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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MILHA 81 / Stephen King
MILHA 81 / Stephen King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

— VOCÊ NÃO PODE IR — anunciou o irmão mais velho.

George falou baixinho, apesar de os amigos — um grupo de garotos de 12, 13 anos do bairro que se autobatizaram de Piratas Fodões — estarem esperando por ele no fim do quarteirão. Já sem muita paciência.

— É perigoso demais.

— Eu não tenho medo — disse Pete, a dose certa de coragem na voz, mas, no fundo, com medo. Um pouco.

George e os amigos iriam até o areeiro que ficava atrás do boliche. Lá brincariam de uma coisa que Normie Therriault tinha inventado. Normie era o líder dos Piratas Fodões, e o nome da brincadeira era Paraquedistas do Inferno. Uma pista esburacada levava até a beira da cascalheira e o desafio era percorrer esse caminho de bicicleta a toda velocidade gritando “Os piratas detonam!” o mais alto que desse e ficar de pé na hora do salto. A queda normalmente acontecia uns três metros adiante, e a área de aterrissagem oficial era macia, só que, mais cedo ou mais tarde, alguém acabaria caindo no cascalho em vez de na areia e provavelmente quebraria o braço ou o tornozelo. Até Pete sabia disso (mas até que entendia por que isso só fazia aumentar o interesse pela coisa). Aí os pais descobririam tudo e seria o fim dos Paraquedistas do Inferno. Mas, por enquanto, a brincadeira — realizada sem capacete, óbvio — continuava.

George não era bobo de deixar o irmão participar; sua obrigação era tomar conta de Pete enquanto os pais estavam no trabalho. Se Pete destruísse sua Huffy na cascalheira, George ficaria de castigo, no barato, uma semana. Se o irmãozinho quebrasse o braço, o castigo duraria um mês. E se — Deus o livre! — fosse o pescoço, George calculou que veria os dias passarem de dentro do quarto até entrar para a faculdade.

E, além do mais, ele amava aquele pestinha.

 

 

 

 

— Brinca por aqui — disse George. — A gente vai voltar daqui a umas duas horas.

 

— Brincar com quem? — perguntou Pete, irritado.

 

Esse era o período de férias da primavera, e todos os seus amigos, aqueles que sua mãe teria chamado de “adequados para sua faixa etária”, pareciam estar bem longe dali. Alguns viajaram para a Disney, em Orlando, e, quando Pete pensou nisso, seu coração se encheu de ciúme e inveja — uma bebida repugnante, mas estranhamente saborosa.

 

— Brinca por aí — respondeu George. — Vai até a loja, sei lá. — Ele catou no bolso duas notas de um dólar amassadas. — Toma uns trocados.

 

Pete olhou para as notas.

 

— Nossa! Vou comprar um Corvette. Ou dois, quem sabe.

 

— Anda logo, Simmons, senão a gente vai sem você! — gritou Normie.

 

— Tô indo! — gritou George em resposta. Depois, baixinho, para Pete: — Pega a grana e deixa de ser um pé no saco.

 

Pete pegou o dinheiro.

 

— Eu trouxe até a minha lupa — argumentou ele. — Eu ia mostrar...

 

— Todo mundo já viu esse truque idiota mil vezes — interrompeu George, mas, ao reparar nos cantos da boca de Pete curvando para baixo, tentou pegar mais leve. — Além do mais, olha pro céu, mané. Não dá pra fazer fogo com lupa em dia nublado. Fica aí. A gente joga Batalha Naval no computador ou outra coisa assim quando eu voltar.

 

— Então tá, seu merdinha, té mais! — gritou Normie.

 

— Tenho que ir — disse George. — Não se mete em nenhuma encrenca, por favor. Fica aqui pelo bairro.

 

— Você vai acabar quebrando a espinha e virar um merda de um paralítico pro resto da vida — disse Pete... e, então, mais que depressa, cuspiu entre os dedos em V para evitar que a praga pegasse. — Boa sorte! — gritou por trás do irmão. — Salta mais longe que eles!

 

George acenou com a mão para indicar que ouviu, mas não olhou para trás. Pedalou em pé na sua bicicleta, uma boa e velha Schwinn pela qual Pete babava, mas que não conseguia guiar (ele tinha tentado andar nela uma vez, mas tombou no meio da entrada de veículos da casa). Pete ficou olhando o irmão aumentar a velocidade enquanto avançava por aquele quarteirão da área residencial de Auburn, alcançando seus “manos”.

 

Com isso, Pete ficou sozinho.

 

Tirou a lupa do alforje e segurou-a acima do antebraço, mas não captou nenhum foco de luz, nem sentiu quentura alguma. Ergueu um olhar desanimado para as nuvens baixas e guardou a lupa. Era uma das boas, uma Richforth. Fora seu presente no último Natal, para ajudá-lo no projeto de Ciências do viveiro de formigas.

 

“Isso vai acabar na garagem juntando poeira”, dissera o pai.

 

Mas, embora o projeto do viveiro de formigas tivesse sido concluído em fevereiro (ele e seu colega de grupo, Tammy Witham, tiraram A), Pete ainda não havia se cansado da lupa. O que mais gostava de fazer era abrir buracos em pedaços de papel, queimando-os, no quintal.

 

Mas hoje, não. Hoje, a tarde se estendia a perder de vista como um deserto. Ele podia ir para casa e ver televisão, mas seu pai havia bloqueado todos os canais maneiros ao descobrir que George vinha gravando Boardwalk Empire: O império do contrabando, uma série cheia de gângsteres e peitos de fora. Havia um bloqueio parecido no computador de Pete, que ainda não tinha descoberto um jeito de se livrar dele, mas descobriria; era só questão de tempo.

 

E agora?

 

— E agora, o quê? — perguntou, baixinho, e começou a pedalar lentamente pela Rua Murphy. — E agora... o quê... porra?

 

Pequeno demais para brincar de Paraquedistas do Inferno porque era muito perigoso. Que saco. Quem dera ele conseguisse pensar em alguma coisa que pudesse provar ao George, ao Normie e a todos os Piratas que até garotos menores eram capazes de enfrentar peri...

 

Foi aí que teve uma ideia. Ele poderia explorar a parada de beira de estrada abandonada. Pete não acreditava que os maiores soubessem da existência dela porque foi um menino da idade de Pete, Craig Gagnon, que lhe contou sobre o lugar. Ele falou que tinha estado lá com dois outros garotos, de 10 anos, no outono anterior. É claro que a coisa toda pode ter sido uma grande mentira, mas Pete não achava que fosse. Craig tinha descrito tudo nos mínimos detalhes, e ele não era um menino muito criativo.

 

Com um destino em mente, Pete passou a pedalar mais rápido. No fim da Rua Murphy dobrou à esquerda, entrando na Rua Jacinto. Não havia ninguém na calçada e nenhum carro. Ele ouviu o ruído de um aspirador de pó na casa dos Rossignol, mas, tirando isso, todo mundo podia muito bem ou estar dormindo ou morto. Pete presumiu que estivessem no trabalho, na verdade, como seus pais.

 

Dobrou à direita na Rosewood Terrace, passando pela placa amarela em que se lia RUA SEM SAÍDA. Só havia mais ou menos umas dez casas na Rosewood, e uma cerca de tela de arame no fim dela. Do outro lado da cerca, um emaranhado de árvores de crescimento secundário e pouca folhagem, que mais pareciam arbustos. Quando Pete se aproximou da cerca (e da placa presa a ela indicando SENTIDO PROIBIDO, sem a menor necessidade), não pedalou mais e deixou a bicicleta deslizar até parar.

 

Ele tinha a noção — vaga — de que embora visse George e seus amigos Piratas como os Garotos Grandes (e com certeza era isso que os Piratas se consideravam), eles não eram os Grandes de verdade. Os Grandes mesmo eram os adolescentes barra-pesada que tinham carteira de motorista e namorada. Os Grandes de verdade estavam no ensino médio. Gostavam de beber, fumar maconha, ouvir heavy metal ou hip-hop e dar uns amassos nas namoradas.

 

Daí, a parada de beira de estrada abandonada.

 

Pete saltou de sua Huffy e olhou em volta para ver se estava sendo vigiado. Não havia ninguém lá. Nem os Crosskill, aqueles gêmeos irritantes que tinham mania de pular corda (em conjunto) pelo bairro todo quando não era dia de aula, deram o ar da graça. Para Pete, um milagre tão impressionante quanto um cu careca.

 

Pete podia ouvir o vrum-vrum-vrum constante dos carros na I-95, a uma distância não muito grande dali, seguindo para Portland, ao sul, ou para Augusta, ao norte.

 

Mesmo que Craig estivesse falando a verdade, alguém deve ter consertado a cerca, pensou Pete. É o que tá parecendo.

 

Mas, quando inclinou o tronco mais para perto, pôde ver que, embora a cerca parecesse inteira, na verdade não estava. Alguém (talvez um dos Grandes que a essa altura já devia ter se juntado às fileiras dos Jovens Adultos) havia cortado a cerca de cima a baixo em linha reta. Pete deu mais uma olhada em volta, entrelaçou os dedos nos losangos de metal e empurrou, imaginando que sentiria alguma resistência, mas não. O pedaço de cerca cortada se abriu como uma porteira de fazenda. Os Grandes de Verdade vinham usando aquela passagem à vera. Toma.

 

Pensando bem, fazia todo sentido. Eles até podiam ter carteira de motorista, mas agora a entrada e a saída da parada da Milha 81 estavam bloqueadas por aqueles enormes cones cor de laranja que o pessoal da manutenção da estrada usava. Mato crescia pelas rachaduras no asfalto do estacionamento deserto. Pete tinha visto aquilo milhares de vezes, porque o ônibus da escola pegava a I-95 para passar pelas três saídas entre a Laurelwood, onde o buscavam, e a Rua Sabattus, na qual ficava a Escola Primária Auburn III.

 

Ele se lembrava de quando tudo na parada ainda funcionava. Tinha um posto de gasolina, um Burger King, uma loja de frozen yogurt e uma pizzaria. Então um dia foi desativada. O pai de Pete disse que havia muitos desses postos de serviços naquela rodovia e que o Estado não tinha condições financeiras de manter todos em funcionamento.

 

Pete passou pela abertura na cerca empurrando a bicicleta e fechou o portão improvisado com cuidado, até encaixar os losangos e a cerca parecer inteira de novo. Andou até a parede de arbustos, tomando cuidado para não passar com o pneu da Huffy em cima de nenhum vidro quebrado (a quantidade de vidro quebrado daquele lado da cerca era enorme). E começou a procurar o que sabia que tinha de estar em algum lugar; a cerca cortada era um indício.

 

E lá estava, evidenciado por guimbas de cigarro pisoteadas e algumas garrafas vazias de cerveja e refrigerante: um caminho que se embrenhava pelo meio do mato. Ainda empurrando a bicicleta, Pete seguiu por esse caminho. Os arbustos altos o engoliram. Atrás dele, a Rosewood Terrace ficou esquecida em mais um dia nublado de primavera.

 

Era como se Pete Simmons nunca tivesse estado ali.

 

Pelos seus cálculos, o caminho entre a cerca e a parada da Milha 81 tinha uns 800 metros, e os Grandes haviam deixado no trajeto várias pistas de sua presença: meia dúzia de vidrinhos marrons (dois com colheres de cocaína ainda amarradas neles e cobertas com meleca endurecida), sacos de batatas fritas vazios, uma calcinha de renda pendurada num arbusto de espinheiro (para Pete, pareceu que estava ali havia muito tempo, tipo uns 50 anos, talvez), e — a sorte grande! — uma garrafa com vodca Popov até a metade, ainda com a tampa de rosca. Após um debate silencioso, Pete enfiou a garrafa no alforje juntamente com a lupa, a última edição de Vampiro Americano e alguns biscoitos Oreo de recheio duplo armazenados em um saquinho.

 

Empurrou a bicicleta atravessando um córrego minguado e, na mosca!, chegou aos fundos da parada. Lá havia outra cerca de tela de arame, mas essa também estava cortada e Pete entrou direto. O caminho continuava pelo mato alto até o estacionamento nos fundos, onde, imaginou, os caminhões de entrega costumavam encostar. Perto do prédio, viu retângulos mais escuros no chão, onde ficavam as lixeiras. Pete baixou o descanso de sua Huffy e estacionou-a em cima de um deles.

 

O coração batia acelerado enquanto pensava no que viria depois. Arrombamento e invasão, meu querido. Você pode acabar na cadeia por isso. Mas seria arrombamento e invasão se ele encontrasse uma porta aberta ou uma tábua solta em uma das janelas? Deduziu que até poderia se tratar de invasão, mas invadir por si só era crime?

 

No fundo sabia que era, mas calculou que, sem a parte do arrombamento, não existiria motivo suficiente para que fosse preso. E, no fim das contas, ele não tinha ido ali para se arriscar? Para depois ter com o que tirar onda para cima do Normie, do George e dos outros Piratas Fodões?

 

E, ok, ele estava com medo, mas pelo menos não mais entediado.

 

Pete tentou abrir a porta na qual havia uma placa desbotada em que se lia SOMENTE FUNCIONÁRIOS, e encontrou-a não só trancada, mas bem-trancada — não cedeu um milímetro sequer. Havia duas janelas ao lado da porta, mas Pete percebeu, só de olhar, que estavam totalmente lacradas. De repente se lembrou da cerca de tela de arame que pareceu inteira, quando não estava, e tentou tirar as tábuas mesmo assim. Nada feito. Por um lado, foi um alívio. Não se meteria em nenhuma encrenca, se não quisesse.

