Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MINHA AMADA TRAPACEIRA / Dama Beltrán
MINHA AMADA TRAPACEIRA / Dama Beltrán

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Londres, 11 de abril de 1868. Clube de Cavalheiros Reform.
A noite passada foi mais frutífera do que esperou. Nunca imaginou que, com um simples estímulo, os membros do clube abarrotassem as salas de jogo. Sorriu de lado e acariciou sua cuidada barba. Se continuasse desse modo, Reform se converteria no clube mais poderoso e importante não só de Londres, mas sim do país inteiro. Sem eliminar aquele sorriso de prazer, levou o copo para seus lábios e deu um grande sorvo bebida. Celebrava, em silêncio e sozinho, aquele triunfo. E não era para menos. Seu pequeno plano se transformava em um poderoso projeto. Jamais pensou obter aquilo que imaginou, na noite em que se decidiu investir a pouca fortuna que guardava em um local que estava prestes a falir. Tinha trabalhado muito para convertê-lo em um respeitável lugar, ele mesmo ajudou os trabalhadores nas dificultosas obras. Foram dias cheios de desespero, mas também de intermináveis sonhos que, por fim, alcançavam-se. Satisfeito consigo mesmo, colocou a taça sobre a mesa, levantou os pés para acomodá-los sobre esta e cruzou seus braços por trás da cabeça. Começava a ser o homem importante que aspirou converter-se enquanto seus ombros suportavam o peso dos sacos de areia. Nada nem ninguém podia lhe impedir de chegar até o topo que ambicionara.
Embora, é claro, nem tudo tinha sido perfeito. Trevor tinha esquecido, em algum momento desse passado, o caráter sociável e respeitoso com o qual nasceu, transformando-se em um homem soberbo, arrogante e presunçoso. Talvez o poder que lhe proporcionava ter sob seu controle toda a sociedade importante de Londres, provocou que deixasse de lado aqueles princípios morais que sempre tinha valorizado e que agora nem recordava. Orgulhoso de seus projetos, tentou fechar os olhos para encontrar aquela calma que lhe oferecia o conhecimento de seu poder, mas descobriu que Berwin, seu secretário há quatro anos, tinha deixado longe de seu alcance o livro de contas. Intrigado por averiguar que soma alcançaria essa vez, incorporou-se e o agarrou. Enquanto folheava as páginas, deleitou-se com um dos charutos que o senhor Fisheral lhe dera de presente. A fumaça desse havanês começou a lhe rodear mostrando, aos olhos de qualquer um que entrasse no escritório naquele momento, uma aura cinza. De repente, sua boca se torceu, franziu o cenho e partiu em dois, o charuto tão caro. Por que diabos a mesa número sete não conseguia lhe contribuir os mesmos benefícios que as demais? Zangado, golpeou a mesa fazendo com que a taça de uísque caísse ao chão, pulverizando o licor ambarino sobre a superfície de mogno escuro.

 

 

 

 

 

 

—Maldição! Como é possível que ocorra isto? Todas as noites iguais! Que diabos acontece nessa ditosa mesa? —Gritou zangado.

Diante dos gritos encolerizados, alguém apareceu na porta, mas não entrou, permanecendo sob o amparo da grossa folha de madeira.

—Chamou-me, senhor Reform? —Perguntou Berwin, inquieto.

Trevor olhou como se lhe bastasse esse olhar para aniquilá-lo. A boca, adornada com um esmerado cavanhaque, torcia-se para a esquerda. Os olhos não eram marrons, e sim vermelhos e mantinha o cenho tão franzido que pareciam rugas de velhice.

—Diga-me que seus cálculos não estão corretos! —Trovejou ao pobre secretário que, consciente do que ocorreria quando revisasse o extrato de contas, ficou parado na entrada.

—Muito temo que o seja, senhor —respondeu com pesar.

—Sem lugar a dúvidas algo acontece na mesa número sete —acrescentou.

—Algo acontece? —Repetiu com um grito ensurdecedor.

—E o que é esse algo, Berwin? Como é possível que não tenha descoberto o que acontece nessa maldita mesa? Acaso não tem olhos na cara para ver a razão pela qual sempre termino com perdas? —Repreendeu, levantando-se do assento e caminhando irado para seu empregado

—Juro-lhe que não aparto meus olhos desse condenado lugar —disse-lhe temeroso.

—E? —Perguntou arqueando as negras sobrancelhas

—E todos os cavalheiros jogam de maneira correta —explicou.

—Investigou o crupier? Talvez ele seja o motivo do problema —apontou enfurecido.

—Ele não é o culpado do que acontece —disse com valentia.

Berwin encontrou a força necessária para dar vários passos para o interior do escritório, sempre mantendo uma distância prudente do senhor Reform, mas não podia permitir que o jovem fosse despedido injustamente. Gilligan tinha crescido no clube e era o moço mais fiel que poderiam encontrar. Se o dono decidisse prescindir de seus serviços, todos os empregados o defenderiam com unhas e dentes.

—Então... de quem é a culpa? —Retrucou abrindo os olhos de par em par.

—Possivelmente esteja maldita... —sussurrou.

—Maldita? —Repetiu atônito.

—Bruxaria, feitiço, maldições... —enumerou desesperado. Só ficava essa alternativa por oferecer. Todas as noites cravava seus olhos naquele lugar do clube e não apreciava nada estranho. Os cavalheiros jogavam honestamente e o jovem crupier realizava seu trabalho de maneira irrepreensível. Que outra opção ficava?

—Está dizendo que perco dinheiro por culpa de um feitiço que uma bruxa confabulou? —Soltou sem respirar.

—Pode tratar-se de alguma de suas amantes, senhor. Como pôde averiguar, nem todas eram damas respeitáveis —sugeriu bobamente.

—Crê, de verdade, nas palavras que saem de sua boca? —Replicou enfurecido. —Está alegando que obtenho perdas em uma das melhores mesas por culpa de uma amante despeitada? —Continuou vociferando enquanto colocava suas mãos na cintura.

—É uma opção a ter em conta...

—Maldição! Como pode dizer tal estupidez? Maldições, feitiços? Não há ninguém sensato neste clube, salvo eu? —Clamou levantando suas mãos como se quisesse pegar algo do teto. —Está bem! Este problema se resolverá hoje mesmo, custe o que custar! —Uivou aproximando-se da escrivaninha.

Enquanto escrevia algo em um papel, Berwin o observou sem pestanejar. Seu caráter azedo e sua rudeza ao falar se deviam ao desespero que tinha por averiguar o que ocorria na ditosa mesa. Embora essa frustração fosse compartilhada por todos os empregados do clube. O que acontecia naquele lugar?

—Que um dos folgazões que andam pelas salas entregue esta nota ao inspetor O´Brian —ordenou ao mesmo tempo em que quase lhe estampava a carta no rosto.

—Como quiser senhor, farei agora mesmo —assegurou temeroso enquanto saía do escritório sem tocar com os pés o chão.

«Que diabos acontece nessa mesa?», perguntou-se Trevor percorrendo o espaço do escritório sem parar. «Por que não posso obter os benefícios que desejo?». Cansado de rondar de um lado para outro sem achar uma resposta, retornou ao seu assento para continuar com o repasse. Embora aquela mesa não lhe proporcionasse a recompensa que aspirava, as demais desculpavam as perdas. Com os olhos marrons cravados nas folhas, pegando com sua mão direita a garrafa da qual bebia diretamente, não percebeu que o tempo transcorria e que não tinha tido notícias sobre a chegada do inspetor. Só quando apartou o olhar do livro e o dirigiu para a janela que havia atrás de suas costas descobriu que tinha anoitecido. Zangado novamente, levantou-se do assento com brutalidade, caminhou para a porta, abriu-a, saiu ao patamar onde um enorme corrimão de madeira lhe oferecia uma ampla visão do clube e gritou:

—O inspetor veio? Berwin! Berwin! Onde diabos se colocou? —Agarrou o corrimão como se quisesse arrancá-lo do chão.

Ante os gritos, aos quais os trabalhadores já estavam acostumados, uma figura se moveu entre a escuridão e todos os olhares se centraram no pobre secretário.

—Senhor Reform, o inspetor não virá —informou com medo. —Um dos agentes nos informou que esta noite não está de serviço.

—Como diz? —Trovejou abrindo os olhos como pratos e aferrando suas mãos ao corrimão com mais força.

—O que intento lhe explicar é que... —insistiu Berwin.

—Maldição! Não são mais que um bando de folgazões! —Rugiu. —Está claro que se eu não remediar, nenhum de vocês o fará!

Girou-se sobre seus calcanhares, meteu-se no escritório e minutos depois apareceu vestido corretamente. Desceu as escadas pisando como se quisesse as transpassar. Os empregados, justo nesse momento, tiveram que fazer milhares de trabalhos que requeriam sua imediata atenção, então o secretário ficou sozinho ante a besta.

—Quero minha carruagem na porta agora mesmo —resmungou.

—Já a tem, senhor. —Informou.

—Bem. Irei procurar pessoalmente esse inspetor e não me moverei da Scotland Yard até que me atenda como requeiro —assinalou enquanto Berwin lhe ajudava a colocar o casaco negro. —Não aparte os olhos dessa maldita mesa até que eu retorne. Anota qualquer coisa suspeita que encontre e se por algum motivo divino descobrir o que está ocorrendo antes que eu apareça com esse agente, faça-me saber à maior brevidade possível.

—É claro, senhor Reform. Não me moverei daqui até que retorne —apontou retrocedendo um par de passos.

Resmungando e soltando pela boca milhões de impropérios aprendidos desde sua infância, Trevor abandonou o lugar onde se sentia poderoso para sair em busca da pessoa que tinha recusado lhe ajudar. Justo ao pôr os pés sobre os paralelepípedos da rua, uma suave e úmida brisa o recebeu. Franziu o cenho, elevou a gola do casaco e subiu à carruagem para resguardar-se daquele clima frio no interior.

O trajeto mal durou dez minutos, tempo que Trevor aproveitou para refletir sobre a exposição que ofereceria ao inspetor para que lhe ajudasse. «Bruxaria...», refletiu. Como tinha ocorrido tal tolice ao Berwin? Não podia lhe tirar a razão sobre o tema de suas amantes posto que nenhuma aceitasse, de bom grado, dar por finalizado seu caso com ele, mas isso não era motivo suficiente para que seu secretário imaginasse tais sandices. O problema devia ser outro. Um que lhe resultava impossível averiguar com só uma observação e que requeria a experiência de um homem como o inspetor.

Esperou com nervosismo que o cocheiro lhe abrisse a porta. Naquele momento tudo lhe parecia ir mais lento do que ansiava, talvez o desespero por averiguar a verdade o fizesse impaciente. Mas se encontrava em um tremendo apuro. Não só lhe preocupavam as perdas, mas sim a reação que teriam os sócios quando descobrissem que uma mesa poderia estar trucada. A confiança e o respeito que até agora mantinha com seus clientes se veriam diminuídos e isso desencadearia uma ruína impossível de resolver. Com o olhar cravado na fachada da Scotland Yard, Trevor aguardou que o servente descesse da carruagem.

—Senhor, deseja que o espere? —Perguntou o cocheiro assim que abriu a porta.

Não lhe respondeu. Estava tão absorto em seus pensamentos que quão único fez, foi sair do veículo e caminhar com passo firme e rápido para o edifício.

Durante uns segundos permaneceu de pé na entrada, esperando que algum dos agentes que se moviam de um lado para o outro o reconhecesse e se aproximasse para atendê-lo. Desesperado por aquela impassibilidade, por aquela despreocupação que tinham as pessoas que deviam velar pela segurança dos cidadãos, desabotoou-se o casaco e ele mesmo se dirigiu a um deles.

—Quero falar com o inspetor O´Brian —declarou com solenidade.

—Todo mundo que entra por essa porta quer falar com ele —respondeu o agente sem sequer levantar o rosto para olhá-lo.

—Mas ninguém é Trevor Reform, o dono do clube Reform —apontou soberbo, presunçoso e com um tom de voz que se podia equiparar à própria rainha Vitória.

Quando Borshon escutou o nome da pessoa que permanecia ao seu lado, levantou-se do assento com rapidez.

—Desculpe, senhor Reform —disse assombrado e morto de vergonha. —Não lhe reconheci.

—Se tivesse me olhado quando me aproximei seguramente o teria feito —assinalou zangado. —Onde se encontra o inspetor? Preciso falar com ele agora mesmo.

—Esta noite não está de serviço, mas posso lhe atender eu mesmo, se o desejar —indicou estendendo a mão para saudá-lo.

—Não. Quero o senhor O´Brian —declarou com veemência, sem aceitar aquela saudação.

—Mas...

—Não vou partir daqui até que mantenha uma conversação com o inspetor. Não importa o tempo que demore em vir ao meu chamado, então ordene a algum desses néscios que se apresente ante ele e relate que o senhor Reform deseja vê-lo imediatamente. Enquanto isso, esperarei em seu escritório. É esse, não é? —Perguntou assinalando um escritório que havia ao fundo, onde as paredes não eram de concreto e sim de vidro.

—Sim, senhor —disse Borshon segurando a vontade de agarrar pelo pescoço o insolente e lhe trocar o rosto de cor a um mais apropriado ao seu caráter azedo.

—Perfeito. Vá depressa, como compreenderá sou um homem muito ocupado e não posso perder toda a noite —adicionou antes de dirigir-se para o escritório de Michael.

Borshon pegou seu chapéu entre as mãos e o retorceu como se fosse o pescoço daquele presunçoso. Respirou fundo e chamou um dos agentes que tinha perto. Não ia apresentar-se ele mesmo em frente à porta de seu inspetor depois de lhe haver deixado bem claro que essa noite nada nem ninguém poderia lhe interromper. Entretanto, estava seguro que quando escutasse o nome do Reform, embora fosse a contragosto, iria à Scotland Yard.

Trevor se acomodou em uma das cadeiras que encontrou em frente à escrivaninha do inspetor, recostou-se e cruzou as pernas. Enquanto observava ao seu redor, colocou a mão no bolso direito e tirou um dos havaneses que guardava na cigarreira. Devagar e degustando o sabor, foi inspirando o conteúdo daquele charuto, ao mesmo tempo em que cravava seus escuros olhos naquilo que lhe chamava a atenção. Só duas coisas fizeram com que retivesse o olhar pouco mais de um minuto: um recorte de periódico que o inspetor tinha emoldurado e o desenho do rosto de um criminoso que andavam procurando. Sem nenhum interesse por averiguar o que haveria nessa nota de imprensa para que lhe fosse outorgado um lugar tão importante, fechou os olhos tentando recapitular a informação que podia oferecer ao agente.

—Deseja um café enquanto aguarda a chegada do inspetor? —Perguntou Borshon de maneira educada.

—Não têm algo mais forte? —Soltou Trevor sem abrir os olhos.

«Explosivos?», pensou o agente enquanto mostrava um imperturbável sorriso.

—Nosso inspetor não aceita licor dentro dos escritórios —indicou sem alterar-se.

—Uma lástima... —disse Trevor após estalar a língua. —Far-lhe-ei chegar uma caixa se obtiver o que desejo.

—Muito obrigado, embora muito temo que lhe devolverá no mesmo dia —replicou. —Como lhe comentei...

—Não me dê explicações —interrompeu-o movendo a mão direita como se estivesse se despedindo de um servente. —Espere para ler o rótulo das garrafas e depois concorde com seu superior como achar melhor.

Poderia lhe agarrar pelas lapelas de seu casaco e jogá-lo como se fosse um ladrão vulgar? Borshon manteve o sorriso enquanto girava para partir. Fora dos olhos do senhor Reform, franziu o cenho, murmurou uma série de insultos para este e respirou fundo. Como podia um homem humilde se transformar em um monstro repulsivo?

 

 

Michael apareceu pela porta da chefia com o rosto ruborizado pela ira. Procurou com o olhar o Borshon e observou que este não tinha melhor aspecto que ele.

—Onde está? —Perguntou olhando de um lado a outro.

—Aquele imbecil se colocou em seu escritório —respondeu com desdém.

—Imbecil? —Retrucou arqueando as sobrancelhas ao surpreender-se de como seu homem de confiança tinha denominado um personagem tão importante de Londres.

—Estúpido, petulante, presunçoso, soberbo, imbecil... —enumerou sem respirar. —Em resumo, o distinto senhor Reform se encontra em seu escritório.

—Ele te disse do que necessita? —Perguntou um pouco mais acalmado e divertido pela descrição de Borshon.

—Uísque, conhaque, Bourbon, uma bengala no cu... —mencionou a contragosto.

—Quer dizer que... não revelou nada —assinalou Michael olhando de esguelha ao homem que o tinha feito chamar.

—Nada —respondeu Borshon. —Esse parasita não abriu a boca salvo para dizer tolices.

—Está bem. Verei o que posso fazer por ele —declarou antes de dar um passo para seu escritório.

—Se necessitar um par de mãos para tirá-lo dali, conte com as minhas. Estou desejando pregar esse rosto arrogante com um muito bom direito —alegou zombador.

Michael não respondeu ao comentário, estava centrado em averiguar o que necessitaria um homem como o senhor Reform. Até esse momento jamais tinha requerido sua ajuda. Ele mesmo resolvia as desordens que surgiam em seu estabelecimento e controlava à perfeição os sócios. Que motivo lhe teria feito sair de seu adorado clube?

—Boa noite, senhor Reform —saudou-o na porta enquanto estendia a mão direita.

—Boa noite, inspetor... —comentou Trevor levantando do assento para responder à saudação.

—Tenho que admitir que esteja bastante surpreso por sua visita —começou a dizer sem sequer aproximar-se da cadeira. Se tomasse assento poderiam demorar mais do que desejava e queria aparecer na festa dos Dustings o antes possível. Não podia deixar April sozinha no primeiro dia que tinha decidido ir a uma festa.

—Necessito de sua ajuda —confessou Trevor.

—Para que? —Perguntou Michael entreabrindo os olhos.

—De um tempo para cá, uma das mesas que sempre obteve grandes benefícios só me oferece perdas —indicou sem rodeios.

—Pensa que lhe estão roubando? —Interessou-se ao mesmo tempo em que se colocava inadequadamente sobre o canto da mesa.

—Todos os meus empregados a observaram com detalhe e, por agora, não achamos nada que nos indique que se trate de furto —manifestou mantendo-se de pé. —Por isso requeiro de sua perícia para averiguar o que acontece.

—Ajudar-lhe-ei..., mas esta noite não posso ir ao seu clube. Amanhã sem demora...

—Não posso esperar para amanhã! —Exclamou desesperado.

—Um dia mais não lhe causará nenhum problema —adicionou Michael, severo.

—Não pode me conceder um par de horas? —Retrucou Trevor cravando seus olhos marrons nos azulados.

—Esta noite tenho uma proposta que não pode esperar —disse incômodo. Ficou de pé e aguardou que Reform aceitasse sua negativa.

—Só lhe peço duas horas. Se não conseguir averiguar o que acontece nesse tempo pode partir para onde desejar —expôs com firmeza.

Michael considerou rapidamente o que devia fazer. Era a primeira vez que o dono do clube requeria sua ajuda. E se necessitasse de mais tempo além daquelas duas horas? E se não chegasse à festa para estar com April? «O dever está acima do prazer», recordou a frase que seu antecessor lhe expôs no mesmo dia que lhe colocava o botton que usava com orgulho em sua gravata. Respirou fundo, olhou ao Reform e lhe disse:

—Está bem. Leve-me até seu clube, mas tenho que lhe advertir que, se não descobrir o que ocorre em duas horas, partirei.

—Prometo que não lhe entreterei mais que o acordado —declarou com firmeza.

Com um enorme sorriso de satisfação, Trevor fechou os botões do casaco e caminhou diante do inspetor para a saída.

Por sorte para ele, ia ao seu chamado o único homem que podia resolver o problema. Ou isso esperava, porque se não o fizesse, se não achassem o que acontecia, terminaria pensando que Berwin tinha razão e que alguma despeitada ex-amante tinha enfeitiçado a mesa.

 


Embora não fossem nem dez da noite, o clube tinha alcançado a lotação permitida. Michael não apartou o olhar de todos aqueles que se sentaram em frente às mesas de jogo e gritavam desesperados ao não ganhar. Com suspeita e argúcia foi reconhecendo um a um os indivíduos que encontrou ao seu passo. Como era de esperar, a afamada alta sociedade esvaziava seus bolsos em um lugar onde ninguém lhe reprovaria as substanciais perdas.

—Acima poderemos observar sem que ninguém note sua presença —comentou Trevor com certa preocupação. Se os sócios se voltassem para ele e percebessem a figura do inspetor, sairiam das salas apavorados.

—Como obteve que viessem tantos jogadores a estas horas? —Demandou Michael enquanto subia as escadas que lhes conduziam por volta do primeiro andar.

—Oferecendo-lhe mais prazer —respondeu Trevor orgulhoso.

—Mais prazer? —Repetiu O´Brian na expectativa.

Reform parou sua caminhada em meio ao longo corredor, apoiou as palmas sobre o corrimão e com uma atitude endeusada olhou para baixo.

—Não só o jogo causa um estado de frenesi neles, terá que lhes oferecer outros estímulos para que não se aborreçam e partam para outro clube. Se lhes retém, se lhes dá aquilo que necessitam, aparecem cedo e partem ao amanhecer —indicou de maneira presunçosa, como se os anos de experiência lhe tivessem outorgado o dom da sabedoria absoluta.

—Que estímulos encontrou para encher as salas antes do crepúsculo e manter essa fidelidade? —Perguntou O´Brian sem poder apartar seus olhos daquelas cabeças que se moviam de um lado para outro.

Trevor, para responder, levantou a mão direita como se estivesse saudando um conhecido. De repente, um de seus empregados acenou com a cabeça, afirmando e entendendo sua decisão. Dirigiu-se para uma das portas que havia fechadas sob o piso e a abriu. Com rapidez uma dezena de mulheres formosas e vestidas pecaminosamente saiu do interior da habitação.

—Ninguém pode resistir a uma mulher que mostra seus dotes sem pudor —disse Trevor jocoso. —Não lhe parece acertado esse estímulo, inspetor? Porque, como pode apreciar, os rostos dos meus sócios mudaram assim que as viram chegar.

—Só vejo luxúria e lascívia neles —respondeu Michael entreabrindo seus olhos.

—Sexo e jogo... uma combinação perfeita para este clube —refletiu Reform com vaidade.

—Onde está a mesa que tanto lhe preocupa? —O inspetor mudou rapidamente de tema. Não lhe interessava o que observava posto que, para ele, aquele tipo de seduções não lhe chamava a atenção.

—Justo aí —assinalou-a Trevor com a mão. —Entre esses dois grossos pilares de madeira. Como pode perceber, o crupier está embaralhando com normalidade. Por sorte, há poucos cavalheiros jogando nela. Mas ao longo da noite, essa maldita região pode alcançar uns dez participantes.

—Sabe se os mesmos cavalheiros a frequentam todas as noites? —Demandou olhando por volta dos três que se sentaram em frente ao empregado.

Ele fechou os olhos e conteve a respiração. Não podia ser! Seus olhos lhe enganavam. Olhou de esguelha ao Trevor, tentando discorrer o motivo dele não se dar conta do que acontecia naquele lugar, mas após observá-lo com os olhos cravados nas prostitutas soube que por mais que ela se colocasse em frente a ele, não lhe teria prestado nenhuma atenção.

—O normal é que não permaneçam muito tempo no mesmo lugar —explicou sem apartar as pupilas das mulheres.

—São como insetos rodeados de flores, vão de um lugar a outro perdendo e ganhando —adicionou o dono do clube enquanto sorria lascivamente a uma de suas prostitutas. —Lindas, não é? —Disse de repente.

—As mesas? —Perguntou Michael confuso ainda por seu descobrimento.

—As mulheres... —discorreu Trevor. —São deusas do pecado, figuras com exuberantes curvas e incitadoras ao prazer. Desde que aparecem nos salões nenhum cavalheiro pode pensar em outra coisa que não seja escolher a adequada, apartá-la longe dos olhares e possuí-la. Como pode perceber, não há melhor forma de adquirir a fidelidade dos clientes.

—Você tem um conceito muito limitado sobre as mulheres —apontou Michael divertido.

—Você não? —Retrucou levantando as sobrancelhas.

—Não —Michael negou categoricamente.

—Pois não acredito que haja outra forma de defini-las. Tanto as damas da alta sociedade como as que percorrem as ruas dos subúrbios só provocam nos homens uma coisa: desejo. E, claro está, eu só sou um intermediário que, oferecendo aquilo que anseiam, vê como seu clube adquire uma boa posição nesta cidade —assinalou orgulhoso.

—Eu não estaria tão seguro dessa premissa —prosseguiu mordaz.

No fundo se alegrava de ter aceitado o caso da mesa número sete. Embora parecesse paradoxal, alguém ia baixar as fumaças do senhor Reform e que melhor opção que uma pessoa do sexo que menosprezava daquela maneira...

—Por que o diz? —Solicitou entreabrindo os olhos.

—Enquanto você centrou sua atenção nos decotes e nas curvas de suas empregadas, eu descobri o que acontece na mesa que tanto lhe preocupa —comentou dando a volta e apoiando a cintura no corrimão de madeira.

—Mentira! —Exclamou Trevor.

—O que aposta? —Desafiou-o enquanto cruzava os braços.

—Se solucionar o problema lhe darei tudo aquilo que me pedir —declarou solene.

—Parece-me justo posto que, possivelmente, arruinou-me uma noite bastante prometedora —conveio Michael. —Bem, deixe de cravar seus olhos nas curvas das rameiras e centre-se na mesa que tanto lhe perturba —indicou-lhe sem mover-se.

—O que vê?

—O meu empregado repartindo as cartas sobre a toalha de mesa a três cavalheiros que esperam ansiosamente pelos resultados que obtém a casa —explicou lacônico.

—Note o cavalheiro da esquerda, que está mais afastado. Não observa nada estranho nele? —Insistiu, contendo em suas palavras a gargalhada que estava a ponto de soltar.

—Salvo que apresenta uma vestimenta um pouco desalinhada, nada mais —comentou Trevor cravando seus olhos em dito personagem.

—Observe suas mãos, senhor Reform, não lhe parecem muito pequenas para um homem? Não lhe parece estranho que não tirou o casaco face à temperatura que mantém em seu local?

—Há muitos homens que se horrorizam dos corpos que seus progenitores lhes ofereceram. Talvez esse cavalheiro...

—E o que acontece ao seu rosto? Também é produto da genética que não possua uma sombra de pelo no queixo? —Insistiu divertido.

—Como pode apreciar esses detalhes daqui de cima? —Perguntou Trevor surpreso. —Eu mal distingo as cartas que o crupier mostrou.

—Qualquer um que tenha olhos para examiná-la, pode descobrir que...

—Examiná-la? —Trevor clamou atônito voltando-se para o inspetor. —Está me dizendo que há uma mulher disfarçada nessa mesa?

—Sim, e se minhas conjecturas não são falsas, ela será a culpada das perdas que tanto o atormentam. As duas mãos que jogou desde que me assinalou a mesa, ganhou-as. O que dizia sobre as mulheres? Que só serviam para distrair seus clientes e lhes oferecer o desejo carnal que requerem? Pois como pode perceber, enquanto você brinca de correr sob as saias de suas rameiras, ela se centra em ganhar cada partida que começa.

—Uma mulher! —Exclamou sem dar crédito às suas palavras. —Uma mulher! —Repetiu para assimilar o descobrimento. Seus olhos, injetados em sangue, ficaram cravados nela como se pudesse aniquilá-la de onde se encontrava.

—Sim, e agora, se me desculpar, tenho que prosseguir com a segunda parte do meu trabalho, que consiste em descer e prendê-la para que não continue com sua fraude —comentou Michael descruzando os braços e dando um passo para as escadas.

—Não o faça! —Ordenou Trevor lhe agarrando pelo braço e impedindo que avançasse.

—Como? —Perguntou observando aquela grande mão sobre seu antebraço.

—Não a detenha... ainda —murmurou soltando aquele agarre como se lhe queimasse. —Deixe-me averiguar como essa desgraçada saqueou meus lucros noite após noite. Além disso, eu gostaria de fazê-la padecer tudo o que me tem feito sofrer antes que se encontre entre as grades de uma de suas prisões —disse apertando a mandíbula com tanta força que uma leve dor de cabeça apareceu de repente. —Ninguém brinca com Trevor Reform sem levar um bom castigo —sentenciou.

—Não tenho nenhum problema em capturá-la outro dia, mas como compreenderá, se não acatar os mandatos legais aos quais declarei lealdade... —continuou Michael divertido enquanto dirigia o olhar para o mesmo lugar que Trevor: ela.

—Não ande com rodeios, inspetor. Devo-lhe um favor. Obrigado por resolver o caso e pode partir por onde veio —afirmou Trevor sem poder apartar o olhar daquela pequena figura que se escondia sob uma roupa muito grande.

Michael não replicou as ásperas palavras do dono do clube. E mais, perdoou-as porque, para seu prazer, a vida tinha dado ao vaidoso empresário um forte chute no estômago. «Por desgraça, senhor Reform, nada é o que parece nem ninguém tem a verdade absoluta», meditou ao mesmo tempo em que descia veloz para o primeiro piso. Devia dirigir-se o antes possível para a residência dos Dustings, ainda tinha a esperança de encontrar os Campbell na festa e, se Deus fosse piedoso, conceder-lhe-ia seu desejo de dançar pela primeira vez com April.


I

 

Quinta—feira, 15 de abril de 1868. Lar de Valéria Giesler.


—Por favor, não saia hoje —rogou-lhe Kristel quando Valéria pegou a peruca loira que tinha sobre a penteadeira. —Se suas suspeitas forem certas ele poderia te surpreender em qualquer momento e sabe o que poderia te acontecer se descobrirem quem é em realidade? —Adicionou com dramatismo.

Valéria, com a peruca nas mãos, dirigiu-se até a cadeira que havia ao lado de sua cama, sentou-se para embutir os sapatos, embora grandes para seus pés, eram os adequados para o traje e soprou. Não devia ter comentado com sua angustiosa amiga que desde sábado passado o senhor Reform, proprietário da casa de jogos a qual ia para obter os lucros que necessitavam, passeava pelos salões como se procurasse um diamante no chão. Mas aquela intuição de que algo ia mal a fez falar além da conta. Entretanto, até essa mesma noite, o comportamento inesperado do homem não lhe deu a entender que tinha alguma suspeita sobre ela.

Reform mantinha uma conduta distante, esquiva e, sobretudo, inalcançável. Nem sequer se dignava a falar com os sócios quando estes passavam ao seu lado e lhe saudavam com um leve movimento de cabeça. Déspota, orgulhoso, altivo e uma deidade eram as palavras que acompanhavam sempre o seu sobrenome. Valéria tentava não o olhar cada vez que aparecia pela mesa número sete, mas lhe resultava impossível não o fazer. Quem poderia apartar os olhos de um ser tão misterioso? Até as mulheres que trabalhavam ali olhavam ao senhor Reform como se quisessem lhe comer. Escutou em mais de uma ocasião como falavam sobre ele e elogiavam suas artes amorosas. Teria ficado com todas? Por isso falavam daquela forma tão desinibida? Seria um amante quente e carinhoso embora se mostrasse tão frio e descortês? Levantou-se da cadeira ocultando o rubor de suas bochechas. Não era adequado que sua amiga percebesse o que aquele homem lhe provocava. Se Kristel soubesse até que ponto a alterava quando caminhava próximo a ela, fecharia a porta com chave e a engoliria no mesmo momento.

Retornou ao pequeno toucador para confirmar que as presilhas se ajustavam convenientemente à sua cabeça. Ao observar seus olhos azuis refletidos no espelho, recordou os dele. Não mostravam nenhum tipo de sentimento ou emoção, eram tão escuros e frios como uma gélida noite invernal. Acaso o próprio diabo estava encarcerado naquele corpo? «O que importa? —Disse-se. —O único no qual deve se centrar é em ganhar cada partida. O que faça ou o que sinta esse ambicioso homem de negócios, não tem com o que se preocupar». Não obstante, e apesar desse firme pensamento, a imagem do senhor Reform a assaltou de novo. Seu cabelo curto esticado para trás para controlar qualquer cacho indomável. A mandíbula firme, severa, masculina, oculta sob uma pequena barba raspada com elegância... e sua grande figura.

Valéria tinha certeza de que o senhor Reform podia rodear-se de uma centena de pessoas e que se destacaria sobre todas elas. Era um homem muito alto, de costas largas. Suas pernas, esbeltas e musculosas, elevavam-no e o engrandeciam em frente aos outros. Seria esse o motivo pelo qual se negou a aparecer no outro clube? Sentia-se atraída por aquela figura inalcançável? Porque, para sua segurança, a opção de visitar o outro clube era a mais adequada. O dono não lhe seria nenhum problema posto que, ao ser tão maior, não abandonava o dormitório onde vivia e os empregados estavam mais concentrados em manipular as partidas que em fazer as bancas ganharem. Mas não gostava do trabalho fácil e recusou essa alternativa, ou talvez teimasse em depená-lo, àquele rufião que alardeava sua superioridade e menosprezava a vida dos outros.

—Possivelmente tudo foi produto da minha imaginação —disse para não preocupá-la mais. —Se pensar com atenção é lógico que o dono do clube governe as salas para confirmar que nada altere a paz de seus clientes.

—Mas... não deve se sentir cômoda com todas essas mulheres metidas rondando ao seu redor, mostrando sem pudor seus seios ou suas nádegas —acrescentou Kristel com a esperança de fazê-la repensar.

—Nem as olho —assegurou Valéria, centrando-se na tarefa de fechar o cinturão. Devia deixar o objeto com bastante folga para dissimular a silhueta de seus quadris. —Só conto às cartas que o crupier põe sobre a mesa.

—Nem as olha? —Repetiu incrédula sua amiga.

—A elas? Não, para que? —Retrucou voltando-se para o espelho. Sim, não havia dúvida, com aquelas roupas que tinha guardado de seu pai parecia mais um moço fraco e esquálido que uma mulher que tinha ultrapassado os vinte e cinco anos.

—Não sei... eu as observaria de vez em quando, só para saber como são e por que os cavalheiros não podem apartar suas mãos delas —expôs olhando Valéria como se precisasse desculpar-se por ter esse pensamento.

—Pois são mulheres como você ou como eu. Ganhamos o salário com o dom que possuo para os números e elas oferecendo quão único entesouram: seu corpo —acrescentou tocando o tecido do casaco que lhe tinha estendido Kristel.

Devia comprar outro o antes possível. Esse, embora lhe tivesse muito carinho, logo chamaria a atenção por sua imagem tão desalinhada. Por desgraça, os cavalheiros que visitavam o clube vestiam-se de maneira imaculada e quão único ela podia oferecer era um suave aroma de canela que logicamente, passada a noite naquele esconderijo cheio de fumaça, eliminava-se com rapidez.

—Eu não sou como elas... —resmungou Kristel. —Além disso, quem quereria se deitar com uma mulher que coxeia quando caminha? —Soprou.

—Um homem que não se importe com esse pequeno defeito físico. Um homem que quando descobrir quem é a pessoa que há embaixo essa aparência, seja capaz de te adorar como o faço eu —disse abraçando-a para acalmar aquele pesar que sentia desde que se fizeram amigas.

—Não deveria ir... —insistiu Kristel sem soltá-la.

—Tenho que fazê-lo —perseverou Valéria enquanto retirava com suavidade os braços que a rodeavam com tanta força que lhe impediam até de respirar.

—E se o senhor Reform te descobrir e chamar as autoridades? —Insistiu no tema que a mantinha tão alarmada.

—Não têm nada contra mim. Além disso, se descobrirem que uma mulher esteve em um clube de homens depenando as bancas e os jogadores que a acompanhavam, os periódicos ecoariam a notícia e o pobre senhor Reform veria como seu queridíssimo clube se arruinaria devido ao escândalo —respondeu com tanta segurança que, por um instante, Kristel pareceu convencida.

Não, não podia pensar que em algum dia alguém revelaria seu segredo. Levava várias semanas, sentada naquela cadeira, para conseguir o que havia se proposto e a presença daquele tenebroso homem não a faria retroceder em sua decisão. Tinha prometido à sua mãe em seu último fôlego de vida e, embora terminasse encerrada em um austero cárcere, cumpriria essa promessa.

—Eles não suportariam a perda de sua irmã —alegou Kristel quando Valéria se aproximou dos pequenos para lhe dar o acostumado beijo antes de partir. —Não crê que já sofreram bastante?

—Eles necessitam do futuro que lhes prometi. Já sabe que Martin sonha cuidar do rebanho que compraremos e Phillip quer encarregar-se da semeadura que teremos nesse formoso campo. Seria uma desgraça não cumprir seus sonhos —indicou depois de lhes beijar as ruborizadas bochechas.

Os pequenos mal sentiram aquela carícia em seus rostos, por sorte dormiam placidamente. Antes não era assim. Despertavam no meio da noite chorando ou gritando devido à fome que suportavam. Mas desde que decidiu levar a cabo seu plano, tanto ela como Kristel podiam comprar no mercado tudo aquilo que necessitavam e manter seus pequenos estômagos repletos de mantimentos. Isso provocava neles uns sonhos tão intensos e reparadores que, uma vez fechados seus olhos, nada os despertava. Como ia deixar tudo por uma intuição? Como podia voltar a escutar aqueles tristes lamentos produzidos pela fome? Não, de maneira nenhuma. Embora tivesse que passar o resto de sua vida afastada das pessoas amadas, tinha que ser forte e continuar, e se para isso tinha que enfrentar-se cara a cara com o próprio senhor Reform, faria!

—Uma desgraça seria que algum dia sua irmã mais velha não aparecesse por essa porta para abraça-los e mimá-los —declarou Kristel zangada.

—Mas, por sorte, —disse aproximando-se de novo de sua amiga —teriam ao seu lado uma maravilhosa mulher que os cuidaria como se fosse eu e estou segura de que não notariam minha ausência —acrescentou lhe dando um beijo na bochecha. —Já sabe onde está o dinheiro e o que deve fazer se eu não aparecer.

—Sim, sei —respondeu através de um enorme suspiro.

—Descansa um momento. Prometo-te que voltarei o antes possível —manifestou antes de fechar a porta com muito cuidado.

Quando saiu, Valéria subiu as lapelas do casaco para resguardar-se do frio. Depois de rezar, como a cada noite, às almas de seus pais para que a ajudassem a retornar, dirigiu-se para o clube. Muito em breve alcançaria a soma necessária para não visitar mais aquele lugar empesteado de fumaça e de cavalheiros desavergonhados. Deixariam de viver em Brick Lane e poderiam partir os quatro para o povoado onde lhes esperava aquela pequena fazenda em que viveriam felizes. Uma vez obtido isto, deixaria seu passado naquela miserável cidade, apagando de suas mentes as calamidades que tinham padecido desde que ficaram órfãos.

Agasalhada e oculta sob a escuridão da noite, continuou andando até que chegou à rua onde se encontrava o clube. Durante todas as noites que tinha ido até o momento jamais se decidiu a olhar para o primeiro piso, lugar onde se dizia que o dono tinha seu escritório e as habitações que requeriam seus clientes. Entretanto, a mudança de atitude do senhor Reform a tinha deixado tão alterada e alarmada que se decidiu elevar o olhar e cravá-lo nessa parte do local que não estava acostumada a observar.

De repente, as forças de suas pernas começaram a desaparecer e notou como se diminuíam os batimentos do seu coração. Estava ali. Aquela silhueta que seria achada sem esforço algum permanecia na janela como se a estivesse esperando. A luz alaranjada que o iluminava lhe oferecia uma visão mais aterradora que a que já possuía. Que diabos olhava? Por que notava uma comichão lhe percorrer o corpo? Sua intuição seria certa? Ele sabia quem se ocultava embaixo daquelas roupas masculinas? Ardiloso, hábil e perspicaz eram outros adjetivos que os cavalheiros utilizavam para descrevê-lo. «Não pense tolices, Valéria —animou-se. —Esse cretino só olha em volta da rua para contar quantos cavalheiros se aproximam hoje do seu local, nada mais». Custou-lhe muito apartar o olhar daquela imagem perigosa, mas quando o obteve, cravou-a no chão e prosseguiu o caminho para a entrada do edifício. Não podia preocupar-se com outra coisa que não fosse ganhar todas as partidas possíveis, em retornar ao seu, por agora, lar e fazer desaparecer esse palpite que lhe gritava que tudo estava a ponto de mudar...

Como era habitual, ao pôr um pé na primeira escada do local, um servente lhe abriu a porta e lhe deu as boas vindas.

—Permite-me pegar seu casaco, senhor? —Perguntou-lhe como estava acostumado a fazer cada vez que aparecia.

—Não, muito obrigado —comentou endurecendo a voz—. Não desejo adoecer, por permanecer umas míseras horas aí dentro. O dono deste clube deveria prestar mais atenção à temperatura que possui o interior.

—Far-lhe-ei chegar sua queixa, senhor. Espero que passe uma boa noite —disse o empregado para despedir-se.

Sempre lhe respondia igual, mas até o momento nem lhe tinham obrigado a tirar o casaco nem o próprio senhor Reform lhe tinha pedido desculpas por não avivar os fogos das lareiras. Como ia centrar-se em semelhante trivialidade? Ele não poderia esbanjar seu valioso tempo em ninharias porque, se o fizesse, não poderia desfrutar do prazer que lhe proporcionaria introduzir-se em uma tina repleta de champanha com suas putas... outro inesperado rubor apareceu em suas bochechas. Por que lhe fervia o sangue ao pensar tais tolices? Por raiva. Sim, Valéria se encolerizava ao observar o comportamento miserável de uma pessoa que não recordava seu passado, onde as calamidades eram a sombra diária. Esqueceu tudo isso para dar passo a um presunçoso e avaro homem de negócios.

—Desculpe minha estupidez —disse uma voz após lhe dar um empurrão que quase a fez cair de costas.

Valéria levantou seu rosto para repreender a inapropriada estupidez do cavalheiro, mas ficou muda. Reconheceu com rapidez aquele corpo hercúleo e aqueles olhos tão negros como o carvão. O que fazia o inspetor ali? Por que mostrava um estranho brilho no olhar? Tremendo de medo, abaixou a cabeça e lhe respondeu.

—Não se desculpe, eu tampouco olhei por onde ia.

—Sendo assim, —disse com um tom que à Valéria pareceu zombeteiro —boa noite, cavalheiro, e lhe desejo uma noite afortunada.

—Obrigado —disse-lhe com voz tremente.

Com passo rápido, deixando atrás aquele homem que desprendia seriedade e perigo, dirigiu-se para a sala onde devia permanecer nas horas seguintes. Talvez hoje aceitasse aquela taça de boas-vindas que os garçons ofereciam aos sócios assim que chegavam, para acalmar a intranquilidade que a presença do inspetor lhe outorgou. Olhou ao seu redor procurando a outra figura masculina que tanto a aterrava. Por sorte para ela, ainda não rondava pela região. O que teria acontecido para que o senhor Reform chamasse o agente? A intuição, aquela que lhe impedia até de respirar, assinalava-a que tinham descoberto seu segredo? Não, não podia ser esse o motivo porque, se fosse, ela não teria acessado ao local, o inspetor a teria aprisionado sem duvidar um só segundo.

Suspirou fundo tentando encontrar o controle que tinha perdido após achar a pessoa que poderia mudar o rumo de sua vida, mas... quem pode relaxar-se em uma situação igual? —Senhor... —disse um empregado. —Aceita...?

Valéria não escutou o moço terminar a pergunta, agarrou a primeira taça que encontrou ao seu alcance, bebeu-a de um gole e logo fez o mesmo com outra.

—Delicioso —comentou estalando a língua. —Tem que dizer ao senhor Reform que cumpre as expectativas de seus ambiciosos clientes.

—Far-lhe-ei saber —respondeu o empregado antes de despedir-se com um leve movimento de cabeça.

Com o licor percorrendo sua garganta, esquentando o estômago que permanecia vazio, Valéria avançou para a sala onde esperava, enfim, poder jogar. Devagar e sem querer chamar muito a atenção, colocou-se no assento mais afastado da porta, onde não poderia vê-la salvo se se sentasse ao seu lado. Por que pensava tão frequentemente nele? Por que a preocupava tanto se decidisse descer do escritório e passear por seu local? A resposta lhe golpeou a cabeça como se fosse uma grossa bengala: porque se se cumprisse a advertência de Kristel, não voltaria a ver seus irmãos.

—Boa noite, milord. Cartas? —Perguntou o crupier quando ela tomou assento.

—Sim —respondeu enquanto colocava a mão no bolso direito para tirar as nove fichas que guardara da noite anterior.

Como sempre fazia, contou-as e colocou sobre a toalha de mesa a de menor valor. Esse era o sistema que utilizava: começar com a menor e conforme apareciam às cartas, e depois de calcular a possibilidade de achar o melhor resultado, aumentava ou parava. Valéria tinha certeza de que se alguns dos ali presentes estivessem mais interessados em saber que cartas podiam aparecer em vez de distrair-se com as fulanas que o senhor Reform tinha contratado, não partiriam aos seus lares com os bolsos vazios.

—Tem um dom, —disse o senhor Fhiodher numa tarde de verão, o professor que, clandestinamente, dava-lhe aulas depois de que Valéria realizasse os afazeres pelos quais tinha sido contratada —e deveria aproveitá-lo.

—Não acredito que, no futuro me permitam utilizá-lo para algo —comentou-a olhando de novo os livros que tinha sobre a mesa.

—Se estivesse em seu lugar o faria —insistiu o professor.

—Não se dá conta de que sou uma mulher? —Perguntou apartando os livros da mesa com um tapa.

—E? —Perseverou o ancião recolocando em seu lugar os tomos que tinham caído ao chão.

—Contar, somar, multiplicar ou solucionar algoritmos não será de utilidade para mim. Como já sabe, meus pais só pensam em encontrar um bom marido e me converter em uma esposa respeitável.

—Bom..., —murmurou enquanto agarrava suas mãos pelas costas e se dirigia para o quadro-negro que tinha pendurado na parede —uma esposa eficiente pode levar as contas do lar.

—Não me deprima mais —expressou Valéria pregando seu rosto às capas daqueles livros de álgebra. —Crê de verdade que um marido deixaria a sua esposa realizar tais tarefas? Se algum dos que tenta me cortejar descobrir que posso solucionar problemas aritméticos que eles não fariam em anos, queimar-me-iam em uma fogueira por bruxaria.

—É muito inteligente e, se fosse você, utilizaria esse engenho para conseguir aquilo que me proponha. Talvez um dia encontre esse homem que, não só se apaixone por sua beleza, mas também por aquilo que guarda em sua mente.

—Não quero um marido, senhor Fiodher! Quero retornar Alemanha! Acredita que calculando frações ou solucionando teorias sobre as relações binárias retornarei ao país do qual não devia jamais ter partido? —Soltou irônica.

—Se for capaz de deduzir o tempo, o custo e como sair de sua habitação sem que seus pais saibam até que esteja dentro de um navio que tenha zarpado na semana anterior, possivelmente... —respondeu-lhe com um enorme sorriso.

—Blackjack? —Perguntou o crupier despertando-a da lembrança.

—Para começar, está bem —afirmou olhando sem piscar as duas cartas que o empregado colocou ao seu lado.

—Aumenta a aposta, senhor? —Perguntou intrigado o moço.

—Sim, aumento... —respondeu colocando sobre a ficha anterior mais duas.

 

 

«Valéria Giesler...», sussurrou para si Trevor enquanto colocava a jaqueta do traje. Em nenhum momento tinha imaginado que ela tivesse origem alemã, embora claro, tampouco tivesse pensado alguma vez que uma mulher se disfarçaria de homem e entraria em seu clube para partir com os bolsos repletos. Por isso pensou que era uma empregada do Hondherton, como ia pensar em outra razão? Mas esclarecida a dúvida sobre o tema de espionagem, centrou-se no verdadeiro motivo; ela era uma órfã que tinha sob seu amparo dois irmãos e os sustentava com os lucros que obtinha no jogo. Mas isso não justificava a fraude que realizava. Tinha muitas formas de adquirir a fortuna que requeria para sobreviver sem pôr em perigo a reputação de seu clube. «Sempre ganha e de maneira limpa», meditou Trevor saindo de seu escritório.

Desde que o inspetor lhe explicou seu achado, tinha permanecido mais tempo do que estava acostumado a empregar nos salões. Observava, com discrição, as jogadas dela e, em nenhum momento, roubava nem enganava. Sua forma de apostar era calculada, racionada e, é claro, esquiva e receosa. Em várias ocasiões, quando ela fixava seus olhos nas cartas, podia apreciar como aquela pequena cabeça premeditava, com incrível precisão, que carta apareceria depois. Como o fazia? Acaso era uma jogadora inveterada ou talvez tivesse memorizado alguma fresta no baralho? Não, isso tampouco podia ser. Todos os crupieres começavam a noite com cartas novas que ele mesmo revisava com exaustão. Então... como conseguia ganhar todas as partidas?

Intrigado por saber a verdade, Trevor decidiu achar a resposta nessa mesma noite. Antes de descer pelas escadas de sólido carvalho escuro, apoiou as mãos sobre o corrimão e a contemplou acessar ao interior do hall. Seguia ocultando seu corpo com aquele casaco que varria o chão ao seu passo. Reform franziu o cenho ao perceber que o inspetor se dirigia diretamente a ela. Suas palmas se estenderam pelo corrimão e o agarrou com força. Tinha lhe solicitado que não se aproximasse, que não a investigasse, que se esquecesse de Valéria, porque ela era seu problema e devia resolvê-lo sem a ajuda de ninguém. Com os olhos marrons cravados nessa cena, contemplou como o rosto da mulher empalidecia ao descobrir quem era a pessoa com quem tinha tropeçado. «Maldito seja!», grunhiu Trevor. Não queria que abandonasse o clube assustada ante a presença de Michael. Se o fizesse, ela partiria nessa mesma noite, temia que não voltasse a vê-la e, embora lhe parecesse estranho, agradava-lhe sair de seu escritório para espiá-la.

De soslaio apreciou como um dos empregados se aproximava da porta por onde apareciam as mulheres que entreteriam afamados clientes. Nesta ocasião, não gostaria que rondassem com seus típicos movimentos atrevidos. Desejava manter-se concentrado no comportamento de Valéria, mas lhes tinha prometido um bom trabalho, um bom salário e devia cumprir com sua palavra. Com inapetência, levantou a mão para que o criado acatasse a ordem e, como era habitual, este abriu a porta para que saísse aquela dúzia de atrevidas procurando seu pagamento.

Com o cenho franzido, desceu as escadas. Devia continuar com aquela discrição que tinha mantido desde sábado. Ninguém parecia estranhar sua mudança de atitude, talvez porque todo mundo supunha que, como dono de um lugar assim, era seu dever rondar pelos salões para confirmar que tudo estava em ordem e que não se armaria nenhuma confusão entre os jogadores. Antes que Valéria aparecesse, designou essa tarefa ao Wolf, apelido que lhe caía perfeitamente, mas desde que abandonara o escritório, desde que tinha um estímulo para levantar do cômodo assento, ele mesmo se ocupava dessa segurança. Embora não fosse a primeira vez que empregava as grandes dimensões de seu corpo para acalmar os delírios de algum sócio... sem ir mais longe, no mês anterior teve que esquivar uma navalha que ia diretamente ao seu peito. «Afazeres habituais», definia ele as brigas que se iniciavam sem poder apaziguá-las antes que voassem as cadeiras ou os clientes saíssem apavorados.

Com a firme ideia de continuar com esse reconhecimento rotineiro, Trevor caminhou pelo grande corredor olhando de esguelha aquela região. Não havia ninguém com ela salvo o crupier. Berwin teria razão? Seus sócios começavam a pensar que a mesa estava maldita? Porque não era normal que, passadas às dez da noite, ninguém se decidisse a jogar naquele lugar. Zangado, caminhou diretamente para eles. Como atuaria quando a descobrisse? Partiria alegando qualquer desculpa? Ou, pelo contrário, continuaria jogando como se ele não existisse? Trevor notou uma dor estranha em seu estômago. Estava nervoso? Alterava-o enfrentá-la? Ou só se tratava daquele orgulho masculino que lhe gritava o ridículo que se encontraria se perdesse ante uma mulher? Não, isso não era motivo suficiente para sentir tal pontada dolorosa. Algo, um palpite, um pressentimento, golpeava seu peito para lhe indicar que a decisão que acabava de tomar não era a adequada. Por quê? Acaso não seria capaz de levar a cabo seu plano? Claro que o faria! E, uma vez que ela não tivesse escapatória, uma vez que fosse consciente de que sabia quem se ocultava sob a esfarrapada vestimenta, desfrutaria humilhando-a.

Devagar, para não a alterar ainda, desabotoou-se a jaqueta e se sentou ao seu lado. De repente, um arrebatador perfume de canela chegou ao seu nariz. Provinha dela? Valéria utilizava o aroma de uma especiaria para orvalhar seu corpo? Essa pergunta o conduziu diretamente a uma imagem que não devia permitir-se porque quão único pretendia era envergonhá-la, não imaginar como se veria nua com só esse perfume a cobrindo enquanto sorria perversa sobre seu leito.

—Senhor Reform —saudou-o o crupier, assombrado ao vê-lo aparecer.

—Boa noite, Gilligan. Esperarei que o cavalheiro termine sua partida —disse pegando um havanês para acendê-lo enquanto chegava seu turno.

Olhou de esguelha à Valéria, que se encolheu ao perceber sua presença. «Teme-me? —Perguntou-se. —Aconselho-a que o faça, porque vai pagar tudo o que me fez desde que pôs um pé em meu clube», sentenciou zangado.


II


Em silêncio e com o profissionalismo que costumava, o crupier mesclou as cartas, colocou-as sobre a mesa e ela as partiu em dois. Atenta e sem pestanejar, deixou que os dois primeiros naipes ficassem em frente às suas mãos enquanto o moço obtinha as suas. Depois de rezar para que a sorte a acompanhasse, contou-as e as olhou sem piscar. Não podia ser! Segurando a irritação que lhe produzia ter cartas desastrosas, sorriu como se tivesse a melhor jogada de sua vida.

—Alguma mais? —Demandou o moço.

Estava a ponto de lhe responder que sim quando alguém se sentou ao seu lado. Em um primeiro momento não reparou de quem se tratava, porque lhe faltavam dez pontos para alcançar o vinte e um e não podia descuidar-se. Mas quando apreciou como a respiração do empregado se entrecortava, olhou de esguelha para averiguar quem poderia alterar dessa maneira o jovem.

—Senhor Reform —disse este com um tom de voz que denotava assombro.

—Boa noite, Gilligan, esperarei que o cavalheiro termine sua partida —comentou ao mesmo tempo em que procurava algo em um de seus bolsos.

Valéria esteve a ponto de levantar-se e deixar a jogada sem finalizar. De todas as maneiras, parecia que a sorte tinha mudado depois da aparição do dono do clube. «Está maldito —disse uma voz em sua cabeça. —Vá, foge o antes possível daqui. Esse homem escuro só te atrairá má sorte».

—Boa noite, espero que minha presença não interrompa sua jogada —disse Trevor ao perceber que ela movia inquieta seus pés, como se estivesse decidindo partir.

—Não, claro que não —respondeu Valéria com aquela voz que tentava manter para aparentar um menino em plena puberdade.

—Manter-me-ei calado até que finalize, juro —comentou ele enquanto prendia seu havanês.

—Senhor? —Perguntou o crupier à Valéria ao ver que não tinha prestado atenção à carta que lhe tinha posto sobre a mesa.

—Sim, é claro —respondeu. Com o olhar em suas cartas, fazendo uma recontagem de possibilidades para alcançar os seis pontos que lhe faltavam e deduzindo quantas necessitaria o crupier para pontuar, Valéria perdeu a noção do tempo porque a concentração que requeria desapareceu ao respirar o aroma de tabaco. Como poderia gritar ao dono do clube que eliminasse aquela pestilência?

—Oferecerá uma nova aposta? —Interveio Reform depois de jogar pela boca, de maneira suave e pausada, a fumaça que tinha inalado.

—Como? —Disse Valéria enquanto seus pés repicavam no chão.

—Meu empregado lhe perguntou se prossegue ou se detém —esclareceu.

Valéria olhou assombrada ao dono do clube e logo ao empregado, que confirmava as palavras com um suave movimento de cabeça.

—Peço uma nova carta —disse enfim. —Por favor, se fizer a gentileza de apagar esse charuto, o agradeceria. A fumaça cinza que sai por sua boca está me desconcentrando —indicou zangada.

—Não fuma? —Perguntou dirigindo o charuto para ela.

—Bebe, talvez? —Insistiu sem apartar os olhos daquele semblante que, para seu deleite, tinha tomado uma cor vermelha. «Azuis. Tão azuis como o próprio céu», refletiu Trevor sobre os olhos de Valéria.

—Não, obrigado. E agora, se não lhe importar, não se mova, não fale e, se for possível, não respire até que eu finalize a partida. Uma vez terminada, deixar-lhe-ei espaço suficiente para que prossiga divertindo-se com esses vícios repulsivos —apontou irada.

—Repulsivos... —murmurou Trevor antes de apagar o charuto no cinzeiro de cristal que havia em frente a ele. —Pois este vício repulsivo —acrescentou ironicamente —tem um custo de duas libras por peça.

—Pois é uma lástima que uma pessoa esbanje seus lucros desse modo quando há tanta gente que morre de fome pelas ruas —apontou girando de novo o rosto para o crupier e centrando sua atenção nas cartas. —Duas mais, por favor —assinalou ao Gilligan, que observava a cena com uma mescla de medo e interesse.

«Cabelo escuro», disse-se Trevor. No brusco movimento ela não se dera conta de que a peruca se torcera levemente e, pela orelha direita uns fios de cabelo negro tinham a intenção de sair. Aniquilado, mais do que deveria mostrar um homem em frente a outro, ficou observando aqueles fios escuros, depois baixou o olhar lentamente pela bochecha, ruborizada ainda, prosseguiu com o pescoço e ficou justo nessa parte do corpo ao escutar como seu empregado pigarreava. Com rapidez apartou o olhar, mas foi impossível não o dirigir para as mãos. Aquelas das quais tinha falado o inspetor. E tinha razão. Não eram masculinas, mas sim femininas. Os dedos de pequeno tamanho criavam uma perfeita harmonia com as palmas. Suaves, deviam ser muito suaves porque não achou nenhuma fresta de dureza nelas. As unhas, cortadas como mostraria um cavalheiro, estavam impolutas. Como podia manter mãos tão cuidadas vivendo em um bairro como Brink Lane? Porque ele recordava, vagamente por sorte, que as paredes sempre estavam sujas iguais aos chãos. Podiam-se encontrar, em cada passo que se davam, vagabundos sentados ou tombados sobre os paralelepípedos, bêbados, putas, meninos imundos chorando... onde se resguardava para cuidar-se daquela forma?

—Bem! —Exclamou de repente Valéria.

—A casa perde... outra vez —disse Gilligan olhando ao dono com temor.

—Bom, pois, alcançado meu objetivo por esta noite, deixo-lhe que prove a sorte você também —comentou Valéria levantando do assento.

—Parte? Incomodei-o com minha repugnante fumaça? —Repreendeu mordaz.

—Como lhe disse, cumpri meu objetivo —reiterou enquanto recolhia as fichas para colocá-las no bolso.

—Que objetivo era? Se pode revelá-lo, é claro —persistiu em conversar para que não partisse.

—Ganhar —afirmou ela com veemência.

—Quanto?

—O suficiente —resmungou Valéria.

—Não quer seguir tentando a sorte? —Perguntou Trevor arqueando as escuras sobrancelhas. —Estive esperando aqui sem fumar, sem beber e sem mal respirar adequadamente para me converter em seu próximo competidor.

—Quer jogar comigo? —Soltou assombrada. Ao ver como afirmava cabeceando ligeiramente, prosseguiu: —Sinto-o, em outra ocasião —desculpou-se colocando a arrecadação no bolso com tanta rapidez como lhe permitiam suas mãos trementes. —Hoje tenho muita pressa, não posso me entreter com uma jogada mais.

—Far-lhe-ia mudar de opinião um suculento incentivo? —Retrucou Trevor pegando da banca quatro fichas de duzentas libras cada uma.

—Muito tentador... —disse Valéria olhando aquelas fichas.

Se ganhasse, se se atrevesse a jogar com aquele soberbo que a observava como se soubesse quem era, não retornaria ao clube de novo e conseguiria aquilo que tanto tinha sonhado. «E se perder? —Assaltou-a uma voz em sua cabeça. —Hoje conseguiu cem libras, menos do que obteve em anteriores ocasiões, mas... isso é melhor que nada!».

—Não lhe parece uma aposta considerável, senhor...? —Insistiu Reform.

—Hernández —disse sem pensar o sobrenome de solteira de sua mãe

—Espanhol? —Perguntou Trevor movendo as quatro fichas entre os dedos de sua mão direita enquanto a olhava fixamente.

—Sim —respondeu com veemência.

—Ninguém o diria com esse cabelo tão... loiro —falou fazendo referência à cor daquela peruca horrorosa que ocultava sua verdadeira cor.

—Meus antepassados eram ingleses, assim é lógico compreender que algum familiar futuro poderia nascer com certas semelhanças a esses ancestrais —explicou sem meditar se ele entenderia o tema que já se começava a conceber como herança genética.

«Dá-te a impressão de ter em frente a ti um homem, que procura nas notas de imprensa algo mais interessante que averiguar as opiniões sobre seu clube?» Ante tal pensamento Valéria desenhou um leve sorriso em seu rosto. Não, ele não era esse tipo de homens. Não apresentava a imagem de um homem desejoso de conhecimento. Ele tinha bastante enchendo seus pulmões de fumaça negra e enchendo, a cada hora do dia, seu estômago de bom licor, sem esquecer as mulheres que se deitavam cada noite em seu leito.

E, de repente, o sorriso desapareceu.

—Posso lhe dar de presente uma das minhas fichas, se assim puder convencê-lo —perseverou Trevor percebendo uma repentina mudança no rosto dela. Primeiro parecia divertida, mas logo pensou em algo que transformou essa diversão em ira.

—Obrigado, como lhe disse, minha noite terminou neste momento —anunciou Valéria dando um passo para a saída.

—Duas? —Insistiu Trevor que, inapropriadamente, agarrou-lhe o braço com sua mão esquerda.

—Desde quando o dono do clube se digna a jogar com os sócios? —Inquiriu Valéria zangada cravando seus olhos naquele agarre.

—Desde que decidi abandonar meu escritório e desfrutar das agradáveis companhias —esclareceu sem soltá-la.

Valéria o contemplou em silêncio. Para seu pesar, o homem que se encontrava ante ela era tão enigmático como terrível. O traje negro perfeitamente confeccionado para sua corpulenta figura proporcionava-lhe uma imagem sombria, lôbrega. Só a cor perolada da camisa lhe oferecia um matiz de luminosidade. Devagar, observou aquele rosto duro do qual todo mundo falava e que tinha visto desde sábado com muita frequência. Solene, essa era a palavra que melhor o descrevia. Os olhos não eram negros, como sempre imaginou, tinham uma cor marrom, âmbar. A barba, que só cobria uma pequena porção do queixo e luzia, extensa por cima do lábio superior, era tão negra como o carvão. Dura, sim, espessa e dura. Respirou fundo tentando não se deixar levar por aquele rosto varonil que se dirigia a ela, por aquele olhar enigmático que parecia despi-la. Não, ele não poderia supor que embaixo daquelas roupas, não acharia o corpo de um homem e sim o de uma mulher que, embora não devesse, aceitava sua oferta com a firme intenção de ganhar e não voltar a vê-lo nunca mais.

—Se tanto interesse tem em perder, senhor Reform, coloque essas quatro fichas em meu lado da mesa e recolha outras para você —disse com decisão.

—Perfeito! —Exclamou eufórico enquanto a liberava enfim. —Gilligan embaralha de novo. O senhor Hernández e eu vamos jogar.

—Que benefícios obterei se ganhar? —Perguntou Valéria sentando-se de novo.

—A quantidade que possui suas fichas mais as minhas —respondeu com firmeza.

—Mil e seiscentas libras? —Disse atônita.

—Se ganhar, claro está, essa quantidade será sua, mas se perder, dever-me-á oitocentas —conveio Reform. —É o justo, não crê? —Perseverou ao ver como ela franzia o cenho.

—Não tenho tanto dinheiro, senhor Reform —disse tentando levantar do assento. Então ele a agarrou de novo evitando que partisse.

—Poderá me pagar esse valor quando desejar, senhor Hernández, e se para isso deve aparecer todas as noites pelo clube, o receberei em meu escritório e irei lhe descontando cada penique que me ofereça —esclareceu.

Como lhe tinha ocorrido essa ideia? O cérebro de Trevor não parava de pensar na opção que acabava de lhe expor. Vê-la todas as noites? Mas não tinha decidido desmascará-la assim que tivesse a menor oportunidade? Sobressaltado por seu inapropriado comportamento, abriu a mão e a soltou.

—Mas se tiver dúvidas sobre suas competências no jogo... não lhe impedirei que parta —asseverou.

Valéria não sabia que decisão tomar. Era uma oferta muito tentadora. Se ganhasse não teria que retornar jamais e poderiam partir na manhã seguinte para aquele pequeno povo que tanto desejava, mas se pelo contrário, perdesse, encontrar-se-ia em uma encruzilhada da qual nunca se liberaria. Olhou aquela mão que tinha agarrado seu braço em duas ocasiões em menos de um minuto. Guardaria algum ás sob a manga? Ou só era um capricho do senhor Reform? Tão pouco lhe importava seu dinheiro que o obsequiava sem mal piscar? «O que são mil e seiscentas libras, para um homem como ele? —Perguntou-lhe a voz em sua cabeça. —Uma miséria, só isso. E para você? O que te significaria? Por fim alcançaria seu desejo. Acaso não o que persegue desde que entrou por aquela porta? Seja forte Valéria, e elimine esse ar de superioridade que mostra ante qualquer pessoa que o olhe».

—Está bem! —Exclamou derrubando-se no assento. —Aceito sua proposta, mas tem que me prometer que se eu ganhar a partida me dará isso sem pôr nenhuma objeção mais.

—Juro pela minha honra —disse Trevor depositando as fichas sobre a mesa para estender sua mão para ela e selar, com esse gesto, o pacto.

—Bem, —assinalou aceitando o estreitamento —se é assim, comecemos.

Reform tentou dissimular a sensação que teve ao tocá-la. Em efeito, aquela mão era suave, muito suave e pequena, tão pequena que se perdeu entre a sua. Com os olhos cravados na mulher, observou como retornava a jogadora que tinha contemplado desde sábado. «Concentração —disse-se. —A chave está na concentração».

—Pôquer de cinco? —Perguntou o crupier aproximando o baralho ao Reform para que ele mesmo cortasse as cartas.

—Senhor Hernández? —Disse-lhe dando aquela honra.

—Sim, pôquer de cinco —afirmou dividindo o baralho em duas partes virtualmente iguais.

Nunca na vida se encontrou em uma posição tão difícil. Se a sorte estivesse do seu lado, adquiriria tudo o que tinha sonhado em uma só jogada. Mas se perdesse, encontrar-se-ia atada a um contrato que demoraria meses em finalizar. Enquanto o crupier lhes repartia as duas primeiras cartas, o coração de Valéria palpitava desenfreadamente. Podia sentir o pulsar em sua garganta. Seriam os nervos? Começariam a trai-la? Tentou respirar de forma pausada para eliminar de uma vez por todas a tensão que sacudia seu corpo. Entretanto, resultou-lhe impossível fazê-lo. A mão que tinha estreitado ainda lhe queimava e aquele fogo abrasador se estendia por seu braço como se quisesse percorrer cada parte dela. Devagar, contendo o fôlego, olhou as cartas que lhe tinham repartido.

Não eram boas, mal podia alcançar uma mísera carta alta, mas não mostraria em seu rosto a decepção.

O crupier estendeu em frente a eles as primeiras três. «Seis de espadas, dois de copas e quatro de pau», pensou Valéria. De repente, uma sensação de prazer a invadiu. Podia ter uma oportunidade, embora não tinha nem a mais remota ideia de que cartas teria seu competidor. Olhou-o de esguelha tentando averiguar aquilo que tanto desejava. Tão somente tocava com sua mão direita as duas fichas que tinha guardado para seguir apostando. O estalo que estas faziam ao chocar sobre a mesa ressoou na cabeça de Valéria com força, causando-lhe uma inoportuna desconcentração. Por que lhe resultava tão difícil prestar atenção? Voltou à vista para suas cartas desejando que a próxima fosse adequada e que lhe permitisse resolver o antes possível aquele estado de descontrole que a perturbava. Eram as cartas ou a presença dele? Inspirou com força percebendo aquele perfume misturado com o aroma do tabaco que tinha fumado. Não lhe resultou desagradável apesar da pestilência da fumaça. «Se abandonasse esse detestável hábito —pensou —seria até sedutor».

—Aumento —disse Trevor depois de um leve silêncio. Colocou aquelas fichas que manuseava sobre as demais, justo em frente à do dealer.

Valéria notou como lhe percorria um calafrio dos pés à cabeça. Ali estavam as oitocentas libras de seu adversário. O que devia fazer? Fechou um instante os olhos para calcular que cartas poderia ter o senhor Reform. Os dados não eram suficientes para achar uma resolução correta. Ela tinha um seis de copas, que poderia utilizar com o seis de espadas para fazer um par, e um valete de paus.

—Senhor? —Perguntou-lhe Gilligan ao ver que permanecia ausente.

«Tudo ou nada», meditou ela.

—Aposto —respondeu enfim, retirando de seu lado àquelas duas fichas de duzentas libras. «Pai, mãe, ajudem-me», rezou.

O crupier aceitou a jogada e, depois de desprezar a primeira carta que havia no baralho, colocou a seguinte sobre a mesa.

«Meu Deus!», gritou a voz na cabeça de Valéria.

—Continuamos? —Demandou Gilligan ao observar a felicidade no rosto do senhor Hernández.

—Por minha parte sim —comentou-a com firmeza.

—Senhor Reform?

Trevor tentava aparentar tranquilidade. Essa era à base de um bom jogador, não mostrar aos outros o que escondia entre as mãos, mas o rosto se ruborizou de maneira involuntária. O ás de espadas e o três de paus tinham sido suas primeiras cartas e, embora rezasse para que a sorte estivesse de seu lado lhe outorgando a possibilidade de tê-la no clube durante mais tempo, não a teve.

—Sim —murmurou irado. Virtualmente atirou as cartas sobre a tapeçaria, amaldiçoando entredentes.

—Dois pares! —Gritou Valéria entusiasmada.

—O senhor Hernández ganha à partida —declarou o crupier sem apartar a vista do homem que lhe pagava religiosamente.

—Parabéns —comentou Reform levantando do assento.

—Obrigado —respondeu Valéria com um sorriso grandioso.

—Tal como lhe prometi, dar-lhe-ei seu ganho. Se fizer a gentileza de me seguir —indicou Trevor enquanto abotoava sua jaqueta.

—Segui-lo? —Disse ela abrindo os olhos como pratos.

—Acredita que tenho o dinheiro nos bolsos? —Demandou arqueando as sobrancelhas escuras. —Acima, em meu escritório, poderei saldar minha dívida. Além disso, vir-lhe-á bem certa intimidade. Não quererá ser atacado por algum ladrão que se oculte no local? Porque, embora invista uma incrível fortuna para manter protegido meu clube, muito me temo que mais de um cavalheiro que ronda os salões são estelionatários disfarçados —apontou mordaz.

Valéria tragou saliva, esticou as mãos em volta das oito fichas que devia recolher para efetuar aquele pagamento e apartou o olhar de Trevor para dirigi-lo para elas. Em sua mão tinha o sonho que tanto tinha desejado, e saldar enfim a promessa que fez à sua mãe. Só ficava um passo, subir ao escritório daquele homem e fazer o intercâmbio. Entretanto, aquela intuição que a tinha assaltado desde que Reform rondava pelos salões, intensificou-se. Seria pelo sarcasmo que tinha empregado em suas palavras? «Estelionatários disfarçados...». Saberia a verdade? Ou talvez tudo fosse produto de sua imaginação? O que ocorreria acima? Haveria alguém mais naquele lugar?

—Não quer seu ganho, senhor Hernández? —Perseverou Trevor dando a volta.

—Prometeu-me —grunhiu Valéria em voz baixa.

—E não faltarei à minha promessa. Mas se o quiser, tem que aceitar uma condição: que me acompanhe ao piso de cima —acrescentou sem alterar-se. —Tem medo, senhor Hernández? Acaso esconde algo que eu não deveria descobrir?

—Instigou-a.

—Não, é claro que não —declarou veementemente.

—Então, siga-me. Quanto antes saldemos esta dívida, antes poderá partir, porque se não recordar mal, tinha pressa —disse girando-se para a porta.

Valéria observou aquela figura alta e corpulenta sair da sala. O medo, aquele do qual o senhor Reform tinha feito referência, tinha-a paralisado. Não podia dar um só passo, nem respirar com normalidade. Apertou as fichas em sua mão enquanto recordava Kristel e os meninos. Eles a esperavam no lar, assim como esperavam que ela cumprisse os sonhos dos quais tanto falava. A encruzilhada era cada vez maior: subir e obter o dinheiro ou sair fugindo daquele lugar dando a entender que tinha enganado ao próprio dono do clube. Não, ela não o tinha enganado no jogo é sobre o que escondia sob as roupas, não devia pensar nisso. Era um homem, o senhor Hernández, e como tal precisava manter a atitude de um cavalheiro respeitável e honrado.

Colocou as fichas no bolso esquerdo, inspirou e avançou para aquela grandiosa figura que entrou entre a escuridão do saguão.


III

 


Subiu as escadas situadas na parte direita do hall, justo atrás dos grandes pilares de alabastro que adornavam a porta principal. Foi contando enquanto ia subindo. Vinte no total. Vinte longos e angustiantes degraus de madeira escura que a conduziriam até o escritório do homem que a ajudaria a cumprir a promessa que fez aos seus irmãos. Quando chegou ao patamar não pôde evitar olhar para baixo e, tal como já tinha imaginado alguma vez, contemplou a imensidão do lugar. No centro, o comprido e largo saguão dava as boas-vindas àquele que entrava nas salas de jogo. Quantos cavalheiros podiam rondar pela região? Oitenta, cem? Suas cabeças, bem escovadas, moviam-se igual a uma centena de formigas atarefadas.

Valéria apartou o olhar deles e o cravou no final do corredor. Ali se encontrava o salão de descanso. Nunca chegou até aquele lugar, mas sabia o que encontraria na última habitação. Conforme escutou, os cavalheiros iam àquele lugar para relaxar-se enquanto liam, conversavam, bebiam em frente ao calor de uma grandiosa lareira ou saboreavam os deliciosos jantares que o cozinheiro preparava a cada noite. Supôs que era o espaço idôneo para falar de negócios, de política ou talvez de se esconder do mundo que lhes rodeava. Voltou o olhar para a porta pela qual devia entrar. Uma luz alaranjada emergia dela. Valéria conteve o ar quando vislumbrou o movimento das chamas sobre a brilhante e lisa superfície. «Adiante», animou-se. Respirou profundamente e se colocou em frente à entrada para contemplar o que havia no interior.

As hipóteses sobre o que escondia o senhor Reform em seu escritório eram inumeráveis. Até diziam que tinha chamado um ferreiro para que forjasse uma jaula com o tamanho suficiente para colocar os que se atreviam a lhe roubar. Mas essa conjetura não era certa. O interior do escritório podia igualar-se a qualquer outro, salvo pelas dimensões deste e o enorme sofá colocado à sua esquerda. Permaneceu imóvel durante uns instantes nos quais ele não se dignou a levantar os olhos dos papéis que lia, e foi estudando cada rincão da habitação com meticulosidade. Além daquele grande sofá, onde imaginou que dormiria de vez em quando, havia uma mesa que podia alcançar uma longitude de oitenta polegadas. Entretanto, não era tamanho suficiente para albergar todos os papéis que havia sobre ela. Valéria podia jurar que não ficava nem um diminuto espaço sem ocupar.

Quando centrou a atenção nele abriu os olhos como pratos. Por mais ilógico que lhe resultasse, o senhor Reform se tirara a jaqueta do traje, ficando com aquele colete escuro e a camisa perolada da qual, para seu pesar, tinha desabotoado vários botões mostrando certo pelo de cor negra. Como podia comportar-se com tanto descaramento? O correto era continuar vestido de maneira adequada quando se esperava uma visita, mas pelo que tinha descoberto, aquele homem não tinha nenhum pingo de recato nem entendia de protocolos sociais.

Em silêncio, observou a ampla poltrona na qual estava sentado. Escura, sóbria e brilhante. Seria de pele autêntica? Provavelmente... duas cadeiras, com um respaldo curvilíneo, posicionavam-se em frente a ele. É óbvio, para não desafinar com a tonalidade ao seu redor, a cor também era escura; de onde se encontrava não pôde distinguir se eram negras ou marrons. Baixou o olhar para o chão que ia pisar. Da entrada se estendia um longo e estreito tapete com um laborioso desenho de guerreiros turcos elevados sobre seus cavalos. Valéria concluiu que, apesar de perceber que tudo o que ali se guardava podia custar uma fortuna, o senhor Reform tentava apaziguar a ostentação que manifestava no piso de baixo com um cenário singelo. Se isso era o que desejava expor, tinha-o obtido porque lhe resultou uma habitação bastante simples e, devido ao calor reconfortante da lareira, até agradável.

—Pretende ficar aí parado durante o resto da noite? Tenho muito trabalho a fazer e você tinha pressa em partir —apontou Trevor após observar como contemplava ao seu redor com bastante expectativa.

O que ela pensaria que encontraria? Um dragão convexo junto ao fogo? Ou talvez aquela jaula de ferro da qual todo mundo falava? Um pequeno sorriso curvou seus lábios, mas este desapareceu ao recordar que devia cumprir sua promessa o antes possível.

—Só admirava o que outros não alcançaram a ver —respondeu Valéria com aquele tom de voz que começava a lhe danificar a garganta.

—Pois se já se sente satisfeito, pode acomodar-se em uma dessas cadeiras —indicou pegando a garrafa de cristal esculpido que tinha à sua esquerda e enchendo um dos copos até a borda.

—Necessita que eu me sente? Não pode levantar-se e me dar o dinheiro aqui mesmo? Talvez meus imundos sapatos manchem este bonito e caro tapete —comentou a modo de evasiva.

—Não me faça perder mais tempo... —resmungou. —Entre de uma vez e feche essa maldita porta —continuou com tom irado. —Não desejo que ninguém mais seja testemunha desta insólita humilhação.

—Humilhação? —Soltou atônita.

—Você não se sentiria humilhado se, em sua própria mesa de jogo, alguém lhe depenasse mil e seiscentas libras?

—Ganhei-as honestamente... —defendeu-se.

—Eu não disse o contrário, senhor Hernández. Só lhe confesso que, para mim, seu triunfo me é uma grande desonra.

—Por quê? —Perguntou sem mover-se.

—Por quê? —Repetiu reclinando-se no assento para cruzar os braços. —Se por acaso não sabe, levo o jogo em minhas veias. Antes de caminhar já era capaz de jogar e, até esta noite, ninguém tinha sido tão ousado para ganhar e, nem muito menos, tanto dinheiro —explicou sem poder apartar o olhar daquela figura atemorizada.

Pensaria que, uma vez fechada à porta a descobriria? Não, o que desejava de verdade era seu afastamento de seu clube, que não voltasse nunca mais e que a reputação de seu local continuasse intacta. Entretanto, um estranho sentimento apareceu sem que ele pretendesse. Nostalgia... Ainda não partira e já tinha saudades das noites nas quais abandonava seu escritório para indagar sobre o que ela fazia.

«Busque outro entretenimento —disse-se. —Seguramente o achará com rapidez e aparta-a de uma vez de sua cabeça. Se por acaso a memória te falha, rememora o que te disse o inspetor antes de partir».

Trevor voltou a ver a cena que ambos tinham mantido nessa tarde. Depois de zangar-se por havê-la investigado, por ter indagado sobre ela, disse-lhe algo assim como que devia manter seu coração protegido. Mas era absurdo que O´Brian lhe oferecesse um conselho semelhante. Ele não tinha coração e menos ainda para uma mulher que lhe tinha feito perder uma boa soma de dinheiro cada vez que aparecia, sem contar a arrecadada essa noite. Nem louco voltaria a pensar naquela mentirosa, naquela trapaceira que o tinha humilhado em frente a um de seus empregados!

—Possivelmente não tenha jogado com um digno competidor até agora, além disso, tenho que lhe recordar que foi você quem insistiu em apostar. Quão único deve fazer é perder com dignidade e ser coerente com seus atos —explicou enquanto duvidava se devia lhe obedecer ou não. Terminou por deixar a porta entreaberta, se por acaso tivesse que sair dali com rapidez. —Na próxima vez, modere seus desejos —adicionou com firmeza.

—Desejos... —murmurou em voz alta. —Meus desejos, cavalheiro, são idênticos aos de qualquer homem: beber, fumar, viver sem preocupações e deitar todas as noites com várias mulheres.

—Isso é o que aspira? —Perguntou sentindo como sua exasperação aumentava. —Nesse momento é o seu único objetivo na vida?

—Acaso há algo mais? —Retrucou entreabrindo os olhos.

—É óbvio, mas não vim até aqui para lhe explicar que propósitos deveria ter em conta, senhor Reform. Só quero que me pague à dívida que contraiu ali abaixo —disse de maneira inapelável.

Trevor a observou pisar no tapete como se em vez de ter um tato suave, cravasse-lhe as solas dos sapatos como espetos. Um olhar zangado, que observou mais de uma vez quando resolvia a relação que mantinha com alguma de suas amantes, fixava-se nele como se quisesse atravessá-lo. Estava zangada, mas não entendia o motivo. Porque alargava o tempo para lhe pagar? Por que se havia sentido incômoda ao lhe explicar quais eram seus objetivos na vida? Acaso devia lhe falar sobre a esperança de achar uma mulher com quem casar-se, ter filhos e abandonar o clube? É claro esse não era seu caso, assim não lhe mentiria. Ele amava a vida que tinha e não queria nem ouvir falar sobre casamentos e descendentes. Cada vez que pensava nisso saía-lhe urticária. «Recorde que não é um homem, que é uma mulher e, como tal, possui uma ideia romântica da vida», pensou. Seria esse o motivo de sua raiva? Que ambos aspirassem futuros diferentes?

—Não vou sentar-me —declarou colocando-se atrás das cadeiras. —Quero que me pague —reiterou.

—Está bem... —começou a dizer enquanto se incorporava para abrir uma gaveta situada à sua esquerda. —Posso ao menos saber o que fará com semelhante fortuna? Pesar-me-ia descobrir que por minha culpa um moço com um futuro prometedor se converte em um homem desgraçado.

—Homem desgraçado? —Repetiu antes de soltar uma grandiosa gargalhada. —Não se preocupe, prometo-lhe que não me converterei em um homem desgraçado —apontou sarcástica.

—Então... o que fará? —Perseverou pegando um maço de notas.

Pelo laço verde que o envolvia, soube que eram mil. Só lhe faltava contar os seiscentos restantes e saldaria aquela maldita dívida. Mas não havia mais no fundo daquela gaveta. Berwin ainda não tinha passado pelas mesas para recolher os lucros do clube. Durante uns segundos ficou com o olhar cravado nessa parte da mesa. O que devia fazer? Pegar o dinheiro do outro caixa? Como se comportariam seus empregados ao não receber essa noite o salário acordado porque o tinha perdido em uma partida contra uma mulher? Talvez, quando lhes contasse o ocorrido, ao mostrar aquela humilhação em seu rosto, até o perdoariam...

—Minha intenção, se tanto lhe interessa, é abandonar Londres. Quero comprar uma pequena fazenda onde poderei lavrar a terra e criar animais —respondeu com emoção.

—Quer converter-se em um pestilento fazendeiro? —Assinalou levantando a cabeça com tanta rapidez que se provocou um inesperado enjoo.

—Não levarei a mal esse inapropriado comentário, mas sim. Serei um feliz fazendeiro pestilento —retrucou.

«Essa é sua ideia romântica da vida, Valéria Giesler? Ser uma fazendeira? Cobrir seu corpo de sedimentos de animais? Decepcionou-me, pequena. Sim, que o fez...», pensou enquanto voltava a olhar aquele maço que segurava em sua mão esquerda.

—Quando? —Demandou após deliberar em silêncio.

—Quando, o que? —Disse Valéria desconcertada.

—Quando pretende partir, senhor Hernández —grunhiu.

—Antes o possível —manifestou confusa.

—Para onde? —Continuou interrogando-a ao mesmo tempo em que soltava o dinheiro na gaveta e a fechava com força.

O que lhe acontecia? Por que não lhe dava o dinheiro e gritava ao Berwin que lhe trouxesse mais? Trevor observou como sua mão, pega ainda ao puxador da gaveta, esticava-se de tal maneira que as veias de seu braço se marcavam na camisa. Por que não queria lhe dar o dinheiro para que partisse? Não era a melhor opção para proteger seu clube? Que diabos estava pensando que nem seu cérebro era capaz de entender?

—Ainda não decidi —escutou-a dizer como se estivesse a duzentos passos dele.

—Amanhã, depois, a semana que vem? —Disse sem respirar e sem apartar o olhar daquela parte de sua mesa.

«O que te acontece, Trevor? —Perguntou-se enquanto esperava a resposta. —Por que não pega de uma maldita vez o dinheiro e o estampa na cara? Tem remorsos? Ou é que... não esperava que ela decidisse afastar-se de Londres? Qual era seu plano? Retê-la ou afastá-la?»

—Senhor Reform, acredito que está fazendo muitas perguntas. Quão único deve saber é que não voltarei para seu clube nunca mais, se é isso o que tanto lhe preocupa —manifestou com firmeza ao mesmo tempo em que dava uns passos para trás.

«Nunca mais...», escutou em sua mente aquelas duas palavras como se fosse o eco de uma voz no alto da montanha. Era uma sorte que ela decidisse abandonar Londres... ou não?

—Há muitas fazendas pelos arredores desta cidade, não viu alguma? —Exigiu saber com uma mescla de ira e atordoamento.

Devagar, como se não estivesse acostumado ao peso de seu corpo, levantou-se da cadeira, colocou as grandes mãos sobre os papéis que havia sobre a mesa e cravou aquele olhar castanho nela.

—Viver rodeada de sujeira, fumaça, maldade, podridão e gente sem coração? —Replicou ofuscada. —Não. Não quero isso. Começaremos uma nova vida muito longe daqui —confessou.

«Começaremos...», referia-se aos seus irmãos? Ou talvez já tivesse um pretendente que a impulsionava a alcançar aqueles sonhos? Havia um homem que a abraçaria em suas noites enquanto inspirava aquele perfume à canela? Existia já uma pessoa que pudesse contemplar o brilho e a suavidade daquele cabelo negro?

—E agora, se não lhe importar, cumpra sua promessa —acrescentou irada esticando a mão direita.

Estava sobressaltada, mais do que devia mostrar, mas a atitude daquele homem não lhe estava dando bom pressentimento. O que lhe acontecia? Por que não tinha tirado o dinheiro? Por que suas mãos enrugavam os papéis nos quais se apoiavam? Valéria tragou saliva e, com lentidão, cravou seus olhos nos dele. As chamas do fogo se refletiam naquelas pupilas e o calor deste tinha avermelhado aquelas duras bochechas. O que pretendia fazer?

—Pois vai ter que pospor esse magnífico sonho, senhor Hernández —soltou sem meditar nem um só instante as palavras que saíram de sua boca.

—Como diz? —Perguntou abrindo os olhos como pratos.

—Digo-lhe que não tenho a quantia que ganhou e que lhe pagarei assim que a obtenha —esclareceu sem poder diminuir aquele estado de descontrole que percorria cada centímetro de sua pele. Fazendeira? Encher aquelas suaves e delicadas mãos de cruéis calos? Abandonar aquele perfume à canela para mesclá-lo com esterco de animal? Não, veementemente, não!

—Mas... mas... —titubeou. —Pensei que me havia dito que era um homem de honra —clamou desesperada.

—E sou. Entretanto, fui algo pretensioso no jogo e não calculei bem o dinheiro que tinha guardado —declarou com sátira.

—Pois me dê o que tenha. Quanto é? Quinhentos, seiscentos? —Perseverou ofuscada. —Não lhe exigirei mais se me der isso agora mesmo.

—Você é um homem muito bondoso, senhor Hernández —começou a dizer separando-se da mesa. —E sua alternativa é bastante tentadora...

—Então...? Aceita? —Insistiu jogando vário passo para trás ao compreender que pretendia se aproximar dela.

—Não devo aceitar tal opção. Como cavalheiro, tenho que cumprir minha palavra... —disse como se seu orgulho estivesse ferido ante a alternativa que lhe oferecia. —Quero saldar minha dívida em sua totalidade, embora tenha que alongar esse desejo umas semanas mais. Parecem-lhe bem sete, seis? —Perguntou arqueando as escuras sobrancelhas.

—Como diz? —Seu nível de estupefação era insuperável. Era irreal. O que estava passando era um pesadelo.

Aquele homem, de quem se dizia que podia descansar sobre um colchão de notas de cem libras estava lhe dizendo que não tinha nem um só xelim?

—Digo-lhe, senhor Hernández, —começou a falar caminhando devagar para ela, pisando naquele tapete caro que adquirira em um leilão —que como nossa jogada foi completamente respeitável, porque nenhum dos dois enganou na partida, —enfatizou apertando os olhos, colocando suas palmas nas costas e olhando-a para observar cada expressão que realizava —porque somos cavalheiros, tem que me permitir um tempo considerável para reunir a quantia que perdi.

—Não entendo... —murmurou Valéria sem poder respirar ante a cercania daquele homem, sem poder piscar para não se deixar surpreender ante qualquer movimento inoportuno que pudesse delatá-la.

—Necessito de um pouco de tempo... —soprou Trevor ao encurralá-la contra aquela porta que ainda permanecia entreaberta. —Conforme parece, meus empregados ainda não recolheram os lucros... —o ar que emitia ao falar roçava com suavidade o rosto dela. Reform a contemplou com tanta atenção que contou os diminutos lunares do nariz e admirou o comprimento daquelas pestanas tão negras como o carvão.

—Para isso só tenho que esperar lá embaixo... —sussurrou sem voz.

Aquela presença, aquele homem em frente a ela, a menos de um palmo de distância, não lhe estava fazendo nenhum bem. Seus olhos, aqueles que tinham tentado manter fixos em um ponto do teto, observaram devagar, deleitando-se ao seu passo, com cada parte daquele rosto que tinha tão perto. Sua barba, a forma de sua boca, aquele nariz aquilino, a rudeza das maçãs do rosto e os olhos... brilhavam ou era o reflexo do fogo? Valéria notou uma pressão tão forte no peito que esteve a ponto de levar as mãos para ele e inclinar-se para diante. Por que aquele homem lhe impressionava tanto? Por que não era capaz de respirar como faria um cavalheiro? Porque, se não recordava mal, aos olhos daquele titã que a observava como se quisesse lhe furar o cérebro, era um homem.

—Não quererá lhes deixar sem seus honorários? —Perguntou colocando, inapropriadamente, sua perna esquerda entre as duas dela. A mão, aquela que tinha colocado sobre o marco da porta, começava a escorregar-se ante o suor. Em efeito, estava suando e isso se devia ao seu aumento de temperatura. Aquela mulher, a que ainda não tinha visto como tal, causava um efeito tão estranho nele que notava como sua pele desprendia fogo. —Há pais... filhos que devem levar o salário às mães viúvas e que, por suas idades avançadas, não podem trabalhar... —mal se deu conta de que o tinha feito, só observou a cara de assombro que pôs Valéria quando a barba tocou brandamente sua testa.

—E você não pôde pensar nisso antes de me oferecer a partida? —Tentou fazê-lo zangar-se para que se separasse dela e que terminasse de uma vez os vaivéns que sentia em sua cabeça.

—Como já lhe disse... nunca perdi contra outro homem... —murmurou com uma voz cheia de masculinidade e sedução. Como podia enganá-lo dessa forma? De verdade começava a enfeitiçar-se por uma mulher que se ocultava sob uma aparência falsa? Ou a atração que seu corpo expunha livremente era só um engano para que ela saísse correndo? Não, o que havia sob sua calça, o que se freava no cinturão, não era uma aparência, e sim toda uma realidade. Essa mulher o excitava de tal forma que lhe resultava impossível controlar-se.

—Mas não se pode estar sempre tão seguro de si mesmo, senhor Reform —disse Valéria agachando-se para sair daquela prisão de músculo e virilidade em que ficara presa. —E deve supor que há uma primeira vez para tudo —corroborou adquirindo de novo o sentido comum.

—Então, dar-me-á umas semanas mais? —Perguntou Reform pregando as costas àquele marco e cruzando os pés e as mãos sem apartar o olhar dela.

—Não é justo que jogue com...

—Senhor Reform, aqui tenho... —interrompeu-o Berwin que, ao ver a porta entreaberta, pensou que estaria sozinho. —Desculpem, não imaginei que estavam reunidos...

—É você quem tem que recolher os lucros das mesas? —Soltou Valéria com certa esperança de resolver de uma vez o que estava acontecendo. Se ele tinha apostado o salário de seus empregados, era ele quem devia lhe dar as pertinentes desculpas.

—Eu... sim... —gaguejou o empregado ao distinguir, de onde se encontrava, a veia que lhe aparecia no pescoço de seu chefe quando estava realmente zangado.

—Berwin acaba de vir do mercado e trouxe umas trufas para o Chevalier, nosso querido chef francês —comentou Trevor olhando ao secretário como se quisesse fulmina-lo com o olhar.

—A estas horas? —Valéria entreabriu os olhos ao perguntar; —Se não estou equivocado, o mercado se fecha antes das cinco.

—É o único momento no qual o mercado pode me atender no mercado —comentou Berwin escondendo o saco no qual trazia o dinheiro atrás das costas. —Nosso chef é muito exigente com esse... —duvidou como denominar aquilo que tinha renomado o senhor Trevor —com esse ingrediente. Ninguém pode saber que truque tem para que seus pratos sejam tão famosos —disse antes de suspirar.

—Como vê, senhor Hernández, não lhe menti —disse triunfante Trevor. —Hoje não tenho a quantia que necessito para saldar essa dívida.

—De quanto estamos falando? —Interveio Berwin com rapidez.

—De mil e seiscentas libras —respondeu Trevor apertando os dentes.

—Que nada! —Exclamou Berwin ao notar como lhe sangrava o coração ao ser transpassado pelos olhos escuros de Reform. —Talvez dentro de...

—Umas semanas —adicionou Trevor caminhando por volta de seu assento. —Já informei a este cavalheiro que hoje é dia de pagamentos e que não posso levar a cabo esse pequeno reembolso.

—Não, não, não... —comentou Berwin movendo a cabeça para reiterar o que negava.

—Dar-lhe-ei quatro semanas —soltou Valéria cansada do lamentável espetáculo.

Não era tola, embora aquele homem acreditasse que todo mundo o era salvo ele. Sabia exatamente o que levava seu empregado era a arrecadação, mas não queria comprometer o pobre homem que o olhava com tanto medo, que os olhos atravessavam o cristal de seus óculos redondos.

—O que lhe parece se vier ao clube a cada sexta-feira? —Ofereceu-lhe Trevor sentando-se de repente sobre a poltrona.

—Durante quanto tempo? —Exigiu saber ela cruzando-se os braços sobre o peito, mostrando aquele aborrecimento que a tinha alterado.

—No máximo, seis —respondeu pegando os papéis que havia sobre a mesa, tentando dar por sentada sua decisão.

—Quatro —regateou Valéria.

—Seis —perseverou Trevor.

—Cinco? —Intrometeu-se Berwin que não saía de seu assombro. Desde quando seu chefe não pagava uma dívida de maneira imediata? Desde quando se comportava dessa maneira tão atípica? E... quem era esse moço? Como tinha adquirido essa dívida? Seria algum filho ilegítimo? Não seria a primeira vez que apareciam pelas porta mulheres com filhos nos braços alegando que eram dele...

—É muito tempo... —murmurou ela com resignação.

—Mais vale isso que seis —sussurrou o secretário como se tentasse manter um complô.

—Está bem! —Exclamou estendendo a mão para o senhor Reform. —Que sejam cinco!

Trevor dirigiu o olhar para a mulher e ficou encantado ao observá-la tão segura de si mesma. Com aparente desinteresse levantou-se do assento e esticou a mão que aferraria de novo à dela. Aqueles dedos suaves, alongados e com o tamanho perfeito para uma mulher delicada...

—Se pretende me enganar, —comentou Valéria mantendo aqueles olhos de cor azul sobre os escuros —porei fogo a este antro.

—Não seria capaz... —murmurou Trevor com certo assombro. Delicada? Suave? Como tinha podido pensar isso de uma mulher que tinha sangue espanhol? Seguramente poria fogo em seu clube com ele dentro!

—Ponha-me à prova... —desafiou-o.

—Berwin, acompanhe o senhor Hernández à saída —disse tomando assento. —Não queremos que sofra nenhum tipo de acidente descendo as escadas, não é? —Acrescentou mordaz.

—Se fizer a gentileza... —indicou o empregado à Valéria.

—Obrigado, Berwin, você é um bom homem —indicou com um tom tão suave e quente que, por um segundo, só por um segundo, Trevor sentiu ciúmes ante aquele trato tão afetuoso.

—Berwin! —Gritou Reform quando este fechou a porta.

—Sim, senhor? —Perguntou abrindo-a de novo.

—Antes de descer, deixe as trufas sobre minha mesa. Não quererá que Chevalier ofereça um grotesco espetáculo aos nossos clientes, não é?

—É claro... —expressou depois de confirmar que o cavalheiro permaneceria fora do escritório e que poderia lhe dar a arrecadação sem problemas.

—Quanto? —Quis saber Trevor sem apartar o olhar da porta.

—Duas centenas e cinquenta por agora... —revelou em voz baixa.

—Antes de partir pegue seu endereço. Diga-lhe que o necessita para confirmar o pagamento que lhe faremos semanalmente.

—E se não me der? —Disse abrindo de novo os olhos como pratos.

—O estranho seria se lhe desse —afirmou ocupando-se de novo daqueles papéis que devia repassar. —Por certo —chamou de novo a atenção de Berwin quando este estava a ponto de tocar o trinco da porta.

—Sim? —Disse arqueando as sobrancelhas e expressando certo cansaço ante tantas idas e vindas.

—Quero que algum desses folgazões vá à Scotland Yard e fale com um tal Borshon. Necessito que apareça em meu escritório antes do fechamento do clube —informou.

—Deseja que lhe explique algo sobre o motivo pelo qual requer sua presença com essa urgência? Algumas pessoas têm planos... —assinalou com sarcasmo.

—Diga-lhe somente que o senhor Reform deseja lhe fazer uma proposição —declarou antes de girar-se sobre a poltrona para contemplar a rua. Não queria perder nem um só instante de como atuaria Valéria ao sair do local.

—Está bem, explicarei que deseja falar de trabalho, para que não vá entender por proposição algo que não deva —esclareceu Berwin antes de fechar a porta e acompanhar Valéria até a saída.

Transcorridos uns minutos, Trevor espionou o corpo dela. Andava reta, serena, como faria qualquer cavalheiro. Antes de virar a esquina olhou para sua janela e ele se ocultou sob a cortina. Então, justo quando acreditou que ninguém a olhava começou a espernear no chão e a golpear com seus pequenos punhos o ar.

«É uma tigresa, pequena. Só espero que mantenha essa atitude felina em minha cama», meditou antes de pegar a garrafa, encher um copo até a borda e fumar o charuto que não lhe tinha permitido terminar.


IV

 


Valéria chegou ao seu lar em um estado de irascibilidade que nem o ar fresco da rua a apaziguou. Cada vez que pensava no ocorrido, as bochechas lhe ardiam e apertava os punhos. Como era possível que brincasse dessa forma com ela? Como podia comportar-se com tanto descaramento? E para piorar mais a situação, tratou-a por tola. Trufas? Pelo amor de Deus! Até um menino teria deduzido o que guardava o pobre Berwin na bolsa...

Zangada até ao ponto de não cuidar de sua maneira de pisar no chão para não despertar ninguém, tirou-se o casaco e o lançou sobre a banqueta que havia em frente à penteadeira. Continuou com a peruca, o traje, os sapatos, camisa, meias... tudo foi retirado de seu corpo como se lhe queimasse. Possivelmente aquela vontade de despir-se aumentou quando descobriu que em cada roupa ainda perdurava seu aroma... sim, muito ao seu pesar, permanecer no escritório durante tanto tempo ocasionou que o perfume do senhor Reform e aquela pestilência a tabaco impregnassem sua roupa.

Duas libras? O desgraçado gastava duas libras em cada charuto? Ela podia utilizar essa quantia para comer durante um mês e lhe sobrava para pagar o aluguel do chiqueiro no qual viviam! E ele gastava para colocar fumaça nos pulmões? Fumaça? Zangada ainda mais, desesperada por não ter atuado como devia fazer o homem que fingia ser, olhou-se no espelho e se assustou ao ver a imagem que se refletia. O cabelo escuro estendido para o chão, o blusão que devido ao passar dos anos já não era branco e sim pardo e aquele olhar zangado lhe proporcionavam um aspecto muito aterrorizante. Seguramente que, se se apresentasse ante ela um fantasma para assustá-la, este sairia fugindo antes de obter seu encargo...

Depois de recolher o cabelo, dirigiu-se para a cama e se sentou sobre o colchão. Olhou de esguelha aos seus irmãos e confirmou que seguiam dormindo placidamente. Depois observou Kristel, quem costumava dormir encolhida, fazendo com que os joelhos tocassem seu peito durante a noite. Valéria se levou as mãos para o rosto e o esfregou angustiada. Tinha estado a ponto de obtê-lo. Havia quase tocado com a ponta dos dedos aquele sonho que prometeu, mas devido a uma inesperada mudança de opinião, esse desejo parecia alargar-se de maneira infinita.

Estendeu-se sobre a cama, cruzou as mãos por debaixo da cabeça e fixou seus olhos no teto. Por que ele atrasou o pagamento? Em que instante mudou de opinião? Recolhendo cada palavra, cada movimento que ambos realizaram, descobriu que o comportamento de Reform atravessou quando lhe falou de comprar a fazenda longe de Londres. O que lhe importava o que fizesse ou deixasse de fazer? Por que tinha que lhe dar tantas explicações? Nem se fosse seu pai! Valéria respirou profundamente, tentando suavizar aquele caráter azedo que se apoderou dela. Tinha que idear um novo plano para adquirir o dinheiro que necessitava o antes possível e não podia ir ao clube para seguir jogando, posto que assim que pusesse um pé no local os olhos escuros de Reform atravessariam sua nuca. «É hora de utilizar o plano B —refletiu ao mesmo tempo em que mudava de posição para sua direita. —Se já não posso aparecer por ali, optarei por visitar o outro, embora os lucros sejam menores e os riscos de ser descoberta mais altos». E não errava.

O Clube de Cavalheiros Hondherton não era tranquilo, elegante e seguro como o de Reform, sempre havia escandalosas brigas, ninguém podia se sentar em uma poltrona que não estivesse furada pelo charuto despreocupado de algum cliente e, é claro, a segurança brilhava por sua ausência. O único seguro que havia era fugir rapidamente quando as brigas começavam. A última notícia que leu sobre esse clube no periódico foi que um dos empregados saiu ferido e permaneceu convalescente durante várias semanas. Também acrescentaram que o senhor Hondherton se encarregou de todas as necessidades deste, proporcionando-lhe assim uma imagem benevolente. Valia a pena arriscar-se tendo já a quantia que requeria? «Não a tem, —disse-se enquanto fechava os olhos —aquele presunçoso, bastardo e miserável a esconde em sua gaveta...», refletiu ofuscada.

O que poderia fazer? Submeter-se àquela imposição? Valia a pena arrastar-se como uma serpente para obter o que tinha ganhado limpamente? Valéria foi consciente de que não era o momento adequado para escolher a opção mais correta. Deveria descansar, abandonar aquele estado de ira que a fazia apertar os dentes e encolher todos os dedos que possuía. Depois de voltar a suspirar fundo e ficar a contar às ovelhas que compraria para a fazenda, conseguiu apaziguar-se e inundar-se no sonho reparador que necessitava...

—O que pretende fazer com este dinheiro? —Perguntou-lhe o senhor Reform pegando o maço de notas que guardava na gaveta.

—Comprar uma fazenda. Prometi aos meus irmãos que partiríamos de Londres para viver o sonho que têm desde meninos —respondeu-lhe estendendo as mãos para o chão, notando ao seu passo a suavidade do tecido da saia.

—Por quê? Por que quer me abandonar agora que me dei conta dos meus sentimentos? Não te importa me romper o coração? O que pretende, arrancar-me isso? —Depois de lhe perguntar sem mal respirar, levantou-se do assento e caminhou para ela a grandes pernadas.

—Não há nada entre nós... —murmurou dando vário passo para trás, procurando instintivamente a saída.

—Nada? —Repetiu levantando as sobrancelhas. —Está segura, Valéria? Porque eu não definiria como nada nossas noites juntos, nossos beijos, nossos encontros passionais nos quais te escutei gritar meu nome...

—Basta! —Gritou ela levantando a mão para fazê-lo calar imediatamente.

—Não sentiu como meu amor se engrandeceu cada vez que estivemos juntos? —Murmurou encurralando-a na parede.

—Não notou a suavidade com a qual minhas mãos lhe acariciam? —Expôs ao mesmo tempo em que lhe tocava lentamente o rosto. —Tampouco foi consciente do desejo que mostro cada vez que está perto? —Insistiu aproximando a boca de seu pescoço para beijar aquele ponto sensual onde o pelo se arrepiava com rapidez. —Diga-me, Valéria, não percebeu o muito que te quero?

Ela respirou entrecortada enquanto fechava os olhos e se deixava acariciar por aquelas grandes mãos. Estas percorreram devagar seus ombros, seu torso, seu abdômen e baixaram até alcançar a barra do vestido.

—Desejo-te tanto... —ronronou de novo. —Necessito-te tanto... que sou capaz de fazer qualquer coisa para que fique —afirmou aproximando sua boca da dela. —Diga-me, Valéria...

—O que...? —Murmurou ela deixando-se levar por aquela paixão que a tinha despertado de novo. Notando como seu sexo se umedecia preparando-se para o toque daquela mão poderosa.

—Viu o senhor Reform hoje? —Perguntou-lhe.

Valéria ficou atônita ante a pergunta. Não sabia como reagir. Cravou o olhar naquele varonil rosto e esperou que repetisse o que havia dito.

—Viu o senhor Reform hoje? —Reiterou, mas sua voz não era a dele e sim a de Kristel.

Abriu os olhos como pratos e observou onde se encontrava. Em seu lar, descansando em sua cama. Tudo aquilo tinha sido um sonho. Com rapidez olhou à Kristel, que se tinha dado a volta e a abraçava como todas as noites.

—Seguiu rondando pelas salas? —Demandou com os olhos ainda fechados.

—Não, não o fez —pôde dizer em meio ao seu desconcerto. —Descansa e não se preocupe mais. Por agora tudo está controlado —comentou voltando o olhar para a porta.

O que tinha sido aquilo? Um sonho ou um pesadelo? Com o coração pulsando desenfreado, com o pelo ainda arrepiado pelo que tinha vivido em sua mente, Valéria não conciliou o sonho até que decidiu não aparecer mais pelo clube daquele insolente e começar a rondar pelas salas de outro local, face ao que pudesse encontrar...

 


As portas do clube se fecharam e o tal Borshon não tinha ido ao seu chamado. Por que não estava ali presente lhe escutando com atenção? Ante o aborrecimento que sentiu ao não ser atendido com prontidão, esticou a mão e pegou a garrafa para servir um copo de licor, mas não caiu nenhuma só gota. Elevou-a o suficiente para confirmar que não estava quebrada e voltou a pousá-la. Tinha-a bebido inteira e sem inteirar-se. Como tinha estado tão avoado? Quais foram seus pensamentos para ter mais sede que um caminhante em meio ao deserto?

Reclinou-se no assento, cruzou os braços e fixou seus olhos na porta. «Ela...», refletiu. Sim, tinha sido Valéria a culpada de sua insaciável sede. Desde que permaneceu ao seu lado, desde que pôde inspirar aquele aroma de canela e sentir como sua respiração impactava em seu peito, não tinha diminuído sua ansiedade nem um só instante e, sem dizer, do aumento de temperatura que sofreu seu corpo ao tê-la daquela maneira. Ofuscado, irado e mais desconcertado por aquele inesperado desejo que por ter ingerido um muito caro uísque sem mal saboreá-lo, levantou-se, colocou as mãos na mesa para apoiar-se e gritou:

—Berwin! Berwin! Onde diabos se colocou?

—Aqui, senhor Reform! —Respondeu como se estivesse esperando que o chamasse atrás da porta.

—O que aconteceu com esse tal Borshon? Por que não o vejo? —Perguntou estendendo as mãos para diante como se tentasse tocar algo que devesse estar ali e não o fazia.

—O cavalheiro recebeu sua mensagem, mas não respondeu —informou o secretário sem mover-se da porta.

—Não respondeu? —Trovejou Reform mais exasperado por esse descaramento que por não haver se apresentado. —Não ficou claro que devia vir?

—Sim, senhor —comentou acenando com a cabeça para reiterar sua afirmação. —O mensageiro insistiu em que lhe deixou muito claro que você desejava lhe ver.

—E? —Perguntou enrugando os papéis que tinha sob suas mãos.

—E disse ao moço que viria quando o visse oportuno, não quando você queria —disse Borshon atrás do pobre empregado. —Pensa que todo mundo deve acatar suas ordens quando lhe agradar? Se por acaso não é consciente do que há fora deste clube, as pessoas têm vidas... —resmungou enquanto caminhava para o escritório.

—Posso me retirar, senhor Reform? —Solicitou Berwin agarrado o trinco da porta.

Pelo olhar de seu chefe e pela insolência daquele personagem que exibia mais periculosidade que galanteria, logo começaria a gritar e não era bom para seus anciões ouvidos escutar tanta imposição de masculinidade.

—Deixe a porta aberta —ordenou Borshon passando por cima da autoridade do senhor Reform. —Não quero que ninguém pense que entre este... homem e eu há certa amizade —alegou mastigando cada palavra com semelhante rudeza que parecia cuspir navalhas.

—Como desejar... —murmurou o secretário que, apesar de sua idade, desceu as escadas com a rapidez de um adolescente.

—O que é que quer? —Grunhiu o agente antes de caminhar sobre o tapete como se se limpasse as solas de seus sapatos. Colocou-se em frente à Trevor e o olhou de cima a baixo, logo sorriu. Não era tão imponente como lhe pareceu à primeira vista, possivelmente lhe deu essa impressão ao estar sentado, mas se seus cálculos não lhe falhavam, ambos tinham tamanhos similares.

—Quero lhe fazer uma oferta, ou melhor, dizendo, queria lhe fazer uma oferta —retificou Trevor concentrando os olhos e refletindo até que ponto estava disposto a empregar um homem que, conforme observava, jamais lhe daria o respeito que ele merecia.

—Se me tiver feito perder meu valioso tempo, diga-me que parte de seu corpo admira menos —ameaçou-o.

—Desafia-me em meu próprio lar? Sob meu teto? —Soltou Trevor com uma mescla de indignação e cólera.

—Quer que o repita ou eu escolho a parte que não vai utilizar pelo resto de sua vida? —Continuou com a intimidação.

—Meu corpo é muito valioso para perder algum membro —murmurou Reform apertando a mandíbula.

—Então? —Perguntou Borshon arqueando a sobrancelha loira esquerda.

—Queria lhe fazer uma proposta —comentou Reform sem diminuir a ira.

—Qual? —Perseverou o agente cruzando os braços e exibindo o volume de seus músculos.

—Necessito que vigie uma pessoa —começou a dizer enquanto tomava assento.

Não ficava alternativa que relaxar-se e assumir sua derrota. Se o inspetor o declarou como homem de confiança, aceitaria sem titubear. Preferia tragar seu orgulho a procurar entre as ruas de Londres outra pessoa que lhe fosse fiel. Além disso, não podia correr o risco de pôr um estranho atrás dos passos de Valéria.

—Quanto? —Perguntou sem mover-se. Parecia uma estátua de mármore, uma grandiosa e perigosa figura que, se decidisse mover-se, o mundo inteiro tremeria.

—Quinhentos —expôs Trevor sem piscar.

—Para que? —Continuou interrogando sem sequer mover o peito para respirar.

—Para vigiar uma pessoa —esclareceu. —Interessa-lhe?

—Interessa-me o dinheiro, a pessoa não me importa —respondeu com rudeza.

—Uma taça? —Perguntou-lhe Trevor para ir suavizando a tensão, para aplacar a testosterona que aflorava no ambiente.

—Do que? —Exigiu saber ao mesmo tempo em que movia a cadeira para sentar-se.

Era pequena. Aquele respaldo curvilíneo não albergava a largura de suas costas e o machucava em ambos os flancos, assim decidiu inclinar-se levemente para a mesa de seu próximo pagante. Porque não seria seu chefe. O único ao qual poderia denomina-lo assim era ao inspetor e, graças ao bate-papo que manteve com ele depois de espantar o mensageiro, não estava em frente àquele insolente com a bengala que desejava lhe incrustar no cu.

—Peça —animou Reform desenhando um grandioso sorriso que lhe proporcionava ter tudo aquilo que alguém desejava.

—Água —respondeu Borshon com firmeza.

—Água? —Repetiu Trevor assombrado.

—Não costumo beber quando estou trabalhando e muito menos quando tenho que fazer entendimentos. Preciso ter a mente limpa para achar possíveis enganos... —informou-lhe com suspeita.

—Está bem —soprou. —Berwin! —Gritou de novo olhando para a porta.

—Um momento, senhor! Estou subindo as escadas! —Respondeu o pobre homem ao escutar, do piso de baixo, como voltavam a necessitá-lo.

Quando o senhor Reform o liberou daquele chefe, acreditou que este seria considerado com sua idade, mas já começava a duvidar, se queria sentir em seu corpo as chicotadas que o outro lhe dava cada vez que se embebedava ou as caminhadas que Reform lhe obrigava a dar.

—Sim? —Perguntou respirando como se tivesse corrido uma maratona.

—Traga um copo de água fresca ao cavalheiro —disse-lhe voltando o olhar para ele.

—Prefere que lhe traga uma garrafa? Imagino que não se conformará com um só copo e não quero que você aguente a sede por minhas subidas e descidas —falou tomando ar para acalmar o exercício que não devia suportar um homem sexagenário.

—Parece-me bem —respondeu Borshon observando aquele pobre ancião fatigado.

Cravou seus olhos em Reform e o odiou ainda mais por tratar desse modo seu empregado. Não se lembrava da vida que manteve antes de converter-se no que era? Porque se era assim, alguém devia recordar-lhe.

—Conforme tenho entendido, seu inspetor lhe ordenou espiar uma mulher que vive em Brick Lane —começou a expor.

—Não falo dos meus trabalhos como agente —resmungou.

—E isso lhe honra —elogiou-o para que se relaxasse e a conversação se encaminhasse tal como desejava. —Mas o motivo pelo qual o chamei é porque essa mulher me interessa e preciso saber mais sobre ela.

—O que quer averiguar? —Soltou mal-humorado. —Porque se sua intenção é recolher a maior informação possível para acossá-la ou lhe fazer algum dano...

Borshon apertou os punhos convertendo-os em dois grossos e duros blocos de chumbo. Não lhe importaria perder a quantia que necessitava para seguir atendendo a sua mãe, mas jamais se passaria ao outro bando. Desde que tinha posto um pé na Scotland Yard jurou lealdade à justiça, a manter a paz e a destroçar qualquer pessoa que se opusesse a ela.

—Se me desculparem... —comentou Berwin mostrando uma garrafa cristalina. —A mais fresca que pude conseguir —adicionou enquanto a colocava sobre a mesa.

—Muitíssimo obrigado por sua atenção —agradeceu Borshon.

Outro que falava com ternura ao empregado? Mas... o que tinha aquele homem para que todo mundo o tratasse com tanta cordialidade? Seria a idade?

—E bem? —Perguntou o agente depois de dar um grandioso gole à garrafa e estalar a língua.

—Não vou acossá-la nem lhe machucar —expôs com rudeza Trevor. —Quero saber o que faz, aonde vai, quando, como, com quem e se...

—Não considera isso uma perseguição, senhor Reform? —Retrucou o agente franzindo o cenho.

—Essa mulher, senhor Borshon...

—Hill, sou senhor Hill —corrigiu-o.

—Essa mulher, senhor Hill, aparece em meu local vestida de homem, joga cartas e me faz perder uma grande soma de dinheiro —declarou furioso.

—Sei, meu inspetor me pôs a par da situação —disse com zombaria. —Tem o orgulho ferido e por isso quer averiguar tudo sobre ela? —Continuou divertido. —Tem que ser muito doloroso para um homem como você sentir-se encurralado por uma mulher...

—Não me sinto encurralado! —Vociferou.

—Não? Então por que não a deixa em paz? Por que não a denuncia e finaliza de uma vez por todas o problema? —Insistiu com suspeita.

—Porque não tenho vontade! Você quer me ajudar ou procuro outro cão sabujo? —Perguntou tão irado que o álcool que corria por suas veias se evaporara com rapidez.

—Direi o que vou fazer —respondeu levantando-se do assento e cravando seus olhos verdes na pessoa que ele denominava janota. —Vou negar-me à sua oferta porque, como disse, pode encontrar outro cão que lhe adore os pés enquanto lhe ponha sobre a mesa essa soma de dinheiro ou...

—Ou?

—Ou me diz o que é que busca dela e me pede perdão —manifestou sorridente.

—Pedir-lhe perdão? —Trovejou.

—Insultou-me e não tolero esse tipo de comportamento para com minha pessoa. Se você me chamou, se tanto me necessita, peça-me perdão e me explique o que deseja obter dessa mulher —declarou com firmeza.

Trevor o olhou de soslaio e meditou sobre o que devia fazer. Era um insolente, grosseiro e a pessoa mais inaudita que poderia encontrar no mundo, mas o necessitava. Necessitava daquele grande homem para que cuidasse dela posto que, se seu instinto não lhe enganava, Valéria não aceitaria sua oferta tão fácil.

—Peço-lhe desculpas... —murmurou tão baixinho que nem ele mesmo se escutou.

—Não teve o tom que desejava, mas me vale vindo de um homem como você —assinalou triunfante. —Agora só quero saber...

—Quero que a observe, que não a deixe sozinha nem um só instante —confessou. —Muito me temo que logo se meterá em algum problema e eu não posso fazer nada.

—Então não é perseguição, e sim seu amparo —deduziu Borshon com assombro.

—Em efeito, quero velar por ela e por seus irmãos —explicou voltando-se para ele. —Essa mulher tem o perigo escrito na testa e, embora saiba como atuar quando se encontra nele, resulta-lhe impossível evita-lo.

—Por que quer cuidar dela se até agora quão único fez foi lhe ocasionar dores de cabeça? —Instigou-lhe.

—Tenho uma dívida com... —ia dizer Valéria, mas esse tom familiar o deixaria ao descoberto —essa mulher e eu não gostaria que lhe acontecesse algo antes de resolvê-la. Posso ser um miserável, mas por cima disso sou um homem de honra —sentenciou com absolutismo.

—Sendo assim —estendeu a mão para Reform para selar o pacto —ponha sobre minha mesa quinhentas libras e amanhã ao amanhecer estarei em frente à porta dessa mulher.

—Explicar-me-á tudo o que fizer? —Solicitou aceitando a mão que, para seu bem-estar masculino, era semelhante à sua.

—Tudo —manifestou enquanto fixava os olhos no lugar onde devia lhe colocar o dinheiro.

E assim fez, Reform tirou as quinhentas libras, colocou-as sobre a mesa e lhe disse:

—Isto é o que lhe pagarei por semana.

—Por semana? —Perguntou Hill abrindo seus grandes olhos como pratos.

—Como mínimo serão cinco, embora espere que antes desse tempo tenha averiguado o motivo pelo qual não quero que parta de Londres —confessou sem querer.

—Quer que lhe revele o motivo pelo qual atua dessa forma? —Disse Borshon divertido.

—Agradeço-lhe o oferecimento, mas prefiro averiguar sozinho. Não se esqueça de me informar o antes possível —alegou dando por terminada a conversação.

—Farei —indicou antes de sair do escritório e soltar uma sonora gargalhada.

No fundo era mais parvo do que parecia. E graças a isso ia conseguir uma grande fortuna. Por que não deixava essa mulher em paz? A resposta a tinha em frente aos seus olhos, mas era tão obtuso que não era capaz de decifrá-la. Entretanto, aquele comportamento obstinado lhe daria a oportunidade de contratar Giselle o dia inteiro e ofereceria à sua mãe o cuidado que merecia. Possivelmente até poderia comprar uma casa em que não houvesse escadas e onde ela abandonaria de uma vez por todas a cama em que se prostrava. Com uma felicidade imprópria nele, Borshon saiu do clube desenhando um sorriso que lhe cruzava o rosto.

Reform voltou para seu assento sereno ao ter controlado o todo referente a ela. Por sorte para ele, Valéria estaria vigiada e poderia centrar-se em outros assuntos que requeriam sua intervenção. Olhou a garrafa de água que seu novo empregado tinha deixado sobre a mesa e sorriu. Era duro, teimoso, valente e sensato. Qualquer pessoa lhe teria pedido um dos uísques mais seletos de sua adega, mas ele não o fez. Desejava manter a prudência que não lhe proporcionaria a ingestão de álcool. De repente, esticou a mão para essa garrafa e lhe deu um grande sorvo. Fresca. A água, que não recordava tomar fazia muito tempo, era fresca e insípida. Mas Borshon tinha razão, não havia nada melhor que abastecer o corpo de água para não fazer desaparecer algo tão necessário como era a sensatez.

—Senhor Reform? —Perguntou uma de suas empregadas da porta. —A senhorita Barnes quer saber se a visitará.

—Não. Diga-lhe que não vou requerer seus serviços nunca mais —respondeu sem olhá-la.

—Far-lhe-ei saber. Boa noite, senhor —disse a mulher tão aturdida pela resposta que não acertava a pôr a mão sobre o trinco.

—Boa noite.

Quando a porta se fechou, quando escutou o clique da fechadura, Trevor deixou de respirar. Mas o que tinha feito? Negou-se a passar uma noite com Jun? Com a deusa do prazer? Como tinha recusado sem sequer meditar uns segundos? Levantou os olhos dos papéis e os fixou na garrafa repleta de líquido transparente. A água! Esse líquido tinha limpado seu sangue em menos de um segundo, transformando-o em um novo homem! Entretanto, em vez de levantar-se e correr para a porta para gritar que se equivocara, que a visitaria sim, reclinou-se no assento, colocou as pernas sobre a mesa, cruzou os braços sob sua cabeça e riu como há muito tempo não o fazia.


V

 

—Por favor, apressem-se. O senhor Mayer não demorará em aparecer e eu não gostaria que lhes repreendesse de novo por serem incapazes de apartar suas mãos da comida —pediu Valéria aos seus irmãos que, tal como dizia, nunca saciavam os estômagos.

—Não diz que quanto mais comamos maiores e fortes seremos? —Perguntou Martin, o pequeno, com a boca repleta de pão.

—Sim, mas ao passo que vão não crescerão para o alto e sim para os lados —interveio Kristel cobrindo seus ombros com o xale grande marrom. —E quando seu estômago for maior que sua cabeça não haverá nenhuma só mulher que lhes olhe.

—Mas... mas... —tentou dizer Martin, que sustentava em sua mão direita a última torrada de seu prato.

—Não há, mas —negou Valéria com decisão. —Devem estudar e prestar muita atenção ao que lhes ensina. E agora se preparem porque o senhor Mayer aparecerá em qualquer...

Não pôde terminar a frase. Tal como augurou, nesse preciso instante tocaram à porta.

—Rápido! —Insistiu. —Recolham a mesa antes que Kristel lhe abra.

Obedientes e com a boca ainda cheia, os moços colocaram os pratos um sobre o outro e o levaram até a pilha onde logo seriam lavados. Quando Kristel afirmou com a cabeça, desencaixou a fechadura e abriu a porta.

—Bom dia, senhor Mayer —saudou-o assim que o viu. —Como amanheceu? Teremos chuva?

—Bom dia, senhorita Griffit, por sorte para os que sofrem de reumatismo ou têm algum tipo de imperfeição no corpo, hoje a chuva não aparecerá —explicou enquanto lhe oferecia o casaco e o chapéu. —Senhorita Giesler... —dirigiu-se para ela com um estranho brilho nos olhos e desenhando um leve sorriso.

—Senhor Mayer, —respondeu-lhe ela —espero que possa dar sua aula sem contratempo algum. Ontem lhes deixei claro que nenhum dos dois deve perder tempo abstraindo-se em tolices —esclareceu olhando seus irmãos para lhes recordar o bate-papo ao qual fazia referência.

—São bons estudantes —comentou este se aproximando dela. Estendeu a mão para que Valéria lhe oferecesse a sua e, uma vez alcançada, beijou-a devagar. —Mas muito me temo que necessitem de uma figura paterna —adicionou olhando-a de forma sedutora. —Estão em uma idade bastante crítica.

—Crítica? —Perguntou retirando a mão mais lentamente do que desejava.

—Esta etapa da infância, senhorita Giesler, é crucial para os moços. Se tiverem uma figura masculina a que respeitar e utilizar como exemplo, resultar-lhe-á mais fácil escolher o bom caminho.

—Sim, já vejo... —murmurou Kristel entreabrindo os olhos como se quisesse cravar uma faca pelas costas do bom samaritano.

—Terei em conta —desculpou-se Valéria, que tentou não rir ao observar o rosto assassino que tinha posto sua amiga.

—O quanto antes considerar essa opção, mais possibilidade terá de salvar estes pequenos —afirmou acariciando suas cabeças como se quisesse eliminar o pó existente em seus cabelos.

—Primeiro terá que procurar uma figura masculina que seja adequada —interveio Kristel mordaz. —Nem todos os cavalheiros que alguém conhece são tão respeitáveis como querem aparentar.

—É óbvio! —Exclamou Mayer ofendido. —Mas a senhorita Giesler utilizará seu bom critério para averiguar que homem será o melhor marido para ela e o melhor pai para seus irmãos.

—E um homem benévolo para permitir que sua amiga, com uma imperfeição no corpo, —recordou a expressão que tinha feito referência ao entrar —siga vivendo com eles.

—As amigas de uma esposa sabem quando devem apartar-se do casal, —replicou o professor entreabrindo os olhos —daí que sejam boas amigas e não umas harpias que tentam sobreviver com os lucros do matrimônio.

—Não demoraremos muito em retornar —comentou Valéria dando um beijo na testa de cada irmão e resolvendo a conversa inquisitiva. —Comportem-se bem e estudem muito. Embora no futuro se convertam em uns estupendos e maravilhosos fazendeiros, devem ser também inteligentes.

—Certo —conveio Mayer. —Um bom fazendeiro tem que calcular quais serão seus lucros e quantas perdas obterá com uma semeadura ou com a criação de um gado. Assim, rapazes, tomem assento e comecemos com álgebra. Volte quando puder, senhorita Giesler, seus irmãos estão seguros sob meu cuidado —assinalou pegando de novo a mão dela para beijar.

—Obrigada —disse enquanto observava as expressões de desagradado de Kristel.

Quando por fim fecharam a porta, Valéria olhou à sua amiga. Esta colocava dois dedos na boca como se quisesse provocar vômito.

—Não seja tão descarada —repreendeu-a. —Ele só pretende ser amável.

—Amabilidade? —Resmungou ao mesmo tempo em que cruzava o xale por seu peito. —Esse insensato pervertido só quer te abrir as pernas e desfrutar de seu corpo.

—Quão único deseja é que aceite a proposta de matrimônio que insinua cada vez que aparece —esclareceu Valéria segurando com força a cesta de vime.

—Sim, e me jogar a chutes do seu lado. Grande imbecil!

—Exclamou Kristel furiosa.

—Bom, possivelmente chegue o dia no qual seja você quem me abandone... —insinuou Valéria divertida.

—É claro! Como não me tinha ocorrido? Talvez encontre hoje, no mercado, o homem que não olhará minha claudicação ao andar e que seja capaz de descobrir a bela, educada e boa pessoa que sou —manifestou irada.

—Talvez... —sussurrou Valéria deixando que ela descesse em primeiro lugar as escadas porque precisava apoiar-se na parede.

Durante o caminho, ambas falaram longamente sobre o senhor Mayer. Kristel só expunha quão mau o achava e Valéria suavizava contribuindo com o lado positivo que, pela ira, sua amiga não observava. Mas depois do bate-papo, ambas chegaram à mesma conclusão: ele só queria uma esposa para encerrá-la no lar e que, ao chegar, ajoelhasse-se para lhe pôr as sapatilhas. Depois de rir ante tal dedução centraram-se no importante, comprar mantimentos frescos. Os comerciantes, ávidos por desprender-se da mercadoria podre, enrolavam as clientes com preços tão pequenos que não podiam resistir. Entretanto, enquanto as moedas que guardavam nos bolsos não alcançassem comprar uma boa maçã e não uma em que o verme tirava a cabeça, nenhuma das duas se aproximava de ditas bancas.

—Nascemos para ser ricas —comentou de repente Kristel olhando uma banca de verduras.

—Não somos, mas tampouco nos falta para comer nem para pagar o aluguel do que chamamos lar —comentou Valéria enquanto oferecia a um vendedor de carne o dinheiro que lhe tinha pedido por dois faisões. —O plano está saindo melhor do que eu esperava.

—Não me explicou o que ocorreu ontem no clube —comentou voltando-se para ela depois de fazer alusão àquele plano.

O cabelo dourado lhe brilhava ainda mais ao ser meio tocado pelos raios do sol. Aquele rosto branco, que tempos atrás era pálido e doentio, também mostrava uma cor viçosa. Valéria a observou com tranquilidade, tentando achar alguma expressão de preocupação em sua amiga, mas não a encontrou. Parecia calma ao falar desse tema, como se tivesse escutado suas palavras durante a noite anterior, embora permanecesse adormecida.

—Pois não aconteceu nada estranho —expôs, ao mesmo tempo em que colocava as peças no cesto.

—Caminhou pelas salas? Saiu do escritório? —Insistiu colocando-se de novo ao seu lado.

—Repeti-lhe isso mil vezes. É normal que o senhor Reform vigie seu local —expôs com voz cansada. —Daí que todo mundo deseje passar um bom momento em seu clube e não no outro.

—Como? Se não recordo mal, era você quem se inquietava por essas aparições —replicou.

—Sei, mas me equivoquei. Esse homem só atua como faria qualquer proprietário de um negócio —acrescentou com a esperança de resolver o tema. Embora soubesse que não o faria.

—Se estivesse em seu lugar não apareceria durante um longo tempo. Embora tenha suficiente fortuna para não reparar nas perdas de uma de suas mesas, seguiria mantendo minhas suspeitas e não me relaxaria. Já sabe que, cedo ou tarde, descobrirá o que faz e se achará em uma encruzilhada da qual não sairá vitoriosa.

—Não posso deixar as coisas pela metade. Necessitamos desse dinheiro o antes possível. Recorda que o senhor Dins nos deu uma data limite para pagar o resto de nossa dívida —assinalou, ao mesmo tempo em que caminhava para a banca de verduras que, momentos antes, tinha chamado à atenção de Kristel.

Era a melhor de todo o mercado. A frescura e o sabor daqueles produtos eram tão deliciosos que todas as criadas se agrupavam para comprá-las aos seus senhores antes que terminassem. Tempos atrás, ela e Kristel só passavam por diante para inspirar o aroma rico que desprendia a verdura recém-cortada. Mas tudo tinha mudado e ambas desfrutavam selecionando qual levar.

—Senhorita Giesler! —Exclamou o vendedor ao vê-la aparecer junto com sua amiga. —Como se encontra hoje? O que necessita da minha humilde banca? Disse-lhe que cada dia está mais formosa?

—Bom dia, senhor Adams. Estou bem, obrigada —respondeu Valéria sorridente enquanto olhava que hortaliça seria a adequada para acompanhar as peças que guardava no cesto.

—E eu também me levantei estupenda, obrigada por perguntar —murmurou Kristel um tanto zangada ao manter-se sempre no esquecimento.

—Procuro algo que possa acompanhar os faisões —expôs mostrando a cabeça de um deles. —Mas sou incapaz de me decidir. Tudo o que você vende é delicioso... —acrescentou colocando o dedo indicador de sua mão direita sobre os lábios.

—O que me recomenda? —Perguntou apartando seus azulados olhos da verdura para fixá-los no lojista.

—Umas batatas, umas cenouras e talvez algumas ervilhas. Isso fará com que seus irmãos cresçam sãos e fortes —acrescentou, ao mesmo tempo em que envolvia sobre um papel tudo aquilo do qual falava. —Por certo, como estão? —Quis saber.

—Bem, graças a Deus. Por sorte, crescem muito depressa e, como você diz, devido ao aprimoramento de suas hortaliças se farão homens fortes e sãos —indicou esticando as mãos para recolher a compra.

—Deve ser muito duro encontrar-se tão só para criar dois rapazotes tão ativos como eles —expressou o vendedor exibindo em seu rosto uma tristeza fingida. —Não deveria fazê-lo sozinha.

—Não estou sozinha —disse com rapidez olhando à Kristel. —Tenho uma boa amiga que me ajuda muitíssimo.

—Mas não é o mesmo... —objetou o mercador. —Deveria procurar um homem bom que a ajude nessa pesada tarefa. Um marido que cuide de seus irmãos como se fossem seus próprios filhos e que a trate com o respeito que merece —atreveu-se a dizer enquanto recolhia as moedas que Valéria tinha em sua mão direita.

—Quando conseguir convertê-los em homens, quando se valerem por si mesmos, procurarei. Muito obrigada, senhor Adams, até quarta-feira próxima —declarou antes de colocar a verdura na bolsa e de entrelaçar seu braço no de Kristel. —Acredito que este tempo não está fazendo bem aos homens... —sussurrou divertida. —Só pensam em casar-se.

—Não é o sol, Valéria, é você quem acorda neles esse desejo de converter-se em maridos —apontou com certa tristeza. Não lhe cabia a menor dúvida que uma vez que Valéria encontrasse o homem que a faria feliz, sua amizade terminaria. Que marido suportaria manter uma esposa com uma amiga defeituosa? Não a quereria nem como faxineira...

—Eu? Acaso tenho escrito na testa que desejo me atar a um homem? Por Deus bendito! Nem louca! —Exclamou entre risadas. —Minha liberdade desapareceria, alteraria meus planos e muito me temo que tentassem educar meus irmãos muito longe de mim. Não recorda o que aconteceu à pobre Hermely? Tantos anos procurando um marido que a fizesse feliz, que a ajudasse a cuidar do bebê, cujo próprio pai se negou a reconhecer, e logo...

—Tampouco lhe foi tão mal... —objetou Kristel. —Tem uma grande casa, converteu-se em uma senhora respeitável e seu filho estuda em um dos melhores internatos de Londres.

—Você quem diz! —Resmungou em voz baixa. —Esse pequeno está afastado de sua casa, encerrado entre quatro paredes e sem o calor maternal —resmungou.

—Claro... que lástima de menino! E, quando for o herdeiro de tudo o que tem seu padrasto, quando sob sua autoridade se encontre a fábrica têxtil mais importante da cidade, recordará esse tempo como o pior de sua vida porque sua mãe não pôde lhe dar um beijo de boa noite —alegou Kristel com sarcasmo.

—O afeto familiar é vital para que as crianças cresçam felizes —repôs Valéria, sabendo que terminariam zangadas, como acontecia cada vez que falavam do tema.

Pensavam de maneira muito distinta, possivelmente porque sua amiga não tinha tido o afeto de seus pais. Mas ela, que o tinha desfrutado durante muito tempo e, para sua desgraça, sabia que a perda destes a tinha destruído. Não só porque se encarregou de seus irmãos, muito pequenos naquela época, mas sim porque não pôde encontrar o apoio de sua mãe nos momentos mais difíceis de sua vida.

—O senhor Mayer encherá suas cabeças ocas de sabedoria —alegou como desculpa.

—Mas quando o senhor Mayer descobrir que não conseguirá te converter em sua esposa, pedirá o dobro do que cobra ou partirá —assinalou tentando despertá-la de seu devaneio.

—Pois procurarei outro —resmungou. —Londres está infestada de professores que desejam dois estudantes tão inteligentes como meus irmãos.

—Eu te recomendaria que na próxima vez procurasse uma mulher. Seguramente não há tantas e, se há estão muito escondidas, mas não lhe causarão problemas —recomendou.

—Inclusive você poderia fazê-lo, se não pensasse em continuar com esse plano tão desatinado.

—Esse plano tão desatinado nos está abastecendo de alimento e proteção e, se Deus for benévolo como até agora, logo cumpriremos nossos sonhos —informou orgulhosa.

—Espero que esse logo não signifique um dia —comentou mordaz.

—Não, não significa um dia e não entendo por que ... —De repente ficou muda. Ali estava de novo uma enorme figura que as seguia ou isso lhe tinha parecido. Deu-se a volta e falava com um mercador. Este lhe sorria como se o conhecesse. Mas a risada não era de felicidade e sim de preocupação. Quem era?

—Por que...? —Kristel tentou que continuasse a conversação.

—Acredito que nos seguem —manifestou Valéria com nervosismo.

—A nós? —Perguntou olhando, de forma descarada, de um lado para o outro.

—Sim —respondeu segurando com mais força o braço entrelaçado e aumentando a velocidade da caminhada.

—Não diga bobagens! —Exclamou apartando-se dela. Não podia seguir o ritmo que tinha empreendido. O quadril lhe impedia de acompanhá-la, além disso, deixava de controlar a claudicação, expondo ainda mais sua incapacidade à vista de quem as observava. —Trata-se de outro homem procurando uma oportunidade para falar contigo. Não seria a primeira vez que...

—Não! —Vociferou em voz baixa. —Não se trata disso.

—Quem se supõe que nos persegue? —Insistiu.

—Aquele homem ali. O alto. —Assinalou-o com o olhar.

—Por Deus bendito! Aquele? —Disse tão assombrada que seus olhos se abriram como janelas. —Está segura?

—Sim, estou. Vi-o desde que saímos de nosso lar. A princípio pensei que fosse só uma coincidência, mas... já não estou tão segura —expressou com voz tremente.

Talvez o senhor Reform tivesse contratado um desses criminosos para que a vigiassem e que, na primeira ocasião, assassinasse-a. «Pensa, Valéria, pensa. Não se dá conta que está vestida de mulher? Se aquele presunçoso tivesse pagado um homem para que perseguisse o senhor Hernández, não iria atrás dos passos de uma mulher, não te parece?» Um pouco mais relaxada ante essa conclusão, tentou continuar com a compra, mas quando voltou a contemplá-lo, este as observava sem pestanejar.

—Olha-o bem, Valéria. Esse homem não pode ir atrás de nossos passos. Acaso não viu suas dimensões? Ultrapassa em altura todos os que há ao seu redor! —Disse divertida. —Se tentasse nos espiar, se de verdade quisesse fazê-lo... não teria que esconder-se? E, onde o faria? Atrás de uma banca de panelas? —Expôs antes de soltar uma grande gargalhada.

—Então... o que olha? —Perguntou sem diminuir sua intranquilidade.

—Pergunta-me o que olha? —Perguntou Kristel incrédula. —Pois, o que olham todos os homens do mercado, a você!

—Eu não gosto nada desse titã musculoso —indicou enrugando o nariz.

—Por quê? Não te parece atraente? Se de verdade quer viver nessa fazenda, necessitaria dos seus músculos para carregar sacos de grãos —prosseguiu sarcástica.

—De moços estaria bem, seguramente meus irmãos adorariam ter uma força como essa, mas eu valorizo mais o que guarda em sua cabeça e, muito me temo, que ele só possua feno —disse divertida.

—Senhorita Giesler! —Um vendedor de tecidos chamou-

—Não quer apreciar minhas novas aquisições? Comprei mercadoria da Índia e lhe posso assegurar que é de muito boa qualidade.

—Aproximamo-nos? —Consultou Kristel. —Poderíamos procurar algum tecido com o qual confeccionar umas camisas elegantes para os meninos.

—E escutar como elogiam sua beleza? Como insistem em que necessita de um marido que possa vestir adequadamente dois futuros senhores? Não, obrigada. Meus ouvidos já não podem assimilar mais estupidez, prefiro procurar naquela banca —assinalou com um dedo —um livro com o qual te esperar pelas noites.

—Não seja boba... sei que você gosta de tocar os tecidos e ninguém sabe melhor que você se esse mercador quer me enganar.

—Não te enganará. Se quiser te levar até sua casa te oferecerá o melhor tecido ao preço mais baixo —insistiu.

—Não quero...

—Vou procurar o maldito livro —resmungou caminhando para a banca.

Valéria a olhou com olhos cheios de carinho, porque sabia que cada dia lhe resultava mais difícil acompanhá-la. Era muito cruel que todos os homens só admirassem seus traços e não se fixassem na mulher que tinha ao seu lado. Só esperava que algum tivesse algo no cérebro para descobrir quem era Kristel em realidade. Depois de soprar, sorriu e se dirigiu para a banca de tecidos onde o vendedor lhe sorria como todos os outros.


VI

 


—Não me havia dito que hoje não trabalhava? —Perguntou Aphra ao seu filho ao vê-lo preparando-se para sair.

Borshon olhou à sua mãe e levantou o lábio superior como sinal de agrado. Podia ter as pernas inertes, mas seu cérebro bulia de energia.

—O senhor Reform me contratou durante umas semanas para me encarregar do amparo de uma mulher —explicou enquanto abotoava a casaca cinza que utilizava quando não vestia o traje de agente.

—O senhor Reform? —Trovejou Aphra incrédula. —Aquele ao qual denominou soberbo, estúpido e a quem desejava colocar algo em sua parte nobre?

—O próprio —afirmou segurando a gargalhada que desejava soltar.

—A que mulher? Por que quer cuidá-la? Não será alguma prostituta dessas que denominam professionnel? —Disse com uma pronúncia perfeita em francês. —Ultimamente há muitas assim e são as amantes mais custosas de Londres.

—Pergunto-me... como pode saber tanto do que acontece fora destas paredes se não pisa na rua há anos? —Perguntou olhando à Giselle.

—Minhas pernas falham, mas meus ouvidos não, —replicou mal-humorada. Aphra colocou as mãos sobre o colchão e se sentou. Nesse momento a cuidadora correu para ela, colocou-se atrás e cavou os travesseiros. —Então... é uma prostituta? —Perseverou.

—Não, não tenho que proteger uma prostituta —comentou aproximando-se dela para lhe dar um beijo na testa. Mas, como qualquer mãe que cuida de cada detalhe de seu filho e não considera que cresceu o suficiente para não seguir independente dela, ao aproximar-se começou a lhe arrumar a gola da camisa.

—Espero que não seja um trabalho que te faça abandonar suas convicções, —falou sem soltar a roupa —lutou muito para ser quem é.

—Não vou fazer nada ilegal, mãe —respondeu tentando afastar-se de suas mãos. Se seguisse lhe apertando o pescoço daquela maneira o deixaria sem respiração.

—Não suportaria que todo o seu esforço se destruísse por uma rameira vulgar... —expôs apertando a mandíbula.

—Escute-me, —disse segurando suas mãos para retirá-las de uma vez —o trabalho é muito singelo; tenho que custodiar uma mulher para que não se meta em confusões. O senhor Reform, embora pareça inverossímil o que vou declarar, interessou-se por uma jovem e não quer que lhe aconteça nada mal.

—Está em perigo? —Perguntou abrindo os olhos como estrelas cintilantes.

—Por agora não, —manifestou sereno —mas segundo ele tem a palavra perigo escrita na testa.

—E o que importa essa mulher para a esse paspalhão? Onde vive? É rica? Quer evitar que lhe aproxime algum pretendente? —Perseverou sem mal respirar.

—Nada disso —comunicou negando com a cabeça. —Essa jovem é órfã e tem sob seu cuidado dois irmãos pequenos. Sobrevivem com o pouco que ela ganha.

—Se tinha certo interesse por saber quem é, agora se triplicou —assinalou assombrada. —Essa jovem abrandou o coração de um homem que não o tinha?

—Conforme percebi, sim. Mas acredito que não parou para pensar o motivo desse ato —alegou divertido.

—Bom, quando aparece a pessoa adequada tudo se volta um caos —apontou reclinando-se sobre os travesseiros.

—Por sorte para você, seu filho ainda mantém a prudência necessária para cuidá-la —expôs zombeteiro.

—Meu filho é um idiota, —resmungou cruzando os braços —perde o tempo cuidando de mulheres que não lhe contribuirão em nada.

—Contribuirão o suficiente para comprar um lar onde possa sair à rua —confessou irritado.

—Não quero uma casa nova e sim uma esposa para você!

—Exclamou zangada. —Se Deus é piedoso com esta serva, logo me levará ao seu lado e não poderei morrer em paz sabendo que te deixo aqui sozinho.

—Uhm..., —murmurou Borshon tocando-a no queixo e arqueando as loiras sobrancelhas —então segue viva porque não encontrei uma esposa? Interessante...

—O senhor Hill poderia encontrá-la em qualquer momento —interveio Giselle que, com o olhar cravado no tecido que bordava, animava Aphra. —Quão único deve fazer é rodear-se de gente boa e não desses criminosos aos quais detém.

—Pagou-a para que apoie sua opinião? —Disse Borshon divertido ao ver as duas senhoras de conluio.

—Não, mas é inteligente e sabe do que falo. É um homem muito bom, meu filho. Um agente respeitável, educado e com uma compleição endeusada.

—É claro... —apontou cruzando os braços. —E não creem que esta compleição endeusada pode assustá-las? —Perguntou olhando primeiro a uma e logo a outra. —Porque cada vez que caminho, cada vez que meus enormes pés pisam no chão, noto como quem está ao meu redor salta sem querer.

—Bobagens! —Exclamou Aphra colocando bem a colcha sobre sua cintura. —Meu filho é perfeito, muito perfeito para qualquer mulher que viva em Londres.

—Então, terei que partir daqui. Possivelmente minha futura esposa viva em um povoado chamado... Gigantelândia?

—Se vai seguir zombando de sua mãe dessa forma, abre a porta e vá —resmungou zangada. —Já sofro suficientes dores nestas ditosas pernas para padecer também sufocos causados pelos descaramentos de meu filho.

—Como desejar... —disse fazendo uma exagerada reverência. —Giselle, sobre a mesa tem o pagamento do mês passado e o deste. Sinto se me atrasei, mas...

—Não se preocupe, senhor Hill —desculpou-o com rapidez. —Você é um bom chefe.

—Vê, mãe? Também sou um bom chefe... —mas Aphra não lhe respondeu, seguia zangada como se fosse uma menina a quem não lhe tinham dado seu caramelo preferido. —Não me esperem levantadas. Este trabalho me levará todo o dia, depois de observar e proteger, tenho que informar. Assim, quando cair o sol, visitarei o Clube Reform —esclareceu caminhando para a porta. —Se acontecer algo...

—Far-lhe-ei saber imediatamente —manifestou Giselle.

—Que tenha um bom dia, mãe —disse antes de girar o trinco.

—Que ninguém toque esse corpo que tanto me custou tirar de minhas vísceras —Aphra lhe respondeu como sempre.

Quando fechou a porta atrás de sua saída, Borshon olhou para o céu. Tinha elegido muito mal a vestimenta, porque se não se equivocava, faria um sol sufocante. Por que diabos as nuvens não podiam ocultar o sol? Talvez porque fosse muito grande... ao refletir sobre isso recordou o difícil que lhe resultava passar inadvertido. Problema que não determinou o senhor Reform ao contratá-lo. Tirou a jaqueta, colocou-a no braço e caminhou para a casa de Valéria como se fosse um cavalheiro dando um adorável passeio.

 


«Outro?», se perguntou Borshon quando o vendedor de tecidos captou a atenção de Valéria. Não ia agradar ao senhor Reform saber que em cada passo que dava sua protegida um homem se aproximava para lhe pedir em matrimônio. Com um sorriso de orelha a orelha depois de imaginar a cara que poria este, voltou o olhar para a mulher que a acompanhava. Ficou desconcertado quando ela saiu com a senhorita Giesler. Quem era? Uma amiga? Outro parente? Mas se petrificou ainda mais ao ver que precisava apoiar-se na parede para descer as escadas. A pergunta que apareceu ao observá-la, resolveu com rapidez. Aquela mulher de cabelo loiro tinha uma leve claudicação para a esquerda e lhe era tedioso descer sem apoio.

Mantendo uma distância prudente e escondendo-se nos lugares que podiam albergar a magnitude de seu corpo, caminhou tão perto delas que escutou a conversação com total nitidez. Falavam de um tal Mayer, quem Borshon deduziu que era o homem que tinha entrado antes delas saírem. A mulher desconhecida só falava coisas horrorosas, enquanto Valéria a apaziguava exaltando seus dotes como professor. «É o professor dos seus irmãos... —concluiu. —Bom, isso lhe aliviará um pouco. Não é o mesmo lhe explicar que um homem entra muito cedo na casa, do que lhe comentar que contratou um instrutor para seus irmãos», refletiu divertido.

Dirigiam-se para o mercado. As ruas pelas quais caminhavam terminavam em uma grande praça onde todas as manhãs mais de vinte bancas de vendedores expunham seus gêneros. Gritos, gente perambulando de um lado para o outro, carruagens com cavalos acostumados a trotar entre o ruído, soltando seus excrementos no chão, galinhas movendo suas asas e deixando escapar uma ou outra pluma quando o dono as agarrava pelo pescoço para matá-las... aquilo era um caldeirão de multidão e cantos agônicos para atrair a máxima clientela.

Borshon olhou as diferentes saídas do mercado, deviam estar custodiadas pelo grupo diurno; uma patrulha que o inspetor contratou para apaziguar qualquer briga nas bancas. Mas não havia ninguém. Franziu o cenho e apertou os punhos. Se se ocasionasse algum problema como poderia socorrê-la com tanto fluxo? Não lhe cabia dúvida que teria que falar com o inspetor sobre aquela turma de ineptos.

Obcecado por esses pensamentos policiais, descuidou de ocultar-se e foi então que observou como Valéria o olhava. Tinha-o descoberto e isso significava o fim de sua missão. Se for tão preparada para ganhar na mesa de jogo, deduziria que o senhor Reform tinha averiguado que era uma mulher e desapareceria da face da Terra deixando-o só com quinhentas libras. Não, não podia perder a oportunidade de cumprir seus sonhos, precisava achar algo que lhe proporcionasse um motivo acreditável para que ela não suspeitasse. O que poderia fazer? Aproximar-se de uma banca e comprar o primeiro que encontrasse?

—Senhor Hill? —Saudou um dos vendedores.

Borshon dirigiu o olhar para o homem e sorriu. Odiava-o e teria desejado não o ter de novo em seu caminho, mas dado o momento tão crítico que estava padecendo, posto que a senhorita Giesler não apartasse o olhar dele, caminhou para aquele descarado.

—Bom dia, senhor Bread, que tal se encontra?

—Muito bem, perfeitamente... —sorriu.

Entretanto, não sorria de felicidade, mas sim de terror. Aquele monstro que, com sua sombra, enchia de escuridão sua pequena banca, tinha-o retido em um dos cárceres da Scotland Yard durante dois dias. Um vizinho foi à central porque foi testemunha do bofetão que deu em sua esposa e aquele mastodonte se apresentou em sua casa para arrastá-lo até a prisão. Mas depois desses dias ao lado daquela besta, preferia cortar a mão antes que voltar a lhe bater.

—Como se encontra sua esposa? Tornou a tropeçar? Perguntou fixando seus olhos nele.

—Oh, não! Já cuido de que minha mulher não tropece nem com uma pequena pedra. Aprendi a lição —cochichou enquanto envolvia algo em papel. —Juro que não a toquei.

—Bem, alegra-me escutar isso. Se alguma vez aparecer com um mísero hematoma, quebrar-lhe-ei mais costelas —ameaçou.

—Não senhor, prometo, trato-a como se fosse uma dama da alta sociedade —titubeou em cada palavra. —Por favor, aceite este obséquio.

—O que é? —Perguntou entreabrindo os olhos.

—Só um espelho. —Desembrulhou com rapidez a pequena nécessaire para que não pensasse que comprava sua graça. —Seguramente sua mulher gostará —acrescentou lhe tremendo não só a voz, mas também as mãos.

—Quando a tiver virei buscá-lo —resmungou enquanto apartava o olhar do insolente e o cravava em Valéria. Retirava-se para outra banca, a dos tecidos. Mas desta vez não foi acompanhada. Por quê? —Seguirei lhe vigiando —declarou antes de dirigir-se a ela.

—É claro, muito obrigado, senhor Hill. —E quando o agente se afastou, descobriu que não era suor o que molhava sua calça. —Tome conta da banca uns minutos —disse ao seu ajudante. —Não demorarei em voltar.

Por que tinham se separado? À mulher loira não agradava a banca de tecidos? Sua mãe ficaria louca comprando de todas as cores! Estava seguro que tanto ela como Giselle redecorariam seu lar lhe dando o aspecto de um jardim. Entretanto, caminhava para o outro extremo do mercado, afastando-se do bulício. Borshon negou brandamente com a cabeça. Não podia averiguar o que desejava a desconhecida. Devia continuar com o trabalho pelo qual lhe pagavam e não era conveniente pensar em outra coisa que não fosse à segurança da senhorita Giesler. Mas então algo aconteceu que lhe fez apertar os punhos, entrecortar a respiração e pressionar tanto sua mandíbula que escutou como lhe chiavam os dentes... que diabos era aquilo? Que diabos faziam aquele par de bobos? Ela não se deu conta ou estava tão acostumada às brincadeiras que já não lhes prestava atenção? Mas Borshon não pôde frear seu passo, nem apartar o olhar para outro lado como faziam outros, mas sim a grandes pernadas e bufando como um touro enfurecido, caminhou para os jovens que, atrás da mulher, coxeavam imitando-a.

—Divertem-se? —Perguntou quando as costas daqueles moços tocaram seu peito.

Quando estes se deram a volta para enfrentar a pessoa que interrompiam sua brincadeira, ficaram tão brancos como um fantasma. Borshon atuou com rapidez, esticou as mãos e agarrou as golas das camisas de ambos.

—Não tentem escapar —disse com uma voz tão horripilante que os jovens começaram a choramingar como meninos. —Não querem que brinque com vocês? Parecia muito divertido... —Aquele tom, que os criminosos estavam acostumados a escutar depois de uma matança onde não se arrependiam de ceifar tantas vidas inocentes, apareceu em sua garganta.

—Nós... senhor... não... —titubearam ao uníssono.

—Nós... senhor... o que? —Cuspiu.

—Só estávamos brincando. Não queríamos rir da coxa... —declarou um deles.

—Eu também quero brincar —disse desenhando um sorriso que os deixou sem fôlego.

—Solte-os agora mesmo! —Ordenou-lhe uma voz feminina.

Borshon a olhou e ficou quieto, pensativo. Por que os defendia? Não queria que lhes desse seu castigo? Porque lhe bulia o sangue só de pensar...

—Peçam desculpas à senhora —manifestou Hill dirigindo as duas cabeças para ela.

—Sentimo-lo, senhora —assinalaram de uma vez.

—E... não voltaremos a fazê-lo —insistiu a repetir.

—E não voltaremos a fazê-lo —responderam.

—Muito bem! —Exclamou Borshon lhes soltando com tanta força que caíram para trás. —Na próxima vez não serei tão benévolo —gritou quando estes se puseram a correr.

—Se pensa que vou lhe agradecer por seu ato heroico, está muito enganado —resmungou Kristel colocando as mãos na cintura.

—Não espero, senhora —disse recolhendo a casaca que tinha atirado ao chão para poder ter livres as duas mãos.

—Bem, alegra-me escutar que não deseja elogios nem aplausos —soprou girando-se sobre si mesma para dirigir-se de novo para a banca de livros.

Observavam-na. Todo mundo a olhava sem pestanejar e ela ficou tão nervosa que coxeava com mais força. Desesperada e morta de vergonha por ser o centro das atenções no mercado, permaneceu imóvel, abaixou a cabeça e tentou esquecer onde se encontrava.

—Quero dar de presente um livro à minha mãe. Está muito doente e passa seus dias prostrada na cama, pode me recomendar um? —Borshon disse-lhe ao ver como ficou parada no meio do caminho e fixava os olhos no chão, acudiu veloz para fazê-la sair daquele estado de atordoamento.

—O que sua mãe está acostumada a ler? —Perguntou-lhe sem olhá-lo.

—Desde feitiços de amor para que seu filho encontre uma esposa até velhas receitas culinárias, que obriga a sua cuidadora a preparar e que, para desgraça do meu estômago, não sabe realizar —alegou com a esperança de que essas palavras levantassem seu ânimo.

—Nada de bruxaria, nem de receitas... —murmurou Kristel que, face às lágrimas que tinham brotado ao viver um momento tão vergonhoso, seus lábios se curvaram para desenhar um sorriso.

—Tampouco deve escolher aqueles que ponham em perigo minha integridade. Está acostumada a me assassinar cada vez que fala —acrescentou com tom divertido.

—Deixa-me muito poucas alternativas... —assinalou Kristel levantando o rosto para olhar aquele homem.

Borshon grunhiu ao ver o brilho daqueles olhos. Quis apartar as lágrimas que vagavam pelo rosto e as atirar ao chão com rudeza. Entretanto, para que não se assustasse ao ver as grandes mãos, meteu-as nos bolsos da calça.

—Sei. Por isso lhe peço ajuda —expressou com aparente aflição. —Faria a gentileza de me ajudar? Já que ambos nos dirigimos para o mesmo lugar... —colocou-se ao lado dela e esperou que desse o primeiro passo. Mas ao seguir imóvel, Borshon deduziu que não queria que a visse coxear de novo. —Não pode andar? Encontra-se cansada? —Insistiu. —Se precisar, poderia agarrá-la em meus braços e leva-la até a banca. Sou bastante forte...

E nesse momento Kristel começou a caminhar tentando afastar-se daquele ousado. Claro estava, ele não o concedeu e andou ao seu lado.

—O que gosta de ler, senhora...?

—Senhorita Griffit —corrigiu enquanto dava passos muito pequenos para poder dominar ambas as pernas.

—O que você gosta de ler, senhorita Griffit? —Perguntou notando como uma estranha felicidade se apoderava de seu grande corpo. Seria por vê-la andar daquela maneira ou por descobrir que estava solteira?

—Eu adoro as novelas de mistério —declarou levantando ainda mais a cabeça para olhá-lo. —Sou uma viciada em tudo o que se escreve sobre segredos, enigmas, encruzilhadas... —enumerou.

—Nada de romantismo... —sussurrou Borshon para si, mas Kristel o escutou.

—Não acredito em tal tolice, senhor...

—Hill.

—O romantismo só se encontra em pessoas perfeitas e, como pode perceber, eu não o sou. Então não sonho com algo impossível —revelou com tanta firmeza que Borshon ficou congelado.

Como ela podia separar de sua vida uma coisa assim? Pela leve deficiência? Não se tinha olhado no espelho? Não se dava conta de quão formosa era? Seu cabelo brilhava e mostrava uma suavidade que qualquer homem desejaria tocar. Seus olhos, da cor do céu, eram tão brilhantes e expressivos que todo varão que se orgulhasse de sê-lo se ajoelharia. E sua figura, embora oculta embaixo daquele grosseiro vestido, exibia-se poderosa, com uns quadris voluptuosos. O mundo masculino estava cego para não apreciar sua beleza?

—Nós, que somos imperfeitos, também sonhamos, senhorita Griffit —expôs depois de meditar como fazê-la entender que não podia perder a esperança.

—Considera-se imperfeito? —Perguntou parando e voltando-se para ele.

Que deficiência tinha? Que ela pudesse ver com um simples olhar, nenhuma. Era um homem muito bonito. Possuía uns grandes olhos de uma cor verde incrível. Seu nariz curvo, seus lábios em forma de coração, o cabelo loiro, penteado e cortado, o queixo robusto, forte, varonil, enlouqueceria qualquer mulher. E sua figura... O maior que jamais tinha visto! Onde se encontrava seu defeito? Na cabeça, como deduziu Valéria? Mas não parecia ter feno em vez de cérebro...

—Ninguém daqui —expôs estendendo a mão e criando com esta um semicírculo —o é.

—Não diga sandices, por favor —comentou caminhando de novo.

—Olhe —disse assinalando um homem que arrumava o calçado. —Não se deu conta de que tem oito dedos em vez de dez? Segundo você esse homem é imperfeito e não deveria permanecer acompanhado de sua esposa e de seus filhos.

—Como sabe que é sua esposa? Possivelmente seja uma irmã que vem visitá-lo —objetou.

—Uma irmã não o olharia dessa forma —asseverou.

E era certo, aquela mulher que sustentava um bebê em sua cintura e segurava outro pela mão, olhava ao homem como se não houvesse outra pessoa no mundo salvo ele.

—Essa mulher daí... —indicou uma senhora que colocava suas mãos nas costas como se tentasse acalmar uma incrível dor —tenta ocultar embaixo desse grande lenço que cobre sua cabeça, a perda do cabelo. Também é imperfeita? Não merece ser feliz, embora não tenha uma formosa juba?

—Está me oferecendo exemplos para que não me centre na claudicação? Sei quem sou, senhor Hill, e o que implica meus movimentos de quadril —comentou com aborrecimento.

—Perdoe minha ousadia, senhorita Griffit, mas esses movimentos de quadril me deixaram tão hipnotizado que não posso apartar meus olhos dele —expressou parando de novo e elevando ligeiramente a voz.

—Como diz? —Perguntou com tanta surpresa e atordoamento que, pela primeira vez em sua vida, não controlou aquele pé que a entorpecia e esteve a ponto de cair ao chão. Por sorte, o senhor Hill foi muito hábil e a agarrou com força.

—Dizia-lhe —continuou falando sem apartar a mão de sua cintura e mantendo a escassa distância que havia entre ambos os rostos —que o movimento de sua cintura me enfeitiçou tanto que não posso...

—Acredito que sua mãe lhe lançou outro feitiço, —disse apartando-se com rapidez daquelas mãos —porque só assim poderia dar sentido ao seu descaramento, senhor Hill.

—Já lhe disse que não devemos escolher nada perigoso, senhorita Griffit. Minha mãe o utilizaria em meu contrário —adicionou antes de soltar uma sonora gargalhada.

Vermelha. Seu rosto ardia ante aquele contato, ante a cercania de um rosto tão formoso e necessitava, com urgência, pensar em outra coisa. Acelerando o passo, embora o vaivém de quadril se acentuasse e os olhos daquele estranho continuassem cravados em seu glúteo, dirigiu-se para a banca de livros.

—Bom dia, senhor Daft —saudou-o como sempre.

—Senhorita... senhor Hill! —Exclamou o livreiro ao descobrir em frente a ele o agente. —Que grande honra me produz o ter por aqui!

Kristel não reparou em que não lhe tinha respondido adequadamente. Centrou-se mais em observar a cara que o vendedor mostrou ao aparecer o homem, que em meditar se tinha sido respeitoso ou não. Mas ao mover-se para a esquerda para apartar-se e deixar que o livreiro atendesse o senhor Hill, notou o calor de umas grandes mãos. Aquele estranho tocava cada lado de sua cintura e a colocava, de novo, em frente ao vendedor.

—Senhor Daft, acredito que não saudou senhorita Griffit como ela merece —assinalou Borshon sem retirar as mãos dela.

O livreiro olhou ao homem, logo à mulher e terminou por contemplar os grandes dedos sob o xale grande dela.

—Desculpe minha estupidez, senhorita Griffit. Fui muito descortês, —apontou Daft mais assombrado que assustado —mas tenho que alegar, em minha defesa, que me emocionei ao ver o senhor Hill depois do que fez.

—Aceitarei suas desculpas se me explicar o que ele fez —comentou Kristel elevando o rosto por cima de seu ombro direito para admirar aquele homem misterioso.

Este lhe sorriu e, em vez de sentir-se incômodo ao seguir mantendo as mãos em sua cintura, não as apartou, como se quisesse evitar que se pusesse a correr ao escutar a história.

—Ajudou nosso filho, senhorita Griffit. Martha o tinha levado ao porto para que pescasse e de repente uma onda causada pela chegada de um navio arrastou-os para o rio. Ela saiu como pôde, mas nosso pequeno de dez anos não conseguia salvar-se —disse com um nó na garganta.

—Nesse dia tinha que vigiar a região —comentou Borshon. —O capitão de um navio que chegava com mercadoria da Espanha pediu amparo e me destinaram a cumprir esse trabalho. Quando escutei a senhora Daft gritar, fui em sua ajuda. Explicou-me o que acontecia sem deixar de me assinalar à superfície do rio. Por sorte, o menino pôde tirar a cabeça e me lancei em sua busca. Mas não sou um herói, só um homem que cumpriu com seu dever.

—Seu... dever... —sussurrou Kristel com a alma encolhida, sentindo como próprio, o desespero daquela mãe que gritava procurando alguém que pudesse socorrer seu filho.

—É, sem dúvida alguma, o melhor agente que tem a Scotland Yard, senhorita Griffit.

—Agente... —ela comentou ficando tão assombrada que não sabia se respirava, se gritava à Valéria para que corresse ou só o olhava.

—Sim, um agente —afirmou Borshon com um enorme sorriso ao descobrir como se intensificava e atenuava a vermelhidão em suas bochechas. —Voltando para o que nos interessa... —disse apartando o olhar dela para fixá-lo no vendedor. —Senhor Daft, estamos procurando vários livros. A senhorita Griffit gosta de mistério, com muitos enigmas e se forem policiais, melhor, não é? —Perguntou-lhe olhando-a de novo.

—Em efeito —ela atinou a responder. —E um para sua mãe. Não podem ser nem de bruxaria nem de receitas —informou Kristel um pouco mais tranquila, embora em nenhum momento abaixasse a guarda.

Podia ser só uma coincidência, como tantas na vida. Não devia supor que a presença daquele agente no mercado era para espiar a sua amiga... ou sim? «Pensa devagar, Kristel —disse-se, enquanto olhava as capas dos livros que lhe ofereciam. —Se estivesse atrás dos passos de Valéria... por que não separou suas mãos de sua cintura?». Respirou tão fundo que fez desaparecer o pensamento, até que notou o peito dele roçando suas costas.

Perto... estava muito perto.

—O que lhe parece? —Perguntou o livreiro orgulhoso.

—Moby Dick... —leu Borshon.

—É um exemplar da primeira edição —disse Kristel abrindo os olhos e segurando os gritos que desejava realizar ao ver uma joia semelhante. Mas o brilho que mostrou e a forma de acariciar a capa revelou a felicidade que sentia.

—Necessitamos de outro para minha mãe, senhor Daft. Acredito que este já tem proprietária —explicou com aparente aflição.

—Se o quiser...

—Não, —comentou apartando enfim as mãos do corpo dela para pô-las sobre o livro que Kristel estendia para que o agarrasse.

Como podia ser tão atrevido? Não era consciente da repercussão que teria uma amostra tão afetuosa? Ou talvez... o tinha feito por isso mesmo? Uma vez que se corresse à voz, uma vez que toda Londres soubesse que o agente Borshon Hill tinha posto seus olhos em uma mulher, respeitá-la-iam e a tratariam como merecia.

—À senhora Hill agradará mais este —interveio o livreiro mostrando um livro encadernado em negro. —Trata-se da primeira novela do famoso Charles Dickens. Publicou-o por encomenda desde abril de mil oitocentos e trinta e seis até novembro de trinta e sete. Só há cem exemplares como este.

—Pois fico com ele —asseverou sem titubear.

—Leu o título? —Perguntou Kristel entreabrindo os olhos. —Sabe do que se trata?

—Não, mas confio em seu bom critério —explicou fazendo referência à decisão do senhor Daft.

—Bem... —sussurrou ela enquanto colocava a mão no bolso para tirar umas moedas.

—É um presente —disse o livreiro rejeitando o pagamento.

—Não, não, não! —Exclamou Kristel nervosa e morta de vergonha. —Não aceitarei nada por sua parte. Não quero que...

—É meu presente para você, senhorita Griffit —interveio Borshon, ao mesmo tempo em que se inclinava para recolher o livro destinado à sua mãe e para pagar o vendedor. —Espero que o aceite.

Aceitar? Como podia aceitar um presente de um homem que não conhecia? Não era próprio de uma mulher respeitosa e educada como ela receber obséquios sem motivo aparente.

Entretanto, justo quando ia negar-se a isso, observou a felicidade daquele grande homem e lhe enterneceu tanto o coração que terminou por lhe dizer:

—Faremos um trato, quando terminar de lê-lo o trocarei com a sua mãe e assim... —ficou calada de repente.

Como tinha sido tão descarada? Estava lhe insinuando que podiam se ver de novo? Ela? Uma mulher como ela com um homem como ele?

—Aceito sua proposição, senhorita Griffit —disse Borshon estendendo a mão para Kristel como se quisesse selar um pacto entre cavalheiros. —Quando quer que nos vejamos e onde?

—Não pretendia... —tentou dizer.

—Reitero que me parece uma boa ideia. —Ao ver que ela não estendia sua mão e que a tinha presa à capa do livro, Borshon a agarrou, levou-a aos seus lábios e a beijou. —Diga-me quando e onde —ronronou sem apartar os lábios dos nódulos e seus olhos dos dela.

—Na quarta-feira que vem retornarei ao mercado, parece-lhe bem?

Isso era sua respiração? Aquele ruído que se escutava longínquo era uma respiração agitada? Não, não era. O que se ouvia eram os batimentos do seu coração que, pela primeira vez, palpitava como se suas pernas lhe tivessem permitido correr por toda Londres.

—Parece-me perfeito —afirmou. —Vereia-a na próxima quarta-feira, senhorita Griffit.

—Kristel —disse seu nome através de um suspiro.

—Borshon —respondeu ele. —Obrigado por este maravilhoso momento, Kristel. Estarei ansioso para que chegue a próxima quarta-feira —expôs antes de colocar a casaca no braço esquerdo e partir.

—E eu... —murmurou com os olhos presos às grandes costas, e com o livro que lhe tinha dado colado em seu peito.

—Kristel! Kristel! Está bem? O que aquele homem queria? Perdoa que não tenha vindo antes, mas estava entretida com os tecidos. Por certo, tinha razão, aquele descarado insistia em autoproclamar-se como candidato perfeito a marido. Comprou um livro? Que título? Por que não me diz nada sobre aquele homem?

—Chama-se Borshon Hill e é um agente da Scotland Yard —resumiu sem apartar o olhar do lugar por onde ele partira.


VII

 

Depois des se afastar de Kristel, Borshon se ocultou melhor que à vez anterior. Aproveitou cada rincão, cada muro, cada sombra, para que não lhe surpreendessem de novo. Entretanto, manter-se tão distante o impediu de escutar o que diziam. Falariam dele? Que impressão deu à senhorita Griffit? Explicar-lhe-ia que, descaradamente, agarrou-a pela cintura e não foi capaz de apartar as mãos? Revelar-lhe-ia que ante esse gesto inapropriado ela não pôde deixar de tremer? Quão único satisfez a todas as suas perguntas foi observar como ela seguia apoiando sobre seu peito o livro que lhe tinha dado, como se fosse um objeto tão valioso que não pudesse separá-lo de seu corpo. Por que o segurava desse modo? Porque era um presente ou porque se tratava de uma primeira edição?

Hill respirou fundo para achar deste modo um pouco de paz. Estava especulando muito sobre uma coisa tão simples como era segurar um livro. Devia sossegar-se, relaxar-se e pensar com lucidez, tal como atuava cada dia em seu trabalho. Entretanto, resultou-lhe impossível fazê-lo. Necessitava de respostas e, sobretudo desejava saber o que ela tinha sentido ao tê-lo perto, ao tocá-la... «Só desapareceu sua vergonha quando o livreiro lhe ofereceu aquele ditoso tomo —disse-se com certo mal-estar. —Acaso não viu como lhe iluminaram os olhos? Não foi testemunha de como evitou gritar quando o sustentou em suas mãos? —Continuou dizendo-se enquanto se apoiava ligeiramente sobre a parede, cruzava os braços e continuava olhando para a porta do lar da senhorita Giesler. —Não imagine coisas que não são certas. O único que importa à Kristel é o livro».

