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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Milagres / C. S. Lewis
Milagres / C. S. Lewis

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Milagres

 

Em toda a minha vida só encontrei uma pessoa que afirmasse ter visto um fantasma. O que é interessante a respeito da história é que essa pessoa não acreditava na alma imortal antes de ter visto o fantasma e continua não crendo após vê-lo. Ela diz que aquilo que viu deve ter sido uma ilusão ou uma peça pregada pelos seus nervos. Como é evidente, ela pode estar certa. Ver não é crer.

Assim sendo, a pergunta sobre a ocorrência de milagres jamais pode ser respondida apenas pela experiência. Cada acontecimento que poderíamos alegar ser um milagre, em última análise, é algo apresentado aos nossos sentidos, algo visto, ouvido, tocado, cheirado ou degustado. E nossos sentidos não são infalíveis. Se alguma coisa parece ter acontecido, podemos sempre dizer que fomos vítimas de uma ilusão. Se nossa filosofia de vida exclui o sobrenatural, vamos sempre dizer isso. O que aprendemos da experiência depende do tipo de filosofia que levamos a ela. É portanto inútil apelar para a experiência antes de termos estabelecido, na medida do possível, a questão filosófica.

Se a experiência imediata não pode provar ou deixar de provar o miraculoso, a história está em posição ainda mais difícil para fazê-lo. Muitas pessoas julgam que podemos saber se um milagre ocorreu realmente no passado, examinando a evidência "de acordo com as regras comuns da pesquisa histórica". Mas as regras comuns não podem ser empregadas até que tenhamos decidido se os milagres são possíveis e, caso positivo, qual a sua probabilidade; pois se eles forem impossíveis, nenhuma espécie de evidência histórica irá então convencer-nos. Se forem possíveis, mas grandemente improváveis, somente a evidência matematicamente demonstrada nos convencerá. Como a história nunca fornece evidência até esse ponto qualquer seja o acontecimento, ela então jamais poderá convencer-nos de que ocorreu um milagre. Se, por outro lado, os milagres não forem intrinsecamente improváveis, então a evidência existente bastará para convencer-nos de que vários milagres ocorreram. O resultado de nossas pesquisas históricas depende então dos pontos de vista filosóficos a que nos apegamos antes de sequer termos começado a estudar a evidência. A questão filosófica deve portanto ser encarada em primeiro lugar.

Eis um exemplo do que acontece quando omitimos a tarefa filosófica preliminar e nos apressamos em direção à histórica. Num comentário popular sobre a Bíblia você descobre uma discussão da data em que foi escrito o Quarto Evangelho. O autor afirma que deve ter sido escrito depois da execução do apóstolo Pedro, porque no Quarto Evangelho, Cristo é representado como prevendo a execução do mesmo. "Um livro," pensa o autor, "não pode ser escrito antes dos acontecimentos a que se refere". Naturalmente não pode a não ser que ocorram realmente predições. Caso positivo, este argumento quanto à data fica anulado. Mas o autor não discute absolutamente se prognósticos reais são possíveis, tomando como certo (talvez inconscientemente) que não o sejam. Talvez esteja com a razão; mas, se assim for, não terá descoberto este princípio mediante a pesquisa histórica. Ele introduziu sua descrença nas predições em seu trabalho histórico, por assim dizer, antecipadamente. Fosse outra a sua atitude, sua conclusão histórica sobre a data do Quarto Evangelho não poderia ter sido de forma alguma alcançada. Sua obra é, pois, absolutamente inútil para alguém que deseje saber se as predições ocorrem ou não. O autor começa a trabalhar só depois de ter respondido negativamente a essa questão, e não nos comunica quais as bases em que se firmou.

O propósito deste livro é servir de preliminar para a pesquisa histórica. Não sou um historiador especializado nem vou examinar a evidência histórica para os milagres cristãos. Meu intento é colocar meus leitores em posição de fazê-lo. Não adianta estudar os textos até que tenhamos uma idéia da possibilidade ou probabilidade dos milagres. Os que supõem que os milagres não podem acontecer, estarão simplesmente desperdiçando seu tempo examinando os textos. Sabemos de antemão quais os resultados que vão encontrar pois começaram por dar a questão como provada.

 

 

O Naturalista e o Supranaturalista

 

"Não diga!" exclamou a Sra. Snip, "e existe um lugar onde as pessoas ousam viver acima do solo?" "Jamais ouvi falar de alguém que morasse debaixo do solo", replicou Tim, "antes de chegar à Terra dos Gigantes." "Chegar à Terra dos Gigantes!" admirou-se a Sra. Snip, "mas, tudo não é a Terra dos Gigantes?"

ROLAND QUIZ, GiantLand, chap. 32

 

Faço uso da palavra Milagre para indicar uma intervenção na natureza mediante poder sobrenatural. A não ser que exista, em adição à natureza, algo mais que possamos chamar de sobrenatural, não pode haver milagres. Alguns acreditam que não existe nada além da natureza. Chamo essas pessoas de Naturalistas. Outros julgam que além da natureza existe algo mais; eu os chamo de Supranaturalistas(1). Nossa primeira pergunta, portanto, é quem está certo: os naturalistas ou os supranaturalistas; sendo esta a nossa primeira dificuldade.

 

Antes de o naturalista e o supranaturalista começarem a discutir sua diferença de opinião, é preciso que concordem numa definição sobre a natureza e supranatureza. Infelizmente, porém, é quase impossível obter tal definição. Pelo fato de o naturalista pensar que nada senão a natureza existe, para ele a palavra natureza representa praticamente "tudo" ou "o que quer que exista". E se é isso que compreendemos por natureza, então naturalmente nada mais existe. A questão real entre ele e o supranaturalista nos escapou. Alguns filósofos definiram a natureza como "o que percebemos com nossos cinco sentidos". Mas isto também não satisfaz, uma vez que não percebemos nossas próprias emoções desse modo, sendo elas todavia ocorrências "naturais". A fim de evitar este impasse e descobrir o motivo da discussão entre o naturalista e o supranaturalista, devemos abordar nosso problema de modo mais indireto.

 

 (1) Esta definição não seria dada por muitos teólogos. O fato de adotá-la não é que a julgue superior à deles, mas exatamente porque sendo imperfeita e "popular", ela me capacita para tratar mais facilmente aquelas perguntas que "o leitor comum" tem com toda probabilidade em mente ao ler um livro sobre Milagres.

 

Vou começar considerando as seguintes sentenças: (1) estes são seus dentes naturais ou uma dentadura? (2) O cão em seu estado natural acha-se coberto de pulgas. (3) Gosto de ficar longe de terras cultivadas e estradas pavimentadas e aproximar-me da natureza. (4) Seja natural. Por que mostrar-se tão afetado? (5) Pode ter sido errado beijá-la, mas foi muito natural.

 

Uma linha comum de significado em todas essas frases pode ser facilmente descoberta. Os dentes naturais são os que crescem na boca; não temos de desenhá-los, adaptá-los nem fabricá-los. O estado natural do cão é aquele em que se encontra se ninguém usar água e sabão para evitá-lo. O campo onde a natureza reina suprema é aquele em que o solo, o clima e a vegetação produzem seu resultado sem a ajuda do homem e sem ser por ele limitados. O comportamento natural é o que as pessoas manifestam se não se esforçarem para alterá-lo. O beijo natural é aquele que será dado quando considerações morais ou de cautela não interferirem. Em todos os exemplos a natureza significa o que ocorre "de si mesmo" ou "por si mesmo": aquilo que você não precisa esforçar-se para obter; o que você obterá se não tomar medidas para evitá-lo. Natureza (Physis) em grego, é uma palavra ligada com o verbo grego "crescer"; natura, em latim, com o verbo "nascer". O que é natural é aquilo que brota, surge ou chega, ou continua, por si mesmo: aquilo que é dado, o que já se acha ali; o que é espontâneo, não intencional, não solicitado.

 

O que o naturalista acredita é que o Fato final, aquilo que você não pode ultrapassar, é um vasto processo no espaço e no tempo que continua por si mesmo. No interior de todo esse sistema, cada evento particular (tal como você estar sentado lendo este livro) acontece porque um outro evento aconteceu no final das contas, porque o Evento Total está ocorrendo. Cada elemento individual (tal como esta página) é aquilo que é porque outras coisas são o que são; e assim, eventualmente, porque o sistema inteiro é o que é. Todas as coisas e acontecimentos estão de tal forma interligados que nenhum deles pode alegar a mínima independência do "conjunto". Nenhum deles existe "por si só" ou "funciona sozinho", exceto no sentido de exibir em algum ponto e tempo especial, aquela existência geral "própria" ou "comportamento próprio" que pertence à "Natureza" (o grande acontecimento total interligado) como um todo.

 

Dessa forma, o naturalista completo não acredita no livre-arbítrio: pois isto significaria que os seres humanos têm poder para agir independentemente, o poder de realizar algo mais ou algo diverso do que estava envolvido na série total de acontecimentos. O naturalista nega exatamente esse poder individual de dar origem a acontecimentos. A espontaneidade, originalidade, e ação "próprias" são um privilégio reservado para o "conjunto" que ele chama de natureza.

 

O supranaturalista concorda com o naturalista em que deve haver algo que existe "por si só"; algum Fato básico cuja existência seria absurdo tentar explicar, em vista do mesmo ser a base ou ponto de partida de todas as explicações. Mas ele não identifica este Fato com o "conjunto". Em sua opinião as coisas pertencem a duas classes. Na primeira encontramos coisas ou (mais provavelmente) Uma Coisa que é básica e original, que existe de si mesma. Na segunda encontramos coisas que simplesmente derivam dessa Uma Coisa. A Coisa Básica provocou a existência de todas as demais. Ela existe por si própria; as outras existem porque ela existe. Deixarão de existir se ela deixar de manter sua existência; serão alteradas se ela as alterar.

 

A diferença entre os dois pontos de vista pode ser expressa dizendo que o naturalismo nos dá uma imagem democrática, e o supranaturalismo uma imagem monárquica da realidade. O naturalista julga que o privilégio de ser independente reside na massa total de coisas, do mesmo modo que na democracia, a soberania reside na massa total de povo. O supranaturalista pensa que este privilégio pertence a algumas coisas ou (mais provavelmente) a Uma Coisa e não a outras como na verdadeira monarquia, o rei é soberano mas não o povo. E do mesmo modo que na democracia todos os cidadãos são iguais, para o naturalista uma coisa ou acontecimento é tão bom quanto o outro, no sentido de que todos são igualmente dependentes do sistema total de coisas. Cada um deles é na verdade apenas o modo como o caráter do sistema total se manifesta num ponto particular no tempo e espaço. O supranaturalista, por sua vez, acredita que a coisa original ou autoexistente acha-se num nível diferente e mais importante do que todas as outras.

 

Pode ocorrer neste ponto a suspeita de que o supranaturalismo surgiu primeiramente do enquadramento do universo na estrutura das sociedades monárquicas. Com igual razão, porém, pode ser suspeitado que o naturalismo o enquadra na estrutura das democracias modernas. As duas suspeitas então se cancelam e não têm valor algum na decisão de qual seja a melhor teoria, qual delas é provavelmente mais verdadeira. Elas nos fazem lembrar, entretanto, que supranaturalismo é a filosofia característica de uma idade monárquica e o naturalismo da democrática, no sentido de que o supranaturalismo, mesmo sendo falso, teria sido aceito pela grande massa de povo não-pensante de há quatrocentos anos. Da mesma forma que o naturalismo, mesmo sendo falso, será aceito pela grande massa de povo não-pensante hoje.

 

Todos terão visto que a Coisa Autoexistente, ou a pequena classe de coisas auto-existentes em que os supranaturalistas acreditam, é o que chamamos de Deus ou deuses. Proponho daqui por diante neste livro tratar apenas daquela forma de supranaturalismo que acredita num só Deus. Isso se deve em parte ao fato de o politeísmo não ser provavelmente um assunto interessante para a maioria dos meus leitores e em parte porque os que acreditavam em diversos deuses muito raramente consideravam os mesmos como criadores do universo e autoexistentes. Os deuses da Grécia não eram realmente sobrenaturais no sentido estrito que estou atribuindo à palavra. Eles eram produto do sistema total de coisas e inclusos nele. Isto introduz uma distinção importante.

 

A diferença entre naturalismo e supranaturalismo não é exatamente a mesma que existe entre crença em um Deus e incredulidade. O naturalismo, sem deixar de ser ele mesmo, poderia admitir uma certa espécie de Deus. O grande evento interligado a que se deu o nome de natureza, poderia produzir em um certo estágio uma grande consciência cósmica, um "Deus" residente, surgido de todo o processo como surge a mente humana (segundo os naturalistas) dos organismos humanos. Um naturalista não faria objeção a esse tipo de Deus, pela seguinte razão: um Deus assim não ficaria fora da natureza nem do sistema total, não existiria "por si mesmo". Continuaria sendo "o conjunto" que era o Fato básico e um tal Deus seria simplesmente uma das coisas (embora pudesse ser a mais interessante) contidas no Fato básico. O que o naturalismo não pode aceitar é a idéia de um Deus que se coloca fora da natureza e que fez a natureza.

 

Estamos agora em posição de estabelecer a diferença entre o naturalista e o supranaturalista a despeito do fato de que eles não têm o mesmo conceito da palavra natureza. O primeiro acredita que um vasto processo existe "por si só" no espaço e no tempo, e que nada mais existe, o que chamamos de coisas e acontecimentos particulares sendo apenas as partes em que analisamos o grande processo ou as formas que ele toma em dados momentos e pontos no espaço. Esta realidade única e total é por ele chamada de natureza.

 

O supranaturalista acredita que existe uma Coisa independente que produziu a estrutura do espaço e do tempo e a seqüência de acontecimentos sistematicamente ligados que os enche. Esta estrutura e este recheio ele chama de natureza. Ela pode ser ou não a única realidade que a Coisa Principal, única, tenha produzido. Podem existir outros sistemas adicionais a que chamamos natureza.

 

Nesse sentido pode haver várias "Naturezas". Este conceito deve ser mantido completamente separado do que é comumente denominado "pluralidade de mundos"  i. e., sistemas solares diferentes ou galáxias diferentes, "universo-ilha" existindo em partes amplamente distantes de um único espaço e tempo. Essas, embora remotas, seriam partes da mesma natureza como o nosso próprio sol; elas estariam interligadas por se acharem relacionadas umas às outras, sendo essas relações espaciais e temporais, assim como causais. Este entrelaçamento recíproco dentro de um sistema é justamente o que faz dele o que chamamos uma natureza. Outras naturezas poderiam não ser absolutamente espaço-temporais; ou se algumas o fossem, seu espaço e tempo não teriam qualquer relação espacial ou temporal com os nossos. Esta descontinuidade, esta falha de interligação é que justificaria o fato de afirmarmos tratar-se de naturezas diferentes. Isto não significa que não houvesse absolutamente qualquer relação entre elas, pois estariam associadas pela sua derivação comum de uma fonte única e sobrenatural.

 

Neste aspecto elas seriam como novelas diferentes escritas por um mesmo autor; os acontecimentos em uma história não têm relação com os de outra exceto terem sido inventados pela mesma mente. A fim de descobrir a relação entre elas você precisa reportar-se à mente do autor; não existe ligação em nada que o Sr. Pickwick diz no "Pickwick Papers" com o que a Sra. Gamp ouve em "Martin Chuzzlewit". Da mesma forma não haveria uma ligação normal entre um acontecimento numa natureza com outro em outra. Por "relação normal" entende-se aquela que ocorre em vista do caráter dos dois sistemas. Temos de incluir a qualificação "normal" porque não sabemos antecipadamente se Deus não poderia fazer duas naturezas entrarem em contato parcial num dado ponto: isto é, Ele poderia permitir que eventos selecionados em uma produzissem resultados na outra. Haveria então, em determinados pontos, uma interligação parcial; mas isto não transformaria as duas naturezas em uma única, pois a reciprocidade total que faz uma natureza continuaria ausente, e as interligações anômalas não surgiriam daquilo que cada sistema era de si mesmo, mas do ato divino que os estava unindo. Se tal coisa ocorresse, cada uma das duas naturezas seria "sobrenatural" em relação à outra. Mas o lato de seu contato seria sobrenatural num sentido mais absoluto,  não por ultrapassar esta ou aquela natureza, mas toda e qualquer natureza. Seria uma espécie de Milagre. O outro tipo seria "interferência" divina, não pelo fato de juntar as duas naturezas, mas simples interferência.

 

Tudo isto é puramente especulativo no momento. De forma alguma se deduz do supranaturalismo que milagres de qualquer espécie ocorram realmente. Deus (a coisa primária) pode jamais ter interferido no sistema natural por ele criado. Se criou mais do que um sistema natural, pode ser que nunca venha a provocar qualquer colisão entre eles.

 

Esta é, porém, uma questão a ser considerada mais tarde. Se decidirmos que a natureza não é a única coisa que existe, não podemos então dizer antecipadamente se ela está ou não a salvo de milagres. Existem coisas fora dela, não sabemos ainda se estas podem entrar. Os portões talvez estejam fechados, ou talvez não. Mas se o naturalismo estiver correto, sabemos então antecipadamente que os milagres são impossíveis: nada pode penetrar na natureza vindo de fora porque não há nada que possa entrar, desde que a natureza é tudo. Sem dúvida, os acontecimentos que em nossa ignorância poderíamos tomar erroneamente como milagres talvez ocorram; mas, na realidade (justamente como os eventos mais comuns), eles não passaram de um resultado inevitável do caráter de todo o sistema.

 

Nossa primeira escolha, portanto, deve ficar entre o naturalismo e o supranaturalismo.

 

A Principal Dificuldade do Naturalismo

 

Não podemos ter ambas as coisas, e nenhum sarcasmo quanto à limitação da lógica resolve o dilema.

A. RICHARDS, Principles of Literary Criticism, chap. 25

 

No caso de admitirmos o naturalismo como verdadeiro,  toda coisa ou evento finito deve ser (em princípio) explicável em termos do Sistema Total. Digo "explicável em princípio" porque é certo que não podemos exigir dos naturalistas, em qualquer dado momento, a descoberta de uma explicação minuciosa de cada fenômeno. Muitas coisas só serão evidentemente explicadas quando as ciências atingirem um nível mais adiantado. Mas se devemos aceitar o naturalismo, temos então o direito de exigir que cada coisa se apresente de forma que possamos ver, de modo genérico, como ela pode ser explicada em termos do Sistema Total. Se existisse, porém, algo de um determinado tipo que nos permitisse perceber antecipadamente a impossibilidade de aplicar-lhe essa espécie de explanação, o naturalismo se desfaria de imediato.

 

Sempre que as necessidades intelectuais nos forçarem a conceder a alguma coisa qualquer grau de independência do Sistema Total,  se houver algo que praticamente demonstre possuir livre-arbítrio, mostrando ser mais do que uma expressão do caráter da natureza como um todo teremos então abandonado o naturalismo. Pois por esse nome indicamos a doutrina de que apenas a natureza  todo o sistema interligado  existe. E se isso fosse verdade, toda coisa e evento seriam, se soubéssemos o suficiente,  explicáveis sem resíduos como um produto necessário do sistema. Sendo o conjunto do sistema o que é, ele seria uma contradição em si mesmo, se você não estivesse lendo este livro no momento; e, ao inverso, o único motivo porque você o está lendo deveria ser que todo  sistema, em tal lugar e hora, estivesse determinado a seguir esse curso,

 

Foi feita recentemente uma ameaça contra o naturalismo sobre a qual não baseio qualquer argumento, mas que será interessante notar. Os cientistas do passado acreditavam que as menores partículas de matéria se moviam segundo leis rígidas. Em outras palavras, os movimentos de cada partícula estavam "interligados" com o sistema total da natureza.

 

Alguns cientistas modernos parecem julgar  se é que os compreendo  que isso não acontece. Segundo eles, a unidade individual de matéria (seria ousado continuar a chamá-la de "partícula") se move de modo indeterminado ou casual; movendo-se, de fato, "de si" ou "por si mesma". A regularidade que observamos nos movimentos dos menores corpos visíveis é explicada pelo fato de cada um deles conter milhões de unidades e que a lei das proporções nivela então as idiossincrasias do comportamento da unidade individual. O movimento de uma unidade é impossível de calcular, assim como seria o resultado de jogar uma moeda para o alto; a maioria dos movimentos de um bilhão de unidades pode, entretanto, ser prevista, da mesma forma que, se jogasse uma moeda para o alto um bilhão de vezes, você poderia prever um número praticamente igual de caras ou coroas.

 

E preciso notar agora que se esta teoria for verdadeira, admitimos na realidade algo além da natureza. Se os movimentos das unidades individuais forem eventos "independentes"; que não se interligam a todos os outros, eles não farão parte da natureza. Seria de fato demasiado chocante para nós descrevê-los como supranaturais. Julgo que devemos chamá-los de subnaturais. Mas toda a nossa confiança de que a natureza não tem portas, e nenhuma realidade fora dela para a qual abrir a porta, teria desaparecido. Existe aparentemente algo fora dela, o subnatural. Na verdade, é deste subnatural que todos os eventos e "corpos", por assim dizer, servem de alimento para ela. E assim, se ela possui uma porta traseira abrindo para o subnatural, é praticamente certo que exista uma porta dianteira abrindo para o supranatural  e ela pode ser alimentada com os eventos também através desta porta.

 

Mencionei esta teoria porque ela coloca sob uma luz bastante viva certos conceitos que teremos de usar mais tarde. Não estou, porém, assumindo a sua verdade. Os que tiveram como eu uma educação filosófica e não científica acham quase impossível acreditar que os cientistas realmente estejam dizendo aquilo que parecem dizer. Não posso deixar de pensar que eles estejam afirmando apenas que os movimentos das unidades individuais são para nós permanentemente incalculáveis, e não que sejam de si mesmos ocasionais e descontrolados. Mesmo que estejam indicando esta última hipótese, o leigo não pode ter qualquer garantia de que um novo avanço científico não venha abolir amanhã toda esta teoria de uma subnatureza desgovernada, pois a glória da ciência é o progresso. Passo então agora, deliberadamente, para outro assunto.

 

É certo que tudo que sabemos, além de nossas sensações imediatas, é inferido dessas sensações. Não quero dizer que devemos começar como crianças, considerando nossas sensações como "evidência" e a seguir argüindo conscientemente quanto à existência do espaço, matéria e outras pessoas. Quero dizer que depois de termos idade suficiente para entender a questão, nossa confiança na existência de qualquer outra coisa (por exemplo, o sistema solar ou a armada espanhola) é desafiada, nosso argumento defensivo terá então de tomar a forma de inferências baseadas em nossas sensações imediatas. Colocada em sua forma mais geral, a inferência seria: "Desde que me são apresentados cores, sons, formas, prazeres e dores que não posso prever nem controlar perfeitamente, e desde que quanto mais investigo essas coisas tanto mais regular parece o seu comportamento, deve haver portanto algo além de mim mesmo e pertencente a um sistema". Dentro desta inferência generalizada, toda espécie de seqüências dedutivas especiais nos leva a conclusões mais detalhadas. Inferimos a evolução a partir dos fósseis; a existência de nosso próprio cérebro com base no que encontramos no crânio de outras criaturas como nós, na sala de dissecação.

 

Todo conhecimento possível depende então da validade do raciocínio. Se o sentimento de certeza que expressamos com as palavras deve ser, portanto, e desde que representa uma percepção real de como as coisas fora de nossa mente "devem" ser na verdade, isso é ótimo. Mas se esta certeza não passa de um sentimento em nossa própria mente e não uma percepção genuína das realidades além dela,  se representar simplesmente a maneira como nossa mente trabalha  não podemos ter então conhecimento. A não ser que o raciocínio humano seja válido, ciência alguma pode ser verdadeira.

 

Segue-se assim que nenhuma consideração do universo pode ser verídica a não ser que a mesma permita que nossos conceitos sejam realmente uma espécie de percepção. Uma teoria que explicasse tudo mais no universo inteiro, mas que tornasse impossível crer que nosso pensamento fosse válido, seria absolutamente inócua. Pois essa mesma teoria teria sido alcançada através do raciocínio, e se este fosse inválido ela seria então destruída. Destruiria as suas próprias credenciais. Tratar-se-ia de um argumento provando que argumento algum é sólido, uma prova de que não existem provas, o que é tolice.

 

O materialismo estrito refuta então a si mesmo pela razão dada há muito tempo pelo Professor Haldane: "Se meus processos mentais forem determinados inteiramente pelos movimentos dos átomos em meu cérebro, não tenho razão para supor que minhas crenças sejam verdadeiras... e dessa forma não tenho razão para supor que meu cérebro seja composto de átomos". (Possible Worlds, pág. 209.)

 

O naturalismo por sua vez, mesmo que não seja puramente materialista, parece, em minha opinião, envolver a mesma dificuldade, embora de maneira menos óbvia. Ele põe em dúvida nossos processos de raciocínio ou pelo menos reduz sua credibilidade a um nível tão inferior que não mais pode suportar o próprio naturalismo.

 

A maneira mais fácil de demonstrar isto é notar os dois sentidos  do termo porque. Podemos dizer: "Vovô está doente hoje porque comeu camarão ontem". Também podemos dizer: "Vovô deve estar doente hoje porque não se levantou ainda (e sabemos que ele se levanta sempre cedo quando está bem)." Na primeira sentença porque indica a relação entre Causa e Efeito: o ato de comer fez com que adoecesse. Na segunda, ele indica a relação que os lógicos chamam de Antecedente e Conseqüente. O fato de o velho levantar-se tarde não foi a causa de sua doença, mas a razão por que acreditamos que esteja doente. Existe uma diferença semelhante entre "Ele gritou porque foi ferido" (Causa e Efeito) e "Deve ter ficado ferido porque gritou" (Antecedente e Conseqüente). Temos bastante familiaridade com o Antecedente e Conseqüente porque no raciocínio matemático: "A = C porque, como já provamos, ambos são iguais a B."

 

Um deles indica uma associação dinâmica entre eventos ou "estados de coisas"; o outro, uma relação lógica entre crenças ou afirmações.

 

Uma linha de pensamento não tem qualquer valor como instrumento para encontrar a verdade a não ser que cada passo esteja ligado com o acontecido antes, na relação Antecedente-Conseqüente. Se nosso B não seguir-se logicamente ao nosso A, pensamos em vão. Se o que pensamos no final de nosso raciocínio deva ser verdade, a resposta correta para a pergunta: "Por que está pensando isso?" deve começar com o Antecedente-Conseqüente porque.

 

Por outro lado, todo acontecimento na natureza deve estar ligado às ocorrências anteriores na relação de Causa e Efeito. Mas nossos atos de pensar são eventos. Portanto, a verdadeira resposta para "Por que está pensando isso?" deve começar com o porquê de Causa-Efeito.

 

A não ser que nossa conclusão seja o conseqüente lógico de um antecedente, ela será inútil, e só poderia ser verdadeira por casualidade. Se não for o efeito de uma causa, não poderá absolutamente ocorrer. Parece, portanto, como se esses dois sistemas de conexão devam aplicar-se simultaneamente a uma mesma série de atos mentais, para que uma linha de pensamento tenha valor.

 

Os dois sistemas são, porém, lamentavelmente distintos. Ser causado não é ser provado. As aspirações, os preconceitos e as ilusões da loucura, são todos causados, mas não têm fundamento. Ser causado na verdade difere tanto de ser provado, que nos debates nos comportamos como se eles se excluíssem mutuamente. A simples existência de causas para uma crença é popularmente tratada como se desse lugar à suposição de ser infundada, e a maneira mais comum de pôr em dúvida as opiniões de alguém é explicá-las de modo causal: "Você diz isso porque (Causa e Efeito) é um capitalista, ou um hipocondríaco, ou apenas um homem, ou só uma mulher". A implicação está em que se as causas representam plenamente uma crença, então, desde que elas operam inevitavelmente, a crença teria de surgir quer tivesse ou não fundamento. Não necessitamos, ao que parece, considerar as bases de algo que pode ser perfeitamente explicado sem elas.

 

Mas mesmo que existam fundamentos, o que eles têm exatamente a ver com a ocorrência real da crença como um evento psicológico? Se é um evento deve ser causado. Deve representar na verdade um simples elo num encadeamento causal que se estende de volta até o princípio e avança até o fim dos tempos. Como poderia algo tão trivial como a falta de bases lógicas impedir a ocorrência da crença ou como a existência de bases poderia promovê-la?

 

Uma única resposta parece ser possível. Devemos dizer que assim como uma das maneiras em que um evento mental causa um subseqüente evento mental é Associação (quando penso em salsa sempre me lembro de minha primeira escola), outro modo em que pode causá-lo é simplesmente sendo uma base para o mesmo. Pois assim, ser uma causa e ser uma prova iriam coincidir.

 

Isto, porém, na condição em que está, é claramente falso. Sabemos por experiência que um pensamento não causa necessariamente todos, ou mesmo qualquer, dos pensamentos que logicamente representam para ele um Conseqüente em relação a um Antecedente. Estaríamos em dificuldade se jamais pudéssemos pensar "Isto é vidro" sem extrair disso todas as inferências possíveis. É impossível extrai-las  todas, e quase sempre não deduzimos nada. Devemos, portanto, emendar a lei por nós sugerida. Um pensamento pode causar outro não pelo fato de ser, mas por ser visto como sendo uma base para ele.

 

Se você suspeita da metáfora sensorial em visto, pode substitui-la por aprender, compreender ou simplesmente saber. A diferença é pequena, pois todas essas palavras nos lembram do que significa realmente o ato de pensar.

 

Os atos de pensar são sem dúvida eventos; mas de um tipo muito especial. Eles "tratam" de algo além de si mesmos e podem ser verdadeiros ou falsos. Os eventos em geral não "tratam" de nada e não podem ser verdadeiros ou falsos. (Dizer que "esses acontecimentos ou fatos são falsos", significa naturalmente que o relato de alguém a respeito deles é falso.) Portanto, os atos de inferência podem e devem ser considerados de duas formas. De um lado são eventos subjetivos, itens na história psicológica de alguém. Por outro lado, percepções ou conhecimentos de algo além de si mesmos, com  o que, do primeiro ponto de vista, é a transição psicológica da idéia A para a idéia B, num dado momento em uma determinada mente, do ponto de vista do pensador é a percepção de uma dedução (se A, então B). Quando adotamos o ponto de vista psicológico, podemos usar o verbo no passado. "B seguiu-se a A em meus pensamentos." Mas quando afirmamos a dedução, sempre usamos o presente  "B segue-se a A". Se alguma vez ele "seguir-se a" no sentido lógico, isso acontecerá sempre. E não podemos rejeitar o segundo ponto de vista como uma ilusão subjetiva sem duvidar de todo conhecimento humano. Pois nada podemos conhecer, além de nossas próprias sensações no momento, a não ser que o ato dedutivo seja a verdadeira percepção que alega ser.

 

Ele só pode ser isso, entretanto, em determinados termos. Um ato de conhecimento deve ser determinado, em certo sentido, unicamente com base naquilo que é conhecido. Devemos saber que é assim somente porque é assim. É isso que conhecer significa. Você pode chamar isto de Causa e Efeito porque, é chamar "sendo conhecido" um modo na relação de causa se quiser. Mas é um modo único. O ato de conhecer tem, sem dúvida, várias condições, sem as quais não pode ocorrer: atenção, e os estados de vontade e aptidão que isto pressupõe. Mas o seu caráter positivo deve ser determinado pela verdade que conhece. Se fosse totalmente explicável por outras fontes deixaria de ser conhecimento, da mesma forma que o ruído em meus ouvidos (para usar o paralelo sensorial) deixa de ser o que chamamos de "ouvir" quando explicado por outras causas além de um bom som no mundo exterior  tal como, por exemplo o tinnitus produzido   por um forte resfriado. Se o que parece ser um ato de conhecimento for parcialmente explicável através de outras fontes, então o conhecimento (assim chamado adequadamente) nele é apenas o que elas deixam para consideração futura, justamente o que exige para sua explicação a coisa conhecida, assim como o ato real de ouvir é aquilo que resta depois de você ter descontado o tinnitus. Qualquer coisa que professe explicar plenamente nosso raciocínio sem introduzir um ato de conhecimento, determinada assim unicamente por aquilo que é conhecido, trata-se na verdade de uma teoria no sentido de que não existe raciocínio.

 

Mas isto, segundo me parece, é o que o naturalismo tende a fazer. Ele oferece o que professa ser uma descrição completa de nosso comportamento mental; mas este relato, ao ser examinado, não deixa lugar para os atos de conhecimento ou percepção de que depende todo o mérito de nossos pensamentos, como um meio de chegar à verdade.

 

Todos concordam que a razão, e até mesmo o senso, e a própria vida só surgiram mais tarde na natureza. Se não existe nada senão esta, a razão deve ter então passado a existir mediante um processo histórico. Como é lógico, para o naturalista, este processo não se destinava a produzir um comportamento mental que levasse à descoberta da verdade. Não houve um Planejador. De fato, até que surgissem os pensadores, não havia nem verdade nem falsidade. O tipo de comportamento mental a que damos hoje o nome de pensamento racional ou dedução deve ter, portanto, "evoluído" pela seleção natural, pela eliminação gradual dos tipos menos aptos para sobreviver.

 

Outrora, então, nossos pensamentos não eram racionais. Isto é, todos os nossos pensamentos antigamente eram, como são ainda muitos deles, simples eventos subjetivos e não apreensões da verdade objetiva. Aqueles cuja causa era exterior (como as nossas dores) não passavam de uma reação aos estímulos. A seleção natural só podia operar eliminando as respostas biologicamente prejudiciais e multiplicando as tendentes à sobrevivência. Não se concebe porém que qualquer aperfeiçoamento das respostas pudesse jamais transformá-las em atos de percepção, ou sequer remotamente se dispusessem a fazê-lo.

 

A relação entre resposta e estímulo difere completamente daquela que existe entre o conhecimento e a verdade conhecida. Nossa visão física é uma resposta muito mais útil à luz do que a dos organismos mais simples que possuem apenas um foco fotosensível. Mas nem   aperfeiçoamento nem quaisquer outros que possamos supor poderiam fazer com que ficasse um centímetro sequer mais perto de tornar-se um conhecimento da luz. Trata-se, admitidamente, de algo sem o que não poderíamos ter tido esse conhecimento, mas este é alcançado mediante experiências e deduções extraídas das mesmas, e não pelo refinamento da resposta. Não são os homens com vista especialmente boa que têm conhecimento a respeito da luz, mas os que estudaram as ciências pertinentes.

 

Da mesma forma, nossas reações psicológicas ao ambiente em que vivemos  nossas curiosidades, aversões, prazeres, expectativas poderiam ser melhoradas indefinidamente (do ponto de vista biológico) sem tornar-se nada mais que respostas. Tal aperfeiçoamento das respostas não-racionais, longe de corresponder à conversão das mesmas em deduções válidas, poderia ser concebido como um método diferente para garantir a sobrevivência , uma alternativa para o raciocínio. Um condicionamento que nos levasse a jamais sentir prazer exceto naquilo que é útil, nem aversão, salvo pelo perigo, e que os graus em ambos os sentidos fossem estranhamente proporcionais ao grau de real utilidade ou perigo no objeto, poderia servir-nos tão bem quanto o raciocínio ou, em algumas ocasiões, melhor do que ele.

 

Ao lado da seleção natural encontramos porém a experiência. Esta era originalmente individual, mas foi transmitida pela tradição e instrução. Poderia ser dito que isto, no curso dos séculos, teve o poder de conjurar o comportamento mental que chamamos de raciocínio  em outras palavras, a prática da inferência  a partir de um comportamento mental que originalmente não era racional. Experiências repetidas da descoberta do fogo (ou restos de fogo) onde observar a fumaça iria condicionar o homem a esperar descobrir fogo sempre que visse fumaça. Esta expectativa, expressa na forma "Se há fumaça então há fogo", se transforma naquilo que chamamos de inferência. Todas as nossas inferências terão surgido dessa forma?

 

Entretanto, se isso aconteceu, todas elas são inválidas. Um processo assim sem dúvida produzirá expectativa. Treinará os indivíduos a esperarem fogo quando virem fumaça, do mesmo modo que os treinou a esperar que todos os cisnes sejam brancos (até verem um negro) ou que a água sempre ferveria aos 212°F  =qual é o corresponde em graus Celsius? = (até que alguém resolveu fazer um piquenique numa montanha). Tais expectativas não são deduções e não necessitam ser verdadeiras. A suposição de que as coisas associadas no passado sempre estarão associadas no futuro não é o princípio diretor do comportamento racional e sim do animal. O raciocínio entra exatamente no ponto em que você tira a dedução: "Desde que sempre estiverem associadas, então provavelmente devem estar ligadas" e continua a partir desse ponto a fim de tentar descobrir a ligação.

 

Quando tiver descoberto o que é a fumaça, poderá então substituir a simples expectativa do fogo por uma inferência legítima. Até que aconteça isto, a razão reconhece a expectativa como simples expectativa. Quando isto não precisa ser feito, a saber, quando a inferência depende de um axioma, não apelamos absolutamente para a experiência passada. Minha fé em que as coisas iguais a uma mesma coisa são iguais entre si não se baseia em absoluto no fato de que jamais as surpreendi comportando-se de outra maneira. Vejo que "deve" ser assim. O fato de as pessoas chamarem hoje os axiomas de tautologias me parece irrelevante, pois através dessas "tautologias" é que avançamos do conhecimento menor para o maior. Dar-lhes esse nome é outro modo de dizer que são completa e absolutamente conhecidos. Observar detalhadamente que A encerra B (uma vez que tenha visto isso) envolve a admissão de que a asserção de A e a asserção de B encontram-se fundamentalmente na mesma asserção. O grau em que qualquer proporção verdadeira é uma tautologia depende do grau de sua percepção com respeito à mesma. 9 x 7 = 63 é uma tautologia para o matemático, mas não para a criança que aprende a tabuada nem para o calculista primitivo que chegou a esse total talvez somando sete noves. Se a natureza consistir de um sistema inteiramente interligado, então toda declaração verdadeira sobre a mesma (p.e., o verão de 1959 foi muito quente) seria uma tautologia para uma inteligência que pudesse apreender esse sistema em sua totalidade. "Deus é amor" pode ser uma tautologia para os serafins, mas não para os homens.

 

Alguém pode dizer porém: "Mas é incontestável que de fato chegamos às verdades através de deduções". Concordo. Tanto o naturalista como eu admitimos isso. Não poderíamos discutir nada a não ser que concordemos. A diferença que estou apresentando é que ele dá, enquanto eu não dou, uma história da evolução da razão que não coincide com as reivindicações feitas por ele e por mim com respeito à inferência da maneira como realmente a praticamos. A história dele é, e de acordo com a natureza do caso só pode ser, um relato, em termos de Causa e Efeito, de como as pessoas vieram a pensar como fazem. Isto naturalmente deixa no ar a pergunta de como poderiam estar justificadas em pensar assim. Isto coloca sobre ele a tarefa embaraçosa de tentar mostrar como o produto evolutivo que descreveu poderia ser também um poder de "verificar" verdades.

 

Mas, a tentativa é absurda em si mesma. Podemos ver isto melhor se considerarmos a forma mais humilde e mais desesperadora em que poderia ser feita. O naturalista talvez dissesse: "Bem, talvez não possamos ver exatamente  ainda não  como a seleção natural   transformaria o comportamento mental sub-racional em inferências que alcancem a verdade. Mas temos certeza de que foi isto de fato que aconteceu, pois a seleção natural tende a preservar e aumentar o comportamento útil. Descobrimos também que nossos hábitos dedutivos são na verdade úteis, e sendo úteis devem alcançar a verdade".

 

Veja, porém, o que estamos fazendo. A própria inferência está sendo julgada. Isto é, o naturalista descreveu aquilo que julgávamos ser nossas deduções, o que sugere não serem percepções reais de forma alguma. Tanto nós como ele queremos ser tranqüilizados. E essa afirmação revela ser mais uma inferência (se é útil então é verdadeiro)  como se esta inferência não estivesse sob a mesma suspeita que as demais, uma vez que aceitemos sua representação evolutiva. Se o valor de nosso raciocínio está sendo posto em dúvida, não se pode estabelecê-lo através da razão. Se, como disse acima, uma prova de que não existem provas é tolice, também o é a prova de que existem provas. A razão é nosso ponto de partida. Não pode haver questão seja de atacá-la ou defendê-la. Se ao tratá-la como um simples fenômeno você se coloca fora dela, não existem então meios de entrar novamente, exceto ao assumirmos uma verdade sem que ela seja provada.

 

Resta ainda uma posição mais humilde. Você pode, se quiser, desistir de qualquer direito sobre a verdade, dizendo simplesmente: "Nossa maneira de pensar é útil"  sem acrescentar, nem mesmo baixinho, "e portanto verdadeira". Ela nos capacita a endireitar um osso, construir uma ponte e fazer um foguete espacial. E isso basta. As velhas e elevadas pretensões à razão devem ser postas de lado. Trata-se de um comportamento desenvolvido inteiramente como um auxílio à prática. Esse o motivo pelo qual, quando fazemos uso dele simplesmente na prática, nos damos perfeitamente bem; mas quando partimos para a especulação e tentamos obter uma visão geral da "realidade" acabamos por nos envolver nas disputas infindáveis, inúteis e provavelmente apenas verbais do filósofo. Seremos mais humildes daqui por diante. Adeus a tudo isso. Nada mais de teologia, de ontologia, de metafísica.

 

Mas, então, igualmente, nada mais de naturalismo; desde que este, com certeza, não passa de um dos principais espécimes dessa violenta especulação, descoberta a partir da prática e ultrapassando a experiência, que está sendo agora condenada. A natureza não é um objeto que possa ser apresentado seja aos sentidos ou à imaginação. Ela só pode ser alcançada pelas mais remotas inferências. Ou nem sequer alcançada, mas apenas abordada. E a esperada, a suposta unificação em um único sistema interligado de todas as coisas inferidas de   nossos experimentos científicos. E, além disso, o naturalista, não satisfeito com essa afirmação, vai para a asserção negativa radical: "Não existe nada exceto isto"  uma afirmativa com certeza tão distante da prática, experiência e qualquer verificação concebível como jamais foi feita desde que os homens começaram a fazer uso da razão especulativamente. Entretanto, no presente ponto de vista, o primeiro passo para tal uso foi um abuso, uma perversão de uma faculdade simplesmente prática, e a fonte de todas as quimeras.

 

Nesses termos a posição teísta deve ser uma quimera quase tão absurda quanto a do naturalista. (Quase, mas não igual, pois ela se abstém da suprema audácia de uma negativa completa.) Mas o teísta não precisa admitir esses termos e não o faz. Ele não está preso à idéia de que a razão é um desenvolvimento comparativamente recente modelado por um processo de seleção que só pode selecionar os que forem biologicamente úteis. Para ele a razão , a razão de Deus,  é mais velha que a natureza e dela deriva a ordem da mesma, que é a única coisa que nos capacita a conhecê-la. Para ele, a mente humana no ato do conhecimento é iluminada pela razão divina, sendo assim liberta, na medida necessária, do imenso vínculo da causalidade não-racional; livre deste para ser determinado pela verdade conhecida. E os processos preliminares dentro da natureza, que levaram a esta liberação, se houve algum, foram designados para tanto.

 

Chamar o ato do conhecimento  o ato, não o de lembrar que algo foi assim no passado, mas de "ver" que deve ser sempre assim e em qualquer mundo possível  chamar este ato de "supranatural", é violentar nosso uso lingüístico comum. Naturalmente não significamos com isso que seja fantasmagórico, ou sensacional, ou mesmo (em qualquer sentido religioso) "espiritual". Queremos dizer apenas que "não se ajusta"; que tal ato, para ser o que alega ser  e se não for, toda nossa linha de pensamento será suspeita  não pode consistir simplesmente da manifestação num dado lugar e tempo desse sistema de eventos total e quase sempre descuidado que designamos como "natureza". É preciso que se desligue suficientemente desse mecanismo encadeado universal para ser determinado por aquilo que conhece.

 

É importante, neste ponto, certificar-se de que no caso de ocorrerem fantasias vagamente espaciais (e em muitas mentes elas certamente ocorrerão), estas não devem ser do tipo errado. É melhor que não consideremos nossos atos racionais como algo "acima", "por trás", ou "além" da natureza. Mas, pelo contrário, "deste lado da natureza"  se tiver de pensar em termos espaciais, faça com que as imagens fiquem entre nós e ela. A idéia que fazemos da natureza   é sempre alcançada por meio de inferências. O raciocínio é dado antes da natureza e é dele que depende nosso conceito da mesma. Nossos atos dedutivos antecedem nossa imagem da natureza, quase como o telefone antecede a voz amiga que ouvimos através dele. Quando tentamos enquadrar esses atos na idéia da natureza, fracassamos. O item que colocamos no quadro com o rótulo "Razão" sempre acaba sendo de algum modo diferente da razão que possuímos e exercemos enquanto o colocamos nele.

 

A descrição do pensamento como um fenômeno evolutivo sempre faz uma exceção tácita a favor do conceito que temos no momento. Pois um deles, como qualquer outro feito especial, só pode revelar, em determinados momentos e determinadas consciências, o funcionamento geral e em sua maior parte não-racional, de todo o sistema interligado. O outro, nosso ato presente, afirma e deve afirmar, ser um ato de percepção, um conhecimento suficientemente livre da causalidade não-racional para ser determinado (positivamente) apenas pela verdade que conhece.

 

Mas o pensamento imaginário que colocamos no quadro depende,  pois toda nossa idéia sobre a natureza é condicional  dos pensamentos que estamos na verdade tendo e não vice-versa. Esta é a realidade principal, sobre a qual repousa a atribuição de realidade a qualquer outra coisa. Se não se ajustar à natureza, nada podemos fazer. Não iremos com certeza, por causa disso, desistir dela. Se agirmos assim, estaríamos desistindo da natureza.

 

A Natureza e a Supranatureza

 

Através de toda a longa tradição do pensamento europeu foi dito, não por todas mas pela maioria das pessoas, ou pelo menos pela maioria daquelas que provaram ter direito a serem ouvidas, que a natureza embora seja uma coisa que existe realmente, não existe em si mesma ou por direito próprio, mas é uma coisa que depende de uma outra para a sua existência.

R. C. COLLINOWOOD, The Idea of Nature, 3, 3

 

Se nosso argumento tem-se mostrado sólido, os atos de raciocínio não estão interligados com o sistema de integração total da natureza como todos os demais itens se acham interligados nela. Eles se associam a ela de um modo diferente; da mesma forma que o conhecimento de uma máquina se acha certamente ligado a ela, mas não da mesma maneira que suas peças têm conexão com as outras. O conhecimento de uma coisa não é uma das partes dessa coisa. Neste sentido, algo, além da natureza, entra em operação quando raciocinamos. Não estou afirmando que a percepção como um todo deva ser necessariamente colocada na mesma posição. Prazeres, dores, temores, esperanças, afetos e imagens mentais não o são. Não haveria nenhum absurdo em considerá-los como partes da natureza. A distinção que temos de fazer não é entre a "mente" e a "matéria", e muito menos entre "alma" e "corpo" (palavras difíceis, todas elas), mas entre razão e natureza: a fronteira que não surge onde termina o   "mundo exterior" e onde começa o que eu deveria chamar geralmente de "eu", mas entre a razão e todo o acúmulo de eventos não-racionais, quer físicos ou psicológicos.