 

Só que... Os Grandes de Verdade iam ali. Ele tinha certeza. Então, como entravam? Pela frente? De cara para a rodovia? Até podia ser, se viessem à noite, mas Pete não tinha a menor intenção de pagar para ver em plena luz do dia. Não quando qualquer motorista que passasse por lá com um celular poderia ligar para o 911 e dizer: “Achei que vocês iam gostar de saber que tem um moleque dando uma de Zé Bedelho na parada de beira de estrada da Milha 81. Sabe ali, onde ficava o Burger King?”

 

Prefiro quebrar o braço brincando de Paraquedistas do Inferno a ter que ligar pros meus pais do Quartel da Polícia Militar de Gray. Pra falar a verdade, prefiro quebrar os dois braços e prender o pau no zíper.

 

Bem, talvez isso não.

 

Ele andou até a doca de carga e descarga, e lá, mais uma vez: a sorte grande. Havia dezenas de guimbas de cigarro amassadas ao pé da ilha de concreto, além de mais alguns daqueles vidrinhos marrons dispostos ao redor do rei de todos: um vidro escuro de xarope Vick. A superfície da doca, onde enormes caminhões semirreboques encostavam de ré para descarregar, ficava na altura dos olhos de Pete, mas o cimento estava todo rachado e havia uma quantidade suficiente de pontos de apoio para um garoto ágil com um par de tênis All Star de cano alto nos pés. Pete levantou os braços, enfiou os dedos nas reentrâncias da superfície cheia de fendas da doca... e o resto, como se diz, é história.

 

Na doca, com uma tinta vermelha já esmaecida, alguém tinha pichado EDWARD LITTLE ARRASA, OS EDDIES VERMELHOS DETONAM. Nada disso, pensou Pete. Os Piratas Fodões detonam. Então olhou em volta, de sua posição elevada, sorriu e falou: “Na verdade, eu detono.” E, dali de cima, vendo toda a área vazia nos fundos da parada, teve a sensação de que detonava mesmo. Por ora, pelo menos.

 

Pete desceu da doca — só para ter certeza de que não era nada complicado — e foi aí que se lembrou das coisas no alforje. Provisões, caso resolvesse passar a tarde toda ali, explorando e tal. Ficou na dúvida sobre o que levar e acabou decidindo levar o alforje inteiro. Até a lupa poderia vir a ser útil. Uma cena fantasiosa começou a se formar em sua mente: garoto detetive descobre vítima de assassinato em parada de beira de estrada deserta e soluciona o mistério antes mesmo de a polícia tomar conhecimento do crime. Ele até podia se ver explicando aos Piratas boquiabertos que tinha sido bem fácil, na verdade. Elementar, meus caros manés.

 

Não ia rolar, claro, mas seria divertido fazer de conta.

 

Ele levantou a bolsa e colocou-a na doca (com um cuidado especial por causa da garrafa com vodca até a metade), escalando-a de novo. A porta de acesso, de aço corrugado, tinha pelo menos uns 3,5m de altura e estava trancada na base com não apenas um, mas dois cadeados gigantescos; só que, no meio dela, havia uma porta menor, da altura de uma pessoa. Pete tentou girar a maçaneta. Nada aconteceu. Nem a porta pequena se abriu quando ele a empurrou e puxou, mas cedeu um pouco. Muito, na verdade. Pete olhou para baixo e viu que um calço de madeira havia sido colocado na base dela; uma precaução totalmente boçal. Mas, pensando bem, o que se poderia esperar de uns caras cheios de cocaína e xarope nas ideias?

 

Pete puxou o calço e, dessa vez, quando tentou abrir a porta menor, ela se escancarou com um rangido.

 

As enormes janelas da frente do que um dia fora o Burger King estavam cobertas com telas de arame em vez de tábuas, por isso Pete não teve dificuldade em enxergar o que tinha lá dentro. Todas as mesas, cadeiras e bancos da parte da lanchonete haviam sido retirados, e a área da cozinha ficou reduzida a um buraco escuro com fios saindo das paredes e algumas placas de revestimento de teto penduradas, mas o lugar não estava completamente desprovido de móveis.

 

No meio, rodeadas de cadeiras dobráveis, havia duas mesas de jogos antigas que alguém juntara. Nessa superfície ampla estavam meia dúzia de cinzeiros de lata, várias cartas de baralho engorduradas e um porta-fichas de pôquer. As paredes eram decoradas com uns 20 ou 30 encartes de revista. Pete analisou os encartes com bastante interesse. Ele conhecia xoxotas, tinha visto algumas delas de relance na HBO e no CinemaSpank (antes de seus pais terem ficado espertos e bloqueado os canais premium da TV a cabo), mas essas eram xoxotas depiladas. Pete não sabia direito o que tinha de tão interessante naquilo — na sua opinião, pareciam meio nojentas — mas imaginou que iria se acostumar com elas quando ficasse mais velho. Além do mais, os peitos de fora compensavam tudo. Peitos de fora eram do caralho.

 

No canto havia três colchões imundos que alguém unira, como as mesas de jogos, mas Pete tinha idade suficiente para saber que não era de pôquer que eles brincavam ali.

 

— Deixa eu ver essa xoxota! — ele ordenou para uma das garotas da revista Hustler presas na parede e riu. Depois falou: — Deixa eu ver essa xoxota depilada! — e riu mais ainda.

 

Ele meio que desejou que Craig Gagnon estivesse lá, mesmo Craig sendo um nerd. Eles poderiam ter rido juntos das xoxotas depiladas.

 

Pete começou a circular por ali, ainda dando risadinhas entremeadas por ruídos nasais involuntários, soando como um porco. O ambiente era úmido, mas não frio. A pior parte era o cheiro, uma mistura de fumaça de cigarro, fumaça de maconha, bebida velha e parede sendo tomada pelo mofo. Pete também teve a impressão de estar sentindo cheiro de carne podre. Provavelmente de sanduíches comprados no Rosselli’s ou no Subway.

 

Pendurado na parede ao lado do balcão, onde as pessoas um dia pediram seus Whoppers e Whalers, Pete achou outro pôster. Esse era do Justin Bieber. Os dentes do Justin haviam sido pintados de preto e alguém tinha feito a tatuagem de uma suástica nazista em uma de suas bochechas. Chifres de diabo desenhados com tinta vermelha brotavam da franja do Justin. Dardos se projetavam de seu rosto. Escritos com caneta hidrocor na parede acima do pôster estavam BOCA 15 PTS, NARIZ 25 PTS, OLHOS 30 PTS KDA.

 

Pete desprendeu os dardos do pôster e recuou pelo enorme salão vazio até chegar a uma marca preta no chão, onde alguém tinha escrito LINHA DE BEEBER. Pete se posicionou atrás dela e atirou os seis dardos umas dez ou 12 vezes. Na última rodada, fez 125 pontos. Achou o resultado bem bom. Imaginou George e Normie Therriault batendo palmas.

 

Pete foi até uma das janelas teladas e ficou olhando para as ilhas de concreto vazias, onde ficavam as bombas de gasolina, e para o tráfego além delas. Pouco tráfego. Calculou que, quando chegasse o verão, ficaria tudo engarrafado de novo, cheio de turistas e veranistas, exceto se o pai estivesse certo e o preço da gasolina fosse aumentar para quase dois dólares por litro, o que faria todo mundo ficar em casa.

 

E agora? Ele já tinha jogado dardos, visto uma quantidade suficiente de xoxotas para... bem, talvez não para uma vida inteira, mas pelo menos para alguns meses, e não havia nenhum assassinato a ser desvendado; então, o que fazer?

 

Vodca, resolveu. Esse seria o próximo passo. Tomaria alguns goles, só para provar que podia, e assim as tirações de onda futuras estariam providas do toque necessário de verdade. Depois, pensou, juntaria suas tralhas e voltaria para a Rua Murphy. Daria o melhor de si para fazer com que essa aventura soasse interessante — emocionante até — mas, na verdade, o lugar não era lá essas coisas. Só um canto aonde os Grandes de Verdade podiam ir e jogar pôquer, transar com as garotas e não se molhar em dia de chuva.

 

Mas goró... isso sim eram outros quinhentos.

 

Ele levou o alforje até os colchões e se sentou (tomando cuidado para não encostar nas manchas, que eram muitas). Pegou a garrafa de vodca e analisou-a com um certo fascínio, mas com o pé atrás. Aos 10 anos, quase 11, Pete não nutria nenhum desejo ardente de experimentar os prazeres da vida adulta. No ano anterior, pegara escondido um dos cigarros do avô, que fumara atrás da loja da 7-Eleven. Fumou só até metade, na verdade. Em seguida dobrou o corpo para a frente e vomitou o almoço entre os tênis. Acabou aprendendo algo interessante, mas não muito relevante naquele dia: a aparência do feijão com salsicha não era muito boa na hora de botar a comida para dentro, mas pelo menos o gosto era bom. Só que, quando saía pela boca, a aparência era uma merda de horrível e o gosto era pior ainda.

 

A rejeição instantânea e categórica de seu corpo àquele cigarro sugeria que não seria muito melhor com a bebida, e talvez fosse pior. Mas se ele não bebesse nem um pouquinho, qualquer tiração de onda acabaria sendo uma farsa. E seu irmão George tinha um radar para mentiras, pelo menos quando se tratava de Pete.

 

Eu devo acabar vomitando de novo, pensou, e então falou:

 

— O bom é que não vou ser o primeiro a fazer isso neste chiqueiro.

 

O que fez com que risse de novo. E ainda ria quando abriu a tampa e levou a boca da garrafa ao nariz. Sentiu algum cheiro, mas fraco. Talvez fosse água em vez de vodca, e o cheiro, só um resquício. Levou a garrafa à boca, meio que esperando que fosse esse o caso, e meio que não. Ele não tinha grandes expectativas e com certeza não queria se embebedar e, sei lá, quebrar o pescoço tentando descer da doca, mas estava curioso. Seus pais adoravam essa coisa.

 

— Quem duvida vai primeiro — disse ele, sem mais nem por quê, e tomou um golinho.

 

Ficou claro que não era água. Parecia um óleo ralo e quente. Pete engoliu o líquido tomado pelo espanto. A vodca desceu queimando pela garganta e explodiu no estômago.

 

— Chessuz! — gritou Pete.

 

Lágrimas brotaram em seus olhos. Ele esticou o braço, mantendo a garrafa a distância, como se o tivesse mordido. Mas a ardência no estômago já diminuía e ele se sentiu relativamente bem. Não estava bêbado e também não parecia que ia vomitar.

 

Deu mais um golinho, agora que sabia o que esperar. Quentura na boca... queimação na garganta... e, depois, explosão no estômago.

 

Nada mal, na verdade. Pete começou a sentir um entorpecimento nos braços e nas mãos. E parecia que no pescoço também. Não a sensação de formigamento que se tem quando a perna ou o braço ficam dormentes; era mais como algo que voltava à vida.

 

Pete levou a garrafa aos lábios de novo e, em seguida, baixou-a. Havia algo mais com que se preocupar além de cair da doca ou sofrer um acidente com a bicicleta a caminho de casa (por um instante ele se perguntou se alguém podia ser preso por andar de bicicleta bêbado, e supôs que sim). Tomar alguns goles de vodca para tirar onda com os outros era uma coisa, mas se bebesse uma quantidade que o deixasse de porre, a mãe e o pai descobririam tudo assim que chegassem do trabalho. Só de bater o olho nele. Tentar fingir que estava sóbrio não ajudaria. Seus pais bebiam, os amigos deles bebiam, e, às vezes, demais da conta. Eles reconheceriam os sinais.

 

Além disso, também precisava considerar a temida RESSACA. Pete e George tinham visto a mãe e o pai se arrastando pela casa com os olhos vermelhos e o rosto pálido em vários sábados e domingos de manhã. Tomavam suplementos vitamínicos, pediam para baixar o volume da televisão, e música era terminantemente verboten. RESSACA parecia ser o antônimo de diversão.

 

Ainda assim, um golinho a mais talvez não fosse fazer mal.

 

Pete deu um gole um tiquinho maior e gritou:

 

— Zum! A nave decolou!

 

Isso o fez gargalhar. Estava meio alto, mas aquela era uma sensação extremamente gostosa. Ele não conseguia entender a graça do cigarro. Da bebida, achava que sim.

 

Pete pôs-se de pé, cambaleou um pouco, recobrou o equilíbrio e riu mais.

 

— Pulem naquela merda de areeiro o quanto quiserem, meus queridos — disse para a lanchonete vazia. — Eu tô de porre, e ficar de porre é muito melhor.

 

Isso foi tão engraçado que ele riu de se acabar.

 

Será que estou mesmo de porre? Depois de três goles?

 

Achava que não, mas com certeza estava alto.

 

Chega. Tudo tem limite.

 

— Beba com responsabilidade — disse para a lanchonete vazia, e bufou.

 

Ficaria ali mais um tempo esperando passar. Uma hora seria suficiente, talvez duas. Até as três da tarde, de repente. Não tinha relógio, mas saberia quando fossem três horas por causa do sino da Igreja de São José, que ficava a apenas 1,5km dali, mais ou menos. Então iria embora, primeiro escondendo a vodca (para possíveis incursões futuras) e depois recolocando o calço na porta. Sua primeira parada ao voltar a seu bairro seria a 7-Eleven, onde compraria um daqueles chicletes bem fortes de canela para tirar o bafo do goró. Já tinha ouvido alguns garotos dizerem que vodca era a bebida certa para ser surrupiada do bar dos pais porque não tinha cheiro, mas Pete era um garoto mais esperto agora que há uma hora.

 

— Além disso — falou para a lanchonete oca, em tom professoral —, aposto que meus olhos estão vermelhos, igual a como os do papai ficam depois que ele toma um porrão de dry martini.

 

Fez uma pausa. Porrão não é a palavra, mas que diabos.