Com os olhos cravados na entrada do lar que devia vigiar, esperou com paciência que ela se despedisse de Valéria para dirigir-se à sua casa. Mas o tempo passou e ninguém, salvo o homem que foi pela manhã, partiu. Borshon observou como este, ao descer as escadas, ajustou-se o casaco, colocou-se o chapéu e olhou para a porta como se desejasse lhe dar um chute. Hill teve a imperiosa necessidade de aproximar-se e lhe perguntar por que olhava dessa forma. Mas se conteve. Segurou estoicamente a vontade de lhe tirar a golpes a informação e continuou escondido no beco. Enquanto esperava que acontecesse algo interessante, empregou o tempo em recordar, passo a passo, o encontro com a mulher. «Nem sequer queria falar com ela —meditou. —Simplesmente a utilizou para ter uma desculpa acreditável. Se a senhorita Giesler se aproximasse de você e tivesse te perguntado que diabos fazia as perseguindo... o que lhe teria respondido?» Mas por mais que se obrigava a dar por firme essa razão, que tinha se aproximado dela para ter um álibi, não era certo. Desde que a viu, desde que a observou descer a escada pela qual partira aquele homem, teve o impulso de saber quem era a jovem que acompanhava a sua protegida.

Por quê? Por que não pôde apartar o olhar de Kristel? A quantas mulheres tinha custodiado sem sequer conhecer a cor de seu cabelo? O que tinha de especial? Seria a claudicação o que atraiu sua atenção? Ser o filho de uma mulher que não podia utilizar suas pernas lhe fez olhá-la, contemplá-la de forma tão protetora? Não, não tinha nada a ver. A realidade era que, desde que seus olhos se cravaram nela, tudo ao seu redor desapareceu como uma névoa ao aparecer o sol. E, para seu pesar, manter uma conversação tão distendida, captar o calor de seu corpo ou roçar o vestido com suas mãos, deixou-o tão atordoado que lhe resultava muito difícil apagá-la da mente. «Mau assunto... —refletiu desenhando um leve sorriso em seu rude rosto. —Não tenho suficiente me preocupando com minha mãe e agora não posso pensar em outra coisa que não seja averiguar quem é...».

 

 

Assim que chegou o senhor Mayer lhe explicou, como se não fosse capaz de lhe entender, o conteúdo que tinha exposto aos seus irmãos. Depois de suas acostumadas perguntas sobre o que tinha comprado, como o cozinharia e soltar o típico discurso sobre quão perigoso era para uma mulher tão formosa como ela caminhar sozinha pelo mercado, esquecendo-se de novo da presença de Kristel, Valéria lhe ofereceu seus pertences e caminhou para a saída elogiando a paciência que tinha com seus irmãos e exaltando seus dotes como instrutor.

Tinha pressa por ficar só com sua amiga. Precisava falar sobre o ocorrido no mercado e lhe explicar que aquele desconhecido podia ser perigoso para elas. Mas o senhor Mayer não queria despedir-se tão facilmente. Quando dava por terminada uma conversação, ele começava outra e assim permaneceu sustentando a porta até que Kristel, cansada de tanta verborreia absurda, apartou Valéria da porta para colocar-se ela, despediu-se do professor com um «Até manhã, senhor Mayer» e fechou a porta de repente.

—Esse homem é um insolente... —exalou apoiando as costas sobre a porta, como se desta maneira lhe impedisse de retornar.

—Mas é o melhor professor para os meus irmãos —comentou enquanto tirava os faisões para colocá-los sobre a mesa. —Estarão bem na casa dos Shoper? Eu não gosto que estejam com aquela mulher, produz-me calafrios.

—Não brincam com ela, e sim com seus filhos e, por agora, não resultaram feridos nem se converteram em patos —comentou caminhando para a pequena penteadeira onde tinha depositado o livro. Tocou-o devagar com a gema dos dedos, como se lhe desse medo fazer um gesto tão normal. Logo olhou Valéria e prosseguiu com o tema do professor. —Cedo ou tarde terá um problema com ele e auguro que será mais cedo que tarde.

—Por que ele lhe deu isso de presente? —Soltou Valéria sem olhá-la. Não precisava dar a volta para saber o que estava fazendo.

Tinham falado sobre aquele estranho durante a volta. Kristel insistiu que não devia alarmar-se ante sua aparição, que só tinha sido algo fortuito, mas algo em seu interior lhe indicava o contrário. De verdade que um agente visitava o mercado para comprar um livro à sua mãe? Não tinha mais lugares aos quais ir?

—Talvez porque eu tenha sido incapaz de conter minha felicidade ao ver que se tratava de uma primeira edição —apontou Kristel afastando-se do presente com tanta inapetência que ficou assombrada.

—Não devia ter aceitado —assinalou Valéria arrancando as plumas do faisão que decidiu depenar em primeiro lugar. —Um desconhecido...

—Volto a te repetir que quão único pretendia era comprar um livro para sua mãe. Por favor, pensa um pouco, não crê que se tivesse estado lhe vigiando teria te seguido? Mas não o fez, esteve comigo durante o tempo que permaneceu na banca de tecidos e em nenhum momento me perguntou se estava sozinha ou acompanhada —salientou ao observar que a conversação continuaria por onde a tinham deixado. —Aproximou-se de mim porque os gêmeos Kant voltaram a zombar da minha claudicação. Ele enfrentou-os e, se eu não chegasse a atuar, os moços teriam alguma marca em seus bonitos rostos que não cicatrizaria com facilidade. —Acrescentou divertida. —Além disso, não diz que tem tudo controlado?

—E é assim —soprou Valéria enquanto arrancava com ímpeto as plumas. —Mas nunca se pode estar segura de tudo.

—Aconteceu algo que eu deveria saber? —Perguntou sentando-se ao lado de sua amiga para ajudá-la na tarefa.

Kristel a observou em silêncio durante uns segundos, tentando decifrar o motivo pelo qual arrancava as plumas com tanta energia. Se continuasse desse modo, não precisaria de suas mãos para limpar os animais.

—Não aconteceu nada estranho —assinalou Valéria. —Tudo segue igual à sempre.

—Então por que está tão zangada? Por que é um agente ou por que é o primeiro homem que não elogia sua beleza? —Ressaltou irônica.

—Kristel... —sussurrou deixando cair à segunda ave sobre a mesa para olhá-la. —Não quis dizer...

—Eu também me surpreendi ao saber que era um agente —apontou com tom mais relaxado. —Mas não fez nem disse nada que me alertasse. Penso que deveria te centrar em outras coisas e me deixar viver esta ilusão.

—Mas... —tentou dizer.

—Sabem que é uma mulher? Descobriram que embaixo daquela roupa de homem se esconde uma mulher? —Insistiu um tanto zangada.

—Não...

—Então? Por que segue com essa hipótese? Se o senhor Reform não sabe sua verdadeira identidade, a que vem tanto alvoroço?

Valéria a olhou durante uns segundos, tempo no qual meditou se devia lhe falar do que realmente ocorreu na noite passada. Como atuaria? Ela se zangaria com ela ao não ter sido sincera?

—Recordo-te que ele permaneceu todo o tempo ao meu lado e só se preocupou com o meu bem-estar —insistiu Kristel tentando fazê-la entrar em razão.

—Entendo... —sussurrou voltando para a tarefa de arrancar as plumas.

—Salvou o filho dos Daft —disse um pouco mais tranquila. —Esse homem se jogou no Tâmisa para salvar um menino.

—Se é um agente, era seu dever —disse Valéria surpreendida ao escutar como Kristel se expressava, sem dar-se conta de tanta emoção ao falar dele.

—Não, não foi seu dever. Seu trabalho era custodiar a mercadoria de um navio. Mas Borshon abandonou tudo para ir aos gritos de uma mãe desesperada —falou sem mal respirar.

—Borshon... —murmurou Valéria girando-se de novo para sua amiga para ver a expressão que ela mostrava no rosto.

—Disse-me seu nome... —esclareceu envergonhada.

—E, imagino, que você lhe deu o seu.

—Pareceu-me descortês não lhe revelar meu nome depois desse presente e de fixar outro dia para nos ver —expôs fechando os olhos.

—Quando? —Perguntou Valéria muito séria.

—Na quarta-feira —manifestou surpreendida.

—Está bem. Faremos uma coisa para averiguar se esse generoso homem te mente ou, pelo contrário, é o primeiro homem no mundo que diz a verdade —expôs levantando-se da cadeira.

—Não acredito que...

—Não quer saber se seu encontro foi casual? Se esse homem se interessou verdadeiramente por você? —Insistiu.

—Não me cabe a menor dúvida de que se interessou por mim —recitou cruzando os braços, mostrando-se firme ante suas palavras. Era o momento idôneo para lhe confessar que a tinha agarrado pela cintura? Que, no meio do mercado, seus rostos se mantiveram mais perto que o apropriado? Não, não falaria disso ainda. Aceitaria a opção de Valéria para que entendesse que, embora não fosse perfeita, havia alguém no mundo que lhe prestasse atenção. —O que quer fazer? —Disse depois de meditar.

—Seguiremos atuando como até agora e, se por um acaso, cruzar-se de novo conosco, voltaremos a ter esta conversação —declarou com firmeza.

—Isso não é justo. Vivemos na mesma cidade e podemos coincidir em qualquer outro momento —comentou zangada.

—Quantos anos tem?

—Vinte e sete —respondeu arqueando as sobrancelhas.

—Quantas vezes o viu durante estes vinte e sete anos?

—Uma —exalou.

—Não seria estranho que, de repente, encontrasse-lhe mais de uma vez em menos de uma semana? —Perseverou Valéria.

—Isso não é lógico...

—Sou sua amiga e como tal cuidarei de você como tenho feito desde que nos conhecemos. Por isso deve aceitar o evidente, Kristel —indicou levantando do assento com os faisões cortados para colocá-los na pia e lavá-los. —De verdade que te compreendo e sei que deve estar vivendo um momento maravilhoso, mas seja razoável.

—Sempre fui muito razoável... —começou a dizer após suspirar fundo e olhar para o chão. —Mas desta vez quero me deixar levar pelo que me dita o coração e ele me diz que esse encontro foi fortuito.

—Está bem! —Soprou. —Continuaremos como sempre e se de verdade tiver razão terei que admitir que exista um homem no mundo que é sincero.

—E se estou enganada? —Perguntou lhe assaltando a dúvida.

—Dar-lhe-ei um chute nas canelas que o farei pequeno durante muito tempo —declarou com tanta seriedade que à Kristel não coube a menor dúvida de que aquele homem grande não faria sombra às bancas durante alguns dias.

 

 

Reform não cessava de olhar o relógio de bolso. Já era mais de meia-noite e seu novo empregado não tinha aparecido para falar de Valéria. Zangado, levantou-se do assento, girou-se e observou a rua. Não devia ficar ali de pé perdendo o tempo quando sabia que não apareceria, mas sentia saudades. Sim, por mais estranho que lhe parecesse, tinha saudades de sair do escritório para caminhar pelas salas tentando mostrar interesse aos sócios que chegavam. Entretanto, como ela não apareceu pelo clube, nem sequer se moveu do escritório. Ficou sentado em sua poltrona repassando notas promissórias e resolvendo certos assuntos que lhe urgia solucionar. Levou-se a mão ao queixo e o acariciou. O que o senhor Hill teria descoberto? Valéria teria uma vida interessante? O que fazia quando não estava no clube? Seria uma mulher entregue aos cuidados de seus irmãos? Esconderia mais segredos? Passearia por Londres agarrada ao braço de algum homem? Teria algum pretendente? A ideia de que ela permanecesse ao lado de um homem lhe gerou tal ira que soltou o ar por seu nariz bruscamente.

Por sorte para ele, Borshon lhe esclareceria tudo àquilo que considerava mentalmente e continuaria protegendo-a enquanto procurava uma solução ao seu problema. Com as mãos nas costas começou a perambular sobre o tapete. Tinha que saber com rapidez o motivo pelo qual não lhe permitia cumprir seu sonho. Tinha ganhado limpamente à partida, tinha calculado com tanta precisão as cartas que não pôde evitar assombrar-se. Ficou tão atônito porque no assento contiguo havia uma mulher e não um homem? De verdade existiam mulheres que tinham uma mente parecida com a do homem? As que conhecia até agora só utilizavam suas maquiavélicas cabeças para apanhá-lo. Eram como aranhas... tecendo a teia para que o pobre inseto, neste caso ele, caísse sem poder liberar-se até que fosse engolido. Entretanto, Valéria não parecia uma aranha voraz. Se fosse só lhe teria bastado usar um bonito vestido, soltar aquela juba negra e orvalhar-se naquele perfume a canela para tê-lo ajoelhado ante seus pés. Não, ela era uma jogadora nata, que lhe tinha depenado não só mil e seiscentas libras, mas também seu orgulho.

Depois de passar por sua mente o verbo depenar parou em seco. «Fazendeira...» ela se propunha a converter-se em uma cuidadora de animais e em uma incansável agricultora! Como lhe tinha ocorrido uma tolice semelhante? Não podia dedicar-se a outra coisa mais adequada para uma mulher? O ofício de costureira não era tão disparatado e com aquelas mãos, embora fossem pequenas, poderia fazer uns excelentes trabalhos. Ofuscado ainda mais, dirigiu-se para seu assento, sentou com inapetência, colocou os sapatos sobre os papéis que acabara de assinar e olhou para a porta.

Daria uma hora ao senhor Hill. Tempo suficiente para aparecer. Se não o fizesse, ele mesmo o buscaria por toda Londres até que o encontrasse e, se não tivesse cumprido com sua missão o estrangularia, embora isso implicasse em seu ingresso imediato ao cárcere. Já falaria com o inspetor para que o liberasse. Devia-lhe um favor depois de fazer público os sócios que estavam endividados, e sua liberação resolveria o assunto.

—Senhor Reform, —disse Berwin da porta —há uma pessoa que deseja falar com você.

—O senhor Hill? —Perguntou apartando as pernas da mesa e tomando a pose de um homem de negócios respeitável.

—Não, —disse sem entrar e mantendo a incerteza.

—De quem se trata? —Perguntou com interesse.

—É a senhorita Barnes —apontou tão assombrado como ficou Trevor. —Disse-lhe que está ocupado, mas como rejeitou os clientes desta noite e empenha-se em falar com você —explicou-lhe.

—Que entre... —disse depois de suspirar.

O que aquela mulher queria? Não lhe ocorreria pedir explicações por não ter visitado seu leito à noite anterior, não é? Não, não podia ser tal estupidez. O mais provável seria que queria meter no clube outra de suas garotas. Reform olhou por volta do lugar onde sempre mantinha uma garrafa de uísque, mas já não estava, tinha-a substituído por uma de água fresca. Só esperava que lhe desse aquela sensatez que comentou o senhor Hill e que a sensualidade de Jun não o enganasse de novo.

—O que te acontece, querido? —Perguntou assim que abriu a porta.

Como era habitual nela, mal cobria seu corpo e a roupa que usava era de uma qualidade tão incrível que nem as damas da alta sociedade podiam adquiri-la.

—Não me acontece nada —respondeu com desdém. —Por que pergunta?

—Tem febre? Está com gripe? —Insistiu aproximando-se dele para lhe tocar a testa enquanto colocava seus grandes seios sobre os olhos de Trevor. —Não, não parece que esteja ardendo... —murmurou entreabrindo os olhos negros. —Então, a única explicação possível para o tremendo disparate que cometeu ontem foi que tinha muito trabalho e não pôde ir ao meu chamado —continuou falando enquanto tomava assento sem ser convidada. —Entendo-o. É um homem de negócios e para que tudo funcione de maneira adequada tem que fazer um pequeno sacrifício. Mas hoje, como não saiu deste escritório nem um só instante, calculo que teve tempo suficiente para pôr em dia seus papéis. Por isso, querido, espero-te em vinte minutos em meu quarto. Tenho que me preparar para você... —soltou o discurso que tinha meditado enquanto subia as escadas com a esperança de que esquecesse o que lhe passou pela cabeça na noite anterior. Um homem tão bom amante como ele enlouqueceria se mantivesse um celibato de dois dias e por isso se decidiu a subir, para desculpar aquela loucura.

—A jovem que mandou ontem não te explicou a decisão que tomei? —Disse olhando-a sem piscar.

—Oh, sim! Claro que me informou! —Explicou ao mesmo tempo em que apartava a bata de seda para mostrar sua nova lingerie e cruzava as pernas. —Mas não deve ter escutado bem porque me disse que já não necessitaria mais dos meus serviços —comentou ironicamente. —Coisa que não é certa posto que você e eu não chamamos nossos encontros, serviços, mas mantemos uma relação... peculiar —acrescentou desenhando um malicioso sorriso.

—Informou-te corretamente —apontou Reform voltando o olhar para os papéis. —Não vou necessitar dos seus serviços nunca mais.

—Como? —Gritou levantando-se do assento. —Depois de tanto tempo? Meus serviços? Acaso crê que sou um traste velho? —Zangada caminhou os dois míseros passos que havia entre ela e a mesa. —Quer me substituir? Por quem? Por alguma mais jovem? Alguma dessas condenadas que trabalha para mim chamou sua atenção? —Continuou perguntando sem baixar o volume de sua voz estridente. Sem esperar que Reform lhe oferecesse uma taça, nem que respondesse a todas as suas perguntas imediatamente, agarrou a garrafa, olhou de maneira suspeita o líquido transparente e se serviu uma taça. Mas quando a água passou por sua garganta quase se engasgou. —Que diabos é isto? —Trovejou.

—Água —disse Trevor reclinando-se no assento e cruzando-se os braços.

—Água? Substituiu o grandioso uísque que te dei de presente por uma asquerosa e putrefata água? —Vociferou com tanto aborrecimento que suas bochechas tomaram a cor da roupa que usava.

—Beber tanto licor não é bom para a cabeça de um homem de negócios. A água me mantém com a mente limpa e posso tomar decisões, como a que ontem indiquei à sua criada pessoal, sem me arrepender horas mais tarde —assinalou com tranquilidade.

—Não é apropriado...? Necessita de água para se manter sensato? —Uivou colocando suas mãos sobre a mesa e lhe olhando como se quisesse fulmina-lo com o olhar. —Quinze libras a garrafa e não te parece apropriado para seu delicioso paladar?

—Deveria partir —anunciou sem perder a calma. —Está muito alterada e não é consciente de a quem se dirige.

—Sei perfeitamente a quem me dirijo —resmungou apertando os dentes. —Quem parece não saber é você.

—Está me ameaçando? —Trevor franziu o cenho, descruzou os braços e se inclinou levemente para diante.

—O que você faria se eu e minhas garotas decidíssemos aceitar a oferta do senhor Hondherton? —Exigiu saber com uma satisfação muito grande para ocultá-la.

Sabia que desde que apareceram pelo clube este tinha aumentado a clientela e que essa ameaça o faria repensar. Além disso, não estava disposta a perdê-lo. Entre eles tinham nascido uma relação tão perfeita que não podia resolver-se tão cedo e se para que voltasse para seu quarto devesse desafiá-lo, fá-lo-ia sem duvidar.

Trevor a olhou com olhos inexpressivos. Era a primeira vez que observava Jun tão enfurecida que não era consciente da direção que estava tomando a conversação. Suas garotas e ela mesma não estavam felizes no clube? Não tinham amparo? Não lhes pagava cada vez que fechavam as portas? Passavam fome? Sofriam as adversidades climáticas? Se até as deixava viver nas habitações onde trabalhavam! Ia acabar com tudo isso porque ele não retornaria ao seu quarto? Muito lentamente tomou ar e logo o expulsou, como se estivesse fumando um daqueles cigarros que tanto gostava e, olhando-a sem pestanejar, disse:

—Aí tem a porta. Parta com suas garotas desse clube, mas não quero que retorne pedindo clemência. Se for consciente do que acaba de dizer, seja consciente também do que suporá para você se colocar em um chiqueiro como aquele.

Jun ficou imóvel. Aquela cor vermelha que tinha nas bochechas desapareceu com rapidez. Permitia-lhe que partisse? O que estava ocorrendo? O que lhe tinha acontecido para que atuasse com tanta crueldade?

—Não quer voltar para o meu leito... —murmurou com calma ao mesmo tempo em que caminhava para a saída. De repente se girou para ele fazendo com que a bata de seda vermelha se movesse como uma bandeira pelo vento. —Por quê? Fiz algo que não te agradou?

—Durante o tempo que passei em seu quarto soube me agradar muito bem. Mas já não vou retornar —voltou a repetir com calma.

—Por quê? —Insistiu ainda desconcertada pelo que estava acontecendo.

—Porque eu não tenho vontade —declarou com firmeza.

—E agora, por gentileza, deixe-me sozinho.

Girou-se de novo tomando a direção da saída. Apesar de ser rejeitada, tinha as costas reta e o pescoço esticado. Agarrou o trinco da porta e voltou o rosto para ele.

—Minhas garotas seguirão sob seu amparo, mas eu partirei antes do amanhecer —manifestou doída, destroçada por descobrir que entre eles não havia nada.

—Se isso for o que deseja, perfeito. Boa noite, senhorita Barnes, e espero que encontre o homem que esquente sua cama e emocione seu coração —disse terminando com um trato que entre eles jamais existiu.

—Farei —declarou antes de fechar a porta.

Quando Jun saiu do escritório tropeçou com um muro de carne. Surpreendida, elevou o olhar para o rosto daquele homem e conteve a respiração ao descobrir o semblante do agente em quem o afamado inspetor da Scotland Yard confiava.

—Boa noite, senhor Hill... —comentou com seu acostumado charme.

—Senhorita Barnes... —disse Borshon movendo gentilmente a cabeça para ela para saudá-la.

—Veio para solicitar a companhia de uma mulher? Esta noite estou disponível...

—Quer ser rejeitada duas vezes no mesmo dia? —Perguntou entreabrindo os olhos.

—É óbvio que não! —Exclamou com orgulho.

—Pois não me pergunte essa tolice. Boa noite, senhorita Barnes —disse Borshon enquanto atravessava a entrada.


VIII

 

Observou a cena que acontecia em frente a ele em silêncio. Por como Borshon lhe dizia que não tentasse nada ou seria rejeitada pela segunda vez, Trevor entendeu que o atrevido escutou a conversação que tinham mantido. Embora pelos gritos que utilizou Jun para falar, qualquer um que tivesse passeado pelo Hyde Park a teria ouvido.

Reform empilhou uns papéis com as mãos, golpeou-os ligeiramente sobre a mesa como se quisesse igualá-los pelos cantos, e os depositou no lado esquerdo. Enquanto realizava um ato tão corriqueiro tentou imaginar o que opinaria seu novo empregado ante a determinação que tinha tomado a respeito. Pensaria que estava louco por ter rejeitado uma mulher tão espetacular? Qualquer homem deduziria que sim, mas ele também se negou aos seus encantos. Por qual motivo? Estaria casado? Sua esposa seria mais bela e carinhosa que Jun? Por isso lhe respondeu daquela maneira tão rude? Se fosse assim, seria o primeiro marido que se manteria fiel e, esse gesto tão leal, proporcionar-lhe-ia uma admiração que não tinha por ninguém que conhecesse até o momento.

—As gatas zangadas arranham até arrancar a pele a farrapos —comentou Borshon assim que entrou no interior do escritório.

—Não é tão perigosa como aparenta. Só se ofendeu por rejeitá-la —comentou Trevor com indiferença.

—Igual à mulher do senhor Timber —disse enquanto pisava no tapete com mais suavidade que no dia anterior. —Uma linda e cândida mulher que chorava a perda de seu marido. Segundo ela, partira com uma amante, entretanto... —disse misterioso ao mesmo tempo em que apoiava as palmas sobre o respaldo da cadeira e olhava como Reform tentava mostrar uma atitude de homem de negócios.

—Entretanto? —Perguntou Trevor pretendendo parecer interessado por um caso que não lhe resultava relevante.

—O senhor Timber não pôde partir com essa amante. Sua tenra e cândida florzinha o esquartejou e o deu como comida aos seus porcos. Se um vizinho não tivesse encontrado uma orelha, ninguém teria suspeitado dessa encantadora esposa —explicou divertido.

—Está me descrevendo esse caso para que tome cuidado com a senhorita Barnes ou com a senhorita Giesler? —perguntou franzindo o cenho.

—Faço-lhe referência ao dito caso porque um homem deve manter-se alerta quando ao seu lado há uma mulher enfurecida. Se eu fosse você, contrataria alguém que velasse por seus sonhos durante uma longa temporada —comentou enquanto tomava assento.

—Preocupa-se com meu bem-estar, senhor Hill? —Inquiriu Trevor cruzando os braços.

—Seu bem-estar me inspira cuidados, sim. O que me interessa é conseguir a fortuna que me prometeu e se morrer não poderá me pagar como combinamos —expressou Borshon enquanto adotava a mesma postura que seu interlocutor.

—Por um momento me tinha parecido um bom homem —assinalou Reform estendendo a mão para a garrafa de água.

—Pois não o pense... —respondeu fixando os olhos na vasilha de cristal. —Tampouco bebo vodca —repôs ao deduzir que aquele líquido transparente fosse outro daqueles aprimoramentos que oferecia aos seus convidados.

—Não é vodca —revelou Trevor desenhando um sorriso que lhe cruzava o rosto. —É água fresca e insípida —concretizou.

—Agora bebe água? —Perguntou assombrado.

—Como lhe disse ontem, sou um homem de negócios e, como tal, devo ter a mente consciente para tomar decisões importantes —declarou como se tivesse preparado as frases enquanto aguardava sua chegada.

—E um desses temas importantes que deve solucionar tem o nome de Valéria Giesler? —Perguntou antes de pegar a taça de água e lhe dar um grande gole. —Efetivamente, fresca e insípida —repetiu após estalar a língua.

—A senhorita Giesler não é um problema significativo para mim. Só quero protegê-la até que salde minha dívida com ela —remarcou reclinando-se de novo no assento.

—Alegra-me escutar isso —manifestou cruzando as pernas. —Porque se tivesse outro tipo de interesse ficaria louco.

—Desculpe? —Disse elevando a voz.

—Está desculpado —respondeu Hill.

Acabava de captar o interesse daquele presunçoso. Tinha esperado todo o dia para observar o rosto que exporia quando lhe falasse dos pretendentes que a mulher tinha. Se de verdade não lhe interessava como se esforçava em proclamar, não mostraria a típica ira masculina que surge frente a uma emoção tão primária como os ciúmes. Mas se sua hipótese era certa, aquele homem não perderia nem um só instante em marcar seu território.

—A que se refere quando diz que ficaria louco? —Exigiu saber enquanto se movia incômodo no sofá. —Acaso tem uma vida dupla? É uma criminosa? Uma mulher com um passado aterrador?

—Que nada! —Exclamou Borshon antes de soltar uma gargalhada. —A senhorita Giesler é uma irmã protetora e ninguém pode lhe negar uma saudação.

—Então? —Perseverou.

—Depois de averiguar algo mais sobre ela, não entendo a razão pela qual aparece em seu clube vestida de cavalheiro e joga cartas. Se o fizer para ganhar a vida escolheu uma opção inapropriada. Pressinto que encheria suas arcas mais rápido se se convertesse na amante de qualquer homem com quem mantém uma conversação —soltou à queima-roupa.

—Como? O que pretende me dizer? Que todos os que a olham querem deitar-se com ela? Que não há nem um só homem que não pense nela como uma vulgar concubina? —Perguntou Trevor levantando-se de um salto como se alguém tivesse espetado seu rico traseiro com uma adaga.

—É uma forma bastante suave de defini-lo —disse Borshon sem apartar o olhar e estudando cada gesto de Reform.

—Por que chegou a essa conclusão? Acaso se comporta como uma cortesã? —Trovejou mais zangado do que desejava estar.

—A senhorita Giesler mantém uma atitude correta, mas tenho que admitir que vestida de mulher seja imensamente formosa. Qualquer homem que se preze de sê-lo desejaria ter uma mulher assim em seu leito —continuou com sua façanha de zangá-lo. —E, por como a olham, por como sorriem ao vê-la, mais de um sonhou lhe tirar o vestido.

—Maldita seja! —Clamou tornando seus olhos a uma cor semelhante ao das chamas da lareira.

—Mas você só quer saldar sua dívida, não é assim? —Recordou-lhe. —Não acredito que tenha nenhum problema para fazê-lo, e mais, será a primeira vez que ganharei uma fortuna sem ter que empregar minha força. A senhorita Giesler protegida por uma centena de homens que desejam seduzi-la.

—Tão formosa é? —Cuspiu enfurecido.

Necessitava de uma taça, mas não uma de água e sim do uísque mais forte do mundo. Se quisesse assimilar que Valéria era cortejada por muitos homens, urgia-lhe tomar algo que o deixasse inconsciente. Olhou de esguelha ao Borshon e descobriu a zombaria em seu rosto. Estava se divertindo ao vê-lo fora de controle. Mas... por que perdia a sensatez? Por que tinha vontade de dar murros a torto e a direito? Ela era livre para fazer o que a agradasse e se decidisse aceitar a proposição de algum homem... «matá-lo-ia com minhas próprias mãos!», gritou-se mentalmente.

—É —afirmou Hill. —Você não pode admirar a silhueta feminina que mostra com um vestido, nem o brilho de seu cabelo escuro, nem tampouco pôde escutar sua voz, posto que quando entra no clube a troca para não ser descoberta. É tão hipnótica, tão atraente como o canto de uma sereia e, como há muitos marinheiros nesta cidade, todos eles ficam apanhados por seu leve canto.

—O que pretende? —Trovejou olhando-o como se quisesse aniquilá-lo com os olhos. Esses que, devido ao inesperado ciúme estavam injetados em sangue. —Por que me informa sobre isso?

—Segundo você, não tem nenhum tipo de interesse por ela salvo o de amparo e quero lhe informar não deve preocupar-se, todo mundo a respeita e cuida dela. Acredito que até o homem que aparece em seu lar pela manhã... —adicionou mordaz.

—Que homem? Para que aparece em seu lar? Quanto tempo fica? Ficam sozinhos? —Perguntou sem respirar ao mesmo tempo em que agarrava o respaldo de sua cadeira como se quisesse arrancá-lo.

—Um tal Mayer. Escutei-as conversar sobre ele —esclareceu.

—Elas? —Demandou arqueando as sobrancelhas negras.

—A senhorita Giesler esteve acompanhada de uma jovem durante seu passeio pelo mercado. Enquanto as seguia, a mulher desconhecida não cessava de fazer referência às atitudes negativas do professor dos meninos, entretanto sua protegida enfatizava tudo aquilo que lhe resultava positivo —informou-lhe com uma aparente tranquilidade. Mas não estava, não queria nomear Kristel, precisava mantê-la à margem, embora ela fosse uma peça chave em sua explicação. Não era o mesmo, Valéria ir só ao mercado ou em companhia de outra mulher.

—Como é? —Trevor exigiu.

—Quem? A mulher? —Borshon inquiriu inquieto.

—Esse tal Mayer. Velho, jovem, alto, baixo, viu bem...? —Enumerou sem mal tomar ar.

—Jovem, alto, veste-se de maneira adequada para um humilde professor e, conforme comprovei, tem o beneplácito da senhorita Giesler. Por que se preocupa, senhor Reform? Possivelmente a aparição desse homem seja a melhor opção para você —continuou importunando-o. —Uma vez que sua protegida encontre um marido, este velará por ela e poderá não só resolver essa dívida, mas também não voltará a vê-la neste local. Que marido razoável permitiria que sua formosa mulher abandonasse seu leito quente para se vestir de homem e jogar cartas? Se o faz tudo por dinheiro, desaparecerá assim que contrair matrimônio e encontrar uma figura masculina para seus irmãos.

Isso que cobria suas mãos era suor? Por esse motivo se escorriam pelo respaldo do assento? Trevor tentou controlar a respiração considerando tudo aquilo que Hill lhe expôs. De certa forma tinha razão, uma vez que ela encontrasse um marido todas as suas dores de cabeça desapareceriam. Pagar-lhe-ia aquela maldita dívida e não a veria mais. Entretanto, não estava disposto a que isso ocorresse. Antes que se comprometesse com outro homem e que o feliz casal gerisse uma fazenda, desejava admirá-la como mulher. Sim, urgia-lhe contemplá-la com um vestido marcando sua delicada figura. Desfrutar da visão que obteria ao admirar seu cabelo escuro...

Entreabriu os olhos para fixá-los em Borshon. Seria prudente lhe confessar o que pensava? Teria que manter-se precavido com ele ou poderia ser um louco enfurecido ante um inexplicável sentimento de ciúmes? «Não se trata disso —disse-se. —Quão único deseja é averiguar como é Valéria fora destes muros. Embora deva recordar que entre ela e você existe um mundo intransponível».

—Seu silêncio me desconcerta —comentou Hill depois de observar como Reform se acariciava o queixo e sustentava um olhar perdido. —Não lhe resultou agradável minha indagação? Porque pensei que lhe reconfortaria. Um homem de negócios como você não pode perder nem um só instante em refletir sobre atos femininos...

—O que tem programado para fazer quando amanhecer?

—Soltou Trevor desenhando um sorriso maligno.

—Tenho que ir à Scotland Yard, recorda-lhe que meu verdadeiro trabalho é velar pela segurança da nossa cidade.

—Então... não poderá vigiá-la? —Perguntou estreitando seus olhos.

—Não até a noite —esclareceu.

—Bem... —sussurrou. —Muito bem...

—Tenho que lhe recordar que se encontra em frente a um agente da ordem. Se essa expressão pausada e moribunda indica o que estou supondo... —comentou Borshon levantando-se do assento com lentidão.

—Minha expressão, como você o denominou, indica que estou procurando uma maneira de fazer com que apareça em meu local sem esse desventurado traje de homem —disse rude. —Quero averiguar por mim mesmo o motivo pelo qual tem tantos pretendentes.

—Por que motivo? Não lhe serviu minha explicação? Além disso, a você não deve importar tal tolice, equivoco-me? —Continuou sustentando aquele olhar suspeito.

—O que a faria vir? —Perguntou ao ar enquanto acariciava de novo o queixo.

—Se gosta de jogar, o jogo, é óbvio —respondeu Borshon rapidamente.

—Isso já sei, mas... como a obrigaria a ser Valéria Giesler em vez do senhor Hernández?

—Senhor Hernández? —Perguntou Hill desconcertado.

—Assim me fez chamá-la enquanto jogávamos na mesa —esclareceu Trevor.

Durante uns minutos ambos os homens se mantiveram calados. Borshon o observava sem pestanejar ao mesmo tempo sua cabeça gritava que lhe fizesse a pergunta que, desde que o contratou, aparecia-lhe incontrolavelmente. Por outro lado, Reform meditava a forma mais adequada de atrair um inseto à sua teia porque, muito ao seu pesar, desta vez o animal que devoraria a presa seria ele.

—Talvez pudesse lhe ajudar, —alegou Hill rompendo aquele silêncio —se você me esclarecesse o motivo dessa dívida.

—Obriguei-a a jogar uma partida —expôs Trevor sereno.

—Queria averiguar por mim mesmo que não fazia armadilhas.

—E?

—Não as fez —manifestou com um orgulho que não devia expressar a sério. —Essa mulher é muito inteligente. De uma forma inaudita averiguou que cartas seriam as próximas em aparecer e ganhou honestamente.

—Poderia ter um parceiro... —apontou.

—Não, —negou não só com o monossílabo, mas também com um leve movimento da cabeça. —Nem tampouco havia marcas nas cartas, ocupei-me eu mesmo de revisá-las.

—De quanto é essa dívida? —Perseverou.

—Mil e seiscentas libras —declarou esperando escutar uma grande gargalhada por sua parte, mas não o fez. Só abriu os olhos como pratos e respirou fundo. —Foi minha culpa. Eu lhe prometi que se ganhasse o obteria e, como pode observar, ganhou. Mas isso não é um problema para mim...

—Não? Então por que não a salda e a deixa em paz? —Insistiu-lhe.

—Porque quero saber quem é, só isso —contestou notando como a raiva se apoderava de novo dele. Deixá-la em paz? Como lhe ocorria tal tolice? —Em vez de tentar que eu esqueça meu propósito, poderia me ajudar. Já sabe a resposta —asseverou.

—Se só aparece para jogar, se a quer vestida de mulher... —meditou Borshon caminhando para a porta. —Possivelmente seria conveniente que, durante uma noite, não vete a entrada às mulheres que não utilizam seu corpo para enrolar os clientes.

—O que quer dizer com isso? —Perguntou na expectativa.

—Que proponha um dia no qual as mulheres também possam visitar seu clube, possivelmente ela não se disfarçaria para ocultar quem é em realidade.

—Não pensou que tenho as salas cheias de cortesãs? Os sócios não saberiam que mulher escolher e poria a mais de uma dama em apuro —resmungou.

—Pois salvo que lhes permita um dia livre..., —apontou divertido —não vejo outra saída.

Reform se voltou para a janela, levou as mãos aos suspensórios e refletiu nessa opção. Não era tão descabelada como parecia e suas empregadas agradeceriam umas horas livres para desfrutar de certa liberdade. Mas depois do ocorrido com Jun... pensaria que só era uma desculpa para despedi-las?

—Quanto pode perder? —Quis saber Hill agarrando o trinco da porta.

—Como empresário ou como homem?

—Não é a mesma pessoa? —Soltou Borshon entreabrindo os olhos.

—De um ponto de vista empresarial o suficiente para notar um buraco em meu bolso, do outro lado...

—Pense devagar, senhor Reform. Não tenha pressa. Essa mulher não partirá de Londres antes do amanhecer.

—Não estou tão seguro... —sussurrou.

—Darei meu endereço ao senhor Berwin. Se decidir abrir suas portas para todo mundo estarei encantado de lhe fazer uma visita.

—Não precisarei de sua presença se Valéria aparecer, eu mesmo a protegerei —disse com tom solene.

—Não pretendo roubar seu posto, só quero ser testemunha de um momento tão prodigioso. Boa noite, senhor Reform. Esperarei notícias delas.

—Boa noite, senhor Hill, as terá.

Quando o agente fechou a porta após sua saída, desceu as escadas devagar, esperando que o dono do clube aparecesse para lhe informar o dia e a hora, mas já estava no último degrau e não tinha saído de seu escritório. Não lhe resultou boa ideia? Não queria vê-la com imagem de mulher? O que esperava para fazê-lo? Negou-se a continuar com uma amante como a senhorita Barnes, uma prostituta professionel, como havia dito sua querida mãe. Não era sinal suficiente para saber que o que o unia à Valéria não era uma dívida de dinheiro e sim um sentimento que muito poucos homens alcançavam em sua vida?

«O amor é algo que não se obtém com facilidade —disse-lhe sua mãe, no dia que decidiu confessar quem era seu pai. —Só os afortunados conseguem algo tão belo». Por parte do senhor Reform tinha nascido esse sentimento, agora ficava conquistar uma mulher que em cada passo que dava era assaltada por uma proposta de matrimônio.

—Senhor Hill —acudiu Berwin ao observá-lo em frente à saída.

—Senhor Berwin, se fizer a gentileza de me facilitar papel e pluma, tenho que lhe apontar meu endereço. O senhor Reform deve me enviar uma nota quando...

—Berwin! Berwin! Onde diabos se colocou? —Trevor vociferou saindo de seu escritório e segurando o corrimão com força.

—Aqui, senhor. Atendendo seu convidado —disse com voz cansada, como se soubesse que ante essa aparição seu velho coração pulsaria desenfreado.

—Quero que amanhã mesmo se publique no periódico mais importante de Londres que o Clube Reform oferecerá uma festa tanto para cavalheiros como para damas.

—Como? —Perguntou o assistente abrindo tanto os olhos que as esferas de seus óculos ficaram pequenas para cobri-los.

—Disse damas? Refere-se a mulheres? —Perguntou atônito.

—E o que faremos com as que trabalham aqui? As disfarçamos para que ninguém as reconheça?

—Informe-lhes que na próxima terça-feira terão uma noite livre, que as pagarei como se tivessem trabalhado, mas que não as quero rondando pelas salas —disse à viva voz. —Quando terei essa nota sobre minha mesa? Não se dá conta das horas que são?

—Sim, sou consciente da hora que é... —murmurou apertando os dentes.

—Acredito que já não precisa do meu endereço —interveio Borshon enormemente surpreso e feliz. —Já fui informado pelo próprio senhor Reform.

—Você sabia que ia cometer esta loucura? —Inquiriu com incredulidade.

—Fui eu quem a sugeriu —disse sorridente.

—Pois você parece um homem muito sensato para fazer referência a esse tipo de demências —repreendeu-lhe.

—Pareço? Pois não sou —expôs antes de sair do clube e soltar uma enorme gargalhada.


IX

 


—De verdade? Não lhe causaremos nenhum incômodo? —Valéria perguntou ao senhor Mayer depois que este explicasse que, essa mesma manhã, tinha a intenção de oferecer aos seus irmãos um conteúdo de botânica e que a melhor forma de aprender era levando-os para visitar o Kew Gardens. Claro estava; havia uma condição a esse oferecimento generoso: ela devia acompanhá-los.

—Não é nenhum incômodo, senhorita Giesler. Minha irmã me cedeu sua carruagem para tal ocasião e insisto que esta excursão será muito apropriada para eles. Não há melhor forma de ensinar que mostrando aquilo que se explica, e ali poderão descobrir uma ampla variedade de plantas —declarou colocando as mãos nas costas para exibir uma atitude masculina e firme. —Se, tal como diz, quer que se convertam em fazendeiros, devem diferenciar em primeiro lugar que classe de cultivo se adaptará melhor ao nosso clima.

—Parece-me uma ideia excelente, sempre que não lhe incomodemos —insistiu.

—Você e seus irmãos jamais me causarão desconforto —disse dando um passo para ela para aproximar-se mais que o permitido entre duas pessoas que não mantêm uma amizade íntima.

—Posso preparar um lanche? —Perguntou dando vários passos para trás, apartando-se da aproximação indevida. —Conforme tenho entendido, pelos arredores poderemos estender algumas mantas e desfrutar de um maravilhoso dia de sol —comentou olhando de esguelha a sua amiga quem, depois de escutar as repugnantes palavras do professor, evitou arrastá-lo por volta da porta e despachá-lo como no dia anterior.

—É claro. Enquanto informo ao cocheiro sobre nosso plano e ele arruma o interior para a viagem, você tem tempo suficiente para elaborar alguns sanduiches. Recomendo-lhe que leve só um lanche e um pouco de fruta. Quando as crianças têm seus estômagos cheios ficam preguiçosas e custam a aprender. Sempre se disse que não há melhor situação que a fome para manter uma mente acordada —alegou como se fosse uma ocorrência divertida.

Mas à Kristel não foi nada engraçado esse comentário tão irônico. Sua cabeça lhe ofereceu a imagem daqueles meninos chorando porque tinham fome, enquanto ele golpeava com uma vara a mesa para que prestassem atenção ao novo conteúdo.

—Farei como diz —disse Valéria girando sobre si mesma para preparar rapidamente tudo àquilo que necessitavam para uma repentina manhã de piquenique.

—Senhorita Griffit, —falou dirigindo-se para Kristel —espero que desfrute de seu descanso.

—Ela não pode vir? —Valéria perguntou voltando-se para o senhor Mayer.

—Muito me temo que não. A carruagem só pode albergar quatro pessoas e, com a senhorita Griffit, seríamos cinco —assinalou como se aquele contratempo lhe entristecesse.

—Colocarei Martin sobre meu regaço. Desse modo teremos assento livre. —Valéria ofereceu como alternativa.

—Mas senhorita Griffit não quererá empregar seu tempo em realizar outra tarefa mais amena? As aulas de botânica são muito entristecedoras para pessoas que não possuem conhecimentos sobre plantas... —acrescentou tentando dissuadi-la.

—Levará seu livro —apontou ela. —Seguramente aproveitará o tempo lendo sobre esse tal Moby Dick, não é? —Perguntou olhando-a com ternura.

Aquele comentário foi bastante ofensivo e já começava a cansar-se sobre aquele tipo de tratamentos para com ela. Era verdade que Kristel demorava muito para realizar operações singelas de aritmética, mas ninguém podia equipará-la em seu voraz desejo pela leitura. Por que se comportava desse modo? Não era capaz de ver mais à frente que o físico de uma mulher?

—Será um prazer lhes acompanhar —disse Kristel com um enorme sorriso. —Prometo que não dormirei nessa aula de botânica, senhor Mayer. Centrar-me-ei em averiguar o motivo pelo qual Ahab se obceca por caçar uma pobre baleia branca. Possivelmente me explique por que há tantos homens autodestrutivos no mundo —indicou mordaz e utilizando palavras que demonstrava quão culta era apesar de ter um defeito na perna.

—Esse livro não é adequado para uma mulher... —resmungou o professor.

—Por qual motivo? —Perguntou Kristel arqueando as sobrancelhas loiras. —Por essa obsessão demente? Pela autodestruição? Ou porque oferece uma visão masculina bastante peculiar?

—Seu autor, Herman Melville, —declarou esticando o corpo —não tem consideração pelo mundo marinho. Todos aqueles que trabalham em um navio baleeiro merecem respeito.

—Pois auguro que será um escritor bastante afamado, embora não agrade mentes tão lúcidas como as do senhor —respondeu com firmeza. —Porque na obra se podem encontrar temas tão diversos como idealismo, hierarquia, pragmatismo e inclusive sede de vingança —enumerou sem respirar.

—Mesmo assim, não é uma novela a ter em conta —resolveu a conversação olhando de novo à Valéria e tentando desenhar um sorriso que lhe custava oferecer. —Esperar-lhe-ei lá fora. Não demore, por favor.

—Não o farei —ela afirmou antes de buscar umas porções de pão.

—Odeio-o! —Kristel exclamou quando Mayer fechou a porta. —É abominável! Quem se acreditou que é, o próprio Deus? Como pode desprezar uma obra sem sequer lê-la?

—Eu deveria anular a excursão —comentou Valéria considerando. —Tal como diz, esse homem é um presunçoso e não me agradou o trato que te brindou.

—Não pode —disse Kristel sem mover-se. Era a primeira vez que falava sobre esse comportamento sem oferecer uma elucidação positiva, por isso deduziu que começava a cansar-se do senhor Mayer. Mas não era o momento apropriado para rebater a atitude inapropriada. —Martin e Phillip estão felizes por sair daqui.

—Mas te menosprezou... outra vez.

—Não estou zangada por como me tratou, mas sim por como degradou um livro tão interessante sem havê-lo lido —esclareceu caminhando para ela. —Além disso, apesar de sua hábil patranha, acompanhar-lhes-ei.

—Por mais que tente nos separar, não conseguirá. Só o homem do qual se apaixone poderá fazê-lo —acrescentou divertida.

—Não existe nem existirá uma pessoa que consiga conquistar meu coração —murmurou.

—Nem o senhor Hill? —Soltou irônica.

—Se por acaso não viu com clareza, o senhor Hill é terrivelmente atraente e estou segura de que seu comportamento para comigo foi só um ato de cortesia —replicou mal-humorada. —Esse homem terá às suas costas uma comitiva de mulheres casadouras.

—Então o ataque para o senhor Mayer... foi só pelo conteúdo do livro e não por ser o presente desse agente? —Perguntou sarcástica.

—É obvio! —Exclamou cortante. —Parece-me muito cruel que se subestime uma novela de tal índole por um homem tão insosso.

—Insosso? —Valéria perguntou enquanto colocava a alça da cesta sobre seu braço.

—Insípido, anódino, simples... —enumerou.

—Bom, pois tentemos desfrutar de uma manhã de sol com esse homem... insosso —expôs divertida.

Como indicou Valéria, assim que entrou colocou Martin em seu regaço, Philip se sentou ao lado do senhor Mayer e Kristel em frente ao menino. Durante o trajeto o professor os chamou à ordem em várias ocasiões, mas Valéria os desculpou explicando que estavam muito entusiasmados porque não tinham visto nunca um lugar tão importante de Londres.

—Os homens devem controlar seus sentimentos —respondeu a tal defesa.

—Por sorte para eles, ainda não o são —replicou Valéria. Enquanto Mayer começava sua exposição de botânica, para que a mente dos moços permanecesse concentrada no que ele acreditava importante, Kristel não apartou o olhar da janela. Observava as ruas por onde transitavam e tentava não mostrar o prazer que lhe proporcionava passear pelos lugares sem ter que controlar sua claudicação. Era uma sensação muito agradável dirigir-se a qualquer lado em uma carruagem, fora da vista dos outros, sem que ninguém se colocasse atrás dela para zombar. Só teria que descer devagar os degraus, procurar uma região tranquila, estender uma das mantas que Valéria levava, e deixar que o sol esquentasse seu corpo enquanto lia a novela que, embora não agradasse ao professor, tinha-a completamente enfeitiçada.

De repente, a carruagem se moveu de maneira brusca e teve que agarrar o livro com mais força para que não caísse ao chão. O instinto de amparo não passou despercebido para o senhor Mayer que novamente olhou-a com desagrado. Como os homens podiam ser tão mesquinhos? Como podiam suportar situações que não lhes agradavam para obter aquilo que queriam? De verdade uma mulher não deveria ler um livro tão interessante? O que pensaria a mãe de Borshon sobre esse tipo de convicções? Segundo ele, dado que não podia mover-se, era uma leitora voraz. Deixar-lhe-ia sobre um móvel quando seu filho o desse? Ou estaria tão intrigada como ela?

Ao pensar sobre o agente apareceram mais perguntas por sua cabeça que a inquietaram estranhamente. O que estaria fazendo? Em que lugar de Londres permaneceria? Estaria na Scotland Yard? Teria posto o uniforme que os periódicos comunicaram? O que fez durante a noite passada? Correu atrás de um criminoso? Feriu-se? Saíra ileso? Uma inesperada angústia se apoderou dela ao recordar quão último tinha lido em um noticiário sobre os novos agentes da delegacia de polícia. Nele se falava sobre a temeridade do inspetor O´Brian, um homem que não tinha medo de morrer e que, devido a isso, lutava corpo a corpo contra os criminosos. Também leu, em dito artigo, que seus agentes eram instruídos com as mesmas convicções que o inspetor; chamavam-nos com o codinome de esquadrão sem medo. Borshon teria aprendido essa inadequada lição? Seria tão ousado como seu superior? Não temeria a morte? O que seria dessa mãe doente se seu filho não aparecesse vivo?

Um repentino tremor lhe percorreu o corpo e teve que aferrar-se com mais força ao livro para que o suspeito professor não descobrisse aquela agitação. «Deixa de pensar —disse-se.

—Tanta história sobre perseguição obstinada não te beneficia. Além disso... não há nada entre vocês. Crê que se lembrará de você? De uma mulher imperfeita? Que pusesse suas mãos em seus quadris, não indicava nada salvo o desejo de fazer desaparecer a claudicação por uns instantes...»

—Jovens cavalheiros Giesler —disse Mayer como se pretendesse dar um discurso. —Como não estão acostumados a manter uma educação respeitável para uma mulher, porque não têm a presença masculina que necessitam com urgência, informo-lhes que, uma vez que os homens colocam seus pés no chão, têm que estender as mãos para as mulheres que permanecem no interior da carruagem para lhes facilitar a descida.

—De verdade? —Phillip perguntou cravando seus olhos azuis no rosto de sua irmã. À sua confirmação, soprou. —E se a mulher for tão grande como um cavalo? Não nos atirará ao chão?

—Não. Porque a força de um homem é maior que a de uma mulher. Se lhe segurar da maneira apropriada, nunca tocarão o chão. Mas não se alarmem, eu mesmo lhes mostrarei como se faz quando estacionarmos —Mayer acrescentou sorrindo ao ver que o cocheiro diminuía a velocidade.

Assim que o coche parou, dando por concluída a viagem, o professor abriu a porta, saltou ao chão, estendeu as escadas e disse:

—Devem descer primeiro, —ordenou aos meninos —e não se afastem muito. Quero que observem como se tem que sustentar a mão de uma mulher para que não tropece com o vestido. —Dito isto, estendeu a sua mão para Valéria para que a aceitasse. Ela, como se estivesse atuando em uma peça de teatro, segurou o vestido pela esquerda, subiu-o brandamente e se agarrou com força à mão de Mayer.

—Perfeito! —Aclamaram os pequenos quando sua irmã colocou os pés como se fosse uma leve borboleta.

—Phillip, como é o mais velho, faça o mesmo que eu fiz com a senhorita Griffit. Recorda que um de seus pés não funciona e poderia cair diante de toda esta gente —acrescentou olhando ao seu redor.

O moço, ao sentir-se esmagado ante tal situação, olhou à Kristel lhe pedindo auxílio. Esta, para não ridicularizar o menino na primeira vez que realizava um ato cortês, nem para sentir-se o centro das atenções de tantos viandantes, agarrou com a mão direita o marco da porta da carruagem e desceu sozinha.

—Na próxima vez sua irmã deixará que a ajude. Uma mulher como eu, com esta imperfeição na perna, pode ferir, sem pretender, o orgulho de um homem —disse-lhe antes de beijar seu cabelo dourado.

—Quando eu for muito forte te ajudarei a descer, tia Kristel —disse-lhe o menino agarrando-a carinhosamente pela cintura.

—E tia Kristel te deixará fazê-lo —afirmou antes de tragar o nó que lhe tinha formado na garganta.

Valéria esteve a ponto de girar-se para Mayer e lhe gritar que era um insolente, um imbecil e todos os insultos que tinha aprendido desde menina. Mas quando olhou à sua amiga e esta moveu levemente a cabeça lhe dando a entender que se encontrava bem, que não devia preocupar-se, agarrou com força a cesta, caminhou para ela e lhe estendeu o braço para que se apoiasse.

—Vamos, Kristel, desfrutemos deste dia maravilhoso enquanto o amável senhor Mayer oferece a lição de botânica que veio dar aos meus irmãos.

E, deixando os pratos, caminharam para um lugar onde a sombra as resguardaria do sol.


—Qual será seu trabalho esta manhã? —Aphra perguntou ao seu filho quando este se apresentou ante ela usando o uniforme de trabalho. Com aquela altura e aquele traje tão escuro e sóbrio parecia um gigante zangado. Aquela imagem dura e feroz era sua melhor arma. Qualquer criminoso se dobraria ante um homem como ele. Embora ela, melhor que ninguém, sabia que embaixo daquele aspecto se achava uma pessoa terna e bondosa. —mandar-lhe-ão de novo ao Whitechapel?

—Bom dia, mãe. Hoje me nomearam o guardião de um enxame de abelhas —comentou divertido enquanto caminhava para ela. Trocou o chapéu de mão, abaixou a cabeça e lhe deu um beijo na bochecha esquerda.

—Só lutam por nossos direitos —repreendeu-lhe carinhosamente. —Não te ocorra lhes ferir.

—Jamais machucaria uma mulher! —Exclamou como se lhe tivesse apunhalado o orgulho. —Só é um grupo de damas que lutam contra a tirania do poder masculino —esclareceu.

—Sei... mas conforme tenho lido, nem todo mundo as apoia. Recorda que foi uma mulher quem te deu a vida... —assinalou enquanto acariciava a casaca com suas mãos para ambos os lados como se lhe apartasse bolinhas de pó.

—O inspetor jamais ordenaria agredi-las, têm seu beneplácito. Como bem disse, só querem obter aquilo que lhes nega por terem nascido mulheres —Borshon explicou dando um passo para trás. De soslaio olhou o livro que lhe tinha comprado no dia anterior, pela dobra do canto descobriu que passara a noite lendo. —Captou sua atenção? —Soltou movendo ligeiramente a cabeça para o tomo.

—Todos captam minha atenção —respondeu sem apartar o olhar de seu filho. —Mas não deveria comprar mais nenhum.

—Por quê?

—Porque a casa é pequena e não terei nem um vão para colocá-los —manifestou com voz rude, como se tentasse lhe fazer entrar em razão. Mas o certo era que se convertia em uma menina quando Borshon escondia entre a roupa outro livro com o qual passar o tempo. Graças a eles podia suportar a árdua tarefa que o destino lhe ofereceu desde aquele dia.

—Enquanto possa, far-lhe-ei. Além disso, já lhe disse que logo comprarei outra e me encarregarei de adquirir a melhor biblioteca de Londres —afirmou sereno.

Aphra o observou com cautela, apesar daquele sorriso e daquela aparente integridade, algo lhe acontecia. Se seu instinto maternal não errava, tinha lhe ocorrido algo no dia anterior que não se atrevia a lhe contar. Possivelmente devia insistir um pouco mais para que não aceitasse a proposta do senhor Reform. Entretanto, também era consciente de que, tinha tomado uma decisão, nada nem ninguém lhe faria mudar de opinião e só teria provocado uma disputa entre ambos.

—Pensa passar o dia aí de pé calado ou vai me contar o que te acontece? —Perguntou-lhe para despertá-lo do devaneio no qual se introduziu.

—Como sabe que me acontece algo? —Perguntou segurando a cadeira que tinha ao seu lado para colocá-la junto cama.

—Recorda que permaneceu em meu útero durante muitos meses e esse vínculo não é fácil de eliminar. Sinto em minha própria pele suas preocupações e alegrias.

—Sempre? —Indagou zombeteiro. —Não seria apropriado que uma mãe sentisse quão mesmo seu filho em certas ocasiões luxuriosas...

—Não diga bobagens! —Aphra clamou zangada, ruborizando-se pelo comentário tão descarado. —Refiro-me a que noto quando algo te perturba.

—Isso me deixa mais tranquilo —alegou sem apagar um enorme sorriso.

—É por vigiar essas mulheres? Pensa que não será um protesto pacífico? —Insistiu.

—Não se trata disso, mãe. Elas nunca brigaram quando se reuniram em frente ao Kew Gardens. É outro tema o que me deixa pensativo...

—Que tema? —Aphra perguntou inquieta. —Trata-se do senhor Reform? Disse para você fazer algo que vai contra seus princípios? Embora vigiar a essa professionel não é muito moral...

—Não é uma prostituta, mãe. É uma jovem com a qual tem uma dívida e não quer que lhe aconteça nada até que a salde —declarou firme para que não voltasse a denominar dessa maneira a senhorita Giesler.

—Então? —Insistiu.

—Enquanto protegia essa moça, conheci uma mulher muito especial... —começou a dizer. —A princípio só me interessei porque observei que coxeava, mas logo fui incapaz de apartar meus olhos dela. No mercado, enquanto a moça pela qual o senhor Reform me contratou admirava uma barraca de tecidos, ela se dirigiu para o senhor Daft, o livreiro, e aconteceu algo que me causou tanta ira que estive a ponto de agredir dois moços.

—O que lhe fizeram? —Perguntou recostando-se sobre os travesseiros.

—Zombaram de sua forma de andar. Aqueles ingratos se colocaram atrás de Kristel e a imitaram entre risadas —declarou sem ser consciente de que revelara seu nome e sem dar-se conta de que a ira apareceu de novo em seus olhos.

—Como atuou... Kristel? —Inquiriu observando como Borshon levantava a sobrancelha esquerda ao escutar o nome da mulher por sua boca.

—A princípio me repreendeu, logo ficou parada no meio do caminho, como se não quisesse andar. Acredito que se envergonhou ao descobrir que era o centro das atenções. Durante um breve tempo meditei se era correto me aproximar dela ou deixá-la sozinha, mas algo em meu interior me impulsionou a me dirigir até onde se encontrava e, uma vez ao seu lado, estimulei-a para que continuasse andando.

—E?

—E lhe dei de presente um livro —manifestou levantando do assento.

—Não me parece algo importante, nem tampouco entendo por que te inquieta ter atuado dessa forma. Só reagiu como deveria fazer um homem com honra e educação —sentenciou.

—Sei..., mas também fiz algo inapropriado —disse enquanto colocava a cadeira em seu lugar.

—Você? O que? —Aphra perguntou abrindo os olhos como janelas.

—Pus minhas mãos sobre sua cintura e não as retirei com rapidez —declarou com uma mescla de vergonha e horror.

—Incomodou-a? Repreendeu-te por fazê-lo?

—Não, embora notasse como lhe tremia o corpo —revelou.

—Esse tremor estaria causado pela estranheza. Certamente não está acostumada que alguém ponha suas formosas e ternas mãos sobre ela. Se, tal como me disse, zombam de sua claudicação, não terá conhecido um homem que a trate com o devido respeito —disse enfatizando a última

palavra.

—É duro a menosprezem por não ser perfeita, —refletiu Borshon. —Embora seja formosa, ninguém a olha como merece.

—Salvo meu filho —apontou com rapidez.

Hill alisou o cabelo como se precisasse apartar umas mechas do rosto e olhou de novo à sua mãe.

—Que mais? —Ela animou-o ao ver que continuava absorto em seus pensamentos.

—Ao partir decidimos nos ver na próxima quarta-feira. Ela deseja te entregar o livro que levou e me pareceu uma boa ideia —expôs reflexivo.

—Mas?

—Mas sinto algo aqui —disse levando a mão ao peito —que me grita que deveria vê-la antes, que não devo esperar esse dia.

—Imagino que se é amiga da moça que protege, poderá fazê-lo quando a vigiar. Sempre pode acontecer algo que possa fazê-la tropeçar... —insinuou.

—Mas não posso aparecer quando desejar, devo me manter oculto. Não é bom para meu trabalho me apresentar em frente a elas cada vez que queira falar com Kristel —manifestou com certa aflição.

—Como Kristel é? —Decidiu lhe perguntar após deduzir que essa jovem se colocara na cabeça de seu filho sem saber.

—É... mais ou menos assim de alta —descreveu colocando sua mão pelo ombro. —Seu cabelo é dourado, como se o sol pousasse sobre sua cabeça. Os olhos são tão claros como o céu e seus quadris... voluptuosos.

—É inteligente? Eu sei que aos homens lhes fascina a aparência física de uma mulher, mas as mães se preocupam com o que ocultam dentro dessas bonitas cabeças douradas —apontou divertida.

—O que você pensa sobre as mulheres que leem? —Retrucou irônico.

—Que são muito espertas e que podem obter tudo aquilo a que se propuserem —respondeu altiva.

—Então você mesma respondeu a pergunta; Kristel é muito inteligente —expôs antes de rir.

—Poderia trazê-la quando terminar seu trabalho com o senhor Reform. Ficarei encantada de conhecê-la.

—E ter três mulheres que elogiem o bom filho que sou? Nem morto! —Expressou divertido enquanto retornava de novo junto à sua mãe. —Não demorarei em vir. Se tudo seguir segundo o previsto, minha jornada acabará às cinco.

—Que ninguém toque esse corpo que tanto...

—Custou-me tirar de minhas vísceras —Borshon terminou a frase, deu-lhe outro beijo e depois de informar Giselle onde se encontraria se por acaso houvesse algum contratempo, saiu de seu lar para dirigir-se para o Kew Gardens e continuar com seu trabalho de proteger mais mulheres.


X

 

—Está feliz? Desfrutou? —Valéria perguntou à Kristel quando deixou, depois de duas horas de incansável leitura, o livro sobre a manta.

—Isto é maravilhoso —respondeu mediante um longo suspiro. —O sol brilha, os pássaros cantam ao nosso redor, respiramos ar puro, e inclusive comemos, embora conforme comentam isso atrasa nossa mente... parecemos duas damas da alta sociedade desfrutando de um magnífico dia ensolarado sem nos preocupar em como viveremos o amanhã.

—Quando eu finalizar o pagamento da fazenda poderemos fazer um piquenique cada vez que quisermos —Valéria comentou empacotando as sobras do almoço. —Não precisaremos de uma carruagem para nos deslocar, bastará sair do nosso lar e estender as mantas sobre a erva que nascerá no campo.

—Não necessitaremos de outro senhor Mayer para uma jornada semelhante? —Perguntou afiada. —O que será de seus irmãos sem a figura de um professor que lhes explique quais as sementes é apropriadas para cultivar? —Adicionou com o mesmo tom.

—Muito me temo que o despeça —respondeu exibindo em seu semblante mais prazer que angústia. —Terá que procurar-se outra mulher desesperada com a educação de seus irmãos.

—Que tragédia! —exclamou dramática Kristel. —E o que esses meninos farão sem uma figura masculina? Terminarão malcriados? Destruiremos sua masculinidade? Deveria pensar sobre isso, Valéria. A dignidade de Martin e Philip depende de você —prosseguiu mordaz.

Apoiou a mão direita sobre a manta e começou a incorporar-se. Conforme percebia, sua amiga já tinha dado por concluída a jornada campestre. Olhou para o lugar por onde deviam aparecer os meninos com o professor e não os achou. O que pretendia fazer enquanto retornavam?

—Muito me temo que esteja pensando em dar um passeio... —resmungou Kristel.

—Não podemos permanecer toda a manhã sentadas —comentou sem olhá-la. Não precisava olhar para saber que tinha franzido o cenho. Não gostava de passear, mas não lhe agradava manter-se quieta durante tantas horas.

—Mas eu posso fazê-lo enquanto você caminha pelos arredores. Vigiar-te-ei à distância.

—Não é apropriado que duas formosas mulheres fiquem sozinhas em meio a este enorme jardim. Qualquer homem poderia nos assaltar e manchar nossa honra —acrescentou divertida.

—Seguramente minha honra ficará intacta quando descobrirem o movimento dos meus quadris —manifestou arrumando a saia de seu vestido.

—Movimento de quadris? —Valéria soltou com suspeita.

—Já não a denomina claudicação?

Kristel se ruborizou com rapidez. Como tinha sido tão distraída para expressar uma tolice semelhante? Movimento de quadris? Só Borshon tinha definido dessa forma sua imperfeição. Por que utilizou suas palavras? Por que se ruborizava como se fosse uma menina ao recordar o que sentiu ao lhe declarar tal insolência?

—De um tempo para cá deixei de me martirizar por não andar como os outros —respondeu olhando a todos os lados menos à sua amiga. —Estou cansada de sofrer e só pretendo me acomodar ao corpo com o qual morrerei.

«Perdoe minha ousadia, senhorita Griffit, mas esses movimentos de quadril me deixaram tão hipnotizado que não posso apartar meus olhos». Kristel recordou as palavras do senhor Hill enquanto a vermelhidão que tinha aparecido em seu rosto se intensificava.

—Parece-me uma decisão brilhante. Ninguém é perfeito, embora muitos tenham um ego tão grande que sejam incapazes de apreciar seus defeitos.

—Como o senhor Mayer... —adicionou Kristel enquanto ajeitava o cabelo.

—E como tantos outros! —Respondeu Valéria. —Os homens esquecem que nasceram do ventre de uma mulher e se acreditam filhos do próprio Deus.

—O senhor Reform... também tem defeitos? Conforme comentou é alto, possui uma figura vigorosa e seus olhos são...—fez alusão a ele ao recordar que graças aos lucros que Valéria tinha no clube poderiam desfrutar da vida da qual falara sua amiga.

—Aquele arrogante descarado é o mais imperfeito de todos! —Trovejou irada.

—Valéria... —Kristel sussurrou ao perceber a irritação que tinha provocado em sua amiga ao nomeá-lo. Por que se comportava desse modo? Por que se apoderava dela uma ira tão enorme?

—Caminha por seu clube como se ninguém pudesse lhe fazer sombra. É verdade que sua altura é difícil de igualar, mas... é tão mortal como todos os que vão naquele maldito lugar! —Clamou desesperada.

Com essa cólera despertada ao recordar como atuou ante ela, como tinha rejeitado pagar sua dívida e como se aproximou com tanto descaramento, Valéria sacudiu a manta onde tinham permanecido sentadas com mais intensidade que a necessária.

—O senhor Hill também é muito alto —intercedeu com sutileza para rebater, se pudesse, a fúria que Valéria expressava em seu olhar.

—Sim, mas seu cabelo é loiro, em troca o do senhor Reform é escuro, tão escuro como sua alma.

—E seus olhos? —Kristel quis saber.

De todas as conversações que tinham mantido sobre o dono do clube, era a primeira vez que falava de seu aspecto físico. Até o momento, e depois de muitos meses visitando aquele local, não lhe tinha comentado nem se tinha cinco dedos em cada mão, só grunhia ao descrever a atitude déspota que mostrava aos outros.

—Seus olhos? —Trovejou. —Como crê que um homem tão pérfido tem seus olhos? Escuros! Tudo nele é escuro, salvo os coletes e as camisas de seus trajes, que por mais que tentem lhe oferecer uma imagem divina, endemoninham-no ainda mais.

—Pensei que era um homem bonito por como às vezes as mulheres no mercado o descrevem —Kristel assinalou sem apartar os olhos de Valéria.

Por que estava tão irritada? Por falar do senhor Reform? Não lhe tinha comentado que apenas interagia com os clientes de seu clube? Pois a conduta que oferecia nesse momento expressava o contrário. De verdade que não falaram nenhuma só vez? Não coincidiram nem um só segundo durante tantas semanas?

—As mulheres idealizam os homens enriquecidos! —Exclamou pondo os olhos em branco. —Juro-te que não é tão atraente.

—Ah, não? —Perguntou arqueando as sobrancelhas.

—Não. —E resolveu o tema girando-se sobre si mesma, varrendo o chão que o vestido tocava ao fazer esse giro tão brusco. —O que é isso?

—O que? —Kristel perguntou olhando para onde ela assinalava.

—Esse pequeno grupo de mulheres? O que estarão fazendo?

—Deve ser uma excursão que saiu do jardim botânico. Se o senhor Mayer não se equivocou desta vez, o Kew Gardens é um dos lugares mais belos de Londres e todo londrino que se aprecie de sê-lo não duvidará em visitar uma paragem tão importante da cidade —Kristel comentou.

—E por que as pessoas passam ao seu lado e as olha como se fossem um grupo de bruxas ao redor de um caldeirão de água fervendo? —Perguntou intrigada. —Não te parece que tentam afastar-se delas? Note aquele casal. —Assinalou inapropriadamente com a mão. —O homem segurou a mulher como se quisesse protegê-la.

—Quer que nos aproximemos para saber o que acontece?

—Animou-a. —Mas devemos nos manter distantes, não podemos nos envolver em nenhum problema.

—É claro! Permaneceremos afastadas porque, se forem bruxas, poderiam nos lançar um feitiço —Valéria comentou irônica enquanto oferecia o braço à sua amiga.

—O senhor Mayer não gostará que nos aproximemos —Kristel comentou desenhando um enorme sorriso em seu rosto.

—Pode ser até que nos impeça de subir à carruagem se por acaso estivermos sob um feitiço...

—Ao inferno com esse homem! —Exclamou sem minimizar o aborrecimento que lhe tinha causado falar do senhor Reform e mentir à sua amiga sobre o físico do homem. Por mais que lhe irritasse, por mais que tentasse dizer-se a si mesma que era um monstro, a verdade era bem distinta. Até o momento não tinha encontrado um homem tão atraente e sedutor como ele. —Sou livre para fazer o que me agrade!

E depois dessa expressão rebelde, as duas se dirigiram para aquele grupo de mulheres que proclamavam seus direitos em frente aos olhares reprovadores inclusive das outras mulheres.

 

 

—Mantenhamo-nos distantes —Borshon comentou ao agente que o acompanhava. —Só atuaremos se observarmos que há problemas.

—Problemas? —Seu companheiro perguntou arqueando as sobrancelhas. —Acaso isso não é um problema? Deveriam estar em seus lares limpando e tecendo! —Opinou.

—Não vou discutir essa ideia, embora imagine que sua esposa é muito feliz sob o amparo de um homem tão... determinante —comentou Hill mordendo a língua.

—É óbvio! Endether é a esposa mais feliz de Londres. Cada vez que retorno ao meu lar ela vai me receber de maneira carinhosa e doce. Só lamenta que algum seu dia querido marido não retorne ao lar com vida. Como bem sabe, é muito duro ser um bom agente... —expôs olhando com certa repugnância as mulheres que, de maneira pacífica, falavam entre elas.

—Muito me temo que nada poderá consolá-la se chegar esse dia... —apontou sarcástico.

Durante um tempo os dois ficaram imóveis sob a sombra de uma grande árvore. Tal como tinha prometido à sua mãe não atuaria, à exceção de que elas estivessem em perigo e, conforme transcorria a jornada, nada parecia altera-las. Borshon jogou um breve olhar pela região para confirmar que tudo estava em ordem. Haviam muitos casais sentados sobre a erva desfrutando de um magnífico dia de piquenique. Algumas crianças brincavam de correrem felizes acompanhadas de suas cuidadoras ou de alguma mãe desesperada ao não cessar a energia destes. De repente escutou o característico som que realizava uma carruagem, girou-se para onde procedia e entreabriu seus olhos com receio. Não era habitual que os veículos se aproximassem tanto ao lugar onde se encontravam e, salvo que fosse alguém da nobreza, não lhes permitia o passo. Entretanto o emblema que mostrava na parte inferior não albergava nenhuma dúvida de quem fugia da ordem. Com o cenho franzido e com uma enorme vontade de prender quem se dirigia para eles, Borshon adotou a postura de um severo agente da lei. Embora a seriedade desaparecesse no mesmo momento no qual o senhor Berwin mostrou seu ancião rosto pelo guichê.

—Senhor Hill! Alegro-me de vê-lo! —O ajudante exclamou efusivo.

—Senhor Berwin... —saudou-o uma vez que chegou à porta do veículo. —Procurava-me?

—Não, —comentou abrindo a porta para descer. —Só me aproximei para lhe saudar ao descobrir que era o senhor.

—Não é uma região apropriada para transitar —informou dando um passo para trás e cuidando de que o ancião não tropeçasse ao descer as escadas.

—Sei, mas é o melhor lugar para agilizar meu trabalho. Tenho que visitar o senhor Copherfill, o alfaiate do senhor Reform.

—Alfaiate? —Borshon perguntou aceitando a saudação de Berwin.

—O senhor Reform me ordenou que lhe confeccionasse um novo traje para a jornada da terça-feira, essa que insistiu em realizar —disse com sarcasmo. —Se pôs tão nervoso que não aceita usar um dos cem trajes que guarda em seus armários.

Hill sorriu ao escutá-lo. É óbvio que sabia o motivo pelo qual Reform estava tão intranquilo e não tinha nada a ver com a jornada da terça-feira, e sim com Valéria. Estaria padecendo um verdadeiro calvário tentando imaginar que aspecto teria, vestida de mulher e a quantos homens teria que separar de seu lado.

—Como as mulheres receberam a decisão de liberar-lhes um dia? —Quis saber enquanto cruzava os braços e adotava uma postura muito informal para um homem que representava a lei e a ordem e ia vestido como tal.

—Estão encantadas! —Exclamou. —Nunca fui testemunha de tanta revoada em um galinheiro, mas tenho que lhe confessar que segue sem me agradar essa ideia.

—Por qual motivo? Não lhe pareceu interessante que, pela primeira vez, o clube deixe as mulheres entrarem e que não empreguem seu corpo para atrair os homens?

—Não se trata disso, senhor Hill. Sou o mais velho de quatro irmãs e lhe confesso que me resultou agradável essa mudança de atitude. Entretanto, desde que descobriram que teriam um dia para fazer tudo aquilo que quisessem e que não perderão nem um só penique, meu trabalho se triplicou. Todas começaram a me pedir favores como se não houvesse ninguém mais no mundo, salvo minha pessoa, para ajudá-las. Até me deram dinheiro para que lhes compre lingerie nova! —Disse horrorizado. —Você sabe o incômodo que tive para explicar à lojista que necessitava de um espartilho verde esmeralda? A pobre empregada piscou várias vezes...

—Sinto-o... —Borshon comentou divertido. —Mas não se preocupe, depois da noite de terça-feira tudo voltará à normalidade.

—Isso espero... —exalou o ancião.

—Senhor Hill, —seu companheiro lhe chamou a atenção —acredito que se aproxima aquele problema que anunciou.

—Tenho que partir, tenho trabalho a atender... —Berwin comentou.

—Não parta ainda. Quero que me diga onde posso...

—Santo Deus! —O ancião exclamou horrorizado. —Como se pode ser tão cruel?

Ante a expressão de assombro de Berwin, Borshon decidiu olhar para o lugar que este observava, que era o mesmo que lhe indicou seu companheiro. Quando seus olhos se cravaram naquela região, notou como um raio atravessava seu corpo. Era desprezível. Face à distância, distinguiu a figura de um homem acompanhado por dois moços. Este gritava e sacudia uma mulher loira. As outras duas, morenas, pediam à viva voz que a soltasse. Contendo a respiração caminhou devagar para eles. Mas aquele passo seguro e lento se tornou em umas pernadas largas e rápidas ao descobrir, depois de cortar a distância, que a mulher a quem sacudiam era Kristel. O que tinha acontecido? Quem era aquele homem que a agredia? Como se atrevia a lhe fazer tal coisa?

—Pelo amor de Deus! —Clamou o ancião que, ante a situação, seguiu os passados do agente.

 

 


—Sabia que nos causaria problemas! —Mayer gritou agarrando inapropriadamente o pulso de Kristel para que com a pressão abrisse a mão e se desprendesse do que tinha nela.

—Solte-a! —Valéria pediu. —Ela não fez nada!

—Nada? Você é muito piedosa, senhorita Giesler, e não é capaz de ver o que esta mulher acaba de fazer. Como já lhe adverti em várias ocasiões, não é digna de sua admiração.

—Só segurei o que ela me ofereceu —Kristel murmurou com uma mescla de medo e vergonha.

Era a primeira vez que alguém ousava comportar-se dessa forma tão violenta diante de tanta gente. Olhou à Valéria lhe suplicando auxílio, mas sua amiga estava tão paralisada como ela. Por que o senhor Mayer tinha perdido a prudência? Tão zangado se sentia ou talvez exagerasse sua irascibilidade para que Valéria admitisse que não fosse uma pessoa adequada para ela?

—Senhor, meu nome é Sophia Jane Craine e lhe ordeno que a solte —intercedeu a mulher a qual Kristel fazia referência.

—Você é uma condessa, uma duquesa ou a filha de um rei? —Soltou furioso.

—Não, —respondeu Sophia que, assombrada ante tanta crueldade, apartou a sua pequena Emmeline de seu lado.

—Como pode perturbar a mente desta senhorita? —Encarou quem lhe tinha falado, assinalando Valéria com seu olhar.

—Denomina perturbar a mente pedir nossos direitos? —Sophia repreendeu-lhe.

—Solte-me! —Pediu Kristel, que notava certa dor em sua mão. —Suplico-o que me libere de uma vez.

—Só trouxe desgraça —Mayer resmungou voltando-se para ela sem soltá-la. —Você só quer destruir a vida da senhorita Giesler. Não o tem suficiente com sua deterioração, não é? Também quer quebrar a de uma mulher cândida e bondosa?

Justo quando as lágrimas de Kristel molharam seu rosto, o sol se ocultou. Uma enorme sombra os resguardou dos raios solares. Devagar levantou seu olhar e ficou tão petrificada que não pôde nem respirar. Ali, em frente a ela, aparecia a grande figura de Borshon embelezado com o traje escuro que os agentes usavam. Mas o que a deixou tão absorta não foi a imagem que oferecia com o austero uniforme, e sim a expressão de seu rosto. Por que lhe dava a impressão que estava a ponto de aniquilar o senhor Mayer?

—Solte-a agora mesmo —ordenou com uma voz tão rude que sobressaltou as duas mulheres, que deram vários passos para trás.

—Graças a Deus! —Mayer exclamou como se em frente a ele se achasse seu salvador. —Você tem que prender estas mulheres —indicou após soltar Kristel. —Perturbaram a mente da senhorita Giesler —acrescentou aproximando-se de Valéria como se quisesse consolá-la. Mas quando esta notou as mãos sobre seus ombros, sacudiu-se como se lhe sobrevoasse uma vespa.

—Mostre-me o pulso —pediu-lhe após aproximar-se dela.

—Senhor Hill... —Kristel murmurou abaixando o olhar para que ele não pudesse ver suas lágrimas.

—Senhorita Griffit, mostre-me seu pulso —Borshon repetiu com severidade. Ao ver que era incapaz de mover-se, aproximou-se tanto que mal podia passar o ar entre eles. —Kristel, —disse-lhe com uma ternura imprópria em um homem com os olhos injetados em sangue pela cólera —mostre-me seu pulso, por favor.

—Não lhe feri —Mayer soltou com rapidez. —Tentei apartá-la dessa mulher. —Assinalou Sophia.

—Eleve a manga ou o faço eu mesmo —falou com uma combinação estranha entre ternura e mandato. —Você decide.

Lentamente e sem poder olhá-lo Kristel abriu o botão e foi subindo o tecido até o cotovelo. Ao deixar à vista a vermelhidão que o apertão da mão do senhor Mayer lhe tinha produzido, Borshon colocou as gemas da mão direita sobre o sinal e a acariciou como se tentasse acalmar eu ferimento.

—Por favor... —ela lhe rogou deduzindo o que planejava.

—Não lhe faça nada...

—Que eu não lhe faça nada? —Grunhiu apertando os dentes e tentando procurar a razão pela qual tentava protege-lo. —Acredita que ficarei impassível depois do que lhe fez? É seu marido? Pretendente? Seu irmão, possivelmente?

—Não, —respondeu levantando o rosto para reforçar com seu olhar a negação.

—Então... não devia tocá-la —trovejou enquanto se girava para o senhor Mayer e reduzia a distância entre eles.

—Não! —Ela exclamou. Esticou a mão para detê-lo; entretanto, apesar de ter um corpo grande, Borshon foi tão ágil e rápido que antes de poder tocá-lo já se colocara em frente ao senhor Mayer.

—Desculpe-se —declarou cravando-lhe os olhos vermelhos pela ira.

—Não o farei —Mayer soltou. —Merecia-o. Incitou à senhorita...

—Desculpe-se ou corra... —grunhiu.

—Por que tenho que correr? Não fiz nada mal! —Vociferou. —Só protegi uma mulher indefesa —explicou olhando Valéria, que tinha acolhido os moços entre seus braços.

—Corra como um galgo se não quiser que encontrem seu cadáver flutuando sobre o Tâmisa —manifestou entreabrindo seus olhos e exibindo um sorriso tão maligno que deixou as mulheres sem fôlego.

—É uma ameaça? —O professor perguntou levantando o peito.

—Eu não ameaço, eu aconselho.

—Pois eu vou aconselhar você. Prenda essa bastarda!

E depois de escutar como a insultava, Borshon liberou a besta que guardava em seu interior.

—Virgem Santa! —Berwin exclamou ao ver a cena.

—Deveriam existir mais homens como ele —Sophie apontou sorridente.

—Senhor Hill! —Kristel exclamou desesperada. —Pare, por favor!

Mas Borshon estava tão endiabrado que não escutava os rogos dela. Só quando notou sua presença atrás dele, tocando-lhe com suavidade as costas, deixou de golpear o rosto daquele insolente.

—Não volte a olhá-la, não volte a aproximar-se dela e se a encontrar em seu caminho, mude de direção. Se eu descobrir que não cumpriu minhas ordens, procurar-te-ei e lhe asseguro que na próxima vez ninguém poderá lhe auxiliar —disse abrindo a mão com a qual agarrava a gola da camisa.

Aturdido e tentando frear o sangue que brotava de seu nariz, Mayer procurou Valéria com o olhar, quem colocava suas mãos sobre a boca e o olhava assustada. De repente a fúria que percorria seu corpo desapareceu. Possivelmente não tinha se saído bem parado ante tal agressão, mas se não errava, a senhorita Giesler, preocupada com suas feridas, retornaria com ele ao lar para cuidá-lo. Talvez tivesse chegado o momento que tanto tinha esperado, embora nunca imaginasse que alcançaria seu objetivo pondo em perigo sua integridade física.

—Retornemos —disse ao mesmo tempo em que começava a dirigir-se para onde permanecia sua carruagem. —Muito me temo que necessitarei de um médico, ou do cuidado de uma pessoa bondosa.

Mas quando tinha dado pouco mais de cinco passos percebeu, com surpresa, que ninguém lhe acompanhava.

—Senhorita Giesler... —murmurou ao girar-se e descobrir que ainda continuava abraçada aos seus irmãos.

—Não retornaremos com você —comentou com firmeza.

—Comportou-se como um biltre. Nunca tinha presenciado semelhante atitude.

—Fi-lo para protegê-la. Essa mulher não é apropriada para você. Comentei-o em várias ocasiões. Se quiser converter-se em uma senhora respeitável deve afastar-se dela o antes possível —declarou com a esperança de que suas palavras comovessem Valéria. —Como pôde observar, só se acotovela com homens tão irracionais quanto ela...

—Senhor Hill, por favor... —Kristel murmurou lhe agarrando com força o braço ao ver como dava um passo para diante.

—Você é quem não é apropriado, senhor Mayer —Valéria soltou atraindo seus irmãos para ela com mais força. —Eu devia ter feito antes, devia ter lhe jogado a chutes quando falava desse modo. Você é um monstro! —Gritou deixando que as lágrimas que segurava fluíssem.

—Um monstro? —Perguntou abrindo os olhos como pratos. —Como pode dirigir-se a mim desse modo? Esqueceu o que fiz por você e por seus irmãos durante este ano?

—Não esquecerei jamais —Valéria decretou.

—Então seja racional e me acompanhe. Seus irmãos não poderão sobreviver com o que você lhes oferece. Eu posso lhe tirar da miséria em que vive —confessou.

—Prefiro rolar na miséria que me converter em uma mulher desgraçada —repôs.

—É sua última palavra? —Perguntou com voz exigente e autoritária.

—É —afirmou com solenidade.

—Você saberá a quem enfrenta..., mas não volte a me pedir ajuda. Minhas portas estarão fechadas —manifestou voltando-se sobre si mesmo e caminhando erguido para a carruagem.

—Senhorita Giesler, —Sophie interveio —tomou a melhor eleição.

—Obrigada... —comentou depois de olhá-la.

—Quer que minha carruagem lhes leve ao seu lar? —Ela perguntou.

—Veio em sua carruagem? —Borshon perguntou à senhorita Griffit, quem ainda não tinha afastado sua mão do forte braço.

—Sim —respondeu-lhe.

—Permitiu que ela se rebaixasse dessa forma para poder desfrutar de um dia de piquenique? —Borshon reprovou Valéria. —E você se proclama amiga dela?

—Senhor Hill..., Borshon —Kristel sussurrou de novo. —Ela não tem culpa, fui eu quem insistiu em vir. Os meninos...

—Senhor Berwin —chamou o ancião sem apartar os olhos de Kristel. —Poderiam viajar em sua carruagem?

—É claro! Há espaço de sobra para os cinco —Berwin disse estendendo os braços para os meninos.

—Obrigada por sua intervenção —Sophie disse adiantando-se para o agente para lhe oferecer a mão.

—Senhora Goulden, —respondeu aceitando a despedida tão masculina —espero que não se encontre em mais situações como a vivida.

—Se ocorrer já saberei a quem tenho que procurar. Bom dia —alegou antes de retornar ao grupo de mulheres que tinham contido a respiração desde que Mayer sacudiu o corpo de Kristel.

—Vamos, cavalheiros! —Berwin disse aos meninos. —Entrem e sentem-se!

—Senhor Hill... —Valéria comentou aproximando-se de sua amiga e do agente. —Agradeço seu oferecimento, mas não podemos aceitar. É melhor que retornemos ao nosso lar a pé.

Nesse instante a mente de Borshon, um pouco mais sossegada, procurou o motivo pelo qual ela rejeitava sua proposta. De onde se encontravam até Brick Lane seria mais de duas horas caminhando. «Maldita seja!» —Disse-se. Ela conhecia o senhor Berwin. Teria visto-o no clube cada vez que o visitava e, é claro, era tão inteligente que estava procurando a razão pela qual um agente e o secretário da pessoa a quem enganava disfarçando-se de homem conheciam-se e se falavam com tanta amabilidade.

—O senhor Berwin é um homem respeitável —expôs. —Serve ao senhor Reform, o dono do clube de cavalheiros que tenho que proteger na terça-feira de noite. Posso lhe jurar por minha honra que não lhes acontecerá nada. Não é, senhor Berwin? —Perguntou sem olhá-lo.

—É claro! Sou um homem muito leal... —disse sem saber o que ocorria, mas tendo a intuição de que devia afirmar o que o agente lhe indicava.

—Por que necessita do seu amparo? —Kristel interveio para apaziguar a intranquilidade que notava em Valéria.

Borshon era um bom homem, tinha-o demonstrado não só com Mayer, mas também no mercado. E por mais conjecturas que sua amiga fizesse sobre ele, cada vez que o destino os cruzasse o receberia com os braços abertos.

—Quer deixar as mulheres entrarem essa noite —explicou voltando o olhar para Kristel. —Então necessita da minha força para apaziguar qualquer incidente que surja.

—As mulheres poderão jogar ou só passearão para estimular os jogadores masculinos? —Valéria soltou mordaz.

—Poderão jogar e levar aquilo que ganharem, sempre que o façam sem nenhum tipo de patranhas —expôs guardando para si a satisfação que sentia, ao descobrir que acabava de verter o mel. Agora só ficava à abelha rainha revoar sobre ele.

—Poderá ir? Virá ao clube? —Perguntou à Kristel. —Talvez necessite de uma mulher que vele minhas costas.

—Não acredito... —comentou abaixando a cabeça. —Haverá muita gente e não poderei me sentar... além disso, não tenho um vestido para... —tentou desculpar-se com o primeiro motivo que as senhoritas estavam acostumadas a oferecer para que os homens abandonassem a ideia de cortejá-las.

—Isso não será nenhum problema. Além disso, está com sorte. O senhor Berwin, antes deste horrendo episódio, informava-me sobre sua visita a um bom alfaiate —explicou segurando a vontade de abraçar Kristel e reconfortá-la. —Seguramente conhece alguma costureira que confeccione vestidos com rapidez.

—Borshon..., —murmurou para que Valéria não escutasse o timbre de voz que punha ao lhe falar como duas pessoas que mantêm uma relação íntima —não posso aceitar. Eu...

—Kristel... —respondeu segurando-a pelas mãos. —Aceitá-lo-á porque, tal como lhe disse, necessitarei de uma mulher que cuide das minhas costas. Sabe a quantidade de cadeiras que se quebrou nela? Não quero que minha mãe me repreenda por chegar ferido... —perseverou lhe falando com um tom tão carinhoso que todas as desculpas que tinha meditado desapareceram.

—Você é muito persistente... —disse desenhando um leve sorriso.

—Não imagina o quanto —confessou antes de dirigir aquelas mãos para a boca para beijá-las.

Depois desse ato descarado e ao qual Kristel já começava a acostumar-se, conduziu-a para a carruagem sob o atento olhar de Valéria. Com a força de uma mão elevou e cuidou para que ela não tropeçasse com o degrau.

—Assim que se faz! —Martin exclamou.

—Isso não vale, ele é um homem muito forte... —Philip se defendeu.

—Senhor Berwin, que ambas as senhoritas visitem uma costureira eficiente. Necessitam de um vestido novo para ir a essa festa no clube.

—Serão suas convidadas? —Perguntou desenhando um amplo sorriso.

—Serão —afirmou solene.

—Perfeito —respondeu acomodando-se no assento que havia ao lado do guichê.

—Pague à costureira o que lhe pedir —indicou em voz baixa. —E quando chegar ao clube diga ao senhor Reform que a senhorita Giesler e a senhorita Griffit serão minhas convidadas.

—Tem que sabê-lo? —Berwin perguntou com certa expectativa. —Acredita que lhe interesse saber algo sobre elas?

—Quando observar a expressão que o senhor Reform mostrará e ao escutar os sobrenomes, saberá por que o digo.

—Então... imagino que os vestidos irão à conta do meu senhor, certo?

—E os pagará com muitíssimo gosto... —respondeu antes de fechar a porta.

Depois que o cocheiro empreendeu o caminho e que sua respiração se normalizou, caminhou para onde se encontrava seu companheiro, que não tinha movido nenhuma só pestana ao contemplar a demencial atuação.

—Tudo o que viu aqui não aconteceu. Se sair por sua boca algo referente à este dia, sua querida Endether verá cumprido aquele pesadelo a que fez referência, entendido?

—Sim, senhor Hill.

Borshon se colocou o chapéu e continuou velando pela segurança daquelas mulheres.


XI

 

—Como diz? —Trevor perguntou à viva voz após ser informado que os vestidos das senhoritas se acrescentaram à sua conta.

—Foi o senhor Hill quem me ordenou essa loucura —expôs movendo-se de um lado para outro, inquieto. —Juro-lhe que me opus com tenacidade a tal propósito e, apesar de ser um homem muito débil, lutei com minha verborreia para que mudasse de opinião. Mas foi impossível lhe convencer... —expôs exagerando o que aconteceu para que Reform entendesse que ele só tinha sido um mero lacaio.

—Como se tomou essas liberdades? Como foi capaz de utilizar meu nome para um ato semelhante? —Gritou agitado.

—Descontarei do seu salário!

—Do meu? —Berwin soltou parando em seco e abrindo os olhos como pratos. —Recordo-lhe que foi ideia do senhor Hill... —acrescentou para que entrasse em razão. Entretanto, aquela postura rígida, aquele pescoço esticado como uma girafa, dava-lhe a entender que nada despertaria o sentimento de piedade naquele homem.

Reform se girou sobre seus pés e olhou para a rua. Por que Borshon tinha atuado dessa maneira? Quem eram aquelas moças? Ao final não era tão sensato como acreditava? O que lhe tinha conduzido a realizar tal descaramento sem sequer consultar-lhe? Seguiria, no futuro, antepondo-se aos seus mandatos até que finalizasse o trabalho de proteger Valéria? Levou-se a mão direita para o queixo e o acariciou. Teria que despedi-lo... depois da festa de terça-feira, quando ele pudesse aproximar-se dela e falar com a verdadeira mulher, pagar-lhe-ia o combinado e daria por terminado aquele compromisso. Já não precisaria protegê-la porque, uma vez que a tivesse em seus braços, ele mesmo o faria.

—Você não foi testemunha de como essas moças desfrutaram e da gritaria que formaram os meninos ao vê-las mudar de roupas. Parecia que estavam vivendo a véspera de Natal... —expôs o secretário procurando alcançar a piedade naquele frio coração.

—Meninos? Também paguei os trajes de uns meninos? —Perguntou voltando-se para Berwin. —Agora entendo esta quantia! —Gritou movendo a fatura que lhe tinha feito chegar.

—Não! —Respondeu com rapidez, acentuando sua negativa com um leve movimento de mãos. —Só os delas.

—E... como se chamam essas mulheres? Se lhes paguei uns custosos vestidos mereço, pelo menos, saber que nomes possuem —exigiu saber enquanto lançava o papel sobre a mesa e apartava a poltrona para tomar assento.

Nunca tinha dado presentes a desconhecidas. Ele não era o benfeitor de nenhuma mulher! Além disso, esse tipo de ato os realizava sozinho e exclusivamente para suas amantes e, claro está, jamais ultrapassava uma liquidez de cinquenta libras. Mas aquelas moças tinham duplicado a quantia que destinava para agradar suas concubinas. Quem se acreditavam que eram, damas da alta sociedade?

—Não disse? Grande descuido! —Berwin indicou esperançado. —O senhor Hill insistiu em que o comentasse porque, segundo ele, entenderia a razão pela qual ideou tal atrevimento.

—O senhor Hill tem uma visão distorcida do que desejo e do que pretendo —resmungou ao mesmo tempo em que se sentava. —Vai dizer-me de uma vez por todas como se chamam? —Vociferou.

—Senhorita Griffit e senhorita Giesler —declarou com rapidez ao ver que o aborrecimento do senhor aumentava.

—Como disse? —Soltou ficando pétreo ao escutar o sobrenome de Valéria.

—Senhorita Griffit e senhorita Giesler —repetiu com certo temor.

—Quem foi agredida? —Perguntou levantando do assento e colocando suas grandes mãos sobre a mesa.

—A senhorita Griffit —respondeu em voz baixa. —A outra moça foi quem se negou a acompanhar o agressor.

—Maldita seja! —Exclamou dando uma forte palmada sobre os papéis que havia sob suas mãos.

—Senhor Reform... —Berwin murmurou mais assombrado que assustado.

—Como disse que se chamava esse canalha?

—Se meus ouvidos não o captaram erroneamente, Mayer —respondeu com receio.

—Para onde se dirigiu esse tal... Mayer? —Exigiu saber.

—Não sei. Esse homem se afastou amaldiçoando a mulher que recusou partir com ele —esclareceu sem mover nem um só pé do tapete.

Ao Berwin não agradava a expressão daquele rosto. Queria aparentar tranquilidade, mas a veia de seu pescoço, aquela que aparecia quando estava a ponto de explodir, palpitava e crescia.

—O senhor Hill saberá onde encontrá-lo... —não era uma pergunta, Reform afirmava que o agente descobriria em que parte de Londres se escondia aquela doninha, com quem ajustaria as pertinentes contas...

—A pobre moça escutou como lhe gritava que a porta desse miserável permaneceria fechada quando lhe pedisse ajuda. Se me permite opinar, acredito que o senhor Hill lhe deu seu castigo. Nunca vi um trato semelhante por volta de duas mulheres!

—Esse tal Mayer ainda não obteve tudo o que procurava... —murmurou acomodando-se de novo no assento.

O que era isso que escutava? Os batimentos do seu coração? Tão zangado se achava para ouvir pela primeira vez como seu coração palpitava até ficar exausto?

—Uma vez que o senhor Hill resolveu a situação, o que ocorreu? —Perguntou algo mais comedido, embora a vontades de agarrar o pescoço daquele insolente não tinha desaparecido nem tampouco se haviam amenizado seus batimentos cardíacos.

—Pois tal como lhe disse antes, levei-as até a costureira para que escolhessem uns vestidos.

—Por que o senhor Hill escolheu tal alternativa?

—Tampouco o disse. —Berwin retrucou desconcertado.

—Acredito que o medo não me deixou falar com eloquência... —desculpou-se.

—Pois tome assento e comece desde o começo —convidou.

—Como? —Perguntou surpreso o ancião.

—Tome assento —repetiu apertando os dentes. Desconcertado, o secretário se sentou e começou a lhe descrever, outra vez, a história das mulheres. Nesta ocasião, um pouco mais relaxado ao saber que não gritaria quando lhe informasse que ele subsidiou os custosos vestidos, foi mais conciso. Explicou-lhe como Mayer agarrou a mão da senhorita Griffit e como sua amiga não deixava de chorar, também lhe narrou à maneira protetora e carinhosa que ela mostrou ao abraçar seus irmãos, surpreendidos e assustados ao presenciar tal cena. Não esqueceu nenhum detalhe sobre a atuação do agente e sorriu de prazer ao lhe descrever como o descarado partiu sangrando e aturdido porque a senhorita Giesler não lhe acompanhava.

—Sem ânimo de dar a impressão de me haver convertido em um demente após o sofrido, acredito que o senhor Hill tem um interesse especial pela senhorita Griffit. Só um homem apaixonado poderia atuar daquela forma.

—De que forma? —Reform interessou-se que, depois da exposição, sentia uma enorme pontada no estômago por não ter acompanhado seu secretário. Se o tivesse feito, a atuação de Hill teria ficado ridícula...

—Converteu-se em um monstro... a sede de vingança lhe nublou a mente... —esclareceu sem deixar de olhar a veia do pescoço de Reform que continuava aumentando-se.

—Qualquer homem sensato atuaria dessa forma. Além disso, ele é um agente da ordem e, como tal, tinha que intervir ante uma situação de tal índole —tentou desculpá-lo.

—Ali havia outro agente, —acrescentou Berwin —e não se moveu do lugar de onde plantou os pés. Embora tampouco precisasse, o senhor Hill...

—Chega de elogiar suas barbaridades! —Clamou levantando do assento de novo.

—Senhor Reform... por que atua desse modo? Penso que... —tentou dizer.

—Como a senhorita Giesler se comportou quando subiu à carruagem? —Mudou com rapidez de tema. Não queria seguir pensando na atuação heroica do agente porque não queria imaginar, nem por um segundo, que Valéria sentisse a necessidade de agradecer ao Borshon sua selvageria. Era ele quem deveria ter lhe partido o nariz!

—A princípio atuou de maneira esquiva... —prosseguiu enquanto Reform andava de um lado para o outro nervoso. —Não permitia aos seus irmãos que falassem, nem que se movesse de seus assentos. Mas quando respondi a todas as perguntas que lhe passaram pela cabeça, até sorriu e posso lhe assegurar que é o sorriso mais formoso que vi em uma mulher.

—O que perguntou? —Trevor freou seu caminhar e olhou desafiante ao ancião. Sorriso bonito? Ele sabia como sorria e ninguém, salvo ele, devia apreciar a beleza daqueles lábios!

—Se o senhor Hill e você eram amigos, se trabalhavam juntos, desde quando se conheciam, o que eu fazia no Kew Gardens, se nosso encontro foi casual ou previsto, desde quando trabalho para você... posso lhe assegurar que minha boca ficou sem saliva depois de responder. A mulher desconfiava de tudo. Embora deva ser normal...

—Normal? —Trevor lhe interrompeu.

—O sangue espanhol que tem por parte de sua mãe...

—Falaram de suas origens? —Perguntou expulsando abruptamente o ar de seus pulmões.

—Quando descobriram que não possuo nenhuma semelhança com o senhor Mayer e que meu único desejo era lhes fazer esquecer o aterrorizante episódio, as duas falaram com tranquilidade sobre suas vidas —apontou cruzando os braços, adotando uma atitude cômoda. Não sabia o motivo pelo qual o senhor Reform se interessava pela senhorita Giesler se, conforme acreditasse, não a conhecia. Mas descobrir que, por uma vez, ele tinha algo que tanto ansiava seu chefe, ofereceu-lhe o ás na manga que lhe fez degustar o sabor do poder. —A princípio pensei que os dois meninos eram irmãos da senhorita Griffit. Supu-lo porque seus cabelos são tão loiros como os dela, mas a senhorita Giesler me esclareceu que seu pai era alemão e sua mãe espanhola. Conforme parece ela se encarregou dos meninos quando ambos os progenitores morreram. Embora augure que, se Deus for piedoso com eles, obterão a vida que merecem... —refletiu em voz alta.

—Por que diz isso? —Perguntou ansioso.

—Porque a senhorita Giesler me falou de seus planos futuros. Ela, a senhorita Griffit e os moços partirão de Londres quando reunirem a quantia que necessitam para efetuar um último pagamento.

—Último pagamento? Já compraram a...? —Reform emudeceu.

Devido ao seu desconcerto, à volta da ira e àquela inapropriada preocupação, quase revelou aquilo que ainda desejava manter em segredo. Até que não achasse o motivo pelo qual não podia deixar de pensar em Valéria não falaria com ninguém disso. Além disso, e se toda essa espera por ela desaparecesse na terça-feira? Possivelmente o que alguns homens denominavam beleza ele não o nomeava assim, posto que em seu leito tivesse se deitado mulheres de formosura insuperável.

—Já compraram...? —Berwin repetiu esperando que terminasse a frase.

—Refiro-me a que se desejam partir de Londres será porque terão outra moradia adquirida —comentou enquanto desfazia o nó de seu lenço.

—Pois conforme explicaram deram uma fiança, mas me esclareceu, a própria senhorita Giesler, que espera finalizar o pagamento quando lhe saldarem uma dívida —o secretário manifestou empatia com a tristeza e o desespero das moças.

—Uma dívida? —Trevor perseverou arqueando a sobrancelha direita.

—Também lhe resulta inverossímil imaginar? —Exclamou mais efusivo que o normal. —Quem será o miserável que as retém em uma cidade que odeiam? Quem poderia brincar com o sonho de duas mulheres tão bondosas! Esse homem não tem coração!

—Sim, eu também me pergunto quem poderá ser esse miserável... —Reform murmurou com os lábios apertados para não gritar ao Berwin que não deveria insultar uma pessoa em sua própria cara. —O que aconteceu quando as levou à costureira? Estimo que a senhora Lowel pôs-se furiosa. —Conduziu a conversação para outro tema que não lhe deixasse em uma posição tão mesquinha.

—Sim, pô-lo, mas não pôr como foram vestidas, mas sim pelas roupas que decidiram escolher em primeiro lugar —esclareceu.

—Queriam vestir-se como mendigas? —Perguntou retornando ao seu assento.

—Não, senhor Reform. Não mostrariam essa imagem, mas já sabe você como a costureira dramatiza ao ver duas formosas mulheres usando roupas tão austeras e se esforçando em continuar com aquela humilde presença —apontou sem apartar os olhos do Trevor.

—E? —Perseverou ao mesmo tempo em que se servia uma taça de água.

—A princípio lhe pediram que não fosse exigente, que não desejavam nada que chamasse a atenção, só algo singelo para virem na terça-feira ao clube —revelou.

—Virão? —Soltou elevando as sobrancelhas e contendo a felicidade que lhe oferecia saber que Valéria iria tal como lhe havia dito Borshon.

—Por isso mesmo fomos comprar os vestidos —Berwin explicou com resignação. —Tampouco o tinha mencionado na primeira vez que lhe narrei a história? Pode ser que não só o meu coração tenha sofrido com aquela barbárie...

—Centre-se no importante e não volte a me indicar o desespero que viveram antes da aparição do senhor Hill... —insistiu-lhe mal-humorado.

—Pois como lhe estava contando antes que me interrompesse pela enésima vez, ambas começaram a procurar roupas de baixo custo. Mas quando expliquei à senhora Lowel que você se encarregaria de pagar a fatura, foi incapaz de conter sua emoção e disse a elas.

—O que fizeram? —Quis saber enquanto cruzava as pernas.

—A senhorita Griffit recusou tal obséquio, embora as palavras da senhorita Giesler a incentivassem a escolher entre aquelas que a costureira lhes ofereceu novamente —comentou com certo receio.

Apesar da calma que exibia, podia explodir a qualquer momento. O senhor Reform não era muito dado a escutar como gastavam sua fortuna e nem muito menos umas desconhecidas. Embora ficasse sem fala quando descobriu como seus grandes lábios se alargavam para desenhar um sorriso.

—E? —Continuou perguntando sem eliminar o plácido sorriso.

—E acrescentaram à conta alguns ornamentos que, segundo a senhorita Giesler, eram completamente necessários para tal ocasião —declarou para que o grito que ofereceria quando descobrisse que, não só lhes tinha dado um par de vestidos, mas também chapéus, xales, meias, sapatos e inclusive um par de camisolas de seda, não o tombasse da cadeira.

—Então a senhorita Giesler não rejeitou a proposta... —disse de maneira reflexiva ao mesmo tempo em que realizava de novo o gesto de acariciar o queixo.

—Não, senhor, ela não a negou. Ao contrário, acredito que quando escutou seu nome lhe brilharam os olhos de forma...

—De forma? —Trevor perseverou esperando.

—Maligna —esclareceu

—Maligna? —Repetiu assombrado.

—Sim, senhor. Muito me temo que a senhorita Giesler leu algum noticiário no qual o senhor aparecia —indicou levantando do assento para ampliar a distância entre os dois.

—Mas ninguém pode falar mal de mim. Deve ter interpretado mal sua forma de olhar... —assinalou com soberba. —Todas as notícias que tenho lido até o momento exaltam a qualidade do clube...

—É claro, mas se não abandonasse as leituras para gabar-se dessa fama, perceberia que depois de elogiar a qualidade de seu local também falam sobre o senhor e não costumam utilizar nessas crônicas, adjetivos, como bondoso, compassivo, sereno ou humanitário...

—E o que usam em seu lugar? Afável, atento, quente, benévolo? —Repreendeu elevando o tom de sua voz.

—Muito me temo que áspero, desagradável, insociável, soberbo e a última palavra que li, misantropo.

—Eu? Como podem me descrever dessa forma tão errônea? Acaso não são conscientes do que tenho feito por esta cidade? O que fariam nossos sócios se não se relaxassem jogando nas mesas, desfrutassem de nossas mulheres ou saciassem seus estômagos na sala de jantar?

—Possivelmente... manteriam uma vida mais familiar? Centrar-se-iam em seus afazeres diários? Não se esconderiam quando chegam aos seus lares ébrios por nosso licor? —Enumerou como se tivesse ensaiado.

—E você acredita que a senhorita Giesler mudou de opinião porque pensa que sou um monstro e que, para redimir minhas más atitudes, foi imprescindível aceitar a oferenda? —Perguntou à viva voz.

—Em minha defesa tenho que dizer que não posso saber o que ela nem nenhuma mulher pensa. Mas observei como o rosto lhe iluminou... perigosamente —esclareceu enquanto agarrava o trinco da porta para sair.

—Está bem! —Clamou ao mesmo tempo em que esticou suas costas. —Se ela pensar que a melhor forma de me liberar dos meus pecados é realizando boas obras, continuarei com elas.

Berwin ficou imóvel, seus olhos não piscavam e notava como o batimento de seu coração amenizava. O que estaria pensando? O que lhe tinha ocorrido fazer com essa moça? Tinha que haver inventado alguma desculpa para protegê-la?

—Senhor Reform... —murmurou depois de um breve silêncio, um que lhe indicava que aquilo que ia lhe dizer não seria de seu agrado.

—Você sabe onde vivem, não é? —Perguntou sem olhá-lo.

—Eu mesmo as acompanhei até a porta de seu lar —explicou.

—Pois faça chegar uma nota à senhorita Giesler lhe informando que terão ao seu dispor uma carruagem para transportá-las até o clube sãs e salvas.

—Como? Quer dizer que...? Deseja...? —Titubeou atônito.

—Parece-me bem continuar com essas obras solidárias e... que melhor forma de perseverar minha mudança de atitude que velando pelo bem-estar de minhas protegidas? Não lhe parece justo? Que homem poderia abandonar à sua sorte umas mulheres embelezadas com esses vestidos tão custosos? Qualquer criminoso poderia deduzir que são damas da alta sociedade e... assaltá-las —discorreu desconfiado.

—Então... deseja que lhes informe de sua decisão? —O administrador sussurrou.

—Exato! Escreva-lhe, agora mesmo, de seu punho e letra uma nota em que... —ficou calado ao lhe passar outra ideia pela mente. Trevor sorriu de orelha a orelha e caminhou com passo lento para Berwin. —Para que não lhes caiba dúvida de que foi minha ideia, —começou a expor —eu mesmo lhes escreverei esta missiva.

—Posso fazê-lo, senhor Reform. Procurarei as palavras adequadas para... —tentou dissuadi-lo.

—Eu as procurarei —alegou girando-se bruscamente sobre si mesmo. Dirigiu-se para seu assento, sentou-se e pegou papel. —Volte dentro de meia hora.

—De verdade que eu...

—Volte dentro de meia hora! —Clamou zangado.

Berwin saiu do escritório, fechou a porta, apoiou-se nela e se fez o sinal da cruz. O senhor Hill tinha atuado de maneira errônea. Apesar de ter razão ao lhe indicar que se acalmaria ao nomear o sobrenome das mulheres, tinha tomado uma eleição inapropriada. Reform conhecia a senhorita Giesler, disso não lhe cabia a menor dúvida. Seus olhos revelaram ao escutar seu nome. Entretanto, não foi felicidade o que produziu nele e sim intranquilidade. Um sentimento recíproco, posto que ela, depois de ouvir o nome de quem pagaria a fatura, soltou por sua boca todos aqueles adjetivos ofensivos que lhe tinha indicado no escritório. Só esperava que ambos relaxassem e que na terça-feira toda essa ira se dissipasse porque, se não errasse em suas lembranças, a última vez que observou esse olhar no rosto de seu chefe, tiveram que fechar o clube durante uma semana para reconstruir aquilo que ele mesmo destroçou.

—Se me escutar, salve essa pobre família... não os deixe na miséria e proteja-os de todo o mal... —suplicou antes de respirar fundo e descer as escadas.


XII

 

—Isto foi um sonho... Kristel suspirou assim que fechou a porta do lar.

—Pois eu não opino igual —Valéria replicou depositando os pacotes sobre a mesa com brutalidade.

A ira ainda permanecia latente nela. Seguia sem dar crédito ao cruel comportamento de Mayer. Não só tinha agredido Kristel diante de toda aquela gente, mas sim depois daquela horrível cena, pretendia que a abandonasse e que partisse com ele. Como pôde imaginar tal sandice? De verdade pensou que se desentenderia com ela e que deixaria tudo para lhe seguir?

—Por que não? —Perguntou caminhando em volta da penteadeira. —Desfrutamos de uma linda manhã de piquenique, o senhor Mayer desapareceu de nossas vidas e nos deram de presente uns lindos vestidos. Isso não te parece maravilhoso?

—Apagou de sua memória o que aquele homem te fez? —Perguntou voltando-se para ela indignada.

—Completamente... —respondeu-lhe enquanto introduzia as mãos na bacia e refrescava o rosto.

—Pois não a entendo! —Exclamou cruzando os braços. —Deveria estar zangada, envergonhada e, conforme advirto, quão único sente é felicidade —recriminou-a.

—Penso que tia Kristel esqueceu tudo porque aquele agente lhe deu uma boa surra —interveio Philip.

—Deu, não é? Seu professor finalmente obteve aquilo que tanto ansiava encontrar —respondeu sem poder apagar um sorriso prazeroso de seu rosto.

—Oh, sim! —O menino comentou com muito entusiasmo.

—Deu-lhe um golpe, outro... —rememorou realizando com seus punhos os mesmos movimentos que Borshon. —Logo outro e...

—Basta! —Valéria gritou mal-humorada. —Nem lhes ocorra falar do acontecido! —Ordenou aos seus irmãos ao mesmo tempo em que lhes assinalava com o dedo. —A atitude do senhor Mayer foi horrível, mas o comportamento desse agente também. Não devia ter adotado aquela postura tão cruel.

—Não foi —Kristel contestou. —O senhor Hill atuou de maneira correta. Todo homem que use um uniforme como o seu deve executar a lei e ele o fez de maneira irrepreensível.

—Isso pensa? De verdade que exalta tanta violência? —Exigiu saber ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas e fixava seus olhos nela.

—Ele mereceu... —afirmou sem sequer meditar um milésimo de segundo. —Se ele não tivesse aparecido crê que o senhor Mayer teria se contentado com um simples apertão no pulso? Avisei-a que esse homem nos traria problemas e o fez. Embora depois de tanto tempo e de tantos bate-papos sobre ele não sabia se você queria que isto acontecesse.

—O que insinua? —Disse levando as mãos ao peito e ficando tão estupefata que notou como seu coração deixava de pulsar. —Não pensará que planejava uma aberração semelhante? De verdade crê que eu esperaria uma agressão à sua pessoa para afastá-lo de nós?

—O único do qual sou consciente é de como me tratou durante este tempo e como você desculpou cada comentário ou ato ofensivo para comigo —expôs enquanto se dirigia para o pacote no qual permanecia envolto seu vestido novo.

—Fi-lo por eles... —declarou com pesar. —O senhor Mayer foi o único professor que se contentou com o pouco que eu podia oferecer e não diminuiu, em nenhum momento, a qualidade de suas aulas. Martin já sabe ler e escrever perfeitamente e Philip se converteu em...

—Não quero te reprovar em nada... —interrompeu-a sem poder apartar os olhos da roupa. —Só lhe fiz referência que o senhor Mayer obteve o que merecia —acrescentou antes de tirar o vestido e pô-lo em frente a ela. —É bonito, não é? —Perguntou aos meninos.

—Ficará como uma princesa, tia Kristel! —Martin exclamou correndo para ela para abraçá-la.

—Uma princesa... —sussurrou enquanto deixava que o pequeno se aconchegasse ao seu corpo embora pudesse enrugar a roupa. —Nunca sonhei sendo... —alegou olhando à Valéria. —Nem considerei que um homem pusesse seus olhos em mim...

—Sempre se subestimou —Valéria disse movendo a mão com desdém. —Você mesma desprezou qualquer amostra de afeto para com sua pessoa.

—Sou coxa... —replicou.

—E? Essa claudicação impediu que o senhor Simmons se fixasse em você? Mas você o rejeitou categoricamente.

—Se não recordar mal..., —começou a dizer apartando delicadamente o pequeno para que retornasse junto ao seu irmão —o senhor Simmons tinha ultrapassado os cinquentas e, depois de enviuvar, só procurava uma mulher que cuidasse daquela enfermidade que anos depois o conduziu à tumba.

—Mas te teria convertido em uma senhora respeitável e não teria passado tanta necessidade —considerou.

—Como pode ser tão cínica? Como pode me reprovar que não aceitasse sua proposta matrimonial? A quantos você rejeitou? Crê que não sei o que te acontece? Noto-o cada vez que retorna do clube, Valéria. Algumas vezes é tão clara como a água —expôs sem contemplações.

Que ela mesma lutasse contra seus sentimentos não lhe dava o direito a que todo mundo renunciasse a eles. Ela queria ser feliz e se o senhor Hill albergava algum tipo de interesse, como parecia ter, aceitar-lhe-ia sem dúvidas. Quem lhe ia dizer que um dia encontraria um homem tão atraente, alto e são velando por ela?

—Não me acontece nada. E quando retorno do clube me encontro exaltada e colérica porque não consegui a arrecadação que esperava —resmungou.

—Se você o diz... —Kristel murmurou levando com supremo cuidado o vestido para o único cabide que tinham no lar. Um alargado pau que, preso com cordas, tinham colocado sobre a cama dos moços.

—E não considerei nenhuma proposição porque sei que nenhum homem aceitaria minha vontade —defendeu-se. —Você mesma foi testemunha do que pretendem fazer comigo uma vez que me case e... não permitirei que ninguém me separe dos meus sonhos! —Terminou a exposição à viva voz.

—Ninguém? —Perseverou. —Que estranho! Seguramente qualquer vendedor de verduras adoraria ter uma mulher que se ocupasse da semeadura de seus campos. Entretanto... —falou retornando ao lado de Valéria.

—Entretanto? —Perguntou impaciente.

—Entretanto, penso que essa é a desculpa que oferece a si mesma porque não pode alcançar o que deseja —apontou.

—E... o que desejo? —Perguntou mal-humorada de novo.

—Um homem que não peça permissão para te beijar, que não flerte como fazem os outros, que tome aquilo que deseje no momento que goste. Um homem que te deixe rendida, ao qual não possa replicar e um que, quando estiver em frente a você, seja incapaz de conter seus instintos femininos —manifestou sem mal respirar.

—Bobagens! —Exclamou notando como suas bochechas ardiam pela mudança de temperatura.

—Quer um homem para se apaixonar... —concluiu a senhorita Griffit.

—Apaixonar-me? —Disse girando-se sobre si mesma e interrompendo a exposição de Kristel que, embora não quisesse reconhecer, estava certa. Por que continha o fôlego quando ele se aproximava? Por que seu coração pulsava tão rápido quando notava sua presença? Por que foi incapaz de manter-se firme e comportar-se como o homem que fingia ser ao estar no escritório? Por que seus olhos se cravaram naquele pequeno triângulo onde mostrava sem pudor o pelo de seu peito? E seus lábios? Tinha visto alguma vez uma boca tão sedutora? —O amor não existe! Só se alcança uma atração física que, por desgraça, desaparece com o passar do tempo! —Clamou irada e zangada por delirar daquela forma tão inapropriada sobre o senhor Reform.

—Parece-me inverossímil que uma mulher como você alegue tal tolice. Quantas vezes narrou a história de seus pais? Quantas vezes insistiu em que seu pai abandonou tudo para casar-se com sua mãe? Isso não te demonstrou nada?

—Sim. —Voltou-se para os três, que a observavam sem pestanejar. —Eles o encontraram, mas não há possibilidade para nós.

—Pois eu não estou de acordo —resmungou. —Acredito que o senhor Hill está interessado em mim e eu nele.

—Depois dessa barbárie? —Perguntou atônita. —Um homem que destroçou o rosto de outro conquistou seu coração?

—Protegeu-me —declarou com firmeza. —Fez-lhe ver que sou uma mulher respeitável e que não devia me menosprezar daquela forma. Apesar de não ser uma dama ou nascer com este defeito, mereço uma mínima cortesia.

—Não o nego. Mas estou segura de que existem milhares de alternativas para alcançar sua... cortesia —resmungou.

—Pois me pareceu a melhor. Não só fez com que desaparecesse de uma vez por todas aquelas insolentes, mas também nos ofereceu outro meio de transporte onde não me observavam com repulsão. O senhor Berwin resultou ser uma excelente pessoa e nos atendeu com o respeito que merecemos. Além disso, não se sente agradecida pelo convite que o senhor Hill nos brindou para a noite no clube? E os presentes? —Assinalou para as bolsas. —Se não recordar mal, recusei a aceitá-lo quando a costureira nos informou que o senhor Reform saldaria a conta, entretanto, você enlouqueceu ao escutar seu nome.

—Esse sentimento de felicidade não te faz se perguntar o motivo pelo qual o senhor Hill ofereceu, sem perguntar ao próprio senhor Reform, a compra dos nossos vestidos?

—Possivelmente tenham um acordo... se, tal como nos disse o amável senhor Berwin, trabalha para ele, considerará um adiantamento —continuou lhe defendendo.

—Pelo amor de Deus! —Clamou desesperada, levando as mãos para o rosto. —Quem é e o que fez com minha amiga? Sinto falta da pessoa que sempre procurava a maldade das pessoas e se mantinha em alerta para encontra-la. —Uma vez que apartou as mãos do rosto, colocou-as na cintura e com um olhar que poderia assustar ao próprio diabo, continuou falando com Kristel: —Aceitará viver com um homem como esse? Deu-se conta de sua altura, da magnitude daquelas mãos e de como pode transformar-se em uma besta em questão de segundos? Quer viver toda a vida calculando o momento no qual deixará de ser um homem para converter-se em um monstro?

—É carinhoso, atencioso, educado e terno —asseverou.

—Demonstrou-o no mercado, assim como não ocultou essa rudeza da qual fala quando os ditosos Kant tentaram me ridicularizar.

—Perfeito! —Vociferou. —Pois só espero que não te convide a passear pela cidade porque muito me temo que golpeará toda Londres!

E justo quando terminou a frase levou-se as mãos à boca.

—Como pôde dizer isso? —Philip saltou levantando do colchão de seu leito, onde ele e seu irmão tinham decidido permanecer enquanto elas discutiam.

—O... sinto-o —disse dirigindo as mãos para sua amiga.

—Juro-te que não... é que... —titubeou contendo a vontade de chorar. —Kristel, vejo em seus olhos. Sei o que esse homem produz em você e penso que devo te proteger.

—E, o que vê? —Comentou doída pelo comentário.

—Vejo... vejo... —disse estendendo as mãos para o chão ao rejeitar o gesto afável.

—Sim, o que vê? —Kristel insistiu contendo a vontade de sair correndo da habitação para que o ar fresco acalmasse a dor que sentia em seu coração. Tão zangada se encontrava para atacá-la com tanta crueldade? O que lhe tinha levado a tal estado de loucura? «Medo... —Kristel pensou. —Pela primeira vez tem medo, mas não sei por quem...»

—Vejo uma mulher estranhamente iludida, uma mulher que defende uma atitude horrenda, uma mulher que...

—Está apaixonada! —Philip intercedeu. —Não tenho a idade adequada para participar de uma conversação como esta, mas não sou tão criança para não entender que está apaixonada e que não deveria se intrometer. Até agora acatei suas ordens porque sempre atuou em nosso bem, mas isto não tolerarei, irmã. Ultrapassou um limite do qual nem você mesma sabe como sair —disse encarando-a pela primeira vez em seus quinze anos de vida.

—Não quis lhe ferir... —Valéria comentou procurando com a mão uma cadeira onde sentar-se. —Só quero protegê-la...

—Mediante mandatos? —Philip continuou falando. —Porque lhe está ordenando que se esqueça do senhor Hill quando todos fomos testemunhas de como o agente velava pela integridade de Kristel.

—Nunca ordenei nada —defendeu-se.

—Não? Acaso me perguntou alguma vez o que desejo ser no futuro?

—Sempre disse que ansiava viver em uma fazenda e que cuidaria...

—Não! —Philip clamou. —Esse não é o meu sonho e sim o seu!

—Como assim o meu? —Valéria perguntou levantando do assento. Olhou primeiro ao Philip, logo à Kristel e finalizou observando o rosto de assombro que Martin exibia.

—Você falou com mamãe antes de morrer e lhe prometeu que conseguiria aquilo que ela desejou para nós, mas jamais nos perguntou se era o que nós queríamos.

—Philip... —Kristel disse enquanto colocava sua mão sobre o ombro do menino para que relaxasse. —Sua irmã lutou para lhes converter em homens de bem, e o tem feito estupendamente.

—Ficar em perigo é fazê-lo bem?

—Philip! —Valéria exclamou horrorizada.

—Não sou uma criança, Valéria, e sei o que faz cada vez que sai pelas noites.

—Mas eu... não...

Tudo ao seu redor começou a lhe dar voltas. Em um abrir e fechar de olhos seu doce lar se converteu em um salão de espetáculos dramáticos. O que estava acontecendo? Em que momento seus irmãos começaram a escolher? Angustiada, Valéria caminhou para trás procurando um lugar onde sentar-se de novo. Débil, ao notar como suas pernas fraquejavam, avançou até que topou com a banqueta que havia em frente à penteadeira. Era certo que Philip já não era um inocente menino. Converteu-se em um moço, ao qual o nascimento daquele bigode loiro oferecia uma imagem varonil. Mas ela não aceitava essa mudança, não podia vê-lo como um adulto sem antes obter o que prometeu à sua mãe. Olhou ao jovem e empalideceu. Sua figura exibia uma incrível tranquilidade apesar de observar em seus olhos certo remorso.

—Por sorte para nós —continuou falando o moço —jamais nos enganou e tampouco evitou fazer comentários sobre o que fazia diante de nós. Enquanto fui uma criança não lhes prestava atenção, mas de um tempo para cá atei cabos e não me parece adequado que uma mulher tente sair adiante jogando em um clube vestida de cavalheiro. Sabe a que perigos se submete? O que seria de nós se um dia descobrirem o que faz?

—Philip... —murmurou aturdida. —Só tenho feito para sair de Londres e lhes oferecer a vida que merecem.

—Valéria... —Kristel sussurrou aproximando-se dela para a tranquilizar.

—Mas eu não quero me converter em um fazendeiro —manifestou sério.

—Então, o que é que deseja? —Perguntou-lhe justo quando notava o calor da mão de sua amiga sobre seus ombros, reconfortando-a como tinha feito com seu irmão minutos atrás.

—Adoro Londres! —Exclamou dando um passo para ela.

—E sei que minha vida está aqui.

—É muito jovem... —falou com calma.

—Já sei. Mas também tenho idade suficiente para saber que não quero partir, que me afastar desta cidade não seria do meu agrado. Deve me compreender... —disse-lhe ajoelhando-se em frente a ela. —Você, melhor que ninguém, sabe o que significa se apartar de seu verdadeiro caminho.

—Meu caminho sempre foi lhes cuidar e lhes ver crescer... —alegou pondo as mãos sobre o cabelo loiro para acariciá-lo. —Aos dois —acrescentou olhando ao Martin, quem correu para eles para abraçá-los. —E foi muito fácil graças a ti, Kristel. —As lágrimas, aquelas que tinha contido, brotaram e molharam suas bochechas ainda ruborizadas pela exaltação das discussões. —Diga-me, Philip, o que deseja ser? O moço a olhou confuso. Não era o momento de lhe explicar que, depois da atuação do senhor Hill, tudo o que tinha sonhado ser tinha desaparecido. Queria ser um agente da Scotland Yard, mas o revelaria quando tudo se acalmasse.

—Necessito de um pouco mais de tempo para me assegurar, —comentou olhando de soslaio à Kristel —mas não quero ser um fazendeiro.

—Nem eu! —Martin interveio. —Eu serei um homem importante. Um que as pessoas olhem com medo...

—O posto já está ocupado, pequeno —Kristel apontou sorrindo amplamente. —Deve esperar o senhor Mayer falecer para suplantá-lo.

—Kristel! —Valéria repreendeu-a divertida.

—Só queria lhe advertir que...

Nesse momento se escutaram uns golpes na porta que provocaram o emudecimento da senhorita Griffit.

—Esperamos alguém? —Valéria perguntou levantando do assento.

—Não será o senhor Mayer, não é? —Philip soltou elevando-se com rapidez. —Se for assim, eu mesmo lhe farei correr como o galgo que o senhor Hill nomeou.

—Não se movam —Kristel disse dirigindo ao moço um olhar assassino por repetir o comentário de Borshon. —Eu mesma averiguarei de quem se trata.

Enquanto caminhava para a porta notava os olhares dos três em sua nuca. Todos se faziam a mesma pergunta: quem seria? Por sorte ou por desgraça, ninguém salvo o senhorio e o senhor Mayer tocava a porta, daí que permanecessem em suspense. Devagar Kristel agarrou o trinco da porta, girou-o e a abriu tão só uns centímetros.

—Sim? —Perguntou à pessoa que lhe dava as costas.

—Senhorita Griffit? —Berwin disse voltando-se para a entrada. —Desculpe aparecer sem avisar, mas tenho que falar com a senhorita Giesler. Está com você? Permite-me entrar?

—É claro! —Kristel respondeu abrindo a porta de par em par.

—Senhor Berwin! —Valéria exclamou com surpresa ao vê-lo. —Encontra-se bem?

—Sim, muito obrigado por seu interesse, senhorita Giesler. Só vim para lhe fazer chegar uma missiva do senhor Reform —informou-lhe estendendo o envelope para ela.

—Para mim? —Perguntou assombrada e assustada.

—Sim —afirmou o secretário que continuava com a carta na mão porque a moça não se decidia a pegá-la.

—Saiamos um pouquinho... —Kristel disse aos jovens. —Virá bem um pouco de ar fresco.

—Mas... mas... —Philip tentou dizer.

—Já lhes contarei o que senhor Reform deseja —Valéria disse para acalmá-los.

E depois de ouvir como cochichavam sobre as possíveis razões pelas quais o dono do clube se dirigia pessoalmente a ela, deixaram-nos sozinhos.


XIII

 

—Senhorita Giesler...

Berwin chamou a atenção da moça ao achar-se desconcertada e paralisada durante muito tempo. Por como tinha reagido, entendeu que não esperava receber nenhuma notícia do senhor Reform. Embora esse fato não só assombrou a ela, pois ele também continuava perplexo.

Quando lhe disse que ele mesmo escreveria uma missiva às jovens, esteve a ponto de começar a rir. Ele jamais esbanjava seu prezado e escasso tempo em ações tão banais. Mas ao retornar e ver sobre a mesa a carta redigida de seu punho e letra, quase ficou a rezar ante tal milagre. Se sua anciã memória não estava danificada pelo passo dos anos, era a primeira vez que se dignava a escrever a uma pessoa, acrescentando a esse prodígio que a destinatária era uma mulher e que, supostamente, tratava-se de duas desconhecidas. Embora depois da atuação dela e da obsessão que ele mostrou por lhe fazer chegar seus desejos, intuiu que não eram tão estranhos como supunha. Mas... quando se encontraram? Seria alguma conhecida daquele passado que tanto se esforçava em esquecer?

—Você sabe o que ele deseja? —Perguntou após serenar-se e recuperar a compostura. Olhava a carta com curiosidade e medo. Urgia-lhe averiguar o que o senhor Reform desejava, mas o pavor era maior que a inquietação. Por que estava escrito seu sobrenome no anverso? O senhor Borshon lhe teria indicado que tinha certo interesse por Kristel e Reform não acreditou oportuno dirigir-se a ela por respeito à vontade de seu empregado?

—Sim, —afirmou o administrador —mas seria conveniente que você mesma o averiguasse através de suas palavras —adicionou caminhando para ela com o envelope na mão.

—Está bem! —Cedeu ante a insistência do empregado.

Esquecendo-se da educação estrita que seu pai lhe ensinou desde que era menina, Valéria se dirigiu para uma das cadeiras que rodeavam a única mesa existente na habitação, sentou-se de maneira abrupta e abriu a carta enquanto o senhor Berwin esperava de pé a que lhe convidasse a tomar assento. Mas vendo que isto não acontecia, continuou no mesmo lugar, em silêncio e sem apartar o olhar dela.

Assim que tirou a folha, o perfume que o senhor Reform utilizava entrou em seu nariz, levando-a de maneira inconsciente ao momento no qual ambos permaneceram em frente à porta. O que teria acontecido se em vez do senhor Hernández tivesse estado Valéria Giesler? Teria a beijado? Porque, tal como se aproximou, muito se temia que sim. Contemplou o senhor Berwin de soslaio, tentando averiguar em seu olhar algo que lhe explicasse por que se dignou a dirigir-se a ela, mas não encontrou nada que a inspirasse, então se centrou em observar a caligrafia deste: clara e elegante. Dois adjetivos impróprios vindo de um homem que tinha nascido no subúrbio da cidade. Deixou de estudar a grafia e de perguntar-se em que momento de sua vida tinha aprendido a ler, para centrar-se no importante... o que o senhor Reform desejava dela?


Estimada senhorita Giesler:


Fui informado por meu empregado que assistirão à festa que oferecerei amanhã à noite, acima de tudo lhes agradeço que decidam vir em um dia tão importante para meu clube, será uma honra as ter sob meu cuidado. Escrevo-lhes esta missiva para lhes indicar que não precisam procurar um meio de transporte, eu mesmo me encarregarei de lhes enviar uma de minhas carruagens. Devem entender que, depois de lhes haver dado esses magníficos vestidos, vejo-me na obrigação moral de rotege-las posto que, usando essas roupas luxuosas, qualquer criminoso poderia imaginar que são duas damas da alta sociedade e as assaltar. Estejam prontas as nove, hora em que ordenarei recolhê-las. Espero, com ânsia, descobrir a aparência das mulheres nas quais, de maneira desinteressada, investi cem libras da minha fortuna.


Trevor Reform, sempre ao seu dispor.


Teve que ler a nota três vezes para reter toda a informação que havia nas escassas linhas. Primeiro lhe agradecia por ir, depois lhe ordenava que aceitassem o meio de transporte que lhes proporcionaria e terceiro...

—Uma obrigação moral? —Trovejou zangada levantando-se da cadeira com tanta força que esta caiu ao chão.

—Como? —Perguntou o administrador, a quem lhe trocou com rapidez a cor do rosto.

—Seu benevolente senhor declarou que tem uma obrigação moral conosco! —Exclamou irada. Soltou o papel sobre a mesa, mas este não chegou a tocá-la porque Berwin caminhou rápido para a mesa e o pegou. —Como pode ser tão miserável? Como pode transformar um gesto amável em algo tão ruim?

—Acredito que o senhor Reform não achou as palavras adequadas... —o secretário comentou absorto após lê-la. —Mas seguramente não fez com má intenção, senhorita Giesler —disse-lhe para que se acalmasse. —Posso lhe assegurar que não é muito dado a referir-se aos outros e não expressou com acerto aquilo que desejava. Com certeza pretendia lhe explicar que não podia, como cavalheiro que é, deixar duas formosas mulheres desprotegidas depois do ocorrido no jardim botânico.

—Tenta desculpá-lo? De verdade quer me fazer acreditar que é uma pessoa tão obtusa que não selecionou as frases oportunas? —Valéria clamou fora de si.

Sem poder amainar a respiração entrecortada, os passos sem direção e notando uma labareda em seu estômago, esteve a ponto de abrir a porta e gritar que todos os homens deveriam morrer para que as mulheres não tivessem tantas dores de cabeça. Entretanto, não o fez porque, para sua desgraça, ela cuidava de dois desses homens que arruinariam no futuro a vida de alguma outra mulher.

—Não! —O ancião comentou desprendendo-se da carta como se queimasse. —Só procuro uma explicação lógica às suas palavras.

—Lógica? —Vociferou. —De verdade pode encontrar lógica nisso?

Ao ver como o rosto do pobre empregado começava a entristecer-se, Valéria se acalmou o suficiente para não voltar a lhe elevar a voz.

—Sinto muito, senhor Berwin, você não tem culpa —desculpou-se enquanto tentava achar um pouco de paz em sua cabeça.

—Não se preocupe, não é a primeira vez que recebo uma resposta semelhante... —esclareceu tomando, ao fim, assento.

—Como pode trabalhar para um homem tão... imoral? —Utilizou o adjetivo com ironia.

—Juro-lhe que não é um homem tão desagradável —apontou enquanto tirava do bolso de sua jaqueta um lenço com o qual limpar os óculos.

—Pois até agora não me demonstrou o contrário —declarou inconscientemente. Ao ver como o ancião a olhava com desconfiança, explicou-se: —Como pôde ler, não foi uma pessoa correta ao nos denominar obrigação moral. Isso não demonstra a pouca consideração que tem para com os outros?

—Reitero que não soube escolher as palavras adequadas, mas em sua defesa alegarei que não está acostumado a expressar aquilo que sente —expôs ao mesmo tempo em que colocava o lenço em seu lugar e se colocava de novo as lentes.

—Eu mesmo estranhei quando pegou papel e pluma para redigir a missiva, normalmente sou eu quem escreve enquanto ele me dita. É óbvio, estou acostumado a mudar aquilo que não me parece apropriado. Entretanto, como pôde apreciar, nesta ocasião fechou o envelope para que eu não lesse o que havia no interior.

—Entendo que queira justificá-lo, posto que seja o homem que lhe paga o salário, mas tem que ser consciente de que nenhuma desculpa pode suprimir a aversão que transmitiu.

—Aversão, suspeita, sátira... —Berwin enumerou. —É algo inato no senhor Reform. Corre por suas veias esse tipo de atitudes, mas lhe asseguro que não é um mau homem.

—Claro! —Valéria exclamou fazendo uns inapropriados dramalhões. —O que poderia dizer um empregado dele?

—Não é isso... —o ancião comentou colocando as mãos sobre a mesa e cruzando os dedos como se se dispusesse a rezar. —Tenha em conta que é um homem de negócios e como tal, tem que comportar-se dessa forma tão virulenta.

—Pretende que eu sinta dó dele? Por um homem que se fez poderoso através da extorsão e do jogo?

—Descreve-o como um canalha, um homem sem escrúpulos e...

—Mas sabe o que significa a palavra prejuízo? Por favor, não queira converter a água em licor. Esse... —fechou os olhos para encontrar o adjetivo idôneo. —Esse cretino não é racional. Como se atreve a nos ordenar tal loucura? Sua carruagem? Antes prefiro que me assalte esse criminoso que menciona! —Disse cética.

—Falhou ao expressar que se converteram em uma obrigação moral... —Berwin expressou sobressaltado.

Como lhe tinha ocorrido tal tolice? Como não tinha sido capaz de indicar que um cavalheiro não podia deixar desprotegidas duas formosas damas? Por que utilizou tanta mordacidade? Estaria em sua poltrona gabando-se da atitude que ela adotaria depois de ler sua missiva? Como poderia tranquilizar a moça se não era capaz de rebater suas palavras?

—Seu engano foi escrever e... pensar —Valéria resolveu voltando-se sobre si mesma, dando as costas ao pobre mensageiro que não era capaz de mudar a expressão de assombro.

—Juro-lhe que não é um mau homem. No fundo, seu coração é benévolo —assinalou com a esperança de apaziguá-la.

—Coração? Esse homem não possui coração, senhor Berwin! —Respondeu-lhe girando-se de novo. Seu rosto tinha a cor do fogo, seus olhos brilhavam pela ira e as mãos se fecharam para formar dois pequenos punhos.

—Poderia lhe contar a história de como o senhor Reform me encontrou, de como me salvou das garras de um homem autoritário e cruel, mas muito me temo que não lhe serviria de nada —expressou o ancião depois de respirar fundo.

—Que tenha tido, em um momento de sua vida, um pouco de bondade por um homem tão misericordioso como você, não tem que lhe oferecer os atributos de afável e considerado —resmungou.

—Não salvou só a mim, todos os empregados do clube tiveram uma vida muito dura antes de trabalhar para o senhor —esclareceu.

—Repito que...

—Sabe como atuou quando descobriu que minhas costas estavam marcadas pela ira do meu anterior amo? —Soltou cansado de tanta gritaria. Embora ela tivesse um pouco de razão, também devia ser informada que todos os empregados estavam felizes por trabalhar sob suas ordens e que, apesar de suas cóleras, que eram muito similares às dela, nenhum tinha pensado em abandonar seus trabalhos.

—Imagino que como qualquer homem que se aprecie —resmungou.

—Aqueles que sabiam o que eu sofria olhavam para o outro lado quando as marcas de sangue impregnavam minha camisa. Entretanto, quando o senhor Reform as observou, abandonou tudo o que estava fazendo e encarou com valentia o miserável que me açoitava cada vez que se embebedava.

—Sinto que padecesse tanto, —comentou caminhando para o ancião —e me alegro de que alguém deu um castigo a esse monstro. Mas leia essa carta e conclua com racionalidade. Chamou-nos obrigação moral —reiterou.

—Pensou alguma vez em ter a vida que desejava de menina? —Berwin soltou de repente, como se tentasse mudar de tema. —Imaginou-se alcançar com a ponta de seus dedos o sonho infantil?

—Meu sonho infantil se desvaneceu antes de sua chegada. Então, como verá, já não tenho nenhuma aspiração a que me aferrar —declarou recordando com pesar as palavras de seus irmãos.

—Não comprará aquela fazenda? —Perguntou perplexo. O ás que guardava na manga, o que fazia alusão à posse do ganho que ela obteria ao jogar no clube, desapareceu como a névoa ante a chegada do sol. Agora só ficava lhe falar de por que o senhor Reform tinha mudado sua atitude misericordiosa e, muito se temia, que não lhe ia importar absolutamente.

—Não. —Valéria negou com um leve movimento de cabeça. —Parece que meu sonho não era compartilhado.

—Mas o senhor Reform o obteve. Com muito esforço restaurou um edifício fantasma e o transformou no que agoraNo princípio —explicou levantando-se de seu assento —era um homem solidário e empático com os sócios que iam ao clube, entretanto, com o passar do tempo descobriu que não tinha tomado a atitude adequada; um homem de negócios jamais deve fazer seus os problemas dos outros porque só lhe conduzirá mais dores de cabeça. Quando observou que ia cair na ruína adotou o comportamento mais recomendável.

—Quer seguir lhe justificando? —Perguntou olhando-o com desconfiança.

—Quero que descubra a razão pela qual se transformou em um homem sem escrúpulos. Também quero que considere a oferta que lhe fez, apesar de denominá-las de forma errônea, está em posse da verdade. Se vocês caminharem para o clube com os ditos trajes, serão assaltadas por qualquer criminoso. Além disso, se tanto repudia a conduta do senhor Reform, repense sobre a que você possui. Não atua de maneira semelhante ao não pensar na senhorita Griffit? Se meus olhos não me enganaram, custa-lhe caminhar e o trajeto que realizaria a pé não seria aconselhável para ela.

—Pode pedir ao senhor Borshon que ele mesmo se ocupe de seu amparo —apontou mais zangada ainda ao escutar como o empregado a acusava de sua falta de atenção para com Kristel.

—O senhor Borshon não dispõe de carruagem e será um alívio para ele descobrir que o senhor Reform ofereceu à moça um transporte com o qual não chegará fatigada —alegou enquanto se dirigia para a porta. Não tinha muito que acrescentar à conversação, nem tampouco queria fazê-la mudar de opinião. Se ela não aceitava o oferecimento por orgulho, o único que ficava era que entendesse que não estaria sozinha nessa aventura perigosa. —Você pode fazer o que desejar, mas a carruagem aparecerá as nove para conduzir a senhorita Griffit até o clube —declarou de maneira cortante. —Boa tarde, senhorita Giesler. Foi um prazer conversar com você.

—Boa tarde, senhor Berwin, o mesmo lhe digo —manifestou agarrando entre suas mãos o tecido do vestido e segurando a vontade de gritar que aceitaria a proposição daquele petulante só para ajudar Kristel, tal como tinha feito desde que a conheceu.

Uma vez que a porta se fechou, Valéria agarrou a cadeira que ainda perdurava sobre o chão, colocou-a em seu lugar e se sentou. A carta estava sobre a mesa, justo onde o senhor Berwin a tinha deixado. Colocou os dedos sobre ela e a arrastou para lê-la de novo. Tentou lhe buscar o duplo sentido que o empregado lhe indicou, mas não o achava. Seguia vendo o reflexo de um homem pérfido, maligno e que plasmou toda a aversão que guardava em seu interior naquelas palavras. Entretanto, havia algo de certo naquelas frases; podiam ser assaltadas enquanto se dirigiam para o clube e, dado que Kristel odiava passear, era uma opção bastante considerável.

«Está bem, Reform! Aceitarei seu oferecimento, mas lhe juro pela alma dos meus pais que arrancarei esse coração que dizem que possui», declarou ao mesmo tempo em que enrugava o papel até convertê-lo em uma bola que guardou no bolso de seu vestido. Estava a ponto de levantar-se quando escutou que alguém se aproximava da entrada de seu lar. Valéria se aparou o cabelo, desenhou um de seus típicos sorrisos e olhou para a porta.

—O que o senhor Berwin desejava? —Kristel perguntou-lhe assim que abriu a porta e viu-a sozinha, sentada com tanta tranquilidade e estranhamente feliz. —O senhor Reform se zangou pela compra? Quer que lhe devolvamos tudo o que adquirimos na loja? —Continuou consultando enquanto caminhava para sua amiga.

—Só queria nos informar que teremos à nossa disposição uma carruagem para essa noite —revelou ao mesmo tempo em que se levantava do assento. —Conforme escreveu, qualquer criminoso poderia nos assaltar ao nos ver vestidas tão elegantemente.

—Oh, que considerado! —Kristel exclamou entusiasmada. Ao observar que Valéria continuava com aquele rosto impávido, assinalou sarcástica: —No fundo não parece um ogro e sim um homem bastante prestativo. Não entendo como teve essas impressões tão distorcidas dele. Faltou-te me dizer que tinha o costume de devorar seus sócios que não pagavam suas faturas.

—Sim, isso parece... embora eu esteja atenta se por acaso, ao terminar a festa, alguma de nós duas desaparecesse de maneira misteriosa... —Valéria resmungou fixando seu olhar zangado nas bolsas que ainda estavam sobre a mesa.

—O que pensa sobre o que te pedi? —Kristel perguntou um pouco mais sossegada ao averiguar o motivo pelo qual o senhor Berwin foi ao lar. —Ensinar-me-á a jogar? Se a sorte nos acompanhar, poderíamos retornar com os bolsos cheios.

—Primeiro tenho que saber onde se alojarão meus irmãos. Se nós duas formos ao clube e, dado que o senhor Mayer não aparecerá por aqui, não disponho de mais gente para pedir que cuidem deles —alegou como desculpa para não lhe responder. Não desejava que Kristel terminasse ofuscada e decepcionada consigo mesma ao não encontrar a essência do jogo. Não seria a primeira vez que emanaria por sua boca um sem-fim de queixas e lamentos. E nesta ocasião desejava que se concentrasse nessa aparição em frente ao senhor Hill, o único homem que a estimava como merecia.

—Já está solucionado. Falei com a senhora Shoper e ficará com o Martin por um módico preço.

—E Philip? —Perguntou entreabrindo os olhos. —Não pode ficar aqui sozinho.

—Suplicou-me que lhe permitamos que nos acompanhe e acredito que deveria aceitar...

—Não! —Valéria exclamou com rapidez. —Ele deve ficar aqui, junto ao Martin, para que não lhe aconteça nada de mau. Já sabe que não confio na senhora Shoper...

—Se esquecer de todas as coisas insólitas que adornam seu lar, as beberagens que vende a quem procura sarar seu corpo e as beberagens de amor e fertilidade, é uma mulher muito comum. Saiba que tem muita estima aos seus irmãos, posto que seja os únicos meninos que brincam com os seus. Além disso, não acredito que deva negar ao Philip o desejo de unir-se a nós —Kristel aconselhou. —Como bem descobriu antes da chegada do senhor Berwin, já não é mais tão criança e pode começar a decidir por ele mesmo.

—Só tem quinze anos... —sussurrou mediante um longo suspiro.

—Recorda o que fazia quando tinha sua idade? Porque eu sim.

—Cuidava deles, como o farei até que eu morra —jurou.

—E o tem feito muito bem, até o momento... —expôs aproximando-se dela. —Entretanto, deve lhe permitir decidir por ele mesmo, assim como deve confrontar as consequências dessas decisões. Não pode ir atrás deles diminuindo seus enganos porque algum dia se farão homens e quererão viver sua própria vida.

—Quando descobriu que não queriam abandonar Londres? —Soltou olhando-a com desconfiança. Por que ela não sabia nada até que Philip, em um ataque de ira, revelou-o? Era tão inacessível? O senhor Berwin teria razão ao lhe recriminar que seu comportamento se assemelhava ao do senhor Reform? Teria se imposto aos desejos de seus irmãos imaginando que ela era possuidora da verdade absoluta?

—Há pouco mais de quatro meses... —confessou-lhe. —Por isso insisti tanto em que não retornasse ao clube. Eles não querem ter a vida que você tanto deseja.

—Mas eles poderiam ter falado comigo... —disse angustiada. —Sempre os escutei. E se era uma decisão tão importante como esta, ter-lhes-ia prestado toda minha atenção.

—Imagino que tiveram medo... —comentou ao mesmo tempo em que colocava as mãos nas bolsas para tirar o resto de seus pertences.

—Medo? —Perguntou voltando-se para ela.

—Sim. Você tem um caráter áspero... —expôs enquanto tirava as meias. Brancas, tinha as comprado tão brancas como a lua. Borshon gostaria? Agradar-lhe-ia saber que suas pernas estavam cobertas de fina seda nívea? A vergonha que sentiu nesse momento se refletiu em suas bochechas. Por que seguia comportando-se como uma menina?

—E por que se envergonha por me dizer tal coisa? —Valéria perguntou acreditando que aquele rubor inesperado se devia ao descrevê-la daquela forma. —Nunca disse que era uma mulher carinhosa ou terna. Por isso me resulta cômoda nossa relação. Tudo o que eu não tenho, contribui-o você.

—Não me ruborizava por isso... —disse antes de soltar uma grande gargalhada. —Mas é certo que você possui o caráter de sua mãe. Todo mundo a temia quando a encontrava, embora os homens também voltassem seus rostos para deleitar-se com sua beleza.

—Minha mãe amava meu pai e nenhum homem era suficientemente bom, salvo ele —comentou irada.

—Vê? Já se zangou. Por isso mesmo seus irmãos temem falar contigo, em questão de segundos pode se converter em uma tirana déspota. Mas se não quer que Philip nos acompanhe e deseja que permaneça triste e desolado porque sua irmã não confia nele...

—Está bem! —Valéria sucumbiu com um resignado assentamento de cabeça. —Philip irá conosco!

—Perfeito! —Kristel exclamou dando-lhe umas leves tapinhas. —Dir-lhe-ei agora mesmo que temos que sair às compras. Esse moço deve mostrar a dignidade que já professa.

—Onde poderemos encontrar um bom alfaiate? —Valéria perguntou entreabrindo os olhos. —Por Deus! Isso mesmo! —Clamou perplexa.

—Com certeza com algumas libras a mais não será nenhum inconveniente —anunciou com um sorriso perverso.

—Não, categoricamente, não! Eu pagarei o traje do meu irmão. Não quero que volte a dirigir-se a mim com qualquer comentário ofensivo.

—Oculta-me algo que eu deva saber, Valéria Giesler? —Kristel perguntou enquanto colocava suas mãos nos quadris.

—O senhor Reform escreveu algo mais, além de que nos faria chegar uma carruagem?

—Crê que esbanjaria seu prezado tempo acrescentando alguma coisa mais? —Disse enquanto se dirigia para a porta para ir procurar Philip.

—Segundo seu critério, não, mas possivelmente...

—Não há nenhum possivelmente! Esse homem é um monstro! —Gritou antes de dar uma portada atrás de sua saída.

Kristel ficou surpresa. Não podia dar crédito à ira que aparecia em sua amiga cada vez que faziam referência ao senhor Reform. O que acontecia? Tão horrendo era? Por agora não tinha se comportado de maneira cruel e sim ao contrário, bondoso ante o pagamento de sua fatura e atencioso ao lhes facilitar um transporte. Então... por que o diabo a possuía quando falavam dele? «Seus olhos são escuros, como escura é sua alma —recordou. —Só necessita do poder de sua palavra para que todos se humilhem ante ele». Estaria certa? Valéria teria razão? Bom, se tudo saísse tal como o tinham planejado, na festa da terça-feira suas perguntas encontrariam as respostas...

 

 


Permaneceu em frente à janela de seu escritório desde que Berwin partiu. Enquanto aguardava a volta, Reform meditava sobre os milhares de comportamentos que a mulher teria adotado após ler sua missiva. Teria se dado conta desse detalhe ofensivo? Ou seria tão avara que só reparou que teriam um veículo para seu prazer? Passou-se os dedos pelo queixo firme e decidido, concretizando a resposta que procurava. Mal a conhecia, mas a experiência que tinha adquirido depois de tantos anos alternando com todo tipo de pessoas, indicava-lhe que teria se enfurecido, que teria negado seu oferecimento.

Olhou de esguelha sua garrafa de água. Desde que adotou a norma de Borshon começava a observar a vida por outra perspectiva, uma que começava a lhe danificar a mente. Enquanto percorria por suas veias o álcool mais delicioso do mundo e enchia seus pulmões daquela fumaça que absorvia dos custosos havanês, não tinha tempo de meditar sobre o que desejava fazer durante as horas do dia. Talvez porque, depois de abrir os olhos, só encontrasse ao seu lado uma mulher que o cansava de novo até que a escuridão da noite atravessasse a janela de seu quarto. Entretanto, desde que começou a vida de abstinência estava muito dinâmico, ativo e tinha a mente tão fresca que não podia deixar de pensar e pensar...

E entre essas meditações achou uma que o desconcertou tanto que sentiu a palpitação do sangue em sua garganta. O que esperava fazer no futuro? Queria converter-se no velho Hondherton? Lutaria por manter seu clube até que este se derrubasse com o passar dos anos? Seu destino estava escrito? Permaneceria sozinho? Conseguiria ter algum descendente que herdasse aquilo pelo qual tanto lutava? Encontraria a esposa idônea? As últimas perguntas lhe causaram um calafrio semelhante ao que possuiria quando a morte o visitasse para lhe dar fim. Como lhe tinha ocorrido tal estupidez? Sem lugar a dúvidas, esse estado de sanidade não lhe assentava tão bem como esperava.

Franziu o cenho sem apartar o olhar da rua, tentando fazer desaparecer as questões que lhe golpeavam a cabeça como o coice de um cavalo. É claro, o senhor Hill tinha a culpa dessa agonia interminável por lhe haver indicado que todos os homens que saudavam Valéria possuíam a mesma ideia em cada conversação: proposta de matrimônio. Por sorte para ela, era muito sensata para aceitar qualquer mentecapto que sorrisse além do permitido.

Os ciúmes, imersos ao imaginar os rostos daqueles homens cheios de luxúria quando Valéria se aproximava, fizeram-lhe perder a calma. Esteve a ponto de gritar a algum dos que trabalhavam para ele que lhe fizesse chegar uma garrafa de rum quando os cascos dos corcéis que puxavam sua carruagem chegaram aos seus ouvidos. Com rapidez sentou-se na poltrona adotando a postura de um homem entregue aos seus negócios e que não perturbaria aquele labor esperando a resposta de uma mulher pela qual corria em suas veias sangue espanhol, ou cigano como denominavam também.

—Sim, o senhor Reform se acha em seu escritório —informaram ao Berwin depois de perguntar, com desespero, onde se encontrava.

Trevor olhou para a entrada e tentou apaziguar seus batimentos cardíacos para escutar, com exatidão, como seu fiel empregado subia as escadas. Depois de contar como subia os vinte degraus e caminhava pelo corredor, abaixou a cabeça e fixou seus olhos nos papéis antes que Berwin se apresentasse na entrada.

—Senhor Reform... —disse como saudação.

—Sim? —Perguntou elevando a vista e lhe fazendo gestos para que entrasse.

—Já retornei —comentou dando vários passos.

—Já vejo... —Trevor resmungou.

—Peço-lhe, por favor, que se você me tiver um mínimo afeto, não volte a me enviar ao lar da senhorita Giesler —declarou com mais raiva que medo. Era a primeira vez que exigia algo ao seu senhor. Mas por seu bem, pela saúde daquele coração velho que pulsava sob o peito, não devia submeter-se a outra situação igual.

—A que vem esse comentário? —Trevor perguntou com espera.

—Denominou-as obrigação moral —disse apertando a mandíbula. —Você sabe como ela se sentiu ofendida ao ler sua carta? Como pôde descrever a ela dessa forma tão cruel?

—São uma obrigação moral —Reform reiterou encolhendo os ombros. —E não entendo o motivo pelo qual se zangou, só fui sincero com ela —adicionou com seriedade.

—Pois se for tão amável, na próxima vez que desejar ser sincero com ela, prefiro que me ordene ir ao dentista para que me arranquem um molar. Seguramente a dor será menos daninha que o padecido desta tarde —assinalou tão incrédulo que teve que respirar várias vezes para achar um pouco de calma.

—Aceitou meu oferecimento? —Procurou saber enquanto cruzava suas mãos sobre a mesa e olhava com intensidade ao seu empregado. Dentista? Ele odiava o dentista! Valéria se comportou tão mal com Berwin?

—Precisei procurar algo que pudesse lhe causar tanta dor que lhe resultasse impossível negar-se —explicou.

—O que lhe fez? —Trevor gritou levantando-se veloz ao mesmo tempo em que emitia uns ruídos ensurdecedores ao bater sobre a mesa. —Como se atreveu...?

—Desculpe, foi o senhor quem lhe provocou um aborrecimento tão descomunal que ela se negava inclusive a vir. Eu só busquei piedade, se é que a tem. Porque lhe juro que não entendo como pode haver no mundo duas pessoas tão afins... —assinalou baixando o tom de sua voz na última frase.

—O que lhe fez? —Grunhiu apertando tanto os dentes que marcou a mandíbula.

—Mencionei-a que deveria ser benevolente com a senhorita Griffit e esquecer seu egoísmo —Berwin manifestou ainda doído pelo comentário tão daninho à Valéria.

Se não a tivesse visto chorando no jardim botânico pelo trato daquele infame para com sua amiga, ou essa forma de abraçá-la, consolá-la e animá-la a procurar um vestido que lhe desse a imagem que merecia, o fato de acusá-la de ser uma pessoa soberba não lhe teria causado tanta tristeza.

—O que acontece à senhorita Griffit? Está doente? Necessita de um médico? Por isso o senhor Hill se preocupa com a mulher? —Perguntou sem mal respirar.

—Não, conforme me explicou, sua claudicação se produziu ao nascer. Uma má parteira lhe fez mal aos quadris.

—Isso não é preocupante... nem tampouco algo pelo qual se possa sentir menosprezada —murmurou sentando-se de novo. —Acaso há alguém perfeito nesta cidade?

—Em efeito, não o há nem ela deve sentir-se inferior a ninguém. Entretanto, a jovem ficaria exausta ao caminhar de Brick Lane até aqui. Por esse motivo aleguei a amizade de ambas e o carinho que se professam para que esquecesse aquela missiva e aceitasse o veículo que lhes oferece.

—Em resumo... virão? Aceitaram minha petição? —Perguntou esboçando um grande sorriso.

—Sim, aceitou-a, mas se estivesse em seu lugar evitaria falar com ela. Muito me temo que esse médico ao qual fizesse referência terá que aparecer no clube quando ela partir.

—Não me fará mal... as mulheres... —começou a dizer.

—Essa mulher não é como a senhorita Barnes, senhor Reform. Não deseja nada do que você tem e jamais se rebaixará para alcançá-lo. Não lhe importa sua fortuna, seu poder ou o prazer que oferece em seu leito. Quando escutar por sua boca os pasmosos adjetivos com os quais lhe descreve, seu coração deixará de pulsar.

—Bobagens! Esquece-se que faz referência a uma mulher! —Exclamou incrédulo.

—Sim, de uma mulher com sangue espanhol... não esqueça esse pequeno matiz, senhor Reform.

—Não esquecerei, Berwin. E agora, pode descansar. Acredito que seu ancião cérebro começa a delirar devido ao cansaço.

—Não o nego. Boa tarde, senhor —Berwin disse antes de girar-se sobre si mesmo.

—Boa tarde —respondeu.

Trevor esperou que seu empregado fechasse a porta para levantar do assento e caminhar de novo para a enorme cristaleira. Era o lugar mais adequado para pensar.

«Sangue espanhol...» esse seria o segredo de Valéria para jogar de maneira excelente? A mãe lhe teria mostrado o poder do jogo, a calcular sem engano as cartas que teria seu competidor? Se não tinha escutado mal, os melhores jogadores eram aqueles que procediam da Espanha, embora também fossem bons estelionatários... mas ela não era uma vigarista, era uma trapaceira. A mulher mais trapaceira que havia em Londres e, para seu prazer, na noite da terça-feira estaria sob sua sombra. Porque, por mais que Berwin lhe advertisse que não devia aproximar-se dela, nada nem ninguém o deteria: assim que Valéria colocasse um pé no clube, ele respiraria atrás de seu pescoço.


XIV

 

Desde que aceitou o oferecimento do senhor Reform e a partir do momento no qual retornou ao seu lar depois de visitar o alfaiate que confeccionaria um traje para seu irmão, o aprazível lar se converteu em uma colmeia de abelhas desesperadas por fabricar mel. Nunca viu Kristel tão nervosa nem Philip tão entusiasmado. Ambos rondavam de um lado para outro comentando a felicidade que sentiam, quão agradecidos estavam por viver semelhante acontecimento e não cessavam de falar sobre o que fariam durante a festa. Até terminou, sob pressão, por lhes ensinar a jogar cartas.

O que imaginou que seria um tremendo calvário se transformou em uns episódios tão prazerosos que não os esqueceria jamais. As risadas de Kristel cada vez que ganhava, os aborrecimentos de Philip ao perder e a paixão que ambos adotaram para instruir-se na habilidade do jogo fizeram-lhe repensar sobre tudo o que tinha meditado até o momento. Quando se esqueceu de observar as pessoas que viviam em seu lar? Por que não foi capaz de lhes perguntar o que desejavam? Tão egoísta tinha sido? Sua atitude, como fez referência o senhor Berwin, era semelhante a um tirano? Talvez seu grande engano fosse superproteger as pessoas que amava. Em ocasiões as definiu como débeis e em outras não quis entender que o tempo também transcorria para elas. Entretanto, uma vez que foi consciente desses fatos, tudo ao seu redor se modificou, proporcionando-lhe um estado de bem-estar que não tinham tido em anos. Até permitiu que Philip caminhasse sozinho pela rua para adquirir o Times, no qual se fazia uma menção, na segunda página do periódico, àquela esplêndida noite no clube Reform.

Como era de esperar resultou todo um acontecimento social. Pela primeira vez as damas podiam ir ao lugar onde seus maridos passavam a grande parte do dia. Esse convite as revolucionou tanto que as ruas da cidade se encheram de criadas, senhoras e damas procurando a melhor roupa para usar; umas para elas mesmas e outras para quem as serviam. Por sorte, Valéria e Kristel tinham adquirido seus vestidos antes que toda Londres se inteirasse posto que, se não fosse assim, nenhuma costureira as teria atendido.

Outra das façanhas que realizou nessa nova etapa foi aceitar que a senhora Shoper visitasse seu lar. Kristel terminou por convencê-la acrescentando ao estudado discurso que, se tanto lhe interessava o bem-estar de Martin, o melhor era que a conhecesse a fundo. Embora já a conhecesse dado que tinha tratado amigavelmente a sua mãe. Entretanto, a rejeição que sentia por ela, criada ao culpá-la pela morte inesperada desta, foi desaparecendo lentamente. Resultou ser uma mulher encantadora, jovial e muito divertida que sobrevivia com as beberagens que fabricava com as plantas que encontrava na cidade ou adquiria no mercado. Contou-lhes que, algum dia, o mundo descobriria as propriedades mágicas destas e diminuiriam suas enfermidades tomando infusões. Só houve um momento embaraçoso nessa visita, quando Doina, que assim se chamava a senhora Shoper, falou que o futuro estava escrito nas palmas esquerdas de todas as pessoas, mas que eram tão teimosas que não podiam decifrar o que lhes aconteceria com o passar do tempo.

—Como aprendeu esse milagre? —Kristel interessou-se.

—Leu em algum livro?

—Não, senhorita Griffit. Jamais li um livro, porque não sei ler —explicou dando um pequeno sorvo à sua xícara de chá. —Mas há coisas que não se aprendem dessa maneira. Minha mãe, a qual à sua vez foi ensinada por minha avó, foi minha instrutora —acrescentou colocando a xícara sobre o pires.

—Incrível! —Kristel exclamou entusiasmada. —E há predito o futuro a muitas pessoas?

—A muitas... —Doina comentou mediante um suspiro. —E sou agradecida por isso —esclareceu satisfeita.

Valéria a observou em silêncio e de maneira esquiva. Sua parte alemã, aquela que analisava tudo, gritava-lhe que cada um devia sobreviver com o que possuía; assim como ela estudava cada expressão do rosto de sua convidada, esta fazia o mesmo. No momento em que descobriu que a senhora Shoper arqueava sua sobrancelha dourada em sinal de pergunta, apartou seu olhar para fixá-la em Kristel.

—Sinto muito, mas não acredito nessas coisas —opinou.

—O futuro é difícil de predizer. Basta tomar uma eleição inadequada para mudar o rumo de nossas vidas.

—Suponho que você é das mulheres que veem o mundo de cor branca ou negra, equivoco-me?

—Não sei se há cores predeterminadas, mas dado que não me parece racional a forma em que você o explica, sim, em efeito. Sou das pessoas que deduzem que existe um sim ou um não, um acima ou um abaixo, um agora ou um nunca... —enumerou altiva.

—Isso se deve ao seu sangue alemão... —Doina apontou divertida. —Embora me custe acreditar que a essência de sua mãe não aflore em você. Posso lhe assegurar que é a viva imagem dela.

—Conheceu a mãe da Valéria? —Kristel soltou ainda mais surpreendida do que antes. —Por que não me comentou isso? Sempre acreditei que não se conheceram.

Valéria não respondeu, só encolheu os ombros, como se não valesse a pena mencionar que a primeira mulher que sua mãe conheceu foi a sua convidada.

—A família Giesler se acomodou neste lar meses depois que meu querido marido alugasse o nosso —explicou. —Chamou-nos a atenção que proviessem da Alemanha e que ambos falassem inglês com tanta fluidez. Com o tempo, criou-se um vínculo entre nós e finalizou com a morte dela. —Esclareceu. —Mas possivelmente você não me recorde porque passava a maior parte de sua infância grudada ao seu pai, conversando sobre seu idioma natal, como se não quisesse perder uma parte de si e recusando qualquer contato salvo o de sua família.

—Por sorte para mim, não perdi minha origem e tenho a esperança de partir desta cidade. À referência que faz sobre minha mãe, é verdade que procedia da Espanha, mas se criou com meus avós na Alemanha, país onde aprendeu o ofício da confecção. Por esse motivo ela bordava para a família Davis... —Valéria apontou com rapidez.

Embora toda sua vida não tivesse sido costureira. Antes de conhecer seu marido, a mãe dela a obrigava a compilar flores dos jardins e as vender a quão apaixonados passavam ao seu lado. Foi assim como conheceu seu querido pai. «E ali estava de novo, como cada manhã desde que o vi pela primeira vez, sentado em um banco do parque lendo um desses noticiários. Não era capaz de levantar seus olhos desse desventurado papel. Assim não duvidei, coloquei-me em frente àquele homem tão bonito e perguntei se lhe interessava comprar uma rosa para a esposa que lhe esperaria em seu lar —recordou o início da história de seus pais. —Quando seus grandes olhos azuis me olharam senti um calafrio percorrendo meu corpo. Fui incapaz de lhe dar a rosa que pagou quando me disse: não tenho esposa a que dar de presente essa formosa flor, mas ficarei encantado de oferecê-la a você se me obsequiar com seu nome».

—Sei... —Diona respondeu olhando de novo a outra moça. —Quer que lhe leia o futuro? Eu gostaria de saber o que lhe acontecerá.

—A mim? —Kristel perguntou perplexa. —É claro! O que devo fazer?

—Estenda sua mão esquerda sobre a mesa com a palma para cima —indicou-lhe. —O resto eu faço.

Tal como lhe disse, colocou a mão sobre a mesa e permaneceu tão quieta que parecia não respirar. Doina passou as gemas de seus dedos pelas linhas desenhadas na palma, fechou os olhos, disse algo em romeno e, ao abri-los, sorriu.

—Será a esposa de um guerreiro. Um homem que lutará durante toda sua vida para te cuidar... —começou a dizer.

—Disse-lhe que o senhor Hill é agente? —Valéria interrompeu-a zombando.

—Não... —Kristel respondeu abrindo os olhos como pratos enquanto negava com a cabeça.

—Também vejo três bebês. Dois nascidos de um parto e o terceiro...

—E o terceiro? —Insistiu a aludida.

—Será uma menina —respondeu. —Também vejo o amparo de uma mulher. Não é sua parenta, mas sim dele. Tem o mesmo sangue guerreiro, embora não entendo a razão pela qual mantém uma luta diferente...

—Diferente? —Persistiu emocionada.

—Sim, é como se não pudesse mover-se... como se todo seu reino estivesse ao alcance de sua mão... —explicou duvidosa.

—Tudo isso vê através de umas linhas? —Valéria soltou mordaz. —Impressionante! —Acrescentou divertida. —E se tivermos a desdita de estragar essas apreciadas marcas lavando, tecendo e...

—Segue sem me acreditar, não é? —Assinalou mal-humorada.

—Não.

—Então... por que não me deixa ver a sua? Se considerar que minhas palavras enganam, não tem por que ter medo —desafiou-a. —Só nos divertiremos e se converterá em uma anedota que contará aos seus netos.

—Não desejo respirar o entusiasmo da minha amiga lhe mostrando certa consideração —esclareceu observando com os olhos entreabertos.

—Por favor... —Kristel rogou. —Quero saber o que será de você.

—De mim? Se por acaso não suspeita, me converterei em uma solteirona resmungona, verei como são felizes e morrerei em paz em minha amada Alemanha —declarou de maneira cortante.

—Pelo amor de Deus! —Doina exclamou agarrando a mão de Valéria. —Como pode ser tão orgulhosa?

—Solte-me! —Ela gritou agitando o braço para liberar-se. Apesar dos tremores violentos, a senhora Shoper conseguiu captar as linhas marcadas.

—Duas mortes. Duas luzes que brilham ao seu redor. Um homem que sabe seu segredo, que não tem dúvidas de quem é na realidade. Também vejo amor, não só da parte dele, mas também da sua, mas o afastará, porque tudo aquilo que possa debilitar seu caráter azedo você aparta-o com rapidez —comentou.

—As mortes são dos meus pais —Valéria alegou após liberar-se do agarre. Reclinou-se no respaldo da cadeira, cruzou os braços e manteve uma atitude esquiva. —E não há homens que me interessem.

—Bom, homens houve muitos —Kristel comentou. Logo olhou à Doina e continuou: —mas a verdade que espantou todos.

—Na vida, senhorita Giesler, —disse levantando-se da cadeira —terminamos por encontrar a pessoa que faz despertar nosso coração adormecido. Talvez deva permitir um momento de reflexão e achar a resposta que tanto busca.

—Só quero que os meus irmãos sejam felizes. E essa resposta a obterei com o passar do tempo —falou em tom defensivo.

—Pois não precisa preocupar-se com eles —expôs colocando a cadeira em seu lugar. —Seu querido irmão Philip se converterá em outro guerreiro e, por sorte para ele, achará a mulher que tanto espera. Embora ela terá que levantar os olhos dos livros que a separam do mundo que a rodeia.

—Jamais! —Exclamou irada. —Philip não se converterá em um agente. Antes o mando de volta à Alemanha!

—Possivelmente seja a melhor opção, porque havia viagens em suas linhas... —acrescentou divertida.

—E Martin? —Kristel interveio emocionada. —O que acontecerá a ele? Será outro guerreiro?

—O pequeno Martin utilizará mais sua mente que a força. Será um homem muito importante e o respeitarão. Entretanto, não conseguirá a felicidade que tanto deseja até que descubra o seu verdadeiro amor. Uma jovem que o espera atrás de uma janela. E agora, se me dispensarem, tenho que retornar ao meu lar. Muitíssimo obrigada pelo convite e espero que desfrutem nessa festa. Por certo, —comentou antes de fechar a porta —o primeiro beijo não se esquece... —e desapareceu deixando na habitação as duas mulheres em silêncio.

Salvo por esse contratempo, Valéria resumia a visita como agradável e admitiu que Martin estivesse bem cuidado com a mulher enquanto não lhe estendesse a mão de novo. Por outro lado, ela e Kristel passaram a noite da segunda-feira e a manhã da terça-feira preparando-se para a festa enquanto uma apoiava a premonição da senhora Shoper e a outra negava qualquer conjectura futurista, embora graças a isso, o tempo passou muito depressa...

—Duas mãos mais! —Philip pediu-lhe justo quando os três já estavam preparados para receber o cocheiro do senhor Reform.

—Não há tempo, deve estar a ponto de aparecer —Valéria comentou arrumando o vestido. Não sentia a roupa. As luvas que embainhavam suas mãos não lhe permitiam captar a suavidade do tecido tão delicado.

—Deveria controlar esse persistente desejo —Kristel lhe repreendeu. —Como descobriu durante estes dias, pode ganhar, mas também perder.

—Quantas vezes perdi? —Perguntou-lhe dirigindo-se a ela.

—O suficiente para diminuir a fortuna que obteve —recordou-lhe. —Se estivesse em seu lugar não subiria as apostas.

—Não vou fazê-lo... —Philip murmurou entendendo a repreensão. Era certo. Entusiasmou-se tanto ao ganhar que na última partida da segunda-feira apostou tudo o que possuía e perdeu.

—Isso espero —Kristel acrescentou enquanto apoiava sua mão sobre o ombro do moço para ajustar o sapato esquerdo.