 

Nessa fronteira, o tráfico é pesado, mas também de mão única. Pela experiência, sabemos que os pensamentos racionais nos induzem e nos capacitam a alterar o curso da  natureza física quando fazemos uso da Matemática para construir pontes, ou da Psicológica quando aplicamos argumentos para modificar nossas  próprias emoções. Temos mais êxito em modificar a natureza física do que a psicológica, mas pelo menos influenciamos ambas até certo ponto. Por outro lado, a natureza é absolutamente incapaz de produzir o pensamento racional. Não que jamais modifique nosso modo de pensar, mas que no momento em que o faz, ela cessa (por essa mesma razão). de ser racional. Como já vimos, uma linha de pensamento perde toda a sua racionalidade no momento em que possa ser mostrado que não passa do resultado de causas não-racionais.

 

Quando, por assim dizer, a natureza tenta fazer coisas com referência aos pensamentos racionais, ela acaba por matá-los. Esse é o estado peculiar de coisas na fronteira. A natureza só pode invadir a razão para matar; mas a razão pode penetrar na natureza a fim de tomar prisioneiros e até mesmo para colonizar. Cada objeto à sua frente, neste momento,  paredes, teto, móveis, o livro, suas mãos lavadas e com as unhas cortadas, dão testemunho da colonização da natureza pela razão, pois nenhuma dessas coisas estaria nessas condições se a natureza seguisse o seu curso. E se você estiver acompanhando meus argumentos tão de perto quanto espero, essa sua atenção também resulta de hábitos que a razão impôs sobre as divagações naturais da consciência. Se, por outro lado, uma dor de dentes ou uma ansiedade estiver neste momento impedindo que me acompanhe, então a natureza estará sem dúvida interferindo na sua percepção, não, porém, com a finalidade de produzir uma nova variedade de raciocínio, mas apenas (na medida do que lhe é possível) suspender por completo a razão.

 

Em outras palavras, a relação que existe entre razão e a natureza é aquela que alguns chamam de Relação Assimétrica. A irmandade é uma relação simétrica porque se A é irmão de B, B é irmão de A. Pai e filho é uma relação assimétrica, porque se A é pai de B, B não é pai de A. A relação entre a razão e a natureza é desta espécie. A razão não está relacionada com a natureza da mesma forma que esta se relaciona com a razão.

 

Posso entender muito bem como os que aceitam o naturalismo ficarão chocados com o quadro que começa a surgir. Para falar francamente, trata-se de um quadro em que a natureza (pelo menos na superfície de nosso próprio planeta) foi perfurada completamente por pequenos orifícios em toda a sua extensão, em cujos pontos algo de uma espécie diversa dela mesma  a saber, a razão pode afetá-la. Só posso pedir-lhe, antes de jogar fora este livro, que considere seriamente se a sua repugnância instintiva a tal conceito é na realidade racional, ou apenas emocional e estética. Sei que a ânsia ardente por um universo homogêneo, em que tudo seja da mesma espécie,  uma continuidade, um tecido sem costura, um universo democrático  está profundamente arraigada no coração do homem moderno: tanto no meu como no seu. Mas, temos nós qualquer garantia de que as coisas sejam assim? Estaremos tomando por uma probabilidade intrínseca o que não passa realmente do desejo humano de ordem e harmonia? Bacon nos advertiu há muito tempo que "o entendimento humano, pela sua própria natureza, tende a supor a existência de mais ordem e regularidade no mundo do que na verdade existe. Embora haja muitas coisas únicas e incomparáveis, ela entretanto inventa para as mesmas paralelos, conjugações e relacionamentos inexistentes. Haja vista a ficção de que todos os corpos celestiais se movem em círculos perfeitos" (Novurn Organum, 1, 45). Penso que Bacon estava certo. A própria ciência já fez com que a realidade parecesse menos homogênea do que supúnhamos. O atomismo newtoniano era muito mais o tipo de coisa que esperávamos (e desejávamos) do que a física quântica.

 

Se você pode, mesmo por um momento, suportar a idéia sugerida para a natureza, vamos considerar agora outro fator:  as razões, ou tipos de razões que a assaltam. Vimos que o pensamento racional não faz parte do sistema da natureza. Em cada homem deve existir uma área (por menor que seja) de atividade que fica fora ou independente dela. Em relação à natureza, o pensamento racional continua "de si mesmo" ou existe "por si mesmo". Não se segue, porém, que o pensamento racional exista absolutamente por si mesmo. Ele poderia independer da natureza, dependendo entretanto de outra coisa; pois não é a simples dependência mas sim a dependência do irracional que destrói a credibilidade do pensamento. A razão de alguém foi levada a ver coisas com a ajuda da de outro, e não perdeu nada com isso. Continua então em aberto a questão se a razão de cada indivíduo existe absolutamente de si mesma ou resulta de alguma causa (racional), isto é, de alguma outra razão. Essa outra razão poderia provavelmente depender de uma terceira, e assim por diante. Não importa até que ponto este processo continuasse desde que você descobrisse a razão originando-se na razão a cada estágio. Somente quando somos solicitados a crer na razão surgida da não-razão é que devemos fazer uma pausa, pois, se não fizermos isso, todo pensamento será posto em dúvida. Fica portanto evidenciado que mais cedo ou mais tarde você deve admitir uma razão que exista absolutamente de si mesma. O problema está em você ou eu podermos ser uma tal razão auto-existente.

 

Esta pergunta responde praticamente a si mesma no momento em que nos lembramos do significado da existência "por si mesma". Ela indica o tipo de existência que o naturalismo atribui ao "conjunto" e o supranaturalismo atribui a Deus. Por exemplo, o que existe de si mesmo deve ter existido desde a eternidade: pois se algo pudesse fazê-lo começar a existir então ele não existiria por si mesmo mas por causa de uma outra coisa. Deve também existir incessantemente; isto é, não pode deixar de existir e depois começar de novo. Pois uma vez que cesse, não poderá naturalmente chamar a si mesmo de volta à existência, e se uma outra coisa fizesse isso, seria então um ser dependente. Fica, pois, claro, que minha razão desenvolveu-se gradualmente desde o meu nascimento, sendo interrompida por algumas horas todas as noites. Não posso, portanto, ser aquela razão eterna e auto-existente que nem dormita nem dorme. Todavia, se qualquer pensamento deva ser válido, tal razão deve existir e deve ser a fonte de minha própria racionalidade imperfeita e intermitente. A mente humana não é então a única entidade supranatural em existência. Ela não sai do nada. Cada mente humana entrou na natureza através da supranatureza: cada uma tem suas raízes em um Ser eterno, auto-existente, racional, a quem chamamos Deus. Cada uma é um ramo, uma ponta de lança, uma incursão dessa realidade supranatural na natureza.

 

Alguns poderão levantar aqui a seguinte questão: Se a Razão se acha algumas vezes presente em minha mente e outras não, em lugar de dizer que "eu" sou um produto da razão eterna, não seria mais prudente dizer apenas que a razão eterna opera ocasionalmente através de meu organismo, permitindo que eu me mantenha apenas como um ser natural? O fio não se modifica se uma corrente elétrica passar através dele, tornando-se outra coisa além de um fio. Mas, em minha opinião, esse tipo de conversa nos faz esquecer o que é o raciocínio. Não é um objeto que bate contra nós, nem sequer uma sensação que sentimos. O raciocínio não "acontece": nós o fazemos. Toda linha de pensamento é acompanhada pelo que Kant chamou de "eu penso".

 

A doutrina tradicional de que sou uma criatura a quem Deus conferiu raciocínio mas que difere dEle, me parece muito mais filosófica do que aquela de que o que parece ser um pensamento meu é na verdade Deus pensando através de mim. Neste último conceito é difícil explicar o que acontece quando penso corretamente, mas chego a conclusões falsas por ter sido mal informado com respeito aos fatos. Por que Deus,  que provavelmente conhece os fatos verdadeiros,  iria ter o trabalho de pensar um de seus pensamentos perfeitamente racionais através de uma mente em que esteja destinado a produzir erro, é algo que não compreendo. Também não entendo por que, se todos os "meus" pensamentos válidos são na verdade de Deus, Ele iria tomá-los erradamente como meus ou fazer com que me enganasse julgando serem meus. Parece muito mais provável que os pensamentos humanos não sejam de Deus, mas inspirados por Ele.

 

Apresso-me, entretanto, a acrescentar que este livro tem como tema os milagres, não se referindo a tudo que existe. Não estou tentando apresentar uma doutrina completa sobre o homem: nem pretendo de forma alguma insinuar um argumento a favor da "imortalidade da alma". Os primeiros documentos cristãos concordam de maneira casual e pouco enfática com a crença de que a parte sobrenatural do homem sobrevive à morte do organismo natural. Mas eles se interessam muito pouco pela matéria. No que demonstram profundo interesse é a restauração ou "ressurreição" da criatura em seu todo mediante um ato divino milagroso. E até que cheguemos a alguma conclusão sobre os milagres em geral, não iremos certamente discutir tal coisa. Neste estágio, o elemento supranatural no homem só nos preocupa como evidência de que existe algo além da natureza. A dignidade e o destino do homem nada têm a ver, presentemente, com o argumento em questão. Estamos interessados no ser humano apenas em vista de sua racionalidade ser a brecha reveladora de que existe algo além ou por trás dela.

 

Num tanque cuja superfície estivesse completamente coberta de espuma e vegetação flutuante, poderia haver alguns nenúfares e você poderia naturalmente interessar-se por eles pela sua beleza. Mas o seu interesse talvez estivesse também ligado ao fato de, pela sua estrutura, ser possível deduzir que possuíam caules subaquáticos que alcançavam as raízes no fundo.

 

O naturalista julga que o tanque (a natureza, o grande evento no espaço e no tempo) tem uma profundidade infinita,  que não existe nada senão água por mais que se desça. Minha afirmativa é que algumas das coisas na superfície (i.e., em nossa experiência) revelam o contrário. Essas coisas (as mentes racionais) revelam, após exame, que pelo menos não estão flutuando mas ligadas por caules ao fundo. Assim sendo, o tanque tem um fundo. Não se trata de um tanque, tanque para sempre. Aprofunde-se suficientemente e chegará a um ponto que não é tanque , há lama e terra, depois rocha, e finalmente chegará à massa total da terra e ao fogo subterrâneo.

 

É tentador ver neste ponto se o naturalismo pode ainda ser salvo. Salientei no Capítulo II que é possível permanecer naturalista mas, mesmo assim, crer numa certa espécie de Deus,  uma consciência cósmica que o "conjunto" de alguma forma fez surgir: o que poderíamos chamar de Deus Emergente. Um Deus Emergente não nos daria tudo o de que necessitamos? Será realmente necessário introduzir um Deus supranatural, distinto de todo o sistema interligado e fora dele? (Note, Leitor Moderno, como seu entusiasmo cresce, como você se sentiria mais à vontade com um Deus emergente, do que com um transcendente,  como o conceito emergente lhe pareceria muito menos primitivo, repugnante e ingênuo. Pois a isso, como verá mais tarde, liga-se uma história).

 

Mas, temo que não adiante. E lógico que se possa supor que no momento em que todos os átomos do universo entraram numa certa relação (na qual estavam destinados a entrar mais cedo ou mais tarde), eles fariam surgir uma consciência universal, que poderia ter pensamentos e poderia fazer com que eles passassem pela nossa mente. Mas, infelizmente, os seus pensamentos, nesta suposição, seriam o produto de causas não-racionais e, portanto, pela regra que usamos diariamente, eles não teriam valor. Esta mente cósmica seria, de forma bem semelhante à nossa, um produto da natureza inconsciente. Não escapamos da dificuldade, somente a colocamos num estágio mais afastado. A mente cósmica só nos ajudará se a colocarmos no início, se não supusermos que seja produto do sistema total, mas o Fato básico, original, auto-existente, que existe por direito próprio. Mas admitir esse tipo de mente cósmica é admitir um Deus fora da natureza, um Deus transcendente e sobrenatural. Este caminho que parecia oferecer uma fuga levou-nos de volta ao ponto em que começamos.

 

Existe então um Deus que não faz parte da natureza. Mas nada foi dito até agora para mostrar que Ele deve tê-la criado. Poderiam Deus e a natureza ser ambos auto-existentes e por completo independentes um do outro? Se você pensasse assim seria um dualista e teria uma opinião que considero mais viril e razoável do que qualquer forma de naturalismo. Você poderia ser outras coisas bem piores do que um dualista, mas eu não penso que o dualismo seja verdadeiro. Existe urna enorme dificuldade em conceber duas coisas simplesmente coexistentes sem qualquer outra relação entre elas. Se esta dificuldade, algumas vezes, não é notada por nós, isto se deve ao fato de sermos vítimas da imaginação. Nós realmente os imaginamos lado a lado em algum tipo de espaço. Naturalmente, porém, se estivessem ambos num espaço comum, ou tempo comum, ou em qualquer tipo de meio comum, seriam ambos parte de um sistema, de fato de uma "natureza". Mesmo que tenhamos êxito em eliminar tais idéias, o simples fato de tentar pensar neles juntos passa por cima da verdadeira dificuldade porque, pelo menos nesse momento, nossa própria mente se acha no meio comum. Se puder haver algo como simples "diversidade", se as coisas puderem apenas coexistir e nada mais, trata-se de qualquer modo de um conceito que a minha mente não consegue formar. E no presente caso, parece especialmente desnecessário tentar formá-lo, pois já sabemos que Deus e a natureza entraram numa certa relação. Eles possuem, no mínimo, uma relação  em certo sentido, quase uma fronteira comum  em toda mente humana.

 

As relações que surgem nessa fronteira são, na verdade, muito complexas e íntimas. Essa ponta de lança do supranatural, que chamo de razão, se associa com todo o meu conteúdo natural,minhas sensações, emoções e outras semelhantes  tão completamente que dou à mistura um nome de uma só sílaba "eu". Existe também o que chamei de caráter assimétrico das relações na fronteira. Quando as condições físicas do cérebro dominam meus pensamentos, elas só produzem desordem. Mas meu cérebro não perde nada de suas qualidades de cérebro quando é dominado pela razão, nem minhas emoções e sensações ficam reduzidas, deixando de ser emoções e sensações. A razão salva e fortalece todo o meu sistema psicológico  e físico, enquanto esse sistema ao revoltar-se contra a razão, destrói  tanto a esta como a si mesmo. A metáfora militar da ponta de lança  foi mal escolhida. A razão supranatural não penetra meu ser natural como uma arma, assemelhando-se mais a um feixe de luz que ilumina ou um princípio de organização que unifica e desenvolve. Nossa idéia da natureza sendo "invadida" (como se por um inimigo estranho) estava errada. Quando examinamos realmente uma dessas invasões, ela se parece mais com a chegada de um rei entre seus súditos ou um cornaca????? visitando o seu elefante. O elefante pode correr às cegas, a natureza pode rebelar-se; mas ao observar o que acontece quando a natureza obedece, é quase impossível deixar de concluir que a submissão faz parte da própria "natureza" dela. Tudo acontece como se ela tivesse sido designada exatamente para o papel.

 

Acreditar que a natureza produziu Deus ou mesmo a mente humana é, como já vimos, um absurdo. Acreditar que ambos são independentes e auto-existentes, é impossível: pelo menos a tentativa de fazer isso me torna incapaz de dizer que estou pensando em qualquer coisa que seja. É verdade que o dualismo possui certa atração teológica; ele parece facilitar o problema do mal. Mas se não pudermos, de fato, chegar a conclusões finais através do dualismo, esta atraente promessa jamais será cumprida, e penso que existem melhores soluções para o problema do mal. Resta então a crença de que Deus criou a natureza. Isto imediatamente fornece urna relação entre eles e afasta a dificuldade da simples "diversidade". Isto também se encaixa com a situação observada na fronteira, em que tudo faz parecer que a natureza não está resistindo a um invasor estranho mas se rebela contra um soberano legal. Isto, e talvez apenas isto, se enquadra no fato de que a natureza, embora não pareça inteligente, possui inteligência,  que os eventos nas partes mais remotas do espaço parecem obedecer às leis do pensamento racional. Nem mesmo o ato da criação em si apresenta qualquer das dificuldades intoleráveis que se nos apresentam em todas as demais hipóteses. Em nossa mente humana existe algo que se assemelha de leve a ele. Podemos imaginar, isto é, podemos causar figuras mentais de objetos materiais e até mesmo caracteres humanos, e acontecimentos. Ficamos aquém da criação de dois modos. Em primeiro lugar, só podemos recombinar elementos tomados de empréstimo do universo real: ninguém pode imaginar uma nova cor primária nem um sexto sentido. Em segundo lugar, o que imaginamos existe apenas em nossa consciência embora possamos, mediante palavras, induzir outras pessoas a construírem em sua mente quadros aproximadamente semelhantes. Teríamos de atribuir a Deus o poder de produzir tanto os elementos básicos, de inventar não apenas as cores, mas a própria cor, os próprios sentidos, o espaço e a matéria em si mesmos, como também de impor sobe as mentes criadas aquilo que inventou. Esta suposição não me parece intolerável. Ela é certamente mais suportável do que a idéia de Deus e a natureza como entidades afastadas por completo, e muito mais fácil do que a idéia da natureza produzindo o pensamento válido.

 

Não afirmo que a criação da natureza por parte de Deus possa ser tão rigorosamente provada quanto a existência dEle, mas a idéia me parece grandemente provável, tão provável que quem quer que aborde a questão com a mente aberta não irá com certeza cogitar de qualquer outra hipótese. De fato, poucas vezes encontramos pessoas que aceitem a existência de um Deus supranatural e ao mesmo tempo neguem que Ele seja o Criador. Toda a evidência que possuímos aponta nessa direção, e dificuldades começam a surgir de todo lado se tentarmos acreditar noutra coisa. Nenhuma teoria filosófica que já encontrei melhorou radicalmente as palavras de Gênesis: "No princípio criou Deus os céus e a terra. Digo "melhoria radical" porque a história de Gênesis,  como disse Jerônimo em tempos idos,  é contada na forma de "poesia popular" ou, como diríamos hoje, de forma folclórica. Mas se você compará-la às lendas da criação de outros povos  com todos aqueles deliciosos absurdos em que gigantes a serem despedaçados e dilúvios sustados são tidos como existentes antes da criação, a profundidade e a originalidade desta lenda do povo hebreu ficarão logo aparentes. A idéia da criação no rigoroso sentido da palavra é perfeitamente compreendida na mesma.

 

Uma Nova Dificuldade no Naturalismo

 

Até mesmo um determinista rigoroso como Karl Marx, que, às vezes, descrevia o comportamento social da burguesia em termos sugestivos de um problema de física social, podia submetê-lo outras vezes a um desdém destruidor só justificado pela pressuposição da responsabilidade moral.

       R. NJEBUHR, An Interpretation of Christian Ethics, chap 3

 

Algumas pessoas consideram o pensamento lógico como a mais mortal e árida de nossas atividades e podem então sentir repulsa pela posição privilegiada que lhe conferi no último capítulo. Mas o pensamento lógico,  o raciocínio  tinha de ser o pivô do argumento, pois, de todas as alegações apresentadas pela mente humana, a de que o raciocínio é válido, é a única que o naturalista não pode negar sem cortar sua própria garganta (falando em termos filosóficos). Não se pode, como vimos, provar que não existem provas. Mas, se quisermos, podemos considerar todos os ideais humanos como ilusões e todo amor humano como subproduto biológico. Isto é, você pode fazer isso sem incorrer em pura auto-contradição e insensatez. Se pode fazer isso sem uma improbabilidade extrema,  sem aceitar uma idéia de coisas em que ninguém realmente acredita é outro assunto.

 

Além de raciocínios sobre coisas concretas, os homens também fazem julgamentos morais. "Devo fazer isto", "não devo fazer isto". "Isto é bom." "Isto é mau." Dois pontos de vista são mantidos quanto aos julgamentos morais. Algumas pessoas acham que quando os fazemos não empregamos a razão, mas um outro poder diferente. Outros pensam que são produto de nossa razão. Eu adoto este segundo conceito. Isto é, acredito que os princípios morais primários, de que todos os demais dependem, são percebidos racionalmente. "Vemos" que não há razão para a felicidade de meu vizinho ser sacrificada em meu benefício, "vemos" da mesma forma que as coisas iguais a uma mesma coisa, são iguais entre si. Se não pudermos provar qualquer desses axiomas, não é pelo fato de serem irracionais, mas por serem auto-evidentes e todas as provas dependerem deles. A sua racionalidade intrínseca brilha por sua própria luz. Em vista de toda moralidade basear-se em tais princípios auto-evidentes é que dizemos a alguém, quando queremos fazê-lo voltar ao caminho certo: "Seja razoável".

 

Mas isso é incidental. Para o nosso propósito presente não importa qual dos dois pontos de vista seja adotado por você. O ponto focal é que os julgamentos morais fazem surgir a mesma espécie de dificuldade para o naturalismo que quaisquer outros pensamentos. Sempre supomos nas discussões sobre a moralidade, como em todas as demais discussões, que as idéias da outra pessoa são inválidas se puderem ser plenamente justificadas por qualquer causa não-moral e não-racional. Quando dois indivíduos diferem sobre o bem e o mal logo ouvimos este princípio sendo aplicado. "Ele acredita na santidade da propriedade por ser milionário." "Ele acredita no pacifismo porque é um covarde." "Ele aprova o castigo físico por ser sádico," Tais acusações podem ser freqüentemente inverídicas, mas o simples fato de serem feitas por um lado e calorosamente refutadas pelo outro, mostra muito bem que princípio está sendo utilizado. Nenhum dos lados duvida que se essas acusações fossem verdadeiras, seriam decisivas. Ninguém (na vida real) dá atenção a qualquer julgamento moral que possa ser mostrado como surgido de causas não-morais e não-racionais. Os freudianos e marxistas atacam a moralidade tradicional precisamente neste aspecto  e com pleno êxito. Todos os homens aceitam o princípio.

 

Mas, como é natural, aquilo que desacredita os julgamentos morais particulares deve igualmente desacreditar o julgamento moral como um todo. Se o fato de os homens terem idéias   sobre como "devo/não devo" puder ser explicado completamente por causas irracionais e não-morais, então essas idéias são uma ilusão. O naturalista está pronto a explicar como nasceu a ilusão. As condições químicas produzem vida. A vida, sob a influência da seleção natural, produz a consciência. Os organismos conscientes que se comportam de certa forma vivem mais tempo do que os que se comportam de outra. Por viverem mais, é maior a sua probabilidade de reprodução. A hereditariedade, e algumas vezes os ensinamentos, transmitem esse comportamento a sua prole. Assim sendo, em cada espécie se desenvolve um padrão de comportamento. Na espécie humana, o ensino consciente desempenha um papel mais relevante no desenvolvimento do mesmo, e a tribo o fortalece ainda mais, aniquilando os não-conformistas. Eles inventam também, deuses que, segundo dizem, castigam os que se desviam. Dessa forma, com o tempo, passa a existir um forte impulso humano no sentido de conformar-se; mas, como este impulso está quase sempre em oposição aos demais, surge um conflito mental, e o indivíduo se manifesta, dizendo: "Quero fazer A, mas devo fazer B".

 

Esta descrição pode (ou não pode) explicar por que os homens fazem na verdade julgamentos morais, embora não explique como estariam certos em fazê-los. Ela exclui, de fato, a própria possibilidade de estarem certos. Quando o indivíduo diz "devo", ele certamente pensa que está dizendo algo, e algo verdadeiro, quanto à natureza da ação proposta e não simplesmente falando de seus próprios sentimentos. Mas se o naturalismo estiver correto, "devo" seria a mesma espécie de declaração que "sinto calor" ou "estou me sentindo mal". Na vida real, quando o homem diz "devo", podemos responder: "Sim. Você está certo. É isso que se deve fazer", ou então, "Não. Acho que está enganado". Mas num mundo de naturalistas (se estes realmente aplicassem a sua filosofia fora da escola) a única resposta sensata seria: "Oh, você está?" Todos os julgamentos morais seriam declarações relativas aos sentimentos do interlocutor, tomados por ele como sendo declarações sobre outra coisa (a qualidade moral real dos atos) que não existe.

 

Uma doutrina como essa, como já admiti, não é completamente auto-contraditória. O naturalista pode sustentá-la ousadamente, se assim o desejar, dizendo talvez: "Sim. Concordo em que certo e errado não existe. Admito que nenhum julgamento moral pode ser "verdadeiro" ou "correto" e, em conseqüência, que nenhum sistema moral pode ser melhor ou pior do que outro. Todas as idéias a respeito do bem e do mal, não passam de alucinações,2 Mário, veja se esse 2 é indicação de nota) sombras lançadas no mundo exterior pelos impulsos que nos condicionamos a sentir. De fato, muitos naturalistas se deliciam em expressar-se assim.

 

Mas, é preciso então que se mantenham firmes, o que felizmente (embora com inconsistência) a maior parte dos verdadeiros naturalistas não faz. Mal acabam de admitir que o bem e o mal não existem, nós os vemos exortando-nos a trabalhar pela posteridade, a educar, a revolucionar, a liquidar, a viver e morrer pelo bem da raça humana. Um naturalista como H. C. Wells passou uma longa vida fazendo isso com apaixonada eloqüência e zelo. Mas, não será tal coisa muito estranha? Da mesma forma que todos os livros sobre nebulosas em espiral, átomos e homens das cavernas levariam você a supor que os naturalistas afirmavam conhecer verdadeiramente algo, assim também todos os livros em que eles nos dizem o que fazer nos levariam realmente a crer que alguns conceitos de bem (o seu próprio, por exemplo) são julgados por eles como sendo de alguma forma preferíveis a outros. Eles escrevem com indignação, como homens proclamando o que é bom em si mesmo e acusando o que é mau em si mesmo, e não como indivíduos registrando seu gosto pessoal pela cerveja suave enquanto outros preferem a do tipo amargo.

 

Todavia, se os "devo" do Sr. Wells e, digamos, do general Franco, forem ambos igualmente os impulsos que a natureza condicionou cada um a sentir e nenhum deles nos diga nada a respeito de qualquer objetivo certo ou errado, de onde vem todo esse fervor? Será que lembram, enquanto escrevem, que ao nos dizerem que "devemos" fazer um mundo melhor, as palavras "devemos" e "melhor" devem, por si mesmas, referir-se a um impulso condicionado irracionalmente que não pode ser nem mais verdadeiro nem mais falso do que um vômito ou um bocejo?

 

Penso que às vezes se esquecem disso. É essa justamente a sua glória. Defendem uma doutrina que exclui a humanidade, permanecendo ainda assim humanos. À vista da injustiça social jogam para o alto todo o seu naturalismo e falam como homens, e homens de gênio. Sabem muito mais do que pensam saber. Em outras ocasiões, porém, suspeito que estejam confiando num suposto meio de escape da sua dificuldade.

 

A coisa funciona, ou parece funcionar, deste modo. Eles dizem consigo mesmos: "Ah, sim, a moralidade" ou "a moral burguesa" ou "a moral convencional" ou "a moral tradicional" ou outra adição qualquer  "A moralidade é uma ilusão, mas descobrimos que nossos padrões de comportamento irão de fato contribuir para a preservação da raça humana. Esse é o comportamento que estamos insistindo para que adotem. Por favor, não nos tomem por moralistas. Estamos sob uma orientação completamente nova" .. . como se isso fosse ajudar. E ajudaria unicamente se concedêssemos, em primeiro lugar, que a vida é melhor do que a morte e, em segundo, que devemos cuidar da vida de nossos descendentes tanto ou mais ainda, do que das nossas. Esses são ambos julgamentos morais que, como todos os outros, foram descartados pelos naturalistas. Como é lógico, tendo sido condicionados pela natureza de um certo modo, sentimos isso a respeito da vida e da posteridade. Mas os naturalistas nos curaram, a fim de não tomarmos esses sentimentos por uma percepção daquilo que antes chamávamos de "valores reais".

 

Agora que sei que meu impulso de servir à posteridade eqüivale à minha predileção pelo queijo, agora que suas pretensões transcendentais foram expostas como sendo simuladas  você acha que irei prestar muita atenção a ele? Quando acontece ser forte (e ele enfraqueceu bastante desde que manifestou a sua verdadeira natureza) suponho que obedecerei. Quando for fraco, colocarei meu dinheiro no queijo. Não existe razão para estimular e encorajar um impulso em lugar do outro. Não agora que sei o que ambos representam. Os naturalistas não devem destruir toda a minha reverência pela consciência na segunda-feira e ainda esperar encontrar-me venerando-a na terça.

 

Não existe caminho de fuga ao longo dessas linhas. Se devemos continuar fazendo julgamentos morais (e não importa o que digamos, continuaremos fazendo isso) devemos então acreditar que a consciência do homem não é um produto da natureza. Ela só tem valor se for derivada de alguma sabedoria moral absoluta, urna sabedoria moral que existe absolutamente "de si mesma" não sendo um produto de uma natureza não-moral, não-racional. Como o argumento do capítulo anterior nos levou a reconhecer uma fonte sobrenatural para o pensamento racional, assim também o argumento deste nos leva a reconhecer uma origem sobrenatural para nossas idéias de bem e mal. Em outras palavras, sabemos agora mais alguma coisa sobre Deus. Se você acha que o julgamento moral difere do raciocínio, expressará este novo conhecimento dizendo: "Sabemos agora que Deus tem pelo menos um outro atributo além da racionalidade". Se, como eu, você pensa que o julgamento moral é um tipo de raciocínio, então dirá: "Sabemos mais agora sobre a razão divina".

 

Com isto estamos quase prontos para dar início ao nosso principal argumento. Mas antes de fazê-lo, será bom considerar alguns receios ou mal entendidos que já possam ter surgido.

 

Respostas aos Receios

 

Como os olhos do morcego estão para a luz, nosso olho intelectual está para aquelas verdades que, por sua própria natureza, são as mais evidentes de todas.

ARISTÓTELES, Metaphysics, 1 (Brevior) I

 

O fato de o argumento não nos ter levado até agora a qualquer conceito de "almas" ou "espíritos" (palavras que evitei) flutuando no reino da natureza sem qualquer relação com o seu ambiente, deve ficar bem claro. Portanto, não negamos, mas devemos até acolher, certas considerações com freqüência consideradas como provas do naturalismo. Podemos admitir, e até mesmo insistir, que o pensamento racional pode ser mostrado como tendo a sua prática condicionada por um objeto natural (o cérebro). Ele é temporariamente prejudicado pelo álcool ou um golpe na cabeça. Enfraquece com a deterioração do cérebro e desaparece quando este deixa de funcionar. O ponto de vista moral de uma comunidade pode, da mesma forma, ser exposto como estando intimamente ligado com sua história, contexto geográfico, estrutura econômica, e assim por diante. As idéias morais do indivíduo são igualmente associadas à sua situação geral. Não é por acidente que os pais e professores tantas vezes nos dizem que podem suportar qualquer vício menos a mentira, sendo porém esta a única arma defensiva da criança. Tudo isto, em lugar de nos apresentar uma dificuldade, é realmente aquilo que deveríamos esperar.

 

O elemento moral e racional em cada mente humana é um ponto de força do supranatural abrindo caminho na natureza, explorando em cada instância aquelas condições oferecidas pela mesma, repelido onde as condições são desesperadoras e impedido quando desfavoráveis. O pensamento racional do indivíduo é apenas aquela parte de sua participação na razão eterna que o estado de seu cérebro

permite entrar em operação. Ele representa, por assim dizer, o acordo feito ou a fronteira fixada entre a razão e a natureza nesse ponto particular. A perspectiva moral de uma nação é apenas aquela parte de sua contribuição à sabedoria moral que sua história, economia, etc., permite passar. A voz do comunicador é do mesmo modo apenas aquela parte da voz humana que o microfone deixa passar. Ela naturalmente varia conforme a condição deste, e deteriora se ele está gasto, desaparecendo por completo se eu jogar um tijolo nele. Ela é condicionada pelo aparelho, mas não teve origem nele. Se assim fosse, se soubéssemos que não existia um ser humano ao microfone, não daríamos atenção às notícias.

 

As várias e complexas condições sob as quais a razão e a moral aparecem são as sinuosidades e curvas da fronteira entre a natureza e a supranatureza. Essa a razão por que, se quiser, você pode sempre ignorar a supranatureza e tratar os fenômenos como sendo puramente naturais; do mesmo modo que alguém estudando num mapa os limites de comwall e Devonshire pode sempre dizer: "o que chamamos de saliência em Devonshire é sempre uma reentrância em comwall." E num certo sentido não podemos refutá-lo. O que chamamos de saliência em Devonshire é sempre uma reentrância em comwall. O que chamamos de pensamento racional no indivíduo sempre envolve uma condição do cérebro, no final de contas uma relação de átomos. Mas Devonshire é não obstante algo mais do que "onde termina comwall", e a razão é algo mais do que bioquímica cerebral.

 

Volto-me agora para outro possível receio. Para algumas pessoas, a grande dificuldade sobre qualquer argumento a favor do sobrenatural está simplesmente no fato de haver uma real necessidade do mesmo. Se uma coisa estupenda existe, não deveria ser ela tão evidente quanto o sol nos céus? Não é intolerável e até mesmo incrível que o conhecimento do mais básico de todos os Fatos seja apenas acessível através de raciocínios sutis, para os quais a maioria dos homens não tem tempo nem capacidade? Simpatizo muito com este ponto de vista, mas devemos notar duas coisas.

 

Quando você observa um jardim de um andar superior fica evidente (uma vez que pense no assunto) que está olhando por uma janela. Mas se for o jardim a razão do seu interesse, você pode observá-lo durante longo tempo sem pensar na janela. Quando está lendo um livro é óbvio (quando atenta nisso) que está usando seus olhos; mas a não ser que eles comecem a doer ou que o livro verse sobre óptica, você pode ler a noite inteira sem pensar uma só vez em olhos. Quando falamos, é evidente que fazemos uso da linguagem e da gramática, e ao tentarmos nos expressar numa língua estrangeira isso se torna ainda mais aparente. Mas quando falamos nossa própria língua nem sequer notamos isso.

 

Quando você grita do alto da escada: "Desço num minuto", não tem consciência de que fez uma concordância gramatical, com o verbo e o sujeito no singular. Conta-se a história de um índio que, tendo aprendido várias outras línguas, foi solicitado a preparar uma gramática do idioma usado pela sua tribo. Depois de pensar um pouco, ele respondeu que o mesmo não continha gramática. As regras gramaticais que usara a vida inteira nunca foram notadas por ele. Num sentido ele as conhecia muito bem, mas em outro não tinha conhecimento delas.

 

Todos esses exemplos mostram que aquilo que sob um certo aspecto é apresentado como o mais evidente e primário dos fatos, o único através do qual você tem acesso a todos os demais, pode ser na verdade o mais facilmente esquecido, não por ser assim tão remoto ou incompreensível, mas por estar tão próximo e manifesto. Foi exatamente desse modo que o supranatural acabou sendo posto de lado. Os naturalistas têm estado ocupados pensando na natureza, sem notar o fato de terem estado pensando. No momento em que atentamos para isso fica evidente que nosso pensamento não pode ser simplesmente um evento natural, e que portanto existe algo além da natureza. O supranatural não é remoto e confuso: trata-se de um assunto da experiência diária e de toda hora, tão pessoal quanto a respiração. A negação do mesmo depende de uma certa distração, mas esta não é de forma alguma surpreendente. Você não precisa e na verdade não quer estar sempre pensando em janelas quando olha para o jardim, nem quer pensar nos olhos quando faz uma leitura. Da mesma forma, o procedimento adequado para todas as interrogações limitadas e particulares é ignorar o fato de nossos próprios pensamentos, e concentrar-se no objeto. Só quando você se afasta das indagações particulares e tenta formar uma filosofia completa é que deve tomá-los em consideração, pois essa espécie de filosofia deve apropriar-se de todos os fatos. Nela, você põe de lado o pensamento especializado ou interrompido e se volta para o pensamento total: e um dos fatos que o pensamento total deve pensar é pensar ele mesmo. Existe assim uma tendência no estudo da natureza de fazer-nos esquecer o fato mais evidente de todos. E desde o século dezesseis, quando nasceu a Ciência, a mente dos homens se voltou cada vez mais para fora, a fim de conhecer a natureza e dominá-la. Eles cada vez mais se envolveram naquelas indagações especializadas para as quais o método correto é o pensamento truncado. Não é, portanto, surpreendente que tenham esquecido a evidência a favor do supranatural. O hábito profundamente arraigado do pensamento interrompido, que chamamos de hábito mental "científico", levaria com certeza ao naturalismo, a não ser que esta tendência fosse continuamente corrigida mediante outra fonte. Mas fonte alguma se achava à mão, pois durante o mesmo período os cientistas passaram a perder sua cultura metafísica e teológica.

 

Isso me leva à segunda consideração. A situação em que o povo comum pode descobrir o supranatural apenas pelo raciocínio abstruso é recente e, segundo os padrões históricos, anormal. No mundo inteiro, até quase os tempos modernos, a percepção direta dos místicos e os raciocínios dos filósofos filtravam-se até a massa do povo pela autoridade e tradição. Eles podiam ser recebidos por pessoas que não tinham elas mesmas grande capacidade para pensar, na forma concreta de mito e ritual e de todo o padrão de vida. Nas condições produzidas por um século ou mais de naturalismo, homens simples estão sendo forçados a suportar pesos que jamais tiveram de suportar antes. Devemos chegar sozinhos à verdade ou passar sem ela. Podem existir duas explicações para isto. Talvez a humanidade, ao rebelar-se contra a tradição e a autoridade, tenha cometido um erro gravíssimo; erro esse que não será menos fatal porque a corrupção dos investidos de autoridade o tornou perfeitamente justificável. Por outro lado, é possível que o Poder que governa a nossa espécie esteja neste momento levando a efeito uma experiência ousada. Teria sido propositado que toda a massa de povo devesse agora avançar e ocupar aquelas alturas antes reservadas apenas aos sábios? Deverá desaparecer a distinção entre simples e sábios porque se espera que agora todos se tornem sábios? Caso positivo, nossos erros presentes seriam apenas problemas comuns ao crescimento.

 

Não nos enganemos, porém, quanto às nossas necessidades. Se nos satisfizermos com retroceder e tornar-nos homens humildes e simples obedecendo a uma tradição, isso é bom. Se estivermos prontos a subir e lutar até nos tornarmos sábios, melhor ainda. Mas o homem que não quiser obedecer à sabedoria de outros nem aventurar-se a obtê-la para si, está perdido. A sociedade em que os muitos simples obedecem aos poucos com visão pode viver. Uma sociedade em que todos podem enxergar viveria ainda mais plenamente. A sociedade, porém, onde a massa continua simples, mas os que têm visão não mais são ouvidos, só pode alcançar superficialidade, torpeza, ignomínia, e por fim extinção. Para a frente ou para trás devemos ir, permanecer aqui é morte certa.

 

Um outro ponto que pode ter feito surgir dúvidas ou dificuldades precisa ser tratado agora. Avancei razões para acreditar que um elemento supranatural esteja presente em todo homem racional. A presença da razão humana no mundo é portanto um Milagre segundo a definição do Capítulo 2. Ao compreender isto o leitor poderá pensar, e com justiça: “Oh, mas isso é tudo que ele quer dizer por Milagre?”, e em seguida jogar o livro fora. Peço porém que tenha paciência.

 

A razão humana e a moralidade não foram mencionadas como exemplos de Milagre (pelo menos, não do tipo de Milagre que você gostaria de ouvir falar) mas como provas do supranatural. Não para mostrar que a natureza foi jamais invadida, mas de que existe um possível invasor. Quer você decida chamar ou não de Milagre a invasão familiar e repetida da razão humana é uma simples questão de palavras. A sua regularidade, o fato de entrar regularmente pela mesma porta, as relações sexuais humanas, podem incliná-lo a não fazer isso. E como se fosse (por assim dizer) a própria natureza da natureza a sofrer esta invasão. Mas podemos então descobrir mais tarde que pertencia em geral à própria natureza da natureza o sofrer Milagres. O curso de nosso argumento permitirá felizmente que deixemos de lado esta questão de terminologia. Vamos preocupar-nos com outras invasões da natureza, aquilo que todos chamariam de Milagres. Nossa pergunta pode ser colocada desta forma, se você quiser assim: "A supranatureza jamais produz resultados particulares no espaço e no tempo exceto através da instrumentalidade do cérebro humano agindo sobre os nervos e músculos do homem?"

 

Eu disse "resultados particulares" porque, em nossa teoria, a natureza como um todo é um resultado estupendo do supranatural: Deus a criou. Deus a penetra onde quer que exista uma mente humana. Deus provavelmente a mantém existindo.

 

A questão é se Ele jamais faz outra coisa a ela. Será que Ele, além de tudo isso, jamais introduz nela eventos em relação aos quais não seria verdadeiro dizer: "Isto é simplesmente o desenvolvimento do caráter geral que ele deu à natureza como um todo ao criá-la"? Esses eventos são popularmente chamados Milagres, e será apenas neste sentido que o termo Milagre vai ser empregado no restante do livro.

 

Um Capítulo de Pistas Falsas

 

Surgiu então Maul, um gigante. Este Maul costumava confundir os jovens peregrinos com sofismas.

BUNYAN

 

A admissão de que Deus existe e é o autor da natureza, de forma alguma prova que milagres devem ocorrer ou mesmo ocorram. O próprio Deus poderia ser um ente de tal espécie que fosse contrário ao seu caráter operar milagres. Ou então, Ele poderia ter feito a natureza de forma tal que ela não pudesse ser modificada, nem receber acréscimos ou decréscimos. O caso contra os Milagres se apóia assim em duas bases diferentes. Ou o caráter de Deus os exclui ou o caráter da natureza os exclui. Começaremos com a segunda que é a base mais popular. Neste capítulo vou considerar formas que, em minha opinião, são muito superficiais, que poderiam ser até chamadas de mal entendidos ou pistas falsas.

 

A primeira pista falsa é esta. Você pode ouvir um dia alguém (e não precisa ser necessariamente um indivíduo que não creia em Deus) dizer a respeito de algum milagre citado: "Não. Naturalmente não creio nisso. Sabemos que é contrário às leis da natureza. As pessoas podiam crer nisso nos tempos antigos quando não conheciam as leis da natureza. Sabemos que se trata de uma impossibilidade científica". Por "leis da natureza" penso que essa pessoa indica o curso observado pela natureza. Se incluir mais do que isso não é o homem simples que pensei, mas um naturalista filosófico e trataremos dele no capítulo seguinte. O indivíduo que tenho em mente acredita que a simples experiência (e em especial aquelas experiências realizadas artificialmente a que chamamos de experimentos) pode informar-nos o que acontece regularmente na natureza. E ele pensa que o que descobrimos exclui a possibilidade do milagre. Trata-se de uma confusão mental.

 

Admitida a possibilidade da ocorrência de milagres, fica portanto a cargo da experiência confirmar se algum deles ocorreu em qualquer ocasião determinada. Mas a simples experiência, mesmo que seja prolongada por um milhão de anos não pode dizer-nos se a coisa é possível. A experiência descobre o que acontece regularmente na natureza: a norma ou regra em relação à qual ela opera. Os que crêem em milagres não estão negando que exista tal norma ou regra, mas apenas que ela pode ser suspensa. O milagre, pela sua própria definição, constitui uma exceção. Como a descoberta da regra pode ensiná-los que, havendo uma causa suficiente, ela pode ser suspensa?

 

Se disséssemos que a regra era A, então a experiência poderia refutar-nos descobrindo que era B. Se afirmássemos não haver regra, a experiência poderia expor-nos observando que ela existe. Não estamos, todavia, dizendo qualquer dessas coisas. O que isso tem a ver com a questão de a regra poder ser interrompida? Você responde: "Mas a experiência mostrou que isso nunca aconteceu". Nós replicamos: "Mesmo que fosse assim, isso não prova que não haja uma possibilidade”. Será, porém, que a experiência mostra realmente que nunca aconteceu um milagre? O mundo está cheio de histórias contadas por pessoas que afirmam ter experimentado milagres. Talvez as histórias sejam falsas, talvez verdadeiras. Antes de decidir sobre essa questão histórica, você precisa primeiro (como mencionado no Capítulo 1) descobrir se a coisa é possível, e se possível, qual a sua probabilidade.

 

A idéia de que o progresso da ciência alterou de alguma forma esta questão está ligada de perto com a noção de que as pessoas "nos tempos antigos" acreditavam nelas porque "não conheciam as leis da natureza". Ouviremos então pessoas dizendo: "os primeiros cristãos acreditavam que Cristo era filho de uma virgem, mas sabemos ser esta uma impossibilidade científica". Tais pessoas parecem crer que a fé em milagres surgiu num período em que os homens eram tão ignorantes com relação ao curso da natureza a ponto de não perceber que um milagre era contrário a ele. Se pensarmos apenas um momento veremos que isto é tolice e a história do Nascimento Virginal é um exemplo particularmente surpreendente.

 

Quando José descobriu que sua noiva estava grávida, ele decidiu muito naturalmente repudiá-la. Por quê? Porque sabia tão bem quanto qualquer ginecologista moderno que no curso ordinário da natureza as mulheres não têm filhos a não ser que se tenham deitado com um homem. Os modernos ginecologistas sabem evidentemente muitas coisas a respeito do nascimento e concepção de filhos que José não sabia. Mas essas coisas não afetam o ponto principal: o Nascimento Virginal é contrário ao curso da natureza. E José com certeza sabia disso. Em qualquer sentido que se possa dizer hoje com veracidade: "A coisa é impossível cientificamente", ele teria dito o mesmo: isso sempre foi impossível e tido como uma impossibilidade, a não ser que os processos regulares da natureza estivessem, nesse caso particular, sendo superados ou suplementados por algo além dela. Quando José finalmente aceitou a idéia de que a gravidez de sua prometida não era devida à infidelidade mas a um milagre, ele aceitou o milagre como algo contrário à ordem conhecida da natureza.

 

Todos os registros de milagres ensinam a mesma coisa. Em tais histórias eles provocam medo e admiração (é justamente isto que o próprio termo milagre implica) entre os espectadores, e são tomados como evidência de poder sobrenatural. Se não fossem tidos como contrários às leis da natureza, como poderiam sugerir a presença do supranatural? Como poderiam surpreender se não fossem vistos como exceções às regras? E como pode algo ser considerado exceção até que as regras sejam conhecidas? Se jamais houvessem indivíduos que não conhecessem absolutamente as leis da natureza, eles não teriam idéia do que seria um milagre e não sentiriam qualquer interesse particular se um deles ocorresse à sua frente. Nada pode parecer extraordinário até que você tenha descoberto o que é ordinário. A crença em milagres, longe de depender da ignorância das leis da natureza, só é possível na medida em que essas leis são conhecidas. Já vimos que se começar por excluir o sobrenatural, você não irá perceber quaisquer milagres. Devemos acrescentar agora que igualmente não perceberá milagres até que acredite que a natureza opera segundo leis regulares. Se você ainda não notou que o sol sempre nasce do lado do oriente, não irá admirar-se se um dia ele se levantar no ocidente.

 

Se os milagres nos fossem oferecido como eventos normais, o progresso da ciência, cujo objetivo é mostrar-nos o que ocorre normalmente, iria então tornar a crença neles gradualmente mais difícil e afinal impossível. O avanço da ciência fez, justamente deste modo, (e para nosso grande benefício) com que muitas coisas em que nossos ancestrais acreditavam fossem provadas como impossíveis: formigas devoradoras de homens e grilos entre os citas, homens com um único pé gigantesco, ilhas magnéticas que atraíam todos os navios em sua direção, sereias, e dragões que expeliam fogo. Mas essas coisas jamais foram mostradas como uma interrupção sobrenatural do curso da natureza mas expostas como enquadradas no seu curso ordinário, de fato, como "ciência". Uma ciência posterior e superior removeu-as justamente. A posição dos milagres é por completo diferente. Se houvesse dragões que expelem fogo nossos caçadores especializados os descobririam, mas ninguém jamais supôs que o Nascimento Virginal ou o passeio de Cristo sobre as águas poderiam repetir-se. Quando algo demonstra desde o início constituir uma invasão singular da natureza por alguma coisa fora dela, o conhecimento progressivo da mesma não pode de modo algum torná-lo mais ou menos crível do que quando começou.

