava. Ele não descansara muito na última semana e ela sabia que ele dormiria profundamente.
Antes de se deixar ir, ele beijou-lhe preguiçosamente a face. –
Sinto que me esqueci de algo. Ah! lembro-me agora. Cabia-me punir-vos pela vossa desobediência.
A consciência emergiu lentamente, mal transpondo aquela paz deliciosa. Chegaram-lhe sons subtis, e depois a constatação de que Reyna não estava a seu lado. Fez menção de procurar por ela, e descobriu que o seu braço não se movia.
Acordou sobressaltado e atirou um olhar fulminante para o braço recalcitrante. Uma corda prendia-o à cabeceira. Voltou-se, perplexo, e viu a outra mão atada do mesmo modo, e baixou o olhar para ver os tornozelos igualmente presos. Estava amarrado, nu, de braços e pernas estendidos, como um sacrifício humano.
Abanou todos os membros num desafio violento. A cama rangeu e bateu com a força.

– Estão bem presos – disse uma voz calma. – Não se soltarão.
Ele voltou-se, num estado de fúria. Reyna encontrava-se a vários passos da cama, envergando uma túnica demasiado grande e comprida que lhe flutuava dos ombros. Algo que desencantara num dos outros quartos, adivinhou.
– Desamarrai-me. Isto é muito inoportuno.
– Não, ainda não. Não durante bastante tempo, acho eu.
– Reyna…
– É apenas o que me haveis feito, Ian. Pensei que pudésseis gostar de o experimentar vós próprio. Como vos sentis, amor?
Indefeso? À minha mercê?
Era exatamente assim que se sentia, maldição. – Reyna, ordeno-vos que desamarreis estas cordas. Porque fizestes isto, para começar?
– Falastes em punir-me.
– Céus, Reyna, apenas gracejava.
– Fico aliviada em ouvi-lo, mas também um pouco desapontada.
Era um estratagema tão bom. Para vos tirar essa ideia.
– Não tendes necessidade de estratagema nenhum. Eu nunca…
– Ainda assim, subitamente o estratagema tem o seu próprio encanto. Talvez deva levá-lo até ao fim.
– Desatai estas cordas, raios, ou precisareis mesmo de um estratagema para me tirar ideias quando me libertar. – Voltou a puxar as cordas com força.
Ela sorriu docemente enquanto a cama saltava e gemia. – Tive horas para os fazer; não se soltarão. – Aproximou-se, suave, e percorreu-o com o olhar. – Realmente tendes um corpo magnífico.
– Passou-lhe um dedo lânguido pelo meio do peito.
Ele cessou a luta e olhou-a nos olhos. O seu corpo inteiro reagiu ao que lá viu. Sorriu o seu melhor sorriso. – Desamarrai as cordas e vinde deitar-vos comigo, amor.
Ela pegou na túnica flutuante e subiu para a cama, com os pés em torno das ancas dele. – Não me parece. Gosto de vós assim. –
Começou a desapertar os laços na frente da túnica. – Surpreende-me o excitante que é. Quero dizer, vós sois tão grande, e eu sou tão pequena.
Muitíssimo devagar, fez a veste deslizar-lhe pelos ombros e pelo corpo inteiro. O tecido agitou-se aos pés dela, roçando a pele dele como uma carícia quando ela o afastou com o pé. Ela baixou os olhos e sorriu. – Vós também pareceis gostar.
Ele gostava tanto que tinha o maxilar cerrado. Por baixo da túnica, ela não estava nua, antes tinha um justilho de pele, uma peça de rapaz um nada demasiado pequena para a sua forma de mulher.
Também amarrava na frente. Os lados estavam separados e apenas cobriam parte de seios que espreitavam através das tiras de couro.
O fundo mal lhe tapava as ancas. O efeito era inacreditavelmente erótico.
– Foi um estratagema maravilhoso, querida. Estou completamente desconcertado.
– Mas mal comecei, Ian. – Ela avançou, um pequeno pé de cada lado até ele a ver toda, e às sugestivas sombras por baixo da orla do justilho. – Retirou uma pena de faisão de dentro deste. –
Deveria ser de pavão, mas claro que aqui não as há. Tereis de imaginar.
Ela curvou-se e começou a acariciar-lhe o corpo. – Oh, pareceis gostar mesmo disto, Ian. – Dirigiu a pena para a prova evidente da excitação dele.
A deliciosa tortura provocou cada centímetro da sua pele.

Uma paixão furiosa fê-lo voltar a puxar violentamente pelas cordas. – Quero que me desamarreis agora.
– Céus, pareceis irritado. Vendo bem, penso que será melhor eu continuar. Parece que afinal preciso deste estratagema. – Baixou-se e ajoelhou-se entre os pés dele. – Além do mais, o que vós quereis não é assim tão importante por agora. Só o que eu quero.
– E o que é isso?
As mãos dela acariciaram-lhe as pernas, para baixo e para cima, enquanto ela o examinava. – Quero olhar para vós enquanto o prazer se avoluma. Quero ver o vosso corpo tremer e implorar o alívio. Quero ouvir os vossos gritos de anseio.
Ele não conseguia acreditar no desejo intenso que as palavras dela provocavam. Pensou que o seu corpo se ia partir ao meio.
Vendo bem, ela conseguira inverter incrivelmente a situação. Afinal, tratavam-se das palavras dele.
– Fazei o vosso pior, mulher, mas lembrai-vos que ides acabar por ter de me libertar, e aí eu planeio reequilibrar a balança.
– Espero deveras que o façais. Mas agora, deitai-vos e submetei-vos, Ian. Isto pode demorar um bocado. Só completei os dois primeiros passos. – Inclinou-se e começou a acariciá-lo com os lábios e a língua tal como a pena havia feito, subindo-lhe lentamente pelas pernas. Muito lentamente.
Ele contemplava aquela progressão vagarosa enquanto o seu corpo tanto bradava pela finalização como se comprazia com a demora. Os beijos e a língua dela chegaram-lhe aos joelhos. As suas nádegas erguidas espreitavam do justilho de couro. – E
quantos passos há?
– Seis – murmurou ela, subindo, subindo. Ia matá-lo. – Na verdade, oito, quando feito à maneira sarracena, mas David recusou-se a falar dos últimos dois a Christiana.
Ele mal a ouvia. A boca dela estava-lhe nas coxas agora e cada fibra dele aguardava e esperava e ansiava. Ela ergueu-se sobre um braço e o seu cabelo tapou-lhe a vista como uma cortina, mas ele retesou o corpo todo quando o dedo dela lhe subiu pelo falo com uma carícia e desenhou um círculo. – É isto que quereis, amor? –
perguntou ela. – É?
– Não.
– Ah, então talvez isto. – Atirou a perna por cima dele, e encavalitou-se nele, de quatro, virada para baixo, o seu odor de mulher a centímetros dele.
– Mexei-vos para trás – instruiu ele.
A respiração dela roçava nele, criando uma agonia de expectativa. – Ainda não. Dizei-me que mais quereis, Ian.
Os músculos dele contraíram-se numa rebelião final antes de sucumbirem, impotentes, ao prazer e ao controlo. Soprou um pedido estrangulado e os lábios dela substituíram-se aos dedos.
Então, toda a resistência e todo o pensamento se toldaram, exceto uma vaga curiosidade quanto ao que poderiam ser os últimos passos.

CAPÍTULO 25


As últimas flores enchiam o jardim de uma profusão de cores e cheiros. A beleza caótica inundava os sentidos de Ian. Ao seu lado no banco de pedra, estava um cesto. Duas rosas espreitavam sobre a orla, as suas pétalas destinadas a algum prato que Reyna planeava cozinhar para a refeição do meio-dia.
Interrogava-se quanto tempo ela estaria fora na peregrinação que fizera naquele dia. Concordara em deixá-la visitar as velhas ruínas sozinha, mas não sem apreensão. Compreendia a sua necessidade de confrontar as memórias enterradas nas pedras escuras do velho castelo, mas quisera ir com ela, não fosse o terror não ter sido vencido tão completamente quanto ela esperava.
Aguardaria que o sol se movesse um pouco mais antes de ir atrás dela. O mais certo era encontrarem-se quando ela estivesse a regressar, mas se ela tivesse sucumbido à escuridão, ele encontrá-
la-ia antes do pior.
Tentou novamente distrair-se da sua preocupação revendo os planos para Black Lyne. O confronto de Reyna com Aymer implicava que os Graham seriam para sempre uma lança apontada às fronteiras oeste destas terras. A ideia de enfrentar Aymer não o inquietava. Ansiava pelo dia em que se fizesse alguma justiça em prol de Reyna e Robert. Mas queria a sua família e a sua gente seguros quando chegasse aquela guerra privada, e tencionava melhorar as fortificações nos anos vindouros.
A sua família e a sua gente. Ainda uma frase estranha, mas agradável. Ele ansiava por aquela família. Os filhos que ele educaria para serem fortes e verdadeiros cavaleiros. As filhas… riu para si próprio. As filhas que provavelmente trancaria para as proteger de homens como Ian de Guilford.
Alisou a terra com a bota e meditou sobre a decisão que tomara na noite anterior. Era necessário construir uma segunda muralha para o castelo no sopé da colina.
Tentou visualizar a fortificação completa e como a afetaria a mudança de sítio do rio. Espetou o pau no chão. Desenhá-la-ia como David desenhara Harclow para ver se dava substância às imagens. O pau arranhou. Aqui o rio, ali a torre quadrada na sua colina circular. Aqui o baldio íngreme e mais abaixo o velho castelo.
Agora, para mover o rio…
Parou abruptamente de desenhar. Erguendo-se, deu um passo para colocar os pés por baixo dos círculos da velha fortaleza.
Olhou atentamente para o desenho do quadrado e círculos e linhas curvas.
Quase duplicava exatamente o desenho pequenino da tira de pergaminho que vira no livro de horas de Reyna.
Faltava alguma coisa, mas não conseguia lembrar-se do que era.
Saiu do jardim, matutando no porquê de alguém desenhar um mapa de Black Lyne e suas terras como se vistas pelos olhos de um pássaro.
Encontrou o pequeno livro de horas na prateleira do quarto principal. Folheando as páginas de devoções e imagens, encontrou a tira de pergaminho. Ainda lhe parecia uma coisa desenhada por um astrólogo.
Percebeu o que o seu mapa não incluíra. Duas linhas retas bissetavam o velho castelo, formando uma cruz.
Examinou o traço ténue e irregular das linhas. Um livro de horas era o tipo de livro que se tinha perto dos mortos, para se lerem orações conhecidas para os reconfortar. Se Robert de Kelso havia desenhado aquilo, o que era tão importante ao ponto de ele utilizar as suas últimas forças para o fazer?
Voltou a colocar o livro na prateleira, mas enfiou o pequeno mapa na manga. Era mais um mistério deixado pelo bom Robert, e de resolução tão improvável como os outros.
Saiu da torre e subiu até às ameias, depois deu a volta para sul, de onde conseguia ver o velho castelo à distância. Semicerrou os olhos e procurou em vão sinais do regresso de Reyna. Esperaria apenas mais um bocadinho e depois partiria em busca dela.
O seu olhar recaiu no cemitério, e na cruz que, ao centro, marcava a campa de Robert. Lembrou-se de estar aqui de pé, a sua fúria a avolumar-se ao imaginar Reyna com Edmund. Aqueles ciúmes pareceram-lhe distantes e infantis, e ele sabia que não voltaria a sentir nada semelhante. Não voltaria a duvidar dela dessa forma, ainda que cem Edmunds por ali passassem para discutir filosofia.
Nem voltaria a ressentir-se das memórias que ela tinha do homem enterrado por baixo daquela cruz. Robert havia-se tornado uma espécie de amigo. Não tinham eles chegado aqui ambos da mesma maneira, desligados da família e do passado, apenas para ficar e construir vidas novas? Ele não era nenhum Robert de Kelso, claro que não, mas, estranhamente, dava por si a seguir os passos daquele homem. Sorriu com a ironia, pois havia sido a semelhança mais óbvia de Edmund com Robert que alimentara o seu tormento naquela noite.
Fez menção de sair dali e depois estacou, suspenso no tempo.
Ideias dispersas acicatavam-lhe a mente em uníssono, setas de numerosas aljavas de memórias que de uma só vez vinham na sua direção. Cravou os olhos na cruz enquanto absorvia aquela investida, surpreso e irritado por não ter reparado em explicações tão óbvias.
Caminhou lentamente para as escadas, cogitando sobre o que acabava de lhe ocorrer. Devia ter razão, e pensava saber como se certificar. Encontraria a prova e depois diria a Reyna o que havia descoberto. Não era um grande mistério, mas ela ficaria contente por saber a verdade, especialmente neste dia, em que reunira toda a sua coragem para enfrentar o que chamava de «tudo aquilo».
Os netos de Alice brincavam no pátio e ele chamou-os. – Vinde comigo. Preciso de corpos pequenos e fortes, e vocês parecem-me o ideal.
Adam e Peter saltitaram ao seu lado até à torre. No salão pegou num archote e subiram até ao quarto principal.
Ian passou a tocha para a mão de Adam e curvou-se para empurrar as pedras que abriam a parede, revelando a escadaria secreta. Devia tê-lo feito há um mês, mas presumiu apenas… bem presumira apenas que era exatamente o que era. – Descei e ficai a dois degraus para nos alumiardes – ordenou ao portador do archote.
A luz desceu e desapareceu na parede, e Ian foi atrás, levando Peter. Virou o pequeno rapaz para o nicho. – Vou levantar-vos e quero que gatinheis lá para dentro e vejais o que lá está. Devo avisar-vos que pode haver aranhas enormes.

A ideia de arrostar aranhas enormes deixou Peter deliciado. Ian ergueu-o até ao início do nicho profundo e depois pegou na tocha para elevar a luz. O traseiro e as pernas de Peter começaram a afastar-se. Logo, só um pequeno pé estava ao alcance.
– O que está aí?
– Montes de teias de aranha e bichos gordos. Quem dera que me tivésseis deixado trazer um saco. Não me parece justo que o Adam perca a melhor parte.
– Além dos bichos, lá atrás, não há uma armadura e um pano?
– Sim.
– Conseguis trazer o pano sem o rasgar muito?
– Está a desfazer-se. E cheira muito mal também. Para que quereis isto?
– Dai-mo. – O traseiro moveu-se um nada para trás e uma mão segurando o pano esfarrapado esticou-se. Ian pegou-lhe, devolveu o archote a Adam, e depois ajudou Peter, muito sujo, a sair do nicho.
De volta ao quarto, os rapazes aguardavam expectantes para saber a natureza do tesouro escondido. Ian não teve coragem para os mandar embora, por isso estava com um de cada lado enquanto desembrulhava cuidadosamente o pano imundo e o abria sobre a cadeira.
– É só um manto de armadura – concluiu Adam, desapontado.
Ian limpou mentalmente o pó e o bolor da veste, e preencheu as partes que o tempo consumira. Este trapo explicava muita coisa.
Peter traçou as linhas cruzadas onde o tecido escuro se encontrava com a luz, no centro. – Parece parte de uma cruz. E isto podia ser vermelho, e isto branco. É o manto de um cruzado.
– Algo assim – avançou uma nova voz.

Ian virou-se e deparou com Andrew Armstrong parado perto da porta.
– Sem dúvida que algum Fitzwaryn o deixou ali há muito tempo
– acrescentou Andrew.
Os rapazes começaram a imaginar o guerreiro antigo, especulando sobre as batalhas que ele havia lutado contra os sarracenos.
Ian sorriu, contando que o cerco de Antioquia povoasse o pátio durante os dias seguintes. – Agora ide ver se a vossa avó ou algum moço precisa de vós para alguma tarefa – disse ele.
Saíram os dois a correr, enchendo o corredor de gritos. Ian e Andrew olhavam um para o outro em silêncio.
– Vós sabíeis – disse Ian.
– Eu era escudeiro dele, quando cá chegou. Não um escudeiro muito bom, mas ele compreendeu que não era a minha natureza, e atendeu a que os outros não troçassem muito de mim. Ambos sabíamos que eu nunca receberia as minhas esporas, por isso convenceu Maccus de que o meu valor residia noutro lado. Acabei por me tornar intendente cá e depois deram-lhe as terras e eu voltei a servi-lo.
– Como soubestes?
Andrew indicou o manto. – Encontrei-o por engano. Um dia, ainda eu era escudeiro dele, decidi limpar a armadura velha que ele tinha em algumas sacas, apesar de ele não ir usá-la novamente. Isso estava junto. Reconheci-o. Qualquer pessoa o teria reconhecido naquela altura. Perguntei-lhe por ele. Ele era um homem bom e eu jurei nunca falar no assunto. A essa altura já sabia alguma coisa acerca de segredos que alguns homens devem manter. Ele sabia os meus e eu sabia os dele, e nenhum de nós julgava.

Ian mexeu no pano vermelho e branco meio desfeito. – Cruz vermelha em fundo branco, o inverso das cores dos cruzados. O
manto de um templário. Escocês?
– Não, não me parece. Ele tinha estado no Oriente enquanto rapaz. Escocês de nascimento, estou certo, mas não viveu lá durante muitos anos e ainda era jovem quando regressou. – Olhou para onde os dedos de Ian repousavam. – O francês dele era impecável.
Ian fez alguns cálculos. – Um dos últimos a serem armados, diria. Talvez o último a morrer.
– Não há necessidade de ninguém saber.
– Ele está morto. Agora não há perigo.
– Ainda assim…
– Reyna precisa de saber. Outros que não ela, talvez não. Se ele escolheu manter segredo enquanto viveu, podemos deixá-lo enterrado com ele.
Andrew meneou a cabeça com gratidão. Fez menção de sair, mas deteve-se. – Nos primeiros anos dele aqui, tive sempre a impressão de que ele aguardava alguma coisa. Mantinha uma distância subtil dos outros e não fez amizades próximas. Nem mesmo com Maccus mostrava tudo.
– Pode ter sido apenas o próprio segredo. Esconder um passado tem o condão de isolar um homem – disse Ian, constatando que ele e Robert tinham ainda mais em comum do que ele pensara.
– Talvez. E, contudo, com o passar dos anos, ele mudou, como se soubesse que aquilo nunca viria, fosse o que fosse. Como se soubesse que estava aqui para ficar. – Encolheu os ombros e caminhou para a porta. – Não é um segredo assim tão mau. Não há pecado nele. Sempre pensei que ele devia dizer a Reyna, pelo menos. Uma vez disse que o faria, que ela precisaria de saber.
Ian dobrou o manto cuidadosamente. Guardou-o num dos seus próprios baús e depois foi até aos livros para investigar mais uma ponta de seta que lhe assomara à memória.
Pouco depois havia feito dois montes, um alto, com os Evangelhos e Aquino e Bernardo, o outro muito mais pequeno e pobre, com o herbário e alguns tratados seculares.
Voltou-se para sair, mas deteve-se. Pegando no livro de horas que estava em cima do monte grande, abriu-o e rasgou-lhe a primeira página, colocando-o depois no monte com o herbário.

CAPÍTULO 26


Reyna estava sentada no chão, encostada à pedra que ela e Ian haviam partilhado no dia em que ela escapou de Aymer, sentindo-lhe o calor nas costas, pensando que devia mesmo acabar com isto antes de Ian começar a preocupar-se e vir atrás dela.
Olhou novamente para o lintel que encimava a antiga entrada para as fundações da torre. Sim, acontecera aqui. Agora tinha a certeza. Parecia, porém, diferente, e não muito ameaçador, possivelmente porque olhava deste ângulo e não como alguém que vinha de lá do fundo, da escuridão.
As memórias e cenas tinham-lhe chegado com clareza, quase demasiada clareza, depois de ela saber o que procurava. Não numa sequência perfeita, mas como lampejos de imagens, sons e emoções.
Dois corpos, não um, mas ela mal vira o segundo depois do horror do primeiro. Duncan a praguejar e a gritar que alguém a levasse de lá. Braços fortes a agarrá-la, arrastando-a de volta à escuridão. Uma mão a tapar-lhe os olhos quando voltaram a trazê-
la para o exterior e desceram a colina com ela.
Esquecera imediatamente? Quando começara a acreditar que a mãe vivia naquela abadia? A sua infância inteira havia-se tornado uma mancha indistinta, a não ser durante aqueles pesadelos e terrores. Se não fosse isso, a sua vida poderia muito bem ter começado no dia em que Robert a encontrou na cripta.
Levantou-se e sacudiu o vestido. Já havia dito as suas orações por aquela pobre mulher cuja infelicidade terminara aqui. Tê-la-ia Duncan obrigado a ver o amante morrer primeiro? Os gritos distantes do seu pesadelo sugeriam que sim.
Aproximou-se do lintel. Um nó retorcia-se no seu estômago. A escuridão não a assustara durante as duas semanas após regressarem de Harclow, mas também a presença tranquilizadora de Ian havia sido quase uma constante. Isto seria diferente. E não se tratava de um corredor, de um quarto ou sequer da cripta, mas do lugar onde tudo começara.
Entrou nas velhas fundações e avançou decidida, com bravura, até a última luz desaparecer e se ver confrontada com a escuridão.
Tinha suor nas palmas das mãos e o coração a bater acelerado, mas o pavor desconcertante permaneceu ao largo. Tateando a parede de pedra, avançou até deparar com uma pequena curva e a entrada desaparecer atrás dela.
E aí parou aterrorizada.
Murmúrios vinham na sua direção, saídos das pedras, através da escuridão… Um riso sumido… A sua mão sobre a pedra sentia os sons tão seguramente quanto o seu espírito os ouvia ecoar silenciosamente ao seu redor.
Não, gritou para dentro, baixando a mão e andando às voltas para as confrontar. Acabou. Já chega!
Preparou-se para correr, mas o choque havia-a desorientado.
Esticou o braço às cegas, procurando a parede, mas a sua mão encontrava apenas escuridão. Aos tropeções, com o pânico a avolumar-se, debatia-se para respirar e rezou que fosse aquela a direção da entrada. De repente, estava estatelada no chão, com o rosto contra a pedra, o corpo dobrado numa posição estranha.
O impacto despertou-a. Tateou à sua volta e compreendeu que caíra num buraco da profundidade de meio homem. A mão bateu num monte de terra e uma pilha de pedras.
As pedras ainda lhe falavam. Não, não as pedras. O som não vinha delas. Os murmúrios sussurrantes estavam mais à frente, mais altos agora do que antes. Dentro dela, alívio. Ian devia ter chegado, trazendo alguém com ele.
Rastejou para fora do buraco e começou a dirigir-se para as vozes. Um pé embateu noutro monte de terra. Desviou-se para a esquerda até encontrar a parede e, encostando-se a ela, avançou lenta e cuidadosa.
Passado um pouco, viu um fiapo de luz. Não fazia sentido. Se ela regressava para a entrada, como podia não bater nos obstáculos que encontrara na vinda?
A passagem fazia uma pequena curva e, subitamente, a luz fez-se mais forte. Uma sombra enorme mexeu-se lá à frente e o susto deixou-a sem fôlego.
Outra sombra mexeu-se, adquirindo forma humana, e olhou diretamente para ela. Ficou tensa e arremessou um braço. –
Apanhai-a.
Pareceu uma ameaça, apesar de não fazer sentido. Ainda assim, ela deu meia-volta e começou a correr.
Passos pesados seguiam no seu encalço. Braços grandes agarraram-na, pegaram nela e levaram-na para a luz. Por fim, deu por si a ser sentada numa pedra grande entre dois archotes.
A passagem alargava-se mais aqui e, confusa, olhou ao seu redor. Lajes de pedra haviam sido movidas e covas não muito profundas haviam sido escavadas. No chão, cruzavam-se pegas de picaretas e pás. Contra uma parede repousavam cobertores enrolados e sacos de couro.
Ergueu os olhos para o peito largo e nu que pairava acima dela, e depois para o rosto preocupado, marcado, de Reginald.
– O que fazeis aqui, Reyna? Robert disse que vós temíeis o escuro – disse uma voz suave. Edmund colocou-se ao lado de Reginald. O archote converteu-lhe o cabelo num halo de fogo.
Edmund também estava despido até à cintura, e o suor reluzia-lhe no corpo.
– O que fazeis vós aqui? Porque escavais? Há quanto tempo aqui estais?
Edmund acomodou-se na pedra ao lado dela. – Tempo de mais.
Está a tornar-se incomodativo e aborrecido, mas devemos terminar em breve. – Ele olhou-a com curiosidade. – Talvez tenha sido bom terdes vindo. Robert tentou dizer-vos, no fim. Reginald ouviu-o falar uma noite, sem saber que vós lá não estáveis. Ouviu o suficiente antes de ele parar, por isso sabemos que está aqui.
Porque não nos dizeis o resto, Reyna, e poupais a todos mais trabalhos? Por esta altura, até estou disponível para partilhar.
– Falais por enigmas – disse ela exasperada, pondo-se em pé. –
É melhor que partais imediatamente, Edmund. Jurastes levar Reginald embora, e se Ian descobre…
Ele voltou a fazê-la sentar-se com um puxão brusco. – Ele está convosco? O vosso cavaleiro inglês também veio?
Ela não gostou do tom ameaçador. Os dedos dele enterraram-se no braço dela. – Não, ele não está aqui. – Mas viria. Ele não quisera que ela fizesse isto sozinha e não aguardaria muito tempo pelo seu regresso.
Edmund olhou para Reginald e indicou a passagem com a cabeça. Pegando num machado de guerra encostado a uma pedra, Reginald entrou desajeitadamente na escuridão.
– O que vai ele fazer? – perguntou Reyna.
– Irá certificar-se de que falais verdade, ou desembaraçar-se de Ian se não o houverdes feito. – Soltou-lhe o braço e desviou o olhar, os olhos semicerrando-se pensativamente, a boca um sulco vermelho. A luz flamante urdia-lhe sombras nas faces e nos olhos.
Ele parecia-lhe muito diferente da forma como o lembrava, e não era só pela luz.
– Para quê estes buracos?
Ele sorriu daquele seu jeito doce mas superior. – Um tesouro.
Por que outra razão viveriam dois homens semanas a fio nas entranhas desta torre? Robert pô-lo aqui. Escondeu-o quando regressou de França, e depois transferiu-o para aqui depois de vos desposar. Ele disse-vos, não disse? Quando estava doente, antes de morrer. Queria que o levásseis ao bispo, como ele planeara fazer. Reginald leu a carta que Robert enviou para Glasgow, compreendeis, por isso sabemos dessa parte.
– Oh, valham-nos todos os santos, Edmund. Não está aqui. Os livros estão onde sempre estiveram, no quarto principal. Era isso que ele queria dar ao bispo. São esses os objetos valiosos que ele trouxe de França.
A expressão estupefacta de Edmund manteve-se um instante, e depois o seu rosto transformou-se num sorriso trocista. – Livros?
Livros? Pensais que se trata daqueles livros? – Ele agarrou-lhe no rosto. – O que está enterrado aqui ultrapassa de longe aqueles poucos livros. É ouro, uma montanha dele, e joias. Riqueza que chegue para comprar centenas de livros.
Ele examinou-a, os olhos com uma expressão exaltada, os dedos apertando-lhe as faces. – Dizei-me o que ele disse, Reyna.
– Ele nunca me falou deste lugar, nem sequer quando estava a morrer. Mal estava consciente a maior parte dos dias.
As mãos dele deixaram-se cair. – Então já não tendes utilidade nenhuma para mim. – O seu tom de voz neutro arrepiou-lhe a pele do pescoço e fez-lhe o sangue pulsar freneticamente. – O que quer que vos tenha trazido aqui, foi obra do Diabo.
– O que dizeis? – perguntou ela, mas uma sensação mórbida espalhou-se dentro dela.
Ele ignorou-a. – E era um plano tão bom – murmurou. – Se Robert ao menos tivesse morrido durante o sono, como fazem a maioria dos velhos, e levado o segredo para a sepultura… se ele tivesse deixado as coisas como estavam, eu teria aguardado satisfeito. Depois vós teríeis vindo para norte e esta terra teria sido vossa e a seguir poderíamos ter procurado à nossa vontade. Mas ele tinha de escrever aquela maldita carta, e o vosso cavaleiro tinha de se casar convosco… bom, agora não há nada a fazer.
Ele pousou uma mão no joelho e deu-lhe pancadinhas na face com a outra. Aquela atitude tão descontraída provocou-lhe arrepios.
– Pensarei numa maneira que não vos faça sofrer, só que terá de parecer acidente ou obra de outra pessoa. Aymer, talvez. Sim, funcionaria. Reginald e eu vimos aquele cercozito ali de cima. Ainda bem que tínhamos saído para buscar mantimentos, mas também nenhum de vós entrou, de qualquer modo. Talvez possamos fazer crer que os Graham vos puniram por terdes casado com aquele inglês…

– Não – ribombou uma voz.
A figura ameaçadora de Reginald surgiu no limiar da luz. – Não lhe fareis mal. Dissestes que se eu fizesse isto ma daríeis.
Edmund pôs-se em pé com um suspiro exasperado. – Já vos expliquei isto mil vezes. Não podemos fazer como tínhamos pensado à partida, pois não? Não com Fitzwaryn a tomar posse das terras e ela casada com Ian.
– Mesmo assim. Jurei a Robert protegê-la.
– Raios, vós envenenastes o homem. Em comparação, repudiar o juramento que lhe fizestes é coisa menor.
Reyna ficou sem fôlego. Reginald? Não Aymer, mas o homem de confiança de Robert?
– Vós obrigastes-me – defendeu-se Reginald.
– Eu não vos obriguei a fazer nada. Vós queríei-la e ao ouro, e convencestes-vos de que ele estava velho e morreria de qualquer maneira. E depois nem sequer seguistes as minhas instruções com a poção corretamente, e todos ficaram a saber que ele tinha sido envenenado. – Edmund virou-se para Reyna como quem pede desculpa. – Teria sido rápido, juro-vos. Devia ter parecido uma morte natural. – Lançou um olhar cáustico ao irmão. – Pelo menos o idiota teve o tento de esconder o herbário quando as pessoas começaram a suspeitar de vós.
A indignação venceu o seu medo escabroso. – Vós fizestes isto?
– arrojou Reyna para Reginald. – Assassinastes o vosso suserano e amigo? Um homem que confiava em vós de forma absoluta?
– Ele era velho e teria morrido sem demora, de qualquer forma –
defendeu-se Reginald. – Mas vós não sois velha e não deixarei que isto aconteça.
Edmund atirou os braços para o alto. – Devemos deixá-la ir embora para dizer ao marido o que descobriu?
– Ela ficará connosco e…
– E ele pegará em cem homens e irá à procura dela. Quando o fizer, deixai-lo encontrá-la, mas incapaz de falar. Se quiserdes tomá-la antes de o fazermos, não me oporei.
Reginald hesitou, olhando para ela, e Reyna sentiu uma náusea.
Voltou a virar-se para o irmão, apertando mais o cabo do machado. – Não.
Um suspiro profundo saiu de Edmund. – Suponho que sei há algum tempo que poderíamos chegar a isto. – Afastou-se, para as sombras, e emergiu de espada na mão. – Pousai o machado, irmão.
Ide ao baldio onde os cavalos estão abrigados, pegai num e ide-vos. Estais fora disto agora e eu tratarei do que for preciso.
– Não posso.
– Não, da forma que vedes o mundo, suponho que não possais
– lamentou Edmund.
Investiu com a espada erguida.
Era um espaço pequeno, e o combate aproximou-se de Reyna enquanto eles arremetiam e golpeavam e contornavam as covas que se lhes atravessavam no caminho. Ela aninhou-se e encolheu-se contra a parede, forçando-se a ver para conseguir evitar alguma arma que rasasse demasiado perto. As pedras estavam tão frias quanto os seus membros, mas temia o fim da disputa, pois, quem quer que ganhasse, ela não estaria em segurança.
Por fim, a vontade de matar um irmão foi maior em Edmund do que em Reginald. Horrorizada, viu a espada lancinante derrubar o maior dos homens, a lâmina a perfurar o peito musculado. Em estado de choque, Reginald não tirou os olhos do irmão quando o seu corpo perdeu a força e caiu redondo no chão.

– Não tínheis de o matar – disse Reyna, quebrando o silêncio gélido que se seguiu.
– É culpa vossa. Por terdes vindo aqui. Devíeis ter ficado na cama do vosso cavaleiro hoje. Já convencera Reginald de que agora não podia ter-vos, não depois de ele ter ficado impaciente e ter arruinado a oportunidade de vos levar embora. Em Edimburgo haveria tempo para vos convencer da lógica disso, mas casada com Ian… Se não tivésseis vindo hoje… – Baixou os olhos para Reginald. – Sempre o avisei de que o seu sentido do dever seria a morte dele.
Assustou-a vê-lo tão desprovido de sentimento. Puxou os joelhos para si para fazer do corpo uma redoma. Edmund foi até ela e ela encolheu-se contra a parede.
Ele sorriu, condescendente. – Não, ainda não. Não aqui. Lá fora nas pedras grandes, penso eu, para o vosso cavaleiro vos encontrar facilmente. Não quero que venha cá dentro procurar.
– Talvez ele nem chegue a procurar. Ele foi forçado a casar-se comigo.
– Procurar-vos-á. Casamento forçado ou não, está bastante arrebatado com a sua noiva virgem.
Os olhos dela arregalaram-se.
Ele riu-se com a reação dela. – Mas claro que eu sabia, pequena Reyna.
– Robert disse-me que não havia dito a ninguém.
– Ele não me disse, mas eu sabia. Naquela primeira visita adivinhei o que ele era. Quem ele era. Soube com certeza depois de ver os livros.
– Os livros? Dissestes que procurais um tesouro, e não os livros.
Se vou morrer, pelo menos explicai-me isto. Que tesouro? Que ouro?
– Ouro templário – respondeu a voz de Ian.
O coração de Reyna saltou de alívio. Ian emergiu das sombras da passagem e a luz fosca iluminou-lhe a expressão dura do rosto.
– Ouro templário, do templo de Paris.
Edmund colocou-se no centro da galeria, entre duas covas, a mão branca no punho da espada.
– Tende cuidado, Ian. Ele acaba de matar Reginald, e também matou Robert.
– Não o matei. Reginald…
– Por instrução vossa, e tão seguramente como se lhe houvésseis enfiado um punhal no pescoço.
Ian desembainhou a espada. – Bom, Edmund, nunca lutei com um monge, mas a ideia não me incomoda nada. Sois um homem muito astuto se bastaram os livros para descobrirdes o segredo de Robert.
– Suspeitei muito antes. O tempo que passou no Oriente e em França. A sua aparição súbita aqui sem história prévia. Os livros apenas vieram confirmá-lo. Todos os precetores têm uma descrição das posses do templo de Paris que nunca foram reavidas.
O ouro e a biblioteca.
– Portanto, quando vistes aqueles tomos ricos marcados com a divisa J. M., não restaram dúvidas. A biblioteca de Jacques Molay, grão-mestre dos Templários. Porque não vos limitastes a confrontar Robert e reivindicar as posses para os Hospitalários?
Edmund riu. – E dá-las à minha ordem se ele as entregasse? Os monges de S. João já são ricos o bastante. Cabiam-me a mim.
Ficaram-me destinadas na noite em que os Templários as enviaram para aqui com aquele jovem cavaleiro.