 

Juntou os dardos, voltou para a Linha de Beeber e lançou-os. Errou todos menos um, e isso pareceu a Pete a coisa mais hilária do mundo. Ao recolher os dardos, cantou algumas frases de Baby, a faixa mais tocada de Justin no ano anterior. Ficou tentando imaginar se Justin conseguiria fazer sucesso com uma música chamada Minha namorada depila a xoxota, e achou isso tão engraçado que riu até dobrar o corpo, apoiando as mãos nos joelhos.

 

Quando parou com as risadas, limpou as melecas que escorriam do nariz, lançou-as no chão (e lá se vai sua classificação de lanchonete altamente recomendável, pensou; foi mal, Burger King) e foi se arrastando de novo até a Linha de Beeber. Teve menos sorte ainda na segunda rodada. Não via tudo em dobro nem nada, só não conseguia acertar o Beeb.

 

Estava um pouco enjoado, no fim das contas. Não muito, mas ficou aliviado por não ter tomado o quarto gole.

 

— Eu teria detonado o meu Popov — falou.

 

Pete gargalhou e soltou um arroto bem alto que subiu queimando. Eca. Deixou os dardos onde estavam e voltou para os colchões. Pensou em usar a lupa para ver se havia algum ser minúsculo rastejando por ali, mas decidiu que era melhor não saber. Considerou comer alguns biscoitos Oreo, mas teve medo do que poderiam fazer com seu estômago, que estava, convenhamos, um tanto sensível.

 

Pete se deitou e entrelaçou os dedos atrás da cabeça. Ele tinha ouvido dizer que, quando se fica bêbado mesmo, tudo começa a rodar. Nada parecido estava acontecendo com ele, mas uma soneca não faria mal. Dormir até passar o efeito, essa era a ideia.

 

— Mas não por muito tempo.

 

Não. Não por muito tempo. Isso não seria nada legal. Se não estivesse em casa quando os pais chegassem do trabalho, e se não conseguissem encontrá-lo, ficaria encrencado. E era provável que George também, por ter saído sem ele. A pergunta era: será que conseguiria acordar quando os sinos da Igreja de São José tocassem?

 

Pete se deu conta, em seus últimos segundos de consciência, de que teria de simplesmente torcer para que sim. Porque já caía no sono.

 

Fechou os olhos.

 

E dormiu na lanchonete deserta.

 

Do lado de fora, na pista da I-95 sentido sul, uma perua de marca e ano indeterminados surgiu. Viajava a uma velocidade bem mais baixa que a mínima indicada para a rodovia. Um caminhão semirreboque viajando acelerado apareceu atrás dela e abriu para a esquerda a fim de ultrapassá-la, apertando a buzina de ar comprimido.

 

A perua, já quase só no embalo, pegou a entrada para a parada de beira de estrada, ignorando a enorme placa em que se lia FECHADO NENHUM SERVIÇO PRÓXIMO POSTO DE GASOLINA E LANCHONETE A 40KM. Atropelou quatro dos cones cor de laranja do bloqueio da pista, que saíram rolando, e parou a uns 60 metros do prédio de lanchonetes abandonado. A porta do motorista se abriu, mas ninguém saiu do carro. O veículo não disparou nenhum alerta sonoro automático do tipo “ei, mané, sua porta está aberta”. Ela só ficou silenciosamente entreaberta.

 

Se Pete Simmons estivesse vendo aquilo em vez de dormindo, não teria sido capaz de enxergar o motorista. A perua estava coberta de lama e o para-brisa, todo sujo. O que era estranho, porque fazia mais de uma semana que não chovia na região norte da Nova Inglaterra e a rodovia estava totalmente seca.

 

O carro ficou parado lá, no comecinho da rampa, sob o céu nublado de abril. Os cones que ele havia atropelado pararam de rolar. E a porta do motorista permaneceu aberta, convidativa.

 

DOUG CLAYTON ERA UM CORRETOR de seguros de Bangor que seguia para Portland, onde tinha uma reserva no Hotel Sheraton. Seu plano era chegar lá no máximo às 14h, quando teria tempo de sobra para uma soneca vespertina (um luxo que raramente podia se dar) antes de sair para jantar em algum restaurante da Rua do Congresso. No dia seguinte, bem cedo, ele se apresentaria no Centro de Convenções de Portland, pegaria seu crachá de identificação e se juntaria a 400 outros corretores numa convenção intitulada Incêndio, Tempestade e Enchente: Fazendo Seguro Contra Desastres Naturais no Século XXI. Ao passar pela placa indicando a Milha 82, Doug se aproximava de seu desastre pessoal, mas não seria nada que a Convenção de Portland fosse capaz de cobrir.

 

A pasta e a mala estavam no banco de trás. No assento do carona havia uma Bíblia (versão do rei James; ele não usaria outra). Doug era um dos quatro pregadores leigos da Igreja do Santíssimo Redentor, e, quando chegava sua vez de pregar, gostava de chamar sua Bíblia de “o melhor manual de seguros que existe”.

 

Doug tinha adotado Jesus Cristo como seu salvador pessoal depois de dez anos de bebedeiras que duraram do fim da adolescência até os 20 e muitos anos. Essa farra de uma década terminou com um carro destruído e 30 dias na prisão do condado de Penobscot. Em sua primeira noite de cadeia, ele se ajoelhara em prece naquela cela fedorenta do tamanho de um caixão, e repetiu isso todas as noites desde então.

 

— Me ajude a melhorar — suplicou aquela primeira vez, e todas as vezes a partir desse dia.

 

Uma prece simples que fora atendida duas vezes, no início, depois dez vezes, e, em seguida, centenas de vezes. Ele imaginava que, em alguns anos, chegaria aos milhares de vezes. E o melhor de tudo? O Paraíso esperava no fim do caminho.

 

Sua Bíblia estava cheia de orelhas porque Doug a lia diariamente. Adorava todas as histórias, mas a que amava mais — aquela sobre a qual refletia com maior frequência — era a parábola do Bom Samaritano. Lera essa passagem do Evangelho de Lucas várias vezes em suas pregações, e o pessoal da paróquia do Redentor foi sempre muito generoso com os elogios que faziam depois, Deus os abençoe.

 

Doug supunha que fosse porque a história lhe era extremamente pessoal. Um sacerdote havia passado ao largo de um viajante que fora assaltado e espancado e estava deitado na beira da estrada; um levita fez o mesmo. E quem aparece depois? Um danado de um samaritano antissemita. Mas é esse quem oferece ajuda, antissemita ou não. Ele lava as feridas e os cortes do viajante, e depois os enfaixa. Põe o viajante no lombo de seu burro e arruma um quarto para ele na estalagem mais próxima.

 

— Qual desses três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes? —, pergunta Jesus ao jovem advogado figurão que havia perguntado o que precisava fazer para herdar a vida eterna.

 

E o figurão, que não era burro nem nada, responde:

 

— O que teve misericórdia para com ele.

 

Se Doug Clayton tinha horror a alguma coisa, era de ser como o levita na história. De negar ajuda a um necessitado. De passar ao largo. Por isso, quando viu a perua enlameada estacionada no começo da rampa de entrada da parada deserta — os cones cor de laranja da barreira derrubados à frente, a porta do motorista entreaberta —, só hesitou um instante antes de ligar a seta e encostar o carro.

 

Estacionou atrás da perua, ligou o pisca-alerta e começou a sair do veículo. Foi aí que reparou que parecia não haver placa no para-choque traseiro da perua... mas a lama era tanta que ficava difícil dizer ao certo. Doug pegou o celular do console central do Prius e conferiu para ver se estava ligado. Ser um bom samaritano era uma coisa; chegar perto de um maldito de um carro sem placa e não tomar certas precauções era simplesmente burrice.

 

Andou em direção à perua segurando frouxamente o telefone com a mão esquerda. Nada de placa, estava certo quanto a isso. Tentou espiar pelo para-brisa traseiro, mas não viu nada. Lama demais. Andou até a porta do motorista e parou, olhando para o carro de cabo a rabo, franzindo a testa. Aquilo era um Ford ou um Chevrolet? Maldição, não dava para saber, o que era estranho, porque Doug deve ter feito o seguro de milhares de peruas em toda a sua carreira.

 

Customizada?, ele se perguntou. Bem, talvez... mas quem se daria ao trabalho de customizar uma perua de um jeito que ficasse assim tão não identificável?

 

— Oi, olá? Tá tudo bem?

 

Ele se aproximou da porta, segurando o telefone com um pouco mais de força, sem perceber. Ele se pegou lembrando de um filme que o deixara apavorado quando criança. A história de uma casa mal-assombrada. Um bando de adolescentes havia se aproximado da velha casa abandonada, e, quando um deles viu a porta entreaberta, sussurrou “Vejam, está aberta!” para os colegas. Você queria dizer a eles que não entrassem lá, mas é claro que entraram.

 

Isso é bobagem. Se tem alguém nesse carro, pode estar ferido.

 

É claro que o cara podia ter ido até a lanchonete, talvez à procura de um telefone público, mas se estivesse gravemente ferido...

 

— Olá?

 

Doug esticou a mão para a maçaneta, mas pensou melhor e curvou-se a fim de espiar pela abertura da porta. O que viu foi perturbador. O banco estava coberto de lama; assim como o painel e o volante. Um líquido denso e escuro pingava dos botões antiquados do rádio, e no volante havia marcas que não pareciam ter sido feitas por mãos, não exatamente. Para começar, as marcas das palmas eram grandes demais, e as dos dedos, da finura de lápis.

 

— Tem alguém aí? — Ele passou o celular para a mão direita e segurou a porta do motorista com a esquerda, pretendendo abri-la um pouco mais e olhar o banco traseiro. — Tem alguém feri...

 

Ele só teve tempo de registrar um fedor horroroso, e então a mão esquerda explodiu numa dor tão grande que pareceu se espalhar pelo corpo, disseminando uma ardência generalizada e preenchendo todos os seus espaços vazios com uma agonia imensa. Doug não gritou. Não conseguiu. A garganta se fechou com o choque. Ele olhou para baixo e viu que a maçaneta da porta parecia ter empalado a base da palma da sua mão.

 

Os dedos praticamente não estavam mais lá. Ele só conseguia ver os cotos, logo abaixo dos últimos nós, onde começava o dorso da mão. O restante tinha sido, de alguma forma, engolido pela porta. Enquanto Doug olhava, o dedo anelar se quebrou. A aliança caiu no chão com um tinido.

 

Ele pôde sentir algo, ai meu Deus e meu Jesus Cristo, que pareciam dentes. Mastigando. O carro comia sua mão.

 

Doug tentou puxá-la. Sangue jorrou, um pouco na porta enlameada, um pouco na calça. As gotas que atingiram a porta desapareceram imediatamente com um leve ruído de sucção: chlurp. Por um instante, ele quase se soltou. Pôde ver os ossos dos dedos reluzindo nos pedaços em que a carne havia sido sugada, e sua mente foi invadida por uma imagem breve e torturante dele mesmo se atracando com uma das asinhas de frango do Coronel Sanders. Coma tudinho antes de jogar os ossinhos fora, sua mãe costumava dizer, porque a carne mais gostosa é a que fica bem grudadinha no osso.

 

Nessa hora, ele foi puxado de novo. A porta do motorista se abriu para lhe dar boas-vindas: oi, Doug, pode entrar. A cabeça encostou na parte de cima da porta e ele sentiu um toque frio, de um lado ao outro da testa, que se transformou em quentura quando o teto da perua cortou sua pele.

 

Ele fez mais uma tentativa de se desvencilhar, deixando cair o celular e empurrando o para-brisa, que cedeu em vez de servir de apoio, e envolveu sua mão. Doug revirou os olhos e viu que o que antes parecera vidro agora se movia em ondas como um lago agitado pelo vento. E por que se movia em ondas? Porque mastigava. Porque engolia.

 

É isso que eu ganho por ser um bom sama...

 

Nessa hora, a parte de cima da porta do motorista serrou o crânio e deslizou suavemente para dentro do cérebro. Doug Clayton escutou um tec bem alto, como um nó de pinho explodindo numa fogueira ardente. E fez-se a escuridão.

 

O motorista de um caminhão de entrega rumando para o sul deu uma olhada rápida para o lado e viu um compacto verde, com o pisca-alerta ligado, estacionado atrás de uma perua coberta de lama. Um homem — presumivelmente o dono do compacto verde — parecia estar apoiado na porta da perua falando com o motorista. Enguiçou, pensou o cara do caminhão de entrega, e voltou a atenção para a estrada. Longe de ser um bom samaritano, esse.

 

Doug Clayton estava sendo sugado para dentro como se mãos — de palmas grandes e dedos finos como lápis — o tivessem agarrado pela camisa e puxado. A perua perdeu a forma e se contraiu, como faz a boca quando o gosto é azedo demais... ou doce demais. De dentro dela saíam vários ruídos de trituração simultâneos — como o barulho de um homem de botas robustas pisando firme em galhos secos. A perua ficou contraída por cerca de dez segundos, parecendo mais um punho fechado disforme que um carro. Em seguida, com um poc, o barulho igual ao de uma bola de tênis sendo rebatida com precisão por uma raquete, voltou à forma de perua num piscar de olhos.

 

O sol espreitou brevemente através das nuvens, refletindo no celular caído e criando um halo intenso na aliança de Doug. Em seguida, mergulhou de novo na cobertura de nuvens.

 

Atrás da perua, o Prius exibia o pisca-alerta ligado, emitindo um som baixinho como o de um relógio: Tic... tic... tic.

 

Alguns carros passaram por lá, não muitos. As semanas antes e depois da Páscoa são a época mais fraca do ano nas rodovias norte-americanas, e o período da tarde é o segundo momento menos intenso do dia; só o intervalo entre meia-noite e 5h é mais fraco.

 

Tic... tic... tic.

 

Na lanchonete abandonada, Pete Simmons dormia a sono solto.