 

Neste sentido, trata-se de simples confusão mental supor que o avanço da ciência tenha tornado mais difícil para nós aceitar os milagres. Sempre soubemos que eram contrários ao curso natural dos acontecimentos; sabemos ainda que se houver algo além da natureza, eles são possíveis. Esses são os elementos básicos da questão; o tempo e o progresso da ciência e da civilização não os alteraram de forma alguma. As bases para a crença ou descrença são hoje as mesmas de há dois mil, ou dez mil, anos atrás. Se faltasse a José fé em Deus ou humildade de espírito para perceber a santidade de sua desposada, ele poderia ter descartado a origem milagrosa do Filho dela tão facilmente quanto qualquer homem moderno; e qualquer homem moderno que acredita em Deus pode, por sua vez, aceitar o milagre com a mesma facilidade de José. É possível que você e eu não venhamos a concordar, mesmo ao terminar este livro, quanto à ocorrência ou não dos milagres. Mas pelo menos não vamos falar tolices. Não vamos permitir que uma retórica vaga a respeito da marcha da ciência nos leve a supor que o mais complicado relato do nascimento, em termos de genes e espermatozóides, possa convencer-nos mais do que estávamos antes de que a natureza não envia bebês a jovens mulheres que "não conhecem homem".

 

A segunda pista falsa é esta. Muitas pessoas dizem: "Eles podiam crer em milagres outrora porque tinham um conceito errado do universo. Julgavam que a Terra era a coisa maior que havia nele e o Homem a criatura mais importante. Parecia, pois, razoável supor que o Criador estivesse especialmente interessado no ser humano e pudesse até interromper o curso da natureza a fim de beneficiá-lo. Agora que sabemos a real imensidão do universo, agora que compreendemos que nosso planeta e também todo o sistema solar não passam de um grão de pó torna-se ridículo continuar acreditando neles. Descobrimos nossa insignificância e não podemos supor que Deus esteja tão drasticamente preocupado com tais insignificâncias."

 

Qualquer seja o seu valor como argumento, pode ser imediatamente declarado que este ponto de vista acha-se por completo iludido em relação aos fatos. A imensidão do universo não é descoberta recente. Há mais de 1.700 anos, Ptolomeu ensinou que em relação à distância das estrelas fixas a Terra deve ser considerada como um ponto sem qualquer magnitude. Seu sistema astronômico foi universalmente aceito na Idade Média. A insignificância da terra era tanto um lugar comum para Boethius, o rei Alfredo, Dante e Chaucer, como o é para H.G. Wells ou o Professor Haldane. Quaisquer declarações em contrário na moderna literatura são devidas à ignorância.

 

A verdadeira questão é muito diferente do que em geral supomos. A pergunta em si é por que a insignificância da terra em relação ao espaço, depois de confirmada por filósofos cristãos, cantada pelos poetas cristãos, e comentada pelos moralistas cristãos durante cerca de quinze séculos, sem qualquer suspeita de que entrasse em conflito com a sua teologia, devesse repentinamente nos tempos modernos ser estabelecida como um argumento contrário ao cristianismo e fazendo, nessa capacidade, uma brilhante carreira. Vou oferecer um palpite sobre a resposta a esta questão, mas no momento vamos considerar a força deste argumento comum.

 

Quando o médico numa autópsia examina os órgãos do morto e diagnostica envenenamento, ele tem uma idéia clara do estado em que os órgãos estariam se o indivíduo tivesse tido uma morte natural. Se com base na vastidão do universo e na insignificância da terra pudéssemos diagnosticar que o cristianismo é falso, devemos ter então idéia da espécie de universo que deveríamos esperar se ele fosse verdadeiro. Mas, será que temos? Qualquer que seja o espaço real, é certo que nossa percepção faz com que pareça tridimensional; e fronteiras não são concebíveis para um espaço tridimensional. Portanto, pelas próprias formas de nossas percepções, devemos sentir como se vivêssemos nalgum lugar do espaço infinito; assim também, qualquer que seja o tamanho da terra, ele deve ser naturalmente muito pequeno em comparação com o infinito. E este espaço ilimitado ou está vazio ou contém corpos. Se vazio, não conteria então nada além de nosso próprio Sol, sendo esse vácuo imenso certamente usado como um argumento contra a própria existência de Deus.

 

Por quê, perguntaríamos, iria Ele criar algo ínfimo e deixar todo o restante do espaço vazio? Se, por outro lado, descobrirmos (e na verdade o fazemos) inúmeros corpos flutuando no espaço, eles deverão estar habitados ou desabitados. O que é estranho é o fato de ambas as alternativas serem igualmente usadas como objeções ao cristianismo. Se o universo estiver repleto de outras vidas além das nossas, é-nos dito que isto torna perfeitamente ridícula a crença de que Deus pudesse interessar-se tanto pela raça humana a ponto de "descer do céu" e tornar-se homem a fim de remi-la. Se, por outro lado, nosso planeta é realmente o único a conter vida orgânica, julga-se então que isto seja uma prova de que a vida não passa de um subproduto acidental no universo refutando novamente a nossa religião. Tratamos Deus como o policial da história tratou o suspeito; o que quer que fizesse "seria usado como evidência contra ele".

 

Esta espécie de objeção contra a fé cristã não está realmente baseada na natureza observada do universo real; você pode apresentá-la sem esperar para descobrir como ele é realmente, pois ela irá ajustar-se a qualquer tipo de universo que decidamos imaginar. O médico pode diagnosticar envenenamento sem examinar o cadáver, pois irá manter sua teoria a respeito do caso qualquer que seja a condição em que encontre os órgãos.

 

A razão pela qual nem sequer podemos imaginar um universo construído de forma a excluir essas objeções, talvez seja a seguinte. O homem é uma criatura finita com senso suficiente para aceitar a sua finitude: assim sendo, em qualquer ponto de vista concebível ele se vê apoucado pela realidade como um todo. Ele é também um ser derivado: a causa de sua existência não faz em si mesmo (imediatamente) mas em seus pais e (finalmente), ou no caráter da natureza como um todo ou (se houver um Deus) em Deus. É preciso porém haver algo, seja Deus ou a totalidade da natureza, que exista de si mesmo ou opere "por si mesmo"; não como o produto de causas além de si mesmo, mas simplesmente porque faz isso. Em face dessa coisa, o que quer que seja, o homem deve sentir que sua experiência derivada não é importante, sendo mesmo irrelevante, quase acidental. Não se trata de as pessoas religiosas imaginarem que tudo existe em função de o homem e os cientistas descobrirem que não é assim. Quer o ser último e inexplicável, aquilo que simplesmente é, venha a manifestar-se como sendo Deus ou "o conjunto", ele naturalmente não existe para nós. Sob qualquer desses conceitos enfrentamos algo que existia antes de a raça humana ter surgido e que existirá depois de a terra tornar-se inabitável; que independe totalmente de nós embora dele dependamos inteiramente; e que, mediante extensões imensas do seu ser, não tem relação com nossas próprias esperanças e temores. Pois homem algum, suponho eu, jamais chegou à loucura de pensar que o ser humano, ou toda a criação, enchesse a mente divina; se somos insignificantes em relação ao tempo e ao espaço, estes são ainda menores para Deus.

 

Cometemos um enorme erro ao imaginar que o cristianismo pretendesse de qualquer forma dissipar o espanto, até mesmo o terror e a sensação de insignificância que nos envolve quando pensamos na natureza das coisas. Isso acontece exatamente para que esse sentimento se intensifique, pois sem ele não haveria religião. Muitos indivíduos que cresceram professando uma forma superficial de cristianismo, que mediante a leitura de algum compêndio de astronomia vieram a compreender pela primeira vez quão indiferente é para o homem a maior parte da realidade, e que talvez venham a abandonar sua religião devido a isso, podem estar nesse exato momento tendo sua primeira experiência genuinamente religiosa.

 

O cristianismo não abrange a crença de que todas as coisas foram feitas para o homem, mas sim que Deus ama o ser humano; e, por sua causa, fez-se homem e morreu. Não consegui ver ainda como o que sabemos (e temos conhecido desde os dias de Ptolomeu) a respeito do tamanho do universo possa afetar a credibilidade desta doutrina de uma ou outra forma.

 

O cético pergunta como podemos crer que Deus "desceu" assim a este minúsculo planeta. A pergunta seria embaraçosa se soubéssemos (1) que existem criaturas racionais em qualquer dos outros corpos que flutuam no espaço; (2) que eles, como nós, caíram e precisam de redenção; (3) que a redenção dos mesmos precisa ser feita do mesmo modo que a nossa; (4) que essa forma de redenção foi negada a eles. Mas nada sabemos quanto a isso. O universo pode estar cheio de vidas felizes que nunca precisaram de redenção. Pode estar cheio de vidas que foram temidas de formas adequadas à sua condição, as quais não podemos conceber. Pode estar cheio de vidas remidas de maneira idêntica à nossa. Pode estar cheio de coisas que não sejam vida, pelas quais Deus se interessa, embora nós não o façamos.

 

Se for dito que algo tão pequeno quanto a Terra deve, de qualquer modo, ser demasiado insignificante para merecer a atenção do Criador, respondemos que cristão algum jamais supôs que nós a merecêssemos. Cristo não morreu pelos homens por serem eles intrinsecamente dignos dessa morte, mas por que Ele era intrinsecamente amor, e portanto ama infinitamente. E, afinal de contas, o que o tamanho de um mundo ou de uma criatura nos diz sobre a sua "importância" ou valor?

 

Não há dúvida de que todos sentimos a contradição em supor, por exemplo, que o planeta Terra seja mais importante que a Grande Nebulosa em Andrômeda. Por outro lado, estamos todos certos que apenas um lunático pudesse pensar que um homem de 1,80m seja necessariamente mais importante que um de 1,50m, ou um cavalo mais importante que um homem, ou as pernas deste mais importantes que seu cérebro. Em outras palavras, esta suposta relação entre tamanho e importância só é plausível quando os tamanhos envolvidos são muito grandes. E isto indica a verdadeira base deste tipo de pensamento. Quando a razão percebe uma relação ela é entendida como sustentada universalmente. Se nossa razão nos dissesse que o tamanho era proporcional à importância, então pequenas diferenças de tamanho seriam acompanhadas por pequenas diferenças em importância, da mesma forma que as grandes diferenças de tamanho se fariam seguir de grandes diferenças em importância. O seu homem de 1,80m teria de valer um pouco mais do que o de 1,50m, e a sua perna ser um pouco mais importante do que seu cérebro, o que todos sabem ser tolice. A conclusão é inevitável: a importância que associamos a grandes diferenças de tamanho não é um assunto da razão mas da emoção, daquela emoção peculiar que a superioridade de tamanho produz em nós depois de certo ponto de tamanho absoluto ter sido alcançado.

Somos poetas inveterados. Quando uma quantidade é excessivamente grande deixamos de considerá-la como uma simples quantidade. Nossa imaginação desperta. Em lugar de mera quantidade, temos agora uma qualidade: o Sublime. Se não fosse isto, a grandeza puramente aritmética da galáxia não nos impressionaria mais do que os números num livro-caixa. Para a mente que não participasse de nossas emoções e carecesse de nossa atividade imaginativa, o argumento contra o cristianismo a partir do tamanho do universo seria simplesmente ininteligível.

 

O universo material deriva assim de nós mesmos o seu poder de nos intimidar. Os homens sensíveis observam temerosos o céu quando a noite desce, mas os estúpidos e insensíveis não são afetados. Quando o silêncio do espaço eterno aterrorizou Pascal, foi a grandeza do próprio Pascal que permitiu isso. Amedrontar-se diante da grandiosidade das nebulosas é, quase literalmente, espantar-se com a própria sombra. Os ano-luz e os períodos geológicos são simplesmente aritméticos até que a sombra do homem, o poeta, o fazedor de mitos, cai sobre eles. Como cristão, não digo que não devamos tremer à vista dessa sombra, pois creio ser a sombra de uma imagem de Deus. Mas se a vastidão da natureza vier um dia ameaçar vencer nosso espírito, devemos lembrar que é só a natureza espiritualizada pela imaginação humana que faz isso.

 

Esta idéia sugere uma possível resposta à pergunta feita páginas atrás: por que o tamanho do universo, conhecido há séculos, iria nos tempos modernos tornar-se um argumento contra o cristianismo? Será que isso aconteceu porque nos tempos de hoje a imaginação tornou-se mais sensível à vastidão? Deste ponto de vista, o argumento do tamanho pode quase ser considerado como um subproduto do Movimento Romântico na poesia. Além do aumento absoluto da vitalidade imaginativa quanto a este tópico, houve com certeza um declínio em outros. Qualquer leitor de poesia antiga irá descobrir que o brilho atraía mais o homem medieval do que o tamanho, e isso mais ainda do que a nós. Os pensadores medievais julgavam que as estrelas deviam ser de alguma forma superiores à terra, porque elas pareciam brilhar e esta não. Os pensadores modernos acham que a Galáxia deve ser mais importante do que a terra por ser maior. Ambos os estados de espírito podem produzir boa poesia. Ambos podem suprir imagens mentais que despertam respeitáveis emoções, reverência, humildade, ou contentamento. Mas quando tomados como um argumento filosófico sério ambos são ridículos. O argumento do ateu com base no tamanho é, de fato, um exemplo daquela imagem mental com a qual, como veremos mais adiante, o cristão não está comprometido. É a maneira particular em que a imagem mental aparece no século vinte: pois o que gostamos de chamar de erros "primitivos" não passam de vez. Eles apenas mudam de forma.

 

O Milagre e as Leis da Natureza

 

É uma coisa muito estranha, tão estranha quanto possa ser, que tudo que a Srta. T. come se transforma em Srta. T.

V. DE LA MARE

 

Depois de afastar aquelas objeções baseadas numa noção popular e confusa de que o "progresso da ciência" protegeu de alguma forma o mundo contra o Milagre, vamos considerar agora o assunto num nível um tanto mais profundo.

 

A questão está em se a natureza pode ser de um tipo tal que as interferências supranaturais sejam impossíveis em relação a ela. Já se sabe que ela é, em geral, regular; ela se comporta segundo leis fixas, muitas das quais foram descobertas, e interligadas. Nesta discussão não entra qualquer questão de simples falha ou negligência na observância dessas leis por parte da natureza, nenhuma questão de variação casual ou espontânea. A única questão é se, concedida a existência de um Poder fora da natureza, existe qualquer absurdo intrínseco na idéia de sua intervenção a fim de produzir na natureza eventos que o "funcionamento" regular de todo o sistema natural jamais teria produzido.

 

Três conceitos das "leis" da natureza foram mantidos. (1) Não passam de simples fatos irracionais, conhecidos apenas através da observação, não se descobrindo neles qualquer ritmo ou razão. Sabemos que a natureza opera assim e assim; não sabemos por que faz isso e não podemos ver qualquer razão para que não faça o oposto. (2) Que são aplicações da lei da média proporcional. Os Fundamentos da natureza são casuais e irregulares, mas o número de unidades com que estamos tratando são tão grandes que o comportamento dessas multidões (como o comportamento de grandes massas de humanidade) pode ser calculado com exatidão. O que chamamos de "eventos impossíveis" são tão absolutamente improváveis, pelos padrões contábeis, que não precisamos levá-los em conta.

 

(1)Se qualquer região da realidade é de fato casual ou não sujeita a leis, trata-se então de uma região que, longe de admitir facilmente o Milagre, torna a palavra "Milagre" sem significado através de toda essa região.

 (3) Que as leis fundamentais da física são realmente o que chamamos de "verdades necessárias" como as verdades na matemática, em outras palavras, se entendermos claramente o que estamos dizendo, veremos que o oposto seria uma tolice sem significado. Esta então é uma "lei": quando uma bola de bilhar bate em outra, a quantidade de momentum perdida pela primeira deve ser exatamente igual à adquirida pela segunda. As pessoas que afirmam que as leis da natureza são verdades necessárias, diriam que tudo que fizemos foi dividir os eventos únicos em duas metades (aventuras da bola A e aventuras da bola B) e descobrir então que "os dois lados da conta estão equilibrados". Quando compreendemos isto vemos que ambos devem naturalmente equivaler-se. As leis fundamentais, no final de contas, são simples declarações de que cada evento é ele mesmo e não um evento diferente.

 

Fica imediatamente claro que a primeira dessas teorias não oferece qualquer proteção contra os milagres, de fato, segurança alguma de que, mesmo em separado dos milagres, as "leis" que até agora observamos serão obedecidas amanhã. Se não tivermos noção do motivo por que algo acontece, então naturalmente não conhecemos qualquer razão por que não deveria ser de outro modo, e portanto nenhuma certeza de que algum dia possa acontecer de maneira diversa. A segunda teoria, que depende da lei da média proporcional, está na mesma situação. A segurança que nos dá é da mesma espécie geral que nossa segurança de que uma moeda atirada para o ar mil vezes não irá produzir o mesmo resultado, digamos, novecentas vezes: e quanto mais tempo você a atira tanto mais provável que o número de caras e coroas venha a igualar-se. Mas isto é assim apenas se a moeda for genuína. Caso se trate de uma moeda viciada, nossa expectativa pode fracassar. Mas as pessoas que crêem em milagres estão afirmando precisamente que a moeda é viciada. As expectativas baseadas na lei da média proporcional vão funcionar apenas em relação à natureza não-manipulada. E a questão de os milagres ocorrerem ou não é apenas uma questão de a natureza ser ou não jamais manipulada.

 

O terceiro ponto de vista (que as leis da natureza são verdades necessárias) parece de início apresentar um obstáculo insuperável aos milagres. A divisão dos mesmos seria, nesse caso, uma auto-contradição e nem mesmo a Onipotência pode fazer aquilo que é contraditório. Assim sendo as leis não podem ser transgredidas. Dessa forma, concluímos, nenhum milagre pode então ocorrer?

 

Nós nos apressamos demasiado. É certo que as bolas de bilhar irão comportar-se de um determinado modo, assim como é certo que se você dividir importância de um "shilling" desigualmente entre dois recipientes, então a parte de A deverá exceder a metade e a de B ficar aquém dela proporcionalmente. Desde que, naturalmente, A não roube por meio de um truque algumas das moedas de B no exato momento da transação. Da mesma forma, você sabe o que acontecerá às duas bolas de bilhar, desde que nada interfira. Se uma das bolas encontrar uma saliência no pano que a outra não encontre, seu movimento não irá ilustrar a lei da maneira esperada. Naturalmente, o que acontece como resultado da saliência no pano ilustrará a lei de alguma outra maneira, mas sua previsão original terá sido falsa. Ou então, se eu tomar um taco e ajudá-lo um pouco, você terá um terceiro resultado. Esse terceiro resultado irá igualmente ilustrar as leis da física e tornar igualmente falsa a sua previsão. Eu terei "estragado a experiência". Todas as interferências deixam a lei perfeitamente verdadeira. Mas toda previsão do que acontecerá num dado instante é feita sob a provisão de que "sendo tudo o mais idêntico" ou "se não houver interferências". Se as coisas são idênticas num dado caso e se interferências podem ocorrer é outro assunto. O matemático, nessa função, não sabe qual a probabilidade de A roubar algumas moedas de B quando o "shilling" está sendo dividido; seria melhor perguntar a um criminologista. O físico, como físico, não sabe qual a probabilidade de que eu apanhe um taco e "estrague" a sua experiência com as bolas de bilhar: seria melhor você perguntar a alguém que me conheça. Da mesma forma, o físico como tal não sabe qual a probabilidade de algum poder sobrenatural interferir nelas: seria melhor perguntar a um metafísico. Mas o físico sabe, exatamente por ser um físico, que se as bolas de bilhar forem modificadas por algum agente, natural ou supranatural, que ele não tenha considerado, então o comportamento delas irá diferir do que esperava. Não pelo fato de a lei ser falsa, mas por ser verdadeira. Quanto mais certos estivermos da lei, tanto mais claramente saberemos que se novos fatores forem introduzidos o resultado irá variar de acordo com eles. O que não sabemos, como físicos, é se o poder supranatural poderia ser um desses novos fatores.

 

No caso de as leis da natureza forem verdades necessárias, milagre algum pode anulá-las. Acontece com elas o mesmo que ocorre com as leis aritméticas. Se coloco cem cruzeiros numa gaveta na segunda-feira e mais cem na terça, a lei decreta que, tudo sendo idêntico,vou encontrar ali duzentos na quarta-feira. Mas se alguém roubar a gaveta, eu poderei encontrar apenas dez cruzeiros. Algo terá sido quebrado (a fechadura da gaveta ou as leis do país) mas as leis da aritmética não terão sido anuladas. A nova situação criada pelo gatuno ilustrará tão bem as leis da aritmética quanto a situação original. Mas se Deus vem operar milagres, ele vem "como ladrão da noite".

 

O milagre, do ponto de vista do cientista, é uma forma de manipular, adulterar, (ou, se quiser) tapear. Ele introduz um fator novo na situação, a saber, a força supranatural, que não fora considerada pelo cientista. Ele calcula o que acontecerá, ou o que deve ter acontecido numa ocasião no passado, na crença de que a situação, nesse ponto do espaço e tempo, seja ou tenha sido A. Mas se a força supranatural foi acrescentada, então a situação é ou foi realmente AS. E ninguém sabe melhor do que o próprio cientista que AB não pode produzir o mesmo resultado que A. A verdade necessária das leis, longe de tornar impossível a ocorrência de milagres, assegura que se o supranatural estiver operando eles devem ocorrer. Pois se a situação natural por si mesma, e a situação natural mais alguma coisa, produzissem apenas o mesmo resultado, teríamos então de enfrentar um universo sem leis e não-sistemático. Quanto melhor você sabe que dois e dois fazem quatro, tanto melhor sabe que dois e três não dão esse resultado.

 

Isto talvez ajude a tornar um pouco mais claro o que são realmente as leis da natureza. Temos o hábito de falar como se elas fizessem acontecer as coisas; mas na verdade jamais deram causa a qualquer acontecimento. As leis do movimento não movem as bolas de bilhar: elas analisam o movimento depois que alguém (digamos um homem com um taco, ou o balanço do navio, ou talvez, o poder supranatural) o tenha provido. Elas não produzem eventos: mas estabelecem o padrão ao qual cada evento, se puder ser induzido a acontecer, deve conformar-se, assim como as regras aritméticas estabelecem o padrão ao qual todas as transações monetárias devem conformar-se se você puder conseguir algum dinheiro. Dessa forma, em um sentido, as leis da natureza abrangem todo o campo do espaço e tempo; em outro, o que deixam de fora é precisamente o universo inteiro, a torrente incessante de eventos reais que fazem a história. Isso precisa vir de outro lugar. Pensar que as leis podem produzi-lo é pensar que você pode criar o dinheiro apenas fazendo somas. Pois toda lei, em última instância, diz: "Se você tem A, então obterá B". Mas primeiro agarre o seu A: as leis não vão fazer isso por você.

 

É, portanto, incorreto definir milagre como sendo algo que quebra as leis da natureza, pois não é isso. Se bato meu cachimbo, altero a posição de inúmeros átomos: de modo geral, e numa proporção infinitesimal, de todos os átomos que existem. A natureza digere e assimila este acontecimento com a mais perfeita facilidade e num abrir e fechar de olhos, juntamente com todos os demais eventos. Trata-se de mais uma partícula de matéria-prima em que aplicar as leis, e elas se aplicam. Eu simplesmente lancei um evento na catarata geral dos mesmos e ele se enquadra perfeitamente ali e se conforma a todos os outros.

 

Se Deus aniquilar, criar ou desviar uma unidade de matéria, Ele criou uma nova situação nesse ponto. A natureza inteira imediatamente acolhe esta nova situação, faz com que ela se ambiente em sua nova esfera de atividade, e adapta todos os demais eventos à mesma. E ela passa a conformar-se com todas as leis. Se Deus criar um espermatozóide milagroso no corpo de uma virgem, ele não começa a quebrar quaisquer leis, mas estas de imediato tomam o controle. A natureza está preparada. A gravidez se instala segundo todas as leis normais e nove meses depois nasce uma criança. Vemos a cada passo que a natureza física não é absolutamente perturbada pela investida diária de acontecimentos oriundos da natureza biológica ou da psicológica. Se os eventos vierem de algum ponto além dela, a natureza também não será perturbada por eles. É certo que se dará pressa em alcançar o ponto de invasão, como as forças defensivas correm para um corte em nosso dedo, e ali se precipitará em acolher o recém-chegado. No momento em que ele entrar no reino dela irá obedecer todas as suas leis. O vinho milagroso é inebriante, a concepção milagrosa leva à gravidez, os livros inspirados sofrerão os processos comuns de corrupção textual, o pão milagroso será digerido. A arte divina do milagre não inclui a suspensão do modelo a que os eventos se conformam, trata-se, isso sim, de introduzir novos acontecimentos nesse padrão. Ela não transgride os dispositivos da lei, "Se A, então B": mas diz: "Desta vez em lugar de A, A2," e a natureza, falando através de todas as suas leis, replica: "Então 132" e naturaliza o imigrante, como sabe muito bem fazê-lo, pois se trata de uma anfitriã nata.

 

O milagre não é de forma alguma um acontecimento sem uma causa ou sem resultados. Sua causa é a atividade de Deus: seus resultados seguem a lei natural. Quando ela avança (i. e. no período que se segue à sua ocorrência) ele se acha interligado com toda a natureza como todos os demais eventos. Sua peculiaridade é que não se interliga igualmente em sentido retroativo, ligando-se à história anterior da natureza. É justamente isto que algumas pessoas consideram intolerável. A razão disso é que elas tomam a natureza como sendo toda a realidade, e estão certas de que toda realidade deve estar interrelacionada e agir de maneira consistente. Concordo com essas pessoas. O que acho porém, é que elas tomaram erradamente um sistema parcial dentro da realidade, a saber a natureza, como sendo o conjunto da mesma. Dessa forma, o milagre e a história anterior da natureza podem estar interligados afinal de contas, mas não da maneira esperada pelo naturalista: e sim, na verdade, de uma forma muito mais indireta.

 

O grande e complexo evento chamado natureza, e o novo e particular evento nela introduzido pelo milagre, acham-se relacionados pela sua origem comum em Deus, e sem dúvida, se soubéssemos o suficiente, associados de modo bastante complexo em Seu propósito e desígnio, e assim uma natureza que tivera uma história diferente, sendo portanto uma natureza diferente, teria sido invadida por diferentes milagres ou por nenhum. Os milagres e o curso anterior da natureza acham-se assim tão bem interligados quanto quaisquer outras duas realidades, mas é preciso retroceder até o seu Criador comum a fim de encontrar o elo de ligação, pois ele não será descoberto dentro da natureza. Este tipo de coisa acontece com qualquer sistema parcial. O comportamento dos peixes estudados num tanque compõe um sistema relativamente fechado. Mas suponhamos que o tanque seja abalado por uma bomba atirada nas imediações do laboratório. O comportamento dos peixes não mais será explicado por aquilo que acontecia no tanque antes de a bomba cair: haverá uma falha na interligação anterior. Isto não significa que a bomba e a história prévia dos acontecimentos dentro do tanque estejam total e irremediavelmente desligados, mas sim que para encontrar a relação entre eles você precisa voltar a uma realidade muito maior que inclui tanto o tanque como a bomba: a realidade da Inglaterra no tempo da guerra em que as bombas estão caindo mas alguns laboratórios continuam em atividade. Você jamais encontraria essa relação dentro da história do tanque. O milagre também não se acha naturalmente associado em sentido retroativo. A fim de descobrir como ele se acha interligado com a história anterior da natureza você precisa colocar tanto esta como o milagre num contexto mais amplo. Tudo está ligado com tudo o mais: mas nem todas as coisas são ligadas através dos caminhos curtos e retos que esperávamos.

 

A exigência justa de que toda realidade seja consistente e sistemática não exclui portanto os milagres, sendo uma contribuição valiosa para formar nosso conceito sobre eles. Ela nos lembra que os milagres, se é que ocorrem, devem, como todos os demais eventos, ser revelações dessa harmonia total de tudo o que existe. Nada arbitrário, nada simplesmente "colado" e irreconciliado com a textura da realidade total, pode ser admitido. Por definição, os milagres devem logicamente interromper o curso habitual da natureza; mas se forem reais devem, justamente através desse ato, confirmar ainda mais a unidade e auto-consistência da realidade total em nível mais profundo.

 

Eles não serão como aglomerados de prosa sem métrica interrompendo a unidade de um poema; mas serão justamente aquela audácia métrica apoteótica que, embora sem paralelo em qualquer outro ponto do poema, todavia, surgindo exatamente onde o faz, e causando exatamente o efeito que causa, é (para os versados) a suprema revelação da unidade no conceito do poeta. Se o que chamamos de natureza for modificado pelo poder sobrenatural, podemos então estar certos de que a capacidade de ser assim modificada faz parte da essência da natureza, que os eventos totais, se pudéssemos entender isso, iriam mostrar-se como envolvendo, pelo seu próprio caráter, a possibilidade de tais modificações. Se a natureza produz milagres será então sem dúvida tão "natural" para ela fazer isso quando impregnada pela força máscula além dela, quanto o é para uma mulher dar filhos a um homem. Ao chamá-los milagres não queremos dizer que sejam contradições ou abusos, mas sim que, deixada aos seus próprios recursos, ela jamais poderia produzi-los.

 

Um Capítulo Praticamente Desnecessário

 

"Também vimos ali gigantes (os filhos de Enoque os descendentes de gigantes), e éramos aos nossos próprios olhos como gafanhotos, e assim também o éramos aos seus olhos”.

Números 13, 33

 

Os dois últimos capítulos se concentraram nas objeções ao Milagre, feitas, por assim dizer, do lado da natureza; com base na idéia de que ela seja o tipo de sistema que não admite milagres. Nosso próximo passo, se seguíssemos uma ordem estrita, seria considerar as objeções do lado oposto de fato, inquirir se o que está além da natureza pode ter qualquer probabilidade de ser a espécie de coisa que poderia, ou iria operar milagres. Mas sinto-me fortemente disposto a voltar-me e enfrentar primeiro uma objeção de um tipo diferente. Trata-se de algo puramente emocional e os leitores mais rigorosos poderão pular este capítulo. Sei, porém que em certa época de minha vida este assunto me preocupou grandemente e se outras pessoas passaram pela mesma experiência, talvez desejem lê-lo.

 

Uma das coisas que me afastou do supranaturalismo foi uma profunda repulsa pela idéia da natureza que, segundo pensava, o supranaturalismo impunha. Eu desejava fervorosamente que a natureza pudesse existir "por si mesma". A teoria de que tivesse sido feita e pudesse ser alterada por Deus, parecia-me tirar dela aquela espontaneidade que eu considerava tão refrescante. A fim de respirar livremente eu desejava que na natureza pudéssemos finalmente alcançar aquilo que simplesmente era: o pensamento de que fosse manufaturada ou "colocada ali" e isto com um determinado propósito, se afigurava sufocante. Escrevi um poema na época sobre um nascer do sol, no qual depois de descrever a cena, acrescentei que um capítulo praticamente desnecessário. Era impossível de acreditar que havia um Espírito por trás de tudo e que este Espírito se comunicava com eles. Mas, disse eu, isso era justamente o que eu não queria. O poema não era muito bom e já me esqueci quase que totalmente dele, mas finalizava dizendo quanto mais eu preferia que por seu próprio direito a terra e o céu prosseguissem em sua dança eterna, para seu próprio deleite e aqui me insinuava eu a fim de observar o mundo por acaso.

 

"Por acaso!" Eu não podia suportar a idéia de que o nascer do sol pudesse ter sido de qualquer forma "arranjado" ou que tivesse algo a ver comigo. Descobrir que não tinha simplesmente acontecido, mas sido de certa forma inventado, seria tão mau como descobrir que o arganaz que vi ao lado de um arbusto solitário fosse na verdade um brinquedo de corda ali colocado para divertir-me, ou (pior ainda) para indicar alguma lição moral. O poeta grego pergunta: "Se a água grudar na sua garganta, o que vai tomar para fazê-la descer?" Eu pergunto da mesma forma: "Se a própria natureza mostrar-se artificial, onde você irá procurar a selva?" Onde se encontra o "ar livre" real? Descobrir que todas as flores e pequenos ribeiros dentro delas, que os cantos dos vales nas montanhas, e o vento e a grama não passavam de uma espécie de cenário, somente um fundo para algum tipo de peça, e que essa peça talvez apresentasse uma determinada forma de moral que prosaico, que anti-climax, que tédio insuportável!

 

A cura deste sentimento começou anos atrás; mas devo registrar que ela não se completou até que comecei a estudar a questão dos Milagres. A cada estágio do preparo deste livro percebo que minha idéia da natureza se torna cada vez mais vívida e mais concreta. Iniciei um trabalho que parecia ter como propósito reduzir a sua posição e minar suas paredes a cada passo: o resultado paradoxal é uma crescente sensação de que se eu não tomar o máximo cuidado ela se transformará na heroína de meu livro. Ela jamais me pareceu tão grandiosa ou tão real como neste momento,

 

A razão não está longe. Enquanto somos naturalistas, a "natureza" é apenas um sinônimo de "tudo". E Tudo não é um assunto sobre o qual possa ser dito algo muito interessante e nem mesmo sentido (salvo por engano). Um aspecto das coisas nos chama a atenção e falamos da "paz" da natureza; outro se destaca e mencionamos a sua crueldade. E então, em vista de a tomarmos falsamente como o Fato Final e autoexistente e não podermos reprimir nosso elevado instinto de adorar o Autoexistente, ficamos confusos e nossos sentimentos flutuam, vindo à natureza a significar o que quer que desejemos, à medida que os sentimentos fazem seleção e se tornam indistintos. Mas tudo é diferente quando reconhecemos que a natureza é uma criatura, uma coisa criada, com seu particular cheiro ou sabor. Não há mais necessidade de selecionar e cancelar. Não é nela, mas em Algo muito além dela, que todas as linhas se encontram e todos os contrastes são explicados. Não mais nos surpreende que a criatura chamada natureza possa ser tanto justa como cruel, como o primeiro homem que você encontra no trem pode ser ao mesmo tempo um comerciante desonesto e um marido bondoso. Pois ela não é o Absoluto: é uma das criaturas, com seus bons e maus pontos e seu próprio sabor inconfundível correndo através de todos eles.

 

Dizer que Deus a criou não é afirmar que ela é irreal, mas justamente o contrário. Você acredita que Deus seja menos criativo do que Shakespeare ou Charles Dickens? O que Ele cria é criado por inteiro. Os teólogos certamente nos dizem que ele criou a natureza livremente, indicando que não foi forçado por qualquer necessidade externa nesse sentido. Não devemos, porém interpretar negativamente a liberdade, como se a natureza fosse uma simples construção de partes arbitrariamente ligadas. A liberdade criativa de Deus deve ser concebida como semelhante à do poeta: liberdade para criar uma coisa consistente, positiva, com seu próprio e inimitável sabor. Shakespeare não precisava criar o seu personagem Falstaff: mas se faz isso, ele deve ser gordo. Deus não precisava criar esta natureza. Poderia ter criado outras, e pode mesmo tê-lo feito. Mas concedida à existência desta natureza, então não há dúvida de que a menor parcela da mesma ali se acha para expressar o caráter que ele escolheu dar-lhe. Seria grave erro supor que as dimensões de espaço e tempo, a morte e renascimento da vegetação, a unidade na multiplicidade de organismos, a união na oposição de sexos, e a cor de cada maçã neste outono, foram simplesmente uma coleção de eventos úteis forçosamente associados. Trata-se do próprio idioma, quase da expressão facial, o cheiro ou gosto, de uma coisa individual. A qualidade da natureza se acha presente em todos eles, assim como a latinidade do latim está presente em toda inflexão ou a "Corregiosidade" de Correggio em cada golpe do pincel.

 

A natureza é pelos padrões humanos (e provavelmente pelos divinos) parte boa e parte má. Nós cristãos acreditamos que ela foi corrompida. Mas o mesmo cheiro ou sabor corre através de suas corrupções e suas excelências. Tudo está de acordo. Falstaff não peca da mesma forma que Otelo. A queda de Otelo está intimamente ligada às suas virtudes. Se Perdita tivesse caído não teria sido má do mesmo modo que Lady Macbeth. Se esta tivesse permanecido boa, sua bondade seria muito diversa daquela de Perdita. Os males que vemos na natureza são, por assim dizer, próprios desta natureza. O seu caráter decretou que se ela se corrompesse tal corrupção tomaria esta forma e não outra. Os horrores do parasitismo e as glórias da maternidade são um bem e um mal extraídos do mesmo tema ou idéia básicos.

 

Falei há pouco sobre a latinidade do latim. Ele é mais evidente para nós do que o seria para os romanos. O anglicismo do inglês só é percebido por aqueles que conhecem também outra língua. Da mesma maneira e pela mesma razão, somente os supranaturalistas vêem realmente a natureza. Você precisa afastar-se um pouco dela, depois voltar-se e a seguir olhar para trás. Só então o verdadeiro cenário se toma visível. Você deve ter experimentado, mesmo que brevemente, a água pura de um outro mundo antes de tomar consciência da corrente morna, salina, da natureza. Tratá-lo como Deus, ou como Tudo, é perder toda a sua essência e o seu prazer. Saia olhe para trás, e então verá... esta surpreendente catarata de ursos, bebê e bananas; este dilúvio imoderado de átomos, orquídeas, laranjas, câncer, canários, pulgas, gases, tornados e sapos. Como você jamais pôde pensar ser esta a realidade final? Como jamais pôde pensar que se tratava simplesmente de um cenário para o drama moral da humanidade? Ela é ela mesma. Não lhe ofereça nem adoração nem desprezo. Vá ao seu encontro e a conheça. Se somos imortais e se ela está condenada (como dizem os cientistas) a deteriorar-se e morrer, vamos sentir a falta desta criatura um tanto tímida e um tanto ousada, este ogre, esta fada travessa e incorrigível, esta feiticeira muda. Mas os teólogos nos afirmam que ela, como nós, será remida. A "vaidade" a que foi submetida foi a sua doença e não a sua essência. Vai ser curada, mas em relação ao caráter: não domesticada (os céus não o permitam) nem esterilizada. Poderemos ainda reconhecer nossa velha inimiga, amiga, companheira e mãe adotiva, aperfeiçoada de modo a ser mais e não menos ela mesma. E essa será uma reunião jubilosa.

 

"Coisas Vermelhas Horríveis"

 

"Podemos chamar de método da intimidação antropológica à tentativa de refutar o ateísmo que expõe a continuidade da crença em Deus através de uma ilusão primitiva”.

EDWYN BEVAN, Symbolism and Belief, chap. 2

 

Argumentei que não existe segurança contra o milagre através do estudo da natureza. Ela não é o conjunto da realidade, mas apenas uma parte. E por tudo que sabemos, poderia ser uma insignificante parcela. Se aquilo que está do lado de fora desejar invadi-la, no que podemos verificar, ela não tem defesas. É certo que muitos que não acreditam em milagres admitiriam tudo isto, pois a sua objeção vem de outro lado. Eles pensam que o supranatural não invadiria, acusando os que afirmam isso de possuir uma noção infantil e indigna do supranatural.

 

Rejeitam assim todas as formas de supranaturalismo que afirmem existir tal interferência e invasões, especialmente a forma chamada cristianismo, pois nela os milagres, ou pelo menos alguns milagres, estão ligados mais de perto com o tecido de toda a crença do que qualquer outra coisa. Toda a essência do hinduísmo, penso eu, permaneceria inalterada se você subtraísse o miraculoso, e o mesmo também se aplica praticamente ao maometismo. Mas não se pode fazer isso com o cristianismo. Um cristianismo naturalista iria deixar de lado tudo que é especificamente cristão.

 

As dificuldades do incrédulo não têm início com as perguntas sobre este ou aquele milagre particular, mas muito antes. Quando alguém que teve apenas a educação moderna examina uma declaração autorizada da doutrina cristã, ele se vê face a face com aquilo que lhe parece um quadro totalmente "selvagem" ou "primitivo" do universo. Descobre que se supõe que Deus tenha tido um Filho, como se fosse uma divindade mitológica como Júpiter ou Odin. Ele descobre que esse "Filho" é tido como se "descendo do céu", como se Deus tivesse um palácio no céu do qual enviou o "Filho" para que descesse como um pára-quedista. Descobre também que esse "Filho" desceu então ao "inferno" em certo país dos mortos sob a superfície de uma terra (presumivelmente) plana e, a seguir, "subiu" novamente, como se por meio de um balão, até o palácio celestial do Pai, onde finalmente sentou-se numa cadeira decorada à direita do Pai. Tudo parece pressupor um conceito de realidade que o aperfeiçoamento de nosso conhecimento vem recusando firmemente durante os últimos dois mil anos e ao qual homem algum de bom senso poderia voltar hoje.

 

E esta impressão que explica o desprezo e até mesmo a repugnância sentidos por muitas pessoas pelos escritos dos cristãos modernos. Quando alguém se convence de que o cristianismo em geral implica "Céu" local, uma terra plana, e um Deus que pode ter filhos, ele ouve naturalmente com impaciência as nossas soluções das dificuldades particulares e nossas defesas contra objeções especiais. Quanto mais engenhosas sejam as nossas soluções e defesas, tanto mais perversos lhe parecemos. "Naturalmente", diz ele, "uma vez de posse das doutrinas, as pessoas astuciosas podem inventar argumentos capciosos para defendê-las, da mesma forma que ao cometer um erro o historiador pode continuar inventando teorias cada vez mais elaboradas a fim de esconder o seu erro. Mas o ponto está em que nenhuma dessas teorias elaboradas teria sido construída se ele tivesse os documentos corretos desde o princípio. Assim também, não fica claro que a teologia cristã jamais existiria se todos os escritores do Novo Testamento tivessem a mínima noção de como o universo real é exatamente?" E era assim que eu também costumava pensar. O homem que me ensinou a pensar um ateu endurecido, satírico (ex-presbiteriano) que apreciava o Golden Bough e encheu sua casa com os artigos da imprensa racionalista  tinha as mesmas idéias; e ele era um homem honesto como o dia, de quem voluntariamente me considero devedor. Sua atitude em relação ao cristianismo colocou-me no caminho das idéias adultas; quase posso dizer que as gerou em meus ossos. Todavia, desde aqueles dias, passei a considerar essa atitude como um mal-entendido completo.

 

Lembrando, como lembro, a atitude do cético impaciente, compreendo perfeitamente como ele está de sobreaviso contra tudo que eu possa dizer até o fim deste capítulo. "Sei exatamente o que esse homem fará", murmura ele. "Ele vai tentar explicar satisfatoriamente todas essas declarações mitológicas. Essa é a prática invariável de todos esses cristãos. Em qualquer assunto sobre o qual a ciência não se tenha ainda manifestado e que não possa ser verificado, eles lhe contarão uma história de fadas ridícula. Mas no momento em que a ciência faça um novo avanço e mostre (como invariavelmente acontece) que suas declarações são falsas, eles repentinamente mudam de posição e explicam que não queriam dizer o que haviam dito, que fizeram uso de uma metáfora poética ou construíram uma alegoria, e que seu verdadeiro intento não passava de uma trivialidade moral inofensiva. Estamos fartos dessas trapaças”. Simpatizo enormemente com esse ponto de vista e admito com sinceridade que o cristianismo "moderno" tem feito constantemente o jogo de que é acusado pelo cético impaciente. Penso, entretanto, que existe uma espécie de explicação que não implica numa justificativa ou satisfação. De um lado vou fazer exatamente aquilo que o cético pensa: isto é, vou distinguir entre o que considero o "núcleo" ou "significado real" das doutrinas, daquilo que julgo não-essencial em sua expressão e até mesmo passível de mudança sem que sofram qualquer dano. Mas o que vai separar-se do "significado real" sob o meu tratamento não será exatamente o miraculoso, pois é o próprio núcleo, livre de todos os elementos secundários, que permanece para mim milagroso, supranatural; ou, se quiser, "primitivo" e até mesmo "mágico".

 

A fim de explicar isto devo agora tocar num tema cuja importância se acha por completo desligada de nosso propósito presente e que deve ser dominado com a maior rapidez possível por todos os que desejarem pensar com clareza. Para a presente discussão, porém, devemos deixar de lado os problemas mais profundos e prosseguir de maneira mais "popular" e menos ambiciosa.

 

Quando penso em Londres, imediatamente vejo a estação de Euston num quadro mental. Mas quando penso (como faço) que Londres possui milhares de habitantes, não estou querendo indicar que existam milhares de imagens de pessoas contidas em minha imagem da estação Euston. Nem afirmo que milhares de pessoas reais vivam na estação Euston. De fato, embora tenha essa imagem na mente ao pensar em Londres, o que penso ou digo não está ligado à imagem e seria rematada tolice caso fosse assim. Minhas idéias fazem sentido porque não tratam de minhas imagens mentais, mas da Londres real, fora de minha imaginação, da qual ninguém pode ter um quadro mental adequado. Ou, se dissermos que o Sol está a uma distância de cerca de 145 milhões de quilômetros, compreendemos perfeitamente o significado desse número; podemos dividi-lo e multiplicá-lo por outros e podemos calcular quanto tempo levaria para percorrer essa distância a uma dada velocidade. Mas este raciocínio claro é acompanhado de imaginação, sendo esta absolutamente falsa em relação àquilo que sabemos ser a realidade.

 

Pensar é então uma coisa e imaginar é outra. Aquilo que pensamos ou dizemos pode ser, e geralmente é, muito diferente daquilo que imaginamos ou concebemos; e o nosso significado pode ser verdadeiro enquanto as imagens que o acompanham são inteiramente falsas. E sem dúvida difícil que alguém, exceto uma pessoa extremamente visual que seja também um artista treinado, jamais tenha imagens mentais que sejam particularmente semelhantes às coisas sobre as quais esteja pensando.

 

Nesses exemplos a imagem mental não só difere muito da realidade, mas é também conhecida como sendo diferente, pelo menos após um momento de reflexão. Eu sei que Londres não é simplesmente a estação Euston. Vamos agora para um ponto um tanto diverso. Ouvi certa vez uma senhora dizendo à sua filha pequena que se alguém tomasse um número excessivo de comprimidos de aspirina morreria. "Por quê?" perguntou a filha, "ela não é venenosa." "Como você sabe que não é venenosa?" replicou a mãe. "Porque", respondeu a filha, "quando você esmaga um comprimido não encontra dentro dele coisas vermelhas horríveis." Fica claro que essa menina ao pensar em veneno tinha uma imagem mental de Coisas Vermelhas Horríveis, da mesma forma que eu tenho da estação Euston quando penso em Londres. A diferença está em que eu sei que minha imagem difere bastante da Londres real, enquanto a menina pensava que o veneno era realmente vermelho. Nesse respeito estava enganada. Mas isto não indica que tudo o que pensava e dizia sobre veneno era necessariamente sem sentido, pois ela sabia perfeitamente bem que veneno representava algo que poderia matá-la ou fazê-la adoecer se o engolisse. Sabia também, até certo ponto, quais as substâncias na casa da mãe que continham veneno. Se um visitante fosse advertido pela menina: "Não beba isso, mamãe disse que é veneno", seria imprudente deixar de seguir o conselho só porque "Esta criança possui uma idéia primitiva de veneno como Coisas Vermelhas Horríveis, que meu conhecimento científico adulto de há muito refutou".