– Eles não as mandaram para aqui para vós ou para os Hospitalários, e Robert sabia-o. Não é difícil compreender o que se passou há esses anos todos. Ele foi enviado para aguardar o fim da expurgação e que a ordem se renovasse. Mas isso nunca aconteceu, e Robert de Kelso deu por si com um tesouro que não pertencia a ninguém. Ele suspeitava que sabíeis quem ele era?
– Não, eu era cuidadoso, e ele também. Cuidadoso de mais, o que só me espicaçou a curiosidade. Nunca me falou dos Templários, ou fez perguntas. Todos os outros o fazem, tal como vós fizestes. Foi assim que soube que não havíeis adivinhado, apesar da virgindade da vossa mulher e da história vaga de Robert.
– Porque adivinharia eu? A ordem há muito que deixou de existir. Se não fosse a semelhança dele convosco, nunca me teria interrogado. – Ian indicou a passagem com um aceno. – Parti agora. Se fordes rápido, podeis estar no mar antes de eu falar dos vossos crimes ao bispo e ao vosso precetor. Dou-vos a oportunidade de saírdes daqui com vida.
A cabeça loura inclinou-se para trás e Edmund estudou Ian com olhos encobertos. O espírito de Reyna retraiu-se perante a frieza do mal que emanava do homem mais pequeno.
– Vós sabeis onde está – afirmou Edmund.
– Penso que estais enganado a respeito do ouro e que Robert nunca o teve. Ele teria considerado os livros tesouro suficiente para proteger – rebateu Ian.
– Mentis. Planeais ficar com ele para vós. Não espereis que vos deixe fazê-lo. Disse a Reyna que estou disposto a partilhar. Vamos depor as nossas espadas e tornar-nos parceiros nisto. Metade para cada.
Ian olhou para a figura inerte de Reginald. – Vejo como lidais com os vossos parceiros.
– O meu irmão precisou de alardear a honra dele muito depois de a ter abandonado, mas vós não vos iludis. Trabalharemos bem juntos, Ian. Com os outros pecados que temos na alma, o roubo deste ouro é pouca coisa.
As insinuações dele enfureceram Reyna. – Não presumais comparar-vos com ele, Edmund. Sois um assassino cruel, e…
– Não lhe dissestes – interrompeu Edmund, surpreendido. –
Pensastes escondê-la aqui e esperar que ela nunca descobrisse?
Os olhos de Ian queimavam. Edmund ostentava um sorriso irónico. – Devo dizer-lhe? Eu nunca trairia um parceiro, mas… –
deixou a oferta pairar no ar.
– Não há nada que possais dizer-me que faça alguma diferença
– disse Reyna, procurando a atenção de Ian, tentando dizer-lhe que, qualquer que fosse a decisão que tomasse a respeito de Edmund, não deveria dever-se a isto.
– Será que não? – Edmund ergueu uma sobrancelha na direção de Ian. – Será que não?
Ian não se mexeu nem falou, mas tinha os dentes cerrados como um homem que aguarda um soco. Olhava furiosamente para Edmund, mas o seu silêncio expressava a sua resposta.
Edmund abanou a cabeça. – Passastes do Céu para o Inferno na vossa escolha de marido, pequena Reyna. Soube deste por um dos seus próprios homens, um cavaleiro que temia que o meu interesse por vós fosse sensual e que tentou avisar-me explicando o quão perigoso o seu capitão podia ser. – Um maldoso sorriso de desprezo distorcia-lhe o rosto. – Condenais-me por causa de Robert e Reginald? Então o que direis a um homem que matou o próprio pai e se deitou com a própria mãe?

O choque deixou-a sem fôlego. Virou-se para Ian, à espera que o negasse. Uma expressão angustiada passou-lhe pelo rosto e ele recusou-se a devolver-lhe o olhar.
– Pelo menos eu cometi os meus pecados por um objetivo válido – prosseguiu Edmund.
– Um objetivo pelo qual valha a pena morrer, espero – disse Ian. – Deixai-nos, Reyna.
Edmund assumiu uma pose de combate. – Ela fica. Se ela se mexer, corto-a ao meio.
Os olhos de Ian lampejaram. – Então acabemos com isto, monge.
Reyna gritou ao vê-los partir para o confronto e os seus olhos seguiram cada golpe das espadas com um terror que a colava à pedra. A sua mente repetia, tranquilizadora, que Ian era forte e capaz, mas a determinação selvagem de Edmund redobrava-lhe o perigo.
Não acostumado à localização das covas, Ian estava em desvantagem, e tentava também manter a disputa longe da parede onde ela estava encolhida. Depois Edmund foi o primeiro a fazer sangue. Ian praguejou quando um fio vermelho lhe surgiu na túnica.
Ian libertou então todo o seu poder de guerreiro, o que transformou imediatamente o seu desempenho.
Ela nunca o vira lutar, nunca vira a destreza que lhe conferiam aqueles sentidos aguçados, mente incisiva e corpo ágil.
Metodicamente, implacavelmente, Ian parou cada golpe do febril Edmund. Quando Edmund tentou deslocar o combate para a parede dela, um golpe sibilante da arma de Ian roçou-lhe o antebraço, cortando-lhe rente um pedaço de pele. – Aproximai-vos dela e eu corto-vos em pedaços antes de morrerdes – rugiu Ian.

Ian teve várias oportunidades de acabar com o combate, mas recuou em todas elas, renunciando à investida que mataria o seu opositor. Por fim, dois golpes velozes incapacitaram o braço da espada de Edmund e uma perna. Edmund caiu ao lado de uma das covas, comprimindo os ferimentos com as mãos, com sangue a escorrer-lhe pelos dedos.
Ian estava de pé sobre ele, a luz do archote transformando-o num anjo vingador que defrontasse os condenados nas profundezas flamejantes do Inferno. A sua espada pairava alto, pronta a cortar a cabeça de Edmund.
Reyna olhava fixamente, com a pele húmida e pegajosa do pavor infernal que acabava de viver. Observou a decisão oscilar na expressão furiosa de Ian.
Se o fizerdes, fazei-o por Robert, e não pelo que ele me disse, incitou com o coração.
Rogando uma praga, Ian afastou a espada de Edmund com um pontapé e baixou a sua própria arma.
Dirigindo-se a ela, agarrou-lhe na beira da saia e rasgou-a. Com as tiras de pano, voltou para ligar os ferimentos de Edmund.
Depois, com corda que encontrou, atou as mãos e braços do homem.
Olhou para o monge surpreendido. – A tentação de vos matar e enterrar aqui é forte, mas deixarei o bispo tratar de vós. Não terei de explicar o desaparecimento de um hospitalário por estas bandas.
– Baixou-se e pegou numa pá. – E, sim, eu sei onde está. Que não terdes sido capaz de o encontrar seja o vosso inferno.
A boca de Reyna escancarou-se. Ian foi até ela e pegou-lhe no braço. – Cuidado com as covas – alertou ele enquanto a conduzia para a passagem.

– Como descobristes, Ian? – perguntou ela enquanto avançavam, incertos. – Robert, um templário. É demasiado fantástico.
– Tudo encaixa. Um voto de castidade que ele manteve em segredo. A chegada aqui cerca de cinco anos depois de Jacques Molay ser executado e poucos anos depois de a ordem ser dissolvida. Imagino que ele tenha ido primeiro para outros templos para se recolher, mas a ordem papal acabou por fechá-los a todos.
Por isso veio para cá e aguardou o momento de entregar o que havia guardado, mas chegou o dia em que ele soube que tal nunca aconteceria, e o tesouro tornou-se um fardo.
– Porque não limitar-se a dá-lo aos Hospitalários?
– O mais certo era Robert não querer que a Ordem de S. João ficasse com ele. Os Templários suspeitavam que os Hospitalários haviam encorajado a sua supressão para se enriquecerem a eles próprios.
Saíram para a luz do sol. Sob o lintel de pedra, Reyna pestanejou. Não estava ali nenhum fantasma pendurado.
– É verdade? Sabeis onde está?
Ele não olhou para ela. – Penso que sim. Descobriremos rapidamente se estou ou não certo. – Encostou a pá a uma pedra e tirou da manga uma tira de pergaminho. – Estava no vosso livro de horas. Penso que Robert teve alguns momentos de lucidez antes de morrer, e desenhou isto. Planeava dizer-vos o seu significado. Mas no dia em que tentou vós não estáveis lá, e Reginald ouviu em vossa vez.
Ela olhou para as linhas e círculos. – O que é?
– Um mapa. Não da forma como habitualmente se desenham, mas mais preciso à sua maneira. David fá-los assim. Vede, aqui está a colina onde nós estamos, e o quadrado é o castelo de Black Lyne. – Pegando no pedaço de pergaminho, deslocou-se até Black Lyne estar posicionado relativamente a eles como estava em relação à velha torre no mapa. – Ele precisaria de alguns marcos para mais tarde ele próprio saber onde estava. Esta pedra grande, talvez.
Parou em frente da pedra, caminhou até à beira da colina e espreitou para baixo. – Ali – apontou. – A depressão no fosso.
Estas linhas divisórias podem querer dizer que está onde elas se unem, nas ruínas, ou onde atravessam o círculo, no fosso. Edmund anulou a primeira possibilidade.
Pegando na pá, desceu a direito o declive da colina e Reyna apressou-se a ir atrás dele. Tendo verificado a sua posição relativamente à pedra e à torre, começou a cavar.
O buraco já ia bastante profundo quando a pá encontrou resistência. Ian desenterrou uma saca carcomida e içou-a. Pelos buracos, algo brilhava. Reyna ajudou-o a desatar o nó e a sua pulsação acelerou quando a saca se abriu. As suas mãos tremiam ao transferir para o chão o seu conteúdo.
Objetos. Objetos preciosos. Um cálice de outro cravado de pedras azuis, e dois pesados candelabros de ouro. Um tesouro, sem dúvida.
– Da capela – murmurou Ian.
O ouro refulgia à luz do sol. – Oh, Ian, são maravilhosos.
– Sim. E muito, muito valiosos. – Começou a caminhar de mãos nas ancas, pensativo. Ergueu os olhos para a torre, onde Edmund jazia amarrado. – Infernos!
– Ninguém sabe que o tesouro está aqui além dele e de nós –
disse ela. – Mas se quereis ficar com ele, tereis de lhe dar alguma coisa, ou ele dirá que veio aqui para o reivindicar para a sua ordem e que vós forjastes a história do assassinato de Robert.
– Não reivindicará nada se estiver morto.
– Não o matastes no calor do combate. Voltaríeis para o fazer agora?
– Porque não? – respondeu rispidamente. – Ouvistes o que ele disse. Um homem com os meus pecados é capaz de tudo.
Especialmente por um prémio como este.
Ele olhou para ela pela primeira vez depois de saírem da torre.
Os seus olhos gritavam-lhe um desafio, que ela reagisse e questionasse. Que condenasse.
– Não acredito nele – disse ela.
– Devíeis. É a verdade.
– Há muito que não sei a vosso respeito, Ian, mas o homem que amo nunca fez tais coisas, e não foi como ele disse.
– Andou perto.
Ela prometera não perguntar sobre o passado dele. Se ele não tivesse levantado o assunto, ela teria fingido que Edmund nunca tinha dito nada e confiado no amor pelo Ian que agora conhecia.
Mas por baixo da dureza daquele desafio, a sua expressão compreendia uma dor que lhe dilacerava o coração.
– Quão perto?
Ele aproximou-se de um candelabro e deu-lhe um pontapé furioso, que o fez voar e deslizar pelo fosso. Ela foi calmamente apanhá-lo. Quando regressou, ele estava com o cálice aos pés, com amarga resignação estampada no rosto.
– Vou dizer-vos, mas não gostareis do que ides ouvir.
– Começais tão cedo a duvidar do meu amor, Ian? Tendes a certeza daquilo que pensarei?

– Tenho, mas dir-vos-ei de qualquer forma, porque não foi como ele disse, e quando vos perder, pelo menos que seja pela verdade.
Olhou na direção do baldio, como se organizasse as memórias e as forçasse a vir aos lábios. – Disse-vos uma vez que parti para ser escudeiro de um lorde vizinho. Ele tinha uma filha jovem. Ela tinha cabelo como fogo e pele como neve, e eu venerava-a. Durante todos aqueles anos raramente nos falámos e nunca estivemos sós, porque a mantinham perto das mulheres, e protegida. Por isso, nunca cheguei a conhecê-la, mas, ainda assim, amava-a com uma dor ardente. Quando fiquei mais velho, tomava outras, criadas e rameiras, e fingia que estava com ela, e depois odiava-me a mim próprio por a ter desonrado na minha mente. Chegada a altura em que contava ganhar as minhas esporas, ela já estava em idade de casar, mas eu sabia que era impossível. Eu era um filho mais novo, e ela não era para mim.
Ele não dissera o nome dela, pensou Reyna. Nem o faria.
– Naquele último ano, o meu pai e o meu irmão mais velho passaram de visita quando regressavam de Windsor. As propriedades não ficavam muito longe uma da outra, mas até então eles não tinham visto que ela se tornara tão bela. A minha mãe estava morta, e o meu pai ainda não tinha quarenta anos. Ele propôs desposá-la logo na primeira noite.
– Oh, Ian…
– Sim, um momento de puro inferno, quando soube. A família dela estava encantada com o casamento. Eu engoli-o, mas a ideia de ter a rapariga que amava como mãe, a ideia de ela partilhar a cama do meu pai, fazia-me náuseas.
– Mas não fizestes nada de mal. Não podemos ser culpabilizados por aquilo que o nosso coração sente.
– Credo, mas sois tão inocente, Reyna. Se isto fosse tudo… –
As palavras dele quase não se ouviam. – O meu pai ficou. O
noivado foi planeado para dali a uma semana. Fingi estar contente por ele, mas foi angustiante. Em primeiro lugar, porque a rapariga que nunca me falara de repente passou a falar-me muito. Os olhos que raramente reparavam em mim pareciam encontrar-se sempre com os meus. Por fim, um dia, quando os nossos pais estavam fora numa falcoaria, ela enviou uma mensagem a pedir que nos encontrássemos no jardim por trás da torre.
– Vós fostes?
– Mesmo com a minha cabeça a dizer-me para me afastar, as minhas pernas levaram-me até lá. Não sei o que esperava, mas sei pelo que rezava secretamente o meu coração, e aquelas orações foram respondidas, mas pelo Diabo. Ela beijou-me, e depois disso perdi a razão.
Ele olhou para ela, e o olhar disse tudo. Ela não teve de perguntar o que tinha acontecido.
– Encontraram-nos lá. Quando os homens voltaram o salão estava num tumulto e a mãe dela a chorar. A minha amada tão assustada que não conseguia falar. – Baixou as pálpebras. –
Mesmo quando fui acusado de violação, ela não disse uma palavra.
– Como pôde ela ficar em silêncio enquanto vós éreis acusado?
Não me importa o quão assustada ela estava, devia ter falado. Um choque tão grande não faz sentido.
– Irá fazer. – Infiltrou-se amargura na sua voz. – O meu pai tinha um temperamento intempestivo, e perdeu as estribeiras quando ouviu. Ali mesmo, em frente da casa inteira, desafiou-me. Eu invoquei a inocência que podia, mas uma hora depois de ter aquela rapariga nos braços dei por mim no pátio com uma espada na mão, defrontando o meu próprio pai.
Um peso terrível alojou-se no fundo do estômago de Reyna. Ela adivinhou o fim da história e quase lhe disse que se calasse para o poupar à dor de a contar.
– Ela assistiu. Todos assistiram. Nunca sentira tanto medo e tanta confusão na minha vida. Era o meu pai, e ele veio para mim cheio de fúria e eu tive a certeza de que ia morrer. Mas eu era jovem e capaz, e estávamos mais equilibrados do que eu esperava.
Eu não sei durante quanto tempo lutámos, mas por fim ele recuou por um momento. Nessa pausa, eu olhei para ela e, na expressão dela, vi que havia planeado tudo, que ela não queria o casamento, que procurava vê-lo mutilado ou morto para se ver livre dele, e que me havia usado para esse fim.
– Porquê vós? Porque não um dos outros que lá estavam?
– Talvez ela soubesse que ele seria mais precipitado com o seu próprio sangue. Talvez tenha ouvido que, entre os escudeiros, o meu braço era o melhor. O mais certo é ela saber reconhecer um idiota. Virei-me e vi o meu pai também a olhar para ela. Quando os olhos dele voltaram a encontrar-se com os meus, eu soube que ele tinha visto o mesmo que eu. E também vi que ambos fôramos idiotas, que ele também se apaixonara por ela. Aí, algo o abandonou. Quase se viu aquilo voar para fora dele. Eu tentei que ele terminasse com o combate, mas ele não o fez. Talvez fosse orgulho, mas eu penso que era desespero. Eu esperava conseguir acabar num empate. Mas estávamos os dois a ficar cansados, e os nossos golpes descuidados. A guarda dele baixou, e só lhe faltou pôr-se à frente da minha lâmina.
O maxilar dele contraiu-se e semicerrou os olhos. Reyna ansiava por dizer algo que o apaziguasse e aliviasse a culpa que lhe estava inscrita no rosto.
– Ele não morreu imediatamente. Eu fiquei com ele, e nunca chegámos a falar dela. Perdoou-me e fez o meu irmão fazer o mesmo, e chamou o meu amo para me armar cavaleiro na presença dele. Depois deu-me algum dinheiro e disse-me para ir para a terra da minha mãe, para longe dos sussurros que já diziam que eu havia desejado a minha nova mãe e que matara o meu pai para a ter.
– Mas não foi assim. Ela ainda não estava ligada a ele.
– De somenos importância, Reyna.
– De muita importância. Nunca teríeis… se se tivesse celebrado o noivado…
Ele virou para ela uns olhos consumidos. – Estais assim tão certa? Eu confesso que não estou.
– Eu estou. Nem vós procurastes matar o vosso pai. Como podem as pessoas dizer tais disparates?
– As pessoas só sabem o que viram. Esta história poderá parecer muito diferente vinda de outra boca – disse rispidamente, mas a raiva não se dirigia a ela. – Primeiro tentei desculpá-la. Tentei convencer-me de que ela procurara a minha morte, não a dele.
Talvez ela não fosse donzela, e tê-la violado serviria de explicação para isso. Foi-me impossível aceitar que alguém tão jovem pudesse ser tão malévolo. Mas quando estava em Londres, ouvi dizer que ela se casara com o meu irmão. O velho lorde ou o secundogénito não lhe serviam, mas o jovem herdeiro… era diferente. Penso que ela o quis desde o início, e que ficou desconsolada ao saber que a oferta havia sido não do filho mas do pai. Por isso precisava do meu pai morto antes dos esponsais, ou o verdadeiro prémio estaria para sempre fora de alcance. Um filho não pode casar-se com a viúva do pai que morreu.
– O vosso irmão sabe?
– Durante um tempo perguntei-me se não teria sido cúmplice, mas não consigo imaginá-lo nessa situação. Mas quando for a Guilford descobrirei. E fá-la-ei perceber que sei que é tão responsável pela morte do meu pai quanto eu.
– Vós, na verdade, não…
– Fi-lo, Reyna. Há muito que aceitei essa verdade. Agradeço que tenteis defender-me, porém. Pensei que me condenásseis.
Ele parecia cansado, como se contar a história lhe tivesse sugado a maior parte da força. Ela abraçou-o e desejou que ele conseguisse sentir o seu amor. – Como podia condenar-vos?
Fostes acusado injustamente. Deveríeis ter esticado o pescoço para a espada do vosso pai?
– Ele deu-me vida. A maioria diria que é seu direito tirar-ma.
Não fui isento de culpa, e parricídio é imperdoável em qualquer situação.
– Nada é imperdoável – afirmou ela. – No entanto, parece-me que nunca vos perdoastes. Penso que acreditastes que o que fizestes havia revelado e determinado a vossa natureza e deixastes a vossa alma ser arrastada sem refletir para onde ia. Mas em verdade, a vossa natureza é afável e boa, Ian. Nunca poderia amar-vos se não o intuísse.
– Não, meu amor, nem tão boa assim. Vós fazeis-me melhor do que sou. – Ele entregou-se ao seu abraço e encostou o rosto ao pescoço dela, como se se socorresse no seu calor. – Eu devia ter mostrado mais força, e calculado o que ela queria de mim. Foi uma lição dura, mas tenho constatado que a aprendi bem de mais.
Por fim, apartou-se dela e pegou no cálice. – Há mais, penso eu.

Há quatro linhas que atravessam o círculo do fosso. Isto é apenas uma parte. Pensei que fossem algumas centenas de libras de ouro.
Nada como isto.
– Não me importa o que decidirdes fazer. Não pertence a ninguém.
– Se entregar Edmund à Igreja, provavelmente nunca será feita justiça. Os tribunais eclesiásticos tomam conta dos seus, e nunca executam os seus clérigos. Ele alegará autodefesa para com o irmão e não há provas com relação a Robert. Engendrará uma história na qual eles ficarão satisfeitos por acreditar, em vez de condenar um hospitalário.
– Mais fácil é, então, dar-lhe algum ouro e expulsá-lo daqui. Ele sairá da Escócia se vós o exigirdes.
– Foi a vós que ele prejudicou, Reyna. O vosso marido e amigo que ele matou. A vossa vida que ele colocou em perigo. Este ouro far-vos-á sentir compensada?
Faria? O metal amarelo reluzia, oferecendo-se para aplacar toda a dor com luxo inimaginável. Urdia nela, insidioso, a sua sedutora magia, e desculpas e racionalizações pareciam literalmente vogar na sua direção com o seu brilho. Se tinha este efeito nela, o que faria a Ian, que durante anos perseguira saques e pilhagens?
– Vós decidis, Ian. Eu não posso. Vós descobriste-lo.
Ele passou-lhe o dedo pela face e ergueu-lhe o queixo. –
Asseguraria o futuro dos nossos filhos.
– Sim, é verdade. Tendes razão.
– Tornar este castelo humilde forte e seguro, e comprar uma casa em York ou até Londres.
– Robert teria querido que ficássemos em segurança.
Ele fitou o ouro que segurava. – Então porque sinto que seria um roubo pior do que qualquer resgate que pedi a alguma cidade para pagar? Ficar com ele, especialmente se implicar dar algum ao seu assassino: não há justiça nenhuma para Robert e não era o que ele planeou para este tesouro.
Ela sentiu a batalha que ia dentro dele. Ao seu amor, não importava o caminho que ele escolhesse, mas perguntou-se se lhe importaria a ele de formas que ela só poderia adivinhar. – Então, o que fazemos, Ian?
Passou o polegar por uma pedra azul. – Safiras, acho eu. –
Suspirou, abanou a cabeça, e sorriu, pesaroso. – Daqui a dez anos, se passardes dificuldades, vou amaldiçoar-me a mim próprio.
Pequenas asas de alegria bateram-lhe no peito. – Aqui haverá que me baste. Haverá que vos baste a vós?
Ele virou-se para ela e olhou-a nos olhos. O ouro que tinha na mão deixara de existir. – Amo-vos de todo o coração, Reyna.
Haverá sempre que me baste se vós fordes minha.
Voltou a colocar o cálice e os candelabros no saco. –
Levaremos isto para o castelo. Mais tarde, depois de mandar alguns homens buscar Edmund, voltarei para desenterrar o resto.
Enviaremos Edmund e o ouro e os livros, para Glasgow. Diremos ao bispo que os livros são para a escola de alguma abadia, mas que o ouro deve ser usado para ajudar os pobres e os deslocados pela guerra. Se faço este sacrifício, quero expiar alguns dos meus pecados passados.
Subiram a colina até aos cavalos. – Sentirei mais falta dos livros do que do ouro – admitiu Reyna.
– Enviaremos apenas os que têm as iniciais de Jacques Molay.
Assim não são todos.
Ela fez má cara. – É a filosofia toda.

– Sabei-la de cor. Podeis passar os invernos a explicar-ma toda, e eu argumentarei contra a sua lógica. O debate deve manter-vos a memória fresca.
– O meu livro de horas terá de ir. Também o sei de cor, mas irei sentir-lhe a falta.
– Esse fica, acho eu.
– Tem as iniciais, tenho a certeza.
– Eu verifiquei antes de vir para aqui. Não vi iniciais nenhumas.
– Na primeira página…
– Penso que não. – Ergueu-a para a sela.
– Ian – disse ela, olhando para ele desconfiada.
Ele olhou para ela com um sorriso.
Santo Deus, que sorriso.
– Existe algo como ser-se demasiado bom, Reyna.

CAPÍTULO 27


– Terei saudades disto – disse Reyna preguiçosamente. Alongou o corpo contra o de Ian, e as flores que ele lhe entrelaçara no cabelo caíram-lhe pelo rosto e o peito. O sol de fim de verão cintilava-lhe na pele com calor. Ela deixou-se imergir na sensação, sabendo que podiam passar-se meses até voltarem a estar assim deitados perto do rio. Em alguns dias já se sentia um friozinho de inverno, e na água que as noites arrefeceram Ian e ela só se atreveram a um banho breve.
– O inverno tem os seus próprios prazeres – avançou Ian. –
Peles à lareira. Vinho quente. Noites muito longas.
– E poderei vestir os meus vestidos novos. Foi gentil da parte de David trazer o tecido de Carlisle.
– São adoráveis. Embora neste instante não estivesse a imaginar-vos à lareira dentro de um deles.
Ela deu uma risadinha e içou-se para cima do peito dele. –
Ainda bem que vos livrastes daqueles livros sobre filosofia, Ian.
Lembro-me de haver secções que alertavam para o prazer carnal.
Nunca prestei muita atenção a essas partes, visto não ter tido experiência nessas coisas, mas agora… e aqueles penitenciais!
Sabíeis que um deles proíbe a cópula às segundas e quintas, além dos domingos, para não mencionar o Advento e a Quaresma e dúzias de feriados sagrados?
– Sou afortunado por nunca vos terdes deixado levar por uma lógica tão desajustada.
– Bem, nunca fui muito lógica no que vos diz respeito. Tendes certo talento para fazer da filosofia a última coisa na cabeça de uma mulher.
Ele puxou-a para si, deitando-a a par dele, os dedos dos pés dela nas suas canelas e os seios apertados contra o calor firme do seu peito. Com beijos e carícias, atraiu-a de volta para o sonho sensual do qual recentemente tinham saído.
Abruptamente, as suas mãos pararam e a sua expressão tornou-se alerta e concentrada. – Um cavalo. Vem aí alguém. – Afastou-a e ajoelhou-se. – Cobri-vos, Reyna. Temos uma visita.
Ela acabava de enfiar a camisa quando o cavalo se acercou.
Esticou-a para baixo e sentiu-se corar ao ver o rosto sorridente do conde de Senlis.
– Incomodo – disse David enquanto Ian enfiava as velhas calças à camponês. – Peço desculpa, Reyna. No castelo disseram que encontraria Ian aqui, e estou só de passagem.
– Sou eu quem devia pedir-vos desculpa, mas é bom ver-vos. E
é um sítio estranho para se estar de passagem, David, visto que estamos a caminho de sítio nenhum – disse Ian.
David desmontou e Ian lançou um olhar muito claro para o vestido de Reyna. Ela curvou-se e agarrou-o.
David fez um gesto descontraído. – Não vos incomodeis, senhora. Ficarei apenas um segundo, e depois podem voltar os dois ao vosso entretenimento. – Sentou-se na erva ao lado de Ian. –
Estou a caminho de Harclow e depois Carlisle. Christiana e eu partiremos em breve de barco para Londres, e de lá para França.

Quando regressava de Glasgow, fiz um desvio para ver Duncan.
Venho agora de lá. Foi uma visita agradável. Informei-o do estado das coisas entre Morvan e os Armstrong, e disse algumas palavras sobre Aymer ter raptado as senhoras. Duncan não sabia de nada e eu achei que as vigas do salão iam cair com tanta fúria que mostrou ao filho. – Sorriu. – Não penso que tenhais problemas daqueles lados durante alguns anos, enquanto Duncan viver.
– Fostes até lá de Glasgow? Está feito, então? – inquiriu Reyna.
– Muito feito. O bispo recebeu os livros e o ouro, tendo aceitado de bom grado as vossas indicações quanto ao seu uso.
Parece ser um homem bom e penso que nenhum daquele ouro acabará a pagar comodidades privadas, o que é sempre um perigo quando se trata de bispos.
Ela sabia que se a intuição dele não tivesse sido aquela, ele poderia não ter sequer entregado o tesouro àquele bispo em particular. Nem ela nem Ian se teriam oposto. Ao confiar-lhe aquele dever, tinham aceitado o seu parecer.
– E Edmund? – perguntou Ian.
– Ah! Bom, aí houve alguma dificuldade. Edmund está morto. –
Olhou diretamente para Ian, com uma expressão inescrutável. –
Aconteceu quando seguíamos para norte. Por causa do ouro, tomámos percursos menos utilizados, caminhos altos, no geral.
Num troço particularmente perigoso, o cavalo dele perdeu o pé.
Foi uma valente queda. – Fez uma pausa. – Uma tragédia. Dadas as circunstâncias, contudo, não me pareceu sequer importante mencionar nenhum dos seus crimes ao bispo, por isso a história toda de Robert e dos Templários e da origem do ouro nunca foi explicada. Penso que o bispo ficará grato por isso. Teria sido difícil derrotar os Hospitalários na reivindicação daqueles bens se Edmund tivesse decidido contar tudo e negociar a sua vida.
Reyna olhou para Ian, que estudava cuidadosamente o convidado deles.
– Devemos agradecer-vos a vossa ajuda nisto, David – disse Ian. – Atrasou o vosso regresso a Londres em várias semanas e fez-vos percorrer todo o Sul da Escócia.
– Os mercadores estão acostumados a viajar. – Voltou-se para Reyna. – Christiana encarregou-me de vos lembrar que nós regressamos a Londres na primavera. Espera ver-vos lá. E Lady Anna insistiu que eu acrescentasse que, a não ser que algum parto estivesse iminente, não devíeis deixar Ian impedir-vos de ir se estivésseis de esperanças.
Ian resmungou. – Aquela mulher. Juro que é propósito dela subjugar todos os homens.
– Não. Apenas sabe a força e o valor que tem, tal como a vossa ninfa sabe do dela. Duvido que Reyna precise de alguma instrução de Anna.
Reyna corou ao ouvir este cumprimento em particular. David levantou-se e sacudiu a roupa. – Devo ir. Morvan e Anna ficarão em Harclow pelo menos mais um mês antes de rumarem à Bretanha. Estou certo de que vos visitará antes de ir embora.
Deixará um dos cavaleiros como senescal, mas contará convosco para manter tudo debaixo de olho.
Eles acompanharam-no até ao cavalo e ele abriu uma das bolsas da sela. – Isto foi arrumado num cavalo diferente, e quando estive em Glasgow esqueci-me dele. Tereis de o guardar até mais alguém ir para norte. – Puxou a espessa Summa de Aquino e colocou-a nos braços de Reyna.
Perplexa, Reyna ficou a olhar para o enorme tomo aninhado no seu seio. – Devíamos mesmo…
– É uma obra que decerto a escola da abadia já tem, senhora.
Não lhe será sentida a falta. – Alçou-se para a sela e curvou-se para apertar a mão de Ian. – Até à primavera, então.
Ficaram a vê-lo trotar até aos homens e estandartes que aguardavam ao longe. – Interrogo-me se terá realmente sido acidente. Aquilo de Edmund, quero dizer – comentou Reyna.
O olhar de Ian não se desviara do grupo que se dirigia agora para o paul. – Estou certo de que o foi.
– Obra do acaso, então.
– Alguma justiça, pelo menos. – Olhou para o livro. – Pode demorar algum tempo até viajar até Glasgow. Anos.
– Algo mais que fazer nas noites longas de inverno.
– Sim, podemos discutir filosofia parte da noite e fazer amor no restante. Eu poderia até nem ter desistido se me esperasse tal recompensa na minha juventude. Deverei acabar de o reler, porém, se quero fazer-vos frente.
Conduziu-a de novo ao leito de ervas. Ela sentou-se de pernas cruzadas e abriu o livro no colo.
– Metade do tempo para a mente, e metade para as paixões.
Parece uma divisão justa, Ian.
– Eu disse parte, não metade. Não tenho intenção de ser justo.
Especialmente agora, já que me parece ser altura de reequilibrar a balança que vós fizestes pender para o vosso lado em Harclow.
Ele estava de pé ao lado dela. Ela ergueu os olhos. Por detrás daquelas pestanas copiosas, o senhor das Mil Noites olhava para ela. A expressão dele fê-la fervilhar de expectativa. Não, ele não ia ser justo de todo.
Ele tirou-lhe o livro dos braços e pousou-o no chão. Segurando-lhe a mão, fê-la pôr-se em pé. Afastou-se para conseguir vê-la por inteiro.
– Despi a combinação, Reyna.