 

JULIE VERNON NÃO PRECISAVA que o rei James lhe ensinasse a ser uma boa samaritana. Ela nasceu e foi criada em Readfield, cidadezinha do Maine (população 2.400), onde a prática da boa vizinhança estava no sangue e estranhos também eram considerados vizinhos. Ninguém nunca lhe disse isso com tantas palavras; ela aprendeu tudo com a mãe, o pai e os irmãos mais velhos. Eles tinham pouco a dizer sobre esses assuntos, mas ensinar pelo exemplo é o tipo de ensinamento mais eficaz que existe. Se você visse um cidadão deitado na beira da estrada, não faria a menor diferença se fosse samaritano ou marciano. Você parava e ajudava.

 

Ela nunca nem se preocupou muito com a possibilidade de ser assaltada, estuprada ou assassinada por alguém que só fingisse precisar de ajuda. Julie era o tipo de mulher que, supostamente, daria uma boa esposa porque — como diziam os velhos ianques do Maine, dos quais ainda se vê alguns por aí — “Ela te esquenta no inverno e faz sombra no verão”. Quando a enfermeira da escola lhe perguntou, no quinto ano, qual era seu peso, Julie respondeu, cheia de orgulho: “O pai diz que depois de carneada eu devo dar uns 80kg. Um tiquinho a menos sem o couro.”

 

Agora, aos 35, ela daria uns 130kg depois de carneada, e não tinha o menor interesse em ser boa esposa para homem nenhum. Era tão lésbica quanto o cinteiro do chapéu do velho pai, e com o maior orgulho. Na traseira da picape Ram havia dois adesivos. Num deles se lia PELA IGUALDADE DE GÊNERO. O outro, em rosa-choque, opinava que GAY É UMA PALAVRA ALEGRE!

 

Não dava para ver os adesivos naquele momento porque a picape puxava o que Julie chamava de “carretinha do cavalo”. Ela havia comprado uma égua de 2 anos, da raça ginete hispânico, na cidade de Clinton, e agora voltava para Readfield, onde morava com a companheira numa fazenda a pouco mais de 3, km da casa onde vivera a vida inteira, na mesma rua.

 

Ela vinha pensando, como fazia com frequência, nos cinco anos que passara viajando com As Brilhantes, uma equipe de luta livre feminina na lama. Aqueles tinham sido anos bons, por um lado, e ruins, por outro. Ruins porque As Brilhantes costumavam ser vistas como divertimento grotesco (que ela meio que supunha que eram mesmo), e bons porque tinha visto muito desse mundão. Basicamente o mundo americano, verdade, mas uma vez As Brilhantes passaram três meses entre Inglaterra, França e Alemanha, onde foram tratadas com uma gentileza e um respeito de causar espanto. Em outras palavras, como se fossem donzelas.

 

Ela ainda guardava o passaporte, e o tinha renovado no ano anterior, mesmo achando que nunca mais fosse sair do país. No fim das contas, tudo bem; era feliz na fazenda com Amelia e seu bando de animais os mais diversos, mas às vezes tinha saudade daquela vida de turnê — as transas de uma noite só, as lutas sob os holofotes, a camaradagem máscula das outras garotas. De vez em quando sentia falta até dos embates com a plateia.

 

“Pega ela pela boceta, ela é sapata, ela gosta!”, gritou certa noite um caipira miolo mole, em Tulsa, se não lhe falhava a memória.

 

Ela e Melissa, a garota com quem estava lutando no Lamódromo, se entreolharam, assentiram com a cabeça, e se puseram de pé viradas para o setor da plateia de onde o grito tinha vindo. As duas ficaram ali, só com a tanga ensopada, a lama pingando do cabelo e dos peitos, e mostraram o dedo médio num gesto obsceno para o insolente, as duas ao mesmo tempo. A plateia explodiu num aplauso espontâneo... que virou uma ovação em pé quando primeiro Julianne e depois Melissa se viraram de costas, dobraram o tronco para a frente, baixaram a tanga e mostraram a bunda para o babaca.

 

Ela crescera sabendo que se ajudava quem caía e não conseguia se levantar. Também crescera sabendo que não se engolia sapo — nem por causa dos seus cavalos, nem do seu tamanho, nem do seu tipo de trabalho, nem das suas preferencias sexuais. Se você começasse a engolir sapos, eles dariam um jeito de se tornar a base da sua alimentação diária.

 

O CD ao qual estivera ouvindo chegou ao fim, e ela estava prestes a apertar o botão de ejetar quando viu um carro mais adiante, parado na entrada da rampa que levava ao posto de serviço abandonado da Milha 81, o pisca-alerta ligado. Havia outro carro na frente dele, uma perua velha e coberta de lama. Provavelmente Ford ou Chevrolet, era difícil dizer.

 

Julie não tomou uma decisão, porque não havia uma decisão a ser tomada. Ligou a seta, viu que não haveria espaço para ela na rampa, não com o reboque, e chegou o mais que pôde para o acostamento sem atolar os pneus no terreno de areia fofa ao lado. A última coisa que queria era derrubar a égua pela qual tinha acabado de pagar 1.800 dólares.

 

Não devia ser nada, mas não custava verificar. Nunca se sabe quando uma mulher vai resolver dar à luz de repente no meio da estrada, e o cara que para com o intuito de ajudar, ficar nervoso e desmaiar. Julie ligou o pisca-alerta, que não estava lá muito visível, não com o trailer do cavalo na frente.

 

Ela saltou da picape, olhou os dois carros e não viu vivalma. Era possível que alguém tivesse dado carona aos motoristas, mas era mais provável que tivessem ido até a lanchonete. Julie duvidava que fossem encontrar alguma coisa lá dentro; o lugar estava fechado desde setembro. Julie mesma costumava parar na Milha 81 para uma casquinha de frozen yogurt, mas agora fazia a pausa para o lanche 30km ao norte, no Damon’s, em Augusta.

 

Deu a volta no reboque e sua nova égua — DeeDee era o nome — botou o nariz para fora. Julie fez carinho nela.

 

— Êia, bebê, êia. Só vou ali um instantinho.

 

Ela abriu as portas para poder chegar ao armário embutido do lado esquerdo do trailer. DeeDee resolveu que esta seria uma boa hora para sair do veículo, mas Julie bloqueou a passagem com seu ombro largo, de novo murmurando:

 

— Êia, bebê. Êia.

 

Ela destrancou o armário. Nele, em cima das ferramentas, havia alguns sinalizadores e dois minicones cor-de-rosa fluorescentes. Julie enganchou os dedos nos orifícios localizados na parte superior dos cones (não havia necessidade de sinalizadores numa tarde que aos poucos começava a clarear). Fechou o armário e trancou-o para evitar que DeeDee acabasse enfiando um casco ali dentro e se machucando. Em seguida, fechou as portas traseiras. DeeDee mais uma vez colocou a cabeça para fora. Julie não achava que cavalos fossem capazes de transparecer ansiedade, mas DeeDee de certa forma o fazia.

 

— Volto já — disse ela.

 

Julie colocou os cones atrás do reboque e seguiu até os dois carros.

 

O Prius estava vazio, mas destrancado. Julie não deu muita bola para aquilo, apesar de haver uma mala e uma pasta de aparência relativamente caras no banco de trás. A porta do lado do motorista da velha perua estava aberta. Julie começou a andar em sua direção, mas parou, franzindo a testa. No asfalto, ao lado da porta escancarada, havia um celular e o que parecia ser uma aliança. No corpo do telefone havia uma grande rachadura em zigue-zague, como se ele tivesse sido jogado no chão. E na pequena tela de vidro onde aparecem os números — seria aquilo um pingo de sangue?

 

Provavelmente não, devia ser só lama — a perua estava toda enlameada — mas Julie gostava cada vez menos daquilo. Tinha levado DeeDee para um bom galope antes de transportá-la, e não havia trocado de roupa para a viagem até em casa, estando ainda com a prática saia-calça de montaria. Nessa hora, ela tirou o celular do bolso direito e ponderou se deveria ligar para o 911.

 

Não, decidiu, ainda não. Mas se a perua coberta de lama também estivesse vazia, assim como o compacto verde, ou se aquele pingo do tamanho de uma moeda de um centavo no telefone caído no chão fosse mesmo sangue, ela ligaria. E esperaria bem ali até que o carro da polícia chegasse em vez de entrar no prédio deserto. Era corajosa e bondosa, mas não burra.

 

Ela se agachou a fim de examinar a aliança e o telefone caídos no chão. A pontinha da barra da saia-calça de montaria roçou na lateral enlameada da perua e pareceu fundir-se a ela. Julie foi puxada para a direita com força. Um lado do seu traseiro parrudo bateu na lateral da perua. A lataria cedeu e envolveu duas camadas de tecido, além da carne logo abaixo. A dor foi instantânea e absurda. Julie gritou, deixou o celular cair e tentou se desvencilhar, quase como se o carro fosse uma de suas ex-adversárias de luta livre na lama. A mão e o antebraço direitos desapareceram na membrana complacente que lembrava vidro. O que aparecia do outro lado, ligeiramente visível através da cortina de lama, não era o braço forte de uma amazona corpulenta e saudável, mas um osso minguado com pedaços de carne pendendo como farrapos.

 

A perua começou a enrugar.

 

Um carro passou em direção ao sul, depois outro. Por causa do trailer, não viram a mulher que naquele momento estava metade dentro e metade fora da perua deformada, como o Coelho Quincas preso ao Boneco de Alcatrão. Nem ouviram seus gritos. Um dos motoristas escutava uma faixa do Toby Keith; o outro, Led Zeppelin. Ambos tocavam a todo volume suas preferências musicais tão distintas. Na lanchonete, Pete Simmons ouviu os gritos, mas, como estava longe, eles soaram como um eco enfraquecido. As pálpebras de Pete tremeram. E os gritos cessaram.

 

Pete rolou para o lado no colchão imundo e voltou a dormir.

 

A coisa que parecia um carro comeu as roupas, as botas e tudo mais de Julianne Vernon. A única coisa que deixou passar foi o telefone, agora caído ao lado do de Doug Clayton. E voltou à forma de perua num estalo, fazendo o mesmo barulho de bola de tênis sendo rebatida.

 

No trailer, DeeDee relinchou e bateu o casco no chão, impaciente. Estava com fome.

 

RACHEL LUSSIER, 6 anos, gritou:

 

— Ó, mamãe! Ó, papai! É a moça do cavalo! Tá vendo a carretinha dela? Tá vendo?

 

Carla não se surpreendeu por Rache ter sido a primeira a avistar o trailer, mesmo estando no banco de trás. Rache tinha a visão mais apurada da família; ninguém era páreo para ela. Visão de raio x, dizia o pai, às vezes. Uma daquelas brincadeiras que não eram exatamente brincadeira.

 

Johnny, Carla e Blake, de 4 anos, usavam óculos; todo mundo, dos dois lados da família, usava óculos; até Bingo, o cão da família, provavelmente precisava de óculos. Bingo tendia a dar com a cara na porta de tela quando queria sair de casa. Só Rache tinha escapado da praga da miopia. Da última vez que fora ao oftalmologista, lera a maldita escala optométrica inteirinha, até a última linha. O Dr. Stratton ficou impressionado.

 

— Ela poderia concorrer a uma vaga na escola de pilotos de caça — disse a Johnny e a Carla.

 

Johnny comentou:

 

— Quem sabe um dia. Instinto assassino ela já tem, pelo menos quando se trata do irmãozinho.

 

Carla lhe deu uma cotovelada por isso, mas era verdade.

 

Ela ouvira dizer que a rivalidade entre irmãos costumava ser menor quando não eram do mesmo sexo. Se isso fosse verdade, então Rachel e Blake eram a exceção que comprova a regra. Às vezes Carla tinha a impressão de que as palavras mais frequentes que vinha ouvindo nos últimos dias eram quem começou. Só o gênero do pronome iniciando a frase variava.

 

Os dois tinham se comportado relativamente bem durante os primeiros 160km da viagem, em parte porque as visitas aos pais de Johnny sempre os deixavam de bom humor, e muito porque Carla tomara a precaução de encher de brinquedos e livros de colorir a terra de ninguém entre o assento elevado de Rachel e a cadeirinha de Blake. Mas, logo após a pausa para o lanche e o xixi em Augusta, as brigas haviam recomeçado. Provavelmente por causa dos sorvetes de casquinha. Dar algo com açúcar para crianças durante uma viagem longa de carro era como esguichar gasolina numa fogueira, Carla sabia, mas não dava para dizer não para tudo.

 

Num ato de desespero, Carla iniciara a brincadeira do Plástico Fantástico, sendo a juíza e dando pontos para anões de jardim, poços de desejos, estátuas de Nossa Senhora etc. O problema era a rodovia, onde havia muitas árvores, mas poucas banquinhas vendendo artesanato. Sua garotinha de 6 anos com olhos de águia e seu menininho de 4 anos com língua afiada estavam começando a reacender velhas animosidades quando Rachel viu o reboque do cavalo encostado bem pertinho da velha parada de beira de estrada da Milha 81.

 

— Quero fazer carinho no cavalinho de novo! — gritou Blake.

 

E começou a se debater na cadeirinha; o menor dançarino de break do mundo. Suas pernas já estavam compridas o suficiente para que ele conseguisse chutar a parte de trás do encosto do banco do motorista, o que Johnny achava très irritante.

 

Alguém pode me dizer de novo por que eu quis ter filhos?, pensou. Alguém pode refrescar a minha memória e me dizer onde eu estava com a cabeça? Só sei que fez sentido na época.

 

— Blakie, não chuta o banco do papai — pediu Johnny.

 

— Quero fazer carinho no cavalinhooooooo! — gritou Blake.

 

E deu um chute caprichado no encosto.

 

— Você parece um bebezinho — zombou Rachel, a salvo dos chutes do irmão no seu lado da zona desmilitarizada do banco traseiro.