—Estão lhe machucando? —Valéria perguntou sem apartar os olhos dela. —Se quiser te empresto os meus.

—Não me machucam, mas me encontro aborrecida com eles. Tanto tempo utilizando esse calçado remendado que me debilitou o pé —disse sorridente. —Mas tenho que me acostumar —adicionou batendo o pé no chão. —Hoje seremos umas damas e meu querido Philip, um formoso cavalheiro, não posso estragar uma situação assim porque uns simples sapatos me incomodem.

Valéria ficou olhando-a com tranquilidade, observando cada movimento que expressava seu rosto. Estava feliz como nunca tinha mostrado durante os anos que viviam juntas. Perguntou-se se a razão dessa mudança se devia ao traje que usava ou ao encontro que teria com o senhor Hill. Desde que o homem apareceu em sua vida ela não deixava de sentir-se afortunada, até abandonou aqueles comentários depreciativos para com sua pessoa. Por mais inverossímil que resultasse, cada vez que caminhava, cada vez que se balançava, ela se ruborizava. Tão atraída se sentia por ele? De verdade o amor podia surgir em qualquer momento? Então rememorou a história de seus pais. De como um aspirante a nobre alemão delegou seu cargo a um parente longínquo para fugir com a mulher que amava: uma simples vendedora de rosas... mas o amor era mútuo. Por mais forte que parecesse, quando seu marido faleceu, começou a debilitar-se tanto que alcançou seu desejo dois meses depois. «Sinto uma grande dor em meu peito por lhes abandonar, mas estou feliz por voltar a ele. Prometo-lhes que lhes cuidaremos e que sempre estaremos aos seus lados. Só devem olhar ao céu e achar as duas estrelas que mais brilhem. Seremos seu querido pai e eu», declarou na tarde anterior à sua morte, enquanto sustentava em seus braços um bebê de quatro meses e o mais velho dos meninos chorava desconsolado apesar do abraço da irmã.

—Por que chora? —Philip perguntou-lhe ao ver como Valéria enxugava suas lágrimas.

—Estava pensando em nossos pais, em como se sentiriam orgulhosos se estivessem aqui para vê-lo —disse com um sussurro. —Parece-se tanto com ele... tem seus olhos, seu cabelo e inclusive seu porte.

—E se não me falha a memória, você é igual à mamãe —o jovem acrescentou tão emocionado quanto Valéria. Por mais triste que lhe parecesse, algumas vezes nem se lembrava dela. Só quando se esforçava por não a fazer desaparecer reencontrava-se com aqueles olhos verdes e escutava ao longe o timbre de sua voz.

—Herdou a beleza de sua mãe e o caráter alemão de seu pai —Kristel apontou para eliminar um momento tão emotivo. Se continuassem falando sobre seus pais, ambos receberiam o cocheiro em muitas lágrimas e pareceriam que se dispunham a presenciar um enterro em vez de ir a um espetacular acontecimento. Ou possivelmente o fez porque ela não entendia como podiam seguir amando uns pais que os abandonaram à sua sorte. —Lembrem-se do plano —insistiu.

—Tem razão! —Philip exclamou esticando a jaqueta enrugada após o efusivo abraço. —Não podemos nos esquecer do nosso objetivo.

—Que é...? —Valéria perguntou arqueando as sobrancelhas escuras e desenhando um enorme sorriso.

—Jogar, ganhar e desfrutar —sentenciou o jovem. Depois de Valéria assentir ficou parada junto à Kristel no

meio da habitação esperando que o moço caminhasse diante delas como se se tratasse de uma pequena comitiva. Philip, galante, abriu-lhes a porta e as escoltou para o veículo que o senhor Reform lhes ofereceu.

—Boa noite, senhoras, cavalheiro... —o cocheiro lhes saudou depois de baixar as escadas. —Se fizerem a gentileza—adicionou estendendo a mão para lhes facilitar a ascensão. Em primeiro lugar, subiu Valéria, quem se girou com rapidez para ajudar Kristel, mas o estado de euforia em que a moça estava tinha lhe proporcionado as asas de um anjo, porque se introduziu no interior do veículo com mais soltura que ela. Quando Philip entrou o cocheiro lhes fez uma leve genuflexão, fechou a porta, dirigiu-se para o assento, tocou aos cavalos e empreenderam o trajeto.

—Respirem fundo... se se encontrarem em algum apuro só devem tomar ar lentamente —Valéria lhes aconselhou.

 

 

Permaneceu na entrada, parado e sem chamar. Interessava-lhe observar a postura rígida e a aparência dúbia que Reform mostrava quando pensava que se encontrava sozinho. Ali, em frente à janela, mantinha-se de pé, vestindo seu traje novo. Escuro, como lhe era habitual. Embora houvesse um detalhe que lhe surpreendeu: tinha posta a jaqueta. Era a primeira vez que permanecia no interior de seu escritório trajado de maneira correta. Cada vez que tinha subido para falar com ele encontrara-o em mangas de camisa, mas supôs que essa mudança se devia à importância da noite, daí que não apartasse o olhar da rua. Não lhe cabia a menor dúvida de que estaria calculando o número aproximado de clientes que possuiria o clube uma vez que abrisse as portas.

Borshon caminhou sigiloso para ele, como se fosse assustá-lo.

—Mandei-lhes a carruagem faz pouco mais de vinte minutos —Trevor disse sem olhá-lo.

—Acreditei que não tinha notado minha presença —alegou zombeteiramente.

—Embora não possuo olhos na nuca, percebo com rapidez quando há alguém perto. Denomina-se instinto de sobrevivência e o desenvolvi enquanto vivi em Whitechapel —comentou de maneira arrogante. —O senhor Berwin lhe fez chegar minha petição? —Perguntou sem olhá-lo.

—Sim, e tal como me solicitou, averiguei o lar do bondoso senhor Mayer. Não obstante, aconselho-o a não se aproximar desse homem.

—Requer-me isso como agente ou como o senhor Hill? Conforme tenho entendido, deu-lhe uma boa surra por desprezar e agredir a senhorita Griffit —acrescentou voltando-se para ele.

Suas mãos continuavam entrelaçadas nas costas, prosseguia adotando a atitude rígida. O corte de sua barba e o olhar aumentava sua dureza, mas o que deixou a Borshon intranquilo foi o sorriso maligno que exibiam seus lábios.

—Ambos —respondeu grosseiramente enquanto tomava assento sem o devido convite.

—Você lhe deu seu castigo, agora me toca lhe consagrar o meu —expôs apertando a mandíbula. —Tenho que lhe deixar claro que há mulheres que quando dizem não, é não.

—A senhorita Giesler teve grande parte de culpa —Borshon assinalou cruzando os braços. —Estimulou, com seu comportamento, a ilusão desse desventurado professor.

—Está insinuando que ela obteve o que merecia? —Perguntou transformando o branco de seus globos oculares em vermelho fogo.

—O que você pensaria se cada dia, durante quase um ano, vela pela educação dos meninos de uma mulher que, além de lhe pagar uma tarifa ridícula, trata-o com respeito e ternura? —Insistiu-lhe.

—Que tem educação? —Soltou arqueando as sobrancelhas. —Que é uma pessoa afável?

—Se você o diz... —murmurou.

—Digo-o e afirmo. Berwin me informou sobre ela e, embora pareça irreal, embaixo dessa aparência terna, coexiste uma mulher temperamental que luta com unhas e dentes por aqueles a quem ama. Por que supõe então que aceitou meu oferecimento?

—Porque o senhor Berwin a atacou onde mais lhe doía —declarou.

É claro, o ancião ajudante desabafou com prazer quando o encontrou. Estava tão alterado pelo vivido na casa da senhorita Giesler que lhe confessou todo o acontecido. Por esse motivo, e graças ao infeliz, descobriu que Kristel vivia com ela, que não possuía outro lar ao qual ir.

—Sim, também me falou do defeito da mulher em quem possui certo interesse —disse suavizando o tom de sua voz. Separou a cadeira da mesa e tomou assento. —Embora tenha que lhe confessar que não me agrada defini-lo com esse termo.

—A mim tampouco —Borshon resmungou.

—Ela é coxa, nós muito grandes, outros não escutam, outros não veem... —enumerou.

—Outras pessoas são arrogantes, intrometidas...

—Se se refere ao comportamento da senhorita Giesler, advirto-lhe que muitas vezes tomamos decisões errôneas porque imaginamos que é a única forma de proteger os que apreciamos.

—Está desculpando-a? —Borshon perguntou arqueando a sobrancelha esquerda.

—Não, só estou oferecendo uma explicação lógica —asseverou.

—Conformo-me com essa explicação... depois de não ter ficado furioso após pagar a fatura —indicou divertido. —Só lhe esclareço que eu lhes indiquei que comprassem um par de vestidos, não sou o responsável por acrescentarem uma grande quantidade de complementos.

—Foi decisão da Valéria. Sua querida senhorita Griffit recusou em todo momento acrescentar algo que você não ordenou, mas ela a encorajou. Conforme parece, quando escutou quem pagaria a conta, começou a pedir à lojista tudo àquilo que desejava muito sem regular os gastos —disse com uma mescla de aborrecimento e diversão.

—Pois deveria cuidar da sua fortuna, senhor Reform. Se pretende cortejá-la, muito me temo que investirá mais do que...

—Cortejá-la? Como lhe ocorre tal insensatez? Meu propósito é desmascará-la! Acaso acredita que tenho outro interesse? Essa mulher pôs em perigo meu respeitado clube! —Clamou. —Você sabe o que narrariam os periódicos se descobrissem que ela esteve aqui vestindo aquele horrível traje masculino? —Soltou sem sequer tomar ar.

—Mas imaginei que... —tentou explicar-se.

—Não imagine nada! —Vociferou fora de si.

—Senhores, se me desculparem... —interrompeu-os Berwin que, ao escutar o grito de seu senhor, duvidou durante uns segundos se deveria aparecer ou terminaria como sempre, com alguma repreensão que não lhe pertencia.

—Sim? —Trevor perguntou ansioso ao intuir o que lhes iria comunicar.

Tinha chegado o momento. Valéria estava perto. Por fim poderia contemplar a mulher e aproximar-se para deleitar-se com sua verdadeira aparência. Por fim admiraria a figura que escondia sob o miserável traje do senhor Hernández e, enfim, descobriria se aquela vontade de beijá-la que teve, apesar de assemelhar-se a um homem, continuaria ou desapareceria ao vê-la. Porque, roçar com sua boca os lábios dela, não era um cortejo, não é?

—A carruagem chegou. As senhoritas estão descendo do veículo e....

Antes de terminar a frase, os homens se levantaram de seus assentos e saíram disparados da habitação deixando o pobre senhor Berwin tão assustado, que saltou para trás para que não o atropelassem. Pareciam dois enormes meninos correndo para alguém que lhes oferecia caramelos grátis. Como esqueciam com tanta rapidez o respeito para com os mais velhos? Não eram conscientes de que se o tocassem romperiam todos os ossos que tinha sob sua pele? Não, claro que não. Aqueles homens estavam tão encantados com duas mulheres que acabavam de aparecer que não eram capazes de utilizar a parte do cérebro destinado ao raciocínio.

—Por certo, esclareço-lhes que vêm acompanhadas do irmão mais velho —concluiu sem que nenhum dos dois o escutasse. Berwin encolheu os ombros, aproximou-se da mesa do senhor Reform, abriu a gaveta onde guardava um excelente uísque e, embora o dono do clube tivesse trocado sua bebida por água fresca, ele se serviu uma taça e a bebeu de um gole.

—Saúde! —Exclamou após estalar a língua e levantar o cristal vazio para o teto.

Assim que saiu do escritório dirigiu o olhar para a entrada. Duas mulheres e um moço eram recebidos pelo porteiro. Depois das oportunas saudações, as duas entraram apoiando-se nos braços do jovem.

—Quem é? —Reform perguntou assinalando com um leve movimento de cabeça o moço loiro que entrava com elas.

—Philip Giesler, um dos irmãos dela —respondeu sem poder apartar seus olhos de Kristel.

Estava linda com aquele vestido rosa. Dava-lhe um aspecto angélico que poucas mulheres poderiam adquirir. Borshon sorriu agradado ao ver que ela o procurava entre os convidados. «Olhe para cima e me encontrará...», pensou como se estivesse brincando de esconde-esconde.

—Que idade tem? Não é muito jovem para aparecer em um lugar como este? —Continuou perguntado.

—Uns quinze e sim, é bastante jovem. Mas imagino que terá pedido para acompanhá-las. Se não recordar mal, a essa idade eu também pensava que era suficientemente adulto para visitar certos lugares...

Azul. O vestido que Valéria tinha elegido era azul. Assombrado e satisfeito, observou como ocultava suas pequenas mãos em umas luvas e, ao andar, deixava entrever a ponta dos novos sapatos. Berwin havia lhe dito que também tinham adquirido meias? Nesse momento, enquanto observava sem pestanejar o decote do vestido e como as pontas dos cachos roçavam o nascimento de seu busto, não era capaz de concretizar nada. Só queria descer e poder apresentar-se formalmente ante ela. Mas tinha estado planejando durante os dias atrás o que devia fazer, como comportar-se e inclusive calculou o tempo que demoraria em aparecer. Entretanto, tinha desperdiçado as horas que empregou em dito propósito, porque o único que desejava era descer as escadas de dois em dois degraus, apartá-la de seu irmão e levá-la a uma das salas, que manteria fechada durante a festa para beijá-la tantas vezes quanto quisesse.

—São tão... diferentes —Reform comentou fazendo referência aos irmãos. —Embora Berwin já me advertisse que a similitude entre os dois meninos contrastava com ela.

—Se não fui informado erroneamente, a senhorita Giesler tem o aspecto de sua falecida mãe e os irmãos herdaram o do pai. Por certo... —disse mudando a tonalidade de sua voz a uma mais áspera —auguro que teremos sérios problemas... —Borshon assinalou apartando as grandes mãos do corrimão como se fossem ferros incandescentes.

—Por que diz isso? Seu instinto policial o alerta de que haverá disputas? Não terá uma boa acolhida a aparição das mulheres? —Exigiu saber apartando o olhar dela para fixá-lo no agente, quem endurecia a mandíbula e entreabria seus olhos como se quisesse atravessar com eles quem permanecesse em sua frente.

—Note você mesmo, senhor Reform —disse assinalando com o dedo de sua mão direita. —Ainda não ultrapassaram o hall e já começam a revoar uma dúzia de homens. Deixou bem claro que suas putas não trabalhariam esta noite? —Grunhiu.

—É óbvio, ordenei que informasse todos os sócios inscritos de que não gozariam da presença das meretrizes durante esta noite —asseverou com firmeza.

—Pois acredito que muitos de seus bons clientes não tiveram a decência de abrir o envelope. E caso se aproximem dela mais que o devido ou lhe falem com vulgaridade, juro-lhe por minha vida que ficará sem sócios para a próxima festa —declarou antes de dirigir-se com passo firme para a escada e proteger a única mulher que lhe interessava: Kristel.


XV

 

Não podia deixá-lo sozinho. Tal como soprou quando passou por seu lado, o senhor Hill não ia demorar em oferecer um espetáculo desagradável aos convidados e não podia consenti-lo. Depois de ajustar a jaqueta e de certificar-se que os botões estavam fechados corretamente, seguiu-o.

Enquanto descia procurou Valéria com o olhar. Por sorte, os três tinham cruzado o saguão e se encontravam em frente ao empregado que servia as taças de boas-vindas. Tentou manter a calma para frear qualquer impulso inapropriado ao confirmar que, em efeito, vários cavalheiros as olhavam com grande entusiasmo. Acima de tudo, e embora sentisse o impulso de correr atrás do agente lhe pedindo que colocasse seus grandes punhos nos bolsos da calça porque ele mesmo golpearia os atrevidos, precisava comportar-se como se esperava do anfitrião de um acontecimento inigualável: frio, calculista, distante e áspero. Não eram esses alguns dos adjetivos com os quais lhe descreviam? Pois faria honra a estas descrições...

Quando pôs o pé direito no último degrau respirou com alívio. Borshon estava a ponto de apresentar-se ante elas e afastar aqueles abutres com esperança de lançar-se sobre a isca. Indubitavelmente, tinha sido uma eleição acertada permitir que o senhor Hill fosse ao clube para vigiá-las. Graças a ele poderia concentrar-se em resolver as demandas que surgiriam ao longo da festa e não teria a mente ocupada imaginando quantos cavalheiros teria que separar de Valéria. Sorriu agradado, satisfeito. Talvez a sorte não o tivesse abandonado, possivelmente havia esperança para prosseguir com seu plano e, se nada, nem ninguém o interrompesse, manter-se-ia distante dela, observando-a, admirando cada gesto que realizasse e escutando a voz que enfim não mascararia sob uma falsa rudeza.

Com passo decidido e ocultando-se entre as colunas do primeiro andar, avançou para o salão do refeitório. Em primeiro lugar deveria falar com seu cozinheiro sobre a previsão dos comensais e resolver a irritação que segurava desde que lhe informou que trabalharia o dobro do habitual. E depois, rondaria pelas salas como se fosse um fantasma.

—Boa noite, senhoritas. Se me permitirem a ousadia, tenho que lhes dizer que estão esplêndidas —Borshon comentou ao situar-se junto a elas. —Por sorte para este humilde servidor, sou testemunha de como duas estrelas baixaram à terra.

—Boa noite, senhor Hill —Valéria lhe respondeu ao perceber que Kristel ficara tão aniquilada ao vê-lo com aquele traje elegante e ao escutar um elogio semelhante que não era capaz de articular palavra. —Como prediz a noite? —Olhou, discretamente ao seu redor procurando aquela figura escura que não demoraria a apresentar-se e a quem evitaria como a peste.

—Do momento que acessaram ao clube, maravilhosa —alegou tomando a mão da senhorita Griffit para beijá-la devagar. —Encontra-se bem? Percebo certa inquietação...

—São os nervos —esclareceu com acanhamento. —É a primeira vez que vou a um lugar tão...

—Tão? —O agente persistiu dando um passo para trás para manter a distância adequada.

—Tão sóbrio —finalizou a frase ruborizando-se de novo como uma menina.

—Pois me resulta elegante e opulento —Philip assinalou estendendo a mão para o senhor Hill para saudá-lo.

—O senhor Reform investiu muito tempo e fortuna em reconstruir este local —Borshon expôs aceitando a saudação.

—Se o desejarem, dado que nenhum de vocês esteve aqui com antecedência, posso lhes servir de guia —acrescentou sarcástico observando Valéria de soslaio, quem não realizou nenhum gesto ante as palavras suspeitas.

—Será uma honra —Kristel comentou desenhando um tímido sorriso. —Se não entorpecer seu trabalho como sentinela.

—Sentinela? —Ele perguntou arqueando as sobrancelhas douradas.

—Como nos explicou que o contrataram para vigiar este... —disse ruborizando-se de novo e notando como a vergonha a impedia de finalizar a frase.

—Também lhe pedi que velasse pelo cuidado das minhas costas, recorda? —Comentou inclinando-se ligeiramente para o lado esquerdo de Kristel para que só ela o escutasse. —Se lhes acompanho, você poderá converter-se em minha... sentinela —acrescentou com voz suave.

—Quantas salas encontraremos nesta planta? —Philip perguntou abrindo os olhos como pratos ao perceber que os convidados se amontoavam nas entradas esperando acessar ao interior.

—Hoje têm dez abertas ao público —Borshon começou a explicar adotando a pose que tomaria o próprio dono do local enquanto começava a andar pelo longo corredor. —Ao final acharão um refeitório. Nunca se permite o acesso a clientes que não estejam na lista de sócios, entretanto, hoje todo mundo pode degustar os suculentos pratos que o cozinheiro do senhor Reform oferecerá.

—Há, no mínimo, duas mesas em cada sala... —Philip refletiu assombrado.

—Devido à previsão que se calculou, o dono do clube decidiu ocupar o espaço restante com uma mesa de jogo menor. Desta forma haverá mais participantes ativos que passivos.

Por sorte para ele, antes de subir ao escritório Berwin eufórico contou-lhe tudo aquilo que estava expondo, porque, se não fosse assim, a explicação teria sido muito direta: «este é o primeiro andar, onde esvaziarão os bolsos aqueles que se atreverem a apostar, essas são as escadas que conduzem à segunda planta e um jovem como você não deve subir até que a barba cresça dura e espessa».

—Quer ver esse salão? —Perguntou parando o passo para voltar-se aos três.

—Se não for muito incômodo... —Kristel comentou sorrindo levemente.

—Não o será se entrelaçar seu braço no meu —indicou cavando o cotovelo.

Com acanhamento Kristel aceitou o oferecimento, abaixou a cabeça para que Borshon não descobrisse a vergonha que a percorria nesse instante e avançou devagar, dissimulando na medida do possível sua maneira de andar.

Valéria fez uma leve careta de desagrado, não foi causado ante o descarado comentário do agente, mas sim porque, desde que entrou, tinha notado certas transformações no clube. Custava-lhe muito assimilar as mudanças. A segurança da qual se orgulhava desaparecia quando nada estava em seu lugar. Zangada, amaldiçoou o senhor Reform, causador de tudo o que observava. Teria preferido que aquela mente inquieta permanecesse centrada nas mulheres que trabalhavam para ele.

Depois dessa divagação inapropriada, posto que lhe gerasse mais fúria que bem-estar, lembrou-se delas. Onde estariam? Ter-lhe-ia ocorrido fazê-las aparecer no meio da velada? Como os cavalheiros distinguiriam as nobres senhoras daquelas que não o eram tanto? Nervosa, alargou seus passos e cortou a distância que tinha mantido com seus acompanhantes. Não queria ser assaltada por qualquer convidado lhe oferecendo uma proposição indevida. A vergonha que padeceria seria maior que a que Kristel sofrera quando o senhor Hill lhe sussurrou ao ouvido.

—Tem que investir uma grande fortuna para manter um lugar tão grandioso —Philip opinou perplexo ao observar a magnitude do local.

—E o faz —afirmou o agente. —Embora também tenha que esclarecer que os lucros são maiores que as perdas. Se não fosse assim teria que fechar o clube.

—Como encontrou este trabalho, senhor Hill? —O jovem perguntou. —Chamaram-lhe porque pertence à Scotland Yard? O próprio senhor Reform o procurou?

Borshon levantou sua sobrancelha esquerda em sinal de pergunta. Por que o moço se interessava em saber esses aspectos de sua vida? O que poderia lhe responder para fugir da verdade? O que Kristel opinaria se descobrisse que não se encontraram no mercado por acaso? Inquieto e pensativo olhou a esta, quem sorria de orelha a orelha, divertida pela intromissão do jovem.

—Acredito que lhe entusiasma o trabalho que realiza e deseja saber como converter-se em um guerreiro —explicou.

—Um guerreiro? Obrigado por tão magnífica comparação, senhorita Griffit, embora tenha que esclarecer que não me considero como tal... —disse acariciando o cabelo com a mão direita.

—E? —Philip insistiu. —Como se fez membro da patrulha sem medo?

—Pelo amor de Deus! —Valéria exclamou pondo os olhos em branco. —Pode pensar em outra coisa? Está dando uma impressão bastante infantil e, se não recordar mal, permitimos que nos acompanhasse porque nos convenceu do contrário —resmungou.

—Desde quando se opõe a que me instrua? —Perguntou mal-humorado e sobressaltado ante aquela repreensão diante do homem ao qual admirava.

—Desde que a senhora Shoper colocou em sua cabeça pensamentos absurdos —respondeu dando uns largos passos para o centro do salão.

Para a festa o senhor Reform tinha retirado as pequenas mesas, onde se acomodavam não mais de cinco comensais, e tinha posto em seu lugar quatro grandiosas mesas que abrangiam de um extremo ao outro da habitação. Ostentoso foi a única palavra que apareceu em sua mente para descrever o lugar. As toalhas, as baixelas, os candelabros... tudo parecia ter um valor incalculável. Como tinha se permitido investir tanta fortuna para exibir durante uma festa? O que desejava demonstrar? Que não era tão ruim como aparentava? Pois ela, melhor que ninguém, sabia a verdade. Porque depois daquela missiva, embora tivesse colocado sobre a mesa candelabros de ouro branco, nada a faria mudar de parecer.

—Quem é a senhora Shoper? —Borshon perguntou desconfiado. Em suas investigações não tinha achado outro parente próximo e a necessidade de averiguar quem era essa mulher e a relação que mantinha com elas era premente.

—É a esposa do senhor Shoper, um humilde mercador. Vivem na porta ao lado e conforme soube, foi amiga da senhora Giesler —explicou-lhe.

—E o que disse ao jovem?

—Segundo ela, —Valéria interveio mal-humorada —tem a habilidade de saber o futuro dos outros através das linhas da mão esquerda. Mas o único que faz é criar falsas ilusões. —Contou os serventes que aguardavam os convidados calados e imóveis. Quinze figuras humanas atenderiam as necessidades gastronômicas de quem ocupasse os assentos. Seriam esses mesmos os que serviam cada noite ou teria contratado alguns mais?

—E essa mulher lhe predisse que algum dia se converteria em um guerreiro —Kristel apontou terminando assim a explicação sobre a senhora Shoper.

—O trabalho na Scotland Yard é muito duro —Borshon disse ao Philip. —Não só se deve ter uma preparação física, mas também mental. Cada dia se tem que lutar contra a parte mais escura da cidade e lhe asseguro que não é agradável.

—Então, por que motivo você escolheu este emprego? Se, tal como explica, não é tão atraente como imagino... —Philip quis saber, sem conseguir apartar o olhar especulativo de Borshon.

—Contemplou as dimensões do meu corpo? Pois meu futuro, se a senhora Shoper tivesse previsto, teria sido bastante singelo: ou gigante de um circo ou ocupar um posto no qual o medo que as pessoas mostrariam ao me observar fosse fundamentado.

—Por isso escolheu a segunda opção... —refletiu o jovem.

—Por isso e porque desejo que, em um futuro próximo, a mulher que se converta em minha esposa e os filhos que nasçam desse matrimônio possam viver em uma cidade mais segura —asseverou sem olhar à Kristel.

—Entendo... —Philip comentou abaixando o olhar.

—Podemos retornar? —Valéria perguntou. —Eu adoraria procurar uma mesa na qual apostar. Não são todos os dias que nos permitem jogar como se fôssemos cavalheiros.

—É claro, adiante-se —Borshon apontou permitindo que a inquieta mulher se colocasse diante deles. —Senhorita Griffit, quer perder também o dinheiro que guarda nessa pequena bolsa? —Perguntou à Kristel, que ainda seguia agarrada ao seu braço.

—Como está tão seguro de que o perderei? —A mulher soltou mordazmente ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas. —Pretendo arrecadar o dobro do que possuo.

—Não sabia que era habilidosa no jogo —Borshon comentou divertido.

—Não sabe muitas coisas sobre mim, senhor Hill.

—Pois espero descobrir todas —sussurrou-lhe ao ouvido. Justo quando Valéria estendia a mão para abrir a porta que a conduziria àquelas desejadas salas de jogo, a maçaneta girou sozinha, dando-lhe a entender que alguém acessava o salão. Com rapidez jogou uns passos para trás e ficou tão paralisada ao ver quem aparecia em frente a ela, que soltou o ar de seus pulmões abruptamente.

—Boa noite —Trevor Reform saudou assim que abriu a porta do salão e encontrou-se com a pequena comitiva. —Alegro-me de conhecer enfim a minhas protegidas.

 


Depois de acalmar Chevalier quis voltar para as salas para averiguar para onde se dirigiram, mas a voz do senhor Hill chegou até seus ouvidos lhe indicando que permaneciam no salão. Veloz, saiu da cozinha pela porta de trás. Depois de esquivar as saudações de quem desejava lhe oferecer toda a sorte do mundo por celebrar um evento assim, atravessou o pequeno corredor que o levaria até onde se encontravam. Com um sorriso de orelha a orelha e notando como os batimentos do seu coração aumentavam devido ao entusiasmo que sentia, abriu a porta do refeitório, ficando boquiaberto ao vê-la tão próxima a ele. Sua repentina aparição lhes impediu de avançar para as salas, embora graças a essa cercania criada de maneira involuntária, pôde inspirar aquele perfume a canela que Valéria desprendia.

—Senhor Reform —Borshon comentou dando um passo para diante.

—Senhor Hill —respondeu-lhe sem apartar o olhar da única mulher a qual pretendia estudar integralmente.

—Apresento-lhe à senhorita Giesler, ao seu irmão, o jovem Giesler, e à senhorita Griffit —explicou.

—Encantado —disse estendendo a mão para Valéria para saudá-la com a devida cortesia. —Vejo que meu investimento foi bastante acertado —acrescentou beijando a luva branca. —Estão incrivelmente formosas.

—Senhor Reform... —murmurou Valéria, que tinha estendido a palma para ele de maneira inconsciente.

O que tinha pensado lhe dizer quando o tivesse diante? Que era um hipócrita, que não devia denominá-las obrigação moral? Porque, nesse momento, as palavras que tinha guardado em sua mente para utilizá-las como recriminação tinham desaparecido ipso facto. Como podia ser tão sedutor? Por que seus olhos pareciam havê-la hipnotizado? Esse era o traje que o alfaiate lhe tinha confeccionado? Pois, apesar de usar de novo um traje preto, o alfaiate tinha utilizado a seda para costurá-lo e lhe proporcionava uma imagem mais solene e magnânima da que já possuía.

—Senhorita Giesler... —respondeu-lhe com a mesma intensidade de voz.

Odiou nesse momento que seus lábios não pudessem tocar a pele de Valéria. Embora a luva tivesse uma textura suave, ele desejava roçar aquela mão sem impedimentos. Notou, agradado, um ligeiro tremor nela, mas não chegava a concretizar a razão de por que o fazia. Pensaria que a descobriria ou talvez tivesse medo por ter gasto mais que o devido em se vestir de maneira espetacular? Embora ele não pensasse lhe reprovar tal tolice. Graças a essa compra estava impressionante. Parecia uma dama da alta sociedade.

Trevor desfrutou observando aquele cabelo recolhido em um laborioso entrecruzado com laços brancos. E ratificou que tinha sido uma magnífica opção escolher esse vestido de cor azul mar. Reform sorriu agradado ao descobrir que seu traje e o vestido dela eram feitos de seda. A costureira teria deduzido que gostaria de vê-la desse modo? O que lhe havia dito Berwin a respeito? «Uma vez que descobriu quem pagaria a fatura, ficou louca e fez a vendedora lhe mostrar tudo aquilo que guardava em um cabideiro. Segundo a mulher, tratava-se de roupas que aquelas damas que as encomendaram não vieram buscá-las». Então, não só devia dar graças àquela paciente trabalhadora, mas também à primeira proprietária do vestido.

—Obrigada por tudo —interveio Kristel que, assim como Valéria, ficou surpreendida ao ver o dono do local. Entretanto, ela podia falar com normalidade, não como sua amiga, que tinha ficado paralisada e gaguejara ao saudá-lo. —Foi muito gentil por sua parte encarregar-se de nossas compras —adicionou estendendo a mão. —Espero que não lhe tenha causado incômodo algum.

—Foi uma verdadeira honra, senhorita Griffit. Nunca fui o benfeitor de uma mulher e tenho que lhe confessar que me agradou —respondeu aceitando a saudação. —E o jovem é...

—Philip Giesler, para lhe servir —o moço respondeu dando um passo para diante. —Você é um homem admirável, senhor Reform. Construiu o melhor clube de Londres, deve sentir-se muito orgulhoso ao realizar tal proeza.

—Admirável? —Trevor perguntou divertido. —Nunca me consideraram como tal, jovem Giesler. Escutei muitos adjetivos sobre minha pessoa e em nenhum pude encontrar a palavra admirável. Então o agradeço enormemente.

—A inveja é sublime nesta cidade —o moço acrescentou evitando mostrar o entusiasmo infantil que segurava para exibir em sua voz a maturidade que, momentos antes, sua irmã fazia referência. —Poucos homens podem alcançar uma façanha semelhante —prosseguiu com seu louvor.

—Philip... —repreendeu-lhe Valéria, que tinha franzido o cenho. —Acredito que o senhor Reform está muito ocupado para perder o tempo com tanto palavrório.

—Equivoca-se, senhorita Giesler. Hoje, por sorte, disponho de todo o tempo livre que deseje. Assim, se me concederem a honra, eu adoraria acompanhá-los durante a festa. Já que me proclamaram seu benfeitor, vejo oportuno que continue sendo-o sob meu teto. O que se dispunham a fazer?

—Dirigiu a pergunta ao Borshon que, depois da saudação, voltou a tomar a mão da mulher por quem tinha interesse.

—Tinham decidido jogar. Sentem a necessidade imperiosa de perder a pouca fortuna que possuem nas bolsas —disse sagaz.

—Sabem jogar? —Soltou com aparente surpresa. —Incrível! Nunca imaginei que o sexo feminino fosse capaz de pensar em algo mais além do que comprar tudo àquilo que desejam.

—E, se pensa isso de nós, por que permitiu que acessássemos o clube? Pretende divertir-se às nossas custas? —Valéria assinalou mal-humorada.

A primeira impressão, aquela que o havia descrito como elegante, bonito e incrivelmente sedutor, desaparecia durante a conversação direta. Que diabos aquele homem tinha em sua cabeça? Despojos? Ou por acaso ainda perdurava em suas veias aquele licor caro que não deixava de beber? Como podia desprezar as mulheres, dessa forma tão mesquinha? «Jogue comigo, suplico-o. E desta vez não terá uma desculpa para saldar a conta...», pensou sem poder evitar entreabrir seus olhos ante o despertar de sua ira.

—Zanguei-a? —Trevor perguntou zombeteiramente. —Sinto-o... embora se quiser me fazer mudar de opinião, poderia me conceder o prazer de jogar uma partida comigo. Prometo-lhe que serei benevolente... —adicionou mordaz.

—Eu se fosse você pensaria isso duas vezes... —Esse comentário causou ao Philip uma dor terrível no pé esquerdo. Valéria, para fazê-lo calar, pisou-lhe com força.

—Estarei encantada —respondeu-lhe ela. —Escolha a mesa e o jogo —desafiou-o.

—Não posso ser tão descortês, senhorita Giesler! Poderiam acrescentar outro malfadado adjetivo àquela lista interminável —expôs com um enorme sorriso. —Darei a oportunidade de que você mesma me proponha isso. Se fizer a gentileza... —disse abrindo a porta —primeiro as senhoritas, como dita o protocolo de um bom cavalheiro.

Depois de soprar, Valéria agarrou o braço de seu irmão e se adiantou aos outros. Precisava achar o crupier que a atendia cada vez que jogava. Apesar de haver tantas mudanças ao seu redor que lhe provocavam desconcerto, se encontrasse o empregado teria mais possibilidades de ganhar.

—Esta parece menos concorrida —Philip opinou ao passar pela sala número dez. —Como é a última, todo mundo permanece nas primeiras que encontram —deduziu.

—Não —sua irmã negou com firmeza.

Avançaram um pouco mais sem afastar-se muito deles. Valéria precisava escutar a conversação que Borshon e Kristel mantinham com o senhor Reform. Falavam sobre o futuro do clube e das alternativas que tinha para continuar prosperando. Pela tranquilidade que sua amiga mostrava ao conversar e pelo modo como lhe falava com tanta familiaridade, pensou que por algum estranho motivo, pareceu-lhe um bom homem. E isso a enfureceu ainda mais. Talvez devesse lhe mostrar a carta e fazê-la compreender, através de suas próprias palavras, o ruim e desprezível que era em realidade.

«Perfeito! Obrigada, Senhor!», Valéria exclamou eufórica em sua cabeça quando observou o jovem Gilligan trabalhando na mesa número seis. Não era sua preferida, mas devia acolher-se à dita opção.

—Aqui —disse voltando-se para eles. —Podemos jogar nessa mesa, se não declinar seu oferecimento —insistiu-lhe esperançada.

—Parece-me perfeita —alegou desenhando um sorriso maléfico ao ter augurado que escolheria a mesa em que estivesse o crupier com o qual sempre jogava. Agora lhe tocava averiguar se ambos estavam combinados ou só se tratava de um ritual.

Caminhou para o interior da sala saudando as pessoas que encontrava ao seu passo. Os quatro lhe seguiram diminuindo a caminhada quando Reform o fazia. Pareciam uns animais domésticos seguindo seu dono com a esperança de ter ao final uma amostra de afeto. De repente, Borshon se afastou deles para dirigir-se para uns assentos que se encontravam no outro extremo da sala. Se sua conjectura não era falsa, estaria preparando o melhor lugar para acomodar Kristel e serem testemunhas da dita partida. Tanta espera podia suscitar?

—Não me disse que era um homem horrível? —Kristel perguntou-lhe uma vez que ficaram sozinhas. Philip imitou o agente e lhe ajudou. Ato que enfureceu ainda mais Valéria. Quando retornassem ao lar teria uma severa conversação e esperava que, uma vez finalizada, a absurda ideia de converter-se em um guerreiro se dissipasse porque, do contrário, ocupar-se-ia ela mesma de lhe apagar tudo o que sua mente pueril acumulava. —Se a memória não me falhar, a palavra que utilizou para descrever o senhor Reform foi escuro e apreciei, no pouco que conversamos, compaixão, cordialidade e bondade.

—Você não o conhece como eu —resmungou. —Está adotando um papel falso. Se em vez de mulheres tivéssemos sido homens, seu caráter seria diferente.

—Pois não me pareceu apreciar falsidade em suas palavras. Além disso, como bem sabe, o senhor Hill deveria vigiar o clube em vez de nos acompanhar.

—E? —Valéria soltou encolhendo levemente os ombros.

—O senhor Reform não reprovou, em nenhum momento, sua falta de atenção. Ao contrário, permitiu-lhe nos acompanhar o tempo que desejar —declarou solene. —Além disso, acredito que também evitou, nessas longas explicações sobre o horrível e temível que era o dono do clube, falar sobre sua compleição física. Penso que é um homem muito bonito.

—Bonito? —Perguntou abrindo os olhos como pratos. —Considera-o desse modo?

—Eu e todas as mulheres que não conseguem apartar os olhares dele —sussurrou lhe mostrando com sutileza aquilo que lhe explicava. —Acredito que esta noite será a mulher mais invejada do clube. Tome cuidado, aquela que está falando com um cavalheiro de cabelo branco e esconde seu rosto atrás de um leque vermelho, olha-a como se quisesse te aniquilar.

Valéria girou levemente o pescoço para a direita para confirmar o que Kristel lhe dizia. Uma formosa mulher de cabelos dourados como o ouro e com um rosto tão pálido quanto um fantasma, fixava seus penetrantes olhos cinza nela. Quem era? Tinha-a visto alguma vez? Por que a observava como se a conhecesse?

—Senhorita Giesler —a voz de Trevor despertou-a de seus pensamentos. Embora não pôde apartar seu olhar da mulher com a rapidez que desejava. Feito que permitiu ao Trevor averiguar para onde olhava. —O crupier me anunciou que dentro de quinze minutos finalizará a partida e prepararão tudo para celebrar a nossa. Gostaria de uma taça enquanto esperamos? —Expressou camuflando o repentino aborrecimento que lhe causou ver Jun no clube.

—Não, prefiro permanecer sentada em um desses assentos que o senhor Hill nos preparou —alegou esquivando-se do grande corpo de Reform, que em vez de sorrir, como o teria feito ante essa negação tão descortês, manteve o cenho franzido ao mesmo tempo em que procurava uma possível resposta sobre a aparição da mulher. Não lhe havia dito que partisse? Então... que diabos fazia ali?

—Senhor Reform... —apareceu o garçom com uma bandeja de taças de Champagne. —Deseja algo em especial? —Como o senhor levava alguns dias bebendo água fresca, o lacaio não sabia se aceitaria tomar algo do que estava em suas mãos.

—Procura o senhor Berwin e que não tarde em apresentar-se ante a mim —ditou com aspereza. —Entendido? —Grunhiu.

—Sim, é claro. Agora mesmo... —disse o criado avançando pelo corredor com tanta pressa que quase perdeu o equilíbrio e atirou as taças ao chão.

—Algum problema? —Perguntou Borshon que, depois de acomodar Kristel junto à Valéria e obrigar o jovem Philip a colocar as moedas de novo no bolso, quis saber o que inquietava o dono do clube para não acessar a sala.

—Não consideraria um problema, mas a senhorita Barnes veio e, por como olhou à Valéria, muito me temo que trame algum pérfido plano —comentou preocupado.

—Não se atreverá a falar com ela enquanto estiver ao seu lado. De todas as formas, posso tirá-la daqui, se assim o desejar —expôs com um enorme sorriso naquele rosto duro.

—Montaria um escândalo. E, Deus sabe que isso é o que pretende! Não, só quero que Berwin a vigie e que esteja preparado para qualquer acontecimento inapropriado. Não quero que amanhã todos os noticiários especulem sobre o verdadeiro motivo pelo qual permiti o acesso às mulheres. Além desses ofensivos adjetivos para com minha pessoa acrescentariam misógino.

—Entendo-o, mas em minha humilde opinião, devia oferecer um motivo pelo qual o fazia. Talvez, desse modo, não adicionariam à sua descrição tal palavra.

—Um motivo? Não lhe resulta suficiente que pela primeira vez as esposas possam acompanhar seus queridos cônjuges? Estou fazendo uma brilhante obra social, senhor Hill! Isso não razão suficiente? —Perseverou zangado.

—Quando nós queremos dar informação sobre um caso que a imprensa vigia com lupa, somos precavidos e não deixamos nenhum cabo solto. Acaso não tem em conta o que possam deduzir os outros? De verdade pensa que se conformarão com essa estupidez? Nenhum homem casado anseia levar a sua esposa a um lugar onde possa sentir-se liberado dessa opressão matrimonial. Assim, se me permitir isso, essa razão não é factível.

—Então... o que sugere que eu exponha? —Perguntou especulando.

—Que você...

—Senhor Reform! —Um cavalheiro de avançada idade chamou a atenção interrompendo a conversação entre os dois.

Borshon deu uns passos para trás lhes permitindo certa intimidade. Além disso, não desejava que todo mundo deduzisse que se convertera no protetor de Reform. O que pensariam seus companheiros sobre ser a babá de um homem como ele? Zombariam até saciar-se porque ele mesmo tinha indicado a todo mundo que jamais se dobraria por umas míseras libras.

—Milord... —Trevor lhe respondeu voltando-se para quem lhe falava.

—Que magnífica festa! —Exclamou entusiasmado. —Explicava à minha querida esposa que você foi muito generoso ao permitir o acesso às honradas damas que vivem nesta cidade. Deste modo, todas as falsas conjecturas que possuem sobre seus maridos se eliminarão —indicou aceitando a saudação que lhe oferecia o senhor Reform.

—Lady Phorter... —Trevor saudou a esposa do cavalheiro com um casto beijo na mão.

—Senhor Reform. Deve estar feliz ante a aceitação que teve sua decisão. Você tem toda a alta sociedade pisando no chão de seu clube, apesar de ser um dia de semana —comentou a mulher com receio. —Por que fez isso?

—Perdoe suas palavras, senhor Reform, mas está empenhada em que o único motivo pelo qual ofereceu este evento é a busca de uma mulher para casar-se.

—Casar-me? —Trevor perguntou incrédulo. —Por que opina dessa forma, lady Phorter?

—Conforme escutei, você não é um homem que se agrade em abandonar este edifício —explicou olhando ao redor com desprezo. —E, salvo que termine por comprometer-se com alguma das supostas concubinas que trabalham neste clube, não tem forma de cortejar as damas que mereçam ser tratadas como tais. Imagino que, apesar de sua fortuna, é um homem que aspira acotovelar-se com a alta sociedade e a única maneira de obtê-lo é mediante um bom casamento. Busca uma condessa, marquesa ou talvez uma simples baronesa? Qualquer viúva com título, mas caída na pobreza, seria sua melhor alternativa.

—Interessante dedução... é sua? —Trevor perguntou sorridente ao mesmo tempo em que colocava as mãos nas costas e observava como Borshon segurava a vontade de gargalhar ante os delírios da pobre anciã.

—É óbvio! —Lady Phother respondeu envergonhada. —Pensa que sou uma fofoqueira? Que escutei esse tipo de conversações e me atrevi a perguntar-lhe em pessoa para esclarecer dúvidas de quem comenta ditas conjecturas? —Perguntou com indignação enquanto se abanava com desespero.

—Pois não se preocupe, milady, acertou. Meu único objetivo para realizar este ato é encontrar a mulher perfeita. Um homem como eu, com tanta fortuna e tanto patrimônio sob meu cuidado, necessita de uma esposa que ajude a alcançar aquilo que não posso obter. Como bem supõe, conformo-me até com uma simples baronesa —respondeu sem apagar o sorriso de seu rosto. Borshon não queria uma desculpa acreditável? Pois a fofoqueira lady Porther a acabava de oferecer.

—Pois só fica lhe desejar boa sorte, senhor Reform —disse a anciã exibindo em seu velho rosto uma grande satisfação.

—Obrigado, lady Porther —comentou despedindo-a com uma leve reverência.

—Eu não pensaria no que você acaba de expor à minha esposa —indicou lorde Porther. —Vive bastante bem para sofrer o calvário de um matrimônio.

—Ver-lhe-ei no próximo sábado? —Trevor perguntou arqueando a sobrancelha direita.

—No mesmo lugar e com a senhorita Esmeralda me proporcionando sorte —alegou o ancião estendendo a mão.

—Não se preocupe, a partir de manhã minhas empregadas retornarão para seguir amenizando as noites —adicionou sarcástico.

—Que tenha uma noite interessante —desejou-lhe antes de dirigir-se para sua esposa.

—Será...

Trevor colocou de novo suas mãos nas costas e continuou imóvel olhando as costas de lorde Porther. Agora entendia a razão pela qual o ancião mantinha uma relação com a empregada. Esmeralda lhe oferecia o carinho que aquela áspera viscondessa não lhe proporcionava. Em realidade, eram muitos os clientes que desejavam saciar esse vazio sentimental que não encontravam no matrimônio e, como lhe advertiu o ardiloso ancião, ele não cairia nessa desventurada armadilha. Viveria feliz até que a morte aparecesse.

—Não queria um motivo acreditável? —Perguntou ao Borshon, sem olhá-lo, quando este se aproximou.

—Reconsidere esta opção. Se se expandir o rumor de que procura esposa, não só a senhorita Barnes irá às nuvens, mas também não disporá do tempo que precisa para acompanhar a senhorita Giesler.

—De verdade acredita que há mulheres tão desesperadas que se derrubarão em meus braços sem permitir-lhes —perguntou voltando-se para a porta da sala seis.

—Nem imagina... —alegou zombeteiramente o senhor Hill enquanto acompanhava Trevor ao interior da sala onde lhes esperavam para começar aquela espetacular partida.


XVI

 

Finalmente apareceu. Não precisou girar-se para compreender quem acabava de entrar na sala. Todos os olhares se dirigiam para ele. Até o crupier deixou de embaralhar para observar a entrada do senhor Reform. Ela se encontrava de costas, como se aquela aparição não a afligisse. Mas só era uma fachada irreal. As pernas lhe tremiam e mal prestou atenção à conversação que mantinha com Kristel. Entretanto, quando os grandes olhos de sua amiga se abriram como pratos deduziu que estava atrás dela, provocando-a para que se voltasse e o olhasse. Devagar, com uma lentidão imprópria em uma mulher com seu caráter, girou-se para enfrentar, de uma vez por todas, o homem ao qual odiava de maneira demencial e ao qual lhe faria pagar o desprezo com que as tratou ao denominá-las obrigação moral.

—Pensei que tinha reconsiderado sua proposta —comentou ao encontrar-se de frente, observando-o com aqueles olhos escuros que pareciam lhe atravessar a alma.

—Acredita que me dá medo jogar contra uma mulher? —Perguntou mordaz. —Pois não. Atrasei-me porque os convidados desejam me saudar e conversar sobre a magnitude desta celebração.

—É uma desculpa medíocre, senhor Reform —comentou com ironia. —Conforme tenho entendido, você é resistente a tais amostras de afeto. Então muito me temo que tente prolongar o momento de sua derrota —insistiu mostrando a moderação alemã que se apoderava dela quando a espanhola se sentia ameaçada.

—Seria a primeira vez que o faria —apontou sarcástico.—Por agora, ninguém pôde ganhar nem um só xelim.

—Está seguro disso? Ninguém lhe ganhou... alguma vez? —Perguntou arqueando as sobrancelhas. Como podia lhe mentir com tanto descaramento? Acaso tinha esquecido o senhor Hernández? Pois precisava lhe refrescar a memória porque lhe devia uma fortuna e ela a reclamaria na próxima sexta-feira.

—Nunca —asseverou dando por concluída a conversação entre os dois. —Se fizer a gentileza... —assinalou com a mão direita os assentos que tinham preparado para eles. —Escolha o que mais lhe agradar...

—Um gesto muito gentil da sua parte —resmungou caminhando para a banqueta da esquerda.

—Sou muito gentil, senhorita Giesler... —disse perspicaz.

Trevor segurou estoicamente a gargalhada que esteve a ponto de soltar. Zangou-se. O fato de que não admitisse que tivesse perdido ante ela disfarçada, encolerizou-a. Assim como a incomodou que se mostrasse tão respeitoso diante de todos os assistentes que, de maneira inexplicável, começaram a ocupar a sala. Tão rápido se propagou que jogaria contra uma mulher? Ou a viscondessa expandiu o falso rumor com uma grande habilidade? Fosse o que fosse, não estariam sozinhos, não teriam a intimidade que tiveram na primeira vez que jogaram, embora, contemplando pelo lado positivo, era o melhor que lhe podia acontecer. Se Valéria se sentia incômoda, se se desconcentrasse, teria alguma possibilidade de ganhar e, ao concluir essa derrota, far-lhe-ia pagar a dívida... à sua maneira.

—Quanto deseja apostar? —Ela perguntou-lhe colocando sobre a mesa duas fichas de cinco libras.

—Que jogo escolherá? —Ele retrucou acomodando-se no assento. Quando um dos serventes lhe aproximou um cinzeiro, ele o rejeitou com a mão.

—Variará sua aposta segundo o jogo? —Insistiu desconfiada. Tinha rejeitado desfrutar daquele custoso vício? «Inaudito...», pensou. —Um dos rumores que se estendem por Londres é que jogava cartas antes de andar... —recordou-lhe o comentário que fez quando cercaram uma conversação antes de jogar com o suposto senhor Hernández.

—Mas ultimamente não sou muito experiente no pôquer de cinco... —ele acrescentou evocando também a partida que perdeu dela na primeira vez que jogaram sozinhos.

—Então... —apartou o olhar de Trevor e o fixou em Gilligan que, como à vez anterior, estava tenso pela presença de Reform —pôquer de cinco —afirmou com solenidade.

—Bem, aceito suas dez libras —disse enquanto agrupava suas fichas com as dela. —Mas acrescentarei um curinga. Que alguém nos traga papel e pluma —ordenou ao ar.

—Um curinga? A que se refere? —Valéria perguntou desconcertada.

—Eu admito que deseje jogar pôquer de cinco cartas, mas não pode ser você quem leva a voz cantante nesta partida. Por isso, eu acrescentarei um pouco de interesse à mesa —explicou sem olhá-la. Agarrou o papel que lhe ofereceu um de seus empregados, dobrou-o em quatro partes e o partiu pela metade. —Escreva aqui o que deseja obter se ganhar.

—Não permitirei que zombe dessa forma tão... —expôs enquanto se levantava, mas Trevor a agarrou inapropriadamente pelo braço evitando que partisse.

—Estou lhe oferecendo um papel em branco, senhorita Giesler, no qual pode escrever aquilo que desejar. Não lhe parece maravilhoso? Talvez possa oferecer aos seus irmãos a vida que tanto desejam —insistiu.

—Você não é um homem de palavra, senhor Reform —comentou irada.

—Acredita que poria em questão a pouca idoneidade que pensa que tenho diante de tantos assistentes? —Perseverou. —Escreva o que deseja obter nesse papel e jogue de uma vez.

—E se lhe pedir o clube? —Perguntou desafiante.

—Se ganhar honestamente, pode ficar com ele —declarou solene.

—Quero uma prova disso —alegou sentando-se de novo.

—Pense, escreva e quando terminar a partida a terá —disse energicamente.

Que diabos acontecia? Por que prometia que lhe daria aquilo que anotasse no papel? Seria o típico blefe de um jogador? Valéria olhou pensativa a folha dobrada, procurando em sua memória o que tanto ansiava obter. É óbvio, o desejo de conseguir a fazenda se desvanecera, porque nenhum de seus irmãos ansiava abandonar Londres. Um novo lar? Uma renda vitalícia? Que seus irmãos pudessem viver comodamente enquanto ela retornava à sua querida e saudosa Alemanha? «Se apontar um pagamento mensal terá que o ver durante o resto de seus dias —meditou. —Embora possa acrescentar que o senhor Berwin seja o intermediário; deste modo, Philip e Martin poderão adquirir a vida que aspiram ter e poderá partir em algum momento de sua vida».

Enquanto Valéria se centrava no que desejava, Trevor pediu que se aproximasse um empregado. Este se aproximou com bastante temor.

—Que ninguém se aproxime de nós, que se mantenham sentados durante a partida. Se se produzir uma simples interrupção deixará de trabalhar para mim —asseverou.

—É claro, senhor Reform. Agora mesmo acrescentarei mais cadeiras para que ninguém permaneça nem perto nem de pé —o moço expressou antes de acatar o mandato.

Trevor voltou a olhá-la. Golpeava-se os lábios com a pluma e mantinha seus olhos cravados em Gilligan, como se este pudesse lhe ditar, em qualquer momento, o que devia escrever.

—Dúvida? —Trevor perguntou depois de lhe dar um tempo prudencial. Lentamente dobrou seu papel várias vezes e o deixou sobre as fichas.

—Você não? —Perguntou receosa.

—Não. Sei muito bem o que quero e nada nem ninguém me fará mudar de opinião —manifestou com firmeza.

Um estranho calafrio a percorreu ao discorrer sobre o que desejaria aquele homem que não tinha duvidado nem um só segundo. Olhou-o com atenção, tentando averiguar através da expressão de seu rosto algo que a advertisse do que encontraria escrito se perdesse, mas não achou nada salvo um grande sorriso. De repente, as palavras da senhora Shoper apareceram como se permanecesse ao seu lado e lhe sussurrasse: «Um homem que conhece seu segredo...» Teria razão? Ter-lhe-ia descoberto? Pediria que não retornasse mais ao clube vestida de homem? Que não lhe enganasse mais?

—Está bem! —Valéria disse.

Depois de apartar todos aqueles absurdos pensamentos, porque ninguém salvo Kristel sabia a verdade, escreveu o que desejava e o colocou em cima do que ele tinha posto.

—Comecemos —Trevor ordenou ao Gilligan, quem não podia dar crédito ao que presenciavam seus olhos.

Enquanto o empregado embaralhava as cartas, escutava-se um leve murmúrio entre os assistentes. Valéria tentou ouvir algo do que cochichavam, mas não captou nada porque os escutava longínquos, como se tivessem saído da sala. Embora não tinha nenhuma dúvida de que falariam sobre o motivo pelo qual lhes tinham feito chegar os papéis e o que teriam escrito neles. Estariam tão atentos que se converteriam em testemunhas? Ajudar-lhe-iam se ganhasse? Esperava que assim fosse porque se resultasse vencedora não permitiria que aquele presunçoso, que a olhava como se quisesse devorá-la, retratasse-se.

—Senhorita, deseja alguma mais? —O crupier perguntou-lhe.

Nesse momento Valéria soprou. Seus pensamentos a tinham retirado da partida e não tinha nem olhado as cartas. Mas era tão suculento sonhar com uma nova vida, sem ter que preocupar-se em como obter a suficiente quantia para ajudar seus irmãos, que não atendeu as cartas.

«Centre-se!», repreendeu-se.

—Um segundo —disse apertando os dentes. Rápida, levantou as cartas que tinha ao seu lado e ao compreender que não possuía nenhum mísero par, sorriu como se a sorte estivesse do seu lado e disse: —Uma, por favor.

—Senhor Reform? —Dirigiu-se para ele.

—Sim —respondeu secamente.

Que cartas ela teria para sorrir daquela forma? Trevor olhou de novo as suas decifrando a possibilidade de achar a resposta. Seus dois ases lhe fariam formar um par, entretanto, não queria terminar o jogo tão rápido. Precisava avivar um pouco mais a tensão que percebia em Valéria e alargar o momento no qual ela descobrisse o que tinha escondido no papel.

—Uma mais —ordenou ao crupier quando este lhe perguntou na terceira rodada se desejava outra carta.

Durante um bom momento, tempo no qual o silêncio se apropriou da sala, foram jogando como se nisso fosse a vida. Olharam-se de esguelha, tentando averiguar os pensamentos do outro e decifrar aquelas expressões que realizavam ao observar as novas cartas. Mas não descobriram nada. Os dois eram tão herméticos que nem o ardiloso Borshon soube prever quem ganharia.

—Não acredita que o jogo está durando muito? —Kristel sussurrou-lhe ao ouvido.

—A partida pode estender-se por horas —respondeu-lhe o agente.

—Pois as que realizamos em nosso lar mal se prolongaram dez minutos. Estou notando como os nervos se apoderam de mim. Necessito que digam ou façam algo logo —disse desesperada.

—Podemos sair, se assim se encontrar melhor —Borshon lhe ofereceu.

—E deixá-la sozinha? Matar-me-ia... —suspirou pondo os olhos em branco. —Se perder, quero estar aqui para consolá-la e se ganhar... bom, se acontecer esse milagre, quero ver a cara que põe o senhor Reform ante a derrota.

—Crê que conseguirá? —Perguntou-lhe Philip, que se sentou do outro lado.

—Isso mesmo estava comentando com o senhor Hill. Que isto começa a ser angustiante.

—Valéria não tem boas cartas —o moço declarou sem apartar o olhar de sua irmã. —Já notei.

—Como? —Kristel perguntou. —Eu não vejo nada...

—Durante as partidas que tivemos em casa, vi que está acostumada a respirar fundo pelo nariz quando não está conforme. Além disso, aperta ligeiramente a mandíbula...

—Conseguiu estudar a sua irmã em tão pouco tempo? —Soltou assombrada.

—Levo anos observando a minha irmã, tia Kristel. Aqui o dissimula porque ninguém a conhece, mas não há segredos entre nós... muito ao meu pesar, vai perder —concluiu.

—Pois rezemos para que isso não ocorra —manifestou centrando-se em como sua amiga mantinha as costas rígidas.

—Não —Trevor respondeu quando o moço voltou a lhe perguntar se desejava uma carta.

—Senhorita?

—Pago para ver —disse depois de olhar com satisfação o trio e o par duplo.

—Se fizer a gentileza —Reform a animou que colocasse sua jogada sobre a toalha de mesa. —Primeiro as damas —acrescentou sagaz.

—Trio e par duplo —declarou mostrando enfim as cartas.

—Senhor Reform? —Insistiu sorrindo de orelha a orelha ao mesmo tempo em que escutava alguns suspiros e leves murmúrios.

—Brilhante! —Trevor exclamou surpreso. —Você me deixou sem palavras.

Acreditando que tinha ganhado, Valéria estendeu as mãos para as fichas e os papéis. Estava desejosa de lhe gritar que fosse preparando um encontro com seu administrador para que lhe concedesse um pagamento mensal durante toda a sua vida. Além disso, averiguaria o que ele desejava, se ela não tinha nada a lhe oferecer. Outra das coisas que a havia desconcentrado ao princípio da partida. O que ela poderia lhe oferecer se não tinha nada? Que lhe devolvesse os vestidos e os complementos? Seria um homem tão mesquinho? Entretanto, justo no momento no qual suas palmas se encontravam a ponto de recolher os lucros, Trevor colocou uma das suas mãos sobre elas.

—Disse-lhe que foi brilhante, mas em nenhum momento declarei que ganhou —manifestou sem apartar o olhar de Valéria. De repente, o silêncio retornou à sala e notaram como todos os presentes deixaram de respirar.

—Mostre suas cartas então —Valéria o desafiou, empenhada em eliminar o antes possível aquele contato, mas ele não o permitiu.

Com a mão esquerda Trevor estendeu sobre a mesa suas cartas.

—Sequência real —declarou contemplando-a sem pestanejar. —Ganhei, senhorita Giesler. Tal como a adverti, nunca perdi uma jogada. Agora, se fizer a gentileza, permita-me recolher meu prêmio.

—Pode me dar um pouco de tempo? —Suplicou-lhe. —Não quero que todo mundo contemple o que anotou nesse papel.

—Concedo-lhe a discrição que me pede, mas tenho que a advertir que não partirá daqui sem que tenha obtido o que desejo. Pode ficar com as fichas, não quero que minha consciência se turve pensando que, por minha culpa, não pôde desfrutar de uma festa tão extraordinária. Embora eu ficarei com o papel que escreveu, tê-lo-ei como lembrança desta noite —declarou pegando o pedacinho de papel que ela tinha dobrado, metendo-o no bolso de sua jaqueta e se levantando do assento. —Boa noite, senhorita Giesler. Foi um prazer jogar com você —acrescentou lhe segurando a mão direita para beijá-la.

—Boa noite, senhor Reform —respondeu segurando com estoicismo a vontade que tinha de lhe gritar que não devia ser tão considerado com ela. Que levasse as fichas e que se afastasse de seu lado durante toda a noite. Mas se manteve calada, amaldiçoando a má sorte.

Franziu o cenho e cravou o olhar nas costas do homem que caminhava para a saída com a típica atitude de um canalha. Não era possível, tinha ganhado e ela devia desprender-se de seu orgulho para assimilar a derrota. Enrugou o papel sob a palma notando como este se cravava em sua pele. O que lhe pediria? O que podia lhe oferecer? Ela não tinha nada..., mas justo quando essa impaciência lhe gritava que o descobrisse de uma vez por todas, notou a mão de Kristel pousando-se sobre seu ombro direito.

—Foi um duro rival e você jogou muito bem —animou-a. —Não deve se desmoralizar. A noite só acaba de começar.

—Dar-te-ei as dez libras que perdeu —Philip interveio. —Sei que as dobrará em outra partida.

—Obrigada, mas não as necessito. O senhor Reform não aceitou minhas fichas, e mais, deu-me as suas —Valéria comentou assombrada. —Não viram o que fez antes e durante a partida?

—Não. Quando pretendíamos nos aproximar, um de seus empregados nos convidou, sutilmente, a nos retirar aos assentos. Acredito que pretendia manter um pouco de intimidade. Aconteceu algo interessante? Perdemos algo? Por que não levou seus lucros? —Kristel perguntou olhando o rosto pálido de sua amiga como se nele permanecesse a resposta.

—Não aconteceu nada especial salvo que ganhou. E sobre as fichas... não deve dar importância a esse fato. Como bem sabem possui uma grande fortuna e dez libras não lhe supõem grande coisa —concluiu dando um passo para diante.

—Podemos jogar então? —Philip perguntou impaciente. —Estou desejando notar mais peso em meus bolsos.

—Podem ir. Preciso espairecer um pouco. No momento estou exausta —desculpou-se.

—Eu os acompanharei, se a senhorita Griffit seguir permitindo minha presença —Borshon disse zombeteiramente.

—Permiti-lo-ei por toda a minha vida.

E justo depois dessa declaração as bochechas de Kristel arderam.

—Alegra-me te escutar dizer isso, Kristel, porque eu penso o mesmo —sussurrou-lhe ao ouvido.

Valéria os observou afastar-se, acomodar-se nas cadeiras e pedir que iniciassem uma nova partida. Pareciam tão entusiasmados e felizes que fez desaparecer de sua cabeça a ideia de retornar ao lar. Olhou de esguelha a palma onde escondia o papel. Dava-lhe medo averiguar o que tinha escrito, embora a curiosidade aumentasse por segundos. De verdade lhe pediria o vestido? Ou só que não retornasse mais? Eram alternativas a ter em conta... caminhou com aparente desinteresse para o saguão, escondendo-se entre as sombras que encontrou atrás de uma das colunas do imenso hall. Apoiou as costas na parede, abriu a mão, desdobrou o papel e o aproximou ao único raio de luz que lhe permitia ler com claridade.

Quando averiguou o que tinha anotado percebeu como seu corpo se deslizava para o chão perdendo a força e a integridade. Como tinha ousado lhe pedir tal descaramento? «Jamais!», exclamou sua mente ao evocar uma a uma as palavras que plasmou naquele miserável pedaço de papel: «Só quero você».

 

 

Seguiu-o. Tinha notado sua presença desde que abandonou a sala. Jun caminhava atrás dele procurando uma oportunidade para falar, mas Trevor não tinha nada a lhe dizer, já lhe deixou bem claro sua postura e não mudaria de opinião.

—Então, é verdade? —Perguntou-lhe uma moça que tinha sido apresentada por um dos sócios vinte minutos antes.

—Se fizer a gentileza de concretizar sua demanda poderei responder sem falsas especulações —alegou enquanto colocava suas mãos nas costas. Para onde se dirigira Valéria? Teria partido ao ler o que escreveu? Abandonaria seus entes queridos? Não, ela não faria tal coisa. Estaria em alguma das salas jogando com algum cavalheiro que, distraído por sua beleza, seria depenado. Ao pensar que ela podia estar paquerando com outro homem, as mãos que escondia atrás das costas se apertaram formando dois imensos punhos.

—Dizem que o senhor permitiu o acesso das damas esta noite porque procura uma esposa —a mulher lhe esclareceu ruborizando-se ante o comentário.

—Comentaram-no isso? —Trevor inquiriu mantendo sua acostumada severidade no rosto. «Senhora viscondessa —pensou —você é uma fofoqueira insuperável».

—Tem alguma preferência? —A dama continuou perguntando depois de ele afirmar com um leve movimento de cabeça.

—Pois até agora não o tinha pensado, mas sim, é certo, tenho certas exigências —disse olhando por cima de sua interlocutora, tentando averiguar onde Jun se escondera. Se seu instinto não lhe enganava, estaria em algum lugar próximo planejando algo cruel.

—Posso lhe perguntar quais são? —Perseverou com grande espera.

—Procuro uma esposa que seja incapaz de dobrar-se, que me queira por quem sou e não pela fortuna que possuo. Também tem que me contribuir felicidade, sem esquecer-se do respeito que tem que manter pelas horas diárias que emprego para fazer funcionar este clube. Além disso, deve acostumasse às minhas imoralidades... nem todas as noites poderei aparecer no leito sóbrio e satisfeito sexualmente —Disse-lhe como se lhe confessasse um segredo.

Ante tal comentário a mulher se ruborizou e se levou a mão para à boca como se aquela exposição a aterrorizasse. Trevor esperava que suas inadequadas elucidações a afastassem com rapidez, alegando qualquer absurda desculpa, mas se equivocou. A muito descarada sorriu, aproximou-se de seu ouvido e lhe confessou:

—Eu também sou uma amante insaciável, senhor Reform, e um pouco perversa...

Não saía de seu assombro. Por mais que tentava assumir o que lhe acontecia, não entendia. De verdade estavam tão desesperadas por apanhá-lo que suportavam comentários tão desonestos? A ânsia de conseguir aquilo que tanto lhe havia custado ganhar podia conduzi-las a um desespero semelhante? Onde estava a honra? E o amor? Não lhes importava casar-se com um homem enquanto lhes proporcionasse uma vida cômoda? Trevor suspirou. Devia imaginar. Tinha que ter considerado tal final quando a viscondessa partira, mas ele jamais imaginou que procedendo de um passado tão chulo as damas de alto berço se ajoelhassem ante ele procurando viver comodamente. O que o senhor Hill lhe havia dito a respeito? «Nem imagina...», rememorou. Pois de novo estava certo. Possivelmente não tinha sido tão boa ideia propagar aquele maldito rumor...

—Se me desculpar, requerem-me em outro lugar —disse a modo de desculpa para afastar-se daquela hábil bruxa que movia suas pestanas como se fossem as asas de um abutre.

—Teremos outro momento para conversar? —A dama perguntou estendendo sua mão para que este a beijasse.

—Se meu dever como anfitrião me permitir isso, possivelmente —respondeu-lhe sem mal tocar com seus lábios o tecido da mão enluvada.

—Estarei atenta... —acrescentou desenhando um enorme sorriso.

Trevor caminhou com passo ligeiro. Precisava apartar-se de todas as mulheres que, por desgraça, espreitavam-no procurando um instante para aproximar-se. Sem lugar a dúvidas, tinha sido uma ideia descabelada. A grande pernada e esquivando quem desejava lhe dedicar umas palavras, dirigiu-se para as escadas, zona na qual estaria a salvo, pois ninguém em seu são julgamento o seguiria até seu escritório. Propôs-se suportar todo mundo se conseguisse permanecer com Valéria todo o tempo que desejava, mas lhe urgia achar uma fresta de paz e em nenhum lugar a encontraria, salvo entre as quatro paredes daquela habitação. Enquanto subia olhou para as salas procurando a única mulher por quem mostrava interesse, mas não a encontrou. Onde diabos se colocou? Por que Berwin não tinha ido ao seu chamado antes da partida? Onde estava? Como tinha se negado a obedecer a uma ordem dele? Tinha que vigiar Jun! Zangado, pisou no último degrau, voltou-se para o corrimão de madeira e apareceu procurando as duas pessoas que precisava encontrar. Mas nem seu secretário nem Valéria permaneciam ao seu alcance.

—Maldita seja! —Gritou abrindo a porta de seu escritório com tanta força que quase a arrancou.

—Senhor Reform! —O ancião exclamou ao encontrar a grande silhueta em frente aos seus olhos. Rapidamente baixou as pernas da mesa e ficou de pé.

—O que faz aqui? —Perguntou sem baixar a voz. —chamei-lhe faz tempo!

—Descansando... —disse colocando o copo que tinha entre suas mãos sobre a bandeja de prata.

—Descansando? —Trovejou pisando no tapete como se quisesse atravessá-lo com as solas de seus sapatos. De soslaio observou a garrafa de uísque que seu empregado tinha tirado da gaveta, logo o olhou com os olhos entreabertos e lhe perguntou sem baixar o tom de sua voz: —bebeu meia garrafa?

—Trabalhar para você provoca uma grandiosa sede... —Berwin respondeu esperando averiguar que lado da mesa o senhor Reform tomaria para retornar ao seu assento e poder ele tomar o contrário.

—Sede? E não pôde beber outra coisa? Essa garrafa vale mais de vinte libras! —Exclamou furioso.

—Eu já disse que estava delicioso... —murmurou zombeteiramente.

Direito, o senhor Reform decidiu tomar o lado direito então ele escolheu o esquerdo. Durante sua leve caminhada tentou controlar aqueles tremores que lhe causava seu estado de embriaguez, mas não foi muito hábil em tal proeza.

—Por que me chamava, senhor Reform? —Perguntou-lhe uma vez que se situou em frente à Trevor.

—Por que o necessitava? —Ele arqueou suas escuras sobrancelhas. —Já não lhe necessito e além do mais não está em condições de fazer nada —reprovou-o. —O único que lhe posso pedir é que se retire ao seu quarto.

—Oh, não! —Berwin respondeu levantando os braços. —Sou um imprestável! Que desastre! —Dramatizou. —O que será de mim? Deste pobre ancião que decidiu acalmar sua sede com um licor que não poderá pagar com seu sofrido trabalho? Que vida mais injusta!

—Por favor, parta. Falaremos amanhã —pediu-lhe. Embora sua ira não tivesse diminuído, admitiu que a situação fosse muito divertida. Seu secretário jamais bebia tanto para não ser consciente do que comentava. Mas ele o recordaria no dia seguinte, justo quando a dor de cabeça não lhe deixasse pensar.

—Como você desejar... excelência —disse fazendo uma exagerada genuflexão. Esse movimento quase lhe fez golpear a testa na mesa, mas inexplicavelmente adiantou a mão para não sofrer nenhum dano.

Depois de ficar reto, ato que lhe custou bastante tempo, caminhou sobre o tapete para a porta, abriu-a e, uma vez que descobriu a presença de uma pessoa, voltou a fechá-la bruscamente.

—O que acontece? —Trevor perguntou franzindo o cenho. —Não quer concluir sua noite?

—A minha sim, mas a sua não. Tenho que lhe informar, senhor Reform, que se a vista não me falha, a senhorita Barnes está atrás desta porta.

—Como? —Perguntou levantando do assento.

—O senhor tem a sua antiga amante esperando ser recebida. Faço-a passar ou a atiro pelas escadas?

—Melhor retirar-se —declarou dirigindo-se para a porta.

—Se tiver que empurrá-la quero ser eu quem desfrute desse momento.

—Boa noite, senhor —despediu-se abrindo a porta de novo. —Que Deus tenha piedade de você.

—Felizes sonhos... —indicou agarrando o trinco para fechar justo no momento em que o secretário lhe dava as costas. Mas não conseguiu seu objetivo. Jun empurrou a porta e acessou ao interior do escritório com tanta força que seu vestido sacudiu o ar do interior como se fosse um enorme leque.

—Não pretenderia me deixar lá fora, não é? —Inquiriu zangada.

—Ia fazer isso mesmo —resmungou girando-se para ela. Sem mover-se da entrada, cruzou os braços e a olhou com ferocidade. —O que faz aqui? Não entendeu bem nossa última conversação?

—Quão único entendi é que me apartou do seu lado sem razões aparentes. Passei horas me perguntando o que tinha acontecido entre nós para que me despachasse daquela forma tão cruel, mas lá embaixo achei a resposta —declarou com solenidade. —Não sou suficientemente boa para me converter em sua esposa? Tem que abrir as portas deste miserável clube para achar uma mulher que anseie vestir-se de seda? —Clamou irada.

—Isso não te concerne —respondeu com aparente calma.

—Não me concerne? —Disse colocando suas mãos nos quadris. —Mantivemos uma relação durante muito tempo, Trevor. Isso não significou nada?

—Não.

—Mentira! —Gritou desesperada.

—Parta Jun. Não quero vê-la de novo em meu clube —asseverou descruzando os braços e dando um leve passo para diante.

—Vi como a olhava... —murmurou entreabrindo os olhos ao mesmo tempo em que desenhava um ligeiro sorriso.

—Olhei muita gente. Então o que vai dizer não...

—A senhorita Giesler é bonita e boa conversadora. Gostei de manter um bate-papo com ela —declarou mordaz.

—Que diabos fez, Jun? Como se atreveu a se aproximar dela? —Trovejou.

—A princípio pensei que só era outra diversão para você...—começou a dizer enquanto caminhava de um lado a outro. —Tem que admitir que fosse lógico que prestasse atenção nela... o grande senhor Reform jogando com uma mulher! —Exclamou divertida. —Mas... por qual motivo? Jamais me permitiu participar de uma de suas partidas. Então, por que a ela sim? Logo, quando a olhava, descobri um estranho brilho em seus olhos. Você gosta dela, não é? Mas te informo que a senhorita Giesler não está interessada em você. Odeia-o. Bom, já te odiava antes de eu lhe confessar que fomos amantes.

—Você fez o que? —Uivou aproximando-se dela. Agarrou-a pelos braços e a sacudiu bruscamente. —Esqueça-a! Escutou bem? Nem te ocorra se aproximar dela!

—É uma desgraçada... —alegou enfurecendo-o ainda mais.

Com aquela ira, com aquele descontrole que se apoderara dele, Trevor arrastou Jun até a porta. Suas mãos seguiam obstinadas com força aos braços da mulher, como se quisesse lhe romper os ossos.

—Maldita rameira! —Soltou justo quando pretendia empurrá-la para tirá-la à força do escritório. Mas nesse instante ficou imóvel. Abriu os olhos como pratos e a liberou como se lhe queimasse.

Jun seguia sorrindo enquanto olhava para o corredor. Ali se encontrava, tal como tinha planejado. Pálida. Com os olhos expressando um medo tão atroz que não lhe resultaria fácil apagar de sua mente a imagem que estava presenciando. O afamado senhor Reform maltratando uma mulher...

—Senhorita Giesler... —Trevor murmurou dando um passo para ela. —Não é o que imagina... posso lhe explicar...

Mas não lhe escutou. Desceu as escadas com rapidez e se dirigiu diretamente para a saída. Reform avançou para o corrimão inclinando meio corpo para fora como se quisesse lançar-se.

—Agora... vá atrás dela, querido —disse Jun às suas costas. —E tenta lhe explicar que o que seus olhos observaram não era real.

Quando ele se voltou para lhe arrancar a língua, Jun já não permanecia ao seu lado. Descia as escadas devagar, tranquila, satisfeita. De repente soltou uma grande gargalhada que, apesar do ruído, ele pôde ouvir com claridade. Derrubado, destroçado pelo ato cruel de Jun, retornou ao escritório. Embora parasse antes de entrar. Algo no chão captou sua atenção. Era o papel que tinha escrito, que lhe ofereceu após ganhar a partida. «Só quero você». E agora... o que podia fazer depois de presenciar tão terrível acontecimento?


XVII

 

Uma vez que se tranquilizou e eliminou a ira provocada ao ler a nota, Valéria se esforçou em mostrar seu melhor sorriso enquanto caminhava para a sala onde encontraria os outros. Necessitava com urgência permanecer sob o amparo de duas das pessoas que mais amava. Talvez até esquecesse a proposição do senhor Reform e poderia retornar ao lar sem vê-lo de novo. E se contasse ao senhor Hill? Ele era um homem da lei e poderia ajudá-la. Não era esse o motivo que alegou para converter-se em um agente? Servir aos necessitados? Procurando em sua mente a forma mais acertada de lhe explicar o acontecido, Valéria não levantou o olhar do chão até que encontrou a ponta de uns elegantes sapatos. Devagar elevou o queixo para averiguar quem era a proprietária daquele bonito calçado.

—Desculpe, milady, não a tinha visto —desculpou-se ao vê-la. Tentou esquivá-la e continuar assim o pequeno percurso que a distanciava da sala, entretanto, a estranha se colocou de novo no meio do seu caminho lhe impedindo de avançar.

—Boa jogada e sou a senhorita Barnes, embora todo mundo me chame de Jun —disse-lhe estendendo a mão direita para ela.

—Obrigada —respondeu-lhe cortesmente aceitando a saudação. —E eu Valéria Giesler.

—Sinto que tenha perdido. Jogou de maneira irrepreensível e teria sido justo que ganhasse. Tenho que lhe confessar que nunca presenciei uma jogadora tão voraz. Até o último instante acreditei que lhe venceria.

—A sorte não estava esta noite do meu lado —apontou um tanto esquiva. Quem era ela e por que desejava manter uma conversação? De verdade que só se aproximou para elogiá-la?

—Tenho que admitir que me surpreendeu.

—O que lhe surpreendeu? Contemplar uma mulher jogar desse modo ou que perdesse? —Perguntou com seriedade. As feições de seu rosto, apesar de mostrar amabilidade, escondiam uma intenção. Seu instinto alemão, aquele que brotava cada vez que se encontrava em perigo, ditava-lhe que se afastasse o antes possível dali. Mas... por quê?

—Não! —Exclamou movendo o leque que segurava com a mão esquerda, como se a pergunta a alterasse. —Resulta-me incrível que Trevor tenha decidido rebaixar-se a uma atuação semelhante.

—Como? Não entendo o que pretende me dizer, nem o motivo pelo qual se aproximou de mim. Quer me reprovar por ter jogado com o dono deste clube? Por qual motivo? —Defendeu-se endurecendo os traços de seu semblante e mantendo as costas tão retas como a de sua conversadora.

—Não me entendeu bem... —disse em tom amável. —Minha pergunta é: como obteve que ele se dignasse a jogar com você?

—Acaso não fui uma digna rival? —Inquiriu mal-humorada.

—Não pretendo zangá-la, senhorita Giesler, só preciso saber como...

—Pergunte-lhe você mesma, senhorita Barnes. Se tal como aprecio, ao chamá-lo por seu nome de batismo, existe entre ambos uma relação íntima, não esbanje seu tempo procurando que eu responda o que tanto a perturba. Ou não conserva tal relação? —Insistiu notando como seu sangue fervia. Inclusive sentia o percurso de milhares de borbulhas sob sua pele.

—E você? —Perguntou-lhe fixando os olhos cinza nela como se quisesse ler o que escondia sua alma. —Que relação você possui com Trevor?

—Nenhuma. Jamais manteria uma amizade com um ser tão desprezível e, tal como percebo por seu descaramento, esse homem só pode sentir afinidade por mulheres da sua índole.

—Está me insultando? —Soltou irada. Como se atrevia aquela ordinária a tratá-la desse modo? Trevor não era capaz de ver que embaixo daquela formosa aparência se escondia uma mulher grosseira? Não seria a ela quem escolheria como esposa, não é?

—Tome-lhe como desejar... —disse enquanto avançava.

Mas justo nesse momento a mão de Jun a agarrou pelo braço parando-a em seco.

—Esse homem me pertence —grunhiu. —E ninguém se interporá entre nós.

—Pode ficar com ele. Não estou interessada em me relacionar com esse tipo de escória. E agora me solte ou lhe arrancarei esse laborioso coque. Não acredito que Trevor se agrade de ver sua puta careca.

—Maldita cadela! —Exclamou levantando a mão que segurava o leque com a intenção de lhe golpear o rosto.

—Cuide sua linguagem —Valéria declarou agarrando o pulso com tanta força que a pele empalideceu ainda mais por essa região. —Esta cadela sabe defender-se muito bem e lhe asseguro que, se voltar a ficar em meu caminho, não só terá que usar uma peruca, mas também necessitará de uma dentadura nova se quiser sorrir.

—Não se aproxime dele —pronunciou enquanto se liberava daquele agarre tão vigoroso.

—Como lhe disse com antecedência, não deve preocupar-se. Jamais me rodearia de gente tão desprezível —alegou antes de continuar seu caminho.

Jun a olhou enfurecida. Equivocou-se com ela. Nem era tão fraca como aparentava, nem tampouco tão tímida. Só esperava que não errasse também ao confabular seu plano. Se tudo saísse como planejado, procuraria Trevor para averiguar quem era a mulher que a tinha assaltado e, nesse preciso instante, descobriria algo que não esqueceria jamais.

—O que te acontece? —Kristel perguntou-lhe ao vê-la aparecer tão sobressaltada.

—Contar-lhe-ei quando retornarmos ao nosso lar —respondeu sentando-se ao seu lado.

Valéria observou a mesa onde seu irmão jogava. Os cavalheiros o olhavam com certa diversão enquanto ele não apartava os olhos das cartas. De onde se encontrava percebeu que Philip estendia o lábio superior ligeiramente para cima. Tinha uma boa jogada entre as mãos e estava ansioso por mostrá-la.

—Quando começaram? —Quis saber ao contemplar as taças que havia sobre a mesa.

A de seu irmão estava repleta, entretanto, as dos outros participantes permaneciam vazias. Aquele gesto, para qualquer pessoa que não soubesse deduzir como ela fazia, seria irrelevante. Mas erravam. Habitualmente, aqueles cavalheiros que não possuíam boas cartas, bebiam para assimilar a possível derrota enquanto o triunfador, neste caso seu querido Philip, estaria tão entusiasmado que não pensaria em outra coisa salvo em apresentar a jogada.

—Faz apenas vinte minutos. Embora não acredito que saia vitorioso. Noto como tem dúvida de receber as novas cartas.

—Equivoca-se —Valéria disse estendendo as dobras da saia do vestido. —Tem as melhores e só espera o final.

—Está segura? —Perguntou incrédula.

—Muito segura. Por certo... —disse olhando-a. —Onde está o senhor Hill?

—Foi procurar um refrigério. Aqui faz muito calor e não me lembrei de trazer um leque, como recordaram as verdadeiras damas —apontou divertida. —Sempre é assim?

—O calor? —Soltou cravando seus olhos em seu irmão. —Sim. A gente respira e...

—Não, refiro-me ao senhor Reform. Sempre se comporta dessa maneira?

—Se referir-se ao como é déspota, presunçoso e...

—Não! —Disse com rapidez ao mesmo tempo em que lhe dava uma leve tapinha no ombro. —É um homem amável e correto.

—Quantas taças bebeu, Kristel? —Inquiriu entreabrindo os olhos.

—Entendo o motivo pelo qual se sente atraída por ele. É muito bonito. Até que conheci o senhor Hill, não tinha visto um homem tão alto, com ombros largos e pernas musculosas, mas o senhor... —tentou explicar.

—O senhor Reform é alto e tem ombros largos —descreveu zangada. —Mas é um ser horrendo.

—Sigo sem compreender por que não se deixa levar por seus verdadeiros sentimentos —alegou em tom reflexivo.

—Sabe por que demorei em retornar? —Disse voltando-se para ela.

—Não.

—Por culpa de sua amante —expôs notando como as bochechas esquentavam tanto que lhe queimava a pele.

—Sua amante? Por que essa mulher se aproximou de você? O que pretendia? —Solicitou atônita.

—Declarar-me guerra.

—Uma guerra? —Kristel continuou estupefata.

—Em efeito. A muito descarada se aproximou de mim para me ordenar que me afastasse de Trevor.

—Quem é Trevor? Não estávamos falando do senhor Reform? —Disse confusa.

—São a mesma pessoa —esclareceu-lhe. —Trevor Reform, esse foi o nome. Não parece um nome odioso?

—Não acho —asseverou. —O que respondeu a essa mulher?

—Que não devia preocupar-se porque não tenho nenhum interesse nesse homem —manifestou firme.

—Pois se equivoca.

—Não me equivoco —reprovou-a.

—Sim, o faz, e como te disse a senhora Shoper, todo homem que te interessa luta por afastá-lo. Além disso, se minha percepção não me falhar, a atração é mútua.

—Pois se engana. Esse homem não é bom e jamais me proporia seduzi-lo por que...

—Se estivesse em seu lugar não duvidaria em falar de novo com ele —continuou falando sem reparar nas objeções de Valéria. —As pessoas se conhecem melhor quando podem conversar com tranquilidade. Possivelmente seja uma opção a ter em conta, dado que...

—Seu refrigério, senhorita Griffit —Borshon lhe ofereceu ao apresentar-se ante elas. —Desculpe, não imaginei que retornaria tão cedo —o agente acrescentou olhando Valéria com suspeita.

—Vim convencê-la a partir. Assim que Philip ganhe a partida seria apropriado nos afastar daqui. Meu pobre irmão está acostumado a emocionar-se muito quando resulta triunfador e prefiro que retorne ao lar entusiasmado que chorando por ter perdido tudo o que guardava no bolso —Valéria explicou ao Borshon.

Este olhou à Kristel esperando que ela alegasse algo àquele absurdo raciocínio. Mal tinham permanecido uma hora e não tinha tido tempo suficiente para lhe indicar que desejava recolhê-la no mercado no dia seguinte e levá-la ao seu lar para que conhecesse sua mãe.

—Acredito que é a melhor opção —Kristel disse depois de uns instantes meditando a resposta.

Não gostava de separar-se tão cedo daquele homem que a tratava com tanta doçura e mimo, mas se Valéria precisava retornar ao lar, antes de partir recordaria, sutilmente, que no dia seguinte podiam encontrar-se no mercado.

—Então as acompanharei até a carruagem quando o jovem finalizar a partida —o agente comentou ocultando em seu tom um enorme pesar.

Enquanto finalizava a partida, Valéria repassava em sua cabeça uma e outra vez a conversação com a senhorita Barnes. Só uma mulher ameaçada podia atuar dessa maneira tão inapropriada. Embora não devesse sentir-se de tal maneira. Ela não tinha nenhum interesse no senhor Reform. Quão único a atava a ele era a dívida que devia saldar com o senhor Hernández e lhe atirar à cara o papel que ainda guardava sob sua palma. «Só quero você». Como tinha sido tão hipócrita? Desejá-la quando aguardava uma mulher em seu quarto? Por que os homens podiam ser tão odiosos? Não tinham consciência? Atuavam por instinto? Cada pergunta e cada resposta que ela mesma se oferecia causava-lhe uma ansiedade que não podia controlar.

Tentou respirar fundo, concentrar-se nas expressões de Philip, mas lhe resultou impossível apartar aqueles pensamentos de sua mente. Odiava-o cada vez mais. Não só por cobiçar seu corpo, mas porque a tinha traído. Sim. O fato de que permanecesse esquentando seu leito com outra mulher enquanto procurava uma substituta lhe produziu um sentimento de deslealdade maior que o que podia realizar um marido infiel. Seu coração, aquele que tinha pulsado a um ritmo desenfreado quando ele estava ao seu lado, quebrou-se em mil pedaços e nenhuma mulher reparava uma destruição semelhante...

—Cavalheiros... —Philip comentou estendendo as cartas sobre a mesa. —Foi uma honra participar de uma partida tão interessante, mas como podem perceber, ganhei.

—Incrível! —Comentou um dos jogadores reclinando-se no assento. —Quantos anos disse que tinha?

—Quinze —o moço respondeu orgulhoso enquanto esperava que os cavalheiros depositassem todos os lucros.

—Pois me recorde este momento quando alcançar à vintena, jovenzinho. Asseguro-lhe que não voltarei a menosprezar um imberbe.

—Agora pode aparecer o problema —Valéria sussurrou à Kristel. —Olhe o cavalheiro que Philip tem à sua esquerda. O cenho franzido, aperta com seus dentes o charuto que sustenta na boca e não se separou de suas fichas.

—O que quer dizer? —Kristel perguntou com medo.

—Quer dizer que é um momento crítico —Borshon interveio atento à conversação. —A integridade e a honra de um cavalheiro aparecem quando é derrotado e muito me temo que ele não possua esse tipo de qualidades.

—Será melhor que eu me aproxime —Valéria comentou. —Se virem que uma mulher...

—Não —o agente a cortou. —Isso poderia humilhá-lo. Permitamos-lhe que atue como devido. A senhora Shoper não lhe disse que se converteria em um guerreiro? Pois lhe proporcionemos essa opção.

—E se quiser lhe agredir? —Kristel soltou atemorizada.

—Nem lhe ocorrerá realizar tal insensatez diante de um agente —expôs o senhor Hill levantando-se de seu assento.

Nenhuma apartou a vista de Philip. Por mais que Borshon lhes tivesse indicado que deviam manter-se em segundo plano, estariam atentas se por acaso necessitava de ajuda. Embora não soubessem brigar, cair-lhe-ia bem montar um escândalo.

—Milord... —o moço disse ao notar que o cavalheiro sentado à sua esquerda não parecia convencido.

—Acredito que fez truques —soltou zangado.

—Dúvida de minha idoneidade? —Philip perguntou sem mover-se do assento. —Ou talvez não seja capaz de assumir a derrota?

—Tire a jaqueta! Mostre as mangas! —Ordenou-lhe o homem. —Com certeza guarda embaixo delas alguma carta. Todos os de sua índole são uns enganadores.

—Entendo... —comentou o moço. Apartou lentamente a cadeira com as pernas. Em frente ao olhar daqueles que lhe observavam, tirou-se a jaqueta e a estendeu sobre seu assento. Continuando, desabotoou os botões das mangas e as arregaçou até o cotovelo. —Parece-lhe bem ou deseja que eu me dispa completamente? Talvez o único que pretendia era observar meu corpo juvenil posto que o seu já sofreu o passar dos anos.

—Maldito desbocado! —Gritou zangado levantando-se bruscamente do assento.

—Se eu fosse você relaxaria —advertiu-lhe Borshon, que se colocou ao lado do moço. —E admitiria a derrota com honra.

—Tem que ser muito difícil assumir a perda dessa fortuna ante um jovem... imberbe —Philip adicionou mordaz esticando a camisa para fechá-la de novo. —Mas quando me ofereci a participar nenhum dos presentes se negaram, embora eu não tivesse uma barba dura como a que vocês usam esta noite.

—Ganhou honestamente —comentou outro dos participantes. Este se levantou, estendeu a mão para Philip e quando a aceitou, expôs: —Você pode ir ao meu escritório quando quiser, jovem Giesler. Oferecer-lhe-ei o melhor emprego que tiver.

—Você é muito amável, senhor Thomarson. Não duvide que o faça se minha irmã mais velha ver oportuno que abandone meus estudos —comentou zombeteiramente.

—Nem pergunte —respondeu. —Continue com esses estudos e prossiga com a decisão de sua irmã. Como pude observar, soube lhe oferecer uma educação e uma sensatez muito pouco habitual em moços de sua idade. Boa noite.

—Boa noite —comentou.

Óbvio, o único que não se despediu foi o cavalheiro que tentou lhe tachar de mentiroso, mas Philip não se importou com essa recriminação. Estava seguro de que algum dia o destino lhes faria coincidir de novo e aproveitaria esse momento para lhe recordar o desprezo que lhe tinha devotado no passado.

—Feliz? —Valéria perguntou-lhe uma vez que tudo se acalmou.

—Bastante. Foi melhor do que eu pensei —indicou alegre.

—Bem, pois a noite terminou. Devemos partir ao nosso lar. Não quero que Martin passe a noite na casa da senhora Shoper —disse como desculpa.

—Antes de sair daqui alguém deve me trocar as fichas. Quem o faz? —Perguntou olhando à única pessoa que podia lhe ajudar: sua irmã.

—O crupier —respondeu-lhe. —Ele mesmo fará essa troca.

Enquanto Philip abria os olhos como pratos ao ver a arrecadação sobre a toalha de mesa, Borshon acompanhava Kristel à saída e Valéria observava ao seu redor se por acaso o senhor Reform estava perto. Não queria encontrá-lo. Não desejava falar com ele. Só pretendia sair dali o antes possível e que esquecesse até seu nome, embora ela sempre recordaria o seu. Quem é capaz de fazer desaparecer de sua mente o nome da pessoa que lhe tinha quebrado o coração? «Afinal parece que sentia mais do que assumia», disse-se com tristeza.

—Cem libras —sussurrou-lhe o moço quando esteve ao seu lado. —Ganhei cem libras! —Repetiu eufórico.

—Alegro-me, mas te advirto que nem sempre ganha.

—Não vou dedicar-me a isto —disse ao mesmo tempo em que avançava para o hall. —Como bem sabe, converter-me-ei em um guerreiro; este episódio da minha vida só me serviu para te demonstrar que não sou tão criança como pensava.

—Muito ao meu pesar, tem razão —comentou voltando-se para ele. —Está crescendo rapidamente e me alegro de que nessa cabeça exista um homem sensato.

—Crê que herdou a sensatez de nosso pai? Equivoca-se, Valéria. Martin e eu somos mais parecidos com papai que você. Quão único deve fazer é assumir quem é em realidade e abandonar essa personalidade na qual se oculta. Algumas vezes vejo como luta contra os seus impulsos e como isso te faz mal. Por que se reprime tanto? Por nós? Para que não nos esqueçamos de quem foi nossos pais? Pois não deve fazê-lo mais. Nós dois sabemos muito bem de onde viemos e o que nos contribuiu a mescla de sangue. Abandona já essa postura e deixa fluir a verdadeira Valéria; Martin e eu necessitamos da nossa irmã, não de uma altiva instrutora —sentenciou antes de dirigir-se para Kristel para lhe dizer seu ganho.

Valéria suspirou fundo. Apesar de ser um jovem que mal começava a viver tinha razão em uma coisa: desde que sua mãe morreu não tinha sido ela mesma. Esqueceu-se de sorrir e de desfrutar de cada momento que a vida lhe oferecia. Mas Philip não entendia que só o tinha feito por eles, para que não recordassem, como pareciam acontecer, aqueles dias nos quais não podia lhes oferecer nada para comer. Era certo que graças aos seus lucros nas partidas tudo tinha mudado... menos ela. Devia começar essa transformação. Deixar que a verdadeira Valéria surgisse e para isso precisava resolver alguns temas que não demoraria por mais tempo.

Fortalecida ante tal decisão, deu uma olhada às zonas mais próximas a ela e procurou a única pessoa com a qual falaria. Não lhe ocuparia muito tempo, o suficiente para lhe revelar que ela era o senhor Hernández, que lhe pedia o ganho obtido quando jogou na sexta-feira passada e que se esquecesse do que anotou no papel porque ela não era nenhuma cortesã e sim uma mulher honrada, tão decente que ainda não tinha sido beijada. Ao não achá-lo na planta baixa, elevou o olhar e descobriu que a porta do escritório permanecia aberta. Estava ali. Retirou-se como sempre fazia, resguardando-se na habitação onde ninguém podia alcança-lo. Mas desta vez se equivocava, ela invadiria sua privacidade e falaria até ficar satisfeita. Com um nó na garganta, com aquela bola de papel oculta na mão, subiu os degraus de dois em dois. Parou ao chegar, tomou ar, deu vários passos e, quando se encontrou na porta, ficou paralisada.

—Você fez o que? —O senhor Reform gritou enquanto agarrava a mulher e a sacudia bruscamente. —Esqueça-a! Escutou bem? Nem te ocorra se aproximar dela!

—É uma desgraçada... —escutou-o dizer à senhorita Barnes.

Então Valéria conteve a respiração. Aquele homem, convertido em um monstro, apertava suas grandes mãos nos braços frágeis e a arrastava para onde ela se encontrava.

—Maldita rameira! —Exclamou justo no momento que tentou empurrá-la.

Nesse momento seus olhos e os do senhor Reform se cruzaram. Nunca tinha contemplado um olhar tão frio nem tão desumano. Parecia que desejava lançá-la pelo corrimão, aniquilá-la. Como podia comportar-se desse modo com sua amante? Por que era tão cruel? Aturdida, abriu a mão deixando cair o papel que guardava nela. Tinha que fugir, mas não só do clube e sim da cidade. Ele conhecia a direção de seu lar e podia aparecer quando quisesse para tratá-la tal como observava.

Quando percebeu que dava uns passos para ela, girou-se aterrorizada e desceu as escadas. Não, não podia lhe permitir que se aproximasse porque se não fizesse o que lhe tinha escrito no papel, possivelmente terminaria morta em alguma rua de Londres.


XVIII

 

Ficou parado na porta até que a carruagem desaparecesse de seu campo de visão. Borshon se sentia feliz, apesar de não ter conversado tudo o que desejava com Kristel, mas tinham programado ver-se no dia seguinte e lhe tinha sugerido que levasse consigo o livro que lhe deu de presente. Sorriu de orelha a orelha, agradado ao observar seu rosto quando lhe beijou a mão. Se o palpite que sentia em seu coração não o confundia, poderia havê-la beijado nos lábios se tivessem tido um pouco de intimidade. Satisfeito ao descobrir que seus sentimentos eram correspondidos, retornou ao clube. Como algo incomum, e rompendo uma de suas normas mais convictas, tomaria uma taça com o senhor Reform enquanto conversavam sobre a partida e o motivo pelo qual decidiu apartar, tão injustamente, quem desejava ser testemunha de sua jogada.

Enquanto caminhava pelo grande saguão, observou as salas. Estavam repletas. Ninguém, salvo elas, tinha abandonado o clube, assim que muito se temia que a noite, para o dono de tal acontecimento, alargar-se-ia até o amanhecer. De repente entreabriu seus olhos. Onde tinha se metido? Estaria entretido jogando com outro competidor? Por que não ficou atrás de Valéria como proclamou? Tinha mudado de opinião com respeito a ela? Já não lhe interessava? Justo no momento que ia pisar no primeiro degrau, uma risada muito estrondosa captou sua atenção. De forma pausada girou-se para visualizar a pessoa que emitia um ruído tão ensurdecedor. «Senhorita Barnes... —refletiu ao achá-la. —Por que ri desse modo? O que lhe faz tão feliz?»

Embora a vontade de averiguar o que estava ocorrendo era imensa, aplacou-a com rapidez. Não devia lhe importar o que fizesse aquela mestra do sexo. Seus dias como amante do dono do clube tinham terminado e era lógico que mantivesse uma atitude risonha e cativante para procurar outro iludido que pagasse os caprichos de uma mulher insatisfeita. Entretanto, sua acuidade policial lhe indicava que se tratava de uma mera aparência, que embaixo daquele sorriso coexistia uma grande maldade. Mas... o que teria feito? Negando com a cabeça o impulso de averiguar o que se teria proposto, terminou por subir.

A porta do escritório de Reform estava aberta e isso significava que ele permaneceria no interior revisando seus estimados papéis ou contando a fortuna que embolsaria de novo. «Tinha que ter pedido uma percentagem —disse-se. —Não foi sua ideia? Pois deveria obter algum benefício em troca...» ao subir girou-se para o corrimão, colocou as grandes palmas sobre ele e observou o movimento das pessoas. Iam de um lado para o outro procurando um lugar onde entreter-se, onde poder falar com certa privacidade ou possivelmente mais de um cavalheiro ansiava achar as empregadas que, habitualmente, trabalham no local. Com um sorriso que lhe abrangia o rosto voltou-se para a entrada do escritório de Reform e, quando seus olhos lhe revelaram o que acontecia no interior, aquele sorriso desapareceu. Com a grandiosidade de um titã e a agilidade de uma pantera, Borshon correu para Trevor, quem permanecia atirado no chão de barriga para baixo e, conforme parecia, inconsciente.

—Senhor Reform! —Exclamou ao mesmo tempo em que o girava para lhe ver o rosto. —Escuta-me? O que lhe aconteceu? —Perguntou enquanto procurava alguma mancha de sangue, algo que lhe indicasse que lhe tinham disparado em alguma parte do corpo ou golpeado na cabeça. Mas não tinha nada. Quão único percebeu foi uma horrenda pestilência a uísque. —Bebeu, senhor Reform? O que tomou? —Deu uma rápida olhada à mesa achando duas garrafas de igual tamanho. Uma de água, que seguia cheia, e a outra vazia. Correu para a garrafa que não albergava nada em seu interior, cheirou-a e fez uma careta de desagrado. —Maldição! —Gritou. Sem perder um só instante agarrou a garrafa de água dirigiu-se para Trevor e a esvaziou na altura de seu ombro. —Desperte de uma vez! —Clamou com uma mescla de diversão e medo. Por desgraça, durante suas longas horas de trabalho, foi testemunha de um sem-fim de casos nos quais homens embriagados tinham perdido a consciência ao ponto de asfixiar-se com sua própria língua. Mas não colocaria seus dedos naquela boca, nem se agacharia para comprovar que o peito masculino subia e baixava ao ritmo de uma pausada respiração. Por agora, bastaria aquela garrafa e, se não albergava suficiente quantidade para despertá-lo, ordenaria que lhe levassem vários baldes. —Juro-lhe que seguirei molhando o precioso tapete em que descansa até que abra os olhos —ameaçou-o. —Maldição, Trevor Reform, abra de uma vez os olhos!

—Deixe-me em paz... —Trevor disse enfim. Moveu sua mão direita em forma de semicírculo como se lhe pesasse uma tonelada. —Vá embora...!

—Você fala como se fosse um menino de dois anos —disse satisfeito ao ver que reagia.

—Vá embora! —Insistiu. —Deixe-me morrer tranquilo! —Pediu girando com muito esforço seu corpo para o lado contrário no qual permanecia o agente.

—Acredito que vou refrescar essa cabeça um pouco mais —Borshon declarou caminhando para a saída. —Segue sem pensar com claridade.

—Nem lhe ocorra me molhar de novo! —Exclamou sem olhar. —Sabe quanta fortuna empenhei para adquirir este tapete? Tem um valor incalculável... —balbuciou antes de começar a emitir umas grandes ânsias que terminaram com a expulsão de fluidos pestilentos e repulsivos.

—Agora mesmo não tem nenhum valor, senhor Reform. Vomitou tudo o que ingeriu sobre ele —disse-lhe divertido.

—Lavar-se-ão e recuperará seu valor. Em troca, eu jamais conseguirei ser o mesmo... —indicou enquanto colocava suas mãos sobre o tapete e se ajoelhava como se tentasse levantar-se. —Aquela filha de puta me arrebatou tudo o que eu desejava...

—Quem? —Perguntou eliminando a ideia de pedir mais água a qualquer empregado.

—Jun —respondeu enquanto tentava encontrar um pouco de dignidade. Mas já não tinha nenhuma, partira atrás de Valéria.

—Vi-a abaixo. Sorria de forma descarada. Imagino que anda procurando outro protetor —informou-lhe.

—Pois pobre de quem coloque os olhos nela. Vai sofrer a ira de uma mulher sem escrúpulos.

Não podia levantar-se. Seguia com as mãos sobre o tapete e seus joelhos, apesar de sustentá-lo, tremiam, indicando-lhe que cedo ou tarde voltaria a cair sobre o chão.

—Jamais acreditei que seu calcanhar de Aquiles seria uma mulher —Borshon refletiu caminhando para Trevor. Embora não quisesse ajuda, agarrou-o pelo braço e o elevou. —Mantenha-se em pé, senhor Reform. Recupere de uma vez por todas suas dignidades e me explique o que aconteceu —insistiu.

—Uma tragédia —começou a dizer ao mesmo tempo em que apoiava a palma direita sobre sua mesa. —Aquela maldita harpia soube que Valéria é a razão pela qual não a quero ao meu lado e ideou um plano.

—Qual? —Perseverou cruzando os braços sem afastar-se de Trevor, se por acaso necessitasse de ajuda de novo.

—Subiu ao meu escritório e foi testemunha de como a agredi —respondeu mostrando em sua fala um enorme pesar.

—Quem foi a testemunha e a quem agrediu? —Reiterou confuso.

—Jun apareceu aqui empenhada em que retornasse com ela. Ao negar-lhe ela lutou para ficar ao meu lado. Então foi quando a agarrei pelos braços com tanta força que poderia lhe haver quebrado algum osso. Mas desejava, com todo meu coração, apartá-la o antes possível. Na resistência, possuiu-me uma ira tão descomunal que só pensava em atirá-la pelas escadas e foi justo nesse instante que Valéria observou tudo o que acontecia —acrescentou colocando ambas as mãos sobre a mesa e pousando sua cabeça entre elas, envergonhando-se daquele ato cruel.

—Adverti-o —Borshon disse sem mover-se. —Até lhe comentei um dos casos mais horrendos que vivi desde que sou agente.

—Já... o recordo. A doce esposa, aquela que ofereceu seu marido como alimento —rememorou. —Não duvido que o faça, depois de ver como atuou Jun, qualquer coisa me parece acreditável.

—O que pretende fazer agora? Não terá pensado resguardar-se entre estas paredes chorando pelo que perdeu, não é? —Hill perguntou entreabrindo os olhos.

—Se tivesse visto o rosto de Valéria... aqueles olhos repletos de medo e confusão... —apontou fechando suas palmas e as transformando em dois enormes punhos sem vida.

—Quer render-se? O grande senhor Reform deseja abandonar uma batalha que acaba de iniciar? Tão pouco lhe interessa essa mulher? —Amolou-o para chamá-lo de novo à ordem e procurar, embaixo daquele corpo deprimido e humilhado, o homem que tinha conhecido horas antes.

—Interessar-me? —Perguntou voltando-se para ele com a pouca energia que ficava. —Daria a minha vida por ela! —Exclamou fora de si. —Valéria é quão única necessito para ser feliz! —Sucumbiu.

—Então... que passo seguiremos, senhor Reform?

—Seguiremos? —Perguntou confuso.

—Recordo-lhe que me contratou para um mês e mal trabalhei uns dias. Como compreenderá, não posso abandonar um caso tão importante nem tão bem remunerado.

—Faz por dinheiro... —Trevor refletiu um tanto decepcionado.

—Faço-o por isso, sim, porque preciso comprar um novo lar à minha mãe. Não lhe disse que está tombada na cama, que não pode mover as pernas? Leva mais de quinze anos prostrada no leito e desejo adquirir um lugar onde possa mover-se com uma dessas cadeiras que têm rodas —confessou-lhe.

—Posso lhe pagar agora mesmo a quantia que lhe prometi —disse apoiando suas nádegas na mesa sem apartar as mãos desta. —E me deixará em paz.

—Deixá-lo em paz? —Repetiu descruzando os braços. —Nem em sonho! —Clamou.

Era certo que o fazia por dinheiro, mas também lhe devia certa lealdade, aquela que têm que ter duas pessoas que cercam uma amizade, embora ele não desejasse reconhecer esse afeto ainda. Depois de contemplá-lo uns instantes e perceber aquela tristeza que só um homem apaixonado podia mostrar, Borshon saiu ordenando que alguém aparecesse ante ele.

Um jovem, que tinha abandonado sua mesa de jogo para descansar, escutou o agente e subiu as escadas como alma que deseja levar o diabo.

—Senhor Hill, o que ocorre? O que necessita? —Perguntou entrecortado, mostrando em sua respiração que tinha chegado ante ele correndo.

—Como se chama, moço?

—Gilligan Thomas, senhor —respondeu o jovem crupier.

—Bem, Gilligan. Em que aposento o senhor Reform descansa quando não dorme na poltrona que tem no escritório?

—Nesse —indicou-lhe a porta que havia ao final do comprido corredor.

—Perfeito. Procure outro empregado e ordene na cozinha que se prepare a tina do senhor com água gelada. Necessita com urgência de um banho.

—O senhor Reform se encontra doente? —Quis saber.

—Muito, tanto que não é capaz de raciocinar com sensatez —expôs voltando-se para o interior do escritório. —Senhor Reform, —indicou olhando-o sem pestanejar —tem duas opções: ou se desnuda para não estragar esse traje tão sofisticado ou o banho com ele posto. Você decide.

—Nem lhe ocorra me fazer tal coisa! —Clamou Trevor, que tinha escutado a conversação.

—Oh, sim, fá-lo-ei e amanhã você e eu nos apresentaremos no mercado para acompanhar nossas mulheres. Não quererá ser informado que o bastardo do senhor Mayer apareceu ante Valéria e, depois de lhe pedir mil desculpas, ela caiu em seus braços, não é?

—Antes prefiro morrer! —Clamou ele.

—Isso é o que eu precisava escutar —apontou antes de segurá-lo novamente pelo braço e arrastá-lo para a habitação.

 

 

—Ainda segue zangada por ter perdido do senhor Reform? —Kristel perguntou à Valéria enquanto enchia o bule de água. Desde que saíram do clube ela não havia dito nem uma só palavra. Mostrava-se distante, ausente. Imaginou que esse comportamento desapareceria uma vez que se encontrasse a salvo no lar, mas não foi assim. Durante a intensa conversação que ela manteve com Philip revivendo emocionado a cada segundo a partida que jogou, Valéria permaneceu sentada em frente à penteadeira observando-se com receio enquanto se tirava, com uma lentidão inaudita, as forquilhas de seu penteado.

—Não estou zangada. Era normal que perdesse. Quando seu rival jogou desde sua mais tenra infância, alguém deve ser consciente de que existe uma alta probabilidade de fracassar —manifestou serena.

Tinha contemplado seus irmãos descansarem em muitas ocasiões, entretanto, era a primeira vez que se mantinha de pé em frente a eles e não refletia sobre como passaram o dia. Sua mente seguia no clube, evocando uma e outra vez o que o senhor Reform fizera. Cansada consigo mesma ante aquela persistência mental, girou-se e caminhou para a mesa esperando que o bate-papo que manteria com Kristel enquanto tomavam o chá acalmasse sua angústia.

—Então, o que te perturba? Tudo isso que percebo se deve à inesperada apresentação da amante do senhor Reform? O que expressam seus olhos é decepção ou raiva? —Perguntou sem olhá-la.

Não queria ver as expressões de desagrado que ela mostraria ao sentir-se envenenada com suas perguntas. Valéria era uma pessoa que mudava bruscamente de conversação quando se achava pressionada. Era seu único mecanismo de defesa: fugir da verdade.

—Não sei se é decepção... —respondeu mediante um suspiro —mas sinto uma pressão enorme aqui —acrescentou colocando sua mão direita no peito. —Lembra-se da dor que padeceu no tórax quando adoeceu na última vez? —Recordou-lhe.

—Sim, foi bastante dilaceradora. Parecia que alguém tinha me partido em duas —respondeu pegando com cuidado o bule quente. Caminhou até a mesa, verteu água nas xícaras e jogou uns sachês de chá que guardavam na gaveta para momentos especiais.

—Pois meu dano é muito semelhante a esse —disse segurando a vontade de chorar.

Tinha desejado fazê-lo no mesmo instante que observou Trevor agredindo aquela mulher. Como pôde perder os nervos com tanta facilidade? Por que não conseguira controlar-se? Embora escutasse toda a conversação, embora a senhorita Barnes merecesse o que lhe fez, um homem nunca devia deixar-se levar pela ira. Tinha que ser firme, respeitoso e, sobretudo, compreensivo. Acaso não entendia que estava apaixonada por ele e que só queria conservar aquela relação? Uma mulher podia ficar louca sem o homem ao qual amava...

—Se chegasse, a saber, que essa mulher estava conversando contigo, teria saído à sua procura —Kristel apontou tomando assento. —Foi muito atrevida e descarada. Essa atitude não é própria de uma mulher, apesar de sentir-se ameaçada ante a presença de outra. Por que diabos o fez? O que te disse exatamente?

—Conforme entendi em suas palavras, tomou-me como uma rival e quis me deixar claro que não tinha nenhuma possibilidade de apanhá-lo —declarou sentando-se devagar.

—Por que chegou a essa conclusão tão insólita? Percebeu algo que nós não fomos capazes de observar? Porque, se não me equivoco, o senhor Reform se comportou como um bom anfitrião e em nenhum momento fez ou disse algo inapropriado —insistiu sem mover nem uma pestana.

—Possivelmente não precisava que dissesse ou atuasse...

—Necessito que fale com claridade, Valéria Giesler —interrompeu-a. —Diga-me o que aconteceu esta noite e por que essa mulher se sentiu ameaçada por você. Sei que me oculta algo, leva fazendo-o há algum tempo —comentou esticando suas mãos para ela. —Não te julgarei, juro-lhe isso. Só quero te ajudar.

Valéria olhou aquelas mãos sobre as suas e notou como começava a reconfortar-se. Era o momento de falar com a sinceridade que lhe demandava e que merecia depois de estar ao seu lado durante tantos anos. Não era só uma amiga, um ser que apreciava, Kristel tinha se convertido em seu pilar, na única pessoa em quem podia confiar aquele sentimento que tinha crescido nela com tanta força que começava a prejudicar não só seu coração, mas também sua cabeça.

—Esta noite não foi a primeira vez que joguei com o senhor Reform. Na sexta-feira passada participei de outra partida —declarou depois de tomar ar.

—Foi a segunda? —Perguntou assombrada sem apartar suas mãos.

—Recorda que te falei sobre as inexplicáveis aparições do senhor Reform nas salas? —Comentou fixando seus olhos na água que já começava a tomar a cor do sachê.

—Sim. Assim como me lembro das explicações que me ofereceu para elas. Segundo você era normal que o dono do clube passeasse de um lado para o outro confirmando que seus clientes estavam satisfeitos.

—Pois na sexta-feira passada se aproximou da mesa onde eu jogava e me ofereceu uma partida —manifestou fechando os olhos como se quisesse rememorar aquele momento de novo. E o fez. Percebeu de novo sua presença, respirou outra vez aquele perfume misturado com a fumaça de seu tabaco. Viu seus olhos escuros cravando-se nos seus com uma intensidade desumana.

—Por quê? O senhor Reform está acostumado a jogar com os sócios? É algo habitual nele?

—Não —negou não só com esse monossílabo, mas também com a cabeça. —Nunca o tinha feito até aquele momento —confessou.

—O que ocorreu? O que fez quando o descobriu ao seu lado? Por que supõe que rompeu um de seus costumes?

—Não posso te responder a isso porque não sou capaz de achar as respostas. Só te direi que me encontrava bastante centrada na jogada. Precisava de apenas duas cartas para ganhar e não soube de sua aparição até que notei como o crupier ficara tenso. A princípio imaginei que se devia à minha futura vitória, pois o pobre já estava cansado de que eu depenasse uma e outra vez a banca, mas quando lhe saudou fiquei paralisada.

—Continua... —animou-a apartando lentamente suas mãos para poder segurar sua xícara.

—Tentei me levantar, sair dali o antes possível. Entretanto, ele não me permitiu isso.

—Obrigou-te a jogar? —Perguntou elevando as sobrancelhas.

—Ofereceu-me um ganho que não pude rejeitar —declarou pressionando sua xícara com ambas as mãos.

—Quanto?

—Mil e seiscentas libras —revelou fechando os olhos nesse momento.

—Ganhou? —Perguntou assombrada.

—Sim... —disse com um longo suspiro.

—É muito dinheiro, Valéria. Onde o ocultou? Por que não me disse isso antes? Envergonhou-se? Pensou que eu te reprovaria uma coisa assim?

—Não, jamais acreditei que me criticaria por alcançar a quantia que necessitávamos para obter nossos sonhos, embora já me deixasse claro que o sonho era só meu, não o deles.

—Então? —Perseverou sem poder tomar nem um só sorvo do chá. —O que fez com a fortuna, investiu-a?

—O senhor Reform não me pagou a dívida. Apesar de indicar que me pagaria se eu subisse ao seu escritório, não cumpriu sua palavra —disse com uma mescla de aborrecimento e irritação. —Segundo ele, não pôde saldá-la naquele momento porque não tinha arrecadado o suficiente para pagar antes o salário de seus empregados. Não obstante, ofereceu-me a opção de arrecadá-la a cada vez que aparecesse. Embora acredite que seguirá mentindo para mim...

—Esse homem tem uma fortuna incontável —Kristel resmungou. —Muito me temo que te enganou.

—Sei, mas como eu também lhe enganava não quis enfrentá-lo. Tenha em conta que a pessoa que apareceu no clube era o senhor Hernández não Valéria Giesler. Assim, embora eu tenha ido ao seu escritório seguindo sua estranha norma, não foi capaz de me pagar essa quantidade alegando essa falácia.

—Possivelmente queria averiguar se utilizou alguma patranha para ganhar. Já sabe que nesse mundinho a honradez mal existe —Kristel concluiu sem apartar os olhos dela.

—Mas tem que me pagar porque joguei honestamente! —Exclamou zangada. Ao notar que um de seus irmãos se movia na cama ante seu exaltado tom de voz, converteu-o em um sussurro. —Se tivesse sido um homem de honra teria me pagado. Desse modo não teria que pisar de novo em seu odioso clube.

—Talvez não queira evitar sua presença... —deduziu rapidamente. —Possivelmente deseje que siga indo. Embora me custe concretizar o motivo. Seguramente qualquer dono de um lugar assim preferiria fazer desaparecer o causador das perdas de suas mesas que mantê-lo perto.

—Mesa —Valéria esclareceu.

—Mesa? Como assim mesa? —Perguntou atônita. Ao observar como os moços voltavam a mover-se realizou a seguinte pergunta em voz baixa: —foi tão insensata de jogar sempre no mesmo lugar?

—Sabe que sou uma mulher de costumes e como na primeira noite arrecadei mais de duzentas libras na mesa número sete, sempre permaneci nela —esclareceu.

—Isso não é um costume, Valéria! —Exclamou com força apesar de emiti-lo em um sussurro. —É uma tragédia! De verdade que não é consciente do que fez durante estes meses? Tão obstinada assim?

—Não fiz nada... —defendeu-se esticando as rugas fantasmas de seu vestido. —Sabe que eu necessito de uma rotina para...

—Não minta mais para você. De verdade, não o faça —recriminou-a. —O que esteve fazendo durante esse tempo é despertar o interesse do senhor Reform e o entendo, juro que o faço. É um homem muito atraente, sedutor e essa atração perigosa o faz irresistível, mas o que me parece impensável é que esteja apaixonada por ele e não seja capaz de reconhecer.

—Não estou apaixonada. E não o repita mais —repreendeu-a. —Meu único propósito era ganhar o suficiente para poder lhes oferecer uma vida boa —disse esticando a mão direita para o leito onde descansavam seus irmãos. —Não quero voltar a escutar seus prantos ante a fome. Não recorda como choravam?

—Recordo... —Kristel disse com um enorme suspiro.

Não era capaz de dar-se conta de que tentava pôr milhares de desculpas para não aceitar a realidade? Estava apaixonada pelo senhor Reform! E se sua percepção era correta, ele também correspondia àquela atração. De repente, ao pensar na carta que enviou a ela precisamente, em como não lhe reprovou o pagamento das faturas, o comportamento cortês para com elas, aquela inesperada abertura do clube para as damas... apareceram em sua mente como se fosse uma chuva de estrelas. Sabia. Não havia dúvida disso. Trevor Reform sabia que o senhor Hernández era Valéria Giesler. Então a voz da senhora Shoper apareceu como se ela estivesse ao seu lado lhe sussurrando: «Um homem que sabe seu segredo, que não tem dúvidas de quem é na realidade. Também vejo amor, não só por parte dele, mas também pela sua, mas o afastará, porque tudo aquilo que possa debilitar seu caráter azedo, aparta-o com rapidez». E não podia haver descrito melhor aquilo que estava acontecendo. É óbvio que conhecia quem era em realidade o senhor Hernández, mas queria ser testemunha de como esse moço magricela e imberbe se convertia na mulher que escondia embaixo daqueles farrapos velhos. E ofereceu aquela festa... na metade da semana... e Borshon foi quem as informou desse acontecimento... «Senhor Hill, —pensou —se tudo isto for certo... onde posso situar você?»

—Valéria, quero que respire fundo e me escute atentamente —indicou-lhe aproximando-se dela de novo.

—O que acontece? Por que ficou calada durante tanto tempo?

—Ele sabe. Não sei como o averiguou, mas o senhor Reform sabe que você é o senhor Hernández.

—Impossível! Esse homem pode ter uma cabeça muito atraente, mas com certeza dentro dela não tem nada mais que serragem —alegou zangada.

—Possivelmente teve ajuda. Quão única necessitava...

—O senhor Berwin é muito bom para...

—O que te parece um agente da Scotland Yard? —Disse enquanto seu coração se partia em mil pedaços.

—Está pensando que o senhor Hill foi contratado para me descobrir? —Inquiriu levando as mãos à boca como se quisesse fazer-se calar.

—Sim e possivelmente aquela percepção que teve ao vê-lo no mercado era certa. O que podia fazer um homem como ele naquele lugar? —Comentou sem voz devido àquela aflição que, para seu pesar, fazia-se cada vez mais dolorosa.

—Você mesma me indicou que ele desejava comprar novos livros à sua mãe —recordou.

—Há muitos lugares onde poder comprar bons livros, Valéria, mas o único no qual podia nos encontrar era nesse. —Tremiam-lhe as pernas, sua força desaparecia a cada palavra que expunha. Tudo tinha sido uma farsa. Ele tinha jogado com ela porque só assim permaneceria ao lado de Valéria. Como tinha sido tão iludida de acreditar naquela tolice? Como tinha sonhado poder amar um homem como ele? Tão irracional tinha sido?

—Oh, meu Deus! —Valéria exclamou lançou-se à Kristel para abraçá-la. —Sinto muito, querida. De verdade que o sinto. Nunca imaginei que meu plano te faria mal. Se tivesse sabido antes... —disse-lhe entre muitas lágrimas. —Partiremos! Vamos hoje mesmo daqui! Temos dinheiro suficiente para sair desta cidade e procurar um lugar seguro. Se explicarmos aos meninos, eles serão compreensivos —comentou sem mal respirar.

—Não —apontou com firmeza. —Nós não fizemos nada mau, Valéria. E não abandonaremos nosso lar como se fôssemos delinquentes. Temos um pouco de dignidade, pois mostremo-la.

—Eu não sou tão forte, Kristel. Apesar desta aparência... —alegou separando-se dela.

—Não é forte porque se apaixonou por ele —manifestou solene. —Assim como eu me deixei levar por uns sentimentos que, conforme parece, foram falsos.

—E se estou apaixonada... o que importa? Não recorda que essa amante o reclamou? Além disso... não quero viver com um homem que é incapaz de manter as calças em seu lugar! —Indicou irada.

—Por uma vez me deixe desfrutar de uma vingança —pediu transformando seu doce rosto em um tão maligno que Valéria ficou sem fala. —Quero saber até que ponto posso me converter em uma mulher cruel.

—Você? —Perguntou boquiaberta.

—Surpreende-te? Pois não deveria fazê-lo. Você mesma comentou no princípio desta conversação que uma mulher pode ficar louca quando não alcança o homem que ama e, se acrescentarmos que também é enganada, acredito que nenhuma besta maligna pode nos igualar.

—Eu não gosto de como me olha... é a primeira vez que me dá medo...

—Você não tem que me temer, querida. Só aqueles que quiseram brincar com os nossos sentimentos —disse apertando os dentes. —Agora nos sentemos e pensemos como podemos arrancar o coração de dois homens que não o possuem... —expôs lhe assinalando as cadeiras com a mão direita.


XIX

 

Aphra observava como seu filho caminhava de um lado para o outro procurando algo que, para sua desgraça, não encontrava. Como cada manhã, levantou-se muito cedo, preparou-lhe o café da manhã e mantiveram uma distendida reunião. Nessa ocasião, o tema de conversação foi a senhorita Griffit, aquela jovem que tinha conquistado o enorme coração de Borshon. Durante o bate-papo não cessava de elogiá-la e de ressaltar o quanto era educada, respeitosa e atenciosa. «Não há maldade nela», reiterou em várias ocasiões. Mas Aphra duvidava de que existisse no mundo uma mulher tão cândida, tão singela e adorável. Por esse motivo não parava de insistir que devia conhecê-la. Possivelmente, uma vez que conversasse com a jovem, descobriria se era tal como a descrevia ou seu adorado filho se cegou com ela.

—O que procura? —Decidiu lhe perguntar enfim.

—O alfinete da minha gravata. Aquele que o inspetor me deu de presente quando prendi a doce esposa —disse.

—Está no porta-joias que está sobre estante. Você mesmo o guardou ali depois daquela celebração privada —informou-o. —Tão nervoso se encontra que não é capaz de recordar um detalhe tão simples?

—Estou —expôs desenhando um enorme sorriso. —Não estaria em meu lugar? —Perguntou enquanto caminhava para aquele porta-joias. Depois de abri-lo com cuidado, se por acaso suas grandes mãos quebrassem sem querer a única lembrança que sua mãe possuía de seus antepassados, pegou o alfinete e o colocou na gravata.

—Vai aparecer muito bonito no mercado. As pessoas não demorarão em saber o motivo pelo qual se apresenta tão elegante —indicou acomodando-se na cama.

—Não me preocupa. Talvez seja o melhor, assim todos saberão que a senhorita Griffit tem que ser respeitada como merece ou cairá sobre eles o grande peso da lei —assinalou zombeteiramente.

—Um enorme peso... —Aphra acrescentou divertida. —Borshon... está seguro do que vai fazer?

—Muito seguro —declarou com firmeza. —Ela é a escolhida —continuou com aquele tom de voz. —Enquanto não tinha colocado meus olhos em Kristel, não tinha considerado a ideia de viver com uma mulher, de convertê-la em minha esposa. Mas desde esse momento não houve hora que não o deseje.

—Então só falta seu aceite —refletiu a mãe.

—Que aceite? —Perguntou ao mesmo tempo em que se dirigia para ela para lhe dar seu acostumado beijo antes de partir.

—O de ser consciente de que seu matrimônio não será como todos os outros. Salvo que tenha decidido me abandonar...

—Abandoná-la? Por que pensou semelhante sandice? Tudo o que fiz até agora está acima de mim. Não lhe demonstrei uma e outra vez o amor que lhe professo?

—E se ela não admitir a vida que lhe oferece? E se, depois do matrimônio, convencê-lo para que se afaste do meu lado? —Persistiu.

—Quando a conhecer, quando falar com ela, todas essas dúvidas absurdas desaparecerão de sua mente. Prometo-o —comentou aproximando seus lábios da bochecha. —Não demoraremos em aparecer.

—Esperar-lhes-ei sem me mover —disse lhe acariciando as bochechas.

—Senhor Hill, há um homem na porta que deseja lhe ver —Gisele lhe informou.

—Esperava visita? —Aphra perguntou.

—Não —Borshon respondeu caminhado a grandes pernadas para a porta.

Fosse quem fosse a pessoa que tinha achado seu endereço permanecia fora, porque Giselle não lhe tinha permitido acessar ao interior de sua casa. Intrigado por averiguar quem ousava apresentar-se ante ele, abriu-a de repente.

—Senhor Berwin! —Exclamou surpreso. —O que lhe trouxe até aqui?

—Bom dia, senhor Hill, por favor, peço-lhe encarecidamente que não eleve a voz. Esta manhã levantei com uma terrível dor de cabeça.

—Isso acontece quando se bebe além do acostumado —Borshon apontou divertido.

—Terei isso em conta na próxima vez que minha mão segurar um copo de delicioso licor —Berwin disse levando a ponta dos dedos às têmporas.

—Veio por parte do senhor Reform? Ele decidiu não ir ao mercado? —Perguntou-lhe ao mesmo tempo em que lhe concedia o suficiente espaço para entrar em seu lar.

—O senhor Reform está acordado desde as cinco da manhã e não parou de dar ordens a todos os que estão sob seu mesmo teto. Até o cozinheiro teve que ingerir vários litros de café antes de lhe preparar o café da manhã.

—Mas não deveria queixar-se, um homem como ele tem que ser o primeiro que se levante de seu leito.

—O primeiro? —Berwin perguntou arqueando as sobrancelhas. —Jamais pôs um pé no chão antes da chegada do crepúsculo! Que diabos lhe fez?

—Nada... Eu não fiz nada —indicou divertido. —O motivo pelo qual se levantou tão cedo é a senhorita Giesler.

—Sei. Assim como fui informado que a moça era na verdade o senhor Hernández. Asseguro-lhe que me converti em pedra quando o senhor Reform me revelou isso. Por que faria uma coisa assim?

—Para sobreviver —o agente apontou sem lhe tirar a vista de cima. —Perdoe que seja desrespeitoso, senhor Berwin, mas me dispunha a sair e preciso saber o antes possível o motivo de sua visita.

—Tem que ajudar o moço.

—Que moço?

—O que está lhe aguardando na rua, ao lado da carruagem. O senhor Reform me ordenou procurar algo que você requer com urgência —declarou enfim.

—Eu? —Inquiriu assombrado. —Eu não necessito...

—Saia lá fora de uma vez! —Indicou-lhe o secretário com impaciência. —Nem você nem eu podemos perder nosso valioso tempo intercambiando palavras carentes de sentido.

Com muitíssima curiosidade, Borshon saiu à rua e, quando viu o que havia sobre a carruagem ficou gelado.

—Se fizer a gentileza de me ajudar —pediu um homem que desenredou as cordas que a cadeira tinha ao redor. —Isto pesa muito para eu descê-la sozinho.

Com uma emoção tão grande que lhe impediu de falar, o agente ajudou o empregado a descer com muito cuidado aquele acertado presente. Uma vez que o pôs sobre o chão, o fez rodar até a entrada. Não havia dúvida, sua mãe por fim poderia abandonar aquele cárcere no qual estava cativa há tanto tempo. Feliz, atravessou o salão sem lembrar-se de que o senhor Berwin tinha permanecido nele momentos antes. Mas justo no instante que a pergunta passou pela cabeça, escutou na habitação de sua mãe a voz do administrador.

—Nunca imaginei —dizia Berwin à Aphra. —Embora tenha que admitir que já encontrei o motivo pelo qual seu filho um homem tão bonito.

—Ruboriza-me, senhor Berwin! —Ela exclamou amenizando o rubor com um leve movimento de sua mão direita.

—De verdade que me sinto muito ditoso e encantado de havê-la conheci...

—Mãe, —interrompeu-os Borshon, que ao escutá-los paquerar como dois adolescentes, ficou petrificado —olhe o que o senhor Reform lhe deu de presente.

—Espero que goste dela —Berwin interveio. —Como não soube de sua existência até esta mesma manhã, escolhi a menor. Embora acredite que acertei. Você tem as medidas próprias da deusa Afrodite.

—Adula-me de novo, senhor —respondeu Aphra vaidosa, que não cessava de aparar o cabelo.

—Se fizer a gentileza, senhor Berwin, tenho que colocar a minha mãe sobre a cadeira e nós gostaríamos de certa intimidade —apontou o filho um tanto mal-humorado.

—É claro! Desculpe minha ousadia! —Disse apartando-se da cama para afastar-se. —Senhora...

—Aphra, meu nome é Aphra —assinalou com rapidez ela.

—E se não for nenhum inconveniente, agradaria que uma vez que meu filho me tenha colocado nesse magnífico presente, seja o primeiro em me acompanhar até a rua. Levo muito tempo sem poder admirar o que há fora destas paredes.

—Será uma honra —assinalou o administrador antes de fazer uma leve sacudida de cabeça e sair da habitação.

—É encantador —Aphra comentou estendendo seus braços ao redor do pescoço de Borshon.

—É muito mais velho... —ele resmungou.

—Mas se mantém atlético —apontou.

—O senhor Reform o requer todo o tempo —assinalou segurando-a em seus braços.

—Imagino que por isso não é um homem obeso.

—Terá superado os sessenta —perseverou em fazê-la compreender que não devia mostrar tanto interesse em um homem tão idoso.

—Não pretendo me buscar um jovem acompanhante para compartilhar minhas horas de cama, querido. Só procuro um amigo com quem possa falar e o senhor Berwin parece um homem sensato e atencioso.

—Recorda que hoje tenho que me centrar na senhorita Griffit? Pois não me ofereça mais temas com os quais me preocupar —resmungou.

—Pode fazê-lo assim que me acomode nessa cadeira, mas que o senhor Berwin espere no salão. Quero conversar com ele depois que Giselle me arrumar.

—Mas, mãe! —Borshon exclamou atônito ao mesmo tempo em que a olhava com incredulidade.

—Querido, procure sua felicidade que eu acharei a minha —disse sorridente.

Uma vez que colocou as pernas em seu lugar, arrumou-se o vestido e que Giselle a penteasse tal como ela desejava, Borshon lhe ofereceu um xale para que o jogasse sobre os ombros e a conduziu, a contragosto, até onde se encontrava o senhor Berwin. Quem permanecia de pé olhando para a porta por onde apareceriam.

—Estou no céu? —O ancião perguntou ao vê-la. —Porque acaba de aparecer um anjo.

Depois de um grunhido o agente decidiu sair de seu lar o antes possível. Respeitava muito o senhor Berwin para jogá-lo dali a chutes. Embora muito temesse que o seguinte em sair de seu lar seria ele para lhe pedir mil desculpas por seu atroz comportamento.

—Ver-lhe-ei logo —disse antes de fechar a porta.

Mas sua mãe não lhe respondeu como sempre, estava tão distraída com a conversação que tinha iniciado com o ancião que nem se deu conta de que ele partira.

—Enfim... —Borshon suspirou. —Vou ao mercado ver se consigo beijar Kristel antes que Berwin à minha mãe.

 

 

A noite foi muito longa... Kristel foi incapaz de adormecer depois de encontrar o motivo pelo qual o senhor Hill se aproximara dela. Segurou as lágrimas que desejava derramar até que Valéria ficou profundamente adormecida. «Devia supô-lo —disse-se, levantando-se da cama pela quinta vez. —Como imaginei que um homem como ele sentiria algo por mim? Impossível!».

Deixando-se levar pela tristeza, terminou por sentar-se no pequeno banco que havia em frente ao espelho. Ali viu refletida a imagem de uma mulher desolada, angustiada, doída por ter suspirado ante a aparição de um sentimento tão valioso como era o amor. E, muito ao seu pesar, nesse instante vivia o outro lado da moeda... a tristeza, a crueldade, o desamor... pensou até no senhor Mayer, o único que se comportou com honestidade. Apesar de como a tratou, não achou nele nem uma só fresta de falsidade. Cansada de tanto chorar e de pensar, finalizou o resto da noite olhando-se no espelho, recordando a primeira vez que o viu, o momento vivido no jardim botânico e como tinha atuado com ela durante a festa. Embora fosse consciente do engano, seu coração, esse que se quebrara em mil pedaços, insistia em que nem tudo era falso, que os olhares, os roces e a cordialidade de suas palavras revelavam algo que, devido ao aborrecimento, não desejava admitir. Mas Kristel lutava contra esses pensamentos com todas as suas forças. Desejava achar de novo a mulher esquiva, implacável e realista que foi antes de Borshon aparecer em sua vida.

Só levantou do assento com a chegada da alvorada, e o fez porque escutou o enorme bocejo do pequeno Martin. Desenhando seu melhor sorriso e aparentando que se levantou justo nesse momento, começou a preparar o café da manhã. Mas ela não provou bocado algum. Não tinha fome...

—De verdade que temos que ir? A senhora Shoper pode ficar conosco —o menino tentou persuadir porque odiava rodear-se de muita gente. Seu caráter, introvertido e tímido, fazia-o encerrar-se cada vez que tinha a ocasião. Entretanto, Kristel e sua irmã não pareciam aceitar a ideia de Martin.

—Temos que comprar alguns alimentos se quiser encher seu estômago esta noite —alegou Valéria que, depois de lavar os pratos, começou a preparar-se para sair.

—Philip pode lhes ajudar com a carga. Tal como diz, já é suficientemente grande para comportar-se como um homem —o moço resmungou.

—Não —Kristel negou com veemência. —E agora ponha a jaqueta, penteie esse cabelo e não nos faça atrasar por mais tempo. Se chegarmos logo poderemos comprar os melhores alimentos.

—Isto é injusto! —Martin exclamou dando um enorme pisão no chão.

—A vida é injusta —Valéria manifestou enquanto terminava de pentear-se.

Depois de um bom momento, mais do que supuseram em um primeiro momento, os quatro saíram do lar. Philip seguia emocionado pela experiência que obteve na noite anterior e não cessava de falar sobre ela. Enquanto as duas permaneciam caladas tentando assumir o novo rumo que lhes oferecia a vida.

—Está segura? —Valéria perguntou à Kristel justo quando entravam na praça.

—Estou-o —determinou caminhando erguida.

Havia uma grande afluência de pessoas pelas bancas. Os mercadores anunciavam em voz alta aquilo que tinham adquirido nessa mesma manhã ao atracar no porto os navios de mercadorias. Os camponeses vociferavam a frescura de suas verduras e os comerciantes mais ousados enviesavam ali mesmo a vida de quão animais desejavam vender. Gente com trajes respeitáveis, outros com míseros farrapos que pediam esmola, agentes que asseguravam um ambiente tranquilo... aquilo era um caldeirão de atividade.

—Feijões? Não quer saborosos feijões? Foram transportados durante semanas até chegar à nossa amada cidade para deleitar os comensais mais exigentes —anunciou à viva voz um dos vendedores.

—Viu-o? —Perguntou à Kristel referindo-se ao senhor Hill.

—Não, mas saberei quando chegar.

—Como? Aqui há muita gente e quase não consigo saber onde se colocaram meus irmãos.

—Ele fará sombra a todos os que nos rodeiem —declarou segura.

Então, justo nesse preciso momento, a dúvida se apropriou dela. Talvez fossem suas palavras ou a maneira de expressá-las que lhe indicaram que, apesar de tudo, o orgulho que sentia por Borshon era maior que a decepção. Entretanto, como podia atuar sem enganar a si mesma? Realmente desejava vê-lo humilhado, destroçado diante de toda a gente que lhes rodeava? Como isso afetaria seu trabalho? E sua mãe? O que lhe aconteceria se arruinasse a vida de seu filho? E ela... o que faria ela quando retornasse ao seu lar? Seguiria chorando?

—As pessoas parecem alteradas —Valéria comentou fixando os olhos em um grupo de pessoas que rodeavam uma das entradas do lugar. —Estarão vendendo algo interessante?

—Quer se aproximar? Eu posso te esperar aqui, vigiando seus irmãos.

—Não te importará ficar sozinha? —Perguntou sem poder apartar o olhar daquele lugar.

—Não me acontecerá nada —acalmou-a. —Eles só me farão esperar na fila o tempo suficiente para que me saiam rugas —acrescentou com sarcasmo.

—Não demorarei, prometo-lhe —Valéria disse acelerando o passo para essa região.

Kristel continuou andando para a banca de aves. Não queria faisões, nem perus, nem nenhuma minúscula codorna. Tinha o estômago tão fechado que nada do que encontrasse lhe pareceria apetitoso para cozinhar. Entretanto, aqueles dois moços não se conformariam com um prato repleto de ervilhas e cenouras. Ficariam a chorar desolados se uma boa peça de carne não acompanhasse essas hortaliças. Depois de soprar colocou-se em frente à banca esperando que o excelentíssimo vendedor decidisse atendê-la. Mas muito se temia que, como sempre, deixá-lo-ia ali esperando uma eternidade...

—Senhorita Griffit! —o açougueiro exclamou ao vê-la aparecer. —O que deseja esta manhã? Trouxe uns perus de muito boa qualidade. Embora não posso menosprezar este formoso frango que minha esposa matou faz apenas uns minutos. Veja! —Mostrou-lhe o cadáver com plumas. —Com certeza seu coração ainda pulsa.

—Bom dia... —respondeu-lhe Kristel assombrada ante o trato tão amável que lhe oferecia. —Sim, em efeito, parece bastante bom...

Por que a tratava com tanta gentileza? O que tinha ocorrido? Teriam lhe golpeado na cabeça e não recordava as zombarias que lhe soltava cada vez que ela se apresentava em sua banca?

—Se o desejar, vendo-o esfolado. Minha esposa é uma perita depenando e pode cortá-lo em menos de dez minutos —o vendedor adicionou estendendo para a sorridente mulher o frango que se movia ao compasso de seu braço.

—Se não lhe parecer inapropriado —disse com uma mescla de medo e assombro.

—Que nada! —Exclamou movendo a outra mão com um gesto tranquilizador. —Será um prazer atendê-la como merece.

—Quanto lhe devo? —Perguntou cravando seus olhos no moedeiro. Não podia olhar ao lojista, sentia-se tão morta de vergonha por esse inesperado afeto que não era capaz nem de articular palavra.

—Para qualquer outra dama seria uma libra, mas para você só custará uma coroa —comentou como se se tratasse de um segredo.

Dama? Aquele homem a estava chamando de dama? Se antes pensava que algo estranho passava ao vendedor, agora não lhe cabia dúvida de que estava certa. Onde tinha deixado suas habituais zombarias? E aquele olhar repulsivo? Porque não havia nada disso nele. Ao contrário, tratava-a com tanta simpatia que Kristel se sentiu incômoda.

—Aqui está —disse tirando a moeda do bolso. A mão lhe tremia e o estado de ansiedade crescia por segundos. Quão único desejava era partir dali o antes possível com o frango com ou sem plumas.

—Dê um passeio, senhorita Griffit. Quando retornar a ave não terá nenhuma só pluma —indicou com um enorme sorriso em seu rude rosto.

Assombrada, confusa, atônita e inclusive temerosa, Kristel assentiu e, sem acrescentar nada mais, avançou devagar até a banca seguinte, olhando de esguelha ao vendedor se por acaso em qualquer momento soltava alguma brincadeira sobre ela. Mas não. Nem zombou às suas costas nem murmurou algo ofensivo. Continuou atendendo outros clientes enquanto sua esposa depenava com grande destreza a ave.

—Senhorita Griffit! —Chamou-lhe a atenção o senhor Adams, o lojista de verduras. Aquele que permanecia com a boca aberta quando aparecia Valéria. Entretanto, esta vez, quem mantinha a boca exageradamente aberta era ela. Como sabia seu sobrenome se nem sequer conhecia sua existência?

—Bom dia, que prazer vê-la por aqui. Ninguém lhe disse quão formosa está hoje com esse vestido?

—Bom dia, senhor Adams... —respondeu-lhe depois de confirmar que a roupa a que o vendedor fazia referência era quão mesma vestia a cada vez que aparecia no mercado. —Obrigada? —Disse perplexa.

—O que procura esta manhã? Cenouras, ervilhas ou talvez deseje acompanhar seus deliciosos guisados com estas batatas? —Assinalou com a mão uma montanha de ditos tubérculos. —Foram colhidas durante o amanhecer e ainda guardam a água que tiraram da terra antes de serem coletadas —informou-a.

—Parecem muito apetecíveis —comentou com acanhamento.

—São! —O comerciante afirmou orgulhoso. —Quantas deseja?

Não sabia o que responder. Aquele estado de atordoamento aumentava a cada momento. Por que se comportavam dessa maneira com ela? O que tinha acontecido para que todo mundo mudasse sua atitude? De repente, quando seus olhos se cravaram nas mãos do vendedor, que não parava de procurar as batatas que não possuíssem brotos de raízes, uma grande sombra abrangeu a banca. O coração de Kristel pulsou depressa, emocionado pela presença da única pessoa que podia provocá-la: Borshon. Mas não queria dar a volta e enfrentá-lo mantendo a confusão que tinha crescido nela ante o trato afável dos vendedores. Precisava chamar aquela mulher triste, despeitada e enfurecida que não tinha podido dormir pensando na armadilha que lhe tinha feito.

—Bom dia, senhor Hill —o verdureiro saudou quando o descobriu em frente à sua banca, justo atrás das costas da cliente.

—Bom dia, senhor Adams. Vejo que hoje sua banca está mais deliciosa que de costume —apontou com sua típica voz grave.

—Não será por minhas verduras, não é? —Perguntou sarcástico o vendedor, que tinha captado com rapidez o motivo pelo qual o agente expôs tal afirmação. —Senhorita Griffit, aqui tem suas batatas. Deseja algo mais?

—Não. —Negou com um suave movimento de cabeça. —Quanto lhe devo? —Notava sua cercania, a proximidade que não devia manter em um lugar tão concorrido. Como ousava comportar-se daquele modo? O que pretendia mostrar? Ou só queria prosseguir com a farsa?

O vendedor olhou ao agente, logo à Kristel. Sorriu-lhe e com muita amabilidade lhe disse:

—Aceite-o como um obséquio, senhorita Griffit. É o mínimo que posso fazer por uma mulher como você.

—Não! —Kristel exclamou sobressaltada. —Não posso aceitar, senhor Adams. Você e sua família sobrevivem das vendas e não seria justo que...

—Tome —Borshon ofereceu ao amável vendedor uma moeda. —Fique com o troco. —Ao estender o braço para efetuar o pagamento, tocou brandamente o cabelo de Kristel e esta, ante esse leve contato, contraiu o corpo. Estranhando esse repentino encolhimento, Borshon deu um passo para trás lhe permitindo um pouco mais de espaço.

—Obrigado, senhor Hill, você é um homem bondoso —o senhor Adams respondeu colocando a moeda no bolso do avental sujo.

Enquanto o vendedor elogiava o agente por sua boa obra, Kristel meteu as batatas no cesto, que devido aos nervos, rodaram no interior deste e golpearam o livro que guardava. Segurou com força a alça e tentou encontrar um oco para sair fugindo. Porque isso era o que ansiava, distanciar-se daquele grande corpo que a punha muito nervosa. Nesse ato uma fragrância a sabão de barbear chegou até seu nariz. Por que cheirava tão bem? Por que só desejava dar a volta e observar aquele homem que, por desgraça, era o possuidor de seu coração?

—Bom dia, senhorita Griffit —sussurrou-lhe ao ouvido. —Procura uma forma de escapar de mim? —Perguntou zombeteiramente.

—Assim é —respondeu com firmeza, cravando o olhar no chão.

—E por qual horrível motivo deseja evadir minha presença? —Perseverou abandonando a zombaria no tom de voz e exibindo em suas palavras certa preocupação. —Acaso fiz algo que a incomodou?

—Que você esteja aqui me fazendo sombra, evitando que eu possa desfrutar do escasso sol que aparece em Londres é motivo suficiente para isso, não lhe parece? —Disse zangada.

—Você não sabe que os raios solares podem afetar sua delicada pele? Deveria sentir-se feliz ao compreender que me preocupo com sua segurança.

Que diabos lhe acontecia? Estava sob o encantamento de algum feitiço maligno? Porque não era normal que à noite anterior se comportasse como uma terna e delicada mulher e, entretanto, nesse momento pudesse lhe enviesar o pescoço com sua língua afiada. Sua mãe não lhe havia dito que uma mulher não podia ser tão encantadora? Pois de novo tinha razão, mas não lhe ia permitir que partisse sem averiguar o que lhe ocorria.

—Deixemos de sandices, senhor Hill —declarou com solenidade levantando enfim seu olhar para cravá-lo naqueles olhos azulados que a observavam perplexo. —Não sou uma menina a quem possa enrolar com esse absurdo palavrório.

—Como? Acredito que a confundi com outra pessoa. Vinha procurando a encantadora senhorita Griffit e você não tem nada de afável —disse com uma mescla de aborrecimento e surpresa.

—Afável? Como pode requerer um pouco de afabilidade depois de compreender que todo o seu comportamento foi falso? Deixe de tanta cortesia, senhor Hill, não a necessito! —Exclamou em frente à banca de verduras do senhor Adams, que estava mais desconcertado que o próprio Borshon.

—Meu comportamento foi falso? Explique-se! —Insistiu cruzando os braços e olhando-a de uma forma que deixou Kristel congelada. Agora entendia a razão pela qual todo mundo lhe temia. Borshon podia transformar-se em um monstro, em uma horrível besta só entreabrindo seus olhos.

—Sei o motivo pelo qual você me persegue —disse depois de serenar-se.

—Qual? —O agente demandou sem sequer mover os lábios para falar.

—Descobri-o ontem, justo depois de retornar ao meu lar.

—O cocheiro não as levou diretamente para sua casa? Ou decidiram parar em algum botequim para deleitar-se com licores envenenados? —Grunhiu.

—Deixe de estupidezes! —Gritou-lhe. —Enganou-me! Só se aproximou de mim porque devia vigiar a senhorita Giesler!

—Como? —Borshon soltou descruzando os braços com rapidez. —Como chegou a tal conclusão? —Enquanto fazia a pergunta recolhia em sua mente qualquer dado que lhe indicasse o que lhe jogava na cara com tanto despeito. E um nome apareceu em sua mente: Jun. A muito bastarda ao descobrir que o senhor Reform tinha certo interesse em Valéria teria perguntado aos empregados deste até saber tudo. Trevor não lhe havia dito que lhe arruinara a vida? Pois se tentasse arruinar a sua um lindo cadáver flutuaria no Tâmisa, e não era uma ameaça, e sim um fato.

—Foi muito fácil... —comentou rindo com os dentes apertados. —Até uma mulher carente de raciocínio poderia entender que um homem como você não se interessaria por uma mulher como eu sem um bom motivo.

—É óbvio —afirmou solene. —Uma mulher sem raciocínio deduziria com rapidez que não poderia me interessar por uma mulher como meus olhos observam neste momento. Eu procuro a senhorita Griffit, uma encantadora moça que me roubou o coração —resmungou.

—Não minta mais! Não entende que já descobri tudo? Que já não pode me enrolar com suas galantes palavras? —Vociferou perdendo a compostura, notando como suas pernas tremiam e percebendo um estranho enjoo. Onde estava Valéria? Por que demorava tanto?

—Está bem! —Borshon sucumbiu sentindo-se encurralado. —Tem razão. É verdade que meu primeiro trabalho era vigiar a senhorita Giesler porque o senhor Reform descobriu o que fazia cada vez que aparecia em seu clube. Entretanto, também tenho que indicar que quando a vi descendo as escadas de seu lar, acompanhando a mulher que eu devia proteger, esse trabalho finalizou para mim, porque não era capaz de apartar meus olhos de você —manifestou sério para que ela não tivesse dúvida do que estava dizendo. —Pode recriminar o fato de que lhe mentisse quando falamos à primeira vez, mas não pode reprovar os sentimentos que cresceram em mim por você.

—Segue mentindo... —Kristel disse mediante um sussurro. A força tinha desaparecido de seu corpo, seu coração tinha deixado de pulsar, só desejava sair dali retornar ao seu lar e chorar a perda do homem que amava.

—Olhe-me, senhorita Griffit! —Ordenou-lhe zangado. —Olhe-me! —Reiterou com o mesmo tom de voz.

—Não! —Negou ao mesmo tempo em que começava a andar para frente. Precisava apartar-se dele, urgia-lhe criar entre eles uma grande distância. Porque não era bom seguir enganando-se albergando a esperança de que ao fim dizia a verdade.

Mas Borshon a agarrou pelo braço impedindo a fuga. Kristel abaixou o rosto, envergonhada ainda mais. Podia escutar os rumores das pessoas que havia ao seu redor. O que pensariam? Imaginariam que tinha roubado e que o agente a estava detendo?

—Olhe-me, suplico-o —Hill murmurou sem diminuir seu desconcerto.

E o olhou. Muito devagar levantou o rosto para observar o dele. Seus olhos frágeis como se quisesse chorar, seus lábios apertados como se quisesse deixar de gritar e a mandíbula apertada com tanta força que podia romper-se algum dente.

—O que vê, Kristel? Observa engano, brincadeira ou zombaria? Não, claro que não, porque não posso ter nada disso por você, porque seria impossível sentir algo tão absurdo.

—Senhor Hill... —gaguejou.

—Senhorita Griffit, embora você não possa acreditar em minhas palavras tenho que lhe confessar que a amo. Amo-a desde o primeiro instante que pus meus olhos em você, amo-a desde a primeira vez que escutei sua voz. Amo-a tanto que não seria capaz de continuar vivendo se não estiver ao meu lado. Não quero despertar a cada manhã sem vê-la ao meu lado, sem notar sua presença, sem confirmar que a mulher por quem daria minha vida dúvida desse amor que meu coração expressa. —A mão de Borshon seguia segurando seu braço, em um desesperado intento de que não se afastasse sem ser consciente de quanto a queria. Mas ela tremia. Como se ainda lhe custasse assumir a veracidade que emanava de sua boca. —Nota alguma mentira em minhas palavras, Kristel? —Insistiu. —Não é suficiente o que vê? Quer alguma prova mais?

—Não há prova alguma que...

—Não há prova? —Perguntou atraindo-a com força para ele. —Espero que isto seja a prova que necessita...

E a beijou diante de todo mundo. Mas não foi um beijo casto ou tímido. Borshon lhe ofereceu uma amostra tão apaixonada que Kristel teve que esticar suas mãos e aferrar-se àquele forte pescoço para não cair ajoelhada ao chão. O que lhe havia dito a senhora Shoper? Que não esqueceria o primeiro beijo? Pois não, não o esqueceria jamais. Assim como não perderia de sua mente como as grandes mãos dele se enredaram em sua cintura, como sua língua possessiva, voraz e quente percorreu cada rincão de sua boca e tampouco eliminaria a sensação de prazer que lhe causou o calafrio mais intenso de sua vida.

—Foi suficiente para você?

Kristel escutou a pergunta longínqua, como se entre eles houvesse mais de duas léguas. Tinha os olhos fechados para não ser testemunha da expectativa que provocaram ao seu redor.

—Diga-me, Kristel, não é suficiente prova o que acabo de fazer? Deseja que eu me ajoelhe e te peça que não me abandone? Não poderia viver sem você —disse enquanto começava a inclinar-se para o chão.

—Não! —Ela exclamou evitando que ele se ajoelhasse. —Acredito-o. Acredito-o... —corrigiu-se.

—É o ser mais maravilhoso do mundo, Kristel. E não importa como te conheci. Compensarei com acréscimo o engano que realizei. Mas não parta, fica comigo o resto da minha vida —continuou falando ao mesmo tempo em que lhe acariciava o cabelo.

—Borshon... —sussurrou. As lágrimas de emoção vagaram por seu rosto devagar, preguiçosas. Seu peito, agitado pela vivência, estendia-se para ele desejando-o embora estivesse tão perto.

—Kristel... —respondeu-lhe apartando algumas lágrimas com os polegares. —Aceite-me, suplico-lhe —rogou.

—Só se me prometer que não haverá mais mentiras entre nós. Não quero viver um matrimônio repleto de agonias nem de triste...

Não terminou. As grandes mãos de Borshon se colocaram em ambos os lados de seu quadril e a elevaram para beijá-la de novo. Então se escutaram palmas, exclamações e um sem-fim de suspiros femininos.

—Prometo-lhe isso, meu amor —declarou depois daquele beijo que foi ainda mais apaixonado que o anterior. —Juro-o pela minha vida que não voltarei a te mentir —reiterou solene.

—Bom... —Kristel disse dando um passo para trás, desfazendo as rugas de seu vestido e sem poder observar toda aquela gente convertida em espectadores. —O passo seguinte é visitar sua mãe.

—Trouxe o livro? —Borshon perguntou-lhe feliz enquanto enredava sua mão com a dela.

—Sim. Tenho-o aqui. —Assinalou a cesta que, em algum momento, tinha rodado por seu braço e tinha caído ao chão. —Mas antes de partir tenho que falar com Valéria. Afastou-se para... —começou a dizer puxando seu futuro marido para o lugar onde se encontrava sua amiga, mas não caminhou muito após averiguar que a jovem não estava sozinha. O senhor Reform mantinha uma conversação com ela.

—Não se pode evitar o destino —comentou ao ouvido. —Nem eles nem nós podemos fugir dos sentimentos que cresceram em nosso interior.

—Mas ela... os meninos... e... tenho um frango a recolher! —Comentou voltando-se para ele.

—Valéria está acompanhada e te asseguro que não lhe acontecerá nada. Os meninos podem retornar ao seu lar, pedirei a um desses agentes que os aproxime e sobre esse frango...

—Não se preocupe! —Exclamou o vendedor que tinha escutado e presenciado tudo. —Minha esposa o levará esta mesma manhã.

—Tem algo mais a fazer antes de me acompanhar ao

nosso futuro lar? —Hill perguntou depois de beijar a mão que entrelaçava.

—Não —respondeu após suspirar.

—Pois então, meu amor, partamos daqui —manifestou feliz enquanto caminhava devagar para que ela não se sentisse envergonhada por sua forma de andar.


XX

 

Não demoraria em retornar. Aproximar-se-ia, observaria o que estava acontecendo e iria o antes possível junto à Kristel. Não queria deixá-la só durante muito tempo porque não se encontraria cômoda ante o trato que lhe dedicariam os vendedores. Além disso, queria estar presente quando esbofeteasse o grande senhor Hill. Surpreender-se-ia ao ser rejeitado dessa maneira tão humilhante? Permaneceria perplexo ante a severa atuação? Valéria soltou uma leve gargalhada. É óbvio que sim! Nenhum homem que se apresentasse ante outros dessa maneira tão grandiosa assimilaria com honra ao ser afrontado por uma mulher como Kristel.

Enquanto se dirigia para aquela região do mercado, refletindo sobre o plano de sua amiga, contemplou como a multidão se amontoava ao redor desse lugar em concreto. Teve que se esquivar, empurrar e escutar certos insultos para com sua pessoa até que conseguiu colocar-se na primeira fila e, ao achar o que era tão importante que ninguém queria perder, fez uma careta de desagrado. Dois homens sentados um em frente ao outro, separados por uma pequena mesa de madeira, divertiam os espectadores realizando um jogo para medir suas forças. O participante que olhava para ela tinha aspecto de pirata. Não só por seu rosto rude, mas também pela corpulência de seu corpo e o tom torrado da pele. Exibia sem pudor o torso nu e toda pessoa que cravasse os olhos em sua figura era testemunha da grande musculatura. Entretanto, o homem que lhe dava as costas não parecia tão robusto, embora suas costas, apesar de estar oculta sob uma camisa branca e um colete cinza, pareciam largas e atléticas. Valéria cravou seus olhos na nuca daquele estranho. Sua pele parecia suave, delicada. De verdade que podia haver no mundo um homem que pudesse ter uma pele mais cuidada que a de uma mulher?

Sem poder apagar o sorriso zombeteiro que apareceu em seu rosto, deu uma olhada às pessoas que havia ao seu lado. Aplaudiam e animavam os jogadores entre aclamações, assobios e gritos de ânimo. «Claxton», assim se chamava aquele titã musculoso e, conforme parecia, era o favorito de todos os que respiravam aquele jogo infantil. Depois de soprar pelo absurdo que lhe parecia tal diversão, Valéria cravou seus olhos em uma jovem que segurava a jaqueta do misterioso participante. Ao supor que todas os olhares se centrariam neles, a moça aproximou a roupa de seu nariz e inspirou com força. Nesse instante Valéria soltou o ar abruptamente. Por que as jovens se comportavam dessa maneira tão irracional? Estaria perfumada e não pôde evitar inspirá-la? Aquele estranho, que mostrava suavidade na pele de seu pescoço, utilizaria uma fragrância tão hipnotizante que nenhuma mulher poderia deixar de cheirá-la? Ou possivelmente não era seu aroma, mas sim este seria tão bonito como rico e rompia o coração das moças casadouras.

Zangada pelo irracional comportamento das jovens desesperadas por achar o marido perfeito, centrou seu olhar nos dois participantes. Suas mãos se agarravam com força, mantinham-se firmes, sem cair para um lado ou para o outro. Quis girar-se para partir dali, mas alguém gritou um sobrenome que a deixou paralisada no meio daquele semicírculo. Devagar, como se seu corpo pesasse quatro vezes mais, voltou-se e cravou seus olhos nas costas daquele misterioso homem. O colete cinza, sua camisa branca arregaçada até os cotovelos, o pescoço, o cabelo escuro como a noite e a jaqueta que a jovem tinha cheirado como se fosse um cão sabujo... não, não podia ser ele. Impossível!

—Maldito filho de cadela! —Gritou o de aparência pirata quando enfim se dobrou.

Valéria levou uma mão à boca e a outra ao abdômen. Parecia que o espetáculo terminaria em uma briga. Uma disputa na qual Trevor sairia ferido gravemente. Que diabos fazia ali? Procurava que lhe destroçassem aquela pele suave e aveludada? Por que tinha abandonado o amparo que lhe proporcionava o clube? Jogou um passo para trás para afastar-se dali e não presenciar como seria golpeado sem piedade, mas a congregação que rodeava aquele ato lhe impedia de partir.

—Adverti-lhe isso! —Trevor exclamou levantando do assento com rapidez.

E justo quando ela fechou os olhos para não ver o início da confusão, escutou as pessoas aplaudirem. Ao abri-los encontrou o que não esperava: um abraço. Os dois se abraçavam como se se conhecessem de toda a vida.

—Alegro-me de te ver por aqui, Trevor —comentou o homem batendo nas costas de Reform. —Quantos anos passaram? Dois, três?

—Seis.

—Pois transcorreram muito rápido —declarou-o oferecendo um apertão no ombro. —O que? Como se sente ao retornar à rua onde nasceu?

—Se deseja saber se tive saudades do lugar onde tive que sobreviver, não, não tenho —respondeu enquanto se aproximava da jovem que lhe sustentava a jaqueta. —Obrigado.

—Então o que faz aqui?

—Procuro uma pessoa, embora com tanta gente ao nosso redor será difícil encontrá-la —expôs colocando os braços na jaqueta.

—Encontrá-la? —O homem perguntou estranhando. —Nunca imaginei que retornaria para procurar uma mulher quando alberga embaixo daquele clube uma dúzia de descaradas e insaciáveis demônios.

—Ela é especial... —apontou ao mesmo tempo em que fechava os botões da roupa.

—E essa mulher especial... tem um bonito cabelo negro, uns grandes olhos azuis e é terrivelmente formosa? —O pirata perguntou divertido.

—Sim, como sabe? —Reform respondeu desconcertado.

—Porque está justamente em frente de nós. Gire-se e contempla-a por você mesmo. Embora se estivesse em seu lugar, não demoraria em correr atrás dela porque muito temo que não deseje vê-lo —apontou mordaz.

Veloz, Trevor se voltou e a achou ali, a menos de quatro passos de onde se encontrava. Com os olhos abertos como pratos, uma mão ocultando sua doce boca e a outra pressionando o abdômen. Mas o que deixou ao Trevor sem ar foi o rosto alterado que ela exibia. Nem se despediu de seu velho camarada. Não havia tempo a perder. Tal como lhe anunciou, ela estava desesperada por partir. Caminhou para Valéria fazendo com que as pessoas que havia atrás da jovem retrocedessem assim como quem contempla o mar da beirada se afasta quando vem uma onda brava.

—Senhorita Giesler —saudou-a uma vez que logo tinha um passo de distância entre eles. —Alegro-me de vê-la. Foi uma magnífica coincidência que...

—Vá ao inferno! —Valéria exclamou girando-se com rapidez e dando passos largos.

—Acredito que vai ser difícil! —Claxton vociferou entre sonoras gargalhadas. —É melhor retornar aos quentes braços de suas empregadas!

Não respondeu ao inoportuno comentário, perseguiu a jovem até que lhe alcançou. Sem pensar duas vezes e desesperado, agarrou-lhe o antebraço esquerdo e a voltou para ele.

—Não fuja de mim, senhorita Giesler —resmungou. —Asseguro-lhe que não haverá um rincão nesta maldita cidade no qual possa ocultar-se de mim.

—É uma ameaça? —Perguntou encarando-o. Levantou o queixo e o olhou desafiante. —Pensa em me agredir como fez à sua amante? É assim que o grandioso senhor Reform trata as mulheres? Que vergonha! Você é um miserável! —Vociferou.

A mão de Trevor se abriu devagar enquanto dava um passo para trás. Aturdido, cravou seus olhos escuros no lugar onde a agarrou e se repreendeu ao ver sua palma impressa na pele dela. Merecia-o. Devia assumir com integridade aquele ataque para com sua pessoa. Entretanto, não se daria por vencido, estava disposto a lutar contra aquela ofensiva. Ela devia escutar sua versão dos fatos. Precisava lhe confessar que tudo o que observou da porta tinha sido um plano ideado por Jun ao ser consciente de que já não havia nada entre eles.

—Está confusa... —disse-lhe, aplacando devagar o mal-estar que enfrentava.

—Está me dizendo que sofro de alucinações? Que aquilo que presenciei ontem foi falso? —Perseverou irada.

Como podia encontrar-se tão encolerizada? Eram suas palavras ou o fato de ter em frente a ela o que lhe causava tanta ira? Por que era tão sedutor? Por que era incapaz de lhe dar o bofetão que Kristel tinha pensado propiciar ao agente? Não devia sentir-se humilhada, ultrajada depois de averiguar que tudo o que tinha acontecido no clube era um mísero jogo para ele porque sabia a verdade?

—Não —negou com firmeza.

—Afaste-se de mim, senhor Reform. Vá para o inferno! —Repetiu antes de dar um passo mais.

—Valéria... —sussurrou-lhe com um tom tão dilacerador que ela freou ao escutá-lo.

Ouvir seu nome naquela voz a descompôs. Era a primeira vez que se achava em uma encruzilhada sem igual. Por um lado, desejava conhecer aquilo que suspeitava que lhe fosse dizer, mas por outro... devia ser forte e esquecê-lo porque ela não era o brinquedo de ninguém.

—Não volte a dirigir-se a mim dessa forma —apontou levantando o dedo inquisidor. —Não se atreva a pronunciar de novo o meu nome. Você não é digno de tal honra. E, como segue me perseguindo, irei à Scotland Yard para informar de sua insistência em...

Não lhe deu tempo de terminar aquela irada exposição. Reform caminhou para ela seguro, firme, imperturbável, demolidor. Segurou-lhe o dedo que o assinalava e, face aos esforços de Valéria, colocou-o nas costas, fazendo com que aquele corpo tremente se aproximasse do dele. Os movimentos de suas respirações agitadas ante a vivência de milhares de sensações contraditórias ocasionaram uns leves roces entre ambos os torsos. Roces carregados de eletricidade. O fôlego quente de Reform esquentou os lábios de Valéria que, aniquilada, separou-os para tomar o ar que ele desprendia. Cheirava bem, muito bem. Uma mescla entre o aroma de sabão de barbear e o perfume com o qual se orvalhava entrou em seu corpo fazendo-a sua no percurso.

Trevor a olhou sem pestanejar, advertindo-a com aquele firme olhar o que ia realizar e, assustada, tentou apartar seu rosto, retirar-se para fazer desaparecer a neblina que apareceu ante seus olhos. Entretanto, não conseguiu distanciar-se nem um só milímetro. Devagar, tomando-se todo o tempo do mundo, aproximou sua boca da dela para... beijá-la.

Queimação. Isso foi o que Valéria notou ao sentir o contato daqueles voluptuosos e sensuais lábios sobre os seus. O ínfimo beijo lhe causou a maior quentura que poderia ter em sua longa vida. Com os olhos abertos observou aquele rosto masculino, varonil e aquelas íris tão escuras como uma noite sem lua. Tentou apartar-se, distanciar-se dele antes que aquela pressão em seus lábios se tornasse mais apaixonada. Mas se achava tão desconcertada que não era capaz de dar um passo para trás. Só quando sentiu como o ar fresco voltava a introduzir-se por sua boca pôde dar uma leve pernada para separar-se.

—Não devia... —ela gaguejou.

—Nunca em minha vida tratei mal uma mulher e jamais faria tal atrocidade à pessoa que conquistou meu coração —declarou com firmeza.

—Coração? —Gritou recompondo-se do choque. —Como alguém pode conseguir algo que não possui?

—Valéria... —repetiu com suavidade.

—Disse-lhe para não voltar a me chamar assim! —Clamou girando-se sobre si mesma.

Urgia-lhe sair dali e ir para um lugar onde permaneceria a salvo de todas as emoções que o beijo tinha despertado nela. Kristel tinha razão, estava apaixonada, muito apaixonada. Porque se não fosse assim... por que seu coração paralisara? Por que suas mãos não deixavam de tremer? Por que desejou que aquele beijo se convertesse em um mais apaixonado? Por que odiou a jovem que inspirou o aroma da jaqueta de Trevor? Apavorada, assustada, covarde depois de assumir seu verdadeiro sentimento para com o odioso homem, correu tão depressa que não percebeu a presença das duas pequenas figuras que, como ela, ficaram pétreas ao serem testemunhas do beijo.

—Senhor Reform... —Philip expressou caminhando para ele com altivez. —Não fez bem. Comportou-se de maneira ousada —acrescentou tentando mostrar um tom severo, masculino, adulto.

—Tem razão, jovem Giesler —respondeu-lhe apartando o olhar de Valéria para centrá-lo no moço que lhe falava.

—É minha obrigação velar pela honra da minha irmã —continuou discorrendo o jovem. —E, como tal, tem que me aceitar em um duelo.

—Um duelo? —Perguntou-lhe com uma mescla de assombro e incredulidade. —Jovem, deveria meditar melhor naquilo que expõe com tanta rapidez. Posso lhe assegurar que não vale a pena...

—Não é cavalheiro o suficiente para aceitar isso? —Repreendeu-lhe.

—Sou —afirmou dando um passo firme para o moço. —Por isso, e pelo afeto que os professo, oferecer-lhe-eis uma alternativa menos perigosa.

Philip, apesar de ser tão jovem, não se amedrontou ante a cercania de Trevor, ficou imóvel e continuou olhando-o de maneira desafiante. A senhora Shoper não lhe havia dito que ele se converteria em um guerreiro? Pois começaria nesse mesmo momento a tomar a atitude de um.

—Qual? —Disse enfim.

—Restabelecerei a honra de sua irmã me casando com ela —expôs categoricamente.

—Casar-se com Valéria? —O tímido Martin perguntou. —Impossível! Ela jamais se casará com ninguém!

—Eu o farei —afirmou terminante. —Concorda? —Insistiu estendendo a mão para o mais velho dos irmãos evitando as conjecturas do pequeno.

—E se ela não lhe aceitar? —Philip perseverou.

—Dar-lhes-ei uma renda vitalícia. Desse modo poderão partir de Londres e viver a vida que tanto anseiam —manifestou sem duvidar. Não era isso o que ela tinha escrito na folha? Sim, isso mesmo foi o que leu quando tirou o papel de seu bolso, justo antes da aparição de Jun em seu escritório.

—Não... não queremos partir daqui —Martin assinalou escondendo-se atrás das costas de seu irmão. —Eu gosto de Londres...

—Pois façam o que quiserem —Trevor indicou.

—Está bem! —Philip concordou. Estendeu a mão que, apesar de ser menor que a de Trevor, apertou com força para selar o pacto. —Tem o prazo de uma semana para cumprir sua promessa, senhor Reform. A partir desse dia fará com que o senhor Berwin nos faça chegar a renda que, é óbvio, alcançará um valor superior a duzentas libras mensais.

—Sua oferta é generosa, jovem Giesler, embora eu gostaria que ampliasse o prazo do cortejo porque, como bem sabe, sua irmã não é fácil de conquis...

No momento que Trevor esteve a ponto de concluir a proposta apareceu atrás dos jovens uma figura masculina que não reconheceu. Atento àquela nova presença, colocou suas mãos sobre as costas e observou o comportamento do estranho para com eles que, por como apertava a mandíbula, parecia zangado. O que teriam feito os moços enquanto ninguém os custodiava? Fosse o que fosse, ele atuaria como o tutor dos irmãos da mulher com a qual se propunha casar-se.

—Senhor Mayer! —Martin exclamou sobressaltado ao achá-lo ao seu lado.

—Jovens... o que fazem aqui? Onde se acha sua irmã? —Perguntou dando uma leve olhada pelos arredores.

Logicamente, Trevor captou com claridade o nome do cavalheiro que contemplava os meninos como se quisesse lhes dar uma surra por permanecerem sozinhos. Sem pensar duas vezes caminhou sereno até que ficou diante dos meninos, a menos de dois palmos do homem que tinha sonhado encontrar. Sorriu de orelha a orelha de maneira sardônica e esperou que o notável senhor Mayer perguntasse quem era ele.

—Quem é você? —Exigiu saber com uma inapropriada autoridade. —O que faz com os irmãos da senhorita Giesler? Por que ela não está aqui? Deixou-os sob sua responsabilidade? Você é o novo professor?