CAPÍTULO 18


– É essa a mensagem tal como vos foi dada? – Palavra por palavra. Sir Morvan disse que devo aguardar e levar a vossa resposta.
Ian repetiu a mensagem para si próprio. Não uma ordem, mas um pedido. Havia sido uma forma de Morvan reconhecer que Ian estava agora na posse do castelo de Black Lyne através de Reyna, e ainda não jurara fidelidade a nenhum homem.
– Dizei-lhe que irei amanhã. Agora ide comer alguma coisa, e dizei a Gregory que trate de vos providenciar um cavalo descansado.
O homem saiu, e Ian foi até às janelas do quarto. Uma brisa fresca corria por elas na noite. Desejou que Reyna ali estivesse para lhe poder falar imediatamente daquilo.
Ele sabia que a chamada podia dar-se. Até ficara ressentido por não ter acontecido logo a seguir à conquista de Black Lyne. Fora como se recusar a sua ajuda em Harclow tivesse sido uma reflexão silenciosa de Morvan sobre a opinião do salteador que lhe salvara a vida.
Agora, porém, a situação em Harclow havia-se tornado crítica, e todas as espadas eram necessárias. Morvan estava a organizar ataques agressivos há algum tempo, e a quinzena seguinte provavelmente decidiria as coisas. Maccus Armstrong não mostrava inclinação alguma para se render, por isso a fortaleza teria de ser tomada pela força.
Desejou que Reyna ali estivesse. Amanhã ver-se-iam separados indefinidamente, porventura para sempre. Ele não tinha nenhuma ilusão de invulnerabilidade. Escalar muralhas e lutar em torres de assalto era muito diferente do confronto em campo aberto, e homens melhores do que ele haviam caído durante a carnificina que se seguia. O estranho desassossego que experimentara quando saíra a cavalo para se defrontar com Thomas Armstrong atormentava-o novamente, despoletando nele uma necessidade sentida de ficar perto do calor de Reyna nas horas que antecediam a separação.
Ele desejou que ela lá estivesse, mas ela não estava, e ele sabia onde ela se encontrava. Sem rodeios, Reyna convidara Edmund a visitar a sepultura de Robert com ela quando a refeição da noite se aproximava do fim. Ian observara-os saírem do salão juntos, mal conseguindo resistir ao impulso de o proibir. Eles tinham saído antes da chegada do mensageiro de Harclow.
Afastando-se abruptamente da janela, desceu ao salão e saiu para o pátio. Subiu os degraus que conduziam ao adarve e prosseguiu até à curva sul de onde se via o pequeno cemitério no sopé da colina.
O que importava se ela passasse tempo com este homem que, de todos os homens, não deveria representar ameaça alguma?
Pensava seriamente que ocorria uma sedução, que o pio cavaleiro tentaria tomá-la naquele chão consagrado? Acreditava ele que Reyna o permitiria? A sua mente racional dizia que não, o que não impediu que imagens mentais da união deles lhe invadissem a mente, alimentando o ressentimento e o ciúme que, durante o dia, vinham ganhando um travo amargo e irado.
Olhou atentamente para o cemitério, mal distinguindo as sombras das cruzes acima da pequena cerca de madeira, pensando ter visto dois vultos sentados ao luar ao lado da campa central.
Edmund, o hospitalário. Nobre e estudado e casto. Sem marcas no corpo ou na alma, fomes inultrapassáveis, pecados ímpios a esconder. Para todos os efeitos, ele era uma versão mais jovem de Robert de Kelso. Não admirava que Reyna se sentisse cativada por ele desde o início.
Também era, e de muitas formas, o oposto perfeito de Ian de Guilford. Ela não deixaria de reparar no contraste absoluto.
Primeiro o rei Alfredo, e agora Santo Edmund. Uma coisa fora competir com a memória de um homem morto. Este aqui vivia e respirava.
Ela não se deita com ele, mas dá-lhe partes de si própria que aparta de mim.
Ficou ali de pé, à espera de movimento no cemitério, resistindo ao impulso de ir lá buscá-la. O tempo passava, e cada momento lhe via crescer as reações irracionais e recuar os pensamentos sensatos. Amanhã ele deixá-la-ia sabe lá Deus durante quanto tempo, e ela desbaratava o tempo que lhes restava lá em baixo com aquele homem. Na ira dele, que ela o fizesse inconscientemente deixara de contar grande coisa.
Quando lhe parecera ter passado uma eternidade e ele continuava sem os ver surgir ao portão do cemitério, deu meia-volta e regressou aos seus aposentos.

Reyna terminou as suas orações e voltou a sentar-se nos calcanhares, olhando para as mãos cruzadas e os olhos fechados do cavaleiro que estava ajoelhado do outro lado da sepultura. A noite ventosa conferia-lhe um aspeto algo misterioso.
– É bom vir aqui – disse ela, arrastando os dedos pelo longo monte de terra. Tinha o coração cheio da memória de Robert, e sentiu o conforto do seu amor e carinho chegarem-lhe através da eternidade. – É bom estar aqui com alguém que o conhecia como eu conhecia.
Edmund mudou de posição e sentou-se no chão com a sepultura ainda entre eles, uma ligação mais do que uma separação. –
Trouxe-vos um manuscrito. Uma cópia de um dos Diálogos de Platão, no grego original. Está diferente das traduções e não penso que o tenhais.
– Trouxestes? Ó, Edmund, obrigada. Não, não temos nenhum Platão. Deveis deixar-me pagar-vos por ele.
– Não me custou nada. O precetor tinha-o na sua biblioteca e um dos irmãos copiou-o para mim. Além disso, não penso que o vosso novo marido gostasse de gastar dinheiro dessa forma.
Reyna sabia que Edmund desviava educadamente a conversa para o casamento dela, mas ela ainda não queria discuti-lo. – Será uma alegria ter algo novo para ler.
Ele aceitou a achega e falaram sobre os livros que ele lera e os eruditos com quem se encontrara desde a sua última visita. Ela invejava-lhe a variedade de experiências que o facto de ser homem e viver perto da cidade lhe possibilitava. Ian desfrutara de uma vida semelhante, e ela perguntava-se como alguma vez poderia encontrar contentamento emparedada no isolamento de Black Lyne.

– Fico contente por saber que ainda continuais com os vossos estudos – disse Edmund. – Ao jantar vi que sim, pois as vossas ideias mostraram-se provocadoras. Não notei, quando estive de visita no ano passado, o quanto a vossa mente havia evoluído.
– Era uma rapariga quando nos conhecemos. Cinco anos é muito tempo numa vida jovem. Já não sou uma rapariga.
– Não, não sois. – A cabeça dele descaiu. – Falai-me da morte dele, Reyna. Ouvi dizer que…
– Sei bem o que ouvistes dizer. Quão longe viajou essa história?
Não até Edimburgo, espero.
– Não até Edimburgo.
Ela descreveu a doença abrupta de Robert e a sua morte célere, entrecortando-se-lhe a voz quando descreveu o sofrimento dele.
– Poderia ter-se tratado de uma morte natural, Reyna? O corpo humano é complexo, e ele era idoso.
– Poderia ter sido, mas não pareceu. Seja como for, agora ninguém acreditará que o foi.
– Não há indicação nenhuma de quem o fez? Nenhuma prova além das que apontam para vós?
– Ian pergunta-me sempre sobre isso. Ele quer descobrir, para deixar definitivamente de haver suspeitas sobre mim. Eu também tenho tentado descobrir a verdade.
– E o que descobristes?
– Nada. Revistei os quartos daqueles que na altura viviam na torre, sem saber sequer o que procurava. Contas feitas, tudo foi em vão.
– E o vosso marido? Não descobriu nada?
– Não me parece. Ele prometeu lutar por mim em julgamento por combate, se necessário. Confio que não se chegará a tanto.

– Acreditais que ele o fará?
Ela ouviu o ceticismo na voz dele. – Ele prometeu-me que sim.
Um suspiro grave atravessou a sepultura. – Reyna, um homem daqueles vive apenas para si próprio e o seu próprio ganho. Se colocardes nele a vossa confiança, temo que vos dececioneis terrivelmente.
– Não o conheceis. Não é o que dizeis.
– Acreditais verdadeiramente que ele vos protegerá? Que ele arriscará a própria vida para salvar uma mulher que pode ser facilmente substituída e cujo valor já lhe está assegurado?
– Não tive valor algum para ele. Morvan dá-lhe estas terras de qualquer forma.
– Morvan pode falhar em Harclow. Tudo pode acontecer.
Ela não necessitava que Edmund lhe recordasse as conveniências que o casamento tivera para Ian. Uma semana atrás ela encarara os factos de frente e aceitara-os como realidades com as quais ela simplesmente teria de viver.
– Tendes a certeza de que ele procura verdadeiramente provar a vossa inocência, Reyna? – A voz dele saiu lenta e silenciosa.
– O que quereis dizer com isso?
– Porque não vos tirou ele daqui? Porque não atender à vossa segurança até tudo estar assente? Então, se ele não saísse vitorioso do combate, vós continuaríeis protegida.
– Se houver um julgamento, devo cá estar para falar por mim própria.
– Muito claro, e presumindo que Morvan virá a deter estas terras talvez tudo corra bem, mas e se isso não se der? Se Harclow não for tomada, Morvan e o seu exército deixarão esta região, e o castelo de Black Lyne não conseguirá, por si só, deter os Armstrong durante muito tempo. Talvez seja essa a razão pela qual Sir Ian precisa de vós aqui. A lealdade dele é para consigo próprio, penso eu, e ele serviria o maior licitador, até o velho Maccus, se isso lhe garantisse o que ele deseja. Abrir mão de uma mulher que já serviu o seu propósito seria um preço pequeno para reter aquilo que lhe proporcionastes.
A sugestão dele continha uma possibilidade implacavelmente prática que a mente dela não podia ignorar, mas o seu espírito rebelava-se contra as acusações. – Não lhe fazeis justiça, meu amigo. Nunca me teria casado com ele se o considerasse capaz do que descreveis.
– Penso que tivestes pouca escolha.
– Estais errado nisso também. Tive escolha, sem dúvida alguma.
Várias, em verdade. Podia ter regressado para o meu pai. Podia ter concordado em ir com Reginald.
– A escolha de Reginald deu-se antes da de Ian, e tomastes cada decisão independentemente. Dizeis que se vos tivessem sido apresentadas em conjunto, ir para Edimburgo como mulher de Reginald ou ficar aqui como a de Ian, vós teríeis escolhido a última, com todos os perigos que encerra?
Era uma pergunta devastadora, de formas que ele nem conseguiria começar a imaginar. De facto, ela havia feito as suas escolhas à medida que se apresentavam, uma de cada vez. Ela dissera a si própria que seria ou Ian ou Duncan, e a escolha fora inevitável a partir do momento em que Ian concordou manter o segredo de Robert.
Agora Edmund forçava-a a encarar uma nova realidade. A sua exposição de uma escolha que nunca existira revelava as emoções dela com uma clareza surpreendente. A segurança ao lado de Reginald teria sido o rumo lógico, sensato.
Mas nunca teria sido aquele que ela tomou.
Edmund interpretou mal o seu silêncio surpreso. – Ian manipulou a vossa situação para vos coagir. Não é necessário que um casamento feito sob tal constrangimento perdure.
– Ninguém forçou a minha mão a assinar o acordo, Edmund.
Não me deram drogas nem me bateram para que o fizesse.
– Não é necessário bater numa mulher para a vergar. O perigo em que estáveis foi coercivo por si próprio. Este casamento pode ser desconsiderado. – Ele pegou na mão dela. Uma mão fria, seca, reparou, e nem de perto tão áspera como a de Ian. Mais como haviam sido as mãos de Robert. A mão de um homem bom, mas com menos vida e sangue a correr dentro dela do que a palma e dedos de Ian de Guilford. – Sou conhecido do bispo de Edimburgo, Reyna. Quando ele souber como isto aconteceu, sem dúvida anulará os votos.
– E depois, Edmund? Ofereceis-me agora a escolha que eu nunca tive entre Ian e Reginald?
– O meu irmão está fora disto. Ofereço-vos liberdade e segurança, e a minha proteção, que existiu para vós desde o início.
Agora que as defesas do castelo afrouxaram, não será difícil tirar-vos daqui. Vireis comigo, Reyna, e nunca mais sentireis medo.
Ela ficou a olhar para o monte de terra. A sua última frase evocou memórias nítidas da primeira vez em que vira Robert, e das primeiras palavras que ele lhe dissera. Ele chegara à casa de Duncan para o casamento um dia mais cedo do que o esperado.
Ela não estava no pátio para o cumprimentar porque Aymer, irritado com uma suposta desobediência da parte dela, a tinha arrastado para a cripta e a tinha deixado trancada lá dentro para guerrear o terror e a escuridão.
Exigindo vê-la, Robert fora levado até lá. Por um instante, ali a olhar para a sepultura, ela era de novo aquela criança de doze anos, encolhida contra a parede da cripta, lutando pela sua sanidade. E aí, subitamente, soaram passos na escadas de pedra, o fulgor de um archote rompeu a eternidade negra, e uma mão veio até ela por entre o clarão. Vireis comigo, criança, e nunca mais vos sentireis assim assustada.
A memória desvaneceu e ela estava de olhos fitos na mão que Edmund agarrava. De súbito, sentiu a presença de Robert, de uma forma assombrosamente viva, como se ele estivesse ao seu lado, ainda vivo. Ela fechou os olhos e deleitou-se com a consciência pungente da sua essência, e sentiu o seu espírito tentando falar com o dela.
Talvez no Céu as almas conhecessem o futuro. Estaria a oferta de Edmund, pronunciada em palavras tão semelhantes à promessa de Robert, destinada a ser um sinal? Estaria o espírito de Robert a incitá-la a aceitar o amigo deles e a segurança que ele conferia?
Saberia ele que, se ela não o fizesse, seria como Edmund predissera, e Ian a abandonaria?
A imagem dos seus pesadelos, a sua face lívida e o seu pescoço esticado, assaltou-a. Ian era um salteador e um oportunista, e ela podia definitivamente ser substituída sem dificuldade pelo belo e excitante homem conhecido como o Senhor das Mil Noites.
– Eu tratarei de tudo e não interpreto mal o meu dever como o meu irmão. Estareis muito longe daqui antes do vosso marido se aperceber – instigou Edmund num sussurro.
Ela sabia que tinha de tomar a decisão agora, pois eles podiam não voltar a ter oportunidade para falar a sós. Ela vacilava, o seu coração cheio de emoções confusas. O pânico apoderou-se dela, e a sua mente turvou-se com dúvidas e medo.
Depois a brisa fez-se mais forte e acariciou-lhe o cabelo, à semelhança do afago que a mão de Robert fazia às suas tranças quando ele partia em viagem. Os seu olhos lacrimejaram quando a memória e a presença dele a invadiram por completo, levando-lhe reconforto, mitigando a confusão. Ela suspirou com o alívio que ele lhe proporcionava, e permaneceu naquela segurança invisível que lhe reordenava as ideias.
Quando acalmou, sentiu a presença dele recuar, assumindo o controlo de toda a confusão e transportando-a com ele na sua partida, afastando as nuvens que lhe obscureciam o coração para ela ver com mais clareza o que estava no seu interior.
Com uma relutância dolorosa, ela deixou o espírito dele partir lentamente, volvendo depois a sua mente para aquilo que havia descoberto. Outra emoção luzia no seu coração, amedrontada e hesitante, mas emanando um calor forte, magnético. Ela reconheceu a sua existência, e esta aceitação foi como combustível que fez dela fogo.
Mas não é como o amor que eu tinha por vós, Robert, debateu silenciosamente. Poderá trazer muita dor e pouco contentamento.
De novo a brisa lhe afagou o cabelo naquele gesto familiar e reconfortante. Em seguida, as memórias e a essência desvanecentes foram tragadas pela noite.
Reyna retirou cuidadosamente a sua mão das de Edmund. Toda a lógica do mundo, todas as análises do perigo que corria e da sua potencial deceção, perdiam a força face ao que ela acabava de constatar. Não duvidaria de Ian, e se ele, por fim, a abandonasse, que assim fosse.
– Ele é meu marido, Edmund. Aceitei-o como tal no meu coração e não há decreto de bispo nenhum que possa reverter isso.
Ela viu o corpo dele fazer-se tenso e direito e sentiu os seus olhos a espiá-la na escuridão. – Reginald disse-me que assim era, mas eu não consegui acreditar nele.
– Eu não sei o que Reginald vos disse, mas…
– Ele disse que este cavaleiro havia jogado com a vossa dor e a vossa solidão. Que vos havia seduzido. Uma coerção muito mais insidiosa, mas, se a mulher estiver vulnerável, muito mais persuasiva do que a violência.
Talvez ele estivesse certo, mas isso não vinha mudar nada. A sua decisão derivava das suas próprias emoções e motivos, não dos de Ian. – Ele não me seduziu. Não me deitei com ele antes do nosso casamento. No entanto, existiu uma afeição peculiar entre nós, e eu não fingirei que assim não foi.
– Reyna, o que interpretais como afeição não passa de volúpia.
Essas fomes da carne passam, especialmente nos homens, especialmente nos homens como ele.
– Não conheceis o meu marido e contudo falais sobre o seu caráter e intenções com muita certeza.
– Informei-me sobre ele hoje de manhã. Os criados conhecem-me e não se coibiram de falar.
Sim, não lhe devem ter dado descanso, Reyna não tinha a menor dúvida. – Pode bem tratar-se apenas de volúpia entre nós, mas ele agora é meu marido, aceite por mim de livre vontade. Eu não mentiria a um bispo para desfazer isto. Considerais-me tão desmerecedora de afeição que seja impossível a um homem senti-la por mim, Edmund?

– Sabeis que isso é um disparate. Robert tinha por vós uma afeição sem limites e um amor profundo. Impressionava quem o testemunhava.
Robert amava-me como a uma filha, quis Reyna dizer.
– Partirei de manhã, Reyna. Se mudardes de ideias, tendes de mo fazer chegar esta noite. Há aqui alguém em quem possais confiar?
– Alice, mas eu não mudarei de ideias. Tendes de partir tão cedo?
– Devo atender ao trabalho do precetor e, apesar da sua hospitalidade, Ian não gosta da minha presença.
Enquanto se encaminhavam para a torre, Reyna sentiu uma nova distância interpor-se entre ela e Edmund. Ele era tão parecido com Robert que lhe despedaçava o coração saber que ele reavaliava a opinião que tinha dela, e não para melhor.
Detiveram-se do lado de fora do portão. – Perdi-vos como amigo agora, como perdi Reginald? – perguntou calmamente.
Ele pegou nas mãos dela e beijou-as. – Não, senhora minha, estarei sempre aqui para vós. Ainda assim, parece-me provável que passe bastante tempo até voltarmos a ver-nos. Ian não aprecia a nossa amizade.
– Ele não me negará os meus amigos.
À luz do archote, Edmund baixou os olhos para ela. – Se convier aos seus intentos, negar-vos-á tudo. Receio que, se for forçado a uma escolha, chegue a negar-vos a vossa própria vida.
Um silêncio retumbante envolvia a torre. Era muito tarde, todos dormiam, constatou Reyna. Ela e Edmund haviam falado durante mais tempo do que ela pensara.
Subiu até ao quinto piso e deteve-se no corredor. Um archote iluminava o espaço, e ela adivinhou que Ian havia ordenado que lá o deixassem para ela. Provavelmente ele já dormiria, mas ela estava desejosa de se deitar ao lado dele. Precisava da segurança da força dele a aquecê-la agora mesmo.
Aproximando-se da porta do quarto, esta abriu-se facilmente e um vulto de saia saiu. Uma cabeça com um lenço volveu-se com um sorriso radioso que se desvaneceu perante Reyna. Eva corou profundamente, esgueirou-se e desceu apressada as escadas.
Reyna ficou de olhos cravados na porta do quarto principal. Um entorpecimento varreu-lhe os braços e pernas até aos dedos, como se alguém lhe tivesse despejado um balde de água gelada pela cabeça abaixo.
O canalha.
Fervilhando de mágoa e fúria, foi imediatamente para o seu quarto. À pálida luz do luar que entrava pelas janelas, procurou um pau na lareira. Esbarrando na mesa e na cama, volveu a sair e foi acendê-lo ao archote do corredor, para ter luz no quarto.
Preparou-se para se deitar com a cabeça cheia de insultos cumulados sobre a alma negra de Ian de Guilford. Quando tirava o guarda-cós azul, o seu olhar recaiu sobre os pergaminhos amontoados na escrivaninha. A carta para Lady Hildegard não avançara muito. Demasiados dias se sentara empunhando a pena, tentando formar as suas frases em latim, apenas para constatar que as horas haviam decorrido em devaneios com o homem que lhe consumia os pensamentos.
Um erro, era óbvio. O filho de uma égua. Desejou subitamente ser tão grande e forte como Lady Anna. Desejou que, usando os seus punhos num homem, ele o sentisse. Ela poderia não ser capaz de tocar o coração deste salteador, mas se ele a insultava desta maneira, seria muito gratificante pelo menos maltratar-lhe o corpo.
Com movimentos abruptos tirou as meias e a combinação e atirou para trás a roupa da cama. Deu socos na almofada e remexeu-se para encontrar algum conforto na cama fria e estreita.
Talvez devesse ir dizer a Edmund que mudara de ideias. Eles poderiam até conseguir partir esta noite. Sem dúvida que Ian tinha boas razões para dormir profundamente a noite inteira.
O amor que tão recentemente reconhecera infiltrava-se na sua indignação, dizendo-lhe que decerto não faria tal coisa. Ela confrontou a emoção como se esta fosse um corpo estranho que lhe invadisse o espírito. Não me controlareis, avisou-a perigosamente. Não vos deixarei fazê-lo. Sois uma forma de tortura e continuarei a negar alimento ao vosso fogo porque se vos alimentar sereis o fogo do próprio Inferno.
Perguntou-se se Anna ainda estaria acordada. Anna também não gostava de Ian e elas podiam ir buscar vinho e, embriagadas, desfazê-lo com insultos…
– Que raio fazeis aqui? – A voz grave e ríspida vinha da porta.
Reyna virou a cabeça, deparando com Ian. Estava tão absorta nos seus pensamentos furiosos que não ouvira a porta abrir-se.
– A dormir. Foi rude da vossa parte acordardes-me.
– Não estáveis a dormi. Ouvi-vos entrar.
Ele avançou pelo quarto adentro e lançou-lhe um olhar furioso.
Ela sentou-se contra a parede e devolveu-lhe o olhar, absorvendo a firmeza do seu corpo e a luz profunda dos seus olhos. Ele parecia tão irritado quanto ela se sentia. Pensou que era preciso muito descaramento da parte dele.

– Estivestes acordada metade da noite com aquele homem –
disse ele secamente.
– É um amigo que raramente vejo, e tínhamos muito de que falar.
– Aposto que sim. Debatestes filosofia todas estas horas, Reyna?
A insinuação dele fez o seu sangue pulsar com força. Ele acabava de se deitar com a peituda Eva e atrevia-se a atirar-lhe com acusações, a ela. A tensão de controlar a fúria que sentia era-lhe custosa e o esforço fê-la perder o controlo. Decidindo que falar não lhe serviria de nada, limitou-se a olhar para ele, recebendo a sua pergunta com o mesmo silêncio frio que ele havia consagrado a uma das dela.
Com um movimento abrupto, ele virou-se para a escrivaninha, agarrou-a, ergueu os braços e atirou-a violentamente contra a parede. Uma tábua partiu com a força do impacto. Pergaminhos e penas esvoaçaram em todas as direções e flutuaram até ao chão como destroços de uma tempestade de outono.
O frágil controlo de Reyna desfez-se com a mesa. Enrolando o lençol no corpo, ergueu-se como um raio. – Desprezível filho do Cornudo. Com que direito é que vós…
– Sois minha mulher. Se vos pergunto o que estivestes a fazer durante metade da noite com um homem, vós respondeis.
– Passámos a maior parte da noite a amaldiçoar-vos.
– E o resto do tempo?
Emoções complexas e ameaçadoras extravasavam dele, abalando o ar do quarto como relâmpagos, mas ela não queria saber. – É disso que se trata? É essa a razão desta cena de raiva, agora? Ainda vos agarrais à ideia de que eu e Edmund partilhamos esse tipo de amor? Seu louco. Ele é um cavaleiro celibatário. Não julgueis todos os homens pelos vossos vis padrões, filho de uma égua inglês!
– Os meus padrões podem ser vis, mas deteto um homem que trama alguma coisa quando o vejo. O que queria Santo Edmund de vós, mulher?
Uma paz perigosa, fria, varreu-lhe o calor da fúria. Ela não se tinha realmente acalmado, apenas encontrara o centro da sua tempestade. Estavam frente a frente à mera distância de um braço, dois corpos tensos travados no espaço por olhos resolutos.
– Ele queria levar-me embora – disse ela. – Ele não confia que vós me protejais se achardes que isso não vos beneficia. E eu, idiota, recusei, mas bastou subir estas escadas para me arrepender da decisão.
Ele cerrou os dentes. – E viestes para aqui para o vosso escritório de filósofa para reconsiderar? Para sujeitar essa decisão obediente à frieza da lógica e pesar as vossas opções?
– Vim para aqui porque a vossa rameira saía da vossa cama quando passei pela porta do vosso quarto.
Ele não atendeu à acusação dela mas, a bem ver, o que poderia dizer? Ventos de fúria recomeçaram a levantar-se dentro dela. –
Tencionáveis que vos encontrasse juntos, ou teríeis ficado satisfeito se eu soubesse amanhã pela coscuvilhice dos criados? Dizei-me, seu galo com cio, havei-la chamado porque eu não estava lá para satisfazer uma fome passageira, ou planeaste-lo como vingança ou castigo porque me atrevi a demorar-me com o meu amigo e não estive aqui para vós, como é costume?
Os olhos dele exaltaram-se, mas ela não recuou. A mágoa e a raiva eram demasiadas para que sentisse medo. Uma tensão horrível retesava-se entre eles. Ela quase desejou que ele lhe batesse, para ela própria poder desferir alguns golpes, nem que fosse para aliviar a pressão que a atormentava.
Ele deu meia-volta, de mãos nas ancas. – Se tivesse sido como dizeis, não teria ido além do que mereceis. Devíeis ter estado aqui, e não com ele.
– Raios vos partam. Edmund é um amigo que me ama como vós nunca amareis. Idiota, escolhi contra toda a lógica confiar mais em vós do que nele, e, como uma criança rancorosa, vós soltais-me os cães porque por uma noite não tivestes a atenção toda.
Ele virou-se para a encarar com uma expressão de surpresa, mas o seu rosto rapidamente recuperou a rigidez. – Não é nem infantil nem rancoroso um homem querer a sua mulher com ele antes de sair para a guerra, Reyna.
Um golpe físico não a teria chocado tanto. O impacto das palavras dele derrubou imediatamente a raiva de Reyna.
Ela sentiu a investida violenta das emoções que irrompiam dele.
À raiva e ao desejo, reconheceu-as, mas havia ali outras correntes também, que não lhe eram conhecidas. Rajadas de necessidades e anseios que não tinham nome pareciam alimentar o seu humor proceloso.
– Quando soubestes? – inquiriu ela.
– O mensageiro chegou logo após saírdes do salão. Partirei de manhã. – A sua voz tinha uma inflexão amarga.
– Porque não viestes dizer-me, ou mandastes alguém fazê-lo?
– Era claro que estáveis desejosa de falar com o vosso cavaleiro e conversar sobre a vossa má sorte. Eu senti que ele queria algo de vós, mas não achei que fosse atrevido ao ponto de violar a minha hospitalidade tentando roubar-me a mulher.
– Isso implica que… não foi… – Deixou morrer as explicações.

Ela não queria continuar a falar de Edmund. Preocupação e medo haviam-se substituído à raiva. Os avisos de Edmund, o sorriso de Eva, até mesmo esta discussão dolorosa, haviam-se tornado imediatamente insignificantes.
Dentro de algumas horas Ian estaria de saída. Partiria, e não para uma guerra insignificante na fronteira, mas para um cerco perigoso onde todos os dias morriam homens a escalar muralhas nas quais o inimigo aguardava com setas e fogo.
Ainda estavam, rígidos, um em frente ao outro, como estátuas de pedra que decorassem um edifício varado por uma ventania silenciosa.
– Quanto tempo estareis fora?
– Duas semanas. Um mês. Até acabar.
Duas semanas. Um mês. Para sempre. – Ides só?
– Levarei o grosso da companhia comigo. O vosso hospitalário terá de sair de manhã, porque o portão será fechado quando nós partirmos e ninguém entrará sem o meu consentimento. – Ele não olhava diretamente para ela, mas Reyna conseguia ver a luz férrea que brilhava nas profundezas dos seus olhos.
Ela desejava transpor o espaço entre eles, mas a postura e o rosto dele diziam que os poucos passos no chão de madeira podiam bem ser um quilómetro de penhascos. Ainda assim, ela deu um passo em frente e ergueu uma mão hesitante como que para lhe tocar. A mão ficou ali a pairar, sem completar o seu curso, uma ordem inconsequente, frágil, para o furacão se acalmar. – Então viveremos como num cerco até vós regressardes?
– Vós não. Morvan ordenou que a sua mulher e irmã fossem levadas para Carlisle. Vós ides com elas.
Ir para Carlisle parecia tão permanente, como se ele a enviasse para o outro lado do mundo. – Este é o meu lar, Ian. Não compreendo.
– Lá estareis em segurança.
– Ficarei em segurança aqui.
– Não se Morvan falhar e eu morrer.
Uma angústia avassaladora repleta de medo e arrependimento e amor crescera dentro dela, arrebatando-a agora de tal forma que a sua garganta se apertava e os seus olhos queimavam. Procurando manter a compostura, refugiou-se em praticidades. – Tendes razão.
Eu devia ter estado aqui. Contáveis que eu atendesse aos preparativos, e agora a vossa partida ver-se-á atrasada. Acordarei os criados dentro de poucas horas e…
– Quero lá saber dos preparativos. – Ele esticou um braço e agarrou-a, puxando-a para o outro lado do fosso, para a turbulência dele. O movimento violento assustou-a tanto que ela gritou. Dedos de ferro agarravam-lhe os braços, praticamente levantando-lhe os pés do chão, e ele olhava para ela com olhos intensos, sombrios. – Para uma viúva que foi casada doze anos, há muito que não sabeis sobre ser mulher de alguém.
O perigo nos olhos dele e o aperto brutal das suas mãos deviam tê-la assustado, mas não o fizeram. Havia muito que não compreendia daquele estado de espírito, mas reconheceu alguma coisa.
– Então cabe-vos a vós guiar-me – sussurrou ela.
Com um movimento brusco, ele puxou-a para um beijo urgente num abraço vigoroso. Dedos cruéis aprisionavam-lhe a cabeça, por isso ela não conseguiu evitar que a boca lhe magoasse os lábios, devorando os receios dela, exigindo os seus direitos. Braços de aço dobravam o seu corpo contra o dele com tanta força que as suas mãos, agarradas ao lençol, se converteram em pequenas pedras, entrando na carne e osso que contra elas pressionavam.
Não havia exigência de submissão consentida neste ataque selvagem. O seu corpo respondeu com uma espantosa onda de calor e o seu amor resplandeceu com a prova de que, o que quer que fosse que o impelisse, ele claramente precisava dela e queria-a.
Ele ergueu a cabeça e o sangue regressou à sua boca violentada, picando-lhe a pele tenra. Com olhos líquidos, ela viu a sua expressão inflexível. Ele apertou mais o seu corpo arqueado, com uma mão esticada aberta sobre as suas nádegas para o cume duro da sua excitação lhe pressionar o ventre. – Sim, é isto que a ideia de nos separarmos me faz – murmurou com rudeza, examinando o rosto dela como se procurasse memorizá-lo. – Se eu não for meigo, culpai-vos a vós própria por me deixardes demasiado tempo entre as mãos.
– Não penso culpar ninguém.
– Podeis pensar de forma diferente antes de esta noite acabar. –
Voltou a beijá-la, apenas um pouco menos violentamente. –
Certificar-me-ei de que não esqueçais depressa que sois minha. Se outro homem olhar para vós, serão os meus olhos que vereis no rosto dele, e à noite nos vossos sonhos não será nenhum espectro que vos toma, mas sim eu. Se o vosso santo cavaleiro se atrever a seguir-vos até Carlisle, sentireis estas mãos de diabo no vosso corpo enquanto ele vos tenta, e a respiração deste salteador na vossa orelha enquanto ele vos persuade.
Ela mal o ouvia. A tempestade absorvera-a e ela girava no seu centro com o corpo moldado ao dele, pendurada nele, sem peso, com a força dele como única ligação sólida ao mundo.
Ele ergueu-a nos seus braços, abrasando-lhe a boca e o pescoço com os seus beijos quentes enquanto o quarto dela, o corredor, o quarto principal passavam, turvos. Ele deixou-a cair na cama deles e arrancou o lençol que ela ainda cingia ao corpo.
Completamente vestido, colocou-se por cima dela, afastando-lhe as pernas, assentando-se nelas. Uma mão áspera subiu-lhe firme pela coxa num trajeto que findou na humidade que revestia aquele centro secreto.
O braço dele passou-lhe por detrás do ombro, e a sua mão entrelaçou-se no cabelo, segurando-lhe a cabeça para ela ficar de frente para ele. Ela viu a sua expressão de triunfo quando descobriu a sua excitação, mas não se importou. Ela ansiava penosamente pelo preenchimento dele, e gemeu de alívio quando ele investiu dentro dela com um movimento vigoroso.
Não foi nada meigo. Numa posse primitiva, o corpo dele embatia contra ela uma vez e outra, numa fúria da paixão que os envolvia. Ele dobrou-lhe as pernas para a poder penetrar mais profundamente, e a força das suas acometidas violentas faziam-lhe subir as ancas. Ele observava a reação dela a esta violenta reivindicação de direitos, e relâmpagos faiscaram naqueles poços negros quando a resposta dela se soltou e os seus frenesins mútuos colidiram em combate. Ela tornou-se impotente contra uma invasão espiritual à medida que o êxtase começou a cerrar e avolumar-se e a puxá-la para ele.
– Pois, Reyna – disse a sua voz grave enquanto o sabor da completude vibrava e corria por todo o seu corpo. – Robert ainda pode ter o vosso coração, e o vosso monge pode inspirar-vos a mente, mas nisto sois completamente minha. Não me negareis nada esta noite.
Ela sabia que ele não falava apenas de coisas físicas, mas não encontrou vontade de convocar resistência. O reconhecimento do amor que sentia sabotara as frágeis muralhas com que ela, a medo, protegia o seu coração. Agora estas abanavam e abriam fendas e caíam na investida violenta daquela intensidade.
Na paixão febril daquela unificação maior, a posse agressiva converteu-se numa partilha arrasadora. Ela fazia por o absorver com todo o seu ser enquanto o prazer turbulento ascendia ao seu ápice frenético. Vieram um para o outro numa libertação longa e feroz repleta de mordidas e gritos e mãos como garras, fundindo-se num arrebatamento violento.
Ficaram, exaustos, entrelaçados um no outro, corpos selados com suor e abraços. Ela apercebeu-se lentamente da respiração na orelha dela com que ele prometera marcar-lhe a memória. O som recordava-lhe a sua separação iminente. Fechou os olhos, atenta ao seu ritmo, e tentou suprimir a tristeza que queria invadir a perfeição daquele abraço.