 

Ela falou com o tom de voz mais leniente de menina grande, o que era sempre garantia de deixar Blakie furioso.

 

— EU NUM SÔ BEBEZINHO NADA!

 

— Blakie — começou Johnny —, se você não parar de chutar o banco do papai, o papai vai ter que pegar a velha faca de açougueiro dele e amputar os pezinhos do Blakie bem na altura do tornoz...

 

— Ela enguiçou — disse Carla. — Tá vendo os cones? Encosta o carro.

 

— Querida, isso quer dizer parar no acostamento. Não é uma boa ideia.

 

— Não, dá a volta e para do lado daqueles dois carros ali. Na rampa. Tem espaço e você não vai ficar bloqueando nada porque a parada tá fechada.

 

— Se você não se incomodar, eu gostaria de voltar a Falmouth antes do pôr...

 

— Encosta o carro.

 

Carla se ouviu falando no tom militar usado em caso de alerta vermelho, do tipo que não dava margem para desobediência, mesmo sabendo que não era uma boa ideia; quantas vezes ela mesma tinha ouvido Rache falar com Blake exatamente naquele tom? Até fazer o coitadinho cair no choro?

 

Modificando a voz da-que-deve-ser-obedecida e falando de um jeito mais delicado, Carla disse:

 

— Aquela mulher foi legal com as crianças.

 

Eles haviam encostado o carro no Damon’s perto do trailer dela quando fizeram uma pausa para o sorvete. A moça (quase tão grande quanto o cavalo) estava encostada no reboque, comendo um sorvete de casquinha e dando algo de comer a um animal muito bonito. Para Carla, a guloseima parecia uma barrinha de cereais.

 

Johnny estava de mãos dadas com as crianças, uma de cada lado, e tentou fazer com que continuassem andando, mas Blake não se deixaria deter.

 

— Posso fazer carinho no seu cavalo? — perguntou ele.

 

— Vai te custar 25 centavos — respondeu a moça grandona com a saia-calça de montaria marrom, que então sorriu ao ver a expressão cabisbaixa de Blake. — Não... brincadeirinha. Aqui: segura isso.

 

Ela entregou a casquinha com sorvete derretendo para Blake, cuja surpresa foi tanta que ele não conseguiu fazer nada senão segurar o cone. Depois, a moça levantou-o até uma altura na qual desse para passar a mão no nariz da égua. DeeDee encarou com tranquilidade a criança de olhos arregalados, farejou a casquinha pingante da moça, resolveu que não estava interessada naquilo e permitiu que o menino passasse a mão no seu nariz.

 

— Uau, é macio! — disse Blake.

 

Carla nunca tinha ouvido o filho falar de um jeito tão admirado assim. Por que será que nós nunca levamos as crianças a uma fazendinha com minizoológico?, ela se perguntou, e imediatamente incluiu aquilo em sua lista mental de pendências.

 

— Eu, eu, eu! — entoou Rachel, pulando em volta, impaciente.

 

A moça grandona colocou Blake no chão.

 

— Lambe esse sorvete enquanto levanto tua irmã — disse ela para Blake —, mas não passa nenhuma bactéria pra ele, valeu?

 

Carla pensou em dizer a Blake que comer algo depois de outra pessoa, principalmente desconhecida, não era legal. Mas aí viu a expressão perplexa de Johnny e pensou, que diabos. Eles mandavam as crianças para escolas que eram basicamente fábricas de micróbios. Faziam viagens de carro em família percorrendo centenas de quilômetros de estrada onde um bebum ou um adolescente enviando mensagens de texto no celular poderia cruzar a pista e acabar com a vida delas. E aí as proibiam de comer um sorvete já lambido? Isso era levar a mentalidade da cadeirinha do carro e do capacete da bicicleta talvez um pouco longe demais.

 

A moça do cavalo levantou Rachel para que esta pudesse fazer carinho no nariz do animal.

 

— Uau! Legal! — disse Rachel. — Como se chama?

 

— DeeDee.

 

— Que nome lindo! Eu amo você, DeeDee!

 

— Amo você também, DeeDee — disse a moça do cavalo, e deu uma beijoca estalada no nariz de DeeDee, o que provocou uma gargalhada geral.

 

— Mãe, eu quero um cavalo!

 

— Claro! — disse Carla, efusiva. — Quando fizer 26 anos!

 

Isso fez Rachel fechar a cara (a testa franzida, as bochechas estufadas, os lábios comprimidos), mas quando a moça do cavalo riu, Rache se desarmou e riu também.

 

A grandona se inclinou para Blake, as mãos nos joelhos cobertos pela saia-calça de montaria.

 

— Cê pode me devolver minha casquinha, amigão?

 

Blake estendeu o braço. Assim que ela pegou a casquinha, Blake começou a lamber os dedos melados de sorvete de pistache derretido.

 

— Obrigada — disse Carla para a moça do cavalo. — Foi muito gentil da sua parte. — E, para Blake: — Vamos entrar e lavar essas mãos. Depois você pode tomar seu sorvete.

 

— Quero um que nem o dela — falou Blake, arrancando mais gargalhadas da moça do cavalo.

 

Johnny insistiu que eles comessem as casquinhas sentados a uma mesa, porque não queria as crianças decorando a Expedition com sorvete de pistache. Quando terminaram e saíram, a moça do cavalo já não estava mais lá.

 

Ela foi apenas mais uma daquelas pessoas que você conhece — em geral detestáveis, às vezes legais, outras, muito legais — na estrada e nunca mais vê na vida.

 

Só que lá estava ela, ou, pelo menos, sua picape, parada no acostamento, com cones dispostos ordenadamente atrás de seu reboque. E Carla estava certa: a moça do cavalo tinha sido legal com as crianças. E foi pensando assim que Johnny Lussier tomou a pior — e última — decisão da sua vida.

 

Ele ligou a seta e pegou a rampa como Carla havia sugerido, estacionando à frente do Prius de Doug Clayton, que ainda tinha o pisca-alerta ligado, e ao lado da perua enlameada. Colocou a marcha em ponto morto, mas deixou o motor ligado.

 

— Quero fazer carinho no cavalinho — disse Blake.

 

— Também quero fazer carinho no cavalinho — anunciou Rachel com o tom de voz arrogante de senhora do castelo que herdara sabe Deus lá de quem.

 

Aquilo deixou Carla maluca, mas ela se recusou a fazer qualquer comentário. Se fizesse, Rachel falaria mais ainda daquele jeito.

 

— Não sem a permissão da moça — declarou Johnny. — Vocês, crianças, fiquem onde estão por enquanto. Você também, Carla.

 

— Sim, mestre — falou Carla, imitando a voz de zumbi que sempre arrancava risadas das crianças.

 

— Tão engraçadinha.

 

— Não tem ninguém na cabine da picape — disse Carla. — Não parece ter ninguém em nenhum dos carros. Você acha que foi acidente?

 

— Não sei, mas eles não parecem batidos. Guenta aí um minutinho.

 

Johnny Lussier saltou do carro, deu a volta na traseira da Expedition que nunca acabaria de pagar, e andou até a cabine da Dodge Ram. Carla não tinha avistado a moça do cavalo, mas ele queria ter certeza de que ela não estava deitada no banco, talvez tentando sobreviver a um ataque cardíaco. (Sendo um corredor inveterado desde que se entendia por gente, no fundo Johnny acreditava que um infarto do miocárdio estava à espera, lá pelos 45 anos no máximo, de qualquer pessoa que pesasse dois quilos a mais que o peso recomendado para a altura.)

 

Ela não estava esparramada no banco (óbvio que não, Carla teria avistado uma mulher daquele tamanho mesmo deitada), e também não estava no trailer. Só a égua, que botou o nariz para fora e farejou o rosto de Johnny.

 

— Oi... — Por um instante o nome não veio, mas então ele se lembrou. — ...DeeDee. Como anda a boa e velha sacola de ração?

 

Deu tapinhas de leve no nariz da égua, e seguiu para a rampa a fim de vistoriar os outros dois veículos. Constatou que um acidente de algum tipo tinha acontecido, mas sem gravidade. A perua havia atropelado alguns dos cones cor de laranja que bloqueavam a rampa.

 

Carla baixou o vidro da sua janela, algo que as crianças no banco de trás não podiam fazer por causa da trava de segurança.

 

— Algum sinal dela?

 

— Nada.

 

— Algum sinal de alguém?

 

— Carla, me dá uma ch...

 

Ele viu os celulares e a aliança caídos ao lado da porta parcialmente aberta da perua.

 

— O quê?

 

Carla esticou o pescoço para ver.

 

— Só um segundo.

 

Passou por sua cabeça pedir a ela que trancasse as portas, mas Johnny descartou a ideia. Pelo amor de Deus, eles estavam na I-95 em plena luz do dia. Carros passando a cada vinte ou trinta segundos, às vezes dois ou três em fila.

 

Ele se agachou e pegou os telefones, um em cada mão. Virou-se para Carla, e por isso não viu a porta do carro se abrindo um pouco mais, como uma boca.

 

— Carla, acho que tem sangue nesse aqui — disse, levantando o braço para mostrar o celular rachado de Doug Clayton.

 

— Mãe? — falou Rachel. — Quem tá naquele carro imundo? A porta tá abrindo.

 

— Volta — disse Carla, a boca repentinamente seca. Ela quis dizer aquilo bem alto, mas parecia haver uma pedra em seu peito. Uma pedra invisível, mas muito grande. — Tem alguém nesse carro!

 

Em vez de voltar, Johnny virou-se e dobrou o corpo para olhar lá dentro. Ao fazer isso, a porta se fechou em sua cabeça, com um forte barulho de pancada. A pedra no peito de Carla sumiu de repente. Ela tomou fôlego e gritou o nome do marido.

 

— O que aconteceu com o papai? — gritou Rachel, a voz alta e tão aguda quanto um apito. — O que aconteceu com o papai?

 

— Papai! — gritou Blake.

 

Ele estivera inventariando seus mais novos Transformers e agora olhava em volta avidamente, tentando ver onde o papai em questão poderia estar.

 

Carla não pensou. O corpo do marido continuava ali, mas a cabeça estava dentro da perua imunda. Ainda vivia, porque os braços e as pernas se mexiam. Ela se viu fora da Expedition sem nem lembrar de ter aberto a porta. Seu corpo parecia estar agindo por conta própria, a mente aturdida pegando carona.

 

— Mamãe, não! — gritou Rachel.

 

— Mamãe, NÃO!

 

Blake não fazia ideia do que estava acontecendo, mas sabia que não era nada bom. Começou a chorar e a tentar se desvencilhar da teia de cintos de segurança na cadeirinha.

 

Carla agarrou Johnny pela cintura e puxou-o com a superforça fenomenal da adrenalina. A porta da perua se abriu parcialmente e sangue fluiu sobre o apoio para pés como uma pequena cascata. Por um instante medonho, ela viu a cabeça do marido caída no banco enlameado da perua, tombada para o lado com uma expressão apatetada. Embora ele ainda tremesse em seus braços, ela soube (em um daqueles breves arroubos de lucidez que podem surgir mesmo durante um ataque de pânico absoluto) que era assim que os condenados à forca ficavam depois de enforcados. Porque seus pescoços estavam quebrados. Naquele curto e grave momento — naquele vislumbre tão rápido quanto um flash — ela achou que ele parecia abobado, perplexo e feio, toda a essência do Johnny fora dele, e soube que já estava morto, tremendo ou não. Era como ficava uma criança depois de atingir uma pedra ao mergulhar de cabeça. Como ficava uma mulher empalada pelo volante após bater com o carro na pilastra de uma ponte. Como se ficava quando a morte desfigurante chegava para você, vinda assim do nada.

 

A porta do carro se fechou com violência. Os braços de Carla ainda envolviam a cintura do marido, e, ao ser puxada para a frente, ela teve outro arroubo de lucidez.

 

É o carro, você precisa manter distância do carro!

 

Ela soltou a barriga de Johnny, só que tarde demais. Um cacho do seu cabelo encostou na porta e foi sugado. O topo da cabeça de Carla bateu no carro antes que ela conseguisse se desvencilhar. A parte de cima começou a queimar quando a coisa passou a comer seu couro cabeludo.

 

Corra!, tentou gritar para sua frequentemente encrenqueira mas inegavelmente esperta filha. Corra e leve Blakie com você!

 

Mas, antes que conseguisse articular o pensamento até o fim, sua boca já era.

 

Só Rachel viu a perua fechar a porta na cabeça do pai como uma dioneia capturando um inseto, mas ambos viram a mãe sendo de alguma forma puxada através da porta enlameada como se atravessasse uma cortina. Viram quando o mocassim saiu de um dos pés, revelando por um breve instante as unhas cor-de-rosa, e aí ela se foi. Um instante depois, o carro branco se desfigurou e se contraiu como um punho cerrado. Através da janela aberta da mãe, eles ouviram o som de mastigação.

 

— Quê isso? — gritou Blake. Dos olhos jorravam lágrimas e o lábio estava coberto de muco. — Quê isso, Rachie, quê isso, quê isso?

 

Os ossos deles, pensou Rachel. Ela só tinha 6 anos, e não lhe permitiam ver filmes impróprios para menores de 12 anos, nem no cinema nem na televisão (quanto mais os proibidos para menores de 18 anos; sua mãe dizia que esses eram “pesados” demais), mas sabia que aquele era o som dos ossos deles sendo triturados.

 

O carro não era um carro. Era algum tipo de monstro.

 

— Cadê a mamãe e o papai? — perguntou Blake, virando os olhos, agora ainda mais esbugalhados pelas lágrimas, para a irmã. — Cadê a mamãe e o papai, Rachie?