—Muitas perguntas, senhor Mayer, que não penso responder, é claro —resmungou. Deus podia ser mais generoso com ele? Podia lhe dar, em um só dia, mais satisfações? Não só tinha beijado Valéria e prometido que se casaria com ela, mas também tinha em frente aos seus olhos o homem que não tinha cessado de procurar desde que descobriu que tentava lhe arrebatar a mulher que amava.

—Não vai me responder? —Mayer vociferou de maneira soberba. —Como...?

Sem imaginar a razão pela qual aquele cavalheiro sorria de maneira aguda, Mayer resolveu a pergunta no mesmo instante no qual notou um forte golpe sobre sua bochecha esquerda.

—Se voltar a apresentar-se diante da senhorita Giesler ou de seus irmãos, juro por Deus que não voltará a respirar —ameaçou depois de lhe atirar o murro.

—Quem diabos é você? —Exigiu saber com uma mescla de assombro e desconcerto enquanto tentava acalmar a dor colocando suas mãos sobre a bochecha que não cessava de palpitar.

—É o futuro marido da minha irmã —Martin respondeu com inocência.

—Seu o que? —Mayer clamou confuso.

—Moços, se fizerem a gentileza de me conduzir até seu lar, estarei encantado de escoltá-los. Como podem apreciar, as ruas desta cidade estão repletas de escória —Trevor alegou lhes permitindo que avançassem diante dele. —Volte a respirar ao lado de minha prometida e lhe juro que não haverá nada no mundo que evite sua morte —Reform sentenciou antes de empreender a caminhada atrás dos meninos.

 

 


Nervosa. Kristel não era capaz de acalmar-se. Quem o faria quando conheceria a mãe do homem que logo se converteria em seu marido? Olhou-o de esguelha procurando alguma expressão em seu rosto que mostrasse a emoção que sentia. Não achou nada. Aquele semblante exibia segurança, serenidade e firmeza. Ele não tinha dúvidas? Tão convencido estava? Aquela confiança tão severa lhe causou mais inquietação, até o ponto que notou uma leve pressão em sua garganta. Respirou fundo para que aquela bola de saliva descesse por seu esôfago devagar enquanto meditava sobre a transformação que tinha dado sua vida em uns míseros dias.

Anos... durante mais de vinte anos se aferrou à ideia de que ninguém se interessaria por ela, que não existiria no mundo um homem que se fixasse na pobre e inútil coxa de quem todos zombavam, mas errou. Não só o tinha ao seu lado como o comportamento dos outros tinha mudado para com ela. Nesse momento rememorou a atenção que tinha tido no mercado. Aquela repentina mudança de atitude se devia a ele. Sim, não lhe cabia dúvida de que o livreiro correu a voz no mercado sobre o interesse que o senhor Hill tinha por ela e, para não o zangar, porque ninguém desejaria ter um hercúleo agente irado em frente à sua banca, trataram-na com tanto respeito que se sentiu angustiada. Um leve sorriso curvou seus lábios. Até o miserável vendedor de hortaliças lhe havia dito que estava formosa! Segurou uma gargalhada ao recordar a atitude do lojista e a maneira que olhou ao Borshon, como se lhe pedisse perdão por todas as zombarias que lhe fez durante os anos passados. Sem dúvida alguma, suas aparições pelo mercado sofreriam uma agradável mudança...

—E esse sorriso? —Ele perguntou-lhe sem olhá-la.

—Como sabe que estou sorrindo se não apartou seus olhos da rua? —Perguntou intrigada.

—Noto tudo o que faz. Não preciso te olhar para saber que está inquieta e que pensou em algo que te fez sorrir —disse parando no meio da via. —Qual a graça?

—O trato que os vendedores tiveram esta manhã para comigo —respondeu-lhe cessando seu passo assim como ele.

—Terão feito com respeito. —Não era uma pergunta e sim uma afirmação que não admitia negativa alguma.

—É claro! —Esclareceu-lhe colocando suas palmas sobre o duro torso. —Crê que alguém tomaria uma eleição equivocada? Até o senhor Adams me disse que eu estava formosa!

—Tenho que retornar e me afrontar com esse vendedor de ervas? —Grunhiu arqueando as sobrancelhas.

—De verduras —corrigiu-o. —E não, não tem que fazer nada disso. Todo mundo foi testemunha de quem é a pessoa que me roubou o coração —acrescentou antes de levantar-se e lhe dar um terno beijo.

—De todas as formas o vigiarei de perto... —resmungou após aquele leve roce de lábios.

Ciumento? Borshon também era um homem ciumento? «Meu Deus, não precisa me enviar mais sinais para confirmar que é o homem da minha vida, admito-o», pensou divertida.

—Não sei se te comentei que minha mãe leva tempo prostrada em uma cama —começou a dizer enquanto reatavam a caminhada.

—Sim, disse-me. O que lhe ocorreu?

—Faz uns quinze anos teve uma dor muito forte na cabeça. Conforme nos informou o doutor algo em seu cérebro não funcionava bem, mas não deu importância porque não achou nenhuma sequela imediata, mas a teve semanas depois. A princípio, foi um leve formigamento nas pernas, continuou com torpes quedas e, de repente, um dia deixaram de funcionar —explicou. —Foi muito duro para ela assimilar esse golpe do destino... suspirou. —Jamais tinha visto minha mãe descansando em uma cama pouco mais de quatro horas. Era uma mulher com muita vitalidade e se movia de um lado para o outro sem cessar.

—Como superou? —Perguntou aferrando com mais força a mão que se enredava entre a sua.

—Lendo... primeiro foram livros sobre medicina. Deduzo que tentava saber o que lhe tinha acontecido e se havia algum remédio para diminui-lo. Com o tempo desistiu em seu empenho e me fez lhe procurar outro tipo de...

—Leituras —ela terminou.

—Sim.

—Os livros são uma boa forma de fugir do mundo no qual vivemos —Kristel refletiu.

—Isso parece... —murmurou olhando para o céu. —Quem te ensinou a ler? —Quis saber. Era um bom começo para indagar sobre o passado da mulher com quem ia viver o resto de sua vida.

—Meu pai —disse com um suspiro. —Foi a única coisa boa que fez comigo até que me abandonou na casa da minha tia.

—Sinto-o... —desculpou-se por fazê-la recordar um momento tão triste.

—Não tem por que sentir. Fui feliz com ela, sempre se comportou muito corretamente e me ensinou coisas que escandalizaria qualquer dama —adicionou com tom jocoso.

—Coisas escandalosas? —Voltou a arquear as sobrancelhas, intrigado pelo significado daquelas palavras.

—Tinha doze anos quando descobri certas coisas... —disse com um halo de mistério. —Dos sete, idade que apareci em seu lar, ela se escondia em seu dormitório, pegava algo da gaveta e o voltava a colocar antes de partir. Uma noite não passou a chave e, quando confirmei que demoraria em voltar, procurei o que guardava com tanto segredo.

—O que era? —Insistiu olhando para o final da rua. Estavam se aproximando de seu lar e toda a serenidade que tinha mantido começava a dissipar-se. Gostaria? Parecer-lhe-ia confortável? Como atuariam ao conhecerem-se?

—Livros —respondeu um tanto envergonhada.

—Que tipo de livros uma mulher guarda em uma gaveta? —Perguntou entreabrindo os olhos.

—Bom... —expressou duvidosa ao mesmo tempo em que suas bochechas se ruborizaram com rapidez. —Tenha em conta que minha tia ganhava a vida de uma maneira peculiar...

—Kristel... —insistiu-o.

—Narravam como dar prazer aos homens em cada ato sexual —disse enfim, notando como o rubor crescia com tanta intensidade que lhe queimava a pele.

—Deus santo! —Borshon exclamou assombrado.

—Sei... —ela murmurou abaixando a cabeça envergonhada. —Não devia lê-los, mas a curiosidade...

—Recorda como se titulavam? —Sussurrou-lhe ao ouvido. —Vou pedi-los ao senhor Daft assim que nos casemos porque vou praticar contigo tudo o que encontremos nesses livros...

—Bors... Borshon —gaguejou levantando brandamente o rosto.

—Cada dia, cada noite, não te deixarei que feche os olhos sem saber quanto te desejo —afirmou antes de colocar um dedo sob seu queixo e lhe propiciar um forte beijo nos lábios.

Kristel viveu naquele instante seu primeiro beijo apaixonado. Abriu a boca ao sentir a língua de Borshon tocando seus lábios. Foi tão avassalador, tão sedutor, tão ardente que notou como lhe tremiam as pernas e como o desejo se apoderava dela.

—Chegamos —comentou ao separar-se dela. —Este será o nosso lar até que eu possa adquirir outro.

Aturdida, confusa e excitada pelo vivido, Kristel se girou para a porta da casa. Um lar pequeno, de uma planta. Em que bairro se encontravam? Tinha estado tão absorta em seus pensamentos e na conversação que não conheceu o lugar.

—Estamos em Petticoat Lane —comentou como se lesse seu pensamento. —É tranquilo, apesar de estar infestado de comércios.

—De roupa feminina... —particularizou.

—Há alguns anos... —esclareceu um tanto aborrecido. —Mas tenho a intenção de sair daqui —assinalou com firmeza. —Logo abandonaremos este lugar para viver em uma região mais respeitável.

—Humm —respondeu com um enorme sorriso. —Embora antes de partir pudéssemos visitar alguma dessas lojas —acrescentou maliciosa.

—Todas as que desejar... —murmurou-lhe antes de empurrá-la para a entrada de seu, por agora, lar.

Abriu-lhe a porta para que entrasse primeiro. Ela só deu dois passos para o interior. Não podia apartar o olhar de tudo o que encontrava. Era um lar humilde, sem luxos, mas muito ordenado e limpo. O primeiro que achou foi um pequeno salão que dava acesso à cozinha. A mesa, rodeada de seis cadeiras, era quadrada e de madeira escura. Nas paredes encontrou umas estantes altas repletas de livros. Sem dúvida alguma a mãe de Borshon era uma leitora voraz. No teto pendurava um pequeno abajur de quatro braços no qual poderia apreciar umas velas um pouco gastas. Depois olhou para a janela, uma cortina translúcida de cor âmbar permitia o passo da luz sem que ninguém observasse o que havia no interior.

—Continua —o agente lhe animou aproximando-se de suas costas.

E obedeceu a aquele suave mandato. Avançou para a metade do salão, apoiou a ponta dos dedos sobre a mesa e seguiu admirando.

—Você não gosta? —Borshon perguntou ao vê-la tão calada.

—É muito bonita, acolhedora e limpa... —disse sem pensar.

—Giselle se ocupa da manutenção, além de ajudar a minha mãe —informou.

—Vivem duas mulheres contigo? —Perguntou assombrada.

—Não me ficou alternativa —apontou acariciando a cabeça como se sentisse envergonhado. —Essas duas portas dão aos dormitórios —expôs as assinalando. —Na esquerda descansam minha mãe e Giselle e na direita, eu —esclareceu para que compreendesse que ele tinha sua própria intimidade apesar de viver com elas.

—É uma boa pessoa... —comentou voltando-se para ele.

—Só sou um filho que deseja o melhor para sua mãe —revelou agarrando-a pela a cintura e pousando o queixo sobre o cabelo dourado de Kristel. —Está preparada? Quer conhece-la?

—Sim —afirmou com uma tranquilidade estranha.

Sem apartar suas mãos da cintura, Borshon caminhou para a porta do quarto de sua mãe. Emitiu um leve grunhido quando retirou uma palma do ventre de Kristel, mas se não o fazia... como ia bater à porta?

—Mãe? —Perguntou antes de abrir.

—Entrem! —Aphra declarou como se já tivesse notado a presença deles no lar.

Ao entrar Borshon se sentiu aliviado ao não ver a figura de Berwin. Só se encontravam elas duas, embora pela forma de cochichar e de rir, compreendeu que o centro da conversação era o ancião administrador e não a visita de sua futura esposa.

—Senhora Hill —Kristel disse quando ambos os olhares se cruzaram.

—Senhorita Griffit —respondeu ela estendendo as mãos para a jovem. —Entre, não fique aí parada.

Kristel caminhou para a mulher estranhando não a ver como Borshon lhe tinha anunciado antes de chegar, na cama, e sim em uma cadeira com duas grandes rodas em ambos os lados. Chamou-lhe a atenção quão formosa era. Seus olhos, a cor do cabelo e inclusive a forma do nariz eram muito parecidos com as de seu filho, mas existia entre eles uma grande diferença. Certamente porque a herança masculina do pai provocou essa desigualdade. Devagar e tremente esticou as mãos para pegar as dela. Suaves, muito suaves e não tão grandes como as de Borshon...

—Obrigada por me convidar —Kristel comentou com acanhamento.

—Foi um prazer, embora tenha que esclarecer que quem ideou este encontro foi ele —assinalou com um leve giro de seu rosto para o Borshon.

—Se não lhe parecer oportuno...

—Não! —Aphra exclamou. —Ao contrário! Estava ansiosa por conhecê-la. Meu filho me falou muito de você.

—Quando partiu? —Hill soltou ao não parar de lhe rondar na cabeça essa pergunta.

—O senhor Berwin? Fará uns dez minutos mais ou menos... —respondeu a mãe tentando acalmar o rubor infantil que apareceu em suas bochechas. —Mas não é adequado que a senhorita Griffit se sinta deslocada por mudar o tema de conversação —alegou Aphra movendo ligeiramente uma mão para fazer seu filho calar. Já falariam do administrador em outro momento. —Quero saber sobre você —advertiu-a com um olhar cálido. —Por favor, tome assento. Não é cortês que permaneça todo o tempo de pé.

Enquanto Kristel andava para o assento que tinha decidido tomar, Aphra confirmou o que lhe havia dito seu filho sobre ela, que era uma mulher muito formosa e que a leve claudicação não escurecia essa formosura.

—Nasceu aqui? —Perguntou ao mesmo tempo em que fazia girar as rodas para voltar-se para a jovem. «Devagar, tem que movê-las muito devagar e obterá seu propósito», Aphra pensou no conselho do senhor Berwin.

—Sim, senhora —respondeu enquanto entrelaçava suas mãos e as colocava sobre seu regaço.

—A que se dedicavam seus pais? —Perseverou ao ver que a jovem se achava tão inibida que não era capaz de estender-se em suas respostas.

—Meu pai era professor e minha mãe uma criada pessoal —comentou enfim. Não tinha aparecido ali para falar de seu passado? Para que a mãe de Borshon conhecesse quem era a mulher com a qual viveria o resto de sua vida? Pois, embora lhe doesse falar deles, não ficava outra opção se queria sair dali agradando a sua futura sogra. —Ambos trabalhavam na mesma residência e... se apaixonaram. Pouco depois das núpcias, minha mãe ficou grávida.

—De você, imagino —Aphra disse alisando uma ruga da manta que ocultava as pernas.

—Sim —disse com tristeza. —Tudo foi maravilhoso até a hora do parto.

Nesse momento, sem mal fazer ruído, Borshon agarrou o respaldo da cadeira que tinha à sua direita e a transportou até onde se encontrava Kristel. Desejava escutar essa história, sua história.

—Foi complicado... —suspirou. —Vinha de nádegas e, por mais esforços que a parteira realizasse, teve que me tirar do interior da minha mãe a puxões.

—Daí que você tenha uma leve claudicação —Aphra voltou a intervir.

—Sim, mas o doloroso não foi o que o nascimento produziu em mim e sim o que aconteceu à minha mãe. Ela não resistiu...

—Sinto-o —a mãe de Borshon manifestou colocando suas mãos sobre as de Kristel.

Borshon suspirou fundo controlando o desejo de abraça-la, de consolá-la. Já teria tempo de apagar com suas carícias a dor daquele miserável passado e lhe ofereceria todos os nascimentos que seu ardor por ela lhe causasse.

—Durante os primeiros cinco anos de vida meu pai se encarregou de mim. Mas conheceu outra mulher e a esta não agradava ter sob seu cuidado uma menina com este defeito. Então ele decidiu oferecer minha tutela à sua única irmã, minha tia Stacy.

—Como viveu esse dia, senhorita Griffit? —Aphra interessou-se.

—Lembro que aguardava sua volta. Às vezes permanecia durante horas sentada atrás da entrada. Mas terminei deduzindo que não retornaria por mim, que sua nova família lhe tinha feito me esquecer.

—Como foi sua vivência com sua tia? —Insistiu.

—Tranquila. Ela era uma mulher muito carinhosa e jovial e tentou me cuidar como se fosse minha própria mãe. Mas quando alcancei a idade dos quinze, ela adoeceu e... morreu.

—Santo Deus! —Aphra exclamou horrorizada. —Como sobreviveu durante estes anos?

—Graças a uma amizade —revelou apagando o rosto triste. —A senhorita Giesler e eu nos conhecemos desde que ambas tínhamos dez anos. Era a única pessoa que não observava minha imperfeição e a única que me acolheu quando fiquei sozinha. Ela e seus dois irmãos se converteram na família que eu precisava —esclareceu.

—Essa jovem a que faz menção... é a mesma mulher que meu filho teve que vigiar? —Perguntou olhando ao Borshon.

—Sim, graças a esse emprego nos conhecemos —manifestou orgulhosa e sorridente.

—Como foram capazes de ir adiante? —Aphra insistiu.

—Minha mãe tem a absurda ideia de que a senhorita Giesler é uma professionnel —ele interveio sarcástico.

—Professionnel? A que se refere? —Perguntou.

—A uma prostituta —Borshon apontou divertido.

—Não, por Deus! —Kristel exclamou horrorizada. —Valéria seria incapaz de exercer tal ofício. Ela utiliza o dom que possui para... —parou de falar e olhou ao Borshon, este afirmou com a cabeça lhe dando permissão a falar porque o que ia expor ele já sabia. —Desde muito menina teve uma habilidade incrível com os números. Com o tempo, e empurrada pela necessidade, essa mestria a empregou nas cartas.

—É uma jogadora? —Agora a assombrada era ela.

—A melhor. Descobriu que no clube do senhor Reform podia jogar sem ser descoberta e ia uma vez à semana para ganhar a quantidade que necessitávamos para sobreviver. Graças a ela, desde esse dia, não nos faltou nem um teto onde dormirmos nem alimento com o qual encher nossos estômagos.

—Qual é a sua função nessa família, senhorita Griffit? —Aphra perguntou intrigada.

—Velar por eles —declarou com firmeza.

—Bem... —disse reflexiva. —Imagino que cuidar de dois jovens e de uma moça que ganha o sustento mediante o jogo não foi tarefa fácil —apostilou.

—Não quero dar a impressão de que essa pequena família se salvou graças a mim, nem tampouco quero que pense que Valéria não teria saído adiante por si mesma. É uma mulher de valia. Quão único desejo...

—Não tem por que desculpá-la nem se desculpar. Pensa que sou a mais indicada em julgar os outros? —Falou desenhando um enorme sorriso. —Só ansiei saber o passado que teve a mulher que se converterá na esposa do meu único filho. Tenha em conta que sua decisão não afetará só a ele.

—Se albergar alguma dúvida sobre mim... —Kristel comentou enrugando com suas mãos algumas partes da saia do vestido.

—Devo me explicar melhor —Aphra continuou sorridente. —Você sabe que meu filho pretende que eu viva com ele depois das núpcias?

—Sim.

—Sabe a vida que terá se se converter em sua esposa? As noites em claro, a angústia, as lágrimas que aparecerão se sua chegada atrasar? Quer padecer a vida que lhe oferecerá um obstinado agente da Scotland Yard?

—Sim.

—E está disposta a sacrificar sua vida por ele? —Perseverou.

—Estou disposta a viver com o homem que amo, senhora Hill. Não me importa o que ele contribuirá à nossa união —sentenciou com firmeza enquanto se levantava do assento. —Quão único desejo é que me ame.

—Amo-a mais que a minha própria vida! —Borshon clamou se elevando do assento com rapidez. Em frente aos olhos de sua mãe agarrou Kristel pela cintura, atraiu-a para ele e a beijou com mais paixão que na rua.

—Ante isto acredito que não tenho que acrescentar nada mais —Aphra disse sem apartar o olhar dos dois. —Bem-vinda à família, Kristel.


XXI

 

A sorte o tinha abandonado. Ele imaginou que durante o caminho os moços falariam sem cessar de Valéria, mas não foi assim. Não só se mantiveram afastados dele, mas sim nem falaram entre eles. Permaneciam tão calados que Trevor começou a pensar que não tinha sido boa ideia levá-los até seu lar. Possivelmente lhes incomodasse sua companhia ou talvez meditassem sobre a repreensão que sua irmã lhes daria ao vê-los aparecer com ele. Fosse o que fosse, nada parecia despertá-los do hermetismo no qual se introduziram.

—Então... —começou a dizer para cercar uma conversação, mas nem sequer o olharam. —Está bem, vocês ganharam —murmurou zangado.

Depois de respirar fundo, dando-se por vencido ao ser ignorado com tanto descaramento, deixou que os meninos continuassem avançando até que, de repente, detiveram o passo. Ao ver o lugar onde pararam, Trevor sorriu de orelha a orelha, provavelmente ainda tinha uma oportunidade...

—Gostariam de um sorvete? —Disse-lhes ao passar por seu lado para dirigir-se para à banca. —Lembro que na última vez que tomei um era de morango e eu adorei sentir em minha boca a mescla do sabor e do gelado —acrescentou caminhando para o vendedor.

E como se tivesse um ímã nas costas, os jovens lhe seguiram.

—Bom dia, senhor. Quantos desejam? —Comentou o homem com amabilidade.

—Um grande de morango...

—Dois! —Exclamou o menor. —Eu também gosto desse sabor —esclareceu.

—E você? —Reform perguntou ao maior.

O moço fixou seu olhar azul nos sorvetes e fez uma careta de desagrado. Trevor deduziu que aquele doce infantil não seria suficiente para conquistar o irmão de Valéria, mas tampouco devia convidá-lo a um gole... não tinha idade para embebedá-lo!

—De limão —respondeu depois de um longo silêncio.

—Obrigado —o vendedor assinalou depois que Reform pagou os três sorvetes.

Durante um bom momento o mutismo continuou reinando, mas quando o pequeno estava a ponto de terminar ele começou a falar.

—A minha irmã gosta do de baunilha, por isso sempre nos traz um bem grande. Eu não gosto dele —declarou. —Mas não quero que fique triste, então o como e lhe sorrio.

—Martin! —Philip repreendeu-lhe por revelar o pequeno segredo. —Não deve dizer essas coisas. Valéria não gostará de saber que falamos dela durante o trajeto.

—Se quer casar-se com nossa irmã terá que conhecer seus gostos, não crê? —O pequeno apontou entreabrindo os olhos.

—Ela não o aceitará. Odeia-o —manifestou.

—Por que me odeia? Não fiz nada para que sinta algo tão espantoso por mim —Trevor interveio com suspeita.

—Diz que não entende como um homem que se criou na pobreza se converteu em um ser tão cruel, absurdo e déspota —Martim lhe informou de novo.

—Já entendi... —Reform comentou reflexivo. —Bom, em parte tem um pouco de razão, mas em minha defesa tenho que explicar que é muito duro ser o dono de um clube como o meu.

—Por quê? —Philip participou enfim. —Não tem suficiente gente ao seu encargo para que se ocupem dele?

—Para que algo funcione corretamente, jovem Giesler, não basta contratar empregados eficientes, sempre deve haver uma pessoa que observe, ordene e participe onde os trabalhadores não podem —manifestou solene. —Os homens que vão a lugares como o meu são muito especiais...

—Como de especiais? —Philip insistiu.

Trevor o olhou atentamente ao mesmo tempo em que procurava as palavras adequadas para lhe responder. Se Valéria o odiava, como lhe tinham anunciado, aumentaria esse ódio se eles lhes contassem que tinha feito referência às necessidades sexuais masculinas, às bebedeiras dos clientes e ao sem-fim de disputas que tinha tido que resolver.

—Quase todos os clientes do clube Reform são aristocratas e vocês já sabem como se comporta a burguesia. —Era suficiente a explicação? Esperava que sim...

—Por que decidiu levantar esse clube se tantos problemas lhe causam? —Martin perguntou diminuindo seu passo para colocar-se ao lado de Trevor.

—Foi minha salvação —declarou com nostalgia. —Não desejava passar o resto da minha vida na rua onde nasci.

—Tão mau era? —Philip perguntou. —Não teve uma infância feliz? Por isso desejava sair dos subúrbios? Tenho lido que sofreu bastante no passado...

—Vocês tiveram pais que lhes cuidaram até que falecessem, minha mãe, em troca, ainda segue viva, mas não quis saber de mim. Acredito que se esqueceu de que me teve quando me abandonou no meio da noite envolto em umas velhas mantas na entrada de um prostí... de um lar pouco aconselhável —retificou.

—Mas essa família lhe cuidou —Martin disse com inocência.

—Sim —Trevor respondeu sorrindo de orelha a orelha. —Essa família me cuidou muito bem. Embora também me enfurecessem com coisas que não devia fazer.

—Como quais? —Insistiu o pequeno.

—Como jogar —determinou.

Isso era suficiente para eles. Não podia lhes confessar que passou sua primeira infância escondido sob a cama das prostitutas para roubar os clientes enquanto elas fornicavam.

—Minha irmã também joga muito bem e nunca nos disse que isso seja mau, só que tem que jogar com sensatez, não é, Philip? —O menino assinalou esperando a aceitação deste.

—Quem a ensinou? —Aproveitou o comentário do menino para represar a conversação que desejava.

—Nasceu com uma mente privilegiada para os números e a observação. Mamãe sempre lhe disse que utilizasse esses dons para sobreviver quando ela morresse e o fez —Philip expôs orgulhoso.

—Eram muito jovens quando perderam seus pais? —Quis saber.

—Eu não os conheci... —Martin disse com tristeza. Reform sem saber por que motivo, esticou a mão para a cabeça loira do moço e lhe acariciou com ternura.

—Minha mãe morreu dois meses depois que meu pai. Martin tinha essa idade... —esclareceu. —Valéria tinha completado os quinze e eu oito.

«Maldição! —Trevor gritou em sua cabeça após averiguar os anos nos quais ela tinha permanecido sozinha, buscando a maneira para alimentar crianças tão pequenas. —Foi uma lutadora, Valéria. Agora entendo o motivo pelo qual tem se exposto durante tanto tempo».

—A princípio foi muito difícil. Martin chorava e chorava porque Valéria não podia pagar uma mulher que o alimentasse a todas as horas. Mas ocorreu um milagre...

—Qual? —Perguntou parando sua caminhada, notando como a espera por averiguar o passado de Valéria o deixava sem ar nos pulmões.

—Um casal que vivia quatro ruas ao oeste de nosso lar teve dois bebês. Um deles morreu e quando minha irmã soube do falecimento correu com o Martin nos braços para que ela o alimentasse. O casal aceitou a proposta, mas em troca lhe pediram certos serviços... —Philip apontou compungido.

—Serviços? Que serviços? —Perguntou arqueando as sobrancelhas escuras, grunhindo em silêncio, rogando a esse Deus que se mostrava piedoso com ele que não se tratasse daquilo que ele imaginava.

—Não sei se... acredito que não deveria... —o jovem duvidou.

—Não tem por que envergonhar-se, jovem Giesler. Posso lhe assegurar que nada do que me conte me surpreenderá —respirou colocando sua mão sobre o ombro do jovem.

—Eram estelionatários —declarou enfim. —Esse homem necessitava de um acompanhante para seguir fraudando os outros e, como sua mulher não podia ir depois do parto, ensinou Valéria a jogar cartas para continuar enganando. Entretanto, mudou de estratégia quando descobriu seu dom com os números. Então lhe fez estudar durante intermináveis horas cada jogada e cada carta que colocava sobre a mesa. Finalmente Valéria terminou por deduzir todas as que iam aparecer, como se fosse uma adivinha... —respirou fundo quebrado de dor. —Obrigou-a a vestir-se de homem e teve que acompanhá-lo a lugares que ela jamais quis descrever... —seu tom de voz foi se apagando como se fosse uma vela acabada.

Trevor compreendeu sua dor, mas ainda mais a ira que guardava em seu interior. Aquelas rugas na testa e as que apareceram nas têmporas lhe indicavam o culpado que se sentia por havê-la feito padecer durante aquele tempo.

—Como conseguiram se afastar deles? —Exigiu saber com uma mescla de raiva e assombro. Sua jovem amada tinha estado sob o cruel mandato de um estelionatário. Agora entendia por que odiava tanto que lhe acusasse de fazer armadilhas... não podia suportar viver de novo aquela etapa de sua vida.

—Não o recordo muito bem —Philip disse entreabrindo os olhos. —Algo aconteceu para que o casal Page partisse de um dia para o outro. Embora me alegre disso porque desde esse dia minha irmã pôde dormir sem sobressaltos.

—Acredito que Valéria se zangará mais ao descobrir que você lhe contou essa história do que eu lhe tenha revelado o sabor preferido de seu sorvete —Martin comentou olhando seu irmão com receio.

—Mas ela não tem por que se inteirar da conversação que mantiveram três cavalheiros —Trevor assinalou com um tom tão severo que deixou o pequeno imóvel.

—Não, não deve saber nada —Martin disse de maneira automática.

—Imagino que já não está interessado em casar-se com ela —Philip expressou com temor. —Não lhe agradará ser o marido de uma mulher que teve esse tipo de vida...

—Está confundindo, jovem Giesler, meu interesse por ela cresceu tanto que nada, nem ninguém evitará que se case comigo —sentenciou sem duvidar.

 

 

Louca. Estava louca, desequilibrada, perturbada e, sobretudo irritada consigo mesma. Como tinha saído dali correndo daquela forma? Como tinha esquecido seus irmãos e Kristel? Não pensou neles até que chegou ao seu lar e o encontrou vazio. Tentou retornar depois de tomar um copo de água para diminuir a sede que lhe tinha produzido a desesperada corrida, mas justo quando abriu a porta encontrou a esposa do açougueiro com um frango depenando na mão.

—Não tem que me pagar, senhorita Giesler —comentou quando Valéria procurou seu moedeiro no bolso. —A senhorita Griffit já o fez antes de partir com o agente Hill —acrescentou ruborizando-se.

—Sabe para onde partiu? —Perguntou com inquietação.

—Eu não gosto de escutar as conversações dos outros... —apontou abaixando levemente a cabeça, envergonhada —mas depois daquele beijo tão apaixonado se dirigiram por volta da primeira igreja que tenham encontrado ou à casa do respeitável senhor Hill.

—Beijo apaixonado? —Perguntou confusa. Em que momento da conversação Kristel lhe disse que pretendia beijá-lo? Em nenhum. Seu plano era esbofeteá-lo em frente a todos, não o beijar apaixonadamente. O que teria ocorrido? Para onde teria ido? E o mais importante... onde estavam seus irmãos?

—Oh, sim! —Respondeu ruborizada. —O senhor Hill a beijou impetuosamente em frente à banca do senhor Adams. Todo mundo foi testemunha da hipótese que o senhor Daft realizou no sábado: está apaixonado por ela.

—Obrigada por me haver trazido a compra e pela informação —disse a modo de despedida.

—Foi um prazer, senhorita Giesler. Que tenha um bom dia —acrescentou antes de colocar-se em frente à porta de saída e avançar para o exterior.

Se antes estava assustada agora sentia como o pavor se apropriava dela. Por sua culpa os dois pequenos andariam procurando-a, atemorizados ao verem-se sozinhos, sem ninguém que lhes ajudasse a retornar ao seu lar. Com rapidez depositou o frango dentro da pia, tampou-o com um tecido branco para que as moscas não revoassem sobre ele, e se dirigiu para a porta. Tinha que buscá-los e lhes explicar que não os tinha abandonado, que tudo se deveu a um estado de loucura causada pela aparição do senhor Reform. Justo quando pensou nele teve que parar e apoiar-se no respaldo de uma das cadeiras que havia em frente à mesa. Abaixou a cabeça e respirou fundo. Por que tinha ido ao mercado? Para vê-la? Com qual motivo? O que lhe importava o que ela fizesse?

Valéria apoiou a testa sobre suas mãos procurando aplacar os batimentos desenfreados de seu coração. Aquele homem lhe provocava mais transtorno do que desejava admitir e tudo porque estava apaixonada. Sim, estava-o desde o primeiro dia que entrou no clube e o observou na planta superior contemplando ao seu redor com tanta solenidade que parecia a reencarnação do próprio Deus. Devagar, com uma lentidão pesarosa, rememorou as palavras de sua amiga e concluiu que tinha razão. Cada vez que aparecia no clube oferecia alguma queixa para que os empregados falassem dela ao senhor Reform. Mas jamais lhe perguntou, em suas inesperadas aparições pelas salas, que necessidades poderiam resolver para que sua estadia fosse agradável. Só passeava... como se fosse um predador procurando uma deliciosa presa. «Maldito seja, Trevor Reform! —Gritou passando da aflição à ira. —Maldito presunçoso pretensioso! Por que me beijou? O que desejava obter? Minha rendição? Pois não a terá!»

E depois desse episódio de cólera, caminhou de novo para a saída para procurar seus irmãos, mas se encontrou com outra pessoa, uma que estava a ponto de chamar à sua porta.

—Não posso atendê-la neste momento, senhora Shoper —disse-lhe assim que a viu. —Tenho que procurar Philip e Martin.

—Não demorarei muito... —comentou ignorando suas palavras. Apartou Valéria com suavidade e acessou ao interior do lar. —Apenas a entreterei dois minutos —acrescentou.

—De verdade não posso —reiterou.

—Quero lhe deixar claro que não irei daqui até que resolvamos o tema que temos pendente —assinalou a mulher parando no meio da habitação. —Estou cansada de que me olhe por cima do ombro.

—Não há nada do que falar... —murmurou voltando-se para a mulher depois de fechar novamente a porta.

—Mentira —comentou sorrindo. —E sabe muito bem ao que me refiro.

Sim, sabia. Levava sete anos pensando nisso. Em mais de uma ocasião a tentação de perguntar sobre o que tinha ocorrido em realidade a assaltou com tanta força que a deixou ajoelhada no mesmo lugar onde Doina se encontrava. Mas renunciou a isso cada vez que sua mente perseverava em saber a verdade. Preferia concluir que sua mãe tinha morrido por uma enfermidade estranha a ser consciente de que ela mesma tinha cometido tal atrocidade.

—De verdade tenho que sair. Meus irmãos estão no mercado e eu não gostaria...

—Não tem fé em Philip? —Perguntou arqueando as sobrancelhas para enfatizar a pergunta.

—Como diz? —Perguntou perplexa.

—O que o jovem pensará quando sua irmã aparecer aterrorizada? Que não confia nele? Que não tem idade suficiente para cuidar de seu irmão durante sete míseras ruas? —Perseverou.

—Diga-me qual é o motivo pelo qual decidiu apresentar-se em meu lar —resmungou. Como ela podia questionar a maneira que tinha de educar e cuidar de seus irmãos? Acaso tinha permanecido cega durante os sete anos?

—Faça-me a pergunta, senhorita Giesler —disse-lhe em tom suave e relaxado. —Responder-lhe-ei com sinceridade.

Valéria caminhou para ela enquanto agarrava uma mecha de seu cabelo entre os dedos. Não podia fazê-lo, não queria descobrir o que tinha acontecido com certeza à sua mãe e terminar odiando-a por abandoná-los.

—Não. —Negou movendo lentamente a cabeça. —Não quero saber. Não é justo que emita falsos testemunhos sobre ela.

—Não tem por que julgá-la. Cada pessoa toma suas próprias decisões e ela escolheu a sua... —apontou com tranquilidade. —Oferece-me um chá? O que a senhorita Griffit me preparou o outro dia estava delicioso.

—Como lhe disse...

—Confie em seu irmão, ele aparecerá assim que eu sair por essa porta —adicionou tomando assento.

—Também o viu nas linhas de sua mão? —Valéria perguntou mordaz.

—Não —respondeu antes de soltar uma gargalhada. —Não se vê esse tipo de coisas, só confio nele.

Depois de soprar decidiu lhe preparar o chá que mencionara. Embora lhe obrigaria a tomar com rapidez para despachá-la o antes possível de sua casa. Por mais que ela tivesse plena confiança em Philip, podia lhe acontecer qualquer coisa durante o trajeto que não pudesse resolver por si mesmo.

—Far-me-á a pergunta? —Doina repetiu quando colocou suas mãos ao redor da xícara. —Ou lhe dá pavor conhecer o que realmente aconteceu?

—Ela partiu e me deixou encarregada dos meus irmãos, isso foi quão único aconteceu —falou com ferocidade, como se contra-atacasse um golpe no peito.

—O amor de seus pais foi maravilhoso —começou a dizer cravando seu olhar no líquido. —Muito poucos freiherr3 renunciaram ao seu título nobiliário por amor...

—Minha mãe o valia —defendeu-a.

—É claro, não estou opinando sobre a decisão de seu pai, mas sim...

—Pode ser mais concreta? Como lhe disse, não tenho muito tempo.

—Sabe o que suscita o verdadeiro amor? Um estado de frenesi constante. Chega a ser tão viciante que ninguém pode superar o desaparecimento desse sentimento tão sublime. Eles o possuíam, tinham a magia que muito poucos casais chegam a alcançar. Seu pai soube assim que a viu em frente aos seus olhos lhe tentando vender uma rosa que ela mesma tinha compilado do jardim onde permaneciam.

—Sei a história de como se conheceram. Ambos me repetiram isso milhares de vezes —adicionou ao mesmo tempo em que se reclinava no assento e cruzava suas mãos pelo peito.

—Então entenderá que o dia que seu pai faleceu, ela também o fez.

—Morreu de noite, ao seu lado. Mas nem meu irmão nem eu soubemos até que o médico apareceu no dia seguinte para vê-lo. Depois de confirmar o falecimento minha mãe gritou desesperada que só tinha frio e que seu corpo o manteria em calor. Entretanto... —notou como as lágrimas vagavam por seu rosto, devagar as retirou com a mão. Não queria mostrar vulnerabilidade ante ninguém.

—Ela morreu no mesmo momento no qual seu pai deixou de respirar —Doina prosseguiu ao perceber a tristeza da moça. —Depois de seu enterro, enquanto vocês dormiam nessa cama, —assinalou por volta do leito onde agora descansavam Kristel e ela —apareceu em meu lar me rogando que lhe fizesse desaparecer a dor que sentia ao perder a única pessoa pela qual desejava viver. —A senhora Shoper esperou que a jovem lhe fizesse algum tipo de pergunta, mas não o fez. Manteve-se séria, olhando-a sem pestanejar. Por mais que ela tivesse a aparência de sua mãe, em seu interior vivia a solenidade do pai. —Pedi-lhe clemência por vocês e pelo filho que crescia em suas vísceras. Roguei-lhe que procurasse em vocês o apoio que necessitava para que esquecesse aquela terrível ideia, mas como pode perceber, não o obtive. Não sei em que momento ela pegou a erva, nem se foi em meu lar ou em outro, nem tampouco posso lhe assegurar que esperasse o nascimento do Martin para começar a ingeri-lo, quão único posso lhe dizer é que não foi minha culpa. Eu me neguei terminantemente a que lhes deixassem desamparados.

—Está tentando me dizer que seu amor por meu pai foi mais forte que o que seus três filhos poderiam lhe dar? Filhos nascidos desse amor? —Perguntou levantando do assento de repente.

—Uma mulher apaixonada pode cometer loucuras, muitas... quando você encontrar o homem que lhe roube o coração, entenderá a sua mãe —replicou elevando-se também.

—Jamais entenderei uma atrocidade semelhante! —Exclamou irada.

—Nem todo mundo tem sua força, senhorita Giesler.

—Ela tinha! —Declarou apertando os dentes.

—Equivoca-se. O único que tinha a força nesse casal era seu pai. Não é capaz de ver? Tão cega esteve durante estes anos? Ele fingiu sua própria morte na Alemanha para fugir com ela!

—Mentira! —Gritou. —Meu pai escreveu uma nota ao meu tio para lhe ceder o título!

—Não... —disse com um suspiro. —Não foi assim. Ele só podia delegar o título de freiher fingindo sua morte... uma que, finalmente, apareceu antes do tempo.

—Parta, rogo-o. Não quero escutar mais tolices. Preciso me centrar em procurar meus irmãos. Eles são o único que me importa neste momento —declarou com firmeza, uma que só tentava aparentar.

—Se estivesse em seu lugar procuraria como acessar esse título e deixaria que...

—Fora! —Trovejou. —Fora daqui! —Repetiu assinalando com o dedo a porta.

E em completo silêncio Doina saiu do lar. Tinha completado sua promessa, aquela que lhe pediu Luisa antes de morrer e, embora a resposta de Valéria fosse a esperada, sentia uma incrível calma em seu interior. Só esperava que a moça entrasse em razão e lutasse por encontrar o destino que, por sangue, merecia.


XXII

 

Tudo era mentira. Aquilo que a senhora Shopper lhe tinha contado não podia ser verdade. Embora tivesse tido suas suspeitas, uma mãe não podia desinteressar-se de seus filhos e nem muito menos com um recém-nascido nos braços. Tinha sido má sorte, só isso. Uma horrível coincidência... Valéria, depois de acalmar-se e consolidar sua postura, decidiu sair do lar para procurar, de uma vez por todas, os meninos. Com o tecido de seu vestido se limpou o rosto molhado pelo pranto, caminhou para a saída e, justo quando abriu a porta, achou-os subindo os escassos degraus que havia entre a rua e a sua casa.

—Sinto muito! —Exclamou enquanto os abraçava com desespero. —Sinto muito!

—Não deve preocupar-se por nós —comentou Philip com certa altivez. —Já sabe que sou suficientemente grande para retornar ao nosso lar sem sofrer nenhuma briga.

—Sei, —disse Valéria apartando as novas lágrimas surgidas pela emoção —mas estava preocupada... ainda não me acostumei a ter um homenzinho em casa —acrescentou desenhando um pequeno sorriso.

—Bom, mas também devo admitir que caminhar sob o amparo do senhor Reform impediu que qualquer criminoso nos assaltasse —Martin acrescentou com sua acostumada inocência.

—O senhor Reform? —Ela perguntou notando como seu coração se fazia tão pequeno como uma bolinha de pó.

—Senhorita Giesler —disse o aludido aparecendo atrás dos meninos. Aquela figura alta, hercúlea e vestida de forma impecável se colocou em frente a ela desenhando um sorriso tão sedutor que a fez tiritar. —De novo, bom dia.

Valéria se paralisou devido ao retorno daquelas emoções incontroláveis que a sobressaltavam ao tê-lo tão perto, contemplando-a como se quisesse devorá-la com o olhar; resultou-lhe impossível evitar que sua mente não evocasse a sensação tão prazerosa que obteve ao ser beijada por uns lábios tão peritos. Mas... não podia amedrontar-se. Sua parte racional lhe gritava que o despachasse com rapidez. Quanto antes desaparecesse a tentação, antes retornaria a calma.

—Você os acompanhou? —Interrompeu-o com um grito. —Você? Não havia ninguém mais que tivesse piedade dos meus irmãos?

Optou pela segunda opção. A mais fácil para ela. Tal como lhe havia dito a senhora Shoper, resultava-lhe mais cômodo separar de seu lado o homem que a fazia perder o controle antes que se enfrentar a verdade: o amor é um ato de paixão e não de raciocínio.

—Se os houve não sei —disse ligeiramente zangado. —Preocupei-me mais por trazê-los sãos e salvos, que perguntar se alguém se ofereceria a acompanhá-los. Além disso, depois de admitir que a causa pela qual corresse enlouquecida pelo mercado fui eu, senti-me na obrigação de lhe fazer um favor —apontou mordaz.

—Um favor? —Trovejou pondo os olhos em branco. Indubitavelmente, a alternativa de afastá-lo tinha sido a correta.

—O senhor Reform deu um murro no senhor Mayer —interveio o pequeno acreditando que se mudasse a conversação sua irmã deixaria de zangar-se com o homem que lhes tinha prometido casar-se com ela. Como ia sentir apreço por uma mulher descontrolada?

—Fez o que? —Valéria vociferou olhando-o com uma ira demencial. —Como se atreveu a fazer solene tolice diante dos meus irmãos? Que diabos estava pensando?

—O senhor Mayer e eu tínhamos um assunto pendente... —resmungou —e o resolvemos como têm que fazê-lo dois homens.

—Um assunto pendente? Acaso suas garras são tão longas que não há ninguém nesta maldita cidade que possa livrar-se de você? —Prosseguiu fora de si.

—Não tenho garras, mas sim duas grandes e fortes mãos que podem pôr em seu lugar um homem descarado —continuou irado.

—Descarado? Você é capaz de emitir por sua boca uma palavra assim? Que divertido! Como pode idolatrar-se tanto?

Trevor colocou as mãos nos bolsos para que os meninos não percebessem que se converteram em dois férreos punhos. Por que ela se zangava por ele pôr o senhor Mayer em seu lugar? Não recordava tudo o que aquele feto tinha feito à sua amiga ou a ela mesma? Devia lhe agradecer por deixar claro àquele presunçoso que não devia aproximar-se nem dela nem de sua família!

—Sim, senhora Shoper? Claro! Vamos agora mesmo —Philip exclamou colocando a mão na orelha como se desta forma escutasse melhor as palavras de uma mulher que nem sequer apareceu na janela. —Venha, Martin! —Disse segurando-o pelo braço. —A senhora Shoper nos chama, acredito que disse que tem um pouco de fruta para nós.

—Pois eu não ouvi nada! —Respondeu o menino sacudindo a orelha com o dedo. —Tem certeza? Com os gritos que Valéria está dando pode ter se confundido...

—Não, não estou confundido. Chamou-nos —Philip insistiu puxando-o para a porta da mulher.

Enquanto os jovens se afastavam, Trevor subiu os degraus que tinha sob seus pés até que não houve diferença de altura entre eles. Seus olhos negros permaneceram ao mesmo nível que os azuis dela e ambas as bocas podiam sentir o calor dos dois fôlegos. Observou o rosto zangado de Valéria; o cenho franzido e o lábio superior ligeiramente elevado, não lhe indicavam nada bom... não quis piscar. Não devia fazê-lo porque se o fizesse ela aproveitaria esse descuido para...

—Não é assim como esperava ser recebido —comentou após lhe agarrar o pulso para evitar o que já imaginara: um bofetão. —Com um... obrigada, você é muito amável, teria tido suficiente. Embora, como posso observar, o fato de ter dado um murro em seu querido professor lhe fez esquecer como atuar corretamente —apostilou.

O roce daqueles dedos sobre sua pele lhe gerou de novo um sem-fim de descargas elétricas. Valéria olhou sem pestanejar ao Reform, memorizando cada ruga e cada expressão que achava em seu rosto. Aquela cuidada barba tão escura como a luz de seus olhos e os lábios ligeiramente estendidos formando um sensual sorriso faziam-lhe mais sedutor, se pudesse. Surpreendeu-se ao descobrir que após tentar lhe esbofetear não havia rancor naquele semblante viril, e sim complacência. Alegrava-o ter prognosticado que ia pegar-lhe ou que lhe devia um favor por ajudá-la com seus irmãos?

Esse estado de supremacia que o caracterizava começava a lhe retorcer as vísceras. Não podia comportar-se desse modo, não tinha nenhuma pretensão afetiva por ela. E, por mais que lhe doesse, por mais que lhe rompesse o coração, não se jogaria nos pés de um homem como ele. Ela tinha sonhado viver junto a um marido tão atencioso e carinhoso como seu pai... um marido que sempre a tratasse de igual para igual e que jamais encontraria em suas palavras ou em seus feitos uma dominação sobre sua esposa.

Tomou ar tentando recompor-se de todas as emoções que sentia ao tê-lo tão perto, ao sentir aquele roce em sua pele, ao encontrar um olhar lupino naqueles olhos negros...

—Você é um calhorda! —Clamou desesperada.

Não podia suportá-lo mais, devia afastá-lo o antes possível dela. Aquele vaivém de emoções a estavam debilitando tanto que mal podia pensar em outra coisa que não fosse notar seus lábios sobre sua boca. Tanto hipnotismo podia causar um beijo? As mulheres que foram beijadas por Trevor haviam sentido o mesmo que ela? Se fosse assim entendia por que o descreviam como um bom amante. Nunca imaginou que um ato tão ínfimo como um beijo pudesse causar o mesmo que o bater de mil asas de borboletas em seu estômago.

—Melhor um homem solidário que socorreu dois meninos pequenos —murmurou aproximando-se ainda mais dela e mantendo aqueles fortes dedos ao redor de seu pulso. —Não me oferece um refrigério? Faz um calor terrível e a caminhada foi muito longa...

Valéria desviou o olhar para o céu e enrugou a testa ao descobrir que as nuvens ocultavam o sol. Tinha que ter percorrido de ponta a ponta Londres para estar exausto.

—Vá embora agora mesmo! —Clamou após liberar-se daquele forte agarre que, para sua desgraça, emocionava-a. Como seria sentir aquelas gemas por outras zonas de seu corpo que não fossem os braços? Todo seu ser reagiria dessa forma tão desesperada ante suas carícias?

—Ao inferno —Trevor acrescentou com suspeita. —Foi o que você me gritou no mercado, recorda? —Arqueou as sobrancelhas.

Valéria retrocedeu. Não devia permanecer ali, precisava liberar-se daquela pressão que sentia em seu peito, daquela loucura que perturbava sua mente e do desejo que, por desgraça, aquele homem lhe causava cada vez que permanecia ao seu lado. Seguia admitindo que seus sentimentos por ele sempre tivessem estado em seu coração, mas rejeitava categoricamente seu comportamento. Não podia converter-se em um cavalheiro amável, humilde e respeitoso? Não, claro que não. Se ele mudasse essa atitude desapareceria o lobo no qual se converteu e deixaria de ser Trevor Reform, o dono do clube de cavalheiros mais importante de Londres.

Tentou fechar a porta de um golpe, mas antes de poder encaixá-la, a mão, aquela que tinha agarrado seu pulso, aferrou-se à grande lâmina de madeira evitando que fechasse. Valéria deu uns passos para trás quando ele a abriu de par em par.

—Obrigado, com muito gosto aceito esse copo de água —comentou zombeteiramente.

Uma vez que acessou ao interior, franziu o cenho. Uma só habitação. Assim era como subsistiam? No pequeno habitáculo encontrou duas camas à sua esquerda e à sua direita, uma mesa com quatro cadeiras em frente à diminuta cozinha. Como podiam viver daquela maneira? Não tinha ganhado o suficiente para procurar um lar mais digno?

—Não lhe basta me haver humilhado no mercado, quer também fazê-lo em minha própria casa? —Valéria perguntou olhando-o com raiva.

—Só aceitei o convite de uma irmã que, depois de compreender que seus dois seres queridos estiveram sob a tutela de um homem como eu, decidiu me obsequiar com um refresco —disse cravando seu escuro olhar nas duas xícaras que havia sobre a mesa.

Quem tinha ido vê-la? Por isso não partiu antes que chegassem? O maldito Mayer teria aparecido para lhe contar que tinha sido agredido com a esperança de que ela sentisse tanta lástima que caísse em seus braços? O ciúme, aquele sentimento que só possuía por ela, aumentou a um nível inimaginável.

—Vejo que esteve ocupada... —murmurou apertando a mandíbula. —Seu querido professor apareceu? Possivelmente desejava lhe falar do ocorrido no mercado... consolou-o? Deixou-o chorar sobre seu ombro? Ou talvez o reconfortasse de outra forma mais... prazerosa? —Cada palavra que soltava por sua boca, cada alusão que expunha, provocava um entalhe em seu rosto aterrador e transformava a escuridão de seus olhos em um abismo de cólera. Se aquela almofadinha tinha ousado vê-la depois da advertência, não haveria um rincão da cidade no qual pudesse refugiar-se e, assim que o encontrasse, não se conformaria com outro murro, e sim com algo mais doloroso.

—Como se atreve a me falar dessa forma? —Perguntou elevando o queixo de maneira desafiante. —Que direito tem para aparecer em meu lar e insinuar tal aberração? Quem acredita que sou, uma de suas putas?

—Se fosse uma de minhas putas não se separaria de meu leito nem de dia nem de noite —expôs com um brilho erótico em seus olhos, como se sua mente lhe oferecesse aquela perversa imagem. Embora nesse devaneio ela não fosse sua concubina, e sim sua mulher, sua esposa, a mãe de seus filhos. —E me vejo na obrigação de velar por você, senhorita Giesler, depois de tudo o que descobri sobre sua pessoa... —pronunciou dando outro passo para ela.

—Velar por mim? —Perguntou de maneira sardônica. —Isso sim que é uma sandice!

Não podia deixar de tremer pela afirmação que lhe havia dito. Desejava-a? Esse era o motivo de sua terrível insistência? Por isso a beijou no mercado? Deus, parecia uma confusão! Por uma parte, sentia-se feliz por ser desejada, mas por outra, não. Ela tinha sonhado em converter-se em algo mais que na amante do homem por quem suspirava.

—Sandice? —Respondeu arqueando a sobrancelha direita. —Por que denomina um ato solidário de forma tão horrenda? Acaso não posso me preocupar com você? Não posso ajudá-la? —Perseverou cruzando os braços.

—Velar por mim? —Repetiu. —Você? Um homem que agride suas amantes?

Trevor notou o suplício mais árduo de sua vida. Estava seguro que uma adaga atravessando seu coração não seria tão lacerante como aquelas palavras. Jamais havia se sentido mais doído e ultrajado. O plano de Jun, que consistia em afastá-los, parecia partir por um bom caminho. Porque ali se encontrava, em frente à mulher que amava e a qual pretendia declarar-se, sendo reprovado por apartar o único obstáculo que lhe impedia de alcançá-la.

—Não atendeu à razão. Ela queria continuar uma relação que tinha terminado... —tentou defender-se enquanto cravava os olhos no chão.

—É claro! —Valéria gritou. —Como ia dar por finalizada uma aventura com o grande senhor Reform? Se você é toda uma joia! —Atacou-o mordaz.

—Não me considero dessa forma, mas se você me tem em tão alta estima, tenho que lhe dizer que é um formoso elogio —contra-atacou.

Por um instante, só por um breve espaço de tempo, pôde ver naqueles olhos escuros a vergonha que padecia por ter feito aquele terrível ato, mas ele se recompôs com rapidez, como sempre fazia. Não. O grandioso Reform não podia admitir que se equivocara, ele tinha que explicar tudo de forma que, quem o escutasse, tivesse a certeza de que ele estava de posse da verdade. Isso enfureceu Valéria ainda mais. Não podia suportar aquele caráter endeusado e tampouco permitiria ao seu coração que continuasse apaixonado por um homem assim.

—O que posso fazer para que parta e me deixe tranquila? —Perguntou levantando orgulhosamente o queixo.

—Oferecendo-me um copo de água... —murmurou com mais calma. —Só quero apaziguar a sede, salvo que já não tenha nada a me oferecer depois dessa misteriosa visita —reiterou com suspeita.

—Partirá se lhe der o que me pede? —Soltou sem responder à insistência por averiguar quem a tinha visitado antes dele.

Aquela pergunta, exposta de maneira inocente, causou ao Trevor uma emoção tão grande que lhe alargou o peito. Partiria, claro que sim, mas uma vez que lhe permitisse falar com calma e lhe explicasse que classe de sentimentos tinham crescido por ela. Não ia deixar escapar a única possibilidade que tinha.

—Prove... —animou-a.

Girou-se sobre seus calcanhares, caminhou erguida até a jarra, encheu um copo de água e retornou para onde ele permanecia imóvel.

—Aqui tem! —Ofereceu-lhe o copo estendendo a mão tanto que lhe doeram os tendões. —Beba e parta!

Trevor aceitou o copo, como sempre, desenhando um leve sorriso. A ferocidade de Valéria o deixava tão absorto que não podia articular palavra. Essa tinha sido a chave para sobreviver; sua agressividade, sua tenacidade e sua valia lhe davam a força para enfrentar o mundo que a rodeava. No fundo não eram tão diferentes como ela pensava.

Deu um pequeno sorvo, um tão minúsculo que mal teve que mover a garganta para facilitar a passagem do líquido por sua traqueia.

—Acabou? Já saciou sua desmesurada sede? Retornará de uma vez por todas ao seu amado clube? —Perguntou colocando as mãos na cintura e adotando uma postura defensiva.

Por que lhe fraquejavam as pernas? Por que devia falar devagar para que não descobrisse o tremor que lhe açoitava a boca? Tanto transtorno podia lhe causar um mísero sorvo de água? Sim. O leve deslocamento dessa protuberante voz no interior de sua garganta a deixou absorta, embora fosse pior contemplar como sua língua recolhia as leves gotas que tinham ficado sobre a comissura de seus lábios. Por que era tão sedutor? Por que seus olhos não podiam cravar-se no chão e seguiam fixos naquele homem? Se ela fosse uma retratista não precisaria tê-lo em frente para desenhá-lo sobre um tecido, seus olhos tinham recolhido cada minúsculo detalhe daquele rosto varonil... seis meses... seis meses tinham passado desde que entrou pelas portas do clube e o encontrou escondido entre as sombras. E justo desde esse momento não pôde olhar a outro lado que não estivesse ele...

—Por que me odeia tanto, Valéria? —Perguntou depois de colocar o copo sobre a mesa, em meio às xícaras. —Ofendi-a em algum momento?

Era uma forma de começar a conversação que tinha meditado enquanto caminhava para o lar. Primeiro, tentaria averiguar o motivo pelo qual o desprezava e, depois de achá-lo, lutaria contra ele para que entendesse que não era tão mal como ela queria acreditar.

—Ofendido? —Soltou pondo os olhos em branco e apertando com mais força suas mãos na cintura. —Como pode me perguntar essa tolice?

—Então...? —Girou-se sobre si mesmo, apoiou os quadris no canto da mesa e cruzou os braços. Esperava que com esse gesto ela entendesse que a água não seria suficiente para sair dali. Precisava conversar com ela até que, depois de lhe expor seus sentimentos, confessasse-lhe que sentia o mesmo e caísse em seus braços como tantas vezes tinha imaginado... seria apaixonada? Embaixo daquele olhar colérico se encontrava uma mulher capaz de amá-lo sem travas nem recriminações? «Não corra, Trevor —disse-se. —Por agora só quis te dar uma bofetada e um copo de água...»

—Como você se sentiria em meu lugar? —Perguntou-lhe desafiante. —Feliz? Entusiasmado?

—Não acredito que lhe tenha feito mal, ao contrário. Todas as minhas decisões a beneficiaram.

—Oh, pelo amor de Deus! Então você é um santo! Quer que me prostre aos seus pés, senhor Reform? —Soltou mordaz fazendo uma exagerada reverência.

—Qualquer pessoa em meu lugar a teria denunciado —começou a dizer de maneira séria. —Mas eu não o fiz. Apesar de pôr em perigo a reputação do meu clube, permiti-lhe que continuasse com a farsa para...

—Bobagens! Você só queria ter um brinquedo com o qual distrair-se durante suas amarguradas noites! —Recriminou-o.

—Atuou como um predador em frente a uma presa. Todos aqueles passeios pelas salas, aquela presença fantasmal... fazia-o para me intimidar!

—Não pretendia atemorizá-la, só queria observá-la de perto —manifestou solene.

—Claro, até que conseguiu o que pretendia! Por que me ofereceu a partida, senhor Reform? Para rir de mim? Para ver como me fazia tremer de medo?

—Essa não era a minha intenção! —Exclamou em voz alta. —Só queria saber se fazia armadilhas —revelou sem baixar o tom de sua voz. —Até que a conheci, não pensei que uma mulher pudesse ser tão inteligente.

«Maldição!», disse-se quanto terminou aquela inoportuna frase.

—Como? —Soltou enfurecendo-se ainda mais. —Está dizendo que as mulheres não têm nada na cabeça? Era o que me faltava escutar! Saia agora mesmo do meu lar se não quiser que uma mulher com a cabeça oca o jogue a chutes! —Trovejou realizando dramalhões como se lhe atacasse um enxame de vespas.

—Não me expliquei bem... —alegou sem mover nem um só músculo. —Quero dizer que, até que a conheci, nenhuma mulher tinha atuado com uma moderação e inteligência como as suas.

—Espera que eu tome isso como um elogio? —Inquiriu arqueando as sobrancelhas e colocando de novo as mãos na cintura. —Porque não o aceitarei como tal.

—Desde minha mais tenra infância, todas aquelas mulheres que me rodearam atuavam com astúcia, mas jamais com... —tentou dizer.

—Não evoque seu horrível passado, senhor Reform! Não vou sentir misericórdia por você porque sei como foi! —Clamou sufocada.

—Mas o que tem lido nos periódicos sobre mim...

—Lido? —Perguntou com um sorriso sombrio. —Não tive que ler nada para saber quem foi. Quão único encontrei nos periódicos é a descrição do homem no qual se converteu... —confessou.

—Você não sabe nada do meu passado para me desprezar desse modo! —Trevor defendeu-se elevando a voz e descruzando os braços.

Desesperado agarrou o copo de água e bebeu um grande sorvo. A conversação não estava saindo como esperava nem tampouco imaginara que sua ideia de se declarar ia ser tão difícil. Possivelmente porque se equivocou ao beijá-la. Por mais que lhe destroçasse o coração admitir a verdade, Valéria não albergava nenhum sentimento afetivo por ele. Quão único tinha que fazer era sair dali com seu orgulho intacto e embebedar-se até cair morto quando fechasse a porta de seu escritório. Possivelmente, passada uma década, o sentimento por Valéria teria desaparecido. Entretanto, depois de dar vários passos para a saída, parou ao escutar que ela continuava falando.

—Um que não recorda quem foi —disse entreabrindo os olhos.

—Não esqueci cada segundo, cada minuto, cada ano que vivi antes de adquirir o clube —resmungou.

—De verdade? —Perguntou desafiante.

—Coloque-me à prova! —Desafiou-a.

Valéria sorriu amplamente. Era um bom momento para fazer o que tinha pensado durante tanto tempo, mas não estava segura do motivo pelo qual precisava lhe contar o ocorrido naquele dia. O melhor era que saísse de seu lar, que se separasse de sua vida e da de seus irmãos, esses que já tinham começado a afeiçoar-se a ele. Mas se queria vê-lo escapar, como fez ela horas antes, era a melhor ocasião.

—Estávamos no mercado, —começou a dizer com os olhos fechados —meu pai tinha decidido comprar alguns caramelos para recompensar Philip quando aprendia uma palavra. Minha mãe permanecia sozinha em frente à banca de verduras enquanto procurávamos as guloseimas de sua cor preferida. De repente, como se meu pai intuísse que algo andava mal, separou-se de nós e se dirigiu para onde se encontrava minha mãe. E não errava, ela discutia com um jovem de uns dezesseis anos que tinha tentado lhe roubar o moedeiro. Sabe quem era esse pequeno trombadinha? —Perguntou olhando-o sem piscar.

Trevor caminhou para trás até que seus quadris voltaram a tocar a mesa, apoiou-se nesta e cravou o olhar no chão.

—Sim, o recorda... —Valéria declarou satisfeita. —Meu pai devia ter lhe dado uma bofetada por haver tentado roubar o pouco que sua esposa tinha, mas em vez disso lhe deu um penique, deu-lhe de presente uma maçã porque não parava de chorar balbuciando seu nome e explicando que roubava porque tinha fome. Finalmente, o pequeno ladrão manteve uma conversação com ele sobre o bem e o mal —disse antes de tomar ar e que a nostalgia se apoderasse dela. —Repreendeu-lhe como se fosse seu próprio filho e insistiu em que, se voltasse a lhe ver rondando sua esposa não se comportaria com tanta piedade, mas sim lhe daria uma reprimenda que não esqueceria jamais. Você saiu correndo, soluçando como um bebê, mas durante sua fuga pude ver como se escondia atrás de um muro e comia a maçã enquanto nos olhava estranhando.

—Burke... —murmurou.

—Sim, assim se chamava meu pai. Burke Albrecht Giesler —disse orgulhosa. —Alguma vez lhe revelou seu sobrenome? —Trevor negou com um suave murmúrio. —Não estava acostumado a fazê-lo... —disse ela considerando. —Logicamente, quando retornamos ao nosso lar perguntei por que tinha atuado dessa forma com um menino que tinha tentado roubar a minha mãe, não fomos muito ricos e um penique era uma fortuna para nós. Sabe o que me respondeu? —Perguntou-lhe elevando a voz.

Trevor respondeu negando com a cabeça após levantar por fim o olhar do chão. O brilho de seus olhos causou as lágrimas que brotaram ante a menção daquele homem. O único a quem recordava daquele horrendo passado.

—Que todo mundo merecia uma oportunidade e que como mostrou humildade em seu olhar, ele deduziu que sua situação era pior que a nossa se se atrevia a assaltar uma mulher com uma aparência pobre. Mas se equivocou, aquele menino não era humilde, mas sim um maroto que sabia encontrar as palavras adequadas quando lhe apanhavam roubando. Se ele estivesse vivo se arrependeria de não lhe ter dado uma boa sova.

—Mentira! —Exclamou depois de escutá-la. —O homem a quem faz referência era um inglês e seu pai era alemão.

Valéria soltou uma enorme gargalhada depois de escutá-lo. Cruzou os braços e, sem poder apagar o sorriso de seu rosto lhe disse:

—Não minto, aquele homem era meu pai e, como bem sabe, era alemão. Entretanto, ocultou sua procedência porque não desejava que falassem do motivo pelo qual um homem de sua origem se casou com uma cigana espanhola. Embora depois da visita que tive faz um momento, albergo certas dúvidas sobre isso. Possivelmente seu verdadeiro motivo foi esconder-se daqueles que podiam estar procurando-o para lhe obrigar a retornar à Alemanha, e ocupar a baronia, que por sangue, correspondia-lhe.

—Uma baronia? Seu pai era um barão? —Perguntou assombrado.

—Sim. —Afirmou com um leve movimento de cabeça. —Apesar daquele aspecto de plebeu, meu pai era um barão. Mas a única maneira que encontrou para casar-se com minha mãe foi fingir sua própria morte e fugir de sua terra natal. Embora anos depois, achou essa morte convertendo a mentira em uma realidade... —expôs angustiada.

Era a primeira vez que não sabia como atuar nem o que dizer. As palavras de Valéria pareciam tão sinceras, tão convincentes, que não admitiam réplica. Recordou aqueles dias e não encontrou no homem piedoso uma atitude típica da aristocracia, a não ser justamente o contrário, era tão modesto, tão respeitoso, que jamais teria imaginado uma coisa assim.

Olhou-a sem pestanejar, procurando o que responder ante isso. Ela, a trapaceira que tinha irrompido em seu clube e tinha ganhado não só um sem-fim de partidas, mas também seu coração, era a filha do homem que, com suas palavras e ternura, ajudou-o a represar seu caminho. Além disso, aquela deusa de cabelo escuro seria algum dia uma elegante dama da aristocracia. Por mais dor que lhe causasse tal revelação, sua decisão de lhe confessar o que sentia tinha ficado em segundo plano. Devia centrar-se em ajudá-la, como fez Burke com suas pacientes conversas e se para isso tinha que viajar até a Alemanha e apresentar-se ante a família dela, faria sem duvidá-lo um só segundo.

—Não têm possibilidade de reclamar essa posição? Não pensa que seu pai desejaria outro futuro para seus queridos filhos? —Perguntou de repente.

—Como? —Perguntou confusa.

—Não podem passar toda a vida vivendo desta forma... —explicou olhando ao seu redor. —Seu pai não o teria aceitado.

—O que sabe do meu pai? Não o conhecia o suficiente para declarar algo assim! —Gritou-lhe. —Ele descansa tranquilo sabendo que educou a sua filha...

—Sim, o conheci... —interrompeu-a. —Não coincidimos só naquele dia, Valéria. Encontramo-nos algumas vezes mais no mercado —revelou.

—Como? —Soltou atônita.

—Acredito que se interessou por mim ou talvez quisesse confirmar que devia me dar àquela solene surra, mas dias depois apareceu na praça.

—Para que? Com que propósito?

—Como lhe disse anteriormente não sei com certeza, mas tenho que reconhecer que as conversações que mantivemos, despertou em mim algo que permanecia adormecido.

As lágrimas retornaram aos olhos de Valéria. Sempre tinha sabido que seu pai era um homem bondoso, mas nunca imaginou o alcance daquela bondade.

—«Todo mundo é dono do seu destino. Quão único terá que fazer...»

—«...é averiguar qual é o melhor caminho para chegar até ele» —Valéria terminou entre soluços.

Era certo. O senhor Reform não lhe mentia. Seu pai tinha falado com ele e lhe expressou a frase que também declarava aos seus filhos a cada dia que amanhecia. Por quê? Por que tinha reparado em um jovem ladrão? Acaso viu nele algo que ninguém mais pôde encontrar? Mas... o que?

—E tinha razão —sentenciou erguendo seu corpo. —Todos somos donos do nosso destino. Sinto se a incomodei, senhorita Giesler —adicionou colocando-se em frente a ela. —Não era minha intenção assaltá-la dessa forma, peço-lhe mil perdões.

—E... qual podia ser a intenção de um homem que aparece no lar de uma mulher e rejeita seus desejos? —Perguntou apartando as lágrimas do rosto para vê-lo com um pouco mais de claridade.

Estava tenso, muito. Suas costas permaneciam mais retas que uma tábua, suas mãos se transformaram em dois duros punhos e apertava a mandíbula com tanta força que suas bochechas pareciam dois mastros de um navio.

—Não vejo adequado falar sobre o tema que me trouxe até aqui. Possivelmente em outro momento... —disse após respirar fundo.

—Em outro momento? De verdade alberga a esperança de que, uma vez que eu feche essa porta, vá abri-la de novo?

Por que atuava desse modo? Por que não lhe deixava partir? Não era isso o que desejava? Mas ao vê-lo tão aflito, tão desconcertado depois de falar sobre seu pai, precisava averiguar o motivo de sua aparição. Não lhe valia que pusesse por desculpa ter trazido seus irmãos, ele podia ter enviado outra pessoa por um módico preço. Então... por que estava ali? Queria lhe pedir desculpas por havê-la beijado no meio da rua?

—Como lhe disse, não é adequado conversar sobre isso —reiterou caminhando para a porta.

—Pelo amor de Deus! Uma mulher baixou as grandes fumaças do senhor Reform? Que façanha mais heroica! —Exclamou com zombaria.

—Pense o que quiser —ele respondeu agarrando o trinco da porta. —Espero vê-la logo, senhorita Giesler. Até então, cuide-se. —Saiu à entrada e, justo quando ia dar um passo para o exterior, escutou como ela se dirigia para ele a grandes pernadas. Olhou-a por cima do ombro e, depois de observar seu rosto, Trevor notou como seu coração começava a pulsar com força.

—É um miserável! —Gritou. —Vá, afaste-se da minha vida para sempre!

As lágrimas brilhavam enquanto se deslocavam por seu rosto. O desespero, o torvelinho de sentimentos que a açoitavam a tinham desequilibrado tanto que só podia chorar e gritar. Mas era o melhor... não?

—Valéria... —Reform sussurrou notando um nó na garganta que não lhe deixava nem respirar.

—Parta! Esqueça-se de mim! —Insistiu.

Trevor se girou encaixando a porta com suas costas. O que lhe acontecia? Por que chorava? Fez-lhe mal ao recordar seu pai? Ou talvez... sua dor era por ele? Havia esperança para eles? Amava-o? Isso devia ser porque se não albergava nenhum sentimento para sua pessoa não se sentiria tão desventurada ante sua partida.

—Valéria... —sussurrou ao contemplar como ela se cobria o rosto com as mãos para que não seguisse percebendo a dor pela despedida. —Querida, meu amor... —declarou-lhe caminhando para ela. Face às resistências, embora ela tentasse não receber aquele quente abraço, Trevor a obrigou a sentir seu corpo próximo ao dele. Beijou seu cabelo, a testa, suas bochechas molhadas. —O único motivo pelo qual um homem se apresenta ante uma mulher depois de realizar milhares de loucuras como as que tenho feito é para lhe declarar seu amor—manifestou sem duvidar.

—Amor? —Ela perguntou apoiando a testa sobre o duro torso, percebendo aqueles grandes e fortes braços enredando-se em seu corpo. —Você não pode amar, todo mundo sabe... —soluçou.

—Não posso...? —Começou a dizer enquanto apartava uma mão da cintura para colocá-la com suavidade sob seu queixo. Levantou-a lentamente até que ambos os olhares se cruzaram. —Sim, posso amar e o faço. Como definiria minha obsessão por você? —Falou com carinho e afeto. —Como denominaria o fato de que não possa te tirar da minha cabeça, de que te veja ao meu lado pelo resto da minha vida, meu amor? Que opinião merece o fato de te haver protegido cada vez que apareceu no clube e de contratar o senhor Hill para que ele continuasse te velando enquanto eu amaldiçoava as horas que devia passar no interior do meu escritório? Ou o que pensa sobre o dia em que abri as portas para aquelas damas pomposas da alta sociedade? Todo mundo pensou que eu procurava uma esposa e me assediaram... —expôs com calma. —E sabe qual foi o verdadeiro motivo pelo qual fiz uma loucura assim? Você! Sim, você! Fiz uma loucura sem precedentes porque desejava tê-la ao meu lado um pouco mais que um mísero dia à semana. E sim, em efeito, na noite que subiu ao meu escritório se fazendo passar pelo senhor Hernández eu tinha na gaveta o dinheiro que ganhou, mas só de imaginar que se afastaria de Londres, que já não poderia vê-la mais, causou-me tal dor que me resultou impossível te dar um mísero xelim. E sabe por quê? Porque te amo! Sim, embora não entenda a razão desse sentimento que cresceu em meu coração, amo-a tanto que daria minha vida se assim salvasse a tua. Quero que esta boca seja minha, que este corpo cubra minha nudez a cada noite, a cada dia, a cada instante no qual possa respirar. Como define isso, Valéria? —Reiterou com firmeza.

—Desejo —declarou cambaleando-se. Podia cair ao chão pela fragilidade que lhe causaram suas palavras, mas graças àquela força que ele mantinha sobre ela com uma só mão, nem se moveu.

—Desejo... —murmurou aproximando sua boca da dela.

—Não nego que o tenho... —roçou os lábios com os seus delicadamente. —Desejo-a tanto... que não posso conceber a ideia de não poder te fazer minha o antes possível. É minha obsessão, o motivo pelo qual respiro, meu alimento e meu desejo. Converteu-se em meu mundo... por isso, meu amor, foi testemunha de um ato desprezível. Quando minha antiga amante declarou que tinha falado contigo, que tinha tentado te afastar de mim, enlouqueci até o ponto de me converter em um monstro, um irracional... —confessou.

Valéria não podia falar. Estava tão embriagada que só tinha forças para continuar abraçada àquele corpo. Amava-a... Aquele homem sentia quão mesmo ela... então... por que partia? O que era tão importante para apartar-se de seu lado? Devia lhe gritar que ela sentia um amor profundo antes que ele descobrisse quem era a pessoa que se escondia sob as roupas de um cavalheiro?

—Ardo em desejos de te beijar de novo, de te acariciar, de tê-la nua em meu leito e de te fazer amor tantas vezes que te resulte impossível imaginar, que meu amor diminuiu um mísero ápice —declarou colocando o queixo sobre o sedoso cabelo. —Mas depois de suas palavras, depois de averiguar quem é e quem poderá chegar a ser, não posso tê-la sendo quem sou... —expôs com suas palavras a tristeza que suportava. —Você merece algo melhor. Duvido muito que seu pai me permitisse lhe pedir sua mão se ainda respirasse. Estou seguro de que não aspiraria ver sua amada filha vivendo em um clube de cavalheiros, rodeada de cortesãs, bêbados, brigas e noites inseguras. Que vida teriam nossos filhos? Que representação paternal teriam seus irmãos ao meu lado? Burke se levantaria da tumba e me ofereceria aquele bofetão que não me deu em seu tempo.

—Trevor... não me importa essa vida... —murmurou Valéria enquanto colocava suas mãos sobre os fortes ombros.

—Eu também te amo e te desejo... —essa confissão o deixou sem fala. —Por que crê que sempre joguei na mesma mesa? Por que me queixei aos seus empregados cada vez que aparecia no clube? Queria que se fixasse em mim, embora estivesse vestida como um homem... poderia ter obtido uma grande fortuna no clube do Hondherton, mas não era capaz de te eliminar da minha mente...

—E me alegro de que foi tão perseverante, querida. Graças a isso fui um explorador procurando o descobrimento de sua vida —afirmou abraçando-a com força. —Fiquei tão dependente de você, observei-a tanto que sei que tamborila os dedos quando está pensando, que se toca levemente o nariz quando algo te preocupa, sei cada expressão de seu rosto e o que significa... o único que me faltava averiguar é se, os olhares que me oferecia cada vez que me aproximava eram de repulsão ou de atração porque estava tão confuso que quando me decidia a me aproximar, retrocedia para não te espantar.

—Atração —confirmou-a.

—Minha querida trapaceira... —murmurou descendo lentamente o queixo até que suas bocas voltaram a roçar-se. —Quão único necessito para ser o homem mais afortunado do mundo...

Valéria colocou as mãos sobre seu torso notando a respiração agitada e o pulsar desenfreado do seu coração. Olhou-o assombrada, maravilhada e tão enfeitiçada que não podia conter as lágrimas. Ali, ao seu lado, tinha o menino que seu pai descobriu, não o homem de quem falavam os periódicos. Com acanhamento apoiou as pontas de seus dedos sobre o chão e se elevou justo para que voltassem a roçá-lo nos lábios. Nesse momento os braços de Trevor a aferraram com mais força para ele e após voltar a lhe sussurrar que a amava a beijou com tanto desespero que ela não teve dúvidas da veracidade de suas palavras.

Sua língua dominante, forte e cálida se apoderou de seu interior até lhe causar uma sacudida tão intensa que deu graças àquelas grandes e poderosas mãos que a seguravam pela cintura. Deixando-se levar pelo erotismo, esticou seus braços até enredá-los naquele pescoço que tinha contemplado no mercado. Suave, sua pele era muito suave. De repente escutou como ela mesma emitia um pequeno gemido. Não era um lamento de tristeza, mas sim de luxúria. Necessitava o que lhe estava oferecendo e que acalmasse a inquietação que começava a lhe percorrer o corpo. Não era suficiente prova de amor sua resposta? Tinha que afastar-se dela de novo?

—É tão formosa, tão maravilhosa... —Trevor comentou apartando ligeiramente seus lábios.

—Não me deixe... não agora —pediu entre soluços.

Estava apaixonada por ele. Talvez o tivesse estado desde que observou o misterioso olhar daquele jovem. Possivelmente esse tinha sido o motivo pelo qual nenhum homem lhe pareceu adequado para ela. Nenhum podia transmitir tanto em um olhar, nem a podia deixar com o coração pulsando a mil.

—Esperar-me-á? Conceder-me-á o tempo necessário para me converter no marido que merece? —Perguntou-lhe conduzindo sua boca para a testa para beijá-la com delicadeza. —Diga-me que o fará, meu amor —suplicou-lhe.

—Sim, farei —sucumbiu com a esperança de que o tempo que lhe pedia não fossem outros doze anos. —Porque não seria capaz de perder a pessoa que amo...

Ante essa afirmação, ante essa preciosa revelação, Trevor voltou a beijá-la, embora desta vez com mais paixão, mais luxúria e mais desejo. Suas mãos, as que ficaram pegas à sua cintura desceram devagar para sentir aquele corpo que tanto adorava. Agarrou com força suas nádegas e, perdendo o pouco autocontrole que ficava e que lhe gritava que devia sair dali o antes possível, elevou-a para colocá-la sobre a mesa, atirando o copo e as xícaras ao chão. De repente notou um inquietante frio na nuca. Valéria, arrastada pelo mesmo ardor que o seu, abandonava aquela parte de seu corpo para colocar suas mãos sob a jaqueta. Aquele contato, aquelas pequenas palmas percorrendo seu abdômen, excitou-o até o ponto de ter que aplacar um grunhido de prazer sobre a boca dela. Depois, quando pensou que a tortura a que estava sendo submetido ia amainar, descobriu que a intenção de Valéria era lhe tirar a jaqueta e esse gesto o deixou nocauteado. Grunhiu de satisfação, mas também o fez por desespero.

Não podia tomá-la sendo a pessoa que era, ela merecia um marido melhor, um em quem não demoraria em converter-se... mas antes de partir, antes de deixar que o tempo transcorresse entre eles, precisava tocá-la, saber como reagia seu corpo quando suas grandes mãos a percorressem, saciar-se com o sabor de sua boca e inspirar com força aquele delicioso perfume à canela. Devagar acariciou o pescoço, os ombros, as mãos... chegando até seu busto que, embora coberto, reconheceu que albergava o tamanho suficiente para apanhá-lo entre suas palmas.

Em meio a esse beijo Trevor mordeu o lábio inferior de Valéria, cravando-lhe os dentes, marcando aquela boca como dele e, quando escutou o pequeno gemido que ela emitiu ao sentir a leve dentada, seu sexo se endureceu como se se preparasse para uma posse completa. Inconscientemente acoplou-se entre suas pernas perdendo-se entre os ofegos de frenesi que ela emitia. Eram cantos de sereia, ou a melodia mais formosa que jamais escutou em sua vida. Entregava-se a ele. Sim, sua felina tinha tirado as unhas para lhe arranhar sobre a camisa, assinalando suas costas como ele marcava sua boca.

—Trevor... —sussurrou inclinando levemente a cabeça para trás, permitindo que seus lábios percorressem aquela suave pele.

Aceitou a proposta, embora soubesse que depois de saborear aquela garganta, aquele decote, sua decisão de partir seria mais angustiosa.

—Trevor... —repetiu entre ofegos. Suas mãos, as que tinha colocado nas grandes costas, ascenderam lentamente por ela até que alcançaram seu cabelo. Grosso, forte e ao mesmo tempo sedoso.

—Valéria... —respondeu-lhe fora de si. Notando como cada partícula de seu ser se tranquilizava ante as carícias que lhe oferecia.

Aproximou indevidamente seu sexo do dela e o diminuto roce que se criou, apesar de estarem refugiados entre roupas, fez com que Trevor se sobressaltasse. Quando tinha estado tão excitado? Quando seu desejo por possuir uma mulher tinha sido tão grande? Nunca, disse-se. Com as mãos trementes foi descendo com estupidez, como se fosse a primeira vez que acariciava uma mulher. Ao tocar embaixo do vestido duvidou se deveria continuar sentindo a suavidade de sua pele pelas pernas. As largas pernas que se entrelaçavam em suas costas como dois grilhões. —Valéria... amor... —sussurrou-lhe.

Ela o olhou com olhos frágeis, repletos de desejo.

—Não posso... —murmurou tentando apartar-se. Mas não lhe permitiu afastar-se, continuou entrelaçando suas pernas para que não escapasse, para que sempre permanecesse unido a ela.

Ante aquele desesperado gesto, ao ser consciente de que lhe pedia mais, Trevor se tirou o colete e a camisa exibindo aquele torso que ela tinha apalpado sobre a roupa. As pupilas se dilataram como se necessitasse de toda aquela amplitude para adaptar-se à escuridão que lhe causava aquela nudez.

—Toque-me... —rogou. —Ponha suas mãos sobre mim...

Valéria não duvidou nem um segundo em fazê-lo. Com uma decisão imprópria em uma mulher inocente, pousou suas pequenas palmas sobre aquele peito agitado pela respiração. As descargas retornaram, mas desta vez a intensidade era tão grande que se esqueceu até de tomar fôlego ao sentir aquela pele, ao perceber o calor e a aspereza daquele pelo escuro que tinha crescido no tórax.

—Assim... toque-me assim... —animou-a. Enquanto ela se deleitava com ele, Trevor fazia o mesmo com ela. Colocou as mãos nos tornozelos nus, sem meias e foi subindo lentamente, contemplando à sua vez como o brilho do olhar de Valéria se convertia em algo mais espetacular que uma chuva de estrelas.

—Trevor... —Valéria murmurou ao notar como os dedos de ambas as mãos tinham chegado às suas virilhas e como procuravam a forma de entrar para tocar seu sexo. —Eu... jamais...

—O que? —Perguntou-lhe ao ouvido antes de percorrer com sua língua aquela zona tão erógena.

—Ninguém me tocou antes... —declarou percebendo a ascensão de sua temperatura, mais por vergonha que por luxúria.

—E eu não te possuirei aqui, meu amor —respondeu-lhe enquanto percorria com sua boca a bochecha até chegar aos lábios. —Só quero que, quando fechar essa porta não tenha nenhuma só dúvida do muito que te amo e que tudo o que farei a partir de agora é para tê-la ao meu lado para sempre...

—Não me deixe... não me abandone... —pediu-lhe entre soluços.

—Nunca! —Respondeu antes de recliná-la sobre a mesa, tombando-se sobre ela para continuar beijando-a, para seguir tocando-a...

No momento em que sua mão direita apartou sua roupa interior impregnou-se da essência que ela emanava devido à paixão. Trevor apaziguou um alarido de prazer com o beijo. Como podia parar? Como podia fazer chamar a sua razão para sair daquela habitação sem possui-la, sem sentir o alívio de marcá-la como dele? Devagar e repreendendo-se de novo por ter começado algo que não devia, desceu devagar a mão, mas antes que chegasse ao joelho Valéria o insistiu a subir.

—Vou morrer... —ele revelou afogado pela paixão.

—Morre comigo, Trevor, mas não se separe de mim —soluçou.

—Não me diga isso... —pediu-lhe. —Não me diga isso... —repetiu perdido.

Valéria apanhou aquele rosto que adorava entre suas mãos e o aproximou dela.

—Faça-me sua, Trevor Reform. Quero te sentir dentro de mim... —disse antes de beijá-lo de novo.

Toda a força que podia sustentar desapareceu como a lenha dentro de uma grandiosa fogueira. Aquelas palavras encurralaram seu coração, assim como lhe causaram um desejo indevido. Seria prudente chegar até o final? Não se arrependeria do que se propunha a fazer depois que ele fechasse a porta? «Desejo... —pensou. —Minha amada trapaceira arde de desejos por mim». O orgulho masculino, o desejo de posse foi aumentando durante o apaixonado beijo que lhe oferecia. Trevor abriu levemente os olhos e ficou preso da imagem que tinha em frente a ele. Alguma vez o tinham desejado tanto? Alguma vez contemplou um lindo anjo com bochechas vermelhas? Não, e o motivo era muito simples: nela havia amor, nas demais só ambição. Depois de dar-se por vencido, sua mão retornou àquele lugar que o reclamava. Voltou a retirar a roupa que ocultava seu sexo e, com a mão aberta, acariciou-a de cima a baixo.

—Sim... —Valéria murmurou ante o roce tão erótico. Como podia negar-se a lhe dar o prazer que ela ansiava alcançar? Não podia... sem deixar de beijá-la, apesar de sentir as vibrações de seus gemidos no interior de sua boca, Trevor continuou tocando cada rincão do sexo dela. Notava-o inchado como uma flor aberta na primavera... após introduzir a ponta de seu dedo do meio, para não lhe machucar sua virginal abertura, ela se arqueou e elevou seus quadris.

—Deus! —Exclamou fora de si. —Por que me faz isto, querida?

—Porque te amo —respondeu levantando levemente seu rosto para que continuasse beijando-a.

Um alarido, mais próprio de um lobo que de um homem, brotou do mais profundo de sua garganta quando a penetrou com o dedo. Estava tão estreita que suas paredes uterinas se uniram à sua pele como se fossem ventosas. Como podia oferecer-se desse modo? Por que Deus lhe outorgava esse privilégio? Nunca tinha desflorado uma mulher, sempre tinha se deitado com peritas. Mas ali estava, notando como a deusa virtuosa que amava se entregava a ele com tanta paixão e desejo que não podia compará-la com ninguém.

—Vou beber de ti... —informou-a quando apartou seus lábios dela. —Preciso ter em minha boca seu sabor, sua essência, seu perfume de mulher...

Valéria o olhou desconcertada ao não saber a que estava se referindo. Então observou como os olhos de Trevor exibiram uma escuridão tão profunda que podia perder-se neles.

—Descerei ao seu sexo e lamberei com minha língua cada rincão que achar —explicou. —Assim é como saciará minha sede. Quer que o faça? Está disposta a me dar o que te peço e pelo que sou capaz de morrer?

Ela só pôde assentir.

Devagar, Trevor percorreu o abdômen de sua amada inspirando seu perfume cada vez que precisava respirar. Levantou ainda mais a saia de seu vestido, esmagando aquele muro de tecido que se criou entre ambos. Colocou-lhe as plantas dos pés sobre a mesa, criando um lindo V com elas e, antes de dirigir-se para o sexo molhado, jogou-lhe um leve olhar. Sua curiosidade se notava naquele rosto ruborizado assim como podia contemplar o brilho do desejo. Lentamente aproximou-se do úmido fluxo dela, aproximou seu nariz e, depois de respirar esteve a ponto de ajoelhar-se e adorá-la como a uma deusa. Era tão embriagador, tão hipnotizante, que lhe tremeram as mãos ao tocá-la.

—Está me convertendo em um amante torpe —disse.

Ante esse divertido comentário, Valéria soltou uma grande gargalhada de satisfação. Que o homem mais aplaudido pelas mulheres expusesse uma ocorrência assim, era do mais adulador. Mas aquele sorriso, aquela zombaria que tinha aparecido nela se afastou ao notar o calor da língua em seu sexo. Aquele roce lhe causou tal agitação que jogou a cabeça para trás com tanta força que acreditou rompê-la. O que era isso? Outro calafrio, outra sacudida, outro tremor começou a sacudi-la cada vez que Trevor mordia seus grossos lábios vaginais, cada vez que percorria com sua língua o rincão proibido...

Notou certa pressão lá embaixo... não só utilizava sua boca, mas também seus dedos. De repente apalpou uma zona que a levou a uma loucura tão sublime que teve que colocar as mãos sobre sua boca para que a senhora Shoper não a escutasse gritar. Santo Deus! O que lhe estava fazendo? Não lhe havia dito que iria lhe acalmar a sede? Pois com a intensidade que ele absorvia dela, nem a água do oceano poderia satisfazê-lo.

—Trevor... Trevor... —suspirou seu nome ao notar como seu corpo tremia.

—Sim, querida... faça por mim —respondeu-lhe sem diminuir as investidas que fazia sobre ela com os dedos. —Desfrute, ame-me, deseje-me...

Valéria pressionou ainda mais as mãos sobre sua boca quando um estranho relâmpago atravessou seu corpo. Deixou-a ofegando, procurando ar para encher seus pulmões.

—Isso, meu amor, chama-se orgasmo e me alegro muitíssimo de ser o primeiro que te mostre como posso te fazer desfrutar —manifestou enquanto se levantava para ela para colocar-se de novo entre suas pernas e beijá-la.

—Hum... —ela murmurou ao sentir o sabor de que falava em sua própria boca.

Trevor sorriu ao escutá-la.

—Valéria, querida... —começou a lhe beijar as bochechas, o queixo, os lábios. —Prometo-o que quando retornar terminarei o que comecei hoje.

Ante essa elucidação, ela ficou tensa.

—Não! —exclamou esticando suas mãos para o pescoço dele para atrai-lo de novo. —Não! —Repetiu.

—E se se arrepender? E se tudo isto só foi um arrebatamento de paixão? —Tentou persuadi-la.

—Não! —Perseverou enquanto aproximava seus lábios dos dele. —Não pare!

Por um momento, só por um instante, Trevor meditou sobre as consequências que aquele ato podia ter nela. Seria o princípio do fim. Quantas mulheres tinham devotado sua virtude a um homem que tinham acreditado amar e logo não era assim? E se ele não conseguisse converter-se no homem respeitável que ela merecia? Podia condená-la para sempre e, por desgraça, sabia como terminavam as mulheres condenadas.

—Ama-me? —Perguntou-lhe cravando aquele olhar escuro como o carvão nela.

—Sim —respondeu sem ter que pensar.

—Eu também te amo, meu amor, e te juro que isto é mais difícil para mim do que possa te parecer. Mas te prometo que quando alcançar meu propósito não apartarei minhas mãos, meu corpo, nem meus lábios de você. Prometo-lhe isso. —E a beijou de novo para acalmar qualquer dúvida despertada nela.

Uma vez que finalizou aquele beijo, apartou-se levemente de Valéria, baixou-lhe o vestido, sentou-a sobre a mesa e começou a fechar os botões da camisa e do colete.

—Prometa-me que me esperará e que não desconfiará de mim —disse lhe beijando com suavidade os lábios.

—Trevor, suplico-lhe, não deve mudar por mim. Sou a mesma mulher que conheceu em seu clube, jogando cartas vestida de homem —manifestou com tristeza enquanto colocava suas mãos sobre aquele frio colete.

—Merece-o algo melhor, querida, e vou lhe dar. Agora que sei quem é em realidade não poderia te olhar nos olhos sem lhe oferecer o que realmente te corresponde —disse com uma solenidade tão incrível que Valéria empalideceu.

Separou-se dela, pegou a jaqueta, colocou-a, beijou-a como se levasse anos sem vê-la, colocou sua testa sobre a de Valéria e lhe disse:

—Amo-te, minha amada trapaceira, e me alegro de te haver encontrado.

—Amo-te, meu travesso trombadinha, e me alegro de te haver buscado.

Deu-lhe um suave e casto beijo nos lábios e partiu sem olhar para trás porque, se o fizesse, perder-se-ia nela e esqueceria sua promessa.

Quando fechou a porta Trevor apoiou as costas nela e suspirou. O destino tinha posto em sua vida o tesouro mais formoso que podia procurar: a filha daquele bondoso homem. Olhou para o céu e sorriu. Acaso aquele misterioso salvador tinha a premonição de que sua filha terminaria com o maroto que tentou roubar sua esposa? Por isso retornou, para colocá-lo no bom caminho? Negando tal sandice, Trevor começou a descer as escadas até que uma voz apareceu atrás de suas costas.

—Senhor Reform... esquecerá a minha irmã? Vai nos abandonar? —Martin perguntou ao ver como partia sem sequer despedir-se.

Trevor se girou para os moços, respirou profundo e esticou a mão para tocar aquele cabelo loiro com ternura.

—Não vou abandonar ninguém, Martin, sua irmã me pertence, é minha e será minha esposa o antes possível. Só necessito de uns dias para arrumar certos assuntos antes de me casar com ela.

—De quanto tempo estamos falando? —Philip interveio.

—O suficiente, mas não se preocupe jovem Giesler, encarregar-me-ei pessoalmente de que nada lhes falte até que retorne.

—Acredito que é uma despedida... —Martin murmurou abaixando a cabeça. —Todo mundo termina por afastar-se de nós... —adicionou triste. —Fizemos algo mau?

—Não fizeram nada mau —disse ajoelhando-se em frente ao pequeno. —Que maldade pode haver em dois moços que foram criados por uma mulher como Valéria?

—Isso soa a despedida —Philip disse tentando não mostrar a mesma tristeza que Martin.

—Não, não é. E como prova lhes darei uma coisa... —levantou-se, colocou a mão no bolso da calça e tirou um penique que colocou sobre sua palma para que eles a vissem.

—Esta moeda permanece ao meu lado desde que eu tinha dezesseis anos. Hoje lhes ofereço isso como prova de minhas palavras. Mas quando retornar lhes pedirei isso e não pretendam me enganar me dando outra, porque saberei.

—Como saberá? —Martin perguntou entusiasmado.

—Porque esta moeda tem uma fenda no lado direito. É única... —Colocou-a entre o polegar e o indicador para que a observassem com claridade.

—Por que a guardou durante tanto tempo? —O pequeno quis saber.

—Porque é uma moeda mágica. Ela me salvou a vida e pude me afastar do mau caminho —explicou enquanto a oferecia ao maior.

—Esperar-lhe-emos —Philip comentou aceitando-a. —E ela —adicionou olhando para a porta —também o fará.

—Sei —afirmou olhando para o jovem. —Preciso te encomendar uma missão muito importante —disse a Philip colocando com firmeza sua mão direita sobre o ombro juvenil.

—O que deseja? —Ele perguntou adotando uma pose varonil.

—Quero que a proteja até que eu retorne. Se aquele miserável do Mayer aparecer por aqui requerendo vê-la, corre ao clube em minha busca —comentou apertando os dentes.

—Dar-lhe-á outro murro? —Martin perguntou abrindo os olhos como pratos. —À Valéria não pareceu correto que lhe golpeasse...

—Manter-lhe-ei informado, senhor Reform, e ninguém se aproximará de minha irmã até que você retorne —Philip interveio lhe oferecendo a mão para selar o acordo.

Trevor sorriu levemente e aceitou a oferenda tão masculina.

—Confio em suas palavras. Boa tarde, cavalheiros —disse antes de sair para a rua.

—Boa tarde —responderam ao uníssono.

—Crê que o fará? —Martin perguntou duvidoso ao seu irmão. —Voltará de verdade por nós?

—Sim —afirmou olhando com os olhos entreabertos o misterioso entalhe da moeda.

 


Meia hora depois Trevor aparecia no clube. Abriu a porta, caminhou pelo hall e se dirigiu diretamente para o escritório sem sequer perceber como lhe olhavam os empregados. Uma vez que se colocou atrás de sua mesa e antes de sentar-se chamou a única pessoa que podia lhe ajudar a obter seu novo objetivo.

—Sim, senhor Reform? —Berwin perguntou da porta.

—Necessito que marque uma entrevista com o Hondherton o antes possível —declarou enquanto abria a gaveta à sua direita e tirava do interior uns documentos que não tinha olhado desde o dia em que os entregaram. —Também tem que apresentar-se na residência do senhor Lawford, diga-lhe que requeiro sua presença no clube antes que finalize o dia.

—Hondherton? Lawford? —Berwin repetiu assombrado.

—Sim, os próprios, e envie Gilligan à imprensa do conde Crowner, também tenho que falar com ele —adicionou enquanto tomava assento.

—Está seguro do que vai fazer? —Berwin perguntou com os olhos totalmente abertos. —É uma decisão que deveria...

—É a decisão mais adequada —respondeu-lhe sem gritos, algo que deixou o administrador aniquilado. —Se tudo sair conforme o planejado, antes de um mês abandonaremos este maldito clube.

—E... o que fará com todos os empregados? Os despedirá? Senhor, tenha misericórdia, muito deles têm família a alimentar... —Berwin indicou mais assombrado, se cabia.

—Se for certo o que tenho lido sobre o conde, poderá me orientar para investir o dinheiro que obterei deste clube em fábricas e eles trabalharão em todas as que eu adquirir se assim o desejarem —determinou.

—Fábricas? —A conversação estava a ponto de lhe gerar um enfarte. Quem era aquele homem e por que desejava desprender-se de tudo pelo qual tinha lutado durante tantos anos?

—Explicarei tudo quando retornar. Temos que sair esta mesma tarde para Mayfair. Quero procurar um novo lar, este me provoca calafrios.

—Tomou algo enquanto retornava ao clube? —Aventurou-se a perguntar.

—Água —respondeu. «E o elixir que me ofereceu minha futura esposa», pensou.

—Pois acredito que a água não lhe está assentando muito bem. Recomendo-lhe, encarecidamente, que volte a beber uísque —declarou mordaz.

—Obrigado pelo conselho —disse antes de soltar uma sonora gargalhada. —Agora vá e feche a porta ao sair. Por certo... que aquele velho resmungão não descubra meu desejo por vender o clube. Não quero que me ofereça menos que na última vez.

—É claro! Prometo-lhe que porei esta cara —comentou destacando o rosto com um dedo. —A mesma que me ficou após lhe escutar. Parece-lhe adequada?

—Sim, obrigado.

—Pois sem mover um só músculo, parto-me —declarou antes de sair do escritório.

Trevor sorriu ao escutar as exclamações que seu fiel empregado soltava enquanto descia as escadas, cruzou os braços e fechou os olhos. Logo, muito em breve retornaria a ela e, nesse momento, nada nem ninguém lhe impediria que a fizesse sua para sempre.


XXIII


Três semanas mais tarde...


—Está linda —Valéria disse à Kristel depois de lhe realizar um laborioso penteado. O vestido branco de musselina com um precioso espartilho com pérolas cinza realçava a formosa figura. Mas o que verdadeiramente embelezava a sua amiga era o rosto de felicidade que mostrava. —Borshon ficará sem palavras quando te vires aparecer na igreja.

—Borshon já está sem palavras, mas não por mim, e sim por sua mãe —comentou entre risadas.

Girou-se para o espelho e ficou atônita ao ver-se tão esplêndida. Via-se assim pelo vestido ou era o brilho de seus olhos o que a embelezava? O olhar que mostrava desde o ocorrido à noite anterior com seu futuro marido lhe causaria tal beleza? Valéria se daria conta de que sua virtuosa amiga já não o era? Esperava que não porque essa dúvida a inquietaria tanto que não poderia dar um passo para o altar sem evitar sua terrível claudicação. Tentaram manter a honra dela até o matrimônio.

Ambos tinham permanecido afastados para não sucumbirem à paixão que brotava em seus interiores, mas na tarde anterior Borshon pediu para vê-la para resolver certo tema e, uma vez que a recolheu na porta de seu, até agora lar, soube que motivo urgente requeria... não tinha remédio, seu amado era tão passional que não pôde esperar a noite de bodas e, sendo realista, ela tampouco podia esperar umas horas mais para averiguar como seria um ato tão íntimo entre eles. «A primeira vez dói, —sussurrou-lhe enquanto subia por seu corpo após fazê-la gritar ao beijá-la em seu sexo —mas te prometo que depois desta noite ambos desfrutaremos muitíssimo».

Sentiu como o calor de suas bochechas aumentava. Levou-se as mãos para o rosto e tentou fingir que se arrumava para atenuar o rubor. Não devia pensar nisso... não devia fazê-lo!

—Bom, é normal que eles queiram casar-se tão cedo, o senhor Berwin não tem tempo a perder —alegou divertida.

—Mas... imagina a cara que pôs quando Aphra lhe disse que iam contrair matrimônio no mesmo dia que nós? Acredito que, se não chegasse a alcançar a cadeira cairia ao chão. —Bem, falar da mãe de seu marido era um tema bastante aconselhável para fazê-la esquecer o que tinham feito horas antes. —Embora no fundo se sente feliz porque ela está todo o dia sorridente e mais animada que nunca. Imagino que jamais esperou, depois de ficar prostrada na cama, que encontraria um homem que a amasse como o faz o senhor Berwin.

—O amor é imprevisível... —Valéria murmurou com tristeza. —E tem que o tomar quando chega.

—Sinto-o... não devi... —Kristel assinalou levantando do banco para consolar a sua amiga.

Depois do ocorrido três semanas antes, ninguém tinha visto o senhor Reform salvo Borshon, e quando lhe perguntava o que estava fazendo para não ir em busca de Valéria, comentava-o que não iria até que resolvesse certos assuntos. Mas... tantos temas deviam terminar para que não dessem sinais de vida durante vinte e um dias? Kristel olhou Valéria e percebeu que, com o passar do tempo, a esperança começava a desaparecer, enchendo-a de dúvidas e aceitando que a declaração que lhe ofereceu não foi verdadeira. Entretanto, ela sabia que ele se apresentaria porque, se não fosse assim, seu futuro marido já a teria avisado.

—Viverá muito feliz —Valéria indicou abraçando-a com força. —Ele é o homem adequado para ti —acrescentou.

—Sei... —Kristel afirmou sem separar-se de sua amiga. Tinham permanecido durante muitos anos juntas, tinham vivido muitas aventuras e, assim que saísse pela porta tudo isso ficaria para trás para empreender uma nova vida. Só rezava para que a de Valéria começasse antes de terminar o ano.

Justo no momento no qual Kristel apartava as lágrimas aparecidas pela emoção, a porta do lar se abriu com brutalidade lhes causando um grandioso susto.

—Chegou! —Martin exclamou dando pequenos saltos. —A carruagem chegou!

—Bom... —Kristel murmurou alisando o vestido de noiva. —É a hora...

—Sim —conveio Valéria. —É a hora...

Com um puxão no estômago, ambas saíram da casa para introduzir-se na carruagem. Philip se acomodou ao lado de sua irmã e Martin, com a noiva. Quando o cocheiro empreendeu o caminho Kristel esticou a mão para sua amiga e a apertou com força.

—Tudo sairá bem... —Valéria lhe sussurrou.

—É um privilégio que seu padrinho de bodas seja o inspetor O´Brian —Philip comentou sem apartar o olhar da janela. —O senhor Hill estará muito orgulhoso.

—Está —Kristel respondeu. —Foi toda uma honra que um homem tão respeitável, tenha aceitado esse oferecimento.

—Não só é respeitável —disse olhando-a aniquilado. —É um herói para Londres —acrescentou.

—Acredito que deveria deixar de ler esses periódicos que traz para casa —Valéria resmungou. —Não precisa encher sua cabeça com histórias desse tipo. Tem que se centrar em procurar um novo professor para que instrua tanto a você como ao Martin.

—Quer que eu procure o senhor Mayer? Possivelmente deseje nos dar aulas de novo... —apontou mordaz.

—É melhor não —Martin interveio. —Depois do murro que o senhor Reform lhe deu no mercado, muito me temo que não queira saber nada de nós...

Valéria afogou um soluço ao ouvir o nome de Reform. Tinha evitado escutar qualquer notícia dele desde que partiu. Tinha lhe pedido tempo e tinham passado três semanas... três longas e angustiosas semanas sem ter nenhuma mísera notícia. A esperança de vê-lo de novo se desvanecia, chegando a pensar que tudo o que lhe tinha prometido tinha sido só uma mutreta para se afastar dela. Possivelmente, em algum momento daquela manhã, ele descobriu que ela não era a mulher que esperava, apesar de lhe declarar seu amor daquela forma tão apaixonada.

—Estão na porta! —Martin gritou entusiasmado. —O senhor Hill está muito elegante! Quem é a mulher que permanece sentada? Por que sua cadeira tem rodas? —Expôs sem mal respirar.

—É a mãe do Borshon e não pode andar, por isso utiliza essa cadeira —Kristel esclareceu desenhando um enorme sorriso ao ver quão elegante e bonito estava seu futuro marido.

Se antes tinha dúvidas de como um homem como ele se fixou nela, agora essas inquietações se multiplicaram por mil. O que ela tinha feito para que um ser tão divino e terno quisesse viver ao seu lado o resto de sua vida?

—Estão preparadas? —Perguntou Philip, quem estava tão nervoso que não deixou que o criado lhes abrisse a porta. Ele mesmo saltou ao chão, estendeu a mão e esperou que elas a aceitassem.

—Kristel, sentirei a sua falta, —Valéria lhe confessou enquanto Martin abandonava o interior do veículo —mas me sinto feliz porque encontrou o homem de sua vida. —Deu-lhe um grandioso abraço e, segurando as lágrimas de felicidade que desejavam brotar, agarrou a mão de seu irmão e desceu com suavidade.

Como era tradição, a noiva saiu por último, fazendo com que seu elegante e desejoso prometido permanecesse intranquilo até que ela apareceu. Borshon, ao vê-la tão formosa, desenhou um sorriso tão grande que lhe cruzou o rosto e lhe alargou tanto o peito que percebia como os botões de seu traje tentavam explodir.

—Foi ideia de April —murmurou-lhe O´Brian. —Ninguém pode fazê-la parar quando quer ir às compras.

—Pois foi uma eleição muito acertada —ela se defendeu ao escutar as palavras de seu marido. —Custava à sua prometida decidir o que usar em um dia tão especial, assim tomei a decisão por ela. Por certo, Borshon, é uma mulher encantadora e nenhum cavalheiro pôde apartar o olhar dela. Espero que tenha endurecido seus punhos porque muito me temo que os utilizará mais de uma vez —apontou travessa.

—Se algum atrevido se aproximar da minha esposa... —grunhiu de maneira possessiva —ficará sem suas joias masculinas.

Ante essa resposta, o senhor e a senhora O´Brian soltaram uma gargalhada. Não havia dúvidas de que ninguém se atreveria sequer a saudá-la pelo temor às represálias do gigante.

Com uma paciência incrível Hill esperou que Kristel chegasse ante ele e lhe estendesse o braço. Ela assim o tinha pedido, porque só seu futuro marido a fazia caminhar de uma forma tão tranquila que não mostrava a claudicação.

—Está linda —sussurrou-lhe ao ouvido.

—Você gostou do vestido? A senhora O´Brian... —tentou dizer.

—Eu gostarei mais quando o atirar ao chão e voltar a me introduzir dentro de você —assinalou marotamente.

As bochechas de Kristel se ruborizaram tanto que O´Brian voltou a rir. Não havia dúvida do que seu agente acabava de declarar à noiva, disse o mesmo à April quando a viu aparecer em frente à igreja. Homens como eles, apaixonados e com o sangue ardente, não podiam albergar na cabeça outra ideia que não fosse amar e possuir a mulher com quem viveriam o resto de suas vidas.

Devagar e com o passo que Borshon acostumava a levar, caminharam para a entrada seguidos dos jovens Giesler, sua irmã e, por mais que lhe custasse assumir, Berwin e sua mãe. Pareciam dois adolescentes. Não paravam de sussurrar-se ao ouvido uma ou outra tolice que os tinha alterados. O agente só esperava, por seu bem, que não ocorresse ao seu futuro padrasto lhe declarar palavras como as que dizia à Kristel, porque podia aceitar umas bodas, mas lhe custaria uma barbaridade descobrir que um dia a vida lhe poria em seu caminho um meio-irmão.

O pároco, embelezado com seus melhores ornamentos, primeiro celebrou o enlace de Borshon e Kristel, logo, sob o atento olhar do agente, viu como sua mãe consentia converter-se na esposa do secretário do senhor Reform. Não grunhiu, sua esposa o tinha proibido antes daquele dia, mas não se sentia cômodo ao ver os sorrisinhos que eles se consagravam.

—Pode beijá-la —o padre manifestou.

Nesse momento Hill deu um passo para diante, mas sua amada Kristel o reteve.

—Nem te ocorra —ameaçou. —Se estragar o dia mais feliz de sua mãe, passará a noite de bodas em outra habitação.

—Tudo seja por isso... —Borshon resmungou.

Durante as duas cerimônias, Valéria tinha permanecido sentada no primeiro banco contemplando a felicidade de ambas as noivas. Nada podia fazer sombra a um estado sem igual. Chorou. Chorou por saber que sua amiga viveria com um homem que a amaria até a chegada de sua morte e que, segundo a senhora Shoper, com quem mantinha uma amizade um pouco mais cordial desde que apareceu em seu lar, dar-lhe-ia três formosos filhos. Mas... e ela? O que lhe proporcionaria o futuro? Olhou de esguelha aos seus irmãos e sorriu levemente. A resposta estava neles. Devia velar por aqueles futuros homens que lutariam por fazer um oco em uma sociedade cada vez mais desumanizada.

—Podemos comer agora, tia Kristel? —Martin perguntou quando ela se aproximou para lhes dar um beijo.

—É claro! Em nossa nova casa prepararam um grande banquete e poderá comer tudo o que desejar.

—Haverá bolos? Eu adoro bolos! —Disse pondo os olhos em branco.

—Sim, haverá, mas estarei te vigiando. Não quero que adoeça antes de terminar o convite, tia Kristel me prometeu que esta noite terei uma recompensa por meu bom comportamento —Borshon respondeu despenteando o lambido cabelo loiro.

—Eu também posso ter outra recompensa se me portar bem? —O pequeno perguntou.

Borshon soltou uma grande gargalhada que não cessou até que o cotovelo de sua esposa lhe golpeou no flanco.

—Querido, você terá muitas recompensas quando for maior —Kristel assinalou enquanto olhava ao seu marido como se quisesse matá-lo.

Esperou que todos caminhassem pelo longo corredor para a saída. Não desejava acompanhá-los tão de perto. Mereciam um pouco de espaço, embora essa distância a manteria não só umas horas, e sim toda a vida. Antes de elevar-se e dirigir-se para onde se colocaram, Valéria olhou para o altar e suspirou. Quanto tempo ficava ao Trevor para ir procurá-la? Se é que seguia com a ideia de aparecer um dia. Pegou o lenço com o que se secou as lágrimas e o passou de novo sob as pálpebras. Se o destino os tinha unido doze anos depois daquele dia, esperava que o fizesse de novo porque agora seus sentimentos para com Trevor estavam mais consolidados que nunca.

Apoiou as mãos no banco para levantar-se e, nesse momento, notou que alguém a agarrava pelo braço. Pela extremidade do olho descobriu Philip. Estava incrivelmente elegante com aquele traje azul escuro e aquele colete cinza pérola. Parecia-se muitíssimo ao seu pai. Só esperava que o parecido não fosse só físico, mas que em seu interior também houvesse algo do homem compassivo e bondoso que o engendrou.

—Vamos —animou-a. —Martin nos espera e como demoramos muito é capaz de montar-se sobre as pernas da senhora Berwin para que o leve sobre a cadeira com rodas. Esse comentário divertido a fez sorrir. Quantos dias levava sem esticar seus lábios para realizar uma expressão tão singela? Vinte e um.

Uma vez que saíram ao exterior os três irmãos subiram na carruagem que havia lhes trazido. Kristel já não estava, agora estavam sozinhos...

—É verdade que a casa onde tia Kristel viverá foi um presente do senhor Reform? —Martin perguntou quando o veículo levava pouco mais de dez minutos dirigindo-se para a nova residência do casal Hill. Nesse momento Philip lhe deu um pisão por fazer a inoportuna pergunta. —Ai! —Exclamou.

—Por que me pisou?

—Pode repetir o que acaba de dizer? —Valéria disse entreabrindo os olhos.

—Não, porque então Philip voltará a me pisar e não quero que me doam os pés —o pequeno respondeu com sua habitual inocência.

—Philip! —Repreendeu-lhe. —O que está ocorrendo? O que me oculta, Philip Giesler? —Trovejou.

—Eu não te oculto nada, Valéria. Você mesma não quis saber nada do senhor Reform desde que partiu —apontou o moço cruzando os braços e adotando uma atitude esquiva, carrancuda.

—E o que é que eu não quis saber, irmão? —Perguntou em um tom tão duro e cruel que Martin se tornou para trás no assento.

—Deixei-te todos os periódicos em nosso lar, empilhados sobre a mesa. Viu-os? Não! Embora claro... se para você só narram temas tão absurdos como a forma que tem o inspetor de lutar contra o crime que assalta nossa cidade...

—O que evita me explicar? O que há nesses ditosos periódicos? —Trovejou de novo.

—Nos periódicos há notícias interessantes... —Martin disse com acanhamento. Ao ver o olhar que sua irmã lhe dirigiu o jovem se reclinou ainda mais no assento, como se quisesse introduzir-se na acolchoada parede, e fechou a boca.

—Tudo o que tem feito o senhor Reform desde aquele dia, saiu publicado nos noticiários —Philip assinalou com tranquilidade.

—E o que tem feito de tão importante para que se fale dele? —Perguntou fora de si.

—Vendeu o clube ao senhor Hondherton, comprou uma residência em Mayfair, adquiriu várias empresas mercantis e...

—E? —Perseverou arqueando as sobrancelhas escuras.

—E deu de presente uma bonita casa ao senhor Hill, entre outras coisas... —terminou.

Valéria ficou sem ar nos pulmões. Não sabia o que dizer ante aquela revelação. Trevor tinha feito tudo isso desde que partiu? O que ficava por arrumar antes que aparecesse em seu lar? De repente, a dúvida que a atormentava se fez mais intensa, mais dura, mais dolorosa; esqueceu-se dela. Essa era a razão pela qual não se apresentava. Já não a queria.

—Essa é a casa? —Martin inquiriu olhando pela janela e esperando que sua pergunta não enfurecesse Valéria de novo.

—Sim —Philip afirmou.

Quando o cocheiro parou notou como um nó na garganta lhe impedia de tragar uma mísera gota de saliva. O que ela ia fazer? Como podia comportar-se depois de averiguar tudo o que Trevor fazia? Abaixou o olhar, cravando-o na saia do vestido que tinha decidido usar. Era o mesmo com o qual tinha ido ao clube, que ele lhe tinha dado...

A carruagem estacionou em frente ao novo lar de Kristel, o cocheiro, ao ser consciente de que um de seus passageiros abria a porta sem sua ajuda, saltou e se adiantou ao jovem impertinente. Primeiro apareceu o pequeno, um menino com o cabelo loiro e uns olhos mais azuis que o céu. Agradeceu ao lacaio e correu escada acima. Logo apareceu o irmão maior, quem desceu com uma atitude muito típica entre os aristocratas e muito pouco usual para um jovem com origem humilde. Depois de lhe fazer uma leve reverência, o servente deixou sozinho o moço e a sua irmã, quem permanecia no interior duvidando do que fazer.

—Se eu estivesse em seu lugar não sairia daqui —Philip lhe disse do exterior.

—Ele... ele... —murmurou sem levantar o rosto.

—Ele tem feito tudo isso por você, Valéria, e se não for capaz de admiti-lo, desaponta-me. Pensei que fosse mais esperta —insistiu.

—Mas... eu... —titubeou estupefata pelo tom que utilizou seu irmão para lhe falar.

—O que pretende fazer? Descer e permanecer amargurada no dia mais feliz de sua amiga ou averiguar se é verdade o que te digo? —Continuou com firmeza.

—Philip... as coisas não são assim... —tentou explicar.

—As coisas são como as quer ver, irmã. Se eu encontrasse a mulher da minha vida, a única por quem poderia morrer, não permaneceria sentado esperando que o tempo passasse. Lutaria com todas as armas que tivesse ao meu alcance para tê-la ao meu lado a cada dia que eu despertasse —declarou com uma maturidade que deixou Valéria pétrea. —O que vai fazer? —Quis saber enquanto segurava a porta. —Fica ou vai? —Insistiu.

Valéria voltou a olhar seu vestido como se este, em algum momento, pudesse lhe oferecer a resposta. Respirou fundo. Precisava pensar durante uns instantes na resposta correta...

—Vai! —Philip decidiu antes de dar um forte golpe para fechar a porta.

Sob o olhar assombrado dela, caminhou para o cocheiro, gritou-lhe uma direção e a carruagem empreendeu a nova marcha.


XXIV

 

Não foi capaz de apartar os olhos do vestido desde que a carruagem saiu da residência dos Hill. Retorcia suas mãos enluvadas com tanta força que começaram a suar. Desesperada, tirou-se as luvas, deixou-as sobre o assento e observou o rubor que causou o angustiante esfregão na pele. Tanta inquietação, tanta incerteza não eram boas para ela, mas não podia mostrar-se tranquila quando estava a ponto de averiguar a verdade.

Respirou fundo, jogou a cabeça levemente para trás apoiando-se na parede acolchoada e fechou os olhos. Não era correta a decisão que Philip tinha tomado. Devia continuar esperando como lhe tinha prometido e, quando aparecesse em seu lar, se é que decidia ir procurá-la, saltaria sobre ele, rodearia seu pescoço com os braços e se deixaria levar pela paixão que despertava cada vez que a beijava. De repente, enquanto fantasiava com esse momento, uma pergunta irrompeu em sua cabeça com a força de um corcel desbocado: por que Trevor não tinha ido à igreja? Se, tal como lhe indicou seu irmão, entre eles tinha crescido uma sólida amizade até o ponto de lhe dar de presente pelas núpcias a casa onde iam viver, por que não tinha feito ato de presença? «Porque não queria vê-la...», respondeu-lhe uma voz em sua cabeça. Essa horrível conjectura a perturbou ainda mais. Devia havê-lo considerado quando, depois de olhar em várias ocasiões para a entrada da igreja, não o viu chegar. Aterrorizada por cometer outro grande engano em sua vida, posto que o primeiro fosse lhe declarar que o amava e deixar-se levar pela paixão, Valéria se inclinou no assento e levantou a mão. Desejava avisar ao cocheiro que desse a volta para evitar aquele enfrentamento. Mas já era tarde... antes que os dedos tocassem o teto, o cocheiro começou a diminuir a velocidade fazendo-a entender que estavam chegando ao lar de Trevor e que já não havia volta atrás.

Os lábios lhe tremiam como se se encontrasse em meio a uma nevasca sem casaco que a protegesse do frio. Notava o pulsar de seu coração na garganta e começou a suar como se o sol se achasse justo atrás da janela. Nunca havia se sentido tão aturdida, nem sequer no dia que teve que enterrar a sua querida mãe e fazer frente ao seu novo futuro. Naquele tempo, só pensou em levar adiante seus irmãos, entretanto, o presente era diferente. Uma vez que falasse com Trevor sua vida daria um giro de cento e oitenta graus. Só esperava que esse giro fosse o que ela desejava...

Depois de percorrer a extensa cerca de ferro forjado, a carruagem acessou ao interior da propriedade. Valéria abriu os olhos como pratos ao contemplar o lugar que ele tinha decidido comprar. Ali, em meio à famosa rua, havia um paraíso, o de Reform. Um formoso e cuidado jardim lhe dava as boas-vindas. Devido à época em que se encontravam, de ambos os lados do caminho que lhe conduzia até a entrada principal da moradia brilhavam lindos mantos de cores. Flores de tons vermelhos, amarelos, violetas, brancos e rosas brotavam sobre o terreno como se quisessem oferecer um arco-íris vegetal. «Lindo...», murmurou colocando sua mão esquerda sobre os lábios.

Fixou a vista nas fontes de mármore que tinham sido construídas no meio das duas amplas zonas ajardinadas. Em uma delas tinha esculpida a figura de uma mulher com um vestido tão comprido que se perdia sob a água. Suas mãos, de onde brotavam os canos, estavam abertas como se convidasse os pássaros a beber delas. Mas o que deixou Valéria chocada foram os olhos dessa fria escultura marmorizada. Rapidamente contemplou a outra esperando achar o cavalheiro pelo qual aquela dama de alabastro suspirava. Abalou-se ao vê-lo...

Tinham cinzelado um homem vestido de uniforme. O escultor tinha sido tão minucioso que não parecia uma figura, e sim uma pessoa. Na mão direita sustentava uma espada que elevava para o céu e a outra a dirigia para sua amada de alabastro. À Valéria, em meio às suas observações, surgiu-lhe uma história romântica entre eles, uma que começava com a separação de dois amantes ante a guerra e terminava com esse momento, justo quando ela espera sua gloriosa volta. Suspirou emocionada ante essa possível história de amor, até tinha deixado de pensar no que aconteceria ao ver Trevor. Mas retornou à realidade ao notar a brusca sacudida que fez a carruagem ao parar.

Com o nariz ainda pregado na janela observou a moradia onde o encontraria. Sorriu levemente ao ver o edifício. Três plantas. Aquela casa tinha três largas e enormes plantas com quinze janelas em cada uma. Sobre o telhado, em ambos os extremos, tinham construído dois torreões. Como era normal nele não podia adquirir uma casa típica londrina, e sim a mais extravagante...

Ao escutar que o cocheiro descia e caminhava para ela, toda aquela conturbação que tinha desaparecido enquanto contemplava a residência retornou. Valéria se separou da janela, acomodou-se de maneira correta no assento e esperou que o lacaio abrisse a porta para ajudá-la a descer.

—Senhorita Giesler —disse-lhe este estendendo sua mão.

Valéria começou a respirar rapidamente. Notou como um grande nó na garganta lhe impedia de tragar a pouca saliva que sua boca produzia e como todas aquelas dúvidas que arrastava se faziam tão pesadas que a impediam de mover-se. Mas devia finalizar sua agonia o antes possível... uma vez que pisou naquele impoluto chão, colocou sua mão sobre a testa para evitar os leves raios de sol e olhou ao seu redor. Grandiosa, poderosa e é óbvio, ostentosa. Qualidades muito típicas em Trevor. Agora entendia por que a tinha adquirido em tão breve espaço de tempo. Estava segura de que assim que a viu, sem ter que dar vários passos para o interior se deu a volta sobre si mesmo, olhou ao pobre senhor Berwin e lhe gritou que lhe desse o sinal que pediam antes que seus sapatos continuassem avançando.

Valéria sorriu ao lhe passar essa imagem por sua mente. O pobre secretário poderia sofrer um enfarte algum dia com as determinações de seu chefe. Só esperava que a última decisão fosse estar com ela. Caminhou devagar como se seus pés pesassem uma tonelada. O que todo mundo percorreria em um minuto, ela demorou dez. Antes de subir as escadas que a conduziriam ao enorme balcão no qual se encontrava a entrada principal, olhou por cima de seu ombro para trás descobrindo que, no idílio jardim, havia uma zona em que a erva estava minuciosamente cortada. As árvores que a rodeavam contribuíam a sombra necessária para poder desfrutar de uns lindos dias ensolarados. Valéria sorriu ao imaginar algo que, até o momento, não lhe tinha passado pela cabeça. Como seria ter meia dúzia de pequenos Reform brincando de correr por aquela prazerosa zona da mansão? Trevor brincaria com seus filhos ou se manteria distante? Seria um pai carinhoso e terno?

Uma dor no abdômen a fez centrar-se. A primeira coisa era averiguar que decisão Trevor tinha tomado antes de lhe assaltar com seu desejo de converter-se em mãe o antes possível. Levantou brandamente a saia de seu vestido e subiu com firmeza os degraus que a conduziriam para aquela entrada, aquela realidade...

Para contemplar o marco superior daquela porta teve que inclinar a cabeça para trás. Desmesurado... essa era a palavra que melhor definia tudo o que observava. Com uma aparente serenidade dirigiu sua mão para a aldrava para chamar e franziu o cenho ao ver que esquecera as luvas sobre o assento. Voltou-se sobre si mesma considerando se devia retornar para pegá-las. «Não ponha mais desculpas absurdas —disse-se. —Confronta de uma vez por todas a verdade». Elevou o queixo, bateu na porta e esperou que alguém a atendesse.

—Bom dia. —Com uma rapidez incomum, um homem de uns cinquenta anos de idade, grisalho, alto e embelezado com um impoluto uniforme, saudou-a após abrir.

—Bom dia —Valéria respondeu fingindo serenidade. Entretanto, tremia. A imagem daquele mordomo não lhe ofereceu nenhuma paz. Olhava-a com receio, como se em vez de usar um formoso vestido, cobrisse seu corpo com farrapos. Fechou a boca esperando que ele dissesse algo, mas se manteve calado. Durante a breve inspiração que tomou para lhe explicar o motivo pelo qual se apresentou, comparou o empregado com o fanfarrão do mercado, aquele com quem Trevor jogou com suas mãos e ao qual derrotou. Teria sido capaz de contratar antigos piratas para que custodiassem seu lar? Vindo dele, daquele homem que tinha fingido não saber qual era sua verdadeira identidade e quem a incentivou a jogar aquela partida de cartas, esperava-se qualquer coisa. —Preciso falar com o senhor Reform. Diga que a senhorita Giesler o espera —disse enfim.

—O senhor não admite visitas femininas —respondeu-lhe com rudeza ao mesmo tempo em que entreabria os olhos. —Se quer lhe fazer chegar alguma mensagem lhe recomendo que se dirija ao seu secretário, o senhor Berwin, mas lhe informo que não irá à residência até dentro de dez dias —acrescentou tosco.

Depois da informação Valéria sentiu um prazer colossal. Seu amado tinha construído uma fortaleza infranqueável para qualquer mulher e isso a encheu de amor. Não obstante, devia haver explicado ao velho pirata que não podia impedir a entrada de sua futura esposa. Por que... como poderia acessar até onde se encontrava se aquele corsário aposentado lhe negava a entrada? Teria que subir pelos balcões como uma ladra vulgar?

—Pode lhe dizer quem sou, por favor? —Perseverou. —Seguramente que...

—Não! —Respondeu-lhe com firmeza. —Parta agora mesmo! —Continuou ao mesmo tempo em que segurava a porta para fechar-lhe na cara.

Nesse momento, uma das serventes apareceu por trás chamando a atenção daquele espécime e Valéria, armando-se de coragem, aproveitou o oportuno descuido para acessar ao interior.

—Trevor! Trevor! Onde está? —Clamou desesperada correndo de um lado para o outro.

—Senhorita! —O empregado trovejou atrás dela tentando lhe alcançar. —Saia agora mesmo deste respeitoso lar! O senhor não se encontra neste momento!

—Trevor! Trevor! —Continuou chamando-o enquanto evitava que aquele homem tocasse qualquer parte de seu corpo para tirá-la dali. Depois de decidir enfrentar a verdade, um pirata aposentado não lhe impediria de obter seu objetivo.

Então, quando pensava que não conseguiria fazê-lo aparecer com seus gritos, uma porta se abriu no final do corredor pelo qual corria e apresentou-se a grandiosa figura de Trevor. Valéria freou a corrida, ficou parada olhando-o sem pestanejar e contemplando a cara de cólera que exibia.

—Que diabos está acontecendo aqui, senhor Butler? —Vociferou zangado, mas quando viu a mulher que havia em frente a ele, a ira se dissipou em um milésimo de segundo. —Valéria? —Perguntou desconcertado.

—Sim —ela respondeu abaixando o olhar para não seguir observando a expressão daquele rosto que amava e que, por como a contemplava, deduziu que não tinha sido boa ideia apresentar-se...

 


Trevor leu de novo a carta e após lançá-la sobre sua escrivaninha de mogno escuro, amaldiçoou pela décima sexta vez. Fez tudo o que aquele barão arrogante lhe tinha indicado e voltava a negar o evidente. Desesperado, acariciou seu cabelo escuro, colocou os cotovelos sobre a mesa e suspirou. Já não sabia quais alternativas ficavam para obter que Philip fosse reconhecido como filho de Burke. Tinha procurado, junto com o senhor Lawford, o melhor administrador de Londres e o único que podia achar uma agulha em um palheiro, a maneira de fazer o excelentíssimo Edgar Albrecht Freiherr von Giesler entender que dizia a verdade. Até lhe pediu ao conde Crowner que realizasse a melhor cópia que podia oferecer em sua imprensa para lhe fazer chegar a certidão de nascimento de Philip. Nela descobriu que ambos os irmãos escondiam um segundo nome, o de seu pai e avô. Um que lhes unia ao título. Burke foi muito ardiloso, mais do que ninguém pôde imaginar. Embora ele rejeitasse a baronia, dava a oportunidade ao seu primogênito varão ou ao pequeno Martin no caso de que Philip falecesse, a aceitar sua única herança quando quisessem. Mas nem por essas o barão alemão dava seu braço a torcer. Negava-se terminantemente a admitir que seu querido filho tivesse abandonado uma vida repleta de opulência e poder para viver de maneira humilde em Londres e, além do mais, casado com uma cigana espanhola. «Lüge! Du lügst!», repetia sem cessar nas poucas linhas que escrevia de seu punho e letra.

Por sorte, seu fiel mordomo Butler, a quem contratou porque era alemão e ensinaria aos irmãos de Valéria seu idioma e seus costumes, disse-lhe que não lhe insultava, como ele acreditava, mas sim repetia sem cessar que mentia. Mas não era assim... possivelmente, se algum dia aceitasse a visita que lhe tinha devotado para que o conhecesse pessoalmente, não lhe caberia nenhuma dúvida de que era seu neto legítimo. «Maldita aristocracia!», gritou ao mesmo tempo em que se levantava do assento com brutalidade. Tinha esperado aquela miserável carta para aparecer em frente à Valéria nesse mesmo dia, até perdeu a cerimônia de Borshon para que o mensageiro não se atrasasse em fazê-la chegar e, para que? Para nada!

Irado, caminhou para o móvel bar, agarrou a garrafa de água fresca e encheu o copo. Não podia esperar mais tempo. Aquelas três semanas, apesar de não ter parado nem um só minuto, fizeram-se intermináveis. Todas as noites, quando caía rendido sobre seu leito, recordava de Valéria. Tinha saudades dela, sentia saudades e cada vez era mais difícil concluir seu juramento. Com o copo na mão direita se dirigiu de novo para a mesa do escritório e observou os papéis que tinha recolhido sob uma pasta. Entre eles estava o contrato de compra da casa onde vivia, o lugar no qual tinha decidido criar sua família uma vez que Valéria se convertesse em sua esposa. Foi amor à primeira vista, como lhe aconteceu ao pousar os olhos sobre o pequeno corpo de sua amada. «Se apartasse os olhos de suas empregadas descobriria que ela...», recordou a frase do inspetor O´Brian.

Nesse instante, justo quando fixou o olhar escuro sobre a pequena trapaceira, brotou do interior de suas vísceras um instinto de posse e amparo que lhe impediram de apartar-se de Valéria. Espiava-a, seguia-a e tentava procurar a forma de chegar até ela e não parou até alcançá-la. O que lhe havia dito o inspetor sobre proteger seu coração? Não precisou protegê-lo porque, do momento no qual Valéria subiu ao seu escritório, apesar de usar um traje masculino, quis beijá-la, soube que seu coração já não lhe pertencia, este tinha trocado de dono...

Depois de dar vários passos, olhou ao seu redor. Albergava a esperança de que Valéria sentisse aquela moradia como seu lar. Tinha comprado quase todo o necessário para viver tranquilamente, embora não lhe cabia a menor dúvida de que lhe daria o toque feminino que necessitava. Continuou andando para a janela que havia atrás de sua mesa. Desse ponto da habitação podia contemplar aqueles apaixonados de alabastro. Ela de cor branca, ele de âmbar. Trevor sorriu e evocou em sua mente o ocorrido quinze dias antes, justo o momento no qual um comerciante, depois de escutar o rumor de que procurava uma moradia para comprá-la, apareceu no clube e o conduziu até ali.

Encontravam-se no interior da carruagem, Berwin, ele e o antigo proprietário. Este, durante todo o trajeto não cessava de lhes explicar os grandes investimentos que tinha realizado para construí-la e a pena que lhe dava ter que vendê-la. Falava e falava sem cessar como todo bom negociante que se preze, mas Trevor não escutou nada do que dizia. Depois de rejeitar sete mansões, estava seguro que aquela seria a oitava. Entretanto, quando pôs o pé sobre o chão, elevou o rosto e a contemplou, um sorriso trêmulo se desenhou em seu rosto. Girou-se para seu administrador, quem ainda nem tinha podido sair da carruagem e lhe gritou que fizesse calar de uma vez por todas aquelas faladoras, dando-lhe o sinal que lhe pedia.

—Senhor, está seguro? —Berwin perguntou-lhe assombrado. —Não acredita que deveríamos confirmar como se encontra o interior dessa moradia?

—Como se encontra? —Trevor perguntou ao antigo proprietário, quem ficou pálido ante sua inesperada decisão. Como não lhe tinha prestado atenção durante todo o trajeto, não confiava nessa venda.

—Como lhe disse, mal vivi nela. Nem a planta superior nem a do meio estão mobiliadas e na baixa encontrará alguma marca de uso na cozinha. A única vez que decidi pernoitar nela fiquei adormecido no divã da biblioteca —explicou-lhe.

—Por que construiu esses torreões? Tinha pensado encerrar em seu interior os lacaios desobedientes? —Trevor perguntou olhando-os com expectativa.

—Minha esposa é irlandesa, senhor Reform, —começou a dizer com uma estranha aflição —e lhe prometi ao nos casarmos que não teria saudades de suas terras. Por isso, como lhe disse durante o trajeto, utilizei um arquiteto irlandês para sua construção.

—E essas fontes? —Perguntou olhando primeiro à figura feminina e logo à masculina.

—Desejei destroçá-las com minhas próprias mãos, —comentou o comerciante franzindo o cenho —mas não tive a força necessária para fazê-lo.

—Por qual motivo? —Inquiriu voltando-se para ele.

—Porque é uma brincadeira para com minha pessoa, senhor Reform. —Ao ver que este arqueava a sobrancelha direita em sinal de pergunta, respirou fundo e se decidiu revelar o motivo pelo qual precisava desprender-se daquela casa. —O arquiteto que viajou da Irlanda até aqui tinha tido uma amada e a guerra os separou. Com o tempo perdeu a esperança de achá-la, posto que ao retornar descobrisse que ela se casou com um inglês.

—Já entendi... —Trevor murmurou acariciando o queixo.

—Então teve a má sorte de escolher o antigo amor de sua esposa e ela, uma vez que o reconheceu...

—Sim, senhor. Partiu com ele...

—Quanto disse que pede por ela? —Perguntou girando-se de novo para o lar.

—Vinte mil. Só peço o que investi. Preciso me desprender deste maldito lugar —adicionou enquanto observava como seu possível comprador acelerava o passo pelo caminho.

Durante o trajeto para a entrada principal, Trevor se girou para contemplar uma pequena zona do jardim onde a grama não alcançava a altura de uma polegada. Era o lugar perfeito para fazer um piquenique nos dias nos quais o sol brilhasse sobre Londres. Voltou a sorrir ao imaginar-se atirado sobre uma manta, brincando com todos os filhos que sua amada Valéria pudesse lhe oferecer enquanto lhe repreendesse por mimá-los. De repente seus olhos se obscureceram ainda mais. O pensamento de criar uma grande família o deixou aturdido. Sua futura esposa quereria ser a mãe de meia dúzia de filhos ou se contentaria com um para que herdasse o legado de seus pais? Esperava que ela não quisesse ter só um herdeiro, porque ele necessitava no mínimo de quatro machos Reform para destruir a cidade que jazia sob seus pés.

—Então... há trato? —A voz do vendedor interrompeu suas divagações.

—Deve esperar que o senhor Reform entre, não lhe parece? —Berwin intercedeu. —Ainda não vimos nada do que...

—Se aceitar dezessete, há —Trevor assinalou sem olhá-lo.

—Dezessete... —murmurou o vendedor. —De acordo! —Disse depois de meditar durante uns instantes.

Trevor estreitou a mão para consolidar o pacto e em seguida caminhou para o interior de seu novo lar.

Depois de olhar os documentos que o nomeavam proprietário, observou o envelope que havia embaixo destes. Tinham-nos aceito. Era de esperar depois de haver acrescentado à solicitude um maço com mil libras. Mas o dinheiro não importava se aqueles dois pirralhos continuassem seus estudos em um bom colégio e não sob o pérfido olhar de um professor como o senhor Mayer.

Terminou de beber o conteúdo de seu copo, apoiou-o sobre a mesa, pegou os papéis que tinha agrupado para mostrar à Valéria o que tinha feito durante sua ausência e caminhou para a saída. No meio do escritório se lembrou de que não levava posta a jaqueta. Um sorriso lhe cruzou o rosto. Encontrava-se tão ansioso por vê-la que podia ir despido pela rua sem ser consciente de dita nudez. Deu duas grandes pernadas para chegar ao cabideiro e, justo no momento no qual estendeu a mão para pegar a roupa, um incrível alvoroço se formou na entrada de seu lar. De onde se encontrava podia escutar uma mulher gritando seu nome e a grave voz de seu mordomo. Que diabos acontecia? Quem ousava invadir seu lar?

Enfurecido ao imaginar que Jun continuava com a loucura de consegui-lo, abriu a porta com tanta brutalidade que as dobradiças rangeram. Avançou um passo para o corredor e gritou como um demente. Entretanto, ao contemplar a pequena figura de sua amada usando o vestido que lhe deu de presente, toda a cólera desapareceu como a fumaça de um bom havanês.

—Valéria? —Perguntou confuso. Talvez o desejo de tê-la ao seu lado, de vê-la de novo lhe estava causando uma enorme alucinação.

—Sim —respondeu abaixando a cabeça.

—Meu amor! —Exclamou avançando para ela. Atraiu-a para ele, abraçou-a com força e tentou acalmar o medo que tinha sentido ao vê-la daquela forma. —Está bem? Aconteceu algo? —Perguntou afastando-a devagar para observar aquele rosto pálido.

Ela não podia falar, ainda seguia desnorteada por aquela aparição endemoninhada e quão único pôde fazer foi negar com a cabeça.

—Senhor Butler! —Trovejou procurando com o olhar o servente.

—Sim, senhor? —Respondeu este notavelmente assombrado.

—Que diabos aconteceu? Por que a perseguia? —Ao ter o rosto colado em seu torso, Valéria escutou o pulsar agitado de seu coração. Estava zangado, colérico, muito mais do que devia estar com aquele fiel empregado que só tentou acatar uma ordem dele.

—Trevor... —sussurrou-lhe para apaziguá-lo.

—E? —Ele insistiu sem dar atenção ao murmúrio de Valéria.

—Senhor, só desejava cumprir seu principal mandato —respondeu abaixando a cabeça.

—E o fez muito bem, senhor Butler —saltou em sua defesa. Não podia permitir que Trevor o repreendesse ou o despedisse por sua culpa. Apartou-se ligeiramente daquele abraço protetor e se girou para o servente. —Não se preocupe, você tem feito um trabalho excelente. Fui eu quem não lhe escutou e acessei ao interior omitindo seu desejo.

—Danke, fräulein Giesler. Du bist sehr nett5 —respondeu-lhe em alemão.

Ao escutar como lhe agradecia, girou-se lentamente para Trevor com os olhos como pratos. Havia relaxado, percebeu-o ao contemplar como sua mandíbula se abrandava. Sorriu ao vê-la tão perplexa, encolheu os ombros e respondeu à pergunta que lhe emitia com o olhar.

—Pensei que seria conveniente que não perdesse suas raízes —comentou subtraindo importância a um fato que a deixou tão cheia de amor que podia saltar por todo o corredor gritando o quanto feliz se sentia.

Entretanto, decidiu não mostrar aquele entusiasmo ainda... girou-se para o servente, quem permanecia em frente a eles e, desenhando um leve sorriso, atreveu-se a lhe responder.

—Danke ihnen, sir Butler. Du bist ein guter mann6 —agradeceu-lhe.

O mordomo não mostrou nenhum assombro ao escutar como lhe respondia. Não obstante, embaixo daquela couraça gélida, seu coração dava saltos de alegria. Por fim podia expressar-se com liberdade sem ser observado como se fosse um intruso no país.

—Pode se retirar —Trevor lhe pediu enquanto esticava sua mão para pegar a dela.

—Sir... —disse-lhe fazendo uma leve reverência ao Reform. —Fräulein Giesler —indicou olhando-a e desenhando um minúsculo e quase imperceptível sorriso.

Butler se girou sobre si mesmo e aumentou o pequeno sorriso quando ninguém lhe observava. «É claro! —Exclamou para si. —Só uma mulher com sangue alemão possuiria a coragem suficiente para me fazer frente». E sentindo uma imensa alegria pela decisão de seu novo senhor, dirigiu-se para a cozinha para revisar o que a cozinheira preparava.

Trevor levou a mão de Valéria para sua boca e a beijou com suavidade. Ela apartou o olhar do servente e o fixou nele. As íris escuras lhe revelaram tantas emoções que ficou sem ar. Como tinha podido duvidar de sua palavra? Comovida pelos sentimentos que ele expressava em seus olhos, caminhou para ele e o abraçou de novo.

—Obrigada... —sussurrou depois de permanecer em silêncio durante uns instantes.

—Não tem por que me agradecer —respondeu abraçando-a de novo com força. —Disse-te que procuraria a forma de me converter em um homem adequado para você.

—Sempre foi o adequado —Valéria afirmou elevando com suavidade o queixo.

—Minha querida Valéria... —murmurou aproximando os lábios da boca que tinha tido saudades durante tanto tempo.

A paixão que despertava cada vez que a beijava retornou fazendo com que estremecesse cada centímetro de sua pele. Como tinha suportado tantos dias sem sentir aquela apaixonada carícia? Lentamente Valéria colocou seus braços ao redor de seu pescoço aproximando-o mais a ela. O calor que emitia a grande figura de Trevor ultrapassou as roupas que vestiam e alcançou seu corpo. Calor, paixão, necessidade, amor... tudo isso ele lhe mostrava em um só beijo.

—Senti sua falta... —confessou-lhe sem apartar os lábios de sua boca.

—E eu... —respondeu-lhe descendo com suavidade suas mãos pelas costas largas.

—Por que veio, meu amor? Necessita da minha ajuda? Seus irmãos estão bem? —Perguntou sem respirar enquanto colocava seu queixo sobre o sedoso cabelo escuro. Inspirou o perfume à canela, um que teve saudades desde que fechou a porta do lar dela.

Valéria negou com a cabeça esfregando a testa no torso firme e ainda levemente agitado. Deu-lhe vergonha levantar o rosto e deixar que contemplasse o rubor de suas bochechas. Sentia-se como uma menina pequena a quem não lhe davam suas quinquilharias preferidas e, depois de roubá-la, explicavam-lhe que estavam a ponto de dar-lhe por seu bom comportamento.

—Querida... —Trevor apanhou seu queixo e o elevou com suavidade. —Duvidava de mim? —Perseverou com um fio de voz.

As lágrimas brotaram sem querer de seus olhos, Reform embalou seu rosto entre suas palmas, apartou as gotas de seu rosto e lhe ofereceu o beijo mais terno que podia lhe dar de presente.

—Disse-te que desejava me converter em um homem digno —sussurrou-lhe. —E te prometi que não retornaria até que o conseguisse —acrescentou aproximando seu nariz do dela.

—Mas o tempo passava e eu não sabia nada de você... —expôs-lhe duvidosa. —Pensei que ao final tinha se arrependido...

—Arrependido? —Perguntou surpreso. —Jamais faria tal loucura, Valéria! —Voltou a beijar-lhe a testa. —Quer saber o que tenho feito durante todos estes dias? —A expectativa que Trevor refletiu em seus olhos causou um batimento mais forte no coração de Valéria.

—Sim —respondeu-lhe sorrindo.

Com rapidez entrelaçou os dedos de sua mão esquerda com os dela e a conduziu até seu novo escritório.

Quando Valéria acessou ao interior ficou boquiaberta. Era tão parecido ao que tinha no clube que por um momento teve que meditar sobre o lugar no qual se encontrava. Olhou à sua esquerda, ali estava o enorme sofá escuro.

—Trouxe-o. Não podia abandonar uma poltrona tão cômoda nem tampouco desejava comprar outro, este já tem a forma do meu corpo —disse a modo de desculpa. —Mas todo o resto te juro que é novo...

Valéria começou a relaxar-se, até desenhou um leve sorriso por aquela desculpa. Para que ele entendesse que não lhe importava aquele ato inocente, dirigiu-se para o sofá e se sentou nele.

—É cômodo... bastante —assinalou ao mesmo tempo em que alisava as dobras de sua saia.

Trevor quis correr para ela e tombá-la sobre aquele grande divã de tecido escuro, mas se conteve. Antes de assaltá-la de novo e cobrir seu corpo de beijos desesperados tinha o dever de lhe explicar tudo o que tinha realizado durante sua ausência.

—Pude vender o clube —começou a relatar enquanto caminhava para a mesa do escritório e pegava os papéis que tinha recolhido. —Aquele velho resmungão tentou regatear o preço, mas ao final consegui a soma que desejava —informou caminhando para ela. Sentou-se ao seu lado e colocou sobre seus joelhos o documento de venda. —Por fim me liberei dele! —Exclamou entusiasmado. —Acabaram-se as noites em claro, os sobressaltos e as enxaquecas —adicionou.

—E os empregados? O que fez com eles? —Perguntou enquanto olhava os papéis.

—Todos têm novos empregos nas fábricas que adquiri graças ao assessoramento do conde Crowner. Sabe de quem te falo? —Perguntou-lhe mostrando os quatro acordos que tinha adquirido. Quatro empresas que, segundo o conde, dar-lhe-iam tanta rentabilidade que não precisaria investir em outras companhias pelo resto de sua vida.

Valéria assentiu. Todo mundo sabia quem era Leopold Spencer, o antigo visconde de Dankwourth, que depois da morte de seu tio, o conde Crowner, herdou o dito título. Mas o escândalo pelo qual todo mundo lhe conhecia foi porque, meses depois desse falecimento, ele se casou com a viúva de seu tio, lady April Appelton.

—Com os benefícios que obteremos até nossos netos poderão viver comodamente —acrescentou desenhando um sorriso satisfatório.

Aquele comentário causou em Valéria uma emoção tão imensa que lhe avermelharam as bochechas posto que essas palavras afirmassem que seguiria com ela e que, além disso, teriam filhos.

—E esta casa? —Perguntou olhando ao seu redor.

—Foi amor à primeira vista —revelou. —Não tive que caminhar muito para saber que desejava viver aqui. Viu as fontes da entrada? —Disse-lhe voltando-se para ela. Valéria assentiu. —Pois são dois apaixonados; o arquiteto desta casa e a esposa do antigo proprietário. Por coisas do destino, o anterior pretendente partiu à guerra e quando retornou sua amada se casara com um inglês. Ele continuou trabalhando no ofício que realizava antes de alistar-se e casualmente se fez bastante famoso até o ponto de requererem sua presença para construir esta casa. Quando descobriu que a esposa do homem que o contratou era a mulher de sua vida, quis lhe mostrar que ainda a amava acrescentando a essa mansão duas figuras. Fascinante, não é?

—Então ela partiu com ele... —refletiu.

—Sim, e o despeitado marido desejou desprender-se deste presente o antes possível —comentou divertido. —Eu teria matado o arquiteto... —alegou entreabrindo os olhos maliciosamente.

Ante esse comentário Valéria lhe deu uma leve palmada no ombro enquanto ela abria os olhos como pratos.

—Eu não permitiria que partisse... —assinalou atraindo-a para ele.

—Eu não tenho que me afastar deste lar para encontrar a pessoa que amo —respondeu ruborizando-se de novo. Ao perceber que Trevor estava a ponto de jogar o resto dos papéis ao chão e saltar sobre ela, colocou suas mãos no largo torso e o retirou. —O que é isso? —Quis saber ao ver uma carta com um escudo que lhe resultava familiar.

—Seus irmãos foram admitidos no Westminster —anunciou colocando a missiva do barão sob a admissão dos Giesler. —A partir do próximo outono eles poderão estudar ali, se assim o desejarem.

—Trevor! —Exclamou emocionada. Seus olhos mostraram um brilho hipnotizante. Não podia acreditar, ele também velava pelo futuro de seus irmãos! —Martin enlouquecerá quando o dissermos! —Soltou emocionada.

—E Philip? —Perguntou arqueando as sobrancelhas.

—Não ficará mais remédio que acatar minhas ordens até que cumpra a maioridade —disse com firmeza. —Ele tem que ser consciente do que pode acontecer no futuro...

—Este é o motivo pelo qual não tinha aparecido antes...—Trevor pegou o envelope que o barão lhe enviou e o ofereceu a ela. —Tentei de tudo para lhe fazer compreender que são filhos de Burke e que a sucessão do título pertence a Philip, mas segue em sua posição.

—Trevor... —Valéria acolheu o envelope entre suas mãos trementes, emocionada ao saber que ele também tinha pensado no futuro do moço. Embora se mostrasse triste por não ter obtido tal façanha, ela não estava. O fato de saber que tentou era mais que suficiente para compreender o amor e o amparo que sentia, não só por ela, mas também por seus irmãos. Jogou o envelope ao chão e se laçou para ele.

—Querida... —murmurou atônito. —Eu teria ficado encantado que ele desse seu braço a torcer...

—Não me importa que esse resmungão tenha negado nossa existência —expôs acomodando-se sobre seu peito.

—Mas talvez Philip... —tentou dizer abrindo os braços para que ela se enroscasse em seu corpo.

—Ele viverá feliz aqui, conosco. Londres é nosso lar, Trevor —enfatizou.

—Como desejar, meu amor. Seus desejos são ordens para mim —disse acariciando com seus lábios os dela.

—Todos? —Perguntou travessa.

—Todos... —ele sucumbiu na expectativa.

—Pois começarei a lhe ordenar... —sussurrou enquanto dirigia sua boca para a orelha esquerda —que me faça amor. A última vez que permanecemos a sós me prometeu que não apartaria suas mãos e seus lábios de mim...

Trevor fechou os olhos deixando-se acariciar com o suave e quente fôlego que Valéria expulsava ao falar. Notou como todo seu corpo ficou tenso e lhe arrepiou o pelo. Como podia perturbá-lo dessa forma? Como podia convertê-lo em um homem inexperiente só escutando sua voz? Tragou saliva e, muito lentamente, separou-se dela.

—Valéria... antes desse momento, que te juro, desejo tanto quanto você, preciso te perguntar uma coisa. —Agarrou-lhe as mãos, levou-as à boca para acalmar aquela inquietação que tinha surgido nela com um beijo e se levantou do sofá.

Com os olhos cravados nas largas costas Valéria notava como seu coração pulsava a um ritmo desenfreado, embora lhe custasse determinar a causa de tal agitação. Seria por havê-la ejetado ou por averiguar o que se propunha fazer?

Trevor, depois de pegar uma pequena caixa do bolso da jaqueta, retornou para sua amada, ficou de joelhos ante ela e lhe mostrou o estojo de veludo negro.

—Minha querida Valéria Giesler, filha de Burke Albrecht Freiherr von Giesler, quer ser minha esposa?

Nesse instante os olhos de Valéria se encheram de lágrimas e cobriu sua boca com as mãos. Tentou deslizar-se pelo sofá para ajoelhar-se ao seu lado, mas Trevor não o permitiu, levantou-a ao mesmo tempo em que ele o fazia.

—Espero que tudo o que eu tenho feito até o momento a tenha convencido do muito que te amo e que desejo me converter em um marido digno de você —assinalou afogado pela emoção.

—Sim —ela respondeu enfim estendendo sua mão esquerda para que Trevor lhe pusesse o anel. —Aceito-o Trevor Reform porque, embora não tivesse feito nada de tudo isso, —olhou-o aos olhos —seguiria sendo o homem adequado para mim.

—Amo-a —repetiu depois de lhe encaixar o anel de ouro branco com dois preciosos diamantes vermelhos.

—Eu também te amo! —Disse antes de saltar sobre ele para terminar sua confissão de amor com um longo e apaixonado beijo.

Trevor a rodeou com os braços, elevou-a do chão e, em meio desse frenesi, conduziu-a de novo para o sofá. Por fim tinha chegado o momento de fazê-la sua, de entrar em seu corpo e percorrer cada milímetro de sua pele com seus lábios.

—Pequena... —sussurrou-lhe colocando-a sobre o grande divã. —Por fim posso estar contigo... como te prometi. Não apartarei meus lábios de sua boca, nem minhas mãos de seu corpo.

As pupilas de Valéria se dilataram, ansiosa por alcançar o que tinha desejado desde aquela tarde.

—Aqui? —Perguntou depois de tragar saliva.

—Aqui, lá encima, lá embaixo, em todas as habitações... —respondeu-lhe com um olhar tão ardente que a deixou sem respiração.

—Jura-me? —Insistiu estendendo seus braços para que ele se estendesse sobre ela.

—Juro-lhe —respondeu antes de beijá-la.

Já não havia nada que o freasse, Valéria se converteria em breve em sua querida esposa, dar-lhe-ia a vida que merecia e cuidaria de seus irmãos como se fossem filhos deles. Assim, antes que ela pudesse tomar ar para respirar após o apaixonado beijo, Reform acariciou lentamente as pernas de sua futura esposa até que chegou a sua virilha. Enquanto a convertia em uma amante sedenta de prazer, ele tocou com suavidade o sexo úmido, quente e esponjoso dela.

—Não pode imaginar como tive saudades do tato de sua pele... —sussurrou-lhe ao mesmo tempo em que descia sua boca até chegar ao seu decote. Com a agilidade de um hábil amante tirou do espartilho os duros e escuros mamilos e os lambeu devagar, saboreando-os com uma desesperadora lentidão enquanto seus dedos começavam a introduzir-se no interior dela. —Tem-me hipnotizado, querida. Desde o instante no qual pus meus olhos em você te pertenço.

—Trevor... —sussurrou jogando a cabeça para trás, deixando-se levar pela luxúria e desespero que lhe causava. —Eu também te pertenço..., por completo...

—Repita-me isso, meu amor. Repete essas palavras que tanto desejei escutar durante estes dias —pediu-lhe ao mesmo tempo em que lhe subia a saia. Linda, para ele, era a mulher mais formosa que podia existir no mundo e, condenada sua sorte que era só dele!

—Pertenço-te... te... —começou a dizer, mas a frase ficou em um suspiro ao notar como a boca de Trevor bebia de seu sexo. Apertou os punhos, arqueou os quadris para ele e se deixou levar.

—Minha fonte de vida..., meu vício..., meu desejo... —Reform apontava cada vez que sua língua percorria o sexo e obtinha o sabor de seu suco feminino.

Quando notou que sua ereção era tão grande que começava a lhe tremer o corpo pela dor, conduziu suas mãos para o botão e o desabotoou. Aquela liberação, aquela liberdade, deixou-o sem fala. Nunca tinha desejado uma mulher dessa forma tão instintiva... precisava entrar, possui-la e marcar seu interior com seu sêmen. Havia algo mais primitivo que o sentimento de amor? Não.

Depois de ser consciente do alcance desse desejo, foi subindo lentamente sobre ela.

—Não será fácil..., mas uma vez que a dor acalme, tudo o que obterá cada vez que meu sexo entrar em ti será prazer.

—Aceito-o... aceito tudo o que me oferece... —confessou entre delírios de lascívia.

Reform voltou a beijá-la sem deixar que seu sexo se relaxasse. Uma vez que escutou o estalo que se produzia ao penetrá-la com os dedos, desceu-se lentamente a calça e dirigiu seu sexo para o dela.

—Tem certeza, meu amor? Embora morra se me nega isso, posso me contentar com o que tenho até nossa noite de bodas... —disse antes de suspirar fundo.

—Em nossa noite de bodas... —ela lhe respondeu embalando o viril rosto entre suas mãos —haverá muito mais.

Trevor se rendeu ante essas palavras tão eróticas e sensuais. Acomodou melhor seu corpo sobre ela e com uma lentidão angustiante começou a penetrá-la enquanto lhe sussurrava ao ouvido o muito que a amava e acompanhava essa declaração com um sem-fim de beijos.

Valéria se esticou ao notar uma dor terrível. Era semelhante à pontada de uma adaga. Fechou os olhos e começou a respirar de maneira entrecortada.

—Minha vida..., meu amor... relaxe. Tudo passará... —comentou lhe beijando a testa ao mesmo tempo em que ficava quieto. —Prometo-lhe isso...

Quando ela assentiu deu de presente um beijo cheio de consolo, de aceitação e de imensa ternura. Sua amada trapaceira, a mulher de sua vida, deixava que a possuísse, que a convertesse em uma parte dele. Emocionado pelo que estava vivendo, Trevor notou como as lágrimas percorriam seu duro rosto. Amor... tudo o que necessitava um homem para ser feliz era encontrar uma mulher a quem pudesse amar e Valéria era a sua. Elevou lentamente o rosto para reter em sua memória um momento tão desejado, endureceu as pernas e continuou penetrando-a. Depois de atravessar a barreira da virtude notou como seu sexo começava a escorrer-se nela com menos esforço.

—Valéria, Valéria... —murmurou extasiado, excitado e fora de si. Com suaves vaivéns entrava e saía dela. —Minha vida, minha alma, meu tudo —repetia enquanto seu coração pulsava desenfreado, seus lábios requeriam o contato dos dela e cada partícula de seu corpo emanava gotas de suor. —Amo-te...

—Eu também te amo —repetiu uma e mil vezes até que uma explosão acompanhada de um grito dilacerador fez o grande corpo de Trevor tremer.

Com a respiração agitada, com um brilho aquoso em sua testa, Reform apoiou sua cabeça na de Valéria enquanto sua semente entrava nela.

—É minha, Valéria Giesler. É minha para sempre... —sussurrou orgulhoso.

—Sempre fui —ela declarou lhe beijando com suavidade os lábios.


Epílogo

 

Londres, 20 de maio de 1880.

 

Valéria retirou, depois de quinze minutos, o rosto do guichê do veículo e se reclinou para trás. Suspirou fundo e olhou seu marido de soslaio. Como cada dia que permanecia ao seu lado, não apartava a vista dela, estudando cada movimento, cada gesto que realizava para antecipar-se aos seus desejos.

—Há duas alternativas —disse ele muito sério. —Que tome ou que finja sua morte para que o título passe ao Martin. Estou seguro que...

—Trevor, por favor! —Exclamou de maneira cansada ante o disparate que seu marido acabava de indicar.

—Valéria... —murmurou levantando do assento para sentar-se ao seu lado. Agarrou-lhe as mãos, colocou-as em seu regaço e lhe deu um terno beijo no rosto. —Deve compreender que já não é um menino. Nenhum dos dois o são... —alegou para que sua ira começasse a acalmar-se.

—Mas é a oportunidade de sua vida —apontou depois de girar levemente o rosto por volta de seu marido. —Sabe há doze anos... por que rejeita o que lhe pertence por consanguinidade?

—Philip sempre soube muito bem o que deseja fazer com sua vida. Você mesma foi testemunha disso. Recorda o dia que nos informou que trabalharia sob as ordens do Borshon?

—Como ia esquecer uma coisa assim? Quase tenho o nosso pequeno antes do tempo! —Voltou a dizer em tom desesperado.

Apesar de sofrer um desmaio quando seu irmão lhe informou que abandonava os estudos para converter-se em um agente da Scotland Yard, agradecia a Deus por haver indicado Philip ao bom caminho. Durante sua adolescência, em mais de uma ocasião, perdeu a esperança de convertê-lo em um homem de proveito. As dúzias de cartas mensais que lhes enviava o diretor insistiam em que o jovem não teria uma vida afortunada se continuasse com aquela atitude tão rebelde. Mas graças ao Borshon todo seu pesar desapareceu. Desde o dia que Philip foi renomado agente, sua vida mudou radicalmente. Converteu-se em um dos policiais mais temerários, lutando contra o crime corpo a corpo. Embora enfrentasse a morte a cada dia, cada vez que a visitava e brincava com seus sobrinhos, Valéria entendia que isso era o que o fazia feliz e que não desejava mudar sua vida. Por isso, não aceitaria a notícia que lhe levavam. Ninguém podia fazer Philip Giesler mudar uma decisão, nem sequer sua filha Sina, a sobrinha que seu irmão tanto adorava e que utilizavam de mensageira cada vez que precisavam falar com o teimoso agente.

—E... foi-lhe mau? Sua decisão não foi acertada? —Trevor perseverou segurando suas mãos com mais força. Entendia a posição de sua esposa, mas também apoiava a determinação de seu cunhado. Embora por aquele grandioso corpo corresse sangue aristocrata, ele se negava com ferocidade a aceitar aquele cargo. Vivia feliz sendo um agente da Scotland Yard e, pela informação que Borshon lhe oferecia, cada vez que se reuniam, tinha a esperança de que finalizasse sua carreira policial ostentando o cargo que ele abandonaria em uns anos. Mas... Valéria aceitaria que seu irmão se convertesse em uma pessoa semelhante?

—Todo o dia luta contra a morte... —ela acrescentou de maneira reflexiva. —Isso não é vida nem para ele nem para os que o amam!

—Não podemos lhe obrigar... —disse com suavidade.

—Prometa-me, Trevor Reform, que quando estivermos em frente a ele, você me apoiará fervorosamente —pediu-lhe.

—Alguma vez atuei de maneira contrária à tua? —Perguntou arqueando as sobrancelhas.

—Isto não será tão fácil como convencer Martin a abandonar o lar que comprou e apareça em alguma das festas às quais é convidado, Philip tem um caráter muito obstinado. Quando tem um não por resposta, nada nem ninguém lhe faz mudar de ideia —assinalou olhando-o aos olhos sem piscar.

—Bom, talvez hoje tenha um bom dia e possa refletir sobre a notícia que lhe levamos —animou-a lhe dando outro grandioso beijo, mas desta vez nos lábios.

—Trevor... —advertiu-o ao ver como ele começava a lhe levantar o vestido.

—Só quero averiguar que ligas colocou hoje... vermelhas ou brancas? —Perguntou arqueando as sobrancelhas e sem deixar de acariciar os finos objetos. —Além disso, é bom para apaziguar sua inquietação... —disse-lhe ao mesmo tempo em que sua língua acariciava com suavidade o lóbulo esquerdo. —Reconheça que depois de consumar nossas paixões é um mar em calma...

—Não é adequado, Trevor. Recorde que nos convertemos em dois pais respeitáveis e que estes tipos de atos devem realizar os jovenzinhos... —comentou entreabrindo os olhos.

—Eu me sinto muito jovem... —ronronou lhe pegando a mão esquerda para colocá-la sobre sua ereção. —Nota? Muito, mas muito jovem... —apontou subindo devagar a mão sob o vestido. —E você? É jovem, meu amor?

Uma vez que aquela grande palma chegou até o lugar que desejava tocar, ela gemeu, Trevor sorriu e lhe sussurrou ao ouvido:

—O tempo não passa por nós, querida. Teremos cem anos e continuaremos reivindicando este amor...

—Trevor... —murmurou reclinando a cabeça para trás, sentindo os toques de seu marido no sexo. Rápidos, ágeis e, sobretudo eróticos. Ele sabia como acendê-la com umas leves carícias.

—Valéria... —respondeu-lhe sem diminuir nem um ápice o desejo que sentia por ela. —Relaxe... abandona tudo o que tem nessa cabecinha e deixa que seu marido te acalme...

Ela respirou fundo ao notar como os longos dedos se introduziam em seu interior. Colocou as palmas a ambos os lados do assento, fechou os olhos e esqueceu tudo o que a inquietava.

Logo chegou o primeiro espasmo de prazer... Valéria tentou apertar os lábios para que seus gemidos não saíssem de sua boca. Não era correto que a mãe de quatro meninos e uma linda menina, esposa e irmã exemplar se comportasse como uma jovem amalucada. Mas ele sempre a deixava louca de desejo e com suas hábeis artimanhas a fazia esquecer o que significava a palavra decência.

—Minha pequena trapaceira... —Trevor lhe sussurrou quando observou o rubor de suas bochechas. —Minha amada trapaceira... —continuou dizendo enquanto a elevava sem dificuldade para colocá-la sobre suas pernas.

—Trevor... é... uma... má... influência —murmurou Valéria ao notar a posse de seu marido sobre ela.

—Muito má? —Perguntou após rodeá-la entre seus braços para encaixá-la melhor a ele.

—Muito... —sussurrou antes de colocar suas mãos sobre os fortes ombros e começar a sentir o prazer que seu marido lhe oferecia cada vez que a assaltava.

—Minha amada Valéria... —ele cochichou antes de apanhar os lábios que adorava entre os seus.

Notou como as imensas mãos percorreram seu corpo até que se cravaram em seus quadris. Abriu os olhos para contemplar aquele brilho escuro que Trevor exibia cada vez que lhe assaltava a paixão. Anos... doze anos levava observando aquele olhar lupino e cada dia era diferente para ela.

Percebeu como os dedos dele se cravavam mais em seu corpo, como o desejo aumentava até o ponto de agitá-la como se pesasse menos que uma pluma... como o êxtase os envolvia de novo para afiançar o que já admitiam: eram um só.

Depois que ambos chegaram ao êxtase, aplacando os gemidos finais com suas próprias bocas, Trevor colocou ambas as mãos sobre as bochechas de sua esposa e sorriu.

—Amo-te, Valéria Reform. Amo-te e te amarei sempre.

—Amo-te, Trevor Reform. Amo-te e, como volta a me seduzir em uma carruagem, esquecerei a promessa que lhe fiz —ameaçou com aparente seriedade.

Trevor soltou uma enorme gargalhada, atraiu-a para ele e a abraçou. Por mais que ela declarasse o contrário, pelas veias de sua amada pícara corria o sangue apaixonado de seu adorado pai...

 


Philip se tocava a barba enquanto observava o documento que sua irmã lhe tinha posto sobre a mesa. Não havia dúvidas, depois de tanto tempo aquele velho resmungão declarava, enfim, que ele era seu neto e como tal, pedia que viajasse até a Alemanha para encarregar-se do título antes que ele falecesse. Cravou o olhar no teto a modo de reflexão. Devia explicar à Valéria o que tinha ocorrido na noite anterior? Não, é claro que não. Se lhe contasse que jogou dados em seu novo trabalho o agarraria pela orelha e o arrastaria ela mesma até a grande Alemanha. Assim, por seu bem e pelo de seu novo chefe, o melhor era omitir certos aspectos da noite passada.

—Philip! —Exclamou impaciente. —Não vai responder-nos?

Giesler se levantou do assento, caminhou para eles, que tinham ocupado as duas poltronas que tinha em frente à mesa, e se sentou sobre a beirada desta.

Valéria o olhou sem piscar. Não lhe deu uma boa impressão a atitude que ele mantinha, sem dúvida alguma a balança se inclinava para a opção negativa.

—Ontem me propuseram um novo trabalho —Philip começou a dizer cruzando os braços. A camisa branca, arregaçada até o cotovelo, pressionava os antebraços como se quisesse diminui-los. Valéria entreabriu os olhos esperando que, em qualquer momento, abrissem-lhe as costuras devido àquela forte pressão.

—Que trabalho? —Trevor interveio estendendo a mão para sua esposa para evitar que, depois da exposição, não se levantasse do assento e começasse a arranhar a cara de seu irmão.

—Conhece o Logan Bennett?

Reform afirmou com a cabeça. Conhecia à perfeição o seu irmão, Roger Bennett. No passado ambos tinham acabado atirados sobre o chão de seu escritório após ingerir várias garrafas de licor e terem sido agradados por formosas mulheres. Mas esse tempo de seu passado já desaparecera para ambos. Assim não ia explicar ao seu cunhado, diante de sua amada esposa, até que ponto conhecia os Bennett.

—Leva um pouco mais de dois anos sulcando os mares em seu navio e, depois do último incidente em alto-mar, procurou pessoal novo —Philip continuou explicando.

—Que classe de pessoal? —Valéria perguntou olhando a um e logo a outro. —Marinheiros? Quer deixar a Scotland Yard para se converter em um miserável marinheiro?

—Serei seu braço direito —respondeu olhando ao Trevor.

—Qual é seu encargo? —Reform continuou perguntando apesar de escutar como sua mulher soltava o ar pelo nariz de maneira abrupta.

—Cuidar de suas costas. Como bem sabe, Logan é o único irmão que o marquês de Riderland tem e este não deseja que lhe aconteça nada para que no futuro ostente o título e a Coroa não o reclame —explicou. —Talvez assim continuem com aquele asilo que construíram e não deixem aqueles pequenos órfãos na rua.

—Como o fará? —Perseverou levantando do assento. Colocou as mãos nas costas e ficou imóvel em frente a ele.

—Como tenho feito sempre —alegou. —Borshon me preparou para confrontar um posto dessa envergadura e não tenho dúvidas de que o farei satisfatoriamente.

—Estou seguro disso, até agora Borshon só teve palavras de glória para ti, mas se estivesse em sua situação estudaria com mais atenção o que acabamos de te mostrar. Isto mudaria sua vida...

—Com mais atenção? —Valéria interveio olhando a ambos encolerizada. —Pelo amor de Deus! Deve admitir quem em realidade! Um pirata? Um agente? Algum dia irá a nós porque desejará se converter no forçudo de um circo? Santo Deus, Philip! É um barão! O filho do nosso amado pai!

—Querida... —Trevor colocou as mãos sobre os ombros de sua esposa para acalmá-la. Não havia nada a fazer com Philip. Se este tinha tomado uma determinação, ninguém podia lhe fazer mudar de parecer.

—Possivelmente, em alguma dessas viagens, atraquemos em terras alemãs e invista algo do meu prezado tempo em visitar o velho —comentou divertido. Reform lhe repreendeu com o olhar, mas Valéria tentou matá-lo com o seu.

—Então... o que quer que eu responda ao nosso avô? —Ela exigiu saber depois de um momento em silêncio.

—Não precisa interceder por mim. Tenho idade suficiente para escrever uma missiva ao arrogante barão e lhe explicar o que vou fazer com esse maldito título —resmungou.

—Philip, ela só quer ajudar —Trevor intercedeu para defender a sua esposa. Embora fosse seu irmão, se continuasse com esse tom, dar-lhe-ia um murro.

—Está bem! —Valéria sucumbiu levantando do assento.

—Deixar-te-ei em paz se é o que deseja! Mas entenda uma coisa, Phillip Albrecht Freiherr von Giesler, —acrescentou seu segundo nome e o cargo que devia ostentar embora o negasse —chegará um dia no qual aparecerá na minha porta e me pedirá conselho e eu, claro está...

—Dar-lhe-á isso com muito gosto, como tem feito até o momento —Trevor terminou a frase antes que sua esposa soltasse algo que lhe provocasse dor no futuro. —Boa tarde, Philip, espero que esse novo cargo seja benéfico para você.

—Valéria... —Philip disse após descruzar os braços e estendê-los para ela. —Será capaz de partir sem me dar um beijo? E se os piratas me assaltam e morro lutando pela vida de outro?

—Philip! —Trevor repreendeu-lhe.

Valéria se voltou para ele com vontade de lhe gritar um par de coisas, mas ao vê-lo ali exibindo um grandioso pesar em seu rosto, estendendo as mãos para ela, toda a ira se dissipou.

—Dar-te-ei um beijo se me prometer uma coisa —disse-lhe levantando o dedo inquisidor.

—O que? —Perguntou abrindo os olhos como pratos.

—Que aceitará o título antes que o nosso avô morra.

—Quantos anos estipula que podem ficar o velho? —Perguntou ao seu cunhado.

—Cinco, seis quando muito —Trevor exagerou. Dada à idade e o estado de saúde do velho barão, se chegasse aos três seria todo um milagre.

—Prometo-lhe —respondeu enfim.

E nesse momento Valéria saltou aos braços de seu irmão selando dessa forma o pacto.