CAPÍTULO 19


Reyna acariciou-lhe as costas, e ele sentiu o toque dela a aperceber-se do tecido da sua túnica. Ela moveu a mão para lá do lençol amarfanhado por baixo deles e tocou na colcha.
Ian ergueu-se nos antebraços para olhar para ela. Viu-a considerar que ele ainda estava vestido e que a cama não fora usada antes de ele a atirar para lá.
Sentiu uma nova irritação por ela não ter feito perguntas sobre Eva antes de o acusar. A maior parte da sua raiva ferida havia sido absorvida pela paixão, mas não toda. – Talvez a tenha tomado no chão ou contra a parede.
Ela desviou o olhar com uma expressão de desalento, fazendo-o sentir-se culpado por a ter magoado de propósito, especialmente agora, depois disto.
– Foi grosseiro da minha parte – sussurrou ele, roçando-lhe a orelha com o nariz. – Eu não a chamei. Ela veio sozinha, para concluir o pedido que começara no pátio na semana passada. Há um jovem arqueiro na minha companhia que se amigou dela, mas que não lhe tocava por minha causa.
– Ela pediu-vos permissão para dormir com outro homem?
– Algo assim. Duvido que Eva se preocupe com tais formalidades, mas o homem pensou que era prudente. Ele quer casar-se com ela. O pai dela não tem filhos e iriam ambos para a sua quinta.
– Ela quer ir-se embora?
– Eu disse-lhe que teria de vos perguntar se podíeis passar sem ela.
A fronte dela enrugou-se, pensativa. – Não sei se posso. Ela é uma excelente costureira. E se o meu marido decidir brutalizar uma mulher com alguma regularidade, pode ser útil tê-la por aqui.
Ele baixou os olhos para a prova da sua violência. Viam-se marcas de dedos onde ele lhe agarrara os ombros e um chupão luzia rubro no seu pescoço, onde amanhã seria visível para o mundo. Ele beijou-o suavemente, sabendo que, se pudesse torná-lo permanente, como uma marca gravada a ferro, o faria. – Pediria desculpa, mas não o lastimo.
– Nem eu.
Ele ficou quieto um instante, grato por ela não lamentar nem ficar ressentida com aquilo que ele forçara.
Saiu da cama e tirou a roupa, indo depois até à lareira onde um balde de água aquecia para a limpeza matinal. Molhando um pano, regressou e deitou-se ao lado dela, passando-o pelas marcas que havia feito.
Ele desceu o braço para lhe passar a compressa quente entre as coxas. Na sua mente, ouvia o eco das palavras de Morvan, ditas neste aposento: Bolas, Ian. Elizabeth não vos ensinou nada?
Sim, ensinara-lhe muito, mas enquanto esperava por Reyna, esta noite, aquelas lições e os anos que passara a aperfeiçoá-las haviam sido esquecidas. Voltara a ser um jovem imaturo, consumido por necessidades desesperantes e dores cruas, e todas elas se haviam centrado em Reyna. A ideia de que ela partilhava qualquer parte dela com outro homem enlouquecera-o. Ele entrara no quarto dela cheiro de emoções furiosas, desvairadas, e a própria raiva e paixão dela haviam-no feito perder o controlo.
Depois, vendo o que estava nele, ela simplesmente se abrira para o absorver.
Ele passou-lhe o pano pelo corpo, atento à pele por baixo da sua mão, gravando as memórias na mente. Coisas inomináveis ainda se revolviam dentro dele, mitigadas mas não destruídas pela paixão deles, desassossegando-o com o seu poder. Pensar em deixá-la entristecia-o de forma surpreendente, cobrindo o seu coração com o temor e a dor que uma criança sentiria ao ver-se separada da mãe. Porventura tivesse sido melhor tê-la evitado esta noite e nunca lhe ter exigido que atravessasse aquelas fronteiras. O
preço podia ser muito alto, especialmente se ela alguma vez voltasse a recuar.
Ele voltou a cabeça e os seus olhares encontraram-se. O rosto dela tinha um aspeto muito jovem e doce, mas os seus olhos mostravam o saber de uma mulher.
– O vosso pai, que procurou fazer de vós padre, ainda vive? –
Fez a pergunta como se nunca a houvesse pronunciado, mas o seu olhar compreendia um desafio.
Sim, teria o seu preço. Tratava-se de Reyna. Nunca seria tão estúpida que permitisse que a entrega ocorresse apenas numa direção.
– Não, não vive.
Preparou-se para a próxima pergunta, e a seguinte, e começou a sentir o travo de a perder depois de todas terem sido perguntadas e respondidas. Por isso, quase gemeu de alívio quando ela escolheu desviar-se da questão principal.

– Ele morreu quando ainda éreis jovem?
– Morreu quando eu tinha dezanove anos, logo depois de eu ser armado cavaleiro, mesmo antes de ir para a corte. Ele havia tratado de me enviar para lá para um parente. – Era a verdade, apesar de incompleta.
– O vosso parente servia o rei?
– Era um funcionário menor. Levou-me para a casa dele. –
Nada disto era mentira, na verdade.
– Vivestes com ele durante todo o tempo que lá ficastes?
Sim, uma pergunta levaria a outra, e ele viu para onde estas se encaminhavam. Ela limitava-se a seguir os pensamentos enquanto construía formas de substância dentro do profundo mas indefinível conhecimento que tinham um do outro.
Ele não podia negar-se a ela sem perder o que acabava de lutar para reaver, mas sentia alguma angústia com a ideia do julgamento que o aguardava. – A peste chegou não muito depois de eu chegar.
O meu parente estava fora, e dela morreu. As pessoas da casa mudaram-se para uma das propriedades da mulher, no Sussex, até a peste passar.
Fez uma pausa, perguntando-se se poderia ficar por ali.
Provavelmente não. A sós com Christiana em Carlisle, ela podia vir a saber deste pecado menor. – Fiquei com a mulher dele durante dois anos, vivendo principalmente de ganhos em torneios.
– E depois partistes para França?
– Depois vivi sozinho por um ano antes de procurar a minha sorte em França.
Ela identificou imediatamente as lacunas. – Porquê?
Desentendeste-vos com a vossa parente? – Na falta de resposta dele, as sobrancelhas dela ergueram-se e ele viu as peças encaixarem. – A mulher de que me falastes no outro dia… a troca com Morvan… era a mulher do vosso parente?
– Sim. – Ficou aliviado por ela não parecer mais chocada.
– Ela devia ser muito mais velha do que vós ou Morvan.
– Era a segunda mulher do meu parente, e muito mais jovem do que ele. Mesmo assim, tinha quase idade para ser minha mãe.
– Amávei-la?
Ela queria que ele dissesse que a amara loucamente. Elizabeth não era parente de sangue, mas pelo casamento. Embora tais relações não fossem inauditas, não eram aceitáveis. Afirmar que estivera perdido de amores tornaria o facto mais palatável, mas ele constatou que não conseguia mentir-lhe.
– Amava-a tanto quanto conseguia, o que não era muito. Menos do que devia. Mais do que ela queria.
– Porque acabou?
Porque deixei de ser fiel, que era tudo o que ela alguma vez exigia dos seus amantes. Porque sabia que ela amava outra pessoa e ressentia-me disso, apesar de eu nem sequer saber o que fazer com tal amor se ele me fosse dirigido. Porque havíamos sanado a pior dor um do outro, e era altura de vivermos as vidas que nos restavam.
– Elizabeth tinha muito de mãe e era tentador ficar para sempre no conforto do seu seio. Mas, tal como uma mãe, também chegou a altura de partir.
– Penso que consigo compreendê-lo. Foi algo parecido com Robert e eu.
De todas as reações que ele esperara, a última seria esta calma compreensão. Ela surpreendeu-o ainda mais quando acrescentou: –
Fico contente por ela ter lá estado se vós precisáveis da sua amizade.
Ela agarrou na ponta das cobertas, empurrou-as para trás e depois puxou-as para cima dos seus corpos. – Tendo em conta a caçada e o resto, deveis estar muito cansado. Tendes uma longa cavalgada à vossa frente. Dormi, Ian. Acordar-vos-ei ao amanhecer.
– Vós também deveis estar cansada.
– Não estou. Daqui a alguma horas devo acordar os criados para os preparativos da vossa partida. Não acredito que durma.
– Então eu também não. Aprendi há muito a descansar em cima de uma sela. Não planeio desperdiçar horas com sonhos quando o melhor sonho está deitado a meu lado. – Voltou a afastar as cobertas, expondo o corpo de Reyna, e apoiou-se num braço para olhar para ela. – Além do mais, quem sabe quando voltarei a ter oportunidade de vos ministrar outra lição?
Beijou-a, memorizando a suavidade dos seus lábios e o contorno afiado dos seus dentes, e as profundezas de veludo da sua boca. Juntando-lhe as mãos, segurou-lhas acima da cabeça para ela ficar esticada e completamente vulnerável a ele. Ele não a queria a abraçá-lo ou a fazer qualquer outra coisa que pudesse acelerar a sua resposta. Ele iria deixá-la louca, desesperada e suplicante, e talvez o som dos seus gritos o sustivesse durante os dias e as semanas seguintes.
Acariciou-a lentamente, observando a sua mão bronzeada mover-se em torno dos volumes da sua pequena forma feminina, procurando não provocar nela mais do que um prazer lânguido.
Ainda assim, os seios dela avolumaram-se e os mamilos endureceram. A resposta rápida fê-lo sorrir, mas não se deixaria distrair.

– Sois tão adorável, Reyna. A vossa pele tem sempre este vago rubor, e é suave e húmida, como se estivesse coberta de um orvalho invisível. – Ela ficou sem fôlego quando ele baixou a cabeça e primeiro beijou e depois lambeu o vale entre os seus apelativos seios.
Ela arqueou-se convidativamente, mas ele ergueu-se mais para poder acariciar e memorizar as linhas elegantes das suas pernas. As suas coxas leitosas estremeceram e retesaram-se quando ele se encaminhou mais para cima, para o odor e a humidade que já aguardavam entre as pernas dela. Ele tocou-lhe ao de leve, como se a testar se ela estaria demasiado dorida para mais, grato pela prova de que não estava quando o seu corpo estremeceu elegantemente em resposta.
Ela enrugou a fronte quando ele retirou a mão.
– Ainda não, Reyna. É um castigo por voltardes a chamar-me canalha e filho de uma égua. Avisei-vos que não o fizésseis. – Na verdade, aquela diatribe havia sido música para os seus ouvidos.
Ele passou os dedos pelo lábio inferior, retirando a humidade da sua respiração travada, estudando o desejo diáfano dos seus olhos.
Sentiu-se inexplicavelmente lisonjeado por esta mulher sequer o querer, ainda por cima com tanta intensidade e tanta prontidão.
Ele desenhou-lhe uma linha do queixo ao peito e depois andou à volta da elevação de um pequeno seio. Ela contorcia-se e gemia, e ele esticou a mão para roçar suavemente o seu mamilo ereto. – É
isto o que quereis, Reyna?
Ela tentou soltar as mãos da dele.
– É?
– Sim, diabos vos levem.
– Outra maldição? Pode durar até de madrugada. – Ele provocava-a com as pontas dos dedos, roçando ao de leve o botão rosa, e ela sacudiu novamente os braços.
– Largai-me, seu filho de uma égua, e veremos quem mais grita.
– Continuai assim e poderemos não partir antes do meio-dia. –
Ele baixou os lábios até ao outro botão. – Sois tão suave, como veludo. A primeira vez que vos beijei, quase esqueci todo o sentido do dever. – Ele lambia e sorvia lentamente, perdido no gosto e no toque deliciosos dela, maravilhosamente alerta aos gritos e movimentos de abandono que a sua língua e mão extraíam dela.
As suas ancas balançavam lentamente enquanto ele fazia amor com os seus seios, e ele deixou que o ritmo do desejo titilasse a sua própria fome tensa. Saboreava cada reação apaixonada, guardando a memória como uma posse preciosa.
Libertou-lhe as mãos e virou-a de costas. Pairando acima dela, desceu lentamente beijando-lhe as costas e depois virou-se para lhe observar o corpo, enquanto lhe acariciava a parte de trás das pernas e coxas. Ela enterrou a cabeça nos braços, para abafar os arquejos de surpresa que soltava. Quando o toque e o olhar dele subiram, as elevações suaves das suas nádegas contraíram-se e as suas costas arquearam. Ela tinha um aspeto incrivelmente erótico nesta posição, e ele inclinou-se para lhe beijar o fundo das costas enquanto os seus dedos corriam para a fenda ensombrada.
O grito abafado que ela soltou quase o tirou de si. A tormenta, apaziguada mas não saciada, entrou novamente em erupção. Ela afastou as pernas para ele prosseguir, e as suas ancas ergueram-se quando o dedo dele encontrou a passagem estreita e afagou as suas profundezas escaldantes. Ela ergueu a cabeça e olhou para ele com olhos desconfiados. – Ides….
Ele imaginou as ancas dela a erguerem-se em direção a ele, e atravessou-o um estremecimento de calor. Mas ele duvidava que conseguisse manter algum controlo se a tomasse daquela forma, e tudo o que não fosse meiguice desta vez seria imperdoável.
Virou-a para cima. – Para a próxima, Reyna, e ides gostar, prometo-vos. Mas hoje quero o vosso rosto contra o meu e os vossos braços à minha volta.
Ela tentou estreitá-lo, mas ele escapou-lhe dos braços e percorreu-lhe a pele sedosa com beijos quentes. Outra memória e posse de que não abdicaria. Pôs-lhe as pernas em cima dos seus ombros e beijou-lhe a parte de dentro das coxas. Uma nova febre assomou aos olhos dela. O seu corpo parecia saber o que ele ia fazer, ainda que a sua mente não.
Ele acariciou-a intimamente, procurando os pontos que a levavam à loucura, e ela reagia com movimentos involuntários. Ele dirigiu os beijos mais para cima, para o centro da sua paixão. Ela gritou o nome dele e ele, erguendo os olhos, viu a sua expressão selvagem, de assombro.
– Vou fazê-lo, Reyna. Se não gostardes, paro.
Ela ficou tesa como uma tábua quando a boca dele se substituiu aos dedos, mas o prazer demoliu imediatamente a sua resistência. –
Sim – sussurrou ela, e logo a afirmação se tornou um grito repetido vezes sem conta, e o som deste cântico ofegante e os espasmos da paixão dela empurraram-no para um olvido resplandecente.
Quando ele se colocou por cima dela, ela agarrou-se a ele, chamando-o para si, erguendo as pernas num abraço, tentando unir o seu desespero. – O que quereis, Reyna? – Mal lhe restava juízo sequer, mas queria ouvi-la dizê-lo. Precisava de a ouvir dizê-lo.
Os dedos dela cravaram-se-lhe nos ombros. Ela ergueu os olhos e pestanejou para afastar a paixão atordoante.

– O que quereis? – repetiu.
Uma luz feroz perpassou-lhe o olhar. – Vós. Vós todo. Bem dentro de mim e por mim toda.
Uma fome ardente atravessou-o com uma força perigosa. Se ele seguisse o seu sangue, seria como antes. Rolando no seu abraço, colocou-a em cima dele. – Então tomai o que quiserdes. O mais ou o menos que precisardes.
Ela mexeu-se para o absorver profundamente, curvando-se para lhe acariciar e beijar o peito, puxando o espírito dele para ela tão seguramente como ele havia forçado o dela a ir até si. Ela era maravilhosa e ardente no amor, e as emoções caóticas dele rodopiavam sob a sua agressão urgente. Os gritos dela regressaram e ela começou a pedir mais. Ele agarrou-lhe nas ancas e respondeu com acometidas, impaciente agora pela conclusão que retrasara, tentando conter as complexas necessidades para que o não dominassem desta vez.
Ela gemeu com o movimento dele e enterrou o rosto no seu pescoço. – Mais força – sussurrou trémula. – Bem dentro de mim e por mim toda.
– Vou magoar-vos. Estais dorida.
– Não, meu amor. Se devemos separar-nos, quero sentir-vos durante dias. Semanas. Para sempre.
A sua voz abafada continha um tremor. Acariciando-lhe o rosto, sentiu uma lágrima. Uma ternura formidável verteu-se sobre ele, repleta de espanto por ela se importar ao ponto de sentir uma tal tristeza pela separação deles e o perigo que ele corria.
De súbito, ele não queria absolutamente nada dela, mas apenas dar o que quer que ela procurasse. Imerso com ela numa harmonia impregnada de prazer e alegria e dor, cingiu-a mais. Pressionando-a contra o seu coração desgovernado, sussurrou mentiras tranquilizadoras enquanto entrava nela.

CAPÍTULO 20


Ian olhou para o desenho preciso que David fizera no solo de terra da tenda. Mostrava uma imagem pormenorizada de Harclow como se vista por uma ave em pleno voo. Havia a torre de menagem quadrada com as suas outras quatro torres em cada um dos cantos, e a muralha interna que a rodeava. A alguma distância, corria a linha espessa da muralha exterior. De dois lados flutuava o lago, e David indicara mesmo a localização dos acampamentos que faziam o cerco no terreno circundante. Ian nunca vira algo semelhante, com todos os objetos vistos de cima e à escala. A maioria dos mapas não estavam desenhados desta forma.
– Esqueci alguma coisa? – perguntou David a Morvan, que também estudava a imagem.
Morvan abanou a cabeça. – Está mais do que exato.
– Ainda bem. Agora peço-vos que me ouçais. É provável que esta chuva dure alguns dias, por isso há tempo de o fazer agora, se concordardes.
Ian foi até à entrada da tenda e espreitou para a chuva miudinha que durante dois dias sofreara os ataques. Atrás dele, David começou a explicar o elaborado plano que haviam engendrado.
Sentindo-se desassossegado, Ian saiu da tenda para a chuva e atravessou o acampamento até onde conseguia avistar a muralha de Harclow. Espalhados ao longo desta estavam soldados de vigia, em menor número do que o normal por conta da chuva. A lama e a humidade só vinham tornar mais arriscado os perigosos trabalhos, e, de qualquer forma, o exército de Morvan precisava do descanso.
Durante semanas as investidas haviam continuado, as torres de assalto haviam avançado, as máquinas lançado os seus mísseis.
Dentro de Harclow, os homens não paravam de cair, como os de Morvan, e deviam estar muito reduzidos em número, mas o velho Maccus não se rendia.
Ian comandava em pessoa uma das torres de assalto desde que chegara. Era uma grande honra, e ter-lhe sido destinada surpreendera-o. Mas não fora honra que sentira ao aguardar lá em cima, de espada pronta, enquanto a alta construção de madeira era empurrada sobre rodas até à muralha. Outra coisa fervia-lhe no sangue então, tão premente que o seu nome não podia continuar escondido.
Medo. O seu poder insidioso surpreendera-o e ele não tinha experiência de lidar com aquilo. Mas sabia o que era, sabia-o na alma desde o dia em que saíra para defrontar Thomas Armstrong.
Quando tinha dezoito anos, conhecera um medo assim, tendo-lhe sucumbido completamente. Mas depois morrera nele, e a sua perícia em combate vira-se reforçada por esta liberdade. Outros podiam ficar acordados antes de uma batalha, antevendo a morte que aguardava, mas não Ian de Guilford. Outros podiam pesar o preço de acorrer em ajuda de um estranho em desvantagem na Batalha de Poitiers, mas ele nunca se dera a tais cálculos.
Até agora. Ao seu redor estavam veteranos que há muito haviam aprendido a controlar o medo, mas de repente ele voltava a ser um mancebo, manchado de sangue pela primeira vez, calculando riscos em que nunca reparara, dependendo de instintos nos quais já não confiava.
Deu a volta em direção ao lago, passando pelo trilho que conduzia à periferia do acampamento. Espreitou para as tendas que continham os mercadores, lavadeiras e rameiras que formavam a pequena cidade que despontara para servir os soldados.
Normalmente, num dia vazio como este, iria até lá e passaria uma moeda a uma mulher para quebrar a monotonia. Hoje, a noção de seguir esse caminho parecia-lhe de alguma forma obscena.
Por causa de Reyna.
Reyna. Ela estava no âmago daquilo tudo. Estava na sua cabeça mais do que nunca, e o medo ancorava-se firme àquelas imagens e pensamentos. Não o admitia a si próprio com qualquer rancor ou culpabilização. Apenas reconhecia a verdade enquanto caminhava pela lama até à margem do lago.
Para lá da extensão de água, viu o buraco na muralha exterior que David fizera com as suas bombardas. Haviam sido necessárias muitas tentativas até encontrar o ângulo que cuspiria as pedras redondas para lá do lago, mas depois David disparara projéteis para um dia inteiro, até a muralha fender e desabar. Fora uma experiência mais do que qualquer outra coisa, para ver se o impacto repetido afetava uma estrutura daquelas a tal distância.
Mas hoje, deitados nas enxergas na tenda que partilhavam, ele e David haviam descoberto uma forma de dar mais substância àquele feito.
Imagens de Reyna voltaram a apoderar-se dos seus pensamentos daquela forma insistente. Perguntou-se o que ela faria naquela mesma altura em Carlisle. Voltariam os pensamentos dela para as últimas horas que haviam passado juntos tantas vezes como os dele?
Meu amor. Parecera tão certo quando ela o dissera, apenas mais um cordão na intimidade perfeita que haviam partilhado naquela noite. Talvez ele não devesse dar demasiado peso a um simples carinho, mas naquela noite outra emoção exigira também ser nomeada, e o jovem temeroso, esperançoso, que ressuscitara dentro dele, queria a qualquer custo acreditar que estavam juntos naquilo.
Haviam sido palavras dela, não dele. Porque não as tinha ele pronunciado para ela, se não naquela noite, pelo menos no dia seguinte, antes de se separarem? Tê-las-ia deixado por dizer para se assegurar de que sobreviveria para as pronunciar mais tarde?
Estava o medo tão enlaçado no amor?
Medo. Era constante. O amor e o medo eram os dois lados de uma moeda transparente – impossível ver um lado sem que o outro interferisse na visão. De que tinha medo? De morrer, isso era certo.
De a perder, claro, fosse pela morte ou pela desilusão. De a amar?
Regressou pelo mesmo caminho. Ardia uma pequena fogueira do lado de fora da sua tenda por baixo de um toldo alto, e ele sentou-se num toco que estava próximo. Morvan saiu e acercou-se dele.
– Pensais que devemos tentar este plano, Ian?
– Não é mais perigoso para os homens do que qualquer outra tentativa de assalto. As muralhas do lago poucos homens têm. Se a surpresa for suficientemente rápida, pode resultar.
– Para isso nos prepararemos, então, e se a oportunidade se der, fá-lo-emos. Quero-vos junto de David nisto, contudo.

Ian lançou-lhe um olhar incisivo. Aparentemente, o medo não passara desapercebido a Morvan. Ele procurava uma forma discreta de o retirar da torre.
Morvan apanhou o olhar. – Não é isso – disse ele, mostrando ter reconhecido tanto a suspeita de Ian como o próprio medo. –
Sois engenhoso em termos de construção e estratégia, e, no seguimento do plano, pode haver lugar a mudanças súbitas. Entre David e vós, se algo correr mal, ainda pode haver recobro.
Eles nunca tinham desenvolvido uma amizade fácil, por isso ficou surpreendido quando Morvan voltou a falar. – Quanto à outra questão, não penso menos de vós. Todos os cavaleiros devem enfrentá-lo, mais cedo ou mais tarde, exceto aqueles a quem faltarem entendimento ou imaginação. Costumáveis lutar como um homem sem nada por que viver. Agora lutais como um homem com tudo a perder. Dos dois, prefiro ter o último a meu lado. – Morvan saiu para o acampamento antes de Ian poder responder, mas também não havia nada que dizer.
Ian regressou à tenda. Encontrou David sentado no catre, desenhando cálculos na terra com o seu ramo pontiagudo. – Vinte jangadas, diria, cada uma com tamanho para dez homens. Melhor um número bom de tamanho mais pequeno, para haver a possibilidade de mais chegarem ao outro lado.
Ian atirou-se para a sua própria cama. – Se as chuvas continuarem, as jangadas ficarão húmidas o suficiente para não serem incendiadas por setas de fogo. Ainda assim, é inevitável que algumas pereçam, por isso estais certo. – Estudou o mapa rabiscado no chão. – Isto só nos permitirá passar a primeira muralha, claro.
– Quantas vezes vistes fortalezas aguentarem-se depois de o inimigo passar a muralha?
Nunca, Ian teve de admitir. Mas o velho Maccus revelava-se um inimigo tenaz.
Ian tentou entregar-se ao descanso, mas ele não chegava.
Exasperado, levantou-se e dirigiu-se outra vez à entrada da tenda.
Talvez reunisse alguns homens para começar a trabalhar nas jangadas.
– Ela sabe? – perguntou a voz suave de David.
Ian virou-se, surpreso. Presumiu que David se referia aos seus sentimentos por Reyna. Sem dúvida os percebera, como ao medo.
– Não.
David continuou calmamente as suas cogitações. – Será inevitável ela saber. A história é mais conhecida do que pensais. Os homens da vossa companhia, por exemplo, estão cientes da maior parte dos pormenores. Se nunca o deram a entender, é porque receiam a vossa reação e a vossa espada.
Ian sentiu o sangue correr-lhe um pouco mais devagar. Com os seus modos impávidos e serenos, David acabava de abordar um assunto a respeito do qual Ian nunca falava. Talvez ele sempre tivesse suspeitado que a companhia sabia. Talvez fosse essa a razão pela qual ele evitava uma amizade próxima com qualquer um dos homens. Aí as perguntas seriam inevitáveis. E por fim o julgamento. Podia-se ser indiferente às opiniões de pessoas que não importavam verdadeiramente.
– Christiana. Falaria ela disso com Reyna? – perguntou Ian.
– Não, quanto mais não seja porque ela própria o ignora. Não estávamos em Londres quando se espalharam os rumores.
– Mas vós ouviste-los de qualquer forma.
– Soube antes disso. Quando vi o interesse de Elizabeth, empenhei-me em saber mais de vós. Corre todo o tipo de informação entre mercadores.
Ian sentiu um rancor frio. – E dissestes-lhe?
– Só o suficiente para ela saber a verdade quando a história vos seguisse para a corte, como acabaria por acontecer.
– Pensais que sabeis a verdade?
– Sei que éreis um rapaz que não queria morrer. Sei que o vosso pai devia ter colocado de lado orgulho e raiva. – Fez uma pausa. –
Sei que uma mulher má jogou um jogo elaborado e perigoso, e que ganhou. Qualquer mulher destas, em qualquer idade, é mais impressionante do que qualquer homem. Quando são jovens, nem sequer compreendem a destruição que causarão com os seus esquemas. – Bateu com o pau na bota. – Ela tem um filho, decerto sabeis, de nove anos de idade.
– Não é meu.
– Não, não é vosso. É a imagem do pai.
– O pai dele era ignorante e inocente.
– Se o dizeis. Não retirei conclusão nenhuma de qualquer destas coisas.
– Decerto sois o único que não o fez. As conclusões típicas são sórdidas e condenatórias.
– Percebi a verdade a primeira vez que ouvi a história.
Certamente que outros também.
– Vós tendes conhecimento do mundo. Tendes experiência daquilo que as pessoas podem ser.
– E pensais que a vossa mulher não? Talvez a subestimeis. Vejo-me continuamente surpreendido pela capacidade que as mulheres têm de ser compreensivas no que respeita aos seus homens. –
Voltou aos seus cálculos. – Penso que precisamos de cinco homens a trabalhar em cada jangada. Visto que dais provas de me enlouquecer com a vossa inquietude, talvez devêsseis ir escolhê-los.
Ian achou a ideia excelente. Voltou-se para sair, mas deparou com a figura imponente de Morvan a preencher a entrada. O
corpulento cavaleiro passou por Ian, trazendo um homem pelo cachaço. Com um movimento largo, atirou o homem para o chão. –
Vede quem encontrei de volta das tendas da vossa mesnada, Ian.
O homem encolheu-se aos pés de Morvan. Era Paul, um membro da sua companhia que fora enviado para Carlisle para proteger as mulheres.
– Que raio fazeis vós aqui? – inquiriu Ian.
– Só vim ver os rapazes um bocado, não foi? Nada de muito grave, a meu ver.
– O vosso lugar é em Carlisle.
– Estava a ficar aborrecido.
– Aborrecido – trovejou Morvan. – Por Deus, se alguma coisa aconteceu à minha mulher ou à minha irmã por causa da vossa negligência…
– Se aconteceu, não é culpa minha. – Paul ergueu um braço para aplacar o golpe que a raiva de Morvan prometia. – Não consegui impedi-las de partir, não com todas tão determinadas, e a grande, bem, mostrai-me o homem que quer tentar dizer-lhe a ela o que fazer. E pelo menos levaram Gregory com elas, e insistiram que não seria por muito tempo. E eu sugeri que talvez devia vir dizer a Sir Ian pelo menos, mas Lady Reyna foi muito insistente, que eu não devia incomodar ninguém por uma coisa tão pequena, e a mais morena concordou, e a grande, bem, quando foram embora ela praticamente me ameaçou, ficou especada a olhar para mim com má cara e pôs a mão no punhal e disse-me para obedecer às ordens delas que tudo correria bem.
A expressão de Morvan fez-se mais sombria. – Dizeis que as senhoras saíram de Carlisle?
– Sim, é isso que estou a tentar explicar. Meteram-se num barco e ordenaram-me que ficasse em casa, mas comecei a ficar muito aborrecido de estar ali parado naquele sítio vazio só com aquela megera daquela criada. Então decidi que uma visitinha rápida até aqui não faria mal.
– Isto é obra de Lady Anna – disse Ian. – Ela não queria ir para Carlisle, e só lhe faltou insultar-me quando lhe transmiti as vossas instruções, Morvan.
– Não acuseis a minha mulher de incitar isto, Ian.
– Sugeris que Reyna forçou Anna a partir? C’os diabos, Morvan, a vossa mulher podia pegar nela com um braço.
– Talvez devêssemos descobrir para onde foram todas –
interrompeu David. Pôs Paul em pé e limpou-lhe a roupa com algumas sacudidelas solícitas. – Sabeis para onde se dirigiram?
– Penso que ouvi falar em Glasgow. Uma viagem rápida na sua maior parte por mar, garantiram-me.
Dois maridos olharam para Ian com irritação. Apenas Reyna teria interesse ou razão em ir para Glasgow.
– Sem dúvida que Anna alinhou para se distrair e Christiana foi a reboque para olhar pelas duas – disse David secamente.
– Irei atrás delas – atalhou Ian. – Não podeis sair daqui, Morvan, e com esta chuva não precisareis de mim durante alguns dias.
Morvan assentiu com a cabeça. – Levai mais alguns cavalos convosco, Ian, e pelo menos dois homens. Quando as encontrardes, enviai-me um homem asinha com novas da sua segurança.
– Irei convosco – disse David.
– Não, David, ficareis aqui – rebateu Morvan. – Convencestes-me deste vosso plano e agora ganhei-lhe gosto. É necessário que vigieis os preparativos. Ian, quando encontrardes Anna, dizei-lhe por mim que estou muito desagradado e que deve regressar imediatamente convosco. Quanto a Lady Reyna, deixo-a a vós.
Agarrando Paul pela ombreira, Ian arrastou-o até à fogueira. –
Quando partiram elas de Carlisle?
– Há sete dias.
Sete dias. Visto que haviam rumado a norte de barco, estariam brevemente em Glasgow. Demoraria tempo de mais ir por Carlisle e pelo mar. Ele teria de atravessar terras dos Armstrong. A toda a brida, podia chegar a Glasgow antes de elas partirem.
– Gregory ia ficar com elas a viagem toda?
– Sim. E Lady Anna levou um arco e uma espada. Vestiu-se como um homem, também, mas também ela faz sempre isso, o que é estranho numa mulher, não que ela pareça assim tão peculiar, por qualquer razão…
– Por que raio não viestes imediatamente avisar-me disto, Paul?
Ainda que não pense que lhes tenha acontecido alguma coisa, se sim, não posso proteger-vos de Morvan.
Paul olhou cauteloso por cima do ombro. – Teria explicado dentro da tenda, mas ele estava pronto a matar, não estava? E não melhorava nada atirar achas para a fogueira.
– Falai claro, homem.
– Bom, eu presumi que já sabíeis que elas tinham ido para Glasgow. Mandei o vosso homem dizer-vos na volta, não foi? Não havia razão para eu vir logo para vos dizer, se ele o ia fazer.

Um arrepio correu pela espinha de Ian. – O meu homem? que homem?
– O que veio há cinco dias com uma mensagem vossa para Lady Reyna. Não era da nossa companhia, mas imaginei que Morvan o tinha dado a vós. Ele apareceu a perguntar por ela, disse que tinha uma mensagem e um presente para ela da vossa parte.
– Eu não mandei homem nenhum, Paul.
– Não? Então quem…
– Que lhe dissestes?
– O mesmo que vos disse agora a vós, aonde tinham ido e quando.
A cabeça de Ian quase explodiu quando amor e medo se fundiram e se transformaram numa fúria dilacerante.
– Descrevei este homem.
– Cabelo claro, altura média e entroncado, é tudo o que lembro.
Escocês, diria pela fala dele, mas os «erres» não eram tão carregados, por isso achei que fosse das terras fronteiriças, e um dos homens de Sir Morvan.
Talvez tivesse sido Edmund, seguindo Reyna até Carlisle para continuar a persuadi-la, mas nem Edmund nem Reginald, que Ian soltara antes da partida, correspondiam à descrição de Paul. Nem Thomas Armstrong tinha o cabelo louro. Mas tanto Thomas como Edmund poderiam ter feito chegar por alguém a mensagem que conduziria Reyna às suas mãos.
A constatação de que Reyna poderia correr um perigo real quase lhe desarranjou os pensamentos, mas ele forçou-se a uma análise cuidadosa. Provavelmente devia informar Morvan disto, mas se o fizesse, Morvan conduziria o exército para Glasgow.
Tudo aqui se desfaria e na fronteira seria um inferno. Nem diria a David. O estranho aparecera em Carlisle a perguntar por Reyna, porque era Reyna quem procurava. Edmund empenhado na sua causa? Ou Thomas procurando vingança pela morte de Robert?
Avançou determinado para o acampamento da sua companhia.
Levaria mais do que dois homens, e cavalos e armas que bastassem. Se cavalgassem a sério, poderiam chegar a Glasgow antes de que quem perseguia Reyna a encontrasse.

CAPÍTULO 21


Reyna aguardava num banco na antecâmara do gabinete do bispo, aguilhoada por um presságio inquietante. A decisão de vir até Glasgow parecera-lhe muito sensata quando a tomara.
Permanecer em Carlisle tornara-se entediante, e factos importantes a respeito dos últimos meses de Robert podiam ser conhecidos neste sítio. Porém, agora, na iminência da reunião, perguntava-se se investigar as intenções privadas de Robert seria avisado.
Abriu-se uma porta lateral e um clérigo jovem entrou. Direito e rígido nas vestimentas largas, tinha cabelo escuro e olhos castanhos, toldados por uma expressão leniente. – Sou Anselm, um dos escriturários do bispo, senhora. O padre Rupert disse que vós insististes que tínheis assuntos urgentes.
Reyna nunca se apercebera de como era difícil ver um bispo, e as suas diligências junto dos vários oficiais tinham-se tornado algo exageradas durante a última hora. – É urgente para mim, já que não posso ficar muito tempo em Glasgow.
– Então lamento desapontar-vos. Como vos informaram, o bispo não está cá, mas sim a norte, onde contamos que permaneça durante algum tempo por assuntos da igreja.
– O padre Rupert pensou que talvez vós pudésseis ajudar-me. É
informação o que procuro, não a dispensa ou decisão de um bispo.