 

Ele parece ter 2 anos de novo, pensou Rachel, e, no que talvez fosse a primeira vez na vida, ela sentiu algo diferente de irritação (ou, quando julgada com rigor pelo comportamento dele, ódio total e absoluto) pelo irmãozinho. Não achava que esse sentimento novo fosse amor. Achou que fosse algo ainda maior. Sua mãe não conseguira dizer nada no fim, mas, se tivesse tido tempo, Rachel sabia que teria sido: tome conta do Blakie.

 

Ele se debatia na cadeirinha. Blake sabia como tirar o cinto, mas havia esquecido em meio ao pânico.

 

Rachel tirou o próprio cinto, desceu do assento elevado, e tentou ajudar o irmão. Uma das mãos dele pegou em seu rosto, administrando-lhe um sonoro tapa. Sob circunstâncias normais aquilo teria rendido a ele um socão no ombro (e um castigo no quarto para ela, onde teria ficado encarando a parede num estado de fúria em ebulição), mas, nesse momento, ela só pegou a mão do irmão e a baixou.

 

— Para! Deixa eu te ajudar! Eu posso tirar você daí, mas não se fizer isso!

 

Ele parou de se debater, mas continuou chorando.

 

— Cadê o papai? Cadê a mamãe? Eu quero a mamãe!

 

Também quero a mamãe, idiota, pensou Rachel, e tirou o cinto da cadeirinha.

 

— A gente vai sair agora, e vai...

 

O quê? Vai fazer o quê? Ir até a lanchonete? Ela estava fechada; era por isso que havia cones cor de laranja. Era por isso que as bombas de gasolina do posto não estavam mais lá e havia grama brotando do chão do estacionamento vazio.

 

— A gente vai fugir daqui — completou.

 

Rachel saiu do carro e deu a volta até o lado de Blake. Abriu a porta, mas ele só ficou olhando para a irmã, os olhos transbordando de lágrimas.

 

— Não posso sair, Rachie. Vou cair.

 

Deixa de ser um bebê chorão medroso, ela quase disse, mas não. Não era a hora para isso. Blake já estava triste o suficiente. Rachel abriu os braços e falou:

 

— Escorrega. Eu pego você.

 

Ele olhou para ela meio cabreiro, mas escorregou. Rachel conseguiu pegar o irmão, mas ele era mais pesado do que parecia, e ambos se estatelaram no chão. O pior sobrou para ela, porque estava por baixo, mas Blake bateu com a cabeça e ralou a mão, e começou a berrar, dessa vez de dor em vez de medo.

 

— Para — ordenou ela, e se contorceu toda para sair de debaixo dele. — Vê se cresce e aparece, Blakie.

 

— Hein?

 

Ela não respondeu. Olhava para os dois celulares caídos ao lado da perua malvada. Um deles parecia quebrado, mas o outro...

 

Rachel foi engatinhando para perto dele, nunca tirando os olhos do carro em que o pai e a mãe tinham desaparecido de um jeito assustadoramente repentino. Quando ela se aproximava do telefone bom, Blake passou andando a seu lado, indo para a perua, a mão ralada esticada à frente.

 

— Mãe? Mamãe? Sai daí! Eu tô machucado. Cê tem que sair daí e dar um beijinho para sar...

 

— Pare onde está, Blake Lussier.

 

Carla teria ficado orgulhosa; aquela era a voz da-que-deve-ser-obedecida em sua expressão mais ameaçadora. E deu certo. Blake parou a um metro da lateral da perua.

 

— Mas eu quero a mamãe! Eu quero a mamãe, Rachie!

 

Ela pegou a mão do irmão e puxou-o para longe do carro.

 

— Agora não. Me ajuda a usar essa coisa.

 

Ela sabia perfeitamente bem como usar o celular, mas precisava atrair a atenção dele.

 

— Dá, eu sei fazer! Dá, Rachie!

 

Rachel entregou o telefone para o irmão e, enquanto ele examinava os botões, ela se levantou, pegou-o pela parte de trás da camisa de malha do Wolverine, e puxou-o, fazendo com que recuasse três passos. Blake nem reparou. Achou o botão de ligar do celular de Julie Vernon e apertou-o. O telefone emitiu um sinal. Rachel tomou-o do irmão, e, pela primeira vez em sua vida de bebezinho apalermado, Blake não protestou.

 

Ela prestara bastante atenção quando McGruff, o cão detetive, fora falar com eles na escola (embora soubesse perfeitamente bem que era só um cara com fantasia de McGruff), e não hesitou. Teclou 911 e colocou o celular no ouvido. Depois de um toque, a ligação foi atendida.

 

— Alô? Meu nome é Rachel Ann Lussier, e...

 

— Essa ligação está sendo gravada — uma voz de homem falou por cima da sua. — Se deseja relatar uma emergência, tecle 1. Se deseja denunciar as más condições da estrada, tecle 2. Se deseja informar sobre um carro enguiçado...

 

— Rachie? Rachie? Cadê a mamãe? Cadê o pa...

 

— Shhhh! — disse Rachel, ríspida, e teclou 1, com dificuldade, pois as mãos tremiam e os olhos estavam embaçados.

 

Percebeu que chorava. Quando foi que começara a chorar? Não conseguia lembrar.

 

— Alô, aqui é 911 — disse uma mulher.

 

— Você é gente de verdade ou outra gravação? — perguntou Rachel.

 

— Sou de verdade — respondeu a mulher, num tom ligeiramente jocoso. — Você está passando por alguma emergência?

 

— Sim. Um carro mau comeu nossa mãe e nosso pai. Ele está na...

 

— Pode ir parando por aí — ordenou a mulher do 911, parecendo achar muita graça naquilo. — Quantos anos você tem, garotinha?

 

— Eu tenho 6 anos e meio. Meu nome é Rachel Ann Lussier, e um carro, um carro mau...

 

— Escute aqui, Rachel Ann, ou quem quer que você seja. Eu posso rastrear essa ligação. Você sabia disso? Aposto que não. Agora desligue e não serei obrigada a mandar um policial à sua casa para dar uns...

 

— Eles estão mortos, sua burra do telefone! — Rachel gritou ao celular, e, ao ouvir a palavra iniciada por M, Blake desatou a chorar de novo.

 

A mulher do 911 não disse nada por um instante. E, então, num tom de voz não mais jocoso:

 

— Onde você está, Rachel Ann?

 

— Na lanchonete vazia! Aquela com os cones cor de laranja!

 

Blake sentou-se e cobriu o rosto com os braços. Aquilo fez Rachel sentir um tipo de dor que nunca sentira antes. Doeu bem no fundo do coração.

 

— Essa informação não é suficiente — disse a mulher do 911. — Você poderia ser um pouco mais específica, Rachel Ann?

 

Rachel não sabia o que a palavra específica queria dizer, mas sabia o que estava vendo: o pneu traseiro da perua, o mais próximo deles, começou a derreter. Um tentáculo feito do que parecia ser borracha líquida se deslocou lentamente pelo chão na direção de Blake.

 

— Eu tenho que desligar — disse Rachel. — A gente tem que fugir do carro mau.

 

Com esforço, ajudou Blake a ficar em pé, sem desgrudar os olhos do pneu derretido. O tentáculo de borracha voltou ao lugar de onde tinha saído (porque ele sabe que não dá pra alcançar a gente, pensou Rachel), e o pneu ficou de novo parecido com um pneu, mas aquilo não foi suficiente para tranquilizar Rachel, que continuou a arrastar Blake pela rampa em direção à estrada.

 

— Aonde a gente tá indo, Rachie?

 

Não sei.

 

— Pra longe daquele carro.

 

— Eu quero os meus Transformers!

 

— Agora não. Depois.

 

Ela manteve a pegada firme em Blake e seguiu recuando para a estrada onde o tráfego intermitente passava zunindo entre 110km/h e 130km/h.

 

Nenhum som é tão agudo e penetrante quanto o grito de uma criança; é um dos mecanismos de sobrevivência mais eficazes da Natureza. O sono pesado de Pete Simmons já havia passado a leve, a um reles cochilo, e, quando Rachel gritou com a mulher do 911, ele ouviu o grito, e acabou despertando totalmente.

 

Pete se sentou, estremeceu-se todo, e levou a mão à cabeça. Doía, e ele soube o que era aquela dor: a temida RESSACA. Sua língua estava meio áspera, e o estômago, revirado. Não a ponto de vomitar, mas revirado mesmo assim.

 

Graças a Deus não bebi mais, pensou, e pôs-se de pé. Andou até uma das janelas teladas para ver quem gritava. E não gostou do que viu. Alguns dos cones cor de laranja que bloqueavam a entrada da rampa da parada tinham sido atropelados e havia alguns carros por lá. Vários deles.

 

Em seguida avistou duas crianças — uma menininha de calça cor-de-rosa e um garotinho de short e camisa de malha. Só teve um vislumbre dos dois, o suficiente para perceber que se afastavam — como se algo os tivesse assustado — e então sumiram atrás do que pareceu a Pete um trailer para transporte de cavalos.

 

Havia algo errado. Tinha acontecido algum acidente, ou coisa do tipo, mesmo que nada naquela cena se parecesse com um acidente. Seu primeiro impulso foi o de sair dali depressa, antes de acabar se envolvendo no que quer que tivesse acontecido. Pegou o alforje e foi em direção à cozinha e à doca de carga e descarga. Mas, então, parou. Havia crianças lá fora. Crianças pequenas. Pequenas demais para estarem à beira de uma autoestrada como a I-95, sozinhas, e Pete não tinha visto nenhum adulto pelos arredores.

 

Deve ter algum adulto por aí. Você não viu todos aqueles carros?

 

Sim, ele tinha visto os carros, e uma picape com um trailer para cavalos a reboque, mas nenhum adulto.

 

Preciso ir lá fora. Mesmo que eu acabe me metendo em encrenca, preciso impedir que aquelas crianças estúpidas virem asfalto.

 

Pete foi correndo até a porta do Burger King, encontrou-a trancada, e ficou imaginando a pergunta que Normie Therriault teria feito: Ei, placenta, sua mãe teve algum filho que vingou?

 

Pete se virou e disparou para a doca. Correr só fez piorar a dor de cabeça, mas ele a ignorou. Depositou o alforje na beirada da plataforma de concreto, agachou e pulou. Caiu de mau jeito, bateu com o cóccix no chão, e ignorou isso também. Pete se levantou e lançou um olhar tentador para as árvores. Ele poderia simplesmente desaparecer. Fazer isso lhe pouparia tantos aborrecimentos. A ideia era extremamente atraente. Aquilo não era como nos filmes, em que o mocinho sempre toma a decisão certa, sem nem pensar. Se alguém sentisse o bafo da vodca...

 

— Jesus — disse ele. — Ai, meu Jesus Cristinho.

 

Para que inventou de ir ali?

 

Segurando Blake pela mão com firmeza, Rachel andou com ele até o fim da rampa. Ao chegarem lá, um caminhão semirreboque de eixo duplo passou zunindo a 120km/h. O vento jogou seus cabelos para trás, agitou suas roupas, e quase derrubou Blake no chão.

 

— Rachie, eu tô com medo! A gente não pode ir pra estrada!

 

Agora me diz alguma coisa que eu não sei, pensou Rachel.

 

Em casa, eles só tinham permissão de ir até o fim da entrada de veículos, e quase não havia tráfego na Rua Beeman, em Falmouth. O trânsito na rodovia estava longe de ser constante, mas os carros que surgiam trafegavam em altíssima velocidade. Além do mais, que outra opção teriam? Talvez pudessem andar pelo acostamento, mas seria arriscado demais. E não havia nenhuma saída por ali, só árvores. Eles poderiam voltar para a lanchonete, mas teriam de andar ao lado do carro mau, caso quisessem fazer isso.

 

Um carro esporte vermelho passou voando, o cara ao volante apertando a buzina num UAAAAAAAA constante que fez Rachel sentir vontade de tapar os ouvidos.

 

Blake dava puxões nela e Rachel se permitiu levar esses puxões. De um dos lados da rampa havia pequenos postes conectados por cabos grossos. Blake se sentou em um desses cabos e cobriu os olhos com as mãos gorduchas. Rachel se sentou a seu lado. Ela não sabia mais o que fazer.

 

O GRITO DE UMA CRIANÇA pode até ser um dos mecanismos de sobrevivência mais eficazes da Mãe Natureza, mas um dos mecanismos de sobrevivência mais eficazes da humanidade — pelo menos quando se trata do tráfego nas autoestradas — é a viatura da Polícia Rodoviária estacionada, principalmente se o sensor do detector de radar estiver apontado para o trânsito vindouro. Motoristas a 110km/h reduzem a velocidade para 100km/h; motoristas a 130km/h pisam no freio e começam a calcular mentalmente quantos pontos perderão na carteira se virem luzes azuis piscando atrás deles. (Um efeito positivo que logo se esvai; 15km a 25km adiante na estrada, os motoristas em debandada já estão debandando de novo.)

 

A maravilha da viatura estacionada, pelo menos na opinião do policial rodoviário Jimmy Golding, era que nada precisava ser feito, na verdade. Era só encostar o carro e deixar a natureza (a natureza humana, no caso) seguir seu rumo culpado. Nesta tarde nublada de abril, sua pistola-radar não estava nem ligada, e o tráfego seguindo na I-95 rumo ao sul era nada mais que um zumbido de fundo. Sua atenção estava totalmente voltada para o iPad apoiado no arco inferior do volante.