Londres, 11 de abril de 1868. Clube de Cavalheiros Reform.
A noite passada foi mais frutífera do que esperou. Nunca imaginou que, com um simples estímulo, os membros do clube abarrotassem as salas de jogo. Sorriu de lado e acariciou sua cuidada barba. Se continuasse desse modo, Reform se converteria no clube mais poderoso e importante não só de Londres, mas sim do país inteiro. Sem eliminar aquele sorriso de prazer, levou o copo para seus lábios e deu um grande sorvo bebida. Celebrava, em silêncio e sozinho, aquele triunfo. E não era para menos. Seu pequeno plano se transformava em um poderoso projeto. Jamais pensou obter aquilo que imaginou, na noite em que se decidiu investir a pouca fortuna que guardava em um local que estava prestes a falir. Tinha trabalhado muito para convertê-lo em um respeitável lugar, ele mesmo ajudou os trabalhadores nas dificultosas obras. Foram dias cheios de desespero, mas também de intermináveis sonhos que, por fim, alcançavam-se. Satisfeito consigo mesmo, colocou a taça sobre a mesa, levantou os pés para acomodá-los sobre esta e cruzou seus braços por trás da cabeça. Começava a ser o homem importante que aspirou converter-se enquanto seus ombros suportavam o peso dos sacos de areia. Nada nem ninguém podia lhe impedir de chegar até o topo que ambicionara.
Embora, é claro, nem tudo tinha sido perfeito. Trevor tinha esquecido, em algum momento desse passado, o caráter sociável e respeitoso com o qual nasceu, transformando-se em um homem soberbo, arrogante e presunçoso. Talvez o poder que lhe proporcionava ter sob seu controle toda a sociedade importante de Londres, provocou que deixasse de lado aqueles princípios morais que sempre tinha valorizado e que agora nem recordava. Orgulhoso de seus projetos, tentou fechar os olhos para encontrar aquela calma que lhe oferecia o conhecimento de seu poder, mas descobriu que Berwin, seu secretário há quatro anos, tinha deixado longe de seu alcance o livro de contas. Intrigado por averiguar que soma alcançaria essa vez, incorporou-se e o agarrou. Enquanto folheava as páginas, deleitou-se com um dos charutos que o senhor Fisheral lhe dera de presente. A fumaça desse havanês começou a lhe rodear mostrando, aos olhos de qualquer um que entrasse no escritório naquele momento, uma aura cinza. De repente, sua boca se torceu, franziu o cenho e partiu em dois, o charuto tão caro. Por que diabos a mesa número sete não conseguia lhe contribuir os mesmos benefícios que as demais? Zangado, golpeou a mesa fazendo com que a taça de uísque caísse ao chão, pulverizando o licor ambarino sobre a superfície de mogno escuro.

 

https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/3_MINHA_AMADA_TRAPACEIRA.jpg

 

—Maldição! Como é possível que ocorra isto? Todas as noites iguais! Que diabos acontece nessa ditosa mesa? —Gritou zangado.

Diante dos gritos encolerizados, alguém apareceu na porta, mas não entrou, permanecendo sob o amparo da grossa folha de madeira.

—Chamou-me, senhor Reform? —Perguntou Berwin, inquieto.

Trevor olhou como se lhe bastasse esse olhar para aniquilá-lo. A boca, adornada com um esmerado cavanhaque, torcia-se para a esquerda. Os olhos não eram marrons, e sim vermelhos e mantinha o cenho tão franzido que pareciam rugas de velhice.

—Diga-me que seus cálculos não estão corretos! —Trovejou ao pobre secretário que, consciente do que ocorreria quando revisasse o extrato de contas, ficou parado na entrada.

—Muito temo que o seja, senhor —respondeu com pesar.

—Sem lugar a dúvidas algo acontece na mesa número sete —acrescentou.

—Algo acontece? —Repetiu com um grito ensurdecedor.

—E o que é esse algo, Berwin? Como é possível que não tenha descoberto o que acontece nessa maldita mesa? Acaso não tem olhos na cara para ver a razão pela qual sempre termino com perdas? —Repreendeu, levantando-se do assento e caminhando irado para seu empregado

—Juro-lhe que não aparto meus olhos desse condenado lugar —disse-lhe temeroso.

—E? —Perguntou arqueando as negras sobrancelhas

—E todos os cavalheiros jogam de maneira correta —explicou.

—Investigou o crupier? Talvez ele seja o motivo do problema —apontou enfurecido.

—Ele não é o culpado do que acontece —disse com valentia.

Berwin encontrou a força necessária para dar vários passos para o interior do escritório, sempre mantendo uma distância prudente do senhor Reform, mas não podia permitir que o jovem fosse despedido injustamente. Gilligan tinha crescido no clube e era o moço mais fiel que poderiam encontrar. Se o dono decidisse prescindir de seus serviços, todos os empregados o defenderiam com unhas e dentes.

—Então... de quem é a culpa? —Retrucou abrindo os olhos de par em par.

—Possivelmente esteja maldita... —sussurrou.

—Maldita? —Repetiu atônito.

—Bruxaria, feitiço, maldições... —enumerou desesperado. Só ficava essa alternativa por oferecer. Todas as noites cravava seus olhos naquele lugar do clube e não apreciava nada estranho. Os cavalheiros jogavam honestamente e o jovem crupier realizava seu trabalho de maneira irrepreensível. Que outra opção ficava?

—Está dizendo que perco dinheiro por culpa de um feitiço que uma bruxa confabulou? —Soltou sem respirar.

—Pode tratar-se de alguma de suas amantes, senhor. Como pôde averiguar, nem todas eram damas respeitáveis —sugeriu bobamente.

—Crê, de verdade, nas palavras que saem de sua boca? —Replicou enfurecido. —Está alegando que obtenho perdas em uma das melhores mesas por culpa de uma amante despeitada? —Continuou vociferando enquanto colocava suas mãos na cintura.

—É uma opção a ter em conta...

—Maldição! Como pode dizer tal estupidez? Maldições, feitiços? Não há ninguém sensato neste clube, salvo eu? —Clamou levantando suas mãos como se quisesse pegar algo do teto. —Está bem! Este problema se resolverá hoje mesmo, custe o que custar! —Uivou aproximando-se da escrivaninha.

Enquanto escrevia algo em um papel, Berwin o observou sem pestanejar. Seu caráter azedo e sua rudeza ao falar se deviam ao desespero que tinha por averiguar o que ocorria na ditosa mesa. Embora essa frustração fosse compartilhada por todos os empregados do clube. O que acontecia naquele lugar?

—Que um dos folgazões que andam pelas salas entregue esta nota ao inspetor O´Brian —ordenou ao mesmo tempo em que quase lhe estampava a carta no rosto.

—Como quiser senhor, farei agora mesmo —assegurou temeroso enquanto saía do escritório sem tocar com os pés o chão.

«Que diabos acontece nessa mesa?», perguntou-se Trevor percorrendo o espaço do escritório sem parar. «Por que não posso obter os benefícios que desejo?». Cansado de rondar de um lado para outro sem achar uma resposta, retornou ao seu assento para continuar com o repasse. Embora aquela mesa não lhe proporcionasse a recompensa que aspirava, as demais desculpavam as perdas. Com os olhos marrons cravados nas folhas, pegando com sua mão direita a garrafa da qual bebia diretamente, não percebeu que o tempo transcorria e que não tinha tido notícias sobre a chegada do inspetor. Só quando apartou o olhar do livro e o dirigiu para a janela que havia atrás de suas costas descobriu que tinha anoitecido. Zangado novamente, levantou-se do assento com brutalidade, caminhou para a porta, abriu-a, saiu ao patamar onde um enorme corrimão de madeira lhe oferecia uma ampla visão do clube e gritou:

—O inspetor veio? Berwin! Berwin! Onde diabos se colocou? —Agarrou o corrimão como se quisesse arrancá-lo do chão.

Ante os gritos, aos quais os trabalhadores já estavam acostumados, uma figura se moveu entre a escuridão e todos os olhares se centraram no pobre secretário.

—Senhor Reform, o inspetor não virá —informou com medo. —Um dos agentes nos informou que esta noite não está de serviço.

—Como diz? —Trovejou abrindo os olhos como pratos e aferrando suas mãos ao corrimão com mais força.

—O que intento lhe explicar é que... —insistiu Berwin.

—Maldição! Não são mais que um bando de folgazões! —Rugiu. —Está claro que se eu não remediar, nenhum de vocês o fará!

Girou-se sobre seus calcanhares, meteu-se no escritório e minutos depois apareceu vestido corretamente. Desceu as escadas pisando como se quisesse as transpassar. Os empregados, justo nesse momento, tiveram que fazer milhares de trabalhos que requeriam sua imediata atenção, então o secretário ficou sozinho ante a besta.

—Quero minha carruagem na porta agora mesmo —resmungou.

—Já a tem, senhor. —Informou.

—Bem. Irei procurar pessoalmente esse inspetor e não me moverei da Scotland Yard até que me atenda como requeiro —assinalou enquanto Berwin lhe ajudava a colocar o casaco negro. —Não aparte os olhos dessa maldita mesa até que eu retorne. Anota qualquer coisa suspeita que encontre e se por algum motivo divino descobrir o que está ocorrendo antes que eu apareça com esse agente, faça-me saber à maior brevidade possível.

—É claro, senhor Reform. Não me moverei daqui até que retorne —apontou retrocedendo um par de passos.

Resmungando e soltando pela boca milhões de impropérios aprendidos desde sua infância, Trevor abandonou o lugar onde se sentia poderoso para sair em busca da pessoa que tinha recusado lhe ajudar. Justo ao pôr os pés sobre os paralelepípedos da rua, uma suave e úmida brisa o recebeu. Franziu o cenho, elevou a gola do casaco e subiu à carruagem para resguardar-se daquele clima frio no interior.

O trajeto mal durou dez minutos, tempo que Trevor aproveitou para refletir sobre a exposição que ofereceria ao inspetor para que lhe ajudasse. «Bruxaria...», refletiu. Como tinha ocorrido tal tolice ao Berwin? Não podia lhe tirar a razão sobre o tema de suas amantes posto que nenhuma aceitasse, de bom grado, dar por finalizado seu caso com ele, mas isso não era motivo suficiente para que seu secretário imaginasse tais sandices. O problema devia ser outro. Um que lhe resultava impossível averiguar com só uma observação e que requeria a experiência de um homem como o inspetor.

Esperou com nervosismo que o cocheiro lhe abrisse a porta. Naquele momento tudo lhe parecia ir mais lento do que ansiava, talvez o desespero por averiguar a verdade o fizesse impaciente. Mas se encontrava em um tremendo apuro. Não só lhe preocupavam as perdas, mas sim a reação que teriam os sócios quando descobrissem que uma mesa poderia estar trucada. A confiança e o respeito que até agora mantinha com seus clientes se veriam diminuídos e isso desencadearia uma ruína impossível de resolver. Com o olhar cravado na fachada da Scotland Yard, Trevor aguardou que o servente descesse da carruagem.

—Senhor, deseja que o espere? —Perguntou o cocheiro assim que abriu a porta.

Não lhe respondeu. Estava tão absorto em seus pensamentos que quão único fez, foi sair do veículo e caminhar com passo firme e rápido para o edifício.

Durante uns segundos permaneceu de pé na entrada, esperando que algum dos agentes que se moviam de um lado para o outro o reconhecesse e se aproximasse para atendê-lo. Desesperado por aquela impassibilidade, por aquela despreocupação que tinham as pessoas que deviam velar pela segurança dos cidadãos, desabotoou-se o casaco e ele mesmo se dirigiu a um deles.

—Quero falar com o inspetor O´Brian —declarou com solenidade.

—Todo mundo que entra por essa porta quer falar com ele —respondeu o agente sem sequer levantar o rosto para olhá-lo.

—Mas ninguém é Trevor Reform, o dono do clube Reform —apontou soberbo, presunçoso e com um tom de voz que se podia equiparar à própria rainha Vitória.

Quando Borshon escutou o nome da pessoa que permanecia ao seu lado, levantou-se do assento com rapidez.

—Desculpe, senhor Reform —disse assombrado e morto de vergonha. —Não lhe reconheci.

—Se tivesse me olhado quando me aproximei seguramente o teria feito —assinalou zangado. —Onde se encontra o inspetor? Preciso falar com ele agora mesmo.

—Esta noite não está de serviço, mas posso lhe atender eu mesmo, se o desejar —indicou estendendo a mão para saudá-lo.

—Não. Quero o senhor O´Brian —declarou com veemência, sem aceitar aquela saudação.

—Mas...

—Não vou partir daqui até que mantenha uma conversação com o inspetor. Não importa o tempo que demore em vir ao meu chamado, então ordene a algum desses néscios que se apresente ante ele e relate que o senhor Reform deseja vê-lo imediatamente. Enquanto isso, esperarei em seu escritório. É esse, não é? —Perguntou assinalando um escritório que havia ao fundo, onde as paredes não eram de concreto e sim de vidro.

—Sim, senhor —disse Borshon segurando a vontade de agarrar pelo pescoço o insolente e lhe trocar o rosto de cor a um mais apropriado ao seu caráter azedo.

—Perfeito. Vá depressa, como compreenderá sou um homem muito ocupado e não posso perder toda a noite —adicionou antes de dirigir-se para o escritório de Michael.

Borshon pegou seu chapéu entre as mãos e o retorceu como se fosse o pescoço daquele presunçoso. Respirou fundo e chamou um dos agentes que tinha perto. Não ia apresentar-se ele mesmo em frente à porta de seu inspetor depois de lhe haver deixado bem claro que essa noite nada nem ninguém poderia lhe interromper. Entretanto, estava seguro que quando escutasse o nome do Reform, embora fosse a contragosto, iria à Scotland Yard.

Trevor se acomodou em uma das cadeiras que encontrou em frente à escrivaninha do inspetor, recostou-se e cruzou as pernas. Enquanto observava ao seu redor, colocou a mão no bolso direito e tirou um dos havaneses que guardava na cigarreira. Devagar e degustando o sabor, foi inspirando o conteúdo daquele charuto, ao mesmo tempo em que cravava seus escuros olhos naquilo que lhe chamava a atenção. Só duas coisas fizeram com que retivesse o olhar pouco mais de um minuto: um recorte de periódico que o inspetor tinha emoldurado e o desenho do rosto de um criminoso que andavam procurando. Sem nenhum interesse por averiguar o que haveria nessa nota de imprensa para que lhe fosse outorgado um lugar tão importante, fechou os olhos tentando recapitular a informação que podia oferecer ao agente.

—Deseja um café enquanto aguarda a chegada do inspetor? —Perguntou Borshon de maneira educada.

—Não têm algo mais forte? —Soltou Trevor sem abrir os olhos.

«Explosivos?», pensou o agente enquanto mostrava um imperturbável sorriso.

—Nosso inspetor não aceita licor dentro dos escritórios —indicou sem alterar-se.

—Uma lástima... —disse Trevor após estalar a língua. —Far-lhe-ei chegar uma caixa se obtiver o que desejo.

—Muito obrigado, embora muito temo que lhe devolverá no mesmo dia —replicou. —Como lhe comentei...

—Não me dê explicações —interrompeu-o movendo a mão direita como se estivesse se despedindo de um servente. —Espere para ler o rótulo das garrafas e depois concorde com seu superior como achar melhor.

Poderia lhe agarrar pelas lapelas de seu casaco e jogá-lo como se fosse um ladrão vulgar? Borshon manteve o sorriso enquanto girava para partir. Fora dos olhos do senhor Reform, franziu o cenho, murmurou uma série de insultos para este e respirou fundo. Como podia um homem humilde se transformar em um monstro repulsivo?

 

 

Michael apareceu pela porta da chefia com o rosto ruborizado pela ira. Procurou com o olhar o Borshon e observou que este não tinha melhor aspecto que ele.

—Onde está? —Perguntou olhando de um lado a outro.

—Aquele imbecil se colocou em seu escritório —respondeu com desdém.

—Imbecil? —Retrucou arqueando as sobrancelhas ao surpreender-se de como seu homem de confiança tinha denominado um personagem tão importante de Londres.

—Estúpido, petulante, presunçoso, soberbo, imbecil... —enumerou sem respirar. —Em resumo, o distinto senhor Reform se encontra em seu escritório.

—Ele te disse do que necessita? —Perguntou um pouco mais acalmado e divertido pela descrição de Borshon.

—Uísque, conhaque, Bourbon, uma bengala no cu... —mencionou a contragosto.

—Quer dizer que... não revelou nada —assinalou Michael olhando de esguelha ao homem que o tinha feito chamar.

—Nada —respondeu Borshon. —Esse parasita não abriu a boca salvo para dizer tolices.

—Está bem. Verei o que posso fazer por ele —declarou antes de dar um passo para seu escritório.

—Se necessitar um par de mãos para tirá-lo dali, conte com as minhas. Estou desejando pregar esse rosto arrogante com um muito bom direito —alegou zombador.

Michael não respondeu ao comentário, estava centrado em averiguar o que necessitaria um homem como o senhor Reform. Até esse momento jamais tinha requerido sua ajuda. Ele mesmo resolvia as desordens que surgiam em seu estabelecimento e controlava à perfeição os sócios. Que motivo lhe teria feito sair de seu adorado clube?

—Boa noite, senhor Reform —saudou-o na porta enquanto estendia a mão direita.

—Boa noite, inspetor... —comentou Trevor levantando do assento para responder à saudação.

—Tenho que admitir que esteja bastante surpreso por sua visita —começou a dizer sem sequer aproximar-se da cadeira. Se tomasse assento poderiam demorar mais do que desejava e queria aparecer na festa dos Dustings o antes possível. Não podia deixar April sozinha no primeiro dia que tinha decidido ir a uma festa.

—Necessito de sua ajuda —confessou Trevor.

—Para que? —Perguntou Michael entreabrindo os olhos.

—De um tempo para cá, uma das mesas que sempre obteve grandes benefícios só me oferece perdas —indicou sem rodeios.

—Pensa que lhe estão roubando? —Interessou-se ao mesmo tempo em que se colocava inadequadamente sobre o canto da mesa.

—Todos os meus empregados a observaram com detalhe e, por agora, não achamos nada que nos indique que se trate de furto —manifestou mantendo-se de pé. —Por isso requeiro de sua perícia para averiguar o que acontece.

—Ajudar-lhe-ei..., mas esta noite não posso ir ao seu clube. Amanhã sem demora...

—Não posso esperar para amanhã! —Exclamou desesperado.

—Um dia mais não lhe causará nenhum problema —adicionou Michael, severo.

—Não pode me conceder um par de horas? —Retrucou Trevor cravando seus olhos marrons nos azulados.

—Esta noite tenho uma proposta que não pode esperar —disse incômodo. Ficou de pé e aguardou que Reform aceitasse sua negativa.

—Só lhe peço duas horas. Se não conseguir averiguar o que acontece nesse tempo pode partir para onde desejar —expôs com firmeza.

Michael considerou rapidamente o que devia fazer. Era a primeira vez que o dono do clube requeria sua ajuda. E se necessitasse de mais tempo além daquelas duas horas? E se não chegasse à festa para estar com April? «O dever está acima do prazer», recordou a frase que seu antecessor lhe expôs no mesmo dia que lhe colocava o botton que usava com orgulho em sua gravata. Respirou fundo, olhou ao Reform e lhe disse:

—Está bem. Leve-me até seu clube, mas tenho que lhe advertir que, se não descobrir o que ocorre em duas horas, partirei.

—Prometo que não lhe entreterei mais que o acordado —declarou com firmeza.

Com um enorme sorriso de satisfação, Trevor fechou os botões do casaco e caminhou diante do inspetor para a saída.

Por sorte para ele, ia ao seu chamado o único homem que podia resolver o problema. Ou isso esperava, porque se não o fizesse, se não achassem o que acontecia, terminaria pensando que Berwin tinha razão e que alguma despeitada ex-amante tinha enfeitiçado a mesa.

 


Embora não fossem nem dez da noite, o clube tinha alcançado a lotação permitida. Michael não apartou o olhar de todos aqueles que se sentaram em frente às mesas de jogo e gritavam desesperados ao não ganhar. Com suspeita e argúcia foi reconhecendo um a um os indivíduos que encontrou ao seu passo. Como era de esperar, a afamada alta sociedade esvaziava seus bolsos em um lugar onde ninguém lhe reprovaria as substanciais perdas.

—Acima poderemos observar sem que ninguém note sua presença —comentou Trevor com certa preocupação. Se os sócios se voltassem para ele e percebessem a figura do inspetor, sairiam das salas apavorados.

—Como obteve que viessem tantos jogadores a estas horas? —Demandou Michael enquanto subia as escadas que lhes conduziam por volta do primeiro andar.

—Oferecendo-lhe mais prazer —respondeu Trevor orgulhoso.

—Mais prazer? —Repetiu O´Brian na expectativa.

Reform parou sua caminhada em meio ao longo corredor, apoiou as palmas sobre o corrimão e com uma atitude endeusada olhou para baixo.

—Não só o jogo causa um estado de frenesi neles, terá que lhes oferecer outros estímulos para que não se aborreçam e partam para outro clube. Se lhes retém, se lhes dá aquilo que necessitam, aparecem cedo e partem ao amanhecer —indicou de maneira presunçosa, como se os anos de experiência lhe tivessem outorgado o dom da sabedoria absoluta.

—Que estímulos encontrou para encher as salas antes do crepúsculo e manter essa fidelidade? —Perguntou O´Brian sem poder apartar seus olhos daquelas cabeças que se moviam de um lado para outro.

Trevor, para responder, levantou a mão direita como se estivesse saudando um conhecido. De repente, um de seus empregados acenou com a cabeça, afirmando e entendendo sua decisão. Dirigiu-se para uma das portas que havia fechadas sob o piso e a abriu. Com rapidez uma dezena de mulheres formosas e vestidas pecaminosamente saiu do interior da habitação.

—Ninguém pode resistir a uma mulher que mostra seus dotes sem pudor —disse Trevor jocoso. —Não lhe parece acertado esse estímulo, inspetor? Porque, como pode apreciar, os rostos dos meus sócios mudaram assim que as viram chegar.

—Só vejo luxúria e lascívia neles —respondeu Michael entreabrindo seus olhos.

—Sexo e jogo... uma combinação perfeita para este clube —refletiu Reform com vaidade.

—Onde está a mesa que tanto lhe preocupa? —O inspetor mudou rapidamente de tema. Não lhe interessava o que observava posto que, para ele, aquele tipo de seduções não lhe chamava a atenção.

—Justo aí —assinalou-a Trevor com a mão. —Entre esses dois grossos pilares de madeira. Como pode perceber, o crupier está embaralhando com normalidade. Por sorte, há poucos cavalheiros jogando nela. Mas ao longo da noite, essa maldita região pode alcançar uns dez participantes.

—Sabe se os mesmos cavalheiros a frequentam todas as noites? —Demandou olhando por volta dos três que se sentaram em frente ao empregado.

Ele fechou os olhos e conteve a respiração. Não podia ser! Seus olhos lhe enganavam. Olhou de esguelha ao Trevor, tentando discorrer o motivo dele não se dar conta do que acontecia naquele lugar, mas após observá-lo com os olhos cravados nas prostitutas soube que por mais que ela se colocasse em frente a ele, não lhe teria prestado nenhuma atenção.

—O normal é que não permaneçam muito tempo no mesmo lugar —explicou sem apartar as pupilas das mulheres.

—São como insetos rodeados de flores, vão de um lugar a outro perdendo e ganhando —adicionou o dono do clube enquanto sorria lascivamente a uma de suas prostitutas. —Lindas, não é? —Disse de repente.

—As mesas? —Perguntou Michael confuso ainda por seu descobrimento.

—As mulheres... —discorreu Trevor. —São deusas do pecado, figuras com exuberantes curvas e incitadoras ao prazer. Desde que aparecem nos salões nenhum cavalheiro pode pensar em outra coisa que não seja escolher a adequada, apartá-la longe dos olhares e possuí-la. Como pode perceber, não há melhor forma de adquirir a fidelidade dos clientes.

—Você tem um conceito muito limitado sobre as mulheres —apontou Michael divertido.

—Você não? —Retrucou levantando as sobrancelhas.

—Não —Michael negou categoricamente.

—Pois não acredito que haja outra forma de defini-las. Tanto as damas da alta sociedade como as que percorrem as ruas dos subúrbios só provocam nos homens uma coisa: desejo. E, claro está, eu só sou um intermediário que, oferecendo aquilo que anseiam, vê como seu clube adquire uma boa posição nesta cidade —assinalou orgulhoso.

—Eu não estaria tão seguro dessa premissa —prosseguiu mordaz.

No fundo se alegrava de ter aceitado o caso da mesa número sete. Embora parecesse paradoxal, alguém ia baixar as fumaças do senhor Reform e que melhor opção que uma pessoa do sexo que menosprezava daquela maneira...

—Por que o diz? —Solicitou entreabrindo os olhos.

—Enquanto você centrou sua atenção nos decotes e nas curvas de suas empregadas, eu descobri o que acontece na mesa que tanto lhe preocupa —comentou dando a volta e apoiando a cintura no corrimão de madeira.

—Mentira! —Exclamou Trevor.

—O que aposta? —Desafiou-o enquanto cruzava os braços.

—Se solucionar o problema lhe darei tudo aquilo que me pedir —declarou solene.

—Parece-me justo posto que, possivelmente, arruinou-me uma noite bastante prometedora —conveio Michael. —Bem, deixe de cravar seus olhos nas curvas das rameiras e centre-se na mesa que tanto lhe perturba —indicou-lhe sem mover-se.

—O que vê?

—O meu empregado repartindo as cartas sobre a toalha de mesa a três cavalheiros que esperam ansiosamente pelos resultados que obtém a casa —explicou lacônico.

—Note o cavalheiro da esquerda, que está mais afastado. Não observa nada estranho nele? —Insistiu, contendo em suas palavras a gargalhada que estava a ponto de soltar.

—Salvo que apresenta uma vestimenta um pouco desalinhada, nada mais —comentou Trevor cravando seus olhos em dito personagem.

—Observe suas mãos, senhor Reform, não lhe parecem muito pequenas para um homem? Não lhe parece estranho que não tirou o casaco face à temperatura que mantém em seu local?

—Há muitos homens que se horrorizam dos corpos que seus progenitores lhes ofereceram. Talvez esse cavalheiro...

—E o que acontece ao seu rosto? Também é produto da genética que não possua uma sombra de pelo no queixo? —Insistiu divertido.

—Como pode apreciar esses detalhes daqui de cima? —Perguntou Trevor surpreso. —Eu mal distingo as cartas que o crupier mostrou.

—Qualquer um que tenha olhos para examiná-la, pode descobrir que...

—Examiná-la? —Trevor clamou atônito voltando-se para o inspetor. —Está me dizendo que há uma mulher disfarçada nessa mesa?

—Sim, e se minhas conjecturas não são falsas, ela será a culpada das perdas que tanto o atormentam. As duas mãos que jogou desde que me assinalou a mesa, ganhou-as. O que dizia sobre as mulheres? Que só serviam para distrair seus clientes e lhes oferecer o desejo carnal que requerem? Pois como pode perceber, enquanto você brinca de correr sob as saias de suas rameiras, ela se centra em ganhar cada partida que começa.

—Uma mulher! —Exclamou sem dar crédito às suas palavras. —Uma mulher! —Repetiu para assimilar o descobrimento. Seus olhos, injetados em sangue, ficaram cravados nela como se pudesse aniquilá-la de onde se encontrava.

—Sim, e agora, se me desculpar, tenho que prosseguir com a segunda parte do meu trabalho, que consiste em descer e prendê-la para que não continue com sua fraude —comentou Michael descruzando os braços e dando um passo para as escadas.

—Não o faça! —Ordenou Trevor lhe agarrando pelo braço e impedindo que avançasse.

—Como? —Perguntou observando aquela grande mão sobre seu antebraço.

—Não a detenha... ainda —murmurou soltando aquele agarre como se lhe queimasse. —Deixe-me averiguar como essa desgraçada saqueou meus lucros noite após noite. Além disso, eu gostaria de fazê-la padecer tudo o que me tem feito sofrer antes que se encontre entre as grades de uma de suas prisões —disse apertando a mandíbula com tanta força que uma leve dor de cabeça apareceu de repente. —Ninguém brinca com Trevor Reform sem levar um bom castigo —sentenciou.

—Não tenho nenhum problema em capturá-la outro dia, mas como compreenderá, se não acatar os mandatos legais aos quais declarei lealdade... —continuou Michael divertido enquanto dirigia o olhar para o mesmo lugar que Trevor: ela.

—Não ande com rodeios, inspetor. Devo-lhe um favor. Obrigado por resolver o caso e pode partir por onde veio —afirmou Trevor sem poder apartar o olhar daquela pequena figura que se escondia sob uma roupa muito grande.

Michael não replicou as ásperas palavras do dono do clube. E mais, perdoou-as porque, para seu prazer, a vida tinha dado ao vaidoso empresário um forte chute no estômago. «Por desgraça, senhor Reform, nada é o que parece nem ninguém tem a verdade absoluta», meditou ao mesmo tempo em que descia veloz para o primeiro piso. Devia dirigir-se o antes possível para a residência dos Dustings, ainda tinha a esperança de encontrar os Campbell na festa e, se Deus fosse piedoso, conceder-lhe-ia seu desejo de dançar pela primeira vez com April.


I

 

Quinta—feira, 15 de abril de 1868. Lar de Valéria Giesler.


—Por favor, não saia hoje —rogou-lhe Kristel quando Valéria pegou a peruca loira que tinha sobre a penteadeira. —Se suas suspeitas forem certas ele poderia te surpreender em qualquer momento e sabe o que poderia te acontecer se descobrirem quem é em realidade? —Adicionou com dramatismo.

Valéria, com a peruca nas mãos, dirigiu-se até a cadeira que havia ao lado de sua cama, sentou-se para embutir os sapatos, embora grandes para seus pés, eram os adequados para o traje e soprou. Não devia ter comentado com sua angustiosa amiga que desde sábado passado o senhor Reform, proprietário da casa de jogos a qual ia para obter os lucros que necessitavam, passeava pelos salões como se procurasse um diamante no chão. Mas aquela intuição de que algo ia mal a fez falar além da conta. Entretanto, até essa mesma noite, o comportamento inesperado do homem não lhe deu a entender que tinha alguma suspeita sobre ela.

Reform mantinha uma conduta distante, esquiva e, sobretudo, inalcançável. Nem sequer se dignava a falar com os sócios quando estes passavam ao seu lado e lhe saudavam com um leve movimento de cabeça. Déspota, orgulhoso, altivo e uma deidade eram as palavras que acompanhavam sempre o seu sobrenome. Valéria tentava não o olhar cada vez que aparecia pela mesa número sete, mas lhe resultava impossível não o fazer. Quem poderia apartar os olhos de um ser tão misterioso? Até as mulheres que trabalhavam ali olhavam ao senhor Reform como se quisessem lhe comer. Escutou em mais de uma ocasião como falavam sobre ele e elogiavam suas artes amorosas. Teria ficado com todas? Por isso falavam daquela forma tão desinibida? Seria um amante quente e carinhoso embora se mostrasse tão frio e descortês? Levantou-se da cadeira ocultando o rubor de suas bochechas. Não era adequado que sua amiga percebesse o que aquele homem lhe provocava. Se Kristel soubesse até que ponto a alterava quando caminhava próximo a ela, fecharia a porta com chave e a engoliria no mesmo momento.

Retornou ao pequeno toucador para confirmar que as presilhas se ajustavam convenientemente à sua cabeça. Ao observar seus olhos azuis refletidos no espelho, recordou os dele. Não mostravam nenhum tipo de sentimento ou emoção, eram tão escuros e frios como uma gélida noite invernal. Acaso o próprio diabo estava encarcerado naquele corpo? «O que importa? —Disse-se. —O único no qual deve se centrar é em ganhar cada partida. O que faça ou o que sinta esse ambicioso homem de negócios, não tem com o que se preocupar». Não obstante, e apesar desse firme pensamento, a imagem do senhor Reform a assaltou de novo. Seu cabelo curto esticado para trás para controlar qualquer cacho indomável. A mandíbula firme, severa, masculina, oculta sob uma pequena barba raspada com elegância... e sua grande figura.

Valéria tinha certeza de que o senhor Reform podia rodear-se de uma centena de pessoas e que se destacaria sobre todas elas. Era um homem muito alto, de costas largas. Suas pernas, esbeltas e musculosas, elevavam-no e o engrandeciam em frente aos outros. Seria esse o motivo pelo qual se negou a aparecer no outro clube? Sentia-se atraída por aquela figura inalcançável? Porque, para sua segurança, a opção de visitar o outro clube era a mais adequada. O dono não lhe seria nenhum problema posto que, ao ser tão maior, não abandonava o dormitório onde vivia e os empregados estavam mais concentrados em manipular as partidas que em fazer as bancas ganharem. Mas não gostava do trabalho fácil e recusou essa alternativa, ou talvez teimasse em depená-lo, àquele rufião que alardeava sua superioridade e menosprezava a vida dos outros.

—Possivelmente tudo foi produto da minha imaginação —disse para não preocupá-la mais. —Se pensar com atenção é lógico que o dono do clube governe as salas para confirmar que nada altere a paz de seus clientes.

—Mas... não deve se sentir cômoda com todas essas mulheres metidas rondando ao seu redor, mostrando sem pudor seus seios ou suas nádegas —acrescentou Kristel com a esperança de fazê-la repensar.

—Nem as olho —assegurou Valéria, centrando-se na tarefa de fechar o cinturão. Devia deixar o objeto com bastante folga para dissimular a silhueta de seus quadris. —Só conto às cartas que o crupier põe sobre a mesa.

—Nem as olha? —Repetiu incrédula sua amiga.

—A elas? Não, para que? —Retrucou voltando-se para o espelho. Sim, não havia dúvida, com aquelas roupas que tinha guardado de seu pai parecia mais um moço fraco e esquálido que uma mulher que tinha ultrapassado os vinte e cinco anos.

—Não sei... eu as observaria de vez em quando, só para saber como são e por que os cavalheiros não podem apartar suas mãos delas —expôs olhando Valéria como se precisasse desculpar-se por ter esse pensamento.

—Pois são mulheres como você ou como eu. Ganhamos o salário com o dom que possuo para os números e elas oferecendo quão único entesouram: seu corpo —acrescentou tocando o tecido do casaco que lhe tinha estendido Kristel.

Devia comprar outro o antes possível. Esse, embora lhe tivesse muito carinho, logo chamaria a atenção por sua imagem tão desalinhada. Por desgraça, os cavalheiros que visitavam o clube vestiam-se de maneira imaculada e quão único ela podia oferecer era um suave aroma de canela que logicamente, passada a noite naquele esconderijo cheio de fumaça, eliminava-se com rapidez.

—Eu não sou como elas... —resmungou Kristel. —Além disso, quem quereria se deitar com uma mulher que coxeia quando caminha? —Soprou.

—Um homem que não se importe com esse pequeno defeito físico. Um homem que quando descobrir quem é a pessoa que há embaixo essa aparência, seja capaz de te adorar como o faço eu —disse abraçando-a para acalmar aquele pesar que sentia desde que se fizeram amigas.

—Não deveria ir... —insistiu Kristel sem soltá-la.

—Tenho que fazê-lo —perseverou Valéria enquanto retirava com suavidade os braços que a rodeavam com tanta força que lhe impediam até de respirar.

—E se o senhor Reform te descobrir e chamar as autoridades? —Insistiu no tema que a mantinha tão alarmada.

—Não têm nada contra mim. Além disso, se descobrirem que uma mulher esteve em um clube de homens depenando as bancas e os jogadores que a acompanhavam, os periódicos ecoariam a notícia e o pobre senhor Reform veria como seu queridíssimo clube se arruinaria devido ao escândalo —respondeu com tanta segurança que, por um instante, Kristel pareceu convencida.

Não, não podia pensar que em algum dia alguém revelaria seu segredo. Levava várias semanas, sentada naquela cadeira, para conseguir o que havia se proposto e a presença daquele tenebroso homem não a faria retroceder em sua decisão. Tinha prometido à sua mãe em seu último fôlego de vida e, embora terminasse encerrada em um austero cárcere, cumpriria essa promessa.

—Eles não suportariam a perda de sua irmã —alegou Kristel quando Valéria se aproximou dos pequenos para lhe dar o acostumado beijo antes de partir. —Não crê que já sofreram bastante?

—Eles necessitam do futuro que lhes prometi. Já sabe que Martin sonha cuidar do rebanho que compraremos e Phillip quer encarregar-se da semeadura que teremos nesse formoso campo. Seria uma desgraça não cumprir seus sonhos —indicou depois de lhes beijar as ruborizadas bochechas.

Os pequenos mal sentiram aquela carícia em seus rostos, por sorte dormiam placidamente. Antes não era assim. Despertavam no meio da noite chorando ou gritando devido à fome que suportavam. Mas desde que decidiu levar a cabo seu plano, tanto ela como Kristel podiam comprar no mercado tudo aquilo que necessitavam e manter seus pequenos estômagos repletos de mantimentos. Isso provocava neles uns sonhos tão intensos e reparadores que, uma vez fechados seus olhos, nada os despertava. Como ia deixar tudo por uma intuição? Como podia voltar a escutar aqueles tristes lamentos produzidos pela fome? Não, de maneira nenhuma. Embora tivesse que passar o resto de sua vida afastada das pessoas amadas, tinha que ser forte e continuar, e se para isso tinha que enfrentar-se cara a cara com o próprio senhor Reform, faria!

—Uma desgraça seria que algum dia sua irmã mais velha não aparecesse por essa porta para abraça-los e mimá-los —declarou Kristel zangada.

—Mas, por sorte, —disse aproximando-se de novo de sua amiga —teriam ao seu lado uma maravilhosa mulher que os cuidaria como se fosse eu e estou segura de que não notariam minha ausência —acrescentou lhe dando um beijo na bochecha. —Já sabe onde está o dinheiro e o que deve fazer se eu não aparecer.

—Sim, sei —respondeu através de um enorme suspiro.

—Descansa um momento. Prometo-te que voltarei o antes possível —manifestou antes de fechar a porta com muito cuidado.

Quando saiu, Valéria subiu as lapelas do casaco para resguardar-se do frio. Depois de rezar, como a cada noite, às almas de seus pais para que a ajudassem a retornar, dirigiu-se para o clube. Muito em breve alcançaria a soma necessária para não visitar mais aquele lugar empesteado de fumaça e de cavalheiros desavergonhados. Deixariam de viver em Brick Lane e poderiam partir os quatro para o povoado onde lhes esperava aquela pequena fazenda em que viveriam felizes. Uma vez obtido isto, deixaria seu passado naquela miserável cidade, apagando de suas mentes as calamidades que tinham padecido desde que ficaram órfãos.

Agasalhada e oculta sob a escuridão da noite, continuou andando até que chegou à rua onde se encontrava o clube. Durante todas as noites que tinha ido até o momento jamais se decidiu a olhar para o primeiro piso, lugar onde se dizia que o dono tinha seu escritório e as habitações que requeriam seus clientes. Entretanto, a mudança de atitude do senhor Reform a tinha deixado tão alterada e alarmada que se decidiu elevar o olhar e cravá-lo nessa parte do local que não estava acostumada a observar.

De repente, as forças de suas pernas começaram a desaparecer e notou como se diminuíam os batimentos do seu coração. Estava ali. Aquela silhueta que seria achada sem esforço algum permanecia na janela como se a estivesse esperando. A luz alaranjada que o iluminava lhe oferecia uma visão mais aterradora que a que já possuía. Que diabos olhava? Por que notava uma comichão lhe percorrer o corpo? Sua intuição seria certa? Ele sabia quem se ocultava embaixo daquelas roupas masculinas? Ardiloso, hábil e perspicaz eram outros adjetivos que os cavalheiros utilizavam para descrevê-lo. «Não pense tolices, Valéria —animou-se. —Esse cretino só olha em volta da rua para contar quantos cavalheiros se aproximam hoje do seu local, nada mais». Custou-lhe muito apartar o olhar daquela imagem perigosa, mas quando o obteve, cravou-a no chão e prosseguiu o caminho para a entrada do edifício. Não podia preocupar-se com outra coisa que não fosse ganhar todas as partidas possíveis, em retornar ao seu, por agora, lar e fazer desaparecer esse palpite que lhe gritava que tudo estava a ponto de mudar...

Como era habitual, ao pôr um pé na primeira escada do local, um servente lhe abriu a porta e lhe deu as boas vindas.

—Permite-me pegar seu casaco, senhor? —Perguntou-lhe como estava acostumado a fazer cada vez que aparecia.

—Não, muito obrigado —comentou endurecendo a voz—. Não desejo adoecer, por permanecer umas míseras horas aí dentro. O dono deste clube deveria prestar mais atenção à temperatura que possui o interior.

—Far-lhe-ei chegar sua queixa, senhor. Espero que passe uma boa noite —disse o empregado para despedir-se.

Sempre lhe respondia igual, mas até o momento nem lhe tinham obrigado a tirar o casaco nem o próprio senhor Reform lhe tinha pedido desculpas por não avivar os fogos das lareiras. Como ia centrar-se em semelhante trivialidade? Ele não poderia esbanjar seu valioso tempo em ninharias porque, se o fizesse, não poderia desfrutar do prazer que lhe proporcionaria introduzir-se em uma tina repleta de champanha com suas putas... outro inesperado rubor apareceu em suas bochechas. Por que lhe fervia o sangue ao pensar tais tolices? Por raiva. Sim, Valéria se encolerizava ao observar o comportamento miserável de uma pessoa que não recordava seu passado, onde as calamidades eram a sombra diária. Esqueceu tudo isso para dar passo a um presunçoso e avaro homem de negócios.

—Desculpe minha estupidez —disse uma voz após lhe dar um empurrão que quase a fez cair de costas.

Valéria levantou seu rosto para repreender a inapropriada estupidez do cavalheiro, mas ficou muda. Reconheceu com rapidez aquele corpo hercúleo e aqueles olhos tão negros como o carvão. O que fazia o inspetor ali? Por que mostrava um estranho brilho no olhar? Tremendo de medo, abaixou a cabeça e lhe respondeu.

—Não se desculpe, eu tampouco olhei por onde ia.

—Sendo assim, —disse com um tom que à Valéria pareceu zombeteiro —boa noite, cavalheiro, e lhe desejo uma noite afortunada.

—Obrigado —disse-lhe com voz tremente.

Com passo rápido, deixando atrás aquele homem que desprendia seriedade e perigo, dirigiu-se para a sala onde devia permanecer nas horas seguintes. Talvez hoje aceitasse aquela taça de boas-vindas que os garçons ofereciam aos sócios assim que chegavam, para acalmar a intranquilidade que a presença do inspetor lhe outorgou. Olhou ao seu redor procurando a outra figura masculina que tanto a aterrava. Por sorte para ela, ainda não rondava pela região. O que teria acontecido para que o senhor Reform chamasse o agente? A intuição, aquela que lhe impedia até de respirar, assinalava-a que tinham descoberto seu segredo? Não, não podia ser esse o motivo porque, se fosse, ela não teria acessado ao local, o inspetor a teria aprisionado sem duvidar um só segundo.

Suspirou fundo tentando encontrar o controle que tinha perdido após achar a pessoa que poderia mudar o rumo de sua vida, mas... quem pode relaxar-se em uma situação igual? —Senhor... —disse um empregado. —Aceita...?

Valéria não escutou o moço terminar a pergunta, agarrou a primeira taça que encontrou ao seu alcance, bebeu-a de um gole e logo fez o mesmo com outra.

—Delicioso —comentou estalando a língua. —Tem que dizer ao senhor Reform que cumpre as expectativas de seus ambiciosos clientes.

—Far-lhe-ei saber —respondeu o empregado antes de despedir-se com um leve movimento de cabeça.

Com o licor percorrendo sua garganta, esquentando o estômago que permanecia vazio, Valéria avançou para a sala onde esperava, enfim, poder jogar. Devagar e sem querer chamar muito a atenção, colocou-se no assento mais afastado da porta, onde não poderia vê-la salvo se se sentasse ao seu lado. Por que pensava tão frequentemente nele? Por que a preocupava tanto se decidisse descer do escritório e passear por seu local? A resposta lhe golpeou a cabeça como se fosse uma grossa bengala: porque se se cumprisse a advertência de Kristel, não voltaria a ver seus irmãos.

—Boa noite, milord. Cartas? —Perguntou o crupier quando ela tomou assento.

—Sim —respondeu enquanto colocava a mão no bolso direito para tirar as nove fichas que guardara da noite anterior.

Como sempre fazia, contou-as e colocou sobre a toalha de mesa a de menor valor. Esse era o sistema que utilizava: começar com a menor e conforme apareciam às cartas, e depois de calcular a possibilidade de achar o melhor resultado, aumentava ou parava. Valéria tinha certeza de que se alguns dos ali presentes estivessem mais interessados em saber que cartas podiam aparecer em vez de distrair-se com as fulanas que o senhor Reform tinha contratado, não partiriam aos seus lares com os bolsos vazios.

—Tem um dom, —disse o senhor Fhiodher numa tarde de verão, o professor que, clandestinamente, dava-lhe aulas depois de que Valéria realizasse os afazeres pelos quais tinha sido contratada —e deveria aproveitá-lo.

—Não acredito que, no futuro me permitam utilizá-lo para algo —comentou-a olhando de novo os livros que tinha sobre a mesa.

—Se estivesse em seu lugar o faria —insistiu o professor.

—Não se dá conta de que sou uma mulher? —Perguntou apartando os livros da mesa com um tapa.

—E? —Perseverou o ancião recolocando em seu lugar os tomos que tinham caído ao chão.

—Contar, somar, multiplicar ou solucionar algoritmos não será de utilidade para mim. Como já sabe, meus pais só pensam em encontrar um bom marido e me converter em uma esposa respeitável.

—Bom..., —murmurou enquanto agarrava suas mãos pelas costas e se dirigia para o quadro-negro que tinha pendurado na parede —uma esposa eficiente pode levar as contas do lar.

—Não me deprima mais —expressou Valéria pregando seu rosto às capas daqueles livros de álgebra. —Crê de verdade que um marido deixaria a sua esposa realizar tais tarefas? Se algum dos que tenta me cortejar descobrir que posso solucionar problemas aritméticos que eles não fariam em anos, queimar-me-iam em uma fogueira por bruxaria.

—É muito inteligente e, se fosse você, utilizaria esse engenho para conseguir aquilo que me proponha. Talvez um dia encontre esse homem que, não só se apaixone por sua beleza, mas também por aquilo que guarda em sua mente.

—Não quero um marido, senhor Fiodher! Quero retornar Alemanha! Acredita que calculando frações ou solucionando teorias sobre as relações binárias retornarei ao país do qual não devia jamais ter partido? —Soltou irônica.

—Se for capaz de deduzir o tempo, o custo e como sair de sua habitação sem que seus pais saibam até que esteja dentro de um navio que tenha zarpado na semana anterior, possivelmente... —respondeu-lhe com um enorme sorriso.

—Blackjack? —Perguntou o crupier despertando-a da lembrança.

—Para começar, está bem —afirmou olhando sem piscar as duas cartas que o empregado colocou ao seu lado.

—Aumenta a aposta, senhor? —Perguntou intrigado o moço.

—Sim, aumento... —respondeu colocando sobre a ficha anterior mais duas.

 

 

«Valéria Giesler...», sussurrou para si Trevor enquanto colocava a jaqueta do traje. Em nenhum momento tinha imaginado que ela tivesse origem alemã, embora claro, tampouco tivesse pensado alguma vez que uma mulher se disfarçaria de homem e entraria em seu clube para partir com os bolsos repletos. Por isso pensou que era uma empregada do Hondherton, como ia pensar em outra razão? Mas esclarecida a dúvida sobre o tema de espionagem, centrou-se no verdadeiro motivo; ela era uma órfã que tinha sob seu amparo dois irmãos e os sustentava com os lucros que obtinha no jogo. Mas isso não justificava a fraude que realizava. Tinha muitas formas de adquirir a fortuna que requeria para sobreviver sem pôr em perigo a reputação de seu clube. «Sempre ganha e de maneira limpa», meditou Trevor saindo de seu escritório.

Desde que o inspetor lhe explicou seu achado, tinha permanecido mais tempo do que estava acostumado a empregar nos salões. Observava, com discrição, as jogadas dela e, em nenhum momento, roubava nem enganava. Sua forma de apostar era calculada, racionada e, é claro, esquiva e receosa. Em várias ocasiões, quando ela fixava seus olhos nas cartas, podia apreciar como aquela pequena cabeça premeditava, com incrível precisão, que carta apareceria depois. Como o fazia? Acaso era uma jogadora inveterada ou talvez tivesse memorizado alguma fresta no baralho? Não, isso tampouco podia ser. Todos os crupieres começavam a noite com cartas novas que ele mesmo revisava com exaustão. Então... como conseguia ganhar todas as partidas?

Intrigado por saber a verdade, Trevor decidiu achar a resposta nessa mesma noite. Antes de descer pelas escadas de sólido carvalho escuro, apoiou as mãos sobre o corrimão e a contemplou acessar ao interior do hall. Seguia ocultando seu corpo com aquele casaco que varria o chão ao seu passo. Reform franziu o cenho ao perceber que o inspetor se dirigia diretamente a ela. Suas palmas se estenderam pelo corrimão e o agarrou com força. Tinha lhe solicitado que não se aproximasse, que não a investigasse, que se esquecesse de Valéria, porque ela era seu problema e devia resolvê-lo sem a ajuda de ninguém. Com os olhos marrons cravados nessa cena, contemplou como o rosto da mulher empalidecia ao descobrir quem era a pessoa com quem tinha tropeçado. «Maldito seja!», grunhiu Trevor. Não queria que abandonasse o clube assustada ante a presença de Michael. Se o fizesse, ela partiria nessa mesma noite, temia que não voltasse a vê-la e, embora lhe parecesse estranho, agradava-lhe sair de seu escritório para espiá-la.

De soslaio apreciou como um dos empregados se aproximava da porta por onde apareciam as mulheres que entreteriam afamados clientes. Nesta ocasião, não gostaria que rondassem com seus típicos movimentos atrevidos. Desejava manter-se concentrado no comportamento de Valéria, mas lhes tinha prometido um bom trabalho, um bom salário e devia cumprir com sua palavra. Com inapetência, levantou a mão para que o criado acatasse a ordem e, como era habitual, este abriu a porta para que saísse aquela dúzia de atrevidas procurando seu pagamento.

Com o cenho franzido, desceu as escadas. Devia continuar com aquela discrição que tinha mantido desde sábado. Ninguém parecia estranhar sua mudança de atitude, talvez porque todo mundo supunha que, como dono de um lugar assim, era seu dever rondar pelos salões para confirmar que tudo estava em ordem e que não se armaria nenhuma confusão entre os jogadores. Antes que Valéria aparecesse, designou essa tarefa ao Wolf, apelido que lhe caía perfeitamente, mas desde que abandonara o escritório, desde que tinha um estímulo para levantar do cômodo assento, ele mesmo se ocupava dessa segurança. Embora não fosse a primeira vez que empregava as grandes dimensões de seu corpo para acalmar os delírios de algum sócio... sem ir mais longe, no mês anterior teve que esquivar uma navalha que ia diretamente ao seu peito. «Afazeres habituais», definia ele as brigas que se iniciavam sem poder apaziguá-las antes que voassem as cadeiras ou os clientes saíssem apavorados.

Com a firme ideia de continuar com esse reconhecimento rotineiro, Trevor caminhou pelo grande corredor olhando de esguelha aquela região. Não havia ninguém com ela salvo o crupier. Berwin teria razão? Seus sócios começavam a pensar que a mesa estava maldita? Porque não era normal que, passadas às dez da noite, ninguém se decidisse a jogar naquele lugar. Zangado, caminhou diretamente para eles. Como atuaria quando a descobrisse? Partiria alegando qualquer desculpa? Ou, pelo contrário, continuaria jogando como se ele não existisse? Trevor notou uma dor estranha em seu estômago. Estava nervoso? Alterava-o enfrentá-la? Ou só se tratava daquele orgulho masculino que lhe gritava o ridículo que se encontraria se perdesse ante uma mulher? Não, isso não era motivo suficiente para sentir tal pontada dolorosa. Algo, um palpite, um pressentimento, golpeava seu peito para lhe indicar que a decisão que acabava de tomar não era a adequada. Por quê? Acaso não seria capaz de levar a cabo seu plano? Claro que o faria! E, uma vez que ela não tivesse escapatória, uma vez que fosse consciente de que sabia quem se ocultava sob a esfarrapada vestimenta, desfrutaria humilhando-a.

Devagar, para não a alterar ainda, desabotoou-se a jaqueta e se sentou ao seu lado. De repente, um arrebatador perfume de canela chegou ao seu nariz. Provinha dela? Valéria utilizava o aroma de uma especiaria para orvalhar seu corpo? Essa pergunta o conduziu diretamente a uma imagem que não devia permitir-se porque quão único pretendia era envergonhá-la, não imaginar como se veria nua com só esse perfume a cobrindo enquanto sorria perversa sobre seu leito.

—Senhor Reform —saudou-o o crupier, assombrado ao vê-lo aparecer.

—Boa noite, Gilligan. Esperarei que o cavalheiro termine sua partida —disse pegando um havanês para acendê-lo enquanto chegava seu turno.

Olhou de esguelha à Valéria, que se encolheu ao perceber sua presença. «Teme-me? —Perguntou-se. —Aconselho-a que o faça, porque vai pagar tudo o que me fez desde que pôs um pé em meu clube», sentenciou zangado.


II


Em silêncio e com o profissionalismo que costumava, o crupier mesclou as cartas, colocou-as sobre a mesa e ela as partiu em dois. Atenta e sem pestanejar, deixou que os dois primeiros naipes ficassem em frente às suas mãos enquanto o moço obtinha as suas. Depois de rezar para que a sorte a acompanhasse, contou-as e as olhou sem piscar. Não podia ser! Segurando a irritação que lhe produzia ter cartas desastrosas, sorriu como se tivesse a melhor jogada de sua vida.

—Alguma mais? —Demandou o moço.

Estava a ponto de lhe responder que sim quando alguém se sentou ao seu lado. Em um primeiro momento não reparou de quem se tratava, porque lhe faltavam dez pontos para alcançar o vinte e um e não podia descuidar-se. Mas quando apreciou como a respiração do empregado se entrecortava, olhou de esguelha para averiguar quem poderia alterar dessa maneira o jovem.

—Senhor Reform —disse este com um tom de voz que denotava assombro.

—Boa noite, Gilligan, esperarei que o cavalheiro termine sua partida —comentou ao mesmo tempo em que procurava algo em um de seus bolsos.

Valéria esteve a ponto de levantar-se e deixar a jogada sem finalizar. De todas as maneiras, parecia que a sorte tinha mudado depois da aparição do dono do clube. «Está maldito —disse uma voz em sua cabeça. —Vá, foge o antes possível daqui. Esse homem escuro só te atrairá má sorte».

—Boa noite, espero que minha presença não interrompa sua jogada —disse Trevor ao perceber que ela movia inquieta seus pés, como se estivesse decidindo partir.

—Não, claro que não —respondeu Valéria com aquela voz que tentava manter para aparentar um menino em plena puberdade.

—Manter-me-ei calado até que finalize, juro —comentou ele enquanto prendia seu havanês.

—Senhor? —Perguntou o crupier à Valéria ao ver que não tinha prestado atenção à carta que lhe tinha posto sobre a mesa.

—Sim, é claro —respondeu. Com o olhar em suas cartas, fazendo uma recontagem de possibilidades para alcançar os seis pontos que lhe faltavam e deduzindo quantas necessitaria o crupier para pontuar, Valéria perdeu a noção do tempo porque a concentração que requeria desapareceu ao respirar o aroma de tabaco. Como poderia gritar ao dono do clube que eliminasse aquela pestilência?

—Oferecerá uma nova aposta? —Interveio Reform depois de jogar pela boca, de maneira suave e pausada, a fumaça que tinha inalado.

—Como? —Disse Valéria enquanto seus pés repicavam no chão.

—Meu empregado lhe perguntou se prossegue ou se detém —esclareceu.

Valéria olhou assombrada ao dono do clube e logo ao empregado, que confirmava as palavras com um suave movimento de cabeça.

—Peço uma nova carta —disse enfim. —Por favor, se fizer a gentileza de apagar esse charuto, o agradeceria. A fumaça cinza que sai por sua boca está me desconcentrando —indicou zangada.

—Não fuma? —Perguntou dirigindo o charuto para ela.

—Bebe, talvez? —Insistiu sem apartar os olhos daquele semblante que, para seu deleite, tinha tomado uma cor vermelha. «Azuis. Tão azuis como o próprio céu», refletiu Trevor sobre os olhos de Valéria.

—Não, obrigado. E agora, se não lhe importar, não se mova, não fale e, se for possível, não respire até que eu finalize a partida. Uma vez terminada, deixar-lhe-ei espaço suficiente para que prossiga divertindo-se com esses vícios repulsivos —apontou irada.

—Repulsivos... —murmurou Trevor antes de apagar o charuto no cinzeiro de cristal que havia em frente a ele. —Pois este vício repulsivo —acrescentou ironicamente —tem um custo de duas libras por peça.

—Pois é uma lástima que uma pessoa esbanje seus lucros desse modo quando há tanta gente que morre de fome pelas ruas —apontou girando de novo o rosto para o crupier e centrando sua atenção nas cartas. —Duas mais, por favor —assinalou ao Gilligan, que observava a cena com uma mescla de medo e interesse.

«Cabelo escuro», disse-se Trevor. No brusco movimento ela não se dera conta de que a peruca se torcera levemente e, pela orelha direita uns fios de cabelo negro tinham a intenção de sair. Aniquilado, mais do que deveria mostrar um homem em frente a outro, ficou observando aqueles fios escuros, depois baixou o olhar lentamente pela bochecha, ruborizada ainda, prosseguiu com o pescoço e ficou justo nessa parte do corpo ao escutar como seu empregado pigarreava. Com rapidez apartou o olhar, mas foi impossível não o dirigir para as mãos. Aquelas das quais tinha falado o inspetor. E tinha razão. Não eram masculinas, mas sim femininas. Os dedos de pequeno tamanho criavam uma perfeita harmonia com as palmas. Suaves, deviam ser muito suaves porque não achou nenhuma fresta de dureza nelas. As unhas, cortadas como mostraria um cavalheiro, estavam impolutas. Como podia manter mãos tão cuidadas vivendo em um bairro como Brink Lane? Porque ele recordava, vagamente por sorte, que as paredes sempre estavam sujas iguais aos chãos. Podiam-se encontrar, em cada passo que se davam, vagabundos sentados ou tombados sobre os paralelepípedos, bêbados, putas, meninos imundos chorando... onde se resguardava para cuidar-se daquela forma?

—Bem! —Exclamou de repente Valéria.

—A casa perde... outra vez —disse Gilligan olhando ao dono com temor.

—Bom, pois, alcançado meu objetivo por esta noite, deixo-lhe que prove a sorte você também —comentou Valéria levantando do assento.

—Parte? Incomodei-o com minha repugnante fumaça? —Repreendeu mordaz.

—Como lhe disse, cumpri meu objetivo —reiterou enquanto recolhia as fichas para colocá-las no bolso.

—Que objetivo era? Se pode revelá-lo, é claro —persistiu em conversar para que não partisse.

—Ganhar —afirmou ela com veemência.

—Quanto?

—O suficiente —resmungou Valéria.

—Não quer seguir tentando a sorte? —Perguntou Trevor arqueando as escuras sobrancelhas. —Estive esperando aqui sem fumar, sem beber e sem mal respirar adequadamente para me converter em seu próximo competidor.

—Quer jogar comigo? —Soltou assombrada. Ao ver como afirmava cabeceando ligeiramente, prosseguiu: —Sinto-o, em outra ocasião —desculpou-se colocando a arrecadação no bolso com tanta rapidez como lhe permitiam suas mãos trementes. —Hoje tenho muita pressa, não posso me entreter com uma jogada mais.

—Far-lhe-ia mudar de opinião um suculento incentivo? —Retrucou Trevor pegando da banca quatro fichas de duzentas libras cada uma.

—Muito tentador... —disse Valéria olhando aquelas fichas.

Se ganhasse, se se atrevesse a jogar com aquele soberbo que a observava como se soubesse quem era, não retornaria ao clube de novo e conseguiria aquilo que tanto tinha sonhado. «E se perder? —Assaltou-a uma voz em sua cabeça. —Hoje conseguiu cem libras, menos do que obteve em anteriores ocasiões, mas... isso é melhor que nada!».

—Não lhe parece uma aposta considerável, senhor...? —Insistiu Reform.

—Hernández —disse sem pensar o sobrenome de solteira de sua mãe

—Espanhol? —Perguntou Trevor movendo as quatro fichas entre os dedos de sua mão direita enquanto a olhava fixamente.

—Sim —respondeu com veemência.

—Ninguém o diria com esse cabelo tão... loiro —falou fazendo referência à cor daquela peruca horrorosa que ocultava sua verdadeira cor.

—Meus antepassados eram ingleses, assim é lógico compreender que algum familiar futuro poderia nascer com certas semelhanças a esses ancestrais —explicou sem meditar se ele entenderia o tema que já se começava a conceber como herança genética.

«Dá-te a impressão de ter em frente a ti um homem, que procura nas notas de imprensa algo mais interessante que averiguar as opiniões sobre seu clube?» Ante tal pensamento Valéria desenhou um leve sorriso em seu rosto. Não, ele não era esse tipo de homens. Não apresentava a imagem de um homem desejoso de conhecimento. Ele tinha bastante enchendo seus pulmões de fumaça negra e enchendo, a cada hora do dia, seu estômago de bom licor, sem esquecer as mulheres que se deitavam cada noite em seu leito.

E, de repente, o sorriso desapareceu.

—Posso lhe dar de presente uma das minhas fichas, se assim puder convencê-lo —perseverou Trevor percebendo uma repentina mudança no rosto dela. Primeiro parecia divertida, mas logo pensou em algo que transformou essa diversão em ira.

—Obrigado, como lhe disse, minha noite terminou neste momento —anunciou Valéria dando um passo para a saída.

—Duas? —Insistiu Trevor que, inapropriadamente, agarrou-lhe o braço com sua mão esquerda.

—Desde quando o dono do clube se digna a jogar com os sócios? —Inquiriu Valéria zangada cravando seus olhos naquele agarre.

—Desde que decidi abandonar meu escritório e desfrutar das agradáveis companhias —esclareceu sem soltá-la.

Valéria o contemplou em silêncio. Para seu pesar, o homem que se encontrava ante ela era tão enigmático como terrível. O traje negro perfeitamente confeccionado para sua corpulenta figura proporcionava-lhe uma imagem sombria, lôbrega. Só a cor perolada da camisa lhe oferecia um matiz de luminosidade. Devagar, observou aquele rosto duro do qual todo mundo falava e que tinha visto desde sábado com muita frequência. Solene, essa era a palavra que melhor o descrevia. Os olhos não eram negros, como sempre imaginou, tinham uma cor marrom, âmbar. A barba, que só cobria uma pequena porção do queixo e luzia, extensa por cima do lábio superior, era tão negra como o carvão. Dura, sim, espessa e dura. Respirou fundo tentando não se deixar levar por aquele rosto varonil que se dirigia a ela, por aquele olhar enigmático que parecia despi-la. Não, ele não poderia supor que embaixo daquelas roupas, não acharia o corpo de um homem e sim o de uma mulher que, embora não devesse, aceitava sua oferta com a firme intenção de ganhar e não voltar a vê-lo nunca mais.

—Se tanto interesse tem em perder, senhor Reform, coloque essas quatro fichas em meu lado da mesa e recolha outras para você —disse com decisão.

—Perfeito! —Exclamou eufórico enquanto a liberava enfim. —Gilligan embaralha de novo. O senhor Hernández e eu vamos jogar.

—Que benefícios obterei se ganhar? —Perguntou Valéria sentando-se de novo.

—A quantidade que possui suas fichas mais as minhas —respondeu com firmeza.

—Mil e seiscentas libras? —Disse atônita.

—Se ganhar, claro está, essa quantidade será sua, mas se perder, dever-me-á oitocentas —conveio Reform. —É o justo, não crê? —Perseverou ao ver como ela franzia o cenho.

—Não tenho tanto dinheiro, senhor Reform —disse tentando levantar do assento. Então ele a agarrou de novo evitando que partisse.

—Poderá me pagar esse valor quando desejar, senhor Hernández, e se para isso deve aparecer todas as noites pelo clube, o receberei em meu escritório e irei lhe descontando cada penique que me ofereça —esclareceu.

Como lhe tinha ocorrido essa ideia? O cérebro de Trevor não parava de pensar na opção que acabava de lhe expor. Vê-la todas as noites? Mas não tinha decidido desmascará-la assim que tivesse a menor oportunidade? Sobressaltado por seu inapropriado comportamento, abriu a mão e a soltou.

—Mas se tiver dúvidas sobre suas competências no jogo... não lhe impedirei que parta —asseverou.

Valéria não sabia que decisão tomar. Era uma oferta muito tentadora. Se ganhasse não teria que retornar jamais e poderiam partir na manhã seguinte para aquele pequeno povo que tanto desejava, mas se pelo contrário, perdesse, encontrar-se-ia em uma encruzilhada da qual nunca se liberaria. Olhou aquela mão que tinha agarrado seu braço em duas ocasiões em menos de um minuto. Guardaria algum ás sob a manga? Ou só era um capricho do senhor Reform? Tão pouco lhe importava seu dinheiro que o obsequiava sem mal piscar? «O que são mil e seiscentas libras, para um homem como ele? —Perguntou-lhe a voz em sua cabeça. —Uma miséria, só isso. E para você? O que te significaria? Por fim alcançaria seu desejo. Acaso não o que persegue desde que entrou por aquela porta? Seja forte Valéria, e elimine esse ar de superioridade que mostra ante qualquer pessoa que o olhe».

—Está bem! —Exclamou derrubando-se no assento. —Aceito sua proposta, mas tem que me prometer que se eu ganhar a partida me dará isso sem pôr nenhuma objeção mais.

—Juro pela minha honra —disse Trevor depositando as fichas sobre a mesa para estender sua mão para ela e selar, com esse gesto, o pacto.

—Bem, —assinalou aceitando o estreitamento —se é assim, comecemos.

Reform tentou dissimular a sensação que teve ao tocá-la. Em efeito, aquela mão era suave, muito suave e pequena, tão pequena que se perdeu entre a sua. Com os olhos cravados na mulher, observou como retornava a jogadora que tinha contemplado desde sábado. «Concentração —disse-se. —A chave está na concentração».

—Pôquer de cinco? —Perguntou o crupier aproximando o baralho ao Reform para que ele mesmo cortasse as cartas.

—Senhor Hernández? —Disse-lhe dando aquela honra.

—Sim, pôquer de cinco —afirmou dividindo o baralho em duas partes virtualmente iguais.

Nunca na vida se encontrou em uma posição tão difícil. Se a sorte estivesse do seu lado, adquiriria tudo o que tinha sonhado em uma só jogada. Mas se perdesse, encontrar-se-ia atada a um contrato que demoraria meses em finalizar. Enquanto o crupier lhes repartia as duas primeiras cartas, o coração de Valéria palpitava desenfreadamente. Podia sentir o pulsar em sua garganta. Seriam os nervos? Começariam a trai-la? Tentou respirar de forma pausada para eliminar de uma vez por todas a tensão que sacudia seu corpo. Entretanto, resultou-lhe impossível fazê-lo. A mão que tinha estreitado ainda lhe queimava e aquele fogo abrasador se estendia por seu braço como se quisesse percorrer cada parte dela. Devagar, contendo o fôlego, olhou as cartas que lhe tinham repartido.

Não eram boas, mal podia alcançar uma mísera carta alta, mas não mostraria em seu rosto a decepção.

O crupier estendeu em frente a eles as primeiras três. «Seis de espadas, dois de copas e quatro de pau», pensou Valéria. De repente, uma sensação de prazer a invadiu. Podia ter uma oportunidade, embora não tinha nem a mais remota ideia de que cartas teria seu competidor. Olhou-o de esguelha tentando averiguar aquilo que tanto desejava. Tão somente tocava com sua mão direita as duas fichas que tinha guardado para seguir apostando. O estalo que estas faziam ao chocar sobre a mesa ressoou na cabeça de Valéria com força, causando-lhe uma inoportuna desconcentração. Por que lhe resultava tão difícil prestar atenção? Voltou à vista para suas cartas desejando que a próxima fosse adequada e que lhe permitisse resolver o antes possível aquele estado de descontrole que a perturbava. Eram as cartas ou a presença dele? Inspirou com força percebendo aquele perfume misturado com o aroma do tabaco que tinha fumado. Não lhe resultou desagradável apesar da pestilência da fumaça. «Se abandonasse esse detestável hábito —pensou —seria até sedutor».

—Aumento —disse Trevor depois de um leve silêncio. Colocou aquelas fichas que manuseava sobre as demais, justo em frente à do dealer.

Valéria notou como lhe percorria um calafrio dos pés à cabeça. Ali estavam as oitocentas libras de seu adversário. O que devia fazer? Fechou um instante os olhos para calcular que cartas poderia ter o senhor Reform. Os dados não eram suficientes para achar uma resolução correta. Ela tinha um seis de copas, que poderia utilizar com o seis de espadas para fazer um par, e um valete de paus.

—Senhor? —Perguntou-lhe Gilligan ao ver que permanecia ausente.

«Tudo ou nada», meditou ela.

—Aposto —respondeu enfim, retirando de seu lado àquelas duas fichas de duzentas libras. «Pai, mãe, ajudem-me», rezou.

O crupier aceitou a jogada e, depois de desprezar a primeira carta que havia no baralho, colocou a seguinte sobre a mesa.

«Meu Deus!», gritou a voz na cabeça de Valéria.

—Continuamos? —Demandou Gilligan ao observar a felicidade no rosto do senhor Hernández.

—Por minha parte sim —comentou-a com firmeza.

—Senhor Reform?

Trevor tentava aparentar tranquilidade. Essa era à base de um bom jogador, não mostrar aos outros o que escondia entre as mãos, mas o rosto se ruborizou de maneira involuntária. O ás de espadas e o três de paus tinham sido suas primeiras cartas e, embora rezasse para que a sorte estivesse de seu lado lhe outorgando a possibilidade de tê-la no clube durante mais tempo, não a teve.

—Sim —murmurou irado. Virtualmente atirou as cartas sobre a tapeçaria, amaldiçoando entredentes.

—Dois pares! —Gritou Valéria entusiasmada.

—O senhor Hernández ganha à partida —declarou o crupier sem apartar a vista do homem que lhe pagava religiosamente.

—Parabéns —comentou Reform levantando do assento.

—Obrigado —respondeu Valéria com um sorriso grandioso.

—Tal como lhe prometi, dar-lhe-ei seu ganho. Se fizer a gentileza de me seguir —indicou Trevor enquanto abotoava sua jaqueta.

—Segui-lo? —Disse ela abrindo os olhos como pratos.

—Acredita que tenho o dinheiro nos bolsos? —Demandou arqueando as sobrancelhas escuras. —Acima, em meu escritório, poderei saldar minha dívida. Além disso, vir-lhe-á bem certa intimidade. Não quererá ser atacado por algum ladrão que se oculte no local? Porque, embora invista uma incrível fortuna para manter protegido meu clube, muito me temo que mais de um cavalheiro que ronda os salões são estelionatários disfarçados —apontou mordaz.

Valéria tragou saliva, esticou as mãos em volta das oito fichas que devia recolher para efetuar aquele pagamento e apartou o olhar de Trevor para dirigi-lo para elas. Em sua mão tinha o sonho que tanto tinha desejado, e saldar enfim a promessa que fez à sua mãe. Só ficava um passo, subir ao escritório daquele homem e fazer o intercâmbio. Entretanto, aquela intuição que a tinha assaltado desde que Reform rondava pelos salões, intensificou-se. Seria pelo sarcasmo que tinha empregado em suas palavras? «Estelionatários disfarçados...». Saberia a verdade? Ou talvez tudo fosse produto de sua imaginação? O que ocorreria acima? Haveria alguém mais naquele lugar?

—Não quer seu ganho, senhor Hernández? —Perseverou Trevor dando a volta.

—Prometeu-me —grunhiu Valéria em voz baixa.

—E não faltarei à minha promessa. Mas se o quiser, tem que aceitar uma condição: que me acompanhe ao piso de cima —acrescentou sem alterar-se. —Tem medo, senhor Hernández? Acaso esconde algo que eu não deveria descobrir?

—Instigou-a.

—Não, é claro que não —declarou veementemente.

—Então, siga-me. Quanto antes saldemos esta dívida, antes poderá partir, porque se não recordar mal, tinha pressa —disse girando-se para a porta.

Valéria observou aquela figura alta e corpulenta sair da sala. O medo, aquele do qual o senhor Reform tinha feito referência, tinha-a paralisado. Não podia dar um só passo, nem respirar com normalidade. Apertou as fichas em sua mão enquanto recordava Kristel e os meninos. Eles a esperavam no lar, assim como esperavam que ela cumprisse os sonhos dos quais tanto falava. A encruzilhada era cada vez maior: subir e obter o dinheiro ou sair fugindo daquele lugar dando a entender que tinha enganado ao próprio dono do clube. Não, ela não o tinha enganado no jogo é sobre o que escondia sob as roupas, não devia pensar nisso. Era um homem, o senhor Hernández, e como tal precisava manter a atitude de um cavalheiro respeitável e honrado.

Colocou as fichas no bolso esquerdo, inspirou e avançou para aquela grandiosa figura que entrou entre a escuridão do saguão.


III

 


Subiu as escadas situadas na parte direita do hall, justo atrás dos grandes pilares de alabastro que adornavam a porta principal. Foi contando enquanto ia subindo. Vinte no total. Vinte longos e angustiantes degraus de madeira escura que a conduziriam até o escritório do homem que a ajudaria a cumprir a promessa que fez aos seus irmãos. Quando chegou ao patamar não pôde evitar olhar para baixo e, tal como já tinha imaginado alguma vez, contemplou a imensidão do lugar. No centro, o comprido e largo saguão dava as boas-vindas àquele que entrava nas salas de jogo. Quantos cavalheiros podiam rondar pela região? Oitenta, cem? Suas cabeças, bem escovadas, moviam-se igual a uma centena de formigas atarefadas.

Valéria apartou o olhar deles e o cravou no final do corredor. Ali se encontrava o salão de descanso. Nunca chegou até aquele lugar, mas sabia o que encontraria na última habitação. Conforme escutou, os cavalheiros iam àquele lugar para relaxar-se enquanto liam, conversavam, bebiam em frente ao calor de uma grandiosa lareira ou saboreavam os deliciosos jantares que o cozinheiro preparava a cada noite. Supôs que era o espaço idôneo para falar de negócios, de política ou talvez de se esconder do mundo que lhes rodeava. Voltou o olhar para a porta pela qual devia entrar. Uma luz alaranjada emergia dela. Valéria conteve o ar quando vislumbrou o movimento das chamas sobre a brilhante e lisa superfície. «Adiante», animou-se. Respirou profundamente e se colocou em frente à entrada para contemplar o que havia no interior.

As hipóteses sobre o que escondia o senhor Reform em seu escritório eram inumeráveis. Até diziam que tinha chamado um ferreiro para que forjasse uma jaula com o tamanho suficiente para colocar os que se atreviam a lhe roubar. Mas essa conjetura não era certa. O interior do escritório podia igualar-se a qualquer outro, salvo pelas dimensões deste e o enorme sofá colocado à sua esquerda. Permaneceu imóvel durante uns instantes nos quais ele não se dignou a levantar os olhos dos papéis que lia, e foi estudando cada rincão da habitação com meticulosidade. Além daquele grande sofá, onde imaginou que dormiria de vez em quando, havia uma mesa que podia alcançar uma longitude de oitenta polegadas. Entretanto, não era tamanho suficiente para albergar todos os papéis que havia sobre ela. Valéria podia jurar que não ficava nem um diminuto espaço sem ocupar.

Quando centrou a atenção nele abriu os olhos como pratos. Por mais ilógico que lhe resultasse, o senhor Reform se tirara a jaqueta do traje, ficando com aquele colete escuro e a camisa perolada da qual, para seu pesar, tinha desabotoado vários botões mostrando certo pelo de cor negra. Como podia comportar-se com tanto descaramento? O correto era continuar vestido de maneira adequada quando se esperava uma visita, mas pelo que tinha descoberto, aquele homem não tinha nenhum pingo de recato nem entendia de protocolos sociais.

Em silêncio, observou a ampla poltrona na qual estava sentado. Escura, sóbria e brilhante. Seria de pele autêntica? Provavelmente... duas cadeiras, com um respaldo curvilíneo, posicionavam-se em frente a ele. É óbvio, para não desafinar com a tonalidade ao seu redor, a cor também era escura; de onde se encontrava não pôde distinguir se eram negras ou marrons. Baixou o olhar para o chão que ia pisar. Da entrada se estendia um longo e estreito tapete com um laborioso desenho de guerreiros turcos elevados sobre seus cavalos. Valéria concluiu que, apesar de perceber que tudo o que ali se guardava podia custar uma fortuna, o senhor Reform tentava apaziguar a ostentação que manifestava no piso de baixo com um cenário singelo. Se isso era o que desejava expor, tinha-o obtido porque lhe resultou uma habitação bastante simples e, devido ao calor reconfortante da lareira, até agradável.

—Pretende ficar aí parado durante o resto da noite? Tenho muito trabalho a fazer e você tinha pressa em partir —apontou Trevor após observar como contemplava ao seu redor com bastante expectativa.

O que ela pensaria que encontraria? Um dragão convexo junto ao fogo? Ou talvez aquela jaula de ferro da qual todo mundo falava? Um pequeno sorriso curvou seus lábios, mas este desapareceu ao recordar que devia cumprir sua promessa o antes possível.

—Só admirava o que outros não alcançaram a ver —respondeu Valéria com aquele tom de voz que começava a lhe danificar a garganta.

—Pois se já se sente satisfeito, pode acomodar-se em uma dessas cadeiras —indicou pegando a garrafa de cristal esculpido que tinha à sua esquerda e enchendo um dos copos até a borda.

—Necessita que eu me sente? Não pode levantar-se e me dar o dinheiro aqui mesmo? Talvez meus imundos sapatos manchem este bonito e caro tapete —comentou a modo de evasiva.

—Não me faça perder mais tempo... —resmungou. —Entre de uma vez e feche essa maldita porta —continuou com tom irado. —Não desejo que ninguém mais seja testemunha desta insólita humilhação.

—Humilhação? —Soltou atônita.

—Você não se sentiria humilhado se, em sua própria mesa de jogo, alguém lhe depenasse mil e seiscentas libras?

—Ganhei-as honestamente... —defendeu-se.

—Eu não disse o contrário, senhor Hernández. Só lhe confesso que, para mim, seu triunfo me é uma grande desonra.

—Por quê? —Perguntou sem mover-se.

—Por quê? —Repetiu reclinando-se no assento para cruzar os braços. —Se por acaso não sabe, levo o jogo em minhas veias. Antes de caminhar já era capaz de jogar e, até esta noite, ninguém tinha sido tão ousado para ganhar e, nem muito menos, tanto dinheiro —explicou sem poder apartar o olhar daquela figura atemorizada.

Pensaria que, uma vez fechada à porta a descobriria? Não, o que desejava de verdade era seu afastamento de seu clube, que não voltasse nunca mais e que a reputação de seu local continuasse intacta. Entretanto, um estranho sentimento apareceu sem que ele pretendesse. Nostalgia... Ainda não partira e já tinha saudades das noites nas quais abandonava seu escritório para indagar sobre o que ela fazia.

«Busque outro entretenimento —disse-se. —Seguramente o achará com rapidez e aparta-a de uma vez de sua cabeça. Se por acaso a memória te falha, rememora o que te disse o inspetor antes de partir».

Trevor voltou a ver a cena que ambos tinham mantido nessa tarde. Depois de zangar-se por havê-la investigado, por ter indagado sobre ela, disse-lhe algo assim como que devia manter seu coração protegido. Mas era absurdo que O´Brian lhe oferecesse um conselho semelhante. Ele não tinha coração e menos ainda para uma mulher que lhe tinha feito perder uma boa soma de dinheiro cada vez que aparecia, sem contar a arrecadada essa noite. Nem louco voltaria a pensar naquela mentirosa, naquela trapaceira que o tinha humilhado em frente a um de seus empregados!

—Possivelmente não tenha jogado com um digno competidor até agora, além disso, tenho que lhe recordar que foi você quem insistiu em apostar. Quão único deve fazer é perder com dignidade e ser coerente com seus atos —explicou enquanto duvidava se devia lhe obedecer ou não. Terminou por deixar a porta entreaberta, se por acaso tivesse que sair dali com rapidez. —Na próxima vez, modere seus desejos —adicionou com firmeza.

—Desejos... —murmurou em voz alta. —Meus desejos, cavalheiro, são idênticos aos de qualquer homem: beber, fumar, viver sem preocupações e deitar todas as noites com várias mulheres.

—Isso é o que aspira? —Perguntou sentindo como sua exasperação aumentava. —Nesse momento é o seu único objetivo na vida?

—Acaso há algo mais? —Retrucou entreabrindo os olhos.

—É óbvio, mas não vim até aqui para lhe explicar que propósitos deveria ter em conta, senhor Reform. Só quero que me pague à dívida que contraiu ali abaixo —disse de maneira inapelável.

Trevor a observou pisar no tapete como se em vez de ter um tato suave, cravasse-lhe as solas dos sapatos como espetos. Um olhar zangado, que observou mais de uma vez quando resolvia a relação que mantinha com alguma de suas amantes, fixava-se nele como se quisesse atravessá-lo. Estava zangada, mas não entendia o motivo. Porque alargava o tempo para lhe pagar? Por que se havia sentido incômoda ao lhe explicar quais eram seus objetivos na vida? Acaso devia lhe falar sobre a esperança de achar uma mulher com quem casar-se, ter filhos e abandonar o clube? É claro esse não era seu caso, assim não lhe mentiria. Ele amava a vida que tinha e não queria nem ouvir falar sobre casamentos e descendentes. Cada vez que pensava nisso saía-lhe urticária. «Recorde que não é um homem, que é uma mulher e, como tal, possui uma ideia romântica da vida», pensou. Seria esse o motivo de sua raiva? Que ambos aspirassem futuros diferentes?

—Não vou sentar-me —declarou colocando-se atrás das cadeiras. —Quero que me pague —reiterou.

—Está bem... —começou a dizer enquanto se incorporava para abrir uma gaveta situada à sua esquerda. —Posso ao menos saber o que fará com semelhante fortuna? Pesar-me-ia descobrir que por minha culpa um moço com um futuro prometedor se converte em um homem desgraçado.

—Homem desgraçado? —Repetiu antes de soltar uma grandiosa gargalhada. —Não se preocupe, prometo-lhe que não me converterei em um homem desgraçado —apontou sarcástica.

—Então... o que fará? —Perseverou pegando um maço de notas.

Pelo laço verde que o envolvia, soube que eram mil. Só lhe faltava contar os seiscentos restantes e saldaria aquela maldita dívida. Mas não havia mais no fundo daquela gaveta. Berwin ainda não tinha passado pelas mesas para recolher os lucros do clube. Durante uns segundos ficou com o olhar cravado nessa parte da mesa. O que devia fazer? Pegar o dinheiro do outro caixa? Como se comportariam seus empregados ao não receber essa noite o salário acordado porque o tinha perdido em uma partida contra uma mulher? Talvez, quando lhes contasse o ocorrido, ao mostrar aquela humilhação em seu rosto, até o perdoariam...

—Minha intenção, se tanto lhe interessa, é abandonar Londres. Quero comprar uma pequena fazenda onde poderei lavrar a terra e criar animais —respondeu com emoção.

—Quer converter-se em um pestilento fazendeiro? —Assinalou levantando a cabeça com tanta rapidez que se provocou um inesperado enjoo.

—Não levarei a mal esse inapropriado comentário, mas sim. Serei um feliz fazendeiro pestilento —retrucou.

«Essa é sua ideia romântica da vida, Valéria Giesler? Ser uma fazendeira? Cobrir seu corpo de sedimentos de animais? Decepcionou-me, pequena. Sim, que o fez...», pensou enquanto voltava a olhar aquele maço que segurava em sua mão esquerda.

—Quando? —Demandou após deliberar em silêncio.

—Quando, o que? —Disse Valéria desconcertada.

—Quando pretende partir, senhor Hernández —grunhiu.

—Antes o possível —manifestou confusa.

—Para onde? —Continuou interrogando-a ao mesmo tempo em que soltava o dinheiro na gaveta e a fechava com força.

O que lhe acontecia? Por que não lhe dava o dinheiro e gritava ao Berwin que lhe trouxesse mais? Trevor observou como sua mão, pega ainda ao puxador da gaveta, esticava-se de tal maneira que as veias de seu braço se marcavam na camisa. Por que não queria lhe dar o dinheiro para que partisse? Não era a melhor opção para proteger seu clube? Que diabos estava pensando que nem seu cérebro era capaz de entender?

—Ainda não decidi —escutou-a dizer como se estivesse a duzentos passos dele.

—Amanhã, depois, a semana que vem? —Disse sem respirar e sem apartar o olhar daquela parte de sua mesa.

«O que te acontece, Trevor? —Perguntou-se enquanto esperava a resposta. —Por que não pega de uma maldita vez o dinheiro e o estampa na cara? Tem remorsos? Ou é que... não esperava que ela decidisse afastar-se de Londres? Qual era seu plano? Retê-la ou afastá-la?»

—Senhor Reform, acredito que está fazendo muitas perguntas. Quão único deve saber é que não voltarei para seu clube nunca mais, se é isso o que tanto lhe preocupa —manifestou com firmeza ao mesmo tempo em que dava uns passos para trás.

«Nunca mais...», escutou em sua mente aquelas duas palavras como se fosse o eco de uma voz no alto da montanha. Era uma sorte que ela decidisse abandonar Londres... ou não?

—Há muitas fazendas pelos arredores desta cidade, não viu alguma? —Exigiu saber com uma mescla de ira e atordoamento.

Devagar, como se não estivesse acostumado ao peso de seu corpo, levantou-se da cadeira, colocou as grandes mãos sobre os papéis que havia sobre a mesa e cravou aquele olhar castanho nela.

—Viver rodeada de sujeira, fumaça, maldade, podridão e gente sem coração? —Replicou ofuscada. —Não. Não quero isso. Começaremos uma nova vida muito longe daqui —confessou.

«Começaremos...», referia-se aos seus irmãos? Ou talvez já tivesse um pretendente que a impulsionava a alcançar aqueles sonhos? Havia um homem que a abraçaria em suas noites enquanto inspirava aquele perfume à canela? Existia já uma pessoa que pudesse contemplar o brilho e a suavidade daquele cabelo negro?

—E agora, se não lhe importar, cumpra sua promessa —acrescentou irada esticando a mão direita.

Estava sobressaltada, mais do que devia mostrar, mas a atitude daquele homem não lhe estava dando bom pressentimento. O que lhe acontecia? Por que não tinha tirado o dinheiro? Por que suas mãos enrugavam os papéis nos quais se apoiavam? Valéria tragou saliva e, com lentidão, cravou seus olhos nos dele. As chamas do fogo se refletiam naquelas pupilas e o calor deste tinha avermelhado aquelas duras bochechas. O que pretendia fazer?

—Pois vai ter que pospor esse magnífico sonho, senhor Hernández —soltou sem meditar nem um só instante as palavras que saíram de sua boca.

—Como diz? —Perguntou abrindo os olhos como pratos.

—Digo-lhe que não tenho a quantia que ganhou e que lhe pagarei assim que a obtenha —esclareceu sem poder diminuir aquele estado de descontrole que percorria cada centímetro de sua pele. Fazendeira? Encher aquelas suaves e delicadas mãos de cruéis calos? Abandonar aquele perfume à canela para mesclá-lo com esterco de animal? Não, veementemente, não!

—Mas... mas... —titubeou. —Pensei que me havia dito que era um homem de honra —clamou desesperada.

—E sou. Entretanto, fui algo pretensioso no jogo e não calculei bem o dinheiro que tinha guardado —declarou com sátira.

—Pois me dê o que tenha. Quanto é? Quinhentos, seiscentos? —Perseverou ofuscada. —Não lhe exigirei mais se me der isso agora mesmo.

—Você é um homem muito bondoso, senhor Hernández —começou a dizer separando-se da mesa. —E sua alternativa é bastante tentadora...

—Então...? Aceita? —Insistiu jogando vário passo para trás ao compreender que pretendia se aproximar dela.

—Não devo aceitar tal opção. Como cavalheiro, tenho que cumprir minha palavra... —disse como se seu orgulho estivesse ferido ante a alternativa que lhe oferecia. —Quero saldar minha dívida em sua totalidade, embora tenha que alongar esse desejo umas semanas mais. Parecem-lhe bem sete, seis? —Perguntou arqueando as escuras sobrancelhas.

—Como diz? —Seu nível de estupefação era insuperável. Era irreal. O que estava passando era um pesadelo.

Aquele homem, de quem se dizia que podia descansar sobre um colchão de notas de cem libras estava lhe dizendo que não tinha nem um só xelim?

—Digo-lhe, senhor Hernández, —começou a falar caminhando devagar para ela, pisando naquele tapete caro que adquirira em um leilão —que como nossa jogada foi completamente respeitável, porque nenhum dos dois enganou na partida, —enfatizou apertando os olhos, colocando suas palmas nas costas e olhando-a para observar cada expressão que realizava —porque somos cavalheiros, tem que me permitir um tempo considerável para reunir a quantia que perdi.

—Não entendo... —murmurou Valéria sem poder respirar ante a cercania daquele homem, sem poder piscar para não se deixar surpreender ante qualquer movimento inoportuno que pudesse delatá-la.

—Necessito de um pouco de tempo... —soprou Trevor ao encurralá-la contra aquela porta que ainda permanecia entreaberta. —Conforme parece, meus empregados ainda não recolheram os lucros... —o ar que emitia ao falar roçava com suavidade o rosto dela. Reform a contemplou com tanta atenção que contou os diminutos lunares do nariz e admirou o comprimento daquelas pestanas tão negras como o carvão.

—Para isso só tenho que esperar lá embaixo... —sussurrou sem voz.

Aquela presença, aquele homem em frente a ela, a menos de um palmo de distância, não lhe estava fazendo nenhum bem. Seus olhos, aqueles que tinham tentado manter fixos em um ponto do teto, observaram devagar, deleitando-se ao seu passo, com cada parte daquele rosto que tinha tão perto. Sua barba, a forma de sua boca, aquele nariz aquilino, a rudeza das maçãs do rosto e os olhos... brilhavam ou era o reflexo do fogo? Valéria notou uma pressão tão forte no peito que esteve a ponto de levar as mãos para ele e inclinar-se para diante. Por que aquele homem lhe impressionava tanto? Por que não era capaz de respirar como faria um cavalheiro? Porque, se não recordava mal, aos olhos daquele titã que a observava como se quisesse lhe furar o cérebro, era um homem.

—Não quererá lhes deixar sem seus honorários? —Perguntou colocando, inapropriadamente, sua perna esquerda entre as duas dela. A mão, aquela que tinha colocado sobre o marco da porta, começava a escorregar-se ante o suor. Em efeito, estava suando e isso se devia ao seu aumento de temperatura. Aquela mulher, a que ainda não tinha visto como tal, causava um efeito tão estranho nele que notava como sua pele desprendia fogo. —Há pais... filhos que devem levar o salário às mães viúvas e que, por suas idades avançadas, não podem trabalhar... —mal se deu conta de que o tinha feito, só observou a cara de assombro que pôs Valéria quando a barba tocou brandamente sua testa.

—E você não pôde pensar nisso antes de me oferecer a partida? —Tentou fazê-lo zangar-se para que se separasse dela e que terminasse de uma vez os vaivéns que sentia em sua cabeça.

—Como já lhe disse... nunca perdi contra outro homem... —murmurou com uma voz cheia de masculinidade e sedução. Como podia enganá-lo dessa forma? De verdade começava a enfeitiçar-se por uma mulher que se ocultava sob uma aparência falsa? Ou a atração que seu corpo expunha livremente era só um engano para que ela saísse correndo? Não, o que havia sob sua calça, o que se freava no cinturão, não era uma aparência, e sim toda uma realidade. Essa mulher o excitava de tal forma que lhe resultava impossível controlar-se.

—Mas não se pode estar sempre tão seguro de si mesmo, senhor Reform —disse Valéria agachando-se para sair daquela prisão de músculo e virilidade em que ficara presa. —E deve supor que há uma primeira vez para tudo —corroborou adquirindo de novo o sentido comum.

—Então, dar-me-á umas semanas mais? —Perguntou Reform pregando as costas àquele marco e cruzando os pés e as mãos sem apartar o olhar dela.

—Não é justo que jogue com...

—Senhor Reform, aqui tenho... —interrompeu-o Berwin que, ao ver a porta entreaberta, pensou que estaria sozinho. —Desculpem, não imaginei que estavam reunidos...

—É você quem tem que recolher os lucros das mesas? —Soltou Valéria com certa esperança de resolver de uma vez o que estava acontecendo. Se ele tinha apostado o salário de seus empregados, era ele quem devia lhe dar as pertinentes desculpas.

—Eu... sim... —gaguejou o empregado ao distinguir, de onde se encontrava, a veia que lhe aparecia no pescoço de seu chefe quando estava realmente zangado.

—Berwin acaba de vir do mercado e trouxe umas trufas para o Chevalier, nosso querido chef francês —comentou Trevor olhando ao secretário como se quisesse fulmina-lo com o olhar.

—A estas horas? —Valéria entreabriu os olhos ao perguntar; —Se não estou equivocado, o mercado se fecha antes das cinco.

—É o único momento no qual o mercado pode me atender no mercado —comentou Berwin escondendo o saco no qual trazia o dinheiro atrás das costas. —Nosso chef é muito exigente com esse... —duvidou como denominar aquilo que tinha renomado o senhor Trevor —com esse ingrediente. Ninguém pode saber que truque tem para que seus pratos sejam tão famosos —disse antes de suspirar.

—Como vê, senhor Hernández, não lhe menti —disse triunfante Trevor. —Hoje não tenho a quantia que necessito para saldar essa dívida.

—De quanto estamos falando? —Interveio Berwin com rapidez.

—De mil e seiscentas libras —respondeu Trevor apertando os dentes.

—Que nada! —Exclamou Berwin ao notar como lhe sangrava o coração ao ser transpassado pelos olhos escuros de Reform. —Talvez dentro de...

—Umas semanas —adicionou Trevor caminhando por volta de seu assento. —Já informei a este cavalheiro que hoje é dia de pagamentos e que não posso levar a cabo esse pequeno reembolso.

—Não, não, não... —comentou Berwin movendo a cabeça para reiterar o que negava.

—Dar-lhe-ei quatro semanas —soltou Valéria cansada do lamentável espetáculo.

Não era tola, embora aquele homem acreditasse que todo mundo o era salvo ele. Sabia exatamente o que levava seu empregado era a arrecadação, mas não queria comprometer o pobre homem que o olhava com tanto medo, que os olhos atravessavam o cristal de seus óculos redondos.

—O que lhe parece se vier ao clube a cada sexta-feira? —Ofereceu-lhe Trevor sentando-se de repente sobre a poltrona.

—Durante quanto tempo? —Exigiu saber ela cruzando-se os braços sobre o peito, mostrando aquele aborrecimento que a tinha alterado.

—No máximo, seis —respondeu pegando os papéis que havia sobre a mesa, tentando dar por sentada sua decisão.

—Quatro —regateou Valéria.

—Seis —perseverou Trevor.

—Cinco? —Intrometeu-se Berwin que não saía de seu assombro. Desde quando seu chefe não pagava uma dívida de maneira imediata? Desde quando se comportava dessa maneira tão atípica? E... quem era esse moço? Como tinha adquirido essa dívida? Seria algum filho ilegítimo? Não seria a primeira vez que apareciam pelas porta mulheres com filhos nos braços alegando que eram dele...

—É muito tempo... —murmurou ela com resignação.

—Mais vale isso que seis —sussurrou o secretário como se tentasse manter um complô.

—Está bem! —Exclamou estendendo a mão para o senhor Reform. —Que sejam cinco!

Trevor dirigiu o olhar para a mulher e ficou encantado ao observá-la tão segura de si mesma. Com aparente desinteresse levantou-se do assento e esticou a mão que aferraria de novo à dela. Aqueles dedos suaves, alongados e com o tamanho perfeito para uma mulher delicada...

—Se pretende me enganar, —comentou Valéria mantendo aqueles olhos de cor azul sobre os escuros —porei fogo a este antro.

—Não seria capaz... —murmurou Trevor com certo assombro. Delicada? Suave? Como tinha podido pensar isso de uma mulher que tinha sangue espanhol? Seguramente poria fogo em seu clube com ele dentro!

—Ponha-me à prova... —desafiou-o.

—Berwin, acompanhe o senhor Hernández à saída —disse tomando assento. —Não queremos que sofra nenhum tipo de acidente descendo as escadas, não é? —Acrescentou mordaz.

—Se fizer a gentileza... —indicou o empregado à Valéria.

—Obrigado, Berwin, você é um bom homem —indicou com um tom tão suave e quente que, por um segundo, só por um segundo, Trevor sentiu ciúmes ante aquele trato tão afetuoso.

—Berwin! —Gritou Reform quando este fechou a porta.

—Sim, senhor? —Perguntou abrindo-a de novo.

—Antes de descer, deixe as trufas sobre minha mesa. Não quererá que Chevalier ofereça um grotesco espetáculo aos nossos clientes, não é?

—É claro... —expressou depois de confirmar que o cavalheiro permaneceria fora do escritório e que poderia lhe dar a arrecadação sem problemas.

—Quanto? —Quis saber Trevor sem apartar o olhar da porta.

—Duas centenas e cinquenta por agora... —revelou em voz baixa.

—Antes de partir pegue seu endereço. Diga-lhe que o necessita para confirmar o pagamento que lhe faremos semanalmente.

—E se não me der? —Disse abrindo de novo os olhos como pratos.

—O estranho seria se lhe desse —afirmou ocupando-se de novo daqueles papéis que devia repassar. —Por certo —chamou de novo a atenção de Berwin quando este estava a ponto de tocar o trinco da porta.

—Sim? —Disse arqueando as sobrancelhas e expressando certo cansaço ante tantas idas e vindas.

—Quero que algum desses folgazões vá à Scotland Yard e fale com um tal Borshon. Necessito que apareça em meu escritório antes do fechamento do clube —informou.

—Deseja que lhe explique algo sobre o motivo pelo qual requer sua presença com essa urgência? Algumas pessoas têm planos... —assinalou com sarcasmo.

—Diga-lhe somente que o senhor Reform deseja lhe fazer uma proposição —declarou antes de girar-se sobre a poltrona para contemplar a rua. Não queria perder nem um só instante de como atuaria Valéria ao sair do local.

—Está bem, explicarei que deseja falar de trabalho, para que não vá entender por proposição algo que não deva —esclareceu Berwin antes de fechar a porta e acompanhar Valéria até a saída.

Transcorridos uns minutos, Trevor espionou o corpo dela. Andava reta, serena, como faria qualquer cavalheiro. Antes de virar a esquina olhou para sua janela e ele se ocultou sob a cortina. Então, justo quando acreditou que ninguém a olhava começou a espernear no chão e a golpear com seus pequenos punhos o ar.

«É uma tigresa, pequena. Só espero que mantenha essa atitude felina em minha cama», meditou antes de pegar a garrafa, encher um copo até a borda e fumar o charuto que não lhe tinha permitido terminar.


IV

 


Valéria chegou ao seu lar em um estado de irascibilidade que nem o ar fresco da rua a apaziguou. Cada vez que pensava no ocorrido, as bochechas lhe ardiam e apertava os punhos. Como era possível que brincasse dessa forma com ela? Como podia comportar-se com tanto descaramento? E para piorar mais a situação, tratou-a por tola. Trufas? Pelo amor de Deus! Até um menino teria deduzido o que guardava o pobre Berwin na bolsa...

Zangada até ao ponto de não cuidar de sua maneira de pisar no chão para não despertar ninguém, tirou-se o casaco e o lançou sobre a banqueta que havia em frente à penteadeira. Continuou com a peruca, o traje, os sapatos, camisa, meias... tudo foi retirado de seu corpo como se lhe queimasse. Possivelmente aquela vontade de despir-se aumentou quando descobriu que em cada roupa ainda perdurava seu aroma... sim, muito ao seu pesar, permanecer no escritório durante tanto tempo ocasionou que o perfume do senhor Reform e aquela pestilência a tabaco impregnassem sua roupa.

Duas libras? O desgraçado gastava duas libras em cada charuto? Ela podia utilizar essa quantia para comer durante um mês e lhe sobrava para pagar o aluguel do chiqueiro no qual viviam! E ele gastava para colocar fumaça nos pulmões? Fumaça? Zangada ainda mais, desesperada por não ter atuado como devia fazer o homem que fingia ser, olhou-se no espelho e se assustou ao ver a imagem que se refletia. O cabelo escuro estendido para o chão, o blusão que devido ao passar dos anos já não era branco e sim pardo e aquele olhar zangado lhe proporcionavam um aspecto muito aterrorizante. Seguramente que, se se apresentasse ante ela um fantasma para assustá-la, este sairia fugindo antes de obter seu encargo...

Depois de recolher o cabelo, dirigiu-se para a cama e se sentou sobre o colchão. Olhou de esguelha aos seus irmãos e confirmou que seguiam dormindo placidamente. Depois observou Kristel, quem costumava dormir encolhida, fazendo com que os joelhos tocassem seu peito durante a noite. Valéria se levou as mãos para o rosto e o esfregou angustiada. Tinha estado a ponto de obtê-lo. Havia quase tocado com a ponta dos dedos aquele sonho que prometeu, mas devido a uma inesperada mudança de opinião, esse desejo parecia alargar-se de maneira infinita.

Estendeu-se sobre a cama, cruzou as mãos por debaixo da cabeça e fixou seus olhos no teto. Por que ele atrasou o pagamento? Em que instante mudou de opinião? Recolhendo cada palavra, cada movimento que ambos realizaram, descobriu que o comportamento de Reform atravessou quando lhe falou de comprar a fazenda longe de Londres. O que lhe importava o que fizesse ou deixasse de fazer? Por que tinha que lhe dar tantas explicações? Nem se fosse seu pai! Valéria respirou profundamente, tentando suavizar aquele caráter azedo que se apoderou dela. Tinha que idear um novo plano para adquirir o dinheiro que necessitava o antes possível e não podia ir ao clube para seguir jogando, posto que assim que pusesse um pé no local os olhos escuros de Reform atravessariam sua nuca. «É hora de utilizar o plano B —refletiu ao mesmo tempo em que mudava de posição para sua direita. —Se já não posso aparecer por ali, optarei por visitar o outro, embora os lucros sejam menores e os riscos de ser descoberta mais altos». E não errava.

O Clube de Cavalheiros Hondherton não era tranquilo, elegante e seguro como o de Reform, sempre havia escandalosas brigas, ninguém podia se sentar em uma poltrona que não estivesse furada pelo charuto despreocupado de algum cliente e, é claro, a segurança brilhava por sua ausência. O único seguro que havia era fugir rapidamente quando as brigas começavam. A última notícia que leu sobre esse clube no periódico foi que um dos empregados saiu ferido e permaneceu convalescente durante várias semanas. Também acrescentaram que o senhor Hondherton se encarregou de todas as necessidades deste, proporcionando-lhe assim uma imagem benevolente. Valia a pena arriscar-se tendo já a quantia que requeria? «Não a tem, —disse-se enquanto fechava os olhos —aquele presunçoso, bastardo e miserável a esconde em sua gaveta...», refletiu ofuscada.

O que poderia fazer? Submeter-se àquela imposição? Valia a pena arrastar-se como uma serpente para obter o que tinha ganhado limpamente? Valéria foi consciente de que não era o momento adequado para escolher a opção mais correta. Deveria descansar, abandonar aquele estado de ira que a fazia apertar os dentes e encolher todos os dedos que possuía. Depois de voltar a suspirar fundo e ficar a contar às ovelhas que compraria para a fazenda, conseguiu apaziguar-se e inundar-se no sonho reparador que necessitava...

—O que pretende fazer com este dinheiro? —Perguntou-lhe o senhor Reform pegando o maço de notas que guardava na gaveta.

—Comprar uma fazenda. Prometi aos meus irmãos que partiríamos de Londres para viver o sonho que têm desde meninos —respondeu-lhe estendendo as mãos para o chão, notando ao seu passo a suavidade do tecido da saia.

—Por quê? Por que quer me abandonar agora que me dei conta dos meus sentimentos? Não te importa me romper o coração? O que pretende, arrancar-me isso? —Depois de lhe perguntar sem mal respirar, levantou-se do assento e caminhou para ela a grandes pernadas.

—Não há nada entre nós... —murmurou dando vário passo para trás, procurando instintivamente a saída.

—Nada? —Repetiu levantando as sobrancelhas. —Está segura, Valéria? Porque eu não definiria como nada nossas noites juntos, nossos beijos, nossos encontros passionais nos quais te escutei gritar meu nome...

—Basta! —Gritou ela levantando a mão para fazê-lo calar imediatamente.

—Não sentiu como meu amor se engrandeceu cada vez que estivemos juntos? —Murmurou encurralando-a na parede.

—Não notou a suavidade com a qual minhas mãos lhe acariciam? —Expôs ao mesmo tempo em que lhe tocava lentamente o rosto. —Tampouco foi consciente do desejo que mostro cada vez que está perto? —Insistiu aproximando a boca de seu pescoço para beijar aquele ponto sensual onde o pelo se arrepiava com rapidez. —Diga-me, Valéria, não percebeu o muito que te quero?

Ela respirou entrecortada enquanto fechava os olhos e se deixava acariciar por aquelas grandes mãos. Estas percorreram devagar seus ombros, seu torso, seu abdômen e baixaram até alcançar a barra do vestido.

—Desejo-te tanto... —ronronou de novo. —Necessito-te tanto... que sou capaz de fazer qualquer coisa para que fique —afirmou aproximando sua boca da dela. —Diga-me, Valéria...

—O que...? —Murmurou ela deixando-se levar por aquela paixão que a tinha despertado de novo. Notando como seu sexo se umedecia preparando-se para o toque daquela mão poderosa.

—Viu o senhor Reform hoje? —Perguntou-lhe.

Valéria ficou atônita ante a pergunta. Não sabia como reagir. Cravou o olhar naquele varonil rosto e esperou que repetisse o que havia dito.

—Viu o senhor Reform hoje? —Reiterou, mas sua voz não era a dele e sim a de Kristel.

Abriu os olhos como pratos e observou onde se encontrava. Em seu lar, descansando em sua cama. Tudo aquilo tinha sido um sonho. Com rapidez olhou à Kristel, que se tinha dado a volta e a abraçava como todas as noites.

—Seguiu rondando pelas salas? —Demandou com os olhos ainda fechados.

—Não, não o fez —pôde dizer em meio ao seu desconcerto. —Descansa e não se preocupe mais. Por agora tudo está controlado —comentou voltando o olhar para a porta.

O que tinha sido aquilo? Um sonho ou um pesadelo? Com o coração pulsando desenfreado, com o pelo ainda arrepiado pelo que tinha vivido em sua mente, Valéria não conciliou o sonho até que decidiu não aparecer mais pelo clube daquele insolente e começar a rondar pelas salas de outro local, face ao que pudesse encontrar...

 


As portas do clube se fecharam e o tal Borshon não tinha ido ao seu chamado. Por que não estava ali presente lhe escutando com atenção? Ante o aborrecimento que sentiu ao não ser atendido com prontidão, esticou a mão e pegou a garrafa para servir um copo de licor, mas não caiu nenhuma só gota. Elevou-a o suficiente para confirmar que não estava quebrada e voltou a pousá-la. Tinha-a bebido inteira e sem inteirar-se. Como tinha estado tão avoado? Quais foram seus pensamentos para ter mais sede que um caminhante em meio ao deserto?

Reclinou-se no assento, cruzou os braços e fixou seus olhos na porta. «Ela...», refletiu. Sim, tinha sido Valéria a culpada de sua insaciável sede. Desde que permaneceu ao seu lado, desde que pôde inspirar aquele aroma de canela e sentir como sua respiração impactava em seu peito, não tinha diminuído sua ansiedade nem um só instante e, sem dizer, do aumento de temperatura que sofreu seu corpo ao tê-la daquela maneira. Ofuscado, irado e mais desconcertado por aquele inesperado desejo que por ter ingerido um muito caro uísque sem mal saboreá-lo, levantou-se, colocou as mãos na mesa para apoiar-se e gritou:

—Berwin! Berwin! Onde diabos se colocou?

—Aqui, senhor Reform! —Respondeu como se estivesse esperando que o chamasse atrás da porta.

—O que aconteceu com esse tal Borshon? Por que não o vejo? —Perguntou estendendo as mãos para diante como se tentasse tocar algo que devesse estar ali e não o fazia.

—O cavalheiro recebeu sua mensagem, mas não respondeu —informou o secretário sem mover-se da porta.

—Não respondeu? —Trovejou Reform mais exasperado por esse descaramento que por não haver se apresentado. —Não ficou claro que devia vir?

—Sim, senhor —comentou acenando com a cabeça para reiterar sua afirmação. —O mensageiro insistiu em que lhe deixou muito claro que você desejava lhe ver.

—E? —Perguntou enrugando os papéis que tinha sob suas mãos.

—E disse ao moço que viria quando o visse oportuno, não quando você queria —disse Borshon atrás do pobre empregado. —Pensa que todo mundo deve acatar suas ordens quando lhe agradar? Se por acaso não é consciente do que há fora deste clube, as pessoas têm vidas... —resmungou enquanto caminhava para o escritório.

—Posso me retirar, senhor Reform? —Solicitou Berwin agarrado o trinco da porta.

Pelo olhar de seu chefe e pela insolência daquele personagem que exibia mais periculosidade que galanteria, logo começaria a gritar e não era bom para seus anciões ouvidos escutar tanta imposição de masculinidade.

—Deixe a porta aberta —ordenou Borshon passando por cima da autoridade do senhor Reform. —Não quero que ninguém pense que entre este... homem e eu há certa amizade —alegou mastigando cada palavra com semelhante rudeza que parecia cuspir navalhas.

—Como desejar... —murmurou o secretário que, apesar de sua idade, desceu as escadas com a rapidez de um adolescente.

—O que é que quer? —Grunhiu o agente antes de caminhar sobre o tapete como se se limpasse as solas de seus sapatos. Colocou-se em frente à Trevor e o olhou de cima a baixo, logo sorriu. Não era tão imponente como lhe pareceu à primeira vista, possivelmente lhe deu essa impressão ao estar sentado, mas se seus cálculos não lhe falhavam, ambos tinham tamanhos similares.

—Quero lhe fazer uma oferta, ou melhor, dizendo, queria lhe fazer uma oferta —retificou Trevor concentrando os olhos e refletindo até que ponto estava disposto a empregar um homem que, conforme observava, jamais lhe daria o respeito que ele merecia.

—Se me tiver feito perder meu valioso tempo, diga-me que parte de seu corpo admira menos —ameaçou-o.

—Desafia-me em meu próprio lar? Sob meu teto? —Soltou Trevor com uma mescla de indignação e cólera.

—Quer que o repita ou eu escolho a parte que não vai utilizar pelo resto de sua vida? —Continuou com a intimidação.

—Meu corpo é muito valioso para perder algum membro —murmurou Reform apertando a mandíbula.

—Então? —Perguntou Borshon arqueando a sobrancelha loira esquerda.

—Queria lhe fazer uma proposta —comentou Reform sem diminuir a ira.

—Qual? —Perseverou o agente cruzando os braços e exibindo o volume de seus músculos.

—Necessito que vigie uma pessoa —começou a dizer enquanto tomava assento.

Não ficava alternativa que relaxar-se e assumir sua derrota. Se o inspetor o declarou como homem de confiança, aceitaria sem titubear. Preferia tragar seu orgulho a procurar entre as ruas de Londres outra pessoa que lhe fosse fiel. Além disso, não podia correr o risco de pôr um estranho atrás dos passos de Valéria.

—Quanto? —Perguntou sem mover-se. Parecia uma estátua de mármore, uma grandiosa e perigosa figura que, se decidisse mover-se, o mundo inteiro tremeria.

—Quinhentos —expôs Trevor sem piscar.

—Para que? —Continuou interrogando sem sequer mover o peito para respirar.

—Para vigiar uma pessoa —esclareceu. —Interessa-lhe?

—Interessa-me o dinheiro, a pessoa não me importa —respondeu com rudeza.

—Uma taça? —Perguntou-lhe Trevor para ir suavizando a tensão, para aplacar a testosterona que aflorava no ambiente.

—Do que? —Exigiu saber ao mesmo tempo em que movia a cadeira para sentar-se.

Era pequena. Aquele respaldo curvilíneo não albergava a largura de suas costas e o machucava em ambos os flancos, assim decidiu inclinar-se levemente para a mesa de seu próximo pagante. Porque não seria seu chefe. O único ao qual poderia denomina-lo assim era ao inspetor e, graças ao bate-papo que manteve com ele depois de espantar o mensageiro, não estava em frente àquele insolente com a bengala que desejava lhe incrustar no cu.

—Peça —animou Reform desenhando um grandioso sorriso que lhe proporcionava ter tudo aquilo que alguém desejava.

—Água —respondeu Borshon com firmeza.

—Água? —Repetiu Trevor assombrado.

—Não costumo beber quando estou trabalhando e muito menos quando tenho que fazer entendimentos. Preciso ter a mente limpa para achar possíveis enganos... —informou-lhe com suspeita.

—Está bem —soprou. —Berwin! —Gritou de novo olhando para a porta.

—Um momento, senhor! Estou subindo as escadas! —Respondeu o pobre homem ao escutar, do piso de baixo, como voltavam a necessitá-lo.

Quando o senhor Reform o liberou daquele chefe, acreditou que este seria considerado com sua idade, mas já começava a duvidar, se queria sentir em seu corpo as chicotadas que o outro lhe dava cada vez que se embebedava ou as caminhadas que Reform lhe obrigava a dar.

—Sim? —Perguntou respirando como se tivesse corrido uma maratona.

—Traga um copo de água fresca ao cavalheiro —disse-lhe voltando o olhar para ele.

—Prefere que lhe traga uma garrafa? Imagino que não se conformará com um só copo e não quero que você aguente a sede por minhas subidas e descidas —falou tomando ar para acalmar o exercício que não devia suportar um homem sexagenário.

—Parece-me bem —respondeu Borshon observando aquele pobre ancião fatigado.

Cravou seus olhos em Reform e o odiou ainda mais por tratar desse modo seu empregado. Não se lembrava da vida que manteve antes de converter-se no que era? Porque se era assim, alguém devia recordar-lhe.

—Conforme tenho entendido, seu inspetor lhe ordenou espiar uma mulher que vive em Brick Lane —começou a expor.

—Não falo dos meus trabalhos como agente —resmungou.

—E isso lhe honra —elogiou-o para que se relaxasse e a conversação se encaminhasse tal como desejava. —Mas o motivo pelo qual o chamei é porque essa mulher me interessa e preciso saber mais sobre ela.

—O que quer averiguar? —Soltou mal-humorado. —Porque se sua intenção é recolher a maior informação possível para acossá-la ou lhe fazer algum dano...

Borshon apertou os punhos convertendo-os em dois grossos e duros blocos de chumbo. Não lhe importaria perder a quantia que necessitava para seguir atendendo a sua mãe, mas jamais se passaria ao outro bando. Desde que tinha posto um pé na Scotland Yard jurou lealdade à justiça, a manter a paz e a destroçar qualquer pessoa que se opusesse a ela.

—Se me desculparem... —comentou Berwin mostrando uma garrafa cristalina. —A mais fresca que pude conseguir —adicionou enquanto a colocava sobre a mesa.

—Muitíssimo obrigado por sua atenção —agradeceu Borshon.

Outro que falava com ternura ao empregado? Mas... o que tinha aquele homem para que todo mundo o tratasse com tanta cordialidade? Seria a idade?

—E bem? —Perguntou o agente depois de dar um grandioso gole à garrafa e estalar a língua.

—Não vou acossá-la nem lhe machucar —expôs com rudeza Trevor. —Quero saber o que faz, aonde vai, quando, como, com quem e se...

—Não considera isso uma perseguição, senhor Reform? —Retrucou o agente franzindo o cenho.

—Essa mulher, senhor Borshon...

—Hill, sou senhor Hill —corrigiu-o.

—Essa mulher, senhor Hill, aparece em meu local vestida de homem, joga cartas e me faz perder uma grande soma de dinheiro —declarou furioso.

—Sei, meu inspetor me pôs a par da situação —disse com zombaria. —Tem o orgulho ferido e por isso quer averiguar tudo sobre ela? —Continuou divertido. —Tem que ser muito doloroso para um homem como você sentir-se encurralado por uma mulher...

—Não me sinto encurralado! —Vociferou.

—Não? Então por que não a deixa em paz? Por que não a denuncia e finaliza de uma vez por todas o problema? —Insistiu com suspeita.

—Porque não tenho vontade! Você quer me ajudar ou procuro outro cão sabujo? —Perguntou tão irado que o álcool que corria por suas veias se evaporara com rapidez.

—Direi o que vou fazer —respondeu levantando-se do assento e cravando seus olhos verdes na pessoa que ele denominava janota. —Vou negar-me à sua oferta porque, como disse, pode encontrar outro cão que lhe adore os pés enquanto lhe ponha sobre a mesa essa soma de dinheiro ou...

—Ou?

—Ou me diz o que é que busca dela e me pede perdão —manifestou sorridente.

—Pedir-lhe perdão? —Trovejou.

—Insultou-me e não tolero esse tipo de comportamento para com minha pessoa. Se você me chamou, se tanto me necessita, peça-me perdão e me explique o que deseja obter dessa mulher —declarou com firmeza.

Trevor o olhou de soslaio e meditou sobre o que devia fazer. Era um insolente, grosseiro e a pessoa mais inaudita que poderia encontrar no mundo, mas o necessitava. Necessitava daquele grande homem para que cuidasse dela posto que, se seu instinto não lhe enganava, Valéria não aceitaria sua oferta tão fácil.

—Peço-lhe desculpas... —murmurou tão baixinho que nem ele mesmo se escutou.

—Não teve o tom que desejava, mas me vale vindo de um homem como você —assinalou triunfante. —Agora só quero saber...

—Quero que a observe, que não a deixe sozinha nem um só instante —confessou. —Muito me temo que logo se meterá em algum problema e eu não posso fazer nada.

—Então não é perseguição, e sim seu amparo —deduziu Borshon com assombro.

—Em efeito, quero velar por ela e por seus irmãos —explicou voltando-se para ele. —Essa mulher tem o perigo escrito na testa e, embora saiba como atuar quando se encontra nele, resulta-lhe impossível evita-lo.

—Por que quer cuidar dela se até agora quão único fez foi lhe ocasionar dores de cabeça? —Instigou-lhe.

—Tenho uma dívida com... —ia dizer Valéria, mas esse tom familiar o deixaria ao descoberto —essa mulher e eu não gostaria que lhe acontecesse algo antes de resolvê-la. Posso ser um miserável, mas por cima disso sou um homem de honra —sentenciou com absolutismo.

—Sendo assim —estendeu a mão para Reform para selar o pacto —ponha sobre minha mesa quinhentas libras e amanhã ao amanhecer estarei em frente à porta dessa mulher.

—Explicar-me-á tudo o que fizer? —Solicitou aceitando a mão que, para seu bem-estar masculino, era semelhante à sua.

—Tudo —manifestou enquanto fixava os olhos no lugar onde devia lhe colocar o dinheiro.

E assim fez, Reform tirou as quinhentas libras, colocou-as sobre a mesa e lhe disse:

—Isto é o que lhe pagarei por semana.

—Por semana? —Perguntou Hill abrindo seus grandes olhos como pratos.

—Como mínimo serão cinco, embora espere que antes desse tempo tenha averiguado o motivo pelo qual não quero que parta de Londres —confessou sem querer.

—Quer que lhe revele o motivo pelo qual atua dessa forma? —Disse Borshon divertido.

—Agradeço-lhe o oferecimento, mas prefiro averiguar sozinho. Não se esqueça de me informar o antes possível —alegou dando por terminada a conversação.

—Farei —indicou antes de sair do escritório e soltar uma sonora gargalhada.

No fundo era mais parvo do que parecia. E graças a isso ia conseguir uma grande fortuna. Por que não deixava essa mulher em paz? A resposta a tinha em frente aos seus olhos, mas era tão obtuso que não era capaz de decifrá-la. Entretanto, aquele comportamento obstinado lhe daria a oportunidade de contratar Giselle o dia inteiro e ofereceria à sua mãe o cuidado que merecia. Possivelmente até poderia comprar uma casa em que não houvesse escadas e onde ela abandonaria de uma vez por todas a cama em que se prostrava. Com uma felicidade imprópria nele, Borshon saiu do clube desenhando um sorriso que lhe cruzava o rosto.

Reform voltou para seu assento sereno ao ter controlado o todo referente a ela. Por sorte para ele, Valéria estaria vigiada e poderia centrar-se em outros assuntos que requeriam sua intervenção. Olhou a garrafa de água que seu novo empregado tinha deixado sobre a mesa e sorriu. Era duro, teimoso, valente e sensato. Qualquer pessoa lhe teria pedido um dos uísques mais seletos de sua adega, mas ele não o fez. Desejava manter a prudência que não lhe proporcionaria a ingestão de álcool. De repente, esticou a mão para essa garrafa e lhe deu um grande sorvo. Fresca. A água, que não recordava tomar fazia muito tempo, era fresca e insípida. Mas Borshon tinha razão, não havia nada melhor que abastecer o corpo de água para não fazer desaparecer algo tão necessário como era a sensatez.

—Senhor Reform? —Perguntou uma de suas empregadas da porta. —A senhorita Barnes quer saber se a visitará.

—Não. Diga-lhe que não vou requerer seus serviços nunca mais —respondeu sem olhá-la.

—Far-lhe-ei saber. Boa noite, senhor —disse a mulher tão aturdida pela resposta que não acertava a pôr a mão sobre o trinco.

—Boa noite.

Quando a porta se fechou, quando escutou o clique da fechadura, Trevor deixou de respirar. Mas o que tinha feito? Negou-se a passar uma noite com Jun? Com a deusa do prazer? Como tinha recusado sem sequer meditar uns segundos? Levantou os olhos dos papéis e os fixou na garrafa repleta de líquido transparente. A água! Esse líquido tinha limpado seu sangue em menos de um segundo, transformando-o em um novo homem! Entretanto, em vez de levantar-se e correr para a porta para gritar que se equivocara, que a visitaria sim, reclinou-se no assento, colocou as pernas sobre a mesa, cruzou os braços sob sua cabeça e riu como há muito tempo não o fazia.


V

 

—Por favor, apressem-se. O senhor Mayer não demorará em aparecer e eu não gostaria que lhes repreendesse de novo por serem incapazes de apartar suas mãos da comida —pediu Valéria aos seus irmãos que, tal como dizia, nunca saciavam os estômagos.

—Não diz que quanto mais comamos maiores e fortes seremos? —Perguntou Martin, o pequeno, com a boca repleta de pão.

—Sim, mas ao passo que vão não crescerão para o alto e sim para os lados —interveio Kristel cobrindo seus ombros com o xale grande marrom. —E quando seu estômago for maior que sua cabeça não haverá nenhuma só mulher que lhes olhe.

—Mas... mas... —tentou dizer Martin, que sustentava em sua mão direita a última torrada de seu prato.

—Não há, mas —negou Valéria com decisão. —Devem estudar e prestar muita atenção ao que lhes ensina. E agora se preparem porque o senhor Mayer aparecerá em qualquer...

Não pôde terminar a frase. Tal como augurou, nesse preciso instante tocaram à porta.

—Rápido! —Insistiu. —Recolham a mesa antes que Kristel lhe abra.

Obedientes e com a boca ainda cheia, os moços colocaram os pratos um sobre o outro e o levaram até a pilha onde logo seriam lavados. Quando Kristel afirmou com a cabeça, desencaixou a fechadura e abriu a porta.

—Bom dia, senhor Mayer —saudou-o assim que o viu. —Como amanheceu? Teremos chuva?

—Bom dia, senhorita Griffit, por sorte para os que sofrem de reumatismo ou têm algum tipo de imperfeição no corpo, hoje a chuva não aparecerá —explicou enquanto lhe oferecia o casaco e o chapéu. —Senhorita Giesler... —dirigiu-se para ela com um estranho brilho nos olhos e desenhando um leve sorriso.

—Senhor Mayer, —respondeu-lhe ela —espero que possa dar sua aula sem contratempo algum. Ontem lhes deixei claro que nenhum dos dois deve perder tempo abstraindo-se em tolices —esclareceu olhando seus irmãos para lhes recordar o bate-papo ao qual fazia referência.

—São bons estudantes —comentou este se aproximando dela. Estendeu a mão para que Valéria lhe oferecesse a sua e, uma vez alcançada, beijou-a devagar. —Mas muito me temo que necessitem de uma figura paterna —adicionou olhando-a de forma sedutora. —Estão em uma idade bastante crítica.

—Crítica? —Perguntou retirando a mão mais lentamente do que desejava.

—Esta etapa da infância, senhorita Giesler, é crucial para os moços. Se tiverem uma figura masculina a que respeitar e utilizar como exemplo, resultar-lhe-á mais fácil escolher o bom caminho.

—Sim, já vejo... —murmurou Kristel entreabrindo os olhos como se quisesse cravar uma faca pelas costas do bom samaritano.

—Terei em conta —desculpou-se Valéria, que tentou não rir ao observar o rosto assassino que tinha posto sua amiga.

—O quanto antes considerar essa opção, mais possibilidade terá de salvar estes pequenos —afirmou acariciando suas cabeças como se quisesse eliminar o pó existente em seus cabelos.

—Primeiro terá que procurar uma figura masculina que seja adequada —interveio Kristel mordaz. —Nem todos os cavalheiros que alguém conhece são tão respeitáveis como querem aparentar.

—É óbvio! —Exclamou Mayer ofendido. —Mas a senhorita Giesler utilizará seu bom critério para averiguar que homem será o melhor marido para ela e o melhor pai para seus irmãos.

—E um homem benévolo para permitir que sua amiga, com uma imperfeição no corpo, —recordou a expressão que tinha feito referência ao entrar —siga vivendo com eles.

—As amigas de uma esposa sabem quando devem apartar-se do casal, —replicou o professor entreabrindo os olhos —daí que sejam boas amigas e não umas harpias que tentam sobreviver com os lucros do matrimônio.

—Não demoraremos muito em retornar —comentou Valéria dando um beijo na testa de cada irmão e resolvendo a conversa inquisitiva. —Comportem-se bem e estudem muito. Embora no futuro se convertam em uns estupendos e maravilhosos fazendeiros, devem ser também inteligentes.

—Certo —conveio Mayer. —Um bom fazendeiro tem que calcular quais serão seus lucros e quantas perdas obterá com uma semeadura ou com a criação de um gado. Assim, rapazes, tomem assento e comecemos com álgebra. Volte quando puder, senhorita Giesler, seus irmãos estão seguros sob meu cuidado —assinalou pegando de novo a mão dela para beijar.

—Obrigada —disse enquanto observava as expressões de desagradado de Kristel.

Quando por fim fecharam a porta, Valéria olhou à sua amiga. Esta colocava dois dedos na boca como se quisesse provocar vômito.

—Não seja tão descarada —repreendeu-a. —Ele só pretende ser amável.

—Amabilidade? —Resmungou ao mesmo tempo em que cruzava o xale por seu peito. —Esse insensato pervertido só quer te abrir as pernas e desfrutar de seu corpo.

—Quão único deseja é que aceite a proposta de matrimônio que insinua cada vez que aparece —esclareceu Valéria segurando com força a cesta de vime.

—Sim, e me jogar a chutes do seu lado. Grande imbecil!

—Exclamou Kristel furiosa.

—Bom, possivelmente chegue o dia no qual seja você quem me abandone... —insinuou Valéria divertida.

—É claro! Como não me tinha ocorrido? Talvez encontre hoje, no mercado, o homem que não olhará minha claudicação ao andar e que seja capaz de descobrir a bela, educada e boa pessoa que sou —manifestou irada.

—Talvez... —sussurrou Valéria deixando que ela descesse em primeiro lugar as escadas porque precisava apoiar-se na parede.

Durante o caminho, ambas falaram longamente sobre o senhor Mayer. Kristel só expunha quão mau o achava e Valéria suavizava contribuindo com o lado positivo que, pela ira, sua amiga não observava. Mas depois do bate-papo, ambas chegaram à mesma conclusão: ele só queria uma esposa para encerrá-la no lar e que, ao chegar, ajoelhasse-se para lhe pôr as sapatilhas. Depois de rir ante tal dedução centraram-se no importante, comprar mantimentos frescos. Os comerciantes, ávidos por desprender-se da mercadoria podre, enrolavam as clientes com preços tão pequenos que não podiam resistir. Entretanto, enquanto as moedas que guardavam nos bolsos não alcançassem comprar uma boa maçã e não uma em que o verme tirava a cabeça, nenhuma das duas se aproximava de ditas bancas.

—Nascemos para ser ricas —comentou de repente Kristel olhando uma banca de verduras.

—Não somos, mas tampouco nos falta para comer nem para pagar o aluguel do que chamamos lar —comentou Valéria enquanto oferecia a um vendedor de carne o dinheiro que lhe tinha pedido por dois faisões. —O plano está saindo melhor do que eu esperava.

—Não me explicou o que ocorreu ontem no clube —comentou voltando-se para ela depois de fazer alusão àquele plano.

O cabelo dourado lhe brilhava ainda mais ao ser meio tocado pelos raios do sol. Aquele rosto branco, que tempos atrás era pálido e doentio, também mostrava uma cor viçosa. Valéria a observou com tranquilidade, tentando achar alguma expressão de preocupação em sua amiga, mas não a encontrou. Parecia calma ao falar desse tema, como se tivesse escutado suas palavras durante a noite anterior, embora permanecesse adormecida.

—Pois não aconteceu nada estranho —expôs, ao mesmo tempo em que colocava as peças no cesto.

—Caminhou pelas salas? Saiu do escritório? —Insistiu colocando-se de novo ao seu lado.

—Repeti-lhe isso mil vezes. É normal que o senhor Reform vigie seu local —expôs com voz cansada. —Daí que todo mundo deseje passar um bom momento em seu clube e não no outro.

—Como? Se não recordo mal, era você quem se inquietava por essas aparições —replicou.

—Sei, mas me equivoquei. Esse homem só atua como faria qualquer proprietário de um negócio —acrescentou com a esperança de resolver o tema. Embora soubesse que não o faria.

—Se estivesse em seu lugar não apareceria durante um longo tempo. Embora tenha suficiente fortuna para não reparar nas perdas de uma de suas mesas, seguiria mantendo minhas suspeitas e não me relaxaria. Já sabe que, cedo ou tarde, descobrirá o que faz e se achará em uma encruzilhada da qual não sairá vitoriosa.

—Não posso deixar as coisas pela metade. Necessitamos desse dinheiro o antes possível. Recorda que o senhor Dins nos deu uma data limite para pagar o resto de nossa dívida —assinalou, ao mesmo tempo em que caminhava para a banca de verduras que, momentos antes, tinha chamado à atenção de Kristel.

Era a melhor de todo o mercado. A frescura e o sabor daqueles produtos eram tão deliciosos que todas as criadas se agrupavam para comprá-las aos seus senhores antes que terminassem. Tempos atrás, ela e Kristel só passavam por diante para inspirar o aroma rico que desprendia a verdura recém-cortada. Mas tudo tinha mudado e ambas desfrutavam selecionando qual levar.

—Senhorita Giesler! —Exclamou o vendedor ao vê-la aparecer junto com sua amiga. —Como se encontra hoje? O que necessita da minha humilde banca? Disse-lhe que cada dia está mais formosa?

—Bom dia, senhor Adams. Estou bem, obrigada —respondeu Valéria sorridente enquanto olhava que hortaliça seria a adequada para acompanhar as peças que guardava no cesto.

—E eu também me levantei estupenda, obrigada por perguntar —murmurou Kristel um tanto zangada ao manter-se sempre no esquecimento.

—Procuro algo que possa acompanhar os faisões —expôs mostrando a cabeça de um deles. —Mas sou incapaz de me decidir. Tudo o que você vende é delicioso... —acrescentou colocando o dedo indicador de sua mão direita sobre os lábios.

—O que me recomenda? —Perguntou apartando seus azulados olhos da verdura para fixá-los no lojista.

—Umas batatas, umas cenouras e talvez algumas ervilhas. Isso fará com que seus irmãos cresçam sãos e fortes —acrescentou, ao mesmo tempo em que envolvia sobre um papel tudo aquilo do qual falava. —Por certo, como estão? —Quis saber.

—Bem, graças a Deus. Por sorte, crescem muito depressa e, como você diz, devido ao aprimoramento de suas hortaliças se farão homens fortes e sãos —indicou esticando as mãos para recolher a compra.

—Deve ser muito duro encontrar-se tão só para criar dois rapazotes tão ativos como eles —expressou o vendedor exibindo em seu rosto uma tristeza fingida. —Não deveria fazê-lo sozinha.

—Não estou sozinha —disse com rapidez olhando à Kristel. —Tenho uma boa amiga que me ajuda muitíssimo.

—Mas não é o mesmo... —objetou o mercador. —Deveria procurar um homem bom que a ajude nessa pesada tarefa. Um marido que cuide de seus irmãos como se fossem seus próprios filhos e que a trate com o respeito que merece —atreveu-se a dizer enquanto recolhia as moedas que Valéria tinha em sua mão direita.

—Quando conseguir convertê-los em homens, quando se valerem por si mesmos, procurarei. Muito obrigada, senhor Adams, até quarta-feira próxima —declarou antes de colocar a verdura na bolsa e de entrelaçar seu braço no de Kristel. —Acredito que este tempo não está fazendo bem aos homens... —sussurrou divertida. —Só pensam em casar-se.

—Não é o sol, Valéria, é você quem acorda neles esse desejo de converter-se em maridos —apontou com certa tristeza. Não lhe cabia a menor dúvida que uma vez que Valéria encontrasse o homem que a faria feliz, sua amizade terminaria. Que marido suportaria manter uma esposa com uma amiga defeituosa? Não a quereria nem como faxineira...

—Eu? Acaso tenho escrito na testa que desejo me atar a um homem? Por Deus bendito! Nem louca! —Exclamou entre risadas. —Minha liberdade desapareceria, alteraria meus planos e muito me temo que tentassem educar meus irmãos muito longe de mim. Não recorda o que aconteceu à pobre Hermely? Tantos anos procurando um marido que a fizesse feliz, que a ajudasse a cuidar do bebê, cujo próprio pai se negou a reconhecer, e logo...

—Tampouco lhe foi tão mal... —objetou Kristel. —Tem uma grande casa, converteu-se em uma senhora respeitável e seu filho estuda em um dos melhores internatos de Londres.

—Você quem diz! —Resmungou em voz baixa. —Esse pequeno está afastado de sua casa, encerrado entre quatro paredes e sem o calor maternal —resmungou.

—Claro... que lástima de menino! E, quando for o herdeiro de tudo o que tem seu padrasto, quando sob sua autoridade se encontre a fábrica têxtil mais importante da cidade, recordará esse tempo como o pior de sua vida porque sua mãe não pôde lhe dar um beijo de boa noite —alegou Kristel com sarcasmo.

—O afeto familiar é vital para que as crianças cresçam felizes —repôs Valéria, sabendo que terminariam zangadas, como acontecia cada vez que falavam do tema.

Pensavam de maneira muito distinta, possivelmente porque sua amiga não tinha tido o afeto de seus pais. Mas ela, que o tinha desfrutado durante muito tempo e, para sua desgraça, sabia que a perda destes a tinha destruído. Não só porque se encarregou de seus irmãos, muito pequenos naquela época, mas sim porque não pôde encontrar o apoio de sua mãe nos momentos mais difíceis de sua vida.

—O senhor Mayer encherá suas cabeças ocas de sabedoria —alegou como desculpa.

—Mas quando o senhor Mayer descobrir que não conseguirá te converter em sua esposa, pedirá o dobro do que cobra ou partirá —assinalou tentando despertá-la de seu devaneio.

—Pois procurarei outro —resmungou. —Londres está infestada de professores que desejam dois estudantes tão inteligentes como meus irmãos.

—Eu te recomendaria que na próxima vez procurasse uma mulher. Seguramente não há tantas e, se há estão muito escondidas, mas não lhe causarão problemas —recomendou.

—Inclusive você poderia fazê-lo, se não pensasse em continuar com esse plano tão desatinado.

—Esse plano tão desatinado nos está abastecendo de alimento e proteção e, se Deus for benévolo como até agora, logo cumpriremos nossos sonhos —informou orgulhosa.

—Espero que esse logo não signifique um dia —comentou mordaz.

—Não, não significa um dia e não entendo por que ... —De repente ficou muda. Ali estava de novo uma enorme figura que as seguia ou isso lhe tinha parecido. Deu-se a volta e falava com um mercador. Este lhe sorria como se o conhecesse. Mas a risada não era de felicidade e sim de preocupação. Quem era?

—Por que...? —Kristel tentou que continuasse a conversação.

—Acredito que nos seguem —manifestou Valéria com nervosismo.

—A nós? —Perguntou olhando, de forma descarada, de um lado para o outro.

—Sim —respondeu segurando com mais força o braço entrelaçado e aumentando a velocidade da caminhada.

—Não diga bobagens! —Exclamou apartando-se dela. Não podia seguir o ritmo que tinha empreendido. O quadril lhe impedia de acompanhá-la, além disso, deixava de controlar a claudicação, expondo ainda mais sua incapacidade à vista de quem as observava. —Trata-se de outro homem procurando uma oportunidade para falar contigo. Não seria a primeira vez que...

—Não! —Vociferou em voz baixa. —Não se trata disso.

—Quem se supõe que nos persegue? —Insistiu.

—Aquele homem ali. O alto. —Assinalou-o com o olhar.

—Por Deus bendito! Aquele? —Disse tão assombrada que seus olhos se abriram como janelas. —Está segura?

—Sim, estou. Vi-o desde que saímos de nosso lar. A princípio pensei que fosse só uma coincidência, mas... já não estou tão segura —expressou com voz tremente.

Talvez o senhor Reform tivesse contratado um desses criminosos para que a vigiassem e que, na primeira ocasião, assassinasse-a. «Pensa, Valéria, pensa. Não se dá conta que está vestida de mulher? Se aquele presunçoso tivesse pagado um homem para que perseguisse o senhor Hernández, não iria atrás dos passos de uma mulher, não te parece?» Um pouco mais relaxada ante essa conclusão, tentou continuar com a compra, mas quando voltou a contemplá-lo, este as observava sem pestanejar.

—Olha-o bem, Valéria. Esse homem não pode ir atrás de nossos passos. Acaso não viu suas dimensões? Ultrapassa em altura todos os que há ao seu redor! —Disse divertida. —Se tentasse nos espiar, se de verdade quisesse fazê-lo... não teria que esconder-se? E, onde o faria? Atrás de uma banca de panelas? —Expôs antes de soltar uma grande gargalhada.

—Então... o que olha? —Perguntou sem diminuir sua intranquilidade.

—Pergunta-me o que olha? —Perguntou Kristel incrédula. —Pois, o que olham todos os homens do mercado, a você!

—Eu não gosto nada desse titã musculoso —indicou enrugando o nariz.

—Por quê? Não te parece atraente? Se de verdade quer viver nessa fazenda, necessitaria dos seus músculos para carregar sacos de grãos —prosseguiu sarcástica.

—De moços estaria bem, seguramente meus irmãos adorariam ter uma força como essa, mas eu valorizo mais o que guarda em sua cabeça e, muito me temo, que ele só possua feno —disse divertida.

—Senhorita Giesler! —Um vendedor de tecidos chamou-

—Não quer apreciar minhas novas aquisições? Comprei mercadoria da Índia e lhe posso assegurar que é de muito boa qualidade.

—Aproximamo-nos? —Consultou Kristel. —Poderíamos procurar algum tecido com o qual confeccionar umas camisas elegantes para os meninos.

—E escutar como elogiam sua beleza? Como insistem em que necessita de um marido que possa vestir adequadamente dois futuros senhores? Não, obrigada. Meus ouvidos já não podem assimilar mais estupidez, prefiro procurar naquela banca —assinalou com um dedo —um livro com o qual te esperar pelas noites.

—Não seja boba... sei que você gosta de tocar os tecidos e ninguém sabe melhor que você se esse mercador quer me enganar.

—Não te enganará. Se quiser te levar até sua casa te oferecerá o melhor tecido ao preço mais baixo —insistiu.

—Não quero...

—Vou procurar o maldito livro —resmungou caminhando para a banca.

Valéria a olhou com olhos cheios de carinho, porque sabia que cada dia lhe resultava mais difícil acompanhá-la. Era muito cruel que todos os homens só admirassem seus traços e não se fixassem na mulher que tinha ao seu lado. Só esperava que algum tivesse algo no cérebro para descobrir quem era Kristel em realidade. Depois de soprar, sorriu e se dirigiu para a banca de tecidos onde o vendedor lhe sorria como todos os outros.


VI

 


—Não me havia dito que hoje não trabalhava? —Perguntou Aphra ao seu filho ao vê-lo preparando-se para sair.

Borshon olhou à sua mãe e levantou o lábio superior como sinal de agrado. Podia ter as pernas inertes, mas seu cérebro bulia de energia.

—O senhor Reform me contratou durante umas semanas para me encarregar do amparo de uma mulher —explicou enquanto abotoava a casaca cinza que utilizava quando não vestia o traje de agente.

—O senhor Reform? —Trovejou Aphra incrédula. —Aquele ao qual denominou soberbo, estúpido e a quem desejava colocar algo em sua parte nobre?

—O próprio —afirmou segurando a gargalhada que desejava soltar.

—A que mulher? Por que quer cuidá-la? Não será alguma prostituta dessas que denominam professionnel? —Disse com uma pronúncia perfeita em francês. —Ultimamente há muitas assim e são as amantes mais custosas de Londres.

—Pergunto-me... como pode saber tanto do que acontece fora destas paredes se não pisa na rua há anos? —Perguntou olhando à Giselle.

—Minhas pernas falham, mas meus ouvidos não, —replicou mal-humorada. Aphra colocou as mãos sobre o colchão e se sentou. Nesse momento a cuidadora correu para ela, colocou-se atrás e cavou os travesseiros. —Então... é uma prostituta? —Perseverou.

—Não, não tenho que proteger uma prostituta —comentou aproximando-se dela para lhe dar um beijo na testa. Mas, como qualquer mãe que cuida de cada detalhe de seu filho e não considera que cresceu o suficiente para não seguir independente dela, ao aproximar-se começou a lhe arrumar a gola da camisa.

—Espero que não seja um trabalho que te faça abandonar suas convicções, —falou sem soltar a roupa —lutou muito para ser quem é.

—Não vou fazer nada ilegal, mãe —respondeu tentando afastar-se de suas mãos. Se seguisse lhe apertando o pescoço daquela maneira o deixaria sem respiração.

—Não suportaria que todo o seu esforço se destruísse por uma rameira vulgar... —expôs apertando a mandíbula.

—Escute-me, —disse segurando suas mãos para retirá-las de uma vez —o trabalho é muito singelo; tenho que custodiar uma mulher para que não se meta em confusões. O senhor Reform, embora pareça inverossímil o que vou declarar, interessou-se por uma jovem e não quer que lhe aconteça nada mal.

—Está em perigo? —Perguntou abrindo os olhos como estrelas cintilantes.

—Por agora não, —manifestou sereno —mas segundo ele tem a palavra perigo escrita na testa.

—E o que importa essa mulher para a esse paspalhão? Onde vive? É rica? Quer evitar que lhe aproxime algum pretendente? —Perseverou sem mal respirar.

—Nada disso —comunicou negando com a cabeça. —Essa jovem é órfã e tem sob seu cuidado dois irmãos pequenos. Sobrevivem com o pouco que ela ganha.

—Se tinha certo interesse por saber quem é, agora se triplicou —assinalou assombrada. —Essa jovem abrandou o coração de um homem que não o tinha?

—Conforme percebi, sim. Mas acredito que não parou para pensar o motivo desse ato —alegou divertido.

—Bom, quando aparece a pessoa adequada tudo se volta um caos —apontou reclinando-se sobre os travesseiros.

—Por sorte para você, seu filho ainda mantém a prudência necessária para cuidá-la —expôs zombeteiro.

—Meu filho é um idiota, —resmungou cruzando os braços —perde o tempo cuidando de mulheres que não lhe contribuirão em nada.

—Contribuirão o suficiente para comprar um lar onde possa sair à rua —confessou irritado.

—Não quero uma casa nova e sim uma esposa para você!

—Exclamou zangada. —Se Deus é piedoso com esta serva, logo me levará ao seu lado e não poderei morrer em paz sabendo que te deixo aqui sozinho.

—Uhm..., —murmurou Borshon tocando-a no queixo e arqueando as loiras sobrancelhas —então segue viva porque não encontrei uma esposa? Interessante...

—O senhor Hill poderia encontrá-la em qualquer momento —interveio Giselle que, com o olhar cravado no tecido que bordava, animava Aphra. —Quão único deve fazer é rodear-se de gente boa e não desses criminosos aos quais detém.

—Pagou-a para que apoie sua opinião? —Disse Borshon divertido ao ver as duas senhoras de conluio.

—Não, mas é inteligente e sabe do que falo. É um homem muito bom, meu filho. Um agente respeitável, educado e com uma compleição endeusada.

—É claro... —apontou cruzando os braços. —E não creem que esta compleição endeusada pode assustá-las? —Perguntou olhando primeiro a uma e logo a outra. —Porque cada vez que caminho, cada vez que meus enormes pés pisam no chão, noto como quem está ao meu redor salta sem querer.

—Bobagens! —Exclamou Aphra colocando bem a colcha sobre sua cintura. —Meu filho é perfeito, muito perfeito para qualquer mulher que viva em Londres.

—Então, terei que partir daqui. Possivelmente minha futura esposa viva em um povoado chamado... Gigantelândia?

—Se vai seguir zombando de sua mãe dessa forma, abre a porta e vá —resmungou zangada. —Já sofro suficientes dores nestas ditosas pernas para padecer também sufocos causados pelos descaramentos de meu filho.

—Como desejar... —disse fazendo uma exagerada reverência. —Giselle, sobre a mesa tem o pagamento do mês passado e o deste. Sinto se me atrasei, mas...

—Não se preocupe, senhor Hill —desculpou-o com rapidez. —Você é um bom chefe.

—Vê, mãe? Também sou um bom chefe... —mas Aphra não lhe respondeu, seguia zangada como se fosse uma menina a quem não lhe tinham dado seu caramelo preferido. —Não me esperem levantadas. Este trabalho me levará todo o dia, depois de observar e proteger, tenho que informar. Assim, quando cair o sol, visitarei o Clube Reform —esclareceu caminhando para a porta. —Se acontecer algo...

—Far-lhe-ei saber imediatamente —manifestou Giselle.

—Que tenha um bom dia, mãe —disse antes de girar o trinco.

—Que ninguém toque esse corpo que tanto me custou tirar de minhas vísceras —Aphra lhe respondeu como sempre.

Quando fechou a porta atrás de sua saída, Borshon olhou para o céu. Tinha elegido muito mal a vestimenta, porque se não se equivocava, faria um sol sufocante. Por que diabos as nuvens não podiam ocultar o sol? Talvez porque fosse muito grande... ao refletir sobre isso recordou o difícil que lhe resultava passar inadvertido. Problema que não determinou o senhor Reform ao contratá-lo. Tirou a jaqueta, colocou-a no braço e caminhou para a casa de Valéria como se fosse um cavalheiro dando um adorável passeio.

 


«Outro?», se perguntou Borshon quando o vendedor de tecidos captou a atenção de Valéria. Não ia agradar ao senhor Reform saber que em cada passo que dava sua protegida um homem se aproximava para lhe pedir em matrimônio. Com um sorriso de orelha a orelha depois de imaginar a cara que poria este, voltou o olhar para a mulher que a acompanhava. Ficou desconcertado quando ela saiu com a senhorita Giesler. Quem era? Uma amiga? Outro parente? Mas se petrificou ainda mais ao ver que precisava apoiar-se na parede para descer as escadas. A pergunta que apareceu ao observá-la, resolveu com rapidez. Aquela mulher de cabelo loiro tinha uma leve claudicação para a esquerda e lhe era tedioso descer sem apoio.

Mantendo uma distância prudente e escondendo-se nos lugares que podiam albergar a magnitude de seu corpo, caminhou tão perto delas que escutou a conversação com total nitidez. Falavam de um tal Mayer, quem Borshon deduziu que era o homem que tinha entrado antes delas saírem. A mulher desconhecida só falava coisas horrorosas, enquanto Valéria a apaziguava exaltando seus dotes como professor. «É o professor dos seus irmãos... —concluiu. —Bom, isso lhe aliviará um pouco. Não é o mesmo lhe explicar que um homem entra muito cedo na casa, do que lhe comentar que contratou um instrutor para seus irmãos», refletiu divertido.

Dirigiam-se para o mercado. As ruas pelas quais caminhavam terminavam em uma grande praça onde todas as manhãs mais de vinte bancas de vendedores expunham seus gêneros. Gritos, gente perambulando de um lado para o outro, carruagens com cavalos acostumados a trotar entre o ruído, soltando seus excrementos no chão, galinhas movendo suas asas e deixando escapar uma ou outra pluma quando o dono as agarrava pelo pescoço para matá-las... aquilo era um caldeirão de multidão e cantos agônicos para atrair a máxima clientela.

Borshon olhou as diferentes saídas do mercado, deviam estar custodiadas pelo grupo diurno; uma patrulha que o inspetor contratou para apaziguar qualquer briga nas bancas. Mas não havia ninguém. Franziu o cenho e apertou os punhos. Se se ocasionasse algum problema como poderia socorrê-la com tanto fluxo? Não lhe cabia dúvida que teria que falar com o inspetor sobre aquela turma de ineptos.

Obcecado por esses pensamentos policiais, descuidou de ocultar-se e foi então que observou como Valéria o olhava. Tinha-o descoberto e isso significava o fim de sua missão. Se for tão preparada para ganhar na mesa de jogo, deduziria que o senhor Reform tinha averiguado que era uma mulher e desapareceria da face da Terra deixando-o só com quinhentas libras. Não, não podia perder a oportunidade de cumprir seus sonhos, precisava achar algo que lhe proporcionasse um motivo acreditável para que ela não suspeitasse. O que poderia fazer? Aproximar-se de uma banca e comprar o primeiro que encontrasse?

—Senhor Hill? —Saudou um dos vendedores.

Borshon dirigiu o olhar para o homem e sorriu. Odiava-o e teria desejado não o ter de novo em seu caminho, mas dado o momento tão crítico que estava padecendo, posto que a senhorita Giesler não apartasse o olhar dele, caminhou para aquele descarado.

—Bom dia, senhor Bread, que tal se encontra?

—Muito bem, perfeitamente... —sorriu.

Entretanto, não sorria de felicidade, mas sim de terror. Aquele monstro que, com sua sombra, enchia de escuridão sua pequena banca, tinha-o retido em um dos cárceres da Scotland Yard durante dois dias. Um vizinho foi à central porque foi testemunha do bofetão que deu em sua esposa e aquele mastodonte se apresentou em sua casa para arrastá-lo até a prisão. Mas depois desses dias ao lado daquela besta, preferia cortar a mão antes que voltar a lhe bater.

—Como se encontra sua esposa? Tornou a tropeçar? Perguntou fixando seus olhos nele.

—Oh, não! Já cuido de que minha mulher não tropece nem com uma pequena pedra. Aprendi a lição —cochichou enquanto envolvia algo em papel. —Juro que não a toquei.

—Bem, alegra-me escutar isso. Se alguma vez aparecer com um mísero hematoma, quebrar-lhe-ei mais costelas —ameaçou.

—Não senhor, prometo, trato-a como se fosse uma dama da alta sociedade —titubeou em cada palavra. —Por favor, aceite este obséquio.

—O que é? —Perguntou entreabrindo os olhos.

—Só um espelho. —Desembrulhou com rapidez a pequena nécessaire para que não pensasse que comprava sua graça. —Seguramente sua mulher gostará —acrescentou lhe tremendo não só a voz, mas também as mãos.

—Quando a tiver virei buscá-lo —resmungou enquanto apartava o olhar do insolente e o cravava em Valéria. Retirava-se para outra banca, a dos tecidos. Mas desta vez não foi acompanhada. Por quê? —Seguirei lhe vigiando —declarou antes de dirigir-se a ela.

—É claro, muito obrigado, senhor Hill. —E quando o agente se afastou, descobriu que não era suor o que molhava sua calça. —Tome conta da banca uns minutos —disse ao seu ajudante. —Não demorarei em voltar.

Por que tinham se separado? À mulher loira não agradava a banca de tecidos? Sua mãe ficaria louca comprando de todas as cores! Estava seguro que tanto ela como Giselle redecorariam seu lar lhe dando o aspecto de um jardim. Entretanto, caminhava para o outro extremo do mercado, afastando-se do bulício. Borshon negou brandamente com a cabeça. Não podia averiguar o que desejava a desconhecida. Devia continuar com o trabalho pelo qual lhe pagavam e não era conveniente pensar em outra coisa que não fosse à segurança da senhorita Giesler. Mas então algo aconteceu que lhe fez apertar os punhos, entrecortar a respiração e pressionar tanto sua mandíbula que escutou como lhe chiavam os dentes... que diabos era aquilo? Que diabos faziam aquele par de bobos? Ela não se deu conta ou estava tão acostumada às brincadeiras que já não lhes prestava atenção? Mas Borshon não pôde frear seu passo, nem apartar o olhar para outro lado como faziam outros, mas sim a grandes pernadas e bufando como um touro enfurecido, caminhou para os jovens que, atrás da mulher, coxeavam imitando-a.

—Divertem-se? —Perguntou quando as costas daqueles moços tocaram seu peito.

Quando estes se deram a volta para enfrentar a pessoa que interrompiam sua brincadeira, ficaram tão brancos como um fantasma. Borshon atuou com rapidez, esticou as mãos e agarrou as golas das camisas de ambos.

—Não tentem escapar —disse com uma voz tão horripilante que os jovens começaram a choramingar como meninos. —Não querem que brinque com vocês? Parecia muito divertido... —Aquele tom, que os criminosos estavam acostumados a escutar depois de uma matança onde não se arrependiam de ceifar tantas vidas inocentes, apareceu em sua garganta.

—Nós... senhor... não... —titubearam ao uníssono.

—Nós... senhor... o que? —Cuspiu.

—Só estávamos brincando. Não queríamos rir da coxa... —declarou um deles.

—Eu também quero brincar —disse desenhando um sorriso que os deixou sem fôlego.

—Solte-os agora mesmo! —Ordenou-lhe uma voz feminina.

Borshon a olhou e ficou quieto, pensativo. Por que os defendia? Não queria que lhes desse seu castigo? Porque lhe bulia o sangue só de pensar...

—Peçam desculpas à senhora —manifestou Hill dirigindo as duas cabeças para ela.

—Sentimo-lo, senhora —assinalaram de uma vez.

—E... não voltaremos a fazê-lo —insistiu a repetir.

—E não voltaremos a fazê-lo —responderam.

—Muito bem! —Exclamou Borshon lhes soltando com tanta força que caíram para trás. —Na próxima vez não serei tão benévolo —gritou quando estes se puseram a correr.

—Se pensa que vou lhe agradecer por seu ato heroico, está muito enganado —resmungou Kristel colocando as mãos na cintura.

—Não espero, senhora —disse recolhendo a casaca que tinha atirado ao chão para poder ter livres as duas mãos.

—Bem, alegra-me escutar que não deseja elogios nem aplausos —soprou girando-se sobre si mesma para dirigir-se de novo para a banca de livros.

Observavam-na. Todo mundo a olhava sem pestanejar e ela ficou tão nervosa que coxeava com mais força. Desesperada e morta de vergonha por ser o centro das atenções no mercado, permaneceu imóvel, abaixou a cabeça e tentou esquecer onde se encontrava.

—Quero dar de presente um livro à minha mãe. Está muito doente e passa seus dias prostrada na cama, pode me recomendar um? —Borshon disse-lhe ao ver como ficou parada no meio do caminho e fixava os olhos no chão, acudiu veloz para fazê-la sair daquele estado de atordoamento.

—O que sua mãe está acostumada a ler? —Perguntou-lhe sem olhá-lo.

—Desde feitiços de amor para que seu filho encontre uma esposa até velhas receitas culinárias, que obriga a sua cuidadora a preparar e que, para desgraça do meu estômago, não sabe realizar —alegou com a esperança de que essas palavras levantassem seu ânimo.

—Nada de bruxaria, nem de receitas... —murmurou Kristel que, face às lágrimas que tinham brotado ao viver um momento tão vergonhoso, seus lábios se curvaram para desenhar um sorriso.

—Tampouco deve escolher aqueles que ponham em perigo minha integridade. Está acostumada a me assassinar cada vez que fala —acrescentou com tom divertido.

—Deixa-me muito poucas alternativas... —assinalou Kristel levantando o rosto para olhar aquele homem.

Borshon grunhiu ao ver o brilho daqueles olhos. Quis apartar as lágrimas que vagavam pelo rosto e as atirar ao chão com rudeza. Entretanto, para que não se assustasse ao ver as grandes mãos, meteu-as nos bolsos da calça.

—Sei. Por isso lhe peço ajuda —expressou com aparente aflição. —Faria a gentileza de me ajudar? Já que ambos nos dirigimos para o mesmo lugar... —colocou-se ao lado dela e esperou que desse o primeiro passo. Mas ao seguir imóvel, Borshon deduziu que não queria que a visse coxear de novo. —Não pode andar? Encontra-se cansada? —Insistiu. —Se precisar, poderia agarrá-la em meus braços e leva-la até a banca. Sou bastante forte...

E nesse momento Kristel começou a caminhar tentando afastar-se daquele ousado. Claro estava, ele não o concedeu e andou ao seu lado.

—O que gosta de ler, senhora...?

—Senhorita Griffit —corrigiu enquanto dava passos muito pequenos para poder dominar ambas as pernas.

—O que você gosta de ler, senhorita Griffit? —Perguntou notando como uma estranha felicidade se apoderava de seu grande corpo. Seria por vê-la andar daquela maneira ou por descobrir que estava solteira?

—Eu adoro as novelas de mistério —declarou levantando ainda mais a cabeça para olhá-lo. —Sou uma viciada em tudo o que se escreve sobre segredos, enigmas, encruzilhadas... —enumerou.

—Nada de romantismo... —sussurrou Borshon para si, mas Kristel o escutou.

—Não acredito em tal tolice, senhor...

—Hill.

—O romantismo só se encontra em pessoas perfeitas e, como pode perceber, eu não o sou. Então não sonho com algo impossível —revelou com tanta firmeza que Borshon ficou congelado.

Como ela podia separar de sua vida uma coisa assim? Pela leve deficiência? Não se tinha olhado no espelho? Não se dava conta de quão formosa era? Seu cabelo brilhava e mostrava uma suavidade que qualquer homem desejaria tocar. Seus olhos, da cor do céu, eram tão brilhantes e expressivos que todo varão que se orgulhasse de sê-lo se ajoelharia. E sua figura, embora oculta embaixo daquele grosseiro vestido, exibia-se poderosa, com uns quadris voluptuosos. O mundo masculino estava cego para não apreciar sua beleza?

—Nós, que somos imperfeitos, também sonhamos, senhorita Griffit —expôs depois de meditar como fazê-la entender que não podia perder a esperança.

—Considera-se imperfeito? —Perguntou parando e voltando-se para ele.

Que deficiência tinha? Que ela pudesse ver com um simples olhar, nenhuma. Era um homem muito bonito. Possuía uns grandes olhos de uma cor verde incrível. Seu nariz curvo, seus lábios em forma de coração, o cabelo loiro, penteado e cortado, o queixo robusto, forte, varonil, enlouqueceria qualquer mulher. E sua figura... O maior que jamais tinha visto! Onde se encontrava seu defeito? Na cabeça, como deduziu Valéria? Mas não parecia ter feno em vez de cérebro...

—Ninguém daqui —expôs estendendo a mão e criando com esta um semicírculo —o é.

—Não diga sandices, por favor —comentou caminhando de novo.

—Olhe —disse assinalando um homem que arrumava o calçado. —Não se deu conta de que tem oito dedos em vez de dez? Segundo você esse homem é imperfeito e não deveria permanecer acompanhado de sua esposa e de seus filhos.

—Como sabe que é sua esposa? Possivelmente seja uma irmã que vem visitá-lo —objetou.

—Uma irmã não o olharia dessa forma —asseverou.

E era certo, aquela mulher que sustentava um bebê em sua cintura e segurava outro pela mão, olhava ao homem como se não houvesse outra pessoa no mundo salvo ele.

—Essa mulher daí... —indicou uma senhora que colocava suas mãos nas costas como se tentasse acalmar uma incrível dor —tenta ocultar embaixo desse grande lenço que cobre sua cabeça, a perda do cabelo. Também é imperfeita? Não merece ser feliz, embora não tenha uma formosa juba?

—Está me oferecendo exemplos para que não me centre na claudicação? Sei quem sou, senhor Hill, e o que implica meus movimentos de quadril —comentou com aborrecimento.

—Perdoe minha ousadia, senhorita Griffit, mas esses movimentos de quadril me deixaram tão hipnotizado que não posso apartar meus olhos dele —expressou parando de novo e elevando ligeiramente a voz.

—Como diz? —Perguntou com tanta surpresa e atordoamento que, pela primeira vez em sua vida, não controlou aquele pé que a entorpecia e esteve a ponto de cair ao chão. Por sorte, o senhor Hill foi muito hábil e a agarrou com força.

—Dizia-lhe —continuou falando sem apartar a mão de sua cintura e mantendo a escassa distância que havia entre ambos os rostos —que o movimento de sua cintura me enfeitiçou tanto que não posso...

—Acredito que sua mãe lhe lançou outro feitiço, —disse apartando-se com rapidez daquelas mãos —porque só assim poderia dar sentido ao seu descaramento, senhor Hill.

—Já lhe disse que não devemos escolher nada perigoso, senhorita Griffit. Minha mãe o utilizaria em meu contrário —adicionou antes de soltar uma sonora gargalhada.

Vermelha. Seu rosto ardia ante aquele contato, ante a cercania de um rosto tão formoso e necessitava, com urgência, pensar em outra coisa. Acelerando o passo, embora o vaivém de quadril se acentuasse e os olhos daquele estranho continuassem cravados em seu glúteo, dirigiu-se para a banca de livros.

—Bom dia, senhor Daft —saudou-o como sempre.

—Senhorita... senhor Hill! —Exclamou o livreiro ao descobrir em frente a ele o agente. —Que grande honra me produz o ter por aqui!

Kristel não reparou em que não lhe tinha respondido adequadamente. Centrou-se mais em observar a cara que o vendedor mostrou ao aparecer o homem, que em meditar se tinha sido respeitoso ou não. Mas ao mover-se para a esquerda para apartar-se e deixar que o livreiro atendesse o senhor Hill, notou o calor de umas grandes mãos. Aquele estranho tocava cada lado de sua cintura e a colocava, de novo, em frente ao vendedor.

—Senhor Daft, acredito que não saudou senhorita Griffit como ela merece —assinalou Borshon sem retirar as mãos dela.

O livreiro olhou ao homem, logo à mulher e terminou por contemplar os grandes dedos sob o xale grande dela.

—Desculpe minha estupidez, senhorita Griffit. Fui muito descortês, —apontou Daft mais assombrado que assustado —mas tenho que alegar, em minha defesa, que me emocionei ao ver o senhor Hill depois do que fez.

—Aceitarei suas desculpas se me explicar o que ele fez —comentou Kristel elevando o rosto por cima de seu ombro direito para admirar aquele homem misterioso.

Este lhe sorriu e, em vez de sentir-se incômodo ao seguir mantendo as mãos em sua cintura, não as apartou, como se quisesse evitar que se pusesse a correr ao escutar a história.

—Ajudou nosso filho, senhorita Griffit. Martha o tinha levado ao porto para que pescasse e de repente uma onda causada pela chegada de um navio arrastou-os para o rio. Ela saiu como pôde, mas nosso pequeno de dez anos não conseguia salvar-se —disse com um nó na garganta.

—Nesse dia tinha que vigiar a região —comentou Borshon. —O capitão de um navio que chegava com mercadoria da Espanha pediu amparo e me destinaram a cumprir esse trabalho. Quando escutei a senhora Daft gritar, fui em sua ajuda. Explicou-me o que acontecia sem deixar de me assinalar à superfície do rio. Por sorte, o menino pôde tirar a cabeça e me lancei em sua busca. Mas não sou um herói, só um homem que cumpriu com seu dever.

—Seu... dever... —sussurrou Kristel com a alma encolhida, sentindo como próprio, o desespero daquela mãe que gritava procurando alguém que pudesse socorrer seu filho.

—É, sem dúvida alguma, o melhor agente que tem a Scotland Yard, senhorita Griffit.

—Agente... —ela comentou ficando tão assombrada que não sabia se respirava, se gritava à Valéria para que corresse ou só o olhava.

—Sim, um agente —afirmou Borshon com um enorme sorriso ao descobrir como se intensificava e atenuava a vermelhidão em suas bochechas. —Voltando para o que nos interessa... —disse apartando o olhar dela para fixá-lo no vendedor. —Senhor Daft, estamos procurando vários livros. A senhorita Griffit gosta de mistério, com muitos enigmas e se forem policiais, melhor, não é? —Perguntou-lhe olhando-a de novo.

—Em efeito —ela atinou a responder. —E um para sua mãe. Não podem ser nem de bruxaria nem de receitas —informou Kristel um pouco mais tranquila, embora em nenhum momento abaixasse a guarda.

Podia ser só uma coincidência, como tantas na vida. Não devia supor que a presença daquele agente no mercado era para espiar a sua amiga... ou sim? «Pensa devagar, Kristel —disse-se, enquanto olhava as capas dos livros que lhe ofereciam. —Se estivesse atrás dos passos de Valéria... por que não separou suas mãos de sua cintura?». Respirou tão fundo que fez desaparecer o pensamento, até que notou o peito dele roçando suas costas.

Perto... estava muito perto.

—O que lhe parece? —Perguntou o livreiro orgulhoso.

—Moby Dick... —leu Borshon.

—É um exemplar da primeira edição —disse Kristel abrindo os olhos e segurando os gritos que desejava realizar ao ver uma joia semelhante. Mas o brilho que mostrou e a forma de acariciar a capa revelou a felicidade que sentia.

—Necessitamos de outro para minha mãe, senhor Daft. Acredito que este já tem proprietária —explicou com aparente aflição.

—Se o quiser...

—Não, —comentou apartando enfim as mãos do corpo dela para pô-las sobre o livro que Kristel estendia para que o agarrasse.

Como podia ser tão atrevido? Não era consciente da repercussão que teria uma amostra tão afetuosa? Ou talvez... o tinha feito por isso mesmo? Uma vez que se corresse à voz, uma vez que toda Londres soubesse que o agente Borshon Hill tinha posto seus olhos em uma mulher, respeitá-la-iam e a tratariam como merecia.

—À senhora Hill agradará mais este —interveio o livreiro mostrando um livro encadernado em negro. —Trata-se da primeira novela do famoso Charles Dickens. Publicou-o por encomenda desde abril de mil oitocentos e trinta e seis até novembro de trinta e sete. Só há cem exemplares como este.

—Pois fico com ele —asseverou sem titubear.

—Leu o título? —Perguntou Kristel entreabrindo os olhos. —Sabe do que se trata?

—Não, mas confio em seu bom critério —explicou fazendo referência à decisão do senhor Daft.

—Bem... —sussurrou ela enquanto colocava a mão no bolso para tirar umas moedas.

—É um presente —disse o livreiro rejeitando o pagamento.

—Não, não, não! —Exclamou Kristel nervosa e morta de vergonha. —Não aceitarei nada por sua parte. Não quero que...

—É meu presente para você, senhorita Griffit —interveio Borshon, ao mesmo tempo em que se inclinava para recolher o livro destinado à sua mãe e para pagar o vendedor. —Espero que o aceite.

Aceitar? Como podia aceitar um presente de um homem que não conhecia? Não era próprio de uma mulher respeitosa e educada como ela receber obséquios sem motivo aparente.

Entretanto, justo quando ia negar-se a isso, observou a felicidade daquele grande homem e lhe enterneceu tanto o coração que terminou por lhe dizer:

—Faremos um trato, quando terminar de lê-lo o trocarei com a sua mãe e assim... —ficou calada de repente.

Como tinha sido tão descarada? Estava lhe insinuando que podiam se ver de novo? Ela? Uma mulher como ela com um homem como ele?

—Aceito sua proposição, senhorita Griffit —disse Borshon estendendo a mão para Kristel como se quisesse selar um pacto entre cavalheiros. —Quando quer que nos vejamos e onde?

—Não pretendia... —tentou dizer.

—Reitero que me parece uma boa ideia. —Ao ver que ela não estendia sua mão e que a tinha presa à capa do livro, Borshon a agarrou, levou-a aos seus lábios e a beijou. —Diga-me quando e onde —ronronou sem apartar os lábios dos nódulos e seus olhos dos dela.

—Na quarta-feira que vem retornarei ao mercado, parece-lhe bem?

Isso era sua respiração? Aquele ruído que se escutava longínquo era uma respiração agitada? Não, não era. O que se ouvia eram os batimentos do seu coração que, pela primeira vez, palpitava como se suas pernas lhe tivessem permitido correr por toda Londres.

—Parece-me perfeito —afirmou. —Vereia-a na próxima quarta-feira, senhorita Griffit.

—Kristel —disse seu nome através de um suspiro.

—Borshon —respondeu ele. —Obrigado por este maravilhoso momento, Kristel. Estarei ansioso para que chegue a próxima quarta-feira —expôs antes de colocar a casaca no braço esquerdo e partir.

—E eu... —murmurou com os olhos presos às grandes costas, e com o livro que lhe tinha dado colado em seu peito.

—Kristel! Kristel! Está bem? O que aquele homem queria? Perdoa que não tenha vindo antes, mas estava entretida com os tecidos. Por certo, tinha razão, aquele descarado insistia em autoproclamar-se como candidato perfeito a marido. Comprou um livro? Que título? Por que não me diz nada sobre aquele homem?

—Chama-se Borshon Hill e é um agente da Scotland Yard —resumiu sem apartar o olhar do lugar por onde ele partira.


VII

 

Depois des se afastar de Kristel, Borshon se ocultou melhor que à vez anterior. Aproveitou cada rincão, cada muro, cada sombra, para que não lhe surpreendessem de novo. Entretanto, manter-se tão distante o impediu de escutar o que diziam. Falariam dele? Que impressão deu à senhorita Griffit? Explicar-lhe-ia que, descaradamente, agarrou-a pela cintura e não foi capaz de apartar as mãos? Revelar-lhe-ia que ante esse gesto inapropriado ela não pôde deixar de tremer? Quão único satisfez a todas as suas perguntas foi observar como ela seguia apoiando sobre seu peito o livro que lhe tinha dado, como se fosse um objeto tão valioso que não pudesse separá-lo de seu corpo. Por que o segurava desse modo? Porque era um presente ou porque se tratava de uma primeira edição?

Hill respirou fundo para achar deste modo um pouco de paz. Estava especulando muito sobre uma coisa tão simples como era segurar um livro. Devia sossegar-se, relaxar-se e pensar com lucidez, tal como atuava cada dia em seu trabalho. Entretanto, resultou-lhe impossível fazê-lo. Necessitava de respostas e, sobretudo desejava saber o que ela tinha sentido ao tê-lo perto, ao tocá-la... «Só desapareceu sua vergonha quando o livreiro lhe ofereceu aquele ditoso tomo —disse-se com certo mal-estar. —Acaso não viu como lhe iluminaram os olhos? Não foi testemunha de como evitou gritar quando o sustentou em suas mãos? —Continuou dizendo-se enquanto se apoiava ligeiramente sobre a parede, cruzava os braços e continuava olhando para a porta do lar da senhorita Giesler. —Não imagine coisas que não são certas. O único que importa à Kristel é o livro».