Anselm acomodou-se numa cadeira próxima, olhando-a enquanto alisava as vestes com dedos fastidiosos. – Ouvir-vos-ei, mas a maior parte dos assuntos do bispo são confidenciais.
– Espero que este não o seja. O meu nome é Reyna Graham. O
meu marido era Robert de Kelso, que detinha as terras fronteiriças de Black Lyne através de Maccus Armstrong. O meu marido morreu há vários meses. Pouco depois da sua morte, chegou uma carta do bispo. – Reyna descreveu a carta e a referência ao pedido de conselho de Robert.
– Lembro-me bem dela, já que a escrevi para Sua Excelência –
disse Anselm.
– Ninguém sabe a que se referia – explicou Reyna. – Se o meu marido tinha algum desejo ou vontade antes da sua morte, gostaria de saber, para que a sua vontade seja feita.
Anselm ignorou-a durante um pronunciado período de contemplação. Reyna começou a sentir-se ansiosa. Talvez o secretário hesitasse por o pedido de Robert de facto lhe dizer respeito. Era possível que tivesse conhecido tão pouco da mente e do coração do seu marido?
– É provável que vo-lo consiga explicar, Lady Reyna, mas primeiro tenho uma pergunta. Como dispõe o testamento do vosso marido das suas posses?
– As terras foram-me deixadas, embora seja questionável se o suserano aceitará que assim o seja – explicou ela, decidindo que falar da tomada do castelo e do seu casamento com Ian não serviria nenhum propósito.
– Não as terras, as suas posses pessoais.
– Também isso ficou para mim.
– Nesse caso, não vejo objeção em falar convosco. – Pôs-se mais confortável na cadeira, se se pode falar de conforto num homem com uma postura tão rígida. – O vosso marido escreveu uma carta que recebemos faz cinco meses. Nela, explicava que tinha posses que não eram dele por direito, e das quais pretendia desobrigar-se de forma honrada antes de morrer, para não interferirem com a propriedade. Queria dar estas posses a um mosteiro envolvido na educação dos jovens. O bispo tinha intenção de falar com os padres dominicanos aqui de Glasgow para tomar as disposições necessárias, mas outros assuntos o afastaram daqui.
– O meu marido descreveu estas posses?
– Não, mas ficou claro que não se tratava de terra. Referia-se a
«estas» em diversos pontos da carta. Sentia que lhe aliviaria a consciência ter o assunto tratado, com a morte tão próxima na sua idade avançada.
«Estas». Não era terra, mas sim objetos. – Indicou ele o valor destas posses?
– A sua carta indicava alguns milhares de libras, três ou quatro.
Objetos. Úteis na educação.
Livros.
Ela sabia que a biblioteca era valiosa, mas não tão valiosa.
– O meu marido mencionou como ficou na posse destes objetos?
– Não, mas o pedido não é incomum. Os homens ganham em piedade e sabedoria à medida que envelhecem. Procuram redimir-se de transgressões da juventude.
Reyna olhou-o nos olhos. – Pensais que essas posses são resultado de roubo, não pensais?
– O mais certo é terem sido obtidas no seguimento de um cerco ou batalha. Poucos cavaleiros ou soldados se ficam pelo pouco que os senhores pagam, e muitas vezes o pagamento nem chega a dar-se porque estes presumem que os primeiros enriquecerão o suficiente dessa forma sem custo para eles. Na verdade, a maioria dos barões reclama um terço desses despojos.
– Mesmo assim, dizeis que o meu marido era ladrão. Pouco melhor do que um salteador – rebateu ela veementemente.
– O que é roubo numa circunstância são despojos de guerra noutra – disse Anselm. – A Igreja urge os homens a absterem-se de o fazer, mas é um pecado pequeno se a guerra for justa. Até os Cruzados… E o vosso marido, contrariamente à maioria, procurou a restituição. Seria impossível devolver estas posses aos donos após tantos anos, por isso quis dá-la à Igreja, pelo seu trabalho.
– Não sabia que a Igreja havia decidido que o pecado estava condicionado às circunstâncias. Devo lembrá-lo no futuro. Sem dúvida se revelará conveniente.
Anselm suspirou. – Procuro apenas aliviar-vos da vossa óbvia aflição.
Aflição não bastava para descrever a reação dela. Robert, querido, bom, honesto Robert, vivera uma vida muito diferente antes de chegar à fronteira escocesa e entrar ao serviço de Maccus Armstrong. Havia ocorrido uma vida antes de ela o conhecer, e ele pusera-a para trás das costas, exceto a prova da qual não conseguia separar-se, os livros que tanto amava.
Livros roubados. O que pensara ele enquanto estudava os imperativos morais que eles continham, quando a própria posse deles desafiava aquelas verdades?
As desculpas de Anselm podiam ter-lhe servido. Tal como lhe poderiam servir a ela agora, se chegasse a convencer-se de que aqueles livros haviam sido saque de uma guerra justa. Mas pairava a possibilidade de Robert ter de facto sido ladrão ou salteador enquanto jovem. Exatamente como Ian de Guilford, ou até pior.
Perante a ironia, ela fez uma careta. Andava a comparar Ian com um homem idoso que, na sua juventude, fora igualmente implacável.
– Penso que sei a que posses se referia o meu marido. Se era desejo de Robert que estes itens fossem dados à Igreja, diligenciarei para que isso aconteça. – Levantou-se para se retirar.
– Dar-me-íeis uma carta explicando o assunto? Seria mais fácil concretizar a doação se o pedido dele estivesse clarificado.
– Se vós herdastes…
– Voltei a casar recentemente.
As sobrancelhas negras do jovem ergueram-se, compreensivas.
Foi até à mesa. – Se voltastes a casar-vos, os bens já não são vossos – disse enquanto escrevia. – Se algum bem pode trazer, aqui está. Não deixeis isto converter-se num ponto de discórdia no vosso casamento, contudo. Raro é o homem que se desfaria da riqueza que lhe coube através da mulher.
Reyna agarrou o pergaminho que provava que Robert nunca procurara pô-la de parte. Quanto ao último comentário de Anselm, não tinha ideia alguma da reação de Ian à concretização da última vontade de Robert. Provavelmente recusaria, depois de saber o valor dos livros.
Pensando melhor, talvez um bandido sentisse especial simpatia pela busca de salvação de outro bandido.
– Deus está a punir-nos por desobedecermos aos nossos maridos e termos saído de Carlisle – murmurou Christiana, espreitando pela janela do quarto de dormir. – Esta chuva há dias que corre, e parece que vai durar para sempre. – Dirigiu-se a Reyna. – Quando Anna voltar, temos de lhe dizer que partiremos de manhã. O que é de mais é erro.
Reyna deu uma volta na cama e fitou o teto. Esta viagem só se dera porque Anna, procurando um interregno de atividade e aventura, apoiara a sua decisão de a fazer. Atendendo às circunstâncias, parecera justo conceder a Anna mais um dia em Glasgow.
Por si, Reyna teria partido satisfeita no dia anterior, depois de regressar da casa do bispo. Tendo cumprido a missão, ansiava regressar a Carlisle. Talvez pudesse enviar uma carta a Ian, dizendo-lhe o que havia descoberto. Talvez, se a chuva tivesse travado as movimentações em Harclow, ele pudesse ir vê-la. A ideia de que ele pudesse já ter tentado fazê-lo, chegando a uma casa em que não se encontrava ninguém a não ser Paul e a criada, entristecia-a, e ela já se sentia abatida devido à recente descoberta sobre Robert.
Ele nunca a enganara, lembrou-se novamente. Ela nunca fizera perguntas sobre aquela história antiga e ele não lhe contara mentiras. Porventura só uma rapariga que confiava num homem como confiaria num pai teria aceitado a presença de todos aqueles belos livros sem questionar, mas assim havia sido.
– Aqui estão eles – anunciou Christiana. – Parecem dois pintos encharcados, e o rosto de Gregory está verde de raiva, mas Anna parece radiante. Tendes de me apoiar. Se não a encurralarmos agora, estará a levar-nos para as Terras Altas antes da semana terminar.
Encurralar uma Anna rebelde revelou-se tudo menos fácil.
Recordou a Reyna que deviam tirar o maior partido dos apuros que as aguardavam com os maridos, e, de facto, propôs uma viagem até Argyle. Christiana repreendeu-a e tentou persuadi-la, mas foi a sugestão de Reyna, da chuva poder possibilitar a visita dos maridos, que venceu a discussão. Passaram o serão em preparativos para regressar à costa.
No dia seguinte, saíram da cidade de Glasgow, Anna assemelhando-se tanto a um guarda como Gregory, envergando túnica, e capuz, e com uma espada presa à sela. A chuva parara, mas nuvens pesadas prometiam mais. Christiana mantinha uma conversa amena, aligeirando a disposição que ameaçava afundar-se sob o desconforto da humidade e da lama.
A cinco quilómetros da cidade, a conversa aquietou-se e, no silêncio súbito, resmungou um trovão distante. Anna sofreou o cavalo e escutou com uma atenção alerta. O trovão aproximava-se com demasiada rapidez, e ela deu a volta ao cavalo, gritou um aviso a Gregory, e desembainhou a espada. Reyna olhou por cima do ombro e deparou com uma tropa de homens galopando na direção deles.
– Para a berma da estrada – ordenou Anna, pousando a espada na sela. – Deixai-os passar.
Infelizmente, a companhia não manteve o ritmo. Os homens detiveram-se, continuando depois a trote. Quando estavam a cem passos de distância, Reyna reconheceu o homem à cabeça e a surpresa deixou-a sem fôlego.
Ele avançou e parou à distância de um cavalo. – Então, irmãzinha. Que fazeis tão afastada da proteção do vosso marido?
– Fui visitar Glasgow. E vós, Aymer? É um sítio bizarro para vos encontrar de imprevisto.
– Tenho andando à vossa procura. Busquei-vos em Carlisle e, sabendo que fizéreis esta viagem, preocupei-me com a vossa segurança.
– Que fraterno.
Os doze homens de Aymer fecharam-se à volta deles, impossibilitando a fuga. Anna segurava a sua arma com firmeza.
Pelo canto do olho, Reyna viu Gregory a medir a situação e a não gostar do que via.
Um dos cavaleiros de Aymer acercou-se de Anna, semicerrando os olhos. A ponta da espada dela seguiu-lhe o movimento.
– Por Deus, é uma mulher – exclamou ele, arrancando-lhe o capuz. Caracóis louros caíram-lhe pelos ombros. – Já vistes alguma assim tão grande? Bonita que chegue, embora de estranha maneira.
Os outros homens riram. – Sim, mulher que chegue para todos nós, talvez – casquinou um.
– Mulher que chegue para cortar a virilidade a quem quer que toque em nós – disse Christiana com frieza.
– Parai imediatamente com isto, irmão – disse Reyna. – Se mal algum recai sobre alguma delas, Morvan entra com o exército nos montes, e a fortaleza do meu pai não é Harclow.
Anna arremetera a ponta da espada contra o pescoço do cavaleiro, fitando-o pelo seu comprimento.
– Nós somos muitos mais, cabra – rosnou ele, inclinando cabeça e pescoço para longe da ameaçadora arma.
– Porventura. Mas vós ides afastar-vos ou vós ides seguramente morrer – respondeu ela.
Uma comoção súbita viu Gregory acometendo na direção deles, espada no ar, expressão determinada. Um dos cavaleiros lançou-lhe o cavalo no caminho e, com um movimento largo, fez bater a face da espada na fonte de Gregory. O guarda afundou-se na sela e depois caiu desamparado ao chão.
O ataque fez Aymer decidir-se a concluir o pequeno drama. –
Condessa, tenho assuntos com a minha irmã que requerem que ela me acompanhe. Vós e Lady Anna sois livres de continuar o vosso caminho.
– Se ela vai, nós também – disse Christiana. – Completamos esta viagem como a encetámos, juntas.
– É assunto de família, senhora, e não respeita a nenhuma de vós. Se insistirdes nesse disparate, farei que vos amarrem ambas a uma árvore.
– E deixadas aos ladrões ou aos animais? Ou Reyna continua connosco, ou nós convosco. E seria avisado da vossa parte tomar o maior cuidado com as nossas pessoas e a nossa saúde. O meu irmão tem dois mil em Harclow, e se vier atrás de vós não haverá piedade. Quanto ao meu marido, os seus métodos são mais subtis.
Não sabereis sequer que ele lá está até lhe sentirdes a bota em cima do pescoço. – O tom gélido que cristalizou estas palavras serenas foi tanto mais eficaz quanto a figura que as proferia era cortês e delicada.
Reyna estava impressionada. Aymer também. Fitou Christiana, rubro, depois deu furiosamente a volta ao cavalo. – Trazei-las todas – ordenou. – Deixai o homem.
Reyna e Anna puseram-se ao lado de Christiana. – Foi muito corajoso, minha amiga, mas é desnecessário – disse Reyna. – Não me farão mal.
– Certamente pensará duas vezes agora, se planeara fazê-lo –
murmurou Anna. – Pensais que aquele guarda estólido, Paul, guardou de facto segredo sobre a nossa partida?
Christiana revirou os olhos. – Dado que só vos faltou ameaçar cortar-lhe a garganta…
– Ainda assim, podia ter chegado um mensageiro.
– Mesmo que os nossos maridos tenham descoberto que saímos de Carlisle, não saberão para onde viemos agora. Não, irmã, podemos estar sozinhas nisto.
– Voltai para trás – incitou Reyna.
Christiana abanou a cabeça. – Não confio neste vosso irmão.
Estareis mais segura connosco presentes. Seria útil saber para onde vamos e porque vos quer ele, porém.
Reyna instigou o cavalo ao trote e deslocou-se pela pequena tropa até ao lado de Aymer.
– Regressamos a Glasgow? – inquiriu.
– Não, mas iremos para oeste e depois para sul. Levo-vos para casa.
– Para Black Lyne?
– Para casa. Não pertenceis junto dos Armstrong e dos Fitzwaryn, Reyna. Regressareis para a vossa família.
– O meu pai tem assim tantas saudades de mim?
– Duncan é um velho. Uma doença já lhe come as entranhas. Ele não tem determinação para fazer o que tem de ser feito, por isso cabe-me a mim.
– E o que é, Aymer? O que se passa?
– Terra, pequena Reyna. Não é sempre a terra? O Diabo deve ter possuído Duncan para ele dar o que deu como vosso dote.
Durante anos esperei que o velho Robert morresse para que voltasse para vós como arras, e através de vós para nós.
Ela suspirou com a previsibilidade de Aymer. – Quão impaciente estáveis, Aymer? Arranjastes maneira de apressar o seu falecimento?

– Tivesse eu meio de o fazer. Interessante perguntardes, Reyna.
Sempre presumi que o havíeis matado vós.
– Não tinha por que o fazer.
– Ai não? – perguntou Aymer, manhoso. – Ele era velho quando vos casastes com ele e mais velho quando chegastes à idade adulta.
A vossa mãe era uma rameira, e tal é provavelmente a vossa natureza também. Aquelas mãos frias contentavam-vos? Penso que não, se com tanta brevidade achastes forma de entrar na cama daquele cavaleiro.
O tom e o olhar dele fizeram-na sentir-se muito desconfortável.
– É bom que mencioneis Ian, já que as arras que pensais controlar através de mim agora lhe pertencem.
– Não se ele estiver morto.
Ela rodou na sela. – Vós não…
– Ainda não. Conto que venha atrás de vós, porém. Deixai-lo trazer a mesnada inteira, ou até mesmo metade do exército que Fitzwaryn reuniu, desde que ele próprio venha. – Inclinou-se e acariciou-lhe o rosto. Ela afastou-se enojada. – Tendes sangue de rameira, Reyna. Conto que lhe tenhais agradado o bastante para ele vir de facto resgatar-vos.
– Sois nojento por falardes assim da vossa irmã.
A mão ficou-lhe no rosto e voltou a afagar. – Porventura. Mas, afinal, vós não sois realmente minha irmã.

CAPÍTULO 22


Frio. Frio húmido e escuridão eterna. Vozes murmurando nas pedras, e mãos estendidas para ela, espicaçando-a. Risadas sumidas, agora mais baixas, próximas, e outras mãos, não a espicaçar mas a acariciá-la, convocando um novo terror que ela não compreendia. Uma nova voz, não a voz etérea de um espectro mas uma voz viva, rindo de prazer face ao seu medo. Não sois realmente minha irmã.
Ela encostava-se às pedras, sentindo tudo, ouvindo tudo, mas era diferente desta vez. A sua alma não experimentava nenhum do terror. Uma minúscula parte dela desta vez permanecia racional, observando o velho medo desdobrar-se à sua volta, dentro dela, como se observasse um espetáculo.
Pernas encostaram-se às suas e mãos seguraram nas dela.
Pernas reais e mãos reais, ancorando-a a um espaço e a um tempo, evitando que os seus sentidos escapassem ao seu controlo.
– Ele não pode manter-nos aqui para sempre – interferiu uma voz. Uma voz real. De quem? Ah! de Anna. – Nem sequer uma vela. Qual o propósito?
– Guarda-me aqui até Ian vir – Reyna ouviu-se dizer.
Certamente havia explicado isto antes, da primeira vez que acamparam e dormiram juntas com a espada de Anna no meio delas. Fazia uma eternidade, antes de a viagem as trazer até aqui uma noite, e Aymer as aprisionar a todas. Tinham-lhes trazido comida, parecia recordar-se, mas Aymer não havia regressado.
– Ainda assim, podia dar-nos velas. Esta cripta desassossega-me.
Sim, a cripta. Era onde estavam, aninhadas no chão de pedra, encostadas à parede fria. Se o sítio desassossegava até a corajosa Anna, talvez ela não precisasse de se sentir assim tão infantil.
A mão de Christiana segurou com mais força as dela. – Estais a portar-vos bem, Reyna – sossegou.
As vozes das pedras responderam com os seus murmúrios inaudíveis. Riso agudo feria-lhe os ouvidos. Ela agarrou-se à mão delicada de Christiana, lembrando-se vagamente desta a bater-lhe no rosto enquanto gritos de alguém enchiam a câmara pequena.
Ela reuniu coragem, a pouca que havia, e a sua alma escutou as vozes. Houvera algo familiar nelas da última vez, algo humano. Ela incitou-as a acometerem novamente sobre ela, e encostou as pernas às das amigas. Vinde, c’um raio.
E vieram. As pedras ecoando os seus murmúrios, o som convocando memórias há muito fragmentadas sob o terror.
Ela estava num sítio escuro e coisas invisíveis e pontiagudas tocavam-lhe uma e outra vez. Um dedo invisível contornava o seu corpo e um riso de rapaz comprazia-se com o seu medo. As próprias pedras ganharam mãos e braços, e sempre que ela se voltava estes estavam por trás dela, espetando-a até um aterrorizado frenesim. A sua própria voz gritava baixinho por ajuda e depois aquela voz jovem falou, subitamente entediada. Agora ficai aqui, ou os demónios apanham-vos. Vou lá fora ver.
Mas ela não ficou. Corria pela escuridão, atrás dos passos em retirada…
– Há quanto tempo achais que estamos aqui? – perguntou Anna.
Desde sempre, talvez. Não havia tempo, aqui. Uma hora podia ser uma semana, uma semana não mais que uma hora. A escuridão engolia o tempo.
– Pelas refeições, vários dias, mas durmo a espaços, e não sei dizer se é noite ou dia – respondeu Christiana.
Reyna ouvia as vozes suaves das suas companheiras. Ambas lhe agarravam ainda nas mãos e aquele aperto suave era muito real agora.
O espaço e o tempo haviam-se acertado. O espetáculo terminara, mas ela vira a fonte e a causa daquele horror. Talvez houvesse sido apenas uma brincadeira de crianças para Aymer, a princípio, mas o gosto do medo alimentara-lhe a crueldade ao longo dos anos. Não admirava que a sua alma se encolhesse perante a mera presença dele.
Contudo, ela sabia que havia mais. Algo provocava a sua mente, tentando-a como um dente doído em que se mexe apesar da dor.
Tratarei disto hoje, decidiu ferozmente. Verei tudo o que há e isto deixará de me governar.
Ela cravou os olhos na escuridão, incitando-a a avançar.
Libertando as mãos que seguravam as dela, abstraiu a sua mente da presença das companheiras.
A princípio, a escuridão saudou-a benignamente, um vazio oco, mas depois, lentamente, subtilmente, ganhou vida. As vozes surgiram de novo, baixas e distantes e não tão ameaçadoras. Até os gritos, que pareciam os seus, estavam longe. Ela corria, corria, na direção dos sons, seguindo o raspar de passadas.
Subitamente o medo era novo e fresco, e o coração que sentia dentro dela não era de mulher mas sim de criança. Ela corria como um raio, aliviada, em direção a uma qualquer luz na distância.
Arquejou quando o sol quase lhe cegou os olhos e a imagem horrível lhe preencheu a mente. Por um átimo, a imagem dela, inerte e morta, mãos pendendo ao lado do corpo, rosto contorcido e roxo, acendeu-se à sua frente. Não é isto. Este é o outro pesadelo, não é este.
Mãos esticaram-se para ela, afastando-a, de volta à escuridão.
Abanavam-na com dureza, e agarraram-lhe o rosto. – Estamos aqui. Estamos aqui – sossegou uma voz firme.
Anna apertava-a contra si e Christiana falava-lhe suavemente ao ouvido. Ela ficou assim por breves momentos, e depois afastou-se.
– Estou bem. Acabou. Não tornará a acontecer.
– Temos de a tirar daqui – disse Christiana.
– Sim, tendes de me tirar daqui, mas não por causa disto – disse Reyna. – Talvez Aymer procurasse pôr-me louca. Assim seria fácil fechar-me e esquecer-me, e quem se importaria? Mas não funcionou, nem funcionará. Acabou, digo-vos.
– Visto que isso é mais do que haveis dito desde que nos atiraram para aqui, sinto-me inclinada a acreditar em vós – replicou Anna.
– Mas, de todo o modo, temos de sair – repetiu Reyna. – Ele pretende matar Ian. O mais provável é ser um desafio para combate individual, mas ele terá um plano para assegurar a vitória, e não será uma luta justa. – Ela contemplou a situação precária delas. – A cripta fica por baixo da capela, que fica fora da muralha e perto da floresta. Pergunto-me se Duncan sabe sequer o que Aymer anda a fazer.
– Não importa. Se sairmos, corremos – atalhou Anna. –

Lembrais-vos destes montes, Reyna? Conseguis levar-nos para oeste?
– Penso que sim. Passou muito tempo, mas os caminhos não podem ter mudado muito.
– Como saímos? – perguntou Christiana. – Tentastes a porta depois de eles nos trazerem para aqui, Anna, e vistes que estava trancada. Sem dúvida há pelo menos um guarda lá fora, e eles tiraram-vos a espada.
– Esperemos que haja de facto um guarda – disse Anna. – Não mais do que um se tivermos sorte, porém. Se conseguirmos que ele abra a porta… Isto é uma cripta. Deve haver algo com que lhe bater. Um crucifixo, uma placa de pedra, alguma coisa…
Ergueu-se
e
começou
a
deambular
pelo
pequeno
compartimento. – Aqui está alguma coisa. Uma cruz de pedra. –
Grunhiu com o esforço e depois blasfemou. – É pesada de mais para mim. Detesto dizê-lo, mas bem nos fazia jeito um homem forte agora.
– Já que não cuidámos de trazer um, parece que estamos presas aqui – concluiu Christiana.
– Não. Atiramo-nos a ele todas de uma vez. Mas precisamos da porta aberta. Sois vós quem vais fazê-lo, Christiana. Oferecei-lhe um beijo ou algo assim. A oportunidade de ter uma condessa deve fazê-lo esquecer o dever.
– Ó, santos me acudam – murmurou Christiana. – Tomai tento para derrubar este guarda antes de chegar a um beijo que seja, quanto mais ou algo assim.
Elas juntaram-se e lá subiram as escadas. Christiana assumiu a sua posição, e Reyna e Anna encolheram-se contra a parede ao lado da escadaria.

Christiana arranhou a porta. – Por favor abri a porta por um breve momento, gentil senhor. Não me sinto bem de todo. As minhas companheiras perderam já os sentidos, e temo que todas morramos se não tivermos de imediato algum ar fresco.
A porta de carvalho abriu uma frincha, e uma luz ténue escorreu pelas escadas. A cabeça do guarda bloqueava parte dela.
– Podíeis abri-la apenas um pouco mais? Estou certa de que elas recobrarão com um pouco mais de ar. Se fordes generoso nisto, ficarei grata.
– Lamento condessa, mas as minhas ordens foram…
– Ficarei imensamente grata.
– Bom… se as senhoras estão assim tão mal – murmurou o guarda. – Não era intenção causar-vos dano.
O vulto do guarda desapareceu da frincha. Momentos depois, a porta abriu-se completamente e a sua forma escura encheu a entrada.
Elas investiram.

CAPÍTULO 23


Deitaram-no por terra, soterrado num emaranhado de corpos tenros, imerso num caos de mãos a agarrá-lo e membros a contorcerem-se e sussurros femininos excitados.
– Agarrai-lhe no braço da espada… não, esse é o meu, agarrai o dele.
– Alguém se sente no peito dele.
– Raios, este filho de uma égua é grande.
– Senhoras…
– Apanhei-lhe a espada…
– Senhoras.
O furação estacou a meio fôlego. Surpresas, três cabeças enluaradas viraram-se de rompante.
– Ian?
Ian identificou as várias mulheres esparramadas em cima dele. –
A pequena agarrada ao meu braço é minha mulher, e a grande que me encosta a espada à garganta deve ser Anna. Quer dizer que o traseiro que me esmaga o peito pertence à condessa de Senlis.
Quiçá, condessa, possais ter a amabilidade de…
O traseiro deslocou-se rapidamente. As mãos cerradas apartaram-se. Puseram-se todas em pé.
Anna devolveu-lhe a espada, e uma luz pálida refletiu-se nela.

Infelizmente, isso fez com que os seus homens viessem em seu socorro.
– Para trás! – sussurrou-lhes rispidamente Ian, aproximando-se de Reyna e puxando-a para a proteção do seu corpo.
Reyna derreteu-se de imediato no santuário do seu corpo, apertando-o contra si, enterrando o rosto no peito dele. Ele envolveu-a nos braços, apreciando a sensação da sua forma pequena e do seu calor de mulher. Ela estava aqui, muito viva e real, e o seu venturoso alívio igualava o dela.
Ele beijou-a na cabeça uma vez e outra enquanto encaminhava o grupo para fora da capela, para o abrigo das árvores.
– Agradeço-vos terdes distraído o guarda, Reyna. Debatia-me entre confrontá-lo e ver se vós estaríeis aprisionadas naquela cripta, ou limitar-me a marchar até à torre exigindo a vossa libertação. Em qualquer das hipóteses, teria tido os Graham todos em cima de mim.
– Como nos encontrastes?
– Soube por Paul que havíeis ido para Glasgow e que alguém fora atrás de vós. Quando lá cheguei encontrei Gregory, e ele contou-me o resto.
– Gregory está bem?
– Conseguiu voltar a Glasgow. Como eu não sabia em que estalagem havíeis ficado, decidi localizar-vos procurando por ele nas tavernas e lugares que tais. Encontrei-o no segundo bordel onde fui, esticado na cama como um príncipe, com as rameiras a deleitarem-se com a oportunidade de brincar às mães e enfermeiras.
Anna chegou-se para mais perto. – Imagino que não haveis trazido mais cavalos? Já que há pouco não fomos muito silenciosas, em breve andarão à nossa procura.
– Trouxe, mas deixei-os a caminho. Cavalgámos sem parar e mudámos para os cavalos mais descansados quando os nossos não conseguiam ir mais longe. As senhoras terão de se emparelhar connosco. Os cavalos não estão longe.
– Não é Duncan que está a fazer isto, mas apenas Aymer, tenho quase a certeza – disse Reyna. Se ele vier, pode ter apenas os homens que levou para Glasgow, e não aqueles que ainda são leais ao meu pai.
– Duncan decerto deve ter sabido que vós estáveis ali.
– Aymer nunca nos levou para dentro da muralha, deixou-nos imediatamente na cripta. Duncan pode não estar ao corrente.
A mão dele apertou-se mais no seu ombro. Ele estivera preocupado com maus-tratos físicos, mas dias na cripta podiam tê-
la maltratado de formas que varas e punhos nunca conseguiriam. –
Vós… como…
– Não recordo muito, mas Anna e Christiana ajudaram-me. Por fim, consegui enfrentar tudo. Foi muito o que se tornou claro.
Tenho tanto a dizer-vos.
– E eu tenho muito a dizer-vos, mulher. – Voltou a sentir o travo da preocupação que se apossara dele enquanto corria a toda a brida pelos montes, descuidando segurança e prudência ao cavalgar por terras Armstrong para ganhar tempo. – Foi-vos dito que ficásseis em Carlisle.
Ela aconchegou-se contra ele de forma tão amorosa que o pico de raiva foi pequeno e breve. – Foi idiota, Ian, não o negarei. E, contudo, aprendi tanto. Penso que sei quem matou Robert.
– Aymer?
Um aceno de assentimento. – Perguntei-lhe e ele não o negou.

Admitiu que se tivesse os meios o teria feito. Por dinheiro, um dos criados ou guardas podia ter aplicado o veneno por ele. Planeava matar-vos quando viésseis buscar-me, para que as arras ficassem sob seu controlo.
– Faz sentido. Terra, para mais estratégica. A explicação mais simples, e a mais antiga do mundo.
Quando alcançaram os cavalos, Ian indicou a dois homens que levassem as outras senhoras atrás deles.
– Será mais rápido se formos para oeste, na direção de Black Lyne – disse, erguendo Reyna para a sua própria montada. – Enviei uma mensagem a Morvan, de Glasgow, e se a ajuda chegar, virá por aí. Conheceis estes caminhos suficientemente bem para nos guiar?
– Reconheço o sítio onde estamos. Penso que consigo fazê-lo.
Ele alçou-se para trás dela. Do outro lado da clareira, Christiana agradecia ao seu soldado pela generosidade em partilhar o seu cavalo, e Anna criticava o dela pela forma como se sentava na sela.
Ian pegou nas rédeas e rodeou Reyna com o braço. Apertou-a contra si e beijou-lhe o pescoço. – Tenho muito para vos dizer, mulher, e nem tudo são repreensões – murmurou. – Ficarei sempre em dívida com as senhoras por terem ficado convosco. Agradeço a Deus por vos entregar a mim em segurança.
Ela virou-se para aceitar o beijo que aguardava. – Chamais-me muito isso. Mulher. Sempre me perguntei porquê.
– Sois minha mulher.
– Presumi que era porque precisáveis de vos acostumar à ideia.
Ele riu-se. – Isso também, mas descobri que gosto do som. E é algo que nunca chamei a mulher nenhuma antes. Mas se preferirdes, emprego outros predicados. – Beijou-lhe a face. – Querida. –

Encostou-lhe os lábios à fonte. – Doçura. – A boca dele encontrou-lhe a orelha. – Meu amor.
Ela encostou-se a ele com um suspiro satisfeito. – Sim, mas mulher serve, Ian, especialmente por ser só meu.
– Vamos, Reyna. Devagar, para estardes certa. Não queremos perder-nos nestas colinas.
Viajaram toda a noite sem parar para descansar. Ian notou que Reyna fazia as suas escolhas de caminhos valendo-se mais do instinto do que da certeza, confiando que os seus passeios de infância lhe teriam gravado o trajeto na memória. Na quietude absoluta, prenúncio da madrugada, ouviram por fim o som de cavalos no seu encalço, e puxaram mais pelos seus num esforço de chegar a Black Lyne antes de Aymer os alcançar.
Poderia ter resultado se os caminhos dessem diretamente para o descampado que ficava por detrás de Black Lyne, mas afinal o percurso desembocou mais para sul, perto do velho castelo.
Subitamente, cavalgavam disparados pelo baldio numa velocidade temerária, fugindo da companhia que os perseguia. Os seus cavalos tumultuaram pelo fosso da velha fortaleza abaixo e subiram a colina, quando a cabeça ruiva de Aymer emergiu no topo da elevação do baldio.
Ian espreitou os homens que desciam com Aymer a escarpa.
Não mais de uma dúzia. Reyna estava certa: Aymer fazia isto sozinho.
Saltou do cavalo, desceu Reyna e gritou aos homens que se espalhassem pela circunferência do topo da colina com os seus arcos.