Podemos acrescentar agora à minha declaração anterior (de que o pensamento pode ser acertado embora as imagens que o acompanham sejam falsas) a seguinte afirmativa: o pensamento pode ser acertado em alguns respeitos quando acompanhado não só por falsas imagens, mas também por falsas imagens tidas como verdadeiras.

 

Existe ainda uma terceira situação a ser tratada. Nos exemplos anteriores nos preocupamos com o pensamento e a imaginação, mas não com a linguagem. Eu tinha de visualizar a estação Euston, mas não precisava mencioná-la. A criança pensava que veneno era Coisas Vermelhas Horríveis, mas podia falar sobre ele sem dizer isso. Com freqüência, porém, quando falamos de algo que não se pode perceber com os cinco sentidos, usamos palavras que, em um de seus significados, referem-se a coisas ou atos que o são. Quando alguém diz que agarrou uma idéia, ele faz uso de um verbo (agarrar) que significa literalmente tomar algo nas mãos, mas certamente não está pensando que sua mente possui mãos nem que uma idéia pode ser manejada como um revólver. Para evitar esse termo "agarrar" ele pode mudar de forma de expressão e dizer "vejo o seu ponto de vista", mas não está indicando que um objeto pontudo apareceu no seu campo visual. Pode tentar outra vez e dizer: "Estou seguindo você", sem indicar com isso que está andando atrás de você numa estrada. Todos estão familiarizados com este fenômeno lingüístico e os gramáticos o chamam de metáfora. E, porém, um grave erro pensar que a metáfora é algo opcional que poetas e oradores podem colocar em suas obras como decoração e os que falam com simplicidade podem abster-se dela.

 

A verdade é que se tivermos de falar sobre coisas que não são percebidas pelos sentidos, somos forçados a usar a linguagem figurada. Os livros de psicologia, economia ou política fazem tanto uso da metáfora quanto os de poesia ou devocionais. Não existe outro meio de falar, como todo filósofo sabe perfeitamente. Os que quiserem ter certeza disso podem confirmar o fato lendo alguns livros desse tipo. É um estudo que dura à vida inteira e devo contentar-me aqui com a simples declaração do fato; toda conversa sobre supersensíveis é, e deve ser, metafórica no mais elevado grau.

 

Temos agora diante de nós três princípios de orientação. (1) O pensamento é distinto da imaginação que o acompanha. (2) O pensamento pode ser acertado em sua maior parte mesmo quando as imagens falsas que o acompanham são tidas como verdadeiras. (3) Que quem quer que fale sobre coisas que não podem ser vistas, tocadas ou ouvidas, ou outras semelhantes, deve inevitavelmente falar como se elas pudessem ser vistas, tocadas ou ouvidas (isto é, devem falar de "complexos" e "repressões" como se os desejos pudessem ser realmente atados em fardos ou empurrados para trás; de "crescimento" e "desenvolvimento" como se instituições pudessem realmente crescer como árvores ou abrir-se como flores; de energia sendo "libertada" como se fosse um animal saído da jaula).

 

Vamos agora aplicar isto aos artigos "selvagens" ou "primitivos" do credo cristão. E vamos admitir também imediatamente que muitos cristãos (embora não todos de modo nenhum) quando fazem tais afirmativas têm em mente, na verdade, apenas aquelas idéias mentais rudes que tanto horrorizam o cético. Quando dizem que Cristo "desceu do céu", eles têm uma imagem vaga de algo sendo atirado ou flutuando do céu para a terra. Quando dizem que Cristo é o "Filho de Deus", eles podem ter uma idéia de duas figuras humanas, uma delas parecendo bem mais velha do que a outra. Mas sabemos agora que a simples presença dessas imagens mentais não nos diz nada de si mesma sobre o acerto ou absurdo dos pensamentos que acompanham. Se imagens absurdas significassem pensamentos absurdos, todos nós estaríamos pensando tolices o tempo todo. Os próprios cristãos tornam claro que as imagens não devem ser identificadas com a coisa em que se acredita. Eles podem imaginar o Pai em forma humana, mas também sustentam que Ele não tem corpo. Podem imaginá-lo mais velho do que o Filho, rugas afirmam do mesmo modo que um não existiu antes do outro, tendo ambos existido desde a eternidade. Estou naturalmente falando de cristãos adultos. O cristianismo não deve ser julgado pelas invenções das crianças mais do que a medicina de acordo com as idéias da menina que acreditava em coisas vermelhas horríveis.

 

Neste estágio devo passar a tratar de uma ilusão muito simples. Quando insistimos que o significado das palavras do cristão não deve ser identificado com suas imagens mentais, algumas pessoas exclamam: "Nesse caso, não seria melhor livrar-se das imagens mentais e da linguagem que as sugere, de uma vez por todas?" Mas isto é impossível. As pessoas que fazem essa recomendação não notaram que no momento em que tentam livrar-se das imagens humanas ou, como são chamadas, antropomórficas, simplesmente as substituem por outras de outra espécie. "Não creio num Deus pessoal", diz alguém, mas creio numa grande força espiritual. O que ele não percebeu é que a palavra força deu lugar a toda sorte de imagens sobre ventos, marés e eletricidade e gravitação. "Não creio num Deus pessoal", diz outro, "mas creio que somos todos parte de um Ser imenso que se move e opera através de todos nós"  sem notar que simplesmente substituiu a imagem de um homem de aparência paternal e soberana pela de um gás ou fluido amplamente expandido.

 

Uma moça que conheci foi educada por pais de "pensamentos elevados" a considerar Deus como uma "substância" perfeita; mais tarde ela veio a compreender que isso a levara a pensar nEle como um enorme pudim de tapioca. (Para piorar as coisas, ela detestava tapioca.) Podemos sentir-nos completamente livres deste grau de absurdo, mas estamos enganados. Se o indivíduo analisar sua própria mente, creio que descobrirá que aquilo que professa ser conceitos de Deus especialmente avançados ou filosóficos, permeia seus pensamentos, sempre acompanhado de imagens vagas que, se inspecionadas, se mostrariam ainda mais absurdas do que as imagens em forma humana despertadas pela teologia cristã. Pois o homem, no final de contas, é a mais elevada das coisas que encontramos na experiência sensorial. Ele, pelo menos, conquistou o globo, honrou a virtude (embora não a seguisse), obteve conhecimento, fez poesia, música e arte. Se Deus existe, não é irracional supor que somos mais parecidos com Ele do que qualquer outra coisa que conhecemos. Sem dúvida somos indiscutivelmente diferentes dEle; nesse sentido todas as imagens humanas são falsas. Mas aquelas imagens de névoas informes e forças irracionais que, despercebidas, assediam a mente quando pensamos que estamos chegando ao conceito do Ser impessoal e absoluto, devem ser ainda mais falsas. Imagens, de uma ou outra espécie, virão, não podemos pular fora de nossa própria sombra.

 

No que diz respeito então ao cristão adulto dos tempos modernos, o absurdo das imagens não envolve absurdo nas doutrinas; mas é possível perguntar se os primeiros cristãos se achavam nas mesmas circunstâncias. Ele talvez aceitasse as imagens como verdadeiras e acreditasse realmente no palácio do céu ou no trono decorado. Como vimos no exemplo das Coisas Vermelhas Horríveis, isto, porém não iria invalidar tudo o que pensava sobre o assunto. Em nosso exemplo, a criança poderia conhecer muitas verdades sobre veneno e até mesmo, em alguns casos especiais, verdades que certo adulto talvez não conhecesse. Vamos supor que um camponês da Galiléia realmente pensasse que Cristo estivesse literal e fisicamente "sentado à destra do Pai". Se tal indivíduo fosse então para Alexandria e recebesse uma educação filosófica, ele teria descoberto que o Pai não possuía mão direita e não se sentava num trono.

 

Seria concebível concluir que ele consideraria isto como fazendo qualquer diferença naquilo que realmente pretendeu e valorizou na doutrina durante o período de sua ignorância ingênua? A não ser que suponhamos que fosse não só um camponês, mas também um tolo (duas coisas muito diferentes), detalhes materiais sobre um suposto salão do trono celestial não seriam o foco de seu interesse. O que importava era a crença de que alguém que conhecera como homem na Palestina, havia, como pessoa, sobrevivido à morte e estava agora atuando como agente supremo do Ente sobrenatural que governava e mantinha todo o campo da realidade. E essa crença iria continuar substancialmente a mesma depois de reconhecida a falsidade das imagens anteriores.

 

Mesmo que pudesse ser então mostrado que os primeiros cristãos aceitavam suas imagens literalmente, isto não indicaria que estamos justificados em relegar suas doutrinas como um todo ao quarto de despejo. Se fizeram realmente isso já é outro caso. A dificuldade aqui é que eles não estavam escrevendo como filósofos para satisfazer a curiosidade especulativa sobre a natureza de Deus e do universo. Eles criam em Deus, e quando isso acontece, a exatidão filosófica jamais pode ser a primeira necessidade. O homem que se afoga não analisa a corda que lhe é atirada, nem o amante apaixonado considera a química da tez de sua amada. Assim sendo, o tipo de questão que estamos agora considerando não é levantado no Novo Testamento. Uma vez levantado, o cristianismo decide claramente que as imagens ingênuas são falsas. A seita no deserto do Egito que pensava ser Deus semelhante ao homem está condenada: o monge do deserto que julgou ter perdido algo quando a corrigiram é reconhecido como "confuso". As três Pessoas da Trindade são consideradas "incompreensíveis". Deus é pronunciado "inexprimível, inconcebível, invisível a todos os seres criados". A Segunda Pessoa não só não tem corpo como é de tal forma diferente do homem que se a auto-revelação fosse o seu único propósito Ele não teria escolhido encarnar-se em forma humana.

Não encontramos no Novo Testamento declarações semelhantes porque o assunto não foi ainda explicado: mas descobrimos afirmações que confirmam como esse assunto será decidido uma vez que se torne explícito. O título "Filho" pode soar "primitivo" ou "ingênuo". Mas já no Novo Testamento este "Filho" é identificado com o Discurso ou Razão ou Verbo que estava eternamente "com Deus", mas, era também Deus.

 

Ele é o princípio universal de concreção ou coesão que sustenta o universo. Todas as coisas e especialmente a Vida, surgiram de dentro dEle, e nEle todas as, coisas irão consumar-se  a declaração final do que vêm tentando expressar?

 

É sempre possível, naturalmente, imaginar uma camada anterior de cristianismo onde tais idéias não existissem, assim como é sempre possível dizer que qualquer coisa que não aprecie em Shakespeare foi colocada por um "adaptador" e a peça original não a continha. Mas, o que suposições desse tipo têm a ver com a pesquisa séria?

 

A invenção aqui é especialmente perversa, pois mesmo que retrocedêssemos para além do cristianismo ao próprio judaísmo, não encontraremos o antropoformismo inequívoco (ou semelhança humana) que estamos buscando. Admito também que encontraremos uma negação do mesmo. Encontraremos, de um lado, Deus descrito como vivendo lá em cima "no lugar alto e santo", e do outro, "Porventura não encho eu os céus e a terra? diz o Senhor".

 

Veremos que na visão de Ezequiel, Deus apareceu (note as palavras hesitantes) como "uma figura semelhante a um homem". Encontramos, entretanto, também a advertência: "Guardai, pois, cuidadosamente as vossas almas, pois aparência nenhuma vistes no dia em que o Senhor vosso Deus vos falou, em Horebe, no meio do fogo; para que não vos corrompais, e vos façais alguma imagem esculpida". Mais surpreendente ainda para o literalista moderno é que o Deus não parece habitar no céu, também foi quem o fez."

 

A razão do espanto do literalista moderno é que ele está tentando extrair dos antigos escritores algo que não existe. A partir de uma distinção clara e moderna entre material e imaterial, ele procura descobrir de que lado dessa distinção se acha o antigo conceito hebreu, esquecendo-se de que a distinção propriamente dita só veio a esclarecer-se no pensamento posterior.

 

É-nos dito repetidamente que o homem primitivo não podia conceber o espírito puro, mas ele também não podia imaginar a simples matéria. Um trono e uma habitação local são atribuídos a Deus apenas naquele estágio em que é ainda impossível considerar o trono, ou palácio até mesmo de um rei terreno, como simples objetos físicos. Nos tronos e palácios da terra era o significado espiritual (ou, como diríamos, a "atmosfera") que importava à mente primitiva. No momento em que o contraste entre "espiritual" e "material" se apresentava, eles sabiam que Deus era "espiritual" e compreendiam que sua religião havia implicado isto desde o início. Mas num estágio anterior esse contraste não existia. Considerar essa fase como não espiritual por não descobrirmos nela uma afirmação positiva do espírito desincorporado é um grande erro. Você poderia da mesma forma chamá-la espiritual por não conter uma consciência clara da simples matéria.

 

O Sr. Barfield demonstrou que, com relação à história da linguagem, as palavras não começaram através de uma simples referência aos objetos físicos e a seguir foram estendidas mediante metáforas abrangendo as emoções, estados mentais e outros. Pelo contrário, o que agora chamamos de significados "literais e metafóricos" foram ambos dissociados pela análise de uma unidade primitiva de significado que não era nem um nem outro. Assim também é errado pensar que o homem começou com um Deus ou céu "material" e gradualmente os espiritualizou. Ele não poderia ter começado com o "material", pois este, como o compreendemos, só pode ser apreendido em contraste com o "imaterial" e os dois lados do contraste crescem com a mesma velocidade. Ele partiu de algo que não era nem um nem outro. Enquanto estivermos tentando ler nessa unidade antiga um dos opostos que desde então já foi extraído dela, iremos interpretar erroneamente toda a literatura antiga e ignorar muitos estados de consciência que ainda experimentamos de tempos a tempos. O ponto é crítico não só para a presente discussão como para qualquer crítica literária sólida ou filosofia.

 

As doutrinas cristãs, e até mesmo as judias, que as precederam, foram sempre declarações a respeito de uma realidade espiritual e não espécimes da ciência física primitiva. O que quer que seja positivo no conceito espiritual fez sempre parte dele; só o seu aspecto negativo (a imaterialidade) é que teve de esperar pelo reconhecimento até que o pensamento abstrato se desenvolvesse plenamente. As imagens imateriais nunca foram aceitas literalmente por quem quer que tivesse alcançado a fase de compreender o que significa "aceitar literalmente". Chegamos agora à diferença entre "explicar" e "justificar". Ela se manifesta de duas formas. (1) Algumas pessoas, ao afirmarem que algo possui significado "metafórico" concluem disto que ele na verdade não contém absolutamente nada. Elas pensam corretamente que Cristo falou por metáforas quando nos ordenou que carregássemos a nossa cruz, mas concluem erradamente que carregar a cruz não significa nada além de levar uma vida respeitável e contribuir moderadamente para a caridade. Eles pensam com certo bom senso que o "fogo" do inferno é uma metáfora, e concluem imprudentemente que não significa nada mais sério do que o remorso.

 

Dizem essas pessoas que a história de Gênesis relativa à queda do homem não é literal; e depois passam a afirmar (eu mesmo já ouvi isso) que tratou-se na verdade de uma queda para cima  o que é o mesmo que dizer que pelo fato de a frase "meu coração está partido" conter uma metáfora, ela realmente significa "sinto-me muito alegre". Este modo de interpretação considero francamente como insensato. Para mim, as doutrinas cristãs "metafóricas", ou que se tomaram assim devido ao desenvolvimento do pensamento abstrato, significam algo que é tão "sobrenatural" ou chocante depois de termos removido o simbolismo antigo como o era antes. Elas indicam que além do universo físico ou psico-físico conhecido da ciência, existe uma realidade não-criada e não-condicionada que provoca a existência do universo; que esta realidade possui uma estrutura ou constituição positiva descrita na doutrina da Trindade de maneira proveitosa, embora sem dúvida não de maneira completa. Que esta realidade, num ponto definido do tempo entrou no universo conhecido, tornando-se uma de suas próprias criaturas e produziu ali efeitos no nível histórico que o funcionamento normal do universo natural não produz; e que isto resultou numa mudança em nossas relações com a realidade não-condicionada.

 

E preciso notar que nossa frase neutra "entrou o universo" não é absolutamente menos metafórica do que a mais pitoresca "desceu do céu". Substituímos apenas uma imagem de movimento horizontal ou inespecífico por outra de movimento vertical. E toda tentativa de melhorar a linguagem antiga terá o mesmo resultado. Essas coisas não só não podem ser afirmadas, como também não podem nem sequer ser apresentadas para discussão, sem auxílio da metáfora. Podemos tornar nosso discurso mais pesado, mas não mais literal. (2) Essas declarações dizem respeito a duas coisas, a realidade supranatural, não-condicionada, e os eventos no nível histórico que sua invasão do universo natural é acusada de ter produzido.

 

A primeira coisa não pode ser descrita na linguagem "literal", e portanto interpretamos corretamente tudo o que é dito a respeito da mesma forma metafórica. Mas a segunda está em posição por completo diversa. Os acontecimentos em nível histórico são a espécie de coisa de que podemos falar literalmente. Se ocorreram, foram percebidos pelos sentidos do homem. A "explicação" legítima degenera em "justificativa" confusa e desonesta, no momento em que começamos a aplicar a esses acontecimentos a interpretação metafórica que aplicamos corretamente às declarações sobre Deus.

 

A afirmativa de que Deus tem um Filho jamais tencionou significar que Ele é um ser que propaga a sua espécie por meio do intercurso sexual. Não alteramos então o cristianismo tomando explícito o fato de que o termo "filiação" não é usado com respeito a Cristo no mesmo sentido exato em que o empregamos para os homens. Mas a asserção de que Jesus transformou água em vinho teve um significado perfeitamente literal, pois isto se refere a algo que, se realmente aconteceu, encontrava-se ao alcance de nossos sentidos e linguagem. Quando digo: "meu coração está partido", você sabe muito bem que não estou querendo dar a entender nada que você pudesse verificar numa autópsia. Mas quando digo: "o laço de meu sapato desmanchou", se a sua observação mostrar que ele se acha intacto, eu estarei então mentindo ou enganado. Os relatos dos "milagres" na Palestina do primeiro século são mentiras, lendas ou história. E se todos, ou os mais importantes dentre eles, forem lendas ou mentiras então a afirmativa que o cristianismo vem fazendo nos últimos dois mil anos é simplesmente falsa; embora pudesse sem dúvida mesmo assim conter sentimentos nobres e verdades morais. Isso também acontece com a mitologia grega e a escandinava, mas essa é unia história muito diferente.

 

Nada neste capítulo nos ajuda a decidir sobre a probabilidade ou improbabilidade da reivindicação cristã. Removemos apenas um mal-entendido a fim de assegurar para essa questão um julgamento eqüitativo.

 

O Cristianismo e a "Religião"

 

Os que fazem da religião o seu deus não terão Deus em sua religião.

THOMAS ERSKINE OF LINLATHEN

 

Ao eliminar as confusões que surgem por ignorar as relações entre pensamento, imaginação e linguagem, podemos voltar agora ao nosso assunto. Os cristãos afirmam que Deus tem feito milagres. O mundo moderno, mesmo quando crê em Deus, e mesmo depois de verificar o desamparo da natureza, não crê neles, julgando que Deus não faria esse tipo de coisa. Temos qualquer razão para supor que o mundo moderno está certo? Concordo que a espécie de Deus concebida pela "religião" popular de nossos dias com toda certeza não operaria milagres. A questão está em essa religião popular ter qualquer probabilidade de estar correta.

 

Eu a chamo de "religião" deliberadamente. Nós, que defendemos o cristianismo, nos vemos constantemente atacados pela verdadeira religião de nossos ouvintes e não por sua falta de religião. Se falarmos de beleza, verdade e bondade, ou de um Deus que é simplesmente o princípio de habitação interior desses três atributos, se nos referirmos a uma grande força espiritual que permeia todas as coisas, uma mente comum de que todos somos partes, um reservatório de espiritualidade generalizada para o qual podemos todos fluir, iremos então obter interesse amigável. Mas a temperatura cai no momento em que você menciona um Deus que tem planos e realiza certos atos particulares, e que faz uma coisa e não outra, um Deus concreto, que dá ordens e faz proibições, com um caráter determinado. As pessoas se tornam imediatamente embaraçadas ou aborrecidas. Tal conceito lhes parece primitivo, rústico e até irreverente.

 

A "religião" popular exclui os milagres porque exclui o "Deus vivo" do cristianismo e acredita em vez disso numa espécie de Deus que evidentemente não operaria milagres, ou na verdade qualquer outra coisa. Esta religião "popular" pode ser chamada de Panteísmo de modo geral e devemos examinar agora as suas credenciais.

 

Em primeiro plano ela geralmente se baseia numa concepção bastante fantasiosa da história da religião. Segundo esse conceito, o homem começa inventando "espíritos" para explicar os fenômenos naturais; e no início imagina esses espíritos como absolutamente semelhantes a ele mesmo. À medida que se torna mais esclarecido, eles perdem sua identificação com a forma humana, "antropomórfica" como dizem os eruditos. Seus atributos antropomórficos vão sendo despidos um a um: primeiro a forma humana, depois as paixões humanas, a seguir a personalidade,  vontade, a atividade e no final todo atributo concreto ou positivo, qualquer que seja ele. No final fica apenas uma abstração pura a mente como tal e a espiritualidade como tal. Deus, em lugar de ser uma entidade particular com um caráter próprio, se transforma simplesmente no "conjunto" observado de um modo particular ou o ponto teórico em que todas as linhas da aspiração humana se encontrariam se produzidas infinitamente. Desde que sob o ponto de vista moderno, o estágio final de qualquer coisa é o mais refinado e civilizado, esta "religião" é tida como sendo uma crença mais profunda, espiritual e esclarecida do que o cristianismo.

 

Esta história imaginária da religião não é porém verdadeira. O panteísmo com certeza (como diriam os seus defensores) é congenial à mente moderna; mas o fato de um sapato entrar com 'facilidade no pé não prova tratar-se de um calçado novo e muito menos de que manterá seus pés secos'. O panteísmo se adapta à nossa mente por ser quase tão velho como nós e não por encontrar-se num estágio final num lento processo de esclarecimento. Ele pode ser até mesmo a mais primitiva de todas as religiões, e a orenda de uma tribo selvagem foi interpretada por alguns como sendo um "espírito que tudo permeia". Ela é imemorial na Índia. Os gregos a superaram apenas no seu apogeu, no pensamento de Platão e Aristóteles; seus sucessores retrocederam ao grande sistema panteísta dos estóicos. A Europa moderna só escapou enquanto permaneceu predominantemente cristã, voltando às antiga idéias com Giordano Bruno e Spinoza. Hegel fez com que se tomasse quase que a filosofia aceita pelos de maior cultura, enquanto o panteísmo mais popular de Wordsworth, Carlyle e Emerson transmitia a mesma doutrina aos que se achavam num nível cultural levemente inferior.

 

Longe de ser o refinamento religioso final, o panteísmo é de fato a inclinação natural e permanente da mente humana; o nível permanente comum abaixo do qual o homem algumas vezes afunda, sob a influência da astúcia eclesiástica e da superstição, mas acima do qual seus próprios esforços jamais o alçarão por muito tempo. O platonismo, o judaísmo e o cristianismo (que incorporou ambos) provaram ser os únicos que puderam resistir-lhe. Trata-se da atitude em que a mente humana se enquadra quando deixada a seus próprios recursos. Não é de admirar que a consideremos congenial. Se "religião" significa simplesmente o que o homem diz a respeito de Deus e não o que Deus faz em relação ao homem, então o panteísmo é quase religião. Neste sentido em análise final, a "religião" possui apenas um inimigo realmente formidável, a saber, o cristianismo (1). A filosofia moderna rejeitou Hegel e a ciência moderna não teve início com qualquer preconceito a favor da religião; mas ambas se mostraram incapazes de deter o impulso humano em direção ao panteísmo.

1 Dessa forma, se um Ministro da Educação professa valorizar a religião e ao mesmo tempo toma medidas para suprimir o cristianismo, não se segue necessariamente que ele seja um hipócrita ou mesmo um tolo (no sentido comum e mundano da palavra). Ele pode desejar sinceramente mais "religião" e sentir corretamente que a supressão do cristianismo seja uma preliminar necessária para o seu propósito.

Ele é quase tão forte hoje quanto o foi na Índia da antigüidade ou na antiga Roma. A teosofia e o culto à força vital são ambos expressões do mesmo. O culto alemão de um espírito racial não passa também de um panteísmo mutilado ou reduzido a fim de agradar os bárbaros. Todavia, por estranha ironia, cada nova recaída nesta "religião" imemorial é saudada como a última palavra em novidade e emancipação.

 

Esta inclinação nativa da mente tem seu paralelo num campo de pensamento muito diverso. Os homens acreditavam nos átomos séculos antes de terem qualquer evidência experimental de sua existência. Era aparentemente natural fazer isso. O tipo de átomos em que naturalmente acreditamos apresenta-se na forma de bolinhas pequenas e duras como aquelas substâncias duras que encontramos em nossas experiências, mas pequenas demais para serem vistas. A mente chega a este conceito através de uma comparação fácil com grãos de areia ou de sal. Isso explica diversos fenômenos e nos sentimos à vontade com átomos dessa espécie, podemos imaginá-los. Essa crença teria durado para sempre se a ciência posterior não tivesse tido a idéia de descobrir como os átomos realmente são.

 

No momento em que isso acontece, todo o nosso conforto, toda a imediata plausibilidade e evidência da velha teoria atômica cai por terra. Os átomos verdadeiros mostram-se absolutamente alheios ao nosso modo de pensamento natural. Não são sequer feitos de "material" ou "substância" dura (da maneira como a imaginação compreende a "matéria"): não são simples, mas possuem uma estrutura, não são todos a mesma coisa e não podem ser retratados. A velha teoria atômica é na física o que o panteísmo é na religião a suposição normal, instintiva, da mente humana; não completamente errada, mas necessitando de correção. A teologia cristã e a física quântica, em comparação com a primeira conjectura, são ambas duras, complexas, secas e repelentes. O primeiro choque da natureza real do objeto, interferindo em nossos sonhos espontâneos do que o objeto deveria ser, sempre tem essas características. Você não pode esperar que Schrödinger seja tão plausível quanto Demócrito; ele sabe demais. Não espere que Atanásio seja tão plausível quanto Bernard Shaw: ele também sabe demais.

 

A condição real da questão é geralmente mal interpretada porque as pessoas comparam um conhecimento adulto do panteísmo com o conhecimento de cristianismo que adquiriram na infância. Elas têm assim a impressão que o cristianismo apresenta a descrição óbvia de Deus, aquela que é fácil demais para ser verdade, enquanto o panteísmo oferece algo sublime e misterioso. Em verdade, a situação é exatamente inversa. A aparente profundidade do panteísmo oculta levemente um aglomerado de imagens mentais espontâneas e deve sua plausibilidade a esse fato. Os panteístas e os cristãos concordam que Deus está presente em toda parte. Os panteístas concluem que Ele se acha "difundido" ou "oculto" em todas as coisas, sendo portanto um meio universal e não uma entidade concreta, em vista de suas mentes estarem realmente dominadas pela imagem de um gás, um fluido, ou o espaço propriamente dito.

 

O cristão, por outro lado, elimina deliberadamente tais imagens dizendo que Deus está totalmente presente em cada ponto do espaço e do tempo, mas localmente não se acha em nenhum deles. O panteísta e o cristão concordam também em que todos dependemos de Deus e temos uma relação íntima com Ele. Mas o cristão define este relacionamento em termos de Criador e criatura, enquanto o panteísmo (pelo menos a forma popular) diz, somos "partes" dEle, ou estamos contidos nEle. Mais uma vez se introduziu a idéia de algo imenso e expandido, que pode ser dividido em áreas. Devido a esta imagem fatal o panteísmo conclui que Deus deve estar igualmente presente naquilo que chamamos de mal e de bem sendo, portanto, indiferente a ambos (o éter se infiltra na lama e no mármore imparcialmente).

 

O cristão se vê forçado a replicar que isso é excesso de simplificação, pois Deus está presente de inúmeras maneiras: na matéria, de maneira diversa daquela em que se acha no homem; não se encontra presente em todos os homens, mas somente em alguns; não está presente em homem algum como está em Jesus. O panteísta e o cristão concordam novamente que Deus é suprapessoal. O cristão significa com 'isto que Deus possui uma estrutura positiva que não poderíamos jamais supor antecipadamente, do mesmo modo que o conhecimento dos quadrados não nos capacitaria a adivinhar a existência de um cubo. Ele contém "pessoas" (três delas) embora permaneça um Deus único, como o cubo contém seis quadrados embora permaneça um corpo sólido único. Não podemos compreender tal estrutura mais do que os povos menos cultos podiam entender o cubo. Nós, porém, podemos pelo menos compreender a nossa incompreensão, e ver que se existe algo além da personalidade esse algo deve ser incompreensível nesse sentido. O panteísta, por outro lado, embora possa dizer que Deus é "suprapessoal" ele o concebe realmente em termos do que é subpessoal como se os indivíduos incultos pensassem que um cubo existisse em menos dimensões do que um quadrado.

 

O cristianismo tem necessidade de corrigir as expectativas naturais do panteísta em todos os pontos, oferecendo-lhe algo mais difícil, como Schrödinger teve de corrigir Demócrito. A cada momento precisa multiplicar as distinções e eliminar as falsas analogias, substituindo os traçados de algo que possui um caráter positivo, concreto e altamente articulado pelas generalidades informes em que o panteísmo se sente à vontade. De fato, depois de a discussão ter-se alongado por algum tempo, o panteísta pode mudar de tática e onde ele nos acusava antes de ingenuidade infantil agora nos culpa pelo pedantismo complexo de nossos "Cristãos frios e Trindades confusas". E podemos perfeitamente simpatizar com ele. O cristianismo, frente a frente com a "religião" popular traz sempre problemas. Às declarações amplas e bem intencionadas da "religião", ele se vê obrigado a responder repetidamente: "Bem, não é de fato assim", ou "eu dificilmente diria isso". Essa importunação não prova naturalmente que ele seja verdadeiro; mas se fosse verdadeiro conteria tal importunação, criaria problemas. O músico verdadeiro importuna da mesma forma o indivíduo que deseja "apreciar música" sem conhecê-la; o verdadeiro historiador é igualmente incômodo quando desejamos romancear sobre os "velhos dias" ou os "gregos e romanos da antigüidade". A natureza averiguada de qualquer coisa real é sempre a princípio um aborrecimento para as nossas fantasias naturais, um intruso desagradável, pedante, lógico, em uma conversa que estava se desenvolvendo fabulosamente sem ele.

 

A "religião", porém, alega ao mesmo tempo achar-se baseada na experiência. As experiências dos místicos (essa classe popular e mal definida) são tidas como indicadoras de que Deus é Deus da "religião" e não do cristianismo; que Ele ou "essa Coisa" não é um Ser concreto, mas um "ser geral" sobre o qual nada pode ser realmente confirmado. A tudo que tentamos dizer sobre Ele, os místicos tendem a replicar: "Não é assim". Qual o significado de todas essas negativas dos místicos irei considerar logo mais, mas primeiro devo dizer por que me parece impossível que possam ser verdadeiras no sentido que lhes dão popularmente.

 

É preciso, entretanto, concordar que sem levar em conta a maneira como chegaram ali, coisas como gansos, generais alemães, amantes, sanduíches, abacaxis, cometas e cangurus existem agora. Não se trata de simples princípios, generalidades ou teoremas, mas coisas, fatos, existências reais, resistentes. Poder-se-ia até dizer existências opacas, no sentido de que cada uma delas contém algo que nossa inteligência não pode digerir completamente. Até o ponto em que ilustram leis gerais podemos compreendê-las, mas quase nunca se limitam a meras ilustrações. Acima e, além disso existe em cada uma delas o fato "opaco" e brutal da existência, o fato de que se encontra realmente ali e é ela mesma. Este fato opaco, esta condição de coisa concreta, não é de forma alguma computado pelas leis da natureza ou sequer pelas leis do pensamento. Cada uma das leis pode ser reduzida à forma: "Se A, então B". As leis nos dão apenas um universo de "Ses e es" e não este universo que existe realmente. O que sabemos mediante leis e princípios gerais é uma série de associações, Mas, a fim de que possa haver um universo real, é preciso que as ligações liguem alguma coisa; uma torrente de fatos opacos precisa alimentar o padrão. Se Deus criou o mundo, Ele é então justamente a fonte desta torrente, e só ela dá aos nossos mais verdadeiros princípios algo sobre o qual ser verdadeiro. Se Deus, porém, for a origem final de todas as coisas e acontecimentos concretos e individuais, Ele mesmo então deve ser concreto e individual ao máximo. A não ser que a origem de todas as outras coisas fosse ela mesma concreta e individual, nada mais poderia sê-lo; pois não existe meio concebível pelo qual aquilo que é abstrato ou geral possa de si mesmo produzir a realidade concreta.

 

A contabilidade continuada por toda a eternidade, jamais produziria um centavo. A métrica, por si mesma, nunca produziria um poema. A contabilidade precisa de algo mais (isto é, dinheiro verdadeiro colocado na conta) e a métrica também (palavras verdadeiras colocadas nela por um poeta) antes que qualquer renda ou qualquer poesia possa existir. Se qualquer coisa deva realmente existir, então a Coisa Original deve ser um fato absolutamente concreto e não um princípio nem uma generalidade, e muito menos um "ideal" ou um "valor".

 

Nenhum ente racional provavelmente negaria que Deus é concreto e individual, dizendo isso explicitamente. Mas nem todas as pessoas racionais e certamente nem todos que acreditam em "religião" mantêm esta verdade constantemente diante de si. Devemos cuidar, como disse alguém, para não fazer a Deus "cumprimentos metafísicos" precipitados. Dizemos que Deus é "infinito". No sentido em que o seu conhecimento e poder se estende a todas as coisas e não apenas a algumas, isto é verdadeiro. Entretanto, se ao usar o termo "infinito" nos encorajamos a pensar nele como um "tudo" informe, a respeito do qual nada em particular e tudo em geral pode ser aplicado, seria melhor então pôr completamente de lado essa palavra. Vamos ousar dizer que Deus é uma Coisa especial. Uma vez Ele foi a única Coisa: mas, por ser criativo, fez com que outras coisas passassem a existir. Ele não é essas outras coisas, não é um "ser universal": se fosse não haveria outras criaturas, pois uma generalidade não pode criar nada. Ele é um "ser absoluto", ou seja, o Ser Absoluto, no sentido de que só Ele existe por seu próprio direito. Mas existem coisas que Deus não é. Nesse sentido ele possui um caráter determinado. Ele é então justo e não amoral; criativo e não inerte. Os escritos hebraicos observam aqui um equilíbrio admirável. Uma vez Deus disse simplesmente EU SOU, proclamando o mistério da auto-existência, mas vezes sem conta Ele disse, "Sou o Senhor", Eu, o Fato último, tenho este caráter determinado e não aquele. E os homens são exortados a "conhecerem o Senhor", a fim de descobrir e provar este caráter particular.

 

O erro que estou tentando corrigir aqui é um dos mais sinceros e respeitáveis no mundo. Simpatizo-me suficientemente com ele para sentir-me chocado com a linguagem que fui impelido a usar ao estabelecer o ponto de vista oposto, que acredito ser o verdadeiro. Dizer que Deus "é uma Coisa particular" parece suprimir a incomensurável diferença não só entre o que Ele é e o que todas as demais coisas são, como também o próprio modo de sua existência e a delas. Devo imediatamente restaurar o equilíbrio, insistindo em que coisas derivadas, desde átomos até arcanjos, dificilmente chegam a existir em comparação com seu Criador. O seu princípio de existência não é inato nelas. Ë possível distinguir o que são do fato de que são. Sua definição pode ser entendida e uma clara idéia das mesmas formada sem sequer saber se são. A existência é uma adição "opaca" à idéia delas. Mas com Deus não acontece o mesmo: se compreendêssemos plenamente o que Deus é, veríamos que não existe questão quanto a se Ele é. Teria sido sempre impossível que não existisse. Ele é o centro opaco de todas as existências, a coisa que é simples e inteiramente, a origem dos fatos. Entretanto, agora que Ele criou, existe um sentido em que devemos dizer que Ele é uma Coisa particular e mesmo uma Coisa entre outras. Afirmar isto não é reduzir a diferença incomensurável entre ambas. Pelo contrário, é reconhecer nEle uma perfeição positiva que o panteísmo obscureceu; a perfeição de ser criativo. Ele está tão pleno de existência que pode distribuí-la, pode provocar a existência de coisas, e ser realmente outra coisa além de si mesmo, pode tomar uma inverdade a afirmação de que Ele é tudo.

 

Está claro que jamais houve tempo em que nada existisse; de outra forma nada existiria agora. Mas existir significa ser um Algo positivo, possuir (metaforicamente) uma certa forma ou estrutura, ser isto e não aquilo. A Coisa que sempre existiu, isto é, Deus, teve então sempre seu próprio caráter positivo. Através de toda a eternidade certas declarações sobre Ele teriam sido verdadeiras e outras falsas. E do simples fato de nossa própria existência e da natureza, já sabemos até certo ponto quais são elas. Sabemos que Ele inventa, age, cria. Depois disso não há base para supor antecipadamente que Ele não opera milagres.

 

Por que, então, os místicos falam dEle como o fazem, e por que muitas pessoas já se acham preparadas de antemão para afirmar que embora possa ser qualquer outra coisa, Deus não é o Deus concreto, vivo, dotado de vontade, atuante da teologia cristã? Julgo ser esta a razão: suponhamos um molusco místico, um sábio entre os moluscos, que (em êxtase) tem um vislumbre da aparência do homem. Ao transmitir sua impressão aos discípulos, que também têm alguma visão (embora menos do que ele), terá de fazer uso de muitas negativas. Terá de dizer-lhes que o Homem não possui concha, não está agarrado a uma rocha, não está cercado de água. E os discípulos, tendo uma visão própria para ajudá-los, conseguem realmente fazer uma idéia do homem. Surgem a seguir moluscos eruditos, moluscos que escrevem histórias da filosofia e fazem palestras sobre religião comparativa, mas que jamais tiveram uma visão. O que eles extraem das palavras do molusco-profeta são simples e unicamente as negativas. A partir delas, quando não corrigidos por qualquer percepção positiva, eles constroem uma imagem do Homem como uma espécie de geléia amorfa (ele não tem casca) que não se fixa em lugar algum determinado (ele não se liga à rocha) e jamais se alimenta (não existe água para levar o alimento até ele). Como têm uma reverência tradicional pelo Homem concluem então que ser uma geléia faminta num vácuo ilimitado é o modo supremo de existência e rejeitam qualquer doutrina que possa atribuir ao Homem uma forma definida, uma estrutura e órgãos, como sendo pura superstição rude e materialista.

 

Nossa situação se identifica bastante com a dos moluscos eruditos. Os grandes profetas e santos possuem uma intuição positiva e concreta de Deus, no mais alto grau. Pelo fato de terem observado que Ele é plenitude de vida, energia e contentamento (tendo tocado apenas a fímbria do Seu ser), vêem-se, portanto obrigados (por essa única razão) a declarar que Ele transcende aquelas limitações que chamamos de personalidade, paixão, mudança, matéria e outras. A qualidade positiva nele que repele essas limitações é a única base para todas as negativas. Mas quando prosseguimos, hesitantes, e tentamos construir uma religião intelectual ou "esclarecida", nos apossamos dessas negativas (infinitas, imateriais, impassíveis, imutáveis, etc.) e as usamos desembaraçados de qualquer intuição positiva. A cada passo temos de despojar nossa idéia de Deus de algum atributo humano. Mas a única razão real para remover o atributo humano é abrir espaço onde colocar algum atributo divino positivo. Na linguagem do apóstolo Paulo, o propósito deste despojamento não é levar nossa idéia de Deus até o ponto da nudez, mas revesti-la. Quando removemos de nosso conceito de Deus alguma característica humana secundária, não temos recursos (como simples espectadores eruditos ou inteligentes) que nos forneçam aquele atributo ofuscante e concreto da Divindade que possa substituí-la.

 

No processo de refinamento, nossa idéia de Deus fica reduzida a cada passo, e as imagens fatais se introduzem (um mar infinito, silencioso, um céu vazio além de todas as estrelas, um domo de brancura radiante) e chegamos finalmente ao simples zero, adorando uma quimera. A compreensão, deixada a seus próprios recursos, dificilmente deixará de seguir este caminho. Essa a razão pela qual a afirmativa cristã de que apenas quem faz a vontade do Pai conhecerá a verdadeira doutrina é filosoficamente correta. A imaginação pode ajudar até certo ponto, mas na vida moral e (mais ainda) na devocional tocamos algo concreto que imediatamente começará a corrigir o crescente vazio de nosso conceito de Deus. Um momento, mesmo que seja de frágil arrependimento ou gratidão confusa, pode desviar-nos do abismo da abstração. É o próprio raciocínio que nos ensina a não confiar somente na razão neste assunto, pois esta sabe que não pode operar sem a matéria. Quando se torna claro que você não pode descobrir através do raciocínio se o gato está ou não no armário, a própria razão sussurra: "Vá e olhe. Este trabalho não é meu, é uma questão dos sentidos". O mesmo acontece aqui.

 

Os materiais para corrigir nosso conceito abstrato de Deus não podem ser supridos pela razão. Ela será a primeira a dizer-lhe que submeta-se à experiência  "Oh! Experimente e veja!" Como é natural, nesse ponto ela já terá mostrado a você que sua posição é absurda. Enquanto permanecermos como Moluscos Eruditos, estamos esquecendo que se ninguém jamais tivesse visto mais de Deus do que nós, não teríamos sequer razão para crer nEle como um ser imaterial, imutável, impassível e todo o resto.

 

Mesmo essa idéia negativa que nos parece tão esclarecida não passa de uma relíquia deixada pelo conhecimento de homens melhores, apenas o padrão que aquela onda celestial deixou na areia quando se retirou.

 

"Um Espírito e uma Visão", disse Blake, "não são, como supõe a filosofia moderna, uma névoa, ou um nada. Eles são organizados e minuciosamente articulados além de tudo o que a natureza mortal e perecível pode produzir."² Ele está falando apenas de como fazer desenhos de aparições que podem perfeitamente ser ilusórias, mas suas palavras também sugerem uma verdade no nível metafísico. Deus é um fato básico ou Realidade, a origem de todos os demais fatos; não devendo então, de modo algum ser concebido como uma generalidade informe. Caso exista, Ele é a coisa mais concreta que existe, a mais individual, "organizada e minuciosamente articulada". Ele não é indizível por ser indefinido, mas justamente por mostrar-se demasiado definido em relação à inevitável falta de precisão da linguagem.

 

Os termos incorpóreo e impessoal não são bem interpretados, pois sugerem que talvez falte a Ele alguma realidade que possuímos. Seria mais seguro chamá-lo de transcorpóreo, transpessoal. O corpo e a personalidade como os conhecemos são os negativos reais são o que resta do positivo quando suficientemente diluído para aparecer em formas temporais ou finitas. A nossa sexualidade também deveria ser considerada como a transposição para um tom menor daquela alegria criativa incessante e irresistível nEle. As coisas que dizemos a respeito dEle são "metafóricas" gramaticalmente: mas num sentido mais profundo são as nossas energias físicas e psíquicas que não passam de "metáforas" da Vida real que é Deus. A Filiação Divina é, por assim dizer, o sólido do qual a filiação biológica é simplesmente uma representação diagramática plana.

 

O tema das imagens, que cruzou nosso caminho no capítulo anterior, pode ser visto aqui sob uma nova luz, pois é justamente o reconhecimento da realidade positiva e concreta de Deus que o simbolismo religioso preserva. A figura mais tosca do Velho Testamento, mostrando Javé na forma de trovões e relâmpagos saindo da fumaça densa, fazendo montanhas pularem como carneiros, ameaçando, prometendo, suplicando, e até mudando de idéia, transmite a sensação de Divindade viva que se evapora no pensamento abstrato. Até mesmo as imagens subcristãs, até mesmo um ídolo hindu com uma centena de mãos, contém algo que a simples "religião" de nossos dias deixou de fora.

 

Nós a rejeitamos corretamente, pois por si mesma iria encorajar as mais vis superstições, a adoração do simples poder. Talvez devamos acertadamente rejeitar muitos dos simbolismos do Velho Testamento. Devemos, porém, ser claros quanto à razão por que o fazemos: não é pelo fato de as imagens serem muito fortes, mas porque elas são muito fracas. A última realidade espiritual não é mais vaga, mais inerte, mais transparente do que as imagens, mas mais positiva, mais dinâmica, mais opaca. Confusão entre Espírito e alma (ou "fantasma") causou aqui muito prejuízo. Os fantasmas devem ser imaginados, caso devamos fazê-lo, como sendo indistintos e tênues, pois fantasmas são meios homens, um elemento abstraído de uma criatura que deveria ter carne. Mas o Espírito, quando retratado, deve sê-lo da maneira oposta. Nem Deus nem mesmo os deuses são "indistintos" na imaginação tradicional: mesmo os mortos humanos, quando glorificados em Cristo, deixam de ser "fantasmas" e passam a ser "santos". A diferença de atmosfera que mesmo agora cerca as palavras "vi um fantasma" e "vi um santo",  toda a palidez e insubstancialidade de um, todo o ouro e azul do outro contém mais sabedoria do que bibliotecas inteiras de "religião". Se devemos ter uma imagem mental para simbolizar o Espírito, é preciso representá-lo como algo mais pesado que a matéria.

 

E se dissermos que estamos rejeitando as velhas imagens de maneira a fazer mais justiça aos atributos morais de Deus, devemos tomar novamente cuidado com o que realmente queremos dizer.

 

Quando queremos aprender a respeito do amor e bondade de Deus por analogia, imaginando paralelos para eles no campo das relações humanas  nos voltamos naturalmente para as parábolas de Cristo. Quando tentamos, porém, conceber a realidade como ela é em si mesma, é preciso ter cuidado para não interpretar os "atributos morais" em termos de simples escrúpulos ou benevolência abstrata. O engano é facilmente praticado porque negamos (corretamente) que Deus tenha paixões; e para nós um amor que não seja passional significa um sentimento menor. Mas a razão por que Deus não tem paixões é que estas implicam em passividade e intermissão. A paixão do amor é algo que nos acontece, como "ficar molhado" acontece ao corpo, sendo Deus isento dessa "paixão" da mesma forma que a água está isenta de "ficar molhada". Ele não pode ser afetado pelo amor, porque Ele é amor. Imaginar esse amor como algo menos torrencial ou menos agudo do que nossas próprias "paixões" temporárias e derivadas, é uma fantasia das mais desastrosas.

 

Encontramos de novo uma violência em alguns dos simbolismos tradicionais que tende a obscurecer a imutabilidade de Deus, a paz, que quase todos que se aproximam dela relatam. Penso que é exatamente nesse ponto que as imagens pré-cristãs são menos sugestivas. Todavia, mesmo aqui, existe o perigo da imagem semiconsciente de algo enorme descansando, um oceano claro e imóvel, um domo de "brancura radiante", poderia insinuar idéias de inércia ou vazio. A tranqüilidade com que os místicos se aproximam dEle é atenta e alerta, justamente o oposto de um estado de sono ou devaneio. Estão se tomando como Ele. O silêncio no mundo material ocorre nos espaços vazios: mas a Paz final é silenciosa através da própria densidade da vida. O dizer é diluído no ser. Não existe movimento porque Sua ação (que é Ele mesmo) é eterna. Você poderia, se quisesse, chamá-la de movimento em velocidade infinita, que é o mesmo que descanso, mas alcançado mediante uma abordagem diferente, talvez menos enganosa.