 

Ele se encontrava no meio de um jogo tipo Scrabble chamado Words with Friends, a conexão com a Internet fornecida pela AT&T. Seu oponente era Nick Avery, um velho companheiro de quartel que agora trabalhava no Departamento de Polícia de Oklahoma. Jimmy não conseguia entender por que alguém trocaria o Maine por Oklahoma, uma decisão ruim, na sua opinião, mas não havia dúvidas de que Nick era um excelente jogador de Words with Friends. Ele vencia Jimmy nove em cada dez partidas, e estava ganhando aquela. Mas a vantagem de Nick era pequena no momento, o que era raro, e todas as letras estavam fora do saco. Se ele, Jimmy, conseguisse usar as quatro letras que lhe haviam sobrado, acabaria obtendo uma vitória suada e merecida. Naquele momento estava empacado em FIX. As quatro letras restantes eram A, D, A, e outro A. Se conseguisse, de alguma forma, trabalhar com FIX, não só ganharia a partida como esta seria uma vitória de lavada em cima do velho camarada. Mas as coisas não pareciam muito promissoras.

 

Ele examinava o restante do tabuleiro, onde as possibilidades pareciam menos promissoras ainda, quando o rádio apitou duas vezes, um apito alto e agudo. Tratava-se de um alerta para todas as viaturas vindo do 911 de Westbrook. Jimmy botou o iPad de lado e aumentou o volume.

 

— Todas as viaturas, atenção. Quem está perto da parada de serviços da Milha 81? Alguém?

 

Jimmy puxou o microfone do rádio.

 

— Nove-um-um central, aqui é o Dezessete. Estou na Milha 85, ao sul da saída Lisbon-Sabattus.

 

A mulher a que Rachel Lussier se referiu como a burra do 911 não perdeu tempo perguntando se havia alguém mais próximo; em uma das novíssimas viaturas Crown Victoria, Jimmy estava a apenas três minutos de distância, talvez menos.

 

— Dezessete, recebi uma ligação há três minutos de uma garotinha que diz que seus pais estão mortos, e desde então venho recebendo várias chamadas de pessoas relatando que há duas crianças pequenas desacompanhadas nas imediações daquela parada de serviços.

 

Ele nem se deu ao trabalho de perguntar por que nenhuma das várias pessoas que ligaram havia parado. Já tinha visto isso antes. Às vezes era medo de comprometimento legal. Mais frequentemente era só um caso de não-dou-a-mínima. Aquilo era muito comum. Mas, mesmo assim... crianças. Jesus.

 

— Nove-um-um, vou verificar. Dezessete desligando.

 

Jimmy ligou as luzes azuis do teto, verificou o espelho retrovisor para ter certeza de que dava para ver a estrada, e deixou rapidamente o vão de passagem de cascalho com sua placa que indicava PROIBIDO RETORNAR, USO EXCLUSIVO DE VIATURAS OFICIAIS. O Crown Victoria motor V8 deu uma arrancada; o velocímetro digital subiu vertiginosamente até o 150, onde permaneceu. Árvores passavam como raios em ambos os lados da estrada. Ele deparou com um Buick antigo e lerdo que se recusava terminantemente a encostar, e ultrapassou-o pelo acostamento. Assim que voltou para a pista, Jimmy viu a parada de serviços. E algo mais. Duas crianças — um menino de short, uma garota de calça cor-de-rosa — sentados nos cabos de uma pequena defensa rodoviária na lateral da rampa de entrada. Eles pareciam os menores nômades do mundo, e Jimmy condoeu-se dos dois. Ele próprio tinha filhos.

 

Ambos se levantaram quando viram as luzes piscantes e, por um momento aterrorizante, Jimmy achou que o garotinho ia dar um passo à frente da sua viatura. Deus abençoe a menininha, que segurou o braço dele e puxou-o para trás.

 

Jimmy reduziu tão bruscamente a marcha que o freio ABS foi ativado. Seus blocos de multas, diário de bordo e iPad cascatearam do assento até o chão. A frente do Crown Victoria saiu ligeiramente de lado, mas ele corrigiu a trajetória e parou a viatura bloqueando a rampa, onde havia vários outros carros encostados. O que estava acontecendo ali?

 

O sol saiu de trás das nuvens e uma palavra nada relacionada com a situação do momento invadiu a mente do policial Jimmy Golding: AFIXADA. Eu posso formar a palavra AFIXADA e me sair bem nessa.

 

A menininha correu em direção à porta do motorista, arrastando o irmãozinho, que chorava e tropeçava. A expressão em seu rosto pálido e assustado transparecia mais idade que a que tinha, e havia uma grande mancha molhada no short do garotinho.

 

Jimmy saiu do carro, tomando cuidado para não acertar a porta nos dois. Ele se agachou, apoiado num dos joelhos, a fim de ficar no mesmo nível deles, e ambos se lançaram em seus braços, quase derrubando-o.

 

— Ei, ei, calma, está tudo be...

 

— O carro mau comeu a mamãe e o papai — disse o garotinho, e apontou. — O carro mau bem ali. Ele comeu os dois igual o Lobo Mau comeu a Chapeuzinha Vermelha. Você tem que trazer eles de volta!

 

Era impossível dizer para qual veículo o dedo rechonchudo apontava. Jimmy avistou quatro deles: uma perua que parecia ter percorrido 15km numa trilha florestal, um Prius limpíssimo, uma picape Dodge Ram com um trailer para transporte de cavalos a reboque, e uma Ford Expedition.

 

— Menininha, qual é o seu nome? O meu é policial Jimmy.

 

— Rachel Lussier — respondeu ela. — Esse é o Blakie. Ele é meu irmãozinho. A gente mora na Fresh Winds Way, número 19, em Falmouth, no Maine, CEP 04105. Não chega perto dele, policial Jimmy. Ele parece um carro, mas não é. Ele come gente.

 

— De qual carro estamos falando, Rachel?

 

— Daquele na frente, perto do carro do papai. O cheio de lama.

 

— O carro cheio de lama comeu o papai e a mamãe! — proclamou o pequeno Blake. — Traz eles de volta, você é um polícia, você tem um revólver!

 

Ainda apoiado no joelho, Jimmy abraçou as crianças e perscrutou a perua enlameada. O sol se escondeu novamente; suas sombras desapareceram. Na rodovia, o tráfego continuava fluindo, só que um pouco mais lento, atento àquelas luzes azuis piscantes.

 

Ninguém na Expedition, nem no Prius, nem na picape. Jimmy supôs que não houvesse ninguém no trailer, a menos que estivesse agachado, mas nesse caso o cavalo provavelmente estaria muito mais nervoso. O único veículo cujo interior ele não conseguia ver era o que as crianças alegavam ter comido seus pais. Jimmy não gostou do jeito como a lama encobria todos os vidros. Parecia que, de alguma forma, ela havia sido espalhada deliberadamente. Também não gostou do celular quebrado caído próximo à porta do motorista. Nem da aliança ao lado dele. Francamente, a aliança era de dar arrepios.

 

Como se o resto não fosse.

 

De repente, a porta do motorista se abriu parcialmente com um rangido, elevando um pouco mais o Grau de Horripilância. Jimmy ficou tenso e colocou a mão na coronha da sua Glock, mas ninguém saiu. A porta simplesmente ficou daquele jeito, 15cm entreaberta.

 

— É assim que ele tenta fazer você entrar — disse a menininha, a voz um pouco mais que um sussurro. — É um carro monstro.

 

Jimmy Golding não acreditava em carros monstros desde que vira aquele filme Christine, o carro assassino quando pequeno, mas acreditava que monstros podiam, sim, esconder-se dentro de carros. E tinha alguém nesse. De que outra forma a porta teria sido aberta? Talvez fosse o pai ou a mãe das crianças, feridos e incapazes de gritar. Também poderia ser um homem deitado no banco, que dessa forma não ficaria visível através do para-brisa traseiro sujo de lama. Um homem com uma arma, talvez.

 

— Quem está aí? — gritou Jimmy. — Sou policial, e ordeno que você se identifique.

 

Ninguém se identificou.

 

— Saia. As mãos primeiro, e vazias.

 

A única coisa que saiu foi o sol, imprimindo a sombra da porta no chão por um segundo ou dois antes de se esconder novamente atrás das nuvens. E então sobrou apenas a porta entreaberta outra vez.

 

— Venham comigo, crianças — disse Jimmy, e os escoltou até a viatura.

 

Ele abriu a porta de trás. Os dois olharam para o banco traseiro cheio das papeladas de Jimmy, para seu casaco com forro de lã (do qual ele não precisava hoje), e para a arma presa ao encosto do banco da frente, que era contínuo. Principalmente para ela.

 

— Mamãe e papai dizem pra gente nunca entrar no carro de gente desconhecida — declarou o menino Blake. — Eles falam isso na escola também. Desconhecido é sinal de perigo.

 

— Ele é policial e tem um carro de polícia — disse Rachel. — Tá tudo bem. Entra. E se você tocar nessa arma, eu te bato.

 

— Bom conselho sobre a arma, mas ela está presa e o gatilho está travado — disse Jimmy.

 

Blake entrou e espiou por cima do banco.

 

— Ei, você tem um iPad!

 

— Cala a boca — disse Rachel. Ela começou a entrar, mas então encarou Jimmy Golding com um olhar cansado e apavorado. — Não toca no carro. Ele é grudento.

 

Jimmy quase abriu um sorriso. Ele tinha uma filha, só um ou dois anos mais nova que essa menininha, que provavelmente teria dito a mesma coisa. Ele presumiu que meninas se dividissem naturalmente em dois grupos: as molecas e as que têm horror a sujeira. Assim como sua Ellen, esta tinha horror a sujeira.

 

E foi com essa ideia equivocada (e em breve fatal) do que Rachel Lussier quis dizer com grudento que Jimmy os fechou no banco de trás da viatura 17. Ele se reclinou sobre o para-brisa dianteiro e pegou o microfone do rádio, sem tirar os olhos um minuto sequer da porta entreaberta da perua. Por causa disso, não viu o garoto em pé perto da área das lanchonetes na parada de serviços, segurando de encontro ao peito, como se fosse um bebezinho azul, um alforje feito de um material que imitava couro. Um instante depois o sol saiu de novo, e Pete Simmons foi engolido pela sombra da lanchonete.

 

Jimmy fez contato com o quartel em Gray.

 

— Dezessete, na escuta.

 

— Estou na velha parada de serviços da Milha 81. Tenho aqui quatro veículos abandonados, um cavalo desacompanhado e duas crianças sem pai nem mãe. Um dos veículos é uma perua. As crianças dizem... — Ele fez uma pausa, mas pensou, que diabos. — As crianças dizem que a perua comeu os pais delas.

 

— Pode repetir?

 

— Acho que elas querem dizer que alguém lá dentro capturou os dois. Quero que você mande todas as viaturas disponíveis para cá, entendido?

 

— Entendido. Todas as viaturas disponíveis. Mas vai demorar uns dez minutos até que a primeira chegue aí. A viatura 12, que está em Código 73, em Waterville.

 

Al Andrews, com certeza fazendo uma boquinha no Bob’s e falando de política.

 

— Entendido.

 

— Informe a marca, o modelo e a placa da perua, Dezessete, que farei uma busca no banco de dados.

 

— Negativo para os três. Ela não tem placa. Quanto à marca e ao modelo, a perua está tão coberta de lama que não dá para saber. Mas é um carro americano. — Acho. — Provavelmente Ford ou Chevrolet. As crianças estão na minha viatura. Os nomes são Rachel e Blake Lussier. Fresh Winds Way, Falmouth. Esqueci o número da casa.

 

— Dezenove! — Rachel e Blake gritaram juntos.

 

— Eles disseram...

 

— Já ouvi, Dezessete. E em qual carro eles chegaram aí?

 

— Na Expundition do papai! — gritou Blake, feliz em poder ajudar.

 

— Na Ford Expedition — disse Jimmy. — Placa três-sete-sete-dois-I-Y. Vou abordar aquela perua.

 

— Entendido. Tenha cuidado aí, Jimmy.

 

— Entendido. Ah, e você pode entrar em contato com a operadora do nove-um-um e dizer a ela que as crianças estão bem?

 

— Isso é você falando ou o Peter Townshend?

 

Muito engraçado.

 

— Dezessete, Código 62.

 

Ele já ia devolver o microfone ao rádio, mas o entregou a Rachel.

 

— Se alguma coisa acontecer, algo ruim, aperte esse botão na lateral e grite “trinta”. Isso significa “oficial precisando de ajuda”. Entendeu?

 

— Entendi, mas você não deve chegar perto daquele carro, policial Jimmy. Ele morde e come as pessoas e é grudento.

 

Blake, que, em seu deslumbramento de estar num carro de polícia de verdade, tinha esquecido temporariamente o que acontecera a seus pais, lembrou e começou a chorar de novo.

 

— Eu quero a mamãe e o papai!

 

Apesar do aspecto misterioso e potencialmente perigoso da situação, o revirar de olhos de Rachel Lussier, com uma expressão que dizia tá vendo o que eu tenho que aguentar, quase fez Jimmy rir. Quantas vezes ele já vira aquela mesma expressão no rosto da sua Ellen Golding, de 5 anos?

 

— Ouça, Rachel — disse Jimmy. — Sei que você está assustada, mas é seguro aqui dentro, e eu preciso cumprir meu dever. Se seus pais estão naquele carro, não queremos que eles se machuquem, não é mesmo?

 

— VAI BUSCAR A MAMÃE E O PAPAI, POLICIAL JIMMY! — exclamou Blake. — NÃO QUEREMOS QUE ELES SE MACHUUUUQUEM!

 

Jimmy viu um brilho de esperança nos olhos da menina, mas não tão intenso quanto seria de se esperar. Como o Agente Mulder no antigo programa de TV Arquivo X, ela queria acreditar... mas como a parceira de Mulder, a Agente Scully, ela não acreditava. O que será que essas crianças viram?

 

— Cuidado, policial Jimmy. — Ela pôs o dedo em riste. O gesto professoral ainda mais cativante por causa de um leve tremor. — Não encosta nele.