Com os olhos cravados na entrada do lar que devia vigiar, esperou com paciência que ela se despedisse de Valéria para dirigir-se à sua casa. Mas o tempo passou e ninguém, salvo o homem que foi pela manhã, partiu. Borshon observou como este, ao descer as escadas, ajustou-se o casaco, colocou-se o chapéu e olhou para a porta como se desejasse lhe dar um chute. Hill teve a imperiosa necessidade de aproximar-se e lhe perguntar por que olhava dessa forma. Mas se conteve. Segurou estoicamente a vontade de lhe tirar a golpes a informação e continuou escondido no beco. Enquanto esperava que acontecesse algo interessante, empregou o tempo em recordar, passo a passo, o encontro com a mulher. «Nem sequer queria falar com ela —meditou. —Simplesmente a utilizou para ter uma desculpa acreditável. Se a senhorita Giesler se aproximasse de você e tivesse te perguntado que diabos fazia as perseguindo... o que lhe teria respondido?» Mas por mais que se obrigava a dar por firme essa razão, que tinha se aproximado dela para ter um álibi, não era certo. Desde que a viu, desde que a observou descer a escada pela qual partira aquele homem, teve o impulso de saber quem era a jovem que acompanhava a sua protegida.

Por quê? Por que não pôde apartar o olhar de Kristel? A quantas mulheres tinha custodiado sem sequer conhecer a cor de seu cabelo? O que tinha de especial? Seria a claudicação o que atraiu sua atenção? Ser o filho de uma mulher que não podia utilizar suas pernas lhe fez olhá-la, contemplá-la de forma tão protetora? Não, não tinha nada a ver. A realidade era que, desde que seus olhos se cravaram nela, tudo ao seu redor desapareceu como uma névoa ao aparecer o sol. E, para seu pesar, manter uma conversação tão distendida, captar o calor de seu corpo ou roçar o vestido com suas mãos, deixou-o tão atordoado que lhe resultava muito difícil apagá-la da mente. «Mau assunto... —refletiu desenhando um leve sorriso em seu rude rosto. —Não tenho suficiente me preocupando com minha mãe e agora não posso pensar em outra coisa que não seja averiguar quem é...».

 

 

Assim que chegou o senhor Mayer lhe explicou, como se não fosse capaz de lhe entender, o conteúdo que tinha exposto aos seus irmãos. Depois de suas acostumadas perguntas sobre o que tinha comprado, como o cozinharia e soltar o típico discurso sobre quão perigoso era para uma mulher tão formosa como ela caminhar sozinha pelo mercado, esquecendo-se de novo da presença de Kristel, Valéria lhe ofereceu seus pertences e caminhou para a saída elogiando a paciência que tinha com seus irmãos e exaltando seus dotes como instrutor.

Tinha pressa por ficar só com sua amiga. Precisava falar sobre o ocorrido no mercado e lhe explicar que aquele desconhecido podia ser perigoso para elas. Mas o senhor Mayer não queria despedir-se tão facilmente. Quando dava por terminada uma conversação, ele começava outra e assim permaneceu sustentando a porta até que Kristel, cansada de tanta verborreia absurda, apartou Valéria da porta para colocar-se ela, despediu-se do professor com um «Até manhã, senhor Mayer» e fechou a porta de repente.

—Esse homem é um insolente... —exalou apoiando as costas sobre a porta, como se desta maneira lhe impedisse de retornar.

—Mas é o melhor professor para os meus irmãos —comentou enquanto tirava os faisões para colocá-los sobre a mesa. —Estarão bem na casa dos Shoper? Eu não gosto que estejam com aquela mulher, produz-me calafrios.

—Não brincam com ela, e sim com seus filhos e, por agora, não resultaram feridos nem se converteram em patos —comentou caminhando para a pequena penteadeira onde tinha depositado o livro. Tocou-o devagar com a gema dos dedos, como se lhe desse medo fazer um gesto tão normal. Logo olhou Valéria e prosseguiu com o tema do professor. —Cedo ou tarde terá um problema com ele e auguro que será mais cedo que tarde.

—Por que ele lhe deu isso de presente? —Soltou Valéria sem olhá-la. Não precisava dar a volta para saber o que estava fazendo.

Tinham falado sobre aquele estranho durante a volta. Kristel insistiu que não devia alarmar-se ante sua aparição, que só tinha sido algo fortuito, mas algo em seu interior lhe indicava o contrário. De verdade que um agente visitava o mercado para comprar um livro à sua mãe? Não tinha mais lugares aos quais ir?

—Talvez porque eu tenha sido incapaz de conter minha felicidade ao ver que se tratava de uma primeira edição —apontou Kristel afastando-se do presente com tanta inapetência que ficou assombrada.

—Não devia ter aceitado —assinalou Valéria arrancando as plumas do faisão que decidiu depenar em primeiro lugar. —Um desconhecido...

—Volto a te repetir que quão único pretendia era comprar um livro para sua mãe. Por favor, pensa um pouco, não crê que se tivesse estado lhe vigiando teria te seguido? Mas não o fez, esteve comigo durante o tempo que permaneceu na banca de tecidos e em nenhum momento me perguntou se estava sozinha ou acompanhada —salientou ao observar que a conversação continuaria por onde a tinham deixado. —Aproximou-se de mim porque os gêmeos Kant voltaram a zombar da minha claudicação. Ele enfrentou-os e, se eu não chegasse a atuar, os moços teriam alguma marca em seus bonitos rostos que não cicatrizaria com facilidade. —Acrescentou divertida. —Além disso, não diz que tem tudo controlado?

—E é assim —soprou Valéria enquanto arrancava com ímpeto as plumas. —Mas nunca se pode estar segura de tudo.

—Aconteceu algo que eu deveria saber? —Perguntou sentando-se ao lado de sua amiga para ajudá-la na tarefa.

Kristel a observou em silêncio durante uns segundos, tentando decifrar o motivo pelo qual arrancava as plumas com tanta energia. Se continuasse desse modo, não precisaria de suas mãos para limpar os animais.

—Não aconteceu nada estranho —assinalou Valéria. —Tudo segue igual à sempre.

—Então por que está tão zangada? Por que é um agente ou por que é o primeiro homem que não elogia sua beleza? —Ressaltou irônica.

—Kristel... —sussurrou deixando cair à segunda ave sobre a mesa para olhá-la. —Não quis dizer...

—Eu também me surpreendi ao saber que era um agente —apontou com tom mais relaxado. —Mas não fez nem disse nada que me alertasse. Penso que deveria te centrar em outras coisas e me deixar viver esta ilusão.

—Mas... —tentou dizer.

—Sabem que é uma mulher? Descobriram que embaixo daquela roupa de homem se esconde uma mulher? —Insistiu um tanto zangada.

—Não...

—Então? Por que segue com essa hipótese? Se o senhor Reform não sabe sua verdadeira identidade, a que vem tanto alvoroço?

Valéria a olhou durante uns segundos, tempo no qual meditou se devia lhe falar do que realmente ocorreu na noite passada. Como atuaria? Ela se zangaria com ela ao não ter sido sincera?

—Recordo-te que ele permaneceu todo o tempo ao meu lado e só se preocupou com o meu bem-estar —insistiu Kristel tentando fazê-la entrar em razão.

—Entendo... —sussurrou voltando para a tarefa de arrancar as plumas.

—Salvou o filho dos Daft —disse um pouco mais tranquila. —Esse homem se jogou no Tâmisa para salvar um menino.

—Se é um agente, era seu dever —disse Valéria surpreendida ao escutar como Kristel se expressava, sem dar-se conta de tanta emoção ao falar dele.

—Não, não foi seu dever. Seu trabalho era custodiar a mercadoria de um navio. Mas Borshon abandonou tudo para ir aos gritos de uma mãe desesperada —falou sem mal respirar.

—Borshon... —murmurou Valéria girando-se de novo para sua amiga para ver a expressão que ela mostrava no rosto.

—Disse-me seu nome... —esclareceu envergonhada.

—E, imagino, que você lhe deu o seu.

—Pareceu-me descortês não lhe revelar meu nome depois desse presente e de fixar outro dia para nos ver —expôs fechando os olhos.

—Quando? —Perguntou Valéria muito séria.

—Na quarta-feira —manifestou surpreendida.

—Está bem. Faremos uma coisa para averiguar se esse generoso homem te mente ou, pelo contrário, é o primeiro homem no mundo que diz a verdade —expôs levantando-se da cadeira.

—Não acredito que...

—Não quer saber se seu encontro foi casual? Se esse homem se interessou verdadeiramente por você? —Insistiu.

—Não me cabe a menor dúvida de que se interessou por mim —recitou cruzando os braços, mostrando-se firme ante suas palavras. Era o momento idôneo para lhe confessar que a tinha agarrado pela cintura? Que, no meio do mercado, seus rostos se mantiveram mais perto que o apropriado? Não, não falaria disso ainda. Aceitaria a opção de Valéria para que entendesse que, embora não fosse perfeita, havia alguém no mundo que lhe prestasse atenção. —O que quer fazer? —Disse depois de meditar.

—Seguiremos atuando como até agora e, se por um acaso, cruzar-se de novo conosco, voltaremos a ter esta conversação —declarou com firmeza.

—Isso não é justo. Vivemos na mesma cidade e podemos coincidir em qualquer outro momento —comentou zangada.

—Quantos anos tem?

—Vinte e sete —respondeu arqueando as sobrancelhas.

—Quantas vezes o viu durante estes vinte e sete anos?

—Uma —exalou.

—Não seria estranho que, de repente, encontrasse-lhe mais de uma vez em menos de uma semana? —Perseverou Valéria.

—Isso não é lógico...

—Sou sua amiga e como tal cuidarei de você como tenho feito desde que nos conhecemos. Por isso deve aceitar o evidente, Kristel —indicou levantando do assento com os faisões cortados para colocá-los na pia e lavá-los. —De verdade que te compreendo e sei que deve estar vivendo um momento maravilhoso, mas seja razoável.

—Sempre fui muito razoável... —começou a dizer após suspirar fundo e olhar para o chão. —Mas desta vez quero me deixar levar pelo que me dita o coração e ele me diz que esse encontro foi fortuito.

—Está bem! —Soprou. —Continuaremos como sempre e se de verdade tiver razão terei que admitir que exista um homem no mundo que é sincero.

—E se estou enganada? —Perguntou lhe assaltando a dúvida.

—Dar-lhe-ei um chute nas canelas que o farei pequeno durante muito tempo —declarou com tanta seriedade que à Kristel não coube a menor dúvida de que aquele homem grande não faria sombra às bancas durante alguns dias.

 

 

Reform não cessava de olhar o relógio de bolso. Já era mais de meia-noite e seu novo empregado não tinha aparecido para falar de Valéria. Zangado, levantou-se do assento, girou-se e observou a rua. Não devia ficar ali de pé perdendo o tempo quando sabia que não apareceria, mas sentia saudades. Sim, por mais estranho que lhe parecesse, tinha saudades de sair do escritório para caminhar pelas salas tentando mostrar interesse aos sócios que chegavam. Entretanto, como ela não apareceu pelo clube, nem sequer se moveu do escritório. Ficou sentado em sua poltrona repassando notas promissórias e resolvendo certos assuntos que lhe urgia solucionar. Levou-se a mão ao queixo e o acariciou. O que o senhor Hill teria descoberto? Valéria teria uma vida interessante? O que fazia quando não estava no clube? Seria uma mulher entregue aos cuidados de seus irmãos? Esconderia mais segredos? Passearia por Londres agarrada ao braço de algum homem? Teria algum pretendente? A ideia de que ela permanecesse ao lado de um homem lhe gerou tal ira que soltou o ar por seu nariz bruscamente.

Por sorte para ele, Borshon lhe esclareceria tudo àquilo que considerava mentalmente e continuaria protegendo-a enquanto procurava uma solução ao seu problema. Com as mãos nas costas começou a perambular sobre o tapete. Tinha que saber com rapidez o motivo pelo qual não lhe permitia cumprir seu sonho. Tinha ganhado limpamente à partida, tinha calculado com tanta precisão as cartas que não pôde evitar assombrar-se. Ficou tão atônito porque no assento contiguo havia uma mulher e não um homem? De verdade existiam mulheres que tinham uma mente parecida com a do homem? As que conhecia até agora só utilizavam suas maquiavélicas cabeças para apanhá-lo. Eram como aranhas... tecendo a teia para que o pobre inseto, neste caso ele, caísse sem poder liberar-se até que fosse engolido. Entretanto, Valéria não parecia uma aranha voraz. Se fosse só lhe teria bastado usar um bonito vestido, soltar aquela juba negra e orvalhar-se naquele perfume a canela para tê-lo ajoelhado ante seus pés. Não, ela era uma jogadora nata, que lhe tinha depenado não só mil e seiscentas libras, mas também seu orgulho.

Depois de passar por sua mente o verbo depenar parou em seco. «Fazendeira...» ela se propunha a converter-se em uma cuidadora de animais e em uma incansável agricultora! Como lhe tinha ocorrido uma tolice semelhante? Não podia dedicar-se a outra coisa mais adequada para uma mulher? O ofício de costureira não era tão disparatado e com aquelas mãos, embora fossem pequenas, poderia fazer uns excelentes trabalhos. Ofuscado ainda mais, dirigiu-se para seu assento, sentou com inapetência, colocou os sapatos sobre os papéis que acabara de assinar e olhou para a porta.

Daria uma hora ao senhor Hill. Tempo suficiente para aparecer. Se não o fizesse, ele mesmo o buscaria por toda Londres até que o encontrasse e, se não tivesse cumprido com sua missão o estrangularia, embora isso implicasse em seu ingresso imediato ao cárcere. Já falaria com o inspetor para que o liberasse. Devia-lhe um favor depois de fazer público os sócios que estavam endividados, e sua liberação resolveria o assunto.

—Senhor Reform, —disse Berwin da porta —há uma pessoa que deseja falar com você.

—O senhor Hill? —Perguntou apartando as pernas da mesa e tomando a pose de um homem de negócios respeitável.

—Não, —disse sem entrar e mantendo a incerteza.

—De quem se trata? —Perguntou com interesse.

—É a senhorita Barnes —apontou tão assombrado como ficou Trevor. —Disse-lhe que está ocupado, mas como rejeitou os clientes desta noite e empenha-se em falar com você —explicou-lhe.

—Que entre... —disse depois de suspirar.

O que aquela mulher queria? Não lhe ocorreria pedir explicações por não ter visitado seu leito à noite anterior, não é? Não, não podia ser tal estupidez. O mais provável seria que queria meter no clube outra de suas garotas. Reform olhou por volta do lugar onde sempre mantinha uma garrafa de uísque, mas já não estava, tinha-a substituído por uma de água fresca. Só esperava que lhe desse aquela sensatez que comentou o senhor Hill e que a sensualidade de Jun não o enganasse de novo.

—O que te acontece, querido? —Perguntou assim que abriu a porta.

Como era habitual nela, mal cobria seu corpo e a roupa que usava era de uma qualidade tão incrível que nem as damas da alta sociedade podiam adquiri-la.

—Não me acontece nada —respondeu com desdém. —Por que pergunta?

—Tem febre? Está com gripe? —Insistiu aproximando-se dele para lhe tocar a testa enquanto colocava seus grandes seios sobre os olhos de Trevor. —Não, não parece que esteja ardendo... —murmurou entreabrindo os olhos negros. —Então, a única explicação possível para o tremendo disparate que cometeu ontem foi que tinha muito trabalho e não pôde ir ao meu chamado —continuou falando enquanto tomava assento sem ser convidada. —Entendo-o. É um homem de negócios e para que tudo funcione de maneira adequada tem que fazer um pequeno sacrifício. Mas hoje, como não saiu deste escritório nem um só instante, calculo que teve tempo suficiente para pôr em dia seus papéis. Por isso, querido, espero-te em vinte minutos em meu quarto. Tenho que me preparar para você... —soltou o discurso que tinha meditado enquanto subia as escadas com a esperança de que esquecesse o que lhe passou pela cabeça na noite anterior. Um homem tão bom amante como ele enlouqueceria se mantivesse um celibato de dois dias e por isso se decidiu a subir, para desculpar aquela loucura.

—A jovem que mandou ontem não te explicou a decisão que tomei? —Disse olhando-a sem piscar.

—Oh, sim! Claro que me informou! —Explicou ao mesmo tempo em que apartava a bata de seda para mostrar sua nova lingerie e cruzava as pernas. —Mas não deve ter escutado bem porque me disse que já não necessitaria mais dos meus serviços —comentou ironicamente. —Coisa que não é certa posto que você e eu não chamamos nossos encontros, serviços, mas mantemos uma relação... peculiar —acrescentou desenhando um malicioso sorriso.

—Informou-te corretamente —apontou Reform voltando o olhar para os papéis. —Não vou necessitar dos seus serviços nunca mais.

—Como? —Gritou levantando-se do assento. —Depois de tanto tempo? Meus serviços? Acaso crê que sou um traste velho? —Zangada caminhou os dois míseros passos que havia entre ela e a mesa. —Quer me substituir? Por quem? Por alguma mais jovem? Alguma dessas condenadas que trabalha para mim chamou sua atenção? —Continuou perguntando sem baixar o volume de sua voz estridente. Sem esperar que Reform lhe oferecesse uma taça, nem que respondesse a todas as suas perguntas imediatamente, agarrou a garrafa, olhou de maneira suspeita o líquido transparente e se serviu uma taça. Mas quando a água passou por sua garganta quase se engasgou. —Que diabos é isto? —Trovejou.

—Água —disse Trevor reclinando-se no assento e cruzando-se os braços.

—Água? Substituiu o grandioso uísque que te dei de presente por uma asquerosa e putrefata água? —Vociferou com tanto aborrecimento que suas bochechas tomaram a cor da roupa que usava.

—Beber tanto licor não é bom para a cabeça de um homem de negócios. A água me mantém com a mente limpa e posso tomar decisões, como a que ontem indiquei à sua criada pessoal, sem me arrepender horas mais tarde —assinalou com tranquilidade.

—Não é apropriado...? Necessita de água para se manter sensato? —Uivou colocando suas mãos sobre a mesa e lhe olhando como se quisesse fulmina-lo com o olhar. —Quinze libras a garrafa e não te parece apropriado para seu delicioso paladar?

—Deveria partir —anunciou sem perder a calma. —Está muito alterada e não é consciente de a quem se dirige.

—Sei perfeitamente a quem me dirijo —resmungou apertando os dentes. —Quem parece não saber é você.

—Está me ameaçando? —Trevor franziu o cenho, descruzou os braços e se inclinou levemente para diante.

—O que você faria se eu e minhas garotas decidíssemos aceitar a oferta do senhor Hondherton? —Exigiu saber com uma satisfação muito grande para ocultá-la.

Sabia que desde que apareceram pelo clube este tinha aumentado a clientela e que essa ameaça o faria repensar. Além disso, não estava disposta a perdê-lo. Entre eles tinham nascido uma relação tão perfeita que não podia resolver-se tão cedo e se para que voltasse para seu quarto devesse desafiá-lo, fá-lo-ia sem duvidar.

Trevor a olhou com olhos inexpressivos. Era a primeira vez que observava Jun tão enfurecida que não era consciente da direção que estava tomando a conversação. Suas garotas e ela mesma não estavam felizes no clube? Não tinham amparo? Não lhes pagava cada vez que fechavam as portas? Passavam fome? Sofriam as adversidades climáticas? Se até as deixava viver nas habitações onde trabalhavam! Ia acabar com tudo isso porque ele não retornaria ao seu quarto? Muito lentamente tomou ar e logo o expulsou, como se estivesse fumando um daqueles cigarros que tanto gostava e, olhando-a sem pestanejar, disse:

—Aí tem a porta. Parta com suas garotas desse clube, mas não quero que retorne pedindo clemência. Se for consciente do que acaba de dizer, seja consciente também do que suporá para você se colocar em um chiqueiro como aquele.

Jun ficou imóvel. Aquela cor vermelha que tinha nas bochechas desapareceu com rapidez. Permitia-lhe que partisse? O que estava ocorrendo? O que lhe tinha acontecido para que atuasse com tanta crueldade?

—Não quer voltar para o meu leito... —murmurou com calma ao mesmo tempo em que caminhava para a saída. De repente se girou para ele fazendo com que a bata de seda vermelha se movesse como uma bandeira pelo vento. —Por quê? Fiz algo que não te agradou?

—Durante o tempo que passei em seu quarto soube me agradar muito bem. Mas já não vou retornar —voltou a repetir com calma.

—Por quê? —Insistiu ainda desconcertada pelo que estava acontecendo.

—Porque eu não tenho vontade —declarou com firmeza.

—E agora, por gentileza, deixe-me sozinho.

Girou-se de novo tomando a direção da saída. Apesar de ser rejeitada, tinha as costas reta e o pescoço esticado. Agarrou o trinco da porta e voltou o rosto para ele.

—Minhas garotas seguirão sob seu amparo, mas eu partirei antes do amanhecer —manifestou doída, destroçada por descobrir que entre eles não havia nada.

—Se isso for o que deseja, perfeito. Boa noite, senhorita Barnes, e espero que encontre o homem que esquente sua cama e emocione seu coração —disse terminando com um trato que entre eles jamais existiu.

—Farei —declarou antes de fechar a porta.

Quando Jun saiu do escritório tropeçou com um muro de carne. Surpreendida, elevou o olhar para o rosto daquele homem e conteve a respiração ao descobrir o semblante do agente em quem o afamado inspetor da Scotland Yard confiava.

—Boa noite, senhor Hill... —comentou com seu acostumado charme.

—Senhorita Barnes... —disse Borshon movendo gentilmente a cabeça para ela para saudá-la.

—Veio para solicitar a companhia de uma mulher? Esta noite estou disponível...

—Quer ser rejeitada duas vezes no mesmo dia? —Perguntou entreabrindo os olhos.

—É óbvio que não! —Exclamou com orgulho.

—Pois não me pergunte essa tolice. Boa noite, senhorita Barnes —disse Borshon enquanto atravessava a entrada.


VIII

 

Observou a cena que acontecia em frente a ele em silêncio. Por como Borshon lhe dizia que não tentasse nada ou seria rejeitada pela segunda vez, Trevor entendeu que o atrevido escutou a conversação que tinham mantido. Embora pelos gritos que utilizou Jun para falar, qualquer um que tivesse passeado pelo Hyde Park a teria ouvido.

Reform empilhou uns papéis com as mãos, golpeou-os ligeiramente sobre a mesa como se quisesse igualá-los pelos cantos, e os depositou no lado esquerdo. Enquanto realizava um ato tão corriqueiro tentou imaginar o que opinaria seu novo empregado ante a determinação que tinha tomado a respeito. Pensaria que estava louco por ter rejeitado uma mulher tão espetacular? Qualquer homem deduziria que sim, mas ele também se negou aos seus encantos. Por qual motivo? Estaria casado? Sua esposa seria mais bela e carinhosa que Jun? Por isso lhe respondeu daquela maneira tão rude? Se fosse assim, seria o primeiro marido que se manteria fiel e, esse gesto tão leal, proporcionar-lhe-ia uma admiração que não tinha por ninguém que conhecesse até o momento.

—As gatas zangadas arranham até arrancar a pele a farrapos —comentou Borshon assim que entrou no interior do escritório.

—Não é tão perigosa como aparenta. Só se ofendeu por rejeitá-la —comentou Trevor com indiferença.

—Igual à mulher do senhor Timber —disse enquanto pisava no tapete com mais suavidade que no dia anterior. —Uma linda e cândida mulher que chorava a perda de seu marido. Segundo ela, partira com uma amante, entretanto... —disse misterioso ao mesmo tempo em que apoiava as palmas sobre o respaldo da cadeira e olhava como Reform tentava mostrar uma atitude de homem de negócios.

—Entretanto? —Perguntou Trevor pretendendo parecer interessado por um caso que não lhe resultava relevante.

—O senhor Timber não pôde partir com essa amante. Sua tenra e cândida florzinha o esquartejou e o deu como comida aos seus porcos. Se um vizinho não tivesse encontrado uma orelha, ninguém teria suspeitado dessa encantadora esposa —explicou divertido.

—Está me descrevendo esse caso para que tome cuidado com a senhorita Barnes ou com a senhorita Giesler? —perguntou franzindo o cenho.

—Faço-lhe referência ao dito caso porque um homem deve manter-se alerta quando ao seu lado há uma mulher enfurecida. Se eu fosse você, contrataria alguém que velasse por seus sonhos durante uma longa temporada —comentou enquanto tomava assento.

—Preocupa-se com meu bem-estar, senhor Hill? —Inquiriu Trevor cruzando os braços.

—Seu bem-estar me inspira cuidados, sim. O que me interessa é conseguir a fortuna que me prometeu e se morrer não poderá me pagar como combinamos —expressou Borshon enquanto adotava a mesma postura que seu interlocutor.

—Por um momento me tinha parecido um bom homem —assinalou Reform estendendo a mão para a garrafa de água.

—Pois não o pense... —respondeu fixando os olhos na vasilha de cristal. —Tampouco bebo vodca —repôs ao deduzir que aquele líquido transparente fosse outro daqueles aprimoramentos que oferecia aos seus convidados.

—Não é vodca —revelou Trevor desenhando um sorriso que lhe cruzava o rosto. —É água fresca e insípida —concretizou.

—Agora bebe água? —Perguntou assombrado.

—Como lhe disse ontem, sou um homem de negócios e, como tal, devo ter a mente consciente para tomar decisões importantes —declarou como se tivesse preparado as frases enquanto aguardava sua chegada.

—E um desses temas importantes que deve solucionar tem o nome de Valéria Giesler? —Perguntou antes de pegar a taça de água e lhe dar um grande gole. —Efetivamente, fresca e insípida —repetiu após estalar a língua.

—A senhorita Giesler não é um problema significativo para mim. Só quero protegê-la até que salde minha dívida com ela —remarcou reclinando-se de novo no assento.

—Alegra-me escutar isso —manifestou cruzando as pernas. —Porque se tivesse outro tipo de interesse ficaria louco.

—Desculpe? —Disse elevando a voz.

—Está desculpado —respondeu Hill.

Acabava de captar o interesse daquele presunçoso. Tinha esperado todo o dia para observar o rosto que exporia quando lhe falasse dos pretendentes que a mulher tinha. Se de verdade não lhe interessava como se esforçava em proclamar, não mostraria a típica ira masculina que surge frente a uma emoção tão primária como os ciúmes. Mas se sua hipótese era certa, aquele homem não perderia nem um só instante em marcar seu território.

—A que se refere quando diz que ficaria louco? —Exigiu saber enquanto se movia incômodo no sofá. —Acaso tem uma vida dupla? É uma criminosa? Uma mulher com um passado aterrador?

—Que nada! —Exclamou Borshon antes de soltar uma gargalhada. —A senhorita Giesler é uma irmã protetora e ninguém pode lhe negar uma saudação.

—Então? —Perseverou.

—Depois de averiguar algo mais sobre ela, não entendo a razão pela qual aparece em seu clube vestida de cavalheiro e joga cartas. Se o fizer para ganhar a vida escolheu uma opção inapropriada. Pressinto que encheria suas arcas mais rápido se se convertesse na amante de qualquer homem com quem mantém uma conversação —soltou à queima-roupa.

—Como? O que pretende me dizer? Que todos os que a olham querem deitar-se com ela? Que não há nem um só homem que não pense nela como uma vulgar concubina? —Perguntou Trevor levantando-se de um salto como se alguém tivesse espetado seu rico traseiro com uma adaga.

—É uma forma bastante suave de defini-lo —disse Borshon sem apartar o olhar e estudando cada gesto de Reform.

—Por que chegou a essa conclusão? Acaso se comporta como uma cortesã? —Trovejou mais zangado do que desejava estar.

—A senhorita Giesler mantém uma atitude correta, mas tenho que admitir que vestida de mulher seja imensamente formosa. Qualquer homem que se preze de sê-lo desejaria ter uma mulher assim em seu leito —continuou com sua façanha de zangá-lo. —E, por como a olham, por como sorriem ao vê-la, mais de um sonhou lhe tirar o vestido.

—Maldita seja! —Clamou tornando seus olhos a uma cor semelhante ao das chamas da lareira.

—Mas você só quer saldar sua dívida, não é assim? —Recordou-lhe. —Não acredito que tenha nenhum problema para fazê-lo, e mais, será a primeira vez que ganharei uma fortuna sem ter que empregar minha força. A senhorita Giesler protegida por uma centena de homens que desejam seduzi-la.

—Tão formosa é? —Cuspiu enfurecido.

Necessitava de uma taça, mas não uma de água e sim do uísque mais forte do mundo. Se quisesse assimilar que Valéria era cortejada por muitos homens, urgia-lhe tomar algo que o deixasse inconsciente. Olhou de esguelha ao Borshon e descobriu a zombaria em seu rosto. Estava se divertindo ao vê-lo fora de controle. Mas... por que perdia a sensatez? Por que tinha vontade de dar murros a torto e a direito? Ela era livre para fazer o que a agradasse e se decidisse aceitar a proposição de algum homem... «matá-lo-ia com minhas próprias mãos!», gritou-se mentalmente.

—É —afirmou Hill. —Você não pode admirar a silhueta feminina que mostra com um vestido, nem o brilho de seu cabelo escuro, nem tampouco pôde escutar sua voz, posto que quando entra no clube a troca para não ser descoberta. É tão hipnótica, tão atraente como o canto de uma sereia e, como há muitos marinheiros nesta cidade, todos eles ficam apanhados por seu leve canto.

—O que pretende? —Trovejou olhando-o como se quisesse aniquilá-lo com os olhos. Esses que, devido ao inesperado ciúme estavam injetados em sangue. —Por que me informa sobre isso?

—Segundo você, não tem nenhum tipo de interesse por ela salvo o de amparo e quero lhe informar não deve preocupar-se, todo mundo a respeita e cuida dela. Acredito que até o homem que aparece em seu lar pela manhã... —adicionou mordaz.

—Que homem? Para que aparece em seu lar? Quanto tempo fica? Ficam sozinhos? —Perguntou sem respirar ao mesmo tempo em que agarrava o respaldo de sua cadeira como se quisesse arrancá-lo.

—Um tal Mayer. Escutei-as conversar sobre ele —esclareceu.

—Elas? —Demandou arqueando as sobrancelhas negras.

—A senhorita Giesler esteve acompanhada de uma jovem durante seu passeio pelo mercado. Enquanto as seguia, a mulher desconhecida não cessava de fazer referência às atitudes negativas do professor dos meninos, entretanto sua protegida enfatizava tudo aquilo que lhe resultava positivo —informou-lhe com uma aparente tranquilidade. Mas não estava, não queria nomear Kristel, precisava mantê-la à margem, embora ela fosse uma peça chave em sua explicação. Não era o mesmo, Valéria ir só ao mercado ou em companhia de outra mulher.

—Como é? —Trevor exigiu.

—Quem? A mulher? —Borshon inquiriu inquieto.

—Esse tal Mayer. Velho, jovem, alto, baixo, viu bem...? —Enumerou sem mal tomar ar.

—Jovem, alto, veste-se de maneira adequada para um humilde professor e, conforme comprovei, tem o beneplácito da senhorita Giesler. Por que se preocupa, senhor Reform? Possivelmente a aparição desse homem seja a melhor opção para você —continuou importunando-o. —Uma vez que sua protegida encontre um marido, este velará por ela e poderá não só resolver essa dívida, mas também não voltará a vê-la neste local. Que marido razoável permitiria que sua formosa mulher abandonasse seu leito quente para se vestir de homem e jogar cartas? Se o faz tudo por dinheiro, desaparecerá assim que contrair matrimônio e encontrar uma figura masculina para seus irmãos.

Isso que cobria suas mãos era suor? Por esse motivo se escorriam pelo respaldo do assento? Trevor tentou controlar a respiração considerando tudo aquilo que Hill lhe expôs. De certa forma tinha razão, uma vez que ela encontrasse um marido todas as suas dores de cabeça desapareceriam. Pagar-lhe-ia aquela maldita dívida e não a veria mais. Entretanto, não estava disposto a que isso ocorresse. Antes que se comprometesse com outro homem e que o feliz casal gerisse uma fazenda, desejava admirá-la como mulher. Sim, urgia-lhe contemplá-la com um vestido marcando sua delicada figura. Desfrutar da visão que obteria ao admirar seu cabelo escuro...

Entreabriu os olhos para fixá-los em Borshon. Seria prudente lhe confessar o que pensava? Teria que manter-se precavido com ele ou poderia ser um louco enfurecido ante um inexplicável sentimento de ciúmes? «Não se trata disso —disse-se. —Quão único deseja é averiguar como é Valéria fora destes muros. Embora deva recordar que entre ela e você existe um mundo intransponível».

—Seu silêncio me desconcerta —comentou Hill depois de observar como Reform se acariciava o queixo e sustentava um olhar perdido. —Não lhe resultou agradável minha indagação? Porque pensei que lhe reconfortaria. Um homem de negócios como você não pode perder nem um só instante em refletir sobre atos femininos...

—O que tem programado para fazer quando amanhecer?

—Soltou Trevor desenhando um sorriso maligno.

—Tenho que ir à Scotland Yard, recorda-lhe que meu verdadeiro trabalho é velar pela segurança da nossa cidade.

—Então... não poderá vigiá-la? —Perguntou estreitando seus olhos.

—Não até a noite —esclareceu.

—Bem... —sussurrou. —Muito bem...

—Tenho que lhe recordar que se encontra em frente a um agente da ordem. Se essa expressão pausada e moribunda indica o que estou supondo... —comentou Borshon levantando-se do assento com lentidão.

—Minha expressão, como você o denominou, indica que estou procurando uma maneira de fazer com que apareça em meu local sem esse desventurado traje de homem —disse rude. —Quero averiguar por mim mesmo o motivo pelo qual tem tantos pretendentes.

—Por que motivo? Não lhe serviu minha explicação? Além disso, a você não deve importar tal tolice, equivoco-me? —Continuou sustentando aquele olhar suspeito.

—O que a faria vir? —Perguntou ao ar enquanto acariciava de novo o queixo.

—Se gosta de jogar, o jogo, é óbvio —respondeu Borshon rapidamente.

—Isso já sei, mas... como a obrigaria a ser Valéria Giesler em vez do senhor Hernández?

—Senhor Hernández? —Perguntou Hill desconcertado.

—Assim me fez chamá-la enquanto jogávamos na mesa —esclareceu Trevor.

Durante uns minutos ambos os homens se mantiveram calados. Borshon o observava sem pestanejar ao mesmo tempo sua cabeça gritava que lhe fizesse a pergunta que, desde que o contratou, aparecia-lhe incontrolavelmente. Por outro lado, Reform meditava a forma mais adequada de atrair um inseto à sua teia porque, muito ao seu pesar, desta vez o animal que devoraria a presa seria ele.

—Talvez pudesse lhe ajudar, —alegou Hill rompendo aquele silêncio —se você me esclarecesse o motivo dessa dívida.

—Obriguei-a a jogar uma partida —expôs Trevor sereno.

—Queria averiguar por mim mesmo que não fazia armadilhas.

—E?

—Não as fez —manifestou com um orgulho que não devia expressar a sério. —Essa mulher é muito inteligente. De uma forma inaudita averiguou que cartas seriam as próximas em aparecer e ganhou honestamente.

—Poderia ter um parceiro... —apontou.

—Não, —negou não só com o monossílabo, mas também com um leve movimento da cabeça. —Nem tampouco havia marcas nas cartas, ocupei-me eu mesmo de revisá-las.

—De quanto é essa dívida? —Perseverou.

—Mil e seiscentas libras —declarou esperando escutar uma grande gargalhada por sua parte, mas não o fez. Só abriu os olhos como pratos e respirou fundo. —Foi minha culpa. Eu lhe prometi que se ganhasse o obteria e, como pode observar, ganhou. Mas isso não é um problema para mim...

—Não? Então por que não a salda e a deixa em paz? —Insistiu-lhe.

—Porque quero saber quem é, só isso —contestou notando como a raiva se apoderava de novo dele. Deixá-la em paz? Como lhe ocorria tal tolice? —Em vez de tentar que eu esqueça meu propósito, poderia me ajudar. Já sabe a resposta —asseverou.

—Se só aparece para jogar, se a quer vestida de mulher... —meditou Borshon caminhando para a porta. —Possivelmente seria conveniente que, durante uma noite, não vete a entrada às mulheres que não utilizam seu corpo para enrolar os clientes.

—O que quer dizer com isso? —Perguntou na expectativa.

—Que proponha um dia no qual as mulheres também possam visitar seu clube, possivelmente ela não se disfarçaria para ocultar quem é em realidade.

—Não pensou que tenho as salas cheias de cortesãs? Os sócios não saberiam que mulher escolher e poria a mais de uma dama em apuro —resmungou.

—Pois salvo que lhes permita um dia livre..., —apontou divertido —não vejo outra saída.

Reform se voltou para a janela, levou as mãos aos suspensórios e refletiu nessa opção. Não era tão descabelada como parecia e suas empregadas agradeceriam umas horas livres para desfrutar de certa liberdade. Mas depois do ocorrido com Jun... pensaria que só era uma desculpa para despedi-las?

—Quanto pode perder? —Quis saber Hill agarrando o trinco da porta.

—Como empresário ou como homem?

—Não é a mesma pessoa? —Soltou Borshon entreabrindo os olhos.

—De um ponto de vista empresarial o suficiente para notar um buraco em meu bolso, do outro lado...

—Pense devagar, senhor Reform. Não tenha pressa. Essa mulher não partirá de Londres antes do amanhecer.

—Não estou tão seguro... —sussurrou.

—Darei meu endereço ao senhor Berwin. Se decidir abrir suas portas para todo mundo estarei encantado de lhe fazer uma visita.

—Não precisarei de sua presença se Valéria aparecer, eu mesmo a protegerei —disse com tom solene.

—Não pretendo roubar seu posto, só quero ser testemunha de um momento tão prodigioso. Boa noite, senhor Reform. Esperarei notícias delas.

—Boa noite, senhor Hill, as terá.

Quando o agente fechou a porta após sua saída, desceu as escadas devagar, esperando que o dono do clube aparecesse para lhe informar o dia e a hora, mas já estava no último degrau e não tinha saído de seu escritório. Não lhe resultou boa ideia? Não queria vê-la com imagem de mulher? O que esperava para fazê-lo? Negou-se a continuar com uma amante como a senhorita Barnes, uma prostituta professionel, como havia dito sua querida mãe. Não era sinal suficiente para saber que o que o unia à Valéria não era uma dívida de dinheiro e sim um sentimento que muito poucos homens alcançavam em sua vida?

«O amor é algo que não se obtém com facilidade —disse-lhe sua mãe, no dia que decidiu confessar quem era seu pai. —Só os afortunados conseguem algo tão belo». Por parte do senhor Reform tinha nascido esse sentimento, agora ficava conquistar uma mulher que em cada passo que dava era assaltada por uma proposta de matrimônio.

—Senhor Hill —acudiu Berwin ao observá-lo em frente à saída.

—Senhor Berwin, se fizer a gentileza de me facilitar papel e pluma, tenho que lhe apontar meu endereço. O senhor Reform deve me enviar uma nota quando...

—Berwin! Berwin! Onde diabos se colocou? —Trevor vociferou saindo de seu escritório e segurando o corrimão com força.

—Aqui, senhor. Atendendo seu convidado —disse com voz cansada, como se soubesse que ante essa aparição seu velho coração pulsaria desenfreado.

—Quero que amanhã mesmo se publique no periódico mais importante de Londres que o Clube Reform oferecerá uma festa tanto para cavalheiros como para damas.

—Como? —Perguntou o assistente abrindo tanto os olhos que as esferas de seus óculos ficaram pequenas para cobri-los.

—Disse damas? Refere-se a mulheres? —Perguntou atônito.

—E o que faremos com as que trabalham aqui? As disfarçamos para que ninguém as reconheça?

—Informe-lhes que na próxima terça-feira terão uma noite livre, que as pagarei como se tivessem trabalhado, mas que não as quero rondando pelas salas —disse à viva voz. —Quando terei essa nota sobre minha mesa? Não se dá conta das horas que são?

—Sim, sou consciente da hora que é... —murmurou apertando os dentes.

—Acredito que já não precisa do meu endereço —interveio Borshon enormemente surpreso e feliz. —Já fui informado pelo próprio senhor Reform.

—Você sabia que ia cometer esta loucura? —Inquiriu com incredulidade.

—Fui eu quem a sugeriu —disse sorridente.

—Pois você parece um homem muito sensato para fazer referência a esse tipo de demências —repreendeu-lhe.

—Pareço? Pois não sou —expôs antes de sair do clube e soltar uma enorme gargalhada.


IX

 


—De verdade? Não lhe causaremos nenhum incômodo? —Valéria perguntou ao senhor Mayer depois que este explicasse que, essa mesma manhã, tinha a intenção de oferecer aos seus irmãos um conteúdo de botânica e que a melhor forma de aprender era levando-os para visitar o Kew Gardens. Claro estava; havia uma condição a esse oferecimento generoso: ela devia acompanhá-los.

—Não é nenhum incômodo, senhorita Giesler. Minha irmã me cedeu sua carruagem para tal ocasião e insisto que esta excursão será muito apropriada para eles. Não há melhor forma de ensinar que mostrando aquilo que se explica, e ali poderão descobrir uma ampla variedade de plantas —declarou colocando as mãos nas costas para exibir uma atitude masculina e firme. —Se, tal como diz, quer que se convertam em fazendeiros, devem diferenciar em primeiro lugar que classe de cultivo se adaptará melhor ao nosso clima.

—Parece-me uma ideia excelente, sempre que não lhe incomodemos —insistiu.

—Você e seus irmãos jamais me causarão desconforto —disse dando um passo para ela para aproximar-se mais que o permitido entre duas pessoas que não mantêm uma amizade íntima.

—Posso preparar um lanche? —Perguntou dando vários passos para trás, apartando-se da aproximação indevida. —Conforme tenho entendido, pelos arredores poderemos estender algumas mantas e desfrutar de um maravilhoso dia de sol —comentou olhando de esguelha a sua amiga quem, depois de escutar as repugnantes palavras do professor, evitou arrastá-lo por volta da porta e despachá-lo como no dia anterior.

—É claro. Enquanto informo ao cocheiro sobre nosso plano e ele arruma o interior para a viagem, você tem tempo suficiente para elaborar alguns sanduiches. Recomendo-lhe que leve só um lanche e um pouco de fruta. Quando as crianças têm seus estômagos cheios ficam preguiçosas e custam a aprender. Sempre se disse que não há melhor situação que a fome para manter uma mente acordada —alegou como se fosse uma ocorrência divertida.

Mas à Kristel não foi nada engraçado esse comentário tão irônico. Sua cabeça lhe ofereceu a imagem daqueles meninos chorando porque tinham fome, enquanto ele golpeava com uma vara a mesa para que prestassem atenção ao novo conteúdo.

—Farei como diz —disse Valéria girando sobre si mesma para preparar rapidamente tudo àquilo que necessitavam para uma repentina manhã de piquenique.

—Senhorita Griffit, —falou dirigindo-se para Kristel —espero que desfrute de seu descanso.

—Ela não pode vir? —Valéria perguntou voltando-se para o senhor Mayer.

—Muito me temo que não. A carruagem só pode albergar quatro pessoas e, com a senhorita Griffit, seríamos cinco —assinalou como se aquele contratempo lhe entristecesse.

—Colocarei Martin sobre meu regaço. Desse modo teremos assento livre. —Valéria ofereceu como alternativa.

—Mas senhorita Griffit não quererá empregar seu tempo em realizar outra tarefa mais amena? As aulas de botânica são muito entristecedoras para pessoas que não possuem conhecimentos sobre plantas... —acrescentou tentando dissuadi-la.

—Levará seu livro —apontou ela. —Seguramente aproveitará o tempo lendo sobre esse tal Moby Dick, não é? —Perguntou olhando-a com ternura.

Aquele comentário foi bastante ofensivo e já começava a cansar-se sobre aquele tipo de tratamentos para com ela. Era verdade que Kristel demorava muito para realizar operações singelas de aritmética, mas ninguém podia equipará-la em seu voraz desejo pela leitura. Por que se comportava desse modo? Não era capaz de ver mais à frente que o físico de uma mulher?

—Será um prazer lhes acompanhar —disse Kristel com um enorme sorriso. —Prometo que não dormirei nessa aula de botânica, senhor Mayer. Centrar-me-ei em averiguar o motivo pelo qual Ahab se obceca por caçar uma pobre baleia branca. Possivelmente me explique por que há tantos homens autodestrutivos no mundo —indicou mordaz e utilizando palavras que demonstrava quão culta era apesar de ter um defeito na perna.

—Esse livro não é adequado para uma mulher... —resmungou o professor.

—Por qual motivo? —Perguntou Kristel arqueando as sobrancelhas loiras. —Por essa obsessão demente? Pela autodestruição? Ou porque oferece uma visão masculina bastante peculiar?

—Seu autor, Herman Melville, —declarou esticando o corpo —não tem consideração pelo mundo marinho. Todos aqueles que trabalham em um navio baleeiro merecem respeito.

—Pois auguro que será um escritor bastante afamado, embora não agrade mentes tão lúcidas como as do senhor —respondeu com firmeza. —Porque na obra se podem encontrar temas tão diversos como idealismo, hierarquia, pragmatismo e inclusive sede de vingança —enumerou sem respirar.

—Mesmo assim, não é uma novela a ter em conta —resolveu a conversação olhando de novo à Valéria e tentando desenhar um sorriso que lhe custava oferecer. —Esperar-lhe-ei lá fora. Não demore, por favor.

—Não o farei —ela afirmou antes de buscar umas porções de pão.

—Odeio-o! —Kristel exclamou quando Mayer fechou a porta. —É abominável! Quem se acreditou que é, o próprio Deus? Como pode desprezar uma obra sem sequer lê-la?

—Eu deveria anular a excursão —comentou Valéria considerando. —Tal como diz, esse homem é um presunçoso e não me agradou o trato que te brindou.

—Não pode —disse Kristel sem mover-se. Era a primeira vez que falava sobre esse comportamento sem oferecer uma elucidação positiva, por isso deduziu que começava a cansar-se do senhor Mayer. Mas não era o momento apropriado para rebater a atitude inapropriada. —Martin e Phillip estão felizes por sair daqui.

—Mas te menosprezou... outra vez.

—Não estou zangada por como me tratou, mas sim por como degradou um livro tão interessante sem havê-lo lido —esclareceu caminhando para ela. —Além disso, apesar de sua hábil patranha, acompanhar-lhes-ei.

—Por mais que tente nos separar, não conseguirá. Só o homem do qual se apaixone poderá fazê-lo —acrescentou divertida.

—Não existe nem existirá uma pessoa que consiga conquistar meu coração —murmurou.

—Nem o senhor Hill? —Soltou irônica.

—Se por acaso não viu com clareza, o senhor Hill é terrivelmente atraente e estou segura de que seu comportamento para comigo foi só um ato de cortesia —replicou mal-humorada. —Esse homem terá às suas costas uma comitiva de mulheres casadouras.

—Então o ataque para o senhor Mayer... foi só pelo conteúdo do livro e não por ser o presente desse agente? —Perguntou sarcástica.

—É obvio! —Exclamou cortante. —Parece-me muito cruel que se subestime uma novela de tal índole por um homem tão insosso.

—Insosso? —Valéria perguntou enquanto colocava a alça da cesta sobre seu braço.

—Insípido, anódino, simples... —enumerou.

—Bom, pois tentemos desfrutar de uma manhã de sol com esse homem... insosso —expôs divertida.

Como indicou Valéria, assim que entrou colocou Martin em seu regaço, Philip se sentou ao lado do senhor Mayer e Kristel em frente ao menino. Durante o trajeto o professor os chamou à ordem em várias ocasiões, mas Valéria os desculpou explicando que estavam muito entusiasmados porque não tinham visto nunca um lugar tão importante de Londres.

—Os homens devem controlar seus sentimentos —respondeu a tal defesa.

—Por sorte para eles, ainda não o são —replicou Valéria. Enquanto Mayer começava sua exposição de botânica, para que a mente dos moços permanecesse concentrada no que ele acreditava importante, Kristel não apartou o olhar da janela. Observava as ruas por onde transitavam e tentava não mostrar o prazer que lhe proporcionava passear pelos lugares sem ter que controlar sua claudicação. Era uma sensação muito agradável dirigir-se a qualquer lado em uma carruagem, fora da vista dos outros, sem que ninguém se colocasse atrás dela para zombar. Só teria que descer devagar os degraus, procurar uma região tranquila, estender uma das mantas que Valéria levava, e deixar que o sol esquentasse seu corpo enquanto lia a novela que, embora não agradasse ao professor, tinha-a completamente enfeitiçada.

De repente, a carruagem se moveu de maneira brusca e teve que agarrar o livro com mais força para que não caísse ao chão. O instinto de amparo não passou despercebido para o senhor Mayer que novamente olhou-a com desagrado. Como os homens podiam ser tão mesquinhos? Como podiam suportar situações que não lhes agradavam para obter aquilo que queriam? De verdade uma mulher não deveria ler um livro tão interessante? O que pensaria a mãe de Borshon sobre esse tipo de convicções? Segundo ele, dado que não podia mover-se, era uma leitora voraz. Deixar-lhe-ia sobre um móvel quando seu filho o desse? Ou estaria tão intrigada como ela?

Ao pensar sobre o agente apareceram mais perguntas por sua cabeça que a inquietaram estranhamente. O que estaria fazendo? Em que lugar de Londres permaneceria? Estaria na Scotland Yard? Teria posto o uniforme que os periódicos comunicaram? O que fez durante a noite passada? Correu atrás de um criminoso? Feriu-se? Saíra ileso? Uma inesperada angústia se apoderou dela ao recordar quão último tinha lido em um noticiário sobre os novos agentes da delegacia de polícia. Nele se falava sobre a temeridade do inspetor O´Brian, um homem que não tinha medo de morrer e que, devido a isso, lutava corpo a corpo contra os criminosos. Também leu, em dito artigo, que seus agentes eram instruídos com as mesmas convicções que o inspetor; chamavam-nos com o codinome de esquadrão sem medo. Borshon teria aprendido essa inadequada lição? Seria tão ousado como seu superior? Não temeria a morte? O que seria dessa mãe doente se seu filho não aparecesse vivo?

Um repentino tremor lhe percorreu o corpo e teve que aferrar-se com mais força ao livro para que o suspeito professor não descobrisse aquela agitação. «Deixa de pensar —disse-se.

—Tanta história sobre perseguição obstinada não te beneficia. Além disso... não há nada entre vocês. Crê que se lembrará de você? De uma mulher imperfeita? Que pusesse suas mãos em seus quadris, não indicava nada salvo o desejo de fazer desaparecer a claudicação por uns instantes...»

—Jovens cavalheiros Giesler —disse Mayer como se pretendesse dar um discurso. —Como não estão acostumados a manter uma educação respeitável para uma mulher, porque não têm a presença masculina que necessitam com urgência, informo-lhes que, uma vez que os homens colocam seus pés no chão, têm que estender as mãos para as mulheres que permanecem no interior da carruagem para lhes facilitar a descida.

—De verdade? —Phillip perguntou cravando seus olhos azuis no rosto de sua irmã. À sua confirmação, soprou. —E se a mulher for tão grande como um cavalo? Não nos atirará ao chão?

—Não. Porque a força de um homem é maior que a de uma mulher. Se lhe segurar da maneira apropriada, nunca tocarão o chão. Mas não se alarmem, eu mesmo lhes mostrarei como se faz quando estacionarmos —Mayer acrescentou sorrindo ao ver que o cocheiro diminuía a velocidade.

Assim que o coche parou, dando por concluída a viagem, o professor abriu a porta, saltou ao chão, estendeu as escadas e disse:

—Devem descer primeiro, —ordenou aos meninos —e não se afastem muito. Quero que observem como se tem que sustentar a mão de uma mulher para que não tropece com o vestido. —Dito isto, estendeu a sua mão para Valéria para que a aceitasse. Ela, como se estivesse atuando em uma peça de teatro, segurou o vestido pela esquerda, subiu-o brandamente e se agarrou com força à mão de Mayer.

—Perfeito! —Aclamaram os pequenos quando sua irmã colocou os pés como se fosse uma leve borboleta.

—Phillip, como é o mais velho, faça o mesmo que eu fiz com a senhorita Griffit. Recorda que um de seus pés não funciona e poderia cair diante de toda esta gente —acrescentou olhando ao seu redor.

O moço, ao sentir-se esmagado ante tal situação, olhou à Kristel lhe pedindo auxílio. Esta, para não ridicularizar o menino na primeira vez que realizava um ato cortês, nem para sentir-se o centro das atenções de tantos viandantes, agarrou com a mão direita o marco da porta da carruagem e desceu sozinha.

—Na próxima vez sua irmã deixará que a ajude. Uma mulher como eu, com esta imperfeição na perna, pode ferir, sem pretender, o orgulho de um homem —disse-lhe antes de beijar seu cabelo dourado.

—Quando eu for muito forte te ajudarei a descer, tia Kristel —disse-lhe o menino agarrando-a carinhosamente pela cintura.

—E tia Kristel te deixará fazê-lo —afirmou antes de tragar o nó que lhe tinha formado na garganta.

Valéria esteve a ponto de girar-se para Mayer e lhe gritar que era um insolente, um imbecil e todos os insultos que tinha aprendido desde menina. Mas quando olhou à sua amiga e esta moveu levemente a cabeça lhe dando a entender que se encontrava bem, que não devia preocupar-se, agarrou com força a cesta, caminhou para ela e lhe estendeu o braço para que se apoiasse.

—Vamos, Kristel, desfrutemos deste dia maravilhoso enquanto o amável senhor Mayer oferece a lição de botânica que veio dar aos meus irmãos.

E, deixando os pratos, caminharam para um lugar onde a sombra as resguardaria do sol.


—Qual será seu trabalho esta manhã? —Aphra perguntou ao seu filho quando este se apresentou ante ela usando o uniforme de trabalho. Com aquela altura e aquele traje tão escuro e sóbrio parecia um gigante zangado. Aquela imagem dura e feroz era sua melhor arma. Qualquer criminoso se dobraria ante um homem como ele. Embora ela, melhor que ninguém, sabia que embaixo daquele aspecto se achava uma pessoa terna e bondosa. —mandar-lhe-ão de novo ao Whitechapel?

—Bom dia, mãe. Hoje me nomearam o guardião de um enxame de abelhas —comentou divertido enquanto caminhava para ela. Trocou o chapéu de mão, abaixou a cabeça e lhe deu um beijo na bochecha esquerda.

—Só lutam por nossos direitos —repreendeu-lhe carinhosamente. —Não te ocorra lhes ferir.

—Jamais machucaria uma mulher! —Exclamou como se lhe tivesse apunhalado o orgulho. —Só é um grupo de damas que lutam contra a tirania do poder masculino —esclareceu.

—Sei... mas conforme tenho lido, nem todo mundo as apoia. Recorda que foi uma mulher quem te deu a vida... —assinalou enquanto acariciava a casaca com suas mãos para ambos os lados como se lhe apartasse bolinhas de pó.

—O inspetor jamais ordenaria agredi-las, têm seu beneplácito. Como bem disse, só querem obter aquilo que lhes nega por terem nascido mulheres —Borshon explicou dando um passo para trás. De soslaio olhou o livro que lhe tinha comprado no dia anterior, pela dobra do canto descobriu que passara a noite lendo. —Captou sua atenção? —Soltou movendo ligeiramente a cabeça para o tomo.

—Todos captam minha atenção —respondeu sem apartar o olhar de seu filho. —Mas não deveria comprar mais nenhum.

—Por quê?

—Porque a casa é pequena e não terei nem um vão para colocá-los —manifestou com voz rude, como se tentasse lhe fazer entrar em razão. Mas o certo era que se convertia em uma menina quando Borshon escondia entre a roupa outro livro com o qual passar o tempo. Graças a eles podia suportar a árdua tarefa que o destino lhe ofereceu desde aquele dia.

—Enquanto possa, far-lhe-ei. Além disso, já lhe disse que logo comprarei outra e me encarregarei de adquirir a melhor biblioteca de Londres —afirmou sereno.

Aphra o observou com cautela, apesar daquele sorriso e daquela aparente integridade, algo lhe acontecia. Se seu instinto maternal não errava, tinha lhe ocorrido algo no dia anterior que não se atrevia a lhe contar. Possivelmente devia insistir um pouco mais para que não aceitasse a proposta do senhor Reform. Entretanto, também era consciente de que, tinha tomado uma decisão, nada nem ninguém lhe faria mudar de opinião e só teria provocado uma disputa entre ambos.

—Pensa passar o dia aí de pé calado ou vai me contar o que te acontece? —Perguntou-lhe para despertá-lo do devaneio no qual se introduziu.

—Como sabe que me acontece algo? —Perguntou segurando a cadeira que tinha ao seu lado para colocá-la junto cama.

—Recorda que permaneceu em meu útero durante muitos meses e esse vínculo não é fácil de eliminar. Sinto em minha própria pele suas preocupações e alegrias.

—Sempre? —Indagou zombeteiro. —Não seria apropriado que uma mãe sentisse quão mesmo seu filho em certas ocasiões luxuriosas...

—Não diga bobagens! —Aphra clamou zangada, ruborizando-se pelo comentário tão descarado. —Refiro-me a que noto quando algo te perturba.

—Isso me deixa mais tranquilo —alegou sem apagar um enorme sorriso.

—É por vigiar essas mulheres? Pensa que não será um protesto pacífico? —Insistiu.

—Não se trata disso, mãe. Elas nunca brigaram quando se reuniram em frente ao Kew Gardens. É outro tema o que me deixa pensativo...

—Que tema? —Aphra perguntou inquieta. —Trata-se do senhor Reform? Disse para você fazer algo que vai contra seus princípios? Embora vigiar a essa professionel não é muito moral...

—Não é uma prostituta, mãe. É uma jovem com a qual tem uma dívida e não quer que lhe aconteça nada até que a salde —declarou firme para que não voltasse a denominar dessa maneira a senhorita Giesler.

—Então? —Insistiu.

—Enquanto protegia essa moça, conheci uma mulher muito especial... —começou a dizer. —A princípio só me interessei porque observei que coxeava, mas logo fui incapaz de apartar meus olhos dela. No mercado, enquanto a moça pela qual o senhor Reform me contratou admirava uma barraca de tecidos, ela se dirigiu para o senhor Daft, o livreiro, e aconteceu algo que me causou tanta ira que estive a ponto de agredir dois moços.

—O que lhe fizeram? —Perguntou recostando-se sobre os travesseiros.

—Zombaram de sua forma de andar. Aqueles ingratos se colocaram atrás de Kristel e a imitaram entre risadas —declarou sem ser consciente de que revelara seu nome e sem dar-se conta de que a ira apareceu de novo em seus olhos.

—Como atuou... Kristel? —Inquiriu observando como Borshon levantava a sobrancelha esquerda ao escutar o nome da mulher por sua boca.

—A princípio me repreendeu, logo ficou parada no meio do caminho, como se não quisesse andar. Acredito que se envergonhou ao descobrir que era o centro das atenções. Durante um breve tempo meditei se era correto me aproximar dela ou deixá-la sozinha, mas algo em meu interior me impulsionou a me dirigir até onde se encontrava e, uma vez ao seu lado, estimulei-a para que continuasse andando.

—E?

—E lhe dei de presente um livro —manifestou levantando do assento.

—Não me parece algo importante, nem tampouco entendo por que te inquieta ter atuado dessa forma. Só reagiu como deveria fazer um homem com honra e educação —sentenciou.

—Sei..., mas também fiz algo inapropriado —disse enquanto colocava a cadeira em seu lugar.

—Você? O que? —Aphra perguntou abrindo os olhos como janelas.

—Pus minhas mãos sobre sua cintura e não as retirei com rapidez —declarou com uma mescla de vergonha e horror.

—Incomodou-a? Repreendeu-te por fazê-lo?

—Não, embora notasse como lhe tremia o corpo —revelou.

—Esse tremor estaria causado pela estranheza. Certamente não está acostumada que alguém ponha suas formosas e ternas mãos sobre ela. Se, tal como me disse, zombam de sua claudicação, não terá conhecido um homem que a trate com o devido respeito —disse enfatizando a última

palavra.

—É duro a menosprezem por não ser perfeita, —refletiu Borshon. —Embora seja formosa, ninguém a olha como merece.

—Salvo meu filho —apontou com rapidez.

Hill alisou o cabelo como se precisasse apartar umas mechas do rosto e olhou de novo à sua mãe.

—Que mais? —Ela animou-o ao ver que continuava absorto em seus pensamentos.

—Ao partir decidimos nos ver na próxima quarta-feira. Ela deseja te entregar o livro que levou e me pareceu uma boa ideia —expôs reflexivo.

—Mas?

—Mas sinto algo aqui —disse levando a mão ao peito —que me grita que deveria vê-la antes, que não devo esperar esse dia.

—Imagino que se é amiga da moça que protege, poderá fazê-lo quando a vigiar. Sempre pode acontecer algo que possa fazê-la tropeçar... —insinuou.

—Mas não posso aparecer quando desejar, devo me manter oculto. Não é bom para meu trabalho me apresentar em frente a elas cada vez que queira falar com Kristel —manifestou com certa aflição.

—Como Kristel é? —Decidiu lhe perguntar após deduzir que essa jovem se colocara na cabeça de seu filho sem saber.

—É... mais ou menos assim de alta —descreveu colocando sua mão pelo ombro. —Seu cabelo é dourado, como se o sol pousasse sobre sua cabeça. Os olhos são tão claros como o céu e seus quadris... voluptuosos.

—É inteligente? Eu sei que aos homens lhes fascina a aparência física de uma mulher, mas as mães se preocupam com o que ocultam dentro dessas bonitas cabeças douradas —apontou divertida.

—O que você pensa sobre as mulheres que leem? —Retrucou irônico.

—Que são muito espertas e que podem obter tudo aquilo a que se propuserem —respondeu altiva.

—Então você mesma respondeu a pergunta; Kristel é muito inteligente —expôs antes de rir.

—Poderia trazê-la quando terminar seu trabalho com o senhor Reform. Ficarei encantada de conhecê-la.

—E ter três mulheres que elogiem o bom filho que sou? Nem morto! —Expressou divertido enquanto retornava de novo junto à sua mãe. —Não demorarei em vir. Se tudo seguir segundo o previsto, minha jornada acabará às cinco.

—Que ninguém toque esse corpo que tanto...

—Custou-me tirar de minhas vísceras —Borshon terminou a frase, deu-lhe outro beijo e depois de informar Giselle onde se encontraria se por acaso houvesse algum contratempo, saiu de seu lar para dirigir-se para o Kew Gardens e continuar com seu trabalho de proteger mais mulheres.


X

 

—Está feliz? Desfrutou? —Valéria perguntou à Kristel quando deixou, depois de duas horas de incansável leitura, o livro sobre a manta.

—Isto é maravilhoso —respondeu mediante um longo suspiro. —O sol brilha, os pássaros cantam ao nosso redor, respiramos ar puro, e inclusive comemos, embora conforme comentam isso atrasa nossa mente... parecemos duas damas da alta sociedade desfrutando de um magnífico dia ensolarado sem nos preocupar em como viveremos o amanhã.

—Quando eu finalizar o pagamento da fazenda poderemos fazer um piquenique cada vez que quisermos —Valéria comentou empacotando as sobras do almoço. —Não precisaremos de uma carruagem para nos deslocar, bastará sair do nosso lar e estender as mantas sobre a erva que nascerá no campo.

—Não necessitaremos de outro senhor Mayer para uma jornada semelhante? —Perguntou afiada. —O que será de seus irmãos sem a figura de um professor que lhes explique quais as sementes é apropriadas para cultivar? —Adicionou com o mesmo tom.

—Muito me temo que o despeça —respondeu exibindo em seu semblante mais prazer que angústia. —Terá que procurar-se outra mulher desesperada com a educação de seus irmãos.

—Que tragédia! —exclamou dramática Kristel. —E o que esses meninos farão sem uma figura masculina? Terminarão malcriados? Destruiremos sua masculinidade? Deveria pensar sobre isso, Valéria. A dignidade de Martin e Philip depende de você —prosseguiu mordaz.

Apoiou a mão direita sobre a manta e começou a incorporar-se. Conforme percebia, sua amiga já tinha dado por concluída a jornada campestre. Olhou para o lugar por onde deviam aparecer os meninos com o professor e não os achou. O que pretendia fazer enquanto retornavam?

—Muito me temo que esteja pensando em dar um passeio... —resmungou Kristel.

—Não podemos permanecer toda a manhã sentadas —comentou sem olhá-la. Não precisava olhar para saber que tinha franzido o cenho. Não gostava de passear, mas não lhe agradava manter-se quieta durante tantas horas.

—Mas eu posso fazê-lo enquanto você caminha pelos arredores. Vigiar-te-ei à distância.

—Não é apropriado que duas formosas mulheres fiquem sozinhas em meio a este enorme jardim. Qualquer homem poderia nos assaltar e manchar nossa honra —acrescentou divertida.

—Seguramente minha honra ficará intacta quando descobrirem o movimento dos meus quadris —manifestou arrumando a saia de seu vestido.

—Movimento de quadris? —Valéria soltou com suspeita.

—Já não a denomina claudicação?

Kristel se ruborizou com rapidez. Como tinha sido tão distraída para expressar uma tolice semelhante? Movimento de quadris? Só Borshon tinha definido dessa forma sua imperfeição. Por que utilizou suas palavras? Por que se ruborizava como se fosse uma menina ao recordar o que sentiu ao lhe declarar tal insolência?

—De um tempo para cá deixei de me martirizar por não andar como os outros —respondeu olhando a todos os lados menos à sua amiga. —Estou cansada de sofrer e só pretendo me acomodar ao corpo com o qual morrerei.

«Perdoe minha ousadia, senhorita Griffit, mas esses movimentos de quadril me deixaram tão hipnotizado que não posso apartar meus olhos». Kristel recordou as palavras do senhor Hill enquanto a vermelhidão que tinha aparecido em seu rosto se intensificava.

—Parece-me uma decisão brilhante. Ninguém é perfeito, embora muitos tenham um ego tão grande que sejam incapazes de apreciar seus defeitos.

—Como o senhor Mayer... —adicionou Kristel enquanto ajeitava o cabelo.

—E como tantos outros! —Respondeu Valéria. —Os homens esquecem que nasceram do ventre de uma mulher e se acreditam filhos do próprio Deus.

—O senhor Reform... também tem defeitos? Conforme comentou é alto, possui uma figura vigorosa e seus olhos são...—fez alusão a ele ao recordar que graças aos lucros que Valéria tinha no clube poderiam desfrutar da vida da qual falara sua amiga.

—Aquele arrogante descarado é o mais imperfeito de todos! —Trovejou irada.

—Valéria... —Kristel sussurrou ao perceber a irritação que tinha provocado em sua amiga ao nomeá-lo. Por que se comportava desse modo? Por que se apoderava dela uma ira tão enorme?

—Caminha por seu clube como se ninguém pudesse lhe fazer sombra. É verdade que sua altura é difícil de igualar, mas... é tão mortal como todos os que vão naquele maldito lugar! —Clamou desesperada.

Com essa cólera despertada ao recordar como atuou ante ela, como tinha rejeitado pagar sua dívida e como se aproximou com tanto descaramento, Valéria sacudiu a manta onde tinham permanecido sentadas com mais intensidade que a necessária.

—O senhor Hill também é muito alto —intercedeu com sutileza para rebater, se pudesse, a fúria que Valéria expressava em seu olhar.

—Sim, mas seu cabelo é loiro, em troca o do senhor Reform é escuro, tão escuro como sua alma.

—E seus olhos? —Kristel quis saber.

De todas as conversações que tinham mantido sobre o dono do clube, era a primeira vez que falava de seu aspecto físico. Até o momento, e depois de muitos meses visitando aquele local, não lhe tinha comentado nem se tinha cinco dedos em cada mão, só grunhia ao descrever a atitude déspota que mostrava aos outros.

—Seus olhos? —Trovejou. —Como crê que um homem tão pérfido tem seus olhos? Escuros! Tudo nele é escuro, salvo os coletes e as camisas de seus trajes, que por mais que tentem lhe oferecer uma imagem divina, endemoninham-no ainda mais.

—Pensei que era um homem bonito por como às vezes as mulheres no mercado o descrevem —Kristel assinalou sem apartar os olhos de Valéria.

Por que estava tão irritada? Por falar do senhor Reform? Não lhe tinha comentado que apenas interagia com os clientes de seu clube? Pois a conduta que oferecia nesse momento expressava o contrário. De verdade que não falaram nenhuma só vez? Não coincidiram nem um só segundo durante tantas semanas?

—As mulheres idealizam os homens enriquecidos! —Exclamou pondo os olhos em branco. —Juro-te que não é tão atraente.

—Ah, não? —Perguntou arqueando as sobrancelhas.

—Não. —E resolveu o tema girando-se sobre si mesma, varrendo o chão que o vestido tocava ao fazer esse giro tão brusco. —O que é isso?

—O que? —Kristel perguntou olhando para onde ela assinalava.

—Esse pequeno grupo de mulheres? O que estarão fazendo?

—Deve ser uma excursão que saiu do jardim botânico. Se o senhor Mayer não se equivocou desta vez, o Kew Gardens é um dos lugares mais belos de Londres e todo londrino que se aprecie de sê-lo não duvidará em visitar uma paragem tão importante da cidade —Kristel comentou.

—E por que as pessoas passam ao seu lado e as olha como se fossem um grupo de bruxas ao redor de um caldeirão de água fervendo? —Perguntou intrigada. —Não te parece que tentam afastar-se delas? Note aquele casal. —Assinalou inapropriadamente com a mão. —O homem segurou a mulher como se quisesse protegê-la.

—Quer que nos aproximemos para saber o que acontece?

—Animou-a. —Mas devemos nos manter distantes, não podemos nos envolver em nenhum problema.

—É claro! Permaneceremos afastadas porque, se forem bruxas, poderiam nos lançar um feitiço —Valéria comentou irônica enquanto oferecia o braço à sua amiga.

—O senhor Mayer não gostará que nos aproximemos —Kristel comentou desenhando um enorme sorriso em seu rosto.

—Pode ser até que nos impeça de subir à carruagem se por acaso estivermos sob um feitiço...

—Ao inferno com esse homem! —Exclamou sem minimizar o aborrecimento que lhe tinha causado falar do senhor Reform e mentir à sua amiga sobre o físico do homem. Por mais que lhe irritasse, por mais que tentasse dizer-se a si mesma que era um monstro, a verdade era bem distinta. Até o momento não tinha encontrado um homem tão atraente e sedutor como ele. —Sou livre para fazer o que me agrade!

E depois dessa expressão rebelde, as duas se dirigiram para aquele grupo de mulheres que proclamavam seus direitos em frente aos olhares reprovadores inclusive das outras mulheres.

 

 

—Mantenhamo-nos distantes —Borshon comentou ao agente que o acompanhava. —Só atuaremos se observarmos que há problemas.

—Problemas? —Seu companheiro perguntou arqueando as sobrancelhas. —Acaso isso não é um problema? Deveriam estar em seus lares limpando e tecendo! —Opinou.

—Não vou discutir essa ideia, embora imagine que sua esposa é muito feliz sob o amparo de um homem tão... determinante —comentou Hill mordendo a língua.

—É óbvio! Endether é a esposa mais feliz de Londres. Cada vez que retorno ao meu lar ela vai me receber de maneira carinhosa e doce. Só lamenta que algum seu dia querido marido não retorne ao lar com vida. Como bem sabe, é muito duro ser um bom agente... —expôs olhando com certa repugnância as mulheres que, de maneira pacífica, falavam entre elas.

—Muito me temo que nada poderá consolá-la se chegar esse dia... —apontou sarcástico.

Durante um tempo os dois ficaram imóveis sob a sombra de uma grande árvore. Tal como tinha prometido à sua mãe não atuaria, à exceção de que elas estivessem em perigo e, conforme transcorria a jornada, nada parecia altera-las. Borshon jogou um breve olhar pela região para confirmar que tudo estava em ordem. Haviam muitos casais sentados sobre a erva desfrutando de um magnífico dia de piquenique. Algumas crianças brincavam de correrem felizes acompanhadas de suas cuidadoras ou de alguma mãe desesperada ao não cessar a energia destes. De repente escutou o característico som que realizava uma carruagem, girou-se para onde procedia e entreabriu seus olhos com receio. Não era habitual que os veículos se aproximassem tanto ao lugar onde se encontravam e, salvo que fosse alguém da nobreza, não lhes permitia o passo. Entretanto o emblema que mostrava na parte inferior não albergava nenhuma dúvida de quem fugia da ordem. Com o cenho franzido e com uma enorme vontade de prender quem se dirigia para eles, Borshon adotou a postura de um severo agente da lei. Embora a seriedade desaparecesse no mesmo momento no qual o senhor Berwin mostrou seu ancião rosto pelo guichê.

—Senhor Hill! Alegro-me de vê-lo! —O ajudante exclamou efusivo.

—Senhor Berwin... —saudou-o uma vez que chegou à porta do veículo. —Procurava-me?

—Não, —comentou abrindo a porta para descer. —Só me aproximei para lhe saudar ao descobrir que era o senhor.

—Não é uma região apropriada para transitar —informou dando um passo para trás e cuidando de que o ancião não tropeçasse ao descer as escadas.

—Sei, mas é o melhor lugar para agilizar meu trabalho. Tenho que visitar o senhor Copherfill, o alfaiate do senhor Reform.

—Alfaiate? —Borshon perguntou aceitando a saudação de Berwin.

—O senhor Reform me ordenou que lhe confeccionasse um novo traje para a jornada da terça-feira, essa que insistiu em realizar —disse com sarcasmo. —Se pôs tão nervoso que não aceita usar um dos cem trajes que guarda em seus armários.

Hill sorriu ao escutá-lo. É óbvio que sabia o motivo pelo qual Reform estava tão intranquilo e não tinha nada a ver com a jornada da terça-feira, e sim com Valéria. Estaria padecendo um verdadeiro calvário tentando imaginar que aspecto teria, vestida de mulher e a quantos homens teria que separar de seu lado.

—Como as mulheres receberam a decisão de liberar-lhes um dia? —Quis saber enquanto cruzava os braços e adotava uma postura muito informal para um homem que representava a lei e a ordem e ia vestido como tal.

—Estão encantadas! —Exclamou. —Nunca fui testemunha de tanta revoada em um galinheiro, mas tenho que lhe confessar que segue sem me agradar essa ideia.

—Por qual motivo? Não lhe pareceu interessante que, pela primeira vez, o clube deixe as mulheres entrarem e que não empreguem seu corpo para atrair os homens?

—Não se trata disso, senhor Hill. Sou o mais velho de quatro irmãs e lhe confesso que me resultou agradável essa mudança de atitude. Entretanto, desde que descobriram que teriam um dia para fazer tudo aquilo que quisessem e que não perderão nem um só penique, meu trabalho se triplicou. Todas começaram a me pedir favores como se não houvesse ninguém mais no mundo, salvo minha pessoa, para ajudá-las. Até me deram dinheiro para que lhes compre lingerie nova! —Disse horrorizado. —Você sabe o incômodo que tive para explicar à lojista que necessitava de um espartilho verde esmeralda? A pobre empregada piscou várias vezes...

—Sinto-o... —Borshon comentou divertido. —Mas não se preocupe, depois da noite de terça-feira tudo voltará à normalidade.

—Isso espero... —exalou o ancião.

—Senhor Hill, —seu companheiro lhe chamou a atenção —acredito que se aproxima aquele problema que anunciou.

—Tenho que partir, tenho trabalho a atender... —Berwin comentou.

—Não parta ainda. Quero que me diga onde posso...

—Santo Deus! —O ancião exclamou horrorizado. —Como se pode ser tão cruel?

Ante a expressão de assombro de Berwin, Borshon decidiu olhar para o lugar que este observava, que era o mesmo que lhe indicou seu companheiro. Quando seus olhos se cravaram naquela região, notou como um raio atravessava seu corpo. Era desprezível. Face à distância, distinguiu a figura de um homem acompanhado por dois moços. Este gritava e sacudia uma mulher loira. As outras duas, morenas, pediam à viva voz que a soltasse. Contendo a respiração caminhou devagar para eles. Mas aquele passo seguro e lento se tornou em umas pernadas largas e rápidas ao descobrir, depois de cortar a distância, que a mulher a quem sacudiam era Kristel. O que tinha acontecido? Quem era aquele homem que a agredia? Como se atrevia a lhe fazer tal coisa?

—Pelo amor de Deus! —Clamou o ancião que, ante a situação, seguiu os passados do agente.

 

 


—Sabia que nos causaria problemas! —Mayer gritou agarrando inapropriadamente o pulso de Kristel para que com a pressão abrisse a mão e se desprendesse do que tinha nela.

—Solte-a! —Valéria pediu. —Ela não fez nada!

—Nada? Você é muito piedosa, senhorita Giesler, e não é capaz de ver o que esta mulher acaba de fazer. Como já lhe adverti em várias ocasiões, não é digna de sua admiração.

—Só segurei o que ela me ofereceu —Kristel murmurou com uma mescla de medo e vergonha.

Era a primeira vez que alguém ousava comportar-se dessa forma tão violenta diante de tanta gente. Olhou à Valéria lhe suplicando auxílio, mas sua amiga estava tão paralisada como ela. Por que o senhor Mayer tinha perdido a prudência? Tão zangado se sentia ou talvez exagerasse sua irascibilidade para que Valéria admitisse que não fosse uma pessoa adequada para ela?

—Senhor, meu nome é Sophia Jane Craine e lhe ordeno que a solte —intercedeu a mulher a qual Kristel fazia referência.

—Você é uma condessa, uma duquesa ou a filha de um rei? —Soltou furioso.

—Não, —respondeu Sophia que, assombrada ante tanta crueldade, apartou a sua pequena Emmeline de seu lado.

—Como pode perturbar a mente desta senhorita? —Encarou quem lhe tinha falado, assinalando Valéria com seu olhar.

—Denomina perturbar a mente pedir nossos direitos? —Sophia repreendeu-lhe.

—Solte-me! —Pediu Kristel, que notava certa dor em sua mão. —Suplico-o que me libere de uma vez.

—Só trouxe desgraça —Mayer resmungou voltando-se para ela sem soltá-la. —Você só quer destruir a vida da senhorita Giesler. Não o tem suficiente com sua deterioração, não é? Também quer quebrar a de uma mulher cândida e bondosa?

Justo quando as lágrimas de Kristel molharam seu rosto, o sol se ocultou. Uma enorme sombra os resguardou dos raios solares. Devagar levantou seu olhar e ficou tão petrificada que não pôde nem respirar. Ali, em frente a ela, aparecia a grande figura de Borshon embelezado com o traje escuro que os agentes usavam. Mas o que a deixou tão absorta não foi a imagem que oferecia com o austero uniforme, e sim a expressão de seu rosto. Por que lhe dava a impressão que estava a ponto de aniquilar o senhor Mayer?

—Solte-a agora mesmo —ordenou com uma voz tão rude que sobressaltou as duas mulheres, que deram vários passos para trás.

—Graças a Deus! —Mayer exclamou como se em frente a ele se achasse seu salvador. —Você tem que prender estas mulheres —indicou após soltar Kristel. —Perturbaram a mente da senhorita Giesler —acrescentou aproximando-se de Valéria como se quisesse consolá-la. Mas quando esta notou as mãos sobre seus ombros, sacudiu-se como se lhe sobrevoasse uma vespa.

—Mostre-me o pulso —pediu-lhe após aproximar-se dela.

—Senhor Hill... —Kristel murmurou abaixando o olhar para que ele não pudesse ver suas lágrimas.

—Senhorita Griffit, mostre-me seu pulso —Borshon repetiu com severidade. Ao ver que era incapaz de mover-se, aproximou-se tanto que mal podia passar o ar entre eles. —Kristel, —disse-lhe com uma ternura imprópria em um homem com os olhos injetados em sangue pela cólera —mostre-me seu pulso, por favor.

—Não lhe feri —Mayer soltou com rapidez. —Tentei apartá-la dessa mulher. —Assinalou Sophia.

—Eleve a manga ou o faço eu mesmo —falou com uma combinação estranha entre ternura e mandato. —Você decide.

Lentamente e sem poder olhá-lo Kristel abriu o botão e foi subindo o tecido até o cotovelo. Ao deixar à vista a vermelhidão que o apertão da mão do senhor Mayer lhe tinha produzido, Borshon colocou as gemas da mão direita sobre o sinal e a acariciou como se tentasse acalmar eu ferimento.

—Por favor... —ela lhe rogou deduzindo o que planejava.

—Não lhe faça nada...

—Que eu não lhe faça nada? —Grunhiu apertando os dentes e tentando procurar a razão pela qual tentava protege-lo. —Acredita que ficarei impassível depois do que lhe fez? É seu marido? Pretendente? Seu irmão, possivelmente?

—Não, —respondeu levantando o rosto para reforçar com seu olhar a negação.

—Então... não devia tocá-la —trovejou enquanto se girava para o senhor Mayer e reduzia a distância entre eles.

—Não! —Ela exclamou. Esticou a mão para detê-lo; entretanto, apesar de ter um corpo grande, Borshon foi tão ágil e rápido que antes de poder tocá-lo já se colocara em frente ao senhor Mayer.

—Desculpe-se —declarou cravando-lhe os olhos vermelhos pela ira.

—Não o farei —Mayer soltou. —Merecia-o. Incitou à senhorita...

—Desculpe-se ou corra... —grunhiu.

—Por que tenho que correr? Não fiz nada mal! —Vociferou. —Só protegi uma mulher indefesa —explicou olhando Valéria, que tinha acolhido os moços entre seus braços.

—Corra como um galgo se não quiser que encontrem seu cadáver flutuando sobre o Tâmisa —manifestou entreabrindo seus olhos e exibindo um sorriso tão maligno que deixou as mulheres sem fôlego.

—É uma ameaça? —O professor perguntou levantando o peito.

—Eu não ameaço, eu aconselho.

—Pois eu vou aconselhar você. Prenda essa bastarda!

E depois de escutar como a insultava, Borshon liberou a besta que guardava em seu interior.

—Virgem Santa! —Berwin exclamou ao ver a cena.

—Deveriam existir mais homens como ele —Sophie apontou sorridente.

—Senhor Hill! —Kristel exclamou desesperada. —Pare, por favor!

Mas Borshon estava tão endiabrado que não escutava os rogos dela. Só quando notou sua presença atrás dele, tocando-lhe com suavidade as costas, deixou de golpear o rosto daquele insolente.

—Não volte a olhá-la, não volte a aproximar-se dela e se a encontrar em seu caminho, mude de direção. Se eu descobrir que não cumpriu minhas ordens, procurar-te-ei e lhe asseguro que na próxima vez ninguém poderá lhe auxiliar —disse abrindo a mão com a qual agarrava a gola da camisa.

Aturdido e tentando frear o sangue que brotava de seu nariz, Mayer procurou Valéria com o olhar, quem colocava suas mãos sobre a boca e o olhava assustada. De repente a fúria que percorria seu corpo desapareceu. Possivelmente não tinha se saído bem parado ante tal agressão, mas se não errava, a senhorita Giesler, preocupada com suas feridas, retornaria com ele ao lar para cuidá-lo. Talvez tivesse chegado o momento que tanto tinha esperado, embora nunca imaginasse que alcançaria seu objetivo pondo em perigo sua integridade física.

—Retornemos —disse ao mesmo tempo em que começava a dirigir-se para onde permanecia sua carruagem. —Muito me temo que necessitarei de um médico, ou do cuidado de uma pessoa bondosa.

Mas quando tinha dado pouco mais de cinco passos percebeu, com surpresa, que ninguém lhe acompanhava.

—Senhorita Giesler... —murmurou ao girar-se e descobrir que ainda continuava abraçada aos seus irmãos.

—Não retornaremos com você —comentou com firmeza.

—Comportou-se como um biltre. Nunca tinha presenciado semelhante atitude.

—Fi-lo para protegê-la. Essa mulher não é apropriada para você. Comentei-o em várias ocasiões. Se quiser converter-se em uma senhora respeitável deve afastar-se dela o antes possível —declarou com a esperança de que suas palavras comovessem Valéria. —Como pôde observar, só se acotovela com homens tão irracionais quanto ela...

—Senhor Hill, por favor... —Kristel murmurou lhe agarrando com força o braço ao ver como dava um passo para diante.

—Você é quem não é apropriado, senhor Mayer —Valéria soltou atraindo seus irmãos para ela com mais força. —Eu devia ter feito antes, devia ter lhe jogado a chutes quando falava desse modo. Você é um monstro! —Gritou deixando que as lágrimas que segurava fluíssem.

—Um monstro? —Perguntou abrindo os olhos como pratos. —Como pode dirigir-se a mim desse modo? Esqueceu o que fiz por você e por seus irmãos durante este ano?

—Não esquecerei jamais —Valéria decretou.

—Então seja racional e me acompanhe. Seus irmãos não poderão sobreviver com o que você lhes oferece. Eu posso lhe tirar da miséria em que vive —confessou.

—Prefiro rolar na miséria que me converter em uma mulher desgraçada —repôs.

—É sua última palavra? —Perguntou com voz exigente e autoritária.

—É —afirmou com solenidade.

—Você saberá a quem enfrenta..., mas não volte a me pedir ajuda. Minhas portas estarão fechadas —manifestou voltando-se sobre si mesmo e caminhando erguido para a carruagem.

—Senhorita Giesler, —Sophie interveio —tomou a melhor eleição.

—Obrigada... —comentou depois de olhá-la.

—Quer que minha carruagem lhes leve ao seu lar? —Ela perguntou.

—Veio em sua carruagem? —Borshon perguntou à senhorita Griffit, quem ainda não tinha afastado sua mão do forte braço.

—Sim —respondeu-lhe.

—Permitiu que ela se rebaixasse dessa forma para poder desfrutar de um dia de piquenique? —Borshon reprovou Valéria. —E você se proclama amiga dela?

—Senhor Hill..., Borshon —Kristel sussurrou de novo. —Ela não tem culpa, fui eu quem insistiu em vir. Os meninos...

—Senhor Berwin —chamou o ancião sem apartar os olhos de Kristel. —Poderiam viajar em sua carruagem?

—É claro! Há espaço de sobra para os cinco —Berwin disse estendendo os braços para os meninos.

—Obrigada por sua intervenção —Sophie disse adiantando-se para o agente para lhe oferecer a mão.

—Senhora Goulden, —respondeu aceitando a despedida tão masculina —espero que não se encontre em mais situações como a vivida.

—Se ocorrer já saberei a quem tenho que procurar. Bom dia —alegou antes de retornar ao grupo de mulheres que tinham contido a respiração desde que Mayer sacudiu o corpo de Kristel.

—Vamos, cavalheiros! —Berwin disse aos meninos. —Entrem e sentem-se!

—Senhor Hill... —Valéria comentou aproximando-se de sua amiga e do agente. —Agradeço seu oferecimento, mas não podemos aceitar. É melhor que retornemos ao nosso lar a pé.

Nesse instante a mente de Borshon, um pouco mais sossegada, procurou o motivo pelo qual ela rejeitava sua proposta. De onde se encontravam até Brick Lane seria mais de duas horas caminhando. «Maldita seja!» —Disse-se. Ela conhecia o senhor Berwin. Teria visto-o no clube cada vez que o visitava e, é claro, era tão inteligente que estava procurando a razão pela qual um agente e o secretário da pessoa a quem enganava disfarçando-se de homem conheciam-se e se falavam com tanta amabilidade.

—O senhor Berwin é um homem respeitável —expôs. —Serve ao senhor Reform, o dono do clube de cavalheiros que tenho que proteger na terça-feira de noite. Posso lhe jurar por minha honra que não lhes acontecerá nada. Não é, senhor Berwin? —Perguntou sem olhá-lo.

—É claro! Sou um homem muito leal... —disse sem saber o que ocorria, mas tendo a intuição de que devia afirmar o que o agente lhe indicava.

—Por que necessita do seu amparo? —Kristel interveio para apaziguar a intranquilidade que notava em Valéria.

Borshon era um bom homem, tinha-o demonstrado não só com Mayer, mas também no mercado. E por mais conjecturas que sua amiga fizesse sobre ele, cada vez que o destino os cruzasse o receberia com os braços abertos.

—Quer deixar as mulheres entrarem essa noite —explicou voltando o olhar para Kristel. —Então necessita da minha força para apaziguar qualquer incidente que surja.

—As mulheres poderão jogar ou só passearão para estimular os jogadores masculinos? —Valéria soltou mordaz.

—Poderão jogar e levar aquilo que ganharem, sempre que o façam sem nenhum tipo de patranhas —expôs guardando para si a satisfação que sentia, ao descobrir que acabava de verter o mel. Agora só ficava à abelha rainha revoar sobre ele.

—Poderá ir? Virá ao clube? —Perguntou à Kristel. —Talvez necessite de uma mulher que vele minhas costas.

—Não acredito... —comentou abaixando a cabeça. —Haverá muita gente e não poderei me sentar... além disso, não tenho um vestido para... —tentou desculpar-se com o primeiro motivo que as senhoritas estavam acostumadas a oferecer para que os homens abandonassem a ideia de cortejá-las.

—Isso não será nenhum problema. Além disso, está com sorte. O senhor Berwin, antes deste horrendo episódio, informava-me sobre sua visita a um bom alfaiate —explicou segurando a vontade de abraçar Kristel e reconfortá-la. —Seguramente conhece alguma costureira que confeccione vestidos com rapidez.

—Borshon..., —murmurou para que Valéria não escutasse o timbre de voz que punha ao lhe falar como duas pessoas que mantêm uma relação íntima —não posso aceitar. Eu...

—Kristel... —respondeu segurando-a pelas mãos. —Aceitá-lo-á porque, tal como lhe disse, necessitarei de uma mulher que cuide das minhas costas. Sabe a quantidade de cadeiras que se quebrou nela? Não quero que minha mãe me repreenda por chegar ferido... —perseverou lhe falando com um tom tão carinhoso que todas as desculpas que tinha meditado desapareceram.

—Você é muito persistente... —disse desenhando um leve sorriso.

—Não imagina o quanto —confessou antes de dirigir aquelas mãos para a boca para beijá-las.

Depois desse ato descarado e ao qual Kristel já começava a acostumar-se, conduziu-a para a carruagem sob o atento olhar de Valéria. Com a força de uma mão elevou e cuidou para que ela não tropeçasse com o degrau.

—Assim que se faz! —Martin exclamou.

—Isso não vale, ele é um homem muito forte... —Philip se defendeu.

—Senhor Berwin, que ambas as senhoritas visitem uma costureira eficiente. Necessitam de um vestido novo para ir a essa festa no clube.

—Serão suas convidadas? —Perguntou desenhando um amplo sorriso.

—Serão —afirmou solene.

—Perfeito —respondeu acomodando-se no assento que havia ao lado do guichê.

—Pague à costureira o que lhe pedir —indicou em voz baixa. —E quando chegar ao clube diga ao senhor Reform que a senhorita Giesler e a senhorita Griffit serão minhas convidadas.

—Tem que sabê-lo? —Berwin perguntou com certa expectativa. —Acredita que lhe interesse saber algo sobre elas?

—Quando observar a expressão que o senhor Reform mostrará e ao escutar os sobrenomes, saberá por que o digo.

—Então... imagino que os vestidos irão à conta do meu senhor, certo?

—E os pagará com muitíssimo gosto... —respondeu antes de fechar a porta.

Depois que o cocheiro empreendeu o caminho e que sua respiração se normalizou, caminhou para onde se encontrava seu companheiro, que não tinha movido nenhuma só pestana ao contemplar a demencial atuação.

—Tudo o que viu aqui não aconteceu. Se sair por sua boca algo referente à este dia, sua querida Endether verá cumprido aquele pesadelo a que fez referência, entendido?

—Sim, senhor Hill.

Borshon se colocou o chapéu e continuou velando pela segurança daquelas mulheres.


XI

 

—Como diz? —Trevor perguntou à viva voz após ser informado que os vestidos das senhoritas se acrescentaram à sua conta.

—Foi o senhor Hill quem me ordenou essa loucura —expôs movendo-se de um lado para outro, inquieto. —Juro-lhe que me opus com tenacidade a tal propósito e, apesar de ser um homem muito débil, lutei com minha verborreia para que mudasse de opinião. Mas foi impossível lhe convencer... —expôs exagerando o que aconteceu para que Reform entendesse que ele só tinha sido um mero lacaio.

—Como se tomou essas liberdades? Como foi capaz de utilizar meu nome para um ato semelhante? —Gritou agitado.

—Descontarei do seu salário!

—Do meu? —Berwin soltou parando em seco e abrindo os olhos como pratos. —Recordo-lhe que foi ideia do senhor Hill... —acrescentou para que entrasse em razão. Entretanto, aquela postura rígida, aquele pescoço esticado como uma girafa, dava-lhe a entender que nada despertaria o sentimento de piedade naquele homem.

Reform se girou sobre seus pés e olhou para a rua. Por que Borshon tinha atuado dessa maneira? Quem eram aquelas moças? Ao final não era tão sensato como acreditava? O que lhe tinha conduzido a realizar tal descaramento sem sequer consultar-lhe? Seguiria, no futuro, antepondo-se aos seus mandatos até que finalizasse o trabalho de proteger Valéria? Levou-se a mão direita para o queixo e o acariciou. Teria que despedi-lo... depois da festa de terça-feira, quando ele pudesse aproximar-se dela e falar com a verdadeira mulher, pagar-lhe-ia o combinado e daria por terminado aquele compromisso. Já não precisaria protegê-la porque, uma vez que a tivesse em seus braços, ele mesmo o faria.

—Você não foi testemunha de como essas moças desfrutaram e da gritaria que formaram os meninos ao vê-las mudar de roupas. Parecia que estavam vivendo a véspera de Natal... —expôs o secretário procurando alcançar a piedade naquele frio coração.

—Meninos? Também paguei os trajes de uns meninos? —Perguntou voltando-se para Berwin. —Agora entendo esta quantia! —Gritou movendo a fatura que lhe tinha feito chegar.

—Não! —Respondeu com rapidez, acentuando sua negativa com um leve movimento de mãos. —Só os delas.

—E... como se chamam essas mulheres? Se lhes paguei uns custosos vestidos mereço, pelo menos, saber que nomes possuem —exigiu saber enquanto lançava o papel sobre a mesa e apartava a poltrona para tomar assento.

Nunca tinha dado presentes a desconhecidas. Ele não era o benfeitor de nenhuma mulher! Além disso, esse tipo de ato os realizava sozinho e exclusivamente para suas amantes e, claro está, jamais ultrapassava uma liquidez de cinquenta libras. Mas aquelas moças tinham duplicado a quantia que destinava para agradar suas concubinas. Quem se acreditavam que eram, damas da alta sociedade?

—Não disse? Grande descuido! —Berwin indicou esperançado. —O senhor Hill insistiu em que o comentasse porque, segundo ele, entenderia a razão pela qual ideou tal atrevimento.

—O senhor Hill tem uma visão distorcida do que desejo e do que pretendo —resmungou ao mesmo tempo em que se sentava. —Vai dizer-me de uma vez por todas como se chamam? —Vociferou.

—Senhorita Griffit e senhorita Giesler —declarou com rapidez ao ver que o aborrecimento do senhor aumentava.

—Como disse? —Soltou ficando pétreo ao escutar o sobrenome de Valéria.

—Senhorita Griffit e senhorita Giesler —repetiu com certo temor.

—Quem foi agredida? —Perguntou levantando do assento e colocando suas grandes mãos sobre a mesa.

—A senhorita Griffit —respondeu em voz baixa. —A outra moça foi quem se negou a acompanhar o agressor.

—Maldita seja! —Exclamou dando uma forte palmada sobre os papéis que havia sob suas mãos.

—Senhor Reform... —Berwin murmurou mais assombrado que assustado.

—Como disse que se chamava esse canalha?

—Se meus ouvidos não o captaram erroneamente, Mayer —respondeu com receio.

—Para onde se dirigiu esse tal... Mayer? —Exigiu saber.

—Não sei. Esse homem se afastou amaldiçoando a mulher que recusou partir com ele —esclareceu sem mover nem um só pé do tapete.

Ao Berwin não agradava a expressão daquele rosto. Queria aparentar tranquilidade, mas a veia de seu pescoço, aquela que aparecia quando estava a ponto de explodir, palpitava e crescia.

—O senhor Hill saberá onde encontrá-lo... —não era uma pergunta, Reform afirmava que o agente descobriria em que parte de Londres se escondia aquela doninha, com quem ajustaria as pertinentes contas...

—A pobre moça escutou como lhe gritava que a porta desse miserável permaneceria fechada quando lhe pedisse ajuda. Se me permite opinar, acredito que o senhor Hill lhe deu seu castigo. Nunca vi um trato semelhante por volta de duas mulheres!

—Esse tal Mayer ainda não obteve tudo o que procurava... —murmurou acomodando-se de novo no assento.

O que era isso que escutava? Os batimentos do seu coração? Tão zangado se achava para ouvir pela primeira vez como seu coração palpitava até ficar exausto?

—Uma vez que o senhor Hill resolveu a situação, o que ocorreu? —Perguntou algo mais comedido, embora a vontades de agarrar o pescoço daquele insolente não tinha desaparecido nem tampouco se haviam amenizado seus batimentos cardíacos.

—Pois tal como lhe disse antes, levei-as até a costureira para que escolhessem uns vestidos.

—Por que o senhor Hill escolheu tal alternativa?

—Tampouco o disse. —Berwin retrucou desconcertado.

—Acredito que o medo não me deixou falar com eloquência... —desculpou-se.

—Pois tome assento e comece desde o começo —convidou.

—Como? —Perguntou surpreso o ancião.

—Tome assento —repetiu apertando os dentes. Desconcertado, o secretário se sentou e começou a lhe descrever, outra vez, a história das mulheres. Nesta ocasião, um pouco mais relaxado ao saber que não gritaria quando lhe informasse que ele subsidiou os custosos vestidos, foi mais conciso. Explicou-lhe como Mayer agarrou a mão da senhorita Griffit e como sua amiga não deixava de chorar, também lhe narrou à maneira protetora e carinhosa que ela mostrou ao abraçar seus irmãos, surpreendidos e assustados ao presenciar tal cena. Não esqueceu nenhum detalhe sobre a atuação do agente e sorriu de prazer ao lhe descrever como o descarado partiu sangrando e aturdido porque a senhorita Giesler não lhe acompanhava.

—Sem ânimo de dar a impressão de me haver convertido em um demente após o sofrido, acredito que o senhor Hill tem um interesse especial pela senhorita Griffit. Só um homem apaixonado poderia atuar daquela forma.

—De que forma? —Reform interessou-se que, depois da exposição, sentia uma enorme pontada no estômago por não ter acompanhado seu secretário. Se o tivesse feito, a atuação de Hill teria ficado ridícula...

—Converteu-se em um monstro... a sede de vingança lhe nublou a mente... —esclareceu sem deixar de olhar a veia do pescoço de Reform que continuava aumentando-se.

—Qualquer homem sensato atuaria dessa forma. Além disso, ele é um agente da ordem e, como tal, tinha que intervir ante uma situação de tal índole —tentou desculpá-lo.

—Ali havia outro agente, —acrescentou Berwin —e não se moveu do lugar de onde plantou os pés. Embora tampouco precisasse, o senhor Hill...

—Chega de elogiar suas barbaridades! —Clamou levantando do assento de novo.

—Senhor Reform... por que atua desse modo? Penso que... —tentou dizer.

—Como a senhorita Giesler se comportou quando subiu à carruagem? —Mudou com rapidez de tema. Não queria seguir pensando na atuação heroica do agente porque não queria imaginar, nem por um segundo, que Valéria sentisse a necessidade de agradecer ao Borshon sua selvageria. Era ele quem deveria ter lhe partido o nariz!

—A princípio atuou de maneira esquiva... —prosseguiu enquanto Reform andava de um lado para o outro nervoso. —Não permitia aos seus irmãos que falassem, nem que se movesse de seus assentos. Mas quando respondi a todas as perguntas que lhe passaram pela cabeça, até sorriu e posso lhe assegurar que é o sorriso mais formoso que vi em uma mulher.

—O que perguntou? —Trevor freou seu caminhar e olhou desafiante ao ancião. Sorriso bonito? Ele sabia como sorria e ninguém, salvo ele, devia apreciar a beleza daqueles lábios!

—Se o senhor Hill e você eram amigos, se trabalhavam juntos, desde quando se conheciam, o que eu fazia no Kew Gardens, se nosso encontro foi casual ou previsto, desde quando trabalho para você... posso lhe assegurar que minha boca ficou sem saliva depois de responder. A mulher desconfiava de tudo. Embora deva ser normal...

—Normal? —Trevor lhe interrompeu.

—O sangue espanhol que tem por parte de sua mãe...

—Falaram de suas origens? —Perguntou expulsando abruptamente o ar de seus pulmões.

—Quando descobriram que não possuo nenhuma semelhança com o senhor Mayer e que meu único desejo era lhes fazer esquecer o aterrorizante episódio, as duas falaram com tranquilidade sobre suas vidas —apontou cruzando os braços, adotando uma atitude cômoda. Não sabia o motivo pelo qual o senhor Reform se interessava pela senhorita Giesler se, conforme acreditasse, não a conhecia. Mas descobrir que, por uma vez, ele tinha algo que tanto ansiava seu chefe, ofereceu-lhe o ás na manga que lhe fez degustar o sabor do poder. —A princípio pensei que os dois meninos eram irmãos da senhorita Griffit. Supu-lo porque seus cabelos são tão loiros como os dela, mas a senhorita Giesler me esclareceu que seu pai era alemão e sua mãe espanhola. Conforme parece ela se encarregou dos meninos quando ambos os progenitores morreram. Embora augure que, se Deus for piedoso com eles, obterão a vida que merecem... —refletiu em voz alta.

—Por que diz isso? —Perguntou ansioso.

—Porque a senhorita Giesler me falou de seus planos futuros. Ela, a senhorita Griffit e os moços partirão de Londres quando reunirem a quantia que necessitam para efetuar um último pagamento.

—Último pagamento? Já compraram a...? —Reform emudeceu.

Devido ao seu desconcerto, à volta da ira e àquela inapropriada preocupação, quase revelou aquilo que ainda desejava manter em segredo. Até que não achasse o motivo pelo qual não podia deixar de pensar em Valéria não falaria com ninguém disso. Além disso, e se toda essa espera por ela desaparecesse na terça-feira? Possivelmente o que alguns homens denominavam beleza ele não o nomeava assim, posto que em seu leito tivesse se deitado mulheres de formosura insuperável.

—Já compraram...? —Berwin repetiu esperando que terminasse a frase.

—Refiro-me a que se desejam partir de Londres será porque terão outra moradia adquirida —comentou enquanto desfazia o nó de seu lenço.

—Pois conforme explicaram deram uma fiança, mas me esclareceu, a própria senhorita Giesler, que espera finalizar o pagamento quando lhe saldarem uma dívida —o secretário manifestou empatia com a tristeza e o desespero das moças.

—Uma dívida? —Trevor perseverou arqueando a sobrancelha direita.

—Também lhe resulta inverossímil imaginar? —Exclamou mais efusivo que o normal. —Quem será o miserável que as retém em uma cidade que odeiam? Quem poderia brincar com o sonho de duas mulheres tão bondosas! Esse homem não tem coração!

—Sim, eu também me pergunto quem poderá ser esse miserável... —Reform murmurou com os lábios apertados para não gritar ao Berwin que não deveria insultar uma pessoa em sua própria cara. —O que aconteceu quando as levou à costureira? Estimo que a senhora Lowel pôs-se furiosa. —Conduziu a conversação para outro tema que não lhe deixasse em uma posição tão mesquinha.

—Sim, pô-lo, mas não pôr como foram vestidas, mas sim pelas roupas que decidiram escolher em primeiro lugar —esclareceu.

—Queriam vestir-se como mendigas? —Perguntou retornando ao seu assento.

—Não, senhor Reform. Não mostrariam essa imagem, mas já sabe você como a costureira dramatiza ao ver duas formosas mulheres usando roupas tão austeras e se esforçando em continuar com aquela humilde presença —apontou sem apartar os olhos do Trevor.

—E? —Perseverou ao mesmo tempo em que se servia uma taça de água.

—A princípio lhe pediram que não fosse exigente, que não desejavam nada que chamasse a atenção, só algo singelo para virem na terça-feira ao clube —revelou.

—Virão? —Soltou elevando as sobrancelhas e contendo a felicidade que lhe oferecia saber que Valéria iria tal como lhe havia dito Borshon.

—Por isso mesmo fomos comprar os vestidos —Berwin explicou com resignação. —Tampouco o tinha mencionado na primeira vez que lhe narrei a história? Pode ser que não só o meu coração tenha sofrido com aquela barbárie...

—Centre-se no importante e não volte a me indicar o desespero que viveram antes da aparição do senhor Hill... —insistiu-lhe mal-humorado.

—Pois como lhe estava contando antes que me interrompesse pela enésima vez, ambas começaram a procurar roupas de baixo custo. Mas quando expliquei à senhora Lowel que você se encarregaria de pagar a fatura, foi incapaz de conter sua emoção e disse a elas.

—O que fizeram? —Quis saber enquanto cruzava as pernas.

—A senhorita Griffit recusou tal obséquio, embora as palavras da senhorita Giesler a incentivassem a escolher entre aquelas que a costureira lhes ofereceu novamente —comentou com certo receio.

Apesar da calma que exibia, podia explodir a qualquer momento. O senhor Reform não era muito dado a escutar como gastavam sua fortuna e nem muito menos umas desconhecidas. Embora ficasse sem fala quando descobriu como seus grandes lábios se alargavam para desenhar um sorriso.

—E? —Continuou perguntando sem eliminar o plácido sorriso.

—E acrescentaram à conta alguns ornamentos que, segundo a senhorita Giesler, eram completamente necessários para tal ocasião —declarou para que o grito que ofereceria quando descobrisse que, não só lhes tinha dado um par de vestidos, mas também chapéus, xales, meias, sapatos e inclusive um par de camisolas de seda, não o tombasse da cadeira.

—Então a senhorita Giesler não rejeitou a proposta... —disse de maneira reflexiva ao mesmo tempo em que realizava de novo o gesto de acariciar o queixo.

—Não, senhor, ela não a negou. Ao contrário, acredito que quando escutou seu nome lhe brilharam os olhos de forma...

—De forma? —Trevor perseverou esperando.

—Maligna —esclareceu

—Maligna? —Repetiu assombrado.

—Sim, senhor. Muito me temo que a senhorita Giesler leu algum noticiário no qual o senhor aparecia —indicou levantando do assento para ampliar a distância entre os dois.

—Mas ninguém pode falar mal de mim. Deve ter interpretado mal sua forma de olhar... —assinalou com soberba. —Todas as notícias que tenho lido até o momento exaltam a qualidade do clube...

—É claro, mas se não abandonasse as leituras para gabar-se dessa fama, perceberia que depois de elogiar a qualidade de seu local também falam sobre o senhor e não costumam utilizar nessas crônicas, adjetivos, como bondoso, compassivo, sereno ou humanitário...

—E o que usam em seu lugar? Afável, atento, quente, benévolo? —Repreendeu elevando o tom de sua voz.

—Muito me temo que áspero, desagradável, insociável, soberbo e a última palavra que li, misantropo.

—Eu? Como podem me descrever dessa forma tão errônea? Acaso não são conscientes do que tenho feito por esta cidade? O que fariam nossos sócios se não se relaxassem jogando nas mesas, desfrutassem de nossas mulheres ou saciassem seus estômagos na sala de jantar?

—Possivelmente... manteriam uma vida mais familiar? Centrar-se-iam em seus afazeres diários? Não se esconderiam quando chegam aos seus lares ébrios por nosso licor? —Enumerou como se tivesse ensaiado.

—E você acredita que a senhorita Giesler mudou de opinião porque pensa que sou um monstro e que, para redimir minhas más atitudes, foi imprescindível aceitar a oferenda? —Perguntou à viva voz.

—Em minha defesa tenho que dizer que não posso saber o que ela nem nenhuma mulher pensa. Mas observei como o rosto lhe iluminou... perigosamente —esclareceu enquanto agarrava o trinco da porta para sair.

—Está bem! —Clamou ao mesmo tempo em que esticou suas costas. —Se ela pensar que a melhor forma de me liberar dos meus pecados é realizando boas obras, continuarei com elas.

Berwin ficou imóvel, seus olhos não piscavam e notava como o batimento de seu coração amenizava. O que estaria pensando? O que lhe tinha ocorrido fazer com essa moça? Tinha que haver inventado alguma desculpa para protegê-la?

—Senhor Reform... —murmurou depois de um breve silêncio, um que lhe indicava que aquilo que ia lhe dizer não seria de seu agrado.

—Você sabe onde vivem, não é? —Perguntou sem olhá-lo.

—Eu mesmo as acompanhei até a porta de seu lar —explicou.

—Pois faça chegar uma nota à senhorita Giesler lhe informando que terão ao seu dispor uma carruagem para transportá-las até o clube sãs e salvas.

—Como? Quer dizer que...? Deseja...? —Titubeou atônito.

—Parece-me bem continuar com essas obras solidárias e... que melhor forma de perseverar minha mudança de atitude que velando pelo bem-estar de minhas protegidas? Não lhe parece justo? Que homem poderia abandonar à sua sorte umas mulheres embelezadas com esses vestidos tão custosos? Qualquer criminoso poderia deduzir que são damas da alta sociedade e... assaltá-las —discorreu desconfiado.

—Então... deseja que lhes informe de sua decisão? —O administrador sussurrou.

—Exato! Escreva-lhe, agora mesmo, de seu punho e letra uma nota em que... —ficou calado ao lhe passar outra ideia pela mente. Trevor sorriu de orelha a orelha e caminhou com passo lento para Berwin. —Para que não lhes caiba dúvida de que foi minha ideia, —começou a expor —eu mesmo lhes escreverei esta missiva.

—Posso fazê-lo, senhor Reform. Procurarei as palavras adequadas para... —tentou dissuadi-lo.

—Eu as procurarei —alegou girando-se bruscamente sobre si mesmo. Dirigiu-se para seu assento, sentou-se e pegou papel. —Volte dentro de meia hora.

—De verdade que eu...

—Volte dentro de meia hora! —Clamou zangado.

Berwin saiu do escritório, fechou a porta, apoiou-se nela e se fez o sinal da cruz. O senhor Hill tinha atuado de maneira errônea. Apesar de ter razão ao lhe indicar que se acalmaria ao nomear o sobrenome das mulheres, tinha tomado uma eleição inapropriada. Reform conhecia a senhorita Giesler, disso não lhe cabia a menor dúvida. Seus olhos revelaram ao escutar seu nome. Entretanto, não foi felicidade o que produziu nele e sim intranquilidade. Um sentimento recíproco, posto que ela, depois de ouvir o nome de quem pagaria a fatura, soltou por sua boca todos aqueles adjetivos ofensivos que lhe tinha indicado no escritório. Só esperava que ambos relaxassem e que na terça-feira toda essa ira se dissipasse porque, se não errasse em suas lembranças, a última vez que observou esse olhar no rosto de seu chefe, tiveram que fechar o clube durante uma semana para reconstruir aquilo que ele mesmo destroçou.

—Se me escutar, salve essa pobre família... não os deixe na miséria e proteja-os de todo o mal... —suplicou antes de respirar fundo e descer as escadas.


XII

 

—Isto foi um sonho... Kristel suspirou assim que fechou a porta do lar.

—Pois eu não opino igual —Valéria replicou depositando os pacotes sobre a mesa com brutalidade.

A ira ainda permanecia latente nela. Seguia sem dar crédito ao cruel comportamento de Mayer. Não só tinha agredido Kristel diante de toda aquela gente, mas sim depois daquela horrível cena, pretendia que a abandonasse e que partisse com ele. Como pôde imaginar tal sandice? De verdade pensou que se desentenderia com ela e que deixaria tudo para lhe seguir?

—Por que não? —Perguntou caminhando em volta da penteadeira. —Desfrutamos de uma linda manhã de piquenique, o senhor Mayer desapareceu de nossas vidas e nos deram de presente uns lindos vestidos. Isso não te parece maravilhoso?

—Apagou de sua memória o que aquele homem te fez? —Perguntou voltando-se para ela indignada.

—Completamente... —respondeu-lhe enquanto introduzia as mãos na bacia e refrescava o rosto.

—Pois não a entendo! —Exclamou cruzando os braços. —Deveria estar zangada, envergonhada e, conforme advirto, quão único sente é felicidade —recriminou-a.

—Penso que tia Kristel esqueceu tudo porque aquele agente lhe deu uma boa surra —interveio Philip.

—Deu, não é? Seu professor finalmente obteve aquilo que tanto ansiava encontrar —respondeu sem poder apagar um sorriso prazeroso de seu rosto.

—Oh, sim! —O menino comentou com muito entusiasmo.

—Deu-lhe um golpe, outro... —rememorou realizando com seus punhos os mesmos movimentos que Borshon. —Logo outro e...

—Basta! —Valéria gritou mal-humorada. —Nem lhes ocorra falar do acontecido! —Ordenou aos seus irmãos ao mesmo tempo em que lhes assinalava com o dedo. —A atitude do senhor Mayer foi horrível, mas o comportamento desse agente também. Não devia ter adotado aquela postura tão cruel.

—Não foi —Kristel contestou. —O senhor Hill atuou de maneira correta. Todo homem que use um uniforme como o seu deve executar a lei e ele o fez de maneira irrepreensível.

—Isso pensa? De verdade que exalta tanta violência? —Exigiu saber ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas e fixava seus olhos nela.

—Ele mereceu... —afirmou sem sequer meditar um milésimo de segundo. —Se ele não tivesse aparecido crê que o senhor Mayer teria se contentado com um simples apertão no pulso? Avisei-a que esse homem nos traria problemas e o fez. Embora depois de tanto tempo e de tantos bate-papos sobre ele não sabia se você queria que isto acontecesse.

—O que insinua? —Disse levando as mãos ao peito e ficando tão estupefata que notou como seu coração deixava de pulsar. —Não pensará que planejava uma aberração semelhante? De verdade crê que eu esperaria uma agressão à sua pessoa para afastá-lo de nós?

—O único do qual sou consciente é de como me tratou durante este tempo e como você desculpou cada comentário ou ato ofensivo para comigo —expôs enquanto se dirigia para o pacote no qual permanecia envolto seu vestido novo.

—Fi-lo por eles... —declarou com pesar. —O senhor Mayer foi o único professor que se contentou com o pouco que eu podia oferecer e não diminuiu, em nenhum momento, a qualidade de suas aulas. Martin já sabe ler e escrever perfeitamente e Philip se converteu em...

—Não quero te reprovar em nada... —interrompeu-a sem poder apartar os olhos da roupa. —Só lhe fiz referência que o senhor Mayer obteve o que merecia —acrescentou antes de tirar o vestido e pô-lo em frente a ela. —É bonito, não é? —Perguntou aos meninos.

—Ficará como uma princesa, tia Kristel! —Martin exclamou correndo para ela para abraçá-la.

—Uma princesa... —sussurrou enquanto deixava que o pequeno se aconchegasse ao seu corpo embora pudesse enrugar a roupa. —Nunca sonhei sendo... —alegou olhando à Valéria. —Nem considerei que um homem pusesse seus olhos em mim...

—Sempre se subestimou —Valéria disse movendo a mão com desdém. —Você mesma desprezou qualquer amostra de afeto para com sua pessoa.

—Sou coxa... —replicou.

—E? Essa claudicação impediu que o senhor Simmons se fixasse em você? Mas você o rejeitou categoricamente.

—Se não recordar mal..., —começou a dizer apartando delicadamente o pequeno para que retornasse junto ao seu irmão —o senhor Simmons tinha ultrapassado os cinquentas e, depois de enviuvar, só procurava uma mulher que cuidasse daquela enfermidade que anos depois o conduziu à tumba.

—Mas te teria convertido em uma senhora respeitável e não teria passado tanta necessidade —considerou.

—Como pode ser tão cínica? Como pode me reprovar que não aceitasse sua proposta matrimonial? A quantos você rejeitou? Crê que não sei o que te acontece? Noto-o cada vez que retorna do clube, Valéria. Algumas vezes é tão clara como a água —expôs sem contemplações.

Que ela mesma lutasse contra seus sentimentos não lhe dava o direito a que todo mundo renunciasse a eles. Ela queria ser feliz e se o senhor Hill albergava algum tipo de interesse, como parecia ter, aceitar-lhe-ia sem dúvidas. Quem lhe ia dizer que um dia encontraria um homem tão atraente, alto e são velando por ela?

—Não me acontece nada. E quando retorno do clube me encontro exaltada e colérica porque não consegui a arrecadação que esperava —resmungou.

—Se você o diz... —Kristel murmurou levando com supremo cuidado o vestido para o único cabide que tinham no lar. Um alargado pau que, preso com cordas, tinham colocado sobre a cama dos moços.

—E não considerei nenhuma proposição porque sei que nenhum homem aceitaria minha vontade —defendeu-se. —Você mesma foi testemunha do que pretendem fazer comigo uma vez que me case e... não permitirei que ninguém me separe dos meus sonhos! —Terminou a exposição à viva voz.

—Ninguém? —Perseverou. —Que estranho! Seguramente qualquer vendedor de verduras adoraria ter uma mulher que se ocupasse da semeadura de seus campos. Entretanto... —falou retornando ao lado de Valéria.

—Entretanto? —Perguntou impaciente.

—Entretanto, penso que essa é a desculpa que oferece a si mesma porque não pode alcançar o que deseja —apontou.

—E... o que desejo? —Perguntou mal-humorada de novo.

—Um homem que não peça permissão para te beijar, que não flerte como fazem os outros, que tome aquilo que deseje no momento que goste. Um homem que te deixe rendida, ao qual não possa replicar e um que, quando estiver em frente a você, seja incapaz de conter seus instintos femininos —manifestou sem mal respirar.

—Bobagens! —Exclamou notando como suas bochechas ardiam pela mudança de temperatura.

—Quer um homem para se apaixonar... —concluiu a senhorita Griffit.

—Apaixonar-me? —Disse girando-se sobre si mesma e interrompendo a exposição de Kristel que, embora não quisesse reconhecer, estava certa. Por que continha o fôlego quando ele se aproximava? Por que seu coração pulsava tão rápido quando notava sua presença? Por que foi incapaz de manter-se firme e comportar-se como o homem que fingia ser ao estar no escritório? Por que seus olhos se cravaram naquele pequeno triângulo onde mostrava sem pudor o pelo de seu peito? E seus lábios? Tinha visto alguma vez uma boca tão sedutora? —O amor não existe! Só se alcança uma atração física que, por desgraça, desaparece com o passar do tempo! —Clamou irada e zangada por delirar daquela forma tão inapropriada sobre o senhor Reform.

—Parece-me inverossímil que uma mulher como você alegue tal tolice. Quantas vezes narrou a história de seus pais? Quantas vezes insistiu em que seu pai abandonou tudo para casar-se com sua mãe? Isso não te demonstrou nada?

—Sim. —Voltou-se para os três, que a observavam sem pestanejar. —Eles o encontraram, mas não há possibilidade para nós.

—Pois eu não estou de acordo —resmungou. —Acredito que o senhor Hill está interessado em mim e eu nele.

—Depois dessa barbárie? —Perguntou atônita. —Um homem que destroçou o rosto de outro conquistou seu coração?

—Protegeu-me —declarou com firmeza. —Fez-lhe ver que sou uma mulher respeitável e que não devia me menosprezar daquela forma. Apesar de não ser uma dama ou nascer com este defeito, mereço uma mínima cortesia.

—Não o nego. Mas estou segura de que existem milhares de alternativas para alcançar sua... cortesia —resmungou.

—Pois me pareceu a melhor. Não só fez com que desaparecesse de uma vez por todas aquelas insolentes, mas também nos ofereceu outro meio de transporte onde não me observavam com repulsão. O senhor Berwin resultou ser uma excelente pessoa e nos atendeu com o respeito que merecemos. Além disso, não se sente agradecida pelo convite que o senhor Hill nos brindou para a noite no clube? E os presentes? —Assinalou para as bolsas. —Se não recordar mal, recusei a aceitá-lo quando a costureira nos informou que o senhor Reform saldaria a conta, entretanto, você enlouqueceu ao escutar seu nome.

—Esse sentimento de felicidade não te faz se perguntar o motivo pelo qual o senhor Hill ofereceu, sem perguntar ao próprio senhor Reform, a compra dos nossos vestidos?

—Possivelmente tenham um acordo... se, tal como nos disse o amável senhor Berwin, trabalha para ele, considerará um adiantamento —continuou lhe defendendo.

—Pelo amor de Deus! —Clamou desesperada, levando as mãos para o rosto. —Quem é e o que fez com minha amiga? Sinto falta da pessoa que sempre procurava a maldade das pessoas e se mantinha em alerta para encontra-la. —Uma vez que apartou as mãos do rosto, colocou-as na cintura e com um olhar que poderia assustar ao próprio diabo, continuou falando com Kristel: —Aceitará viver com um homem como esse? Deu-se conta de sua altura, da magnitude daquelas mãos e de como pode transformar-se em uma besta em questão de segundos? Quer viver toda a vida calculando o momento no qual deixará de ser um homem para converter-se em um monstro?

—É carinhoso, atencioso, educado e terno —asseverou.

—Demonstrou-o no mercado, assim como não ocultou essa rudeza da qual fala quando os ditosos Kant tentaram me ridicularizar.

—Perfeito! —Vociferou. —Pois só espero que não te convide a passear pela cidade porque muito me temo que golpeará toda Londres!

E justo quando terminou a frase levou-se as mãos à boca.

—Como pôde dizer isso? —Philip saltou levantando do colchão de seu leito, onde ele e seu irmão tinham decidido permanecer enquanto elas discutiam.

—O... sinto-o —disse dirigindo as mãos para sua amiga.

—Juro-te que não... é que... —titubeou contendo a vontade de chorar. —Kristel, vejo em seus olhos. Sei o que esse homem produz em você e penso que devo te proteger.

—E, o que vê? —Comentou doída pelo comentário.

—Vejo... vejo... —disse estendendo as mãos para o chão ao rejeitar o gesto afável.

—Sim, o que vê? —Kristel insistiu contendo a vontade de sair correndo da habitação para que o ar fresco acalmasse a dor que sentia em seu coração. Tão zangada se encontrava para atacá-la com tanta crueldade? O que lhe tinha levado a tal estado de loucura? «Medo... —Kristel pensou. —Pela primeira vez tem medo, mas não sei por quem...»

—Vejo uma mulher estranhamente iludida, uma mulher que defende uma atitude horrenda, uma mulher que...

—Está apaixonada! —Philip intercedeu. —Não tenho a idade adequada para participar de uma conversação como esta, mas não sou tão criança para não entender que está apaixonada e que não deveria se intrometer. Até agora acatei suas ordens porque sempre atuou em nosso bem, mas isto não tolerarei, irmã. Ultrapassou um limite do qual nem você mesma sabe como sair —disse encarando-a pela primeira vez em seus quinze anos de vida.

—Não quis lhe ferir... —Valéria comentou procurando com a mão uma cadeira onde sentar-se. —Só quero protegê-la...

—Mediante mandatos? —Philip continuou falando. —Porque lhe está ordenando que se esqueça do senhor Hill quando todos fomos testemunhas de como o agente velava pela integridade de Kristel.

—Nunca ordenei nada —defendeu-se.

—Não? Acaso me perguntou alguma vez o que desejo ser no futuro?

—Sempre disse que ansiava viver em uma fazenda e que cuidaria...

—Não! —Philip clamou. —Esse não é o meu sonho e sim o seu!

—Como assim o meu? —Valéria perguntou levantando do assento. Olhou primeiro ao Philip, logo à Kristel e finalizou observando o rosto de assombro que Martin exibia.

—Você falou com mamãe antes de morrer e lhe prometeu que conseguiria aquilo que ela desejou para nós, mas jamais nos perguntou se era o que nós queríamos.

—Philip... —Kristel disse enquanto colocava sua mão sobre o ombro do menino para que relaxasse. —Sua irmã lutou para lhes converter em homens de bem, e o tem feito estupendamente.

—Ficar em perigo é fazê-lo bem?

—Philip! —Valéria exclamou horrorizada.

—Não sou uma criança, Valéria, e sei o que faz cada vez que sai pelas noites.

—Mas eu... não...

Tudo ao seu redor começou a lhe dar voltas. Em um abrir e fechar de olhos seu doce lar se converteu em um salão de espetáculos dramáticos. O que estava acontecendo? Em que momento seus irmãos começaram a escolher? Angustiada, Valéria caminhou para trás procurando um lugar onde sentar-se de novo. Débil, ao notar como suas pernas fraquejavam, avançou até que topou com a banqueta que havia em frente à penteadeira. Era certo que Philip já não era um inocente menino. Converteu-se em um moço, ao qual o nascimento daquele bigode loiro oferecia uma imagem varonil. Mas ela não aceitava essa mudança, não podia vê-lo como um adulto sem antes obter o que prometeu à sua mãe. Olhou ao jovem e empalideceu. Sua figura exibia uma incrível tranquilidade apesar de observar em seus olhos certo remorso.

—Por sorte para nós —continuou falando o moço —jamais nos enganou e tampouco evitou fazer comentários sobre o que fazia diante de nós. Enquanto fui uma criança não lhes prestava atenção, mas de um tempo para cá atei cabos e não me parece adequado que uma mulher tente sair adiante jogando em um clube vestida de cavalheiro. Sabe a que perigos se submete? O que seria de nós se um dia descobrirem o que faz?

—Philip... —murmurou aturdida. —Só tenho feito para sair de Londres e lhes oferecer a vida que merecem.

—Valéria... —Kristel sussurrou aproximando-se dela para a tranquilizar.

—Mas eu não quero me converter em um fazendeiro —manifestou sério.

—Então, o que é que deseja? —Perguntou-lhe justo quando notava o calor da mão de sua amiga sobre seus ombros, reconfortando-a como tinha feito com seu irmão minutos atrás.

—Adoro Londres! —Exclamou dando um passo para ela.

—E sei que minha vida está aqui.

—É muito jovem... —falou com calma.

—Já sei. Mas também tenho idade suficiente para saber que não quero partir, que me afastar desta cidade não seria do meu agrado. Deve me compreender... —disse-lhe ajoelhando-se em frente a ela. —Você, melhor que ninguém, sabe o que significa se apartar de seu verdadeiro caminho.

—Meu caminho sempre foi lhes cuidar e lhes ver crescer... —alegou pondo as mãos sobre o cabelo loiro para acariciá-lo. —Aos dois —acrescentou olhando ao Martin, quem correu para eles para abraçá-los. —E foi muito fácil graças a ti, Kristel. —As lágrimas, aquelas que tinha contido, brotaram e molharam suas bochechas ainda ruborizadas pela exaltação das discussões. —Diga-me, Philip, o que deseja ser? O moço a olhou confuso. Não era o momento de lhe explicar que, depois da atuação do senhor Hill, tudo o que tinha sonhado ser tinha desaparecido. Queria ser um agente da Scotland Yard, mas o revelaria quando tudo se acalmasse.

—Necessito de um pouco mais de tempo para me assegurar, —comentou olhando de soslaio à Kristel —mas não quero ser um fazendeiro.

—Nem eu! —Martin interveio. —Eu serei um homem importante. Um que as pessoas olhem com medo...

—O posto já está ocupado, pequeno —Kristel apontou sorrindo amplamente. —Deve esperar o senhor Mayer falecer para suplantá-lo.

—Kristel! —Valéria repreendeu-a divertida.

—Só queria lhe advertir que...

Nesse momento se escutaram uns golpes na porta que provocaram o emudecimento da senhorita Griffit.

—Esperamos alguém? —Valéria perguntou levantando do assento.

—Não será o senhor Mayer, não é? —Philip soltou elevando-se com rapidez. —Se for assim, eu mesmo lhe farei correr como o galgo que o senhor Hill nomeou.

—Não se movam —Kristel disse dirigindo ao moço um olhar assassino por repetir o comentário de Borshon. —Eu mesma averiguarei de quem se trata.

Enquanto caminhava para a porta notava os olhares dos três em sua nuca. Todos se faziam a mesma pergunta: quem seria? Por sorte ou por desgraça, ninguém salvo o senhorio e o senhor Mayer tocava a porta, daí que permanecessem em suspense. Devagar Kristel agarrou o trinco da porta, girou-o e a abriu tão só uns centímetros.

—Sim? —Perguntou à pessoa que lhe dava as costas.

—Senhorita Griffit? —Berwin disse voltando-se para a entrada. —Desculpe aparecer sem avisar, mas tenho que falar com a senhorita Giesler. Está com você? Permite-me entrar?

—É claro! —Kristel respondeu abrindo a porta de par em par.

—Senhor Berwin! —Valéria exclamou com surpresa ao vê-lo. —Encontra-se bem?

—Sim, muito obrigado por seu interesse, senhorita Giesler. Só vim para lhe fazer chegar uma missiva do senhor Reform —informou-lhe estendendo o envelope para ela.

—Para mim? —Perguntou assombrada e assustada.

—Sim —afirmou o secretário que continuava com a carta na mão porque a moça não se decidia a pegá-la.

—Saiamos um pouquinho... —Kristel disse aos jovens. —Virá bem um pouco de ar fresco.

—Mas... mas... —Philip tentou dizer.

—Já lhes contarei o que senhor Reform deseja —Valéria disse para acalmá-los.

E depois de ouvir como cochichavam sobre as possíveis razões pelas quais o dono do clube se dirigia pessoalmente a ela, deixaram-nos sozinhos.


XIII

 

—Senhorita Giesler...

Berwin chamou a atenção da moça ao achar-se desconcertada e paralisada durante muito tempo. Por como tinha reagido, entendeu que não esperava receber nenhuma notícia do senhor Reform. Embora esse fato não só assombrou a ela, pois ele também continuava perplexo.

Quando lhe disse que ele mesmo escreveria uma missiva às jovens, esteve a ponto de começar a rir. Ele jamais esbanjava seu prezado e escasso tempo em ações tão banais. Mas ao retornar e ver sobre a mesa a carta redigida de seu punho e letra, quase ficou a rezar ante tal milagre. Se sua anciã memória não estava danificada pelo passo dos anos, era a primeira vez que se dignava a escrever a uma pessoa, acrescentando a esse prodígio que a destinatária era uma mulher e que, supostamente, tratava-se de duas desconhecidas. Embora depois da atuação dela e da obsessão que ele mostrou por lhe fazer chegar seus desejos, intuiu que não eram tão estranhos como supunha. Mas... quando se encontraram? Seria alguma conhecida daquele passado que tanto se esforçava em esquecer?

—Você sabe o que ele deseja? —Perguntou após serenar-se e recuperar a compostura. Olhava a carta com curiosidade e medo. Urgia-lhe averiguar o que o senhor Reform desejava, mas o pavor era maior que a inquietação. Por que estava escrito seu sobrenome no anverso? O senhor Borshon lhe teria indicado que tinha certo interesse por Kristel e Reform não acreditou oportuno dirigir-se a ela por respeito à vontade de seu empregado?

—Sim, —afirmou o administrador —mas seria conveniente que você mesma o averiguasse através de suas palavras —adicionou caminhando para ela com o envelope na mão.

—Está bem! —Cedeu ante a insistência do empregado.

Esquecendo-se da educação estrita que seu pai lhe ensinou desde que era menina, Valéria se dirigiu para uma das cadeiras que rodeavam a única mesa existente na habitação, sentou-se de maneira abrupta e abriu a carta enquanto o senhor Berwin esperava de pé a que lhe convidasse a tomar assento. Mas vendo que isto não acontecia, continuou no mesmo lugar, em silêncio e sem apartar o olhar dela.

Assim que tirou a folha, o perfume que o senhor Reform utilizava entrou em seu nariz, levando-a de maneira inconsciente ao momento no qual ambos permaneceram em frente à porta. O que teria acontecido se em vez do senhor Hernández tivesse estado Valéria Giesler? Teria a beijado? Porque, tal como se aproximou, muito se temia que sim. Contemplou o senhor Berwin de soslaio, tentando averiguar em seu olhar algo que lhe explicasse por que se dignou a dirigir-se a ela, mas não encontrou nada que a inspirasse, então se centrou em observar a caligrafia deste: clara e elegante. Dois adjetivos impróprios vindo de um homem que tinha nascido no subúrbio da cidade. Deixou de estudar a grafia e de perguntar-se em que momento de sua vida tinha aprendido a ler, para centrar-se no importante... o que o senhor Reform desejava dela?


Estimada senhorita Giesler:


Fui informado por meu empregado que assistirão à festa que oferecerei amanhã à noite, acima de tudo lhes agradeço que decidam vir em um dia tão importante para meu clube, será uma honra as ter sob meu cuidado. Escrevo-lhes esta missiva para lhes indicar que não precisam procurar um meio de transporte, eu mesmo me encarregarei de lhes enviar uma de minhas carruagens. Devem entender que, depois de lhes haver dado esses magníficos vestidos, vejo-me na obrigação moral de rotege-las posto que, usando essas roupas luxuosas, qualquer criminoso poderia imaginar que são duas damas da alta sociedade e as assaltar. Estejam prontas as nove, hora em que ordenarei recolhê-las. Espero, com ânsia, descobrir a aparência das mulheres nas quais, de maneira desinteressada, investi cem libras da minha fortuna.


Trevor Reform, sempre ao seu dispor.


Teve que ler a nota três vezes para reter toda a informação que havia nas escassas linhas. Primeiro lhe agradecia por ir, depois lhe ordenava que aceitassem o meio de transporte que lhes proporcionaria e terceiro...

—Uma obrigação moral? —Trovejou zangada levantando-se da cadeira com tanta força que esta caiu ao chão.

—Como? —Perguntou o administrador, a quem lhe trocou com rapidez a cor do rosto.

—Seu benevolente senhor declarou que tem uma obrigação moral conosco! —Exclamou irada. Soltou o papel sobre a mesa, mas este não chegou a tocá-la porque Berwin caminhou rápido para a mesa e o pegou. —Como pode ser tão miserável? Como pode transformar um gesto amável em algo tão ruim?

—Acredito que o senhor Reform não achou as palavras adequadas... —o secretário comentou absorto após lê-la. —Mas seguramente não fez com má intenção, senhorita Giesler —disse-lhe para que se acalmasse. —Posso lhe assegurar que não é muito dado a referir-se aos outros e não expressou com acerto aquilo que desejava. Com certeza pretendia lhe explicar que não podia, como cavalheiro que é, deixar duas formosas mulheres desprotegidas depois do ocorrido no jardim botânico.

—Tenta desculpá-lo? De verdade quer me fazer acreditar que é uma pessoa tão obtusa que não selecionou as frases oportunas? —Valéria clamou fora de si.

Sem poder amainar a respiração entrecortada, os passos sem direção e notando uma labareda em seu estômago, esteve a ponto de abrir a porta e gritar que todos os homens deveriam morrer para que as mulheres não tivessem tantas dores de cabeça. Entretanto, não o fez porque, para sua desgraça, ela cuidava de dois desses homens que arruinariam no futuro a vida de alguma outra mulher.

—Não! —O ancião comentou desprendendo-se da carta como se queimasse. —Só procuro uma explicação lógica às suas palavras.

—Lógica? —Vociferou. —De verdade pode encontrar lógica nisso?

Ao ver como o rosto do pobre empregado começava a entristecer-se, Valéria se acalmou o suficiente para não voltar a lhe elevar a voz.

—Sinto muito, senhor Berwin, você não tem culpa —desculpou-se enquanto tentava achar um pouco de paz em sua cabeça.

—Não se preocupe, não é a primeira vez que recebo uma resposta semelhante... —esclareceu tomando, ao fim, assento.

—Como pode trabalhar para um homem tão... imoral? —Utilizou o adjetivo com ironia.

—Juro-lhe que não é um homem tão desagradável —apontou enquanto tirava do bolso de sua jaqueta um lenço com o qual limpar os óculos.

—Pois até agora não me demonstrou o contrário —declarou inconscientemente. Ao ver como o ancião a olhava com desconfiança, explicou-se: —Como pôde ler, não foi uma pessoa correta ao nos denominar obrigação moral. Isso não demonstra a pouca consideração que tem para com os outros?

—Reitero que não soube escolher as palavras adequadas, mas em sua defesa alegarei que não está acostumado a expressar aquilo que sente —expôs ao mesmo tempo em que colocava o lenço em seu lugar e se colocava de novo as lentes.

—Eu mesmo estranhei quando pegou papel e pluma para redigir a missiva, normalmente sou eu quem escreve enquanto ele me dita. É óbvio, estou acostumado a mudar aquilo que não me parece apropriado. Entretanto, como pôde apreciar, nesta ocasião fechou o envelope para que eu não lesse o que havia no interior.

—Entendo que queira justificá-lo, posto que seja o homem que lhe paga o salário, mas tem que ser consciente de que nenhuma desculpa pode suprimir a aversão que transmitiu.

—Aversão, suspeita, sátira... —Berwin enumerou. —É algo inato no senhor Reform. Corre por suas veias esse tipo de atitudes, mas lhe asseguro que não é um mau homem.

—Claro! —Valéria exclamou fazendo uns inapropriados dramalhões. —O que poderia dizer um empregado dele?

—Não é isso... —o ancião comentou colocando as mãos sobre a mesa e cruzando os dedos como se se dispusesse a rezar. —Tenha em conta que é um homem de negócios e como tal, tem que comportar-se dessa forma tão virulenta.

—Pretende que eu sinta dó dele? Por um homem que se fez poderoso através da extorsão e do jogo?

—Descreve-o como um canalha, um homem sem escrúpulos e...

—Mas sabe o que significa a palavra prejuízo? Por favor, não queira converter a água em licor. Esse... —fechou os olhos para encontrar o adjetivo idôneo. —Esse cretino não é racional. Como se atreve a nos ordenar tal loucura? Sua carruagem? Antes prefiro que me assalte esse criminoso que menciona! —Disse cética.

—Falhou ao expressar que se converteram em uma obrigação moral... —Berwin expressou sobressaltado.

Como lhe tinha ocorrido tal tolice? Como não tinha sido capaz de indicar que um cavalheiro não podia deixar desprotegidas duas formosas damas? Por que utilizou tanta mordacidade? Estaria em sua poltrona gabando-se da atitude que ela adotaria depois de ler sua missiva? Como poderia tranquilizar a moça se não era capaz de rebater suas palavras?

—Seu engano foi escrever e... pensar —Valéria resolveu voltando-se sobre si mesma, dando as costas ao pobre mensageiro que não era capaz de mudar a expressão de assombro.

—Juro-lhe que não é um mau homem. No fundo, seu coração é benévolo —assinalou com a esperança de apaziguá-la.

—Coração? Esse homem não possui coração, senhor Berwin! —Respondeu-lhe girando-se de novo. Seu rosto tinha a cor do fogo, seus olhos brilhavam pela ira e as mãos se fecharam para formar dois pequenos punhos.

—Poderia lhe contar a história de como o senhor Reform me encontrou, de como me salvou das garras de um homem autoritário e cruel, mas muito me temo que não lhe serviria de nada —expressou o ancião depois de respirar fundo.

—Que tenha tido, em um momento de sua vida, um pouco de bondade por um homem tão misericordioso como você, não tem que lhe oferecer os atributos de afável e considerado —resmungou.

—Não salvou só a mim, todos os empregados do clube tiveram uma vida muito dura antes de trabalhar para o senhor —esclareceu.

—Repito que...

—Sabe como atuou quando descobriu que minhas costas estavam marcadas pela ira do meu anterior amo? —Soltou cansado de tanta gritaria. Embora ela tivesse um pouco de razão, também devia ser informada que todos os empregados estavam felizes por trabalhar sob suas ordens e que, apesar de suas cóleras, que eram muito similares às dela, nenhum tinha pensado em abandonar seus trabalhos.

—Imagino que como qualquer homem que se aprecie —resmungou.

—Aqueles que sabiam o que eu sofria olhavam para o outro lado quando as marcas de sangue impregnavam minha camisa. Entretanto, quando o senhor Reform as observou, abandonou tudo o que estava fazendo e encarou com valentia o miserável que me açoitava cada vez que se embebedava.

—Sinto que padecesse tanto, —comentou caminhando para o ancião —e me alegro de que alguém deu um castigo a esse monstro. Mas leia essa carta e conclua com racionalidade. Chamou-nos obrigação moral —reiterou.

—Pensou alguma vez em ter a vida que desejava de menina? —Berwin soltou de repente, como se tentasse mudar de tema. —Imaginou-se alcançar com a ponta de seus dedos o sonho infantil?

—Meu sonho infantil se desvaneceu antes de sua chegada. Então, como verá, já não tenho nenhuma aspiração a que me aferrar —declarou recordando com pesar as palavras de seus irmãos.

—Não comprará aquela fazenda? —Perguntou perplexo. O ás que guardava na manga, o que fazia alusão à posse do ganho que ela obteria ao jogar no clube, desapareceu como a névoa ante a chegada do sol. Agora só ficava lhe falar de por que o senhor Reform tinha mudado sua atitude misericordiosa e, muito se temia, que não lhe ia importar absolutamente.

—Não. —Valéria negou com um leve movimento de cabeça. —Parece que meu sonho não era compartilhado.

—Mas o senhor Reform o obteve. Com muito esforço restaurou um edifício fantasma e o transformou no que agoraNo princípio —explicou levantando-se de seu assento —era um homem solidário e empático com os sócios que iam ao clube, entretanto, com o passar do tempo descobriu que não tinha tomado a atitude adequada; um homem de negócios jamais deve fazer seus os problemas dos outros porque só lhe conduzirá mais dores de cabeça. Quando observou que ia cair na ruína adotou o comportamento mais recomendável.

—Quer seguir lhe justificando? —Perguntou olhando-o com desconfiança.

—Quero que descubra a razão pela qual se transformou em um homem sem escrúpulos. Também quero que considere a oferta que lhe fez, apesar de denominá-las de forma errônea, está em posse da verdade. Se vocês caminharem para o clube com os ditos trajes, serão assaltadas por qualquer criminoso. Além disso, se tanto repudia a conduta do senhor Reform, repense sobre a que você possui. Não atua de maneira semelhante ao não pensar na senhorita Griffit? Se meus olhos não me enganaram, custa-lhe caminhar e o trajeto que realizaria a pé não seria aconselhável para ela.

—Pode pedir ao senhor Borshon que ele mesmo se ocupe de seu amparo —apontou mais zangada ainda ao escutar como o empregado a acusava de sua falta de atenção para com Kristel.

—O senhor Borshon não dispõe de carruagem e será um alívio para ele descobrir que o senhor Reform ofereceu à moça um transporte com o qual não chegará fatigada —alegou enquanto se dirigia para a porta. Não tinha muito que acrescentar à conversação, nem tampouco queria fazê-la mudar de opinião. Se ela não aceitava o oferecimento por orgulho, o único que ficava era que entendesse que não estaria sozinha nessa aventura perigosa. —Você pode fazer o que desejar, mas a carruagem aparecerá as nove para conduzir a senhorita Griffit até o clube —declarou de maneira cortante. —Boa tarde, senhorita Giesler. Foi um prazer conversar com você.

—Boa tarde, senhor Berwin, o mesmo lhe digo —manifestou agarrando entre suas mãos o tecido do vestido e segurando a vontade de gritar que aceitaria a proposição daquele petulante só para ajudar Kristel, tal como tinha feito desde que a conheceu.

Uma vez que a porta se fechou, Valéria agarrou a cadeira que ainda perdurava sobre o chão, colocou-a em seu lugar e se sentou. A carta estava sobre a mesa, justo onde o senhor Berwin a tinha deixado. Colocou os dedos sobre ela e a arrastou para lê-la de novo. Tentou lhe buscar o duplo sentido que o empregado lhe indicou, mas não o achava. Seguia vendo o reflexo de um homem pérfido, maligno e que plasmou toda a aversão que guardava em seu interior naquelas palavras. Entretanto, havia algo de certo naquelas frases; podiam ser assaltadas enquanto se dirigiam para o clube e, dado que Kristel odiava passear, era uma opção bastante considerável.

«Está bem, Reform! Aceitarei seu oferecimento, mas lhe juro pela alma dos meus pais que arrancarei esse coração que dizem que possui», declarou ao mesmo tempo em que enrugava o papel até convertê-lo em uma bola que guardou no bolso de seu vestido. Estava a ponto de levantar-se quando escutou que alguém se aproximava da entrada de seu lar. Valéria se aparou o cabelo, desenhou um de seus típicos sorrisos e olhou para a porta.

—O que o senhor Berwin desejava? —Kristel perguntou-lhe assim que abriu a porta e viu-a sozinha, sentada com tanta tranquilidade e estranhamente feliz. —O senhor Reform se zangou pela compra? Quer que lhe devolvamos tudo o que adquirimos na loja? —Continuou consultando enquanto caminhava para sua amiga.

—Só queria nos informar que teremos à nossa disposição uma carruagem para essa noite —revelou ao mesmo tempo em que se levantava do assento. —Conforme escreveu, qualquer criminoso poderia nos assaltar ao nos ver vestidas tão elegantemente.

—Oh, que considerado! —Kristel exclamou entusiasmada. Ao observar que Valéria continuava com aquele rosto impávido, assinalou sarcástica: —No fundo não parece um ogro e sim um homem bastante prestativo. Não entendo como teve essas impressões tão distorcidas dele. Faltou-te me dizer que tinha o costume de devorar seus sócios que não pagavam suas faturas.

—Sim, isso parece... embora eu esteja atenta se por acaso, ao terminar a festa, alguma de nós duas desaparecesse de maneira misteriosa... —Valéria resmungou fixando seu olhar zangado nas bolsas que ainda estavam sobre a mesa.

—O que pensa sobre o que te pedi? —Kristel perguntou um pouco mais sossegada ao averiguar o motivo pelo qual o senhor Berwin foi ao lar. —Ensinar-me-á a jogar? Se a sorte nos acompanhar, poderíamos retornar com os bolsos cheios.

—Primeiro tenho que saber onde se alojarão meus irmãos. Se nós duas formos ao clube e, dado que o senhor Mayer não aparecerá por aqui, não disponho de mais gente para pedir que cuidem deles —alegou como desculpa para não lhe responder. Não desejava que Kristel terminasse ofuscada e decepcionada consigo mesma ao não encontrar a essência do jogo. Não seria a primeira vez que emanaria por sua boca um sem-fim de queixas e lamentos. E nesta ocasião desejava que se concentrasse nessa aparição em frente ao senhor Hill, o único homem que a estimava como merecia.

—Já está solucionado. Falei com a senhora Shoper e ficará com o Martin por um módico preço.

—E Philip? —Perguntou entreabrindo os olhos. —Não pode ficar aqui sozinho.

—Suplicou-me que lhe permitamos que nos acompanhe e acredito que deveria aceitar...

—Não! —Valéria exclamou com rapidez. —Ele deve ficar aqui, junto ao Martin, para que não lhe aconteça nada de mau. Já sabe que não confio na senhora Shoper...

—Se esquecer de todas as coisas insólitas que adornam seu lar, as beberagens que vende a quem procura sarar seu corpo e as beberagens de amor e fertilidade, é uma mulher muito comum. Saiba que tem muita estima aos seus irmãos, posto que seja os únicos meninos que brincam com os seus. Além disso, não acredito que deva negar ao Philip o desejo de unir-se a nós —Kristel aconselhou. —Como bem descobriu antes da chegada do senhor Berwin, já não é mais tão criança e pode começar a decidir por ele mesmo.

—Só tem quinze anos... —sussurrou mediante um longo suspiro.

—Recorda o que fazia quando tinha sua idade? Porque eu sim.

—Cuidava deles, como o farei até que eu morra —jurou.

—E o tem feito muito bem, até o momento... —expôs aproximando-se dela. —Entretanto, deve lhe permitir decidir por ele mesmo, assim como deve confrontar as consequências dessas decisões. Não pode ir atrás deles diminuindo seus enganos porque algum dia se farão homens e quererão viver sua própria vida.

—Quando descobriu que não queriam abandonar Londres? —Soltou olhando-a com desconfiança. Por que ela não sabia nada até que Philip, em um ataque de ira, revelou-o? Era tão inacessível? O senhor Berwin teria razão ao lhe recriminar que seu comportamento se assemelhava ao do senhor Reform? Teria se imposto aos desejos de seus irmãos imaginando que ela era possuidora da verdade absoluta?

—Há pouco mais de quatro meses... —confessou-lhe. —Por isso insisti tanto em que não retornasse ao clube. Eles não querem ter a vida que você tanto deseja.

—Mas eles poderiam ter falado comigo... —disse angustiada. —Sempre os escutei. E se era uma decisão tão importante como esta, ter-lhes-ia prestado toda minha atenção.

—Imagino que tiveram medo... —comentou ao mesmo tempo em que colocava as mãos nas bolsas para tirar o resto de seus pertences.

—Medo? —Perguntou voltando-se para ela.

—Sim. Você tem um caráter áspero... —expôs enquanto tirava as meias. Brancas, tinha as comprado tão brancas como a lua. Borshon gostaria? Agradar-lhe-ia saber que suas pernas estavam cobertas de fina seda nívea? A vergonha que sentiu nesse momento se refletiu em suas bochechas. Por que seguia comportando-se como uma menina?

—E por que se envergonha por me dizer tal coisa? —Valéria perguntou acreditando que aquele rubor inesperado se devia ao descrevê-la daquela forma. —Nunca disse que era uma mulher carinhosa ou terna. Por isso me resulta cômoda nossa relação. Tudo o que eu não tenho, contribui-o você.

—Não me ruborizava por isso... —disse antes de soltar uma grande gargalhada. —Mas é certo que você possui o caráter de sua mãe. Todo mundo a temia quando a encontrava, embora os homens também voltassem seus rostos para deleitar-se com sua beleza.

—Minha mãe amava meu pai e nenhum homem era suficientemente bom, salvo ele —comentou irada.

—Vê? Já se zangou. Por isso mesmo seus irmãos temem falar contigo, em questão de segundos pode se converter em uma tirana déspota. Mas se não quer que Philip nos acompanhe e deseja que permaneça triste e desolado porque sua irmã não confia nele...

—Está bem! —Valéria sucumbiu com um resignado assentamento de cabeça. —Philip irá conosco!

—Perfeito! —Kristel exclamou dando-lhe umas leves tapinhas. —Dir-lhe-ei agora mesmo que temos que sair às compras. Esse moço deve mostrar a dignidade que já professa.

—Onde poderemos encontrar um bom alfaiate? —Valéria perguntou entreabrindo os olhos. —Por Deus! Isso mesmo! —Clamou perplexa.

—Com certeza com algumas libras a mais não será nenhum inconveniente —anunciou com um sorriso perverso.

—Não, categoricamente, não! Eu pagarei o traje do meu irmão. Não quero que volte a dirigir-se a mim com qualquer comentário ofensivo.

—Oculta-me algo que eu deva saber, Valéria Giesler? —Kristel perguntou enquanto colocava suas mãos nos quadris.

—O senhor Reform escreveu algo mais, além de que nos faria chegar uma carruagem?

—Crê que esbanjaria seu prezado tempo acrescentando alguma coisa mais? —Disse enquanto se dirigia para a porta para ir procurar Philip.

—Segundo seu critério, não, mas possivelmente...

—Não há nenhum possivelmente! Esse homem é um monstro! —Gritou antes de dar uma portada atrás de sua saída.

Kristel ficou surpresa. Não podia dar crédito à ira que aparecia em sua amiga cada vez que faziam referência ao senhor Reform. O que acontecia? Tão horrendo era? Por agora não tinha se comportado de maneira cruel e sim ao contrário, bondoso ante o pagamento de sua fatura e atencioso ao lhes facilitar um transporte. Então... por que o diabo a possuía quando falavam dele? «Seus olhos são escuros, como escura é sua alma —recordou. —Só necessita do poder de sua palavra para que todos se humilhem ante ele». Estaria certa? Valéria teria razão? Bom, se tudo saísse tal como o tinham planejado, na festa da terça-feira suas perguntas encontrariam as respostas...

 

 


Permaneceu em frente à janela de seu escritório desde que Berwin partiu. Enquanto aguardava a volta, Reform meditava sobre os milhares de comportamentos que a mulher teria adotado após ler sua missiva. Teria se dado conta desse detalhe ofensivo? Ou seria tão avara que só reparou que teriam um veículo para seu prazer? Passou-se os dedos pelo queixo firme e decidido, concretizando a resposta que procurava. Mal a conhecia, mas a experiência que tinha adquirido depois de tantos anos alternando com todo tipo de pessoas, indicava-lhe que teria se enfurecido, que teria negado seu oferecimento.

Olhou de esguelha sua garrafa de água. Desde que adotou a norma de Borshon começava a observar a vida por outra perspectiva, uma que começava a lhe danificar a mente. Enquanto percorria por suas veias o álcool mais delicioso do mundo e enchia seus pulmões daquela fumaça que absorvia dos custosos havanês, não tinha tempo de meditar sobre o que desejava fazer durante as horas do dia. Talvez porque, depois de abrir os olhos, só encontrasse ao seu lado uma mulher que o cansava de novo até que a escuridão da noite atravessasse a janela de seu quarto. Entretanto, desde que começou a vida de abstinência estava muito dinâmico, ativo e tinha a mente tão fresca que não podia deixar de pensar e pensar...

E entre essas meditações achou uma que o desconcertou tanto que sentiu a palpitação do sangue em sua garganta. O que esperava fazer no futuro? Queria converter-se no velho Hondherton? Lutaria por manter seu clube até que este se derrubasse com o passar dos anos? Seu destino estava escrito? Permaneceria sozinho? Conseguiria ter algum descendente que herdasse aquilo pelo qual tanto lutava? Encontraria a esposa idônea? As últimas perguntas lhe causaram um calafrio semelhante ao que possuiria quando a morte o visitasse para lhe dar fim. Como lhe tinha ocorrido tal estupidez? Sem lugar a dúvidas, esse estado de sanidade não lhe assentava tão bem como esperava.

Franziu o cenho sem apartar o olhar da rua, tentando fazer desaparecer as questões que lhe golpeavam a cabeça como o coice de um cavalo. É claro, o senhor Hill tinha a culpa dessa agonia interminável por lhe haver indicado que todos os homens que saudavam Valéria possuíam a mesma ideia em cada conversação: proposta de matrimônio. Por sorte para ela, era muito sensata para aceitar qualquer mentecapto que sorrisse além do permitido.

Os ciúmes, imersos ao imaginar os rostos daqueles homens cheios de luxúria quando Valéria se aproximava, fizeram-lhe perder a calma. Esteve a ponto de gritar a algum dos que trabalhavam para ele que lhe fizesse chegar uma garrafa de rum quando os cascos dos corcéis que puxavam sua carruagem chegaram aos seus ouvidos. Com rapidez sentou-se na poltrona adotando a postura de um homem entregue aos seus negócios e que não perturbaria aquele labor esperando a resposta de uma mulher pela qual corria em suas veias sangue espanhol, ou cigano como denominavam também.

—Sim, o senhor Reform se acha em seu escritório —informaram ao Berwin depois de perguntar, com desespero, onde se encontrava.

Trevor olhou para a entrada e tentou apaziguar seus batimentos cardíacos para escutar, com exatidão, como seu fiel empregado subia as escadas. Depois de contar como subia os vinte degraus e caminhava pelo corredor, abaixou a cabeça e fixou seus olhos nos papéis antes que Berwin se apresentasse na entrada.

—Senhor Reform... —disse como saudação.

—Sim? —Perguntou elevando a vista e lhe fazendo gestos para que entrasse.

—Já retornei —comentou dando vários passos.

—Já vejo... —Trevor resmungou.

—Peço-lhe, por favor, que se você me tiver um mínimo afeto, não volte a me enviar ao lar da senhorita Giesler —declarou com mais raiva que medo. Era a primeira vez que exigia algo ao seu senhor. Mas por seu bem, pela saúde daquele coração velho que pulsava sob o peito, não devia submeter-se a outra situação igual.

—A que vem esse comentário? —Trevor perguntou com espera.

—Denominou-as obrigação moral —disse apertando a mandíbula. —Você sabe como ela se sentiu ofendida ao ler sua carta? Como pôde descrever a ela dessa forma tão cruel?

—São uma obrigação moral —Reform reiterou encolhendo os ombros. —E não entendo o motivo pelo qual se zangou, só fui sincero com ela —adicionou com seriedade.

—Pois se for tão amável, na próxima vez que desejar ser sincero com ela, prefiro que me ordene ir ao dentista para que me arranquem um molar. Seguramente a dor será menos daninha que o padecido desta tarde —assinalou tão incrédulo que teve que respirar várias vezes para achar um pouco de calma.

—Aceitou meu oferecimento? —Procurou saber enquanto cruzava suas mãos sobre a mesa e olhava com intensidade ao seu empregado. Dentista? Ele odiava o dentista! Valéria se comportou tão mal com Berwin?

—Precisei procurar algo que pudesse lhe causar tanta dor que lhe resultasse impossível negar-se —explicou.

—O que lhe fez? —Trevor gritou levantando-se veloz ao mesmo tempo em que emitia uns ruídos ensurdecedores ao bater sobre a mesa. —Como se atreveu...?

—Desculpe, foi o senhor quem lhe provocou um aborrecimento tão descomunal que ela se negava inclusive a vir. Eu só busquei piedade, se é que a tem. Porque lhe juro que não entendo como pode haver no mundo duas pessoas tão afins... —assinalou baixando o tom de sua voz na última frase.

—O que lhe fez? —Grunhiu apertando tanto os dentes que marcou a mandíbula.

—Mencionei-a que deveria ser benevolente com a senhorita Griffit e esquecer seu egoísmo —Berwin manifestou ainda doído pelo comentário tão daninho à Valéria.

Se não a tivesse visto chorando no jardim botânico pelo trato daquele infame para com sua amiga, ou essa forma de abraçá-la, consolá-la e animá-la a procurar um vestido que lhe desse a imagem que merecia, o fato de acusá-la de ser uma pessoa soberba não lhe teria causado tanta tristeza.

—O que acontece à senhorita Griffit? Está doente? Necessita de um médico? Por isso o senhor Hill se preocupa com a mulher? —Perguntou sem mal respirar.

—Não, conforme me explicou, sua claudicação se produziu ao nascer. Uma má parteira lhe fez mal aos quadris.

—Isso não é preocupante... nem tampouco algo pelo qual se possa sentir menosprezada —murmurou sentando-se de novo. —Acaso há alguém perfeito nesta cidade?

—Em efeito, não o há nem ela deve sentir-se inferior a ninguém. Entretanto, a jovem ficaria exausta ao caminhar de Brick Lane até aqui. Por esse motivo aleguei a amizade de ambas e o carinho que se professam para que esquecesse aquela missiva e aceitasse o veículo que lhes oferece.

—Em resumo... virão? Aceitaram minha petição? —Perguntou esboçando um grande sorriso.

—Sim, aceitou-a, mas se estivesse em seu lugar evitaria falar com ela. Muito me temo que esse médico ao qual fizesse referência terá que aparecer no clube quando ela partir.

—Não me fará mal... as mulheres... —começou a dizer.

—Essa mulher não é como a senhorita Barnes, senhor Reform. Não deseja nada do que você tem e jamais se rebaixará para alcançá-lo. Não lhe importa sua fortuna, seu poder ou o prazer que oferece em seu leito. Quando escutar por sua boca os pasmosos adjetivos com os quais lhe descreve, seu coração deixará de pulsar.

—Bobagens! Esquece-se que faz referência a uma mulher! —Exclamou incrédulo.

—Sim, de uma mulher com sangue espanhol... não esqueça esse pequeno matiz, senhor Reform.

—Não esquecerei, Berwin. E agora, pode descansar. Acredito que seu ancião cérebro começa a delirar devido ao cansaço.

—Não o nego. Boa tarde, senhor —Berwin disse antes de girar-se sobre si mesmo.

—Boa tarde —respondeu.

Trevor esperou que seu empregado fechasse a porta para levantar do assento e caminhar de novo para a enorme cristaleira. Era o lugar mais adequado para pensar.

«Sangue espanhol...» esse seria o segredo de Valéria para jogar de maneira excelente? A mãe lhe teria mostrado o poder do jogo, a calcular sem engano as cartas que teria seu competidor? Se não tinha escutado mal, os melhores jogadores eram aqueles que procediam da Espanha, embora também fossem bons estelionatários... mas ela não era uma vigarista, era uma trapaceira. A mulher mais trapaceira que havia em Londres e, para seu prazer, na noite da terça-feira estaria sob sua sombra. Porque, por mais que Berwin lhe advertisse que não devia aproximar-se dela, nada nem ninguém o deteria: assim que Valéria colocasse um pé no clube, ele respiraria atrás de seu pescoço.


XIV

 

Desde que aceitou o oferecimento do senhor Reform e a partir do momento no qual retornou ao seu lar depois de visitar o alfaiate que confeccionaria um traje para seu irmão, o aprazível lar se converteu em uma colmeia de abelhas desesperadas por fabricar mel. Nunca viu Kristel tão nervosa nem Philip tão entusiasmado. Ambos rondavam de um lado para outro comentando a felicidade que sentiam, quão agradecidos estavam por viver semelhante acontecimento e não cessavam de falar sobre o que fariam durante a festa. Até terminou, sob pressão, por lhes ensinar a jogar cartas.

O que imaginou que seria um tremendo calvário se transformou em uns episódios tão prazerosos que não os esqueceria jamais. As risadas de Kristel cada vez que ganhava, os aborrecimentos de Philip ao perder e a paixão que ambos adotaram para instruir-se na habilidade do jogo fizeram-lhe repensar sobre tudo o que tinha meditado até o momento. Quando se esqueceu de observar as pessoas que viviam em seu lar? Por que não foi capaz de lhes perguntar o que desejavam? Tão egoísta tinha sido? Sua atitude, como fez referência o senhor Berwin, era semelhante a um tirano? Talvez seu grande engano fosse superproteger as pessoas que amava. Em ocasiões as definiu como débeis e em outras não quis entender que o tempo também transcorria para elas. Entretanto, uma vez que foi consciente desses fatos, tudo ao seu redor se modificou, proporcionando-lhe um estado de bem-estar que não tinham tido em anos. Até permitiu que Philip caminhasse sozinho pela rua para adquirir o Times, no qual se fazia uma menção, na segunda página do periódico, àquela esplêndida noite no clube Reform.

Como era de esperar resultou todo um acontecimento social. Pela primeira vez as damas podiam ir ao lugar onde seus maridos passavam a grande parte do dia. Esse convite as revolucionou tanto que as ruas da cidade se encheram de criadas, senhoras e damas procurando a melhor roupa para usar; umas para elas mesmas e outras para quem as serviam. Por sorte, Valéria e Kristel tinham adquirido seus vestidos antes que toda Londres se inteirasse posto que, se não fosse assim, nenhuma costureira as teria atendido.

Outra das façanhas que realizou nessa nova etapa foi aceitar que a senhora Shoper visitasse seu lar. Kristel terminou por convencê-la acrescentando ao estudado discurso que, se tanto lhe interessava o bem-estar de Martin, o melhor era que a conhecesse a fundo. Embora já a conhecesse dado que tinha tratado amigavelmente a sua mãe. Entretanto, a rejeição que sentia por ela, criada ao culpá-la pela morte inesperada desta, foi desaparecendo lentamente. Resultou ser uma mulher encantadora, jovial e muito divertida que sobrevivia com as beberagens que fabricava com as plantas que encontrava na cidade ou adquiria no mercado. Contou-lhes que, algum dia, o mundo descobriria as propriedades mágicas destas e diminuiriam suas enfermidades tomando infusões. Só houve um momento embaraçoso nessa visita, quando Doina, que assim se chamava a senhora Shoper, falou que o futuro estava escrito nas palmas esquerdas de todas as pessoas, mas que eram tão teimosas que não podiam decifrar o que lhes aconteceria com o passar do tempo.

—Como aprendeu esse milagre? —Kristel interessou-se.

—Leu em algum livro?

—Não, senhorita Griffit. Jamais li um livro, porque não sei ler —explicou dando um pequeno sorvo à sua xícara de chá. —Mas há coisas que não se aprendem dessa maneira. Minha mãe, a qual à sua vez foi ensinada por minha avó, foi minha instrutora —acrescentou colocando a xícara sobre o pires.

—Incrível! —Kristel exclamou entusiasmada. —E há predito o futuro a muitas pessoas?

—A muitas... —Doina comentou mediante um suspiro. —E sou agradecida por isso —esclareceu satisfeita.

Valéria a observou em silêncio e de maneira esquiva. Sua parte alemã, aquela que analisava tudo, gritava-lhe que cada um devia sobreviver com o que possuía; assim como ela estudava cada expressão do rosto de sua convidada, esta fazia o mesmo. No momento em que descobriu que a senhora Shoper arqueava sua sobrancelha dourada em sinal de pergunta, apartou seu olhar para fixá-la em Kristel.

—Sinto muito, mas não acredito nessas coisas —opinou.

—O futuro é difícil de predizer. Basta tomar uma eleição inadequada para mudar o rumo de nossas vidas.

—Suponho que você é das mulheres que veem o mundo de cor branca ou negra, equivoco-me?

—Não sei se há cores predeterminadas, mas dado que não me parece racional a forma em que você o explica, sim, em efeito. Sou das pessoas que deduzem que existe um sim ou um não, um acima ou um abaixo, um agora ou um nunca... —enumerou altiva.

—Isso se deve ao seu sangue alemão... —Doina apontou divertida. —Embora me custe acreditar que a essência de sua mãe não aflore em você. Posso lhe assegurar que é a viva imagem dela.

—Conheceu a mãe da Valéria? —Kristel soltou ainda mais surpreendida do que antes. —Por que não me comentou isso? Sempre acreditei que não se conheceram.

Valéria não respondeu, só encolheu os ombros, como se não valesse a pena mencionar que a primeira mulher que sua mãe conheceu foi a sua convidada.

—A família Giesler se acomodou neste lar meses depois que meu querido marido alugasse o nosso —explicou. —Chamou-nos a atenção que proviessem da Alemanha e que ambos falassem inglês com tanta fluidez. Com o tempo, criou-se um vínculo entre nós e finalizou com a morte dela. —Esclareceu. —Mas possivelmente você não me recorde porque passava a maior parte de sua infância grudada ao seu pai, conversando sobre seu idioma natal, como se não quisesse perder uma parte de si e recusando qualquer contato salvo o de sua família.

—Por sorte para mim, não perdi minha origem e tenho a esperança de partir desta cidade. À referência que faz sobre minha mãe, é verdade que procedia da Espanha, mas se criou com meus avós na Alemanha, país onde aprendeu o ofício da confecção. Por esse motivo ela bordava para a família Davis... —Valéria apontou com rapidez.

Embora toda sua vida não tivesse sido costureira. Antes de conhecer seu marido, a mãe dela a obrigava a compilar flores dos jardins e as vender a quão apaixonados passavam ao seu lado. Foi assim como conheceu seu querido pai. «E ali estava de novo, como cada manhã desde que o vi pela primeira vez, sentado em um banco do parque lendo um desses noticiários. Não era capaz de levantar seus olhos desse desventurado papel. Assim não duvidei, coloquei-me em frente àquele homem tão bonito e perguntei se lhe interessava comprar uma rosa para a esposa que lhe esperaria em seu lar —recordou o início da história de seus pais. —Quando seus grandes olhos azuis me olharam senti um calafrio percorrendo meu corpo. Fui incapaz de lhe dar a rosa que pagou quando me disse: não tenho esposa a que dar de presente essa formosa flor, mas ficarei encantado de oferecê-la a você se me obsequiar com seu nome».

—Sei... —Diona respondeu olhando de novo a outra moça. —Quer que lhe leia o futuro? Eu gostaria de saber o que lhe acontecerá.

—A mim? —Kristel perguntou perplexa. —É claro! O que devo fazer?

—Estenda sua mão esquerda sobre a mesa com a palma para cima —indicou-lhe. —O resto eu faço.

Tal como lhe disse, colocou a mão sobre a mesa e permaneceu tão quieta que parecia não respirar. Doina passou as gemas de seus dedos pelas linhas desenhadas na palma, fechou os olhos, disse algo em romeno e, ao abri-los, sorriu.

—Será a esposa de um guerreiro. Um homem que lutará durante toda sua vida para te cuidar... —começou a dizer.

—Disse-lhe que o senhor Hill é agente? —Valéria interrompeu-a zombando.

—Não... —Kristel respondeu abrindo os olhos como pratos enquanto negava com a cabeça.

—Também vejo três bebês. Dois nascidos de um parto e o terceiro...

—E o terceiro? —Insistiu a aludida.

—Será uma menina —respondeu. —Também vejo o amparo de uma mulher. Não é sua parenta, mas sim dele. Tem o mesmo sangue guerreiro, embora não entendo a razão pela qual mantém uma luta diferente...

—Diferente? —Persistiu emocionada.

—Sim, é como se não pudesse mover-se... como se todo seu reino estivesse ao alcance de sua mão... —explicou duvidosa.

—Tudo isso vê através de umas linhas? —Valéria soltou mordaz. —Impressionante! —Acrescentou divertida. —E se tivermos a desdita de estragar essas apreciadas marcas lavando, tecendo e...

—Segue sem me acreditar, não é? —Assinalou mal-humorada.

—Não.

—Então... por que não me deixa ver a sua? Se considerar que minhas palavras enganam, não tem por que ter medo —desafiou-a. —Só nos divertiremos e se converterá em uma anedota que contará aos seus netos.

—Não desejo respirar o entusiasmo da minha amiga lhe mostrando certa consideração —esclareceu observando com os olhos entreabertos.

—Por favor... —Kristel rogou. —Quero saber o que será de você.

—De mim? Se por acaso não suspeita, me converterei em uma solteirona resmungona, verei como são felizes e morrerei em paz em minha amada Alemanha —declarou de maneira cortante.

—Pelo amor de Deus! —Doina exclamou agarrando a mão de Valéria. —Como pode ser tão orgulhosa?

—Solte-me! —Ela gritou agitando o braço para liberar-se. Apesar dos tremores violentos, a senhora Shoper conseguiu captar as linhas marcadas.

—Duas mortes. Duas luzes que brilham ao seu redor. Um homem que sabe seu segredo, que não tem dúvidas de quem é na realidade. Também vejo amor, não só da parte dele, mas também da sua, mas o afastará, porque tudo aquilo que possa debilitar seu caráter azedo você aparta-o com rapidez —comentou.

—As mortes são dos meus pais —Valéria alegou após liberar-se do agarre. Reclinou-se no respaldo da cadeira, cruzou os braços e manteve uma atitude esquiva. —E não há homens que me interessem.

—Bom, homens houve muitos —Kristel comentou. Logo olhou à Doina e continuou: —mas a verdade que espantou todos.

—Na vida, senhorita Giesler, —disse levantando-se da cadeira —terminamos por encontrar a pessoa que faz despertar nosso coração adormecido. Talvez deva permitir um momento de reflexão e achar a resposta que tanto busca.

—Só quero que os meus irmãos sejam felizes. E essa resposta a obterei com o passar do tempo —falou em tom defensivo.

—Pois não precisa preocupar-se com eles —expôs colocando a cadeira em seu lugar. —Seu querido irmão Philip se converterá em outro guerreiro e, por sorte para ele, achará a mulher que tanto espera. Embora ela terá que levantar os olhos dos livros que a separam do mundo que a rodeia.

—Jamais! —Exclamou irada. —Philip não se converterá em um agente. Antes o mando de volta à Alemanha!

—Possivelmente seja a melhor opção, porque havia viagens em suas linhas... —acrescentou divertida.

—E Martin? —Kristel interveio emocionada. —O que acontecerá a ele? Será outro guerreiro?

—O pequeno Martin utilizará mais sua mente que a força. Será um homem muito importante e o respeitarão. Entretanto, não conseguirá a felicidade que tanto deseja até que descubra o seu verdadeiro amor. Uma jovem que o espera atrás de uma janela. E agora, se me dispensarem, tenho que retornar ao meu lar. Muitíssimo obrigada pelo convite e espero que desfrutem nessa festa. Por certo, —comentou antes de fechar a porta —o primeiro beijo não se esquece... —e desapareceu deixando na habitação as duas mulheres em silêncio.

Salvo por esse contratempo, Valéria resumia a visita como agradável e admitiu que Martin estivesse bem cuidado com a mulher enquanto não lhe estendesse a mão de novo. Por outro lado, ela e Kristel passaram a noite da segunda-feira e a manhã da terça-feira preparando-se para a festa enquanto uma apoiava a premonição da senhora Shoper e a outra negava qualquer conjectura futurista, embora graças a isso, o tempo passou muito depressa...

—Duas mãos mais! —Philip pediu-lhe justo quando os três já estavam preparados para receber o cocheiro do senhor Reform.

—Não há tempo, deve estar a ponto de aparecer —Valéria comentou arrumando o vestido. Não sentia a roupa. As luvas que embainhavam suas mãos não lhe permitiam captar a suavidade do tecido tão delicado.

—Deveria controlar esse persistente desejo —Kristel lhe repreendeu. —Como descobriu durante estes dias, pode ganhar, mas também perder.

—Quantas vezes perdi? —Perguntou-lhe dirigindo-se a ela.

—O suficiente para diminuir a fortuna que obteve —recordou-lhe. —Se estivesse em seu lugar não subiria as apostas.

—Não vou fazê-lo... —Philip murmurou entendendo a repreensão. Era certo. Entusiasmou-se tanto ao ganhar que na última partida da segunda-feira apostou tudo o que possuía e perdeu.

—Isso espero —Kristel acrescentou enquanto apoiava sua mão sobre o ombro do moço para ajustar o sapato esquerdo.