 

Os homens relutam em passar da noção de uma divindade abstrata e negativa para o Deus vivo. Não me surpreendo. Aqui se encontra a raiz principal e mais profunda do panteísmo e da objeção ao simbolismo tradicional. Em análise final o ódio não se dirigia ao fato de Ele ser retratado como Homem, mas porque o fizeram rei, ou mesmo um guerreiro. O Deus panteísta nada faz, nada exige. Ele está ali, quando o solicitam, como um livro numa prateleira. Não irá persegui-lo. Não há perigo de o céu e a terra fugirem em momento algum de seu olhar. Se Ele fosse a verdade, poderíamos então dizer convictamente que todas as imagens cristãs de soberania não passavam de um acidente histórico do qual nossa religião deveria ser purificada. Descobrimos com um choque que elas são indispensáveis. Você já teve surpresas assim antes, em relação a coisas menores,quando a linha puxa a sua mão, quando algo respira a seu lado no escuro. O mesmo acontece aqui; o choque se dá no exato momento em que a sensação de vida nos é comunicada juntamente com a pista que estivemos seguindo. E sempre chocante encontrar vida quando pensávamos estar sós. "Veja!" gritamos, "está vivo?' E, portanto, este é o ponto onde muitos recuam eu teria feito o mesmo se pudesse  afastando-se do cristianismo. Um Deus "impessoal" é bem aceito. Um Deus subjetivo de beleza, verdade e bondade, dentro de nossas cabeças  melhor ainda. Uma força de vida informe, surgindo através de nós, um vasto poder que podemos deixar fluir  o melhor de tudo. Mas o próprio Deus, vivo, puxando do outro lado da corda, talvez se aproximando numa velocidade infinita, o caçador, rei, marido  isso é outra coisa muito diferente. Chega a hora em que as crianças que estavam brincando de bandido se aquietam de súbito: será que esse ruído é realmente de panos no vestíbulo? Chega a hora em que as pessoas que estiveram brincando com religião ("A busca de Deus pelo homem!") de repente recuam. E se na verdade O encontrássemos? Não foi essa a nossa intenção! Pior ainda, e se Ele nos encontrasse?

 

Trata-se, portanto, de uma espécie de Rubicão. Nós o atravessamos, ou não. Mas quem faz isso não pode proteger-se de forma alguma dos milagres. Tudo é possível.

 

A Propriedade dos Milagres

 

O Princípio, ao mesmo tempo que explica as Regras, as supera.

SEELEY, Erre Homo, chap. 16

 

Se o Fato final não é uma abstração mas o Deus vivo, opacificado pela própria plenitude de sua ofuscante realidade, Ele então poderia fazer coisas. Poderia operar milagres. Mas, será que faria isso? Muitas pessoas sinceramente piedosas acreditam que não. Acham que não seria digno dEle. São os tiranos insignificantes e caprichosos que quebram suas próprias leis: os reis sábios e bons lhes obedecem. Só um obreiro incompetente produzirá obras que exijam alterações.

 

Aqueles que pensam deste modo não ficam satisfeitos com a garantia dada no Capítulo 8 de que os milagres não transgridem na verdade as leis da natureza. Isso pode ser inegável, mas continuarão pensando (e com justiça) que os milagres interrompem a marcha ordeira dos acontecimentos, o desenvolvimento constante da natureza segundo o seu gênio ou caráter inerente. Essa marcha regular parece aos críticos que tenho em mente mais impressionante que qualquer milagre. Ao levantar os olhos (como Lúcifer no soneto de Meredith) para o céu noturno, acham quase ímpio supor que Deus possa algumas vezes desdizer aquilo que disse antes com tanta magnificência. Este sentimento surge de fontes profundas e nobres na mente e deve ser sempre tratado com respeito. Todavia, acredito que esteja baseado num erro.

 

Quando os alunos começam a aprender a fazer versos em latim na escola, provavelmente ficam proibidos de ter o que é chamado tecnicamente de "espondeu no quinto pé", e isso muito apropriadamente, pois o hexâmetro normal não contém um espondeu nesse ponto. Se fosse permitido que os alunos usassem essa forma anormal, eles fariam isso constantemente por conveniência e talvez não conseguissem jamais aprender a música típica do hexâmetro. Mas quando os alunos passam a ler Virgílio, descobrem que ele faz justamente o que lhes foi proibido não com muita frequência, mas também não tão raramente. Do mesmo modo, os jovens que acabaram de aprender como fazer rimas, ficam chocados ao encontrar rimas "erradas" nos grandes poetas. Até mesmo na carpintaria ou cirurgia existem, segundo penso, "licenças", métodos anormais de fazer as coisas que o mestre usaria com segurança e judiciosamente, mas que consideraria imprudente ensinar aos discípulos.

 

Vemos com freqüência que o principiante, que dominou as regras estritas preliminares e formais, é demasiado escrupuloso e pedante a respeito delas. E o simples crítico que talvez jamais chegue a principiar ele mesmo, pode ser mais pedante ainda. Os críticos clássicos ficaram surpresos com as "irregularidades" ou "licenças" de Shakespeare. O aluno estúpido poderia pensar que os hexâmetros anormais em Virgílio, ou as meias-rimas nos poetas, fossem devidos à incompetência. Na realidade, como é natural, cada um deles se encontra ali com um propósito e interrompe a regularidade superficial da métrica em obediência a uma lei mais alta e mais sutil: da mesma forma que as irregularidades no livro The Winter's Tale (*) não prejudicam, mas englobam e aperfeiçoam a unidade interior de seu espírito.

 

Em outras palavras, existem regras por trás das regras, e uma unidade mais profunda do que a uniformidade. Um obreiro supremo jamais interromperá com uma só nota, sílaba ou pincelada a lei viva e interior da obra que estiver produzindo. Mas quebrará sem nenhum escrúpulo qualquer número daquelas regularidades e ortodoxias superficiais que os críticos pouco imaginativos tomam como sendo as suas leis. A medida em que se pode diferençar uma "licença" justa de um simples remendo ou falha na unidade, depende da medida em que se alcançou o significado real e interior da obra como um todo.

 

Se tivéssemos apreendido como um todo o espírito mais secreto da "obra que Deus realizou desde o início até o fim" e da qual a natureza não passa de uma parte (talvez pequena), estaríamos em posição de decidir se interrupções milagrosas da história da natureza seriam apenas impropriedades indignas do Grande Obreiro ou expressões da mais verdadeira e profunda unidade em sua obra total. Nós, na verdade, não nos achamos de fato nessa posição. A diferença entre a mente de Deus e a nossa, sob qualquer ponto de vista, deve ser incalculavelmente maior do que aquela entre a mente de Shakespeare e a dos mais insignificantes críticos da velha escola francesa.

 

Quem poderia supor que o ato externo de Deus, visto do lado de dentro, teria a mesma complexidade das relações matemáticas revelada pela natureza quando cientificamente estudada? Seria o mesmo que pensar que o poeta extrai sua linha do pé métrico em que podemos analisá-la, ou que a língua viva tome a gramática como seu ponto de partida. O melhor de todos os exemplos é, porém, o de Bergson. Suponhamos uma espécie de pessoas cuja limitação mental peculiar as leve a considerar um quadro como algo feito de pequenos pontos coloridos que foram unidos como um mosaico. Ao estudar o estilo de um grande pintor, elas descobrem através de uma lente de aumento relações mais complicadas entre os pontos, e classificam essas relações, com grande esforço, com certas regularidades. O trabalho não será vão. As regularidades irão de fato "operar"; cobrirão a maioria dos fatos. Mas se prosseguirem, concluindo que qualquer afastamento delas seria indigno do pintor, e uma quebra arbitrária de suas próprias regras, estarão completamente errados, pois as regularidades que observaram jamais foram a regra que o pintor estava seguindo. O que esses indivíduos reconstruíram penosamente de um milhão de pontos, arranjados num complexo dificílimo, ele realmente produziu com um único golpe de punho, veloz como um relâmpago. Seus olhos abrangiam a tela como um todo e sua mente obedeceu a leis de composição que os observadores, contando os seus pontos, ainda não discerniram e talvez nunca venham a fazê-lo.

 

Não quero dizer que as normas da natureza sejam irreais. A fonte viva da energia divina, solidificada para servir aos propósitos desta natureza espaço-temporal, em corpos movendo-se no espaço e no tempo, e transformada portanto pelo nosso pensamento abstrato em fórmulas matemáticas, enquadra-se de fato para nós comumente em tais e tais padrões. Ao descobrir esses padrões estaremos então obtendo conhecimento real e geralmente útil. Mas pensar que um distúrbio dos mesmos constituiria uma solução de continuidade da regra viva e unidade orgânica por meio da qual Deus opera (de seu próprio ponto de vista) é um erro. Se milagres ocorrem de fato, podemos estar certos que não operá-los é que seria a verdadeira inconsistência.

 

Como o milagre pode não representar inconsistência, mas a mais elevada consistência, ficará claro para os que lerem o livro The Mind of the Maker (A Mente do Criador), escrito por Dorothy Sayers. A tese da autora está baseada, na analogia entre a relação de Deus com o mundo e a do escritor com o seu livro. Quando você escreve uma história, os milagres ou acontecimentos anormais podem ser artifícios bons ou maus. Se, por exemplo, você estiver escrevendo um romance realista comum e colocou seus personagens numa posição insustentável, seria praticamente absurdo se cortasse repentinamente o nó e garantisse um final feliz fazendo que o herói recebesse uma fortuna de uma fonte completamente inesperada. Por outro lado, não há nada a objetar quanto a usar como tema desde o início as aventuras de alguém que recebeu uma fortuna inesperada. O acontecimento extraordinário é perfeitamente válido se é sobre isso que você está escrevendo, mas constitui um crime artístico se simplesmente introduzi-lo em cena para livrar-se de uma dificuldade. A história de fantasmas é uma forma legítima de arte; mas você não deve introduzir um fantasma num romance comum a fim de superar uma dificuldade no enredo.

 

Não existe qualquer dúvida de que grande parte das objeções modernas aos milagres é baseada na suspeita de que são prodígios da espécie errada; que está havendo interferência arbitrária numa história de um certo tipo (a Natureza), a fim de tirar os personagens de uma situação difícil, por meio de acontecimentos que não pertencem realmente a esse gênero de história. Algumas pessoas pensam provavelmente na Ressurreição como um expediente desesperado de última hora, a fim de salvar o Herói de uma situação que fugira ao controle do Autor.

 

O leitor pode tranqüilizar-se. Se eu pensasse que os milagres fossem isso, não creria neles. Se ocorreram foi porque são exatamente o tema desta história universal. Não se tratam de exceções (por mais raramente que ocorram) nem irrelevâncias. São precisamente aqueles capítulos nesta grande narrativa de que trata o enredo. A Morte e a Ressurreição compõem o tema, e se apenas tivéssemos olhos para ver, isto se acha insinuado em cada página, apresentando-se a nós a cada passo e sendo até murmurado nas conversas entre os personagens menores (se é que o são) como os vegetais. Se você até agora não acreditou em milagres, vaie a pena fazer uma pausa e considerar se isso não aconteceu principalmente porque pensou ter descoberto qual era o verdadeiro tema da história, julgando que os átomos, o tempo e o espaço, a economia e a política fossem o enredo principal! Será que está certo? E fácil cometer enganos em tais assuntos. Um amigo meu escreveu uma peça em que a idéia principal era o horror patológico do herói pelas árvores e sua mania de cortá-las. Mas, naturalmente, outras coisas também foram introduzidas; uma história de amor fazia parte do enredo, e as árvores mataram o homem no final. Depois de tê-la escrito, meu amigo pediu a um homem mais velho para criticá-la, e este devolveu a peça com o seguinte comentário: "Não está má, mas se fosse eu, cortaria os 'enchimentos' ao redor das árvores". Com toda certeza devemos esperar que Deus escreva uma história melhor que meu amigo. Mas é uma história longuíssima, com um enredo complicado, e nós talvez não sejamos leitores atentos.

 

Sobre a Probabilidade

 

A probabilidade tem como base uma semelhança entre aqueles objetos que conhecemos e os que não conhecemos; e portanto é impossível que esta suposição possa surgir da probabilidade.

HUME, Treatise of Human Nature, 1, 3, 6

 

O argumento mostra que os milagres são possíveis e que não existe coisa alguma ridícula nas histórias que declaram terem eles sido operados por Deus. Isto não significa, naturalmente, que somos obrigados a crer em todas as histórias de milagres. A maioria das histórias sobre eventos milagrosos são provavelmente falsas; e, se quisermos encarar a verdade, a maioria das histórias sobre eventos naturais são falsas. Mentiras, exageros, mal-entendidos e boatos compõem talvez mais da metade de tudo o que é dito e escrito no mundo. Devemos, portanto, encontrar um critério para julgar qualquer história particular sobre milagres.

 

Num sentido, naturalmente, nosso critério é claro. Devemos aceitar aquelas histórias em que a evidência histórica é suficientemente boa. A seguir, como vimos no início, a resposta à pergunta: "Quanta evidência devemos exigir para esta história?" depende de nossa resposta à pergunta: "Até que ponto esta história é intrinsecamente provável?" E preciso então descobrir um critério de probabilidade.

 

O procedimento geral do historiador moderno, mesmo que admita a possibilidade de um milagre, é não admitir nenhuma instância particular do mesmo até que toda possibilidade de uma explicação "natural" tenha sido tentada sem resultado. Isto é, ele irá aceitar as mais improváveis explicações "naturais" em lugar de afirmar que ocorreu um milagre. Alucinação coletiva, hipnose de espectadores sem o consentimento deles, conspiração instantânea para contar mentiras por parte de pessoas que até então não eram tidas como mentirosas e que nada teriam a ganhar com a mentira todos esses são eventos bastante improváveis; tão improváveis que, exceto com o propósito especial de excluir um milagre, nunca são sugeridos; embora tenham preferência à admissão de um milagre.

 

Tal atitude, do ponto de vista puramente histórico não passa de simples loucura a não ser que saibamos desde o início que qualquer milagre é mais improvável do que o mais improvável dos acontecimentos naturais. Sabemos isto?

 

Devemos distinguir as diferentes formas de improbabilidade. Desde que os milagres, por definição, ocorrem mais raramente do que os outros eventos, é evidentemente improvável de antemão que ocorra um em qualquer lugar ou tempo determinado. Nesse sentido todo milagre é improvável. Mas essa espécie de improbabilidade não torna incrível a história de que ocorreu um milagre; pois nesse mesmo sentido todos os acontecimentos foram uma vez improváveis. E imensamente improvável de antemão que uma pedra jogada da estratosfera sobre Londres venha a atingir um lugar determinado, ou que uma pessoa em especial venha a ganhar uma boa soma na loteria. Mas o relato de que a pedra caiu do lado de fora de certa loja ou que Fulano ganhou na loteria não é incrível. Quando você considera o número imenso de encontros e uniões férteis entre os seus ancestrais que foram necessários para que você nascesse, percebe ter sido imensamente improvável certa vez que urna pessoa como você viesse a existir. Mas uma vez aqui, o relato de sua existência não é absolutamente incrível. Com uma probabilidade deste tipo probabilidade das possibilidades dos antecedentes  não vamos tratar aqui. Nosso assunto é a probabilidade histórica.

 

Desde o famoso Essay de Hume acredita-se que as declarações históricas ligadas aos milagres são as mais intrinsecamente improváveis de todas as declarações históricas. Segundo Hume, a probabilidade se apóia no que pode ser chamado de voto da maioria de nossas experiências passadas. Quanto mais uma determinada coisa tenha acontecido, tanto mais provável que aconteça de novo; e quanto menos, tanto menos provável. A regularidade do curso da natureza, diz Hume, é apoiada por algo melhor do que a maioria dos votos da experiência passada: o seu voto unânime, ou, segundo Hume, "pela experiência firme e inalterada". Existe, de fato, uma "experiência uniforme" contra o milagre; de outra forma, diz Hume, não seria um milagre. O milagre, portanto, é o mais improvável de todos os eventos. E sempre mais provável que a testemunha tivesse sentido ou se enganasse, do que um milagre viesse a ocorrer.

 

Devemos, contudo, concordar com Hume que se existir uma "experiência uniforme" absoluta contra os milagres; se, em outras palavras, eles jamais aconteceram, então não ocorreram mesmo. Infelizmente só sabemos que a experiência contra eles é absolutamente uniforme se tivermos conhecimento de que todos os relatos a seu respeito são falsos. E só poderemos saber isto se já soubermos que os milagres nunca ocorreram. Estamos na verdade argumentando em círculos.

 

Uma outra objeção a Hume nos faz aprofundar ainda mais no problema. Toda a idéia de Probabilidade (como Hume a entende) depende do princípio da Uniformidade da Natureza. A não ser que a natureza siga sempre o mesmo caminho, o fato de uma coisa ter acontecido dez milhões de vezes não toma um milímetro mais provável a sua repetição. E, como conhecemos a Uniformidade da Natureza? Uma rápida pesquisa mostra que não a conhecemos por Experiência. Observamos diversas regularidades na natureza, mas naturalmente todas as observações que os homens tenham feito ou venham a fazer enquanto durar a corrida, cobrem apenas uma fração diminuta dos acontecimentos que realmente ocorreram. Nossas observações não teriam então qualquer uso a não ser que nos sentíssemos seguros de que a Natureza se comporta da mesma maneira, quer estejamos ou não observando. Isto é, a não ser que acreditássemos na Uniformidade da Natureza. A experiência não pode, portanto, provar a sua uniformidade, pois esta precisa ser suposta antes de a experiência provar qualquer coisa. E a simples duração da experiência não é de grande ajuda. Não adianta dizer: "Cada nova experiência confirma nossa crença na uniformidade e portanto esperamos com razão que ela será sempre confirmada"; pois esse argumento opera apenas na suposição de que o futuro repetirá o passado  o que seria então simplesmente a suposição da natureza sob um novo nome. Podemos dizer que a Uniformidade é pelo menos muito provável? Infelizmente não. Acabamos de ver que todas as hipóteses dependem disso. A não ser que a natureza seja uniforme, nada é provável ou improvável. E claramente a suposição que você tem de fazer antes que exista qualquer coisa como a probabilidade não pode ela mesma ser provável.

 

O que nos surpreende é o fato de ninguém saber disso melhor que Hume. Seu Essay on Miracles (Ensaio sobre os Milagres) é quase inconsistente com o ceticismo mais radical e honroso de suas obras.

 

A pergunta: "Os milagres acontecem?" e a pergunta: "O curso da natureza é absolutamente uniforme?" são duas maneiras de inquirir a mesma coisa. Hume, como um prestidigitador, as trata como duas perguntas diferentes. Ele responde "Sim", em primeiro lugar, à questão de a natureza ser absolutamente uniforme; usando a seguir este "Sim" como base para responder "Não", à pergunta: "Os milagres acontecem?" A verdadeira pergunta que teria de responder não é discutida de maneira alguma. Ele obtém a resposta a uma forma de pergunta supondo a resposta para outra forma da mesma pergunta.

 

As probabilidades do tipo focalizado por Hume contém a estrutura de uma suposta uniformidade da natureza. Quando a questão dos milagres é levantada, estamos perguntando sobre a validade ou perfeição da própria estrutura. Nenhum estudo das probabilidades em uma determinada estrutura poderá jamais esclarecer-nos quanto à possibilidade de esta em si poder ser violada. Supondo que haja uma aula de francês na manhã de terça-feira às dez horas, é realmente provável que João, que nunca estuda francês, venha a achar-se em dificuldades na próxima terça-feira, e que passou pelo mesmo nas terças anteriores. Mas o que isto nos diz sobre a probabilidade de uma alteração no programa de aulas? Para descobrir isso você terá de consultar as anotações do professor, pois não basta estudar o programa.

 

Se nos apegarmos ao método de Hume, longe de alcançar a conclusão por ele esperada (a saber, concluir que todos os milagres são infinitamente improváveis), chegamos a um beco sem saída. A única espécie de probabilidade que ele permite se acha exclusivamente deito da estrutura da uniformidade. Quando esta é posta em dúvida (e isso acontece no momento em que perguntamos se os milagres ocorrem) este tipo de probabilidade fica suspenso. E Hume não conhece outro. Através do seu método, portanto, não podemos dizer que a uniformidade seja provável ou improvável; assim como não podemos dizer se os milagres são ou não improváveis. Encurralamos tanto a uniformidade como os milagres numa espécie de limbo, onde a probabilidade e a improbabilidade não podem penetrar. Este resultado é igualmente desastroso para o cientista e o teólogo, mas ao longo da teoria de Hume não há fuga possível.

 

Nossa única esperança será então procurar um tipo de Probabilidade por completo diferente. Vamos por um momento deixar de inquirir qual o nosso direito em crer na uniformidade da natureza e perguntar por que os homens crêem de fato nisso. Penso que essa crença tenha três causas, sendo duas delas irracionais. Em primeiro lugar somos criaturas de hábitos. Esperamos que as novas situações se assemelhem às antigas. Esta é uma tendência que partilhamos com os animais; podemos vê-la operando em nossos cães e gatos, levando com freqüência a resultados cômicos. Em segundo lugar, quando planejamos nossos atos, temos de desprezar a possibilidade teórica de que a natureza talvez não venha a comportar-se da maneira usual amanhã, pois nada podemos fazer a respeito. Não vale a pena preocupar-se porque não nos cabe tomar qualquer providência nesse sentido. E aquilo que habitualmente pomos de lado logo fica esquecido. A idéia de uniformidade passa então a dominar nossa mente sem encontrar rivais e cremos nela. Ambas as causas são irracionais e teriam a mesma eficácia tanto na elaboração de uma crença falsa como de uma verdadeira.

 

Estou porém convencido de que existe uma terceira causa. "Na ciência", afirmou o falecido Sir Arthur Eddington, "temos algumas vezes convicções que não podemos justificar; somos influenciados por um senso inato de adequação das coisas". Este critério pode parecer perigosamente subjetivo e estético; mas será que podemos duvidar que seja uma das principais fontes de nossa crença na Uniformidade? Um universo em que acontecimentos sem precedentes e imprevisíveis fossem lançados a cada momento na natureza não só seria inconveniente para nós como também profundamente repugnante. Não aceitaríamos um universo assim de maneira alguma. Nós o detestaríamos, pois choca nosso "senso de adequação das coisas". Antes da experiência e por causa de muitas delas, já nos alistamos do lado da uniformidade. A ciência, como é natural, não opera na verdade concentrando-se nas regularidades da natureza, mas nas suas aparentes irregularidades. Ê a irregularidade aparente que estimula cada nova hipótese. Isso acontece porque nos recusamos a aceitar as irregularidades: não descansamos enquanto não tenhamos formado e verificado uma hipótese que nos capacite a dizer que não se tratavam na verdade de processos irregulares.

 

A natureza como ela é, parece-nos a princípio um amontoado de irregularidades. O fogão que acendeu tão bem ontem não acende hoje; a água potável no ano passado passou a venenosa neste ano. Todo o conjunto da experiência aparentemente irregular jamais poderia ser transformado em conhecimento científico a não ser que desde o início possuíssemos uma fé na uniformidade que decepção alguma pudesse abalar.

 

Esta fé - a preferência - é algo em que podemos confiar? Ou será apenas o modo como nossa mente trabalha? E inútil dizer que ela até agora tem sido sempre confirmada pelo evento. Isso não basta a não ser que você (pelo menos silenciosamente) acrescente: "E portanto sempre será". Você não pode fazer esse acréscimo se não souber de antemão que nossa fé na uniformidade achase bem alicerçada. Estamos fazendo agora justamente essa pergunta. Este nosso sentido de adequação corresponde a qualquer coisa na realidade exterior?

 

A resposta depende da metafísica que defendemos, Se tudo que existe é a natureza, o grande evento interligador não pensante, se nossas convicções mais profundas são apenas subprodutos de um processo irracional, no haverá claramente a menor base para supor que nosso senso de adequação e nossa fé na uniformidade nos diga qualquer coisa sobre uma realidade externa a nós mesmos. Nossas convicções não passam de um fato a nosso respeito  como a cor do nosso cabelo. Se o naturalismo for verdade, não temos motivo para confiar em nossa convicção de que a natureza é uniforme. Ela só pode ser aceita se uma metafísica muito diversa for verdadeira. Se a coisa mais profunda na realidade, o Fato que é a fonte de todos os demais, seja algo até certo ponto como nós mesmos se for um Espírito Racional e derivarmos nossa espiritualidade racional dEle, então nossa convicção poderá ser realmente aceita. Nossa repulsa pela desordem é derivada do Criador da natureza e nosso. O mundo desorganizado no qual seria insuportável acreditar, é aquele que Ele não teria suportado criar. Nossa convicção de que o calendário escolar não será alterado é justa porque (num certo sentido) consultamos as anotações do professor.

 

As ciências exigem logicamente uma metafísica desta espécie. Nosso maior filósofo natural pensa que seja também a metafísica da qual elas foram originalmente desenvolvidas, O Professor Whitehead destaca(1)que séculos de crença num Deus que combinava "a energia pessoal de Jeová" com a "racionalidade de um filósofo grego" produziu aquela expectativa firme de uma ordem sistemática que tornou possível o nascimento da ciência moderna. Os homens se tornaram cientistas porque esperavam Lei na natureza, e esperavam Lei na natureza porque criam num Legislador. Esta crença morreu na maioria dos cientistas modernos: será interessante ver por quanto tempo esta confiança na uniformidade sobrevive. Dois resultados significativos já apareceram  a hipótese de uma subnatureza sem leis, e o abandono da alegação de que a ciência é verdadeira. Podemos estar mais próximos do fim da Era da Ciência do que supomos.

 

Se admitimos Deus, devemos admitir o milagre? Na verdade, na verdade, você não tem qualquer garantia contra ele. E isso que acontece. A teologia lhe diz com efeito: "Admita Deus e com Ele o risco de uns tantos milagres, e eu por minha vez vou confirmar a sua fé na uniformidade com relação à maioria dos eventos". A filosofia que proíbe você de tornar a uniformidade absoluta, é também aquela que lhe oferece uma base sólida para crer que ela é geral, é quase absoluta, O Ser que ameaça a reivindicação de onipotência da natureza a confirma nas ocasiões legais. A alternativa é na verdade muito pior. Tente tornar a natureza absoluta e descobrirá que sua uniformidade não é sequer provável. Reivindicando demasiado você não obtém nada. Chega ao ponto morto, como Rume. A teologia lhe oferece uma possibilidade que deixa o cientista livre para continuar suas experiências e o cristão suas orações.

 

Sugiro que também encontramos o que estávamos buscando um critério pelo qual julgar a probabilidade intrínseca de um suposto milagre. Devemos julgá-lo pelo nosso "senso inato da adequação das coisas", esse mesmo senso de adequação que nos levou a antecipar que o universo teria ordem. Não estou querendo dizer, naturalmente que devamos usar este senso para decidir que os milagres em geral são possíveis: sabemos que são na base filosófica. Nem pretendo insinuar que um senso de adequação possa substituir a pesquisa cuidadosa da evidência histórica. Como já mencionei repetidamente, a evidência histórica não pode ser calculada a não ser que primeiro calculemos a probabilidade intrínseca do evento registrado. Ao fazer esse cálculo com relação a cada história de milagre nosso senso de adequação entra em cena.

 

Se ao emprestar tal importância ao senso de adequação eu estivesse inovando algo, sentir-me-ia bastante nervoso. Más, na realidade, estou apenas reconhecendo formalmente um princípio que está sempre em uso. O que quer que os homens digam, ninguém realmente pensa que a doutrina cristã da Ressurreição está exatamente no mesmo nível de algumas tagarelices piedosas sobre como a Madre Egarée Louise descobriu milagrosamente seu dedal com a ajuda de santo Antônio. Os religiosos e os incrédulos concordam perfeitamente nesse ponto. O grito de alegria com que o cético desenterraria a história do dedal, e a "timidez" com que o cristão a manteria fora de cena, contam a mesma história. Mesmo os que consideram absurdas todas as histórias de milagres, julgam algumas bem mais absurdas que outras. Mesmo os que crêem em todas elas (se é que alguém faz isso) pensam que algumas exigem uma fé especialmente robusta. O critério usado por ambas as partes é na verdade o da adequação. Mais da metade da descrença em milagres é baseada num senso da sua inadequação: uma convicção (devida, como já discuti, à falsa filosofia) de que eles não se coadunam com a dignidade de Deus ou da natureza, ou também devido à indignidade e insignificância do homem.

 

Nos três capítulos que se seguem, tentarei apresentar os milagres centrais da Fé Cristã de forma a expor a sua "adequação". Não vou, porém, começar estabelecendo as condições em que a "adequação" no abstrato deva satisfazer e depois encaixar os milagres nesse esquema. Nosso "senso de adequação" é algo excessivamente delicado e indefinível para ser submetido a tal tratamento. Se tiver êxito, a adequação - e se fracassar, a inadequação - desses milagres irá tomar-se aparente por si mesma enquanto os estudamos.

 

O Grande Milagre

 

Uma luz que brilhou por trás do sol; o sol não foi bastante ardente para penetrar onde a luz pôde fazê-lo.      

CHARLES WILLIAMS

 

O milagre central afirmado pelos cristãos é a Encarnação. Eles dizem que Deus se fez homem. Todos os outros milagres preparam para isto, manifestam isto, ou resultam disto. Da mesma forma que todo evento natural é a manifestação de um dado lugar e momento no caráter total da natureza, todo milagre cristão particular manifesta em um determinado lugar e momento o caráter e significado da Encarnação. Não existe no Cristianismo questão de interferências arbitrárias simplesmente espalhadas por toda parte. Ele não relata uma série de incursões independentes na natureza, mas os vários estágios de uma invasão estrategicamente coerente, uma invasão que pretende conquista completa  e "ocupação". A adequação e, portanto, credibilidade dos milagres particulares depende de sua relação com o Grande Milagre; toda discussão dos mesmos em separado dele é inútil.

 

A adequação ou credibilidade do Grande Milagre não pode ser obviamente julgada pelo mesmo padrão. E vamos admitir imediatamente que é muito difícil descobrir um padrão pelo qual possa ser julgada. Se a coisa aconteceu, foi o evento central da história da Terra  justamente aquilo de que toda a história trata. Como aconteceu uma única vez, pelos padrões de Hume é infinitamente improvável. Mas, então, toda a história da Terra também aconteceu uma só vez; será ela, portanto, incrível? Esta é, pois, a dificuldade que pesa tanto sobre cristãos como ateus quando se trata de calcular a probabilidade da Encarnação. Seria o mesmo que perguntar se a existência da própria natureza é intrinsecamente provável. Essa a  razão pela qual é mais fácil discutir, com base histórica, que a Encarnação realmente ocorreu do que mostrar, numa base filosófica, a probabilidade da sua ocorrência.

 

A dificuldade histórica de dar uma explicação para a vida, ensinamentos e influência de Jesus que não seja mais difícil do que a explicação cristã, é muito grande. A divergência entre a profundidade, sanidade e (permitam-me acrescentar) perspicácia dos ensinamentos morais dEle e a desmedida megalomania subjacente aos seus ensinos teológicos, a não ser que Ele seja de fato Deus, jamais foi satisfatoriamente superada. As hipóteses não cristãs se sucedem então umas às outras com a fertilidade inquieta da desorientação. Pedem-nos hoje que consideremos todos os elementos teológicos como adições posteriores à história de um Jesus simplesmente humano e "histórico", enquanto ontem nos pediram para acreditar que tudo começou com mitos vegetais e religiões misteriosas e que o Homem pseudo-histórico seguiu-se apenas mais tarde. Mas esta pesquisa histórica está fora do propósito do meu livro.

 

Desde que a Encarnação, caso seja um fato, ocupa esta posição central, e desde que estamos supondo que não sabemos ainda se ela aconteceu com base histórica, encontramo-nos numa situação que pode ser ilustrada pela seguinte analogia. Suponhamos que possuímos partes de um romance ou de uma sinfonia. Alguém nos traz um pedaço de manuscrito recém-descoberto e diz: "Esta é a parte que falta na obra. Este é o capítulo em que todo o enredo do romance se baseia. O tema principal da sinfonia". Nossa tarefa seria verificar se a nova passagem realmente esclarece todas as partes que já vimos e as "une", caso admitida no espaço central que o descobridor reivindica para ela. Não seria também provável que nos alongássemos muito no erro. A nova passagem, se espúria, por mais atraente que parecesse ao primeiro olhar, tornar-se-ia cada vez mais difícil de reconciliar-se com o restante da obra quanto mais considerássemos o assunto. Mas se fosse genuína, então a cada vez que ouvíssemos a música ou lêssemos o livro, veríamos sua acomodação no todo, fazendo-se mais à vontade nele e extraindo significado de toda sorte de detalhes que até então havíamos negligenciado. Embora o novo capítulo central ou tema principal contivesse grandes dificuldades em si mesmo, nós continuaríamos a considerá-lo autêntico desde que removesse continuamente dificuldades em outros pontos.

 

Torna-se necessário proceder desse modo com as doutrinas da Encarnação. Em lugar de uma sinfonia ou romance temos aqui todo o aglomerado de nosso conhecimento. A credibilidade dependerá da extensão em que a doutrina, caso aceita, possa iluminar e integrar-se  nesse aglomerado. É muito menos importante que a doutrina em si mesma seja plenamente compreensível. Acreditamos que o sol esteja no céu ao meio-dia no verão porque podemos ver tudo o mais e não porque possamos ver claramente o sol (pois de fato isto não é possível).

 

A primeira dificuldade que ocorre a qualquer crítico da doutrina jaz no próprio núcleo da mesma. O que pode significar a frase "Deus tornando-se homem"? Em que sentido é concebível que o Espírito eterno auto-existente, o Fato básico, pudesse combinar-se de tal modo com um organismo humano natural a fim de formar uma pessoa? Esta seria uma pedra de tropeço fatal se já não tivéssemos descoberto que em todo ser humano uma atividade mais do que natural (o ato do raciocínio) e, portanto, um agente mais do que natural, se une com uma parte da natureza: uma união tal que a criatura composta se chama de "Eu" e "Mim".

 

Não estou naturalmente sugerindo que o que aconteceu quando Deus se tornou homem foi simplesmente outro exemplo deste processo. Nos outros homens uma criatura sobrenatural se torna assim um ser humano, em união com a criatura natural. Em Jesus, segundo se afirma, o próprio Criador Sobrenatural fez isso. Acho que não poderemos fazer nada que nos capacite a imaginar o modo de percepção do Deus Encarnado, e nesse ponto a doutrina não pode ser compreendida plenamente. Mas a dificuldade que sentimos à simples idéia do Supranatural descendo até o nível do Natural aparentemente não existe, sendo pelo menos superada na pessoa de cada homem.

 

Se não soubéssemos por experiência própria quais os sentimentos de um animal racional,  como todos esses fatos naturais, toda essa bioquímica, afeição ou repulsa instintivas e percepção sensorial, podem tornar-se o agente do pensamento racional e da vontade moral que compreendem as relações necessárias e reconhecem padrões de comportamento como universalmente obrigatórios, não poderíamos conceber e muito menos imaginar tal coisa acontecendo. A discrepância entre um movimento de átomos no córtex de um astrônomo e sua compreensão de que deve haver um planeta ainda não observado além de Urano, já é tão imensa que a Encarnação do próprio Deus, num certo sentido, não é tão mais surpreendente.

 

Não podemos conceber como o Espírito divino habitou no espírito criado e humano de Jesus; mas também não conseguimos conceber como o Seu espírito humano, ou o de qualquer homem, habita no interior de seu organismo natural. O que podemos compreender, caso a doutrina cristã seja verdadeira, é que nossa própria existência composta não é a completa anomalia que parece ser, mas uma leve imagem da Encarnação divina :  o mesmo tema numa nota muito menor. Podemos entender que se Deus desce assim a um espírito humano, e o espírito humano à natureza, e nossos pensamentos a nossos sentidos e paixões, e se as mentes adultas (mas só as melhores entre elas) podem harmonizar-se como as das crianças, assim como os homens se harmonizam com os animais, então tudo se une e a realidade total, tanto natural como supranatural em que vivemos é mais variada e delicadamente harmoniosa do que havíamos suspeitado. Tomamos conhecimento de um novo princípio-chave: o poder do Altíssimo, na medida exata em que for verdadeiramente Mais Alto, de descer, o poder do maior de incluir o menor. Os corpos sólidos exemplificam assim muitas verdades da geometria plana, mas as figuras planas não explicam verdades da geometria sólida. Muitas proposições inorgânicas são verdadeiras quanto aos organismos, mas as proposições orgânicas não se aplicam aos minerais. Montaigne brincava com sua gatinha, mas ela nunca discutia filosofia com ele(1). Em toda parte o grande penetra o pequeno, seu poder para tanto é praticamente o teste da sua grandeza.

 

Na história cristã Deus desce para subir de novo. Ele desce, desce das alturas do ser absoluto no tempo e espaço, até a humanidade. Desce mais ainda, caso os estudiosos de embriologia tenham razão, a fim de recapitular no ventre fases antigas e pré-humanas da vida. Desce até às próprias raízes da natureza por Ele criada. Mas ele desce a fim de subir de novo e trazer com Ele o mundo arruinado. Isso nos faz pensar num homem forte, abaixando-se cada vez mais a fim de colocar-se debaixo de um enorme e complicado fardo. Ele precisa abaixar-se para levantar, quase desaparecendo sob a carga antes de endireitar incrivelmente as costas e seguir avante com toda a imensa massa balançando em seus ombros. Pode-se também pensar num mergulhador, primeiro se despindo, depois olhando para o ar e por fim atirando-se, desaparecendo, precipitando-se através da água verde e cálida para aquela negra e fria, cada vez mais para baixo, sob uma pressão sempre crescente, até chegar à região funérea de lodo, limo e decadência. A seguir ele volta, volta à cor e à luz, com os pulmões quase arrebentando, até que surge à superfície, tendo nas mãos o objeto precioso, gotejante, que foi buscar lá em baixo. Tanto ele como o objeto possuem agora colorido, uma vez que voltaram à luz; mas lá embaixo, na escuridão em que se achava, também perdeu sua cor.

 

Nesta descida e nova subida todos reconhecerão um modelo familiar: algo visto em todo o mundo. Trata-se do padrão de toda vida vegetal. Ela precisa ficar reduzida a algo duro, pequeno, morto, deve cair no solo para então surgir a nova vida. Este é também o padrão de toda geração animal. Há uma descida dos organismos completos e perfeitos para o espermatozóide e o óvulo, e no ventre escuro uma vida a princípio inferior àquela da espécie que está sendo reproduzida: depois, a subida lenta do embrião perfeito, até a criança viva e consciente, e finalmente ao adulto. O mesmo acontece em nossa vida moral e emocional. Os primeiros desejos espontâneos e inocentes necessitam submeter-se ao processo de controle ou negativa total semelhante à morte, mas a seguir vem a nova subida até alcançar o caráter plenamente formado em que a força do material primitivo opera, mas de uma forma nova. Morte e novo nascimento  descendo para subir  um princípio-chave. A estrada principal quase sempre é alcançada através desta passagem estreita, desta redução.

 

Quando aceita, a doutrina da Encarnação coloca este princípio no ponto central com maior ênfase ainda. O padrão ali está na natureza porque se achava ali em Deus no princípio. Todas as instâncias do mesmo, por mim mencionadas, acabam sendo simples transposições do tema divino em uma escala menor. Não estou me referindo agora apenas à Crucificação e Ressurreição de Cristo. O padrão total, do qual elas são apenas o ponto crítico, é a verdadeira Morte e Novo Nascimento: pois certamente nenhuma semente caiu jamais de uma árvore tão bela num solo tão escuro e frio que pudesse fornecer mais do que uma leve analogia com esta imensa descida e reascensão em que Deus dragou o fundo salgado e limoso da Criação.

 

A partir deste ponto de vista, a doutrina cristã se acomoda tão bem em meio às mais profundas apreensões da realidade que obtemos de outras fontes, que podem surgir dúvidas em outra direção. Não estará ela adequando-se bem demais? De fato tão bem que pode ter entrado na mente humana ao observar esse comportamento num outro lugar, especialmente na morte e ressurreição anuais dos cereais? Pois houve, naturalmente, muitas religiões em que esse drama anual (tão importante para a vida da tribo) constituiu praticamente o tema central, e a divindade  Osíris, Adonis, ou outra qualquer  uma personificação do cereal, e isso de maneira indisfarçável, um "rei dos cereais" que morria e ressurgia a cada ano. Não será Cristo simplesmente outro rei do trigo? Isto nos leva então à maior estranheza do Cristianismo. Em certo sentido o ponto de vista que acabei  de descrever é realmente verdadeiro. De certo modo Crista é "a mesma espécie de coisa" que Adonis ou Osíris (deixando de lado, como é lógico, o fato de que ninguém sabe onde nem quando os dois viveram. Ele foi morto por um magistrado romano, num ano que pode ser aproximadamente datado). Aí está a dificuldade. Se o Cristianismo é uma religião desse tipo, por que a analogia da semente caindo no solo é tão raramente mencionada (duas vezes apenas se não me engano) no Novo Testamento? As religiões que rendem culto aos cereais são populares e respeitadas. Se foi isso que os primeiros mestres cristãos estavam ensinando, qual o motivo de ocultarem o fato? A impressão dada por eles é a de homens que simplesmente não sabem quão próximo estão dessas religiões: homens que ignoram as ricas fontes de imagens e associações que estiveram a ponto de pôr a descoberto. Se você disser que suprimiram isso por serem judeus, tal conceito ajuda apenas a aprofundar o mistério. Por que a única religião de um "Deus agonizante" que conseguiu sobreviver e elevar-se a alturas espirituais incomparáveis iria ocorrer precisamente entre aquele povo a quem todas as idéias ligadas a um "Deus agonizante" eram estranhas?

 

Eu mesmo, que li a sério o Novo Testamento pela primeira vez quando me achava absolutamente empolgado com a idéia de encontrar o padrão da Morte e Novo Nascimento e ansioso para descobrir o rei do trigo, fiquei desanimado e confuso com a ausência praticamente total de tais idéias nos documentos cristãos. Um momento particular se destacou: o "Deus agonizante" , o único Deus agonizante que podia ser histórico,  segura o pão, isto é, o trigo, em sua mão e diz: "Este é o meu corpo". Com certeza aqui, mesmo que não apareça em nenhum outro lugar  ou, certamente, se não for aqui, pelo menos nos primeiros comentários a esta passagem e através de todo o uso posterior em volumes cada vez maiores, a verdade deve irromper; a ligação entre isto e o drama anual das colheitas deve ser feita. Mas não é. Para mim ela está ali, mas não há sinal de que o esteja para os discípulos ou (falando de forma humana) para o próprio Cristo. É quase como se Ele não compreendesse o que havia dito.

 

Os registros nos mostram de fato uma Pessoa que representa a parte do Deus Agonizante, mas cujos pensamentos e palavras permanecem por completo fora do círculo das idéias religiosas a que o Deus Agonizante pertence. Exatamente aquilo que é o núcleo de todas as religiões da natureza parece ter na verdade acontecido uma vez: mas aconteceu num círculo onde nenhum traço dela se achava presente. É como se você tivesse encontrado uma serpente do mar e descoberto que ela não acreditava em serpentes do mar: como se a história registrasse a existência de um homem que tivesse feito todas as coisas atribuídas a Sir Launcelot, mas que ele mesmo jamais tivesse ouvido falar de cavalheirismo.

 

Existe, porém, uma hipótese que torna tudo fácil e coerente, caso seja aceita. Os cristãos não alegam apenas que "Deus" se encarnou em Jesus. Eles afirmam que o Deus único e verdadeiro é aquele que os judeus adoravam como Javé, e que foi Ele que desceu. O caráter duplo de Javé é então este. Por um lado, Ele é o Deus da Natureza, o seu feliz Criador. É Ele que envia a chuva aos campos até que os vales ficam tão cheios de trigo que riem e cantam. As árvores da floresta se rejubilam diante dEle e sua voz faz com que o gamo selvagem se reproduza. Ele é o Deus do trigo e do vinho e do óleo. Nesse respeito, está constantemente fazendo todas as coisas que os deuses da natureza fazem: Ele é Baco, Vênus, Ceres, todos juntos. Não encontramos no judaísmo qualquer traço da idéia contida nas religiões pessimistas e panteístas de que a Natureza é uma espécie de ilusão ou desastre, que a existência finita é em si mesma um mal e a cura está no retorno de todas as coisas a Deus. Comparado com tais conceitos antinaturais, Javé poderia ser quase tido erradamente por um Deus da natureza.

 

Por outro lado, Javé claramente não é um Deus da natureza. Ele não morre e volta à vida a cada ano como um verdadeiro rei do trigo deveria fazer. Ele pode dar o vinho e a fertilidade, mas não deve ser adorado através de bacanais ou ritos afrodisíacos. Ele não é a alma nem parte alguma da natureza. Javé habita na eternidade, no lugar alto e santo; o céu é o seu trono, não o seu veículo; a terra o estrado dos seus pés, não a sua vestimenta. Um dia Ele irá desmantelar ambos e fazer um novo céu e nova terra. Ele não deve nem mesmo ser identificado com a "faísca divina" no homem, pois é Deus e não homem. Seus pensamentos não são os nossos, toda a nossa retidão não passa de trapos imundos. A visão que Ezequiel teve dEle foi acompanhada de imagens, que em lugar de tomar algo de empréstimo à natureza, estavam associadas àquelas máquinas que os homens deveriam inventar séculos depois da morte do profeta. (Mistério esse raramente notado.(2)) Ezequiel viu algo bem parecido com um dínamo.

 

Javé não é nem a alma nem o inimigo da natureza. Esta não é nem o seu corpo nem um desvio ou afastamento dEle. Ela é sua criatura. Ele não é um Deus-natureza, mas o Deus da natureza seu inventor, criador, proprietário e dominador. Este conceito é conhecido desde a infância por todos os que lerem este livro; portanto, achamos fácil julgar tratar-se do conceito mais comum em todo o mundo. "Se as pessoas devem crer num Deus", perguntamos, "em que outra espécie de Deus iriam crer?' Mas a resposta da história é: "Quase que em qualquer outra espécie". Confundimos nossos privilégios com nossos instintos: da mesma forma que encontramos pessoas que julgam ter nascido bem educadas, esquecendo-se de que as boas maneiras tiveram de ser-lhe ensinadas.

 

Se existe então um Deus assim e se Ele desce para subir de novo, podemos compreender por que Cristo é ao mesmo tempo tão semelhante ao Rei do Trigo e tão silencioso a seu respeito. Ele se parece com o Rei do Trigo porque este é um retrato dEle. A semelhança não é absolutamente irreal ou acidental, pois o Rei do Trigo deriva dos fatos da natureza (através da imaginação humana) e estes fatos, do seu Criador; o padrão da Morte e Novo Nascimento se acha nela porque primeiro se encontrava nEle. Por outro lado, elementos da religião-natureza acham-se surpreendentemente ausentes dos ensinos de Jesus e da preparação judaica que  levaram a ela, precisamente porque neles o Original da natureza se faz manifesto. Neles, desde o início, você passa para além da religião-natureza e da própria natureza. Onde o Deus real está presente as sombras desse Deus não aparecem, apenas aquilo com que as sombras se assemelhavam. Através de toda a sua história os hebreus foram sempre desviados da adoração dos deuses da natureza; não porque os deuses-natureza fossem diferentes em todos os respeitos do Deus da natureza mas porque, na verdade, eram apenas uma semelhança, e fazia parte do destino daquela nação ser afastada das semelhanças em direção à coisa em si.