Ao longe, avistava-se o vulto de Black Lyne. Não havia possibilidade de ajuda de lá. Apenas uns poucos homens permaneciam no interior da fortaleza fechada, com ordem expressa de lá ficarem.
Mais abaixo, Aymer também distribuía os seus homens à volta da elevação do velho castelo. Tinha mais com ele, mas também um círculo maior a cobrir.
– Se disserdes a um dos vossos homens para me dar o arco dele, tentarei equilibrar os números – disse Anna.
– São arcos galeses, de mais para uma mulher.
– Há alguns anos que uso um arco galês, Ian. Desta distância, devo acertar no meu alvo três vezes em cinco. Alguns braços e pernas em mau estado farão Aymer pensar duas vezes em atacar.
Ele olhou para aquela mulher, com o seu emaranhado de caracóis a esvoaçar, selvagens, ao redor da cabeça e do corpo. Se ela dizia que acertava no alvo três vezes em cinco, ele acreditava nela. Chamando o homem mais próximo, ordenou-lhe que cedesse o arco.
Reyna aconchegou-se perto dele por trás de uma pedra larga que servia de proteção a ataques semelhantes vindos de baixo.
Aymer e os seus homens, pensando estar fora de alcance, espalharam-se em redor do fosso da paliçada. Anna testou a tensão do arco e depois encaixou nele uma seta. Contornando rapidamente as pedras até à ponta da colina, puxou a corda até à orelha. Um segundo depois, um grito de blasfémia ecoava na neblina da madrugada.
– Ela é verdadeiramente magnífica, não é? – disse Reyna com admiração enquanto Anna transportava o arco para o outro lado da colina. – Devíeis ter visto a reação que os homens de Aymer lhe tiveram. Era um desafio que eles se viam em pulgas para enfrentar.
Consigo compreender a razão pela qual eles… vós…
– Vós constituis um desafio muito mais interessante do que ela alguma vez foi. Para mim, ela foi um meio que serviu um fim, e não um muito nobre, diga-se. Mas ela e eu temos algo em comum, penso eu. Ela nasceu para um homem, e encontrou-o. Eu nasci para uma mulher, e por graça de Deus encontrei-a.
A afirmação foi recebida por uma quietude absoluta. Ele afastou o olhar de Aymer e dos seus homens, e viu a sua expressão perplexa. Sorriu e passou-lhe o dedo pelo queixo. – Bom, ou foi graça de Deus ou foi obra do Diabo, mas se foi do Diabo, ele não contou que me roubásseis o coração, portanto os seus planos para me confinar à perdição saíram gorados.
Ela colocou os braços à volta dele e ele puxou-a mais para si.
Que lugar e altura tão estranhos para ele lho dizer, mas pareceu certo e natural.
– Acho que o meu corpo podia flutuar e o meu coração rebentar neste exato momento – disse ela. – Amo-vos tanto, Ian.
– E eu amo-vos a vós. Absorvestes a minha alma despedaçada com a beleza da vossa, mas é um lugar estimulante para se ser feito prisioneiro. Desde o início que me desafiastes a ser melhor do que sou. Nenhuma outra mulher me poderia ter insultado como vós fizestes, forçando-me a ver no que me havia tornado, e depois ofertado o amor e a amizade necessários para me resgatar.
– Não, Ian, não… Foi só segurança que procurei naquelas palavras… vós não sois…
– Palavras verdadeiras, Reyna. – Mais verdadeiras do que ela sabia. Sobreviveria o seu amor ao conhecimento de tudo? Agora não. Noutra altura. Talvez. – Eu estava rapidamente a caminho de me tornar o pior dos homens, e vós havíeis conhecido o melhor.
Devo avisar-vos, porém, que, por muito que me esforce, nunca serei um Robert de Kelso.
Ela ergueu uns olhos envergonhados. – Pois, Ian, a bem ver, nem Robert de Kelso foi sempre um Robert de Kelso. – Falou-lhe da conversa com Anselm, e a razão da carta de Robert. – Eram os livros, Ian. Foram roubados.
– Tendes a certeza?
– Não pode ser mais nada.
– Não o julgueis com demasiada dureza. É costume haver saque a seguir a batalhas e cercos. Ninguém o considera roubo.
– Mas não se trata de sedas, nem joias, nem prata. São livros.
Quem teria coisas destas a não ser clérigos? Não, não me deixarei enganar. Robert tirou-os à Igreja, um crime sério mesmo em guerra, e procurou devolvê-los para expiar a sua ofensa.
Ele franziu o sobrolho. – David disse que eram muito valiosos.
Pergunto-me quão valiosos.
– Segundo o que soube em Glasgow, pelo menos três ou quatro mil libras.
Quatro mil libras. Não admira que David estivesse hesitante em reconhecer que Reyna tivesse direito a qualquer um deles.
Mudava tudo. O futuro que eles podiam ter e a segurança que conheceriam. Sabê-lo era como descobrir um tesouro escondido.
Não venderiam aqueles de que Reyna gostava, claro, a não ser que a má sorte o comandasse, mas a mera existência daquela proteção contra alguma desdita afetaria muitas outras escolhas.
Olhou para ela com alegria.
Ela respondeu-lhe com olhos bem abertos, inocentes.
Ele adivinhou o significado daquela expressão esperançada, sincera, e esperou verdadeiramente estar enganado. – Quereis mandá-los para o bispo seja como for, não é verdade?
Ela mordeu o lábio inferior e assentiu com a cabeça.
Ele suspirou, e o breve sonho de riqueza foi levado pelo ar. –
Diabos, convosco não é fácil ser bom, Reyna. Quatro mil libras.
Raios.
*
Morvan chegou dois dias depois, quando o sol ia alto no céu.
Os que estavam no cimo da colina viram primeiro a companhia assomar ao horizonte distante, mas o som rapidamente chegou lá a baixo, a Aymer.
Espreitando detrás da pedra grande, Reyna viu o irmão esticar-se para ver a fonte do estrupido e depois ficar muito quieto e rígido quando o paul se encheu de homens, armaduras e cavalos.
Aymer gritou para os seus homens e todos pegaram apressados nos cavalos, montando e levando consigo os feridos. O pequeno grupo da torre gritou zombarias enquanto a cabeça ruiva partia disparada na direção pela qual viera. Em seguida, Ian foi até à ponta da colina e saudou o exército que chegava. Ordenou a um homem que descesse no cavalo mais veloz para lhes dizer que as senhoras estavam a salvo.
O mensageiro chegou ao exército e este deteve-se.
– Morvan está ali. Estou a vê-lo. E David também – disse Christiana. – Ó Céus…
– Devem estar um bocadinho zangados – admitiu Anna.
– Um bocadinho? Por causa da vossa obstinação eles desfizeram o cerco, trouxeram metade do exército, e agora ao que parece nem precisamos de grande salvamento, e pensais que eles podem estar um bocadinho zangados?
– A minha obstinação? Sois…
Ian interrompeu-as com um sorriso endiabrado. – Ah, agora que penso nisso, Morvan transmitiu-me uma mensagem para vós. Com toda a agitação, esqueci-me.
– Que mensagem?
– Devia dizer-vos que ele estava muito desagradado por terdes saído de Carlisle. Estava furioso com a vossa desobediência.
Começou a andar de um lado para o outro com aquele olhar sombrio com que fica, ameaçando trancar-vos de vez, jurando que garantiria que não pudésseis sentar-vos confortavelmente durante um mês…
Vários dos homens trouxeram cavalos. À distância, dois homens altos desmontaram e adiantaram-se ao exército. Morvan cruzou os braços sobre o peito e David colocou as mãos nas ancas, e ambos aguardaram, comunicando eloquentemente o seu desagrado pela postura.
– Não tem nada bom aspeto, irmã – murmurou Christiana quando Ian a ajudava a subir para a sela. – Precisaremos de um estratagema muito ardiloso para nos esquivarmos.
Anna alçou-se para o cavalo. – Não foi realmente obstinação, se pensarmos no assunto, mas sim cavalheirismo. Reyna propôs a viagem. Dificilmente poderíamos deixá-la ir só.
– Oh, eles já sabem disso, mas não aplacou Morvan em nada –
explicou Ian. – Ele pensa que vós devíeis tê-la detido. Além disso, como é próprio, deixou a mim o castigo dela.
Lançou a Reyna um olhar de que ela não gostou muito. Má sorte a dela que, desvanecendo-se o alívio por a ter encontrado sã e salva, aparecessem estes maridos querendo acertar contas e relembrando-lhe que ele tinha o seu próprio livro-mestre para balancear.
Uma vez sentada no cavalo, dirigiu-se a Christiana. – Que ardiloso estratagema tencionais utilizar? – sussurrou.
– Bem, não tenciono cozinhar-lhe uma refeição nem ler-lhe filosofia, Reyna. Talvez tenha de usar aquele jogo sarraceno que vos descrevi naquela noite em que o vinho nos fez tontas em Carlisle.
Fizeram caminho até onde o exército aguardava. As senhoras refrearam os cavalos a cinquenta metros de distância.
Morvan avançou a passos largos. – Vejo que as encontrastes a todas bem, Ian.
– Sim. Acabou por se revelar uma muito pequena aventura, embora a vossa chegada tenha simplificado a última parte. De outra forma, poderia ter tido de matar Aymer, e todos nós gostaríamos de o evitar. – Ian procurava a ligeireza, mas sem sucesso. Os olhos faiscantes de Morvan não haviam arrefecido nem um pouco.
Morvan dispensou a irmã com um olhar afiado. – O vosso marido aguarda.
Christiana olhou lamentosa para Anna antes de se afastar a cavalo, mas Anna não a viu. Tinha o olhar cravado no do marido, desafiante.
Morvan avançou até estar ao lado dela. – Haveis feito por vos divertir?
– Estou completamente ilesa, e agradeço-vos perguntardes. Sem o mínimo desconforto.
A expressão dele respondeu, silenciosa, ainda não. – Imagino que tenhais deixado a fortaleza de Duncan de pé. Ou havei-la deitado por terra?
– Conseguimos escapar sem o fazer. Tanto pior.
Reyna revirou os olhos. De todos os estratagemas que conseguia imaginar, provocar um marido irritado não lhe pareceu o mais engenhoso.
– Voltamos imediatamente para Carlisle? – perguntou Anna. –
Espero que não planeeis aguardar até de manhã em Black Lyne, Morvan. A excitação deste périplo teve em mim o mais surpreendente dos efeitos, e dou por mim muito inquieta. Uma boa cavalgada parece-me o ideal.
Ele não se mexeu e a sua expressão não mudou, mas entrou-lhe uma luz diferente no olhar. – Vindes todas connosco, mas não regressamos a Carlisle. Vamos diretos a Harclow, onde nos espera trabalho que não pode ser adiado. – Pousou-lhe uma mão no joelho. – A longa cavalgada deve tratar da vossa inquietação.
A mão de Anna deslizou sobre a do marido. – Duvido.
Reyna e Ian afastaram os cavalos, na altura exata em que Morvan esticava os braços para puxar Anna para o seu beijo.
Perto do exército, Christiana estava enrolada nos braços de David, com os olhos erguidos para ele, falando-lhe sincera. O amor cru nos olhos azuis do conde sugeria que ele aceitaria o que quer que a mulher lhe dissesse.
A aproximação de Ian e Reyna desfez o abraço. Christiana voltou a montar e um escudeiro trouxe o cavalo a David.
– Morvan disse que vamos diretos para Harclow – anunciou Ian.
– Sim. Teríamos chegado mais cedo, mas o vosso homem chegou mesmo no meio de uma investida, ontem de manhã –
explicou David. – Estamos dentro da primeira muralha, Ian.
– Como…

– Usámos o nosso plano. Lamento não termos podido esperar por vós, mas a oportunidade era boa de mais para que a deixássemos escapar. Rebentou uma tempestade enorme, poucas horas antes do raiar do dia. A muralha quase não tinha homens, e nós estávamos quase a meio do lago quando eles repararam no que estava a acontecer. Os primeiros homens usaram os machados para atravessar a barreira de madeira que tapava o buraco feito pelas armas, enquanto os que estavam nas jangadas usavam os arcos para os protegerem. Uma vez no interior, batemo-nos para abrir caminho até ao portão antes de caírem demasiados dos nossos.
– Maccus render-se-á?
– Quer negociar, e enviou-nos condições. Morvan decidiu deixá-lo em banho-maria enquanto lidávamos com este outro problema.
Morvan e Anna juntaram-se a eles e todos cavalgaram para a cauda do exército. – David contou-vos? – perguntou Morvan.
– Sim. Disse que Maccus tem condições, porém.
– As predizíveis. A segurança dos cavaleiros e soldados e outros que tais. Recusei considerá-las até ele se render, e na sua maior parte ele irá colocá-las de lado e abrirá o portão.
Reyna seguia à distância de dois cavalos. Esticou-se na sua montada até conseguir vê-lo. – Morvan, poderei falar com Maccus Armstrong, depois de ele se render? Tenho algumas perguntas que me ocorreram durante esta viagem, e ele talvez possa responder-lhes.
Morvan olhou para o horizonte a oeste. – O vosso pedido é muito interessante, Reyna. Porque uma das condições de Maccus Armstrong não era de todo previsível, e eu pressenti que é o único ponto em que ele não cederá. – Volveu para ela o olhar. – O velho Maccus não se renderá até lhe entregarmos a viúva de Robert de Kelso.

CAPÍTULO 24


Reyna estava no adarve atrás do corpo couraçado de Ian. David também fazia parte do seu escudo humano, e Anna estava por perto, empunhando o seu arco, para responder a qualquer movimento que os ameaçasse vindo da muralha fronteira. Outros arqueiros estavam dispostos para o mesmo propósito, mas a sua amiga insistira em ficar a seu lado, e Morvan avisara que qualquer seta errante que chegasse à mulher significaria a morte de todos os homens do castelo.
Maccus exigira que Reyna fosse transferida para a sua custódia a bem da segurança dela, mas Morvan recusara. Reyna considerou tudo aquilo muito cavalheiresco, já que este único ponto era o que o impedia de resgatar a honra da família. Visto que Maccus mencionara a segurança dela, Morvan oferecera-se para deixá-lo ver por si próprio que ela estava presente e incólume, apesar de ninguém acreditar que a segurança de Reyna fosse de todo o objetivo de Maccus.
– Ali está ele – disse Ian. Reyna espreitou por cima do ombro dele para o portão ao longe. No cimo de uma das torres, apareceu um homem de cabelos brancos. – Eu afastar-me-ei, mas mantende-vos atrás do escudo de David e do meu.
Ele fê-lo, segurando o escudo ao lado do de David, para ambos formarem um muro de aço. Reyna encostou-se a eles e enfrentou o escrutínio distante do amigo e senhor de Robert. A cabeça branca olhou na direção dela e abateu-se silêncio sobre o castelo. Mais abaixo, Morvan Fitzwaryn estava sozinho no pátio exterior, protegido apenas pela sua armadura.
Maccus Armstrong ergueu o braço num gesto largo. Corpos começaram a deixar as ameias ao seu redor. Em breve, não se via um único soldado ou arqueiro Armstrong. Maccus aguardou até o último sair e depois a sua cabeça desapareceu.
Anna correu para as escadas da muralha. Reyna e os homens seguiram-na e reuniram-se à multidão expectante que se reunia no pátio. Lentamente, a grade subiu.
Ian manteve a mão em cima do ombro dela enquanto esperavam entre o círculo à volta de Morvan. A garganta de Reyna ardia-lhe, e ela sabia que estas emoções eram prova das suas lealdades divididas. Sentia júbilo por Christiana e Morvan, que há tanto tempo haviam sido expulsos do seu lar, mas também angústia pelo próprio Maccus, que fora amigo querido de Robert e instrumento de tudo o que havia sido bom na sua vida.
De súbito, apareceu uma figura solitária no pátio para lá do portão. Maccus avançava sem hesitação. A multidão afastou-se para lhe dar passagem e ele caminhou até Morvan, desembainhou silenciosamente a espada e entregou-lha.
Maccus era um homem robusto e a sua figura ainda impressionava, apesar dos seus mais de sessenta anos. Olhou Morvan de frente, estudando-o com perspicácia. – Tendes os olhos e a cor da vossa mãe, mas lutais como Hugh, isso é certo.
– Eu não o saberia. Ele morreu quando eu era ainda criança.
– É um facto, e ambos sabemos que foi um dos meus arqueiros que o atingiu. Mas é assim que a guerra se faz.
Morvan assentiu com a cabeça. – Sim. Melhor teria sido para vós, a longo prazo, que tivésseis matado também o filho.
– Não mato crianças. Além disso, vós éreis um rapaz promissor.
Teria sido um desperdício. – Olhou em redor e sorriu de pena. –
Embora, dadas as circunstâncias…
Algo parecido a um sorriso aligeirou a expressão de Morvan. –
Visto que fostes generoso na vitória, é o mínimo que posso fazer.
Qualquer homem que jure ficar a norte das fronteiras das nossas terras pode sair imediatamente para ser escoltado até Clivedale.
Vós ficareis aqui até ser pago o resgate que eu definirei.
– E Lady Reyna?
Morvan abanou a cabeça. – Preocupáveis-vos com a sua segurança. Estará em segurança connosco.
– Houve acusações sobre ela.
– Estamos cientes delas.
Reyna sentiu-se corar quando olhares na multidão dispararam na sua direção.
– Não são verdadeiras, essas histórias de ela matar Robert –
atirou Maccus.
– O vosso sobrinho Thomas pensa de outra forma.
– Thomas é um asno. Disparates, tudo. Qualquer pessoa que os conhecesse, a ele e a ela, sabia-o. Preparava-me para lhes pôr um fim quando me apanhastes aqui. Preocupou-me que Thomas fizesse alguma estupidez enquanto eu estava aqui preso. Em todo o caso, é melhor ficardes com ela até o meu resgate ser pago. Depois eu levo-a para Clivedale e ponho tudo em pratos limpos.
Reyna olhava aparvalhada para aquele anúncio público da sua inocência, vindo do homem que ela tivera a certeza de querer enviá-la para a morte.
– Ela não irá para Clivedale – esclareceu Morvan.
– Se não ma derdes, melhor será jurardes pela segurança dela, Fitzwaryn. Não deixarei que a julgueis e ouçais as pessoas tecer as tramas delas, recordando-se de coisas que nunca ouviram e assim.
Ela é uma Graham, sabeis disso, e há sentimentos antigos a respeito disso.
– O interesse de todos pela senhora tem-me deixado perplexo desde o início, Maccus. Qual é a razão do vosso?
– Devo-o a Robert.
– Um homem bom, Robert de Kelso. Mas o seu novo marido também é um homem bom. Ele jurará pela segurança dela, e se vós jurardes pela sua inocência, não sinto inclinação para a apresentar a julgamento.
Maccus parecia tão perplexo com esta declaração como Reyna havia ficado com a dele. Ele perscrutou a multidão até deparar com ela. Virando-se abruptamente, aproximou-se com passadas vigorosas e baixou os olhos, para em seguida estudar Ian. – Desejo falar convosco – disse com brusquidão.
Ian assentiu com a cabeça. – Era o que me parecia. E Reyna deseja falar convosco.
Aqui, alguns cavaleiros levaram Maccus. Morvan foi até ao portão interior e uma nova quietude caiu sobre a multidão.
Detendo-se, olhou para trás e chamou Anna e Christiana para perto de si.
Com a mulher e a irmã a seu lado, voltou a entrar em Harclow.
Reyna virou-se para Ian, enquanto a multidão entrava pelo portão. – Foi surpreendente, Maccus a defender-me daquela maneira.

– Foi?
– Talvez não – admitiu ela. Viu o seu olhar sério. – Há quanto tempo sabeis?
– Não sabia nada. Mas há algum tempo que me pergunto.
– Sois mais rápido do que eu. Passou uma vida inteira até começar a perguntar-me.
– Talvez devais ficar-vos pelas perguntas. Estais certa de que quereis saber de facto? Tudo?
– É o tudo que preciso de saber e penso que só Maccus pode dizer-me a verdade.
– Então falemos com ele, Reyna.
Depararam com Maccus num pequeno quarto. Dera a sua palavra e nenhum homem guardava a porta destrancada.
Estava perto da lareira, numa pose pensativa, mãos atrás das costas, de olhar fito em chamas que não existiam. Ao longo dos anos, Reyna viera a conhecê-lo bastante bem, mas ele sempre se mostrara um pouco distante no tratamento com ela. Era diferente com Robert, e ela ouvira muitas vezes o riso dos dois para lá da porta dos aposentos do marido.
Eles entraram e ele virou-se e examinou-a atentamente. – Não levastes muito tempo, rapariga. Robert mal arrefeceu.
– Bom, ela não teve grande escolha, Maccus. Ou era eu ou voltava para Duncan – disse Ian.
– Uma escolha dos diabos, isso é certo – resmoneou Maccus. –
Soube um pouco de vós dos cavaleiros que me trouxeram até aqui.
Tomastes Black Lyne, dizem eles, e agora está-vos destinado.
Nada mau para um verão de trabalho, Ian de Guilford. Contudo, se está feito, está feito. Eu planeara dá-la a outro homem, mas se ela estiver satisfeita, aceito-o. Um cavaleiro inglês, para mais. Diabos.

– Estou mais do que satisfeita – afirmou Reyna. – E ainda bem que assim é, pois não me teríeis encontrado disposta a ser dada a um qualquer homem por vossa vontade, caso este verão se tivesse desenrolado de forma diferente. Aos vinte e quatro anos, estou cansada de ser movida como uma peça de xadrez e mantida na ignorância.
Maccus mostrou surpresa e em seguida sorriu. – Robert sempre disse que vós tínheis mais espírito do que eu via. Bom, unistes a vossa sorte à destes ingleses e à deste homem, por isso espero que vos convenha. Se assim for, habituar-me-ei à ideia.
– Convir-me-á. Mas agora desejo saber algumas coisas. Sou uma mulher adulta, e tenho direito a saber, penso eu. – Escolheu cuidadosamente as palavras. – Aymer Graham disse que não sou verdadeiramente irmã dele. Não penso que ele se referisse apenas ao facto de sermos meios-irmãos, não pela forma como ele o disse.
– Ela ergueu os ombros e olhou Maccus nos olhos. – Quem era o meu pai?
Ele assumiu uma expressão consternada, parecendo envelhecer subitamente.
– Robert? – sussurrou ela.
– Robert! Diabos, rapariga, quem pensais que o homem era?
Robert nunca se casaria com a própria filha.
– Então quem? Foi mesmo Duncan?
– Duncan Graham devia rezar para conseguir fazer com uma mulher alguém do vosso calibre. Não, não foi Duncan. E nenhum cavaleiro dele, digam o que disserem da vossa mãe naquele lugar.
Foi Jamie. James, o meu rapaz, era vosso pai. Duncan sempre suspeitou mas nunca teve a certeza, mas a vossa mãe sabia, e Jamie também.

– James Armstrong? Eu sei que eles diziam que ele havia sido amante dela mais tarde, mas…
– Muito tempo, quase desde que ela veio para estas partes. Eles conheceram-se logo. Nessa altura, as famílias não eram inimigas. –
Ele virou a cara, o olhar procurando novamente a lareira vazia. –
Avisei-o que não o fizesse. Disse-lhe que de lá só viria mal. Bem, ele era jovem… contudo, podia ter continuado como estava, só que ela viu aonde iam parar as coisas para vós. Consigo própria ela não se importava, mas convosco… Jamie decidiu levar-vos às duas. Duncan descobriu, apanhou-os logo depois do baldio, perto do velho castelo. Enforcou o meu rapaz como um ladrão ali mesmo, e deixou-o lá. Robert encontrou o corpo dele.
Memórias da cripta avançaram subitamente sobre ela, insinuando-se na sua mente. Frio. Frio húmido e medo. Dedos a espicaçá-la e um rapaz a rir. Ficai aqui, ou os demónios apanham-vos. Vou lá fora ver.
– Nós retaliámos, depois eles também, e tudo se agravou, como acontece com estas coisas. Robert por vezes falava comigo, incitando-me a dar tréguas, falando-me do sofrimento do povo, mas eu não o ouvia. Olho por olho, diz a Bíblia, e eu aguardava que Aymer se fizesse homem e recebesse as esporas. Não mato crianças, mas quando ele crescesse, eu planeava acertar contas com Duncan da única forma que podiam finalmente ser acertadas.
Correndo. Correndo. Na direção das vozes e gritos que resvalavam pelo negrume e pelas pedras, seguindo atrás dos passos em retirada.
– Depois soube como se passavam as coisas convosco. Nunca vos vira, mas éreis filha de Jamie. E então comecei a dar ouvidos a Robert, e começámos a pensar em formas de vos tirar de lá.

Luz ali à frente. Mais devagar agora, aproximando-se cuidadosamente.
– Duncan concordou apenas por causa de Aymer. Ele sabia que eu aguardava que o rapaz crescesse. Começou a negociar com vontade quando Aymer fez dezoito anos. Fi-lo dar aquelas terras de dote porque ele não dava realmente uma filha. Ele concordou porque seria Robert quem ficaria na sua posse, e ele sabia que ele era honrado. E assim tivemos alguma paz e livrámo-vos dele…
A imagem dela própria, enforcada…
Reyna fitou Maccus, aturdida, imagens e emoções revoltas toldando-lhe a visão. – E a minha mãe? Onde está ela?
– Ele enfiou-a num convento.
– Não, não me parece. Robert ter-me-ia levado lá quando lhe pedi, se ele o houvesse feito.
Ela aproximou-se de Maccus. – Achais que uma criança esquece tais coisas para sempre? Se uma mão lhe tapou os olhos, que ela não vê? Que se o mundo ficar silencioso ela nunca recorda?
– Cerrou os punhos até as unhas lhe entrarem na carne. – Durante a minha vida inteira, a minha alma lembrou. Nestes últimos meses, quando alguém falava do meu julgamento, via-me a mim própria enforcada, inerte. Pensei que fosse uma premonição da minha própria morte, mas não o era. Não sou eu quem está enforcada naquele pesadelo. Ele matou-a, também, não foi? Não foi?
Ela só reparou que começara a gritar quando sentiu a presença de Ian atrás dela, e o braço dele à volta da sua cintura. – Tende calma, amor – disse ele suavemente.
O semblante de Maccus encheu-se de angústia. – Não soubemos de facto. Robert encontrou apenas Jamie, mas viu indícios de que talvez outra… E ela não está na tal abadia, não a viver, de qualquer forma, porque eu fui até lá ver se poderia ajudá-
la. Penso que Duncan se arrependeu no momento em que o fez.
Antigamente, podia-se punir dessa forma uma mulher infiel, mas agora é considerado crime. Até aos seus foi dito que ele a desterrou em algum lado.
As forças dela deixaram-na. Voltou-se para o amparo de Ian e ouviu-o vagamente sussurrar-lhe palavras de apoio ao ouvido.
– Sois filha de Jamie – disse Maccus. – Minha neta. Se alguma vez precisardes de mim, sabeis onde me encontrar.
Uma nota na voz dele penetrou a sua exaustão. Ela virou-se e viu a esperança fugidia nos olhos dele. Foi até ele e abraçou-o. –
Fizestes o melhor por mim, avô, e foi mais do que alguma vez pensastes.
As mãos dele ampararam-lhe a cabeça. – Bem, rapariga, é bom poder reconhecer-vos. – Pegou nas mãos dela, beijando-as. –
Tende a bondade de nos deixardes agora. Preciso de avisar este cavaleiro inglês para tomar conta de vós se não quiser defrontar o clã Armstrong inteiro.
Ela beijou-o, encaminhando-se depois para a porta. – Vou trazer-vos John, Ian, e encontrar um quarto onde possais retirar a armadura.
Maccus observou-a ir-se embora, ficando alguns momentos mais a olhar para a porta. Quando finalmente se virou para Ian, uma centelha matreira luzia-lhe no olhar. – Bom, Ian de Guilford, este casamento é uma surpresa interessante para mim, e esta conversa é ainda mais interessante para vós, aposto.
– Não é muito surpreendente. É raro os homens tratarem os do seu sangue da forma que Duncan a tratava, e eu ouvira a história da morte do vosso filho. Mas, dado que sois avô dela, é útil que aproveis o nosso casamento.
– Oh, aceito-o. Que escolha tenho eu? – Indicou o quarto com uma risada. – Mas se fosse a vós, não repetiria isto a ninguém.
Quando Fitzwaryn vos ofereceu Black Lyne, não contava que entrásseis numa aliança com os Armstrong pelo casamento, pois não?
– Não. Ainda assim, di-lo-ei a Morvan. Casado com uma Armstrong ou não, sou um homem dele. Ele pode gostar da ideia e baixar-vos o resgate. Quais são as hipóteses de tentardes atacar Harclow se primeiro tendes de tomar o castelo onde vive a vossa neta?
Maccus deu uma risada. – Quem sabe, daqui a vinte anos…
– Daqui a vinte anos vós estareis morto e Duncan estará morto e os Armstrong e os Fitzwaryn estarão todos os dias em cuidados por causa de Aymer Graham. Esta aliança poderá revelar-se muito útil no futuro. Até lá, Black Lyne continuará como era com Robert de Kelso, terras que separam três famílias, na posse de um homem fiel a uma e casado com a filha de outra. Funcionou antes.
Deixemos que volte a funcionar.
Maccus ponderou e assentiu com a cabeça. Depois olhou para a porta, e franziu o sobrolho. – Falando de Robert… onde achais que ela foi buscar aquela ideia absurda de que ele podia ser pai dela?
– Não é assim tão absurda, uma vez que ela ainda era virgem quando ele morreu.
– Não mo digais. Não admira… Bom, Robert nunca teve muitas aventuras com mulheres. Um bom amigo, mas não um daqueles que iam aos prostíbulos e lugares que tais quando éramos novos…
Maldição! As terras dotais. Se ele nunca…

– Muito poucos o sabem, e todos temos as nossas razões para guardar silêncio – aplacou Ian. – Eu gostaria que deixásseis as pessoas saber da vossa relação com Reyna. Ela não será julgada pela morte de Robert, mas muitos ainda suspeitam dela. Também é improvável que o verdadeiro assassino alguma vez enfrente a justiça. Se se souber que ela é vossa neta, terminarão os sussurros.
Ian despediu-se de Maccus e foi procurar Reyna. Encontrou-a, mais John, num quarto, despejando para a lareira a palha de um colchão.
– Há mais de um mês que não havia aqui mulheres ou criados –
resmungou Reyna. – A torre está nojenta, a palha pejada de insetos.
– Tirai-me esta armadura, John. Há dias que vivo dentro dela.
Reyna encontrara uma vassoura e começou a varrer, enquanto malha e placas retiniam no chão. Ian observava o seu pequeno corpo mexer-se nas suas lides, dobrando-se e esticando-se, enquanto ela resmungava acerca dos homens que viviam em condições daquelas. Tinha o vestido sujo por ter estado na cripta e o cabelo solto e emaranhado, mas ele achou que ela estava simplesmente maravilhosa.
– Morvan está à minha procura, John?
– Não. Organiza os soldados, e Sir David regateia provisões com os mercadores como um intendente. Os cavaleiros de Maccus tiveram de deixar cavalos e armaduras, e a nossa companhia ficou com alguns, por isso estão satisfeitos, embora Morvan planeie pagar-lhes e dispensá-los em breve. Não é preciso dois mil para manter um castelo depois de ele ser tomado.
Ian lembrou-se de que devia falar com certos membros da companhia para ver se quereriam ficar em Black Lyne, mas sem desviar nunca o olhar de Reyna. – Há criados por aí, John?
– Alguns, não muitos – disse o escudeiro enquanto inspecionava uma peça de metal que acabava de retirar. Ian desejou que ele se despachasse e retirasse certas outras partes que subitamente se haviam tornado muito desconfortáveis.
John olhou de soslaio para Reyna. – Ela quer que eu encontre palha limpa para o colchão. Como se eu fosse um comum…
– Penso que é uma excelente ideia. Mas primeiro ide buscar alguns homens e trazei um banho.
– Um banho! Vai haver um festim, e há um castelo inteiro a ser explorado, e vós quereis que eu…
– Um banho. E depois o colchão, John.
O semblante de John tornou-se ainda mais carrancudo, e subitamente desapareceu. Olhou de relance para Reyna e corou. –
Ah! – Os seus dedos começaram a tratar mais rapidamente das correias e fivelas. Acabou mesmo quando Reyna empurrava o pó e a terra para a lareira. – Vou tratar do banho agora – balbuciou, saindo a correr e fechando a porta.
Ian dirigiu-se a Reyna, pegou-lhe na vassoura e pô-la de lado. –
Como vos encontrais? Deve ser estranho passar a vida inteira a pensar que somos uma pessoa e saber de repente que somos outra.
Ela franziu os lábios, pensativa. Ele resistiu ao impulso de os mordiscar. – É estranho, mas de uma forma curiosa. Como uma sombra que recebesse luz. Com efeito, sinto-me inusitadamente livre. Duncan nunca me amou, nem eu a ele, e é bom saber a razão.
E a minha mãe… de certa forma também é bom sabê-lo. Não me sinto de todo uma pessoa diferente, sinto apenas que conheço melhor a pessoa que sempre fui. – Ela pousou-lhe uma mão no peito. O coração dele subiu-lhe à garganta. – Pensais que as pessoas me falarão dele se eu perguntar? De James?
– Sim – conseguiu dizer, inclinando-se para lhe beijar a fronte enrugada. Aquele pequeno toque tirou-o de si. Chamou-a para um abraço, beijando-lhe com lábios febris a face, o pescoço, o seio, e soube que não conseguia esperar pelo banho e pelo colchão. –
Não me saístes da cabeça em momento algum, Reyna, dia e noite.
– Puxou-a mais para si, erguendo o corpo dela contra o seu, querendo ter contacto com cada centímetro dela. – Sois a luz que ilumina as minhas sombras, amor, e a necessidade que sinto de vós surpreende-me todas as vezes.
Ela soltou um pequeno arquejo quando as mãos dele se moveram numa carícia demorada, sentida, e depois disto ele não conseguiria dizer mais nenhuma palavra nem que a sua vida dependesse disso. Um desejo delicioso espalhou-se dentro dele como uma inundação, afogando todo o pensamento até só existirem os sentidos, ávidos e vivos, estimulados pelo odor, pelos sons e pelas mãos dela.
Ele encostou-a à parede, levantando-lhe a saia, ansioso pela sensação húmida da pele dela, desesperado por lhe tocar o corpo mas logo arrasado pelo seu calor quando o fez, sabendo imediatamente que nem sequer por isso ele conseguiria esperar. Já sem pensar, pôs-lhe as pernas à volta das ancas e tomou-a ali, com a cabeça enterrada no seu seio, as mãos agarrando-lhe as nádegas, ouvindo a melodia dos seus gemidos suaves, grato pela sua paixão rápida, pois ele não teria conseguido comedimento algum.
Ela arqueou-se contra ele num pequeno grito ao senti-lo finalizar, deixando a cabeça cair no seu ombro. O domínio de si regressou e com ele a consciência do que acabava de fazer.
– Peço desculpa, Reyna – murmurou, apertando-a contra si, amaldiçoando-se, temendo que as pedras lhe tivessem magoado as costas. – Não era minha intenção… quando falei da minha necessidade de vós, não era… mas há muito tempo que…
A mão dela foi até aos lábios dele e silenciou-o. – Que mulher não ficaria lisonjeada? E se passou tanto tempo, sinto-me honrada.
Ele pousou-a e conseguiu compor-lhes as roupas sem a largar. –
Honrada? Deverei sentir-me honrado se me fordes fiel, Reyna? É o que espero. Se fosseis ter com outro homem, eu pensaria que o amáveis e que a melhor parte da minha vida tinha morrido.
– Sim, mas… pensei…
– Sei o que pensastes e tínheis bons motivos para tal. – A sua expressão surpresa, esperançosa, doeu-lhe no fundo da alma. –
Poderia ter satisfação com uma pega qualquer depois de vós?
Contentar-me com um prazer básico? É diferente connosco, tem sido desde o início. Até quando eu ajo como um rapaz desajeitado, como acabo de fazer. Não, mulher, vós sois minha e eu sou vosso, e não haverá outros enquanto o nosso amor viver.
– Mas então será para sempre, Ian – disse ela, como não houvesse como duvidar da eternidade do seu amor. Deus, mas ele rezava para que assim fosse. Ela não conhecia de facto o homem a quem tão inocentemente oferecia o seu amor. E parecia uma coisa tão frágil, esta preciosa euforia que saturava todo o seu ser. Ele não se atrevia a arriscar a sua destruição e, contudo, também o fazia querer abrir o coração com ela, para que a graça dela absorvesse o pior dos seus pecados. Não agora. Não ainda. Que possa durar.
– Sim – disse ele. – O Senhor das Mil Noites retirou-se para sempre do campo. Lá se vai a minha oportunidade de fama imortal.
Ficaram abraçados até o banho chegar. Ele levou-a consigo, embalando-a no seu colo enquanto a lavava, o seu olhar e beijos dando substância às memórias que o haviam sustido e atormentado.
Quando emergiram, ele deparou com o colchão fresco à porta do quarto e levou-a para a cama. Fez amor com ela da maneira que planeara, amando e exaltando cada parte dela, acariciando-a sem a largar muito depois de esgotada a paixão de ambos.
– Encontrareis contentamento aqui na Escócia, Ian? Será muito entediante depois da vida que tivestes – disse ela, brincando com o cabelo dele.
– Um tédio venturoso, espero. Nunca mais serei capaz de ver a guerra como um desporto. Além disso, iremos de vez em quando a Londres. Logo que possamos, com efeito, quando Christiana estiver em casa. Ela fez-me prometer levar-vos. – Fez uma pausa.
– Podeis ficar com ela enquanto eu regresso a Guilford. Penso voltar lá. – Virou-se de lado. – Não posso levar-vos comigo antes de visitar o meu irmão e a sua mulher, e ver como sou recebido.
– A mulher dele não gostaria de ver o irmão do marido?
– Certamente que não gostará, mas são os sentimentos do meu irmão que devo conhecer.
Ele parecia tão sério, a contemplar a possibilidade daquele encontro. Christiana dissera que ele não podia regressar a casa.
– O que se interpõe entre vós e o vosso irmão?
Ele voltou os olhos para ela, e o seu olhar acentuou-se com uma intensidade que parecia raiva. Voltei a fazê-lo, pensou ela, pesarosa, desviando o olhar.
A mão de Ian voltou-lhe o rosto novamente para si. – Podeis amar-me sem saber disso? Amar o homem que conheceis e esquecer o resto?