 

Enquanto se aproximava da perua, Jimmy sacou sua Glock automática, mas não a destravou. Pelo menos não por enquanto. Parado ligeiramente atrás da porta entreaberta, ele mais uma vez convidou quem quer que estivesse dentro do veículo a sair com as mãos espalmadas e vazias. Ninguém saiu. Ele estendeu a mão para a porta, e então se lembrou da advertência feita pela menininha, e hesitou. Levou a arma à frente para abrir a porta com o cano. Só que a porta não abriu, e o cano da pistola ficou preso nela. A coisa era uma panela de cola quente.

 

Ele foi puxado para a frente, como se a mão de alguém tivesse segurado o cano da Glock e dado um puxão. Houve uma fração de segundo em que ele poderia ter soltado a arma, mas isso nem passou pela sua cabeça. Uma das primeiras lições ensinadas na Academia de Polícia após a entrega das armas determinava que você nunca deveria soltar a sua. Nunca.

 

Por isso, Jimmy manteve a pegada, e o carro que já tinha comido sua arma agora comia sua mão. E o braço. O sol saiu de novo, projetando a sombra dele, que ficava cada vez menor, no chão. Em algum lugar, crianças gritavam.

 

A perua está AFIXADA ao policial, ele pensou. Agora entendo o que ela quis dizer com gruden....

 

E então a dor aflorou à toda, e seus pensamentos cessaram. Ele teve tempo de dar um grito. Só um.

 

DE ONDE ESTAVA, a 60 metros dali, Pete testemunhou tudo. Viu o policial rodoviário estender o cano da arma para abrir a porta da perua por completo; viu o cano desaparecer dentro da porta como se o carro inteiro fosse nada mais que uma ilusão de óptica; viu o policial ser puxado para a frente, o chapelão cinza caindo de sua cabeça. Em seguida, o policial foi sugado através da porta e só restou o chapéu, caído ao lado do celular de alguém. Houve uma pausa, e o carro retraiu-se todo, como dedos num punho fechado. O que veio depois foi o som de poc de bola sendo rebatida por uma raquete — e o punho cerrado e enlameado virou novamente um carro.

 

O garotinho começou a chorar; por algum motivo, a menininha gritava “trinta” sem parar, como se achasse que aquela fosse uma palavra mágica que J.K. Rowling havia deixado de fora dos seus livros do Harry Potter.

 

A porta traseira da viatura de polícia se abriu. As crianças saíram. Os dois choravam histericamente, e Pete não podia culpá-los. Se ele não tivesse ficado tão perplexo com o que acabara de ver, provavelmente estaria chorando também. Um pensamento louco surgiu em sua mente: mais um ou dois goles daquela vodca poderiam melhorar a situação. Isso ajudaria a deixá-lo com menos medo e, se estivesse com menos medo, poderia descobrir o que diabos precisava fazer.

 

Nesse meio-tempo, as crianças começaram a se afastar de novo. Pete supôs que fossem entrar em pânico e sair correndo a qualquer momento. Ele não podia deixar que fizessem isso; acabariam indo direto para a pista e seriam esmagadas pelo trânsito da autoestrada.

 

— Ei! — gritou ele. — Ei, crianças!

 

Quando os dois se viraram para Pete — os olhos esbugalhados em rostos lívidos — ele acenou e começou a andar em sua direção. Nesse momento, o sol saiu de novo, dessa vez para valer.

 

O garotinho disparou. A menininha puxou-o para trás. De início, Pete achou que estivesse com medo dele, mas então se deu conta de que era o carro que ela temia.

 

Pete fez um gesto circular com o braço.

 

— Dá a volta nele! Dá a volta e vem pra cá!

 

Eles deslizaram por baixo dos cabos que conectavam os pequenos postes na lateral esquerda da rampa, mantendo a maior distância possível da perua, e atravessaram o estacionamento em disparada. Quando alcançaram Pete, a menininha soltou a mão do irmão, sentou-se, e cobriu o rosto com as mãos. Ela usava tranças que provavelmente haviam sido feitas pela mãe. Olhar para o penteado e saber que a mãe da criança nunca mais faria aquilo deixou Pete se sentindo péssimo.

 

O garotinho ergueu os olhos de modo solene.

 

— Ele comeu a mamãe e o papai. Comeu a moça do cavalo e o policial Jimmy também. Vai comer todo mundo, eu acho. Vai comer o mundo inteiro.

 

Se Pete Simmons tivesse 20 anos, poderia ter feito um monte de perguntas idiotas e sem importância. Mas, porque tinha metade disso, e era capaz de aceitar o que acabara de testemunhar, perguntou algo mais simples e pertinente.

 

— Ei, garotinha. Vêm outros policiais por aí? Foi por isso que você ficou gritando “trinta”?

 

Ela baixou as mãos e encarou-o. Seus olhos estavam inchados e vermelhos.

 

— Foi, mas Blake tem razão. Ele vai comer os outros também. Eu disse isso para o policial Jimmy, mas ele não acreditou em mim.

 

Pete acreditava nela, porque tinha visto com seus próprios olhos. Mas a menina estava certa. A polícia não iria acreditar. Bem, eles acabariam acreditando, teriam de acreditar, mas talvez não antes de o carro monstro ter comido mais um montão deles.

 

— Acho que isso veio do espaço — disse ele. — Como no episódio do Doctor Who.

 

— Mamãe e papai não deixam a gente ver esse programa — falou o garotinho. — Eles dizem que dá muito medo. Mas isso dá mais medo ainda.

 

— Ele está vivo — disse Pete, mais para si mesmo que para os dois.

 

— Dã — fez Rachel, e deu uma fungada longa e infeliz.

 

O sol se escondeu por breves instantes atrás de uma das nuvens que se dispersavam. Quando saiu de novo, uma ideia surgiu com ele. Pete vinha nutrindo esperanças de poder mostrar ao Normie Therriault e ao restante dos Piratas Fodões algo que os impressionaria tanto que deixariam que ele entrasse para sua gangue. E então George lhe dera um choque de realidade de irmão mais velho: Todo mundo já viu esse truque idiota mil vezes.

 

Talvez, mas era possível que essa coisa aqui não tivesse visto isso mil vezes. Ou nem mesmo uma vez. Talvez não existissem lupas no lugar de onde ela viera. Nem sol, quem sabe. Ele se lembrou de um episódio do seriado Doctor Who em que havia um planeta que ficava todo escuro o tempo todo.

 

Ele ouviu uma sirene a distância. Um policial estava a caminho. Um policial que não acreditaria em nada do que os pequenos diriam porque, no que diz respeito aos adultos, crianças só falam merda.

 

— Vocês dois fiquem aqui. Vou tentar uma coisa.

 

— Não! — A menininha agarrou o pulso dele com dedos que pareciam garras. — Ele vai comer você também!

 

— Não acho que ele consiga se deslocar — argumentou Pete, libertando a mão da pegada dela. A menina havia deixado ali alguns arranhões sanguinolentos, mas ele não ficou zangado e também não podia culpá-la. Ele provavelmente teria feito o mesmo, se tivessem sido seus pais. — Acho que o carro está preso no lugar.

 

— Mas ele consegue alcançar você — disse ela. — Ele alcança você com os pneus. Eles derretem.

 

— Vou tomar cuidado — disse Pete —, mas preciso tentar isso. Porque você tem razão. Aqueles policiais vão chegar, e a coisa vai comer todo mundo. Fiquem aqui.

 

Ele andou em direção à perua. Quando chegou perto (mas não perto demais), abriu o alforje. Preciso tentar isso, ele dissera às crianças, mas a verdade era um pouco mais descarada: ele queria tentar isso. Seria como uma experiência científica. Se contasse para alguém, provavelmente pareceria uma ideia bizarra, mas ele não precisava contar. Só precisava fazer. Com muito... muito... cuidado.

 

Pete suava. Depois que o sol saiu, o dia esquentou, mas esse não era o único motivo para o suor, e ele sabia disso. Pete olhou para cima, semicerrando os olhos por causa do excesso de claridade. Não se atreva a se esconder atrás de uma dessas nuvens. Nem pense nisso. Eu preciso de você.

 

Ele tirou a lupa Richforth do alforje, e agachou-se a fim de depositar o alforje no chão. As articulações dos joelhos estalaram, e a porta da perua se abriu alguns centímetros.

 

Ela sabe que estou aqui. Não sei se pode me ver, mas acabou de me ouvir. E talvez consiga sentir meu cheiro.

 

Ele deu mais um passo. Agora estava perto o suficiente para tocar a lateral da perua. Se fosse estúpido o bastante para fazer isso, obviamente.

 

— Cuidado! — gritou a menininha. Ela e o irmão estavam de pé naquele momento, abraçados. — Cuidado com ele!

 

Com todo cuidado — como uma criança que enfia a mão na jaula do leão —, Pete estendeu a lupa à frente. Um círculo de luz foi projetado na lateral da perua, mas era muito grande. Muito difuso. Ele chegou a lente mais perto.

 

— O pneu! — gritou o garotinho. — Cuidado com o PE-NE-UUUU!

 

Pete olhou para baixo e viu que um dos pneus havia começado a derreter. Um tentáculo se deslocava pelo chão em direção ao seu tênis. Não dava para chegar para trás sem desistir do experimento, então ele levantou um dos pés e ficou apoiado numa perna só. O tentáculo mudou imediatamente de direção e seguiu para o outro pé.

 

Não tenho muito tempo.

 

Ele chegou a lupa ainda mais para perto. O círculo de luz diminuiu de tamanho e virou um ponto branco luminoso. Por um instante, nada aconteceu. Então espirais de fumaça começaram a ascender. A superfície branca e enlameada abaixo do ponto de luz empreteceu.

 

De dentro da perua saiu um rugido que não era desse mundo. Pete teve de lutar contra todos os seus instintos mentais e corporais de sair correndo. Seus lábios se separaram, revelando dentes trincados num rosnado desesperado. Ele segurou a Richforth com firmeza, contando os segundos em sua cabeça. Ele chegara ao sete quando o rugido se elevou a um guincho agudo que perigava explodir sua cabeça. Atrás dele, Rachel e Blake tinham desfeito o abraço para poderem tapar os ouvidos.

 

Ao pé da rampa de entrada da parada de serviços, Al Andrews chegou deslizando com sua viatura 12 e parou. Ele saltou do carro, retraindo-se por causa daquele som terrivelmente agudo. Parecia uma sirene de ataque aéreo soando através dos amplificadores de uma banda de heavy metal, diria ele depois. Al viu um garoto segurando algo que quase encostava na superfície de uma velha perua Ford ou Chevrolet enlameada. O garoto encolhia-se de dor, determinação ou ambos.

 

O ponto negro na lateral da perua de onde a fumaça saía começou a se espalhar. A fumaça branca que se espiralava a partir dele tornou-se mais densa. Ela passou a cinza, e depois a preta. O que aconteceu depois aconteceu rápido. Pete viu pequenas chamas azuis surgirem ao redor do ponto negro. Elas se espalharam, parecendo dançar acima da superfície do dito carro. Era daquele jeito que ficavam os briquetes de carvão nos churrascos do quintal depois que seu pai os embebia em fluido de isqueiro e jogava um fósforo aceso.

 

O tentáculo grudento, que tinha quase atingido o pé calçado, ainda apoiado no chão, foi recolhido num estalo. O carro retraiu-se de novo, mas dessa vez as chamas azuis que se espalhavam tomaram conta de toda a superfície formando um anel de luz. Ele se encolheu cada vez mais, virando uma bola de fogo. E então, sob o olhar de Pete, das crianças Lussier e do policial Andrews, partiu como um raio para o céu azul de primavera. Ficou lá por alguns instantes, ardendo como brasa, e depois sumiu. Pete pegou-se pensando na escuridão fria acima do envoltório que é a atmosfera terrestre — aquelas léguas intermináveis nas quais qualquer coisa pode viver e se esconder.

 

Eu não matei essa coisa, só fiz com que saísse daqui. Ela teve de ir embora para que pudesse apagar o fogo, como um graveto em chamas num balde de água.

 

O policial Andrews olhava fixamente para o céu, estupefato. Um de seus poucos circuitos cerebrais que ainda funcionavam se perguntava como ele iria escrever um relatório descrevendo o que acabara de ver.

 

Mais sirenes se aproximavam a distância.

 

Pete retornou para perto das crianças com o alforje em uma das mãos e a lupa Richforth na outra. Ele meio que desejou que George e Normie estivessem ali, mas e daí se não estivessem? Ele passara uma tarde e tanto sem aqueles caras, e não se incomodava se fosse ficar de castigo ou não. Isso fazia com que saltos de bicicleta da beira de um areeiro idiota parecessem um tédio.

 

E, sabe o que mais? Eu detono à vera.

 

Ele teria rido se as crianças não estivessem olhando para ele. Os dois tinham acabado de ver seus pais sendo comidos por algum tipo de alienígena — comidos vivos — e mostrar sinais de contentamento não seria nada apropriado.

 

O garotinho levantou os braços gorduchos e Pete pegou-o no colo. Ele não riu quando o garoto deu um beijo em sua bochecha, mas abriu um sorriso.

 

— Brigado — disse Blake. — Cê é um bom menino.

 

Pete devolveu-o ao chão. A menininha também beijou-o, o que foi meio que gostoso, mas teria sido mais gostoso ainda se ela fosse uma gata.

 

O policial corria em direção aos três agora, e isso fez Pete lembrar de algo. Ele agachou e soprou no rosto da menina.

 

— Tá sentindo cheiro de alguma coisa?

 

Rachel Lussier encarou-o por um instante com ares de menina sábia.

 

— Não precisa se preocupar — disse ela, e abriu um sorriso. Foi um bem pequenininho, mas melhor que nada. — Só não sopra na cara dele. E de repente é melhor comprar uma bala de hortelã ou outra coisa assim antes de voltar para casa.

 

— Tava pensando em chiclete de canela — disse Pete.

 

— É — falou Rachel. — Vai funcionar que é uma maravilha.

 

 

                                                                  Stephen King

 

 

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