 

Ao citar essa nação, nossa atenção se volta para um daqueles aspectos da história cristã que repugnam à mente moderna. Para sermos absolutamente francos, não gostamos de modo nenhum da idéia de um "povo escolhido". Democratas por nascimento e educação, preferimos pensar que todas as nações e indivíduos começam no mesmo nível em sua busca de Deus, ou mesmo que todas as religiões são igualmente verdadeiras. É preciso imediatamente admitir que o Cristianismo não faz qualquer concessão a este ponto de vista. Ele não fala de modo algum a respeito de uma busca de Deus por parte da humanidade, mas de algo feito por Deus pelo homem, para ele e a respeito dele. E a maneira como isto é levado a efeito é seletiva, não democrática, no mais alto grau.

 Depois de o conhecimento de  Deus ter-se perdido ou obscurecido universalmente, um homem é escolhido dentre todos (Abraão). Ele é separado de seu ambiente natural, enviado a um país distante e tornado o ancestral de uma nação que transmitiria o conhecimento do Deus verdadeiro. No seio dessa nação há uma outra escolha: alguns morrem no deserto, outros permanecem na Babilônia. E mais outras seleções: o processo se estreita cada vez mais, aguçando-se finalmente em uma ponta brilhante como a de uma lança. Uma jovem judia em suas orações. Toda a humanidade (no que se refere à sua redenção) reduziu-se a isso.

 

Tal processo de forma alguma corresponde às exigências dos sentimentos modernos: mas identifica-se muito com o que faz a natureza habitualmente. A seleção e com ela (devemos conceder) enorme desperdício, é o seu método. Num espaço enorme só uma pequena parte é ocupada pela matéria. Apenas algumas, ou talvez uma só, dentre todas as estrelas têm planetas. Dos planetas em nosso próprio sistema, provavelmente um único contém vida orgânica. Na transmissão da vida orgânica, um número incontável de sementes e espermatozóides é emitido: só alguns são selecionados para receberem o privilégio da fertilidade. Entre as espécies só uma é racional. Dentro dessa espécie apenas algumas alcançam a excelência da beleza, força ou inteligência.

 

Neste ponto nos aproximamos perigosamente do argumento da famosa Analogia de Butler. Digo "perigosamente" porque o argumento desse livro praticamente admite a paródia na forma: "Você diz que o comportamento atribuído ao Deus cristão é tanto perverso como tolo; mas não é menos provável por causa disso, pois posso mostrar que a natureza (por Ele criada) tem igualmente um mau comportamento." Ao que o ateu responderá  e quanto mais perto Cristo estiver em seu coração, tanto mais fará isso  "Se existe um Deus assim eu o desprezo e desafio". Não estou porém dizendo que a natureza, como a conhecemos, seja boa; esse é um ponto que voltaremos a mencionar em breve. Nem estou dizendo que um Deus cujos atos não sejam melhores que os da natureza fosse um objeto apropriado de adoração para qualquer indivíduo sincero. O ponto é um tanto mais delicado. 

Esta qualidade seletiva ou não democrática na natureza, pelo menos no que afeta a vida humana, não é nem boa nem má. Segundo o espírito explora ou deixa de explorar esta situação natural, ele faz surgir uma ou outra; permitindo, por um lado, a competição impiedosa, a arrogância e a inveja e por outro, a modéstia e (um de nossos maiores prazeres) a admiração. Um mundo em que eu fosse realmente (e não simplesmente mediante uma ficção legal útil) "tão bom quanto qualquer outro", no qual eu jamais pudesse levantar os olhos para alguém mais sábio ou sagaz ou corajoso ou mais culto do que eu, seria insuportável. Até os "fãs" das estrelas de cinema e dos futebolistas famosos não desejam isso! O que a historia cristã não faz é colocar no nível divino uma crueldade e desperdício que já nos desgostaram na natureza, embora nela as coisas operem às vezes de um modo e às vezes de outro. Ele ilumina a cena natural, sugerindo que um princípio que no início parecia sem significado pode, todavia, ser extraído de outro que é bom e justo, pode ser de fato uma cópia depravada e obscurecida dele  a forma patológica que tomaria numa natureza podre.

 

Quando estudamos a seleção que os cristãos atribuem a Deus, não descobrimos nela aquele "favoritismo" que tanto temíamos. O povo "escolhido" não foi selecionado por sua própria causa (e certamente não foi para honrá-lo ou gratificá-lo), mas por causa dos não escolhidos. Foi dito a Abraão que na "sua semente" (a nação escolhida) "todas as nações seriam abençoadas". Essa nação foi escolhida para carregar um pesado fardo. Seus sofrimentos são grandes; mas, como reconheceu Isaías, eles curam a outros. Sobre a mulher finalmente escolhida recai o máximo de angústia maternal. Seu Filho, o Deus encarnado, é um "homem de dores"; o único Homem sobre o qual a divindade desceu, o único Homem que pode ser legalmente adorado, se destaca pelo sofrimento.

 

Você pode então perguntar: isso conserta alguma coisa? Isto não continua sendo injustiça, sob outro aspecto? Onde acusamos Deus, a um primeiro olhar, de indevido favor aos seus "escolhidos", somos agora tentados a acusá-lo de indevido desfavor. (A tentativa de manter ambas as acusações ao mesmo tempo deve ser rejeitada.) Chegamos certamente aqui a um princípio grandemente enraizado no Cristianismo: que pode ser chamado de princípio Vicário. O Homem sem pecado sofre pelos pecadores e, proporcionalmente, todos os bons pelos maus. Este vicariato não menos do que a Morte, o Novo Nascimento ou a Seleção  é também uma característica da natureza. A auto-suficiência, viver pelos próprios recursos, é algo impossível em seu reino. Tudo depende de tudo o mais, deve a tudo o mais e é sacrificado a tudo o mais. Devemos reconhecer que aqui também o princípio de si mesmo não é nem bom nem mau. O gato vive do rato de um modo que considero mau; as abelhas e as flores vivem às custas umas das outras de maneira mais agradável. O parasita vive no "hospedeiro", mas também assim a criança ainda não nascida, em sua mãe. Na vida social sem o vicariato não haveria exploração nem opressão, mas também não existiria bondade ou gratidão. Ela é tanto uma fonte de amor como de ódio, tanto de miséria como de felicidade. Quando tivermos compreendido isto, não mais julgaremos que os exemplos depravados de vicariato na natureza nos proíbam de supor que o princípio em si tenha origem divina.

 

Será bom voltar os olhos neste ponto e notar como a doutrina da Encarnação já está influenciando o resto de nosso conhecimento. Nós já colocamos a mesma em contato com quatro outros princípios: a natureza composta do homem, o padrão de descida e reascensão, a seleção e o vicariato. O primeiro pode ser chamado de um fato relativo à fronteira entre a natureza e a supranatureza; os outros três serão características da própria natureza. A maioria das religiões, quando deparam  com os fatos da natureza, simplesmente os confirmam, dando-lhes um prestígio transcendente (na forma em que estão), ou simplesmente os negam, prometendo libertação tanto desses fatos como de toda a natureza. As religiões naturais seguem a primeira linha de pensamento. Elas santificam nossos produtos agrícolas e na verdade toda a nossa vida biológica. Nós realmente nos embebedamos na adoração de Dionísio e nos deitamos com mulheres de verdade no templo da deusa da fertilidade. Na adoração da força da Vida, que é o tipo moderno e ocidental de religião natural, tomamos da tendência existente em relação à complexidade em "desenvolvimento" ou aumento na vida orgânica, social e industrial, e fazemos dela um deus. As religiões antinaturais ou pessimistas, que são mais civilizadas ou sensíveis, tais como o budismo ou hinduísmo mais elevado, dizem-nos que a natureza é má e ilusória, que existe uma fuga desta mutação incessante, esta fornalha de lutas e desejos.

 

Nem uma nem outra estabelece os fatos da natureza sob uma nova luz. As religiões naturais apenas reforçam aquela visão da mesma que adotamos espontaneamente em nossos momentos de saúde exuberante e brutalidade alegre; as religiões antinaturais fazem o mesmo quanto à nossa visão nos momentos de compaixão, enfado ou lassidão. A doutrina cristã não faz nada disso. Se alguém abordá-la com a idéia de que Javé, por ser o Deus da fertilidade, irá permitir que sejamos lascivos, ou que a Seletividade e Vicariato do método de Deus irá desculpar-nos por imitar (como os "Heróis", os "Super-homens" ou os parasitas sociais) a seleção e vicariato inferiores da natureza, irá ficar pasmado e sentir-se repelido pela exigência cristã inflexível que pede castidade, humildade, misericórdia e justiça. Por outro lado, se for abordada tendo em vista a morte que precede todo novo nascimento, ou o fato da desigualdade, ou nossa dependência de outros e a dependência deles quanto a nós, como simples necessidades   odiosas de um cosmos maligno, esperando ser libertados para uma espiritualidade transparente e "iluminada" onde todas essas coisas simplesmente desaparecem, ficaremos igualmente desapontados.

 

Alguém nos dirá que, num certo sentido, e apesar das enormes diferenças, "tudo é igual sempre"; que a desigualdade hierárquica, a necessidade da auto-entrega, o sacrifício espontâneo do "eu" por causa de outros, e a aceitação grata e cheia de amor (mas sem qualquer sentimento de vergonha) dos sacrifícios de outros por nós, predominam no reino além da Natureza. Só o amor na verdade faz a diferença: todos aqueles mesmos princípios que são malignos no mundo do egoísmo e da necessidade são bons no mundo do amor e da compreensão. É da montanha que podemos compreender realmente o panorama deste vale. Aqui, finalmente, descobrimos (como não fazemos quer nas religiões naturais ou naquelas que negam a natureza) uma verdadeira iluminação: a natureza está sendo iluminada por uma luz além dela. Alguém que conhece mais a respeito dela do que pode ser apreendido do lado de dentro da mesma, está falando.

 

Através dessa doutrina fica naturalmente implícito que a natureza está contaminada pelo mal. Aqueles grandes princípios-chave que existem como modalidades do bem na Vida divina (que de qualquer ponto de vista deveríamos esperar) tomam, nas suas operações, não apenas uma forma menos perfeita, mas formas que fui levado a descrever como mórbidas ou depravadas. Esta depravação não poderia ser totalmente removida sem uma reformulação drástica da natureza. A virtude humana completa poderia então banir da vida do homem todos os males que surgem agora devido ao seu Vicariato e Seletividade, retendo apenas o que é bom: mas o desperdício e sofrimento da natureza não-humana permaneceria e iria continuar naturalmente contaminando a vida humana na forma de doença. O destino prometido ao homem pelo Cristianismo envolve claramente urna "redenção" ou "reforma" da natureza que não poderia interromper-se no homem, ou mesmo neste planeta. É nos dito que "a criação inteira" está em dores de parto e que o novo nascimento do homem será o sinal para o dela. Isto dá lugar a diversos problemas, cuja discussão coloca a doutrina da Encarnação, completa, em uma luz mais clara.

 

Em primeiro lugar perguntamos como a natureza criada por um Deus bondoso se acha nestas condições? Através dessa pergunta queremos saber como ela veio a ser imperfeita  deixando "lugar para aperfeiçoamento" como dizem os professores em seus relatórios ou então como veio a tornar-se positivamente depravada. Se fizermos a pergunta no primeiro sentido, a resposta cristã (penso eu) é que Deus, desde o princípio a criou assim para que pudesse alcançar a perfeição mediante um processo no tempo. Ele fez uma Terra a princípio "sem forma e vazia" e levou-a à perfeição gradualmente. Vemos aqui, como em outros pontos, o padrão familiar uma descida de Deus para a Terra informe e reascensão do informe para o produto acabado. Nesse sentido certo grau de "evolução" ou "desenvolvimento é inerente ao Cristianismo. Isso no que diz respeito à imperfeição da natureza, pois a sua depravação exige outra resposta. De acordo com os cristãos ela é devida ao pecado: tanto do homem como dos seres não-humanos poderosos, supranaturais, mas criados. A impopularidade desta doutrina surge do naturalismo largamente divulgado em nossa era. A crença de que nada existe além da natureza e que se qualquer outra coisa existisse, ela se acha protegida da mesma por uma cerca de segurança que desaparecerá no momento em que o erro seja corrigido.

 

É certo que a inquisição mórbida a respeito de tais seres, que levou nossos ancestrais a uma pseudo-ciência da Demonologia, deve ser severamente desencorajada. Nossa atitude deve ser a do cidadão sensato em tempo de guerra que acredita existirem espiões inimigos em nosso meio, mas não leva a sério quase nenhuma história a respeito de espionagem. Devemos limitar-nos à declaração geral de que seres em uma "Natureza" diferente e mais elevada, parcialmente interligada com a nossa caíram, como os homens, e interferiram nas coisas dentro de nossas fronteiras. Essa doutrina, além de mostrar o bem na vida espiritual de cada homem, ajuda a proteger-nos de nossas idéias superficiais da natureza, quer sejam elas pessimistas ou otimistas. Chamá-la de "boa" ou "má" é uma filosofia infantil. Nós nos achamos em um mundo de prazeres arrebatadores, belezas, indizíveis e possibilidades tentálicas, mas tudo sendo constantemente destruído, tudo acabando em nada. A natureza tem todo o ar de uma boa coisa estragada.

 

O pecado dos homens e dos anjos foi possível pelo fato de Deus ter-lhes concedido livre arbítrio: desistindo assim de uma parte de sua onipotência (trata-se novamente de um movimento semelhante à morte ou descida) porque viu que através de um mundo de criaturas livres, embora viessem a cair, Ele poderia extrair (e esta é a reascensão) uma felicidade mais profunda e um esplendor maior do que qualquer mundo de autômatos admitiria.

 

Surge outra questão. Se a redenção do homem é o início daquela da natureza como um todo, devemos então concluir que no final de contas o homem é a coisa mais importante na natureza? Se eu tivesse de responder afirmativamente a esta pergunta não me sentiria embaraçado. Suponhamos que o homem seja o único animal racional no universo, então (como já foi mostrado) seu tamanho diminuto e a insignificância do globo em que habita não tornaria ridículo considerá-lo como o herói do drama cósmico: Jaques, no final de contas, é a personagem menor na peça  "Jaques, O Matador de Gigantes". Não acho também improvável que o homem seja a única criatura racional nesta natureza espaço-temporal. Essa seria justamente a espécie de preeminência solitária:  a desproporção exata entre o quadro e a moldura  que tudo o que sei da "seletividade" da natureza me levaria a esperar. Mas não preciso supor que, seja realmente assim. Vamos deixar que o homem seja apenas um entre miríades de espécies racionais, e permitir que seja o único decaído. Pelo fato de sua queda, Deus lhe faz o maior favor. O mesmo que acontece na parábola da ovelha perdida procurada pelo pastor. E se a preeminência ou solidão do homem for de miséria e perversidade e não de superioridade? Então, mais ainda, ele será exatamente a espécie sobre a qual a Misericórdia descerá. Para este pródigo, o novilho cevado ou, mais adequadamente, o Cordeiro eterno, é morto. Mas uma vez que o Filho de Deus, atraído para cá (não pelos nossos méritos, mas por nossa indignidade), revestiu-se da forma humana, a nossa espécie então (o que quer que tenha sido antes) torna-se num sentido o fato central de toda a natureza: nossa espécie, elevando-se depois de sua prolongada descida, irá arrastar consigo toda a natureza, fazendo-a subir com ela, porque em nossa espécie o Senhor da natureza acha-se agora incluído. Estaria perfeitamente enquadrado naquilo que já sabemos, caso noventa e nove raças justas que habitassem planetas distantes circundando sóis distantes, não precisando de redenção por conta própria, fossem refeitas e glorificadas pela glória que desceu à nossa raça.

 

Deus não está simplesmente emendando, simplesmente restaurando um status quo. A humanidade remida deverá ser algo mais glorioso que a humanidade decaída teria sido, mais glorioso que qualquer raça não decaída seja agora (se neste momento o céu noturno oculta alguma). Quanto maior o pecado, tanto maior a misericórdia: quanto mais profunda a morte mais brilhante a ressurreição. E esta glória superior irá, com verdadeiro vicariato, exaltar todas as criaturas e aquelas que jamais decaíram irão assim abençoar a queda de Adão.

 

Escrevi até agora supondo que a Encarnação foi ocasionada apenas pela Queda. Outra opinião tem sido algumas vezes defendida pelos cristãos. Segundo a mesma, a descida de Deus à natureza não foi ocasionada pelo pecado. Ela teria ocorrido para a Glorificação e Aperfeiçoamento mesmo que não fosse exigida para a Redenção. As circunstâncias associadas a ela teriam sido bem diferentes: a humilhação divina não seria uma humilhação da divindade, os sofrimentos, o fel e o vinagre, a coroa de espinhos e a cruz, estariam ausentes. Se for aceito este ponto de vista, a Encarnação, onde quer e como ocorresse, teria sido sempre então o início do novo nascimento da natureza. O fato de ter ocorrido na espécie humana, chamada para aqui ,por aquela forte magia da miséria e abjeção que o Amor fez-se ele mesmo incapaz de resistir, não iria privá-lo de seu significado universal.

 

Esta doutrina de uma redenção universal exteriorizando-se através da redenção do homem, por mais mitológica que pareça à mente moderna, é na realidade muito mais filosófica do que qualquer teoria que sustente a idéia de que Deus, tendo entrado uma vez na natureza, deva deixá-la, sem qualquer modificação substancial, ou que a glorificação de uma criatura possa ser realizada sem a glorificação de todo o sistema. Deus jamais desfaz algo senão o mal, jamais faz algo bom para desfazê-lo. A união entre Deus e a natureza na Pessoa de Cristo não admite divórcio. Ele não sairá dela novamente, e a natureza deve ser glorificada de todas as maneiras exigidas por esta união miraculosa. Quando a primavera chega "ela não deixa canto algum da terra intocado"; até mesmo uma pedra atirada num lago envia círculos até as margens. A pergunta que queremos fazer sobre a posição "central" do homem neste drama compara-se na verdade com a dos discípulos: "Qual deles era o maior?" Este é o tipo de pergunta que Deus não responde.

 

Se do ponto de vista humano a nova criação da natureza não-humana e até mesmo inanimada parece ser um simples produto de sua própria redenção, então, igualmente, de algum ponto de vista remoto, não-humano, a redenção do homem pode assemelhar-se simplesmente uma preliminar a esta primavera mais largamente difundida e a própria permissão para a queda do homem pode ser suposta como tendo em vista aquele objetivo maior. Ambas as atitudes estarão certas se consentirem em eliminar as palavras simples e simplesmente. Onde um Deus totalmente deliberado e que tudo calcule age sobre a natureza totalmente interligada, não pode haver acidentes ou acasos, nada absolutamente em respeito ao qual possamos usar com segurança a palavra simplesmente. Nada é "simplesmente um subproduto" de qualquer outra coisa. Todos os resultados são intencionais desde o princípio. O que é subserviente de um ponto de vista é o objetivo principal de outro. Nenhuma coisa ou acontecimento ocupa a primeira posição ou está mais alto, num sentido que o impeça ser também o último e o mais inferior. O parceiro que se curva ao homem num movimento da dança, recebe a reverência deste em outro. Achar-se no alto ou no centro significa abdicar continuamente: ser colocado em posição inferior significa ser levantado: todos os bons senhores são servos: Deus lava os pés dos homens. Os conceitos que geralmente apresentamos à consideração de tais assuntos são miseravelmente políticos e prosaicos. Pensamos na igualdade plana e repetitiva e no privilégio arbitrário como as únicas alternativas  deixando perder-se assim todos os tons maiores, os contrapontos, a sensibilidade vibrante, as sutilezas da realidade.

 

Por esta razão, não penso que seja absolutamente provável que tenha havido várias encarnações para remir as diferentes espécies de criaturas. Nosso senso de estilo  do idioma divino rejeita isso. A sugestão de produção em massa e de filas de espera surge de um nível de pensamento que de forma alguma se enquadra aqui. Se outras criaturas naturais além do homem pecaram, devemos crer que foram remidas: mas a Encarnação de Deus em homem será um ato único no drama da redenção total e outras espécies terão testemunhado atos por completo diversos, cada um deles igualmente único, igualmente necessário e diferentemente necessário ao processo total, e cada um (de um dado ponto de vista) justificadamente considerado como "a grande cena" da peça. Para os que vivem no Ato II, o Ato III parece um epílogo. Para os que vivem no Ato III, o Ato II se assemelha a um prólogo. E ambos estão certos até que acrescentam a palavra fatal simplesmente, ou tentam evitá-la pela suposição estúpida de que ambos os atos são a mesma coisa.

 

Deve ser notado neste estágio que a doutrina cristã, se aceita, envolve uma visão particular da morte. Existem duas atitudes com relação à morte que a mente humana adota naturalmente. Uma delas é elevada, tendo alcançado maior intensidade entre os estóicos: a morte "não importa", tratando-se do "sinal de retirada da natureza bondosa" e devemos observá-la com indiferença. A outra é o ponto de vista "natural", implícito em quase todas as conversas sobre o assunto, e em grande parte das idéias atuais sobre a sobrevivência da espécie humana, de que a morte é o maior de todos os males. Hobbes foi talvez o único filósofo que construiu um sistema nesta base. A primeira idéia simplesmente nega, a segunda simplesmente afirma, o nosso instinto de preservação. Nenhuma delas lança qualquer nova luz sobre a natureza, e o Cristianismo não aprova qualquer das duas.

 

Sua doutrina é mais engenhosa. De um lado, a morte é o triunfo de Satanás, o castigo da Queda e o último inimigo. Cristo derramou lágrimas na sepultura de Lázaro e suou sangue no Getsêmani. A Vida das Vidas que estava nEle não odiou menos do que nós este castigo obsceno, mas muito mais. Por outro lado, só aquele que perde a sua vida ganha-la-á. Somos batizados na morte de Cristo, sendo ela o remédio para a Queda. A morte, de fato, é aquilo que alguns indivíduos chamam hoje de "ambivalente". Ela é a grande arma de Satanás e também a de Deus: é santa e impura; nossa suprema desgraça e nossa única esperança; aquilo que Cristo veio para conquistar e o meio pelo qual Ele conquistou.

 

Penetrar este mistério está naturalmente além de nossas forças. Se o padrão da Descida e Reascensão (como parece provável) é a própria fórmula da realidade, então o mistério da morte oculta o segredo dos segredos. Mas algo deve ser dito a fim de focalizar adequadamente o Grande Milagre. Não precisamos discutir a morte no mais alto nível: o sacrifício místico do Cordeiro "antes da fundação do mundo" está fora de nossas cogitações. Também não precisamos considerar a morte em seu nível mais baixo. A morte dos organismos que não são mais que organismos, que não desenvolveram personalidade, não nos interessa. Podemos dizer a esse respeito, como algumas pessoas espirituais gostariam que falássemos sobre a morte humana, que "não faz diferença". Mas a surpreendente doutrina cristã sobre a morte do homem não pode ser deixada de lado.

 

A morte humana, segundo os cristãos, é resultado do pecado do homem, embora este, quando originalmente criado, estivesse imune a ele. Depois de remido e chamado a uma nova vida (que de algum modo indefinido, será uma vida corporal) em meio a uma natureza mais orgânica e mais obediente, voltará à imunidade contra ele. Esta doutrina não terá naturalmente sentido se o homem não for senão um organismo natural. Se assim fosse, entretanto, como já vimos, todos os pensamentos seriam igualmente sem sentido, pois todos teriam origem em causas irracionais. O homem deve, portanto, ser um ente composto,  um organismo natural habitado por, ou em estado de simbiose com, um espírito supranatural. A doutrina cristã, surpreendente como possa parecer aos que não tenham limpado por completo a mente do naturalismo, declara que as relações que agora observamos entre esse espírito e esse organismo, são anormais ou patológicas. No presente, o espírito pode sustentar-se contra os contra-ataques incessantes da natureza (tanto físicos quanto psíquicos) somente mediante uma vigilância perpétua, e a natureza fisiológica sempre acaba por derrotá-lo. Mais cedo ou mais tarde ele se torna incapaz de resistir aos processos de desintegração que operam no corpo e a morte tem lugar. Pouco mais tarde o organismo natural (pois ele não goza por longo tempo seu triunfo) é igualmente conquistado pela simples natureza física e volta ao inorgânico.

 

No conceito cristão isto não foi, porém, sempre assim. O espírito nem sempre foi uma guarnição, mantendo seu posto com dificuldade numa natureza hostil, mas achava-se completamente "em casa" com o seu organismo, como um rei em seu próprio país ou um cavaleiro em seu cavalo,  ou melhor ainda, como a parte humana de um centauro se achava "em casa" com a parte eqüina. Onde o poder do espírito sobre o organismo fosse completo e não encontrasse resistência, a morte jamais ocorreria. Sem dúvida, o triunfo permanente do espírito sobre as forças naturais que, se deixadas a si mesmas, matariam o organismo, envolveria um milagre contínuo: mas apenas o mesmo tipo de milagre que ocorre todos os dias,  pois toda vez que pensamos racionalmente, mediante poder espiritual direto, estamos forçando certos átomos em nosso cérebro e certas tendências psicológicas em nossa alma natural a fazerem o que nunca teriam feito se tivessem sido deixados à mercê da natureza. A doutrina cristã seria fantástica apenas se a atual situação fronteiriça entre espírito e natureza em cada ser humano fosse tão inteligível e auto-explicativa que apenas "víssemos" ser ela a única passível de existir. Mas, será assim?

 

A situação da fronteira, porém, é realmente tão estranha que nada senão o hábito poderia fazê-la parecer natural, e nada senão a doutrina cristã pode torná-la plenamente inteligível. Existe com certeza um estado de guerra, embora não seja uma luta de destruição mútua. A natureza, ao dominar o espírito, prejudica todas as atividades espirituais; o espírito, dominando a natureza, confirma e aperfeiçoa as atividades naturais. O cérebro não se torna menos cérebro ao ser usado para pensamentos racionais. As emoções não se enfraquecem nem se desgastam por serem organizadas a serviço de uma vontade moral,  elas na verdade ficam mais ricas e fortes como a barba se encorpa ao ser feita ou um rio se aprofunda quando colocam nele uma barragem.

 

O corpo do homem sensato e virtuoso, de maneira geral, é um corpo melhor do que o do tolo ou depravado, e seus prazeres sensoriais melhores simplesmente como prazeres sensoriais; pois os escravos dos sentidos, depois do primeiro bocado, são dominados pelos seus senhores, ficando famintos. Tudo acontece como se o que vimos não fosse luta aberta, mas rebelião: aquela rebeldia do inferior para com o superior, através da qual o primeiro destrói a ambos. E se a situação presente é de rebeldia, a razão não pode rejeitar mas, pelo contrário, exigir que se acredite que houve um tempo antes da rebelião e que poderá haver outro depois dela ter sido vencida. E se percebemos assim elementos para acreditar que o espírito supranatural e o organismo natural do homem tenham entrado em conflito, veremos isso imediatamente confirmado sob dois aspectos inesperados.

 

Quase toda a teologia cristã pode talvez ser deduzida de dois fatos (a) os homens fazem pilhérias grosseiras, e (b) eles sentem que os mortos são sinistros. A pilhéria grosseira proclama que, temos aqui um animal que considera sua própria animalidade censurável, ou engraçada. A não ser que tivesse havido uma disputa entre o espírito e o organismo, não sei como isto poderia acontecer, pois trata-se de um sinal óbvio de que ambos não estão "à vontade" juntos. É porém muito difícil imaginar tal estado de coisas como sendo original,  supor uma criatura que desde o início ficasse meio chocada, meio morta de rir, pelo simples fato de ser a criatura que é. Nunca percebi que os cães vissem qualquer coisa engraçada em serem cães, e suspeito que os anjos não vêem qualquer ridículo em serem anjos. Nosso sentimento sobre os mortos é igualmente estranho. Não há necessidade de dizer que não gostamos de cadáveres porque tememos os fantasmas. Você poderia dizer do mesmo modo que tememos os fantasmas porque não gostamos de cadáveres  pois o fantasma deve muito do seu horror às idéias associadas com palidez, decadência, esquifes, mortalhas e vermes. O que realmente odiamos é a divisão que possibilita o conceito de cadáver ou fantasma, pois a coisa não deveria ser dividida, cada uma das metades resultantes da divisão é detestável. As explicações dadas pelo naturalismo, tanto da vergonha física como de nosso sentimento sobre os mortos, não são satisfatórias. Existe uma conotação com tabus primitivos e superstições, como se estas não fossem evidentemente o resultado da coisa a ser explicada. Mas, uma vez aceita a doutrina cristã de que o homem foi originalmente uma unidade e que a presente divisão não é natural, todos os fenômenos se encaixam. Seria fantástico sugerir que a doutrina foi inventada para explicar o gozo que extraímos de um capítulo de Rabelais, uma boa história de fantasmas, ou os contos de Edgar Allan Poe. Mas é isso justamente que acontece.

 

Eu deveria talvez salientar que o argumento não é absolutamente afetado pelas avaliações de valores que fazemos a respeito das histórias de fantasmas ou do humor grosseiro. Você pode afirmar que ambos são maus. Pode afirmar que ambos, embora resultem (como as roupas) da Queda, são também (como as roupas) a maneira adequada de tratar da Queda uma vez ocorrida: que enquanto o  homem aperfeiçoado e recriado não mais experimentará esse tipo de riso ou de tremor, todavia, aqui e agora não sentir o horror e não ver a graça é ser menos que humano. Mas, de qualquer modo, os fatos dão testemunho de nosso desajuste atual.

 

Nesse sentido a morte humana é o resultado do pecado e o triunfo de Satanás. Mas ela é também o meio de redenção do pecado, a cura de Deus para o homem e sua arma contra Satanás. De modo geral não é difícil compreender como a mesma coisa seja um golpe de mestre por parte de um dos combatentes e também o próprio meio pelo qual o combatente superior o derrota. Todo bom general, todo bom jogador de xadrez, toma precisamente o ponto forte de seu oponente e o transforma no pivô de seu próprio plano. Tome o meu castelo, já que insiste. Não era minha intenção original que fizesse isso, na verdade pensei que tivesse mais bom senso. Mas, tome-o de qualquer jeito. Pois agora faço isso e isso, e o coloco em xeque-mate com três movimentos. Algo assim deve ter acontecido com a morte. Não diga que tais metáforas são demasiado triviais para ilustrar um assunto tão elevado: as metáforas mecânicas e minerais que nesta era irão dominar desapercebidamente nossas mentes (sem que sejam absolutamente reconhecidas como metáforas), no momento em que relaxamos nossa vigilância contra elas, devem ser incomparavelmente menos adequadas.

 

Podemos ver como isso poderia ter acontecido. O Inimigo persuade o homem a rebelar-se contra Deus: ao fazer isso, o homem perde o poder de controlar aquela outra rebelião que o Inimigo levanta agora em seu organismo (tanto psíquico como físico) contra o espírito humano. Do mesmo modo que esse organismo, por sua vez, perde o poder de manter-se contra a rebelião do inorgânico. Dessa maneira, Satanás produziu a morte humana. Mas quando Deus criou o homem, Ele lhe deu uma tal constituição que, se a parte mais elevada dela se rebelasse contra Ele, tenderia a perder o controle sobre as partes inferiores; isto é, a longo prazo, viria a sofrer a Morte. Esta provisão pode ser igualmente considerada como uma sentença punitiva ("no dia em que comeres do fruto morrerás"), como um ato de misericórdia e um dispositivo de segurança. E castigo, porque a morte sobre a qual Marta diz a Cristo: "Senhor, já cheira mal"  é horror e ignomínia. ("Não tenho tanto medo da morte como me envergonho dela", declarou Sir Thomas Browne.) Representa misericórdia porque pela deliberada e humilde rendição a ela o homem desfaz o seu ato de rebelião e transforma até mesmo essa modalidade de morte depravada e monstruosa numa instância daquela morte mística e superior que é eternamente boa e um ingrediente necessário da vida mais elevada. "A disposição é tudo"  não se trata naturalmente da disposição simplesmente heróica, mas daquela feita com humildade e auto-renúncia, Nosso inimigo, assim escolhido, se torna nosso servo. A morte física, o monstro, se torna a abençoada morte espiritual ao "eu", se o espírito se dispuser  ou seja, se permitir ao Espírito do Deus que se dispôs a morrer incutir-lhe essa vontade. É um dispositivo de segurança porque, uma vez caído, a imortalidade natural seria o destino absolutamente sem esperança para o homem. Ajudado na rendição que deve fazer por não existir uma necessidade externa da morte, livre (se chama isso de liberdade) para enrolar ao seu redor, através de séculos infindos, as cadeias de seu próprio orgulho e lascívia e das civilizações de pesadelo que elas edificam em poder e complexidade cada vez maiores, ele progrediria de simples homem decaído para a categoria de demônio, possivelmente além de qualquer possibilidade de redenção.

 

Este perigo foi evitado. A sentença de que aqueles que comessem do fruto proibido seriam afastados da Árvore da Vida estava implícita na natureza composta com que o homem foi criado. Mas para converter esta morte penal no meio de obter a vida eterna,  acrescentar à sua função negativa e preventiva uma função positiva e salvadora,  tornou-se então necessário que a morte fosse aceita. A humanidade deve abraçar livremente a morte, submetendo-se a ela com total humildade, bebendo-a até o fim, e convertendo-a então naquela morte mística que é o segredo da vida. Mas somente um Homem que não precisava absolutamente ser homem a não ser que assim fosse escolhido, somente alguém que servisse em nosso triste regimento como voluntário, todavia sendo alguém que fosse perfeitamente um Homem, poderia realizar este morrer perfeito; e dessa forma (não importa a sua colocação) derrotar a morte ou redimi-la. Ele provou a morte a favor de todos os demais. Ele é o "Morredor" representativo do universo: e por essa mesma razão a Ressurreição e a Vida. Ou, de forma inversa, por viver realmente, Ele realmente morre, pois esse é o exato padrão da realidade. Pelo fato de o superior poder descer até o inferior, Aquele que de toda a eternidade vem incessantemente atirando-se na morte abençoada da auto-rendição ao Pai, pode também descer plenamente na morte horrível e (para nós) involuntária do corpo. Em vista de o Vicariato ser o próprio termo da realidade por Ele criada, a sua morte pode tomar-se nossa. O Milagre inteiro, longe de negar o que já conhecemos da realidade, escreve o comentário que torna claro esse texto obscuro. Ou seja, prova ser o texto em que a natureza não passa de um simples comentário. Na ciência estivemos lendo unicamente as anotações de um poema; no Cristianismo encontramos o poema completado.

 

Nosso esboço do Grande Milagre pode terminar aqui. Sua credibilidade não se encontra na Evidência. O pessimismo, o otimismo, o panteísmo, o materialismo, todos eles possuem esta atração "evidente". Cada um é confirmado à primeira vista por múltiplos fatos: mais tarde, cada um defronta também obstáculos insuperáveis. A doutrina da Encarnação opera de maneira muito diversa em nossa mente. Ela penetra abaixo da superfície, trabalhando através do restante de nosso conhecimento mediante canais inesperados, harmonizando-se melhor com nossas percepções e pensamentos mais profundos, e em união com eles enfraquece nossas opiniões superficiais. Ela tem pouco a dizer ao homem que continua certo que tudo vai acabar em nada, ou que tudo está cada vez melhor, ou que tudo é Deus, ou que tudo é energia. A sua hora chega quando esses credos por atacado começam a falhar. Se a coisa realmente aconteceu é uma questão histórica. Quando você, porém, se volta para a história, não irá exigir para ela aquela espécie de evidência que exigiria justamente para algo intrinsecamente improvável; mas apenas aquilo que exigiria para algo que, se aceito, ilumina e ordena todos os fenômenos, explica tanto o nosso riso como a nossa lógica, nosso temor dos mortos e nosso conhecimento que de algum modo é bom morrer, e que de um golpe cobre aquilo que multidões de outras teorias dificilmente cobrirão para nós se esta for rejeitada.

 

Os Milagres da Velha Criação

 

O Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai.

JOÃO 5:19

 

Quando abrimos livros como os Contos de Grimm ou o "Metamorfoses" de Ovídio, ou mesmo os épicos italianos, descobrimo-nos num mundo de milagres tão diversos que dificilmente podem ser classificados. Animais viram homens e homens se transformam em animais ou árvores, as árvores falam, navios viram deusas e um anel mágico pode fazer com que mesas repletas de iguarias apareçam em lugares solitários. Algumas pessoas não suportam este tipo de história, outras gostam. Mas a menor suspeita de que elas contivessem um fundo de verdade mudaria o divertimento em pesadelo. Se tais coisas realmente acontecessem, penso que mostrariam que a natureza estava sendo invadida.

 

A adequação dos milagres cristãos, e sua diferença desses milagres mitológicos, está no fato de mostrarem invasão por parte de um Poder familiar. Não passam daquilo que seria esperado que acontecesse quando ela é invadida pelo Deus da natureza e não por um simples deus. Por um Poder que está fora de sua jurisdição, não por ser estranho mas porque é soberano. Eles proclamam que Aquele que veio não é apenas um rei, mas o Rei, o Rei dela e nosso.

 

E isto que, a meu ver, coloca os milagres cristãos numa classe diferente da maioria deles. Não julgo que seja dever do apologista cristão (como muitos cépticos supõem) desmentir todas as histórias sobre milagre que não estejam nos registros cristãos, nem do cristão descrer delas. Não me acho de forma alguma comprometido com a idéia de que Deus jamais operou milagres para os pagãos ou através deles ou jamais permitiu que seres supranaturais criados fizessem isso. Se, como relatado por Tácito, Suetônio e Dion Cassius, Vespasiano realizou duas curas, e se os médicos modernos confirmam que não poderiam ter sido operadas senão através de um milagre, não tenho qualquer objeção.

 

O que alego, porém, é que os milagres cristãos possuem uma probabilidade intrínseca muito maior em vista de sua ligação orgânica recíproca e com o conjunto estrutural da religião que manifestam. Se puder ser mostrado que certo imperador romano  e, admitamos um imperador bastante bom, no que diz respeito a imperadores, foi um dia capacitado a realizar um milagre, devemos naturalmente aceitar o fato, embora permanecesse como um fato completamente isolado e anômalo. Nada resulta dele, nada leva a ele, pois não estabelece qualquer corpo de doutrina, nada explica, não se liga a nada. Esta é, afinal de contas, uma instância extraordinariamente favorável com relação a um milagre não-cristão. As interferências imorais e algumas vezes idiotas, atribuídas aos deuses nas histórias pagãs, mesmo que tivessem um traço de evidência histórica, só poderiam ser aceitas sob a condição de aceitarmos um universo absolutamente sem sentido. Aquilo que provoca imensas dificuldades e não soluciona nenhuma só será acreditado por um ser racional sob absoluta compulsão.

 

Algumas vezes a credibilidade dos milagres está na proporção inversa à credibilidade da religião. Milagres são assim registrados a respeito de Buda (penso que em documentos mais recentes); mas, o que poderia ser mais absurdo do que aquele que veio para ensinar-nos que a natureza é uma ilusão da qual devemos escapar se ocupasse produzindo efeitos no nível natural. Aquele que vem despertar-nos de um pesadelo iria acrescentar ao pesadelo? Quanto mais respeitássemos os seus ensinos tanto menos poderíamos aceitar os seus milagres. Mas no Cristianismo, quanto mais compreendemos qual é o Deus que é dito estar presente e o propósito para o qual é dito que apareceu, tanto mais críveis se tornam os milagres. Essa a razão pela qual raramente vemos alguém negar os milagres cristãos, exceto aqueles que deixaram de lado alguma parte da doutrina cristã. A mente que  exige um Cristianismo sem milagres é aquela que se encontra no processo de uma recaída na simples "religião".(1)

 

1. A consideração dos milagres do Velho Testamento está além da visão deste livro e exigiria muitos tipos de conhecimento que não possuo. Minha opinião atual,  que é tentativa e sujeita a correções,  seria que justamente da forma como, no lado fatual, uma longa preparação culmina na encarnação de Deus como homem, assim também, do lado documentário, a verdade aparece primeiro de modo mítico e então, mediante um longo processo de condensação ou focalização, finalmente se encarna como História. Isto envolve a crença de que o Mito em geral não é simplesmente a incompreensão da história (como pensou Euhemerus) nem ilusão diabólica (como acreditavam alguns dos patriarcas, nem mentira sacerdotal, como julgavam os filósofos do iluminismo) mas, na melhor das hipóteses, um vislumbre real embora mal focalizado da verdade divina percebido pela imaginação humana. Os hebreus, como outros povos, tinham a mitologia: mas como eles eram o povo escolhido, sua mitologia também era escolhida,  aquela escolhida por Deus para ser o veículo das primeiras verdades sagradas. O primeiro passo que termina no Novo Testamento onde a verdade se tornou completamente histórica. Se podemos dizer com certeza, neste processo de cristalização, onde se enquadra qualquer história do Velho Testamento, é outro assunto. Penso que as memórias da corte de Davi se acham num prato da balança e dificilmente são menos históricas do que o livro de Marcos ou o de Atos; e que o Livro de Jonas está no outro prato. Deve ser notado que sob este ponto de vista (a) da mesma maneira que Deus, ao tornar-se Homem, é "esvaziado" de Sua glória, também a verdade, quando desce do "céu" do mito para a "terra" da história, submete-se a certa humilhação. Assim sendo, o Novo Testamento é, e deve ser, mais prosaico, e de certo modo menos esplêndido do que o Velho; assim como este é e deve ser menos rico em muitos aspectos de beleza imaginativa do que as mitologias pagãs. (b) Assim como Deus não é menos Deus por ser Homem, também o mito permanece mito mesmo quando se torna fato. A história de Cristo exige de nós, e retribui, uma resposta não apenas religiosa e histórica, mas também imaginativa. Ela é dirigida à criança, ao poeta, e ao selvagem em nós, assim como à consciência e ao intelecto. Uma de suas funções é derrubar as paredes divisórias para serem notadas, através de toda a tela da natureza. Eles focalizam num determinado ponto, seja as operações presentes ou futuras de Deus sobre o universo.

 

Os Milagres de Cristo podem ser classificados de dois modos. O primeiro sistema inclui as classes: (1) Milagres de Fertilidade, (2) Milagres de Cura, (3) Milagres de Destruição, (4) Milagres de Domínio sobre o Inorgânico, (5) Milagres de Inversão, (6) Milagres de Aperfeiçoamento ou Glorificação. O segundo sistema que atravessa o primeiro, produz apenas duas classes: (1) Milagres da Velha Criação e (2) Milagres da Nova Criação.

 

Eu sustento que em todos esses milagres o Deus encarnado realiza, repentina e localmente, algo que Ele já tenha feito ou geralmente faça. Cada milagre escreve para nós em letras miúdas aquilo que Deus já escreveu, ou escreverá, em letras quase grandes demais

 

Quando reproduzem as operações que já vimos na escala maior, trata-se dos milagres da Velha Criação; quando focalizam o que ainda está por vir, são milagres da Nova. Nenhum deles é isolado ou anômalo. Cada um traz a assinatura do Deus a quem conhecemos através da consciência e da natureza. Sua autenticidade é confirmada pelo estilo.

 

Antes de continuar devo dizer que não me proponho a fazer a pergunta, já feita antes, se Cristo foi capaz de realizar essas coisas apenas porque era Deus ou também por ser um homem perfeito; pois existe a possibilidade de que o homem pudesse agir com o mesmo poder, caso não tivesse caído. Uma das glórias do Cristianismo é podermos responder a esta questão: "Não importa". Quaisquer que tenham sido os poderes do homem antes da queda, os do homem remido, ao que tudo indica, serão praticamente ilimitados. Ao subir novamente, depois de seu grande mergulho, Cristo está elevando com Ele a natureza humana. Onde vai, ela o segue. Irá "assemelhar-se" a Ele. Se nos Seus milagres Ele não estiver agindo como o Velho Homem teria feito antes da Queda, está agindo então como o Novo Homem, todo novo homem, agirá depois da sua redenção. Quando a humanidade, que leva nos ombros, passar com Ele da água fria e escura para a água verde e morna, saindo finalmente para o sol e o ar puro, ela também será luminosa e colorida.

 

Outra forma de expressar o verdadeiro caráter dos milagres, seria dizer que embora isolados de outros atos, eles não se acham apartados em qualquer das duas maneiras que comumente supomos. De um lado, não estão isolados de outros atos divinos: eles agem em escala reduzida, fazendo aquilo que Deus outras vezes realiza em tão grande escala que os homens não prestam atenção. Não são também isolados como supomos de outros atos humanos: eles antecipam poderes que todos os homens terão quando forem também "filhos" de Deus e entrarem nessa "gloriosa liberdade". O isolamento de Cristo não é o de um prodígio, mas o de um pioneiro. Ele é o primeiro da sua espécie; mas não será o último.

 

Vamos voltar à nossa classificação e tratar primeiro dos Milagres da Fertilidade. O primeiro deles foi a conversão da água em vinho nas bodas de Caná. Este milagre proclama que o Deus de todo vinho está presente. A videira foi uma das bênçãos enviadas por Javé. Ele é a realidade por trás do falso deus Baco. A cada ano, como parte da ordem natural, Deus faz o vinho. Isso se realiza pela criação de um organismo vegetal que pode transformar a água, o solo e o sol num suco que, sob condições adequadas, se transformará em vinho. Assim sendo, em certo sentido, Ele constantemente converte a água em vinho, pois este, como todas as bebidas, não passa de água modificada. Uma vez e num ano apenas, Deus, agora encarnado, reduz o processo: transforma a água em vinho num momento, usando jarras de barro em lugar de fibras vegetais para reter a água. Mas faz uso delas para efetuar o que está sempre efetuando. O milagre consiste na redução; mas o acontecimento a que isso leva é comum. Se a coisa aconteceu, sabemos então que o que invadiu a natureza não foi um espírito antinatural, não foi um Deus que ama a tragédia, as lágrimas e o jejum em si mesmos (embora os permita ou exija com fins especiais), mas o Deus de Israel que através de todos esses séculos nos deu o vinho que alegra o coração dos homens.

 

Outros milagres que se incluem nesta classe são os dois casos de alimentação miraculosa. Eles envolvem a multiplicação de um pouco de pão e alguns peixinhos em muito pão e muito peixe. Certa vez no deserto, Satanás tentou-O a transformar pedras em pão: Ele recusou. "O Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai"; talvez possamos supor ousadamente que a conversão direta de pedra em pão pareceu ao Filho não se enquadrar no estilo hereditário. Pouco pão em muito pão é algo completamente diverso. Todo ano Deus transforma um pouco de trigo em muito trigo: a semente é plantada e há um aumento. Os homens dizem então, cada um à sua moda: "É a lei da natureza", ou "É Ceres, é Adonis, é o Rei do Trigo". Mas as leis da natureza não passam de um padrão, nada resultará delas a não ser que, por assim dizer, possam dominar o universo e fazê-lo realmente funcionar. Quanto a Adonis, ninguém pode dizer-nos onde morreu ou quando ressuscitou. Aqui, na alimentação dos cinco mil, está Aquele a quem adoramos sem saber: o verdadeiro Rei do Trigo que morrerá uma vez e ressuscitará uma vez em Jerusalém durante a gestão de Pôncio Pilatos.