– O meu amor não começa numa parte de vós e acaba noutra, Ian. O que quer que seja que tenhais enterrado dentro de vós, continuo a amar-vos. Não faleis sobre isso se não escolherdes fazê-lo, mas não por medo de que mate o que sinto. Não há condições no meu amor. É vosso, tal como a minha amizade.
Os lábios dele apartaram-se como se fosse falar. Quando não o fez, ela sentiu desilusão por ele não confiar que ela compreendesse.
Bem, ela aceitaria quanto ele conseguisse dar-lhe, e se ele nunca falasse deste passado que escondia, então que assim fosse.
Ele pousou a cabeça no seio dela, fazendo daquele abraço mais dela do que dele, e ela percebeu que, ali aninhado, o conflito que o dominava se apaziguava. Ele não descansara muito na última semana e ela sabia que ele dormiria profundamente.
Antes de se deixar ir, ele beijou-lhe preguiçosamente a face. –
Sinto que me esqueci de algo. Ah! lembro-me agora. Cabia-me punir-vos pela vossa desobediência.
A consciência emergiu lentamente, mal transpondo aquela paz deliciosa. Chegaram-lhe sons subtis, e depois a constatação de que Reyna não estava a seu lado. Fez menção de procurar por ela, e descobriu que o seu braço não se movia.
Acordou sobressaltado e atirou um olhar fulminante para o braço recalcitrante. Uma corda prendia-o à cabeceira. Voltou-se, perplexo, e viu a outra mão atada do mesmo modo, e baixou o olhar para ver os tornozelos igualmente presos. Estava amarrado, nu, de braços e pernas estendidos, como um sacrifício humano.
Abanou todos os membros num desafio violento. A cama rangeu e bateu com a força.

– Estão bem presos – disse uma voz calma. – Não se soltarão.
Ele voltou-se, num estado de fúria. Reyna encontrava-se a vários passos da cama, envergando uma túnica demasiado grande e comprida que lhe flutuava dos ombros. Algo que desencantara num dos outros quartos, adivinhou.
– Desamarrai-me. Isto é muito inoportuno.
– Não, ainda não. Não durante bastante tempo, acho eu.
– Reyna…
– É apenas o que me haveis feito, Ian. Pensei que pudésseis gostar de o experimentar vós próprio. Como vos sentis, amor?
Indefeso? À minha mercê?
Era exatamente assim que se sentia, maldição. – Reyna, ordeno-vos que desamarreis estas cordas. Porque fizestes isto, para começar?
– Falastes em punir-me.
– Céus, Reyna, apenas gracejava.
– Fico aliviada em ouvi-lo, mas também um pouco desapontada.
Era um estratagema tão bom. Para vos tirar essa ideia.
– Não tendes necessidade de estratagema nenhum. Eu nunca…
– Ainda assim, subitamente o estratagema tem o seu próprio encanto. Talvez deva levá-lo até ao fim.
– Desatai estas cordas, raios, ou precisareis mesmo de um estratagema para me tirar ideias quando me libertar. – Voltou a puxar as cordas com força.
Ela sorriu docemente enquanto a cama saltava e gemia. – Tive horas para os fazer; não se soltarão. – Aproximou-se, suave, e percorreu-o com o olhar. – Realmente tendes um corpo magnífico.
– Passou-lhe um dedo lânguido pelo meio do peito.
Ele cessou a luta e olhou-a nos olhos. O seu corpo inteiro reagiu ao que lá viu. Sorriu o seu melhor sorriso. – Desamarrai as cordas e vinde deitar-vos comigo, amor.
Ela pegou na túnica flutuante e subiu para a cama, com os pés em torno das ancas dele. – Não me parece. Gosto de vós assim. –
Começou a desapertar os laços na frente da túnica. – Surpreende-me o excitante que é. Quero dizer, vós sois tão grande, e eu sou tão pequena.
Muitíssimo devagar, fez a veste deslizar-lhe pelos ombros e pelo corpo inteiro. O tecido agitou-se aos pés dela, roçando a pele dele como uma carícia quando ela o afastou com o pé. Ela baixou os olhos e sorriu. – Vós também pareceis gostar.
Ele gostava tanto que tinha o maxilar cerrado. Por baixo da túnica, ela não estava nua, antes tinha um justilho de pele, uma peça de rapaz um nada demasiado pequena para a sua forma de mulher.
Também amarrava na frente. Os lados estavam separados e apenas cobriam parte de seios que espreitavam através das tiras de couro.
O fundo mal lhe tapava as ancas. O efeito era inacreditavelmente erótico.
– Foi um estratagema maravilhoso, querida. Estou completamente desconcertado.
– Mas mal comecei, Ian. – Ela avançou, um pequeno pé de cada lado até ele a ver toda, e às sugestivas sombras por baixo da orla do justilho. – Retirou uma pena de faisão de dentro deste. –
Deveria ser de pavão, mas claro que aqui não as há. Tereis de imaginar.
Ela curvou-se e começou a acariciar-lhe o corpo. – Oh, pareceis gostar mesmo disto, Ian. – Dirigiu a pena para a prova evidente da excitação dele.
A deliciosa tortura provocou cada centímetro da sua pele.

Uma paixão furiosa fê-lo voltar a puxar violentamente pelas cordas. – Quero que me desamarreis agora.
– Céus, pareceis irritado. Vendo bem, penso que será melhor eu continuar. Parece que afinal preciso deste estratagema. – Baixou-se e ajoelhou-se entre os pés dele. – Além do mais, o que vós quereis não é assim tão importante por agora. Só o que eu quero.
– E o que é isso?
As mãos dela acariciaram-lhe as pernas, para baixo e para cima, enquanto ela o examinava. – Quero olhar para vós enquanto o prazer se avoluma. Quero ver o vosso corpo tremer e implorar o alívio. Quero ouvir os vossos gritos de anseio.
Ele não conseguia acreditar no desejo intenso que as palavras dela provocavam. Pensou que o seu corpo se ia partir ao meio.
Vendo bem, ela conseguira inverter incrivelmente a situação. Afinal, tratavam-se das palavras dele.
– Fazei o vosso pior, mulher, mas lembrai-vos que ides acabar por ter de me libertar, e aí eu planeio reequilibrar a balança.
– Espero deveras que o façais. Mas agora, deitai-vos e submetei-vos, Ian. Isto pode demorar um bocado. Só completei os dois primeiros passos. – Inclinou-se e começou a acariciá-lo com os lábios e a língua tal como a pena havia feito, subindo-lhe lentamente pelas pernas. Muito lentamente.
Ele contemplava aquela progressão vagarosa enquanto o seu corpo tanto bradava pela finalização como se comprazia com a demora. Os beijos e a língua dela chegaram-lhe aos joelhos. As suas nádegas erguidas espreitavam do justilho de couro. – E
quantos passos há?
– Seis – murmurou ela, subindo, subindo. Ia matá-lo. – Na verdade, oito, quando feito à maneira sarracena, mas David recusou-se a falar dos últimos dois a Christiana.
Ele mal a ouvia. A boca dela estava-lhe nas coxas agora e cada fibra dele aguardava e esperava e ansiava. Ela ergueu-se sobre um braço e o seu cabelo tapou-lhe a vista como uma cortina, mas ele retesou o corpo todo quando o dedo dela lhe subiu pelo falo com uma carícia e desenhou um círculo. – É isto que quereis, amor? –
perguntou ela. – É?
– Não.
– Ah, então talvez isto. – Atirou a perna por cima dele, e encavalitou-se nele, de quatro, virada para baixo, o seu odor de mulher a centímetros dele.
– Mexei-vos para trás – instruiu ele.
A respiração dela roçava nele, criando uma agonia de expectativa. – Ainda não. Dizei-me que mais quereis, Ian.
Os músculos dele contraíram-se numa rebelião final antes de sucumbirem, impotentes, ao prazer e ao controlo. Soprou um pedido estrangulado e os lábios dela substituíram-se aos dedos.
Então, toda a resistência e todo o pensamento se toldaram, exceto uma vaga curiosidade quanto ao que poderiam ser os últimos passos.

CAPÍTULO 25


As últimas flores enchiam o jardim de uma profusão de cores e cheiros. A beleza caótica inundava os sentidos de Ian. Ao seu lado no banco de pedra, estava um cesto. Duas rosas espreitavam sobre a orla, as suas pétalas destinadas a algum prato que Reyna planeava cozinhar para a refeição do meio-dia.
Interrogava-se quanto tempo ela estaria fora na peregrinação que fizera naquele dia. Concordara em deixá-la visitar as velhas ruínas sozinha, mas não sem apreensão. Compreendia a sua necessidade de confrontar as memórias enterradas nas pedras escuras do velho castelo, mas quisera ir com ela, não fosse o terror não ter sido vencido tão completamente quanto ela esperava.
Aguardaria que o sol se movesse um pouco mais antes de ir atrás dela. O mais certo era encontrarem-se quando ela estivesse a regressar, mas se ela tivesse sucumbido à escuridão, ele encontrá-
la-ia antes do pior.
Tentou novamente distrair-se da sua preocupação revendo os planos para Black Lyne. O confronto de Reyna com Aymer implicava que os Graham seriam para sempre uma lança apontada às fronteiras oeste destas terras. A ideia de enfrentar Aymer não o inquietava. Ansiava pelo dia em que se fizesse alguma justiça em prol de Reyna e Robert. Mas queria a sua família e a sua gente seguros quando chegasse aquela guerra privada, e tencionava melhorar as fortificações nos anos vindouros.
A sua família e a sua gente. Ainda uma frase estranha, mas agradável. Ele ansiava por aquela família. Os filhos que ele educaria para serem fortes e verdadeiros cavaleiros. As filhas… riu para si próprio. As filhas que provavelmente trancaria para as proteger de homens como Ian de Guilford.
Alisou a terra com a bota e meditou sobre a decisão que tomara na noite anterior. Era necessário construir uma segunda muralha para o castelo no sopé da colina.
Tentou visualizar a fortificação completa e como a afetaria a mudança de sítio do rio. Espetou o pau no chão. Desenhá-la-ia como David desenhara Harclow para ver se dava substância às imagens. O pau arranhou. Aqui o rio, ali a torre quadrada na sua colina circular. Aqui o baldio íngreme e mais abaixo o velho castelo.
Agora, para mover o rio…
Parou abruptamente de desenhar. Erguendo-se, deu um passo para colocar os pés por baixo dos círculos da velha fortaleza.
Olhou atentamente para o desenho do quadrado e círculos e linhas curvas.
Quase duplicava exatamente o desenho pequenino da tira de pergaminho que vira no livro de horas de Reyna.
Faltava alguma coisa, mas não conseguia lembrar-se do que era.
Saiu do jardim, matutando no porquê de alguém desenhar um mapa de Black Lyne e suas terras como se vistas pelos olhos de um pássaro.
Encontrou o pequeno livro de horas na prateleira do quarto principal. Folheando as páginas de devoções e imagens, encontrou a tira de pergaminho. Ainda lhe parecia uma coisa desenhada por um astrólogo.
Percebeu o que o seu mapa não incluíra. Duas linhas retas bissetavam o velho castelo, formando uma cruz.
Examinou o traço ténue e irregular das linhas. Um livro de horas era o tipo de livro que se tinha perto dos mortos, para se lerem orações conhecidas para os reconfortar. Se Robert de Kelso havia desenhado aquilo, o que era tão importante ao ponto de ele utilizar as suas últimas forças para o fazer?
Voltou a colocar o livro na prateleira, mas enfiou o pequeno mapa na manga. Era mais um mistério deixado pelo bom Robert, e de resolução tão improvável como os outros.
Saiu da torre e subiu até às ameias, depois deu a volta para sul, de onde conseguia ver o velho castelo à distância. Semicerrou os olhos e procurou em vão sinais do regresso de Reyna. Esperaria apenas mais um bocadinho e depois partiria em busca dela.
O seu olhar recaiu no cemitério, e na cruz que, ao centro, marcava a campa de Robert. Lembrou-se de estar aqui de pé, a sua fúria a avolumar-se ao imaginar Reyna com Edmund. Aqueles ciúmes pareceram-lhe distantes e infantis, e ele sabia que não voltaria a sentir nada semelhante. Não voltaria a duvidar dela dessa forma, ainda que cem Edmunds por ali passassem para discutir filosofia.
Nem voltaria a ressentir-se das memórias que ela tinha do homem enterrado por baixo daquela cruz. Robert havia-se tornado uma espécie de amigo. Não tinham eles chegado aqui ambos da mesma maneira, desligados da família e do passado, apenas para ficar e construir vidas novas? Ele não era nenhum Robert de Kelso, claro que não, mas, estranhamente, dava por si a seguir os passos daquele homem. Sorriu com a ironia, pois havia sido a semelhança mais óbvia de Edmund com Robert que alimentara o seu tormento naquela noite.
Fez menção de sair dali e depois estacou, suspenso no tempo.
Ideias dispersas acicatavam-lhe a mente em uníssono, setas de numerosas aljavas de memórias que de uma só vez vinham na sua direção. Cravou os olhos na cruz enquanto absorvia aquela investida, surpreso e irritado por não ter reparado em explicações tão óbvias.
Caminhou lentamente para as escadas, cogitando sobre o que acabava de lhe ocorrer. Devia ter razão, e pensava saber como se certificar. Encontraria a prova e depois diria a Reyna o que havia descoberto. Não era um grande mistério, mas ela ficaria contente por saber a verdade, especialmente neste dia, em que reunira toda a sua coragem para enfrentar o que chamava de «tudo aquilo».
Os netos de Alice brincavam no pátio e ele chamou-os. – Vinde comigo. Preciso de corpos pequenos e fortes, e vocês parecem-me o ideal.
Adam e Peter saltitaram ao seu lado até à torre. No salão pegou num archote e subiram até ao quarto principal.
Ian passou a tocha para a mão de Adam e curvou-se para empurrar as pedras que abriam a parede, revelando a escadaria secreta. Devia tê-lo feito há um mês, mas presumiu apenas… bem presumira apenas que era exatamente o que era. – Descei e ficai a dois degraus para nos alumiardes – ordenou ao portador do archote.
A luz desceu e desapareceu na parede, e Ian foi atrás, levando Peter. Virou o pequeno rapaz para o nicho. – Vou levantar-vos e quero que gatinheis lá para dentro e vejais o que lá está. Devo avisar-vos que pode haver aranhas enormes.

A ideia de arrostar aranhas enormes deixou Peter deliciado. Ian ergueu-o até ao início do nicho profundo e depois pegou na tocha para elevar a luz. O traseiro e as pernas de Peter começaram a afastar-se. Logo, só um pequeno pé estava ao alcance.
– O que está aí?
– Montes de teias de aranha e bichos gordos. Quem dera que me tivésseis deixado trazer um saco. Não me parece justo que o Adam perca a melhor parte.
– Além dos bichos, lá atrás, não há uma armadura e um pano?
– Sim.
– Conseguis trazer o pano sem o rasgar muito?
– Está a desfazer-se. E cheira muito mal também. Para que quereis isto?
– Dai-mo. – O traseiro moveu-se um nada para trás e uma mão segurando o pano esfarrapado esticou-se. Ian pegou-lhe, devolveu o archote a Adam, e depois ajudou Peter, muito sujo, a sair do nicho.
De volta ao quarto, os rapazes aguardavam expectantes para saber a natureza do tesouro escondido. Ian não teve coragem para os mandar embora, por isso estava com um de cada lado enquanto desembrulhava cuidadosamente o pano imundo e o abria sobre a cadeira.
– É só um manto de armadura – concluiu Adam, desapontado.
Ian limpou mentalmente o pó e o bolor da veste, e preencheu as partes que o tempo consumira. Este trapo explicava muita coisa.
Peter traçou as linhas cruzadas onde o tecido escuro se encontrava com a luz, no centro. – Parece parte de uma cruz. E isto podia ser vermelho, e isto branco. É o manto de um cruzado.
– Algo assim – avançou uma nova voz.

Ian virou-se e deparou com Andrew Armstrong parado perto da porta.
– Sem dúvida que algum Fitzwaryn o deixou ali há muito tempo
– acrescentou Andrew.
Os rapazes começaram a imaginar o guerreiro antigo, especulando sobre as batalhas que ele havia lutado contra os sarracenos.
Ian sorriu, contando que o cerco de Antioquia povoasse o pátio durante os dias seguintes. – Agora ide ver se a vossa avó ou algum moço precisa de vós para alguma tarefa – disse ele.
Saíram os dois a correr, enchendo o corredor de gritos. Ian e Andrew olhavam um para o outro em silêncio.
– Vós sabíeis – disse Ian.
– Eu era escudeiro dele, quando cá chegou. Não um escudeiro muito bom, mas ele compreendeu que não era a minha natureza, e atendeu a que os outros não troçassem muito de mim. Ambos sabíamos que eu nunca receberia as minhas esporas, por isso convenceu Maccus de que o meu valor residia noutro lado. Acabei por me tornar intendente cá e depois deram-lhe as terras e eu voltei a servi-lo.
– Como soubestes?
Andrew indicou o manto. – Encontrei-o por engano. Um dia, ainda eu era escudeiro dele, decidi limpar a armadura velha que ele tinha em algumas sacas, apesar de ele não ir usá-la novamente. Isso estava junto. Reconheci-o. Qualquer pessoa o teria reconhecido naquela altura. Perguntei-lhe por ele. Ele era um homem bom e eu jurei nunca falar no assunto. A essa altura já sabia alguma coisa acerca de segredos que alguns homens devem manter. Ele sabia os meus e eu sabia os dele, e nenhum de nós julgava.

Ian mexeu no pano vermelho e branco meio desfeito. – Cruz vermelha em fundo branco, o inverso das cores dos cruzados. O
manto de um templário. Escocês?
– Não, não me parece. Ele tinha estado no Oriente enquanto rapaz. Escocês de nascimento, estou certo, mas não viveu lá durante muitos anos e ainda era jovem quando regressou. – Olhou para onde os dedos de Ian repousavam. – O francês dele era impecável.
Ian fez alguns cálculos. – Um dos últimos a serem armados, diria. Talvez o último a morrer.
– Não há necessidade de ninguém saber.
– Ele está morto. Agora não há perigo.
– Ainda assim…
– Reyna precisa de saber. Outros que não ela, talvez não. Se ele escolheu manter segredo enquanto viveu, podemos deixá-lo enterrado com ele.
Andrew meneou a cabeça com gratidão. Fez menção de sair, mas deteve-se. – Nos primeiros anos dele aqui, tive sempre a impressão de que ele aguardava alguma coisa. Mantinha uma distância subtil dos outros e não fez amizades próximas. Nem mesmo com Maccus mostrava tudo.
– Pode ter sido apenas o próprio segredo. Esconder um passado tem o condão de isolar um homem – disse Ian, constatando que ele e Robert tinham ainda mais em comum do que ele pensara.
– Talvez. E, contudo, com o passar dos anos, ele mudou, como se soubesse que aquilo nunca viria, fosse o que fosse. Como se soubesse que estava aqui para ficar. – Encolheu os ombros e caminhou para a porta. – Não é um segredo assim tão mau. Não há pecado nele. Sempre pensei que ele devia dizer a Reyna, pelo menos. Uma vez disse que o faria, que ela precisaria de saber.
Ian dobrou o manto cuidadosamente. Guardou-o num dos seus próprios baús e depois foi até aos livros para investigar mais uma ponta de seta que lhe assomara à memória.
Pouco depois havia feito dois montes, um alto, com os Evangelhos e Aquino e Bernardo, o outro muito mais pequeno e pobre, com o herbário e alguns tratados seculares.
Voltou-se para sair, mas deteve-se. Pegando no livro de horas que estava em cima do monte grande, abriu-o e rasgou-lhe a primeira página, colocando-o depois no monte com o herbário.

CAPÍTULO 26


Reyna estava sentada no chão, encostada à pedra que ela e Ian haviam partilhado no dia em que ela escapou de Aymer, sentindo-lhe o calor nas costas, pensando que devia mesmo acabar com isto antes de Ian começar a preocupar-se e vir atrás dela.
Olhou novamente para o lintel que encimava a antiga entrada para as fundações da torre. Sim, acontecera aqui. Agora tinha a certeza. Parecia, porém, diferente, e não muito ameaçador, possivelmente porque olhava deste ângulo e não como alguém que vinha de lá do fundo, da escuridão.
As memórias e cenas tinham-lhe chegado com clareza, quase demasiada clareza, depois de ela saber o que procurava. Não numa sequência perfeita, mas como lampejos de imagens, sons e emoções.
Dois corpos, não um, mas ela mal vira o segundo depois do horror do primeiro. Duncan a praguejar e a gritar que alguém a levasse de lá. Braços fortes a agarrá-la, arrastando-a de volta à escuridão. Uma mão a tapar-lhe os olhos quando voltaram a trazê-
la para o exterior e desceram a colina com ela.
Esquecera imediatamente? Quando começara a acreditar que a mãe vivia naquela abadia? A sua infância inteira havia-se tornado uma mancha indistinta, a não ser durante aqueles pesadelos e terrores. Se não fosse isso, a sua vida poderia muito bem ter começado no dia em que Robert a encontrou na cripta.
Levantou-se e sacudiu o vestido. Já havia dito as suas orações por aquela pobre mulher cuja infelicidade terminara aqui. Tê-la-ia Duncan obrigado a ver o amante morrer primeiro? Os gritos distantes do seu pesadelo sugeriam que sim.
Aproximou-se do lintel. Um nó retorcia-se no seu estômago. A escuridão não a assustara durante as duas semanas após regressarem de Harclow, mas também a presença tranquilizadora de Ian havia sido quase uma constante. Isto seria diferente. E não se tratava de um corredor, de um quarto ou sequer da cripta, mas do lugar onde tudo começara.
Entrou nas velhas fundações e avançou decidida, com bravura, até a última luz desaparecer e se ver confrontada com a escuridão.
Tinha suor nas palmas das mãos e o coração a bater acelerado, mas o pavor desconcertante permaneceu ao largo. Tateando a parede de pedra, avançou até deparar com uma pequena curva e a entrada desaparecer atrás dela.
E aí parou aterrorizada.
Murmúrios vinham na sua direção, saídos das pedras, através da escuridão… Um riso sumido… A sua mão sobre a pedra sentia os sons tão seguramente quanto o seu espírito os ouvia ecoar silenciosamente ao seu redor.
Não, gritou para dentro, baixando a mão e andando às voltas para as confrontar. Acabou. Já chega!
Preparou-se para correr, mas o choque havia-a desorientado.
Esticou o braço às cegas, procurando a parede, mas a sua mão encontrava apenas escuridão. Aos tropeções, com o pânico a avolumar-se, debatia-se para respirar e rezou que fosse aquela a direção da entrada. De repente, estava estatelada no chão, com o rosto contra a pedra, o corpo dobrado numa posição estranha.
O impacto despertou-a. Tateou à sua volta e compreendeu que caíra num buraco da profundidade de meio homem. A mão bateu num monte de terra e uma pilha de pedras.
As pedras ainda lhe falavam. Não, não as pedras. O som não vinha delas. Os murmúrios sussurrantes estavam mais à frente, mais altos agora do que antes. Dentro dela, alívio. Ian devia ter chegado, trazendo alguém com ele.
Rastejou para fora do buraco e começou a dirigir-se para as vozes. Um pé embateu noutro monte de terra. Desviou-se para a esquerda até encontrar a parede e, encostando-se a ela, avançou lenta e cuidadosa.
Passado um pouco, viu um fiapo de luz. Não fazia sentido. Se ela regressava para a entrada, como podia não bater nos obstáculos que encontrara na vinda?
A passagem fazia uma pequena curva e, subitamente, a luz fez-se mais forte. Uma sombra enorme mexeu-se lá à frente e o susto deixou-a sem fôlego.
Outra sombra mexeu-se, adquirindo forma humana, e olhou diretamente para ela. Ficou tensa e arremessou um braço. –
Apanhai-a.
Pareceu uma ameaça, apesar de não fazer sentido. Ainda assim, ela deu meia-volta e começou a correr.
Passos pesados seguiam no seu encalço. Braços grandes agarraram-na, pegaram nela e levaram-na para a luz. Por fim, deu por si a ser sentada numa pedra grande entre dois archotes.
A passagem alargava-se mais aqui e, confusa, olhou ao seu redor. Lajes de pedra haviam sido movidas e covas não muito profundas haviam sido escavadas. No chão, cruzavam-se pegas de picaretas e pás. Contra uma parede repousavam cobertores enrolados e sacos de couro.
Ergueu os olhos para o peito largo e nu que pairava acima dela, e depois para o rosto preocupado, marcado, de Reginald.
– O que fazeis aqui, Reyna? Robert disse que vós temíeis o escuro – disse uma voz suave. Edmund colocou-se ao lado de Reginald. O archote converteu-lhe o cabelo num halo de fogo.
Edmund também estava despido até à cintura, e o suor reluzia-lhe no corpo.
– O que fazeis vós aqui? Porque escavais? Há quanto tempo aqui estais?
Edmund acomodou-se na pedra ao lado dela. – Tempo de mais.
Está a tornar-se incomodativo e aborrecido, mas devemos terminar em breve. – Ele olhou-a com curiosidade. – Talvez tenha sido bom terdes vindo. Robert tentou dizer-vos, no fim. Reginald ouviu-o falar uma noite, sem saber que vós lá não estáveis. Ouviu o suficiente antes de ele parar, por isso sabemos que está aqui.
Porque não nos dizeis o resto, Reyna, e poupais a todos mais trabalhos? Por esta altura, até estou disponível para partilhar.
– Falais por enigmas – disse ela exasperada, pondo-se em pé. –
É melhor que partais imediatamente, Edmund. Jurastes levar Reginald embora, e se Ian descobre…
Ele voltou a fazê-la sentar-se com um puxão brusco. – Ele está convosco? O vosso cavaleiro inglês também veio?
Ela não gostou do tom ameaçador. Os dedos dele enterraram-se no braço dela. – Não, ele não está aqui. – Mas viria. Ele não quisera que ela fizesse isto sozinha e não aguardaria muito tempo pelo seu regresso.
Edmund olhou para Reginald e indicou a passagem com a cabeça. Pegando num machado de guerra encostado a uma pedra, Reginald entrou desajeitadamente na escuridão.
– O que vai ele fazer? – perguntou Reyna.
– Irá certificar-se de que falais verdade, ou desembaraçar-se de Ian se não o houverdes feito. – Soltou-lhe o braço e desviou o olhar, os olhos semicerrando-se pensativamente, a boca um sulco vermelho. A luz flamante urdia-lhe sombras nas faces e nos olhos.
Ele parecia-lhe muito diferente da forma como o lembrava, e não era só pela luz.
– Para quê estes buracos?
Ele sorriu daquele seu jeito doce mas superior. – Um tesouro.
Por que outra razão viveriam dois homens semanas a fio nas entranhas desta torre? Robert pô-lo aqui. Escondeu-o quando regressou de França, e depois transferiu-o para aqui depois de vos desposar. Ele disse-vos, não disse? Quando estava doente, antes de morrer. Queria que o levásseis ao bispo, como ele planeara fazer. Reginald leu a carta que Robert enviou para Glasgow, compreendeis, por isso sabemos dessa parte.
– Oh, valham-nos todos os santos, Edmund. Não está aqui. Os livros estão onde sempre estiveram, no quarto principal. Era isso que ele queria dar ao bispo. São esses os objetos valiosos que ele trouxe de França.
A expressão estupefacta de Edmund manteve-se um instante, e depois o seu rosto transformou-se num sorriso trocista. – Livros?
Livros? Pensais que se trata daqueles livros? – Ele agarrou-lhe no rosto. – O que está enterrado aqui ultrapassa de longe aqueles poucos livros. É ouro, uma montanha dele, e joias. Riqueza que chegue para comprar centenas de livros.
Ele examinou-a, os olhos com uma expressão exaltada, os dedos apertando-lhe as faces. – Dizei-me o que ele disse, Reyna.
– Ele nunca me falou deste lugar, nem sequer quando estava a morrer. Mal estava consciente a maior parte dos dias.
As mãos dele deixaram-se cair. – Então já não tendes utilidade nenhuma para mim. – O seu tom de voz neutro arrepiou-lhe a pele do pescoço e fez-lhe o sangue pulsar freneticamente. – O que quer que vos tenha trazido aqui, foi obra do Diabo.
– O que dizeis? – perguntou ela, mas uma sensação mórbida espalhou-se dentro dela.
Ele ignorou-a. – E era um plano tão bom – murmurou. – Se Robert ao menos tivesse morrido durante o sono, como fazem a maioria dos velhos, e levado o segredo para a sepultura… se ele tivesse deixado as coisas como estavam, eu teria aguardado satisfeito. Depois vós teríeis vindo para norte e esta terra teria sido vossa e a seguir poderíamos ter procurado à nossa vontade. Mas ele tinha de escrever aquela maldita carta, e o vosso cavaleiro tinha de se casar convosco… bom, agora não há nada a fazer.
Ele pousou uma mão no joelho e deu-lhe pancadinhas na face com a outra. Aquela atitude tão descontraída provocou-lhe arrepios.
– Pensarei numa maneira que não vos faça sofrer, só que terá de parecer acidente ou obra de outra pessoa. Aymer, talvez. Sim, funcionaria. Reginald e eu vimos aquele cercozito ali de cima. Ainda bem que tínhamos saído para buscar mantimentos, mas também nenhum de vós entrou, de qualquer modo. Talvez possamos fazer crer que os Graham vos puniram por terdes casado com aquele inglês…

– Não – ribombou uma voz.
A figura ameaçadora de Reginald surgiu no limiar da luz. – Não lhe fareis mal. Dissestes que se eu fizesse isto ma daríeis.
Edmund pôs-se em pé com um suspiro exasperado. – Já vos expliquei isto mil vezes. Não podemos fazer como tínhamos pensado à partida, pois não? Não com Fitzwaryn a tomar posse das terras e ela casada com Ian.
– Mesmo assim. Jurei a Robert protegê-la.
– Raios, vós envenenastes o homem. Em comparação, repudiar o juramento que lhe fizestes é coisa menor.
Reyna ficou sem fôlego. Reginald? Não Aymer, mas o homem de confiança de Robert?
– Vós obrigastes-me – defendeu-se Reginald.
– Eu não vos obriguei a fazer nada. Vós queríei-la e ao ouro, e convencestes-vos de que ele estava velho e morreria de qualquer maneira. E depois nem sequer seguistes as minhas instruções com a poção corretamente, e todos ficaram a saber que ele tinha sido envenenado. – Edmund virou-se para Reyna como quem pede desculpa. – Teria sido rápido, juro-vos. Devia ter parecido uma morte natural. – Lançou um olhar cáustico ao irmão. – Pelo menos o idiota teve o tento de esconder o herbário quando as pessoas começaram a suspeitar de vós.
A indignação venceu o seu medo escabroso. – Vós fizestes isto?
– arrojou Reyna para Reginald. – Assassinastes o vosso suserano e amigo? Um homem que confiava em vós de forma absoluta?
– Ele era velho e teria morrido sem demora, de qualquer forma –
defendeu-se Reginald. – Mas vós não sois velha e não deixarei que isto aconteça.
Edmund atirou os braços para o alto. – Devemos deixá-la ir embora para dizer ao marido o que descobriu?
– Ela ficará connosco e…
– E ele pegará em cem homens e irá à procura dela. Quando o fizer, deixai-lo encontrá-la, mas incapaz de falar. Se quiserdes tomá-la antes de o fazermos, não me oporei.
Reginald hesitou, olhando para ela, e Reyna sentiu uma náusea.
Voltou a virar-se para o irmão, apertando mais o cabo do machado. – Não.
Um suspiro profundo saiu de Edmund. – Suponho que sei há algum tempo que poderíamos chegar a isto. – Afastou-se, para as sombras, e emergiu de espada na mão. – Pousai o machado, irmão.
Ide ao baldio onde os cavalos estão abrigados, pegai num e ide-vos. Estais fora disto agora e eu tratarei do que for preciso.
– Não posso.
– Não, da forma que vedes o mundo, suponho que não possais
– lamentou Edmund.
Investiu com a espada erguida.
Era um espaço pequeno, e o combate aproximou-se de Reyna enquanto eles arremetiam e golpeavam e contornavam as covas que se lhes atravessavam no caminho. Ela aninhou-se e encolheu-se contra a parede, forçando-se a ver para conseguir evitar alguma arma que rasasse demasiado perto. As pedras estavam tão frias quanto os seus membros, mas temia o fim da disputa, pois, quem quer que ganhasse, ela não estaria em segurança.
Por fim, a vontade de matar um irmão foi maior em Edmund do que em Reginald. Horrorizada, viu a espada lancinante derrubar o maior dos homens, a lâmina a perfurar o peito musculado. Em estado de choque, Reginald não tirou os olhos do irmão quando o seu corpo perdeu a força e caiu redondo no chão.