—Estão lhe machucando? —Valéria perguntou sem apartar os olhos dela. —Se quiser te empresto os meus.

—Não me machucam, mas me encontro aborrecida com eles. Tanto tempo utilizando esse calçado remendado que me debilitou o pé —disse sorridente. —Mas tenho que me acostumar —adicionou batendo o pé no chão. —Hoje seremos umas damas e meu querido Philip, um formoso cavalheiro, não posso estragar uma situação assim porque uns simples sapatos me incomodem.

Valéria ficou olhando-a com tranquilidade, observando cada movimento que expressava seu rosto. Estava feliz como nunca tinha mostrado durante os anos que viviam juntas. Perguntou-se se a razão dessa mudança se devia ao traje que usava ou ao encontro que teria com o senhor Hill. Desde que o homem apareceu em sua vida ela não deixava de sentir-se afortunada, até abandonou aqueles comentários depreciativos para com sua pessoa. Por mais inverossímil que resultasse, cada vez que caminhava, cada vez que se balançava, ela se ruborizava. Tão atraída se sentia por ele? De verdade o amor podia surgir em qualquer momento? Então rememorou a história de seus pais. De como um aspirante a nobre alemão delegou seu cargo a um parente longínquo para fugir com a mulher que amava: uma simples vendedora de rosas... mas o amor era mútuo. Por mais forte que parecesse, quando seu marido faleceu, começou a debilitar-se tanto que alcançou seu desejo dois meses depois. «Sinto uma grande dor em meu peito por lhes abandonar, mas estou feliz por voltar a ele. Prometo-lhes que lhes cuidaremos e que sempre estaremos aos seus lados. Só devem olhar ao céu e achar as duas estrelas que mais brilhem. Seremos seu querido pai e eu», declarou na tarde anterior à sua morte, enquanto sustentava em seus braços um bebê de quatro meses e o mais velho dos meninos chorava desconsolado apesar do abraço da irmã.

—Por que chora? —Philip perguntou-lhe ao ver como Valéria enxugava suas lágrimas.

—Estava pensando em nossos pais, em como se sentiriam orgulhosos se estivessem aqui para vê-lo —disse com um sussurro. —Parece-se tanto com ele... tem seus olhos, seu cabelo e inclusive seu porte.

—E se não me falha a memória, você é igual à mamãe —o jovem acrescentou tão emocionado quanto Valéria. Por mais triste que lhe parecesse, algumas vezes nem se lembrava dela. Só quando se esforçava por não a fazer desaparecer reencontrava-se com aqueles olhos verdes e escutava ao longe o timbre de sua voz.

—Herdou a beleza de sua mãe e o caráter alemão de seu pai —Kristel apontou para eliminar um momento tão emotivo. Se continuassem falando sobre seus pais, ambos receberiam o cocheiro em muitas lágrimas e pareceriam que se dispunham a presenciar um enterro em vez de ir a um espetacular acontecimento. Ou possivelmente o fez porque ela não entendia como podiam seguir amando uns pais que os abandonaram à sua sorte. —Lembrem-se do plano —insistiu.

—Tem razão! —Philip exclamou esticando a jaqueta enrugada após o efusivo abraço. —Não podemos nos esquecer do nosso objetivo.

—Que é...? —Valéria perguntou arqueando as sobrancelhas escuras e desenhando um enorme sorriso.

—Jogar, ganhar e desfrutar —sentenciou o jovem. Depois de Valéria assentir ficou parada junto à Kristel no

meio da habitação esperando que o moço caminhasse diante delas como se se tratasse de uma pequena comitiva. Philip, galante, abriu-lhes a porta e as escoltou para o veículo que o senhor Reform lhes ofereceu.

—Boa noite, senhoras, cavalheiro... —o cocheiro lhes saudou depois de baixar as escadas. —Se fizerem a gentileza—adicionou estendendo a mão para lhes facilitar a ascensão. Em primeiro lugar, subiu Valéria, quem se girou com rapidez para ajudar Kristel, mas o estado de euforia em que a moça estava tinha lhe proporcionado as asas de um anjo, porque se introduziu no interior do veículo com mais soltura que ela. Quando Philip entrou o cocheiro lhes fez uma leve genuflexão, fechou a porta, dirigiu-se para o assento, tocou aos cavalos e empreenderam o trajeto.

—Respirem fundo... se se encontrarem em algum apuro só devem tomar ar lentamente —Valéria lhes aconselhou.

 

 

Permaneceu na entrada, parado e sem chamar. Interessava-lhe observar a postura rígida e a aparência dúbia que Reform mostrava quando pensava que se encontrava sozinho. Ali, em frente à janela, mantinha-se de pé, vestindo seu traje novo. Escuro, como lhe era habitual. Embora houvesse um detalhe que lhe surpreendeu: tinha posta a jaqueta. Era a primeira vez que permanecia no interior de seu escritório trajado de maneira correta. Cada vez que tinha subido para falar com ele encontrara-o em mangas de camisa, mas supôs que essa mudança se devia à importância da noite, daí que não apartasse o olhar da rua. Não lhe cabia a menor dúvida de que estaria calculando o número aproximado de clientes que possuiria o clube uma vez que abrisse as portas.

Borshon caminhou sigiloso para ele, como se fosse assustá-lo.

—Mandei-lhes a carruagem faz pouco mais de vinte minutos —Trevor disse sem olhá-lo.

—Acreditei que não tinha notado minha presença —alegou zombeteiramente.

—Embora não possuo olhos na nuca, percebo com rapidez quando há alguém perto. Denomina-se instinto de sobrevivência e o desenvolvi enquanto vivi em Whitechapel —comentou de maneira arrogante. —O senhor Berwin lhe fez chegar minha petição? —Perguntou sem olhá-lo.

—Sim, e tal como me solicitou, averiguei o lar do bondoso senhor Mayer. Não obstante, aconselho-o a não se aproximar desse homem.

—Requer-me isso como agente ou como o senhor Hill? Conforme tenho entendido, deu-lhe uma boa surra por desprezar e agredir a senhorita Griffit —acrescentou voltando-se para ele.

Suas mãos continuavam entrelaçadas nas costas, prosseguia adotando a atitude rígida. O corte de sua barba e o olhar aumentava sua dureza, mas o que deixou a Borshon intranquilo foi o sorriso maligno que exibiam seus lábios.

—Ambos —respondeu grosseiramente enquanto tomava assento sem o devido convite.

—Você lhe deu seu castigo, agora me toca lhe consagrar o meu —expôs apertando a mandíbula. —Tenho que lhe deixar claro que há mulheres que quando dizem não, é não.

—A senhorita Giesler teve grande parte de culpa —Borshon assinalou cruzando os braços. —Estimulou, com seu comportamento, a ilusão desse desventurado professor.

—Está insinuando que ela obteve o que merecia? —Perguntou transformando o branco de seus globos oculares em vermelho fogo.

—O que você pensaria se cada dia, durante quase um ano, vela pela educação dos meninos de uma mulher que, além de lhe pagar uma tarifa ridícula, trata-o com respeito e ternura? —Insistiu-lhe.

—Que tem educação? —Soltou arqueando as sobrancelhas. —Que é uma pessoa afável?

—Se você o diz... —murmurou.

—Digo-o e afirmo. Berwin me informou sobre ela e, embora pareça irreal, embaixo dessa aparência terna, coexiste uma mulher temperamental que luta com unhas e dentes por aqueles a quem ama. Por que supõe então que aceitou meu oferecimento?

—Porque o senhor Berwin a atacou onde mais lhe doía —declarou.

É claro, o ancião ajudante desabafou com prazer quando o encontrou. Estava tão alterado pelo vivido na casa da senhorita Giesler que lhe confessou todo o acontecido. Por esse motivo, e graças ao infeliz, descobriu que Kristel vivia com ela, que não possuía outro lar ao qual ir.

—Sim, também me falou do defeito da mulher em quem possui certo interesse —disse suavizando o tom de sua voz. Separou a cadeira da mesa e tomou assento. —Embora tenha que lhe confessar que não me agrada defini-lo com esse termo.

—A mim tampouco —Borshon resmungou.

—Ela é coxa, nós muito grandes, outros não escutam, outros não veem... —enumerou.

—Outras pessoas são arrogantes, intrometidas...

—Se se refere ao comportamento da senhorita Giesler, advirto-lhe que muitas vezes tomamos decisões errôneas porque imaginamos que é a única forma de proteger os que apreciamos.

—Está desculpando-a? —Borshon perguntou arqueando a sobrancelha esquerda.

—Não, só estou oferecendo uma explicação lógica —asseverou.

—Conformo-me com essa explicação... depois de não ter ficado furioso após pagar a fatura —indicou divertido. —Só lhe esclareço que eu lhes indiquei que comprassem um par de vestidos, não sou o responsável por acrescentarem uma grande quantidade de complementos.

—Foi decisão da Valéria. Sua querida senhorita Griffit recusou em todo momento acrescentar algo que você não ordenou, mas ela a encorajou. Conforme parece, quando escutou quem pagaria a conta, começou a pedir à lojista tudo àquilo que desejava muito sem regular os gastos —disse com uma mescla de aborrecimento e diversão.

—Pois deveria cuidar da sua fortuna, senhor Reform. Se pretende cortejá-la, muito me temo que investirá mais do que...

—Cortejá-la? Como lhe ocorre tal insensatez? Meu propósito é desmascará-la! Acaso acredita que tenho outro interesse? Essa mulher pôs em perigo meu respeitado clube! —Clamou. —Você sabe o que narrariam os periódicos se descobrissem que ela esteve aqui vestindo aquele horrível traje masculino? —Soltou sem sequer tomar ar.

—Mas imaginei que... —tentou explicar-se.

—Não imagine nada! —Vociferou fora de si.

—Senhores, se me desculparem... —interrompeu-os Berwin que, ao escutar o grito de seu senhor, duvidou durante uns segundos se deveria aparecer ou terminaria como sempre, com alguma repreensão que não lhe pertencia.

—Sim? —Trevor perguntou ansioso ao intuir o que lhes iria comunicar.

Tinha chegado o momento. Valéria estava perto. Por fim poderia contemplar a mulher e aproximar-se para deleitar-se com sua verdadeira aparência. Por fim admiraria a figura que escondia sob o miserável traje do senhor Hernández e, enfim, descobriria se aquela vontade de beijá-la que teve, apesar de assemelhar-se a um homem, continuaria ou desapareceria ao vê-la. Porque, roçar com sua boca os lábios dela, não era um cortejo, não é?

—A carruagem chegou. As senhoritas estão descendo do veículo e....

Antes de terminar a frase, os homens se levantaram de seus assentos e saíram disparados da habitação deixando o pobre senhor Berwin tão assustado, que saltou para trás para que não o atropelassem. Pareciam dois enormes meninos correndo para alguém que lhes oferecia caramelos grátis. Como esqueciam com tanta rapidez o respeito para com os mais velhos? Não eram conscientes de que se o tocassem romperiam todos os ossos que tinha sob sua pele? Não, claro que não. Aqueles homens estavam tão encantados com duas mulheres que acabavam de aparecer que não eram capazes de utilizar a parte do cérebro destinado ao raciocínio.

—Por certo, esclareço-lhes que vêm acompanhadas do irmão mais velho —concluiu sem que nenhum dos dois o escutasse. Berwin encolheu os ombros, aproximou-se da mesa do senhor Reform, abriu a gaveta onde guardava um excelente uísque e, embora o dono do clube tivesse trocado sua bebida por água fresca, ele se serviu uma taça e a bebeu de um gole.

—Saúde! —Exclamou após estalar a língua e levantar o cristal vazio para o teto.

Assim que saiu do escritório dirigiu o olhar para a entrada. Duas mulheres e um moço eram recebidos pelo porteiro. Depois das oportunas saudações, as duas entraram apoiando-se nos braços do jovem.

—Quem é? —Reform perguntou assinalando com um leve movimento de cabeça o moço loiro que entrava com elas.

—Philip Giesler, um dos irmãos dela —respondeu sem poder apartar seus olhos de Kristel.

Estava linda com aquele vestido rosa. Dava-lhe um aspecto angélico que poucas mulheres poderiam adquirir. Borshon sorriu agradado ao ver que ela o procurava entre os convidados. «Olhe para cima e me encontrará...», pensou como se estivesse brincando de esconde-esconde.

—Que idade tem? Não é muito jovem para aparecer em um lugar como este? —Continuou perguntado.

—Uns quinze e sim, é bastante jovem. Mas imagino que terá pedido para acompanhá-las. Se não recordar mal, a essa idade eu também pensava que era suficientemente adulto para visitar certos lugares...

Azul. O vestido que Valéria tinha elegido era azul. Assombrado e satisfeito, observou como ocultava suas pequenas mãos em umas luvas e, ao andar, deixava entrever a ponta dos novos sapatos. Berwin havia lhe dito que também tinham adquirido meias? Nesse momento, enquanto observava sem pestanejar o decote do vestido e como as pontas dos cachos roçavam o nascimento de seu busto, não era capaz de concretizar nada. Só queria descer e poder apresentar-se formalmente ante ela. Mas tinha estado planejando durante os dias atrás o que devia fazer, como comportar-se e inclusive calculou o tempo que demoraria em aparecer. Entretanto, tinha desperdiçado as horas que empregou em dito propósito, porque o único que desejava era descer as escadas de dois em dois degraus, apartá-la de seu irmão e levá-la a uma das salas, que manteria fechada durante a festa para beijá-la tantas vezes quanto quisesse.

—São tão... diferentes —Reform comentou fazendo referência aos irmãos. —Embora Berwin já me advertisse que a similitude entre os dois meninos contrastava com ela.

—Se não fui informado erroneamente, a senhorita Giesler tem o aspecto de sua falecida mãe e os irmãos herdaram o do pai. Por certo... —disse mudando a tonalidade de sua voz a uma mais áspera —auguro que teremos sérios problemas... —Borshon assinalou apartando as grandes mãos do corrimão como se fossem ferros incandescentes.

—Por que diz isso? Seu instinto policial o alerta de que haverá disputas? Não terá uma boa acolhida a aparição das mulheres? —Exigiu saber apartando o olhar dela para fixá-lo no agente, quem endurecia a mandíbula e entreabria seus olhos como se quisesse atravessar com eles quem permanecesse em sua frente.

—Note você mesmo, senhor Reform —disse assinalando com o dedo de sua mão direita. —Ainda não ultrapassaram o hall e já começam a revoar uma dúzia de homens. Deixou bem claro que suas putas não trabalhariam esta noite? —Grunhiu.

—É óbvio, ordenei que informasse todos os sócios inscritos de que não gozariam da presença das meretrizes durante esta noite —asseverou com firmeza.

—Pois acredito que muitos de seus bons clientes não tiveram a decência de abrir o envelope. E caso se aproximem dela mais que o devido ou lhe falem com vulgaridade, juro-lhe por minha vida que ficará sem sócios para a próxima festa —declarou antes de dirigir-se com passo firme para a escada e proteger a única mulher que lhe interessava: Kristel.


XV

 

Não podia deixá-lo sozinho. Tal como soprou quando passou por seu lado, o senhor Hill não ia demorar em oferecer um espetáculo desagradável aos convidados e não podia consenti-lo. Depois de ajustar a jaqueta e de certificar-se que os botões estavam fechados corretamente, seguiu-o.

Enquanto descia procurou Valéria com o olhar. Por sorte, os três tinham cruzado o saguão e se encontravam em frente ao empregado que servia as taças de boas-vindas. Tentou manter a calma para frear qualquer impulso inapropriado ao confirmar que, em efeito, vários cavalheiros as olhavam com grande entusiasmo. Acima de tudo, e embora sentisse o impulso de correr atrás do agente lhe pedindo que colocasse seus grandes punhos nos bolsos da calça porque ele mesmo golpearia os atrevidos, precisava comportar-se como se esperava do anfitrião de um acontecimento inigualável: frio, calculista, distante e áspero. Não eram esses alguns dos adjetivos com os quais lhe descreviam? Pois faria honra a estas descrições...

Quando pôs o pé direito no último degrau respirou com alívio. Borshon estava a ponto de apresentar-se ante elas e afastar aqueles abutres com esperança de lançar-se sobre a isca. Indubitavelmente, tinha sido uma eleição acertada permitir que o senhor Hill fosse ao clube para vigiá-las. Graças a ele poderia concentrar-se em resolver as demandas que surgiriam ao longo da festa e não teria a mente ocupada imaginando quantos cavalheiros teria que separar de Valéria. Sorriu agradado, satisfeito. Talvez a sorte não o tivesse abandonado, possivelmente havia esperança para prosseguir com seu plano e, se nada, nem ninguém o interrompesse, manter-se-ia distante dela, observando-a, admirando cada gesto que realizasse e escutando a voz que enfim não mascararia sob uma falsa rudeza.

Com passo decidido e ocultando-se entre as colunas do primeiro andar, avançou para o salão do refeitório. Em primeiro lugar deveria falar com seu cozinheiro sobre a previsão dos comensais e resolver a irritação que segurava desde que lhe informou que trabalharia o dobro do habitual. E depois, rondaria pelas salas como se fosse um fantasma.

—Boa noite, senhoritas. Se me permitirem a ousadia, tenho que lhes dizer que estão esplêndidas —Borshon comentou ao situar-se junto a elas. —Por sorte para este humilde servidor, sou testemunha de como duas estrelas baixaram à terra.

—Boa noite, senhor Hill —Valéria lhe respondeu ao perceber que Kristel ficara tão aniquilada ao vê-lo com aquele traje elegante e ao escutar um elogio semelhante que não era capaz de articular palavra. —Como prediz a noite? —Olhou, discretamente ao seu redor procurando aquela figura escura que não demoraria a apresentar-se e a quem evitaria como a peste.

—Do momento que acessaram ao clube, maravilhosa —alegou tomando a mão da senhorita Griffit para beijá-la devagar. —Encontra-se bem? Percebo certa inquietação...

—São os nervos —esclareceu com acanhamento. —É a primeira vez que vou a um lugar tão...

—Tão? —O agente persistiu dando um passo para trás para manter a distância adequada.

—Tão sóbrio —finalizou a frase ruborizando-se de novo como uma menina.

—Pois me resulta elegante e opulento —Philip assinalou estendendo a mão para o senhor Hill para saudá-lo.

—O senhor Reform investiu muito tempo e fortuna em reconstruir este local —Borshon expôs aceitando a saudação.

—Se o desejarem, dado que nenhum de vocês esteve aqui com antecedência, posso lhes servir de guia —acrescentou sarcástico observando Valéria de soslaio, quem não realizou nenhum gesto ante as palavras suspeitas.

—Será uma honra —Kristel comentou desenhando um tímido sorriso. —Se não entorpecer seu trabalho como sentinela.

—Sentinela? —Ele perguntou arqueando as sobrancelhas douradas.

—Como nos explicou que o contrataram para vigiar este... —disse ruborizando-se de novo e notando como a vergonha a impedia de finalizar a frase.

—Também lhe pedi que velasse pelo cuidado das minhas costas, recorda? —Comentou inclinando-se ligeiramente para o lado esquerdo de Kristel para que só ela o escutasse. —Se lhes acompanho, você poderá converter-se em minha... sentinela —acrescentou com voz suave.

—Quantas salas encontraremos nesta planta? —Philip perguntou abrindo os olhos como pratos ao perceber que os convidados se amontoavam nas entradas esperando acessar ao interior.

—Hoje têm dez abertas ao público —Borshon começou a explicar adotando a pose que tomaria o próprio dono do local enquanto começava a andar pelo longo corredor. —Ao final acharão um refeitório. Nunca se permite o acesso a clientes que não estejam na lista de sócios, entretanto, hoje todo mundo pode degustar os suculentos pratos que o cozinheiro do senhor Reform oferecerá.

—Há, no mínimo, duas mesas em cada sala... —Philip refletiu assombrado.

—Devido à previsão que se calculou, o dono do clube decidiu ocupar o espaço restante com uma mesa de jogo menor. Desta forma haverá mais participantes ativos que passivos.

Por sorte para ele, antes de subir ao escritório Berwin eufórico contou-lhe tudo aquilo que estava expondo, porque, se não fosse assim, a explicação teria sido muito direta: «este é o primeiro andar, onde esvaziarão os bolsos aqueles que se atreverem a apostar, essas são as escadas que conduzem à segunda planta e um jovem como você não deve subir até que a barba cresça dura e espessa».

—Quer ver esse salão? —Perguntou parando o passo para voltar-se aos três.

—Se não for muito incômodo... —Kristel comentou sorrindo levemente.

—Não o será se entrelaçar seu braço no meu —indicou cavando o cotovelo.

Com acanhamento Kristel aceitou o oferecimento, abaixou a cabeça para que Borshon não descobrisse a vergonha que a percorria nesse instante e avançou devagar, dissimulando na medida do possível sua maneira de andar.

Valéria fez uma leve careta de desagrado, não foi causado ante o descarado comentário do agente, mas sim porque, desde que entrou, tinha notado certas transformações no clube. Custava-lhe muito assimilar as mudanças. A segurança da qual se orgulhava desaparecia quando nada estava em seu lugar. Zangada, amaldiçoou o senhor Reform, causador de tudo o que observava. Teria preferido que aquela mente inquieta permanecesse centrada nas mulheres que trabalhavam para ele.

Depois dessa divagação inapropriada, posto que lhe gerasse mais fúria que bem-estar, lembrou-se delas. Onde estariam? Ter-lhe-ia ocorrido fazê-las aparecer no meio da velada? Como os cavalheiros distinguiriam as nobres senhoras daquelas que não o eram tanto? Nervosa, alargou seus passos e cortou a distância que tinha mantido com seus acompanhantes. Não queria ser assaltada por qualquer convidado lhe oferecendo uma proposição indevida. A vergonha que padeceria seria maior que a que Kristel sofrera quando o senhor Hill lhe sussurrou ao ouvido.

—Tem que investir uma grande fortuna para manter um lugar tão grandioso —Philip opinou perplexo ao observar a magnitude do local.

—E o faz —afirmou o agente. —Embora também tenha que esclarecer que os lucros são maiores que as perdas. Se não fosse assim teria que fechar o clube.

—Como encontrou este trabalho, senhor Hill? —O jovem perguntou. —Chamaram-lhe porque pertence à Scotland Yard? O próprio senhor Reform o procurou?

Borshon levantou sua sobrancelha esquerda em sinal de pergunta. Por que o moço se interessava em saber esses aspectos de sua vida? O que poderia lhe responder para fugir da verdade? O que Kristel opinaria se descobrisse que não se encontraram no mercado por acaso? Inquieto e pensativo olhou a esta, quem sorria de orelha a orelha, divertida pela intromissão do jovem.

—Acredito que lhe entusiasma o trabalho que realiza e deseja saber como converter-se em um guerreiro —explicou.

—Um guerreiro? Obrigado por tão magnífica comparação, senhorita Griffit, embora tenha que esclarecer que não me considero como tal... —disse acariciando o cabelo com a mão direita.

—E? —Philip insistiu. —Como se fez membro da patrulha sem medo?

—Pelo amor de Deus! —Valéria exclamou pondo os olhos em branco. —Pode pensar em outra coisa? Está dando uma impressão bastante infantil e, se não recordar mal, permitimos que nos acompanhasse porque nos convenceu do contrário —resmungou.

—Desde quando se opõe a que me instrua? —Perguntou mal-humorado e sobressaltado ante aquela repreensão diante do homem ao qual admirava.

—Desde que a senhora Shoper colocou em sua cabeça pensamentos absurdos —respondeu dando uns largos passos para o centro do salão.

Para a festa o senhor Reform tinha retirado as pequenas mesas, onde se acomodavam não mais de cinco comensais, e tinha posto em seu lugar quatro grandiosas mesas que abrangiam de um extremo ao outro da habitação. Ostentoso foi a única palavra que apareceu em sua mente para descrever o lugar. As toalhas, as baixelas, os candelabros... tudo parecia ter um valor incalculável. Como tinha se permitido investir tanta fortuna para exibir durante uma festa? O que desejava demonstrar? Que não era tão ruim como aparentava? Pois ela, melhor que ninguém, sabia a verdade. Porque depois daquela missiva, embora tivesse colocado sobre a mesa candelabros de ouro branco, nada a faria mudar de parecer.

—Quem é a senhora Shoper? —Borshon perguntou desconfiado. Em suas investigações não tinha achado outro parente próximo e a necessidade de averiguar quem era essa mulher e a relação que mantinha com elas era premente.

—É a esposa do senhor Shoper, um humilde mercador. Vivem na porta ao lado e conforme soube, foi amiga da senhora Giesler —explicou-lhe.

—E o que disse ao jovem?

—Segundo ela, —Valéria interveio mal-humorada —tem a habilidade de saber o futuro dos outros através das linhas da mão esquerda. Mas o único que faz é criar falsas ilusões. —Contou os serventes que aguardavam os convidados calados e imóveis. Quinze figuras humanas atenderiam as necessidades gastronômicas de quem ocupasse os assentos. Seriam esses mesmos os que serviam cada noite ou teria contratado alguns mais?

—E essa mulher lhe predisse que algum dia se converteria em um guerreiro —Kristel apontou terminando assim a explicação sobre a senhora Shoper.

—O trabalho na Scotland Yard é muito duro —Borshon disse ao Philip. —Não só se deve ter uma preparação física, mas também mental. Cada dia se tem que lutar contra a parte mais escura da cidade e lhe asseguro que não é agradável.

—Então, por que motivo você escolheu este emprego? Se, tal como explica, não é tão atraente como imagino... —Philip quis saber, sem conseguir apartar o olhar especulativo de Borshon.

—Contemplou as dimensões do meu corpo? Pois meu futuro, se a senhora Shoper tivesse previsto, teria sido bastante singelo: ou gigante de um circo ou ocupar um posto no qual o medo que as pessoas mostrariam ao me observar fosse fundamentado.

—Por isso escolheu a segunda opção... —refletiu o jovem.

—Por isso e porque desejo que, em um futuro próximo, a mulher que se converta em minha esposa e os filhos que nasçam desse matrimônio possam viver em uma cidade mais segura —asseverou sem olhar à Kristel.

—Entendo... —Philip comentou abaixando o olhar.

—Podemos retornar? —Valéria perguntou. —Eu adoraria procurar uma mesa na qual apostar. Não são todos os dias que nos permitem jogar como se fôssemos cavalheiros.

—É claro, adiante-se —Borshon apontou permitindo que a inquieta mulher se colocasse diante deles. —Senhorita Griffit, quer perder também o dinheiro que guarda nessa pequena bolsa? —Perguntou à Kristel, que ainda seguia agarrada ao seu braço.

—Como está tão seguro de que o perderei? —A mulher soltou mordazmente ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas. —Pretendo arrecadar o dobro do que possuo.

—Não sabia que era habilidosa no jogo —Borshon comentou divertido.

—Não sabe muitas coisas sobre mim, senhor Hill.

—Pois espero descobrir todas —sussurrou-lhe ao ouvido. Justo quando Valéria estendia a mão para abrir a porta que a conduziria àquelas desejadas salas de jogo, a maçaneta girou sozinha, dando-lhe a entender que alguém acessava o salão. Com rapidez jogou uns passos para trás e ficou tão paralisada ao ver quem aparecia em frente a ela, que soltou o ar de seus pulmões abruptamente.

—Boa noite —Trevor Reform saudou assim que abriu a porta do salão e encontrou-se com a pequena comitiva. —Alegro-me de conhecer enfim a minhas protegidas.

 


Depois de acalmar Chevalier quis voltar para as salas para averiguar para onde se dirigiram, mas a voz do senhor Hill chegou até seus ouvidos lhe indicando que permaneciam no salão. Veloz, saiu da cozinha pela porta de trás. Depois de esquivar as saudações de quem desejava lhe oferecer toda a sorte do mundo por celebrar um evento assim, atravessou o pequeno corredor que o levaria até onde se encontravam. Com um sorriso de orelha a orelha e notando como os batimentos do seu coração aumentavam devido ao entusiasmo que sentia, abriu a porta do refeitório, ficando boquiaberto ao vê-la tão próxima a ele. Sua repentina aparição lhes impediu de avançar para as salas, embora graças a essa cercania criada de maneira involuntária, pôde inspirar aquele perfume a canela que Valéria desprendia.

—Senhor Reform —Borshon comentou dando um passo para diante.

—Senhor Hill —respondeu-lhe sem apartar o olhar da única mulher a qual pretendia estudar integralmente.

—Apresento-lhe à senhorita Giesler, ao seu irmão, o jovem Giesler, e à senhorita Griffit —explicou.

—Encantado —disse estendendo a mão para Valéria para saudá-la com a devida cortesia. —Vejo que meu investimento foi bastante acertado —acrescentou beijando a luva branca. —Estão incrivelmente formosas.

—Senhor Reform... —murmurou Valéria, que tinha estendido a palma para ele de maneira inconsciente.

O que tinha pensado lhe dizer quando o tivesse diante? Que era um hipócrita, que não devia denominá-las obrigação moral? Porque, nesse momento, as palavras que tinha guardado em sua mente para utilizá-las como recriminação tinham desaparecido ipso facto. Como podia ser tão sedutor? Por que seus olhos pareciam havê-la hipnotizado? Esse era o traje que o alfaiate lhe tinha confeccionado? Pois, apesar de usar de novo um traje preto, o alfaiate tinha utilizado a seda para costurá-lo e lhe proporcionava uma imagem mais solene e magnânima da que já possuía.

—Senhorita Giesler... —respondeu-lhe com a mesma intensidade de voz.

Odiou nesse momento que seus lábios não pudessem tocar a pele de Valéria. Embora a luva tivesse uma textura suave, ele desejava roçar aquela mão sem impedimentos. Notou, agradado, um ligeiro tremor nela, mas não chegava a concretizar a razão de por que o fazia. Pensaria que a descobriria ou talvez tivesse medo por ter gasto mais que o devido em se vestir de maneira espetacular? Embora ele não pensasse lhe reprovar tal tolice. Graças a essa compra estava impressionante. Parecia uma dama da alta sociedade.

Trevor desfrutou observando aquele cabelo recolhido em um laborioso entrecruzado com laços brancos. E ratificou que tinha sido uma magnífica opção escolher esse vestido de cor azul mar. Reform sorriu agradado ao descobrir que seu traje e o vestido dela eram feitos de seda. A costureira teria deduzido que gostaria de vê-la desse modo? O que lhe havia dito Berwin a respeito? «Uma vez que descobriu quem pagaria a fatura, ficou louca e fez a vendedora lhe mostrar tudo aquilo que guardava em um cabideiro. Segundo a mulher, tratava-se de roupas que aquelas damas que as encomendaram não vieram buscá-las». Então, não só devia dar graças àquela paciente trabalhadora, mas também à primeira proprietária do vestido.

—Obrigada por tudo —interveio Kristel que, assim como Valéria, ficou surpreendida ao ver o dono do local. Entretanto, ela podia falar com normalidade, não como sua amiga, que tinha ficado paralisada e gaguejara ao saudá-lo. —Foi muito gentil por sua parte encarregar-se de nossas compras —adicionou estendendo a mão. —Espero que não lhe tenha causado incômodo algum.

—Foi uma verdadeira honra, senhorita Griffit. Nunca fui o benfeitor de uma mulher e tenho que lhe confessar que me agradou —respondeu aceitando a saudação. —E o jovem é...

—Philip Giesler, para lhe servir —o moço respondeu dando um passo para diante. —Você é um homem admirável, senhor Reform. Construiu o melhor clube de Londres, deve sentir-se muito orgulhoso ao realizar tal proeza.

—Admirável? —Trevor perguntou divertido. —Nunca me consideraram como tal, jovem Giesler. Escutei muitos adjetivos sobre minha pessoa e em nenhum pude encontrar a palavra admirável. Então o agradeço enormemente.

—A inveja é sublime nesta cidade —o moço acrescentou evitando mostrar o entusiasmo infantil que segurava para exibir em sua voz a maturidade que, momentos antes, sua irmã fazia referência. —Poucos homens podem alcançar uma façanha semelhante —prosseguiu com seu louvor.

—Philip... —repreendeu-lhe Valéria, que tinha franzido o cenho. —Acredito que o senhor Reform está muito ocupado para perder o tempo com tanto palavrório.

—Equivoca-se, senhorita Giesler. Hoje, por sorte, disponho de todo o tempo livre que deseje. Assim, se me concederem a honra, eu adoraria acompanhá-los durante a festa. Já que me proclamaram seu benfeitor, vejo oportuno que continue sendo-o sob meu teto. O que se dispunham a fazer?

—Dirigiu a pergunta ao Borshon que, depois da saudação, voltou a tomar a mão da mulher por quem tinha interesse.

—Tinham decidido jogar. Sentem a necessidade imperiosa de perder a pouca fortuna que possuem nas bolsas —disse sagaz.

—Sabem jogar? —Soltou com aparente surpresa. —Incrível! Nunca imaginei que o sexo feminino fosse capaz de pensar em algo mais além do que comprar tudo àquilo que desejam.

—E, se pensa isso de nós, por que permitiu que acessássemos o clube? Pretende divertir-se às nossas custas? —Valéria assinalou mal-humorada.

A primeira impressão, aquela que o havia descrito como elegante, bonito e incrivelmente sedutor, desaparecia durante a conversação direta. Que diabos aquele homem tinha em sua cabeça? Despojos? Ou por acaso ainda perdurava em suas veias aquele licor caro que não deixava de beber? Como podia desprezar as mulheres, dessa forma tão mesquinha? «Jogue comigo, suplico-o. E desta vez não terá uma desculpa para saldar a conta...», pensou sem poder evitar entreabrir seus olhos ante o despertar de sua ira.

—Zanguei-a? —Trevor perguntou zombeteiramente. —Sinto-o... embora se quiser me fazer mudar de opinião, poderia me conceder o prazer de jogar uma partida comigo. Prometo-lhe que serei benevolente... —adicionou mordaz.

—Eu se fosse você pensaria isso duas vezes... —Esse comentário causou ao Philip uma dor terrível no pé esquerdo. Valéria, para fazê-lo calar, pisou-lhe com força.

—Estarei encantada —respondeu-lhe ela. —Escolha a mesa e o jogo —desafiou-o.

—Não posso ser tão descortês, senhorita Giesler! Poderiam acrescentar outro malfadado adjetivo àquela lista interminável —expôs com um enorme sorriso. —Darei a oportunidade de que você mesma me proponha isso. Se fizer a gentileza... —disse abrindo a porta —primeiro as senhoritas, como dita o protocolo de um bom cavalheiro.

Depois de soprar, Valéria agarrou o braço de seu irmão e se adiantou aos outros. Precisava achar o crupier que a atendia cada vez que jogava. Apesar de haver tantas mudanças ao seu redor que lhe provocavam desconcerto, se encontrasse o empregado teria mais possibilidades de ganhar.

—Esta parece menos concorrida —Philip opinou ao passar pela sala número dez. —Como é a última, todo mundo permanece nas primeiras que encontram —deduziu.

—Não —sua irmã negou com firmeza.

Avançaram um pouco mais sem afastar-se muito deles. Valéria precisava escutar a conversação que Borshon e Kristel mantinham com o senhor Reform. Falavam sobre o futuro do clube e das alternativas que tinha para continuar prosperando. Pela tranquilidade que sua amiga mostrava ao conversar e pelo modo como lhe falava com tanta familiaridade, pensou que por algum estranho motivo, pareceu-lhe um bom homem. E isso a enfureceu ainda mais. Talvez devesse lhe mostrar a carta e fazê-la compreender, através de suas próprias palavras, o ruim e desprezível que era em realidade.

«Perfeito! Obrigada, Senhor!», Valéria exclamou eufórica em sua cabeça quando observou o jovem Gilligan trabalhando na mesa número seis. Não era sua preferida, mas devia acolher-se à dita opção.

—Aqui —disse voltando-se para eles. —Podemos jogar nessa mesa, se não declinar seu oferecimento —insistiu-lhe esperançada.

—Parece-me perfeita —alegou desenhando um sorriso maléfico ao ter augurado que escolheria a mesa em que estivesse o crupier com o qual sempre jogava. Agora lhe tocava averiguar se ambos estavam combinados ou só se tratava de um ritual.

Caminhou para o interior da sala saudando as pessoas que encontrava ao seu passo. Os quatro lhe seguiram diminuindo a caminhada quando Reform o fazia. Pareciam uns animais domésticos seguindo seu dono com a esperança de ter ao final uma amostra de afeto. De repente, Borshon se afastou deles para dirigir-se para uns assentos que se encontravam no outro extremo da sala. Se sua conjectura não era falsa, estaria preparando o melhor lugar para acomodar Kristel e serem testemunhas da dita partida. Tanta espera podia suscitar?

—Não me disse que era um homem horrível? —Kristel perguntou-lhe uma vez que ficaram sozinhas. Philip imitou o agente e lhe ajudou. Ato que enfureceu ainda mais Valéria. Quando retornassem ao lar teria uma severa conversação e esperava que, uma vez finalizada, a absurda ideia de converter-se em um guerreiro se dissipasse porque, do contrário, ocupar-se-ia ela mesma de lhe apagar tudo o que sua mente pueril acumulava. —Se a memória não me falhar, a palavra que utilizou para descrever o senhor Reform foi escuro e apreciei, no pouco que conversamos, compaixão, cordialidade e bondade.

—Você não o conhece como eu —resmungou. —Está adotando um papel falso. Se em vez de mulheres tivéssemos sido homens, seu caráter seria diferente.

—Pois não me pareceu apreciar falsidade em suas palavras. Além disso, como bem sabe, o senhor Hill deveria vigiar o clube em vez de nos acompanhar.

—E? —Valéria soltou encolhendo levemente os ombros.

—O senhor Reform não reprovou, em nenhum momento, sua falta de atenção. Ao contrário, permitiu-lhe nos acompanhar o tempo que desejar —declarou solene. —Além disso, acredito que também evitou, nessas longas explicações sobre o horrível e temível que era o dono do clube, falar sobre sua compleição física. Penso que é um homem muito bonito.

—Bonito? —Perguntou abrindo os olhos como pratos. —Considera-o desse modo?

—Eu e todas as mulheres que não conseguem apartar os olhares dele —sussurrou lhe mostrando com sutileza aquilo que lhe explicava. —Acredito que esta noite será a mulher mais invejada do clube. Tome cuidado, aquela que está falando com um cavalheiro de cabelo branco e esconde seu rosto atrás de um leque vermelho, olha-a como se quisesse te aniquilar.

Valéria girou levemente o pescoço para a direita para confirmar o que Kristel lhe dizia. Uma formosa mulher de cabelos dourados como o ouro e com um rosto tão pálido quanto um fantasma, fixava seus penetrantes olhos cinza nela. Quem era? Tinha-a visto alguma vez? Por que a observava como se a conhecesse?

—Senhorita Giesler —a voz de Trevor despertou-a de seus pensamentos. Embora não pôde apartar seu olhar da mulher com a rapidez que desejava. Feito que permitiu ao Trevor averiguar para onde olhava. —O crupier me anunciou que dentro de quinze minutos finalizará a partida e prepararão tudo para celebrar a nossa. Gostaria de uma taça enquanto esperamos? —Expressou camuflando o repentino aborrecimento que lhe causou ver Jun no clube.

—Não, prefiro permanecer sentada em um desses assentos que o senhor Hill nos preparou —alegou esquivando-se do grande corpo de Reform, que em vez de sorrir, como o teria feito ante essa negação tão descortês, manteve o cenho franzido ao mesmo tempo em que procurava uma possível resposta sobre a aparição da mulher. Não lhe havia dito que partisse? Então... que diabos fazia ali?

—Senhor Reform... —apareceu o garçom com uma bandeja de taças de Champagne. —Deseja algo em especial? —Como o senhor levava alguns dias bebendo água fresca, o lacaio não sabia se aceitaria tomar algo do que estava em suas mãos.

—Procura o senhor Berwin e que não tarde em apresentar-se ante a mim —ditou com aspereza. —Entendido? —Grunhiu.

—Sim, é claro. Agora mesmo... —disse o criado avançando pelo corredor com tanta pressa que quase perdeu o equilíbrio e atirou as taças ao chão.

—Algum problema? —Perguntou Borshon que, depois de acomodar Kristel junto à Valéria e obrigar o jovem Philip a colocar as moedas de novo no bolso, quis saber o que inquietava o dono do clube para não acessar a sala.

—Não consideraria um problema, mas a senhorita Barnes veio e, por como olhou à Valéria, muito me temo que trame algum pérfido plano —comentou preocupado.

—Não se atreverá a falar com ela enquanto estiver ao seu lado. De todas as formas, posso tirá-la daqui, se assim o desejar —expôs com um enorme sorriso naquele rosto duro.

—Montaria um escândalo. E, Deus sabe que isso é o que pretende! Não, só quero que Berwin a vigie e que esteja preparado para qualquer acontecimento inapropriado. Não quero que amanhã todos os noticiários especulem sobre o verdadeiro motivo pelo qual permiti o acesso às mulheres. Além desses ofensivos adjetivos para com minha pessoa acrescentariam misógino.

—Entendo-o, mas em minha humilde opinião, devia oferecer um motivo pelo qual o fazia. Talvez, desse modo, não adicionariam à sua descrição tal palavra.

—Um motivo? Não lhe resulta suficiente que pela primeira vez as esposas possam acompanhar seus queridos cônjuges? Estou fazendo uma brilhante obra social, senhor Hill! Isso não razão suficiente? —Perseverou zangado.

—Quando nós queremos dar informação sobre um caso que a imprensa vigia com lupa, somos precavidos e não deixamos nenhum cabo solto. Acaso não tem em conta o que possam deduzir os outros? De verdade pensa que se conformarão com essa estupidez? Nenhum homem casado anseia levar a sua esposa a um lugar onde possa sentir-se liberado dessa opressão matrimonial. Assim, se me permitir isso, essa razão não é factível.

—Então... o que sugere que eu exponha? —Perguntou especulando.

—Que você...

—Senhor Reform! —Um cavalheiro de avançada idade chamou a atenção interrompendo a conversação entre os dois.

Borshon deu uns passos para trás lhes permitindo certa intimidade. Além disso, não desejava que todo mundo deduzisse que se convertera no protetor de Reform. O que pensariam seus companheiros sobre ser a babá de um homem como ele? Zombariam até saciar-se porque ele mesmo tinha indicado a todo mundo que jamais se dobraria por umas míseras libras.

—Milord... —Trevor lhe respondeu voltando-se para quem lhe falava.

—Que magnífica festa! —Exclamou entusiasmado. —Explicava à minha querida esposa que você foi muito generoso ao permitir o acesso às honradas damas que vivem nesta cidade. Deste modo, todas as falsas conjecturas que possuem sobre seus maridos se eliminarão —indicou aceitando a saudação que lhe oferecia o senhor Reform.

—Lady Phorter... —Trevor saudou a esposa do cavalheiro com um casto beijo na mão.

—Senhor Reform. Deve estar feliz ante a aceitação que teve sua decisão. Você tem toda a alta sociedade pisando no chão de seu clube, apesar de ser um dia de semana —comentou a mulher com receio. —Por que fez isso?

—Perdoe suas palavras, senhor Reform, mas está empenhada em que o único motivo pelo qual ofereceu este evento é a busca de uma mulher para casar-se.

—Casar-me? —Trevor perguntou incrédulo. —Por que opina dessa forma, lady Phorter?

—Conforme escutei, você não é um homem que se agrade em abandonar este edifício —explicou olhando ao redor com desprezo. —E, salvo que termine por comprometer-se com alguma das supostas concubinas que trabalham neste clube, não tem forma de cortejar as damas que mereçam ser tratadas como tais. Imagino que, apesar de sua fortuna, é um homem que aspira acotovelar-se com a alta sociedade e a única maneira de obtê-lo é mediante um bom casamento. Busca uma condessa, marquesa ou talvez uma simples baronesa? Qualquer viúva com título, mas caída na pobreza, seria sua melhor alternativa.

—Interessante dedução... é sua? —Trevor perguntou sorridente ao mesmo tempo em que colocava as mãos nas costas e observava como Borshon segurava a vontade de gargalhar ante os delírios da pobre anciã.

—É óbvio! —Lady Phother respondeu envergonhada. —Pensa que sou uma fofoqueira? Que escutei esse tipo de conversações e me atrevi a perguntar-lhe em pessoa para esclarecer dúvidas de quem comenta ditas conjecturas? —Perguntou com indignação enquanto se abanava com desespero.

—Pois não se preocupe, milady, acertou. Meu único objetivo para realizar este ato é encontrar a mulher perfeita. Um homem como eu, com tanta fortuna e tanto patrimônio sob meu cuidado, necessita de uma esposa que ajude a alcançar aquilo que não posso obter. Como bem supõe, conformo-me até com uma simples baronesa —respondeu sem apagar o sorriso de seu rosto. Borshon não queria uma desculpa acreditável? Pois a fofoqueira lady Porther a acabava de oferecer.

—Pois só fica lhe desejar boa sorte, senhor Reform —disse a anciã exibindo em seu velho rosto uma grande satisfação.

—Obrigado, lady Porther —comentou despedindo-a com uma leve reverência.

—Eu não pensaria no que você acaba de expor à minha esposa —indicou lorde Porther. —Vive bastante bem para sofrer o calvário de um matrimônio.

—Ver-lhe-ei no próximo sábado? —Trevor perguntou arqueando a sobrancelha direita.

—No mesmo lugar e com a senhorita Esmeralda me proporcionando sorte —alegou o ancião estendendo a mão.

—Não se preocupe, a partir de manhã minhas empregadas retornarão para seguir amenizando as noites —adicionou sarcástico.

—Que tenha uma noite interessante —desejou-lhe antes de dirigir-se para sua esposa.

—Será...

Trevor colocou de novo suas mãos nas costas e continuou imóvel olhando as costas de lorde Porther. Agora entendia a razão pela qual o ancião mantinha uma relação com a empregada. Esmeralda lhe oferecia o carinho que aquela áspera viscondessa não lhe proporcionava. Em realidade, eram muitos os clientes que desejavam saciar esse vazio sentimental que não encontravam no matrimônio e, como lhe advertiu o ardiloso ancião, ele não cairia nessa desventurada armadilha. Viveria feliz até que a morte aparecesse.

—Não queria um motivo acreditável? —Perguntou ao Borshon, sem olhá-lo, quando este se aproximou.

—Reconsidere esta opção. Se se expandir o rumor de que procura esposa, não só a senhorita Barnes irá às nuvens, mas também não disporá do tempo que precisa para acompanhar a senhorita Giesler.

—De verdade acredita que há mulheres tão desesperadas que se derrubarão em meus braços sem permitir-lhes —perguntou voltando-se para a porta da sala seis.

—Nem imagina... —alegou zombeteiramente o senhor Hill enquanto acompanhava Trevor ao interior da sala onde lhes esperavam para começar aquela espetacular partida.


XVI

 

Finalmente apareceu. Não precisou girar-se para compreender quem acabava de entrar na sala. Todos os olhares se dirigiam para ele. Até o crupier deixou de embaralhar para observar a entrada do senhor Reform. Ela se encontrava de costas, como se aquela aparição não a afligisse. Mas só era uma fachada irreal. As pernas lhe tremiam e mal prestou atenção à conversação que mantinha com Kristel. Entretanto, quando os grandes olhos de sua amiga se abriram como pratos deduziu que estava atrás dela, provocando-a para que se voltasse e o olhasse. Devagar, com uma lentidão imprópria em uma mulher com seu caráter, girou-se para enfrentar, de uma vez por todas, o homem ao qual odiava de maneira demencial e ao qual lhe faria pagar o desprezo com que as tratou ao denominá-las obrigação moral.

—Pensei que tinha reconsiderado sua proposta —comentou ao encontrar-se de frente, observando-o com aqueles olhos escuros que pareciam lhe atravessar a alma.

—Acredita que me dá medo jogar contra uma mulher? —Perguntou mordaz. —Pois não. Atrasei-me porque os convidados desejam me saudar e conversar sobre a magnitude desta celebração.

—É uma desculpa medíocre, senhor Reform —comentou com ironia. —Conforme tenho entendido, você é resistente a tais amostras de afeto. Então muito me temo que tente prolongar o momento de sua derrota —insistiu mostrando a moderação alemã que se apoderava dela quando a espanhola se sentia ameaçada.

—Seria a primeira vez que o faria —apontou sarcástico.—Por agora, ninguém pôde ganhar nem um só xelim.

—Está seguro disso? Ninguém lhe ganhou... alguma vez? —Perguntou arqueando as sobrancelhas. Como podia lhe mentir com tanto descaramento? Acaso tinha esquecido o senhor Hernández? Pois precisava lhe refrescar a memória porque lhe devia uma fortuna e ela a reclamaria na próxima sexta-feira.

—Nunca —asseverou dando por concluída a conversação entre os dois. —Se fizer a gentileza... —assinalou com a mão direita os assentos que tinham preparado para eles. —Escolha o que mais lhe agradar...

—Um gesto muito gentil da sua parte —resmungou caminhando para a banqueta da esquerda.

—Sou muito gentil, senhorita Giesler... —disse perspicaz.

Trevor segurou estoicamente a gargalhada que esteve a ponto de soltar. Zangou-se. O fato de que não admitisse que tivesse perdido ante ela disfarçada, encolerizou-a. Assim como a incomodou que se mostrasse tão respeitoso diante de todos os assistentes que, de maneira inexplicável, começaram a ocupar a sala. Tão rápido se propagou que jogaria contra uma mulher? Ou a viscondessa expandiu o falso rumor com uma grande habilidade? Fosse o que fosse, não estariam sozinhos, não teriam a intimidade que tiveram na primeira vez que jogaram, embora, contemplando pelo lado positivo, era o melhor que lhe podia acontecer. Se Valéria se sentia incômoda, se se desconcentrasse, teria alguma possibilidade de ganhar e, ao concluir essa derrota, far-lhe-ia pagar a dívida... à sua maneira.

—Quanto deseja apostar? —Ela perguntou-lhe colocando sobre a mesa duas fichas de cinco libras.

—Que jogo escolherá? —Ele retrucou acomodando-se no assento. Quando um dos serventes lhe aproximou um cinzeiro, ele o rejeitou com a mão.

—Variará sua aposta segundo o jogo? —Insistiu desconfiada. Tinha rejeitado desfrutar daquele custoso vício? «Inaudito...», pensou. —Um dos rumores que se estendem por Londres é que jogava cartas antes de andar... —recordou-lhe o comentário que fez quando cercaram uma conversação antes de jogar com o suposto senhor Hernández.

—Mas ultimamente não sou muito experiente no pôquer de cinco... —ele acrescentou evocando também a partida que perdeu dela na primeira vez que jogaram sozinhos.

—Então... —apartou o olhar de Trevor e o fixou em Gilligan que, como à vez anterior, estava tenso pela presença de Reform —pôquer de cinco —afirmou com solenidade.

—Bem, aceito suas dez libras —disse enquanto agrupava suas fichas com as dela. —Mas acrescentarei um curinga. Que alguém nos traga papel e pluma —ordenou ao ar.

—Um curinga? A que se refere? —Valéria perguntou desconcertada.

—Eu admito que deseje jogar pôquer de cinco cartas, mas não pode ser você quem leva a voz cantante nesta partida. Por isso, eu acrescentarei um pouco de interesse à mesa —explicou sem olhá-la. Agarrou o papel que lhe ofereceu um de seus empregados, dobrou-o em quatro partes e o partiu pela metade. —Escreva aqui o que deseja obter se ganhar.

—Não permitirei que zombe dessa forma tão... —expôs enquanto se levantava, mas Trevor a agarrou inapropriadamente pelo braço evitando que partisse.

—Estou lhe oferecendo um papel em branco, senhorita Giesler, no qual pode escrever aquilo que desejar. Não lhe parece maravilhoso? Talvez possa oferecer aos seus irmãos a vida que tanto desejam —insistiu.

—Você não é um homem de palavra, senhor Reform —comentou irada.

—Acredita que poria em questão a pouca idoneidade que pensa que tenho diante de tantos assistentes? —Perseverou. —Escreva o que deseja obter nesse papel e jogue de uma vez.

—E se lhe pedir o clube? —Perguntou desafiante.

—Se ganhar honestamente, pode ficar com ele —declarou solene.

—Quero uma prova disso —alegou sentando-se de novo.

—Pense, escreva e quando terminar a partida a terá —disse energicamente.

Que diabos acontecia? Por que prometia que lhe daria aquilo que anotasse no papel? Seria o típico blefe de um jogador? Valéria olhou pensativa a folha dobrada, procurando em sua memória o que tanto ansiava obter. É óbvio, o desejo de conseguir a fazenda se desvanecera, porque nenhum de seus irmãos ansiava abandonar Londres. Um novo lar? Uma renda vitalícia? Que seus irmãos pudessem viver comodamente enquanto ela retornava à sua querida e saudosa Alemanha? «Se apontar um pagamento mensal terá que o ver durante o resto de seus dias —meditou. —Embora possa acrescentar que o senhor Berwin seja o intermediário; deste modo, Philip e Martin poderão adquirir a vida que aspiram ter e poderá partir em algum momento de sua vida».

Enquanto Valéria se centrava no que desejava, Trevor pediu que se aproximasse um empregado. Este se aproximou com bastante temor.

—Que ninguém se aproxime de nós, que se mantenham sentados durante a partida. Se se produzir uma simples interrupção deixará de trabalhar para mim —asseverou.

—É claro, senhor Reform. Agora mesmo acrescentarei mais cadeiras para que ninguém permaneça nem perto nem de pé —o moço expressou antes de acatar o mandato.

Trevor voltou a olhá-la. Golpeava-se os lábios com a pluma e mantinha seus olhos cravados em Gilligan, como se este pudesse lhe ditar, em qualquer momento, o que devia escrever.

—Dúvida? —Trevor perguntou depois de lhe dar um tempo prudencial. Lentamente dobrou seu papel várias vezes e o deixou sobre as fichas.

—Você não? —Perguntou receosa.

—Não. Sei muito bem o que quero e nada nem ninguém me fará mudar de opinião —manifestou com firmeza.

Um estranho calafrio a percorreu ao discorrer sobre o que desejaria aquele homem que não tinha duvidado nem um só segundo. Olhou-o com atenção, tentando averiguar através da expressão de seu rosto algo que a advertisse do que encontraria escrito se perdesse, mas não achou nada salvo um grande sorriso. De repente, as palavras da senhora Shoper apareceram como se permanecesse ao seu lado e lhe sussurrasse: «Um homem que conhece seu segredo...» Teria razão? Ter-lhe-ia descoberto? Pediria que não retornasse mais ao clube vestida de homem? Que não lhe enganasse mais?

—Está bem! —Valéria disse.

Depois de apartar todos aqueles absurdos pensamentos, porque ninguém salvo Kristel sabia a verdade, escreveu o que desejava e o colocou em cima do que ele tinha posto.

—Comecemos —Trevor ordenou ao Gilligan, quem não podia dar crédito ao que presenciavam seus olhos.

Enquanto o empregado embaralhava as cartas, escutava-se um leve murmúrio entre os assistentes. Valéria tentou ouvir algo do que cochichavam, mas não captou nada porque os escutava longínquos, como se tivessem saído da sala. Embora não tinha nenhuma dúvida de que falariam sobre o motivo pelo qual lhes tinham feito chegar os papéis e o que teriam escrito neles. Estariam tão atentos que se converteriam em testemunhas? Ajudar-lhe-iam se ganhasse? Esperava que assim fosse porque se resultasse vencedora não permitiria que aquele presunçoso, que a olhava como se quisesse devorá-la, retratasse-se.

—Senhorita, deseja alguma mais? —O crupier perguntou-lhe.

Nesse momento Valéria soprou. Seus pensamentos a tinham retirado da partida e não tinha nem olhado as cartas. Mas era tão suculento sonhar com uma nova vida, sem ter que preocupar-se em como obter a suficiente quantia para ajudar seus irmãos, que não atendeu as cartas.

«Centre-se!», repreendeu-se.

—Um segundo —disse apertando os dentes. Rápida, levantou as cartas que tinha ao seu lado e ao compreender que não possuía nenhum mísero par, sorriu como se a sorte estivesse do seu lado e disse: —Uma, por favor.

—Senhor Reform? —Dirigiu-se para ele.

—Sim —respondeu secamente.

Que cartas ela teria para sorrir daquela forma? Trevor olhou de novo as suas decifrando a possibilidade de achar a resposta. Seus dois ases lhe fariam formar um par, entretanto, não queria terminar o jogo tão rápido. Precisava avivar um pouco mais a tensão que percebia em Valéria e alargar o momento no qual ela descobrisse o que tinha escondido no papel.

—Uma mais —ordenou ao crupier quando este lhe perguntou na terceira rodada se desejava outra carta.

Durante um bom momento, tempo no qual o silêncio se apropriou da sala, foram jogando como se nisso fosse a vida. Olharam-se de esguelha, tentando averiguar os pensamentos do outro e decifrar aquelas expressões que realizavam ao observar as novas cartas. Mas não descobriram nada. Os dois eram tão herméticos que nem o ardiloso Borshon soube prever quem ganharia.

—Não acredita que o jogo está durando muito? —Kristel sussurrou-lhe ao ouvido.

—A partida pode estender-se por horas —respondeu-lhe o agente.

—Pois as que realizamos em nosso lar mal se prolongaram dez minutos. Estou notando como os nervos se apoderam de mim. Necessito que digam ou façam algo logo —disse desesperada.

—Podemos sair, se assim se encontrar melhor —Borshon lhe ofereceu.

—E deixá-la sozinha? Matar-me-ia... —suspirou pondo os olhos em branco. —Se perder, quero estar aqui para consolá-la e se ganhar... bom, se acontecer esse milagre, quero ver a cara que põe o senhor Reform ante a derrota.

—Crê que conseguirá? —Perguntou-lhe Philip, que se sentou do outro lado.

—Isso mesmo estava comentando com o senhor Hill. Que isto começa a ser angustiante.

—Valéria não tem boas cartas —o moço declarou sem apartar o olhar de sua irmã. —Já notei.

—Como? —Kristel perguntou. —Eu não vejo nada...

—Durante as partidas que tivemos em casa, vi que está acostumada a respirar fundo pelo nariz quando não está conforme. Além disso, aperta ligeiramente a mandíbula...

—Conseguiu estudar a sua irmã em tão pouco tempo? —Soltou assombrada.

—Levo anos observando a minha irmã, tia Kristel. Aqui o dissimula porque ninguém a conhece, mas não há segredos entre nós... muito ao meu pesar, vai perder —concluiu.

—Pois rezemos para que isso não ocorra —manifestou centrando-se em como sua amiga mantinha as costas rígidas.

—Não —Trevor respondeu quando o moço voltou a lhe perguntar se desejava uma carta.

—Senhorita?

—Pago para ver —disse depois de olhar com satisfação o trio e o par duplo.

—Se fizer a gentileza —Reform a animou que colocasse sua jogada sobre a toalha de mesa. —Primeiro as damas —acrescentou sagaz.

—Trio e par duplo —declarou mostrando enfim as cartas.

—Senhor Reform? —Insistiu sorrindo de orelha a orelha ao mesmo tempo em que escutava alguns suspiros e leves murmúrios.

—Brilhante! —Trevor exclamou surpreso. —Você me deixou sem palavras.

Acreditando que tinha ganhado, Valéria estendeu as mãos para as fichas e os papéis. Estava desejosa de lhe gritar que fosse preparando um encontro com seu administrador para que lhe concedesse um pagamento mensal durante toda a sua vida. Além disso, averiguaria o que ele desejava, se ela não tinha nada a lhe oferecer. Outra das coisas que a havia desconcentrado ao princípio da partida. O que ela poderia lhe oferecer se não tinha nada? Que lhe devolvesse os vestidos e os complementos? Seria um homem tão mesquinho? Entretanto, justo no momento no qual suas palmas se encontravam a ponto de recolher os lucros, Trevor colocou uma das suas mãos sobre elas.

—Disse-lhe que foi brilhante, mas em nenhum momento declarei que ganhou —manifestou sem apartar o olhar de Valéria. De repente, o silêncio retornou à sala e notaram como todos os presentes deixaram de respirar.

—Mostre suas cartas então —Valéria o desafiou, empenhada em eliminar o antes possível aquele contato, mas ele não o permitiu.

Com a mão esquerda Trevor estendeu sobre a mesa suas cartas.

—Sequência real —declarou contemplando-a sem pestanejar. —Ganhei, senhorita Giesler. Tal como a adverti, nunca perdi uma jogada. Agora, se fizer a gentileza, permita-me recolher meu prêmio.

—Pode me dar um pouco de tempo? —Suplicou-lhe. —Não quero que todo mundo contemple o que anotou nesse papel.

—Concedo-lhe a discrição que me pede, mas tenho que a advertir que não partirá daqui sem que tenha obtido o que desejo. Pode ficar com as fichas, não quero que minha consciência se turve pensando que, por minha culpa, não pôde desfrutar de uma festa tão extraordinária. Embora eu ficarei com o papel que escreveu, tê-lo-ei como lembrança desta noite —declarou pegando o pedacinho de papel que ela tinha dobrado, metendo-o no bolso de sua jaqueta e se levantando do assento. —Boa noite, senhorita Giesler. Foi um prazer jogar com você —acrescentou lhe segurando a mão direita para beijá-la.

—Boa noite, senhor Reform —respondeu segurando com estoicismo a vontade que tinha de lhe gritar que não devia ser tão considerado com ela. Que levasse as fichas e que se afastasse de seu lado durante toda a noite. Mas se manteve calada, amaldiçoando a má sorte.

Franziu o cenho e cravou o olhar nas costas do homem que caminhava para a saída com a típica atitude de um canalha. Não era possível, tinha ganhado e ela devia desprender-se de seu orgulho para assimilar a derrota. Enrugou o papel sob a palma notando como este se cravava em sua pele. O que lhe pediria? O que podia lhe oferecer? Ela não tinha nada..., mas justo quando essa impaciência lhe gritava que o descobrisse de uma vez por todas, notou a mão de Kristel pousando-se sobre seu ombro direito.

—Foi um duro rival e você jogou muito bem —animou-a. —Não deve se desmoralizar. A noite só acaba de começar.

—Dar-te-ei as dez libras que perdeu —Philip interveio. —Sei que as dobrará em outra partida.

—Obrigada, mas não as necessito. O senhor Reform não aceitou minhas fichas, e mais, deu-me as suas —Valéria comentou assombrada. —Não viram o que fez antes e durante a partida?

—Não. Quando pretendíamos nos aproximar, um de seus empregados nos convidou, sutilmente, a nos retirar aos assentos. Acredito que pretendia manter um pouco de intimidade. Aconteceu algo interessante? Perdemos algo? Por que não levou seus lucros? —Kristel perguntou olhando o rosto pálido de sua amiga como se nele permanecesse a resposta.

—Não aconteceu nada especial salvo que ganhou. E sobre as fichas... não deve dar importância a esse fato. Como bem sabem possui uma grande fortuna e dez libras não lhe supõem grande coisa —concluiu dando um passo para diante.

—Podemos jogar então? —Philip perguntou impaciente. —Estou desejando notar mais peso em meus bolsos.

—Podem ir. Preciso espairecer um pouco. No momento estou exausta —desculpou-se.

—Eu os acompanharei, se a senhorita Griffit seguir permitindo minha presença —Borshon disse zombeteiramente.

—Permiti-lo-ei por toda a minha vida.

E justo depois dessa declaração as bochechas de Kristel arderam.

—Alegra-me te escutar dizer isso, Kristel, porque eu penso o mesmo —sussurrou-lhe ao ouvido.

Valéria os observou afastar-se, acomodar-se nas cadeiras e pedir que iniciassem uma nova partida. Pareciam tão entusiasmados e felizes que fez desaparecer de sua cabeça a ideia de retornar ao lar. Olhou de esguelha a palma onde escondia o papel. Dava-lhe medo averiguar o que tinha escrito, embora a curiosidade aumentasse por segundos. De verdade lhe pediria o vestido? Ou só que não retornasse mais? Eram alternativas a ter em conta... caminhou com aparente desinteresse para o saguão, escondendo-se entre as sombras que encontrou atrás de uma das colunas do imenso hall. Apoiou as costas na parede, abriu a mão, desdobrou o papel e o aproximou ao único raio de luz que lhe permitia ler com claridade.

Quando averiguou o que tinha anotado percebeu como seu corpo se deslizava para o chão perdendo a força e a integridade. Como tinha ousado lhe pedir tal descaramento? «Jamais!», exclamou sua mente ao evocar uma a uma as palavras que plasmou naquele miserável pedaço de papel: «Só quero você».

 

 

Seguiu-o. Tinha notado sua presença desde que abandonou a sala. Jun caminhava atrás dele procurando uma oportunidade para falar, mas Trevor não tinha nada a lhe dizer, já lhe deixou bem claro sua postura e não mudaria de opinião.

—Então, é verdade? —Perguntou-lhe uma moça que tinha sido apresentada por um dos sócios vinte minutos antes.

—Se fizer a gentileza de concretizar sua demanda poderei responder sem falsas especulações —alegou enquanto colocava suas mãos nas costas. Para onde se dirigira Valéria? Teria partido ao ler o que escreveu? Abandonaria seus entes queridos? Não, ela não faria tal coisa. Estaria em alguma das salas jogando com algum cavalheiro que, distraído por sua beleza, seria depenado. Ao pensar que ela podia estar paquerando com outro homem, as mãos que escondia atrás das costas se apertaram formando dois imensos punhos.

—Dizem que o senhor permitiu o acesso das damas esta noite porque procura uma esposa —a mulher lhe esclareceu ruborizando-se ante o comentário.

—Comentaram-no isso? —Trevor inquiriu mantendo sua acostumada severidade no rosto. «Senhora viscondessa —pensou —você é uma fofoqueira insuperável».

—Tem alguma preferência? —A dama continuou perguntando depois de ele afirmar com um leve movimento de cabeça.

—Pois até agora não o tinha pensado, mas sim, é certo, tenho certas exigências —disse olhando por cima de sua interlocutora, tentando averiguar onde Jun se escondera. Se seu instinto não lhe enganava, estaria em algum lugar próximo planejando algo cruel.

—Posso lhe perguntar quais são? —Perseverou com grande espera.

—Procuro uma esposa que seja incapaz de dobrar-se, que me queira por quem sou e não pela fortuna que possuo. Também tem que me contribuir felicidade, sem esquecer-se do respeito que tem que manter pelas horas diárias que emprego para fazer funcionar este clube. Além disso, deve acostumasse às minhas imoralidades... nem todas as noites poderei aparecer no leito sóbrio e satisfeito sexualmente —Disse-lhe como se lhe confessasse um segredo.

Ante tal comentário a mulher se ruborizou e se levou a mão para à boca como se aquela exposição a aterrorizasse. Trevor esperava que suas inadequadas elucidações a afastassem com rapidez, alegando qualquer absurda desculpa, mas se equivocou. A muito descarada sorriu, aproximou-se de seu ouvido e lhe confessou:

—Eu também sou uma amante insaciável, senhor Reform, e um pouco perversa...

Não saía de seu assombro. Por mais que tentava assumir o que lhe acontecia, não entendia. De verdade estavam tão desesperadas por apanhá-lo que suportavam comentários tão desonestos? A ânsia de conseguir aquilo que tanto lhe havia custado ganhar podia conduzi-las a um desespero semelhante? Onde estava a honra? E o amor? Não lhes importava casar-se com um homem enquanto lhes proporcionasse uma vida cômoda? Trevor suspirou. Devia imaginar. Tinha que ter considerado tal final quando a viscondessa partira, mas ele jamais imaginou que procedendo de um passado tão chulo as damas de alto berço se ajoelhassem ante ele procurando viver comodamente. O que o senhor Hill lhe havia dito a respeito? «Nem imagina...», rememorou. Pois de novo estava certo. Possivelmente não tinha sido tão boa ideia propagar aquele maldito rumor...

—Se me desculpar, requerem-me em outro lugar —disse a modo de desculpa para afastar-se daquela hábil bruxa que movia suas pestanas como se fossem as asas de um abutre.

—Teremos outro momento para conversar? —A dama perguntou estendendo sua mão para que este a beijasse.

—Se meu dever como anfitrião me permitir isso, possivelmente —respondeu-lhe sem mal tocar com seus lábios o tecido da mão enluvada.

—Estarei atenta... —acrescentou desenhando um enorme sorriso.

Trevor caminhou com passo ligeiro. Precisava apartar-se de todas as mulheres que, por desgraça, espreitavam-no procurando um instante para aproximar-se. Sem lugar a dúvidas, tinha sido uma ideia descabelada. A grande pernada e esquivando quem desejava lhe dedicar umas palavras, dirigiu-se para as escadas, zona na qual estaria a salvo, pois ninguém em seu são julgamento o seguiria até seu escritório. Propôs-se suportar todo mundo se conseguisse permanecer com Valéria todo o tempo que desejava, mas lhe urgia achar uma fresta de paz e em nenhum lugar a encontraria, salvo entre as quatro paredes daquela habitação. Enquanto subia olhou para as salas procurando a única mulher por quem mostrava interesse, mas não a encontrou. Onde diabos se colocou? Por que Berwin não tinha ido ao seu chamado antes da partida? Onde estava? Como tinha se negado a obedecer a uma ordem dele? Tinha que vigiar Jun! Zangado, pisou no último degrau, voltou-se para o corrimão de madeira e apareceu procurando as duas pessoas que precisava encontrar. Mas nem seu secretário nem Valéria permaneciam ao seu alcance.

—Maldita seja! —Gritou abrindo a porta de seu escritório com tanta força que quase a arrancou.

—Senhor Reform! —O ancião exclamou ao encontrar a grande silhueta em frente aos seus olhos. Rapidamente baixou as pernas da mesa e ficou de pé.

—O que faz aqui? —Perguntou sem baixar a voz. —chamei-lhe faz tempo!

—Descansando... —disse colocando o copo que tinha entre suas mãos sobre a bandeja de prata.

—Descansando? —Trovejou pisando no tapete como se quisesse atravessá-lo com as solas de seus sapatos. De soslaio observou a garrafa de uísque que seu empregado tinha tirado da gaveta, logo o olhou com os olhos entreabertos e lhe perguntou sem baixar o tom de sua voz: —bebeu meia garrafa?

—Trabalhar para você provoca uma grandiosa sede... —Berwin respondeu esperando averiguar que lado da mesa o senhor Reform tomaria para retornar ao seu assento e poder ele tomar o contrário.

—Sede? E não pôde beber outra coisa? Essa garrafa vale mais de vinte libras! —Exclamou furioso.

—Eu já disse que estava delicioso... —murmurou zombeteiramente.

Direito, o senhor Reform decidiu tomar o lado direito então ele escolheu o esquerdo. Durante sua leve caminhada tentou controlar aqueles tremores que lhe causava seu estado de embriaguez, mas não foi muito hábil em tal proeza.

—Por que me chamava, senhor Reform? —Perguntou-lhe uma vez que se situou em frente à Trevor.

—Por que o necessitava? —Ele arqueou suas escuras sobrancelhas. —Já não lhe necessito e além do mais não está em condições de fazer nada —reprovou-o. —O único que lhe posso pedir é que se retire ao seu quarto.

—Oh, não! —Berwin respondeu levantando os braços. —Sou um imprestável! Que desastre! —Dramatizou. —O que será de mim? Deste pobre ancião que decidiu acalmar sua sede com um licor que não poderá pagar com seu sofrido trabalho? Que vida mais injusta!

—Por favor, parta. Falaremos amanhã —pediu-lhe. Embora sua ira não tivesse diminuído, admitiu que a situação fosse muito divertida. Seu secretário jamais bebia tanto para não ser consciente do que comentava. Mas ele o recordaria no dia seguinte, justo quando a dor de cabeça não lhe deixasse pensar.

—Como você desejar... excelência —disse fazendo uma exagerada genuflexão. Esse movimento quase lhe fez golpear a testa na mesa, mas inexplicavelmente adiantou a mão para não sofrer nenhum dano.

Depois de ficar reto, ato que lhe custou bastante tempo, caminhou sobre o tapete para a porta, abriu-a e, uma vez que descobriu a presença de uma pessoa, voltou a fechá-la bruscamente.

—O que acontece? —Trevor perguntou franzindo o cenho. —Não quer concluir sua noite?

—A minha sim, mas a sua não. Tenho que lhe informar, senhor Reform, que se a vista não me falha, a senhorita Barnes está atrás desta porta.

—Como? —Perguntou levantando do assento.

—O senhor tem a sua antiga amante esperando ser recebida. Faço-a passar ou a atiro pelas escadas?

—Melhor retirar-se —declarou dirigindo-se para a porta.

—Se tiver que empurrá-la quero ser eu quem desfrute desse momento.

—Boa noite, senhor —despediu-se abrindo a porta de novo. —Que Deus tenha piedade de você.

—Felizes sonhos... —indicou agarrando o trinco para fechar justo no momento em que o secretário lhe dava as costas. Mas não conseguiu seu objetivo. Jun empurrou a porta e acessou ao interior do escritório com tanta força que seu vestido sacudiu o ar do interior como se fosse um enorme leque.

—Não pretenderia me deixar lá fora, não é? —Inquiriu zangada.

—Ia fazer isso mesmo —resmungou girando-se para ela. Sem mover-se da entrada, cruzou os braços e a olhou com ferocidade. —O que faz aqui? Não entendeu bem nossa última conversação?

—Quão único entendi é que me apartou do seu lado sem razões aparentes. Passei horas me perguntando o que tinha acontecido entre nós para que me despachasse daquela forma tão cruel, mas lá embaixo achei a resposta —declarou com solenidade. —Não sou suficientemente boa para me converter em sua esposa? Tem que abrir as portas deste miserável clube para achar uma mulher que anseie vestir-se de seda? —Clamou irada.

—Isso não te concerne —respondeu com aparente calma.

—Não me concerne? —Disse colocando suas mãos nos quadris. —Mantivemos uma relação durante muito tempo, Trevor. Isso não significou nada?

—Não.

—Mentira! —Gritou desesperada.

—Parta Jun. Não quero vê-la de novo em meu clube —asseverou descruzando os braços e dando um leve passo para diante.

—Vi como a olhava... —murmurou entreabrindo os olhos ao mesmo tempo em que desenhava um ligeiro sorriso.

—Olhei muita gente. Então o que vai dizer não...

—A senhorita Giesler é bonita e boa conversadora. Gostei de manter um bate-papo com ela —declarou mordaz.

—Que diabos fez, Jun? Como se atreveu a se aproximar dela? —Trovejou.

—A princípio pensei que só era outra diversão para você...—começou a dizer enquanto caminhava de um lado a outro. —Tem que admitir que fosse lógico que prestasse atenção nela... o grande senhor Reform jogando com uma mulher! —Exclamou divertida. —Mas... por qual motivo? Jamais me permitiu participar de uma de suas partidas. Então, por que a ela sim? Logo, quando a olhava, descobri um estranho brilho em seus olhos. Você gosta dela, não é? Mas te informo que a senhorita Giesler não está interessada em você. Odeia-o. Bom, já te odiava antes de eu lhe confessar que fomos amantes.

—Você fez o que? —Uivou aproximando-se dela. Agarrou-a pelos braços e a sacudiu bruscamente. —Esqueça-a! Escutou bem? Nem te ocorra se aproximar dela!

—É uma desgraçada... —alegou enfurecendo-o ainda mais.

Com aquela ira, com aquele descontrole que se apoderara dele, Trevor arrastou Jun até a porta. Suas mãos seguiam obstinadas com força aos braços da mulher, como se quisesse lhe romper os ossos.

—Maldita rameira! —Soltou justo quando pretendia empurrá-la para tirá-la à força do escritório. Mas nesse instante ficou imóvel. Abriu os olhos como pratos e a liberou como se lhe queimasse.

Jun seguia sorrindo enquanto olhava para o corredor. Ali se encontrava, tal como tinha planejado. Pálida. Com os olhos expressando um medo tão atroz que não lhe resultaria fácil apagar de sua mente a imagem que estava presenciando. O afamado senhor Reform maltratando uma mulher...

—Senhorita Giesler... —Trevor murmurou dando um passo para ela. —Não é o que imagina... posso lhe explicar...

Mas não lhe escutou. Desceu as escadas com rapidez e se dirigiu diretamente para a saída. Reform avançou para o corrimão inclinando meio corpo para fora como se quisesse lançar-se.

—Agora... vá atrás dela, querido —disse Jun às suas costas. —E tenta lhe explicar que o que seus olhos observaram não era real.

Quando ele se voltou para lhe arrancar a língua, Jun já não permanecia ao seu lado. Descia as escadas devagar, tranquila, satisfeita. De repente soltou uma grande gargalhada que, apesar do ruído, ele pôde ouvir com claridade. Derrubado, destroçado pelo ato cruel de Jun, retornou ao escritório. Embora parasse antes de entrar. Algo no chão captou sua atenção. Era o papel que tinha escrito, que lhe ofereceu após ganhar a partida. «Só quero você». E agora... o que podia fazer depois de presenciar tão terrível acontecimento?


XVII

 

Uma vez que se tranquilizou e eliminou a ira provocada ao ler a nota, Valéria se esforçou em mostrar seu melhor sorriso enquanto caminhava para a sala onde encontraria os outros. Necessitava com urgência permanecer sob o amparo de duas das pessoas que mais amava. Talvez até esquecesse a proposição do senhor Reform e poderia retornar ao lar sem vê-lo de novo. E se contasse ao senhor Hill? Ele era um homem da lei e poderia ajudá-la. Não era esse o motivo que alegou para converter-se em um agente? Servir aos necessitados? Procurando em sua mente a forma mais acertada de lhe explicar o acontecido, Valéria não levantou o olhar do chão até que encontrou a ponta de uns elegantes sapatos. Devagar elevou o queixo para averiguar quem era a proprietária daquele bonito calçado.

—Desculpe, milady, não a tinha visto —desculpou-se ao vê-la. Tentou esquivá-la e continuar assim o pequeno percurso que a distanciava da sala, entretanto, a estranha se colocou de novo no meio do seu caminho lhe impedindo de avançar.

—Boa jogada e sou a senhorita Barnes, embora todo mundo me chame de Jun —disse-lhe estendendo a mão direita para ela.

—Obrigada —respondeu-lhe cortesmente aceitando a saudação. —E eu Valéria Giesler.

—Sinto que tenha perdido. Jogou de maneira irrepreensível e teria sido justo que ganhasse. Tenho que lhe confessar que nunca presenciei uma jogadora tão voraz. Até o último instante acreditei que lhe venceria.

—A sorte não estava esta noite do meu lado —apontou um tanto esquiva. Quem era ela e por que desejava manter uma conversação? De verdade que só se aproximou para elogiá-la?

—Tenho que admitir que me surpreendeu.

—O que lhe surpreendeu? Contemplar uma mulher jogar desse modo ou que perdesse? —Perguntou com seriedade. As feições de seu rosto, apesar de mostrar amabilidade, escondiam uma intenção. Seu instinto alemão, aquele que brotava cada vez que se encontrava em perigo, ditava-lhe que se afastasse o antes possível dali. Mas... por quê?

—Não! —Exclamou movendo o leque que segurava com a mão esquerda, como se a pergunta a alterasse. —Resulta-me incrível que Trevor tenha decidido rebaixar-se a uma atuação semelhante.

—Como? Não entendo o que pretende me dizer, nem o motivo pelo qual se aproximou de mim. Quer me reprovar por ter jogado com o dono deste clube? Por qual motivo? —Defendeu-se endurecendo os traços de seu semblante e mantendo as costas tão retas como a de sua conversadora.

—Não me entendeu bem... —disse em tom amável. —Minha pergunta é: como obteve que ele se dignasse a jogar com você?

—Acaso não fui uma digna rival? —Inquiriu mal-humorada.

—Não pretendo zangá-la, senhorita Giesler, só preciso saber como...

—Pergunte-lhe você mesma, senhorita Barnes. Se tal como aprecio, ao chamá-lo por seu nome de batismo, existe entre ambos uma relação íntima, não esbanje seu tempo procurando que eu responda o que tanto a perturba. Ou não conserva tal relação? —Insistiu notando como seu sangue fervia. Inclusive sentia o percurso de milhares de borbulhas sob sua pele.

—E você? —Perguntou-lhe fixando os olhos cinza nela como se quisesse ler o que escondia sua alma. —Que relação você possui com Trevor?

—Nenhuma. Jamais manteria uma amizade com um ser tão desprezível e, tal como percebo por seu descaramento, esse homem só pode sentir afinidade por mulheres da sua índole.

—Está me insultando? —Soltou irada. Como se atrevia aquela ordinária a tratá-la desse modo? Trevor não era capaz de ver que embaixo daquela formosa aparência se escondia uma mulher grosseira? Não seria a ela quem escolheria como esposa, não é?

—Tome-lhe como desejar... —disse enquanto avançava.

Mas justo nesse momento a mão de Jun a agarrou pelo braço parando-a em seco.

—Esse homem me pertence —grunhiu. —E ninguém se interporá entre nós.

—Pode ficar com ele. Não estou interessada em me relacionar com esse tipo de escória. E agora me solte ou lhe arrancarei esse laborioso coque. Não acredito que Trevor se agrade de ver sua puta careca.

—Maldita cadela! —Exclamou levantando a mão que segurava o leque com a intenção de lhe golpear o rosto.

—Cuide sua linguagem —Valéria declarou agarrando o pulso com tanta força que a pele empalideceu ainda mais por essa região. —Esta cadela sabe defender-se muito bem e lhe asseguro que, se voltar a ficar em meu caminho, não só terá que usar uma peruca, mas também necessitará de uma dentadura nova se quiser sorrir.

—Não se aproxime dele —pronunciou enquanto se liberava daquele agarre tão vigoroso.

—Como lhe disse com antecedência, não deve preocupar-se. Jamais me rodearia de gente tão desprezível —alegou antes de continuar seu caminho.

Jun a olhou enfurecida. Equivocou-se com ela. Nem era tão fraca como aparentava, nem tampouco tão tímida. Só esperava que não errasse também ao confabular seu plano. Se tudo saísse como planejado, procuraria Trevor para averiguar quem era a mulher que a tinha assaltado e, nesse preciso instante, descobriria algo que não esqueceria jamais.

—O que te acontece? —Kristel perguntou-lhe ao vê-la aparecer tão sobressaltada.

—Contar-lhe-ei quando retornarmos ao nosso lar —respondeu sentando-se ao seu lado.

Valéria observou a mesa onde seu irmão jogava. Os cavalheiros o olhavam com certa diversão enquanto ele não apartava os olhos das cartas. De onde se encontrava percebeu que Philip estendia o lábio superior ligeiramente para cima. Tinha uma boa jogada entre as mãos e estava ansioso por mostrá-la.

—Quando começaram? —Quis saber ao contemplar as taças que havia sobre a mesa.

A de seu irmão estava repleta, entretanto, as dos outros participantes permaneciam vazias. Aquele gesto, para qualquer pessoa que não soubesse deduzir como ela fazia, seria irrelevante. Mas erravam. Habitualmente, aqueles cavalheiros que não possuíam boas cartas, bebiam para assimilar a possível derrota enquanto o triunfador, neste caso seu querido Philip, estaria tão entusiasmado que não pensaria em outra coisa salvo em apresentar a jogada.

—Faz apenas vinte minutos. Embora não acredito que saia vitorioso. Noto como tem dúvida de receber as novas cartas.

—Equivoca-se —Valéria disse estendendo as dobras da saia do vestido. —Tem as melhores e só espera o final.

—Está segura? —Perguntou incrédula.

—Muito segura. Por certo... —disse olhando-a. —Onde está o senhor Hill?

—Foi procurar um refrigério. Aqui faz muito calor e não me lembrei de trazer um leque, como recordaram as verdadeiras damas —apontou divertida. —Sempre é assim?

—O calor? —Soltou cravando seus olhos em seu irmão. —Sim. A gente respira e...

—Não, refiro-me ao senhor Reform. Sempre se comporta dessa maneira?

—Se referir-se ao como é déspota, presunçoso e...

—Não! —Disse com rapidez ao mesmo tempo em que lhe dava uma leve tapinha no ombro. —É um homem amável e correto.

—Quantas taças bebeu, Kristel? —Inquiriu entreabrindo os olhos.

—Entendo o motivo pelo qual se sente atraída por ele. É muito bonito. Até que conheci o senhor Hill, não tinha visto um homem tão alto, com ombros largos e pernas musculosas, mas o senhor... —tentou explicar.

—O senhor Reform é alto e tem ombros largos —descreveu zangada. —Mas é um ser horrendo.

—Sigo sem compreender por que não se deixa levar por seus verdadeiros sentimentos —alegou em tom reflexivo.

—Sabe por que demorei em retornar? —Disse voltando-se para ela.

—Não.

—Por culpa de sua amante —expôs notando como as bochechas esquentavam tanto que lhe queimava a pele.

—Sua amante? Por que essa mulher se aproximou de você? O que pretendia? —Solicitou atônita.

—Declarar-me guerra.

—Uma guerra? —Kristel continuou estupefata.

—Em efeito. A muito descarada se aproximou de mim para me ordenar que me afastasse de Trevor.

—Quem é Trevor? Não estávamos falando do senhor Reform? —Disse confusa.

—São a mesma pessoa —esclareceu-lhe. —Trevor Reform, esse foi o nome. Não parece um nome odioso?

—Não acho —asseverou. —O que respondeu a essa mulher?

—Que não devia preocupar-se porque não tenho nenhum interesse nesse homem —manifestou firme.

—Pois se equivoca.

—Não me equivoco —reprovou-a.

—Sim, o faz, e como te disse a senhora Shoper, todo homem que te interessa luta por afastá-lo. Além disso, se minha percepção não me falhar, a atração é mútua.

—Pois se engana. Esse homem não é bom e jamais me proporia seduzi-lo por que...

—Se estivesse em seu lugar não duvidaria em falar de novo com ele —continuou falando sem reparar nas objeções de Valéria. —As pessoas se conhecem melhor quando podem conversar com tranquilidade. Possivelmente seja uma opção a ter em conta, dado que...

—Seu refrigério, senhorita Griffit —Borshon lhe ofereceu ao apresentar-se ante elas. —Desculpe, não imaginei que retornaria tão cedo —o agente acrescentou olhando Valéria com suspeita.

—Vim convencê-la a partir. Assim que Philip ganhe a partida seria apropriado nos afastar daqui. Meu pobre irmão está acostumado a emocionar-se muito quando resulta triunfador e prefiro que retorne ao lar entusiasmado que chorando por ter perdido tudo o que guardava no bolso —Valéria explicou ao Borshon.

Este olhou à Kristel esperando que ela alegasse algo àquele absurdo raciocínio. Mal tinham permanecido uma hora e não tinha tido tempo suficiente para lhe indicar que desejava recolhê-la no mercado no dia seguinte e levá-la ao seu lar para que conhecesse sua mãe.

—Acredito que é a melhor opção —Kristel disse depois de uns instantes meditando a resposta.

Não gostava de separar-se tão cedo daquele homem que a tratava com tanta doçura e mimo, mas se Valéria precisava retornar ao lar, antes de partir recordaria, sutilmente, que no dia seguinte podiam encontrar-se no mercado.

—Então as acompanharei até a carruagem quando o jovem finalizar a partida —o agente comentou ocultando em seu tom um enorme pesar.

Enquanto finalizava a partida, Valéria repassava em sua cabeça uma e outra vez a conversação com a senhorita Barnes. Só uma mulher ameaçada podia atuar dessa maneira tão inapropriada. Embora não devesse sentir-se de tal maneira. Ela não tinha nenhum interesse no senhor Reform. Quão único a atava a ele era a dívida que devia saldar com o senhor Hernández e lhe atirar à cara o papel que ainda guardava sob sua palma. «Só quero você». Como tinha sido tão hipócrita? Desejá-la quando aguardava uma mulher em seu quarto? Por que os homens podiam ser tão odiosos? Não tinham consciência? Atuavam por instinto? Cada pergunta e cada resposta que ela mesma se oferecia causava-lhe uma ansiedade que não podia controlar.

Tentou respirar fundo, concentrar-se nas expressões de Philip, mas lhe resultou impossível apartar aqueles pensamentos de sua mente. Odiava-o cada vez mais. Não só por cobiçar seu corpo, mas porque a tinha traído. Sim. O fato de que permanecesse esquentando seu leito com outra mulher enquanto procurava uma substituta lhe produziu um sentimento de deslealdade maior que o que podia realizar um marido infiel. Seu coração, aquele que tinha pulsado a um ritmo desenfreado quando ele estava ao seu lado, quebrou-se em mil pedaços e nenhuma mulher reparava uma destruição semelhante...

—Cavalheiros... —Philip comentou estendendo as cartas sobre a mesa. —Foi uma honra participar de uma partida tão interessante, mas como podem perceber, ganhei.

—Incrível! —Comentou um dos jogadores reclinando-se no assento. —Quantos anos disse que tinha?

—Quinze —o moço respondeu orgulhoso enquanto esperava que os cavalheiros depositassem todos os lucros.

—Pois me recorde este momento quando alcançar à vintena, jovenzinho. Asseguro-lhe que não voltarei a menosprezar um imberbe.

—Agora pode aparecer o problema —Valéria sussurrou à Kristel. —Olhe o cavalheiro que Philip tem à sua esquerda. O cenho franzido, aperta com seus dentes o charuto que sustenta na boca e não se separou de suas fichas.

—O que quer dizer? —Kristel perguntou com medo.

—Quer dizer que é um momento crítico —Borshon interveio atento à conversação. —A integridade e a honra de um cavalheiro aparecem quando é derrotado e muito me temo que ele não possua esse tipo de qualidades.

—Será melhor que eu me aproxime —Valéria comentou. —Se virem que uma mulher...

—Não —o agente a cortou. —Isso poderia humilhá-lo. Permitamos-lhe que atue como devido. A senhora Shoper não lhe disse que se converteria em um guerreiro? Pois lhe proporcionemos essa opção.

—E se quiser lhe agredir? —Kristel soltou atemorizada.

—Nem lhe ocorrerá realizar tal insensatez diante de um agente —expôs o senhor Hill levantando-se de seu assento.

Nenhuma apartou a vista de Philip. Por mais que Borshon lhes tivesse indicado que deviam manter-se em segundo plano, estariam atentas se por acaso necessitava de ajuda. Embora não soubessem brigar, cair-lhe-ia bem montar um escândalo.

—Milord... —o moço disse ao notar que o cavalheiro sentado à sua esquerda não parecia convencido.

—Acredito que fez truques —soltou zangado.

—Dúvida de minha idoneidade? —Philip perguntou sem mover-se do assento. —Ou talvez não seja capaz de assumir a derrota?

—Tire a jaqueta! Mostre as mangas! —Ordenou-lhe o homem. —Com certeza guarda embaixo delas alguma carta. Todos os de sua índole são uns enganadores.

—Entendo... —comentou o moço. Apartou lentamente a cadeira com as pernas. Em frente ao olhar daqueles que lhe observavam, tirou-se a jaqueta e a estendeu sobre seu assento. Continuando, desabotoou os botões das mangas e as arregaçou até o cotovelo. —Parece-lhe bem ou deseja que eu me dispa completamente? Talvez o único que pretendia era observar meu corpo juvenil posto que o seu já sofreu o passar dos anos.

—Maldito desbocado! —Gritou zangado levantando-se bruscamente do assento.

—Se eu fosse você relaxaria —advertiu-lhe Borshon, que se colocou ao lado do moço. —E admitiria a derrota com honra.

—Tem que ser muito difícil assumir a perda dessa fortuna ante um jovem... imberbe —Philip adicionou mordaz esticando a camisa para fechá-la de novo. —Mas quando me ofereci a participar nenhum dos presentes se negaram, embora eu não tivesse uma barba dura como a que vocês usam esta noite.

—Ganhou honestamente —comentou outro dos participantes. Este se levantou, estendeu a mão para Philip e quando a aceitou, expôs: —Você pode ir ao meu escritório quando quiser, jovem Giesler. Oferecer-lhe-ei o melhor emprego que tiver.

—Você é muito amável, senhor Thomarson. Não duvide que o faça se minha irmã mais velha ver oportuno que abandone meus estudos —comentou zombeteiramente.

—Nem pergunte —respondeu. —Continue com esses estudos e prossiga com a decisão de sua irmã. Como pude observar, soube lhe oferecer uma educação e uma sensatez muito pouco habitual em moços de sua idade. Boa noite.

—Boa noite —comentou.

Óbvio, o único que não se despediu foi o cavalheiro que tentou lhe tachar de mentiroso, mas Philip não se importou com essa recriminação. Estava seguro de que algum dia o destino lhes faria coincidir de novo e aproveitaria esse momento para lhe recordar o desprezo que lhe tinha devotado no passado.

—Feliz? —Valéria perguntou-lhe uma vez que tudo se acalmou.

—Bastante. Foi melhor do que eu pensei —indicou alegre.

—Bem, pois a noite terminou. Devemos partir ao nosso lar. Não quero que Martin passe a noite na casa da senhora Shoper —disse como desculpa.

—Antes de sair daqui alguém deve me trocar as fichas. Quem o faz? —Perguntou olhando à única pessoa que podia lhe ajudar: sua irmã.

—O crupier —respondeu-lhe. —Ele mesmo fará essa troca.

Enquanto Philip abria os olhos como pratos ao ver a arrecadação sobre a toalha de mesa, Borshon acompanhava Kristel à saída e Valéria observava ao seu redor se por acaso o senhor Reform estava perto. Não queria encontrá-lo. Não desejava falar com ele. Só pretendia sair dali o antes possível e que esquecesse até seu nome, embora ela sempre recordaria o seu. Quem é capaz de fazer desaparecer de sua mente o nome da pessoa que lhe tinha quebrado o coração? «Afinal parece que sentia mais do que assumia», disse-se com tristeza.

—Cem libras —sussurrou-lhe o moço quando esteve ao seu lado. —Ganhei cem libras! —Repetiu eufórico.

—Alegro-me, mas te advirto que nem sempre ganha.

—Não vou dedicar-me a isto —disse ao mesmo tempo em que avançava para o hall. —Como bem sabe, converter-me-ei em um guerreiro; este episódio da minha vida só me serviu para te demonstrar que não sou tão criança como pensava.

—Muito ao meu pesar, tem razão —comentou voltando-se para ele. —Está crescendo rapidamente e me alegro de que nessa cabeça exista um homem sensato.

—Crê que herdou a sensatez de nosso pai? Equivoca-se, Valéria. Martin e eu somos mais parecidos com papai que você. Quão único deve fazer é assumir quem é em realidade e abandonar essa personalidade na qual se oculta. Algumas vezes vejo como luta contra os seus impulsos e como isso te faz mal. Por que se reprime tanto? Por nós? Para que não nos esqueçamos de quem foi nossos pais? Pois não deve fazê-lo mais. Nós dois sabemos muito bem de onde viemos e o que nos contribuiu a mescla de sangue. Abandona já essa postura e deixa fluir a verdadeira Valéria; Martin e eu necessitamos da nossa irmã, não de uma altiva instrutora —sentenciou antes de dirigir-se para Kristel para lhe dizer seu ganho.

Valéria suspirou fundo. Apesar de ser um jovem que mal começava a viver tinha razão em uma coisa: desde que sua mãe morreu não tinha sido ela mesma. Esqueceu-se de sorrir e de desfrutar de cada momento que a vida lhe oferecia. Mas Philip não entendia que só o tinha feito por eles, para que não recordassem, como pareciam acontecer, aqueles dias nos quais não podia lhes oferecer nada para comer. Era certo que graças aos seus lucros nas partidas tudo tinha mudado... menos ela. Devia começar essa transformação. Deixar que a verdadeira Valéria surgisse e para isso precisava resolver alguns temas que não demoraria por mais tempo.

Fortalecida ante tal decisão, deu uma olhada às zonas mais próximas a ela e procurou a única pessoa com a qual falaria. Não lhe ocuparia muito tempo, o suficiente para lhe revelar que ela era o senhor Hernández, que lhe pedia o ganho obtido quando jogou na sexta-feira passada e que se esquecesse do que anotou no papel porque ela não era nenhuma cortesã e sim uma mulher honrada, tão decente que ainda não tinha sido beijada. Ao não achá-lo na planta baixa, elevou o olhar e descobriu que a porta do escritório permanecia aberta. Estava ali. Retirou-se como sempre fazia, resguardando-se na habitação onde ninguém podia alcança-lo. Mas desta vez se equivocava, ela invadiria sua privacidade e falaria até ficar satisfeita. Com um nó na garganta, com aquela bola de papel oculta na mão, subiu os degraus de dois em dois. Parou ao chegar, tomou ar, deu vários passos e, quando se encontrou na porta, ficou paralisada.

—Você fez o que? —O senhor Reform gritou enquanto agarrava a mulher e a sacudia bruscamente. —Esqueça-a! Escutou bem? Nem te ocorra se aproximar dela!

—É uma desgraçada... —escutou-o dizer à senhorita Barnes.

Então Valéria conteve a respiração. Aquele homem, convertido em um monstro, apertava suas grandes mãos nos braços frágeis e a arrastava para onde ela se encontrava.

—Maldita rameira! —Exclamou justo no momento que tentou empurrá-la.

Nesse momento seus olhos e os do senhor Reform se cruzaram. Nunca tinha contemplado um olhar tão frio nem tão desumano. Parecia que desejava lançá-la pelo corrimão, aniquilá-la. Como podia comportar-se desse modo com sua amante? Por que era tão cruel? Aturdida, abriu a mão deixando cair o papel que guardava nela. Tinha que fugir, mas não só do clube e sim da cidade. Ele conhecia a direção de seu lar e podia aparecer quando quisesse para tratá-la tal como observava.

Quando percebeu que dava uns passos para ela, girou-se aterrorizada e desceu as escadas. Não, não podia lhe permitir que se aproximasse porque se não fizesse o que lhe tinha escrito no papel, possivelmente terminaria morta em alguma rua de Londres.


XVIII

 

Ficou parado na porta até que a carruagem desaparecesse de seu campo de visão. Borshon se sentia feliz, apesar de não ter conversado tudo o que desejava com Kristel, mas tinham programado ver-se no dia seguinte e lhe tinha sugerido que levasse consigo o livro que lhe deu de presente. Sorriu de orelha a orelha, agradado ao observar seu rosto quando lhe beijou a mão. Se o palpite que sentia em seu coração não o confundia, poderia havê-la beijado nos lábios se tivessem tido um pouco de intimidade. Satisfeito ao descobrir que seus sentimentos eram correspondidos, retornou ao clube. Como algo incomum, e rompendo uma de suas normas mais convictas, tomaria uma taça com o senhor Reform enquanto conversavam sobre a partida e o motivo pelo qual decidiu apartar, tão injustamente, quem desejava ser testemunha de sua jogada.

Enquanto caminhava pelo grande saguão, observou as salas. Estavam repletas. Ninguém, salvo elas, tinha abandonado o clube, assim que muito se temia que a noite, para o dono de tal acontecimento, alargar-se-ia até o amanhecer. De repente entreabriu seus olhos. Onde tinha se metido? Estaria entretido jogando com outro competidor? Por que não ficou atrás de Valéria como proclamou? Tinha mudado de opinião com respeito a ela? Já não lhe interessava? Justo no momento que ia pisar no primeiro degrau, uma risada muito estrondosa captou sua atenção. De forma pausada girou-se para visualizar a pessoa que emitia um ruído tão ensurdecedor. «Senhorita Barnes... —refletiu ao achá-la. —Por que ri desse modo? O que lhe faz tão feliz?»

Embora a vontade de averiguar o que estava ocorrendo era imensa, aplacou-a com rapidez. Não devia lhe importar o que fizesse aquela mestra do sexo. Seus dias como amante do dono do clube tinham terminado e era lógico que mantivesse uma atitude risonha e cativante para procurar outro iludido que pagasse os caprichos de uma mulher insatisfeita. Entretanto, sua acuidade policial lhe indicava que se tratava de uma mera aparência, que embaixo daquele sorriso coexistia uma grande maldade. Mas... o que teria feito? Negando com a cabeça o impulso de averiguar o que se teria proposto, terminou por subir.

A porta do escritório de Reform estava aberta e isso significava que ele permaneceria no interior revisando seus estimados papéis ou contando a fortuna que embolsaria de novo. «Tinha que ter pedido uma percentagem —disse-se. —Não foi sua ideia? Pois deveria obter algum benefício em troca...» ao subir girou-se para o corrimão, colocou as grandes palmas sobre ele e observou o movimento das pessoas. Iam de um lado para o outro procurando um lugar onde entreter-se, onde poder falar com certa privacidade ou possivelmente mais de um cavalheiro ansiava achar as empregadas que, habitualmente, trabalham no local. Com um sorriso que lhe abrangia o rosto voltou-se para a entrada do escritório de Reform e, quando seus olhos lhe revelaram o que acontecia no interior, aquele sorriso desapareceu. Com a grandiosidade de um titã e a agilidade de uma pantera, Borshon correu para Trevor, quem permanecia atirado no chão de barriga para baixo e, conforme parecia, inconsciente.

—Senhor Reform! —Exclamou ao mesmo tempo em que o girava para lhe ver o rosto. —Escuta-me? O que lhe aconteceu? —Perguntou enquanto procurava alguma mancha de sangue, algo que lhe indicasse que lhe tinham disparado em alguma parte do corpo ou golpeado na cabeça. Mas não tinha nada. Quão único percebeu foi uma horrenda pestilência a uísque. —Bebeu, senhor Reform? O que tomou? —Deu uma rápida olhada à mesa achando duas garrafas de igual tamanho. Uma de água, que seguia cheia, e a outra vazia. Correu para a garrafa que não albergava nada em seu interior, cheirou-a e fez uma careta de desagrado. —Maldição! —Gritou. Sem perder um só instante agarrou a garrafa de água dirigiu-se para Trevor e a esvaziou na altura de seu ombro. —Desperte de uma vez! —Clamou com uma mescla de diversão e medo. Por desgraça, durante suas longas horas de trabalho, foi testemunha de um sem-fim de casos nos quais homens embriagados tinham perdido a consciência ao ponto de asfixiar-se com sua própria língua. Mas não colocaria seus dedos naquela boca, nem se agacharia para comprovar que o peito masculino subia e baixava ao ritmo de uma pausada respiração. Por agora, bastaria aquela garrafa e, se não albergava suficiente quantidade para despertá-lo, ordenaria que lhe levassem vários baldes. —Juro-lhe que seguirei molhando o precioso tapete em que descansa até que abra os olhos —ameaçou-o. —Maldição, Trevor Reform, abra de uma vez os olhos!

—Deixe-me em paz... —Trevor disse enfim. Moveu sua mão direita em forma de semicírculo como se lhe pesasse uma tonelada. —Vá embora...!

—Você fala como se fosse um menino de dois anos —disse satisfeito ao ver que reagia.

—Vá embora! —Insistiu. —Deixe-me morrer tranquilo! —Pediu girando com muito esforço seu corpo para o lado contrário no qual permanecia o agente.

—Acredito que vou refrescar essa cabeça um pouco mais —Borshon declarou caminhando para a saída. —Segue sem pensar com claridade.

—Nem lhe ocorra me molhar de novo! —Exclamou sem olhar. —Sabe quanta fortuna empenhei para adquirir este tapete? Tem um valor incalculável... —balbuciou antes de começar a emitir umas grandes ânsias que terminaram com a expulsão de fluidos pestilentos e repulsivos.

—Agora mesmo não tem nenhum valor, senhor Reform. Vomitou tudo o que ingeriu sobre ele —disse-lhe divertido.

—Lavar-se-ão e recuperará seu valor. Em troca, eu jamais conseguirei ser o mesmo... —indicou enquanto colocava suas mãos sobre o tapete e se ajoelhava como se tentasse levantar-se. —Aquela filha de puta me arrebatou tudo o que eu desejava...

—Quem? —Perguntou eliminando a ideia de pedir mais água a qualquer empregado.

—Jun —respondeu enquanto tentava encontrar um pouco de dignidade. Mas já não tinha nenhuma, partira atrás de Valéria.

—Vi-a abaixo. Sorria de forma descarada. Imagino que anda procurando outro protetor —informou-lhe.

—Pois pobre de quem coloque os olhos nela. Vai sofrer a ira de uma mulher sem escrúpulos.

Não podia levantar-se. Seguia com as mãos sobre o tapete e seus joelhos, apesar de sustentá-lo, tremiam, indicando-lhe que cedo ou tarde voltaria a cair sobre o chão.

—Jamais acreditei que seu calcanhar de Aquiles seria uma mulher —Borshon refletiu caminhando para Trevor. Embora não quisesse ajuda, agarrou-o pelo braço e o elevou. —Mantenha-se em pé, senhor Reform. Recupere de uma vez por todas suas dignidades e me explique o que aconteceu —insistiu.

—Uma tragédia —começou a dizer ao mesmo tempo em que apoiava a palma direita sobre sua mesa. —Aquela maldita harpia soube que Valéria é a razão pela qual não a quero ao meu lado e ideou um plano.

—Qual? —Perseverou cruzando os braços sem afastar-se de Trevor, se por acaso necessitasse de ajuda de novo.

—Subiu ao meu escritório e foi testemunha de como a agredi —respondeu mostrando em sua fala um enorme pesar.

—Quem foi a testemunha e a quem agrediu? —Reiterou confuso.

—Jun apareceu aqui empenhada em que retornasse com ela. Ao negar-lhe ela lutou para ficar ao meu lado. Então foi quando a agarrei pelos braços com tanta força que poderia lhe haver quebrado algum osso. Mas desejava, com todo meu coração, apartá-la o antes possível. Na resistência, possuiu-me uma ira tão descomunal que só pensava em atirá-la pelas escadas e foi justo nesse instante que Valéria observou tudo o que acontecia —acrescentou colocando ambas as mãos sobre a mesa e pousando sua cabeça entre elas, envergonhando-se daquele ato cruel.

—Adverti-o —Borshon disse sem mover-se. —Até lhe comentei um dos casos mais horrendos que vivi desde que sou agente.

—Já... o recordo. A doce esposa, aquela que ofereceu seu marido como alimento —rememorou. —Não duvido que o faça, depois de ver como atuou Jun, qualquer coisa me parece acreditável.

—O que pretende fazer agora? Não terá pensado resguardar-se entre estas paredes chorando pelo que perdeu, não é? —Hill perguntou entreabrindo os olhos.

—Se tivesse visto o rosto de Valéria... aqueles olhos repletos de medo e confusão... —apontou fechando suas palmas e as transformando em dois enormes punhos sem vida.

—Quer render-se? O grande senhor Reform deseja abandonar uma batalha que acaba de iniciar? Tão pouco lhe interessa essa mulher? —Amolou-o para chamá-lo de novo à ordem e procurar, embaixo daquele corpo deprimido e humilhado, o homem que tinha conhecido horas antes.

—Interessar-me? —Perguntou voltando-se para ele com a pouca energia que ficava. —Daria a minha vida por ela! —Exclamou fora de si. —Valéria é quão única necessito para ser feliz! —Sucumbiu.

—Então... que passo seguiremos, senhor Reform?

—Seguiremos? —Perguntou confuso.

—Recordo-lhe que me contratou para um mês e mal trabalhei uns dias. Como compreenderá, não posso abandonar um caso tão importante nem tão bem remunerado.

—Faz por dinheiro... —Trevor refletiu um tanto decepcionado.

—Faço-o por isso, sim, porque preciso comprar um novo lar à minha mãe. Não lhe disse que está tombada na cama, que não pode mover as pernas? Leva mais de quinze anos prostrada no leito e desejo adquirir um lugar onde possa mover-se com uma dessas cadeiras que têm rodas —confessou-lhe.

—Posso lhe pagar agora mesmo a quantia que lhe prometi —disse apoiando suas nádegas na mesa sem apartar as mãos desta. —E me deixará em paz.

—Deixá-lo em paz? —Repetiu descruzando os braços. —Nem em sonho! —Clamou.

Era certo que o fazia por dinheiro, mas também lhe devia certa lealdade, aquela que têm que ter duas pessoas que cercam uma amizade, embora ele não desejasse reconhecer esse afeto ainda. Depois de contemplá-lo uns instantes e perceber aquela tristeza que só um homem apaixonado podia mostrar, Borshon saiu ordenando que alguém aparecesse ante ele.

Um jovem, que tinha abandonado sua mesa de jogo para descansar, escutou o agente e subiu as escadas como alma que deseja levar o diabo.

—Senhor Hill, o que ocorre? O que necessita? —Perguntou entrecortado, mostrando em sua respiração que tinha chegado ante ele correndo.

—Como se chama, moço?

—Gilligan Thomas, senhor —respondeu o jovem crupier.

—Bem, Gilligan. Em que aposento o senhor Reform descansa quando não dorme na poltrona que tem no escritório?

—Nesse —indicou-lhe a porta que havia ao final do comprido corredor.

—Perfeito. Procure outro empregado e ordene na cozinha que se prepare a tina do senhor com água gelada. Necessita com urgência de um banho.

—O senhor Reform se encontra doente? —Quis saber.

—Muito, tanto que não é capaz de raciocinar com sensatez —expôs voltando-se para o interior do escritório. —Senhor Reform, —indicou olhando-o sem pestanejar —tem duas opções: ou se desnuda para não estragar esse traje tão sofisticado ou o banho com ele posto. Você decide.

—Nem lhe ocorra me fazer tal coisa! —Clamou Trevor, que tinha escutado a conversação.

—Oh, sim, fá-lo-ei e amanhã você e eu nos apresentaremos no mercado para acompanhar nossas mulheres. Não quererá ser informado que o bastardo do senhor Mayer apareceu ante Valéria e, depois de lhe pedir mil desculpas, ela caiu em seus braços, não é?

—Antes prefiro morrer! —Clamou ele.

—Isso é o que eu precisava escutar —apontou antes de segurá-lo novamente pelo braço e arrastá-lo para a habitação.

 

 

—Ainda segue zangada por ter perdido do senhor Reform? —Kristel perguntou à Valéria enquanto enchia o bule de água. Desde que saíram do clube ela não havia dito nem uma só palavra. Mostrava-se distante, ausente. Imaginou que esse comportamento desapareceria uma vez que se encontrasse a salvo no lar, mas não foi assim. Durante a intensa conversação que ela manteve com Philip revivendo emocionado a cada segundo a partida que jogou, Valéria permaneceu sentada em frente à penteadeira observando-se com receio enquanto se tirava, com uma lentidão inaudita, as forquilhas de seu penteado.

—Não estou zangada. Era normal que perdesse. Quando seu rival jogou desde sua mais tenra infância, alguém deve ser consciente de que existe uma alta probabilidade de fracassar —manifestou serena.

Tinha contemplado seus irmãos descansarem em muitas ocasiões, entretanto, era a primeira vez que se mantinha de pé em frente a eles e não refletia sobre como passaram o dia. Sua mente seguia no clube, evocando uma e outra vez o que o senhor Reform fizera. Cansada consigo mesma ante aquela persistência mental, girou-se e caminhou para a mesa esperando que o bate-papo que manteria com Kristel enquanto tomavam o chá acalmasse sua angústia.

—Então, o que te perturba? Tudo isso que percebo se deve à inesperada apresentação da amante do senhor Reform? O que expressam seus olhos é decepção ou raiva? —Perguntou sem olhá-la.

Não queria ver as expressões de desagrado que ela mostraria ao sentir-se envenenada com suas perguntas. Valéria era uma pessoa que mudava bruscamente de conversação quando se achava pressionada. Era seu único mecanismo de defesa: fugir da verdade.

—Não sei se é decepção... —respondeu mediante um suspiro —mas sinto uma pressão enorme aqui —acrescentou colocando sua mão direita no peito. —Lembra-se da dor que padeceu no tórax quando adoeceu na última vez? —Recordou-lhe.

—Sim, foi bastante dilaceradora. Parecia que alguém tinha me partido em duas —respondeu pegando com cuidado o bule quente. Caminhou até a mesa, verteu água nas xícaras e jogou uns sachês de chá que guardavam na gaveta para momentos especiais.

—Pois meu dano é muito semelhante a esse —disse segurando a vontade de chorar.

Tinha desejado fazê-lo no mesmo instante que observou Trevor agredindo aquela mulher. Como pôde perder os nervos com tanta facilidade? Por que não conseguira controlar-se? Embora escutasse toda a conversação, embora a senhorita Barnes merecesse o que lhe fez, um homem nunca devia deixar-se levar pela ira. Tinha que ser firme, respeitoso e, sobretudo, compreensivo. Acaso não entendia que estava apaixonada por ele e que só queria conservar aquela relação? Uma mulher podia ficar louca sem o homem ao qual amava...

—Se chegasse, a saber, que essa mulher estava conversando contigo, teria saído à sua procura —Kristel apontou tomando assento. —Foi muito atrevida e descarada. Essa atitude não é própria de uma mulher, apesar de sentir-se ameaçada ante a presença de outra. Por que diabos o fez? O que te disse exatamente?

—Conforme entendi em suas palavras, tomou-me como uma rival e quis me deixar claro que não tinha nenhuma possibilidade de apanhá-lo —declarou sentando-se devagar.

—Por que chegou a essa conclusão tão insólita? Percebeu algo que nós não fomos capazes de observar? Porque, se não me equivoco, o senhor Reform se comportou como um bom anfitrião e em nenhum momento fez ou disse algo inapropriado —insistiu sem mover nem uma pestana.

—Possivelmente não precisava que dissesse ou atuasse...

—Necessito que fale com claridade, Valéria Giesler —interrompeu-a. —Diga-me o que aconteceu esta noite e por que essa mulher se sentiu ameaçada por você. Sei que me oculta algo, leva fazendo-o há algum tempo —comentou esticando suas mãos para ela. —Não te julgarei, juro-lhe isso. Só quero te ajudar.

Valéria olhou aquelas mãos sobre as suas e notou como começava a reconfortar-se. Era o momento de falar com a sinceridade que lhe demandava e que merecia depois de estar ao seu lado durante tantos anos. Não era só uma amiga, um ser que apreciava, Kristel tinha se convertido em seu pilar, na única pessoa em quem podia confiar aquele sentimento que tinha crescido nela com tanta força que começava a prejudicar não só seu coração, mas também sua cabeça.

—Esta noite não foi a primeira vez que joguei com o senhor Reform. Na sexta-feira passada participei de outra partida —declarou depois de tomar ar.

—Foi a segunda? —Perguntou assombrada sem apartar suas mãos.

—Recorda que te falei sobre as inexplicáveis aparições do senhor Reform nas salas? —Comentou fixando seus olhos na água que já começava a tomar a cor do sachê.

—Sim. Assim como me lembro das explicações que me ofereceu para elas. Segundo você era normal que o dono do clube passeasse de um lado para o outro confirmando que seus clientes estavam satisfeitos.

—Pois na sexta-feira passada se aproximou da mesa onde eu jogava e me ofereceu uma partida —manifestou fechando os olhos como se quisesse rememorar aquele momento de novo. E o fez. Percebeu de novo sua presença, respirou outra vez aquele perfume misturado com a fumaça de seu tabaco. Viu seus olhos escuros cravando-se nos seus com uma intensidade desumana.

—Por quê? O senhor Reform está acostumado a jogar com os sócios? É algo habitual nele?

—Não —negou não só com esse monossílabo, mas também com a cabeça. —Nunca o tinha feito até aquele momento —confessou.

—O que ocorreu? O que fez quando o descobriu ao seu lado? Por que supõe que rompeu um de seus costumes?

—Não posso te responder a isso porque não sou capaz de achar as respostas. Só te direi que me encontrava bastante centrada na jogada. Precisava de apenas duas cartas para ganhar e não soube de sua aparição até que notei como o crupier ficara tenso. A princípio imaginei que se devia à minha futura vitória, pois o pobre já estava cansado de que eu depenasse uma e outra vez a banca, mas quando lhe saudou fiquei paralisada.

—Continua... —animou-a apartando lentamente suas mãos para poder segurar sua xícara.

—Tentei me levantar, sair dali o antes possível. Entretanto, ele não me permitiu isso.

—Obrigou-te a jogar? —Perguntou elevando as sobrancelhas.

—Ofereceu-me um ganho que não pude rejeitar —declarou pressionando sua xícara com ambas as mãos.

—Quanto?

—Mil e seiscentas libras —revelou fechando os olhos nesse momento.

—Ganhou? —Perguntou assombrada.

—Sim... —disse com um longo suspiro.

—É muito dinheiro, Valéria. Onde o ocultou? Por que não me disse isso antes? Envergonhou-se? Pensou que eu te reprovaria uma coisa assim?

—Não, jamais acreditei que me criticaria por alcançar a quantia que necessitávamos para obter nossos sonhos, embora já me deixasse claro que o sonho era só meu, não o deles.

—Então? —Perseverou sem poder tomar nem um só sorvo do chá. —O que fez com a fortuna, investiu-a?

—O senhor Reform não me pagou a dívida. Apesar de indicar que me pagaria se eu subisse ao seu escritório, não cumpriu sua palavra —disse com uma mescla de aborrecimento e irritação. —Segundo ele, não pôde saldá-la naquele momento porque não tinha arrecadado o suficiente para pagar antes o salário de seus empregados. Não obstante, ofereceu-me a opção de arrecadá-la a cada vez que aparecesse. Embora acredite que seguirá mentindo para mim...

—Esse homem tem uma fortuna incontável —Kristel resmungou. —Muito me temo que te enganou.

—Sei, mas como eu também lhe enganava não quis enfrentá-lo. Tenha em conta que a pessoa que apareceu no clube era o senhor Hernández não Valéria Giesler. Assim, embora eu tenha ido ao seu escritório seguindo sua estranha norma, não foi capaz de me pagar essa quantidade alegando essa falácia.

—Possivelmente queria averiguar se utilizou alguma patranha para ganhar. Já sabe que nesse mundinho a honradez mal existe —Kristel concluiu sem apartar os olhos dela.

—Mas tem que me pagar porque joguei honestamente! —Exclamou zangada. Ao notar que um de seus irmãos se movia na cama ante seu exaltado tom de voz, converteu-o em um sussurro. —Se tivesse sido um homem de honra teria me pagado. Desse modo não teria que pisar de novo em seu odioso clube.

—Talvez não queira evitar sua presença... —deduziu rapidamente. —Possivelmente deseje que siga indo. Embora me custe concretizar o motivo. Seguramente qualquer dono de um lugar assim preferiria fazer desaparecer o causador das perdas de suas mesas que mantê-lo perto.

—Mesa —Valéria esclareceu.

—Mesa? Como assim mesa? —Perguntou atônita. Ao observar como os moços voltavam a mover-se realizou a seguinte pergunta em voz baixa: —foi tão insensata de jogar sempre no mesmo lugar?

—Sabe que sou uma mulher de costumes e como na primeira noite arrecadei mais de duzentas libras na mesa número sete, sempre permaneci nela —esclareceu.

—Isso não é um costume, Valéria! —Exclamou com força apesar de emiti-lo em um sussurro. —É uma tragédia! De verdade que não é consciente do que fez durante estes meses? Tão obstinada assim?

—Não fiz nada... —defendeu-se esticando as rugas fantasmas de seu vestido. —Sabe que eu necessito de uma rotina para...

—Não minta mais para você. De verdade, não o faça —recriminou-a. —O que esteve fazendo durante esse tempo é despertar o interesse do senhor Reform e o entendo, juro que o faço. É um homem muito atraente, sedutor e essa atração perigosa o faz irresistível, mas o que me parece impensável é que esteja apaixonada por ele e não seja capaz de reconhecer.

—Não estou apaixonada. E não o repita mais —repreendeu-a. —Meu único propósito era ganhar o suficiente para poder lhes oferecer uma vida boa —disse esticando a mão direita para o leito onde descansavam seus irmãos. —Não quero voltar a escutar seus prantos ante a fome. Não recorda como choravam?

—Recordo... —Kristel disse com um enorme suspiro.

Não era capaz de dar-se conta de que tentava pôr milhares de desculpas para não aceitar a realidade? Estava apaixonada pelo senhor Reform! E se sua percepção era correta, ele também correspondia àquela atração. De repente, ao pensar na carta que enviou a ela precisamente, em como não lhe reprovou o pagamento das faturas, o comportamento cortês para com elas, aquela inesperada abertura do clube para as damas... apareceram em sua mente como se fosse uma chuva de estrelas. Sabia. Não havia dúvida disso. Trevor Reform sabia que o senhor Hernández era Valéria Giesler. Então a voz da senhora Shoper apareceu como se ela estivesse ao seu lado lhe sussurrando: «Um homem que sabe seu segredo, que não tem dúvidas de quem é na realidade. Também vejo amor, não só por parte dele, mas também pela sua, mas o afastará, porque tudo aquilo que possa debilitar seu caráter azedo, aparta-o com rapidez». E não podia haver descrito melhor aquilo que estava acontecendo. É óbvio que conhecia quem era em realidade o senhor Hernández, mas queria ser testemunha de como esse moço magricela e imberbe se convertia na mulher que escondia embaixo daqueles farrapos velhos. E ofereceu aquela festa... na metade da semana... e Borshon foi quem as informou desse acontecimento... «Senhor Hill, —pensou —se tudo isto for certo... onde posso situar você?»

—Valéria, quero que respire fundo e me escute atentamente —indicou-lhe aproximando-se dela de novo.

—O que acontece? Por que ficou calada durante tanto tempo?

—Ele sabe. Não sei como o averiguou, mas o senhor Reform sabe que você é o senhor Hernández.

—Impossível! Esse homem pode ter uma cabeça muito atraente, mas com certeza dentro dela não tem nada mais que serragem —alegou zangada.

—Possivelmente teve ajuda. Quão única necessitava...

—O senhor Berwin é muito bom para...

—O que te parece um agente da Scotland Yard? —Disse enquanto seu coração se partia em mil pedaços.

—Está pensando que o senhor Hill foi contratado para me descobrir? —Inquiriu levando as mãos à boca como se quisesse fazer-se calar.

—Sim e possivelmente aquela percepção que teve ao vê-lo no mercado era certa. O que podia fazer um homem como ele naquele lugar? —Comentou sem voz devido àquela aflição que, para seu pesar, fazia-se cada vez mais dolorosa.

—Você mesma me indicou que ele desejava comprar novos livros à sua mãe —recordou.

—Há muitos lugares onde poder comprar bons livros, Valéria, mas o único no qual podia nos encontrar era nesse. —Tremiam-lhe as pernas, sua força desaparecia a cada palavra que expunha. Tudo tinha sido uma farsa. Ele tinha jogado com ela porque só assim permaneceria ao lado de Valéria. Como tinha sido tão iludida de acreditar naquela tolice? Como tinha sonhado poder amar um homem como ele? Tão irracional tinha sido?

—Oh, meu Deus! —Valéria exclamou lançou-se à Kristel para abraçá-la. —Sinto muito, querida. De verdade que o sinto. Nunca imaginei que meu plano te faria mal. Se tivesse sabido antes... —disse-lhe entre muitas lágrimas. —Partiremos! Vamos hoje mesmo daqui! Temos dinheiro suficiente para sair desta cidade e procurar um lugar seguro. Se explicarmos aos meninos, eles serão compreensivos —comentou sem mal respirar.

—Não —apontou com firmeza. —Nós não fizemos nada mau, Valéria. E não abandonaremos nosso lar como se fôssemos delinquentes. Temos um pouco de dignidade, pois mostremo-la.

—Eu não sou tão forte, Kristel. Apesar desta aparência... —alegou separando-se dela.

—Não é forte porque se apaixonou por ele —manifestou solene. —Assim como eu me deixei levar por uns sentimentos que, conforme parece, foram falsos.

—E se estou apaixonada... o que importa? Não recorda que essa amante o reclamou? Além disso... não quero viver com um homem que é incapaz de manter as calças em seu lugar! —Indicou irada.

—Por uma vez me deixe desfrutar de uma vingança —pediu transformando seu doce rosto em um tão maligno que Valéria ficou sem fala. —Quero saber até que ponto posso me converter em uma mulher cruel.

—Você? —Perguntou boquiaberta.

—Surpreende-te? Pois não deveria fazê-lo. Você mesma comentou no princípio desta conversação que uma mulher pode ficar louca quando não alcança o homem que ama e, se acrescentarmos que também é enganada, acredito que nenhuma besta maligna pode nos igualar.

—Eu não gosto de como me olha... é a primeira vez que me dá medo...

—Você não tem que me temer, querida. Só aqueles que quiseram brincar com os nossos sentimentos —disse apertando os dentes. —Agora nos sentemos e pensemos como podemos arrancar o coração de dois homens que não o possuem... —expôs lhe assinalando as cadeiras com a mão direita.


XIX

 

Aphra observava como seu filho caminhava de um lado para o outro procurando algo que, para sua desgraça, não encontrava. Como cada manhã, levantou-se muito cedo, preparou-lhe o café da manhã e mantiveram uma distendida reunião. Nessa ocasião, o tema de conversação foi a senhorita Griffit, aquela jovem que tinha conquistado o enorme coração de Borshon. Durante o bate-papo não cessava de elogiá-la e de ressaltar o quanto era educada, respeitosa e atenciosa. «Não há maldade nela», reiterou em várias ocasiões. Mas Aphra duvidava de que existisse no mundo uma mulher tão cândida, tão singela e adorável. Por esse motivo não parava de insistir que devia conhecê-la. Possivelmente, uma vez que conversasse com a jovem, descobriria se era tal como a descrevia ou seu adorado filho se cegou com ela.

—O que procura? —Decidiu lhe perguntar enfim.

—O alfinete da minha gravata. Aquele que o inspetor me deu de presente quando prendi a doce esposa —disse.

—Está no porta-joias que está sobre estante. Você mesmo o guardou ali depois daquela celebração privada —informou-o. —Tão nervoso se encontra que não é capaz de recordar um detalhe tão simples?

—Estou —expôs desenhando um enorme sorriso. —Não estaria em meu lugar? —Perguntou enquanto caminhava para aquele porta-joias. Depois de abri-lo com cuidado, se por acaso suas grandes mãos quebrassem sem querer a única lembrança que sua mãe possuía de seus antepassados, pegou o alfinete e o colocou na gravata.

—Vai aparecer muito bonito no mercado. As pessoas não demorarão em saber o motivo pelo qual se apresenta tão elegante —indicou acomodando-se na cama.

—Não me preocupa. Talvez seja o melhor, assim todos saberão que a senhorita Griffit tem que ser respeitada como merece ou cairá sobre eles o grande peso da lei —assinalou zombeteiramente.

—Um enorme peso... —Aphra acrescentou divertida. —Borshon... está seguro do que vai fazer?

—Muito seguro —declarou com firmeza. —Ela é a escolhida —continuou com aquele tom de voz. —Enquanto não tinha colocado meus olhos em Kristel, não tinha considerado a ideia de viver com uma mulher, de convertê-la em minha esposa. Mas desde esse momento não houve hora que não o deseje.

—Então só falta seu aceite —refletiu a mãe.

—Que aceite? —Perguntou ao mesmo tempo em que se dirigia para ela para lhe dar seu acostumado beijo antes de partir.

—O de ser consciente de que seu matrimônio não será como todos os outros. Salvo que tenha decidido me abandonar...

—Abandoná-la? Por que pensou semelhante sandice? Tudo o que fiz até agora está acima de mim. Não lhe demonstrei uma e outra vez o amor que lhe professo?

—E se ela não admitir a vida que lhe oferece? E se, depois do matrimônio, convencê-lo para que se afaste do meu lado? —Persistiu.

—Quando a conhecer, quando falar com ela, todas essas dúvidas absurdas desaparecerão de sua mente. Prometo-o —comentou aproximando seus lábios da bochecha. —Não demoraremos em aparecer.

—Esperar-lhes-ei sem me mover —disse lhe acariciando as bochechas.

—Senhor Hill, há um homem na porta que deseja lhe ver —Gisele lhe informou.

—Esperava visita? —Aphra perguntou.

—Não —Borshon respondeu caminhado a grandes pernadas para a porta.

Fosse quem fosse a pessoa que tinha achado seu endereço permanecia fora, porque Giselle não lhe tinha permitido acessar ao interior de sua casa. Intrigado por averiguar quem ousava apresentar-se ante ele, abriu-a de repente.

—Senhor Berwin! —Exclamou surpreso. —O que lhe trouxe até aqui?

—Bom dia, senhor Hill, por favor, peço-lhe encarecidamente que não eleve a voz. Esta manhã levantei com uma terrível dor de cabeça.

—Isso acontece quando se bebe além do acostumado —Borshon apontou divertido.

—Terei isso em conta na próxima vez que minha mão segurar um copo de delicioso licor —Berwin disse levando a ponta dos dedos às têmporas.

—Veio por parte do senhor Reform? Ele decidiu não ir ao mercado? —Perguntou-lhe ao mesmo tempo em que lhe concedia o suficiente espaço para entrar em seu lar.

—O senhor Reform está acordado desde as cinco da manhã e não parou de dar ordens a todos os que estão sob seu mesmo teto. Até o cozinheiro teve que ingerir vários litros de café antes de lhe preparar o café da manhã.

—Mas não deveria queixar-se, um homem como ele tem que ser o primeiro que se levante de seu leito.

—O primeiro? —Berwin perguntou arqueando as sobrancelhas. —Jamais pôs um pé no chão antes da chegada do crepúsculo! Que diabos lhe fez?

—Nada... Eu não fiz nada —indicou divertido. —O motivo pelo qual se levantou tão cedo é a senhorita Giesler.

—Sei. Assim como fui informado que a moça era na verdade o senhor Hernández. Asseguro-lhe que me converti em pedra quando o senhor Reform me revelou isso. Por que faria uma coisa assim?

—Para sobreviver —o agente apontou sem lhe tirar a vista de cima. —Perdoe que seja desrespeitoso, senhor Berwin, mas me dispunha a sair e preciso saber o antes possível o motivo de sua visita.

—Tem que ajudar o moço.

—Que moço?

—O que está lhe aguardando na rua, ao lado da carruagem. O senhor Reform me ordenou procurar algo que você requer com urgência —declarou enfim.

—Eu? —Inquiriu assombrado. —Eu não necessito...

—Saia lá fora de uma vez! —Indicou-lhe o secretário com impaciência. —Nem você nem eu podemos perder nosso valioso tempo intercambiando palavras carentes de sentido.

Com muitíssima curiosidade, Borshon saiu à rua e, quando viu o que havia sobre a carruagem ficou gelado.

—Se fizer a gentileza de me ajudar —pediu um homem que desenredou as cordas que a cadeira tinha ao redor. —Isto pesa muito para eu descê-la sozinho.

Com uma emoção tão grande que lhe impediu de falar, o agente ajudou o empregado a descer com muito cuidado aquele acertado presente. Uma vez que o pôs sobre o chão, o fez rodar até a entrada. Não havia dúvida, sua mãe por fim poderia abandonar aquele cárcere no qual estava cativa há tanto tempo. Feliz, atravessou o salão sem lembrar-se de que o senhor Berwin tinha permanecido nele momentos antes. Mas justo no instante que a pergunta passou pela cabeça, escutou na habitação de sua mãe a voz do administrador.

—Nunca imaginei —dizia Berwin à Aphra. —Embora tenha que admitir que já encontrei o motivo pelo qual seu filho um homem tão bonito.

—Ruboriza-me, senhor Berwin! —Ela exclamou amenizando o rubor com um leve movimento de sua mão direita.

—De verdade que me sinto muito ditoso e encantado de havê-la conheci...

—Mãe, —interrompeu-os Borshon, que ao escutá-los paquerar como dois adolescentes, ficou petrificado —olhe o que o senhor Reform lhe deu de presente.

—Espero que goste dela —Berwin interveio. —Como não soube de sua existência até esta mesma manhã, escolhi a menor. Embora acredite que acertei. Você tem as medidas próprias da deusa Afrodite.

—Adula-me de novo, senhor —respondeu Aphra vaidosa, que não cessava de aparar o cabelo.

—Se fizer a gentileza, senhor Berwin, tenho que colocar a minha mãe sobre a cadeira e nós gostaríamos de certa intimidade —apontou o filho um tanto mal-humorado.

—É claro! Desculpe minha ousadia! —Disse apartando-se da cama para afastar-se. —Senhora...

—Aphra, meu nome é Aphra —assinalou com rapidez ela.

—E se não for nenhum inconveniente, agradaria que uma vez que meu filho me tenha colocado nesse magnífico presente, seja o primeiro em me acompanhar até a rua. Levo muito tempo sem poder admirar o que há fora destas paredes.

—Será uma honra —assinalou o administrador antes de fazer uma leve sacudida de cabeça e sair da habitação.

—É encantador —Aphra comentou estendendo seus braços ao redor do pescoço de Borshon.

—É muito mais velho... —ele resmungou.

—Mas se mantém atlético —apontou.

—O senhor Reform o requer todo o tempo —assinalou segurando-a em seus braços.

—Imagino que por isso não é um homem obeso.

—Terá superado os sessenta —perseverou em fazê-la compreender que não devia mostrar tanto interesse em um homem tão idoso.

—Não pretendo me buscar um jovem acompanhante para compartilhar minhas horas de cama, querido. Só procuro um amigo com quem possa falar e o senhor Berwin parece um homem sensato e atencioso.

—Recorda que hoje tenho que me centrar na senhorita Griffit? Pois não me ofereça mais temas com os quais me preocupar —resmungou.

—Pode fazê-lo assim que me acomode nessa cadeira, mas que o senhor Berwin espere no salão. Quero conversar com ele depois que Giselle me arrumar.

—Mas, mãe! —Borshon exclamou atônito ao mesmo tempo em que a olhava com incredulidade.

—Querido, procure sua felicidade que eu acharei a minha —disse sorridente.

Uma vez que colocou as pernas em seu lugar, arrumou-se o vestido e que Giselle a penteasse tal como ela desejava, Borshon lhe ofereceu um xale para que o jogasse sobre os ombros e a conduziu, a contragosto, até onde se encontrava o senhor Berwin. Quem permanecia de pé olhando para a porta por onde apareceriam.

—Estou no céu? —O ancião perguntou ao vê-la. —Porque acaba de aparecer um anjo.

Depois de um grunhido o agente decidiu sair de seu lar o antes possível. Respeitava muito o senhor Berwin para jogá-lo dali a chutes. Embora muito temesse que o seguinte em sair de seu lar seria ele para lhe pedir mil desculpas por seu atroz comportamento.

—Ver-lhe-ei logo —disse antes de fechar a porta.

Mas sua mãe não lhe respondeu como sempre, estava tão distraída com a conversação que tinha iniciado com o ancião que nem se deu conta de que ele partira.

—Enfim... —Borshon suspirou. —Vou ao mercado ver se consigo beijar Kristel antes que Berwin à minha mãe.

 

 

A noite foi muito longa... Kristel foi incapaz de adormecer depois de encontrar o motivo pelo qual o senhor Hill se aproximara dela. Segurou as lágrimas que desejava derramar até que Valéria ficou profundamente adormecida. «Devia supô-lo —disse-se, levantando-se da cama pela quinta vez. —Como imaginei que um homem como ele sentiria algo por mim? Impossível!».

Deixando-se levar pela tristeza, terminou por sentar-se no pequeno banco que havia em frente ao espelho. Ali viu refletida a imagem de uma mulher desolada, angustiada, doída por ter suspirado ante a aparição de um sentimento tão valioso como era o amor. E, muito ao seu pesar, nesse instante vivia o outro lado da moeda... a tristeza, a crueldade, o desamor... pensou até no senhor Mayer, o único que se comportou com honestidade. Apesar de como a tratou, não achou nele nem uma só fresta de falsidade. Cansada de tanto chorar e de pensar, finalizou o resto da noite olhando-se no espelho, recordando a primeira vez que o viu, o momento vivido no jardim botânico e como tinha atuado com ela durante a festa. Embora fosse consciente do engano, seu coração, esse que se quebrara em mil pedaços, insistia em que nem tudo era falso, que os olhares, os roces e a cordialidade de suas palavras revelavam algo que, devido ao aborrecimento, não desejava admitir. Mas Kristel lutava contra esses pensamentos com todas as suas forças. Desejava achar de novo a mulher esquiva, implacável e realista que foi antes de Borshon aparecer em sua vida.

Só levantou do assento com a chegada da alvorada, e o fez porque escutou o enorme bocejo do pequeno Martin. Desenhando seu melhor sorriso e aparentando que se levantou justo nesse momento, começou a preparar o café da manhã. Mas ela não provou bocado algum. Não tinha fome...

—De verdade que temos que ir? A senhora Shoper pode ficar conosco —o menino tentou persuadir porque odiava rodear-se de muita gente. Seu caráter, introvertido e tímido, fazia-o encerrar-se cada vez que tinha a ocasião. Entretanto, Kristel e sua irmã não pareciam aceitar a ideia de Martin.

—Temos que comprar alguns alimentos se quiser encher seu estômago esta noite —alegou Valéria que, depois de lavar os pratos, começou a preparar-se para sair.

—Philip pode lhes ajudar com a carga. Tal como diz, já é suficientemente grande para comportar-se como um homem —o moço resmungou.

—Não —Kristel negou com veemência. —E agora ponha a jaqueta, penteie esse cabelo e não nos faça atrasar por mais tempo. Se chegarmos logo poderemos comprar os melhores alimentos.

—Isto é injusto! —Martin exclamou dando um enorme pisão no chão.

—A vida é injusta —Valéria manifestou enquanto terminava de pentear-se.

Depois de um bom momento, mais do que supuseram em um primeiro momento, os quatro saíram do lar. Philip seguia emocionado pela experiência que obteve na noite anterior e não cessava de falar sobre ela. Enquanto as duas permaneciam caladas tentando assumir o novo rumo que lhes oferecia a vida.

—Está segura? —Valéria perguntou à Kristel justo quando entravam na praça.

—Estou-o —determinou caminhando erguida.

Havia uma grande afluência de pessoas pelas bancas. Os mercadores anunciavam em voz alta aquilo que tinham adquirido nessa mesma manhã ao atracar no porto os navios de mercadorias. Os camponeses vociferavam a frescura de suas verduras e os comerciantes mais ousados enviesavam ali mesmo a vida de quão animais desejavam vender. Gente com trajes respeitáveis, outros com míseros farrapos que pediam esmola, agentes que asseguravam um ambiente tranquilo... aquilo era um caldeirão de atividade.

—Feijões? Não quer saborosos feijões? Foram transportados durante semanas até chegar à nossa amada cidade para deleitar os comensais mais exigentes —anunciou à viva voz um dos vendedores.

—Viu-o? —Perguntou à Kristel referindo-se ao senhor Hill.

—Não, mas saberei quando chegar.

—Como? Aqui há muita gente e quase não consigo saber onde se colocaram meus irmãos.

—Ele fará sombra a todos os que nos rodeiem —declarou segura.

Então, justo nesse preciso momento, a dúvida se apropriou dela. Talvez fossem suas palavras ou a maneira de expressá-las que lhe indicaram que, apesar de tudo, o orgulho que sentia por Borshon era maior que a decepção. Entretanto, como podia atuar sem enganar a si mesma? Realmente desejava vê-lo humilhado, destroçado diante de toda a gente que lhes rodeava? Como isso afetaria seu trabalho? E sua mãe? O que lhe aconteceria se arruinasse a vida de seu filho? E ela... o que faria ela quando retornasse ao seu lar? Seguiria chorando?

—As pessoas parecem alteradas —Valéria comentou fixando os olhos em um grupo de pessoas que rodeavam uma das entradas do lugar. —Estarão vendendo algo interessante?

—Quer se aproximar? Eu posso te esperar aqui, vigiando seus irmãos.

—Não te importará ficar sozinha? —Perguntou sem poder apartar o olhar daquele lugar.

—Não me acontecerá nada —acalmou-a. —Eles só me farão esperar na fila o tempo suficiente para que me saiam rugas —acrescentou com sarcasmo.

—Não demorarei, prometo-lhe —Valéria disse acelerando o passo para essa região.

Kristel continuou andando para a banca de aves. Não queria faisões, nem perus, nem nenhuma minúscula codorna. Tinha o estômago tão fechado que nada do que encontrasse lhe pareceria apetitoso para cozinhar. Entretanto, aqueles dois moços não se conformariam com um prato repleto de ervilhas e cenouras. Ficariam a chorar desolados se uma boa peça de carne não acompanhasse essas hortaliças. Depois de soprar colocou-se em frente à banca esperando que o excelentíssimo vendedor decidisse atendê-la. Mas muito se temia que, como sempre, deixá-lo-ia ali esperando uma eternidade...

—Senhorita Griffit! —o açougueiro exclamou ao vê-la aparecer. —O que deseja esta manhã? Trouxe uns perus de muito boa qualidade. Embora não posso menosprezar este formoso frango que minha esposa matou faz apenas uns minutos. Veja! —Mostrou-lhe o cadáver com plumas. —Com certeza seu coração ainda pulsa.

—Bom dia... —respondeu-lhe Kristel assombrada ante o trato tão amável que lhe oferecia. —Sim, em efeito, parece bastante bom...

Por que a tratava com tanta gentileza? O que tinha ocorrido? Teriam lhe golpeado na cabeça e não recordava as zombarias que lhe soltava cada vez que ela se apresentava em sua banca?

—Se o desejar, vendo-o esfolado. Minha esposa é uma perita depenando e pode cortá-lo em menos de dez minutos —o vendedor adicionou estendendo para a sorridente mulher o frango que se movia ao compasso de seu braço.

—Se não lhe parecer inapropriado —disse com uma mescla de medo e assombro.

—Que nada! —Exclamou movendo a outra mão com um gesto tranquilizador. —Será um prazer atendê-la como merece.

—Quanto lhe devo? —Perguntou cravando seus olhos no moedeiro. Não podia olhar ao lojista, sentia-se tão morta de vergonha por esse inesperado afeto que não era capaz nem de articular palavra.

—Para qualquer outra dama seria uma libra, mas para você só custará uma coroa —comentou como se se tratasse de um segredo.

Dama? Aquele homem a estava chamando de dama? Se antes pensava que algo estranho passava ao vendedor, agora não lhe cabia dúvida de que estava certa. Onde tinha deixado suas habituais zombarias? E aquele olhar repulsivo? Porque não havia nada disso nele. Ao contrário, tratava-a com tanta simpatia que Kristel se sentiu incômoda.

—Aqui está —disse tirando a moeda do bolso. A mão lhe tremia e o estado de ansiedade crescia por segundos. Quão único desejava era partir dali o antes possível com o frango com ou sem plumas.

—Dê um passeio, senhorita Griffit. Quando retornar a ave não terá nenhuma só pluma —indicou com um enorme sorriso em seu rude rosto.

Assombrada, confusa, atônita e inclusive temerosa, Kristel assentiu e, sem acrescentar nada mais, avançou devagar até a banca seguinte, olhando de esguelha ao vendedor se por acaso em qualquer momento soltava alguma brincadeira sobre ela. Mas não. Nem zombou às suas costas nem murmurou algo ofensivo. Continuou atendendo outros clientes enquanto sua esposa depenava com grande destreza a ave.

—Senhorita Griffit! —Chamou-lhe a atenção o senhor Adams, o lojista de verduras. Aquele que permanecia com a boca aberta quando aparecia Valéria. Entretanto, esta vez, quem mantinha a boca exageradamente aberta era ela. Como sabia seu sobrenome se nem sequer conhecia sua existência?

—Bom dia, que prazer vê-la por aqui. Ninguém lhe disse quão formosa está hoje com esse vestido?

—Bom dia, senhor Adams... —respondeu-lhe depois de confirmar que a roupa a que o vendedor fazia referência era quão mesma vestia a cada vez que aparecia no mercado. —Obrigada? —Disse perplexa.

—O que procura esta manhã? Cenouras, ervilhas ou talvez deseje acompanhar seus deliciosos guisados com estas batatas? —Assinalou com a mão uma montanha de ditos tubérculos. —Foram colhidas durante o amanhecer e ainda guardam a água que tiraram da terra antes de serem coletadas —informou-a.

—Parecem muito apetecíveis —comentou com acanhamento.

—São! —O comerciante afirmou orgulhoso. —Quantas deseja?

Não sabia o que responder. Aquele estado de atordoamento aumentava a cada momento. Por que se comportavam dessa maneira com ela? O que tinha acontecido para que todo mundo mudasse sua atitude? De repente, quando seus olhos se cravaram nas mãos do vendedor, que não parava de procurar as batatas que não possuíssem brotos de raízes, uma grande sombra abrangeu a banca. O coração de Kristel pulsou depressa, emocionado pela presença da única pessoa que podia provocá-la: Borshon. Mas não queria dar a volta e enfrentá-lo mantendo a confusão que tinha crescido nela ante o trato afável dos vendedores. Precisava chamar aquela mulher triste, despeitada e enfurecida que não tinha podido dormir pensando na armadilha que lhe tinha feito.

—Bom dia, senhor Hill —o verdureiro saudou quando o descobriu em frente à sua banca, justo atrás das costas da cliente.

—Bom dia, senhor Adams. Vejo que hoje sua banca está mais deliciosa que de costume —apontou com sua típica voz grave.

—Não será por minhas verduras, não é? —Perguntou sarcástico o vendedor, que tinha captado com rapidez o motivo pelo qual o agente expôs tal afirmação. —Senhorita Griffit, aqui tem suas batatas. Deseja algo mais?

—Não. —Negou com um suave movimento de cabeça. —Quanto lhe devo? —Notava sua cercania, a proximidade que não devia manter em um lugar tão concorrido. Como ousava comportar-se daquele modo? O que pretendia mostrar? Ou só queria prosseguir com a farsa?

O vendedor olhou ao agente, logo à Kristel. Sorriu-lhe e com muita amabilidade lhe disse:

—Aceite-o como um obséquio, senhorita Griffit. É o mínimo que posso fazer por uma mulher como você.

—Não! —Kristel exclamou sobressaltada. —Não posso aceitar, senhor Adams. Você e sua família sobrevivem das vendas e não seria justo que...

—Tome —Borshon ofereceu ao amável vendedor uma moeda. —Fique com o troco. —Ao estender o braço para efetuar o pagamento, tocou brandamente o cabelo de Kristel e esta, ante esse leve contato, contraiu o corpo. Estranhando esse repentino encolhimento, Borshon deu um passo para trás lhe permitindo um pouco mais de espaço.

—Obrigado, senhor Hill, você é um homem bondoso —o senhor Adams respondeu colocando a moeda no bolso do avental sujo.

Enquanto o vendedor elogiava o agente por sua boa obra, Kristel meteu as batatas no cesto, que devido aos nervos, rodaram no interior deste e golpearam o livro que guardava. Segurou com força a alça e tentou encontrar um oco para sair fugindo. Porque isso era o que ansiava, distanciar-se daquele grande corpo que a punha muito nervosa. Nesse ato uma fragrância a sabão de barbear chegou até seu nariz. Por que cheirava tão bem? Por que só desejava dar a volta e observar aquele homem que, por desgraça, era o possuidor de seu coração?

—Bom dia, senhorita Griffit —sussurrou-lhe ao ouvido. —Procura uma forma de escapar de mim? —Perguntou zombeteiramente.

—Assim é —respondeu com firmeza, cravando o olhar no chão.

—E por qual horrível motivo deseja evadir minha presença? —Perseverou abandonando a zombaria no tom de voz e exibindo em suas palavras certa preocupação. —Acaso fiz algo que a incomodou?

—Que você esteja aqui me fazendo sombra, evitando que eu possa desfrutar do escasso sol que aparece em Londres é motivo suficiente para isso, não lhe parece? —Disse zangada.

—Você não sabe que os raios solares podem afetar sua delicada pele? Deveria sentir-se feliz ao compreender que me preocupo com sua segurança.

Que diabos lhe acontecia? Estava sob o encantamento de algum feitiço maligno? Porque não era normal que à noite anterior se comportasse como uma terna e delicada mulher e, entretanto, nesse momento pudesse lhe enviesar o pescoço com sua língua afiada. Sua mãe não lhe havia dito que uma mulher não podia ser tão encantadora? Pois de novo tinha razão, mas não lhe ia permitir que partisse sem averiguar o que lhe ocorria.

—Deixemos de sandices, senhor Hill —declarou com solenidade levantando enfim seu olhar para cravá-lo naqueles olhos azulados que a observavam perplexo. —Não sou uma menina a quem possa enrolar com esse absurdo palavrório.

—Como? Acredito que a confundi com outra pessoa. Vinha procurando a encantadora senhorita Griffit e você não tem nada de afável —disse com uma mescla de aborrecimento e surpresa.

—Afável? Como pode requerer um pouco de afabilidade depois de compreender que todo o seu comportamento foi falso? Deixe de tanta cortesia, senhor Hill, não a necessito! —Exclamou em frente à banca de verduras do senhor Adams, que estava mais desconcertado que o próprio Borshon.

—Meu comportamento foi falso? Explique-se! —Insistiu cruzando os braços e olhando-a de uma forma que deixou Kristel congelada. Agora entendia a razão pela qual todo mundo lhe temia. Borshon podia transformar-se em um monstro, em uma horrível besta só entreabrindo seus olhos.

—Sei o motivo pelo qual você me persegue —disse depois de serenar-se.

—Qual? —O agente demandou sem sequer mover os lábios para falar.

—Descobri-o ontem, justo depois de retornar ao meu lar.

—O cocheiro não as levou diretamente para sua casa? Ou decidiram parar em algum botequim para deleitar-se com licores envenenados? —Grunhiu.

—Deixe de estupidezes! —Gritou-lhe. —Enganou-me! Só se aproximou de mim porque devia vigiar a senhorita Giesler!

—Como? —Borshon soltou descruzando os braços com rapidez. —Como chegou a tal conclusão? —Enquanto fazia a pergunta recolhia em sua mente qualquer dado que lhe indicasse o que lhe jogava na cara com tanto despeito. E um nome apareceu em sua mente: Jun. A muito bastarda ao descobrir que o senhor Reform tinha certo interesse em Valéria teria perguntado aos empregados deste até saber tudo. Trevor não lhe havia dito que lhe arruinara a vida? Pois se tentasse arruinar a sua um lindo cadáver flutuaria no Tâmisa, e não era uma ameaça, e sim um fato.

—Foi muito fácil... —comentou rindo com os dentes apertados. —Até uma mulher carente de raciocínio poderia entender que um homem como você não se interessaria por uma mulher como eu sem um bom motivo.

—É óbvio —afirmou solene. —Uma mulher sem raciocínio deduziria com rapidez que não poderia me interessar por uma mulher como meus olhos observam neste momento. Eu procuro a senhorita Griffit, uma encantadora moça que me roubou o coração —resmungou.

—Não minta mais! Não entende que já descobri tudo? Que já não pode me enrolar com suas galantes palavras? —Vociferou perdendo a compostura, notando como suas pernas tremiam e percebendo um estranho enjoo. Onde estava Valéria? Por que demorava tanto?

—Está bem! —Borshon sucumbiu sentindo-se encurralado. —Tem razão. É verdade que meu primeiro trabalho era vigiar a senhorita Giesler porque o senhor Reform descobriu o que fazia cada vez que aparecia em seu clube. Entretanto, também tenho que indicar que quando a vi descendo as escadas de seu lar, acompanhando a mulher que eu devia proteger, esse trabalho finalizou para mim, porque não era capaz de apartar meus olhos de você —manifestou sério para que ela não tivesse dúvida do que estava dizendo. —Pode recriminar o fato de que lhe mentisse quando falamos à primeira vez, mas não pode reprovar os sentimentos que cresceram em mim por você.

—Segue mentindo... —Kristel disse mediante um sussurro. A força tinha desaparecido de seu corpo, seu coração tinha deixado de pulsar, só desejava sair dali retornar ao seu lar e chorar a perda do homem que amava.

—Olhe-me, senhorita Griffit! —Ordenou-lhe zangado. —Olhe-me! —Reiterou com o mesmo tom de voz.

—Não! —Negou ao mesmo tempo em que começava a andar para frente. Precisava apartar-se dele, urgia-lhe criar entre eles uma grande distância. Porque não era bom seguir enganando-se albergando a esperança de que ao fim dizia a verdade.

Mas Borshon a agarrou pelo braço impedindo a fuga. Kristel abaixou o rosto, envergonhada ainda mais. Podia escutar os rumores das pessoas que havia ao seu redor. O que pensariam? Imaginariam que tinha roubado e que o agente a estava detendo?

—Olhe-me, suplico-o —Hill murmurou sem diminuir seu desconcerto.

E o olhou. Muito devagar levantou o rosto para observar o dele. Seus olhos frágeis como se quisesse chorar, seus lábios apertados como se quisesse deixar de gritar e a mandíbula apertada com tanta força que podia romper-se algum dente.

—O que vê, Kristel? Observa engano, brincadeira ou zombaria? Não, claro que não, porque não posso ter nada disso por você, porque seria impossível sentir algo tão absurdo.

—Senhor Hill... —gaguejou.

—Senhorita Griffit, embora você não possa acreditar em minhas palavras tenho que lhe confessar que a amo. Amo-a desde o primeiro instante que pus meus olhos em você, amo-a desde a primeira vez que escutei sua voz. Amo-a tanto que não seria capaz de continuar vivendo se não estiver ao meu lado. Não quero despertar a cada manhã sem vê-la ao meu lado, sem notar sua presença, sem confirmar que a mulher por quem daria minha vida dúvida desse amor que meu coração expressa. —A mão de Borshon seguia segurando seu braço, em um desesperado intento de que não se afastasse sem ser consciente de quanto a queria. Mas ela tremia. Como se ainda lhe custasse assumir a veracidade que emanava de sua boca. —Nota alguma mentira em minhas palavras, Kristel? —Insistiu. —Não é suficiente o que vê? Quer alguma prova mais?

—Não há prova alguma que...

—Não há prova? —Perguntou atraindo-a com força para ele. —Espero que isto seja a prova que necessita...

E a beijou diante de todo mundo. Mas não foi um beijo casto ou tímido. Borshon lhe ofereceu uma amostra tão apaixonada que Kristel teve que esticar suas mãos e aferrar-se àquele forte pescoço para não cair ajoelhada ao chão. O que lhe havia dito a senhora Shoper? Que não esqueceria o primeiro beijo? Pois não, não o esqueceria jamais. Assim como não perderia de sua mente como as grandes mãos dele se enredaram em sua cintura, como sua língua possessiva, voraz e quente percorreu cada rincão de sua boca e tampouco eliminaria a sensação de prazer que lhe causou o calafrio mais intenso de sua vida.

—Foi suficiente para você?

Kristel escutou a pergunta longínqua, como se entre eles houvesse mais de duas léguas. Tinha os olhos fechados para não ser testemunha da expectativa que provocaram ao seu redor.

—Diga-me, Kristel, não é suficiente prova o que acabo de fazer? Deseja que eu me ajoelhe e te peça que não me abandone? Não poderia viver sem você —disse enquanto começava a inclinar-se para o chão.

—Não! —Ela exclamou evitando que ele se ajoelhasse. —Acredito-o. Acredito-o... —corrigiu-se.

—É o ser mais maravilhoso do mundo, Kristel. E não importa como te conheci. Compensarei com acréscimo o engano que realizei. Mas não parta, fica comigo o resto da minha vida —continuou falando ao mesmo tempo em que lhe acariciava o cabelo.

—Borshon... —sussurrou. As lágrimas de emoção vagaram por seu rosto devagar, preguiçosas. Seu peito, agitado pela vivência, estendia-se para ele desejando-o embora estivesse tão perto.

—Kristel... —respondeu-lhe apartando algumas lágrimas com os polegares. —Aceite-me, suplico-lhe —rogou.

—Só se me prometer que não haverá mais mentiras entre nós. Não quero viver um matrimônio repleto de agonias nem de triste...

Não terminou. As grandes mãos de Borshon se colocaram em ambos os lados de seu quadril e a elevaram para beijá-la de novo. Então se escutaram palmas, exclamações e um sem-fim de suspiros femininos.

—Prometo-lhe isso, meu amor —declarou depois daquele beijo que foi ainda mais apaixonado que o anterior. —Juro-o pela minha vida que não voltarei a te mentir —reiterou solene.

—Bom... —Kristel disse dando um passo para trás, desfazendo as rugas de seu vestido e sem poder observar toda aquela gente convertida em espectadores. —O passo seguinte é visitar sua mãe.

—Trouxe o livro? —Borshon perguntou-lhe feliz enquanto enredava sua mão com a dela.

—Sim. Tenho-o aqui. —Assinalou a cesta que, em algum momento, tinha rodado por seu braço e tinha caído ao chão. —Mas antes de partir tenho que falar com Valéria. Afastou-se para... —começou a dizer puxando seu futuro marido para o lugar onde se encontrava sua amiga, mas não caminhou muito após averiguar que a jovem não estava sozinha. O senhor Reform mantinha uma conversação com ela.

—Não se pode evitar o destino —comentou ao ouvido. —Nem eles nem nós podemos fugir dos sentimentos que cresceram em nosso interior.

—Mas ela... os meninos... e... tenho um frango a recolher! —Comentou voltando-se para ele.

—Valéria está acompanhada e te asseguro que não lhe acontecerá nada. Os meninos podem retornar ao seu lar, pedirei a um desses agentes que os aproxime e sobre esse frango...

—Não se preocupe! —Exclamou o vendedor que tinha escutado e presenciado tudo. —Minha esposa o levará esta mesma manhã.

—Tem algo mais a fazer antes de me acompanhar ao

nosso futuro lar? —Hill perguntou depois de beijar a mão que entrelaçava.

—Não —respondeu após suspirar.

—Pois então, meu amor, partamos daqui —manifestou feliz enquanto caminhava devagar para que ela não se sentisse envergonhada por sua forma de andar.


XX

 

Não demoraria em retornar. Aproximar-se-ia, observaria o que estava acontecendo e iria o antes possível junto à Kristel. Não queria deixá-la só durante muito tempo porque não se encontraria cômoda ante o trato que lhe dedicariam os vendedores. Além disso, queria estar presente quando esbofeteasse o grande senhor Hill. Surpreender-se-ia ao ser rejeitado dessa maneira tão humilhante? Permaneceria perplexo ante a severa atuação? Valéria soltou uma leve gargalhada. É óbvio que sim! Nenhum homem que se apresentasse ante outros dessa maneira tão grandiosa assimilaria com honra ao ser afrontado por uma mulher como Kristel.

Enquanto se dirigia para aquela região do mercado, refletindo sobre o plano de sua amiga, contemplou como a multidão se amontoava ao redor desse lugar em concreto. Teve que se esquivar, empurrar e escutar certos insultos para com sua pessoa até que conseguiu colocar-se na primeira fila e, ao achar o que era tão importante que ninguém queria perder, fez uma careta de desagrado. Dois homens sentados um em frente ao outro, separados por uma pequena mesa de madeira, divertiam os espectadores realizando um jogo para medir suas forças. O participante que olhava para ela tinha aspecto de pirata. Não só por seu rosto rude, mas também pela corpulência de seu corpo e o tom torrado da pele. Exibia sem pudor o torso nu e toda pessoa que cravasse os olhos em sua figura era testemunha da grande musculatura. Entretanto, o homem que lhe dava as costas não parecia tão robusto, embora suas costas, apesar de estar oculta sob uma camisa branca e um colete cinza, pareciam largas e atléticas. Valéria cravou seus olhos na nuca daquele estranho. Sua pele parecia suave, delicada. De verdade que podia haver no mundo um homem que pudesse ter uma pele mais cuidada que a de uma mulher?

Sem poder apagar o sorriso zombeteiro que apareceu em seu rosto, deu uma olhada às pessoas que havia ao seu lado. Aplaudiam e animavam os jogadores entre aclamações, assobios e gritos de ânimo. «Claxton», assim se chamava aquele titã musculoso e, conforme parecia, era o favorito de todos os que respiravam aquele jogo infantil. Depois de soprar pelo absurdo que lhe parecia tal diversão, Valéria cravou seus olhos em uma jovem que segurava a jaqueta do misterioso participante. Ao supor que todas os olhares se centrariam neles, a moça aproximou a roupa de seu nariz e inspirou com força. Nesse instante Valéria soltou o ar abruptamente. Por que as jovens se comportavam dessa maneira tão irracional? Estaria perfumada e não pôde evitar inspirá-la? Aquele estranho, que mostrava suavidade na pele de seu pescoço, utilizaria uma fragrância tão hipnotizante que nenhuma mulher poderia deixar de cheirá-la? Ou possivelmente não era seu aroma, mas sim este seria tão bonito como rico e rompia o coração das moças casadouras.

Zangada pelo irracional comportamento das jovens desesperadas por achar o marido perfeito, centrou seu olhar nos dois participantes. Suas mãos se agarravam com força, mantinham-se firmes, sem cair para um lado ou para o outro. Quis girar-se para partir dali, mas alguém gritou um sobrenome que a deixou paralisada no meio daquele semicírculo. Devagar, como se seu corpo pesasse quatro vezes mais, voltou-se e cravou seus olhos nas costas daquele misterioso homem. O colete cinza, sua camisa branca arregaçada até os cotovelos, o pescoço, o cabelo escuro como a noite e a jaqueta que a jovem tinha cheirado como se fosse um cão sabujo... não, não podia ser ele. Impossível!

—Maldito filho de cadela! —Gritou o de aparência pirata quando enfim se dobrou.

Valéria levou uma mão à boca e a outra ao abdômen. Parecia que o espetáculo terminaria em uma briga. Uma disputa na qual Trevor sairia ferido gravemente. Que diabos fazia ali? Procurava que lhe destroçassem aquela pele suave e aveludada? Por que tinha abandonado o amparo que lhe proporcionava o clube? Jogou um passo para trás para afastar-se dali e não presenciar como seria golpeado sem piedade, mas a congregação que rodeava aquele ato lhe impedia de partir.

—Adverti-lhe isso! —Trevor exclamou levantando do assento com rapidez.

E justo quando ela fechou os olhos para não ver o início da confusão, escutou as pessoas aplaudirem. Ao abri-los encontrou o que não esperava: um abraço. Os dois se abraçavam como se se conhecessem de toda a vida.

—Alegro-me de te ver por aqui, Trevor —comentou o homem batendo nas costas de Reform. —Quantos anos passaram? Dois, três?

—Seis.

—Pois transcorreram muito rápido —declarou-o oferecendo um apertão no ombro. —O que? Como se sente ao retornar à rua onde nasceu?

—Se deseja saber se tive saudades do lugar onde tive que sobreviver, não, não tenho —respondeu enquanto se aproximava da jovem que lhe sustentava a jaqueta. —Obrigado.

—Então o que faz aqui?

—Procuro uma pessoa, embora com tanta gente ao nosso redor será difícil encontrá-la —expôs colocando os braços na jaqueta.

—Encontrá-la? —O homem perguntou estranhando. —Nunca imaginei que retornaria para procurar uma mulher quando alberga embaixo daquele clube uma dúzia de descaradas e insaciáveis demônios.

—Ela é especial... —apontou ao mesmo tempo em que fechava os botões da roupa.

—E essa mulher especial... tem um bonito cabelo negro, uns grandes olhos azuis e é terrivelmente formosa? —O pirata perguntou divertido.

—Sim, como sabe? —Reform respondeu desconcertado.

—Porque está justamente em frente de nós. Gire-se e contempla-a por você mesmo. Embora se estivesse em seu lugar, não demoraria em correr atrás dela porque muito temo que não deseje vê-lo —apontou mordaz.

Veloz, Trevor se voltou e a achou ali, a menos de quatro passos de onde se encontrava. Com os olhos abertos como pratos, uma mão ocultando sua doce boca e a outra pressionando o abdômen. Mas o que deixou ao Trevor sem ar foi o rosto alterado que ela exibia. Nem se despediu de seu velho camarada. Não havia tempo a perder. Tal como lhe anunciou, ela estava desesperada por partir. Caminhou para Valéria fazendo com que as pessoas que havia atrás da jovem retrocedessem assim como quem contempla o mar da beirada se afasta quando vem uma onda brava.

—Senhorita Giesler —saudou-a uma vez que logo tinha um passo de distância entre eles. —Alegro-me de vê-la. Foi uma magnífica coincidência que...

—Vá ao inferno! —Valéria exclamou girando-se com rapidez e dando passos largos.

—Acredito que vai ser difícil! —Claxton vociferou entre sonoras gargalhadas. —É melhor retornar aos quentes braços de suas empregadas!

Não respondeu ao inoportuno comentário, perseguiu a jovem até que lhe alcançou. Sem pensar duas vezes e desesperado, agarrou-lhe o antebraço esquerdo e a voltou para ele.

—Não fuja de mim, senhorita Giesler —resmungou. —Asseguro-lhe que não haverá um rincão nesta maldita cidade no qual possa ocultar-se de mim.

—É uma ameaça? —Perguntou encarando-o. Levantou o queixo e o olhou desafiante. —Pensa em me agredir como fez à sua amante? É assim que o grandioso senhor Reform trata as mulheres? Que vergonha! Você é um miserável! —Vociferou.

A mão de Trevor se abriu devagar enquanto dava um passo para trás. Aturdido, cravou seus olhos escuros no lugar onde a agarrou e se repreendeu ao ver sua palma impressa na pele dela. Merecia-o. Devia assumir com integridade aquele ataque para com sua pessoa. Entretanto, não se daria por vencido, estava disposto a lutar contra aquela ofensiva. Ela devia escutar sua versão dos fatos. Precisava lhe confessar que tudo o que observou da porta tinha sido um plano ideado por Jun ao ser consciente de que já não havia nada entre eles.

—Está confusa... —disse-lhe, aplacando devagar o mal-estar que enfrentava.

—Está me dizendo que sofro de alucinações? Que aquilo que presenciei ontem foi falso? —Perseverou irada.

Como podia encontrar-se tão encolerizada? Eram suas palavras ou o fato de ter em frente a ela o que lhe causava tanta ira? Por que era tão sedutor? Por que era incapaz de lhe dar o bofetão que Kristel tinha pensado propiciar ao agente? Não devia sentir-se humilhada, ultrajada depois de averiguar que tudo o que tinha acontecido no clube era um mísero jogo para ele porque sabia a verdade?

—Não —negou com firmeza.

—Afaste-se de mim, senhor Reform. Vá para o inferno! —Repetiu antes de dar um passo mais.

—Valéria... —sussurrou-lhe com um tom tão dilacerador que ela freou ao escutá-lo.

Ouvir seu nome naquela voz a descompôs. Era a primeira vez que se achava em uma encruzilhada sem igual. Por um lado, desejava conhecer aquilo que suspeitava que lhe fosse dizer, mas por outro... devia ser forte e esquecê-lo porque ela não era o brinquedo de ninguém.

—Não volte a dirigir-se a mim dessa forma —apontou levantando o dedo inquisidor. —Não se atreva a pronunciar de novo o meu nome. Você não é digno de tal honra. E, como segue me perseguindo, irei à Scotland Yard para informar de sua insistência em...

Não lhe deu tempo de terminar aquela irada exposição. Reform caminhou para ela seguro, firme, imperturbável, demolidor. Segurou-lhe o dedo que o assinalava e, face aos esforços de Valéria, colocou-o nas costas, fazendo com que aquele corpo tremente se aproximasse do dele. Os movimentos de suas respirações agitadas ante a vivência de milhares de sensações contraditórias ocasionaram uns leves roces entre ambos os torsos. Roces carregados de eletricidade. O fôlego quente de Reform esquentou os lábios de Valéria que, aniquilada, separou-os para tomar o ar que ele desprendia. Cheirava bem, muito bem. Uma mescla entre o aroma de sabão de barbear e o perfume com o qual se orvalhava entrou em seu corpo fazendo-a sua no percurso.

Trevor a olhou sem pestanejar, advertindo-a com aquele firme olhar o que ia realizar e, assustada, tentou apartar seu rosto, retirar-se para fazer desaparecer a neblina que apareceu ante seus olhos. Entretanto, não conseguiu distanciar-se nem um só milímetro. Devagar, tomando-se todo o tempo do mundo, aproximou sua boca da dela para... beijá-la.

Queimação. Isso foi o que Valéria notou ao sentir o contato daqueles voluptuosos e sensuais lábios sobre os seus. O ínfimo beijo lhe causou a maior quentura que poderia ter em sua longa vida. Com os olhos abertos observou aquele rosto masculino, varonil e aquelas íris tão escuras como uma noite sem lua. Tentou apartar-se, distanciar-se dele antes que aquela pressão em seus lábios se tornasse mais apaixonada. Mas se achava tão desconcertada que não era capaz de dar um passo para trás. Só quando sentiu como o ar fresco voltava a introduzir-se por sua boca pôde dar uma leve pernada para separar-se.

—Não devia... —ela gaguejou.

—Nunca em minha vida tratei mal uma mulher e jamais faria tal atrocidade à pessoa que conquistou meu coração —declarou com firmeza.

—Coração? —Gritou recompondo-se do choque. —Como alguém pode conseguir algo que não possui?

—Valéria... —repetiu com suavidade.

—Disse-lhe para não voltar a me chamar assim! —Clamou girando-se sobre si mesma.

Urgia-lhe sair dali e ir para um lugar onde permaneceria a salvo de todas as emoções que o beijo tinha despertado nela. Kristel tinha razão, estava apaixonada, muito apaixonada. Porque se não fosse assim... por que seu coração paralisara? Por que suas mãos não deixavam de tremer? Por que desejou que aquele beijo se convertesse em um mais apaixonado? Por que odiou a jovem que inspirou o aroma da jaqueta de Trevor? Apavorada, assustada, covarde depois de assumir seu verdadeiro sentimento para com o odioso homem, correu tão depressa que não percebeu a presença das duas pequenas figuras que, como ela, ficaram pétreas ao serem testemunhas do beijo.

—Senhor Reform... —Philip expressou caminhando para ele com altivez. —Não fez bem. Comportou-se de maneira ousada —acrescentou tentando mostrar um tom severo, masculino, adulto.

—Tem razão, jovem Giesler —respondeu-lhe apartando o olhar de Valéria para centrá-lo no moço que lhe falava.

—É minha obrigação velar pela honra da minha irmã —continuou discorrendo o jovem. —E, como tal, tem que me aceitar em um duelo.

—Um duelo? —Perguntou-lhe com uma mescla de assombro e incredulidade. —Jovem, deveria meditar melhor naquilo que expõe com tanta rapidez. Posso lhe assegurar que não vale a pena...

—Não é cavalheiro o suficiente para aceitar isso? —Repreendeu-lhe.

—Sou —afirmou dando um passo firme para o moço. —Por isso, e pelo afeto que os professo, oferecer-lhe-eis uma alternativa menos perigosa.

Philip, apesar de ser tão jovem, não se amedrontou ante a cercania de Trevor, ficou imóvel e continuou olhando-o de maneira desafiante. A senhora Shoper não lhe havia dito que ele se converteria em um guerreiro? Pois começaria nesse mesmo momento a tomar a atitude de um.

—Qual? —Disse enfim.

—Restabelecerei a honra de sua irmã me casando com ela —expôs categoricamente.

—Casar-se com Valéria? —O tímido Martin perguntou. —Impossível! Ela jamais se casará com ninguém!

—Eu o farei —afirmou terminante. —Concorda? —Insistiu estendendo a mão para o mais velho dos irmãos evitando as conjecturas do pequeno.

—E se ela não lhe aceitar? —Philip perseverou.

—Dar-lhes-ei uma renda vitalícia. Desse modo poderão partir de Londres e viver a vida que tanto anseiam —manifestou sem duvidar. Não era isso o que ela tinha escrito na folha? Sim, isso mesmo foi o que leu quando tirou o papel de seu bolso, justo antes da aparição de Jun em seu escritório.

—Não... não queremos partir daqui —Martin assinalou escondendo-se atrás das costas de seu irmão. —Eu gosto de Londres...

—Pois façam o que quiserem —Trevor indicou.

—Está bem! —Philip concordou. Estendeu a mão que, apesar de ser menor que a de Trevor, apertou com força para selar o pacto. —Tem o prazo de uma semana para cumprir sua promessa, senhor Reform. A partir desse dia fará com que o senhor Berwin nos faça chegar a renda que, é óbvio, alcançará um valor superior a duzentas libras mensais.

—Sua oferta é generosa, jovem Giesler, embora eu gostaria que ampliasse o prazo do cortejo porque, como bem sabe, sua irmã não é fácil de conquis...

No momento que Trevor esteve a ponto de concluir a proposta apareceu atrás dos jovens uma figura masculina que não reconheceu. Atento àquela nova presença, colocou suas mãos sobre as costas e observou o comportamento do estranho para com eles que, por como apertava a mandíbula, parecia zangado. O que teriam feito os moços enquanto ninguém os custodiava? Fosse o que fosse, ele atuaria como o tutor dos irmãos da mulher com a qual se propunha casar-se.

—Senhor Mayer! —Martin exclamou sobressaltado ao achá-lo ao seu lado.

—Jovens... o que fazem aqui? Onde se acha sua irmã? —Perguntou dando uma leve olhada pelos arredores.

Logicamente, Trevor captou com claridade o nome do cavalheiro que contemplava os meninos como se quisesse lhes dar uma surra por permanecerem sozinhos. Sem pensar duas vezes caminhou sereno até que ficou diante dos meninos, a menos de dois palmos do homem que tinha sonhado encontrar. Sorriu de orelha a orelha de maneira sardônica e esperou que o notável senhor Mayer perguntasse quem era ele.

—Quem é você? —Exigiu saber com uma inapropriada autoridade. —O que faz com os irmãos da senhorita Giesler? Por que ela não está aqui? Deixou-os sob sua responsabilidade? Você é o novo professor?