 

Nesse mesmo dia, Ele também multiplicou os peixes. Olhe em qualquer baía e quase todos os rios. Esse enxamear ondulante, essa fecundidade mostra que Ele ainda está operando "enchendo as águas dos mares". Os antigos tinham um deus chamado Gênio; o deus da fertilidade animal e humana, o patrono da ginecologia, da embriologia e do leito conjugal,  o leito "genial" como o chamavam conforme o seu deus Gênio. Mas Gênio não passa de outra máscara para o Deus de Israel, pois foi Ele que no princípio ordenou a todas as espécies: "crescei, multiplicai-vos e enchei a terra". E agora, naquele dia da alimentação dos milhares, o Deus encarnado faz o mesmo: de maneira reduzida, sob as suas mãos humanas, as mãos de um trabalhador, faz o que sempre tem feito nos mares, lagos e riachos.

 

Chegamos agora aos umbrais daquele milagre que por alguma razão parece ser o mais difícil de todos para a mente moderna aceitar. Posso entender o homem que nega completamente os milagres, mas, como classificar as pessoas que crêem em outros milagres e "param" no Nascimento Virginal? Será que apesar de tudo que dizem a respeito das leis da natureza, só existe um processo natural em que acreditem realmente? Ou será que pensam ver neste milagre um insulto ao intercurso sexual (embora pudessem sentir o mesmo com respeito à alimentação dos cinco mil: uma crítica aos padeiros) e que esta é a única coisa ainda venerada neste mundo irreverente? O milagre, entretanto, não é nem mais nem menos surpreendente do que qualquer outro.

 

A melhor maneira de abordá-lo talvez seja a partir do comentário feito em um dos mais arcaicos de nossos jornais ateus. O comentário dizia que os cristãos criam num Deus que "cometera adultério com a mulher de um carpinteiro judeu". O escritor estava provavelmente apenas "deixando escapar vapor" e não pensava, na verdade, que Deus, na história cristã, tivesse assumido a forma humana e se deitado com uma mulher mortal, como Zeus faz com Alcmena.( Märio, o nome da deusa é esse  mesmo? acho que pode estar errado...olha no original??ok??) Mas se  houvesse necessidade de responder a essa pessoa, teríamos de dizer que se chamássemos a concepção divina de adultério seríamos obrigados a descobrir um adultério divino similar na concepção de cada criança e também de cada animal. Lamento usar expressões que possam ofender ouvidos piedosos, mas não conheço outra forma de defender meu argumento.

 

No ato da geração normal o pai não tem função criativa. Uma partícula microscópica de material de seu corpo e outra partícula microscópica do corpo da mulher se encontram. E com isso é transmitida a cor do seu cabelo e o lábio pendente de seu avô, assim como a forma humana em toda a sua complexidade de ossos, tendões, nervos, fígado e coração, e a forma daqueles organismos pré-humanos que o embrião irá recapitular no útero. Por trás de cada espermatozóide jaz a história inteira do universo: encerrada nele se encontra uma parte considerável do futuro do mundo. O peso ou impulso por trás dele é o 'momentum' de todo o evento interligado que chamamos de natureza atualmente. E sabemos agora que as "leis da natureza" não podem fornecer esse 'momentum'. Se acreditamos que Deus criou a natureza esse 'momentum' deriva dEle. O pai humano não passa de um simples instrumento, um portador, às vezes relutante, mas sempre unicamente o último numa longa linhagem de portadores,  uma linhagem que se estende para muito além de seus ancestrais até desertos de tempo retrocedendo até a própria criação da matéria. Essa linha está na mão de Deus. Ela é o instrumento pelo qual Ele cria normalmente o homem, pois Ele é a realidade por trás tanto de Gênio como de Vênus; mulher alguma jamais concebeu uma criança, égua alguma um potro, sem Ele. Mas, uma vez, e por um motivo especial, Ele dispensou essa longa linha que é o seu instrumento: uma vez o seu dedo, que concede vida, tocou uma mulher sem atravessar as eras de acontecimentos interligados. Uma vez a grande luva da natureza foi tirada da sua mão. Sua mão nua tocou-a. Houve naturalmente uma razão única para isso. Dessa vez, Ele não estava criando simplesmente um homem, mas o Homem que seria Ele mesmo: estava criando um Homem de nova maneira, estava começado, neste ponto divino e humano, a Nova Criação de todas as coisas.

 

Todo o universo conspurcado e exausto tremeu a esta injeção direta da vida essencial  direta, não contaminada, não drenada através de todo o aglomerado de história da natureza. Mas ficaria deslocado tratar, aqui, do significado religioso do milagre, pois nos ocupamos dele simplesmente como Milagre e nada mais. No que se refere à criação da natureza humana de Cristo (o Grande Milagre através do qual sua natureza divinamente entra nela é outro assunto), a concepção milagrosa é mais um testemunho de que aqui se acha o Senhor da natureza. Ele está fazendo agora, de maneira reduzida e de perto, aquilo que faz de um modo diferente para cada mulher que concebe. Age assim desta vez sem uma linhagem de ancestrais humanos: mas mesmo quando usa estes, continua sendo Aquele que dá vida. O leito se mantém estéril quando a terceira parte, Gênio, não está presente.

 

Os milagres de Cura de que vou tratar a seguir, acham-se agora numa situação peculiar. Os homens estão dispostos a admitir que muitos deles aconteceram, mas inclinados a negar que fossem milagrosos. Os sintomas de diversas doenças podem ser imitados pela histeria, e esta pode com freqüência ser curada pela "sugestão". Seria, sem dúvida, possível argumentar que tal sugestão é um poder espiritual e que todas as instâncias de "cura pela fé" são portanto milagres. Mas em nossa terminologia só seriam milagrosos naquele sentido em que toda instância de raciocínio humano é milagrosa: e o que estamos buscando agora são milagres de outra espécie. Em minha opinião seria insensato pedir a alguém, que não tenha abraçado inteiramente o Cristianismo, que admita terem sido milagres todas as curas mencionadas nos evangelhos, isto é, que elas tenham ultrapassado as possibilidades da "sugestão" humana. Cabe aos médicos decidirem em relação a cada caso particular  supondo que as narrativas tenham sido suficientemente detalhadas para permitir pelo menos um diagnóstico provável. Temos aqui um bom exemplo do que foi dito num capítulo anterior. Em lugar de a crença nos milagres depender de nossa ignorância da lei natural, estamos descobrindo aqui, por nós mesmos, que a ignorância da lei torna o milagre indeterminável.

 

Sem decidir em detalhe quais das curas devem ser consideradas como milagrosas (em separado da aceitação da fé cristã), podemos porém indicar o tipo de milagre envolvido. Seu caráter pode ser facilmente obscurecido pela idéia algo mágica que muitos ainda conservam em relação à cura comum e médica. Existe um sentido em que médico algum jamais opera curas, e os próprios médicos seriam os primeiros a admitir isto. A mágica não está na medicina mas no corpo do paciente  na 'vis medicatrix naturae', a energia recuperadora ou autocorretiva da natureza. O que o tratamento faz é estimular as funções naturais ou remover o que as prejudica. Falamos por conveniência de um médico ou um remédio curar um machucado, mas noutro sentido todo corte se cura a si mesmo, pois corte algum pode ser curado num cadáver. Essa mesma força misteriosa que chamamos de gravitacional quando dirige os planetas e bioquímica quando cura um corpo vivo, é a causa eficiente de todas as recuperações. Essa energia provém de Deus em primeiro lugar. Todos os que são curados o são por Ele, não simplesmente no sentido de que a sua providência lhes fornece assistência médica e ambiente sadio, mas também no sentido em que seus tecidos são reparados pela energia descendente que, fluindo dEle, energiza todo o sistema da natureza.

 

Certa vez, porém, Ele fez isso visivelmente para os doentes da Palestina, um Homem encontrando-se com homens. Aquilo que em seu funcionamento geral mencionamos como sendo leis da natureza ou antes fazíamos referência a Apolo ou Esculápio, se revela assim a si mesmo. O Poder que sempre esteve por detrás de todas as curas traz agora um rosto e mãos. Decorre daí, portanto, a aparente casualidade dos milagres. É inútil queixar-se de que Ele cura aqueles com quem se encontra por acaso, e não aos demais. Ser homem significa estar num lugar e não em outro. O mundo que não quis reconhecê-Lo  como onipresente, foi salvo pelo fato dEle tornar-se local.

 

O único milagre de destruição praticado por Cristo, a figueira que secou, tem-se mostrado incômodo para algumas pessoas, mas julgo que o seu significado é bastante claro. O milagre é uma parábola encenada, um símbolo da sentença de Deus sobre tudo o que é "infrutífero" e especialmente, sem dúvida, sobre o judaísmo oficial daquela época. Esse é o seu significado moral. Como milagre, ele repete de modo claro, mas reduzido e próximo, o que Deus opera constantemente através da natureza. Vimos no capítulo anterior como Deus, tirando a arma das mãos de Satanás, tornou-se, desde a Queda, o Deus da morte humana. Mais ainda, e talvez desde a criação, Ele tem sido o Deus dos organismos. Em ambos os casos, embora de maneiras diferentes, Ele é o Deus da morte por ser o Deus da Vida: o Deus da morte humana porque por meio dela vem agora o acréscimo de vida,  o Deus da simples morte orgânica porque esta faz parte do processo pelo qual a vida orgânica se difunde no Tempo e entretanto permanece nova. Uma floresta com mil anos continua coletivamente viva porque algumas árvores estão morrendo enquanto outras crescem. Sua face humana, voltada para aquela figueira com rejeição nos olhos, fez uma vez o que o seu ato não encarnado faz a todas as árvores. Árvore alguma morreu naquele ano na Palestina, nem em qualquer ano em lugar algum, exceto por uma ação divina, ou seja, porque Ele deixou de fazer alguma coisa para ela.

 

Todos os milagres até agora considerados são Milagres da Velha Criação. Em todos eles vemos o Homem Divino focalizando para nós o que o Deus da natureza já fez numa escala mais ampla. Em nossa próxima classe, os Milagres de Domínio sobre o Inorgânico, descobrimos alguns da Velha Criação e outros da Nova. Quando Cristo acalma a tempestade, Ele faz o que Deus já fizera muitas vezes antes. Deus fez a natureza de maneira tal que houvesse tanto tempestades como calmarias, desse modo todas as tempestades (exceto as que estão agindo agora) foram acalmadas por Deus. Uma vez que você aceitou o Grande Milagre, não é filosófico rejeitar o ato  de acalmar a tempestade. Não há realmente dificuldade em adaptar as condições atmosféricas do restante do mundo a esta calma miraculosa. Eu posso acalmar uma tempestade num aposento, fechando a janela. A natureza faz o melhor que pode, e para fazer-lhe justiça ela não causa qualquer perturbação. O sistema inteiro, longe de ficar desajustado (o que algumas pessoas nervosas parecem pensar que aconteceria com a ocorrência de um milagre) digere a nova situação tão facilmente quanto um elefante digere uma gota d'água. Como já disse antes, ela é uma anfitriã talentosa.

 

Mas quando Cristo anda por sobre a água temos um milagre da Nova Criação. Deus não fizera a Velha Natureza, o mundo antes da Encarnação, de maneira tal que a água pudesse suportar um corpo humano. Este milagre é uma antecipação de uma natureza que se acha ainda no futuro. A Nova Criação está apenas surgindo. Por um momento parece que ela vai ampliar-se. Por um momento, dois homens estão vivendo nesse novo mundo. Pedro também anda por sobre a água um passo ou dois: depois sua fé o abandona e ele afunda, voltando à Velha Natureza. Esse vislumbre momentâneo foi um "snowdrop" de um milagre. Os "snowdrops" mostram que dobramos a esquina do ano. O verão está chegando, embora ainda distante, e os "snowdrops" não duram muito.

 

Os Milagres de Inversão pertencem todos à Nova Criação. Trata-se de um Milagre de Inversão quando os mortos são ressuscitados. A Velha Natureza desconhece este processo: é como passar de trás para diante um filme que sempre vimos passado de diante para trás. Os dois exemplos contidos nos evangelhos são de flores precoces, aquelas que chamamos de flores da primavera, por serem proféticas, embora realmente floresçam enquanto ainda é inverno. Os Milagres de Aperfeiçoamento ou de Glória, a Transfiguração, a Ressurreição e a Ascensão, pertencem ainda mais enfaticamente à Nova Criação. Eles são a verdadeira primavera, ou até mesmo o verão, do novo ano do mundo. O Capitão, o precursor já está em maio ou junho, apesar de seus seguidores na terra continuarem vivendo nas nevadas e ventos leste da Velha Natureza  pois "a primavera surge vagarosamente deste lado".

 

Nenhum dos Milagres da Nova Criação pode ser considerado  separadamente da Ressurreição e Ascensão, e isso exigirá um novo capitulo.

 

Os Milagres da Nova Criação

 

Cuidado, pois os perversos riem triunfantes, daquele que aprende apenas meias verdades! Cuidado, pois Deus não suportará que os homens tenham esperanças mais puras do que a Sua boa promessa, ou exijam uma outra, além da lira de cinco cordas que Ele prometeu novamente às mãos dedicadas que aprendem a dedilhá-la bem aqui!

C. PATMORE, The Victories of Love

 

Nos primeiros dias do Cristianismo, um "apóstolo" era, em primeiro lugar, alguém que alegava ter sido testemunha ocular da ressurreição. Alguns dias após a crucifixão, quando foram indicados dois candidatos para a vaga criada pela traição de Judas, a qualificação exigida foi que tivessem conhecido Jesus pessoalmente antes e depois de sua morte e pudessem oferecer evidência direta da ressurreição ao dirigir-se ao mundo exterior (Atos 1:22).

 

Alguns dias depois, Pedro, ao pregar o primeiro sermão cristão, afirma o mesmo: "A este Jesus, Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas" (Atos 2:32). Na primeira Epístola aos Coríntios, Paulo baseia seu direito ao apostolado nesse mesmo ponto: "Não sou apóstolo? não vi a Jesus?" (9:11).

 

Como sugere esta qualificação, pregar o Cristianismo significava principalmente pregar a ressurreição. Desse modo, as pessoas que ouviram apenas fragmentos do ensino de Paulo em Atenas receberam a impressão de que ele estava falando de dois novos deuses, Jesus e Anastasis (i.e., Ressurreição) (Atos 17:18). A ressurreição é o tema central de todo sermão cristão descrito em Atos. A ressurreição e suas conseqüências, foram o "evangelho" ou as boas novas que os cristãos transmitiram: aquilo que chamamos de "evangelhos", as narrativas da vida e morte do Senhor, foram compostos mais tarde para beneficiar aqueles que já haviam aceitado o evangelho. De modo algum elas formavam a base do Cristianismo, mas foram escritas para os já convertidos. O milagre da ressurreição e a teologia do mesmo, vêm em primeiro lugar: a biografia vem depois, como um comentário, um acréscimo. Nada poderia ser menos histórico do que escolher ditos selecionados de Cristo extraídos dos evangelhos e considerá-los como as exigências estabelecidas (datum) e o restante do Novo Testamento como algo edificado sobre elas. O primeiro fato na história do Cristianismo é um grupo de pessoas que alegam ter presenciado a ressurreição. Se tivessem morrido sem conseguir que ninguém mais cresse neste "evangelho", evangelho algum jamais teria sido escrito.

 

É de suma importância esclarecer a idéia dessas pessoas. Quando os autores modernos falam da Ressurreição, geralmente indicam um momento particular - a descoberta do Túmulo Vazio e a aparição de Jesus a poucos metros dele. A história desse momento é o que os apologistas cristãos tentam agora defender e os cépticos impugnar. Mas esta concentração quase exclusiva nos primeiros cinco minutos ou mais da ressurreição teria espantado os primeiros mestres cristãos. Ao alegar terem presenciado a ressurreição, não estavam necessariamente afirmando ter visto isso. Alguns viram, outros não. Não tinha mais importância do que qualquer outra das aparições do Jesus ressurreto, além daquela importância poética e dramática que o início das coisas sempre tem. O que afirmavam é que todos haviam, numa ou outra hora, encontrado Jesus durante as seis ou sete semanas que se seguiram à sua morte. Algumas vezes parecem estar sozinhos quando isso aconteceu, mas numa ocasião doze deles O viram juntos, e em outra quinhentos dentre eles. Paulo diz que a maioria dos quinhentos continuava viva quando ele escreveu a Primeira Carta aos Coríntios, i.e., cerca do ano 55 A.D.

 

A "Ressurreição" de que foram testemunhas não foi, de fato, o ato de levantar-se dentre os mortos mas a condição de ter-se levantado; uma condição, como afirmavam, atestada pelos encontros intermitentes durante um período limitado (exceto pelo encontro especial e de alguma forma diferente, concedido ao apóstolo Paulo). Este término do período é importante, pois, como veremos, não existe possibilidade de separar a doutrina da Ressurreição daquela da Ascensão.

 

O ponto seguinte a notar é que a Ressurreição não foi considerada simplesmente ou principalmente como evidência da imortalidade da alma. Ela é, naturalmente, considerada hoje desse modo com bastante freqüência: ouvi alguém sustentar que "a importância da ressurreição é o fato de provar a sobrevivência". Tal ponto de vista não pode em ponto algum reconciliar-se com a linguagem do Novo Testamento, pois segundo ele, Cristo teria simplesmente feito o que todos fazem quando morrem: a única novidade seria que no seu caso foi nos permitido apreciar o acontecimento. Não existe, porém, nas Escrituras a menor sugestão de que a Ressurreição fosse uma nova evidência de algo que de fato estivesse sempre ocorrendo. Os escritores do Novo Testamento falam como se a façanha de Cristo em levantar-se dentre os mortos fosse o primeiro acontecimento desse tipo em toda a história do universo. Ele é as "primícias", o "pioneiro da vida". Ele foi forçado a abrir uma porta que tinha estado fechada desde a morte do primeiro homem. Ele enfrentou o Rei da Morte, lutou com ele e venceu-o. Tudo é diferente agora por Ele ter feito isso. Este é o início da Nova Criação: um novo capítulo abriu-se na história cósmica.

 

Não quero naturalmente dizer que os escritores do Novo Testamento não cressem na "sobrevivência". Pelo contrário, criam nela com tanta facilidade que Jesus teve de assegurar-lhes mais de uma vez que não estavam vendo um "fantasma". Desde tempos remotos, os judeus, como muitas outras nações, tinham crido que o homem possuía uma "alma" ou 'Nephesh' separável do corpo, que ao morrer ia para um mundo de sombras chamado Sheol: um país de esquecimento e estupidez onde ninguém mais invocava Jeová, uma terra meio irreal e melancólica como o Hades dos gregos ou o Niflheim dos nórdicos. Sombras podiam voltar dali e aparecer aos vivos, como fizera a de Samuel a pedido da feiticeira de Endor. Em tempos muito mais recentes, surgira uma crença de que os justos ao morrerem passavam ao "céu". Ambas as doutrinas tratam da "imortalidade da alma" como um grego ou europeu da atualidade entende a idéia: sendo ambas absolutamente irrelevantes no que diz respeito à história da ressurreição.

 

Os escritores consideram este evento como uma completa novidade. Fica claro que não pensam ter sido assombrados por um fantasma de Sheol, nem mesmo que tivessem tido a visão de uma "alma" do "céu". Deve ficar entendido perfeitamente que se os Pesquisadores Psíquicos tivessem tido êxito em provar a "sobrevivência" e mostrassem que a ressurreição era derivada dela, não estariam apoiando a fé cristã, mas refutando-a. Se isso fosse tudo que havia acontecido, o "evangelho" original não teria sido verdadeiro. O que os apóstolos alegaram ter visto não confirmava, nem excluía, e na verdade nada tinha a ver, seja com a doutrina do "céu" ou a de Sheol. No que diz respeito a confirmar alguma coisa, ele corroborava uma terceira crença judia muito diversa dessas duas. Esta terceira doutrina ensinava que "nos dias de Javé" a paz seria restaurada e o domínio mundial concedido a Israel sob um Rei Justo, e que quando isto acontecesse os justos que morreram, ou alguns deles, voltariam à terra  não como aparições flutuantes, mas como homens sólidos lançando sombras à luz do sol e fazendo ruído quando pisassem o solo. "Despertai e exultai, os que habitais no pó", disse Isaías, "E a terra dará à luz os seus mortos" (26:19).

 

O que os apóstolos julgaram ter visto foi isso, ou, pelo menos, uma ocorrência isolada disso: o primeiro movimento de uma grande roda começando a virar-se na direção oposta àquela que todos os homens haviam até então observado. De todas as idéias concebidas pelo homem com respeito à morte, esta é a única que a história da ressurreição tende a confirmar. Se for falsa, este mito hebreu da ressurreição é que lhe deu origem. Se a história for verdadeira, a insinuação e antecipação da verdade não será encontrada nas idéias populares sobre fantasmas, nem nas doutrinas orientais da reencarnação, nem nas especulações filosóficas sobre a imortalidade da alma, mas exclusivamente nas profecias judaicas da volta, da restauração, da grande inversão. A imortalidade, simplesmente como tal, é irrelevante em relação à reivindicação cristã.

 

Existem, segundo admito, certos aspectos em que o Cristo ressurreto se assemelha ao "fantasma" da tradição popular. Como um verdadeiro "fantasma", Ele aparece e desaparece: portas fechadas não constituem obstáculo para Ele. Por outro lado, o próprio Cristo afirma vigorosamente que é material (Lucas 24:4940) e come peixe cozido. É justamente neste ponto que o leitor moderno começa a sentir-se constrangido, piorando ainda mais a sua situação ante as palavras: "Não me detenhas (não toques em mim); porque ainda não subi para meu Pai" (João 20:17). Estamos preparados até certo ponto para suportar vozes e aparições. Mas o que é isto que não deve ser tocado? O que significa "subir" para o Pai? Ele já não está "com o Pai" no único sentido que importa? O que pode significar "subir" exceto uma metáfora para isso? E, caso positivo, por que "ainda não" foi? Esses embaraços surgem porque a história que os "apóstolos" realmente tinham a contar entra em conflito neste ponto com aquela que esperamos e estamos determinados a ler de antemão em sua narrativa.

 

Esperamos que nos falem de uma vida ressurreta puramente "espiritual" no sentido negativo dessa palavra: isto é, não usamos o termo "espiritual" para significar o que ele é, mas aquilo que não é. Queremos indicar uma vida sem espaço, sem história, sem ambiente, sem elementos sensoriais nela. Tendemos também, lá no íntimo, a escorregar pela virilidade de Jesus, a concebê-Lo, depois da morte, como simplesmente voltando à divindade, de maneira que a Ressurreição não fosse mais do que a inversão ou o desmanchar da Encarnação. Assim sendo, todas as referências ao corpo ressurreto nos constrangem, fazendo surgir perguntas embaraçosas. Enquanto mantivermos a visão espiritual negativa, não estivemos na verdade crendo nesse corpo. Pensamos, quer tivéssemos ou não reconhecido isso, que o corpo não era objetivo: tratava-se de uma aparição enviada por Deus para assegurar os discípulos das verdades que não podiam ser comunicadas de outra forma. Mas, que verdades? Se a verdade é que depois da morte surge uma vida espiritual negativa, uma eternidade de experiência mística, que maneira menos acertada de comunicar tal coisa do que a aparição de uma forma humana que come peixe cozido? Novamente, sob tal conceito, o corpo seria realmente uma alucinação. E qualquer teoria de alucinação se desfaz no fato (caso se trate de uma invenção seria a mais estranha invenção que já entrou na mente humana) de que três ocasiões diferentes essa alucinação não foi imediatamente reconhecida como sendo Jesus (Lucas 24:13-31; João 20:15; 21:4). Mesmo concedendo que Deus enviasse uma alucinação santa para ensinar verdades já largamente cridas sem ela, e muito mais facilmente ensinadas por outros métodos, e certamente por completo obscurecidas por isto, não poderíamos pelo menos esperar que o rosto da alucinação fosse certo? Aquele que fez todos os rostos, seria tão desajeitado que não conseguisse fazer pelo menos uma semelhança do Homem que era Ele mesmo?

 

Neste ponto o terror e o tremor nos invadem ao ler os registros. Se a história for falsa, é pelo menos uma história muito mais estranha do que esperávamos; algo para o qual a "religião" filosófica, a pesquisa psíquica, e a superstição popular, todas elas, deixaram de preparar-nos. Se for verdadeira, então um estilo de vida inteiramente novo surgiu no universo.

 

O corpo, que vive nesse novo estilo se parece, ao mesmo tempo é diferente, do corpo que seus amigos conheceram antes da execução. Ele se relaciona de modo diverso com o espaço e provavelmente com o tempo, mas de maneira alguma o separa de toda ligação com eles. Ele pode realizar o ato animal de comer. Relaciona-se de forma tal com a matéria, como a conhecemos, que pode ser tocado, embora no início fosse melhor não tocá-lo. Tem também uma história à sua frente que se manifesta desde o primeiro momento da Ressurreição: vai tornar-se diferente ou partir para outro lugar. Essa a razão pela qual a história da Ascensão não pode ser isolada da Ressurreição. Todos os relatos sugerem que as aparições do Corpo Ressurreto terminaram; alguns descrevem um fim repentino cerca de seis semanas depois da morte. E descrevem esse fim de um modo que apresenta ainda maiores dificuldades à mente moderna do que qualquer outra parte das Escrituras. Pois aqui, certamente, temos a implicação de todas aquelas cruezas primitivas que os cristãos não aceitam, como já afirmei: a ascensão vertical como a de um balão, o céu local, a cadeira enfeitada à destra do trono do Pai. "Ele foi recebido no céu (ouranos)" diz o Evangelho Segundo Marcos, "e assentou-se à destra de Deus". "Foi elevado às alturas", diz o autor de Atos, "e uma nuvem o encobriu dos seus olhos".

 

Se quisermos nos livrar dessas passagens embaraçosas, podemos perfeitamente fazê-lo. A passagem em Marcos provavelmente não fazia parte do primeiro texto do seu evangelho, e você pode acrescentar que a Ascensão, embora constantemente implícita em todo o Novo Testamento, só é descrita nesses dois lugares. Poderemos simplesmente ignorar a história da Ascensão? A resposta será positiva apenas se considerarmos as aparições da Ressurreição como as de um fantasma ou alucinação. Pois um espectro pode desvanecer-se, mas uma entidade objetiva deve ir para outro lugar,  algo precisa acontecer a ela. E se o Corpo Ressurreto não fosse objetivo, então todos nós (cristãos ou não-cristãos) devemos inventar alguma explicação para o desaparecimento do cadáver. E todos os cristãos precisam explicar por que Deus enviou ou permitiu que uma "visão" ou "fantasma" cujo comportamento parece quase exclusivamente dirigido a convencer os discípulos de que não era realmente isso mas um ente material. Se fosse uma visão, tratava-se então da visão mais sistematicamente enganadora e mentirosa de que se tem registro. Mas se fosse real, então algo aconteceu-lhe depois que deixou de aparecer. Você não pode eliminar a Ascensão sem colocar alguma coisa em seu lugar.

 

Os registros representam Cristo como passando depois da morte (como homem algum passou antes) para um estilo de existência que não é nem negativamente "espiritual" nem uma vida "natural" como a que conhecemos, mas uma vida que tem a sua própria e nova natureza. Eles representam Cristo retirando-se seis semanas depois para outro tipo de existência. Eles dizem Ele diz  que vai "preparar-nos lugar". Isto significa provavelmente que está prestes a criar aquela  natureza inteiramente nova que irá fornecer o ambiente ou as condições para a sua humanidade glorificada e, nEle, para nós. O quadro não é aquilo que esperávamos  embora o fato de ser mais ou menos provável e filosófico por causa disso é outra questão. Não se trata de uma cena de fuga de toda e qualquer espécie de natureza para uma vida não-condicionada e por completo transcendente, mas de uma nova natureza humana, e uma nova natureza em geral, passando a existir. Nós devemos, de fato, crer que o corpo ressurreto seja extremamente diverso do mortal; mas a existência, nesse novo estado, de tudo o que pudesse ser chamado em qualquer sentido de "corpo", envolve algum tipo de relações espaciais e a longo prazo de um universo inteiramente novo. Esse o quadro,  não um desmantelar, mas uma renovação. O velho campo do espaço, tempo, matéria e sentidos deve ser limpo, cavocado, e plantado para uma nova colheita. Nós podemos estar cansados desse velho campo, mas Deus não está.

 

O próprio modo em que esta Nova Natureza começa a brilhar possui uma certa afinidade com os hábitos da Velha Natureza. Na natureza, como a conhecemos, as coisas tendem a antecipar-se, a natureza gosta de "falsas madrugadas", de precursores: assim, como afirmei antes, certas flores abrem antes de chegar a primavera; os subumanos (como dizem os evolucionistas) antes dos homens verdadeiros. Aqui também então temos a Lei antes do Evangelho, os sacrifícios de animais como uma sombra do grande sacrifício de Deus a Deus, o Batista antes do Messias, e aqueles "milagres da Nova Criação" que vêm antes da Ressurreição. Cristo andando sobre a água e a ressurreição de Lázaro estão incluídos nesta categoria. Ambos os acontecimentos nos dão uma idéia de como será a nova natureza.

 

No Andar sobre a Água vemos as relações entre espírito e natureza tão alteradas que esta pode ser levada a fazer aquilo que o espírito desejar. Esta nova obediência da natureza não está naturalmente separada, nem mesmo em pensamento, da obediência do espirito, ao Pai dos Espíritos. Em separado dessa provisão, tal obediência, por parte da natureza, caso fosse possível, resultaria no caos: o sonho perverso da Magia tem origem no anseio do espírito finito de obter esse poder sem pagar o preço devido. A realidade maligna da ciência ilegal aplicada (que é o filho e herdeiro da Magia) é na verdade a redução de largas porções da natureza a uma condição de desordem e esterilidade neste exato momento. Não sei quão radicalmente a própria natureza precisaria ser alterada para torná-la assim obediente aos espíritos, quando estes forem inteiramente obedientes à sua origem. Uma coisa pelo menos devemos observar: se somos de fato espíritos e não filhos da natureza, deve haver então algum ponto (provavelmente o cérebro) em que o espírito criado pode mesmo agora produzir efeitos sobre a matéria, não pela manipulação ou técnica, mas simplesmente pela vontade de fazer isso. Se for essa a Magia para você, então esta será uma realidade manifestada toda vez que você move a mão ou tem um pensamento. E a natureza, como vimos, não é destruída mas aperfeiçoada pela sua servidão.

 

A ressurreição de Lázaro difere da de Cristo porque o primeiro, ao que sabemos, não foi levantado para um estilo novo e mais glorioso de existência, mas simplesmente restaurado à vida que tinha antes. A adequação dos milagres está no fato de que Aquele que levantará todos os homens na ressurreição geral, faz aqui algo reduzido e próximo, e de maneira inferior, apenas antecipada. A simples restauração de Lázaro é tão menor em esplendor que a ressurreição gloriosa da nova humanidade como os vasos de pedra em relação à videira e em crescimento ou cinco pãezinhos de cevada a todo o bronze e ouro ondulante de um vale preparado para a colheita. A ressurreição de Lázaro, como vimos até agora, é inversão simplesmente: uma série de modificações operando em direção oposta àquela que sempre experimentamos. Por ocasião da morte, a matéria até então orgânica, começa a fluir para a inorgânica, sendo finalmente espalhada e utilizada (parte dela) por outros organismos. A ressurreição de Lázaro envolve o processo inverso. A ressurreição geral envolve o processo inverso universalizado  uma precipitação da matéria no sentido de organizar-se ao chamado dos espíritos que dela necessitam. Trata-se provavelmente de uma fantasia tola (que não é justificada pelas Escrituras) pensar que cada espírito iria recuperar aquelas unidades particulares de matéria que antes lhe pertenciam. De um lado, elas não seriam suficientes: todos vivemos em roupas de segunda mão e existem sem dúvida em meu queixo átomos que serviram a muitos outros homens, cães, enguias e dinossauros. A unidade de nossos corpos, mesmo nesta vida presente, também não consiste em reter as mesmas partículas. Minha forma permanece, embora a matéria nela contida mude constantemente. Nesse aspecto, eu sou como uma curva numa catarata.

 

Mas o milagre de Lázaro, embora apenas antecipado em um sentido, pertence enfaticamente à Nova Criação, pois nada é mais definitivamente excluído pela Velha Natureza do que qualquer volta ao status quo. O padrão da morte e novo nascimento jamais restaura o organismo individual prévio. E, do mesmo modo, no nível inorgânico, é nos dito que a natureza jamais restabelece a ordem onde uma vez ocorreu a desordem. Vivemos pois em um universo onde os organismos estão ficando cada vez mais desordenados. Essas leis, entre elas  a morte irreversível e a entropia irreversível, cobrem quase o total do que Paulo chama de "vaidade" da natureza: sua futilidade, sua ruína. E o filme jamais é invertido. O movimento: da ordem maior para a menor quase serve para determinar a direção. em que o Tempo está fluindo. Você pode praticamente definir o futuro como o período em que aquilo que está vivendo agora estará morto e quando a ordem que ainda existe diminuirá.

 

A entropia, entretanto, pelas suas próprias características, nos assegura que, embora possa ser uma regra universal na natureza que conhecemos, não pode ser absolutamente universal. Se alguém disser "Humpty Dumpty está caindo" você percebe imediatamente que essa não é uma história completa. O pouco que lhe contaram implica tanto um capítulo posterior em que Humpty Dumpty terá chegado ao chão, como outro anterior em que ele estava ainda sentado no muro. Uma natureza que está "se esgotando" não pode ser a história inteira. Um relógio não pode ficar sem corda a não ser que tivesse corda antes. Humpty Dumpty não pode cair de um muro inexistente. Se uma natureza que desintegra a ordem fosse a realidade total, onde iria ela encontrar qualquer ordem para desintegrar? Assim sendo, sob qualquer ponto de vista, deve ter havido um período em que funcionavam processos inversos dos que observamos agora: um tempo de dar corda.

 

A alegação cristã é que esses dias não se foram para sempre. Humpty Dumpty será recolocado no muro,  pelo menos no sentido de que aquilo que morreu irá recobrar vida, provavelmente no sentido de que o universo inorgânico será reordenado. Ou Humpty Dumpty jamais chegará ao chão (sendo apanhado em meio à queda pelos braços eternos), ou então, quando alcançá-lo, será juntado outra vez e colocado sobre um muro novo e melhor. A ciência admitidamente não consegue discernir "cavalos e homens do rei" que possam "juntar novamente Humpty Dumpty". Mas não se poderia esperar isso dela, pois está baseada na observação e todas as nossas observações se focalizam em Humpty Dumpty no ar. Elas não alcançam o alto do muro nem o chão embaixo,  muito menos o Rei com seus cavalos e homens apressando-se em direção ao lugar em que ele está.

 

A Transfiguração ou "Metamorfose" de Jesus é também, sem dúvida alguma, um vislumbre antecipado de algo que está para acontecer. Ele é visto conversando com dois dos mortos da antigüidade. A mudança que sua própria forma humana sofreu é descrita como adquirindo luminosidade, "brancura radiante". Uma brancura  similar caracteriza seu aparecimento no início do livro de Apocalipse. Um detalhe deveras curioso é que esta radiância ou brancura afetou tanto suas vestes como o seu corpo. Marcos menciona de fato as roupas mais detalhadamente do que o rosto e acrescenta, com sua ingenuidade inimitável que "nenhuma lavanderia poderia fazer isso tão bem". Examinado separadamente, este episódio tem todas as marcas de uma "visão": a saber, de uma experiência que embora possa ter sido divinamente enviada e revelar grande verdade, não é entretanto, falando de modo objetivo, aquela experiência que parece ser. Mas se a teoria da "visão" (ou alucinação santa) não abranger as aparições da Ressurreição, introduzi-la aqui seria apenas multiplicar as hipóteses. Não sabemos que fase ou característica da Nova Criação este episódio indica. Ele pode revelar alguma glorificação especial da condição humana de Cristo em alguma fase de sua história (desde que aparentemente ela tem história) ou a glória que essa humanidade sempre tem na sua Nova Criação; pode até mesmo revelar a glória que todos os homens ressurretos irão herdar. Não sabemos.

 

É preciso de fato salientar que sabemos e podemos saber muito pouco sobre a nova natureza. A tarefa da imaginação aqui não é prognosticá-la mas simplesmente, meditando sobre as muitas possibilidades, abrir lugar para um agnosticismo mais completo e circunspecto. É útil lembrar que mesmo agora os sentidos que reagem a diferentes vibrações iriam levar-nos a mundos experimentais inteiramente novos: que um espaço multidimensional seria diferente, quase além de qualquer reconhecimento, do espaço que percebemos agora, embora não houvesse solução de continuidade entre ambos: que o tempo nem sempre venha a ser para nós, como é agora, unilinear e irreversível. Que outras partes da natureza possam algum dia obedecer-nos como nosso córtex faz presentemente. Isso torna-se útil, não porque possamos confiar em que essas fantasias nos transmitam quaisquer verdades positivas sobre a Nova Criação, mas por nos ensinarem a não limitar, em nossa precipitação, o vigor e variedade das novas colheitas que este velho campo poderia ainda produzir.

 

Somos portanto forçados a crer que quase tudo o que nos é dito a respeito da Nova Criação é metafórico. Mas nem tudo. É justamente nesse ponto que a história da Ressurreição nos puxa para trás, com um arranco. As aparições locais, o ato de comer, o toque, a afirmativa de achar-se no corpo, devem ser ou realidade ou pura ilusão. A nova natureza acha-se interligada com a Velha em alguns pontos de maneira incômoda. Mas, por causa da interligação parcial, alguns fatos a respeito dela surgem em nossa experiência presente de maneira literalmente fatual,  da mesma forma que certos fatos sobre um organismo são fatos inorgânicos, e alguns fatos sobre um corpo sólido são fatos da geometria linear.

 

Em separado disso, a simples idéia de uma Nova Natureza, uma Natureza além da natureza, uma realidade sistemática e diversificada, que é "supranatural" em relação ao mundo de nossos cinco sentidos, mas "natural" de seu próprio ponto de vista, é profundamente chocante para certo preconceito filosófico de que todos sofremos. Penso que Kant está por trás dele. O mesmo pode ser expresso dizendo que estamos preparados para crer numa realidade com um andar ou com dois andares, mas não em uma semelhante a um arranha-céu com diversos andares. De um lado somos receptivos ao tipo de realidade em que os naturalistas acreditam. Essa é a realidade de um andar: a natureza presente é tudo que existe. Também somos receptivos à realidade como a "religião" a concebe: uma realidade com um andar térreo (a natureza) e acima desse, um único andar, o Algo eterno, sem limite de tempo ou espaço, espiritual, do qual não possuímos imagens e que, caso se apresente à consciência humana, faz isso numa experiência mística que desmantela todas as nossas categorias de pensamento. Não estamos preparados, porém, para algo intermediário. Sentimo-nos seguros de que o primeiro passo para além do mundo de nossa experiência presente deve levar para lugar nenhum ou para um abismo cego de espiritualidade não-diferenciada, o não-condicionado, o absoluto. Essa a razão porque muitos que não crêem em anjos nem num mundo angélico, acreditam em Deus; e por que muitos que não podem crer na ressurreição do corpo, crêem na imortalidade. Esse o motivo pelo qual o panteísmo é mais popular que o Cristianismo, e por que muitos desejam um Cristianismo despojado de seus milagres. Não posso compreender, mas lembro-me muito bem, a apaixonada convicção com que eu mesmo defendi antes este preconceito. Qualquer boato a respeito de andares ou níveis intermediários entre o Não-Condicionado e o mundo revelado pelos nossos sentidos atuais, era rejeitado por mim como "mitologia" sem qualquer exame.

 

Todavia, é muito difícil perceber qualquer base racional para o dogma de que a realidade não deve ter mais do que dois níveis. Pela natureza do caso, não pode existir evidência de que Deus jamais criou e jamais criará mais do que um sistema. Cada um deles teria de ser pelo menos extranatural em relação a todos os demais: e se qualquer deles for mais concreto, mais permanente, mais excelente, e mais rico do que outro, ele será supranatural para esse outro. Um contato parcial entre dois deles também não irá anular sua distinção. Dessa forma, poderia haver naturezas empilhadas sobre naturezas até qualquer altura desejada por Deus, cada uma supranatural para a que estivesse abaixo dela e subnatural para a que sobrepujasse. Mas o teor do ensino cristão é que estamos na verdade vivendo em uma situação ainda mais complexa do que essa. Uma nova natureza não está apenas sendo feita, mas confeccionada de uma outra velha. Vivemos em meio a todas as anomalias, inconveniências, esperanças e entusiasmos de uma casa em reforma. Alguma coisa está sendo demolida e outra colocada em seu lugar.

 

Aceitar a idéia de andares intermediários, o que a historia cristã irá simplesmente forçar-nos a fazer, caso não seja falsa,  não envolve naturalmente a perda de nossa apreensão do andar mais alto. Com toda a certeza, além de todos os mundos, não-condicionado e inimaginável, transcendendo os pensamentos racionais, ali se encontra para sempre o Fato último, a fonte de todos os outros fatos, a profundidade ardente e não-dimensional da Vida divina. Com toda certeza também, unir-se com essa Vida na eterna filiação de Cristo é a única coisa que merece um minuto de consideração. E visto ser isso que você chama de Céu, a natureza divina de Cristo nunca o deixou, e portanto jamais voltou a ele: e sua natureza humana subiu para lá, não no momento da Ascensão, mas a cada momento. Nesse sentido, palavra alguma dita pelos espiritualistas será contradita por mim. Não se segue, porém, que não existam também outras verdades. Admito e até insisto em que Cristo não pode estar "à destra de Deus" exceto num sentido metafórico. Admito e insisto que o Verbo Eterno, a Segunda Pessoa da Trindade, jamais poderá ser ou foi confinada a um determinado lugar de modo algum: é, pelo contrário, nEle que todos os lugares existem. Mas os registros dizem que o Cristo glorificado, mas ainda corpóreo em algum sentido, retirou-se para um modo diferente de ser cerca de seis semanas após a crucificação, e que Ele está preparando "lugar" para nós. A declaração em Marcos de que Ele sentou-se à direita de Deus devemos tomar como metáfora; tratava-se mesmo, para o escritor, de uma citação poética do Salmo 90. Mas a afirmativa de que a Forma santa subiu e desapareceu não pode sujeitar-se ao mesmo tratamento.

 

O que nos perturba aqui não é simplesmente a declaração em si, mas o que (estamos certos) o autor quis dizer com isso. Se concedermos que existem naturezas diferentes, diferentes níveis de existência, distintos mas nem sempre descontínuos; se concedermos que Cristo retirou-se de um deles para outro, que sua retirada de um foi, de fato, o primeiro passo em sua criação do outro,  o que precisamente esperaríamos que os observadores vissem? Talvez um simples desaparecimento instantâneo nos deixaria mais à vontade. Uma quebra repentina entre o perceptível e o imperceptível nos preocuparia menos do que qualquer espécie de união. Mas se os espectadores dizem que viram, a princípio, um breve movimento vertical, depois uma vaga luminosidade (isso é o que "nuvem" provavelmente significa aqui como aconteceu no relato dá Transfiguração) e depois mais nada, temos qualquer razão para objetar? Sabemos muito bem que o aumento da distância do centro deste planeta não poderia em si mesmo ser equacionado com o aumento de poder ou bem-aventurança. Mas isso seria apenas dizer que se o movimento não teve ligação com acontecimentos espirituais, ele não teve então qualquer associação com eles.

 

O movimento (em qualquer direção menos uma) para fora da posição ocupada momentaneamente pela Terra que se move, será certamente para nós um movimento "ascendente". Dizer que a passagem de Cristo a uma nova "natureza" não podia envolver tal movimento, ou qualquer outro, dentro da "natureza" que Ele estava deixando, seria muito arbitrário. Onde há passagem, há partida; e a partida é um evento na região que o viajante está deixando. Tudo isto, mesmo na suposição que o Cristo Ascendente esteja num espaço tridimensional. Se não se tratar dessa espécie de corpo, e o espaço não for esse tipo de espaço, estamos então ainda menos qualificados para dizer o que os observadores desse evento inteiramente novo poderiam ter ou não visto ou sentir como se tivessem visto. Não existe, naturalmente, qualquer questão de um corpo humano como o conhecemos, existindo no espaço interestelar como o conhecemos. A Ascensão pertence a uma Nova Natureza. Estamos apenas discutindo com o que se pareceria a "junção" entre a Velha e a Nova Natureza, o preciso momento da transição.

 

Mas o que nos preocupa realmente é a convicção de que, o que quer que digamos, os escritores do Novo Testamento sugeriram algo muito diferente. Temos a certeza de que julgavam ter visto o seu Mestre partindo numa viagem para um "Céu" local, onde Deus se assentava num trono e onde havia outro trono à espera dele. Acredito que num certo sentido foi isso justamente que pensaram. E acredito que, por essa razão, o que quer que tivessem realmente visto (a percepção sensorial, quase por hipótese, poderia confundir-se num momento desses) iriam certamente lembrar-se do mesmo como um movimento vertical. O que não devemos afirmar é que eles "confundiram" "Céus" locais e salas de trono celestiais com o Céu de união "espiritual" com Deus e o supremo poder e bem-aventurança.

 

Nós temos gradualmente descoberto sentidos diferentes da palavra Céu através deste capítulo. Talvez seja conveniente, neste ponto, fazer uma lista. Céu pode significar (1) A Vida divina não-condicionada além de todos os mundos. (2) Participação abençoada nessa Vida por parte de um espírito criado. (3) O conjunto da natureza ou sistema de condições em que os espíritos humanos remidos, ainda permanecendo humanos, podem gozar dessa participação plenamente e para sempre. Este é o Céu que Cristo vai "preparar" para nós. (4) O céu físico, o firmamento, o espaço em que a Terra se move. O que nos capacita a distinguir esses sentidos e mantê-los decididamente separados não é qualquer pureza espiritual específica, mas o fato de que somos herdeiros de séculos de análise lógica: e não por sermos filhos de Abraão, mas, sim, de Aristóteles. Não devemos supor que os escritores do Novo Testamento confundiram o céu no sentido quatro ou três com aquele céu no sentido dois ou um. Você não pode enganar-se, na Inglaterra, quando tem nas mãos uma moeda de meio soberano, tomando-a por outra de seis pence até que conheça o sistema inglês de cunhagem,  isto é, até que conheça a diferença entre elas. Na sua idéia de céu todos esses significados estavam latentes, prontos para virem à tona mais tarde, quando analisados. Eles jamais pensaram simplesmente no céu azul ou num simples céu "espiritual". Quando olhavam para o céu azul jamais duvidaram que lá, de onde descia a luz, o calor e a preciosa chuva, era a casa de Deus. Mas, por outro lado, quando pensavam em alguém subindo para esse Céu, jamais duvidavam que Ele estivesse "subindo" no que chamaríamos de sentido "espiritual". O período real e pernicioso do literalismo veio mais tarde, na Idade Média e no século dezessete, quando foram feitas as distinções e alguns desastrados tentaram unir de novo os conceitos, mas de maneira errada.

 

O fato de os pastores galileus não poderem distinguir o que viram na Ascensão, daquele tipo de subida que, por sua própria natureza, jamais poderia ter sido visto, não prova que não fossem espirituais, nem que nada viram. O homem que realmente acredita estar o "Céu" no firmamento, pode muito bem ter, em seu íntimo, um conceito espiritual do mesmo muito mais verdadeiro do que muitos lógicos modernos que poderiam expor essa falácia com um golpe de pena. Pois aquele que faz a vontade do Pai conhecerá a doutrina. Os esplendores materiais irrelevantes na idéia que tal homem faz da visão de Deus não irão causar danos, pois não estão ali por si mesmos. A pureza extraída de tais imagens, no pensamento simplesmente teórico do cristão, não resultará em bem nenhum se elas tiverem sido banidas apenas pela crítica lógica.

 

Devemos, porém, adiantar-nos um pouco mais. Não se trata de pura casualidade que as pessoas simples, embora espirituais, misturassem as idéias de Deus, do Céu e do firmamento azul. É um fato e não ficção, que a luz e o calor que dá vida descem do céu para a terra. A analogia do papel do céu com o ato de gerar e o da terra com o de produzir é sólida até certo ponto. A imensa abóbada do céu, de todas as coisas percebidas sensorialmente, é a que mais se assemelha ao infinito. E quando Deus fez o espaço e os mundos que se movem nele, revestindo nosso mundo de ar, dando-nos os olhos e a imaginação que temos, Ele sabia o que o céu viria a significar para nós. Como nada é acidental na sua obra, se sabia, quis que fosse assim. Não podemos estar certos de que isto não tivesse sido, na verdade, o propósito principal para a criação da natureza; menos ainda que não fosse uma das razões específicas por que foi permitido que a retirada afetasse os sentidos humanos como um movimento ascendente. (Um desaparecimento para dentro da terra teria gerado uma religião por completo diversa.) Os antigos, permitindo que o simbolismo espiritual do céu fluísse diretamente para suas mentes, sem deter-se para descobrir, através da análise, que se tratava de um símbolo, não estavam por completo enganados. De certo modo, talvez estivessem menos enganados do que nós, pois caímos na dificuldade oposta. Vamos confessar que provavelmente todo cristão que vive hoje acha difícil reconciliar as duas coisas que lhe contaram sobre o "céu"  isto é, por um lado, a vida em Cristo, uma visão de Deus, uma adoração incessante, e de outro, uma vida corporal.

 

Quando parecemos mais próximos da visão de Deus nesta vida, o corpo se assemelha quase a uma irrelevância. E se tentamos conceber nossa vida eterna como sendo no corpo (qualquer espécie de corpo), tendemos a descobrir que um sonho vago de paraísos platônicos e jardins das Esperides passou a substituir aquela abordagem mística que sentimos (e julgo que com acerto) ser mais importante. Mas se essa discrepância fosse final, seguir-se-ia então,  o que é absurdo,  que Deus enganou-se originalmente quando introduziu nossos espíritos na ordem natural. Devemos concluir que a discrepância em si é precisamente uma das desordens que a Nova Criação vem sanar. O fato de o corpo, localidade, locomoção e tempo, parecerem agora irrelevantes ao alcance mais elevado da vida espiritual (como o fato de podermos pensar em nossos corpos como "grosseiros") é um sintoma. O espírito e a natureza entraram em conflito em nós; é esse o nosso mal. Nada que possamos fazer nos capacita a imaginar sua cura completa. Temos alguns vislumbres e leves insinuações: nos sacramentos, no uso das imagens sensuais, feito pelos grandes poetas, nos melhores momentos do amor sexual, em nossas experiências da beleza da terra. Mas a cura completa está absolutamente fora de nossos conceitos presentes. Os místicos avançaram na contemplação de Deus até o ponto em que os sentidos são postos de lado: o ponto seguinte, em que eles são recolocados, não foi ainda alcançado por ninguém (ao que sei). O destino do homem remido não é menos, mas, mais inconcebível do que o misticismo nos levaria a supor por estar repleto de semi-imagináveis que não podemos admitir no presente sem destruir seu caráter essencial.

                                   

Devo tocar num ponto que, embora eu permanecesse silencioso a respeito dele, estaria mesmo assim presente para muitos leitores. A letra e o espírito das Escrituras, e de todo o Cristianismo, nos proíbem supor que essa vida na Nova Criação será uma vida sexual; e isto reduz nossa imaginação à triste alternativa de corpos que dificilmente serão reconhecíveis como corpos humanos ou então um jejum perpétuo. Com relação à abstinência, penso que nossa perspectiva atual seja a de um menino que, ao lhe contarem que o ato sexual representa o mais elevado prazer físico, perguntasse imediatamente se você poderia comer chocolate ao mesmo tempo. Ao receber resposta negativa, ele talvez viesse a considerar a ausência de chocolate como a principal característica da sexualidade. Seria inútil dizer-lhe que os amantes em seus arrebatamentos carnais não se preocupam com chocolate, pois têm algo melhor em que pensar. O menino conhece o chocolate, mas não o algo positivo que o exclui.

 

Nós nos encontramos na mesma posição. Conhecemos a vida sexual; não conhecemos, exceto por vislumbres, a outra coisa que, no céu, não deixará lugar para ela. Assim sendo, onde a plenitude nos aguarda, antecipamos o jejum. Ao negar que essa vida sexual, como agora a entendemos, faça parte da bem-aventurança final, não é naturalmente necessário supor que a distinção entre os sexos vá desaparecer. O que não for mais necessário para os propósitos biológicos pode vir a sobreviver pelo esplendor. A sexualidade é tanto o instrumento da virgindade como da virtude conjugal; nem homens nem mulheres terão de descartar as armas que empregaram vitoriosamente. São os derrotados e os fugitivos que jogam fora as suas espadas. Os conquistadores embainham as suas e as retêm. "Transsexual" seria um termo melhor do que "assexuado" para a vida celestial.

 

Sei perfeitamente que este último parágrafo pode parecer infeliz para muitos leitores e cômico para outros. Mas justamente essa comédia, como devo insistir repetidamente, é o sintoma de nossa alienação, como espíritos, da natureza; e nossa alienação do Espírito, como animais. Todo o conceito da Nova Criação envolve a crença de que tal alienação será sanada, com um resultado curioso. O pensamento arcaico, que não podia distinguir o "Céu" espiritual do firmamento, representa um tipo confuso de idéias de nosso ponto de vista, mas também se assemelha e antecipa uma espécie de pensamento que um dia será verdadeiro. Esse modo de pensar arcaico tornar-se-á simplesmente a espécie correta quando a natureza e o Espírito estiverem plenamente harmonizados, quando o Espírito montar a natureza com tanta perfeição que juntos se tornarão mais um Centauro do que um cavaleiro montado. Não quero dizer necessariamente que a fusão entre Céu e firmamento virá a ser especialmente verdadeira, mas que ela irá representar com justeza a realidade que existirá então. Não haverá lugar para introduzir a mais fina lâmina de pensamento entre o Espírito e a natureza, pois toda a situação na Nova Natureza será uma manifestação perfeita de uma condição espiritual e toda condição espiritual, a informática, a respeito de uma situação. Uma união como a do perfume com a flor ou a do "espírito" da boa poesia com a sua forma.

 

Na história do pensamento humano, como em outras coisas, existe um padrão de morte e novo nascimento. O pensamento antigo, ricamente imaginativo, que ainda sobrevive em Platão, necessita submeter-se ao processo da análise lógica, que embora se assemelhe à morte é indispensável: natureza e espírito, matéria e mente, fato e mito, o literal e o metafórico, precisam ser mais e mais separados, até que finalmente um universo puramente matemático e uma mente puramente subjetiva se defrontem através de um abismo intransponível. Mas a esta descida, caso o pensamento em si deva sobreviver, também deve corresponder uma ascensão, e o conceito cristão faz isso. Os que alcançarem a ressurreição gloriosa verão os ossos novamente revestidos de carne, o fato e o mito voltando a unir-se, o literal e o metafórico precipitando-se um para o outro.

 

O comentário ouvido tantas vezes que o "Céu" é um "estado de mente" testemunha a fase sombria e fúnebre deste processo em que agora vivemos. Fica implícito na frase "o céu é um estado de mente"  ou, mais corretamente, de espírito,  que deve ser então apenas um estado de espírito ou, pelo menos, que se for acrescentada qualquer outra coisa a esse espírito, ela seria irrelevante. Qualquer outra grande religião exceto o Cristianismo diria isso. Mas o ensinamento cristão, afirmando que Deus fez o mundo e o achou bom, ensina que a natureza ou o meio ambiente não pode ser simplesmente irrelevante ao bem-estar espiritual como um todo, por mais distante em uma natureza particular, durante os dias de seu cativeiro, que eles possam ter se afastado. Ao ensinar a ressurreição do corpo, ele ensina que o céu não é simplesmente um estado de espírito, mas também um estado físico: e portanto um estado da natureza como um todo. É verdade que Cristo disse a seus ouvintes que o reino dos céus estava "dentro" ou "entre" eles. Mas esses ouvintes não se achavam simplesmente "num estado de mente". O planeta que Ele havia criado achava-se debaixo dos seus pés, o sol acima de suas cabeças; sangue, pulmões e vísceras funcionavam nos corpos que Ele inventara, fótons e ondas sonoras por Ele criadas os abençoavam com a visão de sua face humana e o som de sua voz. Jamais estamos apenas num estado de mente. A oração e a meditação feitas sob o vento cortante, ou o sol tranqüilo, na alegria da manhã ou na resignação da tarde, na juventude ou velhice, na saúde ou na doença, podem ser igualmente abençoadas, embora de modo diferente. Já nesta vida presente todos vimos como Deus pode tomar todas essas aparentes irrelevâncias no fato espiritual e fazer com que tenham uma participação bastante significativa na bênção desse momento, a fim de fazer delas uma bênção especial  como o fogo pode queimar igualmente o carvão e a madeira, mas um fogo de madeira é diferente daquele de carvão. O Cristianismo não nos ensina a desejar libertação completa deste fator ambiental. Desejamos, como Paulo, ser revestidos e não despojados: não queremos descobrir o informe "Todo Lugar e Nenhum Lugar", mas sim a terra prometida, aquela natureza que será sempre e perfeitamente o instrumento para aquela música que surgirá então entre Cristo e nós, como a natureza atual o é de maneira parcial e intermitente.

 

Você pergunta agora: isso faz diferença? Tais idéias não nos excitam e distraem apenas das coisas mais imediatas e mais certas, o amor de Deus e de nosso próximo, o levar diário da cruz? Se você descobrir que o perturbam muito, não pense mais nelas. Devo admitir plenamente que é mais importante para mim e para você hoje rehear???? uma zombaria ou estender um pensamento caridoso a um inimigo do que conhecer tudo o que os anjos e arcanjos sabem sobre os mistérios da Nova Criação. Escrevo a respeito dessas coisas, não por serem elas de suma importância, mas porque este livro se refere a milagres. Pelo título você já não poderia esperar que fosse um livro devocional ou de teologia ascética. Não admito, entretanto, que os assuntos discutidos nas últimas páginas não tenham importância para a prática da vida cristã, pois suspeito que nosso conceito do céu como um simples estado de mente está relacionado com o fato de que a virtude cristã da esperança enfraqueceu demasiado em nossos dias. Onde nossos pais, perscrutando o futuro, viram lampejos dourados, vemos apenas a bruma, branca, informe, fria e imóvel.

A idéia por trás de toda esta espiritualidade negativa é algo realmente proibido aos cristãos. Dentre todos os homens, justamente eles não devem conceber a alegria e valor espirituais como coisas que precisam ser resgatadas e ternamente protegidas do tempo, lugar, matéria e sentidos. O seu Deus é o Deus do trigo, do óleo e do vinho. Ele é o alegre Criador, que se tornou Ele mesmo encarnado. Os sacramentos foram instituídos. Certos dons espirituais só nos são oferecidos sob a condição de realizarmos certos atos corporais. Depois disso não podemos ter, na verdade, dúvidas quanto às suas intenções. Recuar de tudo que pode ser chamado de natureza, para dentro da espiritualidade negativa, é como se fugíssemos dos cavalos em vez de aprender a montar. Em nossa presente condição de peregrinos existe espaço suficiente (mais espaço do que a maioria de nós aprecia) para a abstinência e a renúncia, assim como a mortificação de nossos desejos naturais. Mas, por trás de todo ascetismo a idéia deve ser: "Quem irá confiar-nos a verdadeira riqueza se não formos fiéis nem mesmo com a riqueza que perece?" Quem me confiará um corpo espiritual se não posso controlar sequer um corpo terreno? Esses corpos pequenos e perecíveis que temos agora, nos foram dados como os pôneis são dados aos meninos. Devemos aprender a manejá-los, não porque venhamos algum dia a ficar de todo livres dos cavalos, mas para que possamos algum dia montar sem sela, confiantes e alegres, aquelas montarias maiores, aqueles cavalos alados, brilhantes, que fazem tremer o mundo, que talvez mesmo agora nos esperem com impaciência, escarvando e resfolegando nos estábulos do Rei. Embora esse galope não valesse coisa alguma a não ser que fosse um galope com o Rei; mas de que outro modo,  desde que Ele reteve seu próprio cavalo de guerra,  poderíamos acompanhá-lo?

 

"Se você deixa algo abandonado, ele fica à mercê de uma caudal de mudanças. Se deixa um poste branco abandonado, logo se transforma num poste negro.

O. K. CHESTERTON, Orthodoxy

 

Meu trabalho termina aqui. Se, depois de lê-lo, você se voltar para o estudo da evidência histórica, comece com o Novo Testamento e não com os livros que falam sobre ele. Se não souber grego consiga uma tradução moderna. E quando depois do Novo Testamento passar a ler os eruditos modernos, lembre-se de que estará entre eles como uma ovelha entre lobos. As suposições naturalistas, a aceitação de um assunto como provado (como aquela que citei na primeira página), irão defrontar-se com você de todo lado, mesmo através da pena de clérigos. Isto não significa, (como fui tentado certa vez a suspeitar) que esses clérigos fossem apóstatas disfarçados que exploram deliberadamente a posição e sustento que lhes é concedido pela Igreja Cristã, a fim de minar o cristianismo; mas deriva parcialmente do que podemos chamar de uma "ressaca". Todos temos o naturalismo nos ossos e mesmo a conversão não desaloja imediatamente a infecção de nosso sistema. Suas suposições se precipitam de volta à nossa mente no instante em que relaxamos a vigilância. O procedimento desses estudiosos se deve em parte a um sentimento que lhes dá muito crédito sendo na verdade honroso ao ponto do quixotismo. Eles mostram-se ansiosos em permitir ao inimigo todas as vantagens que possam reivindicar com suposta justiça. Eliminam, então, do seu método o supranatural sempre que for pelo menos remotamente possível fazê-lo, esticam a explicação natural até o ponto de ruptura antes de admitir a menor sugestão de milagre. No mesmo espírito, alguns examinadores tendem a dar notas altas a qualquer candidato cujas opiniões e caráter, como revelado pelo seu trabalho, lhes provoque um sentimento de repulsa. Tememos tanto mostrar-nos injustos pelo fato de a pessoa não nos ter agradado à primeira vista que tendemos a exagerar e tratá-la com excessiva bondade. Muitos eruditos cristãos modernos fazem a mesma coisa.

 

Ao fazer uso dos livros de tais pessoas você precisa, portanto, estar continuamente alerta. Deve desenvolver um olfato como o dos cães de caça para aqueles pontos no argumento que não dependem de conhecimento histórico e lingüístico, mas da suposição oculta de que os milagres são impossíveis, improváveis ou impróprios. Isto significa que você precisa realmente reeducar-se: deve trabalhar duro e constantemente a fim de erradicar de sua mente todo o tipo de pensamento em que todos fomos educados. Trata-se da espécie de pensamento que, sob vários disfarces, tem sido nosso adversário através de todo este livro. Ele é tecnicamente chamado Monismo; mas talvez o leitor menos erudito irá compreender-me melhor se eu o chamar de "Tudismo". Quero indicar com isto a crença de que "tudo" ou "o conjunto", deve ser autoexistente, deve ser mais importante do que qualquer coisa em particular, e deve conter todas as coisas particulares de forma que não possam realmente diferir muito umas das outras para que elas não sejam simplesmente "em uma", mas uma. O Tudista então, se ele começa com Deus, torna-se um panteísta; não deve haver nada que não seja Deus. Se começa com a natureza, torna-se naturalista; não deve haver nada que não seja natureza.

 

Ele acha que no final de contas tudo, é "simplesmente" um precursor, um desenvolvimento, uma relíquia, um exemplo ou um disfarce de tudo o mais. Acredito que esta filosofia seja profundamente inverídica. Um dos modernistas disse que a realidade é "incorrigivelmente plural", e penso que está certo. Todas as coisas vêm de Uma Só. Todas as coisas são relacionadas ligadas de maneiras diferentes e complicadas. Mas nem todas as coisas são uma. A palavra "tudo" deveria significar simplesmente o total (um total a ser alcançado, se soubéssemos o suficiente, pela enumeração) de todas as coisas que existem num dado momento. Ela não deve receber uma inicial maiúscula mental; não deve (sob a influência da imaginação) ser transformada numa espécie de lago em que determinadas coisas afundem nem mesmo num bolo em que elas sejam as cerejas. As coisas reais são agudas, nodosas, complicadas e diferentes. O Tudismo se harmoniza com nossas mentes por ser a filosofia natural de uma era totalitária, de produção em massa, conscrita. Essa a razão que nos deve manter perpetuamente em guarda contra ele.

 

Todavia... todavia... E esse todavia que temo mais do que qualquer argumento positivo contra os milagres: essa volta macia, fácil, à sua perspectiva habitual ao fechar o livro e quando as quatro paredes familiares ao seu redor e os ruídos familiares da rua se acomodam de novo. Talvez (caso eu ouse supor tanto) você tenha sentido alguma coisa enquanto lia, sentido esperanças e temores antigos se agitarem em seu coração, chegando talvez perto dos umbrais da crença. Mas, e agora? Não. Não adianta. O mundo comum, "real", o rodeia outra vez. O sonho está terminando, como os outros sonhos semelhantes se acabaram. Pois naturalmente esta não foi a primeira vez que tal coisa aconteceu. Mais de uma vez em sua vida antes disto você ouviu uma história estranha, leu algum livro curioso, viu algo diferente ou imaginou que viu, nutriu alguma esperança ou temor fantástico: mas tudo sempre acabou da mesma forma. E você se perguntou como pôde, por um momento sequer, ter pensado que não fosse assim. Pois esse "mundo real" quando volta a ele é tão irrefutável. A história naturalmente era falsa, a voz com certeza era subjetiva, e o portento aparente não passou de coincidência. Você se envergonha de si mesmo por ter abrigado por um instante outro pensamento: envergonhado, aliviado, divertido, desapontado, e zangado, tudo ao mesmo tempo. Você deveria ter sabido que, como diz Arnold, "Milagres não acontecem".

 

Sobre este estado de mente, só tenho duas coisas a dizer. Primeiro, esse é precisamente um daqueles contra-ataques da natureza que na minha teoria você deveria ter antecipado. Seu pensamento racional não tem apoio em seu consciente natural exceto aquilo que adquire e mantém pela conquista. No momento em que o pensamento racional cessa, a imaginação, o hábito mental, o temperamento e o "espírito da época" o dominam de novo. Novos pensamentos, até que se tenham tornado habituais, irão afetar a sua consciência como um todo somente enquanto você estiver a pensá-los. A razão precisa apenas fazer um sinal de seu posto e as patrulhas da natureza imediatamente se infiltram. Assim sendo, embora os contra-argumentos que se opõem ao milagre devam receber toda atenção (pois se estou errado, então quanto mais cedo for refutado tanto melhor não só para você, mas para mim) a simples gravitação da mente de volta à sua perspectiva habitual deve ser descontada. Não só nesta pesquisa como em todas elas.

 

Aquele mesmo aposento familiar, reafirmando-se quando fechamos o livro, pode fazer com que outras coisas pareçam incríveis além dos milagres. Quer o livro tenha estado dizendo a você que o fim de toda a civilização está próximo, ou mesmo que você está de cabeça para baixo em relação à Austrália, que você é mantido na cadeira pela curvatura do espaço, ele pode continuar parecendo um pouco irreal enquanto boceja e pensa em ir deitar-se. Descobri que até uma simples verdade (por exemplo, que minha mão, esta que descansa agora sobre o livro, será um dia a mão de um esqueleto) pode ser singularmente pouco convincente em tais momentos. As "crençassentimentos", como o Dr. Richards as chama, não seguem a razão exceto mediante um longo treinamento: elas seguem a natureza, seguem os sulcos e ranhuras que já existem na mente. A convicção teórica mais firme a favor do materialismo não irá impedir que um tipo particular de indivíduo, sob certas condições, tenha medo de fantasmas. A convicção teórica mais firme a favor dos milagres não irá impedir que outro tipo de homem, em outras condições, sinta uma certeza pesada, inescapável, de que milagre algum poderá jamais ocorrer. Mas os sentimentos de um indivíduo cansado e nervoso, inesperadamente obrigado a passar a noite numa casa de campo grande e vazia, no final de uma viagem em que esteve lendo uma história de fantasmas, não são uma evidência de que esses existem. Os seus sentimentos nesse momento não são evidências de que milagres não ocorram.

 

A segunda coisa é esta. Você está provavelmente certo em pensar que jamais verá um milagre. Está provavelmente certo também em pensar que houve uma explicação natural para tudo em sua vida passada que à primeira vista pareceu "estranho". Deus não sacode milagres sobre a natureza ao acaso, como se usasse um saleiro. Eles surgem nas grandes ocasiões: sendo encontrados nos grandes centros de força da história não da história política ou social, mas da espiritual que não pode ser plenamente conhecida pelos homens. Se a sua vida não se acha próxima de um desses grandes centros, como poderia esperar observá-los? Se fôssemos missionários heróicos, apóstolos ou mártires, a coisa seria diferente. Mas, por que você ou eu? A não ser que você viva perto de uma estrada de ferro, não verá os trens passarem pela sua janela. Qual a probabilidade de um de nós presenciar a assinatura de um tratado de paz, de estar presente a uma grande descoberta científica ou quando um ditador comete suicídio? Que vejamos um milagre é ainda menos provável. Nem estaremos ansiosos para isso. "Quase nada vê os milagres senão a miséria." Os milagres e os martírios tendem a aglomerar-se nas mesmas áreas da história cujas áreas não desejamos freqüentar. Aconselho você, com toda sinceridade, que não exija uma prova ocular a não ser que esteja perfeitamente certo de que isso não acontecerá.

 

Sobre as Palavras "Espírito" e "Espiritual"

 

O leitor deve ser advertido que o ângulo pelo qual o Homem é abordado no Capítulo 4 é muito diferente daquele que seria adequado em um tratado devocional ou prático sobre a vida espiritual. A espécie de análise que é feita em relação a qualquer coisa complexa depende do propósito que se tem em vista. Numa sociedade, portanto, as decisões de peso, de um determinado ponto de vista, seriam entre homem e mulher, crianças e adultos, e assim por diante. Sob outro conceito, elas seriam entre governantes e governados e de um terceiro, as diferenças entre classe ou profissão poderiam ser as mais importantes. Todas essas análises talvez fossem igualmente corretas, mas sua utilidade se aplicaria a fins diferentes. Quando estamos considerando o Homem como evidência para o fato de que esta natureza espaço temporal não é a única coisa que existe, a distinção importante é aquela entre a parte do homem que pertence a essa natureza espaço-temporal e a que não pertence; ou, se preferir, entre aqueles fenômenos da humanidade que se acham rigidamente interligados com todos os demais eventos neste espaço e tempo e aqueles que possuem certa independência.

 

Essas duas partes do homem podem perfeitamente ser chamadas de natural e supranatural. Ao chamar a segunda de "supranatural" queremos indicar que se trata de algo que invade ou é acrescentado ao grande evento interligado no espaço e tempo, em lugar de surgir simplesmente dele. Por outro lado, esta parte "supranatural" é ela mesma um ser criado uma coisa chamada à existência pelo Ente Absoluto e recebendo dEle certo caráter ou "natureza". Poderíamos dizer então que embora "sobrenatural" em relação a esta natureza (este evento complexo no espaço e tempo) ele é, em outro sentido, "natural" isto é, um espécime de uma classe de coisa que Deus normalmente cria segundo um padrão estável.

 

Existe, porém, um sentido em que a vida desta parte pode tornar-se absolutamente supranatural, i. e., não além desta natureza, mas além de toda e qualquer natureza, no sentido de que pode alcançar um estilo de vida que jamais poderia ter sido dado a qualquer ente criado em sua simples criação. A distinção irá talvez se tornar mais clara se a considerarmos em relação aos anjos e não aos homens. (Não importa aqui se o leitor acredita ou não em anjos, estou fazendo uso deles apenas para esclarecer o ponto).

 

Todos os anjos, tanto os "bons" quanto os maus ou "decaídos" a quem chamamos demônios, são igualmente "supranaturais" em relação a esta natureza espaço-temporal; isto é, eles se encontram fora dela e possuem poderes e um modo de existência que ela não poderia prover. Mas os anjos bons têm uma vida que é também supranatural em outro sentido. A saber, eles voluntariamente ofereceram de volta a Deus, em amor, as "naturezas" que dEle receberam na sua criação. Todas as criaturas vivem naturalmente de Deus, no sentido que Ele as fez e as mantém existindo a cada momento. Mas existe outra espécie de vida mais elevada, uma "vida de Deus" que só pode ser dada a uma criatura que voluntariamente se submeta a ela. Esta vida os anjos bons possuem, mas não os maus, e ela é completamente supranatural porque criatura alguma em mundo algum pode tê-la pelo simples fato de ser a espécie de criatura que é.

 

Acontece conosco o mesmo que acontece com os anjos. A parte racional de todo homem é sobrenatural no sentido relativo o mesmo sentido em que tanto anjos como demônios são sobrenaturais. Mas se ela "nasce de novo" como dizem os teólogos, se se entrega de volta a Deus em Cristo, terá então uma vida absolutamente supranatural, que não é criada, mas gerada, pois a criatura está então partilhando a vida gerada da Segunda Pessoa da Divindade.

 

Quando os escritores devocionais falam da "vida espiritual" e com freqüência quando falam da "vida sobrenatural" ou quando eu mesmo, em outro livro, falei de Zoé eles indicam esta vida absolutamente supranatural que nenhuma criatura pode receber simplesmente por ser criada, mas que toda criatura racional pode ter entregando-se voluntariamente à vida de Cristo. Muita confusão surge, porém do fato de muitos livros usarem as palavras "Espirito" ou "Espiritual" para indicar também o elemento relativamente supranatural no homem, o elemento externo a esta natureza que (por assim dizer) é "expedido" ou entregue a ele pelo simples fato de ter sido criado como homem.

 

Será talvez útil fazer uma lista dos sentidos em que as palavras "espírito", "espíritos" e "espiritual" têm sido ou são usadas.

 

1. O sentido químico, i.e., os "espíritos evaporam rapidamente".

 

2. O sentido médico (agora obsoleto). Os médicos antigos acreditavam em certos fluidos extremamente refinados no espírito humano, chamados de "espíritos". Como ciência médica este conceito foi abandonado há muito tempo, mas deu origem a algumas das expressões que ainda usamos; como quando falamos de alguém acharse com "o espírito elevado" ou "com o espírito pesado"; ou dizemos que um cavalo mostra-se "espiritado" ou que um menino está "tomado por espíritos animais".

 

3. "Espiritual" é com freqüência empregado para indicar simplesmente o oposto de "corporal" ou "material". Assim sendo, tudo que é imaterial no homem (emoções, paixões, memória, etc.) é geralmente chamado de "espiritual". Vale a pena lembrar que aquilo que recebe o nome de "espiritual" neste sentido não é necessariamente bom. Nada existe de especialmente bom sobre o simples fato da imaterialidade. As coisas imateriais, como as materiais, podem ser boas, más ou indiferentes.

 

4. Algumas pessoas usam o termo "espírito" para significar aquele elemento relativamente sobrenatural que é concedido a todo homem em sua criação o elemento racional. Segundo minha opinião, este é o modo mais útil de empregar a palavra. Torna-se novamente importante neste ponto compreender que aquilo que é "espiritual" nem sempre é necessariamente bom. Um Espírito (neste sentido) pode ser tanto a melhor como a pior das coisas criadas. Pelo fato de o homem ser (neste sentido) um animal espiritual é que ele pode tornar-se tanto um filho de Deus como do diabo.

 

5. Finalmente, os escritores cristãos usam "espírito" e "espiritual" para indicar a vida que surge nos seres racionais quando eles se rendem voluntariamente à graça divina e se tornam filhos do Pai celestial em Cristo. Neste sentido, e somente nele, que o "espiritual" é sempre bom.

 

Seria inútil lamentar que as palavras tenham mais de um sentido. A linguagem é uma coisa viva e as palavras tendem a fazer surgir novos significados da mesma forma em que as árvores lançam novos ramos. Não podemos considerar isso inteiramente como uma desvantagem, desde que o ato de desembaraçar esses sentidos faz com que aprendamos muito sobre as coisas envolvidas, que, de outro modo, teria passado despercebido. 0 desastre é quando uma palavra muda de sentido durante uma discussão sem termos consciência disso. Por exemplo, na presente discussão, seria útil dar nomes diferentes para as três coisas indicadas pela palavra "Espírito" nos sentidos três, quatro e cinco. Desse modo, para o sentido três uma boa interpretação seria "alma": e o adjetivo para acompanhála "psicológico". No sentido quatro podemos manter os termos "espírito" e "espiritual". Para o sentido cinco o melhor adjetivo seria "regenerado", mas não existe um substantivo que se adapte a ele. (Sendo isto talvez significativo, pois não estamos falando de uma parte ou elemento no homem (como a alma e o espírito são), mas de uma redireção e reforço de todas as partes ou elementos. Num sentido então, o homem regenerado não possui nada a mais que o não regenerado; assim como não existe diferença aparente entre o homem que anda na direção certa e aquele que segue o caminho errado. Em outro sentido, porém, pode ser dito que o homem regenerado é totalmente diferente do não regenerado, pois a vida regenerada, o Cristo formado nele, transforma cada uma de suas partes: nela, seu espírito, alma e corpo experimentarão um novo nascimento. Assim sendo, se a vida regenerada não fizer parte do homem, isto se deve grandemente ao fato, de sempre que ela surge, não consegue descansar até que se torne o homem inteiro, total. Ela não está separada de qualquer das partes, como estas se acham divididas umas das outras. A vida do "espírito" (no sentido quatro) sob um ponto de vista acha-se separada da vida da alma: o homem puramente racional e moral que tenta viver inteiramente pelo seu espírito criado se vê forçado a tratar as paixões e imaginações de sua alma como simples inimigos a serem destruídos ou aprisionados. Mas o homem regenerado verá sua alma eventualmente harmonizada com seu espírito, pela vida de Cristo que está nele. Assim sendo, os cristãos crêem na ressurreição do corpo, enquanto os filósofos da antiguidade consideram o corpo como uma simples inconveniência. E esta é talvez uma lei universal, quanto mais você sobe mais fundo desce. O homem é uma torre na qual os diferentes andares dificilmente podem ser alcançados de um para o outro, mas do último andar é possível alcançar todos.

 

Nota: Na Versão Atualizada o homem "espiritual" significa o que chamo de homem "regenerado", enquanto o homem "natural", ao que penso, é tanto o que chamo de "homem-espírito" e "homem-alma".

 

A Respeito das "Providências Especiais"

 

O leitor ouviu falar neste livro de duas classes de acontecimentos, e apenas duas,  os milagres e os acontecimentos naturais. Os primeiros não estão interligados com a história da natureza em retrocesso, i.e., a época antes de sua ocorrência, mas os últimos estão. Muitas pessoas piedosas falam porém de certos eventos como sendo "providenciais" ou "providências especiais" sem dizer com isso que sejam milagrosos. Isto implica geralmente numa crença que, em separado dos milagres, alguns eventos são providenciais num sentido em que outros não são. Dessa forma, alguns julgaram que as condições atmosféricas que permitiram a retirada da grande parte de nosso exército de Dunquerque foi algo "providencial", de certa forma em que o tempo como um todo não é providencial. A doutrina cristã de que alguns acontecimentos, embora não sejam milagres, são mesmo assim respostas à oração, pareceria a princípio envolver esta idéia.

 

Acho difícil conceber uma classe intermediária de eventos que não sejam nem milagrosos nem simplesmente "comuns". O tempo em Dunquerque foi ou não foi aquele que a história física prévia do universo, por seu próprio caráter, inevitavelmente produziria? Se foi, como pode ter sido "especialmente" providencial? Se não foi, tratou-se então de um milagre.

 

Pareceme, portanto, que devemos abandonar a idéia de que existe qualquer classe especial de acontecimentos (em separado dos milagres) que possa ser distinguida como "especialmente providencial". A não ser que devamos abandonar o conceito de Providência de uma vez por todas, e com ele a crença na oração eficaz, segue-se que todos os eventos são igualmente providenciais: Se Deus dirige realmente o curso dos acontecimentos, ele então governa o movimento de cada átomo a cada momento; "nenhum pardal cai em terra" sem essa orientação. A "naturalidade" dos eventos naturais não consiste em estarem de alguma forma fora da providência de Deus, mas consiste na sua interligação mútua dentro de um espaço-tempo comum, de acordo com o padrão estabelecido das "leis".

 

A fim de obter uma idéia de alguma coisa, é às vezes necessário começar com uma idéia errada e depois corrigi-la. A falsa idéia da Providência (falsa por representar Deus e a natureza como estando ambos contidos num Tempo comum) seria como segue. Cada evento na natureza resulta de outro acontecimento anterior e não das leis da natureza. Em análise final, o primeiro evento natural, qualquer fosse ele, ditou cada um dos demais eventos. Isto é, quando Deus no momento da criação introduziu o primeiro evento na estrutura das "leis"  deu o primeiro impulso à bola Ele determinou toda a história da natureza. Antevendo cada uma das partes dessa história, Ele propositou cada parte dela. Se Ele tivesse desejado condições atmosféricas diferentes em Dunquerque, teria feito o primeiro evento diferir um pouco.

 

O tempo que na verdade tivemos é, portanto, providencial no sentido mais estrito; foi decretado, e decretado com um propósito, quando da criação do mundo  mas não mais (embora de forma mais interessante para nós) do que a precisa posição neste momento de cada átomo no anel de Saturno.

 

Segue-se (retendo ainda nossa falsa idéia) que todo evento físico foi determinado para servir um grande número de propósitos.

 

Devemos supor então que Deus, ao pré-determinar o tempo em Dunquerque, deve ter considerado perfeitamente o efeito que teria não apenas sobre o destino de duas nações como também (o que é incomparavelmente mais importante) sobre todos os indivíduos envolvidos de ambos os lados, todos os animais, vegetais e minerais a uma determinada distância, e finalmente sobre cada átomo no universo. Isto pode parecer excessivo, mas na realidade estamos atribuindo ao Onisciente apenas um grau infinitamente superior do mesmo tipo de habilidade que um simples romancista humano exerce diariamente ao construir o seu enredo.

 

Suponhamos que eu esteja escrevendo um romance. Tenho nas mãos os seguintes problemas: (1) O Velho Sr. A precisa morrer antes do capítulo 15. (2) Será melhor que morra de repente, pois tenho de impedir que altere seu testamento. (3) Sua filha (minha heroína) precisa ficar fora de Londres durante pelo menos três capítulos. (4) Meu herói tem de recuperar a imagem perante a heroína, que perdeu no capítulo 7. (5) Aquele arrogante jovem B, que precisa melhorar antes do final do livro, tem de receber um choque moral a fim de deixar de ser convencido. (6) Não decidimos ainda sobre o emprego de B; mas todo o desenvolvimento do seu personagem exige que tenha um emprego e que o vejamos realmente trabalhando. Como irei introduzir essas seis coisas?... Já sei. E se houvesse um acidente de trêm? O Velho A morreria nele, e isso encerra a questão a seu respeito. De fato, o acidente pode ocorrer enquanto viaja para Londres a fim de consultar seu advogado exatamente com a idéia de modificar seu testamento. O que seria mais natural do que sua filha acompanhálo? Faremos com que sofra ferimentos leves no acidente, e isso impedirá sua chegada a Londres por quantos capítulos quisermos. E o mocinho pode encontrar-se no mesmo trêm, mostrando-se muito calmo e heróico durante o acidente  provavelmente salvará a heroína de um vagão em chamas. Isso decide o meu quarto ponto. E o jovem e convencido B? Faremos dele o sinaleiro cuja negligência provocou o desastre. Isso lhe dá o seu choque moral e também o liga ao enredo principal. De fato, no momento em que pensamos no acidente de trêm, esse evento único resolverá seis problemas aparentemente isolados.

 

Esta é sem dúvida, de certa forma, uma imagem intoleravelmente enganadora: primeiro porque (exceto com relação ao convencido B) não estive pensando no bem final de meus personagens, mas na diversão de meus leitores. Segundo, porque estamos simplesmente ignorando o efeito do acidente ferroviário sobre todos os outros passageiros do trêm; e finalmente porque fui eu que fiz B transmitir o sinal errado. Isto é, embora eu pretenda que ele possua livre arbírio, na verdade não tem. Apesar dessas objeções, porém, o exemplo talvez sirva para sugerir como o engenho divino poderia inventar o "enredo" físico do universo de maneira a fornecer a resposta "providencial" às necessidades de inúmeras criaturas.

 

Mas algumas dessas criaturas possuem livre arbítrio. É neste ponto que devemos começar a corrigir a idéia admitidamente falsa da Providência que estivemos usando até agora. Essa imagem, como deve lembrar, era falsa por representar Deus e a natureza habitando um Tempo comum. Mas é provável que a natureza não esteja realmente no Tempo e quase certo que Deus não está. O tempo é provavelmente (como a perspectiva) o modo de nossa percepção. Não existe, portanto, na verdade questão de Deus, em um ponto no tempo (o momento da criação) adaptar a história material do universo em antecipação aos atos voluntários que você ou eu devemos realizar num ponto posterior no Tempo. Todos os eventos físicos e todos os atos humanos estão presentes para Ele num eterno Agora. A liberação de vontades finitas e a criação de toda a história material do universo (relacionada com os atos dessas vontades em toda necessária complexidade) é para Ele uma única operacão. Deus, neste sentido, não criou o universo há muito tempo, mas Ele o cria neste minuto  a cada minuto.

 

Suponhamos que eu encontre uma folha de papel que já contenha uma linha preta ondulante traçada nela. Eu posso agora me sentar e traçar outras linhas (talvez em vermelho) cuja forma combina com a linha preta, a fim de formar um desenho. Vamos supor agora que a linha preta original seja consciente. Mas ela não é consciente ao longo de todo o seu comprimento de uma só vez, mas somente em cada ponto desse comprimento, um por vez.

 

A sua consciência está de fato viajando ao longo dessa linha da esquerda para a direita, retendo o ponto A apenas como uma memória ao alcançar B e incapaz de tornar-se consciente de C até deixar B. Vamos dar também livre arbítrio a esta linha negra. Ela escolhe a direção a seguir. A forma ondulante especial que possui é exatamente aquela que deseja ter. Mas embora ela só perceba sua forma escolhida momento a momento e não sabe no ponto D que direção resolverá seguir no ponto F, eu posso ver sua forma inteira e de uma só vez. Em cada momento ela irá encontrar minhas linhas vermelhas à sua espera e adaptadas a ela. Isso é natural, porque eu, ao compor o desenho pretovermelho total tenho diante de mim todo o curso da linha preta e o levo em consideração. Não se trata então de uma impossibilidade mas simplesmente de meu engenho como desenhista inventar linhas vermelhas que a cada ponto tenham uma relação correta não só com a linha preta, mas umas com as outras, a fim de encher todo o papel com um desenho satisfatório.

 

A linha preta representa neste exemplo uma criatura com livre arbítrio, as linhas vermelhas representam os eventos materiais, e eu represento Deus. O modelo seria naturalmente mais preciso se eu estivesse fazendo tanto o papel como o padrão e se houvessem centenas de milhares de linhas pretas e não só urna  mas para manter a simplicidade devemos fazer isso.

 

Veremos que se a linha preta dirigisse orações a mim, eu poderia (se quisesse) atendê-las. Ela ora para que, ao chegar ao ponto N, encontre as linhas vermelhas arranjadas ao redor dele de certa forma. Essa forma, pelas leis do desenho, pode exigir um equilíbrio mediante outros arranjos de linhas vermelhas em partes por completo diferentes do papel  algumas no alto ou embaixo, tão distantes da linha preta que ela nada sabe a esse respeito: algumas tão à esquerda que surgem antes do início da linha preta, e outras tão à direita que surgem depois dela ter terminado. (A linha negra chamaria essas partes do papel de "tempo antes de meu nascimento", e "tempo depois de minha morte".) Mas essas outras partes do padrão exigidas por aquela forma vermelha que a Linha Negra seja em N, não impedem que eu atenda à sua oração. Pois todo o seu curso esteve visível à minha frente desde o momento em que olhei para o papel; e suas exigências no ponto N estão entre as coisas que tomei em consideração ao decidir o padrão total.

 

A maioria de nossas orações, se plenamente analisadas, pedem um milagre ou acontecimentos cujas bases tiveram de ser lançadas antes de meu nascimento, no começo do universo. Mas para Deus (embora não para mim), tanto eu como a oração que fiz em 1945 estavam tão presentes na criação do mundo como estão agora e estarão daqui há um milhão de anos. O ato criativo de Deus é eterno e eternamente adaptado aos elementos "livres" dentre dele: mas esta adaptação eterna entra em nosso consciente como uma seqüência, uma oração e uma resposta.

 

Seguem-se duas deduções:

 

1. As pessoas perguntam com freqüência se um dado acontecimento (não um milagre) foi realmente uma resposta à oração. Penso que se analisarem sua idéia descobrirão que sua pergunta é: "Deus fez isso com um propósito especial ou teria acontecido de qualquer forma como parte do curso natural de eventos?" Mas isto (como a velha pergunta: "Você deixou de bater em sua mulher?") torna qualquer das duas respostas impossível. Na peça Hamlet, Ofélia sobe num ramo que pende sobre um rio. O ramo quebra e ela cai e se afoga. O que você responderia se alguém perguntasse: "Ofélia morreu porque Shakespeare quis que morresse por razões poéticas naquele momento ou porque o ramo quebrou?" Penso que teríamos de dizer: "Por ambas as razões". Cada acontecimento na peça resulta de outros na mesma peça, mas também todos eles acontecem por que o poeta assim o deseja. Todos os eventos na peça são shakespearianos; e de igual forma todos os acontecimentos no mundo real são providenciais. Todos os acontecimentos na peça, porém, surgem (ou deveriam surgir) da lógica dramática dos acontecimentos. Assim também, todos os eventos no mundo real (exceto os milagres) surgem devido a causas naturais. A "Providência" e o princípio da causalidade natural não são alternativas; ambos determinam cada evento por serem ambos uma mesma coisa.

 

2. Quando estamos orando sobre o resultado, por exemplo, de uma batalha ou uma consulta médica, a idéia de que o evento já está decidido de uma ou outra forma cruza muitas vezes nossa mente. Não acredito que esta seja uma boa razão para deixar de orar. O evento com certeza já foi decidido, num certo sentido ele foi mesmo "antes de todos os mundos". Mas uma das coisas tomadas em consideração ao decidi-lo, e portanto uma das coisas que realmente fazem com que aconteça, pode ser justamente essa oração que estamos oferecendo. Assim, por mais chocante que pareça, concluo que ao meio-dia podemos tornar-nos causas parciais de um evento ocorrendo às dez da manhã. (Alguns cientistas achariam isto mais fácil do que pensa o povo.) A imaginação irá sem dúvida tentar pregarnos toda sorte de peças neste ponto. Ela perguntará: "Então se eu deixar de orar a Deus, Ele poderá o que já aconteceu?" Não O acontecimento já se realizou e uma de suas causas foi o fato de você estar fazendo tais perguntas em vez de orar. Ela perguntará: "Então se eu começar a orar, Deus retrocederá, alterando o que já aconteceu?" Não. O evento já ocorreu e uma de suas causas é a sua oração de agora. Assim sendo, algo depende realmente de minha decisão. Meu ato voluntário contribui para a forma cósmica. Essa contribuição é feita na eternidade ou "antes de todos os mundos"; mas minha consciência de contribuir me alcança num ponto particular na série do tempo.

 

A seguinte pergunta pode ser feita: Se podemos orar racionalmente por um evento que deve de fato ter acontecido ou deixado de acontecer várias horas atrás, por que não podemos orar por um acontecimento que sabemos não ter acontecido? Por exemplo, orar pela segurança de alguém que, como sabemos, foi morto ontem. O que faz a diferença é precisamente o nosso conhecimento. O evento conhecido declara a vontade de Deus. E psicologicamente impossível orar por aquilo que sabemos ser inatingível; e se fosse possível, a oração seria um pecado contra o dever de submeternos à vontade de Deus conhecida.

 

Resta ainda uma conseqüência a ser concluída. Nunca é possível provar empiricamente que um determinado acontecimento, não milagroso, foi ou não uma resposta à oração. Sendo não milagroso, o cético pode sempre apontar para as suas causas naturais e dizer: "Por causa disso ele teria acontecido de qualquer modo", e o crente pode sempre responder: "Mas por terem sido apenas elos numa cadeia de acontecimentos, dependendo de outros elos, e a cadeia inteira dependendo da vontade dc Deus, eles podem ter ocorrido porque alguém orou". A eficácia da oração, portanto, não pode ser confirmada ou negada sem um exercício da vontade  aceitando ou rejeitando a fé à luz de toda uma filosofia. A evidência experimental não existe de lado algum. Na seqüência M.N.O., o evento N, a não ser que se trata de um milagre, é sempre causado por M e causa O; mas a verdadeira questão é se a série total (digamos AZ) se origina ou não numa vontade que pode tomar as orações humanas em consideração.

 

Esta impossibilidade da prova empírica é uma necessidade espiritual. O homem que soubesse empiricamente que um evento tinha sido causado pela sua ação, sentir-se-ia como um mágico. Sua cabeça ficaria virada e seu coração se corromperia. O cristão não deve perguntar se este ou aquele acontecimento ocorreu em resposta a uma oração. Ele deve, porém, crer que todos os eventos, sem exceção, são respostas à oração, no sentido de que quer sejam atendidas ou recusadas, as orações de todas as pessoas envolvidas e suas necessidades foram tomadas em consideração. Todas as orações são ouvidas, mas nem todas atendidas. Não devemos imaginar o destino como um filme desenrolando-se em sua maior parte por si mesmo, mas no qual nossas orações podem às vezes inserir elementos adicionais. Pelo contrário, o que o filme exibe para nós, enquanto se desenrola, contém os resultados de nossas orações e de todos os demais atos que praticamos. Não se trata de um evento ter ocorrido por causa da sua oração. Quando o evento pelo qual você orou ocorre, sua oração sempre contribuiu para ele. Quando o evento oposto ocorre, sua oração não foi ignorada, mas considerada e recusada, para o seu bem final e para o bem de todo o universo. (Por exemplo, em última análise, pode ser melhor para você e para todos, que outras pessoas, inclusive as perversas, exerçam livre arbítrio; em vez de proteger você da crueldade e da traição, transformando os seres humanos em uma raça de autômatos.) Mas isto é uma questão de fé e deve permanecer nessa conformidade. Segundo penso, você irá apenas enganar-se se tentar descobrir uma evidência especial para ela em alguns casos, mais do que em outros.

 

                                                                                            C. S. Lewis

 

 

                      

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