– Não tínheis de o matar – disse Reyna, quebrando o silêncio gélido que se seguiu.
– É culpa vossa. Por terdes vindo aqui. Devíeis ter ficado na cama do vosso cavaleiro hoje. Já convencera Reginald de que agora não podia ter-vos, não depois de ele ter ficado impaciente e ter arruinado a oportunidade de vos levar embora. Em Edimburgo haveria tempo para vos convencer da lógica disso, mas casada com Ian… Se não tivésseis vindo hoje… – Baixou os olhos para Reginald. – Sempre o avisei de que o seu sentido do dever seria a morte dele.
Assustou-a vê-lo tão desprovido de sentimento. Puxou os joelhos para si para fazer do corpo uma redoma. Edmund foi até ela e ela encolheu-se contra a parede.
Ele sorriu, condescendente. – Não, ainda não. Não aqui. Lá fora nas pedras grandes, penso eu, para o vosso cavaleiro vos encontrar facilmente. Não quero que venha cá dentro procurar.
– Talvez ele nem chegue a procurar. Ele foi forçado a casar-se comigo.
– Procurar-vos-á. Casamento forçado ou não, está bastante arrebatado com a sua noiva virgem.
Os olhos dela arregalaram-se.
Ele riu-se com a reação dela. – Mas claro que eu sabia, pequena Reyna.
– Robert disse-me que não havia dito a ninguém.
– Ele não me disse, mas eu sabia. Naquela primeira visita adivinhei o que ele era. Quem ele era. Soube com certeza depois de ver os livros.
– Os livros? Dissestes que procurais um tesouro, e não os livros.
Se vou morrer, pelo menos explicai-me isto. Que tesouro? Que ouro?
– Ouro templário – respondeu a voz de Ian.
O coração de Reyna saltou de alívio. Ian emergiu das sombras da passagem e a luz fosca iluminou-lhe a expressão dura do rosto.
– Ouro templário, do templo de Paris.
Edmund colocou-se no centro da galeria, entre duas covas, a mão branca no punho da espada.
– Tende cuidado, Ian. Ele acaba de matar Reginald, e também matou Robert.
– Não o matei. Reginald…
– Por instrução vossa, e tão seguramente como se lhe houvésseis enfiado um punhal no pescoço.
Ian desembainhou a espada. – Bom, Edmund, nunca lutei com um monge, mas a ideia não me incomoda nada. Sois um homem muito astuto se bastaram os livros para descobrirdes o segredo de Robert.
– Suspeitei muito antes. O tempo que passou no Oriente e em França. A sua aparição súbita aqui sem história prévia. Os livros apenas vieram confirmá-lo. Todos os precetores têm uma descrição das posses do templo de Paris que nunca foram reavidas.
O ouro e a biblioteca.
– Portanto, quando vistes aqueles tomos ricos marcados com a divisa J. M., não restaram dúvidas. A biblioteca de Jacques Molay, grão-mestre dos Templários. Porque não vos limitastes a confrontar Robert e reivindicar as posses para os Hospitalários?
Edmund riu. – E dá-las à minha ordem se ele as entregasse? Os monges de S. João já são ricos o bastante. Cabiam-me a mim.
Ficaram-me destinadas na noite em que os Templários as enviaram para aqui com aquele jovem cavaleiro.

– Eles não as mandaram para aqui para vós ou para os Hospitalários, e Robert sabia-o. Não é difícil compreender o que se passou há esses anos todos. Ele foi enviado para aguardar o fim da expurgação e que a ordem se renovasse. Mas isso nunca aconteceu, e Robert de Kelso deu por si com um tesouro que não pertencia a ninguém. Ele suspeitava que sabíeis quem ele era?
– Não, eu era cuidadoso, e ele também. Cuidadoso de mais, o que só me espicaçou a curiosidade. Nunca me falou dos Templários, ou fez perguntas. Todos os outros o fazem, tal como vós fizestes. Foi assim que soube que não havíeis adivinhado, apesar da virgindade da vossa mulher e da história vaga de Robert.
– Porque adivinharia eu? A ordem há muito que deixou de existir. Se não fosse a semelhança dele convosco, nunca me teria interrogado. – Ian indicou a passagem com um aceno. – Parti agora. Se fordes rápido, podeis estar no mar antes de eu falar dos vossos crimes ao bispo e ao vosso precetor. Dou-vos a oportunidade de saírdes daqui com vida.
A cabeça loura inclinou-se para trás e Edmund estudou Ian com olhos encobertos. O espírito de Reyna retraiu-se perante a frieza do mal que emanava do homem mais pequeno.
– Vós sabeis onde está – afirmou Edmund.
– Penso que estais enganado a respeito do ouro e que Robert nunca o teve. Ele teria considerado os livros tesouro suficiente para proteger – rebateu Ian.
– Mentis. Planeais ficar com ele para vós. Não espereis que vos deixe fazê-lo. Disse a Reyna que estou disposto a partilhar. Vamos depor as nossas espadas e tornar-nos parceiros nisto. Metade para cada.
Ian olhou para a figura inerte de Reginald. – Vejo como lidais com os vossos parceiros.
– O meu irmão precisou de alardear a honra dele muito depois de a ter abandonado, mas vós não vos iludis. Trabalharemos bem juntos, Ian. Com os outros pecados que temos na alma, o roubo deste ouro é pouca coisa.
As insinuações dele enfureceram Reyna. – Não presumais comparar-vos com ele, Edmund. Sois um assassino cruel, e…
– Não lhe dissestes – interrompeu Edmund, surpreendido. –
Pensastes escondê-la aqui e esperar que ela nunca descobrisse?
Os olhos de Ian queimavam. Edmund ostentava um sorriso irónico. – Devo dizer-lhe? Eu nunca trairia um parceiro, mas… –
deixou a oferta pairar no ar.
– Não há nada que possais dizer-me que faça alguma diferença
– disse Reyna, procurando a atenção de Ian, tentando dizer-lhe que, qualquer que fosse a decisão que tomasse a respeito de Edmund, não deveria dever-se a isto.
– Será que não? – Edmund ergueu uma sobrancelha na direção de Ian. – Será que não?
Ian não se mexeu nem falou, mas tinha os dentes cerrados como um homem que aguarda um soco. Olhava furiosamente para Edmund, mas o seu silêncio expressava a sua resposta.
Edmund abanou a cabeça. – Passastes do Céu para o Inferno na vossa escolha de marido, pequena Reyna. Soube deste por um dos seus próprios homens, um cavaleiro que temia que o meu interesse por vós fosse sensual e que tentou avisar-me explicando o quão perigoso o seu capitão podia ser. – Um maldoso sorriso de desprezo distorcia-lhe o rosto. – Condenais-me por causa de Robert e Reginald? Então o que direis a um homem que matou o próprio pai e se deitou com a própria mãe?

O choque deixou-a sem fôlego. Virou-se para Ian, à espera que o negasse. Uma expressão angustiada passou-lhe pelo rosto e ele recusou-se a devolver-lhe o olhar.
– Pelo menos eu cometi os meus pecados por um objetivo válido – prosseguiu Edmund.
– Um objetivo pelo qual valha a pena morrer, espero – disse Ian. – Deixai-nos, Reyna.
Edmund assumiu uma pose de combate. – Ela fica. Se ela se mexer, corto-a ao meio.
Os olhos de Ian lampejaram. – Então acabemos com isto, monge.
Reyna gritou ao vê-los partir para o confronto e os seus olhos seguiram cada golpe das espadas com um terror que a colava à pedra. A sua mente repetia, tranquilizadora, que Ian era forte e capaz, mas a determinação selvagem de Edmund redobrava-lhe o perigo.
Não acostumado à localização das covas, Ian estava em desvantagem, e tentava também manter a disputa longe da parede onde ela estava encolhida. Depois Edmund foi o primeiro a fazer sangue. Ian praguejou quando um fio vermelho lhe surgiu na túnica.
Ian libertou então todo o seu poder de guerreiro, o que transformou imediatamente o seu desempenho.
Ela nunca o vira lutar, nunca vira a destreza que lhe conferiam aqueles sentidos aguçados, mente incisiva e corpo ágil.
Metodicamente, implacavelmente, Ian parou cada golpe do febril Edmund. Quando Edmund tentou deslocar o combate para a parede dela, um golpe sibilante da arma de Ian roçou-lhe o antebraço, cortando-lhe rente um pedaço de pele. – Aproximai-vos dela e eu corto-vos em pedaços antes de morrerdes – rugiu Ian.

Ian teve várias oportunidades de acabar com o combate, mas recuou em todas elas, renunciando à investida que mataria o seu opositor. Por fim, dois golpes velozes incapacitaram o braço da espada de Edmund e uma perna. Edmund caiu ao lado de uma das covas, comprimindo os ferimentos com as mãos, com sangue a escorrer-lhe pelos dedos.
Ian estava de pé sobre ele, a luz do archote transformando-o num anjo vingador que defrontasse os condenados nas profundezas flamejantes do Inferno. A sua espada pairava alto, pronta a cortar a cabeça de Edmund.
Reyna olhava fixamente, com a pele húmida e pegajosa do pavor infernal que acabava de viver. Observou a decisão oscilar na expressão furiosa de Ian.
Se o fizerdes, fazei-o por Robert, e não pelo que ele me disse, incitou com o coração.
Rogando uma praga, Ian afastou a espada de Edmund com um pontapé e baixou a sua própria arma.
Dirigindo-se a ela, agarrou-lhe na beira da saia e rasgou-a. Com as tiras de pano, voltou para ligar os ferimentos de Edmund.
Depois, com corda que encontrou, atou as mãos e braços do homem.
Olhou para o monge surpreendido. – A tentação de vos matar e enterrar aqui é forte, mas deixarei o bispo tratar de vós. Não terei de explicar o desaparecimento de um hospitalário por estas bandas.
– Baixou-se e pegou numa pá. – E, sim, eu sei onde está. Que não terdes sido capaz de o encontrar seja o vosso inferno.
A boca de Reyna escancarou-se. Ian foi até ela e pegou-lhe no braço. – Cuidado com as covas – alertou ele enquanto a conduzia para a passagem.

– Como descobristes, Ian? – perguntou ela enquanto avançavam, incertos. – Robert, um templário. É demasiado fantástico.
– Tudo encaixa. Um voto de castidade que ele manteve em segredo. A chegada aqui cerca de cinco anos depois de Jacques Molay ser executado e poucos anos depois de a ordem ser dissolvida. Imagino que ele tenha ido primeiro para outros templos para se recolher, mas a ordem papal acabou por fechá-los a todos.
Por isso veio para cá e aguardou o momento de entregar o que havia guardado, mas chegou o dia em que ele soube que tal nunca aconteceria, e o tesouro tornou-se um fardo.
– Porque não limitar-se a dá-lo aos Hospitalários?
– O mais certo era Robert não querer que a Ordem de S. João ficasse com ele. Os Templários suspeitavam que os Hospitalários haviam encorajado a sua supressão para se enriquecerem a eles próprios.
Saíram para a luz do sol. Sob o lintel de pedra, Reyna pestanejou. Não estava ali nenhum fantasma pendurado.
– É verdade? Sabeis onde está?
Ele não olhou para ela. – Penso que sim. Descobriremos rapidamente se estou ou não certo. – Encostou a pá a uma pedra e tirou da manga uma tira de pergaminho. – Estava no vosso livro de horas. Penso que Robert teve alguns momentos de lucidez antes de morrer, e desenhou isto. Planeava dizer-vos o seu significado. Mas no dia em que tentou vós não estáveis lá, e Reginald ouviu em vossa vez.
Ela olhou para as linhas e círculos. – O que é?
– Um mapa. Não da forma como habitualmente se desenham, mas mais preciso à sua maneira. David fá-los assim. Vede, aqui está a colina onde nós estamos, e o quadrado é o castelo de Black Lyne. – Pegando no pedaço de pergaminho, deslocou-se até Black Lyne estar posicionado relativamente a eles como estava em relação à velha torre no mapa. – Ele precisaria de alguns marcos para mais tarde ele próprio saber onde estava. Esta pedra grande, talvez.
Parou em frente da pedra, caminhou até à beira da colina e espreitou para baixo. – Ali – apontou. – A depressão no fosso.
Estas linhas divisórias podem querer dizer que está onde elas se unem, nas ruínas, ou onde atravessam o círculo, no fosso. Edmund anulou a primeira possibilidade.
Pegando na pá, desceu a direito o declive da colina e Reyna apressou-se a ir atrás dele. Tendo verificado a sua posição relativamente à pedra e à torre, começou a cavar.
O buraco já ia bastante profundo quando a pá encontrou resistência. Ian desenterrou uma saca carcomida e içou-a. Pelos buracos, algo brilhava. Reyna ajudou-o a desatar o nó e a sua pulsação acelerou quando a saca se abriu. As suas mãos tremiam ao transferir para o chão o seu conteúdo.
Objetos. Objetos preciosos. Um cálice de outro cravado de pedras azuis, e dois pesados candelabros de ouro. Um tesouro, sem dúvida.
– Da capela – murmurou Ian.
O ouro refulgia à luz do sol. – Oh, Ian, são maravilhosos.
– Sim. E muito, muito valiosos. – Começou a caminhar de mãos nas ancas, pensativo. Ergueu os olhos para a torre, onde Edmund jazia amarrado. – Infernos!
– Ninguém sabe que o tesouro está aqui além dele e de nós –
disse ela. – Mas se quereis ficar com ele, tereis de lhe dar alguma coisa, ou ele dirá que veio aqui para o reivindicar para a sua ordem e que vós forjastes a história do assassinato de Robert.
– Não reivindicará nada se estiver morto.
– Não o matastes no calor do combate. Voltaríeis para o fazer agora?
– Porque não? – respondeu rispidamente. – Ouvistes o que ele disse. Um homem com os meus pecados é capaz de tudo.
Especialmente por um prémio como este.
Ele olhou para ela pela primeira vez depois de saírem da torre.
Os seus olhos gritavam-lhe um desafio, que ela reagisse e questionasse. Que condenasse.
– Não acredito nele – disse ela.
– Devíeis. É a verdade.
– Há muito que não sei a vosso respeito, Ian, mas o homem que amo nunca fez tais coisas, e não foi como ele disse.
– Andou perto.
Ela prometera não perguntar sobre o passado dele. Se ele não tivesse levantado o assunto, ela teria fingido que Edmund nunca tinha dito nada e confiado no amor pelo Ian que agora conhecia.
Mas por baixo da dureza daquele desafio, a sua expressão compreendia uma dor que lhe dilacerava o coração.
– Quão perto?
Ele aproximou-se de um candelabro e deu-lhe um pontapé furioso, que o fez voar e deslizar pelo fosso. Ela foi calmamente apanhá-lo. Quando regressou, ele estava com o cálice aos pés, com amarga resignação estampada no rosto.
– Vou dizer-vos, mas não gostareis do que ides ouvir.
– Começais tão cedo a duvidar do meu amor, Ian? Tendes a certeza daquilo que pensarei?

– Tenho, mas dir-vos-ei de qualquer forma, porque não foi como ele disse, e quando vos perder, pelo menos que seja pela verdade.
Olhou na direção do baldio, como se organizasse as memórias e as forçasse a vir aos lábios. – Disse-vos uma vez que parti para ser escudeiro de um lorde vizinho. Ele tinha uma filha jovem. Ela tinha cabelo como fogo e pele como neve, e eu venerava-a. Durante todos aqueles anos raramente nos falámos e nunca estivemos sós, porque a mantinham perto das mulheres, e protegida. Por isso, nunca cheguei a conhecê-la, mas, ainda assim, amava-a com uma dor ardente. Quando fiquei mais velho, tomava outras, criadas e rameiras, e fingia que estava com ela, e depois odiava-me a mim próprio por a ter desonrado na minha mente. Chegada a altura em que contava ganhar as minhas esporas, ela já estava em idade de casar, mas eu sabia que era impossível. Eu era um filho mais novo, e ela não era para mim.
Ele não dissera o nome dela, pensou Reyna. Nem o faria.
– Naquele último ano, o meu pai e o meu irmão mais velho passaram de visita quando regressavam de Windsor. As propriedades não ficavam muito longe uma da outra, mas até então eles não tinham visto que ela se tornara tão bela. A minha mãe estava morta, e o meu pai ainda não tinha quarenta anos. Ele propôs desposá-la logo na primeira noite.
– Oh, Ian…
– Sim, um momento de puro inferno, quando soube. A família dela estava encantada com o casamento. Eu engoli-o, mas a ideia de ter a rapariga que amava como mãe, a ideia de ela partilhar a cama do meu pai, fazia-me náuseas.
– Mas não fizestes nada de mal. Não podemos ser culpabilizados por aquilo que o nosso coração sente.
– Credo, mas sois tão inocente, Reyna. Se isto fosse tudo… –
As palavras dele quase não se ouviam. – O meu pai ficou. O
noivado foi planeado para dali a uma semana. Fingi estar contente por ele, mas foi angustiante. Em primeiro lugar, porque a rapariga que nunca me falara de repente passou a falar-me muito. Os olhos que raramente reparavam em mim pareciam encontrar-se sempre com os meus. Por fim, um dia, quando os nossos pais estavam fora numa falcoaria, ela enviou uma mensagem a pedir que nos encontrássemos no jardim por trás da torre.
– Vós fostes?
– Mesmo com a minha cabeça a dizer-me para me afastar, as minhas pernas levaram-me até lá. Não sei o que esperava, mas sei pelo que rezava secretamente o meu coração, e aquelas orações foram respondidas, mas pelo Diabo. Ela beijou-me, e depois disso perdi a razão.
Ele olhou para ela, e o olhar disse tudo. Ela não teve de perguntar o que tinha acontecido.
– Encontraram-nos lá. Quando os homens voltaram o salão estava num tumulto e a mãe dela a chorar. A minha amada tão assustada que não conseguia falar. – Baixou as pálpebras. –
Mesmo quando fui acusado de violação, ela não disse uma palavra.
– Como pôde ela ficar em silêncio enquanto vós éreis acusado?
Não me importa o quão assustada ela estava, devia ter falado. Um choque tão grande não faz sentido.
– Irá fazer. – Infiltrou-se amargura na sua voz. – O meu pai tinha um temperamento intempestivo, e perdeu as estribeiras quando ouviu. Ali mesmo, em frente da casa inteira, desafiou-me. Eu invoquei a inocência que podia, mas uma hora depois de ter aquela rapariga nos braços dei por mim no pátio com uma espada na mão, defrontando o meu próprio pai.
Um peso terrível alojou-se no fundo do estômago de Reyna. Ela adivinhou o fim da história e quase lhe disse que se calasse para o poupar à dor de a contar.
– Ela assistiu. Todos assistiram. Nunca sentira tanto medo e tanta confusão na minha vida. Era o meu pai, e ele veio para mim cheio de fúria e eu tive a certeza de que ia morrer. Mas eu era jovem e capaz, e estávamos mais equilibrados do que eu esperava.
Eu não sei durante quanto tempo lutámos, mas por fim ele recuou por um momento. Nessa pausa, eu olhei para ela e, na expressão dela, vi que havia planeado tudo, que ela não queria o casamento, que procurava vê-lo mutilado ou morto para se ver livre dele, e que me havia usado para esse fim.
– Porquê vós? Porque não um dos outros que lá estavam?
– Talvez ela soubesse que ele seria mais precipitado com o seu próprio sangue. Talvez tenha ouvido que, entre os escudeiros, o meu braço era o melhor. O mais certo é ela saber reconhecer um idiota. Virei-me e vi o meu pai também a olhar para ela. Quando os olhos dele voltaram a encontrar-se com os meus, eu soube que ele tinha visto o mesmo que eu. E também vi que ambos fôramos idiotas, que ele também se apaixonara por ela. Aí, algo o abandonou. Quase se viu aquilo voar para fora dele. Eu tentei que ele terminasse com o combate, mas ele não o fez. Talvez fosse orgulho, mas eu penso que era desespero. Eu esperava conseguir acabar num empate. Mas estávamos os dois a ficar cansados, e os nossos golpes descuidados. A guarda dele baixou, e só lhe faltou pôr-se à frente da minha lâmina.
O maxilar dele contraiu-se e semicerrou os olhos. Reyna ansiava por dizer algo que o apaziguasse e aliviasse a culpa que lhe estava inscrita no rosto.
– Ele não morreu imediatamente. Eu fiquei com ele, e nunca chegámos a falar dela. Perdoou-me e fez o meu irmão fazer o mesmo, e chamou o meu amo para me armar cavaleiro na presença dele. Depois deu-me algum dinheiro e disse-me para ir para a terra da minha mãe, para longe dos sussurros que já diziam que eu havia desejado a minha nova mãe e que matara o meu pai para a ter.
– Mas não foi assim. Ela ainda não estava ligada a ele.
– De somenos importância, Reyna.
– De muita importância. Nunca teríeis… se se tivesse celebrado o noivado…
Ele virou para ela uns olhos consumidos. – Estais assim tão certa? Eu confesso que não estou.
– Eu estou. Nem vós procurastes matar o vosso pai. Como podem as pessoas dizer tais disparates?
– As pessoas só sabem o que viram. Esta história poderá parecer muito diferente vinda de outra boca – disse rispidamente, mas a raiva não se dirigia a ela. – Primeiro tentei desculpá-la. Tentei convencer-me de que ela procurara a minha morte, não a dele.
Talvez ela não fosse donzela, e tê-la violado serviria de explicação para isso. Foi-me impossível aceitar que alguém tão jovem pudesse ser tão malévolo. Mas quando estava em Londres, ouvi dizer que ela se casara com o meu irmão. O velho lorde ou o secundogénito não lhe serviam, mas o jovem herdeiro… era diferente. Penso que ela o quis desde o início, e que ficou desconsolada ao saber que a oferta havia sido não do filho mas do pai. Por isso precisava do meu pai morto antes dos esponsais, ou o verdadeiro prémio estaria para sempre fora de alcance. Um filho não pode casar-se com a viúva do pai que morreu.
– O vosso irmão sabe?
– Durante um tempo perguntei-me se não teria sido cúmplice, mas não consigo imaginá-lo nessa situação. Mas quando for a Guilford descobrirei. E fá-la-ei perceber que sei que é tão responsável pela morte do meu pai quanto eu.
– Vós, na verdade, não…
– Fi-lo, Reyna. Há muito que aceitei essa verdade. Agradeço que tenteis defender-me, porém. Pensei que me condenásseis.
Ele parecia cansado, como se contar a história lhe tivesse sugado a maior parte da força. Ela abraçou-o e desejou que ele conseguisse sentir o seu amor. – Como podia condenar-vos?
Fostes acusado injustamente. Deveríeis ter esticado o pescoço para a espada do vosso pai?
– Ele deu-me vida. A maioria diria que é seu direito tirar-ma.
Não fui isento de culpa, e parricídio é imperdoável em qualquer situação.
– Nada é imperdoável – afirmou ela. – No entanto, parece-me que nunca vos perdoastes. Penso que acreditastes que o que fizestes havia revelado e determinado a vossa natureza e deixastes a vossa alma ser arrastada sem refletir para onde ia. Mas em verdade, a vossa natureza é afável e boa, Ian. Nunca poderia amar-vos se não o intuísse.
– Não, meu amor, nem tão boa assim. Vós fazeis-me melhor do que sou. – Ele entregou-se ao seu abraço e encostou o rosto ao pescoço dela, como se se socorresse no seu calor. – Eu devia ter mostrado mais força, e calculado o que ela queria de mim. Foi uma lição dura, mas tenho constatado que a aprendi bem de mais.
Por fim, apartou-se dela e pegou no cálice. – Há mais, penso eu.

Há quatro linhas que atravessam o círculo do fosso. Isto é apenas uma parte. Pensei que fossem algumas centenas de libras de ouro.
Nada como isto.
– Não me importa o que decidirdes fazer. Não pertence a ninguém.
– Se entregar Edmund à Igreja, provavelmente nunca será feita justiça. Os tribunais eclesiásticos tomam conta dos seus, e nunca executam os seus clérigos. Ele alegará autodefesa para com o irmão e não há provas com relação a Robert. Engendrará uma história na qual eles ficarão satisfeitos por acreditar, em vez de condenar um hospitalário.
– Mais fácil é, então, dar-lhe algum ouro e expulsá-lo daqui. Ele sairá da Escócia se vós o exigirdes.
– Foi a vós que ele prejudicou, Reyna. O vosso marido e amigo que ele matou. A vossa vida que ele colocou em perigo. Este ouro far-vos-á sentir compensada?
Faria? O metal amarelo reluzia, oferecendo-se para aplacar toda a dor com luxo inimaginável. Urdia nela, insidioso, a sua sedutora magia, e desculpas e racionalizações pareciam literalmente vogar na sua direção com o seu brilho. Se tinha este efeito nela, o que faria a Ian, que durante anos perseguira saques e pilhagens?
– Vós decidis, Ian. Eu não posso. Vós descobriste-lo.
Ele passou-lhe o dedo pela face e ergueu-lhe o queixo. –
Asseguraria o futuro dos nossos filhos.
– Sim, é verdade. Tendes razão.
– Tornar este castelo humilde forte e seguro, e comprar uma casa em York ou até Londres.
– Robert teria querido que ficássemos em segurança.
Ele fitou o ouro que segurava. – Então porque sinto que seria um roubo pior do que qualquer resgate que pedi a alguma cidade para pagar? Ficar com ele, especialmente se implicar dar algum ao seu assassino: não há justiça nenhuma para Robert e não era o que ele planeou para este tesouro.
Ela sentiu a batalha que ia dentro dele. Ao seu amor, não importava o caminho que ele escolhesse, mas perguntou-se se lhe importaria a ele de formas que ela só poderia adivinhar. – Então, o que fazemos, Ian?
Passou o polegar por uma pedra azul. – Safiras, acho eu. –
Suspirou, abanou a cabeça, e sorriu, pesaroso. – Daqui a dez anos, se passardes dificuldades, vou amaldiçoar-me a mim próprio.
Pequenas asas de alegria bateram-lhe no peito. – Aqui haverá que me baste. Haverá que vos baste a vós?
Ele virou-se para ela e olhou-a nos olhos. O ouro que tinha na mão deixara de existir. – Amo-vos de todo o coração, Reyna.
Haverá sempre que me baste se vós fordes minha.
Voltou a colocar o cálice e os candelabros no saco. –
Levaremos isto para o castelo. Mais tarde, depois de mandar alguns homens buscar Edmund, voltarei para desenterrar o resto.
Enviaremos Edmund e o ouro e os livros, para Glasgow. Diremos ao bispo que os livros são para a escola de alguma abadia, mas que o ouro deve ser usado para ajudar os pobres e os deslocados pela guerra. Se faço este sacrifício, quero expiar alguns dos meus pecados passados.
Subiram a colina até aos cavalos. – Sentirei mais falta dos livros do que do ouro – admitiu Reyna.
– Enviaremos apenas os que têm as iniciais de Jacques Molay.
Assim não são todos.
Ela fez má cara. – É a filosofia toda.

– Sabei-la de cor. Podeis passar os invernos a explicar-ma toda, e eu argumentarei contra a sua lógica. O debate deve manter-vos a memória fresca.
– O meu livro de horas terá de ir. Também o sei de cor, mas irei sentir-lhe a falta.
– Esse fica, acho eu.
– Tem as iniciais, tenho a certeza.
– Eu verifiquei antes de vir para aqui. Não vi iniciais nenhumas.
– Na primeira página…
– Penso que não. – Ergueu-a para a sela.
– Ian – disse ela, olhando para ele desconfiada.
Ele olhou para ela com um sorriso.
Santo Deus, que sorriso.
– Existe algo como ser-se demasiado bom, Reyna.

CAPÍTULO 27


– Terei saudades disto – disse Reyna preguiçosamente. Alongou o corpo contra o de Ian, e as flores que ele lhe entrelaçara no cabelo caíram-lhe pelo rosto e o peito. O sol de fim de verão cintilava-lhe na pele com calor. Ela deixou-se imergir na sensação, sabendo que podiam passar-se meses até voltarem a estar assim deitados perto do rio. Em alguns dias já se sentia um friozinho de inverno, e na água que as noites arrefeceram Ian e ela só se atreveram a um banho breve.
– O inverno tem os seus próprios prazeres – avançou Ian. –
Peles à lareira. Vinho quente. Noites muito longas.
– E poderei vestir os meus vestidos novos. Foi gentil da parte de David trazer o tecido de Carlisle.
– São adoráveis. Embora neste instante não estivesse a imaginar-vos à lareira dentro de um deles.
Ela deu uma risadinha e içou-se para cima do peito dele. –
Ainda bem que vos livrastes daqueles livros sobre filosofia, Ian.
Lembro-me de haver secções que alertavam para o prazer carnal.
Nunca prestei muita atenção a essas partes, visto não ter tido experiência nessas coisas, mas agora… e aqueles penitenciais!
Sabíeis que um deles proíbe a cópula às segundas e quintas, além dos domingos, para não mencionar o Advento e a Quaresma e dúzias de feriados sagrados?
– Sou afortunado por nunca vos terdes deixado levar por uma lógica tão desajustada.
– Bem, nunca fui muito lógica no que vos diz respeito. Tendes certo talento para fazer da filosofia a última coisa na cabeça de uma mulher.
Ele puxou-a para si, deitando-a a par dele, os dedos dos pés dela nas suas canelas e os seios apertados contra o calor firme do seu peito. Com beijos e carícias, atraiu-a de volta para o sonho sensual do qual recentemente tinham saído.
Abruptamente, as suas mãos pararam e a sua expressão tornou-se alerta e concentrada. – Um cavalo. Vem aí alguém. – Afastou-a e ajoelhou-se. – Cobri-vos, Reyna. Temos uma visita.
Ela acabava de enfiar a camisa quando o cavalo se acercou.
Esticou-a para baixo e sentiu-se corar ao ver o rosto sorridente do conde de Senlis.
– Incomodo – disse David enquanto Ian enfiava as velhas calças à camponês. – Peço desculpa, Reyna. No castelo disseram que encontraria Ian aqui, e estou só de passagem.
– Sou eu quem devia pedir-vos desculpa, mas é bom ver-vos. E
é um sítio estranho para se estar de passagem, David, visto que estamos a caminho de sítio nenhum – disse Ian.
David desmontou e Ian lançou um olhar muito claro para o vestido de Reyna. Ela curvou-se e agarrou-o.
David fez um gesto descontraído. – Não vos incomodeis, senhora. Ficarei apenas um segundo, e depois podem voltar os dois ao vosso entretenimento. – Sentou-se na erva ao lado de Ian. –
Estou a caminho de Harclow e depois Carlisle. Christiana e eu partiremos em breve de barco para Londres, e de lá para França.

Quando regressava de Glasgow, fiz um desvio para ver Duncan.
Venho agora de lá. Foi uma visita agradável. Informei-o do estado das coisas entre Morvan e os Armstrong, e disse algumas palavras sobre Aymer ter raptado as senhoras. Duncan não sabia de nada e eu achei que as vigas do salão iam cair com tanta fúria que mostrou ao filho. – Sorriu. – Não penso que tenhais problemas daqueles lados durante alguns anos, enquanto Duncan viver.
– Fostes até lá de Glasgow? Está feito, então? – inquiriu Reyna.
– Muito feito. O bispo recebeu os livros e o ouro, tendo aceitado de bom grado as vossas indicações quanto ao seu uso.
Parece ser um homem bom e penso que nenhum daquele ouro acabará a pagar comodidades privadas, o que é sempre um perigo quando se trata de bispos.
Ela sabia que se a intuição dele não tivesse sido aquela, ele poderia não ter sequer entregado o tesouro àquele bispo em particular. Nem ela nem Ian se teriam oposto. Ao confiar-lhe aquele dever, tinham aceitado o seu parecer.
– E Edmund? – perguntou Ian.
– Ah! Bom, aí houve alguma dificuldade. Edmund está morto. –
Olhou diretamente para Ian, com uma expressão inescrutável. –
Aconteceu quando seguíamos para norte. Por causa do ouro, tomámos percursos menos utilizados, caminhos altos, no geral.
Num troço particularmente perigoso, o cavalo dele perdeu o pé.
Foi uma valente queda. – Fez uma pausa. – Uma tragédia. Dadas as circunstâncias, contudo, não me pareceu sequer importante mencionar nenhum dos seus crimes ao bispo, por isso a história toda de Robert e dos Templários e da origem do ouro nunca foi explicada. Penso que o bispo ficará grato por isso. Teria sido difícil derrotar os Hospitalários na reivindicação daqueles bens se Edmund tivesse decidido contar tudo e negociar a sua vida.
Reyna olhou para Ian, que estudava cuidadosamente o convidado deles.
– Devemos agradecer-vos a vossa ajuda nisto, David – disse Ian. – Atrasou o vosso regresso a Londres em várias semanas e fez-vos percorrer todo o Sul da Escócia.
– Os mercadores estão acostumados a viajar. – Voltou-se para Reyna. – Christiana encarregou-me de vos lembrar que nós regressamos a Londres na primavera. Espera ver-vos lá. E Lady Anna insistiu que eu acrescentasse que, a não ser que algum parto estivesse iminente, não devíeis deixar Ian impedir-vos de ir se estivésseis de esperanças.
Ian resmungou. – Aquela mulher. Juro que é propósito dela subjugar todos os homens.
– Não. Apenas sabe a força e o valor que tem, tal como a vossa ninfa sabe do dela. Duvido que Reyna precise de alguma instrução de Anna.
Reyna corou ao ouvir este cumprimento em particular. David levantou-se e sacudiu a roupa. – Devo ir. Morvan e Anna ficarão em Harclow pelo menos mais um mês antes de rumarem à Bretanha. Estou certo de que vos visitará antes de ir embora.
Deixará um dos cavaleiros como senescal, mas contará convosco para manter tudo debaixo de olho.
Eles acompanharam-no até ao cavalo e ele abriu uma das bolsas da sela. – Isto foi arrumado num cavalo diferente, e quando estive em Glasgow esqueci-me dele. Tereis de o guardar até mais alguém ir para norte. – Puxou a espessa Summa de Aquino e colocou-a nos braços de Reyna.
Perplexa, Reyna ficou a olhar para o enorme tomo aninhado no seu seio. – Devíamos mesmo…
– É uma obra que decerto a escola da abadia já tem, senhora.
Não lhe será sentida a falta. – Alçou-se para a sela e curvou-se para apertar a mão de Ian. – Até à primavera, então.
Ficaram a vê-lo trotar até aos homens e estandartes que aguardavam ao longe. – Interrogo-me se terá realmente sido acidente. Aquilo de Edmund, quero dizer – comentou Reyna.
O olhar de Ian não se desviara do grupo que se dirigia agora para o paul. – Estou certo de que o foi.
– Obra do acaso, então.
– Alguma justiça, pelo menos. – Olhou para o livro. – Pode demorar algum tempo até viajar até Glasgow. Anos.
– Algo mais que fazer nas noites longas de inverno.
– Sim, podemos discutir filosofia parte da noite e fazer amor no restante. Eu poderia até nem ter desistido se me esperasse tal recompensa na minha juventude. Deverei acabar de o reler, porém, se quero fazer-vos frente.
Conduziu-a de novo ao leito de ervas. Ela sentou-se de pernas cruzadas e abriu o livro no colo.
– Metade do tempo para a mente, e metade para as paixões.
Parece uma divisão justa, Ian.
– Eu disse parte, não metade. Não tenho intenção de ser justo.
Especialmente agora, já que me parece ser altura de reequilibrar a balança que vós fizestes pender para o vosso lado em Harclow.
Ele estava de pé ao lado dela. Ela ergueu os olhos. Por detrás daquelas pestanas copiosas, o senhor das Mil Noites olhava para ela. A expressão dele fê-la fervilhar de expectativa. Não, ele não ia ser justo de todo.
Ele tirou-lhe o livro dos braços e pousou-o no chão. Segurando-lhe a mão, fê-la pôr-se em pé. Afastou-se para conseguir vê-la por inteiro.
– Despi a combinação, Reyna.

 

                                                                  Madeline Hunter

 

 

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