—Muitas perguntas, senhor Mayer, que não penso responder, é claro —resmungou. Deus podia ser mais generoso com ele? Podia lhe dar, em um só dia, mais satisfações? Não só tinha beijado Valéria e prometido que se casaria com ela, mas também tinha em frente aos seus olhos o homem que não tinha cessado de procurar desde que descobriu que tentava lhe arrebatar a mulher que amava.

—Não vai me responder? —Mayer vociferou de maneira soberba. —Como...?

Sem imaginar a razão pela qual aquele cavalheiro sorria de maneira aguda, Mayer resolveu a pergunta no mesmo instante no qual notou um forte golpe sobre sua bochecha esquerda.

—Se voltar a apresentar-se diante da senhorita Giesler ou de seus irmãos, juro por Deus que não voltará a respirar —ameaçou depois de lhe atirar o murro.

—Quem diabos é você? —Exigiu saber com uma mescla de assombro e desconcerto enquanto tentava acalmar a dor colocando suas mãos sobre a bochecha que não cessava de palpitar.

—É o futuro marido da minha irmã —Martin respondeu com inocência.

—Seu o que? —Mayer clamou confuso.

—Moços, se fizerem a gentileza de me conduzir até seu lar, estarei encantado de escoltá-los. Como podem apreciar, as ruas desta cidade estão repletas de escória —Trevor alegou lhes permitindo que avançassem diante dele. —Volte a respirar ao lado de minha prometida e lhe juro que não haverá nada no mundo que evite sua morte —Reform sentenciou antes de empreender a caminhada atrás dos meninos.

 

 


Nervosa. Kristel não era capaz de acalmar-se. Quem o faria quando conheceria a mãe do homem que logo se converteria em seu marido? Olhou-o de esguelha procurando alguma expressão em seu rosto que mostrasse a emoção que sentia. Não achou nada. Aquele semblante exibia segurança, serenidade e firmeza. Ele não tinha dúvidas? Tão convencido estava? Aquela confiança tão severa lhe causou mais inquietação, até o ponto que notou uma leve pressão em sua garganta. Respirou fundo para que aquela bola de saliva descesse por seu esôfago devagar enquanto meditava sobre a transformação que tinha dado sua vida em uns míseros dias.

Anos... durante mais de vinte anos se aferrou à ideia de que ninguém se interessaria por ela, que não existiria no mundo um homem que se fixasse na pobre e inútil coxa de quem todos zombavam, mas errou. Não só o tinha ao seu lado como o comportamento dos outros tinha mudado para com ela. Nesse momento rememorou a atenção que tinha tido no mercado. Aquela repentina mudança de atitude se devia a ele. Sim, não lhe cabia dúvida de que o livreiro correu a voz no mercado sobre o interesse que o senhor Hill tinha por ela e, para não o zangar, porque ninguém desejaria ter um hercúleo agente irado em frente à sua banca, trataram-na com tanto respeito que se sentiu angustiada. Um leve sorriso curvou seus lábios. Até o miserável vendedor de hortaliças lhe havia dito que estava formosa! Segurou uma gargalhada ao recordar a atitude do lojista e a maneira que olhou ao Borshon, como se lhe pedisse perdão por todas as zombarias que lhe fez durante os anos passados. Sem dúvida alguma, suas aparições pelo mercado sofreriam uma agradável mudança...

—E esse sorriso? —Ele perguntou-lhe sem olhá-la.

—Como sabe que estou sorrindo se não apartou seus olhos da rua? —Perguntou intrigada.

—Noto tudo o que faz. Não preciso te olhar para saber que está inquieta e que pensou em algo que te fez sorrir —disse parando no meio da via. —Qual a graça?

—O trato que os vendedores tiveram esta manhã para comigo —respondeu-lhe cessando seu passo assim como ele.

—Terão feito com respeito. —Não era uma pergunta e sim uma afirmação que não admitia negativa alguma.

—É claro! —Esclareceu-lhe colocando suas palmas sobre o duro torso. —Crê que alguém tomaria uma eleição equivocada? Até o senhor Adams me disse que eu estava formosa!

—Tenho que retornar e me afrontar com esse vendedor de ervas? —Grunhiu arqueando as sobrancelhas.

—De verduras —corrigiu-o. —E não, não tem que fazer nada disso. Todo mundo foi testemunha de quem é a pessoa que me roubou o coração —acrescentou antes de levantar-se e lhe dar um terno beijo.

—De todas as formas o vigiarei de perto... —resmungou após aquele leve roce de lábios.

Ciumento? Borshon também era um homem ciumento? «Meu Deus, não precisa me enviar mais sinais para confirmar que é o homem da minha vida, admito-o», pensou divertida.

—Não sei se te comentei que minha mãe leva tempo prostrada em uma cama —começou a dizer enquanto reatavam a caminhada.

—Sim, disse-me. O que lhe ocorreu?

—Faz uns quinze anos teve uma dor muito forte na cabeça. Conforme nos informou o doutor algo em seu cérebro não funcionava bem, mas não deu importância porque não achou nenhuma sequela imediata, mas a teve semanas depois. A princípio, foi um leve formigamento nas pernas, continuou com torpes quedas e, de repente, um dia deixaram de funcionar —explicou. —Foi muito duro para ela assimilar esse golpe do destino... suspirou. —Jamais tinha visto minha mãe descansando em uma cama pouco mais de quatro horas. Era uma mulher com muita vitalidade e se movia de um lado para o outro sem cessar.

—Como superou? —Perguntou aferrando com mais força a mão que se enredava entre a sua.

—Lendo... primeiro foram livros sobre medicina. Deduzo que tentava saber o que lhe tinha acontecido e se havia algum remédio para diminui-lo. Com o tempo desistiu em seu empenho e me fez lhe procurar outro tipo de...

—Leituras —ela terminou.

—Sim.

—Os livros são uma boa forma de fugir do mundo no qual vivemos —Kristel refletiu.

—Isso parece... —murmurou olhando para o céu. —Quem te ensinou a ler? —Quis saber. Era um bom começo para indagar sobre o passado da mulher com quem ia viver o resto de sua vida.

—Meu pai —disse com um suspiro. —Foi a única coisa boa que fez comigo até que me abandonou na casa da minha tia.

—Sinto-o... —desculpou-se por fazê-la recordar um momento tão triste.

—Não tem por que sentir. Fui feliz com ela, sempre se comportou muito corretamente e me ensinou coisas que escandalizaria qualquer dama —adicionou com tom jocoso.

—Coisas escandalosas? —Voltou a arquear as sobrancelhas, intrigado pelo significado daquelas palavras.

—Tinha doze anos quando descobri certas coisas... —disse com um halo de mistério. —Dos sete, idade que apareci em seu lar, ela se escondia em seu dormitório, pegava algo da gaveta e o voltava a colocar antes de partir. Uma noite não passou a chave e, quando confirmei que demoraria em voltar, procurei o que guardava com tanto segredo.

—O que era? —Insistiu olhando para o final da rua. Estavam se aproximando de seu lar e toda a serenidade que tinha mantido começava a dissipar-se. Gostaria? Parecer-lhe-ia confortável? Como atuariam ao conhecerem-se?

—Livros —respondeu um tanto envergonhada.

—Que tipo de livros uma mulher guarda em uma gaveta? —Perguntou entreabrindo os olhos.

—Bom... —expressou duvidosa ao mesmo tempo em que suas bochechas se ruborizaram com rapidez. —Tenha em conta que minha tia ganhava a vida de uma maneira peculiar...

—Kristel... —insistiu-o.

—Narravam como dar prazer aos homens em cada ato sexual —disse enfim, notando como o rubor crescia com tanta intensidade que lhe queimava a pele.

—Deus santo! —Borshon exclamou assombrado.

—Sei... —ela murmurou abaixando a cabeça envergonhada. —Não devia lê-los, mas a curiosidade...

—Recorda como se titulavam? —Sussurrou-lhe ao ouvido. —Vou pedi-los ao senhor Daft assim que nos casemos porque vou praticar contigo tudo o que encontremos nesses livros...

—Bors... Borshon —gaguejou levantando brandamente o rosto.

—Cada dia, cada noite, não te deixarei que feche os olhos sem saber quanto te desejo —afirmou antes de colocar um dedo sob seu queixo e lhe propiciar um forte beijo nos lábios.

Kristel viveu naquele instante seu primeiro beijo apaixonado. Abriu a boca ao sentir a língua de Borshon tocando seus lábios. Foi tão avassalador, tão sedutor, tão ardente que notou como lhe tremiam as pernas e como o desejo se apoderava dela.

—Chegamos —comentou ao separar-se dela. —Este será o nosso lar até que eu possa adquirir outro.

Aturdida, confusa e excitada pelo vivido, Kristel se girou para a porta da casa. Um lar pequeno, de uma planta. Em que bairro se encontravam? Tinha estado tão absorta em seus pensamentos e na conversação que não conheceu o lugar.

—Estamos em Petticoat Lane —comentou como se lesse seu pensamento. —É tranquilo, apesar de estar infestado de comércios.

—De roupa feminina... —particularizou.

—Há alguns anos... —esclareceu um tanto aborrecido. —Mas tenho a intenção de sair daqui —assinalou com firmeza. —Logo abandonaremos este lugar para viver em uma região mais respeitável.

—Humm —respondeu com um enorme sorriso. —Embora antes de partir pudéssemos visitar alguma dessas lojas —acrescentou maliciosa.

—Todas as que desejar... —murmurou-lhe antes de empurrá-la para a entrada de seu, por agora, lar.

Abriu-lhe a porta para que entrasse primeiro. Ela só deu dois passos para o interior. Não podia apartar o olhar de tudo o que encontrava. Era um lar humilde, sem luxos, mas muito ordenado e limpo. O primeiro que achou foi um pequeno salão que dava acesso à cozinha. A mesa, rodeada de seis cadeiras, era quadrada e de madeira escura. Nas paredes encontrou umas estantes altas repletas de livros. Sem dúvida alguma a mãe de Borshon era uma leitora voraz. No teto pendurava um pequeno abajur de quatro braços no qual poderia apreciar umas velas um pouco gastas. Depois olhou para a janela, uma cortina translúcida de cor âmbar permitia o passo da luz sem que ninguém observasse o que havia no interior.

—Continua —o agente lhe animou aproximando-se de suas costas.

E obedeceu a aquele suave mandato. Avançou para a metade do salão, apoiou a ponta dos dedos sobre a mesa e seguiu admirando.

—Você não gosta? —Borshon perguntou ao vê-la tão calada.

—É muito bonita, acolhedora e limpa... —disse sem pensar.

—Giselle se ocupa da manutenção, além de ajudar a minha mãe —informou.

—Vivem duas mulheres contigo? —Perguntou assombrada.

—Não me ficou alternativa —apontou acariciando a cabeça como se sentisse envergonhado. —Essas duas portas dão aos dormitórios —expôs as assinalando. —Na esquerda descansam minha mãe e Giselle e na direita, eu —esclareceu para que compreendesse que ele tinha sua própria intimidade apesar de viver com elas.

—É uma boa pessoa... —comentou voltando-se para ele.

—Só sou um filho que deseja o melhor para sua mãe —revelou agarrando-a pela a cintura e pousando o queixo sobre o cabelo dourado de Kristel. —Está preparada? Quer conhece-la?

—Sim —afirmou com uma tranquilidade estranha.

Sem apartar suas mãos da cintura, Borshon caminhou para a porta do quarto de sua mãe. Emitiu um leve grunhido quando retirou uma palma do ventre de Kristel, mas se não o fazia... como ia bater à porta?

—Mãe? —Perguntou antes de abrir.

—Entrem! —Aphra declarou como se já tivesse notado a presença deles no lar.

Ao entrar Borshon se sentiu aliviado ao não ver a figura de Berwin. Só se encontravam elas duas, embora pela forma de cochichar e de rir, compreendeu que o centro da conversação era o ancião administrador e não a visita de sua futura esposa.

—Senhora Hill —Kristel disse quando ambos os olhares se cruzaram.

—Senhorita Griffit —respondeu ela estendendo as mãos para a jovem. —Entre, não fique aí parada.

Kristel caminhou para a mulher estranhando não a ver como Borshon lhe tinha anunciado antes de chegar, na cama, e sim em uma cadeira com duas grandes rodas em ambos os lados. Chamou-lhe a atenção quão formosa era. Seus olhos, a cor do cabelo e inclusive a forma do nariz eram muito parecidos com as de seu filho, mas existia entre eles uma grande diferença. Certamente porque a herança masculina do pai provocou essa desigualdade. Devagar e tremente esticou as mãos para pegar as dela. Suaves, muito suaves e não tão grandes como as de Borshon...

—Obrigada por me convidar —Kristel comentou com acanhamento.

—Foi um prazer, embora tenha que esclarecer que quem ideou este encontro foi ele —assinalou com um leve giro de seu rosto para o Borshon.

—Se não lhe parecer oportuno...

—Não! —Aphra exclamou. —Ao contrário! Estava ansiosa por conhecê-la. Meu filho me falou muito de você.

—Quando partiu? —Hill soltou ao não parar de lhe rondar na cabeça essa pergunta.

—O senhor Berwin? Fará uns dez minutos mais ou menos... —respondeu a mãe tentando acalmar o rubor infantil que apareceu em suas bochechas. —Mas não é adequado que a senhorita Griffit se sinta deslocada por mudar o tema de conversação —alegou Aphra movendo ligeiramente uma mão para fazer seu filho calar. Já falariam do administrador em outro momento. —Quero saber sobre você —advertiu-a com um olhar cálido. —Por favor, tome assento. Não é cortês que permaneça todo o tempo de pé.

Enquanto Kristel andava para o assento que tinha decidido tomar, Aphra confirmou o que lhe havia dito seu filho sobre ela, que era uma mulher muito formosa e que a leve claudicação não escurecia essa formosura.

—Nasceu aqui? —Perguntou ao mesmo tempo em que fazia girar as rodas para voltar-se para a jovem. «Devagar, tem que movê-las muito devagar e obterá seu propósito», Aphra pensou no conselho do senhor Berwin.

—Sim, senhora —respondeu enquanto entrelaçava suas mãos e as colocava sobre seu regaço.

—A que se dedicavam seus pais? —Perseverou ao ver que a jovem se achava tão inibida que não era capaz de estender-se em suas respostas.

—Meu pai era professor e minha mãe uma criada pessoal —comentou enfim. Não tinha aparecido ali para falar de seu passado? Para que a mãe de Borshon conhecesse quem era a mulher com a qual viveria o resto de sua vida? Pois, embora lhe doesse falar deles, não ficava outra opção se queria sair dali agradando a sua futura sogra. —Ambos trabalhavam na mesma residência e... se apaixonaram. Pouco depois das núpcias, minha mãe ficou grávida.

—De você, imagino —Aphra disse alisando uma ruga da manta que ocultava as pernas.

—Sim —disse com tristeza. —Tudo foi maravilhoso até a hora do parto.

Nesse momento, sem mal fazer ruído, Borshon agarrou o respaldo da cadeira que tinha à sua direita e a transportou até onde se encontrava Kristel. Desejava escutar essa história, sua história.

—Foi complicado... —suspirou. —Vinha de nádegas e, por mais esforços que a parteira realizasse, teve que me tirar do interior da minha mãe a puxões.

—Daí que você tenha uma leve claudicação —Aphra voltou a intervir.

—Sim, mas o doloroso não foi o que o nascimento produziu em mim e sim o que aconteceu à minha mãe. Ela não resistiu...

—Sinto-o —a mãe de Borshon manifestou colocando suas mãos sobre as de Kristel.

Borshon suspirou fundo controlando o desejo de abraça-la, de consolá-la. Já teria tempo de apagar com suas carícias a dor daquele miserável passado e lhe ofereceria todos os nascimentos que seu ardor por ela lhe causasse.

—Durante os primeiros cinco anos de vida meu pai se encarregou de mim. Mas conheceu outra mulher e a esta não agradava ter sob seu cuidado uma menina com este defeito. Então ele decidiu oferecer minha tutela à sua única irmã, minha tia Stacy.

—Como viveu esse dia, senhorita Griffit? —Aphra interessou-se.

—Lembro que aguardava sua volta. Às vezes permanecia durante horas sentada atrás da entrada. Mas terminei deduzindo que não retornaria por mim, que sua nova família lhe tinha feito me esquecer.

—Como foi sua vivência com sua tia? —Insistiu.

—Tranquila. Ela era uma mulher muito carinhosa e jovial e tentou me cuidar como se fosse minha própria mãe. Mas quando alcancei a idade dos quinze, ela adoeceu e... morreu.

—Santo Deus! —Aphra exclamou horrorizada. —Como sobreviveu durante estes anos?

—Graças a uma amizade —revelou apagando o rosto triste. —A senhorita Giesler e eu nos conhecemos desde que ambas tínhamos dez anos. Era a única pessoa que não observava minha imperfeição e a única que me acolheu quando fiquei sozinha. Ela e seus dois irmãos se converteram na família que eu precisava —esclareceu.

—Essa jovem a que faz menção... é a mesma mulher que meu filho teve que vigiar? —Perguntou olhando ao Borshon.

—Sim, graças a esse emprego nos conhecemos —manifestou orgulhosa e sorridente.

—Como foram capazes de ir adiante? —Aphra insistiu.

—Minha mãe tem a absurda ideia de que a senhorita Giesler é uma professionnel —ele interveio sarcástico.

—Professionnel? A que se refere? —Perguntou.

—A uma prostituta —Borshon apontou divertido.

—Não, por Deus! —Kristel exclamou horrorizada. —Valéria seria incapaz de exercer tal ofício. Ela utiliza o dom que possui para... —parou de falar e olhou ao Borshon, este afirmou com a cabeça lhe dando permissão a falar porque o que ia expor ele já sabia. —Desde muito menina teve uma habilidade incrível com os números. Com o tempo, e empurrada pela necessidade, essa mestria a empregou nas cartas.

—É uma jogadora? —Agora a assombrada era ela.

—A melhor. Descobriu que no clube do senhor Reform podia jogar sem ser descoberta e ia uma vez à semana para ganhar a quantidade que necessitávamos para sobreviver. Graças a ela, desde esse dia, não nos faltou nem um teto onde dormirmos nem alimento com o qual encher nossos estômagos.

—Qual é a sua função nessa família, senhorita Griffit? —Aphra perguntou intrigada.

—Velar por eles —declarou com firmeza.

—Bem... —disse reflexiva. —Imagino que cuidar de dois jovens e de uma moça que ganha o sustento mediante o jogo não foi tarefa fácil —apostilou.

—Não quero dar a impressão de que essa pequena família se salvou graças a mim, nem tampouco quero que pense que Valéria não teria saído adiante por si mesma. É uma mulher de valia. Quão único desejo...

—Não tem por que desculpá-la nem se desculpar. Pensa que sou a mais indicada em julgar os outros? —Falou desenhando um enorme sorriso. —Só ansiei saber o passado que teve a mulher que se converterá na esposa do meu único filho. Tenha em conta que sua decisão não afetará só a ele.

—Se albergar alguma dúvida sobre mim... —Kristel comentou enrugando com suas mãos algumas partes da saia do vestido.

—Devo me explicar melhor —Aphra continuou sorridente. —Você sabe que meu filho pretende que eu viva com ele depois das núpcias?

—Sim.

—Sabe a vida que terá se se converter em sua esposa? As noites em claro, a angústia, as lágrimas que aparecerão se sua chegada atrasar? Quer padecer a vida que lhe oferecerá um obstinado agente da Scotland Yard?

—Sim.

—E está disposta a sacrificar sua vida por ele? —Perseverou.

—Estou disposta a viver com o homem que amo, senhora Hill. Não me importa o que ele contribuirá à nossa união —sentenciou com firmeza enquanto se levantava do assento. —Quão único desejo é que me ame.

—Amo-a mais que a minha própria vida! —Borshon clamou se elevando do assento com rapidez. Em frente aos olhos de sua mãe agarrou Kristel pela cintura, atraiu-a para ele e a beijou com mais paixão que na rua.

—Ante isto acredito que não tenho que acrescentar nada mais —Aphra disse sem apartar o olhar dos dois. —Bem-vinda à família, Kristel.


XXI

 

A sorte o tinha abandonado. Ele imaginou que durante o caminho os moços falariam sem cessar de Valéria, mas não foi assim. Não só se mantiveram afastados dele, mas sim nem falaram entre eles. Permaneciam tão calados que Trevor começou a pensar que não tinha sido boa ideia levá-los até seu lar. Possivelmente lhes incomodasse sua companhia ou talvez meditassem sobre a repreensão que sua irmã lhes daria ao vê-los aparecer com ele. Fosse o que fosse, nada parecia despertá-los do hermetismo no qual se introduziram.

—Então... —começou a dizer para cercar uma conversação, mas nem sequer o olharam. —Está bem, vocês ganharam —murmurou zangado.

Depois de respirar fundo, dando-se por vencido ao ser ignorado com tanto descaramento, deixou que os meninos continuassem avançando até que, de repente, detiveram o passo. Ao ver o lugar onde pararam, Trevor sorriu de orelha a orelha, provavelmente ainda tinha uma oportunidade...

—Gostariam de um sorvete? —Disse-lhes ao passar por seu lado para dirigir-se para à banca. —Lembro que na última vez que tomei um era de morango e eu adorei sentir em minha boca a mescla do sabor e do gelado —acrescentou caminhando para o vendedor.

E como se tivesse um ímã nas costas, os jovens lhe seguiram.

—Bom dia, senhor. Quantos desejam? —Comentou o homem com amabilidade.

—Um grande de morango...

—Dois! —Exclamou o menor. —Eu também gosto desse sabor —esclareceu.

—E você? —Reform perguntou ao maior.

O moço fixou seu olhar azul nos sorvetes e fez uma careta de desagrado. Trevor deduziu que aquele doce infantil não seria suficiente para conquistar o irmão de Valéria, mas tampouco devia convidá-lo a um gole... não tinha idade para embebedá-lo!

—De limão —respondeu depois de um longo silêncio.

—Obrigado —o vendedor assinalou depois que Reform pagou os três sorvetes.

Durante um bom momento o mutismo continuou reinando, mas quando o pequeno estava a ponto de terminar ele começou a falar.

—A minha irmã gosta do de baunilha, por isso sempre nos traz um bem grande. Eu não gosto dele —declarou. —Mas não quero que fique triste, então o como e lhe sorrio.

—Martin! —Philip repreendeu-lhe por revelar o pequeno segredo. —Não deve dizer essas coisas. Valéria não gostará de saber que falamos dela durante o trajeto.

—Se quer casar-se com nossa irmã terá que conhecer seus gostos, não crê? —O pequeno apontou entreabrindo os olhos.

—Ela não o aceitará. Odeia-o —manifestou.

—Por que me odeia? Não fiz nada para que sinta algo tão espantoso por mim —Trevor interveio com suspeita.

—Diz que não entende como um homem que se criou na pobreza se converteu em um ser tão cruel, absurdo e déspota —Martim lhe informou de novo.

—Já entendi... —Reform comentou reflexivo. —Bom, em parte tem um pouco de razão, mas em minha defesa tenho que explicar que é muito duro ser o dono de um clube como o meu.

—Por quê? —Philip participou enfim. —Não tem suficiente gente ao seu encargo para que se ocupem dele?

—Para que algo funcione corretamente, jovem Giesler, não basta contratar empregados eficientes, sempre deve haver uma pessoa que observe, ordene e participe onde os trabalhadores não podem —manifestou solene. —Os homens que vão a lugares como o meu são muito especiais...

—Como de especiais? —Philip insistiu.

Trevor o olhou atentamente ao mesmo tempo em que procurava as palavras adequadas para lhe responder. Se Valéria o odiava, como lhe tinham anunciado, aumentaria esse ódio se eles lhes contassem que tinha feito referência às necessidades sexuais masculinas, às bebedeiras dos clientes e ao sem-fim de disputas que tinha tido que resolver.

—Quase todos os clientes do clube Reform são aristocratas e vocês já sabem como se comporta a burguesia. —Era suficiente a explicação? Esperava que sim...

—Por que decidiu levantar esse clube se tantos problemas lhe causam? —Martin perguntou diminuindo seu passo para colocar-se ao lado de Trevor.

—Foi minha salvação —declarou com nostalgia. —Não desejava passar o resto da minha vida na rua onde nasci.

—Tão mau era? —Philip perguntou. —Não teve uma infância feliz? Por isso desejava sair dos subúrbios? Tenho lido que sofreu bastante no passado...

—Vocês tiveram pais que lhes cuidaram até que falecessem, minha mãe, em troca, ainda segue viva, mas não quis saber de mim. Acredito que se esqueceu de que me teve quando me abandonou no meio da noite envolto em umas velhas mantas na entrada de um prostí... de um lar pouco aconselhável —retificou.

—Mas essa família lhe cuidou —Martin disse com inocência.

—Sim —Trevor respondeu sorrindo de orelha a orelha. —Essa família me cuidou muito bem. Embora também me enfurecessem com coisas que não devia fazer.

—Como quais? —Insistiu o pequeno.

—Como jogar —determinou.

Isso era suficiente para eles. Não podia lhes confessar que passou sua primeira infância escondido sob a cama das prostitutas para roubar os clientes enquanto elas fornicavam.

—Minha irmã também joga muito bem e nunca nos disse que isso seja mau, só que tem que jogar com sensatez, não é, Philip? —O menino assinalou esperando a aceitação deste.

—Quem a ensinou? —Aproveitou o comentário do menino para represar a conversação que desejava.

—Nasceu com uma mente privilegiada para os números e a observação. Mamãe sempre lhe disse que utilizasse esses dons para sobreviver quando ela morresse e o fez —Philip expôs orgulhoso.

—Eram muito jovens quando perderam seus pais? —Quis saber.

—Eu não os conheci... —Martin disse com tristeza. Reform sem saber por que motivo, esticou a mão para a cabeça loira do moço e lhe acariciou com ternura.

—Minha mãe morreu dois meses depois que meu pai. Martin tinha essa idade... —esclareceu. —Valéria tinha completado os quinze e eu oito.

«Maldição! —Trevor gritou em sua cabeça após averiguar os anos nos quais ela tinha permanecido sozinha, buscando a maneira para alimentar crianças tão pequenas. —Foi uma lutadora, Valéria. Agora entendo o motivo pelo qual tem se exposto durante tanto tempo».

—A princípio foi muito difícil. Martin chorava e chorava porque Valéria não podia pagar uma mulher que o alimentasse a todas as horas. Mas ocorreu um milagre...

—Qual? —Perguntou parando sua caminhada, notando como a espera por averiguar o passado de Valéria o deixava sem ar nos pulmões.

—Um casal que vivia quatro ruas ao oeste de nosso lar teve dois bebês. Um deles morreu e quando minha irmã soube do falecimento correu com o Martin nos braços para que ela o alimentasse. O casal aceitou a proposta, mas em troca lhe pediram certos serviços... —Philip apontou compungido.

—Serviços? Que serviços? —Perguntou arqueando as sobrancelhas escuras, grunhindo em silêncio, rogando a esse Deus que se mostrava piedoso com ele que não se tratasse daquilo que ele imaginava.

—Não sei se... acredito que não deveria... —o jovem duvidou.

—Não tem por que envergonhar-se, jovem Giesler. Posso lhe assegurar que nada do que me conte me surpreenderá —respirou colocando sua mão sobre o ombro do jovem.

—Eram estelionatários —declarou enfim. —Esse homem necessitava de um acompanhante para seguir fraudando os outros e, como sua mulher não podia ir depois do parto, ensinou Valéria a jogar cartas para continuar enganando. Entretanto, mudou de estratégia quando descobriu seu dom com os números. Então lhe fez estudar durante intermináveis horas cada jogada e cada carta que colocava sobre a mesa. Finalmente Valéria terminou por deduzir todas as que iam aparecer, como se fosse uma adivinha... —respirou fundo quebrado de dor. —Obrigou-a a vestir-se de homem e teve que acompanhá-lo a lugares que ela jamais quis descrever... —seu tom de voz foi se apagando como se fosse uma vela acabada.

Trevor compreendeu sua dor, mas ainda mais a ira que guardava em seu interior. Aquelas rugas na testa e as que apareceram nas têmporas lhe indicavam o culpado que se sentia por havê-la feito padecer durante aquele tempo.

—Como conseguiram se afastar deles? —Exigiu saber com uma mescla de raiva e assombro. Sua jovem amada tinha estado sob o cruel mandato de um estelionatário. Agora entendia por que odiava tanto que lhe acusasse de fazer armadilhas... não podia suportar viver de novo aquela etapa de sua vida.

—Não o recordo muito bem —Philip disse entreabrindo os olhos. —Algo aconteceu para que o casal Page partisse de um dia para o outro. Embora me alegre disso porque desde esse dia minha irmã pôde dormir sem sobressaltos.

—Acredito que Valéria se zangará mais ao descobrir que você lhe contou essa história do que eu lhe tenha revelado o sabor preferido de seu sorvete —Martin comentou olhando seu irmão com receio.

—Mas ela não tem por que se inteirar da conversação que mantiveram três cavalheiros —Trevor assinalou com um tom tão severo que deixou o pequeno imóvel.

—Não, não deve saber nada —Martin disse de maneira automática.

—Imagino que já não está interessado em casar-se com ela —Philip expressou com temor. —Não lhe agradará ser o marido de uma mulher que teve esse tipo de vida...

—Está confundindo, jovem Giesler, meu interesse por ela cresceu tanto que nada, nem ninguém evitará que se case comigo —sentenciou sem duvidar.

 

 

Louca. Estava louca, desequilibrada, perturbada e, sobretudo irritada consigo mesma. Como tinha saído dali correndo daquela forma? Como tinha esquecido seus irmãos e Kristel? Não pensou neles até que chegou ao seu lar e o encontrou vazio. Tentou retornar depois de tomar um copo de água para diminuir a sede que lhe tinha produzido a desesperada corrida, mas justo quando abriu a porta encontrou a esposa do açougueiro com um frango depenando na mão.

—Não tem que me pagar, senhorita Giesler —comentou quando Valéria procurou seu moedeiro no bolso. —A senhorita Griffit já o fez antes de partir com o agente Hill —acrescentou ruborizando-se.

—Sabe para onde partiu? —Perguntou com inquietação.

—Eu não gosto de escutar as conversações dos outros... —apontou abaixando levemente a cabeça, envergonhada —mas depois daquele beijo tão apaixonado se dirigiram por volta da primeira igreja que tenham encontrado ou à casa do respeitável senhor Hill.

—Beijo apaixonado? —Perguntou confusa. Em que momento da conversação Kristel lhe disse que pretendia beijá-lo? Em nenhum. Seu plano era esbofeteá-lo em frente a todos, não o beijar apaixonadamente. O que teria ocorrido? Para onde teria ido? E o mais importante... onde estavam seus irmãos?

—Oh, sim! —Respondeu ruborizada. —O senhor Hill a beijou impetuosamente em frente à banca do senhor Adams. Todo mundo foi testemunha da hipótese que o senhor Daft realizou no sábado: está apaixonado por ela.

—Obrigada por me haver trazido a compra e pela informação —disse a modo de despedida.

—Foi um prazer, senhorita Giesler. Que tenha um bom dia —acrescentou antes de colocar-se em frente à porta de saída e avançar para o exterior.

Se antes estava assustada agora sentia como o pavor se apropriava dela. Por sua culpa os dois pequenos andariam procurando-a, atemorizados ao verem-se sozinhos, sem ninguém que lhes ajudasse a retornar ao seu lar. Com rapidez depositou o frango dentro da pia, tampou-o com um tecido branco para que as moscas não revoassem sobre ele, e se dirigiu para a porta. Tinha que buscá-los e lhes explicar que não os tinha abandonado, que tudo se deveu a um estado de loucura causada pela aparição do senhor Reform. Justo quando pensou nele teve que parar e apoiar-se no respaldo de uma das cadeiras que havia em frente à mesa. Abaixou a cabeça e respirou fundo. Por que tinha ido ao mercado? Para vê-la? Com qual motivo? O que lhe importava o que ela fizesse?

Valéria apoiou a testa sobre suas mãos procurando aplacar os batimentos desenfreados de seu coração. Aquele homem lhe provocava mais transtorno do que desejava admitir e tudo porque estava apaixonada. Sim, estava-o desde o primeiro dia que entrou no clube e o observou na planta superior contemplando ao seu redor com tanta solenidade que parecia a reencarnação do próprio Deus. Devagar, com uma lentidão pesarosa, rememorou as palavras de sua amiga e concluiu que tinha razão. Cada vez que aparecia no clube oferecia alguma queixa para que os empregados falassem dela ao senhor Reform. Mas jamais lhe perguntou, em suas inesperadas aparições pelas salas, que necessidades poderiam resolver para que sua estadia fosse agradável. Só passeava... como se fosse um predador procurando uma deliciosa presa. «Maldito seja, Trevor Reform! —Gritou passando da aflição à ira. —Maldito presunçoso pretensioso! Por que me beijou? O que desejava obter? Minha rendição? Pois não a terá!»

E depois desse episódio de cólera, caminhou de novo para a saída para procurar seus irmãos, mas se encontrou com outra pessoa, uma que estava a ponto de chamar à sua porta.

—Não posso atendê-la neste momento, senhora Shoper —disse-lhe assim que a viu. —Tenho que procurar Philip e Martin.

—Não demorarei muito... —comentou ignorando suas palavras. Apartou Valéria com suavidade e acessou ao interior do lar. —Apenas a entreterei dois minutos —acrescentou.

—De verdade não posso —reiterou.

—Quero lhe deixar claro que não irei daqui até que resolvamos o tema que temos pendente —assinalou a mulher parando no meio da habitação. —Estou cansada de que me olhe por cima do ombro.

—Não há nada do que falar... —murmurou voltando-se para a mulher depois de fechar novamente a porta.

—Mentira —comentou sorrindo. —E sabe muito bem ao que me refiro.

Sim, sabia. Levava sete anos pensando nisso. Em mais de uma ocasião a tentação de perguntar sobre o que tinha ocorrido em realidade a assaltou com tanta força que a deixou ajoelhada no mesmo lugar onde Doina se encontrava. Mas renunciou a isso cada vez que sua mente perseverava em saber a verdade. Preferia concluir que sua mãe tinha morrido por uma enfermidade estranha a ser consciente de que ela mesma tinha cometido tal atrocidade.

—De verdade tenho que sair. Meus irmãos estão no mercado e eu não gostaria...

—Não tem fé em Philip? —Perguntou arqueando as sobrancelhas para enfatizar a pergunta.

—Como diz? —Perguntou perplexa.

—O que o jovem pensará quando sua irmã aparecer aterrorizada? Que não confia nele? Que não tem idade suficiente para cuidar de seu irmão durante sete míseras ruas? —Perseverou.

—Diga-me qual é o motivo pelo qual decidiu apresentar-se em meu lar —resmungou. Como ela podia questionar a maneira que tinha de educar e cuidar de seus irmãos? Acaso tinha permanecido cega durante os sete anos?

—Faça-me a pergunta, senhorita Giesler —disse-lhe em tom suave e relaxado. —Responder-lhe-ei com sinceridade.

Valéria caminhou para ela enquanto agarrava uma mecha de seu cabelo entre os dedos. Não podia fazê-lo, não queria descobrir o que tinha acontecido com certeza à sua mãe e terminar odiando-a por abandoná-los.

—Não. —Negou movendo lentamente a cabeça. —Não quero saber. Não é justo que emita falsos testemunhos sobre ela.

—Não tem por que julgá-la. Cada pessoa toma suas próprias decisões e ela escolheu a sua... —apontou com tranquilidade. —Oferece-me um chá? O que a senhorita Griffit me preparou o outro dia estava delicioso.

—Como lhe disse...

—Confie em seu irmão, ele aparecerá assim que eu sair por essa porta —adicionou tomando assento.

—Também o viu nas linhas de sua mão? —Valéria perguntou mordaz.

—Não —respondeu antes de soltar uma gargalhada. —Não se vê esse tipo de coisas, só confio nele.

Depois de soprar decidiu lhe preparar o chá que mencionara. Embora lhe obrigaria a tomar com rapidez para despachá-la o antes possível de sua casa. Por mais que ela tivesse plena confiança em Philip, podia lhe acontecer qualquer coisa durante o trajeto que não pudesse resolver por si mesmo.

—Far-me-á a pergunta? —Doina repetiu quando colocou suas mãos ao redor da xícara. —Ou lhe dá pavor conhecer o que realmente aconteceu?

—Ela partiu e me deixou encarregada dos meus irmãos, isso foi quão único aconteceu —falou com ferocidade, como se contra-atacasse um golpe no peito.

—O amor de seus pais foi maravilhoso —começou a dizer cravando seu olhar no líquido. —Muito poucos freiherr3 renunciaram ao seu título nobiliário por amor...

—Minha mãe o valia —defendeu-a.

—É claro, não estou opinando sobre a decisão de seu pai, mas sim...

—Pode ser mais concreta? Como lhe disse, não tenho muito tempo.

—Sabe o que suscita o verdadeiro amor? Um estado de frenesi constante. Chega a ser tão viciante que ninguém pode superar o desaparecimento desse sentimento tão sublime. Eles o possuíam, tinham a magia que muito poucos casais chegam a alcançar. Seu pai soube assim que a viu em frente aos seus olhos lhe tentando vender uma rosa que ela mesma tinha compilado do jardim onde permaneciam.

—Sei a história de como se conheceram. Ambos me repetiram isso milhares de vezes —adicionou ao mesmo tempo em que se reclinava no assento e cruzava suas mãos pelo peito.

—Então entenderá que o dia que seu pai faleceu, ela também o fez.

—Morreu de noite, ao seu lado. Mas nem meu irmão nem eu soubemos até que o médico apareceu no dia seguinte para vê-lo. Depois de confirmar o falecimento minha mãe gritou desesperada que só tinha frio e que seu corpo o manteria em calor. Entretanto... —notou como as lágrimas vagavam por seu rosto, devagar as retirou com a mão. Não queria mostrar vulnerabilidade ante ninguém.

—Ela morreu no mesmo momento no qual seu pai deixou de respirar —Doina prosseguiu ao perceber a tristeza da moça. —Depois de seu enterro, enquanto vocês dormiam nessa cama, —assinalou por volta do leito onde agora descansavam Kristel e ela —apareceu em meu lar me rogando que lhe fizesse desaparecer a dor que sentia ao perder a única pessoa pela qual desejava viver. —A senhora Shoper esperou que a jovem lhe fizesse algum tipo de pergunta, mas não o fez. Manteve-se séria, olhando-a sem pestanejar. Por mais que ela tivesse a aparência de sua mãe, em seu interior vivia a solenidade do pai. —Pedi-lhe clemência por vocês e pelo filho que crescia em suas vísceras. Roguei-lhe que procurasse em vocês o apoio que necessitava para que esquecesse aquela terrível ideia, mas como pode perceber, não o obtive. Não sei em que momento ela pegou a erva, nem se foi em meu lar ou em outro, nem tampouco posso lhe assegurar que esperasse o nascimento do Martin para começar a ingeri-lo, quão único posso lhe dizer é que não foi minha culpa. Eu me neguei terminantemente a que lhes deixassem desamparados.

—Está tentando me dizer que seu amor por meu pai foi mais forte que o que seus três filhos poderiam lhe dar? Filhos nascidos desse amor? —Perguntou levantando do assento de repente.

—Uma mulher apaixonada pode cometer loucuras, muitas... quando você encontrar o homem que lhe roube o coração, entenderá a sua mãe —replicou elevando-se também.

—Jamais entenderei uma atrocidade semelhante! —Exclamou irada.

—Nem todo mundo tem sua força, senhorita Giesler.

—Ela tinha! —Declarou apertando os dentes.

—Equivoca-se. O único que tinha a força nesse casal era seu pai. Não é capaz de ver? Tão cega esteve durante estes anos? Ele fingiu sua própria morte na Alemanha para fugir com ela!

—Mentira! —Gritou. —Meu pai escreveu uma nota ao meu tio para lhe ceder o título!

—Não... —disse com um suspiro. —Não foi assim. Ele só podia delegar o título de freiher fingindo sua morte... uma que, finalmente, apareceu antes do tempo.

—Parta, rogo-o. Não quero escutar mais tolices. Preciso me centrar em procurar meus irmãos. Eles são o único que me importa neste momento —declarou com firmeza, uma que só tentava aparentar.

—Se estivesse em seu lugar procuraria como acessar esse título e deixaria que...

—Fora! —Trovejou. —Fora daqui! —Repetiu assinalando com o dedo a porta.

E em completo silêncio Doina saiu do lar. Tinha completado sua promessa, aquela que lhe pediu Luisa antes de morrer e, embora a resposta de Valéria fosse a esperada, sentia uma incrível calma em seu interior. Só esperava que a moça entrasse em razão e lutasse por encontrar o destino que, por sangue, merecia.


XXII

 

Tudo era mentira. Aquilo que a senhora Shopper lhe tinha contado não podia ser verdade. Embora tivesse tido suas suspeitas, uma mãe não podia desinteressar-se de seus filhos e nem muito menos com um recém-nascido nos braços. Tinha sido má sorte, só isso. Uma horrível coincidência... Valéria, depois de acalmar-se e consolidar sua postura, decidiu sair do lar para procurar, de uma vez por todas, os meninos. Com o tecido de seu vestido se limpou o rosto molhado pelo pranto, caminhou para a saída e, justo quando abriu a porta, achou-os subindo os escassos degraus que havia entre a rua e a sua casa.

—Sinto muito! —Exclamou enquanto os abraçava com desespero. —Sinto muito!

—Não deve preocupar-se por nós —comentou Philip com certa altivez. —Já sabe que sou suficientemente grande para retornar ao nosso lar sem sofrer nenhuma briga.

—Sei, —disse Valéria apartando as novas lágrimas surgidas pela emoção —mas estava preocupada... ainda não me acostumei a ter um homenzinho em casa —acrescentou desenhando um pequeno sorriso.

—Bom, mas também devo admitir que caminhar sob o amparo do senhor Reform impediu que qualquer criminoso nos assaltasse —Martin acrescentou com sua acostumada inocência.

—O senhor Reform? —Ela perguntou notando como seu coração se fazia tão pequeno como uma bolinha de pó.

—Senhorita Giesler —disse o aludido aparecendo atrás dos meninos. Aquela figura alta, hercúlea e vestida de forma impecável se colocou em frente a ela desenhando um sorriso tão sedutor que a fez tiritar. —De novo, bom dia.

Valéria se paralisou devido ao retorno daquelas emoções incontroláveis que a sobressaltavam ao tê-lo tão perto, contemplando-a como se quisesse devorá-la com o olhar; resultou-lhe impossível evitar que sua mente não evocasse a sensação tão prazerosa que obteve ao ser beijada por uns lábios tão peritos. Mas... não podia amedrontar-se. Sua parte racional lhe gritava que o despachasse com rapidez. Quanto antes desaparecesse a tentação, antes retornaria a calma.

—Você os acompanhou? —Interrompeu-o com um grito. —Você? Não havia ninguém mais que tivesse piedade dos meus irmãos?

Optou pela segunda opção. A mais fácil para ela. Tal como lhe havia dito a senhora Shoper, resultava-lhe mais cômodo separar de seu lado o homem que a fazia perder o controle antes que se enfrentar a verdade: o amor é um ato de paixão e não de raciocínio.

—Se os houve não sei —disse ligeiramente zangado. —Preocupei-me mais por trazê-los sãos e salvos, que perguntar se alguém se ofereceria a acompanhá-los. Além disso, depois de admitir que a causa pela qual corresse enlouquecida pelo mercado fui eu, senti-me na obrigação de lhe fazer um favor —apontou mordaz.

—Um favor? —Trovejou pondo os olhos em branco. Indubitavelmente, a alternativa de afastá-lo tinha sido a correta.

—O senhor Reform deu um murro no senhor Mayer —interveio o pequeno acreditando que se mudasse a conversação sua irmã deixaria de zangar-se com o homem que lhes tinha prometido casar-se com ela. Como ia sentir apreço por uma mulher descontrolada?

—Fez o que? —Valéria vociferou olhando-o com uma ira demencial. —Como se atreveu a fazer solene tolice diante dos meus irmãos? Que diabos estava pensando?

—O senhor Mayer e eu tínhamos um assunto pendente... —resmungou —e o resolvemos como têm que fazê-lo dois homens.

—Um assunto pendente? Acaso suas garras são tão longas que não há ninguém nesta maldita cidade que possa livrar-se de você? —Prosseguiu fora de si.

—Não tenho garras, mas sim duas grandes e fortes mãos que podem pôr em seu lugar um homem descarado —continuou irado.

—Descarado? Você é capaz de emitir por sua boca uma palavra assim? Que divertido! Como pode idolatrar-se tanto?

Trevor colocou as mãos nos bolsos para que os meninos não percebessem que se converteram em dois férreos punhos. Por que ela se zangava por ele pôr o senhor Mayer em seu lugar? Não recordava tudo o que aquele feto tinha feito à sua amiga ou a ela mesma? Devia lhe agradecer por deixar claro àquele presunçoso que não devia aproximar-se nem dela nem de sua família!

—Sim, senhora Shoper? Claro! Vamos agora mesmo —Philip exclamou colocando a mão na orelha como se desta forma escutasse melhor as palavras de uma mulher que nem sequer apareceu na janela. —Venha, Martin! —Disse segurando-o pelo braço. —A senhora Shoper nos chama, acredito que disse que tem um pouco de fruta para nós.

—Pois eu não ouvi nada! —Respondeu o menino sacudindo a orelha com o dedo. —Tem certeza? Com os gritos que Valéria está dando pode ter se confundido...

—Não, não estou confundido. Chamou-nos —Philip insistiu puxando-o para a porta da mulher.

Enquanto os jovens se afastavam, Trevor subiu os degraus que tinha sob seus pés até que não houve diferença de altura entre eles. Seus olhos negros permaneceram ao mesmo nível que os azuis dela e ambas as bocas podiam sentir o calor dos dois fôlegos. Observou o rosto zangado de Valéria; o cenho franzido e o lábio superior ligeiramente elevado, não lhe indicavam nada bom... não quis piscar. Não devia fazê-lo porque se o fizesse ela aproveitaria esse descuido para...

—Não é assim como esperava ser recebido —comentou após lhe agarrar o pulso para evitar o que já imaginara: um bofetão. —Com um... obrigada, você é muito amável, teria tido suficiente. Embora, como posso observar, o fato de ter dado um murro em seu querido professor lhe fez esquecer como atuar corretamente —apostilou.

O roce daqueles dedos sobre sua pele lhe gerou de novo um sem-fim de descargas elétricas. Valéria olhou sem pestanejar ao Reform, memorizando cada ruga e cada expressão que achava em seu rosto. Aquela cuidada barba tão escura como a luz de seus olhos e os lábios ligeiramente estendidos formando um sensual sorriso faziam-lhe mais sedutor, se pudesse. Surpreendeu-se ao descobrir que após tentar lhe esbofetear não havia rancor naquele semblante viril, e sim complacência. Alegrava-o ter prognosticado que ia pegar-lhe ou que lhe devia um favor por ajudá-la com seus irmãos?

Esse estado de supremacia que o caracterizava começava a lhe retorcer as vísceras. Não podia comportar-se desse modo, não tinha nenhuma pretensão afetiva por ela. E, por mais que lhe doesse, por mais que lhe rompesse o coração, não se jogaria nos pés de um homem como ele. Ela tinha sonhado viver junto a um marido tão atencioso e carinhoso como seu pai... um marido que sempre a tratasse de igual para igual e que jamais encontraria em suas palavras ou em seus feitos uma dominação sobre sua esposa.

Tomou ar tentando recompor-se de todas as emoções que sentia ao tê-lo tão perto, ao sentir aquele roce em sua pele, ao encontrar um olhar lupino naqueles olhos negros...

—Você é um calhorda! —Clamou desesperada.

Não podia suportá-lo mais, devia afastá-lo o antes possível dela. Aquele vaivém de emoções a estavam debilitando tanto que mal podia pensar em outra coisa que não fosse notar seus lábios sobre sua boca. Tanto hipnotismo podia causar um beijo? As mulheres que foram beijadas por Trevor haviam sentido o mesmo que ela? Se fosse assim entendia por que o descreviam como um bom amante. Nunca imaginou que um ato tão ínfimo como um beijo pudesse causar o mesmo que o bater de mil asas de borboletas em seu estômago.

—Melhor um homem solidário que socorreu dois meninos pequenos —murmurou aproximando-se ainda mais dela e mantendo aqueles fortes dedos ao redor de seu pulso. —Não me oferece um refrigério? Faz um calor terrível e a caminhada foi muito longa...

Valéria desviou o olhar para o céu e enrugou a testa ao descobrir que as nuvens ocultavam o sol. Tinha que ter percorrido de ponta a ponta Londres para estar exausto.

—Vá embora agora mesmo! —Clamou após liberar-se daquele forte agarre que, para sua desgraça, emocionava-a. Como seria sentir aquelas gemas por outras zonas de seu corpo que não fossem os braços? Todo seu ser reagiria dessa forma tão desesperada ante suas carícias?

—Ao inferno —Trevor acrescentou com suspeita. —Foi o que você me gritou no mercado, recorda? —Arqueou as sobrancelhas.

Valéria retrocedeu. Não devia permanecer ali, precisava liberar-se daquela pressão que sentia em seu peito, daquela loucura que perturbava sua mente e do desejo que, por desgraça, aquele homem lhe causava cada vez que permanecia ao seu lado. Seguia admitindo que seus sentimentos por ele sempre tivessem estado em seu coração, mas rejeitava categoricamente seu comportamento. Não podia converter-se em um cavalheiro amável, humilde e respeitoso? Não, claro que não. Se ele mudasse essa atitude desapareceria o lobo no qual se converteu e deixaria de ser Trevor Reform, o dono do clube de cavalheiros mais importante de Londres.

Tentou fechar a porta de um golpe, mas antes de poder encaixá-la, a mão, aquela que tinha agarrado seu pulso, aferrou-se à grande lâmina de madeira evitando que fechasse. Valéria deu uns passos para trás quando ele a abriu de par em par.

—Obrigado, com muito gosto aceito esse copo de água —comentou zombeteiramente.

Uma vez que acessou ao interior, franziu o cenho. Uma só habitação. Assim era como subsistiam? No pequeno habitáculo encontrou duas camas à sua esquerda e à sua direita, uma mesa com quatro cadeiras em frente à diminuta cozinha. Como podiam viver daquela maneira? Não tinha ganhado o suficiente para procurar um lar mais digno?

—Não lhe basta me haver humilhado no mercado, quer também fazê-lo em minha própria casa? —Valéria perguntou olhando-o com raiva.

—Só aceitei o convite de uma irmã que, depois de compreender que seus dois seres queridos estiveram sob a tutela de um homem como eu, decidiu me obsequiar com um refresco —disse cravando seu escuro olhar nas duas xícaras que havia sobre a mesa.

Quem tinha ido vê-la? Por isso não partiu antes que chegassem? O maldito Mayer teria aparecido para lhe contar que tinha sido agredido com a esperança de que ela sentisse tanta lástima que caísse em seus braços? O ciúme, aquele sentimento que só possuía por ela, aumentou a um nível inimaginável.

—Vejo que esteve ocupada... —murmurou apertando a mandíbula. —Seu querido professor apareceu? Possivelmente desejava lhe falar do ocorrido no mercado... consolou-o? Deixou-o chorar sobre seu ombro? Ou talvez o reconfortasse de outra forma mais... prazerosa? —Cada palavra que soltava por sua boca, cada alusão que expunha, provocava um entalhe em seu rosto aterrador e transformava a escuridão de seus olhos em um abismo de cólera. Se aquela almofadinha tinha ousado vê-la depois da advertência, não haveria um rincão da cidade no qual pudesse refugiar-se e, assim que o encontrasse, não se conformaria com outro murro, e sim com algo mais doloroso.

—Como se atreve a me falar dessa forma? —Perguntou elevando o queixo de maneira desafiante. —Que direito tem para aparecer em meu lar e insinuar tal aberração? Quem acredita que sou, uma de suas putas?

—Se fosse uma de minhas putas não se separaria de meu leito nem de dia nem de noite —expôs com um brilho erótico em seus olhos, como se sua mente lhe oferecesse aquela perversa imagem. Embora nesse devaneio ela não fosse sua concubina, e sim sua mulher, sua esposa, a mãe de seus filhos. —E me vejo na obrigação de velar por você, senhorita Giesler, depois de tudo o que descobri sobre sua pessoa... —pronunciou dando outro passo para ela.

—Velar por mim? —Perguntou de maneira sardônica. —Isso sim que é uma sandice!

Não podia deixar de tremer pela afirmação que lhe havia dito. Desejava-a? Esse era o motivo de sua terrível insistência? Por isso a beijou no mercado? Deus, parecia uma confusão! Por uma parte, sentia-se feliz por ser desejada, mas por outra, não. Ela tinha sonhado em converter-se em algo mais que na amante do homem por quem suspirava.

—Sandice? —Respondeu arqueando a sobrancelha direita. —Por que denomina um ato solidário de forma tão horrenda? Acaso não posso me preocupar com você? Não posso ajudá-la? —Perseverou cruzando os braços.

—Velar por mim? —Repetiu. —Você? Um homem que agride suas amantes?

Trevor notou o suplício mais árduo de sua vida. Estava seguro que uma adaga atravessando seu coração não seria tão lacerante como aquelas palavras. Jamais havia se sentido mais doído e ultrajado. O plano de Jun, que consistia em afastá-los, parecia partir por um bom caminho. Porque ali se encontrava, em frente à mulher que amava e a qual pretendia declarar-se, sendo reprovado por apartar o único obstáculo que lhe impedia de alcançá-la.

—Não atendeu à razão. Ela queria continuar uma relação que tinha terminado... —tentou defender-se enquanto cravava os olhos no chão.

—É claro! —Valéria gritou. —Como ia dar por finalizada uma aventura com o grande senhor Reform? Se você é toda uma joia! —Atacou-o mordaz.

—Não me considero dessa forma, mas se você me tem em tão alta estima, tenho que lhe dizer que é um formoso elogio —contra-atacou.

Por um instante, só por um breve espaço de tempo, pôde ver naqueles olhos escuros a vergonha que padecia por ter feito aquele terrível ato, mas ele se recompôs com rapidez, como sempre fazia. Não. O grandioso Reform não podia admitir que se equivocara, ele tinha que explicar tudo de forma que, quem o escutasse, tivesse a certeza de que ele estava de posse da verdade. Isso enfureceu Valéria ainda mais. Não podia suportar aquele caráter endeusado e tampouco permitiria ao seu coração que continuasse apaixonado por um homem assim.

—O que posso fazer para que parta e me deixe tranquila? —Perguntou levantando orgulhosamente o queixo.

—Oferecendo-me um copo de água... —murmurou com mais calma. —Só quero apaziguar a sede, salvo que já não tenha nada a me oferecer depois dessa misteriosa visita —reiterou com suspeita.

—Partirá se lhe der o que me pede? —Soltou sem responder à insistência por averiguar quem a tinha visitado antes dele.

Aquela pergunta, exposta de maneira inocente, causou ao Trevor uma emoção tão grande que lhe alargou o peito. Partiria, claro que sim, mas uma vez que lhe permitisse falar com calma e lhe explicasse que classe de sentimentos tinham crescido por ela. Não ia deixar escapar a única possibilidade que tinha.

—Prove... —animou-a.

Girou-se sobre seus calcanhares, caminhou erguida até a jarra, encheu um copo de água e retornou para onde ele permanecia imóvel.

—Aqui tem! —Ofereceu-lhe o copo estendendo a mão tanto que lhe doeram os tendões. —Beba e parta!

Trevor aceitou o copo, como sempre, desenhando um leve sorriso. A ferocidade de Valéria o deixava tão absorto que não podia articular palavra. Essa tinha sido a chave para sobreviver; sua agressividade, sua tenacidade e sua valia lhe davam a força para enfrentar o mundo que a rodeava. No fundo não eram tão diferentes como ela pensava.

Deu um pequeno sorvo, um tão minúsculo que mal teve que mover a garganta para facilitar a passagem do líquido por sua traqueia.

—Acabou? Já saciou sua desmesurada sede? Retornará de uma vez por todas ao seu amado clube? —Perguntou colocando as mãos na cintura e adotando uma postura defensiva.

Por que lhe fraquejavam as pernas? Por que devia falar devagar para que não descobrisse o tremor que lhe açoitava a boca? Tanto transtorno podia lhe causar um mísero sorvo de água? Sim. O leve deslocamento dessa protuberante voz no interior de sua garganta a deixou absorta, embora fosse pior contemplar como sua língua recolhia as leves gotas que tinham ficado sobre a comissura de seus lábios. Por que era tão sedutor? Por que seus olhos não podiam cravar-se no chão e seguiam fixos naquele homem? Se ela fosse uma retratista não precisaria tê-lo em frente para desenhá-lo sobre um tecido, seus olhos tinham recolhido cada minúsculo detalhe daquele rosto varonil... seis meses... seis meses tinham passado desde que entrou pelas portas do clube e o encontrou escondido entre as sombras. E justo desde esse momento não pôde olhar a outro lado que não estivesse ele...

—Por que me odeia tanto, Valéria? —Perguntou depois de colocar o copo sobre a mesa, em meio às xícaras. —Ofendi-a em algum momento?

Era uma forma de começar a conversação que tinha meditado enquanto caminhava para o lar. Primeiro, tentaria averiguar o motivo pelo qual o desprezava e, depois de achá-lo, lutaria contra ele para que entendesse que não era tão mal como ela queria acreditar.

—Ofendido? —Soltou pondo os olhos em branco e apertando com mais força suas mãos na cintura. —Como pode me perguntar essa tolice?

—Então...? —Girou-se sobre si mesmo, apoiou os quadris no canto da mesa e cruzou os braços. Esperava que com esse gesto ela entendesse que a água não seria suficiente para sair dali. Precisava conversar com ela até que, depois de lhe expor seus sentimentos, confessasse-lhe que sentia o mesmo e caísse em seus braços como tantas vezes tinha imaginado... seria apaixonada? Embaixo daquele olhar colérico se encontrava uma mulher capaz de amá-lo sem travas nem recriminações? «Não corra, Trevor —disse-se. —Por agora só quis te dar uma bofetada e um copo de água...»

—Como você se sentiria em meu lugar? —Perguntou-lhe desafiante. —Feliz? Entusiasmado?

—Não acredito que lhe tenha feito mal, ao contrário. Todas as minhas decisões a beneficiaram.

—Oh, pelo amor de Deus! Então você é um santo! Quer que me prostre aos seus pés, senhor Reform? —Soltou mordaz fazendo uma exagerada reverência.

—Qualquer pessoa em meu lugar a teria denunciado —começou a dizer de maneira séria. —Mas eu não o fiz. Apesar de pôr em perigo a reputação do meu clube, permiti-lhe que continuasse com a farsa para...

—Bobagens! Você só queria ter um brinquedo com o qual distrair-se durante suas amarguradas noites! —Recriminou-o.

—Atuou como um predador em frente a uma presa. Todos aqueles passeios pelas salas, aquela presença fantasmal... fazia-o para me intimidar!

—Não pretendia atemorizá-la, só queria observá-la de perto —manifestou solene.

—Claro, até que conseguiu o que pretendia! Por que me ofereceu a partida, senhor Reform? Para rir de mim? Para ver como me fazia tremer de medo?

—Essa não era a minha intenção! —Exclamou em voz alta. —Só queria saber se fazia armadilhas —revelou sem baixar o tom de sua voz. —Até que a conheci, não pensei que uma mulher pudesse ser tão inteligente.

«Maldição!», disse-se quanto terminou aquela inoportuna frase.

—Como? —Soltou enfurecendo-se ainda mais. —Está dizendo que as mulheres não têm nada na cabeça? Era o que me faltava escutar! Saia agora mesmo do meu lar se não quiser que uma mulher com a cabeça oca o jogue a chutes! —Trovejou realizando dramalhões como se lhe atacasse um enxame de vespas.

—Não me expliquei bem... —alegou sem mover nem um só músculo. —Quero dizer que, até que a conheci, nenhuma mulher tinha atuado com uma moderação e inteligência como as suas.

—Espera que eu tome isso como um elogio? —Inquiriu arqueando as sobrancelhas e colocando de novo as mãos na cintura. —Porque não o aceitarei como tal.

—Desde minha mais tenra infância, todas aquelas mulheres que me rodearam atuavam com astúcia, mas jamais com... —tentou dizer.

—Não evoque seu horrível passado, senhor Reform! Não vou sentir misericórdia por você porque sei como foi! —Clamou sufocada.

—Mas o que tem lido nos periódicos sobre mim...

—Lido? —Perguntou com um sorriso sombrio. —Não tive que ler nada para saber quem foi. Quão único encontrei nos periódicos é a descrição do homem no qual se converteu... —confessou.

—Você não sabe nada do meu passado para me desprezar desse modo! —Trevor defendeu-se elevando a voz e descruzando os braços.

Desesperado agarrou o copo de água e bebeu um grande sorvo. A conversação não estava saindo como esperava nem tampouco imaginara que sua ideia de se declarar ia ser tão difícil. Possivelmente porque se equivocou ao beijá-la. Por mais que lhe destroçasse o coração admitir a verdade, Valéria não albergava nenhum sentimento afetivo por ele. Quão único tinha que fazer era sair dali com seu orgulho intacto e embebedar-se até cair morto quando fechasse a porta de seu escritório. Possivelmente, passada uma década, o sentimento por Valéria teria desaparecido. Entretanto, depois de dar vários passos para a saída, parou ao escutar que ela continuava falando.

—Um que não recorda quem foi —disse entreabrindo os olhos.

—Não esqueci cada segundo, cada minuto, cada ano que vivi antes de adquirir o clube —resmungou.

—De verdade? —Perguntou desafiante.

—Coloque-me à prova! —Desafiou-a.

Valéria sorriu amplamente. Era um bom momento para fazer o que tinha pensado durante tanto tempo, mas não estava segura do motivo pelo qual precisava lhe contar o ocorrido naquele dia. O melhor era que saísse de seu lar, que se separasse de sua vida e da de seus irmãos, esses que já tinham começado a afeiçoar-se a ele. Mas se queria vê-lo escapar, como fez ela horas antes, era a melhor ocasião.

—Estávamos no mercado, —começou a dizer com os olhos fechados —meu pai tinha decidido comprar alguns caramelos para recompensar Philip quando aprendia uma palavra. Minha mãe permanecia sozinha em frente à banca de verduras enquanto procurávamos as guloseimas de sua cor preferida. De repente, como se meu pai intuísse que algo andava mal, separou-se de nós e se dirigiu para onde se encontrava minha mãe. E não errava, ela discutia com um jovem de uns dezesseis anos que tinha tentado lhe roubar o moedeiro. Sabe quem era esse pequeno trombadinha? —Perguntou olhando-o sem piscar.

Trevor caminhou para trás até que seus quadris voltaram a tocar a mesa, apoiou-se nesta e cravou o olhar no chão.

—Sim, o recorda... —Valéria declarou satisfeita. —Meu pai devia ter lhe dado uma bofetada por haver tentado roubar o pouco que sua esposa tinha, mas em vez disso lhe deu um penique, deu-lhe de presente uma maçã porque não parava de chorar balbuciando seu nome e explicando que roubava porque tinha fome. Finalmente, o pequeno ladrão manteve uma conversação com ele sobre o bem e o mal —disse antes de tomar ar e que a nostalgia se apoderasse dela. —Repreendeu-lhe como se fosse seu próprio filho e insistiu em que, se voltasse a lhe ver rondando sua esposa não se comportaria com tanta piedade, mas sim lhe daria uma reprimenda que não esqueceria jamais. Você saiu correndo, soluçando como um bebê, mas durante sua fuga pude ver como se escondia atrás de um muro e comia a maçã enquanto nos olhava estranhando.

—Burke... —murmurou.

—Sim, assim se chamava meu pai. Burke Albrecht Giesler —disse orgulhosa. —Alguma vez lhe revelou seu sobrenome? —Trevor negou com um suave murmúrio. —Não estava acostumado a fazê-lo... —disse ela considerando. —Logicamente, quando retornamos ao nosso lar perguntei por que tinha atuado dessa forma com um menino que tinha tentado roubar a minha mãe, não fomos muito ricos e um penique era uma fortuna para nós. Sabe o que me respondeu? —Perguntou-lhe elevando a voz.

Trevor respondeu negando com a cabeça após levantar por fim o olhar do chão. O brilho de seus olhos causou as lágrimas que brotaram ante a menção daquele homem. O único a quem recordava daquele horrendo passado.

—Que todo mundo merecia uma oportunidade e que como mostrou humildade em seu olhar, ele deduziu que sua situação era pior que a nossa se se atrevia a assaltar uma mulher com uma aparência pobre. Mas se equivocou, aquele menino não era humilde, mas sim um maroto que sabia encontrar as palavras adequadas quando lhe apanhavam roubando. Se ele estivesse vivo se arrependeria de não lhe ter dado uma boa sova.

—Mentira! —Exclamou depois de escutá-la. —O homem a quem faz referência era um inglês e seu pai era alemão.

Valéria soltou uma enorme gargalhada depois de escutá-lo. Cruzou os braços e, sem poder apagar o sorriso de seu rosto lhe disse:

—Não minto, aquele homem era meu pai e, como bem sabe, era alemão. Entretanto, ocultou sua procedência porque não desejava que falassem do motivo pelo qual um homem de sua origem se casou com uma cigana espanhola. Embora depois da visita que tive faz um momento, albergo certas dúvidas sobre isso. Possivelmente seu verdadeiro motivo foi esconder-se daqueles que podiam estar procurando-o para lhe obrigar a retornar à Alemanha, e ocupar a baronia, que por sangue, correspondia-lhe.

—Uma baronia? Seu pai era um barão? —Perguntou assombrado.

—Sim. —Afirmou com um leve movimento de cabeça. —Apesar daquele aspecto de plebeu, meu pai era um barão. Mas a única maneira que encontrou para casar-se com minha mãe foi fingir sua própria morte e fugir de sua terra natal. Embora anos depois, achou essa morte convertendo a mentira em uma realidade... —expôs angustiada.

Era a primeira vez que não sabia como atuar nem o que dizer. As palavras de Valéria pareciam tão sinceras, tão convincentes, que não admitiam réplica. Recordou aqueles dias e não encontrou no homem piedoso uma atitude típica da aristocracia, a não ser justamente o contrário, era tão modesto, tão respeitoso, que jamais teria imaginado uma coisa assim.

Olhou-a sem pestanejar, procurando o que responder ante isso. Ela, a trapaceira que tinha irrompido em seu clube e tinha ganhado não só um sem-fim de partidas, mas também seu coração, era a filha do homem que, com suas palavras e ternura, ajudou-o a represar seu caminho. Além disso, aquela deusa de cabelo escuro seria algum dia uma elegante dama da aristocracia. Por mais dor que lhe causasse tal revelação, sua decisão de lhe confessar o que sentia tinha ficado em segundo plano. Devia centrar-se em ajudá-la, como fez Burke com suas pacientes conversas e se para isso tinha que viajar até a Alemanha e apresentar-se ante a família dela, faria sem duvidá-lo um só segundo.

—Não têm possibilidade de reclamar essa posição? Não pensa que seu pai desejaria outro futuro para seus queridos filhos? —Perguntou de repente.

—Como? —Perguntou confusa.

—Não podem passar toda a vida vivendo desta forma... —explicou olhando ao seu redor. —Seu pai não o teria aceitado.

—O que sabe do meu pai? Não o conhecia o suficiente para declarar algo assim! —Gritou-lhe. —Ele descansa tranquilo sabendo que educou a sua filha...

—Sim, o conheci... —interrompeu-a. —Não coincidimos só naquele dia, Valéria. Encontramo-nos algumas vezes mais no mercado —revelou.

—Como? —Soltou atônita.

—Acredito que se interessou por mim ou talvez quisesse confirmar que devia me dar àquela solene surra, mas dias depois apareceu na praça.

—Para que? Com que propósito?

—Como lhe disse anteriormente não sei com certeza, mas tenho que reconhecer que as conversações que mantivemos, despertou em mim algo que permanecia adormecido.

As lágrimas retornaram aos olhos de Valéria. Sempre tinha sabido que seu pai era um homem bondoso, mas nunca imaginou o alcance daquela bondade.

—«Todo mundo é dono do seu destino. Quão único terá que fazer...»

—«...é averiguar qual é o melhor caminho para chegar até ele» —Valéria terminou entre soluços.

Era certo. O senhor Reform não lhe mentia. Seu pai tinha falado com ele e lhe expressou a frase que também declarava aos seus filhos a cada dia que amanhecia. Por quê? Por que tinha reparado em um jovem ladrão? Acaso viu nele algo que ninguém mais pôde encontrar? Mas... o que?

—E tinha razão —sentenciou erguendo seu corpo. —Todos somos donos do nosso destino. Sinto se a incomodei, senhorita Giesler —adicionou colocando-se em frente a ela. —Não era minha intenção assaltá-la dessa forma, peço-lhe mil perdões.

—E... qual podia ser a intenção de um homem que aparece no lar de uma mulher e rejeita seus desejos? —Perguntou apartando as lágrimas do rosto para vê-lo com um pouco mais de claridade.

Estava tenso, muito. Suas costas permaneciam mais retas que uma tábua, suas mãos se transformaram em dois duros punhos e apertava a mandíbula com tanta força que suas bochechas pareciam dois mastros de um navio.

—Não vejo adequado falar sobre o tema que me trouxe até aqui. Possivelmente em outro momento... —disse após respirar fundo.

—Em outro momento? De verdade alberga a esperança de que, uma vez que eu feche essa porta, vá abri-la de novo?

Por que atuava desse modo? Por que não lhe deixava partir? Não era isso o que desejava? Mas ao vê-lo tão aflito, tão desconcertado depois de falar sobre seu pai, precisava averiguar o motivo de sua aparição. Não lhe valia que pusesse por desculpa ter trazido seus irmãos, ele podia ter enviado outra pessoa por um módico preço. Então... por que estava ali? Queria lhe pedir desculpas por havê-la beijado no meio da rua?

—Como lhe disse, não é adequado conversar sobre isso —reiterou caminhando para a porta.

—Pelo amor de Deus! Uma mulher baixou as grandes fumaças do senhor Reform? Que façanha mais heroica! —Exclamou com zombaria.

—Pense o que quiser —ele respondeu agarrando o trinco da porta. —Espero vê-la logo, senhorita Giesler. Até então, cuide-se. —Saiu à entrada e, justo quando ia dar um passo para o exterior, escutou como ela se dirigia para ele a grandes pernadas. Olhou-a por cima do ombro e, depois de observar seu rosto, Trevor notou como seu coração começava a pulsar com força.

—É um miserável! —Gritou. —Vá, afaste-se da minha vida para sempre!

As lágrimas brilhavam enquanto se deslocavam por seu rosto. O desespero, o torvelinho de sentimentos que a açoitavam a tinham desequilibrado tanto que só podia chorar e gritar. Mas era o melhor... não?

—Valéria... —Reform sussurrou notando um nó na garganta que não lhe deixava nem respirar.

—Parta! Esqueça-se de mim! —Insistiu.

Trevor se girou encaixando a porta com suas costas. O que lhe acontecia? Por que chorava? Fez-lhe mal ao recordar seu pai? Ou talvez... sua dor era por ele? Havia esperança para eles? Amava-o? Isso devia ser porque se não albergava nenhum sentimento para sua pessoa não se sentiria tão desventurada ante sua partida.

—Valéria... —sussurrou ao contemplar como ela se cobria o rosto com as mãos para que não seguisse percebendo a dor pela despedida. —Querida, meu amor... —declarou-lhe caminhando para ela. Face às resistências, embora ela tentasse não receber aquele quente abraço, Trevor a obrigou a sentir seu corpo próximo ao dele. Beijou seu cabelo, a testa, suas bochechas molhadas. —O único motivo pelo qual um homem se apresenta ante uma mulher depois de realizar milhares de loucuras como as que tenho feito é para lhe declarar seu amor—manifestou sem duvidar.

—Amor? —Ela perguntou apoiando a testa sobre o duro torso, percebendo aqueles grandes e fortes braços enredando-se em seu corpo. —Você não pode amar, todo mundo sabe... —soluçou.

—Não posso...? —Começou a dizer enquanto apartava uma mão da cintura para colocá-la com suavidade sob seu queixo. Levantou-a lentamente até que ambos os olhares se cruzaram. —Sim, posso amar e o faço. Como definiria minha obsessão por você? —Falou com carinho e afeto. —Como denominaria o fato de que não possa te tirar da minha cabeça, de que te veja ao meu lado pelo resto da minha vida, meu amor? Que opinião merece o fato de te haver protegido cada vez que apareceu no clube e de contratar o senhor Hill para que ele continuasse te velando enquanto eu amaldiçoava as horas que devia passar no interior do meu escritório? Ou o que pensa sobre o dia em que abri as portas para aquelas damas pomposas da alta sociedade? Todo mundo pensou que eu procurava uma esposa e me assediaram... —expôs com calma. —E sabe qual foi o verdadeiro motivo pelo qual fiz uma loucura assim? Você! Sim, você! Fiz uma loucura sem precedentes porque desejava tê-la ao meu lado um pouco mais que um mísero dia à semana. E sim, em efeito, na noite que subiu ao meu escritório se fazendo passar pelo senhor Hernández eu tinha na gaveta o dinheiro que ganhou, mas só de imaginar que se afastaria de Londres, que já não poderia vê-la mais, causou-me tal dor que me resultou impossível te dar um mísero xelim. E sabe por quê? Porque te amo! Sim, embora não entenda a razão desse sentimento que cresceu em meu coração, amo-a tanto que daria minha vida se assim salvasse a tua. Quero que esta boca seja minha, que este corpo cubra minha nudez a cada noite, a cada dia, a cada instante no qual possa respirar. Como define isso, Valéria? —Reiterou com firmeza.

—Desejo —declarou cambaleando-se. Podia cair ao chão pela fragilidade que lhe causaram suas palavras, mas graças àquela força que ele mantinha sobre ela com uma só mão, nem se moveu.

—Desejo... —murmurou aproximando sua boca da dela.

—Não nego que o tenho... —roçou os lábios com os seus delicadamente. —Desejo-a tanto... que não posso conceber a ideia de não poder te fazer minha o antes possível. É minha obsessão, o motivo pelo qual respiro, meu alimento e meu desejo. Converteu-se em meu mundo... por isso, meu amor, foi testemunha de um ato desprezível. Quando minha antiga amante declarou que tinha falado contigo, que tinha tentado te afastar de mim, enlouqueci até o ponto de me converter em um monstro, um irracional... —confessou.

Valéria não podia falar. Estava tão embriagada que só tinha forças para continuar abraçada àquele corpo. Amava-a... Aquele homem sentia quão mesmo ela... então... por que partia? O que era tão importante para apartar-se de seu lado? Devia lhe gritar que ela sentia um amor profundo antes que ele descobrisse quem era a pessoa que se escondia sob as roupas de um cavalheiro?

—Ardo em desejos de te beijar de novo, de te acariciar, de tê-la nua em meu leito e de te fazer amor tantas vezes que te resulte impossível imaginar, que meu amor diminuiu um mísero ápice —declarou colocando o queixo sobre o sedoso cabelo. —Mas depois de suas palavras, depois de averiguar quem é e quem poderá chegar a ser, não posso tê-la sendo quem sou... —expôs com suas palavras a tristeza que suportava. —Você merece algo melhor. Duvido muito que seu pai me permitisse lhe pedir sua mão se ainda respirasse. Estou seguro de que não aspiraria ver sua amada filha vivendo em um clube de cavalheiros, rodeada de cortesãs, bêbados, brigas e noites inseguras. Que vida teriam nossos filhos? Que representação paternal teriam seus irmãos ao meu lado? Burke se levantaria da tumba e me ofereceria aquele bofetão que não me deu em seu tempo.

—Trevor... não me importa essa vida... —murmurou Valéria enquanto colocava suas mãos sobre os fortes ombros.

—Eu também te amo e te desejo... —essa confissão o deixou sem fala. —Por que crê que sempre joguei na mesma mesa? Por que me queixei aos seus empregados cada vez que aparecia no clube? Queria que se fixasse em mim, embora estivesse vestida como um homem... poderia ter obtido uma grande fortuna no clube do Hondherton, mas não era capaz de te eliminar da minha mente...

—E me alegro de que foi tão perseverante, querida. Graças a isso fui um explorador procurando o descobrimento de sua vida —afirmou abraçando-a com força. —Fiquei tão dependente de você, observei-a tanto que sei que tamborila os dedos quando está pensando, que se toca levemente o nariz quando algo te preocupa, sei cada expressão de seu rosto e o que significa... o único que me faltava averiguar é se, os olhares que me oferecia cada vez que me aproximava eram de repulsão ou de atração porque estava tão confuso que quando me decidia a me aproximar, retrocedia para não te espantar.

—Atração —confirmou-a.

—Minha querida trapaceira... —murmurou descendo lentamente o queixo até que suas bocas voltaram a roçar-se. —Quão único necessito para ser o homem mais afortunado do mundo...

Valéria colocou as mãos sobre seu torso notando a respiração agitada e o pulsar desenfreado do seu coração. Olhou-o assombrada, maravilhada e tão enfeitiçada que não podia conter as lágrimas. Ali, ao seu lado, tinha o menino que seu pai descobriu, não o homem de quem falavam os periódicos. Com acanhamento apoiou as pontas de seus dedos sobre o chão e se elevou justo para que voltassem a roçá-lo nos lábios. Nesse momento os braços de Trevor a aferraram com mais força para ele e após voltar a lhe sussurrar que a amava a beijou com tanto desespero que ela não teve dúvidas da veracidade de suas palavras.

Sua língua dominante, forte e cálida se apoderou de seu interior até lhe causar uma sacudida tão intensa que deu graças àquelas grandes e poderosas mãos que a seguravam pela cintura. Deixando-se levar pelo erotismo, esticou seus braços até enredá-los naquele pescoço que tinha contemplado no mercado. Suave, sua pele era muito suave. De repente escutou como ela mesma emitia um pequeno gemido. Não era um lamento de tristeza, mas sim de luxúria. Necessitava o que lhe estava oferecendo e que acalmasse a inquietação que começava a lhe percorrer o corpo. Não era suficiente prova de amor sua resposta? Tinha que afastar-se dela de novo?

—É tão formosa, tão maravilhosa... —Trevor comentou apartando ligeiramente seus lábios.

—Não me deixe... não agora —pediu entre soluços.

Estava apaixonada por ele. Talvez o tivesse estado desde que observou o misterioso olhar daquele jovem. Possivelmente esse tinha sido o motivo pelo qual nenhum homem lhe pareceu adequado para ela. Nenhum podia transmitir tanto em um olhar, nem a podia deixar com o coração pulsando a mil.

—Esperar-me-á? Conceder-me-á o tempo necessário para me converter no marido que merece? —Perguntou-lhe conduzindo sua boca para a testa para beijá-la com delicadeza. —Diga-me que o fará, meu amor —suplicou-lhe.

—Sim, farei —sucumbiu com a esperança de que o tempo que lhe pedia não fossem outros doze anos. —Porque não seria capaz de perder a pessoa que amo...

Ante essa afirmação, ante essa preciosa revelação, Trevor voltou a beijá-la, embora desta vez com mais paixão, mais luxúria e mais desejo. Suas mãos, as que ficaram pegas à sua cintura desceram devagar para sentir aquele corpo que tanto adorava. Agarrou com força suas nádegas e, perdendo o pouco autocontrole que ficava e que lhe gritava que devia sair dali o antes possível, elevou-a para colocá-la sobre a mesa, atirando o copo e as xícaras ao chão. De repente notou um inquietante frio na nuca. Valéria, arrastada pelo mesmo ardor que o seu, abandonava aquela parte de seu corpo para colocar suas mãos sob a jaqueta. Aquele contato, aquelas pequenas palmas percorrendo seu abdômen, excitou-o até o ponto de ter que aplacar um grunhido de prazer sobre a boca dela. Depois, quando pensou que a tortura a que estava sendo submetido ia amainar, descobriu que a intenção de Valéria era lhe tirar a jaqueta e esse gesto o deixou nocauteado. Grunhiu de satisfação, mas também o fez por desespero.

Não podia tomá-la sendo a pessoa que era, ela merecia um marido melhor, um em quem não demoraria em converter-se... mas antes de partir, antes de deixar que o tempo transcorresse entre eles, precisava tocá-la, saber como reagia seu corpo quando suas grandes mãos a percorressem, saciar-se com o sabor de sua boca e inspirar com força aquele delicioso perfume à canela. Devagar acariciou o pescoço, os ombros, as mãos... chegando até seu busto que, embora coberto, reconheceu que albergava o tamanho suficiente para apanhá-lo entre suas palmas.

Em meio a esse beijo Trevor mordeu o lábio inferior de Valéria, cravando-lhe os dentes, marcando aquela boca como dele e, quando escutou o pequeno gemido que ela emitiu ao sentir a leve dentada, seu sexo se endureceu como se se preparasse para uma posse completa. Inconscientemente acoplou-se entre suas pernas perdendo-se entre os ofegos de frenesi que ela emitia. Eram cantos de sereia, ou a melodia mais formosa que jamais escutou em sua vida. Entregava-se a ele. Sim, sua felina tinha tirado as unhas para lhe arranhar sobre a camisa, assinalando suas costas como ele marcava sua boca.

—Trevor... —sussurrou inclinando levemente a cabeça para trás, permitindo que seus lábios percorressem aquela suave pele.

Aceitou a proposta, embora soubesse que depois de saborear aquela garganta, aquele decote, sua decisão de partir seria mais angustiosa.

—Trevor... —repetiu entre ofegos. Suas mãos, as que tinha colocado nas grandes costas, ascenderam lentamente por ela até que alcançaram seu cabelo. Grosso, forte e ao mesmo tempo sedoso.

—Valéria... —respondeu-lhe fora de si. Notando como cada partícula de seu ser se tranquilizava ante as carícias que lhe oferecia.

Aproximou indevidamente seu sexo do dela e o diminuto roce que se criou, apesar de estarem refugiados entre roupas, fez com que Trevor se sobressaltasse. Quando tinha estado tão excitado? Quando seu desejo por possuir uma mulher tinha sido tão grande? Nunca, disse-se. Com as mãos trementes foi descendo com estupidez, como se fosse a primeira vez que acariciava uma mulher. Ao tocar embaixo do vestido duvidou se deveria continuar sentindo a suavidade de sua pele pelas pernas. As largas pernas que se entrelaçavam em suas costas como dois grilhões. —Valéria... amor... —sussurrou-lhe.

Ela o olhou com olhos frágeis, repletos de desejo.

—Não posso... —murmurou tentando apartar-se. Mas não lhe permitiu afastar-se, continuou entrelaçando suas pernas para que não escapasse, para que sempre permanecesse unido a ela.

Ante aquele desesperado gesto, ao ser consciente de que lhe pedia mais, Trevor se tirou o colete e a camisa exibindo aquele torso que ela tinha apalpado sobre a roupa. As pupilas se dilataram como se necessitasse de toda aquela amplitude para adaptar-se à escuridão que lhe causava aquela nudez.

—Toque-me... —rogou. —Ponha suas mãos sobre mim...

Valéria não duvidou nem um segundo em fazê-lo. Com uma decisão imprópria em uma mulher inocente, pousou suas pequenas palmas sobre aquele peito agitado pela respiração. As descargas retornaram, mas desta vez a intensidade era tão grande que se esqueceu até de tomar fôlego ao sentir aquela pele, ao perceber o calor e a aspereza daquele pelo escuro que tinha crescido no tórax.

—Assim... toque-me assim... —animou-a. Enquanto ela se deleitava com ele, Trevor fazia o mesmo com ela. Colocou as mãos nos tornozelos nus, sem meias e foi subindo lentamente, contemplando à sua vez como o brilho do olhar de Valéria se convertia em algo mais espetacular que uma chuva de estrelas.

—Trevor... —Valéria murmurou ao notar como os dedos de ambas as mãos tinham chegado às suas virilhas e como procuravam a forma de entrar para tocar seu sexo. —Eu... jamais...

—O que? —Perguntou-lhe ao ouvido antes de percorrer com sua língua aquela zona tão erógena.

—Ninguém me tocou antes... —declarou percebendo a ascensão de sua temperatura, mais por vergonha que por luxúria.

—E eu não te possuirei aqui, meu amor —respondeu-lhe enquanto percorria com sua boca a bochecha até chegar aos lábios. —Só quero que, quando fechar essa porta não tenha nenhuma só dúvida do muito que te amo e que tudo o que farei a partir de agora é para tê-la ao meu lado para sempre...

—Não me deixe... não me abandone... —pediu-lhe entre soluços.

—Nunca! —Respondeu antes de recliná-la sobre a mesa, tombando-se sobre ela para continuar beijando-a, para seguir tocando-a...

No momento em que sua mão direita apartou sua roupa interior impregnou-se da essência que ela emanava devido à paixão. Trevor apaziguou um alarido de prazer com o beijo. Como podia parar? Como podia fazer chamar a sua razão para sair daquela habitação sem possui-la, sem sentir o alívio de marcá-la como dele? Devagar e repreendendo-se de novo por ter começado algo que não devia, desceu devagar a mão, mas antes que chegasse ao joelho Valéria o insistiu a subir.

—Vou morrer... —ele revelou afogado pela paixão.

—Morre comigo, Trevor, mas não se separe de mim —soluçou.

—Não me diga isso... —pediu-lhe. —Não me diga isso... —repetiu perdido.

Valéria apanhou aquele rosto que adorava entre suas mãos e o aproximou dela.

—Faça-me sua, Trevor Reform. Quero te sentir dentro de mim... —disse antes de beijá-lo de novo.

Toda a força que podia sustentar desapareceu como a lenha dentro de uma grandiosa fogueira. Aquelas palavras encurralaram seu coração, assim como lhe causaram um desejo indevido. Seria prudente chegar até o final? Não se arrependeria do que se propunha a fazer depois que ele fechasse a porta? «Desejo... —pensou. —Minha amada trapaceira arde de desejos por mim». O orgulho masculino, o desejo de posse foi aumentando durante o apaixonado beijo que lhe oferecia. Trevor abriu levemente os olhos e ficou preso da imagem que tinha em frente a ele. Alguma vez o tinham desejado tanto? Alguma vez contemplou um lindo anjo com bochechas vermelhas? Não, e o motivo era muito simples: nela havia amor, nas demais só ambição. Depois de dar-se por vencido, sua mão retornou àquele lugar que o reclamava. Voltou a retirar a roupa que ocultava seu sexo e, com a mão aberta, acariciou-a de cima a baixo.

—Sim... —Valéria murmurou ante o roce tão erótico. Como podia negar-se a lhe dar o prazer que ela ansiava alcançar? Não podia... sem deixar de beijá-la, apesar de sentir as vibrações de seus gemidos no interior de sua boca, Trevor continuou tocando cada rincão do sexo dela. Notava-o inchado como uma flor aberta na primavera... após introduzir a ponta de seu dedo do meio, para não lhe machucar sua virginal abertura, ela se arqueou e elevou seus quadris.

—Deus! —Exclamou fora de si. —Por que me faz isto, querida?

—Porque te amo —respondeu levantando levemente seu rosto para que continuasse beijando-a.

Um alarido, mais próprio de um lobo que de um homem, brotou do mais profundo de sua garganta quando a penetrou com o dedo. Estava tão estreita que suas paredes uterinas se uniram à sua pele como se fossem ventosas. Como podia oferecer-se desse modo? Por que Deus lhe outorgava esse privilégio? Nunca tinha desflorado uma mulher, sempre tinha se deitado com peritas. Mas ali estava, notando como a deusa virtuosa que amava se entregava a ele com tanta paixão e desejo que não podia compará-la com ninguém.

—Vou beber de ti... —informou-a quando apartou seus lábios dela. —Preciso ter em minha boca seu sabor, sua essência, seu perfume de mulher...

Valéria o olhou desconcertada ao não saber a que estava se referindo. Então observou como os olhos de Trevor exibiram uma escuridão tão profunda que podia perder-se neles.

—Descerei ao seu sexo e lamberei com minha língua cada rincão que achar —explicou. —Assim é como saciará minha sede. Quer que o faça? Está disposta a me dar o que te peço e pelo que sou capaz de morrer?

Ela só pôde assentir.

Devagar, Trevor percorreu o abdômen de sua amada inspirando seu perfume cada vez que precisava respirar. Levantou ainda mais a saia de seu vestido, esmagando aquele muro de tecido que se criou entre ambos. Colocou-lhe as plantas dos pés sobre a mesa, criando um lindo V com elas e, antes de dirigir-se para o sexo molhado, jogou-lhe um leve olhar. Sua curiosidade se notava naquele rosto ruborizado assim como podia contemplar o brilho do desejo. Lentamente aproximou-se do úmido fluxo dela, aproximou seu nariz e, depois de respirar esteve a ponto de ajoelhar-se e adorá-la como a uma deusa. Era tão embriagador, tão hipnotizante, que lhe tremeram as mãos ao tocá-la.

—Está me convertendo em um amante torpe —disse.

Ante esse divertido comentário, Valéria soltou uma grande gargalhada de satisfação. Que o homem mais aplaudido pelas mulheres expusesse uma ocorrência assim, era do mais adulador. Mas aquele sorriso, aquela zombaria que tinha aparecido nela se afastou ao notar o calor da língua em seu sexo. Aquele roce lhe causou tal agitação que jogou a cabeça para trás com tanta força que acreditou rompê-la. O que era isso? Outro calafrio, outra sacudida, outro tremor começou a sacudi-la cada vez que Trevor mordia seus grossos lábios vaginais, cada vez que percorria com sua língua o rincão proibido...

Notou certa pressão lá embaixo... não só utilizava sua boca, mas também seus dedos. De repente apalpou uma zona que a levou a uma loucura tão sublime que teve que colocar as mãos sobre sua boca para que a senhora Shoper não a escutasse gritar. Santo Deus! O que lhe estava fazendo? Não lhe havia dito que iria lhe acalmar a sede? Pois com a intensidade que ele absorvia dela, nem a água do oceano poderia satisfazê-lo.

—Trevor... Trevor... —suspirou seu nome ao notar como seu corpo tremia.

—Sim, querida... faça por mim —respondeu-lhe sem diminuir as investidas que fazia sobre ela com os dedos. —Desfrute, ame-me, deseje-me...

Valéria pressionou ainda mais as mãos sobre sua boca quando um estranho relâmpago atravessou seu corpo. Deixou-a ofegando, procurando ar para encher seus pulmões.

—Isso, meu amor, chama-se orgasmo e me alegro muitíssimo de ser o primeiro que te mostre como posso te fazer desfrutar —manifestou enquanto se levantava para ela para colocar-se de novo entre suas pernas e beijá-la.

—Hum... —ela murmurou ao sentir o sabor de que falava em sua própria boca.

Trevor sorriu ao escutá-la.

—Valéria, querida... —começou a lhe beijar as bochechas, o queixo, os lábios. —Prometo-o que quando retornar terminarei o que comecei hoje.

Ante essa elucidação, ela ficou tensa.

—Não! —exclamou esticando suas mãos para o pescoço dele para atrai-lo de novo. —Não! —Repetiu.

—E se se arrepender? E se tudo isto só foi um arrebatamento de paixão? —Tentou persuadi-la.

—Não! —Perseverou enquanto aproximava seus lábios dos dele. —Não pare!

Por um momento, só por um instante, Trevor meditou sobre as consequências que aquele ato podia ter nela. Seria o princípio do fim. Quantas mulheres tinham devotado sua virtude a um homem que tinham acreditado amar e logo não era assim? E se ele não conseguisse converter-se no homem respeitável que ela merecia? Podia condená-la para sempre e, por desgraça, sabia como terminavam as mulheres condenadas.

—Ama-me? —Perguntou-lhe cravando aquele olhar escuro como o carvão nela.

—Sim —respondeu sem ter que pensar.

—Eu também te amo, meu amor, e te juro que isto é mais difícil para mim do que possa te parecer. Mas te prometo que quando alcançar meu propósito não apartarei minhas mãos, meu corpo, nem meus lábios de você. Prometo-lhe isso. —E a beijou de novo para acalmar qualquer dúvida despertada nela.

Uma vez que finalizou aquele beijo, apartou-se levemente de Valéria, baixou-lhe o vestido, sentou-a sobre a mesa e começou a fechar os botões da camisa e do colete.

—Prometa-me que me esperará e que não desconfiará de mim —disse lhe beijando com suavidade os lábios.

—Trevor, suplico-lhe, não deve mudar por mim. Sou a mesma mulher que conheceu em seu clube, jogando cartas vestida de homem —manifestou com tristeza enquanto colocava suas mãos sobre aquele frio colete.

—Merece-o algo melhor, querida, e vou lhe dar. Agora que sei quem é em realidade não poderia te olhar nos olhos sem lhe oferecer o que realmente te corresponde —disse com uma solenidade tão incrível que Valéria empalideceu.

Separou-se dela, pegou a jaqueta, colocou-a, beijou-a como se levasse anos sem vê-la, colocou sua testa sobre a de Valéria e lhe disse:

—Amo-te, minha amada trapaceira, e me alegro de te haver encontrado.

—Amo-te, meu travesso trombadinha, e me alegro de te haver buscado.

Deu-lhe um suave e casto beijo nos lábios e partiu sem olhar para trás porque, se o fizesse, perder-se-ia nela e esqueceria sua promessa.

Quando fechou a porta Trevor apoiou as costas nela e suspirou. O destino tinha posto em sua vida o tesouro mais formoso que podia procurar: a filha daquele bondoso homem. Olhou para o céu e sorriu. Acaso aquele misterioso salvador tinha a premonição de que sua filha terminaria com o maroto que tentou roubar sua esposa? Por isso retornou, para colocá-lo no bom caminho? Negando tal sandice, Trevor começou a descer as escadas até que uma voz apareceu atrás de suas costas.

—Senhor Reform... esquecerá a minha irmã? Vai nos abandonar? —Martin perguntou ao ver como partia sem sequer despedir-se.

Trevor se girou para os moços, respirou profundo e esticou a mão para tocar aquele cabelo loiro com ternura.

—Não vou abandonar ninguém, Martin, sua irmã me pertence, é minha e será minha esposa o antes possível. Só necessito de uns dias para arrumar certos assuntos antes de me casar com ela.

—De quanto tempo estamos falando? —Philip interveio.

—O suficiente, mas não se preocupe jovem Giesler, encarregar-me-ei pessoalmente de que nada lhes falte até que retorne.

—Acredito que é uma despedida... —Martin murmurou abaixando a cabeça. —Todo mundo termina por afastar-se de nós... —adicionou triste. —Fizemos algo mau?

—Não fizeram nada mau —disse ajoelhando-se em frente ao pequeno. —Que maldade pode haver em dois moços que foram criados por uma mulher como Valéria?

—Isso soa a despedida —Philip disse tentando não mostrar a mesma tristeza que Martin.

—Não, não é. E como prova lhes darei uma coisa... —levantou-se, colocou a mão no bolso da calça e tirou um penique que colocou sobre sua palma para que eles a vissem.

—Esta moeda permanece ao meu lado desde que eu tinha dezesseis anos. Hoje lhes ofereço isso como prova de minhas palavras. Mas quando retornar lhes pedirei isso e não pretendam me enganar me dando outra, porque saberei.

—Como saberá? —Martin perguntou entusiasmado.

—Porque esta moeda tem uma fenda no lado direito. É única... —Colocou-a entre o polegar e o indicador para que a observassem com claridade.

—Por que a guardou durante tanto tempo? —O pequeno quis saber.

—Porque é uma moeda mágica. Ela me salvou a vida e pude me afastar do mau caminho —explicou enquanto a oferecia ao maior.

—Esperar-lhe-emos —Philip comentou aceitando-a. —E ela —adicionou olhando para a porta —também o fará.

—Sei —afirmou olhando para o jovem. —Preciso te encomendar uma missão muito importante —disse a Philip colocando com firmeza sua mão direita sobre o ombro juvenil.

—O que deseja? —Ele perguntou adotando uma pose varonil.

—Quero que a proteja até que eu retorne. Se aquele miserável do Mayer aparecer por aqui requerendo vê-la, corre ao clube em minha busca —comentou apertando os dentes.

—Dar-lhe-á outro murro? —Martin perguntou abrindo os olhos como pratos. —À Valéria não pareceu correto que lhe golpeasse...

—Manter-lhe-ei informado, senhor Reform, e ninguém se aproximará de minha irmã até que você retorne —Philip interveio lhe oferecendo a mão para selar o acordo.

Trevor sorriu levemente e aceitou a oferenda tão masculina.

—Confio em suas palavras. Boa tarde, cavalheiros —disse antes de sair para a rua.

—Boa tarde —responderam ao uníssono.

—Crê que o fará? —Martin perguntou duvidoso ao seu irmão. —Voltará de verdade por nós?

—Sim —afirmou olhando com os olhos entreabertos o misterioso entalhe da moeda.

 


Meia hora depois Trevor aparecia no clube. Abriu a porta, caminhou pelo hall e se dirigiu diretamente para o escritório sem sequer perceber como lhe olhavam os empregados. Uma vez que se colocou atrás de sua mesa e antes de sentar-se chamou a única pessoa que podia lhe ajudar a obter seu novo objetivo.

—Sim, senhor Reform? —Berwin perguntou da porta.

—Necessito que marque uma entrevista com o Hondherton o antes possível —declarou enquanto abria a gaveta à sua direita e tirava do interior uns documentos que não tinha olhado desde o dia em que os entregaram. —Também tem que apresentar-se na residência do senhor Lawford, diga-lhe que requeiro sua presença no clube antes que finalize o dia.

—Hondherton? Lawford? —Berwin repetiu assombrado.

—Sim, os próprios, e envie Gilligan à imprensa do conde Crowner, também tenho que falar com ele —adicionou enquanto tomava assento.

—Está seguro do que vai fazer? —Berwin perguntou com os olhos totalmente abertos. —É uma decisão que deveria...

—É a decisão mais adequada —respondeu-lhe sem gritos, algo que deixou o administrador aniquilado. —Se tudo sair conforme o planejado, antes de um mês abandonaremos este maldito clube.

—E... o que fará com todos os empregados? Os despedirá? Senhor, tenha misericórdia, muito deles têm família a alimentar... —Berwin indicou mais assombrado, se cabia.

—Se for certo o que tenho lido sobre o conde, poderá me orientar para investir o dinheiro que obterei deste clube em fábricas e eles trabalharão em todas as que eu adquirir se assim o desejarem —determinou.

—Fábricas? —A conversação estava a ponto de lhe gerar um enfarte. Quem era aquele homem e por que desejava desprender-se de tudo pelo qual tinha lutado durante tantos anos?

—Explicarei tudo quando retornar. Temos que sair esta mesma tarde para Mayfair. Quero procurar um novo lar, este me provoca calafrios.

—Tomou algo enquanto retornava ao clube? —Aventurou-se a perguntar.

—Água —respondeu. «E o elixir que me ofereceu minha futura esposa», pensou.

—Pois acredito que a água não lhe está assentando muito bem. Recomendo-lhe, encarecidamente, que volte a beber uísque —declarou mordaz.

—Obrigado pelo conselho —disse antes de soltar uma sonora gargalhada. —Agora vá e feche a porta ao sair. Por certo... que aquele velho resmungão não descubra meu desejo por vender o clube. Não quero que me ofereça menos que na última vez.

—É claro! Prometo-lhe que porei esta cara —comentou destacando o rosto com um dedo. —A mesma que me ficou após lhe escutar. Parece-lhe adequada?

—Sim, obrigado.

—Pois sem mover um só músculo, parto-me —declarou antes de sair do escritório.

Trevor sorriu ao escutar as exclamações que seu fiel empregado soltava enquanto descia as escadas, cruzou os braços e fechou os olhos. Logo, muito em breve retornaria a ela e, nesse momento, nada nem ninguém lhe impediria que a fizesse sua para sempre.


XXIII


Três semanas mais tarde...


—Está linda —Valéria disse à Kristel depois de lhe realizar um laborioso penteado. O vestido branco de musselina com um precioso espartilho com pérolas cinza realçava a formosa figura. Mas o que verdadeiramente embelezava a sua amiga era o rosto de felicidade que mostrava. —Borshon ficará sem palavras quando te vires aparecer na igreja.

—Borshon já está sem palavras, mas não por mim, e sim por sua mãe —comentou entre risadas.

Girou-se para o espelho e ficou atônita ao ver-se tão esplêndida. Via-se assim pelo vestido ou era o brilho de seus olhos o que a embelezava? O olhar que mostrava desde o ocorrido à noite anterior com seu futuro marido lhe causaria tal beleza? Valéria se daria conta de que sua virtuosa amiga já não o era? Esperava que não porque essa dúvida a inquietaria tanto que não poderia dar um passo para o altar sem evitar sua terrível claudicação. Tentaram manter a honra dela até o matrimônio.

Ambos tinham permanecido afastados para não sucumbirem à paixão que brotava em seus interiores, mas na tarde anterior Borshon pediu para vê-la para resolver certo tema e, uma vez que a recolheu na porta de seu, até agora lar, soube que motivo urgente requeria... não tinha remédio, seu amado era tão passional que não pôde esperar a noite de bodas e, sendo realista, ela tampouco podia esperar umas horas mais para averiguar como seria um ato tão íntimo entre eles. «A primeira vez dói, —sussurrou-lhe enquanto subia por seu corpo após fazê-la gritar ao beijá-la em seu sexo —mas te prometo que depois desta noite ambos desfrutaremos muitíssimo».

Sentiu como o calor de suas bochechas aumentava. Levou-se as mãos para o rosto e tentou fingir que se arrumava para atenuar o rubor. Não devia pensar nisso... não devia fazê-lo!

—Bom, é normal que eles queiram casar-se tão cedo, o senhor Berwin não tem tempo a perder —alegou divertida.

—Mas... imagina a cara que pôs quando Aphra lhe disse que iam contrair matrimônio no mesmo dia que nós? Acredito que, se não chegasse a alcançar a cadeira cairia ao chão. —Bem, falar da mãe de seu marido era um tema bastante aconselhável para fazê-la esquecer o que tinham feito horas antes. —Embora no fundo se sente feliz porque ela está todo o dia sorridente e mais animada que nunca. Imagino que jamais esperou, depois de ficar prostrada na cama, que encontraria um homem que a amasse como o faz o senhor Berwin.

—O amor é imprevisível... —Valéria murmurou com tristeza. —E tem que o tomar quando chega.

—Sinto-o... não devi... —Kristel assinalou levantando do banco para consolar a sua amiga.

Depois do ocorrido três semanas antes, ninguém tinha visto o senhor Reform salvo Borshon, e quando lhe perguntava o que estava fazendo para não ir em busca de Valéria, comentava-o que não iria até que resolvesse certos assuntos. Mas... tantos temas deviam terminar para que não dessem sinais de vida durante vinte e um dias? Kristel olhou Valéria e percebeu que, com o passar do tempo, a esperança começava a desaparecer, enchendo-a de dúvidas e aceitando que a declaração que lhe ofereceu não foi verdadeira. Entretanto, ela sabia que ele se apresentaria porque, se não fosse assim, seu futuro marido já a teria avisado.

—Viverá muito feliz —Valéria indicou abraçando-a com força. —Ele é o homem adequado para ti —acrescentou.

—Sei... —Kristel afirmou sem separar-se de sua amiga. Tinham permanecido durante muitos anos juntas, tinham vivido muitas aventuras e, assim que saísse pela porta tudo isso ficaria para trás para empreender uma nova vida. Só rezava para que a de Valéria começasse antes de terminar o ano.

Justo no momento no qual Kristel apartava as lágrimas aparecidas pela emoção, a porta do lar se abriu com brutalidade lhes causando um grandioso susto.

—Chegou! —Martin exclamou dando pequenos saltos. —A carruagem chegou!

—Bom... —Kristel murmurou alisando o vestido de noiva. —É a hora...

—Sim —conveio Valéria. —É a hora...

Com um puxão no estômago, ambas saíram da casa para introduzir-se na carruagem. Philip se acomodou ao lado de sua irmã e Martin, com a noiva. Quando o cocheiro empreendeu o caminho Kristel esticou a mão para sua amiga e a apertou com força.

—Tudo sairá bem... —Valéria lhe sussurrou.

—É um privilégio que seu padrinho de bodas seja o inspetor O´Brian —Philip comentou sem apartar o olhar da janela. —O senhor Hill estará muito orgulhoso.

—Está —Kristel respondeu. —Foi toda uma honra que um homem tão respeitável, tenha aceitado esse oferecimento.

—Não só é respeitável —disse olhando-a aniquilado. —É um herói para Londres —acrescentou.

—Acredito que deveria deixar de ler esses periódicos que traz para casa —Valéria resmungou. —Não precisa encher sua cabeça com histórias desse tipo. Tem que se centrar em procurar um novo professor para que instrua tanto a você como ao Martin.

—Quer que eu procure o senhor Mayer? Possivelmente deseje nos dar aulas de novo... —apontou mordaz.

—É melhor não —Martin interveio. —Depois do murro que o senhor Reform lhe deu no mercado, muito me temo que não queira saber nada de nós...

Valéria afogou um soluço ao ouvir o nome de Reform. Tinha evitado escutar qualquer notícia dele desde que partiu. Tinha lhe pedido tempo e tinham passado três semanas... três longas e angustiosas semanas sem ter nenhuma mísera notícia. A esperança de vê-lo de novo se desvanecia, chegando a pensar que tudo o que lhe tinha prometido tinha sido só uma mutreta para se afastar dela. Possivelmente, em algum momento daquela manhã, ele descobriu que ela não era a mulher que esperava, apesar de lhe declarar seu amor daquela forma tão apaixonada.

—Estão na porta! —Martin gritou entusiasmado. —O senhor Hill está muito elegante! Quem é a mulher que permanece sentada? Por que sua cadeira tem rodas? —Expôs sem mal respirar.

—É a mãe do Borshon e não pode andar, por isso utiliza essa cadeira —Kristel esclareceu desenhando um enorme sorriso ao ver quão elegante e bonito estava seu futuro marido.

Se antes tinha dúvidas de como um homem como ele se fixou nela, agora essas inquietações se multiplicaram por mil. O que ela tinha feito para que um ser tão divino e terno quisesse viver ao seu lado o resto de sua vida?

—Estão preparadas? —Perguntou Philip, quem estava tão nervoso que não deixou que o criado lhes abrisse a porta. Ele mesmo saltou ao chão, estendeu a mão e esperou que elas a aceitassem.

—Kristel, sentirei a sua falta, —Valéria lhe confessou enquanto Martin abandonava o interior do veículo —mas me sinto feliz porque encontrou o homem de sua vida. —Deu-lhe um grandioso abraço e, segurando as lágrimas de felicidade que desejavam brotar, agarrou a mão de seu irmão e desceu com suavidade.

Como era tradição, a noiva saiu por último, fazendo com que seu elegante e desejoso prometido permanecesse intranquilo até que ela apareceu. Borshon, ao vê-la tão formosa, desenhou um sorriso tão grande que lhe cruzou o rosto e lhe alargou tanto o peito que percebia como os botões de seu traje tentavam explodir.

—Foi ideia de April —murmurou-lhe O´Brian. —Ninguém pode fazê-la parar quando quer ir às compras.

—Pois foi uma eleição muito acertada —ela se defendeu ao escutar as palavras de seu marido. —Custava à sua prometida decidir o que usar em um dia tão especial, assim tomei a decisão por ela. Por certo, Borshon, é uma mulher encantadora e nenhum cavalheiro pôde apartar o olhar dela. Espero que tenha endurecido seus punhos porque muito me temo que os utilizará mais de uma vez —apontou travessa.

—Se algum atrevido se aproximar da minha esposa... —grunhiu de maneira possessiva —ficará sem suas joias masculinas.

Ante essa resposta, o senhor e a senhora O´Brian soltaram uma gargalhada. Não havia dúvidas de que ninguém se atreveria sequer a saudá-la pelo temor às represálias do gigante.

Com uma paciência incrível Hill esperou que Kristel chegasse ante ele e lhe estendesse o braço. Ela assim o tinha pedido, porque só seu futuro marido a fazia caminhar de uma forma tão tranquila que não mostrava a claudicação.

—Está linda —sussurrou-lhe ao ouvido.

—Você gostou do vestido? A senhora O´Brian... —tentou dizer.

—Eu gostarei mais quando o atirar ao chão e voltar a me introduzir dentro de você —assinalou marotamente.

As bochechas de Kristel se ruborizaram tanto que O´Brian voltou a rir. Não havia dúvida do que seu agente acabava de declarar à noiva, disse o mesmo à April quando a viu aparecer em frente à igreja. Homens como eles, apaixonados e com o sangue ardente, não podiam albergar na cabeça outra ideia que não fosse amar e possuir a mulher com quem viveriam o resto de suas vidas.

Devagar e com o passo que Borshon acostumava a levar, caminharam para a entrada seguidos dos jovens Giesler, sua irmã e, por mais que lhe custasse assumir, Berwin e sua mãe. Pareciam dois adolescentes. Não paravam de sussurrar-se ao ouvido uma ou outra tolice que os tinha alterados. O agente só esperava, por seu bem, que não ocorresse ao seu futuro padrasto lhe declarar palavras como as que dizia à Kristel, porque podia aceitar umas bodas, mas lhe custaria uma barbaridade descobrir que um dia a vida lhe poria em seu caminho um meio-irmão.

O pároco, embelezado com seus melhores ornamentos, primeiro celebrou o enlace de Borshon e Kristel, logo, sob o atento olhar do agente, viu como sua mãe consentia converter-se na esposa do secretário do senhor Reform. Não grunhiu, sua esposa o tinha proibido antes daquele dia, mas não se sentia cômodo ao ver os sorrisinhos que eles se consagravam.

—Pode beijá-la —o padre manifestou.

Nesse momento Hill deu um passo para diante, mas sua amada Kristel o reteve.

—Nem te ocorra —ameaçou. —Se estragar o dia mais feliz de sua mãe, passará a noite de bodas em outra habitação.

—Tudo seja por isso... —Borshon resmungou.

Durante as duas cerimônias, Valéria tinha permanecido sentada no primeiro banco contemplando a felicidade de ambas as noivas. Nada podia fazer sombra a um estado sem igual. Chorou. Chorou por saber que sua amiga viveria com um homem que a amaria até a chegada de sua morte e que, segundo a senhora Shoper, com quem mantinha uma amizade um pouco mais cordial desde que apareceu em seu lar, dar-lhe-ia três formosos filhos. Mas... e ela? O que lhe proporcionaria o futuro? Olhou de esguelha aos seus irmãos e sorriu levemente. A resposta estava neles. Devia velar por aqueles futuros homens que lutariam por fazer um oco em uma sociedade cada vez mais desumanizada.

—Podemos comer agora, tia Kristel? —Martin perguntou quando ela se aproximou para lhes dar um beijo.

—É claro! Em nossa nova casa prepararam um grande banquete e poderá comer tudo o que desejar.

—Haverá bolos? Eu adoro bolos! —Disse pondo os olhos em branco.

—Sim, haverá, mas estarei te vigiando. Não quero que adoeça antes de terminar o convite, tia Kristel me prometeu que esta noite terei uma recompensa por meu bom comportamento —Borshon respondeu despenteando o lambido cabelo loiro.

—Eu também posso ter outra recompensa se me portar bem? —O pequeno perguntou.

Borshon soltou uma grande gargalhada que não cessou até que o cotovelo de sua esposa lhe golpeou no flanco.

—Querido, você terá muitas recompensas quando for maior —Kristel assinalou enquanto olhava ao seu marido como se quisesse matá-lo.

Esperou que todos caminhassem pelo longo corredor para a saída. Não desejava acompanhá-los tão de perto. Mereciam um pouco de espaço, embora essa distância a manteria não só umas horas, e sim toda a vida. Antes de elevar-se e dirigir-se para onde se colocaram, Valéria olhou para o altar e suspirou. Quanto tempo ficava ao Trevor para ir procurá-la? Se é que seguia com a ideia de aparecer um dia. Pegou o lenço com o que se secou as lágrimas e o passou de novo sob as pálpebras. Se o destino os tinha unido doze anos depois daquele dia, esperava que o fizesse de novo porque agora seus sentimentos para com Trevor estavam mais consolidados que nunca.

Apoiou as mãos no banco para levantar-se e, nesse momento, notou que alguém a agarrava pelo braço. Pela extremidade do olho descobriu Philip. Estava incrivelmente elegante com aquele traje azul escuro e aquele colete cinza pérola. Parecia-se muitíssimo ao seu pai. Só esperava que o parecido não fosse só físico, mas que em seu interior também houvesse algo do homem compassivo e bondoso que o engendrou.

—Vamos —animou-a. —Martin nos espera e como demoramos muito é capaz de montar-se sobre as pernas da senhora Berwin para que o leve sobre a cadeira com rodas. Esse comentário divertido a fez sorrir. Quantos dias levava sem esticar seus lábios para realizar uma expressão tão singela? Vinte e um.

Uma vez que saíram ao exterior os três irmãos subiram na carruagem que havia lhes trazido. Kristel já não estava, agora estavam sozinhos...

—É verdade que a casa onde tia Kristel viverá foi um presente do senhor Reform? —Martin perguntou quando o veículo levava pouco mais de dez minutos dirigindo-se para a nova residência do casal Hill. Nesse momento Philip lhe deu um pisão por fazer a inoportuna pergunta. —Ai! —Exclamou.

—Por que me pisou?

—Pode repetir o que acaba de dizer? —Valéria disse entreabrindo os olhos.

—Não, porque então Philip voltará a me pisar e não quero que me doam os pés —o pequeno respondeu com sua habitual inocência.

—Philip! —Repreendeu-lhe. —O que está ocorrendo? O que me oculta, Philip Giesler? —Trovejou.

—Eu não te oculto nada, Valéria. Você mesma não quis saber nada do senhor Reform desde que partiu —apontou o moço cruzando os braços e adotando uma atitude esquiva, carrancuda.

—E o que é que eu não quis saber, irmão? —Perguntou em um tom tão duro e cruel que Martin se tornou para trás no assento.

—Deixei-te todos os periódicos em nosso lar, empilhados sobre a mesa. Viu-os? Não! Embora claro... se para você só narram temas tão absurdos como a forma que tem o inspetor de lutar contra o crime que assalta nossa cidade...

—O que evita me explicar? O que há nesses ditosos periódicos? —Trovejou de novo.

—Nos periódicos há notícias interessantes... —Martin disse com acanhamento. Ao ver o olhar que sua irmã lhe dirigiu o jovem se reclinou ainda mais no assento, como se quisesse introduzir-se na acolchoada parede, e fechou a boca.

—Tudo o que tem feito o senhor Reform desde aquele dia, saiu publicado nos noticiários —Philip assinalou com tranquilidade.

—E o que tem feito de tão importante para que se fale dele? —Perguntou fora de si.

—Vendeu o clube ao senhor Hondherton, comprou uma residência em Mayfair, adquiriu várias empresas mercantis e...

—E? —Perseverou arqueando as sobrancelhas escuras.

—E deu de presente uma bonita casa ao senhor Hill, entre outras coisas... —terminou.

Valéria ficou sem ar nos pulmões. Não sabia o que dizer ante aquela revelação. Trevor tinha feito tudo isso desde que partiu? O que ficava por arrumar antes que aparecesse em seu lar? De repente, a dúvida que a atormentava se fez mais intensa, mais dura, mais dolorosa; esqueceu-se dela. Essa era a razão pela qual não se apresentava. Já não a queria.

—Essa é a casa? —Martin inquiriu olhando pela janela e esperando que sua pergunta não enfurecesse Valéria de novo.

—Sim —Philip afirmou.

Quando o cocheiro parou notou como um nó na garganta lhe impedia de tragar uma mísera gota de saliva. O que ela ia fazer? Como podia comportar-se depois de averiguar tudo o que Trevor fazia? Abaixou o olhar, cravando-o na saia do vestido que tinha decidido usar. Era o mesmo com o qual tinha ido ao clube, que ele lhe tinha dado...

A carruagem estacionou em frente ao novo lar de Kristel, o cocheiro, ao ser consciente de que um de seus passageiros abria a porta sem sua ajuda, saltou e se adiantou ao jovem impertinente. Primeiro apareceu o pequeno, um menino com o cabelo loiro e uns olhos mais azuis que o céu. Agradeceu ao lacaio e correu escada acima. Logo apareceu o irmão maior, quem desceu com uma atitude muito típica entre os aristocratas e muito pouco usual para um jovem com origem humilde. Depois de lhe fazer uma leve reverência, o servente deixou sozinho o moço e a sua irmã, quem permanecia no interior duvidando do que fazer.

—Se eu estivesse em seu lugar não sairia daqui —Philip lhe disse do exterior.

—Ele... ele... —murmurou sem levantar o rosto.

—Ele tem feito tudo isso por você, Valéria, e se não for capaz de admiti-lo, desaponta-me. Pensei que fosse mais esperta —insistiu.

—Mas... eu... —titubeou estupefata pelo tom que utilizou seu irmão para lhe falar.

—O que pretende fazer? Descer e permanecer amargurada no dia mais feliz de sua amiga ou averiguar se é verdade o que te digo? —Continuou com firmeza.

—Philip... as coisas não são assim... —tentou explicar.

—As coisas são como as quer ver, irmã. Se eu encontrasse a mulher da minha vida, a única por quem poderia morrer, não permaneceria sentado esperando que o tempo passasse. Lutaria com todas as armas que tivesse ao meu alcance para tê-la ao meu lado a cada dia que eu despertasse —declarou com uma maturidade que deixou Valéria pétrea. —O que vai fazer? —Quis saber enquanto segurava a porta. —Fica ou vai? —Insistiu.

Valéria voltou a olhar seu vestido como se este, em algum momento, pudesse lhe oferecer a resposta. Respirou fundo. Precisava pensar durante uns instantes na resposta correta...

—Vai! —Philip decidiu antes de dar um forte golpe para fechar a porta.

Sob o olhar assombrado dela, caminhou para o cocheiro, gritou-lhe uma direção e a carruagem empreendeu a nova marcha.


XXIV

 

Não foi capaz de apartar os olhos do vestido desde que a carruagem saiu da residência dos Hill. Retorcia suas mãos enluvadas com tanta força que começaram a suar. Desesperada, tirou-se as luvas, deixou-as sobre o assento e observou o rubor que causou o angustiante esfregão na pele. Tanta inquietação, tanta incerteza não eram boas para ela, mas não podia mostrar-se tranquila quando estava a ponto de averiguar a verdade.

Respirou fundo, jogou a cabeça levemente para trás apoiando-se na parede acolchoada e fechou os olhos. Não era correta a decisão que Philip tinha tomado. Devia continuar esperando como lhe tinha prometido e, quando aparecesse em seu lar, se é que decidia ir procurá-la, saltaria sobre ele, rodearia seu pescoço com os braços e se deixaria levar pela paixão que despertava cada vez que a beijava. De repente, enquanto fantasiava com esse momento, uma pergunta irrompeu em sua cabeça com a força de um corcel desbocado: por que Trevor não tinha ido à igreja? Se, tal como lhe indicou seu irmão, entre eles tinha crescido uma sólida amizade até o ponto de lhe dar de presente pelas núpcias a casa onde iam viver, por que não tinha feito ato de presença? «Porque não queria vê-la...», respondeu-lhe uma voz em sua cabeça. Essa horrível conjectura a perturbou ainda mais. Devia havê-lo considerado quando, depois de olhar em várias ocasiões para a entrada da igreja, não o viu chegar. Aterrorizada por cometer outro grande engano em sua vida, posto que o primeiro fosse lhe declarar que o amava e deixar-se levar pela paixão, Valéria se inclinou no assento e levantou a mão. Desejava avisar ao cocheiro que desse a volta para evitar aquele enfrentamento. Mas já era tarde... antes que os dedos tocassem o teto, o cocheiro começou a diminuir a velocidade fazendo-a entender que estavam chegando ao lar de Trevor e que já não havia volta atrás.

Os lábios lhe tremiam como se se encontrasse em meio a uma nevasca sem casaco que a protegesse do frio. Notava o pulsar de seu coração na garganta e começou a suar como se o sol se achasse justo atrás da janela. Nunca havia se sentido tão aturdida, nem sequer no dia que teve que enterrar a sua querida mãe e fazer frente ao seu novo futuro. Naquele tempo, só pensou em levar adiante seus irmãos, entretanto, o presente era diferente. Uma vez que falasse com Trevor sua vida daria um giro de cento e oitenta graus. Só esperava que esse giro fosse o que ela desejava...

Depois de percorrer a extensa cerca de ferro forjado, a carruagem acessou ao interior da propriedade. Valéria abriu os olhos como pratos ao contemplar o lugar que ele tinha decidido comprar. Ali, em meio à famosa rua, havia um paraíso, o de Reform. Um formoso e cuidado jardim lhe dava as boas-vindas. Devido à época em que se encontravam, de ambos os lados do caminho que lhe conduzia até a entrada principal da moradia brilhavam lindos mantos de cores. Flores de tons vermelhos, amarelos, violetas, brancos e rosas brotavam sobre o terreno como se quisessem oferecer um arco-íris vegetal. «Lindo...», murmurou colocando sua mão esquerda sobre os lábios.

Fixou a vista nas fontes de mármore que tinham sido construídas no meio das duas amplas zonas ajardinadas. Em uma delas tinha esculpida a figura de uma mulher com um vestido tão comprido que se perdia sob a água. Suas mãos, de onde brotavam os canos, estavam abertas como se convidasse os pássaros a beber delas. Mas o que deixou Valéria chocada foram os olhos dessa fria escultura marmorizada. Rapidamente contemplou a outra esperando achar o cavalheiro pelo qual aquela dama de alabastro suspirava. Abalou-se ao vê-lo...

Tinham cinzelado um homem vestido de uniforme. O escultor tinha sido tão minucioso que não parecia uma figura, e sim uma pessoa. Na mão direita sustentava uma espada que elevava para o céu e a outra a dirigia para sua amada de alabastro. À Valéria, em meio às suas observações, surgiu-lhe uma história romântica entre eles, uma que começava com a separação de dois amantes ante a guerra e terminava com esse momento, justo quando ela espera sua gloriosa volta. Suspirou emocionada ante essa possível história de amor, até tinha deixado de pensar no que aconteceria ao ver Trevor. Mas retornou à realidade ao notar a brusca sacudida que fez a carruagem ao parar.

Com o nariz ainda pregado na janela observou a moradia onde o encontraria. Sorriu levemente ao ver o edifício. Três plantas. Aquela casa tinha três largas e enormes plantas com quinze janelas em cada uma. Sobre o telhado, em ambos os extremos, tinham construído dois torreões. Como era normal nele não podia adquirir uma casa típica londrina, e sim a mais extravagante...

Ao escutar que o cocheiro descia e caminhava para ela, toda aquela conturbação que tinha desaparecido enquanto contemplava a residência retornou. Valéria se separou da janela, acomodou-se de maneira correta no assento e esperou que o lacaio abrisse a porta para ajudá-la a descer.

—Senhorita Giesler —disse-lhe este estendendo sua mão.

Valéria começou a respirar rapidamente. Notou como um grande nó na garganta lhe impedia de tragar a pouca saliva que sua boca produzia e como todas aquelas dúvidas que arrastava se faziam tão pesadas que a impediam de mover-se. Mas devia finalizar sua agonia o antes possível... uma vez que pisou naquele impoluto chão, colocou sua mão sobre a testa para evitar os leves raios de sol e olhou ao seu redor. Grandiosa, poderosa e é óbvio, ostentosa. Qualidades muito típicas em Trevor. Agora entendia por que a tinha adquirido em tão breve espaço de tempo. Estava segura de que assim que a viu, sem ter que dar vários passos para o interior se deu a volta sobre si mesmo, olhou ao pobre senhor Berwin e lhe gritou que lhe desse o sinal que pediam antes que seus sapatos continuassem avançando.

Valéria sorriu ao lhe passar essa imagem por sua mente. O pobre secretário poderia sofrer um enfarte algum dia com as determinações de seu chefe. Só esperava que a última decisão fosse estar com ela. Caminhou devagar como se seus pés pesassem uma tonelada. O que todo mundo percorreria em um minuto, ela demorou dez. Antes de subir as escadas que a conduziriam ao enorme balcão no qual se encontrava a entrada principal, olhou por cima de seu ombro para trás descobrindo que, no idílio jardim, havia uma zona em que a erva estava minuciosamente cortada. As árvores que a rodeavam contribuíam a sombra necessária para poder desfrutar de uns lindos dias ensolarados. Valéria sorriu ao imaginar algo que, até o momento, não lhe tinha passado pela cabeça. Como seria ter meia dúzia de pequenos Reform brincando de correr por aquela prazerosa zona da mansão? Trevor brincaria com seus filhos ou se manteria distante? Seria um pai carinhoso e terno?

Uma dor no abdômen a fez centrar-se. A primeira coisa era averiguar que decisão Trevor tinha tomado antes de lhe assaltar com seu desejo de converter-se em mãe o antes possível. Levantou brandamente a saia de seu vestido e subiu com firmeza os degraus que a conduziriam para aquela entrada, aquela realidade...

Para contemplar o marco superior daquela porta teve que inclinar a cabeça para trás. Desmesurado... essa era a palavra que melhor definia tudo o que observava. Com uma aparente serenidade dirigiu sua mão para a aldrava para chamar e franziu o cenho ao ver que esquecera as luvas sobre o assento. Voltou-se sobre si mesma considerando se devia retornar para pegá-las. «Não ponha mais desculpas absurdas —disse-se. —Confronta de uma vez por todas a verdade». Elevou o queixo, bateu na porta e esperou que alguém a atendesse.

—Bom dia. —Com uma rapidez incomum, um homem de uns cinquenta anos de idade, grisalho, alto e embelezado com um impoluto uniforme, saudou-a após abrir.

—Bom dia —Valéria respondeu fingindo serenidade. Entretanto, tremia. A imagem daquele mordomo não lhe ofereceu nenhuma paz. Olhava-a com receio, como se em vez de usar um formoso vestido, cobrisse seu corpo com farrapos. Fechou a boca esperando que ele dissesse algo, mas se manteve calado. Durante a breve inspiração que tomou para lhe explicar o motivo pelo qual se apresentou, comparou o empregado com o fanfarrão do mercado, aquele com quem Trevor jogou com suas mãos e ao qual derrotou. Teria sido capaz de contratar antigos piratas para que custodiassem seu lar? Vindo dele, daquele homem que tinha fingido não saber qual era sua verdadeira identidade e quem a incentivou a jogar aquela partida de cartas, esperava-se qualquer coisa. —Preciso falar com o senhor Reform. Diga que a senhorita Giesler o espera —disse enfim.

—O senhor não admite visitas femininas —respondeu-lhe com rudeza ao mesmo tempo em que entreabria os olhos. —Se quer lhe fazer chegar alguma mensagem lhe recomendo que se dirija ao seu secretário, o senhor Berwin, mas lhe informo que não irá à residência até dentro de dez dias —acrescentou tosco.

Depois da informação Valéria sentiu um prazer colossal. Seu amado tinha construído uma fortaleza infranqueável para qualquer mulher e isso a encheu de amor. Não obstante, devia haver explicado ao velho pirata que não podia impedir a entrada de sua futura esposa. Por que... como poderia acessar até onde se encontrava se aquele corsário aposentado lhe negava a entrada? Teria que subir pelos balcões como uma ladra vulgar?

—Pode lhe dizer quem sou, por favor? —Perseverou. —Seguramente que...

—Não! —Respondeu-lhe com firmeza. —Parta agora mesmo! —Continuou ao mesmo tempo em que segurava a porta para fechar-lhe na cara.

Nesse momento, uma das serventes apareceu por trás chamando a atenção daquele espécime e Valéria, armando-se de coragem, aproveitou o oportuno descuido para acessar ao interior.

—Trevor! Trevor! Onde está? —Clamou desesperada correndo de um lado para o outro.

—Senhorita! —O empregado trovejou atrás dela tentando lhe alcançar. —Saia agora mesmo deste respeitoso lar! O senhor não se encontra neste momento!

—Trevor! Trevor! —Continuou chamando-o enquanto evitava que aquele homem tocasse qualquer parte de seu corpo para tirá-la dali. Depois de decidir enfrentar a verdade, um pirata aposentado não lhe impediria de obter seu objetivo.

Então, quando pensava que não conseguiria fazê-lo aparecer com seus gritos, uma porta se abriu no final do corredor pelo qual corria e apresentou-se a grandiosa figura de Trevor. Valéria freou a corrida, ficou parada olhando-o sem pestanejar e contemplando a cara de cólera que exibia.

—Que diabos está acontecendo aqui, senhor Butler? —Vociferou zangado, mas quando viu a mulher que havia em frente a ele, a ira se dissipou em um milésimo de segundo. —Valéria? —Perguntou desconcertado.

—Sim —ela respondeu abaixando o olhar para não seguir observando a expressão daquele rosto que amava e que, por como a contemplava, deduziu que não tinha sido boa ideia apresentar-se...

 


Trevor leu de novo a carta e após lançá-la sobre sua escrivaninha de mogno escuro, amaldiçoou pela décima sexta vez. Fez tudo o que aquele barão arrogante lhe tinha indicado e voltava a negar o evidente. Desesperado, acariciou seu cabelo escuro, colocou os cotovelos sobre a mesa e suspirou. Já não sabia quais alternativas ficavam para obter que Philip fosse reconhecido como filho de Burke. Tinha procurado, junto com o senhor Lawford, o melhor administrador de Londres e o único que podia achar uma agulha em um palheiro, a maneira de fazer o excelentíssimo Edgar Albrecht Freiherr von Giesler entender que dizia a verdade. Até lhe pediu ao conde Crowner que realizasse a melhor cópia que podia oferecer em sua imprensa para lhe fazer chegar a certidão de nascimento de Philip. Nela descobriu que ambos os irmãos escondiam um segundo nome, o de seu pai e avô. Um que lhes unia ao título. Burke foi muito ardiloso, mais do que ninguém pôde imaginar. Embora ele rejeitasse a baronia, dava a oportunidade ao seu primogênito varão ou ao pequeno Martin no caso de que Philip falecesse, a aceitar sua única herança quando quisessem. Mas nem por essas o barão alemão dava seu braço a torcer. Negava-se terminantemente a admitir que seu querido filho tivesse abandonado uma vida repleta de opulência e poder para viver de maneira humilde em Londres e, além do mais, casado com uma cigana espanhola. «Lüge! Du lügst!», repetia sem cessar nas poucas linhas que escrevia de seu punho e letra.

Por sorte, seu fiel mordomo Butler, a quem contratou porque era alemão e ensinaria aos irmãos de Valéria seu idioma e seus costumes, disse-lhe que não lhe insultava, como ele acreditava, mas sim repetia sem cessar que mentia. Mas não era assim... possivelmente, se algum dia aceitasse a visita que lhe tinha devotado para que o conhecesse pessoalmente, não lhe caberia nenhuma dúvida de que era seu neto legítimo. «Maldita aristocracia!», gritou ao mesmo tempo em que se levantava do assento com brutalidade. Tinha esperado aquela miserável carta para aparecer em frente à Valéria nesse mesmo dia, até perdeu a cerimônia de Borshon para que o mensageiro não se atrasasse em fazê-la chegar e, para que? Para nada!

Irado, caminhou para o móvel bar, agarrou a garrafa de água fresca e encheu o copo. Não podia esperar mais tempo. Aquelas três semanas, apesar de não ter parado nem um só minuto, fizeram-se intermináveis. Todas as noites, quando caía rendido sobre seu leito, recordava de Valéria. Tinha saudades dela, sentia saudades e cada vez era mais difícil concluir seu juramento. Com o copo na mão direita se dirigiu de novo para a mesa do escritório e observou os papéis que tinha recolhido sob uma pasta. Entre eles estava o contrato de compra da casa onde vivia, o lugar no qual tinha decidido criar sua família uma vez que Valéria se convertesse em sua esposa. Foi amor à primeira vista, como lhe aconteceu ao pousar os olhos sobre o pequeno corpo de sua amada. «Se apartasse os olhos de suas empregadas descobriria que ela...», recordou a frase do inspetor O´Brian.

Nesse instante, justo quando fixou o olhar escuro sobre a pequena trapaceira, brotou do interior de suas vísceras um instinto de posse e amparo que lhe impediram de apartar-se de Valéria. Espiava-a, seguia-a e tentava procurar a forma de chegar até ela e não parou até alcançá-la. O que lhe havia dito o inspetor sobre proteger seu coração? Não precisou protegê-lo porque, do momento no qual Valéria subiu ao seu escritório, apesar de usar um traje masculino, quis beijá-la, soube que seu coração já não lhe pertencia, este tinha trocado de dono...

Depois de dar vários passos, olhou ao seu redor. Albergava a esperança de que Valéria sentisse aquela moradia como seu lar. Tinha comprado quase todo o necessário para viver tranquilamente, embora não lhe cabia a menor dúvida de que lhe daria o toque feminino que necessitava. Continuou andando para a janela que havia atrás de sua mesa. Desse ponto da habitação podia contemplar aqueles apaixonados de alabastro. Ela de cor branca, ele de âmbar. Trevor sorriu e evocou em sua mente o ocorrido quinze dias antes, justo o momento no qual um comerciante, depois de escutar o rumor de que procurava uma moradia para comprá-la, apareceu no clube e o conduziu até ali.

Encontravam-se no interior da carruagem, Berwin, ele e o antigo proprietário. Este, durante todo o trajeto não cessava de lhes explicar os grandes investimentos que tinha realizado para construí-la e a pena que lhe dava ter que vendê-la. Falava e falava sem cessar como todo bom negociante que se preze, mas Trevor não escutou nada do que dizia. Depois de rejeitar sete mansões, estava seguro que aquela seria a oitava. Entretanto, quando pôs o pé sobre o chão, elevou o rosto e a contemplou, um sorriso trêmulo se desenhou em seu rosto. Girou-se para seu administrador, quem ainda nem tinha podido sair da carruagem e lhe gritou que fizesse calar de uma vez por todas aquelas faladoras, dando-lhe o sinal que lhe pedia.

—Senhor, está seguro? —Berwin perguntou-lhe assombrado. —Não acredita que deveríamos confirmar como se encontra o interior dessa moradia?

—Como se encontra? —Trevor perguntou ao antigo proprietário, quem ficou pálido ante sua inesperada decisão. Como não lhe tinha prestado atenção durante todo o trajeto, não confiava nessa venda.

—Como lhe disse, mal vivi nela. Nem a planta superior nem a do meio estão mobiliadas e na baixa encontrará alguma marca de uso na cozinha. A única vez que decidi pernoitar nela fiquei adormecido no divã da biblioteca —explicou-lhe.

—Por que construiu esses torreões? Tinha pensado encerrar em seu interior os lacaios desobedientes? —Trevor perguntou olhando-os com expectativa.

—Minha esposa é irlandesa, senhor Reform, —começou a dizer com uma estranha aflição —e lhe prometi ao nos casarmos que não teria saudades de suas terras. Por isso, como lhe disse durante o trajeto, utilizei um arquiteto irlandês para sua construção.

—E essas fontes? —Perguntou olhando primeiro à figura feminina e logo à masculina.

—Desejei destroçá-las com minhas próprias mãos, —comentou o comerciante franzindo o cenho —mas não tive a força necessária para fazê-lo.

—Por qual motivo? —Inquiriu voltando-se para ele.

—Porque é uma brincadeira para com minha pessoa, senhor Reform. —Ao ver que este arqueava a sobrancelha direita em sinal de pergunta, respirou fundo e se decidiu revelar o motivo pelo qual precisava desprender-se daquela casa. —O arquiteto que viajou da Irlanda até aqui tinha tido uma amada e a guerra os separou. Com o tempo perdeu a esperança de achá-la, posto que ao retornar descobrisse que ela se casou com um inglês.

—Já entendi... —Trevor murmurou acariciando o queixo.

—Então teve a má sorte de escolher o antigo amor de sua esposa e ela, uma vez que o reconheceu...

—Sim, senhor. Partiu com ele...

—Quanto disse que pede por ela? —Perguntou girando-se de novo para o lar.

—Vinte mil. Só peço o que investi. Preciso me desprender deste maldito lugar —adicionou enquanto observava como seu possível comprador acelerava o passo pelo caminho.

Durante o trajeto para a entrada principal, Trevor se girou para contemplar uma pequena zona do jardim onde a grama não alcançava a altura de uma polegada. Era o lugar perfeito para fazer um piquenique nos dias nos quais o sol brilhasse sobre Londres. Voltou a sorrir ao imaginar-se atirado sobre uma manta, brincando com todos os filhos que sua amada Valéria pudesse lhe oferecer enquanto lhe repreendesse por mimá-los. De repente seus olhos se obscureceram ainda mais. O pensamento de criar uma grande família o deixou aturdido. Sua futura esposa quereria ser a mãe de meia dúzia de filhos ou se contentaria com um para que herdasse o legado de seus pais? Esperava que ela não quisesse ter só um herdeiro, porque ele necessitava no mínimo de quatro machos Reform para destruir a cidade que jazia sob seus pés.

—Então... há trato? —A voz do vendedor interrompeu suas divagações.

—Deve esperar que o senhor Reform entre, não lhe parece? —Berwin intercedeu. —Ainda não vimos nada do que...

—Se aceitar dezessete, há —Trevor assinalou sem olhá-lo.

—Dezessete... —murmurou o vendedor. —De acordo! —Disse depois de meditar durante uns instantes.

Trevor estreitou a mão para consolidar o pacto e em seguida caminhou para o interior de seu novo lar.

Depois de olhar os documentos que o nomeavam proprietário, observou o envelope que havia embaixo destes. Tinham-nos aceito. Era de esperar depois de haver acrescentado à solicitude um maço com mil libras. Mas o dinheiro não importava se aqueles dois pirralhos continuassem seus estudos em um bom colégio e não sob o pérfido olhar de um professor como o senhor Mayer.

Terminou de beber o conteúdo de seu copo, apoiou-o sobre a mesa, pegou os papéis que tinha agrupado para mostrar à Valéria o que tinha feito durante sua ausência e caminhou para a saída. No meio do escritório se lembrou de que não levava posta a jaqueta. Um sorriso lhe cruzou o rosto. Encontrava-se tão ansioso por vê-la que podia ir despido pela rua sem ser consciente de dita nudez. Deu duas grandes pernadas para chegar ao cabideiro e, justo no momento no qual estendeu a mão para pegar a roupa, um incrível alvoroço se formou na entrada de seu lar. De onde se encontrava podia escutar uma mulher gritando seu nome e a grave voz de seu mordomo. Que diabos acontecia? Quem ousava invadir seu lar?

Enfurecido ao imaginar que Jun continuava com a loucura de consegui-lo, abriu a porta com tanta brutalidade que as dobradiças rangeram. Avançou um passo para o corredor e gritou como um demente. Entretanto, ao contemplar a pequena figura de sua amada usando o vestido que lhe deu de presente, toda a cólera desapareceu como a fumaça de um bom havanês.

—Valéria? —Perguntou confuso. Talvez o desejo de tê-la ao seu lado, de vê-la de novo lhe estava causando uma enorme alucinação.

—Sim —respondeu abaixando a cabeça.

—Meu amor! —Exclamou avançando para ela. Atraiu-a para ele, abraçou-a com força e tentou acalmar o medo que tinha sentido ao vê-la daquela forma. —Está bem? Aconteceu algo? —Perguntou afastando-a devagar para observar aquele rosto pálido.

Ela não podia falar, ainda seguia desnorteada por aquela aparição endemoninhada e quão único pôde fazer foi negar com a cabeça.

—Senhor Butler! —Trovejou procurando com o olhar o servente.

—Sim, senhor? —Respondeu este notavelmente assombrado.

—Que diabos aconteceu? Por que a perseguia? —Ao ter o rosto colado em seu torso, Valéria escutou o pulsar agitado de seu coração. Estava zangado, colérico, muito mais do que devia estar com aquele fiel empregado que só tentou acatar uma ordem dele.

—Trevor... —sussurrou-lhe para apaziguá-lo.

—E? —Ele insistiu sem dar atenção ao murmúrio de Valéria.

—Senhor, só desejava cumprir seu principal mandato —respondeu abaixando a cabeça.

—E o fez muito bem, senhor Butler —saltou em sua defesa. Não podia permitir que Trevor o repreendesse ou o despedisse por sua culpa. Apartou-se ligeiramente daquele abraço protetor e se girou para o servente. —Não se preocupe, você tem feito um trabalho excelente. Fui eu quem não lhe escutou e acessei ao interior omitindo seu desejo.

—Danke, fräulein Giesler. Du bist sehr nett5 —respondeu-lhe em alemão.

Ao escutar como lhe agradecia, girou-se lentamente para Trevor com os olhos como pratos. Havia relaxado, percebeu-o ao contemplar como sua mandíbula se abrandava. Sorriu ao vê-la tão perplexa, encolheu os ombros e respondeu à pergunta que lhe emitia com o olhar.

—Pensei que seria conveniente que não perdesse suas raízes —comentou subtraindo importância a um fato que a deixou tão cheia de amor que podia saltar por todo o corredor gritando o quanto feliz se sentia.

Entretanto, decidiu não mostrar aquele entusiasmo ainda... girou-se para o servente, quem permanecia em frente a eles e, desenhando um leve sorriso, atreveu-se a lhe responder.

—Danke ihnen, sir Butler. Du bist ein guter mann6 —agradeceu-lhe.

O mordomo não mostrou nenhum assombro ao escutar como lhe respondia. Não obstante, embaixo daquela couraça gélida, seu coração dava saltos de alegria. Por fim podia expressar-se com liberdade sem ser observado como se fosse um intruso no país.

—Pode se retirar —Trevor lhe pediu enquanto esticava sua mão para pegar a dela.

—Sir... —disse-lhe fazendo uma leve reverência ao Reform. —Fräulein Giesler —indicou olhando-a e desenhando um minúsculo e quase imperceptível sorriso.

Butler se girou sobre si mesmo e aumentou o pequeno sorriso quando ninguém lhe observava. «É claro! —Exclamou para si. —Só uma mulher com sangue alemão possuiria a coragem suficiente para me fazer frente». E sentindo uma imensa alegria pela decisão de seu novo senhor, dirigiu-se para a cozinha para revisar o que a cozinheira preparava.

Trevor levou a mão de Valéria para sua boca e a beijou com suavidade. Ela apartou o olhar do servente e o fixou nele. As íris escuras lhe revelaram tantas emoções que ficou sem ar. Como tinha podido duvidar de sua palavra? Comovida pelos sentimentos que ele expressava em seus olhos, caminhou para ele e o abraçou de novo.

—Obrigada... —sussurrou depois de permanecer em silêncio durante uns instantes.

—Não tem por que me agradecer —respondeu abraçando-a de novo com força. —Disse-te que procuraria a forma de me converter em um homem adequado para você.

—Sempre foi o adequado —Valéria afirmou elevando com suavidade o queixo.

—Minha querida Valéria... —murmurou aproximando os lábios da boca que tinha tido saudades durante tanto tempo.

A paixão que despertava cada vez que a beijava retornou fazendo com que estremecesse cada centímetro de sua pele. Como tinha suportado tantos dias sem sentir aquela apaixonada carícia? Lentamente Valéria colocou seus braços ao redor de seu pescoço aproximando-o mais a ela. O calor que emitia a grande figura de Trevor ultrapassou as roupas que vestiam e alcançou seu corpo. Calor, paixão, necessidade, amor... tudo isso ele lhe mostrava em um só beijo.

—Senti sua falta... —confessou-lhe sem apartar os lábios de sua boca.

—E eu... —respondeu-lhe descendo com suavidade suas mãos pelas costas largas.

—Por que veio, meu amor? Necessita da minha ajuda? Seus irmãos estão bem? —Perguntou sem respirar enquanto colocava seu queixo sobre o sedoso cabelo escuro. Inspirou o perfume à canela, um que teve saudades desde que fechou a porta do lar dela.

Valéria negou com a cabeça esfregando a testa no torso firme e ainda levemente agitado. Deu-lhe vergonha levantar o rosto e deixar que contemplasse o rubor de suas bochechas. Sentia-se como uma menina pequena a quem não lhe davam suas quinquilharias preferidas e, depois de roubá-la, explicavam-lhe que estavam a ponto de dar-lhe por seu bom comportamento.

—Querida... —Trevor apanhou seu queixo e o elevou com suavidade. —Duvidava de mim? —Perseverou com um fio de voz.

As lágrimas brotaram sem querer de seus olhos, Reform embalou seu rosto entre suas palmas, apartou as gotas de seu rosto e lhe ofereceu o beijo mais terno que podia lhe dar de presente.

—Disse-te que desejava me converter em um homem digno —sussurrou-lhe. —E te prometi que não retornaria até que o conseguisse —acrescentou aproximando seu nariz do dela.

—Mas o tempo passava e eu não sabia nada de você... —expôs-lhe duvidosa. —Pensei que ao final tinha se arrependido...

—Arrependido? —Perguntou surpreso. —Jamais faria tal loucura, Valéria! —Voltou a beijar-lhe a testa. —Quer saber o que tenho feito durante todos estes dias? —A expectativa que Trevor refletiu em seus olhos causou um batimento mais forte no coração de Valéria.

—Sim —respondeu-lhe sorrindo.

Com rapidez entrelaçou os dedos de sua mão esquerda com os dela e a conduziu até seu novo escritório.

Quando Valéria acessou ao interior ficou boquiaberta. Era tão parecido ao que tinha no clube que por um momento teve que meditar sobre o lugar no qual se encontrava. Olhou à sua esquerda, ali estava o enorme sofá escuro.

—Trouxe-o. Não podia abandonar uma poltrona tão cômoda nem tampouco desejava comprar outro, este já tem a forma do meu corpo —disse a modo de desculpa. —Mas todo o resto te juro que é novo...

Valéria começou a relaxar-se, até desenhou um leve sorriso por aquela desculpa. Para que ele entendesse que não lhe importava aquele ato inocente, dirigiu-se para o sofá e se sentou nele.

—É cômodo... bastante —assinalou ao mesmo tempo em que alisava as dobras de sua saia.

Trevor quis correr para ela e tombá-la sobre aquele grande divã de tecido escuro, mas se conteve. Antes de assaltá-la de novo e cobrir seu corpo de beijos desesperados tinha o dever de lhe explicar tudo o que tinha realizado durante sua ausência.

—Pude vender o clube —começou a relatar enquanto caminhava para a mesa do escritório e pegava os papéis que tinha recolhido. —Aquele velho resmungão tentou regatear o preço, mas ao final consegui a soma que desejava —informou caminhando para ela. Sentou-se ao seu lado e colocou sobre seus joelhos o documento de venda. —Por fim me liberei dele! —Exclamou entusiasmado. —Acabaram-se as noites em claro, os sobressaltos e as enxaquecas —adicionou.

—E os empregados? O que fez com eles? —Perguntou enquanto olhava os papéis.

—Todos têm novos empregos nas fábricas que adquiri graças ao assessoramento do conde Crowner. Sabe de quem te falo? —Perguntou-lhe mostrando os quatro acordos que tinha adquirido. Quatro empresas que, segundo o conde, dar-lhe-iam tanta rentabilidade que não precisaria investir em outras companhias pelo resto de sua vida.

Valéria assentiu. Todo mundo sabia quem era Leopold Spencer, o antigo visconde de Dankwourth, que depois da morte de seu tio, o conde Crowner, herdou o dito título. Mas o escândalo pelo qual todo mundo lhe conhecia foi porque, meses depois desse falecimento, ele se casou com a viúva de seu tio, lady April Appelton.

—Com os benefícios que obteremos até nossos netos poderão viver comodamente —acrescentou desenhando um sorriso satisfatório.

Aquele comentário causou em Valéria uma emoção tão imensa que lhe avermelharam as bochechas posto que essas palavras afirmassem que seguiria com ela e que, além disso, teriam filhos.

—E esta casa? —Perguntou olhando ao seu redor.

—Foi amor à primeira vista —revelou. —Não tive que caminhar muito para saber que desejava viver aqui. Viu as fontes da entrada? —Disse-lhe voltando-se para ela. Valéria assentiu. —Pois são dois apaixonados; o arquiteto desta casa e a esposa do antigo proprietário. Por coisas do destino, o anterior pretendente partiu à guerra e quando retornou sua amada se casara com um inglês. Ele continuou trabalhando no ofício que realizava antes de alistar-se e casualmente se fez bastante famoso até o ponto de requererem sua presença para construir esta casa. Quando descobriu que a esposa do homem que o contratou era a mulher de sua vida, quis lhe mostrar que ainda a amava acrescentando a essa mansão duas figuras. Fascinante, não é?

—Então ela partiu com ele... —refletiu.

—Sim, e o despeitado marido desejou desprender-se deste presente o antes possível —comentou divertido. —Eu teria matado o arquiteto... —alegou entreabrindo os olhos maliciosamente.

Ante esse comentário Valéria lhe deu uma leve palmada no ombro enquanto ela abria os olhos como pratos.

—Eu não permitiria que partisse... —assinalou atraindo-a para ele.

—Eu não tenho que me afastar deste lar para encontrar a pessoa que amo —respondeu ruborizando-se de novo. Ao perceber que Trevor estava a ponto de jogar o resto dos papéis ao chão e saltar sobre ela, colocou suas mãos no largo torso e o retirou. —O que é isso? —Quis saber ao ver uma carta com um escudo que lhe resultava familiar.

—Seus irmãos foram admitidos no Westminster —anunciou colocando a missiva do barão sob a admissão dos Giesler. —A partir do próximo outono eles poderão estudar ali, se assim o desejarem.

—Trevor! —Exclamou emocionada. Seus olhos mostraram um brilho hipnotizante. Não podia acreditar, ele também velava pelo futuro de seus irmãos! —Martin enlouquecerá quando o dissermos! —Soltou emocionada.

—E Philip? —Perguntou arqueando as sobrancelhas.

—Não ficará mais remédio que acatar minhas ordens até que cumpra a maioridade —disse com firmeza. —Ele tem que ser consciente do que pode acontecer no futuro...

—Este é o motivo pelo qual não tinha aparecido antes...—Trevor pegou o envelope que o barão lhe enviou e o ofereceu a ela. —Tentei de tudo para lhe fazer compreender que são filhos de Burke e que a sucessão do título pertence a Philip, mas segue em sua posição.

—Trevor... —Valéria acolheu o envelope entre suas mãos trementes, emocionada ao saber que ele também tinha pensado no futuro do moço. Embora se mostrasse triste por não ter obtido tal façanha, ela não estava. O fato de saber que tentou era mais que suficiente para compreender o amor e o amparo que sentia, não só por ela, mas também por seus irmãos. Jogou o envelope ao chão e se laçou para ele.

—Querida... —murmurou atônito. —Eu teria ficado encantado que ele desse seu braço a torcer...

—Não me importa que esse resmungão tenha negado nossa existência —expôs acomodando-se sobre seu peito.

—Mas talvez Philip... —tentou dizer abrindo os braços para que ela se enroscasse em seu corpo.

—Ele viverá feliz aqui, conosco. Londres é nosso lar, Trevor —enfatizou.

—Como desejar, meu amor. Seus desejos são ordens para mim —disse acariciando com seus lábios os dela.

—Todos? —Perguntou travessa.

—Todos... —ele sucumbiu na expectativa.

—Pois começarei a lhe ordenar... —sussurrou enquanto dirigia sua boca para a orelha esquerda —que me faça amor. A última vez que permanecemos a sós me prometeu que não apartaria suas mãos e seus lábios de mim...

Trevor fechou os olhos deixando-se acariciar com o suave e quente fôlego que Valéria expulsava ao falar. Notou como todo seu corpo ficou tenso e lhe arrepiou o pelo. Como podia perturbá-lo dessa forma? Como podia convertê-lo em um homem inexperiente só escutando sua voz? Tragou saliva e, muito lentamente, separou-se dela.

—Valéria... antes desse momento, que te juro, desejo tanto quanto você, preciso te perguntar uma coisa. —Agarrou-lhe as mãos, levou-as à boca para acalmar aquela inquietação que tinha surgido nela com um beijo e se levantou do sofá.

Com os olhos cravados nas largas costas Valéria notava como seu coração pulsava a um ritmo desenfreado, embora lhe custasse determinar a causa de tal agitação. Seria por havê-la ejetado ou por averiguar o que se propunha fazer?

Trevor, depois de pegar uma pequena caixa do bolso da jaqueta, retornou para sua amada, ficou de joelhos ante ela e lhe mostrou o estojo de veludo negro.

—Minha querida Valéria Giesler, filha de Burke Albrecht Freiherr von Giesler, quer ser minha esposa?

Nesse instante os olhos de Valéria se encheram de lágrimas e cobriu sua boca com as mãos. Tentou deslizar-se pelo sofá para ajoelhar-se ao seu lado, mas Trevor não o permitiu, levantou-a ao mesmo tempo em que ele o fazia.

—Espero que tudo o que eu tenho feito até o momento a tenha convencido do muito que te amo e que desejo me converter em um marido digno de você —assinalou afogado pela emoção.

—Sim —ela respondeu enfim estendendo sua mão esquerda para que Trevor lhe pusesse o anel. —Aceito-o Trevor Reform porque, embora não tivesse feito nada de tudo isso, —olhou-o aos olhos —seguiria sendo o homem adequado para mim.

—Amo-a —repetiu depois de lhe encaixar o anel de ouro branco com dois preciosos diamantes vermelhos.

—Eu também te amo! —Disse antes de saltar sobre ele para terminar sua confissão de amor com um longo e apaixonado beijo.

Trevor a rodeou com os braços, elevou-a do chão e, em meio desse frenesi, conduziu-a de novo para o sofá. Por fim tinha chegado o momento de fazê-la sua, de entrar em seu corpo e percorrer cada milímetro de sua pele com seus lábios.

—Pequena... —sussurrou-lhe colocando-a sobre o grande divã. —Por fim posso estar contigo... como te prometi. Não apartarei meus lábios de sua boca, nem minhas mãos de seu corpo.

As pupilas de Valéria se dilataram, ansiosa por alcançar o que tinha desejado desde aquela tarde.

—Aqui? —Perguntou depois de tragar saliva.

—Aqui, lá encima, lá embaixo, em todas as habitações... —respondeu-lhe com um olhar tão ardente que a deixou sem respiração.

—Jura-me? —Insistiu estendendo seus braços para que ele se estendesse sobre ela.

—Juro-lhe —respondeu antes de beijá-la.

Já não havia nada que o freasse, Valéria se converteria em breve em sua querida esposa, dar-lhe-ia a vida que merecia e cuidaria de seus irmãos como se fossem filhos deles. Assim, antes que ela pudesse tomar ar para respirar após o apaixonado beijo, Reform acariciou lentamente as pernas de sua futura esposa até que chegou a sua virilha. Enquanto a convertia em uma amante sedenta de prazer, ele tocou com suavidade o sexo úmido, quente e esponjoso dela.

—Não pode imaginar como tive saudades do tato de sua pele... —sussurrou-lhe ao mesmo tempo em que descia sua boca até chegar ao seu decote. Com a agilidade de um hábil amante tirou do espartilho os duros e escuros mamilos e os lambeu devagar, saboreando-os com uma desesperadora lentidão enquanto seus dedos começavam a introduzir-se no interior dela. —Tem-me hipnotizado, querida. Desde o instante no qual pus meus olhos em você te pertenço.

—Trevor... —sussurrou jogando a cabeça para trás, deixando-se levar pela luxúria e desespero que lhe causava. —Eu também te pertenço..., por completo...

—Repita-me isso, meu amor. Repete essas palavras que tanto desejei escutar durante estes dias —pediu-lhe ao mesmo tempo em que lhe subia a saia. Linda, para ele, era a mulher mais formosa que podia existir no mundo e, condenada sua sorte que era só dele!

—Pertenço-te... te... —começou a dizer, mas a frase ficou em um suspiro ao notar como a boca de Trevor bebia de seu sexo. Apertou os punhos, arqueou os quadris para ele e se deixou levar.

—Minha fonte de vida..., meu vício..., meu desejo... —Reform apontava cada vez que sua língua percorria o sexo e obtinha o sabor de seu suco feminino.

Quando notou que sua ereção era tão grande que começava a lhe tremer o corpo pela dor, conduziu suas mãos para o botão e o desabotoou. Aquela liberação, aquela liberdade, deixou-o sem fala. Nunca tinha desejado uma mulher dessa forma tão instintiva... precisava entrar, possui-la e marcar seu interior com seu sêmen. Havia algo mais primitivo que o sentimento de amor? Não.

Depois de ser consciente do alcance desse desejo, foi subindo lentamente sobre ela.

—Não será fácil..., mas uma vez que a dor acalme, tudo o que obterá cada vez que meu sexo entrar em ti será prazer.

—Aceito-o... aceito tudo o que me oferece... —confessou entre delírios de lascívia.

Reform voltou a beijá-la sem deixar que seu sexo se relaxasse. Uma vez que escutou o estalo que se produzia ao penetrá-la com os dedos, desceu-se lentamente a calça e dirigiu seu sexo para o dela.

—Tem certeza, meu amor? Embora morra se me nega isso, posso me contentar com o que tenho até nossa noite de bodas... —disse antes de suspirar fundo.

—Em nossa noite de bodas... —ela lhe respondeu embalando o viril rosto entre suas mãos —haverá muito mais.

Trevor se rendeu ante essas palavras tão eróticas e sensuais. Acomodou melhor seu corpo sobre ela e com uma lentidão angustiante começou a penetrá-la enquanto lhe sussurrava ao ouvido o muito que a amava e acompanhava essa declaração com um sem-fim de beijos.

Valéria se esticou ao notar uma dor terrível. Era semelhante à pontada de uma adaga. Fechou os olhos e começou a respirar de maneira entrecortada.

—Minha vida..., meu amor... relaxe. Tudo passará... —comentou lhe beijando a testa ao mesmo tempo em que ficava quieto. —Prometo-lhe isso...

Quando ela assentiu deu de presente um beijo cheio de consolo, de aceitação e de imensa ternura. Sua amada trapaceira, a mulher de sua vida, deixava que a possuísse, que a convertesse em uma parte dele. Emocionado pelo que estava vivendo, Trevor notou como as lágrimas percorriam seu duro rosto. Amor... tudo o que necessitava um homem para ser feliz era encontrar uma mulher a quem pudesse amar e Valéria era a sua. Elevou lentamente o rosto para reter em sua memória um momento tão desejado, endureceu as pernas e continuou penetrando-a. Depois de atravessar a barreira da virtude notou como seu sexo começava a escorrer-se nela com menos esforço.

—Valéria, Valéria... —murmurou extasiado, excitado e fora de si. Com suaves vaivéns entrava e saía dela. —Minha vida, minha alma, meu tudo —repetia enquanto seu coração pulsava desenfreado, seus lábios requeriam o contato dos dela e cada partícula de seu corpo emanava gotas de suor. —Amo-te...

—Eu também te amo —repetiu uma e mil vezes até que uma explosão acompanhada de um grito dilacerador fez o grande corpo de Trevor tremer.

Com a respiração agitada, com um brilho aquoso em sua testa, Reform apoiou sua cabeça na de Valéria enquanto sua semente entrava nela.

—É minha, Valéria Giesler. É minha para sempre... —sussurrou orgulhoso.

—Sempre fui —ela declarou lhe beijando com suavidade os lábios.


Epílogo

 

Londres, 20 de maio de 1880.

 

Valéria retirou, depois de quinze minutos, o rosto do guichê do veículo e se reclinou para trás. Suspirou fundo e olhou seu marido de soslaio. Como cada dia que permanecia ao seu lado, não apartava a vista dela, estudando cada movimento, cada gesto que realizava para antecipar-se aos seus desejos.

—Há duas alternativas —disse ele muito sério. —Que tome ou que finja sua morte para que o título passe ao Martin. Estou seguro que...

—Trevor, por favor! —Exclamou de maneira cansada ante o disparate que seu marido acabava de indicar.

—Valéria... —murmurou levantando do assento para sentar-se ao seu lado. Agarrou-lhe as mãos, colocou-as em seu regaço e lhe deu um terno beijo no rosto. —Deve compreender que já não é um menino. Nenhum dos dois o são... —alegou para que sua ira começasse a acalmar-se.

—Mas é a oportunidade de sua vida —apontou depois de girar levemente o rosto por volta de seu marido. —Sabe há doze anos... por que rejeita o que lhe pertence por consanguinidade?

—Philip sempre soube muito bem o que deseja fazer com sua vida. Você mesma foi testemunha disso. Recorda o dia que nos informou que trabalharia sob as ordens do Borshon?

—Como ia esquecer uma coisa assim? Quase tenho o nosso pequeno antes do tempo! —Voltou a dizer em tom desesperado.

Apesar de sofrer um desmaio quando seu irmão lhe informou que abandonava os estudos para converter-se em um agente da Scotland Yard, agradecia a Deus por haver indicado Philip ao bom caminho. Durante sua adolescência, em mais de uma ocasião, perdeu a esperança de convertê-lo em um homem de proveito. As dúzias de cartas mensais que lhes enviava o diretor insistiam em que o jovem não teria uma vida afortunada se continuasse com aquela atitude tão rebelde. Mas graças ao Borshon todo seu pesar desapareceu. Desde o dia que Philip foi renomado agente, sua vida mudou radicalmente. Converteu-se em um dos policiais mais temerários, lutando contra o crime corpo a corpo. Embora enfrentasse a morte a cada dia, cada vez que a visitava e brincava com seus sobrinhos, Valéria entendia que isso era o que o fazia feliz e que não desejava mudar sua vida. Por isso, não aceitaria a notícia que lhe levavam. Ninguém podia fazer Philip Giesler mudar uma decisão, nem sequer sua filha Sina, a sobrinha que seu irmão tanto adorava e que utilizavam de mensageira cada vez que precisavam falar com o teimoso agente.

—E... foi-lhe mau? Sua decisão não foi acertada? —Trevor perseverou segurando suas mãos com mais força. Entendia a posição de sua esposa, mas também apoiava a determinação de seu cunhado. Embora por aquele grandioso corpo corresse sangue aristocrata, ele se negava com ferocidade a aceitar aquele cargo. Vivia feliz sendo um agente da Scotland Yard e, pela informação que Borshon lhe oferecia, cada vez que se reuniam, tinha a esperança de que finalizasse sua carreira policial ostentando o cargo que ele abandonaria em uns anos. Mas... Valéria aceitaria que seu irmão se convertesse em uma pessoa semelhante?

—Todo o dia luta contra a morte... —ela acrescentou de maneira reflexiva. —Isso não é vida nem para ele nem para os que o amam!

—Não podemos lhe obrigar... —disse com suavidade.

—Prometa-me, Trevor Reform, que quando estivermos em frente a ele, você me apoiará fervorosamente —pediu-lhe.

—Alguma vez atuei de maneira contrária à tua? —Perguntou arqueando as sobrancelhas.

—Isto não será tão fácil como convencer Martin a abandonar o lar que comprou e apareça em alguma das festas às quais é convidado, Philip tem um caráter muito obstinado. Quando tem um não por resposta, nada nem ninguém lhe faz mudar de ideia —assinalou olhando-o aos olhos sem piscar.

—Bom, talvez hoje tenha um bom dia e possa refletir sobre a notícia que lhe levamos —animou-a lhe dando outro grandioso beijo, mas desta vez nos lábios.

—Trevor... —advertiu-o ao ver como ele começava a lhe levantar o vestido.

—Só quero averiguar que ligas colocou hoje... vermelhas ou brancas? —Perguntou arqueando as sobrancelhas e sem deixar de acariciar os finos objetos. —Além disso, é bom para apaziguar sua inquietação... —disse-lhe ao mesmo tempo em que sua língua acariciava com suavidade o lóbulo esquerdo. —Reconheça que depois de consumar nossas paixões é um mar em calma...

—Não é adequado, Trevor. Recorde que nos convertemos em dois pais respeitáveis e que estes tipos de atos devem realizar os jovenzinhos... —comentou entreabrindo os olhos.

—Eu me sinto muito jovem... —ronronou lhe pegando a mão esquerda para colocá-la sobre sua ereção. —Nota? Muito, mas muito jovem... —apontou subindo devagar a mão sob o vestido. —E você? É jovem, meu amor?

Uma vez que aquela grande palma chegou até o lugar que desejava tocar, ela gemeu, Trevor sorriu e lhe sussurrou ao ouvido:

—O tempo não passa por nós, querida. Teremos cem anos e continuaremos reivindicando este amor...

—Trevor... —murmurou reclinando a cabeça para trás, sentindo os toques de seu marido no sexo. Rápidos, ágeis e, sobretudo eróticos. Ele sabia como acendê-la com umas leves carícias.

—Valéria... —respondeu-lhe sem diminuir nem um ápice o desejo que sentia por ela. —Relaxe... abandona tudo o que tem nessa cabecinha e deixa que seu marido te acalme...

Ela respirou fundo ao notar como os longos dedos se introduziam em seu interior. Colocou as palmas a ambos os lados do assento, fechou os olhos e esqueceu tudo o que a inquietava.

Logo chegou o primeiro espasmo de prazer... Valéria tentou apertar os lábios para que seus gemidos não saíssem de sua boca. Não era correto que a mãe de quatro meninos e uma linda menina, esposa e irmã exemplar se comportasse como uma jovem amalucada. Mas ele sempre a deixava louca de desejo e com suas hábeis artimanhas a fazia esquecer o que significava a palavra decência.

—Minha pequena trapaceira... —Trevor lhe sussurrou quando observou o rubor de suas bochechas. —Minha amada trapaceira... —continuou dizendo enquanto a elevava sem dificuldade para colocá-la sobre suas pernas.

—Trevor... é... uma... má... influência —murmurou Valéria ao notar a posse de seu marido sobre ela.

—Muito má? —Perguntou após rodeá-la entre seus braços para encaixá-la melhor a ele.

—Muito... —sussurrou antes de colocar suas mãos sobre os fortes ombros e começar a sentir o prazer que seu marido lhe oferecia cada vez que a assaltava.

—Minha amada Valéria... —ele cochichou antes de apanhar os lábios que adorava entre os seus.

Notou como as imensas mãos percorreram seu corpo até que se cravaram em seus quadris. Abriu os olhos para contemplar aquele brilho escuro que Trevor exibia cada vez que lhe assaltava a paixão. Anos... doze anos levava observando aquele olhar lupino e cada dia era diferente para ela.

Percebeu como os dedos dele se cravavam mais em seu corpo, como o desejo aumentava até o ponto de agitá-la como se pesasse menos que uma pluma... como o êxtase os envolvia de novo para afiançar o que já admitiam: eram um só.

Depois que ambos chegaram ao êxtase, aplacando os gemidos finais com suas próprias bocas, Trevor colocou ambas as mãos sobre as bochechas de sua esposa e sorriu.

—Amo-te, Valéria Reform. Amo-te e te amarei sempre.

—Amo-te, Trevor Reform. Amo-te e, como volta a me seduzir em uma carruagem, esquecerei a promessa que lhe fiz —ameaçou com aparente seriedade.

Trevor soltou uma enorme gargalhada, atraiu-a para ele e a abraçou. Por mais que ela declarasse o contrário, pelas veias de sua amada pícara corria o sangue apaixonado de seu adorado pai...

 


Philip se tocava a barba enquanto observava o documento que sua irmã lhe tinha posto sobre a mesa. Não havia dúvidas, depois de tanto tempo aquele velho resmungão declarava, enfim, que ele era seu neto e como tal, pedia que viajasse até a Alemanha para encarregar-se do título antes que ele falecesse. Cravou o olhar no teto a modo de reflexão. Devia explicar à Valéria o que tinha ocorrido na noite anterior? Não, é claro que não. Se lhe contasse que jogou dados em seu novo trabalho o agarraria pela orelha e o arrastaria ela mesma até a grande Alemanha. Assim, por seu bem e pelo de seu novo chefe, o melhor era omitir certos aspectos da noite passada.

—Philip! —Exclamou impaciente. —Não vai responder-nos?

Giesler se levantou do assento, caminhou para eles, que tinham ocupado as duas poltronas que tinha em frente à mesa, e se sentou sobre a beirada desta.

Valéria o olhou sem piscar. Não lhe deu uma boa impressão a atitude que ele mantinha, sem dúvida alguma a balança se inclinava para a opção negativa.

—Ontem me propuseram um novo trabalho —Philip começou a dizer cruzando os braços. A camisa branca, arregaçada até o cotovelo, pressionava os antebraços como se quisesse diminui-los. Valéria entreabriu os olhos esperando que, em qualquer momento, abrissem-lhe as costuras devido àquela forte pressão.

—Que trabalho? —Trevor interveio estendendo a mão para sua esposa para evitar que, depois da exposição, não se levantasse do assento e começasse a arranhar a cara de seu irmão.

—Conhece o Logan Bennett?

Reform afirmou com a cabeça. Conhecia à perfeição o seu irmão, Roger Bennett. No passado ambos tinham acabado atirados sobre o chão de seu escritório após ingerir várias garrafas de licor e terem sido agradados por formosas mulheres. Mas esse tempo de seu passado já desaparecera para ambos. Assim não ia explicar ao seu cunhado, diante de sua amada esposa, até que ponto conhecia os Bennett.

—Leva um pouco mais de dois anos sulcando os mares em seu navio e, depois do último incidente em alto-mar, procurou pessoal novo —Philip continuou explicando.

—Que classe de pessoal? —Valéria perguntou olhando a um e logo a outro. —Marinheiros? Quer deixar a Scotland Yard para se converter em um miserável marinheiro?

—Serei seu braço direito —respondeu olhando ao Trevor.

—Qual é seu encargo? —Reform continuou perguntando apesar de escutar como sua mulher soltava o ar pelo nariz de maneira abrupta.

—Cuidar de suas costas. Como bem sabe, Logan é o único irmão que o marquês de Riderland tem e este não deseja que lhe aconteça nada para que no futuro ostente o título e a Coroa não o reclame —explicou. —Talvez assim continuem com aquele asilo que construíram e não deixem aqueles pequenos órfãos na rua.

—Como o fará? —Perseverou levantando do assento. Colocou as mãos nas costas e ficou imóvel em frente a ele.

—Como tenho feito sempre —alegou. —Borshon me preparou para confrontar um posto dessa envergadura e não tenho dúvidas de que o farei satisfatoriamente.

—Estou seguro disso, até agora Borshon só teve palavras de glória para ti, mas se estivesse em sua situação estudaria com mais atenção o que acabamos de te mostrar. Isto mudaria sua vida...

—Com mais atenção? —Valéria interveio olhando a ambos encolerizada. —Pelo amor de Deus! Deve admitir quem em realidade! Um pirata? Um agente? Algum dia irá a nós porque desejará se converter no forçudo de um circo? Santo Deus, Philip! É um barão! O filho do nosso amado pai!

—Querida... —Trevor colocou as mãos sobre os ombros de sua esposa para acalmá-la. Não havia nada a fazer com Philip. Se este tinha tomado uma determinação, ninguém podia lhe fazer mudar de parecer.

—Possivelmente, em alguma dessas viagens, atraquemos em terras alemãs e invista algo do meu prezado tempo em visitar o velho —comentou divertido. Reform lhe repreendeu com o olhar, mas Valéria tentou matá-lo com o seu.

—Então... o que quer que eu responda ao nosso avô? —Ela exigiu saber depois de um momento em silêncio.

—Não precisa interceder por mim. Tenho idade suficiente para escrever uma missiva ao arrogante barão e lhe explicar o que vou fazer com esse maldito título —resmungou.

—Philip, ela só quer ajudar —Trevor intercedeu para defender a sua esposa. Embora fosse seu irmão, se continuasse com esse tom, dar-lhe-ia um murro.

—Está bem! —Valéria sucumbiu levantando do assento.

—Deixar-te-ei em paz se é o que deseja! Mas entenda uma coisa, Phillip Albrecht Freiherr von Giesler, —acrescentou seu segundo nome e o cargo que devia ostentar embora o negasse —chegará um dia no qual aparecerá na minha porta e me pedirá conselho e eu, claro está...

—Dar-lhe-á isso com muito gosto, como tem feito até o momento —Trevor terminou a frase antes que sua esposa soltasse algo que lhe provocasse dor no futuro. —Boa tarde, Philip, espero que esse novo cargo seja benéfico para você.

—Valéria... —Philip disse após descruzar os braços e estendê-los para ela. —Será capaz de partir sem me dar um beijo? E se os piratas me assaltam e morro lutando pela vida de outro?

—Philip! —Trevor repreendeu-lhe.

Valéria se voltou para ele com vontade de lhe gritar um par de coisas, mas ao vê-lo ali exibindo um grandioso pesar em seu rosto, estendendo as mãos para ela, toda a ira se dissipou.

—Dar-te-ei um beijo se me prometer uma coisa —disse-lhe levantando o dedo inquisidor.

—O que? —Perguntou abrindo os olhos como pratos.

—Que aceitará o título antes que o nosso avô morra.

—Quantos anos estipula que podem ficar o velho? —Perguntou ao seu cunhado.

—Cinco, seis quando muito —Trevor exagerou. Dada à idade e o estado de saúde do velho barão, se chegasse aos três seria todo um milagre.

—Prometo-lhe —respondeu enfim.

E nesse momento Valéria saltou aos braços de seu irmão selando dessa forma o pacto.

 

                                                                  Dama Beltrán